OBRAS DO AUTOR
Memorias Posthumas de Braz Cubas
Quincas Borba
Histórias sem data
Papéis avulsos
Historias da meia noite
Yayá Garcia, romance
Helena, romance
Resurreição, romance
A mão e a luva, romance
Contos Fluminenses
Americanas, poesias
Phalenas, poesias
Chrysalidas, poesias
Tu só, tu, puro amor, comédia
Rubião fitava a enseada,—eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares mettidos no cordão do chambre, á janella de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que elle admirava aquelle pedaço de agua quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, ha um anno? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinellas (umas chinellas de Tunis, que lhe deu recente amigo, Christiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o ceu; e tudo, desde as chinellas até o ceu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.
—Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa elle. Se a mana Piedade tem casado com o Quincas Borba, apenas me daria uma esperança collateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo commigo; de modo que o que parecia uma desgraça...
Que abysmo que ha entre o espirito e o coração! O espirito do ex-professor, vexado daquelle pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assumpto, uma canoa que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o canoeiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregalados? Elle, coração, vae dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha... —Bonita canoa!—Antes assim!--Como obedece bem aos remos do homem!—O certo é que elles estão no ceu!
Um creado trouxe o café. Rubião pegou na chicara, e, em quanto lhe deitava assucar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. Prata, ouro, eram os metaes que amava de coração; não gostava de bronze, mas o amigo Palha disse-lhe que era materia de preço, e assim se explica este par de figuras que aqui está na sala, um Mephistopheles e um Fausto. Tivesse, porém, de escolher, escolheria a bandeja,—primor de argentaria, execução fina e acabada. O creado esperava tezo e serio. Era hespanhol; e não foi sem resistencia que Rubião o acceitou das mãos de Christiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus creoulos de Minas, e não queria linguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter creados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pagem, que elle queria pôr na sala, como um pedaço da provincia, nem o pôde deixar na cosinha, onde reinava um francez, Jean; foi degradado a outros serviços.
—Quincas Borba está muito impaciente? perguntou Rubião bebendo o ultimo golo de café, e lançando um ultimo olhar á bandeja.
—Me parece que si.
—Lá vou soltal-o.
Não foi; deixou-se ficar, algum tempo, a olhar para os moveis. Vendo as pequenas gravuras inglezas, que pendiam da parede por cima dos dous bronzes, Rubião pensou na bella Sophia, mulher do Palha, deu alguns passos, e foi sentar-se no pouf, ao centro da sala, olhando para longe...
—Foi ella que me recommendou aquelles dous quadrinhos, quando andavamos os tres, a ver cousas para comprar. Estava tão bonita! Mas o que eu mais gosto della são os hombros, que vi no baile do coronel. Que hombros! Parecem de cera; tão lisos, tão brancos! Os braços tambem; oh! os braços! Que bem feitos!
Rubião suspirou, cruzou as pernas, e bateu com as borlas do chambre sobre os joelhos. Sentia que não era inteiramente feliz; mas sentia tambem que não estava longe a felicidade completa. Recompunha de cabeça uns modos, uns olhos, uns requebros sem explicação, a não ser esta, que ella o amava, e que o amava muito. Não era velho; ia fazer quarenta e um annos; e, rigorosamente, parecia menos. Esta observação foi acompanhada de um gesto; passou a mão pela cara, barbeada todos os dias, cousa que não fazia d'antes, por economia e desnecessidade. Um simples professor! Usava suissas, (mais tarde deixou crescer a barba toda),—tão macias, que dava gosto passar os dedos por ellas... E recordava assim o primeiro encontro, na estação de Vassouras, onde Sophia e o marido entraram no trem da estrada de de ferro, no mesmo carro em que elle descia de Minas; foi alli que achou aquelle par de olhos viçosos, que pareciam repetir a exhortação do propheta: Todos vós que tendes sede, vinde ás aguas. Não trazia ideias adequadas ao convite, é verdade; vinha com a herança na cabeça, o testamento, o inventario, cousas que é preciso explicar primeiro, afim de entender o presente e o futuro. Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bella Sophia. Vem commigo, leitor; vamos vel-o, mezes antes, á cabeceira do Quincas Borba.
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memorias posthumas de Braz Cubas, é aquelle mesmo naufrago da existencia, que alli apparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventor de uma philosophia. Aqui o tens agora em Barbacena. Logo que chegou, enamorou-se de uma viuva, senhora de condição mediana e parcos meios de vida; mas, tão acanhada que os suspiros do namorado ficavam sem echo. Chamava-se Maria da Piedade. Um irmão della, que é o presente Rubião, fez todo o possivel para casal-os. Piedade resistiu, um pleuriz a levou.
Foi esse trechosinho de romance que ligou os dous homens. Saberia Rubião que o nosso Quincas Borba trazia aquelle grãosinho de sandice, que um medico suppoz achar-lhe? Seguramente, não; tinha-o por homem esquisito. É, todavia, certo que o grãosinho não se despegou do cerebro de Quincas Borba,—nem antes, nem depois da molestia que lentamente o comeu. Quincas Borba tivera alli alguns parentes, mortos já agora em 1867; o ultimo foi o tio que o deixou por herdeiro de seus bens. Rubião ficou sendo o unico amigo do philosopho. Regia então uma escola de meninos, que fechou para tratar do enfermo. Antes de professor, mettera hombros a algumas emprezas, que foram a pique.
Durou o cargo de enfermeiro mais de cinco mezes, perto de seis. Era real o desvello de Rubião, paciente, risonho, multiplo, ouvindo as ordens do medico, dando os remedios ás horas marcadas, saindo a passeio com o doente, sem esquecer nada, nem o serviço da casa, nem a leitura dos jornaes, logo que chegava a mala da Côrte ou a de Ouro-Preto.
—Tu és bom, Rubião, suspirava Quincas Borba.
—Grande façanha! Como se você fosse máo!
A opinião ostensiva do medico era que a doença do Quincas Borba iria saindo devagar. Um dia, o nosso Rubião, acompanhando o medico até á porta da rua, perguntou-lhe qual era o verdadeiro estado do amigo. Ouviu que estava perdido, completamente perdido; mas, que o fosse animando. Para que tornar-lhe a morte mais afflictiva pela certeza...?
—La isso, não, atalhou Rubião; para elle, morrer é negocio facil. Nunca leu um livro que elle escreveu, ha annos, não sei que negocio de philosophia...
—Não; mas philosophia é uma cousa, e morrer de verdade é outra; adeus.
Rubião achou um rival no coração do Quincas Borba,—um cão, um bonito cão, meio tamanho, pello côr de chumbo, malhado de preto. Quincas Borba levava-o para toda parte, dormiam no mesmo quarto. De manhã, era o cão que acordara o senhor, trepando ao leito, onde trocavam as primeiras saudações. Uma das extravagancias do dono foi dar-lhe o seu proprio nome; mas, explicava-o por dous motivos, um doutrinario, outro particular.
—Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o principio da vida e reside em toda a parte, existe tambem no cão, e este póde assim receber um nome de gente, seja christão ou mussulmano...
—Bem, mas porque não lhe deu antes o nome de Bernardo, disse Rubião com o pensamento em um rival politico da localidade.
—Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo, sobrevivirei no nome do meu bom cachorro. Ris-te, não?
Rubião fez um gesto negativo.
—Pois devias rir, meu querido. Porque a immortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Vivirei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e...
O cão, ouvindo o nome, correu á cama. Quincas Borba, commovido, olhou para Quincas Borba:
—Meu pobre amigo! meu bom amigo! meu unico amigo!
—Unico!
—Desculpa-me, tu tambem o és, bem sei, e agradeço-te muito; mas a um doente perdoa-se tudo. Talvez esteja começando o meu delirio. Deixa ver o espelho.
Rubião deu-lhe o espelho. O doente contemplou por alguns segundos a cara magra, o olhar febril, com que descobria os suburbios da morte, para onde caminhava a passo lento, mas seguro. Depois, com um sorriso pallido e ironico:
—Tudo o que está cá fóra corresponde ao que sinto cá dentro; vou morrer, meu caro Rubião... Não gesticules, vou morrer. E que é morrer, para ficares assim espantado?
—Sei, sei que voce tem umas philosophias... Mas fallemos do jantar; que hade ser hoje?
Quincas Borba sentou-se na cama, deixando pender as pernas, cuja estraordinaria magreza se adivinhava por fóra das calças.
—Que é! que quer? acudiu Rubião.
—Nada, respondeu o enfermo sorrindo. Umas philosophias! Com que desdem me dizes isso! Repete, anda, quero ouvir outra vez. Umas philosophias!
—Mas não é por desdem... Pois eu tenho capacidade para desdenhar de philosophias? Digo só que você póde crêr que a morte não vale nada, porque terá razões, principios...
Quincas Borba procurou com os pés as chinellas; Rubião chegou-lh'as; elle calçou-as e poz-se a andar para esticar as pernas. Affagou o cão e accendeu um cigarro. Rubião quiz que se agazalhasse, e trouxe-lhe um fraque, um collete, um chambre, um capote, á escolha. Quincas Borba recusou-os com um gesto. Tinha outro ar agora; os olhos mettidos para dentro viam pensar o cerebro. Depois de muitos passos, parou, por alguns segundos, deante de Rubião.
—Para entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha avó.
—Como foi?
—Senta-te.
Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possivel, em quanto Quincas Borba continuava a andar, recolhendo as ideias.
—Foi no Rio de Janeiro, começou elle, defronte da Capella Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter á cadeirinha, que a esperava no largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó sahia do adro para ir á cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta desparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó cahiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da rua Direita, veiu um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o hombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.
—Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.
—Não.
—Não?
—Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçára cedo e pouco. Dalli pôde fazer signal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstaculo e derribou-o; esse obstaculo era minha avó. O primeiro acto dessa serie de actos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o facto era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, differia o caso no sentido de dar materia a muitos necrologios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão illustre ou obscuro; mas Humanitas (e isto importa, antes de tudo) Humanitas precisa comer.
Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de entender; mas não dava pela necessidade a que o amigo attribuia a morte da avó. Seguramente o dono da sege, por muito tarde que chegasse a casa, não morria de fome, ao passo que a boa senhora morreu de verdade, e para sempre. Explicou-lhe, como pode, essas duvidas, e acabou perguntando-lhe:
—E que Humanitas é esse?
—Humanitas é o principio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de entender isto, meu caro Rubião; fallemos de outra cousa.
—Diga sempre.
Quincas Borba, que não deixára de andar, parou alguns instantes.
—Queres ser meu discipulo?
—Quero.
—Bem, irás entendendo aos poucos a minha philosophia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah! nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não ha vinho que embriague como a verdade. Crê-me, o Humanitismo é o remate das cousas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é elle, é Humanitas...
—Mas que Humanitas é esse?
—Humanitas é o principio. Ha nas cousas todas certa substancia recondita e identica, um principio unico, universal, eterno, commum, indivisivel e indestructivel,—-ou, para usar a linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas cousas anda,
Que mora no visibil e invisibil.
Pois essa substancia ou verdade, esse principio indestructivel é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vás entendendo?
—Pouco; mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...
—Não ha morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas fórmas, póde determinar a suppressão de uma dellas; mas, rigorosamente, não ha morte, ha vida, porque a suppressão de uma é a condição da sobrevivencia da outra, e a destruição não attinge o principio universal e commum. Dahi o caracter conservador e benefico da guerra. Suppõe tu um campo de batatas e duas tribus famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribus, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir á outra vertente, onde ha batatas em abundancia; mas, se as duas tribus dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se sufficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribus extermina a outra e recolhe os despojos. Dahi a alegria da victoria, os hymnos, acclamações, recompensas publicas e todos os demais effeitos das acções bellicas. Se a guerra não fosse isso, taes demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só commemora e ama o que lhe é aprazivel ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canonisa uma acção que virtualmente a destroe. Ao vencido, odio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
—Mas a opinião do exterminado?
—Não ha exterminado. Desapparece o phenomeno; a substancia é a mesma. Nunca viste ferver agua? Hasde lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de continuo, e tudo fica na mesma agua. Os individuos são essas bolhas transitorias.
—Bem; a opinião da bolha...
—Bolha não tem opinião. Apparentemente, ha nada mais contristador que uma dessas terriveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse supposto mal é um beneficio, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistencia, como porque dá logar á observação, á descoberta da droga curativa. A hygiene é filha de podridões seculares; devemol-a a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na agua. Vês este livro? É D. Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bella, bellamente eterna, como este mundo divino e supra-divino.
Quincas Borba calou-se de exhausto, e sentou-se ofegante. Rubião correu a elle, levando-lhe agua e pedindo que se deitasse para descançar; mas o enfermo, após alguns minutos, respondeu que não era nada. Perdera o costume de fazer discursos, é o que era. E, afastando com o gesto a pessoa de Rubião, afim de poder encaral-a sem esforço, emprehendeu uma brilhante descripção do mundo e suas excellencias. Misturou ideias proprias e alheias, imagens de toda sorte, idyllicas, epicas, a tal ponto que Rubião perguntava a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dalli a dias, podia tratar tão galantemente aquelles negocios.
—Ande repousar um pouco.
Quincas Borba reflectiu.
—Não, vou dar um passeio.
—Agora não; você está muito cançado.
—Qual! Passou.
Ergueu-se, e poz paternalmente as mãos sobre os hombros de Rubião.
—Você é meu amigo?
—Que pergunta!
—Diga.
—Tanto ou mais do que este animal, respondeu Rubião, em um arroubo de ternura.
Quincas Borba apertou-lhe as mãos.
—Bem.
No dia seguinte, Quincas Borba accordou com a resolução de ir ao Rio de Janeiro, voltaria no fim de um mez, tinha certos negocios... Rubião ficou espantado. E a molestia, e o medico? O doente respondeu que o medico era um charlatão, e que a molestia precisava espairecer, tal qual a saude. Molestia e saude eram dous caroços do mesmo fructo, dous estados de Humanitas.
—Vou a alguns negocios pessoaes, concluiu o enfermo, e levo, além disso, um plano tão sublime, que nem mesmo você poderá entendel-o. Desculpe-me esta franqueza; mas eu prefiro ser franco com você a sel-o com qualquer outra pessoa.
Rubião fiou do tempo que este projecto lhe passasse, como tantos outros; mas enganou-se. Accrescia que, em verdade, o doente parecia estar melhorando; não ia á cama, saía á rua, escrevia. No fim de uma semana, mandou chamar o tabellião.
—Tabellião? repetiu o amigo.
—Sim, quero registrar o meu testamento. Ou vamos la os dous...
Foram os tres, porque o cão não deixava partir o amo e senhor sem acompanhal-o. Quincas Borba registrou o testamento, com as formalidades do estylo, e tornou tanquillo para casa. Rubião sentia bater-lhe o coração violentamente.
—Está claro que eu não o deixo ir só para a Côrte, disse elle ao amigo.
—Não, não é preciso. Demais, Quincas Borba não vae, e não o confio a outra pessoa, senão a você. Deixo a casa como está. Daqui a um mez estou de volta. Vou amanhã; não quero que elle presinta a minha sahida. Cuide delle, Rubião.
—Cuido, sim.
—Jura?
—Por esta luz que me allumia. Então sou alguma creança?
—Dê-lhe leite ás horas apropriadas, as comidas todas do costume, e os banhos; e quando sahir a passeio com elle, olhe que não vá fugir. Não, o melhor é que não saia .. não saia...
—Vá socegado.
Quincas Borba chorava pelo outro Quincas Borba. Não quiz vel-o á sahida. Chorava deveras, lagrimas de loucura ou de affeição, quaesquer que fossem, elle as ia deixando pela boa terra mineira, como o derradeiro suor de uma alma obscura, prestes a cahir no abysmo.
Horas depois, teve Rubião um pensamento horrivel. Podiam crer que elle proprio incitara o amigo á viagem, para o fim de o matar mais depressa, e entrar na posse do legado, se é que realmente estava incluso no testamento. Sentiu remorsos. Porque não empregou todas as forças, para contel-o? Viu o cadaver do Quincas Borba, pallido, hediondo, fitando nelle um olhar vingativo; resolveu, se acaso o fatal desfecho se désse em viagem, abrir mão do legado.
Pela sua parte o cão vivia farejando, ganindo, querendo fugir; não podia dormir quieto, levantava-se muitas vezes, á noite, percorria a casa, e tornava ao seu canto. De manhã, Rubião chamava-o á cama, e o cão acudia alegre; imaginava que era o proprio dono; via depois que não era, mas aceitava as caricias, e fazia-lhe outras, como se Rubião tivesse de levar as suas ao amigo, ou trazel-o para alli. Demais, havia-se-lhe affeiçoado tambem, e para elle era a ponte que o ligava á existencia anterior. Não comeu durante os primeiros dias. Supportando menos a sede, Rubião pôde alcançar que bebesse leite; foi a unica alimentação por algum tempo. Mais tarde, passava as horas, calado, triste, enrolado em si mesmo, ou então com o corpo estendido e a cabeça entre as mãos.
Quando o medico voltou, ficou espantado da temeridade do doente; deviam tel-o impedido de sair; a morte era certa.
—Certa?
—Mais tarde ou mais cedo. Levou o tal cachorro?
—Não, senhor, está commigo; pediu que cuidasse delle, e chorou, olhe que chorou que foi um nunca acabar. Verdade é, disse ainda Rubião para defender o enfermo, verdade é que o cachorro merece a estima do dono: parece gente.
O medico tirou a largo chapéo de palha para concertar a fita; depois sorriu. Gente? Com que então parecia gente? Rubião insistia, depois explicava; não era gente como a outra gente, mas tinha cousas de sentimento, e até de juizo. Olhe, ia contar-lhe uma...
—Não, homem, não, logo, logo, vou a um doente de erysipella... Se vierem cartas delle, e não forem reservadas, desejo vel-as, ouviu? E lembranças ao cachorro, concluiu sahindo.
Algumas pessoas começaram a mofar do Rubião e da singular incumbencia de guardar um cão, em vez de ser o cão que o guardasse a elle. Vinha a risota, choviam as alcunhas. Em que havia de dar o professor! sentinella de cachorro! Rubião tinha medo da opinião publica. Com effeito, parecia-lhe ridiculo; fugia aos olhos extranhos, o mais que lhe era possivel; em casa, olhava com fastio para o animal; dava-se ao diabo, arrenegava da vida. Não tivesse a esperança de um legado, pequeno que fosse. Era impossivel que lhe não deixasse uma lembrança.
Sete semanas depois, chegou a Barbacena esta carta, datada do Rio de Janeiro, toda do punho do Quincas Borba:
«Meu caro senhor e amigo,
«Você ha de ter estranhado o meu silencio. Não lhe tenho escripto por certos motivos particulares, etc. Voltarei breve; mas quero communicar-lhe desde já um negocio reservado, reservadissimo.
«Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que ha de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permittia-me dizer palavra mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a ultima. Ignaro!
«Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto ante-hontem; ouça e cale-se. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passámos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtámos, elle, em pequeno, umas peras de Carthago, eu, já rapaz, um relogio do meu amigo Braz Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Emfim, elle pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no cap. XVI, livro VII das Confissões, com a differença que para elle, o mal é um desvio da vontade, illusão propria de um seculo atrazado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira affirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia bona, e adeus.
«Adeus, ignaro. Não contes a ninguém o que te acabo de confiar, se não queres perder as orelhas. Cala-te, guarda, e agradece a boa fortuna de ter por amigo um grande homem, como eu, embora não me comprehendas. Has de comprehender-me. Logo que tornar a Barbacena, dar-te-hei em termos explicados, simples, adequados ao entendimento de um asno, a verdadeira noção do grande homem. Adeus; lembranças ao meu pobre Quincas Borba. Não esqueças de lhe dar leite; leite e banhos; adeus, adeus... Teu do coração
JOAQUIM BORBA DOS SANTOS.»
Rubião mal sustinha o papel nos dedos. Passados alguns segundos, advertiu que podia ser um gracejo do amigo, e releu a carta; mas a segunda leitura confirmou a primeira impressão. Não havia duvida; estava doudo. Pobre Quincas Borba! Assim, as exquisitices, a frequente alteração de humor, os impetos sem motivo, as ternuras sem proporção, não eram mais que prenuncios da ruina total do cerebro. Morria antes de morrer. Tão bom! Tão alegre! Tinha impertinencias, é verdade; mas a doença explicava-as. Rubião enxugou os olhos, humidos de commoção. Depois, veiu a lembrança do possivel legado, e ainda mais o affligiu, por lhe mostrar que bom amigo ia perder.
Quiz ainda uma vez ler a carta, agora devagar, analysando as palavras, desconjuntando-as, para ver bem o sentido e descobrir se realmente era uma troça de philosopho. Aquelle modo de o descompor brincando, era conhecido; mas, o resto confirmava a suspeita do desastre. Já quasi no fim, parou enfiado. Dar-se-hia que, provada a alienação mental do testador, nullo ficaria o testamento, e perdidas as deixas? Rubião teve uma vertigem. Estava ainda com a carta aberta nas mãos, quando viu apparecer o doutor, que vinha por noticias do enfermo; o agente do correio dissera-lhe haver chegado uma carta. Era aquella?
—É esta, mas...
—Tem alguma communicação reservada...?
—Justamente, traz uma communicação reservada, reservadissima; negocios pessoaes. Dá licença?
Dizendo isto, Rubião metteu a carta no bolso; o medico sahiu; elle respirou. Escapára ao perigo de publicar tão grave documento, por onde se podia provar o estado mental de Quincas Borba. Minutos depois, arrependeu-se, devia ter entregado a carta, sentiu remorsos, pensou em mandal-a á casa do medico. Chamou por um escravo; quando este accudiu, já elle mudára outra vez de idéa; considerou que era imprudencia; o doente viria em breve,—d'alli a dias,—perguntaria pela carta, arguil-o-hia de indiscreto, de delator... Remorsos faceis, de pouca dura.
—Não quero nada, disse ao escravo. E outra vez pensou no legado. Calculou o algarismo. Menos de dez contos, não. Compraria um pedaço de terra, uma casa, cultivaria isto ou aquillo, ou lavraria ouro. O peor é se era menos, cinco contos... Cinco? Era pouco; mas, emfim, talvez não passasse disso. Cinco que fossem, era um arranjo menor, e antes menor que nada. Cinco contos... Peor seria se o testamento ficasse nullo. Vá, cinco contos!
No começo da semana seguinte, recebendo os jornaes da corte (ainda assignaturas do Quincas Borba) leu Rubião esta noticia em um d'elles:
«Falleceu hontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo supportado a molestia com singular pbilosophia. Era homem de muito saber, e cançava-se em batalhar contra esse pessimismo amarello e enfesado que ainda nos ha de chegar aqui um dia; é a molestia do seculo. A ultima palavra delle foi que a dor era uma illusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena.»
—Acabou de soffrer! suspirou Rubião.
Em seguida, attentando na noticia, viu que fallava de um homem que tinha apreço, consideração, a quem se attribuia uma peleja philosophica. Nenhuma allusão a demencia. Ao contrario, o final dizia que elle delirára a ultima hora, effeito da molestia. Ainda bem! Rubião leu novamente a carta, e a hypothese da troça pareceu outra vez mais verosimil. Concordou que elle tinha graça; com certeza, quiz debical-o; foi a Santo Agostinho, como iria a Santo Ambrosio ou a Santo Hilario, e escreveu uma carta enigmatica, para confundil-o, até voltar e rir-se do logro. Pobre amigo! Estava são,—são e morto. Sim, já não padecia nada. Vendo o cachorro, suspirou:
—Coitado do Quincas Borba! Se pudesse saber que o senhor morreu ...
Depois, comsigo:
—Agora, que já acabou a obrigação, vou dal-o á comadre Angelica.
A noticia correra a cidade, o vigario, o pharmaceutico da casa, o medico, todos mandaram saber se era verdadeira. O agente do correio, que a lera nas folhas, trouxe em mão propria ao Rubião, uma carta que viera na mala para elle; podia ser do finado, comquanto a lettra do subscripto fosse outra.
—Então afinal o homem espichou a canella? disse elle, emquanto Rubião abria a carta, corria á assignatura e lia: Braz Cubas. Era um simples bilhete:
«O meu pobre amigo Quincas Borba falleceu hontem em minha casa, onde appareceu ha tempos esfrangalhado e sordido: fructos da doença. Antes de morrer pediu-me que lhe escrevesse, que lhe désse particularmente esta noticia, e muitos agradecimentos; que o resto se faria, segundo as praxes do foro.»
Os agradecimentos fizeram empallidecer o professor; mas as praxes do foro restituiram-lhe o sangue. Rubião fechou a carta sem dizer nada; o agente fallou de uma cousa e outra, depois sahiu. Rubião ordenou a um escravo que levasse o cachorro de presente á comadre Angelica, dizendo-lhe que, como gostava de bichos, lá ia mais um; que o tratasse bem, porque elle estava acostumado a isso; finalmente que o nome do cachorro era o mesmo que o do dono, agora morto, Quincas Borba.
Quando o testamento foi aberto, Rubião quasi cahiu para traz. Adivinhaes porque. Era nomeado herdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificados os bens, casas na Côrte, uma em Barbacena, escravos, apolices, acções do Banco do Brazil e de outras instituições, joias, dinheiro amoedado, livros,—tudo finalmente passava ás mãos do Rubião, sem desvios, sem deixas a nenhuma pessoa, nem esmolas, nem dividas. Uma só condição havia no testamento, a de guardar o herdeiro comsigo o seu pobre cachorro Quincas Borba, nome que lhe deu por motivo da grande affeição que lhe tinha. Exigia do dito Rubião que o tratasse como se fosse a elle proprio testador, nada poupando em seu beneficio, resguardando-o de molestias, de fugas, de roubo ou de morte que lhe quizessem dar por maldade; cuidar finalmente como se cão não fosse, mas pessoa humana. Item, impunha-lhe a condição, quando morresse o cachorro, de lhe dar sepultura decente em terreno proprio, que cobriria de flores e plantas cheirosas; e mais desenterraria os ossos do dito cachorro, quando fosse tempo idoneo, e os recolheria a uma urna de madeira preciosa para deposital-os no lugar mais honrado da casa.
Tal era a clausula. Rubião achou-a natural, posto que só tivesse pensamento para cuidar na herança. Espreitára uma deixa, e sae-lhe do testamento a massa toda dos bens. Não podia acabar de crer; foi preciso que lhe apertassem muito as mãos, com força,—a força dos parabens,—para não suppor que era mentira.
—Sim, senhor, lavre um tento, dizia-lhe o dono da pharmacia que ministrara os remedios ao Quincas Borba.
Herdeiro já era muito; mas universal... Esta palavra inchava as bochechas á herança. Herdeiro de tudo, nem uma colherinha menos. E quanto seria tudo? ia elle pensando. Casas, apolices, acções, escravos, roupa, louça, alguns quadros, que elle teria na côrte, porque era homem de muito gosto, fallava de cousas de arte com grande saber. E livros? devia ter muitos livros, citava muitos delles. Mas emquanto andaria tudo? Cem contos? Talvez duzentos. Era possível; trezentos mesmo não havia que admirar. Trezentos contos! trezentos! E o Rubião tinha impetos de dansar na rua. Depois aquietava-se; duzentos que fossem, ou cem, era um sonho que Deus Nosso Senhor lhe dava, mas um sonho comprido, para não acabar mais.
Aqui a ideia do cachorro pôde tomar pé no torvelinho de ideias que iam pela cabeça do nosso homem. Rubião achava que a clausula era natural, mas desnecessaria, porque elle e o cão eram dous amigos, e nada mais certo que ficarem juntos, para lembrar o terceiro amigo, o extincto, o autor da felicidade de ambos. Havia, sem duvida, umas particularidades na clausula, uma historia de urna, e não sabia que mais; mas tudo se havia de cumprir, ainda que o céo viesse abaixo... Não, com a ajuda de Deus, emendava elle. Bom cachorro! excellente cachorro!
Rubião não esquecia que muitas vezes tentára enriquecer com emprezas que morreram em flor. Suppoz-se n'aquelle tempo um desgraçado, um caipora, quando a verdade era que «mais vale quem Deus ajuda, do que quem cedo madruga.» Tanto não era impossivel enriquecer, que estava rico.
—Impossivel, o que? exclamou em voz alta. Impossivel é a Deus peccar. Deus não falta a quem promette.
Ia assim, descendo e subindo as ruas da cidade, sem guiar para casa, sem plano, com o sangue aos pulos, e as ideias baralhadas. De repente, surgiu-lhe este grave problema:—se iria viver no Rio de Janeiro, ou se ficaria em Barbacena. Sentia cocegas de ficar, de brilhar onde escurecia, de quebrar a castanha na bocca aos que antes faziam pouco caso delle, e principalmente aos que se riram da amizade do Quincas Borba. Mas logo depois, vinha a imagem do Rio de Janeiro, que elle conhecia, com os seus feitiços, movimento, theatros em toda a parte, moças bonitas, «vestidas á franceza.» Resolveu que era melhor, podia subir muitas e muitas vezes á cidade natal.
—Quincas Borba! Quincas Borba! eh! Quincas Borba! bradou entrando em casa.
Nada de cachorro. Só então é que elle se lembrou de havel-o mandado dar á comadre Angelica. Correu á casa da comadre, que era distante. De caminho accudiram-lhe todas as ideias feias, algumas extraordinarias. Uma ideia feia, é que o cão tivesse fugido. Outra extraordinaria é que algum inimigo, sabedor da clausula e do presente, fosse ter com a comadre, roubasse o cachorro, e o escondesse ou matasse. Neste caso, a herança... Passou-lhe uma nuvem pelos olhos; depois começou a vêr mais claro.
—Não conheço negocios de justiça, pensava elle, mas parece que não tenho nada com isso. A clausula suppõe o cão vivo ou em casa; mas se elle fugir ou morrer, não se ha de inventar um cão; logo, a intenção principal... Mas são capazes de fazer chicana os meus inimigos. Não cumprida a clausula...
Aqui a testa e as costas das mãos do nosso amigo ficaram em agua. Outra nuvem pelos olhos. E o coração batia-lhe rapido, rapido. A clausula começava a parecer-lhe extravagante. Rubião pegava-se com os santos, promettia missas, dez missas... Mas lá estava a casa da comadre. Rubião picou o passo; viu alguém; era ella? era, era ella, encostada á porta e rindo.
—Que figura que o senhor vem fazendo, meu compadre? Meio tonto, jogando com os braços.
—Sinhá comadre, o cachorro? perguntou Rubião com indifferença, mas pallido.
—Entre, e abanque-se, respondeu ella. Que cachorro?
—Que cachorro? tornou Rubião cada vez mais pallido. O que lhe mandei. Pois não se lembra que lhe mandei um cachorro para ficar aqui alguns dias, descançando, a ver se... em summa, um animal de muita estimação. Não é meu. Veiu para... Mas não se lembra?
—Ah! não me falle nesse bicho! respondeu ella precipitando as palavras.
Era pequena, tremia por qualquer cousa, e quando se apaixonava, engrossavam-lhe as veias do pescoço. Repetiu que lhe não fallasse do bicho.
—Mas que lhe fez elle, sinhá comadre?
—Que me fez? Que é que me faria o pobre animal? Não come nada, não bebe, chora que parece gente, e anda só com o olho para fóra, a ver se foge.
Rubião respirou. Ella continuou a dizer os enfadamentos do cachorro; elle ancioso, queria vel-o.
—Está lá no fundo, no cercado grande; está sósinho para que os outros não bulam com elle. Mas o compadre vem buscal-o? Não foi isso o que disseram. Pareceu-me ouvir que era para mim, que era dado.
—Daria cinco ou seis, se pudesse, respondeu Rubião. Este não posso; sou apenas depositario. Mas deixe estar, prometto-lhe um filho. Creia que o recado veiu torto.
Rubião ia andando; a comadre, em vez de o guiar, acompanhava-o. Lá estava o cão, dentro do cercado, deitado a distancia de um alguidar de comida. Cães, gatos, saltavam de todos os lados, cá fora; a um lado havia um gallinheiro, mais longe porcos; mais longe ainda, uma vacca deitada, somnolenta, com duas gallinhas ao pé, que lhe picavam a barriga, arrancando carrapato.
—Olhe o meu pavão! dizia a commadre.
Mas Rubião tinha os olhos no Quincas Borba, que farejava impaciente, e que se atirou para elle, logo que um moleque abriu a porta do cercado. Foi uma scena de delirio; o cachorro pagava as caricias do Rubião, latindo, pulando, beijando-lhe as mãos.
—Meu Deus! que amizade!
—Não imagina, sinhá comadre. Adeus, prometto-lhe um filho.
Rubião e o cachorro, entrando em casa, sentiram, ouviram a pessoa e as vozes do finado amigo. Em quanto o cachorro farejava por toda a parte, Rubião foi sentar-se na cadeira onde estivera, quando Quincas Borba referiu a morte da avó com explicações scientificas. A memoria delle recompoz, ainda que de embrulho e esgarçadamente, os argumentos do philosopho. Pela primeira vez, attentou bem na allegoria das tribus famintas e comprehendeu a conclusão: «Ao vencedor, as batatas!» Ouviu distinctamente a voz roufenha do finado expor a situação das tribus, a luta e a razão da luta, o exterminio de uma e a victoria da outra, e murmurou baixinho:
—Ao vencedor, as batatas!
Tão simples! tão claro! Olhou para as calças de brim surrado e o rodaque cirzido, e notou que até ha pouco fora, por assim dizer, um exterminado, uma bolha extincta; mas que ora não, era um vencedor. Não havia duvida; as batatas fizeram-se para a tribu que elimina a outra, afim de transpor a montanha e ir ás batatas do outro lado. Justamente o seu caso. Ia descer de Barbacena para arrancar e comer as batatas da capital. Cumpria-lhe ser duro e implacavel, era poderoso e forte. E levantando-se de golpe, alvoroçado, ergueu os braços exclamando:
—Ao vencedor, as batatas!
Gostava da formula, achava-a engenhosa, compendiosa e eloquente, além de verdadeira e profunda. Ideou as batatas era suas varias fórmas, classificou-as pelo sabor, pelo aspecto, pelo poder nutritivo fartou-se antemão do banquete da vida. Era tempo de acabar com as raizes pobres e seccas, que apenas enganavam o estomago, triste comida de longos annos; agora o farto, o solido, o perpetuo, comer até morrer, e morrer em colchas de seda, que é melhor que trapos. E voltava á affirmação de ser duro e implacavel, e á formula da allegoria. Chegou a compor de cabeça um sinete para seu uso, com este lemma: AO VENCEDOR AS BATATAS.
Esqueceu o projecto do sinete; mas a formula viveu no espirito de Rubião, por alguns dias:—Ao vencedor as batatas Não a comprehenderia antes do testamento; ao contrario, vimos que a achou obscura e sem explicação. Tão certo é que a paizagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.
Não esqueça dizer que Rubião tomou a si mandar dizer uma missa por alma do finado, embora soubesse ou presentisse que elle não era catholico. Quincas Borba não dizia pulhices a respeito de padres, nem desconceituava doutrinas catholicas; mas, não fallava nem da egreja nem dos seus servos. Por outro lado, a veneração de Humanitas fazia desconfiar ao herdeiro que essa era a religião do testador. Não obstante, mandou dizer a missa, considerando que não era acto da vontade do morto, mas prece de vivos; considerou mais que seria um escandalo na cidade, se elle, nomeado herdeiro pelo defunto, deixasse de dar ao seu protector os suffragios que não se negam aos mais miseraveis e avaros deste mundo.
Se algumas pessoas deixaram de comparecer, para não assistir á gloria do Rubião, muitas outras foram,—e não da ralé,—as quaes viram a compuncção verdadeira do antigo mestre de meninos. Teve lagrimas; o vigario, quando elle lhe foi fallar á sacristia, viu-lhe ainda os olhos vermelhos. Não seriam saudades; mas a gratidão tambem chora.
Regulados os preliminares para a liquidação da herança, Rubião tratou de vir ao Rio de Janeiro, onde se fixaria, logo que tudo estivesse acabado. Havia que fazer em ambas as cidades; mas, as cousas promettiam correr depressa.
Na estação de Vassouras, entraram no trem Sophia e o marido, Christiano de Almeida e Palha. Este era um rapagão de trinta e dous annos; ella ia entre vinte e sete e vinte e oito. Vieram sentar-se nos dous bancos fronteiros ao do Rubião, acommodaram as cestinhas e embrulhos de lembranças que traziam de Vassouras, onde tinham ido passar uma semana; abotoaram o guarda-pó, trocaram algumas palavras, baixo.
Depois que o trem continuou a andar, foi que o Palha reparou na pessoa do Rubião, cujo rosto, entre tanta gente carrancuda ou aborrecida, era o unico placido e satisfeito. Christiano foi o primeiro que travou conversa, dizendo-lhe que as viagens de estrada de ferro cançavam muito, ao que Rubião respondeu que sim; para quem estava acostumado a costa de burro, accrescentou, a estrada de ferro cançava e não tinha graça; não se podia negar, porém, que era um progresso.
—De certo, concordou o Palha. Progresso e grande.
—O senhor é lavrador?
—Não, senhor.
—Mora na cidade?
—De Vassouras? Não; viemos aqui passar uma semana. Moro mesmo na Corte. Não teria geito para lavrador, com quanto ache que é uma posição boa e honrada.
Da lavoura passaram ao gado, á escravatura e á politica. Christiano Palha maldisse o governo, que introduzira na falla do throno uma palavra relativa á propriedade servil; mas, com grande espanto seu, Rubião não acudiu á indignação. Era plano deste vender os escravos que o testador lhe deixára, excepto um pagem; se alguma cousa perdesse, o resto da herança cobriria o desfalque. Demais, a falla do throno, que elle tambem lêra, mandava respeitar a propriedade actual. Que lhe importavam escravos futuros, se os não compraria? O pagem ir ser forro, logo que elle entrasse na posse dos bens. Palha desconversou, e passou á politica, ás camaras, á guerra do Paraguay, tudo assumptos geraes, ao que Rubião attendia, mais ou menos. Sophia escutava apenas; movia tão sómente os olhos, que sabia bonitos, fitando-os ora no marido, ora no interlocutor.
—Vae ficar na Côrte ou volta para Barbacena? perguntou o Palha no fim de vinte minutos de conversação.
—Meu desejo é ficar, e fico mesmo, acudiu Rubião; estou cançado da provincia; quero gozar a vida. Póde ser até que vá á Europa, mas não sei ainda.
Os olhos do Palha brilharam instantaneamente.
—Faz muito bem; eu faria o mesmo, se pudesse; por agora, não posso. Provavelmente, já lá foi?
—Nunca fui. É por isso que tive cá umas idéas, ao sahir de Barbacena; ora adeus! é preciso a gente tirar a morrinha do corpo. Não sei ainda quando será; mas hei de...
—Tem razão. Dizem que ha lá muita cousa explendida; não admira, são mais velhos que nós; mas lá chegaremos; e ha cousas em que estamos a par delles, e até acima. A nossa Côrte, não digo que possa competir com Paris ou Londres, mas é bonita, verá...
—Já vi.
—Já?
—Ha muitos annos.
—Ha de achal-a melhor; tem feito progressos rapidos. Depois, quando fôr á Europa...
—A senhora já foi á Europa? interrompeu Rubião, dirigindo-se a Sophia.
—Não, senhor.
—Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher, acudiu Christiano. Rubião inclinou-se respeitosamente; e, voltando-se para o marido, disse-lhe sorrindo:
—Mas não me apresenta a mim? Palha sorriu tambem; entendeu que nenhum delles sabia o nome um do outro, e deu-se pressa em dizer o seu.
—Christiano de Almeida e Palha.
—Pedro Rubião de Alvarenga; mas Rubião é como todos me chamam.
A troca dos nomes pol-os ainda mais a gosto. Sophia não interveiu, porém, na conversa; afrouxou a redea aos olhos, que se deixaram ir ao sabor de si mesmos. Rubião fallava, risonho, e ouvia attento as palavras do Palha, agradecido da amizade com que o tratava um moço que elle nunca tinha visto. Chegou a dizer-lhe que bem podiam ir juntos á Europa.
—Oh! eu não poderei ir nestes primeiros annos, respondeu o Palha.
—Tambem não digo já; eu não irei tão cedo. O desejo que me deu, quando sahi de Barbacena, foi simples desejo, sem prazo; irei, não ha duvida, mas lá para diante, quando Deus quizer.
Palha acudiu, rapido:
—Ah! eu, quando digo que só daqui a annos, accrescento tambem que a vontade de Deus póde ordenar o contrario. Quem sabe se daqui a mezes? A Divina Providencia é que manda o melhor.
O gesto que acompanhou estas palavras era convicto e pio; mas, nem Sophia o viu (olhava para os pés), nem o proprio Rubião escutou as ultimas palavras. O nosso amigo estava morto por dizer a causa que o trazia á capital. Tinha a boca cheia da confidencia, prestes a entornal-a no ouvido do companheiro de viagem,—e só por um resto de escrupulo, já frouxo, é que ainda a retinha. E porque retel-a, se não era crime, e ia ser caso publico?
—Tenho de cuidar primeiro de um inventario, murmurou finalmente,
—O senhor seu pai?
—Não; um amigo. Um grande amigo, que se lembrou de fazer-me seu herdeiro universal.
—Ah!
—Universal. Creia que ha amigos neste mundo; como aquelle, poucos. Aquillo era ouro. E que cabeça! que intelligencia! que instrucção! Viveu doente os ultimos tempos, donde lhe veiu alguma impertinencia, alguns caprichos. Sabe, não? rico e doente, sem familia, tinha naturalmente exigencias... Mas ouro puro, ouro de lei. Aquillo quando estimava, estimava de uma vez. Eramos amigos, e não me disse nada. Vae um dia, quando morreu, abriu-se o testamento, e achei-me com tudo. É verdade. Herdeiro universal! Olhe que não ha uma deixa no testamento para outra pessoa. Tambem não tinha parentes. O unico parente que teria, seria eu, se elle chegasse a casar com uma irmã minha, que morreu, coitada! Fiquei só amigo; mas, elle soube ser amigo, não acha?
—Seguramente, affirmou o Palha.
Já os olhos deste não brilhavam, reflectiam profundamente. Rubião mettera-se por um matto cerrado, onde lhe cantavam todos os passarinhos da fortuna; regalava-se em fallar da herança; confessou que não sabia ainda a somma total, mas podia calcular por longe...
O melhor é não calcular nada, atalhou Christiano. Nunca será menos de cem contos?
—Upa!
—Pois d'ahi para cima, é esperar calado. E, outra cousa...
—Creio que não menos de trezentos...
—Outra cousa. Não repita o seu caso a pessoas extranhas. Agradeço-lhe a confiança que lhe mereci, mas não se exponha ao primeiro encontro. Discrição e caras serviçaes nem sempre andam juntas.
Chegados á estação da Côrte, despediram se quasi familiarmente. Palha offereceu a sua casa em Santa Thereza; o ex-professor ia para a Hospedaria União, e prometteram visitar-se.
No dia seguinte, estava Rubião ancioso por ter ao pé de si o recente amigo da estrada de ferro, e determinou ir a Santa Thereza, á tarde; mas foi o proprio Palha que o procurou logo de manhã. Ia cumprimental-o, ver se estava bem alli, ou se preferia a casa delle, que ficava no alto. Rubião não acceitou a casa, mas acceitou o advogado, um contra-parente do Palha, que este lhe indicou, como um dos primeiros, apezar de muito moço.
—É aproveital-o, em quanto elle não exige que lhe paguem a fama.
Rubião fel-o almoçar, e acompanhou-o ao escriptorio do advogado, apezar dos protestos do cão, que queria ir tambem. Tudo se ajustou.
—Vá jantar logo commigo, em Santa Thereza, disse o Palha ao despedir-se. Não tem que hesitar, lá o espero, concluiu retirando-se.
Rubião tinha vexame, por causa de Sophia; não sabia haver-se com senhoras. Felizmente, lembrou-se da promessa que a si mesmo fizera de ser forte e implacavel. Foi jantar. Abençoada resolução! Onde acharia eguaes horas? Sophia era, em casa, muito melhor que no trem de ferro. Lá vestia a capa, embora tivesse os olhos descobertos; cá trazia á vista os olhos e o corpo, elegantemente apertado em um vestido de cambraia, mostrando as mãos que eram bonitas, e um principio de braço. Demais, aqui era a dona da casa, fallava mais, desfazia-se em obsequios; Rubião desceu meio tonto.
Jantou lá muitas vezes. Era timido e acanhado. A frequencia attenuou a impressão dos primeiros dias. Mas trazia sempre guardado, e mal guardado, certo fogo particular, que elle não podia extinguir. Emquanto durou o inventario, e principalmente a denuncia dada por alguem contra o testamento, allegando que o Quincas Borba, por manifesta demencia, não podia testar, o nosso Rubião distrahiu-se; mas a denuncia foi destruida, e o inventario caminhou rapidamente para a conclusão. Palha festejou o acontecimento com um jantar em que tomaram parte, alem dos tres, o advogado, o procurador e o escrivão. Sophia tinha nesse dia os mais bellos olhos do mundo.
—Parece que ella os compra em alguma fabrica mysteriosa, pensou Rubião, descendo o morro; nunca os vi como hoje.
Seguiu-se a mudança para a casa de Botafogo, uma das herdadas; foi preciso alfaial-a, e ainda aqui o amigo Palha prestou grandes serviços ao Rubião, guiando-o com o gosto, com a noticia, acompanhando-o ás lojas e leilões. Ás vezes, como já sabemos, iam os tres; porque ha cousas, dizia graciosamente Sophia, que só uma senhora escolhe bem. Rubião acceitava agradecido, e demorava o mais que podia as compras, consultando sem proposito, inventando necessidades, tudo para ter mais tempo a moça ao pé de si. Esta deixava-se estar, fallando, explicando, demonstrando.
Tudo isso passava agora pela cabeça do Rubião, depois do café, no mesmo logar em que o deixamos sentado, a olhar para longe, muito longe. Continuava a bater com as borlas do chambre. Afinal lembrou-se de ir ver o Quincas Borba, e soltal-o. Era a sua obrigação do todos os dias. Levantou-se e foi ao jardim, ao fundo.
—Mas que peccado é este que me persegue? pensava elle andando. Ella é casada, dá-se bem com o marido, o marido é meu amigo, tem-me confiança, como ninguem... Que tentações são estas?
Parava, e as tentações paravam tambem. Elle, um Santo Antão leigo, differençava-se do anachoreta em amar as suggestões do diabo, uma vez que teimassem muito. D'ahi a alternação dos monologos:
—É tão bonita! e parece querer-me tanto! Se aquillo não é gostar, não sei o que seja gostar. Aperta-me a mão com tanto agrado, com tanto calor... Não posso affastar-me; ainda que elles me deixem, eu é que não resisto.
Quincas Borba sentiu-lhe os passos, e começou a latir. Rubião deu-se pressa em soltal-o; era soltar-se a si mesmo por alguns instantes daquella perseguição.
—Quincas Borba! exclamou, abrindo-lhe a porta.
O cão atirou-se fóra. Que alegria! que enthusiasmo! que saltos em volta do amo! chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubião dá-lhe um tabefe, que lhe doe; elle recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas; depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e eil-o que volta novamente com a mesma alegria.
—Socega! socega!
Quincas Borba vae atraz delle pelo jardim fóra, contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saboreia a liberdade, mas não perde o amo de vista. Aqui fareja, alli pára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulga na barriga, mas de um salto galga o espaço e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. Parece-lhe que Rubião não pensa em outra cousa, que anda agora de um lado para outro unicamente para fazel-o andar tambem, e recuperar o tempo em que esteve retido. Quando Rubião estaca, elle olha para cima, á espera; naturalmente, cuida delle; é alguma ideia, algum projecto, sairem juntos, ou cousa assim agradavel. Não lhe lembra nunca a possibilidade de um pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memoria das pancadas. Ao contrario, os affagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distrahidos que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.
A vida alli não é completamente boa nem completamente má. Ha um moleque que o lava todos os dias em agua fria, usança do diabo, a que elle se não acostuma. Jean, o cosinheiro, gosta do cão, o criado hespanhol não gosta nada. Rubião passa muitas horas fóra de casa, mas não o trata mal, e consente que vá acima, que assista ao almoço e ao jantar, que o acompanhe á sala ou ao gabinete. Brinca ás vezes com elle; fal-o pular. Se chegam visitas de alguma ceremonia, manda-o levar para dentro ou para baixo, e, resistindo elle sempre, o hespanhol toma-o a principio com muita delicadeza, mas vinga-se d'ahi a pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna, atira-o ao longe, e fecha-lhes todas as communicações com a casa:
—Perro del infierno!
Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vae então deitar-se a um canto, e fica alli muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéas, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se á do amigo actual, e parecem ambas uma só pessoa; depois outras ideias...
Mas já são muitas ideias,—-são ideias demais; em todo caso são ideias de cachorro, poeira de ideias,—menos ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que este olho que se abre de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma cousa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra cousa que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre lingua humana!
Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nelle, em sonho, vagas, recentes, farrapo d'aqui remendo d'alli. Quando accorda, esqueceu o mal; tem em si uma expressão, que não digo seja melancolia, para não aggravar o leitor. Diz-se de uma paizagem que é melancolica, mas não se diz egual cousa de um cão. A razão não pode ser outra senão que a melancolia da paizagem está em nós mesmos, emquanto que attribuil-a ao cão é deixal-a fóra de nós. Seja o que fôr, é alguma cousa que não a alegria de ha pouco; mas venha um assobio do cosinheiro, ou um gesto do senhor, e lá vae tudo embora, os olhos brilham, o prazer arregaça-lhe o focinho, e as pernas voam que parecem azas.
Rubião passou o resto da manhã alegremente. Era domingo; dous amigos vieram almoçar com elle, um rapaz de vinte e quatro annos, que roia as primeiras aparas dos bens da mãe, e um homem de quarenta e quatro ou quarenta e seis, que ja não tinha que roer.
Carlos Maria chamava-se o primeiro, Freitas o segundo. Rubião gostava de ambos, mas differentemente; não era só a edade que o ligava mais ao Freitas, era tambem a indole deste homem. Freitas elogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho com uma phrase particular, delicada, e sahia de lá com as algibeiras cheias de charutos, provando assim que os preferia a quaesquer outros. Tinha-lhe sido apresentado em certo armazem da rua Municipal, onde jantaram uma vez juntos. Contaram-lhe alli a historia do homem, a sua boa e má fortuna, mas não entraram em particularidades. Rubião torceu o nariz; era naturalmente algum naufrago, cuja convivencia não lhe traria nenhum prazer pessoal nem consideração publica. Mas o Freitas attenuou logo essa primeira impressão; era vivo, interessante, anecdotico, alegre como um homem que tivesse cincoenta contos de renda. Como Rubião fallasse das bonitas rosas que possuia, elle pediu-lhe licença para ir vel-as: era doudo por flores. Poucos dias depois appareceu lá, disse que ia ver as bellas rosas, eram poucos minutos, não se incommodasse o Rubião, se tinha que fazer. Rubião, ao contrario, gostou de ver que o homem não se esquecêra da conversação, desceu ao jardim onde elle ficara esperando, e foi mostrar-lhe as rosas. Freitas achou-as admiraveis; examinava-as com tal affinco que era preciso arrancal-o de uma roseira para leval-o a outra. Sabia o nome de todas, e ia apontando muitas especies que o Rubião não tinha nem conhecia,—apontando e descrevendo, assim e assim, deste tamanho (indicava o tamanho abrindo e arredondando o dedo pollegar e o index), e depois nomeava as pessoas que possuiam bons exemplares. Mas as do Rubião eram das melhores especies; esta, por exemplo, era rara, e aquella tambem, etc. O jardineiro ouvia-o com espanto. Tudo examinado, disse Rubião:
—Venha tomar alguma cousa. Que hade ser?
Freitas contentou-se com qualquer cousa. Chegando acima, achou a casa muito bem posta. Examinou os bronzes, os quadros, os moveis, olhou para o mar.
—Sim, senhor! disse elle, o senhor vive como um fidalgo.
Rubião sorriu; fidalgo, ainda por comparação, é palavra que se ouve bem. Veiu o creado hespanhol com a bandeija de prata, varios licores, e calices, e foi um bom momento para o Rubião. Offereceu elle mesmo, este ou aquelle licor; recommendou afinal um que lhe deram como superior a tudo que, em tal ramo, poderia existir no mercado. O Freitas sorriu incredulo.
—Talvez seja encarecimento, disse elle.
Tomou o primeiro trago, saboreou-o devagar, depois segundo, depois terceiro. No fim, pasmado, confessou que era um primor. Onde é que comprara aquillo? Rubião respondeu que um amigo, dono de um grande armazem de vinhos, o presenteara com uma garrafa; elle, porém, gostou tanto que já encommendára tres duzias. Não tardou que se estreitassem as relações. E o Freitas vae alli almoçar ou jantar muitas vezes,—mais vezes ainda do que quer ou póde,—porque é difficil resistir a um homem tão obsequioso, tão amigo de ver caras amigas.
Rubião perguntou-lhe uma vez:
—Diga-me, Sr. Freitas, se me désse na cabeça ir á Europa, o senhor era capaz de acompanhar-me?
—Não.
—Porque não?
—Porque eu sou amigo livre, e bem podia ser que discordassemos logo no itinerario.
—Pois tenho pena, por que o senhor é alegre.
—Engana-se, senhor; trago esta mascara risonha, mas eu sou triste. Sou um architecto de ruinas. Iria primeiro ás ruinas de Athenas; depois ao theatro, ver o Pobre das Ruinas, um drama de lagrymas depois, aos tribunaes de fallencias, onde os homens arruinados...
E Rubião ria-se; gostava daquelles modos expansivos e francos.
Queres o avêsso disso, leitor curioso? Vê este outro convidado para o almoço, Carlos Maria. Se aquelle tem os modos «expansivos e francos»,—no bom sentido laudatorio,—claro é que elle os tem contrarios. Assim, não te custará nada vel-o entrar na sala, lento, frio e superior, ser apresentado ao Freitas, e estender-lhe a mão, olhando para outra parte. Freitas que já o mandou cordialmente ao diabo por causa da demora (é perto do meio dia), corteja-o agora rasgadamente, com grandes alleluias intimas.
Tambem podes vêr por ti mesmo que o nosso Rubião, se gosta mais do Freitas, tem o outro em maior consideração; esperou-o até agora, e esperal-o-ia até amanhã. Carlos Maria é que não tem consideração a nenhum delles. Examinai-o bem; é um galhardo rapaz de olhos grandes e placidos, muito senhor de si, ainda mais senhor dos outros. Olha de cima; não tem o riso jovial, mas escarninho. Agora, ao sentar-se á meza, ao pegar no talher, ao abrir o guardanapo, em tudo se vê que elle está fazendo um insigne favor ao dono da casa,—talvez dous,—o de lhe comer o almoço, e o de lhe não chamar pascacio.
E, máo grado essa disparidade de caracteres, o almoço foi alegre. Freitas devorava, com alguma pausa é certo,—e, confessando a si mesmo que o almoço, se tivesse vindo á hora marcada (onze) talvez não trouxesse o mesmo sabor. Agora orçava pelos primeiros bocados que acodem á fome do naufrago. Ao cabo de uns dez minutos, pôde começar a fallar; e fallou como de costume, cheio de riso, multiplicando-se em gestos e olhares, desfiando um rosario de ditos agudos e anecdotas picarescas. Carlos Maria ouviu a maior parte delles com seriedade, para humilhal-o, a ponto que o Rubião, que realmente achava graça no Freitas, já não ousava rir. Para o fim do almoço, Carlos Maria afrouxou um tanto a gravata do espirito, expandiu-se, referiu algumas aventuras amorosas de outros; Freitas, para lisongeal-o, pediu-lhe uma ou duas delle mesmo. Carlos Maria estourou de riso.
—Que papel quer o senhor que eu faça? disse elle.
Freitas explicou-se; não era uma apologia, eram factos, pedia-lhe factos; não havia inconveniente, nem ninguém era capaz de suppor...
—O senhor dá-se bem com a residencia aqui em Botafogo? interrompeu Carlos Maria dirigindo-se ao dono da caza.
Freitas, interrompido, mordeu os beiços, e, pela segunda vez, mandou o moço ao diabo. Collou-se ao espaldar, teso, grave, olhando para um painel da parede. Rubião respondeu que se dava bem, que a praia era linda.
