Title: O Vegetarismo e a Moralidade das raças
Author: Jaime de Magalhães Lima
Release date: January 17, 2008 [eBook #24338]
Language: Portuguese
Original publication: Porto: Sociedade Vegetariana--editora 393, Avenida Rodrigues de Freitas, 1912
Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images from BibRia)
Composição e impressão
--Emprêsa Gráfica «A UNIVERSAL»--
DE FIGUEIRINHAS & MOTA RIBEIRO, L.DA
--Rua Duque de Loulé, 111--Pôrto--
9.o volume da
Biblioteca Vegetariana
Dr. Jaime de Magalhães Lima
--Notavel Conferencia realisada no
ATENEU COMERCIAL DO PORTO
em 14 de Junho de 1912---------
1912
SOCIEDADE VEGETARIANA--Editôra
393, AVENIDA RODRIGUES DE FREITAS
PÔRTO
Tem os seus pergaminhos o vegetarismo. Não é uma doutrina nascida de ontem. Tem títulos autênticos de nobreza prolongada durante gerações sem número, respeitada nas mais altas civilizações em cujas superiores aspirações colaborou, definindo-as eloquentemente pela voz das suas mais belas e autorizadas individualidades e corroborando-as ardentemente pelo exemplo dos seus mais devotados apóstolos.
Sem nos afastarmos da nossa propria civilização, sem sairmos d'este fóco de cultura chamado o ocidente da Europa onde nos criamos e onde os nossos mais remotos avós se criaram e educaram, legando-nos um espólio de sentimentos e ideias que constituem toda a nossa alma e que nos cumpre cultivar e aperfeiçoar para o transmitirmos aos nossos filhos acrescentado em formosura e benefícios, emendado, corrigido e depurado em seus vícios e insuficiências; dentro dêste círculo devéras estreito relativamente aos largos espaços em que fóra dele outras raças e outras condições naturais formaram sociedades que igualmente engrandeceram e honram a humanidade pelas concepções da vida que realizaram e de que foram veiculo e sublime instrumento no mundo; limitando-nos à exígua mancha do globo que é o nosso berço e o nosso lar e fazendo-o, não porque além dele não conheçamos corações iguais aos nossos, vivendo do mesmo alento, crentes [6] na mesma fé e enamorados da mesma elevação mas sómente porque para o fim muito restrito que neste instante temos em vista convêm não distrair a atenção do que de mais nos toca e por isso será mais claramente demonstrativo: neste cantinho que acendeu seus fachos de luz em volta do Mediterraneo e de lá a fez irradiar através das montanhas até aos mares do norte, o vegetarismo foi e é uma das caracteristicas do zenit moral das civilizações, e como tal o aceitaram, proclamaram e praticaram os gênios que mais fundamente as compreenderam e mais brilhantemente as serviram.
O reconhecimento deste facto é hoje uma verdade corrente. O mais rudimentar estudo do vegetarismo não deixará de o apontar. Por certo somarão milhões as folhas impressas em que se encontram os nomes de vegetarianos que foram na história dos povos da Europa como signais da sua grandeza e juizes e farois do seu tempo e dos tempos futuros. Mas nem é justo que se invoque o seu valor moral sem lembrar os que por uma sublimada inspiração no-lo mostraram, nem tão pouco seria prudente que, sómente porque uma verdade se tornou indiscutivel e porventura banal entre homens cultos, deixássemos de a repetir tão inumeráveis vezes quantas necessárias fossem para que ela se propague e produza todos os bens que só pela sua larga disseminação poderá produzir. E o vegetarismo, tendo já os seus altares e o seu heróico punhado de fieis em todos os paises que atingiram a sensibilidade moral e religiosa, está infelizmente longe de ter penetrado na concepção vulgar das obrigações humanas, como é mister para a redenção de tantos e tão dolorosos males que nos afligem e perseguem por culpa da nossa cegueira e obscuridade.
Recordemos pois muito de passagem as lições dos profetas e mestres. É dever e é utilidade. E pena é que não possamos agora fazê-lo com a pausa que o encanto das suas palavras nos pede e que o proveito da própria educação imperiosamente nos aconselha.
De Pitágoras a Shelley ou a Wagner ou a E. Réclus ou a Tolstoi que arautos não teve o vegetarismo, que divinos clamores não fez ouvir às multidões ignorantes da própria fortuna, escravas da primitiva animalidade ou ensandecidas e aviltadas em sórdidos prazeres!... Desde que a [7] nossa civilização pôde gravar seu rasto na história, a tradição do vegetarismo jámais se interrompe completamente. Em mais de vinte e cinco séculos a sua taça passa de mão em mão, e ora se expõe à luz de sol erguida por austeros e hercúleos sacerdotes cuja rectidão e fôrça nos subjugam, ora é guardada devota e humildemente em solitárias ermidas, mas jámais se partiu ou sequer arrefeceu desamparada do alento de lábios que nela busquem beber a essencia do vigor do corpo e do espírito.
A escola de Pitágoras cujas tradições de superioridade moral são memoráveis e cuja profunda e duradoura influência na filosofia, na sciência e na teologia antiga, se alargaram desde os tempos pre-socráticos até aos tempos do império romano, na Itália, na Grécia e na Alexandria, seis séculos antes de Cristo, já reivindicava para a vida de pureza moral a abstinência de alimentação carnívora, assim como de todo o derramamento de sangue, ainda que pretendesse justificar-se pelo sacrifício aos deuses. Outros eram os seus altares e, seja qual fôr a estreiteza de informação escrita que do profeta de Samos e seus discípulos nos houvesse ficado, o vigor da tradição por tal modo se acentua neste ponto de regime dietético que não nos póde restar a menor duvida de que nas origens da nossa civilização se encontra imposta, como preceito fundamental, a abstinência de carne aos que pretenderem seguir na vida o caminho da dignidade.
Cinco séculos mais tarde, essa tradição vive por tal forma na memória e nas paixões íntimas dos grandes espíritos da época que Ovídio, o poeta, no-la repetirá nestes termos:
«Havia em Crotona um homem da ilha de Samos que se exilara da pátria pelo ódio que tinha aos tiranos... Tinha com os deuses aturado comércio... O que sabia comunicava-o a uma multidão de discípulos que em um grande silêncio o admiravam...
«Foi o primeiro que condenou o uso de comer a carne dos animais: doutrina sublime, e tão pouco apreciada, cuja paternidade se lhe atribuia.
«Deixai, mortais», dizia, «deixai de vos servir de manjares abomináveis: dão-vos os campos searas abundantes; para vós vergam de frutos as árvores com os mais belos pomos e produzem uvas as vinhas. Tendes legumes [8] dum suave gôsto, excelentes alguns quando cozidos. O mel e o leite não vos são defesos. Enfim para vós, a terra é pródiga de suas riquezas e oferece-vos toda a espécie de alimento sem que necessiteis para sustentar-vos de recorrer à morte e à carnagem.
«Só aos animais convêm o comer carne, e ainda nem todos se sustentam dela. Os cavalos, os bois e as ovelhas vivem só de ervas; apenas as feras, os tigres, os liões, ursos e lobos fazem da carne seu sustento habitual.
«Que crime horrível lançar em nossas entranhas as entranhas de seres animados, nutrir na sua substância e no seu sangue o nosso corpo! Para conservar a vida a um animal, porventura é mister que morra um outro? Porventura é mister que em meio de tantos bens que a melhor das mães, a terra, dá aos homens com tamanha profusão, pródigamente, se tenha ainda de recorrer à morte para o sustento, como fizeram ciclopes, e que só degolando animais seja possível cevar a nossa fome?
«Procedia diferentemente a idade de ouro, ditosos tempos que nós assim chamamos. Contente com as plantas e os frutos que a terra produz, o homem não manchava a sua bôca com o sangue dos animais. As aves voavam sem temor no meio dos ares... O universo tranqùilo desconhecia laços e ciladas. Tudo era paz.
«Aquele, seja quem fôr, que para desgostar os homens dos alimentos inocentes com que se alimentavam, criou o costume de comer a carne dos animais, abriu na mesma hora a porta a crimes de todo o gênero; porque foi sem dúvida pela carnificina dêsses animais que o ferro começou a ser ensanguentado. Na verdade, é permitido tirar a vida aos animais que nos atacam, mas não nutrir-nos com a sua carne. Todavia, fomos mais longe ainda; quizemos sacrifical-os aos deuses...
«Que crime tinheis cometido, ovelhas inocentes, rebanhos tranqùilos, que dais aos homens um nectar delicioso, que para os cobrir vos deixais despojar do vosso manto e que enfim lhes sois mais úteis quando vos deixam viver do que quando vos matam? Que mal faz o boi, doce animal, incapaz de vos prejudicar e que não é senão para o trabalho?
