Title: O Livro de Cesario Verde
Author: Cesário Verde
Compiler: Antonio da Silva Pinto
Release date: August 1, 2005 [eBook #8698]
Most recently updated: October 12, 2014
Language: Portuguese
Credits: Produced João Miguel Neves from images of the National Digital Library project from the National Library of Portugal
Produced by João Miguel Neves from images of the National
Digital Library project from the National Library of
Portugal.
Prefácio
Aqui deponho em suas mãos e debaixo dos seus lábios o livro do seu irmão. A minha «obra» terminou no dia em que elle saiu da nossa doce amizade para a nossa terrível amargura: morri, meu querido Jorge—deixe-me chamar assim ao irmão do meu querido Cesario;—morri para as alegrias do trabalho, para as esperanças dos enganos doces! O desmoronamento fez-se, a um tempo, no espírito e no coração! Dos restos do passado deixe-me offerecer-lhe a dedicação extremada: peça-me o sacrifício; e, quando no decorrer da vida, se lembrar de nós, tenha este pensamento consolador:—A grande alma de meu irmão soube impôr-se a um coração endurecido; e tenha este outro pensamento: —Mas não estava de todo endurecido o coração que soube amal-a.
Adeus, meu querido Jorge!
20 de julho de 1886.
Encontrámo-nos pela primeira vez no Curso Superior de Lettras. Foi em 1873. Cesario Verde marticulara-se no Curso em homenagem ás Lettras, como se as Lettras lá estivessem—no Curso. Eu matriculara-me, com a esperança de habilitar-me um dia á conquista de uma cadeira disponivel. Encontrámo-nos e ficámos amigos—para a vida e para a morte.
Para a vida e para a morte.
Tenho de fallar de mim, se eu pretendo fallar de Cesario Verde. Elle não teve, desde aquelle dia—ha treze annos—maior amigo do que eu fui; e sobre esta mesa onde eu estou escrevendo, ás 10 horas da noite d'este formidavel dia glacial—20 de Julho de 1886, dia do seu enterro,—sobre esta mesa onde eu estou escrevendo tenho estas palavras suas de ha poucos dias:—«E como se dê o caso de tu seres o mais dedicado dos meus amigos…» Tenho aqui essas palavras: ellas constituem a justificação dos meus soluços de ha poucas horas, alli, no cemiterio visinho onde elle dorme—o Cesario!—a sua primeira noite redimida…
Eu fui, pois, a luctar nas grandes batalhas da Desgraça, n'aquelle anno para mim terrivel de 1874. Fui-me, a dezenas de leguas de Lisboa. Elle ficou. E no dia em que eu medi forças com as avançadas do meu destino, a inquietação invadiu o espirito e o coração de Cesario Verde, por modo que já eu assoberbara com o meu desprezo a desventura pertinaz e ainda elle não vingára libertar-se do peso de seus cuidados e afflições. Durante annos escreveu-me centenares de paginas—commentarios sobre os meus infortunios, conselhos do seu espirito lucidissimo, sobresaltos do seu coração fraternal. Um dia, trocámos estas palavras:—«Como tu tens tempo, meu amigo, para soffrer tanto!»—«Como tu tens tempo, meu amigo, para me acompanhar no soffrimento!».
É indispensavel ter conhecido intimamente Cesario Verde para conhecel-o um pouco. Os que apenas lhe ouviram a phrase rapida, imperiosa, dogmatica, mal podem imaginar o fundo de tolerancia espectante d'aquelle bello e poderoso espirito. Elle tinha o furor da discussão—a toda a hora. Eu careço de preparar-me durante horas para a simples comprehensão. As exigencias do meu caro polemista irritavam-me. Eu respondia ao acaso; mas acontecia por vezes que o sorriso ligeiramente ironico do perseguidor expandia-se n'um bom e largo sorriso de convencido; e então—meu querido amigo! meu santo poeta!—elle saudava com um enthusiasmo de creança amoravel o que elle chamava o meu triumpho! Não hesitava em confessar-se vencido; e congratulava-se commigo—porque eu o vencera inconscientemente. A generosa alma chamava áquillo a minha superioridade!
Os campos, a verdura dos prados e dos montes; a liberdade do homem em meio da natureza livre: os seus sonhos amados; as suas realidades amadas! Quando aquelle artista delicado, quando aquelle poeta de primeira grandeza julgava em raros momentos sacrificar a Arte aos seus gostos de lavrador e de homem pratico, succedia que as cousas do campo, da vida pratica assimilavam a fecundante seiva artistica do poeta: e então dos fructos alevantavam-se aromas que disputavam fóros de poesia aos aromas das flôres. O mesmo sopro bondoso e potente agitava e fecundava os milharaes e as violetas e os trigaes e as rosas! A bondade summa está no poeta,—mais visivel, pelo menos, do que em Deus.
Artista—e de alta plana! Eu pude vêl-o cioso de seus direitos e reivindicando-os com tanto de ingenuidade quanto de vigor. E pois que um ligeiro esboço, precedendo mais detido trabalho, estou elaborando sobre os traços mais salientes d'aquella individualidade, não me dispensarei d'esta indicripção:
Ha dois mezes escrevia-me Cesario Verde: «O Doutor Sousa Martins perguntou-me qual era a minha occupação habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: Empregado no commercio. Depois, elle referiu-se á minha vida trabalhosa que me distrahia, etc. Ora, meu querido amigo, o que eu te peço é que, conversando com o dr. Sousa Martins, lhe dês a perceber que eu não sou o sr. Verde, empregado no commercio. Eu não posso bem explicar-te; mas a tua amizade comprehende os meus escrupulos: sim?…»
E eu fui á beira de Sousa Martins e perguntei-lhe se o poeta Cesario Verde podia ser salvo. O grande e illustre medico tranquilisou-me —e apunhalou-me em pleno peito:—Que o poeta Cesario Verde estava irremediavelmente perdido!
Meu poeta! Meu amigo! Tu estavas condemnado no tribunal superior, quando eu te mentia e ao publico e a mim proprio: estavas condemnado, meu santo! Mas podia viver tranquillo o teu orgulho de artista: o teu medico sabia que o poeta Cesario Verde eras tu proprio, meu pallido agonisante illudido!
A esthesia, o processo artistico e a individualidade d'este admiravel e originalissimo poeta merecem á Critica independente uma attenção desvelada. Eu não hesito em vincular o meu nome á promessa de um tributo que a obra de Cesario Verde está reclamando.
* * * * *
E todavia, não póde o meu espirito evadir-se á idéa consoladora de que é um sonho isto que o entenebrece! Não pódes evadir-te, ó meu espirito amargurado! mas eu vou libertar-te para a dôr!
Foi ás cinco da tarde—ainda agora. Caía o sol a prumo sobre a estrada do Lumiar e nós vinhamos arrastando a nossa miseria,—nós os vivos; o morto arrastava a sua indifferença. Chegámos, com duas horas de amargura, alli ao porto de abrigo e de descanço. Veio o ceremonial tragico, o latim, o encerramento. Caso de uma eloquencia terrivel: Entre algumas dezenas de homens não houve uma phrase indifferente—e em dado momento explosiram soluços n'um enternecimento que ageitava a loira cabeça do cadaver lá dentro do caixão—como as mãos da mãe lh'a ageitaram infantil, no travesseiro, ha vinte e quatro annos, e moribunda ha vinte e quatro horas!
Eram sete horas da tarde, ó minha alma triste! Eu fui-me a chorar velhas lagrimas de gelo, avocadas por lagrimas de fogo recemnascidas. Fui-me por entre os tumulos, a pedir ao meu Deus de ha trinta annos que que me désse força, que me désse força nova,—pois que se prolonga o captiveiro! E a sós, caminhando por entre os tumulos, ao cair da noite, pareceu-me comprehender que nós recebemos força nova em cada nova dôr, para soffrermos de novo—do mesmo modo que o alcatruz de uma nóra se despeja para encher-se, para despejar-se —sem saber porque…
20 de Agosto
* * * * *
A morada nova do Cesario é de pedra e tem uma porta de ferro, com um respiradouro em cruz;—rua n.º 6 do cemiterio dos Prazeres. Á porta está um arbusto da familia dos cyprestes—um brinde ao meu querido morto. Eu offerecera uma palmeira que o vento esgarçou ao terceiro dia, e tive de escolher uma especie resistente, cá da minha raça—funebre e resistente. Está verdejante e vigorosa a pequenina arvore, e de longe é uma sentinella perdida da minha doce amizade religiosa. De longe vou já perguntando á nossa arvore:—Está bom o nosso amigo?… E ella inclina os pequeninos trocos, com a gravidade do cypreste:—Bem; não houve novidade em toda a noite…
É que eu vou pelas tardes visital-o; e saber como elle passou é todo um meu cuidado, como é toda a minha alegria o bem-estar d'aquella hora em que não ha risos. Não fomos risonhos—o Cesario e eu. As nossas horas de convivencia foram tristes e severas. Depois da morte do Cesario eu deixei de viver nos dominios onde elle sentira consolações, alentos, esperanças, onde elle imaginára renascimentos, horisontes, claridades novas. Nunca mais publiquei uma palavra que se lhe não consagrasse—ao meu querido morto. Em face d'aquelle cadaver eu senti alastrar-se no meu pobre ser fatigado o bem-amado desprezo da vida. O meu santo está alli,—está resignado: é tudo. Vós todos, que o amastes, sabei que elle está resignado—o nosso querido morto impassivel!
