Nota de editor:
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foram tomadas várias decisões quanto à
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mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Maio 2008)
VOLUMES PUBLICADOS
I |
― |
Ráusso por
homizío |
II |
― |
Odio velho não
cança (1.º) |
III |
― |
Odio velho não
cança (2.º) |
IV |
― |
A Mocidade de D.
João V (1.º) |
V |
― |
A Mocidade de D.
João V (2.º) |
VI |
― |
A Mocidade de D. João V (3.º) |
VII |
― |
A Mocidade de D. João V (4.º) |
VIII |
― |
A Mocidade de D. João V (5.º) |
IX |
― |
Lagrimas e thesouros (1.º) |
X |
― |
Lagrimas e thesouros
(2.º) |
XI |
― |
A Casa dos Fantasmas (1.º) |
XVI |
― |
Othello―As redeas do governo |
XVII |
― |
A mocidade de D. João V (drama). |
XVIII |
― |
O amor por conquista (comedia)―O Infante Santo
(fragmento). |
XIX |
― |
Fastos da Egreja (1.º) |
XX |
― |
Fastos da Egreja (2.º) |
XXI |
― |
Fastos da Egreja (3.º) |
XXII |
― |
Fastos da Egreja (4.º) |
obras completas de luiz
augusto rebello da silva
revistas e methodicamente coordenadas
ROMANCES E NOVELLAS―V
A CASA DOS FANTASMAS
EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES
2.ª EDIÇÃO
VOLUME I
LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
Sociedade editora
LIVRARIA
MODERNA
R. Augusta, 95 |
|
| |
TYPOGRAPHIA
45, R. Ivens, 47 |
1908
A CAMILLO CASTELLO BRANCO
Seja-me licito, amigo, dedicar-lhe este esboço informe,
fructo de algumas horas de ocio. Quem melhor, do que o auctor de tantas
composições profundas na
interpretação da vida, admiraveis na pintura do
coração e dos costumes contemporaneos,
poderá desculpar o muito, que falta n'este quadro para sair
menos imperfeito, e ao mesmo tempo apreciar em um, ou outro
traço, os bons desejos e os esforços do auctor?
A epocha, que escolhi, pedia pincel mais fino, e tintas mais vivas.
Tentei vencer-me, e desenhal-a. Sei que fiquei mui inferior ao ideal,
que tinha concebido, e receio mesmo, que o enfado dos leitores castigue
a ousadia do commettimento. Espero, que o seu nome applaudido sirva de
escudo e de defensor ao modesto livro, de que elle vae ser o maior
ornamento.
Não o consultei para lhe offerecer este testemunho
[6]
da minha antiga e sincera amisade. Adivinhei
a resposta, e ahi entrego em suas mãos mais este
orphão, que sae a correr o mundo. Deus lhe conceda a sorte
propicia, que elle não merece, mas que ás vezes
uma boa sina proporciona mesmo aos menos dignos.
Lisboa, 22 de Janeiro de 1865
Luiz Augusto Rebello da
Silva.
A CASA DOS FANTASMAS
I
Uma noite desabrida
Era de tarde. Tinham dado cinco horas, e o dia declinava rapidamente. O
mez de maio do anno 1808, anno assignalado de successos estrondosos na
peninsula, acabava, como tinha corrido quasi todo, entre diluvios de
chuva e ventanias. A noite, cujos primeiros veus já
começavam a cobrir as terras baixas, em quanto os
derradeiros raios do sol esmoreciam na corôa dos outeiros,
avisinhava-se, toldada de castellos de nuvens, que surgiam do sul,
listrando o horizonte de barras cinzentas, rasgadas de
espaço em espaço pelos clarões dos
relampagos.
O ar estava tepido, ou antes quente, e todos os ruidos se iam calando
uns após outros. A immobilidade das aguas, que
não arrugava o mais leve sopro; a das arvores, cujas copas
pareciam petrificadas; e as sombras, que avultavam mais pesadas de
instante para instante, revestiam a paizagem de um aspecto gelido. Uma
lufada de vento, halito abrazado da tormenta, passava solta por cima
dos campos,
[8]
acamando as hervas altas,
destoucando os arbustos, e saccudindo as ramas das oliveiras, dos
alamos, e das faias, e ia morrer distante no roncar soturno e rouco dos
trovões. Algumas gotas, raras e grossas, caiam
então, e a luz, offuscada por mais espessos vapores,
sumia-se de subito para reviver depois, mas timida e desmaiada, sem
alegria e sem calor. As aves fugiam, cruzando-se e pipitando; a
solidão quasi que não tinha echos; e um silencio
lugubre precedia a grande voz da tempestade, que ia principiar dentro
em pouco.
Apezar das ameaças da atmosphera, um viajante trocando o
conchego de povoação commoda pelas inclemencias
do tempo, tinha-se despedido da hospitaleira casa, aonde
jantára, e mettendo o pé no estribo de pau, e
apertando as dobras da manta ribatejana, sem escutar os conselhos e
vaticinios amigaveis, estimulava a mula com as largas rosetas da
classica espora de correia, obrigando-a a espertar o passo por entre os
viçosos pampanos, hoje gloria e gala da nobre villa do
Cartaxo.
Em breve deixou atraz de si as vinhas, que, a esse tempo, (cultura
nascente) apenas verdejavam em uma pequena parte do terreno, que se
carrega agora de seus cachos, e achando-se em plena charneca, extendeu
os olhos pela bella e vasta planicie, desatada por algumas leguas de
ermo, não triste, nem agreste, mas tocado de risonha
suavidade, e rodeado de longes tão puros e desafogados, que
a alma se consola e refrigera de extender por elle os olhos.
O aroma alpestre das plantas; aquelle pôr do sol entre
nuvens; os lamentos da procella ao sul; e o vago indeciso de todo o
quadro compunham um espectaculo de opposições
tão firmes e tão bellas, que o viajante, quasi
sem o querer, se deixou arrebatar por elle, e
[9]
insensivelmente foi imbebendo a vista nas formosuras
rusticas, que de todos os lados o convidavam. Suas
feições, de uma gentileza viril e sympathica,
não inculcavam tedio ou cansaço, mas impaciencia.
A elevada estatura não se encurvava sobre os
arções, e as
pupillas pretas e cheias de fogo, se a miudo fitavam os trilhos
enredados com estreitas fitas sobre o verde sombrio da charneca,
denunciavam mais receio de chegar tarde a um ponto dado, do que temor
de se ver assaltado pelo temporal no meio da jornada.
A mula, que algumas horas de repouso tinham refrescado, como se
adivinhasse os desejos do amo, despejava o passo, e o caminho; mas a
noite e a cerração ainda corriam mais.
Á claridade baça do crepusculo seguiram-se as
trevas; o céu forrou-se todo de negro; e os primeiros
furacões bramiram acompanhados de um trovão
proximo. A chuva principiava a fustigar de rajadas fortes o rosto do
viajante, e a cegar-lhe a estrada inundada dos dias anteriores, e
arrombada em diversas partes. A mula, apezar de afouta e vigorosa,
atolava-se, tropeçando a miudo. Na ponte da Asseca, a
varzea, que ella corta, parecia um immenso paul, cujas aguas a cheia
despenhada dos altos empolava com sussurros, que, unidos aos silvos do
vento e aos ribombos da trovoada, enchiam de horror e de estrepito
aquella scena, tão repassada de grandeza e de magestade.
Á esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se
encandeiam até Santarem, estorciam-se com o vendaval.
Á direita os choupos e os freixos, na beira dos vallados,
vergavam tremulos e desgrenhados como se mão gigante os
dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clarões, em que os
céus pareciam abrir-se, golfavam d
Á esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se
encandeiam até Santarem, estorciam-se com o vendaval.
Á direita os choupos e os freixos, na beira dos vallados,
vergavam tremulos e desgrenhados como se mão gigante os
dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clarões, em que os
céus pareciam abrir-se, golfavam de repente o seu fulgor
sinistro sobre este painel, que o tenebroso manto
[10]
da procella tornava logo depois a esconder.
Atravessando a ponte, por onde enxurrava quasi uma torrente, o viajante
procurou orientar-se. Ajudou-o uma luz ao longe. Seguindo por ella, no
fim de dez minutos encontrou-se junto do vulto massiço de um
palacio arruinado, solitariamente erguido no meio das terras, e olhando
quasi como sentinella esquecida para um angulo da estrada. Em uma das
seis janellas sem caixilhos da fachada, através das fendas
das portas de dentro, ou antes das tábuas de forro pregadas
em logar de vidros, brilhava a luz que lhe servira de norte, e pelas
gretas mal juntas das frestas do andar terreo luzia o clarão
de um grande brazeiro talvez acceso na cozinha. Applicando o ouvido
sentiam-se estalar no lume os troncos humidos, e escutava-se o meio
alarido de algumas vozes e risadas.
―Ah! exclamou o cavalleiro, detendo a mula, e derrubando sobre a cara
por um gesto machinal as largas abas do chapéu de Braga,
quebradas pela chuva. Gente na casa Negra! Quem?!...
Depois de breves momentos pareceu tomar uma
resolução, e a passo, chapinhando na agua, como
se passasse um ribeiro, desviou-se, atravessou para o outro lado, e
cozido com o monte subiu por vereda ingreme até um alto a
tres ou quatro tiros de espingarda de distancia. Pelos corregos, a uma
e outra parte, estrepitavam verdadeiros riachos saltando pelas pedras,
e um relampago, fuzilando e extendendo como um lençol de
fogo por cima das trevas, descubriu-lhe repentinamente a casinha
caiada, de dois sobrados, tecto esguio, e duas janellinhas, que
buscava. Cercava-a um muro baixo de pedras soltas. O ruido monotono de
uma roda, e a queda de uma especie de cascata, sobrepujando o
esparralhar da chuva,
[11]
e os gemidos
do vento mostraram-lhe que estava na azenha de cima, ou no moinho da
Raposa, como diziam os visinhos dos
arredores.
Sem se apeiar, o viajante bateu com o conto ferrado do cajado de
marmeleiro por duas vezes tres pancadas na porta, e esperou.
Não foi necessario mais. Os latidos feros de um
cão de guarda, e logo depois vagarosos passos descendo a
escada, advertiram-o de que fôra ouvido.
―Oh, de dentro! bradou.
―Quem bate?! perguntou uma voz cheia.
―Eu!
―Esse eu quem é?...
―Abre!...
―Pois não!... Ao mesmo tempo o ouvido fino do recem-chegado
percebeu o leve tinir dos fechos de uma espingarda a engatilhar-se.
―Antonio! Pelo rei e pela patria!...
―Ah?! Agora é outro cantar. Lá vou.
E calando o cão, que pulava, ladrando e rosnando como
furioso, desencostou a tranca, tirou o ferrolho, e a chave rangeu duas
voltas na fechadura. Abriu-se finalmente a porta.
―Então quem é? repetiu a mesma voz, em quanto a
cabeça se arriscava fóra no escuro, sem a
mão largar a espingarda.
―Manuel Coutinho. Conheces-me agora? redarguiu o hospede, apeiando-se,
e expremendo do chapéu a agua a escorrer em bica, e
saccudindo a manta, que não estava menos ensopada.―Que
diluvio! murmurava por entre dentes ao mesmo tempo. Se
continúa, nadam ámanhã os saveis na
tua horta, Antonio da Cruz!
―Que se lhe ha de fazer! Como v. s.
a vem!...
Bemdito e
louvado seja
Deus!...
―Amen! Elle seja comnosco e nos ajude,
[12]
que bem o precisâmos; redarguiu o
mancebo, porque o seu rosto moreno, mas fresco, e o cabello preto
não inculcavam mais de vinte e quatro a vinte e cinco annos.
―Cuidei que me recebias a tiro! disse rindo, e mostrando duas fiadas
de dentes finos, alvos, e eguaes, que uma dama franceza lhe invejaria
para ornar um sorriso galanteador.
―Bem vê a noite?!... Depois a gente não sabe quem
lhe quer mal, e uma bala depressa entra... Cá me entendo!...
D'ahi não esperava já por v. s.
a!...
―Não me esperavas?... mas eu tinha dito!...
―É verdade, que disse. Mas choviam raios e coriscos e
sempre cuidei que se deixasse lá ficar em baixo.
Dê-me a redea da mulinha. Então não
sahiu como se queria? Foi um ovo por um real. Entre v. s.
a
e
enxugue-se. Vou cá á nossa arribana, com sua
licença, arranjar a Ligeira, e é um ai em quanto
volto a accender-lhe o lume... Jesus! Santo Nome de Maria! Os
relampagos cegam. Parece que nos cae o céu esta noite na
cabeça com a bulha lá de cima!
Manuel Coutinho entrou. O interior da casa, muito seu conhecido, era de
apparencia singela e rustica. Suspensa do gancho preso em uma das vigas
do tecto a candeia allumiava-a escassamente, apezar de pequena. No meio
da parede do fundo rasgava-se a chaminé baixa e ladrilhada.
Á direita uma arca de pinho alta, sem fechadura, tinha em
cima um cobertôr de papa, e sobre elle enroscado com uma
fisga aberta á vigilancia em cada olho, o gato preto do
moinho, tão absorvido na sua beatitude extatica, e na sua
pachorrenta immobilidade, que os latidos do cão amigo e
alliado domestico, e as vozes do dono, nem um movimento lhe tinham
podido arrancar! Á esquerda a barra de pinho pintado tremia
sobre
[13]
tres pés validos. Na
cabeceira um devoto registo do milagre da Senhora da Nazareth
correspondia a outro do glorioso confessor Santo Antonio, pregado na
parede com obreias. A manta sobre o enxergão e duas pelles
de carneiro compunham a roupa d'este catre de cenobita.
Á direita, em todo o comprimento da casa, viam-se empilhados
muitos sacos de trigo destinados á mó alveira da
azenha. Os de milho jaziam mais adeante em pilhas. A fina
flôr da farinha escapando-se pelas aberturas revoava ao menor
abalo, polvilhando tudo em roda. Por cima de algumas pelles de lebre e
de coelho, extendidas a seccar na parede, pendiam o polvorinho de
chifre com o fundo, ou rodella de pau, e a bolsa de couro, ou
chumbeiro, attestado de munição e pederneiras. Em
um armario, vasado no muro, e resguardado com sua cortina de riscado
azul, luziam, como prata, pelo aceio, a chaleira e a almotolia de lata,
e acastellavam-se duas rumas de pratos. Dos lados, sumptuosidade
rara (!), duas caçarolas de folha de Flandres e cabos de
ferro acompanhavam a baixella de louça. Em uma prateleira
por cima da chaminé a caixa da isca e alguns tachos e
frigideiras de barro esperavam a hora de serem chamados a
serviço activo.
Uma escada empinada, de degráus toscos, verdadeiro
quebra-costas, subia de um dos angulos para o andar de cima, aonde um
alçapão erguido e quadrado abria as fauces, como
se quizesse engulir os que entrassem. Era ahi a
labutação principal do moinho. As
mós, rodando e zoando, ensurdeciam casadas no ruido
somnolento com a queda da levada, que por uma longa calha de pau descia
da preza a ferir a roda, e d'esta, saltando em cachões dos
baldes, ia espadanar no canal, d'onde fugia
[14]
ainda espumante a regar as hortas e as terras
dos visinhos.
Dois mochos de cerejeira brava, e uma poltrona de couro, roto e
cossado, rodeavam no sobrado de baixo uma velha mesa de pau, collocada
no meio do aposento por baixo da candeia de dois bicos. No meio d'ella
um cangirão de aza larga, bojudo e vidrado, com sua tampa de
cortiça guardava a agua-pé. Um copo de canada,
limpo como crystal, um prato sobre toalha alva, meia broa de milho com
um garfo de cabo de pau ao lado, e uma frigideira de sardinhas fritas
annunciavam que a ceia do moleiro ía começar,
quando
fôra chamado. A navalha de mola e de ponta, um rôlo
de tabaco de picar, e algumas aparas d'elle, assim como duas capas de
papel de cigarros, estavam dizendo tambem o que elle fazia pouco antes
da visita inopinada lhe bater á porta.
Vejamos agora que razão de estado attrahia o mancebo a tal
hora e por um tempo similhante áquella casa, e o que se
passou alli n'esta noite fecunda em incidentes para os personagens, que
temos de metter em scena.
II
O moinho da Raposa
O mancebo approximou-se da mesa, picou do rôlo uma
porção pequena, enrolou o
cigaro entre os dedos, e, depois de o accender á luz da
candeia, assentou-se em um dos mochos, com os cotovellos fincados na
tábua, e o rosto entre as mãos, não
sem primeiro ter tirado do cinto um par de pistolas inglezas e uma faca
de matto hespanhola, encubertas com as compridas abas do gabinardo, que
trajava.
Antonio da Cruz appareceu instantes depois.
Era robusto, largo de
hombros e
de peitos, mas
esbelto. Trigueiro, e queimado do sol, as suas
feições lembravam o typo arabe. Os
beiços grossos sorriam com franqueza, e, apezar de muito
rasgada, tinha graça na bôcca, mesmo quando
descubria os trinta e dois dentes alvos e agudos, como os do felpudo
molosso, que saltava em volta d'elle. O cabello rente e crespo cortado
quasi em bico sobre a testa era negro como azeviche. O nariz revirado
na ponta dava certo chiste á physionomia; e nos olhos pardos
e vivos como scentelhas brincava
[16]
uma
expressão de finura natural e de malicia jovial, que lhe
caìa bem, e logo á primeira vista o faziam bem
quisto.
De mediana estatura, mas proporcionado, era tido por um dos homens mais
forçosos d'aquelles contornos. O seu nome servia de grito da
guerra nas aldeias contra a brutalidade dos valentões de
arraial. Nas praças de touros em Villa Franca, em
Salvaterra, ou na capital nenhum forcado o egualava em apanhar os bois
de cara, ou de cernelha. A cavallo era um centauro; a pé
não tinha par no salto, ou na carreira; em mettendo a
espingarda ao rosto aonde punha o olho punha a bala. O seu cajado
manejado por mãos de mestre varria as feiras, zombando de
facas e de espadas.
Sobrio como um anachoreta, presentido e vigilante como um mohicano, o
seu maior defeito era ser impetuoso e assomado de mais. Em o sangue lhe
subindo á cabeça, e em
principiando a picar-lhe a pelle com pontas de alfinetes, segundo elle
dizia, cegava-se, corria direito ao perigo, e, sem attender a nada,
atirava-se a um precipicio.
Temente a Deus, tinha tanto de bom amigo como de implacavel inimigo.
Portuguez e patriota extremo, amaldiçoava os francezes como
jacobinos, e chorava de saudade pelo principe regente, D.
João, ao qual só vira duas, ou tres vezes, em sua
vida. Manuel Coutinho affeiçoou-se a este caracter firme,
honrado, e decidido. O moinho e a horta pertenciam ao mancebo, e
Antonio trazia-os de renda. Ligado á
conspiração, por emquanto quasi
inoffensiva, urdida em Lisboa contra o governo de Junot,
conspiração que regia o
conselho denominado
Conservador, secretamente instituido
no dia 5 de fevereiro d'aquelle anno para auxiliar a
restauração do throno legitimo e da
independencia, Manuel Coutinho confiava
[17]
no humilde camponez, e communicava-lhe até recados de
importancia. Executor discreto d'estas missões arriscadas,
Antonio da Cruz comportava-se sempre com exemplar acerto,
não só enganando o faro da policia de Lagarde,
cujos espiões corriam por toda a parte, mas supportando
resignado por amor de seu amo (assim lhe chamava), e da boa causa
desafios e remoques, que em outra occasião seguramente
custariam caros aos aggressores.
―Se não é hoje o fim do mundo, bradou elle
entrando e saccudindo a agua de cima de si, não sei quando o
será! Mas o lume em um
instantinho está a arder. A lenha é secca. Ora,
diga, meu amo: v. s.
a traz sua vontadica de
comer,
não? Do
Cartaxo aqui é um pedacito menos mau... e a chuva e o vento
cavam cá por dentro como enxada em nateiro...
―Não. Não me faças nada. Se o
appetite vier aqui temos de mais. Agora o lume sim.
―Essa
é boa. Ha de
perdoar; não
senhor. Graças a Deus o Manuel nunca foi torto, nem
aleijado, e ainda esta manhã, antes de almoço,
não perdeu a polvora e o chumbo. Andavam aquelles fidalgos a
saltar nas vinhas, e trouxe-os no alforge. Como os quer?...
E apontava para os dois coelhos mortos e pendurados junto do almario.
―Guizo-lh'os de molho de vilão n'um abrir e fechar de
olhos, e depois ha de beber-lhe em cima um, ou dois copos de um
vinhinho, que me deram, e que fica a gente a chorar por mais...
―Já te disse. O vinho e os coelhos guarda-os para
ámanhã. Agora melhor me sabe este cigarro, do que
todos os manjares. Accende o lume. Temos que falar.
O mancebo suspirou como quem se sente opprimido de tristeza, e lucta em
vão por se vencer.
[18]
O Antonio da Cruz, curvo sobre a caixa da isca, a assoprar a chamma,
ouvia-o, e percebeu-o, mas calou-se. A mecha pegou, e d'ahi a um
momento levantava-se da lareira um clarão vivo e alegre,
tingindo de vermelho as paredes e os pobres moveis da casa.
―Bem! disse Manuel Coutinho. Isto já parece outra cousa!
Senta-te, e come!
―Salvo o respeito, saiba v. s.
a que
não tem
pressa.
―Tem. Come e despacha-te. Depois falaremos. É preciso sair
logo...
―Ah! Então a cousa aperta? Para termos de saír
por uma noite d'estas!...
―Póde bem ser a ultima da vida de umas poucas de pessoas!
exclamou o mancebo, pondo-se em pé agitado.
―Melhor o ha de fazer Deus, senhor Manuel! redarguiu o moleiro com a
sua tranquillidade apparente, que illudia os que o conheciam mal. Com
sua licença! ajuntou sentando-se á mesa, e
rompendo o assalto contra a broa e as sardinhas, regadas de copiosas
libações de agua-pé. Os sacos pesam
seis alqueires, e por aquella escada acima apalpam as costellas.
Á saude de v. s.
a! A minha pena
é que
não quizessse provar dos coelhos e do vinho do convento de
S. Francisco. Olhe que os padres sabem escolher do fino!...
―Que gente era aquella, que esta noite vi na Casa Negra? perguntou
Manuel Coutinho, que as proezas gastronomicas de Antonio já
não maravilhavam, porque fôra testemunha d'ellas
muitas vezes.
―Gente na Casa Negra? Na Casa Maldita?!... accudiu com a
bôcca cheia, e estremecendo.
―Sim! Vi luz em cima, na terceira janella, e ouvi risadas e vozes no
andar terreo. Não sabes o que será?!
[19] ―O meu padre Santo
Antonio nos accuda! Cousas do demonio, que desde
que me entendo é o unico morador d'aquelle
casarão! Mas v. s.
a está
bem certo!?...
Gente a
estas horas alli! Não póde ser!
―Tanto póde, que havia fogo na cosinha, e gente a rir, a
falar, e a aquecer-se a elle!
Antonio da Cruz enguliu á pressa o ultimo boccado, poz
á bôcca cheio a trasbordar o copo de
agua-pé, e pousando-o vasio com um suspiro, tirou o barrete
e benzeu-se.
―Olhe, senhor, creia v. s.
a o que lhe digo!
tornou meio
atalhado.
Gente d'este mundo não era de certo. Por estes arredores
não havia quem se atrevesse!... Ah, Jesus, Santo Nome de
Maria! accrescentou mais pallido. Deram ainda agora, á
noitinha, um tiro no Antonio Simões. Dizem que o mataram;
mas o corpo não appareceu! Querem ver que foi parar a
alma...
―Antonio! accudiu o amo um pouco severo. Alma que vae não
volta! Isso são medos de criança. Os hospedes da
Casa Negra estão vivos, como eu, e tu. Agora o que preciso
saber, e já, é o que são e o que fazem
alli!...
―Será o sargento Cabrinha, aquelle jacobino! Andou esta
manhã pelo sitio com as milicias. Só se
fôr elle! O maldito ri-se de Deus e do diabo. Ha de
chegar-lhe a sua vez.
―Prendeu alguem?!...
―Dizem que sim, ahi para os sitios do Casal do Ouro.
―Ah! exclamou o mancebo. Capaz seria elle? Se fosse quem receio!...
Ouviste dizer?...
―Um velho e sua filha. Os nomes não m'os souberam dar.
―Nem é preciso! interrompeu Manuel Coutinho em voz
soffocada, e com os olhos inflammados. O infame Lagarde cumpriu a
promessa.
[20]
Verá se a de
um portuguez lhe fica atraz! Os nomes sei-os eu; dizia-m'os o
coração antes de aqui entrar. Mas!...
Conteve-se, e caíu em reflexão profunda. Antonio
da Cruz, tambem de pé, e animado, desde que sabia que
não era com os demonios, ou com as almas do outro mundo a
contenda, esperava, olhando para a espingarda, que uma palavra do amo
lhe pedisse o apoio do seu braço.
―Depois de curta pausa, o mancebo, renovadas as escorvas das pistolas,
e cingida a faca de matto, virou-se para o seu confidente e disse-lhe:
―Queres saber como se chama o velho, que o sargento arrasta preso a
Santarem para o entregar á vingança dos
francezes? É
Paulo de Azevedo Carvalho. E sua filha...
―A senhora D. Leonor?! A noiva de v. s.
a!...
Jesus... Pobre
menina!
―Buscam-o para o processar como rebelde desde o caso de Mafra.
Tinham-se escondido na Aramanha, e esse villão do sargento
Cabrinha, por trinta moedas prometteu entregal-o. Não o
achando já alli, correu os arredores, e de certo o foi
encontrar no Casal do Ouro pela denuncia...
―Do Sapo! Foi o Sapo, aposto! Por isso o patife andava desde hontem de
orelha fita e focinho aguçado! Só ao moinho,
aqui, veiu duas vezes! Ah! Se eu soubera! Partia-lhe outra perna.
Não importa. O que não se acaba dia de S. Braz
n'outro dia se faz. Não as perde.
―Antonio! Paulo de Azevedo não ha de entrar na cadeia da
villa, nem na de Lisboa. Esta noite a «Casa Negra»
terá outra
historia talvez mais feia que juntar á sua. Aprompta-te!
Á meia noite saímos. Pódes resar por
alma do sargento, se o encontro!
III
Duas paginas da historia d'este seculo
Antes de proseguirmos, para maior clareza d'esta mui veridica
narração, cujo fio poderia enredar-se com as
explicações de todos os
momentos, pedimos venia ao leitor para resumir em breve noticia os
acontecimentos, que formam o fundo da pintura, ou antes do
esboço, que nos propozemos traçar.
A revolução franceza, representante das
forças e interesses da humanidade, herdeira não
só das aspirações e
esperanças, mas tambem das dores e resentimentos de muitos
seculos, saudada em 1789 com transportes de jubilo, em 1793
já tinha convertido a innocencia do primeiro enthusiasmo nos
accessos febris de um patriotismo sombrio, dando o espectaculo, novo e
incrivel, dos maiores crimes a par dos rasgos mais heroicos, e das
virtudes mais sublimes.
Só e contra todos arremessou audaciosamente a luva aos
adversarios de fóra e ás
facções internas. Decapitou no cadafalso a
realeza; repelliu os exercitos da Europa colligada; atravessou
após elles as fronteiras inimigas;
[22]
suffocou nas provincias insurgidas as saudades e as iras do
regimen decaído; e vigorosa, mesmo ao saír do
berço, sobreviveu aos delirios e excessos da anarchia. Nada
a detinha, nada a assombrava! Admirada de uns, execrada do maior
numero, mas invencivel, precipitou-se, demolindo tudo no seu impeto,
até, esvaída do sangue vertido nos patibulos e
nos campos de batalha, caír por fim, quasi sem alentos, nos
braços do mais illustre de seus capitães,
d'aquelle de quem Siéyés disséra com
persuasão prophetica: «que seria o senhor, porque
sabia, queria, e podia tudo!»
A ordem restituida por elle, a victoria inseparavel de suas armas, o
esplendor de tantas acções applaudidas, os
milagres de uma vontade, a que ainda obedeciam os obstaculos e o
destino, compozeram essa rara epopêa, de que
Napoleão I, grande como Cesar, ou maior talvez, foi ao mesmo
tempo o heroe e o assumpto.
Guiada pela providencia, a sua mão, ao passo que ia lavrando
nas primeiras paginas da historia d'este seculo as datas memoraveis,
com que se abriu sua agitada existencia, unia, pesada como a de Attila,
gloriosa como a de Carlos Magno, á queda do passado a
transformação do presente.
A fortuna muitos annos constante seguiu-o de triumpho em triumpho,
desde as planicies da Italia, immortalizadas pela sua mocidade,
até aos gelos do norte para os quaes a sorte parecia
attrahil-o, e aonde o clarão de Moscow incendiada havia de
illuminar depois os funeraes do imperio.
Marengo, Eylau, Essling, Wagram, e cem estações
assignaladas pelos prodigios do seu genio, viram a terra gemer abalada
pelo galope dos esquadrões; viram os thronos vacillar,
[23]
ou alluirem-se; viram os principios
nóvos germinarem grávidos do futuro nos sulcos
rotos pela inundação, quando a onda vencida
recolheu ao antigo leito! Abrazada em odio, ou cortada de espanto, a
Europa contemplava aquella epocha de terremotos e de
transfigurações, sobresaltando-se com os decretos
da voz soberana, que falava pela bôcca de bronze dos
canhões, e inclinando-se serva, mas fremente, na
presença das aguias, que passavam e revolviam profundamente
o mundo das idéas e o mundo dos factos, desde as bases e os
limites das monarchias, desde o solo e a familia, até ao
estado physico e social, até á
organização politica e economica.
N'esta lucta de gigantes, a França e a Inglaterra, travadas
como dois athletas, combatiam sem escolher as armas. Feriam-se sempre e
em toda a parte! Percebiam que o duello era mortal, e que só
podia terminar pela ruina de uma d'ellas. Aboukir e Trafalgar tinham
assegurado a supremacia dos mares ao leopardo britannico. A Austria
impaciente, mas resignada, a Prussia rendida em Jena, a Russia
desenganada em Austerlitz e Friedland proclamavam a vaidade da liga
continental.
Mas Bonaparte, na maior elevação a que
fôra dado subir, tocado o apogeu, não foi superior
á fragilidade humana. Os deslumbramentos da grandeza
trouxeram a vertigem. O abysmo chamou pelo abysmo. Esquecido de que
só Deus é omnipotente quiz e ousou tudo!
Gerações inteiras immoladas semearam de cadaveres
o rasto de seus passos. Os povos amaldiçoavam-lhe a
ambição como
flagello. As coroas, voando da cabeça dos reis legitimos,
arrancadas pelos furacões da guerra vinham cingir a fronte
plebea dos eleitos da gloria. Retalhando o corpo exanime das
nacionalidades desmembradas pela espada, edificou
[24]
na areia, s
na areia, suppondo fundir em bronze esses
reinos e dynastias ephemeras, que um aceno tirou do nada, que os seus
revezes sepultaram para sempre.
Repartindo pelos irmãos e os generaes os diademas e os
estados, queria ter n'elles satrapas, e não soberanos. Murat
em Napoles, Joseph em Hespanha, Luiz na Hollanda, e Jeronymo na
Westphalia representaram as peripecias d'esta ultima e arriscada phase
de uma grandeza, que na usurpação dos sceptros e
na provocação das antipathias populares encontrou
o precipicio, a queda, e a lição!
Portugal, no extremo occidente, abrigado pela distancia das
revoluções, que desmoronavam tudo ao meio dia e
ao norte da Europa, não se eximiu afinal de participar
tambem, e com largo quinhão, das infelicidades, que a nenhum
paiz poupou a sorte. A iniciativa do marquez de Pombal, interrompida
pela morte do soberano, que vinte e sete annos o sustentára,
apezar das conspirações da nobreza, e da
adversão da familia real, acabou com o monarcha
tão notavel pela firmeza.
O
poder do ministro eclipsou-se
com o ultimo suspiro do principe, e com elle expiraram as
tradições viris, e os commettimentos
reformadores.
Um gabinete quasi
todo composto de aulicos, sujeito ao
veto do confessor valido, substituiu o mando odiado do marquez; e este
poude vêr ainda do seu desterro a mão dos emulos
alçada contra a arvore, que plantára, arvore que
apenas principiava a cobrir-se de flôres, e á qual
a inveja não deixou amadurecer os fructos.
A branda e devota indole da rainha atalhou em parte os bons desejos dos
homens, que se prezavam de ainda respeitarem as maximas do grande
reinado. José de Seabra, Martinho de Mello, e
após elles D. Rodrigo de Souza
[25]
Coutinho queriam continuar no caminho encetado por Sebastião
José de Carvalho; porém divididos em partidos (o
francez e o inglez), offuscados pelas intrigas dos hypocritas, e
detidos pelos escrupulos, que assustavam a consciencia da filha de D.
José I, luctavam muitas vezes em vão com a
corrente, e os seus esforços a miudo naufragaram contra os
artificios dos cortezãos, e contra as
declamações
dos beatos, senhores de todas as avenidas do paço.
As providencias uteis, que honraram o governo de D. Maria I,
derivaram-se do predominio conquistado sobre o animo da rainha, sua
penitente, pelo arcebispo de Thessalonica, prelado isento de
preconceitos e ornado de virtudes. Mal elle desceu ao tumulo, a
visão terrivel dos patibulos, erguidos por seu pae,
tornou-se uma allucinação perenne, e as trevas da
demencia apagaram para sempre a razão vacillante da
princeza.
D. João, seu filho, empunhou as redeas do Estado, primeiro
sem titulo expresso, depois com o de regente. Amigo da tranquillidade,
avêsso a complicações e lances
arrojados, humano e bondoso, era todavia mais sagaz e penetrante, do
que supporia quem o conhecesse mal. Em suas mãos a
auctoridade soberana podia enfraquecer-se e rebaixar-se, como
aconteceu, mas ferir os subditos, ou irritar os alliados,
não!
Comprada a preço de grandes sacrificios, a neutralidade foi
a politica preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o
arbitrio prudente aconselhado pelas circumstancias. Comprada a
preço de grandes sacrificios, a neutralidade foi
a politica preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o
arbitrio prudente aconselhado pelas circumstancias. A republica tinha
legado ao directorio esta amizade inerte, mas facil de conservar; e
Napoleão, mais altivo, ou mais exigente, olhando quasi
Portugal como colonia de Grã-Bretanha, não
encobria já no consulado as
[26]
suas repugnancias pela dynastia de Bragança.
Dictando-lhe a paz em 1801, e obrigando-a a submetter-se a
condições injustas, nutriu acaso a
esperança de que, não podendo
executal-as, ella lhe proporcionasse um pretexto? Não
hesitando em animar a cobiça e a rivalidade do gabinete de
Madrid, queria costumal-o a invadir-nos as fronteiras, offerecidas como
pasto áquella ambição estimulada?
Seja o que fôr, a Hespanha tendo-se valido de
nossas armas no Roussillon,
pagou-nos com
ingratidões o soccorro, separando a sua causa da nossa,
unindo-se a Bonaparte para nos humilhar, e aproveitando a sombra dos
estandartes francezes para se apoderar de Olivença, que
nunca mais restituiu!
Na mente de Napoleão I, a idéa de precipitar do
throno os Bourbons de Hespanha, como os expulsára de Napoles
e da Etruria, era idéa, que lançára
raizes firmes. No seu tribunal tambem a casa de Bragança era
condemnada por outras culpas. Accusava-a de seguir, como satellite, o
astro da Grã-Bretanha, e queixava-se de que usasse e
abusasse da neutralidade em beneficio dos interesses commerciaes dos
inglezes, os quaes, por meio da oppressiva utopia do bloqueio
continental, cuidava expellir dos mercados da Europa, fechando-lhes
todos os portos desde Lisboa até Cronstadt!
Inspirado occultamente por mr. Canning, o governo portuguez promettia
excluir o pavilhão britannico de suas praias, e
não duvidava affiançar uma
declaração de guerra
simulada; mas prender as pessoas e sequestrar as fazendas dos subditos
do rei Jorge, como exigia em nome da França o seu ministro,
mr. de Rayneval, era violencia, que as relações
anteriores e a ruina de grossos capitaes nacionaes e estrangeiros lhe
prohibiam. Recusou-a sem ostentação, mas com
vigor.
[27]
Napoleão queria tudo, ou nada! Para elle Lisboa e o Porto
eram como puras feitorias britannicas, e, se não lh'as
entregassem, estava resolvido a mandar os seus soldados conquistal-as.
Contava com a repulsa, e no meio dos mil cuidados, que o salteavam
então, acabava de pôr o ultimo remate ao seu
plano. O tractado secreto de Fontainebleau assignado em 27 de outubro
de 1807, affiançava-lhe pela cumplicidade da Hespanha a
estrada militar, de que precisava para realizar a invasão.
Junot, acampado em Salamanca á testa de vinte cinco mil
homens promptos á primeira voz, apenas aguardava as ultimas
ordens. Duas divisões castelhanas, uma de dez, outra de seis
mil soldados, deviam coadjuvar as operações do
exercito francez, apoderando-se a primeira do Porto, do Minho, e de
Entre Douro e Minho, assenhoreando-se a segunda da provincia do
Alemtejo e do reino dos Algarves. O pacto ajustado entre
Bonaparte e Carlos IV, desmembrava
o reino em proveito de
ambos. O Principe da Paz lucrava um estado independente de quatrocentas
mil almas, composto das provincias do sul, e denominado o principado do
Algarve. A rainha viuva do duque de Parma, filha querida do monarcha
hespanhol, em compensação da Etruria cedida ao
gabinete de Saint-Cloud, recebia um reino de oitocentos mil habitantes,
formado de duas das provincias do norte, com a cidade do Porto por
capital, denominado o reino da Lusitania Septentrional!
A marcha dos francezes correu tão rapida e atropellada,
quanto era viva e ardente a impaciencia do imperador!
Bonaparte ordenára, que entrassem a tempo de salvar das
mãos dos inglezes a nossa esquadra e os thesouros, que ella
podia transportar para a America. A familia real não
[28]
o preoccupava tanto. Eram alguns
prisioneiros de menos a guardar! Nunca a obediencia foi tão
fiel. Junot voou! Passando a raia em Alcantara, precipitou-se, como
torrente, por meio do paiz, que o ciume da independencia e o amor aos
principes naturaes podia tornar-lhe todo hostil. A cada passo mil
perigos o advertiam da temeridade. Aqui eram serras alpestres, aonde um
punhado de homens resolutos facilmente o sepultaria com seus
companheiros de armas! Além eram solidões, aonde
a falta de todos os recursos exaggerava as miserias com que luctava
desde que saíra de Salamanca!
Os rigores do inverno tempestuoso, as estradas arrombadas e cobertas de
agua, os campos inundados, a falta de viveres, e o odio dos moradores,
dizimavam suas fileiras rareadas pela fadiga, pela fome, e pelas
enfermidades. Tudo se conspirava para o punir e demorar a
invasão; o clima, os habitantes, e o territorio que se via
obrigado a atravessar!
A firmeza do general triumphou. No dia 27 de novembro suas
avançadas batiam quasi ás portas de Arroios, e
nas praias de Belem o principe regente dava o ultimo
beijamão aos vassallos consternados!
No caes e na praça não se via senão
lagrimas e confusão. Os parentes despediam-se,
abraçados, como se não esperassem tornar a
vêr-se. Os escalares e bergantins carregavam para bordo as
mobilias dos fidalgos e as alfaias mais preciosas do paço e
da patriarchal. Nas ruas apinhava-se o povo attonito. Cercada do
cortejo doloroso do infortunio, a familia real era o alvo, em que se
empregavam os olhos de todos.
No meio das damas, açafatas, camaristas, e criados, pallidos
e suffocados, o principe D.
[29]
João, sua esposa a princeza D. Carlota, seus filhos, e sua
mãe a rainha D. Maria I, cujos gritos de demencia cortavam o
coração, diziam o ultimo adeus á terra
do seu berço!
A multidão soluçava e estendia os
braços em vão, como se quizesse retel-os. Um
decreto datado da vespera tinha declarado que os conselhos pusillanimes
prevaleciam. Em vez de chamar o reino ás armas, imitando o
valor de seus antepassados, D. João ia refugiar-se
além do Atlantico, no Rio de Janeiro, deixando nomeada uma
regencia á qual deferia a triste missão de abrir
as portas da capital ás tropas inimigas.
Demorada no Tejo pelos temporaes, a esquadra portugueza só
largou as velas no dia 29. Nessa mesma noite arrastavam-se
desfallecidos pelos arrabaldes de Lisboa os invasores, cuja sombra
sossobrára o peito de um descendente de D. João
I! Quasi nús, descalços, esmorecidos, recrutas
imberbes com as espingardas cobertas de ferrugem, inuteis, ou partidas,
os soldados do corpo de occupação infundiam mais
dó e piedade, do que temor e respeito no
animo
dos
que os viam desfilar. Escudava-os, porém, o nome de
Napoleão com o seu prestigio. A hora dos desenganos ainda
não tinha batido.
Junot entrou no dia 30, hospedou-se no palacio do barão de
Quintella, e poz algumas auctoridades suas. No dia 13 de dezembro,
depois de uma parada no Rocio, a bandeira tricolor foi arvorada nas
ameias do castello. Começava o primeiro acto do attribulado
drama, cujo desenlace encerrou a capitulação de
Paris, e a abdicação de Fontainebleau! As tropas
hespanholas acompanhavam os movimentos dos alliados. O general Taranco
apoderou-se do Porto; o marquez del Soccorro, senhor do Alemtejo,
adeantou-se até Setubal.
[30]
As
forças dos invasores cercaram-nos por todas as partes.
Ás saudades cada vez mais vivas da dynastia desterrada, aos
resentimentos provocados pelo jugo estranho, que, arrogando-se
fóros de conquista em plena paz, cada dia era mais
detestado, uniam-se os aggravos e violencias inseparaveis de uma
occupação, que só
podia sustentar-se pelo rigor.
Amanheceu finalmente o dia 13 de fevereiro de 1808, o qual, rasgando o
véu de todo, revelou sem disfarce os designios de Bonaparte.
Rodeado de soldados e canhões, ao som das salvas das
fortalezas de mar e terra, Junot proclamou sem hesitar a
usurpação insolente de todos os direitos da
soberania. A casa de Bragança, disse elle no seu edital,
acabou de reinar. O imperador dos francezes será de ora em
deante o protector e o arbitro dos destinos da monarchia! Para consolar
os portuguezes da perda da independencia, o duque de Abrantes
prometteu-lhes mil beneficios, e assegurou-lhes que um dia
até o Algarve e a Beira Alta haviam de ter o seu
Camões!
Os habitantes preferiam a epopea viva á epopea escrita, e
poucos mezes depois com a espada em punho recordavam as proezas de seus
avós, repellindo os estrangeiros.
As armas nacionaes picadas e substituidas pela aguia corsa, a
contribuição
forçada, decretada em 7 de dezembro de 1807, e repartida
pelos moradores abastados de Lisboa, que nem o pretexto da resistencia
tinham offerecido á cubiça, irritando os animos
excitaram tumultos na capital e rixas em varias terras.
Correu sangue de parte a parte. Nas provincias os roubos impunes, os
desacatos da soldadesca nas egrejas, e as tropelias de tropas
licenciosas e pouco disciplinadas, ainda cansavam mais a paciencia
publica.
[31]
A sorte da capital e do Porto não era menos infeliz.
Lagarde, detestado pela sua tyrannia na Italia, e Perrot assaz
inventivo em oppressões, cobriam de uma rede de delatores os
pontos, onde suppunham que podiam abrigar-se os seus adversarios,
faziam leilão publico da clemencia, e abriam, ou cerravam as
portas das prisões com chaves de ouro. Tinham
pressa de enriquecer!
Adivinhariam que o seu governo não havia de durar muito? Os
factos provaram mais esta vez ainda os perigos de tão errado
systema. Filho da violencia, apenas o desamparou a força que
era o seu unico apoio, despenhou-se nos abysmos, que elle proprio
afundára.
IV
O bem soa, o mal voa
De ordinario voltam-se contra os poderes odiados os proprios meios
empregados para algemar os povos. As visitas domiciliarias, as buscas,
as denuncias, as multas, os encarceramentos, todos os instrumentos de
tortura moral, em fim, excogitados pelo genio assolador de Lagarde,
produziam effeitos contrarios aos que elle esperava colher, ulcerando o
orgulho nacional, enfurecendo as populações, e
predispondo-as para vingarem no primeiro ensejo todas as offensas de
uma vez.
Em Mafra, aonde um conflicto casual custára a vida, ou o
sangue a alguns soldados de Junot, a crueldade da repressão,
confiada ao general Loison, acabou de exasperar os animos. O desditoso
Jacintho Correia expiou com o supplicio a culpa, quasi geral, da
aversão aos invasores.
Estes rigores, longe de as firmarem, tornaram mais frageis as bases da
dominação estrangeira, que a todos os instante
via desabar o edificio vacillante do seu poder. As devassas e monterias
ordenadas contra as pessoas implicadas
[33]
n'esta guerra surda, mas implacavel, ameaçando alguns
innocentes, apenas réos do horroroso delicto de aborrecerem
a usurpação, recrutou em favor da
reacção patriotica numerosas e decididas
adhesões.
Paulo de Azevedo Carvalho, que no «Moinho da
Raposa» ouvimos citar como uma das victimas da intendencia
geral da policia, salvo quasi por milagre, graças
á rapidez da fuga, das garras dos emissarios de Lagarde,
vagueára de asylo em asylo, acossado de perto, mas sempre
protegido, desde Torres Novas até Santarem pela generosa
cumplicidade, que lhe patenteava todas as portas, do palacio
até á choupana, apagando logo depois com discreto
silencio o menor vestigio de seus passos.
Uma imprudencia ajudou os que o perseguiam. Sua filha partiu de Torres
Vedras para ir encontrar-se com elle, e os olhos de argos da policia
seguiram-a na jornada até ao humilde casal, escondido nas
mattas da Aramanha, onde a esperava Paulo de Azevedo, e onde lhe abria
os braços a hospitalidade rude, mas sincera, do honrado
fazendeiro Antonio Simões.
Disfarçados em mendigos ou em jornaleiros, os agentes de
Lagarde depressa descobriram o foragido no seio da casa rustica, em que
se abrigava. Assaltaram-a de noite com um cordão de milicias
ás ordens de Estevan Cabrinha sargento no regimento de Rio
Maior, e capaz de vender o sangue de mãe e
irmãos, uma vez que o preço correspondesse.
Falharam, porém, todas as precauções.
Cabrinha errou o salto. Avisados a tempo o pae e a filha evadiram-se na
vespera, e o sargento só colheu da
ruidosa
diligencia as maldições de Antonio
Simões, maldições e despresos, que
estava
costumado a engulir, como ossos do
officio, mas que
registrava cuidadosamente para as descontar aos devedores na hora
opportuna.
[34]
D'esta vez a divida não esperou muito. Uma busca de
contrabando sobre denuncia falsa proporcionou-lhe o desejado pretexto.
Antonio Simões da Aramanha deu-lhe o gosto de entrar dias
depois sob seus auspicios na cadeia de Santarem, quasi arrependido da
soltura de lingua, com que tinha lançado em rosto ao
perseguidor as lagrimas e a ruina das familias, e os crimes contra a
patria. O fazendeiro, todavia, não gemeu nos ferros de
el-rei, como se dizia então, sem jurar pelas costellas ao
malsim. Deante de testemunhas protestou moel-o com o cajado de
zambujeiro, especie de clava, que achatava um homem como uma bolacha, e
vozes chocalheiras avisaram o sargento da promessa caridosa. Cabrinha
enfiou. O intendente geral da policia Lagarde servia-se do mastim e
açulava-o contra o Ribatejo, não regateando ao
mercenario venal as recompensas; mas era duvidoso que podesse
eximir-lhe o corpo do premio, affiançado pela
gratidão de muitas victimas.
Em quanto Paulo de Azevedo respirasse livre, o amor proprio e a bolsa
de Cabrinha padeciam, e não era elle homem que dormisse,
quando o interesse o chamava com voz activa. Suppondo o cavalleiro de
Mafra ainda proximo, deixou-o socegar por dias, e valendo-se da
ardileza de um subalterno sagaz, digno assessor de suas virtuosas
emprezas, o coxo Gaspar Preto, conhecido pela expressiva alcunha do
Sapo, mandou-o bater os
arredores, na idéa de que a vista de lince do agente, com
mais facilidade desencantaria, ainda quente, o ninho aonde se refugiava
a presa.
Não se enganou. O
Sapo,
cujos brios avivára a esperança de rasoaveis
lucros, entrou sem demora em campanha, e tres dias depois trouxe-lhe a
agradavel nova de que o cavalheiro e sua filha se cobriam com o tecto
modesto
[35]
de uma casa, pouco mais do que
choupana, solitaria, e situada nas abas da risonha
povoação
do Casal do Ouro no meio das vinhas e olivedos, que o vestem de
verdura.
O sargento não perdeu tempo. Apenou seis milicianos fieis ao
copo e ao cangirão, e, acompanhado por elles, prendeu de
tarde e á
traição a Paulo de Azevedo e a Leonor. Temendo,
porém, que o povo se alvoroçasse, apezar das
ameaças da trovoada metteu-se a caminho, não sem
olhar a miudo para traz, receioso, sobre tudo na charneca, de que a
bala perdida de uma espingarda lhe testemunhasse o reconhecimento
grangeado por seus longos e valiosos serviços!
O homem põe, e Deus dispõe! A fortuna que o
protegêra, detendo Manuel Coutinho no Cartaxo, sem o que
teria encontrado o seu amigo e a sua noiva presos, (lance de certo
fatal ao sargento), mostrou-se logo contraria a Cabrinha,
não demorando uma hora, ou duas mais, tambem, o temporal, o
qual, perto da Ponte da Asseca rebentou com violencia tal, que o
constrangeu, á falta de melhor, e não sem grandes
arrepios de medo seus, e dos soldados, a descançar aquella
noite no palacio arruinado, temido na visinhança pelo
significativo nome de
Casa Negra, ou
de
Casa Maldita.
O
Sapo, entretanto, não
ficára ocioso.
Sabendo que Antonio Simões da Aramanha fôra solto
da cadeia de Santarem por ordem do juiz de fóra, e que
n'essa mesma tarde vinha dormir ao Casal do Ouro, doeram-lhe de repente
todos os ossos, como se o cajado monumental lh'os triturasse,
similhante a mangual na eira, e assentou livrar-se a si e ao sargento
da promettida sova, interceptando na estrada o robusto fazendeiro com
uma bala.
Esperou-o, pois, atraz de um vallado, em
[36]
azinhaga escura e estreita, ao anoitecer. Escutando o ruido de passadas
cheias renovou a escorva, engatilhou a espingarda, metteu-a
á cara, e com a tranquillidade, com que poderia desfechar
sobre uma lebre, disparou por entre as ramas sobre um vulto, que vinha
dobrando a quina do caminho, e que soltando um grito agudo baqueou por
terra.
―Deus seja com a sua alma! exclamou o assassino, saltando o vallado, e
contemplando prostrado, e com o rosto banhado em sangue o corpo da
victima, que todavia conheceu pela estatura e pelo trajo ser Antonio
Simões da Aramanha.
―Está com Christo! ajuntou depois de olhar para elle
instantes. Este já não morde. Falta o Antonio da
Cruz!... Tambem lhe ha de chegar a sua vez!
Feito este responso, torcendo a perna, e apressando os saltos, em que
despejava mais caminho do que os sãos, o coxo passou por
entre as silvas, e atravessando pelas vinhas e hortas, veiu
saír muito distante do logar do crime, ao alto do valle.
Soou a noticia do tiro dado em Antonio Simões. As mulheres,
que se recolhiam do trabalho do campo, encontraram o corpo
ensanguentado na azinhaga, e correndo e clamando, tocaram a rebate com
a historia do homicidio por todas as portas. Juntou-se gente, accudiram
alguns amigos, que o morto contava na terra, e em procissão
encaminharam-se ao sitio aonde o desgraçado fazendeiro devia
jazer, que era aonde a azinhaga cortava entre a Ponte de Asseca e a
Casa Negra.
Caso inaudito, e que fez erriçar de espanto as grenhas
hirsutas dos aldeões, por baixo dos barretes de
lã e dos chapéus desabados! Nem rasto da victima!
Sómente duas poças de sangue, e a cama feita pelo
cadaver na terra molhada
[37]
denunciavam
a verdade das camponezas e a existencia do delicto!
Quem roubára aquelle corpo á sepultura
christã? Quem fôra o assassino? A estas duas
perguntas respondia a superstição, que
só poderia ter sido o inimigo do genero humano, porque a
azinhaga não se via trilhada senão dos
pés curtos e deseguaes de um homem, que, fugindo,
deixára assignalada no vallado a
feição dos joelhos. Aonde acabavam as passadas
fortes e largas dos sapatos de Antonio Simões não
havia indicio de mais nenhumas.
A chuva caíndo em torrentes, os relampagos allumiando as
trevas de clarões repentinos, e os trovões
estalando uns após outros, depressa dispersaram os curiosos,
que a luz de dois archotes, saccudidos e apagados pelo vento,
não confortava muito contra os terrores do inferno, sobre
tudo em tão medonha noite.
Benzendo-se, e acotovellando-se uns aos outros, recolhiam-se transidos,
ensopados, e cheios de apprehensões, quando alguns mais
audazes, que tinham ousado arriscar a vista na
direcção do palacio arruinado notaram, que duas
das janellas, sempre cerradas, deixavam transparecer por entre as
taboas mal juntas uma claridade livida, brilhante na
escuridão como os olhos de um demonio!
Esta ultima prova do poder sobrenatural do tentador foi tão
decisiva que, trocando o passo ligeiro pela mais despedida carreira, os
bons dos aldeãos, persuadidos de que Satanaz reunia na Casa
Negra a sua côrte plenaria, não pararam
senão á porta da egreja
parochial, chamando pelo prior em altas vozes.
D'onde vinha ao palacio arruinado a má
reputação, que afugentava de sua
visinhança os moradores dos logares proximos? Que trasgo, ou
que duende vexava com suas maleficas
[38]
travessuras a casa ennegrecida pelo tempo, e rodeada de eterna
solidão?
Construida nos principios do seculo XVII, o gosto depravado do
architecto traduzia-se nos dois pavilhões lateraes, que
acompanhavam o corpo do edificio, esmagados pelos tectos, e
massiços como duas cidadellas, carregadas de tristeza.
Revestidos de pesadas cantarias, com as janellas estreitas e de volta
baixa, e as portas abafadas de lavores e ornamentos desgraciosos, o ar
e a luz só a medo podiam circular pelas immensas salas e
pelos extensos e escuros corredores, em que se repartia.
Solar desamparado, por mais de um seculo via-se as ervas crescerem nos
pateos e eirados, as eras enrolarem-se pelos muros gretados, e os
telhados verdejarem cobertos de plantas parasitas. Os
anciãos mais antigos na terra, não se lembravam
de nunca terem visto o dono d'aquella casa condemnada, e todos os annos
os invernos, succedendo-se, e penetrando pelas brechas não
reparadas, accumulavam ruinas sobre ruinas, estragos sobre estragos.
As lendas populares explicavam o destino singular d'aquelle palacio, o
qual de certo vira dias mais ditosos, quando as malvas e ortigas
não afogavam os canteiros de seus jardins, quando os
entulhos não cegavam os canos á fresca lympha,
que jorrava em tórnos de agua crystallina para os largos
tanques de marmore, quando, finalmente, as colgaduras de couro e os
pannos de raz não pendiam em farrapos das paredes fendidas e
esverdeadas, e as manchas de humidade não desfiguravam os
relevos e molduras dos tectos.
Que horroroso crime expiava o palacio deserto, cujos vigamentos
pôdres estalavam com o peso de telhados arrombados, cujos
moveis roidos de caruncho se desfaziam no pó da velhice e do
abandono?
[39]
Contava a tradição que dois irmãos
rivaes haviam disputado a mão de uma formosa dama, causa
innocente do seu infortunio, e que o menos ditoso na porfia, como Iago,
convertêra em desespero a felicidade do competidor,
envenenando-lhe de suspeitas os amores. Não valeram prantos
e supplicas contra as
allucinações do ciume! O sangue da esposa e o
sangue do filho innocente, doce fructo do seu enlace, vertido em um
momento de delirio, vingou os zelos do marido, que suppunha lavar com
elle a nodoa do nome e do brazão. Horas depois, mas sem
remedio, descobriu-se a perfidia, e o desgraçado caiu em si
do delirio, e viu-se tornado o verdugo de si mesmo e dos que mais
estremecêra no mundo. O que passou n'aquella noite entre os
dois irmãos é segredo, que dorme com ambos na
eternidade. Sómente ao romper da aurora mais um cadaver
descia ao jazigo da capella, e o infeliz, sobrevivendo á
morte de todos os affectos, e algoz de todos elles, na edade de vinte e
cinco annos, quando partiu para não voltar, mettia horror
á vista. Os cabellos e o rosto eram já os de um
velho. Bastaram poucas horas de remorso e de agonia para lhe consumirem
a vida e a mocidade.
O lucto do senhor cubriu a casa, theatro de tantos crimes. Deshabitada,
fugiam d'ella donos e creados como de um logar maldito. Sempre
êrma, e sempre muda, só os echos accordavam n'ella
com o anniversario do terrivel drama. O velho guarda, ao qual primeiro
foram confiadas as chaves, despertando sobresaltado por horas mortas,
subiu ao andar nobre, e caiu sem sentidos, paralyzado pela
visão terrivel, que se lhe representou alli.
Viu uma fórma branca e suave, com os cabellos esparzidos
sobre o collo, atravessar, chorando, as salas. Apertava ao peito uma
[40]
creança adormecida, e seguia-a
outro espectro ameaçador com o punhal erguido. Atraz, uma
figura contemplava aquella scena rindo com satanica alegria. Os lustres
accesos por si mesmos entornavam torrentes de luz livida sobre os
aposentos. Os gemidos e soluços das victimas, o tinir dos
ferros, as risadas e as
imprecações retratavam ao vivo o tremendo
espectaculo, em que o parricidio e o fratricidio tinham desempenhado os
principaes papeis. O velho enlouqueceu de terror.
Desde então ninguem mais quiz tomar conta do palacio. Os
morgados deixaram-o caír em ruinas a pouco e pouco, e quando
os francezes sequestraram por ausente os bens do fidalgo, aquellas
paredes infamadas não acharam comprador. O fisco
não quiz para si senão a posse das terras, e
arrendou-as. Parece, todavia, que a invasão dos estrangeiros
excitára a cólera das potencias sobrenaturaes,
porque nunca se tinham mostrado tão malfazejas e ruidosas.
Um allemão excentrico, apostando hospedar-se alli uma noite
inteira, foi achado ao amanhecer sem fala, nem movimento, e seis mezes
depois ainda tremia quando lhe lembravam a aventura da Casa Negra.
Era, pois, desculpavel o susto dos aldeões. Vendo a luz
coar-se através d'aquellas janellas sempre escuras, e
não achando o corpo de Antonio Simões no sitio
aonde fôra assassinado, tudo attribuiram aos maleficios, e
escudando-se com o amparo da egreja, invocaram a
protecção do parocho, persuadidos de que as iras
divinas, provocadas pelas abominações dos
jacobinos, haviam quebrado a lousa das sepulturas, soltando os
espiritos das trevas para flagello e confusão dos inimigos
de Deus e de el-rei.
Entretanto, cousa notavel (!) n'esta assembléa dos homens
bons do logar, como diria
[41]
um foral de
nossos avoengos, faltava o João da Ventosa, o orador popular
por excellencia, o Hortencio, o Eschino laureado d'aquellas
visinhanças! O que o detinha? Pouco timorato por indole, e
até para a epocha e para a
educação assaz limpo de abusões,
trazia de renda as terras da Casa Negra, pegadas com uma horta sua; mas
se alguem lhe tocava na ruim visinhança do palacio,
prendia-se-lhe de repente a voz, e uma visagem avinagrada torcia-lhe o
semblante. Era mais orthodoxo n'este ponto, do que o cura. Os contos de
visões e de almas penadas, que repetia, não
concorriam pouco para entreter o pavor dos companheiros de copo e de
touradas, os quaes se espantavam, de que elle tivesse animo para metter
o arado e a enchada em terras, que mais deviam reputar-se vinculadas ao
demonio, do que administradas pelo bondoso morgado, que as
disfructára.
Mas como as terras eram excellentes e criavam bem, e como,
não sendo affrontado por competidores, elle as trazia quasi
pelo que queria dar por ellas, o João da Ventosa continuava
a amanhal-as, e a servir-se das officinas do palacio, e até
de algumas casas do andar terreo. Peccado de avareza que as almas pias
e tementes a Deus prognosticavam, que lhe seria funesto um dia,
arriscando-se a que o demonio, enfadado com o atrevimento, levasse
pelos ares n'um furacão os bois, as charruas, o lavrador, os
carros, e os telhados!
Nunca lhe viam o trigo e o milho na eira, que não rosnassem
por entre dentes: «Queira Deus que o meu compadre uma vez se
não arrependa. De parceria com o demo nunca ninguem
medrou!» O João, como bom
christão, ouvia-os, suspirando, queixava-se da carestia dos
tempos, que obrigava o pobre a fazer pão até das
pedras, e ia attestando de saccos o celleiro,
[42]
dizendo sempre que muitas noites não podia pregar
olho com o alarido infernal, que ía lá por cima.
Dadas estas informações essenciaes, que o leitor
benevolo desculpará, tornemos á nossa historia, e
acompanhemos as diversas pessoas, que estão em scena,
esperando por nós, tanto no Moinho da Raposa, como na Casa
Maldita.
Quanto aos honrados aldeões, apinhados defronte da porta do
reverendo prior, não nos dê cuidado a sua
inquietação. O
parocho, consolando-os com duas maximas em mau latim de orelha,
prometteu-lhes exorcismar, mesmo de longe o espirito maligno, e
recommendou-lhes que se recolhessem e abafassem depressa, porque a
noite estava medonha, e o anno corria infamado de pleurizes e
catharraes. Dito isto lançou-lhes a
benção da janella, e foi
sentar-se á mesa para não deixar esfriar a ceia.
As ovelhas
imitaram o pastor, e meia hora depois, acalmado o alvoroço,
reinava na aldeia o mais profundo socego, apenas interrompido pelos
latidos de algum cão impertinente, e pelas rajadas da chuva
e do vento, com que a tempestade açoutava as copas das
arvores, e fustigava os telhados das casas.
V
Não ha atalho sem trabalho
Transportemo-nos sem demora ao andar baixo da Casa Negra.
As duas portas da fachada estão fechadas, mas um estreito
postigo, que abre para o pateo, apenas se acha cerrado. Entremos por
elle, e, seguindo o som das vozes, continuemos, apalpando no escuro as
paredes, que se esfarelam de humidade pelo comprido corredor.
É uma especie de dormitorio ladrilhado com portas
á direita e á esquerda, provavelmente
accommodações dos creados do palacio, quando
fôra habitado. As taboas do tecto, podres e despregadas,
ameaçam cahir sobre a cabeça, e aqui e
acolá montes de
caliça dos muros esboroados promettem um desabamento
proximo. No topo uma porta derreia-se pendente a meio cutelo do ultimo
leme enferrujado.
Atravessemos depressa! Estamos em uma casa de abobada, fria e surda,
com duas frestas engradadas. Subamos aquelles tres degraus, e
guiemo-nos pela claridade baça, e pelo alarido que da
extremidade de outro corredor
[44]
nos
estão avisando de que na estancia immediata conversam, ou
disputam muitos homens.
No fim do corredor apercebem-se os vãos de duas escadas
interiores, cujas vigas e degraus carcomidos tremem de velhice. Uma
fenda larga racha ao meio a grossa parede, que as divide. Duas portas
com travessas cerram a entrada das escadas, lançadas dos
lados em ramos divergentes para o andar de cima.
Empurremos agora as taboas mal juntas de outra porta, que nos veda a
vista, e adeantemo-nos. O espectaculo que vamos presenciar vale a
fadiga a que nos sujeitámos.
É a cozinha, terrea e toda de abobada, com fornalhas ao
fundo e chaminés enormes. Uma immensa pia de pedra
á direita, e uma mesa tambem de pedra á esquerda,
compunham a mobilia primitiva. Na lareira ardem e estalam grossos
troncos de arvores, cortadas em verdes, e á roda da chamma
afogueada e crepitante, sentam-se os novos hospedes do palacio. Pelas
tres janellas lateraes sem vidraças sopra o temporal
ás rajadas, e a chuva salpica dentro fustigada pelo vento;
dos canos das chaminés, meio alluidas, escorre a agua, e
geme o vendaval, afogando os silvos em sussurros prolongados. O
clarão dos relampagos, golfando quasi sem
interrupção, allumia de phantasticos e subitos
clarões as paredes e o chão lageado da enfumnada,
sombria, e vasta quadra.
No recanto, formado pelo angulo da chaminé, e pelo angulo de
um grande armario embocetado, esconde-se, quasi suspensa, uma escada de
caracol, toda de pedra, ainda menos mal conservada. Defronte da porta
da sahida dois arcos de volta mui baixa, parecidos a bôccas
de furna, communicam para a
cave
e para a
arrecadação, ambas subterraneas e extensas.
[45]
Uma especie de lampião, em que são mais as folhas
de papel azeitado, do que os vidros, balouça-se pendente de
cadeia de ferro presa no tecto.
Uma tosca mesa de quatro pés, coberta de toalha, cuja alvura
desappareceu debaixo da ramagem caprichosa das nodoas de vinho e de
gordura, levanta-se no meio da casa. Pratos e garfos, um tacho colossal
de migas com a classica colher de pau enterrada na appetitosa assorda;
dois cangirões de vinho, e canecos monstruosos, uma cesta de
laranjas ao pé de uma frigideira de queijos brancos, ladeiam
a peça capital do brodio campesino, um cabrito acerejado,
rodeado de batatas, e credor de tentar a gula do mais austero cenobita.
Finalmente, sobre a mesa de pedra, coberto com um capote de
cabeções, do talho pouco airoso dos chamados
Josésinhos, com um tronco por travesseiro, e um panno
ensanguentado sobre a cara, jaz um vulto, que a immobilidade rigida dos
membros, e duas vellas uma aos pés, outra á
cabeceira, dizem claramente ser um cadaver.
De vez em quando os olhos dos que velam bem contra vontade o seu ultimo
somno, voltam-se para elle, e afastam-se rapidamente, como se temessem,
que a trombeta final, soando mais cêdo, o despertasse. O
sargento Cabrinha e o seu honrado confidente Gaspar Preto, o
Sapo, as pessoas conspicuas da
assembléa nocturna, em que a nossa
indiscreção introduz o leitor, são as
que olham mais a miudo, e de cada vez que fitam vista n'aquelle corpo
inerte, um calafrio arrepia-lhes a espinha dorsal, e um suor de mau
agouro, apezar da temperatura, borbulha na testa de ambas. Dariam tudo
por se verem a cem leguas da companhia d'aquelle morto, cujo sangue o
seu remorso, como que está avivando mais em manchas
[46]
vermelhas sobre o sudario, que lhes
esconde o rosto.
Os principaes auctores concordam com o logar e com os accessorios.
Comecêmos pelo chefe, como é razão.
A physionomia de Estevam Cabrinha não desmente a
reputação. Conta pelo menos sessenta annos, mas
póde melhor com elles, do que outros, menos robustos,
poderiam com quarenta. A testa esguia e deprimída lembra a
fronte felina, e a mobilidade de duas profundas rugas, cavadas logo por
cima dos sobrolhos, ainda torna mais sensivel a similhança.
Faces encovadas, beiços sorvidos, barba revirada, e por cima
da pelle uma côr assanhada de amora mansa, não lhe
permittem suppor-se por certo nenhum Cupido, nem seccar-se, como
Narciso, de paixão pela belleza propria.
O nariz, adunco, em fórma de bico de papagaio,
caía como apagador, ornado de botões vinosos,
sobre a bôcca. Os olhos, cujo raio visual se torcia com
sinistra expressão, tinham aquelle tom baço e
frio de pupillas, que revela quasi sempre as almas
traiçoeiras. Curto de pescoço, largo de hombros,
e prendado com uma corcova assás volumosa, imita nos
movimentos lentos o pesado garbo do urso dos Alpes.
O ventre proeminente, e as pernas delgadas provam, que pouco tinha que
agradecer á providencia as graças do busto. Os
cabellos hirsutos, empastados na testa, alargam-se como duas orelhas
derrubadas sobre as fontes, e terminam por um rabicho esplendido de
meio covado de comprido, dançando enfeitado de seu
laço de fita preta sobre a farda, polvilhando-a de
pós, e ensebando-a de banha.
Um bigode, quasi todo branco, espetado nas guias, como as sedas de um
chicote, e o resto da cara rapado e escanhoado cuidadosamente,
[47]
afinam perfeitamente o typo
singular e repugnante d'este personagem funesto, que as
desgraças civis fizeram sobrenadar com as escumas sociaes,
mas que as galés cêdo, ou tarde, hão de
recolher, como filho prodigo, se as iras populares se lhes
não anteciparem.
Trajava a farda de milicias, de panno azul ferrete, botões e
vivos brancos, abas de tesoura, e gola de espeque. Os
calções de uniforme e as polainas
atraiçoavam-lhe a magreza das pernas. A espada de bainha
preta e copos de roca descançava fóra do
boldrié a
seu lado, e a alabarda, insignia do posto, via-se encostada da outra
parte.
O
Sapo merecia a alcunha. Teria
trinta annos. Era todo branco-papel, cara e cabellos, como se um
moleiro o tivesse amortalhado em um sacco de farinha, mas d'aquelle
branco livido e sepulcral, que nos enoja e repugna, quando
contemplâmos qualquer reptil asqueroso. Uma queda em pequeno
tinha-lhe deixado em memoria a deslocação da
perna esquerda, que, torcida quasi em rosca de parafuso, o obrigava a
andar aos saltos como a rã, ou a agachar-se, como o animal
immundo, cujo nome o baptismo dos visinhos substituira ao seu.
Quasi sem nariz e beiços, vesgo, e da altura de um rapaz de
nove annos, não mostrava no rosto ponta de barba, e quando
se ria escarnava as gengivas e os dentes, de modo, que as mulheres lhe
chamavam por escarneo o bôcca de tubarão. Agil e
matreiro, como a raposa, a sua actividade era incansavel, a sua
consciencia larga como o peccado, o seu coração
duro como um penhasco. Caçador dos mais destros, andarilho
infatigavel apezar das pernas, curioso e falador como um cento de
comadres, ouvia, sabia, e aproveitava tudo.
Accusavam-o de não perdoar aos outros a
[48]
fealdade propria, e de se felicitar com os alheios
males. Auctor de alguns furtos industriosos, espião e
delator por officio, assassino por vocação,
Gaspar Preto, como o imperador romano, desejaria ao genero humano uma
só cabeça para lh'a decepar de golpe. Vestia
calções curtos atacados sobre as meias de
lã, botas de couro branco e salto de prateleira, collete e
vestia de belbutina com botões ôccos de metal
amarello, e cinta escarlate muito apertada ao corpo.
A espingarda, sua fiel companheira, estava sempre á
mão, e a tiracolo encruzavam-se-lhe sobre o peito as
correias do polvorinho e do chumbeiro. A navalha de ponta e de cabo de
osso, que trazia na cintura, era afamada em toda a comarca pela
habilidade, com que a jogava, ou com que sabia atiral-a de arremesso
aonde punha o alvo.
Os cinco homens da milicia e da ordenança, que acompanharam
o sargento na diligencia ao Casal do Ouro, não merecem
menção
especial. Aldeãos corpulentos cabeceavam de somno ao calor
do lume, e bocejavam de fome ao tinir dos pratos, que um creado do
João da Ventosa principiava a pôr em cima da mesa.
O João, sim, esse é que destaca de todo o grupo
pela figura, pelos gestos, e pelo aspecto na realidade digno de exame.
Será homem de quarenta e cinco annos, mas não
inculca mais de trinta e oito. Bem posto e proporcionado de membros,
mais esbelto, do que robusto, á primeira vista, mais
engraçado, do que forçoso na apparencia. A cara
redonda e os beiços grossos e sensuaes, o olhar fino e
malicioso, e a bôcca cheia de riso, na sua mocidade tinham
feito d'elle o enlevo e o adonis das bellas e namoradas raparigas
d'aquelles contornos; porém debaixo d'estas
fórmas quasi delicadas escondia elle vigor pouco vulgar,
assim
[49]
como o sorriso meio travesso,
que lhe bailava nos labios, disfarçava uma firmeza e
penetração mui pouco usuaes.
Sabia ler, escrever, e contar como um mestre―eschola. Se tivesse
nascido trinta annos depois, n'estes felizes tempos, era de certo juiz
eleito, regedor, vereador, e quem sabe (!) talvez mesmo deputado!
Outros
muito peiores deu já á luz a urna rural.
São os que,
cerzindo umas abas de paletó á jaqueta
hereditaria, mascarram de interpellações
boçaes e
de apoiados taurinos e beocios o extracto das sessões,
acotovellando-se nos aditos da tribuna.
O nosso amigo contentava-se, porém, com os seus trinta a
quarenta moios de colheita, com as vinte pipas de azeite, que expremia
nos seus lagares, com os toneis attestados de vinho puro e genuino,
honra e orgulho da sua adega, e com a vara de juiz de vintena,
magistratura exercida a contento de clero, nobreza e povo.
O João da Ventosa, ou João Bonito, como lhe
chamavam as mulheres da sua edade, gosava álém
d'isso da fama de rico, pastava bons rebanhos na charneca, fazia
dinheiro de tudo, e abotoava-se com um bom par de louras. Solteiro e
jovial vivia só em companhia de um sobrinho de quatorze
annos, e de dois creados.
Ao pôr da tarde, vendo a trovoada armada, tinha ido de
passeio rondar as hortas e o olival, tinha deitado depois
até ás abegoarias, e na volta de uma das
arribanas, por encurtar caminho, viera descair á azinhaga,
aonde a espingarda do
Sapo
acabára de deitar por terra Antonio Simões da
Aramanha.
O estrondo do tiro, a hora e o grito do ferido obrigaram-n'o a apertar
o passo. Assim mesmo chegou tarde. O assassino já tinha
saltado o vallado, e o corpo do fazendeiro jazia prostrado. Era quasi
noite, choviscava rijo, e o
[50]
ribombo dos
trovões amiudava. Inclinou-se para o morto, conheceu n'elle
um amigo de vinte annos, exhalou um suspiro, rosnou uma praga contra o
homicida, e, depois de alguns momentos de
hesitação, levantou-o nos
braços, como se o peso não o devesse ajoujar, e
deitando-lhe a cabeça sobre o hombro, sem vergar,
encaminhou-se com elle para casa. Á porta chamou o maioral e
o abegão, e todos tres transportaram o cadaver para a
cozinha.
Duas horas depois batia á porta o sargento Cabrinha com os
seus milicianos, e da parte da justiça pedia agasalho por
aquella noite para elles e para os presos. O João da
Ventosa, ao que parece, estava occupado, porque os deixou repetir o
recado terceira e quarta vez.
Por fim veiu abrir em pessoa, e desculpando-se com o mau tempo, metteu
o sargento na cozinha com os acolytos, e guiou Paulo de Azevedo ao
andar nobre, a um aposento mais bem reparado, aonde um leito antigo de
balaustres enroscados e baldaquino de seda carmezim, cama quasi regia,
parecia esperar por elle. O quarto de D. Leonor era ao lado, e
communicava por uma entrada baixa com o de seu pae. Cabrinha assistiu
ao aquartelamento dos presos, visitou o corredor e a escada, que era a
que dava para a cozinha, sondou a parede de duas portas entaipadas de
fresco, que abriam d'antes para o corpo do palacio, e não
socegou senão depois de ter
fechado o cavalheiro de Mafra e sua filha a duas voltas de chave nas
duas camaras, que um official amigo do rendeiro havia separado do resto
da casa, enchendo de pedra e cal o vão das portas.
―A menos de não lhes nascerem azas de repente, murmurava o
sargento, para voarem, ou de passarem como espiritos através
dos muros, os dois estão seguros. A evasão pelas
[51]
janellas, vista a altura, equivale a um
suicidio; e pela porta, mesmo que a arrombem, como não ha
senão uma escada e uma saida, e ambas vão dar
á cozinha, aonde conto acampar, qualquer tentativa serviria
só de os tornar a metter nas goelas do lobo!
Tomadas todas as cautellas, que a prudencia aconselha, Estevam Cabrinha
desceu com o seu hospede, e principiou a apalpal-o, ácerca
da generosidade, que lhe suppunha de não consentir que elle
e os seus jejuassem só com o leve almoço, esmoido
no largo passeio do Casal do Ouro á Ponte da Asseca.
João da Ventosa respondeu ás gargalhadas, que de
sua casa nunca saiam barrigas famintas, e gritando pelos creados,
mandou trazer luz e accender o lume.
N'este momento entrou o
Sapo.
Rondando as visinhanças o virtuoso assessor do sargento
achou a porta meio cerrada, ouviu de fóra a voz aspera e
roufenha do amo, e sem mais ceremonia inseriu-se no texto, enfiou o
corredor, e veiu farejar a ceia e a pousada.
A manta, em que se enrolava, escorria como se fôra tirada de
um tanque, e as botas atascadas de barro denunciavam a larga
excursão de que se recolhia. Approximando-se de Cabrinha,
tocou-lhe no hombro, e disse-lhe ao ouvido duas palavras. O digno
mandarim recuou sobresaltado, e não poude conter uma
exclamação em alta voz,
exclamação de susto e de alegria ao mesmo tempo,
que não escapou á curiosa
attenção, com que o João da
Ventosa espreitava e escutava com todos os sentidos vigilantes o
dialogo confidencial dos dois personagens, cujas proezas conhecia de
longa data.
As suspeitas, que desde o principio o tinham assaltado
ácerca dos verdadeiros auctores do homicidio da azinhaga,
confirmaram-se.
[52]
Estevam Cabrinha era muito capaz de encommendar a morte do fazendeiro,
e Gaspar Preto muito obediente servo, em se tractando de um crime, para
elle os não accusar secretamente do delicto, e
não vêr as mãos de ambos tintas no
sangue do seu amigo. Sabia a historia da prisão de Antonio
Simões,
não ignorava a promessa indiscreta que elle fizera, de
varejar as costellas do sargento e do
Sapo, e o mau conceito que formava
d'elles, auctorizava-o a crer que o tiro e a espera haviam partido de
um plano concertado com a deliberação e
perversidade, que tanto caracterizavam o coxo, e o seu Mecenas.
Mas se o sargento era jubilado em velhacaria, e se o seu fiel Achates
tinha estanhadas a alma e as faces, João da Ventosa
lisongeava-se de os codilhar a ambos em esperteza, e armára
uma rede, em que haviam de cair por força. Calou-se, pois, e
esperou.
D'ahi a pouco o moço dos bois appareceu com o velho e
cansado lampião, cuja luz mortiça só
começou a avivar-se depois de pendurado. Logo atraz outro
creado atirava ao chão com um grande feixe de matto secco, e
arrastando para a lareira dois cepos de oliveira, petiscava lume com o
fuzil, e incendiando tudo ateava uma labareda, cujos
clarões, lambendo as paredes da vasta chaminé,
derramaram por toda a casa viva e repentina claridade. De subito o
sargento, que se achava com o
Sapo
junto da mesa de pedra,
olhou, viu o corpo, e por um gesto machinal e irresistivel extendeu a
mão, e levantou o panno que lhe cobria o rosto. A vista
encandeou-se-lhe, os cabellos erriçaram-se-lhe, e um grito
de espanto truncou-se-lhe suffocado na garganta. As côres
rubicundas amorteceram-se, e, se não se ampara com a
hombreira, resvalava redondo
[53]
no
chão, tão fracos lhe fugiam os joelhos.
Gaspar Preto ainda revelou mais horror. Recuando até
á parede com as mãos
abertas como para afugentar de si a visão terrivel, parecia
metter-se pelo muro dentro, com os cabellos em pé, as
pupillas envidraçadas, e tal convulsão em todo o
corpo, que o frio de uma sezão mortal não
podéra ser maior.
Os milicianos boquiabertos contemplavam o cadaver, e a figura singular
de Estevam Cabrinha e do coxo, que não eram santos da
devoção
de
nenhum
d'elles.
João da Ventosa sorria-se para dentro. Dir-se-hia que
fulminava os dois cumplices com o sombrio fulgor dos olhos. Um instante
depois pousou a vista, sereno e temperado, sabendo conter-se e
dissimular para não se prender no mesmo laço, que
tecia aos outros.
Seguiram-se as explicações. O rendeiro com a voz
macia, cujo timbre era quasi feminil, e aquelle ar de rir bondoso, que
encobria tanta cousa, desculpou-se da triste companhia, que era
obrigado a dar aos hospedes.
Tinha encontrado, disse elle, Antonio Simões morto, apenas o
conhecia de vista, mas não tivera animo de deixar o corpo de
uma creatura de Deus exposto no caminho toda a noite. Não
havia outra casa decente, aonde esperasse a sepultura
christã, e o tempo e a hora não permittiam chamar
o padre, e deposital-o na egreja. Ao passo que explicava isto, o
compassivo João accendia de vagar duas vellas de
cêra, amarelladas dos ocios da gavêta, e
cravando-as nos castiçaes de estanho amolgados, punha uma
aos pés e outra á cabeceira do morto, completando
com todo o socego, e de proposito, a exposição
funebre, que arripiava os circumstantes, e especialmente o sargento e
seu confidente, constrangidos
[54]
a
associar toda a noite o banquete e o somno dos vivos ao espectaculo do
cadaver ensanguentado da sua victima. Se ambos podessem ler na alma do
homem, que lhes estava falando, ainda haviam de tremer mais!
Na mente d'elle tudo isto apenas era prologo!
VI
Ressurreição de Lazaro
Decorreram minutos sem que as mandibulas de Estevam Cabrinha,
deslocadas pelo terror, podessem volver ao estado natural. Nem
articulava, nem balbuciava. Só a pouco e pouco é
que se foi restaurando do susto, e maldizendo o
Sapo, o rendeiro, e aquella
funesta casa, regougou meio desvairado uma evasiva para desculpar o
pavôr, que o accommettêra, e que não era
senhor de disfarçar.
Os seus nervos estavam tão delicados, que a vista do sangue
e do cadaver, tirava-o de si, e tornava-o mais fraco, do que uma
mulher! Entretanto fazia o possivel por ser homem; mas pedia por tudo o
que havia de santo no céu e na terra, que o não
obrigassem a velar a noite ao pé do morto, se em vez de um,
não queriam enterrar dois cadaveres.
João da Ventosa affectou clemencia. Capitulando com os
terrores do sargento prometteu dar-lhe um quarto retirado no fundo do
corredor, depois da ceia. Pediu-lhe depois licença para ir
cuidar dos hospedes presos, que desejava receber como pessoas nobres, e
que
[56]
a má
reputação da casa por certo
assustaria, sobre tudo na escuridão, e com o temporal que
parecia arrancar as arvores e os telhados. Cabrinha suspirou, e com um
aceno respondeu que sim. Sentia-se gelado, e o
coração batia-lhe com tal força, que
parecia querer saltar fóra do peito.
O lavrador accendeu dois candieiros de latão amarello de
tres bicos, pesados e disformes, pendurou pela argola um em cada
mão, e começou a subir a escada, escoltado por
Cabrinha, que apezar de meio tonto, e de tartamudo de mêdo,
sempre desejou certificar-se outra vez de que a gaiola, como dissera
antes, era solida, e não deixaria escapar os passaros.
Um creado poz a toalha, trouxe queijos e pão, e reanimou o
alento dos milicianos, collocando triumphalmente em cima da mesa um
bojudo cangirão e dois canecos de estatura descommunal,
destinados ás libações.
Os soldados chegaram-se a principio timidos, partiram e saborearam o
queijo, acharam-o excellente, provaram o vinho, que estava ainda
coberto da espuma da pipa espichada de proposito, e romperam o assalto,
esquecendo gradualmente o morto, o sargento, e o
Sapo, o qual, agachado
como fera medrosa a um canto da chaminé, só dava
signal de vida nos estremecimentos, que lhe saccudiam os membros.
A demora de Cabrinha em cima foi grande. Quiz assistir a todos os
arranjos, que a velha servente do rendeiro determinou, e que ia
executando com a mão vagarosa por entre as
orações resmungadas entre dentes a Santa Barbara
e a S. Simeão Stelita, advogados contra os
trovões.
Viu, pois, lançar nas camas os lençoes de linho
fino e defumados, recheio das arcas do
[57]
lavrador; viu enfiar as fronhas e os travesseiros de folhos com fitas
azues; viu deitar as colchas de seda da India matizadas, e pregar as
cortinas dos leitos. Immovel e calado os seus olhos vigiavam tudo, mas
o seu espirito ausente estava ao pé do morto. Finalmente os
moços trouxeram a ceia em bandejas largas, e a creada velha
despediu o amo e o sargento, declarando que ficava e dormia perto dos
presos para os servir.
Cabrinha saiu atraz do seu amphytrião, fechou a porta, e
metteu a chave no bolso. Por este lado estava tranquillo. Restava a
ceia com o cadaver defronte. Essa é que se lhe representava
um supplicio insupportavel; e se não fosse o receio, com que
o remorso ata a lingua dos criminosos, teria pedido um
pedaço de pão secco, um ou dois goles de vinho, e
iria para o meio da estrada esperar que nascesse o dia, mesmo em risco
de uma pancada de agua o ensopar, ou de um raio o fulminar.
Não se atreveu, porém. De cabeça baixa
e passos incertos, sem ousar olhar, e não podendo, todavia,
apartar a vista da mesa de pedra, veiu sentar-se ao brazeiro, do outro
lado, defronte do
Sapo. Ao mesmo
tempo o
João da Ventosa consultava o immenso relogio de prata, e,
vendo apontadas no mostrador as dez horas, gritava pelos creados, que
apressassem a ceia, se não queriam que elle e seus honrados
amigos morressem alli todos de fraqueza.
―Vamos! exclamou. Andar! Esse cabrito não acaba de sair do
lume, mandriões? Para temperar umas migas será
preciso chamar o cozinheiro do patriarcha? Oh
Pedro?
As batatas
cozam-n'as no borralho!... Ficam mais gostosas. Dêem-me
d'aquellas laranjas de casca fina do pomar de cima, que eu apanhei
hontem. Tirem o vinho da pipa nova! Bem basta a inferneira que logo ahi
vae em sendo
[58]
meia noite! E
então com esta visita em casa! E apontava para o morto.
É preciso que o demonio e as almas do outro mundo, quando
vierem, nos achem confortados e quentes de estomago, limpos de
coração, e lavados de consciencia... Que tal
é esse vinhinho, camarada? Ajuntou pedindo o caneco a um dos
milicianos, ao qual o seu discurso petrificára os
movimentos, conservando a taça rustica a meia distancia da
mesa e da bôcca sem animo de a depor, ou de a sorver. Os
outros, pallidos e sobresaltados, olhavam espavoridos para as portas,
para as paredes, e para a
mesa de pedra, e benziam-se, suppondo ver já um espectro em
cada canto.
―Vamos! ajuntou. Á nossa saude! E que Deus nos livre por
muitos e bons annos de um amigo, como encontrou aquelle que alli jaz! E
emboccando o caneco deixou cair do bico o vinho em fio dentro da
bôcca á moda hespanhola, engorgitando-o lentamente
com delicias.
O brinde funebre produzira o seu effeito. O sargento poz-se em
pé e desabotoou tres botões da farda. Sentia-se a
arder. O
Sapo agachou-se mais, e
ouviam-se-lhe distinctamente bater os dentes.
―A ceia! A ceia! Rapazes! clamava o lavrador acompanhando o rebate das
vozes com fortes punhadas em cima da mesa.
Os creados acossados por estas impaciencias, verdadeiras, ou fingidas,
saccudiram a preguiça, e a correr acabaram de pôr
a mesa, a correr trouxeram as migas e o cabrito, e a correr tambem
vieram com as batatas e as laranjas. O cangirão refrescado
por segunda visita á adega estava cheio até
á borda.
―Vamos a ella? gritou o dono da casa. Senhor sargento, chegue-se para
os bons, e será um d'elles! sente-se do meu lado. Tu, meu
[59]
Sapo, com essa cara de alvaiade vae
para alli. És curioso, e quero que me espreites o defunto a
ver se bole com a alegria dos vivos! Os camaradas accommodem-se aonde
poderem! Desculpem as colheres de pau e os garfos de ferro. A pratita,
que tinhamos, está em Lisboa; nos tempos, em que vivemos,
digam lá o que disserem, sempre é o mais
seguro... Nada de tristezas! Longe vá quem mal nos quer!
Senhor sargento á nossa! É bom copo, tenho
ouvido, mas o João tambem não arreia. Encha-me
esse caneco até cima, e despeje-m'o de um trago,
senão digo que o vinho é mau, ou que debaixo de
boa capa ruim bebedor!
Por um esforço heroico Estevam Cabrinha conseguiu obedecer.
Não tinha sêde, nem fome, tinha medo. A ceia era
para elle um martyrio, sobre tudo com as costas viradas para o cadaver,
cuja sombra se lhe figurava a cada momento alevantada por cima dos
hombros. O
Sapo não
padecia menor
tormento. Com o morto e a vista do sudario ensanguentado defronte
enlouquecia de terror e de afflicção. Suas
pupillas dilatadas não podiam despregar-se d'aquelle
testemunho irrecusavel, que lhe avivava o crime pela bôcca
das feridas, por onde fugira a alma. Deixou de ver o que o rodeava para
vêr só a victima silenciosa, e
ameaçadora. Poz-se-lhe um nó na garganta, e um
véu nos olhos. A primeira colhér, que levou
á bôcca, tornou-se-lhe de fel; o
primeiro trago de vinho, que sorveu, soube-lhe a sangue. Sentia
tentações de se atirar pela porta
fóra, desatando em uma corrida louca; mas os pés
estavam grudados ao c não
padecia menor
tormento. Com o morto e a vista do sudario ensanguentado defronte
enlouquecia de terror e de afflicção. Suas
pupillas dilatadas não podiam despregar-se d'aquelle
testemunho irrecusavel, que lhe avivava o crime pela bôcca
das feridas, por onde fugira a alma. Deixou de ver o que o rodeava para
vêr só a victima silenciosa, e
ameaçadora. Poz-se-lhe um nó na garganta, e um
véu nos olhos. A primeira colhér, que levou
á bôcca, tornou-se-lhe de fel; o
primeiro trago de vinho, que sorveu, soube-lhe a sangue. Sentia
tentações de se atirar pela porta
fóra, desatando em uma corrida louca; mas os pés
estavam grudados ao chão e as pernas mal o sustinham. A cada
instante entrava-lhe pelos ouvidos o som dos passos de
Antonio Simões, e ouvia o grito que elle
arrancára caindo ferido. O suor escorria-lhe em
[60]
bagas da testa, e os beiços
tremulos denunciavam a intensidade da agonia.
O lavrador observava, e dissimulava. O seu ar de riso e a sua
jovialidade cresciam á
proporção, que iam aggravando-se as dores moraes
de ambos.
―Que é isso,
Sapo?
accudiu elle apertando os tratos ao mais culpado. Que é
feito d'aquella galhofa do outro dia, meu velho? Estás com
cara de enterro. Terás tu morte de homem ás
costas, diabo?!!...
A esta interpellação directa, que o rendeiro
disfarçou em uma risada larga e sonora, o remorso fez saltar
involuntariamente dos bancos o sargento, e o seu cumplice, como se a
voz do sangue chamasse por elles no tribunal de Deus. Á
pergunta: Cain que fizeste de Abel, ao brado que a consciencia repetia
aos dois, ambos tremeram, mas não poderam responder:
não fui eu! Sentiam-se tomados de espanto até
ás mais fundas cavernas do
coração.
João da Ventosa, entendendo que não devia ir mais
longe para não se descobrir, e vendo os dois de
pé, mudos, e pasmados, tractou de os tranquillizar a seu
modo, isto é, vertendo-lhes o terror nas veias por outro
modo.
―Sente-se, meu sargento! disse elle mettendo o hospede no
coração com o tom assucarado. Que vespa o mordeu?
Os ares da casa não são bons, sei muito bem; mas
o que quer? A gente toma amor ao ninho, e depois não ha quem
o despegue d'elle. Não tenho mulher, nem filhos; nasceu-me
aqui o dente do siso, e... É melhor não tocar em
cousas más. Mas
sempre lhe digo que ha noites! Ainda antes de hontem foi um
reboliço lá por cima de
cadêas arrastadas, de soluços e gemidos, que
vinham os sobrados abaixo...
―E nunca viu nada, senhor João? atalhou
[61]
um dos milicianos meio engasgado com um
pedaço de cabrito, que o susto causado pelas
reflexões caridosas do rendeiro lhe atravessára
na garganta.
Estevam Cabrinha desabotoára todos os botões da
farda, e pelas frestas da camisa aberta mostrava o peito
vellôso como o de um cerdo. Tinha os cotovellos na mesa, a
cabeça entre as mãos, e os olhos espantados.
Gaspar Preto recaira, sem poder reprimir-se, no tremor das primeiras
horas.
Aquelles dois entes, tão fortes contra a consciencia,
tão esquecidos de Deus e da justiça humana,
desmaiavam como creanças deante da sombra do seu crime e dos
pavores do invisivel.
―Se não vi nada?... Oh! redarguiu o dono da casa,
tornando-se serio de repente, e fazendo suppor com a reticencia, que
não tinha animo para dizer tudo.
―Conte-nos isso! accudiu um dos comensaes, que não era dos
menos timidos, mas que era de certo dos mais curiosos.
―Para que? Para não dormirem umas poucas de noites?!...
respondeu João da Ventosa. É melhor falarmos de
cousas alegres.
―Não. Não! Diga!
―Depois não se queixem! Faz hoje um anno, e justamente
chovia e trovejava como agora, que parecia que se acabava o mundo.
Tinha uma cadella de perdizes, que era um brinco, a Pomba.
Faltou-me todo o dia, e cuidei logo que ficaria fechada lá
em cima. A esse tempo ainda eu não tinha mandado tapar as
duas portas dos quartos, que viu o sargento, e aonde estão
os presos. Peguei n'uma lanterna e subi. Atravessei tres salas. Apitei,
chamei a Pomba, não me respondeu, ella, coitadinha, que em
me ouvindo era toda saltos e alegria. Olhei por acaso para um canto
mais
[62]
escuro, e vi... a pobre da
bruta morta com a cabeça torcida!... Não sei o
que me passou pela vista, mas tive medo, medo deveras, juro-lhes.
Peguei no corpo da Pomba, e arrastando-me, e tropeçando, vim
até á porta, que hoje está entaipada.
De repente um sopro forte apaga-me a luz, um clarão bate-me
nos olhos, e uma figura branca apparece-me tão alta e
transparente, que se via através das roupas e do corpo (se
era corpo!) como através de um vidro fino. Não
posso dizer-lhes o que senti, mas quiz gritar e faltou-me a voz, quiz
benzer-me e caiu-me a mão, quiz fugir e fiquei parado.
«O Fantasma fitou-me dois instantes com um olhar frio, que
gelava e disse-me: Desgraçado de ti se tivesses sangue nas
mãos! Nenhum matador sae vivo d'esta casa! Perdi os
sentidos. Quando tornei a mim era dia, e estava deitado na minha cama.
Suppuz ter sido tudo sonho; mas a cadella morta jazia aos
pés do leito. Enterrei-a, fiz uma parede das duas portas, e
andei um mez como doudo, malucando no caso, que podia ser peior...
Fóra com historias negras! exclamou mudando de tom. Estamos
hoje aqui muitos, e graças a Deus nenhum de nós
tem de lavar as mãos de sangue, que vertesse. Vae dar meia
noite! ajuntou tirando um relogio de prata. É a hora da
senzala principiar lá por cima. Não se assustem!
O vinho é bom, festejemol-o, e o que for soará.
Nossa Senhora, minha madrinha, não ha de
desamparar-nos.»
A consolação acabou de petrificar o auditorio,
que a narração já não tinha
estultificado pouco. O sargento e o seu assessor, ainda mais enfiados,
trocaram um olhar desvairado, e gemeram um suspiro. Era a sua
sentença que o espectro annunciára pela
bôcca do lavrador? Os canecos ficaram cheios sobre a mesa;
[63]
o cabrito, meio escarnado, viu
suspensas as hostilidades, que ameaçavam deixal-o na ossada;
e só o dono da casa levou aos beiços, e exgotou a
libação, que propozera. O volumoso relogio de
caixas de prata posto a seu lado, attrahia a vista anciosa de todos.
Era tão profundo o silencio, que se sentia a leve pancada da
machina trabalhando. Finalmente o ponteiro pousou-se nas doze horas, e
o lavrador, como se obedecesse a um impulso espontaneo e invencivel,
poz-se de pé, e exclamou:
―Meia noite! Deus seja comnosco!
N'este momento, como se a natureza quizesse associar os seu terrores
á scena alli representada, um furacão espantoso
saccudiu e abalou todo o palacio com rugidos prolongados, um
trovão rebentou perpendicular com o estrondo de cem
canhões no meio de medonhos estalos, fazendo tremer a terra,
a casa encheu-se de luz electrica por um instante, e a chuva,
açoutando com o seu granizo rijo e batido os telhados e os
muros, enxurrou dos tectos pelas chaminés arrombadas, e veiu
quasi extinguir o lume, que esmoreceu em chispas lividas por entre
ondas de fumo. Ao mesmo tempo as duas portas pregadas com travessas
á entrada das escadas, que desciam para a cozinha, vieram a
terra com fragor, o cadaver deitado sobre a mesa ergueu meio corpo
sobre o cotovello, e arrancou o panno cruento, soltando um gemido
lugubre, e uma figura de altura descommunal, envolta em sudario branco
e fluctuante, assomou ao limiar. Tudo isto occorreu em menos de um
segundo, acompanhado do ruido de ferros arrastados, do tropel de passos
e de quedas tumultuosas, e de um verdadeiro clamor de vozes e gemidos
no andar de cima.
Os milicianos apavorados hesitaram um instante immoveis. Depois
correndo, como
[64]
loucos,
investiram pelo corredor, e como rebanho tresmalhado e perseguido por
alcateas de lobos, sentiram de repente azas nos pés, e
voaram pela estrada inundada por entre os relampagos e por baixo das
aguas da tempestade, gritando misericordia!
O sargento ao som das portas, que desabavam, e deante da
apparição
inopinada,
sem saber
já de si, e sem ver o morto alçar-se,
trepou em dois pulos a escada de pedra, metteu a chave na porta, e
acoutou-se nos aposentos dos presos, tão cego e attonito que
atropellou na carreira a velha servente na sua cama, e foi cair de
bruços ao pé da mesa, aonde se
apagava em vascas a véla consumida de um
castiçal.
O
Sapo, que observámos
paralyzado momentos antes, vendo surgir o fantasma, sentiu todos os
instinctos ferozes irritados, e pegando da espingarda, e apontando-a
n'um abrir e fechar de olhos, só volveu em si, quando o
cão bateu na pederneira, e esta faiscou, sem queimar a
escorva, deixando-lhe nas mãos uma arma inutil.
Então, como o tigre que rompe a jaula, arremetteu pelo
corredor do dormitorio, e de lá, galgando o muro baixo do
pateo, sem se deter a buscar a porta nas trevas, achou-se no campo, e
precipitando-se por sebes e vallados, veiu parar sem folego, sem voz, e
sem consciencia de si ao pé do moinho da Raposa.
Finalmente o proprio espectro, primeira causa de todo o
alvoroço, não escapou ao contagio
geral, e deu tambem parte de fraco. Vendo o morto levantar-se e
saccudir os véus funebres, assaltou-o tal
convulsão de mêdo, que, tapando os olhos com um
grande grito, desabou no chão do alto das andas, em que
estribava. Teve razão ainda d'esta vez o adagio. Virou-se o
feitiço contra o feiticeiro!
[65]
Mas as peripecias d'esta dramatica noite não estavam
terminadas. No momento, em que, afogado em riso, o João da
Ventosa accudia a levantar o fantasma demolido pelo susto, o sargento
Cabrinha despenhava-se pela escada, bradando possesso de espanto.
Não era sem causa!
Seguimol-o quando subia os degraus a dois e dois para se refugiar na
camara dos presos; vimol-o enrolar-se e tropeçar no corpo
tolhido de rheumatismos da tia Margarida, a qual, pobre mulher (!),
acordada em sobresalto pelos trovões, tiritava de joelhos em
anagua de estopa, benzendo-se, e invocando todos os santos da
côrte do céu, quando aquelle furacão
humano se ennovellou com ella, e lhe fez das costas escabello. Os
gritos da servente, a motinada do palacio, que alli soava mais
proxima, desembriagaram um pouco do medo do andar de baixo o
virtuoso agente de Lagarde, mas exaltando-lhe os terrores excitados
pelo andar de cima. Percebeu que o asylo, que buscára, era
peior do que o perigo, e tractou de apressar a retirada.
Mas apezar dos accessos de valor, que lhe notámos, era
malsim na alma e nos ossos, e a curiosidade prevaleceu. Antes de fugir
quiz verificar de novo se os outros podiam fugir. A tremer pegou em uma
véla e abriu as cortinas da cama de Paulo de Azevedo. Recuou
pasmado. Estava vasia! Correu ao quarto immediato de Leonor; achou-o
deserto! O unico preso, que não se bolira, fôra a
inoffensiva
e tropega Margarida! O sargento sentiu estalar uma cousa dentro do
peito. Se tivesse coração diria que era o
coração! Não o tendo acabou de se lhe
varrer o sizo, e ficou por minutos estatico a contemplar aquella
solidão, obra visivel do demonio.
Por fim este ultimo golpe e uns suspiros
[66]
em tremulos, exhalados do outro lado da parede, venceram esses restos
de vigor, que ainda conservára. Consumou o seu destino, e
despejou o campo como os seus milicianos, porém com menos
felicidade. Quiz descer a escada, os pés
atraiçoaram-o, e mediu-a com as costellas de cima
até baixo. Quando tornou a si com a dor, e por ella conheceu
que vivia ainda, os seus olhos horrorizados perderam a luz de assombro
e de pavor.
No meio da casa o Manuel Simões da Aramanha, de
pé, encarava-o sombrio e terrivel. Ao pé da mesa
o fantasma branco, entrouxado nos lençoes, extendia o
braço direito em ar de ameaça. Atraz d'elles
João da Ventosa, mudo e inerte, e como gelado, apontava-lhe
para o corredor, sem falar, como se o convidasse a fugir.
Não poude mais. Atou as mãos na cabeça
e caíu sem sentidos.
VII
Segredos em toda a parte
Os aposentos aonde Paulo de Azevedo Carvalho e sua filha foram
encerrados, em um dos torreões do palacio, eram dos mais bem
conservados. Os tectos não estavam arrombados; os filetes,
que guarneciam as molduras das paredes, forradas de pannos de Arraz,
ainda não tinham perdido de todo o ouro; e a humidade
não acabára tambem de desvanecer inteiramente as
tintas dos quadros de caçadas, batalhas e scenas campestres,
representados na tela. Apezar de velhos e de ennegrecidos, os moveis
ainda resistíam em parte aos seculos e ao caruncho.
O venerando leito de cabeceira de talha alta e columnas enroscadas
occupava o centro da primeira casa, e podia quasi dizer-se um edificio,
um monumento, pelo descommunal das proporções. Um
pesado baldaquino de seda desbotada cobria o céu da cama, e
largas cortinas do mesmo estofo desciam dos lados a arrastar pelo
chão.
Defronte um tremó, que na sua mocidade brilhára
pelo esplendor dos dourados, mas
[68]
que na
velhice, ou antes na decrepidez, apenas se recommendava por bellos
relevos de folhas e flores, com um espelho de Veneza em cima, comido e
manchado no aço, sustentava duas jarras do Japão
da mais preciosa porcellana, infelizmente rachadas. Cadeiras de
braços, mutiladas, um velador alto desgrudado, um bofete de
almofadas com sua escrevaninha de prata mareada, olhando para o
espelho, completavam a mobilia.
Na segunda camara havia um leito mais singelo sem cortinas, e um
espelho embutido na parede, que enchia de alto a baixo um
vão inteiro. O bofete liso com tinteiro de bronze antigo, e
as
quatro cadeiras que
constituiam todo
o seu adorno,
não accusavam pouco os
annos pelo estado de ruina; e as colgaduras
[1]
de couro, rotas ou
tão coçadas, que
não tinham já côr possivel, deixavam em
parte nus os muros, provando que o tempo as respeitara menos, do que
aos pannos de Arraz do quarto principal.
O cavalheiro de Mafra mal correu a vista em redor de si. Sentou-se
deante do bofete da sala grande, molhou a penna na tinta grossa da
escrevaninha, e começou machinalmente a traçar
linhas e dezenhos informes em um papel. Desde o Casal do Ouro
até alli não
descerrára os labios, nem para falar á
companheira do seu infortunio; e só o ardor sombrio das
pupillas denunciava a ira, preferindo consumir calado as tristezas a
desafogal-as em vozes, ou em queixas. Leonor contemplou-o silenciosa
por alguns momentos, e, avisinhando-se depois nas pontas dos
pés, pousou-lhe na fronte annuviada um beijo, que a ternura
humedeceu de lagrimas.
[69]
Paulo, como se acordasse repentinamente, vendo no espelho o lindo rosto
debruçado sobre o seu estremeceu. Um sorriso melancholico
adoçou-lhe a expressão severa. Cedendo ao carinho
de tão suaves caricias, e tornando os olhos meigos, fitou-os
cheio de enlevo na formosura da filha. Cingindo-lhe depois o collo com
os braços, cobria-lhe de osculos os cabellos e a fronte, e
procurou tranquillizar-lhe a inquietação.
Leonor era todo o seu amor e toda a sua familia. Se desejava sobreviver
ás desgraças da patria é porque
não queria deixal-a
orphã e desamparada n'uma edade, em que as
illusões armam tantos laços á candura
e á
innocencia.
Mas as palavras do velho cavalheiro não o enganavam a elle,
nem á donzella. Quando para a consolar affirmára,
que um vago presentimento lhe augurava, que não chegaria a
entrar na prisão da villa, via-a aberta para o receber, e o
conselho de guerra convocado para o sentenciar! Quando lhe lembrava,
que seus amigos não dormiam, e que Manuel Coutinho, e dois
d'elles, andavam perto, sorria-se por dentro da
invenção, porque ignorava se a sorte d'elles
não seria egual, ou peior n'este momento!
Leonor ouvia-o com a incredulidade do affecto. O fino instincto das
almas, que são todas sentimento, é adivinharem os
verdadeiros motivos dos sacrificios generosos. Palpava a verdade, e
tremia que o futuro fosse ainda mais funesto. Mas dotada de caracter
varonil vencia-se para não atormentar seu pae, devorando os
prantos, e comprimindo os soluços.
Á ceia a visita do lavrador, e a presença odiosa
do sargento de sentinella, como vimos, á hospitalidade do
rendeiro, interromperam a conversação cortada,
com que os dois se
distraíam, e apenas as portas tornaram a fechar-se,
[70]
e Margarida poz a mesa, o pae e a
filha, tomada uma refeição mais do que sobria, e
já cansados de dissimular, despediram-se e cada um se
recolheu á sua camara.
A creada no mesmo instante fez a cama para si em um recanto, e fatigada
adormeceu mal a cabeça tocou no travesseiro.
Leonor aproximou-se então do espelho, lançou
sobre as espaduas núas um penteador de cassa, e principiou a
desatar as tranças, que, desfeitas, se encresparam em
madeixas negras, envolvendo-a no mais luxuoso véu. Duas
lagrimas, duas perolas, avelludavam-lhe o olhar tocado de branda
ternura, e as pupillas, pretas e languidas, ás quaes aquella
nuvem leve de melancholia toldava um pouco o brilho, levantavam-se
armadas d'aquelle requebro meio tristeza, meio reflexão, que
fala com tanta eloquencia; e prende com tão irresistivel
poder até os mais isentos. A bôcca, pequena e
graciosa, abria aos cantos duas covinhas assetinadas, berços
de lyrios aonde se embuscava a malicia espirituosa, tornando o sorriso
fascinador. Os dentes, ora appareciam finos e eguaes, como fios de
aljofres entre rubis, ora se escondiam, quando a phisionomia tomava a
expressão contemplativa e serena, que era o seu maior
triumpho. O collo esbelto, disputando alvura ás
açucenas, pousava-se com graça; as faces e a
fronte douravam-se d'aquella transparente e mimosa côr, em
que as rosas nascem e desmaiam á mais leve
commoção, radiosa carnação,
que tanto realça a belleza meridional, mesmo quando
não cede ás mulheres do norte a palma dos niveos
encantos. O seio virginal palpitava sobresaltado. A mão
estreita e leve deslaçava impaciente os nós de
fita do justilho; e a estatura elegante e flexivel prestava-se em
ondulações airosas a todos os movimentos.
[71]
Um suspiro e um gesto, que exprimiam a tribulação
do animo combatido de
apprehensões, e uma pausa, em que a vista se perdeu pelos
idilios do primeiro amor, revelavam as duas correntes encontradas, com
que luctava áquella hora. O que lhe dizia a ternura filial
repetiam-n'o as lagrimas lentas e silenciosas, vertidas quasi sem as
sentir. O que anciava e assustava a timidez da paixão entre
hesitações e receios, mais fortes que a vontade,
retratava-o a repentina chamma da vista, e o extasis em que o rosto se
transfigurava subitamente, illuminado pelo duplo clarão da
esperança e do pudor. Quem podesse colher n'este instante o
segredo da sua alma só encontraria n'ella duas imagens―a do
pae extremosamente querido, e outra mais viva, mais occulta, e mais
funda ainda, a de Manuel Coutinho, que o pejo quasi encobria de si
mesma, mas que uma ternura invencivel avivava a cada
palpitação do peito!
Leonor sentou-se ao bofete no desalinho da meia nudez, dobrou uma folha
de papel, e contemplou-a por momentos com a cabeça entre as
mãos e a vista vaga e esquecida. Depois, meneando a fronte,
como se quizesse sacudir o peso dos cuidados, inclinou-se para a mesa,
soltou a penna sobre o papel, e começou a retratar as
tristezas do captiveiro e os sonhos do coração.
Usando do privilegio concedido aos auctores de historias,
tão veridicas como esta, introduzir-nos-hemos n'este ninho
virginal, e por cima do hombro da linda escriptora ao qual o
véu diafano das rendas mais faz sobresaír o
marfim polido e a fórma admiravel, iremos lendo á
medida que ella as escrever, as confidencias, que julga depositar
unicamente no seio da mais discreta e mimosa de suas amigas de
infancia, de D. Marianna de Sousa,
[72]
mais velha um anno, e tambem desterrada com toda a familia para longe
do antigo solar de seus paes em Lisboa.
Escutemos a conversação travada a distancia entre
ellas. É de crer que nos diga mais, do que extensos
commentarios ácerca dos principaes personagens, cujas
aventuras emprehendemos esboçar com a fidelidade e escrupulo
proprios de narradores inaccessiveis á fabula e á
lisonja.
Leonor de Azevedo a D. Marianna de Sousa
«Minha freirinha!... Deixa-me dar-te mais esta vez ainda o
doce nome da nossa amisade! Escrevo-te das portas de uma
prisão, e talvez, ai! tremo dizel-o! dos primeiros degraus
do cadafalso de meu pae. Realizou-se o que eu tanto receiava. Lagarde
descobriu o nosso asylo. Estamos em suas mãos. Offendi-lhe o
orgulho; é capaz de tudo; e conto com a
vingança promettida. Não me arrependo. No meu
logar, Marianna, farias tu o mesmo, e esperavas resignada a tua
sorte... Se não fosse meu pae, pouco ou nenhum caso faria
d'elle... O despreso até mata a aversão, e de
certo ninguem o despresa tanto, e com mais rasão.
«Lagarde veiu a Mafra a um baile que lhe deram. Tentaram-lhe
a cubiça as terras e os vinculos, que hei de herdar, Deus
queira que bem tarde (!), e por desgraça poz os olhos em mim
para enriquecer um parente, que não conheço, que
me não conhece tambem, mas que elle ousou dizer que me
adorava pelo retrato, que lhe fizera de mim... dos bens da minha casa
é mais provavel! Marianna, lês na minha alma, e
bem pódes imaginar o espanto em que fiquei, ouvindo de um
estrangeiro esta proposta,
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que me offendia na ternura filial e no amor proprio... Nem lhe
respondi! Encarei-o, e, levantando-me, deixei-o acabar a ultima
cortezia e o ultimo sorriso deante de uma cadeira vasia. Dizes que me
pareço com meu pae, e que a natureza errou em mim o sexo.
Talvez. Nunca senti tantos desejos de ser homem! Mulher,
senão fosse o mundo!... Ha affrontas, porque choro
amargamente a nossa fraqueza!
«Lagarde tem maneiras e grande uso da sociedade.
Não sossobrou com o revés, começando a
girar pelas salas como o convidado mais jovial. Notei que
não tirava a vista de mim, e preparei-me para segunda
instancia. Não tardou. Veiu tirar-me para dançar,
louvou o meu toucado, o meu vestido, a delicadeza das mãos,
a graça e a alvura das rendas; achou-me linda e seductora;
extasiou-se de lhe responder algumas palavras em francez; e falou-me
com enthusiasmo dos elogios que tinham feito da minha voz...
Constrangi-me e escutei-o sem colera, sem impaciencia, mas com aquelle
sorriso que tu dizias ás vezes, que era cortante como fio de
dois gumes. Que remedio! Estavamos em scena, e elle é actor
consumado. Depois, e no fim de tudo, por acanhada e esquerda
não queria deshonrar a nossa educação
do convento, nem dar-lhe motivos para que me tomassem pela provinciana
boçal e nescia, que ao principio cuidára
encontrar...
«Acabada a dança, em que te affirmo sem vaidade,
que não envergonhei as lições
do nosso mestre mr. de Lisieux, tão airoso com a sua
cabelleira empoada, casaca direita, e rabequinha de estojo, ao
apartarem-se os pares, convidou-me para darmos um passeio pelas salas.
Inclinei-me, e acceitei-lhe o braço. Démos
algumas voltas, e no meio de uma d'ellas,
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junto de um tremó
carregado de flores, teve o despejo de renovar a supplica, assim lhe
chamou, em ar de riso, porém o tom e a expressão
diziam assaz que era uma ordem.
«Ouvi-o estremecendo. Não acreditas a jactancia, a
soberba, e por baixo do verniz das phrases, o modo imperioso, com que
este sultão me atirava o lenço em nome da
felicidade do seu parente, e da minha, em nome da gloria e ornamento
dos bailes de París e das
recepções das Tulherias, que a rosa do occidente
iria realçar com seus encantos!... Contive-me. Subiu-me em
ondas a côr ao rosto. Empallideci depois. Aquelle escarneo
era tão pungente, que me custava a supportal-o, sem lhe
explicar ao menos que o entendia. Mas contive-me, protesto que me
contive a ponto de me saltarem as lagrimas pelos olhos seccos!
Não é possivel exprimir-te o que padeci nos
minutos que durou este supplicio. Foram annos de angustia e de
anciedade! Lagarde, como se adivinhasse, tocava em todas as partes
melindrosas da minha alma e offendia-as. Tornou-se por tal
fórma transparente a ironia, que se me figurava ouvil-o rir
por dentro da eloquencia, que estava gastando em convencer a herdeira
sómente cobiçada, para remir do naufragio a
mocidade tempestuosa d'aquelle sobrinho, arruinado e invisivel, cuja
causa advogava.
«Perguntarás, talvez, porque não fiz o
que já tinha feito, porque o não deixei?
Não me atrevi. Meu pae estava perto; Manuel Coutinho tambem;
olhavam para nós, e ao menor signal que me escapasse,
castigavam alli mesmo o insolente! Vê tu o meu enleio e o meu
martyrio! Quando se afastaram, respirei. Podia mostrar a Lagarde, que a
estatua vivia e tinha brios para vingar a dignidade do seu sexo.
Inflammou-se-me a vista com a ira, fitando-a
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n'elle com um desdem tão
altivo e firme que o obriguei a calar-se de repente no meio das
lisonjas impertinentes. Percebi que não esperava tanto, e
que se perturbava. Retirando então o meu braço,
dei dois passos atraz, e medi-o da cabeça aos pés
com aquelle olhar scintillante e frio ao mesmo tempo, que me achaste
duas vezes, e que depois contavas, sorrindo, que era o mais fero e
fulminante olhar, que nunca viras, porque gelava e queimava ao mesmo
tempo. Não sei se foi esse, ou outro peior, o que sei
é que recuou lentamente e quasi pasmado deante d'elle, como
deante da ponta de uma espada; e quando lhe respondi, que preferia a
cella do mais austero convento, a pobreza, a mendicidade
até, á ignominia de me vêr em
leilão na praça,
á vergonha de acceitar o nome de um homem, que nem ao menos
guardava as exterioridades hypocritas de um galanteio, julgando-me
tão pouco que se propunha amar e pedir esposa por terceiro,
vi-o fazer-se branco como a tira da camisa, esconder o sorriso nos
cantos da bôcca, e olhar-me direito e serio como deve
olhar-se para alguem, quando recebemos uma injuria grave. Mas polido,
mesmo na sua colera foi senhor de si, e mordendo os beiços
com tal furia que lhe espirrou o sangue d'elles, cortejou-me, e
retirou-se. Á roda de mim tremiam todos. Eu
levantára a voz, e tinha-o constrangido a curvar a fronte
deante de muitos. Foi o que não me perdoou.
«Todas as nossas desgraças datam d'esta noite.
Jurou humilhar-me, mas não o consegue. Livre, ou em ferros,
o desprezo será egual... Antes a clausura, antes a vida
errante que levo ha mezes, antes as estreitezas de uma
prisão, do que a infamia de um laço apertado sem
amor pela avidez! Lagarde não tornou a falar-me.
Sómente poucos dias depois, sahi a
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cavallo, e encontrei-o com Loison, general
maneta, que dizem ainda mais perverso. Pararam para me vêr
passar. Sabes que sou cavalleira, e que um animal fogoso não
me assusta. Montava a Estrella, a egua valida de meu pae, e apenas os
descobri, larguei-lhe a redea, e atravessei como uma seta por meio
d'elles. Saudaram-me, correspondi, e dentro em pouco já
não os avistava. Foi na vespera dos tumultos das Caldas e da
emboscada de Mafra. No dia seguinte, dia de terror e
afflicção para os
habitantes, estava achado o pretexto que havia de manchar de sangue o
poder dos estrangeiros.
«O que nos reserva o futuro? Não ignoras quanto
meu pae é altivo e decidido. Se a sua vida dependesse de uma
palavra, de um passo, que reputasse de quebra para a honra, ou para os
brios, preferiria morrer mil vezes... Sei o que elle ha de fazer como
se o estivesse vendo. Ha de dizer a verdade, toda a verdade; ha de
expor-se... Meu Deus! Parte-se-me o coração, e
não tenho animo de cuidar!... Não!
Não! A providencia não o póde
permittir! Marianna!... As lagrimas que estou chorando, a dôr
que padeço são tão
crueis, que ha momentos, em que a razão me foge. E Manuel
Coutinho?! Ainda me assusta mais!... Em sabendo a nossa
prisão... com o seu genio impetuoso e aquella intrepidez de
cavalleiro andante, porque é um verdadeiro paladino perdido
n'estes dias de Junots e Lagardes, é capaz de entrar
só em Santarem para nos arrancar dos ferros á luz
do sol e deante de todos. Não rias?! Não creias
que estou pintando de imaginação um heroe de
novella!... Perguntas-me desde quando o amei, e se foi necessario o
fulgor de Marte para vencer a isenção de Juno!?
Entendo-te! Viras contra mim as palavras, que eu soltava na ingenuidade
do orgulho, quando a inexperiente educanda
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te divertia com seus encarecimentos
de desdem pelas fraquezas apaixonadas. Ouve! Amei-o logo, amei-o com
extremo apenas o vi. Mal nos olhámos, sorrimos, e
conhecemo-nos sem lucta, sem resistencia, sem juras, nem protestos.
Elle sentiu que era meu; eu entreguei-lhe o
coração com tanta confiança, como se
nos tivessemos creado juntos desde a infancia. Marianna!... Se
és a amiga, que eu creio, has de estimal-o tambem, e
approvar a minha escolha. Asseguro-te que o merece. Aquelle rosto nobre
e gentil, mas um pouco triste, é o espelho do seu caracter.
Meu pae, e mais não é facil em
affeições e
elogios, admira-o, e não vê por outros olhos em
muitas cousas. A palavra de Manuel Coutinho, que o não
lisonjeia, que até o contraria em algum dos habitos e
idéas mais arraigadas, vale um juramento para elle. Entre
estes dois affectos, tão doces e acerbos, reparte-se-me a
alma, rasga-se-me em duas, e não ouso dizer-te a ti, a mim
propria, qual é maior, ou mais absoluto!...
«Accusas-me de dissimulada?! Não te encobri nada.
Lês nos meus segredos como em livro aberto. Amo, como
não se torna a amar, como não imaginava que
podesse amar-se... Digo-te sem disfarce o que occultaria a outra, e tu
ingrata (!) ainda tens animo de me arguir! ...Lembras-te d'aquellas
nossas madrugadas nas Salesias, entre as rosas e jasmins do jardim, e
os vôos dos passarinhos, que chalreando não nos
deixavam um instante?!... Não tens saudades d'ellas e das
brandas illusões, com que nos embalavamos no meio das flores
d'esses dias tão curtos, ai (!) e tão depressa
desvanecidos?! Com que dôr melancholica e agradavel, os estou
recordando, sobre tudo agora!... Como a esperança nos fazia
palpitar!... Que desejos pueris, que planos impossiveis, que doces
contestações, e que amuos logo esquecidos
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entre dois beijos! O nosso
mundo era tão pequeno, que alli principiava e
acabava
então!
«Meu pae, militar e arrebatado, a rogos meus ficou em casa.
Por vezes o vi ir direito á sua espada, e suspender-se com
os olhos arrazados de agua. O que o prendia era o receio de me deixar
orphã, era a certeza de que se arriscaria sem proveito. Que
dia aquelle, e sobre tudo que noite!... Os francezes em bandos pelas
ruas alvoroçavam a terra com vozes, affrontas, e tiros. Duas
vezes as balas das espingardas vararam as portas das nossas janellas.
Sobre a madrugada appareceu Manuel Coutinho. Vinha pallido e
desfigurado. Nenhum de nós se tinha tambem deitado. Chamou
meu pae de parte, falaram em segredo, e minutos depois, ás
escuras, e sem ruido, fugiamos pelas hortas, e montavamos a cavallo.
Rompia o sol, quando entrámos em Torres Vedras, e
só alli me disseram que a nossa casa estava cercada, e que
Lagarde expedira de Lisboa ordem de prisão contra meu pae.
Não lhe custou a implical-o na devassa, e contava
provavelmente fazer de mim o penhor da sua clemencia...
«Desde então trocámos o socego
domestico pela vida attribulada, que ha mezes nos não
consente uma hora de repouso. Acossados, como feras, vagueando de
homizio em homizio, e de solidão em solidão, por
toda a parte a hospitalidade dos que nos accolhiam, não sem
risco, nos foi leal e caridosa. Rodeados de espias, inculcados aos
delatores como presa digna de subido premio, achámos na
bondade rude, mas sincera, dos casaes, corações
de ouro, que nos agazalharam com o maior carinho, e almas compadecidas,
que nos ajudaram a supportar o peso da desgraça.
«Os mais pobres foram tão honrados como os ricos.
Ninguem nos trahiu. Perseguidos
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como réos de grandes crimes,
todos os braços se
abriram para nos receber, todas as portas se fecharam cuidadosamente
para nos guardar... Descansámos, por fim, mas á
porta de uma prisão, e nas mãos de inimigos
implacaveis! Meu pae dormia, e nem teve tempo de se defender...
Estimei! Já que havia de ser, foi melhor assim!
Chegámos a tempos em que é delicto até
o valor! Um malvado, cego e venal instrumento de Lagarde, descobriu o
nosso ultimo asylo, e prendeu-nos á
traição...
«Com que socegada ignorancia te ouvia eu pintar a vida, que
nos aguardava fóra das grades da nossa prisão
dourada!... Com que vaidade infantil me compadecia das fragilidades das
donzellas, cegas de amor, que tudo arriscam por seguir o eleito da sua
alma!... Castigou-me Deus! Sou mais escrava, mais timida deante da
minha fraqueza, do que nenhuma! A ternura, que sinto por elle
é tão grande, que me quebra a vontade e o
orgulho.
«Felizmente adoro um homem digno do meu
coração. Mas se o não fosse!
Marianna! Não me vejas córar, não me
vejas
cobrir o rosto de pejo! Se o não fosse... Perdôa!
hei de ter animo de confessar a verdade, amava-o
do
mesmo modo, sei que o amava tanto, porque mais é
impossivel!... E agora terás dó
de mim?! Falarás ainda da soberba, que me fazia idolo
indifferente a todos os cultos?!...
«Cheguei áquelle excesso, em que parece que o
coração não vive
senão do que é de outrem, do que o amor, que
inspira e domina tudo, quer dar-lhe quasi por esmola! A minha luz,
todas as minhas esperanças, todo o futuro, pendem de um
olhar, de um sorriso, de uma palavra d'elle!... Vê como o
préso, e como deixei de ser a mesma!... Ha cinco annos,
quando iamos sentar-nos debaixo das
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madresilvas do caramanchão do
convento, em quanto as nossas amigas passavam, correndo e saltando com
os seus risos descuidados, porque suspiravas tu, e por mais que eu
interrogasse a minha alma, porque a achava sempre muda e
insensivel!?... O que foi que me acordou d'aquelle somno tranquillo,
d'aquella apathia dos sentidos, que só despertam com o
primeiro alvoroço, quando entre jubilos e sobresaltos o
peito começa a agitar-se? Não sei se outras
são assim. Vivo desde que principiei a amar. Até
ahi dormia. Era uma estatua! O meu coração como
que esperava
por elle para se abrir e brotar essa
flor tão mimosa, que um nada queima, tão rara que
uma vez só na vida a sentimos pelo perfume, pela alegria,
pelo esplendor... Desejava ser formosa, ser princeza, ser rainha, ser
tudo, para elle subir, e eu me saber invejada. Que loucuras!
Vê! Agora mesmo estou perguntando, sem querer, ao espelho
baço e empanado da minha prisão, por esta noite
medonha de trovões, se me acha ainda bella?!...»
Neste ponto terminavam as confidencias. Leonor nem acabára
de formar as ultimas lettras. Quando, entre o meio sorriso e as rozas
avivadas, de que a travessura da revelação lhe
animára o semblante, ergueu de repente os olhos para o
espelho, a que alludia na carta, pasmou, estremeceu de o vêr
mover-se lentamente com a moldura, e entre-abrir-se como uma porta.
Outra, menos varonil, teria soltado vozes de terror; ella
não. Fez-se pallida, sentiu-se fria, porém
não articulou palavra, nem deixou escapar um grito. De
pé, tremula, com os olhos fitos e algum tanto dilatados pelo
espanto, aguardou a aventura, que esta singularidade lhe promettia.
Não esperou muito. O espelho girou, rangendo um pouco, e
á entrada da passagem occulta, que
[81]
fechava, appareceu uma figura com um
castiçal na mão, avultando á medida
que se adeantava e que a luz mortiça da véla lhe
batia no corpo, desfazendo a escuridade. Era um homem de carne e osso,
e não um fantasma. Podia ser um salteador, um assassino, ou
um indiscreto, não era de certo uma alma penada. A donzella
respirou. Apezar da fortaleza do seu espirito a visão
tinha-lhe paralyzado os membros, e o coração,
pulando descompassado, trahia o susto, que os labios a custo
disfarçavam. O desconhecido trajava de preto, vinha envolto
em um capote de cabeções, e as largas abas do
chapéu enchiam-lhe o rosto de sombras. Quando percebeu que
Leonor o contemplava, levou o dedo á bôcca e
recommendou silencio. No movimento de braço o capote
descobriu os canos luzentes de duas pistolas passadas em um cinto de
couro, e a bainha de uma espada larga e curta.
A filha de Paulo de Azevedo deixou-o approximar de si sem denunciar
terror. Só falava com a vista, e desvanecido o primeiro
sobresalto, o que o semblante exprimia era a curiosidade natural,
excitada pela visita, que, por tal modo e a taes deshoras se via
obrigada a receber. O hospede punha entretanto os pés no
sobrado, roto e carunchoso, com tanto resguardo, e pisava com
tão grande subtileza, que os passos eram surdos, como se
caminhasse por cima de lã. Chegando ao pé d'ella,
encarou de perto a formosura intrepida, que sem receio olhava para elle
firme, e um sorriso alegrou a sua physionomia carregada, certo ar de
sincera admiração inculcou que não
contára encontrar tanto valor.
―Vejo que não me enganaram! murmurou ao ouvido de Leonor.
Tem mais animo, do que muitos homens. É digna do que
tentâmos para a salvar e a seu pae!
[82] ―Mas quem
é?... D'onde vem?... Como está
aqui?!... perguntou a donzella atropelladamente, mas no mesmo tom
submisso.
―Somos tres. Os meus companheiros esperam no fim do corredor, que
desembocca n'esta porta secreta. Pertencemos ao conselho conservador de
Lisboa, soubemos da prisão de seu pae, e seguimos os
milicianos de longe. O lavrador, que traz esta casa de renda,
é nosso, e ensinou o modo de entrarmos aqui. Temos caminho
facil para fugir.
―Ah! E Manuel Coutinho veiu tambem?... accudiu Leonor
córando.
―Não! Pouco ha de tardar. Está perto, e
mandou-se-lhe recado... Mas os momentos são preciosos.
Não podemos demorar-nos aqui. Quer ir acordar seu pae sem
bulha e dizer-lhe?...
―Já! Vou immediatamente. São dois minutos em
quanto volto com elle.
―Pois sim. Aqui espero.
De feito, instantes depois Leonor tornava com Paulo de Azevedo, e este
apertava silenciosamente a mão ao desconhecido, que lhe
dizia em voz baixa:
―Venha! Temos os cavallos promptos e tudo a postos. Simão
da Costa e Nuno do Rio, seus amigos, estão alli dentro,
Manuel Coutinho vem já caminho da Ponte... São
mais de onze horas. Ás duas saímos, se a noite
lhe mette menos medo, que a cadeia de Santarem...
―Quando quizer. Para onde?...
―Para Lisboa. Para o covil do Lobo. Aonde menos cuidem que
póde estar, ahi será o mais seguro.
Paulo inclinou a cabeça e seguiu-o com sua filha.
O espelho fechou-se. Quando o sargento veiu não achou nem o
rasto de seus presos.
VIII
Entre os bastidores
Lá sabemos como Leonor e seu pae conseguiram evadir-se sem
as chaves da prisão saírem do bolso do
carcereiro. Agora cumpre-nos explicar a
resurreição dos mortos na casa maldita, e
esboçar em duas palavras a biographia do intrepido espectro,
que, mascarado em alma do outro mundo para assustar os valorosos
milicianos da comarca, ás ordens do sargento, baqueou das
andas abaixo, transido de pavôr, por achar o defunto, de
pé tendo-o visto entrar em braços dos creados.
Nos acontecimentos d'esta infausta noite para os agentes da policia
franceza, o morto-vivo e o espectro medroso representaram um papel, que
os torna dignos de nos demorarmos com elles por algum tempo.
Principiemos pelo honrado fazendeiro, cuja desastrada sina choram em
côro as visinhas e as comadres da aldeia. Como o encontramos
de repente são e escorreito com profundo terror dos
sicarios, que se julgavam livres do seu nodoso cajado de marmeleiro?
Que santo obrou o milagre de levantar da sepultura este
[84]
Lazaro de japona para confusão e
ruina dos inimigos? Como dormiu elle no reino das sombras tantas horas,
e só accordou, como ao rebate da trombeta final, com o dobre
fatidico da meia noite, hora fadada a visões, a trasgos e a
feitiços?
As tres perguntas são razoaveis, e a curiosidade do leitor
é
natural.
Desejariamos de bom grado asseverar-lhe, sem faltar á
verdade, que o sabido condão do palacio deserto
fôra o auctor de todos os prodigios, porém somos
obrigados a confessar como sinceros chronistas, que até aqui
o maravilhoso e o sobrenatural só existiram na
imaginação escandecida de alguns dos actores, que
pozemos em scena. Tudo o que passou se explica perfeitamente sem ser
preciso prevalecermo-nos da má
reputação da Casa Negra.
Em primeiro logar o Manuel Simões não resurgiu
á sexta hora de entre os mortos, embora padecesse sob o
poder do sargento Cabrinha, porque para resuscitar era necessario estar
morto, e elle nunca chegou a fallecer! A bala do
Sapo roçou-lhe
pela testa, ferindo-o de raspão, e lançando-o por
terra sem sentidos; mas não penetrou na cabeça.
Quando vieram as mulheres, e entoaram em roda do seu corpo as nenias
costumadas, principiava elle a voltar a si; e quando o João
da Ventosa se approximou, suando e esbaforido, porque do alto de um
cabeço ouvira o tiro, e dois minutos depois descobrira no
luz-que-fusque o
Sapo, correndo em
saltos de
gafanhoto com a espingarda na mão, já achou o
corpulento fazendeiro sentado no chão, muito tonto ainda
como se recolhesse de alguma feira, ou romaria, porém sem
lesão grave, e apalpando escrupulosamente todos os ossos e
costellas.
―Ah! Ah! Compadre! gritou o rendeiro
[85]
extendendo a mão ao amigo e
contentissimo de o ter vivo. Com que então os
caçadores andam pelo sitio, e fizeram-lhe alvo da
cabeça? Safa demonio! ajuntou examinando-lhe a fronte mais
de perto. Escapou mesmo por uma unha negra!... O maldito tinha-lhe
vontade, e não queria perder a polvora. Upa!...
Póde vir outra ameixa detraz do vallado, e custar-nos mais a
engulir... Se foi só isso não é
nada. Mas!...
―Ainda não foi d'esta, sôr compadre, e se eu
soubesse quem me fez a esmola... com seiscentos milheiros... de
cobras!... Moia-lhe os ossos com este cajado mais moidos que pimenta em
almofariz... Patife! Atirou-me como a um lobo! Ah, sôr
João, vossa mercê acaso
veria quem foi o alma ruim?!... Parece que tenho dentro da
cabeça a mó do moinho a zoar, e que me anda tudo
á roda! Ora esta!...
―Olhe compadre, o melhor é mudarmos de pouso; depois
falaremos. Alli em baixo, na fonte, ata um lenço molhado na
cabeça, e
lá em casa lhe diremos o que vimos. Agarre-se a mim,
não tenha vergonha. Forte historia!
―Antonio me não chame eu, sôr compadre, se me
ficar inteiro uma semana o ladrão, que me pregou esta bala!
Hei de achal-o, mas que haja de descer vestido e calçado em
busca d'elle aos infernos...
―Não será preciso, homem!... Agarra-o
cá em cima sem ir
tão longe. Mas ha de fazer o que eu disser.
―Pois vá! Olhe que o dito, dito! Isto não se
leva a rir.
―Tem razão, compadre; vamos. Trago cá uma
idéa!... Emfim! O que for soará...
Os dois pozeram-se a caminho, porém muito devagar, porque
Manuel Simões de cinco em cinco passos cambaleava com
vertigens, a que chamava nobremente vagados. Era noite fechada,
[86]
quando avistaram a Ponte da Asseca, e
a casa. Chovia e trovejava que mettia mêdo.
O João da Ventosa, que em todo o tempo não
soltára palavra, labutando, contava elle depois, com a sua
idéa, virou-se então para o fazendeiro e
disse-lhe que se deitasse e se fingisse morto emquanto ía
chamar os creados.
―Que me deite e faça morto, salva tal logar?! Oh
sôr compadre?! exclamou o ferido. E para quê com um
milheiro de cobras?...
―Para apanhar a raposa e as gallinhas na capoeira. Você
não sabe, homem!? Não
vê que se quem lhe atirou atinar que perdeu a bala muda-se
com vento fresco, e nunca mais lhe pomos os olhos em cima...
Estire-se-me já n'esse chão, não venha
alguem. Nem trus, nem buz! Pela lingua morre o peixe.
―Ora essa!... Sempre tem cousas, este sôr compadre! Com que
então ainda em cima quer que me espoje n'este charco, e que
feche a bôcca a cadeado?... Vá lá! Por
esta
não esperava eu. Arrenego!
―Viu pescar á linha sem anzol, sôr casmurro?
Vamos. Esse corpanzil já por terra, e caluda! Não
me demoro.
Manuel Simões, resmungando, e praguejando, sempre se foi
deitando no sitio mais enchuto.
Minutos depois tornou o compadre com o maioral e o abegão,
em grandes lastimas por tamanha desgraça, e levaram-o por
morto em braços até á cozinha da casa,
aonde o
vieram encontrar, como vimos, os dois assassinos.
Os creados, apezar de conhecerem por experiencia a força
herculea do João da Ventosa, benziam-se de que elle tivesse
carregado só com aquelle corpo, tão pesado, desde
a azinhaga, como lhes disséra. Sentiam os braços
derreados só de o trazerem de tão perto!
O lavrador mandou accender fogo, e pôr
[87]
agua ao lume; pediu um alentado cangirão
de vinho, uma tigela de assucar mascavado, e chamou de parte a tia
Margarida, ministro feminino de todas as
repartições domesticas da granja, para lhe
confiar o occorrido, exigindo o maior segredo. A velha esconjurou-se,
louvou a Deus pelo milagre visivel, e saíu, trotando e
rosnando, para fazer a cama ao fazendeiro em um vão escuro,
e desviar da cozinha a vista e as orelhas dos curiosos.
Seguiu-se um entre-acto bacchico, durante o qual a agua quente e o
assucar serviram de pretexto ao vinho, o qual representou a parte
principal. Estava já menos de meio o cangirão,
quando a voz esganiçada de José Vardasca,
diabrete de quinze annos, sobrinho do rendeiro, em
altercação com o contralto enrouquecido da tia
Margarida, obrigou os dois campeões a suspender as
hostilidades. Manuel Simões amarrou o lenço
manchado de sangue á roda da testa, de modo que lhe cobrisse
a cara, e extendeu-se sobre a mesa de pedra. Um feixe de palha
serviu-lhe de cabeceira, e uma manta cobriu-o até aos
pés.
Ensaiada assim a peça, João da Ventosa abriu a
porta, e com um―Olá!―que fez tremer as paredes, poz termo
ao dueto da velha e do rapaz.
José Vardasca não vinha só.
Acompanhava tres sujeitos, envoltos em capotes de baetão
grosso de gola alta, cobertos com sombreiros de abas derrubadas, os
quaes esperavam fóra da porta, no escuro, que elle
désse ao tio o seu recado.
Ao que parece os viajantes eram conhecidos do rendeiro, porque apenas o
rapaz lhe disse, quasi ao ouvido, algumas palavras, este correu sem
chapéu apezar da chuva, e encaminhou-se para elles. Ninguem
ouviu o que falaram, mas os creados viram desapparecer o
[88]
amo e os hospedes por detraz do muro da horta, e
recolher-se passado um pedaço o João da Ventosa
só, em ar de quem se não tinha cansado com o
passeio. As conjecturas dos servos não foram adeante.
Cuidaram que elle saíra a metter os tres
embuçados no atalho da azinhaga, e se acaso se admiraram
foi, sendo tão largo e generoso, de lhes não ter
dado agasalho em sua casa por uma noite, em que a agua era tanta,
diziam os rusticos, que a podiam os cães beber de
pé!
Mas o lavrador sabia melhor do que elles o que fazia. E nós,
que não somos de segredos, e que não receiamos
que a policia dos francezes nos tome contas em 1864, das
conspirações de 1808, não duvidaremos
revelar as razões do seu procedimento.
Os tres sujeitos eram nada menos do
que tres delegados do conselho
conservador de Lisboa, associação composta de
patriotas
dedicados á restauração da
independencia e do throno legitimo, e decididos a todos os sacrificios
para arrojarem da sua terra os soldados de Bonaparte. Tinham atado
relações em todo o Ribatejo com os homens que
podiam ajudal-os em seu arriscado proposito, e haviam partido dias
antes da capital para se reunirem em Santarem com Manuel Coutinho e
alguns cavalheiros do Sardoal, Leiria, Pernes e Rio Maior, no intento
de assoprarem de mais perto a irritação popular,
e de irem dispondo os animos para a sublevação
geral, que meditavam, apenas as cousas lhes proporcionassem ensejo
favoravel.
João da Ventosa, assim como o Manuel da Cruz, e outros
visinhos, iniciados em parte do plano, executavam com cega fidelidade
todas as ordens emanadas d'este governo occulto e revolucionario, que
na ausencia da familia real, e em presença do jugo
estrangeiro,
[89]
representava para elles a
unica e verdadeira auctoridade do paiz.
O rendeiro, pois, assim que os tres desconhecidos lhe repetiram as
palavras, que serviam de senha aos amigos da liberdade―pelo rei e pela
patria―largou tudo, e offereceu-se logo para o que mandassem com a
maior submissão.
A reputação diabolica da Casa Negra, guardava-a
por tal modo da curiosidade, que nenhum refugio mais seguro podiam
encontrar os conspiradores, não só para
pernoitar, mas afim de celebrarem as conferencias. Explicaram os seus
desejos ao lavrador, e este, que o medo dos fantasmas não
vexava, guiou-os pela horta a uma entrada secreta,
disfarçada com um tapume de tábuas, e
introduziu-os nas salas e aposentos do primeiro andar do palacio.
Accendeu luz com o fuzil, ensinou-lhes alguns dos segredos dos quartos
e corredores, e prometteu trazer-lhes vinho e refrescos.
A chegada do sargento e dos presos, espertando a
imaginação do malicioso rendeiro, e a
coincidencia de abrigar debaixo do mesmo tecto a victima e os
assassinos, suscitou-lhe a idéa de salvar Paulo de Azevedo e
sua filha das garras dos agentes de Lagarde, castigando ao mesmo tempo
a perversidade de Cabrinha e do seu acolyto. Avisou os delegados do
conselho de Lisboa, ajustou com elles a maneira de fazer evadir o
cavalheiro de Mafra e Leonor, condemnou o fazendeiro á
immobilidade, assegurando-lhe em premio da sua paciencia as delicias da
vingança, e para não omittir nenhum episodio
distribuiu ao travesso José Vardasca o papel conspicuo de
phantasma branco, marcando a todos a meia noite, como a hora mais
opportuna para o feliz exito do drama.
[90]
Sabemos qual foi o resultado. Os milicianos fugindo, o
Sapo correndo
até perder o folego, e o sargento estatelado sem sentidos no
meio da cozinha! O que se tornou mais difficil foi calar os berros do
intrepido José Vardasca, assombrado com a vista do
fazendeiro, e convencel-o de que não estava com um defunto,
mas com um homem vivo e inteiro. O rapaz não se rendeu
á evidencia, senão
depois que viu e apalpou como S. Thomé.
O sargento, cujos ossos ameaçou por umas poucas de vezes o
cajado, ou antes a clava de Manuel Simões, e que o
João da Ventosa
não trabalhou pouco por salvar ainda d'esta vez, o sargento,
desmaiado e inerte, foi levado para cima de um catre e vigiado por um
dos moços com ordem de chamar o lavrador assim que abrisse
os olhos. O fazendeiro da Aramanha, mal rompia a aurora, tomando o
conselho do compadre, montou n'uma egua, e partiu para casa a
descançar, não sem primeiro rezar um responso
ás costellas do virtuoso Cabrinha e ao pescoço de
Gaspar Preto, aonde quer que os encontrasse.
O sargento esteve duas horas sem accordo. Quando voltou a si
não via senão fantasmas em redor da cama. Custou
a socegal-o.
O que mais abalára aquella alma seraphica fôra a
fuga dos seus presos! Não podia conceber como lhe tivessem
escapado, e na sua dor pharisaica arrepellava as melenas, e blasphemava
como um possesso, jurando contra Satanaz, contra a Casa Maldita, e
contra si. Mesmo de noite quiz saír. Pediu o cavallo, outro
espectro na transparencia e magreza, e cravando-lhe as esporas voou a
Santarem, talvez na esperança de ainda pôr a
mão
em cima da presa.
Voltemos agora á Azenha de Cima, aonde deixámos
Manuel Coutinho e o Antonio da
[91]
Cruz,
esperando pelas horas mortas da noite afim de emprehenderem a campanha
planeada por ambos.
Apezar da chuva caudal e dos relampagos, o moço do moinho,
garoto leve como um ginete, que via de noite como os gatos, e era capaz
de entrar pela bôcca de uma manilha, tinha sido mandado pelo
amo á descoberta até á Casa Negra com
ordem expressa de
não se deixar agarrar, e de espreitar em roda com a sua
curiosidade habitual. O rapaz partiu a correr, como se a agua lhe
não batesse em cima ás torrentes, e uma hora
depois voltava com a noticia de que os presos estavam na Casa Maldita,
de que o sargento, o
Sapo, e os milicianos ceiavam
regaladamente com o João da Ventosa, e de que o corpo do
Manuel Simões fôra recolhido pelo lavrador, e
jazia com uma véla aos pés e outra á
cabeceira
na mesma cozinha, aonde o beleguim emerito e seus sequazes se estavam
banqueteando.
Em toda esta chronica, narrada pelo moço com incrivel
volubilidade, o que mais socegou o animo de Antonio da Cruz foi a
certeza, de que o cadaver do fazendeiro da Aramanha não
desapparecêra, como se dizia, por artes do demonio. Estava
prompto a medir-se e a arcar com uma companhia inteira de milicias, mas
o inimigo do genero humano tremia só de cuidar que poderia
encontrar-se com elle um só instante!
―Ah José! disse depois de certa pausa. Então o
sôr João da Ventosa é que levantou o
corpo do Manuel e o levou para casa?... Estás bem certo?
Viste?...
―Com estes dois que ha de comer a terra, respondeu elle, fazendo uma
cruz com os dedos, e beijando-a. Assim me Deus salve a minha alma. Ah
patrão, que
diluivo de agua que
[92]
vae por ahi abaixo! Parece que quer alagar-se
hoje o mundo. Credo!...
―É verdade! accudiu o moleiro. Vens um pinto... Vamos! Que
tal te sabia um trago, ou dois de agua pé, ein? A roupa
não te pesa e estás tiritando que parece que te
apanhou uma sezão...
O liquido medido com largueza pagou os trabalhos do moço, e
o amo despediu-o logo depois, em quanto Manuel Coutinho passeiava de um
lado para o outro inquieto e murmurando por entre dentes algumas
palavras.
―Antonio! observou o mancebo, parando de repente defronte do moleiro,
e encarando-o firme. Atreves-te a ires commigo á Casa Negra,
para enxotarmos de lá o sargento e a sua quadrilha? Elles
são oito, ou nove, mas nós dois bem armados e
decididos?!...
―Valemos por dez ou doze. Vá feito, senhor! A espingarda
é de dois canos e a choupa está amolada... V.
s.
a quer a outra espingarda? É um
instante em
quanto se
carrega?
―Não!... Sim!... Carrega! Guardarei as pistolas e a espada
para o fim se for preciso.
―Quer que vamos já?... Sinto uns formigueiros n'este
braço, que não me deixam senão quando
assentar em cheio duas boas lambadas nas costas do sargento e na
cabeça d'aquelle alma ruim do
Sapo...
―Não as perdem, mas espera!... Que bebam até
caír. Nós os faremos erguer. Podes
fumar homem!
―Com sua licença.
O dialogo acabou aqui. Manuel Coutinho sentou-se com a
cabeça entre os punhos e os cotovellos na mesa, scismando, e
o Antonio poz-se com todo o vagar a carregar e escorvar a espingarda.
Depois foi ver as mós se tinham grão, abriu o
ladrão da presa, e quando tornou, veiu encontrar ainda o
patrão na mesma
[93]
posição com o relogio deante de si e os olhos
cravados nos ponteiros.
―Agora! exclamou o mancebo levantando-se com impeto. É meia
noite! Esperam por nós. Vamos! E cobrindo-se com a manta,
que o Antonio extendera a enxugar ao lume, passou as pistolas no cinto,
apertou o boldrié da espada mais alto, e pegou na
espingarda.
O moleiro ainda se apromptou mais depressa. Enrolou-se na manta, cobriu
com ella a coronha e os fechos da clavina, metteu-a debaixo do
braço esquerdo, e empunhou com a mão direita o
inseparavel varapau rematado pela choupa. No momento, em que estava
dando volta á chave da porta um immenso clarão
livido abriu os céus, o outeiro
illuminou-se de fulgores sinistros, e a casa tremeu com a terra ao
ribombo do trovão perpendicular. Apezar da sua intrepidez os
dois recuaram quasi assombrados até ao meio do aposento:
Santa Barbara! bradou o Antonio benzendo-se. Jesus! clamou o amo ao
mesmo tempo. Ficaram immoveis ambos olhando um para o outro.
―Deixemos passar a maior, senhor! disse d'ahi a instantes o vigoroso
aldeão. Ella anda mesmo por cima da nossa
cabeça...
―Pois sim. Deixemos! redarguiu Manuel Coutinho sentando-se no banco
defronte da porta.
Minutos depois outro relampago menor allumiou o campo, e á
luz d'elle viram vir correndo ennovellado direito ao moinho um vulto,
que mais parecia na velocidade um furacão, do que um homem.
―Oh lá! disse em voz cheia o moleiro. Castelhanos por aqui
á meia noite?! Quem temos? É bom vêr
sempre!...
Não teve tempo para mais, do que para se desviar, extender o
braço, e segurar pela golla
[94]
o impetuoso vulto, tão cego na partida, que se elle
não se arreda a tempo, colhe-o pelos peitos, despedido como
uma bala de canhão, e atira-o ao chão, porque
trazia força para
arrombar portas e paredes.
―Ah, sô amigo, aonde vamos com tanta pressa? exclamou o
Antonio, o qual affeito a apanhar na praça os bois de cara,
amarrava ao limiar com o vigoroso pulso o desconhecido, que, estafado e
convulso, estacou arquejante e sem poder falar.
Manuel Coutinho, callado e quasi indifferente, havia-se approximado da
porta, e contemplava a scena, como quem só desejava, que
ella se não prolongasse. Antonio da Cruz adivinhou a
impaciencia do mancebo, e voltando-se para elle disse-lhe:
―É um instantinho, meu amo! Entretanto amaina mais a
chuva... mas nadar por estas horas com mouros na costa, nada!... Vamos,
patrão, desate-me já a lingua, como desatava as
pernas pelo cabeço arriba, e diga para ahi quem
é, e o que faz correndo por esta linda noite até
á porta da gente de bem!... Vamos, desembuche,
senão!...
―Sou... Sou...
―É! É... Quem? Cousa boa, não
decerto. Com a breca! Entre que lhe queremos ver o focinho á
candeia. Melros ás escuras podem saír
morcegos!...
E ao mesmo passo arrastava para dentro da cozinha o vulto, que
escorrendo em agua, e cortado de frio e medo, nem lhe resistia, nem
tinha animo para articular palavra. Apenas lhe metteu a luz ao rosto, o
moleiro, fitando-o, voou de um salto á porta, fechou-a, e
voltando-se para Manuel Coutinho, disse-lhe com um riso amarello:
―Aposto que v. s.
a não é
capaz de
adivinhar
[95]
quem o diabo nos trouxe por aqui? Sabe
quem é este cara de fuinha?...
―Nunca o vi. Não o conheço.
―Pois olhe que perde!... Isto é o maior heroe cá
dos sitios... Nem mais nem menos, do que o sôr Gaspar Preto,
por alcunha o
Sapo!...
―O
Sapo? Já te ouvi esse
nome... Será?!...
―O maior ladrão e traidor da cafila dos jacobinos... Oh,
mas por aqui a esta hora, não é natural! O
sargento Cabrinha não anda longe, aposto!... Este velhaco
é o seu braço direito...
―Percebo!... bradou o mancebo, deitando tambem a mão ao
Sapo, e
saccudindo-o de modo, que se repetisse, ameaçava
desconjuntal-o. Antonio! Não o deixes escapar! Foi Deus que
o trouxe...
―Deus?!... Antes o demonio, cujo é!... Não
importa. Veiu por guloso? Pagará as dividas que tem na minha
conta. Se havia de ser ámanhã é hoje.
Gaspar! Toma sentido! Se não me respondes direito, por alma
de minha mãe te juro, e sabes que nunca jurei em
vão, que deixas aqui a pelle pelos nós d'essa
corda, ou os ossos na vara do meu cajado...
―Sôr Antonio, por quem é!...
―Por quem sou mesmo. Prometti, e costumo cumprir.
―Nunca lhe fiz mal...
―Hum! Nem bem!... Vamos! Cabeça alta e lingua solta. D'onde
vens?
―Da Casa Negra, aonde appareceu o demonio ao sargento, a mim, e aos
milicianos.
―Ah! Ah! accudiu Manuel Coutinho. Deixa-me perguntar. Este fio
póde levar-nos longe.
Interrogado pelo mancebo, entre o pavor dos espectros e o medo das
ameaças de Antonio da Cruz, Gaspar Preto fez uma
confissão geral tão sincera, que até o
segredo do tiro dado
em Manuel Simões lhe saltou quasi todo da bôcca
sem se sentir. O pavor ensandecia-o.
[96] ―E affirmas
não estar já ninguem na casa,
senão os presos?
―Ninguem, a todos os vi fugir, como lebres...
―E o sargento?
―Desappareceu. Foi o primeiro.
―Bem! Agora nós! atalhou o moleiro. O que vinhas tu aqui
cheirar ante-hontem? Se disseres a verdade não te toco.
―Eu!... Eu!...
―Tu sim!
―Vinha ver... se havia gente de fóra por cá!...
redarguiu o malsim contido pelo olhar firme de Antonio, e estorcendo-se
como se lhe estivessem dando tratos.
―Ora graças a Deus! Já confessas!... Vinhas
então como espia!
Está bom. Outra pergunta. Quem foi ao Casal do Ouro?
Fala!...
―Eu!... Suspirou tremulo o miseravel.
―Quem te mandou?
―O sargento... Que eu por mim!...
―Bem sei. Vamos a outra historia. Esta tarde deram um tiro no Manuel
Simões?... Vê bem! Quem foi? Olha lá se
mentes!...
Gaspar sentiu dobrarem-se-lhe os joelhos, fugir-lhe a vista, e
zumbirem-lhe os ouvidos. Esbugalhou os olhos, e por mais que quizesse
não poude pronunciar uma syllaba.
―Quem deu o tiro, quero saber! repetiu o moleiro, meneando o varapau e
encarando o assassino com terrivel gesto.
―Não sei... Não sei...
―Sabes e viste. Essa cara de réo o está
confessando. Fala. Quem foi?
―Eu!... por descuido...
―Descuidos teus, já sei. É o que suppunha. Agora
vê lá!... O sargento não te tinha
dito nada?...
Houve uma pausa longa. O
Sapo
chorava, supplicava, mas não redarguia á
interrogação.
[97] ―V. s.
a
já viu esmagar uma osga
contra uma parede?
bradou
o Antonio fuzilando-lhe as pupillas, e convulso de cholera. Pois vae
ver. Juro-lhe, se este cão se cala um minuto, que deixa os
miolos n'aquelle muro.
―Pelo amor de Deus!... Sôr Antonio não me deite a
perder!...
―O sargento sabia?... replicou o outro alçando o cajado.
―Jesus!... Não me mate!
―Sabia ou não?...
―Sabia!... rosnou o malsim quasi sem sentidos de terror.
―Quanto te prometteu... pelo tiro? Conheço-te. Tu de
graça não o disparavas.
―Agora isso não! Póde matar-me, mas
não confesso.
―Eu matar-te?... Para que? O carrasco não come
pão de graça.
―Então entrega-me?!...
―Com anginhos nos dedos e ferros aos pés. Juro-te! Dize a
verdade, homem. Do mal o menos. Quanto te prometteu? Olha que a corda,
que ha de pendurar-te na forca, já está fiada e
torcida...
―Se eu disser não me descobre?
―Não! O teu crime te descobrirá. Quanto?
―Seis moedas...
―Por conta, ou ao todo?
―Por conta. As outras seis... havia dar-m'as em Lisboa... quando
levassemos os presos.
―Ah! Agora repara. Vamos ás nossas contas. Gaspar, devo-te
uma sova mestra pelo natal passado e outra por este entrudo. Bem te has
de lembrar por quê!... Mas perdôo-te, tudo, e
até no tiro dado em Manuel Simões não
hei de boquejar... se juras fazer ao sargento o que elle te mandou
fazer aos outros...
[98] ―Matal-o?!...
exclamou o
Sapo, cuja
vista feroz se inflammou.
―Não, maldito! A justiça que o mate, quando o
sentencear!
―Então?!...
―Quero que vejas, que ouças, e que me digas tudo quanto
elle fizer? Percebeste?
―Sim senhor...
―Vê lá. Se te escorrega um pé, ou a
lingua, e eu o sei... guarda-te!
―Não ha de ter razão de queixa. Sou-lhe muito
obrigado.
―Não me dês mel pelos beiços, que
não sou abelha. Cuidado commigo. Depois!...
―Já lhe disse. Fique descançado.
―Fico, fico! Não tem duvida. Agora vens comnosco
á Casa Negra.
―Oh, sôr Antonio, por alma de sua mãe, pela sua
boa sorte, tudo quanto mandar, menos isso... Sirvo-o de rastos, estou
prompto a lamber o chão aonde pozer os pés, mas
tornar alli... isso não!
―Ah! Tens medo do diabo?...
―Mate-me, entregue-me, faça de mim o que quizer, mas
não volto lá.
E as feições repulsivas do malsim exprimiam por
tal modo o medo e o espanto, e revelavam uma
resolução tão decidida de se expor
a tudo para não obedecer, que Manuel Coutinho disse algumas
palavras ao ouvido de Antonio da Cruz.
―Pois bem, esperarás por nós. Ahi te deixo agua
pé e brôa. Mas sentido! Olha que te quero
encontrar á volta!... Forte homem! Ter pavor assim de almas
do outro mundo!...
―Ah! sôr Antonio! Se você visse!... O fantasma
branco alto como um cypreste crescer para si, e o defunto sentar-se de
repente e olhar... Ai Jesus! Parece que os estou
[99]
vendo ainda! Quando me lembro cuido que
enlouqueço!...
―Está bom! Está bom! Até logo! Com
que viste o defunto e o fantasma?... insistia o moleiro serio e
apprehensivo, olhando para o amo com certo enleio.
―Como o estou vendo a você, sôr Antonio. Credo!...
Manuel Coutinho encolheu os hombros, conchegou o capote e
saíu. O Antonio não teve mais remedio
senão seguil-o, mas apezar de todo o seu valor benzeu-se, e
o coração batia-lhe mais rijo no peito, do que se
visse um touro partir contra elle enfurecido.
IX
Que talvez podesse servir de prologo
Deixemos descançar por um pouco os heroes d'esta mui
veridica historia, em quanto corremos rapidamente os olhos pelos
successos, de que a Peninsula foi theatro n'este periodo memoravel.
Sem um resumido esboço, dos factos, que servem de fundo e de
moldura ao quadro, difficilmente formará o leitor exacta
idéa d'elle.
Os francezes, como dissemos, tinham atravessado as provincias, e
entrado na capital com o nome de amigos. Retirando-se com a esquadra
para o Brazil, o principe regente entregára em suas
mãos o reino sem defeza. As ultimas ordens de sua alteza,
datadas de 26 de novembro de 1807, ordens pacificas e conciliadoras,
abrindo-lhes as fronteiras, ajudaram mais, que as armas, os generaes de
Bonaparte a superar os obstaculos da invasão.
Junot confessou-o nas primeiras proclamações! A
obediencia, tão elogiada por elle, e dictada pelas
circumstancias, ainda não encerrava os ressentimentos, que
tornaram depois vacillante e precario o dominio estrangeiro.
O regimen absoluto, que as reformas do
[101]
marquez de Pombal não conseguiram
remoçar, adoecia de incuravel decrepidez.
Muitos
homens
illustrados, que o grandioso espectaculo dos acontecimentos advertia,
suspiravam por uma renovação, que não
podia nunca
ser inspirada, bem o sabiam elles por experiencia, nem pelas
idéas, nem pela iniciativa de um governo caduco.
Esta illusão de animos generosos durou pouco. Os que amavam
sinceramente a patria depressa se desenganaram da vaidade das promessas
dos conquistadores.
Estes, apenas se reputaram seguros, arrancaram a mascara, e pozeram
termo ás complacencias. Assim que viu reunidos e repousados
os corpos dispersos por longas e precipitadas marchas; assim que os
soldados lhe pareceram restaurados da fome, das inclemencias da
estação,
e da aspereza do transito o general em chefe cançou-se de
dissimular, falando com a altivez de vencedor aos que o tinham recebido
como hospede!
Foi então geral o sobresalto. Os actos despoticos e
oppressivos dir-se-íam calculados para irritar o ciume e o
amor proprio do paiz. As guardas de Lisboa confiadas só aos
francezes; o emprestimo forçado imposto ao commercio com o
praso de vinte dias; a insolencia do famoso decreto de Milão
condemnando como sujeito a resgate o reino que não
fôra conquistado; as armas reaes picadas do
frontão dos edificios publicos; e a bandeira nacional
arriada no castello e nas fortalezas, e substituida pelos estandartes
tricolores, foram outros tantos erros dos dominadores, que a saudade da
independencia registrou como ultrajes.
Desde o dia 13 de dezembro, em que Junot rodeado de pompas guerreiras,
mandára baixar o pavilhão das quinas deante das
aguias
[102]
do Sena, nunca mais houve paz
entre a nação offendida e os invasores. A luva
ficou desd'esse dia no chão por falta de chefe, que a
levantasse; porém, decorridos mezes, Portugal erguia-se para
responder á provocação,
envidando valor egual aos brios.
Atraz da occupação da pequena monarchia, que o
orgulho do gabinete de Saint Cloud estava ainda longe de suppor, que
podesse tornar-se em breve um dos inimigos implacaveis de sua
ambição, pouco se dilatou a
invasão de toda a Hespanha. Assignando o tractado de
Fontainebleau, que repartia os membros de Portugal entre os Bourbons,
os francezes, e o principe da Paz, auctorizando a entrada de quarenta
mil soldados em seus dominios, Carlos IV não percebeu que
firmava a propria abdicação.
Bonaparte anciava um pretexto para realizar os seus designios.
Deram-lh'o os enredos aulicos, o nucleo de descontentes, de que se
rodeava o principe das Asturias, depois Fernando VII, e a má
vontade de todas as classes contra o ministro omnipotente, valido do
monarcha e amante da rainha; deram-lh'o egualmente a miseria, a
inquietação, a decadencia geral, e o
presentimento de immensas catastrophes.
As dissensões da côrte, filhas da lucta do
herdeiro da corôa com os soberanos e com o privado, D. Miguel
de Godoy, e a indiscreta revelação dos aggravos
reciprocos, levada ao tribunal do imperador, para este sentenciar como
arbitro a familia real, ajoelhada a seus pés, facilitaram a
occasião appetecida por
Napoleão I, precipitando a queda do ministro entre
violencias e tumultos, coagindo a abdicação
de Carlos IV, e apressando a saída de Fernando VII para
Bayona.
Vendo por terra o diadema dos Bourbons
[103]
de Hespanha Bonaparte não o restituiu
a Carlos IV, nem a Fernando VII, cingiu-o na fronte de seu
irmão, o rei de Naples, escolhido para reinar entre
bayonetas sobre a monarchia de Izabel a Catholica. Os principes
despojados resignaram-se, mas a Hespanha protestou. Madrid insurgida
deu o exemplo. Murat cuidou suffocar a sublevação
pelo terror dos supplicios. Illudiu-se. O sangue vertido na capital em
2 de maio tornou irreconciliavel a nova conquista com o imperio. A
nação respondeu aos canhões, aos
fuzis, e ás execuções militares com a
resolução indomita, que as adversidades
confortam, e os triumphos exaltam.
A ira fez soