OBRA PREMIADA
PELA
ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE FRANÇA
DA TERRA Á LUA
VIAGEM DIRECTA EM 97 HORAS E 20 MINUTOS
Lisboa--Imprensa
Nacional--1874
VIAGENS MARAVILHOSAS
JULIO VERNE
DA TERRA Á LUA
VIAGEM DIRECTA
EM 97 HORAS E 20 MINUTOS
TRADUCÇÃO
DE
HENRIQUE DE MACEDO
Lente de mathematica na escola
polytechnica e astronomo no observatorio
de marinha
BIBLIOTHECA ILLUSTRADA DE INSTRUCÇÃO E RECREIO
EMPREZA HORAS ROMANTICAS
Rua dos Calafates, 102,
1.º andar
LISBOA
Traducção
auctorisada e reservada
--JULIO VERNE--
DA TERRA Á LUA
CAPITULO I
O GUN-CLUB
Durante a guerra federal dos Estados Unidos fundou-se, na cidade de
Baltimore, mesmo no centro do Maryland, um novo club de grande
influencia.
É notoria a energia com que se desenvolveram os instinctos
militares por entre aquella população de
armadores, de negociantes e de machinistas. Insignificantes mercadores
saltaram por cima do balcão e acharam-se de improviso
transformados em
capitães,
[6]
em coroneis
e até em generaes, sem terem passado pelas
escolas de applicação de West-Point
[1]; em curto
espaço foram na
arte da guerra dignos
rivaes dos collegas do velho
continente, e, á imitação d'estes,
alcançaram, á força de
prodigalisar balas, milhões e homens, brilhantes victorias.
Mas em que os americanos excederam singularmente os europeus foi na
sciencia da balistica; e não porque as armas
americanas attingissem mais elevado grau de
perfeição,
senão porque apresentaram dimensões desusadas, e
tiveram por consequencia
alcances correspondentes e até então
desconhecidos.
Pelo que diz respeito a tiros rasantes, immergentes ou em cheio, a
fogos de escarpa de enfiada ou de revez, já
não têem, inglezes, francezes nem prussianos cousa
alguma que aprender; mas os canhões, obuzes e morteiros
europeus são
apenas pistolas de algibeira, comparados com os formidaveis machinismos
bellicos da artilheria americana.
Não deve causar espanto o que deixâmos dito. Os
yankees, que são os primeiros mechanicos do mundo, nascem
engenheiros
como qualquer italiano nasce musico, ou qualquer allemão,
philosopho transcendental; portanto nada mais natural do que ve-los
demonstrar na applicação á sciencia da
balistica
o audacioso engenho de que são dotados.
Assim se explicam esses gigantescos canhões, que, muito
menos uteis que as machinas de coser, são pelo menos
tão admiraveis e de certo ainda mais admirados. Os
maravilhosos inventos, n'este genero, de Parrott, de Dahlgreen e de
Rodman são bem
conhecidos; os Armstrong, os Palliser, os Treuille de Beaulieu
não
tiveram mais remedio do que curvar-se vencidos perante os seus rivaes
de alem mar.
[7]
Tudo isto deu causa a que, durante a terrivel lucta entre os
partidarios do norte e os do sul, occupassem os artilheiros em toda a
parte o primeiro logar; celebravam-lhes os jornaes da União
os inventos com enthusiasmo, e sem exceptuar o mais
insignificante dos logistas ou o mais ingenuo dos booby
[2], todos
quebravam a cabeça dia e noite a calcular trajectorias
impossiveis.
Ora quando a uma cabeça de americano acode uma
idéa, busca logo o seu possuidor segundo americano que a
acceite: chegam a tres, elegem logo presidente e dois secretarios;
quatro, nomeiam archivista e funcciona a
mesa; cinco, convocam-se em assembléa
geral, e está constituido um club.
Assim succedeu em Baltimore.
O primeiro que inventou um novo canhão associou-se com o
primeiro que o fundiu e com o primeiro que o perfurou. Tal foi o
primitivo nucleo do Gun-Club
[3],
que um mez depois da sua
inauguração contava mil oitocentos e trinta e
tres socios effectivos, e trinta mil quinhentos e setenta e cinco
socios correspondentes.
A todos que queriam fazer parte da associação era
imposta uma condição
sine qua
non, a de ter inventado, ou pelo menos
aperfeiçoado, um canhão; na falta de
canhão uma arma de fogo
qualquer. Mas, para dizer a verdade inteira, bem pouca
consideração gosavam os inventores de revolvers
de quinze tiros, de carabinas girantes ou de sabres-pistolas. Em tudo
lhe levavam os artilheiros primazia.
A estima de que é credor qualquer socio, disse um dia um dos
mais entendidos oradores do Gun-Club, é proporcional
«ás massas» do canhão que
inventou, e está «na
rasão directa do quadrado das distancias a que
alcançam os respectivos
projectis!»
[8]
Os artilheiros de
Gun-Club (pag. 12).
Com pequena differença, era a lei de Newton
ácerca da gravitação universal
transportada ás cousas do mundo moral.
[9]
Fundado o Gun-Club, facil é imaginar o que produziria n'este
genero o engenho inventivo dos americanos. Os machinismos de guerra
assumiram proporções colossaes, e os
projectis foram alem dos limites permittidos partir em dois bocados
inoffensivos
[10]
transeuntes. Todos
estes inventos deixaram a perder de vista os timidos instrumentos da
artilheria europea. Forme-se juizo pelos seguintes algarismos.
Outr'ora «bom tempo era esse» uma bala de trinta e
seis, á distancia de trezentos pés, varava trinta
e seis cavallos apanhados de
flanco ou sessenta e oito homens. Era a infancia da arte. Desde essa
epocha progrediram muito os projectis. O canhão Rodman,
que, com uma bala de meia tonelada
[4]
alcançava a sete
milhas
[5],
facilmente poria fóra de combate cento e
cincoenta cavallos
e trezentos homens. Chegou-se até a discutir no Gun-Club a
conveniencia e possibilidade de submetter a uma experiencia solemne as
qualidades d'este canhão monstruoso. Porém se os
cavallos consentiram em tentar a experiencia, infelizmente a respeito
de homens nem um só se offereceu.
Em todo o caso, o que é fóra de duvida
é que o effeito d'estas armas era extremamente mortifero e
que por cada tiro caíam
os combatentes como espigas sob a foice do ceifador. Que valiam,
comparados com taes projectis, aquella famosa bala que, em Contras, em
1785, poz fóra de combate vinte e cinco homens, ou aquella
outra que, em Zorndoff em 1758, matou
quarenta infantes, e o canhão austriaco de Kesselsdorf, em
1742, que por cada tiro derrubava setenta inimigos?
Que importancia tinham esses surprehendentes fogos de Iena ou de
Austerlitz, que decidiram da sorte de uma batalha? Durante a guerra
federal na America viram-se cousas muito mais de pasmar! No combate de
Gettysburg, um projectil conico
lançado por um canhão raiado feriu cento e
setenta e tres
confederados, e, na passagem do Potomac, uma bala Rodman mandou para um
mundo evidentemente melhor duzentos e quinze partidarios do
[11]
Sul. Não é menos digno de
menção um formidavel morteiro inventado por J.-T.
Maston, socio distincto e secretario perpetuo do Gun-Club, cujos
effeitos foram sem comparação
mais mortiferos, visto como, do primeiro tiro de experiencia, matou
trezentas e trinta e sete pessoas; verdade é que o morteiro
rebentou!
Que havemos de accrescentar a estes numeros já de per si
tão eloquentes? Nada. Assim, por certo, será
admittido sem
contradicção o seguinte calculo apresentado pelo
estatistico Pitcairn, que dividindo o numero das
victimas de tiro de bala pelo dos socios do Gun-Club, demonstrou que
cada um d'estes tinha morto em «media», dois mil
trezentos e setenta e cinco
homens e uma fracção.
Para quem reflectir em tal algarismo, fica evidente que a unica
preoccupação d'aquella sociedade scientifica era
a destruição da humanidade, com um fim
philanthropico, o aperfeiçoamento das
armas de guerra, consideradas como instrumentos de
civilisação. Era uma reunião de anjos
exterminadores, e a fóra
isto, as melhores pessoas do mundo.
Cumpre-nos accrescentar que estes yankees corajosos a toda a prova,
não se ficavam em formulas e experimentavam com o proprio
corpo. Havia no Club officiaes de todas as
graduações, de tenente a general, militares de
todas as idades, dos que debutavam na carreira das armas, como dos que
iam já
encanecendo sobre os reparos. Muitos tinham ficado nos campos de
batalha, cujos nomes estavam inscriptos no livro de honra do Gun-Club,
e dos que tinham voltado a maior parte trazia no proprio corpo signaes
indiscutiveis de intrepidez. Moletas, pernas de pau, braços
articulados, mãos de gancho, maxilas de
caoutchouc, craneos de prata, narizes de platina... a
collecção era
completa. O supradito Pitcairn calculou tambem que no Gun-Club havia um
pouco menos de um braço por quatro pessoas e
sómente duas pernas por cada seis socios.
[12]
Mas os valentes artilheiros pouca importancia ligavam a similhantes
ninharias, e com legitimo fundamento se ufanavam, quando o boletim da
batalha contava o numero das victimas pelo decuplo dos tiros
disparados.
Porém um dia, triste e lamentavel dia, foi assignada a paz
pelos sobrevivos da guerra; cessaram pouco a pouco as
detonações, calaram-se os morteiros, os obuzes
para largo tempo açaimados e os canhões de
cabeça pendida, recolheram aos
arsenaes; as balas empilharam-se nos parques, foram-se apagando as
recordações sanguinolentas, brotaram com
magnificencia os algodoeiros dos campos pinguemente adubados, foram-se
fazendo velhos a par das dores e das saudades os fatos de luto, e o
Gun-Club ficou immerso na mais profunda inacção.
Um ou outro trabalhador afferrado e incansavel se entregava ainda a
calculos balisticos e fazia seu pensamento dilecto de bombas
gigantescas e obuzes incomparaveis.
Mas sem pratica de que serviam theorias vãs?
Por isso as salas do Club viam-se desertas, dormiam os creados nas
antecamaras, os jornaes creavam bafio por cima das mesas, ouviam-se
tristes roncos, que partiam dos cantos escuros das salas, e os membros
do Gun-Club, outr'ora tão ruidosos,
agora reduzidos ao silencio por uma paz desastrosa, adormeciam
engolfados em meditações de artilheria platonica.
«Que desconsolação, dizia uma noite o
valente Tom Hunter, e no entretanto ia-lhe o lume do fogão
carbonisando as pernas
de pau: Nada que fazer! nem uma esperança! Que fastidiosa
existencia! Onde vae o tempo em que as alegres
detonações do
canhão nos despertavam todas as manhãs?
Esse tempo já lá vae, retorquiu o inquieto
Bilsby, esperguiçando-se com os braços que
já não tinha. Era um
feliz tempo esse. Inventava qualquer o seu obuz, e apenas fundido,
corria a experimenta-lo no inimigo; quando regressava, ao acampamento
[13]
sempre tinha ouvido alguma
palavra animadora a Sherman ou recebido um aperto de mão de
Mac-Clellan! Mas hoje, os generaes voltaram aos seus
balcões, e em vez de projectis, expedem
inoffensivos fardos de algodão! Ai! por santa Barbara!
Está
perdido o futuro da artilheria na America!
--É verdade, Bilsby, exclamou o coronel Blomsberry,
são bem crueis estes desenganos! Deixa a gente um dia os
seus habitos socegados, exercita-se no manejo das armas, troca
Baltimore pelos campos de batalha, porta-se como um heroe, e dois ou
tres annos depois, ha de perder o fructo de tantas fadigas, adormecer
em deploravel ociosidade, e encaixar as mãos nas
algibeiras.»
Bem podia fallar o valente coronel, havia de ver-se em graves
difficuldades, se quizesse dar tal prova de inactividade, e
não eram as algibeiras que lhe faltavam.
«E nem uma só guerra em perspectiva! disse
então o famoso J.-T. Maston, coçando com o gancho
de ferro o craneo de
guttapercha. Não ha uma nuvem no horisonte, e tanto que
fazer na sciencia da artilheria! Eu que lhes estou fallando, terminei
esta manhã a
épure,
com plano, perfil e elevação de um morteiro que
havia de fazer mudar as leis da guerra!
--Sim? replicou Tom Hunter, recordando-se involuntariamente da ultima
experiencia do honrado J.-T. Maston.
--É verdade, respondeu este. Mas para que hão de
servir tantos estudos levados a cabo, tantas difficuldades vencidas?
Não será tudo isto trabalho absolutamente inutil?
Parece que os
povos do novo mundo se conluiaram para viver em paz, e até o
nosso bellicoso
Tribune[6]
chegou a
prognosticar imminentes catastrophes exclusivamente causadas pelo
escandaloso crescer das populações.
[14]
--Comtudo, Maston, retorquiu o coronel Blomsberry, na Europa ainda
continua a guerra para sustentar o principio das nacionalidades!
--E então?
--Então! Talvez se podesse tentar por lá alguma
cousa, e se acceitassem os nossos serviços...
--Pensaes seriamente no que dizeis? exclamou Bilsby. Fazer balistica em
proveito de estrangeiros!
--Sempre era melhor do que não fazer nada, retorquiu o
coronel.
--De certo, sempre era um pouco melhor, disse J.-T. Maston, mas nem
vale a pena pensar em similhante expediente.
--E porque? perguntou o coronel.
--Porque no velho mundo tem lá umas idéas
ácerca de accesso e promoção, que
estariam em
opposição com todos os nossos habitos americanos.
Imagina aquella gente que se não póde
ser general em chefe sem ter servido como alferes, o que vale o mesmo
que suppor que ninguem póde fazer uma boa pontaria, sem ter
tambem sido o fundidor do canhão! Ora isto é nada
mais nem menos do que...
--Absurdo! concluiu Tom Hunter, lascando com o
«bowie-knife»
[7]
os braços da poltrona,
e pois que assim é,
não temos mais remedio do que ir plantar tabaco ou distillar
azeite de baleia!
--Como assim, prorompeu em altos gritos J.-T. Maston; pois
não havemos de empregar estes ultimos annos da nossa
existencia no aperfeiçoamento das armas de fogo!
Não ha de
offerecer-se nova occasião de ensaiar o alcance dos nossos
projectis!
Nunca mais ha de illuminar-se a atmosphera com o relampago dos nossos
[15]
canhões! Nem uma só
difficuldade
internacional ha de surgir que nos permitta declarar guerra a alguma
das potencias
transatlanticas! Não ha de haver algum francez que metta a
pique um dos nossos
steamers, ou algum
inglez que enforque, em menoscabo do direito das gentes, ao menos tres
ou quatro conterraneos nossos!
--Não, Maston, respondeu o coronel Blomsberry,
não é para nós tanta ventura.
Não! nem um d'esses casos
succederá, e que succedesse, nem ao menos haviamos de
aproveita-lo! Vae-se de dia para dia a susceptibilidade americana.
Vamos-nos effeminando.
--É verdade que nos humilhâmos! replicou Bilsby.
--E que nos humilham! accrescentou Tom Hunter.
--Tudo quanto dizeis é mais que certo, replicou J.-T.
Maston, ainda com maior vehemencia. Pairam na atmosphera mil motivos de
guerra e não combatemos! Economisam-se braços
e pernas, e em proveito de quem? de gente que não sabe o que
lhes ha de dar que fazer! Não busquemos mais longe motivos
de
guerra; pois não é verdade que a America do Norte
pertenceu outr'ora aos inglezes?
--Certamente, respondeu Tom Hunter, espertando furioso o lume com a
ponta da moleta.
--Pois bem! continuou J.-T. Maston, porque é que a
Inglaterra não ha de, por seu turno, pertencer aos
americanos?
--Nada mais era do que justiça, retorquiu o coronel
Blomsberry.
--Pois vão lá propor a idéa ao
presidente dos Estados Unidos e verão como são
recebidos!
--Havia de receber-nos mal, murmurou Bilsby, por entre quatro dentes
que lhe tinham escapado das batalhas.
--Por minha fé, exclamou J.-T. Maston, nas proximas
eleições escusa de contar com o meu voto!
[16]
--Nem com os nossos, accrescentaram de commum accordo os bellicosos
invalidos.
--No entretanto, continuou J.-T. Maston, em conclusão, se me
não fornecerem occasião para ensaiar o meu novo
morteiro n'um campo de batalha, dou a minha demissão de
socio do Gun-Club,
e corro a enterrar-me nos desertos do Arkansas!
--Iremos todos comvosco, responderam os interlocutores do ousado J.-T.
Maston.
Estavam as cousas n'estas alturas, exaltavam-se os espiritos cada vez
mais, e o club estava ameaçado de proxima
dissolução, quando um acontecimento inesperado
veiu impedir a
realisação de tão lastimosa
catastrophe.
Logo no dia seguinte áquelle em que se realisou a
conversação que relatámos, cada um dos
membros do club recebia uma
circular concebida nos seguintes termos:
«Baltimore, 3 de outubro.--O presidente do Gun-Club tem a
honra de prevenir os seus collegas, que na sessão de 5 do
corrente lhes fará uma communicação,
que muito
ha de interessa-los. Em consequencia lhes pede que, pondo de parte
qualquer outro negocio, concorram á sessão para
que são
convidados pela presente.
«De todos mui cordialmente.
--Impey
Barbicane. P. G.
C.»
CAPITULO II
COMMUNICAÇÃO DO PRESIDENTE BARBICANE
No dia 5 de outubro, ás oito horas da noite, havia
apertão e multidão compacta nas salas do Gun-Club
(Union-square, 21). Todos os membros d'aquelle club, que residiam em
Baltimore, tinham acudido ao convite do presidente. Os socios
correspondentes
[17]
apeavam-se aos centos
dos comboios expressos, nas ruas da cidade, e grande como era a
«hall»
(salão) das sessões, ainda assim aquella
multidão immensa de
sábios não pôde
caber lá; assim a multidão refluia para todas as
salas
proximas e ainda para os corredores, e até ao meio dos
pateos exteriores,
onde se encontrava com o simples popular que fazia apertão
ás portas; cada um procurava alcançar melhor
logar; todos avidos de
conhecer a importante communicação do presidente
Barbicane, apertavam-se, empurravam-se, esmagavam-se com aquella
liberdade de acção que é peculiar das
massas
educadas e creadas nas idéas do
self-government[8].
N'aquella noite o forasteiro que o acaso tivesse levado a Baltimore,
nem a peso de oiro teria conseguido penetrar no salão
grande. Fôra este exclusivamente reservado para os socios
residentes ou correspondentes; ninguem mais lá podia ser
admittido, e até os notaveis da cidade e os magistrados do
conselho dos
selectmen[9]
tinham tido que
misturar-se com a turba dos seus administrados para apanharem de
relance alguma novidade lá
de dentro.
Apesar d'isto a immensa «hall» apresentava um
espectaculo verdadeiramente digno de excitar a curiosidade, e o vasto
aposento estava maravilhosamente apropriado ao seu destino.
Sustentavam-lhe os finos lavores da abobada, verdadeira renda esculpida
a saca-bocados no ferro fundido, elevadas columnas compostas de
canhões sobrepostos e apoiados em enormes morteiros. Nas
paredes agrupavam-se enlaçadas em pittorescos
florões panoplias de bacamartes, de arcabuzes, de carabinas
de toda a especie, de armas de fogo antigas e modernas. Rebentava a
chamma viva do gaz de um milheiro de revolvers agrupados em
fórma
[18]
de lustres, completando aquella esplendida
illuminação girandolas de pistolas, e candelabros
feitos de espingardas enfeixadas. Modelos de canhões,
amostras de bronze, alvos crivados de
buracos, placas quebradas pelo choque das balas do Gun-Club,
collecções completas de calcadouros e lanadas,
rosarios de bombas, collares de projectis, grinaldas de obuzes, n'uma
palavra todas as ferramentas do artilheiro se encontravam ali em
tão
surprehendente e admiravel disposição, que levava
a crer que o
seu verdadeiro fim era mais ornamental do que mortifero.
Contemplava-se no logar de honra resguardado por uma esplendida
vitrine
um pedaço de
culatra, quebrado e torcido pela força da polvora. Era uma
preciosa reliquia do morteiro de
J.-T. Maston.
No fundo da sala, sobre uma espaçosa esplanada sentava-se o
presidente ladeado por quatro secretarios. A cadeira presidencial
levantada sobre um reparo esculpido, apparentava no conjuncto das
robustas fórmas a figura de um morteiro de trinta e duas
pollegadas, em pontaria por um angulo de noventa graus e suspensa em
munhões, por fórma tal que o presidente podia
dar-lhe, como a qualquer
rocking-chair[10], um
balanço muito agradavel nas occasiões de grande
calor. Sobre a mesa, grande placa de
ferro laminado, aguentada por seis coronadas, estava um tinteiro de
gosto delicado: era feito de um biscainho deliciosamente cinzelado. Ao
lado estava uma campainha de detonação, que na
occasião propria soava como um revolver. E nas
occasiões de
discussão vehemente mal bastava esta campainha de novo
genero para superar as vozes d'aquella legião de artilheiros
enthusiasmados.
Em frente da mesa presidencial estavam dispostos em zig-zags, como as
circumvallações de uma trincheira,
formando uma serie de bastiões e de cortinas, os bancos onde
tomavam assento os
[19]
socios do Gun-Club; e
n'aquella noite podia afoitamente dizer-se «que estava
bastante gente nas muralhas». O
presidente era por demais conhecido, para que alguem acreditasse que
havia de incommodar os collegas sem motivo de maior gravidade.
Impey Barbicane era homem de quarenta annos, impassivel, frio, austero,
de espirito eminentemente serio e concentrado, de temperamento a toda a
prova e de caracter inabalavel; pouco
cavalheiresco, e todavia aventuroso, cingia-se ás
idéas
praticas, ainda quando empenhado nos mais temerarios emprehendimentos;
era o homem por excellencia da Nova Inglaterra, o colonisador dos
estados do norte, o descendente d'aquelles Cabeças
Redondas, que tão funestos foram para os Stuarts, o inimigo
implacavel
dos
gentlemen dos estados do sul,
legitimos representantes dos antigos Cavalleiros da mãe
patria. N'uma palavra, um yankee de antes
quebrar que torcer.
Barbicane fizera grande fortuna no commercio das madeiras; nomeado
durante a guerra director de artilheria, mostrou-se fertil em
invenções, e cheio de audacia em todas as suas
idéas contribuiu poderosamente para os progressos d'aquella
arma, communicando ás indagações
experimentaes
incomparavel actividade.
Era homem de corporatura media, e que tinha, rara
excepção no Gun-Club, todos os membros intactos.
Parecia que as
feições accentuadas lhe tinham sido talhadas a
esquadro e tira-linhas, e se é verdade que, para adivinhar
os instinctos de alguem,
devemos olha-lo de perfil, Barbicane, examinado assim, apresentava os
mais seguros indicios de energia, de audacia e de
presença de espirito.
N'aquelle instante, estava immovel na cadeira presidencial, mudo,
absorto, com o olhar vago e profundo, com o rosto semi-occulto pelo
chapéu de fórma alta, cylindro de seda preta
que parece seguro a tarraxa no craneo de qualquer americano.
[20]
Conversavam em torno d'elle e em voz alta os collegas, sem conseguirem
distrahi-lo; abalançavam-se ao campo das
supposições,
[21]
olhavam o presidente, buscando em
vão deduzir o X da sua imperturbavel physionomia.
O passeio á luz dos
archotes (pag. 28).
[22]
Quando deram oito horas no relogio fulminante do salão,
Barbicane levantou-se de subito, como que impellido por uma mola;
calou-se tudo, e o orador, em tom um pouco emphatico, usou da palavra
nos seguintes termos:
«Estimaveis consocios, de ha muito que a paz infecunda veiu
immergir os socios do Gun-Club em lastimosa inactividade. Depois de um
periodo de alguns annos, tão cheio de incidentes,
fomos forçados a abandonar os nossos trabalhos e a fazer
alto de subito na senda do progresso. Não me arreceio de
proclama-lo em voz
bem alta, uma guerra qualquer que de novo nos pozesse as armas nas
mãos, seria bem recebida...
--Apoiado, á guerra! exclamou o impetuoso J.-T. Maston.
--Ouçam! ouçam! disseram de todos os lados.
--Porém a guerra, proseguiu Barbicane, a guerra é
impossivel nas circumstancias actuaes, e por maiores que sejam as
esperanças do meu honrado interruptor, penso que muitos
annos hão de correr antes que os canhões
americanos troem de novo no
campo de batalha. É portanto necessario que a isso nos
resignemos
e que busquemos n'outra ordem de idéas alimento para a
actividade que nos devora!»
A assembléa percebeu que o presidente chegava ao ponto
delicado; redobrou a attenção.
«Ha mezes, valentes collegas, continuou Barbicane, que
perguntei eu a mim proprio se, sem sair da nossa especialidade,
poderiamos emprehender alguma d'essas grandes experiencias dignas do
seculo XIX, e se nos permittiriam os progressos da balistica sair bem
do nosso empenho.
Em consequencia, inquiri, trabalhei, calculei, e dos meus estudos
resultou a convicção de que havemos de
saír-nos bem de um emprehendimento, que pareceria
impraticavel em qualquer outro paiz. É este projecto, por
longo tempo elaborado, que vae ser assumpto da minha
communicação:
é digno de vós, digno
[23]
do passado do Gun-Club, e
não póde deixar de
fazer estrondo no mundo!
--Bastante estrondo? perguntou um artilheiro enthusiasta.
--Muito estrondo, no verdadeiro sentido da palavra, respondeu
Barbicane.
--Não interrompam! disseram muitas vozes.
--Peço-lhes, pois, caros collegas, accrescentou o
presidente, que me dêem completa
attenção.»
Um fremito percorreu a assembléa inteira. Barbicane, depois
de, com gesto rapido, ter carregado o chapéu na
cabeça, proseguiu no seu discurso com voz placida:
Não ha um só de vós, estimaveis
collegas, que não tenha visto a Lua, ou que, pelo menos,
não ouvisse fallar n'ella. E
não vos admireis de que venha aqui fallar-vos do astro das
noites. Talvez esteja para nós reservado sermos os Colombos
d'esse mundo ignoto. Seja eu comprehendido, auxiliado com todo o poder
de que os meus socios dispõem, e conduzi-los-hei
á
conquista d'esse novo mundo, cujo nome ha de vir juntar-se aos dos
trinta e seis estados que compõem este grande paiz da
União!
--Hurrah pela Lua! gritou, como um só homem, o Gun-Club
inteiro.
--Muito se tem estudado ácerca da Lua, continuou Barbicane,
a massa, a densidade, o peso, o volume, a
constituição, os movimentos, a distancia emfim
d'este astro, e o papel que elle desempenha no mundo solar
estão perfeitamente determinados: ha mappas
selenographicos
[11]
cuja perfeição é
igual senão superior á dos mappas terrestres:
pela photographia têem-se obtido do nosso satellite provas de
belleza imcomparavel. Resumindo, sabemos ácerca da Lua tudo
quanto as mathematicas, a astronomia, a geologia
[24]
e a optica poderam ensinar-nos; mas
até hoje ainda se
não estabeleceu meio algum directo de
communicação
com esse astro.»
A ultima phrase do orador excitou tal interesse e surpreza na
assembléa, que chegou a produzir violenta
agitação.
--Permittam-me, continuou este, que lhes traga á
lembrança em poucas palavras, como foi que alguns homens
exaltados, tendo embarcado em espirito para viagens imaginarias,
pretenderam ter penetrado os segredos do nosso satellite. No seculo
XVII, um tal David Fabricius, gabou-se de ter visto com os seus
proprios olhos alguns habitantes da Lua. Em 1649, um francez,
João
Baudoin, publicou um livro intitulado a
Viagem
feita ao mundo
Lunar por Domingos Gonzalez, aventureiro hespanhol. Na
mesma epocha, deu á luz da publicidade Cyrano de Bergerac,
aquella celebre
expedição, que tanto renome teve em
França. Algum tempo depois, outro francez (porque estes
senhores entretem-se muito com a Lua) chamado Fontenelle escreveu a
Pluralidade
dos
mundos, que foi, no seu tempo uma obra prima; verdade
é que a
sciencia em seu caminhar constante até as obras primas
esmaga. Em 1835 um opusculo traduzido do jornal
New York
American contava que sir John Herschell, enviado ao Cabo da
Boa Esperança para ali fazer
observações astronomicas, tinha
conseguido, por meio de um telescopio aperfeiçoado por
illuminação interior, trazer a Lua a uma
distancia apparente de oitenta jardas
[12].
Por esta fórma
observára distinctamente na Lua cavernas,
nas quaes viviam hippopotamos, verdejantes montanhas franjadas de renda
de oiro, carneirinhos com armas de marfim, brancos cabritos montezes e
até habitantes com azas membranosas como os morcegos. Este
folheto, obra de um americano chamado Loche
[13],
teve grande
[25]
voga. Mas pouco depois conheceu-se que não era
senão uma mystificação scientifica, e
os francezes foram as primeiras a rir-se d'elle.
--Rir de um americano! exclamou J.-T. Maston; mas isso é um
casus
belli!...
--Socegue o meu digno amigo, que antes de se rirem tinham sido os
francezes perfeitamente embaidos pelo nosso compatriota. Para terminar
esta breve resenha historica, accrescentarei que um tal Hans Pfaal de
Rotterdam, elevando-se n'um balão cheio de
um gaz tirado do azote e trinta e sete vezes mais leve que o
hydrogeneo, chegou á Lua, depois de dezenove dias de viagem,
e tambem que esta viagem não passou, como as anteriores, de
uma
tentativa da imaginação; era porém
obra de um
escriptor popular na America, engenho singular e contemplativo.
É como se
pronunciára o nome de Pöe.
--Hurrah por Edgard Pöe! exclamou a assembléa
electrisada pelas palavras do presidente.
--Conclui o que tinha a dizer-vos, proseguiu Barbicane, no que diz
respeito a tentativas que considerarei puramente litterarias e
absolutamente insufficientes para estabelecer serias
relações com o astro das noites. Devo todavia
accrescentar, que alguns espiritos
praticos tentaram já por-se em seria
communicação com elle. Foi assim que ha alguns
annos um geometra allemão
propoz que se mandasse aos aridos steppes da Siberia uma
commissão de homens de sciencia, para que n'aquellas vastas
planicies fizessem desenhar por meio de reflectores luminosos, immensas
figuras geometricas, entre outras a do quadrado da hypothenusa,
vulgarmente chamada pelos francezes «le Pont aux
ânes».
«Todo o ser intelligente, dizia este geometra, deve
comprehender qual o destino scientifico de taes figuras; portanto os
selenitas
[14],
se é que existem, hão de responder
por meio de figuras similhantes,
[26]
e uma vez estabelecida a communicação,
facil será inventar um alphabeto, que dê meio de
conversar com os habitantes da
Lua.»
Assim fallava o geometra allemão; mas tal alphabeto nunca
teve execução, e até hoje nenhuma
ligação directa existiu entre a Terra e o seu
satellite. Estava reservado para o engenho pratico dos
americanos o porem-se em relação com o mundo
sideral. E o
meio de consegui-lo é simples, facil, certo, infallivel, e
vae
ser o assumpto da minha proposta.»
Estas palavras tiveram por ecco uma immensa algazarra, uma tempestade
de exclamações e de applausos.
Não havia um só dos assistentes que
não se tivesse deixado dominar, arrastar e
enthusiasmar pelas palavras do orador.
Ouçam! ouçam! silencio! era o que se ouvia de
todos os lados.
Logoque socegou a agitação, Barbicane continuou
em voz mais grave o seu interrompido discurso:
«Sabeis todos, disse, que progressos se tem feito em
balistica de alguns annos a esta parte, e a que ponto de
perfeição teriam chegado as armas de fogo se a
guerra tivesse continuado. Tambem não ignoraes que
póde affirmar-se, em geral, que
a força de resistencia do canhão e a potencia
expansiva da polvora
não tem limitação. Pois bem! Partindo
d'este principio,
perguntei a mim proprio, se usando de um instrumento adequado,
collocado em condições determinadas de
resistencia, seria
possivel enviar uma bala até a Lua!»
Ao ouvir a assembléa estas palavras, exhalou-se a um tempo,
de mil peitos arquejantes, uma exclamação de
profundo pasmo; houve depois uma pausa silenciosa, similhante
á profunda
calmaria que precede as tempestades.
E effectivamente ribombou o trovão, mas um trovão
de applausos, de gritos, de clamores, que fez tremer a sala das
sessões. O
presidente queria fallar, e não podia, só
passados dez minutos conseguiu fazer-se ouvir.
[27]
«Deixem-me concluir, disse elle friamente. Estudei a
questão sob todos os seus aspectos, ataquei resolutamente o
problema, e dos meus calculos indiscutiveis resulta, que um projectil
animado de uma velocidade inicial de doze mil jardas
[15] por segundo, e
dirigido para a Lua, ha de necessariamente lá chegar. Tenho
pois a honra, estimaveis collegas, de propor-vos que tentemos esta
pequena experiencia!»
CAPITULO III
EFFEITO DA COMMUNICAÇÃO BARBICANE
É impossivel descrever o effeito produzido pelas ultimas
palavras do honrado presidente. Que gritos! que
vociferações! que successão de
grunhidos, de hurrahs, de «hip! hip!
hip!» de todos aquellas onomatopeas que superabundam na
linguagem dos americanos. Era uma desordem, uma algazarra
indescriptivel! Gritavam as bôcas, batiam as mãos,
e os pés
abalavam o pavimento das salas. Nem que todas as armas d'aquelle museu
de artilheria se disparassem a um tempo teriam agitado com maior
violencia as ondas sonoras. Nem o caso é para admirar.
Artilheiros ha
mais ruidosos que os proprios canhões.
Barbicane permanecêra impassivel no meio de todos estes
clamores enthusiastas; desejava talvez dirigir ainda mais algumas
palavras aos consocios, porque pelos gestos reclamava silencio, e o
timbre fulminante disparou tão violenta como inutilmente.
Porém nem sequer o ouviam. Pouco depois arrancaram-n'o da
cadeira presidencial e levaram-n'o em triumpho, passando das
mãos dos
[28]
fieis camaradas para os braços de
uma multidão
não menos exaltada.
Não ha cousa n'este mundo capaz de causar pasmo a um
americano. Muitas vezes se tem repetido que a palavra
«impossivel» não é franceza.
Certamente ha n'esta
asserção troca de diccionario. Na America
é que tudo é facil, tudo é
simples, e pelo que diz respeito a difficuldades mechanicas, essas
estão mortas
já antes de nascerem. Nem um só yankee genuino
teria permittido a si proprio sonhar sequer uma sombra de difficuldade
entre o projecto Barbicane e a sua realisação.
Dito e feito.
O passeio triumphal do presidente prolongou-se durante a noite. Foi uma
verdadeira marcha á luz dos archotes. Irlandezes,
allemães, francezes, toda a casta de individuos heterogeneos
de que é formada a população do
Maryland,
gritavam na sua lingua patria. Os vivas, os hurrahs e os bravos
confundiam-se n'um enthusiasmo
inesprimivel.
Por coincidencia a Lua, como se percebêra que d'ella se
tratava, brilhava n'aquella noite com uma serena magnificencia, e
eclipsava com a intensa irradiação todas as luzes
terrestres.
Os yankees dirigiam todos os olhos para o disco scintillante do astro:
saudavam-n'o uns com a mão, outros chamavam-lhe os nomes
mais carinhosos; estes mediam-n'a com os olhos, aquelles
ameaçavam-n'a de murro fechado. Um fabricante de
instrumentos de optica de James-Fall-street fez fortuna a vender oculos
desde as oito horas até á meia noite. O astro das
noites era contemplado atravez dos vidros das lunetas, como se
fôra
qualquer
lady da alta sociedade. Os
americanos procediam já para com elle com a sem-ceremonia de
verdadeiros proprietarios. Quem os visse diria, que a loura Phoeba
era já dominio d'aquelles
conquistadores audazes, e parte integrante do territorio da
União.
E todavia mal começára ainda a agitar-se o
problema de mandar-lhe um projectil, maneira um tanto aspera de encetar
relações,
[29]
mesmo com um satellite, porém muito usada entre
nações civilisadas.
Meia noite acabava de soar e o enthusiasmo não arrefecia;
mantinha-se em igual nivel em todas as classes da
população; magistrados, homens de sciencia,
negociantes, logistas e
carrejões, tanto os homens de intelligencia elevada e culta,
como os estupidos e ignaros tinham sentido abalo profundo na mais
delicada fibra de seu ser; o caso de que se tratava era um
emprehendimento nacional, e por isso na cidade alta, na cidade baixa,
nos caes banhados pelas aguas do Patapsco, nos navios fundeados nas
docas, apinhava-se a multidão, ebria de
alegria, de
gin e de
wisky; conversavam todos, peroravam,
discutiam, disputavam, approvavam ou applaudiam, desde o
gentleman, que negligentemente recostado no
canapé de algum botequim,
defrontava com a sua
chope e de
sherry-cobler[16],
até ao
aguadeiro, que se emborrachava com
mataratos[17]
n'alguma sombria taberna de Fells-Point.
Comtudo, pela volta das duas horas, acalmou-se a
emoção, e o presidente Barbicane conseguiu
recolher a casa, moido, esfalfado e derreado. Nem um Hercules teria
resistido a tal enthusiasmo. A turba foi pouco e pouco evacuando as
praças e as ruas. Os quatro caminhos de ferro do Ohio, de
Susquehanna, de Philadelphia e de Washington, que entroncam em
Baltimore, foram lançar o publico hexogeneo nos quatro
extremos dos Estados Unidos, e a cidade começou de repousar
em relativa
tranquillidade.
Enganar-se-ia quem suppozesse que durante aquella memoravel
[30]
noitada, só Baltimore fôra victima da
agitação que descrevemos. Todas as grandes
cidades da União, Nova-York, Boston,
Albany, Washington, Richmond, a Cidade Crescente
[18], Charleston,
Mobile, desde o Texas até ao Massachussets, e desde o
Michigan até ás Floridas, todas participaram
d'aquelle
delirio, porque os trinta mil socios correspondentes do Gun-Club, que
já tinham
conhecimento da carta do seu presidente, esperavam com igual
impaciencia a famosa communicação de 5 de
outubro, e portanto n'esta mesma noite, á medida que as
palavras
saíam dos labios do orador, iam correndo pelos fios
telegraphicos, através
dos Estados da União, com a velocidade de duzentas e
quarenta e
oito mil quatrocentas e quarenta e sete milhas
[19] por segundo. Por
consequencia póde dizer-se, com absoluta certeza, que os
Estados Unidos, que têem dez vezes o tamanho da
França,
soltaram n'um mesmo instante um
hurrah, unico
e unanime, e que vinte e cinco mil corações,
entumecidos de
orgulho, bateram a mesma pulsação.
No dia seguinte lançaram mão do assumpto mil e
quinhentos periodicos diarios, hebdomadarios, mensaes ou bi-mensaes, e
estudaram-n'o sob os differentes pontos de vista da physica, da
meteorologia, da economia politica e da moral; pelo lado da
preponderancia politica, e pelo da civilisação.
Discutiam se a
Lua era um mundo
acabado, ou se estaria
ainda em via de transformação. Perguntavam se era
similhante á terra na epocha em que esta não
tinha ainda atmosphera, qual era o aspecto da face lunar
invisivel do espheroide terrestre, e ainda que se não
tratava na occasião de mais do que enviar uma bala ao astro
das noites,
ninguem duvidava que esse facto seria ponto de partida para uma
[31]
serie de novas
experiencias, antes todos esperavam que um dia a America havia de
penetrar os mais occultos arcanos do mysterioso disco. Havia
até já quem parecesse arreceiar-se
de que a conquista da Lua viesse a transtornar o equilibrio europeu.
Discutiu-se é verdade o projecto, mas nem um unico jornal
poz duvidas á possibilidade da
realisação
d'elle; antes pelo contrario até as revistas, folhetos,
boletins e
magasines publicados por
associações scientificas, litterarias ou
religiosas se encarregaram de demonstrar as vantagens de tal tentativa.
A
sociedade
de historia natural de Boston, a
sociedade
americana de sciencias e artes de Albany, a
sociedade
geographica e
estatistica de New-York, a
sociedade philosophica
americana de
Philadelphia, e o
Instituto Smithsoniano de
Washington enviaram ao Gun-Club
milhares de cartas de felicitação, com
offerecimentos
promptos de coadjuvação e dinheiro.
Póde portanto dizer-se que nunca proposta alguma
alcançou tão grande numero de
adhesões; de hesitar,
duvidar ou arreceiar-se pelo bom exito d'ella, é que
ninguem se lembrou;
e se a alguem occorresse, como de certo teria succedido na Europa, e
particularmente em França, responder com mofas, caricaturas
ou
cançonetas epigrammaticas á idéa de
enviar um projectil
á Lua, de bem mau proveito lhe haviam de servir, que nem
todos os
guarda-vidas[20]
do mundo lhe poderiam guardar as
costas contra a
indignação geral.
Ha cousas de que não é permittido rir no novo
mundo.
A partir d'aquelle dia foi pois Impey Barbicane considerado como um dos
mais notaveis e maiores cidadãos dos Estados
Unidos, uma especie de Washington da sciencia; um só facto
entre
[32]
muitos bastará para evidenciar a que ponto
chegára aquella infeudação subita de
um povo inteiro a um homem.
O observatorio de
Cambridge (pag. 35).
Passados alguns dias depois da famosa sessão do Gun-Club,
[33]
annunciou, no theatro de Baltimore, o director de uma companhia ingleza
a representação de
Much
ado about nothing[21].
Ora a
[34]
população da cidade, que viu no
titulo da comedia
uma allusão offensiva aos projectos do presidente Barbicane,
invadiu a sala, escangalhou os bancos, e obrigou o
desgraçado do director a alterar o cartaz. O director, que
era homem fino, soube curvar-se perante a vontade publica, e substituiu
a desventurada comedia por
As you like it[22]. O
resultado
foi ter, durante muitas semanas consecutivas, enchentes phenomenaes.
Movimentos de
translação da Lua
(pag. 43).
CAPITULO IV
RESPOSTA DO OBSERVATORIO DE CAMBRIDGE
Barbicane, apesar de todas as ovações de que era
alvo, não desperdiçou um só instante.
A primeira cousa de
que tratou foi de reunir os collegas da mesa nas salas de
commissão do
Gun-Club, onde, com previa discussão, se accordou que fossem
consultados os astronomos ácerca da parte astronomica do
projecto, e que depois de conhecida a resposta d'estes, se discutissem
então os meios mechanicos, sem descurar cousa alguma para
tornar seguro o exito da grande experiencia.
Redigiu-se por consequencia uma
nota
extremamente precisa, contendo perguntas especiaes, que foi dirigida ao
observatorio de Cambridge, no Massachussets. A cidade de Cambridge,
onde foi fundada a primeira universidade dos Estados Unidos,
é
justamente nomeada pelo seu observatorio astronomico, onde se encontram
reunidos homens de sciencia do mais elevado merecimento. É
ali que funcciona o potente telescopio, com o qual Bond
conseguiu resolver a nebulosa de Andromedes, e Clarke descobrir o
[35]
satellite de Sirius. Todos os precedentes d'este
estabelecimento celebre justificavam portanto a confiança do
Gun-Club.
E com effeito, dois dias depois, chegava ás mãos
do presidente Barbicane a resposta tão impacientemente
esperada.
Era concebida nos seguintes termos:
«Do director do observatorio de Cambridge para o presidente
do Gun-Club, em Baltimore.
«Logoque se recebeu a vossa honrosa missiva de 6 do
corrente, endereçada ao observatorio de Cambridge em nome
dos socios do Gun-Club, de Baltimore, reuniu-se o pessoal scientifico
d'este
estabelecimento, e houve por conveniente
[23]
responder como se segue:
«As perguntas que lhe foram feitas são as
seguintes:
«1.º Será possivel enviar um projectil
até á Lua?
«2.º Qual é a distancia exacta que ha
entre a
Terra e o seu satellite?
«3.º Quanto tempo durará o trajecto do
projectil
ao qual tenha sido imprimida a velocidade inicial sufficiente, e por
consequencia, em que momento deverá ser arremessado para que
encontre a Lua n'um ponto determinado?
«4.º Em que momento prefixo estará a Lua
na
posição mais favoravel para ser
alcançada pelo projectil?
«5.º A que ponto do céu deve fazer-se a
pontaria
com o canhão destinado a lançar o projectil?
«6.º Que logar ha de occupar a Lua no
céu, no
momento da partida do projectil?
«Em relação á primeira
pergunta: Será possivel enviar um projectil até
á Lua?
«Sim, é possivel alcançar a Lua com um
projectil, comtanto que se consiga animar esse projectil de uma
velocidade inicial de 12:000
[36]
jardas por segundo. Demonstra o calculo que tal velocidade é
bastante.
«Á medida que nos afastâmos da terra, a
acção da gravidade diminue na rasão
inversa do quadrado das distancias, isto
é, por exemplo, para uma distancia tres vezes maior,
torna-se nove vezes menor. Por consequencia o peso da bala ha de
decrescer rapidamente, até chegar a ser completamente nullo,
o que ha de succeder no momento em que a
attracção da Lua
fizer equilibrio á da Terra, isto é, quando tiver
percorrido
47⁄52
avos do seu trajecto. N'esse momento o projectil não
terá peso algum, e
se passar alem d'esse ponto ha de caír
para a Lua só por effeito
da attracção lunar. Fica portanto
irrecusavelmente demonstrada a possibilidade theorica da experiencia;
emquanto ao seu bom exito, esse depende unicamente da potencia do
machinismo que se empregar.
«Com respeito á segunda pergunta: Qual
é a distancia exacta que ha entre a Terra e o seu satellite?
«A Lua não descreve em torno da terra uma
circumferencia de circulo, mas sim uma ellipse, n'um dos focos da qual
está
situado o nosso globo; d'ahi vem por consequencia que a Lua
está,
ora mais proxima, ora mais afastada da terra, ou em termos
astronomicos, agora no apogeo, logo no perigeo; e a
differença entre a maior e a menor distancia é
relativamente bastante
consideravel para que não devamos despreza-la. Com effeito,
no apogeo
está a Lua a 247:552 milhas (99:640 leguas de 4 kilometros)
e no perigeo a 218:657 milhas sómente (88:010 leguas) da
Terra, o
que dá uma differença de 28:895 milhas (11:630
leguas), que é mais da nona parte do percurso total.
Portanto a distancia perigea da Lua é que deve servir de
base aos calculos.
«Ácerca da terceira pergunta: Qual será
a duração do trajecto do projectil ao qual tenha
sido imprimida a velocidade inicial
bastante, e consequentemente em que momento deverá ser
lançado para que vá encontrar a Lua em um
determinado ponto?
[37]
«Se a bala conservasse indefinidamente a velocidade inicial
de 12 jardas por segundo, que lhe fosse imprimida no momento da
partida, gastaria apenas nove horas approximadamente para chegar ao seu
destino; mas como a velocidade inicial ha de ir
continuamente decrescendo, deduz-se, feitos os calculos, que o
projectil ha de empregar 300:000 segundos ou 83 horas e 20 minutos para
chegar ao ponto onde as attracções terrestre
e lunar se equilibram, e a partir d'este ponto ha de cair na superficie
da Lua em 50:000 segundos ou 13 horas, 53 minutos e 20 segundos. Convem
pois lançar o projectil 97 horas, 13 minutos e 20
segundos antes do momento em que a Lua haja de chegar ao ponto de mira.
«Em relação á quarta
pergunta: Em que instante prefixo estará a Lua na
posição mais favoravel para ser
alcançada pelo projectil?
