EÇA DE QUEIROZ
A CIDADE E AS SERRAS
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1901
Todos os direitos reservados
EÇA
DE QUEIROZ
A CIDADE E AS SERRAS
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1901
Todos os direitos reservados
Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao
cidadão Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro,
que, para a
garantia que lhe offerece a lei n.º 496 de 1 d'Agosto de 1898,
fez o competente
deposito na Bibliotheca nacional, segundo a
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Porto―Imprensa Moderna
A CIDADE E AS SERRAS
Obras do mesmo auctor:
Revista
de Portugal. 4 grossos volumes |
12$000 |
As minas
de Salomão. 1 volume |
$600 |
Os Maias.
2 grossos volumes |
2$000 |
O crime
do padre Amaro. Terceira edição
inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e
na acção da edição
primitiva.
1 grosso volume |
1$200 |
O primo
Bazilio. Quarta edição. 1 grosso
volume |
1$000 |
A
Reliquia. 1 grosso volume |
1$000 |
O
Mandarim. Quarta edição. 1 volume |
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Correspondencia
de Fradique Mendes. 1 volume |
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A
illustre casa de Ramires. 1 volume |
1$000 |
A CIDADE E AS SERRAS
I
O meu amigo Jacintho nasceu n'um palacio, com cento e nove contos de
renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e
d'olival.
No Alemtejo, pela Extremadura, atravez das duas Beiras, densas sebes
ondulando por collina e valle, muros altos de boa pedra, ribeiras,
estradas, delimitavam os campos d'esta velha familia agricola que
já
entulhava grão e plantava cepa em tempos d'el-rei D. Diniz.
A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma
serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas legoas, todo o
torrão lhe
pagava fôro. E cerrados pinheiraes seus negrejavam desde Arga
até ao mar
d'Ancora.
Mas o palacio onde Jacintho nascêra, e onde sempre
habitára, era em Paris, nos Campos Elyseos, n.º
202.
[2]
Seu avô, aquelle gordissimo e riquissimo Jacintho a quem
chamavam em Lisboa o
D. Galião,
descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta,
rente d'um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou n'uma
casca de laranja e desabou no lagedo. Da portinha da horta sahia n'esse
momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de
baetão verde e
botas altas de picador, que, galhofando e com uma força
facil, levantou
o enorme Jacintho―até lhe apanhou a bengala de
castão d'ouro que rolára
para o lixo. Depois, demorando n'elle os olhos pestanudos e pretos:
―Oh Jacintho Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a
rebolar pelas
pedras?
E Jacintho, aturdido e deslumbrado, reconheceu o snr. Infante D.
Miguel!
Desde essa tarde amou aquelle bom Infante como nunca amára,
apesar de
tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto
o seu Deus! Na sala
nobre da sua casa (á Pampulha) pendurou sobre os damascos o
retrato do
«seu Salvador», enfeitado de palmitos como um
retabulo, e por baixo a
bengala que as magnanimas mãos reaes tinham erguido do lixo.
Emquanto o adoravel, desejado Infante penou no desterro de Vienna, o
barrigudo
senhor corria, sacudido na sua sege amarella, do botequim
[3] do
Zé-Maria em
Belem á botica do Placido nos Algibebes, a gemer as saudades
do
anginho, a tramar o regresso do
anginho. No dia, entre todos
bemdito, em que a
Perola
appareceu
á barra com o Messias, engrinaldou
a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona
onde D.
Miguel, tornado S. Miguel, branco, d'aureola e azas de Archanjo, furava
de cima do seu corcel d'Alter o Dragão do Liberalismo, que
se estorcia
vomitando a Carta. Durante a guerra com o «outro, com o
pedreiro livre»
mandava recoveiros a Santo Thyrso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres,
caixas de dôce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas
de retroz
atochadas de peças que elle ensaboava para lhes avivar o
ouro. E quando
soube que o snr. D. Miguel, com dois velhos bahus amarrados sobre um
macho, tomára o caminho de Sines e do final
desterro―Jacintho
Galião
correu pela casa, fechou todas as janellas como n'um luto, berrando
furiosamente:
―Tambem cá não fico! tambem cá
não fico!
Não, não queria ficar na terra perversa d'onde
partia, esbulhado e
escorraçado, aquelle Rei de Portugal que levantava na rua os
Jacinthos! Embarcou para França com a mulher, a
snr.
a D. Angelina
Fafes (da tão fallada
[4]casa
dos Fafes da Avellan); com o filho, o 'Cinthinho, menino amarellinho,
mollesinho, coberto de caróços e
leicenços; com a aia e com o moleque. Nas costas da
Cantabria o
paquete encontrou tão
rijos mares
que a snr.
a D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga
do
beliche, prometteu ao Senhor dos Passos d'Alcantara uma corôa
d'espinhos, de ouro, com as gottas de sangue em rubis do Pegu. Em
Bayonna, onde arribaram, 'Cinthinho teve ithericia. Na estrada
d'Orleans, n'uma noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam
partiu, e o nedio senhor, a delicada senhora da casa da Avellan, o
menino, marcharam tres horas na chuva e na lama do exilio
até uma
aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram
nos bancos d'uma taberna. No «Hotel dos Santos
Padres», em Paris,
soffreram os terrores d'um fogo que rebentára na
cavalhariça, sob o quarto de
D. Galião,
e o
digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até ao
pateo, enterrou o pé nú
numa lasca de vidro. Então ergueu amargamente ao
céo o punho cabelludo, e rugiu:
―Irra! É de mais!
Logo n'essa semana, sem escolher, Jacintho
Galião comprou a um
Principe polaco, que depois da tomada de Varsovia se mettera frade
[5]cartuxo,
aquelle palacete dos Campos Elyseos, n.º 202. E sob o
pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se
enconchou, descançando de tantas
agitações, n'uma
vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros
d'emigração (o
desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores),
até que morreu de
indigestão, d'uma lampreia d'escabeche que lhe
mandára o
seu procurador em
Monte-mór. Os amigos pensavam que a snr.
a D.
Angelina Fafes
voltaria ao reino. Mas a
boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que
racham. E não se queria separar do seu Confessor, nem do seu
Medico, que tão
bem lhe comprehendiam os escrupulos e a asthma.
―Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarára ella), ainda que
me faz falta a boa agua d'Alcolena... O 'Cinthinho, esse, em crescendo,
que decida.
O 'Cinthinho crescèra. Era um moço mais esguio e
livido que um cirio, de longos cabellos corredios, narigudo,
silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de
noite, sem dormir, por causa da tosse
e de suffocações, errava em camisa com uma
lamparina atravez do 202; e os creados na copa sempre lhe chamavam a
Sombra. N'essa sua mudez e indecisão de
sombra surdira, ao fim
[6]
do luto do
papá, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno:
depois,
mais tarde, com a melada
flôr dos seus vinte annos, brotou n'elle outro sentimento, de
desejo e de pasmo,
pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma
rôla, educada n'um convento de Paris, e tão
habilidosa que
esmaltava, dourava, concertava relogios e fabricava chapéos
de
feltro. No
outomno de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros
dos
Campos Elyseos,
o 'Cinthinho cuspilhou sangue. O medico, acarinhando o queixo e com uma
ruga seria na testa immensa, aconselhou que o menino abalasse para o
golfo Juan ou para as tepidas areias d'Arcachon.
'Cinthinho porém, no seu afèrro de sombra,
não se quiz arredar da Therezinha Velho, de quem se
tornára, atravez de Paris, a
muda, tardônha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais
algumas voltas ao torno;
cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Tres mezes e tres dias depois do seu enterro o meu Jacintho nasceu.
Desde o berço, onde a avó espalhava funcho e
ambar para afugentar a
Sorte-Ruim, Jacintho
medrou com a
segurança, a rijeza, a seiva rica d'um pinheiro das dunas.
[7]Não teve
sarampo e não
teve lombrigas. As Letras,
a Taboada, o Latim entraram por elle tão facilmente como o
sol
por uma
vidraça. Entre os camaradas, nos pateos dos collegios,
erguendo
a sua espada de lata e lançando um brado de commando, foi
logo o
vencedor, o Rei
que se adula, e a quem se cede a fructa das merendas. Na edade em que
se lê
Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade;―nem
crepusculos
quentes o retiveram na solidão d'uma janella, padecendo d'um
desejo sem fórma e sem nome. Todos os seus amigos (eramos
tres,
contando o seu velho escudeiro preto, o Grillo) lhe conservaram sempre
amizades puras
e certas―sem que jámais a
participação
do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidencias do seu
egoismo. Sem
coração bastante forte para conceber um amor
forte, e
contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só
experimentou o mel―esse mel que o
amor reserva aos que o recolhem, á maneira das abelhas, com
ligeireza,
mobilidade e cantando. Rijo, rico, indifferente ao Estado e ao Governo
dos Homens, nunca lhe conhecemos outra ambição
além de comprehender bem as Ideias Geraes; e a sua
intelligencia, nos annos alegres de escólas
e controversias, círculava dentro das Philosophias mais
[8]densas
como enguia lustrosa na agua limpa d'um tanque. O seu valor, genuino,
de fino quilate, nunca foi desconhecido, nem desapreciado; e toda a
opinião, ou mera facecia que lançasse, logo
encontrava
uma aragem de
sympathia e concordancia que a erguia, a mantinha emballada e
rebrilhando nas alturas. Era servido pelas cousas com docilidade e
carinho;―e
não recordo que jamais lhe estalasse um botão da
camisa,
ou que
um papel maliciosamente se escondesse dos seus olhos, ou que ante a sua
vivacidade e pressa uma gaveta perfida emperrasse. Quando um dia, rindo
com descrido riso da Fortuna e da sua Roda, comprou a um
sachristão hespanhol um Decimo de Loteria, logo a Fortuna,
ligeira e ridente sobre
a sua Roda, correu n'um fulgor, para lhe trazer quatro centas mil
pesetas. E no ceu as Nuvens, pejadas e lentas, se avistavam Jacintho
sem guarda chuva, retinham com reverencia as suas aguas até
que
elle passasse... Ah! o ambar e o funcho da snr.
a D. Angelina
tinham escorraçado do seu destino, bem triumphalmente e para
sempre, a
Sorte-Ruim! A amoravel
avó (que eu conheci obesa, com barba) costumava citar um
soneto natalicio do desembargador Nunes Velho contendo um
verso de boa lição:
[9]
Sabei, senhora, que esta Vida
é um rio...
Pois um rio de verão, manso, translucido, harmoniosamente
estendido sobre uma areia macia e alva, por entre arvoredos fragrantes
e ditosas aldeias, não offereceria áquelle que o
descesse
n'um barco de cedro, bem toldado e bem almofadado, com fructas e
Champagne a refrescar em gelo, um Anjo governando ao leme, outros Anjos
puxando á sirga,
mais segurança e doçura do que a Vida offerecia
ao meu
amigo Jacintho.
Por isso nós lhe chamavamos «o Principe da
Gran-Ventura»!
Jacintho e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e
acamaradamos em Paris, nas Escólas do Bairro Latino―para
onde
me
mandára meu bom tio Affonso Fernandes Lorena de Noronha e
Sande,
quando aquelles malvados
me riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, n'uma tarde de
procissão, na Sophia, a cara sordida do dr. Paes Pitta.
Ora n'esse tempo Jacintho concebêra uma Ideia... Este
Principe concebêra a Ideia de que «o homem
só é
superiormente feliz quando é superiormente
civilisado». E por homem civilisado o meu camarada entendia
aquelle
[10]que,
robustecendo a sua força pensante com todas as
noções adquiridas desde Aristoteles, e
multiplicando a
potencia corporal dos seus
orgãos com todos os mechanismos inventados desde Theramenes,
creador da roda, se torna um magnifico Adão,
quasí
omnipotente,
quasí omnisciente, e apto portanto a recolher dentro d'uma
sociedade e nos limites do Progresso (tal como elle se comportava em
1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de Saber e de
Poder... Pelo menos assim Jacintho
formulava copiosamente a sua Ideia, quando conversavamos de fins e
destinos humanos, sorvendo bocks poeirentos, sob o toldo das
cervejarias philosophicas, no Boulevard Saint-Michel.
Este conceito de Jacintho impressionára os nossos camaradas
de cenaculo, que tendo surgido para a vida intellectual, de 1866 a
1875, entre a batalha de Sadowa e a batalha de Sedan, e ouvindo
constantemente, desde
então, aos technicos e aos philosophos, que fôra a
Espingarda-de-agulha que vencêra em Sadowa e fôra o
Mestre-de-escóla quem vencêra em Sedan, estavam
largamente
preparados a acreditar que a felicidade dos individuos, como a das
nações, se realisa pelo
illimitado desenvolvimento da Mechanica e da
Erudição. Um
d'esses moços mesmo, o nosso inventivo Jorge
[11]Carlande,
reduzíra a theoria de
Jacintho, para lhe facilitar a circulação e lhe
condensar o brilho,
a uma fórma algebrica:
Summa sciencia |
} |
|
X |
Summa potencia |
Summa felicidade |
|
E durante dias, do Odeon á Sorbonna, foi louvada pela
mocidade positiva a
Equação
Metaphysica de
Jacintho.
Para Jacintho, porém, o seu conceito não era
meramente metaphysico e lançado pelo gozo elegante de
exercer a
razão
especulativa:―mas constituia uma regra, toda de realidade e de
utilidade, determinando a conducta, modalisando a vida. E já
a
esse tempo, em
concordancia com o seu preceito―elle se surtira da
Pequena
Encyclopedia
dos Conhecimentos
Universaes
em setenta e cinco volumes e
installára, sobre os telhados do 202, n'um mirante
envidraçado, um telescopio. Justamente
com esse telescopio me tornou elle palpavel a sua ideia, n'uma noite de
agosto, de molle e dormente calor. Nos céos remotos
lampejavam
relampagos languidos. Pela Avenida dos Campos Elyseos, os fiacres
rolavam para as frescuras do Bosque, lentos, abertos,
cançados,
transbordando de vestidos claros.
[12]―Aqui tens tu,
Zé Fernandes,
(começou Jacintho,
encostado á janella do mirante) a theoria que me governa,
bem
comprovada. Com estes olhos que recebemos da Madre natureza, lestos e
sãos, nós
podemos apenas distinguir além, atravez da Avenida,
n'aquella
loja, uma
vidraça alumiada. Mais nada! Se eu porém aos meus
olhos
juntar os
dois vidros simples d'um binoculo de corridas, percebo, por traz da
vidraça, presuntos, queijos, boiões de
gelêa e
caixas de
ameixa sêcca. Concluo portanto que é uma
mercearia. Obtive
uma
noção; tenho sobre ti, que com os olhos
desarmados
vês só o luzir da
vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez d'estes
vidros
simples, eu usasse os do meu telescopio,
de composição mais scientifica, poderia avistar
além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canaes, o
recorte
dos golphos, toda a geographia d'um astro que circula a milhares de
leguas dos Campos Elyseos.
É outra noção, e tremenda! Tens aqui
pois o olho
primitivo, o da Natureza, elevado pela
Civilisação
á sua maxima
potencia de visão. E desde já, pelo lado do olho
portanto, eu, civilisado, sou mais feliz que o incivilisado, porque
descubro realidades do Universo que elle
não suspeita e de que está privado. Applica esta
prova a
todos
os orgãos e comprehendes o meu principio. Emquanto
[13]á intelligencia,
e
á felicidade que d'ella se tira pela incançavel
accumulação das noções,
só te peco que compares Renan e o Grillo... Claro
é portanto que nos
devemos cercar de Civilisação nas maximas
proporções para gosar nas maximas
proporções a vantagem de viver. Agora concordas,
Zé Fernandes?
Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais
feliz que o Grillo; nem eu percebia que vantagem espiritual ou temporal
se
côlha em distinguir atravez do espaço manchas n'um
astro,
ou atravez
da Avenida dos Campos Elyseos presuntos n'uma vidraça. Mas
concordei,
porque sou bom, e nunca desalojarei um espirito do conceito onde elle
encontra segurança, disciplina e motivo de energia.
Desabotoei o
collete, e lançando um gesto para o lado dos
cafés e das
luzes:
―Vamos então beber, nas maximas
proporções,
brandy and
soda, com gelo!
Por uma conclusão bem natural, a ideia de
Civilisação, para Jacintho, não se
separava da
imagem de Cidade, d'uma enorme Cidade,
com todos os seus vastos orgãos funccionando poderosamente.
Nem
este meu super-civilisado amigo comprehendia que longe de Armazens
servidos por tres mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os
vergeis e
lezirias de trinta provincias; e de Bancos em que retine
[14]o
ouro universal; e de Fabricas fumegando com ancia, inventando com
ancia; e de Bibliothecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos
seculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de
fios de telegraphos, de
fios de telephones, de canos de gazes, de canos de fezes; e da fila
atroante
dos omnibus, tramways, carroças, velocipedes, calhambeques,
parelhas de luxo; e de dois milhões d'uma vaga humanidade,
fervilhando,
a offegar, atravez da Policia, na busca dura do pão ou sob a
illusão do gozo―o homem do seculo XIX podesse saborear,
plenamente, a delicia de viver!
Quando Jacintho, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os
lilazes, me desenrolava estas imagens, todo elle crescia, illuminado.
Que creação augusta, a da Cidade! Só
por ella, Zé-Fernandes, só por ella,
póde o homem soberbamente affirmar a sua alma!...
―Oh Jacintho, e a religião? Pois a religião
não prova a alma?
Elle encolhia os hombros. A religião! A religião
é o desenvolvimento sumptuoso de um instincto rudimentar,
commum
a todos os brutos, o terror. Um cão lambendo a
mão do
dono, de quem
lhe vem o osso ou o chicote, já constitue toscamente um
devoto,
o consciente
devoto, prostrado em rezas ante o Deus que
[15]
distribue o céo ou o
inferno!... Mas o telephone! o phonographo!
―Ahi tens tu, o phonographo!... Só o phonographo,
Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha
superioridade de sêr pensante
e me separa do bicho. Acredita, não ha senão a
Cidade,
Zé Fernandes, não ha senão a Cidade!
E depois (accrescentava) só a Cidade lhe dava a
sensação, tão necessaria á
vida como o
calor, da solidariedade humana. E no 202,
quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris,
dois milhões de sêres arquejando na obra da
Civilisação (para manter na natureza o dominio
dos
Jacinthos!) sentia um socego, um conchego,
só comparaveis ao do peregrino, que, ao atravessar o
deserto, se
ergue no seu dromedario, e avista a longa fila da caravana marchando,
cheia de lumes e de armas...
Eu murmurava, impressionado:
―Caramba!
Ao contrario no campo, entre a inconsciencia e a impassibilidade da
Natureza, elle tremia com o terror da sua fragilidade e da sua
solidão. Estava ahi como perdido n'um mundo que lhe
não
fosse
fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que elle
passasse; se gemesse com fome nenhuma arvore,
[16]por
mais carregada, lhe estenderia o seu fructo na
ponta compassiva d'um ramo. Depois, em meio da Natureza, elle assistia
á subita e humilhante inutilisação de
todas as suas
faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos―ser um
Genio ou ser um Santo? As
searas não comprehendem as
Georgicas; e fôra
necessario o socorro ancioso de Deus, e a inversão de todas
as
leis naturaes, e
um violento milagre para que o lobo de Agubio não devorasse
S.
Francisco
d'Assis, que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe
chamava
«meu irmão lobo»! Toda a
intellectualidade, nos
campos, se esterilisa, e só
resta a bestialidade. N'esses reinos crassos do Vegetal e do Animal
duas unicas
funcções se mantêm vivas, a nutritiva e
a procreadora. Isolada, sem occupação, entre
focinhos e
raizes que
não cessam de sugar e de pastar, suffocando no calido bafo
da
universal
fecundação, a sua pobre alma toda se engelhava,
se
reduzia a uma migalha d'alma, uma fagulhasinha espiritual a tremeluzir,
como morta, sobre um naco de materia; e n'essa
materia dois instinctos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e
o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu sêr
tão nobremente composto só restava um estomago e
por
baixo um
phallus! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava
[17]correr, reentrar na Cidade,
mergulhar nas ondas lustraes da Civilisação, para
largar n'ellas a crosta vegetativa, e resurgir re-humanisado, de novo
espiritual e Jacinthico!
E estas requintadas metaphoras do meu amigo exprimiam sentimentos
reaes―que eu testemunhei, que muito me divertiram, no unico passeio
que fizemos ao campo, á bem amavel e bem sociavel floresta
de
Montmorency. Oh delicias d'entremez, Jacintho entre a Natureza! Logo
que se afastava
dos pavimentos de madeira, do macadam, qualquer chão que os
seus pés calcassem o enchia de desconfiança e
terror.
Toda a relva,
por mais crestada, lhe parecia reçumar uma humidade mortal.
De
sob
cada torrão, da sombra de cada pedra, receava o assalto de
lacraus, de viboras, de fórmas rastejantes e viscosas. No
silencio do bosque sentia
um lugubre despovoamento do Universo. Não tolerava a
familiaridade dos
galhos que lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe
era
para
elle um acto degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as
flôres que não tivesse já encontrado em
jardins,
domesticadas por longos
seculos de servidão ornamental, o inquietavam como
venenosas. E
considerava d'uma melancolia funambulesca certos modos e
fórmas
do
Sêr inanimado, a pressa esperta e vã dos
regatinhos,
[18]a
careca dos rochedos, todas as
contorsões do arvoredo e o seu resmungar solemne e tonto.
Depois d'uma hora, n'aquelle honesto bosque de Montmorency, o meu pobre
amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento
mingoar e sumir d'alma que o tornava como um bicho entre bichos.
Só
desannuviou quando penetramos no lagêdo e no gaz de Paris―e
a
nossa vittoria
quasi se despedaçou contra um omnibus retumbante, atulhado
de
cidadãos. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na
sua
grossa sociabilidade, aquella materialisação em
que
sentia a
cabeça pesada e vaga como a d'um boi. E reclamou que eu o
acompanhasse ao theatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos
da
Femme à
Papa, o rumor importuno que lhe ficára dos melros
cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacintho fizera então vinte e tres annos, e
era um soberbo moço em quem reapparecêra a
força dos velhos Jacinthos ruraes. Só pelo nariz,
afilado, com narinas quasi transparentes,
d'uma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes,
pertencia
ás delicadezas do seculo XIX. O cabello ainda se conservava,
ao
modo das éras rudes, crespo e quasi lanigero: e o bigode,
como o
d'um
Celta, cahia em fios sedosos, que elle necessitava aparar e frizar.
Todo o seu
fato, as espessas
[19]gravatas
de setim escuro que uma perola prendia, as luvas de anta branca, o
verniz das botas, vinham de Londres em caixotes
de cedro; e usava sempre ao peito uma flôr, não
natural, mas composta destramente pela sua ramalheteira com petalas de
flôres
dessemelhantes, cravo, azalea, orchidea ou tulipa, fundidas na mesma
haste entre uma leve folhagem de funcho.
Em 1880, em Fevereiro, n'uma cinzenta e arripiada manhã de
chuva, recebi uma carta de meu bom tio Affonso Fernandes, em que,
depois de lamentações sobre os seus setenta
annos, os
seus
males hemorroidaes, e a pesada gerencia dos seus bens «que
pedia
homem mais novo, com
pernas mais rijas»―me ordenava que recolhesse á
nossa
casa de Guiães, no Douro! Encostado ao marmore partido do
fogão, onde na
véspera a minha Nini deixára um espartilho
embrulhado no
Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio
que assim
cortava em botão, antes de
desabrochar, a flôr do meu Saber Juridico. Depois n'um
Post-Scriptum elle accrescentava―«O tempo aqui
está
lindo, o que se
póde chamar de rosas, e tua santa tia muito se recommenda,
que
anda lá pela
cozinha, porque vai hoje em trinta e seis
[20]annos
que casámos, temos
cá o abbade e o Quintaes a jantar, e ella quiz fazer uma
sopa dourada».
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada
da tia Vicencia. Ha quantos annos não a provava, nem o
leitão assado, nem o arroz de fôrno da nossa casa!
Com o
tempo assim
tão lindo, já as mimosas do nosso pateo vergariam
sob os
seus grandes cachos amarellos. Um
pedaço de céo azul, do azul de Guiães,
que outro
não ha tão lustroso e macio, entrou pelo quarto,
alumiou,
sobre a poida tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e
flôres de trevo de que meus olhos
andavam agoados. E, por entre as bambinellas de sarja, passou um ar
fino e
forte e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando um
fado meigo tirei
debaixo da cama a minha velha mala, e metti solicitamente entre
calças e piugas um Tratado de
Direito Civil, para aprender emfim, nos vagares da aldeia, estendido
sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, n'essa tarde,
annunciei a Jacintho
que partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo
gemido de espanto e piedade:
―Para Guiães!... Oh Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente
[21]confortos
de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos
silvestres,
tão longe da Cidade, uma pouca d'alma dentro d'um pouco de
corpo.
«Leva uma poltrona! Leva a
Encyclopedia
Geral! Leva caixas de aspargos!...»
Mas para o meu Jacintho, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu
era arbusto desarraigado que não reviverá. A
magoa
com que me acompanhou ao comboio conviria excellentemente ao meu
funeral. E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente,
supremamente, como se cerra uma grade de sepultura, eu quasi
solucei―com saudades minhas.
Cheguei a Guiães. Ainda restavam flôres nas
mimosas do nosso pateo; comi com delicias a sopa dourada da tia
Vicencia; de tamancos nos
pés assisti á ceifa dos milhos. E assim de
colheitas a lavras, crestando
ao sol das eiras, caçando a perdiz nos matos geados,
rachando a
melancia fresca na poeira dos arraiaes, arranchando a magustos,
serandando á
candeia, atiçando fogueiras de S. João,
enfeitando
presepios de Natal, por alli me passaram docemente sete annos,
tão atarefados que nunca
logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que
apenas me
recordo quando, em vésperas de S. Nicolau, o abbade
[22]cahiu da egua
á porta do Braz das Córtes. De Jacintho
só recebia raramente algumas
linhas, escrevinhadas á pressa por entre o tumulto da
Civilisação.
Depois, n'um Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio
Affonso Fernandes morreu,
tão quietamente, Deus seja louvado por esta
graça, como se cala
um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela
aldeia a roupa do luto. A minha afilhada Joanninha casou na
matança
do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.
II
Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arripiado e cinzento, quando
eu desci os Campos Elyseos em demanda do 202. Adiante de mim caminhava,
levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes
até ás abas recurvas do chapéo d'onde
fugiam
anneis d'um cabello crespo,
reçumava elegancia e a familiaridade das coisas finas. Nas
mãos,
cruzadas atraz das costas, calçadas d'anta branca,
sustentava
uma bengala
grossa com castão de crystal. E só quando elle
parou ao
portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode
corredios e sedosos.
―Oh Jacintho!
―Oh Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão
alvoroçado que o meu chapéo rolou na lama. E
ambos murmuravamos, commovidos, entrando a grade:
[24]
―Ha sete annos!...
―Ha sete annos!...
E, todavia, nada mudára durante esses sete annos no jardim
do 202! Ainda entre as duas aleas bem areadas se arredondava uma relva,
mais lisa e varrida que a lã d'um tapete. No meio o vaso
corinthico
esperava Abril para resplandecer com tulipas e depois Junho para
transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma
vidraçaria toldava, as duas magras Deusas de pedra, do tempo
de
D. Galião,
sustentavam as antigas lampadas de globos foscos, onde já
silvava o gaz.
Mas dentro, no peristillo, logo me surprehendeu um elevador installado
por Jacintho―apesar do 202 ter sómente dois andares, e
ligados por uma escadaria tão doce que nunca
offendêra a
asthma da
snr.
a D. Angelina! Espaçoso, tapetado, elle
offerecia, para
aquella jornada de
sete segundos, confortos numerosos, um divan, uma pelle d'urso, um
roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros.
Na antecamara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e
tepida d'uma tarde de Maio, em Guiães. Um creado, mais
attento
ao
thermometro que um piloto á agulha, regulava destramente a
bocca
dourada
do calorifero. E perfumadores entre palmeiras, como n'um terrasso santo
de
Benares,
[25]esparziam
um vapor, aromatisando e salutarmente humedecendo aquelle ar delicado e
superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado sêr:
―Eis a civilisação!
Jacintho empurrou uma porta, penetramos n'uma nave cheia de magestade e
sombra, onde reconheci a Bibliotheca por tropeçar n'uma
pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve
o
dedo na parede:
e uma corôa de lumes electricos, refulgindo entre os lavores
do
tecto, alumiou as estantes monumentaes, todas d'ebano. N'ellas
repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em
escarlate, em negro, com retoques d'ouro, hirtos na sua pompa e na sua
auctoridade como doutores
n'um concilio.
Não contive a minha admiração:
―Oh Jacintho! Que deposito!
Elle murmurou, n'um sorriso descorado:
―Ha que lêr, ha que lêr...
Reparei então que o meu amigo emmagrecera: e que o nariz se
lhe afilára mais entre duas rugas muito fundas, como as d'um
comediante
cançado. Os anneis do seu cabello lanigero rareavam sobre a
testa, que perdera a antiga serenidade de marmore bem polido.
Não frisava agora o
bigode murcho, cahido
[26]em
fios pensativos. Tambem notei que corcovava.
Elle erguêra uma tapeçaria―entramos no seu
gabinete de trabalho, que me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes
sombrios os nossos passos perderam logo o som, e como a realidade. O
damasco das paredes, os divans, as madeiras, eram verdes, d'um verde
profundo de folha de
louro. Sêdas verdes envolviam as luzes electricas, dispersas
em
lampadas tão baixas que lembravam estrellas cahidas por cima
das
mesas, acabando de arrefecer e morrer: só uma rebrilhava,
núa e
clara, no alto d'uma estante quadrada, esguia, solitaria como uma torre
n'uma planicie, e de
que o lume parecia ser o pharol melancolico. Um biombo de laca verde,
fresco verde de relva, resguardava a chaminé de marmore
verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam as brazas d'uma lenha
aromatica. E entre aquelles verdes reluzia, por sobre peanhas e
pedestaes, toda uma Mechanica sumptuosa, apparelhos, laminas, rodas,
tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de metaes...
Mas Jacintho batia nas almofadas do divan, onde se enterrára
com um modo cançado que eu não lhe conhecia:
―Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! É
necessario reatarmos estas nossas vidas, tão
[27]apartadas ha sete annos!...
Em
Guiães, sete annos! Que fizeste tu?
―E tu, que tens feito, Jacintho?
O meu amigo encolheu mollemente os hombros. Vivêra―cumprira
com serenidade todas as funcções, as que
pertencem
á materia e as que pertencem ao espirito...
―E accumulaste civilisação, Jacintho! Santo
Deus... Está tremendo, o 202!
Elle espalhou em torno um olhar onde já não
faiscava a antiga vivacidade:
―Sim, ha confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda
está mal apetrechada, Zé Fernandes... E a vida
conserva resistencias.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telephone. E emquanto o
meu amigo, curvado sobre a placa, murmurava impaciente
«
Está
lá?―Está
lá?»,
examinei curiosamente,
sobre a sua immensa mesa de trabalho, uma estranha e miuda
legião de instrumentosinhos de nickel,
d'aço, de cobre, de ferro, com gumes, com argolas, com
tenazes,
com ganchos, com dentes,
expressivos todos, de utilidades misteriosas. Tomei um que tentei
manejar―e logo uma ponta malevola me picou um dedo. N'esse instante
rompeu d'outro canto um «tic-tic-tic»
açodado, quasi ancioso. Jacintho acudiu, com a face no
telephone:
[28]
―Vê ahi o telegrapho!... Ao pé do divan. Uma tira
de papel que deve estar a correr.
E, com effeito, d'uma redôma de vidro posta n'uma columna, e
contendo um apparelho esperto e diligente, escorria para o tapete, como
uma tenia,
a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das
serras,
apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, annunciava
ao meu amigo Jacintho que a fragata russa
Azoff
entrára em Marselha com avaria!
Já elle abandonára o telephone. Desejei saber,
inquieto, se o prejudicava directamente aquella avaria da
Azoff.
―Da
Azoff?... A avaria? A mim?...
Não! É uma noticia.
Depois, consultando um relogio monumental que, ao fundo da Bibliotheca,
marcava a hora de todas as Capitaes e o curso de todos os Planetas:
―Eu preciso escrever uma carta, seis linhas... Tu esperas,
não, Zé Fernandes? Tens ahi os jornaes de Paris,
da
noite; e os de Londres, d'esta manhã. As
Illustrações
além, n'aquella pasta de couro com ferragens.
Mas eu preferi inventariar o gabinete, que dava á minha
profanidade serrana todos os gostos d'uma
iniciação. Aos
lados da cadeira de Jacintho pendiam gordos tubos acusticos,
[29]por
onde elle decerto soprava as suas ordens através do 202. Dos
pés da mesa
cordões tumidos e molles, colleando sobre o tapete, corriam
para
os recantos de sombra
á maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e
reflectida no seu verniz como na agua d'um poço, pousava uma
Machina-de-escrever: e
adiante era uma immensa Machina-de-calcular, com fileiras de buracos
d'onde espreitavam, esperando, numeros rigidos e de ferro. Depois parei
em frente da estante que me preoccupava, assim solitaria, á
maneira d'uma torre n'uma planicie, com o seu alto pharol. Toda uma das
suas faces estava repleta de Diccionarios; a outra de Manuaes; a outra
de Atlas; a
ultima de Guias, e entre elles, abrindo um folio, encontrei o Guia das
ruas de Samarkande. Que macissa torre de
informação! Sobre prateleiras admirei apparelhos
que
não comprehendia:―um composto de
laminas de gelatina, onde desmaiavam, meio-chupadas, as linhas d'uma
carta, talvez
amorosa; outro, que erguia sobre um pobre livro brochado, como para o
decepar, um cutello funesto; outro avançando a bocca d'uma
tuba, toda aberta para as vozes do invisivel. Cingidos aos umbraes,
liados
ás cimalhas, luziam arames, que fugiam através do
tecto,
para o
espaço. Todos mergulhavam em forças universaes,
todos
[30]transmittiam
forças universaes. A Natureza convergia disciplinada ao
serviço do
meu amigo e entrára na sua domesticidade!...
Jacintho atirou uma exclamação impaciente:
―Oh, estas pennas electricas!... Que secca!
Amarrotára com colera a carta começada―eu
escapei, respirando, para a Bibliotheca. Que magestoso armazem dos
productos do Raciocinio e da Imaginação! Alli
jaziam mais
de trinta mil
volumes, e todos decerto essenciaes a uma cultura humana. Logo
á
entrada notei, em
ouro n'uma lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a
região dos
Economistas. Avancei―e percorri, espantado, oito metros de Economia
Politica.
Depois avistei os Philosophos e os seus commentadores, que revestiam
toda uma parede, desde as escólas Pre-socraticas
até
ás escólas Neo-pessimistas. N'aquellas pranchas
se
acastellavam mais de dois mil systemas―e que todos se contradiziam.
Pelas encadernações logo
se deduziam as doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro;
Platão, em cima, resplandecia, n'uma pellica pura e alva.
Para
diante
começavam as Historias Universaes. Mas ahi uma immensa pilha
de
livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos
[31]novos,
subia contra a estante, como fresca terra d'alluvião tapando
uma
riba secular.
Contornei essa collina, mergulhei na secção das
Sciencias
Naturaes, peregrinando, n'um assombro crescente, da Orographia para a
Paleontologia, e da
Morphologia para a Crystallographia. Essa estante rematava junto d'uma
janella rasgada sobre os Campos Elyseos. Apartei as cortinas de
velludo―e por traz descobri outra portentosa rima de volumes, todos de
Historia Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente
até aos ultimos vidros, vedando, nas manhãs mais
candidas, o ar e a
luz do Senhor.
Mas depois rebrilhava, em marroquins claros, a estante amavel dos
Poetas. Como um repouso para o espirito esfalfado de todo aquelle saber
positivo, Jacintho aconchegára ahi um recanto, com um divan
e uma mesa de limoeiro, mais lustrosa que um fino esmalte, coberta de
charutos, de
cigarros d'Oriente, de tabaqueiras do seculo XVIII. Sobre um cofre de
madeira lisa pousava ainda, esquecido, um prato de damascos seccos do
Japão. Cedi á seducção das
almofadas; trinquei um damasco, abri um volume; e senti estranhamente,
ao lado, um zumbido, como de um insecto de azas harmoniosas. Sorri
á idéa que fossem
abelhas, compondo o seu
[32]mel
n'aquelle massiço de versos em flôr. Depois
percebi que o susurro remoto e dormente vinha do cofre de mogne, de
parecer tão discreto.
Arredei uma
Gazeta de França;
e
descornitei um cordão que emergia de um orificio, escavado
no
cofre, e rematava n'um funil de marfim. Com curiosidade, encostei o
funil a esta minha confiada orelha, afeita á
singeleza dos rumores da serra. E logo uma Voz, muito mansa, mas muito
dicidida, aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se
apoderar do meu entendimento, susurrou capciosamente:
―...«E assim, pela disposição dos
cubos diabolicos, eu chego a verificar os espaços
hypermagicos!...»
Pulei, com um berro.
―Oh Jacintho, aqui ha um homem! Está aqui um homem a fallar
dentro d'uma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodigios, não se
alvoroçou:
―É o Conferençophone... Exactamente como o
Theatrophone; sómente applicado ás
escólas e ás
conferencias. Muito commodo!... Que diz o homem, Zé
Fernandes?
Eu considerava o cofre, ainda esgazeado:
―Eu sei! Cubos diabolicos, espaços magicos, toda a sorte de
horrores...
Senti dentro o sorriso superior de Jacintho:
[33]
―Ah, é o coronel Dorchas... Lições de
Metaphysica Positiva sobre a Quarta Dimensão... Conjecturas,
uma massada! Ouve
lá, tu hoje jantas commigo e com uns amigos, Zé
Fernandes?
―Não, Jacintho... Estou ainda enfardelado pelo alfaiate da
serra!
E voltei ao gabinete mostrar ao meu camarada o jaquetão de
flanella grossa, a gravata de pintinhas escarlates, com que ao domingo,
em Guiães, visitava o Senhor. Mas Jacintho affirmou que esta
simplicidade montesina interessaria os seus convidados, que eram dois
artistas... Quem? O auctor do
Coração
Triplo,
um Psychologo Feminista, d'agudeza transcendente, Mestre muito
experimentado e muito consultado em Sciencias Sentimentaes; e Vorcan,
um pintor mythico, que
interpretára ethereamente, havia um anno, a symbolia
rapsodica
do cerco de Troia, n'uma vasta composição,
Helena
Devastadora...
Eu coçava a barba:
―Não, Jacintho, não... Eu venho de
Guiães, das serras; preciso entrar em toda esta
civilisacão, lentamente, com cautella,
senão rebento. Logo na mesma tarde a electricidade, e o
conferençophone, e os
espaços hypermagicos e o feminista, e o ethereo, e a
symbolia devastadora,
é excessivo! Volto ámanhã.
[34]Jacintho dobrava
vagarosamente a sua carta, onde mettera sem
rebuço (como convinha á nossa fraternidade) duas
violetas brancas
tiradas do ramo que lhe floria o peito.
―Ámanhã, Zé Fernandes, tu vens antes
d'almoço, com as tuas malas dentro d'um fiacre, para te
installares no 202, no teu quarto. No Hotel
são embaraços, privações.
Aqui tens o
telephone, o teatrophone, livros...
Acceitei logo, com simplicidade. E Jacintho, embocando um tubo
acustico, murmurou:
―Grillo!
Da parede, recoberta de damasco, que subitamente e sem rumor se fendeu,
surdio o seu velho escudeiro (aquelle moleque que viera com
D.
Gallião), que eu me alegrei de encontrar
tão rijo, mais negro, reluzente e veneravel na sua tesa
gravata,
no seu collete branco de botões de ouro. Elle tambem estimou
vêr de novo
«o siô Fernandes». E, quando soube que eu
occuparia o
quarto do avô Jacintho, teve
um claro sorriso de preto, em que envolveu o seu senhor, no
contentamento de o sentir emfim reprovido d'uma familia.
―Grillo, dizia Jacintho, esta carta a Madame de Oriol... Escuta!
Telephona para casa dos Trèves que os espiritistas
só estão livres no domingo... Escuta! Eu tomo uma
douche
[35]antes de
jantar, tepida, a 17. Fricção com malva-rosa.
E cahindo pesadamente para cima do divan, com um bocejo arrastado e
vago:
―Pois é verdade, meu Zé Fernandes, aqui estamos,
como ha sete annos, n'este velho Paris...
Mas eu não me arredava da mesa, no desejo de completar a
minha iniciação:
―Oh Jacintho, para que servem todos estes instrumentosinhos? Houve
já ahi um desavergonhado que me picou. Parecem perversos...
São
uteis?
Jacintho esboçou, com languidez, um gesto que os
sublimava.―Providenciaes, meu filho, absolutamente providenciaes, pela
simplificação que dão ao trabalho!
Assim... E apontou. Este arrancava as pennas velhas; o outro numerava
rapidamente as paginas d'um
manuscripto; aquell'outro, além, raspava emendas... E ainda
os havia para
collar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar
documentos...
―Mas com effeito, accrescentou, é uma sécca. Com
as molas, com os bicos, ás vezes magoam, ferem...
Já me succedeu
inutilisar cartas por as ter sujado com dedadas de sangue. É
uma massada!
Então, como o meu amigo espreitára novamente
[36]o
relogio monumental, não lhe quiz retardar a
consolação da douche e da
malva-rosa.
―Bem, Jacintho, já te revi, já me contentei...
Agora até ámanhã, com as malas.
―Que diabo, Zé Fernandes, espera um momento... Vamos pela
sala de jantar. Talvez te tentes!
E, através da Bibliotheca, penetramos na sala de
jantar,―que me encantou pelo seu luxo sereno e fresco. Uma madeira
branca, laccada, mais lustrosa e macia que setim, revestia as paredes,
encaixilhando medalhões de damasco côr de morango,
de
morango
muito maduro e esmagado: os aparadores, discretamente lavrados em
florões e rocalhas,
resplandeciam com a mesma lacca nevada: e damascos amorangados
estofavam tambem as cadeiras, brancas, muito amplas, feitas para a
lentidão de gulas delicadas, de gulas intellectuaes.
―Viva o meu Principe! Sim senhor... Eis aqui um comedoiro muito
comprehensivel e muito repousante, Jacintho!
―Então janta, homem!
Mas já eu me começava a inquietar, reparando que
a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos.
E mais me impressionei quando Jacintho me desvendou
[37]que
um era para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro
para os legumes, outro para as fructas, outro para o queijo!
Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salomão,
só dois copos,
para dois vinhos:―um Bordeus rosado em infusas de crystal, e Champagne
gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador porém
vergava, sob o luxo
redundante, quasi assustador d'aguas―aguas oxigenadas, aguas
carbonatadas, aguas phosphatadas, aguas esterilisadas, aguas de saes,
outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados therapeuticos impressos
em rotulos.
―Santissimo nome de Deus, Jacintho! Então és
ainda o mesmo tremendo bebedor d'agua, hein?...
Un
aquatico! como dizia o nosso poeta chileno, que andava a
traduzir Klopstock.
Elle derramou, por sobre toda aquella garrafaria
encarapuçada em metal, um olhar desconsolado:
―Não... É por causa das aguas da Cidade,
contaminadas, atulhadas de microbios... Mas ainda não
encontrei uma bôa agua
que me convenha, que me satisfaça... Até soffro
sêde.
Desejei então conhecer o jantar do Psychologo e do
Symbolista―traçado, ao lado dos
[38]talheres,
em tinta vermelha, sobre laminas de marfim. Começava
honradamente por ostras classicas, de Marennes.
Depois apparecia uma sopa d'alcachofras e ovas de carpa...
―É bom?
Jacintho encolheu desinteressadamente os hombros:
―Sim... Eu não tenho nunca appetite, já ha
tempos... Já ha annos.
Do outro prato só comprehendi que continha frangos e
tubaras. Depois saboreariam aquelles senhores um filete de veado,
macerado em Xerez,
com gelêa de noz. E por sobremeza simplesmente laranjas
geladas
em ether.
―Em ether, Jacintho?
O meu amigo hesitou, esboçou com os dedos a
ondulação d'um aroma que s'evola.
―É novo... Parece que o ether desenvolve, faz afflorar a
alma das fructas...
Curvei a cabeça ignara, murmurei nas minhas profundidades:
―Eis a Civilisação!
E, descendo os Campos Elyseos, encolhido no paletot, a cogitar n'este
prato symbolico, considerava a rudeza e atolado atrazo da minha
Guiães, onde desde seculos a alma das laranjas permanece
ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos
[39]aquelles
pomares que ensombram e perfumam o valle, da Roqueirinha a Sandofim!
Agora porém, bemdito Deus, na convivencia de um
tão
grande iniciado como Jacintho, eu comprehenderia todas as finuras e
todos os poderes da Civilisação.
E, (melhor ainda para a minha ternura!) contemplaria a raridade d'um
homem que, concebendo uma idéa da Vida, a realisa―e
através d'ella e por ella recolhe a felicidade perfeita.
Bem se affirmára este Jacintho, na verdade, como Principe da
Gran-Ventura!
III
No 202, todas as manhãs, ás nove horas, depois do
meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacintho.
Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto n'um
roupão branco
de pello de cabra do Thibet, diante da sua mesa de toilette, toda de
crystal, (por causa dos microbios) e atulhada com esses utensilios de
tartaruga, marfim, prata, aço e madreperola que o homem do
seculo XIX
necessita para não desfeiar o conjuncto sumptuario da
Civilisação e manter n'ella o seu Typo. As
escovas
sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto―porque as
havia largas como a roda massiça d'um
carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange d'um mouro;
concavas,
em fórma de telha aldeã; ponteagudas em feitio de
folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem pennugem
[42]de rôla! De
todas, fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se
utilisava o meu Jacintho. E assim, em face ao espelho emmoldurado de
folhedos de prata,
permanecia este Principe passando pellos sobre o seu pello durante
quatorze minutos.
No emtanto o Grillo e outro escudeiro, por traz dos biombos de Kioto,
de sedas lavradas, manobravam, com pericia e vigor, os apparelhos do
lavatorio―que era apenas um resumo das machinas monumentaes da Sala de
Banho, a mais estremada maravilha do 202. N'estes marmores
simplificados existiam unicamente dois jactos graduados desde
zero até
cem; as duas duchas, fina e grossa, para a
cabeça; a fonte
esterilisada para os dentes; o repuxo borbulhante para a barba; e ainda
botões
discretos, que, roçados, desencadeavam esguichos, cascatas
cantantes,
ou um leve orvalho estival. D'esse recanto temeroso, onde delgados
tubos mantinham
em disciplina e servidão tantas aguas ferventes, tantas
aguas violentas, sahia emfim o meu Jacintho enxugando as
mãos a uma toalha de
felpo, a uma toalha de linho, a outra de corda entrançada
para
restabelecer a circulação, a outra de
sêda frouxa para
repolir a pelle. Depois d'este rito derradeiro que lhe arrancava ora um
suspiro, ora um bocejo, Jacintho, estendido n'um divan,
[43]folheava uma Agenda, onde
se arrolavam,
inscriptas pelo Grillo ou por elle, as occupações
do seu dia, tão numerosas por vezes que cobriam duas laudas.
Todas ellas se prendiam á sua sociabilidade, á
sua civilisação muito complexa, ou a interesses
que o meu Principe, n'esses sete annos,
creára para viver em mais consciente communhão
com todas as
funcções da Cidade. (Jacintho com effeito era
presidente do Club da
Espada e Alvo; commanditario do Jornal o
Boulevard; director da
Companhia dos
Telephones de Constantinopla; socio dos
Bazares unidos da Arte
Espiritualista; membro do
Comité de Iniciação
das Religiões Esotericas,
etc.) Nenhuma d'estas
occupações parecia porém aprazivel ao
meu
amigo―porque, apesar da mansidão e harmonia dos seus
modos, frequentemente arremessava para o tapete, n'uma
rebellião
de
homem livre, aquella Agenda que o escravisava. E n'uma d'essas
manhãs (de vento e neve), apanhando eu o livro oppressivo,
encadernado em pellica,
de um carinhoso tom de rosa murcha―descobri que o meu Jacintho devia
depois do almoço fazer uma visita na rua da Universidade,
outra no Parque Monceau, outra entre os arvoredos remotos da Muette;
assistir
por fidelidade a uma votação no Club; acompanhar
Madame
[44]d'Oriol a
uma exposição de leques; escolher um presente de
noivado para a sobrinha dos Trèves; comparecer no funeral do
velho conde de Malville;
presidir um tribunal de honra n'uma questão de roubalheira,
entre
cavalheiros, ao ecarté... E ainda se acavallavam outras
indicações, escrivinhadas por Jacintho a
lapis:―«Carroceiro―Five-oclock dos Ephrains―A
pequena das
Variedades―Levar
a nota ao
jornal...» Considerei o meu Principe. Estirado no divan,
d'olhos
miserrimamente cerrados, bocejava, n'um bocejo immenso e mudo.
Mas os affazeres de Jacintho começavam logo no 202, cedo,
depois do banho. Desde as oito horas a campainha do telephone repicava
por elle, com impaciencia, quasi com colera, como por um escravo
tardio. E mal enxugado, dentro do seu roupão de pello de
cabra
do Thibet
ou de grossas pyjamas de pelucia côr d'ouro-velho,
constantemente
sahia ao
corredor a cochichar com sujeitos tão apressados, que
conservavam na
mão o guarda-chuva pingando sobre o tapete. Um d'esses,
sempre
presente (e
que pertencia decerto aos
Telephones de
Constantinopla), era temeroso―todo elle chupado, tisnado,
com maus dentes,
sobraçando uma enorme pasta sebenta, e dardejando, d'entre a
alta gola d'uma pelissa poida,
[45]como
da abertura d'um covil, dous olhinhos tôrvos e de
rapina. Sem cessar, inexoravelmente, um escudeiro apparecia, com
bilhetes n'uma
salva... Depois eram fornecedores d'Industria e d'Arte; negociantes de
cavallos, rubicundos e de paletot branco; inventores com grossos rolos
de papel; alfarrabistas trazendo na algibeira uma
edição «unica», quasi
inverosimil, de Ulrich
Zell ou do
Lapidanus. Jacintho circulava estonteado pelo 202,
rabiscando
a carteira, repicando o telephone, desatando nervosamente pacotes,
sacudindo ao passar algum embuscado que
surdia das sombras da antecamara, estendia como um trabuco o seu
memorial ou o seu catalogo!
Ao meio dia, um tam-tam argentino e melancholico ressoava, chamando ao
almoço. Com o
Figaro ou
as
Novidades
abertas sobre o prato,
eu esperava sempre meia hora pelo meu Principe, que entrava n'uma
rajada, consultando o relogio, exhalando com a face moída o
seu
queixume eterno:
―Que massada! E depois uma noite abominavel, enrodilhada em sonhos...
Tomei sulforal, chamei o Grillo para me esfregar com therebentina...
Uma sécca!
Espalhava pela mesa um olhar já farto. Nenhum prato, por
mais engenhoso, o seduzia;―e, como através do seu tumulto
matinal fumava
[46]incontaveis
cigarretes que o
resequiam, começava por se encharcar com um
immenso copo d'agua oxygenada, ou carbonatada, ou gazoza, misturada
d'um cognac
raro, muito caro, horrendamente adocicado, de moscatel de Syracusa.
Depois, á pressa, sem gosto, com a ponta incerta do garfo,
picava aqui e além uma lasca de fiambre, uma febra de
lagosta;―e
reclamava impacientemente o café, um café de
Moka,
mandado
cada mez por um feitor do Dedjah, fervido á turca, muito
espesso, que elle remexia
com um pau de canella!
―E tu, Zé Fernandes, que vaes tu fazer?
―Eu?
Recostado na cadeira, com delicias, os dedos mettidos nas cavas do
collete:
―Vou vadiar, regaladamente, como um cão natural!
O meu sollicito amigo, remexendo o café com o pau de
canella, rebuscava através da numerosa
Civilisação da
Cidade uma occupação que me encantasse. Mas
apenas suggeria uma Exposição, ou
uma Conferencia, ou monumentos, ou passeios, logo encolhia os hombros
desconsolados:
―Por fim nem vale a pena, é uma sécca!
Accendia outra das cigarretes russas, onde rebrilhava o seu nome,
impresso a ouro na mortalha. Torcendo, n'uma pressa nervosa, os
[47]fios do
bigode, ainda escutava, á porta da Bibliotheca, o seu
procurador, o nedio e magestoso Laporte. E emfim, seguido d'um criado,
que
sobraçava um maço tremendo de jornaes para lhe
abastecer o
coupé, o Principe da Gran-Ventura mergulhava na Cidade.
Quando o dia social de Jacintho se apresentava mais desafogado, e o
céo de Março nos concedia caridosamente um pouco
de azul
agoado,
sahiamos depois d'almoço, a pé,
através de
Paris. Estes lentos e errantes passeios eram outr'ora, na nossa edade
de Estudantes, um gozo muito querido de Jacintho―porque n'elles mais
intensamente e mais minuciosamente saboreava a Cidade. Agora
porém, apesar da
minha companhia, só lhe davam uma impaciencia e uma fadiga
que
desoladoramente destoava do antigo, illuminado extasi. Com espanto
(mesmo com
dôr, porque sou bom, e sempre me entristece o desmoronar
d'uma
crença) descobri eu, na primeira tarde em que descemos aos
Boulevards, que o denso formigueiro humano sobre o asphalto, e a
torrente sombria dos trens sobre o macadam, affligiam o meu amigo pela
brutalidade da sua pressa, do seu egoismo,
[48]e
do seu estridor. Encostado e como refugiado
no meu braço, este Jacintho novo começou a
lamentar
que as ruas, na nossa Civilisação, não
fossem
calçadas de gutta-percha! E a gutta-percha claramente
representava, para o meu amigo, a substancia discreta que amortece o
choque e a rudeza das cousas. Oh maravilha! Jacintho
querendo borracha, a borracha isoladora, entre a sua sensibilidade e as
funcções da Cidade! Depois, nem me permittiu
pasmar
diante d'aquellas dourejadas
e espelhadas lojas que elle outr'ora considerava como os
«preciosos museus do seculo XIX»...
―Não vale a pena, Zé Fernandes. Ha uma immensa
pobreza e seccura d'invenção! Sempre os mesmos
florões
Luiz XV, sempre as mesmas pelucias... Não vale a pena!
Eu arregalava os olhos para este transformado Jacintho. E sobretudo me
impressionava o seu horror pela Multidão―por certos
effeitos da Multidão, só para elle sensiveis, e a
que
chamava
os «sulcos».
―Tu não os sentes, Zé Fernandes. Vens das
serras... Pois constituem o rijo inconveniente das Cidades, estes
sulcos! É um perfume
muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se installa
no olfacto, e estraga para todo o dia o ar respiravel. É um
dito
que se
surprehende n'um grupo, que
[49]revela
um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de estupidez, e que nos
fica collado á alma, como um salpico,
lembrando a immensidade da lama a atravessar. Ou então, meu
filho,
é uma figura intoleravel pela
pretenção, ou pelo mau-gosto, ou
pela impertinencia, ou pela rellice, ou pela dureza, e de que se
não
póde sacudir mais a visão repulsiva... Um pavor,
estes sulcos, Zé Fernandes! De resto,
que diabo, são as pequeninas miserias d'uma
Civilisação deliciosa!
