Project Gutenberg's Costumes Madrilenos, by Sebastião de Magalhães Lima

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Title: Costumes Madrilenos
       Notas de um Viajante

Author: Sebastião de Magalhães Lima

Release Date: September 15, 2009 [EBook #29999]

Language: Portuguese

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MAGALHÃES LIMA

COSTUMES MADRILENOS

 

NOTAS DE UM VIAJANTE

 

SEGUNDA EDIÇÃO

 

 

 

 

COIMBRA
LIVRARIA CENTRAL DE J. D. PIRES—EDITOR
1877

 

 

COSTUMES MADRILENOS

 

 

COSTUMES MADRILENOS

NOTAS DE UM VIAJANTE

POR

S. DE MAGALHÃES LIMA

SOCIO HONORARIO D'EL FOMENTO DE LAS ARTES DE MADRID

 

2.ª EDIÇÃO

 

 

 

 

COIMBRA
LIVRARIA CENTRAL
DE
JOSÉ DIOGO PIRES—EDITOR
1877

 

 

 

 

IMPRENSA ACADEMICA

 

AO

SENHOR.

D. BENIGNO JOAQUIM MARTINEZ

 

 

Off.

 

 

 

O auctor

 

{7}

COSTUMES MADRILENOS

I

CARACTERES E COMPARAÇÕES

Leitor amigo, se queres possuir a chave da vida, se queres ter o segredo da existencia, aprende a viajar.

A viagem tem, como todas as cousas d'este mundo, a sua pequena philosophia e as suas theorias, mais ou menos complicadas, e os seus progressos mais ou menos notaveis.

Viajar não é uma variedade de sensações apenas; mas ainda mais, e principalmente,{8} uma fonte inexgotavel de boa e salutar experiencia, um manancial perenne de vividos enthusiasmos por tudo quanto é bello, novo e original, e uma origem fecunda de analyse, de observação e de critica, que de ordinario raro é de encontrar-se no paiz onde nascemos, ou na cidade onde residimos.

E assim é realmente que, se tu quizeres admirar a seriedade nos costumes, a robustez no corpo, a soberania na guerra, o metaphysico na sciencia, o imperio na familia, a fidelidade nos affectos, e a superstição na religião—tu irás á Allemanha.

Se pelo contrario, tu desejares vêr a frouxidão no corpo, o indifferentismo em politica, a lassidão nos costumes, a perversão nos principios, a fraqueza na sciencia, o theologismo na religião, o lyrismo na vida—tu, sem mais trabalhos nem violencias, ficarás em Portugal.

Mas se tu, embora não te repugne a debilidade physica e a pusillanimidade de espirito, quizeres o ideal da arte e a architectura da sciencia—então procurarás Italia.{9}

Por outro lado ainda, se te impressiona o ruido das palavras, a viveza do olhar, a facilidade dos affectos, a modestia do trajar, a generosidade do coração, o esplendor do ménage—parte para a Hespanha.

Com uma mulher hespanhola vive-se bem um mez, num sensualismo delicioso, numa voluptuosidade tepida e numa ardencia de amores que nem sempre é vulgar nas outras mulheres do mundo.

Com uma mulher franceza, porém, o espirito não se cança nunca, nem o coração chega jámais a desesperar—e se um seculo vivessemos, um seculo tambem consagrariamos a essas fadas, mais demonios do que anjos, e quasi sempre mais amantes do que esposas.

No francez dá-se, a par da elevação da idéa, a agilidade elegante do corpo, a simplicidade maravilhosa do trajar, a delicadeza sem igual da cosinha, a intrepidez risonha dos factos e das circumstancias, a attenção magnetica das palavras, a originalidade dos costumes.

Com elles contrastam os inglezes, os{10} quaes, não obstante serem mudaveis em religião, são, todavia, prudentes nos seus negocios, zelosos na sua vida intima, affaveis nas maneiras, orgulhosos no trajo e astuciosos na guerra.

Subordinados ás circumstancias, ao tempo e aos logares—os povos são um resultado do meio em que se acham mergulhados.

O que promoveu a questão do Oriente não foi verdadeiramente a ambição dos monarchas, mas antes o imperio que a civilisação moderna tem direito de exercer sobre tudo e sobre todos.

E por isso a Turquia, como vestigio de barbarismo que ainda é hoje na Europa, foi de ha muito condemnada á morte e ao ostracismo.

O caracter turco era facilmente domavel, mas por natureza fanatico, supersticioso, intolerante—tal qual como as verdades do Alcorão.

Por isso, leitor, embora tu sintas grandes saudades do harem e das houris, resigna-te, e deixa de combater pelos turcos.{11}

Que elles e os seus sultões se dignem subir ao setimo céu de Mafoma, e que nos deixem.

Mas, francamente, se tu queres viver pela natureza, se soffres dos pulmões, se és pantheista, se gostas das borboletas e das flores, se te enthusiasmas com os limpidos horisontes das montanhas e dos rios, se és socegado, melancholico, um tanto nostalgico e triste, escolhe a peninsula, aluga uma casa todos os annos no Bussaco, percorre a Andaluzia na primavera, visita as praias, e deixa-te ficar por cá.

Se, porém, não temes os frios do norte, se és audaz, intrepido, valente, corajoso, se amas a sciencia e a arte, se não te canças em subir a uma montanha e em correr num trenó num dia gelado, e por um rio coberto de neve, se gostas da vida, tal como ella deve ser—valorosa, hygienica, e grande, então vai á Suissa, á Allemanha, á Italia, e até mesmo á Russia, se tanto fôr da tua vontade.

Convém que faças uma viagem todos os annos na primavera. Para isso basta apenas, que no teu viver domestico, no{12} teu gastar quotidiano, tu adquiras uma sciencia tão difficil, como rara de conservar-se—a sciencia da economia.

No fim de oito ou dez annos, tu sentir-te-has forte, cheio de critica, vigoroso na discussão, capaz de entrar em todos os assumptos, que por acaso se ventilarem, e susceptivel de comparar, entre si, não só todos os paizes do mundo, mas ainda os homens e as sociedades.

E assim tu terás o dom do historiador, a evidencia dos factos, a observação da natureza e o estudo das cousas em geral.

Eu não quero que tu te faças misanthropo, doente, regenerador. Não! Porque sou portuguez, e desejo que tu sejas alegre, feliz, espirituoso, bom amigo, excellente marido e cidadão prestante.

E para isso, para afugentar terrores e negrumes, para que tenhas saude, vida e amor—é forçoso que tu viages, que deixes a tua aldeia e as tuas arvores, que arranjes a tua mala, que te despeças dos teus conhecidos e que partas.

Nada de esperas. Quanto mais cedo melhor. O mundo é para quem caminha;{13} e a viagem é como a sciencia, tambem um progresso.

Aqui tens o teu casaco. Cabeça alta e adeus á patria querida.

Cocheiro—açoute nesses cavallos!

Para deante. Para deante é que é o caminho.{14}
{15}

 

II

NÓS E ELLES

Não ha duvida que nós não somos elles, nem elles são nós.

Não obstante, elles querem ser nós, mas nós é que não queremos ser elles.

Coisas d'este mundo!

Nós, não nos fartamos de elogiar Madrid; e elles não se cançam nunca de exaltar Lisboa.

Mutatis mutandis, ninguem está bem senão onde não está.

A verdade, porém, é que nem a patria do sr. Fontes é má, nem as terras do sr. Canovas são detestaveis.{16}

Lisboa tem, como Madrid, as suas pequenas corrupções, os seus ministros ociosos, a sua realeza inutil, o seu credito abastardado, a sua administração vacillante, os seus empregados preguiçosos, a sua fama em decadencia e o seu futuro compromettido.

Tudo isto temos nós, e tudo isto têm elles—mercê de Deus.

Por cá, como por lá, multiplicam-se os bailes, rangem as sêdas, reluzem as toilettes, scintillam os chrystaes, refervem os vinhos nas suas taças preciosas, adelgaça-se o corpo, polvilham-se os cabellos, tingem-se as faces, alarga-se a consciencia, confundem-se os factos, adora-se a elegancia, e todos—ó céus! sem mesmo o presentirem—caminham para o bom tom, impellidos pela magreza, que os devora, arrastados pela falta de hygiene e seduzidos pela eterna sereia das humanas velleidades.

D'onde se conclue que cá e lá más fadas ha.

Mas Lisboa, com franqueza, não é de todo má: as suas ruas estão povoadas de{17} bellos e formosissimos edificios; os seus jantares, embora sem dinheiro, são abundantes; os seus hospedes vestem-se bem, não obstante faltar-lhes para isso o corpo e o sangue; as suas filhas de aguarella sabem calçar uma bota á Benoiton; Aline, a sua modista, tem algum gosto; Stellpflug e Manuel Lourenço, os seus sapateiros predilectos, contentam os seus freguezes; Barral tem bons remedios; o café, em geral, não é mau; os charutos satisfazem; os assassinos não tem sido demais; quem quizer tambem póde deixar de se suicidar; emfim, ella não é despiciente, acreditem:—unicamente o que lhe falta é o espirito, isto é, o tic nervoso, que dá o bom senso; o enthusiasmo, que eleva as gerações; o fanatismo scientifico, que torna os homens celebres e audazes; o que lhe falta verdadeiramente é isso—essa primeira parte da humanidade a que Shakespeare chamaria, talvez, o to be da humana existencia—o caracter.

Emile Péreire, no tempo em que escrevia no Nacional, sob as ordens de Armand Carrel, tão pobre era que longe estava{18} de imaginar o futuro de riqueza que o esperava.

Foi, recordando-se d'esse passado de miseria, que elle pronunciou aquella esplendida phrase, de que Charlet fez uma caricatura:

—Aos trinta annos tinha dentes e não tinha pão; aos sessenta tenho pão e não tenho dentes.

Pois assim está a nossa capital—quando tinha caracter e dinheiro faltava-lhe o espirito e o desenvolvimento intellectual; agora que naturalmente está mais desinvolvida e mais apta para as concepções do mundo moderno, escasseia-lhe o caracter e a franqueza.

Façamos como Paulo Vernet, o pintor realista—abramos a janella, e olhemos serenamente o que se passa.

Em Madrid vive-se no café e pelo café. Quando se quer procurar qualquer pessoa importante, não se pergunta nunca pela casa onde reside, mas sim pelo café que costuma frequentar. E ahi está tambem o motivo, porque, na capital da Hespanha, os cafés, que quasi se podem dizer{19} pequenas aldeias pela extensão e pelo comprimento, estão cheios, perfeitamente cheios, durante a noite e durante o dia. É ahi que se faz a politica, e é ahi tambem que se preparam os futuros acontecimentos do paiz.

Dizia madame de Grirardin que um dos primeiros deveres da mulher era ser bonita. Pois o hespanhol tem para si, que um dos primeiros deveres do homem, em geral, é ser fallador, ruidoso, amante das revoltas e sinceramente admirador do extraordinario.

Lembro-me que, numa noite, no theatro da zarzuella, um meu companheiro de viagem havia sido apresentado a uma distincta familia de Madrid, com quem travou estreitas relações de amizade e de quem recebeu os mais inequivocos testemunhos de affecto.

Eram pae, mãe e duas filhas.

No dia immediato ao da apresentação um grande acontecimento echoou na cidade. Dizia-se que uma senhora havia sido ferida na cabeça por um tiro de rewolver, desfechado á queima roupa por seu{20} marido, o qual, julgando-a morta, se suicidára logo em seguida.

Este facto, importante em qualquer outro paiz, ali mal despertou a curiosidade publica. Quasi que passou desapercebido.

Averiguado, porém, o caso, soube-se effectivamente que a heroina era nem mais nem menos do que a tal senhora, que, na vespera, pela sua attenciosa bizarria confundira o meu amigo, com attenções e delicadezas. Ella exigira do esposo dinheiros avultados, que elle asseverava abertamente não ter em casa, naquella occasião. Então a mulher, enfurecida, gritou, fingiu-se morta, até que emfim se atirou ao marido, o qual, não constando que fosse santo, se atirou por seu turno a ella.

E assim, travados de razões, armaram aquella tragedia, digno exemplo de duas filhas menores e edificante monumento da civilisação de um povo.

Madrid tem, sobretudo, um vicio de origem—a falta de agua. O caracter hespanhol, tão contradictorio em si e nas suas manifestações, é todavia secco, aspero{21} ás vezes, e irreflectido quasi sempre.

A escassez de agua, além de escurecer toda a paisagem da Estremadura, faz ainda, porém, com que as flores sejam raras na cidade, e de todo o ponto destituidas de gosto.

Ora todos sabem que a flôr entra hoje na vida do ménage como uma necessidade, insubstituivel. Muitas senhoras têm nella uma companheira e uma amiga. A aridez da vida domestica é muitas vezes compensada pela existencia de um jardim, ao qual a dona da casa consagra todos os seus ocios e em virtude do qual ella cura todos os seus tedios.

A mulher hespanhola, como não tem flores nem jardim, procura naturalmente os cafés e o mundo exterior, de que aliás precisa para conviver e para se entreter; cousa que, em nosso juizo, ninguem, em verdade, lhe poderá levar a mal.

E, no meio de tudo isto, não ha povo que sinceramente comprehenda melhor as leis da hospitalidade e que melhor e{22} mais bizarramente saiba attrahir a si os estrangeiros.

Mas, embora elles queiram ser nós,—nós é que, em boa logica, não podemos ser elles.

Elles, por exemplo, empregam o adjectivo largaesta calle es muy larga—para significar o comprimento, ao passo que nós o empregamos para exprimir a largura.

Antithese completa!

Oh! não—decididamente nós não podemos ser elles..

Mas, se ellas quizessem ser nós!...

Se nós fossemos ellas!...{23}

 

III

A CIDADE

No centro de uma extensa planicie, acompanhando a margem esquerda do Manzanares e alteada sobre differentes collinas de arêa de pequena elevação, ergue-se a cidade de Madrid, a formosissima villa coronada, prodigiosa de encantos, opulenta de prazeres e esplendida de vida.

Data do reinado de Philippe II, em 1560, a mudança da capital do reino hespanhol de Toledo para Madrid.

Perde-se na bruma dos tempos a origem etymologica d'esta cidade. No entretanto{24} julga um illustrado escriptor que a verdadeira derivação de Madrid é Magerit, palavra arabe, que na nossa lingua significa corrente de agua.

Muitas foram, e successivas, as invasões por que passou a cidade. Não vem para aqui, por deslocada, uma resenha historica de todos esses tempos de agitação, mais ou menos intimamente ligados com as coisas do nosso Portugal.

Philippe IV foi para a Hespanha o mesmo que Luiz XIV foi para a França. No seu reinado brilharam as artes, as sciencias e a litteratura. Quiz, porém, a fatalidade, como que para realçar o dominio dos contrastes do mundo, que o seu herdeiro Carlos II fosse um rei pusillanime, fraco, fomentador da intriga e iniciador d'uma crise, que cessou com a assolação d'uma tremendissima guerra civil no tempo de Filippe V.

Madrid soffreu immensamente nestas lutas intestinas. Sem embargo, os sacrificios compensaram as perdas. E quando depois Carlos III subio ao throno de Hespanha, a um sorriso do monarcha privilegiado{25} desabroxou a paz, e as reformas brotaram por completo naquelle paiz.

Este estado foi, porém, de curta duração. Napoleão I, senhor da França, põe a Hespanha novamente em tumulto e deixa-a entregue á fome e ao saque das hordas estrangeiras.

Expulsos os francezes de Madrid, começou então a luta entre realistas e liberaes, os quaes depois se subdividiram ainda em progressistas e moderados, dando assim logar a uma infinidade de fracções, que só deviam abortar na mallograda revolução de 1854.

Foi d'aqui que se originaram os partidos unionista, o democrata e mais tarde o neo-catholico; e foi d'aqui tambem que nasceu a Hespanha revolucionaria moderna, de todos conhecida, desde 1868 até nós.

 

*
*     *

 

Madrid é, pois, uma cidade pequena, não talvez muito maior que o Porto, com um clima excessivamente regular, comportando na sua área 360:000 habitantes,{26} cuja indole póde naturalmente e com o maximo rigor ser observada á luz do gaz e durante a noite em qualquer dos principaes cafés.

Conta-se que um alcaide hespanhol se compromettera certo dia a fazer tres discursos numa dada povoação.

Chegou o primeiro dia, e perguntou á turba:

—Entenderão o que lhes vou dizer?

Ninguem respondeu.

—Pois se não têm de entender-me é escusado pregar no deserto.

No segundo dia voltou, e repetiu a mesma pergunta.

—Sim! responderam todos, já zangados com a occorrencia do dia anterior e desejosos por saber o que tão illustre orador d'elles queria.

—Nesse caso, se comprehendem, são inuteis as explicações.

Chegou, porém, o dia da terceira e ultima prelecção, e o povo concordou em responder indistinctamente.

—Serão capazes de perceber qual é o fim do meu discurso?{27}

Sim! Não! conclamou a turba em dois córos.

—Então aquelle que percebeu que explique ao que não entendeu.

E assim é, na verdade, o caracter hespanhol. Todos se entendem, e ninguem se entende. De modo que, no seio de tão estranha confusão, a vida domestica de Madrid, toda anarchica, toda exterior, toda ficticia, vai naturalmente reflectir-se nas coisas publicas—no commercio, na industria, na arte, na litteratura, na politica—pondo a cidade em continuo alvoroço, e deixando o viajante profundamente assombrado de tão fortes e repetidas contradicções.

E tudo isto, o que mais é ainda para estranhar, num paiz onde os grupos dissidentes são quasi tantos como os talentos politicos, e onde o caracter de cada individuo varia e se modifica em justa proporção com a sua leviandade de espirito e seguindo naturalmente as differentes oscillações da opinião publica, sempre precipitada e louca.

Obedecendo á influencia do meio que{28} os domina, os estadistas hespanhoes são mais theoricos do que practicos, mais litteratos do que politicos, e, sem duvida alguma, mais poetas do que observadores.

D'aqui a impossibilidade de uma união séria, progressista e trabalhadora. As subdivisões prolongam-se até ao infinito. Antes de 30 de dezembro de 1875, os moderados formavam um unico partido. Agora, porém, avultam os moderados transigentes, tendo por orgão o jornal El Tiempo: os moderados intransigentes com La España e os moderados de estola com El Siglo Futuro.

O mesmo com o partido constitucional, que hoje se acha subdividido em constitucional do sr. Sagasta, representado na imprensa pela Iberia; em constitucional dissidente do sr. Santa Cruz, representado pela Patria e em constitucional do sr. Ulloa, representado outr'ora pelo periodico El Constitucional, que já não se publica.