E n'uma dessas tardes, alguns dias depois da sua morte, eu aproximei da porta de ferro a minha pobre cabeça esbrazeada e olhei para dentro do jazigo, involuntariamente; e então, como quer que eu visse lá a dentro do jazigo alguns caixões arrumados, e como eu acertasse em descobrir o caixão do Cesario, os soluços despedaçaram-se contra a minha garganta, n'uma afflicção immensa e cruel. E foi então que a voz rouca e enfraquecida do Cesario—lembram-se da voz d'elle?—pronunciou distinctamente lá a dentro do caixão:—«Sê natural, meu amigo; sê natural!»
Era a voz do Cesario; era a sua voz tremente e doce, ó meu sagrado horror inconsciente! Debrucei-me contra a porta do jazigo e suppliquei n'uma angustia:—«Fala! Dize! Falla, outra vez, meu amigo!» Não se reproduziu o doloroso encanto. Apenas uma especie de marulho brando, um arrastar de folhagem resequida—e o morto na paz da Morte!
Vão já decorridos dez annos sobre um periodo de alguns mezes serenos da minha via dolorosa. Eu viera a conquistar a certeza de que não havia luz misericordiosa para a noite que me vem acompanhando e torturando os olhos ávidos, desde o berço á sepultura redemptora. Cheguei aqui, á cidade maldita da minha primeira hora e trazia o sonho de uma aurora pacifica de vida nova no meu pobre espirito illudido. A aurora fez-se com um desabamento de esperanças: a crueldade bestial que se debruçára sobre o meu primeiro dia não estava arrependida, nem fatigada: a perseguição renasceu. E quando eu, no singular desespero dos esmagados em sua crença, pensei na Morte como no abrigo antecipado—querido abrigo inevitavel!—a voz de Cesario foi a voz evocadora para a continuação do soffrimento —do soffrimento amparado e protegido…
Protegido! A protecção foi a maior da grande alma serena para a pobre alma abatida: foi de lagrimas que se confundiram com as minhas lagrimas; foi aquelle sorriso triste de resignação, consagrado ás minhas amarguras,—que para o Cesario não foram mysteriosas; foi o aperto de mão robusto, na vertigem do combate; foi a voz firme e severa na hora dos desfallecimentos; foi o reflexo permanente que a minha angustia encontrou na sua.
Ah, santo! Ah, meu santo! Ah, meu puro e meu grande! Ah, meu forte! Vae-se na corrente, desfallecido, se nos não troveja nos ouvidos a voz reanimadora! Vae-se na corrente,—que o sei eu! Mas tu, depois do grito salvador, tinhas um applauso vibrante lá do fundo da tua grandeza e da tua generosidade. E tu sabias que me salvara a tua mão, a tua palavra, a tua alma de justo, a tua face que eu não quizera vêr, contrahida e severa, retraindo-se perante o quadro da minha fraqueza! Tu bem o sabias,—forte, bom, generoso, nobre, sempre bom—e todavia sempre justo!
A crise mais feroz atravessei-a, pois, abrigado,—abrigado pela sua voz amiga. Eu tive de luctar com a lenda de rebellião, com a desconfiança dos homens praticos, com o odio dos pequeninos malvados offendidos em seus orgulhos e desmascarados em suas hypocrisias: conseguintemente, com a suppressão do trabalho,—do pão,—com a calumnia, com a intriga, com todas as armadilhas á minha colera, com todas as ciladas á minha fé… Ah, perdidos em paiz de Cafres! Mal conceberieis o horror de uma lucta como aquella, de todos os dias de dez annos, em paiz de conta aberta no bazar da Civilisação!
Hoje, o meu santo amigo está alli em baixo, na sua morada nova, esperando… Espera que eu vá dizer-lhe dos horisontes novos abertos á consciencia dos justos; espera que eu vá dizer-lhe as victorias da Justiça absoluta—da Justiça illuminada e serena;—espera que eu vá dizer-lhe as victorias do Trabalho, da Razão, da Sciencia, da Sinceridade, do Amor: os homens reconciliados, esclarecidos, a Natureza convertida em Progresso, Deus explicado, o Futuro illuminado, a Vida possível, A Mulher fortalecida, o Homem abrandado, as luctas supprimidas, o concerto da Terra desentranhando-se em harmonias reconhecidas, a Bondade convertida em nórma, os Direitos e os Deveres supprimidos pela Igualdade: os seus sonhos, a sua fé, o seu horisonte, o seu amor!
Está alli em baixo, esperando… Eu, mensageiro triste, não saberei dizer-lhe o ascendêr dos espiritos, e só poderei levar-lhe no meu abatimento a demonstração da minha pouca fé, aggravada pela espantosa amargura d'estes ultimos dias,—d'estas ultimas horas. As visões do poeta hão de emmurchecer confundidas com as ultimas rozas que a minha pobre mão tremente e desfallecida lhe deporá no tumulo, e os restos da minha fé hão-de misturar-se com o pó accumulado á entrada do seu tumulo pelo Nordéste—menos frio do que a minha alma succumbida!
* * * * *
Silva Pinto.
Os versos
Milady, é perigoso contemplal-a,
Quando passa aromatica e normal,
Com seu typo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que n'isso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solemnidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me attrae como um thesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lucido perfil!
Ah! Como m'estontêa e me fascina…
E é, na graça distincta do seu porte,
Como a Moda superflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu hontem encontrei-a, quando vinha,
Britannica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sósinha,
E com firmeza e musica no andar!
O seu olhar possue, n'um fogo ardente,
Um archanjo e um demonio a illuminal-o;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pello d'um regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomatico e orgulhoso
Que Anna d'Austria mostrava aos cortezãos.
E emfim prosiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramatica, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chamma
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os barabaros reaes;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhaes.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o setim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, allucinadas,
E arrastando farrapos—as rainhas!
Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só commigo,
Que te osculei a bocca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.
Que fugiste commigo da Babel,
Mulher como não ha nem na Circassia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regámos com prantos uma acacia.
Talvez já te não lembres com desgosto
D'aquellas brancas noites de mysterio,
Em que a lua sorria no teu rosto
E nas lages que estão no cemiterio.
Quando, á brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabellos d'ambar desmanchados,
Se prendiam nas folhas d'um acantho,
Ou nos bicos agrestes dos silvados,
E eu ia desprendel-os, como um pagem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos;
E ouvia murmurar á doce aragem
Uns delirios d'amor, entristecidos;
Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borbeletas doudejantes
Nas tuas formosissimas madeixas,
D'aquellas côr das messes lourejantes,
E no pomar, nós dois, hombro com hombro,
Caminhavamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas;
Quando ao nascer d'aurora, unidos ambos
N'um amor grande como um mar sem praias,
Ouviamos os meigos dithyrambos,
Que os rouxinoes teciam nas olaias,
E, afastados da aldeia e dos casaes,
Eu comtigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigaes,
Devolvia-te os beijos que me déras;
Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao collo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como o arminho
Pesava menos que um papel de sêda…
E foste sepultar-te, ó seraphim,
No claustro das Fieis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.
E eu passo, tão calado como a Morte,
N'esta velha cidade tão sombria,
Chorando afflictamente a minha sorte
E prelibando o calix da agonia.
E, tristissima Helena, com verdade,
Se podéra na terra achar supplicios,
Eu tambem me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilicios.
Cabellos
Ó vagas de cabello esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o crystal d'um lago refulgente
E a rude escuridão d'um largo e negro mar;
Cabellos torrenciaes d'aquella que m'enleva,
Deixae-me mergulhar as mãos e os braços nús
No barathro febril da vossa grande treva,
Que tem scintillações e meigos ceos de luz.
Deixae-me navegar, morosamente, a remos,
Quando elle estiver brando e livre de tufões,
E, ao placido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
Daixae-me naufragar no cimo dos cachopos
Occultos n'esse abysmo ebanico e tão bom
Como um licor rhenano a fermentar nos copos,
Abysmo que s'espraia em rendas de Alençon!
E ó magica mulher, ó minha Inegualavel,
Que tens o immenso bem de ter cabellos taes,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbavel,
Entre o rumor banal dos hymnos triumphaes;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exhalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estontêa um millionario avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possues balsamicos desejos,
E vaes na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melodicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e elanguescer.
E a tua cabelleira, errante pelas costas,
Supponho que te serve, em noites de verão,
De flaccido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
E ella hade, ella hade, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um oleo para ungir o corpo ao gladiador.
* * * * *
Ó mantos de veludo esplendido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asphyxiar-me em ondas de prazer.
