The Project Gutenberg eBook of Raios de extincta luz

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Title: Raios de extincta luz

Author: Antero de Quental

Contributor: Teófilo Braga

Release date: March 22, 2007 [eBook #20874]
Most recently updated: January 1, 2021

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: M. Gomes, Livreiro-Editor 70, Rua Garrett, 72, 1892

Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

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ANTHERO DE QUENTAL

RAIOS DE EXTINCTA LUZ

POESIAS INEDITAS (1859-1863)

COM OUTRAS PELA PRIMEIRA VEZ COLLIGIDAS

PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORSO BIOGRAPHICO
POR
THEOPHILO BRAGA

LISBOA *M. GOMES, Livreiro-Editor* 70, Rua Garrett, 72 1892

RAIOS DE EXTINCTA LUZ

TIRAGEM ESPECIAL

D'esta edição tirarem-se:

4 Exemplares em papel das manufacturas imperiaes do Japão, numerados de 1 a 4.

16 Exemplares em papel Whatman, numerados de 5 a 20.

ANTHERO DE QUENTAL

RAIOS DE EXTINCTA LUZ

POESIAS INEDITAS (1859-1863)

com outras pela primeira vez colligidas

PUBLICADAS E PRECEDIDAS DE UM ESCORSO BIOGRAPHICO

POR
THEOPHILO BRAGA

LISBOA *M. GOMES, Livreiro-Editor* 70, Rua Garrett, 72 1892

A

Wilhelm Storck, Oliveira Martins
Eça de Queiroz, Alberto Sampaio, Jayme Batalha Reis
Luiz de Magalhães, Joaquim de Araujo
João de Deus
D. Carolina Michaelis de Vasconcellos
Santos Valente, Alberto Telles
Antonio de Azevedo Castello Branco, José Ben Saude
F. Machado de Faria e Maia
José Falcão, Manuel de Arriaga
Anselmo de Andrade, Manuel Duarte de Almeida
etc., etc.

a todos os que amaram e admiraram Anthero

C.

EXPLICAÇÃO PRÉVIA

A publicação d'este livro é um phenomeno litterario de alta importancia. Compõe-se de uma collecção de Poesias ineditas de Anthero de Quental, na primeira phase artistica, de 1859 a 1863, quando o seu ideal era ainda religioso, romantico e espiritualista. Phase ignorada do publico, acha-se descripta pelo poeta na sua Autobiographia, quando allude á «educação catholica e tradicional de um espirito naturalmente religioso, nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra conhecida.»

Ao dar á publicidade o livro revolucionario as Odes modernas, em 1865, accentuada poesia de combate, Anthero rasgou todas as composições anteriores, para que não ficassem vestigios d'esse periodo contemplativo. Dera então o maximo relêvo á «revolução moral e intellectual», como o facto mais importante da sua vida, segundo confessa na Autobiographia. Truncando as suas origens artisticas, apagava uma pagina psychologica, tão cheia de verdade e naturalidade, que a critica nunca poderia reconstruir.

Por uma casualidade feliz um companheiro de Anthero de Quental, que por esse tempo frequentava a faculdade de medicina, copiára todas as poesias romanticas: chamava-se Eduardo Xavier de Oliveira Barros Leite, fallecido prematuramente em 1872. Por um enlace de familia, obtive por occasião da sua morte o caderno das poesias que copiára, e que o proprio auctor, que lhe sobreviveu vinte annos, mal suspeitava terem sido conservadas. Guardei-as pois, como um valioso documento, onde estavam os primeiros germens do talento poetico de Anthero de Quental; publicando-as depois da sua morte desgraçada, restituimos-lhe á vida subjectiva uma pagina luminosa e sympathica que faltava á sua obra e á litteratura portugueza.

O titulo do livro, Raios de extincta Luz, tem a significação do seu apparecimento posthumo, e o valor de exprimir um presentimento do poeta, ao começar com este hemistychio a invocação escripta em 1860 para uma colleccionação projectada.

Para completar este monumento, fizemos pesquizas por albuns particulares, onde ainda encontrámos primorosos ineditos. Ao dr. José Bernardino agradecemos a contribuição valiosa com que enriqueceu este livro; e a Joaquim de Araujo os excerptos ineditos da traducção do Fausto e outras composições dispersas, que Anthero reservava para incluir em uma futura edição das Odes modernas e das Primaveras romanticas. Manda o dever moral que se reconheça a cooperação do activo e intelligente livreiro-editor Manuel Gomes, que ligou a sua iniciativa á publicação das poesias ignoradas do excelso poeta. Incorporando-as n'este volume, aqui ficam reunidas a primeira e a ultima maneira artistica de Anthero de Quental, podendo agora ser julgada de um modo definitivo a sua obra poetica completa.

ANTHERO DE QUENTAL

ESCORSO BIOGRAPHICO

Bem conhecida é esta alta individualidade, que se manifestou entre a moderna geração com um extraordinario temperamento de luctador, e que de repente caíu em uma apathia invencivel, em um desalento moral progressivo, em uma decadencia physica precoce, e por ultimo no desespero, que em 11 de setembro de 1891 determinou o suicidio. Quando em tão breve espaço vemos essas bellas organisações litterarias, como Camillo Castello Branco, Julio Cesar Machado e Anthero de Quental truncarem a sua carreira pelo suicidio, não pode deixar de explicar-se essa fatalidade pela nevrose que n'elles era o estimulo do seu talento e o motor das suas desgraças. E essa mesma nevrose, que se manifestava brilhantemente pela invenção imaginosa, pela graça delicada ou pela inspiração poetica, nunca lhes deixára adquirir uma disciplina mental que os levasse á analyse de si mesmos, nem uma subordinação moral que os fortificasse contra o seu espontaneo pessimismo. A critica da acção litteraria de Anthero de Quental está implicita n'esta caracteristica do seu organismo.

Anthero de Quental nasceu na Ilha de S. Miguel em 1842, em uma familia de morgados; n'aquella pequena ilha a falta de cruzamentos nas familias aristocraticas tem determinado uma terrivel degenerescencia, que se manifesta pela idiotia e pela loucura. Na familia de Anthero de Quental existem casos d'esta terrivel tare hereditaire. A frequencia na Universidade de Coimbra, desorientadora para as mais fortes organisações, não deixou de actuar profundamente no espirito de Anthero de Quental, lançando-o em uma dissolvente anarchia mental pelos habitos das arruaças escolares e pelas leituras radicalistas que o levavam a uma grande sobreexcitação. Foi n'esta crise da adolescencia que em Anthero de Quental desabrochou o talento poetico e a paixão revolucionaria, que deu origem a uma liga de espiritos emancipados de todo o supernaturalismo e de toda a auctoridade temporal, que se denominou a Sociedade do Raio. Este titulo provinha das imprecações que lançavam ao espaço em occasião de trovoadas, provocando o raio para que os fulminasse, como expressão de uma vontade individual no universo. As perseguições contra a Polonia e as luctas pela libertação e unificação da Italia, tambem acordaram o interesse de Anthero para as questões politicas. As suas leituras favoritas eram os livros de Proudhon, de Feuerbach, de Quinet e Michelet, e isso rapidamente, vivendo em uma atmosphera de discussão permanente, de uma dialectica de sophismas, aggravada por uma irregularidade de vida, que veiu mais tarde a determinar a doença que o embaraçou na sua actividade. Anthero de Quental vivia entre um grupo de estudantes que o divinisára, considerando-o como um apostolo, um iniciador da humanidade. E elle proprio chegou a acreditar n'aquella missão, e passados annos, em uma carta autobiographica, definia-se como o porta-estandarte das idéas modernas em Portugal.

N'este periodo da vida de Anthero era elle dominado por um condiscipulo natural de Penafiel, chamado Germano Vieira de Meyrelles, a quem dedicou a primeira edição das Odes modernas. Este Germano Meyrelles era um typo rachytico e aleijado, dotado de um sarcasmo maligno, resultado da sua imperfeição physica; exerceu no espirito de Anthero uma acção corrosiva, privando-o de todos os enthusiasmos, e levando-o quasi á apathia mental. Quando Germano Meyrelles morreu miseravelmente, deixando duas crianças filhas naturaes, Anthero tomou conta d'ellas e educou-as em sua companhia, deixando-lhes o remanescente da sua herança.

O talento de Anthero revelou-se pela poesia no jornal O Academico; em 1861, levado pela admiração do lyrismo de João de Deus, cultivou a fórma do Soneto, que estava longe ainda da belleza que attingiu na sua ultima phase pessimista.

As idéas politicas revolucionarias e negativistas de que se deixára possuir determinaram a primeira alteração nas suas concepções poeticas. Em 1865 publicou em Coimbra a collecção de poesias d'esta phase revolucionaria com o titulo de Odes modernas; mas os productos da sua actividade poetica, transição para as Odes modernas e Sonetos, são totalmente desconhecidos, porque Anthero de Quental rasgou todas as composições que não se harmonisavam com o seu novo ideal revolucionario. Um dos adoradores de Anthero de Quental, que o acompanhava nas tropelias nocturnas, e que tambem morreu doido em 1872, Eduardo Xavier, colligira em volume essas poesias da phase romantica; é essa collecção que possuiamos que hoje publicamos, da existencia da qual o proprio Anthero nem suspeitava.

A crise moral de Anthero começou propriamente em 1865, quando se achou sósinho em Coimbra; o curso juridico a que elle pertencia acabára a formatura em 1863; Anthero teve de repetir um anno, e ao terminar a formatura em 1864, achou-se sem estimulos que o obrigassem a saír de Coimbra. Vivia então solitario, meditabundo, desenfadando-se em digressões nocturnas. Foi n'esse anno de 1865, que irrompeu a celebre Questão de Coimbra; eu é que o estimulei a saír á estacada, dando réplica ás insidias de Castilho.

Anthero publicou n'esse anno a carta Bom senso e bom gosto, que o revelara ao paiz um polemista ardente, um estylista vigoroso, um espirito possuido de uma alta inspiração. Anthero de Quental contrahira perante o paiz e a geração moderna o compromisso de pôr em obra essas generosas aspirações. De dia a dia tornava-se mais reparavel o seu silencio, mais censuravel a falta de actividade litteraria. Anthero soffria um profundo mal estar, que o não deixava entregar-se ao remanso do estudo; saíu de Coimbra para ir viver em Penafiel com o seu amigo Germano; depois foi para Guimarães para ao pé de Alberto Sampaio; foi para o Algarve para o seu amigo Negrão; foi á America, a Pariz, aos Açores, e por ultimo fixara-se mais algum tempo em Villa do Conde. Não estava bem em parte alguma.

Os trabalhos litterarios não o seduziam; em Lisboa achou-se com José
Fontana, que se aproveitou do seu perstigio moral para a organisação do
partido socialista, e junto com outros rapazes, Eça de Queiroz, Jayme
Batalha Reis, inaugurou em 1871 as Conferencias democraticas do
Casino, mandadas encerrar pelo ministro marquez d'Avila.

N'estes dous actos Anthero foi impellido, caindo outra vez na apathia de onde nunca mais saiu, promettendo apezar de tudo vir a publicar um Programma para os trabalhos da Geração moderna. Por occasião da encyclica de Pio IX proclamando o Syllabus, e por occasião da revolução de Hespanha em 1868, Anthero de Quental publicou dous opusculos, mais para mostrar as suas aptidões de folliculario do que a vista clara e o seguro juizo dos acontecimentos. A sua doença moral tornava-se uma lesão physica, accentuando-se a sua doença nervosa em 1874.

Na impossibilidade de toda a ordem de trabalho, mas carecendo de occupar a imaginação no meio dos seus soffrimentos, Anthero de Quental ia dia a dia burilando um ou outro soneto, em que dava expressão ao estado moral em que se achava; os amigos foram colligindo estes sonetos, vindo ao fim de algum tempo Oliveira Martins a formar um precioso volume de que elle mesmo foi o editor carinhoso. Fez a esse livro uma introduccão vaga sobre intenções buddhicas e intuições nirvânicas, mas não nos deu a nota viva do poeta. Os Sonetos de Anthero produziram uma forte impressão, não só pela profundidade dos sentimentos como principalmente pela perfeição esmeradissima da fórma; porque os versos das Odes modernas, na expressão das paixões revolucionarias, eram pouco plasticos, e revelavam mais o philosopho do que o artista.

Nos Sonetos Anthero transfigurara-se. O Dr. Storck, que acabava de traduzir em bellos versos para a lingua allemã a obra completa de Camões, ao receber um exemplar dos Sonetos de Anthero fez a alta consagração de os traduzir para essa lingua eminentemente philosophica. Para acompanhar a sua traducção pediu o Dr. Storck a Anthero algumas notas biographicas; em carta de 14 de Maio de 1887 escreveu o poeta uma especie de Autobiographia que vem junto dos Sonetos. É um documento importante, não pelos dados biographicos, que são vagos e exagerados, mas pelo alcance psychologico, porque pelas phrases com que Anthero se glorifica dando-se como o estylísta dotado com o dom da prosa portugueza e o porta-estandarte das ideias em Portugal, vê-se que obedecia a uma certa vesania mental, que lhe motivava fundas decepções e terriveis desalentos. N'esta phase de espirito, Anthero caiu debaixo da influencia de Oliveira Martins, que não foi mais saudavel do que a de Germano Meyrelles. Oliveira Martins tinha sido um dos seus collaboradores na organisação democratica e socialista em Lisboa, quando publicava a Republica e o Pensamento social; mas um dia abandona o seu ideal, e filia-se em um esgotado partido monarchico a que pretendeu ir levar vida nova. Foi esta apostasia uma desillusão para Anthero; soffreu-a calladamente, pedindo aos amigos que lhe não fallassem n'isso. Vivia então em absoluto isolamento em Villa do Conde, onde era visitado como um pontifice. Em Janeiro de 1890 deu-se o facto brutal do Ultimatum do governo inglez sobre a questão africana; da natural reacção do sentimento nacional contra este acto de selvagismo diplomatico, nasceu no Porto o movimento de agremiação da Liga patriotica do Norte.

Para dar aos espiritos uma certa unificação moral, lembraram-se do nome de Anthero de Quental; foram buscal-o a villa do Conde, e conseguiram interessal-o pelo movimento nacional. Prezidiu a alguns comicios e a sessões preparatorias da Liga patriotica do Norte; mas o poeta não conhecia a mechanica das assembléas parlamentares, foi facilmente envolvido por todos aquelles que procuravam desnaturar um movimento tão saudavel, e por fim quando a Liga patriotica se dissolveu com o mais escandaloso fiasco, Anthero de Quental retirou-se á sua impotencia, ferido com um desalento mortal. A data do seu testamento em 9 de setembro de 1890 revela que elle já pensava em acabar com a existencia. A dissolução dos caracteres dos seus contemporaneos de Coimbra mais o desalentava; partira para a ilha de S. Miguel em Julho de 1891, e a falta de interesse e o tedio de aquella solidão augmentada pela mesquinhez da vida de Ponta Delgada, determinou a fatal resolução de 11 de setembro, em que se suicidou com dous tiros de rewolver na bocca. Foi uma existencia verdadeiramente desgraçada; não se revelou com a pujança que possuia. Herdeiro de uma terrivel nevrose, não teve a ventura de deparar uma doutrina moral, uma philosophia que lhe fortificasse o espirito; pelo contrario, as suas leituras de Schopenhauer, e a cultura do ideal pessimista em que se enlevava artisticamente, incutiram no seu espirito a ideia do suicidio que involuntariamente se tornou effectiva. A sua obra é mais um documento psychologico do que um producto esthetico; e n'este sentido será estudada e confrontada com a de outros genios egualmente desgraçados.

CARTA AUTOBIOGRAPHICA

*DIRIGIDA AO PROFESSOR WILHELM STORCK*

Traductor dos Sonetos completos

Ponta Delgada (ilha de S. Miguel, Açores), 14 de maio de 1887.

Ex.^{mo} Snr.

Só agora me chegou ás mãos a sua estimada carta de 23 de abril ultimo, pelo facto de me encontrar, ha dois mezes, n'esta ilha (que é a minha patria) trazido aqui por urgentes negocios de familia. A demora das communicações com o continente explica este atrazo.

Agradeço a v. ex.^a as amaveis e para mim tão honrosas expressões de sua carta, e nada me póde ser, como poeta e como homem, mais grato do que o apreço que um tal mestre e critico manifesta pelas minhas composições, ao ponto de querer ser meu interprete e introductor junto do publico o mais culto do mundo e que mais direito tem a ser exigente. Discipulo da Allemanha philosophica e poetica, oxalá que ella receba com benignidade essas pobres flôres, que uma semente sua, trazida pelo vento do seculo, faz desabrochar n'este solo pouco preparado. Qualquer que seja a sua fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil espirito, que generosamente me toma pela mão, para me apresentar.

As informações biographicas e bibliographicas que v. ex.^a me pede, podem reduzir-se ao seguinte: nasci n'esta ilha de S. Miguel, descendente de uma das mais antigas familias dos seus colonisadores, em abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45 annos. Cursei, entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ella bacharel formado em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito que me interessou e absorveu durante aquelles annos, tendo sido e ficando um insignificante legista.

