RATTAZZI A VOL D'OISEAU
URBANO DE CASTRO
CHA-RI-VA-RI
A PRINCEZA
NA BERLINDA
RATTAZZI A VOL D'OISEAU
COM A BIOGRAPHIA DE SUA ALTEZA
(segunda
edição)
LISBOA
TYPOGRAPHIA PORTUGUEZA
7, Rua da Paz, 7
1880
A PRINCEZA NA BERLINDA
Não será talvez máo começar
por fazer uma declaração:―nunca passei
pelos beiços os guardanapos da princeza... Parece-me
conveniente dizer
isto. A
minha terra, que era pequena no tempo de
Garret,
não me consta
que tenha crescido, depois da sua morte... Tem até diminuido
um pouco...
talvez!
Foi pelos jantares que a princesa conseguiu tornar-se conhecida em
Lisboa. Quando aqui chegou, vendo que ninguem a procurava, que a
litteratura não corria pressurosa ao
Bragança,
cumulando-a de elogios
banaes e de bilhetes de visita baratos, sentio dentro da sua alma a
mordedura cruel do amor proprio offendido. E amor proprio de mulher,
amor proprio de princeza! Calculem que dentada! Esperou, um, dois, tres
dias... uma semana, outra... a litteratura não
apparecia!―Pois ha de
apparecer! exclamou ella―E convidou-a para jantar. E a litteratura
appareceu.
[6]
Os livros da princeza, que até então
ninguem conhecia em
Lisboa, e que ella mandara adiante para os livreiros, como batedores da
sua fama, começaram por essa epoca a ter uma tal ou qual
extracção. Não
é difficil advinhar quem os comprava―eram os convivas dos
seus
jantares―Comprehende-se. Realmente seria pouca amabilidade comer o
foie gras de Rattazzi, e não dizer ao
menos, no fim, que
era admiravel
o seu livro
Si j'etais reine; beber o champagne
da princeza, e
não lhe
segredar que nunca mulher nenhuma escrevera um volume como
Nice
la
Belle. E a proposito dos livros citavam-se os trechos das
paginas
abertas, abril-os seria muito, e bebia-se mais um copo. A princeza, que
é inquestionavelmente uma mulher d'espirito, percebeu, o que
de resto
não era muito difficil, a
manobra fraudulenta,
como diz o
sr. Duc nos
livros de mortalhas, dos litteratos de Lisboa...
Callou-se porém muito bem callada e continuou a dar-lhes
jantares
hebdomadarios. A concorrencia cada vez era maior. Houve sujeito que se
fez litterato, só para jantar com a princeza. Cá
fóra, no Martinho e na
Havanesa, esses jantares eram digeridos e commentados com a face
vermelha e a palavra quente... Contavam-se anecdotas, que é
deveras pena
não terem chegado aos ouvidos da princeza, porque, algumas
d'ellas não
são em nada inferiores a muitas que lêmos no seu
livro...
E aqui está como madame Rattazzi conseguiu durante um mez
ser uma
notabilidade em Lisboa. Sua altesa, porém, em vez de
contentar-se com
esta gloria, embora de 2.ª ordem, lembrou-se um dia de querer
uma
gloria de 1.ª sorte, e escreveu uma comedia que, depois de
muito
applaudida em sua casa pelos seus commensaes, foi representada no
theatro dos Recreios, a quem ella, com carradas de rasão
chama um
calvario, visto que lá teve... a cruz da pateada...
Tambem que diabo de publico este de Lisboa... atrever-se a patear uma
princeza... Se sua alteza tem a mania dos cumulos,―e porque
não a
terá?―sim, porque não terá sua alteza
a mania dos cumulos, se a tem, é
impossivel que pelo seu preclaro espirito não tivesse
passado este―o
cumulo da selvageria:―
Patear uma princeza...
[7]
Ah! decididamente sua alteza não estava em sorte...
Pas
de
chance! No
hotel os convivas faziam muito mais despeza de iguarias do que de
elogios; nos Recreios, o publico muita mais despeza de botas do que de
luvas...
Pas de chance!
Foi então, naturalmente, que o seu espirito se orientou na
direcção a
dar ao
Portugal à vol d'oiseau.
―Ah! os senhores julgam que não é mais do que
comerem-me os meus
jantares, do que patearem-me as minhas peças, esperem ahi
que já os
ensino! Até aqui tenho-os recebido como convivas, agora vou
passar a
tratal-os como assumptos! Os senhores pensam, quando estão
á minha mesa,
que são meus commensaes?―pois enganam-se, são
paginas para o meu livro!
Não sou eu quem os obsequeio aos senhores, os senhores
é que me
obsequeiam. Escusam de dizer «muito obrigado!» eu
é que tenho que
dizer-lhes «
merci»!
E escreveu
Le Portugal à vol d'oiseau.
Lisboa já sabe pouco mais ou menos o que o livro
é. Os jornaes tem dado
excellentes amostras d'aquella famosa peça...
Porque não havemos nós de dar tambem algumas?
Estes dois perfis da nossa
nobreza, por exemplo...
Venha primeiro o conde de ***
«―O conde *** um dos meus valsistas, e um valsista
encantador, entre
parenthesis, não é menos notavel. De muito antiga
e nobre familia, é
verdadeiramente um dos typos mais salientes de Lisboa. Orça
pelos cincoenta, mas
[8]
não obstante apparenta um grande ar de
mocidade.
Baixinho, apurado, e elegante, ha em toda a sua pessoa uma excessiva
vivacidade. Esta vivacidade será natural ou o resultado d'um
estudo
paciente para parecer ainda mais novo?
Talvez que sim a avaliar a sua petulancia pelo mais. Os bigodes do
conde
de *** são mais negros do que o ebano.
Mas isto não é nada comparado ao craneo do
encantador conde; o
proprietario d'este craneo conserva n'elle alguns cabellos, raros,
semeados aqui e ali, tratados com zelosos cuidados, e que puchados
artisticamente para a testa, ahi occupam o maximo espaço
possivel para
assim substituirem os ausentes. Para suprir os defuntos põe
no cucuruto
uma especie de pequeno crescente―não, eu nunca ousaria
dizer chinó
fallando de tão perfeito cavalheiro―que se confunde
graciosamente com
os cabellos: depois cobre tudo isto com uma espessa camada de pez e
summo de alcaçuz de que faz uma pomada a fogo lento; por fim
o seu
creado de quarto, confidente d'esta excentricidade, traça no
meio d'esta
pasta de
raisiné breton, uma risca
d'uma delicadeza, d'uma
puresa,
d'uma nitidez a causar inveja a uma rapariga de quinze annos. Quando a
cataplasma está secca, o conde póde apparecer no
meio dos seus
concidadãos. Todos conhecem o mysterio d'aquella
cabeça e ha delirios de
alegria quando o excellente homem é obrigado, em pleno sol
ou em pleno
baile, a andar de chapeu na mão, porque o calor tendo
acção dissolvente
sobre aquella untura, resulta d'ahi começar ella a mover-se,
a palpitar,
a derreter-se, acabando por escorrer pelo pescoço e pelo
nariz do seu
proprietario.
