The Project Gutenberg eBook of O Infante D. Henrique e a arte de navegar dos portuguezes

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Title: O Infante D. Henrique e a arte de navegar dos portuguezes

Author: Vicente de Almeida de Eça

Release date: February 6, 2008 [eBook #24533]

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Imprensa Nacional, 1894

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O INFANTE D. HENRIQUE E A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES ***

COMMEMORAÇÃO DO CENTENARIO HENRIQUINO


O INFANTE D. HENRIQUE

e

A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES



conferencia feita em 19 de fevereiro de 1894

no

CLUB MILITAR NAVAL

por

VICENTE M. M. C. ALMEIDA D'EÇA

capitão-tenente da armada, lente da escola naval


SEGUNDA EDIÇÃO

revista e augmentada com algumas notas


LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1894






O INFANTE D. HENRIQUE

E

A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES








COMMEMORAÇÃO DO CENTENARIO HENRIQUINO


O INFANTE D. HENRIQUE

e

A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES



conferencia feita em 19 de fevereiro de 1894

no

CLUB MILITAR NAVAL

por

VICENTE M. M. C. ALMEIDA D'EÇA

capitão-tenente da armada, lente da escola naval


SEGUNDA EDIÇÃO

revista e augmentada com algumas notas


LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1894









Vês aqui a grande machina do Mundo,
Etherea, e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto, e profundo,
Que é sem principio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo, e sua superficie tão limada,
He Deos; mas o que he Deos ninguem o entende
Que a tanto o engenho humano não se estende.


Camões Lusiadas, X, LXXX
.




Á memoria gloriosa
do
Infante Dom Henrique



«Oo tu principe pouco menos que devinal! Eu rogo a as tuas sagradas vertudes, que ellas soportem com toda paciencia o ffalecimento de minha ousada pena, querendo tentar hũa tam alta materya como é a declaraçom de tuas vertuosas obras, dignas de tanta glorya, cuja eternal duraçom, sob proveitosa fim, alevantará a tua fama com grande honra de tua memorya.»


Azurara, Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné, cap. II.





SENHORES E PRESADOS CONSOCIOS:


O Club Militar Naval, querendo solemnisar a celebração do quinto centenario do nascimento do Infante D. Henrique, o inclito iniciador das navegações e descobrimentos dos Portuguezes, entendeu que o melhor meio de commemorar essa tão gloriosa data, era reunir em algumas noites os seus associados para ouvirem uma serie de conferencias ou leituras sobre os assumptos mais importantes referentes ao Infante, ou que com elle e a sua obra tivessem relação; e para realisar essas conferencias dignou-se convidar diversos dos seus socios.

Honrosa, mas difficil incumbencia! Honrosa, porque, se é um dever de bons patriotas celebrar, sempre que a proposito venha, as glorias nacionaes, é uma honra que não póde recusar-se, o ser escolhido para porta-voz d'essa celebração; difficil, porque tendo de se fallar diante de uma assembléa de technicos e de sabedores, quasi se torna impossivel dizer-lhes cousas que não saibam, resumir-lhes estudos que não conheçam, suscitar-lhes idéas que já não tenham.

Mas, senhores, a «disciplina militar prestante», de que falla o nosso epico, e que na marinha portugueza é a tradição nunca desmentida da sua obediencia, manda-nos embarcar n'esta viagem, e não ha que replicar. Cada um de nós dirá o que sabe e como sabe, certo de que a tabella da vossa cortezia corrigirá os desvios da nossa insufficiencia. E nenhum de certo carece de maior correcção do que eu, a quem, sem que para isso tivesse merecimento, coube determinar o ponto de partida [10] e fazer o primeiro quarto, o quarto de prima, como se dizia na linguagem da antiga marinharia portugueza.

Larguemos, pois.





Os louvores do Infante D. Henrique e a apreciação dos actos que lhe valeram o cognome de Navegador, occupam grandissimo espaço na litteratura patria e estrangeira. Desde a Chronica de Azurara até aos Filhos de D. João I do sr. Oliveira Martins, é longa a lista dos escriptores que se têem occupado do Infante. Só modernamente, porém, é que se póde dizer fixada a determinação do seu valor, resaltando da téla da historia com tanta mais nitidez quanto é sabido que, nos ultimos tempos, criticos de certa escola cuidaram ver no quadro sombras e manchas, a que deram exagerado vulto; o que veiu a redundar em maior esclarecimento dos serviços prestados á patria pelo glorioso Infante.

Sem nos deixarmos, pois, offuscar por este sentimento de solidariedade que aos da nossa classe, melhor que a nenhuns outros, permitte apreciar os trabalhos do mar, podemos certamente distinguir na vida do Infante D. Henrique duas ordens principaes de factos: os que se referem ao membro da familia reinante de Portugal, filho, irmão e tio de reis, e os que dizem respeito ao promotor das navegações.

Serão os factos da primeira especie menos brilhantes do que se deveria desejar? Haverá que apontar erros de entendimento ou de vontade, da parte do Infante, no desastre de Tanger ou nas intrigas de Alfarrobeira? Não cuido que isto não seja ainda materia para muita discussão. Mas o que certamente o não é, aquillo sobre que me parece não restar duvida, é a influencia do Infante nos destinos da nação navegadora, é a sua iniciativa enorme e absolutamente pessoal no commettimento dos «mares nunca d'antes navegados». Quer a escola critica, á qual ha pouco me referi, que D. Henrique devesse a um irmão, o celebre infante D. Pedro, notavel pelas suas viagens na Europa, a possibilidade de alcançar conhecimentos [11] cosmographicos e geographicos que de outra fórma não teria obtido, e sem os quaes nada poderia ter feito. Não duvido, antes o dou por provavel, se não como certo. Mas póde isto desfazer alguma cousa na concepção que se tem formado do Infante D. Henrique, como espirito coordenador d'essas informações e do tantas outras que por varios lados colligiu, director perseverante de todos os emprehendimentos e indicador seguro e consciente do caminho a seguir? Tambem o architecto não levanta por si só o edificio,―antes precisa da coadjuvação de muitos homens desde o humilde cabouqueiro ate ao estatuario insigne,―e comtudo é a elle que cabe a honra e primazia da construcção.

Das duas faces que offerece a historia do Infante D. Henrique, a que diz respeito ás navegações é, pois, a luminosa, e com tanta intensidade que deixa bem no escuro a outra, e de todo a faz esquecer. É por ella que o glorioso Infante é conhecido na historia, é essa que hoje celebrâmos com enthusiasmo de Portuguezes e de marinheiros.

Vejamos as suas mais salientes feições.





Quando, em 1415, o Infante D. Henrique regressou da conquista de Ceuta, o theatro do mundo physico certamente apresentava ao seu espirito uma scena de grande confusão: por um lado o que se suppunha ser a sciencia positiva geographica do tempo; por outro as lendas que quasi tinham fóros de verdades; por outro ainda os absurdos que a um espirito esclarecido se patenteavam, resultantes do combate entre essas lendas e as probabilidades de certeza.

Eram conhecidas ao tempo com mais ou menos exactidão, e com bastante imperfeição desenhadas nos portulanos: todas as terras da Europa com as ilhas proximas e os mares que as banham; a costa septentrional da África a começar no Cabo Não sobre o Atlantico e d'ahi até ás bôcas do Nilo: para o interior d'essa costa um tanto de terras até aos desertos; [12] a Palestina, a Syria, a Asia Menor, alguma cousa a um e outro lado do Caucaso e pouco mais. No resto da Asia sabia-se da existencia de varias terras, mas só vagamente se lhes marcavam as situações. Da Africa, para o sul do Cabo Não, diziam-se cousas contradictorias. A America sonhava-se porventura na lenda da Antilia. A Australia nem se sonhava. Ainda havia vagas indicações, ligadas a lendas, ácerca de diversas ilhas espalhadas pelo Atlantico. E tudo isto se figurava, para o vulgo pelo menos, em uma terra plana, porque a esphericidade do planeta teria como consequencia a existencia dos antipodas, o que se reputava absurdo.

E as lendas pullulavam, avultando entre ellas a do Mar Tenebroso, a do Equador inhabitavel e a do Preste João. Dizia-se por um lado: não se póde navegar muito para longe das costas que o Atlantico banha, porque a breve trecho se encontra a região das trevas perpetuas, onde o sol se apaga no occaso, povoada de ferozes monstros marinhos, agitada por medonhos e constantes temporaes, promptos a desfazer o fragil baixel que ousasse lá chegar; essa lenda vinha da antiguidade, e foi porventura preconisada pelos Arabes, que assim se desculpariam de não terem continuado nas suas navegações para o occidente. Por outro lado affirmava-se: é certo haver gentes para alem da linha equinoxional; mas n'esta e nas regiões que se lhe avizinham, os raios do sol incidem com tal força que tornam impossivel ali a vida humana, e impossivel, portanto, a communicação dos povos da Europa com os que habitam alem do Equador. E, contava-se ainda, ha bem longe da Europa, e d'ella separado por terras de infieis, o reino de um principe christão―o Preste João das Indias;―e anceiava-se por travar relações com esse irmão em crenças.

Tudo isto ouvia e sabia o Infante D. Henrique; de tudo isto se occupou provavelmente nas conversas que teve com os mercadores de Ceuta; d'estes e de outros problemas tratou naturalmente com seu irmão D. Pedro, o grande viajante por terra; e tudo excitava a sua curiosidade.

O desejo de saber é o grande incentivo do progresso das sciencias. Mas n'aquelle tempo o quadro da especulação scientifica [13] estava ainda imperfeitamente traçado, e mais do que esse desejo imperava de ordinario o espirito pratico do proveito material. Haveria proveito em resolver aquelles problemas geographicos? De certo. Se se descobrissem novas terras, ellas seriam occupadas por gente portugueza, quando fossem deshabitadas; seriam conquistadas, se pertencessem a infieis. Vislumbravam-se já productos ricos d'essas regiões, e d'ahi fontes de commercio remunerador. Por ultimo, mas não em derradeiro logar para as idéas da epocha, haveria mouros a converter, pagãos a trazer ao gremio da verdadeira religião, almas a conquistar para a fé christã.

