Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós

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Title: Cartas de Inglaterra

Author: José Maria Eça de Queirós

Release Date: May 29, 2008 [EBook #25641]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Cartas de Inglaterra



Eça de Queirós



Cartas de Inglaterra





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Porto
LIVRARIA CHARDRON
de Lello & Irmão—Editores
1905





Obras de EÇA de QUEIROZ

O crime do padre amaro. Quarta edição inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1 grosso volume1$200
Os Maias. Segunda edição. 2 grossos volumes 2$000
A cidade e as Serras. 800
O Mandarim. Quarta edição. 1 volume 500
O primo Basilio. Quarta edição. 1 grosso volume 1$000
A Reliquia. Terceira edição. 1 grosso volume 1$000
Contos. 1 volume 600
As minas de salomão. 1 volume 600
Correspondencia de Fradique Mendes. 1 volume 600
Revista de Portugal. 4 grossos volumes 12$000
A Illustre Casa de Ramires. 1 volume 1$000
Prosas Barbaras. 1 volume 600
 
No prélo:
 
Echos de Paris
S. Christovam (inedito)




Porto—IMPRENSA MODERNA





INDICE

 Pag.
Afghanistan e Irlanda1
Ácerca de livros15
O inverno em Londres33
O Natal45
Litteratura de Natal55
Israelismo63
A Irlanda e a Liga Agraria77
Lord Beaconsfield95
Os inglezes no Egypto125
O Brasil e Portugal207
A festa das creanças223
Uma partida feita ao Times231

Nota do transcritor: no livro impresso o índice encontra-se no fim da obra!





[1]

I
Afghanistan e Irlanda

Os inglezes estão experimentando, no seu atribulado imperio da India, a verdade d'esse humoristico logar-commum do seculo XVIII: «A Historia é uma velhota que se repete sem cessar.»

O Fado ou a Providencia, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu os episodios da campanha do Afghanistan em 1847, está fazendo simplesmente uma copia servil, revelando assim uma imaginação exhausta.

Em 1847 os inglezes, «por uma razão d'Estado, uma necessidade de fronteiras scientificas, a segurança do imperio, uma barreira ao dominio russo da Asia...» e outras coisas vagas que os politicos da India rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes—invadem o Afghanistan, e ahi vão aniquilando [2] tribus seculares, desmantelando villas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; collocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornaes têm telegraphado a victoria, o exercito, acampado á beira dos arroios e nos vergeis de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é exactamente em 1880.

No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes energicos, Messias indigenas, vão percorrendo o territorio, e com grandes nomes de Patria e de Religião, prégam a guerra santa: as tribus reunem-se, as familias feudaes correm com os seus troços de cavallaria, principes rivaes juntam-se no odio hereditario contra o estrangeiro, o homem vermelho, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a entrada da India... E quando por alli apparecer, emfim, o grosso do exercito inglez, á volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito secco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquella massa barbara rola-lhe em cima e aniquila-o.

Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então [3] os restos debandados do exercito refugiam-se n'alguma das cidades da fronteira, que ora é Ghasnat ora Candahar: os afghans correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientaes: o general sitiado, que n'essas guerras asiaticas póde sempre communicar, telegrapha para o viso-rei da India, reclamando com furor reforços, chá e assucar! (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou ha dias este grito de gulodice britannica; o inglez, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da India, gastando milhões de libras, como quem gasta agua, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas collinas de assucar, e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavallos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa... Foi assim em 1847, assim é em 1880.

Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras columnas de tropa india, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta milhas por hora; d'ahi começa uma marcha assoladora, com cincoenta mil camelos de bagagens, telegraphos, machinas hydraulicas, e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornaes. Uma manhã avista-se Candahar ou Ghasnat;—e n'um momento, é aniquilado, disperso no pó da planicie, o pobre [4] exercito afghan com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneraveis colubrinas do modelo das que outr'ora fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Candahar está livre! Hurrah!—Faz-se immediatamente d'isto uma canção patriotica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularisada n'uma estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com vehemencia, no primeiro plano, entre cavallos empinados e granadeiros bellos como Apollos, que expiram em attitude nobre! Foi assim em 1847; ha-de ser assim em 1880.

No emtanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a patria ou morriam pela fronteira scientifica, lá ficam, pasto de corvos—o que, não é, no Afghanistan, uma respeitavel imagem de rhetorica: ahi, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as immundicies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.

E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriotica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa n'uma pagina de chronica...

Consoladora philosophia das guerras!

No emtanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande victoria do Afghanistan»—com a certeza [5] de ter de recomeçar d'aqui a dez annos ou quinze annos; porque nem póde conquistar e annexar um vasto reino, que é grande como a França, nem póde consentir, collados á sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanaticos, batalhadores e hostis. A «politica» por tanto, é debilital-os periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades d'um grande imperio. Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vacca para o leite e dois pés d'alface para as merendas de Verão...

Outra historia melancholica é a da Irlanda. Quem não conhece as queixas seculares da Irlanda, da Verde Erin, terra de bardos e terra de santos, onde uma plebe conquistada, resto nobre de raça celtica, esmagada por um feudalismo agrario, vivendo em buracos como os servos gothicos, vae desesperadamente disputando á urze, á rocha, ao pantano, magras tiras de terra, onde cultiva, em lagrimas a batata? Todo o mundo sabe isto—e, desgraçadamente, esta Irlanda de poema e de novella é, em parte, verdadeira: além dos poucos districtos onde a agricultura é rica como em qualquer dos uberrimos condados inglezes, além de Cork ou Belfast, que têm uma industria forte—a Irlanda permanece o paiz da miseria, bem representada n'essa estampa romantica em que ella está, em andrajos, á beira de um charco, com o filhinho nos [6]braços morrendo-lhe da falta de leite, e o cão ao lado, tão magro como ella, ladrando em vão por soccorro...

Os males da Irlanda, muito antigos, muito complexos, provêm, sobretudo, do systema semi-feudal da propriedade.

O povo irlandez é numeroso, exageradamente prolifico (nem a emigração, nem a morte, nem as epidemias, alliviam esta ilha muito cheia) e vive n'uma terra pobre, de cultura estreita, apenas no seu terço trabalhada: os proprietarios, lords inglezes ou escocezes, sempre ausentes das terras, não admittindo a despeza d'um schelling para as melhorar, estão em Paris, estão em Londres, comendo pecegos em janeiro, e jogando pelos clubs o whist a libra o tento: os seus procuradores e agentes, creaturas vorazes, sem ligação com o solo nem com a raça, forçados a remetter incessantemente dinheiro a SS. SS., interessados em conservar a procuradoria, cáem sobre o rendeiro, levantam-lhe a renda, forçam-n'o a vendas desastrosas, enlaçam-n'o na uzura, tributam-n'o feudalmente, apertam-n'o com desespero como a um limão meio secco, até que elle verta n'um gemido o ultimo penny. Se o miseravel este anno, fatigando o torrão, sustentando-se de hervas seccas, economisando o lume quando ha seis palmos de neve, consegue arrancar de si a somma [7] que S. S., o Lord, reclama para offerecer uma esmeralda á loura Fanny ou á pallida Clementine, para o anno lá está enleado na divida, sem meios de comprar a semente, com uma terra exhausta a seus pés...

Então o procurador, de lei em punho, vem, corre, penhora-o, vende-lhe o catre, expulsa-o do casebre, atira-lhe mulher, creancinhas e avós entrevados para as pedras do caminho... E ahi vae mais um bando de desgraçados engrossar o lamentavel proletariado que povôa a «verde ilha dos bardos». São milhares, são milhões! Esta população, com o ventre vazio, os pés nús sobre a geada, volta-se então para a Inglaterra, a mãe Inglaterra, que tem a Lei, que tem a Força, que tem a Responsabilidade: a Inglaterra, commovida na sua fibra christã, volta-se para os seus economistas, os seus politicos: estes individuos pousam as suas vastas frontes nas suas vastas mãos, e arrancam das concavidades da sua sabedoria pharisaica esta resposta, a tenebrosa resposta da meia edade ás reclamações do soffrimento humano:

—Paciencia! o remedio está no ceu...

A Inglaterra, valendo-se capciosamente do clero catholico da Irlanda, e da religiosidade da plebe, para a manter na resignação da miseria, acenando-lhe com as promessas côr de ouro da bemaventurança—é um salutar espectaculo!

[8]Sejamos, porém, justos: a Inglaterra manda tambem, aos milhões de esfomeados, farinha e dois ou tres schellings: e o Punch faz-lhes a honra de lhes dedicar pilherias.

De tudo isto que resulta? Que o irlandez, vendo a fome no seu lar, a Inglaterra occupada com o dr. Tanner, o Punch muito divertido, e o ceu muito longe—faz uma trouxa dos seus andrajos, vae á villa mais proxima, apresenta-se ao comité dos Fenians ou á secção de Mollie Maguire e diz simplesmente:—Aqui estou!...

Estas duas associações secretas são terriveis e completam-se uma pela outra. Os Fenians, que estiveram um momento desorganizados, mas que têm hoje a prosperidade de uma instituição publica, são uma seita politica, com o fim claro de conquistar a independencia da Irlanda: o seu meio é uma futura insurreição, batalhas á luz do dia, um esforço heroico de raça que sacode o estrangeiro.

É evidente, portanto, que a Inglaterra não tem nada a temer d'esta associação: uma esquadra no canal de S. Jorge, dez mil homens desembarcados, e os Fenians serão, no estylo da canção, como a herva dos campos depois que passou o ceifador, um estendal de cousas sem vida. Mas não é assim com Mollie Maguire; esta constitue puramente uma conspiração: os seus estatutos, os seus fins, a sua organização, [9] os seus chefes, tudo está envolvido n'um mysterio, que é o terror na Irlanda; só são claros os seus crimes. Ha um proprietario duro que levantou a renda? Uma noite, ou elle ou o seu procurador apparecem á beira de um caminho, com duas balas na cabeça. Quem foi? Foi Mollie Maguire: foi ninguem, foi a Miseria, foi a Irlanda. Ha um senhorio, um agente, que fez uma penhora? Á meia noite, a sua casa começa a arder, e é n'um momento uma ruina fumegante. Quem foi? Mollie Maguire. Houve um burguez especulador que comprou o casebre de um proprietario penhorado? No outro dia lá está no fundo de uma lagôa, com um pedregulho ao pescoço. Quem foi, coitado? Mollie Maguire. Todos os dias, n'estes ultimos mezes, são assim, dois, tres d'estes crimes—que têm em Inglaterra o nome de agrarios. Os tribunaes, a policia, já se não fatigam em devassas e em autos: para quê? Mollie Maguire é intangivel, Mollie Maguire é impessoal.

E se houvesse um magistrado tão desgostoso da vida que quizesse descobrir d'onde viera a bala, o pedregulho ou o fogo—teria certamente, horas depois, o que tanto parecia desejar: um punhal atravez do peito. São verdadeiramente os processos do Nihilismo militante: nem falta a esta seita aquella vaga exaltação mystica que complica o Nihilismo. Se Mollie (Mollie é o diminutivo de Maria) não é [10] uma divindade, é pelo menos uma degeneração fetichista da divindade: é a tenebrosa padroeira das desforras da plebe, aquella em quem os desgraçados abandonados de Deus, do Deus official, do Deus da Missa, encontram soccorro, amizade, força—uma sorte de encarnação feminina do diabo do Sabbath, confidente dos servos e dos feiticeiros da meia-noite.

A estas duas associações deve juntar-se uma terceira, legal essa, fallando alto nas praças, com jornaes, com taboleta, vivendo sob a protecção da Constituição, respeitada da policia, e que se chama a Liga da Terra. O seu fim é promover, por meio de meetings e representações, uma vasta agitação, um impulsivo movimento da opinião, que force o parlamento inglez a reformar o systema agrario. Mas é realmente uma associação legal? São os seus fins tão honestamente moderados, tão estreitamente constitucionaes como se diz? Todo o mundo duvida. Na Irlanda, sempre que dois homens se reunem, conspiram: quando se sentem quatro, apedrejam logo a policia:—que será então quando reconhecerem que são duzentos mil? Além d'isso, as reclamações d'esta associação são de um vago singular: nada de pratico, nada de realisavel: apenas os velhos gritos sentimentaes da aspiração humanitaria. E, ao mesmo tempo, os homens, que a dirigem, são espiritos positivos e experimentados. Ha aqui uma contradicção assustadora. [11]Sente-se que os chefes d'este movimento, sabendo bem que da Inglaterra nada têm a esperar, estão simplesmente, sob as apparencias da legalidade, organisando a insurreição. Formular um programma pratico para o parlamento votar, seria, na opinião d'elles, ocioso e pueril: as declamações verbosas em que se falle muito de legalidade, ordem, parlamentarismo bastam—para illudir a policia... E não é duvidoso que, n'um certo momento, Fenians, Mollie Maguire e Liga da Terra formarão um só movimento—o da revolta desesperada.

Este era o estado da Irlanda ha dois mezes, quando se deu o caso inesperado do bill de compensação. Este projecto de lei apresentado pelo ministro Gladstone (parte por um sentimento liberal de justiça, parte para agradecer os fortes serviços dos irlandezes nas ultimas eleições) não trazia certamente um remate aos males da Irlanda; mas, coarctando os abusos dos senhores, difficultando a arbitrariedade das «expulsões», modificando a legislação barbara das penhoras, alliviava o trabalhador irlandez do ferreo calcanhar feudal que o esmaga. O bill passou entre os applausos da camara dos communs: mas escuso de acrescentar que a camara dos lords, essa augusta e gothica assemblêa de senhores semi-feudaes, o regeitou com horror, como obra execravel do liberalismo satanico!

[12]Veem d'ahi o resultado: os agitadores da Irlanda, os seus prophetas, os seus chefes apossaram-se com enthusiasmo d'esta regeição da camara dos lords—e utilisaram-n'a tão habilmente, como Antonio utilisou a tunica ensanguentada de Cesar. Foram-n'a mostrando á plebe indignada, por campos e aldeias, gritando bem alto: «Aqui está o que fizeram os lords, os vossos amos, os vossos exploradores! A primeira proposta justa, em bem da Irlanda, que se lhes apresenta, repellem-na! Querem manter-vos na servidão, na fome, no opprobrio das velhas edades, no estado da raça vendida! Ás armas!»

E desde então a Irlanda prepara-se ardentemente para a insurreição: apesar dos cruzeiros que vigiam a costa, todos os dias ha desembarques de armas; o dinheiro, os voluntarios affluem da America; pelos campos vêm-se grupos de duzentos, trezentos homens, de espingardas ao hombro, fazendo exercicios como regimentos em vesperas de campanha; ainda que seja agora a epoca das colheitas, a população não está nos campos, está nos meetings, nos clubs; e os tribunos, os agitadores, prodigalizam-se sem repouso. Não falta, decerto, a estes homens nem coragem, nem aquella eloquencia pathetica que faz passar nas multidões o arrepio sagrado. Um d'elles, Redathd, exclamava ha dias:

—Dizem-nos a cada momento: sêde justos, pagae [13] ao lord, pagae ao senhorio! E citam-nos a palavra divina d'aquelle que disse: Dae a Cesar o que é de Cesar! Houve só um homem, Brutus, que deu a Cesar o que a Cesar era devido, um punhal atravez do coração!

Esta brutalidade tem grandeza. Agora imagine-se isto lançado a uma multidão opprimida, com os gestos theatraes d'esta raça violenta, de noite, n'um d'estes sinistros descampados da Irlanda, que são todos rocha e urze, ao clarão d'archotes, dando aquella intermittencia de treva e brilho que é como a alma mesma da Irlanda—e veja-se o effeito!

Em Inglaterra, mesmo, os optimistas consideram a insurreição quasi inevitavel para os frios do outomno. E o honesto John Bull prepara-se: já o ministro do interior está em Dublin, e é eminente a declaração da lei marcial... N'este ponto, radicaes e conservadores são unanimes: se a Irlanda se levanta, que se esmague a Irlanda! Sómente John Bull declara que o seu coração ha-de chorar emquanto a sua mão castigar... Excellente pae!

O jornal o Standard, o veneravel Standard, tinha ha dias uma phrase adoravel. «Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se do que deve a si e á Inglaterra»—exclamava o solemne Standard,—«é doloroso pensar que no proximo inverno, para manter a integridade do imperio, a santidade da [14] lei e a inviolabilidade da propriedade, nós teremos de ir, com o coração negro de dôr, mas a espada firme na mão, levar á Irlanda, á ilha irmã, á ilha bem amada, uma necessaria exterminação.»

Exterminação é muito: e quero crêr, que está alli, para rematar com uma nota grave, uma nota d'orgão, a harmonia do periodo. Mas o sentimento é curioso e raro: e seria um espectaculo maravilhoso vêr, no proximo inverno, John Bull percorrendo a Irlanda, cheio de ferocidade e afogado em ternura, com os olhos a escorrer de lagrimas e a sua bayoneta a pingar de sangue... —Ainda as fataes necessidades de um grande imperio! Volto ao meu desejo: um quintalejo, uma vacca, dois pés d'alface... E um cachimbo—o cachimbo da paz!

[15]

II
Ácerca de livros

Outubro chegou, e com este mez, em que as folhas cáem, começam aqui a apparecer os livros, folhas ás vezes tão ephemeras como as das arvores, e não tendo como ellas o encanto do verde, do murmurio e da sombra.

Estamos, com effeito, em plena Book-Season, a estação dos livros.

Estes dous mezes, setembro e outubro (e elles merecem-no porque como côr, luz, repouso, são os mais simpathicos do anno) têm accumulado em si as mais interessantes seasons, as estações mais fecundas da vida ingleza.

A London-Season, a celebre estação de Londres, quando a Aristocracia, maior e menor, os dez mil de cima, como se dizia antigamente, o folhado, como [16] se diz agora, recolhe dos parques e palacios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres—passa-se em abril, junho e julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e ôca estação de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de cotillon. Emquanto que as outras!...

Olhem-me para estas sabias, uteis, viris, solemnes seasons, que abundam n'estes dourados mezes de setembro e outubro. Isto sim! Aqui temos, por exemplo, a Congress-Season, a estação dos congressos.

Que espectaculo! Toda a verde superficie da Inglaterra está então, de norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação. Ha-os de metaphysicos e ha-os de cosinheiros.

Aqui, duzentos individuos carrancudos e descontentes elaboram uma nova ordem social; além, uma multidão de sabios, acocorados, semanas inteiras, em torno de um objecto escuro, não pódem chegar á conclusão se é um tijolo vilmente recente ou uma laje da camara nupcial da rainha Ginevra; e adiante cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina definitiva da engorda do leitão—esse amor!

Os congressos mais notaveis este anno fôram—o de medicina em Londres, a que assistiram mil e tresentos congressistas medicos e cirurgiões dos dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometteu [17]á humanidade, para d'aqui a annos, a suppressão das epidemias pelas vaccinas; o da British Association, a grande Sociedade das Sciencias (congresso annual celebrado este anno em York) em que o presidente, sir John Lubbock, esse amavel sabio que tem passado a existencia a estudar as civilizações inferiores dos insectos, laboriosas democracias de formigas, deploraveis oligarchias de abelhas—occupou-se d'esta vez, dando um balanço á sciencia durante os ultimos cincoenta annos, a mostrar algumas das estupendas habilidades d'esse outro ephemero insecto, o Homem: e emfim o congresso annual da Egreja, celebrado em Newcastle, composto de bispos, dignitarios ecclesiasticos, theologos, doutores em divindade, este largo clero anglicano, o mais douto e litterario da Europa. N'este, entre outros assumptos discutiu-se a Influencia da Arte na vida e no pensar religioso: mas, quanto a mim, o resultado mais nitido foi o revelar incidentalmente que a frequentação dos templos, em Inglaterra, diminue de um terço todos os dez annos, ao passo que o espirito de religiosidade cresce nas massas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia mais desprendido das fórmas caducas e pereciveis das religiões.

N'este momento ha outros congressos—o dos Metallurgistas, o das Sciencias Sociaes, o dos Telegraphistas, o Archeologico, o dos Gravadores, o [18] dos... emfim, centenares. Até o dos Browninguistas. Não sabem o que são os Browninguistas? Uma vasta associação, tendo por fim estudar, commentar, interpretar, venerar, propagar, illustrar, divinisar as obras do poeta Browning. Isto, mesmo n'este paiz de arrebatados enthusiasmos intellectuais, me parece um pouco forte. Browning é sem duvida, com Shelley, Shakspeare e Milton, um dos quatro principes da poesia ingleza: mas tem o inconveniente de estar vivo. Elle proprio assiste, materialmente, com o seu paletot e o seu guarda chuva, ao congresso de que é objecto espiritual e assumpto: e fatalmente, pelo effeito mesmo da sua presença, a admiração litteraria tende a tornar-se idolatria pessoal, e os shake hands que elle distribue começam naturalmente a ser mais apreciados no congresso que os poemas que elle escreveu. Por isso mesmo que o divinisam, o amesquinham: não é então o grande poeta de Inglaterra, é o idolo particular dos Browninguistas, deixa assim de ser um espirito fallando a espiritos—para ser apenas um manipanso aterrorizando supersticiosos.

Mas, continuando com as estações, temos ainda a Yachting-Season, a estação nautica, das regatas, das viagens em yacht. Hoje em Inglaterra ter um yacht é, como entre nós montar carruagens, o primeiro dever social do rico ou do enriquecido, uma das fórmas mais triviaes do conforto luxuoso. Um yacht não é só [19]um frágil e airoso barco de cincoenta toneladas e vela branca; póde ser tambem um negro e poderoso vapor de duas mil toneladas e sessenta homens de tripulação. N'este ultimo caso, em logar de bordejar gentilmente em redor das flôres e das relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar n'essas prodigiosas paisagens marinhas do alto Norte da Escossia, vae dar a volta ao mundo, carregado de biblias para os pequenos patagonios e de champagne e d'amor para as lindas missionarias, vestidas de marinheiras. A vida de yacht tem os seus costumes especiaes, a sua etiqueta, a sua phraseologia, a sua moral propria, e sobretudo a sua litteratura. A litteratura de yacht é vasta—William Black, o autor das Azas Brancas, do Nascer do Sol, da Princeza de Thude, o seu romancista official: um paisagista maravilhoso, de resto, tendo na sua penna todo o vigor do pincel d'um Jules Breton.

Temos igualmente n'este mez a Shooting-Season, a estação da caça ao tiro, que abre no 1.º de setembro com uma solemnidade tal, e no meio de um interesse publico tão intenso, tão fremente—que me dá sempre ideia do que devia ter sido nas vesperas da Grande Revolução a abertura dos Estados Gerais. Peço perdão d'esta abominavel comparação—mas a carne é fraca, e eu considero esta estação sublime. É n'ella que se caça o grouse, e é durante [20] ella que se come o grouse. Não sabem o que é o grouse? É um passaro do tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençôe!) nos moors, ou descampados da Escossia... Agora deixem-me repousar um momento, e ficar aqui, n'um extasi manso, pensando no grouse, com as mãos cruzadas sobre o estomago, o olho enternecido, lambendo o labio... Não imaginem que eu sou um guloso. Mas nunca se deve fallar nas coisas boas sem veneração. Lord Beaconsfield, esse mestre do bom gosto, deu-nos o exemplo quando, tendo mencionado n'um dos seus livros o ortolan, esse outro delicioso passaro, acrescentou—que o peitinho gordo do ortolan é mais delicioso que o seio da mulher, o seu aroma mais perturbador que os lilazes, e o sabor da sua febra melhor que o sabor da verdade. Póde-se dizer o mesmo do grouse.

Continuando, temos a Burglary-Season, a estação dos assaltos e roubos ás casas. Esta começa tambem em setembro, quando a gente rica sai de Londres e deixa os seus palacetes, ou fechados, ou ao cuidado de um velho e somnolento guarda-portão. Os salteadores de Londres, corpo social tão bem organisado como a propria policia, procede então systematicamente, por quadrilhas disciplinadas, usando os mais perfeitos meios scientificos no arrombamento e no saque d'essas propriedades abarrotadas de cousas ricas...

[21]Temos a Lecture-Season, ou estação das conferencias. O seu nome explica-a e seria longo detalhar-lhe a organisação. Basta dizer que n'esta estação não ha talvez um bairro em Londres (quasi podia dizer uma rua), nem uma aldeia no resto do paiz, em que se não veja, cada noite, um sujeito, com um copo d'agua, dissertando sobre um assumpto, deante d'uma audiencia compacta, attenta, interessada e que toma notas. Os assumptos são tudo—desde a ideia de Deus até á melhor maneira de fabricar graxa. E os conferentes são todo o mundo—desde o professor Huxley até um qualquer cavalheiro, o senhor Fulano de Tal, que sóbe á plataforma a contar as suas impressões de viagem ás ilhas Fidji, ou as aptidões curiosas que observou no seu cão...

Ha ainda outras estações que basta enunciar: a Hunting-Season, a estação da caça á raposa (isto é todo um mundo); a Cricket-Season, a estação em que se joga o cricket,—e em que se vêm d'estes edificantes espectaculos: doze cavalheiros, vindos do fundo da Australia, outros doze partindo dos altos da Escossia, e encontrando-se em Londres a jogar ao desafio uma tremenda partida que dura tres dias, na presença arrebatada de um povo em delirio!

Temos tambem a Angling-Season, a estação da pesca á linha, instituição nobilissima a que a humanidade deve o salmão e a truta. É o sport favorito [22] da alta burguezia culta, da magistratura, dos homens de sapiencia, d'aquela parte da velha aristocracia sobre que mais pesam as responsabilidades do Estado. Todo este mundo, de solemne respeitabilidade e de alto ceremonial—pesca á linha. Talvez por isso, de todos os sports inglezes, a pesca á linha é um dos que têm produzido uma litteratura mais consideravel—tão consideravel que a sua bibliografia, a simples enumeração dos seus tratados, occupa um livro de duzentas paginas! Ahi observo com respeito a noticia de um ponderoso estudo sobre a Pesca á linha entre os Assyrios...

Só esta semana a litteratura da pesca á linha nos deu já dois livros, segundo as listas: A carteira de um pescador á linha, Pela beira dos rios.

Temos ainda a Traveling-Season, a estação das viagens, quando o famoso touriste inglez faz a sua apparição no continente. N'esta epoca (setembro e outubro) todo o inglez que se respeita (ou que, não podendo em sua consciencia respeitar-se, pretende ao menos que o seu visinho o respeite) prepara umas dez ou doze malas e parte para os paizes do sol, do vinho e da alegria. Os anjos (se o não sonharam, como diz João de Deus) devem assistir então, do seu terraço azul, a um espectaculo bem divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto de Dover—e d'ahi successivamente partirem longos formigueiros de touriste, [23] riscando de linhas escuras o continente, indo alastrar os valles do Rheno, negrejando pela neve dos Alpes acima, serpenteando pelos vergeis da Andaluzia, atulhando as cidades da Italia, inundando a França! Tudo isto são inglezes. Tudo isto traz um Guia do Viajante debaixo do braço. Tudo isto toma notas. Isto ás vezes viaja com a esposa, a cunhada, uma amiga da cunhada, uma conhecida d'esta amiga, sete filhos, seis creados, dez cães, e outros cães conhecidos d'estes cães; e isto paga por tudo isto sem resmungar! Não: não digo bem, resmungando sempre. Esta viagem de prazer passa-a quasi sempre o inglez a praguejar (mentalmente—porque nem a Biblia nem a respeitabilidade lhe permitem praguejar alto).

A verdade é que o inglez não se diverte no continente; não comprehende as linguas; estranha as comidas; tudo o que é estrangeiro, maneiras, toilettes, modos de pensar, o choca; desconfia que o querem roubar; tem a vaga crença de que os lençóes nas camas d'hotel nunca são limpos; o vêr os theatros abertos ao domingo e a multidão divertindo-se amargura a sua alma christã e puritana; não ousa abrir um livro estrangeiro porque suspeita que ha dentro cousas obscenas; se o seu Guia lhe affirma que na cathedral de tal ha seis columnas e se elle encontra só cinco, fica infeliz toda uma semana e furioso [24] com o paiz que percorre, como um homem a quem roubaram uma columna; e se perde uma bengala, se não chega a horas ao comboio, fecha-se no hotel um dia inteiro a compôr uma carta para o Times, em que accusa os paises continentaes de se acharem inteiramente n'um estado selvagem e atolados n'uma putrida desmoralisação. Emfim o inglez em viagem, é um ser desgraçado. É evidente que eu não alludo aqui á numerosa gente de luxo, de gosto, de litteratura, de arte: fallo da vasta massa burgueza e commercial. Mas mesmo esta encontra uma compensação a todos os seus trabalhos de touriste quando, ao recolher a Inglaterra, conta aos seus amigos como esteve aqui e além, e trepou ao Monte Branco, e jantou n'uma table-d'-hote em Roma e, por Jupiter! fez uma sensação dos diabos, elle e as meninas!...

Que mais estações temos ainda? A Speech-season, a estação dos discursos, quando, nas ferias do parlamento, todos os homens publicos se espalham pelo paiz discursando, perante enormes meetings, sobre os negocios publicos. É uma das feições mais curiosas da vida politica em Inglaterra...

Ha outras muitas estações em setembro e outubro, mas não me lembram agora. E emfim, para não ser injusto, devo mencionar tambem o Outomno.

[25] 

De todas estas, para mim, naturalmente, a mais interessante é a Book-Season, a estação dos livros.

Isto não quer dizer que fóra d'esta estação (outubro a março) se não publiquem livros em Inglaterra—longe d'isso, Santo Deus! Como não quer dizer que fóra da London-Season se não dance, ou fóra da Travelling-Season se não viaje. Significa simplesmente que as grandes casas editoras de Londres e d'Edimburgo reservam, para as lançar n'esta epocha as suas grandes novidades. Um livro de Darwin, um estudo de Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance de Georges Meredith serão evidentemente guardados para a estação. De resto, durante todo o anno não s'interrompe, não cessa essa publicidade phenomenal, essa vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se, fazendo pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo, uma outra crosta de papel impresso em inglez.

Não sei se é possivel calcular o numero de volumes publicados annualmente em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por dezenas de milhares. Aqui tenho eu deante de mim, no numero de ontem do Spectator, a lista dos livros lançados esta semana: NOVENTA E TRES OBRAS! E isto é apenas a lista do Spectator. Apenas o que se chama [26] aqui Litteratura Geral. Não se contam as reimpressões; nem as edições dos classicos, em todos os formatos, desde o in-folio, que só um Hercules póde erguer, até ao volume miniatura, cujo typo reclama microscopio, e em todos os preços desde a edição que custa 50 libras, até á que custa 50 réis: não se contam as traducções de livros estrangeiros, sobretudo as litteraturas da antiguidade: não se conta, emfim, essa incessante producção das Universidades, essa outra levada de gregos e latinos, de commentarios, de glossarios, de in-folios, que lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon.

Ha n'esta litteratura geral uma especie de que o inglez não se farta—a litteratura de viagens. Já não fallo nos romances: isso não constitue hoje uma producção litteraria, é uma fabricação industrial.

Na vida domestica ingleza, a novela tornou-se um objecto de primeira necessidade como a flanella ou as fazendas de algodão; e, portanto, toda uma população de romancistas se emprega em manufacturar este artigo, por grosso, e tão depressa quanto a penna póde escrever, arremessando para o mercado as paginas mal seccas no ancioso conflicto da concorrencia.

Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é tambem consideravel, e de resto bem explicavel n'uma raça expansiva e peregrinante, com esquadras [27] em todos os mares, colonias em todos os continentes, feitorias em todas as praias, missionarios entre todos os barbaros, e no fundo d'alma o sonho eterno, o sonho amado de refazer o Imperio Romano. Isto produziu um outro typo de industrial das lettras—o prosador viajante.

Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: o homem que visitava paizes longinquos, se achava em aventuras pittorescas, á volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a penna e ia revivendo esses dias n'uma agradavel rememoração de impressões e paisagens. Hoje não. Hoje emprehende-se a viagem unicamente para se escrever o livro. Abre-se o mappa, escolhe-se um ponto do Universo bem selvagem, bem exotico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um diccionario. E toda a questão está (como a concorrencia é grande) em saber qual é o recanto da terra sobre que ainda se não publicou livro! Ou, quando o paiz é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda alguma aldeola, algum afastado riacho sobre que se possam produzir trezentas paginas de prosa...

Quem hoje encontrar em algum intrincado ponto do Globo um sujeito de capacete de cortiça, lapis na mão, binoculo a tiracollo, não pense que é um explorador, um missionario, um sabio colligindo floras [28]raras—é um prosador inglez preparando o seu volume.

Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens publicados em Londres n'estas duas ultimas semanas.

É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os titulos, sómente, da lista de dous jornaes de critica: o Atheneum e a Academy. Note-se que estes livros são quasi sempre bem estudados: dão o traço e a linha que pinta, a paysagem com a sua côr e luz, a cidade com o seu movimento e feições; são graphicos e são criticos; têm a geographia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver com o detalhe caracteristico, o povo visitado, na sua vida domestica, a sua religião, a sua agricultura, o seu sport, os seus vicios, a sua arte se a tem. Calcule-se, pois, a importancia d'esta litteratura, que se torna assim um inquerito sagaz, paciente, correcto, feito ao Universo inteiro.

Aqui está, com os titulos traduzidos, o que se publicou n'estes quinze dias: A minha jornada a MedinaEntre os filhos de HanNas aguas salgadasLonge, nos PampasSanctuarios de PiemonteO novo JapãoUma visita á AbyssiniaVida no oeste da IndiaPelo Mahakam acima, e pelo Barita abaixoA cavallo pela Asia MenorScenas de CeylãoAtravez de cidades e prados[29] No meu BungalóAs terras dos MatabelesFugindo para o sulTerras do sol da meia-noitePeregrinações na PatagoniaO Soudan egypcioTerra dos MaggiyresAtravez da SiberiaNotas do mundo do OesteCaminhos da PalestinaNorsk, Lapp e Finn (onde será isto Santo Deus?!)—Guerras, peregrinações e ondas (que titulo, Deus piedoso!)—A linda AthenasA peninsula do Mar BrancoHomens e casos da IndiaA bordo do «Rapoza»Sport na Crimêa e CaucasoNove annos de caçadas na AfricaDiario de uma preguiçosa na SiciliaA leste do Jordão...

Ainda ha outros, ainda ha muitos—e em quinze dias!

Seria curioso dar parallelamente a lista de poemas, livros de poesias, odes, balladas, tragedias, annunciados ou já publicados na primeira quinzena da estação; mas não tenho paciencia em revolver todo esse lyrismo. Ha uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóes.