Não obstante o conde de *** é um grande
conquistador, um namorador que
não perde occasião de deitar a sua olhadella,
sendo porém capaz de
praticar heroismos, como o demonstram varias circumstancias da sua
vida.
Conta-se este facto digno dos melhores tempos da monarchia. O conde era
camarista da infanta D. Izabel, que morreu ha annos, em
avançada edade,
no seu palacio de Bemfica nos arrebaldes de Lisboa. Sendo os principes
da familia real depositados na egreja de S. Vicente, situada n'um dos
extremos da cidade opposto a Bemfica, o cortejo
[9]
funebre teve de
percorrer duas leguas, a passo, em pleno mez de julho.
O conde devia seguir a cavallo, uniformisado e de cabeça
descoberta, o
corpo da sua real ama, debaixo d'um sol torrido, o que elle fez
magnanimamente, sem trepidar, entregando aos abrasadores raios de Phebo
a sua untura quotidiana―facil presa―sem temer a troça dos
graciosos
que, no dia seguinte, alludindo á
liquefação do cosmetico, diziam por
toda a parte que ninguem figurara no cortejo com o rosto mais
tristemente cheio de luto do que o infeliz conde de ***.»
Igual a isto só aquella celebre caricatura do
Antonio
Maria...
«
Dá-lhe cuspo...»
Agora o marquez de V. ***
―«Como exemplo não, quero citar senão
um dos meus amigos o marquez de
V. ***. Vale bem a pena. É uma personalidade, uma
celebridade, uma
curiosidade de primeira ordem. Em vão lhe procurariam rival
na galeria
do duque de Saint-Simon, e ainda menos na
collecção tão rica de
Moliére.
Em certas festas de gala ou de representação
exterior, o marquez de V.
*** julga-se obrigado a seguir as carruagens da côrte na sua
equipagem,
e é esta equipagem que faz do nobre marquez uma curiosidade
unica do
mundo.
Imagine-se um coche do seculo passado, envidraçado de modo a
ver-se todo
o interior, montado sobre molas e rodas que fazem pensar nas machinas
de
Leviathan, tudo isto pintado de verde, cheio de
dourados em alto e
baixo relevo. No meio d'esta caixa throno, o marquez de V. ***
só, de cabeça descoberta, com o grande uniforme
[10]
d'uma ordem qualquer, com os
olhos fitos na sua frente, parecendo contemplar em extase as abas da
libré do seu cocheiro, não voltando a
cabeça nunca, nem para a direita
nem para a esquerda: dir-se-hia uma estatua e não um homem.
A carruagem é atrelada a quatro cavallos, montados por dois
postilhões e
guiados por um cocheiro gorducho sentado n'uma almofada que parece um
divan. Na taboa da carruagem dois enormes lacaios em pé.
Todo este
pessoal vem empoado e veste uma libré verde claro que
deslumbra a vista
e faz piscar os olhos. Não se póde imaginar nada
mais original. Quando a
cerimonia terminou e a parte official do programma está
cumprida, o
marquez faz gravemente o giro das principaes ruas e praças
de Lisboa
para se fazer admirar. Em Paris entraria em casa corrido a batatas
cozidas. Aqui deixam-o em paz―
é costume.
Se eu fosse rei de Portugal prohibia a este fidalgo, sob as mais graves
penas, de me fazer assim cortejo com a sua entrudada, mas, com isso,
arriscaria talvez a minha corôa.
É de justiça acrescentar que o marquez de V.
é um homem instruido. Que
seria, Deus meu, se o não fosse!»
Realmente está parecido... O
Antonio Maria
não
o faz melhor...
Depois d'estes perfis hilariantes como o protoxido de azote, tenha o
leitor a paciencia de me acompanhar ao capitulo em que sua altesa nos
dá
a honra de fallar dos nossos enterros.
Dêmos a palavra á princeza:
«É realmente coisa curiosa que acompanhando o pae
os filhos ao
cemiterio, estes não acompanhem os paes: não
é costume. Deixa-se este
cuidado aos parentes mais affastados ou aos amigos. Porquê?
Não m'o
poderam explicar: acho porém esquisito.»
Está no seu direito. Foi porém mal informada. Os
paes
[11]
tambem não
acompanham os filhos. Quanto a achar o caso estranho não tem
de quê. O
facto de em França os parentes mais proximos acompanharem os
cadaveres
dos seus defunctos não prova nada, senão que
até na morte é verdadeiro o
dictado:―
Cada terra com seu uso... O que
é deveras
esquisito, é
querer sua altesa que os costumes sejam os mesmos em todos os paizes.
Para quem se propõe escrever livros de viagem,
não póde haver ponto de
vista mais ridiculo nem mais acanhado.
Continua a auctora:―«Quando uma pessoa morre, a familia
não envia
cartas de participação. Faz um annuncio nos
jornaes, e está tudo
prompto, visto que o dito annuncio termina invariavelmente por este
cliché:
Não se
fazem convites especiaes attendendo ao estado de
consternação indizivel em que a familia
está...
Comprehendo muito bem que a familia esteja n'um estado de
consternação
indizivel: entretanto, visto que esta
consternação lhe permitte fazer
annuncios nos jornaes, parece-me que, com um pequeno
esforço, lhe
permittiria tambem enviar cartas de participação
impressas a casa de
cada um, como se faz nos outros paizes.
Resulta com effeito d'este costume que, se não se lerem os
jornaes, ou
antes os annuncios dos jornaes, póde muito bem acontecer
deixar uma
pessoa de acompanhar ao cemiterio o seu tio, primo, ou o seu melhor
amigo.»
Foi ainda mal informada sua alteza. É verdade que muitas
vezes o
annuncio funebre termina por aquelle molho, mas não
é menos verdade que
rarissimas vezes se deixa de enviar cartas de
participação. Sua alteza
não recebeu nenhuma, e por isso naturalmente lembrou-se de
nos ensinar
como estas coisas se fazem nos paizes civilisados. Obrigado princeza.