«É necessario ser ingrato, desnaturado, de todo indigno dos bens que nos dá a terra, quando vamos tirar da [9] charrua esse animal tranqùilo, o melhor dos nossos obreiros, para o conduzir ao altar a receber o golpe fatal nessa cabeça que tantas vezes gemeu sob o jugo e, por um trabalho duro e penoso, tantas vezes nos renovou as searas.
«Não bastava aos homens cometerem tão grandes crimes, precisavam ainda da cumplicidade dos deuses, crendo que lhes podia ser agradavel o sacrificio d'um animal tão útil... Levam assim a vitima ao altar; lá, recitam sôbre ela orações que ela não ouve; põe-lhe entre as pontas, que foram doiradas, um bolo feito d'aquele mesmo grão que ele cultivou, e afunda-se-lhe no seio a lâmina sagrada...
«Logo lhe tiram as entranhas ainda palpitantes, para as consultarem e lerem n'elas os segredos dos deuses. Dizei-me, homens insaciáveis, d'onde vem esta avidez que só póde fartar-se em carnes proìbidas. Deixai tão criminoso uso. Segui os conselhos que vos dou. Sabei que, quando comeis a carne do boi que acabais de degolar, comeis aquele que vos lavrou o campo. Pois que é um deus que me inspira, só falo segundo a sua vontade...
«As nossas almas são sempre as mesmas, embora tomem formas diferentes conforme os corpos que animam. Que a piedade não seja sacrificada à vossa gula, que para vos saciar não expulseis dos seus corpos as almas dos vossos pais nem vos alimenteis do seu sangue...
«É acostumar-nos a derramar o sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemidos. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves a que tantas vezes démos de comer. Ah! quão pouco dista d'um enorme crime!
«Funesta aprendizagem! Deixai tranqùilamente o boi lavrar a terra e seja a sua morte o termo natural da sua velhice. Contente-nos o velo do rebanho que nos livra da atmosfera agreste, e o leite que as cabras dão para nos nutrir: parti os vossos laços e as redes, não mais o visco engane a ave crédula. Não mais se leve ao cêrco o tímido veado, perturbado com as penas que o espantam, e que não mais se oculte o anzol em traiçoeiro engôdo. Matai os animais que podem fazer mal; mas contentai-vos em só lhes dar a morte e não os comer, e que só vos sirvam alimentos legitimos.»
Assim se compreendia a doutrina de Pitágoras cinco [10] séculos depois de haver deixado a terra o seu fundador e assim a compreendia e traduzia o talento d'um dos espíritos mais cultos duma grande época.
A vitalidade da doutrina e a superioridade do interprete são garantia de que não se tratava de qualquer coisa passageira, d'uma tendencia que só as circunstâncias de determinado momento haviam originado e desenvolvido, mas antes nos encontravamos em presença de problemas morais e soluções que se mostravam capazes de afrontar diverssíssimas situações históricas e de lhes sobreviverem, representando por conseguinte elementos essenciais à existência das comunidades cultas.
De resto, a doutrina dietética de Pitágoras atravessava êsse longo e acidentado período dos primeiros séculos da nossa civilização refazendo-se, alargando-se e confirmando-se na meditação dos homens cujas lições de sabedoria ficariam nos evangelhos eternos da nossa raça. Não foi estranha à prodigiosa obra de Platão. E Sêneca, o filósofo, lembra-a nestes termos de simpatia:
«Desde que comecei a contar-vos com que vivo ardor entrei a estudar a filosofia na minha mocidade, não devo envergonhar-me de confessar a afeição que Focion me inspirou pelo ensino de Pitágoras. Instruiu-me dos motivos por que ele mesmo, e depois dele Séxtio, resolveu abster-se da carne dos animais. Cada um tinha a sua razão, mas em ambos os casos era magnífica. Focion sustentava que o homem póde encontrar alimento bastante sem o derramamento do sangue e que a crueldade se torna habitual quando uma vez a pratica da carnificina se aplicou ao prazer do apetite. Acrescentava ele que é nosso dever limitar os materiais da luxúria. Que, todavia, a variedade de alimentos é nociva à saúde e não é natural ao nosso corpo. Se estas máximas (da escola de Pitágoras) são verdadeiras, então abster-nos da carne dos animais é animar e promover a inocência; se mal fundadas, ensinam-nos ao menos a frugalidade e a simplicidade de vida. E que perdeis vós perdendo a nossa crueldade? Apenas vos privo do alimento dos liões e dos abutres.
«Levado por êstes e semelhantes argumentos, resolvi abster-me de carne, e ao fim dum ano o hábito da abstinência não só me era fácil mas delicioso. Creio firmemente que as faculdades do meu espírito eram mais activas... [11] Perguntais-me porque é que eu voltei atrás e abandonei esse sistema de vida? Ao que eu respondo que a sorte dos meus primeiros dias foi lançada no reino do imperador Tibério. Certas religiões estranhas tornaram-se objecto das suspeitas imperiais, e entre as formas de adesão aos cultos ou superstições estranhas, estava o de abstinência de carne dos animais. Daí por instancias de meu pai, que na realidade não tinha medo de que essa pratica se tornasse motivo de acusação, mas que odiava a filosofia, fui induzido a voltar aos meus antigos hábitos dietéticos, e não teve ele maior dificuldade em me persuadir a voltar a refeições mais suntuosas»...
«Isto digo com a intenção de vos provar como são poderosos os primeiros impulsos da mocidade para o que é mais verdadeiro e melhor, sob a exortação e incentivo de virtuosos mestres. Erramos, em parte por culpa dos nossos guias, que ensinam como se disputa e não como se vive: e em parte por nossa culpa, aguardando que os mestres cultivem não tanto a disposição do espírito como as faculdades da inteligência. D'esta forma, o que foi filosofia, tornou-se em filologia». (Epistola CVIII.)
Em outras passagens, condenando o luxo e os desmandos sensuais da sua época, se refere Seneca aos escravos do ventre que, como Salústio, quer que «sejam contados entre os animais inferiores e não entre os homens» e lembra que «em tempos mais simples não havia necessidade em tão larga escala de tantos médicos supranumerários, nem de tantos instrumentos cirúrgicos, nem de tantas caixas de drogas. A saúde era simples por uma razão simples. Muitos pratos trouxeram muitas doenças. Note-se que vasta quantidade de vidas um estômago absorve--devastador da terra e do mar. Não é de espantar que em tão discordante dieta a doença varie incessantemente... contem os cozinheiros e não mais se espantarão do número incontável das doenças humanas.»
Por êsse mesmo tempo Musónio Rufo, outro filósofo eminente, sectário tambêm do melhor estoicismo, declarava «brutal» o uso da carne, «sómente próprio de animais selvagens, pesado e empecendo o pensamento e a inteligência. Os vapores que dele vem são túrbidos e escurecem a alma, de modo que os que dele partilham abundantemente mostram-se os mais lentos em apreender.»
[12]Mas para que alongar-nos em citações de nomes e rememoração de doutrinas dos filósofos e moralistas do classicismo greco-romano, que condenou por nocivo à justiça e ao entendimento o carnivorismo? Para que, se um só homem nessas horas remotas de extrema actividade mental e da mais exaltada sensibilidade moral, pôde por honra da espécie e glória da humanidade resumir todo o problema dietético com uma profundeza exaustiva e uma lucidez inexcedivel que os apóstolos da sua doutrina até hoje tem invocado como um evangelho a que a experiencia de muitos seculos pouco ou nada acrescentou?
Leiam-se as obras morais de Plutarco, que viveu do primeiro ao segundo século da éra cristã. São um monumento, até hoje e por certo para sempre inabalável, da dignidade humana. Lá encontraremos a causa do vegetarismo posta em termos de tal evidencia que constituem como a razão ultima da sua legitimidade e do seu valor moral, religioso e fisiológico.
Perguntas-me, diz Plutarco, «por que motivos Pitágoras se absteve de se alimentar com a carne dos animais. Pela minha parte, pasmo de que espécie de sentimento, espirito ou razão estava possuido aquele que primeiro poluiu a sua boca com sangue e consentiu que os seus lábios tocassem a carne dum ser assassinado, que espalhou sôbre a sua mesa os membros despedaçados de corpos mortos e pediu como alimento quotidiano e prato delicado o que ha pouco era um ser dotado de movimento, de percepção e de voz?...
