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Title: Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide
Author: Alberto Pimentel
Release Date: January 31, 2011 [eBook #35130]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-15
***START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK UMA VISITA AO PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ EM S. MIGUEL DE SEIDE***
ALBERTO PIMENTEL
UMA VISITA
AO
PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ
EM
S. MIGUEL DE SEIDE
PORTO
LIVRARIA PORTUENSE DE LOPES & C.ª—EDITORES
119—Rua do Almada—123
1885
ALBERTO PIMENTEL
UMA VISITA
AO
PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ
EM
S. MIGUEL DE SEIDE
PORTO
LIVRARIA PORTUENSE DE LOPES & C.ª—EDITORES
119—Rua do Almada—123
1885
PORTO—IMPRENSA PORTUGUEZA—BOMJARDIM, 181
{3}
UMA VISITA
AO
PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ
EM S. MIGUEL DE SEIDE
Eram onze horas da manhã. Acabava, na egreja de Santo Thyrso, a missa do dia. Para o largo do mosteiro vinham sahindo os ranchos dos homens e das mulheres do campo; algumas senhoras, poucas. A manhã tinha estado fresca, segundo me disseram, mas eu perdi a manhã, pela simples razão de ter perdido a noite no arraial da Senhora das Dôres, na Trofa, aonde condescendentemente me deixei arrastar. Quando sahi de casa, seguido pelo criado que levava de redea a garrana, o sol descobria. A consciencia de não ter nascido fadado para cavallarias altas, obrigou-me a ir a{4} pé até um sitio que julguei propicio para me lançar a cima do sellim sem grande concurso de publico.
O criado dizia-me que não conhecia besta melhor do que a garrana.
—Muito fiel! accrescentava elle, inspirando-me confiança, e descendo os estribos.
Para além da ponte, cavalguei.
Pareceu-me que effectivamente a garrana tinha apreciaveis prendas de caracter; entreguei-me á sua lealdade, e posso asseverar que não foi desmentida, durante todo o dia, por nenhum incidente desagradavel.
É a besta mais honrada com que tenho lidado. O criado tinha razão.
—A que horas estaremos em S. Miguel de Seide?—perguntei eu ao Bernardo do João de Deus, nome e alcunha do meu companheiro, para estabelecer dialogo, visto que a garrana não podia, por um erro da natureza, conversar comigo.
—D'aqui a uma hora, n'este passo, respondeu elle. De Landim lá, é um instante.
Landim! repeti eu mentalmente.
Estava, pois, nos vastos dominios romanticos de Camillo, no proscenio florido das suas Novellas do Minho, uma das{5} quaes se intitula O cego de Landim. Á minha direita ficava Monte Cordova, de cuja bruxa o eminente romancista escrevera a commovente historia.
O sol descobrira de todo; os seus raios, como flechas de oiro, cahiam sobre os campos, doirando-os. O calor principiava a ser intenso.
O criado ralhou comigo amoravelmente.
Que se eu me tivesse levantado mais cedo, ponderava elle, não apanharia tamanha calma. E depois podia ser que eu não estivesse habituado. Finalmente, accrescentára que o sr. visconde, prevenido da minha visita, de certo me teria esperado para o almoço.
Que me importava a mim a calma, por maior que fosse? Eu ia vêr, abraçar aquelle que sempre fora para mim o mais dedicado dos mestres, e o melhor dos amigos. O acaso que durante alguns annos nos juntara, separara-nos um dia: elle ficara quasi sempre no Minho; eu vivia em Lisboa. Havia já dez annos que nos não avistaramos. Por isso, ainda que se tornasse preciso um grande sacrificio, de boa vontade eu o teria feito para comprar a felicidade{6} de estar alguns momentos em S. Miguel de Seide.
O caminho não me sahira tão cruel como eu esperava. A breve trecho havia arvores que déssem sombra. Em torno de mim, para qualquer lado que lançasse os olhos, a vegetação era opulenta, feracissima. Os meus pulmões fortificavam-se com delicia n'um bom banho de oxygenio. E, por antithese, lembravam-me os saguões e as escadas dos predios da baixa, em Lisboa, onde se respira um ar mephitico, que asphyxia. De longe a longe, uma casa e um parreiral; os cachos pendentes da latada davam na vista ao criado, que observava:
—Vão amadurecendo bem, graças a Deus!
E tirava o chapeu, respeitosamente, em homenagem ao Creador dos homens e dos cachos.
Um ou outro cão vinha ladrar-nos ao muro do quintal.
Bernardo, todo embevecido na contemplação da novidade, dizia-me que reparasse nas ramadas, onde as travessas de madeira teem sido substituidas por fios de arame.{7} Uma innovação recentemente introduzida no Minho.
—Isto—o arame—observava o Bernardo, dura a vida de um homem.
O calor ia apertando, mordendo. Eu, de quando em quando, aproveitava a sombra de uma arvore para accender um cigarro. A garrana, com uma grande deferencia pelas minhas commodidades e pelos meus vicios, esperava pachorrentamente que eu embrulhasse o cigarro e o accendesse. Eu, em compensação, para ser grato, sacudia-lhe as moscas com a ponta da vergasta. E não se pense que me custava pouco esta retribuição amavel da minha parte: as moscas, enxotadas da garrana, vinham para mim. Uma mordeu-me no pescoço com a mesma gana com que o teria feito á cavalgadura, em igual sitio.
Confundiu-nos! o diabo da mosca!
O Bernardo pedira licença para despir a jaqueta. Já não podia aguental-a com o calor. Ás vezes tirava o chapeu, e limpava-se. A sua cara escorria ressumbrações de suor. Não obstante, o Bernardo acompanhava a garrana com o seu passo largo e firme, de caminheiro intrépido e experimentado.{8} Eu disse-lhe que sentia haver-lhe dado incommodo em dois dias consecutivos, porque na vespera fôra elle de Santo Thyrso a Seide, por ordem minha, com uma carta para o visconde de Correia Botelho, a fim de me certificar de que o encontraria no dia seguinte.
—Isto não é nada, respondeu o Bernardo. Pelo S. Thiago fui ao Porto e vim, no mesmo dia.
E com o corpo lançado para diante, meneiando os braços n'uma oscillação de pendulo, continuava a acompanhar intrepidamente a garrana, não suando menos do que ella.
Elle ia-me nomeando os sitios por que passavamos:
—Isto aqui é a Fonte da Gallega.
E mais adiante:
—Isto aqui é a egreja da Lama. Uma freguezia pequenita.
Eu perguntava:
—Landim ainda fica muito longe?
—Não, senhor; é ali adeante.
E, para me distrair, por conhecer que eu tinha pressa de chegar, armava conversa:{9}
—Hontem, quando vim trazer a carta ao sr. visconde, topei perto de Landim uma grande bicha.
—Uma cobra?
—Pois é mesmo. Tomava toda a largura da estrada. Eu não gosto de encontrar aquellas bichas. Não trazia nada comigo, por isso parei para a deixar passar.
—Ella viu-o?
—Ella viu-me, mas foi-se andando. Enfiou por entre umas pedras da parede, e desappareceu.
E após um breve silencio:
—Estes bichinhos, disséra o Bernardo apontando para o chão, onde um formigueiro enorme mourejava, não são tão maldosos. A bem dizer, tirante a alma, fel-os Deus mais amigos do trabalho do que alguns homens.
Parei a garrana, e olhei.
Era uma alluvião de formigas que punha uma nodoa preta e ondulante á orla da valeta.
Ainda na vespera, estando eu junto á estação de Vizella, á espera do comboio que devia descer de Guimarães, tinha sido impressionado por uma d'estas obscuras scenas{10} de realismo campestre em que os pequenos insectos avultam na grandeza da sua humildade... Fôra tambem uma formiga o protogonista silencioso d'esse rapido drama, em que eu figurei de comparsa e em que fiquei pensando o bastante para extrahir d'elle o elevado ensinamento, que agradeci á natureza, visto que tendo de esperar alguns momentos, julguei que nada poderia haver ali que os occupasse utilmente.
E emquanto o comboio não chegava, uma serie de pensamentos imprevistos fôra alinhando-se metricamente no meu espirito e acolchetando-se, pensamento a pensamento, pela attracção mysteriosa da consonancia.
Esses versos, que só teem o merito unico da espontaneidade casual, inspirados e principiados junto á estação de Vizella, eram horas depois concluidos, postoque não limados. Como recordação da minha viagem ao Minho, cujo fim principal fôra a visita á quinta de S. Miguel de Seide, tomo a liberdade de offerecel-os á sr.ª D. Anna Augusto Placido, como rustica oblata deposta por um romeiro sincero no altar da amizade antiga. Intitulam-se:{11}
A FORMIGA
Oh! que grande cobardia
Esta em que eu ia cahindo!
Pobre formiga, fugia!
Com que pressa ia fugindo
Toda cheia de canseira,
Por haver roubado da eira
De loiro trigo um só bago!
E eu de entretido que ia
Por um triz que a não esmago!Sem querer, era cobarde.
Mas juro por minha fé
Que passava mal a tarde
Se lhe tenho posto o pé.Que a formiga é tão activa.
Tão mansa e laboriosa,
Do seu trabalho captiva,
Do seu viver cuidadosa!
Passa e não deixa um vestigio!
Não mancha as folhas da rosa!
Chega mesmo a ser prodigio
Que um tão pequenino insecto
Que se arrasta aos pés da gente,
Trabalhe tão diligente,
Tão delicado e discreto!Ha insectos bem maiores
Que vivem na mandriice,
São panreas, são mandriões,
E dizem co'os seus botões
Que o trabalhar é tolice.{12}A cigarra é cantadeira,
Não faz nada a descuidosa.
Por mais que a gente a condemne.
Até o bom Lafontaine
Lá lhe chamou preguiçosa.
Nem assim se envergonhou!