Quanto a não ter recebido carta alguma de
participação desculpe:―hei de
mandar-lhe uma... quando morrer o meu Tareco.
Coitada! Infeliz princeza! Ninguem lhe mandou carta de
participação.
Então que se lhe ha de fazer, no nosso paiz os enterros
serão tudo
quanto quizer... mas não são entrudadas...
A respeito dos chavões com que é costume fechar
annuncios funebres
faltou-lhe ainda um. É este:―
não se
fazem
[12]
convites especiaes por
expressa determinação do finado. Foi
pena
escapar. Que bella pagina
humoristica não escrevia a princeza com thema tão
divertido!
Mas nem só os enterros tem a honra de espantar sua alteza...
O livro
está cheio de exemplos do mesmo genero.
Sente-se mesmo em algumas paginas que a princeza não chega a
contar
metade dos seus espantos... Qual metade!―nem a decima, nem a
centesima,
nem a milesima parte...
Porque a verdade é esta:―sua alteza apenas transpoz a
fronteira começou
a sentir as dôres... do espanto... Exactamente, agora
é que eu
acertei... começou a sentir as dôres do espanto, e
o seu livro, que até
hoje ninguem sabia bem o que é, passa agora muito
logicamente a ser o
feliz parto que a alliviou das citadas dôres, logo que ella
se viu em
terreno conhecido, que é como quem diria:―logo que a
natureza permittiu
que o robusto menino visse a clara luz do dia...
Espanto! Espanto! sempre espanto!
Os portuguezes não dizem «até
manhã» dizem «até
ámanhã se Deus
quizer»―espanto: não acompanham seus paes ao
cemiterio,―espanto: as
varinas carregam-se de oiro,―espanto: vae muita gente aos bastidores
de
S. Carlos,―espanto: dizemos
um copo d'agua e
não
un
verre
d'eau,―espanto: estamos a uma latitude e a uma longitude
differentes
de Paris,―espanto: as nossas pulgas mordem,―espanto: o nariz do sr.
Minhava é enorme,―espanto:
pomme de terre,
chama-se
batatas,―espanto: uma
precieuse ridicule
é uma tola...
espanto!
Espanto, espanto, sempre espanto!
Porque não escreveu o seu livro tal qual o pensou princeza?
Porque não nos deu, por exemplo, uma pagina n'este
genero:―«Uma vez,
tendo entrado casualmente n'uma egreja, approximei-me d'uma mulher que
estava rezando,
[13]
em voz sufficientemente alta, para que se podesse
perceber o que ella dizia... Approximo-me mais, e calculem o meu
espanto, ao ouvir estas palavras:―
Padre, nosso, que estaes
nos
céus
santificado... Accreditarão agora que isto quer
dizer em
portuguez:―
Notre père qui étes aux
cieux, que
votre nom soit,
santifié...
Como diabo, perdoe-se-me a heresia, quererão os meus bons
amigos
portuguezes que Nosso Senhor os entenda?»
E não seria este por certo o menos notavel dos seus
espantos.
Antes de passarmos adiante contemos um disparate que não
deixa de ter
graça. A paginas, não sei quantas, escrevendo a
princeza que nós não
fazemos uso de fogões para aquecer as casas, diz pouco mais
ou menos o
seguinte:―De resto, se fizessem uso d'elles, não se haviam
de vêr em
pequenos embaraços para arranjar o combustivel, a
não ser que deitassem
a mobilia ao fogo. A lenha é absolutamente desconhecida em
Portugal, e
custa cada kilo... tres mil réis!»
―Oh! princeza, se vossa alteza quando esteve em Lisboa pagou a lenha
por aquelle preço, devo dizer-lhe duas coisas:―a primeira,
é que o seu
livro passa a ser um favo do Hymeto, a segunda... é que foi
roubada!
O que é verdade porém é que Lisboa
deve um grande serviço á princesa.
Nem mais nem menos do que a rusga feita ás casas de jogo nos
principios
d'este mez.
Se duvidam, leiam.
Ha muito que no governo civil havia uma tal ou qual suspeitasinha, uma
vaga desconfiança, de que a roleta, esse
[14]
terrivel philloxera das
algibeiras, tivera o inqualificavel arrojo, o descaro inaudito de
assentar os seus arraiaes―aqui―na patria de Camões, nas
bochechas do
sr. Rosa Araujo, representante da dita patria. Mas tudo era vago,
incerto, nebuloso... A policia posta em campo nada descobrira.
Procurara-a,―oh! se a procurara!―como o nauta procura o norte, como a
ave procura o ninho, como a féra o seu covil―mas, apesar de
a procurar
com todo este excesso de poesia, o resultado era sempre o mesmo...
nada,
nada, nada, tres vezes nada coisa nenhuma!
O habil Antunes, o eximio Castello Branco, o nunca assás
cantado 37―e
muitos outros egualmente habeis, egualmente eximios, egualmente nunca
assás cantados, encarregados secretamente de a descobrirem,
pozeram em
pratica as maiores subtilesas policiaes. Um d'elles chegou a
disfarçar-se em G. L. P... Nem assim a encontrou!
Nada os fazia recuar, nada os intimidava, desconheciam... e creio que
ainda desconhecem, o verbo trepidar! Passeios, botequins, theatros,
tudo
assaltaram em busca da criminosa... Era um phrenesi, um delirio, uma
raiva... Mas a scelerada não apparecia!
―E comtudo ella existe! exclamava o governo civil com o tom solemne
com
que por muito tempo se julgou que o sabio Gallileu dissera o
legendario:―
E pur si muove!
Era para perder a cabeça.
Estavam as coisas n'estes termos quando chegou o livro da princeza. O
governo civil compra-o, começa a lêl-o e ao chegar
a paginas 149, já não
diz: «E comtudo ella existe!» no tom de Gallileu,
mas, qual outro
Archimedés,
toilette aparte, solta do
fundo do seio um
jubiloso
Eureka!
Ah! é que effectivamente o caso não era para
menos. A pagina 149,
fallando das batotas, diz a princeza:
Ha uma na rua do Alecrim.
Uma, rua das Gavias.
Uma, praça de
Camões.
[15]
Duas, rua da Emenda.
Uma, rua de S. Francisco.
Uma, travessa de Santa Justa.
Tres ou quatro á
Ribeira Velha.
―Obrigado meu Deus! exclamou então o governo civil imitando
d'esta vez
a sr.
a Emilia das Neves, obrigado meu Deus!