«Que luta pela existência ou que excitada loucura incitou a ensopar em sangue as tuas mãos, a ti que tens sempre abundancia de todas as coisas necessárias para viveres? Porque desmentes a terra como se ela fosse incapaz de te alimentar e nutrir? Porque atormentas Ceres que humaniza, e desonras as doces e suaves dádivas de Baco, como se não tivesses nelas o bastante? Não te envergonhas de misturar o assassinio e o sangue aos seus frutos benéficos? Chamas selvagens e ferozes outros carnivoros, os tigres, os liões e as serpentes, enquanto manchas no sangue as tuas mãos e em espécie alguma de barberie lhes ficas inferior. E para eles, todavia, o assassinio é apenas o meio de se sustentarem; para ti, é uma lascivia supérflua. De facto, não são liões e lobos que nós matamos para [13] comer como em defeza própria o poderiamos faser--pelo contrário deixamo-los incólumes; e entretanto, aos inocentes, aos mansos, aos que não tem auxilio nem defesa,--a esses perseguimo-los e matamo-los, àqueles que a natureza parecia ter dado vida para sua beleza e graça...
«Nada nos perturba, nem a beleza encantadora das suas formas, nem a dorida doçura da sua voz e do seu grito nem a sua inteligencia, nem a pureza da sua dieta nem a superioridade do entendimento. Só para ter um pedaço da sua carne, privamo-los da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direcções; quando na realidade são instâncias e suplicas e rogos que cada um deles nos dirige dizendo:--Não é da verdadeira satisfação das vossas reais necessidades que queremos livrar-nos mas da complacente luxuria dos nossos apetites.»
Depois de mostrar com uma nitidez que é uma antecipação da sciencia contemporânea como o carnivorismo não pode justificar-se pela anatomia do homem, sem dentes nem garras nem boca nem intestinos que tal processo de nutrição suponham ou autorizem, Plutarco aponta os subterfugios de que nos servimos para consumar o nosso crime contra a natureza. Porque não fazes como o lião e o tigre, pergunto, e não arrancas o coração á tua vitima? «Nem mesmo depois que foi morta a comerás como veio do açougue. Has-de fervê-la, assá-la e inteiramente a transformarás pelo fogo e pelos condimentos. Completamente alteras e disfarças o animal morto, usando dez mil ervas doces e especiarias, para que o vosso paladar seja enganado e se prepare para receber o alimento que não é natural. Foi uma admoestação própria e sagaz a do espartano que comprou um peixe e o deu ao cozinheiro para o preparar. Quando este lhe pediu manteiga e azeite e vinagre, respondeu-lhe:--Se eu tivesse tudo isso não tinha comprado o peixe...
«A tal ponto fazemos do sangue uma luxuria que chamamos à carne delicadeza e logo reclamamos delicados condimentos para essa mesma carne e misturamos azeite e vinho e mel e molhos e vinagre e todas as especiarias da Síria e da Arábia, de todo o mundo, como se estivéssemos [14] a embalsamar um cadáver humano. Depois que todas estas substâncias heterogênias se misturaram e dissolveram e até certo ponto se corromperam,[A] cabe sem dúvida ao estômago assimilá-las, se podér. E posto que isso possa no momento fazer-se, a sua consequencia natural é a variedade de doenças produzidas pelas digestões imperfeitas e pela repleição...
«Não é só contra a natureza da nossa constituição física o uso da carne. O espírito e a inteligência tornam-se pesados pela supreabundância e pela repleição; é possivel que a carne e o vinho tendam a dar robustez ao corpo, mas para o espirito trazem sómente fraqueza.
«Além e acima de todas estas razões, não parecerá admirável criar hábitos de filantropia? Quem é tão bondoso e gentil para os seres duma outra espécie inclinar-se-á algum dia a injuriar o seu próprio gênero? Lembro-me de ter ouvido em uma conversação, como dito por Xenócrates, que os atenienses impunham penas a quem esfolasse viva uma ovelha. Aquele que tortura um ser vivo é um pouco pior, parece-me, do que aquele que sem necessidade priva da vida e mata rapidamente. Temos, ao que parece, mais clara percepção do que é contrário à propriedade e ao custume do que daquilo que é contrario à natureza...»
Com Plutarco, o vegetarismo, ou melhor, a condenação do carnivorismo passou a ser nas preocupações morais do homem culto um caso julgado, eloquentemente e inabavelmente julgado. Os que se lhe seguiram, e são legião de gênios e de santos, nada acrescentaram às razões basilares dos seus principios dietéticos, embora brilhantemente os interpretassem e devotadamente os praticassem em um [15] apostolado verdadeiramente religioso, através de todas as contrariedades e adversidades. Os padres da igreja cristã primitiva, quando ela ainda se encontrava em toda a pureza, não se esqueceram, como não podiam esquecer-se, de verberar rigidamente as crueldades e a insânia do carnivorismo. E os filósofos estranhos ao cristianismo e até mesmo os que o combatiam mas que vinham repassados do platonismo helênico não foram menos ardentes na flagelação d'aquele vicio a todos os respeitos mortal.
Dêstes é notável pela solidez e desenvolvimento da argumentação que emparelha a de Plutarco na repulsão do carnivorismo, Porfirio da Alexandria, homem extraordinário, discípulo de Plotino. Santo Agostinho coloca-o acima de Platão.
Para êsse tambem o vegetarismo era salvação de muita angústia e tormento, desde que nem o médico nem o filósofo nem o atleta se atreviam a afirmar que a dieta carnivora era melhor para a saúde e para o vigor.
Sendo assim, «porque», dizia, «não nos revoltamos e libertamos duma supreabundância de inquietações? Para aquêle que se habitua a contentar-se com o menor luxo, será isso a redenção não de uma mas de mil inquietações--dos serviços de criados em excesso, duma multidão de variados estorvos, dum estado físico de letargia e depressão, dum número infinito de doenças severas, da necessidade dos médicos, do incentivo à devassidão, de pesadas imaginações, de desordens infinitas e superfluas, dos ferros de grosseiros hábitos do corpo, dos excesso de fôrça fisica excitando a actos de violência--em suma, duma Ilíada de males. De tudo o que o alimento inocente que não rouba a vida e que a todos é fácilmente acessível nos liberta, dando paz à alma enquanto oferece ao corpo meios de saúde. «Não é dos que comem o grão», diz Diógenes, «que vem as guerras e a pirataria; mas é dos que comem carne que vem os tiranos e os opressores».
E diz tambêm: «Deixo de insistir no facto de que, se nos pozermos na dependencia do argumento da necessidade ou da utilidade (do carnivorismo), não podemos deixar de admitir por implicação que nós mesmos fomos criados só por causa de certos animais destruidores, como os crocodilos, as serpentes e outros monstros, porque não recebemos dêles o menor benefício. Pelo contrário, são eles que apanham, [16] destroem e devoram os homens que encontram--fazendo o que não procedem de modo algum menos cruelmente do que nós. De resto, eles são assim selvagens por necessidade e fome; e nós por insolente lascivia e luxuriosos prazeres, divertindo-nos, como usamos no circo e nos morticínios da caça. Em tais acções fortificamos em nós uma natureza bárbara e brutal que torna os homens insensíveis ao sentimento da piedade e compaixão. Aquêles que primeiro perpetraram essas iniquidades fatalmente entorpeceram a parte mais importante da alma. Por isso é que os discípulos de Pitágoras consideram a bondade e a graça com os animais inferiores um exercicio de filantropia e graça».
Com Porfirio fecham-se as lições magnificas de vegetarismo que a antiguidade nos legou.
Seguem-se-lhe na ordem cronológica as desordens e violências da idade média, o desabar dum mundo em grande parte caduco e a anciedade duma renovação que sabe mal os seus trâmites e anciosamente os procura. Mas nem assim, nem em meio dessas ruinas e tumulto, o vegetarismo será uma doutrina morta. Aqui e além sentimos-lhe as palpitações; nas homílias dum João Crisóstomo cujos ascetas não conheciam entre si, segundo a expressão do Santo, «nem os rios de sangue, nem a matança e nem o cortar da carne no açougue, nem cozinhas delicadas, nem o peso da cabeça, nem as exalações horríveis dos manjares carnívoros e os fumos desagradáveis das cozinhas»; nas comunidades dos cataros perseguidos pela igreja católica, que nem mesmo perante o cadafalso se sujeitaram a matar um frangão, quando em 1052, em Goslar, eram enforcados; e Deus sabe em quantas ermidas, nas quais os revoltados contra a ortodoxia eclesiástica que na solidão procuravam refugio das torturas que os ameaçavam, guardavam as melhores tradições dos paulicianos e dos albigenses, esperando no futuro melhor religião e mais pura moralidade. Pelo que toca à superioridade moral dos seus preceitos anti-carnívoros, êsses herejes, que assim se chamavam e como tais eram martirizados, até entre os seus cruéis inimigos encontraram quem lhes fizesse justiça. S. Bernardo foi um dos que condenando os crimes e as imoralidades da ortodoxia do seu tempo reconheceu virtude em uma dieta anti-carnívora.