«Onde é que te nasceu»—dizia-me ella ás vezes—
«O horror calado e triste ás cousas sepulcraes?
«Porque é que não possues a verve dos Francezes
«E aspiras, em silencio, os frascos dos meus saes?
«Porque é que tens no olhar, moroso e persistente,
«As sombras d'um jazigo e as fundas abstracções,
«E abrigas tanto fel no peito, que não sente
«O abalo feminil das minhas expansões?
«Ha quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
«Mas quando tentas rir parece então, meu bem,
«Que estão edificando um negro cadafalso
«E ou vae alguem morrer ou vao matar alguem!
«Eu vim—não sabes tu?—para gosar em maio,
«No campo, a quietação banhada de prazer!
«Não vês, ó descórado, as vestes com que saio,
«E os jubilos, que abril acaba de trazer?
«Não vês como a campina é toda embalsamada
«E como nos alegra em cada nova flor?
«E então porque é que tens na fronte consternada
«Um não sei quê tocante e enternecedor?
E eu só lhe respondia:—«Escuta-me. Conforme
«Tu vibras os crystaes da bocca musical,
«Vae-nos minando o tempo, o tempo—o cancro enorme
«Que te ha de corromper o corpo de vestal.
«E eu calmamente sei, na dôr que me amortalha,
«Que a tua cabecinha ornada á Rabagas,
«A pouco e pouco ha de ir tornando-se grisalha
«E em breve ao quente sol e ao gaz alvejará!
«E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
«Eu que amo a mocidade e as modas futeis, vans,
«Eu morro de pezar, talvez, porque prefiro
«O teu cabelo escuro ás veneraveis cans!»
HUMILHAÇÕES
(De todo o coração—a Silva Pinto)
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quasi Job,
Acceito os seus desdens, seus odios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principaes theatros,
Todas as noites, ignorado e só.
Lá cança-me o ranger da seda, a orchestra, o gaz;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E emquanto vão passando as cortezans e os brilhos,
Eu analyso as peças no cartaz.
Na representação d'um drama de Feuillet,
Eu aguradava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e van que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
Como ella marcha! Lembra um magnetisador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguez, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Por não podia abandonal-a em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéa
De vel-a aproximar, sentado na platéa,
De tel a n'um binoculo mordaz!
Eu occultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
—Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fóra as ovações.
Que desvanecimento! A perola do Tom!
As outras ao pé d'ella imitam as bonecas;
Tem menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetaculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Vi-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.
Saí; mas ao sair senti-me atropellar.
Era um municipal sobre um cavallo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De subito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôz-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
—Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?…
N'um castello deserto e solitario,
Toda de preto, ás horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas d'um sudario
E chora como as grandes criminosas.
Podesse eu ser o lenço de Bruxellas
Em que ella esconde as lagrimas singellas.
E loura como as doces escocezas,
D'uma belleza ideal, quasi indecisa;
Circumda-se de luto e de tristezas
E excede a melancolica Artemisa.
Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seus peccados.
Alta noite, os planetas argentados
Deslisam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas aguas mansissimas do lago
Podesse eu ser a lua, a lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pégos,
E nas salas resoam uns suspiros
Dolentes como as supplicas dos cegos.
Fosse eu aquellas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.
E ella vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas desthronadas,
A contemplar as gondolas airosas,
Que passam, a giorno illuminadas.
Podesse eu ser o rude gondoleiro
E alli é que fizera o meu cruzeiro.
De dia, entre os veludos e entre as sedas,
Murmurando palavras afflictivas,
Vagueia nas umbrosas alamedas
E acarinha, de leve, as sensitivas.
Fosse eu aquellas arvores frondosas
E prendera-lhe as roupas vaporosas.
Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capella onde outr'ora se ouviu missa,
A musica dulcissima do vento
E o sussuro do mar, que s'espreguiça.
Podesse eu ser o mar e os meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os pés, com beijos.
E ás horas do crepusculo saudosas,
Nos parques com tapetes cultivados,
Quando ella passa curvam-se amorosas
As estatuas dos seus antepassados.
Fosse eu tambem granito e a minha vida
Era vêl-a a chorar arrependida.
No palacio isolado como um monge,
Erram as velhas almas dos precítos,
E nas noites de inverno ouvem-se ao longe
Os lamentos dos naufragos afflictos.
Podesse eu ter tambem uma procella
E as lentas agonias ao pé d'ella!
E ás lages, no silencio dos mosteiros,
Ella conta o seu drama negregado,
E o vasto carmesim dos resposteiros
Ondula como um mar ensanguentado.
Fossem aquellas mil tapeçarias
Nossas mortalhas quentes e sombrias.
E assim passa, chorando, as noites bellas,
Sonhando nos tristes sonhos doloridos,
E a reflectir nas gothicas janellas
As estrellas dos ceus desconhecidos.
Podesse eu ir sonhar tambem comtigo
E ter as mesmas pedras no jazigo!
Mergulha-se em angustias lacrimosas
Nos ermos d'um castello abandonado,
E as proximas florestas tenebrosas
Repercutem um choro amargurado.
Unissemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castellã das minhas trovas!
Eu hoje estou cruel, frenetico, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrivel! Já fumei tres massos de cigarros
Consecutivamente.
Doe-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os acidos, os gumes
E os angulos agudos.
Sentei-me á secretaria. Alli defronte móra
Uma infeliz, sem, peito, os dois pulmões doentes;
Soffre de falta d'ar, morreram-lhe os parentes
E engomma para fóra.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão livida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta á botica!
Mal ganha para sopas…
O obstaculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d'um jornal me regeitar, ha dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d'uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A critica segundo o methodo de Taine
Ignoram-n'a. Juntei n'uma fogueira immensa.
Muitissimos papeis ineditos. A imprensa
Vale um desdem solemne.
Com raras excepções merece-me o epigramma.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas ás fortunas,
Mas sim, por deferencia a amigos ou a artistas,
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as columnas.
Receiam que o assignante ingenuo os abandone,
Se forem publicar taes cousas, taes auctores.
Arte? Não lhes convem, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfructa fama honrosa,
Obtem dinheiro, arranja a sua «coterie»;
E a mim, não ha questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos litteratos,
E apuro-me em lançar originaes e exactos,
Os meus alexandrinos…
E a tisica? Fechada, e com o ferro acceso!
Ignora que a asphyxia a combustão das brazas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantem-se a chá e pão! Antes de entrar na cova.
Esvae-se; e todavia, á tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
D'uma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e n'outros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas lettras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o annuncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras…
E estou melhor; passou-me a colera. E a visinha?
A pobre engommadeira ir-se-ha deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia…
Que mundo! Coitadinha!
Eu, que sou feio, solido, leal,
A ti, que és bella, fragil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
N'uma existencia honesta, de crystal.
Sentado á mesa d'um café devasso,
Ao avistar-te, ha pouco, fraca e loura,
N'esta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de offerecer-te o braço.
E, quando soccorreste um miseravel,
Eu, que bebia calices d'absintho,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudavel.
«Ella ahi vem!» disse eu para os demais;
E puz-me a olhar, véxado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinaes.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava,—talvez que o não suspeites!—
Esse vestido simples, sem enfeites,
N'essa cintura tenra, immaculada.
Ia passando, a quatro, o patriarcha.
Triste eu sahi. Doía-me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exequias d'um monarcha.
Adoravel! Tu muito natural
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, n'um largo arborisado,
Uma estatua de rei n'um pedestal.
Sorriam nos seus trens os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma familia, um ninho de socego,
Desejava beijar sobre o teu peito.
Com elegancia e sem ostentação,
Atravessavas branca, esvelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E d'altos funccionarios da nação.
«Mas se a atropella o povo turbolento!
Se fosse, por acaso, alli pisada!»
De repente, paraste embaraçada
Ao pé d'um numeroso ajuntamento.
E eu, que urdia estes faceis esbocetos,
Julguei vêr, com a vista de poeta,
uma pombinha timida e quieta
N'um bando ameaçador de corvos pretos.
E foi, então, que eu homem varonil,
Quiz dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és tenue, docil, reconhecida,
Eu, que sou habil, pratico, viril.
A Manuel Ribeiro
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamisada.
Rez-de-chaussée repousam socegados,
Abriram-se, n'alguns, as persianas,
E d'um ou d'outro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papeis pintados,
Reluzem, n'um almoço, as porcelanas.
Como é saudavel ter o seu conchego,
E a sua vida facil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quasi sempre chego
Com as tonturas d'uma apoplexia.
E rota, pequenina, aramafada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmoreo d'uma escada,
Como um retalho de horta agglomerada,
Pousára, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Poz-se de pé: resoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ella se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descançado,
Atira um cobre livido, oxidado,
Que vem bater nas faces d' uns alperces.
Subitamente,—que visão de artista!—
Se eu transformasse os simples vegetaes,
Á luz do sol, o intenso colorista,
N'um ser humano que se mova e exista
Cheio de bellas proporções carnaes?!