E aqui está como a policia conseguiu saber onde eram as
batotas. Ah!
princeza, princeza, vossa alteza merecia que pelo menos a fizessem...
chefe d'esquadra.
E note-se mais, é ella, é ella quem ensina no seu
livro como se faz uma
rusga. Duvidam?
Leiam.
«―Em Paris a policia tem um serviço especial para
este genero de
industria prohibida. Os agentes d'este serviço espiam os
batoteiros,
estudam cuidadosamente o terreno, e uma bella noite cahem lá
dentro como
um raio e prendem todos, levando o dinheiro que está em cima
das mesas.»
A policia seguiu as instrucções da princeza tanto
á risca, que até
escolheu uma bella noite,
une belle nuit, para
fazer a sua rusga!
Diz ainda sua alteza:―A mobilia é confiscada... e a policia
confiscou a
mobilia.
Decididamente, a princeza tem todo o direito... a um apito honorario!
Vejamos agora como sua alteza falla de alguns dos nossos escriptores.
―
Camillo Castello Branco, que parece o condemnado
aos trabalhos
publicos da litteratura portugueza, escreve,
[16]
escreve, escreve, escreve
sempre: superiormente, é questão controversa;
enormemente, com certesa.
A quantidade excede em muito a qualidade, diz-se, (diz ella); dotado de
uma actividade laboriosa, infatigavel, comparavel á de uma
legião de
formigas, construe romances contemporaneos sobre romances historicos,
com uma preseverança e uma sequencia que intrigam a
imaginação. É uma
especie de Quevedo com certo sentimentalismo catholico.
Particularidade curiosa: em todos os seus romances entram
infallivelmente um brazileiro, uma menina que se mette n'um convento,
um
fidalgo provinciano, e um namorado amorudo e transparente. É
invariàvel
como a chuva e o bom tempo. De fórma, que o primeiro romance
que se lê
do sr. Branco parece muito interessante, o segundo accorda
remeniscencias, e o terceiro adivinha-se; o quarto sabe-se de
cór,
volta-se a pagina sabendo-se o que vae passar-se. É uma
galeria de
personagens que raramente se renova, como a dos museus de figuras de
cera. Os seus principaes romances são:
Onde
está
a felicidade,
Doze
casamentos felizes,
O que fazem mulheres,
Historia d'um homem
rico;
são feitos com este arcabouço em que as vigas, as
asnas e os alicerces
são invariavelmente os mesmos.»
«―
Bulhão Pato. É
um peninsular, um
sybarita, um camaleão. Como muitos
rapazes que se dizem artistas pintores ou esculptores, para terem o
direito de usar umas enormes cabelleiras e de adoptarem umas maneiras e
um modo de fallar desbragado, este, fez-se poeta, o que na alta
sociedade de Lisboa é um titulo de
apresentação.
O sr. Bulhão Pato é incontestavelmente um homem
d'uma conversação
encantadora. Passando por espirituoso e mordente, imaginou que para ser
um genio lhe bastava o querer sel-o, esquecendo que não
é poeta quem
quer. Assim, creou-se por si só, e por si só,
ainda, se julga um grande
poeta. O seu poema, a
Paquita, é uma
imitação dupla do estylo
aggressivo de Byron e da finura de Musset, um
[17]
urso fazendo rendas de
Alençon. Escreveu muitos volumes de versos, satiras,
novellas, etc.,
onde se não encontra o reflexo do espirito notavel que tem a
fallar. O
que escreve não traduz o que diz (
Sa plume ne
traduit pas
sa langue).
Para acabar este retrato é necessario acrescentar que
é impertinente,
irritavel, invejoso, que pouco sabe da vida, julga-a mal, e por isso
mesmo declara-se descontente com cada um e com todos, passando a vida a
lamentar-se sem rima nem rasão.»
N'uma nota continúa no mesmo tom amavel chamando-lhe o
poeta da melena
(
poète aux longs cheveux).
«―
Ernest Biestero, o grande magro
litterario de quem
Castilho
dizia:―É um fructo de inverno, por mais que o expremam
não deita nada!
O que elle traduziu, apanhou, pilhou, é incalculavel: seriam
necessarios
volumes só para fazer a sua rapida
enumeração.
Os seus dramas originaes,
Caridade na sombra,
Moscovellos,
Natureza
de alma (?) são uma galeria de manequins sem vida
e
até sem cordeis.
Deve accrescentar-se―segundo a chronica―que os seus dramas
são
retocados por seu cunhado Mendes Leal. O que os não
embelleza!
Biester teve a gloria de ser um dos fundadores da
Revista
Contemporanea
de Portugal e Brazil, que durou cinco annos, onde se acham
associadas
todas as individualidades do
elogio mutuo.»
«―
Mendes Leal (José da
Silva) nasceu em Lisboa
em 1820. Sem talento e
até sem disposições dramaticas
escreveu muitos dramas e romances
historicos. É o litterato portuguez que fez mais plagiatos,
e isto com a
maxima audacia e sem-cerimonia. O seu theatro pertence á
escola
[18]
do
ultra-romantismo, e os
Dois renegados, que passam
por ser a fina
flôr
da sua corôa litteraria, são um drama insipido,
cheio de punhaes,
venenos e ciladas. O seu romance
Calabar
é completamente
tirado do
Bateur d'Estrade, de Paul Duplessis; as suas
poesias formam um volume
no qual só uma poesia é digna de
menção, a
Morte de Carlos Alberto.
Este fructo secco da litteratura foi bibliothecario de Lisboa,
ministro,
e finalmente ministro plenipotenciario em Paris. O que prova que as
mediocridades são muita vez empregadas.»
Agora querem saber como apparecem os nomes portuguezes no livro da
princeza? Ahi vae uma amostra.
Odio velho não cança, o
notavel romance de
Rebello da Silva,
é:―
Odio, velho, vraô cauca.
O prato de arroz dôce, de Teixeira de
Vasconcellos,
chama-se:―
O
Porto de oroz dou.
As tempestades sonoras, de Theophilo Braga,
são:―
As
tempos tades
sanoras.
Moços e velhos, que a princeza
erradamente attribue a
Ernesto Biester,
apparece assim no livro:―
Mocosvellos.
Aos theatros de Lisboa faz sua alteza a honra de lhes consagrar um
capitulo do seu livro.
E como a princeza é mulher coherente em todos os actos da
sua vida, não
quiz deixar de ser mexiriqueira tratando de assumpto que tanto a
mexericos se presta.