[17]No século XVI entramos na renascença e com ela, reatado o fio da cultura antiga, dá signais de vida o senso moral que em tal agudeza sentimos nos primeiros tempos do império romano.
Vem o Compêndio da Vida Sóbria do celebre Cornaro que, fraco e arruinado aos trinta anos por excessos de gula, consegue prolongar a vida além dos cem por uma dieta rigorosa. Vem a Utopia de Tomás Moore, a cujo povo modêlo não era permitido acostumar-se a matar os animais «pelo uso dos quais julgavam que a clemência, a mais graciosa afeição da nossa natureza decaía e morria». E vem finalmente a ressurreição plena da filosofia humanitária em Miguel de Montaigne.
Grande leitor de Plutarco, seu legitimo discípulo, Montaigne renova brilhantemente as exortações do mestre contra as intoleráveis crueldades do carnivorismo.
«Pela sua parte», disse, «nunca foi capaz de vêr sem desgôsto perseguir e matar um animal inocente e sem defesa, do qual não haviamos recebido mal ou ofensa. Quando um gamo, como vulgarmente acontecia, esfalfado e sem fôrças, sem outro recurso, se prostrava e rendia, como se pelas lágrimas pedisse misericórdia aos seus algozes, sempre lhe pareceu um desagradável espectáculo. Raro ou nunca apanhou vivo um animal que não o restituisse á liberdade. Pitágoras tinha o costume de comprar para o mesmo fim aos passarinheiros e aos pescadores as suas víctimas. As disposições sanguinárias relativamente aos outros animais demonstram uma crueldade natural com a nossa própria espécie. Desde que em Roma se habituaram ao espectáculo da chacina dos outros animais, passaram à dos homens e dos gladiadores. Temia que a natureza tivesse dado certo instinto de desumanidade às inclinações humanas. Ninguém tira prazer de vêr os outros animais alegres e afagando-se; e ninguém deixa de se alegrar vendo-os desmembrados e feitos em pedaços.»
Repetindo o exemplo de Plutarco, Montaigne considera um caso de consciência mandar para o matadoiro a vaca que tantos anos nos serviu. Com Plutarco e Porfírio aponta os prejuizos sobre as faculdades mentais das raças não humanas, insistindo em que a diferença é de grau e não de espécie. «Platão» diz, «no seu quadro da Idade d'Oiro conta entre as principais vantagens dos homens [18] d'aquêle tempo o comércio que êles tinham com os outros animais, investigando, instruindo-se e aprendendo as suas verdadeiras qualidades e as diferenças entre nós e êles, pelo que adquiriam um perfeitíssimo conhecimento e inteligência e dêste modo fizeram as suas vidas mais felizes do que a nossa. Isto digo com o fim de nos fazer retroceder e juntar-nos á multidão. Não estamos nem acima nem abaixo do resto. «Quantos estão sob o céu» diz o sábio judeu, «sofrem igual lei e destino.» Ha certa diferênça, ha ordens e gráus, mas acham-se sob o aspecto duma única e igual natureza.»
Depois de Montaigne, é Pedro Gassendi que repete as lições de Plutarco, enquanto medita a Vida e Moral de Epicuro que sabiamente traçou, encontrando, como este, «o bem supremo, summum bonum» no seu pequeno jardim. E logo após a sua morte, dentro de poucos anos, nasce Hecquet que por sua vez, no seculo XVII vinha acrescentar à Bíblia Vegetariana páginas definitivas.
A êsse notável reformador da arte médica parecia «incrível a soma de prejuizos que se deixaram trabalhar em favor da carne, quando tantos factos se opõem à pretensa necessidade do seu uso». Renova todo o argumento fisiológico contra a dieta carnívora e, citando numerosos exemplos de homens eminentes e de nações que em todos os tempos a condenavam, observa com muito particular e inatacável sagacidade que «está provado que não é difícil sustentar sem carne os animais que vivem de carne, enquanto é quási impossível alimentar com carne aquêles que vivem ordináriamente de substâncias vegetais».
Grande época de moralistas, o seculo XVII não deixaria escapar sem reflexão os problemas morais da dieta, e de facto os julgou com a severidade que uma sã moral reclama. Onde se insinuarem sentimentos de simples justiça, à parte mesmo toda a exaltação religiosa ou qualquer frouxa inspiração de poesia, logo a baixeza do carnivorismo será apontada e castigada como infração de princípios supremos.
Bernardo de Mandeville, que nasceu em 1670, comenta nestes belos termos os hábitos carnívoros que ao tempo deveriam estar em plena expansão entre nobres e gente abastada:
«Muitas vezes pensei que, se não fosse pela tirania que o costume exerce em nós, os homens duma natureza [19] medianamente boa nunca se reconciliariam com a acção de matarem tantos animais para seu sustento quotidiano, enquanto a liberalidade da terra tão abundantemente lhes faculta as delicadas variedades de vegetais. Sei que a razão nos provoca a compaixão mas frouxamente, e por isso não me admira que os homens sejam tão desapiedados com criaturas imperfeitas como o caranguejo, a ostra, a ameijoa e, em geral, todo o peixe, porque são mudas e o seu intimo e a sua configuração externa largamente diferem de nós. Para nós, exprimem-se ininteligivelmente, e por conseguinte não é de estranhar que a sua dôr não afecte o nosso entendimento que ela não alcança; pois coisa alguma nos move mais seguramente à piedade do que os sintomas de miséria que ferem imediatamente os nossos sentidos. Encontrei comovendo-se com o rumor que uma lagosta faz quando a espetam gente que com prazer mataria meia dúzia de aves.
«Animais perfeitos como as ovelhas e os bois, nos quais o coração, o cérebro, e os nervos diferem tão pouco dos nossos, e a separação do sangue e do espírito, os órgãos dos sentidos, e por consequência o próprio sentimento, são os mesmos que são em criaturas humanas, não posso imaginar como um homem que não esteja endurecido no massacre e no sangue póde vêr indiferente a sua morte e as agonias em que ela se consuma.
«Em resposta a isso, a maior parte das pessoas julgarão suficiente dizer que, tendo sido feitas as coisas para utilidade do homem, não póde haver crueldade em dar às criaturas o uso para que foram designadas. Mas tenho ouvido esta réplica, enquanto a natureza íntima de quem a deduz lhe acusa a falsidade da asserção.
«Se não foi criado num açougue, não haverá numa multidão um homem entre dez que por sua vontade escolhesse entre todas as profissões a de magarefe; e pergunto se sequer alguém matou pela primeira vez sem relutância uma galinha.
«Alguns não podem resolver-se a provar de quaisquer criaturas que tenham visto todos os dias e que conhessem quando estavam vivas. Outros não levam os escrúpulos alêm daquelas criaturas que viram todos os dias e conheceram enquanto vivas e lhes pertenciam. Outros limitam esses escrúpulos ás suas próprias aves, [20] e recusam-se a comer daquelas que sustentaram e cuidaram. Todavia, todos se alimentam, sem remorsos e de coração leve, de carne de caça, de carneiro e de aves quando foi comprada no mercado. Neste procedimento, imagino, transparece qualquer coisa como a consciência da culpa; parece que se esforçam por se salvarem da imputação dum crime (cujas ligações percebem) afastando de si quanto possivel a respectiva causa. E nisso descubro vivos sinais da primitiva piedade e inocência, que o poder arbitrário do costume e a violência da luxúria ainda não foram capazes de conquistar.»
Por êste mesmo tempo de Bernardo de Mandeville, no período tão fecundo de renovação religiosa e filosófica que vai do meiado do século XVII ao meiado do século XVIII, o respeito da vida dos animais inferiores encontrou invariavelmente defensores convictos nos melhores espíritos da época. Wesley foi um dêsses e Pope, o célebre poeta inglez, recordando lições do «excelente Plutarco» que, dizia, «tinha mais impulsos de boa natureza nos seus escritos do que qualquer outro autor de que se lembrasse», repete-lhe os conselhos analisando e condenando os costumes sanguinários de então que, como hoje, passavam para o maior número por admirável destreza física e modos sãos e legítimos de existência moral e fisiológica.