—A vista é bonita, mas nunca pude tolerar o máo cheiro que ha aqui, em certas occasiões, disse Carlos Maria. Que lhe parece? continuou voltando-se para o Freitas.
Freitas desencostou-se, e disse tudo o que pensava, que um e outro podiam ter razão;—mas insistiu em que a praia, a despeito de tudo, era magnifica; fallou sem amúo, nem vexame; fez até o obsequio de chamar a attenção do Carlos Maria para um pedacinho de fructa que lhe ficára na ponta do bigode.
Chegaram ao fim, era pouco mais de uma hora. Rubião, calado, recompunha mentalmente o almoço, prato a prato, via com gosto os copos e os seus residuos de vinho, as migalhas esparsas, o aspecto final da meza, em vesperas de café. De quando em quando dava um olhar á casaca do criado. Chegou a apanhar o rosto de Carlos Maria em flagrante prazer, quando tirava as primeiras fumaças de um dos charutos que elle mandára distribuir. Nisto entrou o criado com uma cestinha coberta por um lenço de cambraia, e uma carta, que acabavam de trazer.
—Quem é que manda isto? perguntou Rubião,
—D. Sophia.
Rubião não conhecia a lettra; era a primeira vez que ella lhe escrevia. Que podia ser? Via-se-lhe a commoção no rosto e nos dedos. Em quanto elle abria a carta, Freitas familiarmente descobria a cestinha: eram morangos. Rubião leu tremulo estas linhas:
«Mando-lhe estas fructinhas para o almoço, se chegarem a tempo; e, por ordem do Christiano, fica intimado a vir jantar comnosco, hoje, sem falta. Sua verdadeira amiga
Sophia».
—Que fructas são? perguntou Rubião fechando a carta.
—Morangos.
—Chegaram tarde. Morangos? repetiu elle sem saber o que dizia.
—Não é preciso córar, meu caro amigo, disse-lhe rindo o Freitas, logo que o criado saiu. Estas cousas acontecem a quem ama...
—A quem ama? repetiu Rubião corando deveras. Mas, póde ler a carta, veja...
Ia mostral-a; recuou e metteu-a no bolso. Estava fóra de si, meio confuso, meio alegre; Carlos Maria deleitou-se em dizer-lhe que elle não podia encobrir que o mimo era de alguma namorada. E não achava que reprehender; o amor era lei universal: se era alguma senhora casada, louvava-lhe a discrição...
—Mas pelo amor de Deus! interrompeu o amphytrião.
—Viuva? Estamos no mesmo caso, continuou Carlos Maria; a discrição aqui é ainda um merecimento. O maior peccado, depois do peccado, é a publicação do peccado. Eu, se fosse legislador, propunha que se queimassem todos os homens convencidos de indiscrição nestas materias; e haviam de ir para a fogueira, como os réos da Inquisição, com a differença que, em vez de sambenito, levariam uma capa de pennas de papagaio...
Freitas não podia ter-se com riso, e batia na mesa, á maneira de applauso; Rubião, meio enfiado, acudia que não era casada nem viuva...
—Solteira então? replicou o moço. Um casorio em breve? Vá, que é tempo. Morangos de noivado, continuou pegando alguns entre os dedos. Cheiram a alcova de donzella e a latim de padre.
Rubião não sabia mais que dissesse; afinal tornou atraz e explicou-se; eram da senhora de um seu amigo particular. Carlos Maria piscou o olho; Freitas interveiu dizendo que, agora, sim, senhor, estava explicado; mas que, a principio, o mysterio, o arranjo da cestinha, o ar dos proprios morangos,—morangos adulteros, disse elle, rindo,—todas essas cousas davam ao negocio um aspecto immoral e peccaminoso; mas tudo ficara acabado.
Tomaram em silencio o café; depois passaram á sala. Rubião desfazia-se em obsequios, mas preoccupado. Corridos alguns minutos, estava satisfeito com a primeira supposição dos dous convivas: a de um amor adultero; achou até que se defendera com demasiado calor. Uma vez que não dissesse o nome de ninguem, podia ter confessado que era, em verdade, um negocio intimo. Mas tambem podia acontecer que o proprio calor da negativa deixasse alguma duvida no animo dos dous, alguma suspeita... Aqui sorriu consolado.
Carlos Maria consultou o relogio; eram duas horas, ia-se embora. Rubião agradeceu-lhe muito e muito o obsequio e pediu-lhe que repetisse; podiam passar alguns domingos assim em boa palestra amigavel.
—Apoiado! bradou Freitas aproximando-se.
Tinha mettido meia duzia de charutos no bolso, e ao sair, disse ao ouvido do Rubião:
—Cá vae a lembrança do costume; seis dias de delicias, uma delicia por dia.
—Leve mais.
—Não; virei busca-los depois.
Rubião acompanhou-os ao portão de ferro. Quincas Borba, logo que ouviu vozes, correu do fundo do jardim e veiu saudal-os, particularmente ao senhor; fez festas a Carlos Maria, quiz lamber-lhe a mão; o rapaz affastou-se com repugnancia. Rubião deu um pontapé no cachorro, que o fez gritar e fugir. Afinal despediram-se todos.
—O senhor para onde vae? perguntou Carlos Maria ao Freitas.
Freitas calculou que elle iria a alguma visita para os lados de S. Clemente, e quiz acompanhal-o.
—Vou até o fim da praia, disse.
—Eu volto para traz, tornou o outro.
Rubião viu-os ir, entrou, metteu-se na sala, e ainda uma vez leu o bilhete de Sophia. Cada palavra d'essa pagina inesperada era um mysterio; a assignatura uma capitulação. Sophia apenas; nenhum outro nome da familia ou do casal. Verdadeira amiga era evidentemente uma metaphora. Quanto ás primeiras palavras: Mando-lhe estas fructinhas para o almoço respiravam a candidez de uma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpou todas essas cousas pela unica força do instincto e deu por si beijando o papel,—digo mal, beijando o nome, o nome dado na pia de baptismo, repetido pela mãe, entregue ao marido como parte da escriptura moral do casamento, e agora roubado a todas essas origens e posses para lhe ser mandado a elle, no fim d'uma folha de papel... Sophia! Sophia! Sophia!
—Por que veiu tão tarde? perguntou-lhe Sophia, logo que elle appareceu á porta do jardim, em Santa Thereza.
—Depois do almoço, que acabou ás duas horas, estive arranjando uns papeis. Mas não é tão tarde assim, continuou Rubião vendo o relogio; são quatro horas e meia.
—Sempre é tarde para os amigos, replicou Sophia em ar de censura.
Rubião cahiu em si; mas não teve tempo de emendar a mão. Deante delle, ao pé da casa, estavam sentadas em bancos de ferro umas quatro senhoras, caladas, olhando para elle, curiosas; eram visitas de Sophia que esperavam a vinda de um capitalista Rubião. Já tinham ouvido fallar delle. Sophia foi apresental-o a ellas. Tres d'ellas eram casadas, uma solteira, ou mais que solteira. Contava trinta e nove annos, e uns olhos pretos, cansados de esperar. Era filha de um major Siqueira, que d'ahi a alguns minutos appareceu no jardim.
—O nosso Palha já me tinha fallado em Vossa Excellencia, disse o major depois de apresentado ao Rubião. Juro que é seu amigo ás direitas. Contou-me o acaso que os ligou. Geralmente, as melhores amizades são essas. Eu, em trinta e tantos, pouco antes da Maioridade, tive um amigo, o melhor dos meus amigos daquelle tempo, que conheci assim por um acaso, na botica do Bernardos, por alcunha o João das pantorrilhas... Creio que usou d'ellas, em rapaz, entre 1801 e 1812. O certo é que a alcunha ficou. A botica era na rua de S. José, ao desembocar na da Misericordia... João das pantorrilhas... Sabe que era um modo de engrossar a perna... Bernardes era o nome delle, João Alves Bernardes... Tinha a botica na rua de S. José. Conversava-se alli muito, á tarde, e á noite. Ia a gente com o seu capote, e bengalão; alguns levavam lanterna. Eu não; levava só o meu capote... Ia-se de capote; o Bernardes,—João Alves Bernardes era o nome todo delle; era filho de Maricá, mas criou-se aqui no Rio de Janeiro... João das pantorrilhas era a alcunha; diziam que elle andára de pantorrilhas, em rapaz, e parece que foi um dos petimetres da cidade. Nunca me esqueci: João das pantorrilhas... Ia-se de capote...
A alma do Rubião bracejava debaixo deste aguaceiro de palavras; mas, estava n'um becco sem sahida por um lado nem por outro. Tudo muralhas. Nenhuma porta aberta, nenhum corredor, e a chuva a cahir. Se pudesse olhar para as moças viria, ao menos, que era objecto de curiosidade de todas, principalmente da filha do major, D. Tonica; mas não podia; escutava, e o major chovia a cantaros. Foi o Palha que lhe trouxe um guarda-chuva. Sophia tinha ido dizer ao marido que o Rubião acabára de chegar; d'ahi a nada estava o Palha no jardim, e saudava o amigo, dizendo-lhe que viera tarde. O major, que explicava ainda uma vez a alcunha do boticario, abandonou a presa, e foi ter com as moças; depois sahiu á rua.
As senhoras casadas eram bonitas; a mesma solteira não devia ter sido feia, aos vinte e cinco annos; mas Sophia primava entre todas ellas.
Não seria tudo o que o nosso amigo sentia, mas era muito. Era daquella casta de mulheres que o tempo, como um esculptor vagaroso, não acaba logo, e vae polindo ao passar dos longos dias... Essas esculpturas lentas são miraculosas; Sophia rastejava os vinte e oito annos; estava mais bella que aos vinte e sete; era de suppor que só aos trinta désse o esculptor os ultimos retoques, senão quizesse prolongar ainda o trabalho, por dous ou tres annos.
Os olhos, por exemplo, não são os mesmos da estrada de ferro, quando o nosso Rubião fallava com o Palha, e elles iam sublinhando a conversação... Agora, parecem mais negros, e já não sublinham nada; compõem logo as cousas, por si mesmos, em lettra vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas, são capitulos inteiros. A boca parece mais fresca. Hombros, mãos, braços, são melhores, e ella ainda os faz optimos por meio de attitudes e gestos escolhidos. Uma feição que a dona nunca póde supportar,—cousa que o proprio Rubião achou a principio que destoava do resto da cara,—o excesso de sobrancelhas,—isso mesmo, sem ter diminuido, como que lhe dá ao todo um aspecto mui particular.
Traja bem; comprime a cintura e os seios no corpinho de lã fina côr de castanha, obra simples, e traz nas orelhas duas perolas verdadeiras,—mimo que o nosso Rubião lhe deu pela Pascoa.
A bella dama é filha de um velho funccionario publico. Casou aos vinte annos com este Christiano de Almeida e Palha, zangão da praça, que então contava vinte e cinco. O marido ganhava dinheiro, era geitoso, activo, e tinha o faro dos negocios e das situações. Em 1864, apezar de recente no officio, adivinhou,—não se póde empregar outro termo,—adivinhou as fallencias bancarias.
—Nós temos cousa, mais dia menos dia; isto anda por arames. O menor brado de alarma leva tudo.
O peior é que elle despendia todo o ganho e mais. Era dado á boa chira; reuniões frequentes, vestidos caros e joias para a mulher, adornos de casa, mórmente se eram de invenção ou adopção recente,—levavam-lhe os lucros presentes e futuros. Salvo em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez ao theatro sem gostar delle, e a bailes, em que se divertia um pouco,—mas ia menos por si que para apparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. Era assim um rei Candaules, mais restricto por um lado, e, por outro, mais publico.
E aqui façamos justiça á nossa dama. A principio, cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas taes foram as admirações colhidas, e a tal ponto o uso accommoda a gente ás circumstancias, que ella acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estimulo dos outros. Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para as despezas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos: podemos comparal-os á lanterna de uma hospedaria em que não houvesse commodos para hospedes. A lanterna fazia parar toda a gente, tal era a lindeza da côr, e a originalidade dos emblemas; parava, olhava e andava. Para que escancarar as janellas? Escancarou-as, finalmente; mas a porta, se assim podemos chamar ao coração, essa estava trancada e retrancada.
—Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escandalo! pensava Rubião, á noite, ao canto de uma janella, de costas para fóra, olhando para Sophia, que olhava para elle.
Cantava uma senhora. Os tres maridos de fóra, que alli estavam de visita, interromperam o voltarete, em attenção á cantora, e vieram á sala, por alguns instantes; a cantora era mulher de um d'elles. O Palha, que a acompanhava ao piano, não via o contemplação mutua da esposa e do capitalista. Não sei se todas as outras pessoas estavam no mesmo caso. Uma dellas, sim, essa sei que os via: D. Tonica, a filha do major.
—Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escandalo! continuava a pensar o Rubião, encostado á janella, de costas para fóra, com os olhos esquecidos na bella dama, que olhava para elle.
Entende-se bem que D. Tonica observasse a contemplação dos dous. Desde que Rubião alli chegou, não cuidou ella mais que de attrahil-o. Os seus pobres olhos de trinta e nove annos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cançaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas. Volvel-os uma e muitas vezes, requebrando-os, era o longo officio d'elles: Não lhe custou nada armal-os contra o capitalista.
O coração, meio desenganado, agitou-se outra vez. Alguma cousa lhe dizia que esse mineiro rico era destinado pelo ceu a resolver o problema do matrimonio. Rico era ainda mais do que ella pedia; não pedia riquezas, pedia um esposo. Todas as suas campanhas fizeram-se sem a consideração pecuniaria; nos ultimos tempos ia baixando, baixando, baixando; a ultima foi contra um estudantinho pobre... Mas quem sabe se o ceu não lhe destinava justamente um homem rico? D. Tonica tinha fé em sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, e investiu a fortaleza com muita arte e valor.
—Todas as outras são casadas, pensou ella.
Não tardou em perceber que os olhos de Rubião e os de Sophia caminhavam uns para os outros; notou, porém, que os de Sophia eram menos frequentes e menos demorados, phenomeno que lhe pareceu explicavel, pelas cautellas naturaes da situação. Podia ser que se amassem... Esta ideia affligiu-a; mas o desejo e a esperança mostraram-lhe que um homem, depois de um ou mais amores, podia muito bem vir a casar. A questão era captal-o; a idéa de casar e ter familia podia ser que acabasse de matar qualquer outra inclinação da parte delle, se alguma houvesse.
Eil-a que redobra esforços. Todas as suas graças foram chamadas a postos, e obedeceram, ainda que murchas. Gestos de ventarola, apertos de labios, olhos obliquos, marchas, contra-marchas para mostrar bem a elegancia do corpo e a cintura fina que tinha, tudo foi empregado. Era o velho formulario em acção; nada lhe rendera até alli, mas a loteria é assim mesmo: lá vem um bilhete que resgata os perdidos.
Agora, porém, á noite, por occasião do canto ao piano, é que D. Tonica deu com elles embebidos um no outro. Não teve mais duvida; não eram olhares apparentemente fortuitos, breves, como até alli, era uma contemplação que eliminava o resto da sala. D. Tonica sentiu o grasnar do velho corvo da desesperança. Quoth the Raven: NEVERMORE.
Ainda assim continuou a luta; chegou a conseguir que Rubião viesse sentar-se ao pé della, por alguns minutos, e tratou de dizer cousas bonitas, phrases que lhe ficaram de romances, outras que a propria melancholia da situação lhe ia inspirando. Rubião ouvia e respondia, mas inquieto, quando Sophia deixava a sala, e não menos quando tornava a ella. Uma das vezes a distracção foi excessiva. D. Tonica confessava-lhe que tinha muita vontade de ver Minas, principalmente Barbacena. Que taes eram os ares?
—Os ares, repetiu machinalmente o outro.
Olhava para Sophia, que estava então em pé, de costas para elle, fallando a duas senhoras sentadas. Rubião admirou-lhe ainda uma vez a figura, o busto bem talhado, estreito em baixo, largo em cima, emergindo das cadeiras amplas, como uma grande braçada de folhas sae de dentro de um vaso. A cabeça podia então dizer-se que era como uma magnolia unica, direita, espetada no centro do ramo. Era isto que Rubião mirava, quando D. Tonica lhe perguntou pelos ares de Barbacena, e elle repetiu a palavra della, sem lhe dar sequer a mesma fórma interrogativa.
Rubião estava resoluto. Nunca a alma de Sophia pareceu convidar a delle, com tamanha instancia, a voarem juntas até ás terras clandestinas, donde ellas tornam, em geral, velhas e cançadas. Algumas não tornam. Outras param a meio caminho. Grande numero não passa da beira dos telhados...
A lua era magnifica. No morro, entre o céo e a planicie, a alma menos audaciosa era capaz de ir contra um exercito inimigo, e destroçal-o. Vede o que não seria com este exercito amigo. Estavam no jardim. Sophia enfiara o braço no delle, para irem ver a lua. Convidára D. Tonica, mas a pobre dama respondeu que tinha um pé dormente, que já ia, e não foi.
Os dous ficaram calados algum tempo. Pelas janellas abertas viam-se as outras pessoas conversando, e até os homens, que tinham acabado o voltarete. O jardim era pequeno; mas a voz humana tem todas as notas, e os dous podiam dizer poemas sem ser ouvidos.
Rubião lembrou-se de uma comparação velha, mui velha, apanhada em não sei que decima de 1850, ou qualquer outra pagina em prosa de todos os tempos. Essa ideia foi chamar aos olhos de Sophia as estrellas da terra, e ás estrellas os olhos do céu. Tudo isso baixinho e tremulo.
Sophia ficou pasmada. De subito endireitou o corpo, que até alli viera pesando no braço do Rubião. Estava tão acostumada á timidez do homem... Estrellas? olhos? Quiz dizer que não caçoasse com ella, mas não achou como dar fórma á resposta, sem rejeitar uma ideia que tambem era sua, ou então sem animal-o a ir adeante. Dahi um longo silencio.
—Com uma differença, continuou Rubião. As estrellas são ainda menos lindas que os seus olhos, e afinal nem sei mesmo o que ellas sejam; Deus, que as poz tão alto, é porque não poderão ser vistas de perto, sem perder muito da formosura... Mas os seus olhos, não; estão aqui, ao pé de mim, grandes, luminosos, mais luminosos que o céu...
Loquaz, destemido, Rubião parecia totalmente outro. Não parou alli; fallou ainda muito, mas não deixou o mesmo circulo de ideias. Tinha poucas; e a situação, apezar da repentina mudança do homem, tendia antes a cerceal-as, que a inspirar-lhe novas. Sophia é que não sabia que fizesse. Trouxera ao collo um pombinho, manso e quieto, e sae-lhe um gavião,—um gavião adunco e faminto.
Era preciso responder, fazel-o parar, dizer que ia por onde ella não queria ir, e tudo isso, sem que elle se zangasse, sem que se fosse embora... Sophia procurava alguma cousa; não achava, porque esbarrava na questão, para ella insoluvel, se era melhor mostrar que entendia, ou que não entendia. Aqui lembraram-lhe os proprios gestos della, as palavrinhas doces, as attenções particulares; concluia que, em tal situação, não podia ignorar o sentido das finezas do homem. Mas confessar que entendia, e não despedil-o de casa, eis ahi o ponto melindroso.
Em cima, as estrellas pareciam rir daquella situação inextricavel.
Vá que a lua os visse! A lua não sabe escarnecer; e os poetas, que a acham saudosa, terão percebido que ella amou outr'ora algum astro vagabundo, que a deixou ao cabo de muitos seculos. Pode ser até que ainda se amem. Os seus eclypses (perdôe-me a astronomia) talvez não sejam mais que entrevistas amorosas. O mytho de Diana descendo a encontrar-se com Endymião bem pode ser verdadeiro. Descer é que é de mais. Que mal ha em que os dous se encontrem alli mesmo no céo, como os grilos entre as folhagens cá de baixo? A noite, mãe caritativa, encarrega-se de velar a todos.
Depois, a lua é solitaria. A solidão faz a pessoa seria. As estrellas, em chusma, são como as moças entre quinze e vinte annos, alegres, palreiras, rindo e fallando a um tempo de tudo e de todos.
Não nego que são castas; mas tanto peor,—terão rido do que não entendem... Castas estrellas! é assim que lhes chama Othello, o terrível, e Tristram Shandy, o jovial. Esses extremos do coração e do espirito estão de accordo n'um ponto: as estrellas são castas. E ellas ouviam tudo (castas estrellas!) tudo o que a boca temeraria de Rubião ia entornando na alma pasmada de Sophia.O recatado de longos mezes era agora (castas estrellas!) nada menos que um libertino. Dissereis que o Diabo andára a enganar a moça com as duas grandes azas de archanjo que Deus lhe poz; de repente, metteu-as na algibeira, e desbarretou-se para mostrar as duas pontas malignas, fincadas na testa. E rindo, daquelle riso obliquo das mãos, propunha comprar-lhe não só a alma, mas a alma e o corpo... Castas estrellas!
—Vamos para dentro, murmurou Sophia.
Quiz tirar o braço; mas o delle reteve-lh'o com força. Não; ir para que? Estavam alli bem, muito bem... Que melhor? Ou seria que elle a estivesse aborrecendo? Sophia acudiu que não, ao contrario, mas precisava ir fazer sala ás visitas... Ha quanto tempo estavam alli!
—Não ha dez minutos, disse o Rubião. Que são dez minutos?
—Mas podem ter dado pela nossa ausencia...
Rubião estremeceu diante deste possessivo: nossa ausencia. Achou-lhe um principio de complicidade. Concordou que podiam dar pela nossa ausencia. Tinha razão, deviam separar-se; só lhe pedia uma cousa, duas cousas; a primeira é que não esquecesse aquelles dez minutos sublimes; a segunda é que, todas as noites, ás dez horas, fitasse o Cruzeiro, elle o fitaria tambem, e os pensamentos de ambos iriam achar-se alli juntos, intimos, entre Deus e os homens.
O convite era poetico, mas só o convite. Rubião, em quanto fallava, ia devorando a moça com olhos de fogo, e segurava-lhe uma das mãos para que ella não fugisse. Nem os olhos nem o gesto tinham poesia nenhuma. Sophia esteve a ponto de dizer alguma palavra aspera, mas engoliu-a logo, ao advertir que Rubião era um bom amigo da casa. Quiz rir, mas não pôde; mostrou se então arrufada, logo depois resignada, afinal supplicante; pediu-lhe pela alma da mãe delle, que devia estar no ceu... Rubião não sabia do ceu nem da mãe, nem de nada. Que era mãe? que era ceu? parecia dizer a cara delle.
—Ai, não me quebre os dedos! suspirou baixinho a moça.
Aqui é que elle começou a voltar a si; afrouxou a pressão, sem soltar-lhe os dedos.
—Vá, disse elle, mas primeiro...
Inclinava-se para beijar a mão, quando uma voz, a alguns passos, veiu accordal-o inteiramente.
—Olá! estão apreciando a lua? Realmente, está deliciosa; está uma noite para namorados... Sim, deliciosa... Ha muito que não vejo uma noite assim... Olhem só para baixo, os bicos de gaz... Deliciosa! para namorados... Os namorados gostam sempre da lua. No meu tempo, em Icarahy...
Era Siqueira, o terrivel major. Rubião não sabia que dissesse; Sophia, passados os primeiros instantes readquiriu a posse de si mesma; respondeu que, em verdade, a noite era linda; depois contou que Rubião teimava em dizer que as noites do Rio não podiam comparar-se ás de Barbacena, e, a proposito disso, referira uma anecdota de um padre Mendes... Não era Mendes?
—Mendes, sim, o padre Mendes, murmurou o Rubião.
O major mal podia conter o assombro. Tinha visto as duas mãos presas, a cabeça do Rubião meia inclinada, o movimento rapido de ambos, quando elle entrou no jardim; e sae-lhe de tudo isto um padre Mendes... Olhou para Sophia; viu-a risonha, tranquilla, impenetravel. Nenhum medo, nenhum acanhamento; fallava com tal simplicidade, que o major pensou ter visto mal. Mas o Rubião estragou tudo. Vexado, calado, não fez mais que tirar o relogio para ver as horas, leval-o ao ouvido, como se lhe parecesse que não andava, depois limpal-o com o lenço, devagar, devagar, sem olhar para um nem para outro...
—Bem, conversem, vou vêr as amigas, que não podem estar sós. Os homens já acabaram o maldito voltarete?
—Já, respondeu o major olhando curiosamente para Sophia. Já, e até perguntaram por este senhor; por isso é que eu vim ver se o achava no jardim. Mas estavam aqui ha muito tempo?
—Agora mesmo, disse Sophia.
Depois, batendo carinhosamente no hombro do major,passou do jardim á casa; não entrou pela porta da sala de visitas, mas por outra que dava para a de jantar; de maneira que, quando chegou áquella pelo interior, era como se acabasse de dar ordens para o chá.
Rubião, voltando a si, ainda não achou que dizer, e comtudo urgia dizer alguma cousa. Boa ideia era a anecdota do padre Mendes; o peior é que não havia padre nem anecdota, e elle era incapaz de inventar nada. Pareceu-lhe bastante isto:
—O padre! o Mendes! Muito engraçado o padre Mendes!
—Conheci-o, disse o major sorrindo. O padre Mendes? Conheci-o; morreu conego. Esteve algum tempo em Minas?
—Creio que esteve, murmurou o outro, espantado.
—Era filho aqui de Saquarema; era um que não tinha este olho, continuou o major levando o dedo ao olho esquerdo. Conheci-o muito, se é que é o mesmo; póde ser que seja outro.
—Póde ser.
—Morreu conego. Era homem de bons costumes, mas amigo de ver moças bonitas, como se mira um painel de mestre; e que maior mestre que Deus? dizia elle. Esta D. Sophia, por exemplo, nunca elle a viu na rua que me não dissesse: Hoje vi aquella bonita senhora do Palha... Morreu conego; era filho de Saquarema... E, na verdade, tinha bom gosto... Realmente, a mulher do nosso Palha, é um primor, bella de cara e de figura; eu ainda a acho mais bem feita que bonita... Que lhe parece?
—Parece que sim...
—E boa pessoa, excellente dona de casa; continuou o major accendendo um charuto.
A luz do phosphoro deu á cara do major uma expressão de escarneo, ou de outra cousa menos dura, mas não menos adversa. Rubião sentiu correr-lhe um frio pela espinha. Teria ouvido? visto? adivinhado? Estava alli um indiscreto, um mexeriqueiro? A cara do homem dizia que sim e que não; em todo caso, era mais seguro crer no peior. Aqui temos o nosso heroe como alguem que, depois de navegar cosido com a praia, longos annos, acha-se um dia entre as ondas do alto mar; felizmente o medo tambem é official de ideias, e deu-lhe alli uma, lisongear o interlocutor. Não hesitou em achal-o gracioso e interessante, e dizer-lhe que tinha uma casa ás suas ordens, na praia de Botafogo, numero tantos. Dava-lhe muita honra em travar relações com elle. Contava poucos amigos aqui: o Palha, a quem devia grandes obsequios,—D. Sophia que era uma senhora de rara gravidade, e mais tres ou quatro pessoas. Vivia só; podia ser até que se retirasse para Minas.
—Já?
—Não digo já, mas póde ser que me não demore. Sabe que uma pessoa que viveu toda a sua vida em um logar, custa-lhe muito a acostumar-se em outro.
—Isso conforme.
—Sim, conforme... Mas é a regra.
—Regra será, mas o senhor vae ser uma excepção. A côrte é o diabo; apanha-se uma paixão como se apanha uma constipação; basta uma fresta de ar, fica-se perdido. Olhe, eu não me dava de apostar que o senhor, antes de seis mezes, está casado...
—Não viu nada, pensou Rubião.
E depois, alegre:
—Póde ser, mas tambem em Minas ha casamentos; nem lá faltam padres.
—Falta o padre Mendes, acudiu rindo o major.
Rubião sorriu constrangido, não entendendo se a palavra do major era innocente ou maliciosa. Este é que colheu as rédeas ao assumpto, e fallou de outras cousas, do tempo, da cidade, do ministerio, da guerra, e do marechal Lopez. E vede o contraste da occasião: esse aguaceiro, maior que o da entrada, pareceu um raio de sol ao nosso Rubião. Eil-o que espaneja a alma ao calor do discurso infinito do major, intercallando alguma palavrinha, se pode, e sempre cabeceando com applauso. E pensava outra vez que não, que elle não vira nada.
—Papae Papae está ahi? disse uma voz á porta que dava para o jardim.
Era D. Tonica; vinha chamal-o para irem embora. O chá estava na meza, é verdade; mas não podia esperar mais, tinha dor de cabeça, disse ella ao pae, baixinho. Depois estendeu os dedos ao Rubião; este pediu-lhe que ficasse ainda alguns minutos; o estimavel major...
—Perde o seu tempo, interrompeu o major; ella é que me governa.
Rubião offereceu-lhe a casa com instancia; exigiu até que lhe marcasse um dia, n'aquella mesma semana, mas o major acudiu que não podia dispor de dia certo; iria, logo que lhe fosse possivel. A vida delle era muito trabalhosa; tinha os negocios do arsenal, que já eram muitos, e tinha mais...
—Papae! vamos!
—Vamos. Está vendo? Não posso conversar um instante. Já te despediste? Onde está o meu chapéo?
Ladeira abaixo, D. Tonica foi ouvindo o resto do discurso do pae, que mudou de assumpto, sem mudar de estylo,—diffuso e derramado. Ouvia sem entender. Ia mettida em si mesma, absorta, remoendo a noite,recompondo os olhares de Sophia e de Rubião.
Chegaram a casa na rua do Senado; o pae foi dormir, a filha não se deitou logo, deixou-se estar em uma cadeirinha, ao pé da commoda, onde tinha uma imagem da Virgem. Não trazia ideias de paz nem de candura. Sem conhecer o amor, tinha noticia do adulterio, e a pessoa de Sophia pareceu-lhe hedionda. Via nella agora um monstro, metade gente, metade cobra, e sentiu que a aborrecia, que era capaz de vingar-se exemplarmente, de dizer tudo ao marido.
—Conto-lhe tudo,—ia pensando—ou de viva voz, ou por uma carta... Carta não; digo-lhe tudo um dia, em particular.
E imaginando o colloquio, antevia o espanto do homem, depois o agastamento, depois os improperios, as palavras duras que elle havia de dizer á mulher, miseravel, indigna, vil... Todos esses nomes soavam bem aos ouvidos do seu desejo; ella fazia derivar por elles a propria colera; fartava-se de a rebaixar assim, de a pôr debaixo dos pés do marido, já que o não podia fazer por si mesma... Vil, indigna, miseravel...
Durou muito tempo essa explosão de raiva interior,—perto de vinte minutos; mas a alma cançou, e tornou a si. A imaginação não podia mais, e a realidade proxima attrahiu-lhe a vista. Olhou em volta de si, mirou a alcova de solteira, arrumadinha com arte,—dessa arte engenhosa que faz da chita seda e de um retalho velho uma fita, que recama, enlaça, alegra o mais que póde a nudez das cousas, enfeita as paredes tristes, aprimora os trastes modestos e poucos. E tudo alli parecia feito para receber um noivo amado.
Onde li eu que uma tradicção antiga fazia esperar a uma virgem de Israel, durante certa noite do anno, a concepção divina? Seja onde fôr, comparemol-a á desta outra, que só differe daquella em não ter noite fixa, mas todas, todas, todas... O vento, zunindo fóra, nunca lhe trouxe o varão esperado, nem a madrugada alva e menina lhe disse em que ponto da terra é que elle móra. Era só esperar, esperar...
Agora, aquietada a imaginação e o resentimento, mira e remira a alcova solitaria; recorda as amigas do collegio e de familia, as mais intimas, casadas todas. A derradeira dellas desposou aos trinta annos um official de marinha, e foi ainda o que reverdeceu as esperanças á amiga solteira, que não pedia tanto, posto que a farda de aspirante foi a primeira cousa que lhe seduziu os olhos, aos quinze annos... Onde iam elles? Mas lá passaram cinco annos, cumpriu os trinta e nove, e os quarenta não tardam. Quarentona, solteirona; D. Tonica teve um calafrio. Olhou ainda, recordou tudo, ergueu-se de golpe, deu duas voltas e atirou-se á cama chorando...
Não vão crer que a dor aqui foi mais verdadeira que a colera; foram eguaes em si mesmas, os effeitos é que foram diversos. A colera deu em nada; a humilhação debulhou-se em lagrimas legitimas. E contudo não faltaram a esta senhora impetos de estrangular Sophia, calcal-a aos pés, arrancar-lhe o coração aos pedaços, dizendo-lhe na cara os nomes crus que attribuia ao marido... Tudo imaginações! Crede-me: ha tyrannos de intenção. Quem sabe? Na alma desta senhora passou agora um tenue fio de Caligula...
E em quanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monotono, tudo rindo cançativo; mas uma boa distribuição de lagrimas e polkas, soluços e sarabandas, acaba por trazer á alma das cousas a variedade necessaria, e faz-se o equilibrio da vida.
A outra que ri é a alma do Rubião. Escutai a cantiga alegre, brilhante, com que ella desce o morro, dizendo as cousas mais intimas ás estrellas,—ás castas estrellas,—especie de rhapsodia feita de uma linguagem que ninguem nunca alphabetou, por ser impossivel achar um signal que lhe exprima os vocabulos. Cá em baixo, as ruas desertas parecem-lhe povoadas, o silencio é um tumulto, e de todas as janellas debruçam-se vultos de mulher, caras bonitas e grossas sobrancelhas, todas Sophias e uma Sophia unica. Uma ou outra vez, Rubião acha que foi temerario, indiscreto, recorda o caso do jardim, a resistencia, o enfado da moça, e chega a arrepender-se; tem então calefrios, fica atterrado com a ideia de que podem fechar-lhe a porta, e cortar inteiramente as relações; tudo porque precipitou os acontecimentos. Sim, devia esperar; a occasião não era propria; visitas, muitas luzes, que ideia foi aquella de fallar de amores, sem cautellas, desbragadamente...? Achava-lhe razão; era bem feito que o despedisse logo.
—Fui um maluco! dizia em voz alta.
Não fallava do jantar, que foi lauto, nem dos vinhos, que eram generosos, nem da electricidade propria de uma sala em que ha senhoras, galantes; achava-se maluco, completamente maluco.
Logo depois, a mesma alma que se accusava, defendia-se. Sophia parecia tel-o animado ao que fez; os olhos frequentes, depois fixos, os modos, os requebros, a distincção de o mandar sentar ao pé de si, á mesa de jantar, de só cuidar delle, de lhe dizer melodiosamente cousas affaveis, que era tudo isso mais que exhortações e solicitações? E a boa alma explicava a contradicção da moça, depois, no jardim: era a primeira vez que ouvia taes palavras, fóra do gremio conjugal, e alli perto de todos, devia tremer naturalmente; demais, elle expandira-se muito, e precipitou tudo. Nenhuma graduação; devia ter ido pé ante pé, e nunca segurar-lhe as mãos com tanta força que chegasse a molestal-a. Em conclusão, achava-se grosseiro. Voltava o receio de lhe fecharem a porta; depois, tornava ás consolações da esperança, á analyse das acções da moça, á propria invenção do padre Mendes, mentira de complicidade; pensava tambem na estima do marido.. Aqui estremeceu. A estima do marido deu-lhe remorsos. Não só merecia a confiança delle, mas accrescia certa divida pecuniaria, e umas tres lettras que Rubião aceitou por elle.
—Não posso, não devo, ia dizendo a si mesmo, não é bonito ir adeante. Tambem é verdade que, a rigor, não sou autor de nada; ella é que, desde muito, me anda desafiando. Pois que desafie agora! Sim, é preciso resistir-lhe... Emprestei o dinheiro quasi sem pedido, porque elle precisava muito e eu devia-lhe obsequios; as lettras, sim, as lettras foi elle que me pediu que assignasse, mas não me pediu mais nada. Sei, que é honrado, que trabalha muito; o diabo da mulher é que fez mal em metter-se de permeio, com os lindos olhos e a figura... Que admiravel figura, meu pae do ceu! Hoje então estava divina. Quando o braço della roçava no meu, á meza, apezar da minha manga...
Confuso, incerto, ia a cuidar na lealdade que devia ao amigo, mas a consciencia partia-se em duas, uma increpando a outra, a outra explicando-se, e ambas desorientadas...
Deu por si na praça da Constituição. Viera andando á toa. Teve ideia de ir ao theatro, mas era tarde. Então dirigiu-se ao largo de S. Francisco para metter-se em um tilbury e ir para Botafogo. Achou tres, que vieram logo ao encontro delle, oferecendo os seus serviços e louvando principalmente o cavallo, um bom cavallo,—um animal excellente.
O rumor das vozes e dos vehiculos acordou um mendigo que dormia nos degráos da egreja. O pobre diabo sentou-se, viu o que era, depois tomou a deitar-se, mas accordado, de barriga para o ar, com os olhos fitos no ceu. O ceu fitava-o tambem, impassivel como elle, mas sem as rugas do mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um ceu claro, estrellado, socegado, olympico, tal qual presidiu ás bodas de Jacob e ao suicidio de Lucrecia. Olhavam-se n'uma especie de jogo do sizo, com certo ar de majestades rivaes e tranquillas, sem arrogancia, nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao ceu:
—Afinal, não me hasde cair em cima.
E o ceu:
—Nem tu me hasde escalar.
Rubião não era philosopho; a comparação que alli fez entre os seus cuidados e os do maltrapilho apenas lhe trouxe á alma uma sombra de inveja. Aquelle malandro não pensa em nada, disse elle comsigo; d'aqui a pouco está dormindo, emquanto eu...
—Meu amo, entre que o animal é bom. Vamos lá em quinze minutos.
Os outros dois cocheiros diziam-lhe a mesma cousa, quasi por eguaes palavras:
—Meu amo, venha aqui e verá...
—Olhe o meu cavallinho...
—Faça favor; são treze minutos de viagem. Em treze minutos está em casa.
Rubião, depois de hesitar ainda, deu consigo dentro do tilbury que lhe ficava á mão, e mandou tocar para Botafogo. Então lembrou-se de um velho episodio esquecido, ou foi o episodio que lhe deu inconscientemente a solução. Uma ou outra cousa, Rubião guiou o pensamento, com o fim de escapar ás sensações daquella noite.
La iam longos annos. Elle era então muito rapaz, e pobre. Um dia, ás oito horas da manhã, sahiu de casa, que era na rua do Cano (Sete do Setembro), entrou no largo do S. Francisco do Paula; d'alli desceu pela rua do Ouvidor. Ia com alguns cuidados; morava em casa de um amigo, que começava a tratal-o como hospede de tres dias, e elle ja o era de quatro semanas. Dizem que os de trez dias cheiram mal; muito antes d'isso cheiram mal os defuntos, ao menos nestes climas quentes... Certo é que o nosso Rubião, singelo como um bom mineiro, mas desconfiado como um paulista, ia cheio de cuidados, pensando em retirar-se quanto antes. Póde crer-se que desde que sahiu de casa, entrou no largo de S. Francisco, e desceu a rua do Ouvidor até a dos Ourives, não viu nem ouviu cousa nenhuma.
Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um prestito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas, as principaes figuras eram dous pretos. Um delles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a côr fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade publica. Lido o papel, o prestito seguiu pela rua dos Ourives adeante; vinha do aljube e ia para o largo do Moura.
Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos esteve como agora á escolha de um tilbury. Forças intimas offereciam-lhe o seu cavallo, umas que voltasse para traz ou descesse para ir aos seus negocios,—outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em vinte minutos está tudo findo!—Senhor, vamos tratar de outras cousas! E o nosso homem fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso. O acaso, em vez de leval-o pela rua do Ouvidor abaixo até á da Quitanda, torceu-lhe o caminho pela dos Ourives, atraz do prestito. Não iria ver a execução, pensou elle; era só ver a marcha do réo, a cara do carrasco, as cerimonias... Não queria ver a execução. De quando em quando, parava tudo, chegava gente ás portas e janellas, e o porteiro dos auditorios relia a sentença. Depois, o prestito continuava a andar com a mesma solemnidade. Os curiosos iam narrando o crime,—um assassinato em Mata-porcos. O assassino era dado como homem frio e feroz. A noticia dessas qualidades fez bem a Rubião; deu-lhe força para encarar o réo, sem deliquios de piedade. Não era já a cara do crime; o terror dissimulava a perversidade. Sem reparar, deu consigo no largo da execução. Já alli havia bastante gente. Com a que vinha formou-se multidão compacta.
—Voltemos, disse elle consigo.
Verdade é que o réo ainda não subira a forca; não o matariam de relance; sempre era tempo de fugir. E, dado que ficasse, porque não fecharia os olhos, como fez certo Alypio deante do expectaculo das feras? Note-se bem que Rubião nada sabia desse tal rapaz antigo; ignorava, não só que fechára os olhos, mas tambem que os abrira logo depois, devagarinho e curioso...
Eis o réo que sobe a forca. Passou pela turba um fremito. O carrasco pôz mãos á obra. Foi aqui que o pé direito de Rubião descreveu uma curva na direcção exterior, obedecendo a um sentimento de regresso; mas o esquerdo, tomado de sentimento contrario, deixou-se estar; lutaram alguns instantes... Olhe o meu cavallo!—Veja, é um rico animal!—Não seja máo!—Não seja medroso! Rubião esteve assim alguns segundos, os que bastaram para que chegasse o momento fatal. Todos os olhos fixaram-se no mesmo ponto, como os delle. Rubião não podia entender que bicho era que lhe mordia as entranhas, nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e a retinham alli. O instante fatal foi realmente um instante; o réo esperneou, contrahiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada.
Vossa Senhoria hade ter visto que o cavallinho é bom...
Rubião abriu os olhos, meio fechados, e deu com o cocheiro que sacudia ao de leve a pontinha do chicote para espertar o animal. Interiormente zangou-se com o homem, que o veiu tirar de recordações antigas. Não eram bellas, mas eram antigas,—antigas e enfermeiras, porque lhe davam a beber um elixir que de todo parecia cural-o do presente. E vae o cocheiro empurra-o e accorda-o. Iam subindo a rua da Lapa; o cavallo, em verdade, comia o espaço como se fosse a descer.
—Este cavallo tem-me uma amizade, continuou o cocheiro, que se não acredita. Podia contar cousas extraordinarias. Ha pessoas que até dizem que é mentira minha; mas, não, senhor, não é. Quem não sabe que cavallo e cachorro são os animaes que mais gostam da gente? Cachorro parece que inda gosta mais...
Cachorro trouxe á memoria de Rubião o Quincas Borba, que lá devia estar em casa, á espera delle, ancioso. Rubião não esquecia a condição do testamento; jurava cumpril-a á risca. Convem dizer que, de envolta com o receio de vel-o fugir, entrava o de vir a perder os bens. Não valiam affirmações do advogado; não ha, dizia-lhe este, não ha no testamento clausula reversivel para outrem, no caso de fuga do cachorro; os bens não podiam sair-lhe das mãos. Que lhe importava a fuga, se era até melhor, um cuidado menos? Rubião aceitava apparentemente a explicação, mas lá ficava a duvida, o exemplo de longas demandas, a variedade das opiniões juridicas sobre uma só materia, a acção de algum invejoso ou inimigo, e, o que resumia tudo, o terror de ficar sem nada. Dahi os rigores da reclusão; dahi tambem o remorso de ter passado a tarde e a noute sem pensar uma só vez no Quincas Borba.
—Sou um ingrato! disse comsigo.
Emendou-se logo; mais ingrato era não ter pensado no outro Quincas Borba, que lhe deixou tudo. Vae se não quando, teve uma ideia extraordinaria, a de serem os dous Quincas Borbas a mesma creatura, por effeito da entrada da alma do defunto no corpo do cachorro, menos a purgar os seus peccados que a vigiar o dono. Foi uma preta de S. João d'El-rei que lhe metteu, em creança, essa ideia de transmigração. Dizia ella que a alma cheia de peccados ia para o corpo de um bruto; chegou a jurar que conhecera um escrivão que acabou feito gambá...
—Vossa Senhoria, não se esqueça de dizer onde é a casa, disse-lhe repentinamente o cocheiro.
—Pare. Já passámos, é aquella.
O tilbury deu volta e foi parar á porta; Rubião pagou e desceu.
O cão ladrou de dentro; mas, logo que Rubião entrou, recebeu-o com grande alegria; e por mais importuno que fosse, Rubião desfez-se em caricias. A idéa de poder estar alli o testador dava-lhe arrepios. Subiram juntos a escada de pedra; alli ficaram por alguns instantes, á luz do lampeão que Rubião mandára deixar acceso. Rubião era mais credulo que crente; não tinha razões para atacar nem para defender nada:—terra eternamente virgem para se lhe plantar qualquer cousa. A vida da côrte deu-lhe até uma particularidade; entre incredulos, chegava a ser incredulo...
Olhou para o cão, emquanto esperava que lhe abrissem a porta. O cão olhava para elle, de tal geito que parecia estar alli dentro o proprio e defuncto Quincas Borba; era o mesmo olhar meditativo do philosopho, quando examinava as cousas humanas... Novo arrepio; mas o medo, que era grande, não era tão grande que lhe atasse as mãos. Rubião estendeu-as sobre a cabeça do animal, coçando-lhe as orelhas e a nuca.
—Pobre Quincas Borba! Gosta de seu senhor, não gosta? Rubião é muito amigo de Quincas Borba...
E o cão movia devagar a cabeça, para a esquerda e para a direita, ajudando a distribuição das caricias ás duas orelhas pendentes; depois levantava o queixo, para que lhe coçasse em baixo, e o dono obedecia; mas então os olhos do cão, meio fechados de gosto, tinham um ar dos olhos do philosopho, na cama, contando-lhe cousas de que elle entendia pouco ou nada... Rubião fechava os seus. Abriram-lhe a porta; despediu-se do cão, mas com taes carinhos, que era o mesmo que pedir-lhe que entrasse. O creado hespanhol incumbiu-se de o levar para baixo.
—Não lhe dê pancadas, recommendou Rubião.
Não lhe deu pancadas; mas só a descida era dolorosa, e o cão amigo gemeu por muito tempo no jardim. Rubião entrou, despiu-se e deitou-se. Ah! tinha vivido um dia cheio de sensações diversas e contrarias, desde as recordações da manhã, e o almoço aos dous amigos, até aquella ultima ideia de metempsycose, passando pela lembrança do enforcado, e por uma declaração de amor não aceita, mal repellida, parece que adivinhada por outros... Misturava tudo; o espirito ia de um para outro lado como bola de borracha entre mãos de creanças. Comtudo, a sensação maior era a do amor. Rubião estava admirado de si mesmo, e arrependia-se; mas o arrependimento era obra da consciencia, ao passo que a imaginação não soltava por nenhum preço a figura da bella Sophia... Uma, duas, tres horas... Sophia ao longe, os latidos do cão embaixo... O somno esquivo... Onde iam já as tres horas? Tres e meia... Emfim, depois de muito cuidar, appareceu-lhe o somno, espremeu os classicas papoulas, o foi um instante; Rubião dormiu antes das quatro.
Não, senhora minha, ainda não acabou este dia tão comprido; não sabemos o que se passou entre Sophia e o Palha, depois que todos se foram embora. Póde ser até que acheis aqui melhor sabor que no caso do enforcado.
Tende paciencia; é vir agora outra vez a Santa Thereza. A sala está ainda alumiada, mas por um bico de gaz; apagaram-se os outros, e ia apagar-se o ultimo, quando o Palha mandou que o creado esperasse um pouco la dentro. A mulher ia a sair, o marido deteve-a, ella estremeceu.
—A nossa festa esteve bem bonita, disse elle.
—Esteve.
—O Siqueira é um cacete, mas paciencia; é alegre. A filha não estava mal arranjada. Viste o Ramos como devorava tudo o que se lhe poz no prato? Tu verás que elle um dia engole a mulher.
—A mulher? disse Sophia, sorrindo.
—É gorda, concordo; mas a primeira era muito mais gorda, e creio que não morreu, elle enguliu-a, com certeza.
Sophia reclinada no canapé, ria das graças do marido. Criticaram ainda alguns episodios da tarde e da noite; depois, Sophia, acariciando os cabellos do marido, disse-lhe de repente:
—E você ainda não sabe do melhor episodio da noite.
—Que foi?
—Adivinhe.
Palha ficou algum tempo calado, olhando para a mulher, a ver se adivinhava qual tinha sido o melhor episodio da noite. Não podia acertar; acudia-lhe isto ou aquillo, nada; Sophia abanava a cabeça.
—Mas então que foi?
—Não sei; adivinha.
—Não posso. Dize logo.
—Com uma condição, accudiu ella; não quero zangas nem barulhos.
Palha foi ficando mais serio. Zangas? barulhos? Que diabo podia ser? pensava elle. Já se não ria; tinha só um resto de sorriso forçado e resignado. Olhou bem para ella, e perguntou-lhe o que era.
—Você promette o que lhe disse?
—Vá lá. Que foi?
—Pois saiba que ouvi nada menos que uma declaração de amor.
Palha empallideceu. Não promettera deixar de empallidecer. Gostava da mulher, como sabemos, até o ponto singular de publical-a; não podia ouvir a frio a noticia. Sophia viu a pallidez, e gostou da má impressão causada; para saboreal-a mais, inclinou o busto, soltou o cabello atraz, que a incommodava um pouco, recolheu os grampos em um lenço, depois sacudiu a cabeça, respirou largo, e pegou nas mãos do marido, que ficara de pé.
—É verdade, meu velho, namoraram-te a mulher.
—Mas quem foi o patife? disse elle impaciente.
—Mau, se vamos assim, não digo nada. Quem foi? Quer saber quem foi? Hade ouvir quietinho. Foi o Rubião.
—O Rubião?
—Nunca imaginei tanto. Parecia-me acanhado e respeitoso; fica sabendo que não é o habito que faz o monge. De tantos homens que aqui vêm, e até rapazes solteiros, não ouvi nunca a menor cousa. Olhava para mim; naturalmente, porque não sou feia... Para que estás andando assim de um lado para outro? Pára, que não quero levantar a voz... Bem, assim... Vamos ao caso. Não me fez declaração positiva...
—Ah! não? accudiu vivamente o marido.
—Não, mas vem a dar na mesma.
E depois de contar o que se passara no jardim, desde que alli chegaram os dous, até que o major appareceu:
—Foi só isso, concluiu; mas é bastante para ver que se elle não disse amor é porque não lhe chegou a lingua, mas chegou-lhe a mão, que me apertou os dedos... Só isso, e é demais. Ainda bem que te não zangas; mas é preciso trancar-lhe a porta,—ou de uma vez ou aos poucos; eu preferia logo, mas estou por tudo. Como achas melhor?
Mordendo o beiço inferior, Palha ficou a olhar para ella a modo de estupido. Sentou-se no canapé, mas não fallou logo. Considerava o negocio. Achava natural que as gentilezas da esposa chegassem a captivar um homem,—e Rubião podia ser esse homem; mas confiava tanto no Rubião, que o bilhete que Sophia mandara a este, acompanhando os morangos, foi redigido por elle mesmo; a mulher limitou-se a copial-o, assignal-o e mandal-o. Nunca, entretanto, lhe passou pela cabeça que o amigo chegasse a declarar amor a alguem, menos ainda a Sophia, se é que era amor deveras; podia ser gracejo de intimidade. Rubião olhava para ella muita vez, é certo; parece tambem que Sophia, em algumas occasiões, pagava os olhares com outros... Concessões de moça bonita! Mas, emfim, contanto que lhe ficassem os olhos, podiam ir alguns raios delles. Não havia de ter ciumes do nervo optico, ia pensando o marido. Sophia levantou-se, foi pôr o lenço com os grampos em cima do piano, e deu uma olhada ao espelho para ver-se com a tranca cahida. Quando voltou ao canapé, o marido pegou-lhe na mão, rindo:
—Parece-me que te amofinaste mais do que o caso merecia. Comparar os olhos de uma moça ás estrellas, e as estrellas aos olhos, afinal de contas é cousa que até se póde fazer á vista de todos, em familia, e em prosa ou verso para o publico. A culpa é de quem tem olhos bonitos. Demais, apesar do que me contas, sabes que elle é ainda matuto...
—Então o diabo tambem é matuto, porque elle pareceu-me nada menos que o diabo. E pedir-me que a certa hora olhasse para o Cruzeiro, afim de que as nossas almas se encontrassem?
—Isso, sim, isso já cheira a namoro, concordou Palha; mas bem vês que é um pedido de alma candida. É assim que as moças fallam aos quinze annos; é assim que fallam os tolos em todos os tempos, e os poetas tambem; mas elle nem é moça nem poeta.
—Creio que não; mas segurar-me nas mãos para reter-me no jardim?
Palha teve um calefrio; a ideia do contacto das mãos e da força empregada para reter a mulher é que o mortificava mais. Francamente, se pudesse, era capaz de ir ter com elle, e deitar-lhe as mãos ao gasnate. Outras ideias, porém, acudiram e dissiparam o effeito da primeira; de modo que, cuidando Sophia havel-o irritado, viu-o dar de hombros com desprezo, e responder-lhe que effectivamente era um acto de grosseria.
—E depois, Sophia, que ideia foi essa de convidal-o a ir ver a lua, não me dirás?
—Chamei D. Tonica para ir comnosco.
—Mas uma vez que D. Tonica recusou, devias ter achado meios e modos de não ir ao jardim. São cousas que acodem logo. Tu é que déste occasião...
Sophia olhou para elle, contrahindo as grossas sobrancelhas; ia responder, mas calou-se. Palha continuou a desenvolver a mesma ordem de ideias; a culpa era della, não devia ter dado occasião...
—Mas você mesmo não me tem dito que devemos tratal-o com attenções particulares? Seguramente, que eu não iria ao jardim, se pudesse imaginar o que se passou. Mas nunca esperei que um homem tão pacato, tão não sei como, se tirasse dos seus cuidados para rir dizer-me cousas esquisitas...
—Pois daqui em diante evita a lua e o jardim, disse o marido, procurando sorrir.
—Mas, Christiano, como queres tu que lhe falle a primeira vez que elle cá vier? Não tenho cara para tanto; olha, o melhor de tudo é acabar com as relações.
Palha atravessou uma perna sobre a outra e começou a rufar no sapato. Durante alguns segundos ficaram calados; cada um delles pensava em alguma cousa. Palha cuidava na proposta de acabar com as relações, não que quizesse acceital-a, mas não sabia como responder á mulher, que mostrava tanto resentimento, e se portava com tal dignidade. Era preciso nem desapproval-a, nem aceitar a proposta, e não lhe acendia nada. Levantou-se, metteu as mãos nas algibeiras das calças, e depois de alguns passos, parou defronte de Sophia.
—Talvez nos estejamos a incommodar com um simples effeito de vinhos. Olha que elle não mandou o seu quinhão ao vigario; cabeça fraca, um pouco de abalo, e entornou o que tinha dentro... Sim, eu não nego que lhe possas ter causado certa impressão, como tantas outras senhoras. Ha dias foi a um baile no Cattete, e fallou-me depois encantado das senhoras que lá vira, de uma principalmente, a viuva Mendes...
Sophia interrompeu-o:
—Porque é que não convidou essa belleza a ver o Cruzeiro?
—Não jantou lá, naturalmente, e não havia jardim nem lua. O que eu quero dizer é que o nosso amigo não estaria em si. Talvez se ache a agora arrependido do que fez, envergonhado, sem saber como se hade explicar, ou se não explicará nada... É muito possível até que se ausente...
—Era melhor.
—...Se o não chamarmos, concluiu Palha.
—Mas para que chamal-o?
—Sophia, disse-lhe o marido, sentando-se ao pé della. Não quero entrar em minudencias; digo só que não permitto que alguem te falte ao respeito...
Houve uma pequena pausa; Sophia olhava para elle, esperando.
—Não permitto, e ai d'aquelle que o fizesse, assim como ai de ti se o consentires; sabes que sou de ferro, a este respeito, e que a certeza da tua amizade,—ou, vá logo tudo,—do amor que me tens é que me tranquillisa. Pois bem, nada me abala relativamente ao Rubião. Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações...
—Alguns presentes, algumas joias, camarotes no theatro, não são motivos para que eu fite o Cruzeiro com elle.
—Prouvera a Deus que fosse só isso! suspirou o zangão.
—Que ha mais?
—Não entremos em minudencias... Ha outras cousas... Fallaremos depois... Mas fica certa que nada me faria recuar, se visse no que contaste alguma gravidade. Não ha nenhuma. O homem é um simplorio.
—Não.
—Não?
Sophia levantou-se; tambem não queria entrar em minudencias. O marido pegou-lhe na mão, ella ficou de pé e calada. Palha, com a cabeça reclinada nas costas do sophá, olhava sorrindo, sem achar que dizer. Ao cabo de alguns minutos, ponderou a mulher que era tarde, que ia mandar apagar tudo.
—Bem, tornou o Palha depois de breve silencio; escrevo-lhe amanhã que não ponha aqui os pés.
Olhou para a mulher esperando alguma recusa. Sophia coçava as sobrancelhas, e não respondeu nada. Palha repetiu a solução; e póde ser que desta vez com sinceridade. A mulher então com ar de tedio:
—Ora, Christiano... Quem é que te pede cartas? Já estou arrependida de haver fallado nisto. Contei-te um acto de desrespeito, e disse que era melhor cortar as relações,—aos poucos ou de uma vez.
—Mas como se hão de cortar as relações de uma vez?
—Fechar-lhe a porta, mas não digo tanto; basta, se queres, aos poucos...
Era uma concessão; Palha aceitou-a; mas immediatamente ficou sombrio, soltou a mão da mulher, com um gesto de desespero. Depois, agarrando-a pela cintura, disse em voz mais alta do que até então:
—Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro.
Sophia tapou-lhe a boca e olhou assustada para o corredor.
—Está bom, disse, não fallemos mais nisto. Verei como elle se comporta, e tratarei de ser mais fria... Nesse caso, tu é que não deves mudar, para que não pareça que sabes alguma cousa. Verei o que posso fazer.
—Você sabe, cousas do negocio, algumas perdas... é preciso tapar um buraco daqui, outro dalli... o diabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem; não vale nada. Sabes que confio em ti...
—Vamos, que é tarde.
—Vamos, repetiu o Palha dando-lhe um beijo na face.
—Estou com muita dor de cabeça, murmurou ella. Creio que foi do sereno, ou desta historia... Estou com muita dor de cabeça...
Banhado, barbeado, meio vestido, Palha lia os jornaes, á espera do almoço, quando viu entrar a mulher no gabinete, um tanto pallida.
—Estás peior?
Sophia respondeu com um gesto dos labios, que tanto negava como affirmava. Palha acreditou que, pelo dia adeante, passaria o incommodo; a agitação da vespera, o jantar tarde... Depois, pediu que lhe deixasse acabar de ler um artigo relativo a certo negocio da praça. Era uma briga entre dous commerciantes, a proposito de uns saques; na vespera escrevêra um delles, hoje vinha a resposta do outro. Resposta completa, disse elle acabando a leitura; e explicou longamente á mulher a questão dos saques, o mecanismo da cousa, a situação dos dous adversarios, os boatos da praça, tudo com o vocabulario technico. Sophia ouvia e suspirava; mas para o despotismo da profissão não ha suspiros de mulher, nem cortezia de homem. Felizmente, o almoço estava na mesa.
Ficando só, a nossa amiga, que apenas tomou um caldo, lá para as duas horas, foi sentar-se á porta de casa, no jardim. Naturalmente, voltou a pensar no lance da vespera. Não estava bem em si nem fóra de si, nem com Deus nem com o diabo. Arrependia-se de haver contado o episodio ao marido, e ao mesmo tempo irritava-se com as tentativas de explicação que este lhe deu. No meio das reflexões, ouviu distinctamente as palavras do major: «Olá! estão apreciando a lua?» como se as folhas as tivessem guardado, e repetido agora que a aragem começava a movel-as. Sophia teve um calefrio. Sequeira era indiscreto,—indiscreto em farejar e indagar das cousas alheias; sel-o-hia ao ponto de publical-as? Sophia considerava-se já objecto de suspeita ou de calumnia... Formava planos. Não visitaria ninguem; ou iria para fóra, para Nova Friburgo ou mais longe. A exigencia do marido em receber o Rubião, como d'antes, era excessiva; maiormente pela causa dada. Não querendo obedecer nem desobedecer, cuidava em deixar a cidade, pretextando o que quer que fosse.
—A culpa foi minha! suspirou ella comsigo.
A culpa eram as attenções especiaes com o homem, carinhos, lembranças, obsequios familiares, e, na vespera, aquelles olhos tão longamente pregados nelle... Se não fosse isso... Ia-se assim perdendo em reflexões multiplicadas. Tudo a aborrecia, plantas, moveis, uma cigarra que cantava, um rumor de vozes, na rua, outro de pratos, em casa, o andar das escravas, e até um pobre preto velho que, em frente á casa della, trepava com dificuldade um pedaço de morro. As cautellas do preto boliam-lhe com os nervos.
Nisto passou um rapaz alto, que a cortejou sorrindo e vagarosamente. Sophia cortejou-o tambem, um pouco espantada da pessoa e da acção.
—Quem é este sujeito? pensou ella.
E entrou a cogitar donde é que o conhecia, porque, em verdade, a cara não lhe era extranha, nem as maneiras, nem os olhos placidos e grandes. Onde é que o teria visto? Percorreu varias casas, sem acertar com a verdadeira; afinal pensou em certo baile,—no mez anterior,—em casa de um advogado que fazia annos. Era isso; viu-o lá, dansaram uma quadrilha, por simples condescendencia delle, que não dansava nunca; lembrava-se de lhe ter ouvido muitas cousas agradaveis, relativamente á belleza da mulher, que, dizia elle, consistia principalmente nos olhos e nos hombros. Os della, como sabemos, eram magnificos. E quasi não tratou de outra cousa,—os hombros e os olhos;—a proposito de uns e outros contou varias anecdotas succedidas com elle, algumas sem interesse, mas fallava tão bem! e o assumpto era tão della! É verdade; lembrava-se agora que, apenas elle a deixou, Palha veiu ter com ella, sentou-se na cadeira, ao lado, e disse-lhe o nome do rapaz, porque ella não ouvira bem á pessoa que lh'o apresentara era Carlos Maria,—o proprio do almoço do nosso Rubião.
—É a primeira figura do salão, disse-lhe o marido com orgulho de vêr que se occupára tanto tempo com ella.
—Entre os homens, explicou Sophia.
—Entre as senhoras és tu, acudiu elle mirando-se no collo da mulher, e circulando depois os olhos pela sala, com uma expressão de posse e dominio, que a mulher já conhecia e que lhe fazia bem.
Quando acabou de recordar tudo, já iria longe o rapaz; ao menos, foi uma interrupção na serie de tedios que lhe tomavam a alma. Tinha uma dor nas costas, que se calára por instantes. Voltou logo, teimosa, aborrecida; Sophia reclinou-se na cadeira e fechou os olhos. Quiz ver se passava pelo somno, mas não pôde. Os pensamentos eram tão teimosos como a dor, e ainda mais ruins que ella. De quando em quando um bater de azas, rapido, quebrava o silencio: eram as pombas de uma casa visinha que tornavam ao pombal. Sophia a principio abriu os olhos, umas duas vezes; depois, acostumou-se ao rumor, e deixou-os fechados, a ver se dormia. Passado algum tempo, ouviu passos na rua, e levantou a cabeça, suppondo que era Carlos Maria que regressava; era um carteiro que lhe trazia uma carta da roça. Entregou-lh'a em mão. Ao sair do jardim, tropeçou o carteiro no pé de um banco e caiu de bruços, espalhando as cartas no chão. Sophia não pôde conter o riso.
Perdoem-lhe esse riso. Bem sei que o desassocego, a noite mal passada, o terror da opinião, tudo contrasta com esse riso inopportuno. Mas, leitora amada, talvez a senhora nunca visse cair um carteiro. Os deuses de Homero,—e mais eram deuses,—debatiam uma vez no Olympo, gravemente, e até furiosamente. A orgulhosa Juno, ciosa dos colloquios de Thetis e Jupiter em favor de Achilles, interrompe o filho de Saturno. Jupiter troveja e ameaça; a esposa treme de colera. Os outros gemem e suspiram. Mas quando Vulcano pega da urna de nectar, e vae coxeando servir a todos, rompe no Olympo uma enorme gargalhada inextinguivel. Porque? Senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro.
Ás vezes, nem é preciso que elle caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginal-o ou recordal-o. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projecta-se no meio da paixão mais aborrecivel, e o sorriso vem ás vezes á tona da cara, leve que seja,—um nada. Deixemol-a rir, e ler a sua carta da roça.
Quinze dias depois, estando Rubião em casa, appareceu-lhe o marido de Sophia. Vinha perguntar-lhe o que era feito delle? onde se tinha mettido que não apparecia? estivera doente? ou já não cuidava dos pobres? Rubião mastigava as palavras, sem acabar de compor uma phrase unica. No meio disto, Palha viu que havia na sala um homem mirando os quadros, e abafou a voz.
—Desculpe, não vi que estava com visitas, disse elle.
—Desculpar o que? é um amigo, como o senhor. Doutor, aqui está o meu amigo Christiano de Almeida e Palha. Creio que já lhe fallei delle. Este é o meu amigo Dr. Camacho,—João de Souza Camacho.
Camacho fez um signal de cabeça, disse uma ou duas cousas, e quiz sair; mas Rubião acudiu, que não, senhor, que ficasse. Eram ambos amigos; e depois a lua não tardava a illuminar a bella enseada de Botafogo.
A lua,—outra vez a lua,—e esta phrase: Creio que já lhe fallei delle, atordoaram de tal geito o recem-chegado, que não lhe foi possivel proferir uma palavra durante algum tempo. Bom é accrescentar que o dono da casa tambem não sabia que dissesse. Estavam os tres sentados, Rubião no canapé, Palha e Camacho em cadeiras defronte um do outro. Camacho, que conservára a bengala na mão, pol-a verticalmente nos joelhos, batendo no nariz e olhando para o tecto. Fóra, rumor de carros, tropel de cavallos, e algumas vozes. Eram sete horas e meia da noite, ou mais, perto de oito. O silencio foi mais longo do que era licito na occasião; nem Rubião nem Palha davam por elle. Camacho é que, aborrecido, foi á janella, e exclamou dalli para os dous:
—Lá vem o luar entrando!
Rubião fez um gesto, Palha outro; mas quão differentes! Rubião era para transportar-se á janella; Palha ia a agarral-o pela gola. Cedia menos á divulgação possivel da aventura do que á lembrança da violencia com que elle pegára nas mãos da mulher para attrahil-a a si. Um e outro contiveram-se; logo depois, Rubião, cruzando a perna esquerda sobre a direita, voltou-se para o Palha, e perguntou-lhe:
—Sabe que vou deixal-os?
Tudo esperava o outro, menos isto. Dahi o espanto em que se dissolveu a colera; dahi tambem uma sombrinha de pezar, que é o que o leitor menos espera. Deixal-os? Naturalmente ia-se embora do Rio de Janeiro; era o castigo que a si mesmo impunha, pela acção ruim que praticára, em Santa Thereza; logo, vexára-se, arrependera-se... Não tinha cara de apparecer á esposa do amigo... Tal foi a primeira conclusão do Palha; mas vieram outras hypotheses... Por exemplo, a paixão podia persistir, e a sahida delle era um modo de affastar-se da pessoa amada... tambem podia acontecer que entrasse ahi algum plano de casamento.
A ultima hypothese trouxe á physionomia do Palha um elemento novo, que não sei como chame. Desappontamento? Já o elegante Garrett não achava outro termo para taes sensações, e nem por ser inglez o desprezava. Vá desappontamento. Misturem-lhe o espanto da noticia de separação, e a sombrinha de pezar; não se esqueçam da colera que primeiro trovejou surdamente, e não faltará quem ache que a alma deste homem é uma colxa de retalhos.
Póde ser; mas as colxas inteiriças são tão raras! O principal é que as cores se não desmintam umas ás outras,—quando não possam obedecer á symetria e regularidade. Era o caso do nosso homem. Tinha o aspecto baralhado á primeira vista; mas attentando bem, por mais oppostos que fossem os matizes, lá se achava a unidade moral da pessoa.
Mas, porque é que Rubião ia deixal-os? Que razão? Que negocio?
No dia seguinte ao do caso de Santa Thereza, acordou oppresso. Almoçou mal. Não cuidou de nada; calçou as chinellas africanas sem interesse, não cuidou das cousas bellas, ou simplesmente ricas, que lhe enchiam a casa. Não pôde supportar as caricias do cão mais de dous minutos; tão depressa o recebeu na sala, como o mandou embora. Elle é que enganou os criados e tornou ao amo; mas, tal foi o tabefe que recebeu na orelha, que não repetiu os affagos: estirou-se no chão com os olhos no amigo.
Rubião estava arrependido, irritado, envergonhado. No cap. X deste livro ficou escripto que os remorsos deste homem eram faceis, mas de pouca dura; faltou explicar a natureza das acções que os podiam fazer curtos ou compridos. Lá tratava-se daquella carta escripta pelo finado Quincas Borba, tão expressiva do estado mental do autor, e que elle occultou do medico, podendo ser util á sciencia ou á justiça. Se entrega a carta, não teria remorsos, nem talvez legado,—o pequeno legado que então esperava do enfermo. No caso presente, era uma tentativa de adulterio. Certo que elle suspirava ha muito, e tinha impetos interiores; mas foi só a animação indiscreta da moça, e a propria excitação do momento que o levou a fazer a declaração repellida. Passados os vapores da noite, não era só vexame que sentia, mas tambem remorsos. A moral é uma, os peccados são differentes.
Saltemos por cima de tudo o que elle sentiu e pensou durante os primeiros dias. Chegou a esperar alguma cousa no domingo, um bilhete como o do anterior,—com morangos ou sem elles. Na segunda feira estava determinado a ir a Minas passar uns dous mezes; tinha necessidade de restaurar a alma aos ventos de Barbacena. Não contava com o Dr. Camacho.
—Deixar-nos? perguntou finalmente o Palha.
—Creio que sim; vou a Minas.
Camacho, voltando da janella, sentou-se na cadeira em que estivera antes.
—Que Minas? disse elle sorrindo.—Deixe-se de Minas por ora; lá irá quando fôr preciso, e não se demorará muito que o seja.
Palha não ficou menos admirado das palavras deste que das do outro. Donde surgira semelhante homem, com ar de dominar o Rubião? Olhou para elle; era pessôa de estatura media, rosto estreito, pouca barba, queixo comprido, orelhas de pavilhão largo e aberto. Foi tudo o que pôde observar rapidamente. Viu tambem que a roupa era fina, sem luxo, e que os pés não estavam mal calçados. Não examinou os olhos, nem o sorriso, nem as maneiras; não chegou a reparar no principio de calva, nem nas mãos magras e cabelludas.
Camacho era homem politico. Formado em direito em 1844, pela faculdade do Recife, voltara para a provincia natal, onde começou a advogar; mas a advocacia era um pretexto. Já na academia, escrevera um jornal politico, sem partido definido, mas com muitas ideias colhidas aqui e alli, e expostas em estylo meio magro e meio inchado. Pessoa que recolheu esses primeiros fructos de Camacho fez um indice dos seus principios e aspirações:—ordem pela liberdade, liberdade pela ordem;—a autoridade não pode abusar da lei, sem esbofetear-se a si propria;—a vida dos principios é a necessidade moral das nações novas como das nações velhas;—dai-me boas finanças, dar-vos-hei boa politica (Barão Louis);—mergulhemos no Jordão constitucional;—dai passagem aos valentes, homem do poder; elles serão os vossos sustentaculos, etc, etc.
Na provincia natal, essa ordem de ideias teve de ceder a outras; e o mesmo se pode dizer do estylo. Fundou alli um jornal; mas, sendo a politica local menos abstracta, Camacho aparou as azas e desceu dos intermundios de Epicuro ás nomeações de delegados, ás obras provinciaes, ás gratificações, á luta com a folha adversa, e aos nomes proprios e improprios. A adjectivação exigiu grande apuro. Nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, foram os termos obrigados, emquanto atacou o governo; mas, logo que, por uma mudança de presidente, passou a defendel-o, as qualificações mudaram tambem: energico, illustrado, justiceiro, fiel aos principios, verdadeira gloria da administração, etc., etc. Esse tiroteio durou tres annos. No fim delles, a paixão politica dominava a alma do joven bacharel.
Membro da assemblea provincial, logo depois da camara dos deputados, presidente de uma provincia de segunda ordem, onde, por natural mudança do destino, leu nas folhas da opposição todos os nomes que escrevera outr'ora, nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, Camacho teve dias grandes e pequenos, andou fóra e dentro da camara, fallou, escreveu, lutou constantemente. Acabou por vir morar na capital do imperio. Deputado da conciliação dos partidos, viu governar o marquez de Paraná, e instou por algumas nomeações, em que foi attendido; mas, se é certo que o marquez lhe pedia conselhos, e usava confiar-lhe os planos que trazia, ninguem podia affirmal-o, porque elle, em se tratando da propria consideração, mentia sem difficuldade.
O que se pode crer é que queria ser ministro, e trabalhou por obtel-o. Aggregou-se a varios grupos, segundo lhe parecia acertado; na camara discorria largamente sobre materias de administração, accumulava algarismos, artigos de legislação, pedaços de relatorio, trechos de autores francezes, embora mal traduzidos. Mas, entre a espiga e a mão, está o muro de que falla o poeta; e por mais que o nosso homem estendesse a mão do seu desejo para colhel-a, a espiga la ficava do lado opposto, d'onde a arrancavam outras mãos, mais ou menos soffregas, ou até descuidadas.
Ha solteirões na politica. Camacho ia entrando nessa categoria melancolica, em que todos os sonhos nupciaes se evaporam com o tempo; mas não tinha a superioridade de abandonal-a. Ninguem que organisasse um gabinete se atrevia, ainda que o desejasse, a dar-lhe uma pasta. Camacho ia-se sentindo cair; para simular influencia, tratava familiarmente os poderosos do dia, contava em voz alta as visitas aos ministros e a outras dignidades do Estado; mas nem por isso dava um passo adeante.
Não lhe faltava que comer. A familia era pequena; mulher, uma filha, que ia nos dezoito annos, um afilhado de nove, e para isso dava a advocacia. Mas trazia a politica no sangue; não lia, quasi não fallava de outra cousa. De litteratura, sciencias naturaes, historia, philosophia, artes, não se preoccupava absolutamente nada. Tambem não conhecia grandes cousas de direito; guardava algum do que lhe dera a academia, e mais a legislação posterior e as praticas forenses. Com isso ia arrazoando e ganhando.
Dias antes, indo passar a noite em casa de um conselheiro, viu alli Rubião. Fallava-se da chamada dos conservadores ao poder, e da dissolução da camara. Rubião assistira á sessão em que o ministerio Itaborahy pediu os orçamentos. Tremia ainda ao contar as suas impressões, descrevia a camara, tribunas, galerias cheias que não cabia um alfinete, o discurso de José Bonifacio, a moção, a votação... Toda essa narrativa nascia de uma alma simples; era claro. A desordem dos gestos, o calor da palavra tinham a eloquencia da sinceridade. Camacho escutava-o attento. Teve modo de o levar a um canto da janella, e fazer-lhe considerações graves sobre a situação. Rubião opinava de cabeça, ou por palavras soltas e approbatorias.
—Os conservadores não se demoram no poder, disse-lhe finalmente Camacho.
—Não?
—Não; elles não querem a guerra, e tem de cahir por força. Veja como andei bem no programma da folha.
—Que folha?
—Conversaremos depois.
No dia seguinte, almoçaram no Hotel de la Bourse, a convite de Camacho. Este referiu ao outro que fundára, mezes antes, uma folha com o unico programma de continuar a guerra a todo o transe... Andava muito accesa a dissenção entre liberaes; pareceu-lhe que o melhor modo de servir ao proprio partido era dar-lhe um terreno neutro e nacional.
—E isto agora serve-nos, concluiu elle, porque o governo inclina-se á paz. Já amanhã sae um artigo meu, furibundo.
Rubião ouvia tudo, quasi sem tirar os olhos do outro, comendo rapidamente, nos intervallos em que o proprio Camacho inclinava a cabeça ao prato. Folgava de vêr-se confidente politico; e, para dizer tudo, a ideia de entrar em luta para colher alguma cousa depois, um logar na camara, por exemplo, espanejou as azas de ouro no cerebro do nosso amigo. Camacho não lhe fallou em mais nada; procurou-o no dia seguinte, e não o achou. Agora, pouco depois de entrar, vinha o Palha interrompel-os.
—Sim, mas eu preciso ir a Minas, teimou Rubião.
—Para que? perguntou Camacho.
E o Palha fez-lhe egual pergunta. Para que iria a Minas, salvo se era negocio de pouco tempo. Ou já estava aborrecido da Corte?
—Não, aborrecido não estou; ao contrario...
Ao contrario, gostava muito della; mas a terra natal—por menos bonita que seja,—um logarejo,—dá saudades á gente;—ainda mais quando a pessoa veiu de lá homem. Queria ver Barbacena. E Barbacena era a primeira terra do mundo. Durante alguns minutos, Rubião pode subtrahir-se á acção dos outros. Tinha a terra natal em si mesmo: ambições, vaidades da rua, prazeres ephemeros, tudo cedia ao mineiro saudoso da provincia. Se a alma delle foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz do interesse, agora era a simples alma de um homem arrependido do goso, e mal accommodado na propria riqueza.
Palha e Camacho olharam um para o outro... Oh! esse olhar foi como um bilhete de visita trocado entre as duas consciencias. Nenhuma disse o seu segredo, mas viram os nomes no cartão, e comprimentaram-se. Sim, era preciso impedir que o Rubião sahisse; Minas podia retel-o. Concordaram que lá fosse, mas depois,—alguns mezes depois;—e talvez o Palha fosse tambem. Nunca vira Minas; seria excellente occasião.
—O senhor? perguntou Rubião.
—Sim, eu; ha muito que desejo ir a Minas e a S. Paulo. Olhe, ha mais de anno que estivemos vae não vae... Sophia é companheira para estas cousas. Lembra-se quando nos encontrámos no trem da estrada de ferro?... Vinhamos de Vassouras; mas esta ideia de Minas nunca nos deixou. Iremos os tres.
Rubião agarrou-se ás eleições proximas; mas aqui interveiu Camacho, affirmando que não era preciso, que a serpente devia ser esmagada cá mesmo na capital; não faltaria tempo depois para ir matar saudades e receber a recompensa... Rubião agitou-se no canapé. A recompensa era, com certeza, o diploma de deputado. Visão magnifica, ambição que nunca teve, quando era um pobre diabo... Eil-a que o toma, que lhe aguça todos os appetites de grandeza e gloria... Entretanto, ainda insistiu por poucos dias de viagem, e, para ser exacto, devo jurar que o fez sem desejo de que lhe aceitassem a a proposta.
A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janellas, apresentava aquelle aspecto seductor que nenhum carioca póde crêr que exista em outra parte do mundo. A figura de Sophia passou ao longe, na encosta do morro, e diluiu-se no luar; a ultima sessão da camara, tumultuosa, resoou aos ouvidos do Rubião... Camacho foi até á janella e voltou logo.
—Mas quantos dias? perguntou elle.
—Isso é que não sei, mas poucos.
—Em todo o caso, amanhã fallaremos.
Camacho despediu-se. Palha ficou ainda alguns instantes, para dizer-lhe que seria exquisito voltar a Minas, sem que elles liquidassem as contas... Rubião interrompeu-o. Contas? Quem lhe fallava em contas?
—Bem se vê que o senhor não é homem de comercio, redarguiu Christiano.
Não sou, é verdade; mas as contas pagam-se quando se podem. Entre nós, tem sido isto. Ou, quem sabe? Seja franco; precisa de algum dinheiro?
Não, não preciso. Obrigado. Tenho que propor um negocio, mas hade ser mais demoradamente. Vim vel-o para não botar annuncios nos jornaes: «Desappareceu um amigo, por nome Rubião, que tem um cachorro...»
Rubião gostou da facecia. Palha saiu e elle foi accompanhal-o até a esquina da rua marquez de Abrantes. Ao despedir-se prometteu visital-o em Santa Thereza, antes de ir a Minas.
Pobre Minas! Rubião voltou para casa, sosinho, a passo lento, pensando no modo de lá não ir agora. E as palavras dos dous andavam-lhe no cerebro, como peixinhos de ouro em globo de vidro, abaixo, acima, rutilantes: «aqui é que se deve esmagar a cabeça da cobra;»—«Sophia é companheira para estas cousas.» Pobre Minas!
No dia seguinte recebeu um jornal que nunca vira antes, a Atalaia. O artigo editorial desancava o ministerio; a conclusão, porém estendia-se a todos os partidos e á nação inteira:—Mergulhemos no Jordão constitucional. Rubião achou-o excellente; tratou de ver onde se imprimia a folha para assignal-a. Era na rua da Ajuda; lá foi, logo que saiu de casa; lá soube que o redactor era o Dr. Camacho. Correu ao escriptorio delle.
Mas, em caminho na mesma rua:
—Deolindo! Deolindo! bradou angustiadamente uma voz de mulher á porta de uma colchoaria.
Rubião ouviu o grito, voltou-se, viu o que era. Era um carro que descia e uma creança de tres ou quatro annos que atravessava a rua. Os cavallos vinham quasi em cima della, por mais que o cocheiro os sofreasse. Rubião atirou-se aos cavallos e arrancou o menino ao perigo. A mãe, quando o recebeu das mãos do Rubião, não podia fallar; estava pallida, tremula, e chorava. Algumas pessoas puzeram-se a altercar com o cocheiro, mas um homem calvo, que vinha dentro, ordenou-lhe que fosse andando. O cocheiro obedeceu. Assim, quando o pai, que estava no interior da colchoaria, veiu fóra, já o carro dobrava a esquina de S. José.
—Ia quasi morrendo, disse a mãe. Se não fosse este senhor, não sei o que seria do meu pobre filho.
Era uma novidade no quarteirão. Visinhos entravam a vêr o que succedêra ao pequeno; na rua, creanças e moleques, espiavam pasmados. A creança tinha apenas um arranhão no hombro esquerdo, produzido pela queda.
—Não foi nada, disse Rubião; em todo caso, não deixem o menino sair á rua; é muito pequenino.
—Obrigado, acudiu o pae; mas onde está o seu chapéo?
Rubião advertiu então que perdêra o chapéo. Um rapazinho esfarrapado, que o apanhára, estava á porta da colchoaria, aguardando a occasião de restituil-o. Rubião deu-lhe uns cobres em recompensa, cousa em que o rapazinho não cuidára, ao ir apanhar o chapéo. Não o apanhou senão para ter uma parte na gloria e nos serviços. Entretanto, aceitou os cobres com prazer; foi talvez a primeira ideia que lhe deram da venalidade das acções.
—Mas, espere, tornou o colchoeiro, o senhor feriu-se?
Com effeito, a mão do nosso amigo tinha sangue; havia um ferimento na palma, cousa pequena, e que elle não podia saber se era obra do dente do cavallo, se de algum ferrão das correias. A verdade é que só agora começou a sentil-o. A mãe do pequeno correu a buscar uma bacia e uma toalha, apezar de dizer o Rubião que não era nada, que não valia a pena. Veiu a agua; emquanto elle lavava a mão, o colchoeiro correu á pharmacia proxima, e trouxe um pouco de arnica. Rubião curou-se, atou o lenço na mão; a mulher do colchoeiro escovou-lhe o chapéo; e, quando elle sahiu, um e outro agradeceram-lhe muito o beneficio da salvação do filho. A outra gente, que estava á porta e na calçada, fez-lhe alas.
—Que é que tem ahi na mão? inquiriu Camacho, logo que Rubião entrou no escriptorio.
Rubião narrou o incidente da rua da Ajuda. O advogado fez-lhe muitas perguntas sobre a creança, os paes, o numero da casa; mas, o proprio Rubião pôz termo ás respostas.
—Não sabe, ao menos, o nome do pequeno?
—Ouvi chamar Deolindo. Vamos ao que importa. Venho assignar a sua folha; recebi um numero, e quero contribuir para...
Camacho acudiu que não precisava de assignaturas. Em assignaturas, a folha ia bem. O que ella precisava era de material typographico e desenvolvimento no texto; ampliar a materia, pôr-lhe mais noticiario, variedades, traducção de algum romance para o folhetim, movimento do porto, da praça, etc. Tinha annuncios, como viu.
—Sim, senhor.
—Estou com o capital quasi subscripto. Bastam dez pessoas, e já somos oito; eu e mais sete. Faltam dous. Com mais duas pessoas está completo o capital.
—Quanto será? pensou Rubião.
Camacho batia com um canivete na beira da escrevaninha, calado, olhando ás furtadellas para o outro. Rubião passou uma vista á sala, poucos moveis, alguns autos sobre um tamborete ao pé do advogado, estante com livros, Lobão, Pereira e Souza, Dalloz, Ordenações do reino, um retrato na parede, deante da escrevaninha.
—Conhece? disse Camacho apontando para o retrato.
—Não, senhor.
—Veja se conhece.
—Não posso saber. Nunes Machado?
—Não, acudiu o ex-deputado dando á cara um ar pesaroso. Não pude obter um bom retrato delle. Vendem-se ahi umas lithographias que me não parecem boas. Não; aquelle é o marquez.
—De Barbacena?
—Não, de Paraná; é o grande marquez, meu particular amigo. Tentou conciliar os partidos, e foi por isso que me achei com elle. Morreu cedo; a obra não pôde ir adeante. Hoje, se elle a quizesse, ter-me-hia contra si. Não! nada de conciliações; guerra de morte. Havemos de destruil-os; leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas; recebel-a-ha em casa...
—Não, senhor.
—Porque não?
Rubião baixou os olhos deante do nariz interrogativo do Camacho.
—Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a folha de graça...
—Mas, se já lhe disse que de assignaturas vamos bem, retorquiu Camacho.
—Sim, senhor, mas não disse tambem que faltam duas pessoas para o capital?
—Duas, sim; temos oito...
—Quanto é o capital?
—O capital é de cincoenta contos; cinco por pessoa.
—Pois entro com cinco.
Camacho agradeceu-lh'o em nome das ideias. Tinha intenção de convidal-o para entrar com elles; era um direito adquirido pela convicção, pela fidelidade, pelo amor aos negocios publicos do seu recente amigo. Uma vez que espontaneamente se alistou, pedia-lhe que o desculpasse... Mostrou-lhe a lista dos outros; Camacho era o primeiro; entrava com a folha, o material existente, as assignaturas, e o trabalho herculeo... Ia a emendar-se, mas repetiu corajosamente: trabalho herculeo. Podia dizer que o era, sem deslustre, nem mentira; esganou cobras, em creança. Já agora era um vicio; gostava da luta, morreria nella, envolvido na bandeira...
Rubião despediu-se. No corredor passou por elle uma senhora alta, vestida de preto, com um arruido de seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu a voz do Camacho, mais alta do que até então:—Oh! senhora baroneza!
No primeiro degráo parou. A voz argentina da senhora começou a dizer as primeiras palavras; era uma demanda... Baroneza! E o nosso Rubião ia descendo a custo, de manso, para não parecer que ficára ouvindo. O ar mettia-lhe pelo nariz acima um aroma fino e raro, cousa de tontear, o aroma deixado por ella. Baroneza! Chegou á porta da rua; viu parado um coupê; o lacaio, em pé, na calçada, o cocheiro na almofada, olhando; fardados ambos... Que novidade podia haver em tudo isso? Nenhuma. Uma senhora titular, cheirosa e rica, talvez demandista para matar o tedio. Mas o caso particular é que elle, Rubião, sem saber porque, e apezar do seu proprio luxo, sentia-se o mesmo antigo professor de Barbacena...
Na rua, encontrou Sophia com uma senhora edosa e outra moça. Não teve olhos para ver bem as feições desta; todo elle foi pouco para Sophia. Fallaram-se acanhadamente, dous minutos apenas, e seguiram o seu caminho. Rubião parou adeante, e olhou para traz; mas as tres senhoras iam andando sem voltar a cabeça. Depois do jantar, comsigo:
—Irei lá hoje?
Reflexionou muito sem adeantar nada. Ora que sim, ora que não. Achara-lhe um modo exquisito; mas lembrava-se que sorriu,—pouco, mas sorriu. Poz o caso á sorte. Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E deixou-se estar na sala, no pouf central, olhando. Veiu logo um tilbury da esquerda. Estava dito; não ia a Santa Thereza. Mas aqui a consciencia reagiu; queria os proprios termos da proposta: um carro. Tilbury não era carro. Devia ser o que vulgarmente se chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma victoria... D'ahi a pouco vieram chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro. Foi.
Sophia deu-lhe a mão gentilmente, sem sombra de rancor. As duas senhoras do passeio estavam com ella, em trajes caseiros; apresentou-as. A moça era prima, a velha era tia,—aquella tia da roça, autora da carta que Sophia recebeu no jardim das mãos do carteiro, que logo depois deu uma queda. A tia chamava-se D. Maria Augusta; tinha uma fazendola, alguns escravos e dividas, que lhe deixára o marido, alem das saudades. A filha era Maria Benedicta,—nome que a vexava, por ser de velha, dizia ella; mas a mãe retorquia-lhe que as velhas foram algum dia moças e meninas, e que os nomes adequados ás pessoas eram cousas de poetas e contadores de historias. Maria Benedicta era o nome da avó della, afilhada de Luiz de Vasconcellos, o vice-rei. Que queria mais?
Contaram isto ao Rubião, sem que ella se vexasse. Sophia, ou por attenuar o caso, ou por outro motivo, accrescentou que os mais feios nomes eram lindos, segundo a pessoa. Maria Benedicta era lindissimo.
—Não lhe parece? concluiu voltando-se para Rubião.
—Deixa de caçoada, prima! acudiu Maria Benedicta, rindo.
Podemos crer que a velha nem Rubião entenderam o dito,—a velha, porque começava a cochilar,—Rubião porque affagava um cãosinho que tinham dado a Sophia, pequeno, delgado, leve, boliçoso, olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas, insistindo a dona da casa, elle respondeu que sim, sem saber o que era. Maria Benedicta deu um muchocho. Em verdade, não era bonita; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem d'essas boccas que segredam alguma cousa, ainda caladas. Altinha, mãos grandes, grandes olhos attonitos quando escutavam somente, mas que sabiam fallar, se a bocca fallava tambem,—ahi fica o principal das feições da moça. Era natural, sem acanho de roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia as incoherencias do vestido.
Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguassú. De longe em longe vinha á cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros, já estava anciosa por tornar a casa. A educação foi summaria: ler, escrever, doutrina e algumas obras de agulha. Nos ultimos tempos (ia em dezenove annos), Sophia apertou com ella para apprender piano; a tia consentiu; Maria Benedicta veiu para a casa da prima, e alli esteve uns dezoito dias. Não pôde mais; doeram-lhe as saudades da mãe e voltou para a roça, deixando consternado o professor, que annunciou n'ella, desde os primeiros dias, um grande talento musical.
—Oh! sem duvida, um grande talento!
Maria Benedicta riu-se quando a prima lhe contou isto, e nunca mais pode ver a serio o homem. Ás vezes, no meio de uma licção, deitava a rir; Sophia contrahia as sobrancelhas, a modo de ralho, e o pobre homem perguntava o que era, e de si mesmo explicava que havia de ser alguma lembrança de moça, e continuava a licção. Nem piano nem francez,—outra lacuna, que Sophia mal podia desculpar. D. Maria Augusta não comprehendia a consternação da sobrinha. Para que francez? A sobrinha dizia-lhe que era indispensavel para conversar, para ir ás lojas, para ler um romance...
—Sempre fui feliz sem francez, respondia a velha; e os meia-linguas da roça são a mesma cousa: não vivem peior que os creoulos.
Um dia accrescentou:
—Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Póde casar, já lhe disse que póde casar quando quizer, que eu tambem casei; e até deixar-me na roça, sosinha, morrer como uma besta velha...
—Mamãe!
—Não tenha pena; é só apparecer o noivo. Em apparecendo, vá com elle, e deixe-me ficar. Olha Maria José o que fez commigo? Vive lá pelo Ceará...
—Mas se o marido é juiz de direito, ponderava Sophia.
—Torto que seja! Para mim é a mesma cousa. Cá fica o frangalho da velha. Casa, Maria Benedicta, casa depressa; eu morrerei com Deus... Não terei filhos, mas terei Nossa Senhora, que é mãe de todos. Casa, anda, casa!
Toda essa rabugem era calculo; tinha em mira arredar a filha do matrimonio, excitando-lhe o terror e a piedade. Quando menos, retardar-lh'o. Não creio que revelasse esse peccado ao confessor, nem que chegasse a entendel-o: era obra de um egoismo edoso e melindroso. D . Maria Augusta fora longamente querida; a mãe era douda por ella, o marido amou-a até o ultimo dia com a mesma intensidade. Mortos ambos, todas as suas saudades filiaes e matrimoniaes foram postas na cabeça das duas filhas. Uma fugira-lhe, casando. Ameaçada da solidão, se a outra casasse tambem, D. Maria Augusta fazia tudo o que podia por evitar o desastre.
Curta foi a visita de Rubião. As nove horas levantou-se elle discretamente, esperando qualquer palavra de Sophia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo, que esperasse o marido que já vinha, um espanto que fosse: Já! mas nem isso. Sophia estendeu-lhe a mão, em que elle mal pôde tocar. Comtudo, a moça, durante a visita, mostrou-se tão natural, tão sem azedume... Não teve seguramente os olhos longos e loquazes, como d'antes; parecia até que não houvera nada, nem bem nem mal, nem morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras; ella achava todas as que queria, e, se era preciso olhar para elle, fazia-o direitamente, tranquillamente...
—Lembranças ao nosso Palha, murmurou elle de chapéo e bengala na mão.
—Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço passos; hade ser elle.
Não era elle; era Carlos Maria. Rubião ficou espantado de o ver alli, mas achou logo que a presença da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que fossem aparentados.
—Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria Augusta.
—Ah! respondeu o outro, olhando para o retrato de Sophia.
Sophia foi até á porta despedir-se do Rubião; disse-lhe que o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas que a visita era imperiosa. Negocios... Iria pedir-lhe desculpa.
—Que desculpa? acudiu Rubião.
Parece que quiz dizer ainda alguma cousa; mas o aperto de mão de Sophia e a reverencia que esta lhe fez, deram-lhe o signal de despedida. Rubião inclinou-se, atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na sala:
—Vou denunciar seu marido, minha senhora; é homem de muito mau gosto, e le mauvais goût mène au crime...
Rubião parou.
—Porque? disse Sophia.
—Tem este seu retrato na sala, continuou Carlos Maria; a senhora é muito mais bella, infinitamente mais bella que a pintura... Comparem, minhas senhoras.
—Como elle diz aquellas cousas tão naturalmente! pensou Rubião, em casa, relembrando as palavras de Carlos Maria. Desfazer no retrato só para elogiar a pessoa! Note-se que o retrato é muito parecido...
De manhã, na cama, teve um sobresalto. O primeiro jornal que abriu foi a Atalaia. Leu o artigo editorial, uma correspondencia, e algumas noticias. De repente, deu com o seu nome.
—Que é isto?
Era o seu proprio nome impresso, rutilante, multiplicado, nada menos que uma noticia do caso da rua da Ajuda. Depois do sobresalto, aborrecimento. Que diacho de ideia aquella de imprimir uma cousa particular, contada em confiança? Não quiz ler nada; desde que percebeu o que era, deitou a folha ao chão, e pegou em outra. Infelizmente, perdera a serenidade, lia por alto, pulava algumas cousas, não entendia outras, ou dava por si no fim de vinte linhas sem saber como viera escorregando até alli...
Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé da cama, e pegou da Atalaia. Lançou os olhos pela noticia: era mais de uma columna. Columna e tanto para cousa tão diminuta! pensou comsigo. E afim de ver como é que Camacho enchera o papel, leu tudo, um pouco ás pressas, vexado dos adjectivos e da descripção dramatica do caso.
—Foi bem feito! disse em voz alta. Quem me mandou ser linguarudo?
Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha, acanhado com a publicação de um negocio, que elle reputava minimo, e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escriptor, como se se tratasse de dizer bem ou mal em politica. Ao café, pegou novamente na folha, para ler outras cousas, nomeações do governo, um assassinato em Garanhuns, meteorologia, até que a vista desastrada foi cair na noticia, e leu-a então com pausa. Aqui confessou Rubião que bem podia crer na sinceridade do escriptor. O enthusiasmo da linguagem explicava-se pela impressão que lhe ficou do facto; tal foi ella que lhe não permittiu ser mais sobrio. Naturalmente é o que foi. Rubião recordou a sua entrada no escriptorio do Camacho, o modo porque fallou; e dahi tornou atraz, ao proprio acto. Estirado no gabinete, evocou a scena: o menino, o carro, os cavallos, o grito, o salto que deu, levado de um impeto, irresistivel:—Agora mesmo não podia explicar o negocio; foi como se lhe tivesse passado uma cousa pelos olhos... Atirou-se á creança, e aos cavallos, cego e surdo, sem attender ao proprio risco... E podia ficar alli, embaixo dos animaes, esmagado pelas rodas, morto ou ferido; ferido que fosse... Podia ou não podia? Era impossivel negar que a situação foi grave... A prova é que os paes e a visinhança...
Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a noticia. Que era bem escripta, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O diabo do homem parecia ter assistido á scena. Que narração! que viveza de estylo! Alguns pontos estavam accrescentados,—confusão de memoria,—mas o accrescimo não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao repetir-lhe o nome? «O nosso amigo, o nosso distinctissimo amigo, o nosso valente amigo...»
Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado em demasia. Afinal, que tinha que o outro désse aos seus leitores uma cousa que era verdadeira, que era interessante, dramatica,—e, seguramente,—não vulgar? Sahindo, recebeu alguns comprimentos; Freitas chamou-lhe S. Vicente de Paula. E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuia-se, não era nada...
—Nada? replicou alguem. Dê-me muitos desses nadas... Salvar uma creança com risco da propria vida...
Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a scena a alguns curiosos, que a queriam da propria bocca do autor. Certos ouvintes respondiam com proezas suas,—um que salvara uma vez um homem, outro uma menina, prestes a afogar-se no boqueirão do Passeio, estando a tomar banho. Vinham tambem suicidios malogrados, por intervenção do ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz, e fel-o jurar... Cada gloriasinha occulta picava o ovo, e punha a cabeça de fóra, olho aberto, sem pennas, em volta da gloria maxima do Rubião. Tambem teve invejosos, alguns que nem o conheciam, só por ouvil-o louvar em voz alta. Rubião foi agradecer a noticia ao Camacho, não sem alguma censura pelo abuso de confiança, mas uma censura molle, ao canto da bocca... D'alli foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a noticia; elle, a conselho do Freitas, fel-a reimprimir nos a pedidos do Jornal do Commercio, interlinhada.
Maria Benedicta consentiu finalmente em apprender francez e piano. Durante quatro dias a prima teimou com ella, a todas as horas, de tal arte e maneira, que a mãe da moça resolveu appressar a volta á fazenda, para evitar que ella acabasse aceitando. A filha resistiu muito; respondia que eram cousas superfluas, que moça de roça não precisa de prendas da cidade. Uma noite, porém, estando alli Carlos Maria, pediu-lhe este que tocasse alguma cousa; Maria Benedicta fez-se vermelha. Sophia acudiu com uma mentira:
—Não lhe peça isso; ainda não tocou depois que veiu. Diz que agora só toca para os roceiros.
—Pois faça de conta que somos roceiros, insistiu o moço.
Felizmente, fallou logo de outra cousa, do baile da baroneza do Piauhy (casualmente, a mesma que o nosso amigo Rubião encontrou no escriptorio do Camacho), um baile esplendido, oh! esplendido! A baroneza presava-o muito. No dia seguinte, Maria Benedicta declarou á prima que estava prompta a apprender piano e francez, rabeca e até russo, se quizesse. A difficuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução da filha, poz as mãos na cabeça. Que francez? que piano? Bradou que não, ou então que deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, fallar cabinda ou a lingua do diabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais superfluas que lhe parecessem aquellas prendas, eram o minimo dos adornos de uma educação de sala...
—Mas eu criei minha filha na roça e para a roça, interrompeu a tia.
—Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pae destinara-me a padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não hade viver sempre; os seus negocios andam atrapalhados. Pode acontecer que Maria Benedicta fique ao desamparo... Ao desamparo, não digo; emquanto vivermos somos todos uma só pessoa. Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se lhe faltassemos todos, ella vivesse á larga, só com ensinar francez e piano... Basta que os saiba para estar em condições melhores. É bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possue raras qualidades moraes. Pode achar marido rico... Sabe a senhora se já tenho alguem em vista, pessoa séria?
—Sim? Então ella vae apprender francez, piano e namoro?
—Que namoro? Fallo-lhe de pensamentos intimos, de um plano que me parece adequado á felicidade della e de sua mãe. Pois eu havia... Ora, tia Augusta!
Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixou o tom aspero pelo tom secco. Resistiu ainda; mas a noite deu-lhe bons conselhos O estado dos seus negocios, e a possibilidade de um genro abastado fizeram mais que outras razões. Os melhores genros da roça alliavam-se a outras fazendas, a familias de representação e riqueza segura. Dous dias depois acharam um modus vivendi: Maria Benedicta ficaria com a prima; iriam de quando em quando á roça, e a tia tambem viria á capital, para vel-os. Palha chegou a dizer que, logo que o estado da praça o permittisse, arranjaria meio de liquidar-lhe os negocios e transportal-a para aqui. Mas a isto a boa senhora abanou a cabeça.
Não se pense que tudo isso foi tão facil como ahi fica escripto. Na pratica, vieram os obices, amofinações, saudades, rebelliões de Maria Benedicta. Dezoito dias depois da volta da mãe á fazenda, quiz ir visital-a, e a prima acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous mezes depois, veiu passar uns dias aqui. Sophia acostumava habilmente a prima ás distracções da cidade; theatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos, chapéos lindos, joias. Maria Benedicta era mulher, posto que mulher exquisita; gostou de taes cousas, mas tinha para si que, logo que quizesse, podia arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ella, ás vezes, em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saráos, quando voltava para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as saudades de Iguassú. Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era completa. Então batia as azas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos moveis antigos, nas bonitas chinellas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de S. João d'El-rey,—e que lá ficaram em casa. Sophia não consentiu que ella as trouxesse.
Os mestres de francez e piano eram homens sabedores do officio. Sophia teve modo de dizer-lhes em particular que a prima vexava-se de apprender tão tarde, e pediu-lhes que não fallassem nunca de tal discipula. Prometteram que sim; o de piano apenas referiu o pedido a alguns collegas d'arte, que lhe acharam graça, e contaram outras anedoctas da clientela. O certo é que Maria Benedicta apprendia com singular facilidade, estudava com afinco, quasi todas as horas, a tal ponto que a mesma prima julgava acertado interrompel-a.
—Descança, filha de Deus!
—Deixa recobrar o tempo perdido, respondia ella rindo.
Então Sophia inventava passeios, á toa, para fazel-a descançar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedicta não perdia tempo: lia as taboletas francezas, e perguntava pelos substantivos novos, que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estrictamente adequado era o seu vocabulario ás cousas do vestido, da sala e do galanteio.
Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedicta fazia progressos rapidos. A pessoa ajustára-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que expressão particular que, para assim dizer, dava côr a todas as linhas e gestos da figura. Não obstante essa differença, é certo que a outra era vista e notada ao pé della, de tal geito que Sophia, que começára por louval-a em toda a parte, não a deslouvava agora, mas ouvia calada as admirações. Fallava bem;—mas, quando calava, era por muito tempo; dizia que eram os seus «calundús». Contradansava sem vida, que é a perfeição desse genero de recreio; gostava muito de ver polkar e valsar. Sophia, imaginando que era por medo que a prima não valsava nem polkava, quiz dar-lhe algumas lições em casa, sosinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusava sempre.
—Isso é ainda um bocadinho de casca da roça, disse-lhe uma vez Sophia.
Maria Benedicta sorriu de um modo tão particular, que a outra não insistiu. Não foi riso de vexame, nem de despeito, nem de desdem. Desdem, porque? Comtudo, é certo que o riso parecia vir de cima. Não menos o é que Sophia polkava e valsava com ardor, e ninguem se pendurava melhor do hombro do parceiro; Carlos Maria, que era raro dansar, só valsava com Sophia,—dous ou tres giros, dizia elle;—Maria Benedicta contou uma noite quinze minutos.
Os quinze minutos foram contados no relogio do Rubião, que estava ao pé da Maria Benedicta, e a quem ella perguntou duas vezes que horas eram, no principio e no fim da valsa. A propria moça inclinou-se para ver bem o ponteiro dos minutos.
—Está com somno? perguntou Rubião.
Maria Benedicta olhou para elle de soslaio. Viu-lhe o rosto placido, sem intenção nem riso.
—Não, respondeu; digo-lhe até que estou com medo que prima Sophia se lembre de ir cedo para casa.
—Não vae cedo. Já acabou a desculpa de Santa Thereza, por causa da subida. A casa fica perto daqui.
De facto, as duas moravam agora na praia do Flamengo, e o baile era na rua dos Arcos.
É de saber que tinham decorrido oito mezes desde o principio do capitulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião é socio do marido de Sophia, em uma casa de importação, á rua da Alfandega, sob a firma Palha & Comp. Era o negocio que este ia propor-lhe, naquella noite, em que achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo. Apezar de facil, Rubião, recuou algum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contos de réis, não entendia de commercio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares eram já grandes; o capital precisava do regimen do bom juro e alguma poupança, a ver se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regimen que lhe indicavam não era claro; Rubião não podia comprehender os algarismos do Palha, calculos de lucros, tabellas de preço, direitos da alfandega, nada; mas, a linguagem fallada suppria a escripta. Palha dizia cousas extraordinarias, aconselhava ao amigo que aproveitasse a occasião para pôr o dinheiro a caminho, multiplical-o. Se tinha medo, era outra cousa; elle, Palha, faria o negocio com John Roberts socio que foi da casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo chefe voltou para a Inglaterra, e era agora membro do parlamento.
Rubião não cedeu logo, pediu prazo, cinco dias. Consigo era mais livre; mas desta vez a liberdade só servia para atordoal-o. Computou os dinheiros despendidos, avaliou os rombos feitos no cabedal, que lhe deixára o philosopho. Quincas Borba, que estava com elle no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o, Rubião estremeceu; a idéa de que naquelle Quincas Borba podia estar a alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do cerebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de censura nos olhos; riu-se, era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captal-o.
Atraz dos motivos de recusa, vieram outros contrarios. E se o negocio rendesse? Se realmente lhe multiplicasse o que tinha? Accrescia que a posição era respeitavel, e podia trazer-lhe vantagens na eleição, quando houvesse de propor-se ao parlamento, como o velho chefe da casa Wilkinson. Outra razão mais forte ainda era o receio de magoar o Palha, de parecer que lhe não confiava dinheiros, quando era certo que, dias antes, recebera parte da divida antiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituida dentro de dous mezes.
Nenhum desses motivos era pretexto de outro; vinham de si mesmos. Sophia só appareceu no fim, sem deixar de estar nelle, desde o principio, ideia latente, inconsciente, uma das causas ultimas do acto, e a unica dissimulada. Rubião abanou a cabeça para expellil-a, e levantou-se. Sophia (dona astuta!) recolheu-se á inconsciencia do homem, respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria de socio com o marido, mediante certas clausulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade commercial; assim é que Rubião legalisou a assiduidade das suas visitas.
—Senhor Rubião, disse Maria Benedicta depois de alguns segundos de silencio, não lhe parece que minha prima é bem bonita?
—Não desfazendo na senhora, acho.
—Bonita e bem feita.
Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharam com os olhos o par de valsistas, que passeava ao longo do salão. Sophia estava magnifica. Trajava de azul escuro, mui decotada,—pelas razões ditas no cap. XXXVIII, os braços nús, cheios, com uns tons de ouro claro, ajustavam-se ás espaduas e aos seios, tão acostumados ao gaz do salão. Diadema de perolas feitiças, tão bem acabadas, que iam de par com as duas perolas naturaes, que lhe ornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera um dia...
Ao lado della, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmos olhos placidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneiras subditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; fallava com a graça de um rei benevolo. Entretanto, se, á primeira vista, parecia fazer apenas um obsequio áquella senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dous sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contacto de Sophia era para elle como a prosternação de uma devota. Não se admirava de nada. Se um dia accordasse imperador, só se admiraria da demora do ministerio em vir comprimental-o.
—Vou descançar um pouco, disse Sophia.
—Está cançada ou... aborrecida? perguntou-lhe o braceiro.
—Oh! cançada apenas!
Carlos Maria, arrependido de haver supposto a outra hypothese, deu-se pressa em climinal-a.
—Sim, creio; porque é que estaria aborrecida? Mas eu affirmo que é capaz de fazer me o sacrificio de passear ainda algum tempo. Cinco minutos?
—Cinco minutos.
—Nem mais um que seja? Pela minha parte, passearia a eternidade.
Sophia abaixou a cabeça.
—Com a senhora, note bem.
Sophia deixou-se ir com os olhos no chão, sem contestar, sem concordar, sem agradecer, ao menos. Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se agradeçam. Já lhe tinha ouvido outr'ora palavras analogas, dando-lhe a primazia entre as mulheres deste mundo. Deixou de as ouvir durante seis mezes,—quatro que elle gastou em Petropolis,—dous em que lhe não appareceu. Ultimamente é que tornou a frequentar a casa, a dizer-lhe finezas daquellas, ora em particular, ora á vista de toda a gente. Deixou-se ir; e ambos foram andando calados, calados, calados,—até que elle rompeu o silencio, notando-lhe que o mar defronte da casa della, batia com muita força, na noite anterior.
—Passou lá? perguntou Sophia.
—Estive lá; ia pelo Cattete, já tarde, e lembrou-me descer á praia do Flamengo. A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava commigo? Entretanto, eu quasi que ouvia a sua respiração...
Sophia tentou sorrir; elle continuou:
—O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente;—com esta differença que o mar é estupido, bate sem saber porquê, e o meu coração sabe que batia pela senhora.
—Oh! murmurou Sophia.
Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo. Estou que a propria dama não poderia responder exactamente, tal foi o abalo que lhe trouxe a declaração do moço. Em todo caso, não foi com incredulidade. Não posso dizer mais senão que a exclamação saiu tão frouxa, tão abafada que elle mal pode ouvil-a. Pela sua parte, Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda a sala; nem antes, nem durante, nem depois das palavras, mostrou no rosto a menor commoção; tinha até umas sombras de riso caustico, um riso de seu uso, quando mofava de alguem; parecia ter dito um epigramma. Comtudo, mais de um olho de mulher espreitava a alma de Sophia, estudava o gesto da moça, tal ou qual acanhado, e as palpebras teimosamente cahidas.
—A senhora está perturbada, disse elle; disfarce com o leque.
Sophia machinalmente entrou a abanar-se e levantou os olhos. Viu que muitos outros a fitavam, e empallideceu. Os minutos iam correndo, com a mesma brevidade dos annos; os primeiros cinco e os segundos iam longe; estavam no decimo terceiro, atraz deste iam apontando as azas de outro, e mais outro. Sophia disse ao braceiro que queria sentar-se.
—Vou deixal-a e retiro-me.
—Não, disse ella precipitadamente.
Depois, emendou-se:
—O baile está bonito.
—E tá, mas eu quero levar commigo a melhor recordação da noite. Qualquer outra palavra que ouça agora será como o coaxar das rãs, depois do canto de um lindo passaro, um dos seus passaros lá de casa. Onde quer que a deixe?
—Ao lado de minha prima.
Rubião cedeu a cadeira, e acompanhou Carlos Maria, que atravessou a sala, e foi até o gabinete da entrada, onde estavam os sobretudos e uns dez homens conversando. Antes que o rapaz entrasse no gabinete, Rubião pegou-lhe do braço, familiarmente, para lhe perguntar alguma cousa,—fosse o que fosse,—mas, em verdade, para retel-o comsigo, e procurar sondal-o. Começava a crer possivel ou real uma ideia que o atormentava desde muitos dias. Agora, a conversação dilatada, os modos della...
Carlos Maria não tinha noticia da longa paixão do mineiro, guardada, mortificada, não se podendo confessar a ninguem,—esperando os beneficios do acaso,—contentando-se de pouco, da simples vista da pessoa, dormindo mal as noites, dando dinheiro para as operações mercantis... Que elle não tinha ciumes do marido. Nunca a intimidade do casal lhe excitara os odios contra o legitimo senhor. E lá iam mezes e mezes, sem alteração do sentimento, nem morte da esperança... Mas a possibilidade de um rival de fóra veiu atordoal-o; aqui é que o ciume trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue.
—Que é? disse Carlos Maria voltando-se.
Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde os dez homens tratavam de politica, porque este baile,—ia-me esquecendo dizel-o,—era dado em casa de Camacho, a proposito dos annos da mulher. Quando os dous alli entraram, a conversação era geral, o assumpto o mesmo, e todos fallavam para todos,—um turbilhão de ditos, de pareceres, de affirmações diversas... Um, que era doutrinario, conseguiu dominar os outros, que se calaram por instantes, fumando.
—Podem fazer tudo, disse o doutrinario, mas a punição moral é certa. As dividas dos partidos pagam-se com juros até o ultimo real e até a ultima geração. Principios não morrem; os partidos que o esquecem expiram no lodo e na ignominia.
Outro, meio calvo, não acreditava na punição moral, e dizia porquê; mas um terceiro, fallou da demisão de uns collectores, e os espiritos, meio tontos com a doutrina, tomaram pé. Os collectores não tinham outra culpa, alem da opinião; e nem ao menos se podia defender o acto com o merecimento dos substitutos. Um destes trazia ás costas um desfalque; outro era cunhado de um tal Marques que dera um tiro de garrucha no delegado, em S. José dos Campos... E os novos tenentes-coroneis? Verdadeiros réos de policia...
—Já se vae embora? perguntou Rubião ao moço, quando o viu tirar o sobretudo d'entre os outros.
—Já; estou com somno. Ajude-me a enfiar esta manga. Estou com somno.
—Mas ainda é cedo; fique. O nosso Camacho não deseja que os rapazes saiam; quem é que hade dansar com a moças?
Carlos Maria replicou sorrindo que era pouco dado a dansas. Valsára com D. Sophia, por ser mestra no officio; senão, nem isso. Estava com somno; preferia a cama á orchestra. E estendeu-lhe a mão com benignidade; Rubião apertou-lh'a, meio incerto.
Não sabia que pensasse. O facto de sair, de a deixar no baile, em vez de esperar para acompanhal-a á carroagem, como de outras vezes... Podia ser engano delle... E pensava, recordava a noite de Santa Thereza, quando elle ousou declarar á moça, o que sentia, pegando-lhe na bella mão delicada... O major interrompera-os; mas porque não insistiu elle mais tarde? Nem ella o maltratou, nem o marido percebera cousa nenhuma... Aqui voltava a ideia do possivel rival; é certo que se retirára com somno, mas os modos della... Rubião ia á porta do salão, para ver Sophia, depois chegava-se a um canto ou á meza do voltarete, inquieto, aborrecido.
Em casa, ao despentear-se, Sophia fallou daquelle saráo como de uma cousa enfadonha. Bocejava, doiam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposição della. Se lhe doiam as pernas é porque dançára muito. Ao que retorquiu a mulher que, se não dançasse, teria morrido de tedio. E ia tirando os grampos, deitando-os a um vaso de crystal; os cabellos cahiam-lhe aos poucos sobre os hombros, mal cobertos pela camisola de cambraia. Palha, por traz della, disse-lhe que o Carlos Maria valsava muito bem. Sophia estremeceu; fitou-o no espelho, o rosto era placido. Concordou que não valsava mal.
—Não, senhora, valsa muito hem.
—Você louva os outros porque sabe que ninguem é capaz de o desbancar. Anda, meu vaidoso, já te conheço.
Palha, estendendo a mão e pegando-lhe no queixo, obrigou-a a olhar para elle. Vaidoso, porque? porque é que elle era vaidoso?
—Ai, gemeu Sophia; não me machuques.
Palha beijou-lhe a espadua; ella sorriu, sem tedio, sem dor de cabeça, ao contrario daquella noite de Santa Theresa, em que relatou ao marido os atrevimentos do Rubião. É que os morros serão doentios, e as praias saudaveis...
No dia seguinte, Sophia acordou cedo, ao som dos trillos da passarada de casa, que parecia dar-lhe um recado de alguem. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor.
Ver melhor o que? Não, seguramente, os morros doentios. A praia era outra cousa. Posta á janella, dalli a meia hora, Sophia contemplava as ondas que vinham morrer defronte, e, ao longe, as que se levantavam e desfaziam á entrada da barra. A imaginosa dama perguntava a si mesma se aquillo era a valsa das aguas, e deixava-se ir por essa torrente de ideias abaixo, sem velas nem remos. Deu comsigo olhando para a rua, ao pé do mar, como procurando os signaes do homem que alli estivera, na ante-vespera, alta noite... Não juro, mas cuido que achou os signaes. Ao menos, é certo que cotejou o achado com o texto da conversação:
«A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que nem sonhava commigo? Entretanto, eu quasi que ouvia a sua respiração... O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta differença que o mar é estupido, bate sem saber porque, e o meu coração sabe que batia pela senhora...»
Sophia teve um calefrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo: «A noite era clara...»
Entre duas phrases, sentiu que alguem lhe punha a mão no hombro; era o marido, que acabava de tomar café e ia para a cidade. Despediram-se affectuosamente; Christiano recommendou-lhe Maria Benedicta, que acordara muito aborrecida.
—Já de pé! exclamou Sophia.
—Quando eu desci, já a achei na sala de jantar. Accordou com ideias de ir para a roça; teve um sonho... não sei que...
—Calundús! concluiu Sophia.
E com os dedos habeis e leves concertou a gravata ao marido, puxou-lhe a gola do fraque para deante, e despediram-se outra vez. Palha desceu e sahiu; Sophia deixou-se estar á janella. Antes de dobrar a esquina, elle voltou a cabeça, e, na fórma do costume, disseram adeus com a mão.
«A noite era clara; fiquei cerca de uma hora entre o mar e a sua casa. A senhora aposto que...»
Quando Sophia pôde arrancar-se de todo á janella, o relogio de baixo batia nove horas. Zangada, arrependida, jurou a si mesma, pela alma da mãe, não pensar mais em semelhante episodio. Considerou que não valia nada; o erro foi deixar que o rapaz chegasse ao fim dos seus atrevimentos. Verdade é que, procedendo assim, evitou algum grande escandalo, porque elle era capaz de a acompanhar até a cadeira e dizer-lhe o resto ao pé de outras pessoas. E o resto repetia-se ainda uma vez na memoria della, como um trecho musical teimoso, as mesmas palavras, e a mesma voz: «A noite era clara; fiquei cerca de uma hora...»
Emquanto ella repetia a declaração da vespera, Carlos Maria abria os olhos, estirava os membros, e, antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeio a cavallo, reconstruiu a vespera. Tinha esse costume; achava sempre nos successos do dia anterior algum facto, algum dito, alguma cousa que lhe fazia bem. Ahi é que o espirito se demorava; ahi eram as estalagens do caminho, onde elle descavalgava o corpo, para beber vagarosamente um golpe d'agua fresca. Se não havia successo nenhum desses,—ou se os havia só contrarios, nem por isso as sensações eram desconfortativas; bastava-lhe o sabor de alguma palavra que elle mesmo houvesse dito,—de algum gesto que fizesse, a contemplação subjectiva, o gosto de se ter sentido viver,—para que a vespera não fosse um dia perdido.
Na vespera figurava Sophia. Parece até que foi o principal da reconstrucção, a fachada do edificio, larga e magnifica. Carlos Maria saboreou de memoria toda a conversação da noite, mas, quando se lembrou da confissão de amor, sentiu-se bem e mal. Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação; e, posto que o beneficio corrigisse o tedio, o rapaz ficou entre uma e outra sensação, sem plano. Ao recordar-se da noticia que lhe deu de haver ido á praia do Flamengo, na outra noite, não pôde suster o riso, porque não era verdade. Nascera-lhe a ideia da propria conversação; mas nem lá foi nem pensara nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-se delle; o facto de haver mentido trouxe-lhe uma sensação de inferioridade, que o abateu. Chegou a pensar em rectificar o que dissera, logo que estivesse com Sophia, mas reconheceu que a emenda era peor que o soneto, e que ha bonitos sonetos mentirosos.
Depressa ergueu a alma. Viu de memoria a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo n'um banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note-se bem; elle carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delicia intima. A princeza do baile entregava-se-lhe. Definia assim a superioridade de Sophia, posto lhe conhecesse um defeito capital,—a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, e ainda assim não subiam muito do meio em que vivia.
Outras mulheres vieram ali,—as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestára todas? Não se sabe. Algumas, vá: é certo, porém, que se deleitava com todas ellas. Taes havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contacto de um bello homem, sem a realidade nem o perigo da culpa,—como o expectador que se regala das paixões de Othello, e sae do theatro com as mãos limpas da morte de Desdemona.
Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem todas seriam moças em flor; mas a distincção suppria a juvenilidade. Carlos Maria recebia-as, como um deus antigo devia receber, quieto no marmore, as lindas devotas e suas offerendas. No borborinho geral distinguia as vozes de todas,—não todas a um tempo,—mas ás tres e ás quatro.
A derradeira dellas foi a da recente Sophia; escutou-a ainda namorado, mas sem o alvoroço do principio, porque a lembrança das outras donas, pessoas de qualidade, diminuia agora a importancia desta. Comtudo, não podia negar que era mui attractiva e que valsava perfeitamente. Chegaria a amar com força? Nisto appareceu-lhe outra vez a mentira da praia. Levantou-se aborrecido da cama.
—Quem diabo me mandou dizer semelhante cousa?
Tornou a encarar a ideia de restabelecer a verdade; e desta vez mais seriamente que da outra. Mentir, pensava elle, era para os lacaios e seus congeneres.
D'ahi a meia hora, trepava ao cavallo e sahia de casa, que era na rua dos Invalidos. Cattete adeante, veiu-lhe á ideia que a casa de Sophia era na praia do Flamengo; nada mais natural que torcer a redea, descer uma das ruas perpendiculares ao mar, e passar pela porta da valsista. Achal-a-hia, talvez á janella; vel-a-hia córar, comprimental-o. Tudo isto passou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos; chegou a dar um geito á redea, mas a alma,—não o cavallo,—a alma empinou—; era ir muito depressa atraz della. Deu outro geito á redea, e continuou o passeio.
Montava bem. Toda a gente que passava, ou estava ás portas não se fartava de mirar a postura do moço, o garbo, a tranquilidade régia com que se deixava ir. Carlos Maria,—e este era o ponto em que cedia á multidão,—recolhia as admirações todas, por infimas que fossem. Para adoral-o, todos os homens faziam parte da humanidade.
—Já de pé! repetiu Sophia, ao ver a prima lendo os jornaes.
Maria Benedicta teve um sobresalto, mas aquietou-se logo; dormira mal, e accordou cedo. Não estava para aquellas folias até tão tarde, disse ella, mas a outra replicou logo que era preciso acostumar-se, a vida do Rio de Janeiro não era a mesma da roça, dormir com as galinhas e accordar com os gallos. E depois perguntou-lhe que impressões trouxera do baile; Maria Benedicta levantou os hombros com indifferença, mas verbalmente respondeu que boas. Custava-lhe fallar, as palavras sahiam-lhe poucas e molles. Sophia, entretanto, ponderou-lhe que dansara muito, salvo polkas e valsas. E porque não havia de polkar e valsar tambem? A prima lançou-lhe uns olhos máos.
—Não gosto.
—Qual não gosta! É medo.
—Medo?
—Falta de costume, explicou Sophia.
A outra teve uma ideia, e quiz retel-a; mas a ideia escapou-lhe, a despeito do exforço:
—Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande commigo, assim, á vista dos outros. Tenho vexame.
Sophia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou, fallou-lhe da roça, perguntou-lhe se era certo o que lhe dissera Christiano, que ella queria ir para casa. Então a prima, que folheava os jornaes, á toa, respondeu animadamente que sim; não podia viver sem a mãe.
—Mas porque? Você não estava tão contente comnosco?
Maria Benedicta não disse nada; passeou os olhos em um dos jornaes, como se procurasse alguma cousa, trincando o beiço, tremula, inquieta. Sophia teimou em querer saber a causa daquella mudança repentina; pegou-lhe nas mãos, achou-as frias.
—Você precisa casar, disse finalmente. Tenho já um noivo.
Era Rubião; o Palha queria acabar por ahi, casando o socio com a prima; tudo ficava em casa, dizia elle á mulher. Esta tomou a si guiar o negocio. Accudia-lhe agora a promessa; tinha um noivo prompto, era só fallar.
—Quem? perguntou Maria Benedicta.
—Uma pessoa.
Crel-o-heis, posteros? Sophia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez, dissera ao marido haver fallado nelle, e era mentira. Agora, indo a fallar deveras, o nome não lhe sahiu da boca. Ciumes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor áquelle homem, não quizesse dal-o de noivo á prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciume de Othello e o do cavalleiro Desgrieux, podia inventar este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir.
—Mas quem? repetiu Maria Benedicta.
—Direi depois, deixe-me arranjar as cousas, respondeu Sophia, e mudou de conversa.
Maria Benedicta trocou de rosto; a boca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa e o trabalho, e disseram palavras que ninguem podia ouvir nem entender, palavras curiosas e obscuras:
—Gosta de valsar; é o que é.
Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra. Tinha valsado tanto na vespera, com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dansa um pretexto; Maria Benedicta concluia agora que era o proprio e unico motivo. Conversaram muito nos intervallos, é certo, mas naturalmente era della que fallavam, uma vez que a prima tinha a peito casal-a, e só lhe pedia que deixasse arranjar as cousas. Talvez elle a achasse feia, ou sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as cousas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina.
Rubião é que não perdeu a suspeita assim tão facilmente. Teve ideia de fallar a Carlos Maria, interrogal-o, e chegou a ir á rua dos Invalidos, no dia seguinte, tres vezes; não o encontrando, mudou de parecer. Encerrou-se por alguns dias; o major Siqueira arrancou-o á solidão. Ia participar-lhe que se mudara para a rua Dous de Dezembro. Gostou muito da casa do nosso amigo, das alfaias, do luxo, de todas as minucias, ouros e bambinellas. Sobre este assumpto fallou longamente, relembrando alguns moveis antigos. Como só elle fallasse, parou de repente, para dizer que o achava aborrecido; era natural, faltava-lhe alli um complemento.
—O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui uma cousa; falta-lhe mulher. O senhor precisa casar. Case-se, e diga que eu o engano.
Rubião lembrou-se de Santa Thereza,—daquella famosa noite da conversação com Sophia,—e sentiu correr-lhe um frio pelas costas; mas a voz do major não tinha nenhum sarcasmo. Tambem não lhe fallava por interesse. A filha estava ainda qual a deixámos no capitulo XLXIII, com a differença que os quarenta annos vieram. Quarentona, solteirona. Gemeu-os comsigo, logo de manhã, no dia em que os completou; não poz fita nem rosa no cabello. Nenhuma festa; tão sómente um discurso do pae, ao almoço, lembrando-lhe cousas de criança, anecdotas da mãe e da avó, um dominó de baile de mascaras, um baptisado de 1848, a solitaria de um coronel Clodomiro, varias cousas assim de mistura, para entreter as horas. D. Tonica mal podia ouvil-o; mettida em si mesma, ia roendo o pão da solitude moral, ao passo que se arrependia dos ultimos exforços empregados na busca de um marido. Quarenta annos; era tempo de parar.
Nada disso lembrava agora ao major. Fallou sinceramente; achou que a casa de Rubião não tinha alma. E repetiu, ao despedir-se:
—Case-se, e diga que eu o engano.
—E por que não? perguntou uma voz, depois que o major sahiu.
Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viu apenas o cachorro, parado, olhando para elle. Era tão absurdo crer que a pergunta viria do proprio Quincas Borba,—ou antes do outro Quincas Borba, cujo espirito estivesse no corpo deste, que o nosso amigo sorriu com desdem; mas, ao mesmo tempo, executando o gesto do capitulo XLIX, estendeu a mão, e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro,—acto proprio a dar satisfação ao possivel espirito do finado.
Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem publico, deante de si mesmo.
Mas a voz repetiu:—E porque não? Sim, porque não havia de casar, continuou elle raciocinando. Mataria a paixão que o ia comendo aos poucos, sem esperança nem consolação. Demais, era a porta de um mysterio. Casar, sim, casar logo e bem.
Estava ao portão, quando esta idéa começou a abotoar;—foi dalli para dentro, subindo os degráos de pedra, abrindo a porta, sem consciencia de nada. Ao fechar a porta, é que um pulo do Quincas Borba, que o viera acompanhando, fel-o dar por si. Onde ficara o major? Quiz descer para vel-o, mas advertiu a tempo que acabava de o acompanhar até á rua. As pernas tinham feito tudo; ellas é que o levaram por si mesmas, direitas, lucidas, sem tropeço, para que ficasse á cabeça tão sómente a tarefa de pensar. Boas pernas! pernas amigas! muletas naturaes do espirito!
Santas pernas! Ellas o levaram ainda ao canapé, estenderam-se com elle, devagarinho, emquanto o o espirito trabalhava a ideia do casamento. Era um modo de fugir a Sophia; podia ser ainda mais alguma cousa.
Sim, podia ser tambem um modo de restituir á vida a unidade que perdera, com a troca do meio e da fortuna; mas esta consideração não era propriamente filha do espirito nem das pernas, mas de outra causa, que elle não distinguia bem nem mal, como a aranha. Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant, é talvez um animal metaphysico. Em verdade, o casamento podia ser o laço da unidade perdida. Rubião sentia-se disperso; os proprios amigos de transito, que elle amava tanto, que o cortejavam tanto, davam-lhe á vida um aspecto de viagem, em que a lingua mudasse com as cidades, ora hespanhol, ora turco. Sophia contribuia para esse estado; era tão diversa de si mesma, ora isto, ora aquillo, que os dias iam passando sem accôrdo fixo, nem desengano perpetuo.
Rubião não tinha que fazer; para matar os dias longos e varios, ia as sessões do jury, á camara dos deputados, á passagem dos batalhões, dava grandes passeios, fazia visitas desnecessarias, á noite, ou ia aos theatros, sem prazer. A casa era ainda um bom repouso ao espirito, com o seu luxo rutilante e os sonhos que vagavam no ar.
Ultimamente, occupava-se muito em ler; lia romances, mas só os historicos de Dumas pae, ou os contemporaneos de Feuillet, estes com difficuldade, por não conhecer bem a lingua original. Dos primeiros sobravam traducções. Arriscava-se a algum mais, se lhe achava o principal dos outros, uma sociedade fidalga e régia. Àquellas scenas da côrte de França, inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os seus nobres espadachins e aventureiros, as condessas e os duques de Feuillet, mettidos em estufas ricas, todos elles com palavras mui compostas, polidas, altivas ou graciosas, faziam-lhe passar o tempo ás carreiras. Quasi sempre, acabava com o livro cahido e os olhos no ar, pensando. Talvez algum velho marquez defuncto lhe repetisse anedoctas de outras eras.
Antes de cuidar da noiva, cuidou do casamento. Naquelle dia e nos outros, compoz de cabeça as pompas matrimoniaes, os coches,—se ainda os houvesse antigos e ricos, quaes elle via gravados nos livros de usos passados. Oh! grandes e soberbos coches! Como elle gostava de ir esperar o Imperador, nos dias de grande gala, á porta do paço da cidade, para ver chegar o prestito imperial, especialmente o coche de Sua Magestade, vastas proporções, fortes molas, finas e velhas pinturas, quatro ou cinco parelhas guiadas por um cocheiro grave e digno! Outros vinham, menores em grandeza, mas ainda assim tão grandes que enchiam os olhos.
Um desses outros, ou ainda algum menor, podia servir-lhe ás bodas, se toda a sociedade não estivesse já nivellada pelo vulgar coupé. Mas, emfim, iria de coupé; imaginava-o forrado magnificamente, de que? De uma fazenda que não fosse commum, que elle mesmo não distinguia, por ora; mas que daria ao vehiculo o ar que não tinha. Parelha rara. Cocheiro fardado de ouro. Oh! mas de um ouro nunca visto. Convidados de primeira ordem, generaes, diplomatas, senadores, um ou dous ministros, muitas summidades do commercio; e as damas, as grandes damas? Rubião nomeava-as de cabeça; via-as entrar, elle no alto da escada de um palacio, com o olhar perdido por aquelle tapete abaixo,—ellas atravessando o saguão, subindo os degraus com os seus sapatinhos de setim, breves e leves,—a principio, poucas,—depois mais, e mais, e ainda mais. Carruagens após carruagens... Lá vinham os condes de Tal, um varão guapo e uma singular dama... «Caro amigo, aqui estamos», dir-lhe-hia o conde, no alto; e, mais tarde, a condessa: «Senhor Rubião, a festa é esplendida...»
De repente, o internuncio... Sim, esquecera-se que o internuncio devia casal-os; lá estaria elle, com as suas meias roxas de monsenhor, e os grandes olhos napolitanos, em conversação com o ministro da Russia. Os lustres de crystal e ouro allumiando os mais bellos collos da cidade, casacas direitas, outras curvas ouvindo os leques que se abriam e fechavam, dragonas e diademas, a orchestra dando signal para uma valsa. Então os braços negros, em angulo, iam buscar os braços nús, enluvados até o cotovello, e os pares saiam girando pela sala, cinco, sete, dez, doze, vinte pares. Ceia explendida. Crystaes da Bohemia, louça da Hungria, vasos de Sèvres, criadagem lesta e fardada, com as iniciaes do Rubião na gola.
Esses sonhos iam e vinham. Que mysterioso Prospero transformava assim uma ilha banal em mascarada sublime? «Vae; Ariel, traze aqui os teus companheiros, para que eu mostre a este joven casal alguns feitiços da minha feitiçaria.» As palavras seriam as mesmas da comedia; a ilha é que era outra, a ilha e a mascarada. Aquella era a propria cabeça do nosso amigo; esta não se compunha de deusas nem de versos, mas de gente humana e prosa de sala. Mais rica era. Não esqueçamos que o Prospero de Shakespeare era um duque de Milão; e, eis ahi, talvez, porque se metteu na ilha do nosso amigo.
Em verdade, as noivas que appareciam ao lado do Rubião, naquelles sonhos de bodas, eram sempre titulares. Os nomes eram os mais sonoros e faceis da nossa nobiliarchia. Eis aqui a explicação: poucas semanas antes, Rubião apanhou um almanack de Laemmert,e, entrando a folheal-o, deu com o capitulo dos titulares. Se elle sabia de alguns, estava longe de os conhecer a todos. Comprou um almanack, e lia-o muitas vezes, deixando escorregar os olhos por alli abaixo, desde os marquezes até os barões, voltava atraz, repetia os nomes bonitos, trazia a muitos de cór. Ás vezes, pegava da penna e de uma folha de papel, escolhia um titulo moderno ou antigo, e escrevia-o repetidamente, como se fosse o proprio dono e assignasse alguma cousa:
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Ia assim, até o fim da lauda, variando a lettra, ora grossa, ora miuda, cabida para traz, em pé, de todos os feitios. Quando acabava a folha, pegava nella, e comparava as assignaturas; deixava o papel e perdia-se no ar.
D'ahi a jerarchia das noivas. O peor é que todas traziam a cara de Sophia;—podiam parecer-se nos primeiros instantes com alguma visinha, ou com a moça que elle comprimentára, á tarde, na rua; podiam começar muito magras ou gordas;—mas não tardavam em mudar de figura, encher ou desbastar o corpo, e sobre isto vinha rutilar o rosto da bella Sophia, com os seus mesmos olhos amotinados ou quietos. Não havia fugir, ainda casando? Rubião chegou a pensar na morte do Palha; foi em certo dia, ao sahir da casa delle, tendo-lhe ouvido a ella uma porção de cousas bonitas e vagas. Grande foi a sensação de ventura, posto que elle repellisse dahi a pouco a ideia, como um ruim agouro. Dias depois, trocadas as maneiras, tornava elle definitivamente aos seus planos. Mais de uma vez,era o proprio Palha que o accordava daquelles sonhos conjugaes.
—Tem onde ir hoje á noite?
—Não.
—Pegue lá uma entrada para o Theatro Lyrico; camarote n. 8, primeira ordem, á esquerda.
Rubião chegava mais cedo, ia esperar por elles, e dava o braço a Sophia. Si ella estava de bom humor, a noite era das melhores do mundo. Si não, era um martyrio, para repetir as proprias palavras delle, ao cão, um dia:
—Vim hontem de um martyrio, meu pobre amigo.
—Case-se, e diga que eu o engano, latiu-lhe Quincas Borba.
—Sim, meu pobre amigo, accudiu elle pegando-lhe nas patas deanteiras e collocando-as sobre os joelhos. Você tem razão; precisa de uma boa amiga que lhe dê cuidados que não posso ou não sei dar. Quincas Borba, você ainda se lembra do nosso Quincas Borba? Bom amigo meu, grande amigo, eu tambem fui amigo delle, dous grandes amigos. Se fosse vivo, seria o padrinho do meu casamento, levantaria os brindes,—ao menos, o de honra, aos noivos;—e seria por um copo de ouro e diamantes, que eu lhe mandaria fazer de proposito... Grande Quincas Borba!
E o espirito de Rubião pairava sobre o abysmo.
Um dia, como houvesse sahido mais cedo de casa, e não soubesse onde passar a primeira hora, caminhou para o armazem. Desde uma semana que não ia á praia do Flamengo, por haver Sophia entrado em um dos seus periodos de sequidão. Achou o Palha de luto; morrera a tia da mulher, D. Maria Augusta, na fazenda; a noticia chegara na ante-vespera, á tarde.
—A mãe daquella mocinha?
—Justo.
Palha fallou da defuncta com muitos encarecimentos; depois contou a dôr de Maria Benedicta; estava que mettia pena. Perguntou-lhe porque é que não ia ao Flamengo, logo á noite, para ajudal-os a distrail-a? Rubião prometteu ir.
—Vá, é favor que nos faz; a pobre pequena vale tudo. Não imagina que primor alli está. Boa educação, muito severa; e quanto a prendas de sociedade, se não as teve em criança, ressarsiu o tempo perdido com rapidez extraordinaria. Sophia é a mestra. E dona de casa? Isso, meu amigo, não sei se em tal edade, se achará pessoa tão completa. Já agora fica comnosco. Tem uma irmã, Maria José, casada com um juiz de direito, no Ceará; tem tambem o padrinho, em S. João d'El-rei. A defuncta fallava delle com elogio; não creio que elle a mande buscar, mas ainda que mande, não a dou. Já agora é nossa. Não hade ser pelo que o padrinho lhe quizer deixar em testamento que nos desfaremos della. Aqui ficará, concluiu tirando com o dedo um pouco de poeira da gola do Rubião.
Rubião agradeceu. Depois, como estavam no escriptorio, ao fundo, olhou por entre as grades, e viu entrar uns fardos no armazem. Perguntou que traziam.
—São uns morins inglezes.
—Morins inglezes, repetiu Rubião, com indifferença.
—A proposito, sabe que a casa Moraes & Cunha, paga a todos os credores, integralmente?
Rubião não sabia nada, nem se a casa existia, nem se elles eram credores della; ouviu a noticia, respondeu que estimava muito, e dispoz-se a ir embora. Mas o socio reteve-o ainda alguns instantes. Estava alegre agora; parecia que não lhe morrera ninguem. Voltou a fallar de Maria Benedicta. Tinha intenção de casal-a bem; nem ella era moça de dar lerias a pelintras, nem se deixava ir por phantasias tolas; era ajuizada, merecia um bom esposo, pessoa seria.
—Sim, senhor, ia dizendo Rubião.
—Olhe, murmurou de repente o socio; não se admire do que lhe vou dizer. Creio que você é que casa com ella.
—Eu? acudiu Rubião, espantado. Não, senhor. E em seguida, para attenuar o effeito da recusa: Não nego que seja moça digna e perfeita; mas... por ora... não penso em casar...
—Ninguem lhe diz que seja amanhã ou depois; casamento não é cousa que se improvise. O que eu digo é que tenho cá um palpite. São cousas; palpites. Sophia nunca lhe fallou neste meu palpite?
—Nunca.
—É exquisito, disse-me que lhe fallára uma vez, ou duas, não me lembro bem.
—Pode ser, sou muito distrahido. Que queriam casar-me com a moça?
—Não, que eu tinha um palpite. Mas, não fallemos mais n'isto. Demos tempo ao tempo.
—Adeus.
—Adeus; vá cedo.
Com que então, Sophia queria casal-o? sahiu pensando o Rubião; era naturalmente o processo mais expedito para descartar-se d'elle. Casal-o, fazel-o seu primo. Rubião palmilhou muita rua, antes que chegasse a esta outra hypothese:—Talvez Sophia não se houvesse esquecido de fallar, mas mentisse de proposito ao marido para não dar andamento ao projecto. N'este caso o sentimento era outro. Esta explicação pareceu-lhe logica; a alma voltou á serenidade anterior.
Mas não ha serenidade moral que corte uma polegada siquer ás abas do tempo, quando a pessoa não tem maneira de o fazer mais curto. Ao contrario, a ancia de ir ao Flamengo, á noite, vinha tornar as horas mais arrastadas. Era cedo, cedo para tudo, para ir á rua do Ouvidor, para voltar a Botafogo. O Dr. Camacho estava em Vassouras defendendo um réo no jury. Não havia divertimento algum publico; festa nem sermão. Nada. Rubião, profundamente aborrecido, trocava as pernas, á toa, lendo as taboletas, ou detendo-se ao simples incidente de um atropello de carros. Em Minas, não se aborrecia tanto, porque? Não achou solução ao enigma, uma vez que o Rio de Janeiro tinha mais em que se distrahir, e que o distrahia deveras; mas havia aqui horas de um tedio mortal.
Felizmente, ha um deus para os enojados. Accudiu á memoria de Rubião que o Freitas,—aquelle Freitas tão alegre—estava gravemente enfermo; Rubião chamou um tilbury e foi visital-o á Praia Formosa, onde morava. Gastou alli perto de duas horas, conversando com o doente; este adormeceu, elle despediu-se da mãe,—um caco de velha,—e á porta antes de sair:
—A senhora hade ter tido seus apertos de dinheiro, disse o Rubião; e, vendo-a morder o beiço e baixar os olhos: Não se envergonhe; necessidade afflige, mas não envergonha. Eu o que queria era que a senhora acceitasse alguma cousa, que lhe vou deixar para acudir á despeza; pagará um dia, se puder...
Tinha aberto a carteira, tirou seis notas de vinte mil reis, fez um bolo de todas ellas, e deixou-lh'o na mão. Abriu a porta e saiu. A velha, espantada, nem teve alma para agradecer; só ao rodar do tilbury, é que correu á janella, mas já não podia ver o bemfeitor.
Tudo aquillo saiu tão expontaneamente ao Rubião, que elle só teve tempo de reflectir, depois que o tilbury começou a andar. Parece que chegou a levantar a cortina do postigo; a velha ia entrando; viu-lhe ainda o resto do braço. Rubião sentiu toda a vantagem de não estar invalido. Reclinou-se, desabafou o peito com um grande suspiro e olhou para a praia; logo depois inclinou-se. Na vinda, mal pudera vel-a.
—Vossa Senhoria está gostando, disse-lhe o cocheiro contente com o bom freguez que tinha.
—Acho bonito.
—Nunca veiu aqui?
—Creio que vim, ha muitos annos, quando estive no Rio de Janeiro pela primeira vez. Que eu sou de Minas... Pare, moço.
O cocheiro fez parar o cavallo; Rubião desceu, e disse-lhe que fosse andando de vagar.
Em verdade, era curioso. Aquellas grandes braçadas de matto, brotando do lodo, e postas alli ao pé da cara do Rubião, davam-lhe vontade de ir ter com ellas. Tão perto da rua! Rubião nem sentia o sol. Esquecera o doente e a mãe do doente. Assim sim,—dizia elle comsigo,—fosse o mar todo uma cousa daquelle feitio, alastrado de terras e verduras, e valia a pena navegar. Para lá daquillo ficava a praia dos Lazaros e a de S. Christovão. Uma pernada apenas.
—Praia Formosa, murmurou elle; bem posto nome.
Entretanto, a praia ia mudando de aspecto. Dobrava para o Sacco do Alferes, vinham as casas edificadas do lado do mar. De quando em quando, não eram casas, mas canoas, encalhadas no lodo, ou em terra, fundo para o ar. Ao pé de uma dessas canoas, viu meninos brincando, em camisa e descalços, em volta de um homem que estava de barriga para baixo. Todos elles riam; um ria mais que os outros porque não acabava de fixar o pé do homem no chão. Era um pecurrucho do tres annos; agarrava-se-lhe á perna e ia-a estendendo até nivelal-a com o chão, mas o homem fazia um gesto e levava pelo ar o pé e o menino.
Rubião deteve-se alguns minutos deante daquillo. O sujeito, vendo-se objecto de attenção, redobrou o exforço no brinco; perdeu a naturalidade. Os outros meninos mais edosos detiveram-se a olhar espantados. Mas Rubião não distinguia nada; via tudo confusamente. Foi ainda a pé durante largo tempo; passou o Sacco do Alferes, passou a Gamboa, parou deante do cemiterio dos inglezes, com os seus velhos sepulchros trepados pelo morro, e afinal chegou á Saude. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casas apinhadas ao longe e no alto dos morros, beccos, muita casa antiga, algumas do tempo do rei, comidas, gretadas, estripadas, o caio encardido, e a vida lá dentro. E tudo isso lhe dava uma sensação de nostalgia... Nostalgia do farrapo, da vida escassa, acalcanhada e sem vexame. Mas durou pouco; o feiticeiro que andava nelle transformou tudo. Era tão bom não ser pobre!
Rubião chegou ao fim da rua da Saude. Ia á toa com os olhos espraiados e desattentos. Rente com elle, passou uma mulher, não bonita, nem feia, singella sem elegancia, antes pobre que remediada, mas fresca de feições; contaria vinte e cinco annos, e levava pela mão um menino. Este atrapalhou-se nas pernas do Rubião.
—Que é isso, nhonhô? disse a moça, puxando o filho pelo braço.
Rubião inclinara-se ao pequeno, para amparal-o.
—Muito obrigada, desculpe, disse ella sorrindo; e comprimentou-o.
Rubião tirou o chapéo, e sorriu tambem. A visão da familia apoderou-se delle outra vez.—«Case-se, e diga que eu o engano!»—Parou, olhou para traz, viu ir a moça, tique-tique, e o menino ao pé della, amiudando as perninhas, para ajustar-se ao passo da mãe. Depois, foi andando lentamente, pensando em varias mulheres que podia escolher muito bem, para executar, a quatro mãos, a sonata conjugal, musica séria, regular e classica. Chegou a pensar na filha do major, que apenas sabia umas velhas mazurkas. De repente, ouvia a guitarra do peccado, tangida pelos dedos de Sophia, que o deliciavam, que o estonteavam, a um tempo; e lá se ia toda a castidade do plano anterior. Teimava novamente, forcejava por trocar as composições; pensava na moça da Saude, modos tão bonitos, creancinha pela mão...
A vista do tilbury fez-lhe lembrar o doente da praia Formosa.
—Pobre Freitas! suspirou.
Logo depois, pensou tambem no dinheiro que deixára á mãe do enfermo, e achou que fizera bem. Talvez a ideia de haver dado uma ou duas notas de mais esvoaçou por alguns segundos no cerebro do nosso amigo; elle a sacudiu depressa, não sem se zangar consigo, e, para esquecel-a de todo, exclamou ainda em voz alta:
—Boa velha! pobre velha!
Como a ideia tornasse ainda, Rubião atirou-se depressa ao tilbury, entrou e sentou-se, faltando ao cocheiro, para fugir a si mesmo.
—Dei uma caminhada grande; mas, sim, senhor, isto aqui é bonito, é curioso; aquellas praias, aquellas ruas, é differente dos outros bairros. Gósto disto. Heide vir mais vezes.
O cocheiro sorriu para si de um modo tão particular, que o nosso Rubião desconfiou. Não atinava com o motivo do riso; talvez lhe houvesse escapado alguma palavra que no Rio de Janeiro tivesse máo sentido; mas repetiu-as e não descobriu nada; eram todas usadas e communs. Entretanto, o cocheiro sorria ainda, com o mesmo ar do principio, meio subserviente, meio velhaco. Rubião esteve a pique de o interrogar, mas recuou a tempo. Foi o outro que reatou a conversação.
—Vossa Senhoria está então muito admirado do bairro? disse elle. Hade deixar que eu não acredite, sem se zangar, que não é para offender a Vossa Senhoria, nem eu sou pessoa que aggrave um freguez serio; mas não creio que esteja admirado do bairro.
—Porque? aventurou Rubião.
O cocheiro meneou a cabeça para um e outro lado, e insistiu em não crer,—não porque o bairro não fosse digno de apreço, mas porque naturalmente já o conhecia muito, Rubião ratificou a primeira affirmação; tinha ido alli muitos annos antes, quando esteve da outra vez no Rio de Janeiro, mas não se lembrava da nada. E o cocheiro ria; e, á medida que o freguez ia demonstrando, elle ia ficando mais familiar, fazia negativas com o nariz, com os beiços, com a mão.
—Já sei disso, concluiu elle. Nem eu sou homem que não veja as cousas. Vossa Senhoria pensa que não vi a maneira porque olhou para aquella moça que passou ainda agora? Basta só isso para mostrar que Vossa Senhoria tem faro e gósta...
Rubião, lisongeado, sorriu um pouco; mas emendou-se logo:
—Que moça?
—Que lhe dizia eu? redarguiu o homem. Vossa Senhoria é fino, e faz muito bem; mas eu sou pessoa de segredo, e cá o carro tem servido para estas idas e vindas. Não ha muitos dias trouxe aqui um bello moço, muito bem vestido, pessoa fina,—já se sabe, negocio de rabo de saia.
—Mas eu... interrompeu o Rubião.
Mal podia conter-se; a supposição agradava-lhe; o cocheiro cuidou que elle dissimulava a culpa.
—Olhe, eu bem digo,—continuou elle; tal qual o moço da rua dos Invalidos. Vossa Senhoria póde ficar descançado; não digo nada; cá estou para outras. Então, quer que eu acredite que é por gosto que uma pessoa, que tem carro ás ordens, vem andando a pé desde a praia Formosa até aqui? Vossa Senhoria veiu ao logar marcado, a pessoa não veiu...
—Que pessoa? Fui ver um doente, um amigo que está para morrer.
—Tal qual o moço da rua dos Invalidos, repetiu o homem. Esse veiu ver uma costureira da mulher, como se fosse casado...
—Da rua dos Invalidos? perguntou Rubião, que só agora attentava no nome da rua.
—Não digo mais nada, acudiu o cocheiro. Era da rua dos Invalidos, bonito, um moço de bigodes e olhos grandes, muito grandes. Oh! eu tambem se fosse mulher, era capaz de apaixonar-me por elle... Ella não sei d'onde era, nem diria ainda que soubesse; sei só que era um peixão.
E vendo que o freguez o escutava com os olhos arregalados:
—Oh! Vossa Senhoria não imagina! Era de boa altura, bonito corpo, a cara meia coberta por um veu, cousa papafina. A gente, por ser pobre, não deixa de apreciar o que é bom.
—Mas... como foi? murmurou Rubião.
—Ora, como foi! Elle chegou como Vossa Senhoria, no meu tilbury, apeou-se e entrou n'uma casa de rotula; disse que ia ver a costureira da mulher. Como eu não lhe perguntei nada, e elle tinha vindo calado toda a viagem, muito cheio de si, comprehendi logo a finura. Agora, podia ser verdade, porque é mesmo uma costureira que mora na casa da rua da Harmonia...
—Da Harmonia? repetiu Rubião.
—Máo! Vossa Senhoria está arrancando o meu segredo; fallemos de outra cousa; não digo mais nada.
Rubião olhava attonito para o homem, que de facto se calou por dous ou tres minutos, mas logo depois continuou:
—Tambem não ha muita cousa mais. O moço entrou; eu fiquei esperando; meia hora depois vi um vulto de mulher, ao longe, e desconfiei logo que ia para lá. Meu dito, meu feito; ella veiu, veiu, devagar, olhando disfarçadamente para todos os lados; ao passar pela casa, não lhe digo nada, nem precisou bater; foi como nas magicas, a rotula abriu-se por si, e ella enfiou por alli dentro. Se eu já conheço isto. Em que é que Vossa Senhoria quer que a gente ganhe alguma cousa mais? O preço da tabella mal dá para comer; é preciso fazer estes ganchos.
—Não, não podia ser ella, reflectiu Rubião, em casa, vestindo-se de preto.
Desde que chegara, não pensou em outra cousa que não fosse o caso contado pelo cocheiro do tilbury. Tentou esquecel-o, arranjando papeis, ou lendo, ou dando estalinhos com os dedos para ver pular o Quincas Borba; mas a visão perseguia-o. Dizia-lhe a razão que ha muitas senhoras de boa figura, e nada provava que a da rua da Harmonia fosse ella; mas o bom effeito era curto. Dahi a pouco, desenhava-se ao longe, cabisbaixa, vagarosa, uma pessoa, que era nem mais nem menos a propria Sophia, e andava, e entrava de repente pela porta de uma casa, que se fechava logo... Beati quorum tecta sunt peccata. Assim rangia a porta em mau e litteral sentido. A visão foi tal, em certa occasião, que o nosso amigo ficou a olhar para a parede, como se alli estivesse a rotula da rua Harmonia. De imaginação, fez uma serie de acções:—bateu, entrou, lançou a mão ao gasnate da costureira, e pediu-lhe a verdade ou a vida. A pobre mulher, ameaçada da morte, confessou tudo; levou-o a ver a dama, que era outra, não era Sophia. Quando Rubião voltou a si, sentiu-se vexado.
—Não, não podia ser ella.
Vestiu o collete, e foi abotoal-o deante de uma das janellas, que dava os fundos, no momento em que uma caravana de formigas ia passando pelo peitoril. Quantas vira passar outr'ora! Mas desta vez, nunca soube como, pegou de uma toalha, deu dous golpes, atropellou as tristes formigas, matando uma porção dellas. Talvez alguma lhe pareceu «boa figura e bonita de corpo». Logo depois arrependeu-se do acto; e realmente, que tinham as formigas com as suas suspeitas? Felizmente, começou a cantar uma cigarra, com tal propriedade e significação, que o nosso amigo parou no quarto botão do collete. Sôôôô... fia, fia, fia, fia, fia, fia... Sôóóô... fia, fia, fia, fia, fia...
Oh! precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensal-as. Essa reflexão é do leitor. Do Rubião não póde ser. Nem era capaz de approximar as cousas, e concluir dellas,—nem o faria agora que está a chegar ao ultimo botão do collete, todo ouvidos, todo cigarra... Pobres formigas mortas! Ide agora ao vosso Homero gaulez, que vos pague a fama; a cigarra é que se ri, emendando o texto:
Vous marchiez? J'en suis fort aise.
Eh bien! mourez maintenant.
Soou a campainha do jantar; Rubião compoz o rosto, para que os seus habituados (tinha sempre quatro ou cinco) não percebessem nada. Achou-os na sala de visitas, conversando, á espera; ergueram-se todos, foram apertar-lhe a mão, alvoroçadamente. Rubião teve aqui um impulso curioso,—dar-lhes a mão a beijar. Reteve-se a tempo, espantado de si proprio.
De noite, correu á praia do Flamengo. Não pôde fallar a Maria Benedicta, que estava em cima, no quarto, com duas moças da visinhança, amigas della. Sophia veiu recebel-o á porta, e levou-o para o gabinete, onde duas costureiras faziam os vestidos de luto. O marido acabava de chegar; ainda não descera.
—Sente-se aqui, disse ella.
Tomou conta delle; estava divina. As palavras sabiam-lhe carinhosas e graves, entrecortadas de sorrisos amigos e honestos. Fallou-lhe da tia, da prima, do tempo, dos criados, dos expectaculos, da falta d'agua, de uma multidão de cousas diversas, vulgares ou não, mas que passando pela bocca da moça, mudavam de natureza e de aspecto. Rubião ouvia fascinado. Ella, para não estar vadia, ia cosendo uns folhos; e, quando a conversação fazia pausa, Rubião era pouco para comer-lhe as mãos ageis, que pareciam brincar com a agulha.
—Sabe que estou formando uma commissão de senhoras? perguntou ella.
—Não sabia; para que?
—Não leu a noticia daquella epidemia n'uma cidade das Alagoas?
Contou-lhe que ficara tão penalisada, que resolveu logo organisar uma commissão de senhoras, para pedir esmolas. A morte da tia interrompeu os primeiros passos; mas ia continuar, passada a missa do setimo dia. E perguntou que lhe parecia.
—Parece-me bem. Não ha homens na commissão?
—Ha só senhoras. Os homens apenas dão dinheiro, concluiu rindo.
Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era tambem verdade que a commissão ia pôr em evidencia a pessoa de Sophia, e dar-lhe um empurrão para cima. As senhoras escolhidas não eram da roda da nossa dama, e só uma a comprimentava; mas, por intermedio de certa viuva, que brilhára entre 1840 e 1850, e conservava do seu tempo as saudades e o apuro, conseguira que todas entrassem naquella obra de caridade. Desde alguns dias não pensara em outra cousa. Ás vezes, á noite, antes do chá, parecia dormir na cadeira de balanço; não dormia, fechava os olhos para considerar-se a si mesma, no meio das companheiras, pessoas de qualidade. Comprehende-se que este fosse o assumpto principal da conversação; mas, Sophia tornava de quando em quando ao presente amigo. Porque é que elle fazia fugidas tão longas, oito, dez, quinze dias, e mais? Rubião respondeu que por nada, mas tão commovido, que uma das costureiras bateu no pé da outra. Dahi em deante, ainda quando o silencio era largo, cortado apenas pelo som das agulhas no merinó, das tesouradas, dos rasgados, uma e outra não perdiam de vista a pessoa do nosso amigo, com os olhos fisgados na dona da casa.
Veiu uma visita de pesames,—um homem, director de banco. Foram chamar logo o Palha, que desceu a recebel-o. Sophia, pediu licença ao Rubião, por alguns segundos; ia ver Maria Benedicta.
Rubião, ficando só com as duas mulheres, entrou a andar de um lado para outro, abafando os passos, para não incommodar ninguem. Da sala vinha uma ou outra palavra do Palha: «Em todo o caso, pode crer...»—«Nem a administração de um banco é cousa de brincadeira...»—-«Positivamente...» O director fallava pouco, secco e baixo.
Uma das costureiras dobrou a costura, arrecadou apressadamente retalhos, tesouras, carreteis de linha, de retroz. Era tarde; ia-se embora.
—Dondon, espera um bocado que eu vou tambem.
—Não, não posso. O senhor faz favor de dizer que horas são?
—São oito e meia, respondeu Rubião.
—Jesus! é muito tarde.
Rubião, para dizer alguma cousa, perguntou-lhe porque não esperava, como a outra pedia.
—Só espero D. Sophia, acudiu Dondon com respeito; mas o senhor sabe onde é que esta móra? Móra na rua do Passeio. E eu vou dar com os ossos na rua da Harmonia. Olhe que daqui á rua da Harmonia é um estirão.
Sophia desceu logo, achou Rubião transtornado, fugindo com os olhos. Perguntou-lhe o que era; elle respondeu que nada. Dondon sahiu, o director do banco despedia-se; Palha agradecia-lhe a fineza, estimava-lhe a saude. Onde estava o chapéo? Achou-o; deu-lhe tambem o sobretudo; e, parecendo que elle procurava outra cousa, perguntou se era a bengala.
—Não, senhor, é o guarda chuva. Creio que é este; é este. Adeus.
—Ainda uma vez, obrigado, muito obrigado, disse o Palha. Ponha o seu chapéo, está humido, não faça ceremonias. Obrigado, muito obrigado, concluiu apertando-lhe a mão nas suas, e curvado em angulo.
Voltando ao gabinete, deu com o socio, que teimava em sair. Instou tambem; disse-lhe que tomasse uma chicara de chá, que lhe passava logo; Rubião recusou tudo.
—A sua mão está fria, observou o moça ao Rubião, apertando-lh'a; porque não espera? Agua de melissa é muito bom. Vou buscar.
Rubião deteve-a; não era preciso; conhecia aquelles achaques, curavam-se com o somno. Palha quiz mandar vir um tilbury; mas o outro accudiu dizendo que o ar da noite lhe faria bem, e que no Cattete acharia conducção.
—Vou agarral-a antes de chegar ao Cattete, disse Rubião subindo pela rua do Principe.
Calculou que a costureira teria ido por alli. Ao longe, descobriu alguns vultos de um e outro lado; um delles pareceu-lhe de mulher. Hade ser ella, pensou; e picou o passo. Entende-se naturalmente que levava a cabeça atordoada: rua da Harmonia, costureira, uma dama, e todas as rotulas abertas. Não admira que, fóra de si, e andando rápido, désse um encontrão em certo homem que ia devagar, cabisbaixo. Nem lhe pediu desculpa; alargou o passo, vendo que a mulher tambem andava depressa.
E o homem empurrado, apenas sentiu o empurrão. Caminhava absorto, mas contente, espraiando a alma, desabafado de cuidados e fastios. Era o director de banco, o que acabava de fazer a visita de pesames ao Palha. Sentiu o empurrão, e não se zangou; concertou o sobretudo e a alma, e lá foi andando tranquillamente.
Convem dizer, para explicar a indifferença do homem, que elle tivera, no espaço de uma hora commoções oppostas. Fora primeiro á casa de um ministro de Estado, tratar do requerimento de um irmão. O ministro, que acabava de jantar, fumava calado e pacifico. O director expoz atrapalhadamente o negocio, tornando atraz, saltando adeante, ligando e desligando as cousas. Mal sentado, para não perder a linha do respeito, trazia na boca um sorriso constante e venerador; e curvava-se, pedia desculpas. O ministro fez algumas perguntas; elle, animado, deu respostas longas, extremamente longas, e acabou entregando um memorial. Depois ergueu-se, agradeceu, apertou a mão ao ministro, este acompanhou-o até á varanda. Ahi fez o director duas cortezias,—uma em cheio, antes de descer a escada,—outra em vão, já embaixo, no jardim; em vez do ministro, viu só a porta de vidro fosco, e na varanda, pendente do tecto, o lampião de gaz. Enterrou o chapéu, e sahiu. Saiu humilhado, vexado de si mesmo. Não era o negocio que o affligia, mas os comprimentos que fez, as desculpas que pediu, as attitudes subalternas, um rosario de actos sem proveito. Foi assim que chegou á casa do Palha.
Em dez minutos, tinha a alma espanada, e restituida a si mesma, taes foram as mesuras do dono da casa, os apoiados de cabeça, e um raio de sorriso perenne, não contando offerecimentos de chá e charutos. O director fez-se então severo, superior, frio, poucas palavras; chegou a arregaçar com desdem a venta esquerda, a proposito de uma ideia do Palha, que a recolheu logo, concordando que era absurda. Copiou do ministro o gesto lento. Saindo, não foram delle as cortezias, mas do dono da casa.
Estava outro, quando chegou á rua; dahi o andar socegado e satisfeito, o espraiar da alma devolvida a si propria, e a indifferença com que recebeu o embate do Rubião. Lá se ia a memoria dos seus rapapés; agora o que elle rumina saborosamente são os rapapés de Christiano Palha.
Quando Rubião chegou á esquina do Cattete, a costureira conversava com um homem, que a esperara, e que lhe dou logo depois o braço; e viu-os ir ambos, conjugalmente, para o lado da Gloria. Casados? amigos? Perderam-se na primeira dobra da rua, emquanto Rubião ficou parado, recordando as palavras do cocheiro, a rotula, o moço de bigodes, a senhora de bonito corpo, a rua da Harmonia... Rua da Harmonia; ella dissera rua da Harmonia.
Deitou-se tarde. Parte do tempo esteve á janella, matutando, charuto acceso, sem acabar do explicar aquelle negocio. Dondon era por força a terceira nos amores; devia ser, tinha olhos sonsos, pensava Rubião.
—Amanhã vou lá, saio mais cedo, vou esperal-a na esquina; dou-lhe cem mil réis, duzentos, quinhentos; ella hade confessar-me tudo.
Quando cançou, olhou para o céo; lá estava o Cruzeiro... Oh! se ella houvesse consentido em fitar o Cruzeiro! Outra teria sido a vida de ambos. A constellação pareceu confirmar este modo de sentir, fulgurando extraordinariamente; e Rubião quedou-se a miral-a, a compôr mil cousas lindas e namoradas,—a viver do que podia ter sido. Quando a alma se fartou de amores nunca desbrochados, accudiu á mente do nosso amigo que o Cruzeiro não é só uma constellação, é tambem uma ordem honorifica. D'aqui passou a outra série de pensamentos. Achou genial a ideia de fazer do Cruzeiro uma distincção nacional e previlegiada. Já tinha visto a venera ao peito de alguns servidores publicos. Era bella, mas principalmente rara.
—Tanto melhor! disse elle em voz alta.
Era perto de duas horas quando sahiu da janella; fechou-a e foi metter-se na cama, dormiu logo; accordou ao som da voz do creado hespanhol, que lhe trazia um bilhete.
Rubião sentou-se na cama, estremunhado, não reparou na lettra do sobrescripto; abriu o bilhete, e leu:
«Ficamos hontem muito inquietos, depois que o
senhor sahiu. Christiano não vae lá agora, porque
accordou tarde, e tem de ir fallar ao inspector da
alfandega. Mande-nos dizer se passou melhor. Lembranças
de Maria Benedicta e da
Sua amiga e obrigada
Sophia.»
—Diga ao portador que espere.
Dahi a vinte minutos a resposta chegou á mão do moleque que trouxera o bilhete; foi o proprio Rubião que lh'a entregou, perguntando-lhe como tinham passado as senhoras. Soube que bem; deu-lhe dez tostões, recommendando-lhe que, quando precisasse alguma cousa, viesse procural-o. O rapaz, espantado, arregalou os olhos e prometteu tudo.
—Adeus! disse-lhe benevolamente o Rubião.
E ficou parado, emquanto o portador descia os poucos degráus. Indo este a meio do jardim, ouviu bradar o Rubião:
—Espera!
Voltou para acudir ao chamado; Rubião já tinha descido os degráus; foram um ao outro, e pararam, calados. Correram dous minutos, sem que Rubião abrisse a boca. Afinal, perguntou alguma cousa, se as senhoras tinham passado bem. Era a mesma pergunta de ha pouco; o criado confirmou a resposta. Depois, Rubião deixou vagar os olhos pelo jardim. As rosas e as margaridas estavam lindas e frescas, alguns cravos desabrochavam, outras flores e folhagens, begonias e trepadeiras, todo esse pequeno mundo parecia estender os olhos invisiveis ao Rubião, e bradar-lhe:
—Alma sem vigor, acaba de uma vez com o teu desejo; colhe-nos, manda-nos...
—Bem, disse finalmente Rubião; lembranças ás senhoras. Não se esqueça do que lhe disse; precisando de mim, venha cá. Guardou a carta?
—Está aqui, sim, senhor.
—É melhor mettel-a no bolso, mas olhe não machuque.
—Não machuco, não, senhor, retorquiu o criado accommodando a carta.
Sahiu o moleque; Rubião ficou passeando no jardim, com as mãos nos bolsos do chambre, e os olhos nas flores. Que tinha que mandasse algumas? Era um presente natural, e até de obrigação para pagar uma cortezia com outra. Fez mal; correu ao portão, mas já o moleque ia longe; Rubião advertiu que o luto excluia as lembranças alegres, e ficou tranquillo.
Senão quando, ao recomeçar o passeio, viu uma carta ao pé de um canteiro. Inclinou-se, apanhou-a, leu o sobrescripto... A lettra era della, tão só della; comparou-a com a do bilhete que recebera; era a mesma. O nome era o do diabo: Carlos Maria.
—Sim, foi isso, pensou elle ao cabo de alguns minutos, o portador da minha carta trouxe esta, e deixou-a cair.
E, mirando a carta, de um e outro lado, perguntava-lhe pelo conteúdo. Oh! o conteúdo! Que iria alli escripto dentro daquelle papel homicida? Perversidade, luxuria, toda a linguagem do mal e da demencia, resumidas em duas ou tres linhas. Ergueu-a ante dos olhos, para ver se podia ler alguma cousa; o papel era grosso; não se podia ler nada. Ao lembrar-se que o portador, dando por falta da carta, voltaria a procural-a, metteu-a atrapalhadamente no bolso, e correu para dentro.