Assim diz, por exemplo, fallando do theatro do
Gymnasio:―«Este theatro
não tem praso determinado para as suas
representações pela excellente
rasão de que as receitas são mais de que
mediocres. Os artistas e
directores do Gymnasio acham-se constantemente, uns para com os o
Assim diz, por exemplo, fallando do theatro do
Gymnasio:―«Este theatro
não tem praso determinado para as suas
representações pela excellente
rasão de que as receitas são mais de que
mediocres. Os artistas e
directores do Gymnasio acham-se constantemente, uns para com os outros,
[19]
na situação de um credor importuno para com Mr.
de Tayllerand.
―O senhor não me dirá quando me paga o que me
deve? dizia o credor.
―Ora sempre é muito curioso, respondeu o
principe.»
Realmente é difficil perceber a que vem isto. Pela nossa
parte
entendemos que são profundamente ridiculos todos estes
promenores da
vida intima dos theatros... Julgamos além d'isso haver
falsidade no
mexerico da princeza. Mas ainda que seja verdade o que ella diz,
não
será de mau gosto trazer questõesinhas de
soalheiro para um livro de
viagens?
Do Gymnasio, diz ainda, que viu ali representar magistralmente o actor
Pedro, secundado por duas jovens e formosas
mulheres
Candida
e
Lora?
Dou-lhes um doce se adivinharem quem são estas duas jovens e
formosas
mulheres. Candida e Lora quer dizer Amelia Vieira e Emilia dos Anjos.
Ha
porém uma difficuldade, e desde já nos
confessamos incompetentes para a
resolver:―Qual será a Lora?
Mysterio que só a princeza poderá decifrar.
Do theatro da Rua dos Condes diz que se representa ali
Lazaro,
o
pastor... É possivel. Em todo o caso devemos
declarar que
essa peça
subiu á scena expressamente para sua alteza a ver, e que foi
ainda sua
alteza a unica espectadora... O publico não a viu nunca.
No capitulo
Theatros trata muito natural e
judiciosamente o assumpto
pateadas. Não gosta d'ellas, parecem-lhe estupidos e
injustos os
sujeitos que pateiam. Abre curso de sensibilidade no artigo
pateader.
Comprehende-se:―ella
[20]
é que está sensibilisada ao
escrever tudo isto,
recordando-se do modo porque a plateia dos
Recreios
recebeu a sua
insipida e soporifera comedia.
Tenha paciencia. Diz no seu livro que esta phrase
se applica a tudo
no
nosso paiz. É verdade. Applica-se a tudo. Até
ás princezas infelizes que
são pateadas.
Diz sua alteza fallando nos hoteis que os colchões
são durissimos em
todos elles; no
Braganza parecem até
cheios de cacos de
garrafas...
Mas afinal sempre temos por cá alguma coisa mais dura do que
os
colchões... as pateadas...
Custam a roer, custam... Mas que se hade fazer? Rôa,
rôa. De resto
parece-nos que sua alteza tem deveras a bossa do estylo lacrimoso...
Chore―a lagrima é livre.
Depois da nenia das pateadas passa sua alteza a fallar da vida dos
bastidores em Lisboa. Dêmos-lhe mais uma vez a
palavra:―«―A vida dos
bastidores em Portugal está ainda no estado primitivo.
É mais burgueza
que desregrada. Na maioria dos theatros as actrizes são
casadas ou vivem
maritalmente com pessoas da sua escolha, dando, com rarissimas
excepções
tanto que fallar pela sua conducta como pelo seu talento. Se quizesse
citar alguma que se distinguisse das suas collegas pelo seu luxo ou
pelos seus amores, ver me-hia deveras embaraçada,
não obstante ter
pedido informações a toda a gente.»
Sim, a princeza pedio informações a toda a gente.
Apenas qualquer
sujeito tinha a honra de lhe ser apresentado, a primeira coisa que a
princeza fazia era disparar-lhe esta pergunta á queima
roupa:―Ora
diga-me meu bom amigo, sabe alguma coisa da Emilia das Neves?―Que Sim,
a princeza pedio informações a toda a gente.
Apenas qualquer
sujeito tinha a honra de lhe ser apresentado, a primeira coisa que a
princeza fazia era disparar-lhe esta pergunta á queima
roupa:―Ora
diga-me meu bom amigo, sabe alguma coisa da Emilia das Neves?―Que lhe
consta
[21]
da Delfina?―Não se rosna coisa nenhuma d'aquella
Joanna Carlota
da rua dos Condes?
Esta febre da princeza em indagar a vida intima das nossas actrizes
faz-me lembrar a historia de um provinciano que vindo a Lisboa pela
primeira vez, com ideas muito errados acerca das nossas mulheres de
theatro, começou durante a
representação, de não sei que
peça em D.
Maria, a interrogar o visinho do lado, pelo theor que vae
vêr-se, sempre
que apparecia em scena alguma actriz.
Entrava por exemplo a sr.
a Emilia das Neves, o
provinciano voltava-se
para o sujeito e dizia-lhe piscando-lhe o olho intencionalmente:
―Esta...?
E o sujeito:
―Não sei...
Entrava a sr.
a Virginia:
―E esta...?
―Homem deixe-me...
Entrava a sr.
a Amelia Vieira.
―E esta...?
―Diabo, o senhor é inconveniente! Não sei
nada...
O provinciano porém não se dava por vencido.
―E esta...? continuava elle sempre a perguntar.
De repente entra o Theodorico. Então o sujeito, desesperado,
fulo,
volta-se para o pobre provinciano e diz-lhe muito serio:
―Olhe este... com certesa...
A princeza fez exactamente o papel do provinciano, e, tão
infeliz como
elle, não ficou sabendo coisa nenhuma...
Ficou até sabendo menos que o provinciano...
Em todo o caso registe-se que no entender de sua alteza a vida dos
bastidores em Portugal é uma pulhice... «Mais
burgueza que
desregrada...» chega a ser infame, não
é assim princeza?
E depois que mulheres estas de theatro! Que impossiveis
[22]
creaturinhas!
Dão tanto que fallar pela sua conducta como pelo seu
talento... O mesmo
não se pode dizer que aconteça com certa pessoa
que nós sabemos...
Essa dá muito mais que fallar pela sua conducta do que pelo
seu
talento...
Foi devéras infeliz a princeza em questões de
theatro. Viu-se sempre
embaraçada. Até se quizesse citar alguma actriz
que se distinguisse das
suas collegas pelo seu luxo ou pelos seus amores, até
n'essas
circumstancias os embaraços lhe não permittiriam
a citação...