«Não posso imaginar extravagante», escreveu Pope, «que o género humano seja, relativamente, menos responsável pelo mau uso do seu domínio sôbre as camadas inferiores dos seres do que o é pelo exercicio da tirania sôbre a sua própria espécie. Quanto mais completamente a criação inferior se encontra submetida à nossa fôrça mais responsáveis deveremos ficar pelo seu máu govêrno; por maioria de razão se deve considerar esta responsabilidade, visto que a própria natureza dos animais inferiores os torna incapazes de receberem em outro mundo qualquer recompensa dos máus tratos que sofrerem nêste. É de notar que os animais nocivos, com mais poderosas qualidades para nos fazerem mal, evitam naturalmente os homens e nunca nos ofendem senão provocados ou coagidos pela fome... Não parece fácil defender meramente por sport a destruição de qualquer coisa que tenha vida. Todavia as crianças são educadas nesta ideia e um dos primeiros prazeres é a licença de infligir penas a animais sem defeza. Mal nos [21] tornamos sensiveis ao que a vida é para nós, fazemos um passatempo de a roubarmos aos outros... Quando crescemos e nos fazemos homens, temos outra série de passatempos sanguinários, particularmente a caça. Não ouso atacar um divertimento que tem a sustentá-lo tal autoridade e costume; mas consintam-me que tenha a opinião de que a agitação daquêle exercício, com o exemplo e o número dos caçadores, contribue não pouco para resistir áqueles impulsos que a compaixão naturalmente sugere a favor dos animais perseguidos.»
«Mas se os nossos sports são destruidores, muito mais o é a nossa gula e duma fórma muito mais desumana. As lagostas assadas vivas, os porcos fustigados até à morte, as aves amanhadas, são testemunho da nossa luxúria. Aquêles que, na frase de Sêneca, repartem a vida entre uma consciência ambiciosa e um estômago enauseado, teem a justa recompensa da sua gula nas doenças que ela acarreta. Porque os selvagens humanos, como os outros animais bravios, encontram ratoeiras e venenos nas provisões da vida e enganados pelo apetite correm à propria destruição. Não conheço nada mais repelente do que o aspecto duma das suas cozinhas coberta de sangue onde se ouvem os gritos dos seres que expiram em torturas. Dá-nos a imagem da caverna dum gigante nos romances, juncada de cabeças dispersas e membros lacerados daquêles que a sua crueldade chacinou.»
Com tão bons guias, chegaremos ao humanismo do século XVIII que Rousseau e Voltaire consubstanciaram maravilhosamente.
Voltaire, no Dicionário filosófico, discorrendo sôbre a palavra carne, escreveu:
«Sabe-se que Pitágoras, que estudou com os brahmanes a geometria e a moral, adoptou a sua doutrina humana e trouxe-a para a Itália. Muito tempo a seguiram os seus discipulos: os célebres filósophos Plotino, Jâmblico e Porfírio, recomendaram-na e até mesmo a praticaram, posto que seja muito raro fazer aquilo que prégamos. A obra de Porfírio sôbre a abstinência de carnes animais, escrita pelo meiado do nosso terceiro século, é muito estimada dos eruditos mas não fez mais discípulos entre nós que o livro do médico Hecquet. É em vão que Profírio propõe para modelos os brahmanes e os magos persas de primeira classe [22] que tinham horror ao costume de engolfar nas suas entranhas as entranhas das suas criaturas. Não é seguido hoje senão pelos padres da Trapa. O escrito de Porfírio é dirigido a um dos seus discípulos, Firmus, que, diz-se, se fez cristão para ter a liberdade de comer carne e de beber vinho. Adverte a Firmus que abstendo-nos da carne e dos licores fortes conservamos a saúde da alma e do corpo, vivemos mais tempo e com mais inocência. Todas estas reflexões são dum teólogo escrupuloso, dum filósofo rígido e duma alma doce e sensível. Julgariamos ao lê-lo que êste grande inimigo da Igreja é um padre da Igreja. Considera os animais como nossos irmãos porque são animados como nós, porque teem os mesmos princípios de vida, porque teem, assim como nós, ideias, sentimento, memória, engenho. Só lhes falta a palavra. Se a tivessem, ousaríamos matá-los e comê-los? Ousaríamos cometer fratricídios? Qual é o bárbaro que poderia assar um cordeiro, se êsse cordeiro nos conjurasse por um discurso comovedor a que não fôssemos ao mesmo tempo assassinos e antropófagos? Este livro prova pelo menos que entre os gentílicos houve filósofos da mais austera virtude; mas não conseguiram prevalecer contra os magarefes e os glutões. A gula, o jôgo e a preguiça baniram do mundo toda a virtude.»
Ao mesmo tempo que Voltaire, Rousseau fazia suas as ideias de Plutarco sôbre o regime alimentar; e proclamando-as com a violência habitual do seu carácter, com aquela mesma impetuosidade que incansavelmente empregou em fustigar a depravação do seu tempo e em incitar a uma regressão salutar ao contacto e à simplicidade da natureza, inscreveu o vegetarismo entre os artigos da nova fé. Sobretudo na educação da criança quer que rigorosamente o vegetarismo prevaleça porque uma das provas de que o sabor da carne não é natural ao homem é a indiferença das crianças por este gênero de alimento e a preferência que elas dão aos alimentos vegetais como as sopas, as massas, os frutos, etc.[B] É de suprema importância que [23] não se lhes desnature o gôsto primitivo e não se tornem carnívoras, senão por motivos de saúde, pelo menos por causa do carácter. Porque, seja qual fôr a explicação da experiência, é certo que os grandes comedores de carne são, em geral mais cruéis e ferozes do que os outros homens. Esta observação é verdadeira em todos os lugares e em todos os tempos. É bem conhecida a grosseria inglesa. Os gauros, pelo contrário, são os mais gentis dos homens. Todos os selvagens são crueis, e não é a sua moral que os leva a isso; a sua crueldade provém do seu alimento. Vão para a guerra como para a caça e tratam os homens como tratam os ursos. Mesmo na Inglaterra os magarefes não são admitidos como testemunhas legais, assim como os cirurgiões. Os grandes criminosos endurecem-se para o assassinio bebendo sangue. Homero representa os ciclopes, que eram carnívoros, como homens terríveis, e os lotófagos como um povo tão doce que mal alguém tinha comércio com êle, logo esquecia tudo e a sua pátria para viver com êle... Já se viu alguém aborrecer o pão e a água? Veja-se o cunho da Natureza! Veja-se aí pois uma regra de vida. Conservemos na criança pelo mais largo tempo possível o seu gôsto primitivo; deixemos que o seu alimento seja simples e vulgar; façamos que o seu paladar sómente se familiarize com os aromas naturais e que não se forme gôsto algum exclusivo... Algumas vezes observei a gente que dá importância a viver bem, que pensa, mal acorda, no que ha-de comer durante o dia e descreve um jantar com mais exactidão do que Políbio usa na descripção duma batalha. Pensei que todos esses chamados homens eram apenas crianças de quarenta anos, sem vigor e sem consistência. A gula é o vício das almas que não teem fundo. A alma do glutão está no seu paladar. Veio ao mundo para devorar. Na sua estúpida incapacidade, só à mesa está à vontade. A sua capacidade de julgar limita-se às suas iguarias.»
Um Shelley, um Lamartine, um Michelet ou um Gleizès tiveram na verdade bem desbravado o terreno para deixarem [24] voar livres os seus sonhos duma nova existência toda de pureza que aborrecesse a carnificina e o sangue onde quer que os encontrasse, na floresta, no lar ou no campo da batalha, e sómente alimentasse o corpo e a alma nos inocentes e perfumados frutos da terra. O desenvolvimento do vegetarismo no século XIX, a discussão e consolidação da sua doutrina e o derramamento da sua prática, não serão já a aspiração de gênios privilegiados mas o patrimônio comum de milhares e milhares de espíritos esclarecidos e de corações exaltados em amor. Convinha que assim acontecesse, desde que uma vaga de libertação da humanidade, sem precedentes na história, nos punha deante de Deus, da natureza e do dever desprendidos de todo o estôrvo da opressão do costume e das tiranias sectárias. Mas não será em vão que os mais bem inspirados combatem pelo advento do novo reino. A liberdade de proceder não significa o domínio e a supressão da ruindade. O que nesse campo havia e ha a conquistar e é o legado funesto de gerações sôbre gerações de crueldade, é infinito. O que se conquistou é minimo relativamente ao que importa conquistar.
Por isso um homem como Wagner descerá do altíssimo pedestal a que o próprio talento e a fama o ergueram e virá com os mais humildes exortar os infieis e os ignorantes a iniciarem a sua redenção no vegetarismo.
Lichtenberger, no seu excelente estudo de Ricardo Wagner como poeta e pensador, expõe-nos nestes termos as ideias daquêle soberbo gênio sôbre o vegetarismo, particularmente sôbre a importância que ele lhe atribuia na regeneração física e moral das sociedades humanas.
A citação será longa mas convém que se faça, é indispensável, aponta dados primaciais do problema:
«Se consideramos primeiro a evolução humana como fenômeno fisiológico, verificamos, segundo Wagner, que duas causas trouxeram a degeneração da raça branca: a má alimentação, que do homem primitivamente frugívoro fez um carnívoro, e a mistura das raças que profundamente alterou o temperamento primitivo e as virtudes hereditárias dos antigos arias. Estas duas causas tem por efeito uma alteração do próprio sangue entre os povos modernos e em particular no povo alemão, alteração que deve ser considerada como a razão fisiológica, como o princípio [25] inicial da corrupção profunda que hoje aparece no seio das nações europeias.
