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Rita
Farinha (Abril 2011)
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MEMORIAS
DE RAUL BRANDÃO
A PUBLICAR:
Theatro cinematographico
A historia humilde
RAUL BRANDÃO
Memorias
1.º VOLUME
EDIÇÃO DA
«RENASCENÇA PORTUGUESA»
PORTO
AOS MORTOS
PREFACIO
Janeiro de 1918.
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a
com os mesmos erros e
paixões. Não me arrependo, nunca me
arrependi. Perdia outras tantas horas
diante do que é eterno, embebido ainda
n'este sonho poído. Não me habituo:
não posso vêr uma arvore sem espanto,
e acabo desconhecendo a vida e titubeando
como comecei a vida. Ignoro
tudo, acho tudo esplendido, até as coisas
vulgares: extraio ternura duma pedra.
Não sei—nem me importo—se creio na
imortalidade da alma, mas do fundo do
meu sêr agradeço a Deus ter-me deixado
assistir um momento a este espectaculo
desabalado da vida. Isso me basta. Isso
[10]
me enche: levo-o para a cova, para remoer
durante seculos e seculos, até ao
juizo final. Nunca fui homem de acção e
ainda bem para mim: tive mais horas
perdidas... Fugi sempre dos phantasmas
agitados, que me metem medo. Os
homens que mais me interessaram na
existencia foram outros: foram, por exemplo,
D. João da Camara, poeta e santo,
Correia d'Oliveira, um chapeu alto e nervos,
nascido para cantar, Columbano e
a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados
que mal sabiam exprimir-se. Conheci
muitos ignorados e felizes. Meio doidos
e atonitos. O Napoles ainda hoje dorme
sobre a mesma rima de jornaes?... Outro
andava roto e dava tudo aos pobres.
O homem é tanto melhor quanto
maior quinhão de sonho lhe coube em
sorte. De dôr tambem.
A que se reduz afinal a vida? A um
momento de ternura e mais nada... De
tudo o que se passou comigo só conservo
a memoria intacta de dois ou tres
rapidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem
[11]
lá no fundo e enebriam-me, como
um pouco d'agua fria embacia o copo.
Só de pequeno retenho impressões
tão nitidas como na primeira hora:
ouço hoje como hontem os passos de
meu pae quando chegava a casa; vejo
sempre diante dos meus olhos a mancha
azul ferrete das hydranjas que enchiam
o canteiro da parede. O resto esvae-se
como fumo. Até as figuras dos mortos,
por mais esforços que eu faça, cada vez
se afastam mais de mim... Algumas sensações,
ternura, côr, e pouco mais. Tinta.
Pequenas coisas frivolas, o calor do ninho,
e sempre dois traços na retina, o
cabedelo d'oiro, a outra banda verde...
Passou depois por mim o tropel da vida
e da morte, assisti a muitos factos historicos,
e essas impressões vão-se desvanecidas.
Ao contrario este facto trivial
ainda hoje o recordo com a mesma vibração:
a morte daquella laranjeira que, de
velha e tonta, deu flôr no inverno em que
seccou. O resto usa-se hora a hora e todos
os dias se apaga. Todos os dias morre.
[12]
Lá está a velha casa abandonada, e
as arvores que minha mãe, por sua mão,
dispoz: a bica deita a mesma agua indiferente,
o mesmo barco archaico sobe o
rio, guiado á espadela pelo mesmo homem
do Douro, de pé sobre a gaiola de
pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava
tudo no mundo para os tornar a vêr, e
não ha lagrimas no mundo que os façam
resuscitar.
Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida
e doirada, a Cantareira, no alto o
Monte, depois o farol e sempre ao largo
o mar diaphano ou colerico, foi o quadro
da minha vida. Aqui ao lado morreu a
minha avó; no armario, metido na parede
como um beliche, dormiu em pequeno o
meu avô, que desapareceu um dia no
mar com toda a tripulação do seu brigue,
e nunca mais houve noticias d'elle. Lembro-me
da avó e da tia Iria, de saia de
riscas azues, sentadas no estrado da sala
da frente, e possuo ainda o volume desirmanado
do Judeu que ellas liam, com
o
Feliz Independente do mundo e da
[13]
fortuna e as
Recreações
philosophicas do
padre Theodoro d'Almeida. Ouço, desde
que me conheço, sahir do negrume, alta
noite, a voz do moço chamando os homens
da companha:—Ó sê Manuel cá
p'ra baixo p'r'o mar!—Vi envelhecer todos
estes pescadores, o Bilé, o Mandum,
o Manuel Arraes, que me levou pela primeira
vez, na nossa lancha, ao largo. Ha
que tempos!—e foi hontem... A quarenta
braças lança-se o ancorote. Na
noite cerrada uma luzinha á prôa; do mar
profundo—chape que chape—só me
separa o cavername. Deito-me com os
homens sob a vela estendida. Primeiro
livor da manhã, e não distingo a luz do
dia do pó verde do mar. Nasce da agua,
mistura-se na agua, com reflexos baços, a
claridade salgada que palpita, o ar vivo
que respiro, o oceano immenso que me
envolve.—Iça! iça!—e as redes
sobem
pela polé, cheias de algas e de peixe, que
se debate no fundo da catraia. Voltamos.
Já avisto, á vela panda, o farolim,
depois Carreiros; um ponto branco, alem
no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra
[14]
toda, roxa e diaphana, emerge emfim,
como uma aparição, do fundo do mar. A
onda quebra. Eis a barra. Agora o leme
firme!... As mulheres, de perna nua,
acodem á praia para lavar as rêdes, e o
velho piloto mór, de barba branca, sentado
á porta da Pensão, fuma inalteravel
o seu cachimbo de barro. O azul do mar,
desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que
o céo derrete. Mais barcos vão aparecendo,
vela a vela: o
Vae com Deus, a
Senhora
da Ajuda, o
Deus te
guarde, e os
homens, de pé, com o barrete na mão, cantam
o
bemdito, tanta foi a
pesca.—Quantas
duzias?—Um cento! dois centos!—Nas
linguetas de pedra salta a pescada
de lista preta no lombo, a raia viscosa, o
ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno,
a sardinha que os bateis carreiam do
mar inexgotavel, estivando de prata todo
o caes. Ás vezes o peixe miudo e vivo é
tanto, que não bastam os almocreves com
os seus burros canastreiros, as varinas
com os seus gigos, nem as mulheres de
saia ensacada e perna á mostra, para o
levarem, apregoando-o, por essa terra
[15]
dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o
quinhão dos pobres. Em setembro são
as marés vivas. Mais tarde cresce do mar
um negrume. Acastelam-se as nuvens no
poente, e forma-se para o sul uma parede
compacta que tem legoas de espessura.
A voz é outra, clamorosa, e, á primeira
lufada, bandos de gaivotas grasnam pela
costa fóra, anunciando o inverno que
vem proximo. O quadro muda, e os homens
morrem á bocca da barra, na Pedra
do Cão, agarrados aos remos, sacudidos
no torvelinho da resaca, o velho
arraes de pé, as duas mãos crispadas no
leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo,
e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos,
da Afurada—vento sul, camaroeiro
içado—com as saias pela cabeça,
salpicadas de espuma e molhadas de
lagrimas:—Ai o meu rico homem! o
meu filho que o não torno a ver!—E chamam
por Deus, ou insultam o mar, que,
inverno a inverno, lh'os leva todos para
o fundo.
[16]
O que sei de bello, de grande ou de
util, aprendi-o n'esse tempo: o que sei
das arvores, da ternura, da dôr e do
assombro, tudo me vem desse tempo...
Depois não aprendi coisa que valha. Confusão,
balburdia e mais nada. Vacuidade
e mais nada. Figuras equivocas, ou,
com raras excepções, sentimentos
baços.
Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca
Londres ou a floresta americana me incutiram
misterio que valesse o dos quatro
palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras
no canavial indiano foi mais fertil em
emoção e aventura, que a armadilha aos
passaros na poça do Monte, com o Manuel
Barbeiro. Uma nora, dois choupos,
a agua empapada, e, entre as hervas gordas
como bichos, pégadas de bois cheias
de tinta azul, reflectindo o céo implacavel
de agosto. Os passaros com as azas
abertas desconfiam e hesitam: a sêde
aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam
na armadilha agarramol-os com ferocidade.
Chiu!... Uma andorinha descreve lá
no alto um circulo perfeito, e vem, no
vôo desferido, arripiar com o bico a agua
[17]
estagnada. Toca n'uma palheira de visco—é
nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha?
É pennas e vida phrenetica. E
essa vida pertence-te!... Só ao fim da
tarde regressava a casa com os bolsos
cheios de rans e os olhos deslumbrados.
Nenhuma figura tôrva, nem o Anti-Christo,
me communicou terror semelhante
ao do inofensivo Manco da esquina,
que escondia de manhã a barba
que lhe chegava ao umbigo, entre o
peito e a camisa, para a sacar de noite,
quando sahia á estrada... Sou capaz de
te dizer qual o tom verde de certos dias,
quando o pecegueiro bravo encostado
ao muro floresce. O murmurio da minha
bica não me sae dos ouvidos até á hora
da morte. Quasi todos os meus amigos—o
Nel, que não tornei a ver...—são
d'essa epocha. D'outras impressões mais
tardias não restarão vestigios, mas tenho
sempre presentes os mesmos pinheiros
mansos—que já não
existem—acenando
para a barra, e alta noite acordo ouvindo
o rebramir do mar longinquo. Nos dias
de desgraça é sempre a mesma voz que
[18]
chama por mim... Olha, olha ainda e
extasia-te: o rio parece um lago, e um
bando de gaivotas desfolhadas alastra
sobre a tinta azul, com laivos esquecidos
do poente. Boia espuma na agua
viva que a maré traz da barra... E não
ha cheiro a flores que se compare a este
cheiro do mar.
Agosto de 1910.
Aos 23 do mez passado morreu meu
pae amachucado, exhausto e pobre. Encontrão
de um, repelão de outro, assim
foi até á cova. Tinha 67 annos incompletos.
Não podia mais. Encontraram-lhe
alguns cobres no bolso. Ha muitos annos
que se arrastava, e só tinha de seu uma
alegria e um repouso: os domingos. Aos
domingos metia-se no quarto, calçava
uns chinelos, e toda a tarde chorava lagrimas
sem fim sobre um velho romance
de Camillo. Minha mãe pouco mais durou,
com um olhar de pasmo. Lá ficou a
velha casa abandonada...
[19]
Sobe a lua no céo, e a sombra no monte.
Seis arvores, quatro paredes—tudo
aqui me enche de saudades. A bica continua
a correr, mas outras sêdes se apagarão
n'aquella agua. Outros virão tambem
sentar-se no banco de pedra... Só
me resta a tua mão querida, que a meu
lado segura a minha mão. Os mortos
chamam por nós cada vez mais alto...
Olho para ti e os teus primeiros cabellos
brancos fazem-me chorar.
Setembro de 1910.
Hoje acordei com este grito: eu não
soube fazer uso da vida!
O que me pesa é a inutilidade da
vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me
nas mãos; agarro-me a uma mentira
e sempre a mesma voz me repete:—É
inutil! é inutil!
A aquiescencia, o sorriso:—pois sim...
pois sim...—a necessidade de transigir,
[20]
o preceito, a lei, fizeram de mim este sêr
inutil, que não sabe viver e que já agora
não pode viver. Não grito de desespero
porque nem de desespero sou capaz.
A vida antiga tinha raizes, talvez a
vida futura as venha a ter. A nossa epocha
é horrivel porque já não
cremos—e
não cremos ainda. O passado desapareceu,
de futuro nem alicerces existem. E
aqui estamos nós, sem tecto, entre ruinas,
á espera...
Não entendo nada da vida. Cada
dia que avança entendo menos da vida.
Contudo ha horas, as horas perdidas—e
só essas—que queria tornar a viver
e a perder.
Deus, a vida, os grandes problemas,
não são os philosophos que os resolvem,
são os pobres vivendo. O resto é engenho
e mais nada. As coisas bellas reduzem-se
a meia duzia: o tecto que me
cobre, o lume que me aquece, o pão que
como, a estôpa e a luz.
[21]
Detesto a acção. A acção
mete-me
medo. De dia pódo as minhas arvores, á
noite sonho. Sinto Deus—toco-o. Deus é
muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me—não
o sei explicar. Terra, mortos,
uma poeira de mortos que se ergue em
tempestades, e esta mão que me prende
e sustenta e que tanta força tem...
Como em ti, ha em mim varias camadas
de mortos não sei até que profundidade.
Ás vezes convoco-os, outras são
elles, com a voz tão sumida que mal a
distingo, que desatam a falar. Preciso da
noite eterna: só num silencio mais profundo
ainda, conto ouvil-os a todos.
Nunca os meus me chamaram tão
alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me,
e pouco a pouco o circulo da minha vida
restringe-se a um ponto—a cova.
Teimo: ha uma acção interior, a dos
mortos, ha uma acção exterior, a da alma.
A inteligencia é exterior e universal e
faz-nos vibrar a todos d'uma maneira diferente.
[22]
Destas duas acções resulta o
conflicto tragico da vida. O homem agita-se,
debate-se, declama, imaginando
que constroe e se impõe—mas é impelido
pela alma universal, na meia duzia de
coisas essenciaes á Vida, ou obedece apenas
ao impulso incessante dos mortos.
A minha alegria em velho consistiria
em ter aqui meu pae para falar com elle.
Não é só saudade que sinto:
é uma impressão
physica. Agora é que acharia
encanto até ás lagrimas em termos a
mesma idade, conversarmos ao pé do
lume e morrermos ao mesmo tempo...
Fevereiro de 1918.
Isso que ahi fica não são memorias
alinhadas. Não teem essa pretensão.
São
notas, conversas colhidas a esmo, dois
traços sobre um acontecimento—e mais
nada. Diante da fita que a meus olhos
absortos se desenrolou, interessou-me a
côr, um aspecto, uma linha, um quadro,
[23]
uma figura, e fixei-os logo no canhenho
que sempre me acompanha. Sou um mero
espectador da vida, que não tenta explical-a.
Não afirmo nem nego. Ha muito
que fujo de julgar os homens, e, a cada
hora que passa, a vida me parece ou
muito complicada e misteriosa ou muito
simples e profunda. Não aprendo até
morrer—desaprendo até morrer. Não
sei nada, não sei nada, e saio d'este
mundo com a convicção de que não
é
a razão nem a verdade que nos guiam:
só a paixão e a chimera nos levam a
resoluções
definitivas. O papel dos doidos
é de primeira importancia neste triste planeta,
embora depois os outros tentem corrigil-o
e canalisal-o... Tambem entendo
que é tão dificil asseverar a
exactidão de
um facto como julgar um homem com
justiça. Todos os dias mudamos de opinião,
todos os dias somos empurrados
para leguas de distancia por uma coisa
phrenetica, que nos leva não sei para
onde. Succede sempre que, passados
mezes sobre o que escrevo—eu proprio
duvido e hesito. Sinto que não me pertenço...
[24]
É por isso que não condemno
nem explico nada, e fujo até de descer
dentro de mim proprio, para não reconhecer
com espanto que sou absurdo—para
não ter de discriminar até que ponto
creio ou não creio, e de verificar o que
me pertence e o que pertence aos mortos.
De resto isto de ter opiniões não é
facil. Sempre que me dei a esse luxo, fui
forçado a reconhecer que eram falsas ou
erroneas. Sou talvez uma arvore que
cresce á sua vontade, pernada para aqui,
pernada para acolá, á chuva e ao vento.
Não admitto poda. Perco horas com inutilidades,
e passo alheado e frio diante
do que os outros contemplam extasiados.
Admiro, por exemplo, muito mais, perdoem-me,
a vida ignorada do meu visinho,
o senhor Crasto, que morreu de oitenta
annos, curvado, a lavrar a terra, do
que a do senhor Hintze Ribeiro, que
considero inutil e destituida de toda a
belleza.
Por isso, repito, muitas folhas destes
canhenhos serão mal interpretadas, talvez
alguns tipos falsos. Só vemos mascaras,
[25]
só lidamos com phantasmas, e ninguem,
por mais que queira, se livra de paixões.
No que o leitor deve acreditar é na sinceridade
com que na ocasião as escrevi.
Poderão objectar-me:—Então com que
destino publico tantas paginas desalinhadas,
de que eu proprio sou o primeiro
a duvidar? É que ellas ajudam a reconstituir
a atmosphera d'uma epocha; são,
como dizia um grande espirito, o lixo da
historia. Ensinam e elucidam. Foi sempre
com a legenda que se construiu a vida.
Sei perfeitamente que a historia viva
tanto se faz com a verdade como com a
mentira—se não se faz mais com a
mentira do que com a verdade. Para gerar
um acontecimento é preciso crear-lhe
primeiro a atmosphera propicia. «Algumas
palavras sob caricaturas grosseiras
dispersas pelos campos, formaram uma
lenda na imaginação popular, concernente
ao rei, á rainha, ao conde de Artois,
a madame Lamballe, ao pacto da
fome,
aos vampiros que sugam o sangue
do povo, etc. Dessa lenda, que elle acha
util, sahiu a grande
revolução»—diz um
[26]
historiador. A gente nunca sabe ao certo
se da infamia poderão nascer coisas bellas...
A mentira, o boato, o que se diz
ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta
força tem, a meada de odio, de ambição
e de interesses, que não cabe na historia
com H grande, tem o seu logar n'um
livro como este de memorias despretenciosas.
Eis uma razão. Tenho outra ainda:
torno a vêr e a ouvir alguns mortos.
Recordo, o que é necessario a quem
cada vez mais se isola com o seu sonho
e as suas arvores. Isto aquece quasi
tanto os primeiros annos da minha velhice,
como o lume que arde até junho
na lareira d'esta casa
[1].
Cantareira, Foz do
Douro—1918.
ALGUMAS
FIGURAS
Janeiro—1900.
Urbano de Castro, com um olho tôrto e
um chapelinho afadistado, na aparencia
reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade.
Os seus amigos adoram-no, o Camara,
o Schwalbach, a antiga roda do
Correio da
Manhã.
Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de
classicos—conhece muito a lingua—e uma forma
ironica e precisa: em meia duzia de linhas incisivas
deixa o adversario a sangrar. Os politicos
temem-no tanto, que uma das condições impostas
pelo José Luciano, quando do pacto com o Hintze,
foi que o Urbano terminasse na
Tarde
com o
Espirito de S. Ex.a.
Eis algumas maximas de Urbano de Castro:
—A paciencia é
uma virtude de capote e
lenço.
—Quanto mais leve é a cabeça da mulher,
mais
pesada
é a do marido.
—Os homens publicos são como os papeis de
credito—o que hoje tem uma alta
cotação,
amanhã não vale, e
inversamente.
[28]
—Quando tiveres muitos
argumentos,
não empregues
senão os melhores. Quando não tiveres nenhum,
emprega
todos.
—A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A
garrafa
é a mesma, mas o vinho é outro.
—Viuva rica, com um olho dobra, com outro repica.
—No coração mora-me Deus, no figado o
diabo.
—Mortal é o contrario de imortal. Imortal
é o
que é
sempre. Logo, mortal—é o que não
é
nunca.
—Theologia—a arte de fazer comprehender aos outros
aquillo que nós não entendemos.
—De todas as armas, a mais dificil de manejar é o
pau... de dois bicos.
—Jornalista—fabricante da opinião
publica. Cada um
afirma que a unica genuina é a da sua lavra.
—Se os homens de mais juizo pensarem a serio em
muitos dos seus actos hão de reconhecer que não
teem
juizo nenhum.
—O suicida tem para mim um lado
sympathico—não
se julga insubstituivel.
Junho—1903.
Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo,
de bigode grisalho e um ventre de proprietario.
Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial?
Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho
fortunas, tem dissipado fortunas com o mesmo
ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os
theatros do Rio representaram peças com o seu
nome. Está cheio de dividas. E o seu ideal, o ideal
[29]
d'esta existencia de acaso, com aflições de
morte,
ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de
opereta—pan! pan! pan!—e dinheiro atirado
a rodos, é um casebre no campo, duas arvores
n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue
que pingue no fundo do quintal. Paz. E não escrever
uma linha.
Um agiota não o larga. É este velhinho paternal,
de cabellos brancos, que faz recados, deita
as cartas ao correio e leva coiro e cabelo. Parece
inofensivo. Começou a vida por creado de servir
e esfolou os patrões. Afirma que o Garrido é
capaz de arrancar dinheiro a um morto:
—Este senhor Garrido dá-me cada
aflição!
Até me faz crear caspa!
Fevereiro—1900.
A paixão d'este homem é não ter um
livro
de geito. G... só escreveu trez folhetos, e por
ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais
nada. É no entanto uma figura epigramatica e
nitida de conversador e um typo curioso de
bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios,
pertenceu ao grupo que o Fialho arrastava
pelas ruas até ante manhã, dispersando com elle
o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa
meia duzia de bohemios improvisou o grande
escriptor as suas melhores satyras. Uma noite, no
[30]
café, G... aludiu á sua obra, e logo do lado o
Fialho acudiu:
—A tua obra, bem sei... Vinte e cinco cartas
a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco
tostões emprestados.
G... embezerrou. Mas passados minutos aproveitou
uma pausa no dialogo, para perguntar com
indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado
rico com uma prima, que gastou a vida a esperal-o
no fundo da provincia:
—O Fialho fazes favor de me dizer que horas
são... no relogio do teu sogro?
Fevereiro—1903.
Vejo sempre diante de mim o D. João da
Camara, já cansado e e asmathico, olhando por
cima das lunetas, e falando baixinho com receio,
uma modestia no dizer, e um medo de magoar...
A barba espessa, a grenha espessa e um chapelinho
pôsto ao lado, completam a figura um
pouco molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá
tudo o que tem. Exploram-no.
—O que me perdeu na vida foi não ter energia.
Nunca me decido.—E mais baixo:—Isto
vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive
alguns condiscipulos que são homens notaveis e
ninguem dá por elles.
[31]
Vive de noite, com uns e outros, ao acaso,
nos bastidores dos theatros, ou encantado com
uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco
da Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido:
não se largam mais. Vae sempre para casa de
manhã, e a sua vida é tão aflictiva
que desejaria,
como o Schwalbach, que o metessem algum tempo
no Limoeiro, para não pensar no dia seguinte.
Hontem contou-me isto que é encantador:
—Não me importava nada de ter quatorze filhos
em vez de sete. São muito meus amigos. O
Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo.
Eu estou sempre a dormir... Esta manhã—estava
acordado, mas fingi que dormia, quando aquelle
rapagão me entrou no quarto, pé ante
pé, para
não me acordar, e beijou-me...
E fica extatico.
Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer,
do
Sermão da Montanha e
de outra com tipos
de sonhadores, que se alimentam de mentira e de
um passado que nunca existiu, forjado ponto por
ponto. Assobia-se, por exemplo, um trecho d'opera,
e logo este atalha:—Bem sei é da
Dinorah!...
Tempos que já lá vão! O que eu vivi
com Fulano
e Sicrano, e as ceias que demos juntos!—Tudo
ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem sequer
conheceram as pessoas de quem falam...
Outras vezes conta-me a sua vida:
—O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias
d'angustia... N'essa noite
O Pantano
cahira.
[32]
Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores
a intriga fervia com a Lucinda á frente. Sahi do
theatro a pensar no que havia de empenhar no
dia seguinte. Fui para casa muito tarde.—Não
haveria que pôr no prégo?—Por fim
descobri
uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi com o embrulho
debaixo do braço, n'um papel de jornal. O
papel amolecia, a casaca rompia para fóra, e eu
batia de prégo em prégo. Sete horas da
manhã...
Estavam todos fechados. N'um disseram-me
com seccura:—Não emprestamos sobre
casacas.—Fui
a outro e esperei no portal que abrisse.
Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes.
Defronte, estava uma carroça, com um cavallo
branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça
metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal,
com o embrulho já todo roto debaixo do
braço, invejei aquelle cavalo!...
Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias
para casa ás cinco horas, tendo perdido tudo:—Foi
n'essas noites que imaginei as minhas melhores
peças...—Cuidadosamente punha sempre
de lado um tostão para o americano—e quasi
sempre succedia tambem que um velho fidalgo,
das suas relações, lhe pedia o tostão
emprestado
para um calice de vinho do Porto, que se habituara
a beber ahi pelas tres da madrugada. O
D. João dava-lh'o, e lá ia a pé para a
Junqueira,
a sonhar nas peças, sob a lufada, molhado até
aos ossos, de casaco de alpaca.
Columbano.—Auto-retrato.
[33]
Junho—1903.
Passei a noite em casa do Columbano, com o
Raphael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou
sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e imprevisto:
os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode
que se encrespa, desenham e imitam.—Era um
homem com um ôlho assim...—E logo o ôlho
se
lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro.
Chegou a ter lições do Rosa pae. Está
um pouco
cansado. Queixa-se muito. Amua.—Ninguem faz
caso de mim...—Estranha quando o não
vão esperar
á estação—e está
sempre a
chegar das
Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se
e põe-se a rir. Depois torna:—Eu não
jogo, mas
lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro
emprestado.—Agora arremeda este e
aquelle de quem fala. Conta que em Paris ouviu o
rei dizer:—Isto aqui é uma terra, lá
é uma piolheira.—E
que o infante, quando lhe perguntaram:—Então
em Londres que tal, com aquelles
principes todos?—Mal, mal... eu sou um principe
aza de mosca...
E acaba—é nas vesperas do jantar que lhe
vão oferecer no theatro D. Maria—por
dizer:—Veja
o senhor que desgraça a minha! Daqui
a pouco não posso fazer a caricatura de ninguem!
[34]
Efectivamente lá estavam no banquete todos
os homens imponentes, os conselheiros, os politicos
decorativos, a serie completa das figuras
do
Antonio Maria. Não
faltou ninguem á chamada.
E nos camarotes aplaudiram-no com delirio
as lisboetas palidas de que troçou em tantas
paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no.
Creio que foi a primeira vez que perdeu
a linha.
Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach
que conta:
—O imperador do Brazil logo que chegava
ao theatro metia-se no camarote, descalçava as
botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma
noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé
ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe
as botas. O pobre homem não se desconcertou:
sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a
multidão, saudando para a direita e para a esquerda,
desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos
na carruagem.
Dezembro—1900.
Latino Coelho, contado por Maximiliano
d'Azevedo:
Tinha coisas absurdas: estava sentado a
conversar e levantava-se sem mais nem menos,
[35]
compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era
todo de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria!
Dizia-se-lhe qualquer banalidade, e elle,
d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra. Discursos
que revelam o conhecimento inteiro d'uma
epocha, como o de Camões, que leu na Academia,
e que foi escripto das sete ás onze da manhã,
e lido ao meio dia, compunha-os com extrema
facilidade.
D'uma vez estava elle em casa politicando
com alguns amigos reformistas, o Mariano, o Lopo
Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a
revolução
de onze de maio. O Latino, dando um geito á
trumpha, chegou á janella e viu o carro, puxado
a mulinhas, do Saldanha:
—Ahi vem o duque... E aposto que vem
para cá.
Efectivamente o carro parou á porta. Era o
Saldanha. O Latino foi recebel-o n'outra sala, e,
depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha
perguntou-lhe:
—Sabe a que venho? Venho saber a sua
opinião sobre o dia de hontem.
—Mas não tenho opinião nenhuma...
—Não se recuse, Latino. Peço-lho como
amigo.
—Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que
quem como V. Ex.
a conquistou um nome glorioso
com a espada, não deve servir-se da canalha
para fazer o que fez. A sua situação é
deploravel.
[36]
—Não me diga isso! E se eu aproveitasse a
situação para firmar de vez a liberdade em
Portugal
e salvar o paiz?
—Se V. Ex.
a quizesse...
—Mas é que quero, e para isso venho ter
comsigo.
Combinaram que o Latino redigiria os decretos
ampliando as liberdades publicas, tornando-as
efectivas, e convocando constituintes com poderes
amplissimos.
—O maior segredo...—recomendou o Latino.
N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um
amanuense do ministerio, redigiu os decretos,
que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar,
metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que
os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado;
fosse que o Saldanha désse á lingua,
o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo
por alguem que lhe disse:
—O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos.
V. Magestade não os assigne ou está perdido.
Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei
abraçou-o:
—Pois o duque ajudou a conquistar-me o
throno e não quer que meus filhos reinem?
Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no
poder...
Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a
dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:
[37]
—V. Ex.
a não podia
deixar-me dormir
a minha
noite socegado?
Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino
me contou isto. Já tenho querido descobrir os
decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um
quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis
do grande escriptor...
*
Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a
revolução ao Latino:
—Mas ha-de ser tudo assassinado—toda a
familia real.
—Isso não!—protestou logo o Latino.
*
Morreu virgem, como Newton. No dia de
sua morte, estava o cadaver na cama, apenas
coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:
—Bastaria arrancar aquelle lençol para
descobrirmos
o segredo de toda a sua existencia.
*
Junqueiro dizia de Latino:
—Sim, é um homem admiravel, que em logar
de c... tem duas castanhas piladas!
[38]
Maio—1903.
Um jornal publica hoje esta noticia:
POVOA DE LANHOSO, 29—Faleceu, sepultando-se
hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da
freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia
e mathematica pela Universidade de Coimbra.
O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes
virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido
fôra
frade agostinho.
O homem, a quem estas seccas linhas se referem,
era na verdade um santo. Deixou tudo para
viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre
cavadores e a gente humilde da terra que o adorava.
Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo
branco, minguado, com o burel, que nunca quiz
largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente
formado em philosophia e direito, e até
por vezes fôra convidado para lente da Universidade
de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo,
preferindo a convivencia com a gente do povo e
com a natureza que o rodeava. Ha entre as
duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que
ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso,
uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto
fica a ermida. Alli se costumava o santo homem
sentar, horas e horas embebido nas suas
meditações.
[39]
Em que scismava? Decerto no passado
longinquo...
Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre
Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo
dia de convento?» Um frade chora ao deixar
para sempre a cella caiada, onde passou a vida
inteira. É só isto, afóra a ternura,
as lagrimas, a
prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da
Boa Morte contava tambem as ultimas horas
de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas,
recolhido por caridade em casa de duas
mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o
convento, a cella, o dia de separação. E, ao
pé da
arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais
d'uma vez contar o que sofrera.
—E dos seus companheiros lembra-se? Teve
mais tarde noticias?
E elle, com os olhos razos de lagrimas:
—Viveram ainda dispersos por esse mundo.
Ha annos, ha muitos annos, recebi, dum d'elles
um recado, esta palavra:—«Adeus!» Foi o
ultimo!
Agora acompanhava-o sempre um rapazinho.
Com a vida, ia-se-lhe desfeito o burel, rôtos os
sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles
logares, que é ingenuo e crente, consultava-o
nas suas doenças e nos seus sofrimentos.
É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de
sorrir... O milagre é uma comunicação
entre
pessoas que têm radicada e viva esta força
enorme:—a
[40]
fé. D. Joaquim da Boa Morte curava
as creaturas simples, as mulheres, as creanças e
os homens da serra que o iam visitar, com boas
palavras, e, quando muito, com alguns cachos de
uvas, que elle proprio colhera e lhes distribuia,
depois de benzidos.
Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado
na manta coçada que pertencera a sua
mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha
manta como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo
assim, com um resto de calor e de ternura, que
eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a
eternidade das eternidades, nem o isolamento,
nem o frio dos frios, conseguiriam jamais trespassal-a.
Que descance em paz. Quem escreve estas linhas
deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e
puras impressões que tem recebido na vida. A sua
grande figura só desaparece da terra, depois de
ter feito muito bem e estancado muitas lagrimas.
Julho—1903.
O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha
tres dias, em plena mocidade, meteu uma bala no
coração:
—Eu não faço como elle, não
me vou
embora,
porque tenho duas creanças, o Mario e o Raul.
[41]
Era de certo a isto que o Manuel se referia ao
escrever: «Não faço falta a
ninguem». Isto atura-se
lá a sangue frio e determinadamente! Matava-me
para me ver livre d'estes bandalhos!
E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta
a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira
branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente
ainda:—Arre bandidos!
De repente, sem transição, põe-se a
rir:
—Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo,
que tinha uma lingua viperina e dizia mal
de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este
e naquelle, disse mal de todos. Por fim:—Sempre
me refugio em Victor Hugo, para ver se você
tambem diz mal d'elle...
E o mestre:
—Esse velho não era nada tolo!
Ri-se. Depois fica outra vez triste:
—Aquellas paginas de Hugo quando o avô
vê entrar o neto ferido pela porta dentro!
*
O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo,
insinuante e espontaneo, que aos dezanove
annos se lembra de estourar o coração com
uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta
e dous annos—o Fialho diz:
—...era isto e aquillo e uma mão enorme
[42]
atirada p'ra aqui e p'ra acolá a toda a gente,
apertando a nossa.
O que nunca mais me esquece são aquelles
olhos tristes e a bocca moça sempre a sorrir!...
Fevereiro—1904.
Hoje almoço em casa do Schwalbach com o
Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio
Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho
secco e resistente, de cabeleira e pera branca—miniatura
do alentado Pato caçador que todos nós
imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no
dia 20 para S. Miguel, de passeio... Quando morrer
desaparece com elle toda uma epocha:—Meu
rapaz podes ter lido todos os philosophos, que
se não tiveres sentimento... Minha mulher, uma
velhinha lá fica... Não vae comigo, porque
recolhemos
em casa uma pequena pobre, pobrissima,
e queremos-lhe como se fosse nossa filha. Sentamol-a
á nossa meza... Bem sei que ha por ahi
uns moços que dizem mal de mim. Não me importo.
Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe
logo os braços.
No fim do almoço, beija a mão ás
senhoras.
Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer:—Isto
dá vontade de morrer! «Que
faria—accrescenta—se
vivesse hoje!»—O Conservatorio lembra-lhe
[43]
o Palmeirim—«que foi da minha
creação»—É
simpathico, vivo e cheira a outros tempos:
conserva, como o linho guardado no fundo
d'um armario, o perfume da maçã. E que contraste
com os outros, com o Chagas, com o
Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado,
com o Antonio Bandeira, que, sob uma
aparencia futil, é pratico como o diabo, e que
conta que foi uma noite em Roma, com alguns
portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado
para as ruinas do Colyseo! Depois, por
blague,
sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter
mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.
Março—1904.
Encontrei hoje o Marcellino Mesquita: ventas
largas, marcas de bexigas, barba com muitas
brancas aparada rente, chapeu desabado, capinha
curta e olho vivo. Tipo crestado do sol, materialista
e secco.
—A gente quando chega a certa edade tem
de se isolar para não viver n'uma perpetua
irritação.
Olhem agora se eu encontrava o Pequito
ministro, o Pequito de quem a gente fazia troça
em rapaz! E muitos outros, que aos quarenta
annos começam a desafinar-nos os nervos...
Vivo no Cartaxo, n'um descampado: a quinta
[44]
fica entre duas estradas. Não passa lá ninguem...
Leio, fumo, e trabalho. Tinha um moinho; primeiro
acrescentei-lhe uma cozinha, depois um
quarto: agora tenho lá uma casa. E já
não posso
viver sem o ruido das mós. O meu quarto fica
mesmo por cima. D'aqui a oito dias, com as macieiras
em flôr, aquillo é adoravel...
Abril—1903.
Vi o Marianno nas camaras. É um cadaver,
com uma sobrecasaca riquissima de gola de veludo.
Nunca phisionomia exprimiu maior cansaço,
indiferença ou desprezo, a palpebra cahida,
o olhar vazio de expressão.—Que me importa!
que me importa!...—Parece um morto, farto de
sofrimento e de goso, e, sob aquella apparencia de
sceptico raros se magoam como elle. Toda a vida
tem sido ludibriado. Contam que a mulher passa
horas a descompol-o. Elle, sentado, escreve tiras e
tiras de papel, a tarefa do jornal, sem dizer palavra
nem levantar a cabeça. D'uma vez chamou-lhe
tudo quanto lhe veio á bocca, e elle inalteravel,
curvado sobre os linguados, sem lhe dizer
palavra... Por fim ella, desesperada, berrou-lhe:
—És um estupido!
Elle então parou, ergueu a cabeça, e muito
calmo:
[45]
—Teem-me chamado tudo, mas estupido é a
primeira vez!
E continuou a escrever.
Por fóra uma aparencia de sceptico, por
dentro uma sensibilidade enorme. Anda sempre
metido em complicações e negocios, em caminhos
de ferro, em pedaços de Africa, bahia de Lobito,
etc., e afinal não passa d'um sonhador que tem as
propriedades de Azeitão hipothecadas em quatorze
contos de reis.
Setembro—1903.
O Antonio José de Freitas, homem de lettras
mediocre, é um conversador admiravel. Se
conseguisse escrever como fala, e désse á prosa
aquella vida que dá á palavra, seria um grande
escriptor. Pequeno, branco, na ponta dos pés,
sempre a segurar as lunetas, todo elle nervos:
—Dei-me muito com o Castello-Melhor. Um
dia começou a imaginar que estava pobre, porque
no Banco de Portugal lhe não quizeram,
como sempre se fez, descontar uma lettra só com
o nome d'elle. Disse ao Barros Gomes:—Vae
beber da merda!—E sahiu furioso. D'ahi começou
a imaginar que tinha cahido na pobreza e
alugou o jardim para o circo Whytoine. Uma vez
sahi com elle d'um baile pela madrugada e acompanhei-o
a casa.—Sobe.—Tenho ainda que
[46]
escrever para o Brazil...—Insistiu, subi—e eil-o
a clamar no quarto:—Que diriam meus avós se
vissem alli o circo e os palhaços!...—Estava
desesperado.
Descompul-o.
Passaram-se annos e morreu de repente. Vestimol-o
n'aquelle mesmo quarto, e, altas horas da
noite, ouvimos, de repente, um clamor: era o circo
Whytoine que ardia. E eu assisti ao espectaculo
do cadaver, iluminado pelo clarão do incendio,
alli onde o ouvira evocar com desespero os seus
mortos. Foi tudo ao enterro. O povo abria alas, e
quando chegamos ao cemiterio e quizemos pegar
no caixão, veio de roldão uma chusma de cocheiros
e vadios, que nol-o arrancaram das mãos, e,
erguendo-o no alto dos braços, levaram-no até
á
cova...
*
—O Eça usou toda a vida bentinhos ao
pescoço.
Vi-lhos eu, que dormi por diferentes vezes
com elle no mesmo quarto...
*
Depois fala no Resende:
—Se vivesse era decerto o chefe do partido
conservador. Que homem encantador, polido e
sceptico! E tinha uma poderosa ascendencia
magnetica sobre nós todos. O medico, já quando
elle estava muito mal, recomendou-lhe ares do
mar. Passeava n'um bote no Tejo. Umas vezes
[47]
ia eu com elle, outras o Soveral, e levavamos-lhe
botijas com agua quente, porque sentia sempre
um frio mortal. Estou a ver o Soveral, com
uma botija em cada mão. O
Rabecão, um jornal
de caricaturas do tempo, disse que nós iamos
emborrachar todas as noites para o rio. Muito
nos rimos... Pois o Resende, atheu toda a vida,
morreu como um crente.
Foi elle que se esmurrou com o Eça n'uma
das piramides do Egypto. Nessa viagem ouviram
ambos missa no tumulo de Jesus, em Jerusalem.
O Eça cahiu logo de joelhos; quando levantou a
cabeça para ver o quadro, dois ou trez mil peregrinos
tinham como elle ajoelhado sob o mesmo
impulso irresistivel: só a seu lado, de badine e sobretudo
no braço, se conservava de pé, sem perder
a serenidade nem a linha, um unico homem:
o Resende.
*
Os
vencidos da vida, depois que se
juntaram
diziam mal uns dos outros. Não se podiam ver.
Março—1900.
Ha mezes que Junqueiro não aparecia na
Praça, onde outrora era certo á noite, rodeado
de esbirros, e discutindo politica ou arte com
alguns amigos mais intimos. Eil-o agora de volta,
[48]
depois de umas febres palustres apanhadas n'essa
longinqua quinta que replanta de vinha lá para
a Barca d'Alva.
Vem curioso. Teem por acaso os senhores
noticia d'um Junqueiro adunco e janota, mephistophelico,
com ditos em braza explodindo sobre
o ultimo acontecimento, e conhecem talvez a lenda
da casa de hospedes celebre da rua dos Retrozeiros,
d'onde em tempos sahiram gritos subversivos,
pamphletos, versos, theorias philosophicas,
satyras e revistas do anno, e onde—consta
dos archivos da policia—morou o proprio Diabo
em pessoa, na intimidade do poeta?... Lembram-se?
Depois, n'outra phase da vida, viram-no
talvez autoritario e feroz, com o mesmo perfil em
bico d'aguia, sob um chapéo molle e gasto, atacar
o velho Padre Eterno?... Pois ahi o teem agora
philosopho e christão. Parece um prégador
socialista-tolstoiano,
um santo cavador, de barba negra
e inculta: traz ainda terra pegada nas mãos e
uma roupa velha, a que só faltam alguns remendos
cosidos á ultima hora... Usa uma camisola de
lã e diz assim:—Eu não me visto:
cubro-me.
Chega da Barca d'Alva, um terreno enorme
lá para a raia, entre pantanos, que reuniu leira
a leira, depois d'uma scena, que dava um capitulo
á Balzac. É elle mesmo que a evoca em meia
duzia de traços, e a gente vê logo d'um lado os
cavadores tartamudos e hesitantes, do outro o
Senhor Poeta, como elles lhe chamam, com um
[49]
livro de cheques na algibeira, encafuando-os a
todos na sala do cartorio:—Se chegam a concertar-se
era uma discussão para seculos. Pediam-me
uma fortuna!—Um a um compareceram diante
do tabelião:—Quanto quer? Assigne!—E
sahiam logo por outra porta.
Já pouco a pouco a lenda se forma, discutindo-se
a nova thebaida, que d'aqui a annos será
visitada como Valle de Lobos e Seide. Que procuram
os nossos grandes escriptores, desde Herculano
a Fialho, na natureza, que pouco nos dá
em troca do muito que lhe damos? Afastar-se
dos outros ou esquecer-se a si proprios?Talvez
as arvores e os montes nos preparem melhor
para o sepulchro e para o verme, ainda que
eu julgue que não ha como um 6.º andar, com
livros e papeis, e um cinematographo no rez do
chão, para acabar com a vida.
Seria um curioso estudo aquelle que comparasse
Valle de Lobos, Seide e a quinta de Junqueiro,
a decoração escolhida por tres homens
superiores—o fundo de tres grandes retratos.
Na Barca tem o poeta uma casota de cão, com
os muros ainda em osso, e uma varanda onde
passeia todo o dia infatigavelmente. De quando
em quando escreve na cal da parede versos ou
contas. Seide, n'um cahir de tarde outomniça,
lembra a alma de Camillo. Ha lá um calvario
d'arvores decepadas que parecem forcas. Ha lá
uma casa tragica, pintada d'amarello. Um ermo,
[50]
que, a meia legoa da estrada, fica ao cabo do
mundo, e que parece escolhido de proposito para
esconder uma desgraça ou combinar um crime.
Peor: ficou na casa abandonada, no ambito, nas
pedras, alguma coisa daquella alma dilacerada
de sceptico e de crente, mixto doloroso que só
tinha como solução o infortunio. O que se ouve
são risos ou gritos de dor? Depressa! depressa!...
Parece que elle anda ainda por aqui, sardonico e
immenso, desgraçado e immenso. Valle de Lobos,
se uma vez o avistaram, não emociona de
uma forma toda diferente, e não diz bem com a
alma de Herculano?... Quanto a Junqueiro,
a sua paizagem querida é indubitavelmente a
trasmontana, grave, revolta e grandiosa como
o seu genio.
Camillo não encontrou decerto
resignação nas
arvores, nem nos montes, porque, para o mestre,
em toda a natureza só o homem
existia:—Não ha
na sua obra uma arvore, nota o poeta...—Nem
Guerra Junqueiro por ora se isola. Está na lucta,
com os seus livros, as suas theorias, a sua maneira
suprema de discutir e de encarar os problemas
do universo.
—Para viver na aldeia é preciso, diz elle, ser
João Brandão ou S. Francisco d'Assis.
De forma que a Barca d'Alva não é bem
uma thebaida para o poeta. Os senhores vão
agora conhecel-o sob este aspecto novo—agricultor.
A Barca é-lhe mais que um refugio: é
[51](palavras que fazem
bater o coração de todos os
homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro,
agricultor, tem ainda genio: inventa e descobre.
Quatrocentos cavadores desbravam-lhe a terra,
que deve produzir um vinho magnifico. O mosquito
propaga a febre. O jornaleiro macilento
bate o queixo com sezões. Elle ordena, dirige e
resolve as questões agricolas muito melhor que
os lavradores da região, de quem diz:
—Plantam vinhas, como quem joga na batota—ao
acaso!
Ouçam-no! Desfilam os jornaleiros, que adquirem
logo uma vida extraordinaria, as boccas que
não falam, a Maria Colhôna, que tem filhos de
toda a gente, filhos para o Brazil, filhos para soldados,
filhos para a desgraça, os sêres deformados
e enormes, os tipos que se transformam em
simbolos... Descobriu um novo processo para evitar
que a enxertia, essa operação cirurgica, como
elle lhe chama, falhe, e, sob as suas ordens, trabalham
alguns centos de homens, que se encostam ás
enxadas para ouvirem o Senhor Poeta... Não é
raro vel-o subito, tempo humido, perigo para as
vides, abalar para a quinta com saccos de sulphato.
Adivinha, presente melhor a natureza que
os sabios—e cria. Tudo o que toca toma sob as
suas mãos um aspecto novo, tão certo é
que os
homem de genio, como quer Carlyle, são sempre
superiores e ineditos.
E de que maneira paradoxal elle expõe as
[52]
suas theorias! Nervoso, pequeno, calcando o lagedo
da Praça, a mordiscar a ponta do charuto,
que giganteas formas de sonho não vae creando
aquella magica palavra!... A sua phantasia é
eminentemente decorativa.
—Sabem—dizia o poeta uma noite—sabem
que scismo na fórma de transformar toda a agricultura?
Acabaram-se os pobres, a fome, os annos
tristes! Para o vinho, d'aqui em deante, não
bastarão
toneis como torres e para o pão arcas como
predios. Uma carrada de bois será apenas suficiente
para carregar uma abobora, e um simples
cacho de uvas dará vinho para duzias de
borrachões.
Como? Aplicando ás arvores, ás vides,
ás
plantas emfim, o methodo de Brown-Séquard.
O sabio dá a um organismo gasto uma vida
assombrosa, injectando-lhe a vitalidade de coelhos.
Calculem o resultado d'esse sistema aplicado
na agricultura...
Um castanheiro dura seculos, tem uma vida
extraordinaria. É mais que uma arvore—é
uma
força. Apodera-se dos montes. As suas raizes alastram,
os seus ramos tocam no céo. Imagine que
injecto polen de castanheiro n'uma vide... Obtenho
logo uvas como as da Terra da Promissão.
D'um pé de melancia tiro um fructo capaz de
carregar um carro. Tres maçãs metem no fundo
uma náu.
E eis, por uma noite de invernia, a natureza
transfigurada, pelo poder da phantasia
[53]
e do sonho. Flores são arvores abrindo lá em
cima no céo em parasoes roxos; pinheiros transformam-se
em montanhas; monstros erguem as
suas corolas de veludo, e na verdade não passam
de humildes flores bravias. Uma petala desaba
com o fragor de penedos, e multidões sobre
multidões
sequiosas veem dessedentar-se n'este fructo
colossal:—o morango. Ha que tempos que
eu erro perdido n'esta floresta monstruosa de
papoulas!...
Junqueiro na intimidade é prodigioso de genio,
de imprevisto, de elevação. Vê os
factos mais
simples com um olhar que os engrandece. Assombra
de pitoresco e de inedito. O homem de genio
é, como todos os homens, filho da mesma
lama, mas, por acaso, vão n'esse humus lagrimas,
aguas correntes, detrictos de florestas, restos de
nuvens e a emoção profunda da natureza. Por
isso sabem tudo, sentem tudo... É pena que as
suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços
de sonho e de vida, atirados com febre, perdidos,
e decerto esquecidos, se não possam juntar,
porque dariam um dos aspectos mais extraordinarios
do seu genio. Seria esse talvez o seu
melhor livro. Assim, por exemplo, as cathedraes
de Hespanha, onde Jesus está preso e a ferros,
a explicação prodigiosa dos Christos de
madeira—o
Christo dos soldados, o dos ladrões, o
dos cavadores, da sua sala de jantar, unicas
obras d'arte de que não quer desfazer-se, e a
[54]
sua philosophia, a maneira superior como encara
o universo e ilumina o desconhecido...
Pois ahi o teem de novo no Porto, de barba
hisurta, embrulhado n'um casaco coçado, com um
ar iluminado de Santo. Direis que vae prégar ás
multidões. Demais já ha annos que elle escrevia:
Tolstoi
o meu sapateiro...
E um dia, ao saber Camillo sceptico, Camillo
com noites de sombrio desespero, palpando a
coronha do revólver, não foi de proposito
procural-o
para lhe prégar Deus?
Era n'uma dessas tardes tragicas de Seide,
de que o grande escriptor fala nos
Serões. A
natureza chorava revolvida: a acacia de Jorge
batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o
chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê
phantasmas, e sae do horror com blasphemias e
sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na
dolorosa tinta do crepusculo, com a pala com que
escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado,
o rosto marcado de dedadas, «esboçado
n'uma argila côr de mel», segundo o retrato de
Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo... O poeta
tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola
theorias, explicações, argumentos; ataca-o
a fundo, persuade-o talvez... Já o julga abalado
e convertido, quando d'essa figura só osso e dor,
saem emfim estas palavras ironicas:
[55]
...—Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me
se eu não tivesse ainda no estomago, desde o
almoço,
tres bolinhos de bacalhau, que me estão
aqui como tres Voltaires.
Março—1904.
Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade,
os lavradores do Douro, o poeta Guerra Junqueiro.
É outro homem, que perdeu talvez em
exterioridades mas ganhou em funda emoção.
Tendo-se-lhe um dia deparado universaes
interrogações
no caminho; tendo encontrado
frente a frente, ao meio da vida, idéas abaladoras,
que só o homem de genio pode encarar
sem o pavor e o deslumbramento que o
grande mistério comunica—as raizes do
universo—elle
mudou de rumo, tão simplesmente
como se praticasse o acto mais banal da existencia.
Sendo já um dos maiores poetas da Europa—quiz
ser tambem um santo... Durante annos
procurou como Fausto o segredo da vida no
fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu
espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder
do genio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo
experiencias que a sciencia d'hoje plenamente
confirma.
Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios
brancos a mais na grande barba de santo, começo
[56]
de calva amarelada no alto da cabeça,
chapéo
baixo, uma simplicidade de trajo que vae bem
com a simplicidade verdadeira ou ficticia da sua
alma. E sobre isto os olhos terriveis que nos
fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa
é prodigio que evoca, ilumina, toca em todos
os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza
e novos aspectos que entontecem.
