The Project Gutenberg eBook of Ramo de Flores

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Title: Ramo de Flores

Author: João de Deus

Commentator: Alexandre da Conceição

Luciano Cordeiro

Cândido de Figueiredo

Guiomar D. Torrezão

Release date: March 16, 2008 [eBook #24847]

Language: Portuguese

Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK RAMO DE FLORES ***






RAMO DE FLORES





RAMO DE FLORES

POR

JOÃO DE DEUS


ACOMPANHADO DE VARIAS

CRITICAS DAS FLORES DO CAMPO










PORTO
Typ. da Livraria Nacional
2—Rua do Laranjal—22
1869.

[5]

RAMO DE FLORES


I

SÊDE DE AMOR

I

Vi-te uma vez e (novo
Extranho caso foi!)
Por entre tanto povo...
Tanta mulher... Suppõe
[6]
Que mãe estremecida
Via o seu filho andar
Sobre muralha erguida,
Onde o fizesse ir dar

Aquelle remoinho,
Aquella inquietação
D'um pobre innocentinho
Ainda sem razão!

E ora estendendo os braços...
Ora apertando as mãos...
Vendo-lhe o gesto, os passos,
Quantos esforços vãos,

O triste na cimalha
Faz por voltar atraz...
Sem vêr como lhe valha!
A vêr o que elle faz!
[7]
Pallida, exhausta, muda,
Os olhos uns tições,
Com que, a tremer, lhe estuda
As mesmas pulsações...

(Porque não é mais fundo
O mar no equador,
Nem é todo este mundo
Maior do que esse amor!

Mais vasto, largo e extenso
Todo esse céo tambem
Do que o amor immenso
D'um coração de mãe!)

Assim, n'essa agonia...
N'essa intima avidez...
É que entre os mais te eu ia
Seguindo d'essa vez!
[8]
Porque te adoro!... a ponto,
Que ainda hoje, crê!
Escuto e oiço e conto
Os grãos de arêa até,

Que tu, mulher! andando
Fazias estalar
Já mesmo longe e... quando
Deixei de te avistar!

II

   Os olhos são
   D'uma expressão!
   Que linda bôca!
   O pé nem toca,
   De leve, o chão!

   Aquelle pé
   De leve até
[9]    Nem se elle sente!
   E sente a gente
   Não sei o que é...

   E a graça, o ar,
   D'aquelle a andar!
   Que véla passa
   Com tanta graça
   Á flôr do mar!

   Os olhos vêr
   Um só volver
   De olhar tão dôce,
   Que mais não fosse...
   Era morrer!

   Os dentes sãos
   E tão irmãos
   E tão luzentes!
   Que bellos dentes!
   Que lindas mãos!
[10]

III

Estrella, nuvem, ave,
Perfume, aragem, flôr!
Consola-me! distilla,
Da languida pupilla,
O balsamo suave
De um desditoso amor!
  Estrella, nuvem, ave,
Perfume, aragem, flôr!

A flôr, de que és imagem,
A flôr, de que és irmã,
Sacia-se, e desata
O seu collar de prata
Aos beijos da aragem,
Aos risos da manhã!...
  A flôr, de que és imagem,
A flôr, de que és irmã!
[11]
A perola que encerra
A flôr, é sua? Não.
O pranto que a amima,
Cahiu-lhe lá de cima
Para cahir na terra,
Para cahir no chão!
  A perola que encerra
A flôr, é sua? Não!

Tu já mataste a sêde,
Mata-me a sêde a mim!
Se em nuvem piedosa
Te refrescaste, rosa!
Tambem em ti eu hei de
Refrigerar-me!... sim!
  Tu já mataste a sêde,
Mata-me a sêde a mim!

É para que me orvalhes
Que te orvalhou o céo!
O liquido que veio
Aljofarar-te o seio
[12] Bem é tambem que o espalhes
No chão... o chão sou eu!
  É para que me orvalhes,
Que te orvalhou o céo!
[13]

II

LAMENTO

Senhor! Senhor! que um ai nunca me ouviste
          Na minha dôr!
Ai vida, vida minha, como és triste!...
          Senhor! Senhor!

Quando eu nasci, o sol cobriu o rosto
          Mal que eu o vi!
Tingiu-se o céo de sangue, e era sol-posto,
          Quando eu nasci!
[14]
Pela manhã, a rosa era mais alva
          Que a alva lã!
E o cravo desmaiou á estrella-d'alva,
          Pela manhã!

Ao longe, o mar se ouviu, leão piedoso,
          Um ai soltar!
Pelas praias, se ouviu gemer ancioso,
          Ao longe, o mar!

Oh roixinol! a ti, nasce-te o dia
          Ao pôr do sol!
Mostre-me a campa a luz que te alumia,
          Oh roixinol!
[15]

III

ENLEVO

Não brilha o sol,
Nem póde a lua
Brilhar na sua
Presença d'ella!..
Nenhuma estrella
Brilha deante
Da minha amante,
Da minha amada!
[16]
A madrugada
Quanto não perde!
O campo verde
Quanto esmorece!
Quanto parece
A voz da ave
Menos suave
Que a sua falla!

A flôr exhala
Menos perfume
Do que é costume
O seu cabello!
Que basta vêl-o,
Prende-se a gente!
Prende-se e sente
Gosto ineffavel!

Que riso affavel
Aquelle riso!
Que paraíso
Aquella bôca!
[17] Penetra, toca,
Enche de inveja
Um ar que seja
Da sua graça!

Onde ella passa,
Onde ella chega,
Quem lhe não prega
Olhos avaros!
Ha dotes raros,
Rara doçura
N'aquella pura
Casta existencia!

Oh! que innocencia
Que ella respira!
A alma aspira
Não sei que aroma
Mal nos assoma
Ao longe aquella
Pallida estrella,
Que rege o mundo!...
[18]
Nunca do fundo
Do oceano
Foi braço humano
Colher tão linda
Perola ainda,
Como a formosa
Candida rosa
Que eu amo tanto!

Não sei de santo
Que ha no seu gesto!
No ar modesto
D'aquelle todo...
N'aquelle modo...
Que tudo esquece,
E nos parece
Estar no céo!
[19]

IV

SEMPRE!

Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a dôce
E bella imagem tua, que eu quizera
Deixar de contemplar-te, só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo!

Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeleveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!...
Vejo-te sempre!... trago-te comigo!...
[20]

[21]

V

ESPERA!

Uivaria de amor a féra bruta
Que pela grenha te sentisse a mão!
E eu não sou féra, pomba! Espera! Escuta!
       Eu tenho coração!

Não é mais preto o ébano que as tranças
Que adornam o teu collo seductor!
Ai não me fujas, pomba! que me canças!
       Não fujas, meu amor!
[22]
A mim nasceu-me o sol, rompeu-me o dia
Da noite escura d'olhos taes, mulher!
Não me apagues a luz que me alumia
       Senão quando eu morrer!

Eu não te peço a ti que as mãos de neve,
Os dedos afusados d'essas mãos,
Me toquem estas minhas nem de leve...
       Seriam rogos vãos!

Não te peço que os labios nacarados
Me deixem esses dentes alvejar,
Trocando, n'um sorriso, os meus cuidados
       Em extasis sem par!

Mas uivando de amor a bruta féra
Que pela grenha te sentisse a mão,
Eu não sou féra, pomba! escuta, espera!
       Eu tenho coração!
[23]

VI

ADEUS

A ti, que em astros desenhei nos céos,
A ti, que em nuvens desenhei nos ares,
A ti, que em ondas desenhei nos mares,
A ti, bom anjo! o derradeiro adeus!

Parto! Se um dia (que é possivel flôr!)
Vires ao longe negrejar um vulto,
Sou eu que aos olhos d'esta gente occulto
O nosso immenso desgraçado amor.
[24]
Talvez as féras ao ouvir meus ais,
As brutas selvas, as montanhas brutas,
Concavas rochas, solitarias grutas,
Mais se condoam, se commovam mais!

E lá d'aquellas solidões se aqui
Chegar gemido que uma pedra estala,
Que um cedro vibra, que um carvalho abala,
Sou eu que o solto por amor de ti...

De ti! que em folha que varrer o ar,
Em rama, em sombra que bandeie a aragem,
De fito sempre n'essa cara imagem
Verei, sorrindo, sentirei passar!

De ti, que em astros desenhei nos céos!
De ti, que em nuvens desenhei nos ares!
De ti, que em ondas desenhei nos mares,
E a quem envio o derradeiro adeus!
[25]

VII

MELANCOLIA

Oh dôce luz! oh lua!
Que luz suave a tua,
E como se insinua
Em alma que fluctua
De engano em desengano!
   Oh creação sublime!
A tua luz reprime
As tentações do crime,
E á dôr que nos opprime
Abres-lhe um oceano!
[26]
É esse céo um lago,
E tu, reflexo vago
D'um sol, como o que eu trago
No seio, onde o afago,
No seio, onde o aperto?
   Oh luz orphã do dia!
Que mystica harmonia
Ha n'essa luz tão fria,
E a sombra que me guia
N'este areal deserto!

Embora as nuvens trajem
De dia outra roupagem,
O sol, de que és imagem,
Não tem essa linguagem
Que encanta, que namora!
   Fita-te a gente, estuda,
(Sem mêdo que se illuda)
Essa linguagem muda...
O teu olhar ajuda...
E a gente sente e chora!
[27]
Ah! sempre que descrevas
A orbita que levas,
Confia-me o que escrevas
De quanto vês nas trevas,
Que a luz do sol encobre!
   As victimas, que escutas,
De traças mais astutas
Que as d'essas féras brutas...
E as lastimas, as luctas
Da orphã e do pobre!
[28]

[29]

VIII

SYMPATIA

Olhas-me tu
Constantemente:
D'ahi concluo
Que essa alma sente!...
Que ama, não zomba,
Como é vulgar;
Que é uma pomba
Que busca o par!...
[30]
  Pois ouve; eu gemo
De te não vêr!
E em vendo, tremo
Mas de prazer!...
Foge-me a vista...
Falta-me o ar...
Vê quanto dista
D'aqui a amar!
[31]

IX

11 DE MAIO

Se eu fosse nuvem tinha immensa magoa
Não te servindo d'azas maternaes
Que te podessem abrigar da agoa
     Que chovesse das mais!

E sendo eu onda, tinha magoa summa
Não te podendo a ti, mulher, levar
De praia em praia, sobre a alva espuma.
     Sem nunca te molhar!
[32]
E sendo aragem, eu, que pela face
Te roçasse de rijo, alguma vez
Que o Senhor com mais força respirasse,
     Que magoa immensa... Vês!

E a luz do teu olhar que me não lusa
Um rapido momento, a mim, sequer,
Como a aguia no ar... que passa e cruza
     A terra sem n'a vêr!

Mas que me importa a mim! Se me esmagasses
Um dia aos pés o coração a mim,
As vozes que lhe ouviras se escutasses,
     Era o teu nome... Sim!

O teu nome gemido docemente
Com toda a fé d'um martyr em Jesus,
Se acaso já em Christo pôz um crente
     A fé que eu em ti puz!
[33]
A fé, mais o amor! Porque elle expira
Sem que a ninguem lhe estale o coração,
E eu, se essa cruz dos olhos me fugira,
     Sobrevivia? Não!

Assim como em ti vivo, morreria
Tambem comtigo, se uma vez (que horror!)
Te visse pôr, oh sol!... sol do meu dia!
     Astro do meu amor!
[34]

[35]

X

ATTRACÇÃO

  Meus olhos sempre inquietos
Que posso até dizer,
Só acham n'alma objectos
Que os possam entreter;

  Meus olhos... coisa rara!
Porque hão de em ti parar
Como a corrente pára
Em encontrando o mar!?
[36]
  E penso n'isto, scismo...
Mas é tão natural
Cahir-se no abysmo
D'uma belleza tal!...

  Olhei!... Foi indiscreta
A vista que te puz.
A pobre borboleta
Viu luz... cahiu na luz!

  Uma attracção mais forte
Que toda a reflexão,
(É fado, é sina, é sorte!)
Me arrasta o coração...
[37]

XI

DESANIMO

Que mimos me confortam?
Que doce luz me acena?
Eu tenho muita pena
De ter nascido até!

Quizera antes ao pé
D'uma arvore frondosa
Ter já em cima a lousa
E descançar emfim!
[38]
Alli, nem tu de mim
De certo te lembravas,
Nem estas feras bravas
Me iriam assaltar!