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz ás costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E ás portas, uma ou outra campainha
Toca, frenetica, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo organico, aos bocados.
Achava os tons e as fórmas. Descobria
Uma cabeça n'uma melancia,
E n'uns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças d'um cabello que se ageite;
E os nabos—ossos nus, da côr do leite,
E os cachos d'uvas—os rosarios d'olhos.
Ha collos, hombros, boccas, um semblante
Nas posições de certos fructos. E entre
As hortaliças, tumido, fragrante,
Como d'alguem que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, emfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vivida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o céo. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E déra o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
«Não passa mais ninguem!… Se me ajudasse?!…»
Eu acerquei-me d'ella, sem desprezo;
E, pelas duas azas a quebrar,
Nós levantámos todo aquelle peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, náquella despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d'um excesso de virtude
Ou d'uma digestão desconhecida.
E em quanto sigo para o lado opposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
D'uma janella azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrellas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas e incensal-o.
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canario—que infantil chilrada!—
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja distillada.
E pittoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D'uma desgraça alegre que me incita,
Ella apregôa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas d'um gigante,
Sem tronco, mas athleticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rustica, abundante,
Duas frugaes aboboras carneiras.
A Bettencourt Rodrigues
Faz frio. Mas, depois d'uns dias de aguaceiros,
Vibra uma immensa claridade crua.
De cocaras, em linha os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calcam de lado a lado a longa rua.
Como as elevações seccaram do relento,
E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças d'agua, como em chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobresita.
E uns quintalorios velhos com parreiras.
Não se ouvem aves; nem o choro d'uma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra—que união sonora!—
Retinem alto pelo espaço fóra,
Com choques rijos, asperos, cantantes.
Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja columna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! N'uma das regueiras
Acamam-se as japonas, os colletes:
E elles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.
E n'esse rude mez, que não consente as flores,
Fundêam, como a esquadra em fria paz,
As arvores despidas. Sobrias côres!
Mastros, enxarcias, vergas! Valladores
Atiram terra com as largas pás.
Eu julgo-me no Norte, ao frio—o grande agente!—
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, aguas, multidões, telhados!
Negrejam os quintaes, enxuga e alvenaria;
Em arco, sem as nuvens fluctuantes,
O ceu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagôas de brilhantes!
E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e egual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a silex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
Mal encarado e negro, um pára emquanto eu passo;
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas d'aço;
E um gordo, o mestre, com um ar de ralaço
E manso, tira o nivel das valletas.
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
Que vida tão custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas callosas mãos gretadas,
Para que não lhes escorregue o cabo.
Povo! No panno cru rasgado das camizas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ella soffres, bebes, agonisas:
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensorios traçam-lhe uma cruz!
D'escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem sahiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada n'um casaco á russa.
D'onde ella vem! A actriz que tanto comprimento
E a quem, á noite na plateia, attraio
Os olhos lizos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezirias, dos montados;
Os das planicies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!
Mas fina de feições, o queixo hostil, distincto,
Furtiva a tiritar em suas pelles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
N'este dezembro energico, succinto,
E n'estes sitios suburbanos, reles!
Como animaes communs, que uma picada esquente,
Elles, bovinos, masculos, ossudos,
Encaram-n'a sanguinea, brutamente:
E ella vacilla, hesita impaciente
Sobre as botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o publico a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçaes, depressa,
Com seus pésinhos rapidos, de cabra!
Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a allemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gaz dá noites de ballada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegancia, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingenua e delicada.
Tu, n'esse corpo completo,
Ó lactea virgem doirada,
Tens o lymphatico aspecto
D'uma camelia melada.
Fui hontem visitar o jardimzinho agreste,
Aonde tanta vez a luz nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um vôo.
Em tudo scintillava o limpido poema
Com osculos rimado ás luzes dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.
Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrugaes;
E as virações, o rio, os astros, a pasizagem,
Traziam-me á memoria idyllios immortaes.
Diziam-me que tu, no florido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé d'aquellas rosas,
Aquelle teu olhar moroso e delicado,
Que fala de languor e d'emoções mimosas;
E, ó pallida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do calix da ventura
O nectar que nos vem dos mimos da mulher.
Falou-me tudo, tudo, em tons commovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quasi irmãs do vento com as flores
E a molle exhalação das varzeas rescendentes.
Inda pensei ouvir aquellas coisas mansas
No ninho de affeições creado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das creanças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.
Lembrei-me muito, muito, ó symbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquelle ceo e sobre aquellas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.
E nosso bom romance escripto n'um desterro,
Com beijos sem ruido em noites sem luar,
Fizeram-m'o reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas de toucar.
Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não beijarei, ás horas somnolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados…
Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrophe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.
E tudo emfim passou, passou como uma penna,
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavaes,
E aquella doce vida, aquella vida amena,
Ah! nunca mais virá, meu lyrio, nunca mais!
Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando hontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o ceo aurirosado,
Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas illusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as azas ir abrindo ás minhas impressões.
Soltei com devoção lembranças inda escravas,
No espaço construi phantasticos castellos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarellos.
Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, n'um veo consolador,
O teu divino olhar que as pedras amollece,
E ha muito que me prendeu nos carceres do amor.
Os teus pequenos pés, aquelles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As celicas canções dos anjos aos teus irmãos.
Lembras-te tu do sabbado passado,
Do passeio que démos, devagar,
Entre um saudoso gaz amarellado
E as caricias leitosas do luar?
Bem me lembro das altas ruasinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Ás janellas palravam as visinhas;
Tinham lividas luzes as fachadas.
Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado templo com recortes;
E os cemiterios ricos, e o cypreste
Que vive de gorduras e de mortes!
Nós saíramos proximo ao sol-posto,
Mas seguiamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.
Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.
Como uma mitra a cúpula da egreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa bocca viçosa de cereja,
Torcia risos com sabor amargo.
A lua dava tremulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com arvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!
E para te seguir entrei comtigo
N'um pateo velho que era d'um canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!
Eu sinto ainda a flôr da tua pelle,
Tua luva, teu veu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impelle
Os pequeninos e cançados pés.
Sei que em tudo attentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafunados por immensos annos!
Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros,
Que apparecem ao fundo d'umas minas,
E á crua luz os pallidos barbeiros
Com oleos e maneiras femininas!
Fins de semana! Que miseria em bando!
O povo folga, estupido e grisalho!
E os artistas d'officio iam passando,
Com as ferias, ralados do trabalho.
O quadro anterior, d'um que á candêa,
Ensina a filha a ler, metteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambalêa,
Do bebado feliz que falla só!
De subito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gaz que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciaes de pechisbeque,
E em quanto elle fallava ao seu namoro,
Que morava n'um predio de azulêjo,
Nos nossos labios retinio sonoro
Um vigoroso e formidavel beijo!
E assim ao meu capricho abandonada,
Errámos por travessas, por viellas,
E passámos por pé d'uma tapada
E um palacio real com sentinellas.
E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulchral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente como um animal!
Mas ao rumor dos ramos e d'aragem,
Como longiquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.
E ao passo que eu te ouvia abstractamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadam fremente,
As patadas sonoras da patrulha,
E atravez a immortal cidadesinha,
Nós fomos ter ás portas, ás barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.
Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lucida d'amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrivel creança! Que esplendor!
E ali começaria o meu desterro!…
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentámo-nos, os dois, n'um novo aterro
Na muralha dos caes de cantaria.
Nunca mais amarei, já que não me amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzida como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.
E como é necessario que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquella noite
E andei leguas a pé, pensando n'isto.
E tu que não serás sómente minha,
Ás caricias leitosas do luar,
Recolheste-te, pallida e sósinha
Á gaiola do teu terceiro andar!
Aquella, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapeo ao lado, abre o cabello á banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucolica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
Que linguas fala? A ouvir-lhe as inflexões inglezas,
—Na Nevoa azul, a caça, as pescas, os rebanhos!—
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas;
E o meu desejo nada em epoca de banhos,
E, ave de arribação, elle enche de surprezas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.
As irlandezas teem soberbos desmazelos!
Ella descobre assim, com lentidões ufanas,
Alta, escorrida, abstracta, os grossos tornozelos;
E como aquellas são maritimas, serranas,
Suggere-me o naufragio, as musicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.
Parece um «rural boy»! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Botões a tiracollo e applicações vermelhas;
E á roda, n'um paiz de prados e barrancos,
Se as minhas maguas vão, mansissimas ovelhas,
Correm os seus desdens, como vitellos brancos.
E aquella, cujo amor me causa alguma pena,
Põe o chapeo ao lado, abre o cabello á banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, catholica, morena,
Uma pastora de audaz da religiosa Irlanda.
Balzac é meu rival, minha senhora ingleza!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas elle eternisou-lhe a singular belleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos côr das ondas.
Admiro-a. A sua longa e placida estatura
Expõe a magestade austera dos invernos.
Não cora no seu todo a timida candura;
Dansam a paz dos ceos e o assombro dos infernos.