Não menos espessas, nem menos compactas são as listas dos livros de Theologia, Controversia, Exegese, etc.,—exhalando de si uma melancholia de cemiterio. Em metaphysica ha o costumado sortimento—macisso e vago, como diria Herbert Spencer. [30] Em historia, biographia, critica, as listas bibliographicas vêm riquissimas... Emfim, ao que parece, é uma formidavel e grandiosa estação de livros. Aos romances, nem alludo: montões, montanhas—e monturos!

Uma pastora meio-selvagem das Ardennes, que nunca vira outro espectaculo mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia trazida das suas serranias a Pariz, quando no boulevard passava, com a tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzella fez-se branca como a cêra, e só poude murmurar n'uma beatitude suprema:

—Jesus! tanto homem!

Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridiculo d'esta pastora, e balbuciando, com a bocca aberta, como se chegasse tambem das Ardennes:

—Jesus! tanto livro!

Mas não é este grito, como o da pastora, natural?

O beduino do deserto d'Oeste, que, passando a Serrania Lybica, avista pela primeira vez, immenso, lento, enchendo um valle, o rio Nilo, exclama espantado:

—Allah! tanta agua!

A agua é a sua preoccupação: todas as tristezas das areias que habita vêm da falta da agua: mais [31] que ninguem sente as maravilhas que a agua produz; e no seu grito ha uma timida reprehensão a Allah! «Tanta agua aqui, e tão pouca lá d'onde eu venho!...»

Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor astuto. [32]

[33]

III
O INVERNO EM LONDRES

Eis ahi o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe ouço fóra, na rua, sob a nevoa tristonha d'esse fim d'outubro, a voz dolente e vaga: não é o velho semi-deus de attributos mythologicos, com a barba em flocos de neve sobre o manto branco de neve, soprando nos dedos, e o classico feixe de lenha a tiracollo: é um rapagão enfarruscado, de casquete e chicote em punho, que vae conduzindo uma carroça negra com um forte percheron aos varaes, pelo macadam já endurecido da geada, e soltando de porta em porta, o seu pregão melancholico: Coals! coals! (carvão! carvão!)

Estão, pois, findos os dias purpureados do lindo outomno inglez! Nada iguala o encanto suavizador e meigo dos meados d'outubro nestes condados do [34] Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas pittorescas margens do Severn, ou ainda ao longo do Avon, riba que a memoria de Shakspeare torna quasi sagrada, ou pelas collinas amaveis de Surrey, é o mais belo, o mais util repouso que póde ter o espirito sobresaltado, cançado dos livros, ou do duro movimento da vida.

Tem-se aqui alguma coisa d'aquella paz etherea, que os poetas pagãos sonhavam nas perspectivas ineffaveis dos Elysios: sómente a natureza particular do Norte, as linhas da architectura saxonia, o arranjo das culturas, dão a feição romantica e elegiaca que falta á paysagem latina.

Caminha-se n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento quasi magoado: o verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado e adormecido sob as grandes ramagens das arvores seculares e aristocraticas, solemnes, isoladas, immoveis n'um recolhimento religioso, leva a alma insensivelmente para alguma cousa de muito alto e de muito puro: ha um silencio de uma extraordinaria limpidez, como o que deve haver por sobre as nuvens, um silencio que não existe na paysagem dos climas quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte parece fazer um vago rumorido, um silencio que pousa no espirito com a influencia de uma caricia. E a cada momento são fundos encantadores [35]de paysagem, de um vaporisado azul, com alguma torre d'Abbadia coberta de heras, que surge d'entre robles, ou uma rica avenida de parques, onde se entreveem vestidos claros correndo sobre as relvas, ou a historica architectura de um castello, de bandeira feudal na torre, que de repente apparece n'uma elevação, com os seus terraços de marmore escuro, os grandes prados onde pastam ou repousam os animaes de luxo, os faiscantes meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da profundidade dos arvoredos...

D'aqui a dias, porém, por collina e valle, só haverá a triste nevoa humida que dura mezes, ou a neve redemoinhando ao vento...

Esta monotonia, que começa escurecendo os campos desde novembro, vae causar este anno uma innovação excellente nos costumes sociaes da Inglaterra. Vae haver, de dezembro a maio, uma estação d'inverno em Londres.

Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de maio até aos primeiros dias quentes de agosto. O resto do anno, Londres é a cahida Palmyra ou a tenebrosa planicie do deserto da Petrêa. Ficam lá, é verdade, entre tres a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade subalterna, feita de barro villão, sem valor social em Inglaterra: é a humanidade que não tem castellos, nem parques [36] de tres legoas, nem o seu nome no Livro d'Ouro, nem yachts de luxo para bordejar nas costas da Escossia; é a humanidade que não tem nas arterias o famoso sangue normando, esse sangue invejado, mais precioso que o de Christo, cantado por todos os poetas da côrte, e que foi importado pelos brutamontes cobertos de ferro, e pelludos como féras, que acompanhavam a estas ilhas Guilherme da Normandia; é emfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem-amado, chamava a canalha, e que o grande sacerdote da Bella Helena, o pobre Offenbac, designava, com tanto criterio, pelo nome de vil multidão:—é o trabalhador, o artifice, o artista, o professor, o philosopho, o operario, o romancista, tudo o que pensa, cria e produz.

É esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade superior, os dez mil de cima, como aqui tão pittorescamente se diz, partem para os seus castellos, as suas villas á beira mar, ou os seus yachts.—Londres, apenas habitado pela turba abjecta, torna-se sobre a face da terra, como a lamentavel Cacilhas. Nenhum gentleman que se respeite e queira manter o seu bom nome social ousaria confessar que esteve em Londres em janeiro: correria o risco de ser tomado por um tendeiro, ou, peior, por um philosopho, um poeta, um d'esses seres rastejantes, vis como o lixo, sem castello e sem [37] matilha de cães, que nenhuma Lady quereria ter no seu «rol de visitas».

Se um gentleman, tendo negócios instantes em Londres, é forçado a vir a este deserto de plebeus, guarda um incognito severo; não chegará talvez a pôr barbas postiças; mas só se arrisca pelas ruas no fundo escuro de um cupé com os stores descidos, e o paletot rebuçando-lhe a face. Todavia uma aventura tão poderosa poucos a ousam!

Pois bem, tudo isto se vae reformar! E este anno será moda passeiar em Piccadilly, ou florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno janeiro, na espessura dos nevoeiros. Esta revolução consideravel foi, como todas as fecundas revoluções, tramada, prégada, popularisada pelas mulheres.

Havia longos annos que estes anjos soffriam com impaciencia a melancholia da vida do campo, durante o longo inverno saxonio. Ainda, nos primeiros tempos, depois de deixar as glorias de Londres e os esplendores da season, a existencia era toleravel. Havia as regatas elegantes de Cowes; ia-se estar uma semana na ilha de Wight; depois vinham as festas da abertura da caça; seguia-se a epocha dos yachts, as viagens ás costas da Noruega, ás Hebbidas, ás praias elegantes da Normandia; depois, quando a côrte está na Escossia, vinha a caça do veado, os bailes de gellies das montanhas... Emfim, vivia-se. [38]

Mas, com a chegada de dezembro, da neve, uma formidavel lei social, a fashion, obrigava os dez mil de cima a recolherem-se aos seus castellos, á solidão do campo. E ahi começava para as damas o tedio memoravel!

Quando se não tem um chateau e parque como os de Inglaterra, póde parecer um sonho de paraizo o viver n'essas faustosas residencias, entre maravilhas d'arte, accumuladas por gerações, com mobilias de duzentos contos, um serviço de sessenta criados, vinte cavallos na cocheira e um parque de trez legoas, um parque de romance, para passeiar sobre a neve dura quando o ceu brilha claro. Mas a desgraçada dama, desde o seu primeiro dente acostumada a tantos explendores, já lhes não encontra encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres, de loja em loja, é-lhe cem vezes mais doce.

Depois, a vida do castello é de um vasio pardo e tristonho. Os homens, esses, de manhã, teem a caça, os galopes furiosos, devorando prados, saltando sebes atraz de uma raposa espavorida, ao grito barbaro de hally-hó! Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca, tem o grog forte no fumoir. Mas as desgraçadas damas? Todas bebem grog—mas raras são as que caçam. O dia é-lhes lugubre. Uma burgueza, em Inglaterra, tem sempre uma occupação, mesmo nas existencias ricas: borda, pinta em porcellana, [39] faz camisas para os pequenos Patagonios, ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve as suas memorias ou corresponde-se com um Theologo sobre pontos difficeis de doutrina. Mas um dama das dez mil não faz nada; os seus grandes talentos, a toilette, a graça de receber, a intriga politica, o brilho da conversação, o chic esthetico, cousas em que prima, não lhe servem no isolamento relativo do castello, sob as torrentes da chuva. O seu palco natural é o salão de Londres. Alli no campo, nas longas galerias onde pendem as bandeiras que os seus antepassados tomaram em Azincourt ou Poitiers, ou, se os avósinhos nunca invadiram a França, as bandeiras compradas no antiquario da esquina, Mylady boceja; ou estendida n'um sofá, na sua robe-de-chambre de brocado branco de Genova, com uma novella cahida no regaço, olha os flocos de neve empoando os grandes carvalhos do parque...

Depois vem a noite. É o peior. Os homens que fizeram talvez cinco legoas de galope atraz das rapozas, ou que se estiveram adestrando em jogos athleticos, têm somno. De gardenia na casaca e perola negra na camisa, estendidos para o fundo do sofá, derreados, meio adormentados pelo Nocturno de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo da sala, são tão inuteis para a flirtation, o espirito, a intriga, o amor, como se fossem empalhados. [39]

Debalde as pobres damas fizeram uma toilette de duzentas libras: debalde resplandecem, ás mil luzes de cêra, os seus hombros de deusas. De nada valle. O gentleman anceia por deixar a sala, ir reconfortar-se com o seu brandy and soda, estirar aquelles membros que a raposa cançou, em lençóes bem perfumados e bem bassinés, e ressonar forte.

Esta situação era intoleravel.

E os homens mesmo soffriam. Galopar n'um cavallo de preço sobre a terra dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manhã de brisa fria—tem encanto. Mas póde-se isso comparar á delicia de ir tagarelar para o club, ter todas as noites trez ou quatro bailes, fazer phrases sobre a questão do Oriente, e ceiar com Miss Fanny, n'um quente boudoir de veludo, emquanto fóra a plebe patinha na lama de Londres?! Não, não se póde comparar.

E por isso veio o momento psychologico, como diz esse illustre homem de prosa, o snr. De Bismarck, em que ladies e lords concordaram que o inverno no campo era bom para os lobos; e que para pares de Inglaterra, Londres era preferivel. E ahi está como se vae ter esta cousa inesperada na vida ingleza—o inverno em Londres.

E, todavia, Deus sabe que elle não é agradavel, esse inverno de Londres! De manhã, ao acordar, tem-se deante da janella uma sombra opaca, espessa, parda, [41] arripiadora e sinistra: é necessario fazer a barba, com o gaz flammejando; almoça-se com todas as velas do candelabro accesas, e a carruagem que nos conduz é precedida de um archote. Ao meio dia esta decoração de inverno muda; a sombra perde o tom pardo e, por gradações odiosas, ganha um amarello de óca e começa a exalar um vapor fetido. Respira-se mal, a roupa toma um pegajoso humido sobre a pelle, os edificios que nos cercam apparecem com as linhas vagas e chimericas das cidades malditas do Apocalypse, e o estrondo de Londres, este rude, tremendo estrepito, que deve lá em cima incommodar a corte do ceu, adquire uma tonalidade surda e roncante como um fragor n'um subterraneo.

Depois, á noite, outra mudança: toda esta sombra, este nevoeiro grosso, molle gorduroso, desfaz-se em chuva... Em chuva, digo eu? Em lama, em lama mal liquida, que escorre, pinga, vem babada de um ceu negro.

O gaz parece côr de sangue; como todo o mundo, para combater esta nevoa gelante e mortal, bebe forte e bebe seguido, ha nas ruas um vago vapor de alcool, que passa nos halitos: isto excita, irrita, impelle a turba ao vicio. O ruido intoleravel das ruas, a pressa da multidão violenta, o rude flammejar das vitrinas dão uma acceleração brutal ao sangue, uma vibração quasi dolorosa aos nervos; pensa-se [42] com intensidade, caminha-se com impeto, deseja-se com furor; a besta humana inflamma-se: quer-se alguma coisa de forte e de animal, a lucta, o excesso, a gula, o abrasado do cognac, a paixão. Londres n'uma noite de inverno, exhala violencia e crime. E póde-se affirmar que em cada uma das tipoias, que, aos milhares e aos milhares, passam como flechas, n'um relampejar rubro de lanternas, vae um cidadão ou uma cidadã commettendo ou preparando-se para commetter, com excepção da preguiça, um dos sete peccados mortaes.

De uma coisa se póde ter a certeza: é que não ha de faltar, aos que vão fazer o seu inverno a Londres, assumpto de cavaco. Além dos livros que se annunciam, dos escandalos que não hão-de faltar, das modas que sempre se inventam, a politica, só por si, é todo um ramalhete; revolta certa na Irlanda; processo por alta traição dos chefes da Liga da Terra, deputados da Irlanda; nova guerra no Afghanistan, onde Cabul se insurreccionou; toda a Africa do Sul em rebellião; complicações sinistras do lado do Oriente; desintelligencias estridentes entre os radicaes no poder... Emfim, um encanto.

Era em circumstancias identicas que o famoso Granville, o homem das Memorias, olhando n'um começo de primavera para todos os lados do horizonte politico e social, e não vendo (em 1830) senão [43]presagios negros de revolta, guerra, crises e perigos para a patria, dizia, banhado em jubilo, quasi em extasi:

—Meu Deus, que deliciosas noites se vão passar no Club! [44]

[45]

IV
O NATAL

O Natal, a grande festa domestica da Inglaterra, foi este anno triste—d'essa tristeza particular que offerece, por um dia de calma ardente, a praça deserta de uma villa pobre, ou d'essa melancholia que infundem umas poucas de cadeiras vazias em torno de um fogão apagado, n'uma sala a que se não voltará mais...

O que nos estragou o Natal, não fôram decerto as preoccupações politicas, apesar da sua negrura de borrasca. Nem a rebellião do Transvaal em que os Boeres debutaram por exterminar o 94 de linha, um dos mais experimentados e gloriosos regimentos da Inglaterra e que ameaça ensanguentar toda a Africa do Sul n'uma guerra de raças; nem a situação da Irlanda, que já não é governada pela Inglaterra, [46] mas pelo comité revolucionario da Liga Agraria—seriam inquietações sufficientes para tirar o sabor tradicional ao plum-pudding do Natal. As desgraças publicas nunca impedem que os cidadãos jantem com appetite: e miserias da patria, emquanto não são tangiveis e se não apresentam sob a fórma flammejante de obuzes rebentando n'uma cidade sitiada, não tirarão jámais o somno ao patriota.

Não; o que estragou o Natal foi simplesmente a falta de neve. Um Natal como este que passamos, com um sol de uma pallidez de convalescente, deslizando timidamente sobre uma immensa peça de seda azul desbotada, um Natal sem neve, um Natal sem casacos de pelles, parece tão insipido e tão desconsolado como seria em Portugal a noite de S. João, noite de fogueiras e descantes, se houvesse no chão tres palmos de neve e cahisse por cima o granizo até de madrugada! Um desapontamento nacional!

Para comprehender bem o encanto da neve d'este famoso Natal inglez, basta examinar alguma das pinturas, gravuras ou oleografias que o têm popularizado.

O assumpto não varia na paysagem repetida: é sempre a mesma entrada d'um parque, de apparencia feudal, por vesperas do Natal, antes da meia-noite; o ceu pesado de neve suspensa parece uma gaze suja: e a perder de vista tudo está coberto da [47] neve cahida, uma neve branca, fôfa, alta, que faz nos campos um grande silencio. Junto á grade do parque, uma mulher e duas creanças, atabafadas nos seus farrapos, com lampeões na mão, vão cantando as lôas; e ao fundo, entre as ramagens despidas, ergue-se o massiço castello, com as janellas flammejando, abrasadas da grande luz de dentro e da alegria que as habita.

E toda a poesia do Natal está justamente n'essas janellas resplandecendo na noite nevada.

Felizes aquelles para quem essas portas difficeis se abrem. Logo ao entrar na ante-camara os tectos, as humbreiras, os espaldares das cadeiras, os tropheus de caça, apparecem adornados das verduras do Natal, das ramagens sagradas do carvalho celtico; e pelas paredes, em lettras douradas ondeiam os disticos tradicionaes—Merry Christmas! Merry Christmas! alegre Natal! alegre Natal! E o mesmo grito se repete nos shakehands que se dão ao hospede.

Sob a chaminé estala e dança a grande fogueira do Natal: a sua luz rica faz parecer de ouro os cabellos louros, e de prata as barbas brancas.

Tudo está enfeitado como n'uma paschoa sagrada: dos retratos dos avós pendem ramos de flôres de inverno, as flôres da neve, e todas as pratas da casa scintillam sobre os aparadores, n'uma solemnidade patriarchal. Dos grandes lustres balança-se o [48] ramo symbolico do mistletoe, o ramo do amor domestico: e ai das senhoras que um momento pararem sob a sua ramagem! Quem assim as surprehender tem direito a beija-las n'um grande abraço! Tambem, que voltas sabias, que estrategia complicada, para evitar o ramo fatidico! Mas, pobres anjos! ou se enganam ou se assustam, e a cada momento é sob o mistletoe um grito, um beijo, dois braços que prendem uma cinta fugitiva...

E o piano não se cala n'estas noites! É alguma velha canção ingleza, em que se falla de torneios e cavalleiros, ou uma dança da Escossia, que se baila com o gentil ceremonial do passado.

E por corredores e salas, as creanças, os bébés, com os cabellos ao vento, vestidos de branco e côr de rosa, correm, cantam, riem, vão a cada momento espreitar os ponteiros do relogio monumental, porque á meia-noite chega Santo Claus, o veneravel Santo Claus, que tem trez mil annos de edade e um coração de pomba, e que já a essa hora vem caminhando pela neve da estrada, rindo com os seus velhos botões, apoiado ao seu cajado, e com os alforges cheios de bonecos. Amavel Santo Claus! por um tempo tão frio, n'aquella edade, deixar a cabana de algodão que elle habita no paiz da Legenda, e vir por sobre ondas do mar e ramagens de florestas trazer a estes bébés o seu Natal!

[49]Tambem, como elles o adoram, o bom Claus! E apenas elle chegar, como correrão todos, em triumpho, a puxal-o para o pé do lume, a esfregar-lhe as decrepitas mãos regeladas, a offerecer-lhe uma taça de prata cheia de hidromel quente—que elle bebe d'um trago, o glutão! Depois abrem-se-lhe os alforges. Quantas maravilhas!...

Mas d'estes personagens que apparecem pelas consoadas, o meu predilecto é Father Christmas—o papá Natal.

Esse, porém, só póde ser admirado em toda a sua gloria, quando se abre a sala da ceia: então lá está sobre o seu pedestal, ao centro da meza—que lhe põe em torno, com os crystaes e os pratos, um amavel brilho d'aureola caseira. Bem vindo, papá Natal! Boas noites, papá Natal!

O respeitavel ancião, com o seu capuz até aos olhos, todo salpicado de neve, as mãos escondidas nas largas mangas de frade, o olho maganão e jovial, esgarça a bocca n'um riso de felicidade sem fim, e as suas enormes barbas de algodão pendem-lhe até aos pés. Todas as creanças o querem abraçar, e elle não se recusa, porque é indulgente.

E quanto mais a ceia se anima, mais o seu patriarchal riso se escancara; as bochechas reluzem-lhe de escarlates, as barbas parecem crescer-lhe, e alli está, bonacheirão e veneravel, com a importancia de [50]um deus tutelar e amado, como a encarnação sacramental da alegria domestica.

E no emtanto fóra, na neve, as pobres creanças cantam as lôas: e com que vigor as cantam! É que ellas sabem que não serão esquecidas: e que d'aqui a pouco a grade se abrirá, e virá um criado, vergando ao peso de toda a sorte de cousas bôas, peças de carne, empadas, vinho, queijos—e mesmo bonecas para os pequenos; porque Santo Claus é um democrata, e, se enche os seus alforges para os ricos, gosta sobretudo de os vêr esvaziados no regaço dos pobres.

Tudo isto é encantador. Mas tire-se-lhe a neve, e fica estragado. O Natal com uma lua côr de manteiga a bater n'uma terra tepida de Primavera torna-se apenas uma data no calendario. O lume não tem poesia intima; não ha lôas; Santo Claus não vem; o papá Natal parece um boneco insipido; não se colhe o mistletoe. Não ha mesmo a alegria de abrir a janella e pôr no rebordo, dentro d'uma malga, a ceia de migalhas do Natal para os pardaes e para os outros passarinhos que tanta fome soffrem pelas neves. Emfim, não ha Natal! Foi o que succedeu este anno...

Resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio. E isto é o essencial; pensando bem, se nas cabanas houve mais algum conforto e se se não [51] tiritou toda a noite entre quatro farrapos, é perfeitamente indifferente que nos castellos as damas bocejassem.

Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o lume do salão chegue a aquecer—quando se considere que lá fóra ha quem regele, e quem rilhe, a um canto triste, uma codea de dois dias. É justamente n'estas horas de festa intima, quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoismo—que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de sympathia universal, e que a consciencia da miseria em que se debatem tantos milhares de creaturas, volta com uma amargura maior. Basta então vêr uma pobre creança, pasmada deante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lagrimas para uma boneca de pataco, que ella nunca poderá apertar nos seus miseraveis braços—para que se chegue á facil conclusão que isto é um mundo abominavel. D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoismo parte á desfilada, ninguem torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionarios endurecidos, dignos do carcere—e a miseria continúa a gemer ao seu canto!

Os philosophos affirmam que isto ha-de ser sempre assim: o mais nobre de entre elles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-n'os, [52] n'uma palavra immortal, que teriamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções successivas fazer falhar esta sinistra profecia—mas as revoluções passam e os pobres ficam.

N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de Leicester está retirando annualmente, do trabalho duro que elles fazem, quatrocentos contos de reis de renda! É verdade que a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no craneo.

E o resultado? D'aqui a vinte annos os trabalhadores de Leicester estarão de novo a soffrer a fome e o frio—e o filho do duque de Leicester, duque elle mesmo então, voltará a arrecadar os seus quatrocentos contos por anno.

Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter um proletariado faminto n'uma burguezia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um proletariado peior. Jesus tinha razão: haverá sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior erro que jámais Deus cometeu.

Aqui estamos sobre este globo ha doze mil annos a girar fastidiosamente em torno do Sol e sem [53] adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da perfectibilidade: porque só algum ingenuo de provincia é que ainda considera progresso a invenção ociosa d'esses bonecos pueris que se chamam machinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas e difusas que se denominam systemas sociaes.

Nos dois ou trez primeiros mil annos de existencia trepámos a uma certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma cambalhota secular.

O typo secular e domestico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo domestico e social. Já não fallo de gregos e romanos: ninguem hoje tem bastante genio para compôr um côro d'Éschylo ou uma pagina de Virgilio; como escultura e architectura, somos grotescos; nenhum millionario é capaz de jantar como Lucullus; agitavam-se em Athenas ou Roma mais ideias superiores n'um só dia do que nós inventamos n'um seculo; os nossos exercitos fazem rir, comparados ás legiões de Germanicus; não ha nada equiparavel á administração romana; o boulevard é uma viella suja ao lado da Via Áppia; nem uma Aspasia temos; nunca ninguem tornou a fallar como Demosthenes—e o servo, o escravo, essa miseria [54] da Antiguidade, não era mais desgraçado que o proletario moderno.

De facto, póde-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu veneravel pae—o macaco: excepto em duas coisas temerosas—o soffrimento moral e o soffrimento social.

Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inutil: afogal-a n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou a poupar Noé; se não fôsse o egoismo senil d'esse patriarcha borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje gosariamos a felicidade ineffavel de não sermos...

[55]

V
Litteratura de Natal

Uma das cousas encantadoras que nos traz o Natal, são esses lindos livros para creanças, que constituem a litteratura de Natal.

Não falo desses extraordinarios volumes dourados publicados pelos editores francezes, em encadernações decorativas como fachadas de cathedraes, que custam uma fortuna; contém um texto que nunca ninguem lê e são offerecidos ás creanças, mas realmente servem para obsequiar os papás. Os pobres pequenos nada gosam com esses monumentos typographicos; apenas se lhes permite vêr de longe as gravuras a aço, sob a fiscalização da mamã, que tem medo que se deteriore a encadernação; e o resplandecente volume orna d'ahi por deante a jardineira da sala, ao lado do candieiro vistoso.

[56]Em Inglaterra existe uma verdadeira litteratura para creanças, que tem os seus classicos e os seus inovadores, um movimento e um mercado, editores e genios—em nada inferior á nossa litteratura de homens sisudos. Aqui, apenas o bébé começa a soletrar, possue logo os seus livros especiaes: são obras adoraveis, que não contém mais de dez ou doze paginas, intercaladas de estampas, impressas em typo enorme, e de um raro gosto de edição. Ordinariamente o assumpto é uma historia, em seis ou sete phrases, e decerto menos complicada e dramatica que O Conde de Monte-Christo ou Nana; mas emfim tem os seus personagens, o seu enredo, a sua moral e a sua catastrophe.

Tal é, para dar um exemplo, a lamentavel tragedia dos Tres velhos sabios de Chester: eram muitos velhos e muito sabios; e para discutirem cousas da sua sabedoria, metteram-se dentro de uma barrica, mas um pastor que vinha a correr atráz de uma ovelha, deu um encontrão ao tonel, e ficaram de pernas ao ar os tres velhos sabios de Chester!

Como estas ha milhares: a Cavallgada de João Gilpin é uma obra de genio.

Depois, quando o bébé chega aos seus oito ou nove annos, proporciona-se-lhe outra litteratura. Os sabios, a barrica, os trambulhões, já o não interessariam; vêm então as historias de viagens, de caçadas, [57]de naufragios, de destinos fortes, a salutar chronica do triumpho, do esforço humano sobre a resistencia da natureza.

Tudo isto é contado n'uma linguagem simples, pura, clara—e provando sempre que na vida o exito pertence áqueles que têm energia, disciplina, sangue-frio e bondade. Raras vezes se leva o espirito da creança para o paiz do maravilhoso:—não ha n'estas litteraturas nem fantasmas, nem milagres, nem cavernas com dragões de escamas de ouro: isso reserva-se para a gente grande. E quando se falla de anjos ou de fadas é de modo que a creança, naturalmente, venha a rir-se d'esse lindo sobrenatural, e a consideral-o do genero boneco, como os seus proprios carneirinhos de algodão.

O que se faz ás vezes é animar de uma vida ficticia os companheiros inanimados da infancia: as bonecas, os polichinellos, os soldados de chumbo. Conta-se-lhes, por exemplo, a tormentosa existencia d'uma boneca honesta e infeliz: ou os soffrimentos por que passou em campanha, n'uma guerra longinqua, uma caixa de soldados de chumbo. Esta litteratura é profunda. As privações de soldados vivos não impressionariam talvez a creança—mas todo o seu coração se confrange quando lê que padecimentos e miserias atravessaram aquelles seus amigos, os guerreiros de chumbo, cujas bayonetas torcidas [58] ella todos os dias endireita com os dedos: e assim póde ficar depositado n'um espirito de creança um justo horror da guerra.

As lições moraes que se dão d'este modo são innumeraveis, e tanto mais fecundas quanto sahem da acção e da existencia dos sêres que ella melhor conhece—os seus bonecos.

Depois vêm ainda outros livros para os leitores de doze a quinze annos: popularisações de sciencias; descripções dramaticas do universo; estudos captivantes do mundo das plantas, do mar, das aves; viagens e descobertas; a historia; e, emfim, em livros de imaginação, a vida social apresentada de modo que nem uma realidade muito crúa ponha no espirito tenro securas de misanthropia, nem uma falsa idealisação produza uma sentimentalidade morbida.

É no Natal, principalmente, que esta litteratura floresce. As lojas dos livreiros são então um paraizo. Não ha nada mais pittoresco, mais original, mais decorativo, que as encadernações inglezas; e as estampas, as côres leves e aguadas, offerecem quasi sempre verdadeiras obras d'arte, de graça e d'humour.

Não sei se no Brazil existe isto. Em Portugal, nem em tal jámais se ouviu fallar. Apparece uma ou outra d'essas edições de luxo, de Pariz, de que fallei, e que constituem ornatos de sala. A França [59]possue tambem uma litteratura infantil tão rica e util como a de Inglaterra: mas essa Portugal não a importa: livros para completar a mobilia, sim; para educar o espirito, não.

A Belgica, a Hollanda, a Allemanha, prodigalisam estes livros para creanças; na Dinamarca, na Suecia, elles são uma gloria da litteratura e uma das riquezas do mercado.

Em Portugal, nada.

Eu ás vezes pergunto a mim mesmo o que é que em Portugal lêem as pobres creanças. Creio que se lhes dá Filinto Elysio, Garção, ou outro qualquer desses mazorros sensaborões, quando os infelizes mostram inclinação pela leitura.

Isto é tanto mais atroz quanto a creança portuguesa é excessivamente viva, intelligente e imaginativa. Em geral, nós outros, os portuguezes, só começamos a ser idiotas—quando chegamos á edade da razão. Em pequenos, temos todos uma pontinha de genio: e estou certo que se existisse uma litteratura infantil como a da Suecia ou da Hollanda, para citar só paises tão pequenos como o nosso, erguer-se-hia consideravelmente entre nós o nivel intellectual.

Em logar d'isso, apenas a luz do entendimento se abre aos nossos filhos, sepultamol-a sob grossas camadas de latim! Depois do latim accumulamos a [60] rhetorica! Depois da rhetorica atulhamol-a de logica (de logica, Deus piedoso!). E assim vamos erguendo até aos céus o monumento da camelice!

Pois bem; eu tenho a certeza que uma tal litteratura infantil penetraria facilmente nos nossos costumes domesticos e teria uma venda proveitosa. Muitas senhoras, intelligentes e pobres, se poderiam empregar em escrever essas faceis historias: não é necessario o genio de Zola ou de Thackeray para inventar o caso dos tres velhos sabios de Chester. Ha entre nós artistas, de lapis facil e engraçado, que commentariam bem essas aventuras n'um desenho de simples contorno, sem sombras e sem relevo, lavado a côres transparentes... E quantos milhares de creanças se fariam felizes, com esses bonitos livros—que, para serem populares e se poderem despedaçar sem prejuizo, devem custar menos de um tostão!

Eu bem sei que esta ideia de compôr livros para creanças faria rir Lisboa inteira. Tambem, não é a Lisboa que eu a offereço. Lisboa não se occupa d'estes detalhes.

Lisboa quer cousa superior; quer a bella estrophe lyrica, o rico drama em que se morre de paixão ao luar, o fadinho ao piano, o saboroso namoro de escada, a endeixa plangente, a bôa facadinha á meia noite, o discurso em que se cita o Golgotha, a andaluza [61] de cuia—emfim, tudo o que o romantismo portuguez inventou de mais nobre. Educar os seus filhos intelligentemente, está decerto abaixo da sua dignidade.

Mas, emfim, se estas linhas animassem ahi no Brazil, ou entre a colonia portugueza, um escriptor, um desenhista e um editor, a prepararem alguns bons livros, bem engraçados, bem alegres, para os bébés—eu teria feito ao imperio um serviço colossal, que não sei como me poderia ser recompensado.

Uma bôa fazenda, de rendimento certo, n'uma provincia rica, com casa já mobilada e alguns cavallos na cavallariça, não seria talvez de mais. Se a gratidão do governo imperial quizesse juntar a isto, para alfinetes, um ou dois milhões em ouro, eu não os recusaria. E se me não quizessem dar nada, bastar-me-hia então que um só bébé se risse e fôsse alguns minutos feliz. Pensando bem—é esta a recompensa que prefiro. [62]

[63]

VI
Israelismo

As duas grandes «sensações» do mez são incontestavelmente a publicação do novo romance de Lord Beaconsfield, Endymion, e a agitação na Allemanha contra os Judeus. Litterariamente, pois, e socialmente o mez pertence aos israelitas. Este extraordinario movimento anti-judaico, esta inacreditavel ressurreição das coleras piedosas do seculo XVI é vigiada com tanto mais interesse em Inglaterra quanto aqui, como na Allemanha, os judeus abundam, influindo na opinião pelos jornaes que possuem (entre outros o Daily Telegraph, um dos mais importantes do reino), dominando o commercio pelas suas casas bancarias e em certos momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça, o seu propheta maior, o proprio Lord Beaconsfield. Aqui, decerto, [64] estamos longe de vêr desencadear um odio nacional, uma perseguição social contra os judeus; mas ha sufficientes symptomas de que o desenvolvimento firme d'este Estado israelita dentro do Estado christão começa a impacientar o inglez. Não vejo, por exemplo, que o que se está passando na Allemanha, apesar de exhalar um odioso cheiro d'auto-de-fé, provoque uma grande indignação da imprensa liberal de Londres: e já mesmo um jornal da auctoridade do Spectator se vê forçado a attenuar, perante os graves protestos da colonia israelita, artigos em que descrevera os judeus como uma corporação isolada e egoista, á semelhança das communidades catholicas, trabalhando só no mesmo interesse, encerrando-se na força da sua tradição e conservando sympathias e tendencias manifestamente hostis ás do estado que os tolera. Tudo isto é já desagradavel.

Mas que diremos do movimento na Allemanha? Que em 1880, na sabia e tolerante Allemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com os professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece uma campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador Maximiliano estivesse ainda, do seu acampamento de Padua, decretando a destruição da lei Rabbinica e ainda prégasse em Colonia o furioso Grão-de-Pimenta, geral dos dominicanos—é facto para ficar de bocca aberta [65] todo um longo dia de Verão. Porque emfim, sob fórmas civilizadas e constitucionaes (petições, meetings, artigos de revista, pamphletos, interpellações) é realmente a uma perseguição de judeus que vamos assistir, das boas, das antigas, das Manuelinas, quando se deitavam á mesma fogueira os livros do Rabbino e o proprio Rabbino, exterminando assim economicamente, com o mesmo feixe de lenha, a doutrina e o doutor.

E é curioso e edificante espectaculo vêr o veneravel professor Virchow, erguendo-se no parlamento allemão, a defender os judeus, a sabedoria dos livros hebraicos, as synagogas, asylo do pensamento durante os tempos barbaros—exactamente como o illustre legista Roenchlin os defendia nas perseguições que fecharam o seculo XV!