Vive inda entregue á cantiga!
Canta, cantará, cantou...
E talvez até que diga
Vendo a formiga cansada,
Tão activa e carregada:
«Ora a tola da formiga!»Mas a formiga, coitada!
Tão pequenita, que até
De qualquer criança o pé
A deixa logo esmagada,
Vae lidando a sua lida,
Soffrendo a sua canseira:
Aqui vence uma barreira
—Alguma hervinha mimosa!—
Ali transpõe um barranco,
Uma montanha altrerosa,
—Qualquer seixosito branco!Corre risco de afogar-se
No oceano temeroso
De qualquer gota de orvalho!
Eu, quando a vejo arrastar-se
No seu lidar canseiroso,
Bemdigo n'ella o Trabalho.E escuto uma voz amiga
Que me diz, vendo-a passar:
«Tu és irmão da formiga
«Na condição do lidar.»{13}O mundo é vasto, é enorme
E os grandes formam-n'o todo!
O rico descansa e dorme
Tendo delicias a rodo.
D'esta rêde de grandeza
Só rompe o espesso tecido
O pobre que na pobreza
Fôr do mais pobre doído.Lida a formiga, trabalha
E á força de trabalhar
Consegue que a dura malha
Ceda para ella passar.«O que tu tens feito é isto.
—Diz da consciencia a voz sã,
Sempre sincera e amiga—
«Deixa passar a formiga,
«Que a formiga é tua irmã.»«Grande gloria o vencel-a
«Quando co'um bago de trigo
«Vae passando carregada!
«Vaidade! havia de tel-a
«O grande que te esmagasse
«Na tua lide suada!»Deixae que a formiga passe
Evitando o mar-orvalho
E a cordilheira-pedrinha.
A formiga é o Trabalho...
Poupai-a, se ella caminha.{14}Sem querer, era cobarde,
Mas juro por minha fé
Que passava mal a tarde
Se lhe tenho posto o pé.
Mais adiante ouvimos o estrondo de morteiros ao longe.
O Bernardo explicou:
—É alguma romariasita em Villa Nova (Famalicão).
Passado o Pinheiro Torto, avistamos, finalmente, as torres do mosteiro de Landim.
—Ainda bem! disse eu.
—D'aqui a Seide é um pulo.
—Desconfio sempre, objectei, da rapidez dos pulos que os senhores dão cá pela provincia.
—Não, senhor. Estamos aqui, estamos lá.
—Que tempo?
—Um quarto de hora, quando muito.
No topo de uma calçada, das Mesuras se chama ella, levanta-se o mosteiro de Landim. Eu não podia perder tempo a vêr a egreja; mas disse-me depois Camillo que nada tinha de notavel.
Ao passarmos n'um vasto carvalhal{15} sombrio, o Bernardo do João de Deus explicou:
—Aqui, pela senhora das Candeias, a dois de fevereiro, faz-se um mercado que mette gente em barda. E todo esse povoleo vae cahir além n'aquella venda a comer e a beber.
Olhei. Á porta de uma taberna, sentados á sombra de uma ramada, quatro homens conversavam na sorna placidez dos ocios domingueiros. É a Casa Havaneza do sitio—com menos tabaco, mas talvez com mais animação: a venda do José Maria, successor do Fanha.
Que fresca e encantadora graça a d'um grupo de crianças, todas ellas loiras e sujas, que brincavam a uma sombra, á beira da estrada, no sitio das Campas! Se as lavassem, se as penteassem, ficariam mais fidalgas; mais bellas e graciosas, não.
O calculo do Bernardo fôra excedido no duplo. Tinha passado cêrca de meia hora, quando elle me disse:
—O senhor vê aquellas casas? Pois a quinta de Seide fica logo ao pé.
Senti precipitar-se no meu coração uma onda de sangue; era a commoção da alegria.{16}
Desembocamos, finalmente, n'um largo sobre o qual abre o portão azul da quinta de S. Miguel de Seide. O arvoredo espreita para fóra por cima do muro. Ladeámos a casa, de dois andares, pintada de amarello, e entramos pela porta de serviço, onde um criado me esperava.
Passei ao vasto pateo, que vi de relance, para subir a escada de pedra, que uma trepadeira de cachos brancos enflora, e uma copada acacia assombreia.
Esta acacia tem uma historia triste. Fora plantada pelo melancolico Jorge, o filho mais velho de Camillo, que eu ainda conheci ao collo da ama, e que momentos depois ia vêr.
Haverá pouco mais de um mez que todos os jornaes do paiz reproduziram duas quadras de Camillo, as quaes foram publicadas na Alvorada, periodico litterario de Villa Nova de Famalicão. N'essas duas bellas estrophes, que se devem considerar como morbida phantasia de um espirito desalentado, ha uma referencia maviosa a esta frondosa acacia que o Jorge plantára aos oito annos de idade:{17}
Á porta do sepulcro, ainda volto a face
Para vêr-te chorar, ó mãe do filho amado,
Que vê como n'um sonho, a scena do trespasse...