Por tudo isto foi o Infante D. Henrique estabelecer-se no Algarve e designadamente em Sagres, ponta avançada sobre o Oceano, a quem parecia espreitar os segredos, e d'ali começou a lançar a vasta rede dos seus commettimentos, cujas ultimas malhas nem elle sabia ao certo onde iriam ter. Rodeou-se de homens experientes nas varias partes da marinharia, pilotos do Porto frequentadores da carreira de Flandres, marinheiros algarvios habituados á pesca do alto, mestres da construcção de naus nas tercenas de Lisboa, homens de Malhorca sabedores de astrologia e desenhadores de portulanos, porventura até mouros de Ceuta e de outras terras de Marrocos. De todos precisava, para de todos aproveitar o que sabiam, e melhorar consoante fosse necessario. Tal foi a chamada escola de Sagres, não um instituto de sciencias navaes, mas um convivio de conhecimentos diversos, em que todos eram a um tempo mestres e alumnos. Ahi se discutiram os problemas geographicos, e se traçaram os caminhos a tentar; lá se melhorou o instrumento para dominar o mar, passando se da barca e do barinel, ainda hoje problematicos, á caravella portugueza, o typo do navio dos descobrimentos no seculo XV; ali se corrigiram os portulanos, e se aperfeiçoou o seu uso para a navegação, quando mesmo não seja exacto que lá se inventassem as cartas planas[1].

[14] Relativamente á propria essencia do problema geographico, dois seriam os pontos principaes a resolver: quaes eram as terras para o sul do Cabo Não; se havia terras para o occidente das costas da Europa.

Ainda hoje é lição quasi geral que o descobrimento de Porto Santo e o das primeiras ilhas dos Açores foram devidos ao acaso. É sempre uma tempestade que leva um navegador, de regresso da costa de Africa, a encontrar-se fortuitamente com aquellas ilhas. Mas, pensando bem, parece-me evidente que os descobridores de Porto Santo, das Formigas e Santa Maria realisaram esses commettimentos porque a isso foram mandados pelo Infante D. Henrique. Pois não havia já vislumbres da existencia d'aquellas terras? E o Infante, conhecedor da lenda do Mar Tenebroso, não teria a peito destruil-a, por não acreditar n'ella, como não acreditava na do Equador inhabitavel?

Temos, pois, que o Infante D. Henrique procurou determinar a configuração exacta da Africa para alem do ponto onde ella era conhecida, e procurou ainda reconhecer as terras que existissem para o occidente. Estes eram, a bem dizer, os meios. Os fins eram: a acquisição de novos territorios para a Ordem de Christo, da qual o Infante era o Mestre, e consequentemente para Portugal; o desenvolvimento do commercio maritimo; a conquista de almas para a christandade.

Iria mais longe o ideal do Infante? Pensaria já na esphericidade da terra, no caminho por mar para a India, no aniquilamento do poder de Veneza, na espantosa grandeza do nome portuguez? É licito suppol-o. Em todo o caso foi da sua obra que resultaram todas essas consequencias, foi da sua iniciativa que saíu toda a vida externa de Portugal nos seculos XV e XVI, foi por ella que a Europa veiu a saber como era feito o mundo, e que o mundo veiu a conhecer-se todo. E quando, morto o [15] Infante em 1460, se tinha chegado na costa de Africa ás proximidades da Serra Leoa, e no Atlantico se tinham descoberto os archipelagos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, os successores do Navegador não tiveram mais do que persistir no systema por elle adoptado, para chegarem por um lado Bartholomeu Dias ao Tormentoso e Vasco da Gama á India, pelo outro Colombo á America e Magalhães ás ilhas do Pacifico.

Resumindo: o Infante D. Henrique iniciou e deu o grande impulso ao extraordinario movimento geographico do seculo XV; graças aos seus esforços tornou possivel o conhecimento do mundo, até então em grande parte velado aos olhos dos homens da Europa; pessoal e directamente dirigiu o descobrimento da extensa porção da costa africana e das ilhas que povoam o Atlantico septentrional; por esta fórma desenvolveu a arte de navegar e a construcção naval; abriu novos horisontes ao commercio portuguez; deu logar á manifestação do espirito colonisador dos nossos antepassados; augmentou o poder da Ordem de Christo; alargou o ambito da religião do Crucificado; n'uma palavra poz a pedra fundamental no edificio do Portugal maritimo.

Tal foi a obra portentosa que o Infante D. Henrique realisou.





Vasta é hoje, senhores, e complicada a sciencia do homem do mar. Quem sabe a serie de disciplinas que ao presente se exigem aos officiaes de marinha, os longos e aturados estudos de mathematicas e sciencias physicas que para ellas são preparatorios, mal poderá imaginar a simplicidade e rudeza dos conhecimentos de que dispunham os primeiros navegadores. Procurando cumprir o programma que deliniei, vou tentar resumir o muito que a este respeito haveria a dizer.

A historia dos diversos passos dados pelos Portuguezes na arte de navegar durante o periodo em que elles primaram na carreira dos mares, póde, parece-me, dividir-se em tres principaes capitulos, que marcam outros tantos progressos.

[16] O primeiro mostra a adopção das cartas planas, pondo-se de parte as geographicas. O segundo apresenta a invenção do astrolabio ou o seu aperfeiçoamento, e com elle a determinação da latitude pela altura do sol. O terceiro inclue a descoberta da variação da agulha e as tentativas para por meio da sua determinação achar a longitude. Se a isto accrescentarmos a descoberta do phenomeno dos ventos regulares e das monções, as primeiras investigações feitas sobre as correntes maritimas ou rilheiros, como lhes chama D. João de Castro, e ainda sobre outros assumptos, facil é de ver que todas as maravilhas da physica do mar e todos os problemas da navegação foram primordialmente tocados pelos mareantes portuguezes. Se lhes faltou a determinação das longitudes pela comparação das horas, prova-se por muitas passagens dos auctores que elles não ignoravam a theoria, mas apenas careciam do instrumento que podesse medir o tempo com a necessaria exactidão; e de todos é bem sabido que essa delicadeza de construcção só muito modernamente foi attingida nos chronometros, que aliás são instrumentos sujeitos á influencia de diversas circumstancias perturbadoras.





Sem remontar aos tempos anteriores á era dos descobrimentos, direi apenas qual era o estado dos conhecimentos nauticos na epocha do Infante D. Henrique.

Azurara, citando as invectivas do Infante contra as hesitações dos primeiros navegantes mandados a descobrir, falla nas opiniões de «quatro mareantes, os quaes, como são tirados da carreira de Flandres ou de outros alguns pontos para que commummente navegam, não sabem mais ter agulha nem carta de marear»[2]. Com estas breves palavras fixou Azurara o estado dos conhecimentos de navegação no começo dos descobrimentos. [17] E mais de um seculo depois João de Barros escrevia: «No tempo em que o Infante D. Henrique começou o descobrimento da Guiné, toda a navegação dos mareantes era ao longo da costa, levando-a sempre por rumo; da qual tinham suas noticias por signaes de que faziam roteiros, como ainda ao presente usam em alguma maneira, e para aquelle modo de descobrir isto bastava»[3].

Vê-se, pois, que a navegação dispunha de dois instrumentos apenas―a agulha e a carta de marear.

Da primeira tem sido até hoje baldado esforço dos investigadores determinar a verdadeira origem e data de invenção. Basta que saibamos que ella era geralmente conhecida na Europa na segunda metade da idade media e pelo menos desde o seculo XII. Quanto ás cartas, reproducção graphica do contorno das terras e da situação dos logares, se a idéa d'este artificio veiu, como é certo, desde a antiguidade classica, foi tambem só na segunda metade da idade média que ella se desenvolveu, quando os estados mareantes do Mediterraneo recomeçaram as navegações. Foram principalmente os Catalães e os Malhorquinos que a esse, como a muitos outros ramos das sciencias navaes, deram impulso; ácerca d'este assumpto póde dizer-se que o nosso visconde de Santarem, nos seus grandiosos trabalhos sobre a prioridade dos descobrimentos dos Portuguezes, quasi esgotou a materia.

Mas os mappas e portulanos empregados ao tempo em que o Infante D. Henrique começou a dedicar o seu espirito aos problemas que o occupavam, eram mais propriamente o que hoje chamâmos cartas geographicas do que cartas hydrographicas ou maritimas. É certo, que, mal definida ainda, e por muitos negada, a verdadeira fórma da terra, eram tambem por ventura desconhecidas da maioria dos cartographos quaesquer das theorias das projecções, a que hoje obedecem os diversos methodos do construcção das cartas geographicas. Estas reduziam-se, portanto, a um debuxo levemente approximado da [18] realidade; mas com isto se contentava a navegação do tempo, visto que ella se fazia quasi absolutamente á vista das costas. Que, a bem dizer, tudo nos leva a suppôr que n'esses primeiros arreboes da navegação moderna, os mareantes apenas applicavam a pratica das conhecenças das terras, sem se auxiliarem de qualquer conhecimento de caracter scientifico.

Mas, começados os descobrimentos do Infante D. Henrique, e conhecida a necessidade de dirigir o rumo para logares situados no meio do Oceano, como as ilhas da Madeira e os Açores, viu-se que aquella navegação por successivas marcações de terras conhecidas, como hoje diriamos, não podia servir. D'ahi surgiu a necessidade de fazer cartas que, embora não reproduzissem com rigor as dimensões relativas das terras, permittissem, comtudo, determinar por linhas rectas os rumos a que se devia navegar para demandar certas paragens; e aqui temos como o Infante D. Henrique foi levado ao uso das cartas planas. Durante muito tempo se affirmou ter sido elle o seu inventor; hoje presume-se que ellas já eram conhecidas antes do tempo do Infante; mas foi certamente dos descobrimentos portuguezes que derivou a necessidade do seu uso e por conseguinte o seu aperfeiçoamento. Escusado é lembrar o nome de mestre Jacome, Malhorquino, que foi, como quem diz, o cartographo do Infante D. Henrique.





Os mareantes portuguezes «depois que quizeram navegar o descoberto, perdendo a vista de terra e engolfando-se no pego do mar, conheceram quantos enganos recebiam na estimativa e juizo das singraduras, que segundo seu modo em vinte e quatro horas davam de caminho ao navio, assim por rasão das correntes como de outros segredos que o mar tem, da qual verdade de caminho a altura é mui certo mostrador. Porém, como a necessidade é mestra de todas as artes, em tempo d'el-rei D. João II, foi por elle encommendado este negocio a mestre Rodrigo e a mestre Joseph Judeu e um Martim [19] de Bohemia, natural d'aquellas partes, o qual se gloriava de ser discipulo de Joanne de Monte Regio, afamado astronomo entre os professores d'esta sciencia. Os quaes acharam esta maneira de navegar por altura do sol, de que fizeram suas taboadas para declinação d'elle; como ora se usa entre os navegantes já mais apuradamente do que se começou, em que serviam uns grandes astrolabios de pau... de tres palmos de diametro, o qual armavam em tres paus, á maneira de cabrea, por melhorar segurar a linha solar, e mais verificada e distinctamente poderem saber a verdadeira altura d'aquelle logar; posto que levassem outros de latão mais pequenos, tão rusticamente começou esta arte que tanto fructo tem dado ao navegar»[4] .