Mas o mais extraordinario ainda é a attitude do Governo allemão: interpellado, forçado a dar a opinião official, a opinião d'estado sobre este rancôr obsoleto e repentino da Allemanha contra o judeu, o governo declara apenas, com labio escasso e secco, «que não tenciona por ora alterar a legislação relativamente aos israelitas»! Não faltaria com effeito mais que vêr os ministros do imperio, philosophos e professores, decretando, á D. Manuel, a expulsão dos judeus, ou restringindo-lhes a liberdade civil até os isolar em viellas escuras, fechadas por correntes de [66] ferro, como nas judiarias do Ghuetto. Mas uma tal declaração não é menos ameaçadora. O estado dá a entender apenas que a perseguição não ha-de partir da sua iniciativa: não tem, porém, uma palavra para condemnar este estranho movimento anti-semitico, que em muitos pontos é presentemente organisado pelas suas proprias auctoridades.

Deixa a colonia judaica em presença da irritação da grossa população germanica—e lava simplesmente as suas mãos ministeriaes na bacia de Poncio Pilatos.

Não affirma sequer que ha-de fazer respeitar as leis que protegem o judeu, cidadão do imperio; tem apenas a vaga tenção, vaga como a nuvem da manhã, de as não alterar por ora!

O resultado d'isto é que n'uma nação em que a sociedade conservadora fórma como um largo batalhão, pensando o que lhe manda a «ordem do dia» e marchando em disciplina, á voz do coronel,—cada bom allemão, cada patriota, vae immediatamente concluir d'esta linguagem ambigua do governo que, se a côrte, o estado-maior, os feld-marechaes, o senhor de Bismarck, todo esse mundo venerado e obedecido não vêem o odio ao judeu com enthusiasmo, não deixam, todavia, de o approvar em seus corações christãos... E o novo movimento vae certamente receber, d'aqui, um impulso inesperado.

[67]Que digo eu? Já recebeu. Apenas se soube a resposta do ministerio, um bando de mancebos, em Leipzig, que se poderiam tomar por frades dominicanos mas que eram apenas philosophos estudantes, andaram expulsando os judeus das cervejarias, arrancando-lhes assim o direito individual mais caro e mais sagrado ao allemão: o direito á cerveja!

Mas d'onde provem este odio ao judeu? A Allemanha não quer, de certo, começar de novo a vingar o sangue precioso de Jesus. Ha já tanto tempo que essas cousas dolorosas se passaram!... A humanidade christã está velha e, portanto, indulgente: em desoito seculos esquece a affronta mais funda. E infelizmente hoje já ninguem, ao lêr os episodios da Paixão, arranca furiosamente da espada, como Clovis, gritando, com a face em pranto:

—Ah, infames! Não estar eu lá com os meus Francos!

Além d'isso, este movimento é organizado pela burguezia, e as classes conservadoras da Allemanha são muito juridicas, para não approvarem, no segredo do seu pensamento, o supplicio de Jesus. Dada uma sociedade antiga e prospera, com a sua religião official, a sua moral official, a sua litteratura official, o seu sacerdocio, o seu regimen de propriedade, a sua aristocracia e o seu commercio—que se ha-de fazer a um inspirado, a um revolucionario, que apparece [68] seguido d'uma plébe tumultuosa, prégando a destruição d'essas instituições consagradas á fundação de uma nova ordem social sobre a ruina d'elas e, segundo a expressão legal, excitando o odio dos cidadãos contra o Governo? Evidentemente puni-lo.

Pede-o a lei, a ordem, a razão de Estado, a salvação publica e os interesses conservadores. É justamente o que a Allemanha, com muita razão, faz aos seus socialistas, a Karl Marx e a Bebel. Ora, estes maus homens não querem fazer na Allemanha contemporanea uma revolução, de certo, mais radical que a que Jesus emprehendeu no mundo semitico. É verdade que o Nazareno era um Deus: para nós, certamente, humanidade privilegiada, que o soubemos amar e comprehender:—mas em Jerusalem, para o doutor do templo, para o escriba da lei, para o mercador do bairro de David, para o proprietario das cearas que ondulavam até Bethlem, para o centurião severo encarregado da ordem—Jesus era apenas um insurrecto.

E se Bismarck estivesse de toga, no pretorio, sobre a cadeira curul de Caiphás, teria assignado a sentença fatal tão serenamente como o dito Caiphás, certo que n'esse momento salvava a sua patria da anarchia. Os conservadores de Jerusalem foram logicos e legaes, como são hoje os de Berlim, de S. Petersburgo ou de Vienna: no mundo antigo, [69]como agora, havia os mesmos interesses santos a guardar. Que diabo! é indispensavel que a sociedade se conserve nas suas largas bases tradicionaes: e outr'ora, como hoje, a salvação da ordem é a justificação dos supplicios.

É possivel que este goso, que nós, conservadores, temos hoje, de triturar os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a Siberia os Bakounine, e crivar de multas os Felix Pyat—venha a custar caro a nosso netos. Com o andar dos tempos, todo o grande reformador social se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroastro, Confucio, Mahomet, Jesus, são exemplos recentes! As fórmas superiores do pensamento têm uma tendencia fatal a tornar-se na futura lei revelada: e toda a philosophia termina, nos seus velhos dias, por ser religião. Augusto Comte já tem altares em Londres; já se lhe reza. E assim como hoje exigimos capellas aos Santos Padres, aos que foram os auctores divinos, os nobres criadores do catholicismo, talvez um dia, quando o socialismo fôr religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamparina na frente, as imagens dos Santos Padres da revolução: Proudhon de oculos, Bakounine parecendo um urso sob as suas pelles russas, Karl Marx apoiado ao cajado symbolico do pastor d'almas.

Como a civilização caminha para o oeste, isto [70] passar-se-ha ai para o seculo XXVIII, na Nova Zelandia ou na Australia, quando nós, por nosso turno, fôrmos as velhas raças do Oriente, as nossas linguas idiomas mortos, e Pariz e Londres montões de columnas truncadas como hoje Palmyra e Babylonia, que o zelandez e o australiano virão visitar, em balão, com bilhete de ida e volta... Logicamente, então, como são detestados hoje na Allemanha os herdeiros dos que mataram Jesus—só haverá repulsão e odio pelos descendentes de nós outros, que estamos encarcerando Bakounine ou multando Pyat. E como toda a religião tem um periodo de furor e exterminio, esses nossos pobres netos serão perseguidos, passarão ao estado de raça maldita e morrerão nos supplicios... C'est raide!

 

Mas voltemos á Allemanha.

Ainda que o Pedro Ermita d'esta nova crusada constitucional seja um sacerdote, o Revd. Streker, capellão e prégador da côrte, é evidente que ella não tira a sua força da paixão religiosa. As cinco chagas de Jesus nada têm que vêr com estas petições que por toda a parte se assignam, pedindo ao governo que não permitta aos judeus adquirirem propriedades, que não sejam admittidos aos cargos publicos, e outras extravagancias gothicas! O motivo [71] do furor anti-semitico é simplesmente a crescente prosperidade da colonia judaica, colonia relativamente pequena, apenas composta de 400.000 judeus; mas que pela sua actividade, a sua pertinacia, a sua disciplina, está fazendo uma concorrencia triumphante á burguezia allemã.

A alta finança e o pequeno commercio estão-lhe igualmente nas mãos: é o judeu que empresta aos Estados e aos principes, e é a elle que o pequeno proprietario hypoteca as terras. Nas profissões liberais absorve tudo: é elle o advogado com mais causas e o medico com mais clientella: se na mesma rua ha dois tendeiros, um allemão e outro judeu—o filho da Germania ao fim do anno está fallido, o filho d'Israel tem carruagem! Isto tornou-se mais frizante depois da guerra: e o bom allemão não póde tolerar este espectaculo do judeu engordando, enriquecendo, reluzindo, emquanto elle, carregado de louros, tem de emigrar para a America á busca de pão.

Mas se a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da sua riqueza enlouquece-o de furor. E, n'este ponto, devo dizer que o allemão tem razão. A antiga legenda do israelita, magro, esguio, adunco, caminhando cosido com a parede, e coando por entre as palpebras um olhar turvo e desconfiado—pertence ao passado. O judeu hoje é um [72] gordo. Traz a cabeça alta, tem a pança ostentosa e enche a rua. É necessario vêl-os em Londres, em Berlim, ou em Vienna: nas menores cousas, entrando em um café ou occupando uma cadeira no theatro, têm um ar arrogante e ricaço, que escandalisa. A sua pompa espectaculosa de Salomões parvenús offende o nosso gosto contemporaneo, que é sobrio. Fallam sempre alto, como em paiz vencido, e em um restaurante de Londres ou de Berlim nada ha mais intoleravel que a gralhada semitica. Cobrem-se de joias, todos os arreios das carruagens são de oiro, e amam o luxo grosseiro e vistoso. Tudo isto irrita.

Mas o peior ainda, na Allemanha, é o habil plano com que fortificam a sua prosperidade e garantem a sua influencia—plano tão habil que tem um sabor de conspiração: na Allemanha, o judeu, lentamente, surdamente, tem-se apoderado das duas grandes forças sociaes—a Bolsa e Imprensa. Quasi todas as grandes casas bancarias da Allemanha, quasi todos os grandes jornaes, estão na posse do semita. Assim, torna-se inatacavel. De modo que não só expulsa o allemão das profissões liberais, o humilha com a sua opulencia rutilante, e o traz dependente pelo capital; mas, injuria suprema, pela voz dos seus jornaes, ordena-lhe o que ha-de fazer, o que ha-de pensar, como se ha-de governar e com que se ha-de bater!

[73]Tudo isto ainda seria supportavel se o judeu se fundisse com a raça indigena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto, inacessivel e impenetravel. As muralhas formidaveis do templo de Salomão, que fôram arrasadas, continuam a pôr em torno d'elle um obstaculo de cidadelas. Dentro de Berlim ha uma verdadeira Jerusalem inexpugnavel: ahi se refugiam com o seu Deus, o seu livro, os seus costumes, o seu Sabbath, a sua lingua, o seu orgulho, a sua seccura, gosando o ouro e desprezando o christão. Invadem a sociedade allemã, querem lá brilhar e dominar, mas não permittem que o allemão meta sequer o bico do sapato dentro da sociedade judaica. Só casam entre si; entre si, ajudam-se regiamente, dando-se uns aos outros milhões—mas não favoreceriam com um troco um allemão esfomeado; e põem um orgulho, um coquetismo insolente em se differençar do resto da nação em tudo, desde a maneira de pensar até á maneira de vestir. Naturalmente, um exclusivismo tão accentuado é interpretado como hostilidade—e pago com odio.

Tudo isto, no emtanto, é a lucta pela existencia. O judeu é o mais forte, o judeu triumpha. O dever do allemão seria exercer o musculo, aguçar o intellecto, esforçar-se, puxar-se para a frente para ser, por seu turno, o mais forte. Não o faz: em logar d'isso, volta-se miseravelmente, covardemente, [74] para o governo e peticiona, em grandes rolos de papel, que seja expulso o judeu dos direitos civis, porque o judeu é rico, e porque o judeu é forte.

 

O Governo, esse esfrega as mãos, radiante. Os jornaes inglezes não comprehendem a attitude do sr. de Bismarck, approvando tacitamente o movimento anti-judaico. É facil de perceber; é um rasgo de genio do chanceller. Ou pelo menos uma prova de que lê com proveito a Historia da Allemanha.

Na meia idade, todas as vezes que o excesso dos males publicos, a peste ou a fome, desesperava as populações; todas as vezes que o homem escravisado, esmagado e explorado, mostrava signaes de revolta, a egreja e o principe apressavam-se a dizer-lhe: «Bem vemos, tu soffres! Mas a culpa é tua. É que o judeu matou Nosso Senhor e tu ainda não castigaste sufficientemente o judeu.» A populaça então atirava-se aos judeus: degolava, assava, esquartejava, fazia-se uma grande orgia de supplicios; depois, saciada, a turba reentrava na tréva da sua miseria a esperar a recompensa do Senhor.

Isto nunca falhava. Sempre que a egreja, que a feudalidade, se sentia ameaçada por uma plébe desesperada de canga dolorosa—desviava o golpe de si e dirigia-o contra o judeu.

[75]Quando a besta popular mostrava sêde de sangue—servia-se á canalha sangue israelita.

É justamente o que faz, em proporções civilizadas, o sr. de Bismarck. A Allemanha soffre e murmura: a prolongada crise commercial, as más colheitas, o excesso de impostos, o pesado serviço militar, a decadencia industrial, tudo isto traz a classe media irritada. O povo, que soffre mais, tem ao menos a esperança socialista; mas os conservadores começam a vêr que os seus males vêm dos seus idolos.

Para o calmar e occupar, o que mais serviria ao chanceller seria uma guerra, mas nem sempre se póde inventar uma guerra, e começa a ser grave encontrar em campo a França preparada, mais forte que nunca, com os seus dois milhões de bons soldados, a sua fabulosa riqueza, riqueza inconcebivel, que, como dizia ha dias a Saturday Review, é um phenomeno inquietador e difficil d'explicar.

Portanto, á falta d'uma guerra, o principe de Bismarck distrahe a attenção do allemão esfomeado—apontando-lhe para o judeu enriquecido. Não allude naturalmente á morte de Nosso Senhor Jesus Christo. Mas falla nos milhões do judeu e no poder da Synagoga. E assim se explica a estranha e desastrosa declaração do governo.

[76] 

Da outra «sensação», o romance de Lord Beaconsfield, Endymion, não me resta, n'esta carta, espaço para rir. Figuram n'elle, sob nomes transparentes, Beaconsfield, elle proprio, Napoleão III, o principe de Bismarck, o cardeal Manning, os Rothchilds, a imperatriz Eugenia, duquezas, lords, marechaes... emfim um ramalhete de flôres, pelo qual o editor Longman pagou cincoenta e quatro contos de reis fortes.

Jovens de lettras, meus amigos, ponde vossos olhos n'este exemplo de ouro! Sê prudente, mancebo; nunca, ao entrar na carreira litteraria, publiques poema ou novella sem a antecipada precaução de ter sido durante alguns annos—primeiro ministro de Inglaterra!

[77]

VII
A Irlanda e a Liga Agraria

É necessario fallar da Irlanda, fallar da Liga Agraria, fallar de Parnell...

Ha seis mezes que este homem, esta associação, essa ilha inquieta, são o cuidado supremo, a preoccupação pungente da Inglaterra e de tudo o que em Inglaterra pensa, desde os homens de Estado até aos caricaturistas. E dentro em breve o sentimento europeu, o sentimento universal, vae-se exaltar pela questão da Irlanda, como outr'ora pela questão da Polonia.

A questão da Polonia! oh saudosos dias passados! Foi esse um dos meus primeiros enthusiasmos! N'esse tempo, ser polaco era synonimo de ser heroe: e a fórma mais usual da paixão, n'uma alma de vinte annos, não consistia no desejo de se subir ao balcão de Julieta, mas de partir e ir tomar as armas pela Polonia.[78] Em Coimbra, sempre que nos reuniamos mais de quatro amigos, faziamos logo esse projecto, gritando: —Viva a Polonia! Os jornaes transbordavam de poemas á Polonia e de injurias ao Urso do Norte! Empenhavam-se batinas e compendios para soccorrer a Polonia, em subscripções enthusiasticas. Em beneficio da Polonia eu representei muito melodrama em que ora, virgem trahida e vestida de branco, soluçava com as minhas tranças soltas—ora, traidor, soltando gargalhadas cynicas, cravava um ferro no peito de Condé!

Por fim não eramos mais insensatos do que o povo de Paris em 1848, marchando em procissão a reclamar do governo provisorio a libertação da Polonia. «Mas é uma guerra com a Russia, é um conflicto europeu!» diziam os prudentes. E os enthusiastas respondiam: «Não tem duvida; a França é o Messias, é a salvadora dos opprimidos: a França é o Christo das nações; sendo necessario, deve morrer por ellas.»

Mas desde 1848 muita agua tem passado sob as pontes, como dizem em Paris: e mesmo muito sangue.

Por estes tempos de opportunismo e de naturalismo, a pobre Irlanda não inspirará jámais o culto piedoso que votamos outr'ora á Polonia.

De resto a Polonia e a Irlanda constituem dois [79] casos differentes. É certo, porém, que vistos de longe, atravéz da nevoa lacrimosa da sentimentalidade, offerecem similitudes. A Irlanda póde talvez considerar-se uma Polonia constitucional: ha aqui como na Polonia uma raça opprimida, cujo solo foi dividido entre os grandes vassalos, as familias historicas da nação conquistadora, e que desde então tem permanecido em servidão agraria. Sómente na Irlanda o arbitrario e os abusos, que esta situação origina, são recobertos pelo regimen parlamentar de um bello verniz de legalidade: e a Irlanda soffre as miserias de um paiz vencido e explorado—mas dentro das fórmas constitucionaes.

O irlandez parece-se com o polaco em certos pontos: são ambos arrebatados, imprudentes, espirituosos, generosos e poetas. Como o Polaco, o irlandez catholico odeia o conquistador, sobretudo por elle ser heretico de nacionalidade, misturando com o odio politico o conflicto de religião. Como na Polonia, ha na Irlanda a legenda patriotica da independencia, das revoltas suffocadas, dos agitadores heroicos, legenda que falla á imaginação popular tanto como a mesma religião, inspirando eguaes fanatismos, de tal sorte que o irlandez é tão devoto dos seus santos como dos seus patriotas; como o polaco despreza o russo, assim o irlandez olha o anglo-saxonio como um barbaro e um estupido e tem por [80]elle toda a antipatia desdenhosa que uma raça de improvisadores póde ter por uma raça de criticos e de analistas. Na ordem social, como na ordem domestica, ha entre a Polonia e a Irlanda outras curiosas afinidades. A ultima táctica da Irlanda, mesmo, é imitada da Polonia: a Irlanda vae apelar para a Europa e é Victor Hugo quem fallará em nome dela, n'um manifesto com o titulo de Opressor e Oprimido.

Mas a Inglaterra realmente não se parece com a Russia: nem mesmo atravéz da nevoa da sensibilidade, atravez da paixão pela causa da Irlanda, o mais esclarecido dos liberalismos póde ser confundido com o mais boçal dos despotismos. E todavia a Inglaterra, para não perturbar os interesses tyrannicos d'um milhar de ricos proprietarios, deixa na miseria quatro milhões de homens. Tem todo o territorio irlandez occupado militarmente. Apenas um patriota começa a ter influencia na Irlanda, prende o patriota. Quando a eloquencia dos deputados irlandezes se torna inquietadora, abafa-a, quebrando sem escrupulos uma tradição parlamentar de seculos. Vae governar a Irlanda pela Lei marcial, como qualquer czar. E, para suspender os planos da Liga Agraria, viola os segredos das cartas.

[81]Esta questão da Irlanda apresenta-se tão complexa, tão confusa como o proprio chaos antes da grande façanha de Jehovah. Na Irlanda começa por haver tres nações distinctas com interesses contradictorios: os irlandezes catholicos, os irlandezes protestantes ou orangistas, os inglezes e proprietarios escocezes. A questão da propriedade é sem duvida a essencial: mas existem outras, a questão religiosa, a questão policial, a questão judicial, a questão municipal, etc., etc. E sobre cada uma d'estas questões é difficil achar dois irlandezes de accordo. Cada aldeia se torna assim um campo de batalha: e, como são eloquentes e sarcasticos, o grande fluxo labial, a paixão do epigramma amplificam e azedam as dissensões.

Mesmo dentro da egreja catholica, que deveria conservar a tradicção da Unidade—tumultua a discordia: o clero parochial está em lucta com os dignitarios episcopaes: e é raro que o clero de um condado não divirja, de sentimentos e de predica, com o clero do condado visinho. No mundo dos patriotas revolucionarios não existe uma harmonia melhor: a Liga Agraria não aceita os Fenians, e os Fenians abominam as tendencias parlamentares dos Home-rulers: e dentro mesmo do partido dos Home-rulers ha [82] democratas e conservadores. É um numeroso conflicto por toda a pobre Irlanda.

Os irlandezes dizem, porém, que se lhes fosse dada a autonomia, horas depois de declarada a Republica Irlandeza, todas estas questões se resolveriam de per si e o paiz seria como um mar que amansa e fica em equilibrio.

Até agora, porém, essa falta de unidade é adduzida justamente como evidencia dos perigos que teria essa autonomia.

Os inglezes pensam sinceramente que no momento em que a Irlanda sahisse de sob a tutela do bom senso e do saber inglez, no instante que essa raça impressionavel, excitada, fanatica e pouco culta fosse abandonada a si mesma, começaria uma guerra civil, uma guerra religiosa, differentes guerras agrarias, que bem depressa fariam da Verde Erin um montão de ruinas n'uma poça de sangue.

Se os irlandezes se não entendem bem sobre os males da Irlanda, os inglezes comprehendem-se menos ácerca dos remedios para a Irlanda. E a confusão em que se está provém principalmente da abundancia da discussão. Não ha villota, ou mesmo aldeia d'Inglaterra, que não tenha um jornal do tamanho da Gazeta de Noticias, com oito paginas e typo cerrado. E d'alto a baixo esta vastidão de papel, desde que começou a agitação da Liga Agraria, é [83] occupada por estudos e artigos sobre a Irlanda. Multiplique-se isto pelas tres ou quatro mil gazetas que a pobre Inglaterra nutre sobre a sua epiderme: juntem-se-lhe os artigos dos Semanarios, dos Quinzenarios, das Revistas e dos Magazines, os pamphletos, as brochuras, os ensaios inumeraveis como as estrellas do céo, os livros e tratados de toda a sorte, os discursos do parlamento, as arengas dos meetings, as conferencias, os sermões, as controversias publicas, as lições, emfim, toda essa colossal litteratura que nestes ultimos mezes tem tomado por assumpto a Irlanda.

E digam-me se, com todo este mundo de informação, de discussão, de theorias, de projectos, de systemas, de opiniões, de imaginações,—não é natural que o cerebro da Inglaterra esteja, n'esta questão da Irlanda, perfeitamente desorganisado. O meu está. Mas n'este cahos mental tenho illustres companheiros: o grande Carlyle costumava dizer que a sinceridade e a elevação de alguns patriotas irlandezes era a unica coisa nitida e clara que elle conseguia distinguir no escuro tumulto da confusão irlandeza...

Ha tambem outra coisa que se percebe bem: é que a população trabalhadora da Irlanda morre de fome, e que a classe proprietaria, os land-lords indignam-se e reclamam o auxilio da policia ingleza [84] quando os trabalhadores manifestam esta pretensão absurda e revolucionaria—comer!

Aqui está, por exemplo, Sua Graça o Duque de Leicester, para não citar outros de nomes menos sonoros: os seus rendimentos na Irlanda sobem a quatrocentos contos de reis—e o infeliz tem ainda uns duzentos contos mais das suas propriedades na Inglaterra! Este fidalgo, escuso talvez dizel-o, não soffre frio e não passa fome: por outro lado, a população de rendeiros que trabalham as suas terras, e que com o seu suor e o seu esforço lhe arrancam do sólo este rendimento,—a unica cousa que realmente tem é fome e frio. Mas este anno tiveram mais fome e mais frio que de costume: e lá foram em farrapos, e com os pés nús sobre a neve, supplicar a Sua Graça, o Duque de Leicester, que lhes fizesse uma diminuição de dez por cento nas rendas—exageradas, absurdas e devoradoras. Sua Graça respondeu (pela bocca dos seus administradores, naturalmente: por sua propria bocca um Duque inglez nunca falla senão com outro Duque) respondeu que as suas circumstancias não lhe permittem essa liberalidade—e que a repetição d'uma tal supplica não podia ser tolerada.

E os rendeiros de Sua Graça lá voltaram de cabeça baixa, para o frio e para a fome.

Direi de passagem que se o pedido, em logar [85] de ser feito pelos seus rendeiros da Irlanda, partisse dos seus rendeiros da Inglaterra, Sua Graça apressar-se-hia a satisfazel-o rasgadamente. É porque a Irlanda é um paiz conquistado, e, quando o proletario se queixa, a policia fila-o pela gola: mas, em Inglaterra, quando o operario inglez ergue a sua voz de leão, a policia fica immovel, os Duques empallidecem, e o edificio monarchico e feudal treme nas suas bases.

Mas, a proposito de Sua Graça o Duque de Leicester (gozemos o mais tempo possivel esta illustre companhia: quand on prend du Duc on n'en saurait trop prendre) deixem-me dizer-lhes em resumo quaes são as relações agrarias entre um proprietario, um land-lord, e os seus rendeiros.

 

O sólo, é claro, pertence ao lord. Por que titulo não sei; talvez uma de suas avós, n'uma noite que estava mais decotada, attrahisse o inconstante olhar do amavel Carlos II, nos saráus galantes da Restauração: d'esse olhar provém, acaso, esta bella propriedade. O alegre Stuart era tão generoso! tinha-se vivido tão pobremente, tão tristemente sob a dictadura puritana do Cromwell!... Depois, se Carlos II tinha pouco dinheiro, (o desgraçado recebia uma [86] mesada do rei de França!) não lhe faltavam terras na Irlanda. Trez leguas de pastos, ou de terreno aravel, por um beijo e os seus acessorios, não é caro para um Stuart. E para uma fraca dama ou para seu esposo é um famoso negocio. Note-se, por Deus, note-se que eu estou fazendo estas supposições sobre um typo de Lord abstracto. Nem toda a minha sympathia pelos trabalhadores irlandezes me levaria a suspeitar das purissimas senhoras da Casa de Leicester...

Como proprietario do sólo, pois, o Lorde arrenda-o ás familias que de geração em geração vivem nas suas terras: o irlandez prende-se ao sólo como uma arvore pelas raizes, e muitas vezes prefere morrer a abandonar um torrão arido que o não nutre. A emigração irlandeza para a America sáe principalmente da população operaria das cidades. Ora, nos contractos de renda, o homem de trabalho está absolutamente á mercê do senhor da propriedade.

O valor das rendas é puramente arbitrario. Não ha typo de renda, baseado sobre a avaliação das terras; existe o que se chama a avaliação de Griffith, feita ha mais de trinta annos por o agronomo d'esse nome; mas esta avaliação, equitativa e favoravel ao trabalhador, não é jamais aceitada pelos proprietarios. N'isto está a origem de todas as miserias [87] da Irlanda; as rendas, absurdamente elevadas, absorvem todo o producto da terra, e o rendeiro escassamente póde viver, muito menos economizar.

Além do sólo, o proprietario deve fornecer a habitação e os instrumentos de trabalho: se na fazenda não existe casa, ou se ella necessita reparações, o land-lord dará naturalmente alguma madeira, uma mão-cheia de prégos, um molho de colmo, para que o trabalhador erga a cabana miseravel, muito inferior, como conforto, aos curraes dos nossos gados; e a esta generosidade regia o land-lord juntará talvez um velho arado e um ferro de enxada. Mas estes dons são adiantamentos que elle sobrecarrega com preços duplos ou triplos do seu valor, e de que se faz embolsar por prestações trimestraes.

Não é possivel ser mais grandioso ou mais nobre.

Aqui está, pois, o rendeiro de posse de um tecto, de um terreno e de ferramenta. Parece que só lhe resta começar a cultivar.

Assim seria, se não fosse na Irlanda. Mas a natureza, mãe fecunda e amante, comporta-se aqui ainda peior que os lords: se a natureza tivesse assento na camara dos pares de Inglaterra, não seria mais aspera, mais hostil ao pobre e mais avara de si mesma. A natureza, quando não se apresenta ao [88] trabalhador irlandez sob o aspecto de sólo pedregoso, mostra-se sob o aspecto de pantano.

Offerece-lhe de um lado um penedo, do outro um charco.

E diz-lhe com a sua ternura de mãe:

—Escolhe. De qual preferes tirar tu os meios de subsistencia?

O pobre irlandez o que preferiria era ir-se embora: mas como por toda a parte encontraria um proprietario egual, os mesmos pedregulhos e identicos lamaçaes—fica. E é então que se apresenta de novo a generosidade do Lord. Sua Graça está pronta (porque Sua Graça é compassiva) a escoar o pantano, a desempedrar o sólo, a fazer melhoramentos na terra. Sua Graça vae mesmo mais longe: Sua Graça (Deus o recompense!) offerece a semente. E mais ainda: Sua Graça (que as bençãos do ceu o vistam!) dá os adubos.

E aqui está um rendeiro feliz, que tem a casa, os instrumentos, a semente, os adubos... Sómente Sua Graça marca os preços que lhe convém aos melhoramentos feitos, á semente e aos adubos: e no fim do anno a renda que era originariamente de dez está em vinte e cinco! Como os terrenos são pobres, os invernos abominaveis, o pobre rendeiro não póde pagar: dirige-se então ao agiota—ou ao Lord mesmo. E desde esse momento está n'uma rede de dividas, [89] lettras, colheitas empenhadas, juros accumulados, protestos, o demonio—de que jámais se poderá desenredar. O resultado é previsto: o Lord (pelo seu agente) penhora-o, apossa-se do grão que está nos celleiros, do gado que está nos curraes, do pequeno bragal que está na arca, das arrecadas da mulher, das enxergas—e expulsa-o da casa e da propriedade—da casa que elle talvez construiu, da propriedade que elle com o seu trabalho melhorou! Tal qual como na meia edade.

Estas expulsões, que se chamam evictions, são o terror irlandez. Que ha-de fazer um miseravel com mulher, creanças, ás vezes uma avó entrévada, que se vê d'uma hora para a outra no meio de uma estrada, por um terrivel inverno, sem um farrapo para se cobrir, sem uma codea de pão, sem casa, sem destino e sem esperança? E note-se que isto passa-se em regiões como as da Irlanda, pouco habitadas, com um casal de legua em legua.

Esta falta de vizinhos torna estas expulsões mais terriveis. Quantas milhas a caminhar sob a chuva ou sob a neve, com as creanças chorando de fome, os doentes levados n'uma padiola, até que se encontre algum rendeiro mais feliz que ainda tem um canto de cabana onde azyle a familia errante! Mas por pouco tempo—porque todos são pobres, todos estão endividados, todos ameaçados da expulsão...

[90]E durante esse tempo Sua Graça banqueteia-se, bebe Chateaux Margaux de 6$000 reis a garrafa, caça, etc.—e aluga a fazenda, d'onde expulsou o miseravel n.º 1, ao rendeiro n.º 2. Sómente o n.º 2, como a encontra melhorada pelo antecedente, paga-a mais cara: e depois de explorado, sugado, expremido, durante dois ou trez annos, é expulso—para dar logar ao n.º 3. Este infeliz passa pelo mesmo processo de trituração, et sic per omnia...

E as expulsões são inevitaveis, porque, com a altura absurda das rendas, é impossivel que o rendeiro as possa pagar—e viver.

 

Isto, como comprehendem, é apenas um vago contorno da realidade, apontada nas suas feições essenciais.

Descendo-se a detalhes—vê-se então uma horrorosa tréva de injustiça e miseria.

Mas como pódem taes cousas passar-se no seculo XIX, e ao lado do povo inglez?

Como permitte uma nação tão justa a existencia de tanto oprobio?—dir-me-hão.

Justamente essa pergunta a fazia Victor Hugo ha dias a Parnell, o chefe da Liga Agraria, na sua [91] celebre entrevista. E eu responderei com as palavras de Parnell.

Taes cousas passam-se no seculo XIX. E o povo inglez não as sabia: pelo menos eram-lhe contadas de tal modo que, em logar de piedade, só sentia colera.

E isto é exacto. Os males da Irlanda eram conhecidos pela voz dos seus agitadores. Mas estes homens, desde O'Connell cometteram sempre o erro de misturar as queixas d'um proletariado opprimido ás aspirações d'independencia nacional: de sorte que a Inglaterra não attendia á reclamação dos trabalhadores pela irritação que lhe causavam as exigencias dos patriotas. O povo inglez não póde ouvir fallar em que a Irlanda se separe, e se constitua em republica: mas está prompto a ordenar que se lhe dê um justo regimen de propriedade.

O erro dos Fenians foi confundir a questão nacional com a questão agraria: o rendeiro miseravel apparecia então aos inglezes com o aspecto de um rebelde á União; e envolvendo-os ambos no mesmo odio, porque lhes suppunha identicas ambições, suffocou sem discernimento, a voz que só pedia pão e a voz que reclamava autonomia.

E todavia o povo inglez sentiu sempre instinctivamente que a Irlanda soffria. Muitas vezes pediu para ella uma reforma das leis agrarias. Era, porém, [92] um pedir vago, sem cohesão: mais a expressão de sensibilidades feridas do que a intimação da vontade nacional.

De sorte que os parlamentos, sahidos das classes que têm interesse em manter a Irlanda na miseria, contentavam-se em fazer reformas de detalhes, reformas insignificantes e imperceptiveis, para dar uma satisfação á compaixão ingleza: e o regimen antigo ficava inatacado como d'antes. Mas isto bastava para que alguns humanitarios dissessem com um suspiro de allivio: «Emfim lá se fez alguma coisa pela Irlanda!» De facto não se tinha feito nada.

Era, pois, necessario que a questão da propriedade fôsse separada da questão da independencia: que se fizesse um movimento legal dentro da constituição, com o fim exclusivo de terminar os abusos dos land-lords, calando toda a ideia de arrancar a Irlanda ao Reino Unido. Então haveria a certeza de que o povo inglez, vendo a questão agraria e os seus horrores, isoladamente, no seu relevo proprio, desembaraçada das declamações rebeldes e das agitações separatistas—determinasse dar a tantos males, e tão antigos, um remedio radical. Foi isto que tentou a Liga Agraria.

Esta carta é longa: e apresentando esta formidavel entidade—a Liga Agraria, eu devo fazer como o illustre Ponson du Terrail, quando introduzia um [93] novo personagem, o heroe providencial, n'um fim de folhetim: deixar a historia das suas façanhas, das suas virtudes e da sua belleza, com o interesse suspenso, até ao folhetim seguinte. Não se esqueçam que ficamos no momento em que, n'este palco da Historia Irlandesa subitamente apparece ao fundo, misteriosa e grave, a Liga Agraria. [94]

[95]

VIII
Lord Beaconsfield

I

Recomeçando hoje estas CARTAS DE INGLATERRA—que eu não podia escrever de Lisboa, onde estive alguns mezes gozando os ocios de Tityro, sub tegmine fagi, á sombra d'essa faia constitucional que se chama o Gremio—devo memorar, ainda que tarde, a morte de Benjamin Disraeli, Lord Beaconsfield, ocorrida no dia 19 de maio, pela madrugada, em Londres, na sua casa de Curzon Street. A doença de Lord Beaconsfield, uma complicação de gotta, asthma e bronchite, arrastou-se cruel e longa; o mal porém foi debelado e Lord Beaconsfield succumbiu realmente á fraqueza, á fadiga dos setenta e sete annos e uma existencia tão episodica, tão cheia, tão emotiva, que ella ficará como o seu melhor romance, bem superior em estylo e interesse a Tancredo ou a Endymion.