O facto importante da minha vida, durante aquelles annos, e provavelmente o mais decisivo d'ella, foi a especie de revolução intellectual e moral que em mim se deu, ao sahir, pobre creança arrancada do viver quasi patriarchal de uma provincia remota e immersa no seu placido somno historico, para o meio da irrespeitosa agitação intellectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espirito moderno. Varrida n'um instante toda a minha educação catholica e tradicional, cahi n'um estado de duvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espirito naturalmente religioso, tinha nascido para crêr placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrivel de espirito, partilhado mais ou menos por quasi todos os da minha geração, a primeira em Portugal que sahiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição.

Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas proprias da primeira mocidade, a turbulencia e a petulancia, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de paciencia e methodo, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com que, aos 18 annos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia.

No meio das cahoticas leituras a que então me entregava, devorando com egual voracidade romances e livros de sciencias naturaes, poetas e publicistas e até theologos, a leitura do Fausto de Goethe (na traducção franceza de Blaze de Bury) e o livro de Rémusat sobre a nova philosophia allemã exerceram todavia sobre o meu espirito uma impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o Germanismo; e, se entre os francezes, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi sem duvida por serem estes dois os que mais se resentem do espirito de Alem-Rheno. Li depois muito de Hegel, nas traducções francezas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi allemão); não sei se o entendi bem, nem a indepencia do meu espirito me consentia ser discipulo: mas é certo que me seduziam as tendencias grandiosas d'aquella estupenda synthese. Em todo o caso o Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações philosophicas, e posso dizer que foi dentro d'elle que se deu a minha evolução intellectual.

Como accommodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mysterios da incoherencia da mocidade! O que é certo é que, revestido com esta armadura mais brilhante do que solida, desci confiado para a arêna: queria reformar tudo, eu que nem sequer estava ainda a meio caminho da formação de mim mesmo! Consummi muita actividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornaes, em folhetos, em proclamações, em conferencias revolucionarias: ao mesmo tempo que conspirava a favor da União Iberica, fundava com a outra mão sociedades operarias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns 7 ou 8 annos uma especie de pequeno Lassalle, e tive a minha hora de vã popularidade.

Do que publiquei por esse tempo, ahi vae o que ainda posso lembrar. O meu primeiro folheto é do anno de 1864. Intitula-se: Defeza da Carta Encyclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal. É um protesto contra a falta de logica com que as folhas liberaes atacavam o Syllabus, declarando-se ao mesmo tempo fieis catholicos. O auctor, glorificando o Pontífice pela belleza da sua altitude intransigente em face do seculo, via n'essa intransigencia uma lei historica, resava respeitosamente um De profundis sobre a egreja condemnada pela mesma grandeza da sua instituição a cahir inteira mas não a render-se, e atacava a hypocrisia dos jornaes liberaes.

O meu ultimo folheto é de 1871. Intitula-se: Carta ao ex.^{mo} marquez de Avila e Bolama, sobre a Portaria que mandou fechar as Conferencias do Casino lisbonense. As Conferencias Democraticas tinham sido fundadas por mim com o concurso de homens moços (que quasi todos têm hoje nome na politica) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operaria. Pareceram perigosas ao governo, que arbitrariamente as mandou fechar. O meu folheto parece que concorreu, segundo se disse, para a queda do ministerio, que, de resto, não podia durar muito, sendo dos chamados de transição. É uma diatribe, mas eloquente.

Entre esses dous extremos, colloca-se a famosa Questão Litteraria ou a Questão de Coimbra, que durante mais de 6 mezes agitou o nosso pequeno mundo litterario, e foi o ponto de partida da actual evolução da litteratura portugueza. Os novos datam todos de então. O Hegeltanismo dos Coimbrões fez explosão.

O velho Castilho, o Arcade posthumo, como então lhe chamaram, viu a geração nova insurgir-se contra o sua chefatura anachronica. Houve em tudo isto muita irreverencia e muito excesso; mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituido de idéa, não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direcção, a orientar-se como depois se disse, nas correntes do espirito da época. Havia na mocidade uma grande fermentação intellectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não comprehendia, julgou poder supprimil-a com processos de velho pedagogo. Inde irae. Rompi eu o fogo com o folheto Bom senso e Bom gosto, carta ao ex.^{mo} A. F. de Castilho. Seguiu-se Theophilo Braga, seguiram-se depois muitos outros, la melée devint génerale. Todo o inverno de 1865 a 66 se passou n'este batalhar. Quando o fumo se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não queriam saber da Academia nem dos Academicos, que já não eram catholicos nem monarchicos, que fallavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham fallado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes barbaros e sciencias desconhecidas, como glottica, philologia etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulancia e irreverencia, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa fé e que, em summa, havia a esperar d'elles alguma cousa, quando assentassem.

Os factos confirmaram esta impressão: os 10 ou 12 primeiros nomes da litteratura de hoje sahiram todos (salvos 2 ou 3) da Escola Coimbrã ou da influencia d'ella. O Germanismo tomara pé em Portugal. Abrira-se uma nova éra para o pensamento portuguez. O velho Portugal ainda conservado artificialmente por uma litteratura de convenção morrera definitivamente. D'esta especie de revolução fui eu o porta estandarte, com o que me não desvaneço sobre maneira, mas tambem não me arrependo. Se a uma ordem artificial se seguia uma especie de anarchia, é isso ainda assim preferivel, porque uma contem germens de vida, e da outra nada havia a esperar. Pertence ainda a essa epoca o folheto: Dignidade das Lettras e Litteraturas officiaes.

Durante o anno de 1867 e parte de 68 viajei em França e Hespanha e visitei os Estados Unidos da America. No fim d'esse anno de 68 publiquei o folheto: Portugal perante a Revolução de Hespanha. Advogava ahi a União Iberica por meio da Republica Federal, então representada em Hespanha por Castellar, Pi y Margall e a maioria das Côrtes Constituintes. Era uma grande illusão, da qual porém só desisti (como de muitas outras d'esse tempo) á força de golpes brutaes e repetidos da experiencia. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas cousas da sociedade!

O meu Discurso sobre as causas da decadencia dos Povos peninsulares nos seculos XVII e XVIII, embora pizasse um terreno mais solido, o terreno da historia, resente-se ainda muito da influencia das ideias politicas preconcebidas, da critica historica com tendencias. É do anno de 1871.

N'esse anno e no seguinte tomei parte activa no movimento socialista, que se iniciava em Lisboa, e tanto n'essa cidade como no Porto escrevi bastante nos jornaes politicos. Incidentemente publiquei n'um pequeno volume, uma serie de estudos com o titulo de Considerações sobre a Philosophia da Historia litteraria portugueza. Creio que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou pelo menos, de mais razoavel em prosa. Confesso sinceramente que dou muita pouca importancia a todos esses meus escriptosinhos de occasião, e até, ás vezes, preciso de certa força de reflexão para me não envergonhar de ter publicado tanta cousa pouco pensada. E todavia era applaudido! Porque? Em primeiro logar, creio eu, porque os que me applaudiam não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do que eu. Em segundo logar, porque me concedeu a natureza o dom da prosa portugueza, não da prosa de convenção, arremedando o estylo dos seculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem o seu typo na lingua viva e falada hoje, analytica já nos movimentos da phrase, mas na linguagem ainda e sempre portugueza. Isso agradou, porque era o que convinha e, em summa, acabei por ser citado como modelo da prosa moderna! É certo porém que tudo aquillo são escriptinhos de accasião e que, em prosa, não produzi ainda o que se chama uma obra, isto é, uma cousa original, pessoal e aprofundada. Ha muito tempo que sei escrever, mas foi necessario chegar aos 45 annos para ter que escrever. Por isso, deixemos toda essa farragem que não cito senão para corresponder ao desejo de v. ex.^a na materia bibliographica. E passemos aos versos.

Além da collecção de sonetos que v. ex.^a conhece, publiquei ainda mais dois volumes. Um, de 1872, com o titulo de Primaveras Romanticas contêm os meus Juvenilia, as poesias de amor e phantasia, compostas na sua quasi totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por varias publicações periodicas, e que só em 72 reuni em volume, juntamente com mais alguma cousa posterior, do mesmo caracter e estylo. Talvez a melhor maneira de caracterisar esse volume será dizer em francez que é du Heine de deuxième qualité. Como muitas pessoas, por cá, têm achado essa semelhança, por isso a indico. A 2.^a secção dos Sonetos completos que não contêm senão composições d'esse periodo dará a v. ex.^a uma idéa sufficiente do fundo e do estylo d'aquella poesia; assim como a 3.^a secção lhe dará idéa das Odes modernas, cuja 1.^a edição appareceu em 1865. Não sei bem como caracterisar este livro: não é certamente mediocre; ha n'elle paixão sincera e elevação de pensamento; mas além de declamatoria e abstracta, por vezes aquella poesia é indistincta, e não define bem e typicamente o estado de espirito que a produziu. O que ella representa perfeitamente é a singular alliança, a que atraz me referi já, do naturalismo hegeliano e do humanitarismo radical francez. Acima de tudo é, como dizem os francezes, poesia de combate: o pamphletario divisa-se muitas vezes por detraz do poeta, e a egreja, a monarchia, os grandes do mundo, são o alvo das suas apostrophes de nivelador idealista. N'outras composições, é verdade, o tom é mais calmo e patenteia-se n'ellas a intenção philosophica do livro, vaga sim, mas humana e elevada. A novidade, o arrojo, talvez a mesma indeterminação do pensamento, apenas vagamente idealista e humanitaria, fizeram a fortuna do livro, junto da geração nova, o que prova pelo menos que veiu no seu momento: é tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este cyclo os sonetos comprehendidos na 3.^a secção dos Sonetos completos, muitos dos quaes já entraram nas Odes modernas. Em 1874 teve este livro uma 2.^a edição muito correcta e contendo varias composições novas que considero, tal como é e com todos os defeitos inherente á propria essencia do genero, como definitiva.

N'esse mesmo anno de 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inacção, a perspectiva da morte visinha, a ruina de muitos projectos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, propria da nevrose, puzeram-me novamente e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema da existencia. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existencia em geral incomprehensivel. Da lucta que então combati, durante ou 5 ou 6 annos, com o meu proprio pensamento o meu proprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vacuo e para o desespero, dão testemunha, além de muitas poesias, que depois destrui (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua introducção aos Sonetos) as composições que perfazem a secção 4.^a (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as v. ex.^a, não preciso commental-as. Direi sómente que esta evolução de sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmonico, ainda o de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciencia suspensa, o sentimento, no que elle tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só apparente; no fundo não é mais do que um paganismo intellectuel e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sahir do naturalismo, dentro do qual nascera para a intelligencia e me desenvolvera. Era a minha atmosphera, e todavia sentia-me asphixiar dentro d'ella. O Naturalismo, na sua fórma empirica e scientifica, é o struggle for life, o horror de uma lucta universal no meio da cegueira universal; na sua fórma transcendente é uma dialetica gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequencias que eu via sahir da doutrina com que me creara, da minha alma mater, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veiu ao mundo.

A reacção forças moraes e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciencia moral não pode ser a unica voz sem significação no meio das vozes innumeras do Universo, refundindo a minha educação philosophica, achava, quer nas doutrinas, quer na historia, a confirmação d'este ponto de vista. Voltei a ler muito os philosophos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo ás origens do pensammento allemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e mysticos antigos e modernos, entre todos a Theologia Germanica e os livros buddhistas. Achei que o mysticismo, sendo o desenvolvimento psychologico, deve corresponder, a não ser a consciencia humana extravagancia no meio do Universo, á essencia mais funda das cousas.

O naturalismo appareceu-me, não já como a explicação ultima das coisas, mas apenas como o systema exterior, a lei das apparencias e a phenomenologia do Sêr. No Psychismo, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação ultima e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos physicos elementares. A monadologia de Leibnitz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espirito é que é o typo da realidade: a natureza não é mais do que uma longiqua imitação, um vago arremedo, um symbolo obscuro e imperfeito do espirito. O Universo tem pois como lei suprema o bem, essencia do espirito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexivel da natureza, não é uma palavra vã: ella é possivel e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um carcere: elle é pelo contrario o senhor do mundo, porque é o seu supremo interprete. Só por elle é que o Universo sabe para que existe: só elle realiza o fim do Universo.

Estes pensamentos e muitos outros, mas concatenados systematicamente, formam o que eu chamarei, embora ambiciosamente, a minha philosophia. O meu amigo Oliveira Martins apresentou-me como um buddhista. Ha, com effeito, muita coisa commum entre as minhas doutrinas e o Buddhismo, mas creio que ha n'ellas mais alguma coisa do que isso. Parece-me que é esta a tendencia do espirito moderno que, dada a sua direcção e os seus pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de banca rota, senão por esta porta do psychodynamismo ou panpsychismo. Creio que é este o ponto nodal e o centro de attracção da grande nebulose do pensamento moderno, em via de condensação. Por toda a parte, mas sobretudo na Allemanha, encontram-se claros symptomas d'esta tendencia. O occidente produzirá pois, por seu turno, o seu Buddhismo, a sua doutrina mystica definitiva, mas com mais solidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições do que o Oriente.

Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a exposição dogmatica das minhas idéas philosophicas. Quizera concentrar n'essa obra suprema toda a actividade dos annos que me restam a viver. Desconfio, porém, que não o conseguirei; a doença que me ataca os centros nervosos, não me permitte esforço tão grande e tão aturado como fôra indispensavel para levar a cabo tão grande empreza. Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direcção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bussola do espirito humano. Morrerei tambem, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais intimas aspirações da alma humana e, como diziam os antigos, na paz do Senhor!—Assim o espero.

Os ultimos 21 Sonetos do meu livrinho dão um reflexo d'esta phase final do meu espirito e representam symbolica e sentimentalmente as minhas actuaes idéas sobre o mundo e a vida humana. É bem pouco para tão vasto assumpto, mas não estava na minha mão fazer mais, nem melhor. Fazer versos foi sempre em mim cousa perfeitamente involuntaria; pelo menos ganhei com isso fazel-os sempre perfeitamente sinceros. Estimo este livrinho dos Sonetos por acompanhar, como a notação de um diario intimo e sem mais preoccupações do que a exactidão das notas de um diario, as phases successivas da minha vida intellectual e sentimental. Elle fórma uma especie de autobiographia de um pensamento e como que as memorias de uma consciencia.

Se entrei em tão largos desenvolvimentos biographicos, foi por entender que, sem elles, se havia de perder a maior parte do interesse que a leitura dos meus Sonetos pode inspirar. Os criticos allemães acharão talvez interessante observar as reacções provocadas pela inoculação do Germanismo, no espirito não preparado de um meridional, descendente dos navegadores catholicos do seculo XVI. Poderá essa ser mais uma pagina, embora tenue, na historia do Germanismo na Europa, e porventura parecerá curiosa aos que se occupam de psychologia comparada dos povos.

Ao bom e amavel espirito que me introduz, a mim neophyto, n'esses grandes circulos do pensamento e do saber, tributo, além de muita sympathia, indelevel gratidão.

E sou de v. ex.^a com a maxima consideração

criado m.^o obrg.^o

Anthero de Quental.

A OBRA POETICA DE ANTHERO DE QUENTAL

1. Sonetos de Anthero. Editor Sténio. Coimbra, Imprensa Litteraria, 1861. In-8.^o de XII e 23 pag. Contém 21 Sonetos, dos quaes 16 foram incorporados nos Sonetos completos; os 5 restantes ficam incluidos nos Raios de extincta Luz. O prologo é uma apresentação em verso por Santos Valente. A carta a João de Deus sobre a theoria do Soneto foi reproduzida no vol. II do Circulo camoniano.

2. Beatrice. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1863. In-8.^o grande, de 40 pag. Este poemeto, formado de trechos lyricos, está incorporado nas Primaveras romanticas.

3. Fiat lux. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1864. In-8.^o grande, de 16 pag. Extremamente raro, por que foi rasgado pelo auctor poucos dias depois de publicado. Fica incorporado este poemeto nos Raios de extincta Luz.

4. Odes modernas. Coimbra. Imprensa da Universidade, 1865. In-8.^o grande, de 160 pag. O texto termina a pag. 150, sendo as ultimas 10 pag. occupadas por uma nota.

——Segunda edição (Contendo varias composições ineditas). Porto, 1875. In-8.^o pequeno, de 186 pag. N'esta foi cortada a carta dedicatoria a Germano Meyrelles, e bem assim a dedicatoria dos Sonetos A Ideia, a Camillo Castello Branco; os versos que começam: «Como a serpente larga a pelle antiga» (pag. 100), Á Irlanda (pag. 121), e as duas quadras sobre Mahomet e o Christo (pag. 133).

5. Primaveras romanticas (Versos dos vinte annos). Porto, Imprensa Portugueza, 1871. Com retrato photographico. In-8.^o grande, VII e 202 pag. Uma grande parte d'estes versos fora primeiramente publicada no Seculo XIX, jornal de Penafiel, em 1864, e outros com o pseudonymo de Carlos Fradique Mendes. (Vid. n.^o 2).

6. Sonetos (Bibliotheca da Renascença, I). Porto, Imprensa Portugueza, 1881. In-8.^o pequeno, de 32 pag. e 4 não numeradas. Contém 28 Sonetos colligidos por Joaquim de Araujo.

7. Sonetos completos. Publicados por J. P. de Oliveira Martins. Porto, Livraria Portuense de Lopes e C.^a—Editores. 1886. In-8.^o pequeno; 48 pag. de introducção por Oliveira Martins, e 126 de texto.—Contém a collecção dos Sonetos da Bibliotheca da Renascença, e todos os Sonetos dispersos pelas outras obras de Anthero, á excepção de 5 Sonetos desprezados (Vid. n.^o 1) e do Soneto Accusação (Aos homens de sangue de Versalhes em 1871), que vem nas Odes modernas, a pag. 167 (Vid. n.^o 4).