Eu vejo-a caminhar, fleugmatica, irritante,
N'uma das mãos franzindo um lenço de cambraia!…
Ninguem me prende assim, funebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei d'uma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e as pallidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!
Podesse-me eu prostrar, n'um meditado impulso,
Ó gelida mulher bizarramente estranha,
E tremulo depor os labios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!…
Scintilla no seu rosto a lucidez das joias.
Ao encarar comsigo a phantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das giboias
E a marcha demorada e muda d'um phantasma.
Metallica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e presentiu nos seus delirios mornos,
Permitta que eu lhe adule a distincção que fere,
As curvas de magreza e o lustre dos adornos!
Deslise como um astro, uma astro que declina;
Tão descançada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão d'uma corveta fina
Que nobremente vá n'um mar de calmaria.
Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao, perseguil-a, penso acompanhar de longe
O socegado espectro angelico da Morte!
O seu vagar occulta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.
Porem, não arderei aos seus contactos frios,
E não me enroscará nos serpentinos braços:
Receio supportar febrões e calefrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.
E se uma vez me abrisse o collo transparente,
E me osculasse, emfim, flexivel e submisso,
Eu julgaria ouvir alguem, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!
A Eduardo Coelho
No campo; eu acho n'elle a musa que me anima:
A claridade, a robustez, a acção.
Esta manhã, saí com minha prima,
Em que eu noto a mais sincera estima
E a mais completa e séria educação.
Creança encantadora! Eu mal esboço o quadro
Da lyrica excursão, d'intimidade
Não pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro industria, paz, salubridade.
Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias: «Fumas? E as fagulhas?
Apaga o teu cachimbo junto ás eiras;
Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
Quando me alegra a calma das debulhas!»
E perguntavas sobre os ultimos inventos
Agrícolas. Que aldeias tão lavadas!
Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Olha: Os saloios vivos, corpulentos,
Como nos fazem grandes barretadas!
Voltemos. Na ribeira abundam as ramagens
Dos olivaes escuros. Onde irás?
Regressam os rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
E, silencioso, eu fico para traz.
N'uma collina azul brilha um logar caiado.
Bello! E arrimada ao cabo da sombrinha,
Com teu chapéo de palha, desabado,
Tu continúas na azinhaga; ao lado
Verdeja, vicejante, a nossa vinha.
N'isto, parando, como alguem que se analysa,
Sem desprender do chão teus olhos castos,
Tu começaste, harmonica, indecisa,
A arregaçar a chita, alegre e lisa
Da tua cauda um poucochinho a rastos.
Espreitam-te, por cima, as frestas dos celleiros;
O sol abrasa as terras já ceifadas,
E alvejam-te, na sombra dos pinheiros,
Sobre os teus pés decentes, verdadeiros,
As saias curtas, frescas, engommadas.
E, como quem saltasse, extravagantemente,
Um rego d'agua sem se enxovalhar,
Tu, a austera, a gentil, a intelligente,
Depois de bem composta, déste á frente
Uma pernada comica, vulgar!
Exotica! E cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas
Caidas das carradas no salmejo,
Esguio e a negrejar em um cortejo,
Destaca-se um carreiro de formigas.
Ellas, em sociedade, espertas, diligentes,
Na natureza trémula de sede,
Arrastam bichos, uvas e sementes;
E atulha, por instincto, previdentes,
Seus antros quasi occultos na parede.
E eu desatei a rir como qualquer macaco!
«Tu não as esmagares contra o solo!»
E ria-me, eu ocioso, inutil, fraco,
Eu de jasmim na casa do casaco
E d'oculo deitado a tiracolo!
«As ladras da colheita! Eu se trouxesse agora
Um sublimado corrosivo, uns pós
De solimão, eu, sem maior demora,
Envenenal-as-hia! Tu, por ora,
Preferes o romantico ao feroz.
Que compaixão! Julgava até que matarias
Esses insectos importunos! Basta.
Merecem-te espantosas sympathias?
Eu felicito suas senhorias,
Que honraste com um pulo de gymnasta!»
E emfim calei-me. Os teus cabellos muito loiros
Luziam, com doçura, honestamente;
De longe o trigo em monte, e os calcadoiros,
Lembravam-me fusões d'immensos oiros,
E o mar um prado verde e florescente.
Vibravam, na campina, as chocas da manada;
Vinham uns carros a gemer no outeiro,
E finalmente, energica, zangada,
Tu inda assim bastante envergonhada,
Volveste-me, apontando o formigueiro:
«Não me incommode, não, com ditos detestaveis!
Não seja simplesmente um zombador!
Estas mineiras negras, incançaveis,
São mais economistas, mais notaveis,
E mais trabalhoras que o senhor.»
A Guerra Junqueiro
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Ha tal soturnidade, ha tal melancholia,
Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de soffrer.
O ceu parece baixo e de neblina,
O gaz extravasado enjôa-me, perturba;
E os edificios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se d'uma côr monotona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando á via ferrea os que se vão. Felizes!
Occorrem-me em revista exposições, paizes:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações sómente emmadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao hombro, enfarruscados, seccos;
Embrenho-me, a scismar, por boqueirões, por beccos,
Ou érro pelos caes a que se atracam botes.
E evoco, então, as chronicas navaes:
Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado!
Lucta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jámais!
E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!
De um couraçado inglez vogam os escaleres;
E em terra n'um tinir de louças e talheres
Flammejam, ao jantar, alguns hoteis da moda.
N'um trem de praça arengam dois dentistas;
Um tropego arlequim braceja n'umas andas;
Os cherubins do lar fluctuam nas varandas;
Ás portas, em cabello, enfadam-se os logistas!
Vasam-se os arsenaes e as officinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E n'um cardume negro, herculeas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vem sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, á cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas,
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã á noite, a bórdo das fragatas;
E apinham-se n'um bairro aonde miam gatas,
E o peixe pôdre géra os focos de infecção!
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e creanças,
Bem raramente encerra uma mulher de «dom»!
E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão morbido me sinto, ao accender das luzes;
Á vista das prisões, da velha sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abysma.
A espaços, illuminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas egrejas, n'um saudoso largo,
Lançam a nodoa negra e funebre do clero:
N'ellas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela Historia eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto,
Muram-se as construcções rectas, eguaes, crescidas;
Affrontam-me, no resto, as ingremes subidas,
E os sinos d'um tanger monastico e devoto.
Mas, n'um recinto publico e vulgar,
Com bancos de namoro e exiguas pimenteiras,
Bronzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico d'outr'ora ascende, n'um pilar!
E eu sonho o Colera, imagina a Febre,
N'esta accumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectraes recolhem os soldados;
Inflamma-se um palacio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavallaria
Dos arcos dos quarteis que foram já conventos;
Edade-média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampeões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir ás montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobresaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas d'ellas são comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assumpto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; ás mesas de emigrados,
Ao riso e á crua luz joga-se o dominó.
E saio. A noite peza, esmaga. Nos
Passeios de lagedo arrastam-se as impuras.
Ó molles hospitaes! Sae das embocaduras
Um sopro que arripia os hombros quasi nús.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver cirios lateraes, ver filas de capellas,
Com santos e fieis, andores, ramos, velas,
Em uma cathedral de um comprimento immenso.
As burguezinhas do Catholocismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de hysterismo.
N'um cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exhala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exarcebe,
Quizera que o real e a analyse m'o dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines ólha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistraes, salubres e sinceros,
A esguia diffusão dos vossos reverberos,
E a vossa pallidez romantica e lunar!
Que grande cobra, a lubrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo!
Sua excellencia attráe, magnetica, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
E aquella velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticaes, a duas tintas. Perto,
Escarvam, á victoria, os seus mecklemburguezes.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentaes seccam nos mostradores;
Flócos de pós de arroz pairam suffocadores,
E em nuvems de setins requebram-se os caixeiros,
Mas tudo cança! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrellas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléos as armações fulgentes.
«Dó da miseria!… Compaixão de mim!…»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homemzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!
O tecto fundo de oxygenio, d'ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vem lagrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a chimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cáe nas lages, ás escuras:
Collocam-se taipaes, rangem as fechaduras,
E os olhos d'um caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silencio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longiqua flauta.
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castissimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
Ó nossos filhos! Que de sonhos ageis,
Pousando, vos trarão a nitidez ás vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
N'umas habitações translucidas e frageis.
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frótas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquaticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem arvores, no valle escuro das muralhas!…
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de soccorro ouvir estrangulados.
E n'estes nebulosos corredores
Nauseam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.
Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distancia, os dubios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, osseos, febris, errantes,
Amarelladamente, os cães parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as immoraes, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, n'esta massa irregular
De predios sepulchraes, com dimensões de montes,
A Dôr humana busca os amplos horisontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
N'aquelle «pic-nic» de burguezas,
Houve uma cousa simplesmente bella,
E que, sem ter historia nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarella.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima d'uns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo purpuro a sahir da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, n'esse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homemzarrão servi-lhe de barreira!