É realmente estar com azar.
Pois nós se quizessemos citar alguma princeza que se
distinguisse de
todas as outras pelo seu luxo
tapageur ou pelos
seus amores, faziamos
isso sem a mais pequena difficuldade...
Termina sua alteza o capitulo dos theatros fallando das
dançarinas de S.
Carlos. Diz sua alteza:―«As dançarinas
não dão que fallar de si. Ha
para isto duas razões:―a primeira é que, salvo
duas ou tres excepções
são feias que mettem medo a segunda é que a
maioria d'ellas parece-me
ter chegado, a esta edade feliz em que se tem jus á
veneração e ao
respeito.»
Ora aqui está o que aconteceria a sua alteza se em vez de
ser uma
bas
bleue pretenciosa fôsse dançarina de S.
Carlos.
Ninguem fallaria
n'ella... Por tudo, e principalmente... pela segunda
razão...
Deixemos porém os theatros e vejamos o que a princeza diz a
respeito do
nosso mais notavel monumento―o mosteiro da Batalha.
«
Batalha, tambem pequena cidade, (que
disparate!) alguns
kilometros
mais longe (do que Alcobaça, que descreve
[23]
antes) possue um
mosteiro mais
pequeno; mas tambem gothico, e de um estylo ainda mais puro que o de
Alcobaça.
Este mosteiro foi fundado pelo rei D. João I, que ahi
repousa. Nota-se
particularmente a sala do capitulo, cuja elegancia é
superior a toda a
expressão, bem como o claustro. Decididamente, os senhores
frades
d'aquelles tempos tinham bem boas habitações, e
é pena que se não
tivessem construido mais, tão encantadoras, não
para lhe servirem
unicamente de residencia, mas para alegrarem os olhos dos
touristes.»
Ter visto a Batalha, ter entrado n'aquelle monumento, que é
uma
verdadeira epopeia de pedra, e escrever o que ahi fica, sabe o que
é,
princeza?―é um diploma. Simplesmente não lhe
digo de quê.―Vá ter com
alguns dos muitos estrangeiros illustres que visitaram aquelle
mosteiro,
francezes, inglezes, italianos, hespanhoes, russos,
allemães, ou de
qualquer outra nacionalidade, diga-lhes que viu a Batalha, mostre-lhes
depois o que escreveu no seu livro... qualquer d'elles lhe
dirá de que é
o tal diploma...
Mas, que diabo! tambem não pode haver tempo para tudo, e,
ella por ella,
a equipagem do marquez de V. é decerto muito mais digna de
attenção do
que o monumental edificio da Batalha!
É pena, diz sua alteza, que não se tivessem
construido mais monumentos
para alegrar os olhos dos
touristes...
Ah! sim, é pena! pois não! chega a ser uma
dôr d'alma não estar o reino
de Portugal cheio de monumentos, como a Batalha, para que sua alteza, a
muito alta e muito nobre princeza Rattazzi, podesse percorrer o paiz
com
os olhinhos alegres!
Porque afinal de contas, o magestoso e sublime mosteiro não
lhe causou
nenhuma outra impressão... alegrou-lhe o olho.
Frei Luiz de Sousa, descreve-o com a sua penna de ouro, o inglez Murphy
estuda-o maravilhado durante largos annos,
[24]
o erudito patriarcha D.
Francisco de S. Luiz dedica-lhe uma extensa memoria:―n'uma palavra,
nacionaes e estrangeiros, curvam-se reverentes em presença
do patriotico
e veneravel monumento... Rattazzi vae vel-o... faz-lhe a honra de
conceder-lhe doze linhas... e alegra-se-lhe o olho... Isto
é, o mosteiro
produz-lhe o mesmo effeito que um copinho de
chartreuse...
Vamos
compatriotas, sirvam café á princeza, e tragam
n'uma bandeja... mosteiro
da Batalha e copos... Sua alteza tem o olhar basso e triste...
alegremos-lhe o olho... dêmos-lhe um calicesinho da
sala
do
capitulo... Então princeza, nada de ceremonias...
Se quer
mandamos
tambem buscar os Jeronymos... Beba, beba... Alegre-se... alegre-se...
É impagavel no fim de tudo esta Rattazzi:―Melicio
é espirituoso e
incisivo, e a Batalha... alegra-lhe o olho...
Delicioso, como dizia o Leoni nos
Amores de Boccacio...
Tudo quanto o leitor tem visto até agora, fica
porém eclipsado pelo
capitulo em que a muito nobre princeza falla do modo porque os
estrangeiros são recebidos em Lisboa.
Leiam:
«Pode dizer-se, sem grande exaggero, que ha um secreto horror
pelos
estrangeiros e que são olhados com maus olhos. Entretanto
esta execração
tem graus e não deixa de ser curioso fazer o seu estudo.
Supponhamos que um pobre diabo cae de inanição
n'uma das praças publicas
de Lisboa, confessando que não recebeu do céu a
graça de ter nascido
cidadão portuguez.
1.º―Se é inglez, dão-lhe os restos da
comida do
dia antecedente.
2.º―Se é allemão, um bocado de
pão.
3.º―Se é americano, umas migalhas.
[25]
4.º―Se é italiano, um copo de agua.
5.º―Se é francez, não lhe
dão nada.
Aqui está approximadamente a gradação
de estima a que um estrangeiro
póde aspirar em Portugal.
Os inglezes são os mais considerados, o que se explica,
dizendo-se que
Portugal é um pouco uma colonia ingleza, uma terra de
exportação para os
productos da Grã-Bretanha: o ouro e os uniformes militares
são inglezes.
Ha n'este povo meridional muitos costumes anglicanos que ficaram como
recordação da alliança das armas
inglezas contra os francezes em 1808.
Os allemães gosam de alguma
consideração.
Os americanos do norte são antes temidos do que estimados.
Os italianos são todos pastelleiros ou tenores; é
a opinião dos
portuguezes que dou aqui, não a minha. Mas é uma
opinião perfeitamente
estabelecida, e qualquer que seja a posição
social d'um italiano que
chega a Portugal, será considerado por todos como um
pastelleiro que fez
fortuna, ou como um tenor em procura de escriptura.