«Em consequencia do que deixâmos dito, deve, em
primeiro logar, escolher-se a epocha em que a Lua estiver no perigeo, e
simultaneamente o instante em que passar pelo zenith, circumstancia que
ha de diminuir ainda o percurso do projectil de uma distancia igual ao
raio da terra, isto é, de 3:919 milhas, vindo por esta
fórma a ser o trajecto definitivo de 214:976 milhas
(86:410 leguas). Porém a Lua, que passa todos os mezes pelo
seu
perigeo, nem sempre se encontra no zenith no mesmo instante, e
só a
largos intervallos satisfaz simultaneamente a estas duas
condições. Necessario é portanto
esperar a coincidencia da passagem
pelo perigeo com a passagem pelo zenith.
«Por feliz acaso, no dia 4 de dezembro do anno proximo, a Lua
ha de preencher as duas condições indicadas:
á meia noite estará no perigeo, isto
é, no ponto da sua orbita d'onde
é mais curta a distancia á Terra, e
passará no mesmo instante
pelo zenith.
«Em relação á quinta
pergunta: A que ponto do céu deve fazer-se a pontaria com o
canhão destinado a lançar o
projectil?
[38]
«Suppondo admittidas as considerações
que precedem, o canhão deve ser dirigido para o zenith
[24] do
logar, por maneira que o tiro venha a ser perpendicular ao plano do
horisonte e o projectil fuja assim mais rapidamente aos effeitos da
attracção
terrestre. Mas para que a Lua passe pelo zenith de um logar terrestre,
é
necessario que este logar não tenha latitude maior do que a
declinação do astro, por outra que o logar esteja
comprehendido entre o equador e os parallelos, que distam d'elle
28°
para norte ou sul. Em qualquer outro logar da terra o tiro havia
necessariamente de ser obliquo, o que seria prejudicial ao bom exito da
experiencia.
«A respeito da sexta pergunta: Que logar deve occupar a Lua
no céu, no instante da partida do projectil?
«No momento em que o projectil for lançado ao
espaço, a Lua que avança em cada dia 13°,
10' e
35", deve estar afastada
do ponto zenithal quatro vezes esta grandeza, isto é,
52°,
42'
e 20", espaço que corresponde ao caminho que ha de andar
durante o percurso do projectil. Mas como se deve tambem attender ao
desvio que ha de vir ao projectil do movimento de
rotação da Terra, e como, quando a bala chegar
á Lua, este desvio deve ter
attingido uma grandeza igual a dezeseis raios terrestres, que contados
sobre a superficie da Lua, dão proximamente 11°,
devem
juntar-se estes 11° aos já mencionados, que exprimem
o
atrazo da Lua,
o que dá 64° em numeros redondos.
«Consequentemente o raio visual dirigido para a Lua deve, no
momento do tiro, fazer com a vertical do logar um angulo de
64°.
«Taes são as respostas ás perguntas
feitas pelos socios do Gun-Club ao observatorio de Cambridge.
[39]
«Em resumo:
«1.º O canhão deve ser collocado n'uma
região situada entre o equador e os parallelos de 28 graus
de latitude norte ou sul.
«2.º Deve ser dirigido para o zenith do logar.
«3.º O projectil deve ir animado de uma velocidade
inicial
de doze mil jardas por segundo.
«4.º Deve ser lançado no dia 1.º
de dezembro do
anno proximo, ás onze horas menos treze minutos e vinte
segundos.
«5.º O projectil ha de encontrar a Lua, quatro dias
depois
da partida, no dia 4 de dezembro á meia noite exacta, no
momento em que o astro passa pelo zenith.
«Devem portanto os socios do Gun-Club dar começo
sem demora aos trabalhos necessarios para realisar um emprehendimento
de tal ordem, e prepararem-se para a execução no
momento determinado, porque se deixarem passar a data indicada de 4 de
dezembro, só dezoito annos e onze dias depois
volverá a Lua a entrar nas mesmas
condições em
relação ao zenith e ao perigeo.
«O pessoal scientifico do observatorio de Cambridge fica
inteiramente á disposição do Gun-Club
para todos os
assumptos de astronomia theorica, e aproveita a occasião da
presente para
juntar as suas felicitações ás da
America
inteira.
«Pelo pessoal scientifico do
estabelecimento.
--J.
M. Belfast, director do
observatorio de Cambridge.»
[40]
CAPITULO V
O ROMANCE DA LUA
Um observador dotado de vista infinitamente penetrante e collocado no
centro, n'aquelle centro ignoto, em torno do qual gravita o mundo,
teria visto, na epocha cahotica do universo, o
espaço cheio de myriades de atomos. Mas pouco e pouco, com o
volver dos seculos produziu-se uma mudança; manifestou-se
uma lei
de attracção, á qual obedeceram os
atomos
outr'ora errantes; combinaram-se estes atomos chimicamente, segundo
suas affinidades, fizeram-se moleculas e formaram esses aggregados
nebulosos de que estão semeadas as profundezas do
céu.
Animaram-se então estes aggregados de um movimento de
rotação em volta do seu ponto central, e este
centro formado de moleculas vagas poz-se tambem a girar sobre si mesmo,
ao passo que se ia progressivamente condensando. Segundo as leis
immutaveis da mechanica, á medida que se lhe minguava o
volume pela condensação, ia-se-lhe accelerando o
movimento de
rotação e, persistindo estes dois effeitos, de
cada centro, resultou uma estrella principal, novo centro do aggregado
nebuloso.
Se o observador olhasse então attentamente, teria visto
succeder com as outras moleculas do aggregado, o mesmo que
succedêra com a estrella central: condensaram-se adquirindo
simultaneamente um movimento de rotação
progressivamente
accelerado, e gravitaram em torno da central, transformadas em outras
tantas estrellas. E assim ficava formada uma nebulosa
[25].
Não menos
[41]
de cinco mil nebulosas
conhecem, na actualidade, os astronomos.
Ha uma, entre estas cinco mil nebulosas, a que os homens chamaram via
lactea
[26],
e que contém dezoito milhões de
estrellas, cada uma das quaes se transformou em centro de um mundo
solar.
Se o observador, rodeado por estes dezoito milhões de
astros, volvesse especialmente a attenção para um
dos
mais modestos e menos brilhantes
[27],
para uma estrella de quarta ordem,
que
orgulhosamente appellidâmos
o Sol,
debaixo dos olhos lhe teriam succedido todos os phenomenos a que
é devida a
formação do universo.
Effectivamente havia de ver esse Sol, ainda no estado gazoso e composto
de moleculas moveis, a girar em torno do proprio eixo para concluir o
trabalho de concentração, e
este movimento, subordinado ás leis da mechanica, havia
accelerar-se com a
diminuição do volume, e um instante havia de
chegar em que a força centrifuga venceria a força
centripeta, que attrahe as
moleculas para o centro.
Outro phenomeno então havia de realisar-se diante dos olhos
do observador, as moleculas situadas no plano do equador, soltando-se
como a pedra da funda de que subito rebenta a corda, haviam de ir
formar, em volta do Sol, anneis concentricos como
[42]
o de Saturno. A estes anneis de
materia cosmica, animados de movimento de rotação
em volta da massa central, chegaria
depois a vez de partir-se e decompor-se em nebulosidades secundarias, o
que vale o mesmo que dizer, em planetas.
Concentrada então toda a attenção do
observador sobre os planetas havia de ver realisarem-se n'elles os
mesmos phenomenos que observára no Sol. De cada um d'elles
dimana um ou mais
anneis cosmicos, origens dos astros de ordem inferior a que
chamâmos
satellites.
Subindo assim do atomo á molecula, da molecula ao aggregado
nebuloso, do aggregado nebuloso á nebulosa, da nebulosa
á estrella principal, da estrella principal ao Sol, do Sol
ao planeta, do planeta ao satellite, examinâmos a serie
inteira de
transformações por que passaram os corpos
celestes desde os primeiros dias do mundo.
O Sol, que parece perdido na immensidade do mundo estellar,
está todavia ligado pelas ultimas theorias da sciencia
á nebulosa chamada via lactea. Ainda que no meio das
regiões ethereas
nos pareça pequeno, é todavia o centro de um
mundo, e
é enorme, poisque o seu volume é igual a mil e
quatrocentas vezes o
volume da Terra. Em torno d'ella gravitam oito planetas, que nos
primeiros tempos da creação lhe
sairam das
proprias entranhas. São estes planetas, progredindo do mais
proximo até ao mais
remoto, Mercurio, Venus, a Terra, Marte, Jupiter, Saturno, Urano e
Neptuno. Alem d'estes circulam, regularmente entre Marte e Jupiter,
outros corpos de volume menos consideravel, talvez restos errantes de
algum astro quebrado em milhares de pedaços; d'estes conta o
telescopio não menos de noventa e sete
[28]. Alguns
d'estes servidores que o Sol mantém nas respectivas orbitas
ellipticas por
[43]
força da grande lei da gravitação,
tambem têem seus satellites. Urano tem oito, Saturno oito,
Jupiter quatro, Neptuno talvez tres, a Terra só um; este,
que é um dos menos
importantes do mundo solar, chama-se Lua, e é o que o
engenho audaz dos
americanos pretendia conquistar.
O astro das noites, já pela proximidade relativa a que
está, já por virtude do espectaculo rapidamente
renovado das diversas phases que apresenta, partilhou sempre com o Sol
a
attenção dos habitantes da Terra; mas o olhar
para o Sol cansa, e os esplendores da luz solar forçam os
contempladores d'este astro a baixar os olhos.
A loura Phoeba é mais humana, e cheia de modesta
graça deixa-se ver com complacencia; é suave para
a vista, pouco ambiciosa,
e comtudo toma ás vezes a liberdade de eclipsar seu
irmão, o radiante Apollo, sem que nunca fosse eclipsada por
este.
Comprehenderam os mahometanos a gratidão que era devida
á fiel amiga da Terra; por isso regularam pela
revolução
d'ella a contagem dos mezes
[29].
Votaram os primeiros povos culto particular a esta casta deusa.
Chamaram-lhe os egypcios Isis, os phenicios Astartea, e os gregos
adoraram-n'a sob o nome de Ph[oe]ba, como filha de Jupiter e de Latona,
e explicavam os eclipses por visitas mysteriosas de Diana ao bello
Endymião.
Diz-nos a lenda mythologica, que o leão de Nemea, antes de
apparecer na Terra, percorrêra as campinas da Lua, e o poeta
Agesianax, citado por Plutarcho, celebrou em verso os dois olhos, o
encantador nariz e a bôca amavel, que figuram as partes
luminosas da adoravel Seléné.
[44]
Porém se os antigos comprehenderam perfeitamente o caracter,
o temperamento, emfim as qualidades moraes da Lua, sob o ponto de vista
mythologico, não é menos verdade, que os
mais sabedores d'elles eram extremamente ignorantes pelo que diz
respeito a selenographia.
[45]
Barbicane
levanta-se
para fallar (
pag. 58).
Todavia, muitos dos astronomos d'essas epochas longiquas, descobriram
algumas particularidades confirmadas pela sciencia dos nossos dias, e
se os arcadios pretenderam ter habitado a Terra em
epocha em que ainda não existia a Lua, se
Simplicius a julgou immovel e ligada á abobada de crystal,
se Tatius a considerou
[46]
como um fragmento
destacado do disco solar, se Clearco, discipulo de Aristoteles, fazia
d'ella um espelho polido em que se reflectia a imagem do Oceano, se
outros finalmente a consideraram como um aggregado de vapores exhalados
pela Terra, ou um globo, metade de fogo, metade de gêlo, que
girava sobre si
mesmo, alguns sabios por meio de observações
sagazes, e postoque desajudados de instrumentos de optica, suspeitaram
pelo menos a existencia da maior parte das leis que regem o astro das
noites.
Assim é que Thales de Mileto, 460 annos antes de Jesus
Christo, opinou que a Lua era illuminada pelo Sol. Aristarcho de Samos
deu verdadeira explicação das phases. Cleomene
ensinou que o brilho do disco lunar vinha de luz reflexa. Berosio o
chaldaico descobriu que a duração de uma
rotação da Lua era igual á da sua
revolução, e explicou por
esta fórma o facto da Lua ser vista da Terra sempre pela
mesma face. Finalmente Hipparco, duzentos annos antes da era
christã, reconheceu a existencia de
desigualdades nos movimentos apparentes do satellite da Terra.
Estas differentes observações foram confirmadas
no decorrer dos tempos e serviram de proveito aos astronomos mais
modernos. Ptolomeu no seculo XVI, e o arabe Abul-Wefa no seculo X
completaram as indicações feitas por Hipparco
ácerca das desigualdades que apparenta o movimento da Lua na
linha ondulada, que tem por orbita, sob a acção
do Sol.
Mais proximos de nós, Copernico, no seculo XV, e Tycho Brahe
no seculo XVI explicaram completamente o systema do mundo e o papel que
desempenha a Lua no conjuncto dos corpos celestes.
N'esta epocha ficaram, com muita approximação,
determinados todos os movimentos lunares, mas da
constituição
physica do astro pouca cousa era conhecida.
Foi por esse tempo que Galileu explicou os phenomenos luminosos
[47]
que succediam em algumas phases,
pela existencia de montanhas lunares, a que attribuiu uma altura media
de 4:500 toezas.
Depois de Galileu, Hevelius, astronomo de Dantzig, avaliou mais pelo
baixo as mais elevadas d'estas alturas em 2:600 toezas; verdade
é que Riccioli, confrade d'este, tornou a corrigir esta
apreciação, elevando-as a 7:000 toezas.
Nos fins do seculo XVIII Herschell, ajudado por um telescopio de
poderoso alcance, reduziu mui notavelmente as medidas precedentes,
attribuindo ás montanhas mais altas a
elevação de 1:900 toezas, e abaixando a media das
differentes alturas a 400 toezas, não mais.
Mas tambem Herschell se enganava, e só pelas
observações de Shroeter, Louville, Halley,
Nasmyth, Bianchini, Pastorf, Lohrman, Gruithuysen, e principalmente
pelos estudos pacientes de Beer e Moedler se conseguiu resolver
definitivamente o problema.
Graças a estes homens de sciencia é hoje
perfeitamente conhecida a elevação das montanhas
da Lua.
Por virtude d'estes mesmos trabalhos completava-se o reconhecimento da
Lua; apparecia o astro crivado de crateras, e affirmava-se mais em cada
observação a natureza vulcanica
d'elle. Concluiu-se da ausencia de refracção nos
raios
dos planetas occultados pela Lua, a falta quasi absoluta de atmosphera
n'este astro.
Da falta de ar seguia-se concludentemente a falta de agua. Ficou
portanto bem claro, que se existiam selenitas, deviam, para existir em
taes condições, possuir
organisação especial e notavelmente differente da
dos habitantes da Terra.
Finalmente, graças aos methodos novos, empregaram-se em
constantes inquirições ácerca da Lua
instrumentos mais perfeitos; não deixaram os astronomos por
explorar nem um só
ponto da sua face visivel, devendo notar-se que o diametro lunar mede
[48]
2:150 milhas
[30];
a superficie é
1⁄13
avos da superficie do
nosso globo
[31],
o volume é
1⁄49
avos do volume do espheroide
terrestre; mas nenhum dos segredos da Lua podia occultar-se aos olhos
dos astronomos, e estes habeis homens de sciencia foram ainda mais
longe nas prodigiosas observações que
relatâmos.
Por esta fórma notaram os observadores, que na epocha da lua
cheia apparecia o disco do astro, em algumas regiões, raiado
por linhas brancas, e nas epochas das outras phases, raiado por linhas
negras. Estudando com mais attenção o phenomeno,
conseguiram perceber exactamente a natureza d'aquellas linhas. Eram
sulcos compridos e estreitos, cavados entre margens parallelas e que em
geral iam terminar nos contornos de crateras.
O comprimento dos sulcos estava comprehendido entre 10 e 100 milhas, e
a largura era proximamente de 800 toezas. Deram-lhes os astronomos o
nome de
ranhuras;
mas a dar-lhe este nome se limitou o seu saber. O problema de saber se
estas ranhuras eram ou não leitos seccos de antigos rios
não
poderam resolve-lo completamente. Os americanos já concebiam
a
esperança de que, mais dia menos dia, haviam de determinar
com exactidão
aquelle facto geologico. Reservavam tambem para opportunidade propria
fazer um reconhecimento sobre a serie de trincheiras parallelas
descobertas na superficie da Lua por Gruithuysen, sabio professor de
Munich, que as reputa um systema de
fortificações levantadas pelos engenheiros
selenitas. Estes dois pontos, ainda obscuros, e certamente muitos
outros, nunca poderão ser definitivamente
regulados, sem que se estabeleça primeiro
communicação directa com a Lua.
[49]
Em relação á luz lunar nada havia
já que aprender: era sabido que era trezentas mil vezes mais
fraca que a do Sol, e que o calor que a acompanha não tem
acção
apreciavel sobre os thermometros. O phenomeno da luz cendrada esse
explica-se naturalmente pelo effeito dos raios do Sol reflectidos na
Terra, e que depois da reflexão se dirigem para a Lua.
Parece por este phenomeno completar-se o disco lunar, quando nas
epochas da sua primeira e ultima phase se nos apresenta sob a
fórma de um crescente.
O que deixâmos dito representava o peculio de conhecimentos
adquiridos, em relação ao satellite da Terra,
peculio que o Gun-Club tentava acrescentar sob todos os pontos de vista
cosmographicos, geologicos, politicos e moraes.
CAPITULO VI
O QUE NÃO É POSSÍVEL IGNORAR E O QUE
JÁ NÃO É PERMITTIDO ACREDITAR NOS
ESTADOS UNIDOS
A proposta Barbicane tivera como resultado immediato trazer para a tela
da discussão todos os factos astronomicos,
relativos ao astro das noites. Todos se empenharam em estuda-lo com
assiduidade. Parecia que a Lua apparecêra pela vez primeira
acima do horisonte, e que ninguem ainda a tinha visto nos
céus.
Tornou-se o astro da moda; foi durante algum tempo a
leôa do dia, sem que por isso parecesse
menos modesta, e tomou logar entre as
estrellas,
sem que d'ahi lhe viesse
maior altivez. Os jornaes resuscitaram as antigas anecdotas, em que
desempenhava papel o
sol dos lobos: trouxeram
á memoria do publico as influencias que attribuiu
á Lua a ignorancia dos primeiros seculos; cantaram-n'a
[50]
emfim em todos os
tons, e pouco faltou para que lhe attribuissem algum dito chistoso. A
America inteira foi atacada de selenomania.
As revistas scientificas tambem por sua parte estudaram o assumpto;
mas, tratando mais especialmente dos problemas que diziam respeito ao
projecto do Gun-Club, deram publicidade á
carta do observatorio de Cambridge, commentando-a e approvando-a sem
restricções.
Por encurtar diremos que não foi desde então
permittido, nem ao mais illetrado de todos os yankees, ignorar um unico
facto relativo ao nosso satellite, nem á mais crendeira de
todas
as velhas matronas americanas, continuar agarrada aos erros
supersticiosos, que lhe dizem respeito. Entrava-lhes a sciencia em casa
sob todas as fórmas; penetrava-lhes pelos olhos e pelos
ouvidos; era impossivel ser um asno... em assumptos astronomicos.
Até então muitas pessoas ignoravam como
podéra calcular-se a distancia que ha entre a Terra e Lua.
Aproveitou-se a
occasião para lhes ensinar que esta distancia se avaliava
pela medida da parallaxe lunar. E a quem a palavra parallaxe causava
estranheza dizia-se, que significava o angulo formado por duas linhas
rectas tiradas de cada uma das extremidades do raio terrestre para a
Lua.
A quem punha em duvida a perfeição do methodo,
provava-se, sem detença, que não
sómente a
distancia da Terra á Lua era na realidade de duzentas e
trinta e quatro mil trezentas e quarenta e sete milhas (94:330 leguas),
mas tambem que os astronomos não erravam n'esta
avaliação nem
setenta milhas (30 leguas).
Aos que estavam pouco ou nada familiarisados com os movimentos da Lua,
demonstravam os jornaes quotidianamente que este astro tem dois
movimentos distinctos, o primeiro chamado de
rotação, em torno de um eixo; o segundo
chamado de revolução,
[51]
em volta da Terra, que ambos se completam
em tempos iguaes, isto é, em vinte e sete dias e um
terço
[32].
O movimento de rotação é o que
dá origem aos dias e ás noites na superficie da
Lua, devendo notar-se que não ha
senão um dia e uma noite por mez lunar, e que cada dia ou
cada noite dura trezentas e cincoenta e quatro horas e um
terço. Mas, por
felicidade da Lua, a sua face, que está voltada para o globo
terrestre,
é illuminada por este com a intensidade luminosa de quatorze
luas. A outra face, que é sempre invisivel, tem por isso
mesmo trezentas e cincoenta e quatro horas de noite absoluta, apenas
temperada pela
pallida claridade que dimana das
estrellas. Este phenomeno provém unicamente da
particularidade já
citada, de que os movimentos de rotação e de
revolução se completam em tempos rigorosamente
iguaes, e realisa-se tambem, segundo Casini e Herschell, nos satellites
de Jupiter, e provavelmente em todos os demais.
Em certas cabeças bem dispostas, mas um tanto duras, custava
a entrar, á primeira, que a Lua voltava invariavelmente a
mesma face para a terra, durante a sua revolução,
pela
rasão de que no mesmo lapso de tempo fazia um giro completo
em torno do seu eixo. Mas a estes dizia-se: «Entrae na vossa
casa de jantar,
e dae uma volta completa á roda da mesa, olhando sempre para
o
centro d'ella; quando tiverdes completado o vosso passeio circular,
tereis feito um giro perfeito sobre vós mesmos, visto como o
vosso olhar ha de ter percorrido successivamente todos os pontos da
sala. Ora pois! a sala é o céu, a mesa
é a Terra, e a Lua sois vós!» E
íam-se satisfeitissimos
com a comparação.
Como acabâmos de ver, a Lua mostra constantemente a mesma
face á Terra; todavia, para fallar com rigor, devemos
acrescentar,
[52]
que, em virtude
de um certo movimento de
oscillação de norte para sul e de oeste para
leste, chamado
libração, podemos ver um pouco mais de metade da
superficie do globo lunar, cincoenta e sete centesimos, proximamente.
Quando os ignorantes chegaram a saber, com respeito ao movimento de
rotação da Lua, tanto como o director do
observatorio de Cambridge, começou a inquietar-lhes o
espirito o
movimento de revolução do satellite em volta da
Terra, mas
em curto espaço acabaram de os instruir vinte e tantas
revistas scientificas.
Aprenderam então que o firmamento, com a sua infinidade de
estrellas, póde ser considerado como um immenso
mostrador, por sobre o qual passeia a Lua, indicando a hora verdadeira
a todos os habitantes da Terra, e que é n'este movimento que
o astro
das noites apresenta as suas differentes phases. Mais, que é
Lua cheia, quando está em opposição
com o
Sol, isto é, quando estão os tres astros na mesma
linha recta, estando a Terra no meio; que a Lua é nova,
quando está em
conjuncção com o Sol, isto é, quando
está entre este e a Terra; e, finalmente, que a Lua entra no
quarto primeiro ou no ultimo, quando está no vertice de um
angulo
recto, formado pelas duas rectas que d'ella se dirigem para a Terra e
para o Sol.
Alguns yankees mais perspicazes concluiam d'aqui, que não
podia haver eclipses senão nas epochas de
conjuncção e de opposição,
e não deduziam mal. Na conjuncção a
Lua póde eclipsar o Sol, e na
opposição é a Terra que
póde eclipsar a Lua, e se em cada
revolução lunar não ha dois eclipses,
é porque o plano, segundo o qual se move a Lua, é
inclinado sobre a ecliptica, por
outra, sobre o plano no qual se move a Terra.
Em relação á altura a que o astro das
noites póde subir acima do horisonte estava tudo dito na
carta do observatorio de Cambridge.
Todos ficaram sabendo que tal altura varia com a latitude do
[53]
logar de observação, e que as
unicas zonas do
globo nas quaes a Lua passa pelo zenith, isto é, vem
collocar-se directamente
por cima da cabeça dos que a contemplam, estão
forçosamente comprehendidas entre os parallelos de
28° e o
equador. D'ahi vinha a importante recommendação
de tentar a
experiencia n'um logar qualquer d'aquella parte do globo, para que o
projectil podesse ser lançado verticalmente, e escapar-se
por isso mais
depressa á acção da gravidade. Era
esta
condição essencial para o bom exito da empreza, e
não deixava de preoccupar vivamente a
opinião.
Ácerca da linha seguida pela Lua na sua
revolução em volta da Terra, tinha o observatorio
de Cambridge ministrado conhecimentos bastantes, para que os ignorantes
de todos os paizes ficassem sabendo que esta linha é uma
curva reentrante,
não um circulo, mas uma ellipse, n'um dos focos da qual
está
situada a Terra.
Esta especie de orbitas ellipticas é commum a todos os
planetas, assim como a todos os satellites, e prova-se rigorosamente na
mechanica racional que não podia succeder por outra
fórma. Bem entendido estava que a Lua no apogeo
está mais longe da
Terra, e no perigeo mais proxima.
Ora eis-aqui o que por vontade ou sem ella sabia qualquer americano, e
o que ninguem decentemente podia ignorar.
Porém, se os verdadeiros principios se vulgarisaram com
rapidez, muito mais difficil foi extirpar grande quantidade de erros e
illusorios temores. Assim, por exemplo, algumas pessoas muito de bem,
sustentavam que a Lua era um antigo cometa, que no percurso da sua
orbita alongada em volta do Sol, tinha vindo a passar proximo da Terra
que o retivera no seu circulo de
attracção. Pretendiam taes astronomos de sala
explicar por esta maneira o aspecto requeimado da Lua,
desgraça irreparavel de que
accusavam o astro radiante do dia. Verdade seja, que, quando alguem
lhes fazia notar que os cometas tem atmosphera, e que a Lua
[54]
pouca ou nenhuma tem, tinham grande difficuldade em
responder.
Outros, que pertenciam á raça d'aquelles que por
tudo tremem e se arreceiam, manifestavam singulares temores a respeito
da Lua; tinham ouvido dizer que desde as
observações
feitas no tempo dos Califas, o movimento de
revolução do astro se
ía accelerando em certa proporção;
d'aqui deduziam, é
verdade que com rigorosa logica, que á tal
acceleração no
movimento devia corresponder diminuição na
distancia dos dois astros, e que
prolongando-se este duplo effeito indefinidamente, a Lua havia de
acabar um dia por cair sobre a Terra. Socegaram todavia estes animos
timoratos, e deixaram de temer pela sorte das
gerações
futuras, quando lhes ensinaram que, segundo os calculos do illustre
mathematico francez Laplace, esta acceleração do
movimento
lunar está comprehendida entre estreitos limites, e que
não ha de tardar que lhe succeda uma proporcional
diminuição na
velocidade, e que por consequencia não poderá,
nos seculos futuros, ser
alterado o equilibrio do mundo solar.
Restava, por ultimo, a classe dos ignorantes supersticiosos, e estes
nunca se contentam em não saber; sabem até
o que não existe, e, a respeito da Lua, sabiam cousas por
ahi alem. Consideravam alguns o disco lunar como uma especie de espelho
polido, por intermedio do qual os homens se podiam ver uns aos outros e
communicarem-se reciprocamente os pensamentos, ainda que collocados em
differentes pontos da Terra; outros affirmavam que por cada milheiro de
Luas novas observadas, novecentas e cincoenta tinham trazido comsigo
notaveis acontecimentos, taes como cataclysmos,
revoluções, tremores de terra,
diluvios, etc.
Acreditavam por isso na influencia mysteriosa do astro das noites sobre
os destinos do homem; consideravam-no como
verdadeiro contrapeso da existencia; pensavam que
cada selenita
está ligado a um habitante da Terra por um vinculo
sympathico; sustentavam,
[55]
como
o dr. Mead, que o systema vital está
inteiramente dependente das influencias lunares, affirmando, sem
admittir replica, que os rapazes nascem quasi exclusivamente na Lua
nova, e as raparigas no quarto minguante, etc., etc. Mas por fim
não houve mais remedio senão renunciar
ás crendices e
erros vulgares, e contentar-se sómente com a verdade, e se a
Lua, despojada da sua influencia, perdeu a importancia para os
espiritos de alguns d'aquelles que são cortezãos
de todos os
poderes, se alguns lhe voltaram as costas, nem por isso deixou de ter
por si a manifestação de uma immensa maioria.
Consistiu
desde então a unica ambição de todos
os yankees em tomar posse
d'aquelle novo continente aerio e em arvorar no mais alto vertice
d'elle a bandeira estrellada dos Estados Unidos da America.
CAPITULO VII
O HYMNO DA BALA
O observatorio de Cambridge tinha estudado, na memoravel carta de 7 de
outubro, o assumpto pelo lado astronomico, mas estava ainda sem
solução o problema mechanico. As
difficuldades do caso pareceriam insuperaveis em qualquer outro paiz do
mundo, mas na America resolveu-se o negocio como de brincadeira.
O presidente Barbicane, sem perda de tempo, tinha escolhido entre os
socios do Gun-Club uma commissão executiva. A
commissão estava obrigada a elucidar, em tres
sessões, os tres grandes
problemas do canhão, do projectil e das polvoras;
compunha-se de quatro membros todos muito sabedores no assumpto,
Barbicane, com voto de desempate, o general Morgan, o major Elphiston,
[56]
e finalmente o inevitavel J.-T.
Maston, ao qual foram confiadas as importantes
funcções de secretario relator.
No dia 8 de outubro reuniu-se a commissão em casa do
presidente
[57]
Barbicane, rua da Republica n.º 3, e como fosse de
grande
importancia que as exigencias do estomago não viessem a
perturbar tão grave discussão, sentaram-se os
quatro socios do Gun-Club em volta de uma mesa coberta de
bandejas de sandwiches e de amplos bules de chá. Em seguida
atarraxou J.-T. Maston a
pena no gancho de ferro que lhe servia de mão direita e
abriu-se a
sessão.
O canhão da ilha
de Malta (pag. 63).
[58]
Barbicane encetou a discussão pela seguinte
fórma:
«Caros collegas, temos de resolver um dos problemas mais
importantes da balistica, a sciencia por antonomasia, a que trata do
movimento dos projectis, isto é, dos corpos arremessados ao
espaço, por uma força de impulsão
qualquer e depois
abandonados a si proprios.
--Ai! balistica! balistica! exclamou J.-T. Maston em tom commovido.
--Talvez parecesse mais logico, proseguiu Barbicane, dedicar esta
primeira sessão á discussão do
machinismo...
--E na verdade, interrompeu o general Morgan.
--Todavia, continuou Barbicane, depois de reflectir maduramente,
pareceu-me que o assumpto projectil devia ter primazia sobre o assumpto
canhão, e que as dimensões
d'este deveriam depender das d'aquelle.
--Peço a palavra, gritou J.-T. Maston.
Foi-lhe concedida a palavra com a boa vontade de que se tornava
merecedor pelos seus magnificos antecedentes.
«Meus bons amigos, disse Maston, em tom de
inspiração, o nosso presidente tem
rasão em dar a primazia ao assumpto
projectil sobre todos os outros! A bala que ora vamos arremessar
á Lua é um mensageiro, um embaixador, e
dêem-me
licença que a considere pelo lado puramente
moral.»
Esta maneira nova de encarar um projectil excitou singularmente a
curiosidade dos membros da commissão; todos se prepararam
para prestar a mais solícita attenção
ás palavras de J.-T. Maston.
«Caros collegas, proseguiu este; serei breve, porei de parte
a bala physica, a bala que mata, para considerar sómente a
bala
[59]
mathematica, a bala moral. Para mim a
bala é a mais
esplendida manifestação do poder do homem; na
bala resume-se
este poder todo inteiro, e foi quando a inventou que o homem mais se
approximou do Creador!
--Muito bem! disse o major Elphiston.
--E na verdade, exclamou o orador, se Deus fez as estrellas e os
planetas, o homem fez a bala, que é o
criterium das velocidades terrestres e uma
imitação, em menores
proporções, dos astros que erram no
espaço, que não
são mais do que outros tantos projectis! Pertence a Deus a
velocidade da electricidade, a Deus a velocidade da luz, a velocidade
das estrellas, a velocidade dos cometas, a velocidade dos planetas, a
velocidade dos satellites, a velocidade do som, a velocidade do vento!
Mas a nós os homens a velocidade da bala, cem vezes superior
á velocidade
da locomotiva ou do mais rapido corcel!»
J.-T. Maston estava exaltado; entoando á bala este hymno
sagrado, percebiam-se-lhe na voz inflexões lyricas.
«Querem algarismos? proseguiu elle; ei-los, e que fallam bem
alto! Olhem simplesmente a modesta bala de vinte e quatro
[33], que corre
oitocentas mil vezes menos veloz que a electricidade, seiscentas e
quarenta mil vezes menos veloz que a luz, setenta e seis vezes menos
veloz que a Terra, no movimento de
translação em volta do Sol, e que todavia, quando
sáe do
canhão, excede em rapidez o som
[34],
anda 200 toezas em cada
segundo, 2:000 toezas em 10 segundos, 14 milhas (6 leguas) em cada
minuto, 840 milhas (360 leguas) por hora, 27:100 milhas (8:640 leguas)
por dia, ou, o que vale o mesmo, 7.336:500 milhas (3.155:760 leguas)
por anno, velocidade igual á dos pontos do equador no
movimento
[60]
de rotação do globo. Gastaria portanto 11
dias para ir á Lua, 12 annos para chegar ao Sol, 360 annos
para alcançar
Neptuno, situado no extremo limite do mundo solar. Eis o que fazia
tão modesta bala, producto de mãos humanas! Que
será quando vintuplicando-lhe a velocidade, a arremessarmos
com a velocidade de 7 milhas por segundo! Ah! soberba bala! esplendido
projectil! Exulto em acreditar que has de ser recebida lá em
cima com todas as honras devidas a um embaixador terrestre!»
Com repetidos hurrahs applaudiram os auditores esta altisonante
peroração, e J.-T. Maston sentou-se extremamente
commovido e recebendo felicitações de todos os
collegas.
«E agora, disse Barbicane, que já demos largas
á poesia, atiremo-nos directamente ao assumpto.»
--Estamos promptos, responderam os membros da commissão,
absorvendo ao mesmo tempo meia duzia de sandwiches por
cabeça.
--Já tendes conhecimento do problema que temos de resolver,
continuou o presidente; trata-se de imprimir a um projectil uma
velocidade de 12:000 jardas por segundo.
«Tenho rasões para acreditar que havemos de
conseguir bom resultado. Mas, por agora, limitemo-nos a examinar as
velocidades obtidas até hoje; o general Morgan
póde
instruir-nos cabalmente a este respeito.
--E com tanta maior facilidade, respondeu o general, que, durante a
guerra, fui eu membro da commissão de experiencias.
Dir-vos-hei, pois, que os canhões de cem de Dahlgreen, cujo
alcance era de 2:500 toezas, imprimiam ao projectil respectivo a
velocidade inicial de 500 jardas por segundo.
--Bem. E a Columbiada
[35]
Rodman, perguntou o presidente?
[61]
--A Columbiada Rodman, ensaiada no forte de Hamilton, proximo a New
York, arremessava uma bala, que tinha de peso meia tonelada,
á distancia de 6 milhas, com a velocidade de 800
jardas por segundo, resultado este a que nunca chegaram, nem Armstrong,
nem Palisser, em Inglaterra.
--Oh! os inglezes! murmurou J.-T. Maston, apontando para o horisonte
leste com o temivel gancho.
São portanto essas 800 jardas o
maximum de velocidade, proseguiu Barbicane, que se
tem podido obter até hoje?
--É verdade, respondeu Morgan.
--Todavia, replicou Maston, sempre devo dizer, que, se o meu morteiro
não tivera rebentado...
--Pois sim, mas rebentou, redarguiu Barbicane, acompanhando a resposta
com um gesto amigavel. Tomemos pois por ponto de partida a velocidade
de 800 jardas. Ha de ser necessario
vintuplica-la, e n'estes termos, guardando para outra sessão
o estudo dos meios proprios para produzir tal velocidade, chamarei a
vossa attenção, caros collegas, para as
dimensões que convem dar á bala.
Bem deveis imaginar que no caso presente não
tratâmos de projectis que pesem quando muito meia tonelada.
--E porque? perguntou o major?
--Porque a bala que estamos discutindo, respondeu promptamente J.-T.
Maston, deve ser bastantemente volumosa para solicitar a
attenção dos habitantes da Lua, se é
que lá os ha.
--É verdade, redarguiu Barbicane, e tambem por
outra rasão ainda mais importante.
--E qual é ella, Barbicane? perguntou o major.
--É que não me parece bastante mandar um
projectil á Lua, e ficar só n'isso; julgo
necessario que o acompanhemos durante
a viagem e até ao momento de bater no alvo.
--O que! disseram a um tempo. O
general e o major, um tanto surprehendidos com a proposta.
[62]
--Certamente, continuou Barbicane, como quem está conscio do
que diz, de certo, e senão a nossa experiencia
não produziria resultado algum.
--Mas n'esse caso, replicou o major, haveis de dar ao projectil
dimensões enormes?
--Nada. Ora tende a bondade de ouvir-me. Sabeis todos que os
instrumentos de optica têem alcançado um
elevado grau de perfeição; com certos telescopios
tem-se conseguido obter augmentos de seis mil por um e trazer assim a
Lua á distancia
proximamente de 40 milhas (16 leguas). Ora a esta distancia
são
distinctamente visiveis os objectos que têem 60
pés de lado. E se
não se tem levado mais longe o poder de augmento dos
telescopios é que a
amplificação cresce na rasão inversa
da clareza, e porque a Lua, que não é
senão um espelho de
reflexão, não emitte luz bastante intensa para
que possa admittir amplificações que
vão alem do limite que indiquei.
--E então! que fazer? perguntou o general. Haveis de dar ao
vosso projectil 60 pés de diametro?
--Certamente que não!
--Tereis então de tornar a Lua mais luminosa?
--Justamente.
--Isso lá me parece muito! exclamou J.-T. Maston.
--É muito é verdade, mas muito simples, respondeu
Barbicane. Com effeito se eu conseguir que diminua a espessura da
atmosphera que a luz da Lua atravessa, acaso não terei
tornado essa luz mais intensa!
--Evidentemente.
--Pois bem! Para obter tal resultado bastar-me-ha estabelecer um
telescopio em alguma montanha elevada. E é o que havemos de
fazer.
--Basta, rendo-me, respondeu o major. Tendes uma tal maneira de
simplificar as cousas!
[63]
--E que amplificação esperaes obter por tal
expediente?
--Uma amplificação de quarenta e oito mil por um,
que ha de trazer-nos a Lua a cinco milhas de distancia. N'esta
hypothese
bastará que qualquer objecto tenha nove pés de
lado para que seja perfeitamente visivel.
--Perfeitamente! exclamou J.-T. Maston, o nosso projectil ha de
portanto ter nove pés de diametro?
--Nem mais nem menos.
--Todavia, permittam-me que lhes diga, redarguiu o major Elphiston, que
ainda assim o projectil ha de ter um peso tal que...
--Oh! major, respondeu Barbicane, antes que discutamos o peso do
projectil consenti que vos diga que nossos paes faziam n'este genero
cousas realmente maravilhosas. Longe de mim a idéa de
affirmar que a balistica não tem
progredido, mas bom é que se saiba que já na
idade media se obtinham resultados
surprehendentes; ousarei até acrescentar, mais para
surprehender que os que nós hoje
alcançâmos.
--Ora essa! replicou Morgan.
--Justificae o que affirmaes, exclamou com vehemencia J.-T. Maston.
--Nada mais facil, respondeu Barbicane; sobram-me os exemplos para
apoiar o que asseverei. Assim, no assedio de Constantinopla por Mahomet
II, em 1543, lançaram-se balas de pedra que pesavam mil e
novecentas libras, e que deviam ser de bonito tamanho.
--Oh! oh! disse o major, mil e novecentas libras, é
já um algarismo elevado!
--Em Malta, no tempo dos cavalleiros, um certo canhão do
forte de Sant'Elmo arremessava projectis que pesavam duas mil e
quinhentas libras.
--Parece impossivel!
--Finalmente, segundo diz um historiador francez, no reinado
[64]
de Luiz XI, havia um morteiro que
lançava bombas do peso
sómente de quinhentas libras; em
compensação estas
bombas, partindo da Bastilha, logar onde os loucos encarceravam os de
espirito são, iam cahir em Charenton, logar onde os de
espirito
são encarceravam os loucos.
--Muito bem! disse J.-T. Maston.
--E depois do que acabo de relatar, em summa, que temos visto? Os
canhões de Armstrong que arremessam balas de
quinhentas libras, e as Columbiadas Rodman projectis de meia tonelada!
O que parece, portanto, é que se os projectis ganharam em
velocidade, perderam pelo menos em peso. Se dirigirmos pois n'este
sentido os nossos esforços, havemos de conseguir, com
o auxilio dos progressos da sciencia decuplicar o peso das balas de
Mahomet II e dos cavalleiros de Malta.
--Evidente, respondeu o major, mas que metal pensaes em empregar para
compor o projectil.
--Ferro fundido, nada mais, disse o general Morgan.
--Ora! ferro fundido! exclamou J.-T. Maston com profundo desdem,
é cousa bem ordinaria para fabricar uma bala
destinada a ir á Lua.
--Nada de exagerações, honrado amigo, respondeu
Morgan; ferro é quanto basta.
--E então! replicou o major Elphiston; olhem que sendo o
peso da bala proporcional ao seu volume, uma bala de ferro fundido que
tenha nove pés de diametro ha de ainda ter um tal peso que
mette medo!
--Assim será, se for massiça, mas não
se for oca, disse Barbicane.
--Oca! então é um obuz?
--Onde podem metter-se correspondencias, replicou J.-T. Maston, e
amostras das producções terrestres!
--Sim, um obuz, respondeu Barbicane, assim é absolutamente
[65]
necessario; uma bala
massiça de cento e oito pollegadas
pesaria mais de duzentas mil libras, peso evidentemente excessivo;
todavia como julgo necessario guardar as
condições de
estabilidade na construcção do projectil,
proponho que se lhe
dê o peso de cinco mil libras.
--Qual ha de ser então a grossura das paredes? perguntou o
major.
--Se nos cingirmos á proporção
indicada nos regulamentos, continuou Morgan, ao diametro de cento e
oito pollegadas correspondem paredes de dois pés de
espessura, pelo menos.
--Seriam grossas de mais, respondeu Barbicane; notem bem, que se
não trata aqui de uma bala fabricada para furar
couraças; basta que a bala tenha paredes sufficientemente
fortes para resistir á pressão dos gazes da
polvora.
O problema portanto é este: qual é a espessura
que deve ter um obuz de ferro fundido para que não pese mais
de vinte mil
libras?
O nosso habil calculador e bom amigo Maston no-lo dirá sem
demora.
--Muito facilmente, replicou o honrado secretario da
commissão.
E quando tal dizia ia já traçando no papel
algumas formulas algebricas; viram-se-lhe sair dos bicos da pena
π e
x elevados ao quadrado.
Pareceu até
que, sem lhe pôr a
mão, extrahia, uma certa raiz cubica, e disse:
«As paredes hão de ter apenas duas pollegadas de
grossura.»
--E será bastante?perguntou o major, com ares de quem
duvida.
--Não, respondeu o presidente Barbicane, é claro
que não.
--E então! que se ha de fazer? continuou Elphiston com ares
de grande irresolução.
--Servir-se de outro metal e não do ferro fundido.
[66]
--Do cobre? disse Morgan.
--Nada, o cobre ainda é pesado demais, e tenho para vos
propor cousa melhor.
--Então que é? disse o major.
--O aluminium, respondeu Barbicane.
--Aluminium! exclamaram os tres collegas do presidente.
--Certamente amigos meus. Sabeis que um illustre chimico francez,
Henry-Sainte-Claire-Deville, conseguiu em 1854 obter o aluminium em
massa compacta. Ora este precioso metal tem a brancura da prata, a
inalterabilidade do oiro, a tenacidade do ferro, a fusibilidade do
cobre e é leve como vidro;
modela-se com facilidade, está espalhado com
profusão na
natureza, visto como a alumina é base da maior parte das
rochas, é
tres vezes mais leve que o ferro, e parece ter sido expressamente
creado para fornecer-nos materia para o nosso projectil.
--Hurrah pelo aluminium! exclamou o secretario da commissão,
sempre extremamente ruidoso nos momentos de enthusiasmo.
--Mas, caro presidente, disse o major, não será
extremamente elevado o preço do aluminium?
--Assim era, respondeu Barbicane; nos primeiros tempos depois que foi
descoberto, custava a libra do aluminium entre duzentos e sessenta e
duzentos e oitenta dollars (approximadamente 1.500 francos
[36]); depois
desceu a vinte e sete dollars (150 francos), e hoje finalmente,
está a nove dollars (48 francos e 75
centesimos).
--Mas a nove dollars por libra, replicou o major, que não
cedia á primeira, vem a dar ainda um preço
enorme!
--Sem duvida, caro major, mas não inaccessivel.
[67]
--E, n'esse caso, qual ha de ser o peso do projectil? perguntou Morgan.
--O resultado dos meus calculos é o seguinte, respondeu
Barbicane: uma bala de cento e oito pollegadas de diametro e de doze
pollegadas de espessura
[37],
pesaria, no caso de ser de ferro fundido,
sessenta e sete mil quatrocentas e quarenta libras; sendo de aluminium
fundido, o seu peso ficará reduzido a dezanove mil
duzentas e cincoenta libras.
--Muito bem! exclamou Maston, isso agora já cabe no nosso
programma.
--Muito bem! Muito bem! Mas acaso ignoraes, que a dezoito dollars por
libra, esse projectil havia de custar-nos...
--Cento e setenta e tres mil duzentos e cincoenta dollars (928:437
francos e 50 centesimos), sei-o muito bem; mas não
se assustem amigos, não ha de faltar dinheiro para a
realisação do nosso projecto; por isso respondo
eu.
--Ha de chover dinheiro nos nossos cofres, replicou J.-T. Maston.
--Então! que me dizem ao aluminium!
perguntou o presidente.
--Está adoptado, responderam os tres membros da
commissão.
--Quanto á fórma da bala, proseguiu Barbicane,
pouca importancia tem, visto como, logo que o projectil passe para alem
da atmosphera, ha de achar-se no vacuo, proponho portanto, que seja
redonda, para que gire sobre si mesmo, se o julgar conveniente, ou se
porte como melhor lhe ditar a phantasia.
Foi este o fecho da primeira sessão da commissão;
ficou definitivamente resolvida a questão do projectil, e
J.-T. Maston exultou com a idéa de mandar aos Selenitas uma
Bala de aluminium «que havia dar-lhes a entender que os
habitantes
cá da Terra eram uns pimpões!»
[68]
CAPITULO VIII
HISTORIA DO CANHÃO
As resoluções tomadas na primeira
sessão produziram grandissimo effeito no publico. Algum mais
timorato lá se assustava com a idéa da bala que
havia de pesar vinte mil libras.
Punha-se em duvida se poderia construir-se canhão capaz de
transmittir velocidade inicial bastante a uma massa d'aquella ordem.
A acta da segunda sessão da commissão devia
responder triumphantemente a todas aquellas duvidas.
No dia seguinte ao cair da noite abancaram em volta da mesa os quatro
membros do Gun-Club defrontando com novas montanhas de sandwiches que
marginavam um verdadeiro oceano de chá. Atou-se o fio
á discussão, e
d'esta vez sem preambulo.
«Caros collegas, disse Barbicane, vamos occupar-nos do
machinismo que ha a construir, estudando-lhe o comprimento, a
fórma, a composição e o peso.