Em meio de arvoredo, azenhas e ruinas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, têtas a abanar, as mães de largas ancas,
Desciam mais atraz, malhadas e turinas.
Do seio do logar—casitas com postigos—
Vem-nos o leite. Mas baptisam-n'o primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo pregão vos tira ao vosso somno, amigos!
Nós davamos, os dois, um giro pelo valle:
Varzeas, povoações, pégos, silencios vastos!
E os fartos animaes, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu «costume de percale».
Já não receias tu essa vaquita preta,
Que eu segurei, prendi por um chavelhoe? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Hombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!
Pois eu, que no deserto dos caminhos,
Por ti me expunha immenso, contra as vaccas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas,
Fugia com terror dos pobresinhos!
Vejo-os no pateo, ainda! Ainda os ouço!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandriões que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apoiam sobre o moço.
Ah! Os ceguinhos com a côr dos barros,
Ou que a poeira no suor mascarra,
Chegam das feiras a tocar guitarra,
Rolam os olhos como dois escarros!
E os pobres mettem medo! Os de marmita,
Para forrar, por anno, alguns patacos,
Entrapam-se nas mantas com buracos,
Choramingando, a voz rachada, afflicta.
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas putridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!
Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as villas; sobem os outeiros;
E ás horas de calor, nos esterqueiros,
De roda d'elles zumbem os moscardos.
Aos sabbados, os monstros, que eu lamento,
Batiam ao portão com seus cajados;
E um aleijado com os pés quadrados,
Pedia-nos de cima de um jumento.
O resmungão! Que barbas! Que saccolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noutes por telheiros rotos,
E sustentava o burro a pão d'esmolas.
* * * * *
Ó minha loura e doce como um bolo!
Affavel hospeda na nossa casa,
Logo que a torrida cidade abraza,
Como um enorme fôrno de tijolo!
Tu visitavas, esmoler, garrida,
Umas creanças n'um casal queimado;
E eu, pela estrada, espicaçava o gado,
N'uma attitude esperta e decidida.
Por lobishomens, por papões, por bruxas,
Nunca soffremos o menor receio.
Temieis vós, porém, o meu aceio,
Mendigasitas sordidas, gorduchas!
Vicios, sezões, epidemias, furtos,
De certo, fermentavam entre lixos;
Que podridão cobria aquelles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
* * * * *
Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos,
Ruça, descalça, a trote nos atalhos,
E que lavava o corpo e os seus retalhos
No rio, ao pé dos choupos e dos freixos.
E a douda a quem chamavam a «Ratada»
E que fallava só! Que antipathia!
E se com ella a malta contendia,
Quanta indecencia! Quanta palavrada!
Uns operarios, n'estes descampados,
Tambem surdiam, de chapeu de côco,
Dizendo-se, de olhar rebelde e louco,
Artistas despedidos, desgraçados.
Muitos! E um bebedo—o Camões—que fôra
Rico, e morreu a mendigar, zarolho,
Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.
E o resto? Bandos de selvagensinhos:
Um nú que se gabava de maroto;
Um, que cortada a mão, coçava o coto,
E os bons que nos tratavam por padrinhos.
Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau, e vinha
Chorar, humilde, junto da coxinha!
«Cinco réisinhos!… Nobres bemfeitores!…
E quando alguns ficavam nos palheiros,
E de manhã catavam os piolhos:
Emquanto o sol batia nos restolhos
E os nossos cães ladravam, resingueiros!
Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos,
Dos surdos, dos manhosos, dos manetas.
Sulcavam as calçadas, de muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!
Scismatico, doente, azedo, apoquentado,
Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,
Assim que um besuntão dos taes se apercebia
Da minha blusa azul e branca, de riscado.
Minaveis, ao serão, a cabecita loira,
Com contos de provincia, ingenuas creaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas,
E pondo a gente fina, em postas, de salmoira!
Na noite velha, a mim, como tições ardendo,
Fitavam-me os olhões pesados das ciganas;
Deitavam-n'os o fogo aos predios e arribanas;
Cercava-me um incendio ensanguentado, horrendo.
E eu que era um cavallão, eu que fazia pinos,
Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto;
Sonhava que os ladrões—homens de quem m'espanto
Roubavam para azeite a carne dos meninos!
E protegia-te eu, n'aquelle outomno brando,
Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,
Gritos de maioraes, mugidos de boiadas,
Branca de susto, meiga e miope, estacando!
A A. de S. V.
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cholera tambem andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.
Ora, meu pae, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tiveramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que elle ganhou por isso um grande amor ao campo.
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso predio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um panico! Nem um navio entrava a barra,
A alfandega parou, nenhuma loja abria,
E os turbolentos caes cessaram a algazarra.
Pela manhã, em vez dos trens dos baptisados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazens fechados!
Como um domingo inglez na «city», que desterro!
Sem canalisação, em muitos burgos ermos,
Seccavam dejecções cobertas de mosqueiros.
E os medicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os ultimos fieis, tremiam dos enfermos!
Uma illuminação a azeite de purgueira,
De noite amarellava os predios macillentos.
Barricas d'alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.
Porém, lá fora, á solta, exageradamente
Emquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, plethorica, potente,
Ganhava immenso com a enorme mortandade!
N'um impeto de seiva os arvoredos fartos,
N'uma opulenta furia as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d'ouvir fallar em orphãos e em viuvas,
E em permanencia olhando o horizonte em brasa,
Não quiz voltar senão depois das grandes chuvas.
Elle d'um lado, via os filhos achacados,
Um livido flagello e uma molestia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezirias, prados,
E um salutar refugio e um lucro na vivenda!
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes annos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!
Que de fructa! E que fresca e temporã,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o sol, nos talhões e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manhã!
O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos são resvaladiços)
Desce em socalcos todos os macissos,
Como uma escadaria de gigantes.
Das courellas, que criam cereaes,
De que os donos—ainda!—pagam foros.
Dividem-n'o fechados pitosporos,
Abrigos de raizes verticaes.
Ao meio, a casaria branca assenta
Á beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, n'uma encosta soalhenta!
Entretanto, nao ha maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!
Muito ao fundo, entre olmeiros seculares,
Secca o rio! Em trez mezes d'estiagem,
O seu leito é um atalho de passagem,
Pedregosissimo, entre dois logares.
Como lhe luzem seixos e burgaus
Roliçõs! Marinham nas ladeiras
Os renques africanos das piteiras,
Que como áloes espigam altos paus!
Montanhas inda mais longiquamente,
Com restevas, e combros como boças,
Lembram cabeças estupendas, grossas,
De cabello grisalho, muito rente.
E, a contrastar, nos valles, em geral,
Como em vidraça d'uma enorme estufa,
Tudo se attrae, se impõe, alarga e entufa,
D'uma vitalidade equatorial!
Que de frugalidades nós criamos!
Que torrão espontaneo que nós somos!
Pela outomnal maturação dos pomos,
Com a carga, no chão pousam os ramos.
E assim postas, nos barros e areiaes,
As maceiras vergadas fortemente,
Parecem, d'uma fauna surprehendente,
Os polypos enormes, diluviaes.
Comtudo, nós não temos na fazenda
Nem uma planta só de mero ornato!
Cada pé mostra-se util, é sensato,
Por mais finos aromas que rescenda!
Finalmente, na fertil depressão,
Nada se vê que a nossa mão não regre:
A florescencias d'um matiz alegre
Mostra um sinal—a fructificação!
* * * * *
Ora, ha dez annos, n'este chão de lava
E argila e areia e alluviões dispersas,
Entre especies botanicas diversas,
Forte, a nossa familia radiava!
Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma tenue e immaculada rosa,
Dava a nota galante e melindrosa
Na trabalheira rustica, aldeã.
E foi n'um anno prodigo, excellente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!
Ai d'aquelles que nascem n'este cahos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E—custa a crer—deixam viver os maus!
* * * * *
Fecho os olhos cançados, e descrevo
Das telas da memoria retocadas,
Biscates, hortas, batataes, latadas,
No paiz montanhoso, com relevo!
Ah! Que aspectos benignos e ruraes
N'esta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreiraes!
Ah! Quando a calma, á sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu «lunch»,
Nos ajudavas, voluntariamente!…
Era admiravel—n'este grau do Sul!—
Entre a rama avistar o teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.
A exportação de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que é de perolas formado,
E o ferral, que é ardente e côr de fogo!
Em agosto, ao calor canicular,
Os passaros e enxames tudo infestam;
Tu cortavas os bagos que não prestam
Com a tua thesoura de bordar.
Douradas, pequeninas, as abelhas,
E negros, volumosos, os besoiros,
Circumdavam, com impetos de toiros,
As tuas candidissimas orelhas.
Se uma vespa lançava o seu ferrão
Na tua cutis—petala de leite!—
Nós collocavamos dez réis e azeite
Sobre a galante, a rosea inflammação!
E se um de nós, já farto, arrenegado,
Com o chapeo caçava a bicharia,
Cada zangão voando, á luz do dia,
Lembrava o teu dedal arremessado.