Os francezes muito bem acolhidos á superficie,
são perfeitamente
detestados no fundo. Quando não são luveiros,
cabelleireiros ou
cozinheiros consideram-os como uns aventureiros. Ha uma avidez por
todos
os fructos da sua intelligencia, tira-se-lhes tudo que produzem em
sciencias, bellas artes e litteratura, mas ninguem se julga em
obrigação
de lhes dar nada em troca. Detestam-os por instincto. Esta antipathia
transmitte-se de paes a filhos, ou para melhor dizer, remonta de filhos
a paes até ao primeiro imperio.»
Disse uma vez um poeta nosso que certo sujeito era uma perfidia dentro
d'um assucareiro, d'este trechosinho póde dizer-se,
parodiando aquella
phrase:―que é tambem uma perfidia dentro d'outra coisa
acabada em
eiro.
Com que então em Lisboa quando se encontra um francez cahido
no meio da
rua, cheio de fome, morto de inanição,
[26]
passa-se
para deante e não se lhe
dá nada, absolutamente nada,
rien du tout?
Oh! honestissima e honradissima princeza, porque não se
atolou mais um
poucochinho no esterquilinio da calumnia,―para que deixou a cabecinha
de fóra? Que diabo! tem pouca
imaginação vossa alteza! gira-lhe nas
veias sangue de principes, mas a calumniar não passa d'uma
burguesinha―porque dizer só, que a um francez que se
encontra estendido
na praça publica, nada se dá, nada se lhe
faz?―porque não disse antes,
que se varria esse francez d'envolta com o lixo, porque não
disse que se
lhe dava um bolo de strichinina?―
Per Baco,
produzia mais effeito,
princeza!
Afinal, de tudo quanto ha no seu livro, a pagina deveras torpe,
é
aquella.
Do resto, diga-se a verdade, nem quasi valia a pena fallar.
Ah! mas aquella paginasinha, merece, merece que se escrevam algumas
linhas...
Quem lhe disse, princeza, que os francezes eram detestados em Lisboa,
detestados por instincto?―Eu sei quem lh'o disse,―foi a sua espertesa
saloia. Vossa alteza sahiu de Portugal despeitada com muita gente,―por
isto, por aquillo, por aquell'outro,―porque a nossa boa nobreza, que
ainda a temos, não a visitou;―porque os jornaes
não fallaram tanto
quanto vossa alteza queria do seu talento e das suas obras;―porque a
platéa dos Recreios a pateou desapiedadamente; etc. Sahindo
d'aqui
despeitada quiz vingar-se. É natural. Era preciso
porém para que a sua
vingança fosse completa que ella encontrasse echo n'essa
grande nação
que ainda hoje dá as leis ao mundo.―«Vou
desacreditar Portugal á face
da França―» disse a princeza com os seus
algodões.―Mas para que a
França faça o acompanhamento á minha
serenata, o que heide eu
fazer?―Porque afinal a verdade é esta:―eu sou muito
conhecida em
França... Alfonse Karr, Boissieu, Pelletan... que o diabo,
os confunda
[27]
a
todos,―mostraram bem quem eu sou, nas
Guépes
nas
Lettres
de
Colombine, na
Nouvelle Babylone... Ah!
já sei! exclamou
vossa alteza
de repente:―escrevo que os francezes são detestados,
execrados em
Portugal... Sim, sim, é isto:―
Tonerre de Dieu!
estava-me
desconhecendo... Que tempo levei para fazer uma descoberta afinal
tão
simples, e tanto na minha indole... É claro como
agua:―dizendo eu que
os francezes são odiados, detestados, execrados, que ao
vêl'os
estendidos no meio da rua ninguem os soccorre, e que para ali ficam
abandonados como famintos cãos vadios, elles, esses bons e
enthusiasticos francezes, sentirão o fogo da
indignação girar-lhe nas
veias, e correndo ao meu palacio, virão gritar em
côro debaixo das
minhas janellas:―Bravo princeza, bravo, quanto dizes d'essa cambada,
d'essa canalha de portuguezes é pouco; nunca as
mãos te doam, mulher!
Patifes, deixarem-nos morrer sem soccorros no meio da rua... Tira-lhes
a
pelle, escorraça-os, frege-os em postas―e conta que as
nossas bençãos
cahirão sobre a tua cabeça.»
Ora tudo isto, princeza, permitta-me que repita a phrase,
não passou de
esperteza saloia.
A França, sabe perfeitamente quanto é querida e
estimada em Portugal.
Ella não ignora de certo que na hora da
provação, quando rebentou essa
terrivel guerra franco-prussiana, aqui n'esta cidade de Lisboa,―onde
se
abandonam vilmente francezes no meio da rua,―todos, sem
distincção de
classes, desde o chefe do estado, podemos dizel-o, até ao
mais humilde
cidadão, todos faziam votos para que a victoria fosse coroar
com a sua
rutilante aureola as armas d'esse valente e generoso povo, que Portugal
tem o bom senso de não tornar responsavel pelos actos
praticados por
dois dos seus despotas.
E olhe vossa alteza princeza:―tudo isto aconteceu estando um Bonaparte
á frente da França... Hoje, que n
E olhe vossa alteza princeza:―tudo isto aconteceu estando um Bonaparte
á frente da França... Hoje, que não
[28]
está lá nenhum, calcule como terá
augmentado a nossa sympathia por aquella grande
nação.
A esperteza saloia precisava de correctivo. Ahi fica. A princeza diz
que
nós os portuguezes somos muito pacientes. Assim
é, mas quando um
mosquito começa a zumbir-nos aos ouvidos, a importunar-nos,
depois de o
sacudirmos, uma, duas, tres vezes, zangamo-nos e damos-lhe uma palmada
com tanta vontade... que o esborrachamos.
É uma porcaria, d'accordo. Mas tambem para que serve a agua?
Agora as ultimas palavras... as palavras da despedida.
N'uma carta circular que sua alteza dirigiu á imprensa
diz:―
Il faut me
pardonner quelques plaisanteries sans importance et sans parti pris...
que é como se dissesse:―queiram os senhores desculpar
alguns gracejos
innoffensivos e sem intenção...
Ah! pois não princeza! Com todo o gosto... Sem mais aquella,
como se diz
em giria... E se o nosso folheto tiver a honra de ser lido por vossa
alteza, lembre-se das suas linhas e queira tambem
desculpar-nos:―
quelques plaisanteries sans importance et
sans parti
pris.
Segue a biographia da princeza.
BIOGRAPHIA
Rattazzi―(Maria Studolmire Wyse, princeza de Solms, depois condessa)
mulher de lettras franceza, nascida em Waterfard (Inglaterra) em 1833.