É provavel que
havemos de concluir dando-lhe dimensões gigantescas; mas,
por maiores que sejam as difficuldades, o engenho industrial dos
americanos ha de vence-las com facilidade. Queiram portanto ouvir-me, e
não me poupem, venham objecções
á queima roupa, que
as não temo!»
Estas palavras foram recebidas com um grunhido de
approvação.
«Não esqueçamos, proseguiu Barbicane, a
altura a que fomos levados hontem pela discussão:
apresenta-se-nos agora o
problema nos seguintes termos: imprimir a um obuz de cento e oito
pollegadas de diametro, e que pesa vinte mil libras a velocidade
inicial de doze mil jardas por segundo.
[69]
Com effeito, é exactamente esse o problema, respondeu o
major Elphiston.
Prosigamos, tornou Barbicane. Que factos se passam, quando um projectil
é arremessado ao espaço? Tres
forças independentes o solicitam, a resistencia do meio, a
attracção
da Terra, e a força de impulsão que lhe
imprimiram. Examinemos estas tres
forças. A resistencia do meio, que aqui é a
resistencia do ar, ha de
ser de pouca importancia; porque a atmosphera terrestre não
tem mais de quarenta milhas (16 leguas proximamente) de altura. Ora,
com a rapidez de doze mil jardas, o projectil ha de atravessa-la em
cinco segundos, tempo bastantemente curto para que a resistencia do
meio possa ser considerada insignificante. Passemos á
attracção da Terra, ou o que vale o
mesmo á acção da gravidade sobre o
obuz.
Sabemos que o peso d'este ha de decrescer na rasão inversa
do quadrado das distancias. Effectivamente ensina-nos a physica o
seguinte: quando um corpo abandonado a si proprio cáe
á superfície da Terra, desce quinze
pés
[38],
e se o mesmo corpo fosse transportado para a
distancia de duzentos e cincoenta e sete mil quinhentas e quarenta e
duas milhas, ou o que é mesmo,
á distancia a que está a Lua, o seu descenso
ficaria reduzido a meia linha, proximamente, no primeiro segundo. Quasi
que é a
immobilidade. Trata-se portanto de vencer progressivamente a
acção da gravidade. E como havemos de
consegui-lo? Pela força de
impulsão.
--Ahi é que está a difficuldade, respondeu o
major.
--Ahi está, na verdade, continuou o presidente, mas havemos
de supera-la, porque a força de impulsão de que
havemos mister ha de resultar do comprimento do machinismo e da
quantidade
[70]
de polvora que empregarmos, e a
verdade é que esta
não tem mais limitação do que a
resistencia d'aquelle.
Tratemos pois hoje das dimensões que havemos de dar ao
canhão. Bem entendido está que podemos
estabelece-lo em
condições de resistencia, por assim dizer,
infinita, visto como com tal canhão não ha a
fazer manobras.
--Tudo isso é evidente, respondeu o general.
--Até agora, disse Barbicane, os canhões de maior
comprimento, as nossas enormes Columbiadas, nunca excederam o
comprimento de vinte e cinco pés, e portanto a muita gente
hão de causar espanto as dimensões que havemos de
ser
forçados a adoptar.
--Eh! indubitavelmente, exclamou J.-T. Maston; pela minha parte
não me contento com menos de meia milha de
comprimento, para o canhão!
--Meia milha! exclamaram o major e o general.
--Meia milha sim! e talvez devesse dizer o dobro.
--Ora vamos, Maston, isso é
exageração.
--Certamente que não, replicou o effervescente secretario,
nem percebo, na realidade, por que me accusaes de exagero.
--Porque ides longe de mais!
--Sabei, senhor, respondeu J.-T. Maston, assumindo os seus mais
imponentes ademanes, sabei que o artilheiro é como a
bala, que nunca vae longe de mais!
Ía a discussão tomando caracter de personalidade,
mas o presidente interveiu.
--Soceguem, amigos, e raciocinemos; evidentemente ha de ser necessario
um canhão de grande tamanho, visto como o
comprimento da peça ha de augmentar a força
expulsiva dos
gazes accumulados sob o projectil; mas é inutil ir alem de
certos limites.
--Muito bem, disse o major.
--Quaes são as regras applicaveis ao caso? De ordinario o
comprimento
[71]
do canhão é igual a vinte
até vinte e cinco vezes o diametro da bala, e pesa o
canhão duzentas e trinta e cinco a
duzentos e quarenta vezes o peso d'esta.
--Não é bastante, clamou impetuoso, J.-T. Maston.
--Convenho n'isso, meu digno amigo, e, na realidade, se nos cingirmos
á proporção apontada, para
um projectil de 9 pés de largura e de 30:000 libras de peso,
não terá o
machinismo mais do que 225 pés de comprimento e de 7.200:000
libras de peso.
--É ridiculo, redarguiu J.-T. Maston. Tanto vale usar de uma
pistola!
--Tambem penso assim, respondeu Barbicane, e é por isso que
tenho tenção de quadruplicar esse
comprimento, e de construir um canhão de 900 pés
de comprido.
O general e o major apresentaram algumas
objecções, entretanto a proposta sustentada com
animação pelo
secretario do Gun-Club foi a final definitivamente adoptada.
«Decidido este ponto, disse Elphiston, que espessura havemos
de dar ás paredes?
--Seis pés, respondeu Barbicane.
--De certo que não imaginaes collocar uma massa d'essa ordem
em cima de um reparo? perguntou o major.
--Isso é que havia de ser soberbo! disse J.-T. Maston.
--Mas impraticavel, respondeu Barbicane. Nada, penso que o machinismo
deve ser moldado mesmo no solo, guarnecido de arcos de ferro forjado, e
apertado n'uma obra bem espessa e solida de pedra e cal, por forma que
adquira toda a resistencia do terreno circumdante. Depois de fundida a
peça ha de se lhe brocar, calibrar e polir a alma com
extremo cuidado, para evitar que exista o vento
[39] da bala.
[72]
Vista ideal do canhão
de J.-T. Maston (pag.
70).
Por esta fórma não ha de haver perda alguma de
gazes e a força expansiva da polvora transformar-se-ha toda
em
impulsão.
[73]
O
monge Schwartz inventando a polvora (
pag. 77).
--Hurrah! hurrah! clamou J.-T. Maston, já temos
canhão.
--Ainda não! respondeu Barbicane, acalmando com o gesto a
impaciencia do amigo.
[74]
--E porque não?
--Porque ainda lhe não discutimos a fórma. Ha de
ser canhão, obuz ou morteiro?
--Canhão, replicou Morgan.
--Obuz, redarguiu o major.
--Morteiro, clamou J.-T. Maston.
Nova e vehemente discussão ia encetar-se; cada qual
preconisava já a sua arma favorita, quando o presidente a
interrompeu de prompto, dizendo:
«Meus amigos, vou pô-los a todos de accordo; a
nossa columbiada ha de ter alguma cousa de cada uma das tres
bôcas de fogo indicadas. Ha de ser canhão, por ter
a camara da polvora de
diametro igual ao da alma. Obuz, porque ha de arremessar obuzes.
Finalmente será morteiro, visto como ha de ser apontada por
um angulo de 90°, e que, sem poder recuar, inabalavelmente
ligada ao
solo, communicará ao projectil toda a potencia de
impulsão que se lhe accumular no ventre.
--Adoptado, adoptado, conclamaram os membros da commissão.
--Permittam-me uma simples reflexão, disse Elphiston, ha de
ser raiado esse canh-obuz-morteiro?
--Não, respondeu Barbicane, não;
precisâmos de uma enorme velocidade inicial, e sabeis muito
bem que as balas sáem
menos velozes dos canhões raiados do que dos
canhões de
alma lisa.
--É exacto.
--Até que emfim d'esta vez é que já
temos canhão! repetiu J.-T. Maston.
--Ainda não é tanto assim, replicou o presidente.
--Então porque?
--Porque ainda não sabemos de que metal ha de ser feito.
--Decida-se isso sem demora.
--Era o que eu ia propor-vos».
[75]
Cada um dos membros da commissão foi engulindo a sua duzia
de sandwiches acompanhadas de um bule de chá, depois
recomeçou a discussão.
«Meus bons collegas, disse Barbicane, o nosso
canhão deve ter grande tenacidade e grande dureza, e ser
infusivel pelo calor, insoluvel e inoxydavel pela
acção corrosiva dos
acidos.
--Isso não tem duvida alguma, respondeu o major, e como ha
de ser necessario empregar uma quantidade consideravel de metal,
não havemos de hesitar muito na escolha.
N'esse caso, disse Morgan, proponho para a
fabricação da columbiada a melhor das ligas que
é conhecida até
hoje, isto é, cem partes de cobre, doze de estanho e seis de
latão.
--Meus amigos, respondeu o presidente, confesso que esta
composição tem dado excellentes resultados; mas
para o nosso caso, custaria excessivamente cara, e difficilmente
poderiamos emprega-la.
Cuido portanto que devemos adoptar uma materia excellente, e de baixo
preço, tal como o ferro fundido.
Não será esta a vossa opinião, major?
--Exactamente, respondeu Elphiston.
--Com effeito, proseguiu Barbicane, o ferro fundido, custa dez vezes
mais barato que o bronze, é de facil fusão,
molda-se com simplicidade em moldes de areia, manipula-se com rapidez;
dá
pois simultaneamente economia de tempo e de dinheiro. Alem d'isto esta
materia é excellente, e bem me recordo de que,
durante a guerra, no cêrco de Atlanta, algumas
peças de
ferro fundido atiraram cada uma mil tiros de vinte em vinte minutos,
sem que por isso soffressem alteração.
--Todavia, o ferro fundido é muito quebradiço,
respondeu Morgan.
--É verdade, mas tambem é muito resistente, e de
mais asseguro-vos que não havemos de rebentar, por isso
respondo eu.
[76]
--Rebentar não é deshonra, replicou em ar de
sentença J.-T. Maston.
--Está claro, respondeu Barbicane. Pedirei portanto ao nosso
digno secretario que nos calcule o peso de um canhão de
ferro fundido, de novecentos pés de comprimento e com um
diametro interior de nove pés, e com as paredes de seis
pés de espessura.
--N'um instante, respondeu J.-T. Maston.
E, assim como fizera na vespera, escrevinhou umas formulas, com
facilidade de pasmar, e disse passado um minuto.
«Esse canhão ha de pesar sessenta e oito mil e
quarenta toneladas (68.040:000 kilogrammas).»
--E a dois centesimos
[40]
(10 centimos) por libra, ha de custar?...
--Dois milhões quinhentos e dez mil setecentos e um dollars
(13.608:000 francos).»
J.-T. Maston, o major e o general olharam para Barbicane com ar de
inquietação.
«E então! Repito-lhes, senhores, o que
já lhes disse hontem, estejam descansados, que os
milhões não nos
hão de faltar.»
Seguros na palavra do seu presidente, separaram-se os membros da
commissão, depois de terem combinado para o dia seguinte a
terceira sessão.
CAPITULO IX
QUESTÃO DA POLVORA
Só faltava tratar da questão da polvora. Esperava
o publico com anciedade esta decisão final. Dados o volume
do
projectil e o comprimento do canhão, qual seria a quantidade
de polvora
necessaria
[77]
para
produzir a impulsão? Aquelle agente temivel,
de que o homem, todavia conseguiu dominar e dirigir os effeitos, ia
ser chamado a desempenhar o seu papel habitual, mas em
proporções nunca usadas.
É geralmente acreditado, e diz-se vulgarmente, que a polvora
foi inventada no seculo XIV, pelo monge Schwartz, que pagou com a vida
a grande descoberta que fizera. Mas na actualidade quasi que se
póde dar como provado que esta historia merece ser
classificada a par de muitas outras lendas da idade media. A polvora
ninguem a inventou, deriva directamente dos fogos gregos, como ella
compostos de enxofre e de salitre. A
differença é que os mixtos que em tempos remotos
davam apenas polvora de foguete transformaram-se, com o decorrer dos
tempos, em mixtos detonantes ou polvoras de tiro. Porém se
os eruditos
conhecem perfeitamente a imaginaria historia da
invenção
da polvora, pouca gente ha que saiba devidamente apreciar a sua
potencia mechanica, que é exactamente o que é
necessario
saber para comprehender a importancia do assumpto sujeito á
commissão.
Um litro de polvora pesa, proximamente, duas libras (900 grammas)
[41], e
produz quando se inflamma quatrocentos litros de gazes; estes gazes, em
liberdade, e sob a acção de uma
temperatura elevada até dois mil e quatrocentos graus,
occupam um
espaço equivalente a quatro mil litros.
Portanto o volume da polvora em grão está para o
volume dos gazes produzidos pela sua deflagração,
assim como
um está para quatro mil. Avalie-se por isto a espantosa
impulsão que
hão de produzir estes gazes, quando comprimidos n'um
espaço quatro mil vezes mais apertado do que o que
naturalmente haviam de occupar.
[78]
Isto tudo sabiam, e perfeitamente, os membros da commissão
quando no dia seguinte abriram a sessão. Barbicane concedeu
a palavra ao major Elphiston, que tinha sido director das fabricas de
polvora no tempo da guerra.
«Caros camaradas, disse aquelle notavel chimico, vou
começar pela citação de algarismos
irrecusaveis que
hão de ser a base dos nossos calculos. A bala de vinte e
quatro, de que em termos
tão poeticos nos fallou antes de hontem o honrado J.-T.
Maston,
é expellida da bôca de fogo apenas por dezeseis
libras de polvora.
--Estaes seguro d'esse algarismo? Perguntou Barbicane.
--Absolutamente seguro, respondeu o major. O canhão
Armstrong carrega-se só com setenta e cinco libras de
polvora para um projectil de oitocentas libras de peso, e a columbiada
de Rodman não gasta mais de sessenta libras de polvora para
arremessar
a seis milhas de distancia a sua bala de meia tonelada. São
factos que não podem ter contestação,
porque eu proprio tomei nota d'elles nas actas da commissão
de artilheria.
--Muito bem, respondeu o general.
--Ora pois! proseguiu o major, a consequencia que devemos tirar d'estes
dados é a seguinte: que a quantidade de
polvora não augmenta na proporção do
peso da bala; e, na
verdade, são necessarias dezeseis libras de polvora para uma
bala de vinte e quatro; por outras palavras, gastam-se nos
canhões ordinarios
quantidades de polvora que pesam um terço do peso da bala,
mas a proporcionalidade não é constante. Se
fizessemos
o calculo, haviamos de reconhecer que para a bala de meia tonelada, o
peso da polvora necessaria, que se reduz a sessenta libras apenas,
seria, segundo a proporção, de trezentas e trinta
e tres
libras.
--E a que conclusão quereis por ahi chegar? Perguntou o
presidente.
Levando essa theoria até aos seus ultimos limites, meu caro
major, disse J.-T. Maston, haveis de chegar á seguinte
conclusão
[79]
final: que, se
póde dispensar a polvora, toda a vez que a
bala exceda um certo peso.
--O nosso Maston é sempre faceto, mesmo quando se trata de
cousas serias, mas esteja descansado que lhe hei de propor quantidades
de polvora, capazes de lisonjear o seu amor proprio de artilheiro. O
que eu pretendo que fique claramente estabelecido, é que, no
tempo da guerra, o peso da polvora foi, por
experiencia, reduzido para os maiores canhões á
decima parte
do peso da bala.
--Nada ha mais verdadeiro, disse Morgan. Lembro entretanto, que
será conveniente que accordemos ácerca da
natureza da polvora, antes de decidir qual é a quantidade
d'ella necessaria para a impulsão calculada.
--Havemos de usar da polvora bombardeira, respondeu o major, porque a
combustão total d'esta é mais rapida que
a da polvora miuda.
--É verdade, replicou Morgan, mas é muito
quebradiça, e no fim de tempos vem a deteriorar a alma das
peças.
--Ora! isso poderia ser um inconveniente para qualquer
canhão destinado a fazer longos serviços, mas
para a nossa
columbiada não. Perigo de explosão não
temos
nós que temer, o que é essencial é que
a polvora se inflamme
instantaneamente, para que o seu effeito mechanico seja completo.
--Talvez se podesse abrir na peça mais de um ouvido, disse
J.-T. Maston, e assim dar fogo em muitos pontos simultaneamente.
--Pois sim, respondeu Elphiston, mas isso iria difficultar a manobra.
Insisto portanto na minha bombardeira, que evita essas difficuldades.
--Vá, respondeu o general.
[80]
--Rodman, proseguiu o major, usava para carregar a sua columbiada de
uma polvora, cujos grãos eram do tamanho de uma
castanha, e fabricada com carvão de salgueiro mal torrado em
caldeiras de ferro fundido. Esta polvora era dura e luzidia, e
incendiando-se na mão não deixava vestigios;
continha hydrogenio
[81]
e oxygenio em grandes
proporções, ardia
instantaneamente, e, apesar de ser muito quebradiça,
não deteriorava
sensivelmente as bôcas de fogo.
Nicholl publicou grande numero
do cartas (pag. 91).
[82]
--Em vista d'isso, respondeu J.-T. Maston, parece-me que não
ha que hesitar, e que a escolha está de per si feita.
--A não ser que deis preferencia ao oiro
pulverisado, replicou rindo, o major, riso que o
susceptivel secretario pagou com um gesto ameaçador do seu
gancho.
Barbicane conservára-se até aquelle momento
estranho á discussão. Deixava fallar e ouvia. Era
evidente que tinha o juizo formado ácerca do assumpto. Por
isso limitou-se a dizer o seguinte:
«Em conclusão, meus amigos, que quantidade de
polvora, reputaes necessaria?»
Entre-olharam-se por um momento os tres socios do Gun-Club.
«Duzentas mil libras, disse por fim Morgan.
--Quinhentas mil, replicou o major.
--Oitocentas mil!» exclamou J.-T. Maston.
D'esta vez não se atreveu Elphiston a alcunhar o collega de
exagerado. E com rasão, que se tratava de arremessar
á Lua
um projectil de vinte mil libras de peso, e de communicar a este uma
força inicial de doze mil jardas por segundo. Seguiu-se
portanto um momento de silencio á triplice proposta feita
pelos tres
collegas.
Quebrou-o finalmente o presidente Barbicane.
«Estimaveis camaradas, disse este com voz placida, parto eu
do principio, que a resistencia do nosso canhão, construido
nas condições requeridas, é
illimitada.
Portanto vou causar surpreza ao honrado J.-T. Maston, affirmando-lhe
que ainda foi timido nos seus calculos, e proponho que sejam duplicadas
as oitocentas mil libras de polvora em que fallou.
--Um milhão e seiscentas mil libras? disse J.-T. Maston,
dando um salto na cadeira.
--Nada menos.
--Mas, n'esse caso, voltâmos ao meu canhão de meia
milha de comprimento.
[83]
--É claro, disse o major.
--Um milhão e seiscentas mil libras de polvora, continuou o
secretario da commissão, hão de occupar um
espaço igual a vinte e dois mil pés cubicos
[42]
approximadamente; e como o
canhão em que accordastes tem um volume interno apenas igual
a cincoenta e quatro mil pés cubicos
[43], ha de ficar cheio
até quasi ao meio, sendo por esta forma a alma pequena, para
que a
força expulsiva dos gazes imprima ao projectil
impulsão bastante.
Isto não tinha replica. O que J.-T. Maston dizia era a pura
verdade. Voltaram-se todos para Barbicane.
«Apesar de tudo, tornou o presidente, insisto na quantidade
de polvora que indiquei. Reflecti que um milhão e seiscentas
mil libras de polvora hão de transformar-se em seis milhares
de
milhões de litros de gazes. Ouviram bem? Seis milhares de
milhões!
--Mas então o que se ha de fazer? perguntou o general.
--É muito facil; havemos de reduzir o volume d'esta enorme
quantidade de polvora, sem lhe diminuir por fórma alguma a
potencia mechanica.
--Bem! Mas por que meio?
--É o que vou dizer-vos, respondeu sem nenhum entono
Barbicane.
Os interlocutores devoravam-n'o com o olhar.
«Com effeito, continuou elle, nada é mais facil do
que reduzir essa massa de polvora a um volume quatro vezes menor. Todos
tendes conhecimento d'essa curiosa substancia que constitue os tecidos
elementares dos vegetaes e que se chama cellulose.
--Ah! interrompeu o major. Começo a comprehender, meu caro
Barbicane.
[84]
--Essa substancia, disse o presidente, extrahe-se no estado de perfeita
pureza de diversos corpos, e principalmente do
algodão, que não é senão a
penugem das sementes
do algodoeiro. Ora o algodão, combinado a frio com o acido
azotico,
transforma-se em uma substancia eminentemente insoluvel, eminentemente
combustivel e eminentemente explosiva. Descobriu esta substancia ha
já annos, em 1832, o chimico francez
Braconnot, e poz-lhe o nome de xyloidina. Em 1838 outro francez,
Pelouze, estudou-lhe as differentes propriedades; e finalmente em 1846,
Shonbein, professor de chimica em Bâle, propo-la para polvora
de guerra. Esta polvora é o algodão azotico.
--Ou pyroxylo, respondeu Elphiston.
--Ou algodão-polvora, respondeu Morgan.
--Pois não haverá um nome de americano que se
possa escrever ao lado d'essa descoberta? exclamou J.-T. Maston, movido
por vivo sentimento de amor proprio nacional.
--Infelizmente nem um só, respondeu o major.
--Apesar d'isso, continuou o presidente, por dar prazer a Maston,
sempre lhe direi que póde estabelecer-se proxima
relação entre os trabalhos de um nosso
concidadão e o estudo da
cellulose; porque o collodion, que é um dos agentes
principaes da photographia, não é
senão pyroxylo
dissolvido em ether misturado com alcool, e o collodion foi descoberto
por Maynard, que era então estudante de medicina em
Boston
[44].
[85]
--Pois então, hurrah! por Maynard e pelo
algodão-polvora! exclamou o ruidoso secretario do Gun-Club.
--Voltemos ao pyroxylo, proseguiu Barbicane. Conheceis-lhe
já as propriedades que no-lo vão tornar precioso:
prepara-se com extrema facilidade: é mergulhar
algodão no acido
azotico fumegante durante quinze minutos, lava-lo depois em grande
quantidade de agua, secca-lo e nada mais.
--É na realidade extremamente simples, disse Morgan.
--Alem d'isto o pyroxylo é inalteravel pela humidade,
qualidade que devemos reputar preciosa, visto como hão de
ser
necessarios muitos dias para carregar o nosso canhão;
é
inflammavel a cento e setenta graus centigrados, em vez de duzentos e
quarenta, e arde tão subitamente, que póde ser
queimado em
cima de polvora vulgar, sem que esta tenha tempo de inflammar-se.
--Perfeitamente, respondeu o major.
--Tem só um inconveniente: é caro.
--Isso que importa? interrompeu J.-T. Maston.
--Em conclusão; communica aos projectis velocidade quatro
vezes maior que a da polvora. Acrescentarei ainda que, misturado com
oito decimos do seu peso de nitrato de potassa, lhe augmenta a potencia
explosiva em proporção notavel.
--E será necessario faze-lo? perguntou o major.
--Creio que não, respondeu Barbicane. Em
conclusão, em vez de um milhão e seiscentas mil
libras de polvora, teremos
apenas quatrocentas mil libras de algodão-polvora, e como se
podem
comprimir sem perigo, em vinte e sete pés cubicos,
quinhentas libras de algodão azotico, esta substancia vem a
encher a nossa
columbiada sómente até á altura de
trinta toezas.
Por esta maneira terá a bala a percorrer mais de setecentos
pés de
alma do canhão, sob a acção do
esforço de seis
milhares de milhões de litros de gazes antes de voar em
liberdade para o astro das noites.»
[86]
Ao ouvir o final d'este periodo não
pôde, de commovido, conter-se J.-T. Maston;
lançou-se nos braços do amigo com
vehemencia de projectil; mettia-lhe as costellas dentro, se a solida
construcção de Barbicane não estivera
á prova de bomba.
Terminou com este incidente a terceira sessão da
commissão. Barbicane e os seus audazes collegas, a quem nada
parecia impossivel, tinham acabado de resolver o problema
tão complexo do projectil, do canhão e das
polvoras. Elaborado o plano,
restava a execução.
«Insignificantes pormenores, bagatella», lhe
chamava J.-T. Maston.
CAPITULO X
UM INIMIGO POR VINTE E CINCO MILHÕES DE AMIGOS
O publico americano encontrava poderosos incentivos de curiosidade
até nos mais insignificantes pormenores do emprehendimento
do Gun-Club, e seguia passo a passo as discussões da
commissão.
Os preparativos mais simples para aquella grande experiencia, as
questões de algarismos que d'ella nasciam, as
difficuldades mechanicas que havia a resolver, n'uma palavra a sua
mise
en
train eram o que preoccupava em grau elevadissimo a
opinião.
Mais de um anno havia de decorrer ainda entre o começo e o
termo final dos trabalhos preparatorios; mas este intervallo de tempo
não havia de ser esteril em
emoções; a escolha de logares para a
perfuração, a
construcção do molde, a
fundição da columbiada e o perigosissimo
carregamento d'ella, tudo era mais que sufficiente para excitar a
curiosidade publica.
[87]
O projectil, apenas expellido, havia de escapar em poucos decimos de
segundo ao alcance da vista; depois para poucos privilegiados era verem
com os proprios olhos o que lhe havia de succeder, como se haveria
através do espaço, e por que
fórma havia de alcançar a Lua. Por este motivo
é que os
preparativos para a experiencia e os exactos pormenores da
execução
eram, para a maioria, a parte verdadeiramente interessante d'ella.
E todavia o attractivo puramente scientifico do emprehendimento recebeu
de um subito incidente novo incitamento.
Já dissemos de quão numerosas legiões
de admiradores e amigos tinha o projecto Barbicane trazido a
adhesão ao seu auctor,
e comtudo por mais honrosa e extraordinaria que fosse, aquella maioria
não tinha de ter unanimidade. Um só
homem, um só em todos os Estados da União, lavrou
protesto contra a
tentativa do Gun-Club, que atacou com violencia sempre que se lhe
proporcionou para isso occasião; e, tal é a
natureza humana,
que para Barbicane valeu mais aquella opposição
de um
só do que os applausos de todos os outros.
Apesar de que Barbicane bem conhecia quaes os motivos de tal
antipathia, e d'onde vinha aquella solitaria inimizade, que era pessoal
e de antiga data, e finalmente em que rivalidades de amor proprio
creára raizes.
Aquelle perseverante inimigo, nunca o presidente do Gun-Club o tinha
visto. E felizmente, porque o encontro d'aquelles dois homens havia por
certo de trazer consequencias funestas.
Aquelle rival era, como Barbicane, um homem de sciencia, natureza
altiva, audaz, convicta e violenta, um yankee puro. Chamavam-lhe o
capitão Nicholl, e habitava em Philadelphia.
Ninguem desconhece a curiosa luta que durante a guerra federal se
travou entre o projectil e a couraça dos navios
blindados; aquelle tinha por fito especial varar esta; esta
obstinava-se decididamente a não se deixar varar.
[88]
D'este facto proveio uma transformação de raiz na
marinha dos differentes estados dos dois continentes.
Bala e couraça lutaram com obstinação
nunca vista; crescia o volume de uma, augmentava logo a espessura da
outra, e em constante proporção.
Os navios marchavam para o fogo armados de peças formidaveis
e abrigados por invulneravel concha. Os
Merrimac, os
Monitor, os
Ram-Tenesse, os
Weckausen[45]
arremessavam enormes
projectis, depois de encouraçados contra os projectis
alheios. Faziam a outrem o que não queriam que lhes
fizessem, que
é o principio immoral sobre que assenta toda a arte da
guerra.
Ora se Barbicane fôra notavel fundidor de projectis, Nicholl
não lhe ficára a dever nada como forjador de
chapas para
couraças. Fundia um de noite e de dia em Baltimore, forjava
o outro de dia e de noite em Philadelphia. Cada um d'elles seguia ordem
de
idéas diametralmente oppostas.
Barbicane a inventar nova bala, e Nicholl a inventar nova
couraça. Passava o presidente do Gun-Club a vida a abrir
buracos, e o capitão gastava os dias da existência
a
impedir-lh'o. D'aqui nasceu uma rivalidade de todos os instantes, que
dos factos foi passando ás pessoas. Apparecia Nicholl a
Barbicane em sonhos
sob fórma de impenetravel couraça de encontro
á qual se ia fazer pedaços, Barbicane
apparecia
nas visões nocturnas
de Nicholl qual projectil que o varava de lado a lado.
E comtudo, apesar de caminharem por linhas divergentes, estes homens
tinham de encontrar-se um dia, apesar de todos os axiomas da sciencia
geometrica; mas havia de ser no terreno do duello. Muito felizmente
para cidadãos tão uteis
ao seu paiz, separavam-nos boas cincoenta ou sessenta milhas, e os
amigos de ambos
[89]
semearam-lhe o caminho de taes e tantos obstaculos, que nunca
conseguiram encontrar-se.
Lá qual dos dois inventores levava a palma ao outro,
é que ninguem sabia ao certo: os resultados obtidos tornavam
difficil apreciar com justiça. No fim de contas, o que mais
plausivel parecia,
é que a couraça havia de ser a primeira a ceder
á bala, e todavia para os competentes ainda era caso de
duvida. Por occasião
das ultimas experiencias feitas, os projectis cylindro-conicos de
Barbicane
tinham ido espetar-se como alfinetes nas couraças de
Nicholl; n'esse dia reputou-se o forjador de chapas de
couraça de Philadelphia plenamente victorioso, e o mais
profundo desprezo pareceu-lhe ainda sentimento demasiadamente elevado
para pagar os merecimentos do seu rival; mas quando este, algum tempo
depois, substituiu por simples obuzes de seiscentas libras as balas
conicas, teve o capitão que descer do alto pedestal das suas
pretensões. E na realidade estes projectis, aindaque
animados de mediocre velocidade
[46], esmigalharam,
esburacaram, fizeram
voar em pedaços as chapas de melhor metal.
Tinham as cousas chegado a estes pontos, e a todos parecia que a bala
devia ficar com a palma da victoria, quando terminou a guerra no mesmo
dia em que Nicholl dava a ultima demão a uma
nova couraça de aço forjado! No seu genero, era
esta verdadeira obra prima, e capaz de desafiar todos os projectis
imaginaveis. Fê-la o capitão transportar para o
polygono de
Washington, e mandou cartel ao presidente do Gun-Club, desafiando-o a
vará-la.
Barbicane, como a paz já estava feita, não quiz
tentar a experiencia. Nicholl, então, furioso, offereceu
expor a chapa que
inventara ao choque das balas mais inverosimeis, massiças,
ôcas,
[90]
esphericas ou conicas.
Recusa do presidente, que decididamente não queria arriscar
os louros da ultima victoria que
alcançára.
Nicholl, ainda mais estimulado por aquella inqualificavel
obstinação, quiz tentar Barbicane dando-lhe de
partido todas as probabilidades favoraveis, e propoz-lhe collocar a
chapa a duzentas jardas de distancia do canhão. E Barbicane
a teimar na
recusa. A cem jardas? Nem a setenta e cinco.
«Pois então a cincoenta, clamou o
capitão pela voz dos jornaes, ou a vinte e cinco jardas, e
ponho-me eu por detrás da minha
couraça!»
Barbicane mandou responder que não atiraria, nem que o
capitão Nicholl se pozesse diante em vez de se pôr
de
trás.
Ao ler esta ultima replica não pôde Nicholl
conter-se mais, e arrastou a discussão para o campo das
personalidades, insinuando que a cobardia era cousa indivisivel, e que
o homem que se recusa a disparar um tiro de canhão
não está
muito longe de ter-lhe medo, que em summa esses artilheiros que nos
tempos de agora se batem a seis milhas de distancia substituiam
prudentemente a coragem individual por formulas de mathematicas, e que
no fim de contas tanta coragem havia em esperar placidamente uma bala
detrás de uma couraça; como em
arremessa-la com todas as regras da arte.
Nem palavra respondeu Barbicane a taes
insinuações; talvez mesmo nem d'ellas tivesse
conhecimento, que lhe absorviam por então todas as
forças do espirito os calculos
previos do seu grande projecto.
Quando Barbicane realisou a famosa communicação
ao Gun-Club, é que a raiva do capitão Nicholl
chegou ao
paroxysmo. Referviam-lhe com ella n'alma um ciume immenso e um
sentimento de impotencia absoluta! Que havia de inventar que fosse
superior áquella columbiada de novecentos pés!
Qual havia de
ser a
couraça capaz de resistir a um projectil de trinta mil
libras!
[91]
Nos primeiros momentos ficou Nicholl aterrado, aniquilado, esmigalhado
por aquelle «tiro de
canhão»; mas depois levantou-se, e resolveu
esmagar a proposta debaixo do peso da sua
argumentação.
Combateu por consequencia com grande violencia os trabalhos do
Gun-Club; publicou grande numero de cartas, de que os jornaes
não recusaram a reproducção. Tentou
demolir scientificamente a obra de Barbicane, e uma vez iniciada a
guerra, serviu-se de toda a casta de argumentos, que, força
é dize-lo,
foram as mais das vezes especiosos e de baixo quilate.
O ataque a Barbicane começou, e com summa violencia, pelas
questões de algarismos; Nicholl tentou demonstrar por A+B
que eram falsas as formulas de que se servia o presidente, e accusou-o
de ignorar os principios rudimentares da balistica. Entre outros erros
de que lhe fazia cargo, apontava-lhe a impossibilidade, demonstrada,
segundo os calculos d'elle Nicholl, de imprimir a um corpo qualquer a
velocidade de doze mil jardas por segundo; sustentou com a algebra em
punho, que ainda mesmo animado d'essa velocidade, nunca projectil de
peso tal havia de ir alem dos limites da atmosphera terrestre! Nem
sequer oito leguas havia de percorrer! Ainda mais. Dado, mas
não concedido que se podesse conseguir
tal velocidade, e ainda reputada esta sufficiente, nem o obuz poderia
resistir á pressão dos gazes, que se haviam de
desenvolver pela inflammação de um
milhão e
seiscentas mil libras de polvora, nem que resistisse a essa
pressão poderia supportar
temperatura de tal ordem. Havia sim de derreter-se ao sair da
columbiada, e cair em chuva de fogo por sobre os craneos dos
imprudentes espectadores. Barbicane nem deu mostras de perceber o
ataque, e proseguiu na obra encetada.
[92]
Foi
necessario pôr sentinellas á
vista aos deputados (
pag. 103).
Nicholl então discutiu o assumpto por outra ordem de
considerações; não fallando
já na provada inutilidade da
experiencia sob todos os respeitos, considerou-a como extremamente
perigosa, quer para os cidadãos que viessem auctorisar com a
sua presença tão condemnavel espectaculo, quer
para
as cidades que ficassem proximas do deploravel canhão; fez
tambem notar que
[93]
se o projectil não alcançasse o alvo, o contrario
do que era aliás absolutamente impossivel, evidentemente
havia de cair na Terra, e que a quéda de uma massa d'aquella
ordem, multiplicada pelo
quadrado da respectiva
velocidade, viria a pôr em grave risco
um qualquer ponto do globo: em conclusão que, em
circumstancias
taes, casos havia em que, sem atacar nem de leve os direitos dos
cidadãos livres, se tornava necessaria a
intervenção do governo, poisque se não
devia pôr em risco a
segurança de todos por dar satisfação
aos caprichos de um só.
[94]
Do que deixâmos dito se deprehende qual o grau de
exageração a que se deixára arrastar o
capitão Nicholl. Da
opinião que professava era o capitão sectario
unico, e por conseguinte
ninguem lhe ligou importancia ás agourentas prophecias.
Deixaram-no gritar á vontade, e que seccasse os bofes,
já que
o levava em gosto.
Fizera-se o capitão defensor de uma causa de
antemão perdida: ouviam-no, mas ninguem o escutava, e nem um
só admirador pôde arrancar ao presidente do
Gun-Club. Este nem se deu ao trabalho de refutar os argumentos do
adversario.
Nicholl, mettido n'este beco sem saída, e sem poder ao menos
arriscar o corpo em prol da causa que defendia, resolveu arriscar ao
menos o dinheiro. Em consequencia propoz publicamente no
Enquirer
de Richmond uma serie de
apostas em proporção ascendente, cujo quadro
é o seguinte:
Apostava o capitão:
1.º Que
não chegariam a realisar-se fundos
sufficientes
para levar a effeito o emprehendimento do
Gun-Club |
|
1:000
dollars |
|
|
|
2.º Que a
operação de fundir um
canhão de novecentos pés de comprimento era
impraticavel e não podia ter bom
exito |
|
2:000 dollars |
|
|
|
3.º Que
havia de ser impossivel carregar a columbiada, e
que o
pyroxylo se havia de inflammar por si proprio só pela
pressão do
projectil |
|
3:000 dollars |
|
|
|
4.º Que a
columbiada havia de rebentar ao primeiro tiro |
|
4:000
dollars |
|
|
|
5.º Que a
bala não havia de percorrer nem seis
milhas de
trajectoria, e tornaria a cair na Terra alguns segundos depois de
disparado o tiro |
|
5:000 dollars |
[95]
Por aqui se vê que importante somma arriscava o
capitão, só por sustentar a sua invencivel
teimosia. Eram nada menos de quinze mil dollars
[47].
Apesar da importancia da aposta, recebeu o capitão no dia 19
de maio um bilhete lacrado, concebido nos termos de soberbo laconismo
que se seguem:
«Baltimore, 18 de
outubro.--Acceito.
--Barbicane.»
CAPITULO XI
A FLÓRIDA E O TEXAS
Entretanto estava ainda uma questão por decidir; faltava
escolher logar propicio para fazer a experiencia. Segundo as
recommendações do observatorio de Cambridge,
devia o tiro ser dirigido perpendicularmente ao plano do horisonte,
isto é, para o
zenith; e visto como a Lua não chega ao zenith
senão dos
logares terrestres situados entre 0° e 28° de latitude,
ou, por
outras
palavras, como a declinação lunar maxima
é
apenas de 28°
[48],
estava o problema reduzido a determinar exactamente
o ponto do globo onde deveria ser fundida a immensa columbiada.
[96]
No dia 20 de outubro estava reunido o Gun-Club em sessão
magna, e Barbicane levára comsigo um magnifico mappa dos
Estados Unidos, de Z. Belltropp. Porém J.-T. Maston, sem lhe
dar tempo nem para o desenrolar, pediu a palavra com a sua vehemencia
habitual, e encetou o debate nos seguintes termos:
«Honrados collegas, o assumpto que vae hoje aqui ser
discutido tem uma importancia verdadeiramente nacional, e vae
offerecer-nos occasião de praticarmos um grande acto de
patriotismo.»
Os socios do Gun-Club olharam uns para os outros, sem que ninguem
lograsse attingir o ponto de mira do orador.
«Nenhum de vós, proseguiu este, pensa sequer em
transigir em cousa que diga respeito á gloria do seu paiz, e
se algum
direito ha que a União possa com justiça
reivindicar,
é por certo o de conter em seus flancos o formidavel
canhão do Gun-Club.
Ora, nas circumstancias actuaes...
--Caro Maston, interrompeu o presidente.
«Permitti-me que desenvolva o meu pensamento, proseguiu o
orador. Nas circumstancias actuaes somos forçados a escolher
um logar terrestre sufficientemente proximo do equador, para que a
experiencia seja feita em boas condições...
--Se me daes licença, tornou Barbicane.
--Peço livre discussão das idéas de
cada um, replicou o effervescente J.-T. Maston, e sustento que o
territorio d'onde ha de partir o nosso glorioso projectil deve ser
parte integrante da
União americana.
--Isso não tem a menor duvida! responderam alguns socios.
--Pois bem! Já que nossas fronteiras não
são bastantemente amplas, já que pela parte do
sul o Oceano nos
oppõe insuperavel obstaculo, já que nos
é forçoso ir
alem dos Estados Unidos e a um paiz limitrophe buscar esse vigesimo
oitavo parallelo, considero o facto como um legitimo
casus
belli, e proponho que se declare guerra ao Mexico!
[97]
--Nada! isso não! exclamaram de todos os lados.
--Não! replicou J.-T. Maston. É essa uma palavra
que pasmo de ouvir n'este recinto!
--Mas attendei!...
--Nunca! Não tenho que attender! exclamou o fogoso orador.
Mais tarde ou mais cedo ha de vir a realisar-se essa guerra, e o que
vos proponho é que rebente hoje mesmo.
--Maston, disse Barbicane, forçando a
attenção do orador pela ruidosa
detonação da campainha presidencial,
retiro-vos a palavra!
Maston ainda queria replicar, mas alguns dos collegas conseguiram
conte-lo.
«Concordo, disse Barbicane, em que a experiencia
não póde nem deve ser tentada senão em
terras da União;
mas se o meu impaciente amigo me tivera deixado fallar, se tivera
sequer volvido os olhos para um mappa, saberia que é
perfeitamente inutil declarar guerra aos vizinhos, visto como algumas
das fronteiras dos Estados Unidos se estendem alem do parallelo
vigesimo oitavo. Senão vejam: temos ao nosso dispor toda a
parte meridional do Texas e das Floridas.»
Terminou por aqui o incidente; mas não foi sem custo que
J.-T. Maston se deixou convencer. Decidiu-se, em consequencia, que a
columbiada havia de ser fundida e moldada no solo do Texas ou no da
Florida. Porém esta resolução
estava destinada para fazer nascer uma rivalidade sem exemplo entre as
cidades d'estes dois estados.
O vigesimo oitavo parallelo corta a costa americana pela peninsula da
Florida, que divide em duas partes approximadamente iguaes,
lança-se depois no golpho do Mexico, e subtende o
arco formado pelas costas do Alabama, do Mississipi e da Luiziania.
Passa d'ahi ao Texas, do qual corta uma saliencia, e prolonga-se
através do Mexico, transpõe a Sonora, salta por
cima da velha
[98]
California e vae perder-se nos
mares do Pacifico. Não havia
pois senão as porções da Florida e do
Texas, situadas ao sul d'esse parallelo, que estivessem nas
condições de
latitude recommendadas pelo observatorio de Cambridge.
Na parte meridional da Florida não se encontram cidades de
importancia, e só por ali pullulam fortalezas levantadas
para servir de defeza contra os indios nomadas. Só uma
cidade,
Tampa-Town, podia reclamar em favor da sua
situação na lide e
apresentar-se com alguns direitos a ser attendida.
Pelo contrario, no Texas são mais numerosas e mais
importantes as cidades. Corpus-Christi no
condado de Nucces, e todas as cidades situadas no
Rio Bravo, taes como Laredo, Comalites e Santo Ignacio; no Web, taes
como Roma e Rio Grande City; no Stow, taes como Edimburgo; no Hidalgo,
Santa Rita, El Panda e Brownsville e as do Caméron formaram
uma liga imponente
contra as pretensões da Florida.
Assim, logo que se tornou publica a resolução
chegaram a Baltimore pela via mais rapida os deputados floridenses e
texianos, e a partir d'esse momento o presidente Barbicane e os socios
de influencia do Gun-Club viram-se cercados dia e noite de
reclamações formidaveis.
Na Grecia foram sete as cidades que disputaram a honra de terem sido
berço de Homero; aqui dois Estados inteiros estiveram quasi
a chegar ás do cabo por causa de um canhão.
Viram-se então aquelles «ferozes
irmãos» passeiar armados pelas ruas da cidade. E
sempre que se encontravam era de temer conflicto, que poderia ter
serias consequencias.
Mas emfim lá estavam a habilidade e a prudencia do
presidente Barbicane para conjurar o perigo. Ás
demonstrações pessoaes serviu de derivativo a
publicidade dos jornaes dos differentes Estados. Foram sustentaculos da
causa do Texas o
New York Herald e a
Tribuna,
ao passo que o
Times e a
American Review
[99]
tomaram decididamente as
partes pelos deputados floridenses.
Os socios do Gun-Club é que não sabiam a quem
haviam de dar ouvidos.
Apresentava-se altivo o Texas com seus vinte e seis condados, dispostos
a modo de bateria; respondia-lhe a Florida, que para territorio seis
vezes menor valem doze condados mais do que vinte e seis.
O Texas impava com os seus trezentos e trinta mil indigenas; mas a
Florida, que tem menor superficie, jactava-se de poder reputar-se
mais povoada com os seus cincoenta e seis mil; e não ficava
por aqui: chegava a accusar o Texas de possuir certa
especialidade de febres paludosas, que uns annos por outros lhe vinham
a custar alguns milhares de habitantes, e o caso é que
não mentia.
O Texas, pela sua parte replicava: que a respeito de febres, nada tinha
a Florida que lhe invejar, e que era, pelo menos, imprudente
quem chamava aos outros paizes insalubres, tendo a honra de ter em casa
o
vomito negro
no estado chronico. E o caso é que o Texas tambem fallava
verdade.
«Demais a mais, accrescentavam os texianos pela via do
New-York Herald, de alguma
consideração
é credor o estado onde nasce o melhor algodão de
toda a America, o estado que
produz a melhor madeira de carvalho para
construcção de
navios, o estado que tem nas entranhas dos seus terrenos soberba
hulha, e minas taes, que o seu producto em ferro
é de cincoenta por
cento do minerio puro.»
A isto replicava o
American Review,
que o solo da Florida, sem ter aliás tantas riquezas,
offerecia todavia melhores
condições para moldar e fundir a columbiada,
visto como era composto de areias e terras argillosas.
Porém, tornavam os do Texas, antes de fundir seja
lá o que
[100]
for n'um paiz
qualquer, é preciso lá ir; e as
communicações com a Florida são
difficeis, entretanto que a costa do Texas tem
a bahia de Galveston, que mede quatorze leguas em seu contorno, e que
era capaz de alojar a um tempo todas as esquadras do mundo.
Pois muito bem! É essa então a via de
communicação que apresentaes; a bahia de
Galveston, que está situada ao norte
do vigesimo nono parallelo?
E nós não temos a bahia do Espirito Santo, que se
abre precisamente no vigesimo oitavo grau de latitude, e pela qual os
navios vão directamente até Tampa-Town?
--Bonita bahia! respondia o Texas; meia entupida pelas areias!
--Entupidos estarão elles! exclamava a Florida. Cuidam que
tratam com algum paiz de selvagens?
--Verdade é, que os seminolas ainda fazem correrias nas
planicies da Florida!
--E então! e os apaches, e os comanches, é gente
civilisada!»
Proseguia este dize tu direi eu havia já dias, quando os da
Florida tentaram arrastar os adversarios para outro terreno. Uma bella
manhã o
Times
insinuou surrateiramente, que como o emprehendimento era
«essencialmente americano», não
podia ser tentado senão em territorio
«essencialmente
americano!»
--Estas palavras fizeram ir aos ares os do Texas:
«Americanos! e não o seremos nós com
tanto direito como
vós outros? Pois o Texas e a Florida não foram
ambos encorporados na
União em 1845?
--Ninguem o contesta, respondeu o
Times, mas nós
cá sempre pertencemos ao numero dos americanos desde 1820.
--Bem sabemos, replicou a
Tribuna;
foram hespanhoes ou inglezes por alguns duzentos annos, e depois foram
vendidos aos Estados Unidos por cinco milhões de dollars!
--E isso que importa! replicaram os da Florida, é acaso
motivo
[101]
que nos faça córar? E a Luiziania
não foi comprada a Napoleão em 1803, por dezeseis
milhões de dollars!?
[49]
É mesmo uma vergonha! clamaram os deputados de Texas.
Atrever-se um miseravel bocado de terra tal como a Florida a querer
comparar-se com o Texas, que em vez de se vender conquistou por seus
proprios esforços a independencia, que expulsou os mexicanos
em 2 de março de 1836, que se declarou
republica federativa depois da victoria alcançada por Samuel
Houston nas margens do San-Jacinto sobre as tropas de Sant'Anna!
Finalmente, com um paiz que se uniu voluntariamente aos Estados Unidos
da America!