Tudo isto era especioso, talvez pueril―mas para mim revelava,
n'aquelle chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da
devoção. N'essa mesma tarde, se bem recordo, sob
uma luz macia e fina, penetramos nos centros
de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo de
caliça parda, erriçado de chaminés de
lata negra, com as
janellas sempre fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando,
escondendo a vida. Só
tijolo, só ferro, só argamassa, só
estuque: linhas hirtas,
angulos asperos: tudo secco, tudo rigido. E dos chãos aos
telhados, por toda a
fachada, tapando as varandas, comendo os muros, Taboletas, Taboletas...
―Oh, este Paris, Jacintho, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro
bazar!
E, mais para sondar o meu Principe do que
[50]por
persuasão,
insisti na fealdade e tristeza d'estes predios, duros armazens, cujos
andares
são prateleiras onde se apilha humanidade! E uma humanidade
impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas
prateleiras baixas,
bem envernisadas. A relles e de trabalho nos altos, nos
desvãos, sobre pranchas de pinho nú, entre o
pó e
a
traça...
Jacintho murmurou, com a face arripiada:
―É feio, é muito feio!
E accudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:
―Mas que maravilhoso organismo, Zé Fernandes! Que solidez!
Que producção!
Onde Jacintho me parecia mais renegado era na sua antiga e quasi
religiosa affeição pelo Bosque de Bolonha. Quando
moço, elle construira sobre o Bosque theorias complicadas e
consideraveis. E sustentava, com olhos rutilantes de fanatico, que no
Bosque a Cidade cada tarde ia retemperar salutarmente a sua
força, recebendo, pela
presença das suas Duquezas, das suas Cortezãs,
dos seus
Politicos, dos seus
Financeiros, dos seus Generaes, dos seus Academicos, dos seus Artistas,
dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo
o seu pessoal se mantinha em numero, em vitalidade, em
funcção,
[51]e
que nenhum elemento da sua grandeza desapparecera ou deperecera!
«Ir ao
Bois» constituia então para o meu Principe um acto
de consciencia.
E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuia todos os
seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!
Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que elle me
levava ao Bosque, onde eu, aproveitando a clemencia d'Abril, tentava
enganar a minha saudade d'arvoredos. Emquanto subiamos, ao trote nobre
das suas egoas lustrosas, a Avenida dos Campos-Elyseos e a do Bosque,
rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos,
Jacintho, soprando o fumo da cigarrete pelas vidraças
abertas do coupé, permanecia o bom camarada, de veia amavel,
com
quem era doce
philosophar através de Paris. Mas logo que passavamos as
grades
douradas
do Bosque, e penetravamos na Avenida das Acacias, e enfiavamos na lenta
fila dos trens de luxo e de praça, sob o silencio decoroso,
apenas
cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a
areia,―o meu Principe emmudecia, mollemente engilhado no fundo das
almofadas, d'onde
só despegava a face para escancarar bocejos de fartura. Pelo
antigo habito de verificar a presença confortadora
[52]do
«pessoal, dos astros», ainda, por vezes, apontava
para
algum coupé ou vittoria
rodando com rodar rangente n'outra arrastada fila―e murmurava um nome.
E assim fui
conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Ephraim; e o
longo nariz patricio de Madame de Trèves abrigando um
sorriso
perenne; e as bochechas flacidas do poeta neo-platonico Dornan, sempre
espapado no fundo de fiacres; e os longos bandòs
pre-raphaelitas
e
negros de Madame Verghane; e o monoculo defumado do director do
Boulevard; e o bigodinho vencedor do Duque de
Marizac,
reinando de cima do seu phaeton
de guerra; e ainda outros sorrisos immoveis, e barbichas á
Renascença, e palpebras amortecidas, e olhos farejantes, e
pelles empoadas d'arroz, que eram todas illustres e da intimidade do
meu Principe. Mas, do topo da Avenida das Acacias,
recomeçavamos
a descer, em passo
sopeado, esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia,
calhambeque atraz de landau, vittoria atraz de fiacre, fatalmente
reviamos o binoculo sombrio do homem do
Boulevard, e os bandòs
furiosamente negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do
neo-platonico, e a barba talmudica, e todas aquellas figuras, d'uma
immobilidade de cera, super-conhecidas do meu
[53]camarada,
recruzadas cada tarde
através de revividos annos, sempre com os mesmos sorrisos,
sob o mesmo
pó d'arroz, na mesma immobilidade de cera; então
Jacintho não
se continha, gritava ao cocheiro:
―Para casa, depressa!
E era pela Avenida do Bosque, pelos Campos-Elyseos, uma fuga ardente
das egoas a quem a lentidão sopeada, n'um roer de freios,
entre
outras egoas tambem d'ellas super-conhecidas, lançavam n'uma
exasperação comparavel á de Jacintho.
Para o sondar eu denegria o Bosque:
―Já não é tão divertido,
perdeu o brilho!...
Elle acudia, timidamente:
―Não, é agradavel, não ha nada mais
agradavel; mas...
E accusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus affazeres.
Recolhiamos então ao 202, onde, com effeito, em breve
embrulhado no seu roupão branco, diante da mesa de crystal,
entre a
legião das escovas, com toda a electricidade refulgindo, o
meu Principe se
começava a adornar para o serviço social da
noite.
E foi justamente numa d'essas noites (um sabado) que nós
passamos, n'aquelle quarto tão civilisado e protegido, por
um d'esses
brutos
[54]e revoltos
terrores como só os produz a ferocidade dos
Elementos. Já tarde, á pressa (jantavamos com
Marizac no Club para o
acompanhar depois ao
Lohengrin
na Opera) Jacintho
arrocheava o nó da gravata branca―quando no lavatorio, ou
porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jacto d'agua
a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma nevoa densa
de vapor quente abafou as luzes―e, perdidos n'ella, sentiamos, por
entre os gritos do escudeiro
e do Grillo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma
chuva
que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma lama
ardente. E como se todas as forças da natureza, submettidas
ao
serviço de Jacintho, se agitassem, animadas por aquella
rebellião da agua―ouvimos
roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes
electricos sulcaram faiscas ameaçadoras! Eu fugira para o
corredor, onde se
alargava a nevoa grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre.
Diante do
portão, attrahidas pela fumarada que se escapava das
janellas,
estacionava policia, uma multidão. E na escada esbarrei com
um
reporter,
de chapéo para a nuca, a carteira aberta, gritando
sofregamente
«se
havia mortos?»
Domada a agua, clareada a bruma, vim
[55]encontrar
Jacintho no meio do quarto, em ceroulas, livido:
―Oh Zé Fernandes, esta nossa industria!... Que impotencia,
que impotencia! Pela segunda vez, este desastre! E agora, apparelhos
perfeitos, um processo novo...
―E eu encharcado por esse processo novo! E sem outra casaca!
Em redor, as nobres sêdas bordadas, os brocateis Luiz XIII,
cobertos de manchas negras, fumegavam. O meu Principe, enfiado,
enchugava uma photographia de Madame d'Oriol, d'hombros decotados, que
o jorro bruto maculára d'empolas. E eu, com rancor, pensava
que
na minha
Guiães a agua aquecia em seguras panellas―e subia ao meu
lavatorio, pela
mão forte da Catharina, em seguras infusas! Não
jantamos
com o duque de
Marizac, no Club. E, na Opera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca
alma e o seu branco cysne e as suas brancas armas―entallado,
aperreado, cortado nos
sovacos pela casaca que Jacintho me emprestára e que
rescendia estonteadoramente a flores de Nessari.
No domingo, muito cedo, o Grillo, que na véspera
escaldára as mãos e as trazia embrulhadas em
sêda, penetrou no meu quarto, descerrou
[56]as cortinas, e
á beira do leito, com o seu radiante sorriso de
preto:
―Vem no
Figaro!
Desdobrou triumphalmente o jornal. Eram, nos
Echos, doze linhas, onde as nossas aguas rugiam e
espadavam,
com tanta magnificencia e tanta publicidade, que tambem
sorrí,
deleitado.
―E toda a manhã, o telephone, siô Fernandes!
exclamava o Grillo, rebrilhando em ebano. A quererem saber, a quererem
saber...
«Está lá? Está
escaldado?» Paris afflicto, siô
Fernandes!
O telephone, com effeito, repicava, insaciavel. E quando desci para o
almoço, a toalha desapparecia sob uma camada de telegrammas,
que o meu Principe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a
«massada». Só desannuviou, ao ler um
d'esses papeis
azues, que atirou para cima do
meu prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã
sorriramos, o Grillo e eu:
―É do Gran-Duque Casimiro... Ratão amavel!
Coitado!
Saboreei, através dos ovos, o telegramma de S. Alteza.
«O que! o meu Jacintho inundado! Muito chic, nos
Campos-Elyseos! Não volto
ao 202 sem boia de salvação! Compassivo
abraço!
Casimiro...» Murmurei tambem
[57]com
deferencia:―«Amavel! Coitado!» Depois, revolvendo
lentamente o montão de telegrammas que se alastrava
até ao meu copo:
―Oh Jacintho! Quem é esta Diana que incessantemente te
escreve, te telephona, te telegrapha, te...?
―Diana?... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma
grande cocotte!
―Tua?
―Minha, minha... Não! tenho um bocado.
E como eu lamentava que o meu Principe, senhor tão rico e de
tão fino orgulho, por economia d'uma gamella propria
chafurdasse com outros
n'uma gamella publica―Jacintho levantou os hombros, com um
camarão espetado no garfo:
―Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes,
precisa ter cortezãs de grande pompa e grande fausto. Ora
para
montar em
Paris, n'esta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus
vestidos, os
seus diamantes, os seus cavallos, os seus lacaios, os seus camarotes,
as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolencia,
é necessario que se aggremiem umas poucas de fortunas, se
forme
um syndicato! Somos uns sete, no Club. Eu pago um bocado... Mas
meramente por Civismo, para dotar a cidade com uma cocotte monumental.
[58]De resto não
chafurdo. Pobre Diana!... Dos hombros para baixo nem sei
se tem a pelle côr de neve ou côr de
limão.
Arregalei um olho divertido:
―Dos hombros para baixo?... E para cima?
―Oh para cima tem pó d'arroz!... Mas é uma
sécca! Sempre bilhetes, sempre telephones, sempre
telegrammas. E tres mil francos por mez,
além das flores... Uma massada!
E as duas rugas do meu Principe, aos lados do seu afilado nariz,
curvado sobre a salada, eram como dous valles muito tristes, ao
entardecer.
Acabavamos o almoço, quando um escudeiro, muito
discretamente, n'um murmurio, annunciou Madame d'Oriol. Jacintho pousou
com tranquillidade
o charuto; eu quasi me engasguei, n'um sorvo alvoroçado de
café. Entre os reposteiros de damasco côr de
morango ella appareceu, toda de
negro, d'um negro liso e austero de Semana Santa, lançando
com o
regalo um lindo gesto para nos socegar. E immediatamente, n'uma
volubilidade docemente chalrada:
―É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a
Magdalena, não me contive, quiz vêr os estragos...
Uma
inundação em Paris, nos Campos-Elyseos!
Não ha senão este Jacintho.
[59]E vem
no
Figaro!
O que eu estava assustada, quando telephonei! Imaginem! Agua a ferver,
como no Vesuvio... Mas é d'uma novidade! E os estofos
perdidos,
naturalmente, os tapetes... Estou morrendo por admirar as ruinas!
Jacintho, que não me pareceu commovido, nem agradecido com
aquelle interesse, retomára risonhamente o charuto:
―Está tudo secco, minha querida senhora, tudo secco! A
belleza foi hontem, quando a agua fumegava e rugia! Ora que pena
não ter
ao menos cahido uma parede!
Mas ella insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os
destroços d'uma inundação. O
Figaro contára... E era
uma aventura deliciosa, uma casa escaldada nos Campos-Elyseos!
Toda a sua pessoa, desde as plumasinhas que frisavam no
chapéo até á ponta reluzente das
botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um
ramo tenro sob o boliço do passaro a chalrar. Só
o
sorriso, por traz do véo espesso, conservava um brilho
immovel. E já no ar se
espalhára um aroma, uma doçura, emanadas de toda
a sua mobilidade e de toda a
sua graça.
Jacintho no emtanto cedera, alegremente: e pelo corredor Madame d'Oriol
ainda louvava
[60]o
Figaro
amavel, e
confessava quanto tremera... Eu voltei ao meu café,
felicitando mentalmente o Principe da
Gran-Ventura por aquella perfeita flôr de
Civilisação que lhe perfumava a vida. Pensei
então na apurada harmonia em que se movia essa
flôr. E corri vivamente á ante-camara, verificar
diante do espelho o meu
penteado e o nó da minha gravata. Depois recolhi
á sala de
jantar, e junto da janella, folheando languidamente a
Revista
do Seculo
XIX,
tomei uma attitude de elegancia e d'alta cultura. Quasi immediatamente
elles reappareceram: e Madame d'Oriol, que, sempre sorrindo, se
proclamava espoliada, nada encontrára que recordasse as
agoas
furiosas,
roçou pela mesa, onde Jacintho procurava, para lhe
offerecer,
tangerinas de Malta,
ou castanhas geladas, ou um biscouto molhado em vinho de Tokai.
Ella recusava com as mãos guardadas no regalo.
Não era alta, nem forte―mas cada prega do vestido, ou curva
da
capa, cahia e ondulava harmoniosamente, como
perfeições
recobrindo
perfeições. Sob o véo cerrado, apenas
percebi a
brancura da face empoada, e a
escuridão dos olhos largos. E com aquellas sêdas e
velludos negros, e um
pouco do cabello louro, d'um louro quente, torcido fortemente sobre as
pelles negras que lhe orlavam
[61]o
pescoço, toda ella derramava uma
sensação de macio e de fino. Eu teimosamente a
considerava como uma flôr
de Civilisação:―e pensava no secular trabalho e
na
cultura superior que necessitára o terreno onde ella
tão delicadamente
brotára, já desabrochada, em pleno perfume, mais
graciosa por ser flôr
d'esforço e d'estufa, e trazendo nas suas pétalas
um não sei
quê de desbotado e de ante-murcho.
No emtanto, com a sua volubilidade de passaro, chalrando para mim,
chalrando para Jacintho, ella mostrava o seu lindo espanto por aquelle
montão de telegrammas sobre a toalha.
―Tudo esta manhã, por causa da
inundação?... Ah, Jacintho é hoje o
homem, o unico homem de Paris! Muitas mulheres n'esses telegrammas?
Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Principe empurrou para a
sua amiga o telegramma do Gran-duque. Então Madame d'Oriol
teve um
ah! muito grave e muito sentido. Releu
profundamente o papel de S. A. que
os seus dedos acariciavam com uma reverencia gulosa. E sempre grave,
sempre séria:
―É brilhante!
Oh, certamente! n'aquelle desastre tudo
[62]se
passára com muito
brilho, n'um tom muito Parisiense. E a deliciosa creatura
não se
podia demorar, porque fizera marcar um logar na egreja da Magdalena
para o
sermão!
Jacintho exclamou com innocencia:
―Sermão?... É já a
estação dos sermões?
Madame d'Oriol teve um movimento de carinhoso escandalo e
dôr. O quê! pois nem na austera casa dos
Trèves dera pela entrada da
quaresma? De resto não se admirava―Jacintho era um turco!
E,
immediatamente celebrou o prégador, um frade dominicano, o
Père Granon!
Oh d'uma eloquencia! d'uma violencia! No derradeiro sermão
prégara
sobre o amor, a fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas d'uma
inspiração, d'uma brutalidade! Depois que gesto,
um gesto terrivel que esmagava, em que
se lhe arregaçava toda a manga, mostrando o braço
nú, um braço soberbo, muito branco, muito forte!
O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejára
dentro do véo negro. E Jacintho, rindo:
―Um bom braço de director espiritual, hein? Para vergar,
espancar almas...
Ella acudiu:
―Não! infelizmente o Père Granon não
confessa!
E de repente reconsiderou―aceitava um
[63]biscouto,
um cálice
de Tokai. Era necessario um cordial para affrontar as
emoções
do Père Granon! Ambos nos precipitáramos, um
arrebatando a garrafa, outro
offerecendo o prato de bonbons. Franzio o véo para os olhos,
chupou á
pressa um bolo que ensopára no Tokai. E como Jacintho,
reparando casualmente no
chapéo que ella trazia, se curvára com
curiosidade, impressionado,
Madame d'Oriol apagou o sorriso, toda seria, ante uma cousa seria:
―Elegante, não é verdade?... É uma
creação inteiramente nova de Madame Vial. Muito
respeitoso, e muito suggestivo, agora na Quaresma.
O seu olhar, que me envolvera, tambem me convidava a admirar.
Approximei o meu focinho de homem das serras para contemplar essa
creação suprema do luxo de Quaresma. E era
maravilhoso!
Sobre o velludo, na sombra das plumas frizadas, aninhada entre rendas,
fixada por um prégo,
pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Corôa de
Espinhos!
Ambos nos extasiamos. E Madame d'Oriol, n'um movimento e n'um sorriso
que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Magdalena.
O meu Principe arrastou pelo tapete alguns
[64]passos
pensativos e molles.
E bruscamente, levantando os hombros com uma
determinação immensa, como se deslocasse um
mundo:
―Oh Zé Fernandes, vamos passar este Domingo n'alguma cousa
simples e natural...
―Em quê?
Jacintho circumgirou os olhares muito abertos, como se, atravez da Vida
Universal, procurasse anciosamente uma cousa natural e simples. Depois,
descançando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de
muito longe, cançados e com pouca esperança:
―Vamos ao Jardim das Plantas, vêr a girafa!
IV
N'essa fecunda semana, uma noite, recolhiamos ambos da Opera, quando
Jacintho, bocejando, me annunciou uma festa no 202.
―Uma festa?...
―Por causa do Gran-Duque, coitado, que me vai mandar um peixe
delicioso e muito raro que se pesca na Dalmacia. Eu queria um
almoço
curto. O Gran-Duque reclamou uma ceia. É um barbaro,
besuntado
com
litteratura do seculo XVIII, que ainda acredita em ceias, em Paris!
Reuno no domingo tres ou quatro mulheres, e uns dez homens bem typicos,
para o divertir.
Tambem aproveitas. Folheias Paris n'um resumo... Mas é uma
massada amarga!
Sem interesse pela sua festa, Jacintho não se affadigou em a
compôr com relevo ou brilho. Encommendou apenas uma orchestra
de Tziganes (os Tziganes, as suas jalecas escarlates,
[66]a
melancolia aspera das Czardas ainda n'esses tempos remotos emocionavam
Paris): e mandou, na Bibliotheca, ligar o Theatrophone com a Opera, com
a Comedia-Franceza, com o Alcazar e com os Buffos, prevendo todos os
gostos desde o tragico
até ao picaro. Depois no domingo, ao entardecer, ambos
visitamos a mesa da ceia, que resplandecia com as velhas baixellas de
D.
Galião. E a faustosa profusão de orchideas, em
longas
sylvas por sobre a
toalha bordada a sêda, enroladas aos fructeiros de Saxe,
trasbordando de crystaes lavrados e filagranados d'ouro, espalhava uma
tão
fina sensação de luxo e gosto, que eu
murmurei:―«Caramba, bemdito, seja o
dinheiro!» Pela primeira vez, tambem, admirei a copa e a sua
installação abundante e minuciosa―sobretudo os
dois
ascensores que rolavam das profundidades
da cozinha, um para os peixes e carnes aquecido por tubos d'agua
fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas
frigorificas. Oh, este 202!
Ás nove horas, porém, descendo eu ao gabinete de
Jacintho para escrever a minha boa tia Vicencia, em quanto elle
ficára no toucador
com o manícuro que lhe polia as unhas, passamos n'esse
delicioso
palacio, florido e em gala, por bem corriqueiro susto!
[67]Todos os lumes
electricos, subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha immensa
desconfiança d'aquellas forças universaes, pulei
logo para a porta,
tropeçando nas trevas, ganindo um
Aqui d'Elrei!
que tresandava a Guiães. Jacintho em cima berrava, com o
manícuro agarrado ás pyjamas.
E de novo, como serva ralassa que recolhe arrastando as chinellas, a
luz resurgiu com lentidão. Mas o meu Principe, que descera,
enfiado, mandou
buscar um engenheiro á Companhia Central da Electricidade
Domestica.
Por precaução outro creado correu á
mercearia
comprar pacotes de velas. E
o Grillo desenterrava já dos armarios os candelabros
abandonados, os
pesados castiçaes archaicos dos tempos inscientificos de D.
Galião: era uma reserva de veteranos fortes, para o caso
pavoroso em que mais tarde,
á ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas
da
Civilisação. O Electricista, que acudira
esbaforido,
afiançou
porém que a Electricidade se conservaria fiel, sem outro
amuo.
Eu, cautelosamente, soneguei na algibeira dous côtos de
estearina.
A Electricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu
quarto, tarde (porque perdera o collete de baile e só depois
d'uma busca furiosa e praguejada o encontrei cahido por traz da cama!),
todo
[68]o 202
refulgia, e os Tziganes, na antecamara, sacudindo as guedelhas,
atiravam as arcadas d'uma valsa tão arrastadora que, pelas
paredes,
os immensos Personagens das tapeçarias, Priamo, Nestor, o
engenhoso
Ulysses, arfavam, boliam com os pés venerandos!
Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de
Jacintho. E fui logo acolhido pelo sorriso da condessa de Treves, que,
acompanhada pelo illustre historiador Danjon (da Academia Franceza),
percorria maravilhada os Apparelhos, os Instrumentos, toda a sumptuosa
Mechanica do meu super-civilisado Principe. Nunca ella me parecera mais
magestosa do que n'aquellas sêdas côr de
açafrão, com rendas cruzadas no peito
á
Maria-Antonietta, o cabello crespo e ruivo levantado
em rolo sobre a testa dominadora, e o curvo nariz patricio, abrigando o
sorriso
sempre luzidio, sempre corrente, como um arco abriga o correr e o luzir
d'um regato. Direita como n'um solio, a longa luneta de tartaruga
acercada dos olhos miudos e turvamente azulados, ella escutava deante
do Graphophono, depois deante do Microphono, como melodias superiores,
os commentarios que o meu Jacintho ia atabalhoando com uma amabilidade
penosa. E ante cada roda, cada mola, eram pasmos, louvores finamente
torneados,
[69]em
que attribuia a Jacintho, com astuta candura, todas aquellas
invenções do Saber! Os utensilios
misteriosos que atulhavam a mesa d'ebano foram para ella uma
iniciação que a
enlevou. Oh, o «numerador de paginas»! oh, o
«collador
d'estampilhas»! A caricia demorada dos seus dedos seccos
aquecia
os metaes. E supplicava os endereços dos fabricantes para se
prover de todas aquellas
utilidades adoraveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava
escorregadia e facil! Mas era necessario o talento, o gosto de
Jacintho, para
escolher, para «crear!» E não
só ao meu
amigo (que o recebia com resignação) ella
offertava o
fino mel. Affagando com o cabo da luneta o Telegrapho,
achou a possibilidade de recordar a eloquencia do Historiador. Mesmo
para mim
(de quem ignorava o nome) arranjou junto do Phonographo, e
ácerca de «vozes d'amigos que é doce
colleccionar», uma lisonjasinha redondinha e lustrosa, que eu
chupei como um rebuçado celeste. Boa
casaleira que vae atirando o grão aos frangos famintos, a
cada
passo,
maternalmente, ella nutria uma vaidade. Sofrego d'outro
rebuçado, acompanhei a
sua cauda sussurrante e côr d'açafrão.
Ella
parára deante da Machina-de-contar, de que Jacintho
já
lhe fornecera pacientemente uma
explicação sapiente.
[70]E
de novo roçou os buracos d'onde espreitam os numeros negros,
e com o seu enlevado sorriso murmurou:―«Prodigiosa, esta
prensa
electrica!...»
Jacintho accudiu:
―Não! Não! Esta é...
Mas ella sorria, seguia... Madame de Treves não
comprehendera nenhum apparelho do meu Principe! Madame de Treves
não attendera a
nenhuma dissertação do meu Principe! N'aquelle
gabinete
de sumptuosa Mechanica ella sómente se occupára
em exercer, com proveito
e com perfeição, a Arte de Agradar. Toda ella era
uma sublime falsidade. Não
escondi a Danjon a admiração que me penetrava.
O facundo Academico revirou os olhos bogalhudos:
―Oh! e um gôsto, uma intelligencia, uma
seducção!... E depois como se janta bem em casa
d'ella! Que café!... Mulher superior, meu
caro senhor, verdadeiramente superior!
Deslisei para a bibliotheca. Logo á entrada da erudita nave,
junto da estante dos Padres da Egreja onde alguns cavalheiros
conversavam, parei
a saudar o director do
Boulevard e
o Psychologo-feminista, o auctor do
Coração
Triple, com quem na véspera me
familiarisára ao almoço, no 202. O seu
acolhimento foi paternal: e, como se necessitasse a minha
[71]presença,
reteve na sua mão illustre, rutilante
de anneis, com força e com gula, a minha grossa palma
serrana.
Todos aquelles senhores, com effeito, celebravam o seu Romance, a
Couraça,
lançado n'essa semana entre gritinhos de gôzo e um
quente
rumor de saias
alvoroçadas. Um sobretudo, com uma vasta cabeça
arranjada
á Van
Dick e que parecia postiça, proclamava, alçado na
ponta
das botas,
que nunca penetrára tão fundamente, na velha alma
humana,
a ponta da Psychologia Experimental! Todos concordavam, se apertavam
contra o Psychologo, o tratavam por «mestre». Eu
mesmo, que
nem sequer entrevira a capa
amarella da
Couraça, mas para quem
elle voltava os olhos pedinchões e famintos de mais mel,
murmurei com um leve assobio:―«uma
delicia!»
E o Psychologo, reluzindo, com o labio humido, entalado n'um alto
collarinho onde se enroscava uma gravata á 1830, confessava
modestamente que dissecára todas aquellas almas da
Couraça com
«algum cuidado», sobre documentos, sobre
pedaços de vida ainda quentes, ainda
a sangrar... E foi então que Marizac, o duque de Marizac,
notou, com um sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem
tirar as
mãos dos bolsos:
―No emtanto, meu caro, n'esse livro tão
[72]profundamente
estudado ha um erro bem estranho, bem curioso!...
O Psychologo, vivamente, atirára a cabeça para
traz:
―Um erro?
Oh, sim, um erro! E bem inesperado n'um mestre tão
experiente!... Era attribuir á esplendida amorosa da
Couraça, uma duqueza, e
do gosto mais puro,―
um collete de setim
preto!
Esse collete, assim preto, de setim, apparecia na bella pagina de
analyse e paixão em que
ella se despia no quarto de Ruy d'Alize. E Marizac, sempre com as
mãos nos bolsos, mais grave, appellava para aquelles
senhores.
Pois era verosimil, n'uma mulher como a duqueza, esthetica,
pre-raphaelitica,
que se vestia no Doucet, no Paquin, nos costureiros intellectuaes, um
collete de setim preto?
O Psychologo emmudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma
tão suprema auctoridade sobre a roupa intima das duquezas,
que
á
tarde, em quartos de rapazes, por impulsos idealistas e anceios d'alma
dolorida―se põem em collete e saia branca!... De resto o
director do
Boulevard condemnára
logo sem piedade, com uma experiencia firme, aquelle collete,
só possivel n'alguma mercieira atrazada que
ainda procurasse effeitos
[73]de
carne nedia sobre setim negro. E eu, para que me
não julgassem alheio ás coisas dos adulterios
ducaes e do luxo, acudi, mettendo os dedos pelo cabello:
―Realmente, preto, só se estivesse de lucto pesado, pelo
pae!
O pobre mestre da
Couraça succumbira. Era
a sua gloria de Doutor em Elegancias-Femininas desmantelada―e Paris
suppondo que elle nunca vira
uma duqueza desatacar o collete na sua alcova de Psychologo!
Então, passando o lenço sobre os labios que a
angustia ressequira,
confessou o erro, e contrictamente o attribuiu a uma
improvisação tumultuosa:
―Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com
effeito! é absurdo, um collete preto!... Mesmo por harmonia
com o estado da alma da duqueza devia ser lilaz, talvez côr
de
reseda
muito desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines...
É
prodigioso como me escapou! Pois tenho o meu caderno de entrevistas bem
annotadas,
bem documentadas!...
Na sua amargura, terminou por supplicar a Marizac que espalhasse por
toda a parte, no Club, nas salas, a sua confissão.
Fôra um engano de artista, que trabalha na febre, vasculhando
as almas, perdido nas profundidades
[74]negras
das almas! Não reparára no
collete, confundira os tons... E gritou, com os braços
estendidos para o director
do
Boulevard:
―Estou prompto a fazer uma rectificação, n'uma
interview, meu caro mestre! Mande um dos seus
redactores... Ámanhã,
ás dez horas! Fazemos uma
interview,
fixamos a
côr. Evidentemente é lilaz... Mande um dos seus
homens, meu caro mestre! É tambem uma
occasião para eu confessar, bem alto, os serviços
que o
Boulevard tem feito ás
sciencias psychologicas e feministas!
Assim elle supplicava, encostado á estante, ás
lombadas dos Santos Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da Bibliotheca
Jacintho que se debatia e se recusava entre dous homens.
Eram os dois homens de Madame de Treves―o marido, conde de Treves,
descendente dos reis de Candia, e o amante, o terrivel banqueiro judeu,
David Ephraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu
Principe que nem me reconheceram, ambos n'um aperto de mão
molle
e vago me
trataram por «caro conde»! N'um relance, rebuscando
charutos
sobre a mesa de limoeiro, comprehendi que se tramava a
Companhia
das
Esmeraldas da
Birmania, medonha empreza em que scintillavam
milhões, e para que os dous confederados
[75]de
bolsa e d'alcôva, desde o
começo do anno, pediam o nome, a influencia, o dinheiro de
Jacintho. Elle resistira, n'um enfado
dos negocios, desconfiado d'aquellas esmeraldas soterradas n'um valle
da Asia. E agora o conde de Treves, um homem esgrouviado, de face
rechupada, erriçada de barba rala, sob uma fronte rotunda e
amarella como um melão, assegurava ao meu pobre Principe que
no
Prospecto já preparado, demonstrando a grandeza do negocio,
perpassava um
fulgôr das
Mil e Uma noites. Mas
sobretudo
aquella excavação de esmeraldas convidava todo o
espirito culto pela sua acção
civilisadora. Era uma corrente de idéas occidentaes,
invadindo, educando a
Birmania. Elle acceitára a direcção
por
patriotismo...
―De resto é um negocio de joias, de arte, de progresso, que
deve ser feito, n'um mundo superior, entre amigos...
E do outro lado o terrivel Ephraim, passando a mão curta e
gorda sobre a sua bella barba, mais frisada e negra que a d'um Rei
Assyrio,
affiançava o triumpho da empreza pelas grossas
forças que n'ella
entravam, os Nagayers, os Bolsans, os Saccart...
Jacintho franzia o nariz, enervado:
―Mas, ao menos, estão feitos os estudos? Já se
provou que ha esmeraldas?
[76]Tanta ingenuidade
exasperou Ephraim:
―Esmeraldas! Está claro que ha esmeraldas!... Ha sempre
esmeraldas desde que haja accionistas!
E eu admirava a grandeza d'aquella maxima―quando appareceu,
esbaforido, desdobrando o lenço muito perfumado, um dos
familiares do
202, Todelle (Antonio de Todelle), moço já calvo,
d'infinitas
prendas, que conduzia Cotillons, imitava cantores de Café
Concerto, temperava
saladas raras, conhecia todos os enredos de Paris.
―Já veio?... Já cá está o
Gran-Duque?
Não, S. Alteza ainda não chegára. E
Madame de Todelle?
―Não poude... No sophá... Esfolou uma perna.
―Oh!
―Quasi nada... Cahiu do velocipede!
Jacintho, logo interessado:
―Ah! Madame de Todelle anda já de velocipede?
―Aprende. Nem tem velocipede!... Agora, na quaresma, é que
se applicou mais, no velocipede do padre Ernesto, do cura de S.
José!
Mas hontem, no Bosque, zás, terra!... Perna esfolada. Aqui.
E na sua propria côxa, com a unha, vivamente, desenhou o
esfolão. Ephraim, brutal e
[77]serio,
murmurou:―«Diabo! é no
melhor sitio!» Mas Todelle nem o escutára,
correndo para o director do
Boulevard, que se avançava, lento e
barrigudo, com o seu monoculo negro
semelhante a um pacho. Ambos se collaram contra uma estante, n'um
cochichar profundo.
Jacintho e eu entramos então no bilhar, forrado de velhos
couros de Cordova, onde se fumava. Ao canto d'um divan, o grande
Dornan, o poeta neo-platonico e mystico, o Mestre subtil de todos os
rithmos, espapado nas almofadas, com um dos pés sob a
côxa
gorda,
como um Deus indio, dois botões do collete desabotoados, a
papeira cahida sobre o
largo decote do collarinho, mamava magestosamente um immenso charuto.
Ao pé
d'elle, também sentado, um velho que eu nunca
encontrára
no 202, esbelto, de cabellos brancos em anneis passados por traz das
orelhas, a face
coberta de pó de arroz, um bigodinho muito negro e
arrebitado,
findára certamente alguma historia de bom e grosso
sal―porque
deante do divan,
de pé, Joban, o suprèmo Critico de Theatro, ria
com a calva escarlate de gôso, e um moço muito
ruivo
(descendente de
Colygny), de perfil de periquito, sacudia os braços curtos
como
azas, e gania:
«delicioso! divino!» Só o poeta
idealista
permanecera
impassivel, na sua magestade obesa.
[78]Mas,
quando nos acercamos, esse Mestre do rythmo perfeito,
depois de soprar uma farta fumarada e me saudar com um pesado mover das
palpebras, começou n'uma voz de rico e sonoro metal:
―Ha melhor, ha infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame
Noredal. Madame Noredal tem umas immensas nadegas...
Desgraçadamente para o meu regalo Todelle invadiu o bilhar,
reclamando Jacintho com alarido. Eram as senhoras que desejavam ouvir
no Phonographo uma aria da Patti! O meu amigo sacudiu logo os hombros,
n'uma surda irritação:
―Aria da Patti... Eu sei lá! Todos esses rolos
estão em confusão. Além d'isso o
Phonographo trabalha mal. Nem trabalha! Tenho tres. Nenhum trabalha!
―Bem! exclamou alegremente Todelle. Canto eu a
Pauvre fille... É mais de ceia!
Oh,
la pauv', pauv',
pauv'...
Travou do meu braço, e arrastou a minha timidez serrana para
o salão côr de rosa murcha, onde, como Deusas n'um
circulo
escolhido do Olympo, resplandeciam Madame d'Oriol, Madame Verghane, a
princeza de Carman, o uma outra loura, com grandes brilhantes nas
grandes farripas, e d'hombros tão nús, e
braços
tão nús, e peitos tão nús,
que o seu vestido
[79]branco
com
bordados d'ouro pallido parecia uma camisa, a escorregar.
Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho:―«Quem
é?» Mas já o festivo homem correra para
Madame
d'Oriol, com quem riam, n'uma familiaridade superior e facil, Marizac
(o duque de Marizac) e um
moço de barba côr de milho e mais leve que uma
penugem,
que se
balouçava gracilmente sobre os pés, como uma
espiga ao
vento. E eu,
encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos,
amassando o
meu embaraço, quando Madame Verghane se ergueu do
sophá
onde conversava
com um velho (que tinha a Gran-Cruz de Santo André), e
avançou, deslizou no tapete, pequena e nedia, na sua copiosa
cauda de velludo verde-negro.
Tão fina era a cinta, entre os encontros fecundos e a
vastidão do
peito, todo nú e côr de nacar, que eu receava que
ella
partisse pelo meio,
no seu lento ondular. Os seus famosos bandós negros, d'um
negro
furioso,
inteiramente lhe tapavam as orelhas; e, no grande aro d'ouro que os
circumdava, reluzia uma estrella de brilhantes, como na fronte dos
anjos de Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha
auctoridade no
202,
ella despediu sobre mim ao passar, como raio benefico, um sorriso que
lhe liquescia mais os olhos liquidos, e murmurou:
[80]
―O Gran-Duque vem, com certeza?
―Oh com certeza, minha senhora, para o peixe!
―P'ra o peixe?...
Mas justamente, na antecamara, rompeu, em rufos e arcadas triumphaes, a
marcha de Rakoczy. Era elle! Na Bibliotheca, o nosso retumbante mordomo
annunciava:
―S. Alteza o Gran-Duque Casimiro!
Madame de Verghane, com um curto suspiro
d'emoção, alteou o peito, como para lhe
expôr melhor a magnificencia eburnea. E o homem do
Boulevard, o velho da Gran-Cruz, Ephraim, quasi me
empurraram, investindo para a porta, na immensa sofreguidão
de Pessoa Real.
Precedido por Jacintho, o Gran-Duque surgiu. Era um possante homem, de
barba em bico, já grisalha, um pouco calvo. Durante um
momento hesitou, com um balanço lento sobre os
pés
pequeninos,
calçados de sapatos rasos, quasi sumidos sob as pantalonas
muito
largas. Depois, pesado e risonho,
veio apertar a mão ás senhoras que mergulhavam
nos velludos e sêdas, em mesuras de Côrte. E
immediatamente, batendo com carinhosa
jovialidade no hombro de Jacintho:
―E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hein?
[81]
Um murmurio de Jacintho tranquillisou S. Alteza.
―Ainda bem, ainda bem! exclamou elle, no seu vozeirão de
commando. Que eu não jantei, absolutamente não
jantei!
É que se está jantando deploravelmente em casa do
Joseph.
Mas porque se vai jantar ainda ao Joseph? Sempre que chego a Paris,
pergunto: «Onde
é que se janta agora?» Em casa do Joseph!... Qual!
não se janta! Hoje, por exemplo,
gallinholas... Uma peste! Não tem, não tem a
noção da gallinhola!
Os seus olhos azulados, d'um azul sujo, rebrilhavam, alargados pela
indignação:
―Paris está perdendo todas as suas superioridades.
Já se não janta, em Paris!
Então, em redor, aquelles senhores concordaram, desolados. O
conde de Treves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres
tradições. E o director do
Boulevard,
que se
empurrava todo para S. Alteza, attribuia a decadencia da cozinha, em
França, á Republica,
ao gosto democratico e torpe pelo barato.
―No Paillard, todavia...―começou o Ephraim.
―No Paillard! gritou logo o Gran-Duque. Mas os Borgonhas
são tão maus! os Borgonhas são
tão maus!...
[82]Deixára
pender os
braços, os hombros,
descorçoado. Depois, com o seu lento andar
balançado como
o d'um velho piloto, atirando um
pouco para traz as lapellas da casaca, foi saudar Madame d'Oriol, que
toda ella faiscou, no sorriso, nos olhos, nas joias, em cada
préga das
suas sêdas côr de salmão. Mas apenas a
clara e macia
creatura, batendo o leque como uma aza alegre,
começára a
chalrar, S. Alteza
reparou no apparelho do Theatrophone, pousado sobre uma mesa entre
flôres, e chamou
Jacintho:
―Em communicação com o Alcazar?... O
Theatrophone?
―Certamente, meu senhor.
Excellente! Muito chic! Elle ficára com pena de
não ouvir a Gilberte n'uma cançoneta nova, as
Casquettes. Onze e meia! Era
justamente a essa hora que ella cantava, no ultimo acto da
Revista
Electrica...―Collou ás orelhas os dous
«receptores» do Theatrophone, e quedou embebido,
com uma ruga séria na testa dura. De
repente, n'um commando forte:
―É ella! Chut! Venham ouvir!... É ella! Venham
todos! Princeza de Carman, para aqui! Todos! É ella! Chut...
Então, como Jacintho installára prodigamente dois
Theatrophones, cada um provido de doze fios, as senhoras, todos
aquelles cavalheiros,
[83]se
apressaram a acercar submissamente um receptor do ouvido, e a
permanecer immoveis para saborear
Les
Casquettes. E no salão côr de
rosa murcha, na nave da Bibliotheca, onde se espalhára um
silencio
augusto, só eu fiquei desligado do Theatrophone, com as
mãos nas algibeiras
e ocioso.
No relogio monumental, que marcava a hora de todas as Capitaes e o
movimento de todos os Planetas, o ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre
a mudez e a immobilidade pensativa d'aquelles dorsos, d'aquelles
decotes,
a Electricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada
orelha attenta, que a mão tapava, pendia um fio negro, como
uma tripa. Dornan, esbroado sobre a mesa, cerrára as
palpebras,
n'uma
meditação de monge obeso. O historiador dos
Duques
d'Anjou, com o
«receptor» na ponta delicada dos dedos, erguendo o
nariz
agudo e triste, gravemente cumpria
um dever palaciano. Madame d'Oriol sorria, toda languida, como se o fio
lhe murmurasse doçuras. Para desentorpecer arrisquei um
passo timido. Mas cahiu logo sobre mim um
chut
severo do Gran-Duque! Recuei para entre as cortinas da janella, a
abrigar a minha ociosidade. O Philologo
da
Couraça, distante da
mesa, com o seu comprido fio esticado, mordia o beiço, n'um
esforço de
penetração.
[84]A
beatitude de S. Alteza, enterrado n'uma vasta poltrona, era perfeita.
Ao lado o collo de Madame Verghane arfava como uma onda de leite. E o
meu pobre Jacintho, n'uma
applicação conscienciosa, pendia sobre o
Theatrophone
tão tristemente
como sobre uma sepultura.
Então, ante aquelles seres de superior
civilisação, sorvendo n'um silencio devoto as
obscenidades que a Gilberte lhes gania, por debaixo do solo de Paris,
atravez de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos
canos das fezes,―pensei na minha aldeia adormecida. O crescente de
lua, que, seguido d'uma estrellinha, corria entre nuvens sobre os
telhados e
as chaminés negras dos Campos-Elyseos, tambem andava
lá fugindo, mais lustrosa e mais dôce, por cima
dos
pinheiraes. As
rãs coaxavam ao longe no Pego da Dona. A ermidinha de S.
Joaquim
branquejava no
cabeço, nuasinha e candida...
Uma das senhoras murmurou:
―Mas, não é a Gilberte!...
E um dos homens:
―Parece um cornetim...
―Agora são palmas...
―Não, é o Paulin!
O Gran-Duque lançou um
chut feroz... No pateo da nossa
casa ladravam os cães. D'além
[85]do
ribeiro respondiam os
cães do João Saranda. Como me encontrei descendo
por uma
quelha, sob as ramadas, com o meu varapau ao
hombro? E sentia, entre a sêda das cortinas, n'um fino ar
macio, o cheiro das pinhas estalando nas lareiras, o calor dos curraes
atravez das sebes altas, e o susurro dormente das levadas...
Despertei a um brado que não sahia nem dos eidos, nem das
sombras. Era o Gran-Duque que se erguera, encolhia furiosamente os
hombros:
―Não se ouve nada!... Só guinchos! E um zumbido!
Que massada!... Pois é uma belleza, a cançoneta:
Oh les casquettes,
Oh les casque-e-e-tes!...
Todos largaram os fios―proclamavam a Gilberte deliciosa. E o mordomo
bemdito, abrindo largamente os dous batentes, annunciou:
―
Monseigneur est servi!
Na mesa, que pelo esplendor das orchideas mereceu os louvores ruidosos
de S. Alteza, fiquei entre o ethereo poeta Dornan e aquelle
moço de pennugem loura que balouçava como uma
espiga ao
vento.
Depois de
[86]desdobrar
o guardanapo, de
o accomodar regaladamente sobre os joelhos, Dornan desenvencilhou da
corrente do relogio uma enorme luneta para percorrer o
menu―que
approvou. E
inclinando para mim a sua face de Apostolo obeso:
―Este Porto de 1834, aqui era casa do Jacintho, deve ser authentico...
Hein?
Assegurei ao Mestre dos Rythmos que o «Porto»
envelhecêra nas adegas classicas do avô
Galião. Elle
afastou, n'uma
preparação methodica, os longos, densos fios do
bigode
que lhe cobriam a bocca grossa. Os escudeiros serviram um
consommé frio com trufas. E o
moço côr de milho, que espalhára pela
mesa o seu
olhar azul e dôce,
murmurou, com uma desconsolação risonha:
―Que pena!... Só falta aqui um general e um bispo!
Com effeito! Todas as Classes Dominantes comiam n'esse momento as
trufas do meu Jacintho... Mas defronte Madame d'Oriol
lançára um riso mais cantado que um gorgeio. O
Gran-Duque, n'uma silva de orchideas que orlava o seu talher,
notára uma, sombriamente horrenda,
semelhante a um lacrau esverdinhado, de azas lustrosas, gordo e tumido
de veneno: e muito delicadamente offertára a flôr
monstruosa a
Madame d'Oriol, que, com trinado
[87]riso,
solemnemente, a collocou no seio. Collado
áquella carne macia, d'uma brancura de nata fina, o lacrau
inchára,
mais verde, com as azas frementes. Todos os olhos se accendiam, se
cravavam no
lindo peito, a que a flôr disforme, de côr
venenosa,
apimentava o sabor. Ella reluzia, triumphava. Para ageitar melhor a
orchidea os seus dedos alargaram o decote, aclararam bellezas, guiando
aquellas curiosidades flammejantes que a despiam. A face vincada de
Jacintho pendia para o prato vasio. E o alto lyrico do
Crepusculo
Mystico, passando a mão pelas barbas, rosnou com
desdem:
―Bella mulher... Mas ancas seccas, e aposto que não tem
nadegas!
No emtanto o moço de loura pennugem voltára
á sua estranha mágoa. Não possuirmos
um general com a sua espada, e um bispo com seu baculo!...
―Para que, meu caro senhor?
Elle atirou um gesto suave em que todos os seus anneis faiscaram:
―Para uma bomba de dynamite... Temos aqui um explendido ramalhete de
flôres de Civilisacão, com um Gran-Duque no meio.
Imagine uma bomba de dynamite, atirada da porta!... Que bello fim de
ceia, n'um fim de seculo!
[88]E como eu o
considerava assombrado, elle, bebendo golos de Chateau-Yquem, declarou
que hoje a unica emoção,
verdadeiramente fina, seria aniquillar a
Civilisação. Nem a sciencia,
nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um
gosto intenso e real
ás nossas almas saciadas. Todo o prazer que se
extrahíra de
crear estava esgotado. Só restava,
agora, o divino prazer de
destruir!
Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos
claros. Mas eu não attendia o gentil pedante, colhido por
outro
cuidado―reparando que em torno, subitamente, todo o serviço
estacára como no conto do Palacio Petrificado. E o prato
agora
devido era o
peixe famoso da Dalmacia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da
festa! Jacintho, nervoso, esmagava entre os dedos uma flôr. E
todos
os escudeiros sumidos!
Felizmente o Gran-Duque contava a historia d'uma caçada, nas
coutadas de Sarvan, em que uma senhora, mulher de um banqueiro,
saltára
bruscamente do cavallo, n'um descampado, sem arvores. Elle e todos os
caçadores param―e a galante senhora, livida, com a amazona
arregaçada, corre para traz d'uma pedra... Mas nunca
soubemos em
que se occupava a banqueira, n'esse descampado, agachada atraz da
pedra―porque justamente
[89]o
mordomo
appareceu, relusente de suor, e balbuciou uma confidencia a Jacintho,
que mordeu o beiço, trespassado. O Gran-Duque emmudecera.
Todos se entre-olhavam, n'uma anciedade alegre. Então o meu
Principe,
com paciencia, com heroicidade, forçando pallidamente o
sorriso:
―Meus amigos, ha uma desgraça...
Dornan pulou na cadeira:
―Fogo?
Não, não era fogo. Fôra o elevador dos
pratos, que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alteza, se
desarranjára, e
não se movia, encalhado!
O Gran-Duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como
um esmalte mal posto:
―Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho!
Para que estamos nós aqui então a cear? Que
estupidez! E
porque o não trouxeram á mão,
simplesmente? Encalhado... Quero vêr! Onde
é a copa?
E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que
tropeçava, vergava os hombros, ante esta esmagadora colera
de Principe. Jacintho seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S.
Alteza. E eu não me contive, tambem me atirei para a copa, a
contemplar
[90]o
desastre, emquanto Dornan, batendo na côxa, clamava que se
ceasse sem
peixe!
O Gran-Duque lá estava, debruçado sobre o
poço escuro do elevador, onde mergulhára uma vela
que lhe
avermelhava mais a face
esbraseada. Espreitei, por sobre o seu hombro real. Em baixo, na treva,
sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na
travessa, ainda fumegando, entre rodellas de limão.
Jacintho,
branco como a
gravata, torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor.
Depois foi o Gran-Duque que, com os pulsos cabelludos, atirou um
empuxão
tremendo aos cabos em que elle rolava. Debalde! O apparelho
enrijára
n'uma inercia de bronze eterno.
Sêdas roçagaram á entrada da copa. Era
Madame d'Oriol, e atraz Madame Verghane, com os olhos a faiscar, na
curiosidade d'aquelle lance em que
o Principe soltára tanta paixão. Marizac, nosso
intimo, surgiu tambem, risonho, propondo uma descida ao poço
com
escadas. Depois
foi o Psychologo, que se abeirou, psychologou, attribuindo
intenções sagazes ao peixe que assim se recusava.
E a
cada um o Gran-Duque, escarlate, mostrava com dedo tragico, no fundo da
cova, o seu peixe! Todos afundavam a face, murmuravam:
«lá
está!» Todelle, na sua
precipitação, quasi se
[91]despenhou.
O periquito descendente de Colygny batia as azas,
ganindo:―«Que cheiro elle deita, que delicia!» Na
copa atulhada os decotes das senhoras roçavam a farda dos
lacaios. O velho
caiado de pó d'arroz metteu o pé n'um balde de
gelo, com um berro ferino.
E o Historiador dos Duques d'Anjou movia por cima de todos o seu nariz
bicudo e triste.
De repente, Todelle teve uma idéa!
―É muito simples... É pescar o peixe!
O Gran-Duque bateu na côxa uma palmada triumphal.
Está claro! Pescar o peixe! E no gozo d'aquella facecia,
tão rara e
tão nova, toda a sua colera se sumíra, de novo se
tornára o Principe
amavel, de magnifica polidez, desejando que as senhoras se sentassem
para assistir
á pesca miraculosa! Elle mesmo seria o pescador! Nem se
necessitava, para a divertida façanha, mais que uma bengala,
uma
guita e um
gancho. Immediatamente Madame d'Oriol, excitada, offereceu um dos seus
ganchos.
Apinhados em volta d'ella, sentindo o seu perfume, o calor da sua
pelle, todos exaltamos a amoravel dedicação. E o
Psychologo proclamou que nunca se pescára com tão
divino
anzol!
Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um
cordel, já o Gran-Duque, radiante, vergára o
gancho em
[92]anzol.
Jacintho, com uma paciencia livida, erguia uma lampada sobre a
escuridão do poço fundo. E os senhores mais
graves, o Historiador, o director do
Boulevard,
o Conde de Treves, o
homem de cabeça á Van-Dick, sorriam, amontoados
á
porta, n'um interesse reverente pela phantasia
de S. Alteza. Madame de Treves, essa, examinava serenamente, com a sua
nobre luneta, a installação da copa.
Só
Dornan não se erguera da mesa, com os punhos cerrados sobre
a
toalha, o gordo pescoço encovado, no
tedio sombrio de fera a quem arrancaram a posta.
No emtanto S. Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco
agudo, sem presa, bamboleando na extremidade da guita frouxa,
não fisgava.
―Oh Jacintho, erga essa luz! gritava elle, inchado e suado. Mais!...
Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra
é que o gancho o póde prender. Agora... Qual! Que
diabo! Não vae!
Tirou a face do poço, resfolgando e affrontado.
Não era possivel! Só carpinteiros, com
alavancas!... E todos, anciosamente, bradamos que se abandonasse o
peixe!
O Principe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por
fim «fôra mais divertido pescal-o do que
comêl-o!» E o
elegante bando
[93]refluiu
sofregamente para a mesa, ao som d'uma valsa de Strauss, que os
Tziganes arremeçaram em arcadas de languido ardôr.
Só Madame de Treves se demorou ainda, retendo o meu pobre
Jacintho, para lhe assegurar quanto admirava
o arranjo da sua copa... Oh perfeita! Que comprehensão da
vida, que fina intelligencia do conforto!
S. Alteza, encalmado pelo esforço, esvasiou poderosamente
dous copos de Chateau-Lagrange. Todos o acclamavam como um pescador
genial. E os escudeiros serviram o
Barão de
Pauillac, cordeiro das lezirias marinhas, que, preparado com
ritos quasi sagrados, toma este grande
nome sonoro e entra no Nobiliario de França.
Eu comi com o appetite d'um heroe de Homero. Sobre o meu copo e o de
Dornan o Champagne scintillou e jorrou ininterrompidamente como uma
fonte de inverno. Quando se serviram ortolans gelados, que se derretiam
na bocca, o divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto
sublime a «Santa Clara». E como, do outro lado, o
moço de pennugem loura insistia pela
destruição do
velho mundo, tambem
concordei, e, sorvendo o Champagne coalhado em sorvete, maldissemos o
Seculo, a
Civilisação, todos os orgulhos da Sciencia!
Através das flôres
e das luzes,
[94]no
emtanto, eu seguia
as ondas arfantes do vasto peito de Madame Verghane,
que ria como uma bacchante. E nem me apiedava de Jacintho que, com a
doçura de S. Jacintho sobre o cêpo, esperava o fim
do seu martyrio e da sua festa.
Ella findou. Ainda recordo, ás tres horas da noite, o
Gran-Duque na antecamara, muito vermelho, mal firme nos pés
pequeninos,
sem acertar com as mangas da pelissa que Jacintho e eu lhe ajudamos a
enfiar―convidando o meu amigo, n'uma effusão carinhosa, a
ir caçar ás suas terras da Dalmacia...
―Devo ao meu Jacintho uma bella pesca, quero que elle me deva uma
bella caçada!
E emquanto o acompanhavamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta
escada onde o mordomo o precedia erguendo um candelabro de tres lumes,
S. Alteza repisava, pegajoso:
―Uma bella caçada... E tambem vae Fernandes! Bom Fernandes,
Zé Fernandes! Ceia superior, meu Jacintho! O
Barão de Pauillac, divino!... Creio que
o devemos
nomear Duque... O Senhor Duque de Pauillac! Mais um bocado da perna do
Senhor Duque de Pauillac. Ah! Ah!... Não venham
fóra!
Não se
constipem!
[95]E do fundo do
coupé, ao rodar, ainda bradou:
―O peixe, Jacintho, desencalha o peixe! Excellente, ao
almoço, frio, com môlho verde!
Trepando cançadamente os degraus, n'uma molleza de Champagne
e somno em que os olhos se me cerravam, murmurei para o meu Principe:
―Foi divertido, Jacintho! Sumptuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o
elevador...
E Jacintho, n'um som cavo que era bocejo e rugido:
―Uma massada! E tudo falha!
Tres dias depois d'esta festa no 202 recebeu o meu Principe
inesperadamente, de Portugal, uma nova consideravel. Sobre a sua quinta
e solar de Tormes, por toda a serra, passára uma tormenta
devastadora de vento, corisco e agua. Com as grossas chuvas,
«ou
por outras
causas que os peritos dirão» (como exclamava na
sua carta
angustiada o procurador Silverio), um pedaço de monte, que
se
avançava em
socalco sobre o valle da Carriça, desabára,
arrastando a
velha egreja,
uma egrejinha rustica do seculo XVI, onde jaziam sepultados os
avós de Jacintho
desde os tempos de el-rei D. Manoel. Os ossos veneraveis
[96]d'esses Jacinthos
jaziam agora soterrados sob um montão informe de terra e
pedra. O
Silverio já começára com os
moços da quinta a
desatulhar dos «preciosos restos». Mas esperava
anciosamente as ordens de sua exc.
a...