[96]Desde o primeiro dia, Lord Beaconsfield perdeu logo a esperança de se restabelecer; mas passou a encarar a morte como encarára sempre as suas derrotas politicas: com uma coragem desdenhosa e fria e um ar de facil superioridade. Durante a doença, aos accessos agudos da dôr, respondia elle com esses sarcasmos mordentes e rebrilhantes, que tinham sido sempre a sua desforra querida perante um adversario mais forte.

No dia 18, á noite, cahiu pouco a pouco n'uma somnolencia comatosa, e assim permaneceu até ao romper da manhã; momentos antes de morrer, agitou-se, ergueu-se, ainda dilatou o peito, lançou os braços ao ar—como costumava fazer nos grandes debates da camara; depois recahiu sobre o travesseiro, estendeu as mãos a Lord Rowton e Lord Barrigton, seus secretarios, e murmurou debilmente: Estou vencido!—E ficou como adormecido para sempre. E, considerando que, n'esse momento, toda a Inglaterra, o mundo inteiro, esperavam anciosamente noticias d'aquelle quarto de Curzon Street, onde expirava o homem que sessenta annos antes era um pobre escrevente de cartorio—póde-se dizer que n'esta carreira tão feliz a morte mesma foi feliz.

O seu proprio funeral teria agradado á sua imaginação—a certos lados delicados da sua imaginação de artista. O testamento que deixou não permitiu [97] que se celebrassem funeraes publicos na Abbadia de Westminster—disposição estranhavel n'um homem que mais que tudo amou a pompa e os grandiosos ceremoniaes; mas não teve tambem o lugubre scenario da morte, os crepes, as plumas negras, as tochas, os fumos, as caveiras bordadas—tudo isso que deveria ser tão antiphatico ao seu luminoso espirito. Foi sepultado no seu querido Castello d'Hughenden, no meio das arvores do seu parque, por uma fresca manhã de maio, na capella toda ornada de flôres como para uma alegria nupcial; o caminho que lá levava ia por entre jasmineiros e rosaes; em vez do dobre dos sinos de Westminster teve o gorgeiar das suas aves; e o caixão, seguido pelos principes de Inglaterra, por todos os embaixadores, pela aristocracia que ella governára—desapparecia sob corôas, ramos e molhos de primroses, que a rainha Victoria mandára, com estas palavras escriptas pela sua mão: «As flôres que elle amava.»

Depois, ao outro dia, em todas as cathedraes da Inglaterra, em cada capella rustica, o clero fez do pulpito o elogio de Lord Beaconsfield; nas universidades, nos institutos, nas academias, os professores commemoraram aquella carreira soberba; pelas platafórmas dos meetings, nas assembléas commerciais, em qualquer parte onde se juntam homens, alguma voz se ergueu a honrar os seus serviços e o seu genio; [98]Lord Granville, na camara dos lords, na camara dos communs Gladstone, fizeram, em sessão solemne, o seu panegyrico publico; e durante dias, toda a imprensa ingleza, a imprensa de todo o mundo civilisado (excepto a de Portugal, infelizmente) vieram cheias do seu nome, da commemoração dos seus livros, da sua pittoresca historia.

E assim Lord Beaconsfield desappareceu—como fôra o desejo de toda a sua vida—n'um rumor de apotheose.

 

E todavia nada parece mais injustificado que uma tal apotheose. Lord Beaconsfield, por fim, foi um homem de estado que fez romances. Ora os seus romances, como obras d'arte, já começam a apparecer, a esta geração de sciencia e d'analyse, tão falsos, tão ficticios como as novellas lyrico-religiosas do visconde d'Arlincourt; e como homem d'estado o nome de Lord Beaconsfield não fica decerto ligado a nenhum grande progresso na sociedade ingleza. Crear o titulo de Imperatriz das Indias para a rainha de Inglaterra, roubar Chypre, restaurar certas prerogativas da corôa, tramar o fiasco do Afghanistan, não constituem de certos titulos para a sua glorificação como reformador social: por outro lado, escrever [99] Tancredo ou Endymion, não basta para marcar n'uma litteratura, que teve contemporaneamente Dickens, Tackeray e Georges Eliot.

Como succede, depois d'isto, que a Inglaterra, paiz tão pratico, tão bem equilibrado, se deixe levar em um tal arranque de admiração pelo homem que foi a personificação, a encarnação de tudo quanto é contrario ao temperamento, ás maneiras, ao gosto inglez? É que Lord Beaconsfield, mais que nenhum outro contemporaneo, impressionou a imaginação ingleza—e na fria Inglaterra, como sob céos mais calidos, são grandes as influencias da imaginação.

Podia-se ás vezes sorrir das suas phantasticas obras d'arte, protestar contra as suas theatraes combinações politicas, mas atravéz de protestos e sorrisos a sua propria personalidade nunca deixou de maravilhar e de fascinar. Qualquer inglez, medianamente educado, a quem se pergunte a sua opinião sobre Lord Beaconsfield dirá: Foi um homem extraordinario!

Extraordinario—é como elle se nos representa, agora que se vê o conjunto da sua existencia, que não parece ter sido um producto natural dos factos ou das occasiões, mas uma creação subjectiva da sua propria vontade, e como um enredo de romance talhado pela sua penna. Senão veja-se. Tendo nascido judeu—tornou-se o chefe de uma aristocracia saxonia [100] e normanda, a mais orgulhosa da terra; começando em um obscuro circulo litterario e vegetando algum tempo em um cartorio de Londres—veiu a ser o mais famoso primeiro ministro de um grande imperio; não possuindo senão dividas—bem cedo se tornou o inspirador das grandes fortunas territoriais; homem de imaginação, de poesia, de phantasia, foi o idolo das classes médias de Inglaterra, as mais praticas e utilitarias que jamais dirigiram uma nação commercial; sem religião e sem moral, governou um protestantismo que não concebe ordem social possivel fóra da sua estreita religião e da sua estreita moral; confessando o seu desprezo pela omnipotencia da sciencia moderna—foi o grande homem de uma sociedade que quer dar a todo o progresso uma base puramente scientifica: emfim, sendo o menos inglez possivel, tendo um modo de ser e de sentir quasi estrangeiros, dirigiu annos e annos a Inglaterra, o paiz mais hostil ao espirito estrangeiro, e que conhecia bem que não era comprehendida pelo homem que a governava. Tudo isto parece paradoxal—e a existencia de Lord Beaconsfield foi com effeito um perpetuo paradoxo em acção. Para realizar tudo isto era necessario que o seu genio, por um lado, por outro a sua habilidade, fossem grandes. E realmente em dons pessoais nada lhe faltou: prodigiosa finura de espirito, uma vontade de aço, uma [101] coragem serena de heroe, uma infinita veia sarcastica, um fogo ruidoso de eloquencia, o absoluto conhecimento dos homens, a luminosa penetração no fundo dos caracteres e dos temperamentos, um poder subtil de persuasão, um irresistivel encanto pessoal,—e tudo isto envolvido (como n'uma athmosfera luminosa) por alguma coisa de brilhante, de rico, de largo, de imprevisto, que era ou fazia o effeito de ser o seu genio.

 

Eu por mim começo por admirar a sua propria apparencia. Diz-se que fôra formoso como um Apollo—e que isto concorrera muito para os seus primeiros triumphos: agora, já tão velho, era apenas pittoresco.

A sua grande testa sobre a qual cahiam aquelles dous extraordinarios caracóes parallelos, o seu olhar recolhido e como concentrado em pensamentos muito fundos, o nariz de pura raça israelita, a bocca descahida na sua eterna curva sarcastica, o beiço inferior muito recurvo e muito pendente, e a sua estranha pera de Mephistopheles—constituiam uma d'estas physionomias que se sente que vão ficar na galeria da historia e que servirão a futuros historiadores para explicar um destino e um genio. Em [102] novo, e quando as modas romanticas o permittiam, vestia-se de setim e velludo, recobria-se d'um luxo de medalhões e joias, as suas proprias calças tinham bordados d'ouro. Agora era mais sobrio de toilette: usava apenas esses casacos compridos como tunicas, a que os homens de origem judaica são particularmente affeiçoados, e o seu unico adorno eram os bellos ramos que lhe enchiam o peito. Um jornalista francez, n'um dia de crise politica em que Lord Beaconsfield devia fazer um discurso decisivo, encontrou-o momentos antes, n'um dos salões da camara, occupado a encher d'agua o tubosinho de crystal que por traz da botoeira da casaca conservava frescas as suas rosas. Todo o homem está n'este traço.

De raça oriental, teve sempre o amor do fausto, das pedrarias, dos ricos tecidos, da pompa; os seus romances transbordam de descripções de palacios, de festas perante as quaes as mais ricas galas de Salomão são como desbotados scenarios de theatro de feira; o seu estylo resente-se d'este gosto: é um sumptuoso estofo, com recamos de ouro, cravejado de joias, scintillante e espesso, cahindo em belas pregas ao comprido da idéa. O dinheiro, o ouro, preoccuparam-n'o sempre, menos pela sua influencia social, que pelo mero esplendor da sua amontoação. Os seus heroes possuem fortunas tão prodigiosas que seriam impossiveis nas condições economicas do [103] mundo moderno; Lothario, o famoso Lothario, querendo dar um presente de annos a uma senhora catholica, offerece-lhe uma cathedral toda de marmore branco, que elle mandou construir e que dedicou á santa do nome d'ella; o seu custo excederia decerto dois mil contos fortes. Confessemos que é chic. Pois bem; presentes d'estes dava-os Lothario todos os dias. O banqueiro Sidonia, uma das mais curiosas creações de Lord Beaconsfield, dando ao seu amigo Tancredo uma carta de credito para os banqueiros da Syria, redige-a d'este modo: «Pague á vista ao portador tanto ouro quanto seria necessario para reconstruir os quatro leões de ouro massiço que ornavam a porta direita do templo de Salomão.» Tambem muito chic.

Estou certo que um dos grandes prazeres de Lord Beaconsfield era poder manejar os milhões de Inglaterra. Todos os seus ministerios custaram caudalosos rios de dinheiro; gastava o ouro como a agua,—e dava-se ao luxo de realisar por si, e á custa do seu paiz, as larguezas epicas do seu banqueiro Sidonia. Mesmo quando estava no poder, estava ainda no romance.

 

As linhas da sua biographia são conhecidas. Seu pae era um d'estes litteratos mediocres e trabalhadores [104] que vão desenterrando e colleccionando atravéz de in-folios e bibliothecas casos curiosos e archaicos de historia e de litteratura.

Benjamin Disraeli nasceu por isso entre os livros—litteralmente entre os livros, porque a casa em que viviam os Disraeli offerecia o espaço de uma boceta, e no quarto da creança, entre a accumulação vetusta dos calhamaços, havia apenas espaço para uma cadeira e para um berço. O velho Disraeli era judeu: mas felizmente para os destinos futuros de seu filho rompeu com a synagoga, e todos os Disraeli se fizeram christãos. Benjamin tinha então dezessete annos, e o seu padrinho na pia baptismal foi um certo Samuel Rogers, notavel por ser ao mesmo tempo um dos mais ricos banqueiros da City e um dos poetas mais elegiacos do seu tempo—e notavel ainda por não ficar na historia, nem como banqueiro, nem como poeta, mas como um requintado gourmet, o grande Lucullus de Londres, que deu os mais celebres, os mais finos jantares da Europa.

Assim marcado com o rotulo christão, Benjamin Disraeli largou a caminhar pela vida fóra, mas foi encalhar bem depressa n'um cartorio de tabellião—onde se diz que, durante dous annos, este moço orgulhoso, que já então se considerava um semi-deus, redigiu procurações e testamentos. Com a mesma penna, porém, ia escrevendo Vivian Grey: e da tempestuosa [105] sensação que este romance produziu data a sua grande carreira. A obra, á parte algumas fugitivas scintillações de um genio ainda desequilibrado, é no seu conjunto, ao mesmo tempo pesada e vaga; mas satisfazia os gostos escandalosos e intrigantes da sociedade d'então, pondo em scena todas as individualidades marcantes de Londres, politicos, dandies, rainhas da moda, poetas, especuladores.

O melhor resultado de Vivian Grey, foi tornar Disraeli Junior (como elle então se assignava) o favorito de Lady Blenington e do conde d'Orsay, as duas dominantes figuras de Londres d'essa época, e que tinham de sociedade o mais selecto, mais intelligente, mais apetecido salão de Inglaterra.

Estes dous formavam um typo destinado a reinar. Lady Blenington era uma mulher de graciosa e olympica belleza, de uma extrema audacia de caracter e de alta energia intellectual. O conde d'Orsay, esse era o homem que durante vinte annos governou a moda, o gosto, as maneiras, com a mesma indisputada auctoridade com que hoje o principe de Bismarck arbitra na Europa.

Usar um modelo de gravata ou admirar um poeta que não tivessem sido aprovados pelo conde d'Orsay, seria correr o mesmo risco de uma nação que hoje, sem auctorização secreta do principe de [106] Bismarck, organisasse uma expedição militar. Lady Blenington, entre outras coisas embaraçadoras, tinha uma filha: e o bello d'Orsay, não sei porque, nem elle o soube jámais, casou com essa menina. Os noivos vieram viver com Lady Blenington; e, bem depressa, entre seu brilhante marido e sua resplandecente mãe, a pobre condessa d'Orsay foi como uma pallida lampada bruxoleando entre dous astros. Fez então uma cousa sensata e espirituosa: apagou-se de todo, desappareceu. E o conde d'Orsay e Lady Blenington, livres d'aquella senhora que entristecia, regelava as salas com o seu ar honesto e frio, começaram então a scintillar tranquillamente, como constellações conjunctas no firmamento social de Londres. E Londres curvou-se deante d'esta nova e original situação domestica, como se curvava deante de uma nova sobrecasaca do conde d'Orsay, ou deante de uma decisão litteraria de Lady Blenington.

Benjamin Disraeli tornou-se bem depressa um dos heroes d'este salão—onde desde logo se mostrára com esse ar de tranquilla superioridade, de correcto desdem, que foi um dos segredos da sua força. Ordinariamente conservava-se calado, apoiado ao marmore da chaminé, n'uma pose d'Apollo melancholico, abandonando-se á caricia ambiente dos olhares das damas que viam n'elle a encarnação radiante do poetico Vivian Grey. As pessoas mais intimas, [107] começando por Lady Blenington, já lhe chamavam sempre Vivian, querido Vivian. O conde d'Orsay fizera-lhe o retrato a sepia—honra que elle dava raramente, e a mais appetecida n'esse curioso mundo.

Todos estes triumphos de Disraeli Junior não deixavam de surprehender Disraeli Senior. Um dia, dizendo-lhe alguem que seu filho estava compondo um romance, em que entravam duques, e toda a sorte de grandes, o velho e laborioso litterato exclamou:—Duques, senhores! Mas meu filho nunca viu um sequer!

Viu muitos depois, viu-os todos—e governou-os com uma vara de ferro. Mas n'esse tempo o bello Disraeli Junior era ainda radical, ou tomára ao menos essa attitude. Meditava mesmo a sua Epopêa da Revolução, a sua unica obra em verso, uma vaga rhapsodia que eu nunca li, mas de que os criticos mais benevolos fallam como d'um volume de duzentas paginas, sem uma só linha toleravel. E, cousa curiosa, este homem tão fino, tão sceptico, tão experiente, nunca perdeu a candura quasi comica de se considerar um grande poeta como Virgilio ou como Dante, e a esperança phantastica de que as gerações futuras poriam a Epopêa da Revolução ao par da Eneida, ou da Divina Comedia.

Apesar de poeta abominavel e de perfeito dandy—ou [108] talvez por isso mesmo—Benjamin Disraeli era reconhecido n'esse tempo como um dos chefes do movimento da Joven Inglaterra.

A Joven Inglaterra consistia n'um grupo de rapazes, ardentes e aristocratas, que se tinham embebido da Revolução atravéz da litteratura; fallavam muito da Humanidade e queriam sobretudo um burgo pôdre que os nomeasse deputados; cultivavam pelos salões o amor platonico, quereriam vêr o povo feliz comtanto que estivessem elles no poder para promover essas felicidades, e (traço decisivo das suas maneiras e da sua pose) quando se escreviam uns aos outros tratavam-se por my darling—meu amor!

Tinham ainda outros distintivos: usavam o cabello á nazarena, mostravam a coragem (enorme n'esse tempo) de admirar o odiado Byron, e procuravam elevar e aperfeiçoar a arte da cozinha em Inglaterra!

No emtanto, Benjamin Disraeli já estava bem decidido a sacudir o seu radicalismo—quando fosse necessario aos interesses da sua careira. E essa carreira via-a elle então, apesar de desconhecido e pobre, tão claramente triumphante no futuro como se a tivesse deante dos seus olhos escripta, parte por parte, n'um programma.

Em pleno reinado dos tories, é caracteristica já a sua resposta a Lord Melbourne, primeiro-ministro [109] então, que lhe perguntava o que elle tencionava fazer.

—Ser eu o primeiro-ministro d'aqui a pouco—respondeu o dandy com as suas grandes maneiras á Vivian Grey.

Lord Melbourne viu n'esta resposta uma odiosa e insolente jactancia. E assim parecia, quando, tempo depois, Disraeli, já deputado por Wycombe, fez o seu primeiro discurso—e o viu suffocado pelas gargalhadas e pelos apupos. Como não podia dominar o tumulto, calou-se, dizendo apenas estas palavras mais:

—Hoje não me quisestes ouvir. Um dia virá em que eu me farei escutar!

E um dia veio em que não só a camara dos communs, mas a Inglaterra, todo o continente, a terra civilizada escutavam com anciedade as palavras que iam cahir dos seus labios, e que traziam comsigo a paz ou a guerra na Europa.

II

A reputação de salão que gozava Lord Beaconsfield, levou algum tempo a transformar-se em popularidade; mas a sua popularidade, apenas obtida, penetrou rapidamente a enorme massa trabalhadora, e tornou-se em poucos annos essa vasta e ressoante nomeada, que fez o seu nome familiar, quasi domestico, em toda a parte onde se falla inglez, na mais rude aldeia de pescadores de Cornwall, no bush d'Australia, entre os mesmos montanhezes barbaros das Highlands, e que, quando elle se dirigia ao congresso de Berlim, attrahia ás estações do caminho de ferro as populações da Allemanha a contemplarem o grande inglez. E este reconhecimento de gloria constitue um dos phenomenos mais curiosos da carreira de Lord Beaconsfield; porque, em geral, não se avalia bem a difficuldade portentosa de obter uma fama, mesmo mediocre.

[111]Não ha nada tão illusorio como a extensão de uma celebridade; parece ás vezes que uma reputação chega até aos confins de um reino—quando na realidade ella escassamente passa das ultimas casas de um bairro.

No momento de sua prodigiosa voga, o velho Alexandre Dumas ficou assombrado de que o magistrado de uma villa visinha de Paris, homem illustrado, de resto, não soubesse com que letras se escrevia esse glorioso nome de Dumas!

E se nós pudessemos reduzir a numeros as proporções das glorias contemporaneas, ficariamos aterrados perante a grotesca mesquinhez dos resultados. Nós outros jornalistas, criticos, artistas, homens de estudo e de curiosidade litteraria, julgamos quasi impossivel que haja alguem na Europa que não tenha lido Victor Hugo, ou que, pelo menos, não conheça esse nome de syllabas faceis, que ha meio seculo fere, a grande estrondo, o ouvido humano; pois bem, póde-se dizer que fóra de França apenas cinco mil pessoas talvez terão lido Victor Hugo—e que não passará decerto de dez mil o numero de creaturas que lhe saibam o nome, incluindo mesmo a vasta massa democratica de que elle é o epico official. E já isto constitue um famoso progresso—desde o tempo em que Voltaire ambicionava ter cem leitores!

A conhecida alegoria da fama, cantando o nome [112] d'um varão com as suas cem bocas, applicadas ás suas cem tubas, e voando de um a outro confim do universo—é uma das imagens mais descaradamente falsas que nos legou a Antiguidade. Esse estrondear das cem tubas morre como um suspiro dentro da área humilde d'um corrilho ou d'uma coterie: e nada viaja com uma lentidão egual á da Fama. Um fardo de fazendas gasta quatro dias a vir de Londres a Lisboa—e os nomes de Tennyson, Browning, Swinburne, os tres grandes poetas da Inglaterra, e que ha quarenta annos são a sua mais pura gloria, ainda cá não chegaram. É verdade que todo o mundo necessita flanellas—e nem todo o mundo supporta poesia.

Mas uma celebridade não encontra só difficuldades em transpôr a fronteira—acha-as sobretudo e quasi insuperaveis em fixar a atenção da grande turba dos seus concidadãos. Principalmente n'um paiz como a Inglaterra, em que a aspera lucta pela existencia, a soffrega preoccupação do pão diario, o feroz conflicto da concorrencia, não permitem esses pachorrentos vagares, os vagares portuguezes ou hespanhóes, em que se está de barriga ao sol, prompto a olhar, a admirar o menor foguete que estala nos ares.

Em Inglaterra, o duque de Wellington era de certo popular—porque ganhou a batalha de Waterloo,[113] e portanto, segundo a crença contemporanea, salvára a Inglaterra da invasão. Gladstone é conhecido em cem cidades e mil aldeias, porque alliviou a nação dos seus grandes impostos. Mas estes fórmam as excepções; as outras celebridades inglesas, ou sejam politicos como Lord Salisbury, ou philosophos como Spencer, ou poetas como Browning, ou artistas como Herkomer—permanecem profundamente ignorados da grande massa do publico. São reputações de salão, de academia, de club, de redacção de jornal.

Ora, Lord Beaconsfield realmente nunca fez coisa alguma para se tornar popular e sempre lembrado; nunca ligou o seu nome a uma grande instituição, a um grande beneficio publico, a uma campanha victoriosa. Tudo, ao contrario, n'esta original personalidade parecia destinal-o á impopularidade: a sua origem, os seus gestos e habitos anti-inglezes, a sua poderosa veia sarcastica, a sua oratoria requintada e subtil, o gongorismo metaphysico das suas concepções litterarias, e certos lados muito accentuados do seu fundo semitico. E a isto accrescia que, para a grande maioria da nação, elle representava um parvenu de auctoridade oligarchica, surdamente hostil á ideia de democracia e de soberania popular.

A sua assombrosa popularidade parece-me provir de duas causas: a primeira é a sua idéa (que [114] inspirou toda a sua politica), de que a Inglaterra deveria ser a potencia dominante do mundo, uma especie de Imperio Romano, alargando constantemente as suas colonias, apossando-se dos continentes barbaros e britannizando-os, reinando em todos os mercados, decidindo com o peso da sua espada a paz ou a guerra do mundo, impondo as suas instituições, a sua lingua, as suas maneiras, a sua arte, tendo por sonho um orbe terraqueo que fôsse todo elle um imperio Britannico, rolando em rythmo atravez dos espaços.

Este ideal, que tomou o nome de imperialismo nos dias de gloria de Lord Beaconsfield, é uma idéa querida a todo o inglez; os mesmos jornaes liberais que com tanto furor denunciavam os perigos d'esta politica romana, no fundo gozavam uma immensa satisfação de orgulho em proclamarem a sua inconveniencia. Havia tanta prosapia britannica em conceber um tal Imperio, como em o condemnar, e em dizer, com um ar de nobre renunciamento: «Não nos convém a responsabilidade de governar o mundo!»

Lord Beaconsfield, sendo a encarnação official d'esta idéa imperial, tornou-se naturalmente tão popular como ella. Foi considerado então como o instrumento da grandeza exterior da Inglaterra, como o homem que a fazia dominante e temida, que mantinha [115] alta e reluzindo terrivelmente aos olhos do mundo a espada de John Bull. Gladstone, Bright, a grande escola liberal, conhecida pela escola de Manchester, era agora accusada de ter, com a sua politica de abstenção só occupada de melhoramentos materiaes, de finanças, de civilização interna—deixado definhar, morrer o prestigio inglez na Europa.

E ai vinha agora aquele extraordinario judeu, apoiado na riqueza, na prosperidade interior que lhe tinham legado os liberaes, collocar de novo a Inglaterra á frente das nações, fazendo ressoar ao longe e ao largo a sua voz de leão...

Todo o paiz andou durante annos inchado com esta grandiosa filaucia, que Lord Beaconsfield ia sempre entretendo com os seus discursos bellicosos, as ameaças theatraes, as concentrações de frotas, um constante movimento de regimentos, invasões aqui e além, a occupação de Chypre, a quasi absorpção da propriedade do isthmo de Suez, sempre algum lance brilhante em que a Inglaterra apparecia entre os fogos de Bengala da sua eloquencia, como a senhora do mundo. E John Bull adorava isto, apesar de vêr que a espada da Inglaterra, depois de flammejar um momento nos ares, era invariavelmente recolhida á bainha; apesar de comprehender que o dinheiro se gastava como a agua das fontes; apesar de sentir que os impostos cresciam; apesar [116] de perceber que a Inglaterra estava tomando sobre os hombros responsabilidades desproporcionadas com a sua força.

Depois, um dia, o grande senso pratico da Inglaterra viu claramente a necessidade de brilhar menos aos olhos do mundo—e de se occupar da machina interior, que começava a desarranjar-se: pôz fóra o grandioso Beaconsfield, e chamou o pratico Gladstone—o homem que reconstitue as finanças, que allivia os impostos, que faz as grandes reformas interiores... Mas, apesar de tudo, Beaconsfield ficou como o typo do estadista que mais que nenhum outro amou e desejou a grandeza imperial da patria.

A esta causa de popularidade deve juntar-se outra—a reclame. Nunca um estadista teve uma reclame igual, tão continua, em tão vastas proporções, tão habil. Os maiores jornaes de Inglaterra, da Allemanha, da Austria, mesmo da França, estão (ninguem o ignora) nas mãos dos israelitas. Ora o mundo judaico nunca cessou de considerar Lord Beaconsfield como um judeu—apesar das gotas d'agua christã que lhe tinham molhado a cabeça. Este incidente insignificante nunca impediu Lord Beaconsfield de celebrar nas suas obras, de impôr pela sua personalidade a superioridade da raça judaica,—e por outro lado nunca obstou a que o judaismo europeu lhe prestasse absolutamente o tremendo apoio do [117] seu ouro, da sua intriga e da sua publicidade. Em novo, é o dinheiro judeu que lhe paga as suas dividas; depois é a influencia judaica que lhe dá a sua primeira cadeira no parlamento; é a ascendencia judaica que consagra o exito do seu primeiro ministerio; é emfim a imprensa nas mãos dos judeus, é o telegrafo nas mãos dos judeus, que constantemente o celebraram, o glorificaram como estadista, como orador, como escriptor, como heroe, como genio!

 

Como romancista, Lord Beaconsfield nunca escreveu propriamente um romance tal como nós modernamente o comprehendemos. Alguns dos seus romances são pamphletos em que os personagens constituem argumentos vivos, triumphando ou succumbindo, não segundo a logica dos temperamentos e as influencias do meio, mas segundo as necessidades da controversia ou da these. Outros fórmam verdadeiras allegorias como as tem a pintura decorativa nas muralhas dos monumentos publicos. N'um dos mais celebres, Lothair, ha um mancebo ideal, encarnação do espirito inglez, que ama successivamente tres mulheres: uma italiana casada com um americano, bella creatura de perfil classico e fórmas de Deusa, que representa a Democracia; uma ardente rapariga de cabellos negros e revoltos, [118] sempre em extasi, que é a personificação da Egreja Catholica; e emfim uma doce e loura donzella, séria, grave e terna, que symboliza o Protestantismo. Depois d'hesitar entre estas tres paixões—decide-se, como um bom inglez, por casar com o Protestantismo, quero dizer, com a loura, conservando um culto vago e secreto pela Democracia, quero dizer, pela soberba americana de perfil marmoreo. Moral: a felicidade d'um povo está na posse d'uma forte moral christã, alliada a um uso moderado da liberdade. Isto dava um excelente e apparatoso fresco na sala d'um parlamento. E Lord Beaconsfield accentua os detalhes allegoricos com uma tal ingenuidade, que faz por vezes sorrir; assim, por exemplo, a americana, isto é, a Democracia, apparece sempre em soirées e festas vestida á grega, com uma estrella de brilhantes na fronte, como a cabeça da republica nas moedas francezas de cinco francos!

O meio, em que os seus romances se passam, tem quasi sempre um ar feerico: tudo são, como disse ha pouco, palacios d'um fabuloso e sombrio luxo, festas como as não tiveram os Medicis, fortunas de banqueiros, de duques, perante as quaes os Cresus, os Monte-Christos, os Rothchilds, todos os ricaços da lenda ou da realidade apparecem como despreziveis pelintras.

A linguagem d'estes personagens corresponde [119] ao esplendor das suas moradas e ao nebuloso dos seus destinos. Misses de dezoito annos, habitando prosaicamente Belgrave Square, fallam aos seus namorados com a pompa allegorica do Cantico dos Canticos; e quando (o que é frequente) dois brilhantes espiritos como Sidonia ou Mrs. Coningsby conversam, veem-se, cruzando rapidamente d'um a outro labio, as imagens rutilantes, os luminosos conceitos, como se as duas creaturas se estivessem recitando um ao outro numeros do Intermezzo ou sonetos de Petrarcha.

Esta linguagem, de resto, convem ás idéas, aos sentimentos, ás aventuras que elle atribue aos seus typos principaes; tudo o que é humano e real fica absolutamente de fóra d'essas transcendentes creações: fallando como poetas, comportam-se naturalmente como chimeras.

O seu mais famoso heroe, Tancredo, vae a Jerusalém e á Syria com este fim: penetrar o mysterio asiatico. Não percebem? É facil. Sendo Jerusalém e as planicies da Syria o unico ponto do Universo em que Deus, em tempos, conversou com o homem, em que appareceram os prophetas e os Messias, em que das sarças, do murmurio dos rios e do echo dos desertos surgiram as Leis Novas, dando á humanidade destinos novos—o moço Tancredo parte, para que lá, n'esses logares, Deus lhe falle, um raio de [120] luz o divinize, uma religião lhe seja revelada, e tendo partido de Londres como simples lord, possa regressar a Regent Street, como Messias e regenerador de sociedades!

E (perguntar-me-hão) o que succede a Tancredo na Syria? O que succede a todos os personagens de Lord Beaconsfield, que nas primeiras paginas partem para sobrehumanos destinos, como os antigos cavalleiros da Tavola Redonda: succede-lhe que casa com uma linda e honesta menina, e que tem muitos filhos no meio de muita felicidade...

E o mysterio asiatico? Parece que o não achou. Mas descobriu coisas curiosas e de rara fabula: por exemplo, um povo pagão, onde reina uma bella sacerdotisa de Apollo, que celebra ainda hoje nobres cultos hellenicos, e que se namora de Tancredo. Mas Tancredo, cavalleiro christão, depois de a defender da invasão d'um outro povo, que adora idolos infames, foge, foge á desfilada, deixando a classica rainha a gemer de amor aos pés da estatua d'Astarte. Depois elle mesmo está para ser rei do Libano. Emfim, uma grandiosa e rutilante salsada. E tudo isto se passa ahi por 1855, no tempo da Exposição de Paris.

Mas que prodigioso talento, que arte, que amplidão d'imaginação para pôr de pé, em todo o seu brilho, este desordenado monumento d'Idealismo!

[121] 

Com effeito, que artista fino e por vezes poderoso!

Apesar d'este abuso do gongorismo na ficção, do vago e ao mesmo tempo do amaneirado das suas concepções, d'estes enredos e d'estes personagens que por vezes parecem uma mystificação—os seus romances nunca deixam d'interessar, direi mesmo, nunca deixam de captivar. Atravessa-os sempre um enthusiasmo sincero—em que se sente o amor poetico com que elle segue os seus generosos heroes, as suas bellas mulheres, n'esses destinos fóra da realidade. Depois a sua fina sensibilidade, o seu idealismo um pouco convencional, mas de grande elan, os requintes d'um gosto supremo—levam-no a dotar os seus personagens, e a acção em que elles se movem, de uma tal belleza espiritual, de uma tão alta nobreza de costumes, que os olhos enlevam-se, a imaginação namora-se d'esse mundo ficticio, d'essa humanidade de poema, onde nada existe de vulgar ou de baixo, e onde brilham fórmas maravilhosas e transcendentes do pensar, do sentir e do viver.

Isto dá-lhe uma qualidade encantadora: é luminoso. Personagens, paizagens, interiores, o proprio movimento da aventura—tudo está banhado n'uma luz serena e graciosa. Pintando as cousas fóra da [122]verdade social, não tendo de lhe apresentar as sombras tristes, exclue dos seus vastos quadros tudo o que na vida é duro, brutal, feio, máu, estupido—as fórmas varias da baixeza humana.

Escrevia para uma sociedade rica, nobre, litteraria, requintada—e mostra-lhe um mundo d'ouro e crystal, girando n'uma bella harmonia, batido de uma luz côr de rosa...

 

Tenho insistido n'este lado não real dos livros de Lord Beaconsfield. Todavia, um homem d'estes, antigo dandy, critico, estadista, habituado a governar, observador por necessidade, não podia deixar de ter accumulado uma grande experiencia dos caracteres e da sociedade; e essa experiencia deveria necessariamente transparecer nas suas pinturas da vida. E lá está com effeito. Por entre as suas grandes creações symbolicas, de indisciplinada imaginação (Tancredo, Lothair, Sibyl) move-se todo um mundo real, de uma vida exacta e forte, figuras de carne, postas de pé com um singular vigor de desenho e côr. São os seus personagens secundarios, os seus politicos, os seus intrigantes, os seus homens de lettras, as suas mulheres da moda, os seus lords elegantes. Todos estes typos fôram copiados do natural. Londres conhecia-os, dava-lhes logo os [123] nomes; e o escandalo d'estes retratos foi mesmo uma das grandes causas do successo de Lord Beaconsfield. Mas, mesmo para quem não frequenta a sociedade de Londres, e não conhece os originaes, estes typos interessam—porque vivem.

Ordinariamente são apenas esboços, mas magistraes; e apparecendo assim em destaque, ao lado de creações de pura imaginação, descomedidamente poeticas e de contornos fluctuantes, esses typos reaes adquirem um relevo maior, como perfis da verdadeira humanidade, mostrando-se por entre o nebuloso de uma mythologia.

São elles os que interessam, e da vasta galeria de Lord Beaconsfield só elles ficarão lembrados.

 

Seria impossivel, n'este estudo ao correr da penna, feito só de impressões, marcar todos os traços de uma individualidade tão complexa como a de Lord Beaconsfield.

Poucos homens têm produzido um tão curioso conflicto de apreciações: diz-se d'elle que foi um grande homem de estado, e diz-se tambem que foi apenas um charlatão; a critica tem-n'o apresentado como um romancista de genio—e como um máu alinhavador de novellas! Homem de partido, soffreu em politica e em litteratura, ora a idolatria, ora o [124]rancor da parcialidade partidaria. Uma coisa porém tinha a seu favor: é que todos os mediocres o detestavam.