——Segunda edição. Porto, 1891. Accrescentada com a traducção allemã do
Dr. Wilhelm Storck, e algumas versões italianas.

8. Cadencias Vagas. Separata dos versos colligidos por Joaquim de Araujo para o volume dos Raios de extincta Luz. Lisboa, Typographia da Academia real das Sciencias, 1892. In-16.^o, VIII e 72 pag. (Tiragem restricta).

9. Raios de extincta Luz. Poesias ineditas (1859-1863) com outras pela primeira vez colligidas. Publicadas e precedidas de um Escorso biographico por Theophilo Braga. Lisboa. M. Gomes. Livreiro-Editor, 70, Rua Garrett (Chiado), 72. Typographia da Academia real das Sciencias, 1892. In-16.^o, de XLVIII pag. de introducção, e 258 pag. de texto. Entram n'esta collecção as seguintes:

*Folhas avulsas*:

I. Poesia de Anthero de Quental recitada na noite de 13 de maio de 1862, no Theatro Academico, por A. Fialho Machado.

II. A Gennaro Perrelli, Ao artista e patriota italiano. Imprensa
Litteraria (Sem data).

III. Á Italia. Poesia de Anthero, recitada no Theatro Academico por A.
Fialho Machado, na noite de 22 de outubro de 1862. Coimbra, Imprensa
Litteraria.

IV. Zara. Poesia. Imprensa portugueza. Porto. Folha solta, com restricta tiragem para as pessoas da familia do Dr. Antonio Joaquim de Araujo.

V. A casa do Coração. Impressa sobre um fundo lithographado, com o retrato de Anthero, e distribuida no Saráo da Liga das Artes Graphicas, no Porto, em honra do illustre morto.

* * * * *

ORDEM PARA UMA EDIÇÃO DEFINITIVA DAS OBRAS POETICAS COMPLETAS DE ANTHERO

I. Raios de extincta Luz (1859 a 1863).
II. Primaveras romanticas (1863 a 1865).
III. Odes modernas (1865 a 1871).
IV. Sonetos completos (1860 a 1884).

I

PALAVRAS ALADAS

PALAVRAS ALADAS

Raios de extincta luz, eccos perdidos
De voz que se sumiu no espaço absorta—
Meus cantos voarão de edade em edade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Não sabe a folha já mirrada e secca,
Que um sôpro do tufão levou revolta,
Que outro sopro talvez desfaça em breve—
Não sabe a triste o ramo onde nascera,
A seiva que a nutriu, quando inda bella,
O tronco que adornou com verde galla,
E onde entre irmãs folgou por tarde amena?
Soltos do tronco, sem calor, sem vida,
Filhos orphãos que um seio não aquece,
Um seio maternal ebrio de affectos,
Meus cantos voarão de edade em edade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Mas se alguem, vendo a folha abandonada,
Lembrar e vir na mente o tempo antigo
Em que bella, vestindo pompa e gallas,
Brilhou rica de seiva e luz e vida;
Se na mente sonhar a pura essencia
Que animara esse pó ahi revolto;
Se corpo der á sombra fugitiva,
E a voz unir ao ecco, e o foco ao raio;
Se alguem souber do canto o sentir intimo,
Oh, esse ha de entender a vida, a crença
D'essa alma que animara outr'ora o canto.

Se alguem tiver no peito a urna mystica
Onde o Amor se recolhe, esse hade amar-me;
Se livre, por tyrannos não comprado,
Pulsar um coração, esse commigo
Hade a aurora saudar do novo dia;
Se uma alma recordar a eterna patria
Que lhe dera o Senhor, do céo saudosa
Commigo a Deus n'um hymno hade elevar-se.

Aos mais será mysterio o canto e a lyra,
Á Liberdade, a Amor e a Deus votada:
E já, soltos do tronco onde medraram,
Meus cantos voarão de edade em edade,
Como folhas que ao longe o vento espalha.

Coimbra, Novembro, 1860.

II

LAÇO D'AMOR

A poesia As Estrellas appareceu pela primeira vez publicada na segunda parte da Beatrice (p. 27 a 31), mas sem titulo, e com a epigraphe Excelsior. O poeta leu-m'a em 1861 com o titulo As Estrellas, como uma das suas melhores Odes. No manuscripto que possuo tem a data:—Figueira, Setembro—1860; não apresenta variantes apreciaveis da edição do 1863, por isso a não reproduzimos.

T. B.

LAÇO D'AMOR

Ao amigo Santos Valente enviando-lhe para o seu Album a poesia AS ESTRELLAS

Que heide dar de melhor? Ai, n'estes tempos
De pobres affeições, de tibias crenças,
—Fonte que os sóes do estio tem seccado—
Aonde ha fé tam viva, que trasborde,
Enchendo um peito n'outro peito amigo?
Que esperanças cá da terra ha hi tam firmes,
Tam ricas de futuro, que dois sêres
Possam firmar-se n'ellas sem receio
E abandonar-se todo ao seu arrimo,
Qual braço de mulher em braço de homem?
E quem pode encontrar-se em egual via,
E ir, com norte egual, seguir seu rumo
Quando tantos caminhos vão cruzando
N'estes tempos o mundo do espirito?
Ah, n'este sec'lo, amigo, solitario
Cada qual segue triste a sua estrada,
Caminheiro de um dia, e silencioso,
Contando, como o avaro, os tristes restos
Das suas illusões, das suas crenças,
A si pergunta o que ficou de tudo;
Olha as bandas longiquas do horizonte
E de novo interroga, em desalento,
Se o futuro lhe guarda alguma esp'rança,
Se o abysmo é o termo da jornada?!

Se lá de longe em longe alguma tenda,
Se uma fonte que ensombra alta palmeira.
Lhe alveja no deserto; se inda um pouco
Lhe repousa a cabeça afadigada,
Não faz, crente no Deus que o tem guiado,
A oração da noite, a acção de graças
E, antes que cerre as palpebras, medita…

No repouso só busca o esquecimento:
Dorme o somno agitado de uma noite
Sob a tenda que o acaso lhe depara;
De manhã, sem levar uma saudade,
Sem as deixar tambem, eil-o seguindo
Do fatal peregrinar a longa via.

Que lhe importa o passado ou o futuro?
P'ra dôr que soffre em si tudo é presente,
Aqui, ali, em toda a parte o punge…
Quem lhe dera esquecer, não recordar-se…

Orações? são incenso cujo aroma
É de lagrimas… e as d'elle se hão seccado!
Orgulhoso na dôr, da dôr o orgulho
Fal-o erguer solitario e silencioso,
Como se ergue o granito no deserto
Ermo, nú… se medita… e só comsigo.

Assim vae cada qual seguindo o rumo
Que o accaso ou o fado lhe depara:
Quem se pode encontrar? que laço estreito
Ha que os aperte? Idéa ou sentimento
Aonde em crença egual juntos communguem?
………………………………….
………………………………….
………………………………….
Com tudo Deus existe! e nós, seus filhos,
—Ingratos—se n'uma hora o olvidámos,
Dentro temos a voz de eterno brado!
Quem pode renegar seu pae? Nós somos
Como esse Adão occulto no arvoredo
Que não quer responder a quem o chama:
Porém se a voz do pae clamou tres vezes,
Não pode resistir—«Eis-me presente.»—

Dissidentes no mais, Deus nos reune:
No impio, ou crente, em todos Deus existe
E todos chama a si, e a todos ama.
Nós somos como rios que descendem
De varia serra, e em vario leito correm:
Mas, que importa? essas serpes tortuosas,
Após rodeios mil, após mil voltas,
Vão todas dar no mar; some-as o Oceano.

Que importa a crença varia e o vario affecto?
Este laço de amor a todos une:
—Existe um Deus que é Pae; somos seus filhos.

Coimbra, Maio, 1861.

III

FORÇA—AMOR

FORÇA—AMOR

O que destroe os mundos,
E dá que os mar's frementes,
Em volta aos continentes,
Cavem abysmos fundos;

A mão que faz que a noite,
Sem luz, amor, encanto,
Se envolva em negro manto
Aonde o mal se acoite;

Que pôs no olhar o brilho,
E deu ao labio o riso,
Á planta o pomo liso.
Seio de mãe ao filho;

O que é verbo da vida,
Do amor, da luz, do affecto,
O que sustenta o insecto
E a planta desvalida;

E disse á nuvem branca
—Em densas trevas morre,
E disse ao vento—corre,
Assola, espalha, arranca;

Quem faz da vida morte,
De puro incenso, fumo;
E deixa, em mar sem rumo,
O homem luctar co'a sorte;

Se é Deus… oh! não! não pode
Do amor o foco immenso,
Que abraza em fogo intenso,
Se á mente nos acode;

Não pode o sôpro d'elle
Mandar a morte e o pranto,
Em vez do doce encanto,
Que immenso amor revele!

Algum genio das trevas,
—Espirito infecundo—
Espalha sobre o mundo
Estas vinganças sevas.

Não elle; o Deus suave!
D'aquelle seio immenso,
Só manda á terra o incenso
E o balsamo que a lave!

…………………………………. ………………………………….

—«Estranhas ver a morte?
De vida andas repleto:
O Deus, o Deus do affecto
Tambem é o Deus forte:

Poeta! és tu que ignoras
—Envolto em sonho aéreo—
O revolto mysterio
De mais revoltas horas!—

Dezembro, 1860.

IV

PAZ EM DEUS

PAZ EM DEUS

…pax hominibus bona voluntate.

O Deus que me creou pôz-me no peito
Um thesouro tão rico de esperança,
Que não ha quem m'o roube ou quem m'o gaste;
E pôz-me n'alma fonte tão perenne
D'aquelle Eterno-Amor, que de lá desce,
Que não ha sol ou calma que m'a seque.

A fonte que nasceu em solo árido
Se um dia murmurou, morreu no outro;
Mas a que vem dos montes, que o céo tocam,
Descendo lentamente e sem ruido,
Té que brota entre as flores da campina,
Essa não morre com a luz de um dia…
Fonte de puras aguas abundantes,
Traz do céo sua origem. Lá se esconde,
Entre nuvens, o foco que a alimenta:
Eterna, como o céo d'onde partira,
E serena, como elle, a paz e a vida,
Como elle, tem no seio e d'elle manam.

Assim d'aquelle amor. Constante e puro,
Que ardor ou calma ou sol pode seccal-o?
Que pó da terra conspurcar-lhe o brilho?

A maldade dos homens não te mancha,
Oh minha paz, oh minha pomba candida!
Na terra o caçador te aponta a flecha,
E o tiro parte em vão. Como tocar-te,
Se tão alto voaste, e o dardo apenas
Mediu a meia altura que levavas?
A flecha cae na terra… ao céo tu foges!

Vae pomba immaculada! irei comtigo
Abrigar-me tambem no seio eterno,
Quando um dia o Senhor julgar que é finda
A missão que me deu de aqui servil-o.
Aqui fica-me a esp'rança que me alente,
Fica a luz que me guia, o Amor, a crença.

E foi Deus quem me deu o meu thesouro,
Como á ave que vôa deu a penna,
Que a libra pelo espaço; e ao olho morto
Do ancião, a luz que aponta melhor mundo.

Na assembléa dos homens, se um, olhando-me
Disser—«Aquelle é rei»—irei prostrar-me
Diante do Senhor, abrindo o espirito
Á voz que dentro d'elle Deus murmura;
E Deus vendo-me puro na consciencia
Dirá—«Ergue-te em paz: não és culpado»—!

Se sentir dentro d'alma alguma f'rida
Vertendo sangue e fel, em dor extrema,
Buscarei no Senhor o meu alivio:
E o Senhor, pondo um dedo sobre a chaga,
Dirá—«Fica-te em paz: estás curado»—!

Oh minha doce paz! por ti se cumpram
Os decretos do Eterno: tu me escuda
Dos tiros que a maldade em mim dispara;
A força do leão põe-me na mente,
A mansidão da pomba dentro d'alma.
Oh pomba ingenua, pomba immaculada,
Filha do céo ao céo voemos juntos.

Janeiro, 1861.

V

N'UMA NOITE DE PRIMAVERA

N'UMA NOITE DE PRIMAVERA

(*DO POEMA VASCO*)

1.^o FRAGMENTO

Esta quadra d'amor quanto nos punge,
Com tão doce pungir! Como sorrindo
Nos mata de desejos; nos esmaga
Sob o peso infinito dos anhelos,
Que esta vida e mil outras não fartaram!
Esta quadra d'amor, com seus sorrisos,
Quanto nos punge o peito, ai, quanto mata!

Tal é a essencia do Amor; tal Deus ha posto
Um veneno no mal, na flôr um áspide!
Prazer e dôr, sereis talvez um unico,
Unico sêr, que nos penetra e abraza
N'um fogo que nos doe, mas que é tão doce?
Punhal, que ferindo o peito, nos consola,
Mas, que a affagar nos vae roubando a vida,
Antegosto do que é o céo e o inferno?
Será isto o amor? será?… quem sabe?

Talvez! Se é laço universal e unico
Deve o bem como o mal juntar n'um todo;
Se é vida é tambem morte; se é saudade,
É desejo tambem; e se algum anjo
O creou, ha demonio que o perturba;
Se é um sol que nos brilha dentro d'alma,
Tambem queima e devora, tambem mata!
E é isto amor? será! será! quem sabe?

De vida mais completa é antegosto,
De melhor existir que além começa:
Talvez! então o amor será a morte?
Triste noiva, é mistér esp'rar-lhe a vinda
Para amar e gozar e viver muito?!
Celebre-se o hymeneo sobre uma campa:
Aguarde-se a hora extrema, como aurora
De um bem, que além da vida só começa;
E contando os momentos como sec'los,
O primeiro dos dias seja o ultimo…
Mas será isto amor? será!… quem sabe?

Talvez!… Mas quando a lousa funeraria
Rangendo, cobre um corpo estremecido:
Quando a terra só pode dar-lhe os osc'los,
Que inda ha pouco lhe davamos convulsos,
Que vem, que vem aos olhos? Vem só lagrimas
E ao peito vem só dôr! O lucto, o pranto
Se assentam sobre as campas, não a esp'rança!
E será isto amor? será!… quem sabe?

Mas as lousas são frias. Quem pernoita
Na deveza onde só o eterno somno
Se dorme… não! ninguem por lá pernoita!
As dôres, como gazes, se evaporam;
No ambiente da vida os ais não podem
Muito tempo eccoar; ha tanta lagrima,
Tantas consolações para os que soffrem!
Não duram, não!… a mão que enchuga o pranto
Beija-se… e mais… e mais… encontra-se a alma
Com quem se casa a pobre solitaria:
E a outra! a outra lá! partiu-se o laço…
E é isto amor? será! será?… quem sabe?

Feliz do que viaja em mundo novo!…
Triste do que ficou sobre uma lousa
Assentado a chorar: o que é da esp'rança?
Nunca sahiu da campa voz amiga
A consolar a dôr! Fica-lhe apenas
Um premio, triste premio! o das lagrimas:
Esse—se foi constante—hade cingir-lhe
A fronte com a c'roa… do martyrio…
E será isto amor? será!… quem sabe?
………………………………….

2.^o FRAGMENTO

………………………………….
Será! será! Que importa, se é tão doce,
Se mata com um sorriso, entre caricias!
Vae, razão fria! vae… isto ou aquillo
Que importa seja o amor?! É sempre bello
—Um momento sequer—gozar a vida.

É bello o amor; é bella a vida; é bello
Tudo aonde o Senhor a mão ha posto…
E o Senhor fez o mundo! e a ti, ó noite,
Noite de primavera, deu-te estrellas,
Que são almas no espaço a procurar-se;
A ti, mulher, a ti deu-te o mysterio
De matar ou dar vida… e a mim, sim!—creio—
Inda hade dar-me uma hora de ventura!
………………………………….
Oh! dae-me a taça do veneno doce,
Que mata embriagando! Dae-me prestes
Uma taça de amor aonde libe!…

Abril, 1861.

VI

PSALMO

PSALMO

(CXXXII DE DAVID)

    Do amor he santo o laço!
    O forte ao fraco ajude:
    Ao irmão mais fraco escude
    Do irmão mais forte o braço.

E a graça do Senhor virá sobre elles:
Virá, bem como um oleo perfumado,
Que na fronte de Arão cahido, escorre,
Que inunda a barba toda, e vem descendo
'Té que a fimbria da tunica lhe beija.

Virá, bem como o orvalho sobre o monte
Sacrosanto de Hermon, e sobre o cimo,
O cimo de Sion, que Deus amara:
Porque sobre as justas frontes
Dos irmãos que estreita o amor,
—Mais que o orvalho sobre os montes—
Desce a graça do Senhor.

Novembro, 1860.

VII

Á BEIRA-MAR

Á BEIRA-MAR

*O CREPUSCULO*

Oh! vem Maria! sobre a rocha erguida
Em asp'ra costa, sobranceira ao mar,
Vamos sósinhos ver as brancas ondas
Sobre os rochedos, em cachões, saltar!

Alli, bem juntos, ao cahir da tarde,
De mãos trocadas a fallar de amor,
Quero, ao contar-te mil segredos d'alma,
Ver-te nas faces virginal pudôr.