Fala-se a proposito de um livro, e elle diz, não
palidamente, nem decerto com as inexactidões
com que reproduzo, o seguinte:
—É um livro interessante. O autor conseguiu
deixar falar a parte de inconsciente que cada um
de nós traz comsigo... Porque, meu amigo, a
porção de infinito que cabe a cada homem
é
exactamente a mesma. O camiseiro alli defronte
e um homem de genio teem na alma identico
quinhão. Sómente o camiseiro não
consegue encontral-a
nem pode exteriorisal-a. Porque? Porque
só pensa em camisas. O homem é o universo
reduzido... Que cada um pudesse deixar-se narrar—e
teriamos a mais maravilhosa historia do
mundo!...
E como incidentemente se refira á sciencia,
eil-o que se desvia por outro esplendido caminho:
—As ultimas descobertas modificaram completamente
a sciencia. Foi um terremoto. E eu
entrevi isto mesmo: ha annos que chegára ao
seguinte resultado:—radiação universal
e
desassociação
dos atomos. Fiz experiencias, que me
[57]
de sciencia que não me quizeram atender. Um
dia vim de proposito a Lisboa falar a Sousa Martins
e expuz-lhe as minhas theorias. Ouviu-me...
Quando me fui embora encolheu decerto os hombros.
E no emtanto, passados annos, vejo confirmado
experimentalmente tudo o que eu previra...
Que quer?... Faltavam-me como comprehende
os meios de verificação. Precisava de factos.
D. João da
Camara.
Cala-se um momento e depois continua:
—Hei-de publicar, depois da
Oração á
luz,
que sae brevemente, uma serie de memorias, com
os resultados dessas experiencias. A vida—é
o Amor e a Dor. Procurar as suas leis eis
tudo. Seguir-se-ha a minha theoria philosophica.
Adivinhei todo este terremoto que se deu ultimamente
na sciencia. Hoje a materia não existe:
já a definem—associação
d'energias. O
que é
feito dos materialistas? A sciencia futura será
portanto o estudo de energias. Por ultimo publicarei
uma introducção á sciencia, visto que
não
posso escrever essa obra: seria a revisão dos trabalhos
de Spencer—a tarefa de toda uma vida.
—E tem muitos documentos?
—Tenho tudo prompto. Necessito apenas de
encontrar a fórma precisa, a fórma mathematica,
para exprimir as minhas idéas.
Incansavel. É de ferro. Pequeno e mirrado
passeia horas e horas, a conversar... Não
conversa—monologa.
[58]
*
Da Barca d'Alva diz:
A minha casa de jantar tem uma meza e cadeiras
de pinho. Depois de comer, quando quero
um palito, corto-o na meza.
*
Ramalho definido por Junqueiro:—um pinheiro
com uma melancia em cima.
*
Junqueiro na redacção do
«Mundo»:
—D'aqui a pouco reparto a minha fortuna
com as minhas filhas e o que me restar dou-o
aos pobres.
*
Ha outro Junqueiro de que a caricatura se apoderou,
o Junqueiro do
bric-á-brac. O Junqueiro
que a má lingua do Porto afirma que percorre
disfarçado as ruas de Hespanha, com um burro
pela arreata apregoando:—Ha por ahi quem
tenha louça para vender?—O Junqueiro que
foi procurado um dia no hotel, em Salamanca:—Está
cá o grande poeta Guerra Junqueiro?—Não
conheço,—disse o porteiro.—Mas elle
vem sempre para aqui. É um homem de
barbas...—teimou,
explicou o outro.—Esse es Guerra
el antiquario!...
[59]
Mas até no Junqueiro caricatural algumas linhas
são indispensaveis para completar o retrato.
Ha n'este grande homem uma mascara. Sinto
uma parte que se deve ao arranjo—e que é a
inferior e outra em que elle obedece á raça e que
é a mais viva, a que tem raizes nos mortos. Melhor:
o homem é sempre um tablado onde varios
phantasmas se despedaçam. Ha mãos que nos
puxam para o fundo, ha outras que nos procuram
levantar cada vez mais alto. Deus nos livre
de julgar os mortos!
*
Junqueiro, de volta do Bussaco, indignado:
—E não aparecer um doido, com um grande
martelo, que deite tudo aquillo abaixo! Qualquer
dia botam as arvores a terra e põem pedraria
até á Pampilhosa!
Dezembro—1907.
Encontro-o hoje em Lisboa, emagrecido, com
um velho casaco comprado n'um adelo, e muitas
rugas, finas como linhas, ao canto dos olhos. E,
como o José de Figueiredo lhe fale no Rodin:
—É verdade, passei um dia inteiro com o
Rodin, a explicar-lhe a sua obra. Disse-lhe: você
é um grande artista, mas exactamente, como
[60]
em todos os grandes artistas, a melhor parte da
sua obra é inconsciente. Porque em todos nós a
razão é nada, o que é grande
é o inconsciente.
Aquella cabeça que você tem no Luxembourg,
emergindo da pedra—é assim, é
aquillo... Mas
falta-lhe não sei quê de simbolico que ligue a
cabeça á pedra. Assim choca, é brutal.
É como
o
Pensador, a estatua que
está no Pantheon.
Toda a critica franceza tem tentado explicar
aquella estatua, e ainda ninguem disse as palavras
necessarias. Eu lh'as digo: Aquillo não é
o
Pensador, nem o
Pensamento: é o primeiro
pensamento em cabeça de homem. Dispa você
um tipo de verdadeiro pensador, Kant, o Dante,
por exemplo, e encontra um corpo deformado.
Porque o pensamento peza mais de que montanhas.
Devora. O que você fez foi uma besta,
um gorilha, um homem capaz de arrastar calháos:
Pois bem: inconscientemente fez uma grande
obra d'arte: o primeiro pensamento na cabeça
d'homem. Esse primeiro homem athletico, ao
deparar com o primeiro pensamento, essa flor
abstracta, fica dominado, subjugado: cae-lhe o
Atlas em cima e esmaga-o... E adeus, são horas
de partir para o comboio.
*
D. Carracida, professor de chimica biologica
na Universidade de Madrid, homem ilustre e que
[61]
conhece perfeitamente a literatura portugueza,
diz assim de Junqueiro... (D. Carracida fala
portuguez pausadamente).
—O senhor Junqueiro, grande poeta, é um
mistico... Está agora no misticismo. O senhor
Junqueiro e eu passeavamos juntos no jardim de
Villa do Conde, de cá para lá—e o
senhor
Junqueiro
prégava a piedade e o amor. Uns rapazinhos
acendiam balões para uma festa, e eu e o
senhor Junqueiro passeavamos de cá para lá...
O senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor,
e um dos balões cahiu na cabeça do senhor
Junqueiro,
que levantou a bengala e deu com ella
no rapazinho... E nós continuamos a passear
de cá para lá, e o senhor Junqueiro a
prégar a
piedade e o amor...
Março—1903.
Fialho não é este janota de palio rico, com
uma joia tão grande que parece falsa na gravata
de veludo. Fialho era outro estranho tipo, intratavel
e pobre, com o pêlo ralo e a bocca enorme
cheia de sarcasmo. Um principe de gabinardo,
que fazia cahir as peças do alto do galinheiro, a
um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atonita
de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião,
[62]
que deslumbrou de sonho e atascou em sonho.—Fialho!
Fialho!...—Esses aplaudiram-no e
amaram-no... Esquecidos do frio e da pobreza,
não despregavam os olhos d'aquelle sonho
desconforme.—Fialho!
Fialho!...—Depois sumia-se
n'um terceiro andar, ou procurava os pobres
que não pedem: só a mão sae da noite e
implora.
Havia uma velha—nunca mais me esquece—alli
á porta do Monte Pio, que fazia parte do
muro alto e espesso, e a quem elle, ao dar-lhe
esmola, lhe afagava a cabeça... Depois, amargo,
feroz, insuportavel, eil-o tornava com sarcasmos,
transtornando as figuras decorativas, cheias de
veneras, que á sua voz desatavam ás cambalhotas
como palhaços. Vi-o exasperado, vi-o atordoado
de phrases, como quem quer fugir ao
proprio phantasma. Vi-o mergulhar n'uma absorpção
dolorosa, e desaparecer na noite em correrias
que duravam até de manhã pelos bairros
escusos ou pelas azinhagas de crime, n'um debate
perpetuo de que sahia livido, exhausto, e
com a mascara transtornada. Este que fala do
seu vinho:—Livros?... O que eu trato de editar
é um vinhinho branco lá de
Cuba...—este, que
vem, de quando em quando, a Lisboa deslumbrar-nos
com um novo e horrivel fato, é outro
Fialho, que talvez tenha saudades d'essa vida
absurda de outros tempos...
Fialho! Fialho!... Pronuncio este nome e
diante de mim desfila o assombro, pamphletos, a
[63]
obscenidade e o genio—farrapos arrancados a
ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes—o
estoiro
d'uma bexiga d'entrudo—ironia e esgares.
E logo gritos! e agora gritos!... Ouço a dor, sinto
a dor, sinto-a sempre atravez da forma imprevista,
d'uma audacia e d'um rithmo incomparavel,
escorrendo sonho, aflição, miseria, sinto-a
até nos
impetos de máo gosto, nos pontapés aos leitores
surprehendidos e irritados. Está aqui diante de
mim aquella bocca enorme, aquella figura de gabinardo
e chapeu molle que nas noites de tristeza
e abandono me dizia:—O que eu sofri! o que
eu sofri!...—Vejo-o sempre invejar o barqueiro
louro e sardento, de que fala nos
Gatos, bello
como um ephebo á prôa do seu barco.—Como
eu queria ter saude e ser forte!—Deu-lhe
Deus o mais rico quinhão que imaginar se
pode, a lingua incomparavel para exprimir a chimera
e a dor, e, esse macaco sem fé, esbanjou-a
com o mais absoluto impudor: serviu-lhe para a
chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo,
riu-se de tudo. As descripções perderam a
proporção,
as figuras a realidade, transformadas em
figuras de dor ou de grotesco; a propria cidade
resurgiu a uma tinta livida de antemanhã, com
a casaria a escorrer vicio e aspectos tetricos...
É isto sim, mas isto creou-o elle de pobreza e
desespero, creou-o de gritos que nunca ninguem
lhe ouviu.—E maior! ficou maior! A sua obra
só tem outra que se lhe compare, a de Camillo.
[64]
Exigem-lhe um livro harmonico—
Os
cavadores. Porque é que toda a gente reclama dos
outros
aquillo de que elles são incapazes? A obra de
Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e
enorme. Fialho via os pormenores atravez d'uma
lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando
genio á propria obscenidade. Nunca conheceu
Barjona, nunca viu Barjona, e, com duas ou tres
anecdotas, creou uma figura com um relevo que
falta ao mediocre Barjona da realidade. Precisou
sempre de se exagerar para se encontrar. Sacrificou
o seu melhor amigo a um dito, é certo,
mas começou por se sacrificar a si próprio. Foi
sempre o primeiro a sofrer. Houve tempo em
que alguem o definiu um doente com inveja
das doenças dos outros... Desatou então a
gargalhar
com lagrimas nos olhos. Perdeu o pé.
Arrancou as azas disformes ao Sonho e rojou-as
com maldade no enxurro.—Encharcou-as de
lama e empoou-as de estrellas... O vestido ficou
mas era o d'um espectro... Não nos podemos
medir todos pela mesma craveira. Fialho tem de
tudo na alma: a casa de hospedes, a existencia
reles d'estudante, a pobreza, as mil saburras, os
pequenos nadas que gastam, desgastam e transformam,
e uma alma vibratil, um feixe de nervos
(capaz de tempestades que se domam com uma
palavra) ligado a uma enchente de sonho e a
um orgulho doentio, como os que sentem dentro
de si, e o suportam, um mundo desconhecido e
[65]
nunca dantes navegado. Fialho, se o virassem
do avêsso, escorria ternura... É tambem um timido
capaz de todas as audacias, e que sae da
doença e do isolamento com desespero e escarneo.
Esta figura tão conhecida de todos nós,
não
é a exacta expressão da sua alma. Ainda hoje
ninguem se entende...
Eça de Queiroz.—Desenho de Antonio Carneiro.
Silva Telles, por exemplo, conheceu um estudantinho
aplicado e mediocre, que se chamava
José Valentim Fialho d'Almeida; ha ainda talvez
quem se recorde d'um moço de botica reservado
e triste; e, o que é mais extraordinario, de outro
Fialho respeitoso, que não podia suportar o
exagero alheio, e d'outro, noctambulo e feroz,
com risadas estridulas de sarcasmo—e de outro,
de outro maior, de outro espectro, que
vem aqui sentar-se a meu lado na sua tragica
mudez. No fundo talvez tudo aquillo fosse dor.
No fundo, bem no fundo, quando irrompia n'uma
phrase cruel, não era aos outros que dilacerava,
era a si proprio que se dilacerava, e tão a serio
que todos o viamos sangrar. Reparem: pouco a
pouco a figura range de dor. Arfa atravez da sua
obra. É o filho do professor
d'instrucção primaria,
d'aquelle homem severo, de quem dizia baixinho:—O
meu pae foi duro! o meu pae foi tão duro!
Era um homem sem ternura...—É o praticante de
botica alheado e transido, o neto deformado de
cavadores, que inveja a sociedade distante, e que
só aos impetos se atreve a enchel-a de sarcasmos.
[66]
Que inveja o grande escriptor, o desgraçado
Fialho, o homem de genio que passou a vida a
fazer chacota das veneras, das academias, das
elegancias, dos grotescos cobertos de patacos—que
lhe faziam falta? Tanta tinta, tanto desespero
calcado e recalcado, tanta contradição e pobreza,
e uma lucta de noites e noites de que sae amarfanhado—e
com paginas soberbas! Mas tu não
vês que no dia em que te roçares por elles
estás
perdido, como no dia em que a cobra perde o
veneno? Vae-se-te o melhor do teu genio...—Não,
eu rio-me, eu sofro...—Tantas paginas bellas!—Se
soubesses como isso se paga!—Então
explica-te...—Não posso, não sei.
Até
dos idolos
postiços que deito abaixo me ficam saudades...
Nem eu proprio sei o que quero.—Pobre
Camillo, que estoirou a cabeça de desespero, pobre
Anthero, exilado e em debate com uma sombra
com que não podia arcar; pobre Fialho, pobre
cavador de genio, em perpetua discussão
com os seus mortos, em lucta comsigo e com os
outros e no fundo um reverente—foi-o sempre—sahindo
em farrapos d'este inferno a que se
chama a vida!...
Da sua existencia oculta faz parte uma figura
de dor calcada e recalcada, sobre a qual
outra se encarniça com desespero. Talvez seja a
verdadeira... Contentemo-nos em fixar duas ou
tres aparencias, apontando n'este canhenho algumas
anecdotas frivolas... Se elle podesse gritar
[67]
gritava ainda. D'essa figura contraditoria restam
farrapos—mas que farrapos! d'essa lucta suprema
existem vestigios, que nunca encarei sem
espanto... Vio-o algumas vezes ao amanhecer,
n'um 3.º andar do Arco da Bandeira, quando
elle cahia exhausto sobre a banca de tortura, á
luz d'um candieiro de petroleo, com um frasco
d'alcool ao lado e o cobertor enrodilhado nos
pés. A mascara livida estava de todo mudada.
Era outro! era outro! Surprehendi-o em noites,
nos giros sem destino pela Graça, pela Penha,
pelo Monte—quando o seu dedo apontava
boqueirões de treva, tropeis de casaria, sitios
ermos onde duas ou tres oliveiras torcidas se
ajuntam para concertar um crime, ou, peor ainda,
nas horas de amargo descalabro, em que, dorido
e sem phrases, procurava fugir de si proprio para
muito longe. Não queria então que ninguem o
seguisse nas caminhadas que duravam até ao
dia—elle e a dor, elle e a noite! Amigos, silencio...
*
—O que eu sofri!—dizia elle.—Tiveram-me
preso oito annos n'uma botica alli na Bemposta,
ao pé da Escola do Exercito, na idade em que
queria viver. Estragaram-me a vida, encheram-me
de desespero. Quando me soltaram não imagina
a minha alegria! Podia ter sido outro... Ter
saude, ser forte!... O que eu sofri! D'uma vez,
[68]
no
Reporter, o Martins mandou-me
escrever um
artigo sobre uma kermesse de fidalgas. Fui e fiz
uma troça, e elle rasgou-me os linguados na
cara. Para me vingar, tirando um bocado ás noites,
escrevi um artigo formidavel para publicar
em folheto. Era na occasião em que essas peidorreiras
arranjavam um bazar para os pobres, que
rendeu oitocentos mil reis. Ora eu descobri por
acaso um gallego, que se juntava com outros e
tiravam todas as semanas meio dia de ganho,
para irem ao domingo ao hospital dar cigarros
aos doentes, penteal-os, cortar-lhes as unhas,
untar-lhes a cabeça com banha de porco. É um
velho, de barba de passa piolho, que está sempre
no largo de Camões. Homem de poucas falas.
Tratou-me mal. Tive prompto o folheto em que
comparava essas mulheres, cheias de snobismo,
com adulterios e infamias, com esse santo desconhecido...
Imagine... Perdi o artigo.
E depois, falando da mulher Oliveira Martins:—Não
era a mulher que convinha áquelle homem.
E elle subordinava-se-lhe. Foi ella que o
fez confessar á hora da morte. Contou-me o
Sousa Martins que a sacudira de ao pé de si ao
morrer...
*
Fala do livro
A Cloaca, um d'estes
livros que
se sonham e nunca se chegam a escrever:
O primeiro capitulo está feito: é uma festa da
[69]
alta sociedade no claustro da Batalha... Aproveito
a epoca do Burnay e do marquez da Foz,
a lucta da finança, quando o Foz tinha palacios
e o Moser carro a duas parelhas. Deram-se festas
esplendidas... Tenho as figuras todas, homens
de negocio e jornalistas, o Mariano e o Navarro...
Um dia alugam um comboio especial e vão dar
uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia
formidavel, com mulheres da grande roda, politicos,
literatos, e, dentro do claustro, entre a
grandeza e a severidade d'aquellas pedras, caem
de bebados e mijam pelos cantos, nos tumulos.
O principe tambem lá está, com o conde de
Maricas—fedes:
no fim do banquete, á sahida, a
babar-se, escreve nas paredes monumentaes esta
palavra obscena: p... Os outros riem-se, as mulheres
aplaudem. Fora a multidão apupa. Outro
capitulo ha de ser a noite em que os jornaes
apregoaram em suplemento o escandalo Foz e
a sua prisão:—Foi n'essas horas—dizia a
marqueza—que
os cabellos se me puzeram brancos
da noite para o dia.
*
Nunca terminou outro livro
A Quebra,
que
chegou a trezentas paginas impressas, no editor
Costa Santos. Tinha capitulos admiraveis. Acabou
por o inutilisar:—A minha dificuldade é a falta de
proporções. Perco-me n'um incidente, e quando
[70]
mal me percato estou em quatrocentas paginas.—Sei
tambem que escreveu alguns capitulos d'
Os
Cavadores. Talvez d'
Os
Ceifeiros pertencessem a
esse livro, em que elle queria pegar no homem
do campo e leval-o, sempre explorado, desde o
baptismo até á morte...
*
Inventou este nome para o conde de Arnoso,
a
rainha Draga, e diz do retrato a
oleo que o
Columbano lhe pintou:
—O Columbano é tão cortezão
que lhe
poz
um velho olho do Eça de Queiroz.
*
Contemplando o cadaver do Cardia:
—Só aos quarenta anos é que se sabe o
que é isto!
Isto é a morte,
á qual tem horror, assim
como á velhice.
*
E falando a proposito do Cardia:
—Eu tambem sou assim... Ha dias em que
ninguem me arranca seja o que fôr da cabeça.
Sinto a mesma impressão de vasio que o Cardia
sentia. Depois escrevo por impetos uma pagina,
pedaços destacados que me matam de desespero
para ligar. E se não escrever logo, passadas
horas já não posso, não sei...
Varreu-se-me tudo!
[71]
*
Está furioso com a inauguração do
monumento
ao Eça. No fundo nunca o pode vêr: faltou-lhe
o carinho, a consideração—e isso
maguou-o
muito—que rodeou o grande escriptor
dos
Maias. Elle proprio diz: ganhou
sempre a
trabalhar menos que um pedreiro. No jornaleco
A Tribuna escreveu em dois numeros
successivos,
sem assignatura, as seguintes notas com o titulo
o
monumento
Já noticiamos n'outro numero
do nosso jornal com
todos os seus detalhes e pormenores, como foi a festa
d'inauguração do monumento a Eça de
Queiroz. Damos
hoje um reflexo do humor da multidão que assistiu ao acto.
Porque, emfim, a nosso vêr, tudo é documento para
a historia.
*
—
Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diaphano
da phantasia. Dizem os amigos que n'esta frase se
alegorisa
a obra de Eça. Mas olha cá. Estando a
Verdade completamente
nua do ventre para cima, e só rebuçada d'ahi para
baixo, o que sob o manto da fantasia se guarda é indecente.
—Ahi está a razão porque a alegoria
é
flagrantissima.
*
—Tu, se fosses casado, davas o
Primo
Bazilio a lêr a
tua mulher?
—Lá isso não. Mas não tinha
a mais
pequena duvida
em o dar á tua.
[72]
*
—Que lhe parece a
Verdade do
monumento?
—Um calix de
bitter para fazer
bocca ao
Chat Noir,
que fica em baixo.
*
—Condessa, de todos os cavalheiros que fallaram, qual
d'elles é o conde d'Avila?
—O conde d'Avila são todos.
*
—Este Monteiro Milhões, que inconveniencia!
Consentir
que das suas cavallariças um burro esteja a interromper
os oradores!
—Condessa, é o echo.
*
—O que eu n'esta consagração sobretudo
admiro,
é o
grande coração do conde d'Arnoso. O Municipio
devia premiar
tão nobre musculo.
—Com uma urna, como se fez ao D. Pedro IV?
—Com uma urna não. Com uma travessa.
*
—Seria interessante conhecer todos os tramites do
trabalho de creação do esculptor, até
ao momento da estatua
apparecer.
—Ah, eu lh'os conto. Primeiramente, o Carlos Mayer,
na sua qualidade de judeu, queria uma descida da Cruz, e
por isso, o grupo do Eça e da Verdade cheiram um pouco
á scena da Paixão. Veio depois o Arnoso a lembrar
se dessem
ao monumento reminiscencias mais contemporaneas,
ex.: o Genio perguntando á Verdade quantos dentes queixaes
queria tirar. D'esta dualidade d'inspiração
resulta o
mysterio, que faz com que o
monumento seja o que v. ex.
a
quizer, sendo o melhor—não perguntar.
[73]
*
Apparece no estrado o Conselheiro António Candido.
—Silencio! Vae fallar o maior orador da Peninsula.
—«...[*espaço?]no povo portuguez ainda
ha o
grande brio dos
feitos altos,
(sussurro). Se
ámanhã esta Verdade tão núa
fôr ter ao Pelourinho, ninguem sabe até onde o
amor da
Pátria ha-de crescer!
(ovação).
*
Interview com o conselheiro Barahona.
—V. Ex.
a leu alguma vez o
Eça?
—Ler, nunca, mas conheci-o em Evora, delegado do
thesouro, e até por causa d'isso vim ao Principe Real
ver-lhe um drama de ladrões, que estava mesmo escripto
ao meu sabor.
—Mas isso não é o Eça de
Queiroz,
é o Eça Leal.
—O que?! Não é o mesmo? Ai, os meus
ricos dois
contos de réis!
*
Interview com o Snr. Monteiro
Milhões.
—V. Ex.
a que pensa do monumento?
—Penso que tenho de voltar a frontaria da minha
casa, para o Theatro D. Amelia. Imagine que os meus netos
estão constantemente a perguntar quem é aquella
senhora
sem camisa. Já o outro dia lhes disse que era D. Maria II,
mas com estes frios, os pequenitos, educados na compaixão,
não me largam para que lhe mande dar um cobertor.
—E que impressão faz das suas janellas a barriga
da
Verdade?
—Aqui entre nós
(arregalando o
olho) é uma d'aquellas
barrigas que está mesmo a glorificar a
«sensação nova»
(irritado). Não era mais
condizente á minha camoneana,
transferirem o epico immortal aqui para o meu largo, e
levarem
aquelle senhor para as
proximidades do Bairro Alto?
—De modo que V. Ex.
a, irritado, nem
chega
á janella?
[74]
—Emquanto a Camara
não
mandar pôr, de roda da
figura um resguardo pintado de cinzento.
*
—Tu ouviste os discursos. Que opinião por elles se
pode ter da capacidade mental dos oradores?
—Metade d'aquelles senhores não leu o
Eça, e a
outra
metade não tem lucidez para o julgar. Isto foi uma festa de
«snobs»; o monumento que ali está,
não foi erguido á memoria
do Eça litterato: é a
glorificação do conde Reinaldo
e da Alfonsine.
—E se o flamejante garoto agora cá tornasse?
Mettia-os
a todos n'um romance endiabrado.
—Já estão mettidos. Mas o que tu acabas
de
vêr é os
Maias em quadro vivo.
*
Duas guapissimas, na turba.
—
Pero Eça de Queiroz, quien
és?
—
Un caballero que escribió del
minuete.
*
G..., antigo companheiro de Fialho, sepultado
hoje no fundo d'uma biblioteca, diz assim
a proposito da livraria do grande escriptor
[2]:
«Eu chamo a estes livros as onze mil virgens.
São apenas quatro mil volumes ou pouco mais,
mas—vae surprehendel-o esta minucia—estam
quasi todos por abrir. Ha aqui Balzac e Zola,
Eça e Ibañez, os Goncourt e Ponson du Terrail.
[75]
Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca.
Esta litteratura de costureiras e guarda-portões
era para as grandes horas amarguradas».
Era. A elle e a outros grandes espiritos basta-lhes
o proprio drama para os amargurar. Anthero,
nos dias aziagos de Villa do Conde, deitado
n'um sofá, só lia Gaborieu. Para tragedia
chegava-lhe
a sua.
«O Fialho tinha uma admiração
extraordinaria
pela obra camiliana. Imagine que até n'um
livro da mocidade poz uma dedicatoria a Camillo,
em que dizia: «acabo de lêr toda a sua
obra».
E quasi nada lêra a esse tempo... Afora as obras
portuguesas, na biblioteca de Fialho só ha volumes
em espanhol e em francez. Nos ultimos anos
merecera-lhe uma atenção particular a literatura
espanhola.»
E a proposito de Fialho intimo assevera:
«O Fialho, que tinha grandes rasgos generosos
e perversidades femininas—repito-o não era
bem o Fialho que se vê atravez dos seus livros
admiraveis. Era o
outro. As suas
irreverencias
das paginas rubras eram fundamentalmente apenas
o odio do plebeu que inveja o fidalgo. Sim,
porque ele invejava a sociedade na sua fase demolidora
só porque não
tinha nela um lugar. Uma
infantilidade de homem de genio.»
E explica:
«Como se sabe o Fialho não tinha meios de
fortuna nem ascendencias nobres. Fez a sua vida
[76]
ali no «Martinho», vivia de noite e era um
blageur
incorrigivel, e apezar de valer bem os seis
milhões de portugueses que existem sobre esse
solo, a Monarquia, o Paço, os conselheiros, não
lhe achavam
qualidades para triunfar
nessa sociedade
formalisada e cheia de convencionalismos.
Está explicado o Fialho dos
Gatos—foi a
revolta. Meteu-lhes medo—oh sim, um medo
terrivel com as suas
blagues
sangrentas—fazia-os
passar de largo, mas ainda mais se afastou do
ancien régime. Entre os
republicanos, onde se
lançou de alma e coração, sentiu-se
depois desconsiderado.
O Fialho continuava a ser... o
blageur.
Nunca lhe deram um cargo de confiança.
Que pena teve o Fialho de não ficar na Comissão
da subscrição nacional a quando do
ultimatum!»
E termina com esta nota inedita:
«Sabe que o Fialho era um orador. Nunca
ouviu dizer talvez que elle fizesse um discurso?
Mas ouvi-lhe eu muitos, todos os dias, durante
longos annos. A sua timidez invencivel nunca o
deixou falar em publico apesar de, como ninguem,
sentir a necessidade do aplauso. Muita
vez me disse que desejaria ser actor, ser um
grande actor, para ouvir bem de perto o som
das palmas com que o saudariam, para viver intensamente,
ruidosamente, uma grande hora de
triunfo. Tinha coisas o Fialho... Registe esta
nota curiosa pois muito poucos a sabem: era soberbo,
orando alucinado para um auditorio de
[77]
tres amigos intimos no alto da Avenida, ou noite
alta, á beira do Tejo.»
*
Á figura que se senta ao pé de mim falta-lhe
talvez a rigidez das estatuas. O gabinardo, reparem,
está amachucado e encardido, a phisionomia
retrae-se no escuro e só a bocca se salienta,
enorme e prestes a escorraçar-nos com gritos e
apupos. Atravessou a vida: foi injusto, foi cruel
por vezes, foi amargo. Desatou a rir para não chorar.
Atordoou-se com sarcasmos e phrases. Foi
incoherente. Obedeceu ao impulso. Não se pôde
furtar a sentimentos que veem do fundo dos fundos
e nos deixam prostrados, reclamando da morte
que nos apavora—enfim! enfim!—o primeiro dia
de descanço bem ganho, ao termo desta discussão
que nunca cessa e em que nos despedaçamos,
sem nos comprehendermos a nós proprios quantos
mais aos outros... Toda a sua alma, que deixou
fragmentada em varias figuras, em todas as
paginas dos seus livros, nos retratos, nos tipos,
nas paisagens, no Manuel, em Guilherme de Azevedo
ou na manhã do Tejo, se condensa enfim
n'esta bocca amarga capaz ainda de nos fulminar
de colera ou de acusar bem alto a vida que lhe
foi impiedosa... É assim que te vejo ao pé de
mim,
com detrictos, escorrencias, lama, mas tão grande,
tão vivo, tão humano, que para sintetisar a
[78]
tua vida, só me servem as palavras com que um
espectador ilustre sauda o Hamlet no fim da
representação:—Boas
noites, meu principe, és um
homem, o homem e todo o homem!
4 de Janeiro—1908.
Morreu ante hontem d'albuminuria o pobre
D. João da Camara. Tinha feito annos no dia 27.
Conheci-o sempre, até nos maiores frios, de casaco
d'alpaca, a sorrir... Antes de acabar sahiu
do torpôr e, em dois acessos de delirio, descreveu
o fim do mundo com terror e espanto. Depois
rezou, disse versos seus, e ficou, n'um ultimo
suspiro. Remexeram-lhe nos papeis e nos bolsos:
só lhe encontraram recortes de jornaes, anuncios
de desgraçados pedindo esmola.
Mezes depois ainda os pobres o procuravam
nos sitios do costume:—O senhor D. João? o
senhor D. João?—Morreu.—Morreu!
morreu!...—E
partiam a chorar.
Agora é que eu sinto todo o encanto d'esse
homem falando baixinho, a olhar a gente por
cima das lunetas. Andou mal vestido. Não soube
o valor do dinheiro. Desceu aos desgraçados com
uma ternura e uma simplicidade de fidalgo e de
santo. Nos ultimos quatro annos ganhou alguns
tão vivo, tão humano, que para sintetisar a
[79]
contos de reis: deu tudo, levaram-lhe tudo. Até
de madrugada o procuravam para lhe pedirem
dinheiro emprestado. E nunca o ouvi queixar-se,
nem dizer mal de ninguem. Foi um poeta e um
santo. Deixa, alem de algumas obras admiraveis,
uma peça incompleta, com poucas scenas
escriptas—
As
comadres de Panoia, e talvez se lhe encontrem
tambem apontamentos de outra em que
tanto falou e em que tanto sonhou—
O
Sermão
da Montanha.
18 de Março—1900.
Faz hoje annos que morreu Antonio Nobre.
Foi uma figura inconfundivel de poeta. Por mim
nunca encontrei tambem rapaz mais lindo. Um
pouco afectado talvez... Em pequeno ia com
Eduardo Caminha enterrar os seus versos no
jardim solitario do Palacio, e pedia, com os olhos
limpidos e sofregos, uma Biblia para repousar a
cabeça quando o levassem no caixão... Estou a
ve-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela
janella da casa á beira rio, de Mattosinhos, onde
Alberto d'Oliveira já imperava, esse mesmo Alberto
d'Oliveira, esperto e tão dominador, que,
quando entrava em casa dos outros, começava
por os convencer a desarrumar os móveis,
para os arrumar de novo a seu modo... Antonio
[80]
Nobre usava uma abotoadura de cabeças
de pregos e sorria com um modo e um ar
de ternura e desdem. Fugiam d'elle antes de
publicar o
Só; os poetas
do seu tempo odiaram-no
depois de publicar o
Só.
Ser diferente
dos outros é já uma desgraça; ser
superior aos
outros é uma desgraça muito maior. Viveu
efectivamente
isolado. No concurso para consul quizeram
reprová-lo: foi preciso que Alberto d'Oliveira
explicasse ao jury quem era o poeta Antonio
Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e
até os seus amigos mais intimos lhe fugiram. Entrou
na morte como tinha vivido—só. Até
Alberto
d'Oliveira teve de interromper uma amizade
de irmão quando se encontrou diante d'este dilema:
ou deixar-se dominar por elle, que o tratava
como uma creança, ou feril-o em pleno
coração:—A
nossa amizade é de tal ordem que não
admite que lhe desçam dois ou trez pontos á
craveira. Ou mante-la ou quebra-la.—Quebrou-a.
O ilustre escriptor possue d'esse tempo um caixão
enorme, tão pesado como o que levou o
poeta para a cova, com as cartas afectadas e
vivas de Antonio Nobre, as cartas que tem
obrigação
de publicar, com um prefacio que só elle
pode e deve escrever.
Digamol-o, digamol-o... No fundo detestaram-no,
detestaram-no todos. Não lhe poderam
perdoar a impertinencia, o desdem, o genio. Era
um sêr diferente. Não agradava a ninguem.
Só as
[81]
mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu
a vida pratica. Tinha a consciencia do seu valor,
e uma superioridade que se não podia aturar. Estavamos
todos mortos por nos desfazermos d'esse
ser aparte, d'esse eterno consul sem consulado,
d'esse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam
e que nos fazia sombra. Mas debalde o
arredamos: houve uma coisa nova que passou
no mundo e que ficou no mundo—que nos ficou
na alma...
Antonio Nobre no
caixão.
Agora estamos todos apaziguados, todos podemos
esquecer a superioridade, a afectação e o
desdem infantil de Antonio Nobre.
Foi para a cova completar trinta e tres annos
n'um dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta
insolente como um principe e adoravel como
uma creança. Quantos estavam alli á beira do
tumulo? Meia duzia escassa, o Frei, o Justino, o
Eduardo de Souza, eu—e quem mais? quantos
mais? Os jornaes deram a sua morte em duas
rapidas linhas. Respirou-se.
Hoje é um dos poetas portuguezes com mais
admiradores. É um poeta de simpathia. Nunca
teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque
não misturou, como nós todos, o sonho com
a vida pratica. Ao contrario, raros homens terão
posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez
mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a
si proprio se encontrou. Viu o mundo e nunca
assistiu a outro drama que não fosse o da sua
[82]
alma. E poentes, arvores, estrellas ou pedras,
entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum
outro exprimiu d'uma forma tão sua o universo.
Que universo dirás? O meu? o teu?...
Não, o que elle descobriu, scismando como um
navegador, á prôa do seu barco... Por isso nunca
hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular
figura de poeta, que uma vez atravessou a
terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se
logo no sepulchro.
30 de Janeiro—1911.
Janota e coçado, com uma flor na botoeira
e a fumar um charuto de dez reis, ahi vae o
poeta Gomes Leal. Quem não viu n'outro tempo
este homem extraordinario, não conheceu um
verdadeiro, um authentico poeta satanico. Passou
nas ruas de chapéo alto, falando com intimidade
ás estrellas e tocando no céo com as guias do
bigode. Escreveu as paginas das
Claridades do
Sul, da
Traição e do
Anti-Christo. Viveu alheado,
como é indispensavel a quem convive todo o dia,
tu cá, tu lá, com o sonho. Cantou a plebe,
destruiu
os deuses, arremessou sarcasmos aos banqueiros,
satirisou o grotesco, e tocou-nos hombro
com hombro, apontando altivo o cravo vermelho
da lapela:
[83]
—Amigos, as flores são as
condecorações
dos poetas!
Prodigalisou-o a caricatura: teve na vida misterios
perturbantes: um dia acometeram-no no
comboio, em Espinho, quando regressava do
Porto, até onde seguira a rainha Maria Pia, depois
de lhe atirar uma rosa escarlate, que arrancou
da botoeira, em plena praça, com um desdem
supremo pela burguezia endinheirada... Sim, foi
este que teve a gloria da cadeia, que cantou as
estrellas, Jesus e Mephistopheles, foi este mesmo
homem, a quem falta roupa na cama no inverno
glacial, e que sorri com humildade para
nós, avelhantado e timido... As janellas não
teem vidros, a roupa é pouca, mas tu viveste o
que não vive um rei, e o imperio deslumbrante,
que creaste á custa de dôr, cheio de obscuridades
e de genio, com catadupas d'oiro, como
nas lendas, e palidas figuras; essa mescla de
gritos, de paixão; esse sonho confuso e immenso,
pertence-te, e não ha quem t'o roube, mesmo
com as janellas abertas de par em par. Deixa
entrar o frio—e sorri...
Agora vae todas as manhãs ouvir missa á
Pena ou ao Resgate. É um homem encolhido e
friorento, que a banalidade tem gasto e desgasto
como as moedas fóra de curso que se fartaram
de correr de mão em mão, e ainda ha
dias o encontrei no Porto, n'uma manhã de sol,
[84]
de casaco de borracha e colarinho suspeito. Ia
pregar á Associação Catholica, e
atravessava a
Praça entre os aplausos dos palidos sachristas,
que o rodeavam como quem força um deus, sem
repararem que só levavam um simulacro. No sonho
de outrora não ha mãos que se atrevam
a tocar... Elle sorria enlevado, com o eterno charuto
ao canto da bocca.
A vida feroz torna-nos grotescos. Consegue
tudo. Deforma-nos. O proprio sonho entra ás vezes
no dominio da chacota. Onde, porém, Garrett chega
ao ridiculo, com tres cabelleiras postiças, Gomes
Leal, de casaco de borracha e discursos de propaganda,
atinge o tragico... Eu bem sinto a tristeza,
bem sei, bem vejo o arranco, bem palpo
a dôr. A figura que cheira a bafio como se
sahisse do fundo do armario do passado para a
plena luz, faz rir e faz chorar. No esforço para
não ir ao fundo, no gesto de naufrago que se
apéga com desespero, quando a dôr estala por
todas as costuras, ha um rictus de clown. Olha
lá: o peor é tu ousares tocar no que ha em
mim de mais sagrado, o peor é tu transformares-me
o sonho n'uma noticia do
Seculo, o
peor de tudo é tu atreveres-te a tocar n'este
jardim da vida—e, peor ainda, é que eu continuo
a sorrir como se possuisse o antigo thesouro
de Ali-Baba. Mais um momento, outro
passo e reduzes-me á condição de
trapo. Deitas-te
commigo, acordo comtigo ao meu lado, e
[85]
ha occasiões em que até o som da minha voz me
sobresalta. Por ora debato-me, por ora sinto o
coração opresso, fingindo que não
existes, mas
ha já terror no meu sorriso, e, quando me ouço,
ouço-te tambem os passos. Sei perfeitamente que
o momento terrivel depende de um unico traço
de separação—agora, já,
d'aqui a
bocado...
Estás por traz de mim e o minuto grotesco
será quando eu deixar de te conhecer e quando
sentir a tua mão gelada... Estás por traz de
mim! estás por traz de mim! Bem sei que estás
por traz de mim, e que vaes ser a minha companhia
até á cova. Confesso-te: o que me aterra
não é o momento que passou, nem o que ha-de
vir—é o momento, que vale um seculo, em que
tenho de galgar o abysmo. Por ora teimo, por ora
ainda digo:—A sciencia, meu rapaz, sabes o que
é? É um cifrão cortado.—Mas
como o
digo!...
...Ha um momento tetrico nos
Espectros em
que um novo personagem se introduz em scena.
Desde o principio que o sabemos atraz da frandulagem
de papelão: está alli presente, não
como
uma figura de theatro, mas monstruoso, real e
patente, como o Destino, á espera de intervir.
Desde então perco o fio da peça, não
sigo mais
os bonecos que se agitam no tablado, só ouço o
meu proprio monologo, e quedo-me d'olhos atonitos
n'outro espectaculo atroz. Tenho a certeza
absoluta de que não ha forças humanas que lhe
detenham a marcha. Começa então a tragedia...
[86]
É este mesmo personagem que se intromete
na vida do poeta. As palavras conteem ainda e
sempre as mesmas letras, mas até as palavras
mirraram. Esqueci tudo, troquei tudo pelo sonho,
e, quando tu quizeres, de mim proprio ficarei desconhecido!
Como eu comprehendo agora aquella
phrase de outro poeta: «Sinto que não posso
trabalhar!
sinto que não posso trabalhar!» É com
esta angustia que te ouço os passos mais perto.
Já não é só a scena que tu
enches, é a sala toda,
figura invisivel, unico personagem do drama,
que te entranhas na alma dos espectadores. Emquanto
os bonecos teimam em pronunciar palavras
que não ouço, que não teem
significação
nem importam, tu levas-me, quer eu queira, quer
não queira, a sorrir com enlevo á propria
banalidade.
*
A casa em que mora Gomes Leal, na esquina
do palacio da Bemposta, parece arrancada a um
velho quadro de Velasquez, com a sua entrada
de pedra e um arco na escada. O soalho entreaberto
oscila, as janellas não teem vidros.
Conheço-a. Já lá morei ha annos no
mesmo
quarto que dá para um quintalorio, com duas
ou trez oliveiras carcomidas. Do buraco, onde
nunca chega o sol, sae um frio de morte. Bato,
a porta abre-se, o soalho range, e o poeta
[87]
surge com o velho chapeu ás trez pancadas, luvas
pretas—até de luvas escreve Gomes
Leal!—e
no quarto desagasalhado ha luvas por toda a
parte, por cima das mezas, entre os livros, penduradas
no tecto. O leito é um catre. Ao lado
um Christo, uma mezinha de pé de gallo, e no
soalho apodrecido, montões de jornaes e de livros.
Na parede, que ressuma humidade, um quadro
a crayon, com o vidro partido: o retrato
da mãe de Gomes Leal.
—Vivo só, não tenho familia. Minha
mãe
morreu-me e aqui estou como um orphão.
—Vive isolado sempre?
—Levanto-me cedo, vou aos templos. Depois
passo pelas bibliothecas e pelos livreiros e venho
para casa escrever. Almoço e janto onde calha.
Quando tenho bebo para esquecer, á noite escrevo,
deito-me cedo e durmo... Tenho trez livros
para publicar:
As memorias d'um
revoltado, continuação
da historia da minha vida,
O macaco de
Nero, estudo de Roma, e o livro em prosa
Cidade
do Diabo, onde trato da decadencia do mundo
moderno. Comecei tambem
Christo nos
infernos,
poema em verso. Conservo as minhas ideias religiosas,
que não são incompativeis com a republica,
e ficarei contente por ver realisado o sonho
de toda a minha vida, que acalentei como um
poeta, e que desejo que se não dissolva como
uma bola de sabão na cabeça d'um prego...
E queda-se n'um silencio amargo. A chuva
[88]
cae lá fóra. A noite e um frio, uma humidade de
poço, trespassam-me...
No seu genio houve sempre sincopes, falhas,
absurdos. Se tropeçou, ergueu-se sempre mais
alto. Aos trinta annos reage-se. Mas chega um
momento da vida em que a gente se sente transida
pelo ar do sepulchro e uma sombra desmedida
avoluma-se e sufoca-nos. Foi d'esse negrume,
que se chama a Morte, que elle ouviu
sahir uma voz cheia de ternura—a ternura que
toda a vida o envolveu—e que começou a falar-lhe
baixinho. N'esse momento Gomes Leal deixou
de viver no mundo da realidade para cohabitar
com um phantasma...
Setembro—1907.
Antonio Corrêa d'Oliveira, ossos, nervos e
a pelle necessaria para os cobrir—com um
chapeu alto e lustroso em cima—grande poeta,
com raizes profundas na natureza, tem na Beira
uma tia que passa a vida em dialogos estranhos
com as arvores e as pedras. E mal chega á noite
eil-a começa a cumprir o seu fadario: leva até
á madrugada a dar de beber indistinctamente ás
plantas do seu quintal e ás dos quintaes vizinhos,
[89]
n'uma aflicção, n'uma piedade que se estende
até
ás hervas ignoradas e ruins. Monologando sempre,
vae e vem,—que não fique alguma com
sede—com
o regador nas mãos, até que a manhã a
encontra
exhausta, feliz, encharcada até aos ossos
e ainda embebida n'aquelle sonho phrenetico de
ternura... Toda a emoção do poeta está
aqui,
do grande poeta que diz:—Sinto em mim uma
força da natureza... hei-de aproveital-a.—Os
avós deram cabo da casa. O pae ninguem o
arrancava ás suas arvores, e um tio, personagem
de Camillo, morreu cosido de facadas. A
mocidade do poeta foi tambem dolorosa. Chamavam-lhe
magico. Para não pezar á mãe escreveu
á raza n'um tabelião e foi proposto de recebedor
em Cezimbra, elle que nunca soube
sommar. Iam as mulheres dos pescadores pedir-lhe
perdão das decimas; e nunca na memoria
de homem se viu recebedor em semelhantes apuros,
perplexo diante dos papeis, dos pobres,
da desgraça, das contas e da sua propria alma!
Um dia gostou d'uma mulher e escreveu os
primeiros versos,
Ladainhas,—Eu
não sabia o
que eram versos, nem medir versos. Sahiu-me
aquillo... Troçaram-me tanto que estive para
endoidecer. Sabe o que me valeu? Um artiguinho
do Trindade Coelho no
Reporter.
Essas
palavras salvaram-me!
Corrêa d'Oliveira em 1903.
[90]
Janeiro—1911.
Passei a noute de hontem em casa do Fernandes
Thomaz, um velho bibliophilo, coleccionador
de autographos, de livros raros, de gravuras
antigas. Bom como o pão arruinou-se em
papeis velhos... Eis emfim um homem feliz,
suponho eu, entre as estantes que revestem os
muros, como a traça entre as folhas d'um pergaminho.
Ingenuo, surdo, com sessenta e tres
annos e coleccionador apaixonado de papeis velhos
ainda por cima—que sorte!...—De repente
pega-me nas mãos e desata a chorar:
—Tenho sido um martir!
Á roda muitos documentos, muitos alfarrabios,
muitos calhamaços preciosos. São duas,
tres salas catalogadas, onde tem livros e papeis
por toda a parte. A sua vida devia correr esquecida
e placida, sem sobresaltos nem duvidas, folheando,
rabiscando, anotando, sonhando sempre
em coisas faceis.
—Não imagina o que tenho sofrido! Sempre
gostei muito de creanças... Trouxe para casa uma
sobrinha, morreu-me de raiva nos braços. Minha
mãe um dia teimou:—Has-de casar.—Fiz-lhe
a
vontade. Casei. Minha mulher, ao fim de dois
annos, abalou levando-me quasi tudo o que eu tinha.
[91]
Demandas, processos—fiquei pobre. Agora
meu filho quer ir por força para a Africa.
E põe-se a chorar como uma creança, com a
cabeça branca pousada sobre os livros, os papeis,
as gravuras...—deante d'aquella
documentação
cerrada e
inutil, que tem sido a
razão da sua vida.
1 de Fevereiro.
Venho de casa do Fernandes Thomaz. Teve
um ataque apopletico. Está hemiplegico, deitado
n'um sofá, somnolento e tremulo. Nunca encontrei
bibliophilo que tivesse prazer em indicar, em
ensinar, senão este... É outro homem adoravel
que morre, mas felizmente não sabe que morre.
Á beira do tumulo ainda me pede que lhe arranje
um catalogo da guerra peninsular. E diz-me de
Theophilo: (estes homens dos papeis velhos nunca
se puderam vêr...):
—Pode crer que nunca passou necessidades
como elle diz. Conheço-o de Coimbra, morava
em casa do conde de Valença. Todos os mezes o
pae lhe mandava pelo correio duas libras em oiro
n'uma caixinha de madeira. Ora n'esse tempo
valiam tanto como hoje quatro...
PÓ
DA ESTRADA
Março—1902.
Este homem immenso e louro, o Alpoim, não
tem um minuto de seu: não descansa, não
pode. Escreve cincoenta cartas por dia, faz a
chronica do
Janeiro, corre ao
parlamento, intriga
nos corredores, enche uma pagina do jornal, recebe
toda a gente, encanta e domina toda a
gente n'um riso aberto:—Meu querido amigo...—e,
mal se fecha por dentro, arranca os ultimos
pêlos do bigode e cae exhausto, exclamando n'um
pranto:—Ai que filhos da p...! ai que filhos da
p...! Eu não posso! eu morro!—Nem para ser
rei de Portugal valia a pena semelhante esforço.
No fundo é um politico com este fito: o poder.
Mas alguma coisa o distingue dos outros que conheço,
do espesso Ferreira d'Almeida, por exemplo,
que exclama diante de mim sem pudor:—Hei-de
ser ministro porque quero mandar! gosto
de mandar!—É um fidalgo com talento, e tanto
serve um amigo como um desgraçado de quem
nada tem a esperar. O esforço é
identico.—Vou
[94]
ao inferno por um amigo...—Ha ainda quem se
lembre dum Alpoim de chapeu desabado e capa
á espanhola, mas o amor fel-o janota...
Na sua vida, como em todas estas existencias
de aparencia e lucta, ha um trabalho de sapa,
que quasi totalmente desconheço. Sabe tudo,
pode tudo com os seus e com os outros. O Hintze
tem por elle um fraco, o José Luciano entrega-lhe
nas mãos a meada politica:—Nada se faz
sem mim. Sei tudo!—diz muitas vezes com o
olho esperto a luzir. O Teixeira de Souza é o
seu amigo mais intimo. Uns temem-no, respeitam-no
os outros. Este que lhe sorri atraiçoa-o—e
elle fala-lhe amavelmente:—Não me podem
vêr porque lhes faço sombra. Eu sei... Mas ninguem
exija dos homens mais do que elles podem
dar.—Conspira. Tem nas mãos os mil fios da
emaranhada teia politica. Vae mais alto ou mais
fundo?... Não sei, mas é talvez a isso que elle
se refere quando afirma:—Ninguem sabe a que
portas vou bater!
Hoje conta o movimento de protesto quando
dos comicios contra o governo regenerador.
Reuniam-se já ha tempos alguns pés de
boi em casa de José Luciano, que um dia sae-se com esta:
—Bem, meus senhores, precisamos de acabar
com isto senão cahimos no ridiculo. A tomar
chá não fazemos nada. Que é que os
senhores
resolvem?
[95]
—A revolução! queremos a
revolução!—concluiram
todos.
—Eu disponho de seis mil homens.
—Vamos para a rua!
—Estamos dispostos a tudo, mas temos um
pedido a fazer a V. Ex.
a: é que se
responsabilize
a que a guarda municipal não atire sobre nós...
O José Luciano, a puxar pelo bigode, sem
sahir da sua pachorra ironica:
—Oh senhores, mas se eu dispozesse da municipal
não precisava dos meus amigos para nada!