As celebridades não escasseiam. Antes, pelo contrario: ao passo que em França{29} quasi todos os homens illustrados são escriptores, em Hespanha quasi todos são oradores.

Abstrahindo mesmo de Emilio Castellar, o luminosissimo vulto do seculo XIX, que só em Gambetta encontraria um rival condigno, e porventura, como politico, mais pratico, mais accentuadamente positivo do que elle; abstrahindo do sympathico materialista Figueras e do advogado Martos, poucos ha, naquella adoravel nacionalidade, que não possuam o fogo sagrado dos sublimes enthusiasmos patrioticos e a brilhantissima scentelha dos grandes espiritos revolucionarios.

Numa palavra, a Hespanha é o paiz solemne das occasiões, o paiz do à propos, o paiz do momento.

Os generaes Prim e O'Donnel andam ainda hoje apregoados pela fama publica. Pois bem. Muitos annos não se haviam passado depois do seu regresso da Africa, e concluida a guerra de Marrocos, que Prim, collocado numa das janellas do Hotel de Paris, recebera a mais enthusiastica ovação que humanamente era licito dispensar{30} a um idolo. Uma noite regressava o illustre general do congresso, quando, subito, uma detonação acordou a cidade. Correram todos. Duas balas haviam-lhe destruido a emoplata, o ante-braço e a mão direita. Estava morto o heroe de tantas victorias e o deus de tamanhos enthusiasmos. A policia não apparecera. Ainda presentemente nas cadeias de Madrid se conservam presos, por suspeitos, seis homens. O resto, sabem-n'o os seus inimigos, d'elle.

Madrid, a cidade imperial e coronada, a mui nobre, mui leal e mui heroica cidade, como em 1814 lhe chamou Fernando VII, tem, porém, ainda uma outra face, que realmente não deve esquecer ao historiador; e essa face, esse lado immensamente grande e extraordinario, que a Cervantes valeu uma reputação e uma immortalidade, é a anecdota, o delirio da bagatella e do ridiculo.

Sim! a Hespanha, como bandoleira que é, tem uma lenda—a lenda do bandido.

Estudando essa lenda, melhor e mais facilmente poderemos fazer uma idéa do{31} que é e do que foi a Hespanha nos seus movimentos, nas suas idéas, na sua politica, no seu commercio, na sua industria, no seu progresso e na sua civilisação.

Voltemos, portanto, a pagina.{32}
{33}

 

IV

A LENDA DO BANDIDO

O bandido!... Mas quem o não conhece? Elle, o maganão, o seductor, o adultero, o perverso, elle tem vivido sempre e sempre impune, sempre ironico, sempre chasqueador, sempre rapaz, sempre diabo. Com mil granadas! Que sublime ratão...

Houve quem lhe chamasse espirito das trevas; houve tambem quem o appellidasse com o epitheto de carne, de Satan, de magico, de serpente, de lagarto e não sei tambem se de D. Juan, se de Mephistopheles, se de Falstaff.

E é que elle realmente tem esse condão.{34}

Todos os dias se renova, renascendo das proprias cinzas, como a phenix mythologica, mudando de pelle como qualquer simples giboia, usando barba postiça, como um grotesco que é, e dando-se os ares frescos e traiçoeiros de velha rapoza, já useira e veseira nos altos assumptos de quem tem o olho em Deus e a unha no proximo.

Não! Elle não é simplesmente o palerma namorador, que, á meia noite, de guitarra em punho, vai desferir uns estupidos landuns, mal tocados, debaixo da janella da sua pallida amante; tambem não é apenas o ebrio impenitente, que, pela madrugada, carregado de vinho e de tosse, corre as ruas num tropego cavallo de aluguer, atropellando quem passa e vomitando injurias aguardentadas sobre a honestidade de quem trabalha. Porque, sendo tudo isto, o nosso typo tem, todavia, uma feição proeminente, feição grave, enormissima, que ninguem jámais lhe poderá disputar. Oh! sim, só elle é o bandido por excellencia, bandido de casaca e luva branca, mas bandido de alma larga{35} e coração esperto, emquanto a mim o peior de todos os bandidos.

Cautella, meu fidalgo, que nós já te conhecemos. Tu, que não duvidaste vestir a farda de imperador; tu, que tens levado as insignias da realeza até á crapula dos bordeis; tu, que enlameaste o teu brazão ao contacto effeminado da fadistagem de navalha e faixa encarnada; tu, meu politico, tu, meu banqueiro, tu, meu villão, é que verdadeiramente és o rei do mundo, porque te falta a vergonha e a decencia.

Eu queria fazer de ti um Sancho Pança, mas Sancho é gordo e póde cair na embuscada; não, não serás Sancho, nem D. Quixote pela razão opposta; mas o que tu podes ser realmente é um Claret—um Claret sem corôa, de olhar mellifluo, doce no dizer, suave na convivencia e insinuante nos modos.

Que o jesuitismo esteja descançado emquanto a nós. Unicamente nós pedimos licença a suas reverendissimas para pegar num dos seus mais respeitaveis membros, para o virar, para o revirar, para{36} lhe dar umas palmadinhas no ventre; e feito isto, para o despedir com um piparote—tal qual, como se faz a um boneco de papel. E nada mais. Depois nem sequer pensaremos em similhante entidade. Tentaremos dormir sobre o caso, fazendo cama—e que boa cama!—de tão beatificas proezas.

Agora o touro que saia: bandarilhas na mão e firmeza no pulso.

Era uma vez um paiz, rico, poderoso, rodeado de magnificas paisagens, realçado pela formosura de mulheres peregrinas, e dominado pela ambição de politicos tresloucados. Um dia, porém, o sol, que era ardente, trouxe á cidade febres incuraveis. Adoeceram, então, os estadistas; e no delirio da doença cousas espantosas e horripilantes se começaram a ouvir de suas bôccas evangelicas. A febre tomou-os dos pés á cabeça; e então—ó céus!—doidos, perdidos, alucinados, elles, os doces, elles, os virtuosos, elles, os santos, que precisavam de saude e de vida, porque estavam mal, inventaram uma cousa muito melhor do que a agua circassiana, muito melhor{37} ainda do que a Revalescière du Barry... elles deliberaram segurar as vidas em perigo.

E a população mecheu-se activa, energica, em favor de tão alta instituição.

Estava salva a patria.

Contra o abysmo, que a perseguia, contra o diluvio, que a ameaçava, tinha o governo tambem inventado a sua arca santa—as companhias de seguro de vida.

E sem embargo, os typhos, as bexigas, os sarampos, as erysipellas não haviam desapparecido da terra. O paiz continuava a soffrer as suas doenças, a alimentar rivalidades no seu seio e a prestar-se como sempre ás mil intriguinhas da côrte.

Vai então o bandido amigo, irrequieto e nervoso, começa de farejar novas vias de exploração.

—Nada! dizia elle. Segurar a vida é pouco; é preciso tambem segurar o capital. Mãos á obra!

E formaram-se os bancos e as casas bancarias.

Mas bandido—manhoso tinha já propensões para abusar. A policia ia-lhe sempre{38} na pista. Todavia, elle, o heroe, elle não descansava nunca.

Ah! bandido! ah! brejeiro!

Ainda era pouco. Claret tinha a ambição louca e avara de um Shylock hespanhol. Queria ser rico, queria jogar, queria amar, queria divertir-se. E para tudo isso era preciso inventar, ser original, ter idéas.

Crearam-se os bancos; o credito, porém ficou o mesmo, isto é, um pouco peior do que estava. O paiz não melhorava a sua riqueza publica. Então o governo pensou comsigo mesmo e disse:—Maldito bandido!—sempre desassocegado e criança: por Deus, cautella! nem mais um passo...

E bandido—esperto abriu o olho e principiou a ver, ao longe uma cousa que lhe fallava em inscripções e em fundos publicos. Olé! Olé! Cá está a incognita! A elles, aos fundos publicos!

Ao que o sr. Salaverria sorriu ironicamente, como querendo dizer:—Espera maroto, que te escacho!

E assim foi.

Bandido foi já derrotado na politica, no commercio, na industria, na economia,{39} nas artes e nas sciencias. Mas apesar de tudo elle não descrê. É forte, tem bom pulso, jámais teve uma dôr de dentes e nunca cortou os callos, porque tambem nunca os teve. Abençoado patife! Creado nas montanhas e industriado nas altas tricas da politica, elle só espera momento opportuno para tornar a apparecer em campo.

E depois hão de vel-o. Pois julgavam que elle era sujeito para se curvar a qualquer Salaverria? Enganaram-se.

Nem a Salaverria, nem á honestidade. Unicamente elle tem em vista—alcançar os seus fins sejam quaes forem os meios.

E assim é a Hespanha na sua evolução social.

Ah! Machiavel! ah! bandido!{40}
{41}

 

V

EDIFICIOS PUBLICOS E OUTRAS CURIOSIDADES HISTORICAS

Dizia um celebre escriptor allemão que a vida era uma viagem em caminho de ferro: o casamento um choque de trens; o somno a passagem de um tunel; um negocio a passagem de uma ponte; o destino um machinista que nos leva silencioso ao termo da viagem.

Nestas circumstancias, e a ser verdade o que nos diz tão excentrico pensador, parece, de facto, que ao homem nada mais resta neste mundo do que uma vida de sensações rapidas e imprudentes, sem um{42} unico pensamento, que o preoccupe, sem repouso, sem ligações, sem familia, sem crenças, sem humanidade.

E apesar de tudo, e sem embargo do auctor citado, o universo apresenta-nos um aspecto perfeitamente em contrario do que acima transcrevemos.

Por toda a parte a fixidez se nos antólha como elemento essencialissimo na vida dos povos. Na evolução das sociedades a primeira cousa que o homem teve em vista foi certamente fixar-se, construir a cabana onde tinha de pernoitar e estabelecer definitivamente a séde dos seus trabalhos e operações.

Imagine-se o leitor, em Madrid, no meio de uma praça irregular, que se chama Puerta del Sol. É o coração da cidade. Conta-se que em 1520 houvera alli um castello, sobre a porta do qual se encontrava uma pintura representando o sol. Desde então para cá póde dizer-se que é aquelle o logar destinado, aos despreoccupados do mundo, aos flaneurs do bom tom e á fina èlite dos salões madrilenos.

Que contraste! Na propria sociedade{43} hespanhola, que mais pensa na vida externa do que na vida interna, pacifica, de casa, nessa mesma nos foi dado admirar a impretrerivel tendencia da natureza humana para o viver confortavel, commodo, alegre e quasi poderiamos tambem dizer luxuoso.

Poucas familias ha, em Madrid, que não tenham a sua casa, excellentemente mobilada, e que, pelo menos, não possuam o modesto segredo do savoir-vivre, isto é, o segredo da conservação e da hygiene individual.

Sem sahir da Puerta del sol, o viajante poderá, se quizer, fazer um telegramma aos seus amigos, dirigindo-se áquelle magnifico predio onde actualmente se acha o ministerio da governação, e poderá, tambem, se assim lhe aprouver, tomar uma chavena de chocolate no magnifico café Imperial ou subir mesmo ao primeiro andar d'esse mesmo edificio, e ordenar que lhe reservem um quarto no Hotel de Paris.

Sahindo da Puerta del sol encontramos duas ruas quasi parallelas—a rua Alcalá{44} e a Carrera S. Jeronymo. Na primeira d'estas ruas eleva-se um soberbo arco triumphal, erecto no reinado de Carlos III, a fim de perpetuar a memoria da sua vinda á côrte de Hespanha. Consta de cinco entradas, sendo tres eguaes, no meio, e em fórma de arco, e uma quadrada em cada extremo. A Puerta de Alcalá, a primeira de Madrid, conta 70 pés de altura, com a seguinte inscripção:


REGE CAROLO III
ANNO MDCCLXXVIII.

 

Além d'esta ha ainda a Puerta de Toledo, situada no fim da rua do mesmo nome, consagrada, no anno de 1827, a Fernando VII, o desejado.

E, visto estarmos fallando nas maravilhas da arte hespanhola, bom será que não esqueçamos as duas principaes praças da cidade—la plaza de Oriente e la plaza Mayor.

A primeira tem fórma circular, e é circumdada exteriormente por um formosissimo passeio, onde estão collocadas quarenta{45} e quatro magnificas estatuas, destinadas a representar os monarchas hespanhoes.

No centro da praça ergue-se a estatua de Filippe IV, symbolisando o seu disvelo pela arte nacional, e dando-nos em allegoria o solemnissimo momento em que tão generoso monarcha se dignava condecorar o celebre pintor Velasques com a cruz de Sant'Iago.

O theatro real faz tambem com que este logar seja um dos que melhor perspectiva apresentam na cidade.

A segunda—a plaza Mayor—foi construida em 1619, sob a direcção do architecto D. Juam Gomes de Mora. É o logar destinado ás festas da côrte hespanhola. Antigamente a fidalguia armada costumava, em actos solemnes, esperar ali a sahida dos touros, que eram picados com a maxima destreza e pericia por parte dos amadores da arte de Pepe-Híllo. Já por duas vezes o incendio tentou destruir tão formoso recinto. No seu centro está collocada a estatua equestre de Philippe III, obra começada pelo architecto{46} Juan Bologna e terminada por Pedro Tacca.

Presentemente a plaza Mayor acha-se reduzida ás condições de um deliciosissimo jardim e pouco mais.

Passemos, porém, ao Palacio Real. É uma das obras de arte, que mais particular attenção merece da parte dos entendedores.

Foi construido este palacio em meados do seculo passado. Situado no extremo occidental da povoação, precisamente no logar onde outr'ora se erguia o famoso alcaçar de Madrid, a sua origem remonta, segundo uns, ao reinado de Affonso VI, e segundo outros ao reinado de Pedro I. No cimo da escada, que é de marmore, existe uma estatua de Carlos III, o qual, parece, concorrêra bastante para a melhoria d'aquelle edificio.

Começando pela fachada do Oriente, a pintura, que se vê na primeira sala, representa o Tempo descobrindo a Verdade; na segunda encontra-se Apollo premiando o talento; na terceira a queda dos gigantes, que uma vez tiveram a ousadia{47} de attentar contra os céus; na quinta a apotheose de Hercules; e na sexta, septima, oitava e nona a representação da philosophia, da pintura, da musica e da poesia.

Além do que aqui deixamos mencionado, muito mais, porém, poderiamos accrescentar. O Palacio real é uma das maravilhas da capital de Hespanha, já pela sua riqueza, já pelos seus valiosissimos quadros, já, emfim, pela sua vasta opulencia.

Não pára, comtudo, aqui a nossa admiração. Cumpre egualmente não esquecer outras maravilhas da cidade, taes como o Palacio do Senado, onde pela primeira vez se reuniram as côrtes hespanholas em 1820: o palacio do congresso, edificio muito moderno, principiado a construir em 1834, os ministerios publicos, as reaes cavallariças situadas ao norte do palacio, e ainda como reliquias de architectura dos seculos XVI, XVII e XVIII até nós, os palacios particulares de Medinacellí, de Liria, do duque de Abrantes, do marquez de Salamanca, etc.{48}

E ainda, se o leitor fôr poeta e se interessar pelos grandes homens, não deixarei de recommendar-lhe a visita ás casas de Cervantes, de Lope de Vega, de Torrijós, de Cisneros e da beata Maria Anna.

A casa de Cervantes, edificada na rua do mesmo nome, tem, por cima do portal da entrada, em marmore branco, a seguinte inscripção:

 

«Aqui vivió y murió Miguel de Cervantes Saavedra; cuyo ingenio admira el mundo. Falleció em MDCXVI».

 

Na parte superior está o busto do poeta.

A casa de Lope de Vega foi recentemente restaurada, e a de Torrijós, celebre general, tem tambem um distico, em que se lê pouco mais ou menos o seguinte:

 

«Aqui nació el general D. José Maria Torrijós; defendia la independencia e libertad de la patria e murió em 11 de deciembro de 1831, arcabuceado em Malaga por haber intentado restabelecer con las armas la Constituicion».{49}

 

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Agora, permitta-me o leitor que lhe offereça um charuto. Emquanto se espera entremos aqui neste café, no café de Sevilha. Uma chavena de chocolate não lhe fará de certo mal.

—Rapaz!—Chocolate!...{50}
{51}

 

VI

A INSTRUCÇÃO PUBLICA

«Deixae-me instruir a juventude, e eu reformarei o mundo»—dizia Leibnitz.

E assim é, com effeito.

Reforma que não seja acompanhada de raciocinio, pecca por falta de seriedade scientifica e por ausencia de dados positivos. E por isso é que a Allemanha, pelo espirito de Luthero, e a França, pelo espirito de Fénelon, foram sempre as primeiras a accordar o coração do povo pelo sol da instrucção. Jules Simon, o sympathico auctor da Politica radical, tem consagrado quasi todos os annos da sua{52} vida á solução d'este notavel problema; e a verdade é que a França, neste ponto, em nada fica a dever ás nações, que, ainda mesmo como os Estados-Unidos, a Suissa e a Belgica, caminham na vanguarda da civilisação.

É ainda o mesmo Jules Simon que nos diz:

«No dia em que a lei obrigasse toda a gente a saber lêr, toda a gente estaria mais perto da liberdade».

E assim deviam fallar todos os verdadeiros democratas; porque, sem instrucção, é impossivel a educação, do mesmo modo que sem o desenvolvimento intellectual se atrophiaria o desenvolvimento moral.

E o homem não é só intelligencia, mas tambem coração. Desenvolver uma e outra cousa é hoje a missão da escola moderna, sanccionada pela philosophia positiva.

Levasseur, acceitando a obrigação da instrucção, pretende, comtudo, que aos interessados se deixe a livre escolha de escola, confessando ao mesmo tempo, que, onde as escolas escasseiam, ou onde a{53} maioria da população não está no habito de concorrer a ellas, a experiencia prova que a obrigação não passa de uma disposição inutil; asserção que elle confirma pelos exemplos de Portugal, Hespanha e Italia.

Emile de Girardin, o celebre publicista, que em duello matou Armand Carrel, fazendo depois elle proprio a apologia do seu infeliz adversario;—Emile de Girardin, embora não combatesse a instrucção obrigatoria, achava-a comtudo, ephemera e subjeita a erros. Assim como ninguem obriga o seu semelhante a comer um pedaço de pão, assim nós tambem não podemos obrigar ninguem a ser instruido.

Necessaria, portanto, é que a instrucção devia ser, isto é, todos deviam saber ler, contar e escrever—o que, mutatis mutandis, vinha a dar o mesmo.