Jacintho empallidecêra, impressionado. Esse velho solo
serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de repente
ruia!
Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na
treva, para um negro
fundo de valle! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data,
uma historia, confundidas n'um lixo de ruina!
―Coisa estranha, coisa estranha!...
E toda a noite me interrogou ácerca da serra e de Tormes,
que eu conhecia desde pequeno, por que o velho solar, com a sua nobre
alameda de faias seculares, se erguia a duas legoas da nossa casa, no
antigo caminho de Guiães á
estação
e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom Melchior, era cunhado do nosso
feitor da Roqueirinha:―e muitas vezes, depois da minha intimidade com
Jacintho, eu entrára no
robusto casarão de granito, e avaliára o
grão
espalhado pelas
salas sonoras, e provára o vinho novo nas adegas immensas...
―E a egreja, Zé Fernandes?... Entraste na egreja?
―Nunca... Mas era pittoresca, com uma
[97]torresinha
quadrada, toda negra,
onde ha muitos annos vivia uma familia de cegonhas... Terrivel
transtorno para as cegonhas!
―Coisa estranha! murmurava ainda o meu Principe, agourado.
E telegraphou ao Silverio que desatulhasse o valle, recolhesse as
ossadas, reedificasse a Egreja, e, para esta obra de piedade e
reverencia, gastasse o dinheiro, sem contar, como a agua d'um rio
largo.
V
No emtanto Jacintho, desesperado com tantos desastres humilhadores―as
torneiras que dessoldavam, os elevadores que emperravam, o Vapor que se
encolhia, a Electricidade que se sumia, decidiu valorosamente vencer as
resistencias finaes da Materia e da Força por novas e mais
poderosas accumulacões de Mechanismos. E n'essas semanas de
Abril,
emquanto as rosas desabrochavam, a nossa agitada casa, entre aquellas
quietas casas
dos Campos-Elyseos que preguiçavam ao sol, incessantemente
tremeu, envolta n'um pó de caliça e d'empreitada,
com o
bruto picar de pedra, o retininte martelar de ferro. Nos silenciosos
corredores, onde me era dôce fumar antes do almoço
um
pensativo cigarro,
circulavam agora, desde madrugada, ranchos d'operarios, de blusas
brancas, assobiando o
Petît-Bleu, e
intimidando
os meus passos
[100]quando
eu atravessava em fralda e chinellas para o banho ou para outros
retiros. Apenas se
varava com pericia algum andaime obstruindo as portas―logo se
esbarrava com uma pilha de taboas, uma ceira de farramentas ou um balde
enorme d'argamassa. E os pedaços de soalho levantado
mostravam
tristemente, como n'um cadaver aberto, todos os interiores do 202, a
ossatura, os sensiveis nervos d'arame, os negros intestinos de ferro
fundido.
Cada dia estacava deante do portão alguma lenta
carroça, d'onde os creados, em mangas de camisa,
descarregavam
caixotes de madeira, fardos
de lona, que se despregavam e se descosiam n'uma sala asphaltada, ao
fundo do jardim, por traz da sebe de lilazes. E eu descia, reclamado
pelo meu Principe, para admirar uma nova Machina que nos tornaria a
vida mais facil, estabelecendo d'um modo mais seguro o nosso dominio
sobre a
Substancia. Durante os calores, que apertaram depois da
Ascenção, ensaiamos esperançadamente,
para
refrescar as aguas
mineraes, a Soda-Water e os Medocs ligeiros, tres geleiras, que se
amontoaram na copa successivamente desprestigiadas. Com os morangos
novos appareceu
um instrumentosinho astuto, para lhes arrancar os pés,
delicadamente.
[101]Depois
recebemos
outro, prodigioso, de prata e crystal, para remexer phreneticamente as
saladas; e, na primeira vez que o experimentei, todo
o vinagre esparrinhou sobre os olhos do meu Principe, que fugiu aos
uivos! Mas elle teimava... Nos actos mais elementares, para alliviar ou
apressar o esforço, se soccorria Jacintho da Dynamica. E
agora era por intervenção d'uma machina que
abotoava as
ceroulas.
E simultaneamente, ou em obediencia á sua Idéa,
ou governado pelo despotismo do habito, não cessava, ao lado
da
Mechanica
accumulada, de accumular Erudição. Oh, a
invasão
dos
livros no 202! Solitarios, aos pares, em pacotes, dentro de caixas,
franzinos, gordos e repletos de auctoridade, envoltos em plebeia capa
amarella ou revestidos de marroquim e ouro, perpetuamente,
torrencialmente, invadiam por todas as
largas portas a Bibliotheca, onde se estiravam sobre o tapete, se
repimpavam nas cadeiras macias, se enthronisavam em cima das mesas
robustas, e sobretudo trepavam contra as janellas, em sofregas pilhas,
como se, suffocados pela sua propria multidão, procurassem
com ancia espaço e ar! Na erudita nave, onde apenas alguns
vidros mais
altos restavam descobertos, sem tapume de livros, perennemente se
adensava um
pensativo
[102]crepusculo
de outono
emquanto fóra Junho refulgia.
A Bibliotheca transbordára através de todo o 202!
Não se abria um armario sem que de dentro se despenhasse,
desamparada, uma pilha de livros!
Não se franzia uma cortina sem que de traz surgisse, hirta,
uma
ruma de livros! E immensa foi a minha indignação
quando
uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas
alças, encontrei,
vedada por uma tremenda collecção de Estudos
Sociaes, a
porta do
Water-Closet!
Mais amargamente porém me lembro da noite historica em que,
no meu quarto, moido e molle d'um passeio a Versalhes, com as palpebras
poeirentas e meio adormecidas, tive de desalojar do meu leito,
praguejando, um pavoroso Diccionario de Industria em trinta e sete
volumes! Senti então a suprema fartura do livro. Ageitando,
com murros, os travesseiros, maldisse a Imprensa, a Facundia humana...
E
já me estirára, adormecia, quando topei, quasi
parti a
preciosa
rotula do joelho, contra a lombada d'um tomo que velhacamente se
aninhára entre a parede e os colchões. Com furor
e um
berro empolguei,
arremessei o tomo affrontoso―que entornou o jarro, inundou um tapete
rico de Daghestan.
E nem sei se depois adormeci―porque os meus pés, a que
não sentia nem o pisar nem
[103]o
rumor, como se um vento brando me levasse, continuaram a
tropeçar em livros no corredor apagado, depois na areia do
jardim que o luar branqueava, depois na Avenida dos Campos-Elyseos,
povoada e
ruidosa como n'uma festa civica. E, oh portento! todas as casas aos
lados eram construidas com livros. Nos ramos dos castanheiros
ramalhavam folhas de
livros. E os homens, as finas damas, vestidos de papel impresso, com
titulos nos dorsos, mostravam em vez de rosto um livro aberto, a que a
brisa lenta virava docemente as folhas. Ao fundo, na Praça
da Concordia, avistei uma escarpada montanha de livros, a que tentei
trepar, arquejante, ora enterrando a perna em flacidas camadas de
versos, ora batendo contra a lombada, dura como calhau, de tomos de
Exegese e Critica. A tão vastas alturas subi, para
além
da
terra, para além das nuvens, que me encontrei, maravilhado,
entre os astros. Elles rolavam serenamente, enormes e mudos, recobertos
por espessas crostas de
livros, d'onde surdia, aqui e além, por alguma fenda, entre
dois
volumes mal juntos, um raiosinho de luz suffocada e anciada. E assim
ascendi ao Paraiso. Decerto era o Paraiso―porque com meus olhos de
mortal argila avistei o Ancião da Eternidade, aquelle que
não
tem Manhã nem Tarde. N'uma claridade que d'elle irradiava
[104]mais
clara que todas as
claridades, entre fundas estantes d'ouro abarrotadas de codices,
sentado em vetustissimos folios, com os flocos das infinitas barbas
espalhados por
sobre resmas de folhetos, brochuras, gazetas e catalogos―o Altissimo
lia. A fronte super-divina que concebera o Mundo pousava sobre a
mão super-forte que o Mundo creára―e o Creador
lia e
sorria.
Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu hombro
coruscante. O livro era brochado, de tres francos... O Eterno lia
Voltaire, n'uma edição barata, e sorria.
Uma porta faiscou e rangeu, como se alguem penetrasse no Paraiso.
Pensei que um Santo novo chegára da Terra. Era Jacintho, com
o
charuto em braza, um molho de cravos na lapella, sobraçando
tres livros
amarellos que a Princeza de Carman lhe emprestára para
lêr!
N'uma d'essas activas semanas, porém, a minha
attenção subitamente se despegou d'este
interessante Jacintho. Hospede do 202, conservava no
202 a minha mala e a minha roupa: e, acostado á bandeira do
meu
Principe, ainda occasionalmente comia do seu caldeirão
sumptuoso. Mas
a minha alma, a minha embrutecida
[105]alma,
e o meu corpo, o meu embrutecido corpo,
habitavam então na rua do Helder, n.º 16, quarto
andar,
porta á esquerda.
Descia eu uma tarde, n'uma leda paz de idéas e
sensações, o Boulevard da Magdalena, quando
avistei,
deante da Estação dos
Omnibus, rondando no asphalto, n'um passo lento e felino, uma creatura
secca, muito morena, quasi tisnada, com dous fundos olhos taciturnos e
tristes, e uma matta de cabellos amarellados, toda crespa e rebelde,
sob o chapéo
velho de plumas negras. Parei, como colhido por um repuxão
nas
entranhas. A creatura passou―no seu magro rondar de gata negra, sobre
um beiral de telhado, ao luar de Janeiro. Dous poços fundos
não luzem mais negra e taciturnamente do que luziam os seus
olhos taciturnos e negros.
Não recordo (Deus louvado!) como rocei o seu vestido de
sêda,
lustroso e encebado nas pregas; nem como lhe rosnei uma
súpplica
por
entre os dentes que rangiam; nem como subimos ambos, morosamente e mais
silenciosos que condemnnados, para um gabinete do Café
Durand, safado e môrno. Deante do espelho, a creatura, com a
lentidão d'um rito triste, tirou o chapéo e a
romeira
salpicada de vidrilhos. A
sêda poida do corpete esgarçava nos cotovellos
agudos. E
os seus cabellos
eram immensos, d'uma
[106]dureza
e espessura de juba brava, em dous tons amarellos, uns mais dourados,
outros mais crestados, como a
côdea de uma torta ao sahir quente do forno.
Com um riso tremulo, agarrei os seus dedos compridos e frios:
―E o nomesinho, hein?
Ella séria, quasi grave:
―Madame Colombe, 16, rua do Helder, quarto andar, porta á
esquerda.
E eu (miseravel Zé Fernandes!) tambem me senti muito
sério, trespassado por uma emoção
grave, como se
nos envolvesse,
n'aquella alcôva de Café, a magestade d'um
Sacramento.
Á porta, empurrada levemente, o
creado avançou a face nedia. Ordenei uma lagosta, pato com
pimentões, e Borgonha. E foi sómente ao findarmos
o pato
que me ergui,
amarfanhando convulsamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a bocca,
todo a tremer, n'um beijo profundo e terrivel, em que deixei a alma,
entre saliva e gôsto de pimentão! Depois, n'uma
tipoia
aberta, sob um bafo molle de leste e de trovoada, subimos a Avenida dos
Campos-Elyseos. Em frente á grade do 202 murmurei, para a
deslumbrar com o meu
luxo:―«Móro alli, todo o anno!...» E
como ao mirar
o Palacete,
debruçada, ella roçára a matta fulva
do pello
crespo pela minha
barba―berrei
[107]
desesperadamente ao cocheiro; que galopasse para a rua do Helder,
n.º 16, quarto andar, porta á esquerda!
Amei aquella creatura. Amei aquella creatura com Amor, com todos os
Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o
Amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava
Julietta, como um bode ama uma cabra. Era estupida, era triste. Eu
deliciosamente apagava
a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com ineffavel
gôsto afundava a minha razão na densidade da sua
estupidez. Durante sete
furiosas semanas perdi a consciencia da minha personalidade de
Zé Fernandes―Fernandes de Noronha e Sande, de
Guiães!
Ora se
me affigurava ser um pedaço de cêra que se
derretia, com
horrenda delicia, n'um forno rubro e rugidor: ora me parecia ser uma
faminta fogueira onde flammejava, estalava e se consumia um
mólho de galhos
seccos. D'esses dias de sublime sordidez só conservo a
impressão
d'uma alcôva forrada de cretones sujos, d'uma bata de
lã
côr de lilaz com
sotaches negros, de vagas garrafas de cerveja no marmore d'um
lavatorio, e d'um corpo tisnado que rangia e tinha cabellos no peito. E
tambem me resta a sensação de incessantemente e
com
arrobado
deleite me despojar, arremessar
[108]para
um regaço, que se cavava entre um ventre
sumido e uns joelhos agudos, o meu relogio, os meus berloques, os meus
anneis, os meus botões de punho de saphira, e as cento e
noventa
e sete
libras em ouro que eu trouxera de Guiães n'uma cinta de
camurça. Do solido, decoroso, bem fornecido Zé
Fernandes,
só restava
uma carcassa errando atravéz d'um sonho, com as gambias
molles e
a baba a
escorrer.
Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da rua do
Helder, encontrei a porta fechada―e arrancado da hombreira aquelle
cartão de
Madame Colombe
que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua
taboleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de
Paris tremesse! Aquella era a porta do Mundo que ante mim se
fechára! Para
além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ella. E
eu ficára
sósinho, n'aquelle patamar do Não-ser,
fóra da porta que
se fechára, unico ser fóra do Mundo! Rolei pelos
degraus, com o fragor e a
incoherencia d'uma pedra, até ao cubiculo da porteira e do
seu homem que
jogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso
abalo
não tivesse desmantelado o Universo!
―Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:
[109]
―Ja não mora... Abalou esta manhã, para outra
terra, com outra porca!
Para outra terra! com outra porca!... Vasio, negramente vasio de todo o
pensar, de todo o sentir, de todo o querer―boiei aos tombos, como um
tonel vasio, na corrente açodada do Boulevard,
até que encalhei n'um banco da Praça da
Magdalena, onde
tapei com as
mãos, a que não sentia a febre, os olhos a que
não
sentia o pranto! Tarde, muito
tarde, quando já se cerravam com estrondo as cortinas de
ferro
das lojas, surdiu,
d'entre todas estas confusas ruinas do meu ser, a eterna sobrevivente
de todas as ruinas―a ideia de jantar. Penetrei no Durand, com os
passos entorpecidos d'um resuscitado. E, n'uma
recordação que m'escaldava a alma, encommendei a
lagosta,
o pato, o Borgonha! Mas ao alargar o collarinho, ensopado pelo ardor
d'aquella tarde de Julho, entre a
poeira da Magdalena, pensei com
desconfôrto:―«Santissimo
Nome de Deus! Que immensa sêde me fez esta
desgraça!...»
De manso acenei ao moço:―«Antes do Borgonha, uma
garrafa
de Champagne, com muito gêlo, e um
grande copo!...» Creio que aquelle Champagne se
engarrafára no Ceu onde corre perennemente a fresca fonte da
Consolação, e que
na garrafa bemdita que me coube penetrára, antes
d'arrolhada,
[110]um
jorro largo d'essa
fonte inneffavel. Jesus! que transcendente regalo, o d'aquelle nobre
copo, embaciado, nevado, a espumar, a picar, n'um brilho d'ouro! E
depois, garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de Cognac! E depois
Hortelã-Pimenta granitada em gêlo! E depois um
desejo arquejante de espancar, com o meu rijo marmelleiro de
Guiães, a porca que
fugira com outra porca! Dentro da tipoia fechada, que me transportou
n'um galope
ao 202, não suffoquei este santo impulso, e com os meus
punhos
serranos atirei murros retumbantes contra as almofadas, onde
via, furiosamente
via a
matta immensa de pello
amarello, em que a minha alma uma tarde se perdera, e tres mezes se
debatera, e para sempre se
emporcalhára! Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu
espancava tão
desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do cocheiro, dous
moços
accudiram e me sustiveram, recebendo pelos hombros, sobre as nucas
servis, os restos cançados da minha colera.
Em cima, repelli a sollicitude do Grillo que tentava impôr ao
siô Zé Fernandes, a
Zé Fernandes de Guiães, a immensa
indignidade d'um chá de macella! E estirado no leito de D.
Galião, com as botas
sobre o travesseiro, o chapéo alto sobre os olhos, ri, n'um
doloroso
[111]riso, d'este Mundo
burlesco e sordido
de Jacinthos e de Colombes! E de
repente senti uma angustia horrenda. Era Ella! Era a Madame Colombe,
que esfuziára da chamma da vela, e saltára sobre
o
meu leito, e desabotoára o meu collete, e
arrombára as
minhas costellas, e toda ella,
com as saias sujas, mergulhára dentro do meu peito, e
abocára o meu coração, e chupava a
sorvos lentos,
como na rua do Helder, o sangue do meu
coração! Então, certo da Morte,
ganindo pela tia
Vicencia, pendi do
leito para mergulhar na minha sepultura, que, através da
nevoa
final,
eu distinguia sobre o tapete―redondinha, vidrada, de porcelana e com
aza. E, sobre a
minha sepultura, que tão irreverentemente se assimilhava ao
meu vaso, vomitei o Borgonha, vomitei o pato, vomitei a lagosta.
Depois, n'um esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo
que,
não sómente toda a entranha, mas a alma se
esvasiava
toda, vomitei Madame Colombe! Recahi sobre o leito de D.
Galião... Recarreguei o
chapéo sobre os olhos para não sentir os raios do
sol.
Era um sol novo, um sol
espiritual, que se erguia sobre a minha vida. E adormeci, como uma
creancinha docemente embalada n'um berço de verga pelo Anjo
da
Guarda.
De manhã, lavei a pelle n'um banho profundo, perfumado com
todos os aromas do
[112]202,
desde folhas de limonete da India até
essencia de jasmin de França: e lavei a alma com uma rica
carta
da Tia
Vicencia, em letra farta, contando da nossa casa, e da linda promessa
das vinhas, e da compota de ginja que nunca lhe sahíra
tão fina, e
da alegre fogueira do pateo em noite de S. João, e da
menininha
muito gorda e
cabelluda que viéra do ceu para a minha afilhada Joanninha.
Depois,
á janella, bem limpo de alma e de corpo, n'uma quinzena de
sedinha branca, tomando
chá de Naïpò, respirando os rosaes do
jardim
revividos
pela chuva da madrugada, considerei, em divertido pasmo, que, durante
sete semanas,
me emporcalhára, na rua do Helder, com um estardalho muito
magro e muito tisnado! E conclui que padecera d'uma longa
sezão,
sezão da carne, sezão da
imaginação,
apanhada n'um charco de
Paris―n'esses charcos que se formam através da Cidade com
as
aguas mortas, os limos, os
lixos, os tortulhos e os vermes d'uma Civilisação
que
apodrece.
Então, curado, todo o meu espirito, como uma agulha para o
Norte, se virou logo para o meu complicado Principe, que, nas
derradeiras semanas
da minha infecção sentimental, eu entrevira
sempre descahido por cima
[113]de
sophás, ou vagueando através da Bibliotheca entre
os seus trinta mil volumes, com arrastados bocejos de inercia e de
vacuidade. Eu, na minha
pressa indigna, só lhe lançava um
distrahido―«que é isso?» Elle, no seu
moroso desalento, só murmurava um
sêcco―«é calor!»
E, n'essa manhã da minha libertação,
ao penetrar antes d'almoço no seu quarto, no
sophá o encontrei enterrado, com o
Figaro aberto sobre a barriga, a Agenda cahida
sobre o tapete,
toda a face envolta em sombra,
e os pés abandonados, n'uma soberana tristeza, ao pedicuro
que lhe polia as unhas. Decerto o meu olhar reallumiado e repurificado,
a brancura
das minhas flanellas reproduzindo a quietação das
minhas sensações, e a segura harmonia em que todo
o meu
ser visivelmente se movia, impressionaram o meu Principe―a quem a
melancolia nunca embotava a agudeza. Ergueu mollemente um
braço
molle:
―Então esse capricho?
Derramei, sobre elle todo o fulgor d'um riso victorioso:
―Morto! E, como o Snr. de Malbrouck, «morto e bem
enterrado.» Jaz! Ou antes, rola! Com effeito deve andar agora
rolando por dentro do cano do
esgoto!
Jacintho bocejou, murmurou:
[114]
―Este Zé Fernandes de Noronha e Sande!...
E, no meu nome, no meu digno nome assim embrulhado n'um bocejo com
desprendida ironia, se resumiu todo o interesse d'aquelle Principe pela
suja tormenta em que se debatera o meu coração!
Mas não me melindrou esse consummado egoismo... Claramente
percebia eu que o meu Jacintho atravessava uma densa nevoa de tedio,
tão densa, e elle
tão afundado na sua molle densidade, que as glorias ou os
tormentos d'um camarada
não o commoviam, como muito remotas, intangiveis, separadas
da
sua sensibilidade por immensas camadas de algodão. Pobre
Principe da Gran-Ventura, tombado para o sophá de inercia,
com
os
pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio
cahira,
depois de renovar tão
bravamente todo o recheio mechanico e erudito do 202, na sua lucta
contra a
Força e a Materia!―E esse fastio não o escondeu
mais do
seu velho
Zé Fernandes quando recomeçou entre
nós a
communhão
de vida e de alma a que eu tão torpemente me
arrancára,
uma tarde, deante da
Estação dos Omnibus, no charco da Magdalena.
Não eram certamente confissões enunciadas. O
elegante e reservado Jacintho não torcia
[115]os
braços,
gemendo―«Oh vida maldita!» Eram apenas
expressões
saciadas; um gesto de repellir com
rancôr a importunidade das coisas; por vezes uma immobilidade
determinada, de protesto, no fundo d'um divan, d'onde se não
desenterrava, como para um repouso
que desejasse eterno; depois os bocejos, os ôcos bocejos com
que
sublinhava cada passo, continuado por fraqueza ou por dever
inilludivel; e sobretudo aquelle murmurar que se tornára
perenne
e
natural―«Para que?»―«Não
vale a
pena!»―«Que massada!...»
Uma noite no meu quarto, descalçando as botas, consultei o
Grillo:
―Jacintho anda tão mucho, tão corcunda... Que
será, Grillo?
O venerando preto declarou com uma certeza immensa:
―S. Exc.
a soffre de fartura.
Era fartura! O meu Principe sentia abafadamente a fartura de Paris:―e
na Cidade, na symbolica Cidade, fóra de cuja vida culta e
forte (como elle outr'ora gritava, illuminado) o homem do seculo XIX
nunca poderia saborear plenamente a «delicia de
viver»,
elle
não encontrava agora fórma de vida, espiritual ou
social,
que o interessasse, lhe
valesse o esfôrço d'uma corrida curta n'uma tipoia
[116]facil.
Pobre Jacintho! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a Chronica
até aos
Annuncios, com a tinta delida, as dobras roídas,
não
enfastiaria mais o Solitario, que só possuisse na sua
Solidão esse alimento
intellectual, do que o Parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se
eu n'esse
verão capciosamente o arrastava a um
Café-Concerto, ou ao
festivo
Pavilhão d'Armenonville, o meu bom Jacintho, collado
pesadamente
á
cadeira com um maravilhoso ramo de orchideas na casaca, as finas
mãos
abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite
uma
gravidade
tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava,
gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga d'ave solta... Raramente (e
então com
vehemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus
Clubs, ao fundo
dos Campos-Elyseos. Não se occupara mais das suas Sociedades
e Companhias, nem dos
Telephones de
Constantinopla, nem das
Religiões
Esotericas, nem do
Bazar
Espiritualista,
cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa d'ebano, d'onde o
Grillo as varria tristemente como o lixo d'uma vida finda. Tambem
lentamente se despegava de todas
as suas convivencias. As paginas da Agenda côr de rosa murcha
andavam desafogadas e brancas. E se ainda cedia a um passeio de
Mail-coach,
[117]ou
a um convite para algum Castello amigo dos arredores de Paris, era
tão arrastadamente, com um esforço tão
saturado ao
enfiar o paletot leve, que me lembrava sempre um homem, depois d'um
gordo jantar de provincia,
a estalar, que, por pollidez ou em obediencia a um dogma, devesse ainda
comer uma lamprêa de ovos!
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e
bem defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma
doçura para o meu Principe se o seu proprio 202, com todo
aquelle tremendo recheio de Civilisação,
não lhe
désse
uma sensação dolorosa de abafamento, de
atulhamento!
Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos
moveis roliços e fôfos, todos os seus metaes e
todos os
seus livros, tão espessamente o opprimiam, que escancarava
sem
cessar as janellas para prolongar o espaço, a claridade, a
frescura. Mas era
então a poeira, suja e acre, rolada em bafos mornos, que o
enfurecia:
―Oh, este pó da Cidade!
―Mas, oh Jacintho, por que não vamos para Fontainebleau, ou
para Montmorency, ou...
―P'ra o campo? O que! P'ra o campo?!
E na sua face enrugada, através d'este berro, lampejava
sempre tanta indignação, que
[118]eu
curvava os hombros, humilde,
no arrependimento de ter affrontosamente ultrajado o Principe que tanto
amava. Desventurado Principe! Com o seu dourado cigarro d'Yaka a
fumegar, errava
então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em
terra
alheia sem
affeições e sem occupações.
Esses
desaffeiçoados
e desoccupados passos monotonamente o traziam ao seu centro, ao
gabinete verde, á
Bibliotheca d'ebano, onde accumulara Civilisação
nas
maximas
proporções para gozar nas maximas
proporções a delicia de viver.
Espalhava em tôrno um olhar farto. Nenhuma curiosidade ou
interesse lhe sollicitavam as
mãos, enterradas nas algibeiras das pantalonas de
sêda,
n'uma
inercia de derrota. Annulado, bocejava com descorçoada
molleza.
E nada
mais instructivo e doloroso do que este supremo homem do seculo XIX, no
meio
de todos os apparelhos reforçadores dos seus
orgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu
serviço as Forças
Universaes, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos
seculos―estacando, com as
mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na
face e
na
indecisão molle d'um bocejo, o embaraço de viver!
VI
Todas as tardes, cultivando uma d'essas intimidades que entre tudo o
que cança jámais cançam, Jacintho,
ás quatro horas, com regularidade devota, visitava Madame
d'Oriol:―por que essa flôr de Parisianismo
permanecera em Paris, mesmo depois do Grand-Prix, a desbotar na calma e
no cisco da
Cidade. N'uma d'essas tardes, porém, o Telephone,
anciosamente repicado, avisou Jacintho de que a sua dôce
amiga jantava em Enghien
com os Trèves. (Esses senhores gozavam o seu
verão
á beira do lago, n'uma casa toda branca e vestida de
rosinhas brancas que pertencia a Ephrain).
Era um domingo silencioso, ennevoado e macio, convidando ás
voluptuosidades da melancolia. E eu (no interesse da minha alma)
suggeri a Jacintho que subissemos á Basilica do
Sacré-Coeur, em
construcção nos altos de Montmartre.
[120]
―É uma secca, Zé Fernandes...
―Com mil demonios! Eu nunca vi a Basilica...
―Bem, bem! Vamos á Basilica, homem fatal de Noronha e
Sande!
E por fim logo que começamos a penetrar, para
além de S. Vicente de Paula, em bairros estreitos e
ingremes,
d'uma
quietação de provincia, com muros velhos fechando
quintalejos rusticos, mulheres despenteadas cozendo á
soleira
das portas, carriolas desatreladas
descançando diante das tascas, gallinhas soltas picando o
lixo,
cueiros molhados seccando em canas―o meu fastidioso camarada sorriu
áquella liberdade
e singeleza das cousas.
A vittoria parou em frente á larga rua de escadarias que
trepa, cortando viellasinhas campestres, até á
esplanada,
onde,
envolta em andaimes, se ergue a Basilica immensa. Em cada patamar
barracas d'arraial devoto, forradas de panninho vermelho, transbordavam
de Imagens, Bentinhos, Crucifixos, Corações de
Jesus
bordados a retroz,
claros molhos de Rosarios. Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a
Avè-Maria. Dois padres desciam, tomando risonhamente uma
pitada.
Um sino lento
tilintava na doçura cinzenta da tarde. E Jacintho murmurou,
com
agrado:
―É curioso!
[121]Mas a Basilica em
cima não nos
interessou, abafada em
tapumes e andaimes, toda branca e sêcca, de pedra muito nova,
ainda sem
alma. E Jacintho, por um impulso bem Jacinthico, caminhou gulosamente
para a borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o ceu
cinzento,
na
planicie cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e
grossa camada
de caliça e telha. E, na sua immobilidade e na sua mudez,
algum rolo de fumo, mais tenue e ralo que o fumear d'um escombro mal
apagado, era
todo o vestigio visivel da sua vida magnifica.
Então chasqueei risonhamente o meu Principe. Ahi estava pois
a Cidade, augusta creação da Humanidade! Eil-a
ahi, bello
Jacintho! Sobre a crosta cinzenta da Terra―uma camada de
caliça, apenas mais
cinzenta! No emtanto ainda momentos antes a deixaramos prodigiosamente
viva, cheia d'um povo forte, com todos os seus poderosos
orgãos
funccionando, abarrotada de riqueza, resplandecente de sapiencia, na
triumphal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada de
Graça. E agora eu e o bello Jacintho trepavamos a uma
collina,
espreitavamos, escutavamos―e de toda a estridente e radiante
Civilisação da Cidade não percebiamos
nem um rumor
nem um lampejo! E o 202, o soberbo
[122]202,
com os
seus arames, os seus apparelhos, a pompa da sua Mechanica, os seus
trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão de
telha e cinza! Para este esvaecimento pois da obra humana, mal ella se
comtempla de cem metros de altura, arqueja o obreiro humano em
tão angustioso
esforço? Hein, Jacintho?... Onde estão os teus
Armazens
servidos por
tres mil caixeiros? E os Bancos em que retine o ouro universal? E as
Bibliothecas atulhadas com o saber dos seculos? Tudo se fundiu n'uma
nodoa parda que
suja a Terra. Aos olhos piscos de um Zé Fernandes, logo que
elle suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada collina―a sublime
edificação dos Tempos não é
mais que um
silencioso monturo da
espessura e da côr do pó final. O que
será
então aos olhos de Deus!
E ante estes clamores, lançados com affavel malicia para
espicaçar o meu Principe, elle murmurou, pensativo:
―Sim, é talvez tudo uma illusão... E a Cidade a
maior illusão!
Tão facilmente victorioso redobrei de facundia. Certamente,
meu Principe, uma Illusão! E a mais amarga, por que o Homem
pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só
n'ella tem a fonte
de toda a sua miseria. Vê, Jacintho! Na Cidade perdeu
[123]elle
a
força e belleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser
resequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos molles
como trapos, de nervos
tremulos como arames, com cangalhas, com chinós, com
dentaduras
de
chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto,
corcunda―esse
ser em
que Deus, espantado, mal póde reconhecer o seu esbelto e
rijo e
nobre
Adão! Na Cidade findou a sua liberdade moral: cada
manhã
ella lhe
impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para
uma
dependencia: pobre
e subalterno, a sua vida é um constante sollicitar, adular,
vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacintho, a Sociedade
logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas,
ceremonias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que
os
d'um carcere ou d'um
quartel... A sua tranquillidade (bem tão alto que Deus com
elle
recompensa os
Santos) onde está, meu Jacintho? Sumida para sempre, n'essa
batalha
desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo
gôzo, ou pela fugidia rodella d'ouro! Alegria como a
haverá na Cidade para esses
milhões de seres que tumultuam na arquejante
occupação de
desejar―e que, nunca fartando o desejo,
incessantemente padecem de desillusão,
desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente
[124]humanos
logo na Cidade se deshumanisam! Vê, meu Jacintho!
São como
luzes que
o aspero vento do viver social não deixa arder com
serenidade e
limpidez; e
aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante
obriga a
flammejar com desnaturada violencia. As amizades nunca passam
d'allianças
que o interesse, na hora inquieta da defeza ou na hora sofrega do
assalto,
ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor
embate
da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacintho?
Considera esses vastos armazens com espelhos, onde a nobre carne d'Eva
se vende, tarifada ao arratel, como a de vacca! Contempla esse velho
Deus do Hymeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da
Paixão a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que
foge
dos largos caminhos assoalhados em que os Faunos amam as Nymphas na boa
lei natural, e busca tristemente os recantos lobregos de Sodoma ou de
Lesbos!... Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a
Intelligencia, por que ou lh'a arregimenta dentro da banalidade ou lh'a
empurra para a
extravagancia. N'esta densa e pairante camada d'Idéas e
Formulas que constitue a atmosphera mental das Cidades, o homem que a
respira,
n'ella envolto, só pensa todos os
[125]pensamentos
já
pensados, só exprime todas as expressões
já
exprimidas:―ou então,
para se destacar na pardacente e chata Rotina e trepar ao fragil
andaime da gloriola, inventa n'um gemente esforço, inchando
o
craneo, uma novidade disforme
que espante e que detenha a multidão como um mostrengo n'uma
Feira. Todos,
intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho,
balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam,
em fila, as pégadas pisadas;―e alguns são
macacos,
saltando no topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim,
meu Jacintho, na Cidade, n'esta creação
tão
anti-natural onde o
solo é de pau e feltro e alcatrão, e o
carvão tapa
o ceu, e a gente vive
acamada nos predios como o panninho nas lojas, e a claridade vem pelos
canos, e as mentiras se murmuram através d'arames―o homem
apparece como uma
creatura anti-humana, sem belleza, sem força, sem liberdade,
sem
riso, sem sentimento, e trazendo em si um espirito que é
passivo
como
um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o
bello
Jacintho
o que é a bella Cidade!
E ante estas encanecidas e veneraveis invectivas, retumbadas
pontualmente por todos os Moralistas bucolicos, desde Hesiodo, atravez
[126]dos seculos―o meu
Principe vergou a nuca docil, como se ellas brotassem, inesperadas e
frescas, d'uma Revelação
superior, n'aquelles cimos de Montmartre:
―Sim, com effeito, a Cidade... É talvez uma
illusão perversa!
Insisti logo, com abundancia, puchando os punhos, saboreando o meu
facil philosophar. E se ao menos essa illusão da Cidade
tornasse
feliz a totalidade dos sêres, que a manteem... Mas
não!
Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade os gozos
especiaes que ella cria. O resto, a escura, immensa plebe,
só
n'ella soffre, e com
soffrimentos especiaes que só n'ella existem! D'este
terraço,
junto a esta rica Basilica consagrada ao Coração
que amou
o Pobre e
por elle sangrou, bem avistamos nós o lobrego casario onde a
plebe se curva sob
esse antigo opprobrio de que nem Religiões, nem
Philosophias,
nem
Moraes, nem a sua propria força brutal a poderão
jámais
libertar! Ahi jaz, espalhada pela Cidade, como esterco vil que fecunda
a Cidade. Os seculos rolam; e sempre immutaveis farrapos lhe cobrem o
corpo, e sempre debaixo
d'elles, através do longo dia, os homens
labutarão e as
mulheres chorarão. E com este labor e este pranto dos
pobres,
meu Principe, se edifica a abundancia da Cidade!
[127]Eil-a
agora coberta de moradas em que elles se
não abrigam; armazenada de estofos, com que elles se
não
agasalham; abarrotada de alimentos, com que elles se não
saciam!
Para
elles só a neve, quando a neve cáe, e entorpece e
sepulta
as
creancinhas aninhadas pelos bancos das praças ou sob os
arcos
das pontes de
Paris... A neve cáe, muda e branca na treva: as creancinhas
gelam nos seus
trapos: e a policia, em torno, ronda attenta para que não
seja
perturbado o tépido somno d'aquelles que amam a neve, para
patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com pelliças de tres
mil
francos. Mas quê,
meu Jacintho! a tua Civilisação reclama
insaciavelmente
regalos e
pompas, que só obterá, n'esta amarga desharmonia
social,
se o Capital dér ao
Trabalho, por cada arquejante esfôrço, uma migalha
ratinhada.
Irremediavel é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a
plebe
péne! A sua esfalfada
miseria é a condição do esplendor
sereno da
Cidade. Se nas
suas tigellas fumegasse a justa ração de
caldo―não poderia
apparecer nas baixellas de prata a luxuosa porção
de
foie-gras e tubaras que
são o orgulho da Civilisação. Ha
andrajos em trapeiras―para que
as bellas Madamas d'Oriol, resplandecentes de sêdas e rendas,
subam, em doce
ondulação, a escadaria da Opera. Ha
mãos
[128]regeladas
que se estendem, e
beiços sumidos que agradecem o dom magnanimo d'um
sou―para que os Ephrains tenham dez
milhões no Banco
de França, se
aqueçam á chamma rica da lenha aromatica, e
surtam de
collares de saphiras as suas concubinas, netas dos Duques d'Athenas. E
um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos―para que os
Jacinthos, em janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe,
morangos gelados em Champagne e avivados d'um fio
d'ether!
―E eu comi dos teus morangos, Jacintho! Miseraveis, tu e eu!
Elle murmurou, desolado:
―É horrivel, comemos d'esses morangos... E talvez por uma
illusão!
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a
presença da Cidade, estendida na planicie, fosse
escandalosa. E
caminhamos devagar, sob a molleza cinzenta da tarde,
philosophando―considerando que para esta iniquidade não
havia
cura humana, trazida pelo
esforço humano. Ah, os Ephrains, os Trèves, os
vorazes e
sombrios
tubarões do mar humano, só abandonarão
ou
affrouxarão a
exploração das Plebes, se uma influencia celeste,
por
milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes converter as
almas!
[129]O
burguez triumpha, muito forte, todo endurecido no
peccado―e contra elle são impotentes os prantos dos
Humanitarios, os raciocinios dos Logicos, as bombas dos Anarchistas.
Para amollecer
tão duro granito só uma doçura divina.
Eis pois
esperança da terra novamente posta n'um Messias!... Um
decerto
desceu outrora dos grandes Ceus; e, para mostrar bem que mandado
trazia, penetrou mansamente no mundo pela porta d'um curral. Mas a sua
passagem entre os homens foi
tão curta! Um meigo sermão n'uma montanha, ao fim
d'uma
tarde meiga; uma
reprehensão moderada aos Phariseus que então
redigiam o
Boulevard; algumas vergastadas nos Ephrains
vendilhões; e logo,
através da porta da morte, a fuga radiosa para o Paraiso!
Esse
adoravel filho de Deus teve demasiada pressa em recolher a casa de seu
Pae! E os homens a quem elle
incumbira a continuação da sua obra, envolvidos
logo pelas influencias dos Ephrains, dos Trèves, da gente do
Boulevard, bem depressa esqueceram a
lição da Montanha e do lago de
Tiberiade―e eis que por seu turno revestem a purpura, e são
Bispos, e são
Papas, e se alliam á oppressão, e reinam com
ella, e edificam a
duração do seu Reino sobre a miseria dos
sem-pão e dos sem-lar! Assim tem de ser
recomeçada a obra
[130]da
Redempção. Jesus, ou Guatama, ou Christna, ou
outro d'esses filhos que Deus por vezes escolhe no seio d'uma Virgem,
nos quietos vergeis da Asia, deverá novamente descer
á
terra de
servidão. Virá elle, o desejado? Porventura
já
algum grave rei d'Oriente despertou,
e olhou a estrella, e tomou a myrrha nas suas mãos reaes, e
montou
pensativamente sobre o seu dromedario? Já por esses
arredores da
dura
Cidade, de noute, emquanto Caiphaz e Magdalena ceam lagosta no
Paillard, andou um Anjo, attento, n'um vôo lento, escolhendo
um
curral? Já
de longe, sem moço que os tanja, na gostosa pressa d'um
divino
encontro, vem trotando a vacca,
trotando o burrinho?
―Tu sabes, Jacintho?
Não, Jacintho não sabia―e queria accender o
charuto. Forneci um phosphoro ao meu Principe. Ainda rondamos no
terraço,
espalhando pelo ar outras idéas solidas que no ar se
desfaziam.
Depois
penetravamos na Basilica―quando um Sachristão nedio, de
barrete
de velludo,
cerrou fortemente a porta, e um Padre passou, enterrando na algibeira,
com um cançado gesto final e como para sempre, o seu velho
Breviario.
―Estou com uma sêde, Jacintho... Foi esta tremenda
Philosophia!
Descemos a escadaria, armada em arraial
[131]devoto.
O meu pensativo
camarada comprou uma imagem da Basilica. E saltavamos para a vittoria,
quando alguem gritou rijamente, n'uma surpreza:
―Eh Jacintho!
O meu Principe abriu os braços, tambem espantado:
―Eh Mauricio!
E, n'um alvoroço, atravessou a rua, para um café,
onde, sob o toldo de riscadinho, um robusto homem, de barba em bico,
remexia o seu absintho,
com o chapéo de palha descahido na nuca, a quinzena solta
sobre a camisa de sêda, sem gravata, como se
descançasse n'um
banco, entre as sombras do seu jardim.
E ambos, apertando as mãos, se admiravam d'aquelle encontro,
n'um domingo de verão, sobre as alturas de Montmartre.
―Oh! eu estou aqui no meu bairro! exclamava alegremente Mauricio. Em
familia, em chinellos... Ha tres mezes que subi para estes cimos da
Verdade... Mas tu na Santa Colina, homem profano da planicie e das ruas
d'Israel!
O meu Principe mostrou o seu Zé Fernandes:
―Com este amigo, em peregrinação á
Basilica...
[132]O meu
amigo Fernandes Lorena... Mauricio de Mayolle, velho camarada.
Mr. de Mayolle (que, pela face larga e nariz nobremente grosso,
lembrava Francisco de Valois, Rei de França) ergueu o seu
chapeu de
palha. E empurrava uma cadeira, insistia que nos accommodassemos para
um
absintho ou para um bock.
―Toma um bock, Zé Fernandes! lembrou Jacintho. Tu estavas a
ganir com sêde!
Corri lentamente a lingua sobre os beiços, mais
sêcos que pergaminhos:
―Estou a guardar esta sêdesinha para logo, para o jantar,
com um vinhosinho gelado!
Mauricio saudou, com silenciosa admiração, esta
minha avisada malicia. E immediatamente, para o meu Principe:
―Ha tres annos que te não vejo, Jacintho... Como tem sido
possivel, n'este Paris que é uma aldeola e que tu
atravancas?
―A vida, Mauricio, a espalhada vida... Com effeito! Ha tres annos,
desde a casa dos Lamotte-Orcel. Tu ainda visitas esse santuario?
Mauricio atirou um gesto desdenhoso e largo, que sacudia um mundo:
―Oh! Ha mais d'um anno que me separei d'essa bicharia heretica... Uma
turba indisciplinada, meu Jacintho! Nenhuma fixidez, um dilletantismo
estonteado, carencia completa e
[133]comica
de toda a base experimental... Quando tu ias aos Lamotte-Orcel, e
á Parola do 37, e
á
Cerveja ideal, o que reinava?...
Jacintho catou lentamente as suas recordações por
entre os pêllos do bigode:
―Eu sei!... Reinava Wagner e a Mithologia Eddica, e o Raganarock, e as
Nornas... Muito Pre-Raphaelismo tambem, e Montagna, e Fra-Angelico...
Em moral, o Renanismo.
Mauricio sacudia os hombros. Oh, tudo isso pertencia a um passado
archaico, quasi lacustre! Quando Madame de Lamotte-Orcel
remobilára a sala com velludos Morris, grossas alcachofras
sobre tons
d'açafrão, já o Renanismo
passára, tão esquecido como o
Cartesianismo...
―Tu ainda és do tempo do culto do
Eu?
O meu Principe suspirou risonhamente:
―Ainda o cultivei.
―Pois bem! Logo depois foi o Hartmanismo, o Inconsciente. Depois o
Nietzismo, o Feudalismo espiritual... Depois grassou o
Tolstoïsmo, um furor immenso de renunciamento neo-cenobitico.
Ainda me lembro d'um jantar em que appareceu um mostrengo d'um slavo,
de guedelha sordida, que atirava olhos medonhos para o decote da pobre
condessa d'Arche, e que grunhia com o dedo
espetado:―«Busquemos
a luz, muito por
baixo, no pó
[134]da
terra!»―E á sobremeza bebemos
á delicia da humildade e do trabalho servil, com aquelle
Champagne Marceaux granitado que a
Mathilde dava nos grandes dias em copos da fórma do
San-Gral!
Depois
veio Emersonismo... Mas a praga cruel foi Ibsenismo! Emfim, meu filho,
uma Babel de Ethicas e Estheticas. Paris parecia demente. Já
havia uns desgarrados que tendiam para o Luciferismo. E amiguinhas
nossas, coitadas, iam descambando para o Phallismo, uma moxinifada
mystico-brejeira, prégada por aquelle pobre La Carte que
depois se fez Monge Branco, e que anda no Deserto... Um horror! E uma
tarde, de repente, toda esta massa se precipita com ancia para o
Ruskinismo!
Eu, agarrado á bengala, bem fincada no chão,
sentia como um vendaval que redemoinhava, me torcia o craneo! E
até Jacintho balbuciou,
esgazeado:
―O Ruskinismo?
―Sim, o velho Ruskin,... John Ruskin!
O meu ditoso Principe comprehendeu:
―Ah, Ruskin!...
As sete lampadas da
Architectura,
A Corôa de
Oliveira Brava... É o culto da Belleza.
―Sim! O culto da Belleza, confirmou Mauricio. Mas a esse tempo eu,
enojado, já descera
[135]de
todas essas nuvens vãs...
Pisava um chão mais seguro, mais fertil.
Deu um sorvo lento ao absintho, cerrando as palpebras. Jacintho
esperava, com o seu fino nariz dilatado, como para respirar a
Flôr de Novidade que ia desabrochar:
―E então? então?...
Mas o outro murmurou, dispersamente, por entre reticencias em que se
velava:
―Vim para Montmartre... Tenho aqui um amigo, um homem de genio, que
percorreu toda a India... Viveu com os Toddas, esteve nos mosteiros de
Garma-Khian e de Dashi-Lumbo, e estudou com Gegen-Chutu no retiro santo
de Urga... Gegen-Chutu foi a decima-sexta
encarnação de Guatama, e era portanto um
Boddi-sattva...
Trabalhamos, procuramos... Não
são visões. Mas factos, experiencias bem antigas,
que vem
talvez desde os tempos de
Christna...
Através d'estes nomes, que exhalavam um perfume triste de
vetustos ritos, arredára a cadeira. E de pé,
deixando
cair
sobre a mesa, distrahidamente, para pagar o absintho, moedas de prata e
moedas de cobre, murmurava com os olhos descançados em
Jacintho,
mas
perdidos n'outra visão:
―Por fim tudo se reduz ao supremo desenvolvimento da Vontade dentro da
suprema
[136]pureza
da Vida. É toda a sciencia e força
dos grandes mestres Hindus... Mas a pureza absoluta da vida, eis a
lucta, eis o obstaculo! Não basta mesmo o Deserto, nem o
bosque
do mais velho templo
no alto Thibet... Ainda assim, meu Jacintho, já obtivemos
resultados
bem extranhos. Sabes as experiencias de Tyndall, com as chammas
sensitivas... O pobre chimico, para demonstrar as
vibrações do som, tocou quasi ás
portas da verdade
isoterica. Mas
què! homem de sciencia, portanto homem d'estupidez, ficou
áquem, entre as suas
placas e as suas retortas! Nós fômos
além.
Verificámos as
ondulações da
Vontade! Deante de nós,
pela expansão da energia do meu
companheiro, e em cadencia com o seu mandado, uma chamma, a tres
metros, ondulou, rastejou, despediu linguas ardentes, lambeu uma alta
parede, rugiu furiosa e negra, resplandeceu direita e silenciosa, e
bruscamente abatida em cinza morreu!
E o extranho homem, com o chapeu para a nuca, ficou immovel, de
braços abertos e os olhares esgazeados, como no renovado
assombro e no transe d'aquelle prodigio. Depois, recahindo no seu modo
facil e sereno, accendendo de vagar um cigarro:
―Uma d'estas manhãs, Jacintho, appareço no 202,
para almoçar comtigo, e levo o meu
[137]amigo.
Elle só come arrôz, uma pouca de
salada, e fructa. E conversamos... Tu tinhas um exemplar do
Sepher-Zerijah e outro do
Targum
d'Onkelus. Preciso folhear
esses livros.
Apertou a mão do meu Principe, saudou este assombrado
Zé Fernandes, e serenamente seguiu pela quieta rua, com o
chapeu
de palha para a nuca, as mãos enterradas nas algibeiras,
como um
homem natural
entre cousas naturaes.
―Oh Jacintho! Quem é este bruxo? Conta!... Quem
é elle, santissimo nome de Deus?
Recostado na vittoria, ageitando o vinco das calças, o meu
Principe contou, concisamente. Era um nobre e leal rapaz, muito rico,
muito intelligente, da antiga casa soberana de Mayolle, descendente dos
Duques de Septimania... E murmurou, através do costumado
bocejo:
―O desenvolvimento supremo da vontade!... Theosophia, Buddhismo
isoterico... Aspirações,
decepções... Já experimentei... Uma
massada!
Atravessamos, callados, o rumôr de Paris, sob a molleza
abafada do crepusculo de verão, para jantar no Bosque, no
Pavilhão d'Armenonville, onde os Tziganes, avistando
Jacintho, tocaram o
Hymno
da Carta com paixão,
[138]com
langor, n'uma cadencia de
czarda dolorosa e aspera.
E eu, desdobrando regaladamente o guardanapo:
―Pois venha agora para a minha rica sêde esse vinhosinho
gelado! Grandemente o mereço, caramba, que superiormente
philosophei!... E creio que estabeleci definitivamente no espirito do
Snr. D. Jacintho o
salutar horror da cidade!
O meu Principe percorria, catando o bigode, a Lista-dos-Vinhos, em
quanto o Copeiro, esperava com pensativa reverencia:
―Mande gelar duas garrafas de champagne S.
t
Marceaux... Mas antes, um
Barsac velho, apenas refrescado... Agoa de Evian... Não, de
Bussang! Bem, d'Evian e de Bussang! E, para começar, um
bock.
Depois, bocejando, desabotoando lentamente a sobrecasaca cinzenta:
―Pois estou com vontade de construir uma casa nos cimos de Montmartre,
com um miradouro no alto, todo de vidro e ferro, para
descançar de tarde e dominar a Cidade...
VII
Julho findára com uma chuva refrescante e consoladora:―e eu
pensava em realisar finalmente a minha romagem ás cidades da
Europa,
sempre retardada, através da primavera, pelas surprezas do
Mundo
e
da Carne. Mas, de repente, Jacintho começou a rogar e a
reclamar
que o
seu Zé Fernandes o acompanhasse, todas as tardes, a casa de
Madame d'Oriol! E eu comprehendi que o meu Principe (á
maneira
do divino
Achilles, que, sob a tenda, e junto da branca, insipida e docil
Briseis, nunca dispensava Patoclo) desejava ter, no retiro do Amor, a
presença, o confôrto e o soccorro da Amizade.
Pobre
Jacintho! Logo pela
manhã combinava pelo telephone com Madame d'Oriol essa hora
de
quietação e doçura. E assim
encontravamos sempre a
superfina Dama
prevenida e solitaria n'aquella sala da rua de Lisbonne, onde Jacintho
e eu mal
[140]cabiamos,
suffocavamos na confusão, entre os cestos de
flôres, e os ouros rocalhados, e os monstros do
Japão, e a
galante
fragilidade dos Saxes, e as pelles de feras estiradas aos
pés de
sophás adormecedores, e os biombos de Aubusson formando
alcôvas favoraveis e
languidas... Aninhada n'uma cadeira de bambú lacada de
branco,
entre
almofadas aromatisadas de verbena da India, com um romance pousado no
regaço, ella esperava o seu amigo, n'uma certa indolencia
passiva e mansa que me lembrava sempre o Oriente e um Harem. Mas, pelas
frescas sedinhas Pompadour, parecia tambem uma marquezinha de Versalhes
cançada do grande seculo; ou então, com brocados
sombrios
e largos cintos
cravejados, era como uma veneziana, preparada para um Doge. A minha
intrusão, na intimidade d'aquellas tardes, não a
contrariava―antes lhe
trazia um vassallo novo, com dous olhos novos para a contemplar. Eu era
já o seu
cher Fernandez!
E apenas descerrava os labios avivados de vermelho, semelhantes a uma
ferida fresca, e começava a chalrar―logo nos envolvia o
burburinho e a murmuração de Paris. Ella
só sabia
chalrar sobre a sua pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a
sua existencia que era o resumo do seu Paris:―e a sua existencia,
[141]desde
casada, consistira em ornar com suprema sciencia o seu lindo corpo;
entrar com
perfeição n'uma sala e irradiar; remexer em
estofos e
conferenciar pensativamente com o grande
costureiro; rolar pelo Bois pousada na sua vittoria como uma imagem de
cêra; decotar e branquear o collo; debicar uma perna de
gallinhola em mezas de luxo; fender turbas ricas em bailes espessos;
adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer de manhã,
tomando
chocolate, os
«Echos» e as «Festas» do
Figaro; e de vez em quando murmurar
para o marido―«Ah, és tu?...»
Além d'isso,
ao lusco-fusco,
n'um sophá, alguns certos suspiros, entre os
braços
d'alguem a quem era constante. Ao
meu Principe, n'esse anno, pertencia o sophá. E todos estes
deveres de Cidade e de Casta os cumpria sorrindo. Tanto sorrira, desde
casada, que
já duas prégas lhe vincavam os cantos dos
beiços, indelevelmente. Mas nem na alma, nem na pelle,
mostrava
outras maculas de fadiga. A sua Agenda de Visitas continha mil e
tresentos nomes, todos do Nobiliario. Através,
porém,
desta fulgurante sociabilidade
arranjára no cerebro (onde de certo penetrára o
pó
d'arroz que desde o
collegio acamava na testa) algumas Idéas Geraes. Em Politica
era
pelos
Principes; e todos os outros «horrores», a
Republica, o
Socialismo,
[142]a
Democracia que se não lava, os sacudia risonhamente, com um
bater de leque. Na Semana Santa juntava ás rendas do chapeu
a
Corôa amarga de
espinhos―por serem esses, para a gente bem-nascida, dias de penitencia
e dôr. E, deante
de todo o Livro ou de todo o Quadro, sentia a
emoção e
formulava finamente o juizo, que no seu Mundo, e n'essa Semana,
fôsse elegante
formular e sentir. Tinha trinta annos. Nunca se
embaraçára
nos tormentos d'uma paixão. Marcava, com rigida
regularidade,
todas as suas
despezas n'um Livro de Contas encadernado em pellucia verde-mar. A sua
religião intíma (e mais genuina do que a outra,
que a
levava todos os domingos
á missa de S. Philippe du Roule) era a Ordem. No inverno,
logo
que na amavel cidade começavam a morrer de frio, debaixo das
pontes,
creancinhas sem abrigo―ella preparava com commovido cuidado os seus
vestidos de patinagem. E preparava tambem os de Caridade―porque era
boa, e concorria para Bazares, Concertos e Tombolas, quando fossem
patrocinados pelas Duquezas do seu «rancho».
Depois, na
primavera, muito methodicamente, regateando, vendia a uma adela os
vestidos e as capas
de inverno. Paris admirava n'ella uma suprema flôr de
Parisianismo.