Assim se exprime o Livio portuguez no logar de que ha pouco fiz outra citação. Por estas palavras se vê que a determinação da latitude por meio da altura do sol constitue o segundo facto importante na historia da nossa arte de navegar. No trecho de Barros vemos indicados os nomes dos tres mais notaveis mathematicos que D. João II consultava sobre os assumptos de navegação; alem d'esses convem lembrar os do licenciado Calçadilha, bispo de Vizeu, e de Diogo Ortiz, bispo de Ceuta, os quaes, reunidos com os outros formavam a celebre junta que dava parecer sobre as mais importantes questões relativas aos descobrimentos.

Começou-se, pois, a usar o astrolabio para determinar a altura do sol. O que fosse esse instrumento, de que tendes presente um exemplar, já muito aperfeiçoado, do principio do seculo XVII[5], é de todos vós bem sabido; a altura tomava-se fazendo enfiar os raios solares pelos orificios das duas pinnulas collocadas nas extremidades da alidade (ou declina, como então se dizia), e lendo depois no limbo o numero de graus; as fracções de grau eram estimadas até um sexto, isto só pelos observadores mais destros.

[20] É lição corrente entre quasi todos os escriptores nacionaes, e até entre muitos estrangeiros, a começar pelo celebre padre Fournier[6], que o astrolabio fosse invenção portugueza da epocha de D. João II. N'estes nossos tempos de critica rigorosa não me parece que seja licito fazer com absoluta certeza tal asserção, pelo simples motivo de que se não encontra a esse respeito documento positivo, e antes se sabe que já os geographos da antiguidade dispunham de um instrumento para determinar a altura dos astros. Mas, se o astrolabio não foi invenção portugueza, foram com certeza Portuguezes que primeiro o applicaram no mar, e que por isso mesmo o aperfeiçoaram para facilitar essa applicação.

Quando Vasco da Gama foi a descobrir o caminho por mar para a India, parece que ainda levava um dos toscos e desconformes astrolabios de pau, de que falla João de Barros, e tanto assim que, desconfiado das indicações que elle poderia dar a bordo por causa do balanço do navio, logo que aportou em terra africana, na bahia de Santa Helena, o seu primeiro cuidado foi pesar o sol para saber onde estava. E mais tarde, já nos bons tempos do astrolabio de metal, todos os cosmográphos recommendam muito que se procure o logar junto ao mastro grande, onde a nau dê menos balanço.

Para provar que o astrolabio bem depressa se aperfeiçoou entre nós, basta lembrar uma differença que no seculo XVI já era corrente entre os astrolabios portuguezes e os estrangeiros; pois, ao passo que estes eram graduados tendo 0° no horizonte e 90° no zenith, os nossos tinham a graduação invertida, o que, como se vê, dava logo a distancia zenithal, facilitando assim a conta, como então se dizia[7].

Alem do astrolabio, e como simplificação d'elle, havia tambem o quadrante nautico, que parece ter sido invenção portugueza ou pelo menos adaptada pelos Portuguezes ás observações no mar, visto que escriptores estrangeiros lhe dão o qualificativo [21] de lusitano. Consistia o instrumento, como o seu nome indica, em um quarto de circulo graduado no limbo em 90°, e tendo nas duas extremidades de um dos lados do angulo recto duas pinnulas (furos), por onde se enfiava o astro; do vertice do mesmo angulo saía um fio de prumo, o qual ía determinar na graduação do limbo um arco igual á altura do astro. Como se vê, o quadrante nautico fundava-se n'um theorema conhecido ácerca da igualdade dos angulos; o seu uso era recommendado sobretudo para a observação da lua e das estrellas, cuja luz, menos intensa que a do sol, permittia ser affrontada directamente pela vista do observador.

Quanto á declinação do sol, era dada por tábuas, taboadas, como então se dizia, das quaes as primeiras publicadas em Portugal parece terem sido as de Abraham Zacuto, que foi chronista e astronomo, ou melhor cosmographo, de D. Manuel, em um livro, hoje rarissimo, intitulado Almanach perpetuus celestius motûs, impresso pela primeira vez em Leiria em 1497, e do qual houve mais edições; no texto explicativo das tábuas mostra-se o seu uso por modo mais simples do que anteriormente. Este Zacuto era judeu portuguez, e parece que tambem tinha feito parte da junta de mathematicos de D. João II; sendo assim, poderá dizer-se que o seu Almanach representava a sciencia astronomica da junta. Pouco tempo depois, ao que se cuida, apparecia, já impressa em portuguez, outra obra em que se tratava da determinação da latitude. É a traducção do Tratado da Spera do Mundo do celebre mathematico João de Holywood em Inglaterra, de onde tomára o nome de Sacrobosco, e publicada, segundo affirma um nosso investigador, por Alvaro da Torre, que ao mesmo tempo publicou O Regimento da declinação do sol, traduzido de Zacuto por Gaspar Nicolas, ao que parece, e o Regimento da estrella polar. A edição d'esta obra attribue-se ao anno de 1519[8].

Sacrobosco e João Muller Regiomontano (outro nome alatinado, [22] derivado de Königsberg, patria de Muller) foram por assim dizer os Dubois e os Norie[9] do seculo XV, se bem que com maior merecimento, se attendermos á epocha em que viveram. Um escreveu sobre o que hoje se chama a astronomia applicada á navegação; o outro foi o auctor dos primeiros almanachs ou ephemerides astronomicas, de que n'esta occasião tendes presente um exemplar de uma edição do começo do seculo XVII[10]. Ora, assim como Gaspar Nicolas seria o primeiro traductor da obra de Sacrobosco em portuguez, assim Abraham Zacuto, provavelmente instruido por Martim de Behaim, seria o primeiro introductor em Portugal das tábuas de Regiomontano.

Mas ambos aquelles estrangeiros escreviam mais para a theoria da astronomia do que para a pratica da navegação, a qual nos seus respectivos paizes era ainda pouca e rude. Foi, pois, em Portugal que aquelles elementos indispensaveis da navegação astronomica começaram a tornar-se praticos, despindo-se das concepções superiores que não estavam ao alcance da singeleza dos pilotos da epocha.

Convem aqui dizer o que eram os Reportorios dos tempos, que tanto emprego tiveram entre os mareantes do seculo XVI. Os Reportorios eram livros em que se compilavam as regras praticas da arte de navegar e se davam as tábuas de declinação e outros elementos necessarios para a navegação, referidos, em geral, a alguns annos a seguir ao da publicação do livro; juntamente traziam outras indicações proprias dos actuaes almanachs ou reportorios, e muitas que os preconceitos da astrologia, cada vez mais desacreditada, ainda tornavam interessantes. Póde, pois, dizer-se que, em relação á navegação, os Reportorios dos tempos faziam o serviço das actuaes Ephemerides e Almanachs nauticos.

Uma das provas mais cabaes do muito que entre nós se [23] trabalhou em assumptos de navegação, é o grande numero de Reportorios que se publicaram. Disputam os bibliographos qual fosse o primeiro. Segundo as mais recentes investigações parece que seria um, editado talvez em 1521 por Valentim Fernandes, e do qual houve diversas edições; cita-se, porém, a lembrança de outro publicado em 1519. Estas compilações, ao principio traduzidas do estrangeiro, foram depois ampliadas, vindo a ter o caracter essencialmente portuguez; pela rapidez relativa com que se succediam as edições, conclue-se o consumo que o livro tinha. D'elle tendes presente um exemplar, de Manuel do Figueiredo, impresso em 1603[11].

Achado o meio de determinar a latitude pela altura dos astros, foi este o modo quasi exclusivo de navegar durante o periodo das nossas gloriosas viagens no seculo XVI. A estima, no sentido que hoje tem esta expressão, não se fazia, não só por não ter chegado ainda ao campo da pratica a resolução dos triangulos, pois que a algebra e a trigonometria estavam na infancia, mas ainda por outra razão, qual era a falta de um instrumento que désse com approximação a velocidade do navio. A barquinha, que hoje nos parece o mais rudimentar instrumento da navegação pratica, não estava ainda inventada, e só o foi, segundo Jal, no começo ou talvez meado do seculo XVII, apesar de que, se me não engano, nenhum dos nossos escriptores d'este seculo falla n'ella. Certo é que Humboldt, citando um trecho do Pigafetta, attribue ao nosso Fernão de Magalhães o invento de um instrumento, fundado no mesmo principio da actual barca patente, para determinar o andamento do navio; mas, se porventura o circumnavegador o empregou, o seu uso não foi generalisado. Avaliava-se então o caminho andado só pela pratica, pelo ruido da agua deslisando ao longo do costado do navio; e comtudo, conforme recentemente se escreveu a respeito de Colombo, alguns mareantes tinham tão bom habito d'essa observação, que em pouco se enganavam.

[24] Nas longas singraduras, porém, e sobretudo se sobrevinham temporaes, os enganos eram grandes; e das differenças de estimativa entre diversos pilotos da mesma armada estão cheias as narrativas das primeiras viagens.

Vêde, senhores, com que difficuldades luctavam então esses homens destemidos que se chamavam Diogo Cam, Bartholomeu Dias, Vasco da Gama, Alvares Cabral e os Corte-Reaes! As cartas faziam-n'as elles; a estima era o que acabo de dizer; a approximação do ponto determinado pelo astrolabio podeis imaginar o que seria.

E assim se percorreu o Atlantico e se chegou ao Oriente!





Foi com Pedro Nunes que a arte de navegar assumiu entre nós uma feição verdadeiramente nacional. Até então os fundamentos scientificos das praticas dos nossos mareantes podem dizer-se derivados de fontes estrangeiras, se bem que já muito aperfeiçoados por Portuguezes, sobretudo no que dizia respeito à observação dos phenomenos physicos do Oceano, como manifestamente devia acontecer, visto que eram Portuguezes quem mais longe n'elle navegavam. Mas com Pedro Nunes ha positiva originalidade, e por isso o seu nome é por tal fórma notavel e preeminente na nossa historia scientifica, que bem merece que n'elle nos detenhamos um momento.