Em Portugal já a instrucção obrigatoria havia sido consignada no decreto de 20 de setembro de 1844, onde a penalidade, imposta á negligencia das familias, appareceu pela primeira vez neste paiz.

E, no entretanto, as escolas continuam{54} sem frequencia, os methodos peioram de dia para dia, o professorado anda equiparado aos creados das cavallariças reaes, e nós, os preguiçosos do occidente, navegamos em mar de bonança na quietação mais materialmente feliz d'este mundo sub-lunar.

O sr. Levasseur, membro da commissão franceza, na ultima exposição internacional de Vienna d'Austria publicou a estatistica do movimento das escolas primarias nos diversos paizes do mundo, e achou que a frequencia das escolas, no Baixo Canadá, está na relação de 23 alumnos por cada 100 habitantes, na França 13 por 100 e em Portugal 3 por 100.

Este facto, horroroso em si, não nos é, todavia, extremamente desfavoravel.

Em Hespanha, onde a instrucção superior está tão profusamente derramada, a ponto de haver um sem numero de universidades, de escolas, de academias, de archivos, de institutos e de bibliothecas; em Hespanha a instrucção primaria, se não é inferior, corre, pelo menos, parelhas com o nosso paiz.{55}

Quer-nos parecer que sem uma remuneração, concedida pelo estado aos paes de familia, nunca a instrucção obrigatoria será levada por deante, na peninsula. No inverno a grande distancia dos povoados a que ficam as escolas, faz com que ellas sejam menos frequentadas; no verão, as colheitas obrigam os lavradores a não dispensar seus filhos dos trabalhos ruraes. E por isso é, creio, que de facto existe uma desproporção enorme entre os algarismos da população rural e a frequencia numerica das respectivas escolas.

Mas a Hespanha, litterariamente, ao menos, tem uma vida propria, sua, original, ao passo que nós tanto na arte, como na politica, estamos fatalmente destinados á morte e ao esquecimento.

Entre nós o ultimo poeta, verdadeiramente, interprete do sentimento nacional foi Garrett. Desde então para cá a influencia da litteratura franceza tem-se feito por tal fórma sentir, que os nossos poetas, embora dotados de muitissimo talento e de vivissima imaginação, mais parecem conhecer a vida de Paris do que a vida de Lisboa;{56} e de tal modo que o nosso povo mal os lê, porque mal os entende tambem. O resultado é que vamos atravessando um periodo de transição e que a historia não poderá nunca registrar esta época, senão como um facto accessorio da vida portugueza.

E, cousa singular! a causa, que tão poderosamente actua nos nossos costumes e na nossa vida nacional, é a mesma que, passando por cima da Hespanha nem sequer vestigios deixa da sua passagem. Victor Hugo, assimilado e imitado pelos portuguezes, emprehendeu na sua infancia uma viagem á Hespanha. «Essa viagem—escreve Castelar—tem analogia com a de madame de Stäel á Allemanha. A eminente escriptora trazia o romantismo idealista do norte, o sublime escriptor o romantismo pratico do Meio-Dia; Stäel inspirava-se nos tristes e profundos sonhos de João Paulo Richter, Victor Hugo nos singelos versos do Romancero e nos conceitos de Calderon, impressos na consciencia, como esses listrões de materia cosmica, a que damos o nome de nebuloses,{57} e dos quaes talvez em cada minuto se desprende como uma gota de luz um novo planeta na vastidão do espaço. Victor Hugo sahiu de Hespanha com o animo disposto a incendiar o templo dos deuses e da velha arte. Reinava desassombradamente a poesia classica, desde a epoca de Luiz XIV. Se o povo de 93 descobrisse esta realeza, tambem a teria derrubado no seu incansavel afan de renovar a vida. Era a Academia, o Versailles, onde aquella corôa estava enthesourada».

Podem os poetas hespanhoes não ser melhores que os nossos, mas a verdade é que são mais originaes, e mais do seu paiz. Foi da Hespanha que partiu o grito destruidor do velho convencionalismo poeta, em redor do qual se haviam agrupado Racine, Voltaire, Corneille o outros. E esse revolucionario audaz e intrepido foi Lope de Vega.

A vida litteraria de Hespanha é tal que só em Madrid se publicam aproximadamente 60 jornaes. Da Universidade Central, situada na rua de S. Bernardo, e dividida em 6 faculdades, sahem annualmente para cima de cem bachareis.{58}

Por onde se vê que a instrucção superior em Hespanha tem attingido um enormissimo progresso; progresso, em nosso entender, que lhe ha de assegurar sempre virilidade, independencia e vida propria, o sufficiente para que uma nação, em poucos annos, se eleve e conceitúe no animo dos seus inimigos.

E posto isto, tratemos d'outro assumpto.{59}

 

VII

TEMPLOS E RELIGIÃO

Desapparece o carnaval, e a mulher hespanhola, de todas as mulheres do mundo a mais alegre, a mais festiva e a mais ruidosa, sacode os seus cabellos, desgrenha a sua fronte, pintada a carmim, rasga a sua ligeira mascara de seda, põe de parte o seu vestuario extravagante, descalça os seus sapatinhos de setim, toma o seu véo de Sevilha, calça a sua luva preta, e penetra soberanamente no templo, onde o Christo a aguarda, para, num sorriso de perdão, a absolver das suas culpas e dos seus peccados.{60}

É que ella, a feiticeira, comprehende o mundo, tal como elle é—de alegrias e de tristezas, de esperanças e de duvidas, de amor e de descrença, de riso e de lucto, de primavera e de outomno, de vida e de morte.

O templo veste-se de negro; o orgão faz resoar os seus canticos plangentes; Jesus, a pallida creança, ostenta uma face macerada, e o padre, oh! o padre, o grande ladrão!—como raposa que espreita o galinheiro innocente, acocora-se no confissionario, á semelhança de gallo, que em materia de instinctos é useiro e vezeiro.

E tu, minha pobre peccadora, ó minha querida—terás de ouvir silenciosamente, concentradamente, todos os lamentos do propheta, todas as dôres da mãe, todas as lagrimas dos pequeninos.

Um dia levantar-te-has mais cedo; com ar triste e melancolico seguirás a via do resgate; ajoelharás timidamente deante do sr. cura da freguezia, que depois te dará a communhão.

Que maldicta manhã não passarás, minha pequena catholica!—lembrando-te{61} das travessuras de que a consciencia te não accusa, e tendo de abrir ao padre, ao negro carcereiro da tua alma, os segredos que te vão no coração atribulado.

Mas tu tens pae, bem o sei; tua avó não te dispensará o sacrificio de todos os annos, e tua propria mamã exigirá de ti nesse dia um beijo e um affecto.

Que louca extravagancia! Confessar-se a gente a um homem desconhecido, que toma rapé e usa lenço encarnado, quando, ao contrario, podia revelar a sua vida ao ente predilecto da sua existencia, áquelle, que, au clair de la lune, fuma debaixo das nossas janellas um delicioso breva e nos diz umas doces palavras mysteriosas....

E depois—que horror!—cahir no velho tumulo catholico, quando toda a natureza, como que por contraste, é um encanto e um paraizo?!

Oh! mon Dieu, que c'est trop fort....

Mas, emfim, sevilhana amiga, tu que, durante o carnaval, escapaste, de uma bronchite, faze tambem diligencia para, durante a quaresma, te furtares á insolita constipação catholica.{62}

Á la belle etoile cantaremos e libaremos aos nossos amores. Bem vês que o convite attrahe. Tu fallar-me-has no bigode preto do teu amante, nos seus cabellos de azeviche, na sua fronte pallida, nos seus olhos profundos e apaixonados; de tudo me has de fallar, gentilissima menina, que, eu, no entretanto, sem deixar de ouvir-te, irei preparando uma delicadissima ceia, toda ella de boas aves saborosas e de finissimos vinhos francezes.

Acceitas? Por Deus não pretendas imitar o lyrismo de Santa Thereza, aquella boa alma mystica, que «morria de não morrer!»—ou antes «por não morrer». É verdade que escusas tambem de seguir madame Roland, indo para o cadafalso, vestida de branco e Carlota Corday apunhalando Marat; escusas mesmo de te aproximar de madame de Maintenon, no seu odio contra a religião protestante: e escusas tambem de ser Joanna d'Arc, uma Margarida d'Anjou, uma Joanna de Montfort. Tudo isto seria desnecessario e inutil. Para serdes respeitadas e felizes, bastava apenas, minhas boas andorinhas{63} ideaes, que vós possuisseis o orgulho e a consciencia das vossas acções; porque emfim, se o homem é o orgulho de Deus, a mulher é o orgulho do homem, como mui judiciosamente escreveu um espirito comtemporaneo.

Conta-se que o chefe arabe dissera da actriz Rachel:—«É uma alma de fogo num corpo de gaze», e que a actriz, á hora da morte, exclamára:—«O fogo queimou a gaze!»

Assim, pois, que a minha gentilissima hespanhola não possa tambem nunca dizer, á imitação de Rachel:—O fogo matou a mulher!

 

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*     *

 

Em Madrid os templos são de somenos importancia. E, embora a religião catholica-apostolica tenha ali fanaticos e fanaticos decididos, não nos parece que os edificios destinados ao culto sejam dignos de uma menção especial. Ao ouvir fallar nas cathedraes de Cordova e Sevilha, de{64} Toledo e Burgos, de Valladolid e Zaragoza, quasi se nos afigura impossivel, senão mesquinho, que Madrid não possua tambem o seu templo official. A verdade, porém, é que, apesar de todas as tentativas, ainda até hoje não foi possivel levar por deante o velho projecto da edificação de uma cathedral na côrte de Hespanha.

Entretanto, forçoso é confessar, que poucos paizes ha na Europa onde o fanatismo religioso tenha attingido tão elevadas proporções de hypocrisia e de retrocesso. Philippe I assemelha-se a Luiz XI, o qual antes de mandar enforcar qualquer subdito do seu reino, supplicava sempre a Nossa Senhora, cuja imagem trazia no bonnet, para que tivesse dó d'elle, e assim tambem a Hespanha deve a Philippe I uma grande parte do seu carlismo e da sua reacção.

Os hospitaes, todavia, as casas de beneficencia, os asylos, e as associações philantropicas são innumeras em Madrid. A alta sociedade exerce mesmo a caridade em larga escala. Unicamente nos parece{65} que a razão publica entra pouco n'estas cousas.

Seja, porém, como fôr, o certo é que um pouco menos de fanatismo e alguma cousa mais de raciocinio, nenhum mal faria a Hespanha.

Porque, de facto, uma nacionalidade que possue criticos tão notaveis como Francisco Maria Tubino, director da excellente revista La Academia, e poetas tão distinctos como D. Ventura Ruiz Aguillera, fundador do magnifico Museu archeologico, e Zorrilla, o arrojado trovador peninsular, que, por fórma alguma, deve ser confundido com o politico, seu homonymo; uma nacionalidade tão forte e tão vigorosa sempre merece ser mais alguma cousa do que uma simples expressão dos velhos tempos theologicos.

Toda a vida de um paiz se resume numa palavra—bom-senso.{66}
{67}

 

VIII

A POLITICA
[1]

(CONTRASTES)

Ainda hontem a vimos expulsa da patria, que ella de creança aprendera a renegar no vilissimo ensinamento de um jesuitismo perverso; ainda hontem, humilhada, mas não contricta, lhe mostravam as bayonetas nacionaes que não podia ser{68} aquelle o coito das suas devassidões infrenes; ainda hontem, offendida no seu amor proprio, e sempre arrogante, ella transpunha os Pyrineus, como as columnas de Hercules, por onde jámais lhe seria dado volver ás terras das suas hybridas façanhas e ao solar das suas sabidissimas intrigas.

E no entretanto esse magnifico sol, que parece ter brilhado para toda a Europa, no explendido fulgôr de uma vivissima luz, apagou-se subito no horisonte, deixando empós de si o triste e doloroso prenuncio de uma tempestade eminente.

E, coisa singular, nada faltou áquelle dia de festa.

Ayalla coloria o seu estylo brilhante; e com as côres douradas da sua divina palheta, quasi se sentira feliz por festejar aquelle sahimento funebre de uma mulher, justamente condemnada pelos fastos da historia e merecidamente repellida pelos progressos da humanidade; o duque da Torre alçava para o céo a sua cabeça de cidadão arrojado, congratulando-se com os seus e com os estranhos pela{69} victoria da justiça do seu paiz: Sagasta tinha a convicção de uma grande causa conquistada, e persuadia-se ter concluido uma obra meritoria; Prim, o esforçado batalhador de Marrocos, ostentava em pleno dia as alegrias que lhe iam na alma, e as esperanças que se lhe occultavam no coração; Castelar, emfim, com todo o arrojo da sua notavel eloquencia, suppozera-se victorioso, e victorioso para sempre.

Mas, coisa ainda mais singular! todas estas acclamações de momento, todas estas palmas improvisadas, todos estes delirios de occasião, todas estas festas, todas estas vertigens, todos estes rumores, cahiram, n'um minuto, inesperadamente, abruptamente, revelando-nos, mau grado nosso, que a politica foi, é, e será sempre a suprema contradicção das cousas humanas e a mais evidente demonstração de quanto a humanidade é inconstante, leviana e traiçoeira.

A entrada de Isabel II em Hespanha é a abjuração cabal da revolução de Cadiz.{70}

Pouco nos importa que o sr. Sagasta fosse agora o primeiro a cumprimentar a ex-rainha expulsa, acceitando-lhe o retrato e as perfidias; pouco nos importa que o sr. Ayalla abra tambem o cofre dos seus gabos e a cornucopia da sua generosidade. Tudo isso é do mundo, e nós estamos no mundo. Unicamente, nós temos direito a perguntar aos nossos vizinhos qual é actualmente o seu rei.

Quem governa? Isabel II ou Affonso XII?

A abdicação da rainha por ninguem foi ainda reconhecida. Não é ella de facto que occupa o throno, sabemol-o; mas na realidade é ella quem governa, desde o momento que o consentimento lhe foi dado, para de novo residir no palacio del Oriente.

Que diria a isto Prim, o heroe de 1868, se por acaso hoje vivesse? Que dirão a isto os senhores liberaes de Hespanha, que, por suas proprias mãos, acabam de cavar o proprio sepulchro? E que fará o sr. Canovas del Castillo, o amigo duvidoso da ex-rainha?{71}

E a Hespanha, a nobre filha da peninsula, consentirá impunemente n'este attentado contra a sua dignidade? Volverá ao nefasto governo dos Clarets sem um protesto, sem um brado de indignação, sem uma affirmativa do seu brio e do seu pundonor?

Nada temos com personalidades. A politica pessoal é, de todas as politicas, a mais detestavel e a mais perniciosa. Mas se isto nada é, o principio é tudo. É forçoso respeital-o e seguil-o. De outro modo não ha paiz que se sustente, da mesma maneira que sem leme é impossivel a navegação no mar.

Amadeu I, pela sua demasiada simplicidade, não logrou nunca que os hespanhoes o guindassem ao fastigio da gloria. Muito bem. O sr. Zorrilla dispensa-o do seu serviço, e prepara-se para dirigir a politica do seu paiz. Mas, ó incoherencia! o proprio sr. Zorrilla, segundo affirmaram alguns, é o primeiro a divorciar-se dos republicanos, emigrando e dizendo-se apenas radical. E, por incoherencia ainda, é elle hoje o conspirador por excellencia,{72} e, segundo todas as vistas, o chefe do futuro gabinete republicano.

E tão odioso é de facto o seu nome ao actual governo, que, ainda ha pouco, o jornal El Globo, orgão do sr. Castelar, e de que é director o sr. Olías, foi supprimido por apenas lhe ter estampado a photographia na primeira pagina.

E esta suppressão indigna, violação manifesta do direito, da justiça e da propriedade, foi feita sem denuncias, sem accusações fiscaes e sem que os tribunaes fossem, ao menos, ouvidos.

Tal é, em geral, o fructo dos governos restauradores!

Quando Affonso XII subiu ao throno não faltaram, nem as apostas, nem os protestos, nem as indignações.

Mas tudo isso passou. E el niño de su madre, o pequeno authomato dos tempos modernos, convicto de que o seu reinado havia de ser de ouro, sentou-se no throno, com o serenidade de um fingido Bourbon, sem consciencia e sem reflexão.

Agora, porém, falla-se com insistencia numa nova revolução. Madrid agita-se; o{73} exercito divide-se; a fazenda publica está num estado desesperador; a população descrê; tudo isto, aggravado ainda com a vinda da rainha Isabel para Madrid, que a todos inspira odio e antipathia, faz suppôr que o movimento revolucionario se não demorará muito no seu apparecimento.

Ninguem hoje tem o poder de resuscitar cadaveres. A elevação de Affonso XII ao throno nunca passou mesmo de uma mera phantasmagoria politica, especie de entreacto entre o passado e o futuro. Hão de tornal-o a enterrar, estou convencido, e sem grande difficuldade.

Conta-se que num jantar, ultimamente dado em Barcelona, se reuniram seis politicos de vulto. Travada a discussão viu-se que cada um d'elles professava opinião differente ácerca do estado geral da patria. Progrediram assim as cousas; e de tal maneira que, no fim do banquete, os copos voaram pelos ares ao clamor estridulo e confuso de uma contenda infernal. Ninguem se entendia. O meio de persuasão estava já nos punhos arregaçados e{74} nos calices feitos pedaços. Finalmente parece que tão delicioso repasto terminou, sem levar a convicção ao espirito dos convivas, é verdade, mas deixando-lhes, todavia, a liberdade do vinho absorvido, e a gloria dos destroços por cada um operados em favor da sua causa.

E assim é, em quanto a nós, tambem a politica em Hespanha—uma Babylonia!{75}

[1] Este artigo, embora restricto a um facto particular da actual dynastia reinante em Hespanha, póde, todavia, ampliar-se á politica geral do paiz, e por elle ser criticada.

 

IX

MUSEUS

No seculo XVI, ao mesmo tempo que tudo decahia em Hespanha—politica, commercio, industria—como que para contrastar, surgia, por outro lado, o primeiro poeta hespanhol, Calderon, e o primeiro pintor, Velasquez.

E desde então para cá as artes e as sciencias têm tomado um incremento verdadeiramente assombroso; a ponto de, ainda ultimamente, muitos professores da Universidade de Heidelberg, varios homens politicos francezes, e alguns sabios de Inglaterra, se terem reunido afim de{76} lançar os primeiros fundamentos da Universidade livre de Madrid, que o sr. Canovas del Castillo referiu que se chamasse Instituto livre de ensino.