Sorver-lhe o eterno abysmo o pae idolatrado.Talvez que elle, a sonhar, te diga: «Mãe, não chore,
Que o pae ha de voltar»... Quem sabe se virei?!
Quando a Acacia do Jorge ainda outra vez inflore
Chamae-me, que eu de abril nas auras voltarei.
O visconde de Correia Botelho, ouvindo a minha voz, viera receber-me, acompanhado pelo sr. Espinho, seu hospede, á porta da casa do bilhar.
—É uma visita posthuma! dissera elle, abrindo para mim os braços affectuosamente.
Dei-me pressa em protestar contra esta phrase devida ao desalento de um trabalhador infatigavel, que ha mezes se acha condemnado á inercia por um deploravel accidente que lhe nublou os olhos já cansados de uma diuturna applicação.
Para os que amam o trabalho, os ocios forçados são cansativos e molestos. Pareceu-me ser esta a maior enfermidade de Camillo actualmente. Se elle podesse trabalhar, escrever um dos seus bellos romances em quinze dias, como tantas vezes fizera,{18} se conseguisse por esse meio arrancar-se á intuscepção meditativa em que o seu espirito se concentra, tel-o-iamos de novo forte na sua fraqueza, robusto no seu cansaço.
Mas uma pertinaz nebrina teima em ennevoar-lhe a visão; é de esperar porém que a medicina consiga debellar este incommodo e restituir o eminente romancista á sua banca do trabalho, que lá está saudosa no escriptorio de Seide, recordando a quem a vê que nem menos de cincoenta e dois romances foram escriptos ali.
Ao lado de Camillo, compartindo os seus soffrimentos com uma dedicação heroica, acompanhando-o com uma solicitude extremosa de carinhos, destaca o vulto esculptural d'essa intelligente e formosa senhora que tão bem soube comprehender a grande alma de Camillo nas sublimes melancolias dos seus dias nublados e nas vibrantes alegrias dos seus dias ridentes.
Jorge, o filho mais velho de Camillo, é um espirito dado a vagas tristezas; mas atravez de um véo de lagrimas, que ás vezes lhe marejam nos olhos e nas palavras, descobre-se um talento omnimodo, rico especialmente{19} de aptidões artisticas. Jorge é poeta, é prosador, é musico e desenhista. Eu devo-lhe a amabilidade de me ter offerecido muitos dos esboços que enchem a sua pasta; alguns d'elles teem subido valor, porque são o retrato a crayon dos personagens creados por seu pae no Eusebio Macario: o Fistula, o Barão do Rabaçal, o Abbade de S. Thiago de Faya, a Troncha, o proprio Eusebio.
Nuno, o viuvo, tem vinte annos: é o pae da innocente criança cuja prematura morte deixou aberto no coração do visconde de Correia Botelho o vácuo profundo da saudade.
Camillo fallara-me da sua querida netinha—a candida flôr que durara o que duram as rosas, apenas uma aurora.
—Aqui estou, dissera Camillo, na solidão da aldeia, rodeado de arvores melancolicas, e de pensamentos tão melancólicos como as arvores. É notavel, acrescentara, a febre de saudade com que o meu espirito vae, pelo passado dentro, á procura de pessoas que são já mortas, e com as quaes aliaz eu tive ligeiras relações litterarias ou pessoaes. É revolvendo memorias que o{20} meu espirito trabalha e descansa... Tudo isto faz profundamente triste esta casa, onde prematuramente se apagou o unico raio de sol que podia rarefazer as trevas.
É ainda ao periodico Alvorada que eu vou procurar estancias lacrimaveis do avô saudoso e angustiado. Duas quadras—tambem duas quadras—de uma belleza peregrina, que só a saudade de um anjo póde inspirar:
Parecia dormitar: tinha morrido.
Pedi que a não levassem no caixão;
Que a deixassem mirrar e desfazer-se
Como a flor se desfaz sem podridão.Teimaram em levar-m'a, e eu cingi-a
Ao peito que se abriu pela pressão;
Depois pude escondel-a, e tenho-a morta
No meu despedaçado coração.
Aproveitei o ensejo de dizer-lhe:
—Para os que nunca deixaram de o lêr, e o sabem comprehender, meu bom amigo, não passa despercebido esse novo caudal de sentimento que dá aos seus escriptos mais recentes o encanto dolorido de uma saudade vaga e vaporosa como um subtil aroma que se derrama pelo ambiente da{21} memoria... Pois bem, aproveite esta nova phase do seu poderoso talento, as tintas deliciosas que uma copiosa revivescencia de sensibilidade põe n'este momento na sua palheta de artista, e escreva um romance de amor, sem preoccupações de enredo, ouvindo-se a si proprio; condense n'um livro, que deve sahir encantador, todas essas fragrancias que se perdem no silencio meditativo do seu espirito...