--É porque tinha medo dos mexicanos!» respondeu a
Florida.
Medo! desde o dia em que escapou tal palavra, na realidade um tanto
violenta, a
posição
tornou-se intoleravel. Era crença geral que
haveria carnificina dos dois partidos nas ruas de Baltimore. Julgou-se
necessario mandar guardar os deputados com sentinellas á
vista.
O presidente Barbicane é que não sabia para onde
se havia de virar. Choviam-lhe em casa notas, documentos, cartas
prenhes de ameaças. Que solução havia
de
adoptar? Em relação ao apropriado do solo,
á facilidade de
communicações, da rapidez dos transportes,
não havia differença nos direitos
dos dois estados. Ás personalidades politicas não
havia que
attender em assumpto tal.
Durava esta hesitação, esta perplexidade ha
muito, quando Barbicane tomou a resolução de
cortar de vez o
nó; fez por conseguinte reunir os collegas e propoz-lhes uma
solução
profundamente sensata, como vae ver-se.
[102]
«Reflectindo seriamente, lhes disse, no que acaba de
passar-se entre a Florida e o Texas, é claro que
hão de
reproduzir-se as mesmas difficuldades entre as cidades do estado que
favorecermos. A rivalidade ha de descer do genero á especie,
do estado
á cidade, e nós ficaremos na mesma. Ora o Texas
possue onze cidades nas condições requeridas, que
hão de disputar entre si a honra do emprehendimento, e se
escolhermos alguma d'ellas, vamos forjar por nossas proprias
mãos novos dissabores,
entretanto que a Florida só tem uma. Seja pois a Florida o
estado, e Tampa-Town a cidade escolhida!»
Esta decisão, logoque se deu a
publico, foi o ultimo golpe nos deputados do Texas, dos quaes se
apossou
indescriptivel furia, chegando a dirigir
provocações pessoaes aos
socios do Gun-Club. Não tiveram mais remedio os magistrados
de Baltimore, e foi d'elle que usaram, do que fazer
apromptar um comboio
especial, onde por vontade ou por força obrigaram a embarcar
os do
Texas, que largaram assim da cidade com a rapidez de trinta milhas por
hora.
Porém, apesar da velocidade, com que
íam levados, ainda lhes sobrou tempo para arremessarem aos
adversarios um ultimo e ameaçador sarcasmo.
Alludindo á pequena largura da Florida, estreita peninsula
apertada entre dois mares, affirmaram que não havia de
resistir ao abalo do tiro, e que havia de despedaçar-se com
a
força d'elle.
«Pois deixa-la despedaçar!» responderam
os da Florida com laconismo digno dos tempos antigos.
[103]
CAPITULO XII
URBI ET ORBI
Vencidas as difficuldades astronomicas, mechanicas e topographicas,
vinha naturalmente a pêllo a questão de dinheiro.
A realisação do projecto exigia uma despeza
enorme. Não havia particular nem mesmo estado que podesse
dispor só por si de tantos milhões quantos eram
necessarios.
Tomou portanto o presidente Barbicane a resolução
de fazer do emprehendimento, ainda que americano, um negocio de
interesse universal, e de pedir a todos os povos a sua
cooperação financeira. Era a um tempo dever e
direito de toda a terra intervir nos negocios do seu satellite. A
subscripção
aberta em Baltimore n'este sentido estendeu-se ao mundo inteiro,
urbi
et
orbi.
Estava esta subscripção destinada a ter um exito
superior a tudo que era de esperar, apesar de se tratar de quantias
dadas que não emprestadas. A operação
era
puramente desinteressada, porque não apresentava nem remota
probabilidade de lucro.
Porém o effeito da proposta Barbicane, e que não
tinha parado nas fronteiras dos Estados Unidos; antes tinha saltado por
cima do Atlantico e do Pacifico, para invadir a um tempo a Asia e a
Europa, a Africa e a Oceania. Os differentes observatorios da
União pozeram-se desde logo em
communicação immediata com os observatorios do
estrangeiro; alguns, como o de Paris, de
Petersburgo, do Cabo, de Berlim, de Altona, de Stockholmo, de Varsovia,
de Hamburgo, de Buda, de Bolonha, de Malta, de Lisboa, de
Benarés, de Madrasta, de Pekin dirigiram cumprimentos de
felicitação ao Gun-Club; outros conservaram-se
em prudente expectativa.
[104]
A fabrica de Goldspring, perto de
New York (pag. 112).
O observatorio de Greenwich, esse, com approvação
dos outros vinte e dois estabelecimentos similares da Gran-Bretanha,
foi claro e terminante; e negou com firmeza a possibilidade de bom
exito,
[105]
seguindo sem hesitação as theorias do
capitão Nicholl. E n'estes termos, ao passo que muitas
sociedades scientificas promettiam até enviar delegados seus
a Tampa-Town, o pessoal
scientifico do observatorio de
Greenwich reunido em sessão, apresentada a proposta
Barbicane, passou brutalmente á ordem do dia.
Tampa-Town,
antes da operação
(
pag. 117).
[106]
Bello ciume de inglez para americano, nada mais.
Em geral, foi excellente o effeito produzido no mundo scientifico, e
d'ahi se communicou ás massas, que, pela maior parte, se
tomaram de paixão pelo assumpto. Facto este de magna
importancia, poisque estas mesmas massas iam ser convidadas a
subscrever para a realisação de um capital
consideravel.
No dia 8 de outubro já o presidente Barbicane tinha
publicado um manifesto cheio de enthusiasmo, no qual appellava para
«todos os homens de boa vontade da Terra.» Este
documento,
aliás traduzido em todas as linguas, deu optimo resultado.
Abriram-se as
subscripções parciaes nas principaes cidades da
União, para serem centralisadas no banco de Baltimore, rua
de Baltimore n.º 9, e depois nos differentes estados dos dois
continentes:
Em Vienna na casa S.-M. de Rothschild;
Em Petersburgo, casa
Stieglitz e C.
a;
Em Paris, no Credito mobiliario;
Em Stockholmo, casa
Totie e Arfuredson;
Em Londres, casa de N.-M. de Rothschild e filhos;
Em Turim, casa Ardouin e C.
a;
Em Berlim, casa Mendelsohn;
Em Genebra,
casa Lombard, Odier e C.
a;
Em Constantinopla, no Banco ottomano;
Em
Bruxellas, casa S. Lambert;
Em Madrid, casa Daniel Weisweller;
Em
Amsterdam, no Credito neerlandez;
Em Roma, casa Torlonia e C.
a;
Em
Lisboa, casa Lecesne;
Em Copenhague, no Banco privativo;
Em
Buenos-Ayres, no banco Mauá;
[107]
No Rio de Janeiro, na mesma casa;
Em
Montevideo, na mesma casa;
Em Valparaizo, casa Thomás La
Chambre e C.
a;
No Mexico, casa Martin Daran e C.
a;
Em Lima, casa
Thomaz La Chambre e C.
a
Tres dias depois da publicação do manifesto do
presidente Barbicane estavam subscriptos nas differentes cidades da
União, quatro
milhões de dollars
[50].
Com esta somma, por conta de maior
quantia, já o Gun-Club podia ir fazendo alguma cousa. Dias
depois, noticiavam os despachos telegraphicos á America que
as
subscripções no estrangeiro eram cobertas com
verdadeiro enthusiasmo. Alguns paizes faziam-se notaveis pela
generosidade da sua offerta. A outros lá custava mais a
desapertar os
cordões á bolsa. Questão de
temperamento.
Em summa, mais eloquentes são os algarismos que as palavras,
e eis a descripção official das sommas que foram
escripturadas no activo do Gun-Club, logoque se encerrou a
subscripção.
A Russia deu como contingente a enorme quantia de trezentos sessenta e
oito mil setecentos e
trinta e
tres rublos
[51],
e só poderá causar
espanto a grandeza da quantia a quem desconhecer o gosto dos russos
pelas sciencias, e o progresso que imprimem aos estudos astronomicos,
devido aos numerosos observatorios que possuem, dos quaes um, o de mais
importancia, custou dois milhões de rublos.
A França começou por se rir das
pretensões dos americanos. Serviu ali a Lua de pretexto a
mil calembourgs já estafados,
e a algumas dezenas de
vaudevilles em
que o mau gosto e a ignorancia disputavam primazias. Porém
os francezes, que já
de antiga data trazem o habito de cantar e ainda em cima pagar, d'esta
[108]
vez riram, mas tambem depois
pagaram, subscrevendo com a quantia de um milhão e duzentos
e cincoenta tres mil
novecentos e trinta francos
[52].
Por este preço realmente
assistia-lhes
o direito de se divertirem um bocado.
A Austria, apesar dos seus apertos financeiros, mostrou generosidade
bastante. Elevou-se a parte d'esta potencia, na
contribuição geral, á quantia de
duzentos e dezeseis mil florins
[53],
que bem boa conta fizeram.
Cincoenta e dois mil rixdales
[54]
foi o obolo da Suecia e da Noruega. A
cifra já era de consideração em
proporção do paiz; porém, maior ainda
teria sido, se a subscripção se
tivera aberto ao mesmo tempo em Christiania e em Stockholmo. Seja
lá por que rasão for, o caso é que os
norueguezes
não gostam de mandar o seu dinheiro para a Suecia.
A Prussia deu testemunho, mandando duzentos e cincoenta mil thalers
[55],
de que prestava á tentativa a sua alta
approvação. Os differentes observatorios d'esta
nação
contribuiram de boa vontade com uma quantia importante, e foram dos que
com mais ardor animaram o presidente Barbicane.
A Turquia portou-se com generosidade, e não admira porque
estava pessoalmente interessada n'aquelle assumpto, visto ser a Lua
quem lhe fixa o curso dos mezes e a epocha dos jejuns do Ramadan. Nem
lhe ficava bem dar menos de um milhão trezentas
e setenta e duas mil seiscentas e quarenta piastras
[56], que foi o que
effectivamente deu, e com ardor tal que parecia até
dar a
[109]
entender que houvera certa
pressão da parte do governo da Porta.
A Belgica distinguiu-se entre todos os estados de segunda ordem por um
donativo de quinhentos e treze mil francos
[57],
proximamente treze
centimos
[58]
por habitante.
A Hollanda e suas colonias tomaram parte na
operação com cento e dez mil florins
[59], mas
sempre foram pedindo cinco por cento de desconto, visto pagarem de
contado.
A Dinamarca, um tanto restricta em extensão territorial
sempre rendeu novecentos mil ducados de oiro fino
[60], o que
é prova
do amor que os dinamarquezes consagram ás
expedições scientificas.
A Confederação germanica cooperou com trinta e
quatro mil duzentos e oitenta e cinco florins
[61];
não se lhe
podia
exigir mais, nem que lh'o exigissem o daria.
Apesar dos seus grandes apuros a Italia sempre encontrou nas algibeiras
dos seus filhos duzentas mil liras
[62],
mas foi preciso rebusca-las bem.
Se a Italia já estivera de posse do Veneto
melhor iria o negocio, mas o caso é que ainda não
possuia o Veneto.
Os Estados da Igreja entenderam não dever mandar menos de
sete mil e quarenta escudos romanos
[63],
e Portugal levou a sua
dedicação pela sciencia até trinta mil
cruzados.
O Mexico, esse deu o obolo da viuva, oitenta e seis piastras
[110]
fortes
[64];
verdade
é que os imperios, nos primeiros tempos
da sua fundação, sempre vivem pouco á
larga
de meios.
De duzentos e cincoenta e sete francos
[65]
foi o auxilio modesto
prestado pela Suissa á obra americana. Força
é dize-lo e francamente, a Suissa não percebia o
lado pratico da
operação; não se lhe afigurava que o
acto de arremessar uma bala á Lua fosse
preliminar adequado para entabolar relações
commerciaes com
o astro das noites, e n'este presupposto pareceu-lhe pouco prudente
empenhar capitaes em tentativa tão aleatoria. E no fim de
contas talvez a Suissa tivesse rasão.
Em Hespanha é que foi impossivel juntar mais de cento e dez
reales
[66],
circumstancia a que serviu de pretexto ter a
nação que acabar os seus caminhos de ferro. Mas a
verdade é que a
sciencia não é cousa lá muito bem
vista em tal
paiz, que ainda está um tanto atrazado. E demais, havia
certos hespanhoes, e não
eram dos menos illustrados, que não concebiam com
exactidão que relação havia entre a
massa do projectil comparada com a da Lua, e que temiam que o choque
fosse alterar a orbita do astro, perturba-lo no seu papel de satellite,
provocando-lhe a quéda na
superficie do globo terrestre. Em casos taes o melhor era abster-se. E
foi o que, com differença de alguns poucos
reales, fizeram os hespanhoes.
Falta a Inglaterra. Já dissemos com que desdenhosa
antipathia fôra ali recebida a proposta Barbicane. Os
inglezes
têem todos uma só e mesma alma para todos os vinte
e cinco
milhões de habitantes que povoam a Gran-Bretanha.
Limitaram-se a dar a entender que o emprehendimento do Gun-Club era
contrario ao «principio de não
intervenção», e nem com um ceitil
concorreram.
[111]
O Gun-Club, quando soube tal nova, deu-se por satisfeito em erguer os
hombros, e proseguiu na sua grande tarefa. Logoque a America do Sul,
isto é, Peru, Chili, Brazil, provincias do
Plata, Columbia entregaram a sua quota de trezentos mil dollars
[67],
ficou o Gun-Club de posse do consideravel capital cujo computo
detalhado segue:
|
|
Dollars |
Subscripção
dos Estados
Unidos |
|
4.000:000 |
Subscripções
estrangeiras |
|
1.446:675 |
|
|
|
Somma |
|
5.446:675 |
|
|
|
Eram portanto cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis
mil seiscentos e setenta e cinco dollars
[68],
que o publico tinha
despejado nos cofres do Gun-Club.
A ninguem deve causar
surpreza a
importancia de tal somma. Os trabalhos de
fundição e brocagem, obra de
pedra e cal, transporte de operarios e
installação d'estes n'uma
região quasi deshabitada, construcção
de fornos e edificios diversos,
acquisição de ferramenta para officinas, polvora,
projectil e despezas perdidas, deviam, segundo os orçamentos
feitos, absorve-la quasi por inteiro. Houve tiro na guerra federal que
ficou por mil dollars, não era pois de admirar que o do
presidente Barbicane, unico
nos fastos da artilheria, custasse cinco mil vezes mais.
No dia 20 de outubro assignou-se um contrato com a fabrica de
fundição de Goldspring, perto de New-York,
que, durante a guerra, fôra a que melhores canhões
de ferro
fundido fornecêra a Parrott.
Estipulou-se entre os outorgantes, que a fabrica de
fundição de Goldspring se obrigava a transportar
para Tampa-Town, cidade
[112]
da Florida meridional, todo o material necessario para a
fundição da Columbiada.
A operação da fundição
devia concluir-se, o mais tardar, até ao dia 15 de outubro
proximo, e até ao mesmo dia ser
entregue o canhão e em bom estado, sob pena de multa de cem
dollars
[69]
por dia até aquelle em que a Lua se tornasse a
apresentar
nas mesmas condições, isto é, por
tantos
dias quantos se contam em dezoito annos e onze dias.
O engajamento de operarios, ferias e
accommodações necessarias ficavam por conta da
companhia de Goldspring.
O contrato, feito em duplicado e
bona
fide, foi assignado por J. Barbicane, na qualidade de
presidente do Gun-Club, e por J. Murphison, como director da fabrica de
fundição
de Goldspring, e cada uma das partes deu plena
approvação
ás estipulações da escriptura.
CAPITULO XIII
STONE'S-HILL
Desde que se tornára notoria a escolha feita pelos socios do
Gun-Club em prejuizo do Texas, toda a gente na America, onde tudo sabe
ler, se julgou obrigada a estudar a geographia da Florida. Nunca os
livreiros venderam tanto exemplar de
Bartram's travel in Florida, do
Romans's
natural history of East and West Florida, do
William's
territory of
Florida, do
Cleland on the culture of the
Sugar-Cane in East Florida, etc. Tornou-se
necessaria a impressão de novas
edições. Era um
verdadeiro delirio.
[113]
Barbicane não era homem que se contentasse com leituras,
queria ver as cousas com os proprios olhos e escolher em pessoa a
collocação da Columbiada. Por consequencia, sem
perda de um momento, poz á disposição
do
observatorio de Cambridge os fundos necessarios para a
construcção de um telescopio,
contratou com a casa Broadwill & C.
a de
Albany a feitura do
projectil de
aluminium, e partiu logo de Baltimore acompanhado por J.-T. Maston,
pelo major Elphiston e pelo director da fabrica de Goldspring.
No dia seguinte chegavam os quatro companheiros de jornada á
Nova Orleans, onde embarcaram sem demora no
Tampico, aviso da marinha federal, que o governo
puzera á
disposição d'elles. Aquecidas as fornalhas, em
poucos momentos deixaram de enxergar as praias da Luiziania.
Não foi comprida a viagem; dois dias depois da partida, e
tendo percorrido quatrocentas e oitenta milhas
[70], chegou o
Tampico á vista da costa da Florida.
Ao passo que o navio se approximava da costa, ía apparecendo
aos olhos de Barbicane um territorio baixo, chato, com apparencias de
pouca fertilidade.
Depois de costear uma serie de enseadas abundantes em ostras e
lagostas, entrou finalmente o
Tampico na bahia do Espirito Santo.
Divide-se esta bahia em duas barras estreitas e compridas, a de Tampa e
a de Hillisboro, cuja apertada embocadura o steamer passou em poucos
momentos. Pouco tempo depois já se
destacavam por cima das ondas as baterias rasantes do forte Brooke, e
apparecia a cidade de Tampa negligentemente recostada no fundo do
pequeno porto natural formado pela foz do rio Hillisboro.
N'este logar fundeou o
Tampico, a 22
de outubro, pelas sete
[114]
horas da noite; os quatro passageiros
desembarcaram immediatamente.
Barbicane sentiu que lhe palpitava com violencia o
coração quando pisou o solo da Florida. Parecia
palpa-lo com os pés,
como faz o architecto que pretende experimentar a segurança
de um edificio. J.-T. Maston, esse excavava a terra com a ponta do
gancho.
«Senhores, disse então Barbicane, não
temos tempo a perder, já ámanhã
havemos de montar a cavallo
para fazer um primeiro reconhecimento no paiz.»
No momento em que Barbicane desembarcava, os tres mil habitantes de
Tampa-Town, tinham avançado a saír-lhe ao
encontro, honra bem cabida no presidente do Gun-Club, que os
favorecêra
na escolha por elle indicada. Receberam-no com formidaveis
acclamações, mas Barbicane escapou-se a todas
aquellas ovações, e conseguiu metter-se n'um
quarto do
hotel Franklin, onde não quiz receber pessoa alguma.
Decididamente
não lhe quadrava o papel de homem celebre.
No dia seguinte, 23 de outubro, já lhe curveteavam debaixo
das janellas uns pequenos cavallos de raça hespanhola, todos
fogo e vigor. Mas não eram quatro senão
cincoenta, com
outros tantos cavalleiros.
Barbicane desceu acompanhado pelos tres companheiros, e admirou-se a
principio de se achar rodeado de tão numerosa cavalgata.
Tambem fez reparo em que cada cavalleiro trazia a sua carabina a
tiracolo e pistolas nos coldres. Mas foi logo informado por um
moço floridense dos motivos de similhante apparato de
força.
«Senhor, é por causa dos seminólas.
--Quaes seminólas?
--Os selvagens que percorrem a planicie; foi por isso que
julgámos prudente escoltar-vos.
[115]
--Ora qual! interrompeu J.-T. Maston, conseguindo içar-se
por escalada ao dorso do animal que lhe fôra destinado.
--Emfim, volveu o floridense, sempre é mais seguro.
--Meus senhores, respondeu Barbicane, agradeço-vos as vossas
attenções, e agora a caminho!
E o pequeno rancho abalou logo, desapparecendo no meio de nuvens de
poeira. Eram cinco da manhã, o sol já
estava resplandecente e o thermometro marcava 84°
[71]; entretanto as
frescas
virações do mar moderavam a ardencia excessiva da
temperatura.
Barbicane logoque saíu de Tampa-Town inclinou para o sul,
seguindo a costa com o fim de alcançar o creek
[72] de Alifia,
que é um arroio que vae desaguar na bahia de Hillisboro,
doze milhas abaixo de Tampa-Town. Continuaram Barbicane e companheiros
seguindo a margem direita, subindo para leste.
Dentro em pouco foram-se escondendo por detrás de um
accidente do terreno as aguas da bahia, e não viram os
viajantes
senão campinas da Florida.
A Florida póde dividir-se em duas partes: uma ao norte, mais
abundante em população, menos abandonada, tem por
capital Tallashassêa e possue Pensacola, um dos mais
importantes
arsenaes maritimos dos Estados Unidos; a outra, encerrada entre a
America e o golpho do Mexico, que a estreitam entre suas aguas,
é apenas uma delgada peninsula corroida pela corrente do
Gulf-Stream, lingua de terra como que perdida por entre as ilhas de um
pequeno archipelago, e que incessantemente dobram os numerosos navios
que buscam o canal de Bahama. É como que um posto
avançado do golpho das grandes tempestades.
[116]
Tiveram
de passar a vau muitos rios (
pag. 120).
A superficie da Florida é de trinta e oito
milhões e trinta e tres
mil duzentos e sessenta e sete acres
[73],
dentro dos quaes se devia
[117]
escolher um situado para áquem do vigesimo oitavo parallelo,
e em condições convenientes para a tentativa; por
isso Barbicane, ao passo que
cavalgava, ía examinando com
attenção a configuração e a
particular distribuição do solo.
Os
trabalhos avançavam regularmente (
pag.
129).
[118]
A Florida, descoberta por Juan Ponce de Leon em 1512, no
domingo de
Ramos, deveu a esta circumstancia seu primeiro nome de Paschoa-Florida,
encantadora denominação bem
mal cabida n'aquellas costas aridas e abrazadas.
Mas a algumas milhas da praia, ía pouco e pouco mudando a
natureza do terreno, e o paiz mostrando-se digno do nome primitivo; o
solo era cortado por uma rede de creeks, de rios, de ribeiros, de
lagoas e de pequenos lagos; mas logo a campina
começou a elevar-se sensivelmente, e dentro em pouco deixou
ver plainos onde se davam admiravelmente todas as
producções vegetaes do norte e do meio dia,
campos immensos, onde todas as despezas e trabalhos da cultura
são feitos pelo sol dos tropicos e
pelas aguas retidas no subsolo de argilla, e finalmente prados de
ananazes, de inhames, de tabaco, de arroz, de algodão, de
canna de assucar, que se estendiam a perder de vista, ostentando com
descuidosa prodigalidade immensas riquezas.
Barbicane mostrou-se muito satisfeito quando verificou que o terreno se
ía elevando progressivamente, e como J.-T. Maston
o interrogasse a tal respeito:
--Meu digno amigo, respondeu, temos interesse de primeira ordem em
fundir a Columbiada em terreno alto.
--Para estar mais perto da Lua? exclamou o secretario do Gun-Club.
--Não, respondeu Barbicane sorrindo-se; que valem algumas
poucas toezas de mais ou de menos? Não é por
isso, mas porque no centro de terrenos elevados hão de
proseguir com maior
facilidade os nossos trabalhos: não teremos de lutar com as
aguas, circumstancia que nos ha de poupar tubagens compridas e caras, o
que é objecto de vulto quando se trata de abrir um fosso
de novecentos pés de profundidade.
[119]
--Tendes rasão, disse então o engenheiro
Murchison, devemos afastar-nos quanto possivel dos lençoes
de agua na
direcção da brocagem; entretanto se encontrarmos
nascentes, não
é mal sem remedio, ou havemos de esgota-las com machinas, ou
desvia-las. É caso diverso dos poços
artesianos
[74],
estreitos
e escuros, onde verruma, cubo e sonda, toda a ferramenta do perfurador,
em summa, trabalha ás escuras. Aqui não. Havemos
de trabalhar com o céu á vista, á luz
do dia, com o
alvião e picareta em punho; e com o auxilio de algumas
minas, a tarefa ha de ir andando com rapidez.
--Todavia, replicou Barbicane, se pela elevação
do solo ou pela natureza do terreno podérmos evitar a luta
com as aguas
subterraneas, mais rapido e perfeito ha de ser o trabalho: tratemos
pois de abrir fosso em terreno situado a algumas centenas de toezas
acima do nivel do mar.
--Tem rasão, senhor Barbicane, e se me não
engano, dentro em pouco havemos de achar sitio adequado.
--Ai! o que eu queria era ouvir já a primeira enxadada,
disse o presidente.
--E eu a ultima! exclamou J.-T. Maston.
--Lá havemos de chegar, senhores, e acreditem que a
companhia da fabrica Goldspring não ha de ter que pagar-lhe
a multa por mora.
--Por Santa Barbara! que deveis ter rasão! replicou J.-T.
Maston; cem dollars por dia até que a Lua volte a estar nas
mesmas condições, isto é, durante
dezoito
annos e onze dias, vem a dar, como bem deveis saber, seiscentos e
cincoenta e oito mil e cem dollars
[75]?
[120]
--Não, senhor, nem o sabemos, respondeu o engenheiro, nem
havemos de ter necessidade de que no-lo façam
saber.»
Por volta das dez horas da manhã; já o pequeno
rancho tinha andado a sua duzia de milhas: ás campinas
ferteis
succedêra a região das florestas. Desenvolviam-se
ali com
profusão tropical as mais variadas essencias. Eram formadas
aquellas quasi impenetraveis florestas de romeiras, laranjeiras,
limoeiros, figueiras, oliveiras, damasqueiros, bananeiras, e grandes
cepas de vinha, cujos fructos e flores rivalisavam em colorido e
perfume. Á
fragrante sombra d'aquellas magnificas arvores cantavam e
esvoaçavam numerosissimas aves pintadas de brilhantes
côres, entre as quaes se distinguiam mais particularmente as
garças
americanas, cujo ninho deveria ser um guarda-joias para ser digno
d'aquellas preciosidades empennadas.
J.-T. Maston e o major não podiam ter diante de si
tão opulenta natureza sem lhe admirar as esplendidas
bellezas.
Mas o presidente Barbicane é que era pouco sensivel a tantas
maravilhas, e estava com pressa de proseguir, porque região
tão fertil por sua mesma fertilidade lhe desagradava.
Não era
hydroscopo
[76],
mas apesar d'isso presentia a agua debaixo dos
pés, porque debalde procurava signaes de aridez
incontestavel.
Entretanto íam avançando; tiveram de passar a vau
alguns rios, e não sem perigo, que os caïmans de
quinze a
dezoito pés de comprimento abundam por aquelles logares.
J.-T. Maston
ameaçava-os atrevidamente com a temivel ganchorra, mas
não conseguia atemorisar senão pelicanos,
narsejas e phaetontes, selvagens
habitantes d'aquellas margens. Té os grandes flamingos
côr de rosa o olhavam com ar de estupidez.
Por fim aquelles habitantes das regiões humidas tambem foram
desapparecendo; já as arvores, menos grossas, appareciam
rareadas
[121]
em matas menos espessas; alguns grupos
isolados se destacavam nas infinitas planuras onde perpassavam em
manadas os gamos assustados.
«Até que emfim! exclamou Barbicane, levantando-se
nos estribos, chegámos á região dos
pinheiros.
--Que é tambem a dos selvagens,» respondeu o
major.
E viam-se na verdade no horisonte alguns seminólas;
agitavam-se, corriam de uns para os outros nos rapidos corseis,
brandindo compridas lanças ou descarregando as espingardas
de
detonação surda de que costumam usar. Tambem
ficaram-se n'estas demonstrações de hostilidade,
sem mais inquietar
Barbicane e companheiros.
Estes estavam collocados no meio de um plaino pedregoso, local vasto e
descoberto, de grande numero de acres de
extensão, que o sol inundava com raios abrazadores. Era este
plaino formado por uma grande entumescencia de terreno, que parecia
offerecer aos socios do Gun-Club todas as
condições
requeridas para a collocação da Columbiada.
«Alto! disse Barbicane, parando. Este sitio tem nome
cá no paiz?
--Chama-se Stone's Hill
[77],»
respondeu um dos da Florida.
Barbicane, sem dizer mais palavra, apeou-se, pegou dos instrumentos e
começou a determinar a posição com
grande precisão; o pequeno rancho reunido em volta d'elle
olhava-o em profundo silencio.
N'aquelle momento passava o sol pelo meridiano. Barbicane, passados
instantes, escreveu rapidamente o resultado da
observação que fizera e disse:
«Este logar está situado a trezentas toezas acima
do nivel do
[122]
mar, a 27° 7' de latitude e a 5° 7' de longitude
oeste
[78];
afigura-se-me que a sua natureza arida e penhascosa apresenta todas as
condições favoraveis para a experiencia;
será portanto n'esta planura que havemos de construir
armazens, officinas, fornos, cabanas para operarios, e será
d'aqui, d'aqui mesmo, repetiu batendo
com o pé no vertice de Stone's-Hill, que o nosso projectil
ha de alar-se para os espaços do mundo solar!»
CAPITULO XIV
ALVIÃO E TROLHA
N'aquella mesma noite voltava Barbicane e companheiros a Tampa-Town,
e o engenheiro
Murchison tornava a embarcar no
Tampico para Nova
Orleans. Tinha de
engajar ali um exercito de operarios, e de trazer comsigo, no regresso,
a maior parte do material. Os socios do Gun-Club ficaram em Tampa-Town,
para organisarem os primeiros trabalhos com o auxilio da gente do paiz.
Oito dias depois do da partida, voltava o
Tampico á bahia do Espirito Santo
acompanhado de uma esquadrilha de barcos de vapor. Murchison tinha
conseguido angariar mil e quinhentos
trabalhadores. Nas tristes epochas da escravidão todo o
tempo e trabalho que se empregasse em tal empenho teria sido perdido.
[123]
Porém, desde que a America, terra da liberdade,
não conta em seu seio senão homens livres, correm
estes onde quer que os chama trabalho bem retribuido. Ora dinheiro
é que
não faltava ao Gun-Club, que offerecia aos seus salariados,
alem de uma feria elevada, gratificações
consideraveis e em
proporção.
O operario engajado para a Florida podia contar, concluida a obra, com
um capital depositado em seu nome no banco de Baltimore. Murchison
pôde portanto, sem mais incommodos, escolher á
vontade e levantar a bitola no que dizia respeito
á intelligencia e habilidade dos operarios.
É de crer que alistasse n'aquella legião do
trabalho a flor dos machinistas, fogueiros, fundidores, caleiros,
mineiros, tijoleiros e trabalhadores de todos os generos, pretos ou
brancos, sem
distincção de cores.
No dia 31 de outubro, pelas dez horas da manhã, desembarcou
toda aquella multidão nos caes de Tampa-Town; imagine-se que
movimento e que actividade haviam de reinar na pequena cidade, cuja
população se elevou ao dobro no
espaço de um só dia. Tampa-Town havia de lucrar
enormemente com a iniciativa do Gun-Club, não tanto com os
operarios, que immediatamente foram mandados para Stone's-Hill, como
com a affluencia de curiosos que a pouco e pouco foram convergindo de
todos os pontos do globo para a peninsula floridense.
Nos primeiros dias trabalhou-se na descarga da ferramenta que viera na
esquadrilha, assim como machinas, viveres e grande numero de casas de
ferro, em peças separadas enumeradas,
para se poderem armar.
Pela mesma epocha ia Barbicane cravando as primeiras bandeirolas de
alinhamento de um caminho de ferro de quinze milhas, destinado a ligar
Stone's-Hill com Tampa-Town.
São bem conhecidas as condições em que
são construidos os caminhos de ferro na America: rodeios a
capricho, declives arrojados,
[124]
obras de arte e parapeitos põem-se de parte,
collinas sobem-se de escalada, valles saltam-se, e está
feito um caminho de ferro que corre ás cegas, sem se
importar com linhas rectas;
nem custa grandes quantias nem grandes trabalhos; tem só um
inconveniente, completa liberdade de descarrilamentos e de saltos. O de
Tampa-Town a Stone's-Hill foi uma perfeita bagatella, que nem grande
dinheiro nem grande trabalho exigiu para ficar prompto.
Quanto ao mais, Barbicane era a alma d'aquelle mundo que surgira
á sua voz. Era elle quem tudo animava, e a todos
communicava a propria vida, enthusiasmo e
convicção; em toda
a parte estava, como se possuíra condão de
ubiquidade, e sempre acompanhado de J.-T. Maston, que desempenhava
junto d'elle o papel de mosca zumbideira. Com Barbicane, nem havia
obstaculos, nem difficuldades, nem hesitações;
era
tão mestre nos officios de mineiro, de pedreiro ou de
machinista como no de artilheiro; tinha sempre resposta prompta para
qualquer pergunta, e
resolução para qualquer problema. Sustentava
correspondencia activa com o Gun-Club ou com a fabrica de Goldspring,
aguardando-lhe as ordens, no molhe de Hillisboro, o
Tampico, sempre com as fornalhas accesas e o vapor
sob pressão, a toda a hora do
dia e da noite.
Saiu Barbicane no 1.º de novembro de Tampa-Town com um
destacamento de
trabalhadores, e já no dia seguinte se
erguia em volta de Stone's-Hill uma cidade de casas mechanicas, que
cercaram de palissadas, e em poucos dias, em
relação a
movimento e actividade, parecia uma das grandes cidades da
União. A vida
foi ali regulada disciplinarmente, e deu-se começo aos
trabalhos
em perfeita ordem.
A natureza do terreno fôra já reconhecida por via
de sondagens cuidadosamente praticadas, e pôde-se dar
começo
á excavação a 4 de novembro.
[125]
N'aquelle dia convocou Barbicane para uma reunião todos os
chefes de officina, e disse-lhes:
«Meus amigos, é conhecido de vós todos
o motivo por que vos reuni n'esta região selvatica da
Florida. Trata-se de fundir
um canhão de nove pés de diametro interior, com
seis pés de
espessura de parede, e dezenove pés e meio no revestimento
exterior de
pedra; em summa, o que é necessario excavar, é,
por consequencia, um poço de diametro de sessenta
pés e de
novecentos pés de profundidade. Mais. Esta obra momentosa ha
de estar
concluida dentro de oito mezes; tendes portanto dois milhões
quinhentos e quarenta e tres mil e quatrocentos pés cubicos
de terreno a extrahir, em duzentos e cincoenta e cinco dias, isto
é, em
numeros redondos, dez mil pés cubicos de desaterro por dia.
Esta obra que nem difficuldade poderia dizer-se para mil operarios que
trabalhassem á sua vontade e com os movimentos perfeitamente
desembaraçados, ha de ser muito mais ardua no
espaço relativamente apertado em que tendes de trabalhar.
Entretanto, já que tal trabalho tem de fazer-se, feito ha de
ser, e conto tanto com a vossa habilidade, como com a vossa
coragem.»
Ás oito horas da manhã deu-se a primeira enxadada
no terreno da Florida, e desde aquelle instante nem um só
momento
esteve ocioso o valente ferro nas mãos dos mineiros. Os
operarios revezavam-se de seis em seis horas.
A operação, aindaque collossal, não ia
alem do limite das forças humanas. Bem longe d'isso. Quantos
trabalhos ha de mais real difficuldade, e nos quaes é
necessario combater frente
a frente os elementos, em que se tem obtido bom resultado!
Restringindo-se a obras analogas, bastará citar o
Poço do padre Joseph, construido perto
do Cairo pelo sultão Saladin, e em tempos
em que ainda não havia machinas que centuplicassem a
força humana, poço que alcança
até ao nivel do Nilo,
a trezentos pés de profundeza!
[126]
E aquell'outro poço aberto em Coblentz pelo
margrave João de Bade, que entra seiscentos pés
pela terra
dentro! Pois bem! em summa, aqui o que havia a fazer? Triplicar essa
profundidade, mas em largura decupla, circumstancia que
aliás tornava mais facil a perfuração!
Por estas
rasões não havia contramestre nem mesmo simples
operario que tivesse duvidas ácerca do bom exito da
operação.
Houve uma importante decisão tomada pelo engenheiro
Murchison, de accordo com o presidente Barbicane, que permittiu ainda
maior rapidez no andamento dos trabalhos. Fôra
estipulado n'um dos artigos do contrato que a Columbiada havia de ser
apertada por arcos de ferro forjado e batido quente. Era luxo de
precauções inuteis, porque o colossal machinismo
podia evidentemente dispensar os taes anneis compressores. Desistiu-se
portanto de tal clausula, e d'ahi veiu grande economia de tempo, porque
se tornou então possivel empregar o novo systema de
excavação, já agora adoptado na
construcção de
todos os póços, e por meio do qual se vae fazendo
a obra de pedra e cal simultaneamente com a brocagem.
Graças a este processo extremamente simples, já
não é necessario aguentar as terras com
estroncas; é a parede construida que as aguenta com
resistencia inabalavel, e que ao mesmo tempo vae descendo pelo proprio
peso.
Esta manobra não devia começar senão
quando o alvião tivesse chegado á parte solida do
terreno.
A 4 de novembro, cincoenta operarios excavaram mesmo no centro do
recinto da estacada, isto é, na parte mais alta de
Stone's-Hill, uma abertura circular de sessenta pés de
diametro.
A primeira camada que encontrou o alvião era uma especie de
terra vegetal preta, e tinha seis pollegadas de espessura. Seguiram-se
uns dois pés de areia fina, que se guardou com cuidado,
porque tinha de servir para a feitura do molde interno.
[127]
Depois da areia appareceu argilla branca, bastante compacta, similhante
aos marnes de Inglaterra, acamada na espessura de quatro
pés.
Faiscou por fim o ferro das picaretas de encontro á camada
dura do terreno, especie de rocha composta de conchas petrificadas,
muito secca, muito solida e ultima que até a final o ferro
encontrou.
N'estas alturas tinha a abertura seis pés e meio de fundo, e
deu-se começo á obra de pedra e cal.
Construiu-se no fundo da excavação uma
roda de madeira de carvalho, especie de disco bem
cavilhado e de solidez a toda a prova; era furada no centro, e a
abertura tinha diametro igual ao diametro exterior da Columbiada. Em
cima d'esta roda é que vieram assentar as primeiras bases da
obra de pedra e cal, cujas pedras estavam ligadas com inflexivel
tenacidade por cimento
hydraulico.
Feito o revestimento interno, da circumferencia para o centro, ficaram
os operarios encerrados n'um poço de vinte e um
pés de largura.
Acabada esta parte da obra, volveram os mineiros á picareta
e alvião. Começaram a atacar a rocha mesmo por
baixo da roda, com o cuidado de a ir sempre aguentando em
tins[79]
extremamente resistentes.
Sempre que o buraco alcançava mais dois pés,
tiravam-se successivamente os
tins; descia a roda
a pouco e
pouco e em cima d'ella o massiço annular de pedra e cal, na
camada superior
do qual trabalhavam sem descanso os pedreiros, deixando regularmente
distribuidos respiradouros por onde haviam de saír os gazes
durante a operação da
fundição.
[128]
Aquelle genero de trabalho exigia da parte dos operarios extrema
habilidade e constante attenção; mais de
um foi gravemente e até mortalmente ferido pelos
estilhaços de
pedra, mas
[129]
nem por isso affrouxou a actividade um só instante, quer de
dia quer de noite: de dia, á luz do sol que, mezes depois,
irradiava noventa e nove graus
[80] de
calor por sobre aquellas calcinadas planuras; de noite, ao
clarão de jactos de luz electrica.
Tampa-Town
depois da operação
(pag. 141).
[130]
O ruido da picareta batendo na rocha viva, as
detonações das minas, o estridor das machinas, os
turbilhões de fumo
espalhados no ar, envolviam então Stone's-Hill n'um circulo
tal de
terror, que nem manadas de bufalos, nem destacamentos de seminolas se
atreveram a transpo-lo.
Entretanto iam proseguindo os trabalhos com toda a regularidade, e os
guindastes a vapor tornavam rapida a safa do aterro e entulho;
obstaculos inesperados poucos, e das difficuldades previstas todos se
foram saíndo com habilidade.
Decorrido o primeiro mez tinha o poço chegado á
profundidade de antemão calculada em
proporção do
praso, isto é, a cento e doze pés.
Em dezembro era duplicada e em janeiro triplicada a altura. No decurso
do mez de fevereiro tiveram os trabalhadores que lutar com um
lençol de agua que surdiu através da
crusta de terra. Foi necessario recorrer a poderosas bombas e a
apparelhos de ar comprimido para estancar as aguas e poder assim
betumar o orificio das nascentes, como quem veda a abertura por onde um
navio faz agua. Por fim sempre conseguiram vencer-se as malditas
correntes.
No entretanto, em virtude da pouca consistencia do terreno, a roda
cedeu em parte e houve um desabamento parcial. Imagine-se qual seria a
espantosa impulsão d'aquelle disco de pedra e cal de setenta
e cinco toezas de altura! O accidente custou a vida de alguns
operarios.
Tiveram de se perder tres semanas a escorar e concertar o revestimento
de pedra e a tornar a pôr a roda nas
condições de solidez
[131]
primitiva. Mas,
graças á habilidade do
engenheiro e á potencia das machinas empregadas, volveu ao
prumo a
edificação, por momentos em risco, e os trabalhos
de
perfuração continuaram.
Nenhum outro incidente interrompeu o andamento regular da obra, e a 10
de junho, vinte dias antes de expirarem os prasos fixados por
Barbicane, tinha o poço, completamente revestido
do seu paramento de pedras, attingido a altura de novecentos
pés. No fundo assentava a obra de pedra e cal n'um cubo
massiço
de trinta pés de espessura; no limite superior vinha nivelar
com o terreno.
Barbicane e os socios do Gun-Club felicitaram cordialmente o engenheiro
Murchison; aquelle trabalho de cyclopes fôra realmente
concluido em extraordinarias condições
de brevidade.
No decurso dos oito mezes que levou a obra não
deixára Barbicane um só instante Stone's-Hill;
seguindo sempre de perto as obras de perfuração,
não lhe dava
menos constante cuidado o bem-estar e a saude dos operarios.
Tão feliz que conseguiu
evitar as epidemias que são vulgares nas grandes
agglomerações de homens e tão fataes
em regiões, como aquella,
expostas a todos os influxos do tropico.
Verdade é que muito operario pagou com a vida as
imprudencias inherentes a tão arriscados trabalhos; mas
desgraças d'essa ordem, aliás lamentaveis,
não é
possivel evita-las, são pormenores com que pouco se
preoccupam os americanos. Mais cuidado lhes dá a humanidade
em geral do que cada individuo em
particular. Barbicane, todavia, professava, por
excepção,
doutrinas contrarias, a que em todas as occasiões dava
applicação. E por esta rasão,
graças aos cuidados d'elle,
á intelligencia que demonstrou e á
intervenção que tinha em todos os
casos difficeis, á prodigiosa e caritativa sagacidade que
soube desenvolver, a media
[132]
das catastrophes não excedeu o que costuma succeder nos
paizes d'aquem mar, ainda nos que são citados pelo luxo de
precauções, em França, por exemplo, em
que se conta, termo medio, com um accidente por cada duzentos mil
francos de obras.
CAPITULO XV
A FESTA DA FUNDIÇÃO
No decurso dos oito mezes que levou a operação da
perfuração, tinham-se simultaneamente, e com
grande rapidez, realisado os trabalhos preparatorios da
fundição; bem
surprehendido ficaria qualquer forasteiro, que por aquella
occasião viesse a
Stone's-Hill, com o espectaculo que se lhe havia de apresentar diante
dos olhos.
Em disposição circular, em torno do
poço como centro, e a seiscentas jardas d'elle, erguiam-se
mil e duzentos fornos de
reverberação, cada um de seis pés de
largura, e separados uns dos outros por um intervallo de meia toeza. A
linha, que contornava os mil e duzentos fornos, tinha duas milhas
[81] de
comprimento. Eram todos construidos pelo mesmo modelo, de
chaminé alta e quadrangular, e produziam effeito
extremamente singular. J.-T. Maston achava soberba aquella
disposição
architectonica, que lhe trazia á lembrança os
monumentos de Washington.
Para esse é que não havia nada mais bello, nem
mesmo na Grecia,
«onde aliás, segundo elle proprio confessava,
nunca tinha posto os
pés».
[133]
Deve o leitor estar lembrado que, na terceira sessão da
commissão, se decidira que a Columbiada havia de ser de
ferro fundido, e em especial de ferro fundido gris.
E com rasão, porque o ferro em taes circumstancias tem maior
tenacidade e ductilidade e é mais macio, mais facil de polir
e apropriado para todas as operações de molde, e
ainda porque, tratado pelo carvão mineral, é de
qualidade
superior para todas as obras de grande resistencia, taes como
canhões, cylindros
de machinas a vapor, prensas hydraulicas, etc.
Mas raras vezes com uma só fusão se consegue
obter ferro fundido bastante homogeneo; na segunda fusão
é
que elle se refina e purifica, abandonando os ultimos depositos
terrosos.
Por este motivo, já o minerio de ferro, antes de ser
expedido para Tampa-Town, fôra transformado em carbonato,
submettendo-o nos altos fornos de Goldspring ao contacto com
carvão e
silicium levados a uma elevada temperatura
[82].
Depois d'esta primeira
operação é que o metal foi mandado
para Stone's-Hill. Mas como se tratava de cento e trinta e seis
milhões de libras
de ferro fundido, massa cuja expedição pelos
caminhos de
ferro havia de ficar excessivamente cara, só o
preço do
transporte vinha a dobrar o preço do material. Pareceu
portanto preferivel fretar
navios em New York e carrega-los de ferro fundido em barra; foram
necessarias nada menos de sessenta e oito
embarcações de mil toneladas, verdadeira
esquadrilha, que a 3 de maio largou das paragens de New York, tomou a
via do oceano, prolongou-se com as costas da America, embocou pelo
canal de Bahama, dobrou a ponta da Florida e, entrando a 10 do mesmo
mez na bahia
[134]
do Espirito Santo, veiu largar ferro,
sem avaria, no porto de Tampa-Town. Ahi se fez a descarga dos navios
para os wagons da via ferrea de Stone's-Hill, e pelo meado de janeiro
estava toda aquella enorme massa de metal no logar para que
fôra
destinada.
Facilmente se concebe que não eram de mais mil e duzentos
fornos para liquefazer simultaneamente sessenta mil toneladas de ferro
fundido. Cada forno podia conter proximamente quatorze mil libras de
metal, e todos tinham sido construidos pelo modelo dos que tinham
servido para fundir o canhão Rodman, que eram
de fórma trapesoidal e muito baixos de tecto. A fornalha e a
chaminé eram nos extremos oppostos do forno, por
fórma que em toda a extensão d'elle havia a mesma
temperatura. As paredes
dos fornos eram construidas de tijolo refractario, e encerravam apenas
uma grelha para fazer arder o carvão mineral e um
crysol chato para collocar as barras de ferro, inclinado por um angulo
de vinte e cinco graus para deixar escorrer o metal em fusão
para as caldeiras destinadas a recebe-lo; d'estas caldeiras
conduziam-no mil e duzentas caleiras convergentes para o
poço central.
No dia seguinte áquelle em que finalisaram as obras de pedra
e as de perfuração, fez Barbicane dar
começo á construcção do
molde interno. O caso estava em erguer no centro do poço e
na direcção do eixo d'elle, um cylindro de
novecentos pés de altura e nove de largura, que enchesse
exactamente o espaço reservado
para a alma da Columbiada. Foi este cylindro feito de areia e barro
argilloso de mistura com palha e feno. O intervallo que ficava entre o
molde interno e o revestimento de pedra e cal havia de preenche-lo o
metal fundido, que vinha assim a formar em torno do molde uma parede de
seis pés de espessura.