Nasceu o grande mathematico em Alcacer do Sal em data não averiguada ao certo[12], sabendo-se apenas que tomou o grau [25] de doutor em medicina na Universidade, que então era em Lisboa, e n'ella era em 1530 lente de Artes. Foi depois, em 1554, lente da nova cadeira de mathematica da Universidade já estabelecida em Coimbra, e n'ella veiu a jubilar-se em 1562. Em 1547 fôra nomeado cosmographo-mór, sendo já anteriormente cosmographo de D. João III. No exercicio d'essas funcções frequentou a côrte, e assim teve occasião, como professor ou em conversas, de tratar das questões de navegação com pessoas taes como o famoso infante D. Luiz, irmão de D. João III, o infante D. Henrique, depois rei, o principe D. Sebastião, o grande D. João de Castro, Martim Affonso de Sousa e muitos outros que d'esse convivio com o mestre receberam ensino ou augmento de conhecimentos.

A obra fundamental de Pedro Nunes em relação á arte de navegar consta de um conjuncto de escriptos publicados em 1536, começando por uma tradução do Tratado da esphera de Sacrobosco, ampliado e corrigido, e encerrando differentes outros trabalhos, traduções e originaes, avultando entre estes o Tratado em defeza da carta de marear com o regimento da altura[13]. Mas alem d'essas obras, Pedro Nunes escreveu e publicou [26] muitas outras, nas quaes tocou todas as altas questões das mathematicas puras e applicadas á astronomia por fórma a bem merecer o qualificativo que lhe dá Stockler de «o maior geometra que as Hespanhas tem produzido, e incontestavelmente um dos maiores que no seculo XVI floresceram na Europa».

Pedro Nunes foi principalmente um theorico, pois não consta que tivesse navegado. Como, porém, era um espirito esclarecido, de uma esphera muito elevada, as suas elucubrações [27] nos diversos pontos da arte de navegar produziram resultados valiosos, que depois poderam ser applicados por homens praticos como D. João de Castro. D'esses estudos, os que mais principalmente chamaram a sua attenção, foram o aperfeiçoamento dos methodos para obter a latitude e a mais exacta determinação da variação da agulha, não devendo tambem deixar-se de mencionar a sua theoria da navegação pelo circulo maximo, que elle estabeleceu completa e perfeita.

Já sabemos que a latitude era determinada pela altura meridiana do sol ou das estrellas e principalmente da Polar, tomada com o astrolabio ou com o quadrante portuguez. Pedro Nunes, attendendo, porém, á impossibilidade frequente de apanhar o sol ao meio dia, e ainda á difficuldade de determinar com exactidão a sua maxima altura por causa da marcha vagarosa do astro quando d'ella se approxima, inventou um apparelho denominado instrumento de sombras, o qual dava os elementos para um processo destinado a obter a latitude pela observação das alturas do sol antes e depois do meio dia. Não é aqui o logar apropriado para explicar o processo, cuja pratica se póde ver nos Roteiros de D. João de Castro; apenas chamarei a vossa attenção para a importancia do problema, cujo enunciado basta para dar idéa do valor scientifico de Pedro Nunes. Lembrarei tambem que Pedro Nunes inventou o annel graduado instrumento de uso mais facil que o astrolabio, e destinado aos mesmos fins, cujo emprego se generalisou rapidamente.

Quanto ás agulhas de marear alguma coisa mais julgo dever dizer.

Tem-se escripto e repetido que foi Christovam Colombo quem primeiro descobriu o phenomeno da variação da agulha. Assim será, posto que no meu espirito haja a tal respeito muita duvida. Que, se o facto fosse verdadeiro, em nada diminuia a importancia das descobertas nauticas dos Portuguezes, porque, senhores, a verdade é esta: Colombo foi um navegador da escola nautica de Portugal; nem mais... nem menos.

Mas conhecida a variação, imaginou-se que ella era constante em cada meridiano, e isto, que aliás não era exacto, deu logar [28] a um artificio essencialmente portuguez, que bem mostra quanto os nossos navegadores se apressavam em aproveitar para a pratica as descobertas dos phenomenos naturaes. Refiro-me á construcção das agulhas portuguezas no principio do seculo XVI, as quaes tinham «os ferros aos dois terços da quarta de nordestear»; quer dizer, que se corrigia ou compensava a variação nordeste, que então o era, collocando a agulha em um angulo com a linha norte-sul da rosa igual a essa variação. Nordestear significava, como vêdes, ser a variação oriental; noroestear significava o contrario; são expressões que reputo essencialmente portuguezas. E aqui temos como o problema da compensação das agulhas, ainda hoje tão incompletamente resolvido, foram Portuguezes os primeiros que o atacaram!

É claro que essas agulhas assim compensadas só podiam servir na navegação ao longo da costa de Africa, onde então a variação era nordeste e tinha approximadamente a grandeza que se julgava; póde bem imaginar-se que fóra d'aquella navegação, feita quasi pelo mesmo meridiano, as indicações das agulhas haviam de ser erroneas. Outra causa concorria para esses erros, e era a propria rudeza da fabricação. As primitivas agulhas portuguezas tinham verdadeiramente a fórma de uma grande agulha de alfayate, e eram fabricadas de ferro e não de aço; em cada extremidade havia duas pontas, e eram estas que se cevavam, isto é, que se tocavam com a pedra iman. Por este processo rudimentar era de pequena intensidade a força magnetica das agulhas; d'ahi a necessidade de as cevar frequentes vezes, operação considerada a mais mysteriosa e sublime que os pilotos tinham de realisar durante a navegação.

Ora bem depressa foi reconhecido não só que a variação mudava com o decorrer do tempo, mas ainda que ella variava para os differentes logares da terra, e por isso Pedro Nunes, reprovando o uso das agulhas que chamaremos compensadas, inventou novos methodos para determinar a variação, os quaes D. João de Castro foi encarregado de experimentar nas suas viagens. Foi d'essas experiencias, feitas por um homem altamente apto para as realisar, que resultaram grandes progressos [29] no conhecimento das leis do magnetismo, e entre elles a descoberta do phenomeno do desvio local, ácerca do qual não posso furtar-me ao prazer de citar o respectivo trecho do Castro. «Este dia, mandando vir algumas agulhas para as cotejar com o instrumento, achei-as tão desconcertadas que foi cousa espantosa, porque onde uma fazia o leste, a outra mostrava o norte. Isto me teve muito suspenso, até que entendi a causa, e foi um berço (peça de artilheria) que estava no mesmo logar onde eu queria fazer as operações, o ferro do qual berço chamava a si as agulhas e as fazia desvairar d'esta maneira; do que tirei que uma operação que fiz a 30 de junho... a qual achei que me vinha muito desconcertada, e assim algumas outras... onde achei notaveis differenças, que foi por as fazer perto de onde estava alguma peça de artilheria, ancoras, ou qualquer outro ferro, como me passava a todas as partes da nau, buscando logar conveniente a esta obra[14]».

E aqui, senhores, permitti-me que interrompa o fio da narrativa para vos repetir uma consideração já tantas vezes feita. Os Portuguezes foram excellentes em muitos ramos das sciencias. Os nomes dos nossos sabios que as honraram, foram por vezes conhecidos lá fóra. Mas quantas foram elles desprezados, e os seus trabalhos ignorados ou postos acintemente de parte! Assim aconteceu com Pedro Nunes, que tendo inventado o conhecido nonnio, que de seu auctor tirou o nome, vemos por toda a parte attribuido o invento a um estrangeiro. Assim com tantas outras invenções ou descobertas, como esta do desvio local das agulhas, a qual pertencendo, como acabaes de ver, ao nosso Castro, é por todos referida a outro estrangeiro[15]!


[30]



O phenomeno da variação da agulha deu muito que pensar aos nossos mareantes, e originou uma idéa, que por muito tempo occupou o espirito tanto dos theoricos como dos praticos.

Como já tive occasião de lembrar, a maior difficuldade da navegação d'aquelles tempos era a determinação da longitude ou da longura, como se dizia ainda no seculo XVI, por opposição [31] a ladeza ou altura, synonimo de latitude. Um dos methodos scientificos mais rigorosos era sem duvida a observação dos eclipses; conhecida a hora em que o phenomeno se dave sob certo meridiano, e determinada a hora em que elle fosse observado no meridiano do logar, a differença do tempo reduzida a graus daria a longitude. Mas, alem de que o phenomeno, pela sua pouca frequencia, não podia servir para as necessidades da navegação, a grande difficuldade estava em determinar a hora do logar com uma approximação que désse resultados praticos. O processo empregado consistia em determinar bem o meio dia pela altura maxima do sol, e desde então em diante ir virando relogios, isto é, ampulhetas d'areia, [32] até ao momento do eclipse. Basta dizer isto para mostrar a rudeza da operação; succedendo alem d'isso que a imperfeição das ampulhetas, as quaes eram de meia hora, dava logar ás mais extraordinarias differenças entre ellas.

Por isso os navegadores serviam-se pela maior parte de indicações tiradas da pratica, e entre estas, quando se achavam proximos de terra (que era o momento mais para receiar) da observação das diversas especies de sargassos e algas, peixes, e sobretudo de aves, que lhes appareciam, taes como entenaes, feijões, mangas de veludo, gaivotões, borrelhos, calcamares, rabi-forcados, garajaos e garajinhas, e outros de que, nos falla o bom Pimentel, não esquecendo os cagalhos que pela singularidade [33] do nome não percam. Já se vê que os nossos mareantes precisavam de ter um curso completo de ornithologia.

Ora, todas estas difficuldades pareceram desapparecer quando se começou a attender no phenomeno da variação da agulha. Suppoz-se que esta em determinados meridianos feria directamente o polo do mundo, e depois ía nordesteando ou noroesteando até chegar a um ponto onde o augmento da variação cessava, passando então a diminuir para depois chegar a outro meridiano onde a variação era igual a zero. Sendo isto assim e havendo constancia no phenomeno, se se podesse conhecer quaes os meridianos sem variação, e qual a regra do seu augmento e diminuição de um a outro d'esses meridianos, bastaria determinar a variação do logar para por ella se conhecer a longitude, praticando assim a arte de leste a oeste, como então se dizia.

Tal era a theoria. Segundo os pilotos portuguezes do seculo XVI, a agulha era fixa, isto é, não tinha variação alguma, em quatro pontos: no meridiano a oeste da ilha do Corvo, no Cabo das Agulhas (que d'esse facto tirou o nome), na Pedra Branca junto a Malacca, e em Carthagena na America.