É proprio o sitio, é propicia a hora,
Incerta, dubia entre sombra e luz;
Já descem trevas pelos fundos valles,
Inda algum brilho sobre o mar reluz:

Inda no dorso das inquietas ondas
Dourada fita tremeluz, além;
Mas, já ao longe, da campina os viços,
Envolvem sombras que dos montes vêm.

Gigante immenso de esplendor e brilho,
O sol, um instante, viu-se alli nutar;
Depois cançado, declinando rapido
A lassa fronte repousou no mar.

Semelha ao entrar-lhe pelo seio tumido,
Que de mil fógos inda foi tingir,
Medalha de ouro, que em caldeira immensa,
A pouco e pouco visse alguem fundir.

Em tanto a sombra vae descendo os montes
E envolve as terras mysterioso véo;
Já se divisa, vergonhosa e timida,
Pallida estrella tremular no céo:

Como em teu seio, pura virgem, nasce
Ligeira magoa de fugaz pezar,
Que vae crescendo, e transmudada em lagrimas
Te vem dos olhos nos crystaes brilhar:

Como nos brota dentro de alma, e lavra
A pouco e pouco no veloz crescer,
Algum affecto que em paixão tornado
Nos vem no peito com fulgor arder:

Assim da estrella nasce o brilho, e cresce
A pouco e pouco pelo céo de anil;
Ponto luzente, no começo apenas,
Por fim brilhante, entre saphiras mil.

Soidão callada pela terra alarga-se
Preludio augusto da nocturna voz;
Em doce enlevo, scisma o homem statico
Em Deus, comsigo meditando a sós.

Hora saudosa de incerteza mystica,
De lucta harmonica entre sombra e luz.
Por ti nos desce sobre o seio ardente
A santa crença que p'ra Deus conduz!

Hora em que é grato no regaço amigo
De alguma esperança de melhor porvir,
Olvidar magoas de um presente incerto,
E, esp'rando, e crendo, n'essa fé dormir.

Em que amor gera dentro de alma os laços
Que as almas ligam com estreito nó,
E que no arroubo de amoroso rapto
Funde dois sêres n'uma vida só.

E eu tambem quero sentir n'alma os intimos
Celestes gosos que esta hora tem;
Em livro aberto lêr um nome augusto
Que em lettras de ouro vejo escripto além.

E no regaço da mulher amada,
Que é minha esp'rança de melhor porvir,
Quero estas magoas ir depôr e apenas
Guardar um peito para amor sentir.

E antes que as terras illuminem fógos,
Com a luz divina que o Senhor lhe deu;
E antes que morram esses brilhos ultimos
Do sol nas dobras do nocturno véo;

Quero ao soido gemedor das ondas
Casar as magoas d'este immenso amor,
Ardente e puro, como aquelles lumes
Candentes fócos de vivaz fulgor.

Quero nas horas do crepusculo ameno
Sobre o rochedo sobranceiro ao mar,
Aos pés da virgem que escolheu minha alma
Ler-lhe nos olhos confissões sem par.

Figueira da Foz, 1860.

VIII

ASPIRAÇÃO

ASPIRAÇÃO

Porque é que minha alma anceia
De visões e magoas cheia,
Porque ao longe devaneia
Minha mente sem cessar?
Porque á tarde, em fins do dia,
Ao cahir da maresia,
Vou sobre a costa bravia
Magoas carpir sobre o mar?

Porque se me opprime o peito
—Já de ha muito á magoa affeito—
N'esse momento imperfeito,
Mixto de trevas e luz,
Quando tudo, ao longe e ao perto,
Se veste de um brilho incerto
E eu, d'esta alma no deserto,
Só diviso a paz na Cruz?

Porque ao murmurio das fontes,
Quando a sombra desce os montes,
Fito o olhar nos horizontes
E fico mudo a scismar!
Porque á noite, á lua cheia,
«Por noites da minha aldeia»,
Chóro e riu e devaneia
Meu agitado pensar?

Oh! quem é que assim me inspira
Á mente que me delira,
Ao coração que suspira
Allivios, consôlo e paz?
Quem faz que além d'esta vida
Veja uma outra promettida
E anceie essa patria querida,
Não esta patria fallaz?

Não vem de mim nem da terra
—Que tal ouvir não encerra—
O que este peito descerra
N'um hymno de tanta fé:
Eu scismo ás vezes de amores,
Porém são outros ardores,
Outros são os seus fervores,
Outro amor que este não é…

Eu tenho sonhos de gloria,
Que me acodem á memoria
Como a visão illusoria,
Que brilha e que se desfaz:
De ouro e nome tenho sêde;—
Do poder aspiro á séde…
Mas toda esta gloria cede
Á gloria de luz e paz!

Oh! trasborda-me este affecto,
Que aqui dentro anda secreto,
Como de vaso repleto
Trasborda puro o licor!
Oh! inunda-me este oceano
De um amor tão sobre-humano,
Tam puro de todo o engano…
Que nem sei se é isto amor!

Oh! embala-me esta esp'rança,
Aonde a alma me descança
Em pura e santa bonança,
Tão bafejada de Deus,
Que não pode—eu bem o vejo—
Descender-me este desejo
Senão da patria que invejo…
Oh! esta esp'rança é dos céos!

És tu oh Deus que me chamas!
És tu Senhor que me inflammas
N'aquellas ardentes chammas,
Que me dão tão pura luz!
És tu, oh Pae! que da altura,
Olhando a minha amargura,
Me estendes a mão segura,
A mão que a ti nos conduz!

Sim! minha alma te pressente!
Guiada por luz ingente
D'esse fanal que não mente,
Já p'ra ti desprende o vôo…
Oh! quem tem essa luz querida,
Não tem outra promettida,
Não pode amar outra vida…
Senhor! eu busco-te… eu vou!

Coimbra, 1861

IX

A PYRAMIDE NO DESERTO

A PYRAMIDE NO DESERTO

Além na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva e apontas céos;
E deixas, sobranceira ás tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéos!

Tu só! Quem te creou? Mysterio immenso
Ao nascer te encobriu, te envolve o sêr…
E agora eis-te, rival das serranias,
Como ellas condemnada a não morrer.

Tu só! Além, na extrema do horizonte,
Passa o Arabe no auge do furor,
Luz-lhe na mão o alfange, o olhar fuzila,
Vão com elle em tropel morte e terror!

Mas lá surge do accaso arroxeado,
Ao mando de medonho furacão,
Nuvem de ardente pó que rue sobre elle,
Que o sepulta em deserto, árido chão.

Mas tu sorris ás furias da tormenta,
Não temendo arrostal-a inda uma vez,
E ella, a que troou pelos espaços,
Vem tremendo morrer-te ahi aos pés.

Do cimo sublimado, erguido ás nuvens,
Vês os sec'los nascer, ruir no pó;
E em meio da ruina dos imperios
Ficas tu, ó gigante, eterno e só!

Além, n'esse deserto a quem assombras,
Que vidas, que paixões se hão revolvido!
E a todas o deserto, qual sudario,
Nas dobras da mortalha ha envolvido.

Tu podes apontar ao viajante
Um nome ou um logar na solidão:
Dizer—Alli, Palmira foi cidade—
—Aqui, foi um heroe Napoleão.—

Tu só podes dizel-o. Quem mais sabe,
Que pó envolve agora o que morreu?
Quem pode differençar, n'um mar infindo,
Um pó de um outro pó que o envolveu?

Só tu! Na solidão, sobre os desertos,
Tu só te ergues altiva, e apontas céos;
E deixas, sobranceira ás tempestades,
Rugir de um mar de areia os escarcéos!

Coimbra, Dezembro, 1859.

X

DESALENTO-CONFORTO

DESALENTO

_A Sorte, amigo, a sorte é dura ás vezes! Agora nos affaga e nos alenta; E logo nos opprimem seus revezes…

Após leda bonança vem tormenta;
Succede a noite escura ao claro dia,
E ao rapido prazer a magoa lenta!

Assim de minha ardente phantasia
Aos sonhos perfumados de venturas
Que a beijar-me a fronte eu já sentia,

Ai! seguiram-se tristes amarguras
Que a vida a pouco e pouco vão comendo;
Deixando espinhos só onde as verduras
Eram brandos aromas rescendendo_!

Alberto Telles

CONFORTO

(*PARAPHRASE DO SONETO ANTECEDENTE*)

A Sorte só p'ra o fraco é dura ás vezes!
P'ra o forte, que a virtude e crença alenta,
P'ra esse não ha sortes nem revezes…

Porque após da bonança vem tormenta,
Porque a noite succede ao claro dia,
É força definhar em magoa lenta?

Não! que aos males, que gera a phantasia,
O sabio oppõe as intimas venturas
Da virtude e da fé que em si sentia.

Não chores mais, poeta, as amarguras
Que só os bens da terra vão comendo:
A consciencia é jardim onde as verduras
Mil perfumes p'ra o céo vão rescendendo.

XI

A SENDA DO CALVARIO

A SENDA DO CALVARIO

Ave, Christus!

Deixae, deixae passar o homem forte,
      O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte
      Tambem é cruz de amor!

Deixae! na praça o povo agglomerado
      Vomita a injuria alli;
E elle, sereno o rosto e resignado,
      Olha o céo, e sorri.

Sorri… não fero riso de despreso
Que ao passar pelo labio perde o encanto,
Mas riso que transluz por entre o pranto
Ao que da cruz de amor arrasta o peso.

Sorri… Que mais importa ao homem forte
      Ou despreso ou louvor,
Se da estrella seguiu, que foi seu norte,
      O magico pallor?
Tem dentro, como em erguida fortaleza,
A fé, voz que lhe vae bradando—«Avante!
É teu premio o opprobrio do ignorante,
De tal morte morrer, tua grandeza!—»

E diz, vendo a consciencia onde serena
      Lê a imagem de Deus,
E do futuro vendo a praia amena:
      —«Posso subir aos céos!
Posso agora, depondo em terra o peso
Da missão dolorosa d'esta vida,
Buscar a patria minha promettida,
D'onde o divino amor transluz acceso.—»

Ai pode! Heroe, e martyr, deixa a terra,
      Que é cumprida a missão:
O Mundo o teu preceito guarda e encerra
      Na mente e coração…
Morres tu; mas a idéa que deixaste
Não morre, como a luz em fim do dia,
Nem o fogo do céo que em ti ardia,
Nem o exemplo sublime, que legaste!

Oh, martyr! cada lagrima chovida
      N'essa senda de dôr,
Conquista mais um espirito p'ra vida,
      Para a luz do Senhor;
E um dia (e talvez cedo venha o dia)
De cada dôr que ahi te curva agora,
Nascerá qual da noite nasce a aurora
Um mundo de verdade e de harmonia!
………………………………….
Deixae, deixae passar o homem forte,
      O ungido do Senhor;
Se a cruz que arrasta agora é cruz de morte,
      Tambem é cruz de amor!

S. Miguel, Julho de 1859.

XII

A JOÃO DE DEUS

A JOÃO DE DEUS

DEPOIS DE LER A SUA POESIA

    Fique em silencio eterno a minha lyra;
    Pomba do céo tu vae; Deus te bem fade,
    N'esta alma em teu logar guardo a saudade,
    Se a essencia sobrevive á flor que expira.
    ………………………………….

Foi o canto do cysne, o canto derradeiro
D'aquella augusta voz que se esvaiu no ar;
Adeus da terna amante ao seu amor primeiro
Que eterno ella julgou, mas cedo viu findar;
Ultimo adeus de quem, ha pouco ainda crente
—N'uma hora apenas—vê, qual sombra na corrente,
Morrer-lhe as illusões co'a morte d'esse amor
E triste se envolveu no vêo de uma erma dôr.
Soffreu da soledade… E onde ha hi um peito
Que não soffra tambem, ainda ao mal affeito?

Soffreu da soledade em que a alma lhe ficou,
Depois que ao longe e triste o ecco se finou
D'aquella unica voz, que ainda repetia
A sua voz, bem como, á tarde em fins do dia,
A nuvem que passou reflecte um raio ao sol,
Que mesmo occulto a tinge aos fogos do arrebol.
Soffreu quando da sorte a mão pesada veiu
Poisar-lhe sobre o peito e comprimiu alli
A ancia que animára o arfar d'aquelle seio,
Seio que só bateu—poesia!—amor!—por ti!

E elle então disse: «Aqui deponho a minha lyra:
Se esta alma a outros céos, a outra patria aspira,
Se esta ancia infinita não posso aqui fartar,
Que val'—ecco sem voz—que val' o meu cantar?
Val' mais que eu, em silencio, espere o grande dia,
Cuja aurora immortal, em luz, em poesia,
Me hade envolver, e assim levar-me áquelle céo.
Céo do que amou, creu, esperou e soffreu.
Emtanto—esp'rando—viva em silencio profundo,
Deixando em vão rugir,—qual voz do mar—o mundo;
Aqui guardo a saudade, esse talisman só,
Como da flor já secca inda se guarda o pó.—»

Cobriu o rosto após co' manto da tristeza;
O sol d'aquelle céo fugiu ao longe… além…
E a noite sem luar, sem brilho, sem belleza
Ao negro que hia lá veiu ajuntar tambem.
………………………………….
………………………………….
Poeta, essa não é tua missão. Curvar-se
Um momento é do homem; porém não prostrar-se
Gemendo em desalento, e face contra o chão,
Como quem acceitou da dôr a escravidão.
Poeta é quem tem fé, quem busca no futuro
A crença que lhe nega este presente impuro:
Não quem deixa cahir a lyra, não quem vae
Pedir ao desalento abrigo e amor de pae.
É virtude soffrer, nunca perder a crença;
É ter esp'rança tal que a dôr mais crua vença;
É não pedir seu premio aos homens, mas a Deus,
E passar n'este valle, o olhar fito nos céos.

Tal é tua missão:—Luctar! O soffrimento,
Ao pé do eterno bem, o que é mais que um momento?

Coimbra, Março, 1861

Como a poesia de João de Deus citada na epigraphe da p. 73, não foi incorporada nas collecções das Flores do Campo e Folhas Soltas, transcrevemol-a aqui para intelligencia do texto dos nossos cadernos manuscriptos de Coimbra, notando as variantes da primeira estrophe.

ADEUS

Fique em silencio eterno a minha lyra;
Vae, effluvio de Deus! Deus te bem fade:
N'esta alma, em teu logar
fica _a saudade,
Se a essencia sobrevive á flôr que expira.

Dizer-te adeus! não pude; quando occorre
Tal voz ao labio, o labio empallidece,
Como a nota da lyra nos fallece
Ante a lua que cae, e o sol que morre:

Ante o sôpro que varre o cedro e o vime,
Ante o sublime aspecto do oceano,
Ante a esposa do martyr sobrehumano,
Ante tudo o que é grande e que é sublime.

Embora!… quando a lampada crepita
Já falta d'oleo, languida esvoaça;
A nuvem estala; ruge a onda e passa,
Guarda silencio a abobada infinita_.

João de Deus

XIII

PER AMICA SILENTIA LUNAE

PER AMICA SILENTIA LUNAE

Guardai in alto……………………. ………………………………….

Dante, Inf. C. 1.^o

I

Eu amo a noite ás horas socegadas
Que o Senhor manda á terra, como balsamo
A tanta dôr que a punge, e o sol do dia
Parece escarnecer com tanto brilho,
Nem sabe respeitar; quando o silencio
Com manto protector envolve os tristes,
Os que choram saudades; quando o orvalho
Refresca o seio á flôr, e em cada balsa
A viração prepassa suspirando;
Quando é mais puro o ár, mais doce a brisa,
Mais sumidos, mais vagos os rumores,
E detraz da montanha, saudosa
Como a virgem dos sonhos, surge a lua.

II

Eu amo então a noite.—Paz e esperança
A quem soffre, buscando algum allivio;
Ao feliz exultando de alegrias
A lembrança de Deus a quem as deve;
A quem descreu de achar inda na terra
Ventura que lhe foge… o olvido ao menos;
A toda a crença um exultar de affectos;
A todo o desconforto, uma esperança;
A toda a natureza, amor e vida;
Eis o thesouro santo que nos abre
—A nós e ao mundo—a noite, eis seu tributo.

É doce então abrir os seios d'alma
Aos effluvios do céo: flor que hão crestado
Ardentias do sol, e ainda timida
Palpitando entre o susto e a esperança,
Retoma agora aos poucos novo alento
Ao sentir-se segura, e abrindo o calix
Estremece de amor a cada gôtta
Dos orvalhos do céo: como que a vida
Solta de tanto laço que a comprime,
Como gaz que ao calor se ha dilatado,
Se expande livre agora e cresce e absorve
Em si mil harmonias, mil poderes
Que esse universo tem: como as correntes
Occultas, que os oceanos communicam,
A natureza e o espirito permutam
Sympathias e forças, em que a alma
Mais cresce e mais comprehende, e mais abrange,
E n'este permutar de força e força
Quasi na vida universal se funda.

III

Passa a lua; do alto olhando a terra
Procura o triste por lhe dar allivio;
Prepassa a viração e busca do ermo
A florinha minada que refresque;
Corre manso o regato, e banha a erva
Que um pé calcou, e o sol deixou crestada;
Tremúla a estrella, symbolo de esperanças,
Enviam-se harmonias as espheras;
Tudo amor, tudo affectos communica;
E o espirito do homem busca livre
Da sob'rana harmonia a eterna fórmula,
Do eterno amor o fóco, a patria sua.