—Não posso, respondeu Camillo, não poderia arrancar sensações de mim proprio sem um esforço fatigante. Um trabalho d'essa ordem deixar-me-ia exhausto de forças. Eu sentia os meus romances, e foram muitos os que escrevi. Só d'aquella banca, que ali está, sahiram cincoenta e dois.
Conversavamos no escriptorio, que fica no segundo andar. É uma sala vasta, luminosa: tres ou quatro largas janellas abrem sobre a quinta.
N'este mesmo andar tem Camillo o seu quarto de cama. A ramagem da acacia do Jorge e a folhagem da trepadeira combinam-se para coar atravez de esmeraldas uma penumbra suave.
No primeiro andar ha duas salas: a do{22} bilhar em que se encontram retratos de familia; o retrato de Herculano, e o de D. Frei Bartholomeu dos Martyres, desenhado pelo Jorge;—e a casa de jantar, cujas janellas dão para o pateo, a que já tive occasião de me referir, sem comtudo pagar o meu feudo de gratidão, como devia, ao pecegueiro frondoso cujos bellos maracotões eu agradeci, ha annos, nas chronicas que por esse tempo escrevia para o Diario Illustrado.
Fica perto do predio, e á esquerda do portão de entrada, o monumento que a proprietaria d'esta agradavel vivenda ali mandara erigir em honra de Castilho. Essa singela pyramide de granito, sombreada de copadas arvores, tenho-a aqui reproduzida, diante de mim, tambem pelo lapis de Jorge.
Foi penetrado de commovido respeito que eu li a inscripção posta n'esse simples monumento, tão eloquente na sua simplicidade:{23}
ANTONIO
FELICIANO
DE
CASTILHO
PRINCIPE
DA LYRA
PORTUGUEZA
ESTEVE
N'ESTE LUGAR
EM 15 DE JULHO
DE 1866.
MANDOU ERIGIR
ANNA PLACIDO
E na face que fica voltada para o muro:
COM
OS SEUS
DISCIPULOS
THOMAZ RIBEIRO
EUGENIO
DE CASTILHO,
J. C. VIEIRA DE CASTRO,
C. C. BRANCO.
Castilho assistiu á inauguração do seu proprio monumento, e os filhos de Camillo,{24} então duas crianças, offereceram ao poeta venerando, em seu nome, a corôa poetica que para essa commovente festa de familia entretecera a lyra enthusiastica de Thomaz Ribeiro:
Por entre cantos e flores
chegaste, rei da poesia,
como um clarão d'alegria
jorrando em mansão d'amores.Onde ha rei, ha sceptro e solio!
Rei, vimos trazer-te a c'rôa.
Tens maior côrte em Lisboa,
não tens melhor capitolio.Somos de troncos robustos
os loiros, os tenros gomos.
Das flores surgirão pomos?
Se Deus regar os arbustos!Porque és grande, hão de os vindoiros
dar-te a sagração dos hymnos;
porque és bom para os meninos,
toma esta c'rôa de loiros.Nossa c'rôa e nossas flores
guarda em saudosa memoria;—
o monumento é da gloria;
a c'rôa é só dos amores.{25}Vaes partir! leva-a comtigo,
e jura por teus carinhos
que, em nós já sendo homenzinhos,
serás nosso mestre e amigo.
Que de recordações melancolicas a inscripção do monumento e os versos de Thomaz Ribeiro fizeram accordar na minha alma!
Castilho, o poeta ali coroado n'aquella apotheóse tão modesta e tão gloriosa, vi-o eu descer ao seio da terra, que elle tanto amava—no seu pantheismo intuitivo de cego ariolo—ao cahir de uma tarde serena e triste, no cemiterio dos Prazeres, em Lisboa.
Rodrigues Cordeiro, com a voz entrecortada de lagrimas e soluços, dissera-lhe, em nome de todos aquelles que o amavam como mestre e amigo, o extremo adeus. Depois, a pedra do jazigo cerrou-se, a barreira da eternidade ergueu-se.
A noite descia lentamente.
As crianças das escolas da capital, que tinham ido acompanhar ao cemiterio o cadaver d'aquelle que para ellas inventara o Methodo repentino, d'aquelle que as ensinara a gorgeiar o alphabeto—porque Castilho{26} reconhecera que os pequenos precisam ser educados como se foram passaros—as crianças, dizia eu, tendo mais a intuição do que a consciencia da perda enorme que acabavam de soffrer, retiravam arregimentadas, duas a duas, em longas filas, com os olhos no chão, n'um silencio triste e n'um passo cadenciado.
Pouco tempo antes, e em mais de uma noite, eu acompanhara Castilho ao camarote n.º 19 do theatro de D. Maria durante as representações do Tartufo. Logo que o panno cahia, desciamos ao palco a passar os intervallos no camarim do actor Santos, que o visconde de Castilho muito apreciava. Castilho, um morto! Santos, um cego! Estas maguadas recordações travam-se no meu espirito como os élos de uma cadeia de saudades que o confrangem.