Pois respirando esta macia e fina flôr passamos
[143]nós as
tardes d'esse julho em
quanto as outras flôres pendiam e murchavam na calma
e no pó. Mas, na intimidade do seu perfume, Jacintho
não
parecia
encontrar esse contentamento d'alma, que entre tudo que
cança
jámais cança. Era já com a paciente
lentidão com que se sobem todos os Calvarios, os
mais bem tapetados, que elle subia a escadaria de Madame d'Oriol,
tão
suave e orlada de tão frescas palmeiras. Quando a appetitosa
creatura, com dedicação, para o entreter,
desdobrava a
sua
vivacidade como um pavão desdobra a cauda, o meu pobre
Principe
puxava os pêllos do
bigode murcho, na murcha postura de quem, por uma manhã de
Maio,
em
quanto os melros cantam nas sebes, assiste, n'uma egreja negra, a um
responso funebre por um Principe. E no beijo que elle chuchurreava
sobre a
mão da sua dôce amiga, para se despedir, havia
sempre
alacridade e
allivio.
Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar
através da Bibliotheca e do Gabinete, puxando sem
curiosidade a
tira do
telegrapho, atirando algum recado molle pelo telephone, espalhando o
olhar desalentado sobre o saber immenso dos trinta mil livros,
remexendo a collina dos Jornaes e Revistas, terminava por me chamar,
já
com a preguiça triste da façanha a que se
impellia:
[144]
―Vamos a casa de Madame d'Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha
marcadas para hoje seis ou sete coisas, mas não posso,
é uma
secca! Vamos a casa de Madame d'Oriol... Ao menos lá,
ás vezes, ha um
bocado de frescura e paz.
E foi n'uma d'essas tardes, em que o meu Principe assim procurava
desesperadamente um «bocado de frescura e paz», que
encontramos, ao meio da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido
de Madame d'Oriol. Eu já o conhecia―porque Jacintho m'o
mostrára uma
noite, no Grand Café, ceiando com dançarinas do
Moulin
Rouge. Era um moço gordalhufo, indolente, de uma
brancura crúa de toucinho, com uma calvice
já séria e já lustrosa, constantemente
acariciada pelos seus gordos
dedos carregados de anneis. N'essa tarde, porém, vinha
vermelho,
todo emocionado, calçando as luvas com colera. Estacou
diante de
Jacintho―e sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto
para o
patamar:
―Visita lá acima? Vai achar a Joanna em pessima
disposição... Tivemos uma scena, e tremenda.
Deu outro puxão desesperado á luva côr
de palha, já esgaçada:
―Estamos separados, cada um vive como lhe appetece, é
excellente! Mas em tudo ha
[145]medida
e fórma... Ella tem o meu nome,
não posso consentir que em Paris, com conhecimento de todo o
Paris, seja a amante do trintanario. Amantes na nossa roda,
vá!
Um lacaio,
não!... Se quer dormir com os creados que emigre para o
fundo da
provincia, para a sua casa de Corbelle. E lá até
com os
animaes!... Foi
o que eu lhe disse! Ficou como uma fera.
Sacudiu então a mão do Jacintho que
«era da sua roda»―rebolou pela escadaria florida e
nobre. O meu Principe, immovel nos degraus, de face
pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois, olhando
para mim, como um sèr saturado de tedio e em quem nenhum
tedio novo póde caber:
―Já agora subamos, sim?
Parti então, com muita alegria, para a minha appetecida
romagem ás Cidades da Europa.
Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, á pressa,
bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a mala. Onze vezes
passei o dia n'um wagon, envolto em poeirada e fumo, suffocado, a
arquejar, a escorrer de
suor, saltando em cada estação para sorver
desesperadamente limonadas mornas que me escangalhavam
[146]a
entranha. Quatorze vezes subi derreadamente, atraz de um creado, a
escadaria desconhecida d'um Hotel;
e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma
cama desconhecida, d'onde me erguia, estremunhado, para pedir em
linguas desconhecidas um café com leite que me sabia a fava,
um
banho de tina que me cheirava a lôdo. Oito vezes travei
bulhas
abominaveis
na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapelleira, quinze
lenços, tres ceroulas, e duas botas, uma branca, outra
envernizada, ambas do
pé direito. Em mais de trinta mezas-redondas esperei
tristonhamente que me
chegasse o
boeuf-a-la-mode,
já frio, com môlho coalhado―e que o copeiro me
trouxesse a garrafa de Bordeus que eu provava e repellia com
desditosa carantonha. Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos
marmores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove
Cathedraes. Trilhei mollemente, com uma dôr surda na nuca, em
quatorze muzeus,
cento e quarenta salas revestidas até aos tectos de
Christos,
heroes, santos, nymphas, princezas, batalhas, architecturas, verduras,
nudezes,
sombrias manchas de betume, tristezas das formas immoveis!... E o dia
mais
dôce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente,
encontrei um velho
[147]
inglez de penca flammejante que habitára o Porto,
conhecêra o Ricardo, o José Duarte, o Visconde do
Bom Successo, e as Limas da Boa
Vista... Gastei seis mil francos. Tinha viajado.
Emfim, n'uma bemdita manhã d'outubro, na primeira friagem e
nevoa d'outomno, avistei com enternecido alvoroço as
cortinas de
seda ainda fechadas do meu 202! Affaguei o hombro do Porteiro. No
patamar, onde encontrei o ar macio e tepido que deixára em
Florença, apertei os ossos do Grillo excellente:
―E Jacintho?
O digno negro murmurou, d'entre os altos, reluzentes collarinhos:
―S. Exc.
a circula... Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile
da
Duqueza de Loches. Era o contracto de casamento de Mademoiselle de
Loches... Ainda tomou antes de se deitar um chá gelado... E
disse a coçar a cabeça: «Eh! que
massada! Eh!
que massada!»
Depois do banho e do chocolate, ás dez horas, consolado e
quentinho dentro do roupão de velludo, rompi pelo quarto do
meu
Principe, de braços abertos e sedentos:
―Oh Jacintho!
―Oh viajante!...
Quando nos estreitamos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar a
face―e n'ella a
[148]alma.
Encolhido n'uma quinzena de panno côr
de malva orlada de pelles de martha, com os pellos do bigode murchos,
as suas duas rugas mais cavadas, uma molleza nos hombros largos, o meu
amigo parecia já vergado sob o pezo e a oppressão
e o
terror do seu dia. Eu sorri, para que elle sorrisse:
―Valente Jacintho... Então como tens vivido?
Elle respondeu, muito serenamente:
―Como um morto.
Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fôsse leve:
―Aborrecidote, hein?
O meu Principe lançou, n'um gesto tão vencido, um
oh tão cansado―que eu compadecido de
novo o abracei, o estreitei, como para lhe communicar
uma parte d'esta alegria solida e pura que recebi do meu Deus!
Desde essa manhã, Jacintho começou a mostrar
claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o
tédio de
que a existencia o saturava. O seu cuidado realmente e o seu
esfôrço
consistiram então em sondar e formular esse
tédio―na esperança de o
vencer logo que lhe conhecesse bem a origem e a potencia.
[149]E
o meu pobre Jacintho reproduziu
a comedia pouco divertida d'um Melancolico que perpetuamente raciocina
a sua Melancolia! N'esse raciocinío, elle partia sempre do
facto irrecusavel e massiço―que a sua vida especial de
Jacintho
continha todos os interesses e todas as facilidades, possiveis no
seculo XIX, n'uma vida de homem que não é um
Genio, nem
um
Santo. Com effeito! Apezar do appetite embotado por doze annos de
Champagnes e
môlhos ricos elle conservava a sua rijeza de pinheiro bravo;
na
luz da sua intelligencia não apparecêra nem tremor
nem
morrão; a boa terra de Portugal, e algumas Companhias
macissas,
pontualmente lhe forneciam a sua doce centena de contos; sempre activas
e sempre fieis o cercavam as
sympathias d'uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de
confôrtos; nenhuma amargura de coração
o atormentava;―e todavia era um Triste. Porque?... E d'aqui saltava,
com certeza fulgurante,
á conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento
burel em
que a sua alma andava amortalhada, não provinham da sua
individualidade de
Jacintho―mas da Vida, do lamentavel, do desastroso facto de Viver! E
assim o saudavel, intellectual, riquissimo, bem-acolhido Jacintho
tombára no
Pessimismo.
[150]E um Pessimismo
irritado! Porque
(segundo affirmava) elle nascera para ser tão naturalmente
optimista como um pardal ou um gato. E,
até aos doze annos, emquanto fôra um bicho
superiormente
amimado, com
a sua pelle sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca
sentira fadiga, ou melancolia, ou contrariedade, ou pena―e as lagrimas
eram para elle tão incomprehensiveis que lhe pareciam
viciosas.
Só quando crescêra, e da animalidade
penetrára na
humanidade, despontára n'elle esse fermento de tristeza,
muito
tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades, e que
depois alastrára, o invadira
todo, se lhe tornára consubstancial e como o sangue das suas
veias.
Soffrer portanto era inseparavel de Viver. Soffrimentos differentes nos
destinos differentes da Vida. Na turba dos humanos é a
angustiada
lucta pelo pão, pelo tecto, pelo lume; n'uma casta, agitada
por
necessidades mais
altas, é a amargura das desillusões, o mal da
imaginação insatisfeita, o orgulho chocando
contra
obstaculo; n'elle, que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o
tédio. Miseria do Corpo, tormento da
Vontade, fastio da Intelligencia―eis a Vida! E agora aos trinta e tres
annos a sua occupação era bocejar, correr com
[151]os dedos
desalentados a face pendida para n'ella palpar e appetecer a caveira.
Foi então que o meu Principe começou a ler
apaixonadamente, desde o
Ecclesiastes
até
Schopenhauer, todos os lyricos e todos os theoricos do Pessimismo.
N'estas leituras encontrava a reconfortante
comprovação de que o seu mal não era
mesquinhamente
«Jacinthico»―mas grandiosamente resultante d'uma
Lei
Universal. Já ha quatro mil annos, na
remota Jerusalém, a Vida, mesmo nas suas delicias mais
triumphaes,
se resumia em Illusão. Já o Rei incomparavel, de
sapiencia
divina, summo Vencedor, summo Edificador, se enfastiava, bocejava,
entre os despojos das suas conquistas, e os marmores novos dos seus
Templos, e as suas tres mil concubinas, e as Rainhas que subiam do
fundo da Ethiopia para que elle as fecundasse e no seu ventre
depozésse um Deus!
Não ha nada novo sob o sol, e a eterna
repetição
das coisas é
a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe
mais se
pena. E o justo como o perverso, nascidos
do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao
pó
ephemero, em Jerusalém e em Paris! E elle, obscuro no 202,
padecia por ser homem e por viver―como no seu throno d'ouro, entre os
seus quatro leões d'ouro, o filho
magnifico de David.
[152]
Não se separava então do
Ecclesiastes. E circulava por Paris
trazendo dentro do coupé Salomão, como
irmão de
dôr, com quem repetia o grito desolado que é a
summa da verdade
humana―
Vanitas Vanitatum!
Tudo
é Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o
encontrava
estendido
no sophá, n'um roupão de sêda,
absorvendo
Schopenhauer―emquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o tapete, lhe polia
com respeito e pericia as unhas dos
pés. Ao lado pousava a chavena de Saxe, cheia d'esse
café de Moka enviado por emires do Deserto, que
não o
contentava nunca,
nem pela força, nem pelo aroma. A espaços pousava
o livro
no peito, resvalava um olhar compassivo para o pedicuro, como a
procurar que dôr o torturaria―pois que a todo o viver
corresponde um soffrer. Decerto o remexer assim, perpetuamente, em
pés alheios... E quando o
pedicuro se erguia, Jacintho abria para elle um sorriso de
confraternidade―com um «adeus, meu amigo» que era
«um adeus, meu
irmão!»
Esse foi o periodo esplendido e soberbamente divertido do seu
tédio. Jacintho encontrára emfim na vida uma
occupação grata―maldizer a Vida! E para que a
podésse maldizer em todas as suas
fórmas, as mais ricas, as mais intellectuaes, as mais puras,
sobrecarregou
[153]a
sua vida propria de novo luxo, de interesses novos d'espirito, e
até de fervores
humanitarios, e até de curiosidades supernaturaes.
O 202, n'esse inverno, refulgiu de magnificencia. Foi então
que elle iniciou em Paris, repetindo Heliogabalo, os Festins de
Côr
contados na Historia Augusta: e offereceu ás suas amigas
esse
sublime
jantar côr de rosa, em que tudo era roseo, as paredes, os
moveis,
as luzes, as
louças, os crystaes, os gelados, os Champagnes, e
até
(por uma
invenção da Alta-Cozinha) os peixes, e as carnes,
e os
legumes, que os escudeiros serviam, empoados de pó rosado,
com
librés da
côr da rosa, em quanto do tecto, d'um velario de seda rosada,
cahiam petalas frescas de rosas...
A Cidade, deslumbrada, clamou―«Bravo, Jacintho!» E
o
meu Principe, ao rematar a festa fulgurante, plantou deante de mim as
mãos
nas ilhargas e gritou triumphalmente:―«Hein? Que
massada!...»
Depois foi o Humanitarismo: e fundou um Hospicio no campo, entre
jardins, para velhinhos desamparados, outro para creanças
debeis á beira do Mediterraneo. Depois com o major Dorchas,
e
Mayolle, e o
Hindù de Mayolle penetrou no Theosophismo: e montou
tremendas
experiencias para verificar a mysteriosa
[154]exteriorisação
da
motilidade. Depois, desesperadamente, ligou o 202 com os
fios telegraphicos do
Times, para que no seu gabinete, como n'um
coração,
palpitasse toda a vida Social da Europa.
E a cada um d'estes esforços da elegancia, do humanitarismo,
da sociabilidade, e da intelligencia indagadora, voltava para mim, de
braços alegres, com um grito
victorioso:―«Vês tu, Zé Fernandes? Uma
massada!»―Arrebatava então o seu
Ecclesiastes, o seu Schopenhauer,
e, estendido no sophá, saboreava voluptuosamente a
concordancia
da Doutrina e da Experiencia. Possuia uma Fé―o Pessimismo:
era um
apostolo rico e esforçado: e tudo tentava, com
sumptuosidade, para provar a
verdade da sua Fé! Muito gozou n'esse anno o meu
desgraçado
Principe!
No começo do inverno, porém, notei com
inquietação que Jacintho já
não folheava o
Ecclesiastes,
desleixava
Schopenhauer. Nem festas, nem Theosophismos, nem os seus Hospicios, nem
os fios do
Times, pareciam interessar agora o meu amigo,
mesmo como
demonstrações gloriosas da sua Crença.
E a sua
abominavel funcção de
novo se limitou a bocejar, a passar os dedos molles sobre a face
pendida palpando a caveira. Incessantemente alludia á morte
como
a uma
libertação. Uma
[155]tarde
mesmo, no melancolico crepusculo da Bibliotheca, antes de refulgirem as
luzes,
consideravelmente me aterrou, fallando n'um tom regelado de mortes
rapidas, sem dôr, pelo choque d'uma vasta pilha electrica ou
pela violencia compassiva do acido cyanidrico. Diabo! O Pessimismo, que
apparecera na Intelligencia do meu Principe como um conceito
elegante―atacára bruscamente a Vontade!
Todo o seu movimento então foi o d'um boi inconsciente que
marcha sob a canga e o aguilhão. Já
não esperava
da
Vida contentamento―nem mesmo se lastimava que ella lhe trouxesse
tédio ou pena.
«Tudo é indifferente, Zé
Fernandes!» E
tão indifferentemente sahiria
á sua janella para receber uma Corôa Imperial
offerecida
por um Povo―como se estenderia
n'uma poltrona rôta para emmudecer e jazer. Sendo tudo
inutil, e
não conduzindo senão a maior
desillusão, que podia
importar a mais rutilante actividade ou a mais desgostada inercia? O
seu gesto constante, que me irritava, era encolher os hombros. Perante
duas ideias, dois caminhos, dois pratos, encolhia os hombros! Que
importava?... E no minimo acto, raspar um phosphoro ou desdobrar um
Jornal, punha uma morosidade
tão desconsolada que todo elle parecia ligado, desde os
dedos
até á alma,
[156]
pelas voltas apertadas d'uma corda que se não via e que o
travava.
Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus annos, a 10 de
Janeiro. Cêdo, de manhã, recebèra, com
uma carta de Madame de Trèves, um açafate de
camelias,
azaleas, orchideas e lyrios do valle. E
foi este mimo que lhe recordou a data consideravel. Soprou sobre as
petalas o fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escarneo:
―Então, ha trinta e quatro annos que eu ando n'esta
massada?
E como eu propunha que telephonassemos aos amigos para beberem no 202 o
Champagne do «Natalicio»―elle recusou, com o nariz
enojado. Oh! Não! Que horrivel sécca!... E bradou
mesmo para o Grillo:
―Eu hoje não estou em Paris para ninguem. Abalei para o
campo, abalei para Marselha... Morri!
E a sua ironia não cessou até ao
almoço perante os bilhetes, os telegrammas, as cartas, que
subiam, se arredondavam em collina sobre a meza d'ebano, como um preito
da Cidade. Outras flôres que
vieram, em vistosos cestos, com vistosos laços, foram por
elle
comparadas ás que se depõe sobre uma tumba.
[157]E apenas se interessou um
momento
pelo presente de Ephraim, uma engenhosa meza, que se abaixava
até ao
tapete ou se alteava até ao tecto―para que, senhor Deus
meu?
Depois do almoço, como chovia sombriamente, não
arredamos do 202, com os pés estendidos ao lume, em
preguiçoso silencio.
Eu terminára por adormecer beatificamente. Acordei aos
passos açodados do
Grillo... Jacintho, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava
um papel!
E nunca eu me compadeci d'aquelle amigo, que
cançára a mocidade a accumular todas as
noções formuladas desde
Aristoteles e a juntar todos os inventos realisados desde Tharamenes,
como n'essa tarde de festa, em
que elle, cercado de Civilisação nas maximas
proporções para gozar nas maximas
proporções a delicia de viver, se
encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papeis com uma
tesoura!
O Grillo trazia um presente do Gran-Duque―uma caixa de prata, forrada
de cedro, e cheia d'um chá precioso, colhido, flôr
a flôr, nas veigas de Kiang-Sou por mãos puras de
virgens,
e conduzido
através da Asia, em caravanas, com a
veneração
d'uma reliquia.
Então, para despertar o nosso torpôr, lembrei que
tomassemos o divino
chá―occupação bem harmonica com a
tarde triste, a
chuva
[158]grossa
alagando os vidros, e a clara chamma bailando no fogão.
Jacintho
accedeu―e um escudeiro acercou
logo a meza de Ephraim para que nós lhe estreassemos os
serviços destros. Mas o meu Principe, depois de a altear,
para
meu espanto, até aos
crystaes do lustre, não conseguiu, apezar de uma suada e
desesperada
batalha com as molas, que a meza regressasse a uma altura humana e
cazeira. E o escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime,
chimerica, unicamente aproveitavel para o gigante Adamastor. Depois
veio a caixa
do chá entre chaleiras, lampadas, coadores, filtros, todo um
fausto de alfaias de prata, que communicavam a essa
occupação, tão simples e
dôce em caza de minha tia,
fazer
chá, a magestade d'um rito. Prevenido pelo
meu camarada da sublimidade d'aquelle chá de Kiang-Sou,
ergui a chavena aos labios com reverencia. Era uma infusão
descorada que
sabia a malva e a formiga. Jacintho provou, cuspiu, blasphemou...
Não
tomamos chá.
Ao cabo d'outro pensativo silencio, murmurei, com os olhos perdidos no
lume:
―E as obras de Tormes? A egreja... Já haverá
egreja nova?
Jacintho retomára o papel e a thesoura:
―Não sei... Não tornei a receber carta
[159]
do
Silverio... Nem imagino onde param os ossos... Que lugubre historia!
Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encommendára
pelo Grillo ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa d'arroz
dôce, com as iniciaes de Jacintho e a data ditosa em canella,
á moda
amavel da nossa meiga terra. E o meu Principe á meza,
percorrendo a lamina
de marfim onde no 202 se inscreviam os pratos a lapis vermelho, louvou
com
fervôr a ideia patriarchal:
―Arrôz dôce! Está escripto com dois
ss, mas não tem
dúvida... Excellente lembrança! Ha que tempos
não
cômo arrôz dôce!... Desde a morte da
avó.
Mas quando o arrôz dôce appareceu triumphalmente,
que vexâme! Era um prato monumental, de grande arte! O
arrôz,
massiço, moldado em fórma de pyramide do Egypto,
emergia
d'uma calda de cereja, e desapparecia sob
os fructos seccos que o revestiam até ao cimo, onde se
equilibrava uma corôa de Conde feita de chocolate e gomos de
tangerina
gelada! E as iniciaes, a data, tão lindas e graves na
canella
ingenua,
vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas
pralinadas!
Repellimos, n'um mudo horror, o prato acanalhado. E Jacintho, erguendo
o copo de Champagne, murmurou como n'um funeral pagão:
[160]
―
Ad Manes, aos nossos mortos!
Recolhemos á Bibliotheca, a tomar o café no
conchego e alegria do lume. Fóra, o vento bramava como n'um
êrmo serrano: e as
vidraças tremiam, alagadas, sob as bategas da chuva irada.
Que dolorosa noite para os dez
mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha
aldeia, entre cêrro e valle, talvez assim rugisse a tormenta.
Mas ahi cada
pobre, sob o abrigo da sua telha vã, com a sua panella
atestada de
couves, se agacha no seu mantéo ao calor da lareira. E para
os que
não tenham lenha ou couve, lá está o
João das Quintas,
ou a tia Vicencia, ou o abbade, que conhecem todos os pobres pelos seus
nomes, e com elles contam, como
sendo dos seus, quando o carro vae ao matto e a fornada entra no
fôrno. Ah Portugal pequenino, que ainda és
dôce aos
pequeninos!
Suspirei, Jacintho preguiçava. E terminamos por remexer
languidamente os jornaes que o mordomo trouxera, n'um monte facundo,
sobre uma salva de prata―jornaes de Paris, jornaes de Londres,
Semanarios, Magazines, Revistas, Illustrações...
Jacintho
desdobrava,
arremessava: das Revistas espreitava o summario, logo farto;
ás
Illustrações rasgava as folhas com o dedo
indifferente,
bocejando
[161]por
cima das gravuras. Depois, mais estirado para o lume:
―É uma sécca... Não ha que
lêr.
E de repente, revoltado contra este fastio oppressor que o escravisava,
saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça
algemas, e ficou erecto, dardejando em torno um olhar imperativo e
duro, como se intimasse aquelle seu 202, tão abarrotado de
Civilisação, a que por um momento sequer
fornecesse
á sua alma um interesse vivo,
á sua vida um fugitivo gôsto! Mas o 202 permaneceu
insensivel: nem uma luz,
para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as
vidraças
tremeram sob o embate mais rude de agua e vento.
Então o meu Principe, succumbido, arrastou os passos
até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os
apparelhos
completadores e facilitadores da Vida―o seu Telegrapho, o seu
Telephone, o seu Phonographo, o seu Radiometro, o seu Graphophono, o
seu Microphono, a sua Machina d'Escrever, a sua Machina de Contar, a
sua Imprensa Electrica, a outra Magnetica, todos os seus utensilios,
todos os seus tubos, todos os seus fios... Assim um Supplicante
percorre altares d'onde espera soccorro. E toda a sua sumptuosa
Mechanica
[162]se
conservou rigida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem
uma
lamina vibrasse, para entreter o seu Senhor.
Só o relogio monumental, que marcava a hora de todas as
capitaes e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a
meia-noite, annunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o
seu pêzo―diminuindo esse sombrio pêzo da Vida, sob
que
elle gemia, vergado. O Principe da Gran-Ventura, então,
decidiu
recolher para a
cama―com um livro... E durante um momento, estacou no meio da
Bibliotheca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com
pompa e magestade como Doutores n'um Concilio―depois as pilhas
tumultuarias
dos livros novos que esperavam pelos cantos, sobre o tapete, o repouso
e a consagração das estantes d'ebano. Torcendo
mollemente o bigode caminhou por fim para a região dos
Historiadores: espreitou seculos,
farejou raças: pareceu attrahido pelo explendor do Imperio
Byzantino: penetrou na Revolução Franceza d'onde
se
arredou
desencantado: e palpou com mão indeliberada toda a vasta
Grecia
desde a creação
de Athenas até a aniquilação de
Corintho. Mas
bruscamente virou
para a fila dos Poetas,
[163]
que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro,
nos titulos fortes ou languidos, o interior das suas almas.
Não appeteceu nenhuma d'essas seis mil almas―e recuou,
desconsolado,
até aos Biologos... Tão massiça e
cerrada era a
estante de Biologia que o meu pobre Jacintho estarreceu, como ante uma
cidadella inaccessivel! Rolou a escada―e, fugindo, trepou,
até
ás
alturas da Astronomia: destacou astros, recollocou mundos: todo um
Systema Solar desabou com fragor. Aturdido, desceu, começou
a
procurar por sobre as
rimas das obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de
combate. Apanhava, folheava, arremessava: para desentulhar um volume,
demolia
uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as
Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando
além
n'um indice,
todos interrogava, de todos se desinteressava, rolando quasi de rastos,
nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ancia de
encontrar um Livro! Parou então no meio da immensa nave, de
cocoras, sem coragem, contemplando aquelles muros todos forrados,
aquelle
chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes―e, sem
lhes
provar a
substancia, já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado
[164]pela
opressão da sua abundancia. Findou por voltar ao
montão de jornaes
amarrotados, ergueu melancholicamente um velho
Diario de
Noticias, e com elle debaixo do braço subiu ao
seu quarto, para dormir, para esquecer.
VIII
Ao fim d'esse inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu
preguiçava na cama, sentindo através da
vidraça cheia de sol
ainda pallido um bafo de Primavera ainda timido―Jacintho assomou
á porta do meu
quarto, revestido de flanellas leves, d'uma alvura de
açucena. Parou
lentamente á beira dos colxões, e, com gravidade,
como se
annunciasse o seu casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim
esta
declaração formidavel:
―Zé Fernandes, vou partir para Tormes.
O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau preto do velho D.
Galião:
―Para Tormes? Oh Jacintho, quem assassinaste?...
Deleitado com a minha emoção, o Principe da Gran
Ventura tirou da algibeira uma carta, e encetou estas linhas,
já decerto
relidas, fundamente estudadas:
[166]
―«Ill.
mo e exc.
mo
snr.―Tenho grande
satisfação em communicar a v. exc.
a que
por toda
esta semana devem ficar promptas as obras da capella...»
―É do Silverio? exclamei.
―É do Silverio. «...as obras da capella nova. Os
venerandos restos dos excelsos avós de v. exc.
a,
senhores
de todo o meu respeito,
podem pois ser em breve trasladados da egreja de S. José,
onde
têm estado depositados por bondade do nosso Abbade, que muito
se
recommenda a v. exc.
a... Submisso, aguardo as prestantes
ordens de
v. exc.
a a
respeito d'esta magestosa e afflictiva ceremonia...»
Atirei os braços, comprehendendo:
―Ah! bem! Queres ir assistir á
trasladação...
Jacintho sumiu a carta no bolso.
―Pois não te parece, Zé Fernandes?
Não é por causa dos outros avós, que
são
ossos vagos, e que eu não conheci.
É por causa do avô Galião... Tambem
não o
conheci. Mas este 202 está cheio
d'elle; tu estás deitado na cama d'elle; eu ainda uso o
relogio
d'elle. Não posso
abandonar ao Silverio e aos caseiros o cuidado de o installarem no seu
jazigo novo. Ha aqui um escrupulo de decencia, de elegancia moral...
Emfim, decidi. Apertei os
[167]punhos
na cabeça, e gritei―
vou
a Tormes! E vou!... E tu vens!
Eu enfiara as chinellas, apertava os cordões do
roupão:
―Mas tu sabes, meu bom Jacintho, que a casa de Tormes está
inhabitavel...
Elle cravou em mim os olhos aterrados.
―Medonha, hein?
―Medonha, medonha, não... É uma bella casa, de
bella pedra. Mas os caseiros, que lá vivem ha trinta annos,
dormem em catres,
comem o caldo á lareira, e usam as salas para seccar o
milho. Creio que os
unicos moveis de Tormes, se bem recordo, são um armario, e
uma
espinetta de charão, côxa, já sem
teclas.
O meu pobre Principe suspirou, com um gesto rendido em que se
abandonava ao Destino:
―Acabou!...
Alea jact est! E como
só partimos para abril, ha tempo de pintar, d'assoalhar,
d'envidraçar... Mando d'aqui de Paris
tapetes e camas... Um estofador de Lisboa vae depois forrar e
disfarçar algum buraco... Levamos livros, uma machina para
fabricar gelo... E
é mesmo uma occasião de pôr emfim n'uma
das minhas casas
de Portugal alguma decencia e ordem. Pois não achas?
[168]E então essa!
Uma casa que data de 1410... Ainda existia o Imperio Byzantino!
Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de
sabão. O meu Principe accendeu muito pensativamente um
cigarro; e não se
arredou do toucador, considerando o meu preparo com uma
attenção triste que me incommodava. Por fim, como
se remoesse uma sentença minha,
para lhe reter bem a moral e o succo:
―Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes
que é um dever, um absoluto dever, ir eu a Tormes?
Afastei do espelho a cara ensaboada para encarar com divertido espanto
o meu Principe:
―Oh Jacintho! foi em ti, só em ti que nasceu a ideia d'esse
dever! E honra te seja, menino... Não cedas a ninguem essa
honra!
Elle atirou o cigarro―e, com as mãos enterradas nas
algibeiras das pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas cadeiras,
embicando contra
os postes torneados do velho leito de D. Galião, n'um
balanço vago, como barco já desamarrado do seu
seguro ancoradouro, e sem rumo
no mar incerto. Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava
enfileirada, por gradações de sentimentos, desde
o
dagarreotypo
[169]do
papá até á photographia do
Carocho
perdigueiro, a galeria da minha Familia.
E nunca o meu Principe (que eu contemplava esticando os suspensorios)
me pareceu tão corcovado, tão minguado, como
gasto
por uma lima que desde muito o andasse fundamente limando. Assim viera
findar, desfeita em Civilisação, n'aquelle
super-requintado
magricellas sem musculo e sem energia, a raça fortissima dos
Jacinthos! Esses guedelhudos
Jacinthões, que nas suas altas terras de Tormes, de volta de
bater o moiro no
Salado ou o castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas
armaduras para
lavrar as suas chans e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino com a
lança e com a enxada, ambas tão rudes e rijas! E
agora, alli estava aquelle ultimo Jacintho, um Jacinthiculo, com a
macia pelle embebida em
aromas, a curta alma enrodilhada em Philosophias, travado e suspirando
baixinho na miuda indecisão de viver.
―Oh Zé Fernandes, quem é esta lavradeirona
tão rechonchuda?
Estendi o pescoço para a Photographia que elle erguera
d'entre a minha galeria, no seu honroso caixilho de pellucia escarlate:
―Mais respeito, Snr. D. Jacintho... Um pouco mais de respeito,
cavalheiro!... É minha
[170]prima
Joanninha, de Sandofim, da Casa
da Flôr da Malva.
―Flôr da Malva, murmurou o meu Principe. É a casa
do Condestavel, de Nun'alvares.
―Flôr da Rosa, homem! A casa do Condestavel era na
Flôr da Rosa, no Alemtejo... Essa tua ignorancia trapalhona
das coisas de Portugal!
O meu Principe deixou escorregar mollemente a photographia da minha
prima d'entre os dedos molles―que levou á face, no seu
gesto horrendo de palpar atravez da face a caveira. Depois, de repente,
com um soberbo
esforço, em que se endireitou e cresceu:
―Bem!
Alea jacta est! Partamos
pois para as serras!... E agora nem reflexão, nem
descanço!... Á obra! E a
caminho!
Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro
loquete que abre os Destinos―e no corredor gritou pelo Grillo, com uma
larga e açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou
a
d'um
Chefe ordenando, n'alvorada, que se levante o Acampamento, e que a
Hoste marche, com pendões e bagagens...
Logo n'essa manhã (com uma actividade em que eu reconheci a
pressa enjoada de quem bebe oleo-de-ricino), escreveu ao Silverio
mandando caiar, assoalhar, envidraçar o
[171]casarão.
E depois
do almoço appareceu na Bibliotheca, chamado violentamente
pelo
telephone, para combinar a remessa de mobilias e confortos, o director
da
Companhia Universal de
Transportes.
Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado n'um
jaquetão de xadrezinho escuro, com polainas de jornada sobre
botas brancas, uma sacola de marroquim a tiracolo, e na botoeira uma
roseta multicor resumindo as suas condecorações
exoticas
de Madagascar, de Nicaragua, da Persia, outras ainda, que provavam a
universalidade dos seus serviços. Apenas Jacintho mencionou
«Tormes,
no Douro...»―elle logo, atravez d'um sorriso superior,
estendeu
o braço,
detendo outros esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas
regiões.
―Tormes... Perfeitamente! Perfeitamente!
Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota―emquanto eu
considerava, assombrado, a vastidão do seu saber
Chorographico, assim familiar com os recantos d'uma serra de Portugal e
com todos os seus velhos solares. Já elle atirára
a
carteira para o
bolso... E «nós, seus caros senhores,
não tinhamos
senão a encaixotar
as roupas, as mobilias, as preciosidades! Elle mandaria as suas
carroças buscar os
caixotes, a que
[172]poria,
em grossa letra, com grossa tinta, o
endereço...»
―Tormes, perfeitamente! Linha Norte-Hespanha-Medina-Salamanca...
Perfeitamente! Tormes... Muito pittoresco! E antigo, historico!
Perfeitamente, perfeitamente!
Desengonçou a cabeça n'uma venia profundissima―e
sahiu da Bibliotheca, com passos que devoravam leguas, annunciavam a
presteza dos seus Transportes.
―Vê tu, murmurou Jacintho muito serio. Que
promptidão, que facilidade!... Em Portugal era uma tragedia.
Não ha
senão Paris!
Começou então no 202 o collossal encaixotamento
de todos os confortos necessarios ao meu Principe para um mez de serra
aspera―camas de
penna, banheiras de nickel, lampadas Carcel, divans profundos, cortinas
para vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. Os
sotãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do
avô Galião, foram esvasiados―porque o
casarão
medieval de 1410 comportava os
tremós romanticos de 1830. De todos os armazens de Paris
chegavam cada
manhã fardos, caixas, temerosos embrulhos que os emmaladores
desfaziam, atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo,
onde os nossos passos açodados se enrodilhavam. O
cozinheiro,
esbaforido,
[173]
organisava a remessa de fornalhas, geleiras, bocaes de trufas, latas de
conservas, bojudas garrafas de aguas mineraes. Jacintho, lembrando as
trovoadas da serra, comprou um immenso pára-raios. Desde o
amanhecer, nos pateos, no jardim, se martellava, se pregava, com vasto
fragor,
como na construcção d'uma cidade. E o desfilar
das
bagagens, através do portão, lembrava uma pagina
de
Herodoto contando a marcha
dos Persas.
Das janellas, Jacintho com o braço estendido, saboreava
aquella actividade e aquella disciplina:
―Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!... Sahimos
do 202, chegamos á serra, encontramos o 202. Não
ha senão Paris!
Recomeçára a amar a Cidade, o meu Principe,
emquanto preparava o seu Exodo. Depois de ter, toda a manhã,
apressado os
encaixotadores, descortinado confortos novos para o abandonado solar,
telephonado
gordas listas de encommendas a cada loja de Paris―era com delicia que
se vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vittoria ou saltava
para a almofada do phaeton, e corria ao Bosque, e saudava a barba
talmudica do Ephraim, e os bandós furiosamente negros da
Verghane, e o Psychologo de fiacre, e a
[174]condessa
de Trèves na sua nova
caleche de oito-molas fornecida pelas operações
conjunctas
da Bolsa e da alcôva. Depois arrebanhava amigos para jantares
de
surpreza no Voisin ou no Bignon, onde desdobrava o guardanapo com a
impaciencia d'uma fome alegre, vigiando fervorosamente que os Bordeus
estivessem bem aquecidos
e os Champagnes bem granitados. E no theatro das
Nouveautés, no
Palais Royal,
nos
Buffos, ria, batendo na
côxa, com encanecidas facecias d'encanecidas
farças, antiquissimos tregeitos
d'antiquissimos actores, com que já rira na sua infancia,
antes da guerra,
sob o segundo Napoleão!
De novo, em duas semanas, se abarrotaram as paginas da sua Agenda. A
magnificencia do seu trage, como imperador Frederico II de Suabia,
deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de Cravon-Rogan (onde tambem
fui, de «moço de forcado».) E na
Associação para o
Desenvolvimento das
Religiões Esotericas discursou e batalhou
bravamente pela construcção d'um Templo Budhista
em Montmartre!
Com espanto meu recomeçou tambem a conversar, como nos
tempos de Escóla, da «famosa
Civilisação nas
suas maximas
proporções.» Mandou encaixotar o seu
velho
telescopio para o usar em Tormes. Receei mesmo que no seu espirito
germinasse a idéa de
[175]crear,
no cimo da serra, uma
Cidade com todos os seus orgãos. Pelo menos não
consentia
o
meu Jacintho que essas semanas da silvestre Tormes interrompessem a
illimitada
accumulação das
noções―porque uma
manhã rompeu pelo
meu quarto, desolado, gritando que entre tantos confortos e
fórmas de
Civilisação esqueceramos os livros! Assim era―e
que
vexame para a nossa Intellectualidade! Mas que livros escolher entre os
facundos milhares sob que vergava o 202? O meu Principe decidiu logo
dedicar os seus dias serranos ao estudo da Historia Natural―e
nós mesmos, immediatamente, deitamos
para o fundo d'um vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco
tomos de Plinio.
Despejamos depois para dentro, ás braçadas,
Geologia, Mineralogia, Botanica... Espalhamos por cima uma camada aeria
de Astronomia. E, para
fixar bem no caixote estas Sciencias oscillantes, entalamos em redor
cunhas de Metaphysica.
Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, sahiu do
portão do 202 na derradeira carroça da
Companhia dos Transportes, toda esta
animação de Jacintho se abateu como a
efervescencia n'um copo de Champagne. Era em meados já
tepidos de Março. E
de novo os seus desagradaveis bocejos atroaram
[176]o
202, e todos os sophás
rangeram sob o peso do corpo que elle lhe atirava para cima,
mortalmente vencido pela fartura e pelo tedio, n'um desejo de repouso
eterno, bem envolto de solidão e silencio. Desesperei. O
que!
Aturaria eu ainda
aquelle Principe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepusculo
entristecia a Bibliotheca, alludindo, n'um tom rouco, á
doçura das mortes rapidas pela violencia misericordiosa do
acido
cyanhidrico? Ah não, caramba! E uma tarde em que o encontrei
estirado sobre
um divan, de braços em cruz, como se fosse a sua estatua de
marmore sobre
o seu jazigo de granito, positivamente o abanei com furor, berrando:
―Accorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão deve estar
prompto, a reluzir, a abarrotar de cousas! Os ossos de teus
avós pedem
repouso, em cova sua!... A caminho, a enterrar esses mortos, e a
vivermos
nós, os vivos!... Irra! São cinco de Abril!...
É o bom
tempo da serra!
O meu Principe resurgiu lentamente da inercia de pedra:
―O Silverio não me escreveu, nunca me escreveu... Mas, com
effeito, deve estar tudo preparado... Já lá temos
certamente creados, o cosinheiro de Lisboa... Eu só levo o
Grillo, e o Anatole que
envernisa bem o calçado, e
[177]tem
geito como pedicuro... Hoje
é Domingo.
Atirou os pés para o tapete, com heroismo:
―Bem, partimos no Sabbado!... Avisa tu o Silverio!
Começou então o laborioso e pensativo estudo dos
Horarios―e o dedo magro de Jacintho, por sobre o mappa,
avançando e recuando
entre Paris e Tormes. Para escolher o
«salão» que
deviamos habitar durante a temida jornada, duas vezes percorremos o
deposito da
Estação d'Orleans, atolados em lama, atraz do
Chefe do
Trafico que entontecia. O meu Principe recusava este salão
por
causa da côr
tristonha dos estofos; depois recusava aquelle por causa da mesquinhez
afflictiva do Water-Closet! Uma das suas
inquietações era
o
banho, nas manhãs que passariamos rolando. Suggeri uma
banheira
de borracha. Jacintho, indeciso, suspirava... Mas nada o aterrou como o
trasbordo em Medina
del Campo, de noite, nas trevas da Velha Castella. Debalde a Companhia
do Norte de Hespanha e a de Salamanca, por cartas, por telegrammas,
socegaram o meu camarada, affirmando que, quando elle chegasse no
comboio de Irun dentro do seu salão, já outro
salão ligado ao comboio de Portugal esperaria, bem aquecido,
bem
allumiado, com uma ceia que lhe offertava um dos Directores, D. Esteban
Castillo, ruidoso
[178]e
rubicundo conviva do 202! Jacintho corría os dedos anciosos
pela
face:―«E os saccos, as pelles, os livros, quem os
transportaria
do salão
de Irun para o salão de Salamanca?» Eu berrava,
desesperado, que os carregadores de Medina eram os mais rapidos, os
mais destros de toda a Europa! Elle murmurava:―«Pois sim,
mas em
Hespanha, de
noite!...» A noite, longe da Cidade, sem telephone, sem luz
electrica, sem postos de policia,
parecia ao meu Principe povoada de surprezas e assaltos. Só
acalmou
depois de verificar no Observatorio Astronomico, sob a garantia do
sabio
professor Bertrand, que a noite da nossa jornada era de lua cheia!
Emfim, na sexta-feira, findou a tremenda
organisação d'aquella viagem historica! O sabbado
predestinado amanheceu com generoso sol, de affagadora
doçura. E
eu acabava de guardar na mala,
embrulhadas em papel pardo, as photographias das creaturinhas suaves
que, n'esses vinte e sete mezes de Paris, me tinham chamado «
mon
petit chou! mon rat
cheri!»―quando Jacintho rompeu pelo
quarto, com um soberbo ramo de orchideas na sobrecasaca, pallido e todo
nervoso.
―Vamos ao Bosque, por despedida?
Fomos―á grande despedida! E que encanto! Até nas
almofadas e molas da vittoria
[179]senti
logo uma elasticidade mais emballadora. Depois, pela Avenida do Bosque,
quasi me pezava não ficar sempiternamente
rolando, ao trote rimado das eguas perfeitas, no rebrilho rico de
metaes e
vernizes, sobre aquelle macadam mais alisado que marmore, entre
tão
bem regadas flôres e relvas de tão tentadora
frescura,
cruzando uma Humanidade fina, de elegancia bem acabada, que
almoçára o seu
chocolate em porcellanas de Sevres ou de Minton, sahira d'entre
sèdas e tapetes de tres
mil francos, e respirava a belleza de Abril com vagar, requinte e
pensamentos ligeiros! O Bosque resplandecia n'uma harmonia de verde,
azul e ouro. Nenhuma cova ou terra solta desalisava as polidas alleas
que a Arte traçou e enroscou na espessura―nenhum esgalho
desgrenhado
desmanchava as ondulações macias da folhagem que
o Estado
escóva e lava. O piar das aves apenas se elevava para
espalhar
uma graça leve de vida
alada;―e mais natural parecia, entre o arvoredo sociavel, o ranger das
sellas novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as
amazonas
espartilhadas pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de
Armenonville
cruzamos Madame de Trèves, que nos envolveu ambos na caricia
do
seu
sorriso, mais avivado áquella hora pelo vermelhão
ainda
humido.
Logo atraz
[180]a
barba talmudica de
Ephraim negrejou, fresca tambem da brilhantine da
manhã, no alto d'um phaeton tilintante. Outros amigos de
Jacintho circulavam nas Acacias―e as mãos que lhe acenavam,
lentas e affaveis,
calçavam luvas frescas côr de palha, côr
de perola,
côr
de lilaz. Todelle relampejou rente de nós sobre uma grande
bycicleta. Dornan, alastrado
n'uma cadeira de ferro, sob um espinheiro em flôr, mamava o
seu
immenso
charuto, como perdido na busca de rimas sensuaes e nedias. Adeante foi
o Psychologo, que nos não avistou, conversando com um
requebro
melancolico
para dentro d'um coupé que rescendia a alcova, e a que um
cocheiro obeso
imprimia dignidade e decencia. E rolavamos ainda, quando o Duque de
Marizac, a cavallo, ergueu a bengala, estacou a nossa vittoria para
perguntar a Jacintho se apparecia á noite nos
«quadros
vivos» dos Verghanes. O meu Principe rosnou
um―«não, parto para o
sul...»―que mal lhe passou d'entre os bigodes murchos... E
Marizac lamentou―porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da
Historia Sagrada e da Historia Romana!... Madame Verghane, de
Magdalena, de braços nús,
peitos nús, pernas núas, limpando com os cabellos
os
pés do Christo!―O Christo, um
latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado no
[181]Ministerio
da
Guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão! Havia
tambem
Lucrecia na
cama, e Tarquinio ao lado, de punhal, a puxar os lençoes! E
depois
ceia, em mezas soltas, todos nos seus trajes historicos. Elle
já
estava aparceirado com Madame de Malbe, que era Agrippina! Quadro
portentoso esse―Agrippina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe
estuda as fórmas, admirando umas, desdenhando outras como
imperfeitas.
Mas, por polidez, ficára combinado que Nero admiraria sem
reserva
todas as fórmas de Madame de Malbe... Emfim collossal, e
estupendamente instructivo!
Acenamos um longo adeus áquelle alegre Marizac. E recolhemos
sem que Jacintho emergisse do silencio enrugado em que se
abysmára,
com os braços rigidamente cruzados, como remoendo
pensamentos
decisivos e fortes. Depois, em frente ao Arco de Triumpho, moveu a
cabeça, murmurou:
―É muito grave, deixar a Europa!
Emfim, partimos! Sob a doçura do crepusculo que se
enublára deixamos o 202. O Grillo e o Anatole seguiam n'um
fiacre atulhado de livros, de estojos, de paletots, de impermeaveis, de
travesseiras, de agoas mineraes,
[182]de
saccos de couro, de rolos de mantas: e mais atraz um omnibus rangia sob
a carga de vinte e tres malas. Na
Estação, Jacintho ainda comprou todos os Jornaes,
todas as
Illustrações, Horarios, mais livros, e um
saca-rolhas de fórma complicada e hostil.
Guiados pelo Chefe do Trafico, pelo Secretario da Companhia, occupamos
copiosamente
o nosso salão. Eu puz o meu bonet de sêda, calcei
as
minhas chinellas. Um silvo varou a noite. Paris lampejou, fugiu n'um
derradeiro
clarão de janellas... Para o sorver, Jacintho ainda se
arremessou á
portinhola. Mas rolavamos já na treva da Provincia. O meu
Principe
então recahiu nas almofadas:
―Que aventura, Zé Fernandes!
Até Chartres, em silencio, folheamos as
Illustrações. Em Orleans, o guarda veio arranjar
respeitosamente as nossas camas. Derreado com aquelles quatorze mezes
de Civilisação
adormeci―e só acordei em Bordeus quando Grillo, zeloso, nos
trouxe o nosso chocolate. Fóra,
uma chuva miudinha pingava mollemente d'um espesso ceu de
algodão
sujo. Jacintho não se deitára, desconfiado da
aspereza e
da
humidade dos lençoes. E, mettido n'um roupão de
flanella
branco, com a face arripiada
e estremunhada, ensopando um bolo no chocolate, rosnava sombriamente:
[183]
―Este horror!... E agora com chuva!
Em Biarritz, ambos observamos com uma certeza indolente:
―É Biarritz.
Depois Jacintho, que espreitava pela janella embaciada, reconheceu o
lento caminhar pernalto, o nariz bicudo e triste, do Historiador
Danjon. Era elle, o facundo homem, vestido de xadrezinho, ao lado d'uma
dama roliça que levava pela trella uma cadellinha felpuda.
Jacintho baixou a vidraça violentamente, berrou pelo
Historiador, na ancia de
communicar ainda, através d'elle, com a Cidade, com o
202!...
Mas o
comboio mergulhára na chuva e nevoa.
Sobre a ponte do Bidassoa, antevendo o termo da vida facil, os abrolhos
da Incivilisação, Jacintho suspirou com
desalento:
―Agora adeus, começa a Hespanha!...
Indignado, eu, que já saboreava o generoso ar da terra
bemdita, saltei para diante do meu Principe, e n'um saracoteio de
tremendo salero, castanholando os dedos, entoei uma
«petenera»
condigna:
A la puerta de mi casa
Ay Soledad, Soleda... á... á... á.
Elle estendeu os braços, supplicante:
[184]
―Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!
―
Irun!
Irun!...
N'essa Irun almoçamos com succulencia―por que sobre
nós velava, como Deusa omnipresente, a Companhia do Norte.
Depois «el jefe
d'Aduana, el jefe d'Estacion», preciosamente nos installaram
n'outro
salão, novo, com setins côr d'azeitona, mas
tão pequeno que uma
rica porção dos nossos confortos em mantas,
livros, saccos e impermeaveis, passou para o compartimento do
Sleeping
onde se
repoltreavam o Grillo e o Anatole, ambos de bonets escocezes, e fumando
gordos
charutos.―
Buen viaje!
Gracias!
Servidores!―E entramos silvando
nos Pyreneos.
Sob a influencia da chuva embaciadora, d'aquellas serras sempre eguaes,
que se desenrolavam, arripiadas, diluidas na nevoa, resvalei a uma
somnolencia dôce;―e, quando descerrava as palpebras,
encontrava Jacintho a um canto, esquecido do livro fechado nos joelhos,
sobre que cruzára os magros dedos, considerando valles e
montes
com a
melancolia de quem penetra nas terras do seu desterro! Um momento veio
em que, arremessando o livro, enterrando mais o chapéo
molle, se
ergueu com tanta decisão, que receei detivesse o comboio
para
saltar
á estrada,
[185]
correr atravez das Vascongadas e da Navarra, para traz, para o 202!
Sacudi o meu torpôr, exclamei:―«oh
menino!...» Não! O pobre amigo ia apenas continuar
o seu
tedio para outro canto, enterrado n'outra almofada, com outro livro
fechado. E á maneira que a
escuridão da tarde crescia, e com ella a borrasca de vento e
agoa, uma
inquietação mais aterrada se apoderava do meu
Principe,
assim desgarrado da
Civilisação, arrastado para a Natureza que
já o
cercava de brutalidade
agreste. Não cessou então de me interrogar sobre
Tormes:
―As noites são horriveis, hein, Zé Fernandes?
Tudo negro, enorme solidão... E medico?... Ha medico?
Subitamente o comboio estacou. Mais grossa e ruidosa a chuva fustigou
as vidraças. Era um descampado, todo em treva, onde rolava e
lufava um grande vento solto. A machina apitava, com angustia. Uma
lanterna lampejou, correndo. Jacintho batia o
pé:―«É medonho! é
medonho!»... Entreabri a portinhola. Da claridade incerta das
vidraças
surdiam cabeças esticadas,
assustadas.―«
Que hay?
Que hay?»―A uma rajada, que me alagou,
recuei:―e
esperamos durante lentos, calados minutos, esfregando desesperadamente
os vidros embaciados para sondar a escuridão.
[186]De repente o comboio
recomeçou a
rolar, muito sereno.
Em breve appareceram as luzinhas mortas d'uma
estação abarracada. Um conductor, com o
casacão de oleado todo a escorrer, trepou
ao salão:―e por elle soubemos, emquanto carimbava
apressadamente os bilhetes, que o
trem, muito atrazado, talvez não alcançasse em
Medina o comboio de Salamanca!
―Mas então?...
O casaco de oleado escorregára pela portinhola, fundido na
noite, deixando um cheiro de humidade e azeite. E nós
encetamos
um
novo tormento... Se o trem de Salamanca tivesse abalado? O
salão,
tomado até Medina, desengatava em Medina:―e eis os nossos
preciosos corpos, com
as nossas preciosas almas, despejados em Medina, para cima da lama,
entre vinte e trez malas, n'uma rude confusão hespanhola,
sob a
tormenta de ventania e d'agua!
―Oh, Zé Fernandes, uma noite em Medina!
Ao meu Principe apparecia como desventura suprema essa noite em Medina,
n'uma
fonda
sordida, fedendo a
alho, com gordas filas de percevejos atravez dos lençoes
d'estopa encardida!... Não
cessei então de fitar, n'um desassocego, os ponteiros do
relogio:―emquanto Jacintho, pela vidraça escancarada, todo
fustigado
[187]da
chuva clamorosa,
furava a negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina
e
um
comboio paciente fumegando... Depois recahia no divan, limpava os
bigodes e os olhos, maldizia a Hespanha. O trem arquejava, rompendo o
vasto vento da
planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?...
Não! Algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava,
esfalfado,
resfolgando, emquanto dormentes figuras encarapuçadas,
embrulhadas em
mantas, rondavam sob o telheiro do barracão, que as
lanternas
baças tornavam mais soturno. Jacintho esmurrava o
joelho:―«Mas por que
pára este infame comboio? Não ha trafico,
não ha
gente! Oh
esta Hespanha!...» A sineta badalava, moribunda. De novo
fendiamos a noite e a borrasca.
Resignadamente comecei a percorrer um
Jornal do
Commercio,
antigo, trazido de Paris. Jacintho esmagava o espesso tapete do
salão com passadas rancorosas, rosnando como uma fera. E
ainda
assim se escoou,
ás gottas, uma hora cheia de eternidade.―Um silvo, outro
silvo!... Luzes mais fortes, longe, palpitaram na neblina. As rodas
trilharam, com
rijos solavancos, os encontros de carris. Emfim, Medina!... Um muro
sujo de barracão alvejou―e bruscamente, á
portinhola
aberta com violencia, apparece um cavalheiro barbudo,
[188]de capa á
hespanhola,
gritando pelo snr. D. Jacintho!... Depressa! depressa! que parte o
comboio de Salamanca!
―«Que no hay un momento, caballeros! Que no hay un
momento!»
Agarro estonteadamente o meu paletot, o
Jornal do
Commercio.
Saltamos com ancia:―e, pela plataforma, por sobre os trilhos,
através de charcos, tropeçando em fardos,
empurrados pelo
vento, pelo
homem da capa á hespanhola, enfiamos outra portinhola, que
se
fechou com
um estalo tremendo... Ambos arquejavamos. Era um salão
forrado
de um
panno verde que comia a luz escassa. E eu estendia o braço,
para
receber
dos carregadores açodados as nossas malas, os nossos livros,
as
nossas mantas―quando, em silencio, sem um apito, o trem despegou e
rolou. Ambos nos atiramos ás vidraças, em brados
furiosos:
―Pare! As nossas malas, as nossas mantas!... P'ra aqui!... Oh Grillo!
Oh Grillo!
Uma immensa rajada levou os nossos brados. Era de novo o descampado
tenebroso, sob a chuva despenhada. Jacintho ergueu os punhos, n'um
furor que o engasgava:
―Oh! Que serviço! Oh que canalhas!... Só em
Hespanha!... E agora? As malas perdidas!... Nem uma camisa, nem uma
escova!
Calmei o meu desgraçado amigo:
[189]―Escuta! eu
entrevi dous
carregadores arrebanhando as nossas cousas...
Decerto o Grillo fiscalisou. Mas na pressa, naturalmente, atirou com
tudo para o seu compartimento... Foi um erro não trazer o
Grillo comnosco, no salão... Até podiamos jogar a
manilha!