É difficil, de resto, separar n'elle o politico do romancista: sempre fez politica nas obras d'arte, que se tornavam assim resoantes manifestos das suas idéas de estadista—e fez romance no governo, que parecia muitas vezes um scenario de drama, sobre o qual elle estava de penna na mão, combinando os lances d'effeito. Seja como fôr, a Inglaterra perdeu nele um dos seus genios mais pittorescos e mais originaes.

 

Individualmente foi um feliz. Tendo, em novo, lançado o plano da sua vida futura, como quem prepara um enredo de romance, realisou-o plenamente em todos os pontos, n'um continuo triumpho. Foi formoso, foi amado, foi rico, teve a melhor esposa de Inglaterra (como elle dizia), deixou uma vasta obra litteraria, foi o confidente escolhido da sua rainha, governou a sua patria, pesou nos destinos do mundo, e findou n'uma apotheose. Foi então absolutamente, ininterrompidamente, ditoso? Não. Este homem triumphante viveu acompanhado d'um secreto, d'um pequenino, d'um ridiculo desgosto: nunca pôde fallar bem francez!

[125]

IX
Os inglezes no Egypto

I

O que resta d'Alexandria.—A estreia d'Arabi Paxá.—Algemas ao café.

Até ha cinco ou seis semanas Alexandria podia ser descripta no estylo convidativo dos Guias de viajantes como uma rica cidade de 250.000 habitantes, entre europeus e arabes, animada, especuladora, prospera, tornando-se rapidamente uma Marselha do Oriente. Nenhum Guia, porém, por mais servilmente lisonjeiro, poderia chamar-lhe interessante.

Apesar dos seus dois mil annos de edade, de ter sido, depois de Athenas e Roma, o maior centro de luxo, de lettras e de commercio que floresceu no Mediterraneo, a velha cidade dos Ptolomeus não possuia hoje nenhum monumento do seu passado, a não contarmos, ao lado d'um velho cemiterio mussulmano, uma coluna erigida outr'ora por um prefeito romano em honra de Diocleciano, conhecida [126] pelo sobrenome singular de Pilar de Pompeu, e mais longe, estendido n'um areal, um obelisco pharaonico do templo de Luxor, que gosava a grotesca alcunha de Agulha de Cleopatra. E esta mesma reliquia está agora em Londres, no aterro do Tamisa, pousada n'uma peanha de bronze, allumiada pela luz electrica, aturdida pelo estrondo dos comboyos...

Os bairros europeus d'Alexandria quasi recentes (ha cincoenta annos, antes de Mehemet-Ali dar o impulso á sua reedificação, a grande metropole que espantava o califa Omar estava reduzida a uma aldeia vivendo da pesca e do commercio d'esponjas) compunham-se principalmente d'uma vasta praça, a famosa praça dos Consules, orgulho de todo o Levante, e de ruas largas, com nomes francezes, estuque francez nas fachadas, taboletas francezas nas lojas, cafés francezes, lupanares francezes—como um faubourg de Bordéus ou de Marselha transportado para o Egypto e empenachado aqui e além de palmeiras.

A parte arabe da cidade não tinha nenhum pittoresco oriental: eram arruamentos quasi direitos, com casebres lavados a cal e terminando em terraço, pousados n'um solo, meio de terra e meio de areia, que a menor brisa do mar espalhava em nuvens pelo ar.

Cidade feia á vista, desagradavel ao olfacto, reles, [127]insalubre, Alexandria visitava-se á pressa, ao trote de uma tipoia, e depressa se apagava da memoria, apenas o comboio do Cairo deixava a estação, e se ausentavam, entre as primeiras culturas do Delta, ao longo dos canaes, as filas de ibis brancos, os mais velhos habitantes do Egypto, outr'ora deuses, ainda hoje aves sagradas...

Todavia, tal qual era, Alexandria, com a sua bahia atulhada de paquetes, de navios mercantes e de navios de guerra; com os seus cáes cheios de fardos e de gritaria, os seus grandes hoteis, as suas bandeiras fluctuando sobre os consulados, os seus enormes armazens, os seus centenares de tipoias descobertas, os seus mil cafés-concertos e os seus mil lupanares; com as suas ruas, onde os soldados egypcios, de fardeta de linho branco, davam o braço á marujada de Marselha e de Liverpool, onde as filas de camelos, conduzidos por um beduino de lança ao hombro, embaraçavam a passagem dos tramways americanos, onde os sheiks, de turbante verde, trotando no seu burro branco, se cruzavam com as caleches francezas dos negociantes, governadas por cocheiros de libré—Alexandria realizava o mais completo typo que o mundo possuia de uma cidade levantina, e não fazia má figura, sob o seu céo azul ferrete, como a capital commercial do Egypto e uma Liverpool do Mediterraneo.

[128]Isto era assim, ha cinco ou seis semanas. Hoje, á hora em que escrevo, Alexandria é apenas um immenso montão de ruinas.

Do bairro europeu, da famosa praça dos Consules, dos hoteis, dos bancos, do escriptorios, das companhias, dos cafés-lupanares, resta apenas um confuso entulho sobre o solo, e aqui e além uma parede enegrecida que se vae alluindo.

Pela quarta vez na historia, Alexandria deixou de existir.

Tratando-se do Egypto, terra das antigas maldições, póde-se pensar, em presença de tal catastrophe, que passou por alli a colera de Jehovah—uma d'essas coleras de que ainda estremecem as paginas da Biblia, quando o Deus unico, vendo uma cidade cobrir-se da negra crosta do peccado, corria de entre as nuvens a cicatrizal-a pelo fogo, como uma chaga viva da Terra. Mas d'esta vez não foi Jehovah. Foi simplesmente o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour, em nome da Inglaterra, e usando com vagar e methodo, por ordens do governo liberal do Sr. Gladstone, os seus canhões de oitenta toneladas.

Seria talvez deshonesto, de certo seria desproporcionado, o juntar aos nomes dos homens fortes que n'estes ultimos dous mil annos se têm arremessado sobre Alexandria e a têm deixado em ruinas,—aos nomes de Caracalla, o pagão, de Cyrillo, o [129] santo, de Diocleciano, o perseguidor, e de Ben-Amon, o sanguinario—o nome de Sr. William Gladstone, o humanitario, o paladino das nacionalidades tyrannizadas, o apostolo da democracia christã. Mas se por um lado, evidentemente, a politica do snr. Gladstone não é um producto de pura ferocidade pessoal, como a de Caracalla, que fez arrasar Alexandria, porque um poeta d'essa cidade finmente dada ás letras o molestára n'um epigramma—por outro lado esta brusca aggressão de uma frota de doze couraçados, cidadellas de ferro fluctuando sobre as aguas, contra as decrepitas fortificações de Mehemet-Ali, este bombardeamento d'uma cidade egypcia, estando a Inglaterra em paz com o Egypto, parece-se singularmente com a politica primitiva do califa Omar ou dos imperadores persas, que consistia n'isto:—ser forte, cahir sobre o fraco, destruir vida e empolgar fazendas. D'onde se vê que isso a que se chama aqui a politica imperial d'Inglaterra, ou os interesses da Inglaterra no Oriente, póde levar um ministro christão a repetir os crimes d'um pirata mussulmano, e o snr. Gladstone, que é quasi um santo, a comportar-se pouco mais ou menos como Ben-Amon, que era inteiramente um monstro. Antes não ser ministro d'Inglaterra! E foi o que pensou o veneravel John Brigth, que, para não partilhar a cumplicidade d'esta brutal destruição d'uma cidade inoffensiva, deu a [130]sua demissão do Gabinete, separou-se dos seus amigos de cincoenta annos, e foi modestamente occupar o seu velho banco de oposição...

 

Tudo o que se prende immediatamente com a aniquilação de Alexandria, é de facil historia, sobretudo, traçando-se só as linhas principaes, as unicas que pódem interessar quem está moral, e materialmente, a tres mil legoas do Egypto e das suas desgraças.

No principio de junho passado, o almirante inglez Sir Beauchamp Seymour achava-se nas aguas de Alexandria, commandando uma formidavel frota, e tendo ancorada ao seu lado uma esquadra franceza com o pavilhão do almirante Conrad. A França e a Inglaterra estavam alli com morrões accesos, vigiando Alexandria, de camaradagem, como tinham estado nos ultimos dous annos no Cairo, de penna atraz da orelha, fiscalisando, de camaradagem, as finanças egypcias: porque sabem, de certo, que, tendo o Egypto (endividado até ao alto das pyramides para com as burguezias financeiras de Pariz e Londres) omittido o pagamento de alguns coupons,—a França e a Inglaterra, protegendo maternalmente os interesses dos seus agiotas, installaram no Cairo dous cavalheiros, os srs. Coloin e Blegniéres, ambos [131] com funcções de secretarios de fazenda no ministerio egypcio, ambos encarregados de colher a receita, geril-a e applicar-lhe a parte mais pingue á amortisação e juros da famosa divida egypcia!

De sorte que as duas bandeiras, de Inglaterra e da França, eram na realidade dous enormes papeis de credito, içados no tope dos couraçados. No almirante Seymour e no almirante Conrad reappareceram os dous burguezes, Coloin e Blegnières. E na bahia de Alexandria, perante o Egypto, um dos grandes fallidos do Oriente, as frotas unidas das duas altas civilisações do Occidente representavam simplesmente a usura armada.

Isto era assim na realidade. Officialmente, porém, os couraçados estavam alli fazendo uma demonstração naval, de facto realisando uma intervenção estrangeira—porque se tinham dado casos no Egypto e o Khediva declarara-se coacto. Todos os que conhecem a historia contemporanea de Portugal e de outros curiosos paizes constitucionaes sabem o que significa esta deliciosa phrase: El-rei está coacto! Isto quer dizer que Sua Magestade se acha em palacio, cercado de uma populaça carrancuda que agarrou em chuços, arranjou uma bandeira no alto de um páu, e vem impor esta fórmula prodigiosamente desagradavel para El-rei: diminuição de auctoridade regia e augmento de liberdade publica...

[132]Se El-rei conserva por traz do palacio alguns regimentos fieis, enverga n'esse momento a farda de generalissimo, e manda acutilar o seu povo: se desgraçadamente, porém, os soldados estão unidos aos cidadãos, então El-rei declara-se coacto, e pede a um rei visinho, mais forte e menos atarantado, que lhe mande uma divisão, a restabelecer a ordem—isto é a assegurar a Sua Magestade a sua somma intacta d'autoridade regia, dispersando a tiro a tentativa de liberdade publica. Isto hoje, realmente, já se não usa na Europa: mas no Oriente, ao que parece, é ainda um methodo muito decente de acalmar os descontentamentos nacionaes.

O Khediva, esse excellente e pacato moço, tinha sido victima de um pronunciamento planeado, á maneira hespanhola, mas posto em scena á moda turca. Um coronel, Arabi-bey, que em breve ia ser o famoso Arabi-Pachá, apresentou-se com outros officiaes no palacio, e depois do salamalek, que na etiqueta turca consiste em beijar devotamente a aba da sobrecasaca do Khediva, como nós em Lisboa beijamos a tunica de Santo Antonio, lembrou a Sua Alteza a necessidade de fazer reformas, algumas puramente militares e em proveito dos coroneis, outras politicas, para bem da grande populaça fellah, e tão largas que constituiam uma mudança de regimen. Sua Alteza escutou, murmurou aquellas phrases sobre [133] o amor da nação, a felicidade dos subditos, que o ceremonial indica nas occasiões d'atrapalhação regia e pareceu tão satisfeito com o interesse, que aquelles officiaes tomavam pela prosperidade do valle do Nilo, que os recompensou á maneira oriental—convidando-os a um banquete. Em torno da festiva mesa a cordealidade foi grande, o champagne espumou contra as prescripções do Alcorão, e entre o sabor das truffas e o aroma dos ramos, o futuro do Egypto appareceu côr de rosa... O café foi servido nos jardins: e quando d'um lado entravam os escudeiros com os licores, do outro surgiram beleguins com algemas. Arabi e os seus camaradas, levando ainda na bocca o ultimo charuto que lhes offerecera Sua Alteza, foram conduzidos ás palhas do carcere.

Não ha nada mais delicioso—nem mais turco.

A Europa toda, a quem agrada a energia, applaudiu com estrepito a energia de Sua Alteza!

[134]

[135]


II

A desforra de Arabi.—Reformadores e coroneis.—O programma fellah.—A conferencia de Constantinopla.—A confusão do Grão-Turco.—As esquadras.

O Khediva teve em seguida, alguns tranquillos dias de triumpho.

Ao abrir o seu Times ou o seu Journal des Débats (porque este principe é illustrado) elle podia regosijar-se, vendo que esses dous ponderosos orgãos da opinião européa o consideravam um potentado energico e cheio de nervo, como cabe a um descendente do grande Mehemet-Ali, vivamente zeloso dos seus direitos, sabendo manter a ordem nos seus estados com duas mãos de ferro, digno emfim da sympathia das potencias.

Uma manhã porém, o palacio appareceu cercado de tropas—doze mil homens com dezoito peças d'artilharia—supplicando que Sua Alteza soltasse Arabi e lhe confiasse o ministerio da guerra. E davam esta razão, honrosa para a logica árabe: que, [136] approvando o exercito as reformas de Arabi-Bey, entendia que elle as executaria muito mais confortavelmente sentado na poltrona de ministro da guerra do que estirado nas palhas do carcere.

O Khediva, que acabava talvez de saborear no Times mais uma glorificação da sua energia, concordou e declarou até que sempre respeitara Arabi. Alli mesmo, sobre o joelho, o nomeou Pachá:—e Arabi-Pachá passou da enxovia para o poder, ao som das bandas marciaes...

Em taes circumstancias um caudilho europeu lança o seu programma tão ruidoso, tão brilhante, subindo tão alto no céo do progresso, como os foguetes que estalam n'esse dia—e de que ordinariamente, como dos foguetes, fica apenas um tição apagado. E estamos tão acostumados a isto, aqui n'estas regiões privilegiadas, onde a locomotiva silva, que as gazetas sisudas começaram a desconfiar de Arabi, desde que o não viram adeantar-se com o seu programma nas mãos. Não o tinha.

Em paiz mussulmano, sob a lei do Alcorão, não os ha: nem era de resto natural que um soldado egypcio (como disse, com uma gôche e desnecessaria ironia, o snr. Gambetta) tivesse encontrado por acaso principios de oitenta e nove ineditos nos sarcophagos dos Pharaós. Não, de certo. Mas Arabi trazia tres ou quatro ideias que, se houvesse uma [137]Europa decente, que lhe permittisse a realisação, podiam ser o começo de um novo Egypto, um Egypto possuindo-se a si mesmo, um Egypto governando-se a si mesmo, um Egypto para os Egypcios—não uma raça escrava enfeudada á familia de Mehemet-Ali, muito menos um refeitorio franco para os esfomeados europeus.

A meu vêr, o que impediu sempre que Arabi fosse um reformador—era o ser elle um coronel fellah, filho de fellah, nascido n'uma d'essas tristes aldéas, montões de choças feitas de lama secca, que negrejam ao comprido do Nilo. Tendo vivido na abjecta miseria dos fellahs—a peior que existe sobre a terra—elle, mais que ninguem, tinha direito a erguer-se em nome dos longos aggravos do fellah. Mas, ao mesmo tempo, Arabi era um soldado que ganhara os seus postos nas prolongadas guarnições do Alto Egypto e nas campanhas do Soudan, que voltára de lá com todo o orgulho da farda, e todo o pedantismo do sabre, não só repassado de militarismo, mas enfrascado em militança—e, portanto, prompto, desde que a sua voz resoava tão alto, a pôl-a ao serviço das pretenções do exercito... Elle representava, por origem e por profissão, as duas grandes classes do povo egypcio—o soldado e o fellah;—e desde o momento em que entre os egoistas, os voluptuosos, os escravos e os interesseiros, elle pareceu [138] ser o unico homem no Egypto que se arriscava, de bom grado, pelas suas ideias, ao exilio e á enxovia,—tornou-se bem depressa, e naturalmente, chefe do partido popular que queria as grandes reformas nacionaes, e pela mesma occasião caudilho do partido militar, que só appetecia vantagens de classe. Assim, em Arabi, o patriotismo confundia-se infelizmente com a insubordinação.

Nas suas reformas encontravam-se, n'uma triste mistura, ao lado de idéas largas, liberaes, contendo a revindicação dos direitos do trabalhador, as mais especiosas exigencias do quartel, revelando o official revoltado. Era com o mesmo enthusiasmo, e como se as duas cousas tivessem egual valor na obra da regeneração do Egypto—que elle pedia uma constituição parlamentar, e augmento de soldo e subida de posto para os coroneis seus camaradas. Que aconteceu? Que na Europa, aquelles que desejavam a continuação do regimen khedival (empreza financeira d'onde sahiam grossos dividendos) fizeram tanto ruido em torno das escandalosas pretenções da tropa, que não deixaram escutar os justos pedidos do povo, e desacreditaram facilmente Arabi, escondendo o seu bom lado de patriota, pondo em relevo o seu mau lado de coronel turbulento.

Toda a revolução dirigida por coroneis é justamente suspeita ao nosso moderno espirito europeu;[139] mas Arabi é um egypcio; e no Egypto, onde o povo fellah, apesar de tão intelligente como qualquer das nossas plebes, é pouco mais que uma irresponsavel horda de escravos, e onde o exercito constitue a classe culta—a obra de progresso tem necessariamente de ser feita pelo soldado. Na Europa, porém, não se sabe isto—ou, antes, finge-se que não se sabe. As exigencias da tarimba puzeram na sombra as reclamações da cabana—e Arabi perdeu na Europa a auctoridade que podia ter como chefe dos fellahs por fallar de espada na mão, d'entre um quadrado de soldados...

De certo, Arabi não é um Mazzini, nem um Luiz Blanc. É um arabe do antigo typo, que apenas leu um livro—o Alcorão. Mas, como homem, possue qualidades de intelligencia, de coração, de caracter, que não ousam negar aquelles mesmos que o estão combatendo tão brutalmente. E como patriota, está á altura dos grandes patriotas: havia certamente muito egypcio no Egypto que abominava o sordido regimen khedival e soffria de vêr o rico valle do Nilo devorado pelo estrangeiro, como outr'ora pelos gafanhotos;—mas esses limitavam-se a curvar tristemente os hombros, invocando o nome de Allah.

Este é o primeiro que entendeu que Allah, apesar de grande e forte, não póde attender a tudo, e [140] que, portanto, se resolveu a tirar a espada em nome do fellah, contra a oppressão colligada dos pachás turcos e dos agiotas christãos.

Quaes eram, por fim, as reformas de Arabi, esse monstro de sedição?

Arabi queria, em primeiro logar, o fim da auctoridade absoluta do Khediva, e o Egypto governado por uma Assembléa eleita; e, como consequencia d'esse novo regimen, uma reforma radical no uso dos dinheiros publicos, que até ahi iam parte para a côrte do Khediva, parte para o harem do Sultão, senhor suzerano do Egypto, parte para as cohortes cerradas de funccionarios estrangeiros, parte, uma grande parte, para pagar os coupons de divida em Pariz e Londres, ficando tão pouco para as necessidades do paiz, que havia dois annos que quasi se não dava soldo ao exercito!

Arabi não negava a divida externa, contrahida por esse esplendido perdulario Ismail-Pachá, mas reconhecida pela nação e garantida pela sua honra:—sómente não admittia que a França e a Inglaterra estivessem installadas no Cairo, á bocca dos cofres, esperando a chegada do imposto, para empolgar uma parte leonina; de tal sorte, que, para satisfazer a voracidade do credor europeu, esmagava-se com tributos o fellah, que, por mais que se esfalfasse dia e noite, tinha por fim de recorrer [141] ao usurario europeu. Cousa estupenda! A Europa apresentava-se officialmente como credora, e, para se fazer embolsar, fornecia secretamente o agiota!...

Mas o ponto delicado das reformas de Arabi era quando tocavam com a situação dos estrangeiros no Egypto. Havia ahi pretenções monstruosas. Arabi exigia que se abolisse o privilegio pelo qual os estrangeiros estabelecidos no Egypto e enriquecendo no Egypto não pagam imposto. O desalmado queria que não houvesse esses tribunaes de excepção para os estrangeiros, que, sob o nome de tribunaes mixtos, distribuem duas justiças—uma de mel para o europeu, outra de fel para o arabe. Emfim, esse homem fatal pretendia que os empregos publicos não fossem dados exclusivamente a estrangeiros—e que se não pagassem annualmente, como se pagavam, mais de trez mil contos de bom dinheiro egypcio, a francezes, inglezes e italianos repoltreados em sinecuras em todas as repartições do valle do Nilo, e quasi todos tão uteis ao estado como aquelle inglez que, com uma carta de recommendação de Lord Palmerston, foi nomeado coronel do exercito egypcio e ao fim de nove annos, depois de ter recebido perto de oitenta contos de soldos, ainda não tinha visto o seu regimento e ainda mesmo não tinha uniforme!

Taes eram, em resumo, as abominaveis idéas de [142] Arabi, e não se imagina facilmente a apopletica indignação que ellas causaram á França republicana e á livre Inglaterra. Arabi foi considerado uma féra. Na Bolsa de Pariz, no Stock-exchange de Londres, onde os fundos egypcios tinham descido, pedia-se com energia a suppressão immediata d'esse iniquo aventureiro.

Os gritos estridentes dos estrangeiros no Egypto, ameaçados nas suas pessoas e nos seus privilegios, enterneciam a Europa.

As potencias occidentaes trocaram as suas vistas, segundo a hedionda phrase diplomatica, e concordou-se que o Egypto estava em anarchia. O Khediva, esse já se declarara coacto, e urgia descoactar rapidamente esse amavel principe, tão doce ao estrangeiro. A Inglaterra e a França, pois, (paizes que dizem ter interesses superiores no Egypto) mandaram as suas esquadras ás aguas de Alexandria, para aterrar Arabi. Póde-se perguntar até que ponto seis couraçados, sem tropas de desembarque e ancorados n'uma bahia, conseguiriam atarantar um ministro da guerra, seguro no Cairo, a dez horas de caminho de ferro, cercado de vinte mil homens de tropas regulares, apoiado por quatro milhões de população fellah, alliado aos grandes chefes beduinos, e sanctificado pela approvação religiosa dos Ulemas...

[143]Hoje, aquelles mesmos que aconselharam essa manifestação, como o Times, confessam com o rubor nas columnas, que foi uma insensatez. Em todo o caso fez-se—e acompanhada de um documento, um papelucho diplomatico que, pelo comico intenso do seu conteúdo, parecia arrancado a alguma farça descabellada de Labiche. Esse escripto, apresentado gravemente pelos consules de França e Inglaterra, intimava o Khediva a que demitisse Arabi, o exilasse para o Alto-Egypto, para além das cataractas, conservando-lhe, para o não descontentar de todo, as suas honras de pachá e os seus soldos de coronel! Não sentis aqui, amigos, toda a folia de um vaudeville? De um lado o Khediva abandonado, em palacio, envolvido por uma revolução victoriosa, refugiado na equivoca fidelidade de alguns ajudantes de campo e de alguns eunucos; do outro lado Arabi tendo por si o exercito, a nação, o deserto e as mesquitas. E a Europa suggere áquelle Khediva que desterre para a Nubia este Arabi! Conheceis cousa alguma que mais reclame a verve do chorado Offenbach? Os jornaes inglezes hoje confessam tambem entre dentes que o papelucho era estupido. Se o era! E estão d'ahi a vêr o resultado: Arabi encolheu os hombros, adjudicou-se mais o ministerio da marinha, e substituiu alguns dos outros ministros, antigos familiares do Khediva, por homens seus, gente de nervo e de arranque.

[144]Perante esta resposta dada ao seu ultimatum, a Europa ficou, se me é licito este dizer irreverente—de orelha murcha. E então tomou a decisão das grandes crises; delegou diplomatas que se sentaram em torno de uma mesa de panno verde, e enterraram pensativamente a cabeça entre os punhos. Chamou-se a isto a Conferencia de Constantinopla. O seu fim, todo louvavel, era resolver a questão do Egypto.

E ainda lá está, fina e subtil, a resolver! Alexandria ardeu, deixou de existir; o canal de Suez é patrulhado por canhoneiras inglezas; o general Sir Garnet Wolseley marcha sobre o Cairo; a terra do Egypto é terra britannica—e ella ainda lá está, a resolver!

Quanta habilidade n'aquella assembléa! N'aquella assembléa quanta auctoridade! Ainda lá está...

Ainda lá está, á margem das aguas doces do Bosphoro, em torno da mesa de panno verde, com a cabeça enterrada entre os punhos!...

Depois de reunida a Conferencia, a Europa, naturalmente, lembrou-se que o Egypto é ainda uma dependencia dos estados do Sultão, paga tributo ao Sultão, e que portanto ao Sultão competia ir restabelecer a ordem nos seus agitados dominios.

Questão obscura e embrulhada, esta das relações do Egypto com a Turquia.

É o Khediva um principe vassallo? A diplomacia [145] hesita. Por um lado, os Khedivas succedem-se por hereditariedade, têm exercito, armam marinha, cunham moeda, declaram guerras, fazem tratados; por outro lado, pagam tributo. Mas constitue elle uma affirmação de vassalagem de pachá a sultão? É uma simples offerta de principe mussulmano ao chefe do Islam, como o presente que o rei catholico de Hespanha manda todos os annos ao papa? É uma prestação annual da tremenda somma, porque Mehemet-Ali e depois Ismail-Pachá compraram aos Osmanlis a sua independencia? É simplesmente um pourboire?... Seja como fôr, o tributo existe—e, fundado n'elle, a Europa appellou para o Sultão. Arabi, bom crente, devia venerar o Sultão; o Sultão, bom pae, podia exterminar Arabi. E aqui começa a famosa comedia das vacillações do Sultão.

Por um lado, o Sultão desejaria mandar tropas ao Egypto, occupal-o sob o pretexto de o tranquillisar e refazer d'elle uma provincia turca, um pachalato dependente do serralho, tal qual era antes de Mehemet-Ali, quando na riqueza do valle do Nilo estava o verdadeiro thesouro dos califas; por outro lado, porém, o Sultão não queria desembarcar no Egypto como cabo de policia da Europa, pela razão de que, prevendo este caso, os ulemas da mesquita d'El-Azhar, o grande centro religioso e o grande centro lettrado do Islam, o Vaticano e a Sorbona do [146] Oriente, possuindo no mundo mussulmano uma auctoridade igual á de um Concilio no mundo catholico,—tinham declarado que se o Sultão, em nome da Europa christã, pegasse em armas contra gente mahometana, tornava-se ipso facto apostata, e ipso facto perdia o califado. Por um lado tambem o Sultão, tendo, ao que se diz, recebido de Arabi promessas de depor o Khediva e proclamar em seu logar Helim-Pachá, que é em Constantinopla o conselheiro e o favorito do serralho—conspirava com Arabi contra o Khediva; mas por outro lado, tinha noticia das intelligencias de Arabi com o scherif de Meca, que, sendo o descendente directo de Mahomet, possue mais que o Sultão direitos ao califado, e é n'esta santa pretensão apoiado por todas as tribus da Arabia; e, receiando assim que Arabi se tornasse o auctor de um scisma no islamismo, o Sultão procurava minar-lhe a influencia crescente—e conspirava com o Khediva contra Arabi. Por um lado ainda, uma vaga revolução constitucional em paiz mussulmano era odiosa ao Sultão; mas, por outro, a maneira como Arabi, alma d'esse movimento, estava tratando d'alto parte da Europa colligada, lisongeava profundamente o seu coração turco. Emfim, este miserando chefe dos crentes não sabia onde havia de dar com a sua cabeça imperial... Não se pense, por este dizer ligeiro, que eu não respeito o Sultão: [147] Abdul-Hamid não é um califa do antigo typo, embrutecido pelo uso de tres mil mulheres,—mas, segundo a expressão do principe de Bismarck, «um dos espiritos mais finos da Europa». Ora, o principe de Bismarck é um entendedor; ainda que, a meu vêr, duas cousas estragam esta famosa finura: primeira o ser excessiva, de modo que Abdul-Hamid, a maior parte das vezes, tropeça e fica enredado na engenhosa complicação dos seus proprios fios; depois o estar ao serviço, não de idéas praticas, mas de fantasias mysticas, como a que se lhe attribue de renovar, na ordem espiritual e em seu proveito, o imperio prophetico de Mahomet.

Emfim, instado pela Europa a intervir no Egypto, e não querendo que a Europa interviesse, porque isso seria a perda do seu pingue tributo annual, o Sultão decidiu-se a enviar Dervich-Pachá, uma velha raposa podre de manhas, com a missão de fazer reentrar Arabi no aprisco dos humildes. Mas apenas Dervich-Pachá começava esta operação, eis que o Sultão inquieto, vendo Arabi e o scherif de Meca de mãos dadas sobre o tumulo do Propheta, remette a Arabi a grande ordem do Medjidieh, a mais nobre condecoração turca, o favor supremo que póde cahir das mãos do califa, acompanhada de uma florida carta de amizade e d'uma esplendida placa de diamantes.

Isto tudo dá a medida da confusão do Grão-Turco.

[148]Arabi, assim glorificado pelo califa, resplandeceu aos olhos do mundo mussulmano com um prestigio maior; Dervich-Pachá, um instante aturdido, redobrou de duplicidade:—e foi então entre Dervich, e Arabi, e o Khediva, e o Sultão, e as potencias, e os consules, e os pachás, e os coroneis, uma intriga tão emaranhada que eu prefiriria fazer-lhes um resumo lucido dos vinte e cinco volumes das Façanhas de Rocambole, do que penetrar na espessura inextricavel d'este embroglio turco-europeu—uma d'essas intrigas fastidiosas que devem enervar, fazer chorar de séca e de fadiga a Providencia, se ella, como affirmam philosophos que estão na sua intimidade, é obrigada a observar minuciosamente todos os successos humanos! Quanto o homem com a sua tolice deve, por vezes, fazer bocejar Deus!

Durante estes successos, emquanto a Europa chafurdava no atoleiro diplomatico, as duas esquadras de França e de Inglaterra, lá continuavam deante de Alexandria manifestando. Do romper do sol ao occaso, immoveis nas aguas calmas, com as camisolas da marujada seccando nas vergas, alli estavam manifestando...

Os officiaes repousavam de vez em quando d'esta rigida attitude de manifestação arranjando um pic-nic em terra, indo fazer um robber de whist ao club inglez, ou organisando, sob as sombras dos jardins de Ramleh, honestas partidas de cricket.

[149]

III

Episodio oriental.—Mussulmanos e christãos.—Uma estrumeira social.—Opiniões de mesa redonda.—Os funccionarios europeus do Cairo.—As dividas d'Ismail-Pachá.—O dia 11 de junho.

Achando-se as cousas assim, amanheceu o dia 11 de junho, que d'ora em deante na historia—n'esse curto instante de notoriedade humana, que emphaticamente se chama a historia—será conhecido por este gallicismo: o massacre de Alexandria.

O primeiro episodio oriental que eu vi, ao desembarcar ha doze annos em Alexandria, foi este: no caes da alfandega, faiscante sob a luz torrida, um empregado europeu—europeu pelo typo, pela sobrecasaca, sobretudo pelo bonnet agaloado—estava arrancando a pelle das costas d'um arabe, com aquelle chicote de nervo d'hippopotamo, que lá chamam courbach, e que é no Egypto o symbolo official da auctoridade.

Em redor, sem que esse espectaculo parecesse desusado ou escandaloso, alguns arabes transportavam [150] fardos; outros empregados agaloados, de chicote na mão, davam ordens por entre o fumo do cigarro...

Saciado ou cançado, o homem do courbach, que era um magrisella, atirou um derradeiro pontapé á anatomia posterior do arabe—como quem, ao fim d'um periodo escripto com verve, assenta vivamente o seu ponto final—e, voltando-se para o meu companheiro e para mim, offereceu-nos, de bonnet na mão, os seus respeitosos serviços. Era um italiano, e encantador. A esse tempo o arabe (como quasi todos os fellahs, um soberbo homem de formas esculpturaes) depois de se ter sacudido como um Terra-Nova ao sahir d'agua, fôra-se agachar a um canto, com os olhos luzentes como braza, mas quieto e fatalista, pensando de certo que Allah é grande nos céos e necessario na terra o courbach do estrangeiro.

Quando, no dia 11 de junho, eu li esses telegrammas, repassados de panico, em que se annunciava á Europa que a população arabe massacrava os europeus nas ruas da Alexandria,—não sei porque revi logo o cáes da alfandega, o italiano serviçal de bonnet agaloado, o courbach estalando nas costas escuras do arabe. Isto não é trazido como allegoria, para dizer que as relações dos europeus e dos egypcios se reduziam a estas duas attitudes—um [151] braço com manga de panno fino erguendo o courbach, e um dorso semi-nú esperando a sova: muito menos quero insinuar que o massacre do dia 11 foi a tardia vingança d'estas brutalidades burocraticas...

O Egypto não é a Serra Leoa; e o crescente ainda não anda tão de rastos que consinta em ser systematicamente espancado pela cruz. Mas a verdade é que no Egypto um qualquer empregado europeu da alfandega, das docas, ou dos caminhos de ferro, que não ousaria erguer a mão para um carrejão europeu,—retalha a pelle d'um egypcio, tão naturalmente e com tanta indifferença como se sacode uma mosca importuna.

É que o europeu d'Alexandria considerava o fellah egypcio como um sêr de raça infima, incivilisavel, mero animal de trabalho, pouco differente do gado; e se tivesse o estylo de La Bruyère, descrevel-o-hia como La Bruyère descrevia os aldeãos do tempo de Luiz XIV, «vultos escuros, curvados sobre a terra e tendo a vaga apparencia de seres humanos...»

N'estas condições de desprezo, usa-se facilmente o courbach e invariavelmente a insolencia...

E note-se que o europeu não tinha muito mais respeito pelo egypcio das classes superiores ou cultas. Qualquer amanuense de consulado julgaria da [152] sua dignidade d'europeu não ceder o passo ao mais velho e nobre scheik, senhor de dez tribus e descendente do propheta; e o mais insignificante empregado dos telegraphos, leitor do Figaro, não nutriria senão desdem pelos sabios doutores da Universidade d'El-Azhar, que não vão ao café ler o Figaro, e pouco sabem de telegraphia.

Mas este absurdo desprezo por uma nobre raça, a quem a civilisação tanto deve, não se manifestava só entre os europeus de Alexandria, colonia de alluvião, formada pelos detritos das populações do Mediterraneo: não ouvimos nós ainda ha dias o proprio snr. Gambetta declarar das alturas da tribuna da camara franceza, esse Sinai da burguezia, que o povo egypcio só podia ser governado a chicote?...