Com estes dados trabalharam muito investigadores, entre elles um Filippe de Guilhem, castelhano, a quem o nosso D. Manuel deu uma tença e o habito de Christo, apesar de ser a sua doutrina refutada pelo portuguez Simão Rodrigues, e um italiano domiciliado em Portugal, o jesuita Christovam Bruno ou Borro, a quem a fatalidade do appellido fez que escriptores estrangeiros transformassem em Burro, o que elle decerto não merecia. Este trabalhou muito no assumpto, indo de proposito á India para fazer observações durante a viagem; formou um mappa com as linhas magneticas ou isogonicas, como hoje diriamos; e foi a Madrid solicitar do Filippe, que então reinava, o premio de 50:000 cruzados proposto para quem resolvesse o problema; não o obteve. Tão notaveis talvez como o Bruno, ainda que menos conhecidos, tinham sido os portuguezes Luiz da Fonseca Coutinho e Gaspar do Couto, que muito se dedicaram a este estudo no principio do seculo XVII. Couto foi mandado á India em 1608 na esquadra em que ía o conde da Feira, nomeado vice-rei, e levava minuciosas instrucções, ou [34] regimento, como então se dizia, para fazer um roteiro, observações astronomicas e sobretudo as relativas á agulha[16]. Citarei finalmente o nome do nosso Antonio de Mariz Carneiro, que foi cosmographo-mór nos ultimos annos da dominação castelhana, o qual tanto scismou no caso que mereceu aos seus contemporaneos a alcunha de O Agulha fixa; e ainda os de Jeronymo Osorio da Fonseca e José de Moura Lobo, que no tempo de D. João IV trabalharam no problema.

A theoria era errada, como hoje sabemos, pois as linhas isogonicas nem coincidem com os meridianos terrestres, nem são constantes no tempo. Mas o pensar-se n'ella mostra cabalmente que os Portuguezes procuravam resolver os problemas do mar do melhor modo possivel.

E comtudo, convem dizer, parece que Pedro Nunes não dava muito credito á hypothese, o que mais uma vez prova a superioridade d'aquelle grande espirito.

Nós que sabemos a quasi superstição com que os marinheiros ainda hoje contemplam a agulha, o respeito com que a tratam, a afflicção que por vezes se apossa d'elles quando a vêem endoidecer em occasião de grandes balanços, bem podemos imaginar o que seria n'essas epochas de rudes conhecimentos, em que da agulha tudo se esperava, e dos seus desvarios tudo se temia. E, lançando um ultimo olhar de respeito a esses esforços da intelligencia nautica dos nossos antecessores, nós para quem hoje a navegação parece um brinco, tantas são as facilidades dos processos modernos, tão exactas as approximações a que podemos chegar nos calculos, lembremo-nos de que ainda ao presente a determinação da variação e sobretudo do desvio é, porventura, o maior cuidado do navegador.





Muito mais poderia dizer-vos, senhores, ácerca da arte de navegar portugueza, para vos mostrar á saciedade como se [35] progrediu immensamente desde os escassos conhecimentos dos mareantes do Infante até aos fins do seculo XVI. Teria que fallar ainda do successivo aperfeiçoamento das cartas, do tronco das leguas, destinado a corrigir o inconveniente da equidistancia dos parallelos, como podereis ver na carta do Atlantico, de Gaspar Viegas, que tendes presente[17], do uso da balestilha, que parece remontar entre nós aos fins d'aquelle seculo, dos processos de sondar, dos levantamentos das costas e barras, da determinação dos ventos geraes e das correntes, das differentes derrotas para a India por dentro ou por fóra da ilha de S. Lourenço, da famosa questão de Molucas que tanto agitou os theoricos e praticos do tempo de D. João III, de muitos e variados pontos que todos concorreriam para confirmar a minha these[18].

Mas baste o que já tenho dito. O tempo corre, e, tendo fallado tanto da arte de navegar, é bem que diga alguma cousa a respeito dos que a praticaram.





Quando o Infante D. Henrique começou a mandar a descobrir, empregou n'esse serviço homens que, á dedicação pelas novas idéas e aos desejos de bem merecer, juntavam conhecimentos das diversas partes da marinharia e por conseguinte da arte de navegar. Póde, pois, suppôr-se que Gonçalves Zarco, Tristão Vaz, Gil Eannes, Baldaya, Nuno Tristão, Gonçalo de Cintra, e tantos outros, eram ao mesmo tempo commandantes [36] dos navios para os fins politicos dos descobrimentos e seus pilotos para fazerem a derrota e arrumarem as novas terras.

Mais, tarde, porém, e sobretudo a datar da viagem de Bartholomeu Dias, começa a historia a individualisar os nomes dos pilotos que d'aquelle segundo serviço eram especialmente encarregados nas expedições maritimas. Depois, quando a carreira da India passou a ser annualmente frequentada pelas armadas, quando, attingido o objectivo no Oriente e no Atlantico, se tratou mais da conquista que do descobrimento, os capitães das naus e os capitães-móres das armadas eram por via de regra tirados de entre os filhos da nobreza, a quem se queria adiantar em fortuna, posto que quasi sempre depois de já terem dado provas de valor militar e saber politico, ou nos serviços da metropole ou na defeza das praças de Africa. Succedia então que aquelles chefes, por vezes, ignoravam os rudimentos da manobra e da arte de navegar, e por isso estes serviços, até certo ponto reputados inferiores em comparação com o nobre exercicio das armas, eram das attribuições exclusivas dos mestres e pilotos.

D'estes embarcavam ordinariamente n'uma nau de carreira um piloto, um sota-piloto, por vezes um piloto de sobresalente. Nas armadas havia quasi sempre um piloto-mór, que embarcava na capitania. E, alem de todos esses, havia frequentes vezes em cada navio um ou mais marinheiros que carteavam, provavelmente homens que se preparavam para passar a pilotos, praticantes, como hoje se diria; assim na nau Grypho, que D. João de Castro commandava quando foi pela primeira vez á India, havia, incluindo o capitão, nove pessoas capazes de tomar alturas.

Ora é facil de imaginar que nos navios, cujos chefes não soubessem de navegação, se daria toda a importancia aos pilotos; estes, porém, creados pela maior parte desde pagens na vida do mar (e era assim que Diogo do Couto os reputava melhores), se tinham por isso toda a pratica proveniente de tão continuadas viagens, eram quasi sempre baldos de fundamentos scientificos, ainda mesmo dos tão simples da sua epocha. Com as regras do sol e as menções dos Roteiros ou das [37] apostilhas que passavam de mão em mão, iam e vinham elles da India, contando por nova palma de triumpho cada viagem que faziam. É claro, pois, que a sua sciencia era em geral muito limitada, e por isso pouco fundada a jactancia com que se ufanavam, e que Pedro Nunes, D. João de Castro e outros tanto censuram nos seus escriptos. Essa jactancia dava por vezes origem a desagradaveis contendas entre elles e os capitães, e tanto que, para as evitar, no reinado de D. Sebastião se estabeleceu a multa de trezentos cruzados ao capitão que injuriasse piloto. E a este respeito conta Diogo do Couto a anedocta de um capitão de nau, Pereira Pestana, o qual, trazendo um dos taes pilotos fanfarrões e teimosos, já farto de o aturar, um dia atou uma bolsa com os trezentos cruzados a uma meia lança, e depois o foi convidando com a arma assim enfeitada[19].

Mas apesar de tudo, apesar dos erros e teimosias de alguns pilotos terem sido a causa provada do lastimosos naufragios, não devemos esquecer quantos serviços se devem a esses homens que em tão dilatadas navegações não tinham para determinar o ponto os elementos de que hoje se dispõe. Registemos, pois, os nomes de Pedro d'Alemquer, Alvaro Martins e João do Santiago, pilotos da expedição de Bartholomeu Dias; os de João de Coimbra e Pedro de Escobar, que com o mesmo Pedro d'Alemquer foram com Vasco da Gama á India na primeira viagem, e que aliás não mostraram muita coragem, se é verdadeira a narrativa de Gaspar Corrêa; o de Pedro Vaz de Caminha que foi na viagem de Cabral; e sobretudo o do famoso Vicente Rodrigues, piloto-mór da India, que fez um Roteiro e se applicou muito ao problema da variação da agulha, e ainda o de Gaspar Reimão, que tambem fez um Roteiro.

Nem sempre, porém, os commandantes estavam n'aquellas circumstancias que acima indiquei. Frequentes vezes individuos que a bordo desempenhavam cargos mais elevados que o de mestre ou piloto, tinham conhecimentos completos de [38] marinharia. Então, se uma nau ou uma armada acertava de ter por commandante um d'esses homens, o papel do piloto tornava-se secundario, e era o capitão que fazia a navegação. Homens taes, reunindo ao poder militar e politico, exercido com saber superior, o conhecimento da manobra e da nautica, eram verdadeiramente o que hoje se entende pela denominação de―officiaes de marinha―. Assim o foram Vasco da Gama, Duarte Pacheco, Fernão de Magalhães, D. João de Castro, Martim Affonso de Sousa, Antonio Galvão, Diogo Botelho Pereira, Diogo do Sá, D. Manuel de Menezes e tantos outros.

De D. João de Castro principalmente pouco é tudo quanto em seu louvor se diga. Militar destemido, chefe generoso, administrador honradissimo, erudito de primeira plana, foi sobretudo um verdadeiro homem do mar! Tinha a sciencia e a consciencia, a perspicacia na observação, a pericia na manobra, aquelle sexto sentido tão celebrado como a mais superior qualidade do marinheiro. Os seus tres Roteiros são tres maravilhas do engenho humano; quanto mais se estudam, mais se encontram n'elles motivos para admiração, tanta é a luz que irradia d'aquellas paginas, onde não ha segredo do mar, portento da terra ou meteoro do céu, que não seja descripto e para o qual se não procure cabal explicação. Se o Infante D. Henrique é o nome prestigioso que preside a todos estes trabalhos, se o dr. Pedro Nunes é o theorico eminente, mestre dilecto e respeitoso que nos Roteiros a cada momento se relembra, o nome de D. João de Castro, do infatigavel capitão da nau Grypho e do galeão Coulão Novo, é decerto o do portuguez do seculo XVI que mais nobremente praticou a arte de navegar.





E já que mais de uma vez tenho fallado em Roteiros, convem dizer uma distincção que deve ser feita no emprego d'esta palavra nos seculos anteriores.

Ao principio o roteiro era o trabalho do navegador escripto dia a dia, mencionando a rota, isto é, o caminho andado, e no [39] qual se consignava não só a parte nautica da viagem com o resumo das observações astronomicas e dos calculos, as sondas e as outras indicações proprias da navegação, como ainda e muito principalmente as peripecias da expedição, os desembarques, a descripção das terras visitadas e dos costumes dos seus habitantes, por vezes o debuxo da sua apparencia em planta ou em perspectiva, e a narrativa dos combates ou dos negocios realisados, n'uma palavra as novidades. Estes roteiros eram, pois, propriamente a derrota ou antes o relatorio da viagem, segundo a nomenclatura actual; e assim eram os famosos Roteiros de D. João de Castro e tantos outros que se têem publicado, alem de muitos que provavelmente se perderam ou que se acham ineditos[20].