Lembranças de um viver já pressentido,
Ou memorias—talvez—de uma outra vida,
Que nos relembra vaga, e como em sonhos,
E sobre o fundo d'esta se destacam
Como pela penumbra um vulto incerto…
Aspirações, memorias, ou saudades,
O que nos enche o peito e nos enleva
Como um sonho de amor—e mais ainda—
Senão este mysterio do futuro,
Esta attracção do sêr a vida nova,
Que se foge e se busca e nos revela
A vida universal, então sentida
Mais forte na harmonia do Universo?

IV

Busca-se, anceia-se, e o alvejar da campa
Mais que o sorriso de uma amante é doce;
A lembrança da morte mais que a esp'rança
Do poder ou da gloria nos enleva;
Terrores, incertezas se dissipam,
E sem saudade, sem temor se anhela
Mais mundo, mais espaço, e viver novo!

V

E quem pode temer? Teme o que um dia
Sonhou na mente uma ambição terrena
E mais não vê por todo esse universo,
E além d'elle não vê sublime e grande:
O, que engolfado nos prazeres do mundo,
Esqueceu o seu Deus e seus destinos
Nem sonha mais ventura além da campa:
O que pungido por cruel espinho
De uma duvida atroz, sente a cada hora
Cahir-lhe a uma e uma cada crença
De sobre alma, deixando-a erma e nua,
Como as humidas prégas de um sudario,
Aos poucos desdobrado, deixam vêr-se
Os descarnados membros do cadaver.

VI

Mas quem se assenta ás horas do mysterio,
Entre as flôres do prado, ou sobre a encosta
Da collina virente e olhando a lua
Que banha em luz a esphera crystallina,
Inveja quem habita n'esses mundos…
E fita o olhar por esse espaço, e cuida
Sondar-lhe o infinito; quem anhela
Desvendar-lhe os mysterios e buscando
A região que se sonha e não se avista
Dal-a por patria á sua alma… oh! esse
A viagem não teme, antes anceia,
Quebrada a fórma d'este sêr, alar-se
Em busca de outra mais perfeita, e sempre
De degráo em degráo, de esphera em esphera,
—Metempsycose eterna!—sublimar-se
Na progressão d'este ascender constante
Da parte ao todo, do mortal principio
Em busca de um futuro inattingivel,
Porém melhor cada hora, e a cada passo.

E quem pode temel-a, essa viagem,
Quando fitando o olhar no alto, avista
Banhado em luz o espaço immenso e puro,
Patente e franca a estrada do Universo,
E como que visivel o infinito?
Quando tudo no céo e pela terra
Parece, como irmão, dar-nos confiança
Em nós e em si para seguir avante?
Quando se sente palpitar no seio
Não só já a mesquinha vida propria
Mas todo o grande sêr do que é creado?
Quando nas aras do Universo, o espirito
Communga, como irmão, na mesma crença,
Com tudo quanto vive, e a mais aspira,
Ah! quem pode temer, noite de encanto,
Noite pura e sagrada ao Deus de affecto,
Protegido por tua luz amiga,
A aspiração dos immortaes destinos.
Um pouco mais ao peregrinar constante,
A entrevista do infinito e do homem?

VII

Por ti, noite de amor, por ti nos desce
Tanta ventura ao seio; e como o orvalho
Que o pó da terra ressequido e árido,
Que o vento impelle, fixa sobre o sólo
E como que consola e allivia,
Assim como teu effluvio o triste espirito
Que incerto das paixões refoge á duvida,
N'uma crença fixaste—a crença eterna
Do amor universal, todo harmonias,
Porque és affectos toda! Em cada balsa
Descanta um rouxinol; a cada rosa
Uma brisa osculou; em cada fonte
Brilha um raio da lua; em cada peito
Murmura um ecco que de amor só falla!

Mosteiro da Batalha, 1861.

XIV

NA PRIMEIRA PAGINA DO INFERNO DO DANTE

NA PRIMEIRA PAGINA DO INFERNO DO DANTE

(C. C. P. P.)

Este é o livro das vinganças nobres,
O inferno dos que têm o céo na terra:
Nem vingança; justiça.
            —Oh vós que as lagrimas
Trazeis sempre nos olhos, sem que sequem,
Lazaros no banquete da existencia,
Oh filhos do dever! lêde este livro,
Porque atravez de um mundo de miserias,
Do largo perigrinar chegando ao termo,
Heisde ouvir, lá das bandas do futuro,
A grande voz do Christo, a voz eterna,
Erguer-se sobre os filhos da verdade:

«—Felizes dos que soffrem—terão premio:
Feliz do pobre e triste, orphão de affectos,
Será rico: no céo seu pae o espera!»

Coimbra, Dezembro, 1861.

XV

DANTE—DIVINA COMEDIA

DANTE—DIVINA COMEDIA

(PURGATORIO, CANTO VI)

Oh Italia aviltada! Oh não sem rumo
      No meio da tormenta!
E era esta a rainha das provincias?
      Hoje… cloaca informe!
Outr'ora mal bradasse:—«Patria, Patria!»
      Um cidadão, um filho,
Alma nobre—acolhias-l'o no seio
      No seio que lhe abrias!
Agora espreita cada um o peito
      Do visinho e olha o gladio:
E os que estreita no cinto o mesmo muro
      E o mesmo fôsso… comem-se!
Alonga, alonga, oh triste, pelas praias
      Teus olhos macerados;
Desce-os, desce, infeliz, ao proprio seio…
      A paz! onde a encontraste?

Julho, 1862.

XVI

MOMENTOS DE TEDIO
SONETOS

MOMENTOS DE TEDIO

I

Sinite parvulos ad me venire

Ventura! aurora d'outro eterno dia—
Amor—Verdade—Bem—Quanto desprende
Seu vôo cá da terra e quanto estende
Azas no céo, só busca esta harmonia,

E as alturas fechadas! tudo esfria
E morre, lá por cima, e não se entende…
Certo é que o fructo só p'ra terra pende,
Parece que p'ra terra a luz se cria!

Ha tanto quem sem lucta espere havel-a!
Sem se erguer, quêdo o mundo, cuide vêl-a…
Talvez, se assim quedasse, a possuisse!

Chama-se isto voar! Toda essa altura
Dava-a bem por uma hora de ventura…
Antes minha alma não voasse… e visse!

Coimbra, Novembro, 1862.

II

A UM CRUCIFIXO

(Primeira elaboração do Soneto de p. 20 dos Sonetos Completos)

Dieu n'est pas! Dieu n'est plus

Ha mil annos, oh Christo, ergueste os magros braços,
E clamaste da cruz: «Ha Deus!» e olhaste, oh crente,
O horizonte futuro, e viste em tua mente
O alvor do céo banhar de luz esses espaços!

Porque morreu sem ecco o ecco de teus passos?
E de tua palavra (oh Verbo!) o som fremente?
Morreste! ó dorme em paz: não volvas, que descrente
Arrojáras de novo á campa os membros lassos!…

Ha mil annos! ha mil! Que é d'ella a tua esp'rança? Ainda, como então, Amor—traduz—Vingança, E é o int'resse glacial das almas o sudario!

Ainda, como então, víras o mundo exangue? E ouvíras perguntar: «De que serviu o sangue Com que regaste, oh Christo, as urzes do Calvario?!»

Coimbra, Novembro, 1862.

* * * * *

VARIANTE DO 2.^o TERCETO

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céo, frio como um sudario.

III

DECOMPOSIÇÃO

«Eu não sou dos que a patria só adoram»
Como adora o regato a propria serra:
Deus n'uma gleba apenas não se encerra;
Se visita esses mundos, que demoram

De céo a céo, tambem cafres o imploram.
Mas deixae que uma lagrima sincera
Possam os olhos dar, olhando-a, á terra
De onde a primeira vez aos céos se foram.

Sim, vêr-te, Portugal! eu chóro ao ver-te!…
Como ao Leão gigante do Occidente
Lhe cáe a garra, e em nada se converte!…

Não é isto o que eu chóro: o que me dóe,
É como aquella juba omnipotente,
Em pennas de pavão se decompõe!…

Coimbra, Janeiro, 1863.

IV

NIHIL

Homem! Homem! mendigo do Infinito!
Abres a bocca e estendes os teus braços
A vêr se os astros cáem dos espaços
A encher o vacuo immenso do finito!

Porque sóbes á rocha de granito?
Porque é que dás no ár tantos abraços?
E cuidas amarrar com ferreos laços
Um reflexo da sombra de um esp'rito?

Vê que o céo, por escarneo, a luz nos lança!
Que, á tua voz, a voz da immensidão
Responde com immensa gargalhada!

A idéa fechou a porta á esp'rança,
Quando lhe foi pedir gazalho e pão…
Deixou-a cara a cara com o Nada!!…

Maio, 1863.

V

QUINZE ANNOS

(Primeira elaboração do Soneto de p. 30 dos Sonetos Completos)

Eu amo a vasta sombra das montanhas
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossaes de aranhas.

D'ali o nosso olhar vê tão extranhas
Coisas, por esse céo! e tão ardentes
Visões amostra o mar de ondas trementes
E as estrellas, d'ali, vê-as tamanhas.

Amo a grandeza tenebrosa e vasta:
A grande idéa como um grande fruito
De um'arvore colossal que isto domina;

Mas tu, criança, sê tu boa… e basta,
Sabe amar e sorrir… mulher, é muito
Mas a ti só te quero pequenina…

Coimbra, 18 de abril de 1863.

VI

SARCASMOS

Está deserta a estrada do Infinito,
É apenas o cêo do nada espelho,
A eternidade é fossil: Deus é velho,
E o homem olha o céo de fito em fito!

A cruz de Christo está feita um palito,
Embrulham-se caminhos no Evangelho;
Cada qual dá a Deus o seu conselho:
Nem já é Verbo o verbo… é só um Dito!

Nada d'isto me dá a mim cansado;
Mas morrer Satanaz tambem de frio…
Mas não haver já mal que se combata…

Não poder já ao demo um condemnado
Render a alma immortal… por desfastio…
É isto o que me dóe, o que me mata!…

Maio, 1863.

XVII

AMOR DE FILHA

AMOR DE FILHA

(NO ALBUM DE UMA SENHORA)

………..o sangue é vida, e as Mães a fonte d'ella…

João de Deus

Ainda a trabalhar, dedos formosos!
Nem tanto affinco: Deus tambem não quer
Que se cumpra o preceito tanto á letra;
Preceito é trabalhar, não que se estraguem
Esses formosos dedos de mulher.

Já o sol se escondeu atraz da serra,
E o bordado não céssas de bordar;
Quando abri de manhã esta janella,
Já lá estavas no posto, de olhos roxos,
Como se foram roxos de chorar!

Forte trabalho! não me enganas, bella!
Bem sei eu quem te dá tamanho ardor…
Pois nem um olhar a quem passou na rua,
Dizendo:—É bella! e olhando-te? nem isso?…
Ai tanto trabalhar! só por amor…

Que importa o que passou? no peito um nome
Te domina, e na mente uma imagem só…
Feliz cabeça, que hade ornar em breve
O bordado gentil em que trabalhas
Com esse affinco, que causou meu dó.

Feliz! sim; que lhe guarda aquelle peito
Largo e rico thesouro de affeição;
Pois magoar estes olhos, e estes dedos
Formosos estragar—homem ditoso—
Só faz o amor que vem do coração!…

Tu, que talvez repouzes no ocio brando,
(Se não corres talvez de flôr em flôr)
Vê tu que sacrificios immerecidos!…
Mas um menino cego é quem nos vence,
Que a isto e a mais obriga o louco amor!
………………………………….

Mas, não! Quem lá no fundo, meio occulto
Entrevejo na sombra, como quem
Teme do dia a luz—luz orgulhosa,
Luz que ao feliz afaga, ao triste afflige—
Quem triste e só, se occulta mais além?

Quem, se o dia findou, recebe o beijo
E outro recebe logo que é manhã?
Quem—emquanto a alampada nocturna
Alumia a vigilia—sente em sonhos
Uma lagrima de amor molhar-lhe as cans?

Perdão, mulher! e mais que mulher, filha,
Perdão! louco julguei e impio tambem,
Que tinhas outro amor: como se possa
Ter uma filha amor ou pensamento
Que todo não pertença a sua mãe!

Feliz, quem—pobre—tem um tal arrimo;
Quem—cega—pode vêr uma tal luz:
Quem—cega e pobre e triste e desprezada—
Tem uma mão de filha que piedosa
Té aos degráos do tumulo a conduz!…
………………………………….

É nobre o teu trabalho, mulher bella—
Bella d'aquella luz que vem dos céos,
A quem nas áras da fiel piedade
Sacrifica illusões da mocidade
E segue o seu caminho crente em Deus!

Nem mais um riso, amigos! Respeitemos
O que ella faz ali com tanto ardor;
Não são enfeites vãos, do prazer socios,
É o pão de uma mãe que ali grangêa,
Trabalha por amor… mas outro amor.

Trabalha e enchuga o pranto á velha enferma:
Trabalha noite e dia; é Deus que o quer:
Que importa á filha, quando a mãe lhe soffre,
Que o sol nasça ou decline, ou que se estraguem
Os seus formosos dedos de mulher?

Coimbra, 1862.

XVIII

GARGALHADAS

GARGALHADAS

(NO ALBUM DO SEU CONDISCIPULO DR. JOSÉ BERNARDINO)

Risum teneatis!

Bem é fallar de tristezas
Por estes tempos de risos,
Em que passa a Gargalhada
Na face dos paraisos,

E, como o vento do pólo
Forte—mas triste, mas frio—
Que leva as folhas co'as flores,
Como as enchentes do rio.

É o nivel da egualdade
Desde a rocha até á flor,
Desde o amor da virtude
'Té á virtude do amor.

Como os remoinhos de pó
Que a gente vê, a tremer,
Sob-la tarde, nas estradas,
Como demonios correr;

Como a espuma batida
Que a rocha escarra no mar
E a onda depois atira,
Com escarneo, por esse ár;

Como os grôus em debandada
Ao partir-se-lhe a cadeia:
E o torvelinho que atira
No deserto os grãos de areia;

Como tudo, emfim, que geme
No abraço dos turbilhões
E, de olhos postos no inferno,
Lança ao céo as maldições:

Folhas mortas e flores vivas,
Pó da terra e diamantes,
Aguas correntes e charcos,
Os de perto e os mais distantes;

Vozes profundas da terra,
Vozes do peito gementes,
De envolto as feras bravias
Com as aves innocentes;

Como as palhas assopradas
Depois das malhas, na eira,
Ou gottas de agua rolando
De alta náo na larga esteira—

Tudo partido, enlaçado,
Em desesp'rados abraços,
Ruindo pelas quebradas,
Rolando pelos espaços,

Nos paraisos perdidos
E—agora—feitos desertos,
Como legião de demonios
Rugindo infernaes concertos;

Tudo vae, se rasga e parte,
Como em cidade assaltada,
Sob esses tufões gelados
Da tormenta—Gargalhada!

Das tormentas! Que sem conto
São esses ventos de morte;
E d'um ao outro horizonte;
E d'um modo e d'outra sorte.

Os suões do céo humano
E os simúns do seu deserto;
O que a gente vê ao longe,
O que a gente sente ao perto;

A gargalhada do sabio,
Que se chama… indagação;
A gargalhada do sceptico,
Que tem nome… negação:

A gargalhada do santo,
Que tem nome—fé e crença;
A gargalhada do impio,
Que se chama… indifferença:

A gargalhada da historia
Que se chama… Revolução:
E a gargalhada de Deus,
Que tem nome… Escuridão;

Eil-as 'hi vêm, as tormentas,
De todos os horizontes,
Subindo de todos vales,
Descendo de todos montes.

Eil-as 'hi vêm: já espectros,
Já como lavas ruindo:
Já nuvem, já mar, já fogo,
Mas sempre, sempre cahindo,

Desde a França… e são revoltas;
Da Allemanha… e são idéas;
Desde a America… e são fardos;
E da Russia… e são cadeias;

De Inglaterra… e são carvões
De fumo enchendo os pórtos;
Do Oriente… e são os sonhos;
E da Italia… Christos mortos;

Da Hespanha… e são traições,
Á noite, por traz dos brejos,
—Mão na faca e mão nas costas—
E dê cá… e são bocejos.

É d'estes lados que sopram…
E são os ventos assim…
Levando os cedros do monte
Como os lyrios do jardim…

* * * * *

E, comtudo, no meio da alegria
Terrivel, que enche o espaço como o ecco
Das grandes trovoadas—e debaixo
De tantos ventos e de tantos climas,
A Alma—a flor do Paraiso antigo—
Lyrio bello do valle—peito humano,
A Sulamite da Sião celeste—
A Psyche triste e palida, que vaga
Nas praias do infinito—a Alma, oh homens,
Em meio do folgar que vae no mundo,
Cada vez chora mais e mais soluça,
E mais saudosa—a eterna expatriada!—
………………………………….
………………………………….

É que o rir do leão sempre é rugido—
E isto, que sae da bocca tenebrosa
Do mundo—e o mundo escuro diz Progresso,
E Força, e Vida, e Lei—isto é soluço
Que sae do peito condemnado,—e quando
Vae a sahir, para illudir o misero,
Diz á bocca: «Olha tu como nós rimos»…
Mas não é mais que o arranco da agonia!
Nem pode ser.—Aquelle riso enorme
Quando sae é co'o ruido das tormentas
E, como as grandes aguas, vae rolando,
E esmaga… e não consola!
            É como a orgia
Que cuidando folgar… se está matando!
E como esses que dizem dos rochedos
Que brincam com as ondas… quando as partem!

Não é o riso bello da Harmonia,
É apenas gargalhada de Possessos!
Ha dentro d'este mundo algum demonio,
Que o obriga a torcer assim a bocca
Lá quando mais se agita e mais lhe dóe!
Senão, olhae e vêde essa alegria
—Quer seja Idéa ou Força ou Arte, ou seja
A Industria ou o Prazer—de qualquer lado
Que rebente dos labios—vêde como
Faz frio a quem a vê! como entristece
Vêr o gigante louco dar-se beijos
Como em mulher formosa… e ao longe, ao longe
Todo o campo alastrado de flôr's mortas!
………………………………….
………………………………….

      Mas basta! A luz doirada
      Um dia hade surgir!
      E a venda, d'esses olhos,
      Por fim tambem cahir!

      E a Gargalhada immensa
      Fechar a horrivel bocca!
      E ser canto suave
      Essa atroada rouca!
      Então!………………
      ……………………
      ……………………
      ……………………

            Alma, que sonhas?
      Que louco desvairar!…
      Então!!… Mas—Hoje—esta hora…
      É toda p'ra chorar!

Coimbra, Novembro, 1863.

XIX

Á ITALIA

Á ITALIA

POESIA RECITADA NO THEATRO ACADEMICO POR A. FIALHO DE MACHADO

na noite de 22 de outubro de 1862

Italia e Portugal! que duas patrias!
Ambas tam bellas, tam amadas ambas!
Uma, a patria do berço; outra a das almas:
Uma, a das artes; outra a dos combates!

Oh! deixae que hoje, aqui, sobre o meu peito,
As estreite, a final.—Ha quanto tempo
Eu quizera juntar-vos, pelas frontes,
Beijar-vos, bem unidas, soluçando,
Como quem, tendo pae, mãe encontrasse.

Portugal! nobre filho de guerreiros!
Viste, primeiro, o sol da liberdade,
Mais feliz, não maior e nem mais digno
Que tua irmã, a Italia.—Ella, entretanto,
Chorava, olhando o céo, negro de nuvens!

Cobriram-n'a de affrontas! sobre os hombros
A toga negra, já como sudario:
O seu corpo partido em dez retalhos:
O extrangeiro assentado nos seus lares…
E não se via sol no céo da Italia!

Dizei-me vós, se pode o grande rio
Existir, sem que as fontes o basteçam?
Se pode quem nasceu fadado ás glorias,
Esquecido morrer? Se os fortes netos
De Mario e de Catão, ir assentar-se
Sosinhos sobre o tumulo dos fortes
—Olhos no chão e pulsos algemados?
Se é possivel que exista um povo—um povo!—
Sem ser livre, e sem sol o céo da Italia?!

      O céo da Italia!… esse céo
      Tem, por sol, a liberdade!
      Riqueza… de claridade…
      Mas se foi Deus quem lh'a deu?!

      O que Deus dá é sagrado!…
      'Stava o povo escravisado
      E par'cia, de esquecido,
      Prostrar-se tam compungido
      Ante os pés de seu Senhor?!

      Pois bem! a esse povo escravo
      Bastou-lhe o brado d'um bravo
      Para se erguer,—eil-o em pé!
      E aos tyrannos, aos senhores,
      Aos fortes, cheios de fé,
      Bastou-lhes ouvir os clamores
      D'essa turba esfomeada

      Para deixarem a espada…
      Raia a nova claridade,
      A aurora da liberdade,
      D'um proscripto no palor!

      O povo toma as espadas,
      Meias gastas e olvidadas,

      Sobre as campas dos avós:
      E, ainda vestido de dó,
      Com esforço sobrehumano,
      Ergue os hombros… e o tyranno
      Treme… nuta… eil-o no pó!…

      Quem derruba, sobranceiro,
      Altos colossos por terra?
      Quem é que faz d'uma guerra
      A festa do mundo inteiro?

      Um homem?
            Não!
                  A Justiça!…
      Deus!—o unico juiz
      Dos povos na grande liça!

      Só Deus!—
            Elle dá ao triste
      Allivios… não odios vís!
      A essa Italia que hoje existe
      Segredou-lhe, em quanto oppressa,
      Como sagrada promessa,
      Em vez de iras da vingança,
      Estas palavras d'esperança:

      «Tudo tem allivio á magoa:
      A flôr murcha, a gotta d'agua;
      Cruz, o moribundo exangue;
      Um filho, a fera mais seva;
      Amor, o martyr; a treva,
      Um raio de claridade…
      E o povo, que é vida e sangue,
      Não hade ter liberdade?!»

XX

A GENNARO PERRELLI

A GENNARO PERRELLI

AO ARTISTA E AO PATRIOTA ITALIANO

A arte é como a luz: brilha do alto,
Mas quer livre brilhar: do Deus do bello
Ella é religião: seu templo immenso
Quer sacerdotes mas rejeita o bonzo.
E o artista é como astro gravitando
Em céo e espaço livre: acaso o servo
Pode entoar um canto de ventura?

      Só a mão, que não aperta
      Grilhão de escravo, disperta
      Na arte tal magestade,
      Tal sentir e tal verdade—
      Vêde essa fronte inspirada
      Do artista, allumiada
      Ao clarão da liberdade!

XXI

GUITARRILHA DE SATAN

Estes versos appareceram pela primeira vez publicados com o pseudonymo de Carlos Fradique Mendes.

GUITARRILHA DE SATAN

Estranha apparição
Que em minhas noites vejo,
Ó filha do desejo!
Ó filha da soidão!

Não sei qual é o teu nome,
E d'onde vens ignoro:
Sei só que tremo e choro
Como de frio e fome!

Que por fundir comtigo
Suspiros, ais, rugidos,
Déra ideaes queridos,
Deuses e fé que sigo.

Sim! dera as prophecias
E os cultos salvadores,
E os Golgothas e as dôres
E as Biblias dos Messias!

Por ti minh'alma clama,
Corre a meus braços breve,
Sejas de fogo ou neve,
Sejas cristal ou lama!

Se és Beatriz, sou Dante;
Sou santo, se és divina;
Se és Laïs ou Messalina,
Sou Nero, ó minha amante!

1869.

XXII

SERENATA

D'esta poesia escreveu o auctor ao sr. dr. Wilhelm Storck, em carta por este communicada a J. de Araujo: «A… Serenata nunca foi impressa que eu saiba, embora não seja de modo algum inédita, pois tendo sido composta ha 4 annos, na Ilha de S. Miguel, a pedido de um grupo de rapazes, que ali formaram uma sociedade cantante, é lá muito conhecida e cantada por esses e outros nos seus passeios musicaes em bellas noites de verão.»

Storck traduziu esta poesia. Ácerca da traducção escrevia-lhe D. Carolina Michaëlis, em maio de 1891: «A. de Q. recebeu a sua traducção da Serenata, a qual lhe agrada extraordinariamente. Antepõe-na ao original d'elle, e diz que lhe sôa como uma canção allemã.»

SERENATA

Cahiu do céo uma estrella,
Ai, que eu bem a vi tombar!
Era a noite pura e bella,
Murmurava ao longe o mar…

Era tudo extase e calma,
Perfume, encanto, fulgor…
Só no fundo da minha alma
Que desconforto e que dôr!

Dorme e sonha, minha bella,
Emballada ao som do mar…
Cahiu do céo uma estrella,
Triste do que a viu tombar!

Era uma estrella cahida,
Uma entre tantas, não mais!
Era uma illusão perdida,
Era um ai entre mil ais!

E has de viver torturado,
Louco, incerto coração,
Só por um astro apagado,
Por uma morta illusão?

Dorme e sonha, minha bella…
Como chora ao longe o mar!
Cahiu do céo uma estrella,
Ai de mim que a vi tombar!

1873.

XXIII

O POSSESSO

O POSSESSO

(Commentario ás Litanies de Satan)

I

Não creio em ti, Deus-Padre omnipotente,
Creador d'esse espaço constellado,
Que do Cahos e o Nada conglobado
Arrancaste o Universo refervente;

Não creio em ti, Deus-Filho, em cuja mente
Foi o Bem inefavel feito e nado;
E não creio no Espirito gerado
Do eterno Amor, como uma chamma ardente;

Saibam-n'o a terra e os céos: do Crédo antigo,
Cheio de Graça e Fé, refugio e abrigo,
Benção da noite e prece da manhã,

Só creio no Peccado ineluctavel,
Na Maldição primeira inexpiavel,
E no eterno reinado de Satan!

II

Quando o Tedio, com plumbeo capacete,
Esmaga a fronte ao homem desolado,
E o Fausto pensador vê a seu lado
A Negação sentada ao seu bufete,

Seu labio é vil tres vezes, se repete
Preces vãs e esconjuros, humilhado:
O nome de Homem, tragico e sagrado,
Só a quem desafia a Deus compete!

É grata a maldição á alma robusta
Do que nenhum pavor divino assusta,
E no Vasio ergueu seu templo e altar…

Mais fecundo que o Céo, creou o Inferno
A blasfemia.—Honra, pois, e preito eterno
A Satan, que nos deu o blasfemar!

1873.

XXIV

EPIGRAMMA TRANSCENDENTAL

EPIGRAMMA TRANSCENDENTAL

Quem vos fez, céo profundo e luminoso,
Terra fecunda, poderoso oceano,
E a ti deu vida, coração humano,
Que és todo um céo e um mar mysterioso,

Bem sabia que o céo, o mar, a terra,
Tinham de ser só carcere e gehena;
Que havia a vida ser só lucto e pena,
E campo, o coração, de eterna guerra.

Por isso o estranho artifice sombrio,
Que, concebendo o plano da obra ingente,
Ironico talvez, talvez demente,
Logo se arrependeu e o confundiu;

Não deu seu nome, como o archonte epónymo,
Á obra de sua mente e sua mão:
O Creador furtou-se á Creação…
E sendo um máo auctor ficou—anonymo.

1879.

XXV

NA SEPULTURA DE ZARA

Estes bellos versos não eram destinados á imprensa, e appareceram publicados em uma revista de Lisboa, sem consentimento do auctor ou da familia da menina cuja morte pranteiam. Anthero recusara-se a imprimil-os, como se vê da seguinte carta que appareceu entre os papeis de Eduardo Coimbra e que a mãe do mallogrado moço, a sr.^a D. Anna Coimbra offereceu com varios outros documentos ao mais querido amigo de seu filho:

«_Villa do Conde, sabbado.

Meu joven poeta

São reservados, e pertencem ao nosso Joaquim os versos a que allude. É claro que sem licença d'elle não devem imprimir-se. Deixe-os no tumulo da desditosa criança, que lá fallam melhor aos que a estremeceram. Se porém combinarem trasladal-os para qualquer publicação, addiccione o meu amigo ao nome da pobre Zara o do desolado irmão. Para elle foram feitos, a elle serão dedicados.

E nada mais por hoje, meu amado poeta

Seu do C._

Anthero de Q.»

ZARA

A JOAQUIM DE ARAUJO

Feliz de quem passou por entre a magoa
E as paixões da existencia tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa,
E leve, como a sombra sobre a agua.

Era-te a vida um sonho. Indefinido
E tenue, mas suave e transparente…
Acordaste, sorriste… e vagamente
Continuates o sonho interrompido.

1881.

TRADUCÇÃO ALLEMÃ

DE WILHELM STORCK

Glückselig wer vorüberging am Weh
Des Lebens und der Leidenschaft Getose
Unwissend, wie vorübergeht die Rose,
Und flüchtig, wie der Schatten ob der See.

Dein Leben war ein Traum, begriffen kaum
Und leicht und Lieblichkeit D'u trankest;
Du wachtest auf und lacheltest und sankest
Züruck in Deinen unterbroch'nen Traum.

Münster, abril, 91.

XXVI

GLOSA CAMONIANA

Dous ou tres dias antes da morte de Eduardo Coimbra (8, outubro, 84) escreveu Anthero esta bella quadra junto do leito, em que o moço poeta, quasi agonisante, lhe pedia «um improviso» para a carteira-album que pouco antes mandara comprar. Essa carteira offereceu-a a mãe do poeta em recordação dolorosa, ao fiel amigo, que rubricára n'ella o seu nome, junto do de Anthero, e que dias depois lhe entregava a chave do caixão do pobre Eduardo.

GLOSA CAMONIANA

(NA CARTEIRA DE EDUARDO COIMBRA)

Pés em chagas, seguimos pela via
Dolorosa, em demanda da Verdade;
Mas achal-a entre os homens ninguem hade…
Triste o que espera! triste o que confia!

1884.

XXVII

AS FADAS

Estes versos foram escriptos em Lisboa, para a collecção—Thesouro poetico da infancia, que o proprio auctor coordenou. Foram lidos no dia immediato a João de Deus, «que delles se mostrou satisfeito», como Anthero escrevia a um amigo. «Para mim, poeta de genero apocalyptico, foi um verdadeiro tour de force

AS FADAS

As fadas… eu creio n'ellas!
Umas são moças e bellas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, á beira do mar…

Algumas em fonte fria
Escondem-se, emquanto é dia,
Sáem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…

O vestir… são taes riquezas,
Que rainhas, nem princezas
Nenhuma assim se vestiu!
Porque as riquezas das fadas
São sabidas, celebradas
Por toda a gente que as viu…

Quando a noite é clara e amena
E a lua vae mais serena,
Qualquer as póde espreitar,
Fazendo roda, occupadas
Em dobar suas meadas
De ouro e de prata, ao luar.

O luar é os seus amores!
Sentadinhas entre as flóres
Horas se ficam sem fim,
Cantando suas cantigas,
Fiando suas estrigas,
Em roca de oiro e marfim.

Eu sei os nomes d'algumas:
Viviana ama as espumas
Das ondas nos areaes,
Vive junto ao mar, sósinha,
Mas costuma ser madrinha
Nos baptisados reaes.

Morgana é muito enganosa;
Ás vezes, moça e formosa,
E outras, velha, a rir, a rir…
Ora festiva, ora grave,
E vôa como uma ave,
Se a gente lhe quer bulir.

Que direi de Melusina?
De Titania, a pequenina,
Que dorme sobre um jasmim?
De cem outras, cuja gloria
Enche as paginas da historia
Dos reinos de el-rei Merlin?

Umas tem mando nos áres;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquella vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha do condão.

O que ellas querem, n'um pronto,
Fez-se alli! parece um conto…
Mesmo de fadas… eu sei!
São condões que dão á gente,
Ou dinheiro reluzente
Ou joias, que nem um rei!

A mais pobre creancinha
Se quiz ser sua madrinha,
Uma fada… ai, que feliz!
São palacios, n'um momento…
Belleza, que é um portento…
Riqueza, que nem se diz…

Ou então, prendas, talento,
Sciencia, discernimento,
Graças, chiste, discrição…
Vê-se o pobre innocentinho
Feito um sabio, um adivinho,
Que aos mais sabios vae á mão!

Mas, com tudo isto, as fadas
São muito desconfiadas;
Quem as vê não hade rir.
Querem ellas que as respeitem,
E não gostam que as espreitem,
Nem se lhes hade mentir.

Quem as offende… Cautela!
A mais risonha, a mais bella,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga aggressiva,
É serpente que alli está!

E têm vinganças terriveis!
Semeiam cousas horriveis,
Que nascem logo no chão…
Linguas de fogo que estalam!
Sapos com azas, que falam!
Um anão preto! um dragão!

Ou deitam sortes na gente…
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer…
É-se morcego ou veado…
E anda-se assim encantado,
Emquanto a fada quizer!

Por isso quem por estradas
Fôr, de noite, e vir as fadas
Nos altos mirando o céo,
Deve com geito falar-lhes
Muito cortez e tirar-lhes
Até ao chão o chapéo.

Porque a fortuna da gente
Está ás vezes sómente
N'uma palavra que diz;
Por uma palavra, engraça
Uma fada com quem passa,
E torna-o logo feliz.

Quantas vezes, já deitado,
Mas sem somno, inda acordado,
Me ponho a considerar
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um bello dia,
Me quizesse a mim fadar…

O que seria? um thesouro?
Um reino? um vestido de ouro?
Ou um leito de marfim?
Ou um palacio encantado,
Com seu lago prateado
E com pavões no jardim?

Ou podia, se eu quizesse,
Pedir tambem que me désse
Um condão, para falar
A lingua dos passarinhos,
Que conversam nos seus ninhos…
Ou então, saber voar!

Oh, se esta noite, sonhando,
Alguma fada, engraçando
Commigo (podia ser!)
Me tocasse da varinha,
E fosse minha madrinha
Mesmo a dormir, sem a vêr…

E que ámanhã acordasse
E me achasse… eu sei? me achasse
Feito um principe, um emir!…
Até já, imaginando,
Se estão meus olhos fechando…
Deixa-me já, já dormir!

XXVIII

O SOL DO BELLO

O SOL DO BELLO

RECITADA NA NOITE DE 13 DE MAIO DE 1862, NO THEATRO ACADEMICO, POR A. FIALHO MACHADO

O sol do bello a todos alumia!
Sua auréola cinge cada fronte
Bem como o rei do dia, mal desponte,
Dá luz egual a todo o sêr creado!
Este baptismo santo envolve e lava
Todos na mesma onda inspiradora!
Queima com a mesma chamma abrasadora!
Orvalha em egual pranto derramado!
Juntas as almas, que o sentir enlaça,
Commungam, como irmãs, na mesma taça!