Para manter em equilibrio o cylindro, foi necessario
reforça-lo com gatos de ferro e aguenta-lo de distancia a
distancia com espeques chumbados no revestimento interno de pedra, o
que não apresentava inconveniente algum, porque, depois da
fundição, haviam
[135]
de ficar os espeques como que
perdidos no grosso da massa de metal.
Concluiu-se esta operação a 8 de julho, e
fixou-se o dia seguinte para a fundição.
«Que bella ceremonia ha de ser a da festa da
fundição, disse J.-T. Maston ao amigo Barbicane.
--De certo, respondeu Barbicane, mas festa publica é que
não!
--Como assim! pois não haveis de mandar abrir as portas
d'este recinto a quem quer que venha?
--D'essa me livrarei eu, Maston; a fundição da
Columbiada é operação delicada, por
não dizer
perigosa, e prefiro realisa-la á porta fechada. Quando o
projectil largar, quantas festas quizerem, até lá
nada.»
E o presidente tinha rasão; a operação
podia apresentar perigos imprevistos, a que uma grande affluencia de
espectadores estorvaria de occorrer. Era mister conservar inteira
liberdade de movimentos. Por consequencia a ninguem se deu entrada no
recinto, excepto a uma delegação dos socios do
Gun-Club
que, expressamente para assistir á festa, fizera jornada
até
Tampa-Town. Figuravam n'ella, entre outros, o fogoso Bilsby, Tom
Hunter, coronel Blomsberry, major Elphiston, general Morgan e
tutti
quanti, tomavam a fundição da
Columbiada como negocio seu
pessoal. J.-T. Maston tinha-se feito cicerone d'estes, e não
lhes perdoou
nem o mais insignificante dos pormenores; levou-os a toda a parte: aos
armazens, ás officinas, por entre as machinas, e
até os obrigou a fazer visita aos mil e duzentos fornos um
por um. Quando chegaram a mil e duzentos já não
tinham alma para mais.
A fundição estava fixada para o meio dia em
ponto, e já de vespera ficára cada forno
carregado com cento e quatorze mil libras de metal em barras dispostas
em pilhas encruzadas, para que o ar quente podesse circular em
liberdade por entre ellas. Desde pela manhã que as mil e
duzentas chaminés arrojavam para a
[136]
atmosphera torrentes de chammas, e que o solo era agitado por surdas
trepidações. Havia a queimar tantas libras
de hulha, quantas eram as libras de metal que se íam
derreter. Eram portanto sessenta e oito mil toneladas de
carvão que arremessavam por
diante do disco solar um espesso véu de fumo negro.
Dentro em pouco tornou-se o calor intoleravel dentro do circulo dos
fornos, cujos roncos pareciam trovões; a tudo isto vinha
juntar-se o soprar continuo de potentes ventiladores que saturavam de
oxygenio todos aquelles focos incandescentes.
Dependia essencialmente o bom exito da operação
da rapidez. A um signal dado por um tiro de peça deviam
todos os fornos simultaneamente dar saída ao metal em
fusão e
vasarem-se completamente.
Tomadas estas disposições, esperavam, tanto os
chefes como os operarios, com impaciencia misturada de boa
dóse de
emoção, o instante prefixado. Já
não estava mais ninguem
no recinto, e todos os contra-mestres fundidores estavam a postos, cada
um junto a uma das aberturas por onde o ferro em fusão havia
de
entrar no molde.
Barbicane e os collegas assistiam á
operação situados n'uma eminencia proxima. Diante
d'elles estava uma peça de
artilheria prompta a dar fogo ao primeiro signal dado pelo engenheiro.
Alguns minutos antes do meio dia começaram a correr as
primeiras gotas de metal, encheram-se pouco e pouco as caldeiras, e
quando o metal chegou a completa liquefacção,
deixaram-no assentar por alguns instantes para facilitar a
separação
das substancias estranhas.
Soou meio dia, e no mesmo instante ribombou o canhão
arremessando pelos ares o fulvo relampago. Abriram-se a um tempo as mil
e duzentas aberturas, e alastraram-se na
direcção do poço central mil e
duzentas serpes de fogo, desenrolando-se em anneis incandescentes. Ali
foram precipitar-se com temeroso estrepito,
[137]
na profundidade de novecentos pés. O
espectaculo era
magnifico e para impressionar. Tremia a terra, e aquelle mar de metal
em fusão arrojando ao céu turbilhões
de
fumo, ao mesmo tempo volatilisava a humidade do molde e a expellia
pelos respiradouros do revestimento de pedra, sob a fórma de
impenetraveis
vapores. Desenrolavam-se aquellas nuvens artificiaes em espiraes
espessas e erguiam-se para o zenith até quinhentas toezas de
altura.
Algum selvagem errante para alem dos limites do horisonte podia crer
que se estava formando alguma nova cratéra nos seios da
terra floridense, e comtudo nem era aquillo
erupção, nem tromba, nem tempestade, nem luta de
elementos, nem nenhum dos phenomenos terriveis que só a
natureza é capaz de
produzir! Não! O homem é que tinha dado o ser
áquelles avermelhados vapores, áquellas chammas
gigantescas e dignas de qualquer
vulcão, áquellas
oscillações estrondosas
similhantes ao sacudir dos tremores de terra, áquelles
mugidos rivaes dos
furacões e das tempestades, e a mão do homem
é que
precipitára um Niagara inteiro de metal em fusão
n'um abysmo tambem por
mãos humanas cavado.
CAPITULO XVI
A COLUMBIADA
E teria tido feliz resultado a operação da
fundição? O caso só podia apreciar-se
por conjecturas. Entretanto tudo levava a crer que o resultado
fôra bom, visto como o molde
absorvêra a massa inteira do metal fundido nos fornos. Fosse
lá como fosse,
por muito tempo havia de ser impossivel verificar a cousa directamente.
Effectivamente, quando o major Rodman fundiu o seu canhão
[138]
de cento e sessenta mil libras de
peso, nada menos de quinze dias levou o metal a arrefecer. Quanto tempo
então haveria
de furtar-se ás vistas de seus admiradores, coroada de
turbilhões de fumo e defendida pelo seu intenso calor, a
Columbiada monstro? Era cousa difficil calcula-lo.
Durante esse lapso de tempo passou por uma prova real a paciencia dos
socios do Gun-Club. Mas não havia outro remedio. J.-T.
Maston ia ficando assado por excesso de
dedicação. Quinze dias depois da
fundição ainda se erguia para o
céu immenso pennacho de fumo, e ainda o chão
queimava os pés n'um raio
de duzentos passos em volta do cume de Stone's-Hill.
Passaram-se dias e dias, decorreram semanas e semanas. Não
havia meio de arrefecer o immenso cylindro; era até
impossivel approximar-se d'elle. Era força esperar, e os
socios do
Gun-Club mordiam-se de impacientes.
«Estamos já a 10 de agosto, disse uma bella
manhã J.-T. Maston. Temos apenas quatro mezes d'aqui
até 1 de dezembro! Sacar o molde interno, calibrar a alma da
peça, carregar a
Columbiada, tudo está por fazer! Nada, já
não
temos tempo para nos apromptar! Nem ainda a gente se póde
approximar do
canhão! Pois elle nunca ha de acabar de arrefecer. Isso
é que era
uma caçoada cruel!
Tentavam todos, mas debalde, moderar o impaciente secretario;
só Barbicane não dizia palavra, mas o silencio
d'este occultava surda irritação. Ver-se
absolutamente detido por
um obstaculo que só o tempo podia vencer, e então
o tempo, que
é implacavel inimigo em taes circumstancias, e estar
á
discrição do inimigo, que era tão duro
para aquella gente bellicosa.
Entretanto as observações quotidianas denunciavam
certa mudança no estado do solo.
Por volta de 15 de agosto tinham diminuido notavelmente em intensidade
e espessura os vapores projectados para o céu. Dias
[139]
depois já o terreno
exhalava apenas ligeira
fumaça, ultimo alento do monstro encerrado no seu tumulo de
pedra.
Pouco e pouco vieram a diminuir as oscillações do
solo, e o circulo de calorico estreitou-se; approximaram-se os
espectadores mais impacientes; n'um dia conseguiram avançar
duas toezas, no seguinte quatro, e, a 23 de agosto Barbicane, os
collegas e o engenheiro, poderam finalmente tomar logar mesmo em cima
do jacto solidificado de ferro fundido que nivelava com o vertice de
Stone's-Hill, logar seguramente muito hygienico, porque não
era possivel ter lá os pés frios.
«Até que emfim!» exclamou o presidente
do Gun-Club, soltando immenso suspiro de
satisfação.
Recomeçaram os trabalhos no mesmo dia.
Tratou-se immediatamente de extrahir o molde interno para
desembaraçar a alma da peça; alvião,
picareta e ferramenta de brocar, tudo trabalhou sem descanso; o barro
argilloso e a areia tinham adquirido extrema consistencia sob a
acção
do calor; mas com auxilio de machinas, conseguiu-se vencer aquelle
mixto ainda inflammado pelo contacto das paredes de ferro fundido; o
material extrahido safaram-n'o com rapidez carros movidos a vapor, e
tanto fizeram, tanto ardor houve no trabalho, Barbicane apertou tanto
com os trabalhadores, e tão fortes argumentos
empregou, sob fórma de dollars, que, a 3 de setembro, tinha
desapparecido o ultimo vestigio de molde.
Começou desde logo a operação da
calibragem; installaram-se sem demora os machinismos adequados que
faziam mover com rapidez potentes brocas de polir, cujo gume cortante
mordia nas rugosidades do ferro fundido. Poucas semanas depois estava
exactamente cylindrica a superficie interna do tubo, e a alma da
peça perfeitamente polida.
[140]
Finalmente, no dia 22 de setembro, menos de um anno depois da
communicação Barbicane, o enorme machinismo,
rigorosamente calibrado, n'uma exactissima
posição
vertical verificada por via de instrumentos delicados, ficou prompto
para funccionar.
[141]
Faltava
só esperar pela Lua, mas essa certo era que
não havia de falhar ao ajustado encontro.
O
presidente Barbicane á sua janella (
pag.
151).
[142]
A alegria de J.-T. Maston não tinha limites; esteve
até por pouco a dar uma horrorosa quéda, quando
intentava penetrar com a vista a profundidade do tubo de novecentos
pés. Se
não lhe acudíra Blomsberry com o braço
direito, que o
digno coronel por fortuna conservára, o secretario do
Gun-Club teria, qual
novo Erostrato, encontrado a morte nas profundezas da Columbiada.
Estava pois terminado o canhão; nem já era
permittido ter duvidas ácerca de sua perfeita
execução;
n'estes termos, a 6 de outubro, o capitão Nicholl, com
vontade ou sem ella, desempenhou-se para com o presidente Barbicane, e
este inscreveu no seu livro de contas e na columna das receitas, a
quantia de dois mil dollars.
Devemos suppor que a furia do capitão chegou ao ultimo
extremo. No entretanto havia ainda ajustadas mais tres apostas de tres,
quatro e cinco mil dollars, e comtantoque o capitão
ganhasse duas fazia negocio, que sem ser já excellente,
ainda
não era de todo mau. Porém o dinheiro nem sequer
lhe entrava nos
calculos; o bom exito obtido pelo rival que conseguira fundir um
canhão, a que nem chapas de dez toezas de espessura poderiam
resistir, é que fôra para Nicholl terrivel golpe.
Desde 23 de setembro que se tornára francamente accessivel
ao publico o recinto de Stone's-Hill. Qual foi a affluencia de
vizitantes facilmente se comprehenderá. E na realidade,
convergia de todos os pontos dos Estados Unidos para a Florida uma
quantidade de curiosos sem conta. A cidade de Tampa tinha augmentado
prodigiosamente no decurso d'aquelle anno inteiramente consagrado
ás obras do Gun-Club, e contava então
cento e cincoenta mil almas. A cidade que
começára por
entrelaçar o forte Brooke n'uma rede de ruas, estendia-se
agora por sobre a lingueta de terra que separa os dois molhes da bahia
do Espirito Santo; bairros novos, novas praças, uma floresta
inteira de casas
[143]
tinham como que brotado
d'aquellas praias ainda ha pouco desertas, pela intensidade do calor do
sol americano. Organisaram-se companhias para construir igrejas,
escolas e habitações particulares, e em menos de
um anno
estava a cidade dez vezes maior.
É bem sabido que o yankee nasce commerciante; para onde quer
que o arremesse o destino, da zona gelida á zona
torrida, hão de exercer-se-lhe com utilidade os instinctos
de negocio. Por esta rasão os simples curiosos, a gente que
viera á Florida com o unico fito de seguir as
operações do Gun-Club,
deixou-se arrastar para operações commerciaes
logoque se achou
installada em Tampa. Os navios fretados para transportar o material e
os operarios tambem tinham trazido ao porto um grau de actividade sem
igual, e dentro em pouco muitos outros navios de todas as
fórmas e tonelagens sulcaram a bahia e os dois molhes;
estabeleceram-se vastos estabelecimentos de armador e escriptorios de
corretor de navios, e a
Shipping-Gazete registava todos os
dias novas embarcações entradas no porto de
Tampa.
Ao passo que se iam multiplicando as estradas em torno da cidade,
mereceu esta a final ser ligada por via ferrea aos Estados meridionaes
da União, em consideração
ao prodigioso augmento que se realisára na sua
população e
commercio. Assentou-se um railway entre a Mabile e Pensacola, o maior
arsenal maritimo do sul; e em seguida d'este ponto importante para
Tallahassee.
D'ali já estava construido um pequeno ramal de via ferrea de
vinte e uma milhas de comprimento, que punha em
communicação Tallahassee com Saint-Marks,
localidade do littoral. Foi este ramal que se prolongou até
Tampa-Town, e que na passagem veiu despertar ou dar vida ás
regiões adormecidas
ou mortas da Florida. Tampa, graças áquelles
milagres da
industria, devidos á idéa que um bello dia
despontára n'um cerebro
humano, póde assumir
[144]
com legitimo fundamento ares de grande cidade. Cognominaram-na
Moon-City[83].
A capital das Floridas
é que soffreu ecclypse total e visivel de todos os logares
do globo.
Toda a gente comprehenderá agora por que fôra
tão grande a rivalidade entre Texas e Florida, e a
irritação
dos texianos quando viram indeferidas as
pretenções que tinham
á preferencia do Gun-Club.
Com previdente sagacidade tinham os do Texas comprehendido quanto
qualquer paiz haveria de ganhar com a experiencia tentada por
Barbicane, e de que somma de beneficios havia de vir acompanhado um tal
tiro de canhão. Perdia o Texas com a
decisão que o desfavorecêra um importante centro
de commercio, varios
caminhos de ferro e um augmento consideravel de
população. Estas vantagens todas iam parar
áquella miseravel peninsula floridense, arremessada qual
outro marachão entre as ondas
do golpho e as vagas do oceano atlantico. Por isso Barbicane partilhava
com o general Sant'Anna todas as antipathias dos texianos. Entretanto,
apesar de entregue ao furor do commercio e ao ardor da industria, a
população nova de Tampa-Town
não esqueceu por fórma alguma as interessantes
operações do Gun-Club. Pelo contrario. Tomavam
todos calor e paixão pelos pormenores
mais infimos da obra, pela mais insignificante enxadada. Era um
constante vae-vem entre a cidade e Stone's-Hill, uma
procissão, ou para melhor dizer, uma romaria.
Já podia prever-se que, no dia da experiencia, a
agglomeração de espectadores havia de contar-se
por milhões, porque
já elles de todos os pontos da Terra iam chegando e
accumulando-se na estreita peninsula.
Emigrava a Europa para a America. Mas, até
áquelle ponto,
[145]
força é dize-lo, pouca e mediocre
satisfação tivera a curiosidade dos que, em
grande numero, íam chegando. Muita gente
esperava assistir ao espectaculo da fundição e
só lhe viu o fumo. Era pouco para olhos tão
avidos, mas Barbicane não quiz
admittir pessoa alguma a presenciar a operação.
Em consequencia
não faltou quem praguejasse, murmurasse ou por qualquer
outra fórma mostrasse descontentamento; censuravam o
presidente; accusavam-n'o de absolutismo; declaravam finalmente que o
procedimento d'elle era «pouco americano».
Ía havendo sedição em volta das
palissadas de Stone's-Hill.
Barbicane, já se sabe, conservou-se inabalavel na
resolução que tomára.
Mas desde o momento em que se deu por inteiramente acabada a
Columbiada, é que não foi possivel conservar
por mais tempo porta fechada; e tambem fechar as portas em tal caso,
seria prova de má vontade, ou o que é ainda cousa
peior, imprudencia que iria tornar hostil á empreza o
sentimento publico.
Barbicane mandou portanto abrir as portas do recinto a toda a gente;
entretanto inspirado pelo seu espirito pratico, resolveu fazer dinheiro
com a curiosidade publica.
Já não era pouco contemplar a immensa Columbiada,
porém descer-lhe ás profundezas, isso
é que se
afigurava aos Americanos ser o
non plus ultra das
felicidades
d'este mundo. Nem um só curioso por consequencia deixou de
querer experimentar o goso de visitar o interior d'aquelle abysmo de
metal. Os espectadores podiam satisfazer a sua curiosidade por meio de
apparelhos suspensos de um sarilho a vapor. A cousa fez furor.
Mulheres, creanças, velhos, todos tomaram como
obrigação penetrar até ao fundo da
alma
nos
mysterios do colossal canhão. Fixou-se o preço da
descida em cinco dollars por cabeça. E
apesar de ser preço alto, tal foi a affluencia de
visitantes, que
metteu nas burras do Gun-Club, no decurso dos dois mezes que
antecederam
[146]
a experiencia, perto de dois
milhões e quinhentos mil
dollars
[84].
Escusado é dizer que os primeiros visitantes da Columbiada
foram os socios do Gun-Club, vantagem esta justamente reservada para
aquella illustre assembléa. Realisou-se esta visita
solemne no dia 25 de setembro. Desceu então uma caixa de
honra com o
presidente Barbicane, J.-T. Maston, major Elphiston, general Morgan,
coronel Blomsberry, engenheiro Murchison e outros socios de
distincção do celebre Club. Ao todo seriam uns
dez. Fazia ainda um calor menos mau no fundo do comprido tubo de metal!
Mal se podia respirar! Mas que alegria! que contentamento! Estava mesa
posta para dez convivas em cima do massiço que aguentava a
Columbiada, e o interior d'esta illuminado
a giorno, por um jacto de luz electrica. Numerosas
e delicadas iguarias, que pareciam descer do céu, vieram
successivamente collocar-se
em frente dos convivas, e correram com profusão os mais
finos
vinhos de França durante o esplendido banquete servido a
novecentos
pés debaixo da terra.
O festim correu extremamente animado e até extremamente
ruidoso; cruzavam-se numerosos os
toasts; bebeu-se em honra do globo terrestre, do
seu satellite, do Gun-Club, da União,
da Lua, de Phoebea, de Diana, de Seléne, do astro das
noites, e
finalmente «do pacifico correio feminino do
firmamento!»
Tantos foram os hurrahs, repercutidos em ondas sonoras dentro d'aquelle
immenso tubo acustico que chegaram á extremidade d'elle qual
trovão, e a multidão acampada em
torno de Stone's Hill, unia-se pelo coração e
pelos gritos aos dez
convivas soterrados no fundo da gigantesca Columbiada.
J.-T. Maston nem já podia ter mão em si; e
é ponto difficil de averiguar o que é que elle
fez em maior escala, se gritar e gesticular,
[147]
se beber e comer. Em todo o caso, o que elle não
largava era o logar, nem a troco de um imperio.
«Não,
aindaque o canhão estivera carregado, escorvado, prompto a
dar fogo por
instantes, e a arremessa-lo feito em estilhas aos espaços
planetarios».
CAPITULO XVII
UM DESPACHO TELEGRAPHICO
Estavam, póde assim dizer-se, concluidas as grandes obras
emprehendidas pelo Gun-Club, e no entretanto ainda tinham de decorrer
dois mezes antes de chegar o dia em que o projectil havia de largar
vôo para a Lua. Dois mezes, que á
impaciencia universal haviam de parecer dois annos! Até
então tinham
tido reproducção na imprensa diaria
até os mais infimos pormenores da
operação, e os jornaes eram devorados com olhos
avidos e ardentes; mas era de temer que d'ora ávante aquelle
«dividendo de noticias interessantes», distribuido
até então
ao publico, diminuisse notavelmente; e todos se assustavam com a
idéa de
não terem já de receber a respectiva quota de
emoções
quotidianas. Pois nada d'isto succedeu; um incidente, o mais
extraordinario, o mais incrivel, o mais inverosimil dos incidentes,
veiu de subito fanatisar os espiritos anhelantes, e lançar
novamente o mundo inteiro
sob a influencia de uma sobrexcitação pungente.
Certo dia, 30 de setembro, ás tres horas e quarenta e sete
minutos da tarde, chegou com direcção ao
presidente
Barbicane um telegramma transmittido pelo cabo submarino immerso entre
Valentia (na Irlanda), Terra Nova e a costa americana.
O presidente Barbicane rasgou o sobrescripto, leu o despacho, e, apesar
da faculdade que tinha em alto grau de dominar-se, empallideceram-lhe
[148]
os labios, e turvou-se-lhe a vista
com a leitura das vinte palavras do telegramma.
Eis o texto do tal despacho, que na actualidade figura entre os
documentos do archivo do Gun-Club:
«França, Paris, 30 de setembro, ás
quatro horas da manhã--Barbicane, Tampa, Florida, Estados
Unidos.--Substituir obuz espherico por projectil cylindro-conico.
Partirei dentro. Chego pelo vapor
Atlanta.--
Miguel
Ardan.»
CAPITULO XVIII
O PASSAGEIRO DO ATLANTA
Se aquella nova fulminante, em vez de ter voado pelo fio electrico,
tivera chegado simplesmente pelo correio, fechada e lacrada; se os
empregados telegraphicos da França, da Irlanda, da Terra
Nova e da America não estivessem, por necessidade de
officio, no segredo do telegrapho, certamente Barbicane nem por um
instante teria hesitado. Calava-se não só por
prudencia, mas para não desacreditar a propria obra.
Era bem possivel que sob a fórma de telegramma ali se,
encobrisse uma caçoada, demais a mais vindo o telegramma de
um francez. Por ventura era de crer que houvesse homem bastantemente
ousado para conceber sequer o pensamento de uma viagem tal? E, ainda no
caso de existir tal homem, não seria
porventura um louco, mais no caso de se encerrar n'uma gaiola do que
n'uma bala?
Porém o texto do telegramma era de certo já
conhecido, porque os apparelhos de transmissão electrica
são por sua propria
[149]
natureza pouco discretos, e a proposta de Miguel Ardan corria
já seguramente pelos differentes estados da
União.
Consequentemente Barbicane não tinha motivo algum para se
calar; portanto reuniu os collegas que estavam em Tampa-Town, e sem dar
mostra do que lhe ía no pensamento, sem discutir o maior ou
menor
credito de que o telegramma era merecedor, leu-lhes friamente o
laconico texto.
«É impossivel! Inverosimil! Pura
chalaça! Mangaram comnosco! Ridiculo! Absurdo!» Em
poucos minutos ouviu-se ali uma collecção
completa de todas as
expressões que servem para exprimir duvida, incredulidade ou
qualificar a tolice e a loucura, e com acompanhamento de gestos usuaes
em taes casos. Todos sorriam, riam, encolhiam os hombros ou desatavam
ás gargalhadas, cada um segundo a respectiva
disposição e genio.
J.-T. Maston foi o unico que teve uma saída soberba:
«E não é má idéa,
não!»
--É verdade, respondeu o major; mas se é
permittido ter de vez em quando idéas d'essas, é
só com
a condição de nem por sonhos pensar em leva-las
á execução.
--E porque não? replicou com vivacidade o secretario do
Gun-Glub, já prompto para discutir. Mas não
quizeram pica-lo mais.
Entretanto já o nome de Miguel Ardan corria de
bôca em bôca pela cidade de Tampa. Forasteiros e
indigenas olhavam-se,
interrogavam-se e mofavam, não do europeu, especie de mytho
ou individualidade chimerica, mas de J.-T Maston, que tinha chegado a
acreditar na existencia de tal personagem lendario. Quando Barbicane
propozera arremessar um projectil á Lua
todos acharam o emprehendimento natural, praticavel, pura
questão de balistica! Mas offerecer-se um ente racional para
tomar passagem dentro do projectil e tentar aquella viagem inverosimil,
isso lá era proposta de phantasia, zombaria,
caçoada, ou, querendo
[150]
usar de um termo que tem traducção exacta e
precisa na linguagem familiar franceza,
humbug!
[85]
Até á noite sem interrupção
durou a risota, podendo até affirmar-se que a
União inteira desatou a um tempo n'uma casquinada de riso
inextinguivel, o que aliás não
está lá muito nos habitos de um paiz em que
até as emprezas mais claramente impossiveis encontram com
facilidade panegyristas, adeptos e partidarios. Todavia a proposta de
Miguel Ardan, como succede a toda a idéa nova,
não deixou de dar que fazer a
certos espiritos. A cousa sempre vinha alterar o curso das
emoções
habituaes. «Ninguem pensára em tal!» E o
incidente
por sua mesma estranheza em breve se tornou como que em pesadelo geral.
Caso é que já n'elle pensavam. Quantas cousas se
negam na vespera, e que o dia seguinte vem transformar em realidades! E
porque é que tal viagem se não havia de vir a
fazer mais tarde ou mais cedo? Em todo o caso, o homem que assim queria
arriscar a pelle era forçosamente doido, e decididamente
já que o projecto que sonhára não
podia ser tomado a
serio, melhor era ter-se calado, do que vir inquietar um povo inteiro
com tão
ridiculos devaneios.
Mas, e antes de tudo; acaso tal personagem existia realmente? Magna
questão! Aquelle nome de «Miguel
Ardan» já não era inteiramente
desconhecido na America! Senão que pertencia a um europeu
muito citado por seus ousados emprehendimentos. De mais a mais aquelle
telegramma enviado atravez das profundezas do Atlantico, aquella
indicação positiva do navio
em que o francez dizia ter já tomado passagem, e a da data
proxima em
que havia de chegar, tudo eram circumstancias que davam á
proposta certo caracter de verosimilhança. O que todos
desejavam
[151]
era uma solução clara e positiva que lhes
socegasse o espirito. Pouco a pouco reuniram-se em grupos os individuos
isolados; os grupos foram-se condensando por influencia da curiosidade,
como os atomos se aggregam em virtude da
attracção mollecular, e a final vieram a
transformar-se em multidão compacta, que tomou em direitura
á morada do presidente Barbicane.
Este, desde que chegára o telegramma, não dera
por fórma alguma a conhecer o que d'elle pensava;
deixára correr a
opinião de J.-T. Maston, sem manifestar
approvação nem
censura; estava mettido ao canto, e na idéa de esperar pelos
acontecimentos, mas com que elle não contava era com a
impaciencia publica; por isso viu com olhos de pouca
satisfação
accumular-se-lhe debaixo das janellas a população
de Tampa. Em
breve o forçaram a mostrar-se ao publico, mil murmurios e
vociferações. É de ver que o
presidente tinha todos os deveres e portanto todos os incommodos
attributos da celebridade.
Logo que Barbicane appareceu reinou silencio na multidão e
um cidadão que tomou a palavra dirigiu-lhe, sem mais
rodeios, a seguinte pergunta: «O personagem designado no
telegramma pelo nome de Miguel Ardan, seguiu ou não viagem
para a
America?
--Meus senhores, respondeu Barbicane, tanto o sei eu como
vós outros.
--Pois é necessario sabe-lo, exclamaram algumas vozes
impacientes.
--O tempo é que nos ha de desenganar, respondeu friamente o
presidente.
--Ao tempo não assiste direito para conservar um paiz
inteiro em suspensão, replicou o orador. E os planos do
projectil
já se mandaram modificar, como se pede no telegramma?
[152]
--Ainda não, meus senhores; mas, todos têem muita
rasão, é necessario desenganarmo-n'os; o
telegrapho foi que causoutodas
estas emoções, pois seja o telegrapho quem
complete as noticias que trouxe.
--«Ao telegrapho! ao telegrapho!» bradou a
multidão.
[153]
Barbicane desceu de casa, e tomando á frente d'aquelle
immenso ajuntamento dirigiu-se para a repartição
da
administração dos telegraphos.
[154]
Poucos minutos depois enviava-se um telegramma ao syndico dos
corretores de navios de Liverpool em que se lhe pedia resposta
ás seguintes perguntas:
«Que especie de navio é o
Atlanta?
«Quando é que largou esse navio da Europa?
«Estaria a bordo um francez chamado Miguel Ardan?»
Duas horas depois recebia Barbicane esclarecimentos por tal
fórma precisos, que nem deixavam logar á menor
duvida.
«O paquete
o Atlanta, de
Liverpool, fez-se ao mar no dia 2 de outubro, fazendo-se de
véla para Tampa-Town; a bordo ia um francez, inscripto no
livro dos passageiros com o nome de Miguel Ardan.»
Quando o presidente viu assim confirmado o conteúdo do
primeiro telegramma, brilharam-lhe os olhos em subita chamma,
cerraram-se-lhe violentamente os punhos, e houve até quem o
ouvisse murmurar:
Então, sempre é verdade! sempre é
possivel! existe esse francez! e dentro em quinze dias ha de estar
aqui! Mas é, por certo, um louco! um cerebro escandecido!...
Nunca consentirei...»
E apesar d'isso, n'aquella mesma noite já escrevia
á casa Breadwill e C.
a, para lhe
pedir que suspendesse
até nova
ordem a fundição do projectil.
Relatar a emoção que se apossou da America
inteira; como o effeito da communicação Barbicane
foi excedido no
decuplo; o que disseram os jornaes da União, por que modo
acceitaram a nova e em que rythmo contaram a chegada do heroe do velho
continente; pintar a febril agitação, em que
todos viviam contando as horas, os minutos e os segundos; dar
idéa mesmo longiqua,
da pesada obsessão que se apoderou de todos os cerebros
dominados por um pensamento unico; mostrar como todas as
occupações cederam a uma unica
preoccupação; os trabalhos parados, o commercio
suspenso, navios que estavam promptos a
[155]
levantar ferro a ficarem ancorados no porto para não
faltarem á chegada do
Atlanta, os
comboios a
chegarem cheios e a saírem vasios, a bahia do Espirito Santo
sulcada sem cessar por
steamers,
packets-boats,
hiates de recreio e
fly-boats de todas as
dimensões; enumerar os milhares de curiosos que no
espaço de quinze dias quadruplicaram a
população de
Tampa-Town, a ponto de terem de acampar em barracas como um exercito em
campanha, é tarefa que excede as forças humanas,
e que sem
temeridade ninguem poderia emprehender.
No dia 20 de outubro, pelas nove horas da manhã, dava o
telegrapho semaphorico do canal de Bahama noticia de fumo espesso no
horisonte. Duas horas depois um grande
steamer trocava com o telegrapho signaes de
reconhecimento. Immediatamente foi expedido para Tampa-Town o nome do
Atlanta. Ás quatro horas dava o navio
inglez entrada na bahia do Espirito Santo. Ás cinco passava
a barra de Hillisboro a todo o vapor. Ás seis
largava ferro no porto de Tampa.
Ainda a ancora não tinha mordido no fundo de areia,
já quinhentas embarcações estavam em
volta do
Atlanta, e tomavam o
steamer
de assalto. Barbicane foi o
primeiro que saltou ao convez, e que em voz de que debalde
tentára occultar a
commoção exclamou:
«Miguel Ardan!--Presente!» respondeu um individuo
que estava no castello de popa.
Barbicane, cruzados os braços, com o olhar interrogador e a
bôca silenciosa, olhou fito para o passageiro do
Atlanta.
Era este homem de quarenta e dois annos, alto, mas já um
tanto curvado, como os cariatides que aguentam nos hombros as sacadas
dos balcões. A cabeça volumosa,
verdadeira cabeça de leão, sacudia a cada
instante a cabelleira ardente que a
adornava como verdadeira juba. A cara curta, larga nas fontes,
enfeitada por um bigode hirsuto como as barbas de um gato, e com
pincelinhos
[156]
de pellos
amarellados que irrompiam mesmo do meio das faces, os olhos redondos e
um tanto desvairados, o olhar de myope, completavam-lhe a physionomia
eminentemente felina. Mas o nariz era ousadamente modelado, a
bôca particularmente humana, a fronte alta, intelligente e
sulcada qual campo que nunca esteve de pousio. Finalmente o tronco
robustamente desenvolvido e assente a prumo em cima de compridas
pernas, os braços
musculosos como possantes e bem articuladas alavancas, faziam do
europeu um maganão de solida
construcção, «feito na forja, que
não no cadinho», como diria quem quizesse ir
buscar á arte metallurgica termos de
comparação.
Qualquer discipulo de Lavater ou de Gratiolet encontraria sem
difficuldade no craneo e na physionomia do personagem os indicios mais
indiscutiveis da combatividade, isto é, da coragem na
occasião do perigo, e da tendencia para
despedaçar todos os obstaculos; como tambem os da
benevolencia e da
maravilhosidade, instincto que incita certos
temperamentos a tomarem-se de paixão pelas cousas
sobrehumanas; em
compensação era absoluta a carencia das bossas
que indicam os instinctos de posse e acquisição,
que os phrenologos designam pela
palavra
adquisividade.
Para dar o ultimo toque na descripção do typo
physico do passageiro do
Atlanta, convem notar
que o fato
que usava era largo de fórmas e folgado de cavas. A
calça e o
paletot eram feitos com tal abundancia de fazenda,
que o proprio Miguel Ardan chamava a si mesmo o
mata-panno;
a gravata
desapertada, o colleirinho aberto com largueza, deixavam ver o
pescoço robusto; dos
punhos invariavelmente desabotoados saiam-lhe as mãos
febris. Bem
se via que era homem que, nem na maior força do inverno, nem
na maior força do perigo, havia de ter frio, nem mesmo na
raiz
do cabello.
Nunca estava quieto, no tombadilho do
steamer, no
meio da
[157]
multidão, de cá para lá, sem nunca
parar «navegando sobre as amarras», como dizia a
maruja; sempre a gesticular, tratando
todos por tu e roendo as unhas com nervosa avidez. Era um d'aquelles
typos originaes que o Creador inventa n'um momento de phantasia,
quebrando-lhe desde logo o molde.
E na realidade, a personalidade de Miguel Ardan dava campo largo
ás observações do analysta.
Aquelle homem espantoso vivia em perpetua
disposição para a hyperbole,
não passára ainda alem da idade dos superlativos;
desenhavam-se-lhe os objectos na retina com dimensões
desmarcadas, e d'ahi lhe vinha uma
associação de idéas gigantescas; via
tudo em ponto grande, excepto os
homens e as difficuldades. E comtudo isto era de uma natureza
luxuriante, artista por instincto, moço de espirito, que sem
dar
descargas de ditos chistosos, sabia entretanto na
conversação esgrimir como o mais habil atirador.
Nas discussões, pouca
importancia lhe merecia a logica. Rebelde ao syllogismo, que por certo
nunca teria inventado, tinha um modo de argumentar só
proprio d'elle.
Passando por cima de tudo e de todos, atirava em cheio ao adversario
uns argumentos
ad hominem
de effeito certeiro e seguro, e fazia gosto em defender com unhas e
dentes as causas perdidas.
Entre outras manias tinha a de se proclamar «um ignorante
sublime», como Shakspeare, e fazia profissão do
desprezo pelos sabios:
«Elles, dizia, entretem-se a marcar os pontos, e
nós cá é que jogâmos a
partida».
Em summa, era um bohemio do paiz dos montes e das maravilhas,
aventuroso, mas não aventureiro, uma cabeça
ôca, um Phaetonte que guiava a toda a brida o carro do Sol,
um Icaro com azas de sobresallente. E era homem que sabia arriscar e
arriscar a serio a propria pessoa, que se arrojava de cabeça
levantada ás mais loucas emprezas, cortando a si proprio a
retirada com mais enthusiasmo ainda do que Agathócles quando
incendiou a esquadra
[158]
que commandava.
Prompto a toda a hora a arriscar a pelle, tinha por sorte invariavel,
por maior que fosse a cambalhota,
caír sempre de pé como os bonequitos de sabugo
com que brincam as creanças.
Em duas palavras, tinha por divisa:
dê por
onde der! e por
ruling passion[86],
segundo a bella
expressão de Pope, o amor pelo impossivel.
Mas tambem era para ver-se como aquelle maganão
emprehendedor possuia os defeitos inherentes ás suas boas
qualidades. Diz o vulgo, que quem se não aventurou
não perdeu nem
ganhou.
Miguel Ardan bastas vezes se tinha aventurado, e nem por isso tinha
ganho!
Para dar cabo de dinheiro era um verdugo, um tonel das
Danaïdes. Homem aliás perfeitamente desinteressado,
tantas eram as asneiras que lhe dictava o grande
coração,
como as que lhe insinuava a estouvada cabeça; esmoler,
cavalheiroso, incapaz de assignar o «enforque-se»
do seu mais cruel inimigo,
mas muito capaz de se vender para resgatar um negro.
Em França, na Europa, toda a gente conhecia este personagem
brilhante e estrepitoso. Nem era para admirar que assim succedesse a
quem trazia já enrouquecidos de servi-lo e
apregoar-lhe o nome as cem vozes da fama, a quem vivia como que dentro
de uma casa de vidro, e tomava por confidente dos seus mais intimos
segredos o universo inteiro. Por estas mesmas rasões tambem
Ardan possuia uma admiravel collecção de
inimigos, de entre aquelles que elle, acotovelando para abrir caminho
por entre a multidão, mais ou menos maguára,
ferira ou
derrubára sem dó nem piedade.
E no entretanto era geralmente bemquisto e até tratado com
excessivo mimo. Era d'aquelles homens a quem póde
applicar-se
[159]
a expressão popular «é pegar ou
largar», e o caso é que todos lhe pegavam, todos
tomavam interesse nos arrojados commettimentos d'elle, e lhe seguiam
com inquietação as
peripecias porque já era de todos conhecida a imprudente
audacia que o
caracterisava. A algum amigo, que no intuito de lhe suspender os
designios, vinha prophetisar-lhe catastrophe imminente, respondia
sempre Ardan com amavel sorriso: «Da lenha das proprias
arvores nasce e lavra o incendio da floresta». Quem lhe diria
a elle que citava então o mais bonito de todos os proverbios
arabes!
Tal era o passageiro do
Atlanta,
sempre em agitação, sempre a ferver, sempre
debaixo da acção de um fogo
interior, sempre commovido, não pelo que vinha fazer
á America,
que nem em tal cogitava, mas por virtude da ardente
organisação
de que era dotado.
Nunca houve duas personalidades que apresentassem contraste mais
saliente que o francez Miguel Ardan e o yankee Barbicane; todavia
ambos, cada um lá a seu modo, eram emprehendedores,
atrevidos e audaciosos.
Em breve foi interrompida pelos hurrahs e vivas da multidão
a contemplação a que se entregára o
presidente do Gun-Club em presença do rival que viera
desterra-lo da
posição principal para o segundo logar. E
tão phrenetica se tornou a gritaria,
tornaram-se por tal fórma pessoaes as
manifestações do enthusiasmo, que Miguel Ardan,
depois de ter apertado um milheiro de mãos, em que ia
deixando os dez dedos das d'elle, teve que se refugiar no camarim.
Barbicane seguiu-o sem lhe ter dito nem palavra.
«Sois Barbicane? perguntou Miguel Ardan logoque se acharam a
sós, e com a intonação de quem
fallava a um amigo de vinte annos.
--Sou, respondeu o presidente do Gun-Club.
[160]
--Pois então muito bons dias, Barbicane. Como vae isso?
Excellentemente? Ora vamos; bom é que assim seja: tanto
melhor!
--Com que, disse Barbicane, sem buscar melhor entrada em materia,
sempre estaes decidido a partir?
--Absolutamente decidido.
--E nada poderá impedir-vo-lo?
--Cousa alguma. E os planos do projectil mandaste-los modificar em
harmonia com as indicações do meu telegramma?
--Estava á espera da vossa chegada. Mas, perguntou
Barbicane, insistindo novamente, reflectistes bem?...
--Reflectir! E que tempo tenho eu para o estar a perder!? Apanho
occasião de ir dar um passeio até
á Lua, e aproveito-a, nada mais. Nem me parece que seja
cousa que mereça maiores reflexões.»
Barbicane devorava com o olhar aquelle homem que fallava de tal
projecto de viagem com tanta leviandade, tão completo
socego e tão perfeita ausencia de cuidados.
--«Mas pelo menos, disse, haveis de ter plano formado, meios
de execução.
--Excellentes, meu caro Barbicane. Mas dae-me licença que
faça uma só observação: o
que eu gostava era de contar a minha historia toda de uma vez
só e a toda a gente, e
não tratar mais do assumpto. Evitam-se assim as
repetições.
Consequentemente, salvo melhor conselho, convocae os vossos amigos,
vossos collegas, toda a cidade, a Florida inteira, a America em peso,
se vos parecer, e ámanhã estou prompto para expor
os
meus meios como para responder a todas as
objecções, sejam
lá quaes forem. Descansae que hei de espera-las a
pé firme. Convem-vos isto?
«Convem-me», respondeu Barbicane.
Accordado isto, saiu o presidente do camarim e veiu communicar
á multidão a proposta de Miguel Ardan.
[161]
Receberam-lhe as palavras com pateadas e grunhidos de alegria. A cousa
assim feita obviava a todas as difficuldades. No dia seguinte todos
poderiam contemplar á vontade o heroe
europeu. Entretanto um ou outro espectador houve mais
cabeçudo que
não quiz largar o tombadilho do
Atlanta,
e passou a noite a bordo. Entre outros, J.-T. Maston, que tinha
atarraxado a ganchorra no parapeito do castello de pôpa; nem
um cabrestante de
lá poderia arranca-lo!
«É um heroe! um heroe! berrava elle em todas as
intonações, nós é que somos
umas fracas mulheres, em
comparação com esse europeu!»
O presidente, esse depois de convidar a retirarem-se todos os
visitantes, volveu ao camarim do passageiro e não mais o
largou até ao momento em que a sineta de bordo tocou o
quarto da
meia noite. Mas n'essa occasião, já os dois
rivaes em
popularidade se apertavam reciproca e calorosamente as mãos,
e Miguel Ardan já tratava por tu ao presidente Barbicane.
CAPITULO XIX
UM MEETING
No dia seguinte levantou-se o «astro do dia» um
tanto tarde para corresponder á impaciencia publica. Para
desempenhar o papel de Sol na illuminação de
similhante festa,
acharam-n'o um tanto preguiçoso. Por vontade de Barbicane,
que se
arreceiava de perguntas indiscretas para Miguel Ardan, teria o
auditorio sido reduzido a um pequeno numero de adeptos, os collegas,
por exemplo. Mas isso!.. era mais facil pôr um dique
á corrente do
[162]
Niagara. Por consequencia teve de renunciar ao que
projectára, e de consentir que o amigo de recente data
corresse todos os riscos de uma conferencia publica. Apesar das suas
dimensões
colossaes, julgou-se ainda insufficiente para a
realisação de tal ceremonia a nova sala da Bolsa
de Tampa-Town, porque a
reunião projectada assumira proporções
de verdadeiro
meeting.
O logar escolhido foi uma vasta planicie situada fóra da
cidade, e em poucas horas conseguiram abriga-la dos raios solares;
todos os arranjos necessarios para a construcção
de uma barraca colossal foram ministrados pelos navios surtos no porto,
abundantes em velame, cordame, mastros e vergas de sobresalente.
Dentro em pouco estendia-se por sobre a planicie calcinada, a
defende-la contra as ardencias do dia, um immenso céu de
panno debaixo do qual trezentas mil pessoas acharam abrigo para poderem
aguentar impunemente por espaço de muitas horas, emquanto
esperavam pelo francez, uma temperatura de abafar. De toda aquella
turba de espectadores só á primeira
terça parte era dado ver e ouvir; a segunda mal via e nem
palavra ouvia; quanto á terceira, essa nada via, e ainda
menos ouvia. E nem por
isso foi a menos prompta a prodigalisar applausos.
Ás tres horas, realisou-se a apparição
de Miguel Ardan, em companhia dos socios principaes do Gun-Club. Dava
Miguel o braço direito ao presidente Barbicane e o
braço
esquerdo a J.-T. Maston, mais radiante e quasi tão rutilante
como o Sol ao
meio dia. Ardan subiu a um estrado, de cima do qual se lhe estendia a
vista por sobre aquelle oceano de chapéus.
Não se percebia n'elle o menor signal de acanhamento, nem de
impostura; estava ali como quem está em sua casa, alegre,
familiar e amavel; depois de responder com uma graciosa
inclinação de cabeça aos hurrahs com
que o acolheram, e de reclamar com um gesto de mão silencio,
tomou a palavra em inglez, exprimindo-se,
[163]
com extrema correcção de linguagem,
nos seguintes termos:
«Meus senhores, apesar do grande calor que faz, tomarei a
liberdade de abusar dos vossos momentos para dar algumas
explicações ácerca de projectos que,
segundo parece, vos interessam.
«Não sou orador nem homem de sciencia, e
não contava fallar em publico; disse-me porém o
meu amigo Barbicane que isso vos seria agradavel, e tanto bastou para
me decidir a esse sacrificio. Consequentemente, escutae-me com os
vossos seiscentos mil ouvidos, e tende a bondade de desculpar os erros
do
auctor.»
Mereceu grande apreço aos circumstantes aquelle exordio sem
ceremonia; um immenso murmurio de satisfação deu
prova do contentamento da multidão.
«Meus senhores, proseguiu Ardan, todos e quaesquer signaes de
approvação ou
desapprovação são permittidos. Isto
posto, começarei Em primeiro logar, não deveis
esquecer que estaes tratando com um ignorante, e tão longe
vae sua ignorancia,
que até as difficuldades ignora. Pareceu-lhe portanto cousa
simples, natural e facil tomar passagem dentro de um projectil, e
partir para a Lua. Era viagem que mais tarde ou mais cedo se havia de
vir a fazer, e pelo que diz respeito ao modo de
locomoção adoptado, esse não era mais
do que simples consequencia da lei do progresso. O homem
começou por viajar com as mãos
pelo chão, depois, um bello dia, só nos dois
pés, depois
n'uma carroça, depois em caleça, depois em
carroção, depois
em diligencia, depois em caminho de ferro; pois bem! o projectil
é a viatura do
futuro; que, a fallar a verdade, os planetas não
são
senão outros tantos projecteis, simples balas de
canhão arremessadas pela
mão do Creador.
[164]
Os
comboios de projecteis para a Lua (
pag. 163).
«Mas voltemos ao nosso vehiculo. Algum de vós,
senhores, poderá ter pensado que a velocidade que tem de
imprimir-se-lhe, é excessiva; pois não
é assim; todos
os astros têem superior rapidez, e a propria Terra, em seu
movimento de translação em
[165]
volta do Sol, nos leva comsigo com triplicada velocidade. Vou
apresentar-vos alguns exemplos, e pedirei permissão para me
exprimir contando por leguas, porque não estou muito
familiarisado com as medidas
americanas e tenho receio de me embarulhar nos calculos.»
[166]
Ninguem oppoz difficuldades á concessão pedida,
que pareceu perfeitamente rasoavel, e o orador continuou o discurso:
«Eis-aqui, senhores, a velocidade dos differentes planetas.
Apesar da minha ignorancia, força é confessa-lo,
conheço com muita exactidão estas miudezas
astronomicas. Mas em menos de dois minutos estareis a esse respeito
tão instruidos como eu.