Eugenio de Castilho nunca o vi; está algemado ao leito ha muitos annos. Mas correspondi-me com elle por intermedio de seu pae, do Porto para Lisboa, quando emprehendeu publicar um jornalsinho litterario, que me parece ter-se chamado a Folha dos curiosos, e me pedia versos que eu lhe mandava, orgulhoso do pedido.{27}
Vieira do Castro, talvez o mais desgraçado de todos, conheci-o pela primeira vez no Porto, na sala da sociedade Patria e familia, durante um sarau litterario em que eu ousei, na sua presença, e na de todo um auditorio muito selecto, recitar um pequeno discurso que ahi corre impresso entre a minha insignificante bagagem de escriptor.
Elle habitava n'esse tempo o antigo mosteiro de Moreira, a dois passos do Porto, e publicava o opusculo A Republica. Era casado e feliz. Chamava-se-lhe então o primeiro orador portuguez, successor de José Estevam. Tinha sido deputado, creio mesmo que o era. Seria ministro de qualquer pasta no dia seguinte. E quando todos esperavam vel-o chegar aos conselhos da corôa, vimol-o partir para o degredo, depois de haver tropeçado no cadaver da esposa que assassinara.
O desgraçado assistira á sua propria queda, que fôra das mais estrondosas em que a curiosidade publica se tem cevado.
O meu thema, as Flores, era um pretexto para fallar do amor. Procurei provar, com mais imaginação do que sciencia, que{28} as flores se entendiam amorosamente como as almas. As senhoras applaudiam. Os homens sorriam. Vieira de Castro, sempre poeta, abraçara-me. E eu, no dia seguinte, dei uma pessima lição em botanica elementar ao professor Almeida Pinto, do lyceu.
Os filhos de Camillo foram homenzinhos, segundo a phrase de Thomaz Ribeiro. Hoje são homens. Mas Castilho já lhes não alcançára o penujar do buço. E se elle vivesse ainda, talvez que o melancolico Jorge, concentrado e sonhador, entendesse melhor do que ninguem, por os amigos silencios da lua, em S. Miguel de Seide, alguma trova do Amor e melancolia que o poeta Castilho viesse de Lisboa ali recitar n'aquellas sombras placidas que aprenderam a venerar o seu nome em torno do monumento singelo.
Thomaz Ribeiro, o eloquente interprete dos filhos de Camillo na aurea côrtesinha litteraria que Castilho encontrara em S. Miguel de Seide, é em 1885 como era 1866 um poeta cuja inspiração roça as azas pela lagoa sombria da politica sem afundar-se, do mesmo modo que as andorinhas, pelas{30} calmas da canicula, esvoaçam sobre a corrente de um rio sem mergulhar.
Logo que pôde desbragar-se de uma pasta, respira em verso. N'este momento está saboreando o goso da liberdade litteraria no seu periodico As Republicas, em que os relampagos da poesia rasgam luminosamente o horisonte caliginoso do artigo de fundo. Não contente de poetar elle proprio, apadrinhou o alvitre de abrir oiteiro semanal onde versejadores adventicios concorram a glosar trovas populares, como esta:
Vi-te sahir mar em fóra,
Ceguei, olhando esse mar,
Porque me disseste:—espera!
Se não tinhas de voltar?
E o mais é que, pelo prestigio da sua auctoridade, consegue tentar aquelles mesmos que, na milicia de Apollo, estão relegados a segunda reserva. Tentei-me eu, e sou d'esses. Mas já que este livrinho é de memorias para a velhice, fique mais esta guardada no archivo da saudade:{30}
GLOSAS
(A THOMAZ RIBEIRO)
Vi-te sahir mar em fóra,
E a saudade que eu senti
Rasgou-me o peito n'ess'hora
Em que chorava por ti.
A ausencia tem tantas maguas,
Tão soffrida heroecidade,
Tanto resiste quem chora,
Que eu puz os olhos nas aguas
E, sem morrer de saudade,
Vi-te sahir mar em fóra.Ceguei olhando esse mar
Pleito de ondas e de abrolhos.
Mas que importa a luz dos olhos,
Se não tenho a quem olhar?...
Tanto a vista me prenderam
As ondas que tu sulcavas,
Que os olhos escureceram
No rumo em que navegavas.
E assim por ti a chorar,
Ceguei olhando esse mar.Porque me disseste: espera!
Na hora extrema, derradeira,
Se já veio a primavera,
Se já floriu a amendoeira,
E tu não voltaste ainda?!
Se este mal era sem cura,
Se tinha de ser infinda
A dôr que me dilacera,
A ausencia que me tortura,
Porque me disseste: espera?!{31}Se não tinhas de voltar,
Melhor eu morresse alli;
Que mais valia acabar,
Que ter de viver sem ti.
Não ha força que resista
Á dôr que nunca descança.
Tivesse eu perdido a vista,
Mas não perdesse a esperança.
Bem feliz acabaria
Alli, á beira do mar,
Se soubesse o que seria,
Se não tinhas de voltar.
