COMMEMORAÇÃO DO CENTENARIO HENRIQUINO
O INFANTE D. HENRIQUE
e
A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES
conferencia
feita em 19 de fevereiro de 1894
no
CLUB MILITAR NAVAL
por
VICENTE M. M. C. ALMEIDA D'EÇA
capitão-tenente
da armada, lente da escola naval
SEGUNDA
EDIÇÃO
revista
e augmentada com algumas notas
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1894
O INFANTE D. HENRIQUE
E
A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES
COMMEMORAÇÃO DO CENTENARIO HENRIQUINO
O INFANTE D. HENRIQUE
e
A ARTE DE NAVEGAR DOS PORTUGUEZES
conferencia
feita em 19 de fevereiro de 1894
no
CLUB MILITAR NAVAL
por
VICENTE M. M. C. ALMEIDA D'EÇA
capitão-tenente
da armada, lente da escola naval
SEGUNDA
EDIÇÃO
revista
e augmentada com algumas notas
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1894
Vês aqui a grande
machina do Mundo,
Etherea, e elemental, que fabricada
Assi foi do saber
alto, e profundo,
Que é sem principio e meta limitada.
Quem
cerca em derredor este rotundo
Globo, e sua superficie tão
limada,
He Deos; mas o que he Deos ninguem o entende
Que a tanto o
engenho humano não se
estende.
Camões
Lusiadas,
X,
LXXX
.
Á memoria gloriosa
do
Infante Dom Henrique
«
Oo tu principe pouco menos que devinal! Eu
rogo a as tuas sagradas vertudes, que ellas soportem com toda paciencia
o ffalecimento de minha ousada pena, querendo tentar hũa tam alta
materya como é a
declaraçom de tuas vertuosas obras, dignas de tanta glorya,
cuja eternal duraçom, sob proveitosa fim,
alevantará a tua
fama com grande honra de tua memorya.»
Azurara,
Chronica
do Descobrimento e Conquista de Guiné,
cap. II.
SENHORES E PRESADOS CONSOCIOS:
O Club Militar Naval, querendo solemnisar a
celebração do quinto centenario do nascimento do
Infante D. Henrique, o inclito iniciador das
navegações e
descobrimentos dos Portuguezes, entendeu que o melhor meio de
commemorar essa tão gloriosa data, era reunir em algumas
noites os seus associados para ouvirem uma serie de conferencias ou
leituras sobre os assumptos mais importantes referentes ao Infante, ou
que com elle e a sua obra tivessem relação; e
para realisar essas conferencias
dignou-se convidar diversos dos seus socios.
Honrosa, mas difficil incumbencia! Honrosa, porque, se é um
dever de bons patriotas celebrar, sempre que a proposito venha, as
glorias nacionaes, é uma honra que não
póde recusar-se, o ser escolhido para porta-voz d'essa
celebração;
difficil, porque tendo de se fallar diante de uma assembléa
de technicos e de sabedores, quasi se torna impossivel dizer-lhes
cousas que não saibam, resumir-lhes estudos que
não conheçam, suscitar-lhes idéas que
já não tenham.
Mas, senhores, a «disciplina militar prestante», de
que falla o nosso epico, e que na marinha portugueza é a
tradição nunca desmentida da sua obediencia,
manda-nos embarcar n'esta viagem, e não ha que replicar.
Cada um de nós
dirá o que sabe e como sabe, certo de que a tabella da vossa
cortezia
corrigirá os desvios da
nossa insufficiencia. E nenhum de certo carece de maior
correcção do
que eu, a quem, sem que para isso tivesse merecimento, coube determinar
o
ponto de partida
[10]
e fazer o primeiro quarto, o
quarto de
prima, como se dizia na linguagem da antiga marinharia
portugueza.
Larguemos, pois.
Os louvores do Infante D. Henrique e a apreciação
dos actos que lhe valeram o cognome de
Navegador, occupam grandissimo espaço
na litteratura patria e estrangeira.
Desde a
Chronica de Azurara até
aos
Filhos de D. João I
do sr. Oliveira Martins, é longa a lista dos escriptores que
se
têem occupado do Infante. Só modernamente,
porém,
é que se póde dizer fixada a
determinação do seu valor,
resaltando da téla da historia com tanta mais nitidez quanto
é sabido que, nos ultimos tempos, criticos de certa escola
cuidaram ver no quadro sombras e manchas, a que deram exagerado vulto;
o que veiu a redundar em maior esclarecimento dos serviços
prestados á patria pelo glorioso Infante.
Sem nos deixarmos, pois, offuscar por este sentimento de solidariedade
que aos da nossa classe, melhor que a nenhuns outros, permitte apreciar
os trabalhos do mar, podemos certamente distinguir na vida do Infante
D. Henrique duas ordens principaes de factos: os que se referem ao
membro da familia reinante de Portugal, filho, irmão e tio
de reis, e os que dizem respeito ao promotor das
navegações.
Serão os factos da primeira especie menos brilhantes do que
se deveria desejar? Haverá que apontar erros de
entendimento ou de vontade, da parte do Infante, no desastre de Tanger
ou nas intrigas de Alfarrobeira? Não cuido que isto
não seja ainda materia para muita discussão. Mas
o que certamente o não é, aquillo sobre que me
parece
não restar duvida, é a influencia do Infante nos
destinos da
nação navegadora, é a sua iniciativa
enorme e absolutamente pessoal no commettimento dos «mares
nunca d'antes navegados».
Quer a escola critica, á qual ha pouco me referi, que D.
Henrique
devesse a um irmão, o celebre infante D. Pedro, notavel
pelas suas viagens na Europa, a possibilidade de alcançar
conhecimentos
[11]
cosmographicos e
geographicos que de outra fórma não teria obtido,
e sem os quaes nada poderia ter feito.
Não duvido, antes o dou por provavel, se não como
certo. Mas
póde isto desfazer alguma cousa na
concepção que se
tem formado do Infante D. Henrique, como espirito coordenador d'essas
informações e do tantas outras que por varios
lados colligiu, director perseverante de todos os emprehendimentos e
indicador seguro e consciente do caminho a seguir? Tambem o architecto
não levanta por si só o
edificio,―antes precisa da coadjuvação de muitos
homens desde o humilde
cabouqueiro ate ao estatuario insigne,―e comtudo é a elle
que cabe a
honra e primazia da construcção.
Das duas faces que offerece a historia do Infante D. Henrique, a que
diz respeito ás navegações
é, pois, a luminosa, e com tanta intensidade que deixa bem
no escuro a outra, e de todo a faz esquecer. É por ella que
o glorioso Infante
é conhecido na historia, é essa que hoje
celebrâmos
com enthusiasmo de Portuguezes e de marinheiros.
Vejamos as suas mais salientes feições.
Quando, em 1415, o Infante D. Henrique regressou da conquista de Ceuta,
o theatro do mundo physico certamente apresentava ao seu espirito uma
scena de grande confusão: por um lado o que se suppunha ser
a sciencia positiva geographica do tempo; por outro as lendas que quasi
tinham fóros de verdades; por outro ainda os absurdos que a
um espirito esclarecido se patenteavam, resultantes do combate entre
essas lendas e as probabilidades de certeza.
Eram conhecidas ao tempo com mais ou menos exactidão, e com
bastante imperfeição desenhadas nos
portulanos: todas as terras da Europa com as ilhas proximas e os mares
que as banham; a costa septentrional da África a
começar no Cabo Não sobre o Atlantico e
d'ahi até
ás bôcas do Nilo: para o interior d'essa costa um
tanto de terras até aos desertos;
[12]
a Palestina, a Syria, a
Asia Menor, alguma cousa a um e outro lado do Caucaso e pouco mais. No
resto da Asia sabia-se da existencia de varias terras, mas
só vagamente se lhes marcavam as
situações. Da Africa, para o sul
do Cabo Não, diziam-se cousas contradictorias. A America
sonhava-se porventura na lenda da Antilia. A Australia nem se sonhava.
Ainda havia vagas indicações, ligadas a lendas,
ácerca de diversas ilhas espalhadas pelo Atlantico. E tudo
isto se figurava, para o vulgo pelo menos, em uma terra plana, porque a
esphericidade do planeta teria como consequencia a existencia
dos antipodas, o que se reputava absurdo.
E as lendas pullulavam, avultando entre ellas a do Mar Tenebroso, a do
Equador inhabitavel e a do Preste João. Dizia-se por um
lado: não se póde navegar muito para longe
das costas que o Atlantico banha, porque a breve trecho se encontra a
região das trevas perpetuas, onde o sol se apaga no occaso,
povoada de ferozes monstros marinhos, agitada por medonhos e constantes
temporaes, promptos a desfazer o fragil baixel que ousasse
lá chegar; essa lenda vinha da
antiguidade, e foi porventura preconisada pelos Arabes, que assim se
desculpariam de não terem continuado nas suas
navegações para o occidente. Por outro lado
affirmava-se: é certo haver
gentes para alem da linha equinoxional; mas n'esta e nas
regiões que se lhe avizinham, os raios do sol incidem com
tal força que tornam impossivel ali a vida humana, e
impossivel,
portanto, a communicação dos povos da Europa com
os que habitam alem do Equador. E, contava-se ainda, ha bem longe da
Europa, e d'ella separado por terras de infieis, o reino de um principe
christão―o Preste João das
Indias;―e anceiava-se por travar relações com
esse irmão em
crenças.
Tudo isto ouvia e sabia o Infante D. Henrique; de tudo isto se occupou
provavelmente nas conversas que teve com os mercadores de Ceuta;
d'estes e de outros problemas tratou naturalmente com seu
irmão D. Pedro, o grande viajante por terra; e tudo excitava
a sua curiosidade.
O desejo de saber é o grande incentivo do progresso das
sciencias. Mas n'aquelle tempo o quadro da
especulação scientifica
[13]
estava ainda imperfeitamente
traçado, e mais do que esse desejo imperava de ordinario o
espirito pratico do proveito material. Haveria proveito em resolver
aquelles problemas geographicos? De certo. Se se descobrissem novas
terras, ellas seriam occupadas por gente portugueza, quando fossem
deshabitadas; seriam conquistadas, se pertencessem a infieis.
Vislumbravam-se já productos ricos d'essas
regiões, e d'ahi fontes de commercio remunerador. Por
ultimo, mas não em derradeiro logar para as idéas
da epocha,
haveria mouros a converter, pagãos a trazer ao gremio da
verdadeira religião, almas a conquistar para a fé
christã.
Por tudo isto foi o Infante D. Henrique estabelecer-se no Algarve e
designadamente em Sagres, ponta avançada sobre o Oceano, a
quem parecia espreitar os segredos, e d'ali
começou a lançar a vasta rede dos seus
commettimentos, cujas ultimas malhas nem elle sabia ao certo onde iriam
ter. Rodeou-se de homens experientes nas varias partes da marinharia,
pilotos do Porto frequentadores da carreira de Flandres, marinheiros
algarvios habituados á pesca do alto, mestres da
construcção de naus nas tercenas de Lisboa,
homens de Malhorca sabedores de astrologia e desenhadores de
portulanos, porventura até mouros de Ceuta e de outras
terras de
Marrocos. De todos precisava, para de todos aproveitar o que sabiam, e
melhorar consoante fosse necessario. Tal foi a chamada escola de
Sagres, não um instituto de sciencias navaes, mas um
convivio de conhecimentos diversos, em que todos eram a um tempo
mestres e alumnos. Ahi se discutiram os problemas geographicos, e se
traçaram os caminhos a tentar; lá se melhorou o
instrumento para dominar o mar, passando se
da
barca e do
barinel, ainda hoje problematicos,
á
caravella portugueza, o typo do
navio dos descobrimentos no seculo XV; ali se corrigiram os portulanos,
e se aperfeiçoou o seu uso
para a navegação, quando mesmo não
seja
exacto que lá se inventassem as cartas planas
[1].
[14]
Relativamente á propria essencia do problema geographico,
dois seriam os pontos principaes a resolver: quaes eram as terras para
o sul do Cabo Não; se havia terras para o
occidente das costas da Europa.
Ainda hoje é lição quasi geral que o
descobrimento de Porto Santo e o das primeiras ilhas dos
Açores foram devidos ao acaso. É sempre uma
tempestade que leva um navegador, de regresso da costa de Africa, a
encontrar-se fortuitamente com aquellas ilhas. Mas, pensando bem,
parece-me evidente que os descobridores de Porto Santo, das Formigas e
Santa Maria realisaram esses commettimentos porque a isso foram
mandados pelo Infante D. Henrique. Pois não havia
já
vislumbres da existencia d'aquellas terras? E o Infante, conhecedor da
lenda do Mar Tenebroso, não teria a peito destruil-a, por
não acreditar n'ella, como não acreditava na do
Equador
inhabitavel?
Temos, pois, que o Infante D. Henrique procurou determinar a
configuração exacta da Africa para alem do
ponto onde ella era conhecida, e procurou ainda reconhecer as terras
que existissem para o occidente. Estes eram, a bem dizer, os meios. Os
fins eram: a acquisição de novos territorios
para a Ordem de Christo, da qual o Infante era o Mestre, e
consequentemente para Portugal; o desenvolvimento do commercio
maritimo; a conquista de almas para a christandade.
Iria mais longe o ideal do Infante? Pensaria já na
esphericidade da terra, no caminho por mar para a India, no
aniquilamento do poder de Veneza, na espantosa grandeza do nome
portuguez? É licito suppol-o. Em todo o caso foi da sua obra
que resultaram todas essas consequencias, foi da sua iniciativa que
saíu toda a vida externa de Portugal nos seculos XV e
XVI, foi por ella que a Europa veiu a saber como era feito o mundo, e
que o mundo veiu a conhecer-se todo. E quando, morto o
[15]
Infante em 1460, se tinha chegado na costa de Africa ás
proximidades da Serra Leoa, e no Atlantico se tinham descoberto os
archipelagos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, os
successores do Navegador não tiveram mais do que persistir
no systema por elle adoptado, para chegarem por um lado Bartholomeu
Dias ao Tormentoso e Vasco da Gama á India, pelo outro
Colombo á America e Magalhães
ás ilhas do Pacifico.
Resumindo: o Infante D. Henrique iniciou e deu o grande impulso ao
extraordinario movimento geographico do seculo XV; graças
aos seus esforços tornou possivel o
conhecimento do mundo, até então em grande parte
velado aos olhos
dos homens da Europa; pessoal e directamente dirigiu o descobrimento da
extensa porção da costa africana e das ilhas
que povoam o Atlantico septentrional; por esta fórma
desenvolveu a arte
de navegar e a construcção naval; abriu novos
horisontes ao commercio portuguez; deu logar á
manifestação do espirito colonisador dos nossos
antepassados; augmentou o poder da Ordem de Christo; alargou o ambito
da religião do
Crucificado; n'uma palavra poz a pedra fundamental no edificio do
Portugal maritimo.
Tal foi a obra portentosa que o Infante D. Henrique realisou.
Vasta é hoje, senhores, e complicada a sciencia do homem do
mar. Quem sabe a serie de disciplinas que ao presente se exigem aos
officiaes de marinha, os longos e aturados estudos de mathematicas e
sciencias physicas que para ellas são
preparatorios, mal poderá imaginar a simplicidade e rudeza
dos conhecimentos de que dispunham os primeiros navegadores. Procurando
cumprir o programma que deliniei, vou tentar resumir o muito que a este
respeito haveria a dizer.
A historia dos diversos passos dados pelos Portuguezes na
arte
de navegar durante o periodo em
que elles primaram na carreira dos mares, póde, parece-me,
dividir-se em tres
principaes capitulos, que marcam outros tantos progressos.
[16]
O primeiro mostra a adopção das cartas planas,
pondo-se de parte as geographicas. O segundo apresenta a
invenção do astrolabio ou o seu
aperfeiçoamento, e com elle a
determinação da latitude pela altura do sol. O
terceiro inclue a descoberta da variação da
agulha e as tentativas para por
meio da sua determinação achar a longitude. Se a
isto
accrescentarmos a descoberta do phenomeno dos ventos regulares e das
monções, as primeiras
investigações feitas sobre as correntes maritimas
ou
rilheiros, como lhes
chama D. João de Castro, e ainda sobre outros assumptos,
facil é de ver que todas as maravilhas da physica do mar e
todos os problemas da
navegação foram primordialmente tocados pelos
mareantes portuguezes. Se lhes faltou a
determinação das longitudes pela
comparação das horas, prova-se por muitas
passagens dos auctores que elles não ignoravam a theoria,
mas apenas careciam do instrumento que podesse medir o tempo com a
necessaria exactidão; e de todos é bem sabido que
essa
delicadeza de construcção só muito
modernamente foi
attingida nos chronometros, que aliás são
instrumentos sujeitos á
influencia de diversas circumstancias perturbadoras.
Sem remontar aos tempos anteriores á era dos descobrimentos,
direi apenas qual era o estado dos conhecimentos nauticos na epocha do
Infante D. Henrique.
Azurara, citando as invectivas do Infante contra as
hesitações dos primeiros navegantes mandados a
descobrir, falla nas opiniões de «quatro
mareantes, os quaes, como
são tirados da carreira de Flandres ou de outros alguns
pontos para que commummente navegam, não sabem mais ter
agulha nem carta de marear»
[2]. Com
estas breves palavras
fixou Azurara o estado dos conhecimentos de
navegação no
começo dos descobrimentos.
[17]
E mais de um seculo depois João de Barros
escrevia: «No tempo em que o Infante D. Henrique
começou o descobrimento da Guiné, toda a
navegação dos mareantes era ao longo da costa,
levando-a
sempre por
rumo; da qual tinham suas noticias por signaes de que faziam
roteiros, como ainda ao presente usam em alguma
maneira, e para aquelle modo de descobrir isto bastava»
[3].
Vê-se, pois, que a navegação dispunha
de dois instrumentos apenas―a
agulha e a
carta de marear.
Da primeira tem sido até hoje baldado esforço dos
investigadores determinar a verdadeira origem e data de
invenção. Basta que saibamos que ella era
geralmente conhecida na Europa na segunda metade da idade media e pelo
menos desde o seculo XII. Quanto ás cartas,
reproducção graphica do contorno das terras e da
situação dos logares, se a
idéa d'este artificio veiu, como é certo, desde a
antiguidade classica,
foi tambem só na segunda metade da idade média
que
ella se desenvolveu, quando os estados mareantes do Mediterraneo
recomeçaram as navegações. Foram
principalmente os Catalães e os Malhorquinos que a esse,
como a muitos outros ramos das sciencias navaes, deram impulso;
ácerca d'este assumpto póde dizer-se que o nosso
visconde de Santarem, nos seus grandiosos trabalhos sobre a prioridade
dos descobrimentos dos Portuguezes, quasi esgotou a materia.
Mas os mappas e portulanos empregados ao tempo em que o Infante D.
Henrique começou a dedicar o seu espirito aos problemas que
o occupavam, eram mais propriamente o que hoje chamâmos
cartas geographicas do que cartas
hydrographicas ou maritimas. É certo, que, mal definida
ainda, e por muitos negada, a verdadeira fórma da terra,
eram tambem por ventura desconhecidas da maioria dos cartographos
quaesquer das theorias das projecções, a que hoje
obedecem
os diversos methodos do construcção das cartas
geographicas.
Estas reduziam-se, portanto, a um debuxo levemente approximado da
[18]
realidade; mas com isto se contentava a navegação
do tempo, visto que ella se fazia quasi absolutamente á
vista das
costas. Que, a bem dizer, tudo nos leva a suppôr que n'esses
primeiros arreboes da navegação moderna, os
mareantes
apenas applicavam a pratica das
conhecenças das terras,
sem se auxiliarem de qualquer conhecimento de caracter scientifico.
Mas, começados os descobrimentos do Infante D. Henrique, e
conhecida a necessidade de dirigir o rumo para logares situados no meio
do Oceano, como as ilhas da Madeira e os Açores, viu-se que
aquella navegação
por successivas
marcações de terras
conhecidas, como hoje diriamos, não podia servir. D'ahi
surgiu a necessidade de fazer cartas que, embora não
reproduzissem com rigor as dimensões relativas das terras,
permittissem, comtudo, determinar por linhas rectas os rumos a que se
devia navegar para demandar certas paragens; e aqui temos como o
Infante D. Henrique foi levado ao uso das
cartas planas. Durante muito tempo se affirmou ter
sido elle
o seu inventor; hoje presume-se que ellas já eram conhecidas
antes do tempo do Infante; mas foi certamente dos descobrimentos
portuguezes que derivou a necessidade do seu uso e por conseguinte o
seu aperfeiçoamento. Escusado é
lembrar o nome de mestre Jacome, Malhorquino, que foi, como quem diz, o
cartographo do Infante D. Henrique.
Os mareantes portuguezes «depois que quizeram navegar o
descoberto, perdendo a vista de terra e engolfando-se no pego do mar,
conheceram quantos enganos recebiam na estimativa e juizo das
singraduras, que segundo seu modo em vinte e quatro horas davam de
caminho ao navio, assim por rasão das correntes como de
outros segredos que o mar tem, da qual verdade de caminho a altura
é mui certo mostrador. Porém, como a necessidade
é mestra de todas as
artes, em tempo d'el-rei D. João II, foi por elle
encommendado este
negocio a mestre Rodrigo e a mestre Joseph Judeu e um Martim
[19]
de Bohemia, natural d'aquellas partes, o qual se
gloriava de ser discipulo de Joanne de Monte Regio, afamado astronomo
entre os professores d'esta sciencia. Os quaes acharam esta maneira de
navegar por altura do sol, de que fizeram suas taboadas para
declinação d'elle; como ora se usa entre os
navegantes já mais apuradamente do que se
começou, em que serviam uns grandes astrolabios de pau... de
tres palmos de diametro, o qual armavam em tres paus, á
maneira de cabrea, por melhorar segurar a linha solar, e mais
verificada e distinctamente poderem saber a verdadeira altura d'aquelle
logar; posto que levassem outros de latão mais pequenos,
tão rusticamente começou esta arte que tanto
fructo tem dado ao navegar»
[4]
.
Assim se exprime o Livio portuguez no logar de que ha pouco fiz outra
citação. Por estas palavras se
vê que a determinação da latitude por
meio da altura do sol constitue o segundo facto importante na historia
da nossa arte de navegar. No trecho de Barros vemos indicados os nomes
dos tres mais notaveis mathematicos que D. João II
consultava sobre os assumptos de navegação; alem
d'esses convem lembrar os do licenciado Calçadilha, bispo de
Vizeu, e de Diogo Ortiz,
bispo de Ceuta, os quaes, reunidos com os outros formavam a celebre
junta
que dava parecer sobre as mais
importantes questões relativas aos descobrimentos.
Começou-se, pois, a usar o astrolabio para determinar a
altura do sol. O que fosse esse instrumento, de que tendes presente um
exemplar, já muito aperfeiçoado, do principio
do seculo XVII
[5],
é de todos vós bem sabido; a
altura
tomava-se fazendo enfiar os raios solares pelos orificios das duas
pinnulas collocadas nas extremidades da alidade (ou
declina, como então se dizia), e lendo
depois no limbo o numero de graus; as fracções de
grau eram estimadas até um
sexto, isto só pelos observadores mais destros.
[20]
É lição corrente entre quasi todos os
escriptores nacionaes, e até entre muitos estrangeiros, a
começar pelo
celebre padre Fournier
[6],
que o astrolabio fosse
invenção
portugueza da epocha de D. João II. N'estes nossos tempos de
critica
rigorosa não me parece que seja licito fazer com absoluta
certeza tal asserção, pelo simples motivo de que
se
não encontra a esse respeito documento positivo, e antes se
sabe que já os geographos da antiguidade dispunham de um
instrumento para determinar a altura dos astros. Mas, se o astrolabio
não foi
invenção portugueza, foram com certeza
Portuguezes que primeiro o applicaram no mar, e que por isso mesmo o
aperfeiçoaram para facilitar essa
applicação.
Quando Vasco da Gama foi a descobrir o caminho por mar para a India,
parece que ainda levava um dos toscos e desconformes astrolabios de
pau, de que falla João de Barros, e tanto assim que,
desconfiado das indicações que
elle poderia dar a bordo por causa do balanço do navio, logo
que aportou em terra africana, na bahia de Santa Helena, o seu primeiro
cuidado foi
pesar o sol para saber
onde estava. E mais tarde, já nos bons tempos do astrolabio
de metal, todos os
cosmográphos recommendam muito que se procure o logar junto
ao mastro grande, onde a nau
dê menos
balanço.
Para provar que o astrolabio bem depressa se aperfeiçoou
entre nós, basta lembrar uma differença que no
seculo XVI já era corrente entre os astrolabios portuguezes
e os estrangeiros; pois, ao passo que estes eram graduados tendo
0° no horizonte e 90° no
zenith, os nossos tinham a
graduação invertida, o que, como se vê,
dava logo a distancia zenithal, facilitando assim a
conta,
como
então se dizia
[7].
Alem do astrolabio, e como simplificação d'elle,
havia tambem o
quadrante nautico, que parece ter
sido invenção portugueza ou pelo menos adaptada
pelos Portuguezes ás
observações no mar, visto que escriptores
estrangeiros lhe dão o qualificativo
[21]
de
lusitano. Consistia
o instrumento, como o seu nome indica, em um quarto de circulo graduado
no limbo em 90°, e tendo nas duas extremidades de um dos lados
do angulo recto duas pinnulas (
furos), por
onde se enfiava o astro; do vertice do mesmo angulo saía um
fio de prumo, o qual
ía determinar na graduação do limbo um
arco igual
á altura do astro. Como se vê, o quadrante nautico
fundava-se n'um
theorema conhecido ácerca da igualdade dos angulos; o seu
uso era recommendado sobretudo para a observação
da lua e
das estrellas, cuja luz, menos intensa que a do sol, permittia ser
affrontada directamente pela vista do observador.
Quanto á declinação do sol, era dada
por tábuas,
taboadas, como
então se dizia, das quaes as primeiras publicadas em
Portugal parece terem sido as de Abraham Zacuto, que foi chronista e
astronomo, ou melhor cosmographo, de D. Manuel, em um livro, hoje
rarissimo, intitulado
Almanach
perpetuus celestius motûs, impresso pela primeira
vez
em Leiria em 1497, e do qual houve mais edições;
no texto
explicativo das tábuas mostra-se o seu uso por modo mais
simples do que anteriormente. Este Zacuto era judeu portuguez, e parece
que tambem tinha feito parte da junta de mathematicos de D.
João II; sendo assim, poderá dizer-se que o seu
Almanach representava a sciencia astronomica da
junta. Pouco tempo depois, ao que se cuida, apparecia, já
impressa em portuguez, outra obra em
que se tratava da determinação da latitude.
É a traducção do
Tratado da
Spera do Mundo do celebre
mathematico João de Holywood em Inglaterra, de onde
tomára o nome de Sacrobosco,
e publicada, segundo affirma um nosso investigador, por Alvaro da
Torre, que ao mesmo tempo publicou
O
Regimento da declinação do sol,
traduzido
de Zacuto por Gaspar Nicolas, ao que parece, e o
Regimento
da estrella
polar. A edição d'esta obra
attribue-se ao anno de 1519
[8].
Sacrobosco e João Muller Regiomontano (outro nome alatinado,
[22]
derivado de
Königsberg, patria de Muller) foram por assim dizer os Dubois
e os Norie
[9]
do seculo XV, se bem que com maior merecimento, se
attendermos á epocha em que
viveram. Um escreveu sobre o que hoje se chama a astronomia applicada
á navegação; o outro foi o
auctor dos primeiros almanachs ou ephemerides astronomicas, de que
n'esta occasião tendes presente um exemplar de uma
edição do
começo do seculo XVII
[10].
Ora, assim como Gaspar
Nicolas seria o
primeiro traductor da obra de Sacrobosco em portuguez, assim Abraham
Zacuto, provavelmente instruido por Martim de Behaim, seria o primeiro
introductor em Portugal das tábuas de
Regiomontano.
Mas ambos aquelles estrangeiros escreviam mais para a theoria da
astronomia do que para a pratica da
navegação, a qual nos seus respectivos paizes era
ainda pouca e rude. Foi, pois, em Portugal que aquelles elementos
indispensaveis da navegação astronomica
começaram a
tornar-se praticos, despindo-se das concepções
superiores que não
estavam ao alcance da singeleza dos pilotos da epocha.
Convem aqui dizer o que eram os
Reportorios dos
tempos, que tanto emprego tiveram entre os mareantes do
seculo XVI. Os
Reportorios eram livros em que se
compilavam as regras praticas da arte de navegar e se davam as
tábuas de
declinação e outros elementos necessarios para a
navegação,
referidos, em geral, a alguns annos a seguir ao da
publicação do livro; juntamente traziam outras
indicações
proprias dos actuaes almanachs ou reportorios, e muitas que os
preconceitos da astrologia, cada vez mais desacreditada, ainda tornavam
interessantes. Póde, pois, dizer-se que, em
relação
á navegação, os
Reportorios
dos tempos faziam o
serviço das actuaes
Ephemerides e
Almanachs nauticos.
Uma das provas mais cabaes do muito que entre nós se
[23]
trabalhou em assumptos de
navegação, é
o grande numero de
Reportorios que se publicaram.
Disputam os bibliographos qual fosse o primeiro. Segundo as mais
recentes
investigações parece que seria um, editado talvez
em 1521 por Valentim Fernandes, e do qual houve diversas
edições; cita-se,
porém, a lembrança de outro publicado em 1519.
Estas
compilações, ao principio traduzidas do
estrangeiro, foram depois ampliadas, vindo a ter o caracter
essencialmente portuguez; pela rapidez relativa com que se succediam as
edições,
conclue-se o consumo que o livro tinha. D'elle tendes presente um
exemplar, de Manuel do Figueiredo, impresso em 1603
[11].
Achado o meio de determinar a latitude pela altura dos astros, foi este
o modo quasi exclusivo de navegar durante o periodo das nossas
gloriosas viagens no seculo XVI. A
estima, no sentido que hoje tem esta
expressão, não se
fazia, não só por não ter chegado
ainda ao campo da pratica a
resolução dos triangulos, pois que a algebra e a
trigonometria estavam na infancia, mas ainda por outra
razão, qual era a falta de um instrumento que
désse com approximação
a velocidade do navio. A
barquinha, que hoje nos
parece o
mais rudimentar instrumento da navegação pratica,
não estava ainda
inventada, e só o foi, segundo Jal, no começo ou
talvez
meado do seculo XVII, apesar de que, se me não engano,
nenhum dos nossos escriptores d'este seculo falla n'ella. Certo
é que
Humboldt, citando um trecho do Pigafetta, attribue ao nosso
Fernão de Magalhães o invento de um instrumento,
fundado no mesmo principio da actual
barca patente,
para determinar o andamento do navio; mas, se porventura o
circumnavegador o empregou, o seu uso não foi generalisado.
Avaliava-se então
o caminho andado só pela pratica, pelo ruido da agua
deslisando ao longo do costado do navio; e comtudo, conforme
recentemente se escreveu a respeito de Colombo, alguns mareantes tinham
tão bom habito d'essa
observação, que em pouco se enganavam.
[24]
Nas longas singraduras, porém, e sobretudo se
sobrevinham temporaes, os enganos eram grandes; e das
differenças de estimativa entre
diversos pilotos da mesma armada estão cheias as narrativas
das primeiras viagens.
Vêde, senhores, com que difficuldades luctavam
então esses homens destemidos que se chamavam Diogo Cam,
Bartholomeu Dias, Vasco da Gama, Alvares Cabral e os Corte-Reaes! As
cartas faziam-n'as elles; a estima era o que acabo de dizer; a
approximação do
ponto determinado pelo astrolabio podeis imaginar
o que seria.
E assim se percorreu o Atlantico e se chegou ao Oriente!
Foi com Pedro Nunes que a arte de navegar assumiu entre nós
uma feição verdadeiramente
nacional. Até então os fundamentos scientificos
das praticas dos nossos mareantes podem dizer-se derivados de fontes
estrangeiras, se bem que já
muito aperfeiçoados por Portuguezes, sobretudo no que dizia
respeito à observação dos phenomenos
physicos
do Oceano, como manifestamente devia acontecer, visto que eram
Portuguezes quem mais longe n'elle navegavam. Mas com Pedro Nunes ha
positiva originalidade, e por isso o seu nome é por tal
fórma notavel e preeminente na nossa historia scientifica,
que bem merece que n'elle nos detenhamos um momento.
Nasceu o grande mathematico em Alcacer do Sal em data não
averiguada ao certo
[12],
sabendo-se apenas que tomou o grau
[25]
de doutor em medicina na Universidade, que
então era em Lisboa, e n'ella era em 1530 lente de
Artes. Foi depois, em 1554, lente da nova cadeira
de mathematica da Universidade já estabelecida em Coimbra, e
n'ella veiu a jubilar-se em
1562. Em 1547 fôra nomeado cosmographo-mór, sendo
já anteriormente cosmographo de D. João III. No
exercicio d'essas funcções frequentou a
côrte, e assim
teve occasião, como professor ou em conversas, de tratar das
questões de
navegação com pessoas taes como o famoso infante
D. Luiz, irmão de D. João III, o infante D.
Henrique, depois rei, o principe D. Sebastião, o grande D.
João de Castro, Martim
Affonso de Sousa e muitos outros que d'esse convivio com o mestre
receberam ensino ou augmento de conhecimentos.
A obra fundamental de Pedro Nunes em relação
á arte de navegar consta de um conjuncto de escriptos
publicados em 1536, começando por uma
tradução do
Tratado da esphera de Sacrobosco, ampliado e
corrigido, e encerrando differentes outros trabalhos,
traduções e originaes, avultando entre
estes o
Tratado em defeza da carta de marear com o regimento
da altura[13].
Mas alem d'essas obras, Pedro Nunes escreveu e
publicou
[26]
muitas outras, nas quaes tocou todas as altas
questões das mathematicas puras e applicadas á
astronomia por
fórma a bem merecer o qualificativo que lhe dá
Stockler de
«o maior geometra que as Hespanhas tem produzido, e
incontestavelmente um dos maiores que no seculo XVI floresceram na
Europa».
Pedro Nunes foi principalmente um theorico, pois não consta
que tivesse navegado. Como, porém, era um espirito
esclarecido, de uma esphera muito elevada, as suas
elucubrações
[27]
nos diversos pontos da arte de navegar
produziram resultados valiosos, que depois poderam ser applicados por
homens praticos como D. João de Castro. D'esses estudos, os
que mais principalmente chamaram a sua attenção,
foram o
aperfeiçoamento dos methodos para obter a latitude e a mais
exacta
determinação da variação da
agulha, não devendo
tambem deixar-se de mencionar a sua theoria da
navegação pelo
circulo maximo, que elle estabeleceu completa e perfeita.
Já sabemos que a latitude era determinada pela altura
meridiana do sol ou das estrellas e principalmente da Polar, tomada com
o astrolabio ou com o quadrante portuguez. Pedro Nunes, attendendo,
porém, á impossibilidade
frequente de
apanhar o sol ao meio dia, e ainda
á difficuldade
de determinar com exactidão a sua maxima altura por causa da
marcha
vagarosa do astro quando d'ella se approxima, inventou um apparelho
denominado
instrumento de sombras, o
qual dava os elementos para um processo destinado a obter a latitude
pela observação das alturas do sol antes e depois
do
meio dia. Não é aqui o logar apropriado para
explicar o processo, cuja
pratica se póde ver nos
Roteiros
de D. João de Castro; apenas chamarei a vossa
attenção para a importancia do
problema, cujo enunciado basta para dar idéa do valor
scientifico de
Pedro Nunes. Lembrarei tambem que Pedro Nunes inventou o
annel
graduado instrumento de uso
mais facil que o astrolabio, e destinado aos mesmos fins, cujo emprego
se generalisou rapidamente.
Quanto ás agulhas de marear alguma coisa mais julgo dever
dizer.
Tem-se escripto e repetido que foi Christovam Colombo quem primeiro
descobriu o phenomeno da variação
da agulha. Assim será, posto que no meu espirito haja a tal
respeito
muita duvida. Que, se o facto fosse verdadeiro, em nada diminuia a
importancia das descobertas nauticas dos Portuguezes, porque, senhores,
a verdade é esta: Colombo foi um navegador da escola nautica
de Portugal; nem mais... nem menos.
Mas conhecida a variação, imaginou-se que ella
era constante em cada meridiano, e isto, que aliás
não era exacto, deu logar
[28]
a um artificio
essencialmente portuguez, que bem mostra quanto os nossos navegadores
se apressavam em aproveitar para a pratica as descobertas dos
phenomenos naturaes. Refiro-me á
construcção das agulhas portuguezas no principio
do seculo XVI, as quaes tinham «os ferros aos dois
terços da
quarta de nordestear»; quer dizer, que se corrigia ou
compensava a
variação nordeste, que então o era,
collocando a agulha em um angulo com a linha norte-sul da rosa igual a
essa
variação.
Nordestear
significava, como
vêdes, ser a variação oriental;
noroestear
significava o contrario;
são expressões que reputo essencialmente
portuguezas. E aqui temos como o problema da
compensação das agulhas, ainda hoje
tão incompletamente resolvido, foram Portuguezes os
primeiros que o atacaram!
É claro que essas agulhas assim compensadas só
podiam servir na navegação ao longo da costa de
Africa,
onde então a variação era nordeste e
tinha approximadamente
a grandeza que se julgava; póde bem imaginar-se que
fóra
d'aquella navegação, feita quasi pelo mesmo
meridiano, as indicações
das agulhas haviam de ser erroneas. Outra causa concorria para esses
erros, e era a propria rudeza da
fabricação. As primitivas agulhas portuguezas
tinham verdadeiramente a fórma de uma grande agulha de
alfayate, e eram fabricadas de ferro e não de
aço; em cada extremidade havia duas
pontas, e eram estas que se
cevavam, isto
é, que se tocavam com a pedra iman. Por este processo
rudimentar era de pequena intensidade a força magnetica das
agulhas; d'ahi a necessidade de as
cevar
frequentes vezes,
operação considerada a mais mysteriosa e sublime
que os pilotos tinham de realisar durante a
navegação.
Ora bem depressa foi reconhecido não só que a
variação mudava com o decorrer do tempo, mas
ainda que ella variava para os differentes logares da terra, e por isso
Pedro Nunes, reprovando o uso das agulhas que chamaremos compensadas,
inventou novos methodos para determinar a
variação, os quaes D. João de Castro
foi encarregado de experimentar nas suas viagens. Foi d'essas
experiencias, feitas por um homem altamente apto para as realisar, que
resultaram grandes progressos
[29]
no
conhecimento das leis do magnetismo, e entre elles a descoberta do
phenomeno do desvio local, ácerca do qual
não posso furtar-me ao prazer de citar o respectivo trecho
do Castro. «Este dia, mandando vir algumas agulhas para as
cotejar com o instrumento, achei-as tão desconcertadas que
foi cousa
espantosa, porque onde uma fazia o leste, a outra mostrava o norte.
Isto me teve muito suspenso, até que entendi a causa,
e foi um berço (peça de artilheria) que estava no
mesmo logar onde eu queria fazer as operações, o
ferro do
qual berço chamava a si as agulhas e as fazia desvairar
d'esta maneira; do que tirei que uma operação que
fiz a 30 de
junho... a qual achei que me vinha muito desconcertada, e assim algumas
outras... onde achei notaveis differenças, que foi por as
fazer perto de onde estava alguma peça de artilheria,
ancoras, ou qualquer outro ferro, como me passava a todas as partes da
nau, buscando logar conveniente a esta obra
[14]».
E aqui, senhores, permitti-me que interrompa o fio da narrativa para
vos repetir uma consideração já
tantas vezes feita. Os Portuguezes foram excellentes em muitos ramos
das sciencias. Os nomes dos nossos sabios que as honraram, foram por
vezes conhecidos lá fóra. Mas quantas foram elles
desprezados, e os seus trabalhos ignorados ou postos acintemente de
parte! Assim aconteceu com Pedro Nunes, que tendo inventado o conhecido
nonnio, que de seu
auctor tirou o nome, vemos por toda a parte attribuido o invento a um
estrangeiro. Assim com tantas outras invenções ou
descobertas,
como esta do desvio local das agulhas, a qual pertencendo, como acabaes
de ver, ao nosso Castro, é por todos referida a outro
estrangeiro
[15]!
[30]
O phenomeno da variação da agulha deu muito que
pensar aos nossos mareantes, e originou uma idéa, que por
muito
tempo occupou o espirito tanto dos theoricos como dos praticos.
Como já tive occasião de lembrar, a maior
difficuldade da navegação d'aquelles tempos era a
determinação da longitude ou da
longura,
como se dizia ainda
no seculo XVI, por opposição
[31]
a
ladeza ou
altura, synonimo de latitude. Um dos
methodos scientificos mais rigorosos era sem duvida a
observação dos eclipses; conhecida a hora em que
o phenomeno se dave sob certo meridiano, e determinada a hora em que
elle fosse
observado no meridiano do logar, a differença do tempo
reduzida a graus daria a longitude. Mas, alem de que o phenomeno, pela
sua pouca frequencia, não podia servir para as
necessidades da navegação, a grande difficuldade
estava em
determinar a hora do logar com uma approximação
que
désse resultados praticos. O processo empregado consistia em
determinar bem o meio dia pela altura maxima do sol, e desde
então em diante ir virando
relogios,
isto
é, ampulhetas d'areia,
[32]
até ao momento do eclipse.
Basta dizer isto para mostrar a rudeza da
operação; succedendo alem d'isso que a
imperfeição das ampulhetas, as quaes eram de meia
hora, dava logar ás mais extraordinarias
differenças entre ellas.
Por isso os navegadores serviam-se pela maior parte de
indicações tiradas da pratica, e entre estas,
quando se achavam proximos de terra (que era o momento mais para
receiar) da observação das diversas especies de
sargassos e
algas, peixes, e sobretudo de aves, que lhes appareciam, taes como
entenaes, feijões, mangas de veludo, gaivotões,
borrelhos,
calcamares, rabi-forcados, garajaos e garajinhas, e outros de que, nos
falla o bom Pimentel, não esquecendo os cagalhos que pela
singularidade
[33]
do nome não percam. Já se vê
que os nossos mareantes precisavam de ter um curso completo de
ornithologia.
Ora, todas estas difficuldades pareceram desapparecer quando se
começou a attender no phenomeno da
variação da agulha. Suppoz-se que esta em
determinados meridianos
feria
directamente o polo do mundo, e depois ía
nordesteando
ou noroesteando até chegar a um ponto onde o augmento da
variação cessava, passando então a
diminuir para depois chegar a
outro meridiano onde a variação era igual a zero.
Sendo
isto assim e havendo constancia no phenomeno, se se podesse conhecer
quaes os meridianos sem variação, e qual a regra
do seu
augmento e diminuição de um a outro d'esses
meridianos,
bastaria determinar a variação do logar para por
ella se conhecer a
longitude, praticando assim a
arte de leste a
oeste, como então se dizia.
Tal era a theoria. Segundo os pilotos portuguezes do seculo XVI, a
agulha era
fixa, isto
é, não tinha variação
alguma, em quatro pontos: no meridiano a oeste da ilha do Corvo, no
Cabo das Agulhas (que d'esse facto tirou o nome), na Pedra Branca junto
a Malacca, e em Carthagena na America.
Com estes dados trabalharam muito investigadores, entre elles um
Filippe de Guilhem, castelhano, a quem o nosso D. Manuel deu uma
tença e o habito de Christo, apesar de ser a sua doutrina
refutada pelo portuguez Simão Rodrigues, e um
italiano domiciliado em Portugal, o jesuita Christovam Bruno ou Borro,
a quem a fatalidade do appellido fez que escriptores
estrangeiros transformassem em Burro, o que elle decerto não
merecia. Este trabalhou muito no assumpto, indo de proposito
á India para fazer observações durante
a viagem; formou um mappa com as linhas magneticas ou isogonicas, como
hoje diriamos; e foi a Madrid solicitar do Filippe, que
então reinava, o premio de 50:000 cruzados proposto para
quem resolvesse o problema; não o obteve. Tão
notaveis talvez
como o Bruno, ainda que menos conhecidos, tinham sido os portuguezes
Luiz da Fonseca Coutinho e Gaspar do Couto, que muito se dedicaram a
este estudo no principio do seculo XVII. Couto foi mandado á
India em 1608 na esquadra em que ía o
conde da Feira, nomeado vice-rei, e levava minuciosas
instrucções, ou
[34]
regimento, como então se
dizia, para fazer um roteiro, observações
astronomicas e sobretudo as relativas á agulha
[16]. Citarei
finalmente o nome do nosso Antonio de Mariz Carneiro, que foi
cosmographo-mór nos ultimos annos da
dominação castelhana, o qual tanto scismou no
caso que mereceu aos seus contemporaneos a alcunha de
O
Agulha
fixa; e ainda os de Jeronymo Osorio da Fonseca e
José de Moura Lobo, que no tempo de D. João IV
trabalharam no problema.
A theoria era errada, como hoje sabemos, pois as linhas isogonicas nem
coincidem com os meridianos terrestres, nem são constantes
no tempo. Mas o pensar-se n'ella mostra
cabalmente que os Portuguezes procuravam resolver os problemas do mar
do melhor modo possivel.
E comtudo, convem dizer, parece que Pedro Nunes não dava
muito credito á hypothese, o que mais uma vez prova a
superioridade d'aquelle grande espirito.
Nós que sabemos a quasi superstição
com que os marinheiros ainda hoje contemplam a agulha, o respeito com
que a tratam, a afflicção que por vezes se apossa
d'elles
quando a vêem endoidecer em occasião de grandes
balanços, bem
podemos imaginar o que seria n'essas epochas de rudes conhecimentos, em
que da agulha tudo se esperava, e dos seus desvarios tudo se temia. E,
lançando um ultimo olhar de respeito a esses
esforços da intelligencia nautica dos nossos antecessores,
nós para quem hoje a navegação parece
um brinco,
tantas são as facilidades dos processos modernos,
tão exactas as
approximações a que podemos chegar nos calculos,
lembremo-nos de que ainda ao presente a
determinação da
variação e sobretudo do desvio é,
porventura, o maior cuidado do navegador.
Muito mais poderia dizer-vos, senhores, ácerca da arte de
navegar portugueza, para vos mostrar á saciedade como se
[35]
progrediu immensamente desde os escassos conhecimentos dos mareantes
do Infante até aos fins do seculo
XVI. Teria que fallar
ainda do successivo aperfeiçoamento das cartas, do
tronco das leguas, destinado a corrigir o
inconveniente da
equidistancia dos parallelos, como podereis ver na carta do Atlantico,
de Gaspar Viegas, que tendes presente
[17],
do uso da
balestilha, que parece remontar entre
nós aos fins d'aquelle seculo, dos
processos de sondar, dos levantamentos das costas e barras, da
determinação dos ventos geraes e das
correntes, das differentes derrotas para a India
por dentro
ou por
fóra da ilha de S. Lourenço, da famosa
questão de Molucas que
tanto agitou os theoricos e praticos do tempo de D. João
III, de muitos e variados pontos que todos concorreriam para confirmar
a minha these
[18].
Mas baste o que já tenho dito. O tempo corre, e, tendo
fallado tanto da arte de navegar, é bem que diga alguma
cousa a respeito dos que a praticaram.
Quando o Infante D. Henrique começou a mandar
a descobrir, empregou n'esse serviço
homens que, á
dedicação pelas novas idéas e aos
desejos de bem merecer, juntavam
conhecimentos das diversas partes da marinharia e por conseguinte da
arte
de navegar. Póde,
pois, suppôr-se que Gonçalves Zarco,
Tristão Vaz, Gil Eannes, Baldaya, Nuno Tristão,
Gonçalo de Cintra, e tantos outros, eram ao mesmo tempo
commandantes
[36]
dos navios para os fins politicos dos
descobrimentos e seus
pilotos para fazerem a derrota e
arrumarem
as novas terras.
Mais, tarde, porém, e sobretudo a datar da viagem de
Bartholomeu Dias, começa a historia a individualisar os
nomes dos pilotos que d'aquelle segundo serviço eram
especialmente
encarregados nas expedições maritimas. Depois,
quando a carreira da India passou a ser annualmente frequentada pelas
armadas, quando, attingido o objectivo no Oriente e no Atlantico, se
tratou mais da conquista que do descobrimento, os capitães
das naus e os capitães-móres
das armadas eram por via de regra tirados de entre os filhos da
nobreza, a quem se queria adiantar em fortuna, posto que quasi sempre
depois de já terem dado provas de valor militar e saber
politico,
ou nos serviços da metropole ou na defeza das
praças
de Africa. Succedia então que aquelles chefes, por vezes,
ignoravam os rudimentos da manobra e da arte de navegar, e por isso
estes serviços, até certo ponto reputados
inferiores em
comparação com o nobre exercicio das armas, eram
das
attribuições exclusivas dos mestres e pilotos.
D'estes embarcavam ordinariamente n'uma nau de carreira um piloto, um
sota-piloto, por vezes um piloto de sobresalente. Nas armadas havia
quasi sempre um piloto-mór, que embarcava na capitania. E,
alem de todos esses, havia frequentes vezes em cada navio um ou mais
marinheiros que
carteavam, provavelmente homens que se preparavam
para passar a pilotos,
praticantes, como hoje se
diria;
assim na nau
Grypho, que D. João de
Castro commandava quando foi pela primeira vez á India,
havia, incluindo o capitão, nove
pessoas capazes de tomar alturas.
Ora é facil de imaginar que nos navios, cujos chefes
não soubessem de navegação, se daria
toda a
importancia aos pilotos; estes, porém, creados pela maior
parte desde pagens na vida do mar (e era assim que Diogo do Couto os
reputava melhores), se tinham por isso toda a pratica proveniente de
tão continuadas viagens, eram quasi sempre baldos de
fundamentos scientificos, ainda mesmo dos tão simples da sua
epocha. Com as
regras do sol e as
menções dos
Roteiros ou das
[37]
apostilhas que passavam de
mão em mão, iam e vinham elles da India, contando
por nova palma de triumpho cada viagem que faziam. É claro,
pois, que a sua sciencia era em geral muito
limitada, e por isso pouco fundada a jactancia com que se ufanavam, e
que Pedro Nunes, D. João de Castro e outros tanto censuram
nos seus escriptos. Essa jactancia dava por vezes origem a
desagradaveis contendas entre elles e os
capitães, e tanto que, para as evitar, no reinado de D.
Sebastião se estabeleceu a multa de trezentos cruzados ao
capitão que injuriasse piloto. E a este respeito conta Diogo
do Couto a anedocta de um capitão de nau, Pereira Pestana, o
qual,
trazendo um dos taes pilotos fanfarrões e teimosos,
já
farto de o aturar, um dia atou uma bolsa com os trezentos cruzados a
uma meia lança, e depois o foi convidando com a arma assim
enfeitada
[19].
Mas apesar de tudo, apesar dos erros e teimosias de alguns pilotos
terem sido a causa provada do lastimosos naufragios, não
devemos esquecer quantos serviços se devem a
esses homens que em tão dilatadas
navegações
não tinham para determinar o ponto os elementos de que hoje
se dispõe. Registemos, pois, os nomes de Pedro d'Alemquer,
Alvaro Martins e João do Santiago, pilotos da
expedição de Bartholomeu Dias; os de
João de Coimbra e Pedro de Escobar, que com o mesmo Pedro
d'Alemquer foram com Vasco da Gama á India na primeira
viagem, e que aliás não mostraram muita coragem,
se é verdadeira a narrativa de Gaspar Corrêa; o de
Pedro Vaz de Caminha que foi na viagem de Cabral; e sobretudo o do
famoso Vicente Rodrigues, piloto-mór da India, que fez um
Roteiro e se applicou muito ao problema da
variação da agulha, e ainda o de Gaspar
Reimão, que tambem fez um Roteiro.
Nem sempre, porém, os commandantes estavam n'aquellas
circumstancias que acima indiquei. Frequentes vezes individuos que a
bordo desempenhavam cargos mais elevados que o de mestre ou piloto,
tinham conhecimentos completos de
[38]
marinharia. Então, se uma nau ou uma armada acertava de ter
por commandante um d'esses homens, o papel do piloto tornava-se
secundario, e era o capitão que fazia a
navegação. Homens taes, reunindo ao poder militar
e politico, exercido com saber superior, o conhecimento da manobra e da
nautica, eram verdadeiramente o que hoje se entende pela
denominação de―officiaes de marinha―. Assim o
foram Vasco da Gama, Duarte Pacheco, Fernão de
Magalhães, D.
João de Castro, Martim Affonso de Sousa, Antonio
Galvão, Diogo Botelho Pereira, Diogo do Sá, D.
Manuel de Menezes e tantos outros.
De D. João de Castro principalmente pouco é tudo
quanto em seu louvor se diga. Militar destemido, chefe generoso,
administrador honradissimo, erudito de primeira plana, foi sobretudo um
verdadeiro homem do mar! Tinha a sciencia e a consciencia, a
perspicacia na observação, a
pericia na manobra, aquelle sexto sentido tão celebrado como
a mais superior qualidade do marinheiro. Os seus tres
Roteiros são tres
maravilhas do engenho humano; quanto mais se estudam, mais se encontram
n'elles motivos para admiração,
tanta é a luz que irradia d'aquellas paginas, onde
não ha segredo do mar, portento da terra ou meteoro do
céu, que não seja
descripto e para o qual se não procure cabal
explicação. Se o Infante D. Henrique é
o nome prestigioso que preside a todos estes trabalhos, se o dr. Pedro
Nunes é o theorico eminente,
mestre dilecto e respeitoso que nos
Roteiros a cada momento se relembra, o nome de D.
João de Castro, do infatigavel
capitão da nau
Grypho e do
galeão
Coulão Novo, é
decerto o do portuguez do seculo XVI que mais nobremente praticou a
arte de navegar.
E já que mais de uma vez tenho fallado em
Roteiros, convem dizer uma
distincção que deve ser feita no
emprego d'esta palavra nos seculos anteriores.
Ao principio o roteiro era o trabalho do navegador escripto dia a dia,
mencionando a
rota, isto é, o caminho
andado, e no
[39]
qual se consignava não só a parte nautica da
viagem com o resumo das observações astronomicas
e dos calculos, as sondas e as outras indicações
proprias da
navegação, como ainda e muito principalmente as
peripecias da expedição,
os desembarques, a descripção das terras
visitadas e dos costumes
dos seus habitantes, por vezes o debuxo da sua apparencia em planta ou
em perspectiva, e a narrativa dos combates ou dos negocios realisados,
n'uma palavra as
novidades. Estes roteiros eram, pois, propriamente
a
derrota
ou antes o
relatorio da viagem, segundo a
nomenclatura actual; e assim eram os famosos
Roteiros
de D. João de
Castro e tantos outros que se têem publicado, alem de muitos
que provavelmente se perderam ou que se acham ineditos
[20].
Só mais tarde é que se começou a
escrever
Roteiros na outra
accepção do termo, unica que elle hoje tem. Esses
então consistiam nas indicações para
se navegar em demanda de determinadas
[40]
paragens, marcando as melhores epochas, os accidentes physicos
que em cada uma d'ellas se encontravam, as
precauções a tomar, o modo de buscar a terra, as
conhecenças d'ella; d'esta especie de roteiros,
evidentemente derivada da primeira, alguns haveria ao principio
manuscriptos que servissem para uso dos pilotos; depois imprimiram-se e
passaram a ter mais frequente emprego. Creio que o primeiro Roteiro
impresso foi um de Manuel do Figueiredo, publicado em 1609.
N'esta desalinhavada serie de apontamentos ácerca da arte de
navegar dos Portuguezes teria de certo logar opportuno a
indicação do ensino official da pilotagem.
Só este ponto fornecia materia para interessantes
observações; mas o
tempo vae passando, tem-se já voltado alguns
relogios, como se dizia no seculo XVI, e por isso
apenas fallarei muito a correr na
instituição do
cosmographo-mór.
Vimos que Pedro Nunes, sendo já cosmographo de D.
João III, foi em 1547
accrescentado no
officio
de cosmographo-mór. Desde então até ao
fim do seculo passado houve
sempre em Portugal um technico encarregado de desempenhar esse logar. A
elle pertencia a superintendencia em tudo o que dissesse respeito
á navegação, e mais tarde a
regencia da aula de nautica, bem como o exame dos pilotos e a
concessão dos
respectivos diplomas. Era esta ultima parte das suas
attribuições a que lhe dava maiores proventos,
derivados das respectivas propinas; mas alem d'isso o
cosmographo-mór tinha ordenado certo, que para o dr. Pedro
Nunes foi fixado em 50$000 réis annuaes, e que no meiado do
seculo XVIII era de 400$000
réis. Para apreciar o valor d'estas quantias devemos
lembrar-nos que no fim d'sse mesmo seculo (1790) o soldo de um
capitão de mar e guerra era de 30$000 réis
mensaes em terra e
réis 45$000 embarcado.
Depois de Pedro Nunes exerceram successivamente o cargo de
cosmographo-mór: Thomaz da Orta, de 1582 a 1596;
João
[41]
Baptista Lavanha, de 1596 a
1608, escreveu o
Regimento nautico; Manuel de
Figueiredo, já citado,
de 1608 a 1623; Valentim de Sá, nomeado em 1623 e que
escreveu o
Regimento de navegar; Luiz Teixeira que navegou
muito; o
distincto general de mar D. Manuel de Menezes, que alguns dizem ter
succedido a Figueiredo; Antonio de Mariz Carneiro, de 1631 a 1647; este
escreveu o
Regimento de
Pilotos e o
Roteiro da India Oriental,
e foi cognominado
O Agulha fixa, pelo muito que trabalhou na
determinação da
variação da agulha, como já disse.
A Antonio de Mariz segue-se a dynastia dos Pimenteis, nome bem
conhecido de todos nós. O primeiro foi Luiz
Serrão Pimentel, que exerceu o cargo de
cosmographo-mór desde 1647 até 1687, e escreveu
Roteiros e a
Arte
pratica de navegar, publicada por seu filho. Este foi Manuel
Pimentel que teve o officio desde 1687 até 1723, publicando
em 1712 a sua
Arte de navegar, na qual já se ensina a
carteação das milhas pelas tábuas dos
senos, tangentes e secantes, ou resolvida
graphicamente pelo emprego do quadrante ou
quarto de
reducção. Succedeu-lhe em 1723 seu
filho Luiz Francisco Pimentel; e finalmente foi o quarto Pimentel, e
ultimo cosmographo-mór, Francisco Serrão Pimentel
da Silva Paes, que veiu a morrer em 1832.
O que fosse a aula do cosmographo-mór nos ultimos tempos
póde avaliar-se por esta citação de
Stockler: «Toda a sciencia que na aula se ensinava, se
reduzia ao conhecimento da esphera e dos diversos meios graphicos e
trigonometricos de determinar no mar a situação
do navio pela derrota estimada,
isto é, pela medida da velocidade avaliada pela barquinha,
pelo angulo de rumo determinado pela agulha de marear, e pela mais
grosseira e arbitraria estima do abatimento. Esta imperfeitissima
derrota apenas se ensinava a corrigir pela latitude derivada da
observação da altura meridiana do
sol... A variação da agulha magnetica apenas se
ensinava
a determinar pela observação da amplitude ortiva
ou occidua do
sol, reputando-se por sublimidade, a que nem todos podiam chegar, o
determinal-a pela observação do angulo
azimuthal; segredo
[42]
que só se
communicava a algum discipulo de grande
esperança
[21].»
Mas surgiu n'essa epocha o vulto eminente de Martinho de Mello, o
edificador da nossa marinha moderna, o fundador d'esse conjunto
magnifico de instituições que,
quanto mais se estudam, mais se admiram. Por isso Martinho de Mello em
1779, «determinando dar ao ensino da arte de
navegação uma nova fórma differente
d'aquella que até agora se
acha estabecida,»
alliviou
Serrão Pimentel
do exercicio de cosmographo-mór, conservando-lhe,
porém, os vencimentos, e nomeou o professor Miguel
António Ciera para
lente
da aula de pilotos.
Estamos n'uma era nova, em epocha quasi contemporanea. No mesmo anno de
1779 é instituida a Academia Real de
Marinha, a antecessora da Escola Polytechnica; em 1796 organisa-se a
Academia Real dos Guardas-Marinhas, transformada depois na nossa Escola
Naval; em 1798 funda-se o Real Observatorio de Marinha. A
instrucção naval entra
então em moldes modernos: a
arte de navegar
passa a
ser verdadeiramente uma sciencia; os nossos officiaes collocam-se a par
dos mais distinctos das nações estrangeiras;
é
o apogeu da
marinha de guerra portugueza no
sentido actual da
expressão
[22].
Tocaram oito ampulhetas,
é chegado o momento, sempre ditoso, de entregar o quarto....
e já ora tempo, senhores, de cessar de abusar da vossa
attenção. Vou, pois,
terminar.
[42]
Em alguns escriptores, quiçá com mais curiosidade
indiscreta do que com verdadeira critica proveitosa, se encontra posto
o problema do que teria sido, se taes e taes factos historicos se
não tivessem dado, ou houvessem succedido por modo
differente. Poderiamos nós tambem perguntar: O que seria de
Portugal, se o Infante D. Henrique não se tivesse dedicado
ao problema dos descobrimentos? O que seria da Europa se, meiado o
seculo XV, um principe do pequeno reino portuguez não
pensasse em alargar para o occidente e para o sul os ambitos da sua
nação?
A taes perguntas cada qual poderá responder a seu talante.
Ninguem de certo ousará affirmar que ainda hoje estivessemos
limitados ao mundo conhecido dos antigos. Mas por quanto tempo se
demorariam ainda os descobrimentos? Não viria a realisar-se
o que, segundo vemos nos
Commentarios de
Affonso de Albuquerque, por pouco esteve para succeder, que,
em vez de serem europeus que demandassem as plagas orientaes, fossem
homens da India que viessem ao longo da costa africana a
descobrir-nos?
[23]
E se Portugal se não lançasse no caminho do
desconhecido e não conquistasse assim para si gloria e poder
tão grandes que lhe deram jus a uma vida independente,
não estaria elle já de ha muito absorvido na
unidade peninsular, tantas vezes
tentada e sempre repellida?
Gloria, pois, ao inclito D. Henrique, ao prestigioso Infante, que abriu
aos nossos antecessores o caminho dos mares, e nos permittiu a
nós, Portuguezes e marinheiros de hoje, vivermos
livres á sombra da bandeira das quinas, symbolo amado da
nossa tão querida patria.
Entreguei.
BIBLIOGRAPHIA
LISTA
DOS PRINCIPAES
TRABALHOS IMPRESSOS,
RELATIVOS
Á
«ARTE DE NAVEGAR DOS
PORTUGUEZES» DESDE OS PRIMEIROS TEMPOS
ATÉ
Á EXTINCÇÃO DA
«AULA DO COSMOGRAPHO-MÓR» EM 1779
TRATADISTAS
Duarte Pacheco Pereira,
Esmeraldo de situ orbis.
Começa por noções geraes de
cosmographia, esphera e navegação, e
segue a descripção geographica e roteiro dos
descobrimentos. Escripto em 1505? Publicado em 1892, Lisboa.
Gaspar Nicolas?
Tratado da Spera do mũdo tirada de latim em
lingoagem portugues com hũa carta... Seguese ho regimento da
declinaçom do sol... com ho regimento da estrella do norte.
(A
carta é traduzida por Alvaro da Torre.) Lisboa,
impresso
por Germão Galhard,
1519?
Pedro Nunes,
Tratado da Sphera, etc. (Veja-se
nota 1, pag. 23). Lisboa, 1536.
――,
De arte atque ratione navigandi, libri
duo. 1.ª edição, Coimbra,
1546; 2.ª edição, Coimbra, 1573; outra
edição com o titulo de
Opera
quae complectuntur, etc. Basilea, 1566. Houve mais
edições.
A 1.ª edição mencionada, de Coimbra,
é apontada por Barbosa, Ribeiro dos Santos, Innocencio e
outros; não consegui,
porém, ver um exemplar d'ella, ao passo que são
frequentes os da 2.ª
edição, 1573, em cujo prologo o editor (Antonio
de Mariz) censura os erros das anteriores edições
d'esta obra de Pedro Nunes, sem comtudo
as designar explicitamente. Parece, pois, que aquelles bibliographos
fizeram alguma confusão.
Diogo de Sá,
De navigatione. París,
1549.
João Baptista Lavanha,
Regimento nautico. 1.ª
edição, Lisboa, 1595.
[46]
Simão de Oliveira,
Arte de navegar. Lisboa. 1606.
Manuel de Figueiredo,
Chronographia, etc. (Veja-se
adiante.)
――,
Hydrographia, exame de pilotos, no qual se
contem as regras que todo o piloto deve guardar nas suas
navegações, etc. Lisboa, 1642.
Traz tambem um roteiro, adiante mencionado.
Valentim de Sá,
Regimento de
navegação, etc. Lisboa, 1624.
Antonio de Najera,
Navegacion especulativa e pratica,
etc. Lisboa, 1628.―Incluo este tratadista entre os auctores
portuguezes, porque elle se declara terminantemente
lusitano,
natural de
Lisboa (e isto no tempo da dominação
dos Filippes), diz que
saíu da
sua patria para percorrer a
Hespanha, e
desculpa-se de escrever o seu livro em
castelhano, por ser esta lingua conhecida em toda a monarchia. A obra
de Najera é a mais completa e clara das publicadas
até ao seu tempo; cita frequentes vezes Pedro Nunes e as
praticas dos Portuguezes; e sempre que vem a proposito, mostra os erros
de Rodrigo Samorano e Garcia de Cespedes, os dois tratadistas de
navegação ao tempo mais conceituados em Hespanha.
Antonio de Mariz Carneiro,
Arte pratica de navegar e roteiro das
navegações das Indias orientaes.
Lisboa, 1642. Teve mais
edições.
Luiz Serrão Pimentel,
Arte pratica de navegar e regimento de
pilotos, etc. Lisboa, 1681. É obra posthuma,
publicada por seu filho
Manuel Pimentel.
Antonio Carvalho da Costa,
Via astronomica. 1.ª parte, Lisboa,
1676; 2.ª parte, Lisboa, 1677. N'esta se contém:
1.º tratado:
Da navegação.
――,
Compendio geographico...
construcção de mappas e fabrica das cartas
hydrographicas, etc. Lisboa, 1686.
Manuel Pimentel,
Arte pratica de navegar e roteiro das
viagens, etc. Lisboa, 1699. É 2.ª
edição da obra de
seu
pae, Luiz Serrão Pimentel.
――,
Arte de navegar em que se ensinam as regras
praticas e o modo de cartear pela carta plana e reduzida,
etc. Lisboa,
1712.
ALMANACHS, REPORTORIOS, ETC.
Abraham Zacuto,
Almanach perpetuus celestius motûs astronomi
Zacuti, cujus radix est 1473. Leiria, 1496. É a
traducção do hebraico em latim, feita por
José Visinho, e impressa por mestre Ortas.
Conhecem-se
[47]
tres exemplares: um na Bibliotheca Nacional de Lisboa,
outro na bibliotheca de Evora, e o terceiro na Colombiana de Sevilha.
Valentim
Fernandes,
Reportorio dos tẽpos em
lingoagẽ portugues... e a declinaçom do sol com
seu regimento, etc.
1.ª edição, 1521? Teve mais
edições.
André de
Avellar,
Reportorio dos tempos, o
mais copioso que até agora saíu á luz,
conforme a nova
reformação do Santo Padre Gregorio
XIII, Lisboa, 1585. Teve, pelo menos, mais quatro
edições: Lisboa, 1590; Coimbra, 1590; Lisboa,
1594 com o titulo de
Chronographia ou Reportorio dos tempos, etc.;
Lisboa, 1602, com o mesmo titulo.
Manuel de Figueiredo,
Chronographia, reportorio dos tempos, no qual se contem seis
partes, etc. Lisboa, 1603.
Boaventura Soares,
Lunario de um siglo. Lisboa, 1748.
ROTEIROS
Alvaro Velho?
Roteiro da viagem de Vasco da Gama em
1497. Publicado pela primeira vez por Diogo Kopke e Antonio
da Costa Paiva, Porto, 1838; 2.ª edição,
por Alexandre
Herculano e o
barão do Castello Paiva (o mesmo Paiva da 1.ª),
Lisboa, 1861.
Livro de Duarte Barbosa, escrito em
1516;
Navegação ás Indias
Orientaes, por Thomé Lopes;
Navegação do capitão
Pedro Alvares Cabral;
Navegação de Lisboa á ilha
de S. Thomé, por um piloto
portuguez. No tomo II da
Collecção
de noticias
para a historia e geographia das nações
ultramarinas que vivem nos dominios portuguezes.
Lisboa, Ac. R. Sc. 1812.
Carta de Pedro Vaz de Caminha a el-rei D.
Manuel;
Roteiro da viagem de Fernão de
Magalhães. Ibid.,
tomo IV, Lisboa, 1826.
Pedro Lopes de Sousa,
Diario de navegação de Martim
Affonso de Sousa, publicado pela primeira vez por Francisco
Adolpho de Varnhagen, Lisboa, 1839.
D. João de
Castro,
Roteiro de Lisboa a
Goa, viagem realisada em 1538. Publicado em Lisboa, 1882,
por Andrade Corvo, com numerosas
annotações e um appendice sobre as
Linhas
isogonicas no seculo
XVI.
――,
Roteiro de Goa a Diu, viagem
realisada em 1538-1539. Publicado no Porto, 1843, por Diogo Kopke.
[48]
D. João de Castro,
Roteiro da viagem... em 1541, partindo... de Goa
até Suez, etc. Publicado pelo dr. Antonio
Nunes de Carvalho, París, 1833.
Manuel de Figueiredo,
Roteiro e navegação das Indias
Occidentaes, ilhas Antilhas e mar Oceano occidental, etc.
Lisboa, 1609.
Gaspar Ferreira Reimão,
Roteiro da navegação e carreira
da India tirado de... Vicente Rodrigues e Affonso Dioguo.
Lisboa, 1612.
Antonio de Mariz Carneiro,
Roteiro, etc, acima indicado.
Luiz Serrão Pimentel,
Roteiro do mar Mediterraneo, etc.
Lisboa, 1675.
――,
Roteiros das navegações
das conquistas de Portugal e Castella, na
Arte
pratica de navegar, acima
indicada.
Manuel de Mesquita Perestrello,
Roteiro dos portos, alturas, etc, desde o Cabo da Boa
Esperança até ao das
Correntes. Saíu na obra de
Serrão Pimentel, acima indicada.
Nos
Annaes maritimos e coloniaes,
Lisboa, 1840-1846, vem alguns roteiros e
indicações de navegações.
Na Collecção intitulada
Alguns
documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo ácerca das
navegações e
conquistas portuguezas, Lisboa, 1892, inserem-se diversas
cartas, relações de viagens e
outros escriptos importantes para a historia da arte de navegar
portugueza.
TRABALHOS HISTORICOS E CRITICOS
Antonio Ribeiro dos Santos,
Memoria da vida e escriptos de D. Francisco de Mello.
Memorias de litteratura portugueza da
Academia Real das Sciencias, Lisboa, tomo VII, 1806.
――,
Memoria da vida e escriptos de Pedro
Nunes. Ibid., ibid.
――,
Memorias historicas sobre alguns mathematicos
portuguezes e estrangeiros domiciliarios em Portugal ou nas conquistas.
Ibid.,
tomo VIII, 1812.
――,
Da antiguidade da
observação dos astros. Historia
e memorias da Academia Real das Sciencias. Lisboa, 1817, tomo V, parte
I.
Sebastião Francisco Mendo
Trigoso,
Memoria sobre Martim de
Bohemia. Memorias de litteratura da Academia, tomo VIII.
[49]
Francisco de Borja Garção
Stockler,
Ensaio historico sobre a
origem e progressos das mathematicas em Portugal.
París, 1819.
Ignacio da Costa Quintella,
Annaes da marinha portugueza.
Lisboa, 1839 e 1840.
Visconde de Santarem,
Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos dos Portuguezes,
etc. París, 1841. Foi
depois traduzida em francez e ampliada com o titulo de
Recherches,
etc. París, 1841.
――,
Essai sur l'histoire de la cosmographie et de la
cartographie, com o magnifico atlas. París,
1849-1852.
José Silvestre Ribeiro,
Historia dos estabelecimentos scientificos... de Portugal.
Lisboa, 1872, volume II e outros.
Marquez de Sousa Holstein,
A escola de Sagres e as
tradições do Infante D. Henrique.
Lisboa, 1877.
Luciano Cordeiro,
De como navegavam os Portuguezes no começo
do seculo XVI.
No Boletim da Sociedade de
Geographia de Lisboa, 4.ª serie, 1883.
Sousa Viterbo,
Trabalhos nauticos dos Portuguezes nos seculos XVI e
XVII. Ibid., 9.ª serie, 1890.
――,
Trabalhos nauticos, etc. 2.ª
serie. No numero do
Instituto, de
Coimbra, dedicado á commemoração do
Centenario,
1894.
Latino Coelho,
Vasco da Gama. Lisboa, 1882.
Manuel Pinheiro Chagas,
Os descobrimentos portuguezes e os de
Colombo. Lisboa, 1892.
Antonio Arthur Baldaque da Silva,
O descobrimento do Brazil por Pedro Alvares Cabral,
nas
Memorias da
commissão portugueza para o centenario do descobrimento da
America. Lisboa, 1892.
Vicente M. M. C. Almeida
d'Eça,
Nota sobre os
estabelecimentos de instrucção naval em Portugal,
etc. Lisboa, 1892.
Notas:
[1] Em
trabalhos, publicados já depois da
celebração do Centenario, volta-se a
pôr em duvida a diuturnidade da permanencia do
Infante em Sagres. Parece-me que ainda haverá muito que
investigar a este respeito; creio, comtudo, poder-se affirmar que foi
do Algarve, e principalmente dos seus portos occidentaes, que derivou a
grande corrente dos descobrimentos nos primeiros tempos.
[2] Chronica
do descobrimento de
Guiné, pag. 57.
[3] Decadas,
vol. I, pag. 281 (edição de 1778).
[4] Barros,
Decadas,
vol. I, pag. 281, 280 (ed. cit.)
[5] Era um
astrolabio feito por Nicolau Patenal em 1616;
pertence á collecção de instrumentos
nauticos da Escola
Naval.
[6]
Hydrographie, 2.ª ed.,
1666, pag. 369.
[7] Antonio
de Najera, mathematico lusitano,
Navegacion especulativa e pratica, Lisboa, 1628,
fl. 25 V.
[8] Veja-se
Boletim
da Sociedade de
Geographia de Lisboa, 4.ª serie, pag. 163 e seg.:
De
como navegavam os Portuguezes no
começo do seculo XVI, pelo sr. Luciano
Cordeiro.
[9] Nomes dos
auctores do
Tratado e das
Tábuas de
navegação, pelos quaes nos ultimos
vinte e cinco annos se tem ensinado na nossa Escola Naval.
[10] Era a
edição de
Witebergae, anno 1606, pertencente
ao conferente.
[11] Chronographia,
reportorio dos
tempos, etc.; exemplar pertencente á bibliotheca
da Escola Naval.
[12] Assim o
julgava quando escrevi a conferencia; mas depois
tive occasião de vir a saber que Pedro Nunes nasceu em 1502.
Na pag. 135 da
Arte atque ratione navigandi (ed.
de
Coimbra, 1573) lêem-se as seguintes palavras:
«Exempli gratiâ, sit anno Domini 1502,
quô ego natus sum.» No rosto
de um dos tres exemplares
d'esta edição, existentes na Bibliotheca
Nacional, encontra-se escripta por lettra do seculo XVI a
seguinte indicação: «Natus est hic
Doctor
año Dñi 1502. Obiit verò tertio idus
Augusti año Dñi 1578.»
[13] Em
seguida copiamos o titulo completo e o fecho da obra
fundamental do doutor Pedro Nunes sobre
navegação, bem como o
Regimento da altura.
Frontispicio
«Tratado da Sphera com a theorica do Sol e da Lua. E ho
primeiro livro da Geographia de Claudio Ptolomeu Alexandrino. Tirados
nouamente de latim em lingoagem pello Doutor Pedro Nunes cosmographo
del Rey dom João ho terceyro deste nome nosso Senhor. E
acrecentados
de muytas annotações e figuras por que mays
facilmente se podem entender.