Em todos os museus de Madrid, que são muitos e admiraveis, se encontra a immortalidade da historia hespanhola aliada á eloquencia do genio e da inspiração individual.

O Museu real de pintura e esculptura, situado no passeio do Prado, é ainda hoje um dos melhores do mundo, e foi fundado por Fernando VII, a rogo de sua esposa Maria Christina.

Impossivel nos seria dar aqui uma resenha historica de todos os principaes quadros que adornam aquelle paraiso. Apontaremos no entanto alguns.

A escóla de pintura hespanhola resente-se extraordinariamente do catholicismo que lhe servia de inspiração. Assim, para exemplo, pódem ver-se, entre outros, os quadros de Murillo, um, symbolisando a Annunciação de Nossa Senhora, outro, representando a Familia Sagrada, outro desenhando a Concepção, etc.; e os de Velasquez,{77} que tem um Nosso Senhor Crucificado maravilhosamente acabado, assim como um outro intitulado o Quadro dos bebedores; os de Rivera, que produziu o Martyrio de S. Bartholomeu, S. Jeronymo em oração, etc.; e os de Zurbaran sobre assumptos mysticos, e os de Goya, que realça principalmente por um retrato a cavallo de Carlos IV, etc.

A escóla florentina é, como a hespanhola, uma escola religiosa. Assim, temos de Leonardo de Vinci dois esplendidos quadros: o retrato de Mona Lisa, mulher de D. Francisco Gicondo, cavalleiro florentino, e a representação da Familia Sagrada, tendo S. João e o menino Jesus em attitude de se beijarem; de Andréas del Sarto, chamado Andrea Vennucci, um retrato em busto de sua mulher Lucrecia Fede, e muitos outros; de Miguel Angel Buonarroti um Nosso Senhor atado á columna; e, como estes, outros de Bronsino, de Allori, de Carducei, de Vanni, etc.

Na escóla romana o principal expositor é Sanzio Rafael, chamado Urbino, que possue, entre outros, A queda de Nosso{78} Senhor Jesus Christo com a cruz, conhecido pelo nome de Pasmo de Sicilia, e muitas allegorias á familia sagrada, umas conhecidas por Ecce Agnus Dei, outras pela Rosa, outras pela Perola, etc. Seguem-se-lhe Julio Romano, Sassaferrato, Barroci, etc.

Na escóla veneziana o mais importante é Piciano, que tem uns magnificos quadros de Carlos V a cavallo, de Jesus Christo apresentado ao povo, do peccado original, da Victoria de Lepanto, da Virgem das Dôres e do Ecce Homo; depois temos Bellino, Tintoretto, Bassano e mais alguns.

As menos notaveis, talvez, neste museu são as escolas, bolonheza, lombarda, a de Milão, e a de Napoles, as quaes, não obstante, ainda apresentam nomes como os de Corregio (lombardo), Dominiquino e Guido (bolonhezes) e Salvator Rosa (napolitano).

Nas escólas franceza, hollandeza e allemã ha cecebridades, como Pedro Paulo Rubens, que apresenta o Castello de Emaus, A serpente de metal, Orpheu e{79} Euridice, A dança dos paizanos, As tres Graças, Perseu libertando Andromeda, e outros, sendo 62 a somma total dos seus quadros, ali expostos, a 28 os da sua escóla.

Antonio Van Dyck dá-nos retratos admiraveis, taes como o do pintor David Rickart, o da duqueza de Oxford, o de Carlos I a cavallo, e o de D. Henrique, conde de Berga.

David Teniers é pintor quasi bucolico, e offerece-nos quadros d'um mimo inexcedivel—Um colloquio pastoril, Uma festa de paizanos, Um banquete campestre, etc.

Antonio Raphael Mengs (allemão) é auctor de Santa Maria Magdalena; Rembrandt (hollandez) tem A rainha Artemisa; e Moso Antonio (da mesma escóla) pintou a esposa de D. João III, rainha de Portugal.

A escóla franceza tambem ali se acha dignamente representada por Pousin, Claudio de Lorena, Antonio Watteau, Claudio Vernet e muitos mais.

Emfim, só a narração circumstanciada d'este museu daria para um grosso volume,{80} não incluindo já na conta a galeria de pinturas da Academia de S. Fernando, na rua de Alcalá, que possue mais de 300 quadros, e o Museu nacional de pintura, na rua da Atocha.

Se o leitor fôr curioso, com certeza não deixará de visitar os museus de Madrid, que evidentemente constituem os monumentos mais notaveis da civilisação hespanhola.

Só no museu de antiguidades e medalhas, na Bibliotheca nacional, se pódem ver mais de 98:000 medalhas de ouro, prata, ferro, bronze, cobre e barro, e muitissimas e numerosas antiguidades egipcias, etruscas, gregas, romanas, godas, arabes, etc.

Na rua de Alcalá encontra-se o Museu de historia natural, que foi fundado no tempo de Carlos III, e que possue ricas collecções de mineralogia, de paleontologia e de zoologia.

Dos melhores do seu genero são tambem o Museu anatomico de S. Carlos, na rua da Atocha; o Museu de artilheria, no Buen Retiro, e o Museu naval no{81} ministerio da marinha, o qual contém uma rica collecção de armas, tropheus, e outros muitos vestigios de guerra e de combate.

Em Hespanha ha uma tendencia especial para esta arte. Raros são os particulares que não possuam tambem o seu museu.

Um vi eu que me maravilhou devéras. Pertencia a Romero Ortiz. Entre outras raridades, foi-me dado vêr ali o mappa em que o general Moltke traçára a guerra franco-prussiana, e a faixa encarnada que Prim tinha cingida á cinta na noite em que o assaltaram. Muitas reliquias portuguezas me foram tambem mostradas, e creio até que uma do fallecido visconde de Castilho.

Não ha de facto palavras que facilmente descrevam tanta arte, tanto aceio e tanta maravilha.

Sobretudo—que maravilha!{82}
{83}

 

X

A MUSICA

Poucas cidades ha já hoje na Europa que não tenham o seu theatro lyrico. A musica não é apenas um entretenimento agradavel; é ainda mais, uma necessidade impreterivel.

Aos domingos e dias santificados, aquelles que, por falta de meios, não podem concorrer a espectaculos pagos, procuram naturalmente os jardins publicos, onde, gratuitamente, lhes é dado ouvir uma orchestra ou uma banda musical. E assim, este simples divertimento faz com que muitas vezes se afastem da taberna muitos{84} centenares de operarios. É que a attracção de uma boa musica traz-nos frequentemente o esquecimento das proprias dôres e dos proprios soffrimentos.

Tres escólas se disputam a palma no campo da lucta.

Uma (a escóla allemã) é a harmonia: raciocina, descreve as lendas do seu paiz, e obriga á reflexão; outra (a escóla italiana) é a melodia: corre atraz da sua imaginação, queda-se com um sentimento triste, expande-se com a dôr, e recolhe-se com o amor. A primeira é grave, solemne, austera, e pertence naturalmente aos povos do norte; a segunda é meiga como uma mulher portugueza, leviana como a natureza em que vivemos, doce como os costumes da Italia, e a sua vida está subordinada aos povos do meio dia.

Na Africana, por exemplo, ha gritos selvagens, notas lancinantes, harmonias plangentes; mas tudo isto com a inexcedivel pericia de um maestro consciencioso, e, sobretudo, pensador.

Beethoven tem o condão maravilhoso de nos compellir ao estudo, á concentração{85} intima, ao seguimento de uma idéa, que é como que o desabroxar do espirito para um mundo novo.

Grottschalk e Mendelssohn têm nas suas composições o cunho indelevel da tristeza, prevêem a morte, e cantam-n'a. Não têm horror ao mysterio, e por isso as suas partituras avivam em nós um não sei quê de vago, de indefinido, que involuntariamente nos obriga a interrogar os arcanos da consciencia.

Mozart tem uma certa vivacidade que seduz; em meio das suas lucubrações pára, e, espraiando a vista pelos horisontes além, sente-se feliz, e sorri; e tão formosos são os seus sorrisos, que d'elles, como se fossem um sol, partem os raios animadores das suas obras monumentaes.

Ricardo Wagner, hoje o maior vulto musical da Allemanha, tem nas suas obras, a par do rythmo, profundamente cadenciado e harmonico, uma feição notavelmente litteraria e artistica; estudando as lendas do seu paiz, conta-as com a superioridade de uma grande potencia, a quem não escasseia nem o genio nem a phantasia.{86}

A terceira escóla é a franceza, sem ideal definido, portentosa umas vezes, com os arrojos de Meyerbeer, e suavemente deliciosa n'outras occasiões, com as meigas melodias de Bellini ou Donizetti. E no entretanto uma coisa distingue esta escóla: é a verve, o frescôr animadissimo, transparente, que se exhala de todas as notas; a harmonia que nos leva á meditação; a melodia que nos arrasta os sentidos, á selhança de quem vive numa atmosphera impregnada de vapores e de perfumes.

A escóla franceza tem, é verdade, muito de condemnavel como escóla ecletica; mas ainda assim não devemos nunca esquecer que a ella pertencem talentos soberbos, como o de Gounod, compositor do Fausto, e o de Berlioz, auctor do Manfredo, que para muitos foi o predecessor de Ricardo Wagner, e o de Auber, e o de Herold e o de muitos outros.

A escóla franceza é, pois, uma intermediaria entre a escola allemã, toda subjectiva, inspirando-se nos grandes arrebatamentos da consciencia humana, cheia de gravidade, como a justiça, rodeada de{87} esplendores, como a verdade e infiltrada de meditações, como o espirito da humanidade, e a escóla italiana, toda objectiva, obedecendo mais ás impressões dos sentidos, tendo por norma de vida o ideal da natureza, cercada de flôres, de primaveras e de aves, e cantando o paraizo ao som das intimas alegrias e dos intimos prazeres.

Os dilletanti do nosso theatro lyrico quasi que chegam a menosprezar hoje a musica italiana, por obnoxia e anachronica.

Não nos parece razoavel semilhante proposito. A não ser a moda, não sabemos que outros factos possam abonar tão disparatada opinião.

Portugal não tem uma educação musical verdadeiramente avigorada. Está longe ainda de poder attingir o classicismo allemão.

Depois, nós somos um povo peninsular. Vivemos com as impressões exteriores da natureza; o nosso espirito segue as oscillações da temperatura atmospherica; somos frouxos, levianos, sem o vigor que dá a consciencia nem a elevação que nos{88} traz a idéa: a nossa escóla ainda ha de ser por muitos annos a escola italiana.

A musica constitue, como a litterutura, a genuina expressão dos sentimentos de um povo. A França, que ri sempre e a proposito de tudo e de todos, não podia deixar de ser a patria da comedia moderna; por eguaes razões a Inglaterra, que se alimenta de fumo e de spleen, se não possuisse Shakespeare, o sublime tragico, possuiria de certo qualquer outro que lhe interpretasse os sentimentos e as paixões, com a mesma eloquencia com que o soube fazer aquelle divino artista; a Allemanha, á semelhança de quasi todos os paizes do norte, é mais inclinada ao drama symbolico, de que o Fausto é um exemplo maravilhoso, do que ao drama de paixão, que pertence naturalmente á raça latina.

O genero musical mais favorito, em Hespanha, é o tango, a habañera, a malagueña, a seguidilla, n'uma palavra a—zarzuella, com feição especial e caracteristica, podendo tomar-se como mais uma affirmação do genio bandoleiro hespanhol,{89} e do espirito aspero, violento e contradictorio d'aquelle esplendido paiz.

Que a musica entre os hespanhoes é originalissima, sabem-n'o todos. E por tal fórma é isto verdade que jámais povo algum do mundo foi capaz de assimilar-lhe a inspiração, o rythmo e o cadenciado da phrase.

A Hespanha ficaria incompleta se porventura lhe subtrahissem este genero de musica, de todos os generos o mais monotono, talvez, mas com certeza o mais espontaneo, porque é a expressão das suas tradições e da sua nacionalidade.

Rara é a mulher em Madrid que não sabe cantar. O proprio amor madrileno é um tango, em que a amada ou a amante ora quer, ora não quer, ora solluça e ora ri, ora finge e ora pensa.

D'este modo vê-se que a musica em Hespanha, producto natural d'aquelle paiz é como tudo o que alli existe—uma contradicção agradabillissima, e talvez mesmo que um sonho encantador.

Mais adeante, porém, voltaremos a este assumpto.{90}
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XI

O CHOCOLATE E O CAFÉ

Eu havia realmente feito uma idéa da minha querida señorita; mas, por Deus, ella, a caprichosa, está muito acima da minha pobre imaginação.

Madrid já não é simplesmente a mulher formosa, que ao sopro da ventarola agita os olhos avidos e curiosos, inflammada na eterna chamma do amor e docemente embriagada pelo Xerez do sentimentalismo peninsular. Não. Madrid é mais alguma coisa do que isso—Madrid resume em si a altissima idéa industrial{92} do chocolate e o singularissimo pensamento politico do café.

Peço perdão, minha senhora, se porventura fui menos claro no modo de exprimir a minha idéa. Eu me explico. O chocolate é aqui o nosso companheiro inseparavel, o nosso bâton da manha e a nossa badine da noite.

Pela madrugada, ao descerrar a palpebra, ainda meio adormecida pelo vivido enthusiasmo d'este magasin pittoresco—a leitora será mansamente despertada no seu leito, não por um formosissimo sol de abril, mas sim por um mysterioso toque symbolico na porta do quarto, o que lhe indicará muito claramente que, não longe d'ali, a está esperando uma gentil creadinha com uma simples chavena de chocolate.

E, ou queira, ou não queira, ha de tomar o chocolate; do mesmo modo que, se estivesse no Brazil, havia de tomar café sempre que visitasse um amigo, e na China havia de aturar o chá vinte vezes por dia.

Ora, em caso de luta, eu prefiro o{93} chocolate, porque, emfim, nem nos torna nervosos, como o café, nem anemicos como o chá; que a fallar a verdade elle—que para a Hespanha é o caracter, o amor, a vida, a poesia, o commercio, a industria, a politica, a arte—elle, o chocolate, é sobretudo nutriente e impregnado de substancias vivificadoras.

Pobre Hespanha! Alegre filha do estreito Manzanares, eu, em ti, não canto as mulheres, nem as mantilhas de Sevilha, nem os teus risos infernaes—eu, em ti, formosa, canto, apenas, o chocolate e o café, isto é, a revolução e o futuro.

Pois julgam que não? Não acreditam na efficacia do chocolate, o escuro semsaborão? Perguntem a s. s.ª, o dono da fabrica de la Saragoza. Perguntem-lh'o. Tenham a bondade de perguntar-lhe qual é o seu consumo diariamente.

Os hespanhoes são alegres, cheios de vida, dormindo pouco, saindo muito, falladores, enthusiastas. E sabem porquê? Por causa do chocolate, o mysterioso, que traz sempre estes ventres bem fartos, e, portanto, orgulhosos de si mesmo.{94}

A Hespanha passeia muito, é ligeira nos seus affectos, caprichosa na sua politica, sonhadora, aventureira, risonha. E sabem porquê? É porque ella precisa de fazer a digestão do seu chocolate. E por isso ella, a olympica, faz duas ou tres corridas por anno por politicas differentes, e inventa revoluções, que, por causa do chocolate, apenas poderão durar poucos mezes.

As mulheres voam como andorinhas; correm de coração em coração, são seductoras, amaveis, familiares, intimamente affectuosas, mas tudo isto com azas, e portanto, com perigo.

Ora é por isso que eu ouso dar um conselho a s. s.as os srs. maridos de Hespanha—não dêem chocolate a suas esposas, se é que realmente amam mais o seu mènage do que o boulevard.

Agora o café.

É um pendant ao primeiro: ambos são negros, como suas reverendissimas os senhores jesuitas que por aqui caminham aos centos.

O café é o complemento do chocolate.{95} Vive-se n'elle, e n'elle se apura a linguagem, a toilette e o bem-senso.

As mulheres conciliam no seu coração o amor do profano e o amor do sagrado. Entram no templo catholico com o mesmo sans façon com que entram no templo social. Porque o café—talvez a leitora o ignorasse—o café é tambem um templo.

E que templo, minha querida marqueza! De tudo se encontra ali desde o fidalgo da regencia ci-devant até ao maratista sans-cullote.

Venha v. ex.ª a Madrid aprender a egualdade humana. Venha tomar aqui uma chavena de café, e verá como, embora desconheça a liberdade, v. ex.ª fallará na egualdade. Venha, minha senhora. Não se arreceie dos carlistas, que esses bandidos já hoje não vivem, e pertencem á historia.

Quando S. M., o sr. D. Affonso XII, houve por bem entrar em Madrid, depois de concluida a guerra carlista, a cidade embandeirou-se, illuminou-se, gritou, exclamou, abriu a bôcca. E sabem tudo porquê? Porque a cidade havia tomado{96} muito chocolate. Sem blague. Estavam todos fartos de chocolate, e a vingança foi digerir o patriotismo, abertamente, rasgadamente, como qualquer leão do deserto.

Só a tropa não havia tomado a sympathica droga, e, por isso, ella entrou na cidade esfarrapada, com as faces crestadas pelo sol das montanhas, que não pelo sol das batalhas, e olhos encovados e lobregos. Por isso o primeiro dever de sua magestade o sr. D. Affonso XII será mandar vestir os que estão nús e dar chocolate a quem tem fome.

Que sua magestade seja misericordioso. Que sua magestade se inspire no amor do proximo e no bem da humanidade!

Sua magestade é rapaz, que não prima pela formosura, mas que poderá, de certo, primar pelo espirito. Eu não tenho a honra de conhecer sua magestade. Sei que entrou em Madrid, e que a estas horas—tres da tarde—já terá tomado chocolate no seu palacio de la Plaza de Oriente.

Deve ser-lhe de bom proveito, porque,{97} emfim, sua magestade como primeiro cidadão do seu paiz, tem de andar sempre bem alimentado, porque muito tem que trabalhar.

Que sua magestade, portanto, haja por bem engordar e deitar fóra a magreza que o devora, e tornar-se rijo, como qualquer dos seus soldados.

Que sua magestade, como bom catholico, se digne implorar da providencia tão alta mercê.

Que sua magestade, reinando por graça de Deus, não seja frouxo nem anemico.

Que sua magestade, emfim, tome muito chocolate, para assim angariar a estima de seus subditos e o amor do proximo!

Que sua magestade não tenha pejo de entrar no café; que entre no café, que questione, que se torne hespanhol, tomando a sua capa, e passeiando pelas ruas da cidade, como qualquer humilde mortal.

Posto isto nós não temos mais que dizer a sua magestade.