Em casa, tirou-a e mirou-a outra vez; as mãos hesitavam, reproduzindo o estado da consciencia. Se abrisse a carta, saberia tudo. Lida e queimada, ninguem mais conheceria o texto, ao passo que elle teria acabado por uma vez com essa terrivel fascinação que o fazia penar ao pé daquelle abysmo de opprobios... Não sou eu que o digo, é elle; elle é que junta esse e outros nomes ruins, elle é que pára no meio da sala, com os olhos no tapete, em cuja trama figura um turco indolente, cachimbo na boca, olhando para o Bosphoro... Devia ser o Bosphoro.
—Infernal carta! rosnou surdamente, repetindo uma phrase ouvida no theatro, algumas semanas antes; phrase esquecida, que, por uma associação de ideias, vinha agora exprimir a analogia moral do expectaculo e do expectador.
Teve impetos de abril-a; era só um gesto, um acto; ninguem o via, os quadros da parede estavam quietos, indifferentes, o turco do tapete continuava a fumar e a olhar para o Bosphoro. Contudo, sentia, escrupulos; a carta, posto que achada no jardim, não lhe pertencia, mas ao outro. Era como se fosse um embrulho de dinheiro; não devolveria o dinheiro ao dono? Despeitado, metteu-a outra vez no bolso. Entre mandar a carta ao destinatario e entregal-a a Sophia, adoptou afinal o segundo alvitre; tinha a vantagem de poder lêr a verdade nas feições da propria autora.
—Digo-lhe que achei uma carta, assim e assim, pensou Rubião; e antes de lhe dar a carta, vejo bem na cara della, se fica atterrada ou não. Talvez empallideça: então ameaço-a, fallo-lhe da rua da Harmonia; juro-lhe que estou disposto a gastar trezentos, oitocentos, mil contos, dous mil, trinta mil contos, se tanto fôr preciso para estrangular o infame...
Nenhum dos habituados da casa compareceu ao almoço. Rubião esperou ainda alguns minutos, chegou a mandar um criado ao portão, a ver se vinha alguém. Ninguem; teve de almoçar sosinho.
Em geral, não podia supportar as refeições solitarias; estava tão affeito á linguagem dos amigos, ás observações, ás graças, não menos que aos respeitos e considerações, que comer só era o mesmo que não comer nada. Agora, porém, era como um Saul que precisasse de algum David, para expellir o espirito maligno que se mettera nelle. Já queria mal ao portador da carta, porque a deixara cair; ignorar era um beneficio. E depois, a consciencia vacillava,—ia da entrega da carta á recusa e á guarda indefinida. Rubião tinha medo de saber alguma cousa; ora queria, ora não queria lêr nada no rosto de Sophia. O desejo de saber tudo era, em resumo, a esperança de descobrir que não havia nada.
David appareceu emfim, entre o queijo e o café, na pessoa do Dr. Camacho, que voltara de Vassouras, na vespera, á noite. Como o David da Escriptura, trazia um jumento carregado de pães, um cantaro de vinho e um cabrito. Deixára gravemente enfermo um deputado mineiro, que estava em Vassouras e preparou a candidatura do Rubião, escrevendo ás influencias de Minas. Foi o que lhe disse aos primeiros golos de café.
—Candidato, eu?
—Pois então quem?
Camacho demonstrou que não podia haver melhor. Tinha serviços em Minas, não tinha?
—Alguns.
—Aqui os tem de grande relevancia. Mantendo commigo o orgão das ideias, tem recebido solidariamente os golpes que me dão, além dos sacrificios que todos fazemos pelo lado pecuniario. Sobre isto, não me diga nada. Digo-lhe que heide fazer o que puder. Demais, o senhor é a melhor solução da divergencia.
—Divergencia?
—Sim, o Dr. Hermenegildo, de Cattas-Altas, e o coronel Romualdo; dizem que ambos, em caso de vaga, querem apresentar-se; é dividir os votos.
—Seguramente; mas teimam?
—Creio que não teimarão, quando eu lhes mandar d'aqui confirmação dos chefes, porque foi uma das cousas que me lançaram á cara, é que eu não tinha poderes; confessei que, para aquelle caso imprevisto, não; mas que possuia a confiança dos superiores, os quaes me approvariam. Creia que está feito. Então que pensa? Pensa que trabalho aqui sacrificando tempo e dinheiro, e algum talento, para não valer a um amigo, que tantas provas tem dado de fidelidade aos principios? Oh! isso não. Hão de ouvir-me, e adoptar o que lhes proponho.
Rubião, commovido, fez ainda outras perguntas acerca da luta e da victoria, se eram precisas algumas despezas já, ou carta de recommendação e pedido, e como é que se havia de ter noticias frequentes do enfermo, etc. Camacho respondia a tudo; mas recommendava-lhe cautella. Em politica, disse elle, uma cousa de nada desvia o curso da campanha e dá a victoria ao adversario. Comtudo, ainda que não sahisse vencedor, tinha Rubião a vantagem de ficar com o seu nome suffragado; e o precedente contava-se por um serviço.
—Firmeza e paciencia, concluiu.
E logo em seguida:
—Eu proprio que sou, se não um exemplo de paciencia e firmeza? A minha provincia está entregue a um grupo de bandidos; não ha outro nome para a gente dos Pinheiros; e alem disso (digo-lhe isto com dor e em particular) tenho amigos que me intrigam, uns ganhadores, que querem ver se o partido me repelle e se me tomam o logar... Não fallemos disso! Ah! meu caro Rubião, isto de politica pode ser comparado á paixão de Nosso Senhor Jesus Christo; não falta nada, nem o discipulo que nega, nem o discipulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregado peles cravos da inveja, da calumnia e da ingratidão...
Esta phrase, cahida no calor da conversa, pareceu-lhe digna de um artigo; reteve-a de memoria; antes de dormir, escreveu-a em uma tira de papel. Mas, na occasião da conversa, emquanto a repetia consigo para fixal-a, Rubião dizia que se animasse, que elle era homem para grandes campanhas. E não fugisse de caretas.
—De caretas? Seguramente que não. Nem de papões verdadeiros, se os ha. Cá os espero! Que se acautellem no dia em que subirmos! Hão de pagar tudo. Ouça-me este conselho; em politica, não se perdoa nem se esquece nada. Quem fez uma, paga; creia que a vingança é um prazer, continuou sorrindo; ha muita delicia... Emfim, contados os males e os bens da politica, os bens ainda são superiores. Ha ingratos, mas os ingratos demittem-se, prendem-se, perseguem-se...
Rubião ouvia subjugado. Camacho impunha; faiscavam-lhe os olhos. Os anathemas brotavam-lhe como da boca de Isaias; as palmas do triumpho verdejavam-lhe nas mãos. Cada gesto parecia um principio. Quando fallava com os braços abertos, ferindo o ar, era como se desdobrasse um programma inteiro. Ia-se embriagando de esperanças, e tinha o vinho alegre. De uma vez, parou deante de Rubião:
—Vamos lá, deputado; ensaie um discurso, pedindo o encerramento da discussão: Sr. presidente... Vamos, diga commigo: Sr. presidente, peço a V. Ex...
Rubião interrompeu-o, erguendo-se; teve uma especie de vertigem. Via-se na camara, entrando para prestar juramento, todos os deputados de pé; e teve um calefrio. O passo era difficil. Contudo, atravessou a sala, subiu á mesa do presidencia, prestou o juramento de estylo... Talvez a voz lhe fraqueasse na occasião...
Foi nesse estado que o veiu achar a noticia da morte do Freitas. Chorou uma lagryma ás escondidas; tomou a si custear as despezas do enterro, e acompanhou o defuncto, na tarde seguinte, ao cemiterio. A velha mãe do finado, quando o viu entrar na sala, quiz ajoelhar-se aos pés delle; Rubião abraçou-a a tempo de impedir-lhe o gesto. Esse acto do nosso amigo fez grande impressão nos convidados. Um delles veiu apertar-lhe a mão; depois a um canto, baixinho, contou-lhe a injustiça da demissão que recebera, dias antes; demissão acintosa, por causa de intrigas...
—Imagine V. Ex. que aquillo é (com perdão da palavra) um covil de patifes...
Chegou a hora de sahir o enterro; as despedidas da mãe foram dolorosas; beijos, soluços, exclamações, tudo de mistura, e lancinante. As mulheres não conseguiram arrancal-a dalli; foram precisos dous homens e o emprego da força; ella gritava e teimava por tornar ao cadaver: meu filho! meu pobre filho!
—Um escandalo! insistia o demittido. O proprio ministro dizem que não gostou do acto; mas V. Ex. sabe, para não desmoralisar o director...
—Pan... pan... pan... soavam os martellos surdamente, pregando o caixão.
Rubião accedeu ao pedido que lhe faziam de pegar em uma das argolas, e deixou o demittido. Fóra, alguma gente parada; os visinhos ás janellas, debruçavam-se uns sobre os outros, com os olhos cheios daquella curiosidade que a morte inspira aos vivos. Ao demais, havia o coupé do Rubião, que se destacava das caleças velhas. Já se fallava muito daquelle amigo do finado, e a presença confirmou a noticia. O defuncto era agora apreciado com certa consideração.
No cemiterio, não se contentou Rubião com deitar a pá de terra, acto em que foi primeiro, por solicitação de todos; esperou que os coveiros enchessem a cova com as suas grandes pás do officio. Tinha os olhos humidos; acabou, saiu, ladeado pelos outros, e, á porta, com uma só chapelada para a direita e para a esquerda, saudou a todas as cabeças descobertas e curvas. Ao entrar no coupé, ainda ouviu estas palavras, a meia voz:
—Parece que é senador ou desembargador, ou cousa assim...
Era noite entrada. Rubião vinha por alli abaixo, recordando o pobre diabo que enterrára, quando, na rua de S. Christovão, cruzou com outro coupé, que levava duas ordenanças atrás. Era um ministro que ia para o despacho imperial. Rubião pôz a cabeça de fóra, recolheu-a e ficou a ouvir os cavallos das ordenanças, tão eguaesinhos, tão distinctos, apezar do estrepito dos outros animaes. Era tal a tensão do espirito do nosso amigo, que ainda os ouvia, quando já a distancia não permittia audiencia. Catrapuz... catrapuz... catrapuz...
Ao setimo dia da morte de D. Maria Augusta, rezou-se a missa de uso, em S. Francisco de Paula; Rubião lá foi, lá viu Carlos Maria. Tanto bastou para precipitar a devolução da carta; tres dias depois, metteu-a no bolso e correu ao Flamengo. Eram duas horas da tarde. Maria Benedicta fôra visitar as amigas da visinhança, que a tinham acompanhado nos primeiros dias de afflicção; Sophia estava só, vestida para sair.
—Mas, não importa, disse ella convidando-o a sentar-se; fico ou saio mais tarde.
Rubião retorquiu que a demora era curta; vinha dar-lhe um papel.
—Em todo caso, sente-se; tambem se póde dar um papel sentado.
Estava tão bonita, que elle hesitou em dizer-lhe as palavras duras que trazia de cór. O luto ia-lhe muito bem, e o vestido parecia uma luva. Sentada, via-se-lhe metade do pé, sapato raso, meia de sêda, cousas todas que pediam misericordia e perdão. Quanto á espada daquella bainha,—assim chama á alma um velho autor,—parecia não ter gume nem campanhas; era uma ingenua faca de marfim. Rubião esteve a pique de fraquear; a primeira palavra arrastou as outras.
—Que papel? perguntou Sophia.
—Um papel, que supponho grave, respondeu elle contendo-se;—não se recorda ou não sabe que perdeu uma carta?
—Não.
—Costuma escrever cartas?
—Tenho escripto algumas; mas, não me lembra se grave. Deixe ver.
Rubião tinha os olhos desvairados. Não disse nem fez nada. Levantou-se para sair, não saiu. Depois de alguns instantes de silencio e inquietação, fallou sem raiva:
—Não é segredo para a senhora que lhe quero bem. A senhora sabe disto, e não me despede, nem me acceita, anima-me com os seus bonitos modos. Não me esqueci ainda de Santa Theresa, nem da nossa viagem no trem de ferro, quando vinhamos os dous, com seu marido no meio. Lembra-se? Foi a minha desgraça aquella viagem; desde aquelle dia a senhora me prendeu. A senhora é má, tem genio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, podia desenganar-me logo...
—Cale-se, vem gente, interrompeu Sophia erguendo-se tambem e olhando para o lado da porta.
Não vinha ninguem; entretanto, podiam ouvil-o, por que a voz do Rubião ia aquecendo e crescendo. Cresceu ainda mais. Já não pleiteava esperanças; abria e despejava a alma.
—Não me importa que ouçam, bradou elle; podem ouvir-me; agora digo tudo, a senhora bota-me para fóra e tudo acaba. Não, não se póde fazer soffrer assim um homem como eu.
—Cale-se, pelo amor de Deus!
—Qual Deus! Ouça-me o resto, porque eu estou disposto a não guardar nada...
Desatinada, receiando deveras que algum criado ouvisse, Sophia levantou a mão e tapou-lhe a boca. Ao contacto daquella epiderme querida, Rubião perdeu a voz. Sophia retirou a mão, e dispoz-se a deixar a sala; mas, chegando á porta, parou. Rubião caminhara até á janella, para convalecer da explosão.
Sophia, depois de estar alguns segundos á escuta, tornou á sala, e foi sentar-se com grande rumor de saias, na ottomana de setim azul, compra de poucos dias. Rubião voltou-se, e deu com ella, abanando reprehensivamente a cabeça. Antes que elle falasse, Sophia poz o dedo na boca, pedindo-lhe silencio; depois chamou-o com a mão; Rubião obedeceu.
—Sente-se naquella cadeira, disse ella; e continuou, depois de o ver sentado: Tenho razão para zangar-me com o senhor; não o faço, porque sei que é bom, e estou que é sincero; arrependa-se do que me disse, e tudo lhe será perdoado.
Acabando de fallar, Sophia bateu com o leque no lado direito do vestido para o abaixar e compôr; depois levantou os braços sacudindo as pulseiras do vidro preto; finalmente, pousou os braços sobre os joelhos, e, abrindo e fechando as varetas do leque, aguardou a resposta. Ao contrario do que esperava, Rubião abanou a cabeça negativamente.
—Não tenho de que me arrepender, disse elle; e prefiro que me não perdoe. A senhora ficará cá dentro, quer queira, quer não; podia mentir, mas que é que rende a mentira? A senhora é que não tem sido sincera commigo, porque me tem enganado...
Sophia retezou o busto.
—...Não se zangue; não desejo offendel-a; mas, deixe-me dizer que a senhora é que me tem enganado, e muito, e sem compaixão. Que ame a seu marido, vá; perdoava-lhe; mas que...
—Mas que? repetiu ella espantada.
Rubião metteu a mão no bolso, tirou a carta, e entregou-lh'a. Sophia, ao ler o nome de Carlos Maria, ficou sem pinga de sangue; elle viu-lhe a pallidez. Dominando-se logo, perguntou o que era, que queria dizer essa carta.
—A lettra é sua.
—É minha. Mas que diria eu aqui dentro? continuou tranquilla. Quem lhe deu isto?
Rubião quiz referir o achado; mas entendeu ter alcançado o bastante; cortejou-a para sair.
—Perdão, disse ella, abra o senhor mesmo a carta.
—Não tenho mais nada que fazer aqui.
—Fique, abra a carta, aqui a tem; leia tudo,—dizia a moça pegando-lhe na manga; mas, Rubião puxou violentamente o braço, foi buscar o chapéo, e sahiu. Sophia, com medo dos criados, deixou-se ficar na sala.
Tão nervosa esteve durante alguns instantes, que não cuidou da carta. Afinal, virou-a de um lado para outro, sem adivinhar o conteúdo; mas, pouco a pouco, já senhora de si, lembrou-se que devia ser a circular da commissão das Alagoas. Rasgou a sobrecarta: era a circular. Como é que semelhante papel fora ter ás mãos delle? E d'onde lhe vinha a suspeita? De si mesmo ou de fóra? Correria algum boato? Foi ter com o criado que levara a circular a Carlos Maria, e perguntou-lhe se a entregára. Soube que não. Quando o criado chegou á rua dos Invalidos, não achou o papel no bolso, e, com medo, não dissera nada á ama.
Sophia tornou á sala, disposta a não sair. Recolheu a carta e a sobrecarta, para mostral-as a Rubião, afim de que elle visse bem que não era nada; mas, provavelmente, supporia a substituição do papel. Maldito homem! murmurou. E começou a andar á toa.
Uma revoada de memorias entrou na alma de Sophia. A imagem de Carlos Maria veiu postar-se ante ella, com os seus grandes olhos de espectro querido e aborrecido. Sophia quiz arredal-o, mas não pôde; elle acompanhava-a de um lado para outro, sem perder o tom esbelto e masculo, nem o ar de riso sublime. Ás vezes, via-o inclinar-se, articulando as mesmas palavras de certa noite de baile, que lhe custaram a ella horas de insomnia, dias de esperança, até que se perderam na irrealidade. Nunca Sophia comprehendera o mallogro daquella aventura. O homem parecia querer-lhe deveras, e ninguem o obrigava a declaral-o tão atrevidamente, nem a passar-lhe pelas janellas, alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos calidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria nenhuma; puro galanteio;—quando muito, um modo de apurar as suas forças attractivas... Natureza de pelintra, de cynico, de futil.
Que lhe importava o mysterio? Era um sujeito futil. Cresceu-lhe o nojo e o desdem. Chegou a rir-se delle; podia encaral-o sem remorsos. E foi andando por alli fóra, vingando-se do bobo,—chamava-lhe bobo,—e fitando no ar os olhos de immaculada. Em verdade, era occupar-se de mais com tal assumpto; começou a maldizer do Rubião, que evocára semelhante homem do esquecimento, por causa daquella triste circular... Depois, tornou ás primeiras lembranças, ás palavras de Carlos Maria. Se todos a achavam bella, porque não a acharia elle, que lh'o disse? Talvez o tivesse a seus pés, se não se houvesse mostrado tão agradecida, tão rasteira...
De repente, a criada, que estava na outra sala, ouvindo rumor de alguma cousa que se quebrava, correu á de visitas, e viu a ama, sozinha, de pé.
—Não é nada, disse-lhe esta.
—Pareceu-me que ouvi...
Foi aquelle boneco que cahiu; apanhe os cacos.
—O chinez! exclamou a creada.
De feito, era um mandarim de porcellana, pobre diabo que estava muito quieto, em cima de uma estante. Sophia achou-se com elle entre os dedos, sem saber como, nem desde quando; ao cuidar na sua voluntaria humilhação, teve um impulso—parece que raiva de si mesma,—e deu com o boneco em terra. Pobre mandarim! não lhe valeu ser de porcellana; não lhe valeu siquer ser dado pelo Palha.
—Mas, minha ama, como é que o chinez...
—Vá-se embora!
Sophia recordou todo o seu proceder diante de Carlos Maria, as acquiescencias faceis, os perdões antecipados, os olhos com que o buscava, os apertos de mão tão fortes... Era isso; tinha-se-lhe lançado aos pés. Depois, o sentimento foi mudando. Apezar de tudo, era natural que elle gostasse d'ella, e a conformidade moral de ambos não traria o abandono de um. Talvez a culpa fosse outra. Excavou razões possiveis, algum gesto duro e frio, alguma falta de attenção para com elle; lembrou-se que, uma vez, por medo de o receber sosinha, mandou dizer que não estava em casa. Sim, podia ser isso. Carlos Maria era orgulhoso; a menor desfeita pungia-o. Soube que era mentira... Essa era a culpa.
...ou, mais propriamente, capitulo em que o leitor, desorientado, não póde combinar as tristezas de Sophia com a anecdota do cocheiro. E pergunta confuso:—Então a entrevista da rua da Harmonia, Sophia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinquentes é tudo calumnia? Calumnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro, que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anecdota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado, adverte bem que era inverosimil que um homem, indo a uma aventura daquellas, fizesse parar o tilbury deante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Ha entre o ceu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua philosophia,—ruas transversaes, onde o tilbury podia ficar esperando.
—Bem; o cocheiro não soube compôr. Mas que interesse tinha em inventar a anecdota?
Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo, ficou quasi duas horas, sem o despedir; viu-o sair, entrar no tilbury, descer logo e vir a pé, ordenando-lhe que o acompanhasse. Concluiu que era optimo freguez; mas, ainda assim não se lembrou de inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino,—a da rua da Saude,—e Rubião quedou-se a olhar para ella com vistas de amor e melancolia. Aqui é que o cocheiro o teve por lascivo, além de prodigo, e encommendou-lhe as suas prendas. Se fallou em rua da Harmonia foi por suggestão do bairro d'onde vinham; e, se disse que trouxera um moço da rua dos Invalidos, é que naturalmente transportara de lá algum, na vespera,—talvez o proprio Carlos Maria,—ou porque lá morasse,—ou porque lá tivesse a cocheira,—qualquer outra circumstancia que lhe ajudou a invenção, como as reminiscencias do dia servem de materia aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros são imaginativos. Já é muito concertar farrapos da realidade.
Resta só a coincidencia de morar na rua da Harmonia uma das costureiras do luto. Aqui, sim, parece um proposito do acaso. Mas a culpa é da costureira; não lhe faltaria casa mais para o centro da cidade, se quizesse deixar a agulha e o marido. Ao contrario disso, ama-os sobre todas as casas deste mundo. Não era razão, para que eu cortasse o episodio, ou interrompesse o livro.
Das reflexões de Sophia é que não ha que explicar. Todas tinham o pé na verdade. Era certo e certissimo que Carlos Maria não correspondera ás primeiras esperanças,—nem ás segundas e terceiras,—porque as houve em quadras diversas, ainda que menos verdes e bastas. Quanto á causa disso, vimos que Sophia, á mingua de uma, attribuiu-lhe successivamente tres. Não chegou a pensar em alguns amores que elle porventura trouxesse e lhe tornassem insipidos quaesquer outros. Seria uma quarta causa, e talvez a verdadeira.
Durante alguns mezes, Rubião deixou de ir ao Flamengo. Não foi resolução facil de cumprir. Custou-lhe muita hesitação, muito arrependimento; mais de uma vez chegou a sair com o proposito de visitar Sophia e pedir-lhe perdão. De que? Não sabia; mas queria ser perdoado. Em todas as tentativas desse genero, a ideia de Carlos Maria fazia-o recuar. De certo ponto em diante, foi o proprio lapso de tempo que o tolheu; era exquisito apparecer lá um dia, como um triste filho prodigo, unicamente para supplicar o calor dos bellos olhos da dona da casa. Ia ao armazem, fallar ao Palha; este, ao fim de algumas semanas, reprochou-lhe a ausencia; e, passados dous mezes, perguntou-lhe se era formal proposito.
—Tenho tido muito que fazer, acudiu Rubião; estas cousas politicas tomam todo o tempo a uma pessoa. Vou lá domingo.
Sophia apparelhou-se para recebel-o. Espiaria a occasião de lhe dizer o que era a carta, jurando por todas as cousas santas, para que elle visse que a verdade não era contra ella. Planos perdidos; Rubião não compareceu. Veiu outro domingo, vieram outros domingos... Não obstante, Sophia remetteu-lhe um dia a subscripção para as Alagoas; elle assignou cinco contos de réis.
—É muito, disse-lhe o socio, no armazem, quando elle lhe foi levar o papel.
—Não dou menos.
—Mas olhe que póde dar muito, sem dar tanto. Parece-lhe então que esta subscripção é feita entre meia duzia de pessoas? Anda nas mãos de muitas senhoras e de alguns homens; está nos mostradores das lojas, na praça do Commercio, etc. Assigne menos.
—Como, se está escripto?
—Deste 5 póde-se fazer muito bem um 3. Tres contos já é uma boa assignatura. Ha maiores, mas são de pessoas obrigadas pelo cargo ou pelos milhões; o Bomfim, por exemplo, assignou dez contos.
Rubião não pode reter um risinho ironico; abanou a cabeça, e não sahiu dos cinco contos. Só emendaria, escrevendo o algarismo 1 atraz,—quinze contos,—mais que o Bomfim.
—Seguramente, que pode dar cinco, dez e quinze contos, tornou o Palha; mas o seu capital precisa cautellas, voce está entrando muito por elle... Repare que já lhe rende menos.
Palha era agora o depositario dos titulos de Rubião (acções, apolices, escripturas) que estavam fechados na burra do armazem. Cobrava-lhe os juros, os dividendos e os alugueis de tres casas, que lhe fizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e que lhe rendiam muito, Guardava tambem uma porção de moedas de ouro, porque Rubião tinha a manía de as collecionar, para a contemplação. Conhecia mais que o dono, a somma total dos bens, e assistia aos rombos feitos na caravella, sem temporal, mar leite. Tres contos bastavam, insistiu elle; e provou a sinceridade pelo facto de ser justamente marido da fundadora da commissão. Mas o Rubião não desistiu dos cinco; aproveitou a occasião para pedir-lhe mais dez; precisava de dez contos. Palha coçou a cabeça.
—Você desculpe, disse-lhe ao cabo de alguns instantes, mas para que é que os quer? Não está certo que vae perdel-os, ou arriscal-os, ao menos?
Rubião riu da objecção.
—Se eu estivesse certo de que os perdia, não vinha buscal-os. Póde ser arriscado, mas não é sem arriscar que se ganha. Preciso delles para um negocio,—quero dizer, tres negocios. Dous são emprestimos seguros, e não passam de um conto e quinhentos. Os oito contos e quinhentos são para uma empreza. Por que abana a cabeça, senão sabe de que se trata?
—Por isso mesmo. Se você me consultasse, se me dissesse que empreza e que pessoas eram, eu veria logo se podia arriscar-se; e receio muito que nada preste, a não ser o dinheiro que se perder. Lembra-se das acções daquella Companhia União dos Capitaes Honestos? Disse-lhe logo quo este titulo era emphatico, um modo de embair a gente, e dar emprego a sujeitos necessitados. Você não quiz crêr, e caiu. As acções estão por baixo, e já este semestre não ha dividendos.
—Pois venda justamente essas acções, ainda a resto de barato. Contento-me com o solido. Ou então dê-me da caixa da nossa casa... Passo logo por aqui, se você quizer,—ou mande-me lá a Botafogo. Caucione umas apolices, se lhe parecer melhor...
—Não, não faço nada; não dou os dez contos, atalhou fogosamente o Palha. Basta de ceder a tudo; o meu dever é resistir. Emprestimos seguros? Que emprestimos são esses? Não vê que lhe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dividas? Alguns sujeitos vão ao ponto de jantar diariamente com o proprio credor, como um tal Carneiro que lá vi algumas vezes. Dos outros não sei se lhe devem tambem alguma cousa; é possivel que sim. Vejo que é demais. Fallo-lhe por ser amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. De que hade viver, se estragar o que possue? A nossa casa póde cair.
—Não cae, acudiu o Rubião.
—Póde cair; tudo póde cair. Eu vi cair o banqueiro Souto, em 1864.
Rubião remoia os conselhos do socio, não por serem bons nem provaveis, mas por achar nelles uma intenção maviosa, revestida de fórma crúa. Agradeceu-os de coração, mas rejeitou-os; precisava dos dez contos. Podia ter mais tento, dalli em deante, e affirmava-lhe que seria menos facil. De resto, possuia de sobra, tinha dinheiro para dar e vender...
—Para vender só, emendou o Palha.
E, depois de um instante:
—Bem, agora é tarde, amanhã levo-lhe os dez contos. E porque os não hade ir buscar lá á nossa casa ao Flamengo? Que mal lhe fizemos nós? Ou que lhe fizeram ellas? porque a zanga parece ser com ellas, visto que o vejo aqui, algumas vezes. Que foi, para castigal-as? concluiu rindo.
Rubião desviou os olhos do socio, cuja falla lhe parecia afiada de ironia,—como de pessoa que soubesse tudo, e risse delle. Quando lh'os tornou, viu o mesmo semblante interrogativo, e respondeu:
—Não me fizeram nada; lá irei amanha á noite.
—Vá jantar.
—Jantar, não posso, tenho uns amigos em casa; vou de noite.—E querendo rir: Não as castigue, que não me fizeram nada.
—Alguem o possue, reflictiu Palha logo que elle saiu; alguem, por inveja as nossas relações... Tambem póde ser que Sophia lhe fizesse alguma para arredal-o de casa...
Rubião assomou outra vez á porta; não tivera tempo de chegar á esquina. Voltava para dizer que, precisando do dinheiro cedo, viria buscal-o ao armazem; de noite iria então visital-os. Precisava do dinheiro até ás duas horas da tarde.
Nessa noite, Rubião sonhou com Sophia e Maria Benedicta. Viu-as n'um grande terreiro, apenas vestidas de saia, costas inteiramente despidas; o marido de Sophia, armado de um azorrague de cinco pontas de couro, rematando em bicos de ferro, castigava-as despiedadamente. Ellas gritavam, pediam misericordia, torciam-se, alagadas em sangue, as carnes cahiam-lhes aos bocados. Agora, porque razão Sophia era a imperatriz Eugenia, e Maria Benedicta uma aia sua, é o que não sei dizer com exactidão. «São sonhos, sonhos, Penseroso!» exclamava um personagem do nosso Alvares de Azevedo. Mas eu prefiro a reflexão do velho Polonius, acabando de ouvir uma falla tresloucada de Hamlet: «Desvario embora, lá tem seu methodo». Tambem ha methodo aqui, nessa mistura de Sophia e Eugenia; e ainda ha methodo no que se lhe seguiu, e que parece mais extravagante.
Sim, Rubião, indignado, mandou logo cessar o castigo, enforcar o Palha e recolher as victimas. Uma dellas, Sophia, acceitou um lugar na carruagem aberta que esperava pelo Rubião, e lá foram a galope, ella garrida e sã, elle glorioso e dominador. Os cavallos, que eram dous á sahida, eram dahi a pouco, oito, quatro bellas parelhas. Ruas e janellas cheias de gente, flores cahindo em cima delles, acclamações... Rubião sentiu que era o imperador Luiz Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sophia...
Tudo acabou sem fim, nem fracasso, Rubião abriu os olhos; talvez alguma pulga o mordeu; qualquer cousa: «Sonhos, sonhos, Penseroso!» Ainda agora prefiro o dito de Polonius: «Desvario embora, lá tem seu methodo!»
Rubião fez os dous emprestimos e o negocio. O negocio era uma Empreza Melhoradora dos Embarques e Desembarques no porto do Rio de Janeiro. Um dos emprestimos tinha por fim pagar certa conta atrazada de papel da Atalaia, divida urgente. A folha estava ameaçada de parar.
—Perfeitamente, disse Camacho, quando Rubião lhe foi levar o dinheiro á casa. Muito obrigado. Veja você como, por uma miseria desta ordem, podia emmudecer o nosso orgão. São os espinhos naturaes da carreira. O povo não está educado; não reconhece, não apoia os que trabalham por elle, os que descem á arena todos os dias em defeza das liberdades constitutionaes. Imagine, que, de momento, não dispunhamos deste dinheiro, tudo estava perdido, cada um ia para os seus negocios, e as sãs ideias ficavam sem o seu leal expositor.
—Nunca! protestou Rubião.
—Tem razão; redobraremos de esforços. A Atalaia será como o Antheu da fabula. De cada vez que cair, erguer-se-ha com mais vida.
Dito isto, Camacho mirou o maço de notas. Um conto e duzentos, não? perguntou; e metteu-o no bolso do fraque. Continuou a dizer que estavam seguros agora, a folha ia de vento em popa. Tinha algumas reformas materiaes em vista; foi ainda mais longe.
—Precisamos desenvolver o programma, adeantar as ideias, dar um empurrão aos correligionarios, atacal-os, se fôr preciso...
—Como?
—Ora, como? atacando. Atacar é um modo de dizer; corrigir. É evidente que o orgão do partido está afrouxando. Chamo orgão do partido, porque a nossa folha é orgão das ideias do partido; comprehende a differença?
—Comprehendo.
—Vai afrouxando, continuou Camacho apertando um charuto entre os dedos, antes de o accender; e nós precisamos de accentuar os principios, mas francamente, nobremente, dizendo a verdade. Creia que os chefes precisam ouvil-a a seus proprios amigos e adherentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos, pugnei por ella, e a ideia fundamental da Atalaia foi a principio um terreno neutro. Mas conciliação não é jogo de empulha. Para lhe dar um exemplo, na minha provincia a gente dos Pinheiros tem o apoio do governo, unicamente para me deslocar; e os meus correligionarios da Corte, em vez de a combater, visto que o governo lhe dá força, que pensa que fazem? Dão tambem apoio aos Pinheiros.
—Têm ao menos alguma influencia os Pinheiros?
—Nenhuma, respondeu Camacho fechando violentamente a caixa de phosphoros que ia a abrir. Ha um réo de policia entre elles, e ha outro que até foi aprendiz de barbeiro. Matriculou-se, é verdade, na Faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma cousa, mas tal é o escandalo da carreira desse homem que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na assembléa provincial. É uma besta; é tão bacharel como eu sou papa.
Entenderam-se sobre as modificações politicas da folha. Camacho lembrou ao Rubião que a candidatura deste naufragara por causa justamente da opposição dos chefes. De alguns, emendou logo. Rubião concordou; assim lh'o tinha dito o amigo em tempo, e a lembrança avivou o resentimento do desastre. Podia, devia estar na camara. Os taes é que o não quizeram; mas haviam de ver, pensava Rubião tinham de amargar o mal feito. Deputado, senador ministro, vel-o-hiam tudo, com olhos tortos e espantados. A cabeça do nosso amigo, tanto que o outro lhe pôz a faisca, foi ardendo de si mesma, não por odio, nem inveja, mas de ambição ingenua, de cordial certeza, visão antecipada e deslumbrante das cousas. Camacho estimou achal-o de accordo.
—A nossa gente é de egual opinião, disse elle. Creio que não faz mal uma pequena ameaça aos amigos.
Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniencia de não ceder ás perfidias do poder, apoiando em algumas provincias certa gente corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão:
«Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Ha quem pretenda (mirabile dictu!) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os beneficios que caem das mãos dos adversarios. Risum teneatis! Quem póde proferir tal blasphemia sem que lhe tremam as carnes? Mas supponhamos que assim seja, que a opposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, á postergação das leis, aos excessos da autoridade, á perversidade e aos sophismas. Quid inde? Taes casos,—aliás, raros,—só podiam ser admittidos quando favorecessem os elementos bons, não os máos. Cada partido tem os seus discolos e sycophantas. É interesse dos nossos adversarios ver-nos afrouxar, a troco da animação dada á parte corrupta do partido. Esta é a verdade; negal-o é provocar-nos á guerra intestina, isto é (horresco referens!), á dilaceração da alma nacional... Mas, não, as ideias não morrem; ellas são o labaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locaes e passageiros a victoria indefectivel dos principios Tudo que não for isto ter-nos-ha contra si. «Alea jacta est.»
Rubião applaudiu o artigo; achava-o excellente. Talvez pouco energico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões.
—Vis vendilhões? Ha só um inconveniente, ponderou Camacho. É a repetição dos vv. Vis ven... Vis vendilhões; não sente que o sem fica desagradavel?
—Mas lá em cima ha vés vis...
—Vae victis. Mas é uma phrase latina. Podemos arranjar outra cousa: vis mercadores.
—Vis mercadores é bom.
—Comtudo, mercadores não tem a força de vendilhões.
—Então, porque não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forte; ninguem repara no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gósto de energia. Vis vendilhões.
—Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho, á meia voz. Já estou achando melhor. Vis vendilhões. Acceito, concluiu emendando. E releu: «Os vis vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locaes e passageiros a victoria indefectivel dos principios. Tudo que não fôr isto ter-nos-ha contra si. Alea jacta est.»
—Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor do artigo.
—Parece-lhe bem? perguntou Camacho, sorrindo. Ha pessoas que ainda me acham no estylo a frescura do meu tempo de estudante. Não sei, não digo nada; a disposição, sim, é a mesma. Hei de castigal-os; havemos de castigal-os.
Aqui é que eu quizera ter dado a este livro o methodo de tantos outros,—velhos todos,—em que a materia do capitulo era posta no summario: «De como aconteceu isto assim, e, mais assim». Ahi está Bernardim Ribeiro; ahi estão outros livros gloriosos. Das linguas extranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos capitulos dos quaes só pelo summario estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lêde este titulo: Contendo cinco folhas de papel. É claro, é simples, não engana a ninguem; são cinco folhas, mais nada, quem não quer não lê, e quem quer lê, para os ultimos é que o autor conclue obsequiosamente: «E agora, sem mais prefacio, vamos ao seguinte capitulo».
Se tal fosse o methodo deste livro, eis aqui um titulo que explicaria tudo: «De como Rubião, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas phrases compoz e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lêra».
Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a analyse da operação mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Ha um abysmo entre a primeira phrase de que Rubião era co-autor até a autoria de todas as obras lidas por elle; é certo que o que mais lhe custou foi ir da phrase ao primeiro livro;—deste em diante a carreira fez-se rapida. Não importa; a analyse seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.
Ao contrario, não sei se o capitulo que se segue poderia estar todo no titulo.
Rubião foi mantendo o proposito de não tornar a ver Sophia; pelo menos, não ia ao Flamengo. Viu-a um dia passar de carro, com uma das damas da commissão das Alagoas; ella inclinou-se risonha, dizendo-lhe adeus com a mão. Elle retribuiu o comprimento, tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço, mas não ficou parado como lhe aconteceria d'antes; apenas lançou um olhar ao carro que ia andando. Tambem elle foi andando,—e pensando no lance da carta, não comprehendendo aquelle gesto de mão, sem odio nem vexame,—como se nada houvesse entre elles. Podia ser que o serviço da commissão e a companheira que levava explicassem a benevolencia graciosa de Sophia; mas Rubião não cogitou desta hypothese.
—Estará assim tão falta de brio? perguntava elle. Pois não se lembra da carta que achei, mandada por ella ao tal gamenho da rua dos Invalidos? É muito; é de mais. Parece um desafio, um modo de dizer que não faz caso, que escreverá todas as cartas que quizer. Que as escreva, mas gaste algum dinheiro em registral-as no correio; é barato...
Achou algum pico em si mesmo e riu-se. Isto, e um homem que passou rasgando-lhe uma cortezia, tiraram-lhe o amargor das saudades, e elle esqueceu o assumpto, para cuidar de outro, que o levava ao Banco do Brazil.
Ao entrar no Banco esbarrou com o socio, que sabia.
—Creio que vi agora D. Sophia, disse-lhe Rubião.
—Onde?
—Na rua dos Ourives; ia de carro, com outra senhora, que não conheço. Como tem você passado?
—Viu-a, e não se lembrou de nada, observou Palha, sem responder á pergunta. Não se lembrou que ella faz annos, quarta-feira, depois de amanhã. Não lhe peço que vá jantar, não ouso tanto, seria convidal-o a aborrecer-se; mas uma chicara de chá bebe-se depressa. Faz-me esse favor?
Rubião não respondeu logo.
—Vou até jantar, disse finalmente. Quarta-feira? Conte commigo. Tinha-me esquecido, confesso; mas ando com tanta cousa na cabeça... Espere por mim daqui a meia hora, no armazem.
Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe dous contos de reis. Palha ja não resistia ao desmoronamento do capital; e, se uma ou outra vez, dizia alguma palavrinha frouxa, agora entregou-lhe o dinheiro com indifferença. Rubião não tornou a casa sem comprar um magnifico diamante, que na quarta-feira, enviou a Sophia, acompanhado de um bilhete de visita, e duas palavras de felicitação.
Sophia estava só, no quarto de vestir, calçando os sapatos, quando a criada lhe entregou o pacote. Era o terceiro presente do dia; a criada esperou que ella o abrisse para ver tambem o que era. Sophia ficou deslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a rica joia,—uma bella pedra, no centro de um collar. Esperava alguma cousa bonita; mas, depois dos ultimos successos, mal podia crer que elle fosse tão generoso. Batia-lhe o coração.
—O portador está ahi?
—Já foi. Que cousa rica, minha ama!
Sophia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada, sosinha, recordando cousas idas, e levantou-se pensando:
—Aquelle homem adora-me.
Tratou de vestir-se; mas, ao passar por deante do espelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços nus de cima a baixo, dos proprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove annos, achava que era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava. Cingido e apertado o collete, deante do espelho, accommodou os seios com amor, e deixou espraiar-se o collo magnifico. Lembrou-se então de ver como lhe ficava o diamante; tirou o collar e pol-o ao pescoço. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita e vice-versa, approximou-se, affastou-se, augmentou a luz do camarim; perfeito. Fechou a joia e guardou-a.
—Aquelle homem adora-me, repetiu.
—Provavelmente, elle lá estará, pensou Rubião indo jantar ao Flamengo; duvido que tenha dado melhor presente que eu.
Carlos Maria lá estava, effectivamente, conversando, entre uma das commissarias das Alagoas, e Maria Benedicta. Poucos eram os convivas; houve proposito em escolher e limitar. Não estava alli o major Sequeira, nem a filha, nem as senhoras e os homens que Rubião conheceu naquelle outro jantar de Santa Thereza. Da commissão das Alagoas viam-se algumas damas; via-se mais o director do banco,—o da visita ao ministro,—com a senhora e as filhas,—outro personagem bancario,—um commerciante inglez, um deputado, um desembargador, um conselheiro, alguns capitalistas, e pouco mais.
Posto que evidentemente gloriosa, Sophia esqueceu por um instante os outros, quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ella. Ou mudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avêsso, em summa, do antigo gesto encolhido e diminuto. Sophia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um agradecimento. Á mesa fel-o sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da commissão. Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu impressão, nem o ar ceremonioso, nem o luxo da mesa, nem o da farda dos creados, barbeados de fresco, abotoados até á gravata branca, e trazendo nos botões estas duas letras C.P. Nada disso o deslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sophia, embora lhe fosse agradavel, não o tonteava, como outrora. E da parte della era mais apurada a attenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçaes. Rubião procurou Carlos Maria; lá estava entre as mesmas moças da sala,—Maria Benedicta e a commissaria das Alagoas. Verificou que só se occupava com ellas, não olhava para Sophia, nem esta para elle.
—Talvez disfarcem, pensou.
Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavam um olhar,—mas o movimento geral da reunião podia illudil-o, e Rubião não fez maior cabedal da observação. Sophia dera-se pressa em tomar-lhe o braço. De caminho, disse-lhe ella:
—Tenho esperado pelo senhor desde aquelle dia, e nunca mais veiu aqui. Era meu direito exigil-o, para explicar-me. Logo fallaremos.
Rubião foi dahi a pouco para o gabinete dos fumantes, onde se fallava de politica e voltarete. Ouviu calado, com os olhos erradios. Quando os outros sahiram, Rubião deixou-se estar só, meio reclinado em um sophá de couro, sem pensar. A imaginação é que fazia o seu officio, um tanto pachorrenta, agora,—talvez porque elle tivesse comido muito. Lá fóra iam entrando os convidados da noite; enchia-se a casa, crescia o borborinho da conversação, sem que o nosso amigo descesse dos seus bellos sonhos. O proprio som do piano, que fez calar todos os rumores, não o attrahiu á terra. Mas um farfalhar de sedas, entrando no gabinete, fel-o erguer-se do golpe, accordado.
—Ahi está, disse Sophia, recolhe-se aqui para fugir ao aborrecimento; nem quer ouvir boa musica. Pensei que tivesse ido embora. Vim ter com o senhor.
E sem mais demora, porque não podia perder um minuto, referiu-lhe o que sabemos da carta achada no jardim de Botafogo; lembrou-lhe que, antes de a abrir, pedira-lhe que elle mesmo a abrisse e lesse. Que melhor prova de innocencia? A palavra sahia-lhe rapida, seria, digna e commovida. Occasião houve em que os olhos se lhe tornaram humidos; ella enxugou-os, e ficaram vermelhos. Rubião pegou-lhe na mão, e viu ainda uma lagryma,—uma pequena lagryma,—escorregar até o canto da bocca. Jurou então que sim, acreditava em tudo. Que idéa aquella de chorar? Sophia enxugou ainda os olhos, e estendeu-lhe a mão agradecida.
—Até já, disse ella.
O piano continuava; Rubião notou-lhe esta circumstancia. Emquanto ouviam tocar, não viriam ter com elles.
—Mas eu é que não posso estar ausente tanto tempo, acudiu Sophia. Demais, tenho ordens que dar. Até já.
—Olhe, escute, insistiu Rubião.
Sophia parou.
—Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pela ultima vez...
—Pela ultima vez?
—Quem sabe? Pode ser que ultima. Importa-me pouco que esse homem viva ou não, mas posso achal-o aqui alguma vez, e não me sinto disposto a brigar.
—Hade encontral-o todos os dias. Christiano ainda lhe não disse o que ha? Vae casar com Maria Benedicta.
Rubião deu um passo para traz.
—Casam-se, continuou ella. O facto é de admirar, porque surgiu quando menos contavamos com isto;—ou eram muito fingidos,—ou foi cousa que lhes deu de repente. Casam-se. Maria Benedicta contou-me uma historia, que me foi confirmada por outra pessoa; mas, afinal, a historia é sempre a mesma. Gostaram um do outro, e adeus. Casam-se brevemente. Quando elle fallou a Christiano, Christiano respondeu que dependia de mim... Como se fosse mãe d'ella! Consentí logo, e desejo que sejam felizes. Elle parece bom rapaz; ella é excellente creatura; hão de ser felizes, por força. E bom negocio, sabe? Elle está de posse de todos os bens do pae e da mãe. Maria Benedicta não tem nada, em dinheiro; mas tem a educação que lhe dei. Hade lembrar-se que, quando veiu para minha companhia, era um bicho do matto; não sabia quasi nada; fui eu que a eduquei. Minha tia merecia tudo, e ella tambem. Pois, é verdade, casam-se muito breve. Não os viu hoje sempre juntos? Não ha ainda participação official; mas os intimos da familia podem saber. Casam-se, é verdade...
Para quem tinha tanta pressa, eis ahi um discurso demasiado comprido. Sophia deu por isso um pouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, que fosse para a sala. O piano acabara; ouvia-se um borborinho discreto de applauso e conversação.
Iam casar? Mas como é então que...? Maria Benedicta,—era Maria Benedicta que casava com Carlos Maria; mas então Carlos Maria... Comprehendia agora; era tudo engano, confusão; o que parecia ser com uma pessoa era com outra, e ahi está como a gente póde chegar á calumnia e ao crime.
Assim reflexionava Rubião, saindo para a sala de jantar, onde os copeiros adereçavam a mesa da ceia. E continuou, andando ao comprido da sala: «—Ora vejam! E o Palha queria justamente casar-me com a prima, mal sabendo que o destino lhe guardava outro noivo. Não é feio rapaz; é muito mais bonito que ella. Ao pé de Sophia, Maria Benedicta vale pouco ou nada; mas a sympathia é assim mesmo... Casam-se, e breve... Será de estrondo o casamento? Deve ser; o Palha vive agora um pouco melhor...»—e Rubião lançava os olhos aos moveis, porcellanas, cristaes, reposteiros. «—Hade ser de estrondo. E depois o noivo é rico...» Rubião pensou na carruagem e nos cavallos que levaria; tinha visto uma parelha soberba, no Engenho Velho, dias antes, que estava mesmo ao pintar. Ia fazer a encommenda de outra assim, fosse por que preço fosse; tinha tambem de presentear a noiva. Ao pensar nella viu-a entrar na sala.
—Prima Sophia onde está? perguntou ella ao Rubião.
—Não sei; esteve aqui ha pouco.
E, como a visse disposta a ir adeante, pediu-lhe uma palavra, e que se não zangasse. Maria Benedicta esperou; elle, sem hesitação, deu-lhe os parabens. Sabia que ia casar... Maria Benedicta ficou muito vermelha, e murmurou alguma cousa parecida com um pedido de não divulgar nada. Não havia então nenhum creado alli; Rubião pegou-lhe na mão e fechou-a entre as suas.
—Eu sou da casa, disse; a senhora merece ser feliz, e espero que seja.
Um pouco assustada, Maria Benedicta puxou a mão e libertou-a; mas, para o não aborrecer, sorriu. Não era preciso tanto; elle estava encantado. Sabemos que a moça não era bonita. Pois estava linda, á força de felicidade. A natureza parecia haver posto nella as suas mais finas ideias. Sorrindo egualmente, Rubião fallou-lhe como se fosse seu pae:
—Foi sua prima que me disse; recommendou-me segredo. Não direi nada antes do tempo. Mas que tem que diga á senhora? A senhora é boa e merece tudo. Não é preciso esconder os olhos; casar não é vergonha. Vamos lá; levante a cabeça e ria.
Maria Benedicta poz nelle os olhos radiantes.
—Isso! applaudiu Rubião. Que mal ha em confessar-se a um amigo? Deixe-me dizer-lhe a verdade; creio que a senhora será feliz, mas admitto que elle ainda será mais feliz. Não? Verá se não fallo verdade; elle mesmo lhe hade dizer o que sentir, e, se fôr sincero, a senhora reconhecerá que eu estou apenas prophetisando. Bem sei que não tem balança para medir os sentimentos; emfim, o que eu quero dizer é que a senhora é uma linda e boa creatura... Vá, vá-se embora; se não, fico dizendo verdades, e a senhora está corando muito...
De facto, Maria Benedicta corava de gosto, ouvindo a linguagem de Rubião. Em casa, achára acquiescencia, nada mais. O proprio Carlos Maria não era assim terno; gostava della com circumspecção. Fallava-lhe da felicidade conjugal, como de uma taxa que ia receber do destino,—pagamento devido, integral e certo. Tambem não era preciso que lhe fallasse de outro modo, para que ella o adorasse sobre todas as cousas deste mundo. Rubião repetiu a despedida, e ficou a olhar para ella, como para uma filha. Viu-a ir assim, atravessar a sala, viva e satisfeita,—tão diversa do que a achára em outros tempos, e desapparecer por uma das portas. Não pode reter esta palavra:
—Linda e boa creatura!
A historia do casamento de Maria Benedicta é curta; e, posto Sophia a ache vulgar, vale a pena dizel-a. Fique desde já admittido que, senão fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclue que as catastrophes são uteis, e até necessarias. Sobejam exemplos; mas basta um contosinho que ouvi em creança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona,—um triste molambo de mulher,—chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ebrio, viu o incendio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era della.
—É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuia n'este mundo.
—Dá-me então licença que accenda alli o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para accender um charuto nas miserias alheias. Bom padre Chagas!—Chamava-se Chagas.—Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos annos essa ideia consoladora, de que ninguem, em seu juizo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquelle bebado tinha ao principio da propriedade,—a ponto de não accender o charuto sem pedir licença á dona das ruinas. Tudo ideias consoladoras. Bom padre Chagas!
Adeus, padre Chagas! Vou á historia do casamento. Que Maria Benedicta gostava de Carlos Maria, é cousa vista ou presentida desde aquelle baile da rua dos Arcos, em que elle e Sophia valsaram tanto. Vimol-a na manhã seguinte, prompta a ir para a roça; a prima apaziguou-a com a promessa de que lhe estava arranjando um noivo. Maria Benedicta cuidou que era o valsista da vespera, e ficou esperando. Não lhe confessou nada,—por vergonha, a principio,—e depois, por lhe não fazer perder o effeito da novidade, quando Sophia houvesse de descobrir o nome da pessoa. Se fallasse desde logo, podia acontecer tambem que a outra affrouxasse na tarefa, e lá se perdia a causa. Não façamos caso disto; são pequenos calculos de moça.
Sobreveiu a epidemia das Alagoas. Sophia organisou a commissão, que trouxe novas relações á familia Palha. Incluida entre as senhoras que formavam uma das sub-commissões, Maria Benedicta trabalhou com todas, mas grangeou em especial a estima de uma dellas, D. Fernanda, esposa de um deputado. D. Fernanda tinha pouco mais de trinta annos, era jovial, expansiva, corada e robusta; nascera em Porto Alegre, casara com um bacharel das Alagoas, deputado agora por outra provincia, e, segundo corria, prestes a ser ministro de Estado. A naturalidade do marido foi o pretexto para mettel-a na commissão; e bem acertado foi, porque ella pedia como quem manda, não tinha acanhamento nem admittia recusa. Carlos Maria, que era seu primo, foi visital-a logo que ella chegou ao Rio de Janeiro. Achou-a mais formosa ainda que em 1865, ultimo anno em que a vira, e talvez fosse verdade; concluiu que o ar do sul era feito para enrijar as pessoas, duplicar-lhe as graças, e prometteu ir lá acabar os seus dias.
—Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ella. Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Côrte.
—Commigo, naturalmente?
—Da Côrte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato della.
D. Fernanda abriu o album e mostrou o retrato da pessoa.
—Não é feia, concordou elle.
—Só?
—Sim, é bonita.
—Onde é que você bota os seus chinellos velhos, primo?
Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quiz passar a outro assumpto, mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavra, dizendo como eram os olhos, os cabellos, a tez; e depois fez uma pequena biographia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a baptisou, hesitou em dar-lh'o, apezar do respeito e influencia do pae da menina, rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos.
—Crê que ella vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.
—Se casar com você, creio.
—Não me explica nada; casando com o diabo succederá a mesma cousa, e com mais certeza, por causa do martyrio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...
—Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ella. Recusa então a minha guasca? continuou indo pôr o album no seu logar.
—Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do ceu.
D. Fernanda soltou uma gargalhada.
—Deus de misericordia! Você acredita mesmo que vae para o ceu?
—Já cá estou, ha vinte minutos. Pois que é esta sala, tranquilla, fresca, tão longe da gente que anda lá fóra? Aqui conversamos os dous, sem ouvir blasphemias, sem aturar espiritos aleijados, tisicos, escrophulosos, insupportaveis, o proprio inferno, em summa. Aqui é o ceu,—ou um pedaço do ceu; uma vez que nós cabemos nelle, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora, de S. Carlos Maria e de Santa Fernanda, que, para contrastar com S. Gonçalo, fez-se casamenteira das moças. Onde é que ha outro ceu como este?
—Em Pelotas.
—Pelotas fica tão longe! suspirou elle estendendo as pernas e pondo os olhos no lustre da sala.
—Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer.
Carlos Maria sorriu e olhou para as borlas cahidas do cordão de seda que ella trazia á cintura, atado por um laço frouxo; ou para ver as borlas, ou para notar a gentileza do corpo. Viu bem, ainda uma vez, que a prima era uma bella creatura. A plastica levou-lhe os olhos,—o respeito os desviou; mas, não foi só a amizade que o fez demorar ainda alli, e o trouxe novamente áquella casa. Carlos Maria amava a conversação das mulheres, tanto quanto, em geral, aborrecia a dos homens. Achava os homens declamadores, grosseiros, cançativos, pesados, frivolos, chulos, triviaes. As mulheres, ao contrario, não eram grosseiras, nem declamadoras, nem pesadas. A vaidade nellas ficava bem, e alguns defeitos não lhes iam mal; tinham, ao demais, a graça e a meiguice do sexo. Das mais insignificantes, pensava elle, ha sempre alguma cousa que extrahir. Quando as achava insipidas ou estupidas, tinha para si que eram homens mal acabados.
Entretanto, as relações de D. Fernanda e Maria Benedicta iam-se estreitando. Esta, além de acanhada, andava triste por aquelle tempo; foi justamente a disparidade de caracter e de situação que as prendeu uma á outra. D. Fernanda possuia, em larga escala, a qualidade da sympathia; amava os fracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledos e corajosos. Contavam-se della muitos actos de piedade e dedicação.
—A senhora que tem? perguntou ella um dia á amiguinha. Quasi nunca ri, anda sempre com os olhos espantados, pensando...
Maria Benedicta, respondeu que não tinha nada, que era o seu modo; e sorria dizendo isto, por simples condescendencia. Fallou tambem na perda da mãe, como uma das causas de suas melancolias. D. Fernanda entrou a leval-a a toda parte, a trazel-a para jantar, a dar-lhe logar no camarote, se ia ao theatro; e graças a isso, e ao seu genio galhofeiro, sacudiu da alma da moça os corvos aborrecidos que lá avoejavam. Costume e affeição depressa as fizeram intimas. Não obstante, Maria Benedicta continuou a calar o seu mysterio.
—Seja qual fôr o mysterio, pensou um dia D. Fernanda, acho que o melhor é casal-a com o Carlos Maria; a Sonora que espere.
—Você precisa casar, Maria Benedicta, disse-lhe dalli a dous dias, da manhã, na chacara, em Matta-cavallos; Maria Benedicta tinha ido ao theatro com ella, e passára lá a noite.—Não quero estremecimentos; precisa casar e hade casar... Desde antehontem que estou para lhe dizer isto, mas estas cousas falladas em sala ou na rua, não tem força. Aqui na chacara é differente. E se você tem animo de trepar commigo um pedaço do morro, então é que ficaremos hem. Vamos?