É
neta de Luciano Bonaparte, irmão de Napoleão I, e
filha de Letizia
Bonaparte, e de sir Thomaz Wise, membro do parlamento de Inglaterra,
que
morreu ministro plenipotenciario da Grã-Bretanha em Athenas.
Descendente
de uma serie de uniões consideradas como outras tantas
mesalliances
para a familia Bonaparte, foi sempre considerada por esta como uma
intrusa, ou como uma inimiga. Quando o principe Luiz, seu primo, foi
eleito presidente da Republica franceza, prohibiu-lhe formalmente que
usasse o nome de Bonaparte-Wise, pelo qual eram conhecidos seu pae e
seu
irmão. Entretanto, a sua filiação
napoleonica, está tão bem estabelecida
senão melhor que a do seu proprio primo. Seu avô
Luciano, principe de
Canino, casára, em segundas nupcias, com madame Bleschamp,
viuva de um
agente de cambio, casamento que descontentou muito Napoleão,
e fez
romper todas as relações da familia imperial com
Luciano; este, tendo-se
retirado á Italia, fez naturalisar romanos todos os seus
filhos, tão
pouca era a sua fé na restauração da
dynastia a que pertencia. A neta,
nascida de mãe romana, Letizia Bonaparte, e de pae irlandez,
era
realmente uma Bonaparte, mas tão pouco franceza quanto
possivel. Foi
comtudo educada na casa da Legião de Honra de S. Diniz, e,
como não
tivesse meios, fez-se professora.
Em 1848, quando á familia Bonaparte foi permittida a entrada
em França,
e o principe Luiz se propoz a presidente da Republica Franceza, foi
pedida em casamento por Mr. Frederico de Solms, rico alsaciano que a
dotou em 700 ou 800 mil francos, esperando que ella viesse a ser uma
das
estrellas da futura côrte de seu primo, e que assim o
[30]
levasse
ás
grandezas. Não aconteceu nada d'isto. Os Bonapartes, e
principalmente o
futuro Napoleão 3.º não a consideraram
como da
familia; como o pae da
segunda mulher de Luciano occupara um emprego d'inspector
nos
direitos
reunidos, pretendiam não terem nada de commum com
a
descendente d'um
vendedor de tabacos, e foi isto o que os jornaes do Elysseu lhe
disseram, nu e cru, quando Madame de Solms, posto que muito nova ainda,
porque então apenas contava 16 annos, começou a
tornar-se notavel.
Lançou-se então na
opposição, attrahiu a sua casa algumas
notabilidades
do partido democratico, abriu as suas salas aos litteratos, deu festas
esplendidas, e ostentou um luxo que tinha a
pretenção de fazer epoca na
historia contemporanea. No seu pequeno circulo comparavam-a a
mademoiselle Montpensier e dizia-se que do seu
boudoir
sahiria uma
nova Fronda. Por occasião do golpe de estado de 2 de
dezembro, em que
estavam implicadas algumas pessoas que frequentavam as suas salas,
julgou-se tambem obrigada a deixar a França, habitando ora
em Roma, na
Belgica, ora as cidades de caldas mais notaveis.
Considerava-se como exilada, e tendo alguns jornaes publicado que ella
pedira para ser amnistiada, fez-lhes publicar esta resposta
altiva:―«Só
um governo liberal e sensato me póde fazer voltar
á França. Até o dia em
que triumphem as nossas liberdades, acceito o exilio; mas protesto
energicamente contra toda e qualquer nova
insinuação, grave ou pueril,
tendente a fazer admittir que, no presente ou no futuro, sob qualquer
consideração, e em qualquer extremidade em que me
encontre, eu possa
ligar-me directa, ou indirectamente, a uma familia da qual me separei
voluntaria e seriamente.»
Isto não a impediu de entrar em França em fins de
1852; mas em fevereiro
de 1853, recebeu ordem de expulsão e seu primo fel-a
conduzir á
fronteira acompanhada pelos gendarmes. A causa d'esta
expulsão
escandalosa era sempre a mesma, a sua obstinação
em querer usar o nome
de Bonaparte que lhe negavam. Protestou pelos tribunaes, encarregou
Berryer de a defender, e o governo fez admittir pelos jornaes que a
ordem (arrêté) d'expulsão estava em
[31]
fórma, visto que madame de Solms era
estrangeira e casada com um estrangeiro não naturalisado.
É muito
provavel que M. de Solms, nascido em Strasburgo, fosse francez; mas o
governo obteve d'elle uma declaração na qual
dizia não reclamar a
qualidade de francez. Na
Patria foi publicada a
seguinte nota:
«Por ordem do sr. intendente geral da policia, foram expulsos
do
territorio francez madame de Solms, dizendo-se condessa de Solms, e M.
Wyse, (seu irmão, M. Bonaparte-Wyse) ambos estrangeiros;
estas duas
pessoas usavam sem direito nenhum o nome de Bonaparte, e longe de
respeitarem o nome illustre que usurparam, serviam-se ao contrario
d'elle para se entregarem a escandalos desordenados, afim de mais
facilmente abusarem da credulidade das pessoas com quem estavam em
contacto. A ordem do sr. intendente geral de policia foi posta em
execução e madame de Solms e o sr. Wyse deixaram
a França.»
Quando se fez a annexação de Nice e da Saboya
(1862), pediu a Napoleão
III a permissão de ficar em França, e obteve
mesmo a de voltar a Paris;
abriu ali o seu salão, como antigamente, deu festas,
escreveu chronicas
e
causeries em varios jornaes, o
Pays,
o
Constitutionel, o
Turf,
etc., fez fallar de si, como de costume, e, tendo-se reconhecido n'um
malicioso retrato traçado por M. de Boissieu, (
Fragment
d'histoire, une
des plus spirituelles lettres de Colombine, 1863), intentou
no
Figaro
uma indemnisação de 200:000 francos de perdas e
damnos. O tribunal
regeitou-lh'a. Entretanto tendo-lhe morrido o marido, uniu-se a
Rattazzi
n'uma das suas viagens a Turim, e esta ligação
teve algum tempo depois o
casamento por desenlace. A sua estada em Paris em 1865 trouxe-lhe novas
decepções; foi-lhes dada nova ordem de
expulsão e retirada uma pensão de
que havia tres annos gosava. Desde então madame Rattazzi
viveu
constantemente em Turim, Florença e Roma, e publicou grande
numero de
volumes. Um dos seus romances,
Richeville, fez
algum barulho na
Italia, e valeu ao marido de madame Solms, algumas
provocações em
duello.