De resto a sollicitude da Companhia, Deusa omnipresente, velava sobre o
nosso conforto―pois que á porta do lavatorio branquejava o
cesto da nossa ceia, mostrando na tampa um bilhete de D. Esteban com
estas doces
palavras a lapis―
á D. Jacintho y su
egregio amigo, que les dè gusto!
Farejei um aroma de perdiz. E alguma tranquillidade nos penetrou no
coração sentindo tambem as nossas malas sob a
tutella da Deusa omnipresente.
―Tens fome Jacintho?
―Não. Tenho horror, furor, rancor!... E tenho somno.
Com effeito! depois de tão desencontradas
emoções só appeteciamos as camas que
esperavam, macias e abertas. Quando cahi sobre a travesseira,
sem gravata, em ceroulas, já o meu Principe, que
não se despira, apenas embrulhára os
pés no
meu paletot, nosso unico agasalho,
resonava com magestade.
Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na
claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma
[190]fardeta, um bonet,
que murmuravam baixinho com immensa doçura:
―V. exc.
as não têem nada a declarar?...
Não ha malinhas de mão?...
Era a minha terra! Murmurei baixinho com immensa ternura:
―Não temos aqui nada... Pergunte v. exc.
a pelo
Grillo...
Ahi atraz, n'um compartimento... Elle tem as chaves, tem tudo...
É o
Grillo.
A fardeta desappareceu, sem rumor, como sombra benefica. E eu
readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicencia,
atarefada,
de lenço branco cruzado no peito, de certo já
preparava o
leitão.
Acordei envolto n'um largo e doce silencio. Era uma
Estação muito socegada, muito varrida, com
rosinhas
brancas trepando pelas paredes―e
outras rosas em moitas, n'um jardim, onde um tanquesinho abafado de
limos dormia sob duas mimosas em flôr que rescendiam. Um
moço pallido, de paletot côr de mel, vergando a
bengalinha
contra o
chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente
á grade da horta,
uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no
regaço. Sobre o telhado seccavam aboboras. Por cima
rebrilhava o
profundo,
[191]rico e
macio azul de que meus olhos andavam agoados.
Sacudi violentamente Jacintho:
―Acorda, homem, que estás na tua terra!
Elle desembrulhou os pés do meu paletot, cofiou o bigode, e
veio sem pressa, á vidraça que eu abrira,
conhecer a sua
terra.
―Então é Portugal, hein?... Cheira bem.
―Está claro que cheira bem, animal!
A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslisou, com
descanço, como se passeasse para seu regalo sobre as duas
fitas d'aço,
assobiando e gozando a belleza da terra e do ceu.
O meu Principe alargava os braços, desolado:
―E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gotta d'agoa de Colonia!...
Entro em Portugal, immundo!
―Na Regoa ha uma demora, temos tempo de chamar o Grillo, rehaver os
nossos confortos... Olha para o rio!
Rolavamos na vertente d'uma serra, sobre penhascos que desabavam
até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, n'uma
esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a
capellinha muito
caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a agoa turva e tarda
nem se quebrava contra
[192]as
rochas,
descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para
além, outros socalcos, d'um verde
pallido de rezeda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos
montes,
subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e
assoalhadas, na fina abundancia do azul. Jacintho acariciava os pellos
corredios do bigode:
―O Douro, hein?... É interessante, tem grandeza. Mas agora
é que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!
Tambem eu! Destapamos o cesto de D. Esteban d'onde surdiu um bodo
grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras viandas frias que o ouro
de duas nobres garrafas d'Amontillado, além de duas garrafas
de Rioja, aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto,
Jacintho lamentou contrictamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um
solar historico, assim abandonado e vasio! Que delicia, por aquella
manhã tão lustrosa e tepida, subir á
serra,
encontrar a sua casa bem
apetrechada, bem civilisada... Para o animar, lembrei que com as obras
do Silverio, tantos caixotes de Civilisação
remettidos de
Paris, Tormes estaria confortavel mesmo para Epicuro. Oh! mas Jacintho
entendia um palacio perfeito, um 202 no deserto!... E, assim
discorrendo, atacamos as perdizes. Eu desarrolhava
[193]uma garrafa de
Amontillado―quando o comboio,
muito sorrateiramente, penetrou n'uma Estação.
Era a Regoa. E o meu Principe pousou logo a faca para chamar o Grillo,
reclamar as malas que
traziam o aceio dos nossos corpos.
―Espera, Jacintho! Temos muito tempo, O comboio pára aqui
uma hora... Come com tranquillidade. Não escangalhemos este
almocinho
com arrumações de maletas... O Grillo
não tarda a apparecer.
E corri mesmo a cortina, porque de fóra um padre muito alto,
com uma ponta de cigarro collada ao beiço, parára
a
espreitar indiscretamente o nosso festim. Mas quando acabamos as
perdizes, e Jacintho confiadamente
desembrulhava um queijo manchego, sem que Grillo ou Anatole
comparecessem, eu, inquieto, corri á portinhola para
apressar esses servos tardios... E n'esse instante o comboio, largando,
deslisou com o
mesmo silencio sorrateiro. Para o meu Principe foi um desgosto:
―Ahi ficamos outra vez sem um pente, sem uma escova... E eu que queria
mudar de camisa! Por culpa tua, Zé-Fernandes!
―É espantoso!... Demora sempre uma eternidade. Hoje chega e
abala! Paciencia, Jacintho. Em duas horas estamos na
Estação de Tormes... Tambem não valia
a pena mudar
[194]de
camisa para subir
á serra! Em casa tomamos um banho, antes de jantar...
Já deve estar
installada a banheira.
Ambos nos consolamos com copinhos d'uma divina aguardente Chinchon.
Depois, estendidos nos sophás, saboreando os dois charutos
que nos restavam, com as vidraças abertas ao ar adoravel,
conversamos de Tormes. Na estação certamente
estaria o
Silverio, com os
cavallos...
―Que tempo leva a subir?
Uma hora. Depois de lavados sobrava tempo para um demorado passeio
pelas terras com o caseiro, o excellente Melchior, para que o Senhor de
Tormes, solemnemente, tomasse posse do seu Senhorio. E á
noite o primeiro brodio da serra, com os piteus vernaculos do velho
Portugal!
Jacintho sorria, seduzido:
―Vamos a ver que cozinheiro me arranjou esse Silverio. Eu recommendei
que fosse um soberbo cozinheiro portuguez, classico. Mas que soubesse
trufar um perú, afogar um bife em molho de moella, estas
cousas simples da cozinha de França!... O peor é
não
te demorares, seguires logo para Guiães...
―Ah, menino, annos da tia Vicencia no sabbado... Dia sagrado! Mas
volto. Em duas semanas estou em Tormes, para fazermos uma
[195]larga Bucolica. E,
está claro, para assistir á
trasladação.
Jacintho estendera o braço:
―Que casarão é aquelle, além no
outeiro, com a torre?
Eu não sabia. Algum solar de fidalgote do Douro... Tormes
era n'esse feitio atarracado e massiço. Casa de seculos e
para
seculos―mas sem torre.
―E logo se vê, da estação, Tormes?...
―Não! Muito no alto, n'uma prega da serra, entre arvoredo.
No meu Principe já evidentemente nascèra uma
curiosidade pela sua rude casa ancestral. Mirava o relogio, impaciente.
Ainda trinta minutos! Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no
primeiro encanto de iniciado:
―Que doçura, que paz...
―Trez horas e meia, estamos a chegar, Jacintho!
Guardei o meu velho
Jornal do
Commercio dentro do bolso do paletot, que deitei sobre o
braço;―e ambos em pé,
ás janellas, esperamos com alvoroço a pequenina
Estação de
Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ella
appareceu emfim, clara e simples,
á beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girasoes
enchendo um jardimsinho breve, as
duas altas figueiras assombreando o pateo,
[196]e
por traz a serra coberta de velho e denso arvoredo... Logo na
plataforma avistei com gosto a
immensa barriga, as bochechas menineiras do chefe da
Estação, o louro Pimenta, meu condiscipulo em
Rhetorica,
no Lyceu de Braga. Os cavallos decerto esperavam, á sombra,
sob
as figueiras.
Mal o trem parou ambos saltamos alegremente. A bojuda massa do Pimenta
rebolou para mim com amizade:
―Viva o amigo Zé Fernandes!
―Oh bello Pimentão!...
Apresentei o senhor de Tormes. E immediatamente:
―Ouve lá, Pimentinha... Não está ahi
o Silverio?
―Não... O Silverio ha quasi dois mezes que partiu para
Castello de Vide, vêr a mãe que apanhou uma
cornada d'um boi!
Atirei a Jacintho um olhar inquieto:
―Ora essa! E o Melchior, o caseiro?... Pois não
estão ahi os cavallos para subirmos á quinta?
O digno chefe ergueu com surpreza as sobrancelhas côr de
milho:
―Não!... Nem Melchior, nem cavallos... O Melchior... Ha que
tempos eu não vejo o Melchior!
O carregador badalou lentamente a sineta
[197]para
o comboio rolar.
Então, não avistando em torno, na lisa e
despovoada
Estação, nem creados nem malas, o meu Principe e
eu lançamos o mesmo grito de
angustia:
―E o Grillo? as bagagens?...
Corremos pela beira do comboio, berrando com desespero:
―Grillo!... Oh Grillo!... Anatole!... Oh Grillo!
Na esperança que elle e o Anatole viessem mortalmente
adormecidos, trepavamos aos estribos, atirando a cabeça para
dentro dos compartimentos, espavorindo a gente quieta com o mesmo berro
que retumbava:―«Grillo, estás ahi,
Grillo?»―Já d'uma terceira-classe, onde uma viola
repenicava, um jocoso gania,
troçando:―«Não ha por ahi um grillo?
Andam por ahi
uns senhores a pedir um grillo!»―E nem
Anatole, nem Grillo!
A sineta tilintou.
―Oh Pimentinha, espera, homem, não deixes largar o
comboio!... As nossas bagagens, homem!
E, afflicto, empurrei o enorme chefe para o forgão de carga,
a pesquizar, descortinar as nossas vinte e trez malas! Apenas
encontramos
barris, cestos de vime, latas de azeite, um bahú amarrado
com cordas... Jacintho
[198]mordia
os beiços, livido. E o Pimentinha,
esgazeado:
―Oh filhos, eu não posso atrazar o comboio!...
A sineta repicou... E com um bello fumo claro o comboio desappareceu
por detraz das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e
deserto. Alli ficavamos pois baldeados, perdidos na serra, sem Grillo,
sem procurador, sem caseiro, sem cavallos, sem malas! Eu conservava o
paletot alvadio, d'onde surdia o
Jornal do
Commercio. Jacintho, uma bengala. Eram todos os nossos bens!
O Pimentão arregalava para nós os olhinhos
papudos e compadecidos. Contei então áquelle
amigo o
atarantado
trasfêgo em Medina sob a borrasca, o Grillo desgarrado,
encalhado
com as vinte e trez malas, ou rolando talvez para Madrid sem nos deixar
um lenço...
―Eu não tenho um lenço!... Tenho este
Jornal do Commercio. É
toda a minha roupa branca.
―Grande arrelia, caramba! murmurava o Pimenta, impressionado. E agora?
―Agora, exclamei, é trepar, para a quinta, á
pata... A não ser que se arranjassem ahi uns burros.
Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta,
ainda pertencente a Tormes,
[199]o
caseiro, seu compadre, tinha uma boa egua e um jumento... E o prestante
homem enfiou n'uma carreira para a Giesta―emquanto o meu Principe e eu
cahiamos para cima d'um banco, arquejantes e succumbidos, como
naufragos. O vasto Pimentinha, com as mãos nas algibeiras,
não cessava de nos
contemplar, de murmurar:―«É de
arrelia».―O rio
defronte descia, preguiçoso e
como adormentado sob a calma já pesada de maio,
abraçando, sem um
sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para
além a
serra crescia em corcovas
doces, com uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do
mundo, uma villasinha clara. O espaço immenso repousava n'um
immenso
silencio. N'aquellas solidões de monte e penedia os pardaes,
revoando
no telhado, pareciam aves consideraveis. E a massa rotunda e rubicunda
do
Pimentinha dominava, atulhava a região.
―Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm ahi os
bichos!... Só o que não calhou foi um selimsinho
para a jumenta!
Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na
mão duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E
não tardaram a
apparecer no corrego, para nos levarem a Tormes, uma egua
ruça, um
jumento com albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos
[200]a mão suada e
amiga do Pimentinha. Eu cedi a egua ao senhor de Tormes. E
começamos
a trepar o caminho, que não se alisára nem se
desbravára desde os tempos em que o trilhavam, com rudes
sapatões ferrados, cortando de rio a
monte, os Jacinthos do seculo XIV! Logo depois de atravessarmos uma
tremula ponte
de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Principe, com o
olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a
fartura das oliveiras...―E em breve os nossos males esqueceram ante a
incomparavel
belleza d'aquella serra bemdita!
Com que brilho e inspiração copiosa a compozera o
divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e
tão
ricamente as dotou,
n'este seu Portugal bem-amado! A grandeza egualava a graça.
Para
os
valles, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos,
tão
copados e redondos, d'um verde tão môço
que eram
como um musgo macio onde appetecia cahir e rolar. Dos pendores,
sobranceiros ao carreiro
fragoso, largas ramadas estendiam o seu toldo amavel, a que o
esvoaçar leve dos passaros sacudia a fragrancia. Atravez dos
muros seculares, que sustem as terras liados pelas heras, rompiam
grossas raizes colleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o
torrão, de cada fenda,
brotavam
[201]flôres
silvestres.
Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a solida nudez
do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de lichen
e
de silvados floridos, avançavam como prôas de
galeras
enfeitadas: e, d'entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que
para
lá galgára, todo amachucado e torto, espreitava
pelos
postigos
negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe
semeára
nas telhas. Por toda a parte a agua sussurrante, a agua fecundante...
Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, d'entre as patas da
egua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com
fragor
de
pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam
e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta
á
beira de
veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, á espera dos
homens e dos
gados... Todo um cabeço por vezes era uma ceára,
onde um
vasto
carvalho ancestral, solitario, dominava como seu senhor e seu guarda.
Em socalcos
verdejavam laranjaes rescendentes. Caminhos de lages soltas circumdavam
fartos prados com carneiros e vaccas retouçando:―ou mais
estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa,
n'uma penumbra de repouso e frescura. Trepavamos então
alguma
ruasinha de
aldeia, dez ou doze
[202]casebres,
sumidos entre figueiras, onde se esgaçava,
fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das
pinhas. Nos
cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheiraes,
branquejavam ermidas. O
ar fino e puro entrava na alma, e n'alma espalhava alegria e
força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria
pelas quebradas...
Jacintho adiante, na sua egua ruça, murmurava:
―Que belleza!
E eu atraz, no burro de Sancho, murmurava:
―Que belleza!
Frescos ramos roçavam os nossos hombros com familiaridade e
carinho. Por traz das sebes, carregadas d'amoras, as macieiras
estendidas offereciam
as suas maçãs verdes, porque as não
tinham maduras. Todos os vidros d'uma casa velha, com a sua cruz no
topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos.
Muito
tempo um melro nos seguia, de
azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado,
irmão
melro!
Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre comtigo
fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz,
serra
bemdita entre as serras!
Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos
[203]áquella
avenida de faias, que sempre me encantára pela sua fidalga
gravidade. Atirando
uma vergastada ao burro e á egua, o nosso rapaz, com o seu
podengo sobre os calcanhares, gritou:―«Aqui é que
estêmos, meus amos!» E ao fundo das faias, com
effeito,
apparecia o portão da quinta de Tormes,
com o seu brazão de armas, de secular granito, que o musgo
retocava e
mais envelhecia. Dentro já os cães ladravam com
furor.
E quando Jacintho, na sua suada egua, e eu atraz, no burro de Sancho,
transpozemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do
alpendre, pela
escadaria de pedra gasta, um homem nedio, rapado como um padre, sem
collete, sem jaleca, acalmando os cães que se
encarniçavam contra o
meu Principe. Era o Melchior, o caseiro... Apenas me reconheceu, toda a
bocca se lhe escancarou n'um riso hospitaleiro, a que faltavam dentes.
Mas apenas eu
lhe revelei, d'aquelle cavalheiro de bigodes louros que descia da egua
esfregando os quadris, o senhor de Tormes―o bom Melchior recuou,
colhido de espanto e terror como diante d'uma avantesma.
―Ora essa!... Santissimo nome de Deus! Pois então...
E, entre o rosnar dos cães, n'um bracejar desolado,
balbuciou uma historia que por
[204]seu
turno apavorava Jacintho, como se o negro muro do casarão
pendesse para desabar. O Melchior não
esperava s. ex.
a! Ninguem esperava s. ex.
a!...
(Elle
dizia
sua
incellencia)...
O snr. Silverio estava para Castello de Vide desde março,
com a
mãe, que apanhára uma cornada na virilha. E de
certo
houvera engano, cartas perdidas...
Porque o snr. Silverio só contava com s. exc.
a em
setembro,
para a
vindima! Na casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O
telhado, no sul, ainda continuava sem telhas; muitas
vidraças
esperavam,
ainda sem vidros; e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama
arranjada!...
Jacintho cruzou os braços n'uma colera tumultuosa que o
suffocava. Por fim, com um berro:
―Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em fevereiro, ha
quatro mezes?...
O desgraçado Melchior arregalava os olhos miudos, que se
embaciavam de lagrimas. Os caixotes?! Nada chegára, nada
apparecera!... E
na sua perturbação mirava pelas arcadas do pateo,
palpava na algibeira das pantalonas. Os caixotes?... Não,
não tinha os
caixotes!
―E agora, Zé Fernandes?
Encolhi os hombros:
―Agora, meu filho, só vires commigo para
Guiães... Mas são duas horas fartas a cavallo.
[205]E
não temos cavallos! O melhor
é vêr o casarão, comer a boa gallinha
que o nosso
amigo Melchior nos assa no espeto, dormir n'uma enxerga, e
ámanha cedo, antes do calor, trotar para
cima, para a tia Vicencia.
Jacintho replicou, com uma decisão furiosa:
―Ámanhã troto, mas para baixo, para a
estação!... E depois, para Lisboa!
E subiu a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima
uma larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um
alpendre de negras vigas, toda ornada, por entre os pilares de granito,
com caixas de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarello―-e
penetrei atraz de Jacintho nas salas nobres, que elle contemplava com
um murmurio de horror. Eram enormes, d'uma sonoridade de casa
capitular, com os
grossos muros ennegrecidos pelo tempo e o abandono, e regeladas,
desoladamente núas, conservando apenas aos cantos algum
monte de
canastras
ou alguma enxada entre paus. Nos tectos remotos, de carvalho
apainelado, luziam através dos rasgões manchas de
céo. As
janellas, sem vidraças, conservavam essas macissas portadas,
com
fechos para as trancas, que, quando se cerram, espalham a treva.
[206]Sob os nossos passos, aqui
e
além, uma taboa pôdre rangia e cedia.
―Inhabitavel! rugia Jacintho surdamente. Um horror! Uma infamia!...
Mas depois, n'outras salas, o soalho alternava com remendos de taboas
novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhissimos tectos de
rico carvalho sombrio. As paredes repelliam pela alvura crúa
da cal fresca. E o sol mal atravessava as
vidraças―embaciadas e
gordurentas da massa e das mãos dos vidraceiros.
Penetramos emfim na ultima, a mais vasta, rasgada por seis janellas,
mobilada com um armario e com uma enxerga parda e curta estirada a um
canto: e junto d'ella paramos, e sobre ella depuzemos tristemente o que
nos restava de vinte e trez malas―o meu paletot alvadio, a bengala de
Jacintho, e o
Jornal do Commercio
que nos era commum. Através das janellas escancaradas, sem
vidraças, o grande ar da serra
entrava e circulava como n'um eirado, com um cheiro fresco d'horta
regada. Mas o que avistavamos, da beira da enxerga, era um pinheiral
cobrindo um cabeço e descendo pelo pendor suave,
á
maneira
d'uma hoste em marcha, com pinheiros na frente, destacados, direitos,
emplumados de negro;
mais longe as serras
[207]d'além
rio, d'uma fina e macia côr
de violeta; depois a brancura do céo, todo liso, sem uma
nuvem, d'uma magestade
divina. E lá debaixo, dos valles, subia, desgarrada e
melancolica, uma voz de pegureiro cantando.
Jacintho caminhou lentamente para o poial d'uma janella, onde cahiu
esbarrondado pelo desastre, sem resistencia ante aquelle brusco
desapparecimento de toda a Civilisação! Eu
palpava a enxerga, dura e regelada como um granito de inverno. E
pensando nos luxuosos
colchões de pennas e molas, tão prodigamente
encaixotados
no 202,
desafoguei tambem a minha indignação:
―Mas os caixotes, caramba?... Como se perdem assim trinta e tantos
caixotes enormes?...
Jacintho saccudiu amargamente os hombros:
―Encalhados, por ahi, algures, n'um barracão!... Em Medina,
talvez, n'essa horrenda Medina. Indifferença das Companhias,
inercia
do Silverio...
Emfim a Peninsula, a barbarie!
Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados por
céo e monte:
―É uma belleza!
O meu principe, depois de um silencio grave, murmurou, com a face
encostada á mão:
[208]
―É uma lindeza... E que paz!
Sob a janella vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal,
talhões de alface, gordas folhas de abobora rastejando. Uma
eira, velha e mal alisada, dominava o valle, d'onde já subia
tenuemente
a nevoa d'algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão
d'esse
lado
se encravava em laranjal. E d'uma fontinha rustica, meio afogada em
rosas tremedeiras, corria um longo e rutilante fio d'agua.
―Estou com appetite desesperado d'aquella agoa! declarou Jacintho,
muito sério.
―Tambem eu... Desçamos ao quintal, hein? E passamos pela
cosinha, a saber do frango.
Voltamos á varanda. O meu Principe, mais conciliado com o
destino inclemente, colheu um cravo amarello. E por outra porta baixa,
de rigissimas hombreiras, mergulhamos n'uma sala, alastrada de
caliça, sem tecto, coberta apenas de grossas vigas, d'onde
s'ergueu uma revoada de pardaes.
―Olha para este horror! murmurava Jacintho arripiado.
E descemos por uma lobrega escada de castello, tenteando depois um
corredor tenebroso de lages asperas, atravancado por profundas arcas,
capazes de guardar todo o grão d'uma provincia. Ao fundo a
cozinha, immensa,
[209]era
uma massa de
fórmas negras, madeira negra,
pedra negra, densas negruras de felugem secular. E n'este negrume
refulgia a um canto, sobre o chão de terra negra, a fogueira
vermelha,
lambendo tachos e panellas de ferro, despedindo uma fumarada que fugia
pela grade
aberta no muro, depois por entre a folhagem dos limoeiros. Na enorme
lareira, onde se aqueciam e assavam as suas grossas peças de
porco e
boi os Jacinthos medievaes, agora desaproveitada pela frugalidade dos
caseiros, negrejava um poeirento montão de cestas e
ferramentas;
e a
claridade toda entrava por uma porta de castanho, escancarada sobre um
quintalejo
rustico em que se misturavam couves lombardas e junquilhos formosos. Em
roda do lume um bando alvoroçado de mulheres depennava
frangos, remexia as caçarolas, picava a cebola, com um
fervor
afogueado e
palreiro. Todas emmudeceram quando apparecemos―e d'entre ellas o pobre
Melchior, estonteado, com o sangue a espirrar na nedia face d'abbade,
correu para
nós, jurando «que o jantarinho de suas
Incellencias não demorava um credo»...
―E a respeito de camas, oh amigo Melchior?
O digno homem ciciou uma desculpa encolhida «sobre
enxergasinhas no chão...»
[210]
―É o que basta! acudi eu, para o consolar. Por uma noite,
com lençoes frescos...
―Ah, lá pelos lençoesinhos respondo eu!... Mas
um desgosto assim, meu senhor! A gente apanhada sem um
colxãosinho de
lã, sem um lombosinho de vacca... Que eu já
pensei, até lembrei
á minha comadre, V. Inc.
as podiam ir
dormir aos
Ninhos, a casa
do Silverio. Tinham lá camas de ferro, lavatorios... Elle
sempre é uma legoasita e mau
caminho...
Jacintho, bondoso, accudiu:
―Não, tudo se arranja, Melchior. Por uma noite!...
Até gósto mais de dormir em Tormes, na minha casa
da serra!
Sahimos ao terreiro, retalho de horta fechado por grossas rochas
encabelladas de verdura, entestando com os socalcos da serra onde
lourejava o centeio. O meu principe bebeu da agua nevada e lusidia da
fonte, regaladamente, com os beiços na bica; appeteceu a
alface rechonchuda e crespa; e atirou pulos aos ramos altos d'uma
copada cerejeira, toda carregada de cereja. Depois, costeando o velho
lagar, a
que um bando de pombas branqueava o telhado, deslisámos
até ao carreiro, cortado no costado do monte. E andando,
pensativamente, o meu Principe pasmava para os milheiraes, para os
vetustos carvalhos plantados por vetustos Jacinthos, para os casebres
[211]espalhados sobre os
cabeços á orla negra dos pinheiraes.
De novo penetramos na avenida de faias e transpozemos o
portão senhorial entre o latir dos cães, mais
mansos,
farejando um dono.
Jacintho reconheceu «certa nobreza» na frontaria do
seu
lar.
Mas sobretudo lhe agradava a longa alameda, assim direita e larga, como
traçada para n'ella se desenrolar uma cavalgada de Senhores
com
plumas e pagens. Depois, de cima da varanda, reparando na telha nova da
capella, louvou
o Silverio, «esse ralaço», por cuidar ao
menos da morada do Bom-Deus.
―E esta varanda tambem é agradavel, murmurou elle
mergulhando a face no aroma dos cravos. Precisa grandes poltronas,
grandes divans de verga...
Dentro, na «nossa sala», ambos nos sentamos nos
poiaes da janella, contemplando o doce socego crepuscular que
lentamente se estabelecia sobre valle e monte. No alto tremeluzia uma
estrellinha, a Venus diamantina, languida annunciadora da noite e dos
seus contentamentos. Jacintho nunca considerára
demoradamente
aquella estrella,
de amorosa refulgencia, que perpetua no nosso Céo catholico
a
memoria
da Deusa incomparavel:―nem assistira jámais, com a alma
attenta, ao
magestoso adormecer da Natureza. E este
[212]ennegrecimento
dos montes que se
embuçam em sombra; os arvoredos emmudecendo,
cançados de
susurrar; o
rebrilho dos casaes mansamente apagado; o cobertor de nevoa, sob que se
acama e agasalha a frialdade dos valles; um toque somnolento de sino
que rola pelas quebradas; o segredado cochichar das aguas e das relvas
escuras―eram para elle como iniciações.
D'aquella janella, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que
não anda
sómente cheia do Homem e do tumulto da sua obra. E senti o
meu
amigo suspirar como quem emfim descança.
D'este enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do
«jantarinho de suas Incellencias». Era n'outra
sala, mais
núa,
mais abandonada:―e ahi logo á porta o meu super-civilisado
Principe estacou,
estarrecido pelo desconforto, escassez e rudeza das coisas. Na mesa,
encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma
toalha de estopa, duas velas de sêbo em castiçaes
de lata
alumiavam
grossos pratos de louça amarella, ladeados por colheres de
estanho e por
garfos de ferro. Os copos, d'um vidro espesso, conservavam a sombra
roxa do vinho que n'elles passára em fartos annos de fartas
vindimas. A malga
de barro, atestada de azeitonas pretas, contentaria Diogenes. Espetado
[213]na
côdea d'um immenso pão reluzia um immenso
facalhão.
E
na cadeira senhoreal reservada ao meu Principe, derradeira alfaia dos
velhos Jacinthos, de hirto espaldar de couro, com a madeira
roída de caruncho, a
clina fugia em melenas pelos rasgões do assento poido.
Uma formidavel moça, de enormes peitos que lhe tremiam
dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e
esbrazeada
do calor
da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o
Melchior, que
seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incellencias lhe
perdoassem porque faltára tempo para o caldinho apurar...
Jacintho occupou a séde ancestral―e, durante momentos (de
esgazeada
anciedade para o caseiro excellente) esfregou energicamente, com a
ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colhér de estanho.
Depois,
desconfiado, provou o caldo, que era de gallinha e rescendia. Provou―e
levantou
para mim, seu camarada de miserias, uns olhos que brilharam,
surprehendidos.
Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu,
com espanto:―«Está bom!»
Estava precioso: tinha figado e tinha moela: o seu perfume enternecia:
tres vezes, fervorosamente, ataquei aquelle caldo.
[214]
―Tambem lá volto! exclamava Jacintho com uma
convicção immensa. É que estou com uma
fome... Santo Deus! Ha annos que não sinto
esta fome.
Foi elle que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a
porta, esperando a portadora dos piteus, a rija moça de
peitos
trementes, que emfim surgiu, mais esbrazeada, abalando o sobrado―e
pousou sobre a
mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo!
Jacintho,
em Paris, sempre abominára favas!... Tentou todavia uma
garfada timida―e de novo aquelles seus olhos, que o pessimismo
ennovoára, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada,
concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois
um
brado:
―Optimo!... Ah, d'estas favas, sim! Oh que fava! Que delicia!
E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres
palreiras que em baixo remexiam as panellas, o Melchior que presidia ao
brodio...
―D'este arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
O homem optimo sorria, inteiramente desannuviado:
―Pois é cá a comidinha dos moços da
quinta! E cada pratada, que até suas Incellencias
[215]se riam... Mas agora,
aqui, o Snr. D. Jacintho,
tambem vae engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido n'esses remotos Parizes, o
Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava...
E o meu Principe, na verdade, parecia saciar uma velhissima fome e uma
longa saudade da abundancia, rompendo assim, a cada travessa, em
louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da
salada que elle appetecera na horta, agora temperada com um azeite da
serra digno dos labios de Platão, terminou por
bradar:―«É divino!» Mas nada o
enthusiasmava como o
vinho de Tormes, cahindo d'alto, da bojuda infusa verde―um vinho
fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que
muito poema ou livro santo. Mirando,
á vela de sèbo, o copo grosso que elle orlava de
leve
espuma rosea,
o meu Principe, com um resplendôr d'optimismo na face, citou
Virgilio:
―
Quo te carmina dicam, Rethica?
Quem dignamente te cantará, vinho amavel d'estas serras?
Eu, que não gosto que me avantagem em saber classico,
espanejei logo tambem o meu Virgilio, louvando as doçuras da
vida rural:
―
Hanc olim veteres vitam coluere
Sabini...
[216]Assim
viveram os velhos Sabinos. Assim Romolo e Remo... Assim cresceu a
valente Etruria. Assim Roma se tornou a maravilha do mundo!
E immovel, com a mão agarrada á infusa, o
Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e
religiosa reverencia.
Ah! Jantamos deliciosissimamente, sob os auspicios do Melchior―que
ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E,
como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para
as
janellas
desvidraçadas, na sala immensa, a contemplar o sumptuoso
céo de
verão. Philosophámos então com
pachorra e
facundia.
Na Cidade (como notou Jacintho) nunca se olham, nem lembram os
astros―por causa dos candieiros de gaz ou dos globos de electricidade
que os offuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra n'essa
communhão com o Universo que é a unica gloria e
unica consolação da Vida. Mas na serra, sem
predios
disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem
os
cuidados que como
pedaços de chumbo puxam a alma para o pó
rasteiro―um
Jacintho, um Zé
Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiaes
[217]d'uma
janella, olham para os astros e os astros olham para elles. Uns,
certamente, com olhos de sublime immobilidade ou de subllime
indifferença. Mas outros
curiosamente, anciosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama,
como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos,
ou de
tão longe comprehender os nossos...
―Oh Jacintho, que estrella é esta, aqui, tão
viva, sobre o beiral do telhado?
―Não sei... E aquella, Zé Fernandes,
além, por cima do pinheiral?
―Não sei.
Não sabiamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorancia
com que sahi do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual.
Elle,
porque na
sua Bibliotheca possuia trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o
Saber, assim accumulado, fórma um monte que nunca se
transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquelle
astro além se
chamasse Syrius e aquelle outro Aldebaran? Que lhes importava a elles
que um de nós fosse Jacintho, outro Zé? Elles
tão immensos, nós tão pequeninos,
somos a obra da
mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande,
constituimos modos diversos d'um Sêr unico, e as
nossas diversidades esparsas sommam na mesma compacta Unidade.
Molleculas
[218]do
mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do
astro ao homem, do homem á flôr do trevo, da
flôr do trevo ao mar sonoro―tudo é o mesmo Corpo,
onde
circula, como um sangue,
o mesmo Deus. E nenhum fremito de vida, por menor, passa n'uma fibra
d'esse sublime Corpo, que se não repercuta em todas,
até
ás mais humildes, até ás que parecem
inertes e
invitaes. Quando um Sol que
não avisto, nunca avistarei, morre de
inanição nas
profundidades,
esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto
arrepio de morte:―e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes,
além o
monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro
Universo! Jacintho abateu rijamente a mão no rebordo da
janella.
Eu gritei:
―Acredita!... O sol tremeu.
E depois (como eu notei) deviamos considerar que, sobre cada um d'esses
grãos de pó luminoso, existia uma
creação, que incessantemente nasce, perece,
renasce. N'este instante, outros Jacinthos, outros
Zés Fernandes, sentados ás janellas d'outras
Tormes, contemplam
o céo nocturno, e n'elle um pequenininho ponto de luz, que
é a
nossa possante Terra por nós tanto sublimada. Não
terão todos esta nossa fórma, bem fragil, bem
[219]desconfortavel,
e (a não ser no Apollo do
Vaticano, na Venus de Milo e talvez na Princeza, de Carman)
singularmente feia e burlesca.
Mas, horrendos ou de ineffavel belleza; collossaes e d'uma carne mais
dura que o granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos elles
são sêres pensantes e teem consciencia da
Vida―porque decerto cada Mundo possue o seu Descartes, ou
já o
nosso Descartes os
percorreu a todos com o seu Methodo, a sua escura capa, a sua agudeza
elegante, formulando a unica certeza talvez certa, o grande
Penso logo existo. Portanto todos nós,
Habitantes dos
Mundos, ás
janellas dos nossos casarões, além nos Saturnos,
ou aqui
na nossa
Terricula, constantemente perfazemos um acto sacrosanto que nos penetra
e nos funde―que
é sentirmos no Pensamento o nucleo commum das nossas
modalidades, e portanto realisarmos um momento, dentro da Consciencia,
a Unidade do Universo!―Hein, Jacintho?...
O meu amigo rosnou:
―Talvez... Estou a cahir com somno.
>
―Tambem eu. «Remontamos muito, Ex.
mo
Snr.!»
como dizia o Pestaninha em Coimbra. Mas nada mais bello, e mais
vão, que uma
cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as estrellas!... Tu sempre
vaes
amanhã?
[220]
―Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes.
«Penso
logo
fujo!» Como queres tu, n'este pardieiro,
sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?... Nem só de
arroz com fava vive o
Homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com o Cesimbra, o meu
Administrador. E
tambem á espera que estas obras acabem, os caixotes surjam,
e eu possa voltar decentemente, com roupa lavada, para a
trasladação...
―É verdade, os ossos...
―Mas resta ainda o Grillo... Que animal! Por onde andará
esse perdido?
Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de
sêbo já derretida no castiçal de lata
era como um
lume de cigarro
n'um descampado, meditámos na sorte do Grillo. O estimado
negro
ou fôra despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete
malas,
aos gritos―ou, regaladamente adormecido, rolára com o
Anatole
no comboio para Madrid. Mas ambos os casos appareciam ao meu Principe
como irremediavelmente destruidores do seu conforto...
―Não, escuta, Jacintho... Se o Grillo encalhou em Medina,
dormiu na Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada correu para
Tormes. Quando
ámanhã desceres á
Estação, ás quatro horas, encontras o
teu precioso homem,
[221]com
as tuas preciosas malas, mettido n'esse comboio que te leva ao Porto e
á Capital...
Jacintho saccudiu os braços como quem se debate nas malhas
d'uma rede:
―E se seguiu para Madrid?
―Então, por esta semana, cá apparece em Tormes,
onde encontra ordem para regressar a Lisboa e reentrar no teu
sequito... Resta o interessante caso das minhas bagagens. Se
ámanhã
encontrares na Estação o Grillo, separa a minha
mala
negra, e o sacco de lona, e a
chapelleira. O Grillo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me
avise para Guiães. Se o Grillo aportar Tormes, esfogueteado
de
Madrid,
com toda essa malaria, deixa as minhas cousas aqui, ao Melchior... Eu
ámanhã fallo ao Melchior.
Jacintho sacudiu furiosamente o collarinho:
―Mas como posso eu partir para Lisboa, ámanhã,
com esta camisa de dous dias, que já me faz uma
comichão horrenda? E sem
um lenço... Nem ao menos uma escova de dentes!
Fertil em idéas, estendi as mãos, n'um bello
gesto tutelar:
―Tudo se arranja, meu Jacintho, tudo se arranja! Eu, largando d'aqui
cedo, pelas seis
[222]horas,
chego a Guiães ás dez,
ainda sem calor. E, mesmo antes do almoço e da cavaqueira
com a tia Vicencia,
immediatamente te mando por um moço um sacco de roupa
branca. As minhas
camisas e as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo
como tu
não tem direito a elegancias e a roupas bem cortadas. O
moço, n'um
bom trote, entra aqui ás duas horas; tens tempo de mudar
antes de
desceres para a Estação... Posso metter na mala
uma escova de
dentes.
―Oh Zé Fernandes! Então mette tambem uma
esponja... E um frasco d'agoa de colonia!
―Agoa d'alfazema, excellente, feita pela tia Vicencia...
O meu Principe suspirou, impressionado com a sua miseria esqualida, e
esta dadiva de roupas:
―Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de
emoções e d'astros...
Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar
que «estavam preparadinhas as camas de suas
Incellencias.» E seguindo o bom caseiro, que erguia uma
candeia,
que avistamos nós, o meu
Principe e eu, ainda ha pouco irmanados com os astros? Em duas saletas,
que uma abertura em arco, lobrego arco de pedra, separava―duas
enxergas sobre
o soalho. Junto á cabeceira
[223]da
mais larga, que pertencia ao
senhor de Tormes, um castiçal de latão sobre um
alqueire;
aos pés, como lavatorio, um alguidar vidrado em cima duma
tripeça. Para mim, serrano
d'aquellas serras, nem alguidar nem alqueire.
Lentamente, com o pé, o meu super-civilisado amigo palpou a
enxerga. E decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou
pendido sobre
ella, a correr desoladamente os dedos pela face desmaiada.
―E o peior não é ainda a enxerga, murmurou emfim
com um suspiro. É que não tenho camisa de dormir,
nem chinelas!... E
não me posso deitar de camisa engommada.
Por inspiração minha reccorremos ao Melchior. De
novo, esse benemerito providenciou, trazendo a Jacintho, para elle
desafogar os
pés, uns tamancos―e para embrulhar o corpo uma camisa da
comadre, enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de
penitente, com folhos
mais crespos e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu
Principe lembrei
que Platão quando compunha o
Banquete, Vasco da Gama quando
dobrava o Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas
rijas
fazem as almas fortes, oh Jacintho!... E é só
vestido de
estamenha que se penetra no Paraiso.
[224]
―Tens tu, volveu o meu amigo seccamente, alguma coisa que eu leia?
Não posso adormecer sem um livro.
Eu? Um livro? Possuia apenas o velho numero do
Jornal
do Commercio,
que escapára á dispersão dos nossos
bens. Rasguei a copiosa folha pelo meio, partilhei com Jacintho
fraternalmente. Elle tomou a sua metade, que era a dos annuncios... E
quem não viu então
Jacintho, senhor de Tormes, acaçapado á borda da
enxerga,
rente da
vela de sêbo que se derretia no alqueire, com os
pés
encafuados nos
sócos, perdido dentro das ásperas pregas e dos
rijos
folhos da camisa serrana,
percorrendo n'um pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as
partidas dos
Paquetes―não póde saber o que é uma
intensa e veridica imagem do Desalento.
Recolhido á minha alcova espartana, desabotoava o collete,
n'um delicioso cansaço, quando o meu Principe ainda me
reclamou:
―Zé Fernandes...
―Dize.
―Manda tambem no sacco um abotoador de botas.
Estirado commodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao
penetrar no Somno, que é um primo da Morte,
[225]«Deus
seja louvado!» Depois tomei a metade do
Jornal do
Commercio que me pertencia.
―Zé Fernandes...
―Que é?
―Tambem podias metter no sacco pós dos dentes... E uma lima
das unhas... E um romance!
Já a meia Gazeta me escapava das mãos dormentes.
Mas da sua alcova, depois de soprar a vela, Jacintho murmurou entre um
bocejo:
―Zé Fernandes...
―Hein?
―Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os
lençoes ao menos são frescos, cheiram bem, a
sadio!
IX
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o meu
Jacintho, que, com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia
beatificamente na
sua enxerga de granito―parti para Guiães.
Ao cabo d'uma semana, recolhendo uma manhã para o
almoço, encontrei no corredor as minhas malas tão
desejadas, que um
moço do casal da Giesta trouxera n'um carro com
«recados
do Snr.
Pimentinha». O meu pensamento pulou para o meu Principe. E
lancei
pelo telegrapho, para Lisboa, para
o Hotel Bragança, este brado
alegre:―«Estás lá? Sei recuperaste
Grillo e Civilisação! Hurrah!
Abraço!»―Só depois de sete dias,
occupados n'uma delicada apanha de aspargos com que outr'ora
civilisára a
horta da tia Vicencia, notei o silencio de Jacintho. N'um bilhete
postal renovei, desenvolvi o grito amigo:―«Estás
lá?
São os prazeres da Baixa que assim te
[228]tornam
desattento e mudo? Eu, todo aspargos! Responde, quando
chegas? Tempo delicioso! 23º á sombra. E os
ossos?...»―Veio depois a devota romaria da Senhora da
Roqueirinha. Durante a lua nova andei n'um
córte de matto, na minha terra das Corcas. A tia Vicencia
vomitou, com uma indigestão de murcellas. E o silencio do
meu
Principe era
ingrato e ferrenho.
Emfim uma tarde, voltando da Flor da Malva, de casa da minha prima
Joanninha, parei em Sandofim, na venda do Manoel Rico, para beber de
certo vinho branco que a minha alma conhece―e sempre pede.
Defronte, á porta do ferrador, o Severo, sobrinho do
Melchior de Tormes e o mais fino alveitar da serra, picava tabaco,
escarranchado n'um banco. Mandei encher outro quartilho: elle acariciou
o
pescoço da minha egua que já salvára
d'um
esfriamento: e, como eu
indagasse do nosso Melchior, o Severo contou que na véspera
jantára
com elle em Tormes, e se abeirára tambem do fidalgo...
―Ora essa! Então o snr. D. Jacintho está em
Tormes?
O meu espanto divertiu o Severo:
―Então v. exc.
a... Pois em Tormes é que
elle
está, ha mais de cinco semanas, sem arredar!
[229]E parece que fica para a
vindima, e vai
lá uma grandeza!
Santissimo nome de Deus! Ao outro dia, domingo, depois da missa e sem
me assustar com a calma que carregava, trotei
alvoroçadamente
para Tormes. Ao latir dos rafeiros, quando transpuz o portal solarengo,
a comadre do
Melchior accudio dos lados do curral, com um alguidar de lavagem
encostado á cintura.―Então o snr. D.
Jacintho?... O snr. D. Jacintho andava lá para baixo, com o
Silverio e com o Melchior, nos
campos de Freixomil...
―E o Snr. Grillo, o preto?
―Ha bocadinho tambem o enxerguei no pomar, com o francez, a apanhar
limões doces...
Todas as janellas do solar rebrilhavam, com vidraças novas,
bem polidas. A um canto do páteo notei baldes de cal e
tijellas de
tintas. Uma escada de pedreiro descançára durante
o Dia Santo
arrimada contra o telhado. E, rente ao muro da capella, dois gatos
dormiam sobre montões
de palha desempacotada de caixotes consideraveis.
―Bem, pensei eu. Eis a Civilisação!
Recolhi a egua, galguei a escada. Na varanda, sobre uma pilha de ripas,
reluzia n'um raio de sol uma banheira de zinco. Dentro
[230]encontrei
todos os soalhos remendados, esfregados a carqueja. As paredes, muito
caiadas
e núas, refrigeravam como as d'um convento. Um quarto, a que
me levaram tres portas escancaradas com franqueza serrana, era
certamente o de Jacintho: a roupa pendia de cabides de pau: o leito de
ferro, com coberta de fustão, encolhia timidamente a sua
rigidez
virginal a um canto, entre o muro e a banquinha onde um
castiçal
de
latão resplandecia sobre um volume do
D. Quichote;
no
lavatorio pintado de amarello, imitando bambú, apenas cabia
o
jarro, a bacia, um naco gordo
de sabão; e uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho da
escova, da thesoura, do
pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de agua de alfazema que
eu mandára de Guiães. As tres janellas, sem
cortinas, contemplavam a belleza da serra, respirando um delicado e
macio ar, que se perfumava nas resinas dos pinheiraes, depois nas
roseiras da horta. Em frente, no
corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a
previdencia do meu Principe o destinára ao seu Zé
Fernandes. Pendurei logo dentro, no cabide, o meu guarda-pó
de
lustrina.
Mas na sala immensa, onde tanto philosopháramos considerando
as estrellas, Jacintho arranjára um centro de repouso e
d'estudo―e
[231]desenrolára
essa «grandeza» que
impressionava o Severo. As cadeiras de verga da Madeira, amplas e de
braços, offereciam o conforto
de almofadinhas de chita. Sobre a mesa enorme de pau branco,
carpinteirada
em Tormes, admirei um candieiro de metal de tres bicos, um tinteiro de
frade armado de pennas de pato, um vaso de capella transbordando de
cravos. Entre duas janellas uma commoda antiga, embutida, com ferragens
lavradas, recebera sobre o seu marmore rosado o devoto peso d'um
Presepio, onde Reis Magos, pastores de surrões vistosos,
cordeiros d'esguedelhada lã, se apressavam atravez
d'alcantis
para o
Menino, que na sua lapinha lhes abria os braços, coroado por
uma
enorme
Corôa Real. Uma estante de madeira enchia outro
pedaço de
parede, entre
dois retratos negros com caixilhos negros; sobre uma das suas
prateleiras repousavam duas espingardas; nas outras esperavam,
espalhados, como os primeiros Doutores nas bancadas d'um concilio,
alguns nobres livros, um
Plutarcho, um Virgilio, a Odyssea, o Manual de Epictecto, as Chronicas
de Froissart. Depois, em fila decorosa, cadeiras de palhinha, muito
novas, muito envernisadas. E a um canto um mólho de
varapaus.
Tudo resplandecia de asseio e ordem. As
[232]portadas
das janellas,
cerradas, abrigavam do sol que batia aquelle lado de Tormes, escaldando
os peitoris de pedra. Do soalho, burrifado de agua, subia, na suavisada
penumbra, uma frescura. Os cravos rescendiam. Nem dos campos, nem da
casa, se elevava um rumor. Tormes dormia no esplendor da
manhã santa. E, penetrado por aquella consoladora
quietação de
convento rural, terminei por me estender n'uma cadeira de verga, junto
da mesa, abrir languidamente um tomo de Virgilio, e murmurar,
appropriando o doce
verso que encontrára:
Fortunate Jacinthe! Hic, inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum...
Afortunado Jacintho, na verdade! Agora, entre campos que são
teus e aguas que te são sagradas, colhes emfim a sombra e a
paz!
Li ainda outros versos. E, na fadiga das duas horas de egua e calor
desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o divino
Bucoliasta―quando me despertou um berro amigo! Era o meu Principe. E
muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço,
o comparei a uma planta estiolada, emmurchecida na
escuridão,
entre
tapetes e sêdas, que, levada para vento e sol, profusamente
[233]regada,
reverdece, desabrocha e honra a Natureza! Jacintho já
não
corcovava. Sobre a sua arrefecida pallidez de super-civilisado, o ar
montesino, ou vida mais verdadeira, espalhára um rubor
trigueiro
e quente de sangue
renovado que o virilisava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade
andavam sempre
tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um
brilho
de
meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na belleza das
coisas.
Até o bigode se lhe encrespára. E já
não
deslisava a mão desencantada sobre a face,―mas batia com
ella
triumphalmente na côxa. Que sei?
Era um Jacintho novissimo. E quasi me assustava, por eu ter de aprender
e penetrar, n'este novo Principe, os modos e as idéas novas.
―Caramba, Jacintho, mas então...?
Elle encolheu jovialmente os hombros realargados. E só me
soube contar, trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos
de
pó o soalho remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de
se lavar n'uma dorna, e
d'enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como
desannuviado,
desenvencilhado!
Almoçára uma pratada de ovos com
chouriço, sublime. Passeára por toda aquella
magnificencia da serra com pensamentos ligeiros de liberdade e de paz.
Mandára
[234]ao
Porto comprar uma cama, uns cabides... E alli estava...
―Para todo o verão?
―Não! Mas um mez... Dois mezes! Emquanto houver
chouriços, e a agoa da fonte, bebida pela telha ou n'uma
folha de couve, me souber
tão divinamente!
Cahi sobre a cadeira de verga, e contemplei, arregalado, quasi
esgazeado, o meu Principe! Elle enrolava n'uma mortalha tabaco picado,
tabaco grosso, guardado n'uma malga vidrada. E exclamava:
―Ando ahi pelas terras desde o romper d'alva! Pesquei já
hoje quatro trutas, magnificas... Lá em baixo, no Naves, um
riachote que
se atira pelo valle da Seranda... Temos logo ao jantar essas trutas!
Mas eu, avido pela historia d'aquella
ressurreição:
―Então, não estiveste em Lisboa?... Eu
telegraphei...
―Qual telegrapho! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao
pé da fonte da Lira, á sombra d'uma grande
arvore,
sub
tegmine não sei quê, a
lêr esse adorável Virgilio... E tambem a arranjar
o meu palacio!
Que te parece, Zé Fernandes? Em tres semanas, tudo soalhado,
envidraçado, caiado, encadeirado!... Trabalhou
[235]a freguezia inteira!
Até
eu pintei, com uma immensa brocha. Viste o comedoiro?
―Não.
―Então vem admirar a belleza na simplicidade, barbaro!
Era a mesma onde nós tanto exaltaramos o arroz com
favas―mas muito esfregada, muito caiada, com um rodapé
bezuntado d'azul
estridente onde logo adivinhei a obra do meu Principe. Uma toalha de
linho de
Guimarães cobria a mesa, com as franjas roçando o
soalho. No fundo dos
pratos de louça forte reluzia um gallo amarello. Era o mesmo
gallo e a
mesma louça em que na nossa casa, em Guiães, se
servem os
feijões dos cavadores...
Mas no páteo os cães latiram. E Jacintho correu
á varanda, com uma ligeireza curiosa que me deleitou. Ah,
bem
definitivamente se esfrangalhára aquella rede de malha que
se
não
percebia e que outr'ora o travava!―N'esse momento appareceu o Grillo,
de quinzena de linho, segurando em cada mão uma garrafa de
vinho
branco. Todo se
alegrou «em vêr na quinta o siô
Fernandes». Mas
a sua
veneranda face já não resplandecia, como em
Paris, com um
tão sereno e ditoso
brilho de ebano. Até me pareceu que corcovava... Quando o
interroguei sobre
aquella mudança, estendeu duvidosamente o beiço
grosso:
[236]
―O menino gosta, eu então tambem gósto... Que o
ar aqui é muito bom, siô Fernandes, o ar
é muito bom!
Depois, mais baixo, envolvendo n'um gesto desolado a louça
de Barcellos, as facas de cabo d'osso, as prateleiras de pinho como
n'um refeitorio
de Franciscanos:
―Mas muita magreza, siô Fernandes, muita magreza!
Jacintho voltava com um maço de jornaes cintados:
―Era o carteiro. Já vês que não amuei
inteiramente com a Civilisação. Eis a
Imprensa!... Mas nada de
Figaro, ou da horrenda
Dois-Mundos! Jornaes de Agricultura! Para aprender
como se
produzem as risonhas messes, e sob que signo se casa a vinha ao olmo, e
que cuidados necessita a abelha provida...
Quid faciat
laetas
segetes... De resto para esta nobre
educação, já me
bastavam as
Georgicas, que tu
ignoras!
Eu ri:
―Alto lá!
Nos quoque gens sumus et
nostrum Virgilium sabemus!
Mas o meu novissimo amigo, debruçado da janella, batia as
palmas―como Catão para chamar os servos, na Roma simples. E
gritava:
[237]
―Anna Vaqueira! Um copo d'agoa, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, immensamente divertido:
―Oh Jacintho! E as aguas carbonatadas? e as phosphatadas? e as
esterilisadas? e as sodicas?...
O meu Principe atirou os hombros com um desdem soberbo. E acclamou a
apparição d'um grande copo, todo embaciado pela
frescura nevada da agoa refulgente, que uma bella moça
trazia
n'um prato. Eu admirei
sobretudo a moça... Que olhos, d'um negro tão
liquido e
serio! No andar, no quebrar da cinta, que harmonia e que
graça
de Nympha latina!
E apenas pela porta desapparecera a explendida
apparição:
―Oh Jacintho, eu d'aqui a um instante tambem quero agua! E se compete
a esta rapariga trazer as cousas, eu, de cinco em cinco minutos, quero
uma cousa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia,
toda viva, da serra...
O meu Principe sorria, com sinceridade:
―Não! não nos illudamos, Zé
Fernandes, nem façamos Arcadia. É uma bella
moça, mas uma bruta... Não ha alli mais poesia,
nem mais sensibilidade, nem mesmo mais belleza do que n'uma linda vacca
tourina. Merece o
[238]seu
nome de Anna Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso
a fez a Natureza, assim sã e rija; e ella cumpre. O marido
todavia não parece contente, porque a desanca. Tambem
é
um bello
bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e
muito
grato lhe estou... Mas
temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em
todo o
seu
egoismo... São porém verdadeiros, genuinamente
verdadeiros! E esta verdade,
Zé Fernandes, é para mim um repouso.
Lentamente, gozando a frescura, o silencio, a liberdade do vasto
casarão, retrocedemos á sala que Jacintho
já denominára a
Livraria. E, de repente, ao avistar n'um canto uma
caixa com a tampa meio
despregada, quasi me engasguei, na furiosa curiosidade que me assaltou:
―E os caixotes? Oh Jacintho?... Toda aquella immensa caixotaria que
nós mandamos, abarrotada de
Civilisação? Soubeste?
Appareceram?
O meu Principe parou, bateu alegremente na côxa:
―Sublime! Tu ainda te lembras d'aquelle homemsinho, de sacco a
tiracollo, que nós admiramos tanto pela sua sagacidade, o
seu saber geographico?... Lembras? Apenas fallei em Tormes, gritou que
conhecia, rabiscou
[239]uma
nota... Nem era necessario mais! «Oh! Tormes, perfeitamente,
muito antigo, muito curioso!» Pois mandou tudo
para Alba-de-Tormes, em Hespanha! Está tudo em Hespanha!
Cocei o queixo, desconsolado:
―Ora, ora... Um homem tão esperto, tão expedito,
que fazia tanta honra ao Progresso! Tudo para Hespanha!... E mandaste
vir?
―Não! Talvez mais tarde... Agora, Zé Fernandes,
estou saboreando esta delicia de me erguer pela manhã, e de
ter só uma
escova para alisar o cabello.
Considerei, cheio de recordações, o meu amigo:
―Tinhas umas nove...
―Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma
atrapalhação, não me bastavam!...