—O José Luciano o que tem tido toda a
vida é sorte,—observa alguem do lado.
—Garanto-lhes pela saude dos meus filhos,
atalha logo o Alpoim—que é um homem
inteligentissimo.
E senão vejam como elle conseguiu
arredar e vencer todos os do seu tempo.
Ninguem luctou mais do que eu para a eleição
do Mariano a chefe do partido progressista,
ninguem!... E que succedeu?... O José
Luciano tinha em segredo conseguido pôr o paço
de seu lado. Na vespera da eleição o Mariano
disse-me:—Está tudo perdido, votem no
José
Luciano...—Se não o elegessemos, o rei nunca
mais chamava o partido progressista.
Sob aquelle aspecto de inalteravel bonhomia,
é um homem d'uma alta inteligencia pratica.
Muitos ao seu lado caminharam para o mesmo
destino, e elle, não sendo nem um grande jornalista
nem um grande orador, sem brilho mas
[96]
solido—e com caracter! com tenacidade e
caracter!—pouco
a pouco ficou sosinho em campo:
arredou-os todos.
Fui do seu meio e do seu tempo. O Fuschini
chamava-lhe com desdem:—Essa vil
alforreca...—Diz-se
que no salão dos Navegantes se
dava tudo o que se podia dar—e que não lhe
pertencia: logares, negocios e empregos. Talvez.
Mas se não teve a grandeza de resistir aos homens,
conteve os interesses fataes dentro de certos
limites. Não podendo ser nem um santo nem
um genio, manteve essa linha de superioridade,
chegando, mais tarde, a ser uma figura. Sentado
na cadeira de rodas, o velho obstinado, n'uma
sociedade a liquifazer-se, resistiu até á ultima,
e
adquiriu relevo e grandeza como se os alicerces
fossem de pedra. Foi dono do paiz, dictou a lei,
e, arredado e sempre lucido, leu no futuro pronunciando
algumas phrases que a historia terá
de registar...
Junho—1902.
Contava o marquez de Ficalho, pae deste Ficalho,
e que era vivo ainda ha quinze annos,
o seguinte caso, que mostra bem o medo que
D. João VI tinha a Carlota Joaquina. Um dia o
[97]
D. João VI, ia de sege para Cintra, Queluz, ou
não sei para onde. Ao lado galopava o Ficalho,
com dezasseis annos, cavalariço do rei. De repente,
ao longe, avista-se na estrada uma nuvem
de pó, e o rei, deitando a cabeça de
fóra
da sege, brada:
—Parem! para traz que ahi vem a p...!
A p...—era a mulher. As palavras são textuaes.
Fernandes Thomaz.
Março—1903.
Diz o Abel d'Andrade:
Dos oito mil contos de deficit, quatro mil
é a casa real que os gasta. Que ministerio tem
força para se impôr ao rei? Ambos os chefes
estão com medo ao João Franco...
*
Arroyo queria atacar o rei nas camaras. Houve
mosquitos por cordas para o dissuadirem...
*
Sabem quanto faz o Arroyo por anno? Dez
contos.
[98]
*
O rei foi aqui ha tempos para Setubal, e, depois
de jantar, bateu o fado com um malandrão.
O Duval Telles, no outro dia, ao jantar, aludiu
ao de leve ao caso, achando-o improprio. Á noite
encontrou na mezinha de cabeceira uma carta do
rei com estas palavras:
Dispenso-te do meu
serviço.
Seis meses não fez serviço; agora, antes da
rainha partir, pediu-lhe apoquentadissimo a sua
intervenção. Outra carta do rei com estas
palavras:
Entra outra vez de serviço, mas nunca mais
me dês conselhos sem t'os pedir.
Março—1903.
Alpoim:
—Antes de seis meses temos ahi graves acontecimentos...
—?
—Um governo fóra dos partidos, uma dictadura
feroz.
E a proposito dos acontecimentos de Coimbra:
—Em Coimbra existem sociedades secretas.
O governo sabe. Quando foi da espera do Carrilho,
tinham tudo combinado. Dois grupos fariam
descarrilar o comboio, apoderando-se dos
papeis que o Carrilho trazia e matando-o. Entravam
lentes e estudantes...
[99]
*
O Alpoim:
—O Mousinho d'Albuquerque antes de morrer
disse-me:—O unico homem com quem eu
poderia ser ministro era com o José
Luciano.—Dantes
dizia muito mal d'elle. D'uma vez estava
no Paço, no vão d'uma janella, a dizer cobras e
lagartos de José Luciano; o rei, um pouco afastado,
ouviu-o:
—Ó Mousinho cala-te.
—Se incomodo V. Majestade saio d'aqui.
—Não, podes estar, mas acaba lá com a
conversa.
*
—E porque é que o rei não gostava do
Mousinho?
—Se lhe parece! Vêr sempre o Mousinho a
seu lado, carrancudo, sem palavra, mas severo
como um censor... Irritou-se. Quem lhe valeu
mais d'uma vez foi a rainha.
Abril—1903.
O Adrião de Seixas, secretario do Banco de
Portugal:
—Já por diferentes ocasiões o Estado
tem
corrido
o risco de ir a pique. Houve mezes em que
[100]
quasi faltou o dinheiro para pagar á tropa, e
mais que uma vez o Banco de Portugal se viu
em transes para arranjar trezentos contos de reis.
*
Um architecto do Paço conta que a rainha
D. Maria Pia fuma constantemente charuto como
um homem, e atira as pontas para onde calha,
sobre os sofás e os tapetes. Atraz d'ella anda
sempre um creado de farda, com medo que
pegue o fogo, a apanhar as pontas. Anno passado,
antes de ir para o extrangeiro, mandou fazer
umas obras no Paço.
—E não volto sem estar tudo prompto.
Quando voltou nem foi vel-as, mas, dias antes
de ir outra vez para fóra, lembrou-se das obras—e
mandou deitar tudo abaixo.
—Não volto sem estarem concluidas.
As provas dos vestidos são um martirio para
as pobres costureiras, que mantém de joelhos
duas horas seguidas, pregando-lhe alfinetes.
Quando as vê cahir exhaustas, arranca tudo,
despedaça tudo...
*
O Alpoim conta:
O rei é muitissimo bem educado, mas não
gosta nada que ponham a rainha em primeiro
[101]
logar. Não se importa com o paiz e julga-se um
grande rei constitucional. Os ministros para elle
não existem: só ouve e atende o presidente do
conselho. É tão governamental que trata
delicadamente
os politicos quando estam na oposição,
mas não conversa com elles. Não é como
o
D. Luiz, que ás vezes fazia-se com os ministros
contra o presidente do conselho. Chegava a conspirar
contra o José Luciano, partidario da aliança
ingleza, com o Barros Gomes, que era pela
Alemanha. Ás vezes andava uma hora de braço
dado com o Mariano e Emydio Navarro, sem fazer
caso do presidente do conselho. E depois
d'elles sahirem, perguntava-lhe:
—Olha lá, quando é que tu
pões
fóra estes
gatunos?
O D. Carlos não é assim: para elle os ministros
não existem. Trata-os sempre por tu, menos
quando é da assignatura. Não conserva odios. E
fica contentissimo se os ministros descompõem
a oposição. Quando foi da
exhoneração do Mousinho
pelo Dias Costa, este quiz demitir-se e
queixou-se ao José Luciano:
—No Paço todos me fazem má cara.
O José Luciano disse-o ao rei, que protestou:
—Não, por mim não é verdade.
Quanto
á
rainha que a trate com todas as atenções, mas
que não faça caso.
E para reforço traz o caso Oliveira Martins:
O José Dias Ferreira nunca chegava a presidente
[102]
de conselho se o Martins tem cathegoria. Imaginou
que manejava facilmente o velho rabula—e
escolheu-o para taboleta. Enganou-se... O Valbom
ainda tentou organisar ministerio, mas o
Martins, sem manha politica, teimou no José Dias.
Pois ao fim de dois mezes era elle quem mandava
e que o queria alijar... No Paço, nem este
rei nem o D. Luiz, gostavam do José Dias;
apezar d'isso, quando o Martins, aborrecido, se
fingiu doente, e o José Dias se queixou, o D.
Carlos disse ao Arnoso:
—Olha lá, diz ao Joaquim Pedro—era assim
que elle o tratava—que se levante ou que se demita.
Isto não é vida.
*
Diz-se para ahi que o D. Carlos tem o habito
de mentir, e que pensa em restaurar a monarchia
no Brazil.
Maio—1903.
Os jornaes d'hontem contam que a Rainha D.
Amelia não quiz receber o presidente Loubet, por
escrupulos de consciencia. Como é muito religiosa
respondeu, quando lhe foram anunciar a visita:
—Viajo incognita.
—Peor fez ella na Italia. Estava em Napoles,
[103]
e o rei mandou-a convidar para ir a Roma.
Acceitou, e no dia seguinte safou-se para Livorno.
O governo italiano deu immediatamente ordem
aos navios que estavam em Livorno—para
sahirem uma hora antes da entrada do
yacht...
*
Silva Pinto contado por D. Maria Augusta:
O Silva Pinto escrevia de quando em quando
cartas á condessa d'Edla, pedindo-lhe dinheiro.
A condessa architectou um romance: nunca o
vira e imaginou um poeta pobre, n'umas aguas-furtadas,
morrendo por ella. E mandava-lhe ás
vinte e trinta libras. Um dia viu-lhe o retrato no
atelier de Columbano...
—Então este velho é que
é?!...
E não lhe deu mais vintem.
Maio—1903.
Hoje 11 o Arroyo discutiu nos pares a viagem
da rainha. Acusou-a de não ter querido
receber Loubet. O Wenceslau de Lima levantou-se
e negou.
Comentario do Alpoim:
—Que havia elle de responder? Mentiu
como um cão!
[104]
De resto o discurso foi cheio de alusões.
Chegou a isto: a lançar suspeitas sobre as
relações
do Soveral com a rainha. «Que está fazendo
o snr. Soveral em Paris? Façam-no recolher
imediatamente a Londres
[3]!»
—Triste simptoma—afirma o D. João de
Alarcão—n'um paiz monarchico ninguem se levantou
para defender o rei. Alguns como o Ayres
de Gouveia foram cumprimentar o Arroyo;
outros, como o José Luciano, sahiram dos seus
logares e chegaram-se mais para perto, para não
perderem pitada.
*
—O que nós fazemos não é
discursos,
é historia—diz
o Arroyo.
*
Diz-se:
O rei chama nomes ao Arroyo, o Arroyo
chama-lhe corno...
[105]
*
O Alpoim:
O Arroyo chama corno ao rei, o rei chama
aos outros ladrões. Eu sempre queria que me
dissessem o que elle é...
*
A quinta da Bacalhôa—continua o
Alpoim—foi
comprada pela casa de Bragança. Quem
faz as obras é a Casa Real, isto é o Estado.
Maio—1903.
O rei—diz hoje D. João d'Alarcão em
conversa
com o Alpoim—não se importa nada com
isto. Tomára elle ser kkediva d'este cantinho,
defendido pelas baionetas inglezas.
*
O rei tem uma lista celebre a que chama
a lista dos ladrões.
*
O Arroyo volta á discussão e, a proposito,
conta-se de novo a historia dos tapetes:
«—Havia em Mafra um grande tapete persa,
o mesmo que está hoje em Vila-Viçosa, por signal
[106]
muito mal tratado. Ninguem fazia caso d'elle,
até que um dia disse ao almoxarife que o guardasse.
Mas fiquei sempre com a impressão de
que era magnifico. Duma vez que D. Carlos apareceu
extasiado por ter comprado qualquer tapete
insignificante, lembrei-lhe:
—V. Magestade tem em Mafra um muito melhor
do que esse...
—Ora adeus!
Teimo, chama-se o almoxarife, reclama-se o
almoxarife e o tapete, e o homem instado apresenta,
em logar do tapete, dois papelinhos... A
saber: a ordem de Pedro Victor para entregar o
tapete e o respectivo recibo. Não vi o telegrama
do rei, mas vi a resposta do administrador da
casa real: «Vossa Magestade manda,
obedeço».
Dahi a dias aparecia o tapete. O Arroyo
tinha-o lobrigado em Mafra e comprado por
75$000 ao Pedro Victor. Entregou-o, e está hoje
n'uma parede do palacio de Vila-Viçosa».
*
Conversa entre o Soveral e o Alarcão:
—Ninguem diga d'este Soveral não beberei.
Ainda has-de ser presidente do conselho.
—Para quê? Então tu imaginas que deixo
a minha situação lá fóra
por isto? Que mais
quero eu? Sou par, sou do conselho d'estado
marquez...
[107]
E o Alarcão conclue:
—Acredito que elle não queira. Só se
fôr
para arranjar algum negocio, que elle anda muito
precisado de dinheiro...
Maio—1903.
É certo que o rei falou ao José Luciano na
dissolução da camara dos pares, substituindo-a
por outra em bases diferentes. A noticia foi para
os jornaes para assustar o Arroyo—que quer
fazer outro discurso sensacional contra o rei.
*
O José Luciano procurou o Arroyo em casa:—Venho
pedir-lhe que não faça o discurso contra
o rei. É um homem na minha edade, perto da
cova, que lhe pede isto em nome d'interesses superiores.—Sim
senhor... se V. Ex.
a me assevera
que por traz d'isto não está o sr. Hintze
Ribeiro...
E chorou.
*
—O rei—diz o Alpoim—está
contentissimo.
O discurso era tremendo. O Arroyo afirmava
[108]
que o rei pedia dinheiro aos ministros. D'uma
vez pediu mil e seiscentos contos. Elle proprio,
quando ministro, lhe deu muitas vezes dinheiro.—Aqui
estam as provas!—E apresentava-as.—O
primeiro a ser castigado devo ser eu, porque delinqui.
Junho—1903.
Os jornaes trazem a noticia de que o rei
partiu para o mar no
yacht D. Amelia
e de
que o duque d'Orleans chega na segunda-feira
a Lisboa.
O rei safou-se de proposito para o mar, para
o não receber. Do Paço mandaram ordem para
se antecipar a festa ao Barbosa du Bocage, na
Sociedade de Geographia. Tudo porque o rei
supoz que os acontecimentos de Paris com a
rainha se relacionavam com imposições da familia
Orleans.
...Afinal o rei sempre veio do mar e recebeu
o duque.—Mas houve o diabo!...—diz o
Alpoim.
*
—O Navarro defende-o, senhor Alpoim...
—O Navarro diz hoje bem de mim, como
amanhã diz mal—por doze vintens.
[109]
Junho—1903.
O
Diario de Noticias publica hoje
esta curiosissima
informação:
As recepções em casa do sr. conselheiro
João Arroyo,
constituem sempre um acontecimento na nossa sociedade
elegante. O talento multiforme do illustre parlamentar, que
é um artista de raça, converteu o antigo palacete
da rua
do Telhal em uma das residencias mais notaveis de Lisboa,
tanto sob o ponto de vista da decoração dos
salões, como
pelas preciosidades do mobiliario e valiosas
collecções de
arte ornamental que elles encerram.
Não se encontra ali um “bibelot„ que
não seja um
objecto de arte ou não faça parte de uma
collecção, paciente
e sabiamente reunida e disposta com perfeito gosto
e conhecimento. De todos aquelles raros objectos que se
agrupam pelos tampos dos buffetes, das commodas e dos
contadores seculares ou nas prateleiras dos armarios e
«vitrines»,
resalta sempre uma vibrante nota de arte, que
define o criterio do colleccionador e marca fundamente o
seu temperamento esthetico. A sala dos xarões e dos cobres
e bronzes esmaltados e «cloisonnés»
é por certo a mais
bella que existe no nosso paiz, e só por si basta para
aferir
o elevado grau que occupa o colleccionador no nosso meio
artistico. Ha, porem, muito mais, tão bom ou melhor que
admirar nas salas do sr. João Arroyo, as quaes
dão aos
«gourmets do bric-a-brac» a impressão de
verdadeiros escrinios
de arte. Nestes casos estão a graciosa
collecção de
figuras e mascaras chinezas, a preciosa exposição
de leques,
cujos pannos ostentam as mais lindas illuminuras dos pintores
francezes do seculo XVIII ou são apenas formados de
finissimas rendas a ponto, de Allençon ou de Bruxellas;
os limpidos cristaes da Bohemia e os finissimos vidros de
Veneza; as raras faianças da China, e de Saxe; as soberbas
«boiseries» da casa de jantar, bello trabalho
decorativo no
estylo Renascença, do architecto Bigaglia, com o seu
fogão
monumental, o seu grande lustre de ferro forjado e as prateleiras
dos «lambris» repletas de exquisitas pratas,
faianças
e cristaes.
[110]
Por toda a parte, emfim, desde o
vestibulo e da galeria
da escada até ás salas do jogo, quadros a oleo
das escolas
italiana, flamenga, hollandeza e franceza, tapeçarias de
Gobelins
e do Oriente, colchas da India e da Persia, tudo
quanto o persistente e criterioso esforço de um artista e o
bom gosto de um homem elegante poude colleccionar, tudo
chama a nossa attenção, que só
encontra ali maior attractivo
no bondosissimo tracto da illustre dona de casa, a
sr.a D. Maria Thereza Pinto de
Magalhães (Arriaga) e na
conversa scintillante de seu marido, um dos mais espirituosos
e interessantes cavaqueadores da nossa sociedade, e
que tem tido naquella senhora uma valiosa
collaboração
artistica, assignalada em mais de uma das preciosidades
que se contem na sua bella residencia.
Por tudo isto, o
«raout» de hontem esteve
concorridissimo
e encantou todos os convidados dos illustres amphitriões,
entre os quaes estavam:
[111]
Conselheiro Hintze Ribeiro e esposa,
ministros da justiça,
obras publicas, guerra, fazenda, marinha e esposas,
nuncio de S. S. e secretarios, Rouvier, ministro da França
e esposa, ministro de Hespanha e esposa, conde e condessa
de Azevedo, Miguel da Motta e esposa, monsieur e madame
Bruno, marquez da Foz e filha D. Marianna, duqueza
d'Avila, condes d'Avila, marquezes de Guell, marqueza de
Bellas, conselheiro Schroeter e esposa, Costa Pinto e esposa,
conselheiro José Vianna, Pedro Diniz e filha, Carlos Ribeiro
Ferreira e esposa, viscondessa de View e filhas, José
Sassetti
e esposa, viscondes de Santo Thyrso, conselheiro Germano
Sequeira e esposa, condes de Paçô Vieira,
almirante
conde de Paço d'Arcos, Sarrea Prado, conselheiro
Achilles
Machado e esposa, conselheiro José de Azevedo e
esposa,
conselheiros José e Antonio Arroyo, conselheiro Matheus
dos Santos e esposa e filha, condes de Sabroso, conselheiro
José Ribeiro da Cunha e esposa, José E. de Barros
e esposa,
Joaquim Lima, Alberto Braga, João de Freitas Rego, F.
Baerlein e esposa, Albino Freire d'Andrade, viscondes de
Mangualde, conselheiro Ferreira Lobo Francisco d'Aguiar,
conselheiro Souza Monteiro, Barbosa Colen, conselheiro
Deslandes e esposa, Terra Viana, esposa e cunhado, Carlos
Blanch e esposa, D. Elisa Pinto de Magalhães e D.
Luiza
Pinto de Magalhães, Alberto Monteiro, conde de
Mesquitella,
Dr. Furtado e esposa, Virgilio Teixeira, marquezes de
Funchal, monsenhor Santos Viegas, conselheiro Moraes de
Carvalho, Henrique Burnay, conselheiro Francisco Mattoso,
Henrique Anjos e esposa, Carlos Soares Cardoso e esposa,
conde de Verride, D. Juan de Castro e filha, Condes de
Tattenbach, Alvaro Rego, conselheiro Poças Falcão
e esposa,
José Fernando de Sousa, barão de S. Pedro,
conselheiro
Thomaz Rosa, condessa d'Almedina e filha D. Luiza, Antonio
Caria e esposa, M. Emygdio da Silva, etc., etc.
*
O que faltou a esta sociedade foi um Balzac,
que os trouxesse desde a obscuridade e da pobreza,
que nos contasse o esforço, as transigencias,
o talento gasto e o fel gasto, até chegarem
ao poder—Navarro, filho d'um mestre de musica
de Bragança, Mariano pobre, Arroyo pobre.
Alguem que nos desse a vida occulta, a audacia
e o descalabro, a chaga politica que os engrandece
e corroe, que corroeu o proprio Chagas, o
[112]
romantico da
Morgadinha,
até ao ponto de acabar
por estas palavras amargas, com o ultimo suspiro:—A
vida é uma comedia!—Alguem que
nos mostrasse Arroyo e os seus phantasmas, Mariano
e os seus phantasmas, Navarro e os seus
phantasmas.
Como a vida efectivamente transtorna, enxovalha
e envilece—se lhe falta ideal, paixão, ou
um forte sentimento que caldeie as figuras e
as eleve! Não, a vida não é uma
comedia. A
vida é profunda. Elles é que lidaram apenas com
inferioridades e interesses mesquinhos. Mariano
acabou quasi desprezado. O talento não lhe serviu
de nada. Talvez o prejudicasse... Ha um
momento tragico na sua vida, aquelle em que
João Chrisostomo d'Abreu e Souza lê em plena
camara a declaração, em seu nome e no dos seus
colegas, de que lhes haviam sido desconhecidos
os actos irregulares praticados pelo ministro da
fazenda Mariano de Carvalho. Vejo-o mudo, livido—com
um olhar atono, como nunca vi em mais
ninguem. O sceptico! o sceptico amarfanhado,
reduzido a trapo, com um golphão de desprezo,
por si e pelos outros, na bocca, com um golphão
de negrume!... Jamais me esquece esta figura,
que vi morta entre os vivos, sentado n'um
canto da camara, sem ninguem fazer caso d'elle,
vendo sem vêr, ouvindo sem ouvir, e não tendo
podido realisar nenhuma das suas
ambições:—Deixem-me!
deixem-me!—Deixem-no com os seus
[113]
phantasmas! Arroyo talvez encontrasse na musica
um refugio... Navarro, porém, acabou no
mesmo abatimento. Temiam-no—mas só o temiam.
Arredaram-no. No fim da vida ficava
horas e horas absorto ou ia para o fundo d'um
camarote do Gimnasio ouvir musica. Apegara-se—mau
simptoma—aos netos. Desconfio que o
celebre estadulho não passava d'um espantalho,
e que era grande a sua sensibilidade:—Sinto-me
ferido em pleno coração—Do
coração morreu,
sem nunca o deixarem realisar as suas ambições.
Guerra Junqueiro.
Metidos n'aquella roda de navalhas foram até
ao fim do combate, luctando sempre. Os que tinham
de escrever, escrevendo sempre, espremendo
o cerebro, os que tinham de intrigar, intrigando
sempre, com a mascara livida e sorrindo
sempre, ferindo sempre, e cahindo de pé. Oh
quem me dera um momento, só um momento
para vêr a série de phantasmas em que se desdobrou
cada um destes sêres, para os lêr até ao
amago, para lhes descobrir o instante de cansaço
e o ponto vulneravel—rodeados de invejas, de
odios, de inimigos, que esperavam na sombra e
não perdoavam um desfalecimento—uns fingindo-se
cinicos, sorrindo aos insultos, e cravando
as unhas na carne até ao sangue, como Rodrigo
da Fonseca Magalhães, outros respon
Metidos n'aquella roda de navalhas foram até
ao fim do combate, luctando sempre. Os que tinham
de escrever, escrevendo sempre, espremendo
o cerebro, os que tinham de intrigar, intrigando
sempre, com a mascara livida e sorrindo
sempre, ferindo sempre, e cahindo de pé. Oh
quem me dera um momento, só um momento
para vêr a série de phantasmas em que se desdobrou
cada um destes sêres, para os lêr até ao
amago, para lhes descobrir o instante de cansaço
e o ponto vulneravel—rodeados de invejas, de
odios, de inimigos, que esperavam na sombra e
não perdoavam um desfalecimento—uns fingindo-se
cinicos, sorrindo aos insultos, e cravando
as unhas na carne até ao sangue, como Rodrigo
da Fonseca Magalhães, outros respondendo á
audacia
com audacia, outros sucumbindo ao nojo,
com estas palavras que já surprehendi a alguem
[114]
n'um momento supremo:—Não,
não valia a
pena!
*
O mundo politico é tão curioso! O que
está
á vista não tem importancia, o que se mostra
não
passa de scenario. Para viver aqui dentro é preciso
habituar a pelle a todas as alfinetadas e
afivelar na cara uma mascara perpetua. Este homem
elogia outro e combate-o a occultas. O que
se diz nas camaras precisa de ser explicado nos
corredores, para ser comprehendido. O Cypriano
Jardim atacou ha dias o governo. Porquê? Estava
nas colonias a ganhar seis libras em oiro por
dia e chamaram-no á metropole. O artigo
D.
Folião
do Colen fez successo... Já se diz:—Escreveu-o
porque o Mattoso dos Santos lhe não despachou
uma pessoa de familia. Foi preciso um
ataque rude, para o ministro lhe dar, antes de cahir,
um logar não sei onde. Ha politicos que se
servem de todos os meios: ha-os—sei eu—que
se escrevem cartas anonimas. Parece até que
os ha mais completos... Um franquista barafusta
hoje nos corredores das camaras, ácerca
dum deputado da maioria:—O que eu admiro
é o descaramento de Fulano, que se atreve a
fazer discursos alli na minha frente, quando
sabe perfeitamente que trago na algibeira uma
[115]
acta em que elle se confessa ladrão!—Este
mundo tem as suas leis, as suas convenções,
os seus preconceitos, e a sua honra especial. O
principal é o que se diz ao ouvido. Aquillo alli nas
côrtes é apenas aparato: o José Luciano
combina
tudo com o Hintze, o Alpoim com o Teixeira de
Souza. Mas surge ás vezes o inesperado e deita
a frandulagem de pernas ao ar... A atitude violenta
do Arroyo explica-se assim: O Arroyo queria
ser do conselho do Estado, o Hintze prometeu
nomeal-o, o rei opoz-se. O Hintze teimou—o
rei teimou:—Vae para casa e pensa...—A
atitude do Navarro explica-se porque o rei
nunca o deixou ser par...
[4]
D'ahi o odio—d'ahi
barafunda... O José Luciano procurou o Arroyo
para lhe pedir que não fizesse o discurso contra
o rei:—Sou eu, chefe dum grande partido, que
lhe afirmo que não está inutilisado.—E
publica
no
Correio da Noite o discurso com
alusões á rainha—que
o Alpoim manda retirar do
Dia, por
causa
do Paço... Os chefes ainda conservam certa linha,
mas cá em baixo vêm-se referver os interesses,
as ambições, os despeitos. O D. Carlos mantem-se
n'uma atitude que faltou ao D. Luiz—e é talvez
por isso mesmo que o atacam e o acusam. Não
[116]
intriga. O D. Luiz mais de uma vez propoz ao
José Luciano, no tempo de Braamcamp, que organizasse
ministerio:—Isso não, meu senhor! E
vou já d'aqui dizel-o ao Braamcamp.—Tudo
parece confusão, todos os dias a teia se emaranha.
Ainda ha quem defenda este e aquelle, que
pertence ao seu partido, por interesse, por camaradagem,
seja pelo que fôr, mas já não ha
ninguem
que defenda o rei. Alto ou baixo, ao ouvido
ou em plena rua, só se fala no rei... O rei!
o rei! o rei!...
Junho—1903.
—Os Braganças, dizia o Latino Coelho, ou
são pedantes ou fadistas.
A este proposito o D. João da Camara conta,
que um dia D. Pedro V leu um discurso á mãe,
dizendo-lhe ella no fim:
—O menino ha-de sahir um bom pedante.
Se tarda em morrer acabava odiado.
E acabava. As grandes figuras moraes são sempre
uma calamidade para si e para os outros. O
universo é amoral, e não ha como os
acomodaticios,
com alguma hipocrisia ao seu dispôr... Os
outros só fazem a sua desgraça e a
desgraça dos
que os rodeiam.
[117]
Junho—1903.
Pateo de Martel. Um cantinho com uma figueira
e malvaiscos. Uma fiada de casas e no
extremo o atelier do Columbano. Por traz a
quinta... E outra luz diferente, outra atmosphera...
O mestre, pobre e obstinado, fez alli os
seus melhores retratos; a senhora D. Maria Augusta,
n'uma sala de trez metros quadrados, creou
as suas mais bellas rendas. Lá no fundo morou
Eugenio de Castro, pobre, morou depois o Justino
e outros diplomatas ilustres... Alli o mestre,
como os artistas da Renascença, experimentou o
fresco, as tapeçarias, os
trabalhos em cêra e prata.
A senhora D. Maria Augusta sorria-nos com a
maior bondade e carinho e dizia:
—Quando meu pae morreu ficamos sete irmãos.
Criei-os a todos.
—E o Columbano?
—Esse é meu irmão, meu filho e meu
mestre.
Por alli passaram tambem os maiores homens
de Portugal, de quem o Columbano ás vezes fala:
—O Oliveira Martins contou-me, quando
veio ao meu
atelier pousar para o
retrato, que
um dia a rainha o mandou chamar e lhe apareceu
transtornada:
—Salve-nos! salve-nos!
Era depois dos acontecimentos do
ultimatum.
[118]
O Martins procurou ou escreveu—não me
lembro—ao
Anthero do Quental e elle afastou-se e
abandonou tudo.
São curiosos os grandes homens contados
pelo Columbano, que os retratou. Um levava
um pente na algibeira para compor o cabelo, outro
pedia para se lhe não ver a careca. O Junqueiro
era mephistophelico. Aparecia, desaparecia
logo: não pousava cinco minutos a fio.
Um dia o Columbano ouviu bater a porta, e
entrou-lhe no atelier um homem já cansado, de
grossos sapatões, apegado a uma bengala, que
parecia um bordão de pedinte:
—Disseram-me que gostava de fazer o meu
retrato e aqui estou...
Era o Anthero. Parecia um cavador, de meias
grossas de lã azul—mas quando falava!... Nunca
olhou para o retrato.
—Está prompto?
Foi-se embora como viera...
Junho—1903.
O José de Figueiredo diz-me:
—Copiei por minhas mãos, para o Antonio
Candido, a carta em que o Soveral é durissimo
para os partidos, fala d'alto ao rei e lhe diz que,
se não tivermos juizo, a Inglaterra tutela-nos.
[119]
Junho—1903.
—Ninguem me mete na cabeça que esta rainha
é boa pessoa—diz o Alpoim ao vel-a descer
o Chiado.
Mas, quando passa, toda a redacção do
Dia
corre á janella, para a cumprimentar, e o Moreira
d'Almeida, que tem por ella culto e paixão, põe
á
pressa o chapeu na cabeça, para se ir desbarretar
n'uma grande cortezia.
*
Fala-se hoje do Soveral na redacção do
Dia,
e da amizade que o liga ao rei d'Inglaterra.
—São tão amigos que por
occasião do
ultimatum,
ainda Eduardo VII era Principe de Gales,
este pode prevenil-o da atitude da Alemanha.
Iam ambos n'um cortejo: o principe, de
passagem, chegou-se-lhe ao ouvido e só lhe disse
estas palavras:—A Alemanha está comnosco...
O Soveral correu ao telegrapho.
Junho—1903.
O Adrião de Seixas, que, nos seus tempos
aureos, entrou em muitas combinações de
finança,
[120]
negociou emprestimos, esteve ligado aos Mosers,
etc.:
—Quasi todos os homens publicos recebiam
luvas, posso garantir-lh'o. Todos estendiam a mão.
Duma vez trouxe para um, um aparelho de chá,
magnifico, de prata, comprado em Paris. Elle recebeu-o
e, destapando o assucareiro, afirmou
com desplante, sorrindo:—É magnifico...
só lhe
falta o assucar.—Eu, que já ia prevenido, tirei
das algibeiras alguns rolos de libras, despejei-os
dentro e perguntei:—E agora?—Agora está
optimo.—E concluiu:—Você é uma
mercearia
ambulante!
Junho—1903.
O marquez de Soveral em conversa com o
Alberto Braga:
—É que eu vivo em Londres longe de tudo
isto... Se me visse forçado a viver em Portugal,
fazia-me revolucionario.
*
Tambem o Alpoim diz hoje:
—Quem me dera uma revolução!
E, deante do nosso espanto, explica:
[121]
—Para pôr o rei no seu logar... Eu não
tenho
nada a perder, meus filhos estão colocados,
o que tenho chega-me para viver na Regoa como
um fidalgo... Era preciso que o rei tivesse medo.
Mas quê! Agora com a aliança ingleza é
muito
peor. Ainda outro dia dizia o José Luciano:—Podem
vir os republicanos todos juntos, os de cá
e os de Hespanha, que não fazem nada. É da
aliança que, se houver qualquer movimento, desembarcam
tropas e defendem o rei.
E acrescenta:
—Eu vi tudo, vi as perguntas e as respostas,
posso assegurar-lho.
*
—Elle é mau, é—diz o Alpoim
do rei—mas
a gente não tem outro.
Junho—1903.
O Abel d'Andrade:
—Conheço muito bem o Hintze. Tem duas
qualidades magnificas n'um homem, pessimas
n'um chefe. É delicadissimo. Sorri sempre, mesmo
quando sabe que o enganam—e nunca resolve
nada, o que lhe acarreta dificuldades, que vão
[122]
crescendo á medida que elle as adia. Tem outro
defeito enorme; não é capaz de dizer
não
peremptoriamente a ninguem.
Junho—1903.
O Emygdio Navarro está furioso com o rei.
Sentiu immenso que o não convidassem para nenhuma
das festas dadas ao rei d'Inglaterra—quando
foi elle que iniciou, defendeu e preparou
a aliança anglo-portugueza.
Junho—1903.
Estive hoje em casa do juiz Veiga, lá para o
Rato, por causa d'uma querela do
Dia. É um homem
atarracado e forte, com um ar de falsa bonhomia.
Ha n'elle não sei quê de inquisidor e
de satiro, e é tão desconfiado, que, logo que eu
entro, pousa sobre os papeis da secretaria uma
larga folha azul, com medo que lh'os leia. Na sala,
de cadeiras doiradas de palhinha e
consoles com
gatos de vidro, ha varios mostrengos em
exposição:
o retrato delle e retratos de familia, temerosos,
o busto do rei D. Carlos em marmore e outro
não sei de quem, ambos de arripiar. E, entre
[123]
a papelada que trasborda e estas coisas de mau
gosto, o juiz Veiga fuma n'um cachimbo d'espuma
com uma mulher em pêlo...
É este o homem que sabe tudo e pode tudo,
que conhece os segredos das familias e os segredos
da politica. N'outro dia obrigou um janota a
entregar-lhe as cartas, que comprometiam uma
mulher casada. Contam-se mais casos curiosos.
É omnipotente e omnisciente. Comanda, diz-se,
bufos ilustres de quem ninguem suspeita. Tem
um cofre sem fundo á sua disposição
para distribuir
dinheiro a rodos. Acode a desgraçados.
Tortura—verdade ou mentira?—no fundo das
celulas alguns presos politicos para lhes arrancar
segredos. Ainda ha tempos me contaram que ao
José do Valle não o deixaram dormir sem elle
confessar tudo...—É uma especie de Pina Manique,
que pouco abusa do seu lugar e da sua
autoridade. Afirmam-no bondoso. Ha até quem
o diga uma especie de Providencia. É incontestavelmente
um homem esperto, que protesta:—Quero-me
ir embora antes que tudo isto desabe.
Esta gente não sabe ou não quer defender-se...
Fala baixinho, sem me olhar nos olhos e resolve
n'um prompto, como quem não encontra
nunca obstaculos. Quando saio, no patamar da escada,
surprehendo duas creadas de avental sujo
e chinelos esbeiçados, que dão de comer,
ás escondidas,
a um policia. Enganam-no na sua propria
casa e deitam a fugir quando me vêem.
[124]
Junho—1903.
O artigo de hontem, das
Novidades,
sobre a
mortandade da Servia, cheio d'alusões ao rei,
fez sensação. E dizia-se por ahi:
—Quando se faz cá o mesmo?
—Foi uma limpeza!—phrase do Alpoim.
*
O Beirão:
—O Alpoim não quer vêr que o partido do
João Franco, apezar de pequeno, é um partido
de protesto. Qualquer dia o rei chama-o e dá-lhe
os mesmos poderes que tem dado ao Hintze ou
ao José Luciano.
Junho—1903.
Judice Bicker, casado com uma filha do Andrade
Corvo, conta, a proposito do rei e do poder
pessoal:
—Possuo diferentes cartas do D. Luiz, e entre
ellas uma ao Corvo, pedindo-lhe que apresente
certa proposta, mas de maneira que não
pareça
poder pessoal...
Os homens desse tempo
impunham-se. Um dia ao D. Augusto meteu-se-lhe
em cabeça casar com uma infanta d'Hespanha.
Era no tempo em que se falava muito na
[125]
união iberica. O Corvo opoz-se, apesar da insistencia
desesperada do infante. Por ultimo procurou-o
e disse-lhe:
—Escusa de insistir, que não casa. É
pelo
bem do paiz.
*
O Corvo foi um dos primeiros estadistas a pensar
a serio na Africa e no seu engrandecimento.
Quiz augmentar o territorio de Angola e estabelecer-lhe
os limites, d'acordo com a Inglaterra.
Tudo era possivel n'esse tempo e tinhamo-nos livrado
de dificuldades, do Estado livre do Congo,
etc. Avançavamos um seculo, se elle não cae por
causa do tratado de Lourenço Marques. Deitaram-no
a terra, espalhando que recebera milhões.
Eu que casei com a filha, sei o que elle deixou!...
Nas camaras o governo d'então declarou que
o tratado não tenha ido a conselho de ministros.
O Andrade Corvo possuia o tratado com anotações
do punho de Fontes e Thomaz Ribeiro.
Apesar d'isso calou-se. Se fosse hoje!...
Junho—1903.
—O rei tem pensado. E tanto que o infante
quiz ir agora ao estrangeiro e pediu dinheiro ao
Hintze, que lhe respondeu:—Peço-lhe que
desista.—O
[126]
infante rasgou a carta furioso. Com a
Maria Pia sucedeu o mesmo. Essa inventou uma
doença d'olhos e preveniu o D. Carlos de que
precisava de ir ao estrangeiro. Resposta do
rei:—Cá
ha um bom especialista.—Mandou-lho, e elle
disse ao rei que a Maria Pia não tinha nada.
A Maria Pia insistiu, n'um desespero, e o rei mandou-lhe
o Antonio Lencastre. O rei tem pensado...
—Se isso fosse verdade!—exclama o Alpoim.
Junho—1903.
Esta tarde sahiu dos Martires, mesmo em
frente do
Dia, a
procissão do Corpo de Deus.
Todos á janella cahiram de joelhos—quando o
bispo de Trajanopolis passou, a barba loura,
muito cuidada, e um capachinho no alto da cabeça,
apartado ao meio... O Alpoim exclamou:
—Ó que maroto! Foi a este que o Barros
Gomes,
quando ministro, disse um dia: Ajoelhe a
meus pés! Peça perdão!—Tinha
hypothecado lá
fóra os rendimentos do curia por noventa annos!
Junho—1903.
O D. João da Camara conta que no Algarve
encontrou em todas as casas dois retratos—o de
João de Deus e o do Remexido. E a proposito diz
[127]
que um tio de Coelho de Carvalho levava já a
galope o comutamento da pena do Remexido,
quando o fuzilaram. E termina:—A Angela
Pinto é neta do Remexido. Aposto que não sabiam!
Julho—1903.
—Vou pedir um logar que está vago no Supremo
Tribunal—disse um patusco ao Marçal
Pacheco.
—De juiz?!
—Isso.
—Mas você endoideceu! Não lh'o
dão!
—Isso sei eu.
—Mas então porque é que o pede?
—Já pedi umas poucas de coisas, vou pedir
mais esta. Recusam-ma, já sei, mas é
capital de
queixa que amontôo.
*
O Alpoim:
—Um dia o cardeal patriarcha convidou-me
para jantar. Estavam muitos bispos. São jantares
que nunca acabam, de quinze pratos, serviço
esplendido—e não calcula a impressão
que eu
senti, no fim, quando elles se levantaram muito
[128]
congestionados, cheios de vinhos magnificos, mamando
charutos enormes e com as saias arregaçadas...
Setembro—1903.
O Henrique de Vasconcellos, genro do Navarro,
contou-me hoje que o Paço por trez vezes
mandou insistir com o sogro, para elle não continuar
com os ataques nas
Novidades.
Outubro—1903.
O Alpoim recomenda no
Dia que se
não publique
nada que possa ferir as susceptibilidades
da côrte hespanhola. Afonso XIII está
desconfiadissimo.
Além d'isso o nosso rei e rainha de
Hespanha não se podem ver: têem um pelo outro
odio figadal.
*
Um coronel inglez, que ahi esteve, veio por
ordem do seu governo vêr em que estado
tinhamos as fortificações de Lisboa. Examinou
tudo.
José Luciano encerra o Parlamento.—Caricatura
inedita de
Celso Herminio.
[129]
*
Com as festas de Afonso XIII encheu-se muita
gente. Um regabofe. Da iluminação da Avenida
diz-se:—Dos Restauradores para cima dirige o
Costa Pinto, dos Restauradores para baixo digere
o...
*
Ao ouvido conta-se que o rei de Hespanha e
os que o acompanhavam troçaram tudo isto: o
paiz, a côrte, as festas. De manhã, no quarto,
emquanto
elle tomava café ou chocolate, os particulares
e os intimos maldiziam, n'uma chacota
pegada... Só o rei, fracamente, se opunha.
Outubro—1903.
O D. João da Camara conta o seguinte:
—O D. Luiz deu, até pouco antes de morrer,
trezentas libras por mez á Rosa Damasceno. Todos
os dias 10, 20 e 30, o Nazareth lhe entregava
[130]
cem libras em oiro, que elle nem sequer contava:
mandava-as logo á Rosa. Morreu no dia 19 de
Outubro: pois no dia 10 ainda lhe mandou o dinheiro.—E
o Brazão?—Cuido que não são
casados,
apezar do que por ahi se diz. O que é certo
é que antigamente, as coisas arranjavam-se por
forma que a Rosa e o Brazão nunca entravam
na mesma peça, e um d'elles ia sempre passar
a noite ao Paço. O D. Luiz dizia do
Brazão:—É
o meu melhor amigo. A Rosa nunca abusou
da situação: apenas empregou dois ou tres homens
e o D. Luiz sentia por ella verdadeira ternura.
Traduziu-lhe a
Odette e assistia aos
ensaios.
A Maria Pia sabia tudo. Um dia deixou no quarto
do Paço onde a Rosa costumava ficar, um lenço
de rendas a tapar a fechadura. Ás vezes o D. Luiz
apresentava-lhe joias para ella escolher e depois
levava-as á Rosa. E ia com a rainha ao theatro,
para que ella visse o efeito das joias no colo da
actriz.
Outubro—1903.
—Vi eu, vi eu!—exclama o Antonio José de
Freitas—o Oliveira Martins, n'uma sala, deslumbrado,
solicitar a apresentação d'um janota qualquer,
d'um janota banal.
[131]
Dezembro—1903.
O Adrião de Seixas, secretario do Banco de
Portugal:
—Não se fazem descontos, porque não ha
dinheiro
e o Banco já recorreu ás reservas de prata.
O governo está sempre a pedir dinheiro. Imagine
o meu amigo que todos os annos ha um
deficit
de 7:000 contos. Ninguem tem a coragem de dizer
as coisas como ellas são e por isso se faz um
orçamento falsificado. Resultado: como o
orçamento
é falso, pode-se roubar á vontade!
*
O José Luciano está a morrer. O que ahi vae
com a chefia do partido progressista! Ao Antonio
Candido não o tragam os progressistas, ao
Beirão não o quer o Paço, nem o
Navarro, nem
o Mariano. Lança-se o nome de Antonio Candido
para encobrir o seguinte proposito: presidente
do conselho o Mathias de Carvalho, com
o Alpoim na pasta do reino.
Mathias de Carvalho é uma figura decorativa,
sempre de palito na bocca e de miolos empedernidos,
que ficará na presidencia e estrangeiros.
Esta solução é preferida pelo Navarro
e pelo
[132]
Mariano. De Mathias apenas se sabe que é incapaz:
como diplomata foi quem deu ensejo a
esfriarem-se as relações com a Italia.
—Se o José Luciano morrer é
á
facada!—exclama
o Alpoim.
Morrer era ainda—Deus me perdoe!—uma
solução... Peor será conserval-o na
cadeira de
rodas, obstinado, querendo mandar, e os herdeiros
á espera do testamento. Toda a politica
portugueza vae girar em volta d'este leito de enfermo,
onde o velho continua a dar ordens imperiosas.—Hoje
deitou um litro de pus pela pelle.—Está
salvo!—Morre!—Fica invalido!—Tem
sifilis!—Nesta altura da politica portugueza, é
elle quem manda tudo. Que o diga, o José d'Azevedo,
por exemplo, que o não pode vêr, porque
o José Luciano o não deixou realizar as suas
pretenções.
É na sua casa que se resolvem as questões
maximas. A politica é pelo menos n'uma
grande parte, na melhor parte, representada nos
bastidores... «Vejam a vergonha desta gente!
O Campos Henriques vae a casa do José Luciano
com o Julio de Vilhena, para conseguir que
as emendas do codigo civil passem. Não passam
e elle fica no ministerio! O Teixeira de Souza vae
lá todas as semanas. Não, este Hintze... Eu
palavra
de honra antes queria ser ladrão d'estrada!...»
Outro facto extraordinario da nossa politica:
é sempre no campo adverso que estes homens
[133]
tem mais radicadas amizades. E tambem se percebe
nitidamente que no fundo da lucta só ha
uma força, o rei. Por isso mesmo o rei é sempre
o culpado. Quem tudo manda é o
Paço—dizem
todos os politicos—e tanto mais que não ha um
nucleo de resistencia no paiz. Os republicanos
não estão organizados e o Paço nem
sabe o
que póde. Uma revolução no paiz
é, segundo
a opinião geral, impossivel, a não ser que se
succedam trez annos de fome.—Tudo quanto se
faz de mau é o rei quem o faz...—Ainda hoje
ouvi esta conversa:—Foi o Hintze quem disse ao
Arroyo, como disse ao Mariano e ao Navarro.
«É el-rei que não quer».
Nunca lh'o deveria ter
dito.—Os politicos inutilisam-no e inutilizam-se.
Todos os dias inventam novas atoardas. Hoje a
proposito d'uma nota oficiosa que o ministro
da fazenda fez publicar no
Noticias,
no
Seculo e
no
Diario, anunciando um grande
emprestimo
no estrangeiro, conta-se que é um negocio de
acordo com a casa Fonseca, Santos & Viana,
que tinha comprado fundos. Acusa-se o Teixeira
de Souza de conivencia. Mas já a 2 de junho
o Alpoim afirma:—Quem não deixa passar o
emprestimo é o Burnay. N'outro paiz devia ter
a cabeça cortada. No ministerio da fazenda ha
documentos que provam as suas maquinações no
estrangeiro. Elle manda em tudo:—manda no
Credito Predial, no Banco de Portugal, na Companhia
Real. É uma desgraça que o emprestimo
[134]
não passe. Temos nós de o fazer e em que
condições!...
E tudo isto com que fim? E o Burnay
a ver se obriga os progressistas ao contracto dos
tabacos.—A esta trapalhada juntem a doença do
José Luciano e as ambições, que
levantam a cabeça,
a guerra de sapa que se encarniça.—Hoje deitou
mais pus!—Morre!—Com quem está o
Paço?—O
Moreirinha com a algalia não lhe sae da
cabeceira.—Quem
vae ao poder? O João Franco?
—Nem elle sabe a guerra oculta que eu lhe
tinha feito. Ha-de pagar-me caro o discurso que
fez contra mim: Viva a folia, dançar! dançar!...
São mil os interesses, mil as
ambições.—Tudo
menos o Beirão, que só tem por si a gente velha,
a gente conhecida pelos
batibarbas.
Mas o velho teimoso e perspicaz, não admite
sequer a idéa de que alguem, que não seja elle,
vá ao poder. Até á
ultima—ambição ou
grandeza?—ha-de
disputar e mandar, como o Alpoim,
até ao ultimo suspiro, ha-de conspirar.
Aqui, á roda d'esta agonia, não se discutem
apenas
os interesses d'uma familia. O drama é maior:
são os interesses dos partidos, com mil e uma
ambições
e enredos que nem sequer se suspeitam.
A confusão augmenta, redobra. O Ressano Garcia
comanda o ataque, á frente dos
batibarbas,
contra o Alpoim, e o Alpoim, que ainda hontem
atacava o João Franco, já hoje (Janeiro 1904)
diz,
depois do conluio feito pelo Silva Graça:—Com
esse me entendo eu!
[135]
Fevereiro—1904.
Hontem, terça-feira de entrudo, assisti ao espectaculo
em S. Carlos. Estava tudo, o rei, a rainha,
a côrte... Senhoras decotadas com os vestidos
presos aos hombros por uma fita. A D. Amelia
de vermelho. Andava no ar uma bola enorme de
borracha, e ao janota que quiz saltar dentro d'um
camarote tiraram-lhe as botas dos pés. Mas a risota,
a chalaça, a delicia, era um penico em miniatura,
que passava de mão em mão, por entre
as grosserias, que é do uso antigo as senhoras
dizerem umas ás outras na terça-feira gorda.
O fundo d'estes risos vem sempre da mesma
palavra pegajosa: merda! merda! merda! O rei,
gordo e louro, soprava por um canudo setas de
papel, botando o olho de revez, e houve um momento
em que o infante mostrou do camarote
o quer que era de borracha, um canudo cheio de
vento, immenso e obsceno. Foi um delirio entre
aquellas cabeças empoadas, na gente da alta roda
de que se contam baixinho os escandalos.
Ouçam um destes rapazes que estão na plateia,
e que falam das senhoras, como quem fala
com desprezo das mulheres da Antonia. Muita
desta gente não se sabe aonde vae buscar o
dinheiro. É um misterio. Aquelle louro e correcto,
[136]
que está além n'uma atitude romantica,
ainda ha dias quiz extorquir alguns contos de
reis, para o jogo, a uma mulher casada. Outro só
vive da roleta. Mais além, o herdeiro de um nome
ilustre, tem um modesto logar na alfandega, e a
mulher usa brilhantes esplendidos. Aquelle, acolá,
tão decorativo, é conhecido pelo conde de
Monta-a-Velha.
São raros os que não têm alcunhas.
A uma senhora de perfil soberano chamam-lhe a
Vareira. Outra tem um sobriquet infame. Deste
e de aquella diz-se alto a chronica escandalosa.
A mulher do S. deu este anno grande escandalo
em Cintra. Outra foi apanhada aos beijos a um
embaixador. Com aquella, mais além, fina como
uma cobra, e que ostenta um colar magnifico,
puzeram-se os B. de mal, acusando-a de lhes ter
roubado uma carteira com trezentos mil reis,
depois de terem sido todos seus amantes. A mulher
do J... deixa o marido, pé de boi rico que
só lhe serve para puxar á nora, e
gasta-lhe a
rodos o dinheiro que juntou. Eis esta mãe viciosa
com a filha ao lado—de olhos limpidos e
innocentes. Peor, ha peor... E mais esta—e
mais esta—e mais esta condessa, que n'outro
dia foi apanhada no comboio n'uma atitude peor
que equivoca...