Ás quatro horas da tarde, a amabilissima auctora da Luz coada por ferros perguntava-me se eu, sacrificando os meus habitos lisbonenses, seria capaz de jantar áquella hora.
—Em Seide, respondera Camillo, janta-se sempre.
Fomos para a meza, em cujo plateau verdejavam as fructas mais escolhidas da quinta, e em cujo ambiente os acipipes succolentos de uma boa cosinha de provincia punham os aromas de um excellente jantar.
Camillo estivera silencioso durante alguns momentos. Mas eu procurara envolvel-o na conversação. Fallava-se dos seus romances. É difficil escolher o melhor entre os bons; mas eu pretendi negar a primasia do Romance de um homem rico, por{32} saber, desde muito tempo; que Camillo o prefere ao Amor de perdição. Todos nós desejavamos fazel-o interessar pelo assumpto. Foi pois em defeza do Amor de perdição que eu pugnei.
—O Amor de perdição, observara finalmente Camillo, tem lacunas que eu proprio reconheci, e não quiz preencher. Disse-o por essa occasião ao dr. Marcellino de Mattos. Mas o meu proposito foi não alterar a veracidade dos acontecimentos que se encadeavam na dramatica biographia de meu tio Simão Botelho. Escrevi sobre a tradição, respeitando-a como um evangelho de familia. No Romance de um homem rico tive um ponto de vista artistico, planeei e architectei, colori em vez de photographar. Eis aqui a razão da minha preferencia dada ao Romance de hum homem rico sobre o Amor de perdição.
Não me dispensei comtudo de recordar a profunda impressão que este ultimo romance produzira em todos os corações moços d'aquelle tempo ou nos que pelo amor rejuvenesciam. Desvelavam-se as noites na febre da leitura, e reliam-se as paginas mais sentimentaes nas horas de namorada{33} tristeza. Cada qual pedia para si a corôa de espinhos de Simão Botelho, de Thereza ou de Marianna, a auréola da poesia nas angustias do amor. Amar é soffrer. E aquelle livro fallava pelos que soffriam. Se a tua dôr te afflige, faze d'ella um poema, disse Goethe. Ora aquelle romance de Camillo era o poema em que se fundiam as dores de todas as almas excruciadas pelo amor; era o romance de tres, e o poema de todos.
No recolhimento das Orphãs, a S. Lazaro, uma das pobres meninas ali encarceradas entre as grades de ferro que nos ultimos annos foram sensatamente arrancadas, lia o Amor de perdição, a occultas da regente, entreabrindo a gaveta da sua cómmoda apenas o bastante para alcançar com a vista o espaço de uma pagina. Lia de pé, e fechava com sobresalto a gaveta quando sentia passos. O livro nunca foi surprehendido, mas as lagrimas que a leitura originava, muitas vezes o foram. A regente, D. Maria das Dores, via chorosos os olhos da menina, e perguntava-lhe porque chorava.
—É que estou triste, respondia a educanda.{34}
Mas as tristezas dava-lh'as a leitura fortuita do romance de Camillo.
Favorecia-me na apologia do Amor de perdição o voto auctorisado da intelligente e illustrada dona da casa, que depois nos recordou a belleza do romance O Esqueleto. Eu citei por minha vez A agulha em palheiro, e a Sereia, romance que tem para mim um valor especial, porque reune para a minha saudade os nomes de Camillo Castello Branco e José Gomes Monteiro. O primeiro capitulo é baseado sobre um artigo de Monteiro ácerca do antigo theatro lyrico do Porto, no Corpo da Guarda.
Accresce que o meu exemplar da Sereia tem uma historia curiosa. Na capa, sobre o titulo, ha uma pequena mancha de tinta, que tomou a forma caprichosa de um polygono estrellado. Um dia, sem que eu soubesse como, desappareceu-me da estante; foram baldados todos os esforços para encontral-o no meu escriptorio. Querendo preencher a falta da Sereia na collecção das obras de Camillo, resolvi-me a comprar um novo exemplar. Mas a suspeita de ter sido roubado, fazia com que eu relanceasse a vista por todos os romances portuguezes{34} que encontrava á venda nas lojas de livros em segunda mão.
Passaram mezes, e um dia, n'uma d'essas lojas, na rua Augusta, encontrei um exemplar da Sereia. Tirei-o da estante: era o meu! Na capa amarella, sobre o titulo, o polygono estrellado, o borrão! Perguntei quanto custava. Trezentos reis, respondeu o alfarrabista. Paguei sem discutir. Depois de ter pago, perguntei-lhe:
—Lembra-se de quem lhe vendeu este livro?
O alfarrabista quedou-se a evocar as suas recordações.
Mas devo suppôr que não poude lembrar-se.
Depois de jantar, viemos sentar-nos nos bancos do pateo. A tarde estava serena; as folhas das arvores immoveis. O visconde de Correia Botelho, fumando o seu charuto, conversava animado. Lembrei-lhe que fosse passar o inverno em Lisboa, entre os muitos amigos e admiradores que ali tem. O clima, menos rigoroso que o do norte, deve convir aos seus padecimentos. Camillo não repelliu o alvitre. Mas o projecto de viagem ficou para segunda leitura, quando{35} eu voltasse a Seide para despedir-me. Comprometti-me gostosamente a fazel-o, e espero cumprir.