«O homem natural, inocente e feliz, de que Wagner traçara outrora a imagem ideal no seu moço Siegfredo, não mais se concebe agora (nesta época da sua vida) sob as linhas do germânico belo e vigoroso, sempre pronto para a guerra e para as aventuras, belicoso pelo prazer de medir suas fôrças com os rivais, e inacessivel ao temor. É agora o índio dos tempos primitivos, o índio morigerado e reflectido por uma religião de suavidade: «Uma natureza generosa lhe oferecia o que era necessário para satisfazer as necessidades da vida; a vida contemplativa, a meditação séria podia levar estes homens, livres de todo o cuidado da sua sustentação, a reflectirem profundamente sobre a natureza deste mundo onde, como a experiência passada lhes havia mostrado, reinava a indigência, o cuidado, a dura necessidade do trabalho e mesmo da luta e do combate para a posse dos bens materiais. Ao brahmane, possuído do sentimento de ter em certo modo entrado em uma vida nova, o guerreiro parecia-lhe necessário como guarda da segurança exterior e por esta razão tambêm digno de piedade; o caçador, pelo contrário inspirava-lhe um horror profundo e o carrasco dos animais domésticos parecia-lhe inconcebível». Estes homens de costumes tão doces sabiam todavia dar provas duma fôrça dalma sem igual, quando disso era ensejo próprio: nenhuma tortura, nenhuma promessa pôde jámais obriga-los a renunciarem á sua fé religiosa; e Wagner cita com admiração a história comovente de tres milhões de indios que, por ocasião duma fome causada pelos especuladores ingleses, preferiram morrer de fome a tocar nos seus animais domésticos. Mas o homem primitivo, vegetariano e manso, que recusa derramar o sangue dos seus semelhantes e o dos seus irmãos inferiores, os animais, degenera pouco a pouco sob a pressão das circunstâncias exteriores. Transportado, no correr das emigrações, para climas menos clementes, torna-se caçador e carnívoro, para escapar á fome; aprende a alimentar-se com a carne dos animais domésticos. Desde os primeiros tempos da história, vemo-lo transformar-se assim em um animal de prêsa ávido de sangue e por fim deleitando-se em matar, não só para satisfazer a fome mas pelo prazer de matar. Este animal de prêsa conquista vastas províncias, [26] subjuga raças frugivoras, funda por guerras sucessivas grandes impérios, dita leis e cria civilizações para gozar em paz da sua rapina, Hoje é mais perigoso e mais sanguinário do que nunca; aperfeiçoou dum modo terrível os engenhos de destruição, exgota-se em armamentos estéreis e vive num estado de paz armada periodicamente interrompida por carnificinas medonhas. Depois, ao lado do homem de prêsa militar desenvolveu-se no correr dos séculos o homem de prêsa especulador, tão de temer e tão mortífero posto que menos bravo do que o primeiro, e cuja acção devastadora se exerce sem interrupção sobre a massa do povo que êle votou á miseria e à ruina. Mas se o homem de prêsa domina o mundo como a fera reina na floresta, é como ela degenerado: «Do mesmo modo que o animal de prêsa não prospera, diz Wagner, do mesmo modo vemos o homem de prêsa vitorioso finar-se lentamente. Por causa do alimento contra a natureza que êle usa, é vítima das doenças que só nêle aparecem, e nunca alcança nem o termo normal dos seus dias nem uma morte doce: sob o aguilhão de sofrimentos e de torturas que só êle conhece e que lhe ferem o corpo como a alma, apressa-se através duma vida de agitações vãs, para um fim sempre terrível».
«Mas do mesmo modo que o homem primitivo, colocado em circunstâncias desfavoráveis, teve de trocar a alimentação vegetal pela alimentação animal, do mesmo modo poderá, quando tiver consciência da sua miseria e souber reconhecer como seus todos os sofrimentos dos homens e dos animais, voltar por um esforço de vontade a uma alimentação exclusivamente vegetal. Só por tal preço póde esperar a regeneração. Assim não se deixará desanimar nesta empresa por nenhuma dificuldade de ordem prática. Wagner considera como uma verdade experimental demonstrada que o homem pode amoldar-se a um regime vegetariano em todas as latitudes. Mas não hesita em declarar que no caso em que se reconhecesse a necessidade duma alimentação animal nos climas do norte, as raças superiores deveriam emigrar sistematicamente para regiões mais favorecidas do sol. Desde já considera como instituições de salvação as ligas de vegetarianos, as associações para a protecção dos animais e as associações de temperança que procuram libertar o homem da tirania medonha do álcool. Quando estas associações fracas, desprezadas e hoje um [27] pouco ridículas, tiverem mais inteira consciência do fim sublime que teem em vista e se apresentarem ao público não como modestos apóstolos dum mediocre pensamento utilitário mas como os missionarios da doutrina da regeneração, poderão tornar-se os instrumentos eficazes da redempção do mundo moderno.»
Eis aí o que Wagner pensava do vegetarismo, da alta missão social que lhe está guardada e da influência fundamental que tem na moralidade das raças. E pronunciando o seu nome desnecessário se torne lembrar em que assombrosas faculdades esta doutrina encontrou protecção e impenetrável escudo.
Acrescentemos ainda a essa voz de excepcional poder mais um depoimento. É o de E. Réclus.
O seu talento, o seu saber, os seus infinitos conhecimentos da terra e dos homens as suas virtudes morais, a sua sinceridade, a sua inteireza e a sua coragem que ele sujeitou às mais crueis provações e que de todas sairam vitoriosas, a sua própria experiência do vegetarismo que praticou durante mais de sessenta anos consecutivos e que não o impediu de morrer com mais de oitenta duma vida de trabalho infatigável e de ardente apostolodo, todas estas e muitas outras circunstâncias congêneres lhe dão um lugar privilegiado que convém respeitar, não por sua glória que do nosso humilde respeito não carece, mas por nosso interesse que do seu conselho não póde prescindir.
«Não era químico nem doutor», confessa, «não mencionará nem o azote nem a albumina, nem reproduzirá as fórmulas dos analistas mas contentar-se-á simplesmente dizendo as suas impressões pessoais que de resto coincidem com as de muitos vegetarianos.» Foi virtualmente um vegetariano desde criança. Uma pessoa de familia mandou-o um dia ao açougue buscar um pedaço de carne, e perante os horrores que lá viu, desmaiou. Ouvia que o dono do talho o trouxera a casa sem sentidos. Foi esse o seu baptismo vegetariano. Não o aprendeu nas academias, nos hospitais ou nos laboratórios. Nasceu-lhe no coração.
«Cada um de nós», diz Réclus, «especialmente aquêles que viveram em um canto da província, muito longe das cidades vulgares ordinárias, onde todas as coisas estão metodicamente classificadas e disfarçadas,--cada um de nós tem visto alguma coisa dessas barbaridades cometidas pelos [28] que comem carne contra os animais que êles comem. Não ha necessidade de ir a nenhuma Porcopolis da América do Norte ou a uma saladera de La Plata, para contemplar os horrores dos massacres que constituem a condição primária do nosso alimento quotidiano. Mas estas impressões gastam-se com o tempo; cedem perante a perniciosa influência da nossa educação de todos os dias, que tende a arrastar o indivíduo para a mediocridade, e o despoja de quanto concorra para o tornar uma personalidade original. Pais, mestres, por oficio ou por amizade, doutôres, para não falar desta poderosa individualidade que chamamos toda a gente, todos trabalham juntos para endurecerem o carácter da criança com respeito a êste «alimento de quatro pés» que, todavia, ama como nós amamos, sente como nós sentimos, e sob a nossa influência progride ou retrocede como nós... Não é uma digressão mencionar os horrores da guerra em conjunção com o massacre dos gados e os banquetes carnívoros. A dieta dos indivíduos corresponde exactamente aos seus modos. O sangue pede sangue. Nêste ponto, quem rememorar as suas lembranças daquêles que tem conhecido, encontrará que não póde haver dúvida possível quanto ao contraste que existe entre os vegetarianos e os grosseiros comedores de carne--ávidos bebedores de sangue--na amenidade dos seus modos, na gentileza de disposição e regularidade de vida. É certo que estas qualidades não são muito apreciadas daquelas pessoas superiores que, não sendo de fórma alguma melhores que os outros mortais, são sempre mais arrogantes e imaginam que acrescentam a sua importância depreciando os humildes e exaltando os fortes. Para elas, doçura significa fraqueza: os doentes são um tropêço, e seria caridade varrêl-os do caminho. Se não forem mortos, deve-se pelo menos deixar que morram. Mas é justamente esta gente delicada que resiste á doença melhor do que os robustos...