Puz-me a ouvir, a ouvir,—verdade? mentira?—e
lembrei-me ao mesmo tempo da côrte
da senhora D. Carlota Joaquina e da
Chartreuse
de Parma.
[137]
*
O general Lencastre de Menezes:
—Se o 31 de Janeiro fosse agora as coisas
não se tinham passado assim...
Março—1904.
Morreu um dia d'estes um preto riquissimo,
que quiz por força passar por branco, o que lhe
custou os olhos da cara. Se teima em viver mais
algum tempo acabava a pedir. Rodeara-se d'uma
corte que lhe custava carissima: lisongeavam-no
e rapavam-lhe o cofre até ao fundo. Depois inventavam-lhe
processos, depois demandas... Depois
sopravam-lhe á vaidade incomensuravel. E o
preto sorria, o preto dizia sempre que sim. Tinham-no
casado com uma linda rapariga branca—e
o preto, á farta, pagara tudo, dotara tudo, a
noiva, os paes da noiva, os parentes da noiva...
E cada vez mais brancos lhe faziam a côrte e o
enredavam n'uma vasta teia de interesses, com
muitas zumbaias e papel selado.
Um dia foi a Inglaterra e quiz viajar como um
principe branco: comprou um
yacht de
luxo para
ir a S. Thomé. Cincoenta contos. Na volta não
[138]
havia carvão a bordo e deitaram-se a queimar a
madeira entalhada, os doirados do barco, as portas,
os salões, as molduras. E o preto sorria.
Quando chegou a Lisboa vendeu o barco por
uma côdea.
Rodearam-no mais brancos, apareceram-lhe
mais brancos infatigaveis, pressurosos, obsequiadores.
E mais papel selado, mais contractos e
procurações
para assignar—o enredo, a teia subtil
em que o negralhão foi arrastado e envolvido, o
verdadeiro, o authentico drama, emfim, do preto
que quer ser branco... Se elle tinha por acaso
um sobresalto, falavam-lhe logo á vaidade ou davam-lhe
noticia d'uma coisa que se chama o Codigo,
a Lei, a Formula, e o preto, que não comprehendia
e que se sentia feliz, submetia-se sem
contestar, com uma grande satisfação por fazer
parte d'esta raça ilustre e respeitada de brancos,
por ser visconde, por pertencer á côrte e
á alta
sociedade elegante.
...Antes de morrer lá lhe deram o ultimo
golpe—de preto. Os brancos ficaram-lhe com as
roças, e as propriedades de S. Thomé foram
transferidas para uma sociedade por quotas. É
o que consta por ahi, emquanto o negralhão
estoira com uma pneumonia dupla—e lá em casa
se toca desaforadamente piano, com as janellas
abertas de par em par.
[139]
Março—1904.
As obras da sala de jantar do Paço das Necessidades
custaram 180 contos.
*
O Abel d'Andrade contou-me que a modista
da mulher lhe dissera que a mulher do
Hintze lhe devia lá uma capa ha mais dum
anno.
Março—1904.
O Celso morreu ha um mez n'um dia de chuva
como este. Mas, quando o caixão chegou ao
pé
da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e
no vasto campo dos tumulos agitaram-se as cabeças
amarellas dos malmequeres. Os passaros
começaram a cantar. E viu-se logo o Brito Aranha,
de pera branca, dar um passo em frente e
fazer um discurso:—O amigo... o camarada...
descança em paz.—Depois o Cunha e Costa falou
na nossa decadencia, e por fim o Carneiro
de Moura mastigou tambem uma banalidade...
Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os
passaros não cessavam de cantar—e a meu lado o D.
João da Camara suspirou baixinho:
[140]
—Quem me dera que quando eu morrer só
o saibam meia duzia de amigos!...
Abril—1904.
O Ovidio d'Alpoim ácerca da D. Maria Emilia
Seabra de Castro:
—Mete-se em tudo. D'uma vez eu e o José
Luciano estavamos a discutir umas alterações
á
Carta Constitucional e ella começou do lado a
dar a sua opinião. O José Luciano mandou-a
embora.
D'outra vez sahia eu de casa do José Luciano
com o Antonio Candido e vinhamos á
porta da sala grande, quando ella do alto da
galeria:
—Ó senhor Antonio Candido então agora
é
que vae para Amarante, quando é cá preciso?
E é para isto que nós os fazemos pares e os
enchemos
de honrarias?...
O Antonio Candido não respondeu. Ficou
tão vexado que, de casa até á baixa,
não trocamos
palavra.
Março—1904.
As filhas de D. Carlota Joaquina, com excepção
de duas, eram tal qual como a mãe. O
Camara conta que a duqueza de Loulé, que foi
[141]
casada com o mais lindo homem do seu tempo,
estava um dia, em solteira, á janella, quando o
conde de Vimioso passou a cavallo para os touros,
já vestido de oiro e prata. Ella chamou-o,
trocaram meia duzia de palavras, elle subiu—e
depois desceu e foi tourear...
O marquez de Vallada sabia quem eram os
paes de todos os filhos de D. Carlota Joaquina.
Abril—1904.
A Hespanha concentra tropas na Galliza. Nós
não podemos mobilisar quinze mil homens. Nem
dez mil! Hontem o Pimentel Pinto queixava-se
ao Maximiliano d'Azevedo, de que nem artilharia
de campanha possuimos: a que temos ficava
liquidada no fim de meia hora de combate. A artilharia
do campo entrincheirado de Lisboa, comprehendendo
os obuzes, serve apenas para
navios imperfeitamente protegidos. Peor: o municiamento
mal chega para uma hora de combate!
Abril—1904.
O dr. Antonio Centeno protesta:
—Isto não pode ser! O ministro
deu pela
iluminação electrica do Paço de Belem
quarenta
[142]
contos! Havia quem a fizesse por sete. Agora
vae dar a iluminação electrica de todos os
paços
por trezentos contos. Ha quem a faça por
quarenta. Mas d'esta vez oponho-me porque prejudica
a Companhia do Gaz. Vou procural-o e
dizer-lho. Se teimar levo a questão para a camara
e para os jornaes.
Abril—1904.
Quem faz a politica externa é o rei e o Several.
O ministro dos estrangeiros chancela.
Abril—1904.
Isto é um paiz para estrangeiros. Não ha nenhum
que não enriqueça. Hoje afirma-se que o
Chapuy, engenheiro da Companhia Real, vendeu
machinas á Companhia por cento e trinta e tres
mil francos, que valiam setenta mil. O Croneau,
director do Arsenal, tambem está rico.
Abril—1904.
Diz o Alpoim:
—O rei não ouve ninguem. Antigamente ainda
atendia o general Queiroz, que era nosso
[143]
amigo. Agora não: só ouve os presidentes do
conselho. Tratava muito bem o Teixeira de Souza;
pois quando o Hintze resolveu pol-o na rua,
passou logo a tratal-o mal.
Maio—1904.
O alferes que no 31 de Janeiro comandava
a guarda municipal, por traz do campo de Santo
Ovidio, nas escadas da Egreja da Lapa, e que
depois comandou o fogo na rua de Santo Antonio,
garante que o Lencastre e Menezes, então
comandante do 18, não sahiu com o regimento
emquanto não viu tudo decidido. E dentro do
quartel havia socego...
—Eu disse-o depois ao rei.
*
A proposito de 31 de Janeiro sei pelo José
de Figueiredo, que o ouviu por diferentes vezes
ao Antonio Candido, que o rei e a gente do
Paço queriam um castigo exemplar. Antonio
Candido opoz-se e ficou mal visto durante muitos
annos.
[144]
Junho—1904.
Disse-me hoje o Camara que o Soveral tomou
parte, activa no tratado d'
entente
entre a Inglaterra
e a França. É hoje um dos melhores amigos
de Delcassé.
Julho—1904.
A Maria Pia, que quer ir por força ao estrangeiro,
mandou pedir dinheiro aos agiotas de Paris
sobre hypotheca das suas propriedades—chalet
do Estoril e parte do palacio das Necessidades,
que ella afirma pertencer-lhe... Ao todo
cento e oitenta contos. De intermediarios serviram
um agiota do Porto, uma mulher designada
na correspondencia pelo nome de madame Blanche,
e que recebia dez mil francos, etc.
*
Do Antonio José de Freitas:
O marquez da Fronteira nunca poude levar a
bem o casamento de D. Fernando com a
comica,
como elle lhe chamava. Uma senhora da aristocracia
conversando com o marquez:
—Fui visitar el-rei que me disse:—Não
queres
[145]
vêr a condessa?—Falei com ella e
parece-me...—hesitando—muito
interessante...
Celso Herminio.
E o marquez logo:
—A senhora já tinha, é claro,
relações anteriores
com a condessa...
Dezembro—1904.
O João da Camara repartiu com os netos de
Camillo os direitos de auctor do
Amor de
Perdição.
Os filhos de Nuno nem pão tinham no dia
em que receberam inesperadamente esse dinheiro.
O Camara, quando juntou duzentos e tantos mil
reis, escreveu á viuva e mandou-lhe metade.—N'esse
dia—disse ella ao Alberto Pimentel—não
tinha que lhes dar de comer.
*
O rei e a rainha vivem separados. Os seus
aposentos são, uns n'um extremo, outros no outro
extremo do palacio. E por ahi afirma-se que
elle, depois do tifo, ficou como Affonso VI...
Dezembro—1904.
O velho obstinado teima... Não lhe falem na
successão! Ainda n'outro dia fez uma scena, quando
a D. Maria Emilia lhe leu o artigo das
Novidades.
[146]
Um amigo disse-lhe:—Deixe lá o
Sebastião
Telles ou o Alpoim ser presidente do conselho.—Essa
hypothese não a admito eu!—protestou logo.
O Hintze está gasto, o João Franco foi acolhido
no norte como um Messias. O Beirão fez um
discurso nas camaras—talvez proposital—dizendo
que cortaria nos empregos publicos e que
não admitia direitos adquiridos senão dentro da
lei.—Elle quer inutilisar-se...—É um
tipo esgalgado,
d'astronomo, com uma grande penca—o
nariz do Beirão—motivo facil de caricatura.
Homem de costumes simples, alheado e indiferente
a corrilhos, agarrado aos seus livros
[5].
Já em Abril, no conselho d'estado, taes coisas
[147]
disse que, á sahida, afirmou:—Acabo de dar
uma enxadada na minha reputação!—Quanto
ao Alpoim desconfia que o José Luciano o quer
comer, e o Teixeira de Souza trata de crear forças
dentro do seu proprio partido: comprou
A
Tribuna e parece influenciar no
Diario.—Ao
Hintze custa-lhe a largar o poder, elle bem sabe
porquê...—Os tumultos nas camaras succedem-se
e a situação politica agrava-se.
Do rei diz-se o peor possivel. Diz-se que colocou
muito dinheiro no Banco d'Inglaterra, (11
de Junho) diz-se que deu um colar de brilhantes
á bailarina Imperio, que ahi está na zarzuella...
As questões prendem-se, e agora com o contracto
[148]
dos tabacos só se fala em escandalos. Tudo
come! tudo come! Come o Navarro, come o Mariano,
e um amigo meu, literato e jornalista,
afirma-me:—Se a Companhia dos Phosphoros
tem feito o contracto, eu estava rico.—Corre
que os republicanos se organisam e o Bernardino
Machado publicou manifesto, aproveitando
um jornal e um jornalista hespanhol:
...«Ha uma lei que domina
todas as outras na historia
da humanidade: nenhuma instituição vive, se
sustenta e se
radica senão pelo amor á liberdade. A lei, em
virtude da
qual existem instituições liberaes, cumpriu-se
nos nossos
annais contemporaneos. De 1851 a 1885 tivemos um periodo
de liberdade e de paz. Foi um periodo de ascensão liberal.
«Aboliu-se a pena de morte, e só por esse feito
se
proclamou pela lei o direito á Vida. Proclamou-se esse
direito
com toda a sua elevação, dando a todos,
inclusivamente
aos indigenas das nossas colonias, onde se acabou
com a escravatura, a faculdade de existir espiritualmente,
como uma personalidade moral. Alargou-se a liberdade religiosa,
tornando-a efectiva com o registo civil. Alargou-se
a liberdade economica pela extinção dos bens de
mão morta,
pela abolição dos monopolios e pela
criação legal das
associações de socorro mutuo e das cooperativas.
Dilataram-se
as liberdades politicas com a extensão do sufragio
e representação das minorias. Descentralizaram-se
os municipios,
deram-se as maximas franquias aos distritos e até se
exarou na Constituição o principio liberal da
eleição parcial
da Camara dos Pares. Nesse periodo, que começou ouvindo-se
a voz do grande tribuno José Estevão, parece que
resoaram
até ao final os acentos do seu verbo eloquentissimo.
[149]
«Essa epoca venturosa termina
com a morte de Sampaio,
Braamcamp e Fontes. E a prova de que todos os partidos colaboravam
nessa grande obra de
pacificação e de
liberdade, está em que foi o conservador Fontes quem
mais contribuiu para ella.
«Os partidos de governo definem-se pela sua
concepção
da constituição nacional:
Constituição liberal, partido
liberal; Constituição arbitral, partido
reaccionario. Porque
o arbitrio póde ser, num dado momento, a liberdade; mas
sempre se converte por fim em absolutismo.
«No periodo de iniciação liberal fez-se
a Constituição
quasi republicana de 1822, e, em troca, os constitucionais
da campanha da Terceira, do Cerco do Porto, de Almoster
e da Asseiceira, tiveram a carta outorgada de 1826, que foi,
consoante o livre alvedrio do imperante, a liberdade com
D. Pedro IV, e a opressão com D. Maria II. Em
oposição á
carta outorgada, Passos Manuel e os setembristas fizeram
a democratica constituição de 1838, decretada
pela
vontade da nação.
«No segundo periodo da nossa vida constitucional, que
abre com José Estevão e se encerra pouco depois
da morte
de Sampaio, periodo que inaugura entre nós o
parlamentarismo,
os regeneradores fizeram os actos adicionaes de
1852 e de 1885, que são verdadeiros pactos constitucionaes,
e não intervalos historicos, mas reformistas, constituintes,
republicanos, que apresentavam os seus projectos, qual
delles mais avançado, da reforma constitucional.
«De 1886 até hoje sopra um vento imperialista. A
inspiração,
em vez de vir da Inglaterra liberal, vem da Alemanha
cesarista. O partido progressista faz a
centralisação
dos serviços materiaes. Segue-se-lhe, no Poder, o partido
regenerador, e faz a centralisação dos
serviços espirituaes
na instrucção, e depois dissolve as
associações, rasga as liberdades
municipaes, acaba com as representações das
minorias,
legisla dictatorialmente... E, por fim, para que
toda esta centralisação não suscite
uma revolução violenta,
promulga a lei sobre o anarquismo, que é uma
ameaça
sempre suspensa sobre todos os liberaes.
[150]
«Antes de 86, o partido
republicano, como partido de
tal natureza, não era um perigo. Caminhava-se lentamente,
pacificamente, para a Republica, e não haveria ninguem
tão insensato que sonhasse fazer uma
revolução para conseguir
pela força o que se conseguiria, num prazo fatal,
pela lei e pela liberdade. Além disso, ninguem faz
revoluções
por meras fórmas. Nós, os verdadeiros liberaes,
duvidamos
se não é preferivel uma monarchia, com todas as
liberdades efectivas, com todas as
descentralisações vivas,
ou uma Republica como a francesa, em que o Poder central
é omnimodo, e o regimen autonomo local nulo.
«Depois de 86, fracassadas todas as tentativas para
regressar ao antigo caminho constitucional; fracassada a
grande, generosa e derradeira tentativa de 93 a 94; com a
fazenda publica em bancarrota; com todas as liberdades
suprimidas; com a pena de morte restabelecida para os delictos
militares e até para certos delictos civis; com a politica
do engrandecimento do Poder Real no seu auge,—toda
a gente pensa na Republica, porque ella não é
já uma
questão de mera fórma mas sim um problema
organico de
vida ou de morte para Portugal...
*
«A anarchia da nação demonstra-se: no
interior pelo
desencadeamento das forças dissolventes do caciquismo,
da plutocracia e a agitação do clericalismo e
fóra, pelas
mesmas consequencias dolorosas que se seguem a qualquer
dictadura progressista ou regeneradora. Depois da dictadura
progressista, o ultimatum, a bancarrota, a invasão
congreganista, sobresaltando os animos, como no caso da
irmã Collecta. Depois da dictadura regeneradora, Kionga,
o convenio definitivo da divida, e o fanatismo clerical,
irrompendo no caso Calmon.
[151]
«Os partidos estão
em
dissolução. O regenerador, com
dois chefes; o progressista, com a perspectiva tremenda de
uma herança tempestuosa. Mas poder-se-hão
reconstituir
dentro da monarchia? Andam varios nomes de boca em
boca: os dos srs. Dias Ferreira, visconde de Chancelleiros,
Costa Lobo, Augusto Fuschini, Anselmo d'Andrade e Augusto
de Castilho. Viu-se, porém, o caso da monarchia rodear-se
d'esses homens de positivo merito? São convidados
sequer para as suas festas, que são oficiaes e
não particulares?
«Entenderá e quererá a monarchia
apoiar-se nas classes
trabalhadoras, visto a burguezia estar contaminada?
Foi esse o sonho do socialismo do Estado de Oliveira Martins
e talvez o do militarismo democratico de Mousinho de
Albuquerque. Mas a monarchia não soube aproveitar-se
nem de um nem doutro. Oliveira Martins morria politicamente
poucos mezes depois de ser chamado ao governo.
Mousinho de Albuquerque não chegou sequer aos conselhos
da Corôa, e suicidou-se. A monarchia tinha para a
realização desse programma, alem d'esses homens,
a voz
mais eloquente dos nossos dias, a de Antonio Candido,
successor de José Estevão, que teria sabido
conquistar as
massas populares, e para captar as simpathias internacionaes
um diplomata, o marquez de Soveral, que pelas suas
maneiras e espirito, é da raça dos Palmellas.
Aproveitou-os,
porventura? Antonio Candido, desiludido, emudeceu. O
marquez de Soveral nada mais pode fazer do que abrandar
o protectorado inglez.
«Hoje as massas afastam-se cada vez mais da monarchia,
porque, como tudo se concentrou no Poder Real, todas
as responsabilidades se lhe atribuem; o protectorado
inglez serve para salvaguarda da monarchia; a ruina financeira
do paiz vem da confusão dos dois erarios, e até o
jesuitismo, se bem que não se imputa ao rei, é
comtudo
imputado aos que o rodeiam.
[152]
«Não é
licito pois esperar a
salvação dentro da monarchia.
Por grande que seja a cultura do chefe do Estado,
por muito que seja o seu valor, a empreza da nossa
regeneração
não é para um
individuo só. Só a nação
é que pode
erguer sobre os seus hombros tão imenso peso.
«E não se diga que a monarchia está
identificada com
a independencia da patria. A nação foi, com
efeito, sempre
monarchica; mas desgraçadamente a monarchia tem-se encarnado
na monarchia usurpadora dos Filippes, no governo
napoleonico de Junot, no governo de Beresford, sob Jorge
IV. A monarchia teve um papel soberano no começo da
nossa Historia, mas foi-se gradualmente divorciando do
povo.
«E as nossas alianças? Essas não
são dos reis, mas
dos povos. A aliança da Inglaterra é com
Portugal, e não
com as suas fórmas de governo.
*
«É indispensavel organisar as forças
vivas da nação
portugueza.
Organisando-se o partido republicano
salvar-se-ha
a nação. É preciso
que o partido republicano se transforme
em partido do governo, e que cesse com a sua obra
de demolição, já feita. Se
não pode alcançar logares no parlamento,
conquiste-os nos municipios; se não pode intervir
no municipio, intervenha na parochia. Não deixe ao abandono
nenhum logar, por minimo que seja. E faça sobretudo
por apoiar todas as justas reivindicações dos
pobres e dos
humildes.
«Deve ser um partido republicano profundamente socialista.
Quando os republicanos, por meio de toda a sua
campanha, se mostrarem homens de governo, podem estar
certos de que a Republica se fará em Portugal como se fez
no Brasil, e á maneira do que succedeu em 1871, em
França,
onde a Assembleia Legislativa, com uma maioria de monarchicos,
elegeu para seu chefe o republicano Grévy e para
chefe do Estado Thiers, que era um monarchico convertido
á Republica.
[153]
«A Republica em Portugal
é necessaria para elevar
a
sua cultura, para acabar com o numero incrivel de analfabetos,
para se consagrar á educação do povo.
O estado
actual o demonstra: tanto é certo que
quando sofre a liberdade
sofre tambem com ella a
instrucção.
«A Republica em Portugal é necessaria para que a
religião
seja a união das almas pelo amor, como na economia
social o é pelo trabalho. As ordens religiosas atacam
não
só o Estado como a verdadeira religião, cujos
primeiros vinculos
devem ser o amor da familia, a cooperação
economica
e o progresso politico da sociedade. O primeiro é combatido
e negado pelo voto de celibato; o segundo pelo voto
de pobreza, e o terceiro pelo voto de obediencia servil.
«Torna-se necessario defender a religião como um
principio
immanente de justiça e de bem, e não como uma
superstição
e um instrumento politico. O partido republicano
não pretende destruir a religião; o que
nós pretendemos é
tornal-a sincera e pura, tornando-a voluntaria e livre.
«A aspiração do partido republicano
encerra-se nestes
tres principios: liberdade politica, liberdade
economica e liberdade
religiosa. Em nome de todos que querem saber, e
não podem, oprimidos pela reacção
politica, essa infinidade
de creaturas analfabetas; em nome de todos os que
querem trabalhar e não podem, oprimidos pela
reacção
economica, essa infinidade de proletarios; em nome de
todos os que querem amar e ser bons e em cujo seio a
reacção religiosa lança a semente de
odio; em nome dessa
infinidade de santas e piedosas mulheres que o clericalismo
tenta desvairar e arrastar para fóra dos seus deveres; pelos
pobres, pelos humildes, pelos fracos, saudemos a Liberdade
e com ella o unico partido que hoje a sustenta e defende
em Portugal: o partido republicano.
«Se a Republica que não pede senão o
restabelecimento
e o respeito á lei, não vier bem depressa,
corromper-se-ha
e perder-se-ha o santo fundo deste povo exemplar,
um dos modelos de virtude, de paciencia e de
resignação que existem sobre a face da
terra».
[154]
D'outubro para novembro cae o governo,
abalado pela questão dos tabacos: os homens
estão cada vez mais divididos por
ambições e
interesses. D'um lado os Phosphoros, do outro os
Tabacos; dum lado o
Seculo e o
Navarro, que
ainda ha tres dias (Novembro) teve uma conferencia
com o José Luciano, dizendo depois á
familia:—O
José Luciano está cada vez mais
velhaco!—De
outro o Burnay e o seu grupo...
Os homens vão dia a dia diminuindo de estatura
moral! Ainda hontem alguem me contou
esta anecdota que define uma figura:—O Rebello
da Silva era muito amigo do Latino—mas
muito mais amigo ainda da sua ambição:
queria ser ministro depressa. Um dia, de repente,
cessou com as visitas que fazia ao grande escriptor.
Tinha descoberto um prefacio antigo, em
que o Latino advogava a união iberica, e foi para
as camaras atacal-o. A questão durou tres dias, o
governo cahiu, e o Rebello da Silva substituiu o
Latino na pasta da marinha. Nessa mesma noite
procurou-o de novo, e foi encontral-o a lêr serenamente
uma grammatica russa, cujo estudo
interrompera durante o tempo do governo.
—Tu já sabes, se queres alguma coisa é
como
se fosses ministro.
—Eu?!...—e sorriu-se, encolhendo os
hombros. Mas tão triste, tão sereno, que o outro
ficou gelado...
[155]
Dezembro—1907.
O velho major Fumega, em conversa com outro
militar reformado:
—Em 66 o Saldanha d'acordo com o Prim,
tinham resolvido proclamar o D. Luiz imperador
da Iberia. Chegaram a distribuir dinheiro aos
sargentos. A mim, que era então sargento, deram-me
seis contos, para distribuir dezoito tostões
por soldado. Tornei a entregal-os intactos.
Se fosse hoje gastava-os no brodio.
—Eu apanhei trezentos mil reis e dei cabo
d'eles.
—O movimento abortou, porque foi denunciado
pelo Graça, mais tarde celebre como major
Graça, no 31 de Janeiro, que, depois de assignar
as actas, como quartel-mestre, descobriu tudo.
Era um denunciante, foi-o sempre—conclue o
Fumega, fumando placidamente o seu cigarro.
Dezembro—1907.
O D. Carlos a um oficial do exercito, depois
da lucta com o João Franco, das descomposturas
ao rei, etc.,—e referindo-se aos politicos:
—Tu ouvel-os falar, não é verdade? Pois
se
[156]
lesses as cartas que todos os dias me escrevem,
e que estão alli n'aquella gaveta, enchias-te de
nojo!
Dezembro—1907.
Conta-me o D. João da Camara:
—A rainha era amicissima do meu irmão, o
conde da Ribeira Grande. Visitou-o seis vezes
durante a sua doença. N'uma das ultimas noites
elle puxou-a a si, beijou-a, e explicou:
—É como se fosse minha filha.
Já na agonia, ella entrou-lhe no quarto e elle
pode ainda dizer-lhe, n'um ultimo arranco, estas
palavras proheticas:
—Os politicos! Cautela com os politicos!
E ella respondeu-lhe:
—Descanse, não ha-de ter duvida, se Deus
quizer.
*
Era um pouco apagado, mas bondosissimo.
D'uma vez uma senhora foi dar-lhe os pezames
pela morte do filho. Tinha-lhe tambem morrido
um filho fazia um mez e desatou a chorar, a falar
n'elle, cheia de saudade e de lagrimas. E o
conde da Ribeira, esquecendo a propria dôr,
passou a consolal-a...
[157]
Janeiro—1908.
O Fialho conta, indignado, que a viuva do
Eça de Queiroz, a quem o Estado dá uma
pensão,
vae vender uma propriedade no Alemtejo,
por cento e tantos contos.
—Veja você que pouca vergonha! São uns
poucos de kilometros de terra de semeadura e
montado de azinho e bolota, que sustenta um
cento de cevados! Bem sei que metade da propriedade
é da irmã, da mulher do Luiz Osorio...
Ainda assim são cincoenta contos. Mas n'este paiz
faz-se tudo o que o senhor Arnoso quer!...
Janeiro—1908.
Um oficial d'armada, ao José de Figueiredo:
—Todos os oficiaes d'armada, á
excepção
de meia duzia, não podem vêr o rei, a quem chamam
o pulha. Se houvesse em terra um
movimento
republicano, secundavam-no logo.
*
Diz-se por ahi:
—Venha tudo, venha o peor, venha o diabo
do inferno, que nos livre d'isto!
[158]
Janeiro—1908.
No
Turf e no
Club
Tauromachico joga-se sempre
escandalosamente. O conde de... lá vae outra
vez para a Africa, arruinado pelo jogo no
Club
Tauromachico, o visconde de... tambem lá
perdeu
uma fortuna.
Janeiro—1908.
Grosso escandalo com o livro do Albuquerque,
O Marquez da Bacalhôa.
Este Albuquerque,
conhecido pelo
Lendea, é
o ultimo descendente,
pelo pae, do grande Afonso d'Albuquerque, e,
pela mãe, do grave, do douto João de Barros.
Ainda aqui ha annos, quando o rei visitou uma
terra de provincia e se hospedou na casa delle,
sahiram das lojas caixotes de louça da India, que
nunca tinham sido abertos. Elle tem tido uma
vida de aventuras: bateu-se em duello em Madrid,
caçou no Cabo com lords, tocou guitarra
em Ourville e teve uma loja d'instalações
electricas
na Italia. Agora é jornalista, escriptor, poeta
e publica este livro d'escandalo, em que a rainha,
Senhora na mais alta acepção da palavra,
é
posta de rasto... Mas faça-se-lhe justiça: tudo
aquillo—e peor—anda por ahi de bocca em
[159]
bocca ha muito tempo. E não vem de baixo—vem
de cima...
*
Do Paço mandaram buscar um exemplar á
livraria Ferreira.
Janeiro—1908.
O rei em Villa Viçosa caça; o João
Franco
em Carnide dorme com a casa cercada de policia.
Fala-se em conspirações, na tropa, em
transferencias
d'oficiaes e sargentos. O Maximiliano
d'Azevedo disse hoje na livraria ao Bernardino
Machado:
—Isto cheira a cadaver...
—Cheira a polvora, é que
é—respondeu
lhe elle.
Espera-se tudo: a falencia, tiros, a revolta.
Ha prisões—fala-se em mais prisões
ainda e os
jornaes estão garrotados.
*
O Maximiliano d'Azevedo:
—É falso que fosse o Correia de Barros quem
matou a Manuela Rey. Disse-me muitas vezes a
Emilia Adelaide como o caso se passou: Um irmão
[160]
do Tanas (Pereira das Neves) fez a corte á
Manuela. Ella aceitou-lha, e uma noite o Correia
de Barros surprehendeu-os. O Tanas, ao vel-o
brandindo a bengala, saltou por uma janella. A
Manuela fugiu e foi para a rua das Galinheiras,
para uma casa onde morava a cabeleireira do theatro,
e deitou-se vestida sobre a cama, a chorar.
Debalde o Correia de Barros lhe perdoou:
—Não! Não!
Chorou—e morreu. Já estava tisica ha muito
tempo.
*
E conta-me tambem:
—A Emilia das Neves estava n'uma casa de
mulheres. Deram com ella por acaso. Quem primeiro
a ensaiou foi o Garrett. Tinha genio: mal
sabia lêr e toda a vida deu sylabadas.
Janeiro—1908.
O governo retira as munições a alguns regimentos
e á marinha: só tem confiança na
guarda.
Diz-me o Schwalbach:—«Ouvi-o da bocca do
oficial encarregado d'esse serviço. A noite passada
retiraram as munições a um regimento da
capital». Corre com insistencia que o coronel Albano
[161]
da Fonseca morreu envenenado... Os navios
de guerra foram desarmados, sob pretexto
de estudo de renovação e
adaptação das munições,
que se removeram para o serviço de torpedos.
O Maximiliano diz-me tambem que varias
peças do campo entrincheirado ficaram assestadas
sobre os navios de guerra.
Gomes Leal.—Desenho
de Antonio Carneiro.
*
O Fialho está um franquista ferrenho:
—O João Franco já me mandou chamar
tres vezes.
E, como eu me espante de o vêr conservador,
elle diz:
—Fui-o sempre. Já esse maroto do Arnaldo
Fonseca dizia a meu respeito:—É um bohemio
que trata a roupa com nephetalina!
*
A Angela Pinto está com um preto que lhe
poz automovel.
—Ó Angela, então tu agora?!
—Vocês que querem? Não andam todos os
dias ahi a prégar que o futuro de Portugal está
nas nossas colonias?
[162]
Janeiro—1908.
Prenderam hontem o Antonio José de Almeida.
O João Barreira conta-me que a policia
apanhou sessenta rewolveres aos republicanos,
mas não descobriu os depositos d'armamento.
O João Pinto dos Santos diz:
—A prisão de Antonio José d'Almeida
é
um
ensaio. Se virem que as massas populares não
protestam, desatam a prender a torto e a direito.
Eu estou aqui estou preso: o João Franco
odeia-me.
*
Um livreiro:
Fizeram mal em prohibir
O Marquez da
Bacalhôa.
Já ha quem tenha dado por um exemplar
tres mil reis, e o preço corrente é agora de dez
a quinze tostões... Se o queriam inutilizar
aprehendessem-no,
tanto mais que toda a gente sabia
onde era impresso.
28 de Janeiro—1908.
A atmosphera é electrica.—Isto não pode
ser! isto não pode ser!—ouve-se a cada passo.
Toda a gente espera acontecimentos. O boato
corre de ouvido para ouvido: o comandante
[163]
da municipal afirmou ao rei que não podia contar
com a guarda para combater a tropa; ha tumultos
no Porto e Villa Real; está assignado um
decreto expulsando do paiz republicanos e dissidentes;
e—sabem? sabem?—o movimento é
preparado pelo João Franco para tomar medidas
d'excepção... O Coelho de Carvalho, de grandes
barbas brancas, sempre ironico, pontifica na
livraria Ferreira:—Tudo isto obedece a um plano
para estabelecer o protectorado inglez, com o
rei gordo e replecto, e a dotação augmentada
em cento e sessenta contos, pagos em oiro.
Ás sete da noite encontro o Alpoim que me
pergunta ancioso:—Que ha? que ha?...—Eu
sei... diz-se por ahi que varios oficiaes se reunem
no Arco da Bandeira....—Só?—E arranca-me
das mãos o
Correio da
Noite:—Vem feroz! vem
optimo!...—No comercio não se desconta uma
letra. A rua do Oiro não tem metade do movimento
habitual. Consta que o João Franco disse
hontem:—Dá-se-lhes
uma sangria...—O que eu
lhe posso garantir, e sei-o por uma senhora de
relações intimas do João
Franco—diz o
Fialho,—é
que elle passa as noites sem dormir.—Medo—ou
revolução? As mulheres vão buscar os
maridos
ás repartições e aos bancos, outras,
na previsão
de acontecimentos, fornecem-se á pressa
nas lojas. Ha nervos na atmosphera. A questão
dos adeantamentos levantou todo o paiz contra
o rei. Ha muito que o D. Carlos é visado,
[164]
discutido e injuriado. Atribuem-se-lhe todos os
males. O Hintze morreu: foi elle quem matou o
Hintze com desgostos. Os Braganças são todos
ingratos. Que quer o rei? O rei só quer dinheiro,
o rei chama ao paiz, que despreza, a
piolheira,
o rei é um ladrão. Dizem-no até os
cavadores
d'enxada da provincia:—O rei é um
ladrão!
o rei é um ladrão!—Gera-se
não sei
que excitação
que se apega e propaga. Todos estamos debaixo
da mesma pressão a que não ha fugir. Nas
esquinas ainda se vêem farrapos de cartazes,
anunciando o folhetim
Soror Amelia,
com o retrato
da rainha vestida de freira...
O que os jornaes de grande circulação
não
se atrevem a dizer, o
Seculo, o
Mundo, o
Noticias,
propala-se de ouvido para ouvido, ou publica-o
o
Correio da Noite, do velho
José Luciano, que
ataca com violencia o rei e o governo.—Que
há? Que há?—Um policia aliciado pelo
João
Chagas denunciou a revolução; o juiz ao
lêr o
depoimento do Antonio José d'Almeida,
exclamou:—Ora
até que emfim encontro um homem!—O
Cunha e Costa pequenino, d'oculos e olho
esperto atravez dos vidros:—Vocês que
querem?
Está tudo minado. Hoje, ao entrar na
Boa Hora, deparei com este quadro: d'um lado
da porta um municipal lia
O Mundo,
do outro,
outro municipal lia
A Lucta.
E no entanto a vida segue o seu curso habitual:
todas as noites enchentes nas revistas,
Ou
[165]
vae... ou racha, Pr'a frente! Todas
as noites o
mesmo falatorio no Rocio, o mesmo formigueiro
humano seguindo as suas manias, as suas ambições,
os seus interesses...
*
Os populares atacaram as esquadras. No
largo do Rato um bando, que queria matar o
João Franco, entrou n'um café. A policia tentou
apalpal-os—defenderam-se a tiro. Um cahiu varado:
e retiraram em ordem, fazendo fogo. Na
esquadra dos Terramotos trocaram ainda balas
com os guardas. Havia um plano de revolução?
É fóra de duvida. Lançaram-se bombas
que não
explodiram a varias esquadras—á do Campo de
Sant'Anna, por exemplo. A policia estava, prevenida,
e prendeu-os, quando um grupo de dissidentes,
Alpoim, João Pinto, Ameal, etc., se dirigia
para o elevador da Bibliotheca, no intuito de
lançar um foguetão, que desse o signal
á esquadra
e a varios grupos que, ao mesmo tempo e
em diferentes pontos, deviam assaltar os quarteis.
Só o Alpoim e o Ameal conseguiram fugir.
No elevador havia armas, destinadas ao ataque
dos correios e telegraphos. No forte de Caxias
estão presas 93 pessoas, e presos estão tambem
o Afonso Costa, o João Pinto dos Santos, o Ribeira
Brava, etc. A policia desandou então a prender
a tôrto e a direito. O José de Figueiredo que
[166]
mora no Campo de Sant'Anna, por cima da esquadra,
ouviu isto: Ao telefone, o chefe da esquadra
para o governo civil:—Já prendemos
quatro.—Prendam mais.—Era preso quem passava
na rua.
Á revolução adheriam varios oficiaes e
toda
a armada. Havia fanaticos decididos a correr a
municipal á bomba, e todo o trabalho do directorio
parece que foi sustel-os á ultima hora.
Varios bandos foram prevenidos logo que o
signal falhou. Os que esperavam no
café do
Rato, a hora do assalto á casa do João Franco,
foram presos. Um creado do Moura Cabral,
que m'o contou, foi aliciado para atacar a esquadra
da Graça—e deram-lhe um rewolver e bebidas.
Em diversas partes tem sido encontradas
bombas, e diz-se que quem denunciou um deposito
d'armas, escondido em casa d'um negociante,
foi uma irmã dum actor de D. Maria.
*
—Isto—toda a gente o afirma—acaba
logicamente
no atentado pessoal.
30 de Janeiro—1908.
Corre com insistencia que o João Chagas
morreu d'uma pleurizia no hospital.
[167]
*
Os
bufos são aos centos.
Pára-se a conversar—tem-se
logo um
bufo á perna. O
Baracho procurou
hoje o ministro da guerra e declarou-lhe:
—Eu não conspiro; portanto não me
mandem
espionar, senão corro os
bufos a tiro. Se
desconfiam de mim, julguem-me, que eu me defenderei.
E deixe-me tambem dizer-lhe uma coisa:
Os senhores não hão-de ser sempre ministros.
Se me incomodam ou me infamam, quando deixarem
de o ser, eu lhes tomarei as responsabilidades.—Ao
que o ministro respondeu:—Se soubesse,
general, as saudades que eu tenho do meu
caminho de ferro!...
*
Tem sido tambem presos alguns oficiaes do
exercito. E o Fialho faz
blague:
—Desde que a policia entrou no caminho
das descobertas, foi dar com a escripturação
completa da revolta. Tudo por ordem e por partidas
dobradas. Uma revolução burocrata!
31 de Janeiro—1908.
Sabem qual é a impressão geral? Pena de
que o movimento gorasse.
[168]
*
Até as mulheres estão furiosas com o Franco.
Ha-as que dizem:—Eu vou matal-o!—Mas ha
tambem quem o defenda e aplauda como nenhum
ministro foi defendido e aplaudido. Um padre
franquista barafusta em plena rua do Ouro:
—Eu até agora dizia que o João Franco
tinha
uns c... que não cabiam em Lisboa. Agora
não, agora digo bem alto: o João Franco tem
uns c... que não cabem em Portugal!
*
O Bernardino Machado:
—Sabe o que isto parece? Parece que o rei
disse ao João Franco, entregando-lhe uma
carabina:—«João
arranja-me dinheiro».—O João
Franco executa.—«João torna a levar a
carabina
e traz mais dinheiro».—E a atitude vergonhosa
das nações estrangeiras que assistem com
aplauso a este espectaculo! Porquê? Pelo que eu
disse um dia d'estes a um negociante francez:—Ha
um dictado em Portugal que explica tudo:—Ladrões
não se encobrem de graça!
1 de Fevereiro—1908.
O João Franco responde aos clamores e á
revolta com o decreto d'hoje:
[169]
Senhor—São bem
conhecidas
de Vossa Magestade as
occorrencias dos ultimos mezes, em que uma pequena minoria
d'elementos revolucionarios criminosos tem ultimamente
procurado impedir a vida politica e representativa
do Paiz, alterar a ordem publica e pôr em perigo a
segurança
das pessoas e das propriedades.
Imperturbavelmente tem o governo obedecido ao proposito
de limitar a acção das medidas de circumstancia
á
esphera restricta de legitima defeza social, reduzindo-as ao
que de momento se tem afigurado absolutamente indispensavel,
sempre na esperança de que essa
publicação fosse
um meio preventivo sufficiente e constituisse aviso efficaz
aos agitadores.
D'essa ordem d'ideias derivaram o decreto de 21 de
Junho sobre publicações attentatorias da ordem
publica e
o de 21 de Novembro sobre crimes contra a segurança do
Estado, das pessoas e das propriedades.
Factos dos ultimos dias vieram, porém, demonstrar
que as tentativas e propositos criminosos, longe de afrouxarem,
se teem mantido obstinadamente e aggravado a
ponto de ser urgente e indispensavel o rapido afastamento
do nosso meio social dos principaes dirigentes e instigadores
d'esta pertinaz conspiração contra a paz publica
e segurança
do Estado antes que perdas lamentaveis de vidas
venham accrescentar se ás desgraças já
occasionadas e, porventura,
originar prejuizos irremediaveis ao credito publico
e á fortuna nacional.
Ha poucos dias ainda, o governo da Nação vizinha
apresentou ás côrtes um projecto de lei que
auctoriza a fazer
sair do reino por deliberação do conselho de
ministros, sob
prévia informação das auctoridades
locaes, as pessoas que
pertençam a associações hostis
á ordem social e que de
semelhantes principios façam propaganda, e como sejam
estes factos muito graves e perigosos, seguramente não o
são mais nem podem ter mais larga, mais profunda
repercussão
em toda a vida nacional que os tramas e attentados
para mudar violenta e criminosamente a forma de governo
de Estado.
[170]
N'essa ordem d'ideias, procuramos com o
presente diploma,
habilitar tambem o governo com a faculdade d'expulsar
do Reino ou fazer transportar para uma provincia
ultramarina aquelles que, uma vez reconhecidos culpados
pela auctoridade judicial competente, importe á
segurança
do Estado e tranquillidade publica e interesses geraes da
Nação afastar, sem mais delongas, do meio em que
se mostrarem
e tornarem perigosa e contumazmente incompativeis.
Não podem, por egual, gosar immunidades parlamentares
aquelles que contra a segurança do proprio Estado
se manifestam ou que como inimigos da sociedade se
apresentam.
Taes são, Senhor, as principaes
disposições do diploma
que tenho a honra de submeter á
apreciação de Vossa
Magestade.
Paço, em 31 de Janeiro de 1908.
João Ferreira Franco
Pinto Castello Branco—Antonio
José
Teixeira
d'Abreu—Fernando
Augusto Miranda Martins de Carvalho—Antonio
Carlos Coelho Vasconcellos Porto—Ayres
d'Ornellas
de
Vasconcellos—Luciano Afonso da Silva
Monteiro—José
Molheira Reymão.
*
O Alpoim fugiu para a Hespanha.
*
O Cunha e Costa:
—Ha mais de duzentas pessoas apostadas em
matar o João Franco. Isto acaba por um atentado
pessoal.
[171]
1 de Fevereiro—1908.
Está uma tarde linda, azul, morna, diaphana.
Converso na livraria Ferreira com o Fialho,
quando entra esbaforido e palido, o pintor Arthur
de Mello, que conheço do Porto, e diz n'um
espanto, ainda transtornado:—Acabam de matar
agora o rei!—O quê?!—Eu vi, ouvi os
tiros,
deitei a fugir...
Fecham-se á pressa os taipaes das lojas. Uma
mulher do povo exclama:—Mataram agora o rei.
Vi os que o mataram. Eram tres. Dois lá estam
estendidos. Passou um agora por mim, a rasto,
com a cabeça despedaçada!...—Ha palmas
para
o lado da praça da Figueira. Anoitece. Um
esquadrão
desemboca da rua da Mouraria... Mais
tarde no comboio, um empregado do Jorge
O'Neill confirma:—Vi do escriptorio um policia
correr atraz d'um dos assassinos. A certa altura
cahiu-lhe o chapeu: era calvo. O policia varou-o
com um tiro.
E pela narração do Mello, do Armando Navarro
e d'outros, que assistiram, reconstituo
assim a tragedia:
O comboio descarrilara. Seguia atrazado. Durante
o trajecto o rei não fumou nem jogou,
como costumava. Vinha aprehensivo e a autopsia
demonstrou mais tarde que não tinha comido
n'esse dia.
[172]
O Malaquias de Lemos contou que na vespera,
em Villa Viçosa, o rei jogara com o principe.
Era ao entardecer. Na chaminé um grande
brazeiro. Trouxeram-lhe uma carta. Para a lêr
melhor, levantou-se, chegando-se á janella. Duas
vezes a percorreu com a vista, e depois rasgou-a
em bocadinhos que atirou ao lume. Petrificou-se
um momento envolto na sombra...—El-Rei não
joga?—perguntou o principe.—Jogo,
jogo...—Sentou-se,
jogou, mas tão preocupado que quasi
não jantou n'esse dia nem almoçou no seguinte.
Nem uma nuvem. «Tarde sem par»—escreveu
Ramalho.—Linda tarde para uma bomba—exclama
uma menina da alta, na ponte da estação.
Havia, é natural, um certo receio, e a duqueza
de Palmella, ao ouvido de João
Franco:—Não
haverá perigo?—V. Ex.
a vae
ver que
ovação!—Tinha-lha
preparada para a recita da noite, em
S. Carlos. O rei e a rainha detiveram-se uns minutos,
com o João Franco e o Vasconcellos Porto,
que queria mandar vir um esquadrão de cavalaria
para acompanhar o rei. D. Carlos opoz-se.
O carro descoberto partiu a chouto, com toda a
familia real junta. Ao pé da estatua um grupo...
Dissiminados pela Arcada alguns policias, e, sentado
n'um banco da praça um homem de varino,
que veio, sem precipitação, colocar-se
á porta do
ministerio do reino
[6].
[173]
Os empregados da fazenda tinham-no notado.
Seria um bufo? Os bufos eram tantos, que se não
conheciam uns aos outros.—«Eu assisti—diz
o Navarro.—Fui
para lá uma hora antes fumar o meu
charuto. Tres descargas cerradas partiram da Arcada
do ministerio da fazenda. Ficou tudo desorientado.
Os policias deitaram a fugir»... Um negociante
da rua de S. Julião teve de os sacudir
da escada. «Eu estava a quatro passos—confirma
o pintor Mello. Um homem subiu ás trazeiras do
carro, olhou o rei cara a cara e deu-lhe um tiro
de rewolver. Vi um fumosinho branco sahir-lhe
do pescoço. O rei voltou-se, e, cem annos que eu
viva, nunca mais me esquece a expressão de espanto
d'aquella mascara. Disse uma palavra que
não percebi bem»...—«Ao
primeiro
tiro—continua
o Navarro—a cabeça do rei descahiu para
a frente, ao segundo tombou para o lado». O
Buiça, que tirára a carabina debaixo do
gabão,
apontava e descarregava. O principe real ergueu-se—cahiu
varado. A rainha, louca de dôr,
sacudia o Alfredo Costa com um ramo de
flores.—Então
não acodem?! Não ha quem me
acuda?!—Ninguem.
Um cartuxo falhara ao Buiça:
sacou-o, e ia apontar outra vez, quando o Francisco
Figueira o estendeu á cutilada. Ouvi que,
[174]
logo aos primeiros tiros, alguem procurara intervir—mas
uma roda de gente desconhecida protegeu-o.
Succederam-se então os tiros sem
interrupção.
Muita gente falou em descargas... A policia
disparava os rewolveres a torto e a direito.
O Correia de Oliveira esteve para ser morto:—Vinha
de chapeu alto e foi o que me valeu!...
Um policia avançou direito a mim com o rewolver
apontado, exclamando como um doido:—Matei
agora um! matei agora um!
*
Correu hoje que o João Franco se suicidára
e que o tinham acabado a tiro quando sahia do
Paço.
*
O infante D. Afonso seguia desvairado atraz
do carro, com o rewolver em punho, dizendo:
—O mano nunca quiz ouvir os conselhos
da mãe!
Depois, no Arsenal, para onde foram conduzidos
o rei e principe, teve este movimento colerico:
bater no João Franco.
*
Acusam á boca cheia o João Franco—que
não tomou precauções para o
rei—de se
meter
[175]
por um corredor quando foi ao Arsenal, e de, mais
tarde, endireitar por uma cavalariça, para se enfiar
na carruagem. De alguns ministros diz-se
que, aos primeiros tiros, se esconderam no sotão
dos ministerios entre a papelada e as cadeiras
sem fundo.
*
A rainha no Arsenal disse ao João Franco:
—Veja a sua obra...
*
O rei chegou ao Arsenal já sem vida; ao
principe custou-lhe muito a morrer. Foram ungidos
depois de mortos. O padre não teve escrupulos,
porque os medicos garantiram-lhe que
a vida podia prolongar-se por meios artificiaes.
*
Do Arsenal seguiu a marcha tragica para as
Necessidades; n'um carro a rainha e o D. Manuel,
n'outro carro o cadaver do rei, que a custo
conseguiram meter lá dentro, e que o oficial de
serviço amparava, e, no ultimo, o duque de
Bragança.
Que se iria seguir? A revolução? Um negrume,
o terror do inesperado, afasta do Paço
todos os que lá deviam estar áquella hora. Vem
a noite... Se seis tambores fossem rufar para
[176]
deante do Paço a monarchia acabava hoje mesmo.
Espera-se tudo, espera-se o peor. E cada
um trata de não se comprometer, ou de se comprometer
o menos possivel...
*
Phrase cruel d'um popular:
—Foi caçado como elle caçava os
javardos—e
em tempo defezo.
*
No dia dois, depois da morte do rei, foram
assaltados alguns quarteis, evidentemente chamando
as tropas á revolução. Em artilharia
os
soldados sahiram das casernas e fizeram fogo:
os oficiaes não os puderam conter. Em Campo
d'Ourique houve tiroteio. No alto da Avenida
ficaram estendidas vinte e tantas pessoas.
*
A caminho do Paço, depois do atentado, o
pequeno dizia:
—Vamo-nos embora! vamo-nos embora!...
E a rainha:
—Has-de cumprir o teu dever até ao fim.
D. Carlos I de Portugal.
[177]
O organisador da revolta militar era Candido
dos Reis, oficial superior da armada. Muitos oficiaes
se reuniam no Arco da Bandeira.
*
Na tarde do regicidio estavam na Arcada
homens com faixas á espanhola e as faixas
cheias de bombas. Diz-se tambem que havia varios
grupos postados nas esquinas até ás Necessidades.
*
A rainha, quando o João Franco chegou
ao Paço:
—Foram portuguezes?
—Foram.
—Ahi tem o que o senhor fez dos portuguezes.
E a Maria Pia, que há muito o não pode ver:
—Diziam por ahi que o senhor era o coveiro
da monarchia, mas o senhor foi peor, foi o assassino
do meu filho e do meu neto!
Isto cheira a phrase feita, mas como esta repetem-se,
insiste-se, inventam-se outras mais.
*
O João Franco tinha perdido a cabeça.
Só
elle mandava: não queria ouvir ninguem. Quando
[178]
fugiu d'uma esquadra um homem que estava
preso pelo fabrico de bombas, o juiz d'instrucção
criminal foi-lhe dar parte do caso. Ficou
furioso:
—Vá beber da merda!
—Digo a V. Ex.
a que a policia
não
teve culpa...
—Vá beber da merda o senhor e a policia!
—Mas...