A complicada abundancia da nossa civilisação material, as nossas machinas, os nossos telephones, a nossa luz electrica, tem-nos tornado intoleravelmente pedantes: estamos promptos a declarar desprezivel uma raça, desde que ella não sabe fabricar pianos de Erard; e se ha algures um povo que não possua como nós o talento de compor operas comicas, consideramol-o ipso-facto votado para sempre á escravidão...

Por outro lado, os egypcios olhavam para o europeu como para a ultima e mais terrivel praga do [153] Egypto, uma outra invasão de gafanhotos, descendo—não do céo, onde ruge a colera de Jehovah, mas dos paquetes do Mediterraneo, com a sua chapeleira na mão—a alastrar, devorar as riquezas do valle do Nilo. E este prejuizo não é especial ás classes incultas: o pachá mais bem informado, educado em França, lendo como nós a Revista dos Dous Mundos, nunca reconhecerá o que o Egypto deve á energia, á sciencia, ao capital europeu; para elle, como para o ultimo burriqueiro das praças do Cairo, o europeu é mais que o intruso—é o intrujão.

O arabe de modo nenhum se julga inferior a nós; as nossas industrias, as nossas invenções não o deslumbram; e estou mesmo que, do calmo repouso dos seus harens, o grande ruido que nós fazemos sobre a terra, lhe parece uma vã agitação. Elle sente por nós o pasmo misturado de desdém que póde sentir um philosopho, vendo trabalhar um pelotiqueiro. O pensador diz comsigo que não é capaz de equilibrar uma espingarda sobre o nariz, e lamenta-o; mas consola-se reflectindo que o saltimbanco não é susceptivel de ligar duas idéas. Assim, o mussulmano admira um momento o nosso gaz, os nossos apparelhos, os nossos realejos, todo o nosso genio mecanico; depois cofia a barba, sorri, e pensa comsigo: «Tudo aquillo prova paciencia e engenho, mas eu tenho dentro em mim alguma cousa de melhor, [154] e superior mesmo ao vapor e á electricidade—é a perfeição moral que me dá a lei de Mahomet.»

De resto, nós o sabemos pelas xacaras da nossa mocidade, sempre o crescente detestou a cruz; e póde-se imaginar quaes são os seus sentimentos, agora que a cruz, em logar de o combater como paladino, o explora como agiota.

Se em cidades como Damasco ou Beyrouth o europeu touriste inoffensivo, que passa com a bolsa aberta, excita olhares e murmurios de odio, sómente porque tudo n'elle é differente, desde os dogmas da sua religião até á fórma do seu chapéo—calcule-se o que se dá em cidades como Alexandria e como Tunis, onde o europeu não é touriste amavel que distribue gorgetas, mas o agenciador soffrego que vem instalar-se alli como em terra que conquistasse para arredondar depressa um peculio, sob a bandeira do seu consul.

Accrescente-se que no Egypto o europeu apparecia aos olhos do arabe com o caracter odioso de um privilegiado.

Uma cousa parecia intoleravel—é que o europeu empolgasse todos os logares, todos, desde as gordas sinecuras até os diminutos empregos de cem francos por mez.

Vagava um obscuro posto de carteiro ou de telegraphista—e concorriam, de um lado um arabe [155] honesto e activo, do outro um sacripanta de nacionalidade grega ou malteza. A quem se dava o emprego? Ao sacripanta.

Este systema, fecundo a principio, quando o Egypto era uma barbara provincia turca, e os europeus chamados eram homens de saber especial e de integridade, começou no tempo de Mehemet-Ali, que tentava fazer uma nação sobre as ruinas do velho pachalato, e que convidava para essa obra a sciencia e o capital europeu: continuou depois com Said-Pachá, esse delicioso bon-vivant, tão francez que passava os dias a fazer calembourgs, e que não admittiria em torno de si, e nas repartições do estado, senão cavalheiros capazes de apreciar o Charivari; mas a grande invasão de empregados europeus consumou-se no tempo de Ismail-Pachá,—que acceitava tudo o que vinha da Europa, os especialistas e os vadios, os que traziam uma idéa e os que só traziam dividas...

O Egypto renovou então a velha lenda do El-Dorado. Quem em Pariz, ou em Londres, ou em Roma, se via filado pelos credores, com a derradeira sobrecasaca a coçar-se nos cotovellos, e sem poder voltar ao seu club, por dever dez francos ao porteiro, obtinha de um diplomata ou de um principe uma carta de recommendação para o Khediva e tomava o paquete de Alexandria.

[156]Lá, nos primeiros dias, tinha o hotel pago por Sua Alteza—ao fim do mez emprego dado por Sua Alteza. Qualquer cousa: se era um velho tenor de sala, já sem voz, nomeava-se coronel de cavallaria; se era um militar desacreditado, despachava-se inspector das escolas. Quem não podia alcançar uma carta para o Khediva, ia rojar-se aos pés do consul. Quem não ousava apresentar-se ao consul, empregava as influencias transversaes do paço, as mais poderosas—os eunucos, os cosinheiros, as dançarinas... O emprego vinha, facil e pingue. E o fellah pagava toda a malta.

Mas o peior ainda eram os funccionarios superiores, que as potencias installavam no interior da administração egypcia—tão ciumentas umas das outras, que, se, por exemplo, a França conseguia accommodar um francez na directoria geral das finanças, logo a Inglaterra, para contrabalançar essa parcella de influencia, empurrava um inglez para dentro do estado-maior da marinha; e por seu turno a Italia, já desconfiada, mettia á força um filhote de Roma na direcção da instrucção publica. Alguns d'estes cavalheiros tinham de certo habilidades de especialistas; mas a sua abundancia mesmo enredava o movimento da machina administrativa. Está hoje provado que o Khediva, cedendo a estas pressões, era obrigado a ter seis empregados para fazer o simples trabalho de um! [157] Todo este mundo formava um estado no estado.

Nas suas repartições de finança, nos seus tribunaes, nos seus estados maiores, nas suas commissões, em todos os recantos da sua administração, o Egypto só via faces estrangeiras, só escutava linguas estrangeiras, só sentia interesses estrangeiros; e o dinheiro egypcio mantinha esta cohorte, que só estava alli para annullar a influencia egypcia. E eram ao menos uteis?... O consul-geral dos Estados Unidos conta, n'um livro recente sobre o Egypto, que jantara um dia no Cairo com seis empregados superiores, todos estrangeiros, cujos ordenados sommados subiam annualmente a perto de cem contos! Nas suas repartições, a correspondencia, a escripturação, a contabilidade, tudo era feito em lingua arabe: e nenhum d'elles sabia o arabe!

 

Não havia talvez sobre a terra peior população que a de Alexandria. Essa cidade, que fôra outr'ora o refugio do saber e do luxo do oriente, tornara-se nos nossos dias, sob o Khediva Ismail-Pachá, o barril de lixo da Europa meridional. Todo o refugo humano da Grecia, das ilhas do Archipelago, da Italia, da Sicilia, de Marselha (e Deus sabe quanto estas [158] bellas paragens classicas abundam em meliantes!) se esvasiava instinctivamente sobre Alexandria, alastrava-a, tornava-a sob o seu bello céo azul-ferrete uma fetida estrumeira social.

Bastava atravessar uma rua, para comprehender o conjuncto dos costumes.

A cada esquina, um café-cantante atulhado d'uma malta enxovalhada, que berra, cachimba, emborca aguardente, emquanto sobre o tablado, por traz da ribalta, uma matrona despeitorada e caiada vae rouquejando um estribilho obsceno... De dez em dez casas um lupanar, separado apenas da rua por uma simples cortina... Por toda a parte o jogo: um sacripanta traz uma pequena roleta, um banco, e no meio da rua installa a batota; em redor apinham-se logo outros sacripantas, e d'ahi a momentos a policia tem de acudir, porque corre sangue...

O viajante de gosto e de educação tinha de fugir bem depressa d'esta atmosphera, refugiar-se n'algum quieto café mussulmano, á beira d'agua tranquilla. Ahi ao menos só havia arabes que fumavam gravemente o seu chibouk, fallavam entre si com pollidez, comportavam-se com dignidade.

Ah! estou d'aqui a vêr a primeira mesa redonda a que me sentei em Alexandria!

Era presidida por um grego de pelle livida, de suissas reluzentes como verniz de sapatos, com um [159] grilhão de ouro sobre o collete denotado e brilhantes, talvez verdadeiros, n'uma camisa de oito dias! Que intrujão! que bandido! Como aquillo rolara por todas as trapaças, todos os deboches do littoral levantino! O bom era ouvil-o fallar do Egypto como de um paiz conquistado, terra de ilotas que tinha obrigação de o vestir, de o calçar, de lhe encher a bolsa a elle, e aos outros que o applaudiam em torno da mesa redonda, todos europeus, agenciadores, empregadotes, simples vadios, todos de grilhões de ouro no relogio, de collarinho decotado, o carão resudando vicio, o fallar parlapatão, galãs de espelunca...

L'arabe, monsieur, dizia-me este equivoco personagem, n'um francez do Pireu, ce n'est qu'une infecte canaille!

O infecto canalha eras tu, livido grego!

É evidente que o que tornou Arabi mais popular no Egypto, foi a sua hostilidade aos estrangeiros. O Egypto para os egypcios! Esta phrase, todo um programma, calou fundo no animo do povo inteiro.

O Egypto para os egypcios—não para os empregados estrangeiros, nem para os agiotas estrangeiros...

Ah! esta questão dos credores! A famosa questão da divida egypcia! Em que gastou Ismail-Pachá esses centenares de milhões que a Europa lhe emprestou, [160] e que o pobre fellah está pagando? Em primeiro logar, na realisação de uma idéa economica—o converter o Egypto, que é um paiz agricola, n'uma nação industrial. O Egypto produzia o assucar—porque o não refinaria? Possuia o algodão—porque o não teceria? E ahi começou, á força de milhões, a cobrir as margens do Nilo d'essas colossaes fabricas, de que hoje só restam ruinas;—ruinas de ferro enferrujado e de madeira podre, tão miseraveis e tão tristes, ao lado das bellas ruinas graniticas dos templos pharaonicos, representando, como ellas, a servidão de um povo, mas, pela sua fealdade, não podendo ao menos servir, como ellas, nem para assumpto de uma aquarella...

A outra causa da ruina do Khediva foi a sua prodigalidade. Quem não conhece essa lenda illustre? Quem se não lembra das festas do canal de Suez? Ahi cada verba se contou por milhões. Dois milhões para a illuminação do Cairo. Quatro milhões para o banquete de Ismailia. Despezas com os dois mil convidados durante quinze dias no Cairo e no Canal—setenta milhões!... Para o champagne bebido n'essas semanas de bambocha—dous milhões! O fellah pagava.

Eh! E eu que estou aqui a fallar—tambem o bebi, esse champagne que era no fundo o suor do fellah espumante e assucarado! Tambem eu fui hospede [161] de Ismail-Pachá, á custa do fellah! Tambem eu... Calemo-nos, cubramos a fronte de cinzas, imploremos o perdão do fellah!

 

O resultado d'estas fantasias industriaes, d'estes luxos de Salomão, foi que o Egypto se achou devendo á Europa centenares de milhões, por que pagava um juro de sete por cento, e, como burgueza prudente que zela os seus interesses, a Europa tinha pouco a pouco tomado conta da administração do Egypto...

Quando Arabi quiz modificar este systema, que convertia o povo egypcio n'uma horda de servos trabalhando para os financeiros de Pariz e Londres—as esquadras de França e Inglaterra appareceram logo, pedindo o desterro de Arabi, e o licenceamento do exercito, que era o instrumento e a força do partido nacional. Os arabes viram n'isto um odioso abuso da força, a Inglaterra e a França querendo manter á bala os interesses dos possuidores dos titulos da divida egypcia e os privilegios dos intrusos.

Desde esse momento Arabi tornou-se um libertador; e o Khediva, que as esquadras vinham proteger contra Arabi, passou a ser o renegado, o traidor.

Esta era a situação no dia 11 de junho. Alexandria tornara-se uma fornalha de excitação. Nas mesquitas prégava-se com furor a cruzada contra o [162] christão: nos bazares fallava-se do estrangeiro como do cão maldito, da ave de rapina, peior que o gafanhoto que devora a seara nos campos ferteis do Nilo; e, ou fôsse o fanatismo que despertasse, ou fôsse a miseria que se queria vingar—todo o bom mussulmano se armava.

N'estas circumstancias, de uma chufa de botequim póde nascer uma guerra de raças. E, pouco mais ou menos, assim succedeu. Na manhã do dia 11, na rua das Irmãs, uma das mais ricas do bairro europeu, um inglez, por um velho habito, deu chicotadas n'um arabe; mas, contra todas as tradições, o arabe replicou com uma cacetada. O inglez fez fogo com um revólver. D'ahi a pouco o conflicto entre europeus e arabes, em pleno furor, tumultuava por todo o bairro... Isto durou cinco horas—até que, por ordens telegraphadas do Cairo, a tropa, até ahi neutral, acalmou as ruas. E o resultado, bem inesperado, mas comprehensivel, desde que se sabe que os arabes só tinham cacetes e que os europeus tinham carabinas—foi este: perto de cem europeus mortos, mais de trezentos arabes dizimados. Os jornaes têm chamado a isto o massacre dos christãos: eu não quero ser por modo algum desagradavel aos meus irmãos em Christo, mas lembro respeitosamente que isto se chame a matança dos mussulmanos.

[163]


IV

A fuga dos europeus.—O grande sonho inglez.—O «casus belli».—A vespera do bombardeamento.

Esta matança de christãos—para continuarmos a dar-lhe a sua alcunha diplomatica—puxou bruscamente a attenção do mundo que lê jornaes para o Egypto, e por isso devem ahi ter presentes e vivos—sem que se torne necessario o rememoral-os, detalhe a detalhe—todos os episodios que n'uma semana se desencadearam uns sobre os outros, com uma barafunda de melodrama: a indignação excessiva e tumultuosa da Europa, excitada pelo clamor e pelos gritos da imprensa ingleza; o desordenado panico que se apossou dos europeus residentes no Egypto; e o facto, estranho mesmo n'essa terra de classicos exodos, de uma colonia de mais de cem mil almas abandonando de repente o solo, onde, desde gerações se estabelecera, deixando occupações, interesses, empregos, casa e fazenda, precipitando-se [164] apavorada para os caes de embarque, apinhando-se em paquetes, em navios de carga, em barcaças, em qualquer cousa que pudesse fluctuar na agua, e fugir da terra funesta, pagando a peso de ouro o direito de se agachar n'um buraco de porão; a maneira magistral como a Inglaterra, pelos officiaes da sua armada, organisou e policiou esta nova fuga dos hebreus; emfim, a chegada a Alexandria do Khediva, que perdera toda a auctoridade no Cairo, e colhia a opportunidade de vir abrigar os restos esfrangalhados da sua realeza sob os canhões do almirante Seymour.

Arabi-pachá, que se tornára, de facto, dictador, correu tambem a Alexandria—e o seu primeiro passo foi estabelecer tribunaes marciaes, para julgarem os massacradores do dia 11.

Note-se que se não tratava, nem por sombras, de punir os europeus que tinham mandado tresentos mussulmanos d'esta terra de miserias para o paraiso de Allah; mas sómente os mussulmanos suspeitos de terem posto mãos violentas sobre christãos. Ainda assim, os jornaes inglezes bradaram logo que não se podia ter confiança na justiça, na imparcialidade dos magistrados egypcios, tão hostis ao estrangeiro como á populaça—e que taes julgamentos não passavam d'uma farça, onde os réus, que se mostravam um momento á Europa carregados de ferros postiços, [165]eram depois, por traz dos bastidores, acclamados como bons patriotas.

Arabi-pachá propoz então que esses tribunaes se compuzessem de juizes arabes e de officiaes inglezes. Isto indicava um desejo vivo, quasi uma sofreguidão de justiça. E, com effeito, se o partido nacional agora todo poderoso, se não mostrasse severo—corria o perigo de passar por cumplice; e se as suas refórmas tinham já inspirado tanta antipathia á Europa—o que seria se a elle se pudessem plausivelmente attribuir taes attentados?

De resto, para um mussulmano orthodoxo e fino como Arabi, toda a violencia contra o estrangeiro, contra o hospede, constitue a mais negra violação da lei santa. Arabi era sincero. Mas a Inglaterra não acceitou as suas propostas...

A Inglaterra não acceitou. A Inglaterra estava armada a bordo dos seus couraçados. E, todavia, mais que nenhuma outra nação ella soffrera com os tumultos d'Alexandria: o seu consul, brutalmente espancado, achava-se á morte; alguns dos officiaes da esquadra tinham recebido no uniforme, que é o orgulho da Grã-Bretanha, a lama e as pedradas da populaça egypcia; a maior parte dos europeus assassinados eram de nacionalidade ingleza; contra a Inglaterra se prégara a guerra nas mesquitas, nos bazares, e até sob a tenda beduina...

[166]Mas a Inglaterra, generosa e paternal, queria esquecer essas injurias. Pudera!

É que não lhe convinha reconhecer as atrocidades do dia 11 como um mero e casual episodio de fanatismo mussulmano, a que algumas grilhetas e algumas cordas de forca poriam definitivamente termo; nem lhe convinha descer dos seus couraçados unicamente para ir a um tribunal ajudar a sentenciar dez ou doze facinoras.

O que á Inglaterra convinha, era attribuir a este conflicto local a magnitude de uma anarchia nacional, e offerecer ou impor o seu prestimo—não para castigar os tumultos de um bairro, mas para pacificar todo um paiz em desordem. E assim ella rejubilava com a chegada d'esse dia tão appetecido, tão pacientemente esperado desde o começo do seculo, tão anciosamente espiado desde a abertura do canal de Suez, em que teria emfim um pretexto para assentar na terra do Egypto o seu pé de ferro, essa enorme pata anglo-saxonia, que, uma vez pousada sobre territorio alheio, seja um rochedo como Gibraltar, uma ponta de areia como Aden, uma ilha como Malta, ou todo um mundo como a India—nenhuma força humana póde jámais arredar ou mover.

Já se não tratava de libertar o Khediva coacto, de defender as algibeiras dos portadores do emprestimo egypcio. Um interessse mais alto, ligado [167] com os destinos do Imperio, levantava-se, dominava tudo.

O Egypto estava em anarchia: logo competia á Inglaterra, paladino da civilisação, restabelecer lá a ordem, impedil-o de recahir no estado barbaro.

O Egypto estava em anarchia: logo competia á Inglaterra, como grande potencia oriental, defender essa parte preciosa da terra egypcia—o canal de Suez, e evitar que elle cahisse nas mãos de Arabi ou de outro dictador mussulmano, hostil aos beneficios da civilisação.

É o que pouco mais ou menos respondia a Inglaterra, e bem alto, para que o mundo ouvisse—quando Arabi-pachá lhe propoz uma alliança judicial para punir o crime mussulmano do dia 11.

—Não, dizia John Bull, não se trata do dia 11! Esqueçamos o dia 11. Esqueçamol-o, como se elle fosse apenas o dia 7. A questão é outra. O Egypto está em anarchia. É necessario salvar a civilisação!

E estas nobres palavras significavam, despidas dos seus atavios humanitarios, que a Inglaterra, sob o pretexto de pacificar o Egypto, desembarcaria em Alexandria, occuparia por motivo de operações militares Port-Said e Suez, as duas portas do canal, e depois—depois nunca mais, n'esses pontos estrategicos do caminho da India, se arriaria a bandeira ingleza!

[168]E, feito isto, ficava realisado o grande sonho britannico:—posse absoluta da estrada das Indias; John Bull fazendo sentinella a todas as portas succesivas que conduzem ao seu imperio do Oriente: á entrada do Mediterraneo, Gibraltrar e o seu rochedo inexpugnavel; no Mediterraneo, Malta e Chypre, duas ilhas, dois collossaes depositos de guerra: á entrada do canal, Port-Said; ao fim do canal e á bocca do Mar Vermelho, Suez; á beira do Golfo Persico, Aden; e d'ahi por deante as suas esquadras varrendo os mares...

Deante d'esta esplendida opportunidade se achou a Inglaterra, depois das carnificinas de Alexandria; e, tendo logo declarado officialmente o Egypto em anarchia, sem perda de um momento, começou a armar-se.

E, no meio de tudo isto—a Europa? Oh! a Inglaterra convidava, com bellos ademanes de desinteresse, a Europa a partilhar com ella a honra de pacificar o Egypto! Mas sabia bem que nenhuma das potencias moveria um soldado: nem mesmo a França, que tinha uma frota na bahia de Alexandria e collaborára nas manifestações platonicas; a França, governada por uma democracia burgueza que enriquece, e tornada toda ella uma vasta casa de negocio, não quereria por cousa alguma perturbar aquella paz tepida e doce em que amadurece o Milhão.

[169]Além disso, as potencias já tinham resalvado a sua dignidade, sentando-se em torno da mesa verde da conferencia, á beira das aguas luminosas do Bosphoro, meditando com a cabeça entre os punhos a solução da questão egypcia. E, emquanto ao resto, estavam-se observando, armadas até os dentes, desconfiadas, ciumentas, odiando-se, mas immobilisadas reciprocamente pela propria magnitude dos seus armamentos.

A França receia a Allemanha; a Turquia teme a Russia; a Austria está contida por ambas; a Italia necessita a benevolencia de todas; e cada uma por seu turno treme do snr. de Bismarck, o hediondo papão, o Jupiter trovejante do Olympo diplomatico, que, no seu retiro de Varzin, torturado por toda a sorte de males, passa parte do tempo sob a influencia da morphina...

De resto, que todas appeteciam os despojos do Egypto, só o póde duvidar quem ignore os instinctos de pilhagem, de gatunice, de pirataria, que alberga sempre a alma d'um povo civilisado; mas nenhuma das potencias é, como a Inglaterra, uma ilha cercada d'um mar agitado, onde se move a maior frota da terra; e, apertadas no estreito continente, hombro contra hombro e espada contra espada, nenhuma dellas ousaria dar um passo para o lado do Egypto, com receio que o vizinho lhe saltasse ás [170] guellas. Limitavam-se, por isso, cheias de rancor, a trocar phrases de diplomatica doçura, sentadas á mesa da conferencia.

Quando, deante d'uma casa fechada, os que lhe appetecem as riquezas, discutem, de penna na mão, a melhor maneira de lá entrar—a vantagem pertence toda áquelle que, em logar d'uma penna, se muniu d'um machado e atira de subito a primeira machadada á porta. Foi o que fez a Inglaterra. Emquanto os outros faziam planos pro-forma em cima d'uma carteira—ella fez fogo sobre Alexandria.

Sómente não se póde atacar uma cidade inoffensiva sem um pretexto. E a Inglaterra foi, á falta de outro melhor, forçada a apresentar um tão máu, que, como dizia a Associação dos Positivistas Inglezes, no seu protesto contra a invasão do Egypto, a sua puerilidade só consegue augmentar a sua immoralidade.

Perante os armamentos da Inglaterra, Arabi-pachá, se lhe não comprehendia as intenções espoliadoras, devia pelo menos concluir que era contra elle, contra o partido que elle dirigia, e contra as idéas que elle encarnava, que a Inglaterra se estava preparando; e, muito naturalmente, na espectativa de um ataque, organisou a sua defesa, artilhando os fortes de Alexandria, e erguendo baterias novas pela costa.

[171]Foi contra isto que a Inglaterra protestou; e foi d'isto que fez um casus belli—declarando que, se as obras dos fortes não cessassem, ella destruiria os fortes!... Sem estar em guerra com o Egypto, ella considerava-se no direito de reunir deante de Alexandria uma frota ameaçadora; mas não admittia que as auctoridades de Alexandria concertassem sequer as brechas das velhas fortificações de Mehemet-Ali!

E que explicações estupendas o snr. Gladstone dava á Europa para justificar o casus belli! As baterias que Arabi ergue (dizia elle), os novos canhões que monta, põem em perigo os couraçados inglezes! E os couraçados não punham em perigo os fortes? Mas ao lado da esquadra ingleza estavam navios de guerra francezes, allemães, italianos, gregos, austriacos—tão expostos ás balas de Arabi como os que hasteavam o pavilhão britannico: e esses não se julgavam em perigo!

Que diria a Inglaterra se o commandante de algum dos couraçados francezes ou allemães, que por vezes vêm ancorar nas aguas de Portsmouth ou de Southampton—mandasse de repente prohibir ao governador de uma d'essas praças a continuação das obras de defesa que ahi se vão incessantemente aperfeiçoando, sob o pretexto de que taes baterias poderiam fazer mal ao navio de seu commando?... Com [172] tal precedente, os almirantes inglezes, que honram frequentemente o humilde porto de Lisboa com a presença dos seus pavilhões—estariam auctorisados a exigir a destruição da torre de S. Julião, do Bugio e de Belém! Dir-se-hia que não é de prever que o portuguez, pacato e bonacheirão, faça fogo—muito menos sobre couraçados inglezes. De accordo. Mas que ganharia Arabi-pachá em mandar de surpreza algumas balas á esquadra ingleza—e portanto ás outras que estavam no mesmo ancoradouro—senão o attrahir sobre si, e o seu partido, e o seu paiz, a pavorosa vingança da Europa inteira, injuriada em todos os seus pavilhões?

Arabi fez uma cousa fina: cedeu, promettendo interromper os trabalhos de defesa. E a Inglaterra ficou desapontada. Esta submissão de Arabi desmanchava o seu engenhoso plano.

Alguns jornaes mais cynicos e impacientes chegavam a aconselhar que se não respeitasse a palavra d'um vil mussulmano—e que se fosse bombardeando! O trabalho então da frota foi vigiar incessantemente as fortificações, na esperança de descobrir algum sapador, d'enxada ao hombro, que desmentisse a promessa d'Arabi. De noite, os couraçados projectavam sobre a costa longos e vivos raios de luz electrica, movendo-os lentamente ao longo das baterias, pesquizando anciosamente os menores recantos, [173] procurando o mais leve vestigio de trabalho—fosse elle um cesto de pedras esquecido; e assim foi que uma noite—noite venturosa para o governo do snr. Gladstone!—a esquadra descobriu dois soldados limpando um velho canhão! Que allivio para a Inglaterra! Immediatamente o almirante Seymour mandou este ultimatum a Toulba-pachá, governador da cidade:—dentro em vinte e quatro horas os fortes deveriam ser entregues ás tropas inglezas, ou toda a linha de couraçados abriria fogo sobre Alexandria. A isto, realmente, só se póde responder a grande palavra de Cambronne em Waterloo.

Lamento que Arabi a não dissesse: era a segunda vez na historia que John Bull a receberia em plena face.

A vespera do bombardeamento foi dramatica. O almirante Seymour fez sahir da bahia todos os navios mercantes; e, depois, com a usual etiqueta, convidou os navios de guerra de outras nações a fazerem-se ao largo, levando para fóra da linha de fogo a neutralidade das suas bandeiras. Essa longa procissão de couraçados de toda a Europa, deixando lentamente as aguas da Alexandria, para que a Inglaterra pudesse livremente commetter o seu attentado—é descripta pelos correspondentes inglezes como cheia de solemnidade e de ceremonial. As salvas succediam-se; uns aos outros cortejavam-se os [174] pavilhões dos almirantes. Os ultimos a sahir foram os navios francezes, os alliados na manifestação, que, honra lhes seja, não quizeram ser alliados no crime:—e a tricolor afastou-se tambem, saudada pelo almirante Seymour, entre os hurrahs de despedida da marinhagem e o estridor da Marselhesa. A tarde estava bella; tudo era luz na bahia; os minaretes d'Alexandria branquejavam no azul... Magnifico espectaculo, sem duvida:—sómente que pensariam d'elle os milhares de pobres arabes, de mulheres e de creanças, que o contemplavam das alturas da cidade, e sobre os quaes ia cahir no dia seguinte bala, metralha e bomba?

Por fim, a noite desceu e estrellou-se; á beira da agua calma luziam as luzes d'Alexandria; tudo ficou em silencio na bahia.

Estavam a sós, frente a frente, sob a paz dos ceus, uma grande esquadra ingleza e a cidade inoffensiva que ella, na madrugada seguinte, para satisfazer a sofreguidão mercantil de um povo de lojistas, ia friamente arrasar.

[175]


V

Depois do bombardeamento.—Os incendios.—As responsabilidades.—Uma Alexandria ingleza.—A invasão.—A attitude da Europa.

O almirante Seymour, dias antes, tinha declarado que em duas breves horas desmantelaria os fortes de Alexandria. Ao cabo, porém, de nove compridas horas ainda não fizera calar as baterias egypcias; e ainda justamente uma bomba vinha escavacar a camara do commandante do Inflexivel.

Sir Beauchamp Seymour reconheceu, nos seus despachos para o almirantado, «que os melhores artilheiros da Europa se poderiam orgulhar de uma tão bella resistencia». Mas nem coragem, nem reductos, nem muralhas de granito prevalecem contra esses negros monstros que desfeiam os mares—o Monarcha, o Alexandra, o Soberbo, o Sultão, o Invencivel, o Minotauro, e tantos outros que lá estavam, movediços castellos de ferro, servidos pelas forças combinadas do vapor, da hydraulica, da electricidade, [176]devastadores como um cataclysmo e exactos como uma sciencia.

Pobres fortalezas de Mehemet-Ali! Foi a velha fabula da panella de barro contra que tombou a panella de bronze. Ao anoitecer, eram apenas montões de ruinas fumegando em silencio...

Estava consummada a façanha! Na bahia, agora, tudo cahira n'uma grande paz; a noite descera calma e escura; os enormes couraçados repousavam; da cidade vencida não vinha o menor ruido; só n'um ponto de terra o palacio de Rasel-tin ardia ao abandono. Foi então que o eloquente correspondente do Standard telegrahou para o seu jornal esta phrase que merece fama:—A situação não póde ser mais satisfactoria!

Pelo meio da noite, porém, da parte de Alexandria, onde ficava a Praça dos Consules, começou a erguer-se um vasto clarão. Alli, evidentemente, havia um incendio. Mas como? Porque?

O almirante Seymour lavaria d'ahi as suas mãos—se tivesse a bordo a bacia de Poncio Pilatos. Elle concentrára escrupulosamente o seu fogo sobre os fortes: uma ou outra bomba poderia ter cahido nos bairros arabes—e nada mais legitimo, nem de mais salutar terror; mas a parte européa de Alexandria fôra poupada... E todavia, era lá que o incendio se estendia avermelhando, aquecendo o ceu; e de [177] outros pontos visinhos iam subindo na noite altas labaredas. Diabo! A situação já não era tão satisfactoria...

Ao outro dia houve um tempo muito nublado, com um mar muito forte. Os couraçados, por precaução, fizeram-se ao largo. Quando, horas depois, vieram retomar as suas posições de combate, Alexandria, deante d'elles, ardia toda como uma monstruosa fogueira. Positivammente, não era nada satisfactoria a situação!

Não era. Arabi-pachá abandonára Alexandria, levando o grosso do exercito. E a população mussulmana, enfurecida por nove horas de bombardeamento, sem policia para a conter, com os ulemas a excital-a, tomada da cobiça da pilhagem, e inflammada pela furia das represalias, correra aos bairros europeus,—e incendiou, saqueou, matou, destruiu; matou pela raiva de matar, porque até pobres cavallos de carruagem appareceram esquartejados; destruiu pela raiva de destruir, porque se acharam nas ruas, aos pedaços, vestidos de senhoras, relogios de sala e oculos de theatro...

Ferocidades de fanatismo, que se arremessa n'uma vingança indiscriminada sobre tudo o que lhe represente a raça, os costumes, as idéas que elle odeia—sobre os homens e sobre os espelhos. Isto não se dá só em paiz mussulmano. Sempre que os [178] parizienses invadiam as Tulherias, rasgavam á ponta de sabre o setim das poltronas...

Collocou-se a população de Alexandria, por taes excessos, fóra da humanidade? Os inglezes dizem que sim; eu digo que nós teriamos feito o mesmo, nós europeus, christãos e podres de civilisação. Se, quando os allemães estavam bombardeando Pariz—os parizienses vissem no centro da sua cidade um bairro exclusivamente allemão, compacto, monumental, luxuoso, erguido pelo dinheiro que o allemão ganhára a explorar a França,—resistiriam os parizienses, os mais civilisados dos mortaes, a besuntal-o de petroleo e fazel-o flammejar por uma bella noite de inverno?

A resposta é facil, lembrando-nos que, quando por seu turno o snr. Thiers, esse homunculo de estado, bombardeou Pariz, os parizienses apressaram-se a destruir o palacete do snr. Thiers.

Foi Arabi que ordenou o incendio de Alexandria? Não, evidentemente. Arabi não é um patriota selvagem, do typo d'esse Rostopchin que queimou Moscou: é um fellah fino e sagaz, que sabe que na Europa, na Inglaterra sobretudo, onde affectamos todos uma sensibilidade humanitaria, nada desacredita mais que uma fria crueldade. Basta observar a attitude polida, quasi paternal que elle toma com os prisioneiros inglezes—o guarda-marinha Chair, por exemplo.

[179]Quando este official foi levado ao acampamento arabe, Arabi disse-lhe logo, depois d'um shake-hands.

—Escreva a sua mãe, conte-lhe que está entre mãos leaes, e tire-a d'inquietações...

Isto era de certo sincero—mas sobre tudo habil: e uma tal palavra voou direita ao coração de todas as mães inglezas. Desde os conflictos d'Alexandria, o empenho d'Arabi tem sido proteger os europeus que ainda restam nas villas do interior. Os cadis que não evitaram o massacre dos empregados do caminho de ferro do Delta, foram decapitados. A elle se deve a tranquillidade do Cairo, onde existe uma enorme massa de propriedades e riquezas européas. Que ganharia Arabi em destruir esta prospera cidade egypcia, no começo da campanha e com o seu exercito intacto? Apenas a fama d'um monstro boçal.

Á Inglaterra cabe a responsabilidade da catastrophe. As bombas do almirante talvez, com effeito, não tivessem arrasado mais que alguns casebres arabes; mas á imprevidencia do governo se deve a ruina d'Alexandria.

Desde o meiado de junho, o mais experiente, mais auctorisado dos seus agentes diplomaticos, o snr. E. Malet, consul geral do Egypto, não cessou de bradar—que se o bombardeamento era inevitavel, Sir Beauchamp Seymour devia ter tropas de desembarque, [180] para occupar a cidade, apenas os fortes fossem destruidos, e impedir assim que, no caso provavel de Arabi se retirar para o interior, ella ficasse á mercê d'uma plebe semi-barbara...

Nada d'isto se fez.

Sir Beauchamp Seymour bombardeou, arrasou, repelliu virtualmente d'Alexandria a Arabi, a unica força que continha uma populaça de cem mil fanaticos—e, depois, ficou a bordo do seu couraçado, vendo tranquillamente arder, deante de si, uma das mais ricas cidades do Mediterraneo.