Nunca em Paris
andei bem penteado. Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos
que nunca li nenhum. Assim com as minhas
occupações:
tanto me sobrecarregavam, que
nunca fui util!
De tarde, depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos colleantes
d'aquella quinta rica, que, através de duas legoas, ondula
por valle e monte. Não m'encontrára mais com
Jacintho em
meio
da Natureza, desde o
[240]remoto
dia
d'entremez em que elle tanto soffrera no sociavel e
policiado bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que
segurança e
idyllico amor elle se movia através d'essa Natureza, d'onde
andára tantos annos desviado por theoria e por habito!
Já
não
arreceiava a humidade mortal das relvas; nem repellia como impertinente
o roçar das
ramagens; nem o silencio dos altos o inquietava como um despovoamento
do Universo. Era com delicias, com um consolado sentimento de
estabilidade recuperada, que enterrava os grossos sapatos nas terras
molles, como no seu
elemento natural e paterno: sem razão, deixava os trilhos
faceis,
para se embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber
na
face
a caricia das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, immovel,
retendo os meus gestos e quasi o meu halito, para se embeber de
silencio e de paz: e duas vezes o surprehendi attento e sorrindo
á beira d'um
regatinho palreiro, como se lhe escutasse a confidencia...
Depois philosophava, sem descontinuar, com o enthusiasmo d'um
convertido, avido de converter:
―Como a intelligencia aqui se liberta, hein? E como tudo é
animado d'uma vida
[241]forte
e profunda!... Dizes tu agora, Zé
Fernandes, que não ha aqui pensamento...
―Eu?! Eu não digo nada, Jacintho...
―Pois é uma maneira de reflectir muito estreita e muito
grosseira...
―Ora essa! Mas eu...
―Não, não percebes. A vida não se
limita a pensar, meu caro doutor...
―Que não sou!
―A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e n'aquelle
pedaço de terra, plantado de milho, vae todo um mundo de
impulsos, de
forças que se revelam, e que attingem a sua
expressão suprema, que
é a Fórma. Não, essa tua philosophia
está ainda extremamente grosseira...
―Irra! mas eu não...
―E depois, menino, que inesgotavel, que miraculosa diversidade de
fórmas... E todas bellas!
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com
reverencia. Na Natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou
repetido! Nunca duas folhas d'hera, que, na verdura ou recorte, se
assemelhassem! Na Cidade, pelo contrario, cada casa repete servilmente
a outra casa; todas as faces reproduzem a mesma indifferença
ou
a mesma
inquietação; as idéas teem todas o
mesmo valor,
[242]o
mesmo cunho, a mesma fórma, como
as libras; e até o que ha mais pessoal e intimo, a
Illusão,
é em todos identica, e todos a respiram, e todos se perdem
n'ella como no mesmo nevoeiro... A
mesmice―eis o
horror das Cidades!
―Mas aqui! Olha para aquelle castanheiro. Ha tres semanas que cada
manhã o vejo, e sempre me parece outro... A sombra, o sol, o
vento, as nuvens, a chuva, incessantemente lhe compõem uma
expressão diversa e nova, sempre interessante. Nunca a sua
frequentação me poderia fartar...
Eu murmurei:
―É pena que não converse!
O meu Principe recuou, com olhares chammejantes, d'Apostolo:
―Como que não converse? Mas é justamente um
conversador sublime! Está claro, não tem ditos,
nem parola theorias,
ore rotundo. Mas nunca eu passo junto d'elle que
não me
suggira um pensamento ou me
não desvende uma verdade... Ainda hoje quando eu voltava de
pescar as trutas... Parei: e logo elle me fez sentir como toda a sua
vida de vegetal
é isenta de trabalho, da anciedade, do esforço
que a vida
humana impõe; não tem de se preoccupar com o
sustento,
nem com o vestido,
nem com o abrigo; filho querido
[243]de
Deus, Deus o nutre, sem que elle se mova ou se inquiete... E
é
esta segurança que lhe dá tanta graça
e tanta
magestade. Pois não achas?
Eu sorria, concordava. Tudo isto era de certo rebuscado e especioso.
Mas que importavam as requintadas metaphoras, e essa metaphysica mal
madura, colhida á pressa nos ramos d'um castanheiro? Sob
toda
aquella ideologia transparecia uma excellente realidade―a
reconciliação do meu Principe com a Vida. Segura
estava a sua Resurreição
depois de tantos annos de cova, da cova molle em que jazera, enfaixado
como uma mumia nas faixas do Pessimismo!
E o que esse Principe, n'esta tarde me esfalfou! Farejava, com uma
curiosidade insaciavel, todos os recantos da serra! Galgava os
cabeços correndo, como na esperança de descobrir
lá do
alto os esplendores nunca contemplados d'um Mundo inedito. E o seu
tormento era não
conhecer os nomes das arvores, da mais rasteira planta brotando das
fendas d'um socalco... Constantemente me folheava como a um Diccionario
Botanico.
―Fiz toda a sorte de cursos, passei pelos professores mais illustres
da Europa, tenho trinta mil volumes, e não sei se aquelle
senhor além é um amieiro ou um sobreiro...
[244]
―É um azinheiro, Jacintho.
Já a tarde cahia quando recolhemos muito lentamente. E toda
essa adoravel paz do céo, realmente celestial, e dos campos,
onde
cada folhinha conservava uma quietação
contemplativa,
na luz docemente desmaiada, pousando sobre as cousas com um liso e leve
affago,
penetrava tão profundamente Jacintho, que eu o senti, no
silencio em
que cahiramos, suspirar de puro allivio.
Depois, muito gravemente:
―Tu dizes que na natureza não ha pensamento...
―Outra vez! Olha que massada! Eu...
―Mas é por estar n'ella supprimido o pensamento que lhe
está poupado o soffrimento! Nós,
desgraçados,
não
podemos supprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e
impedir que elle se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das
cidades, ideando gozos que nunca se realisam, aspirando a certezas que
nunca se attingem!... E é
o que aconselham estas collinas e estas arvores á nossa
alma,
que
vela e se agita:―que viva na paz d'um sonho vago e nada
appeteça,
nada tema, contra nada se insurja, e deixe o Mundo rolar,
não
esperando
d'elle senão um rumor de harmonia, que a emballe e lhe
favoreça o
[245]dormir
dentro da mão de Deus. Hein, não te parece,
Zé Fernandes?
―Talvez. Mas é necessario então viver n'um
mosteiro, com o temperamento de S. Bruno, ou ter cento e quarenta
contos de renda e o desplante de certos Jacinthos... E tambem me parece
que andamos leguas. Estou derreado. E que fome!
―Tanto melhor, para as trutas, e para o cabrito assado que nos
espera...
―Bravo! Quem te cosinha?
―Uma afilhada do Melchior. Mulher sublime! Has de ver a canja! Has de
ver a cabidella! Ella é horrenda, quasi anã, com
os olhos tortos, um verde e outro preto. Mas que paladar! Que genio!
Com effeito! Horacio dedicaria uma ode áquelle cabrito
assado n'um espeto de cerejeira. E com as trutas, e o vinho Melchior, e
a
cabidella, em que a sublime anã de olhos tortos puzera
inspirações que não são da
terra, e aquella doçura da noite de Junho, que pelas
janellas abertas nos envolveu no seu velludo negro, tão
molle e
tão consolado fiquei, que, na sala onde nos esperava o
café, cahi n'uma cadeira de
verga, na mais larga, e de melhores almofadas, e atirei um berro de
pura delicia.
[246]
Depois, com uma recordação, limpando o
café do pello dos bigodes:
―Ó Jacintho, e quando nós andavamos por Paris
com o Pessimismo ás costas, a gemer que tudo era
illusão e dôr?
O meu Principe, que o cabrito tornára ainda mais alegre,
trilhava a grandes passadas o soalho, enrolando o cigarro:
―Oh! que engenhosa besta, esse Schopenhauer! E maior besta eu, que o
sorvia, e que me desolava com sinceridade! E todavia,―continuava elle,
remexendo a chavena―o Pessimismo é uma theoria bem
consoladora para os que soffrem, porque desindividualisa o soffrimento,
alarga-o
até o tornar uma lei universal, a lei propria da Vida;
portanto
lhe tira o caracter pungente d'uma injustiça especial,
commettida
contra o soffredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso
mal sobretudo nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do
nosso visinho:―porque nos sentimos escolhidos e destacados para a
infelicidade, podendo, como elle, ter nascido para a Fortuna. Quem se
queixaria de ser côxo―se toda a humanidade coxeasse? E quaes
não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na
neve e friagem e borrasca d'um inverno especial, organisado
[247]nos
ceus para o envolver a elle unicamente―em quanto em redor, toda a
Humanidade se movesse na luminosa benignidade d'uma Primavera?
―Com effeito, murmurei eu, esse sujeito teria immensa razão
para urrar...
―E depois, clamava ainda o meu amigo, o Pessimismo é
excellente
para os Inertes, por que lhes attenua o desgracioso delicto da Inercia.
Se toda a meta é um monte de Dor, onde a alma vae esbarrar,
para
que marchar para a meta, atravez dos embaraços do mundo? E
de
resto todos os Lyricos e Theoricos do Pessimismo, desde
Salomão
até o maligno Schopenhauer, lançam o seu cantico
ou a sua
doutrina para
disfarçar a humilhação das suas
miserias,
subordinando-as todas a uma vasta lei de Vida, uma lei Cosmica, e
ornando assim com a aureola de uma origem quasi divina as suas miudas
desgraçazinhas de temperamento ou de Sorte. O
bom Schopenhauer formúla todo o seu schopenhauerismo, quando
é um philosopho sem editor, e um professor sem discipulos; e
soffre horrendamente de terrores e manias; e esconde o seu dinheiro
debaixo do sobrado; e
redige as suas contas em grego nos perpetuos lamentos da
desconfiança; e vive nas adegas com o medo de incendios; e
viaja
com um copo de lata na algibeira para
[248]não
beber em vidro que beiços de
leproso tivessem contaminado!... Então Schopenhauer
é
sombriamente
Schopenhauerista. Mas apenas penetra na celebridade, e os seus
miseraveis nervos se acalmam,
e o cerca uma paz amavel, não ha então, em todo
Francfort, burguez mais optimista, de face mais jocunda, e gozando mais
regradamente os bens da
intelligencia e da Vida!... E o outro, o Israelita, o muito pedantesco
rei de Jerusalem! quando descobre esse sublime Rhetorico que o mundo
é Illusão e Vaidade? Aos setenta e cinco annos,
quando o
Poder
lhe escapa das mãos tremulas, e o seu serralho de trezentas
concubinas
se lhe torna ridiculamente superfluo. Então rompem os
pomposos
queixumes!
Tudo é vaidade e afflicção de
espirito! nada
existe
estavel sob o sol! Com effeito, meu bom Salomão, tudo
passa―principalmente o poder
de usar trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho
sultão asiatico, besuntado de Litteratura, a sua
virilidade,―e
onde se
sumirá o lamento do Ecclesiastes? Então
voltará,
em segunda e
triumphal edição, o extase do
Livro
dos Cantares!...
Assim discursava o meu amigo no nocturno silencio de Tormes. Creio que
ainda estabeleceu sobre o Pessimismo outras coisas joviaes, profundas
ou elegantes;―mas eu
[249]adormecera,
beatificamente envolto em Optimismo e doçura.
Em breve porém, me fez pular, escancarar as palpebras
molles, uma rija, larga, sadia e genuina risada. Era Jacintho, estirado
n'uma cadeira,
que lia o D. Quixote... Oh bem aventurado Principe!
Conservára
elle o agudo poder de arrancar theorias a uma espiga de milho ainda
verde, e por uma
clemencia de Deus, que fizera reflorir o tronco secco,
recuperára o dom divino de rir, com as facecias de Sancho!
Aproveitando a minha companhia, as duas semanas de bucolica occiosidade
que eu lhe concedera, o meu Jacintho preparou então a
ceremonia tão falada, tão meditada, a
trasladação
dos ossos dos velhos Jacinthos―dos «respeitaveis
ossos» como murmurava,
cumprimentando, o bom Silverio, o procurador, n'essa manhã
de sexta feira, em que
almoçava comnosco, mettido n'um espantoso
jaquetão de velludilho amarello
debruado de seda azul! A ceremonia, de resto, reclamava muita singeleza
por serem
tão incertos, quasi impessoaes, aquelles restos, que
nós
estabeleceriamos na Capellinha do valle da Carriça, na
Capellinha toda nova,
toda nua e toda fria, ainda sem alma e sem calor de Deus.
―Por que emfim v. ex.
a comprehende,―explicava
[250]o
Silverio passando o guardanapo por sobre a larga face suada e por sobre
as immensas barbas negras, como as d'um turco―, n'aquella mixordia...
Oh! peço
desculpa a v. ex.
a! N'aquella confusão, quando tudo
desabou,
não pudémos mais conhecer a quem pertenciam os
ossos. Nem
sequer, fallando verdade,
nós sabiamos bem que dignos avós de v.
ex.
a jaziam
na capella
velha, assim tão antigos, com os letreiros apagados,
senhores de
todo o
nosso respeito, certamente, mas, se v. ex.
a me permitte,
senhores
já muito desfeitos... Depois veio o desastre, a mixordia. E
aqui
está
o que decidi, depois de pensar. Mandei arranjar tantos
caixões
de
chumbo, quantas as caveiras que se apanharam lá em baixo na
Carriça, entre o lixo e o pedregulho. Havia sete caveiras e
meia. Quero dizer, sete caveiras e uma caveirinha pequenina. Mettemos
cada caveira em seu caixão. Depois... Que quer v.
ex.
a?
Não havia
outro meio! E aqui o Snr. Fernandes dirá se não
acha que
procedemos com
habilidade. A cada caveira juntamos uma certa
porção
d'ossos, uma
porção rasoavel... Não havia outro
meio... Nem
todos os ossos se acharam. Canellas, por exemplo, faltavam! E
é
bem possivel que as costellas d'um d'aquelles
senhores ficasse com a cabeça d'outro... Mas quem podia
saber?
Só Deus. Emfim
[251]fizemos
o que a prudência mandava... Depois, no dia de Juizo,
cada um d'estes fidalgos apresentará os ossos que lhe
pertencerem.
Lançava estas cousas macabras e tremendas, penetrado de
respeito, quasi com magestade, espetando, ora em mim, ora no meu
Principe, os olhinhos agudos e relusentes como vidrilhos.
Eu approvei o pittoresco homem:
―Perfeitamente! Andou perfeitamente, amigo Silverio. São
tão vagos, tão anonymos, todos esses
avós! Só faz pena, grande
pena, que se tresmalhassem os restos do avô
Galião.
―Não estava cá! accudiu Jacintho. Vim a Tormes
expressamente por causa do avô Galião, e por fim o
seu jazigo nunca foi
aqui, na Capellinha da Carriça... Felizmente!
O Silverio saccudia gravemente a calva trigueira:
―Nunca tivemos o ex.
mo sr. Galião.
Ha cem annos, Snr.
Fernandes, ha cem annos que se não depositava na capella
velha corpo de
cavalheiro cá da casa.
―Onde estará então?...
O meu Principe encolheu os hombros. Por esse Reino... Na egrejinha, no
cemiterio d'alguma das freguezias numerosas, onde elle possuia terras.
Casa tão espalhada!
[252]
―Bem! conclui. Então, como se trata d'ossadas vagas, sem
nome, sem data, convem uma ceremoniasinha muito simples, muito sobria.
―Quietinha, quietinha! murmurou o Silverio, dando um forte sorvo
assobiado ao café.
E foi quietinha, d'uma rustica e doce singeleza, a ceremonia d'aquelles
altos senhores. Cedo, por uma manhã, levemente enevoada, os
oito caixões pequeninos, cobertos d'um velludo vermelho mais
de
festa que de
funeral, com molhos de rosas espalhados, contendo cada um o seu
montesinho d'ossos incertos, sahiram aos hombros dos coveiros de Tormes
e dos
moços da quinta, da Egreja de S. José, cujo sino
leve
tangia, na
enevoada doçura da manhã,―quanto fina e
levemente!―como
pia um passarinho triste. Adiante, um airoso moço de
sobrepelis,
erguia com
zelo a velha cruz prateada; abrigando o pescoço sob um
immenso
lenço de rapé, de quadrados azues, o velho e
corcovado
sacristão segurava
pensativamente a caldeirinha d'agoa benta; e o bom abbade de S.
José, com os
dedos entre o breviario fechado, movia os labios, n'uma lenta,
murmurosa resa, que ia, pelo doce ar, espalhando mais
doçura.
Logo atraz do
ultimo cofre, o mais pequenino, o da caveirinha pequena, Jacintho
caminhava; e eu,
[253]a
estalar dentro d'um fato preto de Jacintho, tirado á pressa
d'uma das malas de Paris quando, de manhã, já
tarde para
mandar a Guiães, me lembrei que toda a minha roupa era de
cores
festivaes e pastoris.
Depois marchava o Silverio, solemnissimo, com um immenso peitilho, onde
as barbas immensas se alastravam, negrissimas. De casaca, com o grosso
beiço descahido, descahido todo elle por aquella melancolia
de enterro que se juntava á melancolia da serra, o Grillo
enfiava no
braço a sua coroa, enorme, de rosas e d'heras. Por fim
seguia o
Melchior, entre um rancho de mulheres, que, sumidas na sombra dos
lenços
pretos, desfiando longos rosarios, rosnavam surdas
avè-marias,
atravez
d'espaçados suspiros, tão doridos como se
inconsoladamente lhes doesse a
perda d'aquelles Jacinthos. Assim, pelas varzeas entrecorridas de
regueiros, lenta nos recostos dos mattos, escorregando mais rapida,
pelos corregos
pedregosos, seguia a procissão, sempre com a cruz adiante,
alta e prateada, rebrilhando por vezes n'um breve raiosinho de sol que,
vagarosamente, surdia da nevoa desfeita. Ramos baixos de
lodão ou de salgueiro passavam uma derradeira caricia sobre
o
velludo dos
caixões.
Um regato por vezes nos acompanhava,
[254]com
discreto fulgir entre as relvas, sussurrando e como resando tambem,
alegremente: e nos quintalinhos umbrosos, á nossa passagem,
os
gallos, de cima das pilhas de matto, faziam soar o seu clarim festivo.
Depois, adiante da fonte da Lira, como o caminho se alongava, e
desejassemos poupar o nosso velho abbade, cortamos atravez d'uma seara,
já alta, quasi madura, toda entremeada de papoulas, O sol
radiou: sob a brisa larga, que
levára a nevoa, toda a messe ondulou n'uma lenta vaga
dourada,
em que se balouçavam os esquifes; e, como enorme papoula, a
mais
vermelha, rutilava o guarda sol de panninho logo aberto pelo
sacristão
para abrigar o abbade.
Jacintho tocou no meu cotovello:
―Que lindos vamos! Ora vê tu a Natureza... N'um simples
enterrar d'ossos, quanta graça e quanta belleza!
Na Capellinha, nova, dominando o valle da Carriça, solitaria
e muito nua, no meio d'um adro, ainda mal alisado, sem uma verdura de
relva,
uma frescura d'arbusto, dous moços seguravam á
porta
molhos de tochas, que o Silverio distribuiu, a passos graves, com
cortezias, solemnissimo. Dentro as curtas chammas, mal luziam, mal
derramavam a sua
amarellidão triste, esbatidas na relusente brancura
[255]dos
muros estucados, na jovial claridade que cahia das altas
vidraças bem polidas. Em torno
dos esquifes, pousados sobre bancos, que pesados velludilhos recobriam,
o abbade murmurava um suave latim, emquanto ao fundo as mulheres,
sumidas
na sombra dos seus negros lenços, gemiam
amens agudos, abafavam um respeitoso
soluço. Depois,
tomando levemente o hyssope,
ainda o bom abbade aspergiu, para uma derradeira
purificação,
os incertos ossos dos incertos Jacinthos. E todos desfilamos por diante
do meu Principe, timidamente encostado á umbreira, com o
Silverio ao lado
esmagando contra o peitilho as barbas immensas, a face descahida,
cerradas as palpebras como contendo lagrimas.
No adro, o meu Principe accendeu regaladamente um cigarro pedido ao
Melchior:
―E então, Zé Fernandes, que te pareceu a
ceremoniasinha?
―Muito campestre, muito suave, muito risonha... Uma delicia.
Mas o Abbade, que se desvestira na Sachristia, appareceu, já
com o seu grande casaco de lustrina, e seu velho chapeu desabado,
trazidos pelo moço da Residencia, n'um sacco de chita.
Jacintho,
immediatamente lhe agradeceu tantos cuidados, a affavel hospitalidade
[256]que offerecera aos ossos,
durante a construcção da Capellinha nova.
E o suave velho, todo branquinho, de faces ainda menineiras e coradas,
com um claro sorriso
de dentes sadios, louvava Jacintho, que assim viera de tão
longe, em tão longa jornada, para cumprir aquelle dever de
bom neto.
―São avós muito remotos, e agora tão
confusos! murmurava Jacintho sorrindo.
―Pois mais merito ainda o de v. ex.
a. Respeitar um
avô
morto, bem é corrente... Mas respeitar os ossos d'um quinto
avô, d'um
setimo avô!
―Sobretudo, Snr. Abbade, quando d'elles nada se sabe, e naturalmente
nada fizeram.
O velho sacudiu risonhamente o dedo gordo:
―Ora quem sabe, quem sabe! Talvez fossem excellentes! E por fim, quem
muito se demora no mundo, como eu, termina por se convencer que no
mundo não ha cousa ou ser inutil. Ainda hontem eu lia n'um
jornal
do Porto, que por fim, segundo se descobriu, são as minhocas
que
estrumam e lavram a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o
arado.
Até as minhocas são uteis. Não ha nada
inutil...
Eu
tinha lá na residencia uma porção de
cardos a um
canto da horta, que me
affligiam. Pois reflecti e terminei por me regalar com elles em xarope.
Os avós de
[257]v.
ex.
a por cá andaram, por cá trabalharam,
por
cá padeceram.
Quer dizer: por cá serviram. E, em todo o caso, que lhes
rezemos
um Padre-Nosso por alma não lhes póde fazer
senão
bem, a elles
e a nós.
E assim, docemente philosophando, paramos n'um souto de carvalheiras,
onde esperava a velhissima egoa do Abbade, por que o santo homem agora,
depois do rheumatismo do ultimo inverno, já não
affrontava rijamente como antes os trilhos duros da serra. Para elle
montar, filialmente Jacintho segurou o estribo. E emquanto a egoa se
empurrava pelo corrego
acima, quasi tapada sob o immenso guarda sol vermelho em que se
abrigava o velho, nós recolhemos a casa mettendo pela serra
da
Lombinha, atravez dos milhos, e depressa, porque eu estalava,
aperreado, dentro da roupa preta do meu Principe.
―Estão pois accommodados estes senhores, Zé
Fernandes! Só resta rezar por elles o Padre-Nosso, que
recommenda o abbade... Sómente,
eu não sei, já não me lembro do
Padre-Nosso.
―Não te afflijas, Jacintho: peço á
tia Vicencia que reze por mim e por ti. É sempre a tia
Vicencia que reza os meus Padre-Nossos.
[258]Durante essas
semanas que preguicei
em Tormes, eu assisti, com internecido interesse, a uma consideravel
evolução de Jacintho nas suas
relações com
a Natureza. D'aquelle periodo
sentimental de contemplação, em que colhia
theorias nos
ramos de qualquer cerejeira, e edificava Systemas sobre o espumar das
levadas, o meu Principe lentamente passava
para o desejo da Acção... E d'uma
acção directa e material, em que a sua
mão, emfim
restituida a uma funcção
superior, revolvesse o torrão.
Depois de tanto
commentar, o meu
Principe, evidentemente, aspirava a
crear.
Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no pomar, no rebordo do tanque, em
quanto o Manoel hortelão apanhava laranjas no alto d'uma
escada arrimada a uma alta laranjeira, Jacintho observou, mais para si
do que para mim:
―É curioso... Nunca plantei uma arvore!
―Pois é um dos tres grandes actos, sem os quaes segundo diz
não sei que Philosopho, nunca se foi um verdadeiro homem...
Fazer um filho, plantar
uma arvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem.
É possivel que talvez nunca prestasses um serviço
a uma arvore, como se presta a um semelhante!
[259]
―Sim... Em Paris, quando era pequeno, regava os lilazes. E no
verão é um bello serviço! Mas nunca
semeei.
E como o Manoel descia da escada, o meu Principe, que nunca
acreditára inteiramente―pobre homem!―no meu saber
agricola, immediatamente reclamou o parecer d'aquella auctoridade:
―Oh Manoel, ouça lá, o que é que se
poderia agora semear?
Como cesto das laranjas enfiado no braço, o Manoel exclamou,
atravez d'um lento riso, entre respeitoso e divertido:
―Semear, patrão? Agora é antes colher... Olhe
que já se anda a limpar a eirasinha para a debulha, meu
patrão.
―Pois sim... Mas sem ser milho nem cevada... Então alli no
pomar, rente do muro velho, não se podia plantar uma fila de
pecegueiros?
O riso do Manoel crescia.
―Isso sim, meu senhor! Isso é lá para os Santos
ou para o Natal. Agora só a couvinha na horta, a beldroega,
os espinafres, algum
feijãosinho em terra muito fresca...
O meu Principe sacudiu com brando gesto estes legumes rasteiros.
―Bem, boa noite, Manoel. Essas laranjas são da tal
laranjeira que diz o Melchior, muito
[260]doces,
muito finas? Então leve para os seus
pequenos. Leve muitas para os pequenos.
Não! o empenho era crear a arvore. Pela arvore contemplada
na
serra em sua verdadeira magestade, na beneficencia da sua sombra, na
frescura emballadora do seu rumorejar, na graça e santidade
dos
ninhos que a povoam, começára talvez, lentamente,
o seu
amor
novo da Terra. E agora sonhava uma Tormes toda coberta d'arvores, cujos
fructos e verduras, e sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos,
fossem a obra e o cuidado das suas mãos paternaes.
No silencio grave do crepusculo, que descia, murmurou ainda:
―Oh Zé Fernandes; quaes são as arvores que
crescem mais depressa?
―Eh, meu Jacintho... A arvore que cresce mais depressa é o
eucalypto, o feiissimo e ridiculo eucalypto. Em seis annos tens ahi
Tormes coberta
de eucalyptos...
―Tudo tão lento, Zé Fernandes...
Porque o seu sonho, que eu comprehendia, seria plantar
caroços que subissem em fortes troncos, se alargassem em
verdes
ramarias, antes de elle voltar ao 202, no começo do
inverno...
―Um carvalho!... Trinta annos, antes que seja bello!
Desanímo! É bom para Deus,
[261]que pode esperar...
Patiens
quia aeternus. Trinta annos! D'aqui a trinta annos, arvores
só para me cobrirem a
sepultura!
―Já é um ganho. E depois para teus filhos,
Jacintho...
―Filhos! onde os tenho eu?
―É o mesmo processo dos castanheiros. Semeia.
Não faltam por ahi terras agradaveis... Em nove mezes tens
uma
planta feita. E quanto mais tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas
plantas encantam.
Elle murmurou, crusando as mãos sobre o joelho:
―Tudo leva tanto tempo!...
E á borda do tanque nos quedamos, calados, na fresca
doçura do anoitecer, entre o cheiro avivado das madresilvas
do
muro, olhando o crescente da lua, que surdia dos telhados de Tormes.
E decerto esta pressa de se tornar entre a Natureza não mais
um sonhador, mas um creador, arremessou vivamente o seu interesse para
os gados! Repetidamente, nos nossos passeios atravez da quinta, elle
lhe notava a solidão.
―Faltam aqui animaes, Zé Fernandes!
Imaginava eu, que elle appetecia em Tormes o ornato elegante de veados
e pavões. Mas um domingo, costeando o largo campo da
[262]Ribeirinha, sempre
escasso d'agoas, agora mais resequido por verão de tanta
seccura, o meu Principe parou a considerar os tres carneiros do
caseiro, que
retouçavam com penuria uma relvagem pobre.
E, de repente, como magoado:
―Justamente! Aqui está o espaço para um bello
prado, um immenso prado, muito verde, muito farto, com rebanhos de
carneiros brancos,
gordissimos como bolas de algodão pousadas na relva!... Era
lindo, hein?
É facil, não é verdade, Zé
Fernandes?
―Sim... Trazes a agoa para o prado. Agoas não faltam, na
serra.
E o meu principe encadeando logo n'esta inspirada idea outra, mais rica
e vasta, lembrou quanta belleza daria a Tormes encher esses prados,
esses verdes ferregiaes, de manadas de vaccas, formosas vaccas
inglezas, bem nedias e bem luzidias. Hein? Uma belleza. Para abrigar
esses gados ricos, construiria curraes perfeitos, d'uma architectura
leve e util, toda em ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar,
largamente lavados pela agoa... Hein? Que formosura! Depois, com todas
essas vaccas, e o leite jorrando, nada mais facil e mais divertido, e
até mais
moral, que a installação d'uma queijeira,
á
fresca moda Hollandeza, toda branca e reluzente, de azulejos
[263]e
de marmore, para fabricar os Camemberts, os Bries... os Coulommiers...
Para a casa, que conforto! E para toda a serra, que actividade!
―Pois não te parece, Zé Fernandes?
―Com certeza. Tu tens, em abundancia, os quatro Elementos: o ar, a
agoa, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro elementos, facilmente se
faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!
―Pois não é verdade? E até como
negocio! Está claro, para mim o lucro é o deleite
moral
do trabalho, o emprego fecundo do dia... Mas uma queijaria, assim
perfeita, rende. Rende prodigiosamente. E educa o paladar, incita a
installações eguaes, implanta
talvez no paiz uma industria nova e rica! Ora com essa
installação,
perfeita, quanto me poderá custar cada queijo?
Fechei um olho, calculando:
―Eu te digo.... Cada queijo, um d'esses queijinhos redondos, como o
Camembert ou o Rabaçal, póde vir a custar-te, a
ti Jacintho queijeiro, entre duzentos e cincoenta e trezentos mil
réis.
O meu Principe recuou, com dous olhos alegres espantados para mim.
―Como trezentos mil réis?
[264]―Ponhamos
duzentos... Tem a certeza!
Com todos esses prados, e os encanamentos d'agoa e a
configuração da serra
alterada, e as vaccas inglezas, e os edificios de porcellana e vidro, e
as maquinas, a extravagancia, e a patuscada bucolica, cada queijo te
custa, a ti productor, duzentos mil réis. Mas com certeza o
vendes no
Porto por um tostão. Põe cincoenta
réis para a
caixa, rotulos, transporte, commissão, etc. Tens apenas, em
cada
queijo uma perda de cento e noventa e nove
mil oitocentos e cincoenta réis!
O meu Principe não desanimou.
―Perfeitamente! Faço um d'esses espantosos queijos por
semana, ao sabbado, para o comermos nós ambos ao domingo!
E tanta energia lhe communicava o seu novo Optimismo, tão
anciosamente aspirava a crear, que logo, arrastando o Silverio e o
Melchior por cabeços e barrancos, largou a percorrer a
quinta
toda, para
determinar onde cresceriam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e
se ergueriam, rebrilhantes no sol de Tormes, os curraes elegantes. Com
a esplendida segurança dos seus cento e nove contos de
renda,
não surgia difficuldade, risonhamente murmurada pelo
Melchior,
ou exclamada, com respeitoso pasmo, pelo Silverio,
[265]que elle não
afastasse brandamente, com geito leve, como um galho de roseira brava
atravessado n'uma vereda.
Aquellas rochas, além, empecendo? Que se arrancassem! Um
valle importuno dividia dous campos? Que se atulhasse! O Silverio
suspirava, enxugando sobre a escura calva um suor quasi d'angustia.
Pobre Silverio!
Rijamente sacudido na doce pachorra da sua
administração,
calculando despezas que se affiguravam sobrehumanas á sua
parcimonia serrana,
forçado a arquejar, sem descanço, sob soalheiras
de
Junho, o
desgraçado retomára na Serra o geito que Jacintho
deixára em Paris,―e era elle
que corria pelas longas barbas tenebrosas os dedos desalentados...
Emfim uma tarde
desabafou comigo, a um canto da varanda, em quanto Jacintho, na
livraria, escrevia a um seu amigo de Hollanda, o conde Rylant, Mordomo
Mór da Corte, pedindo desenhos, e planos, e
orçamentos d'uma queijeira perfeita.
―Pois, Snr. Fernandes, se toda esta grandeza vae por diante, sempre
lhe digo que o Snr. D. Jacintho enterra aqui na serra dezenas de
contos... Dezenas de contos!
E como eu alludia á fortuna do meu Principe, a quem todas
essas obras tão vastas, que alterariam o antiquissimo rosto
da serra,
[266]não
custavam mais que a outros o concerto d'um socalco,―o bom Silverio
atirou os longos braços para as coxas gordas, ainda mais
desolado:
―Pois por isso mesmo, Snr. Fernandes! Se o Snr. D. Jacintho
não
tivesse a dinheirama, recuava. Assim, é zás
zás, para deante; e eu não o censuro pela ideia.
Lograsse
eu a renda de S. Ex.
a, que me atirava tambem a
uma lavoura de capricho. Mas não aqui, Snr. Fernandes,
n'estas
serranias, entre alcantis. Pois um senhor que possue aquella linda
propriedade de Montemór, nos campos do Mondego, onde
até
podia
plantar jardins de desbancar os do Palacio de Crystal do Porto! E a
Velleira? O Snr. Fernandes não conhece a Velleira,
lá
para os
lados de Penafiel? Isso é um condado! E uma terra
chã,
boa terra, toda junta, alli em
volta da casa, com uma torre. Um regalo, Snr. Fernandes. Mas sobretudo
Montemór! Lá é que eram prados e
manadas de vaccas
inglezas, e queijeira e horta rica, de fartar, e ahi trinta
perús na capoeira...
―Então que quer, Silverio? O Jacintho gosta da serra. E
depois este é o solar da familia, e aqui
começaram no seculo XIV os
Jacinthos...
O pobre Silverio, no seu desespero, esquecia
[267]o
respeito devido
á secular nobreza da casa.
―Ora! até ficam mal ao Snr. Fernandes essas ideias, n'este
seculo da liberdade... Pois estamos lá em tempos de se
fallar em
fidalguias, agora que por toda a parte anda tudo em Republica? Leia o
Seculo, Snr. Fernandes! leia o
Seculo,
e
verá! E depois eu sempre quero vêr o Snr. D.
Jacintho,
aqui no inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela
manhã,
e a friagem a trespassar os ossos, e ventanias que
atiram carvalheiras de raizes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a
serra!... Olhe, até mesmo por amor da saude o Snr. D.
Jacintho, que é fraquinho e acostumado á cidade,
necessita sahir da serra.
Em Montemór, em Montemór é que s.
ex.
a estava
bem. E o Snr.
Fernandes, tão amigo d'elle e assim com tanta influencia,
devia
teimar, e berrar,
até que o levasse para Montemór.
Mas, infelizmente para a quietação do Silverio,
Jacintho lançára raizes, e rijas, e amorosas
raizes na
sua rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado d'estaca
n'aquelle antiquissimo chão,
d'onde brotára a sua raça, e o antiquissimo humus
refluisse e o penetrasse
todo, e o andasse transformando n'um Jacintho rural, quasi vegetal,
tão do
[268]chão,
e preso ao chão, como as arvores que elle tanto amava.
E depois o que o prendia á serra era o ter n'ella encontrado
o que na Cidade, apesar da sua sociabilidade, não
encontrára nunca,―dias tão cheios,
tão deliciosamente occupados, d'um tão
saboroso interesse, que sempre penetrava n'elles, como n'uma festa ou
n'uma gloria.
Logo de manhã, ás seis horas, eu, no meu quarto,
mexendo ainda regaladamente o meu corpo nos colchões de
fresco
folhelho,
sentia os seus rijos sapatões pelo corredor, e o seu
cantarolar,
desafinado, mas ditoso como o d'um melro. Em poucos instantes
escancarava com fragor a minha porta, já de chapeu desabado,
já de
bengalão de cerejeira, disposto com reservado fervor para os
trilhos conhecidos da serra. E
era sempre a mesma nova, quasi orgulhosa:
―Dormi hoje deliciosamente, Zé Fernandes. Tão
bem, com uma tal serenidade, que começo a acreditar que sou
um justo! Um dia
lindo! Quando abri a janella, ás cinco horas, quasi gritei
de puro
gosto!
Na sua pressa, nem me deixava demorar na frescura da banheira; e quando
eu repetia a risca mal começada do cabello, aquelle antigo
homem das trinta e nove escovas, protestava
[269]contra
esse desbarato effeminado d'um tempo devido aos fortes gozos da terra.
Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pateo, desembocavamos da
alameda de platanos, e deante de nós se dividiam
matutinamente, mais brancos entre o verde matutino, os caminhos
colleantes da quinta, toda
a sua pressa findava, e penetrava na Natureza, com a reverente
lentidão de quem penetra n'um Templo. E repetidamente
sustentava
ser
«contrario á Esthetica, á Philosophia e
á
Religião,
andar depressa através dos campos.» De resto, com
aquella
subtil sensibilidade bucolica
que n'elle se desenvolvera, e incessantemente se afinava, qualquer
breve belleza, do ar ou da terra, lhe bastava para um longo encanto.
Ditosamente poderia elle entreter toda uma manhã, caminhar
por
entre um
pinheiral, de tronco a tronco, callado, embebido no silencio, na
frescura, no resinoso aroma, empurrando com o pé as agulhas
e as
pinhas
seccas. Qualquer agua corrente o retinha, enternecido n'aquella
serviçal actividade, que se apressa, cantando, para o
torrão que tem
sêde, e n'elle se some, e se perde. E recordo ainda quando me
reteve meio domingo, depois da Missa, no cabeço, junto a um
velho curral
desmantellado, sob uma grande arvore,―só por que em torno
havia quietação,
[270]doce
aragem, um fino piar d'ave na
ramaria, um murmurio de regato entre canas verdes, e por sobre a
sébe, ao lado, um
perfume, muito fino e muito fresco, de flores escondidas.
Depois, quando eu, velho familiar das serras, me não
abandonava aos mesmos extasis que a elle lhe enchiam a alma ainda
noviça―o
meu Principe rugia, com a indignação d'um poeta
que
descobre um mercieiro bocejando sobre Shakspeare ou Musset. Eu ria.
―Meu filho, olha que eu não passo d'um pequeno
proprietario. Para mim não se trata de saber se a terra
é
linda, mas se a terra é
boa. Olha o que diz a Biblia!
«Trabalharás a quinta com o
suor do teu rosto!» E não diz
«contemplarás a quinta com o
enlevo da tua imaginação!»
―Podéra! exclamava o meu Principe. Um livro escripto por
Judeos, por asperos semitas, sempre com o turvo olho posto no lucro!
Repára, homem, para aquelle bocadinho de valle, e consegue
não pensar, por
um momento, nos trinta mil reis que elle rende! Verás que
pela sua
belleza e graça elle te dá mais contentamento
á alma que os
trinta mil reis ao corpo. E na vida só a alma importa.
Recolhendo ao casarão, já o encontravamos com as
janellas meio cerradas, os soalhos
[271]borrifados
para aquellas quentes restias de sol de junho,
que depois do almoço docemente nos retinham na livraria,
preguiçando.
Mas realmente a alegre actividade do meu Principe não
cessava, nem amollecia, sob o peso da sésta. A essa hora, em
quanto pelo
arvoredo mudo os mais agitados pardaes dormiam, e o sol mesmo parecia
repousar, immovel na rutilancia da sua luz, Jacintho com o espirito
acordado,―ávido de sempre gosar, agora que
reconquistára essa faculdade,―tomava com delicia o
seu
livro.
Por que o dono de trinta mil volumes era agora, na sua casa de Tormes,
depois de resuscitado, o homem que só tem um livro. Essa
mesma
Natureza, que o
desligára das ligaduras amortalhadoras do tedio, e lhe
gritára o seu bello
Ambula, caminha!―tambem certamente lhe
gritára
et
lege,
e lê. E libertado emfim do envolucro suffocante da sua
Bibliotheca immensa, o meu ditoso amigo comprehendia emfim a
incomparavel delicia de
lêr um livro. Quando eu correra a
Tormes, (depois das
revelações do Severo na venda do Torto,) elle
findava o D. Quichote, e ainda eu lhe escutára
as derradeiras risadas com as cousas deliciosas, e de certo profundas,
que
o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o
meu Principe mergulhára na
Odyssea,―e todo
[272]elle
vivia no
espanto e no deslumbramento de assim ter encontrado no meio do caminho
da sua vida,
o velho errante, o velho Homero!
―Oh Zé Fernandes, como succedeu que eu chegasse a esta
edade sem ter lido Homero?...
―Outras leituras, mais urgentes... O
Figaro, George Ohnet...
―Tu leste a
Illiada?
―Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a
Illiada.
Os olhos do meu Principe fuzilavam.
―Tu sabes o que fez Alcibiades, uma tarde, no Portico, a um sophista,
um desavergonhado d'um sophista, que se gabava de não ter
lido a
Illiada?
―Não.
―Ergueu a mão e atirou-lhe uma bofetada tremenda.
―Para lá, Alcibiades! Olha que eu li a
Odyssea!
Oh! mas de certo eu a lêra, corridamente, com a alma
desattenta! E insistia em me iniciar, elle, e me conduzir,
através do
Livro sem egual. Eu ria. E rindo, pesado do almoço,
terminava por consentir,
e me estirava no canapé de verga. Elle, deante da mesa,
direito
na cadeira, abria o livro gravemente, pontificalmente, como um missal,
e
começava
[273]n'uma
lenta ode sentida. Aquelle grande mar da
Odyssea,―resplandecente e sonoro, sempre azul,
todo azul, sob
o vôo
branco das gaivotas, rolando, e mansamente quebrando sobre a areia fina
ou contra as rochas de marmore das Ilhas divinas,―exhalava logo uma
frescura salina, bem vinda e consoladora n'aquella calma de Junho, em
que a
serra se entorpecia. Depois as estupendas manhas do subtil Ulysses e os
seus perigos sobrehumanos, tantas lamurias sublimes, e um anceio
tão espalhado da Patria perdida, e toda aquella intriga, em
que
embrulhava os Heroes, lograva as Deusas, illudia o Fado, tinham um
delicioso
sabôr ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de
subtileza ou de
engenho, e a Vida se desenrolava com a segurança immutavel
com que cada manhã sempre o Sol egual nascia, e sempre
centeios
e milhos,
regados por agoas eguaes, seguramente medravam, espigavam,
amadureciam... Emballado
pela recitação grave e monotona do meu Principe,
eu cerrava as palpebras docemente. Em breve um vasto tumulto, por terra
e ceu, me
alvoroçava... E eram os rugidos de Polyphemo, ou a grita dos
companheiros d'Ulysses roubando as vaccas de Apollo. Com os olhos logo
esbugalhados para Jacintho, eu murmurava:
[274]Sublime!
E
sempre, n'esse momento o engenhoso Ulysses, de carapuço
vermelho
e o longo remo ao hombro,
surprehendia com a sua facundia a clemencia dos Principes, ou reclamava
presentes
devidos ao Hospede, ou surripiava astutamente algum favor aos Deuses. E
Tormes dormia, no esplendor de Junho. Novamente, eu cerrava as
palpebras consoladas, sob a caricia ineffavel do largo dizer
homerico... E meio adormecido, encantado, incessantemente avistava,
longe, na divina Hellade, entre o mar muito azul e o ceu muito azul, a
branca vela, hesitante, procurando Ithaca...
Depois da sésta o meu Principe de novo se soltava para os
campos. E a essa hora, sempre mais activa, voltava com ardor aos
«seus
planos», a essas culturas de luxo e elegantes officinas que
cobririam a serra de magnificencias ruraes. Agora andava todo no
esplendido appetite d'uma horta que elle concebera, immensa horta
ajardinada, em que todos os legumes, classicos ou exoticos, cresceriam,
soberbamente, em vistosos talhões, fechados por sebes de
rosas,
de cravos, de
alfazêma, de dhalias. A agoa das regas desceria por lindos
corrêgos de
louça esmaltada. Nas ruas, a sombra cahiria de densas
latadas
[275]de
moscatel, pousando em esteios revestidos d'azulejo. E o meu Principe
desenhára o plano d'esta espantosa horta, a lapiz vermelho,
n'um
papel immenso, que
o Melchior e o Silverio, consultados, longamente contemplaram,―um
coçando risonhamente a nuca, o outro com os
braços duramente crusados, e o sobrôlho tragico.
Mas este plano, o da queijaria, o da capoeira, e outro, sumptuoso, d'um
pombal tão povoado que todo o ceu de Tormes ás
tardes se tornaria branco e todo fremente d'azas―não sahiam
das
nossas gostosas
palestras, ou dos papeis em que Jacintho os debuxava, e que se
amontoavam sobre a meza, platonicos, immoveis, entre o tinteiro de
latão e o vaso com
flôres.
Nem enxadada fendera terra, nem alavanca deslocára pedra,
nem serra serrára madeira, para encetar estas maravilhas.
Contra
a
resistencia rebolada e escorregadia do Melchior, contra a respeitosa
inercia do Silverio se quedavam, encalhados, os planos do meu Principe,
como galeras vistosas em rochas ou em lôdo.
Não convinha bolir em nada, (clamava o Silverio) antes das
colheitas e da vindima! E depois, (acrescentava o Melchior com um
sorriso
[276]de grande
promessa) «para boas obras mez de Janeiro» porque
lá ensina o dictado:
Em Janeiro―mette obreiro
Mez meante―que não ante.
E, de resto, o goso de conceber as suas obras e de indicar, estendendo
a bengala por cima de valle e monte, os sitios privilegiados que ellas
aformoseariam, bastava por ora ao meu Principe, ainda mais imaginativo
que operante. E, em quanto meditava estas
transformações da terra, muito progressivamente e
com um
amavel esforço, se ia
familiarisando com os homens simples que a trabalhavam. Na sua chegada
a Tormes, o meu Principe soffria d'uma estranha timidez diante dos
caseiros, dos jornaleiros, e até de qualquer rapazinho que
passasse,
tangendo uma vacca para o pasto. Nunca elle então se
demoraria a
conversar com os moços, quando á borda d'um
caminho ou
n'um campo
em monda elles se endireitavam de chapeu na mão, n'um
respeito
de velha
vassalagem. De certo o empecia a preguiça, e talvez ainda o
pudico recato
de transpor toda a immensa distancia que se alargava desde a sua
complicada super-civilisação até
á
rude simplicidade d'aquellas
[277]almas
naturaes:―mas sobretudo o retinha o medo de mostrar a sua ignorancia
da lavoura e da terra, ou de parecer talvez desdenhoso de
occupações e de interesses, que para os outros
eram
supremos e quasi religiosos. Remia então esta reserva com
uma
profusão de sorrisos,
de doces acenos, tirando tambem o chapeu em cortezias profundas, com
uma tal emphase de polidez que eu por vezes receava que elle murmurasse
aos jornaleiros: «Tenha v. ex.
a muito boas
tardes;... Creado
de v.
ex.
a!»
Mas agora, depois d'aquellas semanas de serra, e de já saber
(com um saber ainda fragil,) a epocha das sementeiras e das ceifas, e
que as arvores de fructa se semeiam no inverno, já se
aprazia em
parar junto dos trabalhadores, contemplar descançadamente o
trabalho,
dizer cousas affaveis e vagas.
―Então, isso vae andando?... Ora ainda bem!... Este bocado
de torrão aqui é rico... O talude ali adeante
está
precisando concerto...
E cada um d'estes tão simples dizeres lhe era doce, como se
por meio d'elles penetrasse mais fundamente na intimidade da terra, e
consolidasse a sua encarnação em «homem
do campo,» deixando de ser uma mera sombra circulando entre
realidades. Já por isso
[278]não
crusava no caminho o mocinho atraz das vaccas, que não o
detivesse, o
não interrogasse: «Para onde vaes tu? De quem
é o
gado? Como te chamas?» E, contente comsigo, sempre gabava
gratamente o desembaraço do
rapaz, ou a esperteza dos seus olhos. Outra
satisfação do meu
Principe era conhecer os nomes de todos os campos, as nascentes d'agua,
e as
delimitações da sua quinta.
―Vês acolá, para além do ribeiro, o
pinheiral. Já não é meu, é
dos Albuquerques.
E com a perenne alegria de Jacintho as noites da serra, no vasto
casarão, eram faceis e curtas. O meu Principe era
então uma alma que se simplificava:―e qualquer pequenino
goso
lhe bastava, desde que n'elle entrasse paz ou doçura. Com
verdadeira delicia ficava,
depois do café, estendido n'uma cadeira, sentindo atravez
das
janellas abertas, a nocturna tranquillidade da serra, sob a mudez
estrellada do ceu.
As historias, muito simples e muito caseiras, que eu lhe contava, de
Guiães, do abbade, da tia Vicencia, dos nossos parentes da
Flôr da Malva, tão sinceramente o interessavam que
eu
encetára, para seu regalo, a chronica completa de
Guiães,
com todos os namoricos, e as
façanhas de forças, e as desavenças
por causa de
servidões ou d'aguas. Tambem
[279]por
vezes nos enfronhavamos, com afferro n'uma partida de gamão,
sobre um bello taboleiro de pau preto, com pedras de velho marfim, que
nos emprestára o Silverio. Mas nada de certo o encantava
tanto
como atravessar as casas, pé ante pé,
até
uma saleta que dava para o pomar, e ahi ficar encostado á
janella, sem luz, n'um enlevado
socego, a escutar longamente, languidamente, os rouxinoes que cantavam
no laranjal.
X
N'uma dessas manhãs―justamente na vespera do meu regresso a
Guiães―, o tempo, que andára pela serra
tão alegre, n'um
inalterado riso de luz rutilante, todo vestido d'azul e ouro, fazendo
poeira pelos caminhos, e
alegrando toda a natureza, desde os passaros até os regatos,
subitamente, com uma d'aquellas mudanças que tornam o seu
temperamento tão semelhante ao do homem, appareceu triste,
carrancudo,
todo embrulhado no seu manto cinzento, com uma tristeza tão
pesada e contagiosa que toda a serra entristeceu. E não
houve mais
passaro que cantasse, e os arroios fugiram para debaixo das hervas com
um lento murmurio de chôro.
Quando Jacintho entrou no meu quarto, não resisti
á malicia de o aterrar:
―Sudoeste! gralhas a grasnar por todos esses soutos... Temos muita
agua, Snr. D. Jacintho!
[282]Talvez
duas semanas d'agua! E agora
é se vae saber quem é aqui o fino amador da
Natureza, com esta chuva
pegada, com vendaval, com a serra toda a escorrer!
O meu Principe caminhou para a janella com as mãos nas
algibeiras:
―Com effeito! Está carregado. Já mandei abrir
uma das malas de Paris e tirar um casacão impermeavel...
Não importa! Fica
o arvoredo mais verde. E é bom que eu conheça
Tormes nos seus habitos
d'inverno.
Mas como o Melchior lhe affiançára que a
«chuvinha só viria para a tarde»,
Jacintho decidiu
ir antes d'almoço
á Corujeira, onde o Silverio o esperava para decidirem da
sorte
d'uns castanheiros, muito velhos, muito pittorescos, inteiramente
interessantes, mas já
roidos, e ameaçando desabar. E, confiando nas
previsões
do
Melchior, partimos sem que Jacintho se vestisse á prova
d'agoa.
Não
andaramos porém meio caminho, quando, depois d'um arrepio
nas
arvores, um negrume carregou, e, bruscamente, desabou sobre
nós
uma grossa chuva obliqua,
vergastada pelo vento, que nos deixou estonteados, agarrando os
chapeus, enrodilhados na borrasca. Chamados por uma grande voz, que se
esganiçava no vento, avistamos n'um campo mais alto,
á
beira d'um
alpendre, o Silverio, debaixo d'um
[283]guarda-chuva
vermelho, que acenava, nos indicava
o trilho mais curto para aquelle abrigo. E para lá rompemos,
com a chuva a escorrer na cara, patinhando na lama, contorcidos,
cambaleantes, atordoados no vendaval, que n'um instante
alagára
os campos,
inchára os ribeiros, esboroava a terra dos socalcos,
lançára
n'um desespero todo o arvoredo, tornára a serra negra,
bravamente agreste, hostil,
inhabitavel.
Quando emfim, debaixo do vasto guarda-chuva com que o Silverio nos
esperava á beira do campo, corremos para o alpendre, nos
refugiamos n'aquelle abrigo inesperado, a escorrer, a arquejar, o meu
Principe, enxugando a face, enxugando o pescoço, murmurou,
desfallecido:
―Apre! que ferocidade!
Parecia espantado d'aquella brusca, violenta colera d'uma serra
tão amavel e accolhedora, que em dous mezes,
inalteradamente, só
lhe offerecera doçura e sombra, e suaves ceus, e quietas
ramagens, e murmurios discretos de ribeirinhos mansos.
―Santo Deus! Vem muitas vezes assim, estas borrascas?
Immediatamente o Silverio aterrou o meu Principe:
―Isto agora são brincadeiras de verão,
[284]meu
senhor! Mas ha de V. Ex.
a vêr no inverno, se V.
Ex.
a se aguentar por cá!
Então é cada temporal, que até parece
que os montes estremecem!
E contou como fôra tambem apanhado, quando ia para a
Corujeira. Felizmente, logo pela manhã, quando sentiu o ar
carrancudo e
as folhinhas dos choupos a tremer, se acautelára com o
chapeu
de chuva e calçára as suas grandes botas.
―Ainda estive para me abrigar em casa do Esgueira, que é um
caseiro de cá. Aquella casa, ali abaixo, onde
está a
figueira... Mas a mulher tem estado doente, já ha dias... E
como
póde ser obra
que se pegue, bexigas ou coisa que o valha, pensei comigo: Nada, o
seguro morreu de velho! Metti para o alpendre... E não
passára um credo
quando lobriguei a V. Ex.
a... Coisa assim!... E o Snr. D.
Jacintho
é voltar para
casa, e mudar-se, que temos um dia e uma noite d'agoa.
Mas, justamente, a chuva começára a cahir
perpendicular, d'um ceu ainda negro, onde o vento se calára;
e para além do rio
e dos montes havia uma claridade, como entre cortinas de pano cinzento
que se descerram.
Jacintho repousava. Eu não cessára de me sacudir,
de bater os pés encharcados, que me arrefeciam. E o bom
Silverio, passando
[285]a
mão pensativa sobre o negrume das suas barbas, reflectia,
emendava os seus prognosticos:
―Pois, não senhor... Ainda estía! Nunca pensei.
É que tornejou o vento.
O alpendre que nos cobria assentava sobre duas paredes em angulo, de
pedra solta, restos d'algum casebre desmantelado, e sobre um esteio
fazendo cunhal. N'esse momento só abrigava madeira, um
cuculo de cestos vasios, e um carro de bois, onde o meu Principe se
sentára,
enrolando um cigarro confortador. A chuva desabava, copiosa, em longos
fios reluzentes. E todos tres nos callavamos, n'aquella
contemplação inerte e sem pensamento, em que uma
chuva
grossa e serena sempre immobilisa e retem olhos e almas.
―Ó Snr. Silverio, murmurou lentamente o meu Principe, que
é que o senhor esteve ahi a dizer de bexigas?
O procurador voltou a face surprehendido:
―Eu, Ex.
mo Snr.?... Ah sim! a mulher do
Esgueira! É que
póde ser, póde ser... Não imagine V.
Ex.
a que faltam por
cá doenças. O ar é bom. Não
digo que não! Arsinho são,
agoasinha leve. Mas ás vezes, se V. Ex.
a me
dá licença, vae por ahi muita maleita.