E, portanto, que sua magestade passe muito bem, e me honre com as suas ordens sempre que assim lhe aprouver.{98}

 

*
*     *

 

Entre os muitos e notaveis cafés de Madrid, avultam, principalmente, o Imperial, o Oriental, o das Columnas e o de Levante, na Puerta del Sol, o Suisso, na rua de Sevilla, o da Iberia, na Carrera de S. Jeronymo e o Fornos na rua de Alcalá.

O viajante que escolha á sua vontade; na certeza de que em todos elles encontrará vida, apetite e enthusiasmo.

Portanto—à l'aventure!{99}

 

XII

O SALERO

Por Deus, que se tivesse agora de fallar numa mulher franceza, eu, á semelhança de um prégador d'aldeia, invocaria em meu auxilio, não a virgem pura dos altares, mas sim a orgulhosa modista de sua magestade a rainha—a sr.ª D. Cecilia Fernandes.

Mas o caso é outro. Trata-se de uma cousa engraçada, de uma cousa extraordinaria, singular, de uma cousa perfeitamente real, e que não deve a sua existencia neste mundo nem a Marsoo, a modista, nem a Stellpflug, o sapateiro.{100}

Trata-se, minhas senhoras, trata-se meus senhores, trata-se do grande rei de Hespanha, da grande alma dos cafés, do grande senhor da politica, da grande dama d'honor de todos os paços, do grande, do supremo Bobeche de todos os ministerios, do grande Pierrot de todos os tribunos; trata-se (mas isto em segredo!) trata-se do salero.

O salero! Caramba! Sabe a marqueza o que é o salero? Nunca na sua vida teve, ao menos, um ataque nervoso; nunca se irritou contra as diabruras do marquez; nunca teve as cócegas, que ordinariamente nos trazem as comidas apimentadas; nunca experimentou Mabille; nunca dançou um can-can simples, um d'estes can-cans que mesmo em familia se dançam com os pequenos da casa; nunca namorou, marquesa? e nesse culto virginal, não se mexia, não revirava os olhos, não compunha o laço da gravata, não apanhava a prega do vestido, não se assoava, não mudava um gancho do cabello, não tinha sorrisos frisantes, não fingia, não brincava?{101}

Fazendo tudo isto, sem mesmo o saber, a marqueza tinha salero, e era hespanhola.

Mas, perdoe-me a leitora, para se ter salero não basta só conhecer o Terreiro do Paço e o Rocio, ir de quando em quando a S. Carlos ouvir mad. Sass, e frequentar aos domingos o Passeio publico, como qualquer simples burguez.

Nada d'isto. Se a marqueza realmente quizer ter salero saia de Portugal, despeça-se dos seus amigos, vá a Madrid, tome a sua mantilha de andaluza, frequente todos os dias o Prado e o Retiro, entre no café imperial e discuta a politica do sr. Canovas del Castillo—emfim, minha querida senhora, se quizer ter salero seja hespanhola.

Bem vê, marqueza, que isto de ser portuguez é um tanto exquisito, e arrasta-nos a gravissimos inconvenientes; porque, emfim, permitta-me v. ex.ª que espirre um pequeno sarcasmo sobre o paiz do sr. D. Affonso Henriques—nós, os portuguezes, nem temos a coquetterie franceza nem a seriedade britanica; de modo, que, imitando{102} a todos, ficamos sendo cousa nenhuma, o que mathematicamente equivale a zero.

Destruir, porém, o zero, anathematisar o vacuo, preencher essa pequena lacuna deselegante, rotunda e burguesa—tal deve ser a missão da nossa mulher.

Que o zero se retire d'este paiz: que o sr. Serpa não tenha pejo em o pôr fóra da sua secretaria; que os grandes algarismos herculeos nos entrem pela porta dentro, e exclamem soberbamente: «Nós, os finorios da arithmetica, nós é que somos a riqueza, o credito e a virilidade. Nos quoque gem sumus....»

E dito isto—que mylady, a sr.ª marquesa, se não esqueça de mandar vir uma boa carroagem Daumont; que mylord, o sr. duque, mande preparar um bom jantar aos seus amigos intimos; e finalmente, que o demi-monde procure Keil, a gloria dos alfaiates lisbonenses, adquirindo assim, em virtude da thesoura, o chic e a pose de quem muito viajou.

Já vêem que o conselho é aliás muito trivial; para o pôr em pratica uma unica{103} condição se requer—pagar aquillo que se deve.

Eu desejava, é verdade, que a leitora tivesse salero—que o comprasse nos cafés, nas calles, na Puerta del Sol, que o adquirisse no Prado e no Retiro, onde diariamente apparecem de mil a duas mil carroagens, deslumbrantemente equipadas, mas, emfim, se isto lhe é de todo impossivel, se realmente lhe repugna o caracter hespanhol, tenha paciencia, e mande vir um figurino de Paris. Aprenda a calçar-se bem; arranje 60 libras, e appareça um dia no Bois de Boulogne; decore dois ou tres bons ditos: torne-se artificial, ligeira, engraçada, mas com verve, avec de l'esprit—numa palavra torne-se franceza; ou ainda, se a menina vê difficuldade neste passo e tem aspirações a ser mãe, então tenha a bondade de tomar um bilhete pelo primeiro paquete de Southampton e de visitar a Inglaterra.

E assim é realmente que a mulher hespanhola é mais material do que sentimentalista, mais da sociedade do que da familia, mais do mundo do que do coração.{104}

Por via de regra, a hespanhola é franzina, delicada do corpo, com as faces coloridas pelo uso do chocolate e os olhos scintillantes de vivacidade e de ardor verdadeiramente meridional—alguma cousa do facetado do crystal e da delicadeza da porcellana; nem possue o coquettismo da franceza, porque lhe falta o apuro do espirito, a revelação da ironia, o pungente do sarcasmo, nem a mènagerie da mulher ingleza, porque ella é muito simplesmente a negação d'esse viver intimo e famillar.

Mas, em compensação, ella, a minha formosa andaluza, tem uma cousa que nenhuma mulher d'este mundo é capaz de ter—ella tem o salero, isto é, o desprendimento olympico, titanico, por tudo quanto é vida e amor, o doce laisser-aller da arte, que é luz, e magnetismo—luz, que abrasa em sua chamma aquellas candidas borboletas dos cafés, magnetismo, que adormece em seus braços aquellas ternas andorinhas, como as outras aves, suas irmãs, sequiosas de ar, de prazeres mundanos, de folgança, mas folgança, perfeitamente real, selvagem como o matar de{105} um touro, o esfaquear de uma creatura, ou o abrazar de uma consciencia—ella, a hespanhola, ella não é verdadeiramente uma mulher, mas muito mais do que isso:—ella é um rapaz de saias, um pequeno demonio alegre, juvial, attrahente, um doce mysterio de dois sexos, incomprehensivel, que ao mesmo tempo participa de um, pela virilidade, pela audacia, pelo arrojo, e de outro pela meiguice inconsequente, pelo rir suavemente acariciador, e pela ternura extraordinariamente singular que as reveste.

Oh! as hespanholas! as originaes!...

As nossas mulheres, por exemplo, imitam servilmente as francezas; mas ella—por Deus!—ella é o que é—só ella, sem mais ninguem, caprichosa, unica, originalissima.

Aquelle fallar, aquelle rir, aquelle modo de dizer as cousas tão á propôs e tão seu, aquelle salero, e, sobre tudo isto, fazem com que a mulher hespanhola tenha dois lados immensamente notaveis e extraordinarios—a energia e o salero, isto é, o chocolate na sua consequencia digestiva{106} e physiologica—o movimento e a graça.

Dito isto, minha querida leitora, façamos como ellas—tomemos o chocolate e tenhamos salero.

Caramba! que salero!...{107}

 

XIII

THEATROS

A vivacidade do genio hespanhol tem ainda um reflexo do seu bom humor e da sua veia, sempre fina, alegre, e sarcastica a espaços relampagueada por um raio de colera ou por uma faisca de trovoada—é o theatro.

Oh! os theatros em Hespanha! que sumptuosos edificios! que riqueza na mise-en-scene de qualquer peça! que luxo! que prodigalidade...

Ao ouvir as doces malagueñas e as ternas seguidilhas, desferidas por labios de romã, que nem eu sei se são da terra, se{108} são do ceu, quasi chegamos a julgar-nos transportados ao Oriente, com todo o seu cortejo de sensualidades que matam, de bailadeiras que seduzem, e de amores que fervem.

Que deliciosissimas sereias, em pleno seculo XIX! que sublimes actrizes, aquellas, meu Deus! E havia de, ainda assim, ser condemnado um cidadão, se, à la belle etoile, e a occultas da parentella, intentasse o rapto d'uma d'aquellas formosas sabinas, mais diabos que o proprio Diabo e ganhando em seducção á propria serpente do paraiso terreal?!...

Uma cousa, porém, distingue o theatro hespanhol—é a zarzuella, especie de meio termo entre a opera lyrica e a opera buffa; suave umas vezes com as transparencias sentimentaes das paixões humanas, alegre sempre, folgasã quasi sempre, e por toda a parte impregnada d'um estranho frescor de malicia e de surpreza, que chega a prender ainda os menos atreitos aos laços de Satanaz.

Em França, por exemplo, a opera buffa foi uma creação meramente do demi-monde;{109} creação necessaria no meio das corrupções do imperio, em que se fazia mister caricaturisar e pôr bem ao vivo todos os podres de uma sociedade effeminada, desde o imperador, que representava o vicio dourado e a lepra engastada em diamantes artificiaes, até á ultima grisette, que, por causa de um estudante do bairro latino, tinha empenhado os seus derradeiros ceitis: mas com a zarzuella não succedeu o mesmo, porque ella foi uma creação espontanea da jovialidade de um povo relativamente feliz, e que ha de sobreviver a todos os cataclismos sociaes, como até aqui tem sobrevivido a todos os tempos.

Offenbach tem na sua gamma uma só nota caracteristica—o riso, a ironia, o sarcasmo. Marianno de Larra, auctor de muitas zarzuellas notaveis, possue, além do riso, a lagrima que lhe serve de contraste e que o dulcifica.

A Grã-Duqueza é uma correcção ás momices imbecis de uma diplomacia estonteada, um quadro fiel das cocottes, arvoradas em mandadeiras de exercitos,{110} uma photographia de costumes pervertidos pela immoralidade de um governo inepto e pelo capricho de um monarcha infame; o Jogar com fogo é um entre-acto agradavel ás acenas da vida, um delicioso intervallo aos soffrimentos e ás dôres da humanidade.

E é o que tem a zarzuella: não cança nunca, porque foi um producto natural e espontaneo dos hespanhoes, tal qual como o chocolate e o salero; ha de viver sempre, e atravez de tudo, porque tem em si impresso o cunho da originalidade e da tradição, que não morre, e a elevação do sentimento, que será sempiterno no seio dos homens e das civilisações.

A opera-buffa foi um arranco de homens fortes, em meio da perdição que os ameaçava; nem ha de ter nunca a universalidade da zarzuella nem a elevação da alta-comedia. O seu dominio no theatro ha de ser, portanto, passageiro e ephemero.

Numa palavra, a zarzuella tem as suas raizes nas immutaveis oscillações do coração humano, e que a torna duradoura e imperecivel; a opera-buffa originou-se{111} numa sociedade de transição, e ha de, por isso, como ella, ter um mediano imperio sobre as épocas positivas e scientificamente organisadas.

Em quasi todos os theatros de Madrid se canta a zarzuella, e em quasi todos elles tambem com a animação, com o vigor, com a frescura com que só os hespanhoes a sabem cantar.

Quando, pela primeira vez, entrei no Theatro Real, situado no largo de Isabel II, com a fachada principal para a praça do Oriente, senti-me sinceramente deslumbrado. É tal o luxo d'aquella casa, tal a ordem, tamanho e socego, que, em boa verdade, mal chega a gente a pensar que esteja na capital da Hespanha, no paiz dos bandoleiros de toda a especie e no centro de um vulcão, sempre em revolta comsigo mesmo.

E depois, que contraste entre uma tourada e uma representação theatral! Que a delicadissima leitora, do meio de um deserto, confuso, anarchico, impetuoso, açoutado pelo simuon e ennegrecido pelas areias, se julgue subitamente transportada{112} a um paraiso, onde adejam os cherubins com as suas azas brancas e onde sorriem os anjos com as faces louras.

Assim me succedeu a mim quando uma tarde, dos suburbios da Porta de Alcalá, onde existe a praça de touros, me lembrei de ir ao theatro, afim de ouvir cantar esse eterno e insubstituivel poema do coração humano, mui modestamente chamado—Romeu e Julietta.

Nunca em Hespanha uma pateada interrompeu os espectaculos lyricos. A platêa do Theatro real não é só rica em alcatifas, em estofos, em casacas e gravatas brancas, mas ainda e muito principalmente na seriedade dos seus espectadores e na respeitabilidade mais que urbana e generosa dos seus habitués.

Na rua de Jovellanos encontra-ae o theatro da zarzuella. De zarzuella... dizem elles; nós diriamos quasi um segundo theatro lyrico. Que vozes tão admiravelmente timbradas, e que modulações tão harmonicamente produzidas!

Representava-se então uma velha zarzuella, muito velha e muito ouvida, mas{113} sempre fresca no rhythmo e no pensamento, que é nada menos do que a expressão do caracter hespanhol. Queremos fallar de Pan y toros.

Panem et circenses, gritavam os romanos; Pan y toros, exclamam os hespanhoes, como querendo mostrar a intima affinidade que, de facto, existe entre um e outro paiz. Mas—cousa singular! a França tambem é de origem latina, e no entretanto a França, a generosissima filha da revolução e do pensamento moderno, em vez de pão e touros, do alto das suas muralhas de guerra e do topo das suas fortalezas, soluça altivamente—ou pão ou chumbo.

E assim é realmente que ella caminha, não em demanda de espectaculos que embrutecem, mas sim em procura de civilisações, que são como que os marcos milliarios da humanidade trabalhadora.

Muito bem. Imaginemos a côrte no doido phrenesi d'um baile. Subito uma denotação fere os ares. Abre-se uma das janellas do palacio. Cessa a volupia. Um dos convivas descendo a escadaria, reconhece{114} haver-se morto ali um capitão de infanteria, ha poucos instantes. Averiguado o caso nada era.

—«Póde o baile continuar, exclama o mestre. Não é nada, não é nada. Um homem morto. Apenas um homem morto!»

E a orgia proseguiu; porque, a dizer-se a verdade, não vale nunca a pena interromper os prazeres mundanos pela simples bagatella de um assassinato.

Ora nesta zarzuella transparece perfeitamente o caracter hespanhol, irrequieto e indomavel, com todos os seus mil caprichos de momento e as suas labyrinticas phantasias de occasião.

Além, porém, d'estes dois theatros, ainda poderiamos mencionar muitos outros, e entre elles o theatro da Comedia, theatro muito moderno, lindissimo na fórma e admiravel pelo seu reportorio; o theatro do Circo, na praça del Rey; o theatro de D. Affonso, proximo da Porta de Alcalá; o theatro das Variedades, o theatro das Novidades, etc., etc.

E tudo isto ainda por cima, rodeado de circos, de largos, de exposições, de musicas,{115} de alegrias ferozes e de mulheres encantadoras.

É verdade, e os patinadores?

Fallemos dos patinadores.{116}
{117}

 

XIV

OS PATINADORES

Princeza, o seu braço! Vossa alteza é morena, viva, alegre; tem uns bellos olhos rasgados, profundos, negros, como os abysmos do inferno. Pois bem: que a sua alma ardente e expansiva, como este bello sol da peninsula, que nos aquece e anima, se digne, por um pouco, acompanhar-me a aspirar o ar bom da natureza.

Quero tel-a ao meu lado, rainha. Bem vê—eu não sou fidalgo, nem conde, nem barão. Á fé que o não sou. Mas emfim, se é verdade que a um democrata nunca ficou mal beijar a mão de uma aristocrata,{118} conceda-me a indiscripção. Os meus labios tocarão delicadamente á superficie d'essa meiga flôr de liz, mais bella e mais transparente do que uma renda de Bruxellas. Depois, e só depois, o paraizo...

Antes de mais, porém, tomemos um fiacre, um commodo fiacre, ligeiro, com duas molas flexiveis, dois nobres cavallos, briosos, e um valoroso cocheiro de mão certa e pulso firme. É verdade que as rainhas hoje nem sempre estão prevenidas. No entretanto, tu, minha velha amiga, tu, que não tens nenhum reino a perder; tu, que nunca passaste do boulevard com todos os seus perigos e attracções; tu, com certeza, tens ainda os cem luizes que hontem á noite te deixou aquelle inglez excentrico de suissa loura e ar grave.

É para elles que eu appello, para esses cem luizes honestos, puros, serenos, capazes de encher a historia do mundo, e incapazes de concitar em redor de si odios republicanos ou raivas demagogicas. Não! os cem luizes são de todos—de todos os tempos e de todos os logares—reinando{119} sempre, e sempre bem: irresponsaveis, sem exercitos, sem côrte, sem apparato, mas valentes, com consciencia de si, e valendo pelo silencio, aquillo que os mais abalisados do mundo não podem conquistar pela palavra.

Que magnificos sujeitos!

E agora reparo que nestas conversas iamos perdendo o tempo. Aqui está a carruagem. Entremos para a carruagem.

Da Puerta del Sol ao Prado são dois passos. Olhe a princeza: vê aquelle cavalheiro de bigode e pera alourados, estatura regular, pallido de rosto e expressivo no olhar?—é o general Pavia, o celebre assassino da republica em Hespanha.

Mais além, repare: aquella morenita, leve como uma penna, e adoravel como uma fada, é Pepa—uma heroina de amores e uma actriz de corações humanos. Mas, que nobre vulto, este agora? É o duque de Abrantes, por sangue descendente de Portugal, antigo possuidor da quinta das Laranjeiras, senador e conselheiro de Isabel II. É homem baixo, magro, secco e decidido nos seus gestos, o{120} que indica uma vontade firme e um caracter recto.

Mas chegámos, finalmente. Uma vez que estamos em Recoletos, entremos num d'estes circos.

Que magnifico sol e que supremas alegrias! A neve é pouca; e por isso nós, que queremos patinar, recorreremos ao artificio.

A praça está encerada. Muito bem. Patinemos na praça.

O seu pé, minha doce amiga. Não tenha medo. Por Deus, não trema. Não trema, que não morrerá, asseguro-lh'o eu. Nunca leu a admiravel historia dos patinadores descripta por Alexandre Dumas no Colar da Rainha?