Só mais tarde é que se começou a escrever Roteiros na outra accepção do termo, unica que elle hoje tem. Esses então consistiam nas indicações para se navegar em demanda de determinadas [40] paragens, marcando as melhores epochas, os accidentes physicos que em cada uma d'ellas se encontravam, as precauções a tomar, o modo de buscar a terra, as conhecenças d'ella; d'esta especie de roteiros, evidentemente derivada da primeira, alguns haveria ao principio manuscriptos que servissem para uso dos pilotos; depois imprimiram-se e passaram a ter mais frequente emprego. Creio que o primeiro Roteiro impresso foi um de Manuel do Figueiredo, publicado em 1609.





N'esta desalinhavada serie de apontamentos ácerca da arte de navegar dos Portuguezes teria de certo logar opportuno a indicação do ensino official da pilotagem. Só este ponto fornecia materia para interessantes observações; mas o tempo vae passando, tem-se já voltado alguns relogios, como se dizia no seculo XVI, e por isso apenas fallarei muito a correr na instituição do cosmographo-mór.

Vimos que Pedro Nunes, sendo já cosmographo de D. João III, foi em 1547 accrescentado no officio de cosmographo-mór. Desde então até ao fim do seculo passado houve sempre em Portugal um technico encarregado de desempenhar esse logar. A elle pertencia a superintendencia em tudo o que dissesse respeito á navegação, e mais tarde a regencia da aula de nautica, bem como o exame dos pilotos e a concessão dos respectivos diplomas. Era esta ultima parte das suas attribuições a que lhe dava maiores proventos, derivados das respectivas propinas; mas alem d'isso o cosmographo-mór tinha ordenado certo, que para o dr. Pedro Nunes foi fixado em 50$000 réis annuaes, e que no meiado do seculo XVIII era de 400$000 réis. Para apreciar o valor d'estas quantias devemos lembrar-nos que no fim d'sse mesmo seculo (1790) o soldo de um capitão de mar e guerra era de 30$000 réis mensaes em terra e réis 45$000 embarcado.

Depois de Pedro Nunes exerceram successivamente o cargo de cosmographo-mór: Thomaz da Orta, de 1582 a 1596; João [41] Baptista Lavanha, de 1596 a 1608, escreveu o Regimento nautico; Manuel de Figueiredo, já citado, de 1608 a 1623; Valentim de Sá, nomeado em 1623 e que escreveu o Regimento de navegar; Luiz Teixeira que navegou muito; o distincto general de mar D. Manuel de Menezes, que alguns dizem ter succedido a Figueiredo; Antonio de Mariz Carneiro, de 1631 a 1647; este escreveu o Regimento de Pilotos e o Roteiro da India Oriental, e foi cognominado O Agulha fixa, pelo muito que trabalhou na determinação da variação da agulha, como já disse.

A Antonio de Mariz segue-se a dynastia dos Pimenteis, nome bem conhecido de todos nós. O primeiro foi Luiz Serrão Pimentel, que exerceu o cargo de cosmographo-mór desde 1647 até 1687, e escreveu Roteiros e a Arte pratica de navegar, publicada por seu filho. Este foi Manuel Pimentel que teve o officio desde 1687 até 1723, publicando em 1712 a sua Arte de navegar, na qual já se ensina a carteação das milhas pelas tábuas dos senos, tangentes e secantes, ou resolvida graphicamente pelo emprego do quadrante ou quarto de reducção. Succedeu-lhe em 1723 seu filho Luiz Francisco Pimentel; e finalmente foi o quarto Pimentel, e ultimo cosmographo-mór, Francisco Serrão Pimentel da Silva Paes, que veiu a morrer em 1832.

O que fosse a aula do cosmographo-mór nos ultimos tempos póde avaliar-se por esta citação de Stockler: «Toda a sciencia que na aula se ensinava, se reduzia ao conhecimento da esphera e dos diversos meios graphicos e trigonometricos de determinar no mar a situação do navio pela derrota estimada, isto é, pela medida da velocidade avaliada pela barquinha, pelo angulo de rumo determinado pela agulha de marear, e pela mais grosseira e arbitraria estima do abatimento. Esta imperfeitissima derrota apenas se ensinava a corrigir pela latitude derivada da observação da altura meridiana do sol... A variação da agulha magnetica apenas se ensinava a determinar pela observação da amplitude ortiva ou occidua do sol, reputando-se por sublimidade, a que nem todos podiam chegar, o determinal-a pela observação do angulo azimuthal; segredo [42] que só se communicava a algum discipulo de grande esperança[21]

Mas surgiu n'essa epocha o vulto eminente de Martinho de Mello, o edificador da nossa marinha moderna, o fundador d'esse conjunto magnifico de instituições que, quanto mais se estudam, mais se admiram. Por isso Martinho de Mello em 1779, «determinando dar ao ensino da arte de navegação uma nova fórma differente d'aquella que até agora se acha estabecida,» alliviou Serrão Pimentel do exercicio de cosmographo-mór, conservando-lhe, porém, os vencimentos, e nomeou o professor Miguel António Ciera para lente da aula de pilotos.

Estamos n'uma era nova, em epocha quasi contemporanea. No mesmo anno de 1779 é instituida a Academia Real de Marinha, a antecessora da Escola Polytechnica; em 1796 organisa-se a Academia Real dos Guardas-Marinhas, transformada depois na nossa Escola Naval; em 1798 funda-se o Real Observatorio de Marinha. A instrucção naval entra então em moldes modernos: a arte de navegar passa a ser verdadeiramente uma sciencia; os nossos officiaes collocam-se a par dos mais distinctos das nações estrangeiras; é o apogeu da marinha de guerra portugueza no sentido actual da expressão[22].





Tocaram oito ampulhetas, é chegado o momento, sempre ditoso, de entregar o quarto.... e já ora tempo, senhores, de cessar de abusar da vossa attenção. Vou, pois, terminar.

[42] Em alguns escriptores, quiçá com mais curiosidade indiscreta do que com verdadeira critica proveitosa, se encontra posto o problema do que teria sido, se taes e taes factos historicos se não tivessem dado, ou houvessem succedido por modo differente. Poderiamos nós tambem perguntar: O que seria de Portugal, se o Infante D. Henrique não se tivesse dedicado ao problema dos descobrimentos? O que seria da Europa se, meiado o seculo XV, um principe do pequeno reino portuguez não pensasse em alargar para o occidente e para o sul os ambitos da sua nação?

A taes perguntas cada qual poderá responder a seu talante. Ninguem de certo ousará affirmar que ainda hoje estivessemos limitados ao mundo conhecido dos antigos. Mas por quanto tempo se demorariam ainda os descobrimentos? Não viria a realisar-se o que, segundo vemos nos Commentarios de Affonso de Albuquerque, por pouco esteve para succeder, que, em vez de serem europeus que demandassem as plagas orientaes, fossem homens da India que viessem ao longo da costa africana a descobrir-nos?[23]

E se Portugal se não lançasse no caminho do desconhecido e não conquistasse assim para si gloria e poder tão grandes que lhe deram jus a uma vida independente, não estaria elle já de ha muito absorvido na unidade peninsular, tantas vezes tentada e sempre repellida?

Gloria, pois, ao inclito D. Henrique, ao prestigioso Infante, que abriu aos nossos antecessores o caminho dos mares, e nos permittiu a nós, Portuguezes e marinheiros de hoje, vivermos livres á sombra da bandeira das quinas, symbolo amado da nossa tão querida patria.

Entreguei.




BIBLIOGRAPHIA




LISTA DOS PRINCIPAES TRABALHOS IMPRESSOS,
RELATIVOS Á «ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES» DESDE OS PRIMEIROS TEMPOS
ATÉ Á EXTINCÇÃO DA «AULA DO COSMOGRAPHO-MÓR» EM 1779



TRATADISTAS


Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de situ orbis. Começa por noções geraes de cosmographia, esphera e navegação, e segue a descripção geographica e roteiro dos descobrimentos. Escripto em 1505? Publicado em 1892, Lisboa.


Gaspar Nicolas? Tratado da Spera do mũdo tirada de latim em lingoagem portugues com hũa carta... Seguese ho regimento da declinaçom do sol... com ho regimento da estrella do norte. (A carta é traduzida por Alvaro da Torre.) Lisboa, impresso por Germão Galhard, 1519?


Pedro Nunes, Tratado da Sphera, etc. (Veja-se nota 1, pag. 23). Lisboa, 1536.

――, De arte atque ratione navigandi, libri duo. 1.ª edição, Coimbra, 1546; 2.ª edição, Coimbra, 1573; outra edição com o titulo de Opera quae complectuntur, etc. Basilea, 1566. Houve mais edições.

A 1.ª edição mencionada, de Coimbra, é apontada por Barbosa, Ribeiro dos Santos, Innocencio e outros; não consegui, porém, ver um exemplar d'ella, ao passo que são frequentes os da 2.ª edição, 1573, em cujo prologo o editor (Antonio de Mariz) censura os erros das anteriores edições d'esta obra de Pedro Nunes, sem comtudo as designar explicitamente. Parece, pois, que aquelles bibliographos fizeram alguma confusão.


Diogo de Sá, De navigatione. París, 1549.


João Baptista Lavanha, Regimento nautico. 1.ª edição, Lisboa, 1595.


[46] Simão de Oliveira, Arte de navegar. Lisboa. 1606.


Manuel de Figueiredo, Chronographia, etc. (Veja-se adiante.)

――, Hydrographia, exame de pilotos, no qual se contem as regras que todo o piloto deve guardar nas suas navegações, etc. Lisboa, 1642. Traz tambem um roteiro, adiante mencionado.


Valentim de Sá, Regimento de navegação, etc. Lisboa, 1624.


Antonio de Najera, Navegacion especulativa e pratica, etc. Lisboa, 1628.―Incluo este tratadista entre os auctores portuguezes, porque elle se declara terminantemente lusitano, natural de Lisboa (e isto no tempo da dominação dos Filippes), diz que saíu da sua patria para percorrer a Hespanha, e desculpa-se de escrever o seu livro em castelhano, por ser esta lingua conhecida em toda a monarchia. A obra de Najera é a mais completa e clara das publicadas até ao seu tempo; cita frequentes vezes Pedro Nunes e as praticas dos Portuguezes; e sempre que vem a proposito, mostra os erros de Rodrigo Samorano e Garcia de Cespedes, os dois tratadistas de navegação ao tempo mais conceituados em Hespanha.


Antonio de Mariz Carneiro, Arte pratica de navegar e roteiro das navegações das Indias orientaes. Lisboa, 1642. Teve mais edições.