—Vá beber da merda! vá beber da merda!
vá beber da merda!
*
Diz-se que o Alpoim estava escondido em
casa do Teixeira de Souza e que fugiu emquanto
a policia lhe cercava a casa.
*
Paçô Vieira:
—Na noite do regicidio fui ao Paço, com o
Campos Henriques. O Julio de Vilhena, a quem
procurei em casa, não foi porque lhe faltava um
botão na braguilha. Assisti a tudo: tiraram o rei e
o principe de dentro do carro. O rei estava disforme.
A rainha, se tinha dito alguma coisa desagradavel
ao João Franco no Arsenal, no Paço
não lhe disse palavra. A Maria Pia perguntava
de quando em quando:—A mo
—Na noite do regicidio fui ao Paço, com o
Campos Henriques. O Julio de Vilhena, a quem
procurei em casa, não foi porque lhe faltava um
botão na braguilha. Assisti a tudo: tiraram o rei e
o principe de dentro do carro. O rei estava disforme.
A rainha, se tinha dito alguma coisa desagradavel
ao João Franco no Arsenal, no Paço
não lhe disse palavra. A Maria Pia perguntava
de quando em quando:—A morte do rei será
muito sentida?—Estava tudo preparado para
[179]
uma revolução. O Afonso Costa não deu
o signal
porque esperava a morte do Franco. Pormenor
absolutamente authentico: o João Franco ainda
se ofereceu para governador civil de Lisboa.
—Na noite tragica o Antonio Candido foi
dos raros que apareceram no Paço. Estavam lá
tambem o Campos Henriques e o Teixeira de
Souza. Mais ninguem—nem sequer o corpo diplomatico.
Esperava-se a cada momento a revolução.
Os creados carregaram em padiolas pelas
escadas acima os corpos do rei e do principe.
A D. Amelia passeava na sala de cá para lá,
infatigavelmente. Passou, perguntou-lhe:—Que
diz o Antonio Candido?—Elle não respondeu e
ella continuou a passear de cá para lá como um
automato. A rainha velha estava sentada n'uma
cadeira, sem uma palavra, sem uma lagrima,
d'olhos vitreos fixos na parede. E assim ficou
horas, muda e de pedra, emquanto a D. Amelia
passeava na sala, de cá para lá,
infatigavelmente...
3 de Fevereiro—1908.
Venho agora de Lisboa e—caso curioso—a
impressão geral é d'alivio. Respira-se. Estava
muita gente n'um grupo: o João Barreira, o Armando
Navarro, o Rangel de Lima, o Antonio
Arroyo, o Columbano, o Maximiliano d'Azevedo,
[180]
e todos concordaram em que o rei era mau e
quasi glorificaram os homens que o assassinaram.
—Era um pulha, um pulha e um doido. Vejam
o retrato que vem estampado no
Je sais
tout... Era elle quem escrevia cartas anonimas
á
propria mulher—afirma o João Barreira.
—Foi um grande exemplo e uma tremenda
lição.
—Se escapa tinhamos ahi uma dictadura feroz.
Era capaz de tudo!
Só o Manuel Ramos, obstinado e cego, teima:
—A memoria do rei há-de ser rehabilitada.
*
No conselho d'estado o João Franco foi absolutamente
inconsciente. Por proposta do Julio de
Vilhena não se leram as actas da sessão anterior,
como é costume, para lhe não ser completamente
desagradavel.
*
O João Franco teimou até á ultima,
agarrou-se
a tudo, para meter um ministro no governo—o
Penha Garcia. Disseram-lhe:
—Mas não pode ser, bem vê que o governo
tem de revogar a maior parte das suas medidas.
—Mas eu concordo com isso. Eu escrevo até
uma carta concordando com isso.
[181]
*
A ultima piada do ministro dos estrangeiros,
Luciano Monteiro:
—Então V. Ex.
a
não faz
testamento?
—Não, o rei tambem o não fez...
*
O rei e os principes traziam rewolveres comsigo.
Afirma-se que o principe real e o infante
D. Manuel ainda chegaram a dar dois tiros n'um
dos assassinos.
*
Hoje correram boatos de revolta no Porto,
de ter chegado a Cascaes uma esquadra ingleza,
etc.. Tudo falso.
*
No Paço, na camarilha, havia dois partidos,
o do rei e o da rainha. O da rainha está agora
de cima.
*
Insiste-se em que se o rei escapasse ao atentado
havia uma hecatombe. Diz-se que o Fontes,
que tinha a qualidade intuitiva de conhecer os
homens, dizia de D. Carlos:—«Nunca o pude
perceber».
[182]
*
Agora voltam-se as atenções para o novo rei.
Dizem:—É Saboia.—No conselho d'estado
foi
simpatico. Chorou, entregou-se nas mãos dos que
o ouviam:—Não estou preparado para reinar.
Os irmãos adoravam-se. O que foi assassinado
zangava-se quando este lhe chamava
prior
do Crato. D. Luiz Fillipe era mais reflectido. Este
é mais impetuoso—mas tem melhor
coração.
Fevereiro—1908.
Nos ultimos tempos o rei tinha scenas violentissimas
com a D. Amelia.
*
A impressão no Porto foi curiosa: Quem ás
onze horas da noite passava na praça de D. Pedro
via muita gente aos grupos de dez a onze
pessoas cada um. Ninguem discutia, não se falava
alto. Era um borborinho de quem conversa
em segredo, a medo—ch... ch... ch...—ao ouvido.
A noticia soube-se pelo telephone do Borges
& Irmão.
[183]
*
Foi no automovel do Baltar do
Janeiro que o
Alpoim se safou para a Hespanha.
*
As Anjos contaram á D. Maria Augusta que
o electricista de S. Carlos tinha tudo preparado
para o D. Carlos morrer quando se encostasse
ao rebordo do camarote no theatro.
O homem suicidou-se quando se viu descoberto.
*
O novo rei não gosta de
sport. Sofre de reumatismo.
Adora a musica. Em pequeno dizia:
—Reger uma orchestra n'uma grande sala e
ouvir no fim os aplausos do publico, isso sim,
é que é gloria!...
As meninas da alta roda, falando d'elle, diziam
desdenhosas:
—Isso são
mariquices do
senhor infante.
*
Uma velha, a tia Julia, da familia Bordallo:
—Coitadinho do principe! Parecia mesmo
uma menina!... E não estava estragado como
estes rapazes d'agora. Tinha uma carinha de menina.
[184]
E não era porque elle não
tivesse vontade,
era porque
o não
deixavam!...
*
Muita gente que tinha bombas em casa tem-nas
deitado ao rio.
*
Da camarilha contam-se coisas como esta.
Alguem me diz:
—Conheço uma senhora muito de bem, a
quem este e aquelle (e cita os nomes) foram fallar
da parte do rei, para ir a bordo do
yacht.
Ella deu-lhes uma desanda tremenda.
*
O João Franco já tinha organisado listas de
proscripções. A alguns administradores de
concelho
foram enviadas circulares, pedindo o nome
dos individuos que na localidade entravavam a
marcha do governo.
*
O pae do João Franco e os redactores do
Jornal da Noite foram corridos do
Suisso.
[185]
*
Trindade Coelho conta que João Franco, nas
vesperas dos acontecimentos, foi consultar a
bruxa—M.
me Brouillard, uma
transmontana esperta
que ahi está em Lisboa.
*
Já ha seis contos para a familia do Buiça.
Muita gente lhe arrancou botões, cabellos, bocados
de vestido. João de Deus Guimarães foi
vel-o á
morgue. Era
prohibido tocar no cadaver.
Entrou em conversa com o guarda:
—Ah! O Buiça tem ainda o braço rigido!
—Qual!
—Parece...
—Já teve, já, mas agora está
lasso.
—Mas olhe que...
E aproximando-se do cadaver correu-lhe a
mão pelo braço, como quem apalpa, e deu-lhe
um formidavel aperto de
mão.
O
frigorifico é um
buraco, e os tres cadaveres
foram atirados uns por cima dos outros a trouxe
mouxe, de mistura com pedaços de gelo. Toda
a gente tira o chapéu e fala baixinho. O regicid
é um
buraco, e os tres cadaveres
foram atirados uns por cima dos outros a trouxe
mouxe, de mistura com pedaços de gelo. Toda
a gente tira o chapéu e fala baixinho. O regicida
está amarfanhado, com lama na barba e nos
cabellos. Seus olhos não são olhos de
morto—exprimem
espanto e colera, e a figura é séria,
é
[186]
tremenda. Tem rasgões, feridas na cara, e mãos
nervosas, mãos delicadas de mulher.
*
Diz hoje um professor que conheceu o Buiça:
—Era um homem profundamente serio e
que protestava sempre com colera, quando se
lhe falavam em politica:—Não me falem em
politiquices!
não me falem em politiquices!
*
O João Pinto dos Santos:
—Emquanto estive preso alimentei-me de vegetaes
e de odio. Nos primeiros dias aquillo impressionou-me;
mas logo que tive livros serenei...
Queriam fechar as janellas, mas eu disse ao
Malaquias de Lemos:—O ar não! o ar não
m'o
tirem, prefiro morrer! E tambem lhe peço que
quando bater á porta m'a abram logo, senão
não
aguento. Antes duas balas!—Deixaram-me a janella
aberta... Mandei vir uns poucos de fatos,
calças de verão, d'inverno, etc.—para
ter a
sensação
de que estava livre. Depois emprestaram-me
livros. Entre outros um volume de viagens
na China, onde ha algumas paginas sobre a vida
da mulher chineza. E aquillo fez-me chorar, tão
certo é que a desgraça nos aproxima dos
desgraçados.
Afinal chegaram os livros que tinha
[187]
pedido, um compendio francez de philosophia,
sete calhamaços de economia politica—e fui
quasi feliz. O juiz interrogou-me:—Porque está
preso?—Não sei.—Há uma
testemunha que o
viu no elevador da bibliotheca.—É falso. Estava
n'uma casa perto da bibliotheca, para combinar
com o Alpoim e alguns amigos a nossa atitude
perante as prisões que estavam sendo
feitas.—Chamou-se
um policia a quem o juiz perguntou:
—Conhece o snr. João Pinto dos
Santos?—Não
senhor.—Diante d'isto é claro que o juiz
tinha de me mandar embora. Que imagina que
fez o João Franco?
O João Franco
avocou o
processo a conselho de ministros e condemnou-me!
Era odio pessoal. Na municipal fui sempre
bem tratado.
—E souberam?
—Alguma coisa presentimos na noite em
que foi atacado o regimento de Campo d'Ourique.
Supozemos uma revolução gorada. Se
atiram bombas ao quartel eramos indubitavelmente
fuzilados. Uma noite ouvimos formar
as tropas, carregaram com precipitação as armas,
um oficial passou a correr e diante do
meu quarto bradou á sentinella:—Cuidado com
esse sujeito!—O Chagas disse-me hontem que,
quando chegou á janella, um soldado lhe fez um
manguito. Os oficiaes é
que continham a soldadesca—mas
até onde?
[188]
—E disse no seu depoimento que havia de
matar o João Franco?
—É falso; o comandante da guarda falou-me
n'isso e eu respondi-lhe:—Bem vê V. Ex.
a
que
não quero que meus filhos possam dizer:—Meu
pae foi um assassino.—Isso não! Mas se um dia,
depois de o insultar bem insultado, n'uma discussão
em plena camara, elle avançar para mim,
deito-lhe as mãos ás guellas, e nem V. Ex.
a
nem
toda a guarda municipal m'o arrancam das
unhas!
*
Ha quem diga do João Franco:—Foi sempre
um cobarde. Em Coimbra a valentia vinha-lhe
do José Lobo e dos irmãos, uns tipos d'aquelle
feitio, e agora da municipal e da policia. O pae
era a mesma coisa, e o tio, o
Mil diabos da
capinha,
dava tiros e fazia disturbios sempre que
tinha as costas quentes.
*
João Franco fazia cincoenta e quatro annos
este mez de Fevereiro.
8 de Fevereiro—1908.
É hoje o dia do enterro. Essa gente que veio
de fóra para assistir ao funeral, principes, duques,
[189]
generaes, diplomatas, está cheia de medo.
E por ahi diz-se á bocca cheia:
—Ainda bem que foram portuguezes os que
executaram o rei. É a primeira vez que um rei
portuguez morre ás mãos do seu povo.
Até
agora acabavam ás mãos das camarilhas.
*
Não me sae dos olhos este quadro do enterro.
Esperam-se bombas... Os sinos tocam, todos os
sinos das egrejas; rufam os tambores cobertos de
luto. Desfilam coches com principes e carros
com fardas. Um homem apregoa:—
O ultimo
granadeiro!
quem quer
O ultimo granadeiro?—Mais
carros, mais coches, o filho do imperador da
Allemanha, guardado por uma escolta de prussianos,
que o pae mandou com elle com medo
que lh'o matem. Tropas em fila, carroças de gala,
generaes, diplomatas glabros, com o olho desconfiado
e vontade que aquillo termine depressa...
Agora a carroça com o sceptro e a corôa, e outra
com crepes a rasto como se levasse o luto da
monarchia.—
O
ultimo granadeiro!...—Mais coches,
e aqui e alli o desfile cortado pela multidão irrespeitosa.
Um laivo de grotesco na tragedia, riscos
exagerados de carvão que fazem medo... Phisionomias
lividas nas fardas pomposas, decorações,
gente que mal se atreve a olhar a plebe temerosa—silencio
e um largo ah! a que se segue
[190]
uma gritaria d'inferno. Bicha de carros interminavel,
mortos por largarem n'uma abalada de
pavor—carros funerarios passando entre a
indiferença
gelada—farrapos de multidão que atravessam
o prestito propositalmente, tropas esbandalhadas,
corôas que parecem velhas... E por fim
mais tropas e o mesmo grito insistente:—
O ultimo
granadeiro! quem quer
O ultimo
granadeiro?...
Dias mais tarde havia sujeitos que se chegavam
á beira das pessoas que deitavam luto e perguntavam-lhe
com ar de troça:—Então morreu-lhe
alguem da familia?...
*
O Correia d'Oliveira:
—Se visse!... Quasi ninguem tirava o chapeu
quando o enterro passou... A sombra do
rei comeu, sumiu a do principe.
*
Tem-se distribuido muitos papeis com estes
dizeres:
Morte aos Sanguinarios
Afonso Costa, Alpoim, Ribeira Brava,
os Verdadeiros Assassinos
DE EL-REI E DO PRINCIPE REAL.
[191]
E outros, escriptos á machina, atribuindo o
crime a este e áquelle...
*
A preocupação do rei é esta:
—N'este caso que faria D. Pedro V?
*
O João Franco possue cartas do rei, em que
elle lhe apontava escandalos em diferentes secretarias.
*
O dr. Curry Cabral, que é um homem ponderado,
disse em casa das Thomares:
—Ha cinco annos que o João Franco está
doido.
E o Silva Bastos, que foi da sua intimidade:
—Ás vezes avançava para a gente de
punhos
fechados, n'um phrenesi. Depois dava-lhe a nevralgia
e deitava as mãos á cara ou desatava
aos berros—e, n'um instante, como n'uma roda
que gira vertiginosamente e vae passando por
dois buracos, lia-se-lhe nos olhos, sucessivamente
e sem interrupção, colera, despreso,
ambição, serenidade,
medo, orgulho, riso, ferocidade, paz,
vertigem...
[192]
*
E outro:
—Era a obra de Martins posta em pratica
por um doido. Sómente o Martins dissera, arrependido,
a Junqueiro:
—Nas penitenciarias está gente muito melhor
que o rei.
11 de Fevereiro—1908.
Espalha-se que, se isto não socegar, o rei e a
rainha se vão embora e o estrangeiro toma conta
das colonias. Pede-se repressão. Diz-se que há
oficiaes de artilharia e cavalaria que querem fazer
uma
intentona—e os politicos
já se não entendem
por causa das nomeações dos governadores
civis!
*
O João Chagas surge na livraria, mais gordo,
com um esplendido casacão alvadio:
—Tenho estado preso diferentes vezes, mas
nunca senti tanto a falta de liberdade como d'esta.
Das outras falava, tinha ar e luz á minha
disposição.
Agora foi a incomunicabilidade absoluta.
E, se atirassem bombas ao quartel, eramos despedaçados.
[193]
E eu, que sabia que alguns grupos tinham
combinado tudo como quem resolve um
problema—dizia comigo:—Se esses diabos
não
têm a caridade de se lembrarem de nós, estamos
perdidos!—Um dia á noite tive a
impressão nitida
de que iamos ser fusilados. Ouvi reboliço, as
tropas carregaram as armas, e até senti que, com
a precipitação, deixavam cahir alguns cartuxos.
Tentei espreitar por um postigo. Um oficial que
passou correndo disse á
sentinela:—Cuidado!—O
frio era mortal. O soldado encostou-se á
porta—não
pude espreitar. Ignorava tudo. Estendi-me
em cima da cama e só ás quatro horas da
manhã
sucumbi de cansaço... Que horas! É horrivel
morrer assim sem lucta. Cheguei a fazer um pequeno
testamento...
Oliveira
Martins.—Desenho de Antonio Carneiro.
E o João Pinto dos Santos:
—Pude ver d'uma vez o
Diario
Illustrado, nas
mãos d'um soldado, com o retrato do rei, mas
calculei:—chegaram de Vila Viçosa.
—Mas nem sequer reparou na tarja de luto?
—Eu não. O Antonio José d'Almeida diz
que
reparou e que desconfiou que o rei tinha sido
morto.
—Os oficiaes—continua o
Chagas—trataram-me
muito bem, mas á despedida
disse-lhes:—Agradeço-lhes
muito a amabilidade com que
me trataram, mas para outra vez prefiro ir para
a Penitenciaria. Lá talvez chegue algum rumor.
E conclue:
[194]
—Acalmação sim,
acalmação,
se assim o entenderem,
durante alguns mezes. Ah
não foi em
vão que trabalhamos vinte annos!...
*
Fui hoje ao café do Gelo ver o sitio onde o
Buiça se reunia com os amigos. O café
é já de
si curioso, com duas salas d'aspecto completamente
diverso, uma para o Rocio, d'aparato;
outra, nas trazeiras, baixa, para os freguezes envergonhados,
com portas para a rua do Principe.
Era ali, n'aquella meza, do canto, á direita quem
entra pelas trazeiras, que o professor se juntava
com os outros e passavam horas a conversar baixinho.
—Eram muitos?
—Ás vezes doze ou quinze—diz o
creado.—E
ficavam até tarde em grandes discussões...
*
Todos os politicos são concordes n'isto: o D.
Carlos gastara nos ultimos annos, alem da
dotação,
dez ou doze mil contos.
*
E toda a gente diz que era um mentiroso e
que difamava a mulher. Ainda hoje alguem contou
[195]
que um dia apareceram uns papeis inventando
infamias da rainha com a Sandoval. Investigou-se.
E o José Luciano disse logo:—Escusam de procurar,
isso é d'El-Rei.
*
O
Seculo, disse-me o Avelino
d'Almeida, tem
tido tiragens de 160:000 exemplares.
Fevereiro—1908.
Depois da morte do rei o Arnoso foi ao Malaquias
de Lemos propor-lhe a contra revolução.
—Nem me fale n'isso. Se veem para a rua
corro-os a bala raza e vou já d'aqui contar tudo
ao Ferreira do Amaral.
20 de Fevereiro—1908.
Era hoje que devia rebentar a contra revolução,
para impôr ao Paço uma dictadura militar.
*
Hoje fui a casa do Schvalbach, ao Conservatorio.
Coisas antigas e louça das Caldas, velhos
[196]
quadros do Liborio e tectos pintados em caramanchão
pelo Augusto Pina. O homem está
aqui: é uma revista de anno—dificuldades de
que sae com um sorriso, enredo, e um fio de oiro
e de ternura a envolver tudo isto...
Conheceu o rei e explica-o:
—Quando queria era um
charmeur.
Ás vezes
ninguem o podia aturar e mentia como uma cesta
rôta. Ultimamente déra nesta: quando se falava
d'alguma rapariga bonita, ahi dos seus quinze
annos, dizia com um sorriso:—É minha filha.
E conclue:
—Era um grande pantomimeiro!
Fevereiro—1908.
O Antonio José de Freitas, amigo do Paço,
do Arnoso e do Sabugosa:
—O rei era d'estes homens que gostam de
esconder as boas qualidades e de salientar os
seus defeitos. Inteligente, de bom coração,
artista,
não soube ou não quiz tratar com os homens.
Podia ter com elle todos os que pensam ou
escrevem em Portugal—afastou-os. Ha annos
para cá o caso explica-se: garanto-lhe que, depois
que teve o tipho, ficou impotente e sentia-se
humilhado e inferior ao primeiro gallego que
passa na rua... Ha cartas d'elle adoraveis de simplicidade,
[197]
ha casos da sua vida e da vida palaciana
que se não comprehendem.
—E como artista?
—Era elle, sem duvida, que fazia com talento
os esboços. Mas, como não tinha
tempo—outros
lhe acabavam os quadros... Como rei só teve um
mal—começou a sel-o apenas ha um anno.
Fevereiro—1908.
Todos os dias no Paço se recebem cartas
anonimas com ameaças de morte. O medo é
enorme. A rainha tem sempre deante dos olhos
o quadro horroroso, e, se acorda de noite, quer
por força vêr o filho.
*
O Manuel Ramos:
Serviam-se, o Franco e os outros, da pimponice
do rei, para lhe arrancarem medidas de repressão.
Se o viam hesitar:—Mas se Vossa Magestade
receia...—E elle logo decidido:—Eu
não!—E assignava tudo. E fique você
sabendo:
não foi elle só que comeu: a maior parte do
dinheiro,
dos dez ou doze mil co
Serviam-se, o Franco e os outros, da pimponice
do rei, para lhe arrancarem medidas de repressão.
Se o viam hesitar:—Mas se Vossa Magestade
receia...—E elle logo decidido:—Eu
não!—E assignava tudo. E fique você
sabendo:
não foi elle só que comeu: a maior parte do
dinheiro,
dos dez ou doze mil contos gastos a
mais, ficou no bolso dos politicos.
[198]
Fevereiro—1908.
A guarda-fiscal de Cascaes tem ordens apertadas.
Teme-se um desembarque de armas e munições.
*
Foi prohibido o desfile do publico diante dos
cadaveres regios, porque a urna do rei era coberta
de escarros!
Fevereiro—1908.
O João Chagas:
—Tem visto a atitude palaciana do
Dia?
Eu, de mim, tenho um caderno com este titulo
Alpoim e todos os dias collo
pedaços do
Janeiro
e do
Dia. Tome logares porque vai
assistir a um
espectaculo estraordinario... Nunca o estrangeiro
fez tanta pressão sobre nós como agora...
Impõe-nos
um governo—e esse governo, não podendo
ser rotativo, ha-de sahir da praça publica.
Ora não sendo republicano, á maneira do que
se fez na Italia ou no Brasil, vae ser do Alpoim.
E verá! verá!... Eu já disse: escrevo
logo
um artigo com este titulo
O
Regicida, se elle e
[199]
os seus amigos nos atraiçoarem—os seus amigos,
que, diante de mim e de Afonso Costa, se
declaravam todos republicanos. D'antes procuravam-nos
todas as noites, agora fogem-nos. Vae
ver, vae-os ver servirem-se da policia contra nós.
Oh, mas eu hei-de declarar que elles é que nos
forneciam as bombas! O Alpoim ha-de morrer
ás nossas mãos!
Março—1908.
O Brazão conta que na
première do
Othelo,
o irmão de Augusto Machado foi cumprimental-o
ao camarim:
—Vaes admiravelmente no papel, mas deixa-me
dizer-te (aqui para nós) a peça é uma
grande
borracheira...
9 de Março—1908.
Na recepção de ante-hontem a raínha
tinha
os olhos cheios de lagrimas sufocadas e disse:
—Não tenho medo por mim, é por elle...
—Os politicos, agora vão ter
juizo...—disse
alguem. E ella respondeu:
—Os politicos não teem
coração.
E o rei dizia a um e a outro:
—Seja bom portuguez e meu amigo.
[200]
Março—1908.
—Vou a Lisboa—diz o Columbano ao conde
d'Arnoso.
—Tambem eu vou a essa Penitenciaria onde
andam os assassinos á solta.
Março—1908.
Antonio José de Freitas:
—O Marianno de Carvalho tinha ido a Paris
negociar um emprestimo e, conversando com
Rouvier, perguntou-lhe:
—Se se fizer a republica em Portugal?...
—Que me importa! Que me importa mesmo
que se faça a republica em Hespanha. Mas se se
fizer a federação iberica, então alto
lá! fazemos a
federação latina.
Rodrigo da Fonseca dizia dos Castilhos:
—Que familia! O melhor de todos é o
cego—mas
esse mesmo, se tivesse olhos, era preciso
furar-lhos!
[201]
Março—1908.
O João Chagas:
—O Alpoim foi quem nos forneceu as armas
para a revolução. Foi o que elle fez.
Nós tinhamos
homens, elles deram-nos as armas e uns contos
de reis. Todos elles se declaravam republicanos,
menos o Moreira d'Almeida, que disse:—Eu
não só não sou republicano, mas sou
anti-republicano.—Quando
sahiamos das reuniões, eu e
o Afonso Costa riamos ás gargalhadas.
Este João Chagas tão facil, tão
insinuante,
com o riso prompto nos labios grossos e sua
pôpa branca no alto da cabeça, nunca conversa,
nunca o vi conversar: se encontra alguem, seja
onde fôr, conspira logo. Tem passado a vida,
sempre simpathico e facil, sempre bem vestido e
correcto como um actor que desempenha o seu
papel. Mas no fundo d'esta alma, sob este riso e
esta pôpa que parece pintada, só existe uma
vontade
que nunca esmorece, uma ambição tenaz e
um egoismo feroz.
—Isto ha-de resolver-se em 1909. Ah, não
passa d'ahi! É um conflicto inevitavel. Que me
importa o Porto?
E como eu duvide:
—Temos o exercito comnosco. Até na municipal.
[202]
Na provincia ha terras em que os regimentos
são completamente nossos.
Abril—1908.
Hontem no Porto encontrei o Junqueiro, mais
velho, mais magro, e a proposito da atitude palaciana
de Eduardo Burnay no
Jornal do
Commercio,
conta que elle em tempos, quando atacava
o rei, o fôra procurar ao Porto e lhe disséra
do D. Carlos:
—D'uma vez, n'uma d'aquellas ceias que dava
no Alemtejo aos esturdios seus amigos, ofereceu
a cada conviva uma navalha de ponta e mola,
com as armas reaes.
Novembro—1908.
A rainha não disse que conhecia o assassino
do rei. Phrase textual ouvida pelo Batalha Reis:
—Os outros não os conheço, mas aquella
cara do homem das barbas nunca mais me sae
dos olhos
[7].
[203]
Dezembro—1908.
O caso do dia é este:—Um alferes da
guarnição
no Paço, quando assistia ao jantar levantou-se,
e, contra todas as regras e todas as conveniencias,
falou ao rei pouco mais ou menos
n'estes termos:—Vossa Magestade anda iludido.
[204]
Esta gente que o cerca engana-o. A situação do
paiz é deploravel, etc.
Imaginem, se podem, as atitudes, o espanto,
o espectaculo d'esta gente, interrompida pela
primeira vez naquella representação em que o
formulario é respeitado como um culto. Mas na
verdade o alferes disse o que cada um sente no
fundo da sua consciencia. Foi inconveniente,
mas poz o dedo na ferida. O rei está rodeado
de ficções e de mentiras. Não soube
assumir
as responsabilidades do pae, com decisão e coragem,
nem totalmente repelil-as.
Enredam-no. Os politicos dão-se o ar de o
proteger e é elle quem os protege. Hesita, tem
medo... Sente-se que tudo isto vacila...
[205]
Janeiro—1909.
—Esta vida artificial como lhe sinto a
falta!—exclama
o Fialho ali ao pé do Suisso.
—E porque não vive em Lisboa?
—Não posso! não posso! Se soubesse!...
Tenho
um irmão epileptico, que meu pae me legou
á hora da morte. Não devo abandonal-o,
nem
entregal-o a mãos mercenarias... Depois as arvores,
depois as vides, a que a gente cria amor...—Uma
pausa triste, uma hesitação, uma duvida
e acrescenta isto:—Não tenho tido quinze dias
de felicidade em toda a minha vida!
Falamos de politica:
—Isto está a pedir sangue... E olhe: no
Alemtejo não ha republicanos—ha odios. O pobre
não pode vêr o rico. É uma gente
roída de
invejas e rancores, que passa annos e annos da
vida a cubiçar um campo...
*
O João Barreira, pequenino, inalteravel, de
capinha:
—A revolução abortou em onze de
Fevereiro
porque os chefes foram todos presos. O Chagas
tinha nas mãos as chaves do movimento.
[206]
*
Quem são os regicidas?... O Ferreira do Amaral,
ao sahir do ministerio, declarou que não tinha
apurado nada de definitivo. Diz:—Eu bem sabia,
por cartas anonimas, que se preparavam
para me alijar, mas deixei-os fazer...—Porquê,
almirante?—A situação não me
era
agradavel.
*
Novos boatos de intentonas, de massacres,
novos boatos de reacção. Agora é
certo!... Os regicidas
vão ser presos. Conta-se que o Heitor Ferreira
dissera:—Vendi a carabina a Fulano.—O
ministerio Amaral cahiu, porque, dispondo de
todos os elementos, não quiz prender os assassinos.
Um dos regicidas está em França, mas Clemenceau
recusa-se a extradital-o.
*
O Mello Barreto garante como absolutamente
autentico o boato que por ahi correu, de que o
rei se confessa todas as semanas.
*
Larga distribuição d'estes papelinhos:
[nota de editor]
[207]
Janeiro—1909.
Fala-se hoje d'um Munhoz, oficial do exercito,
tipo acabado de lisboeta—café, conversa e parodia,
cheio de graça popular e literaria. Já reformado,
vae aos domingos aos touros para a Outra
Banda, com um cabaz no braço e um chalemanta
ás costas... Esteve amigado com uma
mulher já
fannée, mas ainda com
linha e um
grande nariz imperial, que ahi andou por Lisboa
e se fazia passar como aparentada com as mais
ilustres familias de Hespanha. A mulher não tinha
dinheiro, mas alguem presenteara-a, quando
a deixou, com uma rica mobilia. E Munhoz e ella
iam vivendo dos trastes, hoje um tremó vendido,
amanhã uma comoda, depois um sofá...
—E que tal, Munhoz?
—Vae-se vivendo, filho. Vamos vendendo os
trastes. Olha, menino, hoje almoçamos
nós um
bidet—e por signal que
não estava nada mau!...
*
Lá no alto, no friorento Paço d'Ajuda, entre
gente caduca e algumas damas do passado, a
rainha Maria Pia passa os dias e as noites, como
uma figura de tragedia, a regar as flores d'um
tapete. Mataram-lhe o pae, o filho e o neto.
Peor: envelheceu. Se pára de regar conta:—Um...
[208]
dois... três...—A quem se refere? Ao
pae, ao rei, ao principe, todos assassinados?
Senta-se á meza e diz a figuras imaginarias ou
aos phantasmas que se sentam a seu lado:—Come,
Luiz? Não queres d'este prato, Carlos?—E
lá torna a regar um dia, outro dia, sempre,
as flores que não reverdecem do mesmo tapete
do seu quarto... E esta mulher elegante, que
despertou paixões e inspirou poetas, parece uma
velha actriz, cheia de rugas, sem contracto, fóra
do seu meio e da sua época. Ao vel-a passar,
baixando a cabeça para aqui e para acolá, no
mesmo gesto machinal, a gente supõe que o passado
sahiu do sepulchro e teima em sorrir-nos,
com os dentes postiços e o cabelo pintado a escorrer
amarelo...
*
O D. Afonso adora o sobrinho. Afiança:—Se
m'o matarem quero ser rei uma hora, mas
n'essa hora hei-de mandar...
*
—E o rei?
—O rei...—diz alguem que foi duas ou tres
vezes ao Paço—O rei é um fidalguinho
muito
religioso e temente a Deus, e cheio de vontade e
de orgulho.—E acrescenta:—Não trata,
como
o pae, a gente por tu, mas por você.
[209]
Janeiro—1909.
Fala-se com o Antonio José de Freitas,
do
D. Pedro V e um do lado diz:
—Era um pedante.
—Se era! O que vocês não sabem
é que
deixou vinte e tantos calhamaços sobre coisas
militares com o titulo em latim. E de todos esses
livros não se apura uma pagina...
Do D. Luiz e da D. Maria Pia narra anecdotas,
ditos...
—O D. Luiz mandava-me chamar muitas
vezes ao Paço—e algumas por causa do Shakespeare.
Uma vez quiz discutir o
Hamlet
commigo—elle
que me roubou duzentas e tantas
phrases!—e eu disse-lhe:—Pois sim, vamos
lá
discutir, mas V. Magestade não ha-de extranhar
que eu me defenda com quantos argumentos tenha,
nem que fale mais alto, porque fui professor
de meninos e tenho esse mau habito. Alem
de tudo isso sou um homem nervoso...—E discuti,
discuti com unhas e dentes. Por fim elle
disse-me:—Pois sim, Freitas, mas você o que
não pôde é conceber o
Hamlet como eu, sob o
ponto de vista de dissimulador, porque não tem
a minha categoria. Só um principe sabe o que
é dissimular...
E eu respondi logo:
[210]
—Se V. Magestade dissimula por causa da
sua categoria, é porque é um diplomata; se
é
por organisação é porque é
um histerico...
E elle mandou-me embora.
*
Quem os põe assim aos reis, ao D. Carlos,
ao D. Luiz, ao imperador do Brazil, são os grandes
homens, o Victor Hugo, o Rossini, os que
os incensam a torto e a direito. O D. Luiz era
inteligente e conhecia os classicos musicaes, mas,
como não estudava, tocava mal. Pois um dia o
Rossini, em Paris, depois de o ouvir, disse-lhe:—Vou
organisar um concerto em minha casa,
para que V. Magestade, que é um dos melhores
musicos que conheço, seja ouvido e apreciado.
*
O D. Luiz, como todos os fidalgos portuguezes,
gostava de conviver com gente baixa. Quando
se iam embora os ajudantes e a côrte, ficava
com os particulares, com a gente que lhe chamava
doutor Tavares, e então
regalava-se de escandalo,
de ditos, de má lingua ordinaria.
*
Não me admira que elle gostasse da Rosa
Damasceno. Era uma mulher
caline,
muito meiga.
[211]
Na intimidade devia ser adoravel. E boa. Desde
que foi amante de D. Luiz, dava todo o dinheiro
que ganhava no theatro.
*
A Maria Pia é uma mulher inteligente, apezar
de pessimamente educada, sem mãe. Detestavam-se,
mas que diplomatas, ella e o rei!
Quando se anunciou o casamento do D. Carlos,
D. Luiz disse-me:
—Casa por amôr. Fez a côrte á
mulher,
escreveram-se,
elle mandou-lhe flôres e ia para a
plateia d'um theatro em Paris namoral-a para o
camarote.
*
Não sei quem fala do Saldanha...
—Foi o diabo para o mandarem para Londres,
quando se quizeram vêr livres d'elle. O governo
perguntou para a Inglaterra e de lá responderam
que não era
persona
grata. Foi preciso
que o D. Fernando escrevesse á rainha Victoria,
que acabou por ceder, dizendo:—Mandem
lá
esse velho pecador.
Fevereiro—1909.
O Judice Bicker, oficial da armada e antigo
governador da Guiné no tempo do Hintze:
[212]
—Não, não me falem em dictaduras nem em
governos de repressão! Quando fui governador
da Guiné apareceram-me lá um dia cem homens
mandados pelo governo. E com elles uma simples
lista de nomes, sem a minima indicação de crimes.
Nada. Era gente que o governo me mandava
e de que se queria desfazer. Que lhes havia
de fazer na Guiné? Sentei-lhes praça, e d'esses
criminosos, aos quaes nunca tive
ocasião de aplicar
um castigo, seis mezes depois tinham morrido
cincoenta de febres!...
*
No outro dia—diz o Freitas—estive com a
rainha D. Amelia. Está uma mulher amarella e
feia, enorme, com as mãos do tamanho do Maximiliano
d'Azevedo. E, como lhe notasse os dedos
cheios de joias, estranhei, perguntei e
explicaram-me:—São
os aneis de brilhantes, que
ella arrancou aos cadaveres do marido e do filho—e
que traz sempre comsigo.
*
Um empregado da fazenda:
—Em cada um dos grandes bairros de Lisboa
ha milhares de processos de dividas á fazenda
parados. Companhia que tenha votos paga
quando quer e como quer. Só os desgraçados
[213]
são penhorados. Isto representa muitas centenas
de contos, que se perdem por empenho, por politica,
por desleixo.
Fevereiro—1909.
O Pad'Zé contado pelo Vicente da Camara:
—O extravagante Pad'Zé era no fundo um
homem methodico. Quando chegava a Coimbra
ia sempre com grandes ideias de aprumo e
arranjo: uma cama para dormir, uma meza para
escrever, etc.. Excusado será dizer que, meia duzia
de dias depois, dormia no chão. Mas á cabeceira
lá estavam sempre muito arranjadinhos os
seus livros e os seus papeis. Se no dia em que
se matou, na propria hora em que deitou a mão
ao rewolver, alguem o convidasse para uma ceia,—adeus
suicidio! adeus morte! trocava-a por
uma guitarrada.
*
No dia em que fugiu para Badajoz o D. João
da Camara encontrou-o: levava para o exilio um
livro de Garrett, um par de meias e cinco mil
reis emprestados.
*
Trazia sempre nas algibeiras envolucros de
bombas e mostrava-os ás vezes aos amigos, no
[214]
Suisso. Na algibeira do medico que morreu na
explosão foi encontrada uma carta sua, pedindo-lhe
que lhe mandasse pelo portador «seis peras
do Fundão». Trazia-as ás vezes pela rua
n'uma
malinha de mão, e, quando ia ao urinol, pedia ao
Anibal Soares, de quem era amigo intimo, para
lha segurar:—Mas tem cuidado que são
ovos!...—observava
sempre.
*
Dizem por ahi que se matou, para não matar...
Tinha-lhe cahido em sorte, n'uma
loja, executar
um alto personagem...
25 de Fevereiro—1909.
Visita ao Coelho de Carvalho, que está
doente, e mora n'um velho palacio, na rua do
Arco do Cego. Moveis Imperio, uma cama imponente
com golphinhos doirados e espelhos,
falsos quadros de mestre nas paredes d'estuque,
onde todos os caiadores de Lisboa pintam sempre
o mesmo friso azul ferrete, e salas que se
sucedem com alguns moveis antigos isolados.
São restos de grandeza d'uma existencia d'artista...
Como sempre, fala-se em politica. Não
se fala n'outra coisa...—A policia tem o processo
do atentado concluido, mas fica-se por ahi.
[215]
Sabe-se que no dia 21, n'uma
loja
maçonica, foi
proposto o assassinato do rei. O Alpoim esperava
na rua, dentro d'um carro, os seus amigos.
Mal foi que o acordo com os franquistas gorasse.
Sabe que o Alpoim teve uma combinação politica
com o João Franco? Disse-mo elle a
mim:—«O
acordo esteve feito para uma dictadura liberal,
mas o rei opoz-se. Foi quando eu e Sicrano e
Beltrano decidimos perdel-o»...—Posso garantir-lhe
isto: ouvi-o a elle proprio... Quem os
aproximou, ao Alpoim e ao Franco, foi o Silva
Graça. Tinham até ajustado uma serie de comicios
de propaganda contra os adiantamentos.
E foi por isso que o João Franco pôde responder
como respondeu ao Centeno, dizendo-lhe
que tinha nas mãos provas d'essa
combinação.
Um tipo fino. Literato e homem de negocios,
tendo ganho fortunas e dissipado fortunas. Tem
um castello em Arade sobre rocha e mar e uma
existencia um pouco dispersa. E com isto curioso
e alegre, phantasista acima de tudo, paradoxal
acima de tudo. O seu escriptorio de advogado
que foi muito tempo no ministerio da
justiça, é hoje alli n'uma meza do Martinho.
Desconfio que mistifica os clientes—para se
divertir... As dificuldades da sua vida são talvez
invenciveis, mas a desgraça encontra-o sempre
de pé, com o mesmo riso nas mesmas lindas
barbas todas brancas enquadrando uma face
moça, e oculos redondos de tartaruga, que lhe
[216]
dão uma aparencia de retrato de Holbein.—Os
oculos de Spinoza...—como elle lhes chama.
Março—1909.
O Armando Navarro:
—D'aqui por cincoenta annos estamos absorvidos
pela Hespanha, sob a forma federativa. A
autonomia municipal, a mais rasgada de todas
as que conheço, e que o conservador e reaccionario
Maura acaba de dar á Hespanha, é o primeiro
passo...
6 de Março—1909.
Foi hoje o enterro do Taborda. Aqui ha tempos
cahiu de cama e disse a alguem a chorar:
—D'esta vez é certo! Sinto que vou morrer...
E a vida é tão linda!
Tinha oitenta e cinco annos. Os jornaes contaram
d'elle esta coisa enternecedora: D'uma vez
foi recitar um monologo a um asylo de raparigas
da sua terra. O monologo começava assim:
«Boas noites, meus senhores...». Entrou no
palco e disse a phrase:
Boas noites, meus senhores...
[217]
E as meninas do asylo, que o conheciam todas,
levantaram-se e responderam á uma:
—Muito boas noites, senhor Taborda!
A morte engrandece sempre, mas acho horrivel
acabar na rua dos Calafates, entre a convenção
e a mentira, andar por cima, andar por
baixo, corôas secas, photographias e
recordações
de bastidores. Um velho tem direito a morrer
entre arvores, em plena natureza. Os bichos,
quando sentem aproximar-se o fim, procuram
um buraco para se esconder... São mais felizes.
Março—1909.
As declarações do Ferreira do Amaral na
Camara dos Pares vieram autenticar o que se
dizia do rei. O Ferreira do Amaral afirmou:—«A
reacção envolve o
rei».—Acrescenta-se
cá fóra
que é um jesuita hespanhol quem dirige o rei e
o Paço, e parece certo que o Ferreira do Amaral
o impedia por vezes de ir de livro e contas á
missa—fazendo-o visitar no Porto tres fabricas
por cada missa que ouvia...
*
Espalha-se que foi a rainha quem pôz fóra o
Ferreira do Amaral, e que elle quer lá voltar para
lhe dar uma lição.
[218]
Março—1909.
Apresentam-me hoje um velho janota, o visconde
da Torre da Murta. É um velho magro e
esticado, de luvas e chapeu alto. Cheio de pretensões
e os cabelos todos brancos. Parece ligado
por arames. Vive na miseria. A mulher enganou-o,
deixou-o. Pagou-lhe as dividas—e ficou
pobre: são as Thomares que o sustentam. O
velho conserva uma grande dignidade e só sae
de luvas e chapeu alto. Mas quem sobretudo lhe
vale é a creada, uma destas extraordinarias mulheres
do povo, que nascem para os outros e que
já disse que quando morrer lhe ha-de deixar as
suas economias «para o senhor visconde não
passar necessidades». O senhor visconde vive
n'um cubiculo, e da sua passada grandeza restam-lhe
meia duzia de livros com magnificas
encadernações.
Março—1909.
Fuschini, que fui hoje visitar,
está velho e
tem uma doença de coração muito
adiantada.
—Porque não escreve as suas memorias?
—Não sei, custa-me. Tenho pensado em escrever
a minha autobiographia... Depois deixo-me
d'isso.
[219]
E conta-me:
—Quando foi da conversão da divida externa
fui eu e poucos mais que obstamos a que
viessem tres estrangeiros para Portugal mandar
n'isto. Creia... Chegaram a dizer-me:—Não
faça
questão, que será um dos membros da junta.
E diz:
—Ao tempo da dictadura do João Franco
lembrei-me de reunir em Lisboa um congresso
de todos os homens publicos. Procurei os republicanos,
o Afonso Costa, que me prometeram o
seu apoio. Estava de relações cortadas com o
Hintze, mas mandei-lhe falar e elle fez-me ir ao
Estoril. Disse-me o peor que é possivel do rei e
acrescentou:—Aceito a sua idéa... E tem
casa?—Tenho.—E
se a policia intervier?—Resistimos
e apelamos para o povo.—Bem, vá falar
ao José Luciano.—Procurei essa
vil
alforreca,
que exclamou:—Mas isso é a
revolução!... Preciso
de falar primeiro com o Hintze. Tenho uma
idéa melhor...—Dias depois o Hintze
dizia-me:—O
José Luciano não quer fazer nada,
disse-me que era melhor esperarmos para Outubro,
quando o rei regressar a Lisboa.—Tambem
me lembrei de escrever um manifesto
dirigido ao estrangeiro e assignado pelos estadistas
portuguezes.—Ex,
que exclamou:—Mas isso é a
revolução!... Preciso
de falar primeiro com o Hintze. Tenho uma
idéa melhor...—Dias depois o Hintze
dizia-me:—O
José Luciano não quer fazer nada,
disse-me que era melhor esperarmos para Outubro,
quando o rei regressar a Lisboa.—Tambem
me lembrei de escrever um manifesto
dirigido ao estrangeiro e assignado pelos estadistas
portuguezes.—Excelente, disse-me logo o
Hintze, venha cá amanhã... Olhe,
amanhã não,
que é o enterro do Casal Ribeiro. Depois de
amanhã.—No dia seguinte estava morto.
[220]
Março—1909.
Eis a impressão geral: Foi a rainha quem tramou
a queda do Ferreira do Amaral. O Julio de
Vilhena queria que saissem apenas dois ministros
regeneradores, substituindo-os por outros. Foi
uma tramoia do Paço. Toda a gente diz que a
rainha está feita com os reaccionarios. O D. Carlos,
emquanto vivo, opunha-se-lhe, e, logo ás primeiras
investidas—festas de Santo Antonio, etc.—poz-se
do lado dos que combatiam a reacção.
Agora manda. E conta-se que o Ferreira do
Amaral entrou um dia d'estes no Paço e perguntou
pelo rei.—Está com o seu director
espiritual.—Então
preciso de falar á rainha.—Está
tambem com o seu director espiritual.
*
A rainha—dizem-no todos—arrisca-se um
dia a ser desfeiteada. Acusam-na de deitar a
perder o rei.
Março—1909.
Barreira conta-me que
varios republicanos
teem insistido junto do general Baracho para
se pôr á frente d'um movimento.
—Bem sei, vocês querem que eu tire as castanhas
do lume, para que os outros as comam!
[221]
Março—1909.
O Cunha e Costa:
—O Ferreira do Amaral desarmava pela
bonhomia. Um dia constou ao Bernardino que
para os lados do Campo Grande havia tumultos.
Telefonou ao Amaral:—São os reaccionarios que
querem repetir as scenas de cinco de Abril...—Vou
indagar.—Meia hora depois:—Está? Sou o
Amaral.—E muito placidamente:—Ó
Bernardino,
olhe que aquelles homens que os senhores
mandaram para o Campo Grande ainda
lá não chegaram...—!!!—Os
republicanos do
Mundo, quando lhes constou que iam
ser atacados:—Senhor
presidente do conselho, consta-nos
isto...—A casa do cidadão é inviolavel
e
todos teem o direito de se defender.—Ao Pimentel
Pinto, cheio de dividas e que não paga a
ninguem, respondendo á acusação de
jantar com
os makavenkos:—Janto, janto, mas pago, meus
senhores, pago sempre.—Ao Arroyo, quando
lhe dizia:—Enganaram-no, almirante.—É
que
eu sou um ingenuo.
Abril—1909.
Fazem correr por ahi esta infamia: que o Wenceslau
de Lima é amante da rainha D. Amelia.
[222]
*
O Eduardo Pimenta, que serviu com o Mousinho
em Africa:
—Um orgulho desmedido, uma decisão rapida,
e uma insensibilidade, como nunca vi, ao
frio, á fome, ao trabalho... D'uma vez, por qualquer
questiuncula, fomos obrigados a dar uma
satisfação á Alemanha. Que scena! O
Mousinho
arrancou do peito constelado todas as medalhas,
todas as condecorações—todas.
Só
lá deixou a
Aguia Vermelha que obriga o alemão a conservar-se
de pé diante dos que a teem. Poz o
bonnet
às tres pancadas e entrou por a casa do consul
dentro. Ergueram-se todos—e elle, á porta,
sacudido,
impertinente, enorme, disse a phrase protocolar:—O
governo de Sua Magestade Fidelissima
encarrega-me, etc.—E sem esperar pela
resposta, outra vez levou dois dedos ao
bonnet e
rodou sobre os calcanhares, deixando-os estupefactos.
*
Jayme de Seguier encontra o João Franco
no estrangeiro. São amigos. E João Franco
que não queria, que jurára não tornar
a falar
em politica, durante duas longas horas não conversou,
não falou n'outra coisa.
—Tinha previsto tudo. Tinha previsto a minha
[223]
morte: o que eu não previra foi o assassinato
do rei. Isso nunca me passou pela cabeça...
—Mas o que eu não
comprehendo é que
dissolvesse as
côrtes estando
aliado com os
progressistas...
—Tinha-lhes pedido
ministros, recusaram-mos.
Ficava enfraquecido. Isso é que não.
Não
podendo tel-os como amigos, então antes como
inimigos declarados.
Quem me fornece estas notas (Jaime Victor)
fala d'um João Franco cheio, de sensibilidade e
de coração, capaz de ir até ao
fim...—P'ra
diante! p'ra diante contra tudo e contra todos!—Era
um convencido. Diz-se que os outros o
empurravam. A verdade é que ninguem o podia
deter: nem palavras nem acções o faziam recuar;
ia como uma bala na sua trajectoria. Contam-me
que n'um dos ultimos conselhos de ministros
João Franco expoz a situação: o
movimento revolucionario,
as medidas que tomára, etc.. Vasconcellos
Porto, placido e enorme, expoz a sua
opinião e concluiu:
—Deixe-os vir para a rua, que eu conto com o
exercito. E depois de vencermos, governaremos...
Ao que João Franco respondera:
—Não, podendo evitar-se o
sangue—evitamol-o.
E Jaime Victor conclue:
—A morte de D. Carlos trouxe-nos extraordinarias
complicações. Elle, por exemplo, tinha
[224]
seguro o tratado de comercio com o Brazil, que
nunca mais se fará. No Brazil fizeram-se despezas
extraordinarias para o receber.
Novembro—1909.
Guerra Junqueiro desalentado:
—Isto está liquidado, a ocasião passou.
Agora
o rei casa com uma ingleza e vem para ahi um
caixeiro qualquer da
Inglaterra, que manobra
por traz da cortina. Não reparou n'isto?... Nas
camaras passou uma lei que os auctorisa a vender
inscripções. É a bancarrota adiada por
muito
tempo. D'aqui a annos o juro da divida interna
é reduzido, mas vae-se vivendo e paga-se ao estrangeiro,
que é o principal.
*
Do João Franco diz:
—Mentia com o coração nas
mãos...
Então
é que era ocasião. O Franco e o rei
eram dois
cães damnados... A ocasião passou, a republica
passou.
*
O Carneiro de Moura:
—Os bispos e as beatas deram para a imprensa
reaccionaria, para
O Portugal, vinte
contos.
Já lá vão em pagodes!
Dantas Baracho.—Caricatura inedita de
Celso
Herminio.