A tarde declinava n'uma suavidade dormente. Os passaros cantavam no arvoredo da quinta, n'uma festa de lyrismo primitivo. Junto ao monumento de Castilho condensava-se uma sombra silenciosa, como se as aves não poisassem n'aquelle recinto senão para chorar o poeta que as cantara.
Eram horas de partir. Os meus amaveis hospedeiros, e os seus hospedes, vieram acompanhar-me ao portão da quinta. O visconde procurara apoio no meu braço, ao passo que a sr.ª D. Anna Placido colhia para mim algumas flores do seu jardim,—recordação inestimavel da minha visita a Seide.
Fóra do portão esperavam respeitosamente o Bernardo do João de Deus e a garrana. Ambos pareciam satisfeitos: elle porque trazia mais vinho verde no estomago, ella porque tinha menos moscas no pescoço. As moscas do Minho já eu disse que são formidaveis, porque lhes senti, por endosso da garrana, a dolorosa ferroada. O vinho verde de S. Miguel de{36} Seide é de se lhe tirar o chapeu, mesmo para que o chapeu não caia da cabeça caso a gente se tenha desmandado nas libações. É excellente e, por ser encorpado, deve trepar:—pelo menos, o Bernardo do João de Deus foi d'esta opinião.
Antes de montar, pedi a Camillo que se não risse da minha impericia de cavalleiro.
—Quem lhe dera essa garrana no Chiado! dissera jovialmente Camillo.
—Piedade! exclamei eu sobre o sellim.
A garrana, comprehendendo melhor as minhas intenções do que as minhas esporas, partiu.
Eu parti com ella, e o Bernardo do João de Deus na alheta de ambos.
Em Landim, na venda do José Maria, conversavam os mesmos quatro homens.
De algumas casas subia placidamente o fumo do lar accêso para a ceia. Em outras, ouvia-se fallar mulheres, chorar crianças. Alguma cabeça loira, sentindo os passos da garrana, vinha espreitar á janella.
Pouco adiante das Campas, dois bois corpulentos, largamente armados, pastavam em liberdade, com o ar de estarem já bem fartos de pascigo.{38}
Á medida que nos aproximavamos de Santo Thyrso, iamos encontrando os ranchos dos romeiros que voltavam do arraial da Trofa. A viola minhota, chuleira e folgasã, cadenciava a caminhada n'um andamento militar, como os rufos de um tambor regulam o passo largo e unisono dos soldados de um destacamento em marcha. O tocador, pendida a cabeça sobre o peito, sacudia a mão direita fortemente pelas cordas, n'um repenicado estridulo. O caminho de ferro de Bougado alliviara os romeiros da fadiga da jornada. Iam frescos como se tivessem bebido menos e descansado mais.
Que diriam os benedictinos de Santo Thyrso se podessem resuscitar, e, debruçados no muro da cêrca, vissem desenrolar-se por sobre o arvoredo fronteiro a pluma ondulante do fumo da locomotiva?!
Elles viveram ali entrincheirados entre a villa, que engrandeciam, e o rio, que os deliciava. De um lado, as moçoilas carnudas e carnaes; do outro, os rouxinoes devaneiadores da beira d'agua. De portas a dentro, a cosinha e o coro. Tudo aquillo{39} era d'elles, os frades, senhores suzeranos das localidades que povoavam,—directa e indirectamente. O caminho de ferro é um invasor audacioso, que passa esmagando e rompendo. Os frades, se agora podessem ouvir-lhe o silvo triumphal, gritariam á d'el-rei contra o progresso, apitariam contra a machina a vapor.
No relogio dos destinos humanos ha uma hora providencialmente marcada para tudo o que principia e acaba. De modo que, por uma sabia organisação superior á nossa intelligencia, tudo principia e acaba quando deve principiar e acabar. Ao frade que comboyava as almas para o ceu, succedeu opportunamente a locomotora que passa comboyando passageiros para Guimarães. Deus é grande!
Era noite fechada quando entrei em Santo Thyrso. Valeu-me a escuridão ao desprimor da gineta. Não havia espectadores, e a garrana alargava o passo, contente de se vêr perto de casa. Apeei, entregando a chibata ao Bernardo do João de Deus, que me perguntou:
—E que tal, a garrana? Não dizia eu que era segura?{40}
—Mais seguro do que isto, respondi, só o Banco de Portugal.
Elle não entendeu; por isso, riu.
E eu recolhi-me com as gratas recordações d'esse dia agradabilissimo que passei na quinta de S. Miguel de Seide, sob o tecto hospitaleiro do primeiro romancista portuguez, entre pessoas queridas, e memorias saudosas de que tanto haviamos fallado.
Santo Thyrso, 21 de agosto de 1885.
Alberto Pimentel.
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