«Seja porém como fôr, apenas digo que para a grande maioria dos vegetarianos a questão não é se os seus biceps e triceps são mais sólidos do que os daquêles que comem carne, nem se o seu organismo está mais apto a resistir aos riscos da vida e às contingências da morte, não é isso o mais importante; para eles o ponto importante é o reconhecimento dos laços de afeição e bôa vontade que unem o homem aos chamados animais inferiores e a ampliação até [29] êsses nossos irmãos do sentimento que já pôz termo ao canibalismo êntre os homens... O cavalo e a vaca, o coelho e o gato, o gamo e a lebre, o feisão e a cotovia, são-nos mais agradáveis como amigos do que como comida. Queremos conservá-los ou como respeitados companheiros de trabalho ou simplesmente como companheiros na alegria da vida e na amizade.»
E, chegado a êste ponto, seja-me permitido prescindir das restantes testemunhas que são ainda dezenas e dezenas dos que deixaram o rasto marcado na história da civilização. Prescindo de depoimentos preciosos, prescindo, por agora, da sanção do vegetarismo pela autoridade de individualidades tão altas como, por exemplo, Leão Tolstoi, para o qual o vegetarismo é o primeiro passo, ou como êsse outro proféta de alêm-mar, Henrique David Thoreau que julgava «um benfeitor da sua raça» aquêle que ensinasse os homens a limitarem-se a uma dieta mais inocente e salutar do que aquela miserável de degolar cordeiros». Não ignoro que riquezas de elucidação e de exemplo deixo de usar, nem o faço sem mágoa. O meu desejo e o interesse da causa a que tão sinceramente consagro os meus pobres esforços, seria repetir linha a linha e gravar na memória dos que me escutam esse admirável breviário de Howard Williams que tem por titulo A Etica da Dieta e ao qual fui beber a maior parte de aquilo que aqui reuni e coligi. Mas o que deixo apontado será por ventura o bastante para a demonstração da tése que me propus defender; e a necessidade de concluir este primeiro ponto das minhas considerações não permite que mais me alongue na apresentação dos documentos em que se fundam.
Disse que o vegetarismo tem os seus pergaminhos, que possue títulos autênticos de nobreza. Provam-no os documentos que apresentei. A história da civilisação registou-lhe a antiguidade; e as virtudes e os merecimentos dos homens eminentes que o serviram pela palavra e pelo exemplo são garantia da sua excelência.
[30]Quid inde? Com que direitos e por que trâmites se criou essa nobreza e por que razões ha-de persistir em nossos dias?
Consideremos por um instante os momentos em que a defesa e a prática do vegetarismo se mostraram mais calorosas, mais acentuadas nas afirmações e mais disseminadas na acção. Imediatamente se nos revelará o seu carácter e a sua influência na moralidade das raças.
Aparece-nos primeiro o vegetarismo, claramente definido e apregoado como mandamento essencial de bem viver, na escola de Pitágoras, na aurora do helenismo, quando ele começou a ter consciencia dos seus destinos e a meditar lucidamente nas responsabilidades do homem perante a vida universal.
Renova-se seis séculos mais tarde com Plutarco, quando uma pausa nas disputas do mundo sucedendo à amálgama de diferentes raças e diversíssimas aspirações religiosas em uma só e nova civilização permitiu aos homens que interrogassem o seu íntimo e conhecessem o que queriam da terra e o que lhe deviam, que fins e obrigações os encaminhavam e prendiam.
Pouco depois encontramo-lo em Alexandria onde Porfírio e a pléiade de filósofos que naquelas terras meditava a experiência de quasi dez séculos de vida social intensa investigavam as consequências que de aí derivavam para a compreenção d'este pequenino ser que é o homem.
Escurece-se na pulverização do império romano, enquanto o tumulto das guerras e a poeira do desabar de ruinas não consentiam parança em que os problemas morais da nossa vida se traçassem e solvessem. Mas logo a breve trecho eis renascido com Montaigne o vegetarismo em toda a sua pureza e formosura porque se reatava o fio perdido e quebrado da cultura antiga. Acaricia-o em seguida o humanismo do seculo XVIII, até que no seculo XIX lhe abrem de par a par as portas da cidade e porventura lhe dão ingresso no templo os mais venerandos levitas da redenção humana.
Isto é--sempre que as sociedades europeias poderam pelo gráu de cultura que atingiam ouvir a voz da consciência moral e prestar obediência aos seus ditames, o vegetarismo surge e impõe-se como uma lei a que não é permitido esquivar-nos, sob pena de ignominiosa traição do dever [31] e de crueis remorsos. Não é outra a lição da história sôbre esta doutrina, nem outra póde ser a interpretação das vicissitudes por que tem do passado, dos entusiasmos que despertou, e dos ódios que o perseguirem e da irrepressível expansão que em nossos dias o propaga. É um fenômeno da consciência moral, invariavelmente presente onde quer que a consciência moral assista, seu filho e servo. Não é um devaneio filosófico, questão de sistema ou de lógica, é um acto de religião.
Por isso teve e tem inimigos, porque não póde dominar sem offender crenças arreigadas e potestades criadas, sem sobretudo escandalizar esse «poder arbitrário do costume e a violência da luxúria» de que falou Bernardo do Mandeville e que encontram na fé vegetariana como uma acusação dos seus crimes e uma ameaça de abolição contra as quais se revoltam.
Singular coincidência! Os apóstolos do vegetarismo não mereceram em regra as boas graças dos poderes politicos constituídos. São aborrecidos de todos os despotismos. Sendo o vegetarismo uma doutrina de amor, porventura é odiada de toda a opressão e egoismo. O certo é que os discípulos de Pitágoras foram perseguidos; Ovídio foi desterrado e Sêneca foi condenado à morte e os cataros sofreram da igreja católica as mais bárbaras crueldades.
Na verdade, significa uma profunda revolução moral com todas as consequências sociais que necessáriamente importa. Como tal o devem considerar os que o seguirem, armando-se com a coragem indispensável para afrontarem todas as penas e riscos d'uma revolução. Se os nossos tempos não toleram martírios, nem por isso pódem prescindir de tenacidade e firmeza d'animo onde uma grande aspiração se proposer conquistar o seu lugar no mundo.
A tarefa será tanto mais árdua quanto é certo que o vegetarismo se vê enleiado e combatido por tradições terríveis.
Toda a nossa civilização é filha da civilização romana. Dela viemos e na realidade nela nos mantemos; quanto julgamos progresso não é mais do que o natural desenvolvimento das bases em que ela se fundou. A nossa estrutura mental como a nossa estrutura econômica, como, sobretudo os nossos problemas sociais, tudo é a repetição e a ampliação em volume e complexidade do que o romano sentiu, criou e nos legou.
[32]Ora, não nos iludâmos; não há talvez pior inimigo do vegetarismo do que a cultura latina. Compare-se a civilização latina com as civilizações orientais e a superioridade moral destas últimas imediatamente se nos mostra com evidência. A intemperança, a gula e a crueldade foram vícios caraterísticos do mundo romano, que na escala dos valores morais o deixaram inferior, não já à puresa do budismo, que com êsse o confronto é inadmíssivel sôb êste aspecto, mas até mesmo à sobriedade e frugalidade do grego, de cuja civilização descendia em linha recta. Aos banquetes de Luculo correspondiam as atrocidades do circo, tal qual como agora a uma hecatombe de vitelas e aves corresponde a embriaguez das touradas. Por todos os lados corre igualmente a jorros o sangue inocente dos mansos animais e nêles se deleitam o nosso ventre, o paladar e os olhos. Parece que há mais de vinte e cinco séculos a nossa raça vive sôb um anátema irrevogável de crueldade, tanto mais pungente quanto é clara a consciência da maldição que nos atormenta.
Catão, o Censor, diz-nos como orgulhoso do feito que, quando foi cônsul, deixou na Espanha o seu cavalo de guerra para aliviar o tesouro público dêsse encargo. E Plutarco, referindo o facto, acrescenta:--«Se tais coisas são exemplos de grandeza ou de mesquinhez de alma, o leitor que o julgue.»
São exemplos de mesquinhez; sentia-o o historiador tão bem como nós o sentíamos. Mas a enfermidade persiste e até hoje não podemos vencê-la e sob o seu deprimente influxo nos arrastamos. O catonismo tornou-se senão um título pejorativo, pelo menos um estigma de desumanidade. Mas nem por isso condenando-o em palavras, banimos o catonismo dos nossos corações e deixamos de sacrificar á sua desapiedade soberba tanto os homens nossos irmãos como os animais a que as demências da nossa vaidade passaram diploma de inferioridade.