Olhe, é um encanto! Por exemplo, eu quero patinar, mesmo no circo, colloco debaixo de cada pé um pequeno carrinho, composto de tres rodellas de ferro.

Dê-me o seu pé, e verá.

Agora firme, sem attrictos, serenamente, imperturbavel; deixe-se escorregar, como uma pequena gondola veneziana; unicamente, para não cahir, imprima um{121} leve movimento aos joelhos, alternando-os, por causa da lei do equilibrio.

Depois, oh! depois, o infinito, o ideal, o amor, as azas, mais velozes do que as de uma ave, as pernas mais ligeiras que as de uma corça; uma estranha mão apertando-nos a nossa; é o paraiso a sorrir-nos num beijo que ninguem vê, e a gloria a mirar-nos num céo, que nos allucina, que nos embriaga, que nos absorve.

Correr, voar, amar!—tal é o triplice fim de um patinador.

Mas, antes que se chegue a ser um bom patinador, intrepido e valente—que trabalhos, que luta e que risota! Que risota, sobretudo!

Vai um portuguez a Madrid, e mesmo nisto começa por conhecer a sua inferioridade. Que poltrão! Aluga dois carrinhos, e vem para o circo: olha; vê, sorri-se, anedia as guias do bigode, dá um geito ao cabello, e toma ares de Bayard de papellão; deseja tomar a posição perpendicular, e vacilla. Dou-lhe um, dou-lhe dois, dou-lhe tres; por fim o heroe parte; horror! não parte, porque a inhabilidade o torna{122} pesado, refractario á gymnastica, e ao desenvolvimento de musculos. Risota geral—Ah! Ah! Ah... Hic jacet infelix patinator...

A victima levanta-se, desconfia d'aquelles comprimentos improvisados, e conclue por detestar os sabios de qualquer natureza que elles sejam.

Mais uma tentativa. Vejamos. Talvez fosse defeito das rodas, talvez dos pés, talvez da falta de agilidade... Experimentemos. Novo impulso. Ah! Ah! Ah! Nova queda.

E, entretanto, em quanto isto se dá, alguns milhares de cavalheiros vão seguindo o seu rumo, sem interrupção, olhando de soslaio os principiantes, e mostrando naquelle modo de correr que até a andar se póde ter consciencia de si e vaidade dos outros.

Duas senhoras inglezas vi eu, um tanto esquivas ás ironias do amor, que mais pareciam, patinando, sonhos aéreos, visões romanticas do que realidades terrenas.

Nós a tentarmos a approximação, e ellas a fugir, a fugir, como sombras longinquas,{123} que só por escarneo se approximam de nós, para novamente nos escapar, fazendo-nos umas tristes e desoladas figas.

Que horror! E Frutos Martinez, o patinador illustre, avisado naquelles assumptos, collocando, cheio de raiva os seus carrinhos, lá se ia, inconscientemente, atraz d'aquellas borboletas de olhos azues e cabellos louros.

Mas, certamente, meus caros concidadãos—a patinação não e simplesmente um espectaculo agradavel, rodeado de peripecias curiosas e movido por generosos impulsos de espirito. Não! na patinação ha ainda mais o desenvolvimento physico, que muito conviria á nossa mocidade enfesada, e o interesse moral, que, de certo, aproveitaria mais aos nossos rapazes do que uma facada dada no Bairro Alto, em pleno dia.

Em todo o caso, uma vez que assim queremos ser, sejamos assim, sem graça, sem espirito, e sem a elegancia, que naturalmente se exige nas existencias modernas.

Honra soit qui mal y pense...{124}
{125}

 

XV

TOURADAS

A los toros! a los toros!...

 

E a populaça, ebria de sangue e sedenta de prazer, empoleirava-se no cimo das carruagens, comprava camarotes pelo dobro do preço, corria pelas ruas como um possesso, gritava, ria-se, atirava ao ar os seus chapeus emplumados, cortejava a realeza que passava, dava vivas á Marselhesa, e fugia, fugia nas azas do phrenesi irrequieto, em demanda do mais barbaro de todos os espectaculos do mundo.

Ó Hespanha, minha querida amiga, doce{126} filha dos cafés e da volupia, tu, que possues museus que te são um legitimo patrimonio de orgulho e de riqueza; tu, que amamentaste ao teu seio os maiores oradores da Europa contemporanea; tu, que tiveste artistas como Murillo, Velasques, e Goya; tu, que és o amor, a contradicção, o mysterio; tu, minha perola, tu não devias ser torera.

Emfim, eu sei que tu tens defeitos; e o teu primeiro defeito, acredita-me bem, é ser militar. Os teus rapazes, porque são novos, desejam agradar ás mulheres: pegam numa arma com a mesma sem-ceremonia com que nós aqui bebemos um copo de agua. Que valentões! O campo de batalha sorri-lhes, o inimigo revolta-lhes as iras concentradas, e são leões, atiram-se, atiram-se ferozmente sobre a metralha adversa. Nem sua magestade o canhão Krupp os intimida, nem os joelhos lhes tremem á vista do adversario.

Que valentões! que valentões...

Ai! querida minha, que se não fossem as mulheres, tu serias mais feliz e respeitada. Mas, que diabo! para que tens tu{127} filhas tão formosas?—para que? Não te bastava já o chocolate, para, á semelhança de um vulcão, trazeres sempre dentro de ti o fermento da revolta? Ainda, por cima, olhos scintillantes, rostos abrasadores e salero atrevido? Ora pois, nada mais te faltava...

Tem paciencia; mas tu, Hespanha, tu o que tens é excesso de calor, de sensualidade, de veneno, de corrupção. Os estrangeiros acham a tua cosinha demasiadamente apimentada; nós encontramos as tuas mulheres sempre como uma braza—a ferver; nos teus cafés toma-se pouca soda; o proprio sr. Canovas del Castillo, quando falla no congresso, não é muito atreito aos gólos de agua; o teu rio é semsaborão, estreito, pouco abundante e superficial. Ao que parece, um poucochinho de agoa de mais, um poucochinho de lume de menos não deixaria de fazer-te bem. Numa palavra, minha querida amiga, se queres viver independente, feliz, alegre, satisfeita comtigo mesmo—purga-te, manda vir da botica duzentas grammas de bom senso politico, que será a tua magnesia{128} calcinada;—fóra, fóra com essa bilis que te devora o organismo: estomago limpo e menos... chocolate aos srs. politicos.

Mas os touros, os touros! por vida minha, que nunca assisti a espectaculo mais curioso, mais terrivel, mais seductor. Até as proprias mulheres se tornam viris, musculosas, corpulentas—ellas, que uma hora antes tinham acceitado a côrte a um gentil militar imberbe; ellas, que são um puro mysterio, uma alta excentricidade; ellas, emfim, que têm o dom mythologico de nos apparecer sob o duplo aspecto da força e da fraqueza, do repente e do meditado, do meigo e do energico.

Inundára-se de povo a Calle de Alcalá. Os char-á-bancs eram sem numero; os guisos telintavam nos classicos muares; por toda a parte a corrida infrene, as subitas allucinações, os risos infernaes; as vertigens, que referviam em desejos ardentes; a loucura, que volitava em nuvens de enthusiasmo; a alegria, que trasbordava em ondas de amor; a vida, a mulher, o fumo, o chocolate, os touros emfim.{129}

Que delirio para aquella gente! que devoção! que irresistencia!

Chega o primeiro touro: os leques agitam-se; no olhar ha mais irradiação; scintillam as moedas de prata; aos pés do bandarilheiro audaz cahem as dezenas de charutos.

—A elle, meu valente, a elle...

E o cavalleiro aponta-lhe a lança ao pescoço, e o animal investe com o cavallo. Com uma das pontas rasga-lhe o ventre; a multidão, embriagada, applaude o sangue; mais uma investida e o misero cavallo lazarento succumbirá; assim; mais uma; até que, emfim, vem a morte dulcificar este pandemonio infernal!

Agora Lagartijo que se approxime; elle traz uma pequena espada na mão direita; para elle está reservada a mais garbosa moña, que nunca mão de mulher se lembrou de fazer. Deante do touro o heroe não trepida; lá estão ambos que parecem dois tigres: alfim o animal cança: Lagartijo investe; mais uma volta, e o touro cahirá.

As bandas marciaes rompem em hymnos estridentes; a populaça agita os lenços{130} de côr; em todos os olhos se lê o phrenesi irrequieto, nervoso, indomavel: Lagartijo venceu, Lagartijo é o heroe da festa; triumpho a Lagartijo...

Otro toro! otro toro!...

Quasi que nem chega a haver tempo para arrastar para fóra da praça os derradeiros restos d'aquella barbara batalha, tão audazmente pelejada entre um homem e um animal, que, em vez de joguete de circo, muito bem podia ser a felicidade da agricultura e o alimento da miseria.

Touro, cavallo, farpas, lanças,—tudo á uma é arrastado em padiolas para fóra do amphitheatro.

Depois, esperando, faz-se sempre votos para que o outro touro seja melhor do que o seu antecessor; como se para saciar a avidez dos espectadores fosse pouco todo o sangue derramado.

É que a Hespanha é realmente assim, em meio da sua vida tumultuosa e larga. Pouco lhe importa a morte de dez, vinte, trinta homens; a questão é que o enthusiasmo não decresça nunca, e que a vida não deixe jámais de ser uma terna e doce{131} folgança, onde os risos e as lagrimas, as alegrias e as tristezas crescem e augmentam, temperados na mesma proporção.

E, no entanto, nenhum paiz existe de mais vastos recursos do que a Hespanha, onde as minas de cobre, de ouro, de prata são quasi tantas como as suas provincias e os seus concelhos.

Nas suas planicies, por igual risonhas e productivas, medra e desenvolve-se toda a especie de productos agricolas; as suas paizagens, se bem que aridas na Extremadura, pela escacez de agoa, tomam todavia um aspecto deliciosissimo na Andaluzia, onde as mulheres e os horisontes se disputam a palma e o amor.

Abençoado paiz! Nem as guerras, nem as dissidencias civis, nem as revoltas populares poderam ainda prostral-o.

Uma nação que tão sinceramente ama as touradas, não poderá nunca deixar de ser guerreira e sanguinosa.

Ai de nós, no momento em que a Hespanha deixasse de ser o que é—lutadora, torera e ruidosa.

A los toros! a los toros!{132}
{133}

 

XVI

O PRADO E O RETIRO

Dizem os physiologistas que o calor é a vida; e por isso é, creio, que os cafés, assim como as soirées, assim como os clubs, assim como os boulevards se tornam hoje uma verdadeira e insubstituivel necessidade social.

Que o homem nasceu para a sociedade—escrevem-o philosophos abalisados e tem-o repetido ha um seculo, e ininterruptamente, o corpo cathedratico da nossa universidade.

Esta verdade passou, porém, da metaphysica á pratica; e assim é que, ao contrario{134} de Rousseau—que na natureza fundava todo o pacto entre os homens—se elevaram, como por encanto, o Bois de Boulogne, em Paris, o Hyde Park, em Londres, e o Central Park, em New-York.

A não ser Lisboa, a velha fanatica do passeio publico, poucas cidades ha agora na Europa, que não tenham o seu pequeno boulevard, especie de rendez-vous do mundo elegante e da fina sociedade do bom tom.

E necessario é que isto assim seja. O boulevard não é simplesmente uma ostentação de capital, mas ainda mais uma parte indispensavel á educação de um povo, que não é só intellectual e moral, senão tambem physica e social.

Em Paris qualquer creança aprende mais pelos olhos e pelo ouvido do que nós nas nossas escolas. E o motivo é facil. Habituados desde a infancia a frequentar os differentes jardins—botanico, zoologico, etc.—quando chegam a uma edade razoavel, quasi se póde dizer que são dotadas de uma vasta e profunda educação.

Praticamente aprendem os nomes aos{135} animaes; ouvem-lhes a historia; assistem-lhes ao desenvolvimento e acompanham-lhes os movimentos e os instinctos. E tudo isto, porque desde pequenos frequentam os boulevards, onde brincam e onde muitas vezes arranjam os meios de ganhar a vida no futuro.

Mas o boulevard tambem é hygiene, pelo bom ar que lá se respira, pelos exercicios a que convida, e pela facilidade com que se passeia. Depois nem só isto. Ha ali campo para largas observações e assumpto para profundos estudos. Muitos romances conheço eu que tiveram lá a sua origem, além de muitas mulheres que lá foram procurar a sua felicidade e a sua riqueza.

O Prado é um dos mais celebres e um dos mais concorridos passeios da sociedade elegante de Madrid. Diz-se que a sua origem, tal qual se acha presentemente, data do reinado de Carlos III. Rodeado de fontes, de lagos, de arvores, de estatuas, de restaurantes, de praças, o seu espaço é enorme, extendendo-se da fonte de Cybele quasi em linha recta até encontrar{136} o passeio de Atocha, formado pela prolongação da rua do mesmo nome.

É raro o dia em que ali não passeiam de quinhentas a mil carruagens, vendo-se frequentemente dentro d'ellas rostos formosissimos, adornados de bellos olhos, profundos e escuros, como só os sabem ser os olhos hespanhoes.

Com dois ou tres passeios ao Prado quasi se fica conhecendo toda a sociedade madrilena, nas suas distincções e nos seus vicios, nas suas virtudes e nos seus erros.

E depois—que mulheres!

A uma historieta assisti eu, divertidissima por signal e extremamente curiosa.

Um amigo meu, amoroso e simples, encontrou-se um dia profundamente apaixonado por uma gentilissima menina, que todas as tardes ali costumava expôr-se á admiração geral dos passeiantes e dos leões da moda.

Até aqui, já se vê, nada de extraordinario.

O ingenuo rapaz, porém, não se podendo mais conter, entrou-se tristemente na{137} desgraçada usança portugueza, e abeirando-se da mulher, fez-lhe a seguinte declaração:

—Deponho aos seus pés, minha senhora, a mais pura e sincera homenagem dos meus respeitos e do meu amor...

Ao que a deusa respondeu:

—Ai! que graça!... Se o cavalheiro soubesse em que eu agora estava a pensar?!...

O galã aproximando-se mais:

—Em que estava a pensar?!...

—Sim, pois não adivinha? aflautou a ingenua.

—Certamente que não.

—Pois olhe estava a pensar num bonito vestido de riscas...

Ó illusões! ó facadas!

No dia immediato o apaixonado moço pegou num lapis, e escreveu á pressa num bilhete de visita as seguintes e doces palavras:

«Pepa (era o nome da heroina)—«Pepa—aborreço-me, e adoro-te».

A resposta, porém, não veio. Pegou noutro bilhete, e tornou a escrever:{138}

«Quem a adora, onde a poderá encontrar?»

Então o coração de Pepa pulsou violentamente dando de si uma tremenda explosão que em seguida passamos a transcrever fielmente.

«Cavalheiro—Recebi o seu primeiro e o seu segundo bilhete. Não respondi ao primeiro, porque não quiz, e ao segundo apenas tenho a dizer que o acho de um arrojo extraordinario e nunca visto».

Assignado por um nome supposto que não era o de Pepa.

Assim continuaram as cousas. Os episodios succederam-se uns após outros. Numa noite, comtudo, ás tristezas do costume seguiram-se no meu amigo umas alegrias estranhas. Interroguei-me a mim e interroguei-o a elle. Reparei-lhe nos olhos, e reconheci-os mortiços; olhei-lhe as narinas, e vi-lh'as extraordinariamente dilatadas. Então a minha consciencia deixou o estado de duvida em que se achava, e entrou serenamente na estrada da certeza. A conquista havia-se effectivamente realisado. Pepa, a sublime actriz, depois de{139} varias piruetas, de varios zig-zagues, de varias fórmulas, concluira emfim por se render. Não era praça inexpugnavel. Presentiu metralha, e caiu. Cumpriu religiosamente o dever que a sua condição lhe impunha.

E nada mais. O meu patricio, o indigena, sahia todos os dias de casa, alegre e bem disposto, e entrava altas horas da noite com algumas libras de menos na algibeira e com algumas desillusões a mais no espirito, até que por fim se saciou.

Ao deixar Madrid, elle vinha menos ingenuo e mais pratico. Lições do boulevard!

Na hora da partida escreveu á sua amada uma carta frisante, que bem nos póde revelar a transformação que no seu caracter se operára ultimamente.

«Minha menina—Um negocio urgente me chama a Lisboa. Digo-lhe adeus. A menina é formosa, elegante e distincta. Com duas ou tres horas de janella por dia, estou convencido, encontrará um digno substituto á minha pessoa. Sem mais. O seu...»{140}

E assim é, de facto, o boulevard:—a vida, o amor, a formosura—e tambem a lição aos ingenuos e a practica aos inexperientes.

 

*
*     *

 

Agora, marqueza, tenha paciencia, caminhemos para o Retiro.

Dizem que o sol é o pae da vida—approveitemos o sol. Bras-dessus, bras-dessous, conversemos. Que lindo tempo! É verdade!—sabe a marqueza de um facto que hontem se deu na cidade? Não sabe? Pois eu lhe conto. Conhecia a Dolores, a formosissima cocotte da rua de Alcalá? Que elegante mulher! Tinha uns cabellos louros, que pareciam estrellas do céo. Os amantes, que eram aos centos, querendo comparar a côr do seu cabello com a côr do ouro, por mais de uma vez tinham ficado sem o dinheiro, e, o que é peior ainda, privados tambem do proprio cabello de tão gentil señorita. Que ferro, minha amiga, que ferro!{141}

Ha de haver seis mezes, Dolores appareceu, como de costume, no Prado. Seriam quatro horas, quando eu a vi chegar. Trajava um elegante vestido de seda escarlate, cuja fimbria recebia quotidianamente os beijos dos amantes e os suspiros do solo, que muito ao de leve pisava e quasi sem mesmo se aperceber. Porque Dolores, a vaidosita, não era mulher que por ahi se gastasse em qualquer passeio solitario. Ella tinha a sua carruagem—uma bonita carruagem moderna e commoda—e tinha tambem, além de muitos escravos, de que o seu coração por vezes escarnecia, os seus creados e as suas governantas.

Dolores era, no fim de contas, como todas as mulheres do boulevard, um espirito risonho, attrahente, leviano,—nem Rigolboche, nem Magdalena. Ella alimentava em seu seio o sublime sentimento da familia, educára suas irmãs; e conduzia seu pae—um triste cego!—pelo braço. Não amava porque não queria; tambem não odeiava; mas, se fugia do amor era simplesmente porque lhe reconhecia os{142} perigos. Afóra isto, como se encontrou só e desamparada no mundo, destituida de prendas e de educação, fez vida pela sua formosura, e caminhou rectamente, serenamente, desassombradamente, sem attrictos, sem desvios, sem atalhos pela estrada dos assalariados da terra.