* * * * *
Que d'encantos! Na força do calor
Desabrochavas no padrão da bata,
E, surgindo da gola e da gravata,
Teu pescoço era o caule d'uma flor!
Mas que cegueira a minha! Do teu porte
A fina curva, a indefinida linha,
Com bondades d'herbivora mansinha,
Eram prenuncios de fraqueza e morte!
Á procura da libra e do «schilling»,
Eu andava abstracto e sem que visse
Que o teu alvor romantico de «miss»
Te obrigava a morrer antes de mim!
E antes tu, ser lindissimo, nas faces
Tivesses «panno» como as camponezas;
E sem brancuras, sem delicadezas,
Vigorosa e plebeia, inda durasses!
Uns modos de carnivora feroz
Podias ter em vez de inoffensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos,
E podias ser rude como nós!
Pois n'este sítio, que era de sequeiro,
Todo o genero ardente resistia,
E, á larguissima luz do Meio-dia,
Tomava um tom opalico e trigueiro!
* * * * *
Sim! Europa do Norte, o que suppões
Dos vergeis que abastecem teus banquetes,
Quando ás dockas, com fructas, os paquetes
Chegam antes das tuas estações?!
Oh! As ricas «primeurs» da nossa terra
E as tuas frutas acidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleugmaticos «farmers» d'Inglaterra!
Ó cidades fabris, industriaes,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensaes do paiz que vos atulha
Com a fructa que sae dos seus quintaes?
Todos os annos, que frescor se exhala!
Abundancias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bórdo!
Vapores por aqui fazendo escala!
Uma alta parreira muscatel
Por doce não servia para embarque:
Palacios que rodeiam Hyde-Park,
Não conheceis esse divino mel!
Pois a Corôa, o Banco, o Almirantado,
Não as têm nas florestas em que ha corças,
Nem em vós que dobraes as vossas forças,
Pradarias d'um verde illimitado!
Anglos-Saxonios, tendes que invejar!
Ricos suicidas, comparae comvosco!
Aqui tudo espontaneo, alegre, tosco,
Facilimo, evidente, salutar!
Opponde ás regiões que dão os vinhos
Vossos montes d'escorias inda quentes!
E as febris officinas estridentes
Ás nossas tecelagens e moinhos!
E ó condados mineiros! Extensões
Carboniferas! Fundas galerias!
Fabricas a vapor! Cutelarias!
E mechanicas, tristes fiações!
Bem sei que preparaes correctamente
O aço e a seda, as laminas e o estofo;
Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo,
Tudo o que ha de mais rijo e resistente!
Mas isso tudo é falso, é machinal,
Sem vida, como um circulo ou um quadrado,
Com essa perfeição do fabricado,
Sem o rythmo do vivo e do real!
E cá o santo sol, sobre isso tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lança as rosaceas bellas e fructeiras
Nas searas de trigo palhagudo!
Uma aldeia d'aqui é mais feliz,
Londres sombria, em que scintilla a corte!…
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!…
Ah! Que de gloria, que de colorido,
quando, por meu mandado e meu conselho,
Cá se empapelam «as maçãs d'espelho»
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!
Para alguns são prosaicos, são banaes
Estes versos de fibra succolenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigaes!
Pois o que a bocca trava com surprezas
Senão as frutas tónicas e puras!
Ah! N'um jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!…
Jack, marujo inglez, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caróços
Comes com bestial soffreguidão!…
* * * * *
A impressão d'outros tempos, sempre viva,
Dá estremeções no meu passado morto,
E inda viajo, muita vez, absorto,
Pelas varzeas da minha retentiva.
Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacifico d'enganos!
E a distancia fatal d'uns poucos annos
É uma lente convexa, d'augmentar.
Todos os typos mortos resuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagéro os casos diminutos
Dentro d'um véo de lagrimas bemdito.
Pinto quadros por lettras, por signaes,
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma é mais queimante,
Na quadra em que o verão aperta mais.
Como destacam, vivas, certas cores,
Na vida externa cheia d'alegrias!
Horas, vozes, locaes, physionomias,
As ferramentas, os trabalhadores!
Aspiro um cheiro a cosedura, e a lar
E a rama do pinheiro! Eu adivinho
O resinoso, o tão agreste pinho
Serrado nos pinhaes da beira mar.
Vinha cortada, aos feixes, a madeira,
Cheia de nós, d'imperfeições, de rachas;
Depois armavam-se, n'um prompto as caixas
Sob uma calma espessa e calaceira!
Feias e fortes! Punham-lhes papel,
A forral-as. E em grossa serradura
Acamava-se a uva prematura
Que não deve servir para tonel!
Cingiam-n'as com arcos de castanho
Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram d'assucar e calor os cachos,
Criados pelo esterco e pelo amanho!
Ó pobre estrume, como tu compões
Estes pampanos doces como afagos!
«Dedos de dama»: transparentes bagos!
«Tetas de cabra»: lacteas carnações!
E não eram caixitas bem dispostas
Como as passas de Malaga e Alicante;
Com sua fórma estavel, ignorante,
Estas pesavam, brutalmente, ás costas!
Nos vinhatorios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os parallelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e o lagar!
Que rudeza! Ao ar livre dos estios.
Que grande azafama! Apressadamente
Como soava um martellar frequente,
Véspera da saida dos navios!
Ah! Ninguem entender que ao meu olhar
Tudo tem certo espirito secreto!
Com folhas de saudades um objecto
Deita raizes duras de arrancar!
As navalhas de volta, por exemplo,
Cujo bico de passaro se arqueia,
Forjadas no casebre d'uma aldeia,
São antigas amigas que eu contemplo!
Ellas, em seu labor, em seu lidar,
Com sua ponta como a da podoas,
Serviam próbas, uteis, dignas, boas,
Nunca tintas de sangue e de matar.
E as enxós de martello, que d'um lado
Cortavam mais do que as enxadas cavam,
Por outro lado, rápidas, pregavam,
D'uma pancada, o prego fasquiado!
O meu animo verga na abstracção,
Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiaes descubro um veio
Ganho a musculatura d'um Sansão!
E assim—e mais no povo a vida é corna—
Amo os officios como o de ferreiro,
Com seu folle arquejante, seu brazeiro,
Seu malho retumbante na bigorna!
E sinto, se me ponho a recordar
Tanto utensilio, tantas perspectivas,
As tradições antigas, primitivas,
E a formidavel alma popular!
Oh! Que brava alegria eu tenho quando
Sou tal qual como os mais! E, sem talento,
Faço um trabalho technico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando!
* * * * *
Os fruteiros, tostados pelos soes,
Tinham passado, muita vez, a raia,
E, espertos, entre os mais da sua laia,
—Pobres camponios—eram uns heroes.
E por isso, com phrases imprevistas,
E colorido e estylo e valentia,
As «haciendas» que ha na «Andalucia»
Pintavam como novos paysagistas.
De como, ás calmas, n'essas excursões,
Tinham aguas salobras por refrescos;
E amarellos, enormes, gigantescos,
Lá batiam o queixo com sesões!
Tinham corrido já na adusta Hespanha,
Todo um fertil plató sem arvoredos,
Onde armavam barracas nos vinhedos,
Como tendas alegres de campanha.
Que pragas castelhanas, que alegrão,
Quanto contavam scenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas
E as côres, como os pretos do sertáo!
E tinham, sem que a lei a tal obrigue,
A educação vistosa das viagens!
Uns por terra partiam e estalagens,
Outros, aos montes, no convez d'um brigue!
Só um havia, triste e sem fallar
Que arrastava a maior misantropia,
E, roxo como um figado, bebia
O vinho tinto que eu mandava dar!
Pobre da minha geração exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com uns sapatos encebados,
E ter riqueza chimica no sangue!
* * * * *
Mas hoje a rustica lavoura, quer
Seja o patrão, quer seja o jornaleiro,
Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!…
Desde o princípio ao fim é uma maçada
De mil demonios! Torna-se preciso
Ter-se muito vigor, muito juizo
Para trazer a vida equilibrada!
Hoje eu sei quanto custam a criar
As cepas, desde que eu as pódo e empo.
Ah! O campo não é um passatempo
Com bucolismos, rouxinoes, luar.
A nós tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas,
As osgas peçonhentas, achatadas,
E as abelhas que engordam na vindima.
E o pulgão, a lagarta, os caracoes,
E ha inda, alem do mais com que se ateima,
As intemperies, o granizo, a queima,
E a concorrencia com os hespanhoes.
Na vendas, os vinhateiros d'Almeria
Competem contra os nossos fazendeiros.
Dão frutas aos leilões dos estrangeiros,
Por uma cotação que nos desvia!
Pois tantos contras, rudes como são,
Forte e teimoso, o camponez destroe-os!
Venham de lá pesados os comboyos
E os «buques» estivados no porão!
Não, não é justo que eu a culpa lance
Sobre estes nadas! Puras bagatellas!
Nós não vivemos só de coisas bellas,
Nem tudo corre como n'um romance!