Vê-os, agora, artista.—Elles estendem-te
Os seus braços e o affecto é que os impele!
Esse braço, que vezes mil repele
O laço, que em vão, tenta escravisal-o…
A corrupção hypocrita de tantos…
Que sabe resistir a quem o opprime…
É esse que, n'um impeto sublime,
Se ergue a ti, se ergue ao irmão para estreital-o.
É que a alma, que não verga á tyrannia,
Curva-se, livre, ao bello que a alumia!

Sim! aquelles que do alto de um vão throno
—Mal firme throno que estremece ao vento—
Pedem, como tributo de um momento,
Respeito, amor, affecto á mocidade,
(Mas pedem como quem ordena a escravos)
Não são esses aqui os respeitados!
Não são esses que são aqui amados!
Não escuta voz de imperio a liberdade!
Mas quem de amor nos labios traz doçura
Esse é que leva a flor de uma alma pura!

Pura e nobre! Embora, despeitados,
Lhe chamem louco e frio a esse peito…
Não se acreditam vozes de despeito.
Frio! quem diz que é frio o peito moço?
Que o sentimento é extincto n'estas almas?
Dil-o a velhice que não tem no seio
Nem uma voz de amor, nem um anceio,
A dar ao bello, que arrebata o nosso:—
Dil-o quem a deseja corrompida…
Porém na mocidade habita a vida!

A vida! sim! Bem como em cofre de ouro
Se guarda o que ha melhor, o que ha mais puro,
Deu-lhe o Senhor a guarda do futuro,
Confiou-lhe em deposito essas gemas
—O amor, a fé, o bello, a liberdade!
O amor! o que nos dá sentir profundo!
A fé! a que nos mostra melhor mundo!
A liberdade! a que espedaça algemas!
O bello! a nossa flammula brilhante!
E sobre tudo, a voz que brada—avante!

XXIX

IBERIA

(Do Seculo XIX, de Penafiel, n.^o 20, 1864).

IBERIA

I

Flor dos povos! oh tu que inda te embalas,
E inda em botão, aos ventos do futuro!
Que tens por vazos e jardins e salas
Toda a vasta extensão do tempo escuro!
E frontes gloriosas a adornal-as,
A fronte da historia, o grande auguro!
Lirio que saes do seio á humanidade
Como filha melhor—Fraternidade!

Deixa que escreva aqui teu nome todo,
E já d'aqui aspire teu perfume!
E, arredando co'as mãos o frio lodo
Do presente, me aqueça a esse teu lume!
Deixa beijar-te em sonho, e d'este modo
Trazer-te unida ao seio, que consumme
Esta ancia ardente de destino novo,
E este fogo roubado ao seio do povo!

Porque te vemos só quando sonhamos…
E, irmã! só nos sorris em nosso somno…
E, a dormir, doce amiga, te beijamos!
Tu—só em nossas almas—tens teu throno
Ainda! mas, sem ver-te, te adoramos,
E, como um cão fiel segue o seu dono,
Trazemos ante o olhar tua lembrança,
E caminhamos cheios de confiança!

Fraternidade! esta palavra é suave,
Como antegosto de melhor destino!
Como a onda de um Ganges que nos lave!
E como a pósse de um penhor divino!
Como o vôo sereno de uma ave
Que, sendo apenas ponto pequenino,
Emtanto faz, transpondo ao longe um monte,
Sonhar com melhor céo e outro horisonte!

O grande céo! o céo da humanidade!
Onde os povos serão constellações,
E, destillando a luz da liberdade,
Serão astros e estrellas as nações!
Onde hade o grande laço da egualdade
Reunir a vontade e os corações!
Cobrindo-os, a dormir, os mesmos céos,
Terão todos tambem o mesmo Deus.

Não vejo outro Evangelho de ouro escripto
Dentro no homem,—nem sei que outro areal,
Outro cabo, outro monte de granito,
Do grande navegar surja a final!
Guiados pelo instincto do infinito
É para lá que os povos—náo real!—
Hão a prôa virar lá quando um dia
Marearem pela bussula harmonia!

II

Hãode então, como irmãos, reconhecer-se
Os amigos—ha tanto tempo ausentes!
Hão então (caso novo e estranho!) ver-se
Face a face as nações, sem que dementes
As entranhas se rasguem! e hade lêr-se
Um protocolo, em letras de ouro, ingentes,
Escripto, sem emenda e sem errata,
Por mãos do amor—o grande diplomata!

III

Elle é quem concilia as differenças,
Quem nos concilios hade erguer a voz,
Tirando nova ideia e novas crenças
Das esfriadas cinzas dos avós!
E, sem trabalhos, e sem dôres immensas,
E sem rios de sangue e pranto após,
Rasgando o ventre á velha liberdade
Sairá á luz a joven Egualdade!

É doce vêr assim, á luz da esperança,
Pelo futuro dentro, as cousas bellas…
Prevêr do céo humano essa mudança,
Que em sóes converte as minimas estrellas!
Do passado infeliz eis a vingança!
E dos mortos as faces amarellas,
Córando de ventura e de alegria,
Hãode surgir, emfim, á luz do dia!

IV

E nós tambem, tambem commungaremos
Na grande communhão das novas gentes:
Tambem os nossos braços ergueremos
—Braços livres de jovens impacientes—
E o cinto d'este Velho quebraremos,
De aonde a espada e o sceptro estão pendentes,
(Já tão gastos!) lançando-os á ribeira…
Para o coroar de palmas e oliveira!

Hespanha—irmã! que boda alegre a nossa!
Como hãode então teus seios palpitar!
Que ribeira de lagrimas tão grossa
Teu branco véo de noiva hade estancar!
Como hade parecer pequena poça
Para os banhos, então, o grande mar!
E entornar-nos volupia nos desejos
O mixto de odio antigo e novos beijos!

………………………………….

Mas tu 'stás presa!… e nós… 'stamos dementes!
Separa-nos o abysmo! os teus algozes…
A cruz de Ignacio… e as garras inclementes
Dos leões orgulhosos e ferozes…
E a estupidez do povo dos valentes,
D'estes pardaes de atroadoras vozes…
Entre nós nos cavaram oceanos…
Sejam-lhe ponte os corpos dos tyrannos!

Porque beijas teus ferros, pobre louca,
E cuidas 'star beijando cousa santa?
E, tendo em tuas mãos cousa tão pouca,
Tão tenue como a capa de uma santa,
Pensas avassalar a terra amouca,
E te ergues com vaidade e gloria tanta?
Oh! tu, cuidando os orbes abraçar,
Só ruinas abraças—Throno e Altar!

Lembre-te a voz do Cid! a atroadora
Voz que se ouvia ao longe nos combates!
Porque tu estás feita psalmeadora
No côro das egrejas—porque bates
No peito, em vez de erguer dominadora
A tua mão em meio de combates,
E livre e bella, oh Hespanha, olhar os céos
Procurando por lá teu novo Deus!

V

Como nos amaremos, doce amiga!
Como então amaremos! que noivado
O nosso não será!… Não tem a espiga
No campo côr melhor, nem mais doirado
Esplendor, do que tu, bella inimiga.
Hasde vêr a ventura… quando o estrado
Do leito nupcial fôr Liberdade,
E fôr docel o céo—Fraternidade.

XXX

VERSÕES E IMITAÇÕES

EXCERPTOS DE UMA TRADUCÇÃO DO FAUSTO

I

*DEDICATORIA*

Ainda uma outra vez, imagens fluctuantes,
Vos ergueis ante mim, como outr'ora radiantes
Ante mim, que vos fito em vago enleio incerto!
Voaes… mas eu hesito em vos retêr agora…
Assusta o meu olhar a luz da vossa aurora,
E teme as illusões, meu coração desperto!

Que aérea multidão! que virginaes choreas!
Meu velho coração, pois que inda te incendeias
Não é melhor ceder? sim, sim, rejuvenesce!
D'entre as nevoas surgi, visões do tempo antigo!
Sim, levae-me tambem no vosso bando amigo,
Levae-me aonde ha luz e cantos, e alvorece!

Reconheço entre vós as sombras fugidías
De outro tempo melhor, de mais alegres dias:
Meu coração evoca imagens adoradas…
Susurra em torno a mim voz de saudoso encanto:
É o primeiro amor, que passa como um canto
De antigas tradições vagamente escutadas…

E as lagrimas, tambem, correm silenciosas!
O lamento dorido, as magoas saudosas,
Renovam-se; desperta a dor que dormitava…
Sim, a dor, ante mim, mostra-me os dias idos,
E nomeia-me os bens, sob meus pés fundidos,
Quando em minha illusão julguei que os abraçava!

Almas a quem cantei, não me ouvireis agora!
O circulo fiel dos amigos d'outr'ora
Desfez-se como a voz d'este canto primeiro!
Rodeia-me hoje a turba: o seu applauso é triste:
Quem folgou de escutar-me, em tempo, se inda existe
Disperso erra no mundo, ah! n'um mundo estrangeiro…

Como a saudade então, uma longa saudade,
D'esse reino encantado, onde ha paz e verdade,
Me falla ao coração n'uma queixa sumida!
Meu canto sobe e desce, incerto e fluctuante,
Sobe e desce indeciso e com tom murmurante,
Bem como uma harpa eólea aos ventos suspendida.

E tremo sem saber porquê, e lentamente
Sinto o pranto nascer, correndo docemente,
Ungindo o coração que embala e adormece…
O que tenho, o que sou, mal o vejo a distancia…
É a nuvem no mar, é um sonho de infancia…
Só, á luz da saudade, o passado apparece!

II

*NA CATHEDRAL*

Officios; orgão e canto. MARGARIDA no meio da multidão. O ESPIRITO RUIM por detrás d'ella.

O ESPIRITO RUIM

  Como foste, como eu te conheci,
  E como estás mudada, Margarida!
  Que pensamento é que te traz aqui?
      Ainda adormecida,
  Tua alma ha pouco, lembras-te? buscava,
  Esta sombra do altar—mas não chorava,
  Não, não chorava as lagrimas que choras!
  Rezar era então brinco de criança,
      Para ti, innocente…
      Lias nas tuas Horas
  As tuas orações—e docemente
  Sorria a Deus tua infantil confiança…
        Margarida!
  Quantas ruinas em tão curta vida!
  Que pensamento occulto te tortura?
      E, no teu coração,
  Que peccado te roe essa alma impura?
  Não rezes: Deus não te ouve a oração!
  Rezas por tua mãe? por ti foi morta,
  Sim, morta lentamente, a infeliz!
  Olha o sangue espalhado á tua porta…
      De quem é elle, diz?
  E escuta! n'esse seio criminoso
      O que é que já se move?
  Sim, o que é que se agita, e te commove
  Com um presentimento doloroso?

MARGARIDA

Ai de mim! ai de mim! quem podesse livrar-me
D'esta turba cruel de negros pensamentos!
Vejo-os de toda a parte e a todos os momentos,
Erguer-se em volta a mim, correndo a torturar-me!

CÔRO E ORGÃO

      Dies irae, dies illa
      Solvet saeclum in favilla.

O ESPIRITO RUIM

  Cae sobre ti a colera do céo!
  Sôa a trombeta! as campas se quebrantam!
      A terra estremeceu,
      Os mortos se levantam.
  Tambem teu miseravel coração,
      Que dormia desfeito,
  Já renasce das cinzas, já o chamam
  Para os fogos eternos que se inflammam…
      Teu pobre coração
  Estala-te tambem dentro do peito!

MARGARIDA

  Oh! quem me dera ao menos d'aqui fóra!
  Esta musica faz-me uma afflicção!
  Este orgão parece alguem que chora…
      Parte-me o coração!

CÔRO E ORGÃO

      Judex ergo cum sedebit,
      Quidquid latet apparebit,
      Nil inultum remanebit.

MARGARIDA

      Que oppressão! que quebranto!
      A abobada estremece!
      Estas pedras, parece
      Que querem desabar!
      Soffocam-me de espanto
      Estes tectos escuros!
      Affrontam-me estes muros!
        Mais ar! mais ar!

O ESPIRITO RUIM

Esconde-te infeliz! e onde irá occultar
Seu peccado e vergonha essa alma deshonrada?
      Mais ar? pedes mais ar?
      Ai de ti desgraçada!

CÔRO E ORGÃO

    Quid sum miser, tunc dicturus,
    Quem patronum rogaturus
    Cum vix justus sit securus?

O ESPIRITO RUIM

  Os justos no céo de horror e desgosto…
  De ti, de te vêr, desviam o rosto…
  Estende o inferno as mãos para aqui…
        Ai, de ti!

CÔRO E ORGÃO

Quid sum miser, tunc dicturus.

MARGARIDA

    Visinha, dê-me os seus saes.
                    (Cae desmaiada)

III

*A CANÇÃO DO REI DE THULE*

Era uma vez um bom rei
Em Thule—essa ilha distante,
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de ouro de lei.

Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o calix divino
Não lhe tinha mais amor.

Seus tristes olhos leaes
Não tinham outra alegria:
E só por elle bebia,
Nos seus banquetes reaes.

Chegada a hora da morte
Poz-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte
Seus reinos á beira-mar.

Deixava um rico thesouro,
Palacios, villas, cidades:
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de ouro.

No castello da deveza,
N'aquellas salas sem fim,
Mandou armar uma meza
Para um ultimo festim.

Convidou sem mais tardar
Os seus fieis cavalleiros,
Para os brindes derradeiros
No castello á beira-mar.

Então, vasando-o de um trago,
E com entranhada magoa,
Poz nas ondas o olhar vago
E atirou com a taça á agua.

Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram:
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais em vida!

1870-71.

A DÔR

(DO POETA HUNGARO SANDOR PETÖFI)

O que é a Dôr? Um mar. E a alegria?
Pérola occulta n'esse mar fremente.
Quantas vezes a pérola encantada,
Entre as rochas profundas sepultada,
Se dissolve esquecida, lentamente,
E nunca chega a vêr a luz do dia?

1881.

A CASA DO CORAÇÃO

IMITADO DO ALLEMÃO

(No Album da filha de João de Deus)

O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se vêr,
N'um a Dôr, n'outro o Prazer.

Quando o Prazer no seu quarto
Acorda cheio de ardor,
No seu, adormece a Dôr…

Cuidado, Prazer! Cautella,
Canta e ri mais devagar…
Não vá a Dôr acordar…

ESTANCIAS

IMITADAS DO ALLEMÃO

Rebentam flores mil das minhas lagrimas,
E só serpentes nascem dos meus cantos;
É que os meus cantos são envenenados,
E só puros, só doces os meus prantos.

* * * * *

Se queres conhecer o homem e o mundo,
Não desvies de ti o olhar profundo;
Mas foge de te ouvir e de te vêr,
Se a ti mesmo te queres conhecer.

1887.

ROMANCE DE GOESTO ANSURES

(POSTO EM LINGUAGEM MODERNA)

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Seis donzellas encontrára,
Seis donzellas encontrei;
Para ellas caminhára,
Para ellas caminhei;
Chorando a todas achára,
A todas chorando achei;
Logo ali lhes perguntára,
Logo ali lhes perguntei,
Quem foi que ousou maltratal-as,
Tratal-as de tão má lei?

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Uma d'ellas respondera:
—Cavalleiro, não o sei…
Mal haja, mal haja a terra
Que tem máo e fraco rei,
Que se eu as armas vestira,
Por minha fé, que não sei
Se homem ousára levar-me,
Levar-me de tão má lei…
Com Deus ide cavalleiro,
Ide com Deus, que não sei
Se onde me fallaes agora
Nunca mais vos fallarei.

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
Eu então lhe replicára:
—Por minha fé, não irei;
Antes olhos d'essa cara
Bem caros os comprarei;
A longas terras distantes
Só por seguir-vos me irei;
Por caminhos dasvairados
Atraz de vós andarei;
Linguas moiras de aravias
Por vós eu as fallarei;
Moiros se me apparecerem
A todos os matarei.

No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.
N'isto o moiro que as guardára,
Perto d'ali encontrei:
Se elle bem me ameaçára,
Eu melhor o ameacei;
Um tronco secco esgalhára,
Um tronco secco esgalhei;
Com elle a todos matára,
A todos desbaratei;
As donzellas libertára,
Todas sim as libertei;
Aquella que me fallára
Com ella me casarei.
No figueiral figueiredo,
Lá no figueiral entrei.

XXXI

SONETOS DESPREZADOS

     Incorporamos aqui os Sonetos IV, X, XVI, XVII e XX, da collecção de
     Coimbra, de 1861, não incluidos no volume dos Sonetos completos.

A M. E.

Terra do exilio! Aqui tambem as flores
Têm perfume e matiz; tambem vicejam
Rosas no prado, e pelo prado adejam
Zéfiros brandos suspirando amores:

Tambem cá tem a terra seus primores;
Pelos vales as fontes rumorejam;
Tem as moitas seus sôpros, que bafejam,
E o céo tem sua luz e seus ardores.

Em toda a natureza ha amor e cantos,
Em toda a natureza Deus se encerra…
E comtudo esta é a causa de meus prantos!

Eu sou bem como a flor que não descerra
Em clima alheio. Que importam teus encantos?
Não és, terra do exilio, a minha terra.

AD AMICOS

PROPTER SOLATIUM

Renasço, amigos, vivo! Ha pouco ainda
Disse ao viver: «Afunda-te no nada
E já, bem vêdes, surjo á luz dourada,
—No labio o rir, no peito esp'rança infinda!

Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!
Envolto na mortalha regelada
Do pensar—perdão!—foste olvidada…
Flor do sentir e crêr e amar… bem vinda!