Sabei pois, que Neptuno anda cinco mil leguas por hora; Urano, sete
mil; Saturno, oito mil oitocentas e cincoenta e oito; Jupiter, onze mil
seiscentas e setenta e cinco; Marte, vinte e duas mil e onze; a Terra,
vinte e sete mil e quinhentas; Venus, trinta e duas mil cento e
noventa; Mercurio, cincoenta e duas mil quinhentas e vinte; certos
cometas, um milhão e quatrocentas mil leguas no
perihelio! Nós cá, verdadeiros passeiantes, gente
de poucas
posses, não havemos de ir alem de nove mil novecentas leguas
de
velocidade, e mais ha de esta ir sempre diminuindo. Perguntarei eu
agora, se ha aqui motivo para pasmar, e se todas estas velocidades
não hão de ser um dia excedidas por outras ainda
maiores, de que provavelmente serão agentes mechanicos a luz
ou a
electricidade?»
Ninguem pareceu pôr em duvida a
asserção de Miguel Ardan.
«Caros auditores, proseguiu este, se formos a dar credito a
uns certos espiritos acanhados,--e é exactamente esta a
qualificação que melhor lhes
cabe--está a humanidade encerrada n'um
circulo de Popilius, que alem do qual não póde
dar passo,
e condemnada a vegetar no globo terraqueo sem esperança
sequer de poder abrir vôo para os espaços
planetarios! Pois
não é assim! Agora vamos á Lua, e
ainda havemos de ir aos planetas, ainda
havemos de ir ás estrellas, como se vae hoje de Liverpool a
New-York, com facilidade, rapidez e segurança. Em breve
serão atravessados o oceano atmospherico, bem como os
oceanos da Lua!
[167]
A distancia é apenas um termo de
relação, e havemos de chegar a final a reduzi-la
a zero.»
A assembléa, apesar de muito enlevada pelo heroe francez,
ficou um tanto attonita com aquella theoria audaciosa. Miguel Ardan
pareceu percebê-lo, e proseguiu com amavel sorriso:
«Parece-me que não estaes lá muito
convencidos, estimaveis hospedes. Pois bem! Discutâmos um
pouco. Sabeis quanto tempo seria necessario a um comboio expresso para
chegar á Lua? Trezentos dias. Nada mais. O trajecto
é de oitenta e seis
mil quatrocentas e dez leguas, mas isso que é?
Não chega a ser
nove vezes um circuito em volta da Terra; não ha marinheiro
ou viajante
digno d'esse nome que não tenha andado mais do que isso no
decurso da vida! Pensae pois, que eu não hei de gastar mais
de
noventa e sete horas no caminho! Ah! estaes imaginando que a Lua
está a grande distancia da Terra, e que não seria
mau reflectir antes de tentar a aventura! Que dirieis então
se se tratasse de ir
a Neptuno que gravita a um milhão cento e quarenta e sete
mil
leguas do Sol! Isso é que é viagem que poucos
poderiam
intentar, ainda que mais não custasse que a cinco soldos por
kilometro! Nem o barão de Rothschild com os seus mil
milhões
tinha com que pagasse o logar; faltavam-lhe ainda cento e quarenta e
sete milhões para não ficar no
caminho!»
Esta maneira de argumentar pareceu ser muito do agrado da
assembléa. Miguel Ardan, por sua parte, bem possuido como
estava do assumpto, deixava-se arrastar ao sabor da
argumentação com soberbo enthusiasmo;
percebêra que era ouvido com avidez, e proseguiu portanto com
admiravel confiança:
«Pois bem, amigos, ainda esta distancia de Neptuno ao Sol
não
é nada, se a compararmos com a das estrellas; effectivamente
para avaliar o afastamento de taes astros é necessario
lançar
mão de uma classe de numeros deslumbrantes, o menor dos
quaes tem nove algarismos, tomar emfim por unidade o milhar de
milhões. Peço-vos
[168]
perdão de me mostrar tão sabido no assumpto, mas
é por ser de um interesse palpitante. Ouvi e julgae. Alpha
do Centauro
está a oito billiões de leguas, Wega a cincoenta
billiões, Sirius a cincoenta billiões, Arcturus a
cincoenta e dois billiões, a Polar a cento e dezesete
billiões de
leguas, a Cabra a cento e setenta
billiões, as outras estrellas a milhares de
billiões e de
trilliões de leguas! E ainda haverá quem falle na
distancia que medeia entre o
Sol e os planetas! E haverá ainda quem sustente que existe
tal distancia! Erro, falsidade! aberração dos
sentidos! Quereis
saber o que eu penso ácerca d'esse mundo que
começa no astro
radiante e acaba em Neptuno? Quereis conhecer a minha theoria?
É muito simples! Para mim o mundo solar é um
corpo solido,
homogeneo; os planetas que o formam, apertam-se, tocam-se, adherem, e o
espaço que entre elles existe é como o
espaço que medeia sempre entre as molleculas do mais
compacto metal, seja prata, seja ferro, oiro ou platina! Julgo portanto
ter direito para affirmar, e repito-o com
convicção, que ha de communicar-se a
vós todos: «A distancia é uma palavra
vã, a distancia nem
sequer existe!»
--Bem dito! Bravo! Hurrah! gritou
una
voce a assembléa electrisada pelo gesto, pela
accentuação do orador e pelo
ousado das concepções.
--Não, exclamou J.-T. Maston ainda mais energicamente que os
outros, a distancia não existe!»
E, arrastado pela violencia dos movimentos, pelo impulso do proprio
corpo que mal podia dominar, ía caíndo do
alto do estrado no chão. Conseguiu, todavia, retomar a
posição de equilibrio, e livrar-se de uma
quéda que lhe havia de provar brutalmente
que a distancia não era palavra de todo vã. Em
seguida proseguiu no seu discurso o attrahente orador.
«Amigos, disse Miguel Ardan, cuido que tal problema deve
já agora ter-se como resolvido. Se não logrei
convencer-vos a
todos, foi de certo porque fui timido nas
demonstrações,
fraco na argumentação,
[169]
e a culpa é da minha
insufficiencia de estudos theoricos. Seja lá como for,
repito, a distancia da Terra ao seu
satellite é realmente pouco importante e indigna de
preoccupar
qualquer espirito grave. Creio que não será ir
muito alem
da verdade affirmar que em breve se hão de vir a estabelecer
trens de
projecteis, nos quaes poderá fazer-se com toda a commodidade
a viagem da Terra á Lua. N'estes é que
não
haverá que receiar, nem choques, nem abalos, nem
descarrilamentos, e chegar-se-ha ao termo da viagem, sem
cansaço em linha recta, «a
vôo de abelha», para fallar na linguagem dos
caçadores cá da
America. D'aqui a vinte annos, de certo já metade da Terra
tem ido visitar a
Lua!
«Hurrah! hurrah! por Miguel Ardan, clamaram os circumstantes
ainda os menos convencidos.
--Hurrah por Barbicane!» respondeu modestamente o orador.
Aquelle acto de gratidão para com o promotor da empreza, foi
recebido pelos espectadores com applausos unanimes.
«Agora, amigos, proseguiu Miguel Ardan, se alguem tem
qualquer pergunta a fazer-me, por certo que
embaraçará um
pobre homem como eu, entretanto farei todos os esforços para
responder.»
Até aquelle momento não tivera o presidente do
Gun-Club senão motivos de satisfação
pela
direcção que a discussão tomava.
Versando esta sobre theorias especulativas, Miguel Ardan, levado pela
sua viva imaginação, mostrava-se
extremamente brilhante. Por consequencia, o que a Barbicane parecia
necessario, era
pôr impedimento a que se desviasse para questões
praticas, de
que por certo Ardan se havia de saír menos airoso.
Barbicane apressou-se portanto a tomar a palavra, para perguntar ao
amigo de recente data qual era o seu modo de ver em respeito a
habitantes da Lua e dos planetas.
«É um grande problema esse que me
propões para resolver, meu digno presidente, respondeu o
orador sorrindo; todavia, se me não engano, homens de grande
intelligencia, taes como Plutarco,
[170]
Swedenborg,
Bernardin de Saint-Pierre e muitos outros pronunciaram-se pela
affirmativa. Olhando a questão pelo
lado da philosophia natural, sou levado a pensar em harmonia com a
opinião d'elles; a mim proprio digo que cousa alguma inutil
existe no mundo, e respondendo á tua pergunta, com outra
pergunta, affirmarei que se os mundos são habitaveis,
é
porque são habitados, porque o foram, ou porque ainda o
hão de ser.
Muito bem! clamaram as primeiras linhas de espectadores, cuja
opinião tinha força de lei para com as
ultimas.
--Com mais logica e a proposito é que não ha
responder, disse o presidente do Gun-Club. A minha pergunta
transforma-se portanto na seguinte: «Serão
porventura os mundos
habitaveis?»
--Pela minha parte parece-me que o são.
E eu cá por mim, estou seguro d'isso, respondeu Miguel
Ardan.
--Todavia, replicou um dos circumstantes, argumentos ha que
vão de encontro á theoria da habitabilidade
dos mundos. Para que estes podessem ser habitaveis, era evidentemente
necessario, que na maior parte d'elles, fossem modificados os
principios da vida. N'estes termos, e não me referindo
já
senão a planetas, n'uns d'elles seria o homem queimado e
n'outros gelado, segundo a respectiva distancia solar.
--Sinto, respondeu Miguel Ardan, não conhecer pessoalmente o
meu honrado contradictor. A objecção que
apresenta tem seu valor, mas creio que póde ser combatida
com bom exito, assim
como todas as que se oppõe á habitabilidade dos
mundos. Se eu fôra um physico, havia de dizer-lhe que, se ha
menos calorico
em movimento nos planetas proximos do sol, e pelo contrario mais, nos
planetas mais afastados, esse mesmo phenomeno é
bastante para equilibrar o calor e tornar a temperatura de todos os
mundos supportavel para seres organisados como nós outros.
Se fôra naturalista havia de repetir-lhe, depois de o terem
dito
muitos sabios illustres, que a natureza mesmo cá na Terra
nos fornece
[171]
exemplos de animaes
que vivem em condições
bem diversas de habitabilidade; que os peixes respiram n'um ambiente
que é mortal para os outros animaes; que os amphibios
têem uma existencia dupla bastante difficil de explicar; que
ha certos habitantes dos mares que se mantem nas camadas de grande
profundidade, onde aguentam, sem serem esmagados, pressões
de cincoenta ou sessenta atmospheras; que ha diversos insectos
aquaticos insensiveis á acção da
temperatura,
que se encontram tanto nas nascentes de agua a ferver como nos plainos
gelados do oceano polar; e finalmente que é força
reconhecer na
natureza uma diversidade de meios de acção por
vezes incomprehensivel, mas
que nem por isso é menos real, e que chega até
á omnipotencia. Se eu fôra chimico, havia de
dizer-lhe que os aerolithos, corpos
evidentemente formados fóra do mundo terrestre, tem revelado
pela analyse vestigios indiscutiveis de carbonio, e que esta substancia
só tem origem nos seres organisados, e que, em virtude das
experiencias de Reichenbach, deve necessariamente ter estado
«animalisada». Emfim, se fôra theologo,
dir-lhe-ía que, segundo S. Paulo, parece que a
redempção divina se
applicára, não sómente á
Terra, mas a todos os mundos celestes.
Mas não sou theologo, nem chimico, nem naturalista, nem
physico. E portanto, na minha perfeita ignorancia das grandes leis que
regem o universo, limitar-me-hei a responder:
--Não sei se os mundos são ou não
habitados, e por isso mesmo que não sei, vou lá
ver!»
Se o adversario de Miguel se abalançou ou não a
apresentar outros argumentos é que nós
não
podemos dizer, porque os gritos freneticos da multidão
tornaram-se então capazes
de impedir que qualquer opinião fosse sequer ouvida. Logoque
se
restabeleceu o silencio, ainda nos mais afastados grupos, o triumphante
orador terminou, contentando-se em acrescentar as seguintes
considerações:
[172]
«Bem deveis pensar, estimaveis Yankees, que apenas toquei de
leve tão momentosa questão; eu não vim
aqui para fazer um curso publico e defender theses ácerca de
tão vasto
assumpto. Ha ainda uma collecção completa de
argumentos de natureza
inteiramente differente a favor da habitabilidade dos mundos.
Pô-los-hei
de parte. Dêem-me entretanto licença que insista
ácerca de um unico ponto. Áquelles que sustentam
que os planetas não
são habitados, deve responder-se:--Póde ser que
tenhaes rasão, se
é que está demonstrado que a Terra é o
melhor dos mundos possiveis; mas isso é que não
é assim, apesar do que
Voltaire disse a tal respeito. A Terra tem um só satellite,
emquanto Jupiter, Urano,
Saturno e Neptuno têem muitos ao seu serviço,
vantagem que
não é para desdenhar. Mas o que, mais que tudo,
torna o nosso
globo pouco
confortable, é a
inclinação do eixo sobre a orbita. D'esta vem a
desigualdade dos dias e das noites; d'esta a incommoda diversidade das
estações. No nosso
desgraçado espheroide faz sempre frio ou calor demasiado;
gela-se por cá no inverno, e
arde-se no estio; é o planeta dos defluxos, dos coryzas e
das constipações, emquanto na superficie de
Jupiter,
por exemplo, cujo eixo tem pequena inclinação
[87],
os
habitantes, se é que existem, podem gosar temperaturas
invariaveis; ali ha uma zona das primaveras, uma zona dos estios, uma
zona dos outonos e uma zona de invernos perpetuos; cada habitante de
Jupiter
póde escolher o clima que mais lhe convier, e
pôr-se para toda a
vida ao abrigo das variações de temperatura.
Haveis
portanto de conceder-me sem difficuldade a superioridade de Jupiter em
relação ao nosso planeta, sem fallar
já das revoluções
annuas d'aquelle astro, que duram cada uma doze annos dos nossos! Ainda
mais, é para mim
evidente, que com taes auspicios e em tão maravilhosas
condições de existencia, os habitantes d'esse
mundo afortunado são entes
[173]
superiores; que ali os sabios
são mais sabios, os artistas
mais artistas, os maus peiores, e os bons melhores. Ai! e que nos falta
a nós, pobre espheroide, para chegar a tal
perfeição? Bem pouca cousa. Um eixo de
rotação, com menos
inclinação sobre o plano da orbita!
--Pois bem! clamou uma voz impetuosa, unâmos os nossos
esforços, inventemos machinas e indireitemos o eixo da
Terra!
Rebentou ao ouvir-se tal proposta uma trovoada de applausos; o auctor
da proposta fôra, e nem outro podia ser, J.-T.
Maston. É provavel que o fogoso secretario se deixasse
arrastar a
aventar tão ousada idéa pelos seus instinctos de
engenheiro. Força é dize-lo porém,
porque é a verdade, muitos o applaudiram
com enthusiasmo, e por certo se tivessem o ponto de apoio que
Archimedes reclamava, os americanos teriam construido uma alavanca
capaz de levantar o mundo e de endireitar-lhe o eixo. Mas o que lhes
faltava, áquelles temerarios constructores, era
exactamente o ponto de apoio.
Entretanto aquella idéa «eminentemente
pratica» teve um exito enorme; suspendeu-se a
discussão por um bom quarto de hora, e por muito tempo, por
muito tempo ainda, se fallou nos Estados Unidos da America da proposta
formulada, com tanta energia pelo secretario perpetuo do Gun-Club.
[174]
CAPITULO XX
ATAQUE E REPLICA
Parecia que aquelle incidente devia pôr termo á
discussão. Estava dita «a ultima
palavra» e a melhor
não poder ser. Todavia, quando acalmou a
agitação, ouviram-se as
seguintes palavras, pronunciadas por uma voz forte e severa:
«Agora que o orador já deu mais do que
devêra dar á phantasia, por certo não
se negará a entrar de novo no
assumpto, construindo menos theorias, e discutindo a parte pratica da
expedição que intenta?»
Volveram-se todos os olhares para o personagem que fallava d'aquella
fórma. Era um homem magro, secco, de physionomia energica,
com abundantes barbas, talhadas á americana, que
lhe saíam debaixo do queixo inferior. Conseguira pouco e
pouco collocar-se nas primeiras filas, á sombra dos diversos
movimentos que se tinham realisado na assembléa. Ali,
cruzados os
braços, com o olhar ousado e scintillante, fixava-o
imperturbavelmente no heroe do meeting. Depois de ter formulado a
pergunta, calou-se sem parecer impressionado pelos milheiros de olhares
que para elle convergiam, nem pelo murmurio desapprovador, que
suscitaram as palavras que pronunciára. E como a resposta se
ía fazendo esperar, repetiu de novo a pergunta,
com a mesma accentuação precisa e terminante, e
acrescentando:
«Estamos aqui para tratar da Lua, que não da
Terra.
--Tendes rasão, senhor, respondeu Miguel Ardan, a
discussão desviou-se um tanto do caminho regular. Volvamos
á Lua.
--Senhor, replicou o desconhecido, affirmaes que o nosso satellite
é habitado. Bem. Mas se existem selenitas, certamente essa
[175]
especie de gente vive
sem respirar, porque--e por interesse vosso é que vos vou
prevenindo--não ha uma unica
mollecula de ar á superficie da Lua.»
Ao ouvir tal asserção, sacudiu Ardan a fulva
juba: comprehendeu que com aquelle homem é que a luta
ía engajar-se
a serio e na parte mais melindrosa do assumpto.
Olhou tambem fixo para elle e disse:
«Ah! Então não ha ar na Lua! E, se me
dá licença, quem é que o affirma?
--Os homens da sciencia.
--Na verdade?
--Na verdade.
--Senhor, replicou Miguel Ardan, fóra de qualquer
brincadeira, tenho profunda estima pelos homens de sciencia que sabem,
mas tambem profundo desdem pelos sabios que nada sabem.
--E conheceis alguns que pertençam á ultima
categoria?
--Muito particularmente. Em França ha um que sustenta que
«mathematicamente» as aves não podem
voar, e outro cujas theorias demonstram que os peixes não
foram feitos para viver na agua.
--Não é d'esses que trato, senhor, e para apoiar
a minha asserção poderia citar-vos nomes que de
certo não havieis de recusar.
--N'esse caso, senhor, muito havieis de embaraçar um pobre
ignorante, que, aliás, nada deseja tanto como instruir-se!
--Então, se não estudastes as questões
scientificas, porque é que vos abalançaes a
discuti-las? perguntou com bastante
rudeza o desconhecido.
--Porque? respondeu Ardan. Pela simples rasão que
é sempre arrojado aquelle que nem suspeita tem dos perigos!
Nada sei, é verdade, mas é exactamente n'esta
fraqueza que consiste a minha força.
[176]
Arrancaram
o estrado de repente (
pag. 184).
--A vossa fraqueza chega a ser loucura, exclamou o desconhecido com
intonação de mau humor.
[177]
Irrompeu Maston pelo quarto
dentro (pag. 187).
--Sim!? Tanto melhor, replicou o francez, se essa loucura me levar
até á Lua!
[178]
Barbicane e os collegas devoravam com o olhar o intruso, que com tanto
arrojo vinha apresentar-se em opposição
á empreza. Ninguem o conhecia, e o presidente pouco seguro
ácerca das
consequencias da discussão tão francamente posta,
olhava com
tal ou qual apprehensão para o seu novo amigo. A
assembléa mostrava-se attenta e seriamente inquieta, porque
a disputa tivera como resultado chamar-lhe a
attenção para os
perigos, ou talvez verdadeiras impossibilidades da
expedição.
«Senhor, proseguiu o adversario de Miguel Ardan,
são numerosas e indiscutiveis as rasões que
provam a ausencia completa de atmosphera em volta da Lua.
Até
a
priori póde affirmar-se que se alguma vez existiu
essa atmosphera da Lua, deve ter-lhe sido subtrahida pela Terra.
Prefiro entretanto objectar-vos factos irrecusaveis.
--Objectae, senhor, respondeu Miguel Ardan com perfeita cortezania,
objectae á vossa vontade!
--Sabeis, disse o desconhecido, que quando os raios luminosos
atravessam um meio qualquer tal como o ar, são desviados da
linha recta, ou, por outras palavras, que experimentam uma
refracção. Pois bem! quando a Lua occulta alguma
estrella, os raios luminosos que emanam d'esta, mesmo quando
são
tangentes á peripheria do disco lunar, nunca experimentam o
menor
desvio nem dão o mais leve indicio de
refracção. D'ahi flue como consequencia evidente
que a Lua não está circumdada por uma
atmosphera.»
Olharam todos para o francez, porque admittida que fosse a
observação, as consequencias tiradas eram
perfeitamente rigorosas.
«Em verdade, respondeu Miguel Ardan, é esse o
vosso mais valioso, por não dizer o unico, argumento, e
qualquer homem
de sciencia havia de ver-se extremamente embaraçado para
responder-lhe; eu cá direi sómente que tal
argumento não tem valor
[179]
absoluto, porque suppõe que o diametro angular da Lua
está perfeitamente determinado, o que não
é exacto.
Mas passemos adiante, e dizei-me, meu caro senhor, se admittis a
existencia de vulcões á superficie da Lua.
--De vulcões extinctos, sim; inflammados, não.
--Deixar-me-heis comtudo acreditar, e sem transpor de certo os limites
da logica, que esses vulcões estiveram em
actividade em outra epocha?
--Isso é positivo, mas como tambem era possivel que os
proprios vulcões fornecessem o oxygenio necessario para a
combustão, o facto das erupções
não prova de modo
algum a existencia de atmosphera lunar.
--Passemos adiante, respondeu Miguel Ardan, e ponhâmos de
parte tal genero de argumentos para chegarmos ás
observações directas. Previno-vos
porém que vou citar os nomes proprios.
--Pois citae.
--É o que farei. Em 1715, os astronomos Louville e Halley,
na observação do eclipse de 3 de maio, notaram
certas fulminações de natureza singular. Essa
especie de
relampagos, rapidos e a miudo repetidos, foi por estes observadores
attribuida a tempestades que se desencadeavam na atmosphera da Lua.
Em 1715, replicou o desconhecido, tomaram os
astronomos Louville e Halley por phenomenos lunares phenomenos que eram
puramente terrestres, taes como bolidos, aerolithos ou outros
similhantes, e que se realisaram na nossa atmosphera. É isto
o que responderam os homens da sciencia á
enunciação de taes factos, e é o que
eu com elles responderei tambem.
--Adiante pois, respondeu Ardan, sem se perturbar com a replica.
E Herschel, em 1787, não observou um grande numero de
pontos luminosos na superficie da Lua?
--É certo, mas o proprio Herschel, que aliás
não deu explicação
[180]
alguma ácerca da origem d'esses
pontos luminosos, não tirou por conclusão do que
observára a
forçada existencia de uma atmosphera lunar.
--Bem respondido, disse Miguel Ardan cumprimentando o antagonista, vejo
que sois muito entendido em selenographia.
--Verdade é que sou bastante entendido no assumpto, senhor;
devo porém acrescentar, que os mais habeis observadores, os
que mais a fundo têem estudado o astro das noites, os srs.
Beer e
Moedler, estão commigo de accordo ácerca da falta
absoluta de ar na superficie d'elle.»
Houve certa sensação entre os circumstantes, que
pareceram impressionados pelos argumentos do singular personagem.
«Continuemos a passar adiante, respondeu Miguel Ardan com a
maior placidez, que chegaremos a final a um facto importante. Um habil
astronomo francez, M. Laussedat, na
observação do eclipse de 18 de julho de 1860,
verificou que as extremidades do crescente solar estavam arredondadas e
truncadas. Ora tal phenomeno só podia ser produzido por um
desvio dos raios solares que atravessassem uma atmosphera da Lua; outra
explicação admissivel não ha.
--E esse facto é positivo? perguntou com vivacidade o
desconhecido.
--Absolutamente positivo!»
Realisou-se então na assembléa um movimento
inverso do anterior, e que fez de novo pender os espiritos para o heroe
favorito, cujo antagonista ficára silencioso. Ardan retomou
a palavra,
e sem se ufanar com a decidida vantagem que acabava de obter, disse com
simpleza:
Vêdes por consequencia, meu caro senhor, que
não devemos pronunciar-nos de uma fórma absoluta
contra a existencia de
atmosphera á superficie da Lua; essa atmosphera é
provavelmente
[181]
pouco densa, muito
subtil, mas na actualidade a sciencia admitte geralmente a existencia
d'ella.
--Não nas montanhas, em que vos peze, replicou o
desconhecido, que não queria dar o braço a
torcer.
Não, mas no fundo dos valles, e sem que a sua altura passe
de alguns centos de pés.
--Em todo o caso, não será mau que tomeis todas
as precauções, porque esse ar ha de estar
terrivelmente rarefeito.
--Oh! meu estimavel senhor, sempre ha de haver que farte para um homem
só; e demais, depois de lá estar em
cima, eu tratarei de o economisar o melhor que podér;
não
respirarei senão nas grandes
occasiões!»
Retumbou uma estrepitosa gargalhada aos ouvidos do mysterioso
interlocutor, que estendeu a vista por toda a assembléa,
como que desafiando-a, altivo.
«Consequentemente, proseguiu Miguel Ardan, visto como estamos
de accordo ácerca da existencia de tal ou qual atmosphera,
somos forçados a admittir tambem a presença de
tal ou qual quantidade de agua. E é uma consequencia esta
com que, pela
minha parte, me alegro em extremo. Alem d'isto permittirá o
meu amavel contradictor que lhe submetta ainda mais outra
observação. Nós só
conhecemos uma das faces do disco da Lua,
e se pouco ar póde haver na face que olha para
nós,
é possível que haja muito na face opposta.
--E porque rasão?
--Porque a Lua, em virtude da attracção terrestre
é que tomou a fórma de um ovo, que nós
vemos pelo lado da
ponta mais achatada; e d'ahi vem a consequencia obtida pelos calculos
de Houven, que o centro de gravidade da Lua está situado no
outro hemispherio. E d'ahi tambem por conclusão, que
todas as massas aereas e aquosas devem ter sido arrastados para a outra
face do nosso satellite nos primeiros tempos da sua
creação.
[182]
--Puras phantasias! exclamou o desconhecido.
--Isso não! mas sim puras theorias, aliás
fundadas nas leis da mechanica, e que me parecem de difficil
refutação. Appello portanto para o juizo da
assembléa, e ponho á
votação a questão de saber se a vida,
tal como existe na Terra, é ou
não possivel na superficie da Lua?»
Trezentos mil auditores applaudiram simultaneamente a
proposição. O adversario de Miguel Ardan ainda
quiz fallar, mas nem podia fazer-se ouvir. Caíu-lhe em cima
como uma saraivada de
gritos e ameaças.
«Basta! Basta! diziam uns.
--Fóra o intruso! repetiam outros.
--Fóra! Fóra! clamava a multidão
irritada.
O desconhecido porém, firme, agarrado e bem seguro ao
estrado, não arredou pé e deixou passar a
tormenta, que
teria assumido proporções formidaveis se Miguel
Ardan
não a tivera apaziguado com um gesto. Ardan era muito
cavalheiro para abandonar um adversario em taes extremos.
«Desejaes acrescentar mais algumas palavras? perguntou Ardan
com a mais graciosa intonação.
--Um cento! ou um milheiro! respondeu iracundo o desconhecido. Ou, para
melhor dizer, não, basta só uma! Se
perseveraes na empreza, é porque sois...
--Imprudente! E com que fundamento me trataes vós por
similhante fórma, a mim, que até pedi ao meu
amigo Barbicane que a bala fosse cylindro-conica, só para
não
andar á roda no caminho como qualquer esquilo?
--Mas, desgraçado, logo á partida ha de fazer-vos
em estilhas a horrorosa repercussão do tiro!
--Meu caro contradictor, agora sim, agora é que pozestes o
dedo na chaga, na verdadeira e unica difficuldade; entretanto o
conceito que formo do engenho industrial dos americanos é
muito
[183]
elevado para que me permitta acreditar que não
hão de conseguir resolve-la.
--E o calor desenvolvido pela velocidade do projectil ao atravessar as
camadas da atmosphera?
--Oh! as paredes do projectil são espessas, e depois tanto
é o tempo que eu hei de levar a atravessar a atmosphera!?
--Mas viveres e agua?
--Já calculei que podia levar commigo provisões
para um anno, e a viagem dura só quatro dias!
--E ar para respirar no caminho?
--Hei de fabrica-lo por processos chimicos.
--Mas a quéda na Lua, dado mesmo que consigaes lá
chegar?
--Ha de ser seis vezes menos rapida do que o seria na superficie da
Terra, visto como a gravidade é seis vezes menor na
superficie da Lua.
--Ainda assim ha de ser mais do que sufficiente para vos fazer em
pedaços como a um bocado de vidro!
--E quem é que me ha de impedir de retardar a queda por meio
de foguetes convenientemente dispostos e inflammados em
occasião opportuna.
--Mas, emfim, demos que estão resolvidas todas as
difficuldades, aplanados todos os obstaculos, e que se juntam ainda a
vosso favor todas as probabilidades, admittamos que chegaes
á Lua
são e salvo, como é que haveis de voltar?
--Não volto!»
Ao ouvir tal resposta sublime em sua mesma simplicidade, a
assembléa ficou muda. Mas aquelle silencio era mais
eloquente do que quaesquer clamores de enthusiasmo. D'elle se
aproveitou o desconhecido para lavrar o seu ultimo protesto.
--É um suicidio infallivel, exclamou, e a vossa morte, que
será apenas a morte de um insensato, nem ao menos
servirá de proveito á sciencia!
[184]
--Continuae, generoso desconhecido, prognosticaes, na verdade, por modo
tão agradavel!
--Ah! isto é de mais! exclamou o adversario de Miguel Ardan,
nem sei porque tenho estado a perder o meu tempo em
discussão tão pouco seria! Prosegui á
vontade n'essa
empreza louca. A culpa não é a vós que
se deve tornar!
--Oh! não faça ceremonia!
--Não! a outrem cabe a responsabilidade inteira dos vossos
actos.
--Então a quem, se me faz favor? perguntou Miguel Ardan com
voz imperiosa.
--Ao ignorante que organisou essa tentativa tão impossivel
como ridicula.»
O ataque era directo. Barbicane que desde que o desconhecido interviera
na discussão fazia esforços violentos
para se conter, e «queimar o proprio fumo» como as
fornalhas
fumivoras de certas caldeiras, vendo-se agora claramente designado e
com tamanha affronta, levantou-se precipitadamente e ía
já
sobre o adversario que o desafiava cara a cara, quando de subito se viu
separado d'elle.
Cem braços vigorosos arrancaram n'um momento o estrado, e o
presidente do Gun-Club teve que partilhar com Miguel Ardan as honras do
triumpho. O broquel era pesado, mas os que o levavam revezavam-se de
continuo, disputando, lutando todos e combatendo para prestarem com os
proprios hombros decidido apoio á
manifestação.
E todavia o desconhecido não se aproveitára do
tumulto para se escapar. E porventura teria podido faze-lo, rodeado
como estava por aquella multidão compacta? Por certo que
não.
Caso é que se conservára na primeira fila, e de
braços cruzados devorava com os olhos o presidente
Barbicane.
Este por sua parte não o perdia de vista; os olhares
d'aquelles
[185]
dois homens estavam em
cruzamento permanente como duas espadas frementes.
Os clamores da multidão immensa mantiveram-se no
maximum de intensidade durante todo o tempo que
durou a marcha triumphal. Miguel Ardan deixava-se levar com evidente
satisfação ao sabor das turbas. Irradiava-lhe do
rosto a alegria. Por vezes o estrado parecia jogar de pôpa a
proa, e de bombordo a
estibordo como um navio batido pelas ondas. Mas os dois heroes do
meeting
que tinham pé de
marinheiro, nem vacillavam; e chegou-lhes a nave sem avaria ao porto de
Tampa-Town.
Miguel Ardan conseguiu, por fortuna, escapar-se aos ultimos amplexos e
apertos de mão dos seus vigorosos admiradores;
safou-se para o hotel
Franklin, subiu com
presteza para o quarto, e metteu-se rapidamente na cama, emquanto um
exercito de cem mil homens velava debaixo das janellas.
N'aquella mesma hora passava-se entre o personagem mysterioso e o
presidente do Gun-Club uma scena curta, porém grave e
decisiva.
Barbicane apenas se vira livre, caminhára direito ao
adversario.
«Vinde!» lhe disse com voz breve.
O outro seguiu-o para o caes e, dentro em pouco, acharam-se a
sós á entrada de um
Warfe que deitava para Jone's-Fall.
Chegados áquelle logar miraram-se os dois inimigos ainda
então desconhecidos um para o outro.
«Quem sois vós?» perguntou Barbicane.
--Sou o capitão Nicholl.
--Já o suspeitava. Até este momento nunca o acaso
nos proporcionára occasião de nos vermos frente a
frente...
--Busquei-a eu!
--Insultastes-me!
--E em publico.
[186]
--Haveis de dar-me satisfação do insulto!
--Já.
--Não. Desejo que se passe tudo secretamente e só
entre nós. Ha um bosque situado a tres milhas de Tampa-Town,
o bosque de Skersnow. Conheceis-lo?
--Conheço.
--Será do vosso agrado entrar lá
ámanhã ás cinco da manhã
por determinado lado?...
--Sim, se á mesma hora lá entrardes pelo outro.
--E que não esqueça o
rifle? disse Barbicane.
--«Tanto como vós haveis de esquecer o
vosso», respondeu Nicholl.
Pronunciadas friamente estas palavras, o presidente do Gun-Club e o
capitão separaram-se. Barbicane voltou para casa, mas em vez
de descansar por algumas horas, passou a noite a buscar meios de evitar
a repercussão do tiro dentro do projectil, a
resolver o difficil problema que Miguel Ardan apresentára na
discussão do
meeting.
CAPITULO XXI
COMO UM FRANCEZ ARRANJA UMA PENDENCIA DE HONRA
Emquanto entre o presidente e o capitão se discutiam as
convenções do duello, duello terrivel e selvagem,
em que cada um dos adversarios se transforma em caçador de
outro homem,
repousava Miguel Ardan das fadigas do triumpho.
Repousar não é na realidade o termo adequado,
porque as camas na America podem disputar primazias em dureza com
qualquer
[187]
mesa de marmore ou de
granito. Dormia por consequencia Ardan, mas mal, dava voltas e voltas
entre os dois guardanapos que lhe serviam de lençoes,
sonhando que installava dentro
do seu projectil uma camasinha mais
comfortable, quando um estrepito violento veio
arranca-lo da região dos sonhos.
Empurravam-lhe a porta com pancadas desordenadas, que pareciam dadas
com instrumento de ferro. De envolta com aquelle tumulto excessivamente
matutino, ouviam-se formidaveis berros.
«Abre! abre, pelo amor de Deus!
Ardan não tinha motivo algum para annuir a um pedido feito
com tanto arruido. Não obstante levantou-se, e foi abrir a
porta, no instante em que ella estava para ceder aos
esforços do
teimoso visitante.
Irrompeu pelo quarto dentro o secretario do Gun-Club, que nem uma bomba
teria entrado com maior semcerimonia.
«Hontem á noite, prorompeu J.-T. Maston
ex abrupto, o nosso presidente foi insultado em
publico no
meeting! Desafiou o adversario, que é
nem mais nem menos que o
capitão Nicholl! Batem-se esta manhã no bosque de
Skersnow! De tudo fui informado pela propria bôca de
Barbicane! A morte d'este
é a aniquilação de nossos projectos!
Por
consequencia é necessario pôr impedimento a tal
duello! Um só homem n'este
mundo exerce no espirito de Barbicane influencia bastante para
desvia-lo de seus intentos, e esse homem é Miguel
Ardan!»
Emquanto Maston assim dizia, Miguel Ardan, que logo
desistíra de o interromper, precipitára-se dentro
das vastas
calças, e menos de dois minutos eram passados, já
os dois amigos chegavam á desfilada aos suburbios de
Tampa-Town.
[188]
No
centro da teia debatia-se
uma avesinha (
pag. 193).
No decurso d'aquella rapida carreira é que Maston foi pondo
Ardan mais ao facto da situação. Contou-lhe
então as verdadeiras causas da inimisade de Barbicane e
Nicholl, como era de antiga data tal inimisade, e por que
rasões, nunca até
áquella occasião, Barbicane e o
capitão tinham logrado encontrar-se cara a
cara, graças aos esforços de communs amigos;
disse-lhe
tambem que não havia ali mais do que rivalidade de bala e
chapa, e
finalmente
[189]
que a scena do
meeting
fôra apenas a occasião de ha muito procurada por
Nicholl, para satisfazer antigos rancores.
Nada ha mais terrivel que a fórma de duello peculiar da
America,
[190]
em que os contendores
se buscam por entre as matas, se espreitam pelas abertas das
çarças, e atiram um
ao outro, no meio das devezas, como quem atira a um animal feroz.
N'esse momento é que ambos os adversarios devem ter inveja
das maravilhosas qualidades que caracterisam os indios das planicies,
da rapida intelligencia e da engenhosa astucia de que estes
são dotados, do faro e da peculiar
percepção dos rastos que os distinguem, quando
seguem pela pista o inimigo. Em taes
occasiões é que o menor erro, a menor
hesitação,
um passo só que seja, dado em falso, podem trazer por
consequencia a morte. Em taes recontros levam por vezes os yankees de
companhia os seus cães, e perseguem-se assim durante horas
inteiras,
desempenhando a um tempo os papeis de caça e
caçador.
«Que diabo de gente são estes americanos! exclamou
Miguel Ardan, depois que o companheiro acabou de lhe descrever com
extrema energia todas aquellas scenas.
--Somos assim tal qual, respondeu com modestia J.-T. Maston; mas vamos
apressando o passo.»
Entretanto por mais que Maston e Ardan corressem através da
planicie, ainda humida do orvalho da noite, passando arrozaes e
ribeiros, tomando sempre pelo caminho mais curto, não
lograram chegar ao bosque de Skersnow, antes das cinco horas e meia.
Barbicane já havia boa meia hora que devia ter-lhe passado a
orla.
Trabalhava ali um velho
bushman,
cuja occupação era desfazer em cavacos as arvores
que derrubava com o machado.
Maston correu para elle a gritar:
«Vistes entrar na mata um homem armado de
rifle, Barbicane, o presidente... o meu melhor
amigo?...»
O digno secretario do Gun-Club pensava ingenuamente que o seu
presidente havia por força de ser conhecido do mundo
inteiro. Mas o
bushman não deu
mostras de o comprehender.
«Um caçador, disse então Ardan.
[191]
--Um caçador, sim vi, respondeu o
bushman.
--E ha muito?
--Ha de haver uma hora.
--Já é tarde! clamou Maston.
--E ouvistes tiros de espingarda? perguntou Miguel Ardan.
--Nada.
--Nem um só?
--Nem um. Não me parece que o tal caçador tenha
feito lá muito grande caçada!
--Que se ha de fazer? disse Maston.
--É entrar na mata, mesmo correndo risco de apanhar algum
balasio, que não nos fosse destinado.
--Ah! exclamou Maston com accentuação, de cuja
franqueza não era permittido duvidar-se, antes eu queria
apanhar dez
balas na minha propria cabeça, de que acertasse uma
só na
de Barbicane.
--Então ávante!» replicou Ardan,
apertando a mão do companheiro.
Segundos depois desappareciam os dois amigos na espessura da mata, que
era formada de cyprestes-gigantes, sycomoros, tulipeiras, oliveiras,
tamarindos, carvalheiras e magnolias.
Entrelaçavam-se as ramadas d'aquellas differentes arvores,
em tão emmaranhada confusão, que não
consentiam que a
vista alcançasse muito ao longe. Miguel Ardan e Maston
caminhavam um junto do outro, passando em silencio por entre as hervas
altas, abrindo caminho por entre agudas silvas e vigorosas trepadeiras,
inquirindo com o olhar as moitas ou as ramadas perdidas por entre a
sombria espessura da folhagem, e esperando a cada instante ouvir a
temivel detonação dos
rifles.
Rasto de Barbicane, na sua passagem através do bosque,
é que não logravam reconhecer. Caminhavam
ás cegas por
aquellas veredas apenas pisadas, em que qualquer indio teria seguido
passo por passo a marcha do adversario.
[192]
Passada uma hora em pesquizas inuteis, fizeram alto os dois
companheiros. Redobrára-lhes a
inquietação de espirito.
«É porque está tudo acabado, disse
Maston desanimado. Barbicane não era homem que jogasse
astucias com o inimigo, nem que lhe armasse laços ou usasse
de manobras! É
franco e corajoso de mais para isso. Caminhou em frente, direito ao
perigo, e por certo a tal distancia do
bushman
que o vento levou, sem que este a ouvisse, a
detonação das armas de fogo!
--Mas nós! respondeu Miguel Ardan. Desde que
entrámos no bosque não haviamos de ter ouvido
alguma cousa!
--E se chegámos tarde! exclamou Maston com
intonação de desespero.
--Miguel Ardan como não tinha replica que dar-lhe proseguiu
com Maston na marcha interrompida.
De tempos a tempos davam grandes gritos: chamavam ora por Barbicane,
ora por Nicholl; mas nenhum dos dois adversarios respondia
ás vozes d'elles. Apenas alegres bandos de aves,
despertadas pelo ruido, desappareciam por entre as ramadas, ou algum
gamo assustado fugia precipitado através da mata.
Por mais uma hora ainda se prolongaram as pesquizas. Já
fôra explorada a maior parte da mata, e nada que revelasse a
presença dos combatentes. Era caso para pôr em
duvida as
asserções do
bushman, e
Ardan pensava
já em desistir de continuar por mais tempo uma busca inutil,
quando, de subito, Maston estacou.
--Chit! murmurou elle. Está acolá alguem!
--Alguem? respondeu Miguel Ardan.
--Sim! um homem! Parece estar immovel. Já não tem
o
rifle nas mãos. Que
estará fazendo?
--Mas reconheces-lo? perguntou Ardan, a quem, myope como era, de pouco
servia a vista em tal conjunctura.
--Sim! sim! Lá se volta, respondeu Maston.
[193]
--E é?
--O capitão Nicholl!
--Nicholl! clamou Miguel Ardan, que sentiu apertar-se-lhe violentamente
o coração.
«Nicholl sem arma! Seria por nada ter já que
receiar do adversario?
«Vamos ter com elle, disse Miguel Ardan; ficaremos
desenganados.»
Mas apenas teriam caminhado uns cincoenta passos, elle e o companheiro
estacaram, para mais attentamente examinarem o capitão.
Cuidavam encontrar um homem sequioso de sangue, todo entregue a
pensamentos de vingança!
Ao verem-no pararam estupefactos. Distendia-se entre dois tulipeiros
gigantescos uma rede de apertada malha; mesmo no centro da teia,
debatia-se uma avesinha presa pelas azas, soltando lastimosos gritos. O
passarinheiro que assim dispozera a inextricavel rede não
fôra um ser humano,
senão uma peçonhenta aranha, peculiar d'aquellas
regiões, de volume igual ao de um ovo de pomba e dotada de
pernas enormes. Mas o horrendo animalejo, no momento em que
ía arrojar-se sobre a presa, tivera de retirar, buscando
asylo nas altas ramadas do tulipeiro, porque por sua vez fôra
ameaçado por
temivel inimigo.
Effectivamente, Nicholl largára a espingarda e esquecido dos
perigos da situação, tratava de
desembaraçar com extremos de delicadeza a victima
enlaçada nas redes da monstruosa
aranha. E quando concluiu a obra, deu a liberdade á pequena
avesinha,
que bateu alegremente as azas e desappareceu.
Ainda Nicholl contemplava enternecido a avesinha que fugia de ramo em
ramo, quando ouviu as seguintes palavras ditas em tom de
commoção:
«Isto é que é homem valente e de alma
bem formada!»
[194]
Voltou-se, e encarou com Miguel Ardan, que repetia em todas as
intonações:
«É homem que merece ter amigos!»
--Miguel Ardan! exclamou o capitão. Que vindes fazer aqui,
senhor?
--Apertar-vos a mão, Nicholl, e impedir que mateis
Barbicane, ou que sejaes morto por elle.
--Barbicane! exclamou o capitão, Barbicane, que eu procuro
ha duas horas sem lograr encontra-lo! Onde estará elle
escondido?
--Nicholl, disse Miguel Ardan, isso é falta de cortezia!
deve sempre prestar-se respeito ao adversario; descansae, que se
Barbicane é vivo havemos de encontra-lo, e com tanta maior
facilidade que, se é que não passou o tempo como
vós, entretido em soccorrer alguma avesinha opprimida, deve
andar em vossa procura. Mas quando dermos com elle, sou eu, Miguel
Ardan quem vo-lo diz, não é de duellos que se ha
de tratar.
--Entre mim e o presidente Barbicane, respondeu com gravidade Nicholl,
ha rivalidades de tal ordem, que só a morte de um dos
dois...
--Ora vamos, vamos, replicou Miguel Ardan, homens valentes e almas bem
formadas como vós outros, é possivel
que se detestem, mas por certo tambem se estimam. Não haveis
de bater-vos.
--Hei-de bater-me, senhor!
--Isso é que não.
--Capitão, disse então J.-T. Maston com generoso
animo, sou amigo do presidente, o seu
alter
ego, outro elle; se desejaes absolutamente matar alguem,
disparae sobre mim, que é exactamente o mesmo.
--Senhor, disse Nicholl apertando com mão convulsa o
rifle, essas zombarias...
[195]
--O amigo Maston não está zombando, respondeu
Miguel Ardan, e eu cá por mim comprehendo perfeitamente a
sua
idéa de se fazer matar em vez do homem de quem é
amigo! Mas nem elle
nem Barbicane hão de cair aos tiros do capitão
Nicholl, porque tenho a fazer aos dois rivaes uma proposta por tal
fórma
seductora, que por certo hão de acceita-la com enthusiasmo.
--Que proposta é então essa? perguntou Nicholl
com visivel incredulidade.
--Haja paciencia, respondeu Ardan, não posso fazer a
communicação senão na
presença de Barbicane.
--Pois vamos por elle, exclamou o capitão.
No mesmo instante pozeram-se os tres a caminho; o capitão
desarmou o
rifle, po-l'o ao hombro,
e caminhou com passo soffreado, sem dizer palavra.
Por espaço de meia hora ainda, foram inuteis todas as
pesquizas. Maston sentia-se dominado por sinistro presentimento, e
observava Nicholl com severidade, perguntando a si proprio se
não estaria já satisfeita a vingança
do
capitão, e Barbicane jazendo ferido de bala ao pé
de alguma moita ensanguentada. Miguel
Ardan parecia dominado pelas mesmas idéas, e ambos inquiriam
com os olhos o capitão Nicholl, quando Maston estacou de
subito.
Encostado ao tronco de uma catalpa gigantesca via-se a uns vinte passos
o busto immovel de um homem com o corpo meio occulto por entre as
hervas.
«É elle!» murmurou Maston.
Barbicane nem se movia. Ardan olhou fito para os olhos do
capitão, mas este não trepidou. Ardan deu alguns
passos, gritando:
«Barbicane! Barbicane!»
Nada de resposta.
Ardan encaminhou-se precipitado para o amigo, mas no momento
[196]
em que ía agarra-lo pelo braço, estacou de
repente, soltando uma exclamação de surpreza.
Barbicane, de lapis em punho, escrevia fórmulas e
traçava figuras geometricas n'uma carteira. A espingarda,
essa jazia desarmada no chão.
O homem de sciencia, absorto pelo trabalho, esquecendo por sua parte
duello e vingança, nada víra nem
ouvíra. Mas quando Miguel Ardan lhe poz a mão nas
d'elle, levantou-se e olhou
com ar de espanto.
--Ah! exclamou por fim, tu aqui! Encontrei, amigo! encontrei!
--O que?
--Os meios!
--Mas que meios?
--Meios de annullar o effeito da repercussão do tiro
á partida do projectil!
--Realmente? disse Miguel Ardan, olhando de soslaio para o
capitão.
--É verdade! agua, agua pura servirá de almofada.
Ah! Maston! exclamou Barbicane, tambem vós!