[225]
Novembro—1909.
Conta hoje o Fuschini—sempre com a Alice
Lawrence atraz, sempre a caminho da Sé, com o
chapeu sobre os olhos e um rôlo de papeis debaixo
do braço, sempre sufocado quando sobe
as escadas, porque o coração cada vez lhe
trabalha
peor, sempre irrequieto e interessante, apesar
da edade e dos cabelos todos brancos:
—O Soveral é um homem de negocios
[8].
[226]
O que elle quer é dinheiro. Já tive todos os fios
d'essa meada nas mãos... Obrigou agora o rei a
ir á Inglaterra fazer uma figura triste. Pois posso
[227]
garantir-lhe que ha dois mezes esteve em Lisboa
um correspondente do
Dail Maily, que
contou
á Alice que o proprio duque de Fife mandára
[228]
ao jornal o seu secretario desmentir a noticia do
casamento.
*
O Avelino de Almeida, jornalista com a especialidade
de padres e beatas:
—Quem deu o dinheiro para
O
Portugal foram
as beatas. Um padre lazarista é que andou
metido n'isso. Arranjaram dezoito contos. Só a
viscondessa de Sarmento deu seis.
*
Um artigo curioso do
Corriere de la
Sera, assignado
pelo Gomes dos Santos:
«Um caso singularissimo poz recentemente a policia na
pista d'uma conspiração de aventureiros que
punham o seu
braço ao serviço do radicalismo, promptos para
tudo
quanto lhes fosse ordenado em nome... da utopia. Uma
longa serie de crimes politicos que datam do regicidio e
cujos auctores até agora tinham ficado envoltos no mysterio,
coloca em evidencia os factos preteritos e abre um caminho
seguro para a liquidação das responsabilidades.
Hoje ninguem duvida da existencia d'uma sociedade secreta
que, sob a aparencia de loja maçonica, é o
verdadeiro
poder executivo do partido revolucionario, o braço sempre
prompto a ferir, a espada que cae traiçoeiramente sobre
as victimas designadas pelos dirigentes da politica radical?
[229]
Ninguem ignora em Portugal as
circumstancias em que
se desenrolou o regicidio. Na confusão da tarde tragica, a
policia cae sobre dois dos regicidas e mata-os em legitima
defeza. Mas permanece sempre firme a convicção de
que
os regicidas não eram sómente Buiça e
Costa, que pagaram
com a vida o seu delicto! Esta convicção
fundava-se
em factos de ordem material e moral, sobre os quaes não
havia duvida de especie alguma. A prova moral da existencia
d'outros cumplices reside na impossibilidade do atentado
haver sido organisado e levado a efeito apenas por
dois homens. A prova material forneceram-na numerosissimas
testemunhas que viram a carruagem real ser alvejada,
simultaneamente, de varios pontos e observaram a fuga
de alguns dos cumplices do regicidio, um dos quaes,
perseguido pela policia quando fugia, com o rewolver fumegante
em punho, conseguiu perder-se de vista ao voltar
uma rua, confundindo-se depois com a multidão espavorida
que fugia do logar do crime.
É um vulgar principio de investigação
judiciaria que
os deliquentes se devem procurar entre aquelles a quem o
delicto aproveita. Ora quem podia aproveitar com a carnificina
da familia real? Se houvesse produzido uma mudança
politica, aproveitavam evidentemente os republicanos cujo
triumpho teria sido d'esta arte facilitado. Se tivesse originado
apenas (como realmente produziu) uma substituição
de governo resultaria proveitosa para os mesmos republicanos
aos quaes João Franco havia fechado todos os caminhos.
Vendo presos os seus principaes chefes e ameaçada
toda a sua organisação, os republicanos esperavam
reconquistar,
com um golpe de mão, as posições
primitivas. Não
ha outras hypotheses a considerar, visto que o crime não
podia ter sido perpetrado por uma conspiração de
monarchicos
nem representa um caso individual de terrorismo
porque os regicidas não eram anarchistas.
[230]
O Buiça e o Gosta eram
republicados militantes: trabalhavam
nas ultimas filas dos revolucionarios. Livres pensadores,
pertenciam á sociedade de propaganda d'onde, de
resto, teem sahido todos os criminosos politicos. Homens
de acção, pertenciam a uma loja secreta, a
«Montanha»,
mixto de instituição maçonica e de
comité revolucionario,
sem local fixo e sem estatutos, que se reune a um simples
convite dos jornaes da seita, ninguem sabe onde e que se
compõe de homens capazes de
tudo. Tudo deixa crer que o
regicidio foi ahi deliberado e que, como é costume, os
executores
foram tirados á sorte, visto que apenas o sorteio
explicava a escolha d'um dos regicidas, cujo passado se não
ilustra com actos de grande coragem individual.
Mas sobre o regicidio, que inaugura a conhecida série
de delictos politicos, não mais se tratou de fazer luz.
Não
se chegou a apurar quem foram os cumplices da emboscada
e, se porventura se tentou esclarecer o caso, acabaram
por concluir que era melhor guardar silencio sobre
elle. No entretanto, occorriam novos factos que vieram documentar
melhor a existencia d'uma organisação que
liquidava
pelo assassinio as dificuldades susceptiveis de embaraçar
o movimento revolucionario. Poucos mezes depois do
regicidio, um humilde engraxador apresentava-se á policia
perfeitamente apavorado e narrava que dois republicanos
lhe tinham proposto lançar uma bomba no coche que devia
conduzir D. Manuel ao Parlamento. A declaração
era
verdadeira? Ignoro-o. Mas a policia prende os dois mencionados
instigadores, um dos quaes é fulminado por uma
congestão cerebral no gabinete do juiz. Este, quando se
prepara para colher do denunciante novos esclarecimentos,
vê o engraxador morrer envenenado n'um hospital no meio
de horriveis aflicções. O desventurado declarava
que morria
por haver dito a verdade. Por falta de provas o processo
foi archivado, o que poz de bom humor a imprensa
revolucionaria, que já se dispunha a desviar a
opinião
publica com um diversivo.
[231]
Poucos mezes depois outro crime vem
afirmar a existencia
da seita. Alguns militares acusados de terem tomado
parte no movimento revolucionario de 28 de janeiro, foram
condenados a penas graves pelo tribunal, graças ao
depoimento
d'um sargento chamado Lima, que se insurgiu e referiu
o facto aos seus superiores. O sargento passeava um
dia em Setubal, para onde fôra transferido, quando um
revolucionario se lançou contra elle e lhe cravou um punhal
no coração. O assassino, preso quando fugia,
allega uma
historia inverosimil de rivalidade que as
investigações policiaes
desmentiram. Quanto á opinião da auctoridade e
dos
que conhecem de perto as scenas, referidas anteriormente,
da quadrilha revolucionaria, é clara e expressa: o sargento
foi condemnado á morte por ter denunciado a existencia
da conspiração.
Dois suicidios mysteriosos—um sob o comboio de
Cascaes, outro na redacção d'um jornal
revolucionario—parecem
ter intimas relações com a existencia da
Mão
Negra local.
Diz-se que os suicidas, designados para certos cometimentos,
preferiram escapar pela morte ás
intimações d'uma
implacavel organisação secreta. Não
faço aqui menção do
caso das bombas explosivas com que ultimamente pretenderam
alvejar algumas egrejas, depois da execução de
Ferrer.
Não ha provas da intervenção da
Mão Negra, mas
simples indicios de presumpção. Mas o que acabou
de
esclarecer o paiz sobre a existencia d'uma formidavel e
perigosa associação secreta foi o recente crime
de Cascaes,
a que os jornaes independentes dedicaram longas
columnas.
Vão decorridos alguns mezes depois que na
administração
das alfandegas se descobriu um importante furto de
armas, que estavam para chegar ao seu destino. A ausencia
d'um operario da fabrica de armas provou a sua responsabilidade
no furto, logo confirmada pela captura d'um cumplice—um
dos implicados na revolução republicana de 28
de janeiro—que era o receptador das armas roubadas.
Já
a policia averiguou o destino das armas, que se reservavam,
com a complacencia de empregados aduaneiros, ao
movimento revolucionario, quando no meio dos rochedos
das arribas de Cascaes, a oito kilometros de Lisboa, se encontra
assassinado mysteriosamente o empregado da alfandega,
auctor do furto.
[232]
Com os documentos que lhe encontraram
nas algibeiras
e com as indicações fornecidas pela familia do
assassinado,
a policia reconstituiu facilmente o crime. O pobre
empregado, vendo descoberto o furto das armas, dirigiu-se
aos que o tinham impelido e suplica-lhes que o salvem. Deram-lhe
dinheiro para transpôr a fronteira com promessa
de o sustentarem no estrangeiro e o homem refugiou-se
em Badajoz, territorio hespanhol. Mas o dinheiro falta; as
promessas não são mantidas e o refugiado escreve
aos que
o haviam levado ao crime, suplicando socorro. Como não
obtivesse resposta, ameaça-os com
declarações. A Mão Negra
destaca para Badajoz um dos seus agentes, que o conduz
a Lisboa enganado com promessas de continuar a viagem
para Africa; na primeira ocasião levam-no a Cascaes
a fim de seguir ocultamente para o seu novo destino e
matam-no, arrastando-o para o mar e precipitando-o do
alto das ribas.
O assassino foi preso na fronteira, quando tentava refugiar-se
em Hespanha, e conduzido a Lisboa, sob rigorosa
escolta. Aqui, depois de alguns dias de apertados interrogatorios,
apanhado em contradição, não sabendo
explicar
as manchas de sangue que tinha no fato, confessa finalmente
que cometera o crime,—e que, além de ser antigo
empregado n'um centro republicano, é membro da
associação
secreta a «Montanha», como os regicidas, como os
auctores dos outros crimes politicos. É a existencia da
Mão
Negra averiguada e confessada.
[233]
Os jornaes da seita, republicanos e
revolucionarios,
perante esta sensacional descoberta, mantiveram a principio
o maior silencio; jornaes que costumavam ocupar columnas
com o mais insignificante acontecimento, evitaram,
por todos os modos, referir-se a elle. Depois, desesperados
por não poderem conservar-se calados, começaram a
agredir
violentamente e, por ultimo, a ameaçar a imprensa
independente
que, mostrando-se bem informada, se ocupou
dos factos com uma certa largueza. E, emquanto a imprensa
vermelha assim procedia, a policia vinha a saber que
os revolucionarios tinham projectado fazer evadir o preso
e teve a finura de o transferir do deposito de segurança
para uma caserna militar, onde está de sentinella
á vista.
Por outro lado, diz-se que as declarações
relativas ao
crime de Cascaes revelaram uma nova pista para a descoberta
dos regicidas e a policia afadiga-se no intuito de descobrir
e prender os membros da Mão Negra. Alguns jornaes
lembram, a proposito d'este facto, a fuga precipitada
de certa personagem para o estrangeiro. A Mão Negra
é
uma especie de comité executivo, dentro do qual se encontra
todo o elemento revolucionario. Disporá o Estado de
força para resistir a esta formidavel
organisação que
nem sequer hesita ante o crime?
A experiencia da fraqueza dos governos, que se sucederam
no poder após o regicidio, não auctorisa a
responder
tranquilamente a esta interrogação...»
Dezembro—1909.
Segundo varias pessoas, ha efectivamente em
Lisboa muitas agremiações carbonarias.
Dezembro—1909.
O A... que se suicidou hontem tinha-se alcançado
em não O A... que se suicidou hontem tinha-se
alcançado
em não sei quanto—outros, passeiam por
essa Lisboa. Um, o M., alcançou-se em dezoito
[234]
contos. Castigaram-no reformando-o com o ordenado
por inteiro.
*
Conta o Columbano que a seu pae Manuel
Bordallo Pinheiro, pediu um dia um companheiro
de repartição:
—Tenho lá em casa na cocheira (do conde
de Lumiares), um quadro muito negro que queria
que você visse.
Manuel Bordallo foi buscar a tela, limpou-a
da bosta dos cavalos, lavou-a da camada de negro...
Era, nem mais nem menos, o retrato de
Carlos I d'Inglaterra, por Van Dyck, que o
D. Luiz depois comprou e está hoje na galeria
do Paço d'Ajuda.
Dezembro—1909.
O Avelino d'Almeida:
—A verdadeira razão por que o
Seculo se fez
republicano?... É que no Paço, das ultimas vezes
que o Silva Graça lá foi, receberam-no mal,
trataram-no d'alto.
*
—Um homem muito honesto o Hintze—diz
o Carneiro de Moura—um homem muito
[235]
honesto que fazia assim:—Ó Val-Flôr,
empreste-me
vinte contos.—E o Val-Flôr
emprestava-lhos—e
recebia do Estado compensações que valiam
o dôbro. Um homem muito honesto, o Hintze;
que nunca tirou dos cofres do Estado o valor de
cincoenta mil reis.
Dezembro—1909.
Ministerio novo. O bloco foi comido. O Alpoim
furioso, exclama, em pleno Chiado:—O
rei mentiu-nos! o rei é um imbecil! o rei tinha-nos
prometido o poder!
E o Vilaça conta:
—O José Luciano reuniu-nos hontem á
noite,
a mim, ao Beirão, ao Dias Costa, ao Moreirinha
e disse-nos:—Se os senhores estão no partido
apenas para serem pares do reino e para
que os encha de favores, isto acabou, hoje mesmo
se liquida o partido progressista. Não podem
recusar as pastas que eu lhes indicar.—Todos
se curvaram, o Vilaça, que perde dez contos por
anno, e o proprio Dias Costa, que de forma alguma
queria ser outra vez ministro.
23 de Dezembro—1909.
O Julio de Vilhena deixou hoje de ser chefe
do partido regenerador. Conta o João Pinto
[236]
dos Santos, que o Vilhena falou ao rei de cabeça
alta, e por tal forma, que D. Manuel sahiu
afogueado d'essa ultima entrevista, dizendo a
alguem:—Só
lhe faltou bater-me...
Dezembro—1909.
O Mardel é um homemzinho pitoresco e anecdotico
que conhece Lisboa como as suas mãos.
Ninguem como elle desenha um tipo ou vae ao
passado buscar uma figura. Sabe tudo e inventa
o resto. É um prazer ouvil-o. Constroe genealogias,
negoceia em
bric-à-brac e
escreve satyras.
D'uma vez, a um figurão que se dizia filho natural
de D. Pedro IV e que mostrava desvanecido
a toda a gente o retrato do rei que tinha
na sala, perguntando:—Hein, com quem se
parece?...—escreveu
elle a seguinte quadra:
Do Imperador, de quem
diz que é filho,
Tem o retrato na sala,
Mas da p... que o pariu
Não tem retrato nem fala...
*
Encontro em casa do Mardel o marquez da
Foz, de barbas brancas e aspecto venerando, que
desata a narrar conversas extraordinarias, surprehendidas
[237]
a meninas do
Sacre
Coeur sobre a
masculinidade dos creados... Depois fala d'arte,
de mobilia, quadros e maravilhas que comprou
e vendeu. Vive hoje arredado em Torres Novas.
—D'uma vez, quando se vendeu a mobilia
do palacio de Oeiras, dos Pombaes, os que fizeram
a liquidação, pediram-me para lhes ceder
um andar d'uma casa que eu tinha com escriptos
na rua do Ferragial, para se fazer o leilão.
Cedi e antes da praça fui lá, agradaram-me
diferentes
coisas e comprei-as. Custaram-me oito
contos. Entre varias trapalhadas iam cinco vasos
da China, cinco maravilhas, como nunca tinha
visto. Eram precisas duas pessoas para lhes pegarem.
Ao centro de cada vaso viam-se as armas
de Pombal. Quatro coloquei-os á entrada da minha
casa, o outro levei-o para a sala de jantar e
pul-o defronte d'uma estufa... Um dia reparei:
por causa do calor o verniz estalára.
Levantei-me,
olhei: sob a casca aparecia outro desenho. Tirei
com uma faca o
craquelé—e debaixo das
armas,
do Pombal apareceram as armas dos Tavoras!
Tão certo é que até os grandes homens
estão
sujeitos a estas miserias...
Depois trata da baixela do Paço, que no tempo
de D. Luiz estudou a fundo, e que então andava
a trouxe-mouxe pelos armarios. São peças
magnificas,
signé
Germain, e que valem um milhar
de contos.—D'uma vez disse a D. Luiz:—Deixe-me
V. Magestade arranjar-lhe uma sala de
[238]
jantar com a
boiserie de Queluz e a
sua baixela,
que nenhuma côrte da Europa apresenta uma
sala assim.—Ainda hoje não ha côrte
nenhuma,
nem a da Russia, que tenha uma baixela tão
rica. São mil e tantas peças admiraveis.
É falso
que lá esteja tambem a baixela do duque de
Aveiro. Vi as contas todas, photographei tudo...
*
—Um dia fui ao Leitão ourives, a esse
artista...—e
sorri com ironia—comprar qualquer
joia. Ia a sahir quando dei com uma prata antiga
a um canto.—Que é
aquillo?—Está alli
para derreter.—Deixem-me vêr.—Eram
três
peças
esplendidas, com as armas do duque d'Aveiro—uma
salva enorme, a que faltava um bocado
da aza, com desenhos magnificamente gravados,
e duas enormes compoteiras de prata com festões
d'ervilhas, tudo marcado, assignado,
admiravel.—São
para derreter? Então venda-m'as. Quanto
pezam?—Quinhentos mil reis.—Dou
seiscentos.—Venderam-mas,
levei-as para casa. Tinham feito
uma tentativa para lhe apagar as armas. Quando
depois as vendi deram-me alguns contos de reis.
Por fim fala de ninharias, d'isto, d'aquillo—e
d'algumas peças
que tinham pertencido
ao D. Fernando e «nas quaes alguem fez
mão
baixa»...
[239]
*
Uma anecdota que elle tem como absolutamente
autentica e que andou sempre na tradição
da sua familia:
—O D. João VI estava para morrer. O patriarcha
procurou a D. Carlota Joaquina para
a reconciliar com o rei. Recebido na sala do
throno, em Queluz, diz-lhe as palavras banaes
do costume—mas ella não cede. Pede,
suplica—perde
o seu tempo. A rainha está renitente.
Então retira-se depois das contumelias da
pragmatica—e,
ao sahir, volta-se de repente e dá
com ella a fazer-lhe um grande, um imponente,
um magestoso manguito...
*
Ha dias comprou por cento e cincoenta mil
reis um quadro de Alberto Durer, absolutamente
autentico e com a assignatura perfeita.—É o
pendant do que está no
Museu. E estou em vesperas
de comprar mais quatro, entre os quaes
um Corregio. Suspeito, pela proveniencia, que
todos estes do que está no
Museu. E estou em vesperas
de comprar mais quatro, entre os quaes
um Corregio. Suspeito, pela proveniencia, que
todos estes quadros pertenceram á galeria do
duque d'Aveiro.
[240]
Janeiro—1910.
Contam-me hoje a morte tragica do Marianno
de Carvalho. Estava doente, de cama, e a familia
sahiu, deixando-lhe uma campainha á cabeceira.
Os creados aproveitaram a oportunidade e safaram-se
tambem. Quando voltaram foram dar
com elle morto, agarrado á campainha, n'um ultimo
desespero...
Janeiro—1910.
O juiz d'instrucção criminal, dr. Antonio
Emilio, a um amigo meu:
—No dia vinte e oito de Janeiro os soldados
apanharam junto a qualquer quartel da municipal
um homem com um caixote de bombas e
duas pistolas automaticas. Meteram-no no
calabouço—e
confessa, não confessa... o homem
nada! Então o oficial chamou um soldado e
disse-lhe:—Nós
vamos alli para a porta do calabouço
e tu diz-me a tudo que sim. Vamos lá.—E
começou:—Carrega lá essa pistola para
darmos
cabo d'esse diabo, que vinha aqui para nos
atirar bombas!—Quando o oficial abriu a porta
do calabouço o preso atirou-se-lhe aos
pés:—Não
me matem que eu confesso tudo.—Então
quem te entregou o caixote?—Foi o Alfredo
[241]
Costa.—Veio a participação para o
governo
civil—mas
só chegou ás mãos do juiz depois da
morte do rei...
José Maria de Alpoim.
*
O juiz:
—Estamos sobre um vulcão. Prendi varios
homens das associações secretas, podia prender
mil. Já ninguem salva isto a não ser uma forte
dictadura militar. E eu vou-me embora porque
não quero incorrer nas iras populares.
*
O dr. Antonio Emilio ao Beirão:
—Ou vamos para a frente, ou os senhores
metam-se em casa á espera que os chacinem.
E garante que a explosão de outro dia na
Baixa, atribuida a gaz extravasado, foi devida a
uma bomba de dinamite.
Janeiro—1910.
Os brincos de brilhantes que o Pedro d'Araujo
deu á mulher do José Luciano quando o
fizeram par, custaram cem mil francos. Diz-se,
diz-se...
[242]
Fevereiro—1910.
O Paço está rodeado de piquetes.
Forças vigiam
a Tapada. Garante-se por ahi que, emquanto
os regicidas não forem presos, o rei
não casa. O Maximiliano d'Azevedo, oficial do
campo entrincheirado, conta-me que as forças
do campo foram ante-hontem (1 de Fevereiro)
postas sob as ordens do general de divisão e
com ordem de marcharem sobre Lisboa ao primeiro
aviso.
*
O que se diz por ahi baixinho, de ouvido
para ouvido, é tremendo. Diz-se o que
O
Povo
d'Aveiro, que está tendo tiragens enormes,
publicou
nos ultimos numeros
[9].
[243]
*
O T..., d'
O Mundo, disse-me que
janta duas
vezes por semana com o Alpoim, e já se tem gabado
que é elle um dos auctores do
Diz-se...
*
O Colen, n'um jantar intimo, onde esteve
alguem que m'o conta:
—No dia vinte e oito de Janeiro estava tudo
preparado e seriamente preparado para a deposição
de D. Carlos—marinha, tropa,
organisações,
tudo. E tudo falhou porque o Afonso Costa
[244]
não quiz dar o signal sem que o João
Franco
estivesse morto.
Março—1910.
Á reunião celebre do Castello, onde se decidiu
a morte do rei, assistiram trinta pessoas.
*
Paçô Vieira:
—A carta que o rei escreveu ao Hintze e
que fez com que o ministerio cahisse, foi conhecida,
antes de lhe ser enviada, pelos republicanos.
Eu lhe conto: um dia estava em Paçô,
quando o Hintze me chamou. Parti logo, corri
[245]
logo a casa d'elle. Encontrei-o na sala de bilhar:
tinha um papel na mão.—Desculpe e obrigado.
Já não é necessario. Recebi hoje esta
carta do
rei que me levou a pedir a
demissão.—Repliquei-lhe:—Sei
perfeitamente o que diz essa carta.
Posso repetir-lha quasi phrase por phrase.—E
diante do espanto do Hintze:—Vim no comboio
com o Afonso Costa que me disse, palavra
por palavra, o que continha essa carta...—Assombro
do Hintze. A copia da carta fôra mandada
pelo rei aos republicanos—naturalmente
ao Bernardino—antes de ser enviada ao Hintze.
Março—1910.
Quantos Fialhos, todos diferentes, tenho conhecido
pela vida fóra! Este, de ventre e barbicha
de bode, esta figura de que os mortos
se conseguiram apoderar, agarrado á terra, conservador,
discutindo com o padre da freguezia
os melhoramentos da sua egreja, este é—emfim!
emfim!—o descendente autentico dos
cavadores alemtejanos. Custou... As suas melhores
obras—as que sonhou e nunca se resolveu
a escrever—leva-as elle para a cova...
De quando em quando ainda tem uma revolta:
—É horrivel a minha vida na aldeia. Se
não
fossem os livros já me tinha suicidado. Cada vez
preciso mais de ver gente e d'esta vida artificial
[246]
de Lisboa. Na aldeia, em Cuba, não falo com
ninguem, não tenho ninguem com quem comunicar.
São de bronze aquelles filhos da p...! E nem
a mais pequena sombra de sensibilidade. E se
imaginam que a gente não tem dinheiro, estamos
perdidos!...
—Fuja.
—Não posso. Quem me ha-de tratar d'aquillo?
E depois criei interesse ás oliveiras que plantei,
á vinha... Ah, mas as noites!... Tenho noites
em que pego n'um livro e saio. Ha uma estrada
em volta de Cuba—e eu alli ando á roda toda
a noite a falar sósinho como um condenado!
Março—1910.
Centenario d'Herculano. Missa nos Jeronymos
pelo padre Matos. O S. Boaventura diz-me
que, pela avó materna, é ainda parente de
Herculano.—Que
eram seus avós?—Pedreiros.—Efectivamente
no retrato Herculano parece um
pedreiro da minha aldeia; efectivamente Herculano
descende de pedreiros e toda a sua obra é,
na realidade, a d'um homem que moe e lavra
com solemnidade a pedra, a d'um d'esses extraordinarios
montantes que metem o ferro até á
raiz da fraga, racham o penedo, afeiçoam a
lage, e acabam, emfim, por construir a cathedral.
Herculano edificou em granito—e no granito
[247]
abriu pacientes e admiraveis lavores... A seriedade,
a obstinação, e até o amôr
á terra, ao
azeite e ao pão, seu ultimo ideal e refugio, são
caracteristicos e o ideal tambem d'essa legião
de trabalho imensa e obscura, cuja alma, á força
de lidar com a pedra, adquire dureza e grandeza
tambem. Essas figuras, só osso e pelle, descarnadas,
que partem de manhã com o saquitel
e a borôa, que só pronunciam palavras graves, e
ao dar do meio dia se descobrem e mastigam o
pedaço sêco de pão com um ar
solemne,—acabaram,
emfim, por encontrar um descendente
como elles austero e grave, capaz de exprimir o
universo—o que sentiram, o que sofreram e o
que sonharam—e capaz de edificar com alicerces
para seculos. Tudo, até a falta de phantasia
e imaginação, até o miudo lavor
pacientemente
trabalhado, até a casa simples, vulgar e
mal repartida, até a companheira, até a
austeridade,
veio a Herculano d'essa grande geração
de pedreiros portuguezes, que antes d'elle fizeram
obra digna de homens e desapareceram para
sempre no pó—mas poderam transmitir, filho
atraz de pae, a solemnidade e a grandeza, a
quem um dia erguesse uma cathedral mais vasta
e com raizes mais fundas do que elles todos
juntos. Mas todos trabalharam tambem, sabe
Deus durante quantos seculos, com tenacidade
e firmeza, para a obra do pedreiro maximo de
toda a sua geração.
[248]
Março—1910.
José d'Azevedo:
—Anno passado o rei chamou-me e pediu-me
para votar o projecto da União Vinicola. Disse-lhe
logo:—Não, meu senhor, não voto. E V.
Magestade pede-me isso porque não sabe de que
se trata. O projecto é ruinoso.
Abril—1910.
O Fernando de Serpa, agora em foco por
causa das cartas que o Afonso Costa leu no
Parlamento
[10]
e se teem publicado n'
O
Mundo—esteve
[249]
estes dias para se suicidar. A mulher
não dorme e o irmão d'ella entrou hoje
n'
O Imparcial e disse ao
José d'Azevedo:—Se
isto assim continua minha irmã endoidece, e
se minha irmã endoidece eu mato o Afonso
Costa.—Segundo elle, esse Fernando de Serpa
que se metia em tantos negocios, deve afinal
quinze contos de reis e tem agora os seus vencimentos
suspensos...
*
Porque o José d'Azevedo não foi ministro
com o Hintze:
—O Hintze tinha por mim uma grande
admiração, mas nunca me fez ministro, porque
a sua vida economica andava muito atrapalhada
e um dia em que me mostraram uma lista de
pares que elle ia fazer, entre os quaes estava o
meu nome, eu disse:—Mas isso não é uma
lista de pares—é uma lista de
credores.—Soube-o
logo e nunca me perdoou.
*
Quem roubou ao Paçô as celebres cartas de
que o Afonso Costa se serviu no parlamento, foi
o creado. Soube-o hoje por acaso. O Urbano
Rodrigues vendo um rapaz de dezeseis annos na
redacção d'
O
Imparcial, disse:—Este é o creado
do Paçô, que vae muito ao
Mundo e pertence ás
associações secretas.
[250]
*
—O José Luciano foi sempre um homem
pernicioso—diz o José d'Azevedo.
—Emquanto fôr uma sombra ha-de
mandar—conclue
o Fuschini. E acrescenta:—Quem
manda é o seu
salão onde se fazem os
negocios
mais escuros e mais porcos d'este paiz.
*
—Esse ministro italiano que ahi
está—conta
o José d'Azevedo—foi um dos que mais concorreu
para salvar Dreyfus. Paulucci, então secretario
de legação em Paris, viu os documentos
da embaixada e convenceu-se da inocencia
de Dreyfus. Falou ao embaixador, seu tio,
que lhe disse:—Prohibo-te que te metas
n'isso.—Não
se importou. Procurou Bernard Lazare,
que o recambiou para o José Reinach.—Isso
é
extraordinario. Vamos ter com Max Nordau e
com Zola.—Reuniram-se e examinaram os documentos
da legação italiana. Dos papeis não
só
se deprehendia que era outro o traidor, mas resaltava
nitida e clara esta preciosa informação: o
adido encarregado da espionagem alemã possuia
a esse respeito vinte e nove cartas absolutamente
decisivas. Max Nordau partiu para Berlim
e pediu ao imperador da Alemanha a publicação
das cartas. O imperador opoz-se. Paulucci não
desanimou: foi a Roma, bateu á porta d'um cardeal,
[251]
pediu-lhe que o partido catholico tomasse
a defeza de Dreyfus inocente, o que assegurava
ao catholicismo um papel triumphante no mundo;
falou emfim a Leão XIII, a quem só arrancou
boas palavras. (E d'ahi veio o combate da
França republicana contra o clericalismo. Que
outro não seria o papel da Egreja se Leão XIII
se manifesta!) Nem assim Paulucci desanima. Insiste
com o tio:—Pois meu tio tem nas suas
mãos documentos que provam a inocencia de
Dreyfus e pode dormir descançado! Apresento-me
como testemunha.—O embaixador conseguiu
que todos os secretarios fossem testemunhas
no processo. Paulucci tinha doze mil e setecentos
documentos (copias) da questão Dreyfus, que arderam
no ultimo fogo da embaixada italiana no
campo de Santa Clara. Paulucci dizia muitas vezes:—Andei
dois annos com febre!
*
José d'Azevedo:
—Fui eu que machinei e atirei com o ministerio
Ferreira do Amaral a terra. Tinha-me
feito um agravo que, se é directo, m'o pagava
n'um conflicto pessoal. Fui eu que fiz tudo. O
José Luciano não queria. Procurei-o na Anadia.
Obstinava-se. Mas eu fui ao Porto—e venci.
Uma tarde o Campos Henriques recebeu uma
carta do Paçô, que encontrára o Tavares
Festas
no comboio (o Tavares Festas vinha de casa do
[252]
José Luciano), carta em que lhe dizia: «Ouvi que
vae formar ministerio com estes nomes...» O
Campos Henriques mostrou a carta á mulher:—Olha
o que me diz o Paçô...—E riu-se. No
dia seguinte era chamado ao Paço e organisava
o ministerio, tal qual o Paçô lhe dizia
na carta. Ordens de José Luciano.
1 de Maio—1910.
José d'Azevedo diz a respeito do escandalo
do Credito Predial:—Não são sessenta
contos
que faltam, são oitocentos! A escripta está toda
viciada. Venderam-se obrigações, deram-se juros
entrando-se pelo capital, emfim um descalabro
medonho, que se não podia fazer sem
auctorisação dos governadores.
*
É um politico reservado e frio? Não sei.
É
um homem audacioso e inteligente, que parece
calmo. Mas ha n'elle uma parte em carne viva.
Sente-se a ferida sob aquella aparencia forte. Escreve
sem uma emenda, linguado atraz de linguado;
nem hesitações nem duvidas e um prazer que
synthetisa n'estas palavras:—Babo-me... Não
escrevo,
babo-me...—Não crê senão em
si mesmo,
e não deve ter um amigo, como todos os que
[253]
contam apenas com as suas proprias forças. A
mulher d'um diplomata que viajou com elle, dizia:—As
maneiras encantaram-me, os olhos meteram-me
medo.—São os olhos dos Brocas.
—Sou das raras pessoas que teem assistido
ao suplicio dos chinezes. Fui com o meu creado,
a cavalo—e por signal que elle desmaiou. Cortam-lhes
primeiro a carne dos ante-braços, depois
a das pernas, depois os seios, depois os
braços e as pernas pelas articulações;
dão-lhes
emfim um golpe no coração e acabam por os
decepar. Pois durante todo o suplicio atroz, os
desgraçados não deram um unico grito, um
só
gemido: erguiam a cabeça e bufavam ou mijavam-se.
Mais nada. Um d'elles prestou-se, sorrindo,
a que o photographassem, emquanto o
carrasco levantava a espada para o degolar...
*
Uma phrase camilliana de uma tia, irmã de
Camillo:—Sobrinho, Deus não existe... ou embarcou!
*
E esta de Camillo, que tinha vindo a Lisboa
muito doente, e a quem Souza Martins, para o
sacudir, começou ralhando muito. Camillo, para
o José d'Azevedo, depois do medico sahir:
—Vê, meu sobrinho, vê, não me
perdoam o
Eusebio Macario, estes filhos de
boticario!
[254]
*
Camillo para o José d'Azevedo, mostrando-lhe
o filho, que já estava no primeiro periodo de
loucura:—Veja esse desgraçado... Era um rapaz
inteligente...—E depois d'uma pausa dolorosa:—E
tudo isto porquê, sobrinho? Por ter lido as
obras do Theophilo Braga.
Junho—1910.
Nos quarteis continua a fazer-se uma larga
propaganda republicana. Distribuem-se aos soldados
versos e folhetos. Exemplo:
PROPAGANDA
ELEIÇOEIRA
DO BLOCO PREDIAL
(Musica—A MARSELHEZA) |
||
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Ide escravos quebrar os grilhões,
As algemas da fome homicida;
Armas promptas contra esses ladrões,
Que nos roubam a bolsa e a vida! (bis)
Nova aurora de Paz, Redempção,
Vá doirar nossos valles e cerros,
Libertando os captivos dos ferros,
Dando aos pobres a luz e o pão.
Avante! Lusitanos!
Largae a servidão!
Unir! Unir! contra os tyramnos,
Salvemos a
Nação!
Avante Lusitanos,
Salvemos a Nação.
Tareco.
|
[255]
E o folheto «Os Barbadões»
[11]:
«O rei D. João I
da gloriosa dynastia de Aviz,
enamorou-se
da filha de Pero Esteves, sapateiro alemtejano, conhecido
pela alcunha O Barbadão; d'estes
amores nasceu
um filho que foi conde de Barcellos e primeiro duque de
Bragança; casando este com uma filha do condestavel
Nun'Alvares, deu origem á nobre casa que ha 267 annos
reina em Portugal.
A casa de Bragança foi-se engrandecendo á custa
de
doações regias, bens nacionaes que os reis cediam
em usufructo
apenas, e que o capricho do soberano ou a conveniencia
do Estado, podiam fazer voltar ao seu legitimo
proprietário: A
Nação.
Não foram os serviços relevantes que
engrandeceram
esta casa, mas as intrigas continuas, salientando-se entre
todas a que levou o glorioso infante D. Pedro á chacina
de Alfarrobeira.
Com a revolução de 1640 que libertou Portugal do
jugo da Espanha, o oitavo duque de Bragança foi aclamado
rei com o nome de João IV; beato e poltrão
liga-se aos jesuitas,
e para salvar a pelle e o titulo de rei, não hesita em
negociar por intermedio do padre Antonio Vieira (jesuita)
a entrega do seu paiz á França, ou novamente
á Espanha,
a troco de o reconhecerem como rei do Brazil; a sua pessoa
era tudo, o seu paiz era nada. Os melhores servidores
do Estado foram lançados em prisões ou conduzidos
ao cadafalso
(o ministro Lucena, o marquez de Montalvão, Mathias
d'Albuquerque vencedor de Montijo, etc.). O seu
reinado foi coroado pelo presente que fez á Inglaterra,
como dote de sua irmã, das cidades de Bombaim e Tanger,
ricas flores de laranjeira que a infante portugueza levou
prezas ao seu vestido de noiva!
[256]
Seu filho Afonso VI
que no throno
lhe sucedeu, corria
de noite as ruas da cidade, com a sua purria fidalga, assaltando
os cidadãos indefezos; era doido, e d'isso se aproveita
seu irmão Pedro II para
lhe tirar a corôa e... a
mulher, com o consentimento do papa; este (Pedro II) dominado
pelos jesuitas tambem, desterra o conde de Castello
Melhor, glorioso ministro (que por tres vezes salvou
Portugal da dominação espanhola), e celebra com a
Inglaterra
o vergonhoso tratado de Methwen, que nos tira o comercio
do Oriente e nos impossibilita de montar fabricas
e oficinas.
João V que lhe sucede,
gasta o oiro que do Brazil lhe
vem, na construção de conventos, em festas de
egreja e
em presentes ao padre santo; deixa perder sem enviar socorros,
as nossas colonias da India, Ceylão e Oceania, porque
o dinheiro era pouco para presentear as freiras de
quem fez amantes e o papa de quem se fez lacaio.
José I faz morrer no cadafalso toda a
familia Tavora,
por meio de horriveis tormentos, com o pretexto de serem
cumplices na conspiração do duque de Aveiro, o
que se
não provou, sendo a causa verdadeira a
oposição que essa
familia fazia aos seus amores adulteros com a marqueza;
nada escapou ao seu furor sanguinario: nem velhos, nem
mulheres, nem creanças. Para dignamente coroar o seu
reinado,
abandona aos mouros as cidades que possuiamos em
Marrocos, e que tanto sangue portuguez custaram.
Teixeira de Sousa.
[257]
Maria I tira o poder
ao Marquez de
Pombal, entrega-o
aos frades e endoidece; seu filho João
VI que em seu nome
governou e lhe sucedeu, foge covardemente para o Brazil
abandonando o povo de que era rei, quando os francezes
invadiram o paiz; Junot entra em Lisboa á frente de 70
soldados!!! Portugal revolta-se contra os francezes, e o rei
entrega-o aos desprezos de Wellington e ás brutalidades
de Beresford; os inglezes protegendo-nos, fazem-nos peor
mal que os invasores: arrazam as nossas provincias, queimam
as nossas fabricas, conquistam a Madeira, e impõem-nos
os vergonhosos tratados de 1810, ainda peores que o
de Methwen. O general Gomes Freire, por tentar libertar
o paiz das garras inglezas, é enforcado em S.
Julião da
Barra; outros 17 martires pagam com a vida, no Campo de
Sant'Anna, a sua dedicação patriotica. A
revolução popular
de 1820 salva Portugal do leopardo britanico, obriga o
rei a voltar ao seu posto e liberta o exercito do oprobrio de
ser comandado por oficiaes inglezes.
D. Miguel foi quem primeiro
estabeleceu em Portugal
um governo de força, á semelhança do
que desejam actualmente
alguns idiotas barriguistas; nada lhe faltava: as alçadas,
as forcas, o cacete, 80.000 homens de tropa e um
povo fanatico e imbecil; contra si, em todo o paiz, apenas
tinha alguns liberaes desarmados; o seu retrato figurava
nos altares, e as mães pediam-lhe a honra de lhes desflorar
as filhas. Prende, enforca ou manda fuzilar toda a gente de
que suspeita, mas com toda a sua força, deixa que uma
esquadra
estrangeira lhe escarre na cara e no Paiz, sem que
um só tiro partisse a repelir a afronta. Este idolo poderoso
cahe do seu pedestal de sangue, é corrido do
throno pela
revolução
triumphante; seu numeroso exercito
pouco a pouco o foi abandonando, vindo para o
lado do povo liberal, e o bronco tigre que ao começar
a guerra civil tinha 80.000 homens ás suas ordens, perde
a batalha de Asseiceira com os 5.000 homens unicos
que até esse momento lhe ficaram fieis.
Pedro IV, o que tem estatua no
Rocio, revolta o Brazil
contra Portugal, faz-se seu imperador e manda fuzilar
no Rio de Janeiro os soldados portuguezes á
traição; corrido
do Brazil, volta a Portugal a tentar fortuna, dirigindo
a guerra civil contra o irmão; emquanto esta se
não decide
a seu favor, não tem vergonha de offerecer á
Inglaterra,
em troca de auxilio desta, o pouco que nos restava do nosso
imperio indiano.
[258]
Maria II para se
aguentar no throno
chama marujos
inglezes e 30:000 soldados de Espanha; faz invadir a sua
patria e assassinar o seu povo, para satisfação
do seu orgulho
de rainha liberal.
Pedro V não poude passar
sem irmãs de caridade, e
deixa que mansamente de novo se estabeleçam entre
nós
as congregações religiosas; novamente, um
almirante estrangeiro
(Lavaud) nos faz o mesmo que Roussin fizera em
tempo de D. Miguel.
Luiz I arvora o cynismo em governo e
faz reinar a
bandalheira; deixa que na conferencia de Berlim nos roubem
a maior parte do nosso territorio Africano, e conduz
o paiz á bancarrota que estala pouco tempo depois da subida
ao throno de seu filho Carlos. Este,
esbofeteado pela
Inglaterra, curva-se rasteiramente, chama piolheira á
nação
que lhe paga, e... rouba-a; rouba-lhe o seu dinheiro e
rouba-lhe a liberdade; no seu reinado perdemos vastos
territorios nas nossas colonias de Moçambique, Angola e
Guiné. O seu ultimo ministro João Franco, que
queria pôr
tudo isto no xão atirou
com elle ao chão. Seu filho Manuel
II
que lhe succedeu, com sua bella e radiosa mocidade,
já deu a seu povo uma explendida amostra do muito amor
que lhe tem: a chacina de 5 de abril (14 mortos e 100 feridos!);
em troca o seu primeiro ministerio entendeu que o
povo lhe devia dar mais ordenado; ainda não roubou como
o papá, mas paga-se melhor; passa a sua vida de rozario
na mão, envergando a roupêta de jezuita, seguindo
os conselhos
das fraldas femeninas reaccionario-palatinas.
[259]
Até hoje 14 reis da
casa de Bragança teem governado
o Paiz, e como se vê são os legitimos
representantes duma
nação de idiotas, barriguistas e
poltrões; tambem não resta
duvida que esta dynastia é, como tem sido, a mais solida
garantia
da integridade do nosso imperio ultramarino. Grandes
são os beneficios que a Nação lhe
deve: uma divida
colossal de
oitocentos mil contos,
nenhumas industrias,
nenhum commercio, uma agricultura atrazadissima, um
povo tuberculoso e analphabeto, esmagado com impostos
á mercê dos pontapés estrangeiros; nem
exercito nem marinha;
estradas ao abandono e bufos com fartura, taes são
as fontes de riqueza que os Braganças nos deixam, e tudo
isto por pouco dinheiro, baratinho:
365
contos por anno só
para elle, mais
60 contos para a
mamã,
outros 60 para a
vóvó e
16 para
o titi; tem tambem para alfinetes
160
contos
a mais por anno que o generoso Amaral lhe deu, pagamos
tambem á sua guarda real de archeiros, á
orchestra da sua
real Camara, e ao seu yacht, e como isto é pouco, damos-lhe
dinheiro pela honra que nos faz em alojar os seus cavallos e
carros nas nossas casas e pela licença que nos deu de
utilisarmos
em serviço do Estado os nossos palacios; tudo isto, bem
entendido, nada tem com os rendimentos da casa de Bragança
que disfructa. Quando casar, se S. M. nos der essa felicidade,
dar-lhe-hemos mais
60 contos para os
alfinetes de sua
esposa; e se tiver meninos? então morreremos de alegria
e daremos
20 contos annuaes por cada
pimpolho.
Como veem, não é pagar cara a certeza que temos
de
ganhar o reino do ceu pela mão do nosso radioso soberano,
com a benção de Pio X, as indulgencias de Merry
del Val
e as preces solemnes do sr. patriarcha e do reverendo bispo
de Beja.
*
Oliveira Martins, que foi ministro de D. Carlos, diz na
sua historia de Portugal: Força é reconhecer que
na familia
dos Braganças não vingou a semente da nobre
raça dos
Nun'Alvares; viu-se em todos elles a descendencia do
crasso sangue alemtejano da filha do
Barbadão.
*
Portuguezes! façamos votos pela
conservação
d'esta
gloriosa
dynastia—
Oremos—
Padre
Nosso—
Ave-Maria.
[260]
Junho—1910.
Fui hoje a casa do Fernando
Martins de
Carvalho consultal-o. Não sae ainda com medo
aos republicanos. É
pequeno, inteligente, arguto.
Está livido.
—A rainha D. Amelia é que quiz
forçosamente
que o ministerio João Franco fôsse abaixo
e até se opunha a que se lavrassem os decretos
como habitualmente.
—E o rei?
—O rei, como dizia o Totenbach, não é
um
homem... Oh, vivemos dias horriveis! Olhe, tenho
provas moraes absolutas de que os republicanos
quizeram assassinar o João Franco, quando
elle viesse de Carnide no automovel. Ha na estrada
uma azinhaga: de repente uma carroça
surgia, fazia parar o automovel e os assassinos
cahiam-lhe em cima...
Julho—1910.
Do João de Menezes:
—Possuo documentos (que hão-de aparecer
a seu tempo) e que provam que foi a rainha
D. Amelia, d'acordo com a condessa de Paris e
a duqueza de Monpensier, quem introduziu as ordens
religiosas no paiz. Foram ellas que deram
dinheiro para jornaes e o resto.
[261]
*
A dissidencia, o assassinato do rei, o caso do
Credito Predial, foram golpes profundos e certeiros
vibrados na monarchia. Está efectivamente
tudo minado... E os ataques dos republicanos ao
juiz de instrução criminal demonstram que elle
lhes tocou na ferida... Mas quem ha ahi que se
queira comprometer a serio pela monarchia,
sobretudo depois do exemplo de João Franco?—A
um ministro foi preciso escrever-lhe uma
ordem necessaria «porque a mão lhe
tremia...»
O que resta de pé não passa de
ficção. Quem
manda, quem governa, mesmo na oposição,
são
os republicanos, que o Alpoim leva pela mão
até ás questões
importantes.—O
exercito é nosso.—E
o João Chagas, para convencer um oficial incredulo,
manda desfilar certa noite no Rocio os soldados
d'um regimento, que, por senha, um a um
lhe fazem todos a continencia. Sucedem-se os
governos, mas a força é outra, que se sente por
traz do scenario... O José d'Azevedo
desafia-os:—Venham
para a rua!—Fiado em quê?
O pacto de Vila Viçosa efectivamente existe?
[12]
[262]
Já o João Franco dizia tambem com
arrogancia:—Se
podem fazer a republica façam-na depressa,
porque d'aqui a dois annos garanto-lhes que a
não fazem.—Mas será este rei um
chefe?—pergunta
necessaria e decisiva, a que os proprios monarchicos
respondem d'esta forma n'
O Liberal:
«O rei de Portugal
está exautorado,
está reduzido a
uma chancella de quem lhe bate os pés.
«Podia ser um rei, e é um simulacro da realeza.
[263]
«Em tempo algum se curvaram
os reis perante
ameaças
de qualquer natureza e ainda menos, quando tendentes a
esquecer os nossos protestos e juramentos a que está ligada
a propria dignidade e a honra de uma nação.
«Póde asseverar-se que o snr. D. Manuel
não chegou a
ser rei. No momento em que se
esqueceu
do
que devia á
sua dignidade de nós todos,
que lhe
confiamos um cargo,
que é incapaz de conservar sem o deixar cair, o snr.
D. Manuel deixou de ser rei».
[264]
A excitação politica não tem
diminuido, e o
Teixeira de Souza, no poder, ignora tudo que o
juiz d'instrucção repete a quem o quer
ouvir:—Estamos
sobre um vulcão!—A audacia dos
republicanos todos os dias augmenta:—Lisboa
é nossa!—exclama o Chagas.—Se os
republicanos
fizessem um comicio ao alto da Avenida
e viessem por ali abaixo, a republica estava
feita!—afirma o Silva Graça—E o Porto e
a
provincia?—pergunto
[265]
eu ao Chagas.—Que me
importa a provincia! Que importa mesmo o
Porto! A republica fazemol-a depois pelo telegrapho.—Outro
diz-me:—A marinha está toda
comnosco. Tem havido ocasiões em que a esquadrilha
do Algarve nos pertence desde o oficial
mais graduado até ao ultimo fogueiro. O dificil
tem sido contel-os...—Todos os dias corre um
boato e a agitação popular augmenta pela carestia
da vida
[13].
Que vae sahir d'aqui? Uma
[266]
grande revolução, o terror,
mortes?...—Não,
soceguem, quando se fizer a republica—já o
anunciou ha annos o pontifice maximo Guerra
Junqueiro—o que se ha-de ouvir não é um
grande ruido de espadas, é um grande ruido de
talheres...
A
SOCIEDADE ELEGANTE
Rodeiam a rainha o Figueiró e a Figueiró, e
algumas relações intimas da Figueiró e
Sabugosa;
e o rei o Ficalho, alguns velhos em oficio
na côrte, como o marquez d'Alvito, o conde de
Villa Nova de Cerveira, que, ao que se disse,
morreu por ser preterido pelo conde de Sabugosa,
por influencia da rainha—o que é redondamente
falso: D. Pedro de Noronha, vulgo o Paço
d'Arcos, morreu de velho. Era um homem sem
cultura, e tinha oitenta e seis annos quando foi
preciso nomear novo mordomo mór por morte
do Ficalho. Acompanham o rei no yacht o Fernando
de Serpa, o Manuel Figueira, o Pinto
Basto (Nico), o Malaquias de Lemos, o Queiroz,
que passou por ser a alma danada do paço;
e que na realidade tinha um certo geito para
disciplinar soldados, montar a cavallo, dirigir esperas
de touros—e mais nada; algumas vezes o
major Santos, feitor da Bacalhôa, e o
Soveral
que, quando estava em Lisboa, era o menino bonito
[268]
da corte, onde tinham influencia o Bernardo
Pindella, o Caldeira, comandante do yacht, e poucos
mais.
A seguir ao paço podem citar-se os Palmellas,
em casa de quem se dava beijamão aos creados
e ás creadas, se isto não é uma lenda
como muitas
outras... Era uma pequena corte. Ella, a duqueza,
viveu sempre entre coisas bellas; elle, o
duque, era um apagado guarda livros
[14].
Só recebiam
raros parentes, e a duqueza toda a vida
detestou os Sousa Holstein. No tempo de D.
Luiz ainda muita gente nobre mantinha uma
grande linha, que se foi pouco a pouco apagando:
os Penafieis que então fizeram uma vida
brilhante; o marquez de Vianna cujo palacio se
vendeu ao marquez da Praia.—Aquella gente
nem sabe acender um lustre, dizia o velho marquez
ao falar d'«esses morgadotes da ilha...»
Os condes de Lumiares davam bellas festas no
palacio quasi pegado, onde é hoje o do Marquez
da Fóz. Abriam-se as janellas, apagavam-se os
milhares de lustres e continuava-se a conversa
ate á missa das almas na capella proxima.
Chamavam-se essas festas «rosas divinas».
[269]
Debutou ahi, nas salas de Lisboa, o snr. Luiz de
Soveral. No rez do chão do mesmo palacio
davam pequenas partidas os Castellos Melhor.