—Está fazendo calor...
—É mais poetico, menina. Ah! carioca sem sangue! Vocês só tem agua nas veias. Pois fiquemos aqui neste banco. Sente-se; assim, eu fico aqui ao pé, armada, para tudo. Casa ou morre. Não me replique. Você não é feliz,—continuou mudando o tom; por mais que faça, eu vejo que você passa a vida sem gosto. Venha cá, diga-me com franqueza, tem inclinação a alguem? Se tem, confesse, que eu mando procurar a pessoa.
—Não tenho.
—Não? Pois é justamente o que nos serve. Não precisa pôr escriptos no coração; conheço um bom inquilino.
Maria Benedicta voltou-se de todo para ella, com os labios entreabertos e os olhos escancarados. Parecia receiar da proposta ou anciar por ella. D. Fernanda, não atinando com o verdadeiro estado da amiga, pegou-lhe na mão primeiro, e pediu que lhe dissesse tudo. De força que amava a alguem, era claro, via-se-lhe nos olhos, cumpria confessal-o, instava, rogava,—intimaria, se preciso fosse. A mão de Maria Benedicta esfriara, os olhos cavavam o chão, e, por alguns instantes, nenhuma dellas disse nada.
—Vamos, falle, repetiu D. Fernanda.
—Não tenho que dizer.
D. Fernanda fazia gestos de incredulidade; apertava-a cada vez mais, passou-lhe a mão pela cintura, e ligou-a muito a si; disse-lhe baixinho, dentro do ouvido, que era como se fosse sua propria mãe. E beijava-a na face, na orelha, na nuca, encostava-lhe a cabeça ao hombro, acarinhava-a com a outra mão. Tudo, tudo, queria saber tudo. Se o namorado estava na lua, mandaria buscal-o á lua,—fosse onde fosse,—excepto no cemiterio; mas, se estivesse no cemiterio, dar-lhe-hia outro muito melhor, que faria esquecer o primeiro em poucos dias. Maria Benedicta ouvia agitada, palpitante, não sabendo por onde escapasse,—prestes a fallar, e calando a tempo, como se defendesse o seu pudor. Não negava, não confessava,—mas, como tambem não sorria, e tremia de commoção, era facil adivinhar meia verdade, ao menos.
—Mas então não sou sua amiga, não tem confiança em mim? Faça de conta que sou sua mãe.
Maria Benedicta pouco mais resistiu; gastára as forças e sentia a necessidade de revellar alguma cousa. D. Fernanda escutou-a commovida. O sol vinha já lambendo as cercanias do banco, não tardou que lhes trepasse aos sapatos, á barra dos vestidos e aos joelhos; mas nenhuma deu por elle. O amor as absorvia; a exposição de uma tinha para a outra um enlevo raro. Era uma paixão não sabida, não compartida, não adivinhada; paixão que ia perdendo de indole e de especie para se converter em adoração pura. A principio, quando ella via a pessoa amada, passava por dous estados mui diversos,—um que não podia definir, alvoroço, tonteira, pancadas no coração, quasi um desmaio; o segundo era de contemplação. Agora era quasi que só este. Tinha chorado muito, comsigo, perdera noites e noites de saudades; pagou caro a ambição das suas esperanças. Mas não perderia nunca a certeza de que elle era superior a todos os demais homens, um ente divino, que, ainda não fazendo caso della, mereceria sempre ser adorado.
—Bem, disse D. Fernanda, quando a amiga se calou de todo. Vamos ao essencial, que é não ficar penando á tôa. Não, queridinha, isto de adorar a um homem que não faz caso da gente, é poesia. Deixe-se de poesia. Olhe que só você perde no negocio, por que elle casa com outra, os annos passam, a paixão monta na garupa delles, e um dia, quando você menos pensar, accorda sem amor nem marido. E quem é esse barbaro?
—Isso não digo, respondeu Maria Benedicta, levantando-se do banco.
—Pois não diga, acudiu D. Fernanda, pegando-lhe nos pulsos e fazendo-a sentar nos seus joelhos. A questão principal é casar;—não podendo ser com esse, será com outro.
—Não, não caso.
—Só com elle?
—Nem sei se com elle, respondeu Maria Benedicta, depois de alguns instantes. Gósto delle, como gósto de Deus, que está no ceu.
—Virgem Santissima! Que blasphemia! Duas blasphemias, menina; a primeira é que não se deve amar a ninguem como a Deus,—a segunda é que um marido, ainda sendo máo, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.
«Um marido, ainda máo, é sempre melhor que o melhor dos sonhos.»
A maxima não era idealista; Maria Benedicta protestou contra ella. Pois não era melhor sonhar que chorar? Os sonhos acabam ou alteram-se, emquanto que os máos maridos podem viver muito.—«A senhora falla assim, concluiu Maria Benedicta, porque Deus lhe destinou um anjo... Olhe, lá vem elle.»
—Deixe estar que hade ter tambem o seu anjo; conheço um magnifico para você; todos os anjos me procuram.
Theophilo, marido de D. Fernanda, que as vira a distancia, veiu ter com ellas; trazia na mão um diario amarrotado. Não saudou a hospede; foi direito á mulher.
—Você quer saber o que me fizeram, Nannan? disse elle com os dentes cerrados. Sahiu hoje o meu discurso do dia 5. Veja esta phrase; eu tinha dito: Na duvida abstem-te, é o conselho do sabio. E puzeram: Na divida obstem-te... É insuportavel! Nota que tratava-se justamente de um credito do ministerio da marinha, allegando-se no debate que muitas despezas estavam feitas. De modo que pode parecer chulice da minha parte; é como se aconselhasse o calote. Em todo caso, é disparate.
—Mas você não leu as provas?
—Li, mas o autor é o menos apto para as ler bem. Na divida abstem-te, continuou elle com os olhos na folha. E bufando:—Isto só com...
Estava consternado. Era homem de talento, de gravidade e de trabalho; mas, naquelle instante, todas as grandes obras, os mais temerosos problemas, as batalhas mais decisivas, as revoluções mais profundas, o sol e a lua, e todas as constellações, e todas as alimarias, e todas as gerações humanas, valiam menos que a troca de um u por um i. Maria Benedicta olhava para elle sem entendel-o. Cuidava padecer a maior tristura; mas alli estava outra tão grande como a sua, e muito mais afflictiva. Assim, a melancolia roaz de uma pobre creatura era tanto como um erro typographico. Theophilo, que só então deu por ella, estendeu-lhe a mão; estava fria. Ninguem finge as mãos frias; devia padecer deveras. Instantes depois, atirou a folha ao chão, com um gesto violento, e foi-se embora.
—Mas, Theophilo, emenda-se amanhã, disse-lhe D. Fernanda, levantando-se.
Theophilo, sem voltar atraz, deu de hombros, desesperado. A mulher correu a elle; a amiga seguiu-a espantada. Ficou só o banco, já agora livre dellas, recebendo em cheio os raios do sol, que não ama nem faz discursos. D. Fernanda levou o marido para um gabinete, e, á força de beijos, consolou-o daquelle golpe. Ao almoço, já elle sorria, ainda que de um sorriso pallido; a mulher, para desvial-o da preoccupação, fallou do plano de casar Maria Benedicta, e havia de ser com um deputado, se existisse na camara algum solteiro, qualquer que fosse a opinião. Podia ser governista, opposicionista, ambas as cousas, ou nada,—contanto que fosse marido. Sobre este thema fez algumas reflexões, vivas, lepidas, que encheram o tempo e destinavam-se a matar a lembrança da troca de lettras. Pia creatura! Theophilo, entendendo a mulher, ia-se fazendo alegre, e fallava tambem da conveniencia de casar Maria Benedicta.
—O peor, acudiu a mulher olhando para a amiga, é que ella ama a alguem, cujo nome não quer dizer.
—Nem é preciso, atalhou o marido enxugando os beiços; vê-se bem que ella gósta de teu primo.
No domingo seguinte, D. Fernanda foi á egreja de Santo Antonio dos Pobres. Acabada a missa, viu surgir do movimento dos fieis que se comprimentavam entre si, ou saudavam o altar, nada menos que o primo, erecto, risonho, gravemente trajado, estendendo-lhe a mão.
—Veiu tambem á missa? perguntou espantada.
—Vim.
—Vem sempre?
—Nem sempre, muitas vezes.
—Francamente, não esperava tanta devoção em você. Os homens são, em geral, uns impios. Theophilo não pisa na egreja, a não ser para baptisar os filhos. Você então é religioso?
—Não posso responder com certeza; mas tenho horror á banalidade, que é dizer mal da religião. E basta; vim á missa, não vim confessar-me; agora vou conduzil-a á casa, e, se me offerecer almoço, almoçarei com vocês. Salvo se quizerem vir almoçar commigo; é nesta rua, como sabe.
—Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma noticia muito comprida.
—Vamos então devagar, disse Carlos Maria á porta da egreja, offerecendo-lhe o braço. E dous passos adeante:—Noticia importante?
—Importante e deliciosa.
—Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vae levar para si o nosso querido Theophilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viuvas... Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos á noticia. Chegou a moça de Pelotas, aposto?
—Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.
—Seriamente.
D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casal-o com a patricia de Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguem que tinha ao primo um immenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a noticia esporeou-lhe o espirito. Immenso amor? Immenso amor, paixão violenta, confirmou a prima, accrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao actual sentimento da pessoa, Agora era uma adoração quieta e calada. Tinha chorado por elle noites e noites, emquanto as esperanças lhe duraram... E D. Fernanda foi assim repetindo a confidencia de Maria Benedicta. Restava só o nome; Carlos Maria quiz sabel-o, ella negou-lh'o. Não podia revellal-o. Para que dar-lhe o gosto de saber quem era que o adorava, se não corria ao encontro da alma della? Melhor era deixal-a no mysterio. Já não chorava agora; modesta e desambiciosa, perdera as esperanças de ser amada, e, com o tempo ficou apenas uma devota, mas uma devota sem par, que nem sequer esperava ser ouvida ou agraciada um dia por um olhar benevolo do seu deus querido.
—Prima, você...
—Eu que?...
Carlos Maria concluiu dizendo que a advogada era digna da causa. Realmente, se essa moça o adorava a tal ponto, era justo e natural que a prima se interessasse por ella com tanto calor. Mas porque não dizer o nome?
—Agora não digo; pode ser que algum dia... Mas, você comprehende que me custaria muito casal-o com a minha patricia, sabendo que outra pessoa o ama tanto. E dahi bem pode ser que esta de cá não padeça muito, se o vir casado. Sim, senhor, parece absurdo, mas é preciso conhecel-a; digo que, uma vez que você seja feliz, é capaz de abençoar a bella rival.
—Já não é romantismo, é mysticismo, redarguiu Carlos Maria depois de alguns passos, com os olhos no chão. Não está nas cordas do nosso tempo. Tem alguma prova de semelhante estado da alma?
—Tenho... A sua casa é aquella, não? perguntou D. Fernanda parando.
—É.
—Bonito predio, e solido.
—Muito solido.
Uma, duas, tres, quatro... Sete janellas. O salao vae de ponta a ponta? Bem bom para um baile.
E andando:
—Eu, se tivesse aqui uma casa maior que a minha, daria um grande baile, antes de voltar para o Rio Grande. Gosto de festas. Os meus dous filhos não me dão grande trabalho. A proposito, ando com ideia de metter o Lopo no collegio; onde acharei um bom collegio?
Carlos Maria pensava na devota incognita. Estava longe, muito longe do ensino e seus estabelecimentos. Que bom que era sentir-se um deus adorado, e adorado á maneira evangelica, mettida a devota no aposento, fechada a porta, em secreto, não nas synagogas, á vista de todos. «E teu pae que vê o que se passa em secreto te dará a paga.» (S. MATHEUS, VI, 6). Oh! elle daria a paga, se soubesse quem era. Casada, sería? Não, não podia ser, não iria confessal-o a ninguem; viuva ou solteira, antes solteira. Cheirava-lhe a solteira. Em que aposento se fechava para resar, para evocal-o, choral-o e abençoal-o? Já nem teimava pelo nome; mas o aposento, ao menos.
—Onde acharei um bom collegio? repetiu D. Fernanda.
—Collegio? Não sei; estou pensando na desconhecida. Comprehende bem que uma pessoa que me adora, em silencio, sem esperanças, é objecto de alguma attenção. Alta ou baixa?
—Maria Benedicta.
Carlos Maria estacou o passo.
—Aquella moça...? Não é possivel. Tenho-lhe fallado muitas vezes, e nunca descobri nada. Achei-a sempre fria. Hade ser engano. Ouviu-lhe o meu nome?
—Não, por mais que lhe pedisse. Confessou o milagre, sem nomear o santo, mas que milagre! Gabe-se de ser adorado como ninguem... De quem é aquella casa?
—Você costuma exagerar as cousas, prima; póde não ser tanto. Adorado como ninguem? E de que modo soube que era eu?
—Theophilo foi o primeiro que descobriu; ella, dizendo-se-lhe isto, ficou como uma pitanga. Negou-o ainda depois, commigo; e desde esse dia não voltou lá a casa.
Tal foi o inicio dos amores. Carlos Maria folgou de se ver assim amado em silencio, e toda a prevenção se converteu em sympathia. Começou a vel-a, saboreou a confusão da moça, os medos, a alegria, a modestia, as attitudes quasi implorativas, um composto de actos e sentimentos que eram a apotheose do homem amado. Tal foi o inicio, tal o desfecho. Assim os vimos, naquella noite dos annos de D. Sophia, a quem elle dissera antes cousas tão doces. São assim os homens; as aguas que passam, e os ventos que rugem não são outra cousa.
—Bem, vae casar, tanto melhor! pensou Rubião.
Entre aquella noite e o dia do casamento, Rubião apanhou no ar algumas olhadas de Sophia, suspeitas de tentação; Carlos Maria, se lhe correspondeu, foi antes por polidez que outra cousa. Rubião concluiu que o caso era fortuito; lembrava-se ainda da lagrima de Sophia, na noite dos annos, quando lhe explicou a historia da carta.
Oh! boa lagrima inesperada! Tu, que bastaste a persuadir um homem, podes não ser explicavel a outros, e assim vae o mundo. Que importa que os olhos não fossem costumados ao choro, nem que a noite parecesse exaltar sentimentos mui diversos da melancolia? Rubião a viu cair; ainda agora a vê de memoria. Mas a confiança de Rubião não vinha só da lagrima, vinha tambem da presente Sophia, que nunca fora tão solicita nem tão dada com elle. Parecia arrependida de todo o mal causado, prestes a sanal-o, ou por affeição tardia, ou pelo proprio malogro da primeira aventura. Ha delictos virtuaes, que dormem. Ha operas remissas na cabeça de um maestro, que só esperam os primeiros compassos da inspiração.
—Ainda bem que se casa! repetiu o Rubião.
Não se demorou o casamento: tres semanas. Na manhã do dia aprazado, Carlos Maria abriu os olhos com algum espanto. Era elle mesmo que ia casar? Não havia duvida; mirou-se ao espelho, era elle. Relembrou os ultimos dias, a marcha rapida dos successos, a realidade da affeição que tinha á noiva, e, emfim, a felicidade pura que lhe ia dar. Esta derradeira ideia enchia-o de grande e rara satisfação. Ia-as ruminando ainda, a cavallo, no passeio habitual da manhã; desta vez escolhera o bairro do Engenho Velho.
Posto se achasse costumado aos olhos admirativos, via agora em toda a gente um aspecto parecido com a noticia de que elle ia casar. As casuarinas de uma chacara, quietas antes que elle passasse por ellas, disseram-lhe cousas mui particulares, que os levianos attribuiriam á aragem que passava tambem, mas que os sapientes reconheceriam ser nada menos que a linguagem nupcial das casuarinas. Passaros saltavam de um lado para outro, pipilando um madrigal. Um casal de borboletas,—que os japões têm por symbolo da fidelidade, por observarem que, se pousam de flor em flor, andam quasi sempre aos pares,—um casal dellas acompanhou por muito tempo o passo do cavallo, indo pela cerca de uma chacara que beirava o caminho, volteando aqui e alli, lepidas e amarellas. De envolta com isto, um ar fresco, ceu azul, caras alegres de homens montados em burros, pescoços estendidos pela janella fóra das diligencias, para vel-o e ao seu garbo de noivo. Certo, era difficil crer que todos aquelles gestos e attitudes da gente, dos bichos e das arvores, exprimissem outro sentimento que não fosse a homenagem nupcial da natureza.
As borboletas perderam-se em uma das moitas mais densas da cêrca. Seguiu-se outra chacara, despida de arvores, portão aberto, e ao fundo, fronteando com o portão, uma casa velha, que encarquilhava os olhos sob a forma de cinco janellas de peitoril, cançadas de perder moradores. Tambem ellas tinham visto bodas e festins; o seculo ja as achou verdes de novidade e de esperança.
Não cuideis que esse aspecto contristou a alma do cavalleiro. Ao contrario, elle possuia o dom particular de remoçar as ruinas e viver da vida primitiva das cousas. Gostou até de ver a casa velhusca, desbotada, em contraste com as borboletas tão vivas de ha pouco. Parou o cavallo; evocou as mulheres que por alli entraram, outras galas, outros rostos, outras maneiras. Porventura as proprias sombras das pessoas felizes e extinctas vinham agora cumprimental-o tambem, dizendo-lhe pela bocca invisivel todos os nomes sublimes que pensavam delle. Chegou a ouvil-as e sorrir. Mas uma voz estridula veiu mesclar-se ao concerto;—um papagaio, em gaiola pendente da parede externa da casa: «Papagaio real, para Portugal; quem passa? Currupá, papá. Grrrr... Grrrrr...» As sombras fugiram, o cavallo foi andando. Carlos Maria aborrecia o papagaio, como aborrecia o macaco, duas contrafacções da pessoa humana, dizia elle.
—A felicidade que eu lhe der será assim tambem interrompida? reflexionou andando.
Cambaxirras voaram de um para outro lado da rua, e pousaram cantando a sua falla propria; foi uma reparação. Essa lingua sem palavras era intelligivel, dizia uma porção de cousas claras e bellas. Carlos Maria chegou a ver naquillo um symbolo de si mesmo. Quando a mulher, aturdida dos papagaios do mundo, viesse caindo de fastio, elle a faria erguer aos trillos da passarada divina, que trazia em si, ideias de ouro, ditas por uma voz de ouro. Oh! como a tornaria feliz! Já a antevia ajoelhada, com os braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nelle, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa, toda nada.
Ora bem, aquelle quadro, na mesma hora em que apparecia aos olhos da imaginação do noivo, reproduzia-se no espirito da noiva, tal qual. Maria Benedicta, posta á janella, fitando as ondas que se quebravam ao longe e na praia, via-se a si mesma, ajoelhada aos pés do marido, quieta, contricta, como á mesa da communhão para receber a hostia da felicidade. E dizia comsigo: «Oh! como elle me fará feliz!» Phrase e pensamento eram outros, mas a attitude e a hora eram as mesmas.
Casaram-se; tres mezes depois foram para a Europa. Ao despedir-se delles, D. Fernanda estava tão alegre como se viesse recebel-os de volta; não chorava. O prazer de os ver felizes era maior que o desgosto da separação.
—Você vae contente? perguntou a Maria Benedicta, pela ultima vez, junto á amurada do paquete.
—Oh! muito!
A alma de D. Fernanda debruçou-se-lhe dos olhos, fresca, ingenua,cantando um trecho italiano,—porque a suberba guasca preferia a musica italiana,—talvez esta aria da Lucia: O' bell'alma innamorata. Ou este pedaço do Barbeiro:
Ecco ridente in cielo Già spunta la bella aurora.
Sophia não foi a bordo, adoeceu e mandou o marido. Não vão crer que era pezar nem dor; por occasião do casamento, houve-se com grande discrição, cuidou do enxoval da noiva e despediu-se della com muitos beijos chorados. Mas ir a bordo pareceu-lhe vergonha. Adoeceu; e, para não desmentir do pretexto, deixou-se estar no quarto. Pegou de um romance recente; fora-lhe dado pelo Rubião. Outras cousas alli lhe lembravam o mesmo homem, teteias de toda a sorte, sem contar joias guardadas. Finalmente, uma singular palavra que lhe ouvira, na noite do casamento da prima, até essa veiu alli para o inventario das recordações do nosso amigo.
—A senhora é já a rainha de todas, disse-lhe elle em voz baixa; espere que ainda a farei imperatriz.
Sophia não pode entender esta phrase enigmatica. Quiz suppor que era uma alliciação de grandeza para tornal-a sua amante; mas a vaidade que essa ideia trazia fel-a excluir desde logo. Rubião, posto não fosse agora o mesmo homem encolhido e timido de outros tempos, não se mostrava tão cheio de si que lhe pudesse attribuir tão alta presumpção. Mas que era então a phrase? Talvez um modo figurado de dizer que a amaria ainda mais. Sophia acreditava possivel tudo. Não lhe faltavam galanteios; chegou a ouvir aquella declaração de Carlos Maria, provavelmente ouvira outras, a que deu somente a attenção da vaidade. E todas passaram; Rubião é que persistia. Tinha pausas, filhas de suspeitas; mas as suspeitas iam como vinham.
«Il mérite d'être aimé», leu Sophia na pagina aberta do romance, quando ia continuar a leitura; fechou o livro, fechou os olhos, e perdeu-se em si mesma. A escrava que entrou d'ahi a pouco, trazendo-lhe um caldo, suppoz que a senhora dormia e retirou-se pé ante pé.
Entretanto, Rubião e Palha desciam do paquete para a lancha e tornavam ao cáes Pharoux. Vinham cuidosos e calados. Palha foi o primeiro que abriu a bocca:
—Ando ha tempos para dizer-lhe uma cousa importante, Rubião.
Rubião accordou. Era a primeira vez que ia a um paquete. Voltava com a alma cheia dos rumores de bordo, a lufa-lufa das gentes que entravam e sahiam, nacionaes, estrangeiros, estes de varia casta, francezes, inglezes, allemães, argentinos, italianos, uma confusão de linguas, um capharnaum de chapéos, de malas, cordoalha, sophás, binoculos a tiracollo, homens que desciam ou subiam por escadas para dentro do navio, mulheres chorosas, outras curiosas, outras cheias de riso, e muitas que traziam de terra flores ou frutas,—tudo aspectos novos. Ao longe, a barra por onde tinha de ir o paquete. Para lá da barra, o mar immenso, o céo fechado e a solidão. Rubião renovou os sonhos do mundo antigo, creou uma Atlantida, sem nada saber da tradicção. Não tendo noções de geographia, formava uma idéa confusa dos outros paizes, e a imaginação rodeava-os de um nimbo mysterioso. Como não lhe custava viajar assim, navegou de cór algum tempo, n'aquelle vapor alto e comprido, sem enjôo, sem vagas, sem ventos, sem nuvens.
—A mim? perguntou Rubião depois de alguns segundos.
—A você, confirmou o Palha. Devia tel-a dito ha mais tempo, mas estas historias de casamento, de commissão das Alagoas, etc., atrapalharam-me, e não tive occasião; agora, porém, antes do almoço... Você almoça commigo.
—Sim, mas que é?
—Uma cousa importante.
Dizendo isto, tirou um cigarro, abriu-o, desfiou o fumo com os dedos, enrolou a palha outra vez, e riscou um phosphoro, mas o vento apagou o phosphoro. Então pediu ao Rubião que lhe fizesse o favor de segurar o chapéo, para poder accender outro. Rubião obedeceu impaciente. Bem póde ser que o socio, esticando a espera, quizesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto; a realidade viria a ser um beneficio. Puxadas duas fumaças:
—Estou com meu plano de liquidar o negocio; fallaram-me ahi para uma casa bancaria, logar de director, e creio que acceito.
Rubião respirou.
—Pois sim; liquidar já?
—Não, lá para o fim do anno que vem.
—E é preciso liquidar?
—Cá para mim, é. Se a historia do banco não fosse segura, não me animaria a perder o certo pelo duvidoso; mas é segurissima.
—Então no fim do anno que vem soltamos os laços que nos prendem...
Palha tossiu.
—Não, antes, no fim deste anno.
Rubião não entendeu; mas o socio explicou-lhe que era util desligarem já a sociedade, afim de que elle sósinho liquidasse a casa. O banco podia organizar-se mais cedo ou mais tarde; e para que sujeitar o outro ás exigencias da occasião? Demais, o Dr. Camacho affirmava que, em breve, Rubião estaria na camara, e que a queda do Itaborahy era certa.
—Seja o que fôr, concluiu; é sempre melhor desligarmos a sociedade com tempo. Você não vive do commercio; entrou com o capital necessario ao negocio,—como podia dal-o a outro ou guardal-o.
—Pois sim, não tenho duvida, concordou o Rubião.
E depois de alguns instantes:
—Mas diga-me uma cousa, essa proposta traz algum motivo occulto? é rompimento de pessoas, de amizade... Seja franco, diga tudo...
—Que caraminhola é essa? redarguiu o Palha. Separação de amizade, de pessoas... Mas você está tonto. Isto é do balanço do mar. Pois eu, que tenho trabalhado tanto por você, eu que o faço amigo dos meus amigos, que o trato como um parente, como um irmão, havia de brigar á toa? Aquelle mesmo casamento de Maria Benedicta com o Carlos Maria devia ser com você, bem sabe, se não fosse a sua recusa. A gente póde romper um laço sem romper os outros. O contrario seria desproposito. Então todos os amigos de sociedade ou de familia são socios de commercio? E os que não forem commerciantes?
Rubião achou excellente a razão, e quiz abraçar o Palha. Este apertou-lhe a mão satisfeitissimo; ia vêr-se livre de um socio, cuja prodigalidade crescente podia trazer-lhe algum perigo. A casa estava solida; era facil entregar ao Rubião a parte que lhe pertencesse, menos as dividas pessoaes e anteriores. Restavam ainda algumas daquellas que o Palha confessou á mulher, na noite de Santa Thereza, cap. L. Pouco tinha pago; geralmente era o Rubião que abanava as orelhas ao assumpto. Um dia, o Palha, querendo dar-lhe á força algum dinheiro, repetiu o velho proverbio: «Paga o que deves, vê o que te fica». Mas o Rubião, gracejando:
—Pois não pagues, e vê se te não fica ainda mais.
—É boa! redarguiu o Palha rindo e guardando o dinheiro no bolso.
Não havia banco, nem logar de director, nem liquidação; mas, como justificaria o Palha a proposta de separação, dizendo a pura verdade? Dahi a invenção, tanto mais prompta, quanto o Palha tinha amor aos bancos, e morria por um. A carreira daquelle homem era cada vez mais prospera e vistosa. O negocio corria-lhe largo; um dos motivos da separação era justamente não ter que dividir com outro os lucros futuros. Palha, além do mais, possuia acções de toda a parte, apolices de ouro do emprestimo Itaborahy, e fizera uns dous fornecimentos para a guerra, de sociedade com um poderoso, nos quaes ganhou muito. Já trazia apalavrado um architecto para lhe construir um palacete. Vagamente pensava em baronia.
—Quem diria que a gente do Palha nos trataria deste modo? Já não valemos nada. Excusa de os defender...
—Não defendo, estou explicando; ha de ter havido confusão.
—Fazer annos, casar a prima, e nem um triste convite ao major, ao grande major, ao impagavel major, ao velho amigo major. Eram os nomes que me davam; eu era impagavel, amigo velho, grande e outros nomes. Agora, nada, nem um triste convite, um recado de boca, ao menos, por um moleque: «Nhanhã faz annos, ou casa a prima, diz que a casa esta ás suas ordens, e que vão com luxo.» Não iriamos; luxo não é para nós. Mas era alguma cousa, era recado, um moleque, ao impagavel major...
—Papae!
Rubião, vendo a intervenção de D. Tonica, animou-se a defender longamente a familia Palha. Era em casa da major, não já na rua Dous de Dezembro, mas na dos Barbonos, modesto sobradinho. Rubião passava, elle estava á janella, e chamou-o. D. Tonica não teve tempo de sair da sala, para dar, ao menos, uma vista d'olhos ao espelho; mal pôde passar a mão pelo cabello, compôr o laço de fita ao pescoço e descer o vestido para cobrir os sapatos, que não eram novos.
—Digo-lhe que póde ter havido confusão, insistiu Rubião; tudo anda por lá muito atrapalhado com esta commissão das Alagoas.
—Lembra bem, interrompeu o major Siqueira; porque não metteram minha filha na commissão das Alagoas? Qual! Ha já muito que reparo nisto; antigamente não se fazia festa sem nós. Nós éramos a alma de tudo. De certo tempo para cá começou a mudança; entraram a receber-nos friamente, e o marido, se pode esquivar-se, não me falla na rua. Isto começou ha tempos; mas antes disso sem nós é que não se fazia nada. Que está o senhor a fallar de confusão? Pois se na vespera dos annos della, já desconfiando que não nos convidariam, fui ter com elle ao armazem. Poucas palavras, por mais que lhe fallasse em D. Sophia; disfarçava. Afinal disse-lhe assim: «Hontem, lá em casa, eu e Tonica estivemos discutindo sobre a data dos annos de D. Sophia; ella dizia que tinha passado, eu disse que não, que era hoje ou amanhã.» Não me respondeu, fingiu que estava absorvido em uma conta, chamou o guarda-livros, e pediu explicações. Eu entendi o bicho, e repeti a historia; fez a mesma cousa. Sahi. Ora o Palha, um pé-rapado! Já o envergonho. Antigamente: major, um brinde. Eu fazia muitos brindes, tinha certo desembaraço. Jogavamos o voltarete. Agora está nas grandezas; anda com gente fina. Ah! vaidades deste mundo! Pois não vi outro dia a mulher delle, n'um coupé, com outra? A Sophia de coupé! Fingiu que me não via, mas arranjou os olhos de modo que percebesse se eu a via, se a admirava. Vaidades desta vida! Quem nunca comeu azeite, quando come se lambusa.
—Perdão, mas os trabalhos da commissão exigem certo apparato.
—Sim, acudiu Siqueira, é por isso que minha filha não entrou na commissão; é para não estragar as carruagens...
—Demais, o coupé podia ser da outra senhora, que ia com ella.
O major deu dous passos, com as mãos atraz, e parou deante de Rubião.
—Da outra... ou do padre Mendes. Como vae o padre? Boa vida, naturalmente.
—Mas, papae, póde não haver nada, interrompeu D. Tonica. Ella sempre me trata bem, e quando estive doente no mez passado, mandou saber pelo moleque, duas vezes...
—Pelo moleque! bradou o pae. Pelo moleque! Grande favor! «Moleque, vae alli á casa daquelle reformado e pergunta lhe se a filha tem passado melhor; não vou, porque estou lustrando as unhas!» Grande favor! Tu não lustras as unhas! tu trabalhas! tu és digna filha minha! pobre, mas honesta!
Aqui o major chorou, mas suspendeu de repente as lagrimas. A filha, commovida, sentiu-se tambem vexada. Certo, a casa dizia a pobreza da familia, poucas cadeiras, uma meza redonda velha, um canapé gasto; nas paredes duas lithographias encaixilhadas em pinho pintado de preto, um era o retrato do major em 1857, a outra representava o Veronez em Veneza, comprado na rua do Senhor dos Passos. Mas o trabalho da filha transparecia em tudo; os moveis reluziam de asseio, a meza tinha um panno de crivo, feito por ella, o canapé uma almofada. E era falso que D. Tonica não lustrasse as unhas; não teria o pó nem a camurça, mas acudia-lhes com um retalho de panno todas as manhãs.
Rubião tratou-os com sympathia. Não continuou a defender a gente Palha, para não desesperar o major, e fallou do exercito. Pouco depois, despediu-se, promettendo, sem convite, que lá iria jantar «um dia destes».
—Jantar de pobre, acudiu o major; se puder avisar, avise.
—Não quero banquetes; virei quando me der na cabeça.
Despediu-se. D. Tonica, depois de ir até o patamar, sem chegar á frente por causa dos sapatos, foi á janella para vel-o sair.
Logo que Rubião dobrou a esquina da rua das Mangueiras, D. Tonica entrou e foi ao pae, que se estendera no canapé, para reler o velho Saint-Clair das ilhas ou os desterrados da ilha da Barra. Foi o primeiro romance que conheceu; o exemplar tinha mais de vinte annos; era toda a bibliotheca do pae e da filha. Siqueira abriu o primeiro volume, e deitou os olhos ao começo do cap. II, que já trazia de cór. Achava-lhe agora um sabor particular, por motivo dos seus recentes desgostos: «Enchei bem os vossos copos, exclamou Saint-Clair, e bebamos de uma vez; eis o brinde que vos proponho. Á saude dos bons e valentes opprimidos, e ao castigo dos seus oppressores. Todos acompanharam Saint-Clair, e foi de roda a saude.»
—Sabe de uma cousa, papae? Papae compra amanhã latas de conserva, petit-pois, peixe, etc. e ficam guardadas. No dia em que elle apparecer para jantar, põe-se no fogo, é só aquecer, e daremos um jantarzinho melhor.
—Mas eu só tenho o dinheiro do teu vestido.
—O meu vestido? Compra-se no mez que vem, ou no outro. Eu espero.
—Mas não ficou ajustado?
—Desajusta-se; eu espero.
—E se não houver outro do mesmo preço?
—Hade haver; eu espero, papae.
Ainda não disse,—porque os capitulos atropellam-se debaixo da penna,—mas aqui está um para dizer que, por aquelle tempo, as relações de Rubião tinham crescido em numero. Camacho puzera-o em contacto com muitos homens politicos, a commissão das Alagoas com varias senhoras, os bancos e companhias com pessoas do commercio e da praça, os theatros com alguns frequentadores e a rua do Ouvidor com toda a gente. Já então era um nome repetido. Conhecia-se o homem. Quando appareciam as barbas e o par de bigodes longos, uma sobre-casaca bem justa, um peito largo, bengala de unicornio, e um andar firme e senhor, dizia-se logo que era o Rubião,—um ricaço de Minas.
Tinham-lhe feito uma lenda. Diziam-n'o discipulo de um grande philosopho, que lhe legára immensos bens,—um, tres, cinco mil contos. Extranhavam alguns que elle não fallasse nunca de philosophia, mas a lenda explicava esse silencio pelo proprio methodo philosophico do mestre, que consistia em ensinar sómente aos homens de boa vontade. Onde estavam esses discipulos? Iam á casa delle, todos os dias,—alguns duas vezes, de manhã e de tarde; e assim ficavam definidos os comensaes. Não seriam discipulos, mas eram de boa vontade. Roiam fome, á espera, e ouviam calados e risonhos os discursos do amphytrião. Entre os antigos e os novos, houve tal ou qual rivalidade, que os primeiros accentuaram bem, mostrando maior intimidade, dando ordens aos criados, pedindo charutos, indo ao interior, assobiando, etc. Mas o costume os fez supportaveis entre si, e todos acabaram na doce e commum confissão das qualidades do dono da casa. Ao cabo de algum tempo, tambem os novos lhe deviam dinheiro, ou em especie,—ou em fiança no alfaiate, ou endosso de lettras, que elle pagava ás escondidas, para não vexar os devedores.
Quincas Borba andava ao collo de todos. Davam estalinhos, para vel-o saltar, alguns chegavam a beijar-lhe a testa; um delles, mais habil, achou modo de o ter á mesa, ao jantar ou almoço, sobre as pernas, para lhe dar migalhas de pão.
—Ah! isso não! protestou Rubião á primeira vez.
—Que tem? retorquiu o comensal. Não ha pessoas extranhas.
Rubião reflectiu um instante.
—Verdade é que está ahi dentro um grande homem, disse elle.
—O philosopho, o outro Quincas Borba, continuou o conviva, circulando o olhar pelos novatos, para mostrar a intimidade das relações entre elle e Rubião; mas, não logrou sosinho a vantagem, por que os outros amigos da mesma éra, repetiram, em coro:
—É verdade, o philosopho.
E Rubião explicou aos novatos a allusão ao philosopho, e a razão do nome do cão, que todos lhe attribuiam. Quincas Borba (o defuncto) foi descripto e narrado como um dos maiores homens do tempo,—superior aos seus patricios. Grande philosopho, grande alma, grande amigo. E no fim, depois de algum silencio, batendo com os dedos na borda da mesa, Rubião exclamou:
—Eu o faria ministro de Estado!
Um dos convivas exclamou, sem convicção, por simples officio:
—Oh! sem duvida!
Nenhum daquelles homens sabia, entretanto, o sacrificio que lhes fazia o Rubião. Recusava jantares, passeios, interrompia conversações apraziveis, só para correr a casa e jantar com elles. Um dia achou meio de conciliar tudo. Não estando elle em casa ás seis horas em ponto, os criados deviam pôr o jantar para os amigos. Houve protestos; não, senhor, esperariam até sete ou oito horas. Um jantar sem elle não tinha graça.
—Mas é que posso não vir, explicou Rubião.
Assim se cumpriu. Os convivas ajustaram bem os relogios pelos da casa de Botafogo. Davam seis horas, todos á mesa. Nos dous primeiros dias houve tal ou qual hesitação; mas os criados tinham ordens severas. Ás vezes, Rubião chegava pouco depois. Eram então risos, ditos, intrigas alegres. Um queria esperar, mas os outros... Os outros desmentiam o o primeiro; ao contrario, foi este que os arrastou, tal fome trazia,—a ponto que, se alguma cousa restava, eram os pratos. E Rubião ria com todos.
Fazer um capitulo só para dizer que, a principio, os convivas, ausente o Rubião, fumavam os proprios charutos, depois do jantar,—parecerá frivolo aos frivolos; mas os considerados dirão que algum interesse haverá nesta circumstancia em apparencia minima.
De facto, uma noite, um dos mais antigos lembrou-se de ir ao gabinete de Rubião; lá fôra algumas vezes, alli se guardavam as caixas de charutos, não quatro nem cinco, mas vinte e trinta de varias fabricas e tamanhos, muitas abertas. Um criado (o hespanhol) accendeu o gaz. Os outros convivas seguiram o primeiro, escolheram charutos e os que ainda não conheciam o gabinete admiraram os moveis bem feitos e bem dispostos. A secretária captou as admirações geraes; era de ebano, um primor de talha, obra severa e forte. Uma novidade os esperava: dous bustos de marmore, postos sobre ella, os dous Napoleões, o primeiro e o terceiro.
—Quando veiu isto?
—Hoje ao meio dia, respondeu o criado.
Dous bustos magnificos. Ao pé do olhar aquilino do tio, perdia-se no vago o olhar scismatico do sobrinho. Contou o criado que o amo, apenas recebidos e collocados os bustos, deixara-se estar grande espaço em admiração, tão deslembrado do mais, que elle pode miral-os tambem, sem admiral-os.—No me dicen nada estos dos pícaros, concluiu o criado fazendo um gesto largo e nobre.
Rubião protegia largamente as lettras. Livros que lhe eram dedicados, entravam para o prelo com a garantia de duzentos e trezentos exemplares. Tinha diplomas e diplomas de sociedades litterarias, coreographicas, pias, e era juntamente socio de uma Congregação Catholica e de um Gremio Protestante, não se tendo lembrado de um quando lhe fallaram do outro; o que fazia era pagar regularmente as mensalidades de ambos. Assignava jornaes sem os ler. Um dia, ao pagar o semestre de um, que lhe haviam mandado, é que soube, pelo cobrador, que era do partido do governo; mandou o cobrador ao diabo.
O cobrador não foi ao diabo; recebeu o preço do semestre, e, como possuia a observação natural dos cobradores, resmungou na rua:
—Ora aqui está um homem que detesta a folha e paga. Quantos a adoram e não pagam!
Mas—ó lance da fortuna! ó equidade da natureza!—os desperdicios do nosso amigo, se não tinham remedio, tinham compensação. Já o tempo não passava por elle como por um vadio sem ideias. Rubião, á falta de ideias, tinha agora imaginação. Outr'ora vivia mais dos outros que de si, não achava equilibrio interior, e o ocio esticava as horas, que não acabavam mais. Tudo ia mudando; agora a imaginação, que, a relampagos, lhe apparecia ultimamente, tendia a pousar um pouco. Sentado na loja do Bernardo, gastava toda uma manhã, sem que o tempo lhe trouxesse fadiga, nem a estreiteza da rua do Ouvidor lhe tapasse o espaço. Repetiam-se as visões deliciosas, como a das bodas (Cap. LXXXI) em termos a que a grandeza não tirava a graça. Houve quem o visse, mais de uma vez, saltar da cadeira e ir até á porta ver bem pelas costas alguma pessoa que passava. Conhecel-a-hia? Ou seria alguem que, casualmente, tinha as feições da creatura imaginaria que elle estivera mirando? São perguntas de mais para um só capitulo; basta dizer que uma dessas vezes nem passou ninguem, elle proprio reconheceu a illusão, voltou para dentro, comprou uma teteia de bronze para dar á filha do Camacho, que fazia annos, e ia casar em breve, e saiu.
E Sophia? interroga impaciente a leitora, tal qual Orgon: Et Tartuffe? Ai, amiga minha, a resposta é naturalmente a mesma,—tambem ella comia bem, dormia largo e fofo,—cousas que, aliás, não impedem que uma pessoa ame, quando quer amar. Se esta ultima reflexão é o motivo secreto da vossa pergunta, deixai que vos diga que sois muito indiscreta, e que eu não me quero senão com dissimulados.
Repito, comia bem, dormia largo e fofo. Chegára ao fim da commissão das Alagoas, com elogios da imprensa; a Atalaia chamou-lhe «o anjo da consolação». E não se pense que este nome a alegrou, posto que a lisongeasse; ao contrario, resumindo em Sophia toda a acção da caridade, podia mortificar as novas amigas, e fazer-lhe perder em um dia o trabalho de longos mezes. Assim se explica o artigo que a mesma folha trouxe no numero seguinte, nomeando, particularisando e glorificando as outras commissarias—-«estrellas de primeira grandeza».
Nem todas as relações subsistiram, mas a maior parte dellas estavam atadas, e não faltam á nossa dona o talento de as tornar definitivas. O marido é que peccava por turbulento, excessivo, derramado, dando bem a ver que o cumulavam de favores, que recebia finezas inesperadas e quasi immerecidas. Sophia, para emendal-o, vexava-o com censuras e conselhos, rindo:
—«Você esteve hoje insupportavel; parecia um criado».
—«Christiano, fique mais senhor de si, quando tivermos gente de fóra, não se ponha com os olhos fóra da cara, saltando de um lado para outro, assim com ar de criança que recebe doce...»
Elle negava, explicava ou justificava-se; afinal, concluia que sim, que era preciso não parecer estar abaixo dos obsequios; cortezia, affabilidade, mais nada...
Justo, mas não vás cahir no extremo opposto, acudiu Sophia; não vás ficar casmurro...
Palha era então as duas cousas; casmurro, a principio, frio, quasi desdenhoso, fallando pouco, apenas respondendo. Mas, ou a reflexão, ou o impulso inconsciente, restituia ao nosso homem a animação habitual, e com ella, segundo o momento, a demasia e o estrepito. Sophia é que, em verdade, corrigia tudo. Observava, imitava. Necessidade e vocação fizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna. Ao demais, estava naquella edade média em que as mulheres inspiram egual confiança ás sinhásinhas de vinte e ás sinhás de quarenta. Algumas morriam por ella; muitas a cumulavam de louvores.
Foi assim que a nossa amiga, pouco a pouco, espanou a atmosphera. Cortou as relações antigas, familiares, algumas tão intimas que difficilmente se poderiam dissolver; mas a arte de receber sem calor, ouvir sem interese e despedir-se sem saudade, não era das suas menores prendas; e uma por uma, se foram indo as pobres creaturas modestas, sem maneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta, de pagodes caseiros, de habitos singelos e sem elevação. Com os homens fazia exactamente o que o major contara, quando elles a viam passar de carruagem,—que era sua,—entre parenthesis. A differença é que já nem os espreitava para saber se a viam. Acabara a lua de mel da grandeza; agora torcia os olhos duramente para outro lado, conjurando, de um gesto definitivo, o perigo de alguma hesitação. Punha assim os velhos amigos na obrigação de lhe não tirarem o chapéo. Como eram poucos, foi breve a empreza.
Rubião ainda quiz valer ao major, mas o ar de fastio com que Sophia o interrompeu foi tal, que o nosso amigo preferiu perguntar-lhe se, não chovendo na seguinte manhã, iriam sempre passear á Tijuca.
—Já fallei a Christiano; disse-me que tem um negocio, que fique para domingo que vem.
Rubião, depois de um instante:
Vamos nós dous. Sahimos cedo, passeamos, almoçamos lá; ás tres ou quatro horas estamos de volta...
Sophia olhou para elle, com tamanha vontade de acceitar o convite, que Rubião não esperou resposta verbal.
—Está assentado, vamos, disse elle.
—Não.
—Como não?
E repetiu a pergunta, porque Sophia não lhe quiz explicar a negativa, aliás, tão obvia. Obrigada a fazel-o, ponderou que o marido ficaria com inveja, e era capaz de adiar o negocio só para ir tambem. Não queria atrapalhar os negocios delle, e podiam esperar oito dias. O olhar de Sophia acompanhava essa explicação, como um clarim acompanharia um padre-nosso. Vontade tinha, oh! se tinha vontade de ir na manhã seguinte, com Rubião, estrada acima, bem posta no cavallo, não scismando á toa, nem poetica, mas valente, fogo na cara, toda deste mundo, galopando, trotando, parando. Lá no alto, desmontaria algum tempo; tudo só, a cidade ao longe e o ceu por cima. Encostada ao cavallo, penteando-lhe as crinas com os dedos, ouviria Rubião louvar-lhe a affouteza e o garbo... Chegou a sentir um beijo na nuca...
Pois que se trata de cavallos, não fica mal dizer que a imaginação de Sophia era agora um corsel brioso e petulante, capaz de galgar morros e desbaratar mattos. Outra seria a comparação, se a occasião fosse differente; mas corsel é o que vae melhor. Traz a ideia do impeto, do sangue, da disparada, ao mesmo tempo que a da serenidade com que torna ao caminho recto, e por fim á cavallariça.
—Está dito, vamos amanhã, repetiu Rubião, que espreitava o rosto acceso de Sophia.
Mas o corsel viera fatigado da carreira, e deixou-se estar somnolento na cavallariça. Sophia era já outra; passara a vertigem da empreza, o ardor sonhado, o gosto de subir com elle a estrada da Tijuca. Dizendo-lhe Rubião que fallaria ao marido para que a deixasse ir ao passeio, redarguiu sem alma:
—Está tonto! Fica para o domingo que vem!
E fixou os olhos no trabalho de linha que fazia,—frioleira é o nome,—emquanto Rubião voltava os seus para um trechosinho de jardim mofino, ao pé da saleta de trabalho onde estavam. Sophia, sentada no angulo da janella, ia meneando os dedos. Rubião viu em duas rosas vulgares uma festa imperial, e esqueceu a sala, a mulher e a si. Não se póde dizer, ao certo, que tempo estiveram assim calados, alheios e remotos um do outro. Foi uma criada que os accordou, trazendo-lhes café. Bebido o café, Rubião concertou as barbas, tirou o relogio e despediu-se. Sophia, que espreitava a sabida, ficou satisfeita, mas encobriu o gosto com o espanto.
—Já!
—Preciso de fallar a um sujeito antes das quatro horas, explicou Rubião. Estamos entendidos; passeio de amanhã gorado. Vou mandar desavisar os cavallos. Mas será certo no domingo que vem?
—Certo, certo, não posso affirmar; mas resolvendo-se em tempo o Christiano, creio que sim. Sabe que meu marido é o homem dos impedimentos.
Sophia acompanhou-o até á porta, estendeu-lhe a mão indifferente, respondeu sorrindo alguma cousa chocha, tornou á salinha em que estivera,—ao mesmo angulo,—da mesma janella. Não continuou logo o trabalho, poz uma perna sobre outra, fazendo descer, por habito, a saia do vestido, e lançou uma olhada ao jardim, onde as duas rosas tinham dado ao nosso amigo uma visão imperial. Sophia não viu mais que duas flores mudas. Fitou-as, não obstante, algum tempo; em seguida, pegou da frioleira, trabalhou um pouco, deteve-se outro pouco, deixando as mãos no regaço; e voltou á obra, outra vez, para tornar a deixal-a. De repente, levantou-se e atirou as linhas e a navette á cestinha de junco, onde guardava os seus pretextos de trabalho. A cesta era ainda uma lembrança de Rubião!
—Que homem aborrecido!
Dalli foi encostar-se á janella, que dava para o jardim mofino, onde iam murchando as duas rosas vulgares. Rosas, quando recentes, importam-se pouco ou nada com as coleras dos outros; mas, se definham, tudo lhes serve para vexar a alma humana. Quero crer que este costume nasce da brevidade da vida. «Para as rosas, escreveu Fontenelle, o jardineiro é eterno.» E que melhor maneira de ferir o eterno que mofar das suas iras? Eu passo, tu ficas; mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a donzellas, fui lettra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no proprio arbusto, e todas as mãos e todos os olhos me trataram e me viram com admiração e affecto. Tu não, ó eterno; tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu affliges-te! a tua eternidade não vale um só dos meus minutos.
Assim, quando Sophia chegou á janella que dava para o jardim, ambas as rosas riram-se a petalas despregadas. Uma dellas disse que era bem feito! bem feito! bem feito!
—Tens razão em te zangares, formosa creatura, acrescentou, mas hade ser comtigo, não com elle. Elle que vale? Um triste homem sem encantos, póde ser que bom amigo, e talvez generoso, mas repugnante, não? E tu, requestada de outros, que demonio te leva a dar ouvidos a esse intruso da vida? Humilha-te, ó suberba creatura, porque és tu mesma a causa do teu mal. Tu juras esquecel-o, e não o esqueces. E é preciso esquecel-o? Não te basta fital-o, escutal-o, para desprezal-o? Esse homem não diz cousa nenhuma, ó singular creatura, e tu...
—Não é tanto assim, interrompeu a outra rosa, com a voz ironica e descançada; elle diz alguma cousa, e dil-a desde muito, sem desapprendel-a, nem trocal-a; é firme, esquece a dor, crê na esperança. Toda a sua vida amorosa é como o passeio á Tijuca, de que vocês fallavam ha pouco: «Fica para o domingo que vem!» Eia, piedade ao menos; sê piedosa, ó bonissima Sophia! Se hasde amar a alguem, fóra do matrimonio, ama-o a elle, que te ama e é discreto. Anda, arrepende-te do gesto de ha pouco. Que mal te fez elle, e que culpa lhe cabe se és bonita? E quando haja culpa, a cesta é que a não tem, só porque elle a comprou, e menos ainda as linhas e a navette que tu mesma mandaste comprar pela criada. Tu és má, Sophia, és injusta...
Sophia deixou-se estar ouvindo, ouvindo... Interrogou outras plantas, e não lhe disseram cousa diferente. Ha desses acertos maravilhosos. Quem conhece o solo e o sub-solo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de ideias ou de sentimentos, quando nós tambem o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as cousas compõem um dos mais interessantes phenomenos da terra. A expressão: «Conversar com os seus botões», parecendo simples metaphora, é phrase de sentido real e directo. Os botões operam synchronicamente comnosco; formam uma especie de senado, commodo e barato, que vota sempre as nossas moções.
Fez-se o passeio á Tijuca, sem outro incidente mais que uma queda do cavallo, ao descerem. Não foi Rubião que cahiu, nem o Palha, mas a senhora deste, que vinha pensando em não sei quê, e chicoteou o animal com raiva; elle espantou-se e deitou-a em terra. Sophia cahiu com graça. Estava singularmente esbelta, vestida de amazona, corpinho tentador de justeza. Othello exclamaria, se a visse: «Oh! minha bella guerreira!» Rubião limitara-se a isto, ao começar o passeio: «A senhora é um anjo!».
—Fiquei com o joelho dorido, disse ella entrando em casa e coxeando.
—Deixa ver.
No quarto de vestir, Sophia levantou o pé sobre um banquinho e mostrou ao marido o joelho pisado; inchára um pouco, muito pouco, mas tocando-lhe, fazia-a gemer. Palha, não querendo machucal-a, chegou-lhe a pontinha dos beiços apenas.
—Fiquei descomposta quando cahi?
—Não. Pois com um vestido tão comprido... Mal se pôde ver o bico do pé. Não houve nada, acredita.
—Jura que não?
—Que desconfiada que você é, Sophia! Juro por tudo o que ha mais sagrado, pela luz que me allumia, por Deus Nosso Senhor. Estás satisfeita?
Sophia ia cobrindo o joelho.
—Deixa ver outra vez. Creio que não será nada de maior; bota um pouco de qualquer cousa. Manda perguntar á botica.
—Está bom, deixa-me ir despir, disse ella forcejando por descer o vestido.
Mas o Palha baixara os olhos do joelho até ao resto da perna, onde pegava com o cano da bota. De feito, era um bello trecho da natureza. A meia de seda dava ideia clara da perfeição do contorno. Palha, por graça, ia perguntando á mulher se se machucára aqui, e mais aqui, e mais aqui, indicando os logares com a mão que ia descendo. Se apparecesse um pedacinho desta obra-prima, o céo e as arvores ficariam assombrados, concluiu elle em quanto a mulher descia o vestido e tirava o pé do banco.
—Póde ser, mas não havia só o céo e as arvores, disse ella; havia tambem os olhos do Rubião.
—Ora, o Rubião! É verdade; elle nunca mais teve aquellas ideias de Santa Thereza?
—Nunca; mas, emfim, não me agradaria... Jura de verdade, Christiano?
—O que você quer é que eu vá subindo de sagrado em sagrado, até á cousa mais sagrada. Jurei por Deus; não bastou. Juro por você; está satisfeita?
Pieguices de lascivo. Sahiu finalmente do quarto da mulher e foi para o seu. Aquelle pudor medroso e incredulo de Sophia fazia-lhe bem. Mostrava que ella era sua, totalmente sua; mas, por isso mesmo que elle a possuia, considerava que era de grande senhor não se affligir com a vista casual e instantanea de um pedaço occulto do seu reino. E lastimava que o casual tivesse parado na ponta da bota. Era apenas a fronteira; as primeiras villas do territorio, antes da cidade machucada pela queda, dariam ideia de uma civilisação sublime e perfeita. E ensaboando-se, esfregando a cara, o collo e a cabeça na vasta bacia de prata, escovando-se, enxugando-se, aromando-se, Palha imaginava o pasmo e a inveja da unica testemunha do desastre, se este fosse menos incompleto.
Foi por esse tempo que Rubião poz em espanto a todos os seus amigos. Na terça-feira seguinte ao domingo do passeio (era então Janeiro de 1870) avisou a um barbeiro e cabelleireiro da rua do Ouvidor que o mandasse barbear a casa, no outro dia, ás nove horas da manhã. Lá foi um official francez,—chamado Lucien, creio eu,—que entrou para o gabinete de Rubião, segundo as ordens dadas ao criado.
—Uhm!... rosnou Quincas Borba, de cima dos joelhos do Rubião.
Lucien parou á porta do gabinete, e comprimemtou o dono da casa; este, porem, não viu a cortezia, como não ouvira o signal do Quincas Borba. Estava em uma longa cadeira de extensão, ermo do espirito, que rompera o tecto e se perdera no ar. A quantas leguas iria? Nem condor nem aguia o poderia dizer. Em marcha para a lua,—não via cá em baixo mais que as felicidades perennes, chovidas sobre elle, desde o berço, onde o embalaram fadas, até á praia de Botafogo, aonde ellas o trouxeram, por um chão de rosas e bogaris. Nenhum revez, nenhum mallogro, nenhuma pobreza;—vida placida, cosida de goso, com rendas de superfluo. Em marcha para a lua!
Lucien relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia principal figura a secretária, e sobre ella os dous bustos de Napoleão e Luiz Napoleão. Relativamente a este ultimo, havia ainda, pendentes da parede, uma gravura ou lithographia representando a Batalha de Solferino, e um retrato da imperatriz Eugenia.
Rubião tinha nos pés um par de chinellas de damasco, bordadas a ouro; na cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na bocca, um riso azul claro.
—Monsieur...
—Uhm! repetiu Quincas Borba, de pé nos joelhos do senhor.
Rubião voltou a si e deu com o barbeiro. Conhecia-o por tel-o visto ultimamente na loja; ergueu-se da cadeira, Quincas Borba latia, como a defendel-o contra o intruso.