A vida! como a sinto, ardente, immensa!
Não unica! tomando a immensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!

Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!
Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!

A Q. M. Q.

Fica-te em paz! não pode a mão do homem
Partir o seio á arvéloa queixosa,
Quando o canto soltar, e a voz chorosa
Erguer lá contra as magoas que a consommem.

Respeito o teu sacrario: embora tomem
Por orgulho o respeito; eu colho a rosa
Mas não a flor modesta e melindrosa,
Que se occulta entre as mais… e que as mais somem.

Mais que amor tenho crença: essa existencia
Pede-me um culto por quem dera a vida,
Por que dou esta dôr, que aqui se encerra.

Mulher! mulher! de que valera a essencia,
A essencia pura, a uma alma que é descrida?
Fica-te em paz: fique eu com minha guerra!

IGNOTO DEO

Corre aos braços da mãe o filho amado;
—Por olvidar, volvendo a sua historia—
Corre á mente do inf'liz doce memoria;
Corre á luz de um olhar o olhar buscado;

Vem o alivio animar peito magoado;
Corre o forte a buscar na morte a gloria;
Desfeita do viver sombra illusoria,
Foge o espirito livre ao seu anciado.

Tudo busca quem o ama: a luz dourada
Busca do seu viver, como no escuro
Quem avista uma luz lhe vae ao encontro.

Só tu, ventura! uma vez sonhada;
Só tu, sombra de amor! que em vão procuro,
Só tu, foges de mim, só não te encontro!

IGNOTO DEO

Senhor! eu sou teu filho! eu sou aquelle
Que tanta vez peccou, porém, contrito
Tanta vez tem erguido a ti o grito
Da aguia que o tufão no alto compelle.

E a aguia soffre tambem, como ave imbele,
E mais que ella (que põe mais alto o fito)
Mas da aguia que luctou, o brado afflicto,
Senhor! o teu ouvido não repelle.

Eu não caio, meu Deus, sem ter luctado;
Fraco sou, por que sou de barro e limo,
Porém, na tua Lei medito e scismo.

E eu sou teu filho! A um filho desgraçado
Que hade um pae recusar? Oh, dá-me arrimo,
Estende-me tua mão por sobre o abysmo.

XXXII

FIAT LUX!
(POEMETO)

FIAT LUX!

Et terra erat inanis et vacua.

Tinham os astros já mil annos,—tinham
Talvez cem mil—ou tinham um minuto—
(Pois quem sabe contar horas ou seculos
No relogio—que tem o firmamento
Por quadrante,—e algarismos, sóes e estrellas?)

'Stavam ha muito ali.
                  O velho Cahos,
O oleiro do infinito, que entre as duas
Mãos—o tempo e o espaço—os amassára,
Cansou por fim tambem de fazer mundos,
Não tendo já mais barro, nem mais raios
Com que o barro pintar.

                  Ora, limpando
As mãos, que estavam sujas do trabalho,
E esfregando uma palma contra a outra,
Soprou depois os restos, sem vêr onde,
Por esse abysmo além.

                  Oh pó de mundos!
Migalha dos banquetes do Principio!
Triste parto das sombras, atirado
Sobre o berço de luz do firmamento!
Morcêgo horrivel, meio tonto e cego,
Cahido no salão de lustres de astros!

O pó soprado, informe bola escura,
Como filho engeitado, que se esconde
Pela sombra dos muros, foi rolando
Pelos cantos do espaço, involto em trevas…
Que o não vissem os sóes.

* * * * *

                  E foi descendo,
Extranho, negro, horrivel, monstruoso.
E, quanto era maior a treva, ainda
Mais o medo crescia que o olhassem…
E mais o horror de si o endoudecia…
E mais girava, immenso já de inchado
De terror e delirio!

                  Os grandes astros
Como um viveiro immenso de fulgores
Atiravam, de sol em sol, as notas
Do eterno concerto…

* * * * *

                    E foi rolando,
Vertiginoso e bebado de horrores!

O feio, ebrio da mesma fealdade!
O mal, possesso do seu mal! As trevas
Cheias de medo de se vêr tão negras!

E o firmamento arfava n'um delirio
De harmonia e ventura! O espaço ardente
Suava luz—girando no infinito—
Pelos póros do céo… que são estrellas.

* * * * *

Oh! como a ave da noite eterna, ao vêr-se
Dentro do dia eterno… endoidecia!
Como rolava tonta a um lado e ao outro
Batendo as duas azas—Sombra e Espanto,—
Por todo esse infinito já não via
Um só buraco que a escondesse!

* * * * *

                        O Abysmo
—Escravo, mas heroe—chorava mudo…
E engulia os soluços.
                  Despojado,
Que lhe havia elle dar?

Os outros riam.

* * * * *

Oh! a belleza é cruel! A altura é fria!
E impiedosa e feroz! A ave aérea
Não tem dó do insecto! A virgem branca
Pisa o negro reptil! o louro infante
Crucifica o morcêgo! Os astros de ouro
Viram a Terra assim… e não choraram!

* * * * *

Um riso louco, então, feito de raios
Infinitos de luz, encheu o espaço!
O giro das espheras cambaleava
E estorcia-se, doido, em grandes frouxos
De hilaridade e brilho! E o écco eterno
Que em vez de voz, repete os esplendores,
Confuso co'as mil ondas tumultuosas
Parecia tempestade de harmonia.

Todo o céo se inclinava, incendiado
N'uma aurora boreal prodigiosa,
Vendo o truão horrivel do infinito!

* * * * *

Foi então que o Abysmo, o triste escravo
Dos senhores da luz—partido, oppresso
Co'a immensa dôr d'aquelle rir,—não pôde
Suster-se mais.

            Ouviu-se desde baixo
Vir subindo um suspiro—e quantos éccos
Da antiga confusão ha 'hi no espaço:
E todas as tristezas que ficaram
Dos combates de outr'ora: e os soffrimentos
De quantas luctas houve, antes do tempo:
E essas mil dôres, e essas mil torturas,
Que custou cada sol: todo esse inferno
De negrumes, que o céo lançou, despindo-os,
Quando quiz ser só luz… de ais e gemidos
Quando quiz ser só canto… a parte infame
Que na injusta partilha coube ao Abysmo…
Tudo isto, no suspiro do captivo,
—Triste, mas grave; queixa, mas não súpplica…
Antes accusação,—na voz debaixo
Tudo isto ali subiu!

* * * * *

              Os grandes astros
Enfiaram de pasmo e emudeceram!
E, se em seios de luz ha 'hi remorsos,
Sentiram-no n'essa hora…

* * * * *

                        Então abriram-se
As portas do silencio—e, como um sôpro
Que agitasse as espheras, voz sem timbre
(Se ha ouvir…) se ouviu: «Quem faz chorar o Abysmo

* * * * *

Oh! o grande bem e a grande formosura,
Que tendo a estrella e o céo, inclina a face
Para a grande abjecção! A Aurora immensa,
Que quer saber quem escurece a Treva!
A ventura sem fim, que se conturba
Porque a desgraça soffre!

                      O Abysmo horrivel
Sentiu que seus mil males vacillavam,
Sobre a base da eterna injúria, e se íam
Co' esse sôpro de amor.—E estranho, e pávido,
Duvidou se soffria e teve, em sonho,
Como visões do céo d'onde o lançaram…
E quasi perdoou…

'Stava adorando!

* * * * *

Oh, gotta de piedade, que adoçaste
Aquelle oceano de injustiça! Oh, lagrima
Teda feita de bem!… Bebeu-te o Abysmo!

* * * * *

E a Terra informe viu.

                    Como o silencio
De algum poço—que o fundo das montanhas
Guarda velado pela treva—pode
Ouvir, cheio de horror, o écco primeiro
De uma pedra descendo: como o centro
Da mina pode vêr o alvião primeiro
Que a abre de par em par,—assim a Terra
Viu a coisa sem nome que descia
Pelo infinito abaixo.

* * * * *

                    Olhou transida.
Era uma Mão—que parecia treva,
Tanto brilhava! E vinha-se alongando
Com cinco dedos—cinco continentes
De luz—fixa, sem côr, indefinivel,
Leviathan de brilho, pelo ether
Descia—e as ondas de harmonia erguiam-se
Como em tormenta de espleddor—horrivel…
Tanto era bello!

                  Ao longe, ao longe, ao longe,
'Té aonde a visão abre os espaços,
A orla do infinito radiava.

* * * * *

E cada sol, e cada estrella, vendo
Aquella Mão descer, dizia—Certo
Que me vem afagar
!—E estremecia.

E a Mão passou em face das estrellas…
Mas não as viu.—Passou o grande côro
Dos sóes… e não os viu.—A via-lactea…
E não a viu.—E foi seguindo ávante.

* * * * *

Lá onde o escuro é tanto que suffoca
O tempo, no nevoeiro esquecimento,
Onde em vaga fronteira se confundem
O sêr e o não sêr—lá para o extremo,
É onde a Mão já ía…

* * * * *

                        E os grandes astros,
De sol em sol, de um horisonte ao outro,
Inquietos, através do ether immenso,
Lançavam vozes de ouro, perguntando
«Onde vae o Senhor

* * * * *

E a Mão descia.

Já não havia mais. Tinha chegado
Por defronte da Terra. E n'essa hora
Dois infinitos—um de horror, e o outro
Infinito esplendor, se contemplaram.

* * * * *

E os astros de ouro pelo céo disseram: «Eis que Deus vae brincar tambem co'a Terra!» E a Mão estava.

            E a Terra negra olhava-a,
Como um selvagem um espelho; o susto
Co'o prazer inefavel combatiam-se
Lá dentro… e a massa informe estremecia.

Convulsa se agitava. Fascinada
Parecia recuar… e approximava-se!
E, n'um ultimo esfôrço, dando um salto
Enorme, por fugir—cahiu no centro
D'aquella Mão.

* * * * *

            E os astros murmuravam
Aos sóes: «Certo que Deus a precipita

* * * * *

Mas a Mão não se abriu para lançal-a.
Os grandes dedos sobre a massa horrivel
Se fecharam. Pareciam, sobre o corpo
Tenebroso, que tinham apertado,
Cinco chagas de luz.

E consultaram.

* * * * *

Os cinco dedos entre si disseram: «Que havemos nós fazer a isto?» E todos Immoveis ali estavam.

                  E entre os dedos
D'onde—bem como um sapo entre os dois seios
De uma virgem—a Terra olhava o espaço,
Pareceram-lhe ao longe os grandes astros
Como pontinhos negros.

                        Um segundo
Roubado á eternidade é quanto basta,
Quer se seja morrão, quer seja estrella.

* * * * *

Então a grande Mão abriu-se e disse
Á Terra: Vae!—E como aguia sublime
Desde os Alpes se atira, a Terra ergueu-se,
Levando um vôo immenso entre as estrellas!

* * * * *

Viam-se-lhe luzir no dorso negro
Cinco traços de luz! Leito de brilho
Aonde os cinco dedos se poisaram!
E lepra de esplendor!

* * * * *

Rolou no espaço.

E os astros entre si se consultaram: «Dar-lhe-hemos nós logar

                        E o Sol altivo
Fallou e disse:—Eu vejo-lhe no dorso
Uma mancha de luz—a Natureza!

E a Lyra disse:—Eu vejo-lhe outra fórma
Resplendente—é Idéa!

                  E Vesper disse:
—Eu vejo-lhe um signal de affago—é Alma!

E Venus disse:—Eu vejo reluzir-lhe
Uma cicatriz de luz—é Amor!

                              E disse,
Então, o Sete-estrello:—Eu adoro-lhe
Como o sitio de um beijo do Eterno…
—É Immortalidade!

* * * * *

                  E o côro immenso
Abriu-se e deu logar á Terra escura,
De cuja face cinco grandes f'ridas
Gottejavam a luz—a Natureza,
Que tem de Deus a força; a Idéa, filha
Da immensidade d'elle; a Alma, eterna
Como seu sêr; o Amor, que é olhar d'elle;
E a Immortalidade luminosa,
Que é o berço onde n'elle repousámos.

* * * * *

…………………………………. …………………………………. …………………………………. E, agora, oh Terra! que és, entre mil rodas, Uma roda do carro—vae rolando E desprende, ao rodar por sobre o tempo, Tuas cinco faíscas prodigiosas, Pela estrada do Sêr—a Eternidade!

Bussaco, Outubro de 1863.

XXXIII

OMBRA

OMBRA

(DA ANTHERO DE QUENTAL)

Quando Cristo sentì che la sua ora
Giunta era alfine, a quei che lo cercavano
Grave, calmo, sereno appresentossi.
Venia la turba in arme! Ma di tanti
Non un sol si attentó muovere il passo
E por la mano in su il figliuol dell'uomo.
Tutti con bassi gli occhi, a Gesú innanzi
Inerme, nascondean l'armi. Ma quegli,
Che il doveva tradir, fattosi presso,
Lo strinse fra le braccia mormorando
Dio ti salvi Maestro! E, siccome era
Pattuito, baciollo in sulla faccia.
Cosí gli altri avanzandosi, lo presero.
Ma Gesú, gli occhi al ciel, senza vederli
Li perdonava e li seguia sereno.
Era scabro il cammino. In cima a un monte
Saliano; e da' due fianchi e giuso al basso,
Su la terra era notte. E, quando al fine
Aggiunser la più eccelsa erta del colle,
Di repente fu visto illuminarsi
Uno de' lati d'una blanda e dolce
Luce; ma immensa. E quanta terra in quella
Dal monte all' oceàn capia, su cui,
Dall'alto riflettendosi, la viva
Face splendea, si rischiarava tutta
Da valle a monte, e risalia la bianca
Luce a mezzo l'azzurro arco del cielo.
E puro somigliava albor lunare
O da quel lato rinascente aurora.
Ed era questo il lume che su Giuda
Non risplendea,

            Dall' altra parte intanto
Era tenebra fonda e parea come
Di quei triste il delitto ella ascondesse
Tutt' all' ingiro, in procellosa notte
Biancicante di neve all' orizzonte.
Cosí, divisa in due parti la terra,
Involta questa rimanea nell' ombra.

………………………………….

Fu da quest' ombra che la chiesa nacque.

Domenico Milelli, Rottami, p. 39. 1890.

FIM

INDICE

Dedicatoria

     Explicação prévia
     Escorso biographico de Anthero de Quental
     Autobiographia de Anthero
     Bibliographia

     I—Palavras aladas
    II—Laço de amor
   III—Força—Amor
    IV—Paz em Deus
     V—N'uma noite de primavera
    VI—Psalmo
   VII—Á beira-mar
  VIII—Aspiração
    IX—A Pyramide no deserto
     X—Desalento—Conforto
    XI—A senda do Calvario
   XII—A João de Deus
  XIII—Per amica silentia lunae
   XIV—Na primeira pagina do Inferno de Dante
    XV—Dante—Divina Comedia
   XVI—Momentos de Tedio (Sonetos)
          I. Sinite parvulos
         II. A um Crucifixo
        III. Decomposição
         IV. Nihil
          V. Quinze annos
         VI. Sarcasmos
  XVII—Amor de filha
 XVIII—Gargalhadas
   XIX—Á Italia
    XX—A Gennaro Perrelli
   XXI—Guitarrilha de Satan
  XXII—Serenata
 XXIII—O Possesso (Sonetos)
  XXIV—Epigramma transcendental
   XXV—Na Sepultura de Zara
          Versão do Dr. Storck
  XXVI—Glosa camoniana
 XXVII—As Fadas
XXVIII—O sol do Bello
  XXIX—Iberia
   XXX—Versões e imitações
        Excerptos de uma traducção do Fausto:
          I. Dedicatoria
         II. Na Cathedral
        III. A canção do Rei de Thule
        A Dôr, imitação de Petöfi
        A casa do Coração (do allemão)
        Estancias (do allemão)
        Romance de Goesto Ansures (ao moderno)
  XXXI—Sonetos desprezados
 XXXII—Fiat lux! (Poemeto)
XXXIII—Ombra, versão italiana de Domenico Milelli

Acabado de imprimir EM 10 DE JUNHO DE 1892 commemorando o 312.^o anno DA MORTE DE CAMÕES

* * * * *

NA TYPOGRAPHIA DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
para
*M. GOMES*, LIVREIRO-EDITOR
estabelecido na
Rua Garrett (Chiado), 70-72
LISBOA.

M. GOMES, Livreiro-Editor

70, RUA GARRETT (CHIADO), 72—LISBOA

Livreiro de Suas Magestades e Altezas

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O Mosteiro da Batalha, 1 vol. gr. in folio illustrado com 26 heliogravuras 13$500

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Colette (Claudia de Campos)

Rindo, 1 vol. de Contos.

L. A. Palmeirim

Os excentricos do meu tempo, 1 vol.

Alfredo da Cunha

Endeixas e Madrigaes, 1 vol. de poesias

Cartonado

H. Lopes de Mendonça

A morta, drama em verso 1 vol.

José de Lacerda

Flor de pantano, 1 vol. de poesias

Antonio Vianna

José da Silva Carvalho e o seu tempo, 1 gr. vol. e fac-similes

ULTIMAS NOVIDADES

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Assignaturas de jornaes, pelos preços do estrangeiro, para o que tem montado serviço especial

* * * * *

COMMISSÕES

Encarrega-se de quaesquer que lhe incumbam para o que tem correspondentes especiaes em todos os paizes.

End of Project Gutenberg's Raios de extincta luz, by Antero de Quental