No subir para este calvario, ella, que não queria passar por santa, sentiu que a cruz lhe era demasiadamente pesada e quiz descarregar-se d'ella. Mas ao olhar para traz viu que a sua familia—uma pobrissima e desgraçada familia—carecia, para não morrer de fome, de comer e de se alimentar.

Então chorou. Pobre Dolores! Quantas mulheres como tu não terão passado pelo mesmo desespero e pela mesma agonia!...

Um raio de esperança, porém, penetrou-lhe no coração. A passo lento approximou-se do espelho. O espelho reflectiu-lhe a gentileza sem par. Que alegria, meu Deus!—exclamava ella. Finalmente... finalmente...

E foi-se para a rua nuns impetos estranhos, nervosos, incomprehensiveis...{143}

D'ahi a um mez, Dolores, trajando sedas e veludos, era uma das mil e perigosissimas rainhas do Prado.

Mas vamos ao escandalo. Havia um mez seguramente que em redor d'ella como que tentava esvoaçar um ingenuo da provincia—bom rapaz, é verdade, mas algum tanto lorpa. Dolores não gostava d'elle. Mas, emfim, ou por dó ou por capricho permittiu-lhe um dia a approximação. Effectuou-se o rendez-vous, que durou meia hora. Ella fallou sempre; elle, porém,—ó pudor!—apenas a comprimentou á entrada e á saída.

Muito bem.

No dia immediato, ao de semilhante encontro, recebia Dolores a seguinte carta:

 

«Minha senhora,

 

«Pretendo ardentemente o seu coração. Amo como nunca amei. Exijo que me attenda. No caso contrario, suicidar-me-hei.»{144}

 

—Curioso, curioso!—exclamava ella, rindo e correndo pela sala.

—Original, original!... Tinha graça... ficar sem o meu chacho... elle que me póde render ainda tão boas, tão santas libras... Oh! pois não... attendel-o-hei... Cahirei aos pés d'elle, que não falla... aos pés d'elle... não, não te suicidarás, formoso!....

E, e sem mais, Dolores tomou a penna e escreveu laconicamente:

 

CONTA CORRENTE

 

«Deve o sr. F. por meia hora de conversação commigo, no dia 1.º do corrente, a simples quantia de 1:000$000 réis, que pagará em oiro ou prata, dentro de vinte e quatro horas a contar de hoje das 11 da manhã.

 

 

Assignada—DOLORES.»{145}

 

E assim foi. O rapaz, ao receber o bilhete, sentiu-se quasi allucinado. Depois, porém, recobrou animo e serenidade. Pensando que seria aquelle o unico meio de a conquistar, volvidas duas horas, após a recepção da carta, respondeu com a mesma singeleza:

 

«Minha senhora,

 

«Por si darei tudo, a minha vida e o meu futuro. Póde, quando quizer, mandar receber o dinheiro que pede no banqueiro C., rua de ***, n.º....»

 

Dolores passou, então, pela primeira impressão forte na sua vida. Esta resposta laconica e expressiva, como era, agitou-lhe violentamente as fibras da sua alma, d'ella. Reflectindo bem no caso e na dedicação, com que fôra brindada, ella a orphã, ella, a desdichada, ella, a meiga,{146} ella—a preciosissima joia, engastada numa sociedade de meras apparencias e de meras formalidades, ella, a Dolores, ella chorou sinceramente.

—Não!—dizia ella—Eu não receberei este dinheiro. Nunca! Mas em vez do seu dinheiro—oh, sim!—eu receberei o seu amor, que deve ser sublime com a sua generosidade; o seu amor, a pura expressão de um coração honesto e simples.

E escrevendo, ella disse-lhe a chorar:

 

Meu amigo,

 

«Renuncio ao seu desinteresse. Sinto que o amo doidamente. Desejo vel-o. Venha quando quizer.

 

«Dolores.»

 

Assim se encadearam os acontecimentos. Dolores, sem ser Margarida arrependida,{147} tornou-se, todavia, mulher séria e grave. O nosso provinciano, sem ser Armando, adquiriu pelo amor de Dolores a consciencia de si e a elevação da sua dignidade abatida.

Mas, quando menos a gente as espera, é quando o diabo as arma.

Dizem-me que hontem, tanto Dolores como o seu amante, foram encontrados mortos, na propria casa em que desde muito habitavam.

Oh! os boulevards, minha querida marqueza...

Mas, por Deus, entremos no Retiro.

O seu braço, minha amiga, o seu braço!...

*
*     *

O passeio do Retiro, um dos mais afamados da Europa, foi fundado no reinado de Filippe IV, sob a inspiração do conde duque de Olivares, especie de marquez de Pombal na Hespanha.

Quasi todos os despotas gostam de deixar{148} assignalada a sua passagem na terra com monumentos immorredouros, por via de regra attestados de inepcia, de orgulho e de mau gosto.

Foi assim que, entre nós, no tempo de D. João V se originou o celebre convento de Mafra. E foi assim que nasceu o Escurial, embora de melhor gosto e de mais elevação artistica.

Durante o reinado do seu fundador, o Buen-Retiro, pelos seus passeios, pela sua magnificencia, pelos seus jardins, pelos seus palacios, pelos seus theatros, quasi se podia dizer um Eden, entreaberto aos sorrisos das morenas feiticeiras e um paraiso entresonhado pelos cavalleiros desde aquelles periodos aventurosos.

Tudo, porém, neste mundo tem a sua decadencia. Filippe V, querendo guindar-se á altura do monarcha francez, virou-se para os jardins de Aranjuez, onde lhe pareceu divisar competencias, embora longinquas, com Versailles, de todos os passeios actuaes da Europa o mais célebre e o mais sumptuoso, ainda quando mais não fosse senão pelo jogo das aguas, as quaes,{149} na sua ascensão phantastica e miraculosa, se alteiam muitas vezes, numa extensão de cincoenta metros acima do nivel do lago.

Assim foi decaindo tão rara maravilha. Fernando VII tentou restituil-a á vida. E o facto é que o Retiro, mercê das grandes e enormissimas quantias nelle sepultadas, atravessou incolume até nós, a salvo das revoluções e em plenos sorrisos de felicidade.

Leitora amiga—se realmente ama o passeio, percorra a Carreira de S. Jeronymo e entre no Retiro. Levante-se cedo, tome o seu chaile, calce as suas luvas, e prepare-se afoitamente para banhar-se numa boa atmosphera, salutar e agradavel. Esta pequena digressão ha de fazer-lhe bem, porque é hygienica e variada. Em casa póde dispensar o seu chocolate; ha de saboreal-o lá, depois de ter passeado, depois de ter ido ao lago, depois de ter visto as feras, emfim, depois de estar cançada. E verá que a não engano. Lá encontrará um bom restaurant aceiadissimo e commodo. Á cautella, porque o almoço{150} é tarde, sempre lhe aconselho que mande vir duas ou tres bolachas.

Como queira. Perto de nós temos a montanha artificial e o salão oriental. Já lá foi? Que soberbo panorama! D'ali, d'aquella eminencia, apparece-nos Madrid, em toda a sua vida e em toda a florescencia. Que magnifica cidade, e sobretudo, que cidade tão moderna!

É verdade—e o jardim botanico? É logo no passeio do Prado. Dizem que só está aberto desde 30 de maio até 30 de setembro. Mas é um famoso recinto, bem cultivado, com excellentes plantas e situado num magnifico local. Possue, além disso, este jardim uma notavel variedade de plantas e uma curiosissima secção zoologica, cujo objecto é alimentar e propagar, na Hespanha, toda a especie de animaes.

E a Recoletos—já foi a leitora?—E á fuente Castellana?

O primeiro tem, como o Prado, oito lindissimas fontes, todas ellas no meio de praças, de arvores, e de mil outros attractivos, que dão ao nacional o supremo{151} consolo de poder passar bem duas ou tres horas por dia.

Porque estes passeios não servem apenas de meras distracções. Outros são os seus fins e outras são tambem as suas vantagens.

Os boulevards, em geral, além de possuirem no seu seio mil cousas dignas de um estudo especial, são por outro lado um espectaculo que as municipalidades offerecem á pobreza, tão curiosa como digna de divertir-se.

No nosso paiz os operarios não encontram um espectaculo gratuito. Por isso, á falta de entretenimentos, entram nas tabernas, e embriagam-se. Tivessem elles uma boa musica, um bom passeio, um exercicio attrahente e o amor do vinho desapparecera. Tivessem elles, sobretudo, municipalidades desinteressadas e independentes, e as suas doenças, assim como o seu mal estar não teriam mais razão alguma de ser.

O artista tem no boulevard, uma formosa galeria, especialmente merecedora de analyse e de critica. Nos museus encontram-se{152} os quadros pintados. Pois o boulevard é um museu—ao vivo, já se entende.

Dizia Richelieu que costumava esmagar o amor debaixo do tacão da sua bota. D'onde se vê que nem o illustre cardeal se pôde eximir ás influencias do mundo exterior e dos boulevardiers.

O boulevard é ainda mais o figurino, a moda, o chic. Quem fôr á fuente castellana, que começa na casa da moeda e termina na fonte do mesmo nome, encontra ali o mais selecto da sociedade madrilena—toilletes finissimas, aristocracia elegante e burguezia desempenada.

Foi na fuente castellana que se originou uma elegantissima paixão ainda hoje inedita nos annaes da historia hespanhola.

Conta-se que um notavel tribuno, escriptor e poeta, andando um dia a recrear-se neste passeio, fôra apanhado de surpreza pelos olhos abrasadores de uma sevilhana gentil; e por tal fórma se deu este facto que elle, hoje politico illustre no seu paiz, nunca mais pôde subtrahir-se ás influencias d'aquelle dominio.{153}

A menina foi, passado um mez, pedida á familia em casamento. Ella acceitou, e o matrimonio ficou assim solemnemente tratado.

Demorou-se, porém o negocio. A noiva pretextava desculpas, que ninguem sabia a que attribuir. Em casa, além da familia, só entrava um padre. O noivo, furioso, tratou de indagar. Sabendo finalmente, que fôra o padre o motor de similhante desordem, elle, com a maxima serenidade, procurou-o em casa, e disse-lhe expressivamente:

—Entre o insulto e o assassinio prefiro o segundo. Queira fazer o acto de contricção.

O padre ajoelhou.

—Agora levante-se, e peça perdão a Deus.

E zás, sem mais tir-te nem guar-te, ouviu-se a detonação de um tiro. Uma bala havia atravessado o peito do hypocrita.

—Finalmente—exclamou o tribuno.—Para os frades bacamarte, para a batina clavina.

E fugiu.{154}

Volvidos annos, este mesmo cavalheiro voltava á patria, casava com a mesma menina que em tempos namorára, e preparava-se para ser ministro, o que já foi ha muitos annos.

Oh! os boulevards, minha querida marqueza, os boulevards...

Mas, a proposito, quer a marqueza jantar commigo?{155}

XVII

HISTORIA INEDITA

Ha de haver nove mezes que isto succedeu. Ia eu de Madrid para o Escurial. O unico companheiro de viagem que a fortuna me concedeu, durante o trajecto que vae da cidade do sr. D. Affonso XII ao Versailles hespanhol, era uma senhora alta, de cabello louro, de olhos azues e de uma distincção profundamente aristocratica.

Mudos, por muito tempo, foi ella, afinal, quem rompeu o silencio.

Es usted español?—perguntou-me a minha amavel companheira.{156}

—Não, minha senhora, sou portuguez—respondi.

—Ah! portuguez.... conheço perfeitamente Lisboa; já lá estive tres mezes. É uma cidade bonita, mas muito monotona. A natureza é admiravel, mas a sociedade é demasiadamente ficticia. Não tem uma vida propria, e vive do que os outros lhe querem dar...

—E posso eu ter a honra de saber a quem me dirijo?

—Ora! por Deus! sou muito modesta para que deseje saber quem sou. Nasci na America, em Nova-York. Depois meus paes mandaram-me para Paris, onde fui educada. De Paris passei á Suissa, onde residi alguns annos, e da Suissa vim para Madrid, onde vivo ha dez annos com meu marido e um unico filho que tenho.

—E a opinião de v. ex.ª ácerca de Madrid?

—Um magnifico centro com muita vida propria e alguma corrupção. Detesto muito a politica hespanhola, e amo do coração a sua litteratura. Gosto muito dos seus poetas e dos seus litteratos. São enthusiastas{157} ardentes e mais que tudo fanaticos à outrance.

—E a respeito das litteratas hespanholas, que me diz v. ex.ª?

—Uns verdadeiros talentos. Conheci de perto D. Carolina Coronado. Tem uma historia engraçada. Um dia ella, a caprichosa, que tanto e tão a peito defendia a emancipação da mulher, arrojou para longe de si o trajo feminino, e fez-se rapaz. Engraçadissima! Entrou na universidade ao mesmo tempo que seu marido, formou-se em direito, e já escreveu sobre direito penal. Hoje é uma distinctissima poetisa, e ainda uma deslumbrante mulher.

—Admiravel!

—Tambem tive relações intimas com a melhor novellista hespanhola, que usava do pseudonymo Fernand Caballero. Havia sido perceptora dos filhos do duque de Montpensier, e presentemente pouco escreve, creio eu.

—E a baroneza de Wilson, conheceu?

—Perfeitamente. D'essa senhora conta-se tambem uma anecdota curiosa. Diz-se que Zorrilla estivera doente, e que, na{158} sua enfermidade, fôra tratado desveladamente por uma senhora, sua vizinha. Ao cabo da doença, elle, querendo ser grato, esposou a sua enfermeira, a qual, então, vivia com uma sobrinha, mulher de um grande talento, que mais tarde casou com um inglez e que por isso se chamou baroneza de Wilson. E tambem vivi muito de perto com D. Maria Pilar Sinués de Marco. É romancista afamada. Vem-lhe de seu marido o nome de Marco, e por isso os hespanhoes dizem d'elle—se le conoce porque és marido de la Sinués, (similhança de Cabeza e Calabazas).

—Nunca fallou em Lisboa com uma distinctissima senhora, que usa do pseudonymo Leon de la Vega?

—Pois não! Sei que é esposa de um engraçado escriptor chamado D. Thomaz de Mello.

—Exactamente.

—Além d'estas, convivi com Angela Grassi, mulher, talvez não muito formosa mas de muito talento; com D. Antonia de Arciniega e Martinez, que cultivou um genero de poesia quasi pastoril; com D.{159} Josepha Estevez del Canto, admiradora em excesso das fabulas de Lafontaine, com D. Emilia Cale Torres de Quintero, com D. Sofia Tartilau e com muitas outras. Bem vê que seria impossivel recordar-me agora de todas as minhas relações. Unicamente lhe affianço que em Hespanha as mulheres que escrevem, embora não sejam muitas, são todas dotadas de um immenso talento.

—Mas, minha senhora, permitta-me que lhe manifeste os meus mais ardentes desejos de a conhecer...

—Perdão... isso é que não está no contracto. Tenho respondido a todas as suas perguntas e isso me basta... O meu nome, não lh'o posso por ora revelar. É possivel que mais tarde o saiba. Por agora desculpe-me.

Escurial! Escurial!...—gritaram os guardas do caminho de ferro.

A minha companheira apeou-se, e, estendendo-me a mão, nem sequer me deu tempo para me despedir d'ella.{160}

 

*
*     *

 

Dois dias depois, o creado do hotel, em Madrid, entregava-me um bilhete concebido nos seguintes dizeres:

 

D. Maria del Sarto
pede-lhe a fineza da sua companhia para o jantar de hoje, ás 6 horas da tarde, na Calle de Alcalá—8.

 

—Maria del Sarto! Quem será Maria del Sarto?—exclamei.

E ás 6 horas da tarde, em ponto, dirigi-me para a rua de Alcalá.

Qual foi, porém, o meu espanto, quando, ao entrar na sala dei de rosto com a minha formosa amiga de viagem.{161}

—Sente-se aqui—disse-me ella, apontando para uma cadeira.

E foi nessa occasião, e nesse jantar, que me foi dado formar um juizo seguro ácerca das cousas e dos homens de Hespanha.

Devo-o principalmente áquella affectuosissima senhora, a quem d'aqui envio os meus respeitos e a minha gratidão.


Uma vez, porém, que fallamos em celebridades, conversemos um pouco sobre ellas.{162}
{163}

 

XVIII

HOMENS ILLUSTRES

Em Hespanha é extraordinario o numero dos homens illustres.

Poucos são os talentos naquelle paiz que não possuam uma feição eminentemente litteraria. Os proprios politicos resentem-se d'este defeito, se defeito se lhe póde chamar.

Do romance são innumeros os cultores. A Hespanha, como paiz de mais aventuras, presta-se a elle. Entre nós são já muito conhecidos os nomes dos srs. Manuel Fernandez y Gonzalez, homonymo do celebre ministro republicano, ultimamente{164} mandado sahir de Lisboa pelo governo portuguez, Henrique Peres Escrich, Ortega y Frias, Tarrago e Mateos, etc.

O sr. Fernandez y Gonzalez é uma especie de Ponson du Terrail hespanhol. É escriptor fecundo e de muita força concepcional.

Peres Escrich é quasi mystico. Os assumptos dos seus romances são quasi sempre religiosos. É um romancista catholico, mas são puras as suas intenções sem as sacrificar á seita.

Ortega y Frias, Tarrago y Mateos, Piedro Antonio Alarcon, Peres Gadosh, Antonio Hurtado, Varella, Vilhoslava, Ricardo Sepulveda são os que mais se aproximam do romance moderno na descripção e no entrecho dos assumptos.

Eusebio Blasco é um humorista de grande merecimento, e José Castro e Serrano é, em nosso juizo, talvez o primeiro novellista hespanhol.

A estes podemos, de certo, juntar D. Manoel Silvella, Asmodeu, pseudonymo, Antonio Trueba, auctor de uns famosos{165} contos, sobejamente conhecidos na litteratura da Europa.

Na poesia avultam Zorrilla, um lyrico surprehendente; Campoamor; Garcia Gutierres, de quem se diz que nasceu com o Trovador e que morreu com D. Urraca; Ventura Ruiz Aguillera, auctor de um famoso livro de satyras; José Martinez Villergas, egualmente satyrico: Roberto Robert, espécie de Voltaire no arrojo da palavra e do conceito; Grillo, Gaspar Nunes de Arse, Espronceda, José Eshegarai, Hartzenbusch, Antonio Arnao, Antonio Hurtado, José Selgas, tambem prosador, Trueba, Carlos Frontaura, Carlos Rubio, Larra e outros.