—Socega! cala a boca! disse-lhe Rubião; e o cachorro foi, de orelha baixa, metter-se por traz da cesta de papeis. Durante esse tempo, Lucien desembrulhava os seus apparelhos.
—Monsieur veut se faire raser, n'est-ce pas? Pourquoi donc a-t-il laisser croître cette belle barbe? Apparemment que c'est un voeu d'amour? J'en connais qui ont fait de pareils sacrifices; j'ai même été confident de quelques personnes aimables...
—Justamente! interrompeu Rubião.
Não entendera nada; posto soubesse algum francez, mal o comprehendia lido—como sabemos,—e não o entendia fallado. Mas, phenomeno curioso, não respondeu por impostura; ouviu as palavras, como se fossem comprimento ou acclamação; e, ainda mais curioso phenomeno, respondendo-lhe em portuguez, cuidava fallar francez.
—Justamente! repetiu. Quero restituir a cara ao typo anterior; é aquelle.
E, como apontasse para o busto de Napoleão III, respondeu-lhe o barbeiro pela nossa lingua:
—Ah! o imperador! Bonito busto, em verdade. Obra fina. O senhor comprou isto aqui ou mandou vir de Paris? São magnificos. Lá está o primeiro, o grande; este era um genio. Se não fosse a traição, oh! os traidores, vê o senhor? os traidores são peiores que as bombas de Orsini.
—Orsini! um coitado!
—Pagou caro.
—Pagou o que devia. Mas não ha bombas nem Orsini contra o destino de um grande homem, continuou Rubião. Quando a fortuna de uma nação põe na cabeça de um grande homem a coroa imperial, não ha maldades que valham... Orsini! um bobo!
Em poucos minutos, começou o barbeiro a deitar abaixo as barbas do Rubião, para lhe deixar somente a pera e os bigodes de Napoleão III; encarecia-lhe o trabalho; affirmava que era difficil compor exactamente uma cousa como a outra, E á medida que lhe cortava as barbas, ia-as gabando.—Que lindos fios! Era um grande e honesto sacrificio que fazia, em verdade...
—Seu barbeiro, você é pernostico, interrompeu Rubião. Já lhe disse o que quero; ponha-me a cara como estava. Alli tem o busto para guial-o.
—Sim, senhor, cumprirei as suas ordens, e verá que semelhança vae sair.
E zás, zás, deu os ultimos golpes ás barbas de Rubião, e começou a rapar-lhe as faces e os queixos. Durou longo tempo a operação; o barbeiro ia tranquillamente rapando, comparando, dividindo os olhos entre o busto e o homem. Ás vezes, para melhor cotejal-os, recuava dous passos, olhava-os alternadamente, inclinava-se, pedia ao homem que se virasse de um lado ou de outro, e ia ver o lado correspondente do busto.
—Vae bem? perguntava Rubião.
Lucien pedia-lhe com um gesto que se calasse, e proseguia. Recortou a pera, deixou os bigodes, e escanhoou á vontade, lentamente, amigamente, aborrecidamente, adivinhando com os dedos alguma pontinha imperceptivel de cabello no queixo ou na face, para não o consentir, nem por suspeita. Ás vezes Rubião, cançado de estar a olhar para o tecto, emquanto o outro lhe aperfeiçoava os queixos, pedia para descançar. Descançando, apalpava o rosto e sentia pelo tacto a mudança.
—Os bigodes é que não estão muito compridos, observava.
—Falta arranjar-lhe as guias; aqui trago os ferrinhos para encurval-os bem sobre o labio, e depois faremos as guias. Ah! eu prefiro compor dez trabalhos originaes a uma só copia.
Volveram ainda dez minutos, antes que os bigodes e a pera fossem bem retocados. Emfim, prompto. Rubião deu um salto, correu ao espelho, no quarto, que ficava ao pé; era o outro, eram ambos, era elle mesmo, em summa.
—Justamente! exclamou tornando ao gabinete, onde o barbeiro, tendo arrecadado os apparelhos, fazia festas ao Quincas Borba.
E indo á secretária, abriu uma gaveta, tirou uma nota de vinte mil réis, e deu-lh'a.
—Não tenho troco, disse o outro.
—Não precisa dar troco, acudiu Rubião com um gesto soberano; tire o que houver de pagar á casa, e o resto é seu.
Ficando só, Rubião atirou-se a uma poltrona, e viu passar muitas cousas sumptuosas. Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne, parece. Governou um grande Estado, ouviu ministros e embaixadores, dansou, jantou,—e assim outras acções narradas em correspondencias de jornaes, que elle lera e lhe ficaram de memoria. Nem os ganidos de Quincas Borba logravam espertal-o. Estava longe e alto. Compiègne era no caminho da lua. Em marcha para a lua!
Quando desceu da lua, ouviu os ganidos do cachorro e sentiu frio nos queixos. Correu ao espelho e verificou que a differença entre a cara barbada e a cara lisa era grande mas que, assim lisa, não lhe afiava, mal. Os comensaes chegaram á mesma conclusão.
—Está perfeitamente bem! Ha muito que devia ter feito isso. Não é que as barbas grandes lhe tirassem a nobreza do rosto; mas, assim como está agora, tem o que tinha, e mais um tom moderno...
—Moderno, repetiu o amphytrião.
Fóra, egual espanto. Todos achavam sinceramente que este outro aspecto lhe ia melhor que o anterior. Uma só pessoa, o Dr. Camacho, posto julgasse que os bigodes e a pera ficavam muito bem no amigo, ponderou que era de bom aviso não alterar o rosto, verdadeiro espelho da alma, cuja firmeza e constancia devia reproduzir.
—Não é por lhe fallar de mim, concluiu; mas, nunca me hade ver a cara de outro modo. É uma necessidade moral da minha pessoa. Minha vida, sacrificada aos principios,—porque eu nunca tentei conciliar principios, mas homens,—minha vida, digo, é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa.
Rubião ouvia com seriedade, e acenava de cabeça que sim, que devia ser assim por força. Sentia-se então imperador dos francezes, incognito, de passeio; descendo á rua, voltou ao que era. Dante, que viu tantas cousas extraordinarias, affirma ter assistido no inferno ao castigo de um espirito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente unico, se dous. Rubião era ainda dous. Não se misturavam nelle a propria pessoa com o imperador dos francezes. Revesavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integraes.
—Que mudança é essa? perguntou Sophia, quando elle lhe appareceu no fim da semana.
—Vim saber do seu joelho; está bom?
—Obrigada.
Eram duas horas da tarde. Sophia acabava de vestir-se para sair, quando a criada lhe fora dizer que estava alli Rubião,—tão mudado de cara que parecia outro. Desceu a vel-o curiosa; achara-o na sala, de pé, lendo os cartões de visita.
—Mas que mudança é essa? repetiu ella. Rubião, sem nenhuma ideia imperial, respondeu que suppunha ficarem-lhe melhor os bigodes e a pera.
—Ou estou mais feio? concluiu.
—Está melhor, muito melhor.
E Sophia disse comsigo que talvez fosse ella a causa da mudança. Sentou-se no sophá, e começou a enfiar os dedos nas luvas.
—Vae sahir?
—Vou, mas o carro ainda não veiu.
Cahiu-lhe uma das luvas. Rubião inclinou-se para apanhal-a, ella fez a mesma cousa, ambos pegaram na luva, e teimando em levantal-a, succedeu que as caras encontraram-se no ar, e bateram uma na outra. Pangloss, se tem assistido ao episodio, emendaria a sua theoria dos narizes, que, segundo elle, foram feitos para uso dos oculos, quando a verdade é que foram destinados a impedir o encontro casual e involuntario das bocas de um e de outro sexo. Assim succedeu aqui. O nariz della bateu no delle, e as boccas ficaram intactas para rir, como riram.
—Machuquei-a?
—Não! eu é que lhe pergunto...
E riram outra vez. Sophia calçou a luva, Rubião fitou-lhe um pé que se mexia disfarçadamente, até que o criado veiu dizer que a carruagem chegára. Ergueram-se, e ainda uma vez riram.
Teso, descoberto, o lacaio abriu a portinhola do coupé, quando Sophia assomou á porta. Rubião offereceu a mão para ajudal-a a entrar, ella acceitou o obsequio e entrou.
—Agora, até...
Não pôde acabar a phrase; Rubião entrára após ella e sentára-se-lhe ao lado; o lacaio fechou a portinhola, trepou á almofada, e o carro partiu.
Tão rápido foi tudo, que Sophia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns segundos:
—Que é isto?... Senhor Rubião, mande parar o carro.
—Parar? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por elle?
—Não ia sair com o senhor... Não vê que... Mande parar...
Desatinada, quiz ordenar ao cocheiro que parasse; mas a ideia de um possivel escandalo fel-a deter-se a meio caminho. O coupé entrara na rua Bella da Princeza. Sophia novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniencia de irem assim, á vista de Deus e de todo mundo, Rubião respeitou o escrupulo, e propoz que descessem as cortinas.
—Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicou Rubião; mas, fechando as cortinas, ninguem nos vê. Se quer?
Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dous a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fóra ninguem os via. Sós, completamente sós, como naquelle dia em que ás mesmas duas horas da tarde, em casa d'ella, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao menos, a moça, estava livre; aqui dentro do carro fechado, não podia calcular as consequencias.
Rubião, entretanto, accommodára as pernas e não dizia nada.
Sophia encolhera-se muito ao canto. Podia ser extranheza da situação, podia ser medo; mas era principalmente repugnancia. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão, asco, ou outra cousa menos dura, se querem, mas que se reduzia á incompatibilidade,—como direi que não aggrave os ouvidos?—á incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de ha poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, á Tijuca, subiu com elle a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de misericordia? Tudo esqueceu, tudo desappareceu, agora que ambos se achavam deveras sós, insulados pelo carro e pelo escandalo.
E os cavallos continuavam a andar, sacudindo as patas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras da rua Bella da Princeza. Que faria ella chegando ao Cattete? iria á cidade com elle? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga deixal-o-hia dentro, diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo ao marido. No meio daquella agonia, atravessaram-lhe o cerebro algumas memorias banaes, ou extranhas á situação, como a noticia de um roubo de joias lida de manhã nos jornaes, a ventania da vespera, um chapéo. Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que elle continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe ficava mal a attitude, tranquilla, séria, quasi indifferente; mas então para que se metteu no carro? Sophia quiz romper o silencio; por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quasi que a irritou a quietação do homem, cuja acção só podia ser explicada pela paixão antiga e violenta. Depois, imaginou que elle proprio estaria arrependido, e disse-lh'o em bons termos.
—Não vejo que me possa arrepender de cousa nenhuma, acudiu elle, voltando-se. Quando a senhora disse que era máu irmos assim, á vista do publico, abaixei as cortinas. Não concordei, mas obedeci.
—Chegamos ao Cattete, atalhou ella; quer que o leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade.
—Podemos andar á tôa.
—Como?
—Á tôa, os cavallos vão andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam nem adivinhem...
—Pelo amor de Deus! não me falle assim, deixe-me, saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e o senhor toma conta d'elle. Que é que quer dizer? Bastam poucos minutos... Olhe, já dobramos para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixal-o a porta de casa...
—Mas eu sahi ha pouco de casa, vou para a cidade. Que mal ha em levar-me até lá? Se é para que não nos vejam, como foi com as cortinas, apeio-me, em qualquer logar,—na praia de Santa Luzia, por exemplo,—do lado do mar...
—O melhor é descer aqui mesmo.
—Mas porque não iremos até a cidade?
—Não, não póde ser. Peço-lhe por tudo que lhe for mais sagrado! Não faça escandalo; vamos, diga-me o que é preciso para obter uma cousa tão simples? Quer que me ajoelhe aqui mesmo?
Apezar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu-se pressa em fazel-a sentar-se outra vez.
—Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura.
—Obrigada; peço-lhe então por Deus, por sua mãe, que está no ceu...
—Deve estar no ceu, confirmou Rubião. Era uma santa senhora! As mães são sempre boas; mas daquella, ninguem que a conheceu poderá dizer outra cousa senão que era uma santa. E prendada, como poucas. Que dona de casa! Hospedes, para ella, tanto fazia cinco como cincoenta, era a mesma cousa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Os escravos davam-lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era, realmente, mãe para todos. Deve estar no céu!
—Bem, bem, atalhou Sophia. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz?
—Isto que?
—Apeiar-se aqui mesmo?
—E ir a pé para a cidade? Não posso. É scisma sua; ninguem nos vê. E depois estes seus cavallos são magnificos. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás... plás... plás... plás...
Cançada de pedir, Sophia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era possivel, ao cantinho do carro.
—Agora me lembro, pensou ella; mando parar á porta do armazem do Christiano; digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no coupé, os pedidos que lhe fiz o as respostas que me deu. Antes isso que fazel-o apear mysteriosamente em qualquer rua.
Entretanto, Rubião estava quieto. De vez em quando volvia no dedo o annel de brilhante,—um solitario explendido. Não olhava para ella, não lhe dizia nem pedia nada. Iam como um casal de aborrecidos. Sophia começava a não entender que razão o teria levado a entrar no carro. Necessidade de transporte não podia ser. Vaidade, tambem não; fechára as cortinas, á sua primeira queixa de publicidade. Nenhuma palavra amorosa,—uma allusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e supplica. Era um inexplicavel, um monstro.
—Sophia... disse de repente Rubião; e continuou com pausa:—Sophia, os dias passam, mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente gostou delle, ou então não merece o nome de homem. Os nossos amores não serão esquecidos nunca,—por mim, está claro, e estou certo que nem por ti. Tudo me déste, Sophia; a tua propria vida correu perigo. Verdade é que eu te vingaria, minha bella. Se a vingança póde alegrar os mortos, terias o maior prazer possivel. Felizmente, o meu destino protegeu-nos, e pudemos amar sem peias nem sangue...
A moça olhava espantada.
—Não te espantes, continuou elle; não nos vamos separar; não, não te fallo de separação. Não me digas que morrerias; sei que havias de chorar muitas lagrymas. Eu não,—que não vim ao mundo para chorar,—mas nem por isso a minha dor seria menor; ao contrario, as dores guardadas no coração doem mais que as outras. Lagrymas são boas porque a pessoa desabafa. Querida amiga, fallo-te assim, porque é preciso termos cautella; a nossa insaciavel paixão póde esquecer esta necessidade. Temos facilitado muito, Sophia; como nascemos um para o outro, parece-nos que estamos casados, e facilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minha alma... A vida é bella! a vida é grande! a vida é sublime! Comtigo, porém, que nome haverá que lhe possa dar? Lembras-te da nossa primeira entrevista?
Rubião disse esta ultima palavra, querendo pegar-lhe na mão. Sophia recuou a tempo; estava desorientada, não entendia e tinha medo. A voz delle crescia, o cocheiro podia ouvir alguma cousa... E aqui uma ideia terrivel a abalou: talvez o intento de Rubião fosse justamente fazer-se ouvir, para obrigal-a pelo terror,—ou então para que a abocanhassem. Teve impeto de atirar-se a elle, gritar que lhe acudissem, e salvar-se pelo escandalo.
Elle, baixinho, depois de certa pausa:
—A mim lembra-me, como se fosse hontem. Tu chegaste de carro, não era este; era um carro de praça, uma caleça. Desceste medrosa, com o veu pela cara; tremias como varas verdes... Mas os meus braços te ampararam... O sol daquelle dia devia ter parado, como quando obedeceu a Josué... E comtudo, minha flor, aquellas horas foram compridas como diabo, não sei porque; a rigor, deviam ser curtas. Era talvez porque a nossa paixão não acabava mais,não acabou, nem hade acabar nunca... Em compensação, não vimos mais o sol; ia cahindo para o outro lado das montanhas, quando a minha Sophia, ainda medrosa, sahiu para a rua, e pegou de outra caleça. Outra ou a mesma? Creio que foi a mesma. Não imaginas como fiquei; parecia tonto, beijei tudo em que havias tocado; cheguei a beijar a soleira da porta. Creio que já te contei isto. A soleira da porta. E estive quasi, quasi a ir de rastos, beijar os degráos da escada... Não o fiz, recolhi-me, fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro; violeta, se bem me recordo...
Não, não era possivel que o intuito de Rubião fosse fazer crer ao cocheiro uma aventura mentirosa. A voz era tão sumida que Sophia mal podia escutal-a; mas, se lhe custava a entender as palavras, não chegava a comprehender o sentido dellas. A que vinha aquella historia não succedida? Quem quer que a ouvisse, acceitaria tudo por verdade, tal era a nota sincera, a meiguice dos termos e a verosimilhança dos pormenores. E elle continuou suspirando as bellas reminiscencias...
—Mas que caçoada é essa? atalhou finalmente Sophia.
Não lhe respondeu o nosso amigo;—tinha a imagem deante dos olhos, não ouviu a pergunta, e foi andando. Citou-lhe um concerto de Gottschalk. O divino pianista melodiava ao piano; elles ouviam, mas o demonio da musica levou os olhos de um para outro, e ambos esqueceram o resto. Quando a musica cessou, as palmas romperam, e elles accordaram. Ai tristes! accordaram com o olhar do Palha em cima delles, um olho de onça brava. Nessa noite cuidou que elle a matasse.
—Senhor Rubião...
—Napoleão, não; chama-me Luiz. Sou o teu Luiz, não é verdade, galante creatura? Teu, teu... Chama-me teu;—o teu Luiz, o teu querido Luiz. Ai, se tu soubesses o gosto que me dás quando te ouço essas duas palavras: «Meu Luiz!» Tu és a minha Sophia,—a doce, a mimosa Sophia da minha alma. Não percamos estes momentos; vamos dizer nomes ternos; mas, baixo, baixinho, para que os malandros da almofada do carro não escutem. Para que hade haver cocheiros neste mundo? Se o carro andasse por si, a gente fallava á vontade, e iria ao fim da terra...
Já então iam costeando o Passeio Publico; Sophia não deu por isso. Olhava fixamente para Rubião; não podia ser calculo de perverso, nem lhe attribuia mofa... Delirio, sim, é o que era; tinha a sinceridade da palavra, como pessoa que vê ou viu realmente as cousas que relata.
—É preciso pol-o fóra daqui, pensou a moça. E, apparelhando-se de coragem:—Onde estaremos nós? perguntou-lhe. É occasião de separar-nos. Veja do lado de lá; onde estamos? Parece que é o convento; estamos no largo da Ajuda. Diga ao cocheiro que páre; ou, se quer, pode apear-se no largo da Carioca. Meu marido...
—Vou nomeal-o embaixador, disse Rubião. Ou senador, se quizer. Senador é melhor; ficam os dous aqui. Embaixador que fosse, não consentiria que tu o acompanhasses, e as más linguas... Tu sabes a opposição que soffro, as calumnias... Ah! ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tens tu com elle? Queres ser freira?
—Não; digo que já passamos o convento da Ajuda. Vou deixal-o no largo da Carioca, Ou vamos até o armazem de meu marido?
Sophia tornou a apegar-se ao segundo alvitre; não se faria suspeita ao cocheiro, provaria melhor a sua innocencia ao Palha, narrando-lhe tudo, desde a entrada inesperada no carro até o delirio. E que delirio era esse? Sophia pensou que o motivo podia ser ella propria, e esta ideia fel-a sorrir de piedade.
—Para que? disse Rubião. Vou apeiar-me aqui mesmo, é mais seguro. Para que hade elle desconfiar de nós e maltratar-te? Posso castigal-o, mas sempre me ficaria o remorso do mal que elle te causaria. Não, linda flor amiga; o vento que se atrevesse a tocar em tua pessoa, acredita que eu mandaria pôr fora do espaço, como um vento indigno. Tu ainda não conheces bem o meu poder, Sophia; anda, confessa.
Como Sophia não confessasse nada, Rubião chamou-lhe de bonita, e offereceu-lhe o solitario que tinha no dedo; ella, porém, comquanto amasse as joias e tivesse a intuição dos solitarios, recusou medrosamente a offerta.
—Comprehendo o escrupulo, disse elle; mas não perdes por isso, porque hasde receber outra pedra ainda mais bella, e pela mão de teu marido. Far-te-hei duqueza. Ouviste? O titulo é dado a elle, mas tu é que és a causa. Duque... Duque de que? Vou ver um titulo bonito; ou então escolhe tu mesma, porque é para ti, não é para elle, é para ti, minha mimosa. Não é preciso escolher já, vae para casa e pensa. Não te vexes; manda-me dizer o que achares mais bonito, e faço lavrar immediatamente o decreto. Tambem podes fazer outra cousa: escolhe, e diz-me no nosso primeiro encontro, no logar do costume. Quero ser o primeiro que te chame duqueza. Querida duqueza... O decreto virá depois. Duqueza da minha alma!
—Sim, sim, disse ella desvairamente, mas avisemos o cocheiro que nos leve até a casa de Christiano.
—Não, apeio-me aqui... Pára! pára!
Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veiu abrir a portinhola. Sophia, para tirar toda a suspeita a este, pediu novamente ao Rubião que fosse com ella á casa do marido; disse-lhe que este precisava fallar-lhe, com urgencia. Rubião olhou um pouco espantado para ella, para o lacaio e para a rua; e respondeu que não, que iria depois.
Apenas separados, deu-se em ambos um contraste.
Rubião, na rua, voltou a cabeça para todos os lados, a realidade apossava-se delle e o delirio esvaia-se. Andava, estacava deante de uma loja, atravessava a rua, detinha um conhecido, pedia-lhe noticias e opiniões; exforço inconsciente para sacudir de si a personalidade emprestada.
Ao contrario, Sophia, passado o susto e o espanto, mergulhou no devaneio; todas as referencias e historias mentirosas de Rubião como que lhe davam saudades,—saudades de que?—-«saudades do ceu», que é o que dizia o padre Bernardes do sentimento de um bom christão. Nomes diversos relampejavam no azul daquella possibilidade. Quanto pormenor interessante! Sophia reconstruiu a caleça velha, onde entrou rapida, donde desceu tremula, para esgueirar-se pelo corredor dentro, subir a escada, e achar um homem,—que lhe disse os mimos mais appetitosos deste mundo, e os repetiu agora, ao pé della, no carro, mas não era, não podia ser o Rubião. Quem seria? Nomes diversos relampejavam no azul daquella possibilidade.
Espalhou-se a nova da mania de Rubião. Alguns, não o encontrando nas horas do delirio, faziam experiencias, a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavam a conversação para os negocios de França e do imperador. Rubião resvalava ao abysmo, e convencia-os.
Passaram-se alguns mezes, veiu a guerra franco-prussiana, e as crises de Rubião tornaram-se mais intensas e menos espaçadas. Quando as malas da Europa chegavam cedo, Rubião sahia de Botafogo, antes do almoço, e corria a esperar os jornaes; comprava a Correspondencia de Portugal, e ia lel-a no Carceler. Quaesquer que fossem as noticias, dava-lhes o sentido da victoria. Fazia a conta dos mortos e feridos, e achava sempre um grande saldo a seu favor. A quéda de Napoleão III foi para elle a captura do rei Guilherme, a revolução de 4 de Setembro um banquete de bonapartistas.
Em casa, os amigos do jantar não se mettiam a dissuadil-o. Tambem não confirmavam nada, por vergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam. Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares, o marechal Torres, o marechal Pio, o marechal Ribeiro, e acudiam pelo titulo. Rubião via-os fardados; ordenava um reconhecimento, um ataque, e não era necessario que elles sahissem a obedecer; o cerebro do amphytrião cumpria tudo. Quando Rubião deixava o campo de batalha para tornar á mesa, esta era outra. Já sem prataria, quasi sem porcellana nem crystaes, ainda assim apparecia aos olhos de Rubião régiamente esplendida. Pobres gallinhas magras eram graduadas em faisões; picados triviaes, assados de má morte traziam o sabor das mais finas iguarias do céo e da terra. Os comensaes faziam algum reparo, entre si,—ou ao cosinheiro,—mas Lucullo ceiava sempre com Lucullo. Toda a mais casa, gasta pelo tempo e pela incuria, tapetes desbotados, mobilias truncadas e descompostas, cortinas enxovalhadas, nada tinha o seu actual aspecto, mas outro, lustroso e magnifico. E a linguagem era tambem diversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos, alguns extraordinarios, como os do finado amigo Quincas Borba,—theorias que elle não entendera, quando lh'as ouvira outr'ora, em Barbacena, e que ora repetia com lucidez, com alma,—ás vezes, empregando as mesmas phrases do philosopho. Como explicar essa repetição do obscuro, esse conhecimento do inextricavel, quando os pensamentos e as palavras pareciam ter ido com os ventos de outros dias? E porque todas essas reminiscencias desappareciam com a volta da razão?
A compaixão de Sophia,—explicado o mal do Rubião pelo amor que elle lhe tinha,—era um sentimento medio, não sympathia pura nem egoismo ferrenho, mas participando de ambos. Uma vez que evitasse alguma situação identica á do coupé, tudo ia bem. Nas horas em que Rubião estava lucido, escutava-o e fallava-lhe com interesse,—até porque a doença, dando-lhe audacia nos momentos de crise, dobrava-lhe a timidez nas horas normaes. Não sorria, como o Palha, quando Rubião subia ao throno ou commandava um exercito. Crendo-se autora do mal, perdoava-lh'o; a idéa de ter sido amada até á loucura, sagrava-lhe o homem.
—Porque não o tratam? perguntou uma noite D. Fernanda, que alli o conhecera no anno anterior; póde ser que se cure.
—Parece que não é cousa grave, acudiu o Palha; tem desses accessos, mas assim mansos, como viu, ideias de grandeza, que passam logo; e repare que, fóra daquillo, conversa perfeitamente. Comtudo, póde ser... Que acha V. Ex.?
Theophilo, o marido de D. Fernanda, respondeu que sim, que era possivel.
—Que fazia elle, ou que faz agora? continuou o deputado.
—Nada, nem agora nem antes. Era rico,—mas gastador. Conhecemol-o quando veiu de Minas, e fomos, por assim dizer, o seu guia no Rio de Janeiro, aonde não voltara desde longos annos. Bom homem. Sempre com luxo, lembra-se? Mas, não ha riqueza inexgotavel, quando se entra pelo capital; foi o que elle fez. Hoje creio que tenha pouco...
—Podia salvar-lhe esse pouco, fazendo-se nomear curador, em quanto elle se trata. Não sou medico, mas póde ser que esse seu amigo fique bom.
—Não digo que não. Realmente, é pena... Dá-se com todos e presta seus serviços. Sabe que esteve para ser nosso parente? Pois não! quis casar com Maria Benedicta.
—A proposito de Maria Benedicta, interrompeu D. Fernanda, ia-me esquecendo que trago uma carta della para mostrar á senhora; recebi-a hontem. Já ha de saber que, em breve, estão de volta? Está aqui.
Entregou a carta a Sophia, que a abriu sem enthusiasmo, e a leu com tedio. Era mais que uma vulgar carta transatlantica, era um deposito moral, uma confissão intima e completa de pessoa feliz e agradecida. Contava os mais recentes episodios da viagem, desordenadamente, porque os viajantes eram sobrepostos a tudo, e as mais bellas obras do homem ou da natureza valiam menos que os olhos que as miravam. Ás vezes, um incidente de hospedaria ou de rua comia mais papel e trazia mais interesse que outros, pela razão de pôr em relevo as qualidades do marido. Maria Benedicta amava tanto ou ainda mais que no primeiro dia. No fim, a medo, em post-scriptum, pedindo que o não dissesse a ninguem, confessava que era mãe.
Sophia dobrou o papel, não já com tedio, senão com despeito, e por dous motivos que se contradizem; mas a contradicção é deste mundo. Cotejada aquella carta com as que recebera de Maria Benedicta, dir-se-hia que ella era apenas uma conhecida, sem outro laço de sangue ou de affecto; e, comtudo, não quereria ser confidente d'aquella felicidade cochichada do outro lado do oceano, cheia de minucias, de adjectivos, de exclamações, do nome de Carlos Maria, dos olhos de Carlos Maria, dos ditos de Carlos Maria, finalmente do filho de Carlos Maria. Parecia acinte, e quasi fazia crer na complicidade de D. Fernanda.
Habil, sabendo domar-se a tempo, Sophia dissimulou o despeito, e restituiu sorrindo a carta da prima. Quiz dizer que, pelo texto, a felicidade de Maria Benedicta devia estar intacta como a levara daqui, mas a voz não lhe passou da garganta. D. Fernanda é que se incumbiu da conclusão:
—Vê-se bem que é feliz!
—Parece que sim.
Se a manhã seguinte não fosse chuvosa, outra seria a disposição de Sophia. O sol nem sempre é official de boas ideias; mas, ao menos, permitte sahir, e a troca do expectaculo muda as sensações. Quando Sophia acordou já a chuva cahia grossa e continua, e o céo e o mar era tudo um, tão baixas estavam as nuvens, tão espessa era a cerração.
Tedio por dentro e por fóra. Nada em que espraiasse a vista e descançasse a alma. Sophia metteu a alma em um caixão de cedro, encerrou a este no caixão de chumbo do dia, e deixou-se estar sinceramente defuncta. Não sabia que os defunctos pensam, que um enxame de noções novas vem substituir as velhas, e que elles saem criticando o mundo como os expectadores saem do theatro criticando a peça e os actores. A defuncta sentiu que algumas noções e sensações continuavam a vida. Vinham de mistura, mas tinham um ponto de partida commum,—a carta da vespera e as recordações que lhe trouxe de Carlos Maria.
Em verdade, cuidára ter arredado para longe essa figura aborrecida, e eil-a que reapparecia, que sorria, que a fitava, que lhe sussurrava ao ouvido as mesmas palavras do vadio egoista e enfatuado, que a convidou um dia á valsa do adulterio e a deixou sosinha no meio do salão. Á volta dessa vinham outras; Maria Benedicta, por exemplo, um caco de gente, que ella foi buscar á roça para lhe dar lustre de cidade, e que esqueceu todos os beneficios para só se lembrar das suas ambições. E D. Fernanda tambem, madrinha dos seus amores, que de caso pensado, trouxera na vespera a carta de Maria Benedicta com o post-scriptum confidencial. Não advertiu que o prazer da amiga bastava a explicar o esquecimento da parte reservada da carta; menos ainda indagou se a natureza moral de D. Fernanda comportava essa supposição. Vieram assim outras ideias e imagens, e tornaram as primeiras, e todas se iam ligando e desligando. Entre ellas, appareceu uma lembrança da vespera. O marido de D. Fernanda, envolvera Sophia em um grande olhar de admiração. Ella, em verdade, estava nos seus melhores dias; o vestido sublinhava admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das cadeiras;—era foulard, côr de palha.
—Côr de palha, accentuou Sophia rindo, quando D. Fernanda o elogiou, pouco depois de entrar; côr de palha, como uma lembrança deste senhor.
Não é facil dissimular o prazer da lisonja; o marido sorriu cheio de vaidade, procurando ler nos olhos dos outros o effeito daquella prova minuciosa de amor. Theophilo elogiou tambem o vestido, mas era difficil miral-o sem mirar tambem o corpo da dona; d'alli os olhos compridos que lhe deitou, sem concupiscencia, é certo, e quasi sem reincidencia. Pois essa lembrança da vespera, um gesto sem convite, uma admiração sem desejo, veiu metter-se de permeio agora, quando Sophia cuidava na maldade da outra.
Carlos Maria, Theophilo... Outros nomes relampejavam no céo daquella possibilidade, como ficou expresso no cap. CLIV. E vieram todos agora, porque a chuva continuava a cair e o céo e o mar estavam ainda unidos pela mesma cerração. Vieram todos esses nomes, com os proprios sujeitos correspondentes, e até vieram sujeitos sem nomes,—os adventicios e ignorados,—que uma só vez passaram por ella, cantaram o hymno da admiração e receberam o obolo da boa vontade. Porque não reteve algum de tantos, para ouvil-o cantar e enriquecel-o? Não é que os obolos enriqueçam a ninguem, mas ha outras moedas de maior valia. Porque não reteve um de tantos nomes elegantes, e até egregios? Essa pergunta sem palavras correu-lhe assim pelas veias, pelos nervos, pelo cerebro, sem outra resposta mais que a agitação e a curiosidade.
Nisto, a chuva cessou um pouco, e um raio de sol logrou romper o nevoeiro,—um desses raios humidos que parecem vir de olhos que choraram. Sophia cuidou que ainda podia sair; estava inquieta por vêr, por andar, por sacudir aquelle torpor, e esperou que o sol varresse a chuva e tomasse conta do ceu e da terra; mas o grande astro percebeu que a intenção della era constituil-o lanterna de Diogenes, e disse ao raio humido: «Volta, volta ao meu seio, raio casto e virtuoso; não vás tu conduzil-a aonde o seu desejo a quer levar. Que ame, se lhe parece; que responda aos bilhetes namorados,—se os recebe e não queima,—não lhe sirvas tu de archote, luz do meu seio, filho das minhas entranhas, raio, irmão dos meus raios...»
E o raio obedeceu, recolhendo-se ao foco central, um pouco espantado do temor do sol, que tem visto tantas cousas ordinarias e extraordinarias. Então o veu de nuvens fez-se outra vez espesso, e mais escuro, e a chuva tornou a cahir em grandes bategas.
Sophia resignou-se á reclusão. Já agora tinha a alma tão confusa e diffusa como o expectaculo exterior. Todas as imagens e nomes perdiam-se no mesmo desejo de amar. É justo dizer que ella, quando regressava desses estados de consciencia vagos e obscuros, tentava fugir-lhes e guiava o espirito para diverso assumpto; mas succedia-lhe como aos que têm somno e forcejam por velar: os olhos fecham-se de cada vez que espertam, e tornam a espertar para se fecharem outra vez. Afinal, deixou a vista da chuva e do nevoeiro; estava cançada, e para repousar, foi abrir as folhas do ultimo numero da Revista dos Dous Mundos. Um dia, no melhor dos trabalhos da commissão das Alagôas, perguntára-lhe uma das elegantes do tempo, casada com um senador:
Está lendo o romance de Feuillet, na Revista dos Dous Mundos?
—Estou, acudiu Sophia; é muito interessante, Não estava lendo, nem conhecia a Revista; mas, no dia seguinte, pediu ao marido que a assignasse; leu o romance, leu os que sahiram depois, e fallava de todos os que lêra ou ia lendo. Abertas as folhas daquelle numero, e acabada uma novella, Sophia recolheu-se ao quarto e atirou-se á cama. Passára mal a noute, não lhe custou pegar no somno,—profundo, largo e sem sonhos,—excepto para o fim, em que teve um pesadelo. Estava deante da mesma parede de cerração daquelle dia, mas no mar, á proa de uma lancha, deitada de bruços, escrevendo com o dedo na agua um nome—Carlos Maria. E as lettras ficavam gravadas, e para maior nitidez, tinham os sulcos de espuma. Até aqui nada havia que atordoasse, a não ser o mysterio; mas é sabido que os mysterios dos sonhos parecem factos naturaes. Eis que a parede da cerração se rasga, e nada menos que o proprio dono do nome apparece aos olhos de Sophia, caminha para ella, toma-a nos braços e diz-lhe muitas palavras de ternura, analogas ás que ella, alguns mezes antes, ouvira ao Rubião. E não a afligiram, como as d'este; ao contrario, escutou-as com prazer, meia cahida para trás, como se desmaiasse. Já não era lancha, mas carruagem, onde ella se ia com o primo, mãos presas, namorada de uma linguagem de ouro e sandalo. Tambem aqui não ha que atterre. O terror veiu quando a carruagem parou, muitos vultos mascarados a cercaram, mataram o cocheiro, arrancaram as portinholas, apunhalaram Carlos Maria e deitaram o cadaver ao chão. Depois, um delles, que parecia ser o cabo de todos, tomou o lugar do defuncto, tirou a mascara e disse a Sophia que se não assustasse, que elle a amava cem mil vezes mais que o outro. Logo em seguida, pegou-lhe nos pulsos e deu-lhe um beijo, mas um beijo humido de sangue, cheirando a sangue. Sophia soltou um grito de horror e acordou. Tinha ao pé do leito o marido.
—Que foi? perguntou elle.
—Ah! respirou Sophia. Gritei, não gritei?
Palha não respondeu nada; olhava á tôa, pensava em negocios. Então um receio assaltou a mulher, se haveria effectivamente fallado, murmurado alguma palavra, um nome qualquer,—o mesmo que escrevera na agua. E logo, espreguiçando os braços para o ar, fel-os cahir sobre os hombros do marido, cruzou as pontas dos dedos na nuca, e murmurou meia alegre, meia triste:
—Sonhei que estavam matando você.
Palha ficou enternecido. Havel-a feito padecer por elle, ainda que em sonhos, encheu-o de piedade, mas de uma piedade gostosa, um sentimento particular, intimo, profundo,—que o faria desejar outros pesadelos, para que o assasinassem aos olhos della, e para que ella gritasse augustiada, convulsa, cheia de dor e de pavor.
No dia seguinte, o sol appareceu claro e quente, o ceu limpido, e o ar fresco. Sophia metteu-se no carro e saiu a visitas e a passeio para desforrar-se da reclusão. Já o proprio dia lhe fez bem. Vestiu-se cantarolando. O trato das senhoras que a receberam em sua casa,—e das que achou na rua do Ouvidor, a agitação externa, as noticias da sociedade, a boa feição de tanta gente fina e amiga, bastaram a espancar-lhe da alma os cuidados da vespera.
Assim, pois, o que parecia vontade imperiosa reduzia-se a velleidade pura, e, com algumas horas de intervallo, todos os maos pensamentos se recolheram ás suas alcovas. Se me perguntardes por algum remorso de Sophia, não sei que vos diga. Ha uma escala de resentimento e de reprovação. Não é só nas acções que a consciencia passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor á indifferença. Os simples peccados de pensamento são sujeitos a essa mesma alteração, e o uso de cuidar nas cousas affeiçoa tanto a ellas,—que, afinal, o espirito não as estranha, nem as repelle. E nestes casos ha sempre um refugio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem macula.
Um só incidente affligiu Sophia naquelle dia puro e brilhante,—foi um encontro com Rubião. Tinha entrado em uma livraria da rua do Ouvidor para comprar um romance; em quanto esperava o troco, viu entrar o amigo. Rapidamente voltou o rosto o percorreu com os olhos os livros da prateleira,—uns livros de anatomia e de estatistica;—recebeu o dinheiro, guardou-o, e, de cabeça baixa, rapida como uma flexa, saiu á rua, e enfiou para cima. O sangue só lhe socegou, quando a rua dos Ourives ficou para traz. Não podia adivinhar que Rubião a não tinha visto, sequer; nem podia saber que, não a vendo embora, não sahisse logo, não a conhecesse, não corresse a aggarral-a, a dizer-lhe algum desvario.
Dias depois, indo a entrar em casa de D. Fernanda, deu com elle no saguão. Cuidou que subisse, e dispoz-se a subir tambem, ainda que receiosa; mas Rubião descia, apertaram-se as mãos familiarmente, e despediram-se até á tarde.
—Elle vem aqui muitas vezes? perguntou Sophia a D. Fernanda, depois de lhe contar o encontro do saguão.
—Esta é a quarta vez, quarta ou quinta; mas só da segunda vez appareceu delirando. Das outras é como viu agora, socegado, e até conversador. Ha nelle sempre alguma cousa que mostra não estar completamente bem. Não reparou nos olhos, um pouco vagos? É isso; no mais, conversa bem. Creia, D. Sophia; aquelle homem pode sarar. Porque não faz com que seu marido tome isto a peito?
—Christiano tem projecto de o mandar examinar e tratar; mas, deixe estar que eu o apresso.
—Sim, falle-lhe. Elle parece ser muito amigo da senhora e do Sr. Palha.
—Ter-lhe-ha dito alguma inconveniencia no delirio, a meu respeito? pensou Sophia. Convirá revellar-lhe a verdade?
Concluiu que não; o proprio mal do Rubião explicaria as inconveniencias. Prometteu que apressaria o marido, e, nessa mesma tarde expoz o negocio ao Palha, approvando a ideia de tentar a cura. «Era uma grande amolação,» redarguiu este. E perguntou que interesse tinha D. Fernanda em tornar áquelle negocio. Que o tratasse ella mesma! Era uma atrapalhação ter de cuidar do outro, de o acompanhar, e, provavelmente, de recolher e gerir algum resto de dinheiro que ainda houvesse, fazendo-se curador, como dissera o Dr. Theophilo. Um aborrecimento de todos os diabos.
—Já ando com grande carga sobre mim, Sophia. E depois como hade ser? Havemos de trazel-o para casa? Parece que não. Mettel-o onde? Em alguma casa de saude... Sim, mas se não puderem acceital-o? Não heide mandal-o para a Praia Vermelha... E as responsabilidades? Você prometteu que me falaria?
—Prometti, e affirmei que você faria isto, respondeu Sophia sorrindo. Talvez não custe tanto como parece.
Sophia insistiu ainda, A compaixão de D. Fernanda tinha-a impressionado muito; achou-lhe um quê distincto e nobre, e advertiu que se a outra, sem relações estreitas nem antigas com Rubião, assim se mostrava interessada, era de bom tom não ser menos generosa.
Tudo se fez socegadamente. Palha alugou uma casinha na rua do Principe, cerca do mar, onde metteu o nosso Rubião, alguns trastes e o cachorro amigo. Rubião acceitou a mudança sem desgosto, e, desde que lhe tornou o delirio, com enthusiasmo. Estava nos seus paços de S. Cloud.
Não succedeu assim aos amigos da casa, que receberam a noticia da mudança como um decreto de exilio. Tudo na antiga habitação fazia parte delles, o jardim, a grade, os canteiros, os degraus de pedra, a enseada. Traziam tudo de cór. Era entrar, pendurar o chapeu, e ir esperar na sala. Tinham perdido a noção da casa alheia e do obsequio recebido. Depois, a visinhança. Cada um daquelles amigos do Rubião estava affeito a ver as pessoas do logar, as caras da manhã e as da tarde, alguns chegavam a comprimental-as, como aos seus proprios visinhos. Paciencia! iriam agora para Babylonia, como os desterrados de Sião. Onde quer que estivesse o Euphrates, achariam salgueiros em que pendurassem as harpas saudosas,—ou mais propriamente, cabides em que puzessem os chapéos. A differença entre elles e os prophetas é que, ao cabo de uma semana, pegariam outra vez dos instrumentos, e os tangeriam com a mesma graça e força; cantariam os velhos hymnos, tão novos como no primeiro dia, e Babel acabaria por ser a mesma Sião, perdida e resgatada.
—O nosso amigo precisa de repouso por algum tempo, disse-lhes o Palha, em Botafogo, na vespera da mudança. Hão de ter reparado que não anda bom; tem suas horas de esquecimento, de transtorno, de confusão, vae tratar-se, por emquanto é preciso que descance. Arranjai-lhe uma casa pequena, mas póde ser que, ainda assim, passe para um estabelecimento de saude.
Ouviram attonitos. Um delles, o Pio, voltando a si mais depressa que os outros, respondeu que ha mais tempo se devia ter feito aquillo; mas, para fazel-o, era preciso ter influencia decisiva no animo de Rubião.
—Muitas vezes lhe disse, por boas maneiras, que era indispensavel consultar um medico, por me parecer que tinha alguma cousa no estomago... Era um modo de desviar o sentido, comprehende? Mas elle respondia sempre que não tinha nada, diggeria bem...—«Mas come menos, dizia-lhe eu; ha dias em que não come quasi nada; está mais magro, um pouco amarello...» Comprehende que não podia dizer-lhe a verdade. Cheguei a fallar a um medico, meu amigo; mas o nosso bom Rubião não o quiz receber.
Os outros quatro iam confirmando de cabeça toda aquella invenção; era o mais que se lhes podia pedir e tudo o que lhes consentia o atordoamento do golpe. Acabaram perguntando o numero da nova casa, para irem saber delle. Pobre amigo! Quando se arrancaram dalli, e se despediram uns dos outros, deu-se um phenomeno com que não contavam; é que elles mesmos mal podiam separar-se. Não que os ligasse amizade nem estima; o proprio interesse os fazia antipathicos. Mas o costume de se verem todos os dias, ao almoço e ao jantar,—á mesma mesa, como que os tinha fundido uns nos outros; a necessidade os fez supportaveis, o tempo os tornou mutuamente precisos. Em resumo, eram os olhos de cada um que iam padecer com a ausencia das caras de uso, do gesto, das soiças, dos bigodes, da calva, dos sestros particulares, do modo de comer, de fallar e de estar dos companheiros. Era mais que separação, era desarticulação.
Rubião notou que elles não o acompanharam á casa nova, e mandou-os chamar; nenhum veiu, e a ausencia encheu de tristeza o nosso amigo,—durante as primeiras semanas. Era a familia que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada.
—Conversei com o homem; achei-lhe ideias delirantes. Comquanto não seja alienista, acho que póde ficar bom... Mas quer saber uma descoberta interessante?
—Crê que fique bom? disse D. Fernanda, sem attender á pergunta do Dr. Falcão.
Era deputado o Dr. Falcão, deputado e medico, amigo da casa, varão sabedor, sceptico e frio. D. Fernanda tinha-lhe pedido o favor de examinar o Rubião, pouco depois que este se transportou para a casa da rua do Principe.
—Sim, creio que fique bom, desde que seja regularmente tratado. Póde ser que a doença não tenha antecedentes na familia. Mande ver um especialista. Mas não quer saber a minha interessante descoberta?
—Qual é?
—Talvez tenha parte na molestia uma pessoa sua conhecida, respondeu elle sorrindo.
—Quem?
—D. Sophia.
—Como assim?
—Elle fallou-me della com enthusiasmo, disse-me que era a mais esplendida mulher do mundo, e que a nomeára duqueza, por não poder nomeal-a imperatriz; mas que não brincassem com elle, que era capaz de fazer como o tio, divorciar-se e casar com ella. Conclui que terá tido paixão pela moça; mas pode ser alguma cousa mais. Falla della com tal intimidade, Sophia para aqui, Sophia para alli... Desculpe-me, mas eu creio que os dois se amaram...
—Oh! não!
—D. Fernanda, creio que se amaram. Que admira? Eu mal a conheço; a senhora parece que não a conhece ha muito tempo, nem viveu na intimidade della. Póde ser que se tivessem amado, e que alguma paixão violenta... Supponhamos que ella o mandasse pôr fóra de casa... É verdade que tem a mania das grandezas; mas tudo se póde juntar...
D. Fernanda não olhava para elle, vexada de lhe ouvir aquella supposição; evitava discutil-a pelo melindre do assumpto. Achava a suspeita sem fundamento, absurda, inverosimil; não chegaria a crer naquelle amor espurio, ainda que o ouvisse ao proprio Rubião. Um desvairado, em summa. Quando o não fosse, é ainda provavel que lhe não desse fé. Sim, não lhe daria fé. Não podia crer que Sophia houvesse amado aquelle homem, não por elle, mas por ella, tão correcta e pura. Era impossivel. Quiz defendel-a; mas, apezar da intimidade do Dr. Falcão, recuou segunda vez do assumpto, e repetiu a pergunta de ha pouco:
—Parece-lhe então que elle pode ficar bom?
—Póde, mas não basta o meu exame. A senhora sabe que, nestas cousas, é melhor um especialista.
Pouco depois, saindo á rua, Falcão sorria da resistencia de D. Fernanda em acceitar a sua hypothese. «Com certeza, houve alguma cousa, dizia elle comsigo; boa cara, e, si não é um petimetre, é apessoado, e tem fogo nos olhos. Com certeza...» E repetia algumas phrases de Rubião, evocava o gesto e a modulação terna da voz com que fallava de Sophia, e cada vez mais se lhe ia aggravando a suspeita, «Com certeza...» Era já impossivel que se não tivessem amado; a opposição de D. Fernanda parecia-lhe ingenua,—se não era antes um recurso para desconversar e não tocar na materia. Havia de ser isso...
Neste ponto, sem querer, o deputado estacou. Uma suspeita nova assaltara-lhe o espirito. Apoz alguns instantes rapidos, abanou a cabeça voluntariamente, como a desmentir-se, como a achar-se absurdo, e foi andando. Mas a suspeita era teimosa, e a que occupa deveras o interior do homem, não faz caso da cabeça nem dos seus gestos. «Quem sabe se D. Fernanda não suspirou tambem por elle? Essa dedicação não seria um prolongamento de amor, etc.?» E assim foram nascendo perguntas, que achavam no intimo do Dr. Falcão resposta affirmativa. Resistiu ainda, era amigo da casa, tinha respeito a D. Fernanda, conhecia-a honesta; mas,—ia pensando,—bem podia ser que um sentimento occulto, recatado,—quem sabe até se provocado pela mesma paixão da outra...? Ha dessas tentações. O contagio da lepra corrompe o mais puro sangue; um triste bacillo destróe o mais robusto organismo.
Pouco a pouco, as velleidades de resistencia foram cedendo á noção da possibilidade, da probabilidade e da certeza. Em verdade, tinha noticia de algumas obras de caridade de D. Fernanda; mas aquelle caso era novo. Essa dedicação especial a um homem que não era familiar da casa, nem velho amigo, nem parente, adherente, collega do marido, qualquer cousa que o fizesse participe da vida domestica, pelas relações, pelo sangue ou pelo costume não era explicavel sem algum motivo secreto. Amor, seguramente; curiosidade de mulher honesta, que póde descambar no vicio e no remorso. Aquella teria recuado a tempo; ficou-lhe a sympathia morbida... E d'ahi, quem sabe?
E d'ahi, quem sabe? repetiu o Dr. Falcão na manhã seguinte. A noite não apagara a desconfiança do homem. E d'ahi quem sabe? Sim, não seria só sympathia morbida. Sem conhecer Shakespeare, elle emendou Hamlet: «Ha entre o céo e a terra, Horacio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã philanthropia». Alli andou dedo de amor. E não chasqueava nem lastimava nada. Já disse que era sceptico; mas, como era tambem discreto, não transmittiu a ninguem a sua conclusão.
A volta de Carlos Maria e da mulher interrompeu as preoccupações de D. Fernanda, relativamente a Rubião. Esta foi a bordo recebel-os, conduziu-os á Tijuca, onde um velho amigo da familia de Carlos Maria alugára e trastejára uma casa, por ordem delle. Sophia não foi a bordo; mandou o coupé esperal-os no caes Pharoux, mas D. Fernanda já alli tinha uma caleça, que os levou, e mais a ella e ao Palha. De tarde, Sophia foi visitar os recem-chegados.
D. Fernanda não cabia era si de contente. As cartas de Maria Benedicta os davam por felizes; ella não poude ler desde logo nos olhos e nas maneiras do casal a confirmação do escripto. Pareciam satisfeitos. Maria Benedicta não reteve as lagrimas, quando abraçou a amiga, nem esta as suas, e ambas se apertaram como duas irmãs de sangue. No dia seguinte, quando puderam fallar a sós, D. Fernanda perguntou a Maria Benedicta se ella e o marido eram felizes, e, sabendo que sim, pegou-lhe nas mãos e fitou-a longamente sem achar palavra. Não logrou mais que repetir a pergunta:
—Vocês são felizes?
—Somos, respondia Maria Benedicta.
—Não sabe que bem me faz a sua resposta. Não é só porque eu teria remorsos, se vocês não tivessem a felicidade que eu imaginei dar-lhes, mas tambem por que é bem bom ver os outros felizes. Elle gosta de você como no primeiro dia?
—Creio que mais, porque eu o adoro.
D. Fernanda não entendeu esta palavra. Creio que mais, por que eu o adoro! Era verdade, a conclusão não parecia estar nas premissas; mas era o caso de emendar outra vez Hamlet: «Ha entre o céo e a terra, Horacio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã dialectica». Pobre D. Fernanda! Não conhecia o poeta, e provavelmente não se conhecia a si, que era ainda o meio mais seguro de decifrar a palavra obscura de Maria Benedicta. Esta começou a contar-lhe a viagem, a desfiar as suas impressões e reminiscencias; e, como o marido viesse ter com ellas, pouco depois, recorria á memoria delle para preencher as lacunas.
—Como foi, Carlos Maria?
Carlos Maria lembrava, explicava, ou rectificava, mas sem interesse, quasi impaciente. Adivinhára que Maria Benedicta acabava de confiar á outra as suas venturas, e mal podia encobrir o effeito desagradavel que isto lhe trazia. Para que dizer que era feliz com elle, se não podia ser outra cousa? E porque divulgar os seus carinhos e palavras, as suas misericordias de deus grande e amigo?
A volta ao Rio de Janeiro foi uma condescendencia sua. Maria Benedicta queria ter aqui o filho; o marido cedeu,—a custo, mas cedeu. A custo, por que? É difficil explical-o, não menos que entendel-o. Relativamente á maternidade, Carlos Maria tinha ideias pessoaes e singulares, reconditas, não confiadas a ninguem. Achava impudica a natureza em fazer da gestação humana um phenomeno publico, franco ás vistas, crescente até ao aleijão, suggestivo até ao desrespeito. D'ahi vinha o desejo da solidão, do mysterio e da ausencia. Viveria de boamente os ultimos tempos no interior de uma casa unica, posta no alto de um morro, vedada ao mundo, donde a mulher baixasse um dia com o filho nos braços e a divindade nos olhos.
Não fez sobre isto nenhuma proposta á mulher. Teria de discutir, e elle não gostava de discutir; preferia ceder. Maria Benedicta tinha naturalmente o sentimento contrario: considerava-se a si mesma um templo divino e recatado, em que vivia um deus, filho de outro deus. A gestação ia cheia de tedios, de dores, de incommodos que ella occultava o mais que podia ao marido; mas tudo isso dava maior preço á creaturinha futura. Acolhia o mal com resignação,—se não é que o agasalhava com alegria,—uma vez que era a condição da vinda do fructo. Fazia cordialmente o officio da especie. E repetia sem palavras a resposta de Maria de Nazareth: «Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim a sua vontade».
—Você que tem? perguntou Maria Benedicta ao marido, logo que ficaram sós.
—Eu? Nada. Porque?
—Parecia estar aborrecido.
—Não, não estava aborrecido.
—Estava, sim, insistiu ella.
Carlos Maria sorriu, sem responder. Maria Benedicta já lhe conhecia esse sorriso especial, inexpressivo, sem ternura nem censura, superficial e pallido. Não teimou em querer saber, mordeu os beiços e retirou-se.
No quarto, durante algum tempo, não cuidou de outra cousa que não fosse aquelle sorriso descorado e mudo, signal de algum aborrecimento, cuja culpa não podia ser senão ella. E percorria toda a conversação, todos os gestos que fizera, e não achava nada que explicasse a frieza, ou o que quer que era de Carlos Maria. Talvez ella se mostrasse excessiva nas palavras; era seu costume, se estava contente, pôr o coração nas mãos e distribui-lo a amigos e a extranhos. Carlos Maria reprovava essa generosidade, porque dava um ar de sorte grande ao seu estado moral e domestico, e porque lhe parecia banal e inferior. Maria Benedicta recordava-se que, em Paris, na colonia brazileira, sentira mais de uma vez esse effeito de suas expansões, e reprimira-se. Mas D. Fernanda estaria no mesmo caso? Não era a autora da felicidade de ambos? Rejeitou essa hypothese, e tratou de ver outra. Não a achando,—voltou á primeira, e, segundo lhe succedia sempre, deu razão ao marido. Em verdade, por mais intima e grata que fosse, não devia contar á boa amiga as minucias da vida; era leviandade sua...
Nauseas vieram interrompel-a neste ponto das reflexões. A natureza lembrava-lhe uma razão de Estado—a razão da especie,—mais instante e superior aos tedios do marido. Ella cedeu á necessidade; mas, poucos minutos depois, estava ao pé de Carlos Maria, contornando-lhe o pescoço com o braço direito. Elle, sentado, lia uma revista ingleza; pegou-lhe na mão, pendente sobre o peito, e acabou a pagina.
—Você me perdoa? perguntou a mulher, quando o viu fechar o folheto. Daqui em diante vou ser menos tagarella.
Carlos Maria pegou-lhe nas duas mãos, sorrindo e respondeu com a cabeça que sim. Foi como se lançasse uma onda de luz sobre ella; a alegria penetrou-lhe a alma. Dir-se-hia que o proprio feto repercutiu a sensação e abençoou o pae.
—Perfeitamente! Assim é que eu os quero ver! bradou uma voz do lado da varanda.