Dobramos o cabo das Tormentas, escravizámos o índio, e ameaçando a terra, o mar e o mundo, tudo calcámos victoriosos e em nossos triunfos nos glorificámos. Se porém me fosse dado escolher entre a sorte do vencedor e a do vencido, diria, com pena de incorrêr em acusação de traição ao amor da pátria, que a todas as nossas glórias, que são muitas, sem embargo, e brilhantes, eu preferiria que como [33] na Índia do seculo XVIII, trez milhões de portuguezes tivessem a coragem, que o índio teve, de preferirem morrer de fome a matar os animais seus companheiros e seus servos e amigos.
Não sei de maior grandeza na história. Não sei de exemplo de mais sublimada moralidade duma raça, de mais grandiosa, perfeita e absoluta imolação ao amor, a este amor que é a essência da vida, a razão de ser da nossa existência, o padrão único por que se póde aferir a grandeza humana, «o comêço de todo o pensamento digno d'este nome» na feliz expressão de Carlyle.
Heroísmo por heroísmo, o d'esses vencidos que maltratámos, foi infinitamente superior às façanhas militares de que tanto nos orgulhamos.
Se porêm o vegetarismo fôsse incapaz de captivar os homens de inteligência lúcida e coração recto só pelo seu valor moral absoluto, pelo que representa como signal da mais alta concepção moral das relações do homem com o universo e particularmente com os seres vivos que nos cercam, não poderia deixar de persuadir os mais rebeldes pela sua influência directa, imediata, como mecânica, na dissipação de flagêlo que presentemente é o maior e mais terrível dissolvente da moralidade das raças--o alcoolismo.
Não é êste o ensejo de nos ocuparmos de semelhante calamidade para afastar a qual todo o esfôrço será pouco. Mas ninguém d'olhos abertos e medianamente preocupado com a vida das sociedades e a sua fortuna poderá deixar de reconhecer com J. Reinach que, «se a questão do alcoolismo não é toda a questão social, é a mais terrível e a mais grave das questões sociais.»
O que a êsse respeito se passa em o nosso país, não o sei eu. Suponho que será tremendo, a julgar por aquilo que casualmente encontro a cada passo na vida quotidiana, pelo que vejo nas ruas e em todos os ajuntamentos dos dias de descanso, pelo que se ouve nos tribunais onde quási não há crime de violência contra as pessôas que não seja [34] cometido sob a acção próxima ou remota do álcool, pelo movimento dos hospitais onde sob inumeráveis fórmas essa desgraça vai pedir socorro e o mais das vezes acabar.
Não o sei. As estatísticas do nosso país são menos do que incompletas ou deficientes a tal respeito; são nada. Parece que tememos saber toda a verdade e preferímos afundar-nos em cegueira total e em criminosa indiferença, embora o exemplo dos demais países nos assegure que não é assim que cada um cumpre o que deve à pátria, à humanidade e à consciência.
Mas conheço um pouco e de verdade certa o que se passa imediatamente em volta de mim, no lugar que habito, e isso basta para me aterrar infundindo-me no espírito as mais lugubres preocupações sobre o futuro da nossa raça.
Pelas estatísticas municipais corrigidas por quem por longa experiência conhece o movimento dos impostos, Aveiro com os seus 10:000 habitantes deverá ter consumido em 1911 (numeros redondos):
1.041:000 litros de vinho comum.
7:500 litros de vinhos licorosos.
11:000 litros de agua-ardente.
Isto equivaleria na mais benigna hipótese a uma despeza de 50 contos de reis e a um consumo de álcool puro de 7,5 litros por habitante, pelo menos. Se nos lembrarmos da soma de mulheres e crianças que se acha incluída nos 10:000 habitantes do total da população da cidade, poderemos fazer uma vaga ideia das percentagens extremas que deve atingir o consumo para os consumidores efectivos e tambêm da precipitação de decadência física, moral e econômica que está minando a raça.
Ora eu não posso crêr que Aveiro seja um lugar de maldição no país. Pelo contrário, inclino-me antes a pensar que será uma das terras do país menos desmoralizadas não só neste ponto mas em absoluto. E sendo assim, como tudo leva a crer, poderemos bem imaginar por este minúsculo exemplo em que inferno estamos vivendo, a que penas estamos sujeitando os nossos filhos e o futuro da nossa pátria, que tremendas responsabilidades de ignomínia e de traição não estamos tomando perante a história, porque outra traição mais infame eu não conheço do que aquela que resulta no aviltamento físico e moral dos nossos filhos.
Salvação, se a póde haver, e sem dúvida a haverá [35] porque assim o teem demonstrado os países mais adeantados do que o nosso que conscientes do mal não descansam em lhe acudir com todos os preservativos e remédios que a experiência lhes vai aconselhando, a salvação terá de começar pela propagação do regime vegetariano que em semelhante missão, sem se degradar e antes acrescendo as virtudes, passará d'um dever moral imprescindível a uma utilidade social de primeira grandeza.
«Basta a questão do álcool para que o problema da dieta seja digno da atenção de todos os homens que amem a pátria», escreveu Russel no seu belo livro Strength and Diet, hoje um clássico. Se o vegetarismo é o primeiro passo, na opinião de Tolstoi, para a disciplina da nossa vontade na obediência religiosa, é simultaneamente a primeira regra para nos salvar da decadência do corpo e do espírito nêsse embrutecimento do álcool como Tardieu lhe chamou, resumindo em uma só palavra as consequências de tal processo de envenenamento dos homens e das raças. Porque qualis enim esus, talis est potus; tal comida, tal bebida. Assim o disse ha longos séculos Tertuliano meditando nos trâmites da vida religiosa, buscando os caminhos por que a santidade se alcança; e a sciência dos nossos dias não desmentiu as lucubrações do teologo. Pelo contrário, absolutamente as confirmou.
Hoje, como então, a carne e o vinho são companheiros e cúmplices nessa embriaguez do nosso sangue e da nossa alma que nos conduz aos infernos de todas as demencias e abjecções.
O seu processo na desmoralização das raças é sabido. A atrofia de consciência que é o invariável resultado de todas as intemperanças da gula começará por ser acidental e transitória na sua victima, para em seguida se tornar permanente, constante, ininterrompida por virtude de repetição, e para finalmente se transmitir por hereditariedade a toda a descendência, por isso mesmo que se tornou verdadeiramente constitucional e orgânica.
É n'esta operação de aviltamento da nossa raça que o carnivorismo está colaborando activamente. Combater pelo vegetarismo é combater o alcoolismo na sua maior fortaleza.
Dos resultados que os nossos esforços, poderão ter em uma tal calamidade dizem as lições que os países [36] estrangeiros nos facultam. Um só exemplo invocarei. Há cerca de cincoenta anos a Suécia tinha uma taberna por 100 habitantes e a Noruega uma por 200. Hoje a Suécia tem uma taberna por 5:000 habitantes e a Noruega uma por 9:000. E isto que é gigantesco como capacidade de redenção dum pôvo, não foi a obra do acaso; foi o produto do método, sistema e energia de vontade que todas as terapêuticas aproveitou. Não se é uma nação civilizada e digna por menor preço.
[37][A] Na verdade, os processos de cosinha carnívora não são outra coisa senão processos de corrupção; o alimento será tanto mais saboroso quanto mais perfeitamente se lhe houver dissipado a exalação fetida primitiva. Qualquer dama de mãos mimosas que trinca com delicia uma costeleta coberta de pão e embalsamada em loiro, em cravo, em salsa, em cebola, pimenta e limão, empalidece de nausea sentindo o cheiro do açougue, considera imundicie um pedaço de carne crúa nos seus vestidos e foge mais depressa da praça do peixe do que da montureira que aduba a horta.
Pelo contrario, na cosinha vegetariana o esmero e a perfeição consistem em conservar inalteravel o sabor proprio de cada alimento. Ninguem jámais teve o capricho de querer cosinhar maçãs para saberem a loiro ou feijões para cheirarem a salsa.
[B] Não acontece isso sómente com as creanças. Na gente do povo, creança tambem pela vitalidade dos instintos primitivos, mostra-se claramente a mesma tendencia. Muitos e muitos que seriam incapazes de roubar de qualquer salgadeira uma grama de toucinho, não resistem á tentação de se aproveitarem do primeiro cacho de uvas que lhes esteja á mão. Os assaltos ás hortas e pomares são frequentes, e de tal forma isso parece estar na ordem natural que grande numero dos homens rudes não lhes associa nem de longe a noção do crime. Longos seculos de corrupção da dieta não conseguiram atrofiar essas tentações d'uma atiguidade biblica, as mesmas que desgraçaram Adão e Eva.
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