--Em propria pessoa, respondeu Miguel Ardan, e dá-me
licença que te apresente tambem por esta occasião
o estimavel
capitão Nicholl!
--Nicholl! exclamou Barbicane, levantando-se de subito.
Perdão, capitão, tinha-me esquecido... mas estou
prompto...»
Miguel Ardan metteu-se de permeio sem dar tempo aos dois inimigos para
que se interpellassem.
«Por vida minha! disse Ardan, que foi uma verdadeira
felicidade que dois homens de alma generosa e elevada como
vós dois se não tivessem encontrado mais cedo!
Tinhamos agora que
estar chorando um dos dois! Mas graças a Deus, que se metteu
no
negocio, já nada ha que receiar. Quando dois homens esquecem
[197]
os seus odios para se entregarem á
resolução de problemas de mechanica ou fazer
partidas ás aranhas, é porque
taes odios não são perigosos para
ninguem.»
E Miguel Ardan narrou ao presidente a aventura do capitão.
--«Ora perguntarei eu agora, disse Miguel em
conclusão, se duas boas pessoas como vós outros
foram feitas para se
esmigalharem reciprocamente a cabeça a tiros de
carabina?»
Havia n'aquella situação, um tanto ridicula,
alguma cousa de tão inesperado, que Barbicane e Nicholl
não
sabiam como comportar-se um em relação ao outro.
Miguel, que bem o
percebeu, resolveu precipitar a reconciliação.
«Estimaveis amigos, disse deixando apontar aos labios o mais
agradavel dos sorrisos, nunca houve entre vós dois
senão equivocos. Nada mais. Pois bem! para dar prova de que
todas as contendas estão terminadas, e visto como sois
homens que
não temem arriscar a pelle, acceitae sem hesitar a proposta
que vou fazer-vos.
--O amigo Barbicane pensa que o seu projectil ha de ir direitinho
á Lua?
--Certamente que sim, replicou o presidente.
--E o amigo Nicholl está persuadido que o projectil ha de
caír na Terra.
--Estou seguro d'isso, exclamou o capitão.
--Muito bem! proseguiu Miguel Ardan. Eu é que não
tenho pretensões a pôr-vos de accordo, mas
sómente vos direi mui lhana e simplesmente: Vinde commigo,
para vermos assim se ficâmos ou não a meio
caminho.
--Hum!» exclamou J.-T. Maston estupefacto.
Ao ouvirem tão inesperada proposta, os dois rivaes
levantaram os olhos um para o outro. Observavam-se attentamente.
Barbicane aguardava a resposta do capitão. Nicholl estava
á espreita da primeira palavra do presidente.
[198]
«Então? disse Miguel Ardan com
intonação das mais convidativas. Visto nada haver
que receiar da repercussão!...
--Acceito! exclamou Barbicane.
Mas, por depressa que esta palavra fosse pronunciada pelo presidente,
tambem Nicholl a concluira ao mesmo tempo.
--Hurrah! bravo! viva! hip! hip! hip! clamou Miguel Ardan estendendo as
mãos aos dois adversarios. E agora que a pendencia
está pacificamente terminada, meus amigos, consintam-me que
os trate á franceza. Vamos almoçar.»
CAPITULO XXII
O NOVO CIDADÃO DOS ESTADOS UNIDOS
N'aquelle mesmo dia toda a America foi informada a um tempo do desafio
de Barbicane com o capitão Nicholl, e da aventura
singular que lhe puzera termo. O papel que desempenhára
n'aquelle recontro o cavalheiroso europeu, a proposta inesperada que
viera cortar todas as dificuldades, a acceitação
simultanea dos dois rivaes, aquella conquista do continente lunar, para
emprehender a qual íam marchando de accordo
França e Estados
Unidos, tudo se reuniu para ainda mais augmentar a popularidade de
Miguel Ardan.
É sabido qual o phrenesi com que os yankees se apaixonam por
qualquer individualidade. Imagine-se qual seria a paixão
desencadeada em favor do audacioso francez, n'aquelle paiz onde
até os mais graves magistrados não duvidam puxar
á carruagem de qualquer dansarina para a levarem em
triumpho. Se
não desatrelaram os cavallos de Ardan, foi provavelmente
porque elle os
[199]
não tinha, que no
demais foram-lhe prodigalisadas todas as
provas imaginaveis de enthusiasmo. Não houve um
só
cidadão que senão unisse a elle de alma e
coração.
Ex pluribus unum, que é a divisa dos
Estados Unidos.
A partir d'aquelle dia, não teve Miguel Ardan um
só momento de socego. Vinham procura-lo
deputações de todos
os cantos da União, que o attribulavam e que não
promettiam
ter fim, nem tregua. E o mais é que tinha que as receber,
com vontade ou sem ella. Quantos apertos de mão deu, a
quanta gente tratou por tu, é cousa que nem póde
calcular-se. Dentro
em pouco tempo estava exhausto de forças, a voz
já mal lhe
saía dos labios em sons inintelligiveis, rouca dos
innumeraveis
speechs; ía arranjando uma
gastro-enterite de tanto
toast
que se viu obrigado a fazer a todos os condados da União. Um
triumpho tal teria
subido á cabeça a outro qualquer logo no primeiro
dia,
mas Ardan teve artes de nunca passar de uma espirituosa e encantadora
semi-ebriedade.
Entre as deputações de todos os generos que por
aquella occasião o assaltaram, não soube esquecer
quanto devia ao futuro conquistador da Lua, a dos
«lunaticos». Certo dia,
alguns d'estes pobres diabos, abundantes na America, vieram ter com
elle e pedir-lhe que os levasse comsigo para o paiz natal. Alguns houve
que affirmaram saber fallar a «lingua selenita» e
que até a quizeram ensinar a Miguel Ardan. Prestou-se este
de bom grado a tão innocente mania, e até se
encarregou de recados e
encommendas para os amigos que os pobres diabos diziam ter na Lua.
«Singular loucura, disse Ardan a Barbicane, depois que os
despediu, e loucura que ataca as mais das vezes as intelligencias mais
agudas. Dizia-me Arago, um dos nossos mais illustres homens de
sciencia, que muitas pessoas, aliás extremamente sensatas
e cautelosas nas suas concepções, se deixam
arrastar a grande exaltação e a incriveis
singularidades, todas as vezes que se occupam
[200]
da Lua. E tu não dás credito á
influencia da Lua sobre as doenças?
--Pouco, respondeu o presidente do Gun-Club.
[201]
--Tambem eu não; apesar de que a historia tem registrado
factos que, pelo menos, são para causar
admiração. Assim em 1693, durante certa epidemia,
morreu muita mais gente no dia
[202]
21 de janeiro, por occasião
de um eclipse. O celebre Bacon
desmaiava nas occasiões de eclipse da Lua, e só
voltava a
si depois da completa emersão do astro. O rei Carlos VI
recaíu por seis vezes em demencia, no decurso do anno de
1399, e sempre em occasião de Lua nova ou de Lua cheia.
Affirmam alguns
medicos que a epilepsia deve classificar-se entre as doenças
que
acompanham as phases da Lua. As molestias nervosas tambem por vezes
parecem depender da influencia lunar. Conta Mead que havia no seu tempo
um menino que entrava em convulsões logo que a Lua
entrava em opposição. Gall notou que a
exaltação das pessoas debeis cresce duas vezes em
cada mez, uma no
novi-lunio, outra no
pleni-lunio.
Finalmente, ha mais
de um milheiro de observações d'este genero, em
respeito a vertigens, febres malignas e ataques de somnambulismo, que
todos tendem a provar que o astro das noites gosa de mysteriosa
influencia sobre o curso das doenças terrestres.
--Mas como? porque? perguntou Barbicane.
--Porque? respondeu Ardan. Á fé que te hei de dar
a mesma resposta que Arago repetia dezenove seculos depois de Plutarco:
«Talvez seja exactamente por não ser
verdade!»
No meio do seu triumpho, não logrou Miguel Ardan escapar-se
a nenhuma das massadas inherentes ao estado de homem celebre. Os
especuladores de vogas e celebridades de occasião
tentaram pô-lo em exhibição. Barnum
chegou a
offerecer-lhe um milhão para adquirir o direito de o
transportar de cidade em cidade, em todos os Estados Unidos, e
mostra-lo qual animal raro. A resposta de Miguel Ardan foi alcunha-lo
de
cornac, e manda-lo a elle Barnum... passeiar.
Todavia, recusando-se aliás a satisfazer por tal
fórma a curiosidade publica, deixou Ardan pelo menos que
seus retratos corressem pelo mundo inteiro e occupassem logar de honra
em todos os albums; d'elles se tiraram provas de
todas
as dimensões,
[203]
desde as de tamanho natural até as da grandeza microscopica
da estampilha do correio. Estava ao alcance de toda a gente possuir a
imagem do heroe, em qualquer das posições
imaginaveis; cabeça só, meio corpo, corpo
inteiro, de frente, de perfil, de tres
quartos e até de costas. Tirou-se mais de milhão
e meio
de exemplares. A occasião era bem boa para se desfazer em
reliquias, mas
Ardan é que a não soube aproveitar. Só
a
vender os cabellos a dollar cada um, podia fazer uma fortuna, e mais
já
não eram muitos!
A popularidade, querendo fallar com inteira franqueza, não
lhe era desagradavel. Pelo contrario, Ardan punha-se á
disposição do publico, e correspondia-se com o
universo inteiro. Por toda a parte se contavam, repetiam e propalavam
os ditos conceituosos d'elle, muito principalmente os que elle nem
tinha proferido. Como é uso, por isso mesmo que n'essa parte
lhe sobrava a
riqueza, é que mais lhe queriam dar ou emprestar. E
não sómente
soube tornar propicios os homens, senão tambem as mulheres.
Bastaria que lhe tivesse passado pela cabeça a phantasia de
«entrar no rol dos homens serios», para ter
arranjado um numero infinito de
«bellos casamentos». Principalmente as velhas
misses, d'estas que ha bons quarenta annos se
mirravam por não casar, todas devaneiavam dia e noite diante
das photographias d'elle.
Certo é que teria achado companheiras aos centos, aindaque
lhes impuzesse como condição acompanharem-n'o na
aerea viagem; que as mulheres quando lhes não dá
para de tudo
terem medo, são verdadeiramente intrepidas.
Porém, como
Ardan não tinha intento de fazer estirpe no continente
lunar, nem de para lá transportar raça
atravessada de francez e
americano, recusou-se formalmente a todos os enlaces.
«Ir eu lá para cima, dizia elle, fazer o papel de
Adão com uma filha de Eva, obrigado! E se lá
encontrasse
serpentes!...»
Ardan, logoque alfim logrou subtrahir-se ás alegrias
exageradamente
[204]
repetidas do
triumpho, foi com os amigos fazer uma visita á Columbiada,
que bem lh'o merecia. De mais a mais, depois que Ardan vivia em
contacto com Barbicane, J.-T. Maston e
tutti quanti tinha-se tornado muito sabedor em
questões de balistica. O seu maior prazer consistia
então em repetir aos estimaveis
artilheiros, que não eram elles mais do que amaveis e sabios
assassinos. Ácerca de tal assumpto nunca se lhe esgotava a
musa
epigrammatica. No dia em que visitou a Columbiada, admirou-a com
enthusiasmo e desceu até ao fundo da alma do gigantesco
morteiro, que em breve havia de arremessa-lo para o astro das noites.
«Este canhão ao menos, disse, não ha de
fazer mal a ninguem; o que da parte de um canhão
já não
é pouco para admirar. Mas não me venham
cá fallar d'esses machinismos que
destroem, que incendeiam, que despedaçam, que matam, e ainda
menos
dizer-me que têem «alma», que
lá isso
é que eu nunca hei de acreditar!»
Vem a pêllo narrar n'este logar um caso que diz respeito a
J.-T. Maston. Quando o secretario do Gun-Club ouviu que Nicholl e
Barbicane acceitavam a proposta de Miguel Ardan, resolveu lá
no intimo juntar-se com elles, e fazer assim
«uma parceirada de quatro»; um bello dia pediu para
entrar na viajata.
Barbicane, sentindo immenso ter que lhe responder com uma recusa,
fez-lhe ver que o projectil não tinha
lotação
para tanto passageiro. J.-T. Maston, desesperado, foi ter com Miguel
Ardan, que o convidou a resignar-se, fazendo até valer
certos argumentos
ad hominem.
«Ora pensa bem, meu velho Maston, e não
vás tomar as minhas palavras em mau sentido; mas aqui para
nós, a verdade
é que estás muito incompleto para te apresentar
assim na Lua!
--Incompleto! exclamou o velho invalido.
--Sim! meu estimavel amigo! Ora põe-te no caso de
encontrarmos
[205]
habitantes lá em cima. Quererias tu dar-lhes
tão triste idéa do que se passa cá por
baixo, patentear-lhe o que
é a guerra, demonstrar-lhes que empregâmos por
cá o melhor do nosso tempo a devorar-nos, a comer-nos, a
quebrar-nos reciprocamente pernas e braços, e isto n'um
globo que poderia alimentar cem mil
milhões de habitantes, e que apenas tem mil e duzentos
milhões d'elles? Ora vamos, meu digno amigo, isso era
até caso de
nos pôrem de lá fóra, por tua causa!
--Mas se vós lá chegardes feitos em
pedaços, replicou J.-T. Maston, estareis tão
incompletos como eu!
--De certo, respondeu Miguel Ardan, mas a verdade é que
não havemos de chegar lá feitos em
pedaços!»
Effectivamente, uma experiencia preparatoria, que se tentou a 18 de
outubro, dera optimo resultado e fizera conceber as mais fundadas
esperanças. Barbicane, que desejava conhecer
exactamente o effeito da repercussão do tiro no momento da
partida do projectil, fez trazer do arsenal de Pensacola um morteiro de
trinta e duas pollegadas (0,75 centimetros), que installaram na praia
do molhe de Hillisboro, para que a bomba viesse a cair no mar e o
choque da quéda fosse amortecido pela agua, visto tratar-se
sómente de experimentar ácerca do abalo
á partida e
não do choque á chegada.
Foi preparado com os maiores cuidados para a
realisação d'esta curiosa experiencia um
projectil ôco. Estofava-lhe as paredes
internas um expesso acolchoado assente em cima de uma rede de molas de
aço da mais fina tempera. Era um verdadeiro ninho
cuidadosamente almofadado.
«Que pena não caber eu lá
dentro!» dizia J.-T. Maston, lamentando que o proprio volume
lhe não consentisse tentar a aventura. N'aquella encantadora
bomba, que fechava por meio de uma tampa de rosca, introduziram
primeiro um gato, depois um esquilo pertencente a J.-T. Maston, e a que
o secretario do Gun-Club
[206]
tinha
particular affeição. Mas havia
desejos de saber como é que aquelle animalsinho, pouco
sujeito a vertigens,
supportaria a viagem de experiencia.
Carregou-se o morteiro com cento e sessenta libras de polvora, e
collocada a bomba na peça, fez-se fogo. No mesmo instante
elevou-se rapidamente o projectil, descreveu magestosamente a sua
parabola, chegou á maxima altura de approximadamente mil
pés e foi-se abysmar por entre as vagas, descendo por
graciosa curva.
Dirigiu-se sem perda de tempo uma embarcação para
o logar onde caira a bomba, precipitaram-se habeis mergulhadores
debaixo de agua e amarraram cabos ás auriculas da bomba que
de prompto foi içada a bordo. Nem cinco minutos tinham
decorrido entre o momento em que os animaes tinham sido encerrados na
bomba e aquelle em que se lhes desatarraxou a tampa da
prisão.
Ardan, Barbicane, Maston e Nicholl estavam na
embarcação e assistiram á
operação com um
sentimento de interesse facil de conceber. Apenas se abriu a bomba,
saltou fóra o gato um
tanto machucado é verdade, mas cheio de vida, e sem ares de
quem regressava de tal expedição. Mas a respeito
de
esquilo é que nada. Procurou-se. Nem rasto. A final
não houve mais remedio de que reconhecer a verdade. O gato
tinha comido o companheiro de viagem.
J.-T. Maston ficou extremamente contristado com a perda do pobre
esquilo, e assentou que devia inscrever-lhe o nome no martyrologio da
sciencia.
Caso é que depois d'aquella experiencia desappareceram todas
as hesitações e todos os temores. Demais, os
planos de Barbicane ainda haviam de aperfeiçoar o projectil
e annullar quasi completamente os effeitos da repercussão.
Portanto nada mais
restava a fazer, senão partir.
[207]
Dois dias depois Miguel Ardan recebeu uma mensagem do presidente da
União, honra a que se mostrou notavelmente sensivel.
O governo, tomando exemplo do que se praticára para com o
cavalheiroso marquez de La Fayette, compatriota de Ardan, conferira a
este o titulo de cidadão dos Estados Unidos da America.
CAPITULO XXIII
O WAGON-PROJECTIL
Depois que ficára concluida a celebre Columbiada,
volvêra-se immediatamente a attenção
publica para o
projectil, novo vehiculo destinado a conduzir através do
espaço os tres
ousados aventureiros. A ninguem esquecêra, que Miguel Ardan
tinha pedido, no telegramma de 30 de setembro, que se modificassem os
planos combinados pelos membros da commissão.
Pensava então o presidente Barbicane, e com justa
rasão, que era de pouca importancia a fórma do
projectil, porque depois
de atravessar a atmosphera em poucos segundos, havia de realisar o
resto do percurso no vasio absoluto.
Adoptára por consequencia, a commissão a
fórma espherica, para que a bala podesse girar sobre si
propria e comportar-se como lhe acudisse á phantasia. Mas
logoque a transformavam
em vehiculo, o caso era outro.
Miguel Ardan nenhum prazer tinha por certo em fazer viagem á
maneira de esquilo; desejava subir, sim, mas de
cabeça para cima e de pés para baixo, com tanta
dignidade e compostura
como se viajára na barquinha de qualquer balão;
seguramente com maior rapidez, mas sem se ver obrigado a fazer uma
serie de cambalhotas menos decorosas.
[208]
Chegada do projectil a
Stone's-Hill (pag. 210).
Mandaram-se portanto novos planos á casa Breadwill e C.
a
de
Albany, e com expressa recommendação de os
pôr sem demora em execução.
[209]
J.-T.
Maston tinha engordado! (
pag. 217).
O projectil fundiu-se, com as modificações
apontadas, a 2 de novembro, e foi expedido immediatamente para
Stone's-Hill pela via ferrea de leste.
[210]
A 10, chegou sem accidente ao logar a que era destinado. Miguel Ardan,
Barbicane e Nicholl esperavam com a maior impaciencia «o
wagon-projectil» em que haviam de tomar passagem
para voarem á descoberta de um mundo novo.
O projectil, força é confessá-lo, era
uma peça de metal magnifica, um producto metallurgico que
dava honra ao engenho industrial dos americanos. Pela vez primeira
fôra o aluminium obtido em massa tão consideravel,
e esse resultado só
por si merecia com justiça ser considerado como um prodigio.
O precioso projectil scintillava aos raios do sol. Quem o visse com
aquellas suas fórmas de metter respeito, coberto com o
seu chapéu conico, facilmente o tomaria por uma d'aquellas
macissas torres em fórma de pimenteiro, que os architectos
da idade
media suspendiam dos angulos dos castellos fortificados. Só
lhe
faltavam grimpa e setteiras.
«Está-se-me figurando, exclamou Miguel Ardan, que
vae d'ali saír um homem de armas com o seu arcabuz e o seu
corsalete
de aço. Havemos de estar lá dentro quaes senhores
feudaes. Se levassemos alguma artilheria poderiamos d'ali fazer frente
a todos os exercitos selenitas, se é que ha exercitos na
Lua.
--Com que então agrada-te o vehiculo? perguntou Barbicane ao
amigo.
--Sim! Sim! de certo, respondeu Miguel que o estava examinando como
artista.
--Sinto unicamente que não tenha as fórmas mais
esbeltas e ligeiras, o cone mais gracioso; deviam ter-lhe posto como
remate um florão de ornatos de metal lavrado, com uma
chimera, por exemplo, uma carranca, ou uma salamandra a saír
do fogo com as azas desdobradas e as fauces abertas...
--E para que servia tudo isso? disse Barbicane, cujo espirito positivo
era pouco sensivel ás bellezas da arte.
--Para que servia, amigo Barbicane! Ai de mim! só pelo facto
[211]
de m'o perguntares fico quasi
seguro de que nunca o has de vir a comprehender!
--Vae sempre dizendo, estimavel companheiro.
--Pois ouve lá; é minha opinião que
devemos sempre attender um pouco á arte em tudo quanto
fazemos. Conheces acaso uma comedia india intitulada o
Carro
do
menino?
--Nem de nome, respondeu Barbicane.
--Tambem não admira, proseguiu Miguel Ardan. Sabe pois, que
n'essa comedia ha um ladrão que na occasião
em que está para furar a parede de uma casa, cogita se ha de
dar ao buraco a fórma de lyra, de flor, de ave ou de
amphora?
Ora responde lá, amigo Barbicane, se n'aquella epocha fosses
membro do jury, condemnavas o tal ladrão?
--Sem hesitar, respondeu o presidente do Gun-Club, e com a
circumstancia aggravante do arrombamento.
--Pois eu cá absolvia-o, amigo Barbicane! E aqui
está a rasão porque tu nunca me has de
comprehender!
--Nem trato d'isso, meu valente artista.
--Pelo menos, proseguiu Ardan, já que o exterior do nosso
wagon-projectil
fica
áquem dos meus desejos, hão de me dar
licença que o mobile a meu geito e com todo o luxo que
quadra a embaixadores da Terra!
--Lá a esse respeito, meu caro Miguel, respondeu Barbicane,
farás o que te dictar a phantasia, deixar-te-hemos fazer o
que melhor te aprouver.»
O presidente do Gun-Club porém, antes de passar ao
agradavel, cuidára do util, e conseguira fazer applicar os
meios por
elle inventados para diminuir os effeitos da repercussão,
com
perfeita intelligencia.
Tinha Barbicane pensado, e com rasão, que nenhuma especie de
molas teria força bastante para amortecer o choque, e no
decurso d'aquelle famoso passeio da matta de Skersnaw,
conseguíra
[212]
resolver aquella
grande difficuldade por uma fórma
engenhosa. Á agua é que elle contava ser devedor
de tão
assignalado serviço. Eis por que maneira:
Encher-se-ia o projectil, até a altura de tres
pés, de uma camada de agua destinada a aguentar um disco de
madeira perfeitamente estanque que escorregasse com attrito pelas
paredes internas do projectil.
Em cima d'aquella especie de jangada é que haviam de ir
collocados os viajantes. A massa liquida havia de ser dividida por
tabiques horisontaes que o choque á partida
espedaçaria
successivamente. N'esse mesmo momento todos os lençoes de
agua, desde o debaixo até ao de cima, saíndo por
tubos de
despejo para a parte superior do projectil, fariam almofada;
não podendo o disco,
aliás guarnecido como era de possantes chapuzes, ir de
encontro á
culatra do projectil senão depois de terem sido
successivamente
esmagados os differentes tabiques. Por certo que os viajantes sempre
haviam de soffrer violenta repercussão depois da
saída completa da massa liquida, mas o primeiro choque havia
de ser quasi
completamente amortecido por aquella mola de grande potencia. Verdade
é, que tres pés de altura de agua n'uma
área de cincoenta e quatro pés quadrados haviam
de pesar perto de onze mil e
quinhentas libras; mas a força elastica dos gazes
accumulados dentro da
Columbiada na opinião de Barbicane, havia de ser bastante
para vencer mais aquelle augmento de peso; demais o choque havia de
expellir aquella agua toda em menos de um segundo, e o projectil de
prompto retomaria o peso normal.
Era isto o que o presidente do Gun-Club imaginára, esta a
maneira por que pensava ter resolvido o importante problema do
amortecimento da repercussão do tiro.
De mais a mais, aquelle trabalho fôra comprehendido com
perfeita intelligencia pelos engenheiros da casa Breadwill, e tambem
maravilhosamente executado. Produzido o effeito desejado, e expellida
[213]
a totalidade da agua, podiam os viajantes,
desembaraçar-se com facilidade dos tabiques
espedaçados, e desarmar o disco movel que os
aguentára no momento da partida.
As paredes superiores do projectil, essas eram cobertas de um
acolchoado expesso de couro, assente sobre espiraes do mais fino
aço, tão flexiveis como molas de relogio. Os
tubos de esgoto escondidos por debaixo do acolchoado nem deixavam
suspeitar que existiam.
Tinham-se portanto tomado por aquella fórma todas as
precauções imaginaveis para amortecer o primeiro
choque, e, segundo dizia Ardan, quem ainda assim se deixasse esmagar,
é porque era «de má
raça.»
Media o projectil, pela parte de fóra, doze pés
de altura sobre nove de largura.
E, para que não excedesse o peso calculado, tinham-lhe
diminuido um pouco a espessura das paredes, e reforçado a
culatra que tinha de aguentar toda a violencia dos gazes desenvolvidos
pela deflagração do pyroxylo.
Assim succede geralmente com as bombas e obuzes cylindro-conicos, cuja
maior espessura é sempre na culatra.
A entrada para aquella torre de metal era por uma estreita abertura
reservada nas paredes do cone, similhante aos
«buracos de homem» que têem as caldeiras
a vapor, e que
fechava hermeticamente por meio de uma chapa de aluminium, apertada da
parte de dentro por possantes parafusos de pressão. Podiam
portanto os viajantes saír á vontade da sua movel
prisão, logoque lograssem chegar ao astro das noites.
Mas o caso não estava só em ir, estava tambem em
ir vendo pelo caminho. Nada mais facil. Por debaixo do acolchoado das
paredes estavam quatro vigias com vidros lenticulares de grande
espessura, duas abertas na parede circular do projectil, uma no fundo e
outra no chapéu conico. Teriam portanto os viajantes toda
[214]
a facilidade para observarem
durante o percurso, quer a Terra que deixavam, quer a Lua que
íam buscar, quer os
espaços constellados do céu.
As vigias estavam defendidas do choque á partida por chapas
fortemente encaixadas, que era facil fazer caír para a parte
de fóra desatarraxando porcas
collocadas pela parte de dentro. Tornavam-se por aquella maneira
possiveis
quaesquer observações, sem que o ar contido no
projectil podesse de lá saír.
Todos aquelles mechanismos, admiravelmente construidos e collocados,
trabalhavam com a maior facilidade; os constructores tambem
não deram menor prova de intelligencia na
arrumação interna do wagon-projectil.
Para a conducção da agua e viveres necessarios
para os tres viajantes havia recipientes solidamente seguros, e
até aos
passageiros era dado obter fogo e luz, porque tambem levavam gaz
armazenado em recipiente especial debaixo de uma pressão
equivalente a muitas atmospheras. Era abrir uma torneira, e tinham gaz
para lhes illuminar e aquecer o confortable
vehiculo para seis dias.
Claro está que não lhes faltava nada do que se
póde reputar essencial á vida ou mesmo
á commodidade. Alem
d'isto, e graças aos instinctos de Miguel Ardan, veio ainda
o agradavel juntar-se ao util, sob fórma de obras de arte;
Miguel se
não lhe faltára espaço, fazia do
projectil um verdadeiro
atelier de artista.
Errada seria a supposição de quem imaginasse que
tres pessoas não estavam bem á larga n'aquella
torre de metal.
Media-lhe a capacidade interna uma superficie de proximamente cincoenta
e quatro pés quadrados por dez pés de
altura, espaço que já consentia aos viajeiros
certa
liberdade de movimentos. Nem que fossem no mais
confortable
wagon dos Estados Unidos estariam tanto á sua vontade.
Estando resolvida a questão de mantimentos e
illuminação,
[215]
faltava ainda a questão do ar. Era evidente que o ar contido
no projectil não podia chegar para a
respiração dos tres viajantes pelo
espaço de quatro dias; effectivamente, cada homem gasta
n'uma hora todo o oxygenio contido em cem litros de ar. Barbicane, os
dois companheiros e dois cães que tencionavam levar, haviam
de consumir só em vinte e quatro horas, dois mil e
quatrocentos litros de oxygenio, em peso proximamente sete libras.
Forçoso era portanto renovar o ar do interior do projectil.
Mas como? Por um processo muito simples, o dos srs. Reiset e Regnault,
o mesmo a que Miguel alludíra no correr da
discussão do meeting.
É vulgarmente sabido que o ar se compõe
essencialmente de vinte e uma partes de oxygenio e setenta e nove de
azoto. E o que é que succede no acto da
respiração? Um phenomeno muito simples. O homem
absorve o oxygenio do ar, gaz eminentemente proprio para sustentar a
vida e expelle o azoto intacto. O ar expirado perdeu perto de cinco por
cento do seu oxygenio e contém um volume proximamente igual
de acido carbonico, que é o producto definitivo da
combustão dos elementos do sangue
pelo oxygenio inspirado. Portanto, em qualquer logar fechado, ha de
succeder sempre, depois de certo tempo, transformar-se todo o oxygenio
do ar em acido carbonico, gaz que é essencialmente
deleterio.
Como o azoto se conservava intacto, reduzia-se portanto a
questão ao seguinte: 1.º, refazer o oxygenio
absorvido;
2.º, destruir o acido carbonico expirado. E não ha
nada
mais facil, por meio do chlorato de potassa e da potassa caustica.
O chlorato de potassa é um sal que se apresenta sob
fórma de palhetas brancas; aquecido a uma temperatura
superior a quatrocentos graus, transforma-se em chloreto de potassium,
abandonando todo o oxygenio que contém. Dezoito libras de
chlorato de potassa rendem por este processo sete libras de oxygenio,
[216]
isto é, a quantidade d'elle
necessaria aos viajantes para
vinte e quatro horas. E aqui está como se havia de fazer o
oxygenio.
A potassa caustica, essa é uma substancia muito avida do
acido carbonico misturado com o ar. Basta agita-la no ambiente para que
elle se apodere do acido carbonico, formando bicarbonato de potassa. E
aqui está tambem como havia de ser destruido o
acido carbonico.
Estes dois meios combinados restituem seguramente ao ar viciado todas
as suas qualidades vivificadoras. Prova-o a experiencia feita com bom
exito pelos dois chimicos, os srs. Reiset e Regnault.
Mas, força é confessar, que as experiencias
até então feitas tinham sempre sido realisadas
in
anima
vili. Ignorava-se absolutamente qual seria o effeito d'ellas
sobre o homem, apesar da extrema precisão scientifica com
que tinham sido executadas.
Esta foi a observação que a todos se offereceu na
sessão em que foi ventilado tão grave assumpto.
Miguel Ardan, que nem por sombras duvidava da possibilidade de viver
por meio do ar, assim artificialmente preparado, offereceu-se para
experimenta-lo antes da partida.
Porém Maston reclamou para si proprio com energia a honra de
tentar o ensaio.
«Já que me não deixam partir, dizia o
valente artilheiro, não será grande favor
deixarem-me ao menos habitar no projectil
por uns oito dias.»
Recusar em tal caso, era prova de má vontade.
Satisfizeram-lhe portanto os desejos. Puzeram-se á
disposição de Maston quantidades de chlorato de
potassa, de potassa caustica e viveres bastantes para oito dias: em
seguida e depois do aperto de
mão aos amigos, encaixou-se o estimavel secretario no
projectil, cuja tampa foi hermeticamente fechada, a 12 de novembro
ás seis
[217]
horas da manhã, recommendando expressamente que lhe
não abrissem a prisão antes do dia 20
ás seis horas
da tarde.
O que lá dentro se passava no decurso d'aquelles oito dias,
não era possivel imagina-lo, que a espessura das paredes do
projectil impedia que se percebesse cá de fóra
qualquer
ruido interior.
A 20 de novembro, ás seis horas em ponto, desaparafusou-se a
chapa: os amigos de Maston sempre estavam um tanto desassocegados de
espirito. Mas de prompto lhes serenou o animo uma voz alegre, que
soltava formidavel hurrah.
Pouco depois appareceu no vertice do cone o secretario do Gun-Club em
postura de triumphador.
Tinha engordado!
CAPITULO XXIV
O TELESCOPIO DAS MONTANHAS PENHASCOSAS
A 20 de outubro do anno anterior, depois de fechada a
subscripção, tinha o presidente do Gun-Club
aberto um credito a favor do observatorio de Cambridge, no valor das
quantias necessarias para construir um enorme instrumento optico. Devia
tal apparelho, luneta ou telescopio, ser de força bastante
para tornar visivel na superficie da Lua qualquer objecto de nove
pés de largura maxima.
Ha uma differença importante entre uma luneta e um
telescopio, que é conveniente recordar aqui: a luneta
compõe-se de um tubo, que tem na extremidade superior uma
lente convexa, chamada objectivo, e na extremidade inferior outra lente
chamada ocular, a que se applica o olho do observador. Os raios que
emanam do objecto luminoso atravessam a primeira lente e
vão, em
[218]
virtude da
refracção, formar uma imagem invertida
do objecto no foco
[88]
d'ella. Essa imagem é que é
observada
por meio do ocular, que a amplifica exactamente como qualquer lupa.
Claro está pois que o tubo da luneta fica fechado n'uma e
n'outra
extremidade pelo objectivo e pelo ocular.
O tubo do telescopio, pelo contrario, é aberto na
extremidade superior. Os raios luminosos que partem do objecto
observado penetram livremente no tubo e vão incidir n'um
espelho
metallico concavo, e portanto convergente. D'ahi partem esses raios
depois de reflectidos a encontrar um espelho menor que os envia para um
ocular, disposto por fórma que amplifique a imagem
produzida.
Nas lunetas portanto desempenha papel principal a
refracção, nos telescopios a reflexão.
É d'ahi que vem
dar-se ás primeiras o nome de refractores, e aos segundos o
de reflectores. A principal difficuldade de
execução de taes apparelhos de
optica está na construcção dos
objectivos, quer sejam lentes,
quer espelhos metallicos.
Entretanto na epocha em que o Gun-Club tentou a sua grande experiencia,
estavam já estes instrumentos notavelmente
aperfeiçoados, e davam resultados magnificos. Longe ia o
tempo em que Galileu observára os astros com a sua pobre
luneta, que apenas amplificava na proporção de
sete para um,
se tanto. Do seculo XVII até então tinham os
instrumentos de
optica crescido em comprimento e largura em
proporções
consideraveis, que permittiam explorar os espaços estellares
até uma
profundidade até áquella epocha ignorada.
Entre os instrumentos refractores que já então
funccionavam, podem citar-se a luneta do observatorio de Pulkowa, na
Russia,
[219]
cujo objectivo mede quinze
pollegadas (38 centimetros
[89]),
em largura, a luneta do constructor
francez Lerebours, que tinha um objectivo igual ao da anterior, e
finalmente a luneta do observatorio de Cambridge, com um objectivo de
dezenove pollegadas de diametro (48 centimetros).
A respeito de telescopios, dois eram já conhecidos de
notavel força e de gigantescas dimensões. O mais
antigo,
construido por Herschel tinha trinta e seis pés de
comprimento e um espelho
de quatro pés e meio de largura. Com este instrumento se
obtinham amplificações de seis mil por um. O
segundo
fôra construido na Irlanda, em Kreastle no parque de
Parsoastown, a expensas de lord Rosse. O comprimento do tubo d'este
ultimo era de quarenta e oito pés, e a largura do espelho de
seis pés (1
metro e 83 centimetros)
[90];
amplificava na
proporção de seis mil e
quatrocentos para um, e fôra necessario construir uma immensa
mole de
pedra e cal para dispôr os apparelhos necessarios para a
manobra do instrumento, que pesava vinte e oito mil libras.
Mas, como acabâmos de ver, apesar d'estas colossaes
dimensões, não podéra obter-se
amplificação em proporção
superior a seis mil para um, numeros redondos; ora uma
amplificação na proporção
de seis mil para um, apenas
trás a Lua á distancia de
[220]
trinta e nove milhas (16 leguas), distancia á qual os
objectos que têem sessenta pés de diametro
são
apenas perceptiveis, a não ser que sejam extremamente
alongados.
O telescopio das Montanhas
penhascosas (pag. 225).
[221]E como no caso em
questão, se tratava de um projectil de
nove pés de largura por quinze de comprimento,
forçoso era trazer a Lua a cinco milhas (2 leguas) pelo
menos, e n'esse intuito,
realisar amplificações na
proporção de quarenta e oito mil para um.
[222]
Era este o problema proposto ao observatorio de Cambridge, a quem
sómente incumbia resolver difficuldades materiaes,
pois que as pecuniarias lhe não tolhiam o passo.
Primeiro que tudo, teve o observatorio de optar entre telescopios e
lunetas. As lunetas levam certa vantagem aos telescopios. Com igual
objectivo, obtem-se por meio de uma luneta
amplificações em proporção
mais consideravel, porque os raios
luminosos que atravessam as lentes perdem menos pela
absorpção de que pela reflexão no
espelho metallico do telescopio. Em
compensação a espessura de que é
possivel construir-se uma lente
é limitada, porque sendo a lente demasiado espessa,
não deixa passar os raios luminosos. Alem d'isto a
construcção das
enormes lentes a que nos vamos referindo é extremamente
difficil e
leva um tempo tão consideravel, que se mede aos annos.
Conseguintemente, apesar de serem as imagens mais illuminadas nas
lunetas, vantagem aliás de subido preço
quando se trata de observar a Lua que apenas emitte luz reflectida,
decidiu o
observatorio usar de um telescopio que se podia construir com mais
promptidão e que permittiria obter
amplificações em proporção
maior. E como os raios luminosos perdem grande parte da sua intensidade
no atravessar da atmosphera, resolveu o Gun-Club que o instrumento
fosse assente n'uma das mais elevadas montanhas da União,
circumstancia esta que havia de diminuir a
espessura das camadas aereas atravessadas pela luz lunar.
Nos telescopios, como já dissemos, é a lente
collocada no olho do observador, o ocular, que produz a
amplificação, e o objectivo que maiores
amplificações consente, é
o que tem mais extenso diametro e maior distancia focal. Para conseguir
amplificações na proporção
de quarenta e oito mil para um,
forçoso era ir nas dimensões muito alem das
objectivas de Herschell e de lord Rosse.
[223]
E exactamente ahi é que estava a
difficuldade, porque a
fundição dos espelhos de tal grandeza
é
operação estremamente delicada.
Por fortuna, inventára poucos
annos
antes, um homem de sciencia do instituto de França,
Léon
Foucault, um processo que tornára muito facil e muito rapida
a
operação de polir os objectivos telescopicos,
substituindo os espelhos metallicos por espelhos prateados. Por este
processo basta fundir um pedaço de vidro do tamanho
requerido, metallisar-lhe depois a superficie por meio de um sal de
prata, e está construido e polido o
espelho. Foi este o processo, de resultados aliás
excellentes, que se
empregou na fabricação do objectivo.
Acrescente-se a isto, que o espelho objectivo foi collocado em harmonia
com o methodo que Herschell imaginára para os seus
telescopios. No grande apparelho do astronomo de Slough vinha a imagem
dos objectos reflectida pelo espelho inclinado formar-se no fundo do
tubo, na outra extremidade d'elle onde estava collocado o ocular. Por
esta disposição o observador, em
vez de estar collocado na parte inferior do tubo, içava-se a
parte
superior d'elle, e d'ali, munido da respectiva lupa, é que
mergulhava a vista
dentro do enorme cylindro. Esta combinação tinha
a
vantagem de supprimir o espelho pequeno cuja
funcção
é reenviar a imagem para o ocular. A imagem passava assim
por uma reflexão unica
em vez de duas. Por consequencia, menor era a quantidade de raios
luminosos extincta, e menos enfraquecida ficava a imagem, obtendo-se
portanto maior clareza, vantagem preciosa especialmente na
observação que havia a fazer
[91].
Tomadas estas resoluções, começaram os
trabalhos. Segundo os calculos do pessoal do observatorio de Cambridge,
o tubo do novo reflector devia ter duzentos e oitenta pés de
comprido, e o
[224]
espelho dezeseis pés de diametro. Por mais colossal que
fosse tal instrumento, nem sequer era digno de comparar-se com um
telescopio de dez mil pés (3 kilometros e meio) de
comprimento, cuja construcção o astronomo Hooke
propunha ha
poucos annos. E no entretanto as difficuldades que apresentava a
construcção e assentamento, tal como era,
já não eram
pequenas.
A questão da collocação, essa foi de
prompto resolvida. Tratava-se de escolher uma elevada montanha, e as
montanhas de grande elevação não
abundam nos
Estados Unidos.
Effectivamente, o systema orographico d'aquelle grande paiz reduz-se
apenas a duas cadeias de montanhas de mediana altura, entre as quaes
corre o magnifico rio Mississipi que os americanos appellidariam
«o rei dos rios» se para elles
não fôra inadmissivel uma realeza qualquer.
A leste, estão os Apalaches, cujo vertice mais elevado, no
New-Hampshire, não vae alem de cinco mil e seiscentos
pés, altura na realidade extremamente modesta.
A oeste, pelo contrario, encontram-se as Montanhas penhascosas, immensa
corda que começa no estreito de
Magalhães, acompanha a costa occidental do sul com o nome de
Andes ou Cordilheiras, transpõe o isthmo de
Panamá e corre
através da America do Norte até ás
praias do mar polar.
Não são muito elevadas estas montanhas; os Alpes
ou o Hymalaya podiam com justa rasão olha-las de alto da
propria grandeza com supremo desdem.
Com effeito, o mais alto vertice d'ellas tem apenas dez mil e
setecentos pés de altura, ao passo que o monte Branco mede
quatorze mil quatrocentos e trinta e nove, e o Kintschindjinga
[92],
vinte e seis mil setecentos e setenta e seis, acima do nivel do mar.
[225]
O Gun-Club, porém, visto ter empenho em que o telescopio
assim como a Columbiada fossem assentes nos Estados da
União, teve de se contentar com as montanhas Penhascosas, e
mandou dirigir todo o material necessario para a cumiada de Long's
Peak, no territorio do Missouri.
Nem a penna nem a palavra humana poderiam narrar as difficuldades de
todos os generos que os engenheiros americanos tiveram de vencer, os
prodigios de audacia e de habilidade que realisaram. Este trabalho foi
um verdadeiro
tour de
force. Foi necessario levantar pedras monstruosas,
pesadissimas peças forjadas, pilastras de ingente peso, os
pedaços enormes do cylindro, o objectivo, que só
por si pesava trinta mil libras, e
levantar tudo acima do limite das neves perpetuas, a mais de dez mil
pés de altura, e isto depois de ter transposto planicies
desertas,
florestas impenetraveis, temerosos «saltos» em
torrentes
impetuosas, longe dos centros de população, em
meio de
regiões selvagens em que cada um dos pormenores da
existencia se transformava em problema quasi insoluvel.
Apesar de tantos obstaculos o engenho dos americanos de tudo soube
triumphar. Menos de um anno depois do começo dos trabalhos,
pelos ultimos dias de setembro, o gigantesco reflector erguia nos ares
o seu tubo de duzentos e vinte e quatro pés
de comprido suspenso de um enorme andaime de ferro, manobrando com
facilidade por meio de engenhosos machinismos em
direcção a todos os pontos do céu, e
podendo seguir os astros de um a outro extremo do horisonte no decurso
da sua marcha
através do espaço.
Custára este telescopio mais de quatrocentos mil dollars. A
primeira vez que o dirigiram para a Lua, experimentaram os observadores
uma sensação mixta de curiosidade e
inquietação. Que iriam descobrir no campo
d'aquelle telescopio que amplificava na proporção
de quarenta e oito mil para um as dimensões
[226]
dos objectos observados? Populações, rebanhos de
animaes lunares, cidades, lagos, oceanos? Não, nada que
á sciencia
não fôra já conhecido: a natureza
vulcanica da Lua verificou-se com
absoluta precisão em todos os pontos do disco.
Entretanto o telescopio das montanhas Penhascosas, antes de servir ao
Gun-Club, prestou immensos serviços á
astronomia.
Graças ao poder de penetração de tal
instrumento, sondaram-se até aos ultimos limites as
profundezas do céu,
poderam medir-se com rigor os diametros apparentes de muitas estrellas,
e até
M. Clarke, membro do pessoal technico de Cambridge, decompoz a
crab
nebula[93]
de Taurus, que o
reflector de lord Rosse não lográra reduzir.
CAPITULO XXV
ULTIMOS PORMENORES
Contava já vinte e dois dias o mez de novembro, e a partida
suprema devia realisar-se dez dias depois. Faltava ainda conseguir
feliz exito n'uma unica operação, mas delicada,
perigosa, que demandava infinitas precauções, e
contra o bom
resultado da qual ajustára o capitão Nicholl a
sua terceira
aposta.
Era o caso, carregar a Columbiada introduzindo-lhe as quatrocentas mil
libras de algodão-polvora. Pensára Nicholl, e
com justo fundamento talvez, que da manipulação
de
tão formidavel quantidade de pyroxylo haviam de provir
graves catastrophes, e que, quando peior não succedesse,
aquella massa
eminentemente explosiva havia de inflammar-se por si mesma sob a
pressão
do projectil.
[227]
Havia n'isto serios perigos, que maiores se tornavam pela negligencia e
leviandade habitual dos americanos. Haja vista o que succedeu durante a
guerra federal: ninguem se incommodava a tirar o charuto da
bôca para carregar uma bomba. Mas
lá estava Barbicane, que tinha a peito chegar a bom
resultado e não
naufragar já dentro do porto; que escolheu por consequencia
os
melhores operarios, e que os fez trabalhar debaixo das suas proprias
vistas, não os largando de olho um só momento,
conseguindo assim á força de prudencia e de
precaução, pôr a seu favor todas as
probabilidades de bom exito.
Antes de tudo, teve Barbicane o maior cuidado em não mandar
a carga inteira de uma vez para o recinto de Stone's-Hill,
senão a pouco e pouco e em caixotes perfeitamente fechados.
As quatrocentas mil libras de pyroxylo foram depositadas em pacotes de
quinhentas libras, dando assim para oitocentos grandes cartuchos
fabricados com o maior esmero pelos mais habeis pyrotechnicos de
Pensacola. Cada caixão tinha capacidade para dez
cartuchos, e os caixões íam chegando uns
após
outros pela via ferrea de Tampa-Town; por esta fórma nunca
havia a um tempo mais de cinco mil libras de pyroxylo dentro do
recinto. Caixão que
chegava era logo descarregado por operarios descalços, e
cada
cartucho transportado para o orificio da Columbiada para dentro da qual
descia por meio de guindastes manobrados a braço.
Tinham-se posto de parte todas as machinas que trabalhavam a vapor, e
apagado todos os fogos n'um circuito de duas milhas de raio.
Já era mais que bastante ter que preservar dos
ardores do sol, mesmo em novembro, aquellas massas de
algodão-polvora.
O trabalho, por este motivo, era de preferencia feito de noite ao
clarão de uma luz produzida no vacuo por meio dos apparelhos
de Ruhmkorff, que ministrava uma illuminação
artificial que chegava ao fundo da Columbiada. Dentro do
canhão ficavam os cartuchos
[228]
arrumados com perfeita regularidade e ligados uns aos outros
por meio de um fio metallico destinado a conduzir instantaneamente ao
centro de cada um d'elles a faisca electrica.
E effectivamente por meio da pilha, é que se havia de dar
fogo aquella massa de algodão-polvora.
Os fios metallicos todos envolvidos em capas de substancia isoladora,
iam reunir-se em um só n'um estreito orificio aberto na
altura em que o projectil havia de ficar; n'esse ponto atravessavam a
espessa parede de ferro fundido, subindo depois até ao
solo por um dos respiradouros do revestimento de pedra, especialmente
reservado para este fim.
A partir do vertice de Stone's-Hill corria o fio por sobre postes pelo
espaço de duas milhas, terminando n'uma pilha de Bunsen
munida do competente apparelho de interrupção.