Alli, teria um ar
Mais puro e respiravel,
E a paz imperturbavel
De quem, emfim, morreu!

D'alli, veria o céo
Ora sereno e puro,
Ora toldado e escuro...
Ainda assim melhor,

Que este areal de amor
Onde ando ao desamparo,
Onde a ninguem sou caro
E nem, a mim, ninguem!
[39]
Alli passára eu bem
A noite derradeira
Á sombra hospitaleira
Que mais ninguem me dá!

Tu mesma, que não ha
Quem eu mais queira e ame,
Quem a minha alma inflamme
De mais ardente amor,

Os ais da minha dôr
A ti o que te importam?
Teus olhos nem supportam
A minha vista ao pé!

Que mimos me confortam?
Que dôce luz me acena?
Eu tenho muita pena
De ter nascido até!
[40]

[41]

XII

N'UM ALBUM

É esta vida um mar; e n'este mar
Qual é o astro que nos alumia?
Que norte, estrella ou bussola nos guia?
Um olhar de mulher! um terno olhar!
[42]

[43]

XIII

O SEU NOME

I

Ella não sabe a luz suave e pura
Que derrama n'uma alma acostumada
A não vêr nunca a luz da madrugada
Vir raiando senão com amargura!
[44]
Não sabe a avidez com que a procura
Ver esta vista, de chorar cançada,
A ella... unica nuvem prateada,
Unica estrella d'esta noite escura!

E mil annos que leve a Providencia
A dar-me este degredo por cumprido,
Por acabada já tão longa ausencia,

Ainda n'esse instante appetecido
Será meu pensamento essa existencia...
E o seu nome, o meu ultimo gemido

II

        Oh! o seu nome
        Como eu o digo
        E me consola!
        Nem uma esmola
        Dada ao mendigo
        Morto de fome!
[45]
        N'um mar de dôres
        A mãe que afaga
        Fiel retrato
        De amante ingrato,
        Unica paga
        Dos seus amores...

        Que rota e nua,
        Tremulos passos,
        Só mostra á gente
        A innocente
        Que traz nos braços
        De rua em rua;

        Visto que o laço
        Que a prende á vida
        E só aquella
        Candida estrella
        Que achou cahida
        No seu regaço;
[46]
        (Não que lhe importe
        A ella nada...
        Que tudo escusa;
        E até accusa
        De descuidada
        Comsigo a morte!)

        Mão bemfazeja
        Se por ventura
        Encontra um dia,
        Com que alegria,
        Com que ternura,
        Ella a não beija!...

        Mas com mais quanto
        Amor te escrevo,
        Soletro e leio
        Nome de enleio!
        Nome de enlevo!
        Nome de encanto!
[47]

III

Como a agua d'um lago—toda um nivel,
Vae de circulo em circulo ondeando,
Se a andorinha a roça ao ir voando
Atraz d'algum insecto imperceptivel;

E quebrado esse espelho em mil pedaços
(Que a imagem do céo desapparece)
Em circulos concentricos parece
Tornarem-se a formar novos espaços...

Ou como d'entre as notas ineffaveis
Dos canticos do céo—todo harmonia—
Mal sôa o dôce nome de Maria,
Pasmam as multidões innumeraveis;
[48]
E de onda em onda cada vez mais larga,
De brisa em brisa cada vez mais pura,
O nome d'essa excelsa creatura
Por todo aquelle immenso mar se alarga;

E tudo quanto cerca o trono eterno
Áquella dôce voz desprende o canto,
Formando um côro universal, em quanto
Reina silencio no profundo inferno...

Assim, n'esta paixão que me devora,
Se aos labios essas syllabas me assomam,
As negras sombras da minha alma tomam
Gradualmente o explendor da aurora!

Toda a idéa má recua um passo,
Aplanam-se os dominios do futuro,
E do crystal mais transparente e puro
Se me arqueia a abobada do espaço!
[49]
Desdobra-se o passado á luz do dia,
Em valle ameno, aos olhos da memoria;
E eu acho não ser perfida, illusoria,
A fé que eu punha em certa luz que eu via...

Vejo que aquelle informe e negro monte,
Que me tapava a mim o fim da vida,
Não era mais que a natural subida
Para se dominar vasto horizonte!...

Esse horizonte és tu, pombinha brava!
Tu, cujo peito que aliás encerra
O que ha de bello e grande em céo e terra,
Só com duas conchinhas se tapava...

Mas em quanto não chego áquella altura
D'onde se avista a terra promettida,
Irei cantando, distrahindo a vida
Com essa invocação suave e pura...
[50]
Invocação de nome tão suave
Como esse olhar!... que eu, só de vêr, suspiro!
Mas... que invoco em silencio... como admiro
A luz da lua, e o olhar da ave!...

IV

        E se algum dia
        Deres abrigo
        Ao desgraçado
        Pobre mendigo
        Expatriado,
        Morto de fome,
        Dize comtigo:
        «Mais consolado
        Se elle sentia
        Lendo o meu nome!»
[51]

XIV

SAUDADE

Tu és o cálix;
Eu, o orvalho!
Se me não vales,
Eu o que valho?

Eu se em ti caio
E me acolheste
Torno-me um raio
De luz celeste!
[52]
Tu és o collo
Onde me embalo,
E acho consolo,
Mimo e regalo:

A folha curva
Que se aljofara,
Não d'agoa turva,
Mas d'agoa clara!

Quando me passa
Essa existencia,
Que é toda graça,
Toda innocencia,

Além da raia
D'este horizonte—
Sem uma faia,
Sem uma fonte;
[53]
O passarinho
Não se consome
Mais no seu ninho
De frio e fome,

Se ella se ausenta,
A boa amiga,
Ah! que o sustenta
E que o abriga!

Sinto umas magoas
Que se confundem
Com as que as agoas
Do mar infundem!

E quem um dia
Passou os mares
É que avalia
Esses pezares!
[54]
Só quem lá anda
Sem achar onde
Sequer expanda
A dôr que esconde;

Longe do berço,
Morrendo á mingoa,
Paiz diverso...
Diversa lingoa...

Esse é que sabe
O meu tormento,
Mal se me acabe
Aquelle alento!

Ah, nuvem branca
Ah, nuvem d'oiro!
Ninguem me estanca
Amargo choro;
[55]
E assim que passes
Mesmo de largo...
Vê n'estas faces
Se ha pranto amargo.

Tu és o norte
Que me desvias
De ir dar á morte
Todos os dias;

A larga fita
Que d'alto monte
Cerca e limita
O horizonte!

Tu és a praia
Que eu sollicito!
Tu és a raia
D'este infinito!
[56]
Se ha uma gruta
Onde me esconda
Á força bruta
Que traz a onda;

Á força immensa
D'esta corrente
D'alma que pensa,
Alma que sente;

Se ha uma véla,
Se ha uma aragem,
Se ha uma estrella,
N'esta viagem...

É quem eu amo,
A quem adoro!
E por quem chamo!
E por quem choro!
[57]

XV

* * * *

Não sei o que ha de vago,
Incoercivel, puro,
No vôo em que divago
Á tua busca, amor!
No vôo em que procuro
O balsamo, o aroma,
Que, se uma fórma toma,
É de impalpavel flôr!
[58]
Oh como te eu aspiro
Na ventania agreste!
Oh como te eu admiro
Nas solidões do mar!
Quando o azul celeste
Descança n'essas agoas
Bem como n'estas magoas
Descança o teu olhar!

Que placida harmonia
Então a pouco e pouco
Me eleva a fantasia
A novas regiões!
Dando-me ao uivo rouco
Do mar, n'essas cavernas,
O timbre das mais ternas
E pias orações!

Parece todo o mundo
Só um immenso templo!
O mar já não tem fundo
E não tem fundo o céo!
[59] E, em tudo, o que contemplo,
O que diviso em tudo,
És tu!... esse olhar mudo!...
O mundo... és tu... e eu!...

FIM

[60]

[61]

CRITICAS

DAS

FLORES DO CAMPO

[62]

[63]

FLORES DO CAMPO

POR

JOÃO DE DEUS

João de Deus não é sómente um grande poeta, é um iniciador. A estrophe sahe-lhe do coração não só transparente e limpida, como um veio de crystal, mas espontanea, harmoniosa e originalissima, como todas as creações dos espiritos profundamente caracterisados e essencialmente creadores.

João de Deus é um grande scismador e um grande artista. Concebe admiravelmente, e executa melhor ainda. Cada lyrica é uma maravilha, cada estrophe um mimo, cada verso um primor. Reune á intelligencia apaixonada de Platão o delicadissimo senso artistico de Cellini. Ha n'aquella lyra notas e harmonias d'uma frescura e de uma novidade dignas de Homero ou de Wainamoinen. É que o talento poetico de João de Deus é essencialmente [64] espontaneo e primitivo, se me permittem a expressão.

Parece que não ha n'aquelles versos nem estudo de modelos, nem influencia de escólas, nem escolha de assumptos.

A natureza poetica de João de Deus é sobre tudo virginal, sincera, innocente. Canta, não para que o escutem, mas porque nasceu poeta; chora, não para que o consolem, mas porque nasceu triste; medita, não para que o considerem, mas porque nasceu scismador. É poeta... e não póde ser mais nada; fizeram-n'o deputado talvez para fazerem um epigramma á poesia, que tantos tem feito—epigrammas, entenda-se.—João de Deus deputado é o mesmo... que um deputado João de Deus, duas entidades a rirem-se constantemente uma da outra, como os dois oraculos de que falla Cicero.

Um João de Deus nasce feito... não se faz d'elle cousa nenhuma; ha de ser sempre João de Deus, quer o façam rei, quer regedor de parochia. Ego sum qui sum, dizia o espirito mais profundamente original da humanidade. João de Deus, e os homens de uma individualidade assim tão caracterisada podem, salvo a irreverencia, dizer o mesmo.

[65]

A João de Deus deu-lhe para ser poeta; se lhe désse para ser diplomata era Bismark, e tinha a estas horas realisado a união iberica. Foi melhor assim, ao menos para se não acabar com a possibilidade de termos volumes como as Flores do Campo.

Dizem-me que João de Deus é um excellente tocador de viola, onde improvisa devaneios arrebatadores. Esta prenda caracterisa-lhe o talento artistico. É poeta como guitarrista e quasi improvisador como poeta. Aquella alma é uma lyra: vibra, estremece e canta ás aragens fugitivas da impressão. Natureza profundamente sympathica, tem um riso para cada alegria, uma lagrima para cada amargura, uma consolação para cada infortunio:

Despe o lucto da tua soledade
E vem junto de mim, lirio esquecido
       Do orvalho do ceu!
Tens nos meus olhos pranto de piedade,
E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido,
       Mulher! sou irmão teu.

Consolos não te dou, que não existe
Quem de lagrimas suas nunca enxuto
       Possa as d'outro enxugar:
Não póde allivios dar quem vive triste,
Mas é-me dôce a mim chorar, se escuto
       Alguem tambem chorar.
[66]

E não ha artificios n'esta poesia, que é singela como todos os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de creança, suave e consoladora como uma parabola de Christo, serena e luminosa como um dialogo de Platão:

Mulher, mulher! quando eu n'um cemiterio
Levanto o pó dos tumulos sósinho:
       Eis, digo, eis o que eu sou,
Mas quando penso bem n'esse mysterio
Da virtude infeliz: Vae teu caminho;
       Dois mundos Deus creou.

É poesia que se sente e que poucos exprimem, são versos que se admiram e que rarissimos os escrevem.

As imagens adejam-lhe em torno frescas, vivas, alegres e graciosas, como um bando de andorinhas em torno dos frisos d'um campanario:

Quando em silencio finges,
Que um beijo foi furtado,
E o rosto desmaiado
De côr de rosa tinges,
  Dir-se-ha que a rosa deve
Assim ficar com pejo,
Quando a furtar-lhe um beijo
O zephiro se atreve.

............................
[67]
A bôca é tão vermelha que, em te rindo,
Lembra-me uma romã aberta ao meio
Quando já de madura está cahindo.

......................................

Quando a sua mãosinha pondo um dedo
Em seus labios de rosa pouco aberta,
Como timida pomba sempre alerta,
Me impunha ora silencio ora segredo.

Não ha nada mais gracioso, mais natural, mais espontaneo, mais facil! A gente chega a pasmar de não encontrar todos aquelles dizeres elegantes, todos aquelles versos formosissimos nos outros poetas, tal é a fluencia e a vitalidade d'esta inspiração.

Na voz de João de Deus ha as inflexões carinhosas de uma creança; os versos parecem caricias; têm a suavidade affectuosa das orações de uma santa e aquelle tom amavel e triste, mas nunca pretencioso, dos verdadeiros scismadores:

Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
A luz que n'esta vida me guiava,
Olhos fitos na qual até contava
Ir os degraus do tumulo descendo.

..................................

Alma gemea da minha, e ingenua e pura
Como os anjos do ceu (se o não sonharam...)
Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.
[68]
Não sei se me voou, se ma levaram,
Nem saiba eu nunca a minha desventura
Contar aos que inda em vida não choraram.

Camões não a sentiu mais, nem a escreveu melhor esta poesia da tristeza, esta melancolia suave d'um scismador, esta saudade resignada de uma alma nas soledades do infortunio, nos desterros do isolamento. Ha alli poesia para vinte poemas, ha alli suavidade para vinte idyllios.

As rhimas parecem beijos, tão estreitas se enlaçam, tão ardentes se casam, tão apaixonadas se apertam:

    Que magoa ou que receio
    Dos olhos te desata
    Aljofares de prata
    No jaspe do teu seio?

    Bem intima ser deve
    A pena que te opprime,
    Flôr tenra como o vime,
    Flôr pura como a neve!

    .......................

    Vós, lobos! ide em bando,
    Trepae pelo rochedo,
    Uivae, mettei-lhe medo,
    Levae-a recuando!
[69]
    Que faz quem se approxima
    D'um precipicio, diz-m'o?
    Que buscas tu no abysmo
    Se o ceu é lá em cima?

É só a lyrica intitulada—Heresta—que me fornece estes quatro exemplos; podia fornecer-me trinta e dois, porque são trinta e duas as quadras d'essa formosa composição.

Ás vezes o verso deixa de ser uma phrase e transforma-se n'um suspiro, a estrophe deixa de ser um canto e converte-se n'um arrulho. Tudo alli é muito amar, profundamente sentir e divinamente cantar:

  Que é d'esses cabellos d'ouro
  Do mais subido quilate,
  D'esses labios escarlate,
       Meu thesouro!

  .............................

  Que é d'uma flôr da grinalda
  Dos teus dourados cabellos,
  D'esses olhos, quero vêl-os,
       Esmeralda!

  Que é d'essa alma que me deste!
  D'um sorriso, um só que fosse.
  Da tua bôca tão dôce
       Flôr celeste!
[70]
  Tua cabeça que é d'ella
  A tua cabeça d'ouro,
  Minha pomba! meu thesouro!
       Minha estrella!

  ..........................

  E as desgraças, podia prevêl-as
  Quem a terra sustenta no ar,
  Quem sustenta no ar as estrellas,
  Quem levanta ás estrellas o mar.

  Deus podia prevêr a desgraça,
  Deus podia prevêr e não quiz;
  E não quiz, não... se a nuvem que passa
  Tambem póde chamar-se infeliz.

Quem escreve d'isto, sente-o. Um homem não arranca ao seu espirito d'estas perolas sem as lá ter em sentimento e em amor. E só o alto calor d'um grande, d'um immenso coração póde cristallisar taes diamantes; o fogo sómente do craneo não produz d'estes milagres d'inspiração:

Não se é só pó no fim de tanta magoa,
Senão diga-me alguem que allivio é este
Que sinto, quando á abobada celeste
Alevanto os meus olhos rasos d'agoa.

....................................

Ha depois d'esta vida inda outra vida,
Não se reduz a nada o grão d'areia,
E havia de a nossa alma, a nossa ideia
Nas ruinas do pó ficar perdida?
[71]

Se isto não é inspiração, e alta inspiração, não sei que nome se ha de dar ás maravilhas do genio de Dante, de Shakspeare, de Camões ou de Victor Hugo.

Um espirito que se eleva a taes alturas tem obrigação de produzir um Hamlet, uma Divina Comedia ou uns Lusiadas.

Sente-se pela leitura d'este volume que Camões é o auctor predilecto de João de Deus. O livro abre até por uma composição que póde considerar-se uma verdadeira profissão de fé em poesia. A propria fórma poetica da maior parte das lyricas de João de Deus, um certo geito facil e correntio na composição grammatical dos periodos, a suavidade das rhimas, a doçura das expressões, a harmonia cadenciosa dos versos e um certo tom de intima melancolia que se faz sentir até nas idêas as mais graciosas revelam a decidida predilecção que o cantor da Heresta tem pelo desafortunado scismador de Macau.

É esta a feição seria, a feição elevada e talvez caracteristica do genio poetico de João de Deus. Como todas as grandes vocações, como todas as naturezas ricas, João de Deus porém não é menos apreciavel, nem menos digno de estudo pelo lado [72] alegre, malicioso e a espaços finamente epigrammatico. Ás vezes chega a ser um observador digno de competir com Molière ou Tolentino. Os Caturras é composição de emparelhar com a Funcção ou com o Bilhar do diabolico professor de rhetorica; e o Gaspar póde pedir meças em ridiculo a qualquer dos frades grotescos da numerosa collecção de Bocage. E o epigramma aqui é tanto mais pungente quanto menos grosseiro, e a caricatura tanto mais graciosa quanto menos exagerada.

Ha alli o sal attico de Terencio e não a especiaria acinante de Plauto, a não ser talvez nos versos intitulados—Uma femea,—brazileiros no titulo e no sabor, d'um piquesinho de gosto bastante equivoco.

E já que entramos no capitulo das maculas, convém dizer-se que João de Deus é por vezes revolucionario de mais em assumptos de metrificação. Eu não gosto de absolutistas nem mesmo em poesia, mas tambem não morro de amores pelos tão republicanos que nos levem á demagogia. É preciso que sejamos um pouco constitucionaes em tudo. Ora a constituição poetica tem artigos que se não podem infringir sem se incorrer no crime de leso bom gosto, porque o bom gosto foi e ha [73] de ser sempre o eterno legislador d'estes codigos. Um verso frouxo ou manco e uma rhima equivoca ou violenta hão de ser perpetuamente defeitos.

Quem disser o contrario ou é tolo ou tem ouvidos de cortiça. João de Deus cahe por vezes nestes dous peccadilhos, deixando alguns versos arrastados, e outros duros; estes porém muito menos frequentes do que os primeiros. Mais frequentes são as rhimas violentas, algumas realmente d'um mau gosto insustentavel, taes como: justiça rhimando com pinça, como a paginas 152; rio e viu, como a paginas 159, e ainda algumas outras.

É da tarifa dizer-se em occasiôes similhantes, como são da tarifa todas as vulgaridades, que não ha livro sem defeitos. Eu creio piamente na sentença, e até creio que um livro sem defeitos, se existisse, devia ser o mais defeituoso de todos os livros, o mais sorna e o mais semsaborão. Eu porém quando abro um livro não é para lhe andar a catar os defeitos pagina por pagina, como quem anda ao pulgão pelos vinhedos. O que busco n'um livro são ensinamentos, calor de vida, fogo de coração e luz de intelligencia; esplendores de espirito e esplendores de palavra; genio, alma e sentimento.

[74]

Ora um livro de versos onde ha composição como a Rachel, O Musgo, Ultimo adeus, o Remoinho, a Carta, e trinta outras lyricas de tal novidade e tal merecimento, tem obrigação de ter defeitos, por que sem elles... seria um livro impossivel, uma verdadeira monstruosidade. Diga-se aqui pois, e para se pôr ponto ao aranzel, que o livro de João de Deus tem maculas, mas que estas, como as do sol, desapparecem no meio dos esplendores d'aquella immensa luz de vida, de genio e de inspiração. Flores do Campo é finalmente um livro de versos, como ha poucos n'este paiz, desde que por cá se escrevem versos.1

Guarda, 4 de fevereiro de 1869.

Alexandre da Conceição.

1Jornal do Porto (1869) n.º 33.

[75]

LIVROS


REVISTA CRITICA BIBLIOGRAPHICA


Flores do campo, por João de Deus, publicadas pelo seu amigo José Antonio Garcia Blanco—Lisboa, typ. Franco-portugueza, 1868—Em casa de Ferin & Robin—1 vol. in-16.º—271.


João de Deus é um personagem semi-lendario na tradicção academica, e apesar de homem do nosso tempo, e tão do nosso que até com um diploma de deputado se nos apresentou ha pouco, anda-lhe o nome rodeado de quasi os mesmos fulgores e as mesmas sombras em que uma historia superficial ou mentirosa envolveu os velhos trovadores da Provença.

Permittam-me uma digressão.

[76]

Ha n'esta sociedade portugueza—já agora, ao que parece—condemnada a refocilhar em monturo de sanefas lantejouladas e rotas que lhe deixou o passado, e a dar ao mundo o triste espectaculo d'uma nacionalidade sem idêa que a represente na historia philosophica de amanhã, sem ideal que lhe seja pharol e bussola na tormentosa navegação das sociedades d'hoje; ha, digo, n'esta nossa sociedade amortecida: extraordinarias visões, mysteriosos anceios, esforços convulsivos como que filhos de ignotos impulsos, que bem poderiam passar por agonias e paroxismos annunciadores da proxima dissolução, se um diagnostico escrupuloso não encontrasse antes n'aquillo promessas de reacção proxima, de rejuvenescimento que não vem longe, de evolução fatal, que, em Portugal como em toda a parte, denuncia por aquellas aberrações e anormalidades a sua sublime prenhez d'uma nova idêa, d'uma era nova.

Erguem-se no meio da grasnada petulante ou esteril da litteratura, vozes persistentes... doces ou enthusiasticas, sympathicas ou ameaçadoras... frescas, novas, originaesraræ voces!—que parece irem na turba desmoralisada pôr em vibração alguma cellulasinha não contaminada do mal.

[77]

E a turba põe-se a escutar, a applaudir, a aspirar soffregamente os frescores e doçuras, que tão enormemente se distanceiam dos miasmas do ambiente habitual, do sabor da habitual pitança.

Alteiam-se, no meio da calaçaria geral, do geral e natural desanimo, vontades energicas que a pedraria da mestrança ignorante, intolerante e madraça não consegue desviar um momento da faina do estudo e da evangelisação scientifica.

E a turba vae attentando n'ellas, vae sympathisando com aquelles revolucionarios heroicos do marasmo, vae comparando-os com os idolos anões que, sem ella saber como nem porque se grudaram aos altares da sua admiração, vae fitando os novos horizontes para onde lhe apontam os novos chefes, vae-os seguindo já ao impulso d'uma necessidade indefinivel mas fatal. Ha n'isto, já se vê, alguma cousa d'allucinação infantil. Crê-se que os novos Moysés levam comsigo, completas, as verdadeiras taboas da lei, e rasgarão com a magica varinha as brumas que envolvem a terra da promissão.

Engano. Não lhes dão as forças para mais que para um terço do caminho, se tanto. Mas isso mesmo é muito, é o que basta. Hão de apparecer [78] novos guias. A questão é saír da esterilidade do deserto.

Citemos porém dois factos, tiremos dois exemplos, apenas, de tantos que podiamos apresentar da revolução litteraria que se realisa surdamente no seio da nossa pequena sociedade.

Sejam elles, por hoje, dois poetas: Theophilo Braga e João de Deus; dois verdadeiros revolucionarios como outros de que para o diante terei de fallar. Um, apesar do mal que dizem d'elle, e do mal, que é maior talvez, que elle a si proprio faz, é inegavelmente um dos nossos poucos talentos originaes na concepção e na manifestação litteraria, na idêa e na fórma, e se não é marco que no futuro atteste um grande e brilhante progresso na litteratura patria, é como que atrio imperfeito e tosco, mas espaçoso e altaneiro que póde servir d'entrada a pantheon de explendidos engenhos.

E grande engenho é Theophilo, de certo.

Por entre uma saraivada d'apodos e improperios de mau gosto ou má fé, conquistou elle um logar elevado, na poesia portugueza d'hoje, cujos magnates na maxima parte, persistem, com risivel teimosia, em trazer-lhe engastada na corôa á laia de fina joia, o carvão da ignorancia, ou em mascararem-na [79] com um falso e retrogrado classissismo.

Theophilo porém avançou menos do que devia.

O idealismo desvairou-o, o romancismo perdeu-o.

Um dia a voz sympathica, insinuante, ora melancholica e dolorida, ora—bem poucas vezes!—alegre e enthusiastica de João de Deus começou de fluctuar por sobre o borburinho cançado e monotono das nossas letras. Não se sabe como nem quando foi. Perdeu-se a chronologia biographica nos encantos do quasi—extasis. Sabe-se sómente que a reputação do poeta não nos entrou na terra, dentro do cavallo de pau d'algum chefe grego, mestrão consummado n'estas maquinações. Sabe-se tambem que João de Deus não andou por salas e officinas, annunciando a fazenda que tempos depois, atirada ao mercado, podia realisar o caso da mons parturiens.

João de Deus apparecia-nos uma ou outra vez n'um periodico de Coimbra; ora nos segredava uma estrophe singela e melodiosa pelo postigo de uma typographia alemtejana; ora surgia em um periodico da capital a contar-nos umas duvidas que o magoavam, umas saudades indefiniveis que o pungiam, uns vagos amores que lhe andavam rumorejando lá dentro em vagas harmonias.

[80]

E ninguem sabia quem era João de Deus. E ninguem procurava saber quem fosse. Ou antes, julgavam todos sabel-o. Conheciam-no todos. Era um cerebro em ebullição, um coração em ataxia permanente, um estomago que valia por uma adega.

João de Deus era um doudo que forrava as paredes do albergue com as folhas das sebentas, que dormia dentro da enxerga, porque achava mais commodo isto do que dormir-lhe em cima, que se matriculava todos os annos na faculdade em que o secretario-universitario se lembrava de matriculal-o, que fôra de Coimbra a casa, d'algibeira vasia e lapis constantemente occupado em fazer magnificos versos ou magnificos desenhos, que se fizera um dia sachristão, e pozera n'outro, todo um bairro em sobresalto, subindo aos telhados para apostrophar a lua, etc., etc.

E as anecdotas galantes succediam-se, e a cada nova poesia annexava-se uma historieta, e quando as poesias escaceavam, attribuiam-se ao poeta novas doudices, novas excentricidades, como a certo honrado e já defuncto general se attribuiam quantos dispauterios o soalheiro burguez produzia. Se eu fosse biographo de João de Deus havia talvez de lavrar aqui um protesto esmagador.

[81]

Como não sou, limito-me a dizer o que penso do illustre algarviense. Mais ou menos todos somos poetas. N'este mais e n'este menos está, creio eu, o segredo da organisação sensorial, se póde dizer-se assim, organisação modificada é certo, mas não completamente transformada pelo meio e pelo habito.

Tal sensação que n'uns individuos poria o cerebro n'um estado de effervescencia que lhe exagerasse a realidade, a ponto muitas vezes de a substituir por uma concepção puramente subjectiva, em taes outros póde dar apenas o facto funccional em condições normaes e ordinarias, e, concentrando-se, converter-se em reflexão. Precisava isto longo desenvolvimento. Ora como o primeiro modo de ser sensorial póde dar-se em todos, mas com mais ou menos intensidade, com maior ou menor frequencia, digo eu (e dizem bons escriptores) que todos são mais ou menos poetas. Isto quanto ao facto intellectivo. Quanto á expressão, o mesmo se póde dizer sem receio de contestação seria.

Pois na concepção como na palavra eu tenho João de Deus por verdadeiro poeta.

Dizia Merck, homem de profundo bom senso, a Goëthe, seu amigo:

[82]

«A tendencia irresistivel do teu genio é a de imprimir a fórma poetica ás cousas reaes. Outros procuram uma soi-disant poesia tranformando em realidades, puras imaginações, o que só produz disparates.»2

Sem concordar incondicionalmente com a primeira phrase do sensato allemão, sem querer acceitar a segunda como lei comprovada de critica litteraria, parece-me que de João de Deus se poderá dizer que reune as duas tendencias, as duas feições designadas, a idealisação (phrase consagrada e porventura inexacta) do real, e a personificação, melhor talvez, a realisação plastica do imaginario.

Como que as sensações sensoriaes3 n'aquelle cerebro delicado, ou atravez d'aquelle organismo exageradamente impressionavel se destacam algumas vezes do estimulo, ou alteram a natureza [83] da propria objectividade e criam um mundo novo, um mundo mystico, permittam-me a expressão, a que o poeta dá uma realidade objectiva moldando-o pelas manifestações plasticas do mundo em que vive. Acontece porém, poucas vezes, nem podia deixar de ser assim, quando a indole da época e a illustração do poeta se estão oppondo á formação e sustentação d'estas concepções puramente subjectivas. Adivinha-se aqui ou alli a lucta tremenda que vae no cerebro de João de Deus, lucta que é a feição caracteristica do seculo, e que o manto esfarrapado do eclectismo immoral não consegue abafar, lucta entre o velho crêr e a duvida, a duvida, que como a hydra da mythologia surge após cada decepamento, e que não é possivel destruir como aquella decepando-lhe o tronco. Ouvide um exemplo:

Prestes, se inda na rocha de granito
D'onde em tempo me vias, te sentares,
Não olhes para a terra, ou para os mares,
Olha sim para o céo, que é lá que habito.

Lá, tão longe de ti mas não do terno,
Bondoso pae que os dois nos ha gerado,
Só para magoas não, que bem guardado
Nos tem tambem no céo prazer eterno.
[84]

Que profunda crença, que certeza mystica, se póde dizer-se assim, não rescende a suave morbidezza d'estes versos! Ha alli alguma cousa do cantor da Bice. Vêde porém a tempestade que se annuncia; a duvida atravessou como um relampago o cerebro do poeta. Ouvide:

Não se é só pó no fim de tanta magoa.
Senão, diga-me alguem que allivio é este
Que sinto quando á abobada celeste
Alevanto os meus olhos rasos d'agua?

Mentem os céos tambem? Os céos maldigo.
Feras, tigres tambem o céo povoam?
Tambem os labios lá sorrindo coam
Veneno desleal em beijo amigo?

Mas na dôr é que os astros nos sorriem,
E os homens não sorriem na desdita.
Astros! fio-me em vós, e Deus permitta
Que os infelizes sempre em vós se fiem.

Refaz-se a crença, resurge a esperança consoladora:

Ha depois d'esta vida uma outra vida.
Não se reduz a nada um grão d'areia,
E havia de a nossa alma, a nossa ideia,
Nas ruinas do pó ficar perdida?

Pobre sonhador! Aquelle segundo verso é um protesto ironico contra o teu ideal mystico, é o [85] grão d'areia que ha de intorpecer e desmandar todo o machinismo psycologico da tua crença!

Continúa:

Isso que pensa e quer (até me admiro)
Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva, etc.

e accrescenta:

Onde, não sei eu bem, mas sei que existe
Deus remunerador. Depois de mortos
Hemos de vêr-nos e um no outro absortos
Fartar de glorias este amor tão triste.

Tão triste e... (o coração que me adivinha?)
N'este supplicio nosso, este tormento,
Nunca dos labios teus minimo alento
Num só beijo bebi em vida minha!

Fulge de novo o relampago, baqueia o edificio da crença, vêde que tormento:

E morro sem te vêr! Cabeça douda
Desasissado amor? sonhar afflicto
Um sonho até morrer...

Pobre Hamlet!

... the rest is silence

Um sonho até morrer... Não: resuscito;
Morto tenho vivido a vida toda.

Pobre Faust! O insufficiente (das Unzuloengliche) atormenta-te, porque te fascina o inenarravel [86] (das Unberchreiblichee). Que tempo precioso perde comtigo o sensato Mephistopheles!

Preferes á gargalhada que te chama á realidade da vida, o chorus mysticus que te amargura a existencia com a mentira da miragem!


João de Deus é rigorosamente um artista insaciavel: «Satiari artis cupiditate non quit,» como diria Plinio.

Adivinha-se em cada estrophe d'elle um ancear indefinivel, um vago aspirar, se póde dizer-se assim, uma como que miragem que atráe o poeta, que o alenta umas vezes e o desespera não poucas, que parece enviar-lhe dos visos do horisonte uns suaves frescores envoltos em deliciosos perfumes, e que como a miragem do deserto, lhe foge sempre aos labios sequiosos.

E o pobre viandante vae caminhando e cantando sempre. É um descantar dolorido geralmente, como que descantar de saudade do que sonhou e não acha, e não gosa, e não encontra no caminho, como que de saudade do que lhe foge sempre, deixem-me usar a dôce palavra que bem sei eu que não fica ella bem lexicographicamente applicada.

[87]

E assim com a imaginação embalada por um vago ideal vae João de Deus poetisando como Goëthe na opinião do seu, já citado amigo, tudo o que no caminho encontra. Poucas vezes se lhe altera a harmonia cerebral ao impulso d'uma vibração mais violenta. Os successivos amores—fundem quasi n'uma abstracção, parecem subtilisar-se até no feminino eterno do cantor do Fausto. Hoje Margarida, amanhã Helena, depois... Depois quem sabe?

Hoje Marina. É uma recordação.

Como esse olhar é dôce!
Dôce dâ mesma sorte
Como se nunca fosse
Toldado pela morte,

Como se alumiasse
O sol ainda em vida
As rosas d'essa face
Agora carcomida.

Colhesse-as eu mais cedo
E logo que alvorece,
Já não tivesse mêdo
Que a terra m'as comesse.
.........................

Se um dia nos meus braços
Te desbotasse as côres,
Passavam os abraços...
Passavam os amores!...
[88]
Oh não: mil vezes antes
No céo lá onde habitas
E os rapidos instantes
Que vens e me visitas

N'este degredo nosso
Que tanta gente estima,
E eu, só porque não posso
Não largo e vou lá cima.

Vem tu cá baixo, abala, etc.

.......................

Ha uma hora ou mais,
Marina! que contemplo
A casa de teus paes
Que é para mim um templo.

É esta vida um mar
E bem se póde a gente
Marina, comparar
A rapida corrente

Que vae de lado a lado
Por esses valles fóra
Sem nunca lhe ser dado
Ter a menor demora:

Pára quando a engole
Aquelle mar sem fundo;
Nem pára, é como o sol
E como todo o mundo.

.......................
[89]

Custa a resistir á tentação de transplantar para aqui completas, estas magnificas singelesas. Não ha n'aquillo alguma coisa do que é espontaneo e bello na Vita Nuova?

Mas, como dissemos, o poeta approxima-se tambem do Faust na volubilidade artistica.

Maria! vêr-te á porta a fazer meia
Olhando para mim de vez em quando
É o que n'esta vida me recreia.

...................................

E eu pallido, Maria! o pensamento
Não é trabalho que nos dê saude,
Esta imaginação é um tormento.

...................................

É que a gente na sua mocidade
Não cabe em si, não pára de contente
E assim fui eu na flôr da minha edade.

Tu eras n'esse tempo simplesmente
A flôr que vae nascendo e mais valia
Seres tão terna ainda e innocente.

Já esse lindo pé que tens, Maria!
Esse quadril tão largo e cinta estreita
Me não vinha á ideia noite e dia;

Esses encontros de mulher perfeita,
Esse peito redondo e arqueado
Como a pomba farta e satisfeita;
[90]
Talvez vivesse então mais socegado
Ou já que a minha sorte é sempre triste
Ao menos não andasse enfeitiçado.
...................................

Depois é Margarida:

Oh! que formosos dias, Margarida!
Esses, etc. etc.

Depois... Ha nomes que não se proferem, que não se denunciam. São como certo nome do Deus judaico.

O poeta diz simplesmente: No leito nupcial. Um nome depois d'isto fôra mais que uma profanação, fôra uma infamia. Julgaes porém que ides ouvir uma recriminação amarga ou uma indiscripção villã?

Dorme, estatua de neve,
Vergontea de marfim,
Tocar que impio se atreve
No que é sagrado assim!

Dois são: o mais, mysterio
Vedado á terra, Deus
Talvez do solio ethereo
Nem baixe os olhos seus.

Respeita-os, tapa-os, como
Japhet e Sem, o pae...
Pende sagrado pomo,
A vista ergue-se e cáe.
[91]
Ergue-se e cáe, conforme
A lei que o manda assim,
Ergue-se e... dorme, dorme,
Vergontea de marfim!

.......................

Não segue acaso a sombra
Teu corpo sempre, flôr?
E pois porque te assombra
Meu insensato amor?

.......................

Depois é Beatriz:

Tu és o cheiro que exhala
Ao ir-se abrindo uma flôr;
Tu és o collo que embala
Suas primicias d'amor.

Tu és um beijo materno,
Tu és um riso infantil;
Sol entre as nuvens do inverno,
Rosa entre as flôres d'abril.

Tu és a rosa de maio,
Tua és a flamula azul
Que atam á flecha do raio
As nuvens negras do sul.

.......................

E assim vae cantando sempre, de nome em nome, e de mysterio em mysterio e d'amor em amor, de duvida em duvida, de saudade em saudade, [92] d'anceio em anceio. Não ha Beatriz que o retenha e lhe oiça o Ecce Deos fortior me veniens dominabitur mihi.

Um dia encontra uma mulher formosa, joven, alegre. Ama. Será amado?

Amas-me a mim! perdoa,
É impossivel! Não,
Não ha quem se condoa
Da minha solidão.

Como podia eu triste,
Ah! inspirar-te amor,
Um dia que me viste,
Se é que me viste... flôr!

.......................

Via-te arfar o seio...
Córar... mudar de côr,
E embora, ah! não, não creio,
Tu não me tens amor!

E o sonho foi-se e a visão desappareceu. Como se chamava aquella mulher? Vão lá saber como se chama a estrella cadente que rasga a amplidão do espaço e desapparece n'ella?

E foi uma estrella cadente, aquella. Perdoem a indiscripção.

Outro dia é o poeta que se afasta, que foge, [93] porque receia macular com o seu halito o puro fulgor da estrella.

Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio,
Mas ouve-me, receio
Tornar-te desgraçada.
O homem, minha amada,
Não perde nada, gosa;
Mas a mulher é rosa...
Sim, a mulher é flôr!

Ora, e a flôr, vê tu,
No que ella se resume...
Faltando-lhe o perfume.
Que é a essencia d'ella,
A mais viçosa e bella,
Vê-a a gente e... basta.
Sê sempre, sempre casta!
Terás... quanto possuo!

Vou findar com as transcripções, que bastam as que ficam feitas para comprovar o que ácerca d'estas mimosas poesias e d'este original poeta tenho dito e hei de para o diante dizer. Não posso porém resistir á tentação de citar ainda uns trechos d'uma das mais bellas e caracteristicas composições de João de Deus. Podesse eu transcrevel-a toda!

Não tem nome. Chamam-lhe alguns «A vida». Innumeras vezes tem ella feito cessar as alegrias [94] das salas e interrompido brilhantes festas como o austero bispo de certa poesia de Thomaz Ribeiro, para mendigar ao sentimento das damas um condoimento de triste sympathia pelas intimas amarguras do poeta. Tem por epigraphe aquellas formosas palavras do Tasso:

Cosi trapassa al trapassar d'um giorno, etc.

e começa:

Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
A luz que n'esta vida me guiava,
Olhos fitos na qual até contava
Ir os degraus do tumulo descendo.

Em se ella annuveando, em a não vendo,
Já se me a luz de tudo anuveava;
Despontava ella apenas, despontava
Logo em minha alma a luz que ia perdendo.

Alma gemea da minha, e ingenua e pura,
Como os anjos do céo (se o não sonharam...)
Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.

Não sei se me voou, se m'a levaram,
Nem saiba eu nunca a minha desventura
Contar aos que inda em vida não choraram.

Estas linhas fazem recordar Camões. Ha n'este tristuras que se manifestam por versos parecidos, mas eu prefiro estes ao tão conhecido soneto da [95] «Alma minha gentil,» etc. Parece denunciar-se n'esta singelesa morbida, se póde dizer-se assim, mais sentimento e espontaneidade.

Vamos mais além. Que superabundancia de ímagens! Que riquesa e variedade de sensação! Que esplendidos quadros! Que magnificencia de colorido!

Ah! quando no seu collo reclinado
—Collo mais puro e candido que arminho,
Como abelha na flôr do rosmaninho
Osculava seu labio perfumado;

Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os,
E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
Lia na sua bôcca a Biblia santa
Escripta em letra côr dos seus cabellos:

Quando aquella mãosinha pondo um dedo
Em seus labios de rosa pouco aberta,
Como timida pomba sempre alerta,
Me impunha ora silencio, ora segredo;

Quando, como a alveloa, delicada,
E linda como a flôr que haja mais linda
Passava como o cysne ou como ainda
Antes do sol raiar, nuvem dourada;

...................................

Quando a cruz do collar do seu pescoço,
Estendendo-me os braços, como estende
O symbolo d'amor que as almas prende,
Me dizia... o que ás mais dizer não ouço;

...............................................
[96]
Quando o ouro da trança aos ventos dando
E a neve do seu collo e seu vestido
Pomba que do seu par se ia perdido,
Já de longe lhe ouvia o peito arfando;4

Tinha o céo da minha alma as sete cores, etc.

...........................................
...........................................

    Que é d'esses cabellos d'ouro
    Do mais subido quilate,
    D'esses labios escarlate,
        Meu thesouro!

    Que é d'esse halito, que ainda
    O coração me perfuma!
    Que é de teu collo de espuma,
        Pomba linda!

    ..............................
    ..............................

De dia a estrella d'alva empallidece;
E a luz do dia eterno te ha ferido.
Em teu languido olhar adormecido
Nunca me um dia em vida me amanhece.
[97]
Foste a concha da praia. A flôr parece
Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
Meu calix de crystal, onde hei bebido
Os nectares do céo... se um céo houvesse!

Fonte pura das lagrimas que choro!5
Quem tão menina e moça desmanchado
Te ha pelas nuvens os cabellos d'ouro!
.....................................

  A vida é o dia d'hoje,
  A vida é ai que mal sôa,
  A vida é sombra que foge,
  A vida é nuvem que vôa;
  A vida é sonho tão leve
  Que se desfaz como a neve
  E como o fumo se esvae:
  A vida dura um momento;
  Mais leve que o pensamento,
  A vida leva-a o vento,
  A vida é folha que cáe!

  A vida é flôr na corrente,
  A vida é sopro suave,
  A vida é estrella cadente,
  Vôa mais leve que a ave;
  Nuvem que o vento nos ares,
  Onda que o vento nos mares
  Uma apoz outra lançou,
  A vida—penna cahida
  Da aza da ave ferida,
  De valle em valle impellida
  A vida o vento a levou!
[98]
..............................
..............................
Talvez, é hoje a Biblia, o livro aberto
Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
Vou pelo mundo vêr se a posso vêr;
E onde, como a palmeira do deserto,
Apenas vejo aos pés inquieta ondeando
        A sombra do meu ser.

..............................

Depois d'isto comprehendeu-se que João de Deus se propozesse a traduzir o Cantico dos Canticos.

Como, se bem me lembro, diz Herder, os elementos primordiaes da poesia hebraica são a sensação e a imagem, e posto que, no meu entender, a boa critica não possa monopolisar aquella feição em favor apenas d'aquella poesia, porque ella é caracteristica de todas as litteraturas na sua genese, e nos primeiros periodos de constituição, em quanto predominam no homem os sentimentos elementares como diz Veron6, comtudo a poesia hebraica propriamente tal quasi não chega a ultrapassar o periodo d'aquelle predominio. Poderiam talvez accusar-se os versos que acabo de transcrever de certo garridismo que mal iria ao sentimento [99] que exprimem, se a violencia d'esse sentimento, o estado de exaltação sensorial não estivessem justificando o que parece defeito aos leitores que não sintam a transfusão psychologica que muitos hão de experimentar ante aquelles versos magnificos.

A poesia de João de Deus é verdadeira musica. Se eu estivesse agora para combater os que julgam como Lamartine7 que a versificação, o rhythmo, a cadencia, a rima, são cousas indifferentes á poesia na «época adiantada e verdadeiramente intellectual dos povos modernos», os que teem tudo isso, como Heine (cit. por Max. Buchon) por completa puerilidade, para valente comprovação me podiam servir os versos do nosso poeta.

São elles geralmente como que uma psalmodía. Allia-se a musica e a poesia que tantos querem distancear, como se o rythmo fosse apenas elemento especial d'uma arte. João de Deus como que tem uma rhythmopêa espontanea. Sahe-lhe o verso moldado pela ideia e pelo sentimento, e n'este [100] como n'aquelle a modulação existe pelas fataes variantes dos estimulos e das vibrações cerebraes. Procuraram os gregos systematisar as relações do rhythmo para com a idêa e o sentimento, como se fôra possivel marcar limite numerico aos modos de ser do pensamento, ou aos productos da actividade intellectual e esthetica. Se, pois, em muitos casos, são acceitaveis as velhas regras, geralmente a rhythmopêa deve ser producto espontaneo, e não canon de escóla. E porque se dá o primeiro caso em João de Deus, é que talvez se revela nos seus versos, bem salientemente o cunho da personalidade, condição essencial d'uma obra poetica. É necessario não perder aquella de vista, porque, como diz o critico francez, que atraz citei, o verdadeiro merecimento, na poesia, está antes na esthesia do poeta de que na do leitor. Ora bastam as transcripções que fiz para vêr como a personalidade do poeta, o seu sentir e pensar se patentêam na expressão, na fórma, que em outros escriptores mal disfarça com arrebiques e ouropeis a carencia da sensibilidade e inspiração pessoal.

Ha mais poesia n'algumas singelezas de João de Deus do que em muitos versos laureados que [101] por ahi correm como modêlos de metrificação, e que bem podem sêl-o, o que não basta de certo.

Mais poesia em pobre margarida
Que aos pés se pisa, enthesourada vejo,
Que em muita madreperola polida
Que as cinzas guarda de finado arpejo.

Toquei eu agora n'uma das melhores poesias de João de Deus, poesia que elle diz ser fragmento, e fragmento que bem faz desejar a apparição da obra toda.

Vou ainda transcrever alguns trechos que lançam de certo muita luz sobre o vulto, quasi lendario do poeta, em pontos menos esclarecidos pelas transcripções anteriores.

Padre, ministro do Crucificado
É bom ferreiro afeiçoando o ferro
Com que ha de prestes ir rompendo o arado
Os campos d'este secular desterro...

....................................

Na montanha da Fé, mulher formosa
Se ante mim a meus pés desenrolasse
Como o demonio a vastidão pasmosa
Que elle dava a Jesus se o adorasse
E me pedisse em premio uma só cousa
Ás mãos de minha mãe furtar a face;
Eu lançava-lhe cuspo...

...................................
[102]
Vêde-a ao berço, sofrega de vida
Que a sua é pouca para dar ao filho;
Ella em cama de espinhos, mal vestida,
Elle enfaxado, em berço de tomilho;
Ella em continua, asafamada lida,
Elle vendo se apanha á luz o brilho...
Já descobrindo em tão tenrinha edade
Que toda a sua sêde é de verdade.

.................................
.................................

Irmãs da Caridade! A caridade
Tem só duas irmãs—a Fé e a Esperança:
Não traja as côres só d'uma irmandade,
Traja as côres do Arco d'alliança;
Leva sósinha o pão da piedade,
Tira da roda essa infeliz creança...
Roda da vida que anda de tal sorte
Que, em se lhe dando, é já contar com a morte.

Bemdita sejas tu, victima triste
D'um peito amante e d'um amante ingrato!
Que nunca á mesma loba lançar viste
Inda mamando o cachorrinho ao mato;
Bemdita sejas tu, que o que pariste
Teu fructo, imagem tua e teu retrato
Conservas como espelho onde te vejas;
Bemdita sejas tu, bemdita sejas.

................................
................................

Acaso é só dourada, altiva estola
Que liga os corpos em as mãos ligando,
Confunde corações e faz em summa
Que a Deus se elevem duas almas n'uma?
[103]

Ahi tendes o apostolo, o campeão social. Não lhe aceiteis, muito embora, a doutrina. Acatae-lhe a generosidade, a grandeza da ideia, a robustez da convicção. Que poema enorme, magestoso e bello não será aquelle!

Colligir as poesias de João de Deus que por ahi andavam dispersas, mutiladas e perdidas, foi de certo um grande serviço ás patrias letras.

Prestou-o o snr. José Antonio Garcia Blanco.

Poeta mais original, mais rico, mais verdadeiro do que aquelle, não conheço na litteratura portugueza, e tanto como elle, ha de ser difficil de encontrar entre nós, na litteratura d'hoje. Um certo mysticismo mal definido que recendem as suas poesias, é menos producto da tradicção que originalidade genial. João de Deus é um homem do Meio-dia com o vago ancear d'um poeta do norte. Opprime-o o insufficiente como ao Faust. Se lhe désse para ser philosopho, onde iria parar?...

Como poeta tem alguma cousa de Ossian com alguma cousa de Goëthe...8

Luciano Cordeiro.

2 «Goethe et Schiller» por E. Rambert. (Revue Suisse—fev. 1869).

3 Quando digo «sensações sensoriaes», fallo das sensações «externas e internas», como vulgarmente se classificam, e não excluo as que se dão sem realidade objectiva que as provoque, e que constituem o estado pathologico da «allucinação», estado a que porventura se poderia reduzir algumas vezes, creio, o «mens divinior» dos antigos. Esta ultima observação é minha, as anteriores são de Luys (Recherches sur le système nerveux, etc., etc., cit. par Littré) e E. Littré, De la méthode en psychologie (Phil. posit.—Revue—1.er vol.)

4 Seguia-se a seguinte quadra, que não apparece na collecção e que eu acho não só egual em bellesa ás citadas, mas superior a algumas:

Quando o annel da bôcca lusidia,
Vermelha como a rosa cheia d'agua
Em beijos á saudade abrindo a magua
Mil rosas pelas faces me esparzia;

5 Variante:

Oh lagrima das lagrimas que choro!

6 Superiorité des artes modernes.

7 Cours fam. de litt.

8 Revolução de Setembro (1869) n.os 8012, 8015 e 8023.

[104]
[105]

FLORES DO CAMPO

DE

João de Deus

É indispensavel crêr na poesia como se crê no Evangelho, como se acredita em Deus. No perpassar d'esta via dolorosa, cortada a todo o passo de agrestes sinuosidades, a poesia luzindo de quando em quando ao viageiro extenuado como um iris de bonança, significa a mais completa redempção da materia pelo espirito.

Aguia sobranceira que elevando-se até perder de vista o lodo em que se immergem tantos e tantos seres, vae roçar com a fimbria da aza a crista das nuvens, confundindo os seus arrulhos mysteriosos com as melodias dos seraphins!

Creou Deus a poesia para que a primavera com os seus canticos e perfumes, com a sua opulenta [106] vegetação, encontrasse quem a comprehendesse, quem a cantasse: creou Deus a poesia para escarmento ao vicio, distanceando-nos do finito que é o começo do scepticismo, para o infinito que é Deus! Surgiu a poesia para que nas trevas de um mundo que ri de tudo como Democrito, que tudo amesquinha, brilhasse uma luz que só de vêl-a a alma se purificasse e o espirito adejasse para o ideal.

Não chamem á poesia trivialidade.

Estudem os seculos; contemplem as nações e digam se a poesia teve ou não extraordinaria influencia nos grandes acontecimentos sociaes.

Quem, senão Roger de l'Isle, ergueu palpitante toda a França com umas quantas estrophes, a Marseillaise?

Não foram os versos de Shakespeare, de Milton, de Pope, que poderosamente concorreram a immortalisar a Inglaterra?

Portugal não deve a fama da sua gloria aos Lusiadas de Camões?

Consintam os homens de algarismos, os materialistas que antepõem a carne ao espirito, que fazem d'ella o seu credo, que os poetas, os sonhadores de chimeras deixem devanear a imaginação por esses horisontes de anil; deixem que reclinados [107] á proa do baixel da vida namorem o azul das aguas depois de terem contemplado o dos céos.

Ai da humanidade, se o poeta deixar pender a fronte desalentada ao partirem-se-lhe as cordas da lyra! a prosa invadirá o sanctuario dos mais nobres estimulos, e o sceptico exultará ao soltar a sua risada infernal como a dos condemnados do Dante.

Não sei quantas vezes temos lido as Flores do Campo, exhaurindo sempre novos e exquisitos perfumes.

Tem isso a originalidade, que é o distinctivo d'este poeta. Costumamos dizer com referencia a qualquer notavel escriptor nosso: aquelle talento tem a suavidade de Lamartine, o sentimento de A. de Musset, o mysticismo de Chateaubriand, a ironia de Byron, a energia apaixonada de Victor Hugo.

Porque não havemos de dizer que João de Deus tem o cunho original da poesia portugueza na sua mais genuina expressão?! Quem se compraz em parodiar constantemente os usos e idiomas dos de fóra, deve uma vez por outra, ufanar-se do que tem de seu original e portuguez de lei, como o é João de Deus em todos os seus escriptos.

[108]

Atravez dos versos do mimoso poeta contemplam-se as noites estrelladas de Portugal, o Tejo com as risonhas margens, Coimbra com a sua Fonte das Lagrimas, o clima emfim e a vegetação esplendida d'este pequeno eden.

Vê-se que este poeta é portuguez de feição, e comprehende-se quanto na patria de Camões e Garrett a poesia se manifesta espontanea e esplendida na fórma e ideia!

Começa o livro com a poesia Camões e Byron, e termina com o Cantico dos Canticos: abre pois com chave de prata para fechar com chave de ouro.

Ha estrophes de uma suavidade tão nimiamente infantil, tão peculiarmente despretenciosa, que a ninguem senão a João de Deus poderiam attribuir-se, quando mesmo o seu nome não estivesse engrinaldando luxuosamente o adito d'este livro.

Citaremos, entre muitas, estas:

Maria! vêr-te á porta a fazer meia
Olhando para mim de vez em quando,
É o que n'esta vida me recreia.
..................................

Esses olhos azues... que olhar! Receio
E desejo estar sempre a contemplal-o;
Não ha mais doce e mais custoso enleio.
[109]
..................................

Bem poderas, Maria andar tapada
Só com o teu cabello, á similhança
Do sol em nuvem de manhã doirada.

...................................

A bôca é tão vermelha que, em te rindo,
Lembra-me uma romã aberta ao meio,
Quando já de madura está caindo.

Na poesia Innocencia revela o poeta, a par de uma finura de sentimento e extrema sensibilidade, um preito á virtude, que toda a mulher que a lêr deve necessariamente sentir-se attrahida por um sentimento de gratidão para quem a escreveu:

Casta innocencia, de Deus filha e bella
Entre as mais bellas! virginal aroma!
Rosa ineffavel, que se á luz assoma,
Haste e raiz apodreceu com ella!

Percebemos tambem que João de Deus pertence ao numero dos crentes, ainda tão mal limitado; prova-o exuberantemente as suas poesias Luz da Fé, Fragmento, e varias outras.

Deus era inda meu pae. E em quanto pude
Li o seu nome em tudo quanto existe;
No campo em flor; na praia arida e triste,
No céo, no mar, na terra e... na virtude!
[110]

Como o poeta adora a poesia e o quanto tem d'ella feito o seu credo, dil-o eloquentemente esta quadra:

Oh! poesia, poesia altissima
Como o fecho do impyreo! eu me ajoelho
E beijo a tua base, harpa celeste!
O coração—a corda que nos deste.

Na alma d'este homem que tem na fronte uma estrella de fogo e talvez um martyrio no coração, suspiram ternuras indiziveis que a sua lyra traduz em canticos suavissimos:

É do sangue e das mães que eu fallo, e certo,
Que ha na vida mais sancto? O sangue é vida;
E as mães fontes de vida: eu nunca esperto
Esta lampada d'alma, suspendida
Na abobada eterna e que tão perto
Parece ter a origem..............
....................senão quando
Vejo essa cara imagem suspirando.

Querem dizer, e talvez com razão, que João de Deus abusa da rima deixando-a por vezes defeituosa.

A meu vêr esta pecha está na razão das manchas que o sol contém, mas que os nossos olhos não descobrem sem o auxilio do telescopio, o que não obsta a que o sol seja o astro do dia.

[111]

«Marcar balisas á poesia, é impossivel, diz um illustre poeta e critico, a poesia é livre como o pensamento, e grande como a immensidade.»

Eis-ahi está o segredo da culpa, e feliz culpa!

Se João de Deus pertencesse a um certo numero de poetas que esgravatam na areia e folheiam livros alheios primeiro que possam rabiscar algumas insulsas linhas, talvez a rima lhe saísse menos incorrecta segundo a arte, mas acanhada e rachitica segundo o pensamento.

A verdadeira poesia, como diz C. de Figueiredo, surge livre como a natureza; irrompe, inunda de luz de fogo, sem muitas vezes poder sujeitar-se aos acanhados moldes da arte.

Apparece-nos o poeta, namorado como Bernardim Ribeiro, n'estas dulcissimas estrophes:

Não ha existencia alguma
Que não tenha amor, nenhuma;
Porque o amor, é, em summa,
Essencia de todo o ser.
Ha sempre quem nos attraia,
Mil vezes que a onda caia,
Ha uma rocha, uma praia
Aonde a onda vae ter.

Seria um nunca acabar se fossemos a exarar aqui todas as preciosissimas joias d'esta corôa opulenta que veio enriquecer a nossa litteratura.

[112]

Apartamo-nos do livro com extrema saudade, recommendando á leitora, que por acaso ainda o não possue, a prompta acquisiçao d'elle para collocal-o ao lado das rosas, jasmins e violetas com que, durante a formosa estação que se avisinha, ha de perfumar o seu boudoir.9

D. Guiomar D. Torrezão.

9 Voz Feminina (1869) n.º 60.

[113]

ANNO LITTERARIO DE 1869


CARTAS A J. SIMÕES DIAS


Á hora dos phantasmas, á meia noite, escreveste o Anno litterario de 1868. A noite é sombria e triste; e por isso as tuas reflexões humoristicas não occultam de todo a descrença, a tristeza e o desanimo, com que espalhaste a vista pelas coisas litterarias da nossa terra.

Fundado ou infundado, não chamarei eu esse desalento, porque, de onde em onde, nos encontrariamos, se eu fosse ajustar o padrão da tua critica ao juizo que eu fizesse de producções da arte.

Não posso, comtudo, deixar de querer muito a essa franqueza, que é o teu caracter, e a tua regra em materias de critica. E tanto mais lhe quero, quanto eu reconheço que a franqueza, hoje em dia, [114] é fazenda de contrabando nas nossas alfandegas litterarias.

Quando o anno de 1868 pertencia já ao passado, scismavas á meia noite sobre o mau rumo que te pareceu levarem as nossas letras. Eu sou um pouco mais crente, e menos atrabiliario: á entrada de 1869, estendo os olhos ao futuro, e espero e creio muito, porque já não são de pouca monta as primicias que nos offerece o anno litterario de 1869. Fallo das Flores do Campo de João de Deus.

Com a analyse d'este livro, abro uma serie de apreciações, em que te fallarei das obras poeticas que n'este anno, e em Portugal, se derem á estampa. O meu voto, em materia alguma tem força, nem eu procuro dar-lh'a, para se insinuar no animo do publico: é um voto individual, em que apenas acharás o merito da sinceridade e da franqueza.

Direi de caminho que não sigo a trilha que me deixou o teu Anno litterario. Não deslembrarei os preceitos da critica analytica, para não apreciar, em synthese, obras que exigem demorado exame das suas partes.

Tambem não escolho, para te escrever, a hora lugubre dos phantasmas. Começo a escrever-te ás [115] horas d'uma esplendida manhã, espalhando os olhos por aquellas duas margens do nosso Mondego: a relva rasteira que as veste, e que me falla de vagas esperanças, ha de desentranhar-se em flores e fructos. Deixa-me crêr muito no dia de ámanhã.

E porque não virão as flôres da poesia derramar perfumes sob este céo de Portugal, n'este jardim da Europa, onde já suspirou melodias Bernardim, Camões, Garrett, Castilho! Não morre a poesia portugueza: a estatua da deusa ainda não tremeu na peanha; e quando os iconoclastas do bello quizessem contra ella erguer braços profanos, a quantos apostolos da arte não teriam de suffocar a voz!

Bem-vindos sejam estes sonhadores de chimeras, estes utopistas cheios de alma e coração, luctando de contínuo com o mundo real, e de contínuo erguendo-nos a mundos imaginarios, mas bellos d'uma belleza que não é da terra!

Fallo-te da poesia individual, e eu sei bem que lhe não queres tanto como eu. Desejas que a poesia se concentre no mundo estreito dos fins sociaes; entendes que a poesia deve de limitar-se a mostrar o caminho á humanidade que marcha, ou á [116] exaltação dos dogmas do seculo. Por certo que se não desvirtua a poesia, seguindo por taes veredas; mas o genio não tem peias nem limites: veste de luz o lirio dos valles; alumia a estrada ao caminheiro da vida; doira as arestas do serro escalvado; enche a noite de luz; de fulgores inunda o espirito, e não sei por quantos mundos nos leva a alma absorta!

Marcar balisas á poesia, é impossivel, porque a poesia é livre como o pensamento.

Deixa pois cantar os poetas que levantaram a vista do pó da terra, onde tudo é limitado como a materia, e vil como o gusano das ossadas. Deixa que eu te falle de um poeta, cujo espirito é aguia que raro avisinha a ponta das azas aos marneis da sociedade. A gente pasma da altura a que se eleva aquelle espirito, e acontece ás vezes que a nossa vista não póde acompanhar tão levantados vôos: perde-se elle no vacuo, e, quando divaga em mares de luz, ficamos nós em trevas, sem vêr a direcção que elle toma...

João de Deus não canta para a sociedade, canta para si. Quer discorra por vergeis de poesia singela e perfumada, quer se eleve a alturas desmedidas, não se importa de que lhe não oiçam nem [117] entendam o canto sempre harmonioso. É talvez por isso que elle não publicou, nem publicaria as Flores do Campo.

Ao amigo que lh'as estampou, muito devemos nós todos os que presamos as nossas boas letras.

Agora se me offerece caso para cogitações profundas: as Flores do Campo saíram a lume ha quasi um mez, e, até á data em que te escrevo, dormem os nossos criticos a bom levar, sem que uma palavra lhes haja irrompido dos labios, sobre o merecimento d'este magnifico livro. Aqui, ha por força caso virgem, mas... ponto em bôcca.

E pois que os criticos não querem, ou não ousam, pronunciar o seu veredictum, vou eu mostrar-te o valor em que tenho as Flores do Campo, por que me digas ao depois se não são ellas, para a nossa litteratura, prenuncios d'um outono avergado de fructos.

Quando o visconde de Chateaubriand trabalhava por agremiar em torno da cruz as multidões, que ainda sentiam nos ouvidos a voz tentadora de Robespierre e Mirabeau, surgia na Inglaterra um homem extraordinario, personificação pasmosa do genio e do scepticismo—lord Byron.

Ninguem como o cantor do Childe Harold, pôde [118] jámais aliar uma alma de poeta ao scepticismo, á duvida, á frieza, que ressumbram de cada verso do Don Juan:

For me, I know nought; nothing I deny,
Amit, reject, contemn; and what knew you,
Except perhaps that you were born to die?
And both may after all turn out in true.

Mas... na mente de Byron reflectia-se uma das tendencias mais caracteristicas da sociedade contemporanea; o scepticismo apresentou-se revestido com a aureóla do genio, ergueu-se como chamma incendiaria, e lavrou pela litteratura do seculo.

Que restava aos adeptos da poesia? O maior numero, como os companheiros de Ulysses, deixou-se arrastar pelos cantos da sereia, e, se não abordou á ilha encantada, d'onde lhe acenava a gloria, mediu a profundeza do abysmo que a tentação lhe abriu aos pés...; outros, refugiram á attração, e velejaram alegres por onde os não batessem os pampeiros da descrença e do scepticismo.

A poesia que abre o livro de João de Deus é o emblema dos dous rumos por onde tomam os argonautas da arte, e estrema o scepticismo e crença, Camões e Byron. Não sei se esta composição [119] vale muito aos olhos dos mestres; para mim, é das mais somenos de João de Deus, e, se não fôra collocada alli para denunciar, talvez, as crenças litterarias do auctor, não a quizera vêr á entrada d'este livro. A arte exige para um edificio primoroso um portico lavrado a primor.

Na composição alludida, se a ideia é grande e original, a fórma que a reveste não, não é perfeita; sem fórma, não concebo arte, e sem arte não se traduz o sentimento do bello.

Não vás porém julgar que estou dando lições de poetica a um poeta como João de Deus. Mais do que ninguem, conhece elle por ventura os defeitos do seu livro, e, se os poupou, ao limar os seus versos, é que não teve em tanta conta, como geralmente se tem, certas exigencias da arte.

Que vês?—Sóes, de tal sorte
Que os crêra tochas pallidas,
Quando as guedelhas, madidas
De sangue, arrasta a morte.

...........................

—Falla.—Deus! que harmonia!
Aqui a alma exalta-se;
A alma aqui dilata-se...
Camões!—É a poesia.
[120]

Nem a critica imparcial tanto exige, nem eu tenho logar bastante para transcrever aqui todas as estrophes, em que as rimas se me deparam defeituosas e erradas. Cito-te de passagem queime e geme, deixe e feche, confesso e immenso, cuides e virtudes, outro e encontro, géra e inteira, teimo e supremo, prega e negra, avaro e ara, sêde e hei-de, põe e foi, e adorei, inteiro e quero, etc.

E comtudo João de Deus parece brincar com as maiores difficuldades da rima. Para não fallar na poesia Boas Noites, basta apontar-te aquelle trecho da poesia O Musgo:

Um dia, não sei que tinha...
Uma tristeza tamanha!
E lembra-me ir á montanha
Que temos aqui visinha,
Onde em tempo me entretinha
Horas e horas sósinha,
Quando ainda não se extranha
Que n'uma teia de aranha
Se prenda uma innocentinha,
Ou atrás d'uma avesinha
Se cance a vêr se a apanha.

Em metricação tambem as Flores do Campo nos offerecem provas de que João de Deus não é, n'este ponto, nimiamente escrupuloso. Assim ficou errado este decassyllabo:

[121]
Chamando-os com enternecimento,

e aquelle septissylabo que vae sublinhado:

Que é a torre exactamente
De David n'esses ares,

para não citar passagens como estas:

Adeus tranças côr de ouro,
Adeus peito côr de neve.

Tornaram-se-me em estrellas
As lagrimas de dôr.

Versos ha tambem nas Flores do Campo defeituosos pela disposição dos accentos predominantes. Bastam tres exemplos em versos decassyllabos:

Ha puros sonhos de imaginação.

E eu digo, digo á luz scismadora.

Expôz aos coices... leão moribundo.

Mas um verso completamente errado, e que por certo não sahiu assim da penna de João de Deus, é aquelle

Que fez tremer as abobadas do inferno.

Não é necessario ser auctor das Flores do Campo, para condemnar um verso tal. Descuido do [122] impressor, e falta de cuidado na revisão, occasionaram aquelle erro, a que de prompto se obviaria com a suppressão de dous ss inuteis.

O que para alguém não será defeito, mas que para muitos torna inintelligiveis algumas passagens, do livro, é, por vezes o abstruso da ideia, velada por sombras impenetraveis. Dá-me tu, se podes, a chave d'este enigma:

Oh! ha tres vistas com que as coisas vêmos;
Ha tres rasões que as coisas determinam;
Uma a dos olhos; outra a que escondemos
N'isso ante que os álamos se inclinam;
Outra a que dentro no coração temos,
Que os limites do espaço só terminam:
Coube a primeira em sorte á borboleta;
A outra ao homem; a terceira ao poeta.

E quando João de Deus, á vista d'um retrato, exclama:

És tu! Amo-te e muito! O que fluctua
Na fornalha que o sopro eterno acende,
Não beija a mão do anjo que o suspende
Com mais amor que eu beijo a sombra tua!»

Quem é que fluctua na fornalha acesa pelo sôpro eterno? Será o sol?

Especialmente n'aquelle fragmento que principia na pagina 130, mais alguns pontos se me deparam, para cuja interpretação me não sinto com [123] forças. Não te faço mais citações, a este proposito, porque bem póde ser que toda a gente penetre o que para mim é escuro. Demais d'isto, parece-me que o poeta nem sempre tem obrigação restricta de moldar os vôos da sua imaginação pela myopia dos que só podem curvar-se diante das nuvens que velam a sarça ardente...

Agora, vaes talvez esquecer as manchas que divisastes n'esta joia litteraria, para festejares comigo quadros esplendidos de poesia originalissima, rica de sentimento, de graça e de harmonia.

Originalidades litterarias, poucos ha, já agora, que n'ellas creiam. Escorre de vez em quando, por ahi uma sanie de novidade tão asquerosa pelas folhas volantes da nossa litteratura de hoje, que os apreciadores de pituitaria melindrosa, não ha quem os desatrelle da sentença de que tudo o que é novo é mau, e que tudo o que é bom é velho.

Nihil sub sole novum!—cantava o Gessner biblico, asseguravam os juizes de Galileu, e rouqueja Boileau com os demais amphyctiões da litteratura. Respeitemos o talento; mas aos que duvidam da grandeza do genio, e pedem ao passado a chave do futuro, atiremos-lhe á face com a resposta de Galileu:—E pur si muove.

[124]

Admittida a originalidade, moldada pelo bom gosto, devemos saudal-a em João de Deus, o poeta mais original que eu conheço entre os nossos homens de letras. Estudo João de Deus, dês que leio versos, e ainda não pude encontrar o segredo d'aquella harmonia tão sua, d'aquella elegancia tão despretenciosa, d'aquelle sentimento que tanto nos captiva a alma, sem sabermos como.

Ou eu me engano muito, ou da poesia de João de Deus me vêm uns aromas que não desdizem d'aquella fragrancia que o esposo dos Canticos aspirava nos jardins da Sulamite biblica; d'aquella gravidade scismadora que resaltava das cordas do psalterio de David; d'aquelle adejar sublime e vago da aguia de Páthmos. Tranemos agora o mar dos seculos, ponhamos ao lado das Flores do Campo as fantazias de Schiller a Laura, e verás que muitos arrojos da imaginação do bardo portuguez não desmerecem a companhia dos do bardo do norte.

Mas, sobretudo, o que mais me enfeitiça nas Flores do Campo é aquelle mimo e suavidade que matizam estrophes como estas:

[125]
Ah! quando no seu collo reclinado
—Collo mais puro e candido que arminho,—
Como abelha na flôr do rosmaninho
Osculava seu labio perfumado;

Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os,
E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
Lia na sua bôca a Biblia Santa
Escripta em letra côr dos seus cabellos;

Quando a sua mãosinha pondo um dedo
Em seus labios de rosa pouco aberta,
Como timida pomba sempre álerta,
Me impunha ora silencio, ora segredo;

.....................................

Quando em balsamo d'alma piedosa
Ungia as mãos da supplice indigencia,
Como a nuvem nas mãos da Providencia
Um lagrima estila em flôr sequiosa;

Quando a cruz do collar do seu pescoço
Estendendo-me os braços, como estende
O symbolo d'amor que as almas prende,
Me dizia... o que ás mais dizer não ouço;

........................................

Tinha o céo da minha alma as sete côres,
Valia-me este mundo um paraizo,
Distillava-se a alma em dôce riso,
Debaixo dos meus pés nasciam flôres.

É assim que João de Deus se recorda da visão fugitiva que lhe doirou os sonhos de poeta e moço. [126] Mais adiante, parece esquecer o lucto da saudade, mas não perde a doçura da harmonia:

Como os teus pés são lindos! como é doce
      A curva do teu peito!
Oh! se o meu coração fosse o teu leito,
      E o teu amado eu fosse!

Que preciosas perolas descobre
      Teu meigo, humilde labio!
E virgem! como Deus foi justo e sabio
      Em te deixar tão pobre!

....................................
      ........................
Tu não tens mais do que uma pobre saia,
      E essa, curtinha e leve.

Onde o corpo te alteia, a saia avulta;
      Onde te abaixa, desce...
És como a rosa! A rosa nasce e cresce,
      Não para estar occulta.

O que te falta, pois? os teus desejos
      Quaes são? de que precisas?
Ah! não ser eu o marmore que pisas...
      Calçava-te de beijos!

Ao terminar a transcripção d'este mimosissimo trecho, sinto não poder attribuir a João de Deus a chave que o fecha. O aprimorado e suave oratoriano Manoel Bernardes já tinha dito na sua excellente Luz e Calor, fallando a Jesus menino:

[127]

«Menino da minha alma, meu eterno nascido de ainda agora, meu gracioso molhinho de amores perfeytos, minhas bellezas encantadoras do coração humano: faze-me Serafim, para que te ame muito: dá-me limpeza grande em meus labios para calçar teus pésinhos de mil osculos santos: deyxa cahir das conchinhas de teus olhos hua lagryma sobre meu peyto, etc.» (Pag, 556, ediç. 1724.)

Mas que importa isso? Prouvera a Deus que os plagiatos, de que a litteratura anda eivada, se pautassem por este!

Vivacidade de expressão, galanteria e graça, podes vêr d'isso um modelo no madrigal, epigramma, ou como quizeres chamar-lhe, feito A uns olhos azues:

Cáe a folha da rosa pudibunda,
Cáe a rosa da face virginal,
Cáe das nuvens a aguia moribunda,
Cáe o sol na montanha occidental.

.................................

Cáe do céo a centelha incendiaria,
A nuvem cáe, se um sopro Deus lhe dá,
Cáe ante o dia a noite solitaria
Como o falso Dagon ante Jehovah.

Cáe tudo, flôr! cáe tudo; eu só não caio:
Mais do que um rei, que o sol, egual a Deus,
Cahir, mulher! só posso á luz d'um raio
Se elle cahir do céo dos olhos teus!

De vez em quando, o poeta apparece-nos pensador [128] e philosopho; mas, ainda assim, a razão não vence o sentimento:

Irmãs da Caridade! A Caridade
Tem só duas irmãs—a Fé e a Esperança:
Não traja as côres só d'uma irmandade,
Traja as côres do Arco da Alliança;
Leva sósinha o pão da piedade;
Tira da roda essa infeliz criança...

....................................

Mais longe iria eu, se me propozesse trancrever tudo o que nas Flores do Campo se apresenta digno dos mais levantados encomios. Assim, por não alongar em demasia a presente carta, recommendo-te a leitura da Heresta, da Rachel, do Ultimo adeus, da Marina, do Remoinho, do Leito nupcial, da Innocencia, da Joven captiva, e, muito especialmente, do Cantico dos canticos de Salomão.

Lamennais e Renan haviam traduzido esplendidamente o Cantico dos canticos; João de Deus inspirou-se da pastoral de Sulem, e fez um poema quasi seu: seu pela fórma, pelo colorido, e pela disposição das scenas.

O Cantico dos canticos pertence, como sabes, ao numero dos livros sagrados, e é ponto inconcusso, [129] entre os padres da Egreja, que os desposorios de que falla Salomão exprimem a união mystica do Verbo incarnado com a natureza humana, com a Egreja e com as almas justas.

Os presidentes da synagoga judaica prohibiam a leitura d'este livro a quem não tivesse mais de trinta annos; e, ainda em tempos do piedoso João Gerson, nem os doutores o liam antes d'essa edade. E de feito nem Theocrito nem Florian deram jámais aos seus idylios aquelle perfume voluptuoso que, por entre flôres de poesia immorredoira, livremente se respira no idylio de Salomão.

Theodoro Mopsueste teve o ousio de ligar a esse idylio um sentido exterior, e não mystico, interpretando-o litteralmente, mas foi condemnado pelo segundo concilio de Constantinopla. Hoje não ha temor de que a Egreja condemne João de Deus, e todos os que separam da poesia o dogma, talvez porque a Egreja, boa mãe, não quer vêr o mundo coalhado de herejes.

E que importam ao leitor as convicções de João de Deus? A alma piedosa que se edificava na contemplação dos amores da Sulamite, pela versão de S. Jeronymo, que perde ella contemplando-os na lingua de Camões? «Para um coração puro, tudo [130] é puro.»—É palavra de Deus, com que o poeta se auctorisa para trazer a lume a interpretação litteral do Cantico dos canticos.

Já agora, apezar da extensão d'esta carta, deixa-me ainda expôr á tua vista algumas das paizagens mais seductoras d'este paraizo de amor, onde a volupia oriental se escoa semi-nua por ondulantes pradarias em flôr. Ouve:

A SALUMENSE.

Sou trigueira, mas formosa,
Moças de Jerusalem!
Senão, vêde o pavilhão
Que arma em campo Salomão,
Se ha coisa mais preciosa,
E por fóra a cór que tem;
Vêde as barracas dos moiros,
Por dentro tantos thesoiros,
Por fóra, negras tambem.

Não vos dê pois isso pena
Ter assim a côr morena:
Minha mãe mandou-me pôr,
Por culpa de meus irmãos,
De guarda á vinha; o calor
Queimou-me o rosto e as mãos
E eu, a vinha, é escusado
Dizer-vos que nem eu tinha
Senão agora o cuidado
De estar a guardar a vinha.
[131] Oh! para que banda vás
Com o gado, meus amores!
E pela folga onde estás?
Bem vês os outros pastores,
E a gente não adivinha.
Eu não hei de andar atrás
D'esses rebanhos sósinha.

.........................


SALOMÃO.

Que enlevo! que formosura!
A pomba não tem de certo
No olhar tanta doçura:
E fóra o que anda encoberto.

O cabello, em quantidade
E tamanho, é singular;
E não me lembra senão
Das cabras de Galaad
Ques lhes roja pelo chão
Em ellas indo a andar.

Os dentes, em tu abrindo
A tua boca, que lindo!
Nem um rebanho de ovelhas
Todas brancas e parelhas
Quando em sendo tosquiadas
Vêem sahindo do banho
D'uma em uma, enfileiradas,
E atrás d'ellas cada uma
Seus dois gemeos d'um tamanho,
Sem ser maninha nenhuma.
[132]
Pois a boca é comparada
A uma fita encarnada.
A voz, ouvil-a é um gosto.
Parte a romã pelo meio
Verás as rosas do rosto;
E fóra no que eu receio
Fallar, que me não é dado.

O pescoço, pensa a gente,
Em o vendo de collares,
Que é a torre exactamente
De David n'esses ares,
De baluartes, e toda,
Lá cima, escudos á roda.

Os peitos, é um casal
De corcinhas, que o seu pasto
São açucenas do valle:
Nada mais timido e casto.
E deitam um cheiro á gomma
Da myrrha mais do incenso,
A ponto que ás vezes penso
Que elles são duas collinas
Por onde aquellas resinas
Espalham aquelle aroma.

Se a esta hora me não accusasses de abuso de paciencia, ainda te repetia toda aquella mimosa carta que principia:

Maria! vêr-te á porta a fazer meia,
Olhando para mim de vez em quando,
É o que n'esta vida me recreia.
[133]
Acordo até de noite, suspirando
Por que rompa a manhã, e tenha o gosto
De te vêr já tão cedo trabalhando.

Desde pela manhã até sol posto,
Que não tens de descanço um só momento;
Por isso tens tão bella côr do rosto!

E eu pallido, Maria! o pensamento
Não é trabalho que nos dê saude,
—Esta imaginação é um tormento!...10

Mas... basta. O livro de João de Deus tem defeitos: escaceia a revezes a ligação dos pensamentos, a clareza das ideias, a exactidão do metro, a perfeição da rima, e não metteria uma lança em Africa o linguista que nas Flores do Campo descortinasse, uma vez por outra, impureza e incorrecções de linguagem. Se, porém, eu mirasse a comprovar, n'esta rapida e singela revista, com os versos de João de Deus a sympathia e a admiração que elles me devem, não seria este o espaço que abrangesse tudo o que alli me pareceu filho d'uma inspiração verdadeira e original. Demais, o poeta não lucraria com estas transcripções a esmo, [134] sobre não poderes fazer do livro uma ideia exacta, á mingua de apreciador conspicuo.

Alexandre Herculano diz bem: a critica em Portugal é impossivel. Mas se nós todos cruzarmos os braços diante dos Ananias da litteratura que introduzem a mercancia do encomio, o servilismo e a chocarrice no santuario das letras, quem expulsará ámanhã os vendilhões, do templo? Já que me não ouvem, prega tu a estas multidões que não sabem o que amam, nem o que detestam; e praza a Deus que a tua voz não seja a voz do que bradava no deserto.

Post-scriptum

Bem avisado andei eu, quando, a proposito dos versos obscuros de João de Deus, tive a franqueza de conceder que toda a gente penetrasse o que para [135] mim era obscuro. Os versos nublosos que lá citei, eram, pelo que me dizem, claros como agua. Um amigo nosso, optimo charadista ao que parece, pôz-me tudo em pratos limpos; e, pelos modos, o nosso Œdipo tem artes para desdar o nó aos mais envencilhados enigmas da mais implacavel Sphynge. Ora eu, que respeito o mysterio mas desadoro o enigma, e a quem nunca charadas desvelaram as noites, não pasmei de vêr luz onde se me antolhavam trevas. O discipulo amado de Jesus não jubilaria tanto, se visse quebrar os sete sêllos do livro que elle viu na visão do Apocalypse, como eu jubilei quando, a par de outras revelações, soube que o individuo que fluctua na fornalha accêsa pelo sopro eterno é o anjo que as lendas piedosas figuram no purgatorio, dando a mão aos que lá se purgam das culpas temporaes para subirem ás regiões do premio eterno.

Pelo que vejo, a decifração não era para fazer suar o cabello; mas confesso-te que, se cem braços eu tivera, como Briareu, para revolver o embotado escalpello da minha critica, cem braços me desfalleceriam diante dos cem olhos d'estes Argos que espreitam maliciosos o rumo indeciso dos mineiros obscuros da justiça e da verdade...

[136]

Seguiu-se-me noite de insomnia. Visões estranhas vieram povoar-me o leito. Sobre o meu travesseiro dormiam comigo as magestosas Torrentes de Theophilo Braga, livro de que, em seguida ás Flores do Campo, eu contava fallar-te. Por cima de mim, por cima do livro, emtorno do meu leito, adejavam uns demoniosinhos, microscopicos como os lilliputianos de Gulliver: uns expediam risadinhas agudas, como de feiticeiras em noites de S. João; outros folheavam o livro e dobravam os joelhos por baixo das estrophes de mais levantada inspiração; estes murmuravam monotono kyrie em volta do livro, arrancando-m'o da mão, como da mão d'um profano se arranca a hostia sacrosanta; aquelles desfaziam o livro em tiras, entreteciam com ellas uma corôa, e collocavam-n'a na cabeça. Se me voltava para a direita, os da esquerda escouceavam-me com um arreganho diabolico; se me voltava para a esquerda, os da direita afiavam a pequenina dentadura, e arranhavam-me as pantorrilhas. O equilibrio era impossivel: esmagava-me um pesadelo! Acordei.

Sobre a minha meza de trabalho estava um livro, notavel pela despretenção e suavidade do estylo, e pelo primor da versificação, sobre ser escripto [137] em portuguez sem mistura; mas apenas no frontispicio li o nome de Antonio Feliciano de Castilho, passou-me pela mente a visão das Torrentes, e os lilliputianos da noite acercaram-se do Medico á força, reproduzindo os sarcasmos ou as ovações, os afagos ou as mordeduras, consoante as tendencias de cada qual.

Estava entre a bigorna e o martello, entre a cruz e a caldeirinha. Quem me salvaria de posição tão melindrosa? Um esforço supremo: fechar as Torrentes e o Medico á força, e não aventurar juizo sobre estes notaveis livros.

Suspendo, pois, a revista do anno litterario de 1869, em quanto me vier á ideia aquella visão aterradora. Sinto-me com algumas forças para luctar com os lilliputianos da visão, mas não me sinto com paciencia para lhes soffrer os motejos e os tripudios, as risadinhas e as beliscaduras. Quero dormir a somno solto, e levar estas noites de Coimbra a sonhar sem pesadêlos, em paz com anjos e demonios, e até com os individuos das mais infimas classes animaes.

Não quero luctar como Chatterton. Chatterton luctou, mas teve depois Vigny que o cingiu de louros, immortalisando-o. A troco da immortalidade, [138] ainda eu me atiraria á lucta: ve lá se queres ser o meu Alfred de Vigny.11

Candido de Figueiredo.

10 Já que ao generoso critico merece especial menção a carta, advertiremos que o primeiro verso da ultima quadra é assim:

Nas asas da ventura atravessando.

11 A Folha, (1869) n.º 7, 8, 9 e 10.

Fim das criticas das "Flores do Campo."

[139]




INDEX

RAMO DE FLORES

I—Sede de amor 5
II—Lamento 13
III—Enlevo 15
IV—Sempre 19
V—Espera 21
VI—Adeos 23
VII—Melancholia 25
VIII—Sympathia 29
IX—11 de Maio 31
X—Attracção 35
XI—Desânimo 37
XII—N'um Album 41
XIII—O seu nome 43
XIV—Saudade 51
XV—* * * 57

Criticas das Flores do Campo

Flores do Campo, por Alexandre da Conceição 63
Livros—Revista critica-bibliographica, por Luciano Cordeiro 75
Flores do Campo, por D. Guiomar D. Torrezão 105
Anno litterario de 1869, por Candido de Figueiredo 113

FIM DO INDEX.

[140]

[141]




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ERNESTO CHARDRON


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