Maria Benedicta affastou-se rapidamente do marido. A varanda, que communicava para a sala, por tres portas, tinha uma destas aberta. Dalli viera a voz; dalli espiava e ria a cabeça de Rubião. Era a primeira vez que o viam. Carlos Maria, sem se levantar, olhava para elle, serio, esperando. E a cabeça ria, com os seus fartos bigodes de ponta de agulha, mirando um e outro, e repetindo:
—Perfeitamente! assim é que eu os quero ver!
Rubião entrou, estendeu-lhes a mão, que elles acceitaram sem carinho, disse muitas phrases de admiração e louvor a Maria Benedicta, ella tão galante, elle tão galhardo; notou que ambos tivessem o nome de Maria, especie de predestinação, e acabou noticiando a quéda do ministerio.
—Caiu o ministerio? perguntou involuntariamente Carlos Maria.
—Não se falla em outra cousa na cidade. Vou abancar-me, sem pedir licença, já que não me offerecem cadeira, continuou elle, sentando-se, tirando a bengala que trazia debaixo do braço e firmando as mãos sobre ella. Pois é verdade, o ministerio pediu demissão. Vou organisar outro. Ha de entrar o Palha, o nosso Palha,—seu primo Palha,—e o senhor tambem, se lhe dá gosto, será ministro. Preciso de um bom gabinete, todo gente amiga e forte, capaz de dar a vida por mim. Hei de chamar o Morny, o Pio, o Camacho, o Rouher, o major Sequeira. A senhora lembra-se do major? Creio que fica com a guerra; não conheço homem mais apto para os negocios militares.
Maria Benecdicta, aborrecida e impaciente, andava pela sala, á espera que o marido mandasse alguma cousa; este disse-lhe com os olhos que se fosse embora; ella não aguardou outro gesto, pediu licença ao hospede e retirou-se. Rubião, depois que ella sahiu, elogiou-a novamente,—uma flor, disse elle; e emendou-se rindo: duas flores, creio que ha alli duas flores. Nosso Senhor as abençoe! Carlos Maria estendeu-lhe a mão em ar de despedida.
—Meu caro senhor...
—Posso incluil-o no ministerio? perguntou Rubião.
Não ouvindo resposta, entendeu que sim e prometteu-lhe uma boa pasta. O major iria para a guerra, e o Camacho para a justiça. Não os conhecia acaso? «Dous grandes homens, Camacho ainda maior que o outro.» E obedecendo a Carlos Maria, que ia andando na direcção da porta, Rubião retirava-se sem se sentir; mas não sahiu tão prompto. Na varanda, antes de descer os degráos, referiu vários factos da guerra. Por exemplo, tinha restituido a Allemanha aos allemães; era bonito e politico. Já havia dado Veneza aos italianos. Não precisava mais territorio; as provincias do Rheno, sim, mas havia tempo de as ir buscar.
—Meu caro senhor... insistiu Carlos Maria estendendo-lhe a mão.
Despediu-o e fechou a porta; Rubião proferiu ainda algumas palavras e desceu os degráos. Maria Benedicta, que os espreitava do fundo, veiu ter com o marido, reteve-o pela mão, e ficou a ver o Rubião que atravessava o jardim. Não ia direito, nem appressado, nem calado; detinha-se, gesticulava, apanhava um galho secco, vendo mil cousas no ar, mais galantes que a dona da casa, mais galhardas que o dono. Da vidraça miravam o nosso amigo, e, em certo lance grotesco, Maria Benedicta não pôde suster o riso; Carlos Maria, porém, olhava placido.
—Mas se a quéda do ministerio é verdadeira disse ella, sabe você quem está ministro?
—Quem? perguntou Carlos Maria com os olhos.
—Seu primo Theophilo. A prima contou-me que elle andava com suas esperanças, e foi por isso que ficou este anno na Corte. Desconfiou, ou já se falava na sahida do ministerio; talvez desconfiasse. Não me lembra bem o que ella me disse; mas parece que entra.
—Pode ser.
—Olha, lá sahiu Rubião; mas não, parou, está olhando para cima, espera talvez a diligencia ou o carro. Elle tinha carro. Lá vae andando...
—Com quê, o Theophilo está ministro! exclamou Carlos Maria.
E, depois de um instante:
—Creio que dará um bom ministro. Você queria ver-me tambem ministro?
—Se você gostasse, que remedio?
—De maneira que, por teu voto, não o era? perguntou Carlos Maria.
—Que heide responder? pensou ella, escrutando o rosto do marido.
Elle, rindo:
—Confessa que me adorarias, ainda que eu fosse uma simples ordenança de ministro.
—Justamente! exclamou a moça, lançando-lhe os braços aos hombros.
Carlos Maria affagou-lhe os cabellos, e murmurou serio:—Bernadotte foi rei, e Bonaparte imperador. Você queria ser a rainha-mãe da Suecia?
Maria Benedicta não entendeu a pergunta nem elle a explicou. Para explical-a seria mister dizer que possivelmente trazia ella no seio um Bernadotte; mas esta supposição significava um desejo, e o desejo uma confissão de inferioridade. Carlos Maria espalmou outra vez as mãos sobre a cabeça da mulher, com um gesto que parecia dizer: "Maria, tu escolheste a melhor parte..." E ella pareceu entender o sentido d'aquelle gesto.
—Sim! sim!
O marido sorriu e tornou á revista ingleza. Ella, encostada á poltrona, passava-lhe os dedos pelos cabellos, muito ao de leve e caladinha para não perturbal-o. Elle ia lendo, lendo, lendo. Maria Benedicta foi attenuando a caricia, retirando os dedos aos poucos, até que sahiu da sala, onde Carlos Maria continuou a ler um estudo de Sir Charles Little, M. P., sobre a famosa estatueta de Narciso, do Museu de Napoles.
Quando Rubião foi á casa de D. Fernanda, á tardinha, ouviu do criado que não podia subir. A senhora estava incommodada; o senhor estava com ella; parece que esperavam o medico. O nosso amigo não teimou, e sahiu.
Era o contrario; era o senhor que estava doente, e a senhora que o acompanhava; mas o criado não podia trocar o recado que lhe deram. Outro criado desconfiou, é certo, que o doente fosse elle e não ella, porque o vira entrar abatido. Em cima, no quarto delles, havia algum rumor de vozes, ora alto, ora baixo, com intervallos de silencio. Uma criadinha, que subira pé ante pé, desceu dizendo que ouvira lastimar-se o amo; provavelmente a senhora estava perdida. Em baixo, um palavrear surdo, ouvidos compridos, conjecturas; notavam que de cima não pedissem agua, qualquer remedio, um caldo, ao menos. A meza posta, o criado engravatado, o cozinheiro orgulhoso e ancioso... Justamente, um dos melhores jantares!
Que era? Theophilo tinha ainda o gesto abatido com que entrou; estava sentado em um canapé, sem collete, olhos fixos. Ao pé delle, sentada tambem, segurando-lhe uma das mãos, D. Fernanda pedia-lhe que socegasse, que não valia a pena. E inclinava-se para ver-lhe o rosto, chamava-o para si, queria que elle encostasse a cabeça ao hombro della...
—Deixa, deixei, murmurava o marido.
—Não vale a pena, Theophilo! Pois agora um ministerio...? Valerá tanto um cargo de pouco tempo, cheio de desgostos, insultos, trabalhos, para que? Não é melhor a vida tranquilla? Vá que haja injustiça; creio que sim, você tem serviços; mas será tamanha perda assim? Anda, querido, socega; vamos jantar.
Theophilo mordia os beiços, puxando uma das soiças. Não ouvira nada do que a mulher dissera, nem exhortações nem consolações. Ouvia as conversas da noite anterior e daquella manhã, as combinações politicas, os nomes lembrados, os recusados e os acceitos. Nenhuma combinação o incluiu, posto que elle fallasse com muita gente ácerca do verdadeiro aspecto da situação. Era ouvido com attenção por uns, com impaciencia por outros. Uma vez, os oculos do organisador pareceram interrogal-o,—mas foi rapido o gesto e illusorio. Theophilo recompunha agora a agitação de tantas horas e logares,—lembrava os que o olhavam de esguelha, os que sorriam, os que trariam a mesma cara que elle. Para o fim já não fallava; as ultimas esperanças estalavam-lhe nos olhos como lamparina de madrugada. Ouvira os nomes dos ministros, fora obrigado a achal-os bons; mas que força não lhe era precisa para articular alguma palavra! Receiava que lhe descobrissem o abatimento ou despeito, e todos os seus esforços concluiam por accentual-os ainda mais. Empallidecia, tremiam lhe os dedos.
—Anda, vamos jantar, repetiu D. Fernanda.
Theophilo deu um golpe no joelho, com a mão aberta, e levantou-se, dizendo palavras soltas e raivosas, andando de um lado para outro, batendo o pé, ameaçando. D. Fernanda não pôde vencer a violencia daquelle novo accesso, esperou que fosse curto, e foi curto; Theophilo chegou-se a uma poltrona, sacudiu a cabeça e cahiu outra vez prostrado. D. Fernanda pegou de uma cadeira e sentou-se ao pé delle. Os olhos com que lhe fallou não tinham a doçura captiva e dependente de Maria Benedicta, para quem o marido era tudo debaixo do sol. Não era bem a esposa que fallava, mas uma creatura humana que via padecer outra.
—Tens razão, Theophilo; mas é preciso ser homem. És moço e forte, tens ainda futuro, e talvez grande futuro. Quem sabe se, entrando agora no ministerio, não perderias mais tarde? Entrarás em outro. Ás vezes, o que parece desgraça é felicidade.
Theophilo apertou-lhe a mão agradecido.
—É perfidia, é intriga, murmurava elle, olhando para ella; eu conheço toda essa canalha. Si eu contasse a você tudo, tudo... Mas para que? Prefiro esquecer... Não é por causa de uma miseravel pasta que estou aborrecido, continuou elle depois de alguns instantes. Pastas não valem nada. Quem sabe trabalhar e tem talento póde zombar das pastas, e mostrar que é superior a ellas. A maior parte dessa gente, Nanan, não me chega aos calcanhares. Disso estou certo e elles tambem. Sucia de intrigantes! Onde acharão mais sinceridade, mais fidelidade, mais ardor para a luta? Quem trabalhou mais na imprensa, no tempo do ostracismo? Desculpam-se; dizem que os gabinetes já vem organisados de S. Christovão... Ah! eu quizera fallar ao Imperador!
—Theophilo!
—Eu diria ao Imperador: «Senhor, Vossa Magestade não sabe o que é essa politica de corredores, esses arranjos de camarilha. Vossa Magestade quer que os melhores trabalhem nos seus conselhos, mas os mediocres é que se arranjam... O merecimento fica para o lado.» É o que lhe heide dizer um dia; póde ser até que amanhã...
Calou-se. Depois de longa pausa, ergueu-se e foi ao gabinete de trabalho, que ficava ao pé do quarto; a mulher acompanhou-o.
Era já escuro, accendeu o bico de gaz, e circulou pelo gabinete os olhos velados de melancholia. Havia alli quatro largas estantes cheias de livros, de relatorios, de orçamentos, de balanços do Thesouro. A secretária estava em ordem. Tres armarios altos, sem portas, guardavam os manuscriptos, notas, lembranças calculos, apontamentos, tudo empilhado e rotulado methodicamente;—creditos extraordinarios,—creditos supplementares,—creditos de guerra—creditos de marinha,—emprestimo de 1868,—estradas de ferro,—divida interna,—exercicio de 61—62,—de 62—63,—de 63—64, etc. Era alli que trabalhava de manhã e de noite, som mando, calculando, recolhendo os elementos dos seus discursos e pareceres porque era membro de tres commissões parlamentares, e trabalhava geralmente por si e pelos seis collegas; estes ouviam e assignavam. Um delles, quando os pareceres eram extensos, assignava-os sem ouvir.
—Homem, você é mestre e basta, dizia-lhe, dê cá a penna.
Tudo alli respirava attenção, cuidado, trabalho assiduo, meticuloso e util. Da parede, em ganchos, pendiam os jornaes da semana, que eram depois tirados, guardados e finalmente encadernados semestralmente, para consultas. Os discursos do deputado, impressos e brochados em-4° enfileiravam-se em uma estante. Nenhum quadro ou busto, adereço, nada para recrear, nada para admirar;—tudo secco, exacto, administrativo.
—De que vale tudo isto? perguntou Theophilo á mulher, após alguns instantes de contemplação triste. Horas cançadas, longas horas da noite até madrugada, ás vezes... Não se dirá que este gabinete é de homem vadio; aqui trabalha-se. Você é testemunha que eu trabalho. Tudo para que?
—Consola-te trabalhando, murmurou ella.
Elle, acerbo:
—Ruim consolação! Não, não, acabo com isto, passo a ignorar tudo. Olha, na camara, todos me consultam, até os ministros—porque sabem que eu applico-me deveras ás cousas da administração. Que premio? Vir para cá, em maio, applaudir os novos senhores?
—Pois não applaudas nada, disse-lhe mansamente a mulher. Queres fazer-me um obsequio? Vamos á Europa, em março ou abril, e voltemos d'aqui a um anno. Pede licença á camara, d'onde quer que estejamos,—de Varsovia, por exemplo; tenho muita vontade de ir a Varsovia, continuou sorrindo e fechando-lhe graciosamente a cara entre as mãos. Diga que sim; responda que é para eu escrever hoje mesmo para o Rio Grande, o vapor sae amanhã. Está dito; vamos a Varsovia?
—Não brinques, Nanan, que isto não é objecto de brincadeira.
—Falo seriamente. Já ha muito tempo que ando para propor a você uma viagem, a ver se descança desta papelada infernal. É demais, Theophilo! Você mal se pode arranjar depois para uma visita. Passeio, é raro. Quasi não conversa. Os nossos filhos mal veem seu pae, porque aqui não se entra quando você trabalha... É preciso descançar; peço-lhe um anno de repouso. Olhe que é serio. Vamos para a Europa em março.
—Não pode ser, balbuciou elle.
—Porque não?
Não podia ser. Era convidal-o a sahir da propria pelle. Politica valia tudo. Que tambem houvesse politica lá fora, sim; mas que tinha elle com ella? Theophilo não sabia nada do que ia por fora, excepto a nossa divida em Londres, e meia duzia de economistas. Comtudo, agradeceu á mulher a intenção da proposta:
—Tu és bôa.
E um sentimento vago de esperança restituia á voz do deputado a brandura que perdera naquella grande crise moral. Os papeis sopravam-lhe animo. Toda aquella massa de estudos apparecia-lhe como a terra adubada e semeada aos olhos do lavrador. Não tardaria a grelar; o trabalho teria a recompensa; um dia mais tarde ou mais cedo, o grelo brotaria e a arvore daria fructos. Era justamente o que a mulher havia dito por outras palavras directas e proprias; mas só agora é que elle via a possibilidade da colheita. Lembrou-se das explosões de colera, de indignação, de desespero, das queixas de ha pouco, ficou vexado. Quiz rir, e fel-o mal. Ao jantar e ao café entreteve-se com os filhos, que naquella noite recolheram-se mais tarde. Nuno, que já andava no collegio, onde ouvira falar da mudança de gabinete, disse ao pae que queria ser ministro.
Theophilo ficou serio.
—Meu filho, disse elle, escolhe outra cousa, menos ministro.
—Diz que é bonito, papae; diz que anda de carro com soldado atraz.
—Pois eu te dou um carro.
—Papae já foi ministro?
Theophilo tentou sorrir e olhou para a mulher, que aproveitou a occasião para mandar deitar os filhos.
—Já, já fui ministro, respondeu o pae beijando a testa ao Nuno; mas não quero mais, é muito feio, dá trabalho. Tu has de ser capellão.
—Que é capellão?
—Capellão é cama, respondeu D. Fernanda; vae dormir, Nuno.
Ao almoço, no dia seguinte, Theophilo recebeu uma carta por uma ordenança.
—Ordenança?
—Sim, senhor, diz que vem da parte do Sr. presidente do conselho.
Theophilo abriu a carta, com a mão tremula. Que podia ser? Tinha lido nos jornaes a relação dos novos ministros; o gabinete estava completo. Não havia divergencia de nomes. Que podia ser? D. Fernanda, defronte do marido, procurava ler-lhe no rosto o texto da carta. Via uma claridade; percebeu que a boca soffreava um sorriso de satisfação,—de esperança, ao menos.
—Diga que espere, ordenou Theophilo ao creado.
Foi ao gabinete, e tornou minutos depois com a resposta. Sentou-se á mesa, calado, dando tempo a que o creado entregasse a carta á ordenança. Desta vez, como estava prevenido, ouviu as patas do cavallo, e logo depois a galope, rua fóra e sentiu-se bem.
—Lê, disse elle.
D. Fernanda leu a carta do presidente do conselho; era um pedido para ir falar-lhe ás duas horas da tarde.
—Mas então o ministerio...?
—Está completo, deu-se pressa em dizer o deputado; os ministros estão nomeados.
Não acreditava de todo o que dizia. Imaginava alguma vaga da ultima hora, e a necessidade urgente de a preencher.
—Hade ser alguma conferencia politica, ou talvez queira conversar sobre o orçamento,—ou incubir-me algum estudo.
Dizendo isto, para illudir a mulher, sentiu a probabilidade das hypotheses, e outra vez se abateu; mas, tres minutos depois, as borboletas da esperança volteavam deante delle, não duas, nem quatro, mas um turbilhão, que cegava o ar.
D. Fernanda esperou, cheia de ancias, como se o ministerio fosse para ella, e lhe viesse dar qualquer gosto, que não fosso amargo o complicado. Uma vez, porém, que satisfizesse o marido, tudo iria pelo melhor. Theophilo tornou ás cinco horas e meia. Pelo aspecto reconheceu que vinha satisfeito. Correu a apertar-lhe as mãos.
—Que ha?
—Pobre Nanan! Ahi vamos com a trouxa ás costas. O marquez pediu-me instantemente que acceitas-se uma presidencia de primeira ordem. Não podendo metter-me no gabinete, onde tinha logar marcado, desejava, queria e pedia que eu partilhasse a responsabilidade politica e administrativa do governo, assumindo uma presidencia. Não podia, em nenhum caso, dispensar o meu prestigio (são palavras delle), e espera que na camara acceite o logar de chefe de maioria. Que dizes?
—Que arranjemos a trouxa, respondeu D. Fernanda.
—Achas que podia recusar?
—Não.
—Não podia. Você sabe, não se podem negar serviços destes a um governo amigo; ou então deixa-se a politica. Tratou-me muito bem o marquez; eu já sabia que era homem superior; mas que risonho e affavel! não imaginas. Quer tambem que compareça a uma reunião intima, os ministros e alguns amigos, poucos, meia duzia. Confiou-me já o programma do gabinete, em reserva...
—Quando sahimos?
—Não sei; heide estar com elle amanhã, á noite. A reunião é amanhã ás oito horas... Mas não te parece que fiz bem, acceitando?
—De certo.
—Sim; se recusasse censurar-me-hiam, e com razão. Em politica, a primeira cousa que se perde é a liberdade. Agora você é que se quizesse, podia ficar; daqui a cinco mezes,—ou quatro,—abrem-se as camaras; mal terei tempo de chegar e olhar.
D. Fernanda acceitou a proposta; não interrompia a educação do filho; era uma separação de quatro mezes. Theophilo partiu d'ahi a dias. Na manhã do dia do embarque, logo cedo, foi despedir-se do gabinete de trabalho. Deitou os ultimos olhos aos livros, relatorios, orçamentos, manuscriptos, a toda essa parte da familia, que só tinha lingua e interesse para elle. Havia atado os papeis e os folhetos para que se não extraviassem, e fez á mulher grandes recommendações. Parado no centro, circulou a vista pelas estantes, e dispersou a alma por todas ellas. Despedia-se assim dos seus santos e amigos, com verdadeiras saudades. D. Fernanda, que estava ao pé delle, não viveu alli mais que os dez minutos da despedida. Theophilo viveu muitos annos.
—Deixa estar, eu cuidarei delles, eu mesma os espanarei todos os dias.
Theophilo deu-lhe um beijo... Outra mulher recebel-o-hia meia triste, por ver que elle amava tanto os livros que parecia amal-os mais que a ella. Mas D. Fernanda sentiu-se venturosa.
Rubião, desde o dia da crise ministerial, não tornou á casa de D. Fernanda; nada soube, nem da presidencia, nem do embarque de Theophilo. Vivia entre o cão e um creado, sem grandes crises, nem longos repousos. O creado fazia o serviço irregularmente, comia gratificações, e recebia, a miudo, o titulo de marquez. Ao demais, divertia-se. Quando lhe dava ao amo para conversar com as paredes, o creado corria a espial-o; assistia ao dialogo, porque o Rubião incumbia-se das palavras dellas, respondendo como se houvessem feito alguma pergunta. De noite, ia á palestra com os amigos da visinhança.
—Como vae o gira?
—O gira vae bem. Hoje convidou o cachorro para cantar; o cachorro ladrau muito, e elle gostou que se pellou, mas assim um gosto de figurão. Elle, quando está de pancada, parece que é como quem governa o mundo. Ainda hontem, almoçando, fallou para mim: «Marquez Raymundo... quero que tu ..» e embrulhou o resto, que não entendi nada. No fim deu-me dez tostões.
—Você guardou logo...
—Ora!
Quando Rubião voltava do delirio, toda aquella fantasmagoria palavrosa tornava-se, por instantes, uma tristeza calada. A consciencia, onde ficavam rastos do estado anterior, forcejava por despegal-os de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem fizesse do abysmo, trepando pelas paredes, arrancando a pelle, deixando as unhas, para chegar a cima, para não cahir outra vez e perder-se. Ia então á visita dos amigos, uns novos, outros velhos, como a gente do major e a do Camacho, por exemplo.
Este, desde algum tempo, era menos conversado. A mesma politica não lhe dava materia aos discursos de outr'ora. No escriptorio, quando via Rubião assomar á porta, fazia um gesto de impaciencia, que soffreava logo; o outro notava essa mudança, e perdia-se em conjecturas, se lhe sahira alguma offensa, por descuido—ou se começava a aborrecel-o. E para desfazer o tedio ou o resentimento, fallava macio, risonho, abrindo longas pausas respeitosas, á espera que elle dissesse qualquer cousa. Em vão appellava para o marquez de Paraná, cujo retrato continuava a pender da parede; repetia os nomes que lhe ouvira,—o grande marquez! o estadista consummado! Camacho ia apoiando de cabeça, e escrevendo sem parar, consultando os autos e os praxistas, Lobão, Coelho da Rocha, citando, riscando, pedindo-lhe desculpa. Tinha um libello que dar naquelle dia. Interrompia-se para ir á estante.
—Com licença...
Rubião arredava as pernas para deixal-o passar; elle tirava um volume das Ordenações do Reino, e folheava, folheava, pulando adiante, voltando atraz, atoa, sem buscar nada, unicamente para o fim de despedir o importuno; mas o importuno ia ficando, por isso mesmo, e entreolhavam-se disfarçados. Camacho tornava ao libello. Para ler, sentado, inclinava-se muito á esquerda, donde lhe vinha a luz, dando as costas ao Rubião.
—Aqui é escuro, aventurou Rubião um dia.
E não ouviu resposta, tão attento parecia o advogado na leitura dos autos. Realmente, póde ser importunação, pensou o nosso amigo. Espreitava-lhe o rosto duro e serio, o gesto com que pegava da penna para continuar o interminavel libello. Vinte minutos mais de silencio absoluto. No fim desse prazo, Rubião viu-o deixar a penna, retesar o busto, esticar os braços e passar as mãos pelos olhos. Disse-lhe com interesse:
—Cançado, não?
Camacho fez um gesto afirmativo, e preparou-se para continuar; então o nosso homem levantou-se e aproveitou o intervallo para dizer adeus.
—Voltarei, quando estiver menos atarefado.
Estendeu lhe a mão; Camacho segurou-lh'a ao de leve, e tornou ao papel. Rubião desceu a escada, aturdido, magoado com a frieza do seu illustre amigo. Que lhe teria feito?
Daquella vez, teve a fortuna de encontrar o major Sequeira.
—Ia agora mesmo á sua casa, disse-lhe; vae para lá?
—Vou; mas já não estamos na mesma casa; mudamo-nos para os Cajueiros, rua da Princeza...
—Seja onde for, vamos.
Rubião precisava de um pedaço de corda que o atasse á realidade, porque o espirito sentia-se outra vez presa da vertigem. Entretanto, fallou com tanto acerto e propriedade, que o major o achou em pleno juizo, e disse-lhe:
—Sabe que tenho uma grande noticia que lhe dar?
—Vamos a ella.
—Ha de ser quando chegarmos.
Chegaram. Era uma casa assobradada; D. Tonica veiu abrir-lhes a cancella. Trazia um vestido novo e brincos.
—Olhe bem para ella, disse o major pegando na filha pelo queixo.
D. Tonica recuou envergonhada.
—Estou olhando, respondeu Rubião.
—Não se vê logo que é uma pessoa que vae casar?
—Ah! parabéns!
—É verdade, vae casar. Custou, mas acertou. Achou por ahi um noivo, que a adora, como todos elles; eu, quando fui noivo, adorei a minha defuncta, que foi urna cousa nunca vista... Vae casar. Arranjou um noivo. Custou, mas acertou. Pessoa seria, meia edade; vem aqui passar as noites. De manhã, quando passa para a repartição, creio que bate na janella, ou ella já o espera; eu finjo que não percebo...
D. Tonica dizia com a cabeça que não, mas sorrindo de modo que parecia dizer que sim. Estava tão buliçosa! Nem se lembrava já que requestára o Rubião, que este fora uma das ultimas, e por fim a ultima das suas esperanças. Tinham entrado na sala; D. Tonica foi á janella, voltou, cabeça alta, andando atoa, reconciliada com a vida.
—Boa pessoa, repetiu o major, boa creatura... Tonica, vae buscar o retrato... Anda, vae buscar o teu noivo...
D. Tonica foi buscar o retrato. Era uma photographia; representava um homem de meia edade, cabello curto, raro, olhando espantado para a gente, cara chupada, pescoço fino e paletot abotoado.
—Que lhe parece?
—Muito bem.
D. Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes; mas, tirou logo os olhos, e deixou-se estar sentada, emquanto a imaginação saiu a esperar o Rodrigues. Chamava-se Rodrigues. Era mais baixo que ella,—cousa que o retrato não dava,—e empregado em uma repartição do ministerio da guerra. Viuvo, com dons filhos, um que estava no batalhão dos menores, outro que era tuberculoso,—doze annos,—condemnado á morte. Que importa? Era o noivo; todas as noites, ao recolher se, D. Tonica ajoelhava-se ante a imagem de Nossa Senhora, sua madrinha, agradecia-lhe o favor e pedia-lhe que a fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia de chamar-lhe Alvaro.
Rubião escutou calado um discurso do major. O casamento era dalli a mez e meio; o noivo tinha que perfazer os arranjos da casa, não era capitalista, vivia do ordenado e recorrera a emprestimos. A casa era a mesma e não exigia trastes novos nem ricos; mas, ha sempre algumas necessidades... Em summa, dalli a mez e meio, ou pelo menos, cinco semanas, estariam unidos pelos santos laços do matrimonio.
—E fico eu livre do trambolho, concluiu o major.
—Oh! protestou Rubião.
A filha ria-se; estava acostumada ás graças do pae, e tão disposta á alegria que nada a vexava; ainda mesmo que o pae se referisse aos seus quarenta annos passados não lhe daria grande golpe. Todas as noivas têm quinze annos.
—Verá como elle ha de procural-a depois, com saudades disse Rubião a D. Tonica.
—Qual! Talvez eu me case tambem!
Rubião levantou-se repentino, e deu alguns passos; o major não viu a expressão do rosto, não percebeu que o espirito do homem ia talvez descarrilhar, e que elle mesmo o presentia. Disse-lhe que se sentasse, e contou-lhe os seus tempos de casado e de campanha. Quando chegou á narração da batalha de Monte-Caseros, com as marchas e contra-marchas proprias do seu discurso, tinha deante de si Napoleão III. Calado a principio, Rubião proferiu algumas palavras de applauso, fallou de Solferino, de Magenta, prometteu ao Sequeira uma condecoração. Pae e filha entre-olharam-se; o major disse que vinha muita chuva. Com effeito, escurecera um pouco. Era melhor que Rubião fosse, antes de cahir agua; não trouxera guarda-chuva, o delle era velho e unico...
—Ahi vem o meu coche, redarguiu Rubião tranquillamente.
—Não vem, foi esperal-o no Campo. Não vês dahi o coche, Tonica?
D. Tonica fez um gesto vago e sem vontade. Não queria mentir, mas tinha medo, e desejava que Rubião sahisse. Da casa era impossivel ver o Campo da Acclamação. Já então o pae pegava no Rubião pelo braço e o encaminhava para a porta.
—Volte amanhã, depois, quando quizer.
—Mas porque não heide esperar aqui até que venha o coche? perguntou Rubião. A imperatriz não póde apanhar chuva...
—A imperatriz já foi.
Fez mal. Eugenia fez muito mal. General... Para que hade o senhor ficar sempre em major? General, vi o retrato do seu genro; quero dar-lhe o meu. Mande ás Tulherias. Onde está o coche?
—Está no Campo, esperando.
—Mande chamal-o.
D. Tonica, que estava á janella, disse para dentro:
—Lá vem Rodrigues.
E tornou a olhar para a rua, inclinando-se, sorrindo, emquanto na sala o pae continuava a guiar o Rubião para a porta, sem violencia, mas tenaz. Este parava, reprehendia:
—General, sou seu imperador!
—De certo, mas acompanhe-me Vossa Majestade...
Tinham chegado á porta; o major abriu a cancella, justamente quando o Rodrigues punha o pé na soleira. D. Tonica entrou para receber o noivo, mas a porta estava atravancada com o pae e Rubião. Rodrigues tirou o chapeo, mostrando o cabello, aspero e grisalho; tinha nas faces chupadas umas pintinhas de sarda, mas o riso era bom e humilde,—mais humilde ainda que bom,—e, não obstante a trivialidade do gesto e da pessoa, era agradavel. Os olhos não mostravam o espanto da photographia; este effeito provinha da emphasis que elle poz em todo o corpo, afim de que o retrato saisse bonito.
—Este senhor é o meu futuro genro, disse o major a Rubião. Não é verdade que viu no Campo um coche e um esquadrão de cavallaria? perguntou ao Rodrigues, piscando um olho.
—Parece que sim, senhor.
—Pois então? continuou Sequeira, voltandp-se para Rubião. Vá, vá, dobre a rua de S. Lourenço, e caminhe direito para o Campo. Adeus, até amanhã.
Rubião desceu tres degráos,—eram cinco—e parou deante do recem-chegado, fitou-o alguns instantes e declarou que estimava muito conhecel-o, que fosse bom esposo e bom genro. Como se chamava?
—João José Rodrigues.
—Rodrigues. Heide mandar-lhe uma fitinha aqui para a casaca. É o meu presente de nupcias. Lembre-me, Sequeira.
Sequeira pegou-lhe no braço para fazel-o descer os dons últimos degráos, e pol-o na rua.
—No Campo, dizes tu?
—No Campo.
—Adeus.
Da rua, ainda Rubião olhou para as janellas, com os dedos no chapéo, afim de comprimentar D. Tonica; mas D. Tonica estava na sala, onde Rodrigues acabava de entrar, fresco e delicioso, como a primeira rosa de verão.
Rubião não cuidou mais do coche nem do esquadrão de cavallaria. Foi dar comsigo abaixo, andou por varias ruas, até que subiu pela de S. José. Desde o paço imperial, vinha gesticulando e fallando a alguem que suppunha trazer pelo braço, e era a imperatriz. Eugenia ou Sophia? Ambas em uma só creatura,—ou antes a segunda com o nome da primeira. Homens que iam passando, paravam; do interior das lojas corria gente ás portas. Uns riam-se, outros ficavam indifferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos para poupal-os á afflicção que lhes dava o expectaculo do delirio. Uma turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão proximos, que lhe ouviam as palavras. Creanças de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando elles viram a curiosidade geral, entenderam dar voz á multidão, e começou a surriada:
—Ó gira! ó gira!
Esse vozear chamou a attenção de outras pessoas, muitas janellas dos sobrados começaram a abrir-se, appareceram curiosos de ambos os sexos e todas as edades, um photographo, um estofador, tres e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que fallava á parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obsequio.
—Ó gira! ó gira! berravam os vadios.
Um delles, muito menor que todos, apegava-se ás calças de outro, taludo. Era já na rua da Ajuda. Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de uma vez que ouviu, suppoz que eram acclamações, e fez uma cortezia de agradecimento. A surriada augmentava. No meio do rumor, distinguiu-se a voz de uma mulher á porta de uma colchoaria:
—Deolindo! vem para casa, Deolindo!
Deolindo, a creança, que se aggarrava ás calças da outra mais velha, não obedeceu; póde ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pecurrucho, clamando coma vozinha miuda:—Ó gira! ó gira!
—Deolindo!
Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar ás vistas da mãe que o chamava; esta, porém, correu ao grupo, e arrancou-o de lá. Em verdade, era pequeno de mais para andar em tumultos de rua.
—Mamãe, deixa eu vêr...
—Qual vêr! anda!
Metteu-o em casa, e ficou á porta, a olhar para a rua. Rubião estacara o passo; ella pôde vel-o bem, com os seus gestos e fallares, o peito alto, e uma barretada que deu em volta.
—Os malucos teem graça, ás vezes, disse ella sorrindo a uma visinha.
Os rapazes continuavam a bradar e a rir, e Rubião foi andando, com o mesmo côro atraz de si. Deolindo, á porta da loja, vendo o grupo alongar-se, pedia chorosamente á mãe que o deixasse ir tambem, ou então que o levasse. Quando perdeu as esperanças, enfeixou todas as energias em um só gritosinho esganiçado:
—Ó gira!
A visinha riu-se. A mãe riu-se tambem. Confessou que o filho era uma péstesinha, um endiabrado, que não socegava; não podia perdel-o de vista. Qualquer distracção, estava na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dons annos, quando escapou de morrer em baixo de um carro, alli mesmo; esteve por um fio. Se não fosse um homem que passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa, até com perigo de vida, estaria morto e bem morto. Nisto o marido, que vinha pela calçada opposta, atravessou a ma, e interrompeu a conversação. Trazia o senho carregado, mal comprimentou a visinha, e entrou; a mulher foi ter com elle. Que era? O marido contou a surriada.
—Passou por aqui, disse ella.
—Não conheceste o homem?
—Não.
O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher perguntou-lhe quem era.
—É aquelle homem que nos salvou o Deolindo da morte.
A mulher teve um calefrio.
—Viste bem? perguntou.
—Perfeitamente. Se eu já o tinha encontrado outras vezes, mas então não estava assim. Coitado! E a molecada berrava atraz delle. Qual! não ha policia nesta terra.
O que lhe doia á mulher não era tanto o mal do homem, nem ainda a surriada; mas a parte que teve nesta o filho,—a mesma creança que o homem salvara da morte. Realmente, como podia o menino reconhecel-o, nem saber que lhe devia a vida? Doia-lhe o encontro, a coincidencia. Afinal, contentou-se de pôr todas as culpas em si. Se tivesse tido mais cuidado, o pequeno não haveria sahido, e não entraria na troça. Tremia de quando em quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho, e deu-lhe dous beijos.
—Você viu a scena toda? perguntou á mulher.
—Vi.
—Eu ainda quiz dar o braço ao homem, e trazel-o para aqui; mas, tive vergonha; os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto, porque elle podia conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria... Que triste cousa que é perder o juizo!
A mulher pensava na travessura do filho; não a referiu ao marido, pediu á visinha que não alludisse a ella, e, de noite, só pregou olho tarde. Mettera-se-lhe em cabeça que, annos depois, o filho endoudecia, era castigado pela mesma troça, e que ella cuspia para o céu, indignada, blasphemando.
Duas horas depois da scena da rua da Ajuda chegou Rubião á casa de D Fernanda. Os vadios foram-se dispersando, a pouco e pouco, e os claros não se preenchiam; os tres ultimos juntaram os seus adeuses em um berro unico e formidavel. Rubião continuou sosinho, mal percebido pelos moradores das casas, porque a gesticulação diminuia ou mudava de feitio. Não fallava para o lado da parede, á supposta imperatriz; mas era ainda imperador. Caminhava, parava, murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre, sempre, sempre, envolvido naquelle veo, atravez do qual todas as cousas eram outras, contrarias e melhores; cada lampião tinha um aspecto de camarista, cada esquina uma feição de resposteiro. Rubião seguia direito á sala do throno, para receber um embaixador qualquer, mas o paço era interminavel, cumpria atravessar muitas salas e galerias, verdade é que sobre tapetes,—e por entre alabardeiros, altos e robustos.
Das gentes que o viam e paravam na rua, ou se debruçavam das janellas, muitas suspendiam por instantes os seus pensamentos tristes ou enfastiados, as preoccupações do dia, os tedios, os resentimentos, este uma divida, outro uma doença, desprezos de amor, vilanias de amigo. Cada miseria esquecia-se, o que era melhor que consolar-se; mas o esquecimento durava um relampago. Passado o enfermo, a realidade empolgava-os outra vez, as ruas eram ruas, porque os paços sumptuosos iam com Rubião. E mais de um tinha pena do pobre diabo; comparando as duas fortunas, mais de um agradecia ao ceu a parte que lhe coube,—amarga, mas consciente. Preferiam o seu casebre real ao alcaçar phantasmagorico.
Rubião foi recolhido a uma casa de saude. Palha esquecera a obrigação que Sophia lhe impoz, e Sophia não se lembrou mais da promessa feita á rio-grandense. Cuidavam ambos de outra casa, um palacete em Botafogo, cuja reconstrucção estava prestes a acabar, e que elles queriam inaugurar, no inverno, quando as camaras trabalhassem, e toda a gente houvesse descido de Petropolis. Mas agora a promessa foi cumprida; Rubião deu entrada no estabelecimento, onde ficou occupando uma sala e um quarto especiaes, recommendado pelo Dr. Falcão e pelo Palha. Não resistiu a nada; acompanhou-os com satisfação, e entrou nos seus aposentos, como se os conhecesse desde muito. Quando elles se despediram, dizendo que já voltavam, Rubião convidou-os para uma revista militar, no sabbado.
—Pois sim, sabbado, assentiu Falcão.
—Sabbado é bom dia, continuou Rubião. Não faltes, duque de Palha.
—Não falto, disse o Palha andando.
—Olha, mandar-te-hei um dos meus coches, novo em folha; é preciso que tua mulher pouse o seu lindo corpo, onde ninguem ainda ousou sentar-se. Almofadas de damasco e velludo, arreios de prata e rodas de ouro; os cavallos descendem do proprio cavallo que meu tio montava em Marengo. Adeus, duque de Palha.
—Para mim, é claro, sahiu pensando o Dr. Falcão, aquelle homem foi amante da mulher deste sujeito.
Lá ficou o homem. Quincas Borba tentára entrar na carruagem que levou o amigo, e porfiou em acompanhal-a, correndo; foi necessaria toda a força do criado para aggarral-o, contel-o e trancal-o em casa. Era a mesma situação de Barbacena; mas a vida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente de quatro ou cinco situações, que as circumstancias variam e multiplicam aos olhos. Rubião pediu instantemente que lhe mandassem o cão. D. Fernanda, alcançado o consentimento do director, cuidou de satisfazer o desejo do doente. Quiz escrever a Sophia, mas foi ella propria ao Flamengo.
—Mando ver, é aqui perto, propôz Sophia.
—Vamos nós mesmas. Que tem? Já pensei em uma cousa. Valerá a pena conservar a casa prompta e alugada, quando a cura póde prolongar-se? Melhor é deixal-a, vender os trastes e apurar o que houver.
Foram a pé do Flamengo á rua do Principe; tres a quatro minutos. Raymundo estava na rua, mas viu gente á porta e veia abril-a. O interior da casa tinha a feição do abandono, sem a fixidez e regularidade das cousas, que parecem conservar um resto da vida interrompida; era o abandono do desmazelo. Mas, por outro lado, o transtorno dos moveis da sala exprimiam bem o delirio do morador, suas idéas tortas e confusas.
—Elle foi muito rico? perguntou D. Fernanda a Sophia.
—Tinha alguma cousa, respondeu esta, quando chegou de Minas; mas parece que estragou tudo. Olhe, levante o vestido que o chão parece que não se varre ha um seculo.
Não era só o chão; os trastes tinham a crosta da incuria. Nem por isso o creado explicava nada; olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polka do dia. Sophia não lhe perguntou pelo asseio; estava morta por sahir «daquella immundicie», dizia a si mesma, e tinha vontade de fallar no cão, que era o principal motivo da visita; mas, não queria mostrar interesse por elle nem pelo resto. A trivialidade daquillo tudo não lhe dizia nada ao espirito nem ao coração; a lembrança do alienado não a ajudava a supportar o tempo. De si para si achava a companheira singularmente romantica ou affectada. «Que Bobagem!» ia pensando, sem desconcertar o sorriso approvador com que acudia a todas as observações de D. Fernanda.
—Abra aquella janella, disse esta ao creado; tudo cheira a mofo.
—Oh! insupportavel! acudiu Sophia, respirando com asco.
Mas, apezar da exclamação, D. Fernanda não se resolveu a sahir. Sem que nenhuma recordação pessoal lhe viesse daquella miseravel estancia, sentia-se presa de uma commoção particular e profunda, não a que dá a ruina das cousas. Aquelle expectaculo não lhe trazia um thema de reflexões geraes, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos, nem a tristeza do mundo; dizia-lhe tão somente a molestia de um homem, de um homem que ella mal conhecia, a quem fallára algumas vezes. E ia ficando e olhando, sem pensar, sem deduzir, mettida em si mesma, dolente e muda. Sophia não ousava articular nada, com receio de ser desagradavel a tão conspicua dama. Tinham ambas os vestidos apanhados, para evitar a macula da poeira; mas Sophia accrescentou a essa precaução a agitação viva, continua e impaciente da ventarola, como pessoa que suffocasse naquella atmosphera. Chegou a tossir algumas vezes.
—E o cachorro? perguntou D. Fernanda ao creado.
—Está preso no quarto, lá dentro.
—Vá buscal-o.
Quincas Borba appareceu. Magro, abatido, parou á porta da sala, estranhando as duas senhoras, mas sem latir; mal erguia os olhos apagados. Chegou a dar meia volta ao corpo na direcção do interior da casa, quando D. Fernanda fez uns estalinhos com os dedos; elle parou, agitando a cauda.
—Como é mesmo que se chama? perguntou a D. Fernanda.
—Quincas Borba, respondeu o criado, rindo, com a voz arrastada. Tem nome de gente. Eh! Quincas Borba! vae lá! a senhora está chamando.
—Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba! repetiu D. Fernanda.
Quincas Buba acudiu ao chamado, não pulando, nem alegre. D. Fernanda inclinou-se, fallou-lhe, perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queria ir vel-o. Assim mesmo inclinada, interrogava o creado sobre o trato do cão.
—Agora come, sim, senhora; logo que meu amo sahiu, não queria comer nem beber;—eu até pensei que estivesse damnado.
—Come bem?
—Come pouco.
—Procura pelo senhor?
—Parece que procura, respondeu Raymundo tapando o riso com a mão; mas eu tranquei elle no quarto, para não fugir. Já não chora; a principio chorava muito, que até me accordava... Era preciso eu bater com um cacete na porta e gritar, para elle socegar...
D. Fernanda coçava a cabeça do animal, cujos olhos, de mortos que eram, tornaram-se languidos. Era o primeiro affago depois de longos dias de solidão e desprezo. Quando D. Fernanda cessou de acaricial-o, e levantou o corpo, elle ficou a olhar para ella, e ella para elle, tão fixos e tão profundos, que pareciam penetrar no intimo um do outro. A sympathia universal, que era a alma desta senhora, esquecia toda a consideração humana deante daquella miseria obscura e prosaica, e estendia ao animal uma parte de si mesma, que o envolvia, que o fascinava, que o atava aos pés della. Assim, a pena que lhe dava o delirio do senhor, dava-lhe agora o proprio cão, como se ambos representassem a mesma especie. E sentindo que a sua presença levava ao animal uma sensação boa, não queria prival-o do beneficio.
—A senhora está-se enchendo de pulgas, observou Sophia.
D. Fernanda não a ouviu. Continuou a mirar os olhos meigos e tristes do animal, até que este deixou cahir a cabeça e entrou a farejar a sala. Sentira o cheiro do senhor. A porta da rua estava aberta; elle teria fugido por ella, se Raymundo não acudisse a prendel-o. D. Fernanda deu algum dinheiro ao creado para que o fosse lavar e conduzir á casa de saude, recommendande-lhe o maior cuidado, que o levasse ao collo, ou preso por um cordão. Nesta parte acudiu tambem Sophia, ordenando que a procurasse antes, em casa.
Sahiram. Sophia, antes de por o pé na rua, olhou para um e outro lado, espreitando se vinha alguem; felizmente, a rua estava deserta. Ao ver se livre da possilga, Sophia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de D. Fernanda. Fallou-lhe de Rubião e da grande desgraça da loucura; fallou tambem do palacete de Botafogo. Porque não ia com ella ver as obras? Era só lanchar um pouco, e partiriam immediatamente.
Sobreveiu um successo que distrahiu D. Fernanda do Rubião; foi o nascimento de uma filha de Maria Benedicta. Ella correu á Tijuca, encheu de beijos a mãe e a creança, deu a mão a beijar a Carlos Maria.
—Sempre exuberante! exclamou o joven pae, obedecendo.
—Sempre seccarrão! retorquiu ella.
Apesar da resistencia do primo, D. Fernanda acompanhou a convalescença de Maria Benedicta, tão cordial, tão boa, tão alegre, que era um encanto conserval-a em casa. A felicidade d'aqui fel-a esquecer a desgraça d'acolá; mas, convalescida a recente mãe, D. Fernanda acudiu ao enfermo.
«Conto restituil-o á razão no fim de seis ou oito mezes. Vae muito bem.»
D. Fernanda mandou a Sophia esta resposta do director da casa de saude, e convidou-a a irem ver o enfermo, se achasse que não lhes ficava mal. «Que mal póde haver? respondeu Sophia em um bilhete. Mas eu é que não teria animo de vel-o; foi tão nosso amigo, que não sei se poderia supportar a vista e a conversação do pobre homem. Mostrei a carta a Christiano, que me declarou ter liquidado os bens do Sr. Rubião: apurou tres contos e duzentos.»
—Seis mezes, oito mezes passam depressa, reflexionou D. Fernanda.
E elles vieram vindo, com os successos ás costas,—a queda do ministerio, a subida de outro em março, a volta do marido, a discussão da lei dos ingenuos, a morte do noivo de D. Tonica, tres dias antes de casar. D. Tonica espremeu as ultimas lagrymas,—umas de amizade, outras de desesperança,—e ficou com os olhos tão vermelhos, que pareciam doentes.
Theophilo, que merecera do novo gabinete a mesma confiança do antigo, teve parte copiosa nos debates da sessão parlamentar. Camacho declarou pela sua folha que a lei dos ingenuos absolvia a esterilidade e os crimes da situação. Em Outubro, Sophia inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais celebre do tempo. Estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espaduas. Ricas joias; o collar era ainda um dos primeiros presentes do Rubião, tão certo é que, neste genero de atavios, as modas conservam-se mais. Toda a gente admirava a gentileza daquella trintona fresca e robusta; alguns homens faltavam (com pena!) das suas virtudes conjugaes, da profunda adoração que ella tinha ao marido.
No dia seguinte ao baile, D, Fernanda accordou tarde. Foi ao gabinete do marido, que já devorara cinco ou seis jornaes, escrevera dez cartas e rectificava a posição de alguns livros nas estantes.
—Recebi esta carta, ha pouco, disse elle.
D. Fernanda leu-a; era do director da casa de saude; noticiava que Rubião, desde tres dias, desapparecera, não tendo podido ser encontrado por mais esforços que houvessem empregado a policia e elle. «Tanto mais me espanta esta fuga, concluia a carta, quanto que as melhoras eram grandes, e podia contar que, em dous mezes, o poria inteiramente bom.»
D. Fernanda ficou consternada; alcançou do marido que escrevesse ao chefe de policia e ao ministro da justiça, pedindo-lhes que ordenassem as mais severas pesquizas. Theophilo não tinha o menor interesse no achado nem na cura de Rubião; mas quiz servir á mulher cuja bondade conhecia, e, porventura, gostava de cartear-se com os homens da alta administração.
Como achar, porém, o nosso Rubião nem o cachorro, se ambos haviam partido para Barbacena? Oito dias antes, Rubião escrevera ao Palha que lhe fosse fallar; este acudia á casa de saude, viu que elle raciocinava claramente, sem a menor sombra de delirio.
—Tive uma crise mental, disse-lhe Rubião; agora estou bom, perfeitamente bom. Peço-lhe que me ponha fóra daqui. Creio que o director não se opporá. Entretanto, como quero deixar algumas lembranças á gente que me tem servido, e servido tambem ao Quincas Borba, veja se me póde adiantar cem mil réis.
Palha abriu a carteira sem hesitação, e deu-lhe o dinheiro.
—Vou tratar de o fazer sair, disse elle; mas, provavelmente são precisos alguns dias (estava em vesperas do baile); não se afflija por isso; daqui a uma semana está na rua.
Antes de sair, falou ao director, que lhe deu boas noticias do enfermo. Uma semana é pouco, disse elle; para pôl-o bom, bom, preciso ainda uns dous mezes. Palha confessou que o achára são; em todo caso, mandava quem sabia, e se fossem necessarios seis ou sete mezes mais, não precipitasse a alta.
Rubião, logo que chegou a Barbacena e começou a subir a rua que ora se chama de Tiradentes, exclamou parando:
—Ao vencedor, as batatas!
Tinha-as esquecido de todo, a formula e a allegoria. De repente, como se as syllabas houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguem que as podesse entender, uniu-as, recompoz a formula, e proferiu-a com a mesma emphasis daquelle dia em que a tomou por lei da vida e da verdade. Não se lembrava inteiramente da allegoria; mas, a palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da victoria.
Subiu, acompanhado do cão, e foi parar defronte da egreja. Ninguem lhe abriu a porta; não viu sombra de sacristão. Quincas Borba, que não comia desde muitas horas, collava-se-lhe ás pernas, cabisbaixo, esperando. Rubião voltou-se, e do alto da rua estendeu os olhos abaixo e ao longe. Era ella, era Barbacena; a velha cidade natal ia-se-lhe desentranhando das profundas camadas da memoria. Era ella; aqui estava a egreja, alli a cadeia, acolá a pharmacia, donde vinham os medicamentos para o outro Quincas Borba. Sabia que era ella, quando chegou; mas, á medida que os olhos se derramavam, as reminiscencias vinham vindo, escassas, mais numerosas, em bando. Não via ninguem; uma janella, a esquerda, parecia ter alguem que espiava. Tudo o mais deserto.
—Talvez não saibam que cheguei, pensou Rubião.
Subito, relampejou; as nuvens amontoavam-se ás pressas. Relampejou mais forte, e estalou um trovão. Começou a choviscar grosso, mais grosso, até que desabou a tempestade. Rubião, que aos primeiros pingos, deixara a egreja, foi andando rua abaixo, seguido sempre do cão, faminto e fiel, ambos tontos, debaixo do aguaceiro, sem destino, sem esperança de pouso ou de comida... A chuva batia-lhes sem misericordia. Não podiam correr, porque Rubião temia escorregar e cahir, e o cão não queria perdel-o. A meia rua, acudiu á memoria do Rubião a pharmacia, voltou para traz, subindo contra o vento, que lhe dava de cara; mas ao fim de vinte passos, varreu-se-lhe a ideia da cabeça; adeus, pharmacia! adeus, pouso! Já se não lembrava do motivo que o fizera mudar de rumo, e desceu outra vez, e o cão atraz, sem entender nem fugir, um e outro alagados, confusos, ao som da trovoada rija e continua.
Vagaram sem destino. O estomago de Rubião interrogava, exclamava, intimava; por fortuna, o delirio vinha enganar a necessidade com os seus banquetes das Tulherias. Quincas Borba é que não tinha egual recurso. E toca a andar acima e abaixo. Rubião, de quando em quando, sentava-se no lagedo, e o cão trepava-lhe ás pernas, para dormir a fome; achava as calças molhadas, e descia; mas tornava logo a subir, tão frio era o ar da noite, já noite alta, já noite morta. Rubião passava-lhe as mãos por cima, resmungando algumas palavras magras.
Se, apezar de tudo, Quincas Borba conseguia adormecer, accordava logo, porque Rubião levantava-se e punha-se outra vez a descer e subir ladeiras. Soprava um triste vento, que parecia faca, e dava arrepios aos dois vagabundos. Rubião andava de vagar; o proprio cançaço não lhe permittia as grandes pernadas do principio, quando a chuva cabia em bategas. As paradas eram agora mais frequentes. O cão, morto de fome e de fadiga, não entendia aquella odysséa, ignorava o motivo, esquecera o logar, não ouvia nada, senão as vozes surdas do senhor. Não podia ver as estrellas, que já então rutilavam, livres de nuvens. Rubião descobriu-as; chegara á porta da egreja, como quando entrou na cidade; acabava de sentar-se e deu com ellas. Estavam tão bonitas, reconheceu que eram os lustres do grande salão e ordenou que os apagassem. Não pôde ver a execução da ordem; adormeceu alli mesmo, com o cão ao pé de si. Quando accordaram de manhã, estavam tão juntinhos que pareciam pegados.
—Ao vencedor, as batatas! exclamou Rubião quando deu com os olhos na rua, sem noite, sem agua, beijada do sol.
Foi a comadre do Rubião, que o agasalhou e mais ao cachorro, vendo-os passar defronte da porta. Rubião conheceu-a, aceitou o abrigo e o almoço.
—Mas que é isso, seu compadre? Como foi que chegou assim? Sua roupa está toda molhada. Vou dar-lhe umas calças de meu sobrinho.
Rubião tinha febre. Comeu pouco e sem vontade. A comadre pediu-lhe contas da vida que passára na Côrte, ao que elle respondeu que levaria muito tempo, e só a posteridade a acabaria. Os sobrinhos de seu sobrinho, concluiu elle magnificamente, é que hão de ver-me em toda a minha gloria. Começou, porém, um resumo. No fim de dez minutos, a comadre não entendia nada, tão desconcertados eram os factos e os conceitos; mais cinco minutos, entrou a sentir medo. Quando os minutos chegaram a vinte, pediu licença e foi a uma visinha dizer que Rubião parecia ter virado o juizo. Voltou com ella e um irmão, que se demorou pouco tempo e saiu a espalhar a nova. Vieram vindo outras pessoas, ás duas e ás quatro, e, antes de uma hora, muita gente espiava da rua.
—Ao vencedor, as batatas! bradava Rubião aos curiosos. Aqui estou imperador! Aa vencedor, as batatas!
Esta palavra obscura e incompleta era repetida na rua, examinada, sem que lhe dessem com o sentido. Alguns antigos desaffectos do Rubião iam entrando, sem ceremonia, para gosal-o melhor; e diziam á comadre que não lhe convinha ficar com um doudo em casa, era perigoso; devia mandal-o para a cadeia, até que a autoridade o remettesse para outra parte. Pessoa mais compassiva lembrou a conveniencia de chamar o doutor.
—Doutor para que? acudiu um dos primeiros. Este homem está maluco.
—Talvez seja delirio de febre; já viu como está quente?
Angelica, animada por tantas pessoas, tomou-lhe o pulso, e achou-o febril. Mandou vir o medico,—o mesmo que tratara o finado Quincas Borba. Rubião conheceu-o tambem; respondeu-lhe que não era nada. Capturára o rei da Prussia, não sabendo ainda se o mandaria fuzilar ou não; era certo, porém, que exigiria uma indemnisação pecuniaria enorme,—cinco billiões de francos.
—Ao vencedor, as batatas! concluiu rindo.
Poucos dias depois morreu... Não morreu subdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, poz a coroa na cabeça,—uma coroa que não era, ao menos, um chapeo velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a illusão. Não, senhor; elle pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só elle via a insignia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo cahiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.
—Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um tregeito horrivel, e estava assignada a abdicação.
Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu tambem, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, tres dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capitulo especial, é provável que me perguntes se elle, se o seu defuncto homonymo é que dá o titulo ao livro, e porque antes um que outro,—questão prenhe de questões, que nos levariam longe... Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lagrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sophia não quiz fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lagrimas dos homens.