―Mas não ha medico, não ha botica?
[286]
O Silverio teve o riso superior de quem habita regiões
civilisadas e bem providas...
―Então não havia d'haver? Pois ha um boticario,
em Guiães, lá quasi ao pé da casa aqui
do nosso amigo. E homem entendido... o
Firmino, hein, Snr. Fernandes? Homem capaz. Medico é o Dr.
Avelino, d'aqui
a legoa e meia, nas Bolsas. Mas já V. Ex.
a
vê, esta
gentinha é pobre!... Tomaram elles para pão,
quanto mais para remedios!
E de novo se estabeleceu um silencio, sob o alpendre, onde penetrava a
friagem crescente da serra encharcada. Para além do rio, a
promettedora claridade não se alargára entre as
duas
espessas
cortinas pardacentas. No campo, em declive deante de nós, ia
um
longo correr de
ribeiros barrentos. Eu terminára por me sentar na ponta d'um
madeiro,
enervado, já com a fome aguçada pela
manhã
agreste. E Jacintho, na borda do carro, com os pés no ar,
cofiava os bigodes humidos, palpava a
face, onde, com espanto meu, reapparecera a sombra, a sombra triste dos
dias passados,
a sombra do 202!
E, então, surdiu por traz da parede do alpendre um rapasito,
muito rotinho, muito magrinho, com uma carita miuda, toda amarella sob
a porcaria, e onde dous grandes olhos pretos se arregalavam para
nós, com
[287]
vago pasmo e vago medo. Silverio immediatamente o conheceu.
―Como vae a tua mãe? Escusas de te chegar para
cá, deixa-te estar ahi. Eu ouço bem. Como vae a
tua mãe?
Não percebi o que os pobres beicitos descorados murmuraram.
Mas Jacinto, interessado:
―Que diz elle? Deixe vir o rapaz! Quem é a tua
mãe?
Foi o Silverio que informou respeitosamente:
―É a tal mulher que está doente, a mulher do
Esgueira, ali do casal da figueira. E ainda tem outro abaixo d'este...
Filharada não
lhe falta.
―Mas este pequeno tambem parece doente!―exclamou Jacintho. Coitadito,
tão amarello!... Tu tambem estás doente?
O rapasinho emmudecera, chupando o dedo, com os tristes olhos pasmados.
E o Silverio sorria, com bondade:
―Nada! este é sãosinho... Coitado, é
assim amarellado e enfezadito, por que... Que quer V. Ex.
a?
Mal
comido! muita miseria... Quando ha o bocadito de pão
é
para todo o rancho. Fomesinha,
fomesinha!
Jacintho pulou bruscamente da borda do carro.
[288]
―Fome? Então elle tem fome? Ha aqui gente com fome?
Os seus olhos rebrilhavam, n'um espanto commovido, em que pediam, ora a
mim, ora ao Silverio, a confirmação d'esta
miseria insuspeitada. E fui eu que esclareci o meu Principe:
―Homem! está claro que ha fome! Tu imaginavas talvez que o
Paraiso se tinha perpetuado aqui nas serras, sem trabalho e sem
miseria... Em toda
a parte ha pobres, até na Australia, nas minas d'ouro. Onde
ha trabalho ha proletariado, seja em Paris, seja no Douro...
O meu Principe, teve um gesto d'afflicta impaciencia:
―Eu não quero saber o que ha no Douro. O que eu pergunto
é se aqui, em Tormes, na minha propriedade, dentro d'estes
campos que são
meus, ha gente que trabalhe para mim, e que tenha fome... Se ha
creancinhas,
como esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.
O Silverio sorria, respeitosamente, ante aquella candida ignorancia das
realidades da Serra:
―Pois está bem de vêr, meu senhor, que ha para
ahi caseiros que são muito pobres. Quasi todos...
É uma miseria, que se
não fosse algum soccorro que se lhes dá, nem eu
[289]sei!... Este Esgueira, com
o
rancho de filhos que tem, é uma desgraça... Havia
V. Ex.
a
de vêr as casitas em que elles vivem... São
chiqueiros. A do Esgueira,
acolá...
―Vamos vêl-a! atalhou Jacintho com uma decisão
exaltada.
E sahiu logo do alpendre, sem attender á chuva, que ainda
cahia, mais leve e mais rala. Mas então Silverio alargou os
braços deante d'elle, com anciedade, como para o salvar d'um
precipicio.
―Não! V. Ex.
a lá na casa do Esgueira
é que não entra! Não se sabe o que a
mulher tem, e cautella e caldo de gallinha...
Jacintho não se alterou na sua polidez paciente:
―Obrigado pelo seu cuidado, Silverio... Abra o seu chapeu de chuva, e
ávante!
Então o Procurador vergou os hombros, e, como S.
Ex.
a
mandava, abriu com estrondo o immenso pára-agoas, abrigou
respeitosamente
Jacintho, através do campo encharcado. Eu segui, pensando na
esmola
sumptuosa que o bom Deus mandava áquelle pobre casal por um
remoto senhor
das Cidades! Atraz vinha o pequenito perdido n'um immenso pasmo.
Como todos os casebres da serra, o do Esgueira era de grossa pedra
solta, sem reboco,
[290]com
um vago telhado, de telha musgosa e negra, um postigo no alto, e a rude
porta que servia para o ar, para a luz, para
o fumo, e para a gente. E em redor, a Natureza e o Trabalho tinham,
através d'annos, accumulado ali trepadeiras e
flôres silvestres, e cantinhos d'horta, e sebes cheirosas, e
velhos bancos roidos de musgo,
e panellas com terra onde crescia salsa, e regueiros cantantes, e
videiras enforcadas nos olmos, e sombras e charcos espelhados, que
tornavam deliciosa, para uma Ecloga, aquella morada da Fome, da
Doença e da Tristeza.
Cautelosamente, com a ponteira do guarda-chuva, Silverio empurrou a
porta, chamando:
―Eh! tia Maria... Olá rapariga!
E na fenda entreaberta appareceu uma moça, muito alta,
escura e suja, com uns tristes olhos pisados, que se espantaram para
nós,
serenamente.
―Então como vae a tua mãe?―Abre lá a
porta, que estão aqui estes senhores...
Ella abriu, lentamente, e ia murmurando n'uma voz dolente e arrastada
mas sem queixume, que um vago, resignado sorriso acompanhava:
―Ora, coitada! como ha de ir? Malzinha... malzinha.
E dentro, n'um gemido que subia como
[291]do
chão, d'entre
abafos, amodorrado e lento, a mãe repetiu a desconsolada
queixa:
―Ai! para aqui estou, e malzinha, malzinha!...
O Silverio, sem passar da porta, com o guarda-chuva em riste, meio
aberto, como um escudo contra a infecção,
lançou uma consolação vaga:
―Não ha de ser nada, tia Maria!... Isso foi friagem!
Não foi senão friagem!
E, sobre o hombro de Jacintho, encolhido:
―Já V. Ex.
a vê... Muita miseria!
Até
lhe chove lá dentro.
E, no pedaço de chão que viam, chão de
terra batida, uma mancha humida reluzia, da chuva pingada de uma telha
rôta. A parede,
coberta de fuligem, das longas fumaraças da lareira, era
tão
negra como o chão. E aquella penumbra suja parecia atulhada,
n'uma desordem escura, de trapos, de cacos, de restos de coisas, onde
só mostravam
fórma comprehensivel uma arca de pau negro, e por cima,
pendurado d'um prego,
entre uma serra e uma candeia, um grosso saiote escarlate.
Então Jacintho, muito embaraçado, murmurou
abstrahidamente:
―Está bem, está bem...
E largou pelo campo para o lado do alpendre como se fugisse, emquanto o
Silverio decerto
[292]revelava
á rapariga, a presença
augusta do «fidalgo», por que a sentimos, da porta,
levantar a voz dolorida:
―Ai! Nosso Senhor lhe dê muito boa sorte! Nosso Senhor o
acompanhe!
Quando o Silverio, com as grandes passadas das suas grandes botas, nos
colheu, no meio do campo, Jacintho parára, olhava para mim,
com os dedos tremulos a torturar o bigode, e murmurava:
―É horrivel, Zé Fernandes, é
horrivel.
Ao lado, o vozeirão do Silverio trovejou:
―Que queres tu outra vez, rapaz? Vae para a tua mãe,
creatura!
Era o pequeno rotinho, esfaimadinho, que se prendia a nós,
n'um immenso pasmo das nossas pessoas, e com a confusa
esperança, talvez,
que d'ellas, como de Deuses encontrados n'um caminho, lhe viesse affago
ou proveito. E Jacintho, para quem elle mais especialmente arregalava
os olhos tristes, e que aquella miseria, e a sua muda humildade,
embaraçavam, acanhavam horrivelmente, só soube
sorrir, murmurar o seu vago: «Está bem,
está
bem...»
Fui eu que dei ao pequenito um tostão, para o fartar, o
despegar
dos nossos passos. Mas como elle, com o seu tostão bem
agarrado,
nos seguia ainda, como no sulco da
nossa magnificencia, o Silverio teve de o espantar,
[293]como a um passaro,
batendo as mãos, e de lhe gritar:
―Já para casa! E leve esse dinheiro á
mãe. Roda, roda!...
―E nós vamos almoçar, lembrei eu olhando o
relogio. O dia ainda vae estar lindo.
Sobre o rio, com effeito, reluzia um pedaço d'azul lavado e
lustroso; e a grossa camada de nuvens já se ia enrolando sob
a lenta
varredela do vento, que as levava, despejadas e rôtas, para
um canto
escuso do ceu.
Então recolhemos lentamente para casa, por uma vereda
ingreme, que ensinára o Silverio, e onde um leve enchurro
vinha ainda,
saltando e chalrando. De cada ramo tocado, rechuvia uma chuva leve.
Toda a
verdura, que bebera largamente, reluzia consolada.
Bruscamente, ao sahirmos da vereda para um caminho mais largo, entre um
socalco e um renque de vinha, Jacintho parou, tirando lentamente a
cigarreira:
―Pois, Silverio, eu não quero mais estas horriveis miserias
na quinta.
O Procurador deu um geito aos hombros, com um vago
eh!
eh! d'obediencia e dúvida.
―Antes de tudo, continuava Jacintho, mande já hoje chamar
esse Dr. Avelino para aquella pobre mulher... E os remedios que os
vão buscar logo a Guiães. E
recommendação ao
medico
[294]para
voltar ámanhã, e em cada dia; até que
ella melhore... Escute! E quero, Melchior, que
lhe leve dinheiro, para os caldos, para a dieta, uns dez, ou quinze mil
réis... Bastará?
O Procurador não conteve um riso respeitoso. Quinze mil
réis! Uns tostões bastavam... Nem era bom
acostumar assim, a tanta
franqueza, aquella gente. Depois todos queriam, todos pedinchavam...
―Mas é que todos hão-de ter, disse Jacintho
simplesmente.
―V. Ex.
a manda, murmurou o Silverio.
Encolhera os hombros, parado no caminho, no espanto d'aquellas
extravagancias. Eu tive de o apressar, impaciente:
―Vamos conversando e andando! É meio dia! Estou com uma
fome de lobo!
Caminhamos, com o Silverio no meio, pensativo, a fronte enrugada sob a
vasta aba do chapeu, a barba immensa espalhada pelo peito, e a barraca
exorbitante do guarda-chuva vermelho enrolada debaixo do
braço. E Jacintho, puxando nervosamente o bigode, arriscava
outras
idéas bemfazejas, cautelosamente, no seu indominavel medo do
Silverio:
―E as casas tambem... Aquella casa é um covil!... Gostava
de abrigar melhor aquella pobre gente... E naturalmente, as dos outros
[295]caseiros
são pocilgas eguaes... Era necessario uma reforma! Construir
casas novas a todos os rendeiros da quinta...
―A todos?...―O Silverio gaguejava,―emudeceu.
E Jacintho balbuciava aterrado:
―A todos... Emfim, quero dizer... Quantos serão elles?
Silverio atirou um gesto enorme:
―São vinte e coisas... Vinte e tres! se bem lembro. Upa!
Upa! Vinte e sete...
Então Jacintho emmudeceu tambem, como reconhecendo a
vastidão do numero. Mas desejou saber, por quanto ficaria
cada
casa!... Oh! uma casa simples, mas limpa, confortavel, como a que tinha
a irmã do
Melchior, ao pé do lagar. Silverio estacou de novo. Uma casa
como a da
Ermelinda? Queria Sua Ex.
a saber? E alijou a cifra, muito
d'alto,
como uma pedra immensa, para esmagar Jacintho:
―Duzentos mil réis, Ex
mo Senhor! E
é para mais
que não para menos!
Eu ria da tragica ameaça do excellente homem. E Jacintho,
muito docemente, para conciliar o Silverio:
―Bem, meu amigo... Eram uns seis contos de réis! Digamos
dez, por que eu queria dar a todos alguma mobilia e alguma roupa.
Então o Silverio teve um brado de terror:
[296]
―Mas então, Ex.
mo Senhor,
é uma
revolução!
E como nós, irresistivelmente, riamos dos seus olhos
esgazeados de horror, dos seus immensos braços abertos para
traz, como se
visse o mundo desabar,―o bom Silverio encavacou:
―Ah! V. Ex.
as riem? Casas para todos, mobilias,
pratas, bragal, dez
contos de réis! Então tambem eu rio! Ah! ah! ah!
Ora viva a bella chalaça!... Está bôa a
risota!
E subitamente, n'uma profunda mesura, como declinando toda a
responsabilidade n'aquelle disparate magnifico:
―Emfim, V. Ex.
a é quem manda!
―Está mandado, Silverio. E tambem quero saber as rendas que
paga essa gente, os contractos que existem, para os melhorar. Ha muito
que melhorar. Venha vossê almoçar comnosco. E
conversamos.
Tão saturado d'espanto estava o Silverio, que nem recebeu
mais espanto com essa «melhoria de rendas».
Agradeceu o convite,
penhorado. Mas pedia licença a Sua Ex.
a para passar
primeiramente pelo lagar,
para ver os carpinteiros que andavam a concertar a trave do rio. Era um
instante, e
estava em seguida ás ordens de S. Ex.
a.
Metteu a corta matto, saltando um cancello.
[297]E
nós seguimos,
com passos que eram ligeiros, pela hora do almoço que se
retardára, pello azul alegre que reapparecia, e por toda
aquella justiça feita
á pobresa da serra.
―Não perdeste hoje o teu dia, Jacintho, disse eu, batendo,
com uma ternura que não disfarcei, no hombro do meu amigo.
―Que miseria, Zé Fernandes! Eu nem sonhava... Haver por
ahi, á vista da minha casa, outras casas, onde
creanças teem fome!
É horrivel...
Estavamos entrando na alameda. Um raio de sol, sahindo d'entre duas
grossas, algodoadas nuvens, passou sobre uma esquina do
casarão, ao fundo, uma viva tira d'ouro. O clarim dos gallos
soava claro e alto. E um doce vento, que se erguera, punha nas folhas
lavadas e luzidias um fremito alegre e doce.
―Sabes o que eu estava pensando, Jacintho?... Que te aconteceu aquella
lenda de Santo Ambrosio... Não, não era Santo
Ambrosio... Não me lembra o santo... Nem era ainda santo...
apenas um cavalleiro peccador, que se
enamorára d'uma mulher, puzera toda a sua alma n'essa
mulher, só por a avistar a distancia na rua. Depois, uma
tarde
que a seguia, enlevado, ella entrou n'um portal de egreja, e ahi, de
repente, ergueu o veu, entreabriu o vestido, e mostrou ao pobre
cavalleiro
[298]o seio
roido por
uma chaga! Tu, tambem andavas namorado da serra, sem a conhecer,
só pela sua belleza de verão. E a serra, hoje,
zás! de
repente, descobre a sua grande ulcera... É talvez a tua
preparação para S. Jacintho.
Elle parou, pensativo, com os dedos nas cavas do collete:
―-É verdade! Vi a chaga! Mas emfim, esta, louvado seja
Deus, é das que eu posso curar!
Não desilludi o meu Principe. E ambos subimos alegremente a
escadaria do casarão.
XI
No dia que seguiu estas largas caridades recolhi a Guiães.
E, desde então, tantas vezes trotei por aquellas tres legoas
entre a
nossa e a velha alameda dos Jacinthos, que a minha egoa, quando a
desviava d'essa
estrada familiar, conduzindo a uma cavallariça familiar,
(onde ella privava com o garrano do Melchior) relinchava de pura
saudade.
Até a tia Vicencia se mostrava vagamente ciumenta d'aquella
Tormes, para onde eu sempre corria, d'aquelle Principe de quem
incessantemente celebrava o rejuvenescimento, a caridade, os piteus, e
as chimeras agricolas.
Já um dia com um grão de sal e ironia,―o unico
que cabia
n'um
coração todo cheio d'innocencia,―ella me
dissera,
movendo com mais vivacidade as agulhas da sua meia:
―Olha que te podes gabar! Até me tens
[300]feito curiosidade de
conhecer esse Jacintho... Traze cá essa maravilha, menino!
Eu rira:
―Socegue, tia Vicencia, que o trarei agora, para o dia dos meus annos,
a jantar... Damos uma festa, haverá um bailarico no pateo, e
vem ahi toda essa senhorama dos arredores. Talvez até se
arranje uma
noiva para o Jacintho.
Eu, com effeito, já convidára o meu Principe para
este «natalicio». E de resto convinha que o senhor
de
Tormes conhecesse todos aquelles
senhores das boas casas da serra... Sobretudo, como eu lhe dizia rindo,
convinha
que elle conhecesse algumas mulheres, algumas d'aquellas fortes
raparigas dos solares serranos, por que Tormes tinha uma
solidão muito monastica; e o homem, sem um pouco do Eterno
Feminino, facilmente se enrudece e ganha uma casca aspera como a das
arvores, na
solidão.
―E esta Tormes, Jacintho, esta tua reconciliação
com a Natureza, e o renunciamento ás mentiras da
Civilisação é uma linda historia...
Mas, caramba, faltam mulheres!
Elle concordava, rindo, languidamente estendido na cadeira de vime:
―Com effeito, ha aqui falta de mulher, com M. grande. Mas essas
senhoras ahi das
[301]casas
dos arredores... Não sei, estou
pensando que se devem parecer com legumes. Sans, nutritivas,
excellentes para a panella―mas, emfim, legumes. As mulheres que os
poetas comparam
ás Flores são sempre as mulheres das
Côrtes, das
Capitaes, ás quaes, invariavelmente, desde Hesiodo e de
Horacio,
se rendem os poetas... E evidentemente não ha perfume, nem
graça, nem
elegancia, nem requinte, n'uma cenoura ou n'uma couve... Não
devem ser interessantes
as senhoras da minha serra.
―Eu te digo... A tua visinha mais chegada, a filha do D. Theotonio,
com effeito, salvo o respeito que se deve á casa illustre
dos
Barbedos, é um mostrengo! A irmã dos Albergarias,
da quinta da Loja, tambem
não tentaria nem mesmo o precisado Santo Antão.
Sobretudo se se
despisse, por que é um espinafre infernal! Essa realmente
é
legume, e não dos nutritivos.
―Tu o disseste: espinafre!
―Temos tambem a D. Beatriz Velloso... Essa é bonita... Mas,
menino, que horrivelmente bem fallante! Falla como as heroinas do
Camillo. Tu nunca
leste o Camillo... E depois, um tom de voz que te não sei
descrever, o tom com que se falla em D. Maria, em peças de
sentimento. Tu
tambem nunca viste o Theatro
[302]de
D. Maria... Emfim, um horror! E perguntas pavorosas. «V.
Ex.
a. Snr. Doutor, não se delicia
com Lamartine?» Já me disse esta, a indecente!
―E tu?
―Eu! Arregalei os olhos... «Oh Lamartine!». Mas,
coitada, é uma excellente rapariga! Agora, por outro lado,
temos
as Rojões,
as filhas de João Rojão, duas flores, muito
frescas,
muito
alegres, com um cheiro e um brilho a sadio, e muito simples... A tia
Vicencia morre por ellas.
Depois ha a mulher do Dr. Alypio, que é uma belleza. Oh! uma
creatura esplendida! Mas, emfim, é a mulher do Dr. Alypio, e
tu
renunciaste aos deveres da Civilisação...
Além
disso,
mulher muito séria, toda absorvida nos seus dous pequenos,
que
parecem dous anjinhos de Murillo... E quem mais? Já agora,
quero
completar a lista do pessoal feminino.
Temos a Mello Rebello, de Sandofim, muito engraçada, com
cabello
lindo... Borda na perfeição, faz doces como uma
freira do
antigo
Regimen... Havia tambem uma Julia Lobo, muito linda, mas morreu...
Agora não
me lembro mais. Mas falta a flôr da Serra, que é a
minha
prima Joanninha, da Flôr da Malva! Essa é uma
perfeição de
rapariga.
―E tu, primo Zé, como tens tu resistido?
―Somos como irmãos, creados de pequeninos,
[303]mais
acostumados
e familiares que tu e eu... A familiaridade esbate os sexos. A
mãe d'ella era a unica irmã da tia Vicencia, e
morreu
muito nova. A
Joanninha, quasi desde o berço que se creou em nossa casa,
em
Guiães. O pae é bom homem, o tio
Adrião. Erudito,
antiquario, colleccionador...
Collecciona toda a sorte de cousas exquisitas, campainhas, esporas,
sinetes, fivellas... Tem uma collecção curiosa.
Elle ha
muito que deseja vir a Tormes, para te visitar... Mas, coitado, soffre
da bexiga,
não póde montar a cavallo. E a estrada da
Flôr da
Malva aqui
é impossivel para carruagens...
O meu Principe espreguiçára longamente os
braços:
―Não, está claro! eu é que hei-de
visitar teu tio, e a tia Vicencia... Desejo conhecer os meus visinhos.
Mas mais tarde, quando socegar. Agora
ando todo occupado com o meu povo.
E com effeito! Jacintho era agora como um Rei fundador d'um Reino, e
grande edificador. Por todo o seu dominio de Tormes andavam obras, para
o renovamento das casas dos rendeiros, umas que se concertavam, outras
mais velhas, que se derrubavam para se reconstruirem com uma larguesa
commoda. Pelos caminhos constantemente chiavam carros,
[304]carregados de pedra, ou de
madeiras cortadas nos pinheiraes.
Na taberna do Pedro, á entrada da freguezia, ia um desusado
movimento, de pedreiros e carpinteiros contractados para as obras;―e o
Pedro, com
as mangas arregaçadas, por traz do balcão,
não cessava de encher os decilitros com uma vasta enfusa.
Jacintho, que tinha agora dous cavallos, todas as manhãs
cedo percorria as obras, com amor. Eu, inquieto, sentia outra vez,
latejar e irromper no meu Principe o seu velho, maniaco furor
d'accumular
Civilisação! O plano primitivo das obras era
incessantemente alargado,
aperfeiçoado. Nas janellas, que deviam ter apenas portadas,
segundo o secular costume
da serra, decidira pôr vidraças, apezar do mestre
d'obras lhe dizer honradamente, que depois d'habitadas um mez,
não haveria
casa com um só vidro. Para substituir as traves classicas
queria
estucar os tectos;―e
eu via bem claramente que elle se continha, se retesava dentro do
Bom-senso, para não dotar cada casa com campainhas
electricas. Nem sequer me espantei, quando elle uma manhã me
declarou que a
porcaria da gente do campo provinha de elles não terem onde
commodamente
se lavar, pelo que andava pensando em dotar cada casa com uma banheira.
[305]Desciamos
n'esse momento, com os cavallos á redea, por uma azinhaga
precipitada e escabrosa; um vento leve ramalhava nas arvores, um regato
saltava ruidosamente entre as pedras. Eu não me
espantei―mas
realmente me pareceu que as pedras, o arroio, as ramagens e o vento, se
riam alegremente do meu Principe. E além d'estes confortos,
a
que
o João, mestre d'obras, com os olhos loucamente arregalados
chamava
«as grandezas», Jacintho meditava o bem das almas.
Já
encommendára ao seu architecto, em Paris, o plano perfeito
d'uma
escola, que elle queria erguer, n'aquelle campo da Carriça,
junto á
capellinha que abrigava «os ossos». Pouco a pouco,
ahi
crearia tambem uma bibliotheca,
com livros d'estampas, para entreter, aos domingos, os homens a quem
já
não era possivel ensinar a lêr. Eu vergava os
hombros,
pensando:―«Ahi vem a terrivel
accumulação das
Noções! Eis o livro invadindo a Serra!»
Mas outras idéas de Jacintho eram tocantes,―e eu mesmo me
enthusiasmei, e excitei o enthusiasmo da tia Vicencia com o seu plano
d'uma Creche,
onde elle esperava ter manhãs muito divertidas vendo as
creancinhas a gatinhar, a correr tropegamente atraz d'uma bola. De
resto, o nosso boticario de Guiães estava já
apalavrado
para
estabelecer uma pequena pharmacia em Tormes,
[306]sob
a direcção do seu
praticante, um afilhado da tia Vicencia, que tinha publicado um artigo
sobre as festas populares
do Douro no
Almanach de
Lembranças. E já fôra
offerecido o partido medico de Tormes, com ordenado de 600$000
réis.
―Não te falta senão um Theatro! dizia eu, rindo.
―Um theatro não. Mas tenho a idéa d'uma sala,
com projecções de lanterna magica, para ensinar a
esta
pobre gente as cidades d'esse mundo, e as cousas d'Africa, e um bocado
de Historia.
E tambem me ensoberbeci com esta innovação!―E
quando a contei ao tio Adrião, o digno antiquario bateu,
apezar do seu rheumatismo,
uma palmada tremenda na côxa. «Sim, senhor! Bella
idéa! Assim se podia ensinar áquella gente
illetrada, vivamente, por imagens, a Historia
Santa, a Historia Romana, até a Historia de
Portugal!...» E
voltado para a prima Joanninha, o tio Adrião declarou
Jacintho um
«homem de coração!»
E realmente pela Serra crescia a popularidade do meu Principe.
N'aquelle, «guarde-o Deus, meu senhor!» com que as
mulheres ao passar o saudavam, se voltavam para o vêr ainda,
havia uma seriedade
d'oração, o bem sincero desejo de que Deus o
guardasse
[307]sempre.
As
creanças a quem elle distribuia tostões,
farejavam de
longe a sua
passagem,―e era em torno d'elle um escuro formigueiro de caritas
trigueiras e sujas, com grandes olhos arregalados, que se ainda tinham
pasmo, já
não tinham medo. Como o cavallo de Jacintho uma tarde se
chapára, ao
desembocar da alameda, n'umas grossas pedras que ahi deformavam a
estrada, logo ao outro dia um bando d'homens, sem que Jacintho o
ordenasse, veio por dedicação ensaibrar e alisar
aquelle
pedaço perigoso de caminho, aterrados com o risco que
correra o
bom senhor. Já pela
serra se espalhava esse nome de «bom senhor». Os
mais
edosos
da freguezia não o encontravam sem exclamarem, uns com
gravidade, outros com grandes risos
desdentados:―
Este é o nosso
bemfeitor! Por vezes, alguma velha corria do fundo do eido,
ou vinha á porta do casebre, ao avistal-o
no caminho, para gritar, com grandes gestos dos braços
magros:
«Ai que Deus o cubra de bençãos! Que
Deus o cubra de
bençãos!»
Aos domingos, o padre José Maria, (bom amigo meu e grande
caçador) vinha de Sandofim, na sua egoa ruça, a
Tormes,
para celebrar a
missa na Capellinha. Jacintho assistia ao officio na sua tribuna, como
os Jacinthos d'outras eras, para que aquelles simples o não
[308]suppuzessem
estranho a Deus. Quasi
sempre então elle recebia presentes,
que as filhas dos caseiros, ou os pequenos, vinham muito corados,
trazer-lhe
á varanda, e eram vasos de manjaricão, ou um
grosso
ramalhete
de cravos, e por vezes um gordo pato. Havia então uma
distribuição de cavacas e merengues de
Guiães,
ás raparigas e ás
creanças,―e, no pateo, para os homens circulavam as infusas
de
vinho branco. O Silverio já
sustentava com espanto, e redobrado respeito, que o Snr. D. Jacintho em
breve disporia de mais votos nas eleições que o
Dr.
Alypio. E eu proprio me impressionei, quando o Melchior me contou que o
João
Torrado, um velho singular d'aquelles sitios, de grandes barbas
brancas, hervanario, vagamente alveitar, um pouco adivinho, morador
mysterioso d'uma cova no
alto da serra, a todos affirmava que aquelle bom senhor era El-Rei D.
Sebastião, que voltára!
XII
Assim chegou Setembro, e com elle o meu natalicio, que era a 3 e n'um
Domingo. Toda essa semana a passára eu em Guiães,
nos preparos da vindima,―e de manhã cedo, n'esse Domingo
illustre, me fui
debruçar da varanda do quarto do saudoso tio Affonso,
vigiando a
estrada, por onde devia apparecer o meu Principe, que emfim visitava a
casa do seu
Zé Fernandes. A tia Vicencia, desde a madrugada, andava
atarefada pela cosinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu
Principe
«o pessoal» da serra, convidára para
jantar algumas
familias amigas, dos arredores, as que tinham carruagens ou
carroções,
e podiam, pelas estradas mal seguras, recolher tarde, depois d'um
bailarico campestre, no
[310]pateo,
já enfeitado para esse effeito de lanternas
chinezas. Mas logo ás dez horas me desesperei, ao receber,
por um
moço da Flôr da Malva, uma carta da prima
Joanninha, em que dizia «a pena de
não poder vir porque o Papá estava desde a
vespera com um
leicenço, e ella não o queria
abandonar.» Corri indignado á cosinha, onde
a tia Vicencia presidia a um violento bater de gemas d'ovos dentro
d'uma immensa terrina.
―A Joanninha não vem! Sempre assim! Diz que o pae tem um
leicenço... Aquelle tio Adrião escolhe sempre os
grandes dias para ter
leicenços, ou para ter a pontada...
A boa face redondinha e corada da tia Vicencia enterneceu-se.
―Coitado! será em sitio que não se pudesse
sentar na carruagem! Coitado! Olha, se lhe escreveres, dize-lhe que
ponha um emplastrosinho de folhas d'alecrim. É com que teu
tio
se dava bem.
Eu gritei simplesmente para o moço, que dava de beber ao
burro no pateo:
―Dize á Snr.
a D. Joanninha que sentimos muito...
Que
talvez eu lá appareça
ámanhã.
E voltei á janella, impaciente, por que o relogio do
corredor, muito atrazado, já cantára a meia hora
depois das dez e
o Principe tardava
[311]para
o almoço. Mas, mal eu me chegára
á varanda, appareceu justamente na volta da estrada
Jacintho, de
grande chapeu de palha, no seu cavallo, seguido do Grillo que, tambem
de chapeu de palha, e abrigado sob um immenso guarda-sol verde, se
escarranchava no albardão da
velha egoa do Melchior. Atraz, um moço com uma maleta
á
cabeça. E eu, na alegria de avistar emfim o meu Principe
trotando para a minha casa d'aldeia, no
dia dos meus trinta e seis annos, pensava n'outro natalicio, no d'elle,
em Paris, no 202, quando, entre todos os esplendores da
Civilização, nós bebemos tristemente
ad
manes, aos
nossos mortos!
―
Salvè! gritei da
varanda.
Salvè, domine
Jacinthi!
E entoei, para o accolher, n'um alegre tarantantan, o hymno da carta!
―Isto por aqui tambem é lindo!―gritou elle de baixo. E o
teu palacio tem um soberbo ar... Por onde é a porta?
Mas eu já me precipitava para o pateo―onde Jacintho,
apeando, contou alegremente os tormentos do Grillo, que nunca
montára a
cavallo, e não cessára de berrar ante os perigos
d'aquella aventura.
E o digno preto, offegante, lustroso de suor, e livido sob o esplendor
da sua negrura, exclamava,
[312]apontando
com a mão tremula para
a pobre egoa, que solta, de cabeça pensativa, parecia de
pedra,
sobre as patas mais immoveis que marcos:
―Pois se o siô Fernandes visse! Uma fera, que nunca veiu
quieta. Sempre para a esquerda, sempre para a direita, pé
aqui,
pé além! Só para me sacudir!
Só para me sacudir!
E não resistiu. Com a ponta do guarda-sol atirou uma
pontoada vingativa contra a egoa, sobre o albardão.
Subindo a escadaria ligeira, penetrando no alegre corredor, com a sua
janella ao fundo engrinaldada de rosinhas, Jacintho louvava grandemente
a nossa casa, que o repousava das rijas muralhas, das grossas portas
feudaes de Tormes. E no seu quarto agradeceu os cuidados maternaes da
tia Vicencia, que enchera de flores os dois vasos da China sobre a
commoda, e adornára a cama com uma das nossas colxas da
India mais ricas, côr de canario, com grandes aves d'ouro. Eu
sorria,
enternecido. Então estreitamos os ossos n'um grande
abraço,
pelo natalicio... «Trinta e oito, hein, Zé
Fernandes?»―«Trinta e
quatro, animal!» E o meu Principe abrindo a mala, sobria
maleta
de philosopho, offereceu os «nobres presentes, que
são
devidos»,
como diz sempre o astuto Ulysses na Odyssea. Era um alfinete de
gravata,
[313]com uma
saphira, uma cigarreira de
aro fosco, adornada de um florido ramo de macieira em delicado esmalte,
e uma faca para livros de velho lavor Chinez. Eu protestava contra a
prodigalidade.
―É tudo das malas de Paris... Mandei-as abrir hontem
á noite. E tomei a liberdade de trazer esta
lembrança á tua tia
Vicencia. Não vale nada... É só por
ter pertencido á princeza de
Lamballe.
Era uma caldeirinha d'agoa benta, em prata lavrada, d'um gosto florido
e quasi galante.
―A tia Vicencia não sabe quem é a princeza de
Lamballe, mas ficará encantada! E é uma garantia,
por que ella suspeita da tua
religião, como homem de Paris, da terra das impiedades... E
agora, lavar, escovar, e
ao almoço!
A tia Vicencia pareceu toda surprehendida, e logo encantada com o meu
camarada, que ella suppuzera realmente um Principe, arrogante,
escarpado e difficil. Quando elle lhe offereceu a caldeirinha, com um
delicado pedido «para se lembrar d'elle nas suas
orações», duas largas rosas, mais
roseas e frescas
que as rosas que enchiam a mesa, cobriram as
faces redondas da boa senhora, que nunca recebera tão
piedoso
presente, com tão linda palavra. Mas o que sobretudo a
captivou
[314]foi o
tremendo appetite de Jacintho, a enthusiasmada
convicção
com que elle, accumulando no prato montes de cabidella, depois altas
serras d'arroz
de forno, depois bifes de numerosa cebolada, exaltava a nossa cosinha,
jurava nunca ter provado nada tão sublime. Ella
resplandecia:
―Até faz gosto, até faz gosto!... Ora mais uma
d'estas batatinhas recheadas...
―Com certesa, minha senhora! até duas! As minhas
rações, em mesas d'estas, tão
perfeitas, são sempre as de
Gargantua.
―Não cites Rabelais, que a tia Vicencia não
conhece os auctores profanos! exclamava eu, tambem radiante. E prova
esse vinho branco
cá da nossa lavra, e louva Deus que amadurece tal uva.
E o almoço foi muito alegre, muito intimo, muito conversado,
sobre as obras de Jacintho em Tormes, e a sua Creche, que enlevava a
tia Vicencia, e as esperanças da vindima, e a minha prima
Joanninha, que tinha o papá doente, e o pessimo estado dos
caminhos. Mas o enternecimento maior foi quando, ao servir o
café, o creado
poz ao lado de Jacintho um pires com um pau de canella, o seu estranho
e costumado pau de canella. Não o esquecera a tia Vicencia!
Ali
tinha o
seu pausinho de canella!―Queria que elle, em
[315]Guiães,
continuasse os seus
habitos como em Tormes... E aquelle pau de canella foi o symbolo de
adopção do meu Principe como novo sobrinho da tia
Vicencia.
Ella em breve recolheu á cosinha, aos preparativos do
banquete. Nós fumamos um preguiçoso charuto no
jardim, ao
pé do
repuxo, sob a recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como
proprietario, mostrei ao meu Principe a propriedade toda, com
desapiedada minuciosidade, sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma
arvore, um
pé de vinha. Só quando a sua face
começou a opar e
a
empallidecer, de cançaço, e que do entendimento
totalmente
atordoado só lhe escorria um vago―«muito bonito!
bella
terra!»―é
que voltei os passos para casa, tornejando ainda n'uma volta larga para
lhe mostrar o lagar, uma plantação d'espargos, e
o sitio
onde existira a
ruina d'um velho castro romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim, na
fresca sala, ainda o empurrei, como uma rez, para a livraria do meu bom
tio Affonso, para
lhe mostrar as preciosidades, uma magnifica chronica de D.
João
I por Fernão Lopes, a primeira edição
do
Imperador Clarimundo, uma
Henriada, com a assignatura de Voltaire, foraes
d'El-Rei D.
Manoel, e outras maravilhas. Elle respirava fechando o derradeiro
pergaminho,
[316]quando
eu
o arrastei á adega, para que admirasse a famosa pipa, que
tinha, em relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos Sandes.
Eram quatro horas. O meu Principe tinha o ar esgaseado e livido.
Cravando n'elle os olhos inexoraveis, olhos em que eu mesmo sentia
reluzir a ferocidade, declarei «que iriamos agora
vêr a
tulha.» Mas então, com as mãos nos
rins, elle
murmurou, humildemente, n'um murmurio de
creança:
―Não se me dava de me sentar um poucochinho!
Tive então piedade, abri as garras, deixei que elle se
arrastasse, atraz de mim, para o seu quarto, onde freneticamente
descalçou as
botas, se atirou para um fresco canapé forrado de ganga,
murmurando
n'um abatimento profundo:―«Bella propriedade!»
Consenti generosamente que elle adormecesse,―e eu mesmo desci a
verificar se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda,
no quarto onde os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as
mãos, escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma
caleche
rodava no pateo, a velha caleche do D. Theotonio, com a parelha
ruça.
Espreitando da janella descobri, com prazer, que chegava só,
de
gravata
branca, sob o guarda-pó, sem a horrendissima filha. Corri
[317]alegremente ao
quarto da tia Vicencia, que, ajudada pela Catharina, abrochava
á
pressa as suas pulseiras ricas de topazios.
―Tia Vicencia! chegou o D. Theotonio! Felizmente vem sem a filha...
Não se demore, os outros não tardam. O Manoel que
esteja bem
penteado, de gravata bem teza!... Vamos a vêr como corre a
festa!
XIII
Ai de mim! a festa no meu anniversario não se passou com
brilho, nem com alegria!
Quando o meu Principe entrou na sala, com uma elegancia, (onde eu senti
as malas de Paris, abertas na vespera)―uma rosa branca no
jaquetão preto, collete branco lavrado e trespassado,
copiosa
gravata de
sêda branca, tufando, e presa por uma perola
negra,―já
todos os
convidados estavam na sala,―o D. Theotonio, o Ricardo Velloso, o Dr.
Alypio, o gordo Mello Rebello, de Sandofim, os dois manos Albergarias,
da quinta da Loja―; todos de pé, n'um pellotão
cerrado.
Em
torno do sophá onde a tia Vicencia se installára,
um
magotesinho de cadeiras
reunira as senhoras,―a Beatriz Velloso, de cassa branca sobre
[320]sèda,
que a tornava mais aeria e magra, com a sua trunfa immensa de cabello
riçado; as duas Rojões, (com a tia Adelaide
Rojão)
vermelhinhas
como camoezas, ambas de branco; e a mulher do Dr. Alypio, de preto,
esplendida como uma Venus Rustica... E foi na sala, como se realmente
entrasse um Principe, d'esses paizes do Norte onde os Principes
são magnificos,
muito distantes dos homens, e aterram as gentes. Um silencio, como se o
tecto
de carvalho descesse, nos esmagava: e todos os olhos se enristaram
contra o meu desgraçado Jacintho, como n'uma
caçada hindú, quando á orla da
floresta surge o
Tigre Real. Debalde,―nas confusas, apressadas
apresentações, com que eu o levava atravez da
sala,―os seus apertos de mão, os sorrisos, o vago murmurio,
«da sua honra,
do seu prazer» foram repassados de sympathia, de
simplicidade.
Todos os cavalheiros permaneciam reservados, observando o Principe, que
subira á
serra: e as senhoras mais se aconchegavam á sombra da tia
Vicencia, como
ovelhas á volta do pastor, quando na altura assoma o lobo.
Eu,
já
inquieto, lancei o D. Theotonio, o mais ornamental d'aquelles
cavalheiros.
―O Snr. D. Theotonio foi muito amavel em vir, Jacintho. Raras vezes
sae da sua linda casa da Abrujeira.
[321]
O digno D. Theotonio sorriu, cofiando os espessos bigodes brancos, de
velho brigadeiro:
―V. Ex.
a chegou directamente de Vienna?
Não! Jacintho viera directamente de Paris, com o amigo
Zé Fernandes. D. Theotonio insistiu:
―Mas certamente visita muitas vezes Vienna...
Jacintho sorria surprehendido:
―Vienna, porque?... Não. Ha mais de quinze annos que
não vou a Vienna.
O fidalgo murmurou um lento
ah! e
ficou calado, de palpebras baixas, como revolvendo analyses profundas,
com as mãos cruzadas sob
as abas da longa sobrecasaca azul.
Eu então, vigilante, lancei o Dr. Alypio:
―O nosso Doutor, meu caro Jacintho, é o mais poderoso
influente de todo o districto.
O Doutor curvou a cabeça bem feita, com um bello cabello
preto, admiravelmente alisado e lustroso. Mas a tia Vicencia, que se
erguera
do sofá, chamava o meu Principe, porque o Manoel
annunciára o jantar, mudamente, mostrando apenas,
á porta da sala, a sua
corpulenta pessoa,―inteiriçado e vermelho.
Á mesa, onde os pudins, as travessas de doce d'ovos, os
antigos vinhos da Madeira e do Porto, nas suas pesadas garrafas de
cristal lapidado, fundiam com felicidade os seus
[322]tons ricos e quentes,
Jacintho ficou entre a tia Vicencia e uma das Rojões, a
Luizinha, sua
afilhada, que, por costume velho, quando jantava em Guiães,
sempre se
collocava á sombra da sua bôa madrinha. E a
sôpa, que era de
gallinha com macarrão, foi comida n'um tão largo
e pesado silencio que eu, na ancia
de o quebrar, exclamei, ao acaso, sem pensar que me achava em
Guiães depois de tanto tempo e em minha própria
casa:
―Deliciosa, esta sopa!
Jacintho echoou:
―Divina!!
Mas como todos os convidados certamente estranharam este meu brado, e a
excessiva admiração de Jacintho, o silencio,
carregado de cerimonia, mais se carregou de embaraço.
Felizmente
a tia Vicencia, com
aquelle seu bom sorriso, observou que Jacintho parecia gostar da comida
portugueza... E eu, sempre no intuito d'animar a conversa, nem deixei
que o meu Principe confirmasse o seu amor da cosinha vernacula, e
gritei:
―Como gostar! Mas é que delira!... Pudera! Tanto tempo em
Paris, privado dos piteus lusitanos...
E como, ditosamente, me lembrára o prato de arroz doce
preparado na occasião do natalicio de Jacintho, pelo
cosinheiro do 202,
[323]contei a historia,
profusamente, exaggerando, affirmando que esse arroz doce continha
foie
gras,
e que sobre a
sua ornamentada pyramide fluctuava a bandeira tricolor, por cima do
busto do conde de Chambord! Mas o arroz doce de Paris, assim estragado
tão longe da Serra,
não interessára ninguem. Puxou apenas alguns
sorrisos de
polida condescendencia, quando
eu, alternadamente, me voltava para um cavalheiro, para uma senhora,
insistindo, exclamando:―Extraordinario, hein?
D. Theotonio observou, mysteriosamente, que o «cosinheiro
sabia para quem cosinhava.» E a bella mulher do Dr. Alypio
ousou
murmurar, corando:
―Havia de ser bonito prato, e talvez não fosse mau!
Eu, sempre na ancia de espiritualisar o banquete, de produzir
conversação, ataquei com desabrida alegria a
Snr.
a D. Luiza, por ella assim defender a
profanação do nosso grande
acepipe nacional! Mas, pobre de mim! tão excessiva e
ruidosamente interpellei a formosa
senhora, que ella se enconchou, emmudeceu, toda corada, e mais formosa
assim. E
outro silencio se abatia sobre a mesa, como uma nevoa, quando a tia
Vicencia,
providencial, se desculpou para com Jacintho de não ter
peixe! Mas quê! ali na Serra era impossivel,
[324]ainda
a peso d'ouro, ter peixe, a
não ser a pescada salgada, ou o bacalhau. O excellente
Rojão, com
aquelle seu modo, tão suave que cada syllaba para correr
mais
docemente
parecia lubrificada com oleos santos, lembrou que o Snr. D. Jacintho
possuia
uma larga facha do rio Douro com privilegio para a pesca do savel.
Jacintho
não sabia, nem imaginava que houvesse saveis... O Dr. Alypio
não se admirava por que essas pescas tinham sido vendidas ao
Cunha brasileiro,
ha vinte annos, na mocidade do Snr. D. Jacintho. E hoje, segundo o D.
Theotonio, não valiam dois mil réis. Se
já não ha saveis!... E a proposito das antigas
pescas do
Douro se ia formando, em torno da mesa,
entre os homens mais visinhos, lentas cavaqueirinhas ruraes, que as
senhoras aproveitavam para cochichar, no desabafo d'aquelle silencio
cerimonioso, que viera pesando cada vez mais desde a sôpa
até os frangos guisados. Receoso de que essa orla de
murmurios
lentos, sem brilho e
sem alegria, se estabelecesse de novo, me abalancei (para animar), a
interpellar Jacintho, recordando a famosa aventura do peixe da Dalmacia
encalhado no ascensor.
―Isso foi uma das melhores historias que nos succederam em Paris! O
Jacintho, por causa d'um peixe muito raro, que lhe mandára
[325]o
Grão-Duque Casimiro, dava uma magnifica ceia, a que o
Grão-Duque... o
Grão-Duque Casimiro, o irmão do Imperador...
Todos os olhos se desviaram para o meu Jacintho, que se servia de
ervilhas:―e o Mello Rebello quasi se engasgou, n'um sorvo precipitado
ao copo, para contemplar no meu amigo algum reflexo do
Grão-Duque. E eu contei, com profusão, o peixe
encalhado,
o
Grão-Duque pescando, o anzol feito com um gancho da Princeza
de
Carman, o duque de Marizac, cahindo quasi no poço do
elevador...
Mas não se produziu
um unico riso, e a attenção mesma era dada com
esforço,
por cortezia. Debalde eu arremessava aquelles nomes magnificos de
principes e princezas, misturados a cousas picarescas... Nenhum dos
meus convidados comprehendia o maquinismo do elevador, um prato
encalhado n'um
poço negro... Perante o gancho da princeza as Albergarias
baixaram os olhos.
E a minha deliciosa historia morreu n'uma reticencia, ainda mais
regelada pela exclamação innocente da tia
Vicencia:
―Oh! filho, que cousas!
Mas, como Jacintho se enfronhára de repente n'uma larga
conversa com a Luizinha Rojão, que ria, toda luminosa e
palradora,―todos,
como libertados do peso cerimonioso
[326]da
sua presença augusta, se
lançaram nas conversinhas discretas, a que o champagne,
agora,
depois do assado,
dava mais viveza. Eram os soturnos murmurios, em torno da mesa, que
definitivamente se perpetuavam. Foi então que desisti de
animar o jantar. Mergulhei com a bella mulher do Doutor Alypio na
grande
questão social d'esse tempo em Guiães, o
casamento da D.
Amelia
Noronha com o feitor! E eu defendia a D. Amelia, os direitos do amor,
quando se alargou um silencio,―e era Jacintho, que se
debruçava, de
copo na mão.
―Velho amigo Zé Fernandes, á tua! Muitos e bons,
e sempre em companhia de tua tia e minha senhora, a quem
peço para saudar.
Todos os copos, onde a espuma morria sobre um fundo de champagne, se
ergueram n'um largo rumor de amisade, e boa visinhança. Eu
acenei ao Manoel, vivamente, para encher os copos; e logo, tambem de
pé, atirando para traz a sobrecasaca:
―Meus senhores, peço uma grande saude para o meu velho
amigo Jacintho, que pela primeira vez honra esta casa fraternal... Que
digo eu? que
pela primeira vez honra com a sua presença a sua querida
patria!
E que por cá fique, pelas serras, muitos annos, todos bons.
Á tua, meu
velho!
[327]Outro rumor correu
pela mesa, mas
ceremonioso e sereno. A nossa oratoria, positivamente, não
incendiára as
imaginações! A tia Vicencia fez tilintar o seu
copo,
quasi vasio, com o de Jacintho, que tocou no copo da sua visinha, a
Luizinha Rojão, toda resplandecente,
e mais vermelha que uma peonia. Depois foi um encadeamento de saudes,
com os copos quasi vasios, entre todos os convidados, sem esquecer o
tio Adrião, e o Abbade, ambos ausentes, ambos com
furunculos. E
a tia Vicencia espalhava aquelle olhar, que prepára o
erguer, o
arrastar de cadeiras,―quando D. Theotonio, erguendo o seu copo de
vinho do Porto, com a outra mão apoiada á mesa,
meio
erguido,
chamou Jacintho, e n'uma voz respeitosa, quasi cava:
―Esta é toda particular, e entre nós... Brindo o
ausente!
Esvasiou o copo, como em religião, pontificando. Jacintho
bebeu assombrado, sem comprehender. As cadeiras arrastavam,―eu dei o
braço á tia Albergaria.
E só comprehendi, na sala, quando o Dr. Alypio, com a sua
chavena de café e o charuto fumegante, me disse, n'um
d'aquelles seus
olhares finos, que lhe valiam a alcunha de
Dr.
Agudo:―«Espero que ao menos, cá por
Guiães, não se erga de novo a
forca!...»
[328]E
o mesmo fino olhar me indicava o D. Theotonio, que arrastára
Jacintho para entre
as cortinas d'uma janella, e discorria, com um ar de fé e de
mysterio.
Era o miguelismo, por Deus! O bom D. Theotonio considerava Jacintho
como um hereditario, ferrenho, miguelista,―e na sua inesperada vinda
ao seu solar de Tormes, entrevia uma missão politica, o
começo d'uma propaganda energica, e o primeiro passo para
uma
tentativa de
Restauração. E na reserva d'aquelles cavalheiros,
ante o
meu Principe, eu senti
então a suspeita liberal, o receio d'uma influencia rica,
nova,
nas
Eleições proximas, e a nascente
irritação
contra as velhas
ideias, representadas n'aquelle moço, tão rico,
de
civilisação tão superior. Quasi
entornei o café, na alegre surpreza d'aquella sandice. E
retive
o Mello
Rebello, que repunha a chavena vasia na bandeja, fitei, com um pouco de
riso, o
Dr. Agudo.
―Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacintho veio
para Tormes trabalhar no miguelismo?
Muito serio, Mello Rebello chegou o seu grosso bigode á
minha orelha:
―Até corre, como certo, que o Principe D. Miguel
está com elle em Tormes!
E como eu os considerava esgazeado, o Dr. Alypio―tão
agudo!―confirmou:
[329]
―É o que corre... Disfarçado em creado!
Em creado? Oh! santo Deus! Era o Baptista! Justamente, Ricardo Velloso
veio, puxando do seu cigarrinho, para o accender no meu charuto. E o
bom Rebello logo invocou o seu testemunho.―Pois não corria,
que
o filho de D. Miguel estava em Tormes, escondido?...
―Disfarçado em lacaio, confirmou logo o digno Rebello.
Accendeu o cigarro, soprou o fumo, e erguendo muito as sobrancelhas
meditativas:
―Se assim é, lá me parece desplante... Que eu
não desgostava de o vêr. Dizem que é
bonito moço, bem apessoado. Mas
emfim, meu tio João Vaz Rebello foi partido ás
postas, a machado, nas
prisões d'Almeida... E se recomeçam essas
questões, mau, mau! Ora o seu
amigo...
Emmudeceu. Jacintho, que se libertára do velho D. Theotonio,
e ainda conservava um resto de riso, d'assombro divertido, vinha para
mim, desabafar:
―Extraordinario! Vejo que, aqui, na serra, ainda se conservam, sem uma
ruga, as velhas e boas ideias...
Immediatamente, sem se conter, Mello Rebello acudiu:
―É conforme o que V. Ex.
a chama
boas
ideas.
[330]E eu agora,
furioso com aquella
disparatada
invenção, que cercava d'hostilidade o meu pobre
Jacintho,
estragava aquella amavel noite d'annos, intervim, vivamente:
―Tu jogas o voltarete, Jacintho? Não jogas...
Então vamos arranjar duas mesas... O D. Theotonio ha de
querer cartas.
E arrastei Jacintho para as senhoras, que de novo se aninhavam
á sombra da tia Vicencia, estabelecida no seu canto do
sofá. Todas se
callavam, parecia encolherem-se ante a apparição
do meu
Principe, como pombas avistando o abutre. E deixei o temido homem
affirmando á
mulher do Dr. Alypio (um pouco desgarrada do bando das aves timidas)
que lhe dera grande prazer aquella occasião de conhecer as
suas
visinhas
de Tormes... Ella abrira nervosamente o leque, sorria, e nunca de certo
Jacintho admirára na Cidade uma bocca mais vermelha,
dentinhos
mais
rutilantes. Mas depois d'organisar a mesa do voltarete, tive de
abancar, eu, para substituir o Manoel Albergaria, que era dispeptico,
se
declarára «affrontado», e desejava
respirar um
momento na
varanda. Todos aquelles cavalheiros, de resto, se queixavam de calor.
Mandei abrir as janellas que davam sobre as mimosas do pateo. O
Velloso, ao baralhar, parava, bufando, como opprimido:
[331]
―Está abafado... Ainda temos trovoada!
E o Dr. Alypio, inquieto, por que tinha uma hora d'estrada
até casa, e uma das egoas da caleche era escabriada, correu
á janella,
espreitar o ceu, que ennegrecera, morno e pesado.
―Com effeito, vae cahir agoa.
As hastes das mimosas ramalhavam, arripiadas: e o ar que agitava as
cortinas era intermittente, estonteado. De certo na sala, entre as
senhoras, surgira a mesma inquietação, porque a
tia Albergaria appareceu, avisando o mano Jorge.
Era prudente pensar em partir, a noite ameaçava... E o Dr.
Alypio, puxando o relogio, propoz que, levantada aquella remissa, se
preparasse
a marcha. Justamente o Albergaria recolhia da varanda desaffrontado,
alliviado com um calice de genebra: e rotomou as suas cartas,
annunciando tambem que vinha ahi uma trovoada valente.
Voltando á sala, encontrei Jacintho muito alegre entre as
senhoras, que se familiarisaram, escutando cheias de riso e gosto, a
historia da sua chegada a Tormes, sem malas, sem creados,
tão
desprovido que
dormira com a camisa da caseira! Mas a minha pobre noite d'annos
findava, desorganisada. A tia Albergaria rondava de janella em janella,
assustada
[332]com a
volta á
Roqueirinha, espreitando a treva abafada.
Calçando lentamente as luvas, a bella mulher do Dr. Alypio
perguntava se ainda havia a remissa. E a tia Vicencia
apressára
o
chá, que o Manoel seguido pela Gertrudes, com a bandeja de
bolos, já
começava a servir ás senhoras. Jacintho, de
pé,
offerecendo chavenas, gracejava:
―Então tanta pressa, tanto medo, por causa d'uma
trovoadinha?