Luiz Serrão Pimentel, Arte pratica de navegar e regimento de pilotos, etc. Lisboa, 1681. É obra posthuma, publicada por seu filho Manuel Pimentel.


Antonio Carvalho da Costa, Via astronomica. 1.ª parte, Lisboa, 1676; 2.ª parte, Lisboa, 1677. N'esta se contém: 1.º tratado: Da navegação.

――, Compendio geographico... construcção de mappas e fabrica das cartas hydrographicas, etc. Lisboa, 1686.


Manuel Pimentel, Arte pratica de navegar e roteiro das viagens, etc. Lisboa, 1699. É 2.ª edição da obra de seu pae, Luiz Serrão Pimentel.

――, Arte de navegar em que se ensinam as regras praticas e o modo de cartear pela carta plana e reduzida, etc. Lisboa, 1712.


ALMANACHS, REPORTORIOS, ETC.


Abraham Zacuto, Almanach perpetuus celestius motûs astronomi Zacuti, cujus radix est 1473. Leiria, 1496. É a traducção do hebraico em latim, feita por José Visinho, e impressa por mestre Ortas. Conhecem-se [47] tres exemplares: um na Bibliotheca Nacional de Lisboa, outro na bibliotheca de Evora, e o terceiro na Colombiana de Sevilha.


Valentim Fernandes, Reportorio dos tẽpos em lingoagẽ portugues... e a declinaçom do sol com seu regimento, etc. 1.ª edição, 1521? Teve mais edições.


André de Avellar, Reportorio dos tempos, o mais copioso que até agora saíu á luz, conforme a nova reformação do Santo Padre Gregorio XIII, Lisboa, 1585. Teve, pelo menos, mais quatro edições: Lisboa, 1590; Coimbra, 1590; Lisboa, 1594 com o titulo de Chronographia ou Reportorio dos tempos, etc.; Lisboa, 1602, com o mesmo titulo.


Manuel de Figueiredo, Chronographia, reportorio dos tempos, no qual se contem seis partes, etc. Lisboa, 1603.


Boaventura Soares, Lunario de um siglo. Lisboa, 1748.


ROTEIROS


Alvaro Velho? Roteiro da viagem de Vasco da Gama em 1497. Publicado pela primeira vez por Diogo Kopke e Antonio da Costa Paiva, Porto, 1838; 2.ª edição, por Alexandre Herculano e o barão do Castello Paiva (o mesmo Paiva da 1.ª), Lisboa, 1861.


Livro de Duarte Barbosa, escrito em 1516; Navegação ás Indias Orientaes, por Thomé Lopes; Navegação do capitão Pedro Alvares Cabral; Navegação de Lisboa á ilha de S. Thomé, por um piloto portuguez. No tomo II da Collecção de noticias para a historia e geographia das nações ultramarinas que vivem nos dominios portuguezes. Lisboa, Ac. R. Sc. 1812.


Carta de Pedro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel; Roteiro da viagem de Fernão de Magalhães. Ibid., tomo IV, Lisboa, 1826.


Pedro Lopes de Sousa, Diario de navegação de Martim Affonso de Sousa, publicado pela primeira vez por Francisco Adolpho de Varnhagen, Lisboa, 1839.


D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa, viagem realisada em 1538. Publicado em Lisboa, 1882, por Andrade Corvo, com numerosas annotações e um appendice sobre as Linhas isogonicas no seculo XVI.

――, Roteiro de Goa a Diu, viagem realisada em 1538-1539. Publicado no Porto, 1843, por Diogo Kopke.


[48] D. João de Castro, Roteiro da viagem... em 1541, partindo... de Goa até Suez, etc. Publicado pelo dr. Antonio Nunes de Carvalho, París, 1833.


Manuel de Figueiredo, Roteiro e navegação das Indias Occidentaes, ilhas Antilhas e mar Oceano occidental, etc. Lisboa, 1609.


Gaspar Ferreira Reimão, Roteiro da navegação e carreira da India tirado de... Vicente Rodrigues e Affonso Dioguo. Lisboa, 1612.


Antonio de Mariz Carneiro, Roteiro, etc, acima indicado.


Luiz Serrão Pimentel, Roteiro do mar Mediterraneo, etc. Lisboa, 1675.

――, Roteiros das navegações das conquistas de Portugal e Castella, na Arte pratica de navegar, acima indicada.


Manuel de Mesquita Perestrello, Roteiro dos portos, alturas, etc, desde o Cabo da Boa Esperança até ao das Correntes. Saíu na obra de Serrão Pimentel, acima indicada.

Nos Annaes maritimos e coloniaes, Lisboa, 1840-1846, vem alguns roteiros e indicações de navegações.

Na Collecção intitulada Alguns documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo ácerca das navegações e conquistas portuguezas, Lisboa, 1892, inserem-se diversas cartas, relações de viagens e outros escriptos importantes para a historia da arte de navegar portugueza.


TRABALHOS HISTORICOS E CRITICOS


Antonio Ribeiro dos Santos, Memoria da vida e escriptos de D. Francisco de Mello. Memorias de litteratura portugueza da Academia Real das Sciencias, Lisboa, tomo VII, 1806.

――, Memoria da vida e escriptos de Pedro Nunes. Ibid., ibid.

――, Memorias historicas sobre alguns mathematicos portuguezes e estrangeiros domiciliarios em Portugal ou nas conquistas. Ibid., tomo VIII, 1812.

――, Da antiguidade da observação dos astros. Historia e memorias da Academia Real das Sciencias. Lisboa, 1817, tomo V, parte I.


Sebastião Francisco Mendo Trigoso, Memoria sobre Martim de Bohemia. Memorias de litteratura da Academia, tomo VIII.


[49] Francisco de Borja Garção Stockler, Ensaio historico sobre a origem e progressos das mathematicas em Portugal. París, 1819.


Ignacio da Costa Quintella, Annaes da marinha portugueza. Lisboa, 1839 e 1840.


Visconde de Santarem, Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos dos Portuguezes, etc. París, 1841. Foi depois traduzida em francez e ampliada com o titulo de Recherches, etc. París, 1841.

――, Essai sur l'histoire de la cosmographie et de la cartographie, com o magnifico atlas. París, 1849-1852.


José Silvestre Ribeiro, Historia dos estabelecimentos scientificos... de Portugal. Lisboa, 1872, volume II e outros.


Marquez de Sousa Holstein, A escola de Sagres e as tradições do Infante D. Henrique. Lisboa, 1877.


Luciano Cordeiro, De como navegavam os Portuguezes no começo do seculo XVI. No Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 4.ª serie, 1883.


Sousa Viterbo, Trabalhos nauticos dos Portuguezes nos seculos XVI e XVII. Ibid., 9.ª serie, 1890.

――, Trabalhos nauticos, etc. 2.ª serie. No numero do Instituto, de Coimbra, dedicado á commemoração do Centenario, 1894.


Latino Coelho, Vasco da Gama. Lisboa, 1882.


Manuel Pinheiro Chagas, Os descobrimentos portuguezes e os de Colombo. Lisboa, 1892.


Antonio Arthur Baldaque da Silva, O descobrimento do Brazil por Pedro Alvares Cabral, nas Memorias da commissão portugueza para o centenario do descobrimento da America. Lisboa, 1892.


Vicente M. M. C. Almeida d'Eça, Nota sobre os estabelecimentos de instrucção naval em Portugal, etc. Lisboa, 1892.




Notas:

[1] Em trabalhos, publicados já depois da celebração do Centenario, volta-se a pôr em duvida a diuturnidade da permanencia do Infante em Sagres. Parece-me que ainda haverá muito que investigar a este respeito; creio, comtudo, poder-se affirmar que foi do Algarve, e principalmente dos seus portos occidentaes, que derivou a grande corrente dos descobrimentos nos primeiros tempos.

[2] Chronica do descobrimento de Guiné, pag. 57.

[3] Decadas, vol. I, pag. 281 (edição de 1778).

[4] Barros, Decadas, vol. I, pag. 281, 280 (ed. cit.)

[5] Era um astrolabio feito por Nicolau Patenal em 1616; pertence á collecção de instrumentos nauticos da Escola Naval.

[6] Hydrographie, 2.ª ed., 1666, pag. 369.

[7] Antonio de Najera, mathematico lusitano, Navegacion especulativa e pratica, Lisboa, 1628, fl. 25 V.

[8] Veja-se Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 4.ª serie, pag. 163 e seg.: De como navegavam os Portuguezes no começo do seculo XVI, pelo sr. Luciano Cordeiro.

[9] Nomes dos auctores do Tratado e das Tábuas de navegação, pelos quaes nos ultimos vinte e cinco annos se tem ensinado na nossa Escola Naval.

[10] Era a edição de Witebergae, anno 1606, pertencente ao conferente.

[11] Chronographia, reportorio dos tempos, etc.; exemplar pertencente á bibliotheca da Escola Naval.

[12] Assim o julgava quando escrevi a conferencia; mas depois tive occasião de vir a saber que Pedro Nunes nasceu em 1502. Na pag. 135 da Arte atque ratione navigandi (ed. de Coimbra, 1573) lêem-se as seguintes palavras: «Exempli gratiâ, sit anno Domini 1502, quô ego natus sum.» No rosto de um dos tres exemplares d'esta edição, existentes na Bibliotheca Nacional, encontra-se escripta por lettra do seculo XVI a seguinte indicação: «Natus est hic Doctor año Dñi 1502. Obiit verò tertio idus Augusti año Dñi 1578.»

[13] Em seguida copiamos o titulo completo e o fecho da obra fundamental do doutor Pedro Nunes sobre navegação, bem como o Regimento da altura.


Frontispicio

«Tratado da Sphera com a theorica do Sol e da Lua. E ho primeiro livro da Geographia de Claudio Ptolomeu Alexandrino. Tirados nouamente de latim em lingoagem pello Doutor Pedro Nunes cosmographo del Rey dom João ho terceyro deste nome nosso Senhor. E acrecentados de muytas annotações e figuras por que mays facilmente se podem entender.

Item dous tratados que o mesmo Doutor fez sobre a carta de marear. En os quaes se decrarão todas as principaes duvidas da navegação. Com as tavoas do mouimento do sol e sua declinação. E o Regimento da altura assi ao meyo dia como nos outros tempos.

Com previlegio real.»


Fecho

«Acabouse de emprimir a presente obra na muyto nobre e leal cidade de Lixboa por Germão Galharde empremidor. Ao primeiro dia do mez de Dezembro de 1537 annos.»


«Regimento da altura do polo ao meo dia.»

«§ Se o sol tem declinação pera o norte e as sombras vão pera o norte; saberemos pello estrelabio ao meo dia que he na mayor altura quantos graos ha de nós ao sol: e acrecentaremos a declinação d'aquelle dia: e o que somar será o que estamos apartados da linha equinocial para o norte.

«§ Mas se o sol tem declinação pera o norte e as sombras vão pera o sul: saberemos pello estrelabio quanto ha de nós ao sol: e pelo regimento a declinação: e se forem iguais estaremos na equinocial. E se forem desiguais: tiraremos o menor numero do mayor, porque o que ficar, isso estaremos apartados da equinocial: e será pera o norte se a declinação era mayor: e será pera o sul se a declinação era menor.

«§ A mesma regra nos serve tendo ho sol declinação pera o sul, porque se as sombras vão para o sul ajuntaremos o que ha de nós ao sol com a declinação: e o que somar isso estaremos apartado da equinocial pera o sul.

«§ Mas se o sol tem declinação pera o sul e as sombras vão ao norte: se o que ha de nós ao sol for igual á declinação, estaremos na equinocial. E se forem desiguais tiraremos o menor numero do mayor: e o que ficar será o que ao tal tempo estaremos apartados da equinocial: e será pera o sul se a declinação for mayor e será pera o norte se a declinação for menor.

«§ E quando não houver declinação: ho que ouver de nós ao sol, isso estaremos apartados da equinocial; e será pera onde forem as sombras.

«§ E em todo tempo que o sol pello estrelabio estiver em noventa graos: o que elle tiver de declinação, isso mesmo estaremos apartados da equinocial e pera a mesma parte.»

[14] D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa, pag. 308.

[15] Quando escolhi para assumpto d'esta conferencia «A arte de navegar dos Portuguezes», não foi minha intenção embrenhar-me em explanações scientificas ou controversias criticas, mas apenas fazer uma rapida exposição historica; nem outra cousa consentiam tanto a indole de taes palestras como a orientação dos meus estudos habituaes.

Succedeu, porém, quatro dias antes da conferencia, que, indo eu á Bibliotheca Nacional para rever alguns livros, pelo sr. Gabriel Pereira, sabio director d'aquelle estabelecimento, me foram mostrados os volumes recentemente chegados da magnifica publicação feita a expensas do governo italiano, por occasião do centenario de Colombo, intitulada Raccolta di documenti e studi publicati dalla R. Commissione Colombiana pel quarto centenario della scoperta dell'America.

O volume I da parte IV d'essa collecção consta de um estudo do sr. Enrico Alberto d'Albertis, com o titulo Le costruzione navali e l'arte della navigazione al tempo de Cristoforo Colombo; e no volume II vem um trabalho do sr. Timoteo Bertelli denominado La declinazione magnetica e la sua variazione nello spazio scoperte da Cristoforo Colombo.

Percorrendo este ultimo trabalho rapidamente, pois para mais não tive tempo, vi que elle se propunha effectivamente demonstrar ter sido Christovam Colombo o primeiro que descobriu o phenomeno da variação da agulha, como aliás é lição quasi geral. Ora, entre a grande copia de argumentos do sr. Bertelli, apparece o de que muitos auctores contemporaneos e posteriores a Colombo ignoravam o phenomeno, e no numero d'esses cita-se o nome do portuguez Pedro Nunes!!

Ao ler isto, ao ver citada a obra do nosso grande mathematico d'onde o auctor tirava tal conclusão, confesso que pasmei. E o pasmo redobrou, quando adiante, pag. 50, no cap. X, intitulado Prospetto degli autori i quali dal medio evo sino a tutto il secolo XVI suppozero l'ago diretto al polo, cioé senza declinazione, vi novamente incluido Pedro Nunes (o Nonnio), citando-se d'elle Opera omniae, Basilea, 1566, com a aggravante de se dizer em nota que a primeira edição portugueza é de 1536 (sic).

Pois não conhecia a declinação da agulha o Pedro Nunes que até inventou um instrumento especial para a sua determinação, o qual elle descreve no conhecido trecho que começa: «Acerca do nordestear e noroestear da agulha tenho por certo que ellas não demandam o polo, porque não vi agulha que n'esta terra não nordesteasse»?

É extraordinario isto!

Mas afinal não deve talvez causar admiração, se nos lembrarmos que o auctor da memoria não viu ou não entendeu a obra, que cita, de Pedro Nunes. E não admiraremos tambem que a não visse, sendo ella rara, se não viu nem ouviu fallar da maior parte dos numerosos trabalhos dos Portuguezes sobre a arte de navegar. Basta dizer-se que lhe são desconhecidos os Roteiros de D. João de Castro, incluindo o ultimo publicado, em 1882, com as annotações de Andrade Corvo, no qual tantas vezes se trata da questão das agulhas, e se inclue em appendice um excellente trabalho sobre as Linhas isogonicas no seculo XVI. Pois o nome de D. João do Castro não é ignorado na Italia, pelo menos do estado maior do seu exercito, que estudou o Roteiro do Mar Roxo, como outras obras portuguezas, algumas das quaes traduziu, por causa da occupação de territorios em Massuá e Dalaque.

Ora, sem entrar em polemica, direi apenas, ampliando as palavras que proferi na conferencia:

1.º Que antes de Colombo partir para a sua primeira viagem, já os Portuguezes navegavam havia muitos annos entre a metropole e os Açores, isto é, n'uma distancia de cerca de vinte gráos em longitude, e por isso teriam tido occasião de observar a differença em variação;

2.º Que as palavras nordestear e noroestear são de feição essencialmente portugueza, e ainda usadas pelos nossos pilotos no seculo actual, pelo menos até ha trinta annos;

3.º Que Christovam Colombo, empregando-as no seu diario, não lhes explica o sentido, o que seria natural que fizesse, se ellas, como o phenomeno que significavam, fossem pela primeira vez communicadas;

4.º Que nas famosas expressões de Colombo, relativas ao dia 13 de setembro de 1492, não se encontra mostra alguma de espanto pelo facto da variação da agulha, mas sim por ella mudar de signal;

5.º Que, por conseguinte, o que Colombo viu, foi apenas que a variação ou declinação, a qual até um certo meridiano era n'um quadrante, d'esse meridiano em diante passava a ser n'outro.

E não era preciso saír da Raccolta para chegar a este mesmo resultado, porquanto o sr. Alberto de Albertis, no cap. V da outra memoria acima citada, põe em rubrica: «Prima osservazione del passagio della declinazione dell'ago magnetico da greco a maestro», deitando assim por terra, com estas palavras, todo o magestoso edificio do sr. Bertelli.

E ainda depois de ter escripto a conferencia, chegou ás minhas mãos o numero de fevereiro do corrente anno da excellente Rivista marittima italiana, e n'ella encontrei um magnifico estudo do sr. Eugenio Gelcich, intitulado La scienza nautica da Nonnio alla fine dei secolo decimo settimo, no qual (pag. 187) se censura um escriptor inglez porque «imputava a Nonnio la ignoranza della existenza della declinazione magnetica», e aponta-se em seguida um capitulo de Pedro Nunes em que se trata do assumpto.

Vê-se que o que escrevem o sr. Bertelli e outros, é resultado de uma errada orientação, que mal se justifica pelo patriotismo. A Italia teve excellentes mareantes nos seus Amalfitanos, Pisanos, Genovezes e Venezianos, que verdadeiramente ensinaram as outras nações em muitas partes da marinharia; a Hespanha não os teve menos excellentes nos seus Catalães e Malhorquinos. Mas nem um nem outro d'esses povos se abalançaram a devassar os segredos do Atlantico antes dos Portuguezes. Vem depois Colombo que aprendeu em Portugal; e a Italia, envaidecida de lhe ter dado o berço, e a Hespanha gloriosa de lhe ter aproveitado os trabalhos, cada qual disputa a quem melhor lho exaltará os meritos, louvando-o pelo que fez e pelo que não fez, e pondo no escuro a obra dos navegadores portuguezes.

É isto que a critica scientifica não consente.

[16] Veja-se Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 9.ª serie, pag. 315 e seguintes: Trabalhos nauticos dos Portuguezes nos seculos XVI e XVII, pelo sr. Sousa Viterbo.

[17] Era o magnifico fac-simile pertencente á Sociedade de Geographia de Lisboa.

[18] Tambem não deveriam esquecer os nomes e as obras dos fabricantes de cartas, globos e instrumentos nauticos, que os houve habilissimos nos seculos XVI e XVII em Portugal. D'este assumpto se occupa o erudito investigador, o sr. Sousa Viterbo, em um estudo que deve ser publicado no numero do Instituto, de Coimbra, destinado a commemorar o Centenario do Infante.


[19] Diogo de Couto, Dialogo do soldado pratico portuguez, pag. 9.

[20] Como exemplo do modo por que se redigiam entre nós os diarios nauticos nos seculos anteriores, copiaremos dois dias de navegação, em que não houve novidades extraordinarias, com o intervallo de dois seculos.


«Caminho»

«Quinta feira 25 dabril (de 1538) todo o dia foi o vento norte; gouernamos ao sul: ao meio dia tomei o sol, e na maior altura se aleuantaua sobre o orizonte 84 graos; a declinação deste dia era 16 graos, 20 minutos, do que se segue estarmos em dez graos e 1/6; esta mesma altura tomou o Piloto, mas o mestre tomou maes 1/3 de grao do sol ao orizonte.

«De noite toda foi o vento norte bonança; o quarto da prima e modorra gouernamos ao sul, e o dalua á mea partida do susueste.»

(D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa, pag. 115.)


«Em 24 do dito (agosto de 1736)»

«Sexta feira; quatro dias de viagem; se apartou (a nao) adiante e foi seguindo sua viagem. Ao meio dia se observou o sol, e achamo-nos em Latitude de 38 gr. e 43 m., e de Longitude 6 gr. e 16 m.; fez a nao curso pelo angulo 63 g., andou para o Norte 23 m. e para Oeste 37 m., com vento nordeste rijo. Deus nos dê boa viagem.»

(Derrota de uma esquadra portugueza em 1736, MS. da Bibliotheca Nacional. Collecção
Pombalina, n.º 149.)


[21] Stockler, Ensaio historico sobre a origem e progresso das mathematicas em Portugal, pag. 69.

[22] O primeiro nome notavel da nova sciencia de navegação é o de José Militão da Marta, piloto da armada e professor de pilotagem, o qual publicou diversas obras importantes, sendo a primeira logo em 1780, a qual se intitula Compendio das correcções que se devem fazer ás alturas dos astros, e a segunda, em 1781, intitulada O destro observador ou methodo facil de saber a latitude no mar.

[23] Commentarios, edição de 1784, parte IV, pag. 122.