Item dous tratados que o mesmo Doutor fez sobre a carta de marear. En
os quaes se decrarão todas as principaes duvidas da
navegação. Com as tavoas do mouimento do sol e
sua declinação. E
o Regimento da altura assi ao meyo dia como nos outros tempos.
Com previlegio real.»
Fecho
«Acabouse de emprimir a presente obra na muyto nobre e leal
cidade de Lixboa por Germão Galharde empremidor. Ao primeiro
dia do
mez de Dezembro de 1537 annos.»
«Regimento da
altura do polo ao meo dia.»
«§ Se o sol tem declinação
pera o norte e as sombras vão pera o norte; saberemos pello
estrelabio ao meo dia que he na mayor altura quantos graos ha de
nós ao sol: e acrecentaremos a
declinação d'aquelle dia: e o que somar
será o que estamos apartados da linha
equinocial para o norte.
«§ Mas se o sol tem declinação
pera o norte e as sombras vão pera o sul: saberemos pello
estrelabio quanto ha de nós ao sol: e
pelo regimento a declinação: e se forem iguais
estaremos na
equinocial. E se forem desiguais: tiraremos o menor numero do mayor,
porque o que ficar,
isso estaremos apartados da equinocial: e será pera o norte
se a declinação era mayor: e será pera
o sul se a
declinação era menor.
Ǥ A mesma regra nos serve tendo ho sol
declinação pera o sul, porque se as sombras
vão para o sul ajuntaremos o que ha de
nós ao sol com a declinação: e o que
somar isso estaremos apartado
da equinocial pera o sul.
«§ Mas se o sol tem declinação
pera o sul e as sombras vão ao norte: se o que ha de
nós ao sol for igual á
declinação, estaremos na equinocial. E se forem
desiguais tiraremos o menor numero do mayor: e o que ficar
será o que ao tal tempo estaremos apartados da
equinocial: e será pera o sul se a
declinação for mayor e
será pera o norte se a declinação for
menor.
«§ E quando não houver
declinação: ho que ouver de nós ao
sol, isso estaremos apartados da equinocial; e será pera
onde forem as
sombras.
Ǥ E em todo tempo que o sol pello estrelabio
estiver em noventa graos: o que elle tiver de
declinação, isso mesmo
estaremos apartados da equinocial e pera a mesma parte.»
[14] D.
João de Castro,
Roteiro de
Lisboa a Goa, pag. 308.
[15] Quando
escolhi para assumpto d'esta conferencia
«A arte de navegar dos Portuguezes», não
foi minha intenção embrenhar-me em
explanações scientificas ou controversias
criticas, mas apenas fazer uma rapida exposição
historica; nem outra cousa consentiam
tanto a indole de taes palestras como a
orientação dos meus estudos
habituaes.
Succedeu, porém, quatro dias antes da conferencia, que, indo
eu á Bibliotheca Nacional para rever alguns livros, pelo sr.
Gabriel Pereira, sabio director d'aquelle estabelecimento, me foram
mostrados
os volumes recentemente chegados da magnifica
publicação
feita a expensas do governo italiano, por occasião do
centenario de Colombo, intitulada
Raccolta di documenti e studi publicati dalla R. Commissione
Colombiana pel quarto centenario della scoperta dell'America.
O volume I da parte IV d'essa collecção
consta de um estudo do sr. Enrico Alberto d'Albertis, com o titulo
Le
costruzione
navali e l'arte della navigazione al tempo de Cristoforo Colombo;
e no
volume II vem um trabalho do sr. Timoteo Bertelli denominado
La
declinazione
magnetica e la sua variazione nello spazio scoperte da Cristoforo
Colombo.
Percorrendo este ultimo trabalho rapidamente, pois para mais
não tive tempo, vi que elle se propunha effectivamente
demonstrar ter sido Christovam Colombo o
primeiro que
descobriu o
phenomeno da variação da agulha, como
aliás é
lição quasi geral. Ora, entre a grande copia de
argumentos do sr. Bertelli, apparece o de que muitos auctores
contemporaneos e posteriores a Colombo ignoravam o phenomeno, e no
numero d'esses cita-se o nome do portuguez Pedro Nunes!!
Ao ler isto, ao ver citada a obra do nosso grande mathematico d'onde o
auctor tirava tal conclusão, confesso que pasmei. E o
pasmo redobrou, quando adiante, pag. 50, no cap. X, intitulado
Prospetto degli autori i quali dal medio evo sino
a tutto il secolo XVI suppozero
l'ago diretto al polo, cioé senza declinazione,
vi novamente
incluido Pedro Nunes (
o Nonnio),
citando-se d'elle
Opera omniae, Basilea,
1566, com a aggravante de se dizer em nota que a primeira
edição portugueza
é de
1536
(
sic).
Pois não conhecia a declinação da
agulha o Pedro Nunes que até inventou um instrumento
especial para a sua determinação,
o qual elle descreve no conhecido trecho que começa:
«Acerca
do nordestear e noroestear da agulha
tenho por certo que
ellas não
demandam o polo, porque não vi agulha que n'esta
terra não
nordesteasse»?
É extraordinario isto!
Mas afinal não deve talvez causar
admiração, se nos lembrarmos que o
auctor da memoria não viu ou não
entendeu a obra, que cita, de Pedro Nunes. E não admiraremos
tambem que a não visse,
sendo ella rara, se não viu nem ouviu fallar da maior parte
dos numerosos
trabalhos dos Portuguezes sobre a arte de navegar. Basta dizer-se que
lhe
são desconhecidos os
Roteiros de D.
João de
Castro, incluindo o ultimo publicado, em 1882, com as
annotações de Andrade Corvo, no
qual tantas vezes se trata da questão das agulhas, e se
inclue em appendice um
excellente trabalho sobre as
Linhas isogonicas no seculo
XVI. Pois o nome de D. João do Castro
não é ignorado na Italia, pelo menos do
estado maior do seu exercito, que estudou o
Roteiro do Mar
Roxo, como outras obras portuguezas, algumas das quaes
traduziu, por causa da
occupação de territorios em Massuá e
Dalaque.
Ora, sem entrar em polemica, direi apenas, ampliando as palavras que
proferi na conferencia:
1.º Que antes de Colombo partir para a sua primeira viagem,
já os Portuguezes navegavam havia muitos annos entre a
metropole e os
Açores, isto é, n'uma distancia de cerca de vinte
gráos
em longitude, e por isso teriam tido occasião de observar a
differença em variação;
2.º Que as palavras
nordestear e
noroestear são de
feição essencialmente portugueza, e ainda usadas
pelos nossos pilotos no seculo actual, pelo menos até ha
trinta annos;
3.º Que Christovam Colombo, empregando-as no seu diario,
não lhes explica o sentido, o que seria natural que fizesse,
se ellas, como o
phenomeno que significavam, fossem pela primeira vez communicadas;
4.º Que nas famosas expressões de Colombo,
relativas ao dia
13 de setembro de 1492, não se encontra mostra alguma de
espanto
pelo facto da variação da agulha, mas sim por
ella mudar de
signal;
5.º Que, por conseguinte, o que Colombo viu, foi apenas que a
variação ou
declinação, a qual até um certo
meridiano era n'um quadrante, d'esse meridiano em diante passava a ser
n'outro.
E não era preciso saír da
Raccolta para chegar a este mesmo
resultado, porquanto o sr. Alberto de Albertis, no cap. V da outra
memoria acima citada, põe em rubrica: «Prima
osservazione
del passagio della declinazione dell'ago magnetico
da
greco a maestro», deitando assim por terra, com
estas palavras, todo o magestoso edificio do sr. Bertelli.
E ainda depois de ter escripto a conferencia, chegou ás
minhas mãos o numero de fevereiro do corrente anno da
excellente
Rivista marittima italiana, e n'ella encontrei um
magnifico estudo do sr. Eugenio
Gelcich, intitulado
La scienza nautica da Nonnio alla fine
dei
secolo decimo settimo, no qual (pag. 187) se censura um
escriptor inglez porque
«imputava a Nonnio la ignoranza della existenza della
declinazione
magnetica», e aponta-se em seguida um capitulo de Pedro Nunes
em que se trata do assumpto.
Vê-se que o que escrevem o sr. Bertelli e outros,
é resultado de uma errada orientação,
que mal se justifica pelo
patriotismo. A Italia teve excellentes mareantes nos seus Amalfitanos,
Pisanos, Genovezes e
Venezianos, que verdadeiramente ensinaram as outras
nações em
muitas partes da marinharia; a Hespanha não os teve menos
excellentes nos
seus Catalães e Malhorquinos. Mas nem um nem outro d'esses
povos
se abalançaram a devassar os segredos do Atlantico antes dos
Portuguezes. Vem depois Colombo que aprendeu em Portugal; e a
Italia,
envaidecida de lhe ter dado o berço, e a Hespanha gloriosa
de lhe ter
aproveitado os trabalhos, cada qual disputa a quem melhor lho
exaltará
os meritos, louvando-o pelo que fez e pelo que não fez, e
pondo no
escuro a obra dos navegadores portuguezes.
É isto que a critica scientifica não consente.
[16] Veja-se
Boletim da Sociedade de
Geographia de Lisboa, 9.ª serie, pag. 315 e
seguintes:
Trabalhos nauticos dos
Portuguezes nos seculos XVI e XVII, pelo sr. Sousa Viterbo.
[17] Era o
magnifico
fac-simile pertencente á
Sociedade de Geographia de Lisboa.
[18] Tambem
não deveriam esquecer os nomes e as
obras dos fabricantes de cartas, globos e instrumentos nauticos, que os
houve habilissimos nos seculos XVI e XVII em Portugal.
D'este assumpto se occupa o erudito investigador, o sr. Sousa Viterbo,
em um estudo que
deve ser publicado no numero do
Instituto, de
Coimbra, destinado a commemorar o Centenario do Infante.
, pag. 9.
«Quinta feira 25 dabril (de 1538) todo o dia foi o vento
norte; gouernamos ao sul: ao meio dia tomei o sol, e na maior
altura se
aleuantaua sobre o orizonte 84 graos; a
declinação deste dia
era 16 graos, 20 minutos, do que se segue estarmos em dez graos e 1/6;
esta mesma altura tomou o Piloto, mas o mestre tomou maes 1/3 de grao
do sol ao orizonte.
«De noite toda foi o vento norte bonança; o quarto
da prima e modorra gouernamos ao sul, e o dalua
á mea partida do
susueste.»
(D. João de Castro,
Roteiro de Lisboa a
Goa, pag. 115.)
«Sexta feira; quatro dias de viagem; se apartou (a nao)
adiante e foi seguindo sua viagem. Ao meio dia se observou o sol, e
achamo-nos em Latitude de 38 gr. e 43 m., e de Longitude 6 gr. e 16 m.;
fez a nao curso pelo angulo 63 g., andou para o Norte 23 m. e para
Oeste 37 m., com vento nordeste rijo. Deus nos dê boa
viagem.»
, pag. 69.
O
primeiro nome notavel da nova sciencia de
navegação é o de José
Militão da Marta, piloto da armada e professor de pilotagem,
o qual publicou diversas obras importantes, sendo a primeira logo em
1780, a qual se intitula
,
edição de 1784, parte IV, pag. 122.