Ellas replicavam, familiarizadas, n'uma crescente sympathia pelo meu
Principe:
―Ora o senhor falla bem, porque fica debaixo de telhas...
―Sempre o queriamos vêr... se fosse agora para Tormes, com
esta noite cerrada!
O voltarete findára nas duas mesas: e aquelles cavalheiros,
das janellas, gritavam ordens para o pateo negro, onde as carroagens
esperavam atreladas:
―Desce a cabeça da victoria, ó Diogo!
―Accende o lampeão, Pedro! Sempre ajuda a luz das
lanternas.
A creada Quiteria chegava á porta com os braços
carregados de chales, de mantilhas de renda. Como uma das Albergarias
ia no assento de deante na
victoria, eu corri a buscar o meu casaco de borracha, para ella se
abrigar se a chuva viesse. E só o D. Theotonio, que
[333]tinha
até casa apenas meia legoa de estrada boa, se não
apressava, filado
outra vez no meu Principe, que levava para os cantos mais solitarios,
em conversas profundas, que o seu dedo solemne, espetado, sublinhava
gravemente. Mas
a tia Albergaria gritou que já chovia;―e então
foi uma pressa das senhoras, que beijocavam vivamente a tia Vicencia,
em quanto os homens,
na ante-camara, enfiavam açodadamente os paletós.
Jacintho e eu descemos ao pateo para acompanhar aquella debandada,―e
uma a uma, a traquitana do Dr. Alypio, a victoria das Albergarias, a
velha e immensa caleche dos Vellosos, rolaram sob a noite, entre os
nossos desejos de boa jornada. Por fim D. Theotonio calçou
as luvas pretas e entrou para a sua caleche, dizendo a Jacintho:
―Pois, primo e amigo, Deus permitta que, do nosso encontro, e do mais
que se passar, algum bem resulte a esta terra!
Subindo a escada, o meu Principe desabafou:
―Este Theotonio é extraordinario! Sabes o que descobri por
fim?... Que me toma por um miguelista, e imagina que eu vim para Tormes
preparar a restauração de D. Miguel?!
―E tu?
[334]
―Eu fiquei tão espantado, que nem o desilludi!
―Pois sabe mais, meu pobre amigo. Todos pensam o mesmo,
estão desconfiados, e receiam vêr de novo erguidas
as
fôrcas em Guiães! E corre que tu tens o Principe
D. Miguel escondido em Tormes,
disfarçado em creado. E sabes quem elle é? o
Baptista!
―Isso é sublime! murmurou Jacintho, com uns grandes olhos
abertos.
Na sala, a tia Vicencia nos esperava desconsolada, entre todas as
luzes, que ardiam ainda no silencio e paz do serão
debandado:
―Ora uma cousa assim! Nem quererem ficar para tomar um copinho de
gelea, um calice de vinho do Porto!
―Esteve tudo muito desanimado, tia Vicencia! exclamei desafogando o
meu tedio. Todo esse mulherio emmudeceu; os amigos com um ar
desconfiado...
Jacintho protestou, muito divertido, muito sincero:
Não! pelo contrario. Gostei immenso. Excellente gente! E
tão simples... Todas estas raparigas me pareceram optimas. E
tão frescas,
tão alegres! Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem
que não sou
miguelista.
Então contamos á tia Vicencia a prodigiosa
[335]historia de D.
Miguel escondido em Tormes... Ella ria! Que cousa! E mau seria...
―Mas o Snr. Jacintho, não é?
―Eu, minha senhora, sou socialista...
Acudi, explicando á tia Vicencia, que socialista era ser
pelos pobres. A doce senhora considerava esse partido o melhor, o
verdadeiro:
―O meu Affonso, que Deus haja, era liberal... Meu pae, tambem e
até amigo do Duque da Terceira...
Mas um rude trovão rolou, atroou a noite negra:―e uma
batega d'agoa cantou nos vidros, e nas pedras da varanda.
―Santa Barbara! gritou a tia Vicencia! Ai aquella pobre gente!...
Até estou com cuidado... As Rojões, que
vão na
victoria!
E correu para o quarto, na sua pressa de accender as duas velas
costumadas no oratorio, ainda antes de ir guardar as pratas, e resar o
terço, com a Gertrudes.
XIV
Ao outro dia, depois d'almoço, eu e Jacintho montamos a
cavallo para um grande passeio até á
Flôr da Malva, a
saber de meu tio Adrião, e do seu furunculo. E sentia uma
curiosidade interessada, e até
inquieta, de testemunhar a impressão que daria ao meu
Principe aquella
nossa prima Joanninha, que era o orgulho da nossa casa. Já
n'essa
manhã, andando todos no jardim a escolher uma bella rosa
chá para a
botoeira do meu Principe, a tia Vicencia celebrára com tanto
fervor a
belleza, a graça, a caridade, e a doçura da sua
sobrinha toda-amada, que eu
protestei:
―Oh! tia Vicencia, olhe que esses elogios todos competem apenas
á Virgem Maria! A tia Vicencia está a cahir em
peccado de
idolatria! O Jacintho depois vae encontrar uma creatura apenas humana,
e tem um desapontamento tremendo!
E agora, trotando pela facil estrada de Sandofim,
[338]lembrava-me aquella
manhã, no 202, em que Jacintho encontrára o
retrato d'ella no meu quarto, e lhe chamára uma
lavradeirôna. Com
effeito, era grande e forte a Joanninha. Mas a photographia datava do
seu tempo de
viço rustico, quando ella era apenas uma bella forte e
sã planta
da serra. Agora entrava nos vinte e cinco, e já pensava, e
sentia,―e
a alma que n'ella se formára, afinára,
amaciára,
e espiritualisava o seu esplendor rubicundo.
A manhã, com o ceu todo purificado pela trovoada da vespera,
e as terras reverdecidas e lavadas pelos chuviscos ligeiros, offerecia
uma
doçura luminosa, fina, fresca, que tornava doce, como diz o
velho Euripedes ou
o velho Sophocles, mover o corpo, e deixar a alma preguiçar,
sem pressa nem cuidados. A estrada não tinha sombra, mas o
sol
batia
muito de leve, e roçava-nos com uma caricia quasi alada. O
valle
parecia a
Jacintho, que nunca ali passára, uma pintura da Escola
Franceza
do
seculo XVIII, tão graciosamente n'elle ondulavam as terras
verdes, e com
tanta paz e frescura corria o risonho Serpão, e
tão
affaveis
e promettedores de fartura e contentamento alvejavam os casaes nas
verduras tenras! Os nossos cavallos caminhavam n'um passo pensativo,
gosando tambem a paz
da manhã adoravel. E não sei, nunca soube, que
plantasinhas
[339]silvestres
e
escondidas espalhavam um delicado aroma, que eu tantas vezes sentira,
n'aquelle caminho, ao começar o outomno.
―Que delicioso dia! murmurou Jacintho. Este caminho para a
Flôr da Malva é o caminho do ceu... Oh
Zé Fernandes, de
que é este cheirinho tão doce, tão
bom?
Eu sorri, com certo pensamento:
―Não sei... É talvez já o cheiro do
ceu!
Depois, parando o cavallo, apontei com o chicote para o valle:
―Olha, acolá, onde está aquella fila d'olmos, e
ha o riacho, já são terras do tio
Adrião. Tem alli um pomar, que dá
os pêcegos mais deliciosos de Portugal... Hei de pedir
á prima Joanninha que
te mande um cesto d'elles. E o dôce que ella faz com esses
pêcegos, menino, é alguma cousa de celeste. Tambem
lhe hei de pedir que te mande o
dôce.
Elle ria:
―Será explorar de mais a prima Joanninha. E eu (por que?)
recordei e atirei ao meu Principe estes dous versos d'uma ballada
cavalheiresca, composta em Coimbra pelo meu pobre amigo Procopio:
―Manda-lhe um servo querido,
Bem hajas dona formosa!
E que lhe entregue um annel
E com um annel uma rosa.
[340]Jacintho rio
alegremente:
―Zé Fernandes, seria excessivo, só por causa de
meia duzia de pêcegos, e d'um boião de
dôce.
Assim riamos, quando appareceu, á volta da estrada, o longo
muro da quinta dos Vellosos, e depois a capellinha de S.
José de
Sandofim. E immediatamente piquei para o largo, para a taverna do
Tôrto,
por causa d'aquelle vinhinho branco, que sempre, quando por ali a levo,
a minha alma me pede. O meu Principe reprovou, indignado:
―Oh! Zé Fernandes, pois tu, a esta hora, depois
d'almoço, vaes beber vinho branco?
―É um costumesinho antigo... Aqui á taverninha
do Tôrto... um decilitrosinho... A almasinha assim m'o pede.
E paramos; eu gritei pelo Manoel, que appareceu, rebolando a sua grossa
pansa, sobre as pernas tortas, com a infusa verde, e um copo.
―Dous copos, Tôrto amigo. Que aqui este cavalheiro tambem
aprecia.
Depois d'um pallido protesto, o meu Principe tambem quiz, mirou o
limpido e dourado vinho ao sol, provou, e esvasiou o copo, com delicia,
e um estalinho de alto apreço.
―Delicioso vinho!... Hei de querer d'este vinho em Tormes...
É perfeito.
―Hein? Fresquinho, leve, aromatico, alegrador,
[341]todo
alma!... Encha
lá outra vez os copos, amigo Tôrto. Este
cavalheiro aqui
é o Snr. D. Jacintho, o fidalgo de Tormes.
Então, de traz da umbreira da taverna, uma grande voz
bradou, cavamente, solemnemente:
―Bemdito seja o pae dos Pobres!
E um extranho velho, de longos cabellos brancos, barbas brancas, que
lhe comiam a face côr de tijolo, assomou no vão da
porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de lata a
tiracolo, e cravou em
Jacintho dous olhinhos d'um brilho negro, que faiscavam. Era o tio
João
Torrado, o propheta da Serra... Logo lhe estendi a mão, que
elle
apertou, sem despegar de Jacintho os olhos, que se dilatavam mais
negros. Mandei vir
outro copo, apresentei Jacintho, que córára,
embaraçado.
―Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por ahi todo esse bem
á pobreza.
O velho atirou para elle bruscamente o braço, que sahia
cabelludo e quasi negro, d'uma manga muito curta.
―A mão!
E quando Jacintho lh'a deu, depois de arrancar vivamente a luva,
João Torrado longamente lh'a reteve com um sacudir lento e
pensativo, murmurando:
―Mão real, mão de dar, mão que vem de
cima, mão já rara!
[342]
Depois tomou o copo, que lhe offerecia o Tôrto, bebeu com
immensa lentidão, limpou as barbas, deu um geito
á
correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com a ponta do
cajado no chão:
―Pois louvado seja nosso Senhor Jesus Christo, que por aqui me trouxe,
que não o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para elle, mais em confidencia:
―Mas, ó tio João, ouça cá!
Sempre é certo você dizer por ahi, pelos sitios,
que El-Rei D. Sebastião voltára?
O pittoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o
queixo d'espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos
olhar,
como seguindo a percussão dos seus pensamentos:
―Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se
sabe quem vae, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas
não
vê as
almas que estão dentro. Ha corpos d'agora com almas
d'outr'ora.
Corpo é vestido, alma
é pessoa... Na feira da Roqueirinha quem sabe com quantos
reis
antigos se topa, quando se anda aos encontrões entre os
vaqueiros... Em ruim
corpo se esconde bom senhor!
E como elle findára n'um murmurio, eu, atirando um olhar a
Jacintho, e para gosarmos
[343]aquelles
estranhos, pittorescos modos de vidente,
insisti:
―Mas, ó tio João, você realmente, em
sua consciencia, pensa que El-Rei D. Sebastião
não morreu na batalha?
O velho ergueu para mim a face, que se enrugára n'uma
desconfiança:
―Essas cousas são muito antigas. E não calham
bem aqui á porta do Tôrto. O vinho era bom, e V.
S.
a tem pressa, meu menino! A
flôr da Flôr da Malva lá tem o paesinho
doente... Mas o mal já
vae pela serra abaixo com a inchação
ás costas.
Dá gosto vêr quem dá gosto aos tristes.
Por cima de Tormes ha uma estrella clara. E é trotar,
trotar,
que o dia está lindo!
Com a magra mão lançou um gesto para que
seguissemos. E já passavamos o cruzeiro quando o seu brado
ardente, de novo revoou, com solemnidade cava:
―Bemdito seja o Pae dos Pobres.
Direito, no meio da estrada, erguia o cajado como dirigindo as
acclamações d'um povo. E Jacintho pasmava de que
ainda houvesse no reino um Sebastianista.
―Todos o somos ainda em Portugal, Jacintho! Na serra ou na cidade cada
um espera o seu D. Sebastião. Até a loteria da
Misericordia é uma forma do Sebastianismo.
[344]Eu todas as
manhãs, mesmo sem ser de
nevoeiro, espreito, a vêr se chega o meu. Ou antes a minha,
por que eu
espero uma D. Sebastiana... E tu, felizardo?
―Eu? Uma D. Sebastiana? Estou muito velho, Zé Fernandes...
Sou o ultimo Jacintho; Jacintho ponto final... Que casa é
aquella com os
dous torreões?
―A Flôr da Malva.
Jacintho tirou o relogio:
―São tres horas. Gastamos hora e meia... Mas foi um bello
passeio, e instructivo. É lindo este sitio.
Sobre um outeirinho, afastada da estrada por arvoredo, que um muro
cerrava, e dominando, a Flôr da Malva voltava para Oriente e
para o Sol a sua longa fachada com os dous torreões
quadrados,
onde as
janellas, de varanda, eram emolduradas em azulejos. O grande
portão de
ferro, ladeado por dous bancos de pedra, ficava ao fundo do
terreirinho, onde um immenso castanheiro derramava verdura e sombra.
Sentado sobre as fortes
raizes descarnadas da grande arvore, um pequeno esperava segurando um
burro pela arreata.
―Está por ahi o Manoel da Porta?
―Ainda agora subio pela alameda.
―Bem: empurra lá o portão.
E subimos, por uma curta avenida de velhas
[345]arvores,
até
outro terreiro, com um alpendre, uma casa de moços, toda
coberta
d'heras, e
uma casota de cão, d'onde saltou, com um rumor de corrente
arrastada,
um molosso, o Tritão, que eu logo soceguei fazendo-lhe
reconhecer o seu
velho amigo Zé Fernandes. E o Manoel da Porta correu da
fonte,
onde enchia um grande balde, para nos segurar os cavallos.
―Como está o tio Adrião?
Surdo, o excellente Manoel sorrio, deleitado:
―E então vossa excellencia, bem? A Snr.
a D.
Joanninha
ainda agora andava no laranjal com o pequeno da Josepha.
Seguimos por ruasinhas bem areadas, orladas d'alfazema e buxo alto, em
quanto eu contava ao meu Principe que aquelle pequenito da Josepha era
um afilhadinho da prima Joanna, e agora o seu encanto e o seu cuidado
todo.
―Esta minha santa prima, apesar de solteira, tem ahi pela freguezia
uma verdadeira filharada. E não é só
dar-lhes roupas e presentes, e ajudar as mães. Mas
até os lava, e os penteia, e lhes
trata as tosses. Nunca a encontro sem alguma creancita ao collo...
Agora anda na
paixão d'este Josésinho.
Mas quando chegamos ao laranjal, á beira
[346]da larga rua da
quinta que levava ao tanque, debalde procurei, e me embrenhei, e
até
gritei:―Eh, prima Joanninha!...
―Talvez esteja lá para baixo, para o tanque...
Descemos a rua, entre arvores, que a cobriam com as densas ramas
encruzadas. Uma fresca, limpida agoa de rega corria e luzia n'um
caneiro de pedra. Entre os troncos, as roseiras bravas ainda tinham uma
frescura de verão. E o pequeno campo, que se avistava para
além, rebrilhava com doçura, todo amarello e
branco, dos
malmequeres e
botões d'ouro.
O tanque, redondo, fôra esvasiado para se lavar, e agora de
novo o repuxo o ia enchendo d'uma agoa muito clara, ainda baixa, onde
os
peixes vermelhos se agitavam na alegria de recuperarem o seu pequeno
oceano. Sobre um dos bancos de pedra que circumdavam o tanque pousava
um cesto cheio de dhalias cortadas. E um moço, que sobre uma
escada
podava as camelias, vira a Snr.
a D. Joanna seguir para o lado
da
parreira.
Marchamos para a parreira, ainda toda carregada de uva preta. Duas
mulheres, longe, ensaboavam n'um lavadoiro, na sombra de grandes
nogueiras. Gritei:―Eh lá? Vocês viram por ahi a
Snr.
a D. Joanna? Uma das moças
[347]esganiçou a
voz, que se perdeu no vasto
ar luminoso e doce.
―Bem: vamos a casa! Não podemos farejar assim, toda a
tarde.
―É uma bella quinta, murmurava o meu Principe encantado.
―Magnifica! E bem tratada... O tio Adrião tem um feitor
excellente... Não é o teu Melchior. Observa,
aprende, lavrador!
Olha aquelle cebolinho!
Passamos pela horta, uma horta ajardinada, como a sonhára o
meu Principe, com os seus talhões debruados d'alfazema, e
madresilva enroscada nos pilares de pedra, que faziam ruasinhas frescas
toldadas
de parra densa. E démos volta á capella, onde
crescia aos dous lados da porta uma roseira chá, com uma
rosa
unica, muito aberta, e
uma moita de baunilha, onde Jacintho apanhou um raminho para cheirar.
Depois
entramos no terraço em frente da casa, com a sua balaustrada
de
pedra, toda enrodilhada de jasmineiros amarellos. A porta
envidraçada
estava aberta: e subimos pela escadaria de pedra, no immenso silencio
em que toda a Flôr da Malva repousava, até
á
ante-camara, d'altos tectos apainelados, com longos bancos de pau, onde
desmaiavam na sua velha pintura as complicadas armas dos Cerqueiras.
Empurrei a porta
[348]d'uma
outra sala,
que tinha as janellas da varanda abertas, cada uma com a gaiola d'um
canario.
―É curioso!―exclamou Jacintho. Parece o meu Presepio... E
as minhas cadeiras.
E com effeito. Sobre uma commoda antiga, com bronzes antigos, pousava
um presepio semelhante ao da livraria de Jacintho. E as cadeiras de
couro lavrado tinham, como as que elle descobrira no sotão,
umas
armas sob um chapéo de Cardeal.
―Oh senhores! exclamei. Não haverá um creado?
Bati as mãos, fortemente. E o mesmo doce silencio
permaneceu, muito largo, todo luminoso e arejado pelo macio ar da
quinta, apenas cortado pelo saltitar dos canarios nos poleiros das
gaiolas.
―É o Palacio da Bella adormecida no bosque! murmurou
Jacintho, quasi indignado. Dá um berro!
―Não, caramba! Vou lá dentro!
Mas, á porta, que de repente se abrio, appareceu minha prima
Joanninha, córada do passeio e do vivo ar, com um vestido
claro um
pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, n'uma
larga claridade, o
explendor branco da sua pelle, e o louro ondeado dos seus bellos
cabellos,―lindamente risonha, na
[349]surpreza
que alargava os seus largos,
luminosos olhos negros, e trazendo ao collo uma creancinha, gorda e
côr de rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes
laços
azues.
E foi assim que Jacintho, n'essa tarde de Septembro, na Flôr
da Malva, vio aquella com quem casou em Maio, na capellinha d'azulejos,
quando o grande pé de roseira se cobrira todo de rosas.
XV
E agora, entre roseiras que rebentam, e vinhas que se vindimam,
já cinco annos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu
Principe
já
não é o ultimo Jacintho, Jacintho ponto
final―por que
n'aquelle solar que decahira, correm agora, com soberba vida, uma gorda
e vermelha Theresinha, minha afilhada, e um Jacinthinho, senhor muito
da minha amisade. E, pae de familia, principiára a fazer-se
monotono, pela
perfeição da belleza moral, aquelle homem
tão
pittoresco pela
inquietação philosophica, e pelos variados
tormentos da
phantasia insaciada. Quando elle agora, bom
sabedor das cousas da lavoura, percorria comigo a quinta, em solidas
palestras agricolas, prudentes e sem chimeras―eu quasi lamentava esse
outro Jacintho que colhia uma theoria em cada ramo d'arvore, e riscando
o ar com a bengala, planeava queijeiras de cristal e
[352]porcellana, para fabricar
queijinhos que custariam duzentos mil réis cada um!
Tambem a paternidade lhe despertára a responsabilidade.
Jacintho possuia agora um caderno de contas, ainda pequeno, rabiscado a
lapis, com falhas, e papeluchos soltos entremeados, mas onde as suas
despezas, as suas rendas se alinhavam, como duas hostes disciplinadas.
Visitára já as suas propriedades de
Montemór, da
Beira; e concertava,
mobilava as velhas casas d'essas propriedades para que os seus filhos,
mais tarde, crescidos, encontrassem «ninhos
feitos». Mas
onde
eu reconheci que definitivamente um perfeito e ditoso equilibrio se
estabelecera na alma
do meu Principe, foi quando elle, já sabido d'aquelle
primeiro e ardente fanatismo da Simplicidade―entreabrio a porta de
Tormes á
Civilisação. Dous mezes antes de nascer a
Theresinha, uma
tarde, entrou pela avenida
de platanos uma chiante e longa fila de carros, requisitados por toda a
freguesia, e acuculados de caixotes. Eram os famosos caixotes, por
tanto tempo encalhados em Alba de Tormes, e que chegavam, para despejar
a Cidade sobre a Serra. Eu pensei:―Mau! o meu pobre Jacintho teve uma
recahida! Mas os confortos mais complicados, que continha aquella
caixotaria temerosa, foram, com surpreza minha, desviados
[353]para
os
sotãos immensos, para o pó da inutilidade: e o
velho
solar apenas
se regalou com alguns tapetes sobre os seus soalhos, cortinas pelas
janellas desabrigadas, e fundas poltronas, fundos sofás,
para
que os
repousos, por que elle suspirára, fossem mais lentos e
suaves.
Attribui esta moderação a minha prima Joanninha,
que
amava
Tormes na sua nudez rude. Ella jurou que assim o ordenára o
seu
Jacintho. Mas,
decorridas semanas, tremi. Apparecera, vindo de Lisboa, um
contra-mestre, com operarios, e mais caixotes, para installar um
telephone!
―Um telephone, em Tormes, Jacintho?
O meu Principe explicou, com humildade:
―Para casa de meu sogro!... Bem vês.
―Era rasoavel e carinhoso. O telephone porém, subtilmente,
mudamente, estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacintho,
alargando os braços, quasi supplicante:
―Para casa do medico. Comprehendes...
Era prudente. Mas, certa manhã, em Guiães,
accordei aos berros da tia Vicencia! Um homem chegára,
mysterioso, com outros homens,
trazendo arame, para installar na nossa casa o novo invento. Soceguei a
tia Vicencia, jurando que essa machina nem fazia barulho, nem trazia
doenças, nem attrahia as trovoadas. Mas
[354]corri a Tormes.
Jacintho sorrio, encolhendo os hombros:
―Que queres? Em Guiães está o boticario,
está o carniceiro... E, depois, estás tu!
Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro d'um mez temos
a pobre Joanna a apertar o vestido por meio d'uma machina! Pois
não! o Progresso, que, á
intimação de
Jacintho, subira a Tormes a estabelecer aquella sua maravilha, pensando
talvez que conquistára mais
um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desilludido, e
não
avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra côr de ferro
e de
fuligem.
Então comprehendi que, verdadeiramente, na alma de Jacintho
se
estabelecera o
equilibrio da vida, e com elle a Gran-Ventura, de que tanto tempo elle
fôra o principe sem Principado. E uma tarde, no pomar,
encontrando o nosso velho Grillo, agora reconciliado com a serra, desde
que a serra lhe dera meninos para trazer ás cavalleiras,
observei ao
digno preto, que lia o seu
Figaro, armado de
immensos oculos redondos:
―Pois, Grillo, agora realmente bem podemos dizer que o Snr. D.
Jacintho está firme.
O Grillo arredou os oculos para a testa, e levantando para o ar os
cinco dedos em curva como petalas d'uma tulipa:
[355]
―S. ex.
a brotou!
Profundo sempre o digno preto! Sim! Aquelle resequido galho de Cidade,
plantado na serra, pegára, chupára o humus do
torrão herdado, creára seiva, afundára
raizes,
engrossára de tronco,
atirára ramos, rebentára em flôres,
forte, sereno,
ditoso, benefico, nobre, dando
fructos, derramando sombra. E abrigados pela grande arvore, e por ella
nutridos,
cem casaes em redor a bemdiziam.
XVI
Muitas vezes Jacintho, durante esses annos, fallára com
prazer n'um regresso de dous, tres mezes, ao 202, para mostrar Paris
á
prima Joanninha. E eu seria o companheiro fiel, para archivar os
espantos da minha serrana ante a Cidade! Depois conveio em esperar que
o
Jacinthinho completasse dous annos, para poder jornadear sem
desconforto, e apontando já com o seu dedo para as cousas da
Civilisação. Mas, quando elle, em Outubro, fez
esses dous
annos desejados, a prima Joanninha sentiu uma preguiça
immensa,
quasi aterrada, do comboio, do
estridor da Cidade, do 202, e dos seus esplendores. «Estamos
aqui
tão bem! está um tempo tão
lindo!»
murmurava, deitando os
braços, sempre deslumbrada, ao rijo pescoço do
seu
Jacintho. Elle desistia logo de Paris,
encantado. «Vamos para Abril, quando os castanheiros dos
Campos-Elyseos
[358]estiverem em
flôr!» Mas
em Abril vieram aquelles
cansaços que immobilisavam a prima Joanninha no divan,
ditosa,
risonha, com umas pintas na pelle, e
o roupão mais solto. Por todo um longo anno estava desfeita
a
alegre aventura. Eu andava então soffrendo de
desoccupação. As chuvas de Março
promettiam uma
farta colheita. Uma certa Anna Vaqueira,
córada e bem feita, viuva, que surtia as necessidades do meu
coração, partira com o irmão para o
Brazil, onde
elle dirigia uma venda. Desde o
inverno, sentia tambem no corpo como um começo de ferrugem,
que
o
emperrava, e, certamente, algures, na minha alma, nascera uma pontinha
de bolor. Depois a minha egoa morreu... Parti eu para Paris.
Logo em Hendaya, apenas pisei a doce terra de França, o meu
pensamento, como pombo a um velho pombal, voou ao 202,―talvez por eu
vêr
um enorme cartaz em que uma mulher nua, com flôres
bacchanticas
nas
tranças, se estorcia, segurando n'uma das mãos
uma
garrafa espumante, e
brandindo na outra, para o annunciar ao Mundo, um novo modelo de
saca-rolhas. E oh surpresa! eis que, logo adeante, na
estação
quieta e clara de Saint Jean-de-Luz, um moço esbelto, de
perfeita elegancia, entra
vivamente no meu compartimento, e, depois de me encarar, grita:
[359]
―Eh, Fernandes!
Marizac! O duque de Marizac! Era já o 202... Com que
reconhecimento lhe sacudi a mão fina, por elle me ter
reconhecido! E, atirando
para o canto do vagon um paletó, um masso de jornaes, que o
escudeiro lhe
passára, o bom Marizac exclamava na mesma surpreza alegre:
―E Jacintho?
Contei Tormes, a serra, o seu primeiro amor pela Natureza, o seu outro
grande amor por minha prima, e os dous filhos, que elle trazia
escarranchados no pescoço.
―Ah que canalha! exclamou Marizac com os olhos espetados em mim!
É capaz de ser feliz!
―Espantosamente, loucamente... Qual! não ha adverbios...
―Indecentemente―murmurou Marizac muito serio. Que canalha!
Eu então desejei saber do nosso rancho familiar do 202. Elle
encolheu os hombros, accendendo a cigarette:
―Todo esse mundo circula...
―Madame d'Oriol?
―Continúa.
―Os Trèves? o Ephraim?
―Continuam, todos tres.
Lançou um gesto languido.
[360]―Durante cinco
annos, em Paris, tudo
continúa... As
mulheres com um pouco mais de pós d'arroz, e a pelle um
pouco
mais molle, e
melada. Os homens com um tanto mais de dispepsia. E tudo segue. Tivemos
os Anarchistas. A princeza de Carman abalou com um acrobata do Circo de
Inverno... E―e voilà!
―Dornan?
―Continúa... Não o encontrei mais desde o 202.
Mas vejo ás vezes o nome d'elle, no
Boulevard,
com versos
preciosos, obscenidades muito apuradas, muito subtis.
―E o Psychologo?... Ora, como se chamava elle?...
―Continúa tambem. Sempre com as feminices a tres francos e
cincoenta... Duquezas em camisa, almas núas... Cousas que se
vendem bem!
Mas quando eu, encantado, ia indagar de Todelle, do
Grão-Duque, o comboio entrou na
estação de Biarritz:―e
rapidamente, apanhando o paletot e os jornaes, depois de me apertar a
mão, o
delicioso Marizac saltou pela portinhola, que o seu creado abrira,
gritando:
―Até Paris!... Sempre rue Cambori.
Então, no compartimento solitario, bocejei, com uma estranha
sensação de monotonia, de saciedade, como cercado
já de gentes
[361]muito
vistas, murmurando historias muito sabidas, e cousas muito ditas,
atravez de sorrisos estafados. Dos dous lados do comboio era a longa
planicie monotona, sem variedade, muito miudamente cultivada, muito
miudamente retalhada, d'um verde de rezeda, verde cinzento e apagado,
onde nenhum lampejo, nem tom alegre de flôr, nem acidente do
solo,
desmanchavam a mediocridade discreta e ordeira. Pallidos choupos, em
renques pautados
e finos, bordavam canaesinhos muito direitos e claros. Os casaes, todos
da mesma côr pardacenta, mal se elevavam do solo, mal se
destacavam da verdura desbotada, como encolhidos na sua mediocridade e
cautella. E o ceu, por cima, liso, sem uma nuvem, com um sol
descórado,
parecia um vasto espelho muito lavado a grande agoa, até que
de
todo se
lhe safasse o esmalte e o brilho. Adormeci n'uma doce insipidez.
Com que linda manhã de Maio entrei em Paris! Tão
fresca e fina, e já macia, que, apesar de cansado, mergulhei
com
repugnancia no profundo, sombrio leito do Grand-Hotel, todo fechado de
espessos velludos,
grossos cordões, pesadas borlas, como um palanque de gala.
N'essa
profunda cova de pennas sonhei que em Tormes se construira uma torre
Eiffel e que em volta d'ella as senhoras da Serra,
[362]as
mais respeitaveis, a propria tia Albergaria, dançavam,
núas, agitando no ar
saca-rolhas immensos. Com as commoções d'este
pesadello,
e depois o banho, e o
desemmalar da mala, já se acercavam as duas horas quando
emfim
emergi do grande
portão, pisei, ao cabo de cinco annos, o Boulevard. E
immediatamente me pareceu que todos esses cinco annos eu ali
permanecera á porta do
Grand-Hotel, tão estafadamente conhecido me era aquelle
estridente rolar da cidade, e as
magras arvores, e as grossas taboletas, e os immensos chapeus
emplumados sobre tranças pintadas d'amarello, e as
empertigadas
sobrecasacas com grossas rosetas da legião d'honra, e os
garotos, em voz
rouca e baixa, offerecendo baralhos de cartas obscenas, caixas de
phosphoros obscenas... Santo Deus! pensei, ha que annos eu estou em
Paris! Comprei
então, n'um kiosque, um jornal, a Voz de Paris, para que
elle me contasse, durante o almoço, as novas da Cidade. A
mesa
do
kiosque desapparecia, alastrada de jornaes illustrados:―e em todos se
repetia
a mesma mulher, sempre núa, ou meia despida, ora mostrando
as
costellas magras, de gata faminta, ora voltando para o Leitor duas
tremendas nadegas... Eu outra vez murmurei:―Santo Deus! No
café
da
Paz, o creado livido, e com um resto de pó de arroz
[363]sobre a sua lividez,
aconselhou ao meu appetite, por ser tão tarde, um lingoado
frito e uma
costelleta.
―E que vinho, snr. Conde?
―Chablis, snr. Duque!
Elle sorrio á minha deliciosa pilheria,―e eu abri,
contente, a Voz de Paris. Na primeira columna, atravez d'uma prosa
muito retorcida, toda
em brilhos de joia barata, entrevi uma Princesa núa, e um
Capitão de Dragões, que soluçava.
Saltei a outras
columnas,
onde se contavam feitos de cocottes de nomes sonoros. Na outra pagina
escriptores eloquentes celebravam vinhos digestivos e tonicos. Depois
eram os crimes do costume.―Não ha nada de novo! Puz de
parte a
Voz de
Paris,―e então foi, entre mim e o lingoado, uma lucta
pavorosa.
O miseravel, que se frigira rancorosamente contra mim, não
consentia que eu
descollasse da sua espinha uma febra escassa. Todo elle se ressequira
n'uma sola impenetravel e tostada, onde a faca vergava, impotente e
tremula.
Gritei pelo môço livido, o qual, com faca mais
rija,
fincando no soalho os sapatos de fivella, arrancou emfim
áquelle
malvado duas
tirinhas, finas e curtas como palitos, que engoli juntas, e me
esfomearam. D'uma
garfada findei a costelleta. E paguei quinze francos com um bom luiz
d'ouro. No
trôco, que o
[364]moço
me deu, com a polidez requintada
d'uma civilisação muito diffundida, havia dous
francos falsos. E por aquella
dôce tarde de Maio sahi para tomar no terraço um
café
côr de chapéo côco, que sabia a fava.
Com o charuto acceso contemplei o Boulevard, áquella hora em
toda a pressa e estridor da sua grossa sociabilidade. A densa torrente
dos omnibus, calhambeques, carroças, parelhas de luxo,
rolava
vivamente, como toda uma escura humanidade formigando entre patas e
rodas, n'uma pressa inquieta. Aquelle movimento continuado e rude bem
depressa entonteceu este espirito, por cinco annos affeito á
quietação das serras immutaveis. Tentava
então,
puerilmente, repousar n'alguma
forma immovel, omnibus parado, fiacre que estacára, n'um
brusco
escorregar
da pileca: mas logo algum dorso apressado se encafuava pela portinhola
da tipoia, ou um cacho de figuras escuras trepava sofregamente para o
omnibus:―e,
rapido, recomeçava o rolar retumbante. Immoveis, de certo,
estavam os altos predios hirtos, ribas de pedra e cal, que continham,
disciplinavam, aquella torrente offegante. Mas da rua aos telhados, em
cada varanda, por toda a fachada, eram taboletas encimando taboletas,
que outras taboletas apertavam:―e mais me cançava o
perceber
[365]a tenaz
incessancia do
trabalho latente, a devorante canceira do lucro, arquejante por traz
das frontarias decorosas e mudas. Então,
emquanto fumava o meu charuto, extranhamente se apossaram de mim os
sentimentos que Jacintho outr'ora experimentára no meio da
Natureza, e
que tanto me divertiam. Ali, á porta do café,
entre a
indifferença e a pressa da Cidade, tambem eu senti, como
elle no
campo, a vaga tristeza da minha fragilidade e da minha
solidão.
Bem certamente estava ali
como perdido n'um mundo, que me não era fraternal. Quem me
conhecia? Quem
se interessaria por Zé Fernandes? Se eu sentisse fome, e o
confessasse, ninguem me daria metade do seu pão. Por mais
afflictamente
que a minha face revelasse uma angustia, ninguem na sua pressa pararia
para me consolar. De que me serviriam tambem as excellencias d'alma,
que
só na alma florescem? Se eu fosse um santo, aquella turba
não se
importaria com a minha santidade; e se eu abrisse os braços
e
gritasse,
ali no Boulevard―«ó homens, meus
irmãos!» os homens, mais ferozes que o
lôbo ante o Pobresinho d'Assis, ririam e passariam
indifferentes.
Dous impulsos unicos, correspondendo a duas
funcções
unicas, parecia estarem vivos n'aquella multidão,―o lucro e
o
gôso.
Isolada entre elles, e ao contagio
[366]ambiente
da sua influencia, em breve a minha alma se contrahiria, se tornaria
n'um duro calhau de Egoismo. Do ser que eu trouxera da Serra
só
restaria em pouco tempo esse calhau, e
n'elle, vivos, os dous appetites da Cidade,―encher a bolsa, saciar a
carne! E pouco a pouco as mesmas exagerações de
Jacintho
perante a Natureza me invadiam perante a Cidade. Aquelle Boulevard
reçumava para
mim um bafo mortal, extrahido dos seus milhões de microbios.
De
cada
porta me parecia sahir um ardil para me roubar. Em cada face, avistada
á portinhola d'um fiacre, suspeitava um bandido em manobra.
Todas as mulheres me pareciam caiadas como sepulchros, tendo
só
podridão por dentro. E considerava d'uma melancolia
funambulesca
as
fórmas de toda aquella Multidão, a sua pressa
aspera e
vã, a
affectação das attitudes, as immensas plumas das
chapeletas, as expressões
postiças e falsas, a pompa dos peitos alteados, o dorso
redondo
dos velhos olhando as
imagens obscenas das vitrines. Ah! tudo isto era pueril, quasi comico
da minha parte, mas é o que eu sentia no Boulevard, pensando
na
necessidade de remergulhar na Serra, para que ao seu puro ar se me
despegasse a crosta
da Cidade, e eu resurgisse humano, e Zé-Fernandico!
[367]Então,
para dissipar aquelle
pesadume de solidão,
paguei o café e parti, lentamente, a visitar o 202. Ao
passar na
Magdalena, deante da
estação dos omnibus, pensei:―Que será
feito de
Madame Colombe? E,
oh miseria! pelo meu miseravel ser subiu uma curta e quente baforada de
desejo
bruto por aquella besta suja e magra! Era o charco onde eu me
envenenara, e que me envolvia nas emanações
subtis do seu
veneno. Depois, ao dobrar da rue Royale para a Praça da
Concordia, topei com um robusto e
possante homem, que estacou, ergueu o braço, ergueu o
vozeirão, n'um modo de commando:
―Eh, Fernandes!
O Grão-Duque! O bello Grão-Duque, de
jaquetão alvadio e chapeu tyrolez côr de mel!
Apertei com gratidão reverente a
mão do Principe, que me reconhecera.
―E Jacintho? Em Paris?...
Contei Tormes, a serra, o rejuvenescimento do nosso amigo entre a
Natureza, a minha dôce prima, e os bravos pequenos, que elle
trazia ás cavalleiras. O Grão-Duque encolheu os
hombros,
desolado:
―Oh lá, lá, lá!... Peuh! Casado, na
aldeia, com filharada... Homem perdido! Ora não ha!... E um
rapaz util! que nos divertia, e
tinha gosto! Aquelle jantar côr de rosa foi uma
[368]festa
linda...
Não se fez, não se tornou a fazer nada
tão
brilhante em Paris... E Madame
d'Oriol... Ainda ha dias a vi no Palacio de Gelo... Potavel, mulher
ainda muito potavel... Não é todavia o meu
genero...
Adocicada, leitosa, pommadada, neve á la vanille!... Ora
esse
Jacintho!...
―E Vossa Alteza, em Paris com demora?
O formidavel homem baixou a face, franzida e confidencial:
―Nenhuma. Paris não se aguenta... Está
estragado, positivamente estragado... Nem se come! Agora é o
Ernest, da
Praça Gaillon, o Ernest, que era maitre-d'hotel do Maire...
Já lá comeu?
Um horror. Tudo é o Ernest, agora! Onde se come? No Ernest.
Qual! Ainda esta
manhã lá almocei... Um horror! Uma salada
Chambord...
palhada, indecentemente palhada! Não tem, não tem
a
noção da salada! Paris foi! Theatros, uma
estopada.
Mulheres, hui! Lambidas todas. Não ha nada! Ainda
assim, n'um dos theatritos de Montmartre, na Roulotte, está
uma
revista,
que se vê:
Para cá as
mulheres!―engraçada, bem despida... A
Celestine tem uma cantiga, meia sentimental, meia porca, o
Amor
no
Water-Closet, que diverte, tem topete... Onde
está, Fernandes?
―No Grand-Hotel, meu senhor.
―Que barraca!... E o seu Rei sempre bom?
[369]
Curvei a cabeça:
―Sua Magestade, bem.
―Estimo! Pois, Fernandes, tive prazer... Esse Jacintho é
que me desola! Vá vêr a Revista... Boas pernas, a
Celestine... E
tem graça o tal
Amor no Water-Closet.
Um rijissimo aperto de mão,―e S. Alteza subiu pesadamente
para a victoria, ainda com um aceno amavel, que me penhorou...
Excellente homem, este Grão-Duque! Mais reconciliado com
Paris,
atravessei para os Campos-Elyseos. Em toda a sua nobre e formosa
larguesa, toda verde, com
os castanheiros em flôr, corriam, subindo, descendo,
velocipedes. Parei a contemplar aquella fealdade nova, estes
innumeraveis
espinhaços arqueados, e gambias magras, agitando-se
desesperadamente sobre duas rodas. Velhos gordos, de cachaço
escarlate, pedalavam,
gordamente. Galfarros esguios, de tibias descarnadas, fugiam n'uma
linha esfusiada.
E as mulheres, muito pintadas, de bolero curto,
calções bufantes, giravam, mais rapidamente
ainda, no
prazer equivoco da carreira, escarranchadas em hastes de ferro. E a
cada instante outras medonhas machinas passavam, victorias e phaetons a
vapor, com uma
complicação de tubos e caldeiras, torneiras e
chaminés, rolando n'uma
trepidação estridente e pesada, espalhando
[370]um grosso fedor de
petroleo. Segui para
o 202, pensando no que diria um grego do tempo de Phidias, se visse
esta nova belleza e graça do caminhar humano!...
No 202, o porteiro, o velho Vian, quando me reconheceu, mostrou uma
alegria enternecedora. Não se fartou de saber do casamento
de Jacintho, e d'aquelles queridos meninos. E era para elle uma
felicidade que eu apparecesse, justamente quando tudo se
andára
limpando para
a entrada da primavera. Quando penetrei na amada casa senti mais
vivamente a minha solidão. Não restava em toda
ella nem
um dos
costumados aspectos que fizessem reviver a velha camaradagem com o meu
Principe. Logo na ante-camara grandes lonas cobriam as tapessarias
heroicas, e egual lona
parda escondia os estofos das cadeiras e dos muros, e as largas
estantes d'ebano da Bibliotheca, onde os trinta mil volumes, nobremente
enfileirados como Doutores n'um Concilio, pareciam separados do mundo
por aquelle panno que sobre elles descera depois de finda a comedia da
sua força e da sua auctoridade. No gabinete de Jacintho, de
sobre a mesa d'escripta, desapparecera aquella confusão de
instrumentosinhos, de que eu perdera já a
memória: e
só a
Mechanica sumptuosa, por sobre peanhas e pedestaes,
[371]recentemente
espanejada, reluzia, com as suas engrenagens, tubos, rodas, rigidezes
de metaes, n'uma frieza inerte, na inactividade
definitiva das cousas desusadas, como já dispostas n'um
Museu, para exemplificar a instrumentação caduca
d'um
mundo
passado. Tentei mover o telephone, que se não moveu; a mola
da
electricidade
não accendeu nenhum lume: todas as forças
universaes
tinham abandonado o
serviço do 202, como servos despedidos. E então,
passeando atravez das
salas, realmente me pareceu que percorria um museu d'antiguidades; e
que mais tarde outros homens, com uma comprehensão mais pura
e
exacta da
Vida e da Felicidade, percorreriam como eu, longas salas, atulhadas com
os instrumentos da Super-Civilisação, e, como eu,
encolheriam desdenhosamente os hombros ante a grande Illusão
que
findára, agora para sempre inutil, arrumada como um lixo
historico, guardada debaixo de lona.
Quando sahi do 202 tomei um fiacre, subi ao Bosque de Bolonha. E apenas
rolára momentos pela avenida das Acacias, no silencio
decoroso, unicamente cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas
vagarosas esmagando a areia, comecei a reconhecer as velhas figuras,
sempre com o
mesmo sorriso, o mesmo pó d'arroz; as mesmas palpebras
amortecidas,
[372]os
mesmos olhos farejantes, a mesma immobilidade de cêra! O
romancista da
Couraça passou n'uma
victoria, fixou em mim o monoculo defumado, mas permaneceu
indifferente. Os bandós negros de Madame
Verghane, tapando-lhe as orelhas, pareciam ainda mais furiosamente
negros entre a
harmonia de todo o branco que a vestia, chapéo, plumas,
flôres, rendas e corpete, onde o seu peito immenso se
empolava como uma onda. No
passeio, sob as Acacias, espapado em duas cadeiras, o director do
Boulevard mamava o resto do seu charuto. E n'um
grande landeau, Madame de
Trèves continuava o seu sorriso de ha cinco annos, com duas
pregasinhas mais molles aos cantos dos labios seccos.
Abalei para o Grand-Hotel, bocejando,―como outr'ora Jacintho. E findei
o meu dia de Paris, no Theatro das Variedades, estonteado com uma
comedia muito fina, muito acclamada, toda faiscante do mais vivo
parisianismo, em que todo o enredo se enrodilhava á volta
d'uma Cama, onde alternadamente se espojavam mulheres em camisa,
sujeitos gordos em
ceroulas, um coronel com papas de linhaça nas nadegas,
cosinheiras de meias de sêda bordadas, e ainda mais gente,
ruidosa e
saltitante, a esfusiar de cio e de pilheria. Tomei um chá
melancolico no
Julien, no meio de
[373]um
aspero e
lugubre namoro de prostitutas, fariscando a preza. Em duas d'ellas, de
pelle oleosa e cobreada, olhos obliquos, cabellos duros e negros como
clinas, senti o Oriente, a sua
provocação felina... Interroguei o creado, um
medonho
ser, d'uma obesidade balofa e livida, d'eunuco. O monstro explicou
n'uma voz roufenha e surda:
―Mulheres de Madagascar... Foram importadas quando a França
occupou a ilha!
Arrastei então por Paris dias d'immenso tedio. Ao longo do
Boulevard revi nas vitrines todo o luxo, que já me
enfartára havia cinco annos, sem uma graça nova,
uma
curta frescura de
invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro,
folheava
centenas de volumes amarellos, onde, de cada pagina que ao acaso abria,
se exhalava om cheiro môrno
d'alcova e de pós d'arroz, entre linhas trabalhadas com
effeminado
arrebique, como rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante,
encontrava, ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o
mesmo
môlho, de côres e sabores de pomada, que
já de
manhã, n'outro
restaurante, espelhado e dourejado, me enjoára no peixe e
nos
legumes. Paguei por
grossos preços garrafas do nosso adstringente e rustico
vinho de
Torres, ennobrecido com o titulo de Château isto,
Château
aquillo, e
pó postiço no
[374]gargalo.
Á noite, nos theatros, encontrava a Cama, a costumada cama,
como centro e unico fim da vida, attrahindo, mais fortemente que o
monturo attrahe os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas,
frementes d'erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da
Planicie me levou
a procurar melhor aragem d'espirito nas alturas da Collina, em
Montmartre; e ahi, no meio d'uma multidão elegante de
Senhoras, de Duquezas, de Generaes, de todo o alto pessoal da Cidade,
eu recebia, do
alto do palco, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de
goso as orelhas cabelludas de gordos banqueiros, e arfar com delicia os
corpetes de Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das
nobres damas. E recolhia enjoado com tanto relento d'Alcova, vagamente
dispeptico com os môlhos de pomada do jantar, e sobre tudo
descontente comigo, por me não divertir, não
comprehender
a
Cidade, e errar atravez d'ella e da sua
Civilisação
Superior, com a
reserva ridicula d'um Censor, d'um Catão austero. Oh
senhores!―pensava,―pois eu
não me divertirei nesta deliciosa Cidade? Entrará
comigo
o bolor da
velhice?
Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual,
mergulhei no meu doce Bairro Latino, evoquei, deante de certos
[375]cafés,
a memoria da minha
Nini; e, como outr'ora, preguiçosamente,
subi as escadas da Sorbonne. N'um amphitheatro, onde sentira um grosso
susurro,
um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para
alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das
instituições da Cidade Antiga. Mas, mal eu
entrára, o seu dizer elegante e
limpido foi suffocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso
de
troça bestial, que sahia da mocidade apinhada nos bancos, a
mocidade das Escolas, Primavera sagrada, em que eu fôra
flôr
murcha. O Professor parou, espalhando em redor um olhar frio, e
remexendo as suas notas. Quando o grosso grunhido se moderou em susurro
desconfiado, elle recomeçou com alta serenidade. Todas as
suas
ideias eram
frias e substanciaes, expressas n'uma lingoa pura e forte; mas,
immediatamente,
rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de
gallo, por entre magras mãos, que se estendiam levantadas
para estrangular as ideias. Ao meu lado um velho, encolhido na alta
gola
d'um macfrelane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia,
pingando endefluxado. Perguntei ao velho:
―Que querem elles? É embirração com o
professor... é politica?
[376]
O velho abanou a cabeça, espirrando:
―Não... É sempre assim, agora, em todos os
cursos... Não querem ideias... Creio que queriam
cançonetas. É o amor
da porcaria e da troça.
Então, indignado, berrei:
―Silencio, brutos!
E eis que um abortosinho de rapaz, amarellado e sebento, de longas
melenas, umas enormes lunetas rebrilhantes, se arrebita, me fita, e me
berra:
―
Sale Maure!
Ergui o meu grosso punho serrano,―e o desgraçado, n'uma
confusão de melenas, com sangue por toda a face, alluio,
como um montão
de trapos molles, ganindo desesperadamente, em quanto o
furacão de
uivos e cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o Professor, que
cruzára os braços, esperando, com uma serenidade
simples.
Desde esse momento decidi abandonar a fastidiosa Cidade; e o unico dia
alegre e divertido que n'ella passei foi o derradeiro, comprando para
os meus queridinhos de Tormes brinquedos consideraveis, tremendamente
complicados pela Civilisação,―vapores de
aço e cobre, providos de caldeiras para viajar em tanques;
leões de pelle veridica
rugindo pavorosamente, bonecas vestidas
[377]pela
Laferrière, com
phonographo no ventre...
Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha
janella, sobre o Boulevard, as minhas despedidas á Cidade:
―Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vicio e na
poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens
de bom,
que é o teu genio, elegante e claro, lá o
receberei na Serra pelo
correio. Adeusinho!
Na tarde do seguinte Domingo, debruçado da janella do
comboio, que vagarosamente deslisava pela borda do rio lento, n'um
silencio todo feito d'azul e sol, avistei, na plata-forma da quieta
estação da minha aldeia, os Senhores de Tormes,
com a
minha afilhada Thereza, muito vermelha, arregalando os seus soberbos
olhos, e o bravo Jacinthinho,
que empunhava uma bandeira branca. O alvoroço ditoso com que
abracei e beijei aquella tribu bem amada conviria perfeitamente a quem
voltasse vivo d'uma guerra distante, na Tartaria. Na alegria de
recuperar a Serra, até beijoquei o chefe Pimentinha, que a
estalar
d'obesidade se açodava gritando ao carregador todo o cuidado
com
as minhas
malas.
Jacintho, magnifico, de grande chapéo serrano e jaqueta, de
novo me abraçou:
―E esse Paris?
[378]
―Medonho!
Abri depois os braços para o bravo Jacintinho.
―Então para que é essa bandeira, meu cavalleiro?
―É a bandeira do Castello! declarou elle, com uma bella
seriedade nos seus grandes olhos.
A mãe ria. Desde essa manhã, logo que soubera da
chegada do Ti-Zé, appareceu de bandeira, feita pelo Grillo,
e não a
largára mais; com ella almoçára, com
ella descera de Tormes!
―Bravo! E, prima Joanninha, olhe que está magnifica! Eu,
tambem, venho d'aquellas pelles meladas de Paris... Mas acho-a
triumphal! E o tio Adrião, e a tia Vicencia?
―Tudo optimo! gritou Jacintho. A serra, Deos louvado, prospera. E
agora, para cima! Tu hoje ficas em Tormes. Para contar da
Civilisação.
No largo por traz da estação, debaixo dos
eucalyptos, que revi com gosto, esperavam os tres cavallos, e dous
bellos burros brancos, um com
cadeirinha para a Thereza, outro com um cesto de verga, para metter
dentro o heroico Jacinthinho, um e outro servidos á
estribeira por um creado. Eu ajudára a prima Joanninha a
montar, quando o
carregador
[379]appareceu
com um masso de jornaes e papeis, que eu esquecera na carruagem. Era
uma papelada, de que me surtira na
Estação d'Orleans, toda recheada de mulheres
nuas, de
historietas sujas, de parisianismo, d'erotismo. Jacintho, que as
reconhecera, gritou rindo:
―Deita isso fóra!
E eu atirei, para um montão de lixo, ao canto do Pateo,
aquelle putrido rebotalho da Civilisação. E
montei. Mas
ao dobrar
para o caminho empinado da serra, ainda me voltei, para gritar adeus ao
Pimenta, de quem me esquecera. O digno chefe, debruçado
sobre o
monturo,
apanhava, sacudia, recolhia com amor aquellas bellas estampas, que
chegavam de Paris, contavam as delicias de Paris, derramavam atravez do
mundo a seducção de Paris.
Em fila começamos a subir para a Serra. A tarde
adoçava o seu esplendor d'estio. Uma aragem trazia, como
offertados, perfumes das
flôres silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce
acolhimento, as suas folhas vivas e relusentes. Toda a passarinhada
cantava, n'um alvoroço de alegria e de louvor. As agoas
correntes,
saltantes, lusidias, despediam um brilho mais vivo, n'uma pressa mais
animada. Vidraças distantes de casas
[380]amaveis,
flammejavam com um
fulgor d'ouro. A serra toda se offertava, na sua belleza eterna e
verdadeira. E, sempre adiante da nossa fila, por entre a verdura,
fluctuava no ar a bandeira branca, que o Jacinthinho não
largava, de dentro do seu
cesto, com a haste bem segura na mão. Era
a
bandeira do
Castello, affirmára elle.
E na verdade me parecia que, por aquelles caminhos, atravez da natureza
campestre e mansa,―o meu Principe, atrigueirado nas soalheiras e nos
ventos da serra, a minha prima Joanninha, tão doce e risonha
mãe, os dois primeiros representantes da sua
abençoada
tribu, e
eu―, tão longe de amarguradas illusões e de
falsas
delicias, trilhando um
solo eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente
de
nós, serenamente e seguramente subiamos―para o Castello da
Gran-Ventura!
Fim
ADVERTENCIA
Desde a pagina 241, até o final, as provas d'este livro
não foram revistas pelo auctor, arrebatado pela morte antes
de
haver dado a esta parte da sua escripta aquella ultima
demão, em
que
habitualmente elle punha a diligencia mais perseverante e mais
admiravelmente lucida.
Aquelle dos seus amigos e companheiro de letras, a quem foi confiado o
trabalho delicado e piedoso de tocar no manuscripto posthumo de
Eça de Queiroz, ao concluir o desempenho de tal
missão,
beija com o
mais enternecido e saudoso respeito a mão, para todo sempre
immobilisada, que traçou estas paginas encantadoras; e faz
votos
por que a
revisão de que se incumbiu não deslustre muito
grosseiramente a immortal
aureola com que ficará resplandecendo na litteratura
portugueza
este
livro, em que o espirito do grande escriptor parece exhalar-se da vida
n'um terno suspiro de doçura, de paz, e de puro amor
á
terra
da sua patria.
24 de abril de 1901.
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