Por consequencia logoque que se carregasse no botão do
apparelho a corrente electrica restabelecia-se instantaneamente e
ía dar fogo
ás quatrocentas mil libras de algodão-polvora.
Claro
está que a pilha só tinha de funccionar no ultimo
momento.
A 28 de novembro, já os oitocentos cartuchos estavam
arrumados no fundo da Columbiada. Lográra bom exito esta
parte da operação.
Mas quantos incommodos, quantas inquietações,
quantas luctas tinha soffrido ou sustentado o presidente Barbicane?
Debalde prohibíra a todos a entrada de Stone's-Hill; todos
os dias
um ou outro curioso subia por escalada as palissadas, e alguns houve
que, levando a imprudencia até á loucura, foram
pôr-se a fumar mesmo no meio dos fardos de
algodão-polvora. Barbicane tinha
ataques de furor todos os dias. J.-T. Maston fazia quanto em si cabia
para o auxiliar, dando caça aos intrusos com grande vigor, e
apanhando as pontas de charuto ainda a arder que os yankees deitavam
para toda a parte. E a tarefa era de estafar, que mais de 300:000
pessoas faziam cêrco em volta das palissadas. Verdade
é
[229]
que Miguel Ardan tambem
se offerecêra para escoltar os
caixões até á bôca da
Columbiada; mas o
presidente do Gun-Club, que o apanhou em propria pessoa com um enorme
charuto na bôca, ao tempo que ia perseguindo alguns
imprudentes a quem dava assim tão funesto exemplo, logo
percebeu que não podia
contar com tão intrepido fumista, e viu-se obrigado a
faze-lo vigiar a
elle, e com muita especialidade.
Emfim, como é certo que ha um Deus especial para os
artilheiros, não houve a menor explosão, e
conseguiu-se a
final pôr a carga inteira a são e salvo. Muito
duvidosa estava portanto
a terceira aposta do capitão Nicholl. Faltava só
introduzir
o projectil na Columbiada e collocá-lo em cima da espessa
camada de
algodão-polvora.
Antes porém de se dar começo a esta ultima
operação, foram collocados e arrumados no
wagon-projectil todos os objectos necessarios
aos viajantes, que eram bastante numerosos e que, se tivessem deixado
fazer a Miguel Ardan a sua vontade, dentro em pouco teriam enchido todo
o espaço reservado para as
pessoas. Ninguem imagina que cousas o amavel francez queria levar para
a Lua. Uma verdadeira carregação de inutilidades.
Interveio porém Barbicane, e não houve mais
remedio de que reduzir-se ao estrictamente necessario. Na caixa dos
instrumentos ía
grande numero de barometros, thermometros e de oculos de alcance.
Os viajantes estavam com curiosidade de examinar a Lua no decurso da
viagem, e levavam, para facilitar o reconhecimento d'aquelle novo
mundo, um excellente mappa de Beer e Moedler, o
Mappa
selenographico, publicado em
quatro folhas, e que, com justo fundamento, tem fama de verdadeira obra
prima de
observação e paciencia. Reproduz este mappa com
escrupulosa exactidão os mais insignificantes pormenores da
face do astro que olha para a Terra; montanhas, valles, circos,
crateras, picos,
ranhuras, tudo ali se encontra com exactidão nas
dimensões e fidelidade
[230]
na orientação e
denominações, desde os montes Doerfel e Leibnitz,
cujas altas cumiadas se erguem no extremo oriental do disco
até ao
Mare
Frigoris, que se estende pelas regiões
circumpolares do norte.
Era portanto este mappa, para os viajantes, um guia precioso, porque
lhes tornava possivel o estudo do paiz, antes de lá
porem os pés.
Levavam tambem os viajantes tres
riffles e tres carabinas de caça do
systema de bala explosiva, e alem d'isto grande
quantidade de chumbo e polvora.
Dizia a este respeito Miguel Ardan: «Nós
não sabemos com quem vamos lá haver-nos; sejam
homens ou sejam animaes podem
levar a mal que lhes vamos fazer uma visita! Por consequencia convem
que cada qual tome as suas
precauções».
Acrescentaremos, que as armas de defeza pessoal iam acompanhadas de
picaretas, alviões, serras de mão e a mais
ferramenta indispensavel, sem fallar dos vestuarios adequados para
todas as temperaturas, desde o frio das regiões polares
até aos calores da zona torrida.
Miguel Ardan desejava levar na expedição certo
numero de animaes, que se não chegava a ser um casal de cada
uma das
especies conhecidas, é porque Ardan não reputava
cousa
necessaria acclimar na Lua nem serpentes, nem tigres, nem crocodilos,
nem quaesquer outros animalejos damninhos.
«Tanto não, dizia elle a Barbicane, mas alguns
animaes de carga, por exemplo bois, vaccas, burros ou cavallos,
não
só haviam de fazer bello effeito na paizagem, como nos
haviam de servir de grande utilidade.
«Estou de accordo, meu caro Ardan, respondia o presidente do
Gun-Club, mas o nosso wagon-projectil é que não
é nenhuma arca de Nóe. Nem tem capacidade que
chegue, nem para isso foi
destinado; por consequencia fiquemo-nos nos limites do
possivel.»
[231]
Finalmente, depois de longa discussão, concordou-se em que
os viajantes tinham de se contentar em levar uma excellente cadella de
caça que pertencia a Nicholl, e um vigoroso Terra-Nova de
força prodigiosa. Entraram tambem no numero dos objectos
uteis muitas caixas de sementes das mais usuaes. Miguel Ardan, por sua
vontade levaria tambem alguns sacos de terra para as semear. Em todo o
caso, sempre foi mettendo a um canto do projectil uma duzia de arbustos
embrulhados em bainhas de palha.
Restava ainda a questão de viveres, porque necessario era ir
prevenido para o caso de arribar a alguma região da Lua
completamente esteril.
Barbicane tanto fez, que conseguiu metter no projectil
provisões para um anno. É necessario acrescentar,
para que ninguem
d'isto se admire, que estes viveres consistiam em conservas de carnes e
legumes, reduzidas ao minimo volume pela acção
da prensa hydraulica, que todavia continham grande abundancia de
elementos nutritivos; a variedade é que não era
grande; mas
tambem n'uma expedição d'aquellas não
era
occasião propria para alguem se mostrar niquento. Levavam
tambem os viajantes uma reserva de aguardente, que montaria a uns
cincoenta gallões
[94], e agua
para dois mezes apenas, porque, na verdade, em consequencia das ultimas
observações astronomicas, já ninguem
punha em duvida a existencia de certa quantidade de agua á
superficie da Lua.
Quanto a viveres, reputar-se-ía até insensato
quem
suppozesse que habitantes da Terra não haviam de
lá encontrar farto
alimento.
Miguel Ardan não conservava sombra de duvida a tal respeito.
Se a conservára por certo não estaria decidido a
partir.
«E demais, disse elle um dia aos amigos, os camaradas
cá da Terra de certo nos não hão de
abandonar
completamente, antes terão todo o cuidado em nos
não esquecer.
[232]
Desde pela manhã uma
multidão...
(pag. 236).
--Certamente, respondeu J.-T. Maston.
--Como se entende isso? perguntou Nicholl.
[233]
--Muito simplesmente, respondeu Ardan. Porventura não
continua
a Columbiada a estar no mesmo logar? Pois então!
não poderão mandar-nos obuzes carregados de
viveres que nós esperaremos em dias prefixos, por exemplo,
todas as vezes que a Lua
[234]
se apresentar
em condições favoraves de
zenith, senão de perigeo, isto é, quasi uma vez
por anno?
--Hurrah! hurrah! clamou J.-T. Maston como quem lá tinha a
sua idéa; isso é que é bem dito! De
certo, estimaveis amigos, de certo que vos não havemos de
esquecer!
--Conto com isso!
«E assim teremos, como acabaes de ver, e com toda a
regularidade novidades do globo, e pela nossa parte tambem,
só se formos muito pouco habilidosos é que
não havemos
de conseguir pôr-nos em communicação
com os nossos
bons amigos da Terra!»
Respirava n'estas palavras tão grande confiança,
que Miguel Ardan com o seu ar resoluto e soberbo denodo teria levado
atrás de
si o Gun-Club inteiro. Tudo quanto Ardan dizia parecia simples,
elementar, facil, de bom exito seguro; era preciso que alguem estivesse
na realidade agarrado com muito apoucamento a este miseravel globo
terraqueo, para que ouvindo-o se não
promptificasse a ser companheiro dos tres viajantes na sua
expedição lunar.
Logoque ficaram collocados e arrumados no projectil os diversos
objectos, introduziu-se entre os respectivos tabiques a agua destinada
a amortecer a repercussão, e no recipiente proprio
o gaz de illuminação. De chlorato de potassa e de
potassa caustica mettêra Barbicane, que se arreceiava das
demoras imprevistas no caminho, no projectil, quantidade tal d'estas
substancias que chegava para renovar o oxygenio e absorver o acido
carbonico por espaço de dois mezes. A
restituição ao ar das suas qualidades
vivificadoras e a purificação completa d'elle,
estavam a cargo de um apparelho extremamente engenhoso, que funccionava
automaticamente. Conseguintemente estava prompto o projectil, e nada
mais restava a fazer senão po-lo no fundo da
Columbiada, operação aliás cheia de
difficuldades
e de perigos.
Conduziram o enorme obuz ao cume de Stone's-Hill, onde ficou
[235]
seguro e suspenso de possantes
guindastes por cima do
poço de metal.
Aquelle momento foi palpitante! Se succedesse quebrarem-se as cadeias
com o enorme peso, a quéda de similhante massa
seguramente teria produzido instantanea
inflammação do
algodão polvora. Felizmente não succedeu assim, e
algumas horas
depois, o wagon-projectil que descêra lentamente pela alma do
canhão, descansava em cima da sua cama de pyroxylo,
verdadeiro
édredon fulminante. O unico resultado
que veio da pressão do
projectil foi ficar mais atacada a carga da Columbiada.
«Perdi», disse o capitão, entregando ao
presidente Barbicane a quantia de tres mil dollars.
Barbicane não queria receber dinheiro de um companheiro de
viagem; teve porém que ceder perante a
obstinação de Nicholl, que tinha empenho em
satisfazer quantos compromissos
contrahíra, antes de deixar a Terra.
«Á vista d'isso, disse Miguel Ardan, só
uma cousa tenho a desejar-vos, meu estimavel capitão.
--Qual? perguntou Nicholl.
--Que vos dêem igual proveito as outras duas apostas. Se
assim succeder, estaremos seguros de não nos ficarmos no
caminho.
CAPITULO XXVI
FOGO!
Chegára o primeiro dia de dezembro, dia fatal, porque se a
partida do projectil se não effeituasse n'aquella mesma
noite ás dez horas quarenta e seis minutos e quarenta
segundos da tarde, mais de dezoito annos haviam de decorrer antes que a
Lua volvesse
[236]
a apresentar-se
nas mesmas condições
simultaneas de zenith e perigeo.
O tempo estava magnifico; apesar da proximidade do inverno, o sol
resplandecia e banhava com seus radiantes effluvios aquella mesma Terra
que tres dos habitantes d'ella íam
abandonar em troca de um mundo novo.
Quanta gente mal dormiu durante a noite que precedeu aquelle dia com
tanta impaciencia desejado! Quantos peitos opprimidos pelo pesado fardo
da anciedade! Todos os corações
palpitaram de inquietação, excepto o
coração de Miguel Ardan. Este personagem
impassivel andava de cá para lá com o seu ar
habitual de quem tem muitos affazeres, mas nada denunciava n'elle
preoccupação insolita. Dormira a somno solto,
como dormia Turenne antes da batalha, encostado ao reparo de um
canhão. Desde pela
manhã innumeravel multidão cobria as planicies
que se estendem a
perder de vista em torno de Stone's-Hill.
De quarto em quarto de hora chegava pela via ferrea de Tampa-Town um
comboio carregado de novos curiosos; em breve espaço assumiu
aquella emigração
proporções
fabulosas;
segundo a estatistica do
Tampa-Town
Observer, pisaram, n'aquelle dia memoravel, o solo da
Florida cinco milhões de espectadores.
Havia já um mez que a maior parte d'aquella
multidão acampava em volta do recinto, dando
começo á
fundação de uma cidade que depois se chamou
Ardan's-Town. A planicie estava coberta de abarracamentos, cabanas,
choupanas e tendas,
habitações ephemeras que davam guarida a uma
população
bastantemente numerosa para causar inveja ás maiores cidades
da Europa.
Ali tinham representantes todos os povos da Terra, fallavam-se ali a um
tempo todos os dialectos do mundo. Dir-se-ía que reinava
lá a confusão das linguas como nos tempos
biblicos da torre de Babel. Ali se confundiam em absoluta igualdade as
diversas
[237]
classes da sociedade
americana. Banqueiros, lavradores, maritimos, moços de
recados, corretores, cultivadores de
algodão, negociantes, barqueiros, magistrados, tudo ali se
acotovelava com sem cerimonia primitiva. Fraternisavam os creoulos da
Luiziania com os fazendeiros da Indiana; os
gentlemen do Kentucky e do Tenessee, os
virginienses elegantes e altivos mettiam conversa com os
caçadores semi-selvagens dos Lagos, e com os
contratadores de gado de Cincinnati. Usavam na cabeça
chapéu de castor branco de aba larga ou o classico
panamá, vestiam calça de guinguamp azul, das
fabricas de Opelousas,
envolviam o corpo nas dobras de elegantes blusas de cotim cru, e os
pés em botins de cores brilhantes, trazendo em
exposição extravagantes bofes de fina cambraia, e
fazendo scintillar nos peitos das camisas, nos punhos, nas gravatas,
nos dez dedos, e até
nas orelhas, um sortimento completo de anneis, cadeias, argolas e
breloques,
cujo mau gosto corria
parelhas com o subido preço. Outras tantas mulheres,
creanças e creados, em trajes
não menos opulentos acompanhavam, seguiam, precediam ou
rodeiavam aquelles maridos, paes ou amos, que mais pareciam chefes de
tribu cercados das innumeraveis familias. Era cousa digna de ver-se
aquella gente toda ás horas de
refeição deitar-se ás iguarias
peculiares dos Estados Unidos e devorar, com appetite
ameaçador para o abastecimento de viveres da Florida,
alimentos que causariam repugnância a qualquer estomago
europeu, taes como rãs de fricassé, macacos
estufados,
fish-chowder
[95],
sariguêa assada, opossum ainda em sangue, ou
racoon na grelha.
Mas em compensação tambem, que variada serie de
licores e de bebidas para facilitar a digestão d'aquelles
indigestos
alimentos! Que gritos excitantes, que
vociferações
convidativas echoavam nos
bar-rooms ou nas casas
de pasto profusamente adornadas
[238]
de copos, cangirões, frascos,
garrafas brancas e pretas
de fórmas inverosimeis, de almofarizes para pisar o assucar,
e de mólhos de palha!
«Aqui ha o julepe de hortelã!» gritava o
dono de um estabelecimento em tom retumbante.
--Prompta! a
sangaree de vinho de
Bordéus! replicava outro em voz de pipia.
--E o
gin-sling, repetia o segundo.
--E o
cocktail! e
brandy-smash! gritava o primeiro.
--«Quem quer provar do verdadeiro
mint-julep, á ultima
moda?» gritavam alguns destros vendedores, fazendo passar com
rapidez de um para outro copo, como qualquer prestidigitador faria a
uma noz muscada, o assucar, o limão, a
hortelã verde, o gêlo partido, a agua, o cognac e
o ananás de que
se compõe aquelle refresco.
Habitualmente, repetiam-se e cruzavam-se no ar, produzindo infernal
barulho, aquelles incitamentos dirigidos ás guellas
seccas pela acção abrasadora das especiarias. Mas
n'aquelle dia, no primeiro de dezembro, eram raros os gritos. Tambem
bem poderiam os vendedores enrouquecer a provocar os freguezes, que
todos os seus esforços seriam baldados. Ninguem pensava em
comer nem beber; quantos espectadores circulavam por entre a
multidão, que ás quatro horas da tarde ainda nem
tinham comido o seu
lunch do costume! Symptoma
ainda mais significativo, a paixão violenta dos americanos
pelo jogo fôra
vencida pela emoção. Quem visse os paulitos do
tempins
deitados no chão, os dados do
creps a
dormir nos copos, a
roleta immovel, o
cribbage abandonado, as cartas do
whist,
do vinte e um,
do
rouge et noire, do
monte
e do
faro socegadamente fechadas em seus
envolucros intactos, logo comprehendia que o acontecimento do dia
absorvêra qualquer outra necessidade, e não
deixára logar
para distracções.
[239]
Até á noite correu pela multidão
anhelante uma agitação surda, sem clamores, como
a que precede as grandes catastrophes. Dominava os espiritos uma ancia
indescriptivel, um torpor pesado, um sentimento indefinivel que
opprimia o coração.
O que todos desejavam era que «já estivesse tudo
acabado».
Entretanto, por volta das sete horas, dissipou-se repentinamente
aquelle pesado silencio. Nascia então a Lua no horisonte, e
muitos milhões de
hurrahs lhe saudaram a
apparição. Era exacta ao
rendez-vous.
Subiram os clamores até aos céus, rebentaram
applausos de todos os lados, e a loura Phoebéa brilhava
serena no
céu admiravel acariciando com os mais affectuosos de seus
raios a multidão
innebriada.
N'aquelle momento appareceram os tres intrepidos viajantes. Ao
vê-los, redobraram em intensidade os clamores.
Unanimemente, instantaneamente, soltou-se de todos aquelles peitos
anhelantes a canção nacional dos Estados Unidos,
e o
Yankee doodle, repetido em côro por
cinco
milhões de cantores, ergueu-se como uma tempestade sonora
até ao extremo limite da
atmosphera.
Depois, passado aquelle primeiro e irresistivel arranco de enthusiasmo,
emmudeceu o hymno, extinguiram-se pouco e pouco as derradeiras
harmonias, os echos perderam-se no espaço, e
vagueou por sobre a multidão tão fundamente
impressionada
um rumorejar silencioso. No entretanto, o francez e os dois
companheiros tinham transposto o recinto reservado em torno do qual se
apertava a multidão immensa. Acompanhavam-nos os socios do
Gun-Club e as deputações enviadas pelos
differentes observatorios europeus.
Barbicane ia frio e sereno e dava tranquillamente as ultimas ordens.
Nicholl, de beiços apertados e mãos encruzadas
atrás das costas, caminhava com passo firme e pausado.
[240]
Miguel Ardan, sempre despreoccupado, em traje de perfeito viajante,
polainas de coiro nos pés, bolsa de viagem a
tiracolo, mochilla ás costas, a nadar dentro do amplo fato
de velludo
castanho, de charuto na bôca, distribuia na passagem cordeaes
apertos de mão com prodigalidade de principe. Prosa e
alegria nunca lhe faltavam; ria, chalaceava e fazia ao digno J.-T.
Maston partidas de garoto, n'uma palavra mostrava-se
«francez», e,
o que peior é, «parisiense»
até ao
ultimo segundo.
Soaram dez horas. Era chegado o momento de tomar logar dentro do
projectil, porque a manobra necessaria para descer, o aparafusar da
chapa-tampa, e a safa dos guindastes e andaimes que pendiam dentro das
fauces da Columbiada, sempre haviam de levar ainda algum tempo.
Barbicane regulára o seu chronometro, com erro inferior a um
decimo de segundo, pelo do engenheiro Murchison, encarregado de dar
fogo á polvora, por meio da
faísca electrica; d'esta maneira os viajantes podiam,
encerrados dentro do projectil, seguir com os olhos o ponteiro
impassivel que havia de marcar o instante exacto da partida.
Chegára o momento das despedidas. Foi uma scena tocante.
Miguel Ardan, apesar de toda a sua febril alegria, sentiu-se commovido.
J.-T. Maston lográra encontrar sob as aridas palpebras uma
velha lagrima que estava como de reserva para aquella
occasião, e que o bom do secretario verteu na fronte do seu
caro e estimavel presidente.
«E se eu tambem fosse? disse elle, ainda estâmos a
tempo!
--É impossível, meu velho Maston»,
respondeu Barbicane.
Poucos instantes depois, estavam os três companheiros de
viagem installados no projectil, cuja chapa-porta tinham aparafusado
pela parte de dentro, e abria-se livremente para o céu,
inteiramente desembaraçada a bôca da Columbiada.
Nicholl, Barbicane e Miguel Ardan estavam definitivamente entaipados no
wagon de metal.
[241]
Quem poderia pintar a anciedade universal, que então
attingíra ao seu paroxysmo?
A Lua ía caminhando n'um firmamento de limpida pureza, e
apagando na passagem os lumes scintillantes das estrellas; percorriam
aquelle momento a constellação dos Gemeos e
estava a igual distancia do horisonte e do zenith. Para todos era facil
de
comprehender que a pontaria era feita adiante do alvo, como a faz o
caçador que aponta adiante da lebre que quer ferir.
Pesava por sobre aquella scena toda um silencio atterrador. Nem um
sopro de vento na terra! Nem um suspiro de tanto peito. Nem os
corações ousavam palpitar. Os olhos
fixavam-se todos como que assustados nas fauces abertas da Columbiada.
Murchison seguia com os olhos o ponteiro do chronometro. Faltavam
apenas quarenta segundos para soar o instante da partida. Cada segundo
parecia um seculo.
Ao bater do vigesimo segundo tudo estremeceu; é que
accudíra ao pensamento d'aquella multidão que
tambem os audaciosos viajantes encerrados no projectil contavam
aquelles segundos terriveis! Soltaram-se então gritos
isolados que diziam:
«Trinta e cinco! trinta e seis! trinta e sete! trinta e oito!
trinta e nove! quarenta! Fogo!!!»
No mesmo instante, Murchison, carregando com o dedo no interruptor do
apparelho, restabeleceu a corrente electrica e lançou a
faísca para o fundo da Columbiada.
Instantaneamente produziu-se uma detonação
horrorosa, inaudita, sobrehumana, de que cousa alguma poderia dar
idéa, nem o ribombar do trovão, nem o estampido
das
erupções. Das entranhas do solo, como de uma
cratera, surgiu um jacto immenso de fogo. A terra tremeu e abriu-se, e
apenas um ou outro espectador pôde por instantes entrever o
projectil que fendia
victoriosamente os ares envolto em chammejantes vapores.
[242]
CAPITULO XXVII
CÉU ENCOBERTO
No momento em que se ergueu para os céus, até
prodigiosa altura, o jacto incandescente, a effusão de
labaredas
illuminou a Florida inteira; por inapreciaveis instantes, tornou-se a
noite em claro dia n'uma extensão consideravel de
territorio. Aquelle
immenso penacho de fogo viu-se a cem milhas de distancia no mar, tanto
no Atlantico como no golpho, e mais de um capitão de
navio notou no diario de bordo a apparição
d'aquelle
gigantesco meteoro.
A detonação da Columbiada foi acompanhada de um
verdadeiro tremor de terra. A Florida sentiu-se abalada até
ás entranhas. Os gazes da polvora, dilatados pelo calor,
repelliram com violencia incomparavel as camadas atmosphericas, e
aquelle furacão artificial, cem vezes mais rapido que o
furacão das
tempestades, passou como um cyclone através dos ares.
Nem um só espectador ficou de pé; homens,
mulheres, creanças, todos foram deitados ao chão,
como espigas pela borrasca; houve um inexprimivel tumulto, e grande
numero de pessoas que ficaram gravemente feridas. J.-T. Maston, que de
encontro a todos os dictames da prudencia estava perto de mais, foi
arremessado a vinte toezas de distancia, e passou por sobre as
cabeças dos seus concidadãos como uma bala.
Trezentas mil pessoas ficaram por alguns momentos surdas, e como que
tocadas de estupor.
A corrente atmospherica depois de ter derrubado os abarracamentos, de
ter virado de pernas ao ar cabanas, de ter desarreigado
[243]
arvores, n'um raio de vinte milhas, de
ter impellido os comboios do caminho de ferro até Tampa,
caiu sobre a cidade como uma
avalanche,
destruindo um cento
de casas, entre outras a igreja de Saint-Mary, e o novo edificio da
Bolsa, que abriu fendas em toda a sua extensão. Algumas das
embarcações surtas no porto, abalroando umas de
encontro ás outras, foram a pique,
e uns dez navios fundeados no molhe foram até á
costa, partidas as amarras como fios de algodão.
Mas o circulo das devastações estendeu-se muito
mais ao largo, ainda alem dos limites dos Estados Unidos. O effeito da
repercussão, auxiliado pelos ventos de oeste, fez-se sentir
no Atlantico a mais de trezentas milhas das praias da America.
Arremessou-se por sobre os navios com inaudita violencia uma tempestade
artificial, uma tempestade inesperada, que nem o almirante Fitz-Roy
podéra prever; muitas embarcações
envolvidas n'aquelles horrorosos turbilhões, sem tempo
sequer para colher panno, sossobraram a panno largo, entre outros o
Childe-Harold, de Liverpool, catastrophe esta
muito para lamentar, que deu origem a
recriminações violentas por parte da Inglaterra.
Finalmente, para tudo relatar, aindaque o facto não
offereça maior garantia do que a
affirmação de alguns
indigenas, asseguram os habitantes da Goréa e de Serra
Leôa ter ouvido,
meia hora depois da partida do projectil, um abalo surdo, derradeiro
fremito das ondas sonoras, que depois de terem atravessado o Atlantico,
vinham morrer nas plagas africanas.
Mas volvâmos á Florida. Passados os primeiros
instantes do tumulto despertaram os surdos, os feridos, emfim a
multidão
inteira, e ergueram-se até aos céus clamores
freneticos
de: hurrah por Ardan! hurrah por Barbicane! hurrah por Nicholl!
Milhões
de homens de ventas para o ar, armados de telescopios, de lunetas, de
oculos de alcance, interrogavam o espaço, esquecidos de
contusões e emoções, para se occuparem
exclusivamente do projectil.
[244]
Mas debalde pesquisavam, que o projectil já
não podia ver-se, e força era resignar-se a
esperar pelos telegrammas
de Long's-Peak.
[245]
O director do observatorio de Cambridge
[96]
estava no seu posto, que
a elle, astronomo habil e perseverante, é que
tinham sido confiados os trabalhos de observação.
Porém um phenomeno imprevisto, aliás facil de
prever, e contra o qual nada havia a fazer, veiu dentro em pouco
submetter a dura prova a impaciencia publica.
O director estava no seu posto
(pag. 245).
[246]
O tempo até ali tão bello, mudou do repente, o
céu de subito toldado cobriu-se de nuvens. Nem podia deixar
de assim succeder, depois da terrivel deslocação
das camadas
atmosphericas e da dispersão de tão enorme
quantidade de vapores, producto da
deflagração de quatrocentas mil libras de
pyroxylo.
A ordem natural fôra completamente perturbada. Nem
é cousa que cause admiração, visto
como, nos combates
navaes, por vezes se têem observado repentinas
modificações do estado atmospherico,
exclusivamente causadas pelas descargas de artilheria.
No dia seguinte surgiu o sol de um horisonte carregado de espessas
nuvens, pesado e impenetravel véu estendido entre o
céu e a terra, e que por desgraça
alcançava
até ás regiões das montanhas
Penhascosas. Foi uma fatalidade. Ergueu-se de todos os cantos do globo
um concerto de reclamações. A
natureza porém pouco se commovia; decididamente
já que os homens tinham perturbado a atmosphera com a
detonação, justo
era que lhe soffressem as consequencias.
No decurso do primeiro dia todos diligenceavam penetrar o opaco
véu de nuvens; baldados esforços! Deve
tambem notar-se que todos se enganavam levantando os olhos para o
céu, porque em consequencia do movimento diurno do globo, o
projectil corria n'aquelle momento pela linha dos antipodas. Fosse como
fosse, quando a Lua volveu acima do horisonte, envolvida como estava a
Terra em noite impenetravel e profunda, foi impossivel distinguir o
astro das noites; era caso para dizer que a Lua de proposito se furtava
ás vistas dos temerarios que lhe
tinham atirado.
[247]
Consequentemente não havia possibilidade de
observação, e os despachos de Long's-Peak
não fizeram mais do que vir
confirmar aquelle desagradavel contratempo.
Entretanto, se é que a experiencia lográra feliz
exito, os viajantes que tinham partido no 1.º de dezembro
ás dez horas quarenta
e seis minutos e quarenta segundos da tarde, deviam chegar no dia 4
á meia noite, e portanto até
áquella epocha, e visto como, por fim de contas, sempre
havia de ser muito difficil observar em taes
condições corpo tão pequeno
como o obuz, todos se mostraram pacientes sem grande alarido.
A 4 de dezembro, das oito horas da tarde até á
meia noite devia ser possivel seguir o rasto do projectil, que devia
apparecer qual ponto negro no disco brilhante da Lua. Mas o
céu
conservou-se encoberto sem piedade, facto que levou a
exasperação publica ao paroxysmo. Chegaram
até a injuriar a Lua,
só porque se não mostrava. Triste
compensação
das cousas d'este mundo!
J.-T. Maston, desesperado, partiu para Long's-Peak. Desejava observar
por seus proprios olhos. Não lhe restava duvida de
que os amigos deviam ter chegado ao termo da viagem. E tambem a ninguem
constava que o projectil tivesse tornado a caír em qualquer
ponto das
ilhas ou dos continentes terrestres, e J.-T. Maston não
queria admittir nem por instantes a possibilidade da
quéda nos oceanos que cobrem as tres quartas partes da
extensão do
globo terraqueo.
No dia 5, tempo, o mesmo. Os grandes telescopios do velho mundo, o de
Herschell, o de Rosse, o de Foucault estavam
invariavelmente apontados para o astro das noites, porque o tempo na
Europa estava exactamente n'aquella occasião magnifico;
mas o pouco alcance relativo de taes instrumentos, impedia qualquer
observação util.
No dia 6, tempo, o mesmo. Mordiam-se de impaciencia as tres
[248]
quartas partes do globo. Chegaram a propor-se os
meios mais insensatos para dissipar as nuvens accumuladas no ar.
No dia 7, pareceu que o estado do céu se modificava um
tanto. Renasceu a esperança, mas não durou por
muito
tempo; á noite, já as nuvens de novo acastelladas
defendiam a abobada
estrellada contra todas as inspecções.
O caso então tornou-se serio. Effectivamente no dia 11,
ás nove horas e onze minutos da manhã devia a Lua
entrar no ultimo quarto. Passado esse momento havia de ir declinando, e
aindaque o céu limpasse diminuiriam notavelmente as
probabilidades de observação; com effeito a Lua
havia de mostrar
então uma parte sempre decrescente do disco, até
tornar-se em Lua
nova, isto é, até que nascesse e se pozesse
simultaneamente com o Sol, cujos raios a tornariam absolutamente
invisivel. Seria portanto necessario esperar até 3 de
janeiro até ao meio
dia e quarenta minutos para que voltasse a Lua cheia, e se podessem
recomeçar as observações.
Os jornaes publicavam estas reflexões com mil commentarios,
e não occultavam ao publico, que era necessario armar-se de
angelica paciencia.
No dia 8, nada. No dia 9 o sol appareceu por um instante como para
zombar dos americanos. Cobriram-no de vaias, e offendido, certamente
com tal acolhimento, mostrou-se avaro de seus raios.
No dia 10, nada de mudança. J.-T. Maston ia enlouquecendo,
chegou a haver suas apprehensões em
relação ao cerebro daquelle estimavel cavalheiro,
tão bem conservado até
então, pelo seu craneo de gutta-percha.
No dia 11 porém desencadeou-se na atmosphera uma d'aquellas
horrorosas tempestades privativas das regiões
inter-tropicaes. Varreram fortes ventaneiras de leste as nuvens ha
tanto tempo
encastelladas, e á noite o disco meio corroido do astro das
noites ostentou-se magestoso por entre as limpidas
constellações do céu.
[249]
CAPITULO XXVIII
UM ASTRO NOVO
N'aquella mesma noite, a palpitante nova com tanta impaciencia esperada
rebentou como um raio nos Estados da União, e d'ali correndo
através do oceano, percorreu todos os fios
telegraphicos do globo. O projectil fôra visto,
graças ao
gigantesco reflector de Long's-Peak.
Eis a nota redigida pelo director do observatorio de Cambridge, que
contém as conclusões scientificas da grande
experiencia do Gun-Club.
«Long's-Peak, 12 de dezembro.--Aos ex.
mos
srs. membros do
pessoal technico do observatorio de Cambridge.
«O projectil arremessado pela Columbiada de Stone's-Hill foi
visto pelos srs. Belfast e J.-T. Maston, no dia 12 de dezembro,
ás oito horas e quarenta e sete minutos da tarde,
já a Lua
entrára no ultimo quarto.
«O projectil não deu no alvo, passou-lhe ao lado,
mas todavia bastantemente proximo para ficar retido pela
attracção lunar.
«Chegado ali, transformou-se-lhe o movimento rectilineo em
movimento circular de rapidez vertiginosa, e actualmente percorre uma
orbita elliptica em volta da Lua, da qual se tornou verdadeiro
satellite.
«Os elementos do novo astro não poderam ainda
determinar-se. Nem é conhecida a sua velocidade de
translação, nem a de
rotação. A distancia a que está da
superficie da Lua, póde
avaliar-se em duas mil oitocentas e trinta e tres milhas
approximadamente.
[250]
«N'estes termos, uma de duas hypotheses póde
realisar-se, que ha de ter por consequencia
modificação no actual
estado de cousas.
«Ou vencerá a attracção da
Lua, e n'este caso chegarão os viajantes ao termo da sua
viagem;
«Ou o projectil mantido n'uma ordem immutavel,
gravitará até final dos seculos em volta do disco
lunar.
«É o que nos hão de dizer um dia as
observações; até agora
porém, a tentativa do Gun-Club não colheu outro
resultado
senão enriquecer com um astro novo o nosso systema
solar.
--J.
T. Belfast.»
Quantos problemas surgiram d'esta inesperada
solução! Que situação cheia
de mysterios reservava o futuro ás
investigações da sciencia! Graças
á coragem e á
dedicação de tres homens, aquella empreza
apparentemente assás futil, de arremessar uma bala
á Lua, acabava de ter um resultado immenso, e cujas
consequencias eram incalculaveis. Os viajantes encerrados no novo
satellite, se não tinham realisado o seu fim, faziam pelo
menos parte
do mundo lunar; gravitavam em torno do astro das noites, cujos
mysterios o olho do homem ía pela vez primeira penetrar. Os
nomes de Nicholl, Barbicane e Miguel Ardan devem portanto para todo o
sempre ser celebrados nos fastos da astronomia, porque estes ousados
exploradores, avidos de alargar o circulo dos conhecimentos humanos,
lançaram-se audaciosamente através do
espaço, e jogaram a vida na mais notavel tentativa dos
tempos modernos.
Como quer que fosse, logoque foi do dominio publico a nota de
Long's-Peak, apossou-se do universo inteiro um sentimento de surpreza e
de espanto. Acaso seria possivel prestar auxilio áquelles
ousados habitantes da Terra? Não, por
certo, que se tinham collocado fóra da humanidade, logo que
transpozeram os limites impostos por Deus ás creaturas
terrestres. Ar podiam
elles obte-lo pelo espaço de dois mezes. Viveres,
levavam-n'os para
[251]
um anno. Mas depois?... Ao
formular-se tal pergunta palpitavam até os
corações mais insensiveis.
Só havia um homem, um só, que não
podia admittir que a situação fosse para
desesperar. Um só tinha confiança, e
era esse o amigo dedicado dos tristes, e tanto como elles audaz e
resoluto, era o estimavel J.-T. Maston.
E tambem não os largava de olho. Assentára
definitivamente os penates no posto de Long's-Peak, onde tinha por
unico horisonte o espelho do immenso reflector. Logoque a Lua surgia
acima do horisonte, fixava-a no campo do telescopio e não a
perdia de
vista nem um momento, seguindo-a com assiduidade na sua marcha
através dos espaços estellares; observava com
eterna paciencia a passagem do projectil pelo disco de prata; na
realidade podia dizer-se que o estimavel secretario estava em perpetua
communicação com os tres amigos, que ainda, um
dia esperava tornar a ver.
«Havemos de nos corresponder com elles, dizia a quem queria
ouvi-lo, logoque as circumstancias o permittam. Havemos de ter
novidades de lá, e elles tambem as hão de ter de
cá! E demais, eu conheço-os, são
homens engenhosos. Juntos os
tres, levaram comsigo para o espaço todos os recursos da
arte, da sciencia
e da industria. Com taes elementos faz-se tudo quanto se quer.
Hão de saír-se da difficuldade, e
senão
veremos!»
FIM DE «DA TERRA Á LUA».
INDICE DOS CAPITULOS
Capitulos |
|
|
Pag. |
I |
O
Gun-Club |
|
5 |
II |
Communicação
do presidente
Barbicane |
|
16 |
III |
Effeitos
da communicação
Barbicane |
|
27 |
IV |
Resposta
do observatorio de
Cambridge |
|
34 |
V |
Romance da Lua |
|
40 |
VI |
O que
não é possivel ignorar, e o que
já não é permittido acreditar nos
Estados
Unidos |
|
49 |
VII |
Hymno
da bala |
|
55 |
VIII |
Historia do
canhão |
|
68 |
IX |
A
questão da
polvora |
|
76 |
X |
Um
inimigo por vinte e cinco milhões de
amigos |
|
86 |
XI |
A
Florida e o
Texas |
|
95 |
XII |
Urbi
et
Orbi |
|
103 |
XIII |
Stone's-Hill |
|
112 |
XIV |
O alvião
e a
trolha |
|
122 |
XV |
Festa
da
fundição |
|
132 |
XVI |
A Columbiada |
|
137 |
XVII |
Um despacho
telegraphico |
|
147 |
XVIII |
O passageiro do Atlanta |
|
148 |
XIX |
Um meeting |
|
161 |
XX |
Ataque e
replica |
|
174 |
XXI |
Como um francez
arranja uma pendencia de
honra |
|
186 |
XXII |
O novo
cidadão dos Estados
Unidos |
|
198 |
XXIII |
O
wagon-projectil |
|
207 |
XXIV |
O telescopio das
montanhas
penhascosas |
|
217 |
XXV |
Ultimos
pormenores |
|
226 |
XXVI |
Fogo! |
|
235 |
XXVII |
Céu
encoberto |
|
242 |
XXVIII |
Um
astro novo |
|
249 |
Notas:
[1] Escola
militar dos Estados
Unidos.
[2] Papalvo.
[3]
Litteralmente,
«club-canhão». Pelo sentido, club dos
artilheiros.
[4]
Quinhentos kilogrammas.
[5] Cada
milha vale 1:609 metros e 31 centimetros. Sete milhas
valem approximadamente tres leguas kilometricas.
[6] O
jornal abolicionista mais enthusiasta dos Estados
Unidos.
[7] Navalha
de folha larga.
[8] Governo
de si proprio.
[9] Administradores
da cidade
eleitos
pelo povo, vereadores.
[10] Cadeiras
de balouço, muito usadas nos Estados
Unidos.
[11] De
σελήνη
(seléne), palavra grega, que significa Lua.
[12] A
jarda vale approximadamente 91 centimetros.
[13] Este
folheto foi publicado em França pelo
republicano Laviron, morto no assedio de Roma em 1849.
[14] Habitantes
da Lua.
[15] Approximadamente
11:000 metros.
[16] Mistura
de rhum, sumo de laranja, assucar, canella e noz
moscada. É uma bebida de côr amarellada.
[17] Bebida
horrorosa do povo mais baixo; em inglez
litteralmente:
thoroug knoch me
down.
[18] Cognome
da Nova Orleans.
[19] Cem
mil leguas. É a velocidade da
electricidade.
[20] Guarda-vida
(life-preserver). Arma de algibeira, formada de um feixe de barbas de
baleia, ligadas n'uma das extremidades por uma bola de
metal.
[21] Muita
bulha para nada,
comedia de Shakspeare.
[22] Como
vos aprouver,
outra comedia de Shakspeare.
[23] Está
no texto a palavra
expedient, que é
absolutamente intraduzivel em portuguez.
[24] O
zenith é o ponto da abobada celeste, situado
na vertical que passa pelo observador.
[25] A
nebulosa é, como se deprehende do texto, um
aggregado de alguns milhões de soes ou estrellas que
estão entre si a grandissimas
distancias. Estes aggregados, por virtude da enorme distancia
de cada uma das
suas partes á terra, apparecem-nos á vista
simples, como se fossem corpos
continuos, nuvens, d'ahi lhes vem a denominação.
Exemplo notavel de
nebulosa é a
via lactea ou estrada de
S. Thiago, da qual o nosso sol
é estrella componente.
(Nota do traductor.)
[26] Da
palavra grega
γαλαχτος,
que significa leite.
É conhecida vulgarmente pelo nome de estrada de S. Thiago.
[27] O
diametro de Sirius é, segundo Wolaston, doze
vezes maior que o do Sol, isto é, igual a 4.300:000 leguas.
[28] Alguns
d'estes astros são tão
pequenos, que se poderia fazer n'um dia a passo gymnastico uma volta
completa em volta d'elles.
[29] Vinte
e nove dias e meio approximadamente é o
que dura uma revolução lunar.
[30] Oitocentas
e sessenta e nove leguas, um pouco mais da
quarta parte do raio da terra.
[31] Trinta
e oito milhões de kilometros quadrados.
[32] Esta
é a duração da
revolução sideral, isto é, intervallo
de tempo que ha entre duas passagens consecutivas da Lua pela mesma
estrella.
[33] Isto
é de calibre vinte e quatro, que
pesa vinte e quatro libras.
[34] É
por esta rasão que
depois de termos ouvido a detonação da
peça já não podemos ser feridos pela
bala.
[35] Columbiadas
chamaram os americanos áquellas
enormes machinas de destruição.
[36] Duzentos
e setenta mil réis ao cambio medio de
cento e oitenta réis por franco.
(Nota do traductor.)
[37] Trinta
centimetros: a pollegada americana vale 25
millimetros.
[38] Isto
é, 4 metros e 90 centimetros. Á
distancia a que está a Lua o descenso seria
sómente de 1 millimetro e
1⁄3
ou 590 millesimos da
linha.
[39]
Intersticio que existe ás vezes entre
a bala e a alma da peça, e que provém de
não serem exactamente iguaes os diametros.
[40]
Centesimos do dollar, 36 réis
approximadamente.
[41] A libra
americana vale 453 grammas.
[42] Pouco
menos de oitocentos metros cubicos.
[43] Dois
mil metros cubicos.
[44] N'esta
discussão reivindica o presidente
Barbicane para um compatriota seu a invenção do
collodion.
Em que pese ao estimavel Maston, diremos que ha aqui erro, que vem da
similhança de nomes. Em 1847, Maynard, estudante de medicina
em Boston, teve, é verdade, a idéa de applicar o
collodion
ao tratamento das chagas; mas o collodion já era conhecido
desde 1846. É a um
francez, espirito distincto, homem de sciencia, a um tempo pintor,
poeta, philosopho, hellenista e
chimico, Luiz Ménard, que cabe a honra d'esta grande
descoberta.
[45] Navios
de guerra americanos.
[46] O
peso de polvora empregado era apenas um duodecimo do
peso do obuz.
[47] Oitenta
e um mil e trezentos francos ou quatorze contos
seiscentos e trinta e quatro mil réis, a cento e oitenta
réis
o franco.
[48] A
declinação de um astro
é a sua distancia ao equador celeste medida no seu
meridiano. A ascensão recta é o arco do
equador comprehendido entre o meridiano do astro e o ponto vernal.
[49] Quatorze
mil setecentos e sessenta contos de
réis ao cambio de novecentos e dezoito réis o
dollar.
[50] Tres
mil seiscentos setenta e dois contos de
réis.
[51] Duzentos
sessenta e cinco contos e quinhentos mil
réis.
[52] Duzentos
e vinte e cinco contos setecentos e sete mil e
quatrocentos réis.
[53] Noventa
e tres contos e seiscentos mil réis.
[54] Cincoenta
e dois contos novecentos e setenta e oito mil
cento e quarenta réis.
[55] Cento
e sessenta e oito contos setecentos e cincoenta mil
réis.
[56] Sessenta
e dois contos trezentos e oito mil e oitocentos
réis.
[57] Noventa
e dois contos trezentos e quarenta mil
réis.
[58] Vinte
e tres réis e quatro decimos.
[59] Quarenta
e dois contos trezentos e setenta e dois mil
réis.
[60] Vinte
e um contos cento e trinta e quatro mil quinhentos e
vinte réis.
[61] Doze
contos novecentos e sessenta mil réis.
[62] Trinta
e seis contos de réis.
[63] Seis
contos oitocentos e quarenta e dois mil oitocentos e
oitenta réis.
[64] Trezentos
e dez mil oitocentos e sessenta
réis.
[65] Quarenta
e seis mil duzentos e sessenta réis.
[66] Cinco
mil cento e setenta réis.
[67] Duzentos
e noventa e dois contos seiscentos e oitenta mil
réis.
[68] Cinco
mil trezentos e treze contos setecentos e setenta e
sete mil e doze réis.
[69] Noventa
e sete mil quinhentos e sessenta réis.
[70] Proximamente
duzentas leguas.
[71] 84°
do thermometro Fahrenheit, que equivalem a 28 do
thermometro centigrado.
[72] Riacho.
[73] 15
365:440
hectares.
[74] Gastaram-se
nove annos para abrir o poço de
Grenelle, que tem quinhentos e quarenta e sete metros de altura.
[75] Seiscentos
quarenta e dois contos,
quarenta e dois mil trezentos e sessenta réis.
[76] Em
termo vulgar,
vedor.
(Nota do traductor.)
[77] Collina
das pedras.
[78] A
contar do meridiano de Washington. A
differença para o meridiano de Lisboa é de
67°
56' 31",35. Esta longitude é
portanto, em relação ao meridiano de Lisboa
73° 3' 31",35 O.
(Nota do traductor.)
[79] Tin,
especie de cavalete.
[80] 40
graus centigrados.
[81] Tres
mil e seiscentos metros, proximamente.
[82] Em
portuguez chama-se vulgarmente ferro fundido
(traducção do termo francez «fonte de
fer») não ao ferro
puro em fusão ou depois de ter sido fundido, mas a um
carbonato silicioso de ferro que se obtem submettendo o
minerio de ferro a differentes
operações.
(Nota do traductor.)
[83] Cidade
da Lua.
[84] Quatrocentos
e trinta e tres contos e seiscentos mil
réis.
[85] Mystification.
Mystificação.
[86] Paixão
dominante.
[87] A
inclinação do eixo de Jupiter,
sobre a sua orbita, é apenas de 3° 6'.
[88] Ponto
onde se reunem os raios luminosos depois de
refractos.
[89] Custou
oitenta mil rublos, isto é, cincoenta e
sete contos e seiscentos mil réis.
[90] De
muitas outras lunetas reza a chronica que tinham bem
maior comprimento, entre outras uma construida por iniciativa de
Domingos Cassini, no observatorio de Paris, que tinha trezentos
pés de foco;
convem todavia saber que taes lunetas não tinham tubo. O
objectivo estava
suspenso nos ares por meio de mastros, e o observador collocava-se com
a possivel
exactidão no foco do objectivo, com o ocular na
mão. É bem
patente quão pouco commodo haveria de ser o emprego de taes
instrumentos, e a difficuldade que haveria em ajustar os centros de
duas lentes collocadas em similhantes
condições.
[91] Esta
especie de reflectores chamam-se «front
view telescope», isto é «telescopios de
visão directa».
[92] O
mais alto cume do Hymalaya.
[93] Nebulosa
que tem a fórma de um carangueijo.
[94] Duzentos
litros approximadamente.
[95] Comida
composta de diversos peixes.
[96] J.
M. Belfast.
Lista de erros corrigidos
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