Por outro lado, a quem aproveitava o incendio? Á Inglaterra. O pretexto de que os fortes punham em perigo os couraçados britannicos, só a auctorisava, perante os escrupulos da Europa, a destruir os fortes, não a occupar a cidade. Agora, porém, que ella estava em chammas, abandonada á anarchia, á pilhagem, ao ataque das hordas beduinas que corriam do deserto—agora ella tinha o direito—mais, ella tinha o dever!—de desembarcar e ir salvar de uma total aniquilação tanta riqueza, tão esplendido centro de commercio!...

Generosa Inglaterra! E desembarcou logo, aquartelou tropa, plantou bandeira. Tinha deante de si um monte de ruinas, e em poucos dias foi dando fórma a uma Alexandria nova, já com feição ingleza e administrada á ingleza.

[181]Os incendios foram dominados; as ruas desentulhadas; estabeleceu-se uma policia terrivel, que executava summariamente os ladrões e os incendiarios; abasteceu-se a cidade: a alfandega reabriu as portas; em substituição das lojas destruidas, armaram-se barracões de venda; o machinismo judicial foi posto em movimento; reparou-se a fabrica do gaz, a cidade foi reilluminada; os bancos voltaram a funccionar.

E, como era necessaria uma auctoridade, em nome de quem se reorganisasse a vida municipal, os inglezes, que apenas estão alli (diziam elles) como um corpo de policia, foram buscar o Khediva a uma casa dos arredores, onde elle se refugiara durante o bombardeamento, e installaram-n'o solemnemente no palacio de Ras-el-tin, palacio meio ardido, onde elle é uma auctoridade meio morta!...

 

Desde este momento, a situação tornou-se muito definida, muito simples. Os inglezes possuiam, governavam Alexandria, tão naturalmente como se ella estivesse situada no condado de Yorkshire; e de fronte d'Alexandria, n'essa especie de isthmo arenoso que a liga á terra do Delta, estava Arabi n'um acampamento entrincheirado, governando d'ahi todo o valle do Nilo e o deserto até o mar. Os inglezes [182] recebiam incessantes reforços de casa e da India. Arabi chamava á guerra contra os inglezes todo o povo fellah. A Inglaterra preparava uma invasão. Arabi organisava uma grande defesa nacional. Nada mais claro. A questão é entre a Inglaterra, procurando estabelecer um protectorado sobre o Egypto, arrancar-lhe as cidades estrategicas que dominam o canal, e Arabi-pachá, um patriota, que quer o Egypto para os egypcios, que receia a protecção do estrangeiro como a peior desgraça de um paiz fraco, e que entende que, pelo facto de que Alexandria, Port-Saïd e Suez se acham desgraçadamente no caminho da India, não é motivo para que se tornem guarnições inglezas. E dos dous lados, grande enthusiasmo.

Em Londres, onde acabou a season e começa a monotonia das praias de banhos, o partir para conquistar o Egypto passou a considerar-se uma feliz aventura. Se o ministerio da guerra o consentisse—toda a mocidade de ouro, ou apenas de latão dourado, se alistaria, porque é do mais requintado chic ir dar cabo de Arabi!

O duque de Connaugth, um dos filhos de S. M. a Rainha, faz parte da expedição, e o duque de Teck, seu cunhado, não sendo militar, partiu, diz-se, como simples empregado do correio. Os officiaes dos regimentos de guardas, essa pura nata da aristocracia e flôr da finança, tiveram a ventura de vêr os seus [183] luxuosos regimentos, de ornamentação monarchica, expedidos para o Egypto; sómente este natural prazer foi em parte estragado pela severidade do ministerio da guerra, que, como se tratava de uma campanha e não de um torneio, não consentiu que esses gentis-homens fôssem seguidos por equipagens, creados de librés, tendas de luxo e caixas de vinho de Champagne.

Um d'estes officiaes exprimiu alto a sua indignação, porque o estado-maior só lhe consente tres cavallos de sella, dous creados de quarto e cinco malas de bagagem!

Por outro lado, ao comprido do Nilo toda a população fellah se declarou por Arabi; como por elle se declararam as classes lettradas, as mesquitas, os ulemas, os coptas, os proprios principes parentes do Khediva. Os mudirs, governadores de provincias, pagam-lhe a elle os impostos. Os scheiks do deserto mandam-lhe a sua cavallaria.

E este ardor é tanto maior, quanto Arabi-pachá foi de ha muito prophetisado; já a sua inesperada entrada no governo se considerou um advento divino; e este rebelde (como outros rebeldes que tão gloriosamente fizeram o seu caminho na terra e no ceu) é Messias!

Uma antiga prophecia mussulmana annuncia que no seculo decimo terceiro da Hegira nascerá á beira [184] de um grande rio um homem de raça vil, por nome Ahmet, que se revoltará, e restaurará o esplendor do Islam; ora, os arabes estão no século XIII da Hegira, e Arabi, cujo nome é Ahmet, cuja origem é fellahina, tendo nascido n'uma aldêa á margem do Nilo, revoltou-se contra o seu califa. Assim, elle reune o duplo prestigio de um Spartacus e de um Christo.

Concentrada a questão entre uma poderosa nação invasora e um patriota que defende o seu solo—a Europa tomou logo a sua tradicional attitude: isto é, murmurou algumas palavras de branda admoestação, e depois recuou para longe, a observar como um braço forte sabe usar da sua força, a estudar como se consuma a espoliação de um fraco.

Nos ultimos quinze annos a Prussia roubou a Dinamarca, e depois foi pela Allemanha saqueando reinos e grãos ducados; em seguida, desmembrou a França; mais tarde a Russia espatifou a Turquia; ha dous annos, subitamente, a Republica Franceza cahiu sobre Tunis, e empolgou esse desventurado estado barbaresco. Em cada um d'estes casos a Europa comportou-se como um coro das operas d'antiga escola, quando membrudo barytono, ahi pelo quarto acto, erguia o ferro sobre o tenor gentil e magrizela: o côro adeanta-se, modula uma larga phrase, agita os braços em cadencia, faz o commentario [185] amargo da acção, brada talvez: suspendei! Depois, afastando-se em grande compostura, deixa á bocca da scena o tyranno barbudo sondando tranquillamente com a ponta da lamina o interior do galã...

 

Não fallemos mais na Europa. Não ha, nunca houve Europa, no sentido que esta palavra tem em diplomacia. Ha hoje apenas um grande pinhal de Azambuja, onde rondam meliantes cobertos de ferro, que se odeiam uns aos outros, tremem uns dos outros, e, por um accordo tacito, permittem que cada um por seu turno se adeante—e assalte algum pobre diabo que vegeta ou trabalha ao canto de seu cerrado. Nas largas e bem traçadas estradas do Direito Internacional, allumiadas por Ortolan e outros lumes, rouba-se de carabina alta, e rompem a cada momento brados de povos assassinados. A Europa, como os campos de corridas em Inglaterra, devia estar coberta d'estes avisos em lettras gordas: Beware of pick-pockets! Cautela com os salteadores.

A pequena propriedade politica tende a acabar. Toda a terra vae em breve reunir-se nas mãos de quatro ou cinco grandes proprietarios... Hontem, era Tunis—porque a França necessita proteger a fronteira da Argelia. Hoje, é o Egypto—porque [186] a Inglaterra precisa assegurar o caminho da India. Amanhã, será a Hollanda—porque a Allemanha não póde viver sem colonias. Depois, a Servia—por motivos que a seu tempo a Austria dirá. Mais tarde, a Rumania—porque a Russia é forte. Depois a Belgica—porque sim. Depois...

Este assumpto é lugubre. Voltemos ao valle do Nilo!

[187]


VI

Situação dos exercitos.—O Nilo, a secca, os areaes.—Os perigos de um «Jehad».—O septicismo mussulmano.—O mundo ingleza-se.—Filaucias de John Bull.

Postos estão frente a frente
Os dois valorosos campos...
Esta melancolica chacara que, se bem me recordo, chora as desgraças de Alcacer-Kibir—serve para pintar graphicamente a situação estrategica de inglezes e egypcios, desde que se abriu a campanha.

Para comprehenderem bem, imaginem um grande A. O triangulo interno da lettra é o Delta—essa terra amada dos deuses, tão rica, que ella, só por si, outr'ora alimentou o imperio romano; ao alto da lettra, na ponta, está o Cairo—de sorte que um poeta persa poude dizer gentilmente que o Delta é um leque verde fechando sobre um botão de diamante, que se chama o Cairo. Á base da perna direita do A fica Alexandria, e ahi permanece uma [188] parte do exercito inglez, defendido pelas fortificações de Ramleh—e tendo deante de si, a tiro de peça, o grande campo entrincheirado de Arabi-pachá, que se chama Kraf-Daonar, contendo 18 mil egypcios, enormes parques de artilharia, e fechando a marcha pelo Delta. A outra parte do exercito inglez, commandada pelo proprio general em chefe Sir Garnet Wolseley, dirigiu-se por mar á base da perna esquerda do A, que é, pouco mais ou menos, Ismailia, e d'ahi subiu por essa linha até Kassassine, onde parou e se fortificou; achando-se igualmente a pouca distancia, outro enorme campo entrincheirado, onde Arabi tem quinze mil homens, que se chama Tel-el-Kebir. E estes quatro campos, postos frente a frente, e observando-se, constituem até hoje a guerra do Egypto.

Para chegar, pois, ao Cairo, seu objectivo militar e politico, Sir Garnet precisa tomar as posições egypcias de Kraf-Daonar, se quizer ir pelo Delta—e as de Tel-el-Kebir, se tentar avançar pelo deserto.

Até hoje os quatro campos limitam-se a trocar entre si, em certas escaramuças, algumas languidas balas. Os jornaes de Londres, naturalmente, noticiam estes tiroteios de vanguarda com um tremendo apparato de lettras de palmo, mappas lithographados e largos rufos de prosa—fazendo maior alarido do que se tivesse sido pelejada de novo a batalha de [189] Waterloo; mas isto é simplesmente para promover a venda do numero.

Os egypcios, entrincheirados, em seus campos contam com poderosos alliados: do lado do Delta confiam no Nilo, o velho e bondoso Nilo, que não poderá deixar de ser fiel áquelles que ha seculos nutre, e que, dentro em pouco, inundando as terras do Delta; e ajudado pelos engenheiros d'Arabi, que certamente obstruirão os canaes, terá convertido n'um immenso estendal de lamas inatravessaveis esse caminho do Cairo, o mais favoravel para os inglezes, pois seria como marchar n'uma rica e infindavel granja, entre pomares, jardins, frescuras e celleiros cheios... Do lado do deserto, os egypcios contam com o sol, com a secca e com a areia. Póde-se imaginar o que soffrerão essas tropas do frio Norte, marchando em areaes abrasados n'uma reverberação de luz que estonteia, sob um calor tão torrido, que o metal dos estribos cresta os botins, e tendo para beber só agua barrenta, que é necessario ferver primeiro! Já as insolações, as dysenterias, a nostalgia, dizimam os regimentos—e como o commissariado inglez, sempre mau, encontra aqui difficuldades de transporte, as tropas de S. M. a Rainha Victoria já tem soffrido fome! Ah! custa caro o caminho das Indias!

Além d'estes alliados que elle possue na natureza, [190] Arabi espera ainda nas tribus beduinas, e n'essas hordas errantes d'arabes a cavallo que estão chegando do lado de Tripoli a combater o cão estrangeiro, e que, se diz, constituem um reforço de trinta mil homens...

Por seu lado, os inglezes contam apenas comsigo. E isto não é pouco. Como diz a sua celebre canção de guerra—elles têm os navios, têm o dinheiro, e têm os homens. Têm tambem essas magnificas tropas indias, que riem do sol, da secca, e das areias d'Africa. E isto levou Sir Garnet a declarar que a campanha estaria finda no dia 15 de setembro. É verdade que nós estamos a 7 de setembro, e elle, entrincheirado em Kassassine, tendo deante de si a barreira formidavel de Tel-el-Kebir, ainda está pedindo reforços. Mas isto prova só que esse raio de guerra, tendo habitos differentes dos de Cesar, chegou, viu, e reflectiu. Demos-lhe mais um mez; demos-lhe tres largamente; o certo será que ao fim d'este anno, Arabi, os seus campos, o seu exercito, a sua bella aspiração a uma nacionalidade egypcia, tudo isso se terá esvaido—como se esvae uma nuvem n'esse secco céo africano.

Os inglezes poderão soffrer revezes, perder milhares d'homens, gastar milhões de libras; mas, tendo uma vez compromettida a honra da sua bandeira, com um fim d'engrandecimento imperial, não [191]embainharão a espada antes de ter installado na cidadella do velho Cairo, ao som do God save the Queen, um governador inglez.

Evidentemente o snr. Gladstone falla apenas de restabelecer a ordem e restaurar o Khediva. Meras locuções diplomaticas. O Times, que é o verbo d'Inglaterra, esse falla, sem rebuço, em protectorado. E ha muitos inglezes, ainda menos reservados que o Times, que dizem redonda e seccamente—conquista.

Mesmo quando o snr. Gladstone, que é a seu modo um democrata dentro dos limites do Evangelho, e o seu illustre collega Lord Granville, que é um jurista e um diplomata, quizessem, em respeito ao liberalismo, á Europa, ao direito internacional e a outras cousas vagas, deixar o Egypto reorganisar-se a si mesmo—sahindo elles de lá com as mãos vasias, depois de terem supprimido Arabi e o seu turbulento partido—a Inglaterra inteira, em massa, protestaria contra este philosophico desinteresse...

Ha alguem ahi assaz ingenuo para suppôr que John Bull, essa torre de senso pratico, consentiria em que se lhe dizime o exercito, em que se lhe gaste o dinheiro como elle gasta a agua das fontes, em que se lhe augmente o income-tax—só para que o Khediva, esse amavel moço, continue a fumar o narghilé do poder sob as sombras dos jardins de Choubra? John Bull não ficará satisfeito senão com este [192] resultado macisso e duradouro—um Egypto inglez, tendo dentro do seu territorio, como um corredor de casa particular, o canal de Suez, caminho das Indias. Um ministerio que, depois de ter enterrado nos areaes da Africa milhões de libras e milhares de vidas, não lhe der isto—receberá no mesmo instante, na parte posterior da sua individualidade, o bico da bota de John.

Mas se Arabi, derrotado, conseguir levar o Scherife de Méca a proclamar contra a Inglaterra um jehad—que é uma guerra santa, uma crusada, um levantamento em massa do mundo mussulmano?

Bons espiritos, em Inglaterra, dizem ser este um grande perigo—pois que só na India ha cincoenta milhões de mahometanos. Eu não creio, porém, que haja aqui motivo para John Bull empallidecer. E lamento-o! Porque é d'um bello pittoresco essa idéa d'um jehad com o seu ceremonial—o Scherife de Méca desenrolando o estandarte verde de Mahomet, os doutores do Islam assignando todos o fetva fatal, e logo, de cada canto da Asia e d'Africa, a torrente dos crentes precipitando-se em nome de Allah! Bello motivo d'ode—a que não corresponde nenhuma realidade...

Em primeiro logar, nunca se fez! O crescente tem sido muitas vezes humilhado pela cruz, o Islam tem recebido na face a mão da Europa christã, o [193] Califa tem fallado repetidamente em proclamar um jehad—e todavia o estandarte do Propheta continuou enrolado nos sacrarios de Méca. E a minha opinião é que se elle fôsse um dia desenrolado—haveria apenas um pedaço de panno verde mais, fluctuando ao vento do ceu.

E querem que lhes diga porque? Porque penso que os mussulmanos estão a esta hora tão scepticos como nós outros, os christãos. Nas areias do deserto, como nas nossas praças allumiadas a gaz—já não será facil encontrar mil homens de boa vontade, que peguem em armas em nome do seu Deus.

De certo todo o bom mussulmano, a certas horas do dia, se orienta para o lado de Méca e se prostra nas reverencias rituaes: pura questão de educação, de boas maneiras, de habito, como nós outros tiramos o chapéu ao passar por um calvario de aldeia. Ou então, superstição vaga, vago terror nervoso, como o de certos philosophos e positivistas das minhas relações, que sempre, ao saltar da cama, fazem o signal da cruz.

Dentro do Alcorão vê-se já o caso melancolico de uma lei divina ir cahindo em desuso. O Sultão recebe a jantar os embaixadores, e bebe com elles champagne: a policia do Cairo prende os santos derviches vagabundos, e já não é respeitado o jejum do Ramazan.

[194]Como o nosso Evangelho, a palavra de Mahomet vae-se tornando objecto de poesia, de commentario, de controversia. Ha Renans no Islam; e o verbo divino, uma vez analysado, deixa de inspirar a fé que leva á morte.

O mundo mussulmano está no seu seculo decimo-terceiro, na sua plena meia edade, e certamente ha muito beduino sob a tenda, tão crente, tão penetrado de Mahomet, como aquelles corações simples, que, ainda ha pouco no deserto dos nossos claustros, choravam ao ler a paixão de Jesus; mas não creio que mesmo esses patriarchas deixassem os seus oasis, os seus rebanhos, os seus harens, para virem gratuitamente, sem outro pret a não ser o sorriso das houris nos jardins do Paraizo, supportar o fogo dos canhões Krupp. E emquanto ás classes cultas de Constantinopla, do Cairo, de Smyrna, de Tunis, essas acreditam tanto na promessa das houris, como nós outros, aqui em Regent-Street, nas palmas verdes da Bemaventurança e no côro dos Serafins...

Por todo o universo a religião desapparece das almas; e apenas lá fica essa vaga religiosidade, feita em parte do abalo que deu ao nosso coração uma tão longa sujeição ao sobrenatural, em parte do confuso terror que impera n'este grande universo que nos cerca, tão simples e tão mal comprehendido. N'este estado negativo, de passividade na duvida, não [195] se gera facilmente um impulso d'acção forte. Um jehad no Islam é tão impraticavel—como uma cruzada no Christianismo. Pedro Ermita hoje iria acabar na policia correcional, por perturbador da ordem publica e das relações internacionaes; e os fanaticos que, ainda hoje, ás portas das mesquitas do Cairo, bradam contra o touriste estrangeiro as injurias aconselhadas pela boa doutrina, são immediatamente levados para a enxovia, por fazerem alarido nas ruas!

Mahomet, nas suas mesquitas, Christo, nas nossas capellas, vão singularmente envelhecendo; o nosso Messias vae-se cobrindo pouco a pouco do pó que levanta o forte arado da razão, lavrando um mundo novo; e o propheta do Islam, tendo perdido a força da sua unidade, subdividido em mil prophetas menores que presidem a mil seitas differentes, mal póde resistir á lenta avançada da civilisação occidental. E com Christo e Mahomet, que eram os principios militantes e vivos das suas religiões, desapparece o que n'essas religiões havia de vivo e de militante. Resta Deus, resta Allah. Sublimes abstracções, incapazes de inspirar amor ou heroismo.

O que mais faz amar a Divindade é a quantidade de humanidade que ella encerra. Clovis batia-se por Jesus, que tinha um peito de homem como o d'elle, e n'esse peito humano cinco chagas abertas; Soliman [196]morreria feliz por Mahomet, que era como elle um guerreiro, e como elle amava a belleza.

Mas quem se vae bater por Deus, por Allah, essas entidades tão vastas que enchem todo o ceu, e tão pequenas que não bastam a satisfazer o nosso coração, que nos são subalternas, porque são feitas á nossa imagem, e são no fundo a nossa propria alma alargada até ao infinito com todas as suas fraquezas?!

De resto, é possivel que eu esteja aqui attribuindo a fortes corações de Meca e do deserto os scepticismos litterarios de Pall-Mall e do Boulevard de la Madeleine. Que sabemos nós do que se passa dentro do Islam? Tão pouco como os lettrados da mesquita d'El-Azhar sabem o que por cá vae dentro do nosso confuso catholicismo.

 

Mas, mesmo que se effectuasse um jehad, seria apenas motivo para a Inglaterra gastar mais alguns milhões e sacrificar mais alguns regimentos. Nem o Alcorão, nem o famoso estandarte verde, nem o proprio Mahomet, que voltasse á terra a desfraldal-o, impediriam que John Bull se estabeleça no Egypto...

Já lá está, nunca mais de lá sahirá!

[197]Estão em toda a parte, esses inglezes! O seculo XIX vae findando, e tudo em torno de nós parece monotono e sombrio—porque o mundo se vae tornando inglez. Por mais desconhecida e inedita nos mappas que seja a aldeola onde se penetre, por mais perdido que se ache n'um obscuro recanto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe—encontra-se sempre um inglez, um vestigio de vida ingleza!

Sempre um inglez! Inteiramente inglez, tal qual como sahiu da Inglaterra, impermeavel ás civilisações alheias, atravessando religiões, habitos, artes culinarias differentes, sem que se modifique n'um só ponto, n'uma só prega, n'uma só linha o seu prototypo britannico. Hirtos, escarpados, talhados a pique, como as suas costas do mar, ahi vão querendo encontrar por toda a parte o que deixaram em Regent-Street, e esperando Pale-Ale e roast-beef no deserto da Petrea; vestindo no alto dos montes sobrecasaca preta ao domingo, em respeito á egreja protestante, e escandalisados que os indigenas não façam o mesmo; recebendo nos confins do mundo o seu Times ou o seu Standard, e formando a sua opinião, não pelo que vêm ou ouvem ao redor de si, mas pelo artigo escripto em Londres; impellindo sempre os passos para a frente, mas com a alma voltada sempre para traz, para o home; abominando tudo o que [198] não é inglez, e pensando que as outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os habitos, as maneiras que os fazem a elles felizes na sua ilha do Norte!

Estranha gente, para quem é fóra de duvida que ninguem póde ser moral sem ler a Biblia, ser forte sem jogar o cricket, e ser gentleman sem ser inglez!

E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se desinglezam. Ha raças fluidas, como a franceza, a allemã, que, sem perderem os seus caracteres intrinsecos, tomam ao menos exteriormente a forma da civilisação que momentaneamente as contêm. O francez no interior da Africa adora sem repugnancia o manipanço, e na China usa rabicho. O inglez cahe sobre as idéas e as maneiras dos outros, como uma massa de granito na agua: e alli fica pesando, com a sua Biblia, os seus clubs, os seus sports, os seus prejuizos, a sua etiqueta, o seu egoismo—tornando-se na circulação da vida alheia um encommodativo tropeço.

É por isso que, nos paizes onde vive ha seculos, é elle ainda o estrangeiro.

Em toda a parte onde domine e impere, todo o seu esforço consiste em reduzir as civilisações estranhas ao typo da sua civilisação anglo-saxonia. O mal não é grande quando elles operam sobre a Zululandia e sobre a Cafraria, n'essas vastidões [199] da Terra Negra, onde o selvagem e a sua cubata mal se distinguem das hervas e das rochas, e são meros accessorios da paizagem: ahi encontram apenas uma materia bruta, onde nenhuma anterior fórma de belleza original se estraga, quando elles a refundem para a fazer á sua imagem. Vestir o desventurado rei negro Cetewayo, como elles agora fizeram, de coronel de infanteria, obrigar os chefes dos Basutos a saber de cór os nomes da familia real ingleza, são talvez actos de feroz despotismo, mas não deterioram nenhuma primitiva originalidade de linha ou de idéa. Para Cetewayo, que andava nú, uma fardeta, mesmo de infantaria, não faz senão vestil-o; e é indifferente que dentro do craneo dos Basutos haja só formulas de invocação ao manipanço, ou tambem nomes de principes da casa d'Hanover.

Mas quando elles trabalham sobre antigas civilisações como a da India, onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma grande raça pôz toda a originalidade do seu genio—então a politica anglo-saxonia repete pouco mais ou menos o attentado sacrilego de quem desmantellasse um templo buddhico, bello como um sonho de Buddha, para lhe dar na sua reconstrução as linhas hediondas do Stock Exchange de Londres; ou ainda de quem se fôsse ao marmore divino da Venus de Milo, e tentasse, á força bruta de martello e cinzel, dar-lhe o [200] feitio, as suissas e a sobrecasaca de lord Palmerston! A expansão do inglez para o Oriente, seu objectivo imperial, seria toleravel, mesmo aos nervos de um artista—se elle se contentasse em levar para lá os seus tecidos, as suas machinas, os seus telegraphos, os seus railways, deixando depois que essas raças usassem esse colossal material de civilisação em se desenvolverem no sentido do seu genio e do seu temperamento. Que por todos os modos se forneça á santa cidade de Hydrabad gazometros e illuminação—mas, por Deus! que se não mettam á força bicos de gaz dentro dos seus templos, se isso offende os seus ritos e repugna ao seu gosto! Que a India, por exemplo, seja coberta de caminhos de ferro, fornecidos pelos industriaes de Northumberland e pagos pelo indio—excellente! Mas ao menos que as aldêas onde elles passam, essas aldêas que os mesmos inglezes descrevem como pequenos paraizos de paz, de trabalhos simples, de costumes doces, de frugalidade, de frescura, de belleza moral, não sejam tornadas tão tristes como as tristes parochias de Yorkshire, introduzindo-se logo lá o policeman, o deposito de cerveja, a capella protestante de tijolo, o livreiro de Biblias, o vendedor de gin, a fumaraça de uma fabrica, a prostituição e a workhouse!...

Mas deixemos isto. É facil maldizer da Inglaterra. [201] Basta abrir os livros dos seus grandes homens, desde Thackeray, o artista, que com um tão frio rancor lhe fez a satyra sangrenta, até Carlisle, o philosopho, que passou a existencia a fulminal-a com uma tumultuosa colera de propheta...

Da Inglaterra póde-se dizer que—ao contrario da generosa França—as suas virtudes só a ella aproveitam e os seus vicios contaminam o mundo.

É á Inglaterra que se deve o egoismo crescente que nos vae petrificando o coração—esse egoismo tão particularmente inglez, que faz com que em Hyde-Park, no seu centro de luxo, trezentas pessoas, em torno de um lago, vejam uma pobre criança afogar-se, sem que nenhuma se encommode a tirar o charuto da bocca para lhe estender uma taboa! É á Inglaterra que devemos esta crescente hypocrisia que invade o mundo, e que faz com que em Londres, nos cartazes que annunciam as peças de Sardou ou Dumas, se ajunte esta estupenda declaração: adaptada ás justas exigencias da moralidade ingleza;—emquanto que, na rua, por baixo d'esses mesmos cartazes, rola, sem cessar, a mais vil torrente que o mundo viu de bebados e de prostitutas!

Mas deixemos as maculas da Inglaterra: a lista é longa;—quero só alludir a um outro abominavel defeito que ella sempre teve, e que agora desenvolveu [202] em proporções intoleraveis:—a sua espantosa filaucia, a sua ruidosa basofia, o seu tremendo ar mata-sete!

É sobretudo n'este momento, desde o começo da guerra do Egypto, que os que, como eu, amam a Inglaterra, soffrem de lhe vêr estes extravagantes modos de valentão de romance picaresco. Os telegrammas que os correspondentes dos jornaes enviam das operações da guerra, sobretudo os commentarios dos proprios jornaes, seriam lamentavelmente grotescos, se não fossem odiosamente impertinentes. Os francezes (que não são modestos) puzeram trinta mil allemães fóra de combate na batalha de Gravellote, e todavia não fizeram a decima parte do alarido, da gloriola, do espalhafato com que os inglezes celebravam a escaramuça de Ramleh, onde os egypcios perderam quarenta e tantos homens! Parece faltar-lhes o sentimento da proporção das cousas. Um correspondente do Daily News annunciava, ha dias, como um feito heroico, digno de ir á posteridade, o terem alguns soldados em marcha dado um pedaço de pão de munição a um arabe que morria de fome á beira de um caminho! Era espanto de encontrar dentro de peitos inglezes um resto de piedade humana? Não. Queria provar que nenhum exercito no mundo faz a guerra com uma tão profunda clemencia!

Ou celebrem o aspecto physico dos regimentos [203] ou a afinação das bandas de musica, a pontaria dos artilheiros ou a fórma dos capacetes, os talentos do Estado Maior ou a excellencia da bolacha de munição, vem logo em lettras gordas, a phrase tola—o que ha de melhor no mundo!

Faz uma vedeta ingleza fogo sobre uma vedeta egypcia e depois recolhe á trincheira? Logo este facto é declarado tão nobre pelo heroismo como habil pela prudencia!

Os córos que se entoam em torno do general Wolseley, pertencem á pura farça.

Eu quero crêr que elle é um grande homem—ainda que por ora nada mais fez que debandar uma pobre horda de negros armados de flechas que vegetavam junto a não sei que rio d'Africa; mas que se póde pensar quando se lê, no World e em outros papeis, que elle é o maior general do seculo? Onde vive um certo Moltke? Quando existiu um chamado Napoleão?

O melhor, mais bem feito, mais importante jornal de Londres, a Pall Mall Gazette, envergonhado de tudo isto, explica, com a sua usual habilidade, que estas fanfarronadas não são destinadas á Europa, mas ao Egypto «para levantar o moral das tropas!» Têm pois esses regimentos em campanha nos areaes da Africa, diante d'um inimigo formidavel, vagares para ler as gazetas? Recebe cada soldado [204] raso, com o seu rancho da manhã, um numero do Times? A respeitavel Pall Mall blaguêa. Para animar, recompensar as tropas, lá estão as proclamações dos generaes. Ahi, sim, a emphase deve correr em torrentes: e quando um desgraçado homem depois de ter marchado todo um dia, com fome, com sêde, com os pés em sangue na areia e um ceu de fogo nas costas, volta á noite ao acampamento, estendido n'uma maca com duas balas no corpo—não é muito que se lhe diga que elle é o primeiro soldado do mundo!

É também «para levantar o moral das tropas» que o Times e o Spectator, fallam, de mão na cinta, e suissa ao vento, de «impor á Europa a vontade da Inglaterra?»

Não; é mera fanfarronada.

E não é só nos jornaes. Entre-se n'um club, n'um restaurante, converse-se com um conhecido, entre duas chavenas de chá—e vem logo a mesma jactancia de roncador: «Vamos dar cabo de tudo. Temos dinheiro a rodo. Cá, ao pulso inglez, nada resiste... E se o mundo respinga, quebram-se-lhe as ventas!...»

A Inglaterra perdeu as suas boas maneiras.

É forte, de certo—mas falla da sua força com a brutalidade de um Hercules de feira que esbogalha os olhos e mostra os musculos; é rica, de certo—mas [205] falla do seu dinheiro com a grosseria d'um ricaço que abarrota fazendo tinir as libras na algibeira...

Onde está a famosa self-possession da Inglaterra, a sua tranquilla dignidade? John Bull tornou-se Ferrabraz. Ora uma muito velha banalidade ensina-nos que não ha verdadeira força sem serenidade e que sem modestia não ha verdadeira grandeza. [206]

[207]

X
O BRASIL E PORTUGAL

Os jornaes inglezes d'esta semana têm-se occupado prolixamente do Brazil. Um correspondente do Times, encarregado por esta potencia de ir fazer pelo continente americano uma «vistoria social» definitiva deu-nos agora, em artigos repletos e massiços, o resultado do seu anno de jornadas e de estudos.

O ultimo artigo é dedicado ao Brazil: eu, que nunca visitei o imperio, não tenho naturalmente auctoridade para apreciar essas revelações (porque o correspondente toma a attitude de um revelador) sobre a religião, a cultura, os productos, o commercio, a emigração, o caracter nacional, o nivel de educação, a situação dos portuguezes, a dynastia, a Constituição, a republica, et de omni re braziliensi e não [208] posso transcrevel-as tambem porque ellas enchem, no Times, vasto como é, mais espaço que o proprio Brazil occupa no territorio da America do Sul. Esse artigo excitou o interesse e os commentarios da Pall-Mall Gazette e de outros jornaes, e ahi se rompeu a fallar do Brazil com sympathia, com curiosidade, com essas admirações ingenuas pela sua rutilante flora, esse pasmo quasi assustado pela sua vastidão, que decerto tiveram nossos avós, quando o bom Pedro Alvares Cabral, largando a procurar o Preste João, voltou com a rara nova das terras entrevistas do Brazil...

Devendo mostrar-lhes a opinião presente da Inglaterra sobre o Brazil, d'esses artigos floridos, escolho o do Times, annotando e glosando o trabalho do seu enviado. (É d'este modo respeitoso que se deve fallar sempre de um correspondente do Times).

Começa, pois, o grande jornal da City por dizer—«que a descripção do vasto Imperio do Brazil com que foi fechada a serie das cartas sobre o continente americano, deve ter feito transbordar o sentimento de admiração pelo explendor, etc...» Seguem-se aqui naturalmente vinte linhas de extasi. É, em prosa, a aria do 4.º acto da Africana: Vasco da Gama, de olhos humidos e coração suspenso no enlevo de tanta flôr prodigiosa, de tão raros cantos d'aves raras...

[209]Depois vem o espanto classico pela extensão do Imperio: «Só o simples tamanho de um tal dominio (exclama) na mão de uma diminuta parcella da humanidade é já em si um facto sufficientemente impressionador!»

E todavia esta admiração do Times pelo gigante é misturada a um certo patrocinio familiar, de ser superior,—que é a attitude ordinaria da Inglaterra e da imprensa ingleza para com as nações que não têm duzentos couraçados, um Shakspeare, um Bank of England, e a instituição do roast-beef... N'este caso do Brazil, o tom de protecção é raiado de sympathia...

Depois o artigo rompe de novo n'um hymno: «A Natureza no Brazil não necessita do auxilio do homem para se encher de abundancias e se cobrir de adornos!... Para seu proprio prazer planta, ella mesma, luxuriantes parques! E não ha recanto selvagem que não faça envergonhar as mais ricas estufas da Europa...» Isto é decerto exacto: mas o Times, receiando que os seus leitores viessem a suppor que a natureza do Brazil está de tal modo repleta, tão indigestamente attestada, que não permitte, que se recusa com furor a receber no seu ventre empanturrado uma semente mais sequer—apressa-se a tranquillisal-os: «Mas (diz este sabio jornal judiciosamente) ainda que a Natureza dispense bem todo o trabalho [210] do homem, que outros solos menos generosos requerem para se abrir em flôres e fructos,—não o repelle todavia». Isto socega os nossos animos: ficamos assim certos que nenhum fazendeiro, nos distantes cafesaes, ao atirar á terra, a terra mãe, com a enxadada fecundadora a semente inicial, corre o risco atroz de ser por ella atacado á pedrada ou a golpes de bananeira... Nem outra cousa se podia esperar da doce e pacifica Ceres.