Para a Terra parir hade ter dor,
E é para obter as asperas verdades,
Que os agronomos cursam nas cidades,
E, á sua custa, aprende o lavrador.
Ah! Não eram insectos nem as aves
Que nos dariam dias tão difficeis,
Se vós, sabios, na gente descobrisseis
Como se curam as doenças graves.
Não valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Difficultoso trato das cearas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras annuaes!
O que a alegria em nós destroe e mata,
Não é rede arrastante d'escalracho,
Nem é «suão» queimante como um facho,
Nem invasões bulhosas d'herva pata.
Podia ter seccado o poço em que eu
Me debruçava e te pregava sustos,
E mais as hervas, arvores e arbustos
Que—tanta vez!—a tua mão colheu.
«Molestia negra» nem «charbon» não era,
Como um archote incendiando as parras!
Tão pouco as bastas e invisiveis garras,
Da enorme legião do phylloxera!
Podiam mesmo, com o que contêm,
Os muros ter caido às invernias!
Somos fortes! As nossas energias
Tudo vencem e domam muito bem!
Que os rios, sim, que como touros mugem,
Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as larangeiras!
Ennegrecessem outras com ferrugem!
As turvas cheias de novembro, em vez
Do nateiro subtil que fertilisa,
Fossem a inundação que tudo pisa,
No rebanho afogassem muita rez!
Ah! N'esse caso pouco se perdera,
Pois isso tudo era um pequeno damno,
Á vista do cruel destino humano
Que os dedos te fazia como cera!
Era essa tysica em terceiro grau,
Que nos enchia a todos de cuidado,
Te curvava e te dava um ar alado
Como quem vae voar d'um mundo mau.
Era a desolação que inda nos mina
(Porque o fastio é bem peior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que a consome,
E a minha mãe cabellos de platina.
Era a chlorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitação em festa
Reverberando a luz meridional.
Não desejemos,—nós os sem defeitos,—
Que os tysicos pereçam! Má theoria,
Se pelos meus o apuro principia,
Se a Morte nos procura em nossos leitos!
A mim mesmo, que tenho a pretensão
De ter saude, a mim que adoro a pompa
Das forças, pode ser que se me rompa
Uma arteria, e me mine uma lesão.
Nós outros, teus irmãos, teus companheiros,
Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!
Porém, hostis, sobresaltados, sós,
Os homens architectam mil projectos
De victoria! E eu duvido que os meus netos
Morram de velhos como os meus avós!
Porque, parece, ou fortes ou velhacos
Serão apenas os sobreviventes;
E ha pessoas sinceras e clementes,
E troncos grossos com seus ramos fracos!
E que fazer se a geração decae!
Se a seiva genealogica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro do que o pai!
Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausencia! Ah! como o ar nos falta,
Ó flor cortada, susceptivel, alta,
Que assim seccaste prematuramente!
Eu que de vezes tenho o desprazer
De reflectir no tumulo! E medito
No eterno Incognoscivel infinito,
Que as idéas não podem abranger!
Como em paul em que nem cresça a junca
Sei d'almas estagnadas! Nós absortos,
Temos ainda o culto pelos Mortos,
Esses ausentes que não voltam nunca!
Nós ignoramos, sem religião,
Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,
Se te vemos ao fim d'esta avenida
Ou essa horrivel aniquilação!…
E ó minha martyr, minha virgem, minha
Infeliz e celeste creatura,
Tu lembras-nos de longe a paz futura,
No teu jazigo, como uma santinha!
E emquanto a mim, és tu que substitues
Todo o mysterio, toda a santidade,
Quando em busca do reino da verdade
Eu ergo o meu olhar aos ceos azues!
Tinhamos nós voltado á capital maldicta,
Eu vinha de polir isto tranquillamente,
Quando nos seccedeu uma cruel desdita,
Pois um de nós caiu, de subito, doente.
Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!
Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Não sei d'um infortunio immenso como o seu!
Vio o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, afflicto e attonito, morreu!
De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Como tanta crueldade e tantas injustiças,
Se inda trabalho é como os presos no degredo,
Com planos de vingança e idéas insubmissas.
E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,
Que sinto só desdem pela litteratura,
E até desprézo e esqueço os meus amados versos!
Olá! Bons dias! Em março
Que mocetona e que joven
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
Ás vagas d'um verde garço!
Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoço!
Fartam-se as vaccas nas veigas
E um pasto orvalhado e moço
Produz as novas manteigas.
Toda a paizagem se doura;
Tibida ainda, que frecas!
Bella mulher, sim senhora,
N'esta manhã pittoresca,
Primaveral, creadora!
Bom sol! As sebes d'encosto
Dão madresilvas cheirosas
Que entotecem como um mosto
Floridas, ás espinhosas
Subio-lhes o sangue ao rosto.
Cresce o relevo dos montes,
Como seios offegantes;
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.
E os campos, milhas e milhas,
Com póvos d'espaço a espaço,
Fazem-se ás mil maravilhas;
Dir-se-ia o mar de sargaço
Glauco, ondulante, com ilhas!
Pois bem. O inverno deixou-nos.
É certo. E os grãos e as sementes
Que ficam d'outros outonos
Acordam hoje frementes
Depois d'uns poucos de somnos.
Mas nem tudo são descantes
Por esses longos caminhos
Entre favaes palpitantes
Há solos bravos, maninhos,
Que expulsam seus habitantes!
E n'esta quadra d'amores
Que emigram os jornaleiros
Ganhões e trabalhadores!
Passam clans de forasteiros
Nas terras de lavradores.
Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente
Para comprarmos os gados
Assim ha praças de gente
Pelos domingos calados!
Emquanto a ovelha arredonda,
Vão tribus de sete filhos,
Por varzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadellas da monda.
De roda pulam borregos;
Enchem então as cardosas
As moças d'esses labregos
Com altas botas bartrosas
De se atirarem aos regos!
Eil-as que vem ás manadas
Com caras de soffrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vem ao trabalho, ao sustento,
Com fouces, sachos, enchadas!
Ai o palheiro das servas
Se o feitor lhe tira as chaves!
Ellas chegam ás catervas,
Quando acasalam as aves
E se fecundam as hervas!…
Ao meio dia na cama,
Branca fidalga o que julga
Das pequenas da su'ama?!
Vivem minadas da pulga
Negras do tempo e da lama.
Não é caso que a commova
Ver suas irmans de leite,
Quer faça frio, quer chova,
Sem uma mamã que as deite
Na tepidez d'um alcova?!
Nota: Incompleta esta poesia. Foram os ultimos versos do poeta.
Cesario Verde (José Joaquim Cesario Verde) nasceu em Lisboa,
freguesia da Magdalena, em 25 de fevereiro de 1855 e falleceu no
Paço do Lumiar em 19 de julho de 1886. Era filho do sr. José
Anastacio Verde, negociante, e da srª. D. Maria da Piedade dos
Santos Verde.
* * * * *
A estreia do poeta nos dominios da publicidade data de 1873. Foi o auctor d'estas notas e editor d'este livro quem fez publicar no Diario da Tarde do Porto, em folhetim, os primeiros versos de Cesario Verde, precedendo-os de uma carta de apresentação a Manoel d'Arriaga. Esses versos não se reproduzem no livro de Cesario Verde, porque o poeta os considerou muito inferiores aos que hoje se reproduzem. Realmente o eram—pela hesitação do neophyto.
* * * * *
Outros versos foram condemnados pelo auctor e a condemnação foi hoje respeitada: entre elles citaremos a Satyra ao Diario Illustrado, as poesias Vaidosa, Subindo, Desastre, e algumas outras composições de menos folego.
* * * * *
No Prefacio registra-se a promessa de um estudo critico sobre a Obra de Cesario Verde. Essa obra, dispersa nas columnas do Diario da tarde, do Porto, da Renascença, da Revista de Coimbra, da Tribuna, da Illustração, etc., não será discutida pelo auctor d'estas linhas. Não é hoje discutida, nem o será jamais. Sobeja-lhe, ao auctor da promessa, em enternecimento e amargura quanto lhe falta em serenidade; —ficam auctorizados a dizer: quanto lhe falta em competencia.
Tambem se registrou algures a promessa de um ajuste de contas com os insultadores do poeta. Inutil:—nenhum d'elles sobreviveu aos insultos.
* * * * *
Os 200 exemplares d'este livro serão distribuidos pelos parentes, pelos amigos e pelos admiradores provados do illustre poeta, bem como por Bibliothecas do paiz e do estrangeiro. A lista de distribuição será publicada. As reclamações justificadas serão attendidas.
1887.
Dedicatoria
Prefacio
Deslumbramentos
Septentrional
Meridional
Ironias do Desgosto
Humilhações
Responso
Contrariedades
A debil
N'um bairro moderno
Crystalisações
Noites gelidas
Sardenta
Flores velhas
Noite fechada
Manhans brumosas
Frigida
De verão
O sentimento d'um occidental
De tarde
Em petiz
Nós
Provincianas
Notas
End of Project Gutenberg's O Livro de Cesario Verde, by Cesario Verde