Passando da poesia para a politica, são tantos os nomes, que difficilmente seria possivel recordal-os a todos.

Quando estive em Hespanha, contava-se uma anecdota curiosa de Emilio Castelar.

Dois estudantes da escola medico-cirurgica de Lisboa tinham ido a Madrid assistir á entrada de D. Affonso XII na cidade, depois de concluida a guerra carlista.{166} Era dia de sessão no congresso. Fallava Castelar. Nas tribunas agglomerava-se o povo. Difficilmente se obtinha um logar.

Um dos estudantes, porém, reflectindo no caso, entrou numa mercearia, e escreveu a Emilio Castelar as seguintes linhas:

«Estão aqui dois portuguezes, seus admiradores, que desejam ouvil-o.»

O merceeiro, que viu que a carta era subscriptada para o insigne orador, não lhes levou nada, nem pelo papel, nem pela tinta.

Castelar leu o bilhete, e immediatamente sahiu do congresso, a fim de introduzir os dois estudantes na tribuna, reservada á diplomacia.

Quando acabou de fallar foi ter de novo com os dois estrangeiros, e offereceu-lhes os seus serviços e a sua pessoa n'aquella cidade.

Este traço revela bem as brilhantes qualidades, que caracterisam Emilio Castelar.

E, uma vez que fallámos em Castelar, não esqueceremos tambem de mencionar{167} um distincto talento, seu amigo intimo, director do jornal, o Globo, e auctor de um famoso livro sobre o movimento operario na Europa no seculo XIX. Este cavalheiro chama-se D. Joaquim Martin de Olias.

Francisco Pi y Margall é um outro vulto que trouxe na memoria. Estive em sua casa perto de duas horas, e precisamente na mesma sala onde aquelle célebre padre tresloucado tentou assassinal-o. É um caracter magestoso e um talento deslumbrante. Fui encontral-o a brincar com dois filhinhos menores. Que contraste entre aquella scena puramente domestica e a dos seus actos publicos! O homem vigoroso da tribuna e da imprensa é um anjo de paz e de amor no seio dos seus! Foi-me realmente agradavel esta visita.

Salmeron, o erudito publicista, que resignou gloriosamente o poder por não querer assignar a pena de morte para o exercito, vivia exclusivamente do professorado. Regia uma cadeira de ensino livre no Atheneu, retribuida pelos discipulos.

Zorrilla, que atravessou os transes mais{168} dolorosos da vida, e que além de um grande poeta é tambem politico de notavel bom-senso, vê-se hoje expatriado e longe dos seus.

O mesmo succede a talentos notaveis como Fernandez de los Rios, Fernando Garrido, Ramon de Cala, Estevanez, Gonzalez e outros.

José Maria Orense, o decano da democracia hespanhola, está quasi afastado da politica.

Sagasta póde talvez ser classificado entre os radicaes. Passa por excellente caracter e por conservador sympathico.

Canovas del Castillo, embora defensor de uma má causa, é todavia um eminente orador e um notavel poeta.

Que a dizer a verdade, abaixo de Castelar, os dois oradores mais afamados são Figueras e Martos.

O verdadeiro enthusiasmo hespanhol está, porém, no exercito. Entre Olozaga e Martinez Campos, prefere-se este justamente pela espada, que traz á cinta. E a prova é que, terminada a luta com os carlistas, as acclamações da cidade dirigiram-se{169} mais a Martinez Campos do que a D. Affonso XII.

De modo que em Hespanha o militarismo é um vicio galante, de que as mulheres não desdenham e que os politicos temem soberanamente.

Fallando, porém, de homens illustres, não deveremos de modo algum omittir dois nomes, que, por mais do que um lado, nos devem ser sympathicos e affectuosos.

Esses nomes são os dos srs. D. Benigno Joaquim Martinez e Antonio Romero Ortiz, de quem em seguida nos vamos occupar.{170}
{171}

 

XIX

D. BENIGNO JOAQUIM MARTINEZ E ANTONIO ROMERO ORTIZ

Só em Madrid o numero de jornalistas sobe talvez a mais de duzentos. Ainda ha pouco, por occasião de se installar o Casino de la Prensa na calle Mayôr, orçaram por 160 as adherencias da parte do jornalismo madrileno.

Entre os mais sympathicos periodicistas hespanhoes podemos citar: Escobar, Perez de Guzman, José Ortega, Ulloa, Sagasta, Garcia Ruiz, Pi y Margall, Figueras, Navarro, Blasco, Molina, L. Rubio, Palacio, Alcalá Galliano, dr. Galdo,{172} Tubino, Diaz Perez, Quintero, Escosura, Soriano Fuestes, Ruti, Rivera, Calvo Ascencio, Leon Serrano, Benigno Martinez, Romero Ortiz e mil outras illustrações que nos seria impossivel enumerar em opusculo de tão limitadas proporções.

 

*
*     *

 

D. Benigno Joaquim Martinez é conhecido pelo doce appellido de amigo dos portuguezes. A sua casa e a sua bolsa estão sempre á disposição dos nossos patricios e conterraneos. Nada ha que possa retribuir tamanho affecto e tão devotada abnegação. Dir-se-ia que D. Benigno é, de facto, mais portuguez do que hespanhol.

Martinez foi por muito tempo empregado superior no ministerio da justiça. Até ahi advogara e vivera do jornalismo. As suas convicções radicaes não lhe permittiram, porém, que continuasse a servir um governo que desde muito lhe era{173} antipathico. Então sem mais recursos, deliberou entregar-se exclusivamente á imprensa, tanto nacional como estrangeira. Tem sido correspondente de jornaes inglezes, italianos e francezes. A sua vida mal se descreve. Ha dias em que se senta á meza desde a madrugada até ao jantar e desde o jantar até á madrugada. A honra e a dignidade são a sua divisa. Nunca transigiu. Em Portugal já 11 jornaes lhe confiaram as correspondencias de Madrid, as quaes elle tem cumprido com uma pontualidade rigorosamente britannica. Tambem collaborou no periodico Italia e Popolo de José Mazzini. Redigiu em Madrid seis folhas politicas. Escreveu a biographia de 45 vultos portuguezes, e sempre, desde 1846 até hoje, se tem occupado, com verdadeiro fervor, das cousas, da politica e dos homens do nosso paiz. Por isso tambem quasi todas as sociedades portuguezas o têm distinguido com os seus diplomas e honrarias.

D. Benigno é casado com uma senhora distinctissima, de quem teve tres filhos: uma menina, já casada, e dois rapazes,{174} um dos quaes é Frutos Martinez y Lumbreras, estudante classificado na universidade central e escriptor já conhecido pelas Bandeiras de Portugal e Hespanha.

Em casa de Martinez tivemos a honra de travar relações com dois notaveis talentos, de quem não deixaremos de fallar; e são elles D. Manoel Maria José de Galdo e Antonio Hesse.

Do primeiro escreveu um periodico portuguez o seguinte:

«Pela nomeação do sr. Rivero para ministro de la gobernacion em Hespanha ficou vaga a presidencia da municipalidade de Madrid. Neste logar foi provido por eleição o sr. D. Manoel Maria José de Galdo, cavalheiro distincto de cujos precedentes diremos algumas palavras. O sr. Galdo é cathedratico proprietario na universidade de Madrid, e além de regente de 1.ª classe de sciencias, lecciona mineralogia e noções de zoologia e botanica. É licenciado em medicina e cirurgia, doutor na faculdade de philosophia, licenciado em direito civil, administrativo e canonico. É membro honorario de muitas sociedades{175} e institutos scientificos de Hespanha, França e Portugal. É em resumo um cavalheiro muito illustrado, e em extremo laborioso e modesto.»

Em seguida á revolução de setembro foi o dr. Galdo feito 1.º alcaide da capital de Hespanha e commandante geral de 20.000 voluntarios de Madrid. Nestes dois importantes e difficeis cargos mereceu sempre os applausos de toda a imprensa sem distincção de côres politicas. O que prova exuberantemente o espirito de justiça e a alta prudencia que dirigem todos os actos d'aquelle cavalheiro. Ultimamente a sua eleição para presidente da municipalidade de Madrid, em substituição de um homem de tão reconhecido merito como o sr. Rivero, é mais um titulo honroso que vem juntar-se aos muitos, que já recommendavam ao partido radical da Hespanha, e em geral a toda a nação vizinha, um honrado filho da peninsula, que ao seu talento, ao trabalho e ás suas qualidades pessoaes deve a estima de nacionaes e estrangeiros.

Na inauguração do canal Suez coube{176} ao sr. dr. Galdo a honra de representar a Hespanha.

A sua integridade de caracter e a sua modestia, conservaram-no muito tempo afastado das lides politicas, ás quaes voltou cheio, como d'antes, de dedicação e amor aos principios liberaes, apenas a Hespanha sacudiu o jugo que a opprimia. Nos ultimos arrancos da monarchia deposta, mais de uma vez fôra tão illustre e inoffensivo cidadão apontado á vindicta do poder.»

Antonio Hesse é advogado de nome; possue excellentes dotes oratorios e d'elle corre impresso um ajuizado opusculo sobre critica religiosa.

Para rematar, porém, o que dissemos, ácerca de D. Benigno Joaquim Martinez, basta ainda accrescentar que é elle um modelo de amor de familia, um ousadissimo e infatigavel trabalhador, uma consciencia recta e uma intelligencia sã.{177}

 

*
*     *

 

Antonio Romero Ortiz é um outro amigo dos portuguezes. Nascido na Gallisa, onde fundou differentes jornaes liberaes e onde organisou um nobre batalhão de voluntarios, só em 1843 se inscreveu como advogado em Santiago, terra da sua naturalidade. Em 1856, quando mais accesa andava a lucta entre miguelistas e liberaes, veiu ao Porto, e ahi foi pronunciado e levado prisioneiro para bordo do Serra do Pilar, que o conduziu para Peniche.

Em 1848 Narvaez, um covilheiro infame do absolutismo, descobriu uma conspiração de liberaes, capitaneada por Romero Ortiz. Sem mais averiguações, o carrasco ordenou a prisão do chefe dos revolucionarios, mandando-o para as masmorras de Santo Anton, perto da Corunha. O processo foi instaurado; duas cartas existiam de grave compromisso para o encarcerado. No momento, porém, em que o escrivão estava distrahido Romero{178} Ortiz, pegando nas cartas, arremessou-as pela janella. Este arrojo salvou-o do patibulo.

Em 1849 veiu para Madrid, onde, entre outras obras interessantes, publicou o Diccionario da politica, de collaboração com dois amigos.

Chegou o anno de 1854, e desde então para cá, ora na imprensa, ora na tribuna, têm sido assignalados os seus feitos em pro da patria e da liberdade. Foi elle que, sendo ministro da justiça, instituiu o matrimonio civil e aboliu a companhia de Jesus. Por diversas vezes foi nomeado governador civil; e quando em Hespanha se constituiu a União liberal, o sr. Rios Rosas dispensou-lhe a maior consideração e os maiores respeitos. Foi deputado pela primeira vez em 1854 pela Corunha. Tomou parte activa na revolução de 1868, e no governo provisional foi elle um dos ministros.

O seu mais notavel discurso, que versava sobre uma concessão de direitos aos portuguezes, foi pronunciado no congresso em 29 de março de 1859; e a sua mais{179} afamada publicação intitula-se: «La historia de la literatura portuguesa em el siglo XIX.»

É obra que denota boas intenções a nosso respeito. Conhece o periodo contemporaneo, e é seguro o estudo sobre Filinto, dos mais conscienciosos que conhecemos. Mas, no momento actual em que nos considerou, dá mostra de recebimento de más informações. Guinda a certa altura quem não merecia ir tão alto, e esquece nomes, em todas as pretendidas escholas, dos que, á parte rivalidades de que nós nos não fazemos echo, são de primeira plana em todos os campos.

Com o golpe de 3 de janeiro de 1873 foi Romero Ortiz nomeado ministro do ultramar.

Ultimamente vive um pouco doente e retirado das cousas politicas, quasi que exclusivamente entregue ao seu museu, que é curiosissimo, e aos seus estudos.

No seu museu, de que já fallámos mais atraz, encontram-se muitas curiosidades do nosso paiz, e entre ellas uma luvas do marquez de Sá da Bandeira, a caixa de{180} rapé do visconde de Castilho, e uma lembrança de D. Pedro V, e outra do visconde de Paiva Manso, etc.

Tambem alli se póde vêr a camisa de Santa Thereza de Jesus, a casaca de Cabrera, um crucifixo feito pela rainha Isabel II e muitas outras reliquias dignas da maior attenção e de estudo.{181}

 

XX

EM RETIRADA

Onde não ha fumo ha amor; onde não ha amor ha vinho; onde não ha vinho ha spleen.

São estas as palavras de um poeta notavel, que muito de molde nos acudiram ao espirito, em relação ao caso presente.

Quem viaja deve fumar. O fumo não é apenas um bom e doce companheiro para as tristes horas de tédio e de melancolia, mas ainda mais, e quasi sempre, um distinctivo do sabio e um facil auxiliar da nossa digestão intellectual.

O fumo está para o cerebro na mesma{182} proporção em que o café está para o estomago. Ambos se tornam até certo ponto necessarios ao homem; com a simples differença de que o café nos excita, por vezes, demasiadamente os nervos, ao passo que o fumo se limita a produzir em nós um salutar estimulo ás nossas idéas e ao nosso raciocinio.

Mas, se, além do fumo, nos falta ainda o amor e o vinho, então,—ai de nós! que chegaremos ao aborrecimento de nós mesmos, isto é—ao spleen.

A viagem sem companhia é a peior de todas as torturas. A expansão é tão necessaria á nossa natureza, como o azul ao firmamento. Que nos importa ver uma formosissima paisagem, se depois não temos a quem communicar as nossas impressões e o nosso juizo de momento?

E notavel contradicção! A companhia é-nos tanto mais necessaria, quanto é certo que, quando estamos no estrangeiro, nos acommette uma singular nostalgia por tudo o que é nosso e nos interessa, emquanto que, quando regressamos á patria, nos assalta uma terrivel hypocondria{183} por tudo o que é estranho e nos assombra.

D'este modo, leitora amiga, se algum dia tiver o capricho de viajar, tenha paciencia, e tome uma aia; ou ainda, se isso lhe aborrece, peça a uma das suas intimas confidentes para a acompanhar.

E verá que a não engano!

 

*
*     *

 

Ora a retirada é quasi que uma recapitulação de tudo o que se fez pelas terras onde se esteve.

—Que te pareceu esta gente?—perguntava-me o meu companheiro e velho condiscipulo—amigo José Trigueiros Martel.

—Esta gente!... pois que diabo me havia de parecer, senão unica e originalissima!... retorqui.

E começamos a enumerar os principaes partidos politicos em que se dividia a familia{184} hespanhola, que eram pouco mais ou menos os seguintes:

Absolutistas de qualquer rei.

Carlistas clericaes.

Carlistas militares.

Carlistas constitucionaes.

Cabreiristas.

Neo-dynasticos absolutistas.

Dynasticos tolerantes.

Moderados unitarios.

Moderados conservadores.

Conservadores da conciliação.

Heterogeneos.

Homogeneos canovistas puros.

Santa-crucistas.

Sagastinos.

Neo-constitucionaes democraticos.

Radicaes puros.

Radicaes do X.

Radicaes republicanos.

Democratas monarchicos.

Democratas puros.

Republicanos catholicos.

Confederados.

Separatistas.

Communistas.{185}

E não queria Amadée Achard que a Hespanha fosse alcunhada de bandoleira! Ninguem lhe desconhece os feitos de Numancia, de Sagunto, de Madrid, e de Zaragoza. Certamente que a Hespanha tem na sua historia paginas sagradas, como por exemplo as que resam das santas guerras das communidades de Castilla. Mas a par de tudo isto, ahi estão os factos da Andaluzia a fallar mais alto do que os patriotismos exagerados; e ahi estão tambem os acontecimentos dos ultimos vinte annos a affirmar-nos eloquentemente que esse paiz, embora cheio de vida e dotado de enthusiasmos respeitaveis, ha de ser sempre uma contradicção viva a tudo o que existe e um especialissimo parenthese na vida das nações.

E provirá isto de uma simples questão de raça, de clima, de religião, de lingua, de costumes, de civilisação ou de meio?

Que o digam os srs. philosophos historiadores.

Nos costumes reside, principalmente, a expressão de uma nacionalidade.

Porque hoje, francamente, não se póde{186} viajar apenas, como um simples brazileiro endinheirado—em trem especial de exclamações.

Não basta só dizer, admiravel! magnifico! explendido! como aliás parece fazer a maioria dos nossos viajantes.

—Então que me diz o amigo de Pariz?

Ah!

—E de Londres?

Eh!

—E da Suissa?

Uh!

E assim ficamos, sem passar das cinco vogaes exclamativas; sem uma unica noção da justiça do povo que visitamos, como ella era administrada e repartida, sem uma unica idéa da sua arte, da sua politica, da sua religião e dos seus progressos.

A isto podia, quando muito chamar-se-lhe uma ostentação, mas nunca uma viagem.{187}

 

*
*     *

 

Resumindo:

A Hespanha possue um vicio inicial de que difficilmente se libertará—a religião catholica-apostolica-romana guindada ás alturas de fanatismo.

Na sua politica, como na sua justiça, reflecte-se tristemente a contradicção, junto a um continuo mal estar de quem não tem uma noção clara da evolução que a deveria reger, e das leis que deveriam presidir ao seu desenvolvimento moral e material.

A sua arte afigurou-se-nos estar em perfeita harmonia com as suas mulheres: mais brilhante talvez, na fórma do que na concepção e no sentimento.

Entretanto, forçoso é confessar que poucos paizes ha de tão vastos recursos como a Hespanha, e porventura mesmo poucos existirão com futuro tão promettedor como ella.

Os casos das Baldomeras têem-lhe ultimamente{188} aberto os olhos para as grandes luctas da civilisação moderna, apurando-lhe o raciocinio para os insignes debates do espirito e da critica positiva.

Que tudo isso lhe seja de bom proveito, assim como Sédan o foi para a França.

 

*
*     *

 

Mas perdão! 6 horas da madrugada. Devemos estar perto de Lisboa.

Lisboa! Lisboa! exclama um guarda de fóra.

Assim, pois, leitor amigo, permitta-me que lhe aperte a mão, e que com tristeza me despeça da sua extrema amabilidade.

Um seu creado!

 

FIM{189}

 


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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
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works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
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LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
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LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

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with this agreement, and any volunteers associated with the production,
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

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including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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