Tendo assim floreado, de penacho oratorio ao vento, o Times investe com as ideias praticas. E começa por declarar, que, segundo o copioso relatorio do seu correspondente, «o que surprehende na America do Sul (se exceptuarmos aquella tira de terra que constitui a Republica do Chili, e alguns bocados da costa do enorme imperio do Brazil) é a grandeza de tais recursos comparada á desapontadora magreza dos resultados». Seria facil responder com a escassez da população. O Times de resto sabe-o bem, porque nos falla logo d'essa população nas republicas hespanholas, mas não a acha escassa; o que a acha é torpe!... A pintura que nos dá do Perú, Bolivia, Equador e consortes é ferina e negra: «Essa gente vive n'uma indolencia vil, que não é incompativel com muita arrogancia e muita exagerada vaidade! D'esse torpor só rompe, por accesso de frenesi politico. Todo o trabalho ai emprehendido [211] para fazer produzir a natureza é dos estrangeiros: os naturaes limitam-se a invejal-os, a detestal-os por os verem utilisar opportunidades que elles mesmo não se quizeram baixar a usar!» Isto é cruel: não sei se é justo: mas entre estas linhas palpita todo o rancor de um inglez possuidor de maus titulos peruanos. «E se o nosso correspondente (continua o artigo) offerece de alto o Brazil á nossa admiração, não é em absoluto, é relativamente, em contraste com os paizes que quasi o egualam em vantagens materiaes, como o Perú e o Rio da Prata, mas onde a discordia intestina devora e destroe todo o progresso nascido da actividade estrangeira. O Brazil é portuguez e não hespanhol: e isto explica tudo. O seu sangue europeu vem d'aquella parte da Peninsula Iberica em que a tradicção é a da liberdade triumphante, e nunca supprimida.» O Times aqui abandona-se com excesso ás exigencias rythmicas da phrase: parece imaginar que desde a batalha de Ourique temos vindo caminhando n'uma larga e luminosa estrada de ininterrompida democracia!...

Mas, emfim, continúa: «Quando o Brazil quebrou os seus laços coloniaes não tinha a esquecer feias memorias de tyrannia e rapacidade; nem teve de supprimir genericamente todos os vestigios de um máu passado.» Com effeito; pobres de nós! nunca [212] fômos de certo para o Brazil senão amos amaveis e timoratos.

Estavamos para com elle n'aquella melancolica situação de um velho fidalgo, solteirão arrasado, desdentado e tropego, que treme e se baba deante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente é que eramos a colonia: e era com atrozes sustos do coração que, entre uma Salvè Rainha e um Lausperenne, estendiamos para lá a mão á esmola...

O Times prossegue: «Ainda que independente, o Brazil ficou portuguez de nacionalidade e semi-europeu de espirito. Pelo simples facto de se sentir portuguez, o povo brazileiro teve, e conserva, o instincto do grande dever que lhe incumbe: tirar o partido mais nobre da sua nobre herança... Sejam quaes tenham sido os erros de Portugal, não se póde dizer que se tenha jámais contentado com o mero numero das suas possessões, sem curar de lhes extrahir os proventos...» O Times aqui dormita, como o secular Homero.

E justamente o que nos preoccupa, o que nos agrada, o que nos consola é contemplar simplesmente o numero das nossas possessões: pôr-lhes o dedo em cima, aqui e além, no mappa; dizer com voz de papo, ore rotundo: «Temos oito; temos nove: somos uma nação colonial, somos um povo maritimo!...» Emquanto [213] a extrahir-lhes os proventos, na phrase judiciosa do Times, d'esses detalhes miseraveis não cura o pretor, nem os netos de Affonso de Albuquerque!... Mas prossegue o Times: «O imperio colonial de Portugal talvez tenha sido outr'ora caracterisado por desfortuna—quasi nunca por estagnação.» Talvez é bom: com o imperio do Oriente no nosso passado, que é um dos mais feios monumentos de ignominia de todas as edades... Continuemos.

«Da origem d'onde o Brazil deriva a sua actividade, deriva tambem (o que não é menos importante) o respeito pela opinião da Europa. O vadio das ruas de Lima, de Caracas ou de Buenos-Ayres nutre um soberano desprezo pelos juizos que a Europa possa formar das suas tragi-comedias politicas... Não tem consciencia de cousa alguma, a não ser do seu sangue castelhano... Sente decerto o inconveniente de ser expulso do credito e das bolsas da Europa... Mas avalia esta circumstancia apenas pelos embaraços momentaneos que ella lhe traz. O financeiro brazileiro, porem, esse presta uma tão respeitosa attenção ao temperamento das bolsas de Pariz e Londres, como ao da mesma praça do Rio de Janeiro...»

O Times vê n'este symptoma a consideração que o Brazil tem pela opinião da Europa.

Mas, onde o Times se engana é quando pretende [214]que o Brazil deve ao seu sangue portuguez esta bella qualidade de obedecer aos juizos do mundo civilisado. Não ha paiz no universo, onde se despreze mais, creio eu, o julgamento da Europa, que em Portugal: n'esse ponto somos como o vadio das ruas de Caracas, que o Times tão pittorescamente nos apresenta: porque eu chamo desdenhar a opinião da Europa não fazer nada para lhe merecer o respeito. Com effeito, o juizo que de Badajoz para cá se faz de Portugal, não nos é favoravel, nós sabemol-o bem—e não nos inquietamos! Não fallo aqui de Portugal como Estado politico. Sob esse aspecto gosamos uma razoavel veneração. Com effeito, nós não trazemos á Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem sufficiente: a nossa administração é correctamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos financeiros.

Somos o que se póde dizer um povo de bem, um povo bôa pessoa. E a nação vista de fóra e de longe, tem aquelle ar honesto de uma pacata casa de provincia, silenciosa e caiada, onde se presente uma familia commedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com as economias dentro de uma meia... A Europa reconhece isto: e todavia olha para nós com um desdem manifesto. Porque? Porque nos considera uma nação de mediocres: digamos francamente a dura palavra—porque nos considera [215] uma raça de estupidos. Este mesmo Times, este oraculo augusto, já escreveu que Portugal era, intellectualmente, tão caduco, tão casmurro, tão fossil, que se tornára um paiz bom para se lhe passar muito ao largo, e atirar-lhe pedras (textual).

 

O Daily Telegraph já discutiu em artigo de fundo este problema: Se seria possivel sondar a espessura da ignorancia luzitana! Taes observações, além de descortezes, são decerto perversas. Mas a verdade é que n'uma epocha tão intellectual, tão critica, tão scientifica como a nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação ou individuo, só com ter proposito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro, e obedecer, de fronte curva, aos editaes do governo civil. São qualidades excellentes, mas insufficientes. Requer-se mais: requer-se a forte cultura, a fecunda elevação de espirito, a fina educação do gosto, a base scientifica e a ponta de ideal que em França, na Inglaterra, na Allemanha, inspiram na ordem intellectual a triumphante marcha para a frente; e nas nações de faculdades menos creadoras, na pequena Hollanda ou na pequena Suecia, produzem esse conjunto eminente de sabias instituições que são, na ordem social, a realização das fórmas superiores do pensamento.

[216]Dir-me-hão que eu sou absurdo ao ponto de querer que haja um Dante em cada parochia, e de exigir que os Voltaires nasçam com a profusão dos tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o paiz escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escriptos, e que se interessasse pelas artes que já estão creadas. A sua esterilidade assusta-me menos que o seu indifferentismo. O doloroso espectaculo é vêl-o jazer no marasmo, sem vida intellectual, alheio a toda a ideia nova, hostil a toda a originalidade, crasso e mazorro, amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos e a bocca ás moscas... É isto o que punge.

E o curioso é que o paiz tem a consciencia muito nitida d'este torpor mortal, e do descredito universal que elle lhe attrahe. Para fazer vibrar a fibra nacional, por occasião do centenario de Camões, o grito que se utilizou foi este:—Mostremos ao mundo que ainda vivemos! que ainda temos uma litteratura!

E o paiz sentiu asperamente a necessidade de affirmar alto, á Europa, que ainda lhe restava um vago clarão dentro do craneo. E o que fez? Encheu as varandas de bandeirolas, e rebentou de jubilo a pelle dos tambores. Feito o que—estendeu-se de ventre ao sol, cobriu a face com o lenço de rapé, e [217] recomeçou a sésta eterna. D'onde eu concluo que Portugal, recusando-se ao menor passo nas lettras e na sciencia para merecer o respeito da Europa intelligente, mostra, á maneira do vadio de Caracas, o despreso mais soberano pelas opiniões da civilização. Se o Brazil, pois, tem essa qualidade eminente de se interessar pelo que diz o mundo culto, deve-o ás excellencias da sua natureza, de modo nenhum ao seu sangue portuguez: como portuguez, o que era logico que fizesse era voltar as costas á Europa, puxando mais para as orelhas o cabeção do capote...

Mas, retrocedendo ao artigo do Times, a conclusão da sua primeira parte é que «em riqueza e aptidões o Brazil leva gloriosamente a palma ás outras nacionalidades da America do Sul». Todavia, o Times observa no Brazil circumstancias desconsoladoras: «Doze milhões de homens estão perdidos n'um estado maior que toda a Europa: a receita publica, que é de doze milhões de libras esterlinas, é muitos milhões inferior á da Hollanda e á da Belgica: com uma linha de costa de quatro mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de duas mil e seiscentas milhas, o Brazil exporta em valor de generos a quarta parte menos que o diminuto reino da Belgica.»

O Times, todavia, tem a generosidade de admittir que nem a densidade de população, nem o total [218] das receitas, nem a cifra das exportações constituem a felicidade de um povo e a sua grandeza moral. A Suissa, que tem dois milhões de habitantes e justamente os mesmos dois milhões de libras de receita, vive em condições de prosperidade, de liberdade, de civilisação, de intellectualidade bem superiores á tenebrosa Russia com os seus oitenta milhões de libras de receita, e os mesmos oitenta milhões em homens. «Todavia, continúa o Times, se a escassez da população, de rendimento e de commercio, não collocam o Brazil n'um estado de adversidade, são uma prova que faltam a esse povo algumas das qualidades que fazem a grandeza das nações. Que os colonisadores portuguezes, apenas apoiados pelo pequeno throno portuguez, tivessem feito da metade do novo mundo, que lhes concedeu o papa Alexandre, mais que os colonisadores hespanhoes que tiravam a sua força da grande nação de Hespanha, é uma cousa que prova a favor do sangue portuguez comparado com o sangue castelhano, andaluz ou aragonez. Mas que as conquistas feitas no Brazil á natureza sejam tão insignificantes, e tão vastos os espaços que permanecem não só inconquistados mas desamparados—indica que são analogos os defeitos da colonia hespanhola e da colonia portugueza...»

O resto do artigo é mais serio; e eu devo transcrevel-o sem interrupção. «O Brazileiro não é, como [219] o peruano ou boliviano, altivo de mais, ou preguiçoso de mais para se dignar reparar nos meios de riqueza e de grandeza tão prodigamente espalhados em torno de si. Não; o brazileiro tem energia sufficiente para ambicionar e para calcular. A sua attenção está fixa nas ferteis regiões do interior. Desejaria bem vêr a rede dos seus rios navegaveis cobertos de barcos e vapores. Succede mesmo que, nos pontos mais ricos da costa, o habitante queixa-se que uma excessiva porção dos impostos com que é sobrecarregado vae ser gasta em collossaes trabalhos emprehendidos em vantagem de remotas e incultas regiões que nunca ou, ao menos, só d'aqui a longos annos, poderão aproveitar com elles. Mas, em todo o caso, o Brazil sente em si força sufficiente para dar ao seu vasto territorio os beneficios de uma sabia administração.»

O Times aqui tem um pequeno periodo, alludindo á nobre ambição que têm os brazileiros de fazer tudo por si mesmos, vendo com aborrecimento as grandes obras entregues á pericia estrangeira, e preferindo os esforços da sciencia e do talento nacionaes, ainda mesmo quando elles falham, custando ao paiz milhões perdidos... Depois prossegue:

«Mas emquanto o brazileiro se mostra assim, em theorias politicas e administrativas, ancioso por fomentar elle mesmo, por elle mesmo fazer todas as [220] obras dos seus cinco milhões de milhas quadradas—ás suas mãos repugna o agarrar o cabo da enxada, ou tomar a rabiça do arado, que é justamente o serviço que a natureza reclama d'elle. N'um continente, que depois de tres seculos e meio continúa a ser um torrão novo, a grandeza das Republicas ou dos Imperios depende exclusivamente do trabalho manual.

«Italianos, allemães, negros, têm sido, estão sendo importados para fazerem o trabalho duro que repugna aos senhores do solo. Mas, inaclimatados, em certos districtos, elles nunca poderiam labutar como os naturaes dos tropicos. Nem mesmo nas provincias mais temperadas do Imperio jámais os immigrantes trabalharão resolutamente—até que o exemplo lhes seja dado pela população indigena, senhora da terra. O brazileiro ou tem de trabalhar por suas mãos, ou então largar a rica herança que é incompetente para administrar. Á maneira que o tempo se adianta, vae-se tornando uma positiva certeza que todos os grandes recursos da America do Sul entrarão no patrimonio da humanidade.»

O Times aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe a complicada prosa; quer elle dizer que o dia se approxima em que a civilisação não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos Estados do Sul da America, permaneçam estereis e inuteis, e que, se os possuidores actuaes são [221] incapazes de os fazer valer e produzir, para maior felicidade do homem, deverão então entregal-os a mãos mais fortes e mais habeis. É o systema de expropriação por utilidade de civilização. Theoria favorita da Inglaterra e de todas as nações de rapina...

 

Continúa depois o artigo, com ferocidade: «No Perú, na Bolivia, no Paraguay, no Equador, em Venezuela... em outros mais, os actuaes occupadores do solo terão gradualmente de desapparecer e descer áquella condição inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino. (Nunca se escreveu nada tão ferino!) O povo brazileiro, porém, tem qualidades excellentes e a Inglaterra não chegará promptamente á conclusão de que elle tem de partilhar a sorte de seus febris ou casmurros visinhos... Mas, dadas as condições do seu solo, o Brazil mesmo tem a escolher entre um semelhante futuro ou então o trabalho, o duro esforço pessoal, contra o qual até agora se tem rebellado. Se o seu destino tivesse levado os brazileiros a outro canto do continente, nem tão largo, nem tão bello, poder-se-hia permittir-lhes que passassem a existencia n'uma grande somnolencia. Mas ao brazileiro está confiada a decima quinta parte da superficie do globo: essa decima quinta parte é, toda ella, um thesouro [222] de belleza, riquezas e felicidades possiveis; e de tal responsavel—o brazileiro tem de subir ou de cahir!»

E com esta palavra, á Gambetta, termino. Já se alonga muito esta carta para que eu a sobrecarregue de comentarios á prosa do Times. No seu conjuncto é um juizo sympathico. O Times, sendo, por assim dizer, a consciencia escripta da classe media da Inglaterra, a mais rica, a mais forte, a mais solida da Europa, tem uma auctoridade formidavel; e escrevendo para o Brazil, eu não podia deixar de recolher as suas palavras—que devem ser naturalmente a expressão do que a classe media da Inglaterra pensa ou vae pensar algum tempo do Brazil. Porque a prosa do Times é a matéria-prima de que se faz em Inglaterra o estofo da opinião.

E reparando agora que, por vezes n'estas linhas, fui menos reverente com o Times—murmuro, baixo e contricto, um peccavi...

[223]

XI
A festa das creanças

A mais engraçada festa das creanças de que me lembro, foi em Inglaterra, na casa de campo dos meus amigos Birds, no paiz de Cornwall. Era uma mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-rei Arthur e dos cavaleiros da Tavola Redonda. E o que tornava interessante a ressurreição d'este mundo heroico e gentil, popularizado por Tennyson, é que nós estavamos alli justamente na região de Cornwall, onde viviam, entre saráus e batalhas, Arthur, a sua rainha Guinevra e os doze valentes da Tavola. A pouca distancia do parque dos Birds, n'uma collina coberta de carvalheiras, a tradição colloca os paços de Arthur e a maravilhosa e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas era o velho Usk. Nas suas frescas margens erguera-se [224] outr'ora o mosteiro, onde o irmão de Percival, uma noite, da janella da sua cella, viu passar n'uma nuvem côr de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. E das varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao longe, na costa, e entre as rochas, as ruinas d'esse castello de Tintagil, que apparece em todas as balladas do rei Arthur, negro e triste junto ao mar de Cornwall.

A côrte começou a reunir-se cedo, á hora do lunch, no grande salão branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro personagem da lenda que chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino, um adoravel bébé, gordo e embezerrado com a corôa de hera, uns cabellos louros e umas enormes barbas propheticas enchendo-lhe a bochecha côr de rosa. Depois, seguidos das mamãs, vieram entrando todos os outros figurões da romantica chronica, cavalleiros de cinco annos armados e emplumados, mongesinhos nedios, bispos quasi de mama com os seus baculos nos braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda, e fadas mais lindas que as fadas. As tres rainhas mysticas do Walhalla chegaram por ultimo, gravesinhas, todas tres pela mão, cobertas de véos negros, escoltadas por um grande lacaio empoado.

[225]Pouco a pouco o salão ficou animado como o velho Caerleon n'uma manhã de torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto bordado d'ouro, os cabellos frisados sahindo em anneis de sob a corôa carregada de pedras, passeava magestoso, entre os seus irmãos de armas. Uma senhora, encantada, quiz dar-lhe um beijo. Elle repeliu-a asperamente, como teria feito o casto Rei Arthur. Mais orgulhoso do que elle, só o bravo Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido de armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde o elmo até ás esporas d'ouro, não tirava a mão da espada. E o que parecia ensoberbece-lo mais era a sua faxa de gaze branca, passada sobre a couraça, e feita em rigida obediencia á epopéa, d'um véo da rainha Guinevra. Essa era a grande belleza do saráu, a rainha Guinevra, uma irlandezasinha com as duas tranças negras e os olhos verdes como os prados d'Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de setim azul, conservava-se no meio de um sofá, immovel, com um sorriso que lhe punha uma covinha no queixo, indifferente aos madrigaes, insensivel ás proezas dos cavalleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ella os bardos firam as harpas, ou por ella se batam os vassalos junto ao mar de Cornwall.

Um escudeiro annunciou o lunch, tocando uma buzina de prata, tal qual como no Caerleon. E pelo [226] corredor, aos pares, toda a côrte seguiu á sala de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com uma graça solemne, a linda rainha Guinevra. Depois, mas não sem alguma confusão, em que necessariamente as mamãs tiveram de ser energicas com os cavalleiros, ficou completa a Tavola Redonda, ornada de baixellas e flôres. E nada faltava do que mandam as poeticas chronicas.

Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Genios, lá se achava o velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para elle comer com limpeza a sua sopa, tirára as barbas propheticas. Não havia um javali assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto roast-beef. Mas o rei Arthur levantava o seu copo d'agua, misturada de uma gota de Bordeus, com a nobreza com que o outro, ha tantos centos de annos e n'aquella mesma collina, erguia a taça de hydromel em dias de victoria. De resto a sala, com o seu tecto de carvalho lavrado, tinha o severo apparato d'outras éras e através da janella lá estavam, como nos versos da Morte d'Arthur, as ruinas do Castello de Tintagil, negro e triste junto do mar de Cornwall.

A Côrte mostrava tanto apetite como á volta de uma batida aos lobos nos bosques, que avisinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad, esse que possuia a força de mil, porque o seu coração era [227]virgem, já por duas vezes reclamára pudding de batatas, batendo furiosamente com o garfo sobre o seu murrião de prata, posto ao lado da mesa entre os crystaes.

Fôra preciso, por causa da sua magnifica tunica de setim verde, atar um guardanapo ao pescoço do cavalleiro Bors, essa radiante flôr de bravura christã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incommodado com a sua armadura, permanecia manso e corado com o ar de estar pensando (como o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois, de repente e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando todo o molho nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavalleiro da Tavola.

Modred despropositou e arrepelou os cabellos d'ouro de Percival. A tia do heróe acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do Lago se estava tornando turbulento, foi arrancado da Tavola Redonda ignominiosamente, nos braços d'um escudeiro, aos berros.

Depois do lunch, a côrte de el-rei Arthur voltou ao saráu a regozijar-se com danças. Saráu delicioso! Havia dois monges extraordinarios, de bureis brancos, tão pequenos e tão tropegos que as senhoras tinham de os segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente dançar, mais joviaes que [228] os cavalleiros, promptos a atirar-se sempre aos bracinhos das camponezas toucadas de flôres.

O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente com uma ligeira fada, chegada n'essa manhã da Bretanha, das florestas de Broceliande. Um bardo, com a corôa de folhas de carvalho enterrada até aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia tambem um principe do Mar do Norte, um castellão de Erin e o bravo cavalleiro Bors, que se tinham refugiado a um canto, por detraz d'um sophá, onde sentados no chão continuavam na sua divertida merenda com bolos, dando gritos, quando as senhoras queriam pôr cobro áquella gula tão impropria de paladinos christãos.

No corredor o pae Bird teve de suster um rechonchudo abbade, que arregaçava as vestes sacerdotaes e ia, furioso, sovar o intrigante cavalleiro Modred. E não foi possivel realizar a parte mais picante da lenda, fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo Lancelote (bem differente do outro) parecia de coração duro e sem gosto pelo sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e cahiu nos joelhos da mamã, com duas grossas lagrimas nas pestanas e a sua bella penna escarlate cahida no chão, como n'uma tarde de derrota.

Cedo os bébés começaram a estar cançados. Eu [229] mesmo, no meio da festa, tive de levar ao collo o veneravel bispo de Blackburn com a sua mitra e com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azues fechavam-se de somno. Deitei-o no sophá, junto da mais pequenina das rainhas do Walhalla, que já alli dormia sob o véo negro, com os cabellos d'ouro soltos e o lyrio do Paraiso entre as mãosinhas cruzadas...

E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mystica rainha. [230]

[231]


XII
Uma partida feita ao «Times»

É ao mesmo tempo lamentavel e piccaresco o caso succedido ao Times. Este nobre in-folio diario, que inspira orgulho a todo o inglez sinceramente patriota, e que aos olhos respeitosos do estrangeiro apparece como uma das mais fortes columnas da sociedade ingleza, como a propria consciencia da Inglaterra posta em lettra redonda; este augusto periodico que nunca, desde a sua fundação, citou o nome d'um collega, nem jámais se abaixou a uma controversia, pelas mesmas razões de inflexivel etiqueta que vedariam a Luis XIV argumentar com Colbert; esta austera gazeta que preferiria despedaçar as suas magnificas machinas a consentir que ellas imprimissem um bon-mot, uma pilheria, uma linda bagatella ou uma jovial anecdota; este papel tão pudico que [232] evita o nome de Zola, como uma indecencia—o Times, emfim, o venerando Times, foi ultimamente victima de uma d'essas partidas, como nós dizemos, facecias em acção, como dizem os Americanos, que são ao mesmo tempo nefandas e patuscas, que nos abrazam a face de indignação e nos arrancam aos labios um sorriso, que nos fazem vituperar publicamente o farçante e saborear secretamente a farça, como se vissemos um rabo de papel pregado ao manto d'el-rei, ou sobre os cabellos em caracoes da imagem do Senhor dos Passos—um chapéu alto.

Todas as pessoas que teem folheado esses vastos lençóes de materia impressa que constituem um numero do Times, sabem que a quinta pagina é ordinariamente destinada á publicação dos discursos pronunciados por homens eminentes da politica, da litteratura, da sciencia, da arte, em meetings, comicios, banquetes, inaugurações, conversazioni, em todos esses ajuntamentos de ladies and gentlemen onde a Inglaterra dá vazão ao seu tumultuoso fluxo labial!... O Times é famoso por estas reproducções. Não são resumos, nem extractos: são as arengas, palavra a palavra, especialmente tachygraphadas para o Times por um pessoal experimentado, com as interrupções correctamente transladadas, os murmurios religiosamente marcados, sem que lhes falte um meus senhores!,[233] sem que ficasse perdido um oh! ou um ah! e revistas, esmiuçadas, zeladas como se tivessem cahido dos labios de Socrates ou de Christo prégando outro Evangelho.

Este simples serviço custa por anno ao Times milhares de libras—mas dá-lhe a vantagem de ser elle a acta official do verbo publico da Inglaterra. Todos os jornaes da Europa assim o reconhecem: quando se discute um discurso do Sr. Gladstone, uma conferencia do professor Huxley ou uma predica do arcebispo de Canterbury, tem-se presente, como texto sagrado, o texto do Times. Um orador póde negar a incorrecção de um adjectivo, a violencia de uma apostrophe, quando a apostrophe ou o adjectivo tenham apparecido nos resumos rapidos de outro jornal: nunca, quando hajam apparecido nas columnas infalliveis do Times. Sabe-se a despeza, o desvelo, a minuciosidade, empregada para obter a exactidão—e essa exactidão nunca é contestada.

Quando o Sr. Gladstone, na campanha eleitoral da Escocia, soltou essa famosa invectiva contra o imperio dos Hapsburgos,—o protesto cortez do embaixador d'Austria era fundado em citações do Times. Um orador que, querendo deixar um monumento solido da sua arte, publique os seus discursos em volumes—collige-os do texto seguro do Times. O Times tem aqui o valor d'uma reproducção photographica. [234]Insisto n'isto, para tornar mais vivo o horror da facecia.

Ha semanas Sir William Harcourt, o ministro do interior, fez um discurso em Manchester, discurso consideravel, muito annunciado, muito esperado, tocando todas as questões que inquietam agora a Inglaterra, a anarchia da Irlanda, o tratado de commercio com a França, a intervenção no Egypto, a criação do Governo Municipal de Londres, outras coisas graves ainda.

Esta arenga, tachygraphada pelo pessoal do Times em Manchester, telegraphada para os escriptorios do Times em Londres, foi composta, lida pelos revisores, revista pelo secretario de Sir William Harcourt, verificada, comprovada, relida ainda, e, emfim definitivamente installada na sua pagina... E aqui se colloca a facecia.

Mas é necessario primeiro, para maior indignação e maior goso, conhecer Sir William Harcourt. De todos os membros do ministerio Gladstone, Sir William é o mais austero. Já a sua apparencia intimida: grosso, membrudo, de hombros compactos, com a face imperiosa, pallida, rapada, Sir William tem as linhas solemnes e marmoreas do busto de um Cesar.

E dentro d'esta fórma romana habita um espirito rigido de doutrinario: liberal (em comparação [235] com o marquez de Salisbury, que é quadradamente feudal), Sir William representa no Governo a tradicção, a formula whig. É o contrapeso conservador d'este ministerio radical: está alli como um bloco de granito constitucional para impedir que os outros ministros, Chamberlain, Sir Charles Dilke, os discipulos de Stuart Mill, se adiantem muito pela grande estrada da Revolução: e tem por isso essa ampla solemnidade de maneiras, essa cadencia pomposa de expressão, de quem se honra em guardar as coisas supremas—a corôa, a egreja, a aristocracia territorial, os privilegios, a integridade do imperio... É um solemne. Mesmo abotoado n'um paletot, parece embrulhado n'uma toga. É moroso, massudo, incapaz de sorrir, tem essa especie de magestade official que faz lembrar ao mesmo tempo Guizot e um elephante.

E quando a gente o contempla no parlamento, grave, rispido, vestido de negro—não o póde conceber nas attitudes triviaes da vida, fumando um cigarro n'um sophá, com uma perna por cima da outra, muito menos de joelhos, com uma linda mão de mulher entre as suas, murmurando coisas ternas e tontas...

E é isto que torna atroz e deliciosa a facecia... O discurso solemne d'este solemne estadista estava, pois, paginado, pronto para passar ás machinas,[236] quando aproveitando um momento em que a policia interior dos escriptorios do Times casualmente afrouxára de vigilancia, alguem, um monstro, um scelerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substitue-as por outras, compostas de ante-mão, perfida e habilmente compostas! E que linhas! meu Deus! como posso eu, conservando-me casto, explical-as aos leitores da Gazeta de Noticias?

 

Essas linhas intercaladas no severo discurso do severo ministro eram (tremo de dizel-o) eram linhas eroticas! Era um grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruido d'uma besta agitada por todas as furias de Venus; era como esse rouco e secco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do estio; era a balbuciação ebria dos Faunos da fabula, do deus Priappo, dos Satyros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olympo, ululando, trincando a brancura dos lyrios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras nymphas das aguas... Era tudo isto, e era ainda mais.

E, para requinte de facecia, isto não destoava, não chocava, apparecendo bruscamente e sem ligação,[237] como um monturo immundo entre roseas flôres de rhetorica. Não: tinha sido encaixado com uma habilidade diabolica. Sir William Harcourt estava accusando os conservadores de affectarem uma patriotica melancolia em presença dos suppostos perigos, que sob o regimen liberal correm os grandes principios da ordem monarchica, a integridade mesma da Inglaterra. E aqui perguntava-lhes, naturalmente n'um natural movimento de oratoria: «Porque são esses gemidos? Porque é essa exageração de tristeza publica? Decerto a questão da Irlanda e a do Egypto são graves: mas o governo de Sua Magestade sabe que as soluções proveitosas e gloriosas não tardarão... Nós estamos tranquillos. Eu, por mim, sinto-me na disposição de quem, depois de cumprir um dever official, tem para o recompensar o sorriso sereno e approvador da consciencia, etc., etc.»

E justamente aqui as linhas perversas entravam naturalmente traçadas, desenvolvendo mais esta affirmação de contentamento intimo, mostrando a exuberancia de espirito d'um ministro galhofeiro, que, em presença do glorioso estado da cousa publica, admitte que o regosijo da nação tome a fórma excentrica mas justificavel, de uma tremenda bambochata, de um regabofe de estalar tudo... Sir William prosseguia (comprehendem bem que eu dou só expressões aproximativas e atenuadas; traduzir á [238] lettra o que appareceu publicado no Times seria arruinar para sempre os creditos da Gazeta de Noticias) Sir William prosseguia: «Eu, por mim, estou contente. Acho-me até capaz de uma bella folia! Porque não nos daremos com effeito a uma rica patuscada, com vinhaça e mulherinhas? Oh, as mulherinhas! Senhoras que me escutaes, arremessae chapéus e vestidos, e toca a pandegar e a bater um rico batuque!... Evohé! Viva o deboche! Olé, champanhe! Abracemo-nos, deliremos!...» Isto é só para dar ideia: o que se lia no Times tinha outra crueza d'expressão, outro arranque d'orgia!...

Imaginem o effeito ao outro dia, quando milhares de numeros do Times, contendo esta abominação, penetraram n'esses recatados interiores inglezes, onde (segundo aqui dizem) habita o typo superior da familia christã. O Times, o mais caro dos jornaes, é a folha querida da aristocracia, da alta burguezia, da grande finança. Não se comprehende um gentleman inglez, do padrão classico, sem ter logo pela manhã percorrido conscienciosamente o seu Times: é como o coração mesmo da Inglaterra, que elle sente um momento entre as mãos e onde verifica cada dia, com orgulho, um accrescimo de força, uma pulsação maior de vitalidade. Ordinariamente é ao almoço que se lê o Times: e n'essa manhã, vendo-se na quarta pagina, em lettras grossas, O DISCURSO DE SIR WILLIAM [239] HARCOURT EM MANCHESTER, corria-se naturalmente a elle com curiosidade, já pelo interesse nacional, já pela sympathia que inspira Sir William, o seu nome historico, a solida pureza dos seus principios, a sua alta posição...

Imaginem-se então as scenas! Aqui é uma velha e devota duqueza, cheia de enthusiasmo pelas questões sociaes, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratoria de Sir William—e que de repente estaca, encara o Times, limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o periodo, passa a mão tremula pela face, procura anciosamente o seu frasco de saes, volta ainda a verificar se a não enleia uma allucinação, e, arremessando emfim para longe a gazeta immunda, sae da sala a passos offendidos, pensando comsigo que são esses os resultado de um seculo de democracia, de materialismo e de libertinagem!

Além é um casal de noivos, que, aninhados no mesmo sophá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, precorrem o Times, menos para saber da questão no Egypto, do que para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes ou as noticias de Paris, onde tencionam ir findar a sua lua de mel; mas encontram o discurso de Sir William, dão-lhe um olhar distrahido, quando de repente lhes salta d'entre as linhas o jorro immundo das apostrophes eroticas!

[240]N'outra casa é uma fresca e loura creaturinha de desoito primaveras, puro lyrio domestico, que faz a leitura do Times a um velho tio general, tolhido de gotta, reliquia veneranda das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco attento á politica do dia que detesta, mas muito ao encanto d'aquella voz d'oiro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se da côr d'uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lagrimas dos olhos, e foge, deixando o immundo Times nas mãos do general assombrado:—ou então, caso peior, a doce rapariga, na sua candura de flôr d'estufa, não comprehende, imagina que aquillo é politica, continua a ler com a sua voz d'oiro,—e o veneravel tio ouve de repente sahir dos labios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que ha de mais casto na musica de Weber, um enxurro torpe de babugens lubricas.

É medonho! E uma feição curiosa do incidente é que este negro attentado só foi descoberto nos escriptorios do Times ás onze horas da manhã: isto é, quando o jornal já estava distribuido em Londres, levado pelos trens de madrugada para toda a provincia, e pela mala de Dover para toda a Europa! A administração do Times telegraphou logo a todos os seus agentes no mundo, para suspender a distribuição e comprar por todo o preço os torpes numeros já espalhados.

[241]Só estes telegrammas custaram perto de dois contos de reis. Mas o melhor é que apenas se soube a historia da catastrophe, e que o Times comprava por todo o preço o numero maldito—esse numero tornou-se logo um valor, um papel de credito, base de especulação, com cotações no mercado, eguaes, se não superiores, aos fundos de muita nação civilisada. Eu sei d'um restaurante que toma regularmente quatro numeros do Times—e que vendeu os seus exemplares immundos a duas libras cada um.

Realizaram-se, porém, ganhos maiores. O Times não regateia, paga. E até hoje diz-se que em comprar essa fatal edição tem gasto já perto de quarenta contos.

O autor da facecia ainda se não descobriu. É sem duvida, um monstro, e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunaes inglezes o demoliriam, se elle apparecesse. Mas, por outro lado, considerando que quarenta contos são apenas um somma minima para a fortuna do Times, e que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros realistas,—eu não posso deixar de pensar, com laivos de regosijo, que a Providencia tem armas obliquas e terriveis!

[242]Nunca, decerto, desde a invenção da imprensa, aconteceu um jornal publicar, na sua melhor pagina, em letras salientes, doze linhas immundas de desbragada obscenidade; e ser o Times, o primeiro que o fez, o Times, o mais pesado, mais moroso, mais solemne, mais pedagogico, mais reverente de todos os jornaes que têm existido desde a invenção da imprensa—é, digam o que disserem, divertido.

E, terminando, peço ás almas caritativas e justas uma bôa risada á custa do Times.






End of Project Gutenberg's Cartas de Inglaterra, by José Maria Eça de Queirós

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information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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