Tocava o seu amigo Bomtempo e juntavam-se
alguns politicos, entre os quaes o Manuel Vaz
Preto. No fim do reinado de D. Luiz já a maior
parte dos palacios de Lisboa ou tinham sido
alugados ou mudado de dono. No palacio de
Tancos estava o colegio do dr. Sicuro; nos
dos viscondes de Asseca instalou-se o visconde
de Ouguella e depois uma fabrica; o dos condes
de Murça transformou-se n'uma escola; o
do marquez de Abrantes—que ocupava apenas
um recanto—foi alugado pela legação da
França; o dos condes Barão, no largo do mesmo
nome, passou a uma familia de judeus, barão de
Villa de Foscôa; o dos Almadas Carvalhaes, senhores
d'Ilhavo, á Empreza Editora; no do conde
da Ribeira, de quem o rei dizia que era o homem
mais honesto do seu tempo, e que morava
na casa dos Mordomos, instalou-se o colegio Arriaga.
Já os Angejas, representados pelo conde
de Peniche, tinham deixado o palacio de S. Lazaro,
que depois ardeu, e o visconde de Sampaio
mudára para a rua de S. Vicente. Os
condes Valladares e Povolide haviam vendido
ao snr. Burnay o palacio das Portas de Santo
Antão e retirado para a provincia. O palacio
dos condes de Paraty é hoje escola municipal,
no dos condes da Ponte, á Boa Morte,
[270]
habitou o general Palmeirim, e no dos condes
de Farrobo móra o snr. Monteiro Milhões, que
tambem comprou as Laranjeiras, vendidas depois
successivamente até cahirem nas mãos do
snr. conde de Burnay. O palacio dos Castellos
Melhor passou ás mãos do marquez da
Fóz, que
alli deu algumas festas sumptuosas. Mas a mais
brilhante, a que deixou grande impressão na
gente da epoca, foi o celebre baile das Chagas,
na antiga residencia, antes de mudar para o
palacio da Avenida. N'esse baile se exhibiram
todas as preciosidades que o marquez adquirira—quadros,
baixelas Germain, etc. Romperam-se
os tectos da sala de baile, para se construir uma
galeria onde tocaram os musicos, acompanhados
pelo côro de S. Carlos. Ahi começou tambem o
marquez a arruinar-se. Gastou, gastou... Só as
grades de ferro do corrimão do palacio da Avenida
custaram noventa e cinco contos. O marquez
chegou a ter cem contos de renda.
Muitas outras familias ilustres ocupavam, retiradas
da vida mundana, os seus palacios: o
conde de Alcaçovas, na rua da Cruz dos Poiaes,
o marquez de Pombal na rua Formosa, os marquezes
de Penalva, etc. Os condes de Sabugosa,
n'uma residencia que o conde tornou encantadora,
recebiam ainda com brilho. Na rua Formosa
existia tambem o salão da snr.
a D.
Maria Kruz
Brito, que no seu genero foi o unico comparavel
aos salões da Restauração e
2.º
Imperio, de
[271]
Paris. Sua filha, a senhora condessa de Ficalho, no
solarengo palacio dos Mellos de Serpa, aos Caetanos,
reunia a fina flor da elegancia em certos
dias da semana (segundas-feiras). É o palacio
ainda hoje ocupado pela senhora D. Maria de Mello,
condessa de Ficalho. O destruido e inhabitavel
palacio da Rosa, solar dos viscondes de Villa
Nova de Cerveira, marquezes de Ponte de Lima,
resurgiu pelos esforços do actual marquez de
Castello Melhor, visconde da Varzea pelo seu
casamento com a herdeira das casas Castello
Melhor e Ponte de Lima, e alli se deram e dão
esplendidas festas.
Citam-se como as mulheres mais lindas d'essa
epoca—fim do reinado de D. Luiz e principio de
D. Carlos—a duqueza de Palmella, a condessa
de Penamacôr, a condessa de Ficalho, a condessa
de Villa Real e Mello, e a formosissima D.
Anna de Sousa Coutinho, filha do Conde de
Linhares, portanto neta da Senhora Infanta D.
Anna de Jesus Maria, dama da rainha, e pelo
espirito, pelo talento, a condessa de Rio Maior
(mãe), a marqueza sua nora, filha dos marquezes
de Bemposta Sub-Serra (Saint Leger) e tantas
outras sumidas ou desaparecidas no turbilhão
da vida.
Uns pobres, outros mortos, outros arredados,
deram logar a esta sociedade mais mesclada,
[272]
a gente de dinheiro, a gente que enriquece,
alguns nobres de mistura, alguns fidalgotes
feitos á ultima hora, e a uma certa roda que se
diverte, citada nos jornaes, e que constitue em
toda a parte o que se chama a sociedade elegante.
Uma senhora de espirito dividia a sociedade
portugueza em aristocracia,
smart
set, alto
pirismo (pirismo, é claro, vem de Pires), baixo
pirismo e povo. «Esta ideia veio-me—diz
ella—d'uma
visita que recebemos um dia e que muito
nos impressionou: num grupo d'automobilistas
do Monte Estoril nossos conhecidos, tinha vindo a
F..., aquelle sitio apartado á beira-mar,
onde já o nosso pae costumava passar o verão,
uma menina da boa sociedade de Cascaes. Essa
menina, dizia minha irmã cheia de extranhêza,
que nunca tinha vindo áquella casa, esteve durante
toda a tarde exclusivamente a namorar um
dos taes automobilistas, e nem antes nem depois
nem nunca, esboçou para com os donos
da casa um leve sorriso de agradecimento! Porquê
n'uma menina tão fina tanto «falta de
chá!...»? Porquê, entre ellas, e as
meninas finas
nossas conhecidas com mais intimidade, tamanha
diferença?... Foi assim por
comparações
estabelecidas e deduções tiradas, que concluimos
em dividir as classes da sociedade actual
em aristocracia,
smart set,
alto pirismo,
baixo
pirismo
e povo.
É inutil explicar o que se entende por aristocracia
[273]
e povo. Cada uma dessas classes, no
seu extremo oposto, está suficientemente definida
por sua propria natureza.
Baixo
pirismo
é nome novo para a baixa burguezia, classe de
que tanto, com tanta graça, e tanta verdade, se
ocupou Gervasio Lobato.
Alto
pirismo... alto
pirismo, somos nós, por exemplo, as manas da
descoberta, muito bem acompanhadas por todas
as nossas amigas e por quasi todos os nossos
conhecimentos, mais ou menos endinheirados (ha
de tudo!) de maior ou menor bom gosto e cultura.
Classe numerosissima, em que está incluida
toda a boa gente que cuida de ser bem educadinha
e agradavel e que trata de sustentar, por
um alevantado valor civico—que muitas vezes
é inconsciente...!—as regras, os preconceitos, as
convenções, de que uma sociedade bem organisada
não pode prescindir.
Ha alguns grupos no alto pirismo, muitissimo
agradaveis—se n'elle incluimos tanta gente!...—em
que se cultiva ainda a boa conversa,
em que, sem sombra de pedantismo, se discutem
livros, ideias, arte, e em que ninguem sente saudades
de jogar o bridge. Mas ha outros grupos,
em que nas festas os homens não estão na
mesma sala em que estão as senhoras, festas
em que só dança, e pouco, a gente muito nova,
e em que as meninas, nada interessantes, mas
com aquelle ar de timidez e de recato, que tanto
agrada aos portuguezes á volta d'uma viagem
[274]
pelo extrangeiro, namoram pelos processos archaicos,
sob os olhares mais ou menos adormecidos
da mamã. Festas essas em que, a alturas tantas,
nós, com a certeza absoluta de que o relogio
está parado, começamos a sentir verdadeiro odio
pelas begonias artificiaes—ainda se encontram!—que
ornamentam a étagère, e que cresceram em leque
de dentro d'uma especie de musgo sêco, muito
mal imitado; festas em que só pela muita
fôrça
da boa educação recebida nos obrigamos a trocar
umas palavras vazias de interesse por uma
contorsão dificil e dolorosa do corpo, com a senhora
gorda que está sentada no
borne atraz
de nós! (Tambem ainda se encontram muitos
bornes!!)
São estes grupos do alto pirismo, é preciso
dizer a verdade toda, que nos enchem precocemente
a cabeça de cabelos brancos.
A
smart set (cá
está a tal menina que apareceu
na F...) foi certamente organizada em Cascaes.
Deve ter nascido na Parada...—e foi fundada provavelmente
por um pequeno grupo de aristocratas
neurasthenicos e comodistas, aos quaes logo,
muito contentes, se agregaram por facilidades
de convivencia e porque os souberam imitar,
alguns membros do alto pirismo. Hoje é uma
classe bastante numerosa e certamente a mais
chic. Distingue-se das outras por
varias coisas;
por exemplo: desprezo absoluto pela prudente
instituição do «chaperon»
(esses entreteem-se
[275]
com o bluff)—desprezo absoluto pelas boas
maneiras, pela cortezia corrente (só se cumprimentam
as pessoas que passem perto e essas
mesmas com marcada indiferença)—ignorancia
completa das regras da gramatica (isso seria
«falar dificil»!) e da orthographia. Cultivam
só o corpo diplomatico e a religião; vestem
bem, jogam muito, dançam muito e bem, e
flirtam na perfeição. Votaram ao ostracismo
algumas palavras que nós dizemos e que são
pessidonias como: chavena, trem,
pharmacia, carnaval
etc. etc. etc. Tratam-se todos por
«você»;
alguns teem muita
piada e usam todos
um ar
muito
chateado. (É da
praxe, o calão.) A
smart
diverte-se... mas não sabe sorrir».
Esta sociedade, que anda todos os dias nos
jornaes, vem do alto até baixo, da aristocracia ao
povo, forma uma lista infindavel, tem um chronista
celebre, o snr. Luiz Trigueiros, e pode ser vista ás
tardes no
Dia e de manhã
no
Diario Nacional.
Dessa lista destaca outro informador algumas
senhoras: Branca de Gonta Colaço, poetisa
distincta, voz de ouro, herdada do pae, bonita
a valer e sempre apaixonada pelo marido,
o artista Jorge Colaço; Magdalena Trigueiros
de Martel Patricio, pequenina, vivissima
compleição d'artista, gostos aristocraticos,
fazendo
versos em francês e d'uma alegria comunicativa;
Elisa Baptista de Sousa Pedroso, pianista
eximia, sempre em concertos, em recitas de caridade,
[276]
em festas que dá em sua casa e onde
reune uma sociedade mesclada de artistas, diplomatas,
aristocratas e politicos; Sarah da Motta
Vieira Marques, voz rica e sciencia no cantar,
só rivalisando com a sciencia de receber: o seu
salão pode considerar-se um dos poucos refugios
dos ultimos dez annos, no dizer dos seus amigos;
Adelaide Coelho da Cunha, esposa do
director
do
Diario de Noticias, grande
organisadora
de festas, no seu palacio a S. Vicente de Fora,
festas dramaticas d'uma grande riqueza de
apresentação
e mise-en-scêne; a malograda Ada
Weinstin, a esposa do conhecido banqueiro, recitando
maravilhosamente, vestindo com suprema
distincção, bonita, elegante, cheia de
charme;
Candida da Nova Kendall, formosura triumphante,
que passou pela sociedade lisboeta como um
meteoro louro, cantou
como um rouxinol, e
voou para terras da Santa Cruz, sua patria: ella
a bem dizer tinha duas patrias: Bahia-Paris; Alda
Decken Lino, figurinha de madona, de bandós
negros e olhos transparentes, mulher do architecto
Raul Lino; Maria
Emilia Macieira Lino,
cantora e organisadora de soirées artisticas com
representações de autos de Gil Vicente; Alice
Munró dos Anjos, dando festas na sua casa da
Praça dos Restauradores, onde
se dança alegremente,
presididas pelas suas filhas, a linda
condessa de Arnoso e a simpathica condessa de
S. Lourenço; Luzia Patricio de Balsemão, grande
[277]
linha de elegancia, certa em todas as premiéres;
Irene Gilman, filha de Thomaz Ribeiro, loura,
inteligente, maliciosa e dançando maravilhosamente;
Christina Rezende da Silva, d'uma belleza
e elegancia patricias; Elisa Baerlein; Conceição
de Carvalho, filha de Mariano, organisadora de
festas artisticas, para que escrevia peças, em
casa de seus sogros os Viscondes de Carnaxide,
bonita e intelligente; Zulmira Franco Teixeira,
pequenina, d'uma requintada elegancia, fazendo
versos, como sua irmã a condessa de Almeida
Araujo, etc. etc.
*
A sociedade lisboeta tinha dois pontos principaes
de contacto—Cascaes e o theatro de S.
Carlos. Era ahi que os ricos, ou os que aparentavam,
procuravam impor-se a certa roda, que dificilmente
os recebia.
De 1880 para cá as emprezas succedem-se em
S. Carlos como os ministerios progressistas e regenerador
e Valdez disputa com Freitas Brito a
vinda a Lisboa das grandes celebridades. Se Valdez
traz Masini, Patti, Devriés, Vidal, Castel Mary,
Devoyod, Cotogni, a tragica Ristori, a Regina
Pacini, Novelli, de Bassini, que passou por amante
[278]
d'uma rainha (vêr Fialho), os irmãos Andrades,
etc.; Freitas Brito apresenta Varesi, Gayarre, Rapp,
irmãos De Reskée, Navarrini, Tetrazzini,
Theodorini,
Gabrielesco, Nevada, Kaschmann, Sarah
Bernhard, Marini, Ristori, Salvini, Rossi, Desreins,
Sherie, Belincioni, Ferrani Darclée, Tamagno,
Borghi Mamo (Herminia), baritono Aldighieri,
Pandolfini, Saloni, Arkel, maestro Gula,
Delman, tenor De Marchi, Morconi, Sarasate, e
tantos outros. Os partidarios de Freitas Brito
pateavam sempre na epoca de Valdez, os de
Valdez na epoca de Freitas Brito—o que não
os impedia de se juntarem em jantares semanaes,
a que assistiam os dois emprezarios... A estas
duas emprezas segue Paccini, que faz fortuna.
Foi n'essa epoca que S. Carlos se transformou
n'um grande salão. Vem a Lisboa os reis e presidentes
de republicas. O numero de recitas
augmenta, a assignatura augmenta. Paccini dá
cincoenta recitas de assignatura, vinte e quatro
extraordinarias e doze extraordinarissimas, a que
o publico chama dos
Sebastiões, e no palco
desfilam
Belincioni, Krucinisky, De Lerma, Renaud,
Tita Ruffo, Lassalle, etc., etc. Segue-se Anahory,
com a carruagem, o charuto, Wagner—e o
desastre.
Ahi está todo o mundo literario e elegante,
nos camarotes ou na plateia, toda a Lisboa
como se diz nos jornaes: Carlos de Freitas Jacome,
antigo diletanti, e que se julgava pae da
[279]
Patti, Freitas Rego, o Principe Negro, conquistador
irresistivel, D. Luiz da Camara, o conde
de Mesquitella e Antonio de Brito, que formavam
um grupo, de que Bordallo fez tres
medalhões para distribuir pelos assignantes de
S. Carlos; Joaquim Pessoa, do
Diario de
Noticias,
apaixonado da Baresi; José Saragga, critico
do
Jornal do Commercio; o
phantastico Eduardo
Cheira; Mr. Garaty e mulher, assignantes chronicos
de S. Carlos, elle muito baixo, ella muito
alta; dr. Patrocinio, professor de mathematica,
com uma paixão assolapada pela cantora Pasqua;
Antonio da Costa e Silva, um dos mais elegantes
rapazes de Lisboa; Alfredo Anjos, enamorado
da Devriés, e que na noite do seu
beneficio lhe mandou compor um deslumbrante
jardim natural para o 3.º acto do Fausto; Francisco
da Fonseca Benevides e esposa, o auctor
da «Historia do Theatro de S.Carlos» (recitas
impares n'uma frisa, recitas pares n'uma torrinha),
Freitas Branco, Silva Canellas, Jayme Arthur
da Costa Pinto, que foi director da sociedade
lyrica que se fundou em S. Carlos com o
Paccini pae; Motta Marques, que casou com
a cantora Meccoci; May Figueira, o exotico
marquez de Franco e Silva Carvalho, todos tres
adoradores do corpo de baile; Custodio Borja,
José Bacellar e Ottolini da Veiga, com mania
de canto e voz de
basso—e que,
d'uma
vez, corrido pelo publico, a quem fizera um
[280]
manguito, fugiu no comboio para o Porto,
ainda vestido de frade, com o fraque enfiado
por cima—Eduardo Cordeiro e Augusto Ribeiro,
enorme e sempre com muitos calos; Dantas Baracho;
Eduardo Tavares; Espregueira e mulher
n'uma frisa; José Martinho da Silva Guimarães;
o Guerra, pae das meninas Guerras; o barão da
Regaleira, Antonio Duarte da Cruz Pinto, Agostinho
Franco, José d'Alpoim, Rufino d'Almeida,
o padeiro gordissimo de S. Carlos, etc., etc.
e n'uma torrinha, que ficou na tradição, a 115, o
Antonio Manuel Teixeira, depois secretario de
S. Luiz de Braga, o Luiz Campeão e o Oliveira,
chamado das
cautelas de
25: era d'ahi que partiam
sempre os aplausos ou as pateadas monumentaes.
Nos camarotes e nas frizas as lindas sobrinhas
do marquês de Franco, Falcarreras; a lindissima
baroneza da Regaleira; e a mais bella mulher
de todos os tempos, já velha e sempre decotada,
a duqueza de Avila e Boiama; Espregueira, que foi
a primeira que se apresentou com vestidos sem
hombros, ostentando magnificos collares de brilhantes;
Moreira Marques; a condessa de Figueiró;
a condessa de Taveira, acompanhada pelo
marido, sempre de casaca com botões amarellos;
a condessa d'Edla, o gentilissimo pagem do
Baile
de Mascaras,—da cantora a rainha—;
Poitier,
loira ideal, que casou com o filho de Monteiro
Milhões; a duqueza de Palmella; a condessa de
[281]
Alferrarede; a condessa de Alverca; a viscondessa
de Idanha, e a de S. Luiz de Braga etc. etc.
e no camarote de bocca de 3.ª ordem n.º
70—esta
Lisboa foi sempre monumental!—a Antonia
Moreno com as suas espanholas, pilar do
estado, necessario e decerto muito mais util que
a Junta de Credito Publico. Essa mulher acabou
deixando por testamenteiro Frederico Arouca, que
repudiou a fortuna que ella lhe legou, e depois de
passar para alguns camarotes brazonados de fresco
uma ou outra das suas mais lindas pupilas...
«Cascaes, com a adjacencia dos Estoris,—diz-me
um frequentador—era a côrte na intimidade,
em robe-de-chambre, mais faceis as
relações, mais accessiveis e amaveis, tu
cá, tu
lá. Quasi tudo gente do rei, que ia para lá
cedo, por meiados de setembro, cansados de
Cintra onde D. Carlos raro pernoitava, fugindo,
a pretexto de tudo e de nada, á convivencia
da rainha e da Figueiró. A separação
do rei
e da rainha, segundo me informaram, porviera
de certa dama, que lançou entre elles a sizania.
Conheci-a ainda linda e elegante, um pouco roliça,
de olhos aveludados e labios vermelhos: nos
ultimos annos engordára, e banalisara-se. Tinha
a furia do dominio, e rodeava-a uma côrte de
gente em que ella mandava e da qual fazia parte
um diplomata mais tarde em evidencia. Passava
[282]
por ter relações anormaes com a rainha...
O marido pouco esperto, só tinha como ideal
ser ministro plenipotenciario e par do reino.
Em Cascaes, a rainha não se vulagrizava.
Saía a cavalo emquanto poude montar. Tinha
varizes nas pernas,—informou um dia o D.
Afonso. No meu tempo não passeava de barco,
passeava de carruagem, descendo ás vezes para
andar a pé. Dava as suas recepções
á tarde,
principalmente em vespera de festa, para serem
apresentadas pessoas que desejavam ir aos bailes,
e que em Cascaes mais facilmente obtinham
o convite e a apresentação preliminar
indispensavel,
que o conde da Ribeira, quando estava
de serviço, facilitava extraordinariamente. A
Figueiró
voltava para Cintra logo que acabava
serviço.
O D. Carlos fazia vida hygienica de madrugador,
tirava photographias, pintava ligeiramente
algumas marinhas,
sentindo o mar.
Logo de manhã,
saía de carro ou a cavalo, com chuva ou
com sol (demorava-se até meiados de novembro
em Cascaes), ou ia á procura de senhoras que elle
perseguia. Tivera, pelo menos um anno, n'uma
vila do Mont'Estoril, uma amante, mas isso não
o dispensava de querer que o julgassem homem
de boas fortunas. Escrevia a miudo a outras damas,
em caligraphia disfarçada, cartas em prosa e
verso á mistura, quasi sempre em francez. Eram
muito tolas. Vi algumas e podia ter guardado uma,
[283]
que rasguei. Serviam-no dois alcoviteiros ilustres,
que o faziam encontrado com as mulheres que lhe
agradavam. Outro chegou a dar um baile, para que
o rei conhecesse uma senhora da burguezia media
atraz de quem andou annos.
Iam ao Sporting Club, mais conhecido pela
Parada, jogar o tennis. Não havia escolha nos
pareceiros. O almirante Capelo, o explorador, ficava
com o sobretudo do rei no braço, emquanto
elle jogava. D. Carlos era um timido, falava pouco,
nunca olhava de frente: seus pequenos olhos claros
evitavam sempre os dos outros.
A Parada era a capital do reino de Cascaes.
Ahi se reunia a flor da aristocracia e o ingresso
não era facil, como socio. Só nos ultimos tempos
é que o Tompson, a quem chamavam moço fidalgo,
facilitou a entrada. Aos domingos davam-se
salsifrés á noite, e todos os annos um grande
baile, a que assistia o rei, que distribuia os parceiros
e dançava uma contradança. A rainha, se
ia, não se demorava. Nos dias de semana, poucas
pessoas lá estavam, preferindo os casinos á
beira-mar, principalmente o Estoril.
O rei, todas as tardes, ia para a Boca do
Inferno e quedava-se ali, se encontrava algumas
senhoras que o interessassem. Por isso chegaram
a chamar ao D. Carlos o
balão
cativo...
O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia
logo que lhe era poss
O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia
logo que lhe era possivel. Não se demoravam
em Cascaes, não os convidava para assistir,
[284]
sequer, ás partidas. Teve d'uma vez, como hospede,
o Soveral. Não lhe conheci nenhum outro.
O D. Afonso ia cedo para o Monte Estoril,
para a vila sobre o mar, que ali possuia a mãe.
Descia a praia, com uma grande simplicidade de
maneiras. Falava pouco, era bom rapaz, e a maior
manifestação intelectual que lhe conheci foi
anti-clerical*.
Vestia-se sumariamente: uma camisola
azul, casaco e calça da mesma côr e bonet. Assim
andava, de manhã até á noite.
Ás vezes ia ao
mar, e os barqueiros gostavam d'elle. Nunca tinha
vintem. Os ajudantes ou oficiaes ás ordens não
lhe emprestavam dinheiro, porque sabiam que
elle não lhes pagava.
Não era dado a senhoras—preferia as outras...
Certa condessa é que conseguiu ser amante d'elle,
porque conhecia todas as maneiras de conquistar
um homem. Deu um baile para que convidou o
infante e a fina flôr. O marido estava encantado.
Nenhuma moral em nenhum d'elles. Elle era
muito cioso da sua nobreza e gostava de parecer.
Ella queria gozar a vida. O A... que foi seu
amante, contou-me que em Madrid ella dissera
d'uma vez ao marido, que não tinha um ceitil
quando casou: «Tu, para chulo, és caro de
mais!»
Em Cascaes era dificil chegar a vias de facto
com uma mulher. Meio pequeno, coscovilheiro,
maldoso, maldizente. Não se falava senão nesta
ou naquella, em escandalos, repetindo-se os ditos
de ouvido para ouvido ou acentuando-se as infamias.
[285]
A M... foi apanhada no pinhal dos Olivaes
n'uma atitude equivoca... A S... faz namoro
descarado ao rei... Mas as coisas arranjavam-se
para Lisboa. Vinham ao dentista, ás
compras, etc. A forçada e grande intimidade estabelecida,
de manhã na praia, á tarde na Boca
do Inferno, onde toda a gente ia, apezar do
vento e da poeira, na Parada ou á boquinha da
noite no passeio Maria Pia, junto á cidadela,
onde ás vezes fazia uma ventania infernal, á
noite nos casinos, ou nalguma partida de bridge,
a vida quasi em comum e os namoros travados,
o ar do mar que desiquilibra os nervos e torna
os amores exigentes, fizeram tecer muitas aventuras
escandalosas. Um ainda fugiu a tempo com a
mulher, que já madura, esteve em vesperas de
cair... Nunca mais voltou a Cascaes.
As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso até
no Paço. Uma descendente de D. João IV, vi-a
eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes.
Em certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma
madrugada, num baile do M..., chegou a iniciar-se
a lucta... A alta sociedade era, em regra,
pelintra. As grandes familias tinham gasto
as fortunas, e muitas não queriam, ou não podiam,
dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel
deixar d'ir a S. Carlos e de satisfazer outras
exigencias. Havia-os com actrizes com dezasseis
annos de assignatura... As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso
até
no Paço. Uma descendente de D. João IV, vi-a
eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes.
Em certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma
madrugada, num baile do M..., chegou a iniciar-se
a lucta... A alta sociedade era, em regra,
pelintra. As grandes familias tinham gasto
as fortunas, e muitas não queriam, ou não podiam,
dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel
deixar d'ir a S. Carlos e de satisfazer outras
exigencias. Havia-os com actrizes com dezasseis
annos de assignatura... Fóra o Palmella e poucos
mais, não recebiam porque de todo não podiam.
[286]
E, se o faziam, era sem-cerimonia. Não havia
dinheiro! não havia dinheiro!
Descaiam muito os fidalgos, mas obstinavam-se
sempre em
parecer. Um oficial
jogador e pae
de uma serie de filhos, mandava a miudo incomodar
D. Carlos... Todos os seus famulos lhe
extorquiam dinheiro, quanto podiam. Choravam,
punham-se de joelhos, contavam-lhe miserias reaes
ou falsas. Tive, em Cascaes, semanas uma arca
com prata para fugir a uma penhora iminente...
Um grande fidalgo, no fim de algum tempo, despediu
os creados—mas nunca pagou a nenhum.
Outro chegou a não ter que jantar, porque o mercieiro
não lhe fiava, ninguem lhe fiava, mas bebia
todos os dias garrafas de champagne.
Havia mancebias antigas e tão respeitaveis,
como o casamento, assim, por exemplo, F... e F...
Já ninguem convidava uma sem o outro.
Quer que lhe fale tambem da gente que fingia
de nobre, da burguezia vaidosa e que fazia mexerico
para ser convidada? A mulher d'um grande
industrial conseguiu entrar na casa d'um fidalgo,
onde ia toda a gente, da grande e da baixa.
Convidou-a para jantar, para o theatro e andava
contente como um cuco. Um dia não a convidou
mais. Chorou. Isto foi-me afirmado por uma amiga
que o viu. Era uma dama, muito linda, com
um soberbo colo, mas com o cerebro d'uma
arara...»
[287]
Ahi fica o quadro levemente esboçado por
um frequentador de Cascaes. Tudo isto é frivolo
e tragico. Lembremo-nos que d'esta maledicencia,
dos ditos d'estas boccas que sorriem, da ninharia
e do encanto, se gerou parte da athmosphera
donde devia sahir o descredito da rainha
e o assassinato do rei.
O MUNDO POLITICO
Novembro—1918.
Os acontecimentos dos ultimos reinados afiguraram-se-me
sempre faltos de logica e
de nexo. Estão talvez muito perto de nós ainda:
precisam de perspectiva que os coloque nos seus
devidos logares. Só o historiador poderá crear
mais tarde, com documentos e memorias, e certa
aparencia de verdade, o romance da nossa vida.
Nós, por ora não sabemos nada, nem mesmo dar
resposta plausivel ás perguntas que nos obsidiam...
Porque foi, por exemplo, morto D. Carlos?
É fora de duvida que até os monarchicos
receberam com alegria a sua morte. «Não vi
lagrimas»—diz
Julio de Vilhena. Eu avanço mais:
só vi aplausos. E no entanto já hoje se pode
afirmar sem erro que D. Carlos não foi morto
pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades.
Respirou-se! respirou-se!—o que não impede
que, a cada anno que passa, esta figura cresça, a
ponto de me parecer um dos maiores reis da sua
dinastia. Já redobra de proporções e
não se
[290]
tira do horizonte da nossa consciencia. O rei
tinha na verdade defeitos, mas—diga-se!
diga-se!—não
foram os seus defeitos que o mataram, foram
as suas qualidades. Só o assassinaram quando
elle tomou a serio o seu papel de reinar, e quando,
com João Franco, quiz realisar dentro da monarchia
o sonho de Portugal Maior. Foi esse o
momento em que, talvez pela primeira vez na historia,
os monarchicos aplaudiram um crime que
os deixava sem chefe, e se abriram de par em par
as portas das prisões, congraçando-se todos os
politicos sobre os corpos ainda mornos dos dois
desventurados.
O D. Luiz pôde ir até ao fim do seu
reinado,
porque elle proprio o disse—«um principe
é
um dissimulador». Mas D. Carlos é que
não foi
nunca um dissimulador. D. Carlos desprezava os
politicos. Dizia:—Tu ouvel-os falar? Se lesses as
cartas que me escrevem enchias-te de nojo.—Essas
cartas existem... Na verdade toda a gente dizia
mal da politica e desprezava os politicos: só elle
os não podia desprezar. É authentico tambem
que no seu desdem chegou a envolver o paiz.
Toda a gente, desde o literato ao homem rude,
dizia mal do paiz. Tempo houve em que foi moda
dizel-o. Só elle não devia dizer mal do paiz.
Realmente pediu muito dinheiro aos politicos,
mas os politicos pediram muito mais dinheiro á
[291]
nação, dando cabo d'elle com as suas clientelas.
E ninguem lhes tomou nunca contas: todos
morreram honrados. Hintze passou por ser
um homem integro. José Luciano tambem. Pessoalmente
decerto, mas com o que ambos
elles esbanjaram reconstruia-se o paiz de alto
a baixo. O partido regenerador tinha tal fama
que se dizia em Lisboa: «quem não é
regenerador
é ladrão de si mesmo». Na realidade
não
havia a esse tempo—porque hoje tudo mudou
de figura—senão um partido em Portugal capaz
de sacrificios, o partido republicano: os outros,
para me servir da phrase tão justa de Homem
Christo, eram apenas «quadrilhas politicas». Ser
politico em Portugal foi a mais rendosa de todas
as industrias. «Logo que chega ao poder um
chefe de partido não pensa senão em explorar o
paiz em proveito das suas clientellas. O Estado é
a preza dos politicos... Se eu podesse encontrar
um homem integro que podesse modificar tudo
isto dar-lhe-hia todo o meu apoio».
Parecia que o proprio paiz na verdade só
queria
comer:—Pedem
tudo! pedem
as maiores
poucas vergonhas!—exclamava o Alpoim; e o
dr. Antonio Cabral escrevia:
[292]
«No tempo da monarquia essa
mesma maioria acomodaticia
e pedinchona, só conhecia o caminho dos
ministérios
para ir importunar os secretarios de Estado com
solicitações
de empregos, de benesses, de estradas, de favores,
até de escandalos. Não ia levar aos ministros uma
ideia, um
plano, a lembrança de um beneficio para o país.
Ia procurar
interesses, buscar comodidades, exigir condescendencias,
sem se lembrar de que tudo isso custava, muitas vezes,
dinheiro ao Tesouro Publico e só causava prejuizos
á
nação.
Depois, quando a tempestade bramia e as moscas varejeiras
zumbiam em tôrno da montureira politica, essa
mesma maioria, de larga guela e incomensuravel ventre,
era a primeira a gritar contra as imoralidades que provocara,
contra os atropelos da lei que impuzera, contra os
êrros de administração que
imperiosamente reclamara! Para
essa maioria prudente... e de muito comer, os culpados de
tudo—criminosos execrandos!—eram o Rei, os
ministros,
os deputados, todos, emfim, que tinham na mão as
rédeas
da governação publica. Ella, a maioria exigente e
dificil de
contentar, era inocente e de tudo lavava as mãos.
Ella, a maioria composta dos influentes, dos caciques,
dos compadres, dos despoticos senhores do país, que hoje
se encolhem, transidos de pavor, e então barafustavam do
alto do seu pedestal de mandões; ella, a maioria que
ordenava,
que dispunha de votos, que sabia impôr-se com
arrogancia—ella,
de nada era culpada e escondia o rosto púdico
na alva clamide de vitima dos maus politicos!...
Veiu, por fim, a queda no abismo, em que se evidenciou
a traição de muitos e a incompetencia de tantos.
A
maioria dos portugueses, se
não delirou de contentamento,
remeteu-se ao cómodo e discreto silencio em que se comprazem
os covardes e os maus cidadãos, para só os
interromper
com murmurios de reprovação, soprados nos
centros de conversa contra os politicos... que ella
empurrára
para o mau caminho e ajudara a despenhar no precipicio.
Oh! a maioria dos bons cidadãos de larga
pança!...»
Hintze e José Luciano tinham-se congraçado
no reinado de D. Carlos, e só elles podiam tudo,
[293]
só d'elles dependiam lugares, favores, vaidades e
interesses. Antonio Cabral está certo que foi
pelos seus meritos—que não são
poucos—que
chegou a ministro?... Ai de quem lhes desagradasse.
Ao irrequieto Fuschini entretiveram-no com
as obras da Sé para o arredarem da politica; ao
José Dias Ferreira, que foi dos raros homens de
governo comezinho do seu tempo, nem sequer
o ouviam nas camaras. Toda a gente lhe voltava
as costas quando falava. Sabia-se que o Paço o
detestava. O José Luciano e o Hintze sucederam-se,
d'acordo, no governo do paiz e no governo
do Credito Predial, com identico sucesso!
Ambos elles eram pessoalmente muito boas
pessoas, ambos elles tiveram um fraco extraordinario
pelos tratantes. O Hintze, o
homem que
não ri, o
casaca de
ferro, era um homem um
pouco cansado e com um lindo sorriso para
toda a gente:—Pois sim, pois sim...—Trato
encantador. Nas camaras era vel-o! Ninguem
apresentava assim as questões: tinha tudo catalogado,
arrumado, disposto, e os papeis saltavam-lhe
da carteira por arte magica. O José
Luciano, mais bonacheirão e ao mesmo tempo
mais caustico, conhecia como poucos os homens
que lhe tinham passado em fita pelo salão da
sua casa, com as suas vaidades, as suas miserias,
os seus rancores e os seus vicios, e tocava-lhes
sempre no ponto fraco. Pessoalmente honesto,—quem
o duvida?—mas tendo cada vez mais imperiosa
[294]
a necessidade de satisfazer clientelas
cada vez mais sofregas—ambos acabaram de
corromper o paiz, já meio corrompido, até
á medula.
Importa pouco que o snr. D. Luiz de Castro
diga: «Hintze vendeu todo o seu patrimonio e
o de sua mulher para servir o reino e o rei»
(
Dia, fevereiro, 1917). Sim, mas
Hintze distribuiu
a rodos o dinheiro da nação, principalmente
depois da scisão João Franco, e colocou toda a
gente a começar pelos seus
[15].
[295]
Não resistiu. Delapidou, principalmente depois
da scisão João Franco, sem conta nem pezo
nem medida. Anselmo Vieira diz: «José Maria
dos Santos entregou á viuva do Hintze, no dia
do enterro, 21 contos de lettras vencidas. Ora a
questão do alcool entre o norte e o sul foi sempre
adiada pelo Hintze, o que fez ganhar 300
contos ao José Maria dos Santos.» Na sua phrase
pitoresca a politica portugueza estava condemnada
porque era um regimen de validos e
badamecos.
E cita este e aquelle e aquelloutro, que, na
sua opinião, e todos juntos, não valiam um
estadista.
O Hintze não resolvia um problema, arredava-o,
e as complicações augmentavam sempre;
se tinha a escolher entre dez homens, escolhia
sempre o peor... O honradissimo capitão Machado,
duro como o silex, chegou a par, porque,
quando atacavam o José Luciano na camara alta,
dizia sempre:—Viessem elles cá para os deputados
e quem os ensinava era eu.—O pobre monsenhor
inutil, que se chamou Santos Viegas, achou outro
truc para o Hintze o elevar
á mesma cathegoria:
quando o chefe do partido regenerador falava,
cahia n'um assombro, de que não havia
arrancal-o!...—«Chegaram
[296]
a ministros seres destituidos
de todo o miolo. O honradissimo Pequito,
santissima creatura, foi um dia para uma comissão,
a que o José Dias presidia, com o Contracto
dos Tabacos, que elle só tinha assignado e mais
nada. Havia um artigo redigido de forma que
cincoenta milhões de francos ficavam encobertos,
para se poderem pagar as dividas da Casa
Real. José Dias pediu explicações, o
outro embrulhou-se,
José Dias insistiu, o outro ficou de bocca
aberta, com cara de pasmo—até que o velho
rabula lhe disse com soberano desprezo:—Comprehendo,
comprehendo... o snr. ministro da fazenda
precisa de ouvir os seus colegas para
depois responder...—Se o José Dias tem deixado
passar aquella trapalhada talvez D. Carlos não
tivesse sido assassinado.»
A politica portugueza chegára a estar apenas
nas mãos e dependente da vontade dos chefes.
O José Luciano dizia:—O meu partido não
é que
me leva ao poder—sou eu que levo o meu partido
ao poder. Dois homens e clientelas. Alguem
se filiou jamais n'um destes partidos por principio,
por ideal? ou foi por interesses, e, mais simplesmente,
por simpathias pessoaes?
E assim a força desses dois homens chegára
tambem a ser ficticia:—não provinha do
paiz—provinha
do rei... As camaras mero scenario; os
discursos, as atitudes, theatraes: o que havia a
decidir não se decidia alli. Tudo estava resolvido,
[297]
preparado de antemão, nos salões, nas
ante camaras, nos gabinetes ou nos corredores,
entre os chefes. O resto era um espectaculo com
as suas regras e os seus figurantes, absolutamente
inutil—absolutamente falso—absolutamente
fóra de toda a realidade...
*
As camaras... Por lá passou Junqueiro, que
de lá sahiu um dia dizendo:—Vão
áquella
parte—; por lá passou o grande, o pobre
João de
Deus, que nunca poude abrir a bocca, e outros
homens ilustres. De lá sahiu Fuschini, que se
foi embora fazendo-lhes um manguito, quando
Arroyo n'uma sessão celebre lhe disse:—Ajoelhe
a meus pés!—Oliveira Martins, exhausto de
trabalho;
o romantico Chagas, cujas ultimas palavras
foram estas:—A vida é uma
comedia.—Já
não
os ouvi, mas vi e ouvi ainda o pachydermico
Antonio d'Azevedo Castello Branco, o esguio e
taciturno Beirão, sempre alheado, o grande orador
Antonio Candido, o canarim Elvino de Brito,
que manejava a palavra como quem maneja um
florete, e que o Hintze tratava d'alto, o anecdotico
Baracho, cujos discursos não tinham fim, o
Campos Henriques,
lyrio pendente, o
theatral
Arroyo, o José d'Azevedo, o Eduardo Villaça
tão amavel para todos, tão afavel que ficou
para sempre o Villacinha, o Chanceleiros, com
a sua grande gaforina branca, o severo e taciturno
[298]
Dias Costa, que morreu de desgosto, tendo
cumprido o seu dever como um soldado, a nobilissima
figura do conde de Arnoso, que vejo
sempre diante de mim, bradando por justiça, e
que acabou envolto em treva, jungido á sua dor,
o Jacintho Candido, um pouco apagado, mas
resistente e teimoso, o João Franco, o decorativo
Wenceslau de Lima, o Pimentel Pinto, do alto
dos seus tacões, o Albano de Mello, tão admirador
do José Luciano que chegou a ponto de se
parecer com elle na atitude, na voz e até no
rosto, e, na outra camara, a um lado o pitoresco
conego José Dias, apopletico e jovial,
lá das bandas de Monsão, o torrencial Oliveira
Mattos, que, a primeira vez que falou, fez rebentar
os cós das calças ao Chagas, que perguntava
entre spasmos de riso:—Mas quem é este
homem? onde foram buscar este homem?—e
a quem ouço ainda invectivando o ministro da
guerra:—Heroe de Trajouce! heroe de Trajouce!—os
Cabraes, um polido e soturno, que o
Hintze estimava, o outro, Antonio, de bigodes
assanhados, como um galo de combate; o José
d'Alpoim, impulsivo, terrivel na replica; o João
Pinto dos Santos, um sistema de philosophia para
cada caso futil do dia, já branco, de punhos solidos,
e sempre o mesmo aprumo, a mesma linha,
a mesma conducta; o Moreirinha, o Centeno, e
o juiz Francisco Medeiros que pouco antes de morrer
(estou a ouvil-o) me disse assim:—Tenho
[299]
pena de não ter roubado como os outros...—E,
diante do meu espanto, concluiu:—Quando
morrer deixo a minha filha pobre e os outros
estão ricos.—E a outro lado, o elegante, o frivolo
conde de Paçô Vieira, o lustroso conde de
Castro Solla, o Anselmo Vieira, sempre a debater
finanças, sempre á espera das grandes
ocasiões,
sempre esquecido á ultima hora na lista do ministerio,
o estrabico Dias Ferreira, falando baixinho
para dois fieis que lhe restavam; o Matoso
dos Santos, sempre enfronhado em algarismos, o
Sergio de Castro, o D. Alberto Bramão e outros
jornalistas da
Tarde, o Schwalbach
aparecendo,
desaparecendo, atarefado, e tantos outros sumidos
lá para o fundo na obscuridade e no silencio.
Juntem a este mundo o mundo dos jornaes,
os meios politicos onde tudo se comenta e desfigura,
e o mundo financeiro, com alguns tipos que
é necessario anotar rapidamente: primeiro os Mosers
e o Foz, predominando com o Mariano, a
casa Torlades e outros grupos; a casa Burnay e
o impenetravel Jonh, e, nos ultimos tempos da
monarchia, a casa Wernestein, Alfredo da Silva
e a casa alemã Ernest George. Entre essas figuras
conheci uma d'um alto pitoresco: Gomes
Netto, sem instrucção, mas d'um grande senso
pratico. Não raro o encontravam em mangas de
camisa no seu escriptorio. Escrevia em largos
quartos de papel e depois dizia:—Ponham-lhe
lá a gramatica!—Acabou já velho e
amoroso,
fazendo
[300]
todos os dias compras de legumes e peixe,
na Praça da Figueira, que depois ia distribuir
de
coupé por casa das
amantes, pescada aqui,
pescada alli... Juntem a isto as redacções dos
jornaes, em forja rubra a certas horas da tarde
ou da noite, os ditos, as noticias espalhadas, a
côrte ao senhor conselheiro... Era peor o que se
dizia do que o que se fazia... Era o descredito
lançado sobre tudo e todos, a tal ponto que
um dia, mais tarde, quando um juiz monarchico
(Paçô Vieira) foi despachado para a provincia, o
delegado disse-lhe muito a serio:—Mas como
queria V. Ex.
a que se sustentasse um regimen
em que as filhas do José Luciano eram apalpadeiras
da alfandega com cem mil reis por mez?—Nos
comicios asseverava-se que a rainha D.
Amelia comprava no estrangeiro vestidos por
vinte e quatro contos. Peor, peor... Depois da
republica o Eduardo Villaça encontrou-se com
João Chagas em Paris e perguntou-lhe com
ironia:—Então esses famosos inqueritos da
republica,
com que fizeram tanto espalhafato, não
deram nada?—Ao que o outro, lépido,
respondeu:—Vocês
que querem? Tanto se acusaram
de ladrões uns aos outros, que a gente acreditou...
*
—Um homem! um homem!—reclamava o
D. Carlos. Um momento de hesitação e de duvida
[301]
na sua vida... Dois caminhos na frente: um
commodo e largo, de transigencias faceis, o outro
perigoso mas util para o seu paiz. Decidiu-se
pelo peor. Ia jogar a vida.
Elle era, como toda a gente, um mixto de qualidades
e defeitos... Ha homens que se nos afiguram
d'uma só peça. Desconfiem d'elles: andam
mascarados... Timidez e orgulho. Todos dizem:—Era
encantador.—Todos estão de acordo n'este
ponto: ninguem o podia aturar. Um oficial afirma:—Tratava
os politicos como lacaios, tratava
a gente do povo com extrema bondade.—Um dia
escreveu um bilhete nas costas do Hintze, que
se curvou para lhe servir de secretária; outro
dia, já a cavalo para uma ferra de touros, atirou
com a capa a um velho general seu servidor:—Guarda
lá isso!—D'outra vez dispoz o ministerio
á chuva para lhe tirar o retrato. Tratava-os
com desdem. Sacrificou sempre os homens que
se lhe dedicaram, o Martins e o Mousinho, por
exemplo. O Carlos Lobo d'Avila tinha-lhe dado
uma formula que o lisonjeou e o deitou a perder.
Era um valente. Escrevia cartas anonimas á
mulher. Media tudo pela mesma bitola—e, se o
deixam viver, tinha sido um dos maiores reis da
sua dinastia. Acabou á bala, quando ia matal-o
o figado: comia e bebia enormemente e pezava-lhe
em cima esta tara: era filho d'uma
histerica e d'um sifilitico. Este mixto, n'um
homem inteligente como elle, só tem uma
explicação:
[302]
timidez e orgulho—timidez e
orgulho...
Efectivamente resolver-se a luctar contra os
interesses dos partidos e dos homens, desencadear
paixões, era lançar-se n'um combate de
que não podia esperar senão contrariedades e
a morte. Salientaram-lhe logo todos os defeitos.
Tudo que se fazia de mau era sempre o rei
que o fazia. Obscureceram-lhe de proposito
as qualidades. Esqueceram que D. Carlos colocara
o paiz n'uma situação externa admiravel,
e que os dois ou tres actos de homem d'estado
do seu tempo lhe pertencem, como a unica acção
grande da republica pertence a Bernardino
Machado, que conseguiu levar as tropas portuguezas
para a frente europeia—quando os
inglezes reclamavam apenas o nosso esforço em
Africa
[16].
As viagens a Paris, a Berlim, a Londres
corôam o anno de 1895. A aliança ingleza
é um
facto. Veem a Lisboa os grandes chefes d'estado.
Vae começar uma grande época. Aponta
a Africa a uma pleiade brilhante de oficiaes,
que elle proprio incita, comprehendendo que o
grande Portugal é outro, e que esta facha de terreno,
com um clima agricola horrivel, só pode
ser uma vinha e um logar de repouso e prazer.
[303]
De lá, d'esse novo Brazil—dos extensos
planaltos d'Angola, que duas vezes por anno
produzem trigo—tem de nos vir o oiro e o pão.
O resto é visão de pequenos estadistas de trazer
por casa. Só elle concebe e incita. Só elle fala
e
sonha n'um Portugal maior, n'um Portugal esplendido.
O plano estabelecido e iniciado, fecha-se
com um ponto culminante: o tratado de
commercio com o Brazil, que D. Carlos teve
realisado, e que, ao que parece, tarde, dificilmente,
ou jamais, se conseguirá. Foi este homem
que assassinaram como ladrão a uma esquina
de Lisboa...
Porque foi morto, afinal, o rei?... Um
velho philosopho meu amigo traduziu um dia
toda a ancia contemporanea n'aquella grande
phrase, que não me canso de
repetir:—Nós
tambem queremos comer...—Sómente para ser
justo e completo, a uma verdade devia juntar
outra verdade:—E não cabemos todos!
Não, os partidos não cabiam todos, não
podiam
caber todos, e estavam completamente desacreditados.
A grande força de João Franco foi,
na realidade, de protesto. E quem falhou, diga-se
já, não foi o rei, foi João Franco;
quem não esteve
á altura do seu papel, não foi D. Carlos, foi
o dictador. João Franco tinha atraz de si um partido
pouco numeroso (as clientellas haviam de
vir...), mas resistente, tenaz, entusiastico. Os franquistas
[304]
de hontem são ainda hoje franquistas.
Não perdem a fé, e nem agora nem nunca despegam
um olho do Fundão, embora lancem o outro,
com prazer, ironia ou desdem, sobre o ridente
panorama da vida... É preciso que realmente
esse homem disponha de qualidades excepcionais
para conseguir tal poder de dominação. Era um
impulsivo: grande fraqueza e grande força. Procurava
os obstaculos para os dominar e gastou
uma energia desmedida a resolver ninharias. Em
Lisboa dizia-se com espanto:—Este homem só
levanta carrapatas!—Ora caçava no seu terreno,
ora no terreno dos republicanos. Homem d'estado,
ia talvez ter ocasião de o mostrar—depois
da morte do rei. Ahi é que era vel-o!... Valente
e calmo foi-o decerto. Vi-o eu n'uma ocasião grave
da sua vida. Os republicanos (Ribeira Brava,
talvez) tinham obtido a sua prisão logo depois do
cinco d'outubro. De Cintra levaram-no para um
gabinete da Boa-Hora. Cá fóra o França
Borges,
refestelado n'uma poltrona, gosava a sua vingança
e o seu triumpho, separado do cacifro por
uma porta escancarada. O juiz Meirelles e um
delegado de pera ruiva e gravatinha vermelha,
vinham de quando em quando trocar não sei
que impressões com elle. Pela porta aberta vi o
João Franco de pé, sereno e palido: parecia
enorme, junto dos dois bonifrates. E quando o
juiz lhe disse, acabado o interrogatorio:—É talvez
melhor sahir por outra porta, porque o povo
[305]
mata-o!...—o homem teimou, o homem cresceu
dois palmos:—Eu só saio por a porta por onde
entrei.—Estava preso, obrigaram-o emfim a
descer umas escadinhas, a meter-se ás escondidas
no automovel, que o esperava na calçada
que sobe quasi a pique para a Biblioteca, emquanto
alguem—juro-o—prevenia a furiosa
onda popular, que correu aos gritos de—morra!
morra!—a esperal-o em baixo, á esquina. Um
borborinho. Tiros de pistola. Dois marinheiros
apontaram as espingardas, defendendo o automovel,
que só a custo arrancou—emfim!
emfim!—pela
calçada acima.—Morra o João
Franco!...—E
as vozes colericas gritavam:—Morra!
matem-no!...—Era
este o homem, que, com o rei, estava
em frente dos partidos progressista, regenerador,
dissidente e republicano. Os ataques sucediam-se
e agravavam-se. Os monarchicos, dificilmente
sustidos pelos chefes, ameaçavam ingressar no
partido republicano, que todos os dias ganhava
em numero, cohesão e audacia. O proprio José
Luciano perdia a serenidade:
«Ha uma coisa que aos governos nunca deve esquecer,
que a lição da historia a cada instante repete:
á revolução
do alto, pode muito bem suceder que responda a
revolução
de baixo». (Correio da
Noite, 14 de Maio de 1907).
«O presidente do conselho
blazona e conta com o auxilio,
sem duvida, poderoso e eficaz do Rei, e zomba da
opinião publica, que tanto pretendeu captar, antes de subir
ao poder? Faz mal, porque ha-de chegar e oxalá que chegue a
tempo o momento em que El-Rei se recorde das
suas palavras de ha um anno:
[306]
A responsabilidade do decreto, ainda
que aparentemente
só acto do poder executivo, recahe mais uma vez
sobre o Rei, a quem todos hão de pedir a responsabilidade
da sua assignatura». (Correio da
Noite, 15 de Maio de 1907).
E a 24 de Maio vociferava: «A monarchia
precisa dos monarchicos... a monarchia precisa
dos monarchicos, mais do que estes precisam da
monarchia». Todos os dias novos boatos, todos
os dias nova causa de excitação. Barafunda,
prisões,
protestos. N'uma reunião celebre, por um
triz que os regeneradores não passam em massa
para o campo republicano. E o
Correio da
Noite,
no acesso do delirio, apelava já para a linguagem
biblica: «O que tem ouvidos para ouvir ouça; o
que tem olhos para ver veja...»
«Do alto deve descer o exemplo, e quando as
acções
dos que governam são de preversão e de crime, de
corrupção
e de suborno, de desbarato dos dinheiros publicos e
de abuso do poder, os actos dos governados não podem
ser de veneração e de paz, de obediencia e de
acatamento.
Com torrentes de sangue se conquistou a alforria do
povo, com oceanos de lagrimas se lavou a mancha do
absolutismo». (
Correio da
Noite, 1 de Junho de 1907).
Que faziam os dissidentes, o mais avançado
dos partidos monarchicos? Os dissidentes conspiravam.
As dissidencias anteriores, a do Mariano,
a do Navarro, tinham fracassado: a do
[307]
Alpoim ia dar como resultado a
revolução.—Foi
o senhor que fez a republica.—E elle dizia, com
o olho esperto a luzir:—Levei-os pela
mão.—Julgando
conquistar o poder, perdeu-o para sempre.
«Baralhou para dar», como aconselhava o
Marçal Pacheco—mas enganou-se no trunfo.
Depois que se separou do José Luciano nunca
mais acertou, na phrase do Moreira d'Almeida...
Era um grupo tremendo: o João Pinto dos Santos,
tenaz e resoluto como as armas; o pratico
Centeno, mola distendida sabe Deus até onde;
o Queiroz Ribeiro, o Pedro Martins; o sagacissimo
Egas Moniz, a quem ninguem consegue
ouvir os passos—mas que toda a noite, todo o
dia, roda nos meandros da politica, conspirador
e politico até á medula; o Moreira d'Almeida,
capaz de falar e de escrever um dia inteiro, sem
um desfalecimento, enfiando todas as formas e
todos os estilos, de tal maneira que, muitas vezes
o Antonio Ennes ou o Alpoim duvidavam se os
artigos, que elle escrevia, lhes pertenciam, apanhando
no ar as questões, e com um grupo de
amigos
a latere, que conheciam a
fundo as colonias
e as finanças; mais este e aquelle, e outras
raizes lançadas ao acaso, e ligações
no Porto com
um «mercante espertissimo», como nas
discussões
ouvi chamar a Lima Junior. O chefe d'este
grupo unido e compacto era extraordinario...
Agitação perpetua. Orador admiravel, sobretudo
na réplica, em que perdia a retorica e ficava incisivo
[308]
e nu como uma espada. Um passo a mais
e seria um escriptor ilustre: não teve um momento
de seu para rever as provas. Com a paixão,
a colera, o arrebatamento, um grande coração.
Nunca lhe conheci odios, e muitas vezes lhe
ouvi defender até o seu maior inimigo, o José
Luciano.
Ao proprio D. Manuel elle diz: «...O José
Luciano vale mais do que todos os progressistas e
regeneradores juntos, contando com elle proprio
Alpoim ». (
Documentos
politicos). E quem conheceu
o Alpoim sabe que as notas que o rei escreveu
são mais que exactas, são phonographadas.
É elle a falar d'este e d'aquelle, dos amigos,
dos inimigos—de Deus e do Diabo. Uma
ambição
do poder que o leva arrastado, mais pela
lucta em si, necessaria a um temperamento excessivo,
do que por vaidade ou vangloria. Principios
poucos—meios aquelles que os adversarios,
a tenacidade e o rancor de José Luciano,
lhe deixavam. Acusaram-no de tudo—acusaram-no
da morte de D. Carlos... «Até disseram,
Senhor, que fui eu que matei El-Rei D. Carlos!!!»
(
Documentos politicos). Resistiu
sempre; morreu
a conspirar. Nos seus ultimos annos não sei que
tristeza o envolve... A figura parece maior, as
palavras simplificam-se-lhe, os sentimentos tambem.
Engrandece. Raros teriam, como elle teve, a
sinceridade de escrever: «Na minha defeza, que
teve de ser espectaculosamente rude por vezes e
d'uma acção subterranea por outras, excessos
cometi
[309]
de que me penitenceio—mais do que se imagina»...
E repete e insiste: «Em muitos actos da
minha vida de lucta, por vezes injustamente combatido,
tenho sido exagerado—e errei. De muitas
coisas estou repezo, e d'ellas hoje se admira a
minha inteligencia e peço perdão á
minha propria
consciencia e até aos homens!» Quantos ha
ahi capazes d'esta grandeza? Quantos—tendo
todos juntos concorrido para a morte de D. Carlos—o
acusaram a elle só, com a tinta do
Correio
da Noite ainda fresca?
«Aqui d'El-Rei—se
nos pode
ouvir El-Rei—contra
quem mandou assassinar o povo de Lisboa.»
(Correio da
Noite, tarjado de luto). «Aparecem hoje,
segundo ameaças
do governo e segundo as suas notas oficiosas sempre
irritantes á imprensa, decretos esmagadores. Tanto peor
para o Rei e para as Instituições.
As responsabilidades
d'esses decretos, ainda que aparentemente só do poder
executivo recairão mais uma vez sobre o Rei, a quem
todos hão-de pedir a responsabilidade da sua
assignatura.
(Correio da Noite, 20 de Junho de
1907).
*
Quem reina agora em Portugal não é o senhor
D. Manuel, é sua Magestade o Mêdo. Que
quadro para um Saint-Simon, que descrevesse os
politicos e a côrte, o que se diz e o que se adivinha,
o que resalta dos
Documentos
politicos, e
o que se conserva na sombra como um baixo
[310]
relevo de odios e de interesses! Enredam, intrigam-se,
perdem-se todos juntos. A politica
portugueza gira sobre este fulchro: «O José
Luciano,
não podendo governar por se achar impossibilitado...
e não querendo substituir-se para
não perder o comando de que é muito
cioso»
[17]
emprega até ao fim todos os esforços para
inutilisar
o Julio de Vilhena. Só pela vã
ambição de
mandar? O velho é perspicaz e teimoso, o velho
conhece, como poucos, os homens e entende
que só elle pode e sabe governar. É teimosia
e grandeza. Não abdica, não pode. Toda a
vida foi obedecido. Aferra-se. O que elle quer é
ser o «Deus ex-machina da nossa politica sem se
mexer da sua
chaise-longue». Que tipo!
Governou
sempre, mandou sempre, conservou-se sempre
lucido. E tanta serenidade, que até no dia
em que lhe assaltaram a casa dos Navegantes, é
o unico que não perde o sangue-frio, e, quando o
querem esconder n'uma banheira, teima em ficar
na cadeira de rodas! Tem a logica do diabo e
uma manha, um conhecimento dos homens, a
que os outros não chegam. Desde o principio
que todos se congregam para enfraquecer o partido
regenerador. «Isto—diz a velha
rapoza—é
uma lucta de politicos que se querem inutilisar e
desacreditar uns aos outros». É assim—e
nenhum
[311]
d'elles se lembrou que só os republicanos lucravam.
Até os franquistas. «Os franquistas, por
intermedio do Martins de Carvalho, forneceram
aos republicanos todos os elementos que poderam
colligir para descredito dos rotativos» (T. do
Amaral ao rei). Até os nacionalistas. Entretanto
o rei ouve-os e toma notas... A sua vontade é
acertar. Passa a vida a acertar, o que não é bem
a missão d'um chefe, mas a d'um relojoeiro. Não
creio que os homens se governem só pelo interesse
ou pelo terror, como queria Napoleão, mas creio
que se não governam com pannos quentes, e que
mais vale tomar uma decisão má do que
não
tomar nenhuma. O povo, como o soldado, precisa
de sentir um chefe, e adivinha-o logo. Tudo
no rei são boas intenções. Mal ousa
dar um passo,
não se resolve nunca—e atraz d'elle
está a
mãe, que quer educal-o para rei, mas que tem
diante dos olhos o quadro horroroso... Apezar
d'isso é ella propria que o incita a passear á
luz do dia, como uma vez quando o trouxeram
a galope, entre uma escolta de cavalaria, do
Rocio ao Paço... Arrisca-o. Procura congraçar
toda a gente. E odiada. A D. Maria Pia, histerica
e perdularia, agradou sempre: até os seus
ditos se repetiam:—O senhor é um
merda!—ao
D. Luiz, quando elle aceitou as imposições do
Saldanha;
até os seus vestidos, a sua
ostentação, a
atmosphera de rainha extravagante, que só sabia
que existiam contos e patacos, os chapeus que
[312]
mandava vir de Paris, aos trinta e quarenta, em
cada estação; até a sua desordem
elegante de histerica.
Nem os jornaes republicanos a atacavam.
E quando foi para o exilio, já doida, com um pão
debaixo do braço e uma manta pela cabeça,
só
ella deixou saudades. Era a Rainha. A D. Amelia
não. Essa senhora, de quem alguem
disse:—É
um grande homem de bem!—subiu todo o
calvario da vida. Era religiosa—o que só a
honra—chamaram-lhe beata. Andou nos folhetins
e nos pamphletos. Os seus criados detestavam-na
[18].
Ao passo que a rainha D. Maria Pia,
[313]
falso anjo de caridade, pouco fez com o seu espalhafato
e foi adorada, a D. Amelia, que combateu
metodicamente a tuberculose, espalhando o
bem a mãos cheias, fundando a Assistencia Nacional,
com os seus sanatorios e dispensarios, as
cozinhas economicas, o hospital do Rego, o Instituto
de Socorros a Naufragos, e contribuindo
para a fundação do Instituto Bacteriologico,
etc.,
foi sempre odiada, calumniada, insultada. Nem
dentro de sua casa lhe era possivel conversar.
Um dia, para falar em segredo com um ministro,
chamou-o para o meio da sala:—Aqui, porque
senão vem tudo amanhã no
Mundo.—E vinha.
Até o homem dos telephones era carbonario...
Estou em dizer que é o acaso que governa a
vida: a razão não é, com certeza.
Ponham agora á roda d'estas figuras, os politicos
e as paixões falando cada vez mais alto. É
o momento em que todos á uma querem ser
chefes! Querem ser chefes o Teixeira de Souza
[314]
e o Alpoim, querem-no ser o Wenceslau de Lima
e o Campos Henriques, e até o pobre, o inculto
Pimentel Pinto, que Antonio Candido fez um dia
ministro, tem um deslumbramento e sonha na
candidatura. Elle é «o Vilhena muito afectuoso,
muito lisongeiro e muito avido de poder»; elle é
o Teixeira de Souza, «todo agrado, comtanto
que elle entre no governo n'uma situação que
não seja inferior á do Campos
Henriques»—retrata-os
o Wenceslau, que é o unico que sobe,
como um balão cheio de vento, no conceito de
quasi todos os politicos, que se reveem n'elle
como n'um espelho.—E o José Luciano teima:
«O Vilhena está quasi abandonado pelos seus
marechaes». Todos á uma proclamam ao rei e ao
mundo que esse homem é incompetente.—É
um
homem de talento—afirma um ex-ministro graduado—mas
nunca vi incompetencia maior
como politico.—Porquê? É o que resta
saber.
Elle é dos poucos que sabe o que quer, que
tem um plano e que o apresenta (
Antes da
Republica)—é
tambem o unico com superioridade
mental organisada. Pequeno, sempre pendurado
no charuto, conserva, até nas ocasiões criticas,
serenidade e firmeza. Mas todos concordam na
sua inferioridade politica...
Se só pelo triumpho é que se demonstra tino
politico, como quer alguem—na verdade Julio
de Vilhena falhou completamente. Nem todos os
meios lhe serviam, e em Portugal não existem correntes
[315]
de idéas ou de principios que levem um
homem ao poder. O que se chama opinião não
se pronuncia. Os chefes de partido são simples
chefes de bando. O Paço é que faz ou desfaz os
politicos, ou outros meios obscuros, de que cada
um se pode servir, como no tempo de Luiz XIV.
Escolheram-no para chefe n'uma occasião em que
nenhum dos outros o podia ser, mas atraz delle
estava a tenacidade do Teixeira de Souza, a politiquice
de Campos Henriques e a astucia de
Wenceslau.—Esse sim, chame V. Magestade o
Wehceslau—diz o Alpoim.—O Wenceslau
sim—concorda
o José Luciano. Elle é o homem do
Paço e dos politicos. Começa a ser indispensavel.
O outro tropeço não lhes sae da frente. Era
a occasião de governar quem governasse, mas ao
José Luciano só lhe convêm
«governos mixtos
em que elle mande, ou que, pelo menos, ponham o
cofre das graças á sua
disposição.»
(P. Pinto). E todos ou quasi todos só pensam
no Wenceslau, que promete muito, que sorri
a toda a gente, e que não tem nada lá dentro.
É o optimista necessario. Impõe-se pela parte
decorativa, pela boa educação, pela maneira
como contenta o mundo. As vezes chega a oferecer
o governo a um, tendo-o já oferecido a
outro... (J. de Vilhena). Só o lunatico não
entende...
Elle bem protesta: «Quem o conhece tem
obrigação de saber que nunca foi um aventureiro
ambicioso, nem um intrigante ordinario,
[316]
capaz de empregar processos menos correctos
para obter quaesquer posições». Mas foi
exactamente
isso que o perdeu! Num paiz onde não ha
opinião, não pode haver chefes de partido. Que
diferença entre elle e o Teixeira de Souza,
espadaúdo
e forte, abundante, abrindo logo os braços
a toda a gente:—Tu que queres, filho?!—D'outro
feitio era o Campos Henriques, procurador
encartado do norte, escrevendo a meio
mundo e satisfazendo a outro meio (agua molle
em pedra dura...); d'outro feitio, emfim, era o
palaciano Wenceslau de Lima, o favorito, que censurava
as cartas do rei e lhe escrevia os borrões.
Nenhum homem mais
souple nem mais
agradavel,
sempre a mastigar e a sorrir. Está nas antecamaras
quando o rei conferenceia, e ha um momento
em que só elle põe e dispõe, e em que
aconselha ao rei:—Chame-me a mim, para eu
declinar!—E o rei chama-o. As duas grandes
figuras do reinado, vinham a ser o Wenceslau
de Lima e o Soveral. O proprio José Luciano estava
condemnado...
Tudo isto se passa sob o olhar ironico ou severo
dos republicanos e diante do phantasma da
republica. Nem assim os interesses e as ambições
abdicam. Nunca, nem no inferno, abdicaram!
Acima de tudo está o odio do José Luciano,
estão as paixões do Alpoim, que sonha no poder,
e que na manhã de 5 d'Outubro ainda
dizia:—Agora, sufocada a revolução, o
rei
não
[317]
pode deixar de me chamar a mim...—Interesses
e homens, tendo cada um «a sua policia»,
como diz o Teixeira de Souza. E o rei no trono,
no palacio onde as paredes teem ouvidos, sempre
a rabiscar papeis, incitando-os ás vezes (J.
de Vilhena), sem prever o mundo de coleras que
está para vir á superficie. Quando á
noite se
apanha só, abre a gaveta e desata a escrever
aquelle interminavel romance politico, que caminha
a galope para o remate da fuga e do exilio.
E as vozes, cada vez mais altas,
obstinaram-se:—Não
pode haver ordem nem tranquilidade
com o Alpoim no paiz—exclama um.—Elle é
um
espirito claro e nada mais! protesta outro.—É
uma cambada! A propria dissidencia que é?
É um inferno!—conclue o
Alpoim.—É um
idiota! O mal foi elegel-o para chefe.—E o Teixeira
do Amaral observa ácerca d'um
grupo:—São
pescadores d'aguas turvas...
Quem ha-de conter os homens e os acontecimentos?
O rei? O rei escreve, escreve sempre...
O Credito Predial desaba:—Foi então que os
burguezes, vendo-se roubados, nos deixaram fazer
a republica...—asseverou Junqueiro. Ao poder
sobe emfim o fatidico Teixeira de Souza. Os
acontecimentos precipitam-se. Atraz dos homens
está uma força monstruosa que parece empurral-os
a todos—até ao rei, que, de quando em
quando, pára de escrever e sorri enlevado para
os dois bonecos que tem em cima da comoda,
[318]
a caricatura d'um marinheiro inglez e a caricatura
do Soveral—e vae leval-os a todos, sob o olhar
impassivel do destino, para o desenlace fatal.
Todos esses homens tinham defeitos. Alguns
eram até ridiculos. Mas, apezar de tudo, não
ultrapassavam
determinada linha, apegados a preconceitos
e a formulas, de que não havia arrancal-os...
Vae o senhor D. Manuel, não tarda,
porque a monarchia ha-de voltar—tudo sucede
vertiginosamente n'este paiz—conhecer outros,
com muito menos escrupulos, que o hão-de encher
de desgostos. V. Magestade verá.
FIM DO 1.º VOLUME
INDICES
LISTA DAS PESSOAS CITADAS
NO 1.º VOLUME
A
Abel d'Andrade
Abrantes (Marquez de)
Ada Weinstin
Adelaide Coelho da Cunha
Adrião de Seixas
Affonso Costa
Affonso (Infante D.)
Affonso VI
Affonso XII
Affonso XIII
Agostinho Franco
Albano de Mello
Albano da Fonseca (Coronel)
Alberto Bramão (D.)
Alberto Braga
Alberto Pimentel
Alberto d'Oliveira
Albuquerque (Alexandre)
Alcaçovas (Conde de)
Alda Decken Lino
Alexandre Herculano
Alferrarede (Condessa de)
Alexandre Cabral
Alfredo Anjos
Alfredo Costa
Alfredo da Silva
Alice Lawrence
Alice Munró
Alpoim
Almada Carvalhais
Almeida Araujo (Condessa de)
Alvito (Marquez de)
Ameal (Conde do)
Amelia (D.)
Anna de Sousa Coutinho (D.)
Angejas
Anibal Soares
Anjos (As)
Anna de Jesus
Antonio Azevedo
Antonio Bandeira
Antonio de Brito
Antonio Cabral
Antonio Candido
Antonio Centeno
Antonio Emilio
Antonio da Costa e Silva
Antonio D. da Cruz Pinto
Antonio Ennes
Antonio José d'Almeida
Antonio José de Freitas
Antonio Manuel Teixeira
Antonia Morena
Antonio Moreira da Camara Coutinho
Antonio Nobre
Angela Pinto
Anselmo Vieira
Antero
[322]
Armando Navarro
Arnaldo Fonseca
Arnoso (Conde de)
Arnoso (Condessa)
Arroyo (Antonio)
Arroyo (João)
Arthur de Mello
Asseca (Viscondes de)
Augusto Cymbron
Augusto Machado
Augusto Pina
Augusto Ribeiro
Avelino d'Almeida
Aveiro (Duque de)
Avila e Bolama (Duqueza de)
Avila (Conde de)
Ayres de Gouveia
B
Baltar
Barão (Condes)
Barahona
Barbosa Colen
Barbosa du Bocage
Barjona
Barros Gomes
Batalha Reis
Bemposta Sub-Serra (Marquezes da)
Beirão
Bernard Lazare
Bernardino Machado
Bernardo Pindella
Bomtempo
Borges & Irmão
Bourbon de Menezes
Braamcamp
Branca de Gonta Colaço
Brazão
Brito Aranha
Brouillard (Madame)
Buiça
Bulhão Pato
Burnay
C
Caldeira
Camillo
Campos Henriques
Candida da Nora Kendall
Candido dos Reis
Capelo (Almirante)
Cardia
Carlos (D.)
Carlos de Freitas Jacome
Carlos Lobo d'Avila
Carlos Mayer
Carlota Joaquina (Dr.)
Carnaxide (Visconde de)
Carneiro de Moura
Carracida
Carrilho
Casal Ribeiro (Conde de)
Castello-Melhor
Castilho
Castro Solla (Conde de)
Celso Herminio
Chancelleiros
Chapuy
Christina Rezende da Silva
Cipriano Jardim
Coelho de Carvalho
Columbano
Conceição de Carvalho
Correia de Barros
Correia d'Oliveira
Costa Pinto
Costa Santos
Croneau
Cunha e Costa
Curry Cabral
Custodio Borja
D
Dantas Baracho
Delcassé
Dias Costa
Dreyfus
Duval Telles
[323]
E
Eça de Queiroz
Eça Leal
Edla (Condessa de)
Eduardo Burnay
Eduardo Cheira
Eduardo Cordeiro
Eduardo de Sousa
Eduardo Pimenta
Eduardo Tavares
Eduardo VII
Egas Moniz
Elisa Baerlein
Elisa Baptista de Sousa Pedroso
Elvino de Brito
Emidio Navarro
Emilia Adelaide
Emilia das Neves
Ernest George
Espregueira
Eugenio de Castro
F
Falcarreras
Fernandes Thomaz
Fernando (D.)
Fernando de Serpa
Fernando Martins de Carvalho
Ferreira d'Almeida
Ferreira do Amaral
Fialho
Ficalho (Conde de)
Ficalho (Condessa de)
Ficalho (Marquez de)
Fife (Duque de)
Figueiró (Conde de)
Figueiró (Condessa de)
Fonseca, Santos & Viana
Fontes
Foz (Marquez da)
França Borges
Francisco Figueira
Francisco Medeiros
Franco (Marquez de)
Francisco da Fonseca Benevides
Frederico Arouca
Frei
Freitas Branco
Freitas Brito
Freitas Rego
Fronteira (Marquez da)
Fumega (Major)
Fuschini
G
Garrett
Garaty (Mr. Garaty (Mr. e M.
me)
Garrido
Guerra Junqueiro
Gervasio Lobato
Gomes dos Santos
Gomes Leal
Gomes Netto
Graça (Major)
Guilherme de Azevedo
H
Heitor Ferreira
Henrique de Vasconcellos
Hintze Ribeiro
I
Idanha (Viscondessa de)
Imperador do Brazil
Irene Gilman
J
Jacintho Candido
Jayme Arthur da Costa Pinho
Jayme de Seguier
[324]
Jayme Victor
João d'Alarcão (D.)
João Barreira
João Chagas
João Chrisostomo
João da Camara (D.)
João de Deus
João de Deus Guimarães
João Franco
João Pinto dos Santos
João de Menezes
João VI (D.)
Joaquim da Boa Morte Alves de Moura
Joaquim Pessoa
John Burnay
Jorge Colaço
Jorge O'Neill
José d'Azevedo
José Bacellar
José Dias (conego)
José Dias Ferreira
José de Figueiredo
José Lobo
José Luciano
José Maria dos Santos
José Nunes
José Paulo Menano
José Reinach
José Saragga
Julio de Vilhena
Judeu
Judice Bicker
Julia Bordallo
Justino
L
Latino Coelho
Leão XIII
Leitão (Ourives)
Lencastre de Menezes (General)
Lima Junior
Linhares (conde de)
Lopo Vaz
Loubet
Loulé (Duqueza de)
Luciano Monteiro
Lumiares (condes de)
Luiza Patricio de Balsemão
Luiz (D.)
Luiz da Camara (D.)
Luiz Campeão
Luiz de Castro (D.)
Luiz Fillipe (D.)
Luiz Osorio
Luiz Trigueiros
M
Machado (capitão)
Malaquias de Lemos
Manuela Rey
Manuel (D.)
Manuel Bordallo Pinheiro
Manuel Figueira
Manuel Hintze Ribeiro
Manuel Ramos
Manuel Ribeiro Borges
Manuel Vaz Preto
Marçal Pacheço
Magdalena Trigueiros
Mardel
Maria Augusta (D.)
Maria Emilia Seabra (D.)
Maria Emilia Macieira Lino (D.)
Maria (Infanta D.)
Maria II (D.)
Maria Kruz Brito (D.)
Maria Pia (D.)
Maria Tereza Pinto de Magalhães (D.)
Marquez da Foz
Marcelino de Mesquita
Mariano
Martins de Carvalho
Mathias de Carvalho
Matoso dos Santos
[325]
Maura
Max Nordau
Maximiliano d'Azevedo
May Figueira
Mello Barreto
Mesquitella (conde de)
Monpensier (Duqueza de)
Moreira d'Almeida
Moreira Marques
Moreirinha
Monteiro Milhões
Motta Marques Meirelles (Juiz)
Moser
Moura Cabral
Mousinho
Munhoz
Murça (condes de)
N
Napoles
Navarro
Nazareth
Norton de Mattos
Nuno Castello Branco
O
Oliveira (das
cautellas)
Oliveira Martins
Oliveira Mattos
Ottolini da Veiga
Ouguella (Visconde de)
Ovidio d'Alpoim
P
Paccini
Paçô Vieira (conde de)
Pad' Zé
Padre Matos
Palmeirim
Palmeirim (General)
Palmella (Duqueza de)
Paraty (condes de)
Paris (condessa de)
Patrocinio (D.)
Paulucci
Pedro d'Araujo
Pedro Martins
Pedro de Noronha (D.)
Pedro IV (D.)
Pedro V (D.)
Pedro Victor
Penalva (Marquez de)
Penamacor (condessa de)
Penha Garcia (conde de)
Peniche (conde de)
Pequito
Pereira das Neves
Pimentel Pinto
Pinheiro Chagas
Pinto Basto
Poitier
Pombal (Marquez de)
Ponte de Lima (Marquezes)
Povolide (conde de)
Praia (Marquezes da)
Prim
Q
Queiroz
Queiroz Ribeiro
R
Ramalho
Rangel de Lima
Raphael Bordalo
Rebello da Silva
Regaleira (Baroneza da)
Ressano Garcia
Rezende
Ribeira Brava (Visconde da)
Ribeira Grande (conde da)
Ricardo Jorge
Rio-Maior (condessa de)
Rodin
[326]
Rodrigo da Fonseca Magalhães
Rosa Damasceno
Rosa pae
Rossini
Rufino d'Almeida
S
Sabugosa (conde de)
Saldanha (Duque de)
Sampaio (Visconde de)
Santos (Major)
Santos Viegas
Sarah da Motta Vieira Marques
Saraiva de Carvalho
Schwalbach
Sebastião Telles
Sergio de Castro
S. Boaventura
S. Lourenço (condessa de)
S. Luiz de Braga (Viscondes de)
Silva Bastos
Silva Canellas
Silva Carvalho
Silva Graça
Silva Pinto
Silva Telles
Sousa Holstein
Sousa Martins
Soveral (Marquez de)
T
Taborda
Tavares Festas
Taveira (condessa de)
Teixeira de Sousa
Teodoro d'Almeida
Theophilo Braga
Thomaz Ribeiro
Tompson
Torlades (casa)
Torre da Murta (Visconde da)
Totenbach
Trindade Coelho
U
Urbano de Castro
Urbano Rodrigues
V
Valbom
Valdez
Valença (conde de)
Val-Flôr (Marquez de)
Vallada (Marquez de)
Valladares (conde de)
Varzea (Visconde da)
Vasconcellos Porto
Vianna (Marquez de)
Vicente da Camara
Victor Hugo
Victoria (Rainha)
Vilaça
Villa de Fozcoa (Barão de)
Villa Nova de Cerveira (conde de)
Villa Real e Mello (condessa de)
Vimioso (conde de)
W
Wenceslau de Lima
Wernestein
Z
Zola
Zulmira Franco Teixeira
INDICE DOS CAPITULOS
|
Pags. |
|
|
Prefacio |
9 |
Algumas
Figuras |
27 |
Pó da
Estrada |
93 |
A Sociedade
Elegante |
267 |
O Mundo
Politico |
289 |
INDICE DAS GRAVURAS
|
Pags. |
|
|
Columbano,
Auto—retrato |
33 |
Fialho
d'Almeida |
49 |
D. João da
Camara |
57 |
Eça de
Queiroz |
65 |
Antonio Nobre no
caixão |
81 |
Correia
d'Oliveira |
89 |
Fernandes Thomaz, no seu
gabinete |
97 |
Guerra
Junqueiro |
113 |
José Luciano encerra o
Parlamento |
129 |
Celso
Herminio |
145 |
Gomes
Leal |
161 |
D. Carlos I de
Portugal |
177 |
Oliveira
Martins |
193 |
Papelinhos sobre o
regicidio |
206 |
Dantas
Baracho |
225 |
José Maria
d'Alpoim |
241 |
Teixeira de
Sousa |
257 |
acabou de se imprimir
na tipografia da «renascença portuguesa»
rua dos mártires da liberdade, 178,
aos 21 de janeiro de 1919.
porto
Notas:
[1]
Estas
Memorias devem
formar quatro volumes:—2.º
vol.—Os bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro
por dentro; 3.º vol.—A Republica. O comercio e a
finança. Jornaes e jornalistas; 4.º
vol.—A
Republica e
os seus homens. Vida militar.
[2]
Republica, 23 de
Fevereiro de 1915.
[3]
«Volta-se para o governo do seu paiz, e pede-lhe
que se lembre da recepção de Afonso XII em Paris,
e que
ponha Sua Magestade a coberto de qualquer
manifestação
que possa porventura nascer, da atitude da Rainha. Limem-se
as dificuldades, empreguem-se todos os esforços,
nossos e alheios; lancemos mão da nossa
situação privilegiada
com a Inglaterra; ponhamos todos os elementos disponiveis
em acção, para que o céo serene. Por
exemplo:
que está fazendo o sr. Soveral em Paris? Façam-no
recolher
imediatamente a Londres».
[4]
Existe uma carta em que o rei D. Carlos diz ao
Navarro, que é absolutamente falso que elle se oponha a
que o nomeiem par do reino. Seriam os politicos capazes
de armar a intriga?...
[5]
Um dos seus sobrinhos escreveu um artigo interessante,
do qual extracto os seguintes periodos:
«No seu espirito fluctuava uma bondade inata que se
traduzia por uma profunda afabilidade na vida intima e por
uma indulgencia estranha no julgamento dos homens. Jámais
acreditou em malevolas intenções e nunca da sua
bocca saiu uma insinuação maliciosa. Confiava
sempre na
bondade dos outros, não hesitando, nos momentos de
agitação
popular, em atravessar serenamente as ruas da capital
revoltada, como sucedeu em 5 de outubro e 14 de maio. E
quando a familia, naturalmente receiosa, lhe solicitava para
não sahir, respondia sempre com toda a tranquilidade:
«a mim
ninguem me faz mal, pois eu nunca fiz mal a ninguem».
«As suas ferias passava-as a estudar. Ora meditava
trabalhos de jurisprudeneia, ora, para descansar, apreciava
as mais belas obras de literatura. Dotado de uma memoria
privilegiada, sabia de cór longos trechos de versos, e
até
nos ultimos horriveis momentos da sua existencia, arquejando no leito
de dôr, ora recomendava pontos
importantes
dos processos que trazia entre mãos, ora citava frases de
grandes poetas e filosofos referentes á hora suprema que
rapidamente se aproximava. E quando a noite cahia, tudo
envolvendo no seu manto de tristeza, era com uma anciedade
estranha que esperava, na longa vigilia dolorosa, a
chegada do sol radiante. E foi com uma precisão rara que
previu a hora da sua morte. Mais tres dias, mais dois dias
e tudo estará acabado. E, de facto, assim sucedeu!
«Apaixonava-o o estudo da astronomia, e nos ultimos
tempos antes de morrer, apesar da sua avançada idade de
75 anos, vergado sobre obras da especialidade e, nas horas
silenciosas das serenas noites de verão, passeando na sua
quinta dos Covas, ou encostado ás amplas janelas da sua
biblioteca, que tanto amava, reconhecia uma a uma as
constelações e descobria entre os inumeros astros
que recamavam
o firmamento, aquelles que os seus auctores
haviam indicado.»
[6]
«Effectivamente, segundo nos informam... o homem
das
barbas e da carabina não sahiu debaixo
da Arcada (sic) do
Ministerio do Reino, visto, que com outro
individuo se encontravam juntos da aludida
arvore.»—
Para
quê?... por
José Nunes.
[7]
Parece que o que salvou a rainha foi o cocheiro
poder arrancar, bater nos cavalos, por ordem da condessa
de Figueiró, e aquilo seguir, com os mortos e a rainha
louca de dôr:—Mortos! mortos! e ninguem para os
salvar!—N'um
gesto maternal debruçara-se cobrindo o filho com o
proprio corpo.
—Quem matou o rei... «O grupo foi em parte
organisado
durante o dia 31 e ás 3 horas da madrugada do
dia 1 de fevereiro, em uma quinta dos arredores de Lisboa
decidiu-se que só fossem cinco os individuos a executar
o plano do Boulevard
Poissonière.»—
Para
Quê?
por
José Nunes.
...«Se na tarde do 1.º de fevereiro de 1908
não
se
désse mais que o primeiro tiro que se deu, e esse foi de
carabina, ficariam vivas todas as pessoas reaes, excepto o
rei. Não obstante o tiroteio ter-se desenvolvido
momentaneamente,
assaltando-se ao mesmo tempo a carruagem, foi
então que, sobre o pae e o filho, se dispararam mais tiros,
alguns d'elles mortaes».—
Para
Quê? por
José
Nunes.
...—Ao menos responda-nos a esta pergunta: o Buiça
e o Costa teriam cumplices?
E o sr. Laranjeira, sorrindo, affirma:
—Tinham varios amigos...?—E hesita.—O que
lhe
posso garantir, é que o Buiça
não foi o heroe principal;
quem preparou tudo foi o Alfredo Costa na «Loja Obreiros
do Trabalho». O Costa tinha uma grande influencia sobre
varios rapazes de valor e de audacia. Tambem sem receio
de ser desmentido lhe posso asseverar que o Alfredo Luiz
da Costa foi assassinado por mão occulta, quando vinha,
preso e vivo, para o posto da Camara Municipal. Note que
as suas ultimas palavras foram estas.—Ai minha
mãe, que
me trahiram!—E o chefe Bazilio, um dos que o conduzia,
não pôde vêr quem lhe
descarregára a arma, matando-o...
No meu modo de vêr, os novelleiros encartados, dizem coisas
sobre coisas, sem conhecerem o
fio á
meada, e é exactamente
o que tem prejudicado tudo e todos.»
Revelações sobre o regicidio—Entrevista
com o
sr. Rodrigues
Larangeira publicada no
Imparcial de
1 de julho
de 1910.
[8]
Apurou-se que o ex-ministro em Londres, de julho
de 1892 a 12 de Novembro de 1910, recebera o seguinte:
1892-1893 |
|
10.833$890 |
1893-1894 |
|
12.841$593 |
1894-1895 |
|
16.699$006 |
1895-1896 (10 de Junho a 30 de
Setembro) |
|
2.163$750 |
1896-1898 |
|
17.264$456 |
1896-1897 (26 de Abril a 26 de
Julho) |
|
2.441$625 |
1898-1899 |
|
15.618$168 |
1899-1900 |
|
15.835$443 |
1900-1901 |
|
12.976$500 |
1901-1902 |
|
14.211$412 |
1902-1903 |
|
21.807$881 |
1903-1904 |
|
15.963$505 |
1904-1905 |
|
35.481$112 |
|
|
|
A
transportar |
|
194.138$341 |
|
|
|
Transporte |
|
194.138$341 |
1905-1906 |
|
21.437$118 |
1906-1907 |
|
25.749$787 |
1907-1908 |
|
20.447$868 |
1908-1909 |
|
11.802$562 |
1909-1910 |
|
12.487$687 |
1910-1911 (de 16 de Julho a 12 de
Novembro) |
|
3.515$680 |
|
|
|
|
|
289.679$044 |
Recebeu mais:
Pela rubrica de
adeantamentos |
|
5.743$815 |
Pela rubrica de
suprimentos |
|
226$035 |
Pela rubrica de
adeantamentos |
|
450$000 |
Pela rubrica da visita aos Reis d'Inglaterra,
1904-1905. |
|
21.042$935 |
|
|
|
Total—Reis |
|
317.041$828 |
—As despezas legaes auctorisadas eram de 10.950$000
réis por anno. Vê-se como eram excedidas!
—Segundo o oficio do ex-ministro Vilaça para o
ministro
da fazenda, pedindo mais dinheiro para Soveral,
este, no almoço e ornamentação da
legação, na visita do
rei Carlos, consumira mais o seguinte:
Almoço,
libras |
325 — |
12 |
— 0 |
Vinho,
libras. |
49 — |
6 |
— 6 |
Decorações,
libras |
1.760 — |
1 |
— 0 |
|
|
Total, libras. |
2.134 — |
19 |
— 6 |
—Averiguou-se, pelo oficio do ex-director geral da
thesouraria, Perestrelo, que pelo mesmo motivo da visita
do rei Carlos, Soveral recebera mais:
Em 30 de Novembro de 1904,
libras |
|
1.500 |
Em 10 de Dezembro do mesmo anno,
libras |
|
1.000 |
|
|
|
Total,
libras. |
|
2.500 |
Todas estas quantias, em libras, ou em réis, foram
calculadas
ao cambio par. Como n'aquellas épocas houve subido
agio sobre o ouro, e calculando esse agio n'uma media de
15%, vê-se que notavel aumento ha nas despezas descritas!
Soveral recebeu mais, pela verba de despezas diversas
extraordinarias no anno economico de 1909-1910, sem qualquer
justificação, réis 1.934$855; e pela
verba destinada á
viagem a Londres do rei D. Manuel, réis 4.468$900.
Na liquidação e pagamento dos direitos de
mercê,
emolumentos e sellos, houve enorme trapalhada durante
muitos annos, d'onde resultou Soveral esquivar-se ao cumprimento
das leis fiscaes.
Deve os direitos de mercê e emolumentos e sello pelo
titulo de Conselho, pelo titulo de Marquez, pelo cargo de
secretario da legação em Londres, pelo cargo de
ministro
em Londres, pela gran-cruz da Torre e Espada, etc.
Quando foi ministro dos negocios estrangeiros, teve a
habilidade de em 17 mezes, só á sua parte,
consumir em
despezas reservadas, réis 37.757$515, sem deixar no
ministerio
qualquer documento, explicando ou justificando o emprego
de qualquer verba!—
Intransigente,
de 31 de Março
de 1911.
[9]
«Escrevem-nos de Braga:
Joaquim de Sequeira Lopes, negociante, e Manoel
Coelho dos Santos, penhorista, são pessoas de bem e
residem em Espinho.
Sequeira Lopes foi em Novembro de 1907 para Lisboa
curar uma molestia hospedando-se em casa de seu irmão
Frederico, negociante, chefe graduado do alpoinismo. D'ali
escrevia semanalmente ao Coelho, com quem tinha negocios,
quando na capital começou a agitação
para derrubar
o Franco, dando em cada carta uma noticia politica, que o
Coelho lia em toda a parte onde se lia politica. Na quarta-feira
ou quinta da semana do regicidio, essa noticia era d'este theor:
Disseram
hoje a Frederico,
no escriptorio forense...
que João Franco seria assassinado em 24
horas. Quando chegou a Espinho a carta que continha esta
noticia,
tinham passado as taes 24 horas, por isso o valor da
noticia estava prejudicado. Deu-se o atentado no sabado e
na quarta-feira seguinte a carta habitual dava esta noticia:
Os revolucionarios, vendo-se perdidos pela
prisão dos
chefes, reuniram-se secretamente, republicanos e dessidentes
d'acção, e resolveram a morte da familia real.
Propoz-se que
os executores fossem tirados á sorte, mas o professor
Buiça
protestou, oferecendo-se voluntariamente, sendo o seu alvitre
secundado por muitos que se promptificaram a
auxilial-o.
Estes apontamentos foram dados ao ministro Campos
Henriques logo depois da formação do gabinete
Amaral.
Foram em carta anonyma, mas acompanhados d'um
grande numero de testemunhas que viram e leram as taes
noticias, figurando n'ellas o coronel reformado Raul de Passos,
d'Elvas, que na ocasião residia em Espinho
e dava a
semelhantes noticias um grande valor para a
investigação.
Campos Henriques, o que demitiu o juiz Alves Ferreira
e chamou o outro da Meda, fez de conta que nada
era com elle. N'esta pista ninguem mexeu.»
*
«A reunião, afirma-se, teve logar na Costa do
Castello.
Tomaram parte n'ella quadrilheiros da quadrilha republicana
e de todas as quadrilhas monarchicas»...
[9a]
[9a]
Quem quizer conhecer a historia contemporanea tem de
lêr e
consultar a colecção d'
O Povo
d'Aveiro. É indispensavel. Essa voz
tremenda
e colérica préga, ha annos, sem um
desfalecimento, meia duzia de
verdades essenciaes ao paiz. Além d'isso Homem Christo
é o maior jornalista
portuguez e um pamphletario que só tem outro na nossa
literatura
que se lhe compare—José Agostinho de Macedo.
[10]
Essa extraordinaria sessão, em que o parlamento
parecia estar no banco dos réus e o Afonso Costa, theatral,
surgia como um acusador triumphante!... O ministerio
tinha desaparecido. Fugira! Ninguem sabia do que se ia
tratar: esperava-se peor, muito peor... A impressão real,
patente, autentica, era de que elle ia fulminal-os com provas
á vista, acusando-os d'um crime... De que crime tremendo?
Quando leu os documentos houve uma impressão
de alivio, quasi a exclamação:—Era
só
aquillo?...—E
quando baralhou e se enganou nos nomes da pessoa
que acusava—ninguem soube aproveitar o momento, o
erro, a oportunidade... Ninguem se quiz comprometer...
A defeza feita pelo Paçô foi fragil, risonha,
quasi «pedindo
desculpa»...
[11]
Folheto de 10 paginas, com este titulo:
Os Barbadões,
resumo historico por D. Sebastião de Vasconcellos,
Bispo de Beja, Par do Reino e Comendador da Nobilissima
Ordem de N. S. da Conceição de Villa
Viçosa. Propriedade
da Empreza Editora do Jornal «Portugal»
Limitada.
[12]
Carta publicada n'
O
Norte de 1 de Setembro de
1918 pelo snr. Bourbon e Menezes:
Meu Senhor:
Tenho a honra de communicar a V.
Magestade que,
nos termos assentados, escrevi ao seu encarregado de negocios
em Berlim para fazer-lhe saber a conveniencia q.
haveria em retro-trahir
(sic) a data da visita de
V. Magestade
para 20 de novembro e nesta orientação lhe expuz,
para levar ao conhecimento do Ministerio dos Negocios
Estrangeiros allemão, os argumentos e razões que
me pareceram
apropriados ao fim que se pretende. Julgo q. isto
merecerá a aprovação de V. Magestade.
Quanto ao assunto da nossa conversação no
Paço das
Necessidades, entendi hoje aproveitar a oportunidade de
vir o marquez de Villalobar dar-me uns informes que é
natural
que V. Magestade já conheça pelo conde de
Sabugosa,
para entrar com elle em conversa officiosa sobre a
conveniencia de estreitar em bases definidas as nossas
relações
politicas, visto os dois paizes soffrerem de um mal
commum—a invasão da onda democratica. Neste
sentido
lhe fiz um longo arrazoado que elle recebeu com agrado a
ponto de me perguntar se queria que levasse isso ao conhecimento
do seu soberano ou apenas do Presidente do
Conselho. Fiz-lhe notar que esta idea era apenas
pessoal e
minha, que sobre ella não
tinha consultado o governo e que
V. Magestade nem de leve suspeitava d'este meu ponto de
vista, que a minha idea era de que as duas nações
por um
instrumento secreto se comprometessem a um mutuo auxilio, no caso de
irrompessem
(sic) movimentos
revolucionarios
que puzessem lá e cá em risco a
segurança das
instituições.
Elle concordou em que o interesse era commum e por
isso reciproca a vantagem e lhe parecia que seria grato ao
coração de S. Magestade o Rei D. Affonso o
lembrarmo-nos
d'elle em tal conjunctura, independentemente das
estipulações
da nossa alliança com a Inglaterra. Entendi pôr
n'este pé a questão porq. tinha
opurtunidade
(sic) e corresponde
a uma necessidade que não é
só nossa mas tambem
d'elles. O ministro comprehendeu bem a minha idea e disse-me
que a ia transmitir a Espanha, a Canalejas, afirmando-me
que poria n'isto todo o seu empenho. Fiz-lhe sentir
que seria bom pôr só a questão
em principio e quanto á
extensão e detalhes do acordo seria para regular depois
quando V. Magestade e o governo conhecessem o assumpto.
Não quiz ir mais longe para me não envolver em
dissertações
sobre acordos economicos que me parecem pouco
convenientes agora para nós. Eis o que fiz e o que me parece
que diviria
(sic) fazer-se por
emquanto, pois que este
assumpto, quanto ás outras nações,
carece de opurtunidade
(sic) e entrados
na via de
explicações correriamos o
risco de prejudicar os interesses que temos em vista.
O que se me affigura necessario e conveniente é ligar
os dois paizes n'uma deffeza
(sic)
commum, visto que as vantagens e riscos são communs e
não
julgo difficil chegar-se
ao desejado fim, tanto mais quanto as suas
informações
se referem a um movimento revolucionario nos dois
paizes, com dinheiro vindo de França.
Muito prazer terei se o meu parecer merecer a subida
honra da aprovação de V. Magestade, pois que
outro não é
o meu desejo se não de corresponder á sua
confiança com
a pratica de actos meus que sejam acertados.
Mostrou-se o Marquez de Villalobar muito empenhado
em saber o quer que fosse do casamento de V. Magestade.
Continuei affirmando-lhe q. nada sabia porque o que se estava
ainda fazendo em Inglaterra era
à
l'insu do governo,
mas que logo q. soubesse cousa digna de ser-lhe communicada,
lhe não faltaria com essa confidencia.
Disse-me elle q. o seu empenho de saber correspondia
ás sucessivas perguntas que de Espanha lhe fazia o seu
Soberano.
Forse che si: forse che
nó.
Beijo respeitosamente as mãos de V. Magestade e em
tudo aguardo, com o devido respeito, as ordens que se
dignar dar ao
seu ministro
e subdito obediente
Lisboa, 19-7-910.
(a) José
d'Azevedo Castello
Branco.
[13]
PREÇO DA VIDA
Pão—kilo |
90 |
Carne de segunda
qualidade |
300 |
Carne
limpa |
600 |
Vitella |
800 |
Carne de
porco |
480 |
Toucinho |
320 |
Banha |
320 |
Assucar
pilé |
240 |
Bacalhau |
200 |
Massas |
150 |
Manteiga |
800 |
Ovos—duzia |
250 |
Feijão
branco—litro |
70 |
Petroleo |
90 |
Leite |
100 |
Feijão
frade |
50 |
Feijão da ilha
(manteiga) |
100 |
Azeite |
400 |
Carvão—arroba |
300 |
Uma
pescada |
500 |
Um vestido de
senhora |
30$000 |
Um fato de
homem |
20$000 |
Um par de
botas |
4$000 |
Média do aluguer d'um andar, por semestre
(casa para uma familia da
mediania) |
120$000 |
[14]
Foi
oficial na marinha ingleza, condecorado na
campanha do Baltico com a medalha militar, e um excelente
administrador. Diz-se que graças a elle é que a
casa
da mulher sahiu da barafunda e quasi ruina a que chegára
á data do casamento. Por isso talvez é que passou
por um
apagado guarda livros...
[15]
Do
Correio Nacional, na
sua secção
Ecos:
O sr. Hintze Ribeiro é d'uma
grande generosidade
para com a sua familia.
Demonstra-o a seguinte lista, cuidadosamente confeiçoada
sob informes do Diario do Governo:
Para o elevado logar de inspector dos impostos no
Porto foi transferido o sr. dr. José Paulo Menano, de
24 annos de edade, casado com uma cunhada do sr.
Hintze.
Ha tempos, foi colocado no logar de director do hospital
das Caldas da Rainha o sr. dr. Augusto Cymbron
Borges de Sousa, cunhado do sr. Hintze.
O sr. Manuel Hintze Ribeiro, irmão do sr. Hintze, foi
graduado em inspector superior da alfandega de Ponta
Delgada, passando de 1.170$000 a 1.700$000, mais do
que ganha um director geral.
O sr. Antonio Moreira da Camara Coutinho, sobrinho
do sr. Hintze, foi nomeado director da alfandega do Porto,
com quatro contos de reis anuaes, o ordenado d'um ministro,
quasi.
O sr. Manuel Rebello Borges, 2.º oficial da alfandega
de S. Miguel, foi nomeado director da mesma casa fiscal,
com um conto seiscentos e vinte mil reis.
É uma fortuna para o paiz que a familia do sr. Hintze
não seja mais numerosa.
Aliaz, não haveria contribuintes cuja pelle chegasse
para pagar tantos encargos...
[16]
De
passagem apontemos a figura de Norton de
Matos, o maior ministro da guerra contemporaneo, organizador
capaz d'um trabalho de ferro, que só os technicos
serão capazes de avaliar em toda a sua extensão.
[17]
Todas
as palavras entre comas são dos
Documentos
politicos.
[18]
Introduziu
a ordem no Paço.—Até o
preço do
peixe quer saber!—dizia-se cá fóra com
indignação. Quando
do 5 d'outubro todos os creados diziam bem do rei—todos
diziam mal da rainha. O pequeno quadro que segue
explica talvez muita coisa:
«Havia familias das proximidades do Paço que se
alumiavam
só com as vellas do palacio real, compradas por vil
preço. As contrabandistas andavam pelas casas dos seus
freguezes oferecendo roupas, desde os vestidos da rainha
e dos fatos do rei até ás roupas brancas, meias
de seda e
sapatos de setim com a corôa real, para não
oferecer duvidas
acerca da procedencia. D'estes factos tivemos conhecimento
de sciencia certa, por vivermos n'esse tempo perto
do Paço e nos terem vindo oferecer por mais de uma vez
os espojos do saque, que não aceitamos por varias
razões,
sendo uma d'ellas a falta de vocação para
receptadores de
roubos. A vocação nasce com a pessoa. Da ucharia
do
Paço banqueteavam-se os parentes dos empregados e
cremos que até os amigos.
A audacia do latrocinio chegou ao extremo. Indo um dia o rei
D. Luiz caçar á Tapada e
tendo morto tres coelhos,
ao chegar ao Paço lembrou-se de os mostrar á
rainha.
Mandou-os buscar, mas apenas lhe apresentaram um,
porque os dois restantes tinham desaparecido durante o
breve precurso da Tapada até á Ajuda.
Nos proprios charutos do rei todos os dias dava um
ataque epileptico que os obrigava a saltar das caixas sem
que se soubesse para onde tinham desertado. Chegou o
descaramento a ponto de não deixarem um charuto para o
rei fumar».
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Identificou-se
a não existência nos dois originais de uma figura
que se encontraria entre as páginas
206
e
207. Presume-se que por
não se encontrar em ambas as obras da mesma
edição, que se trata de um erro de
impressão que afectou esta edição em
particular.
Foram efectuadas correcções na
numeração das páginas no
indíce de forma a coincidir com a
localização correcta no livro.
As figuras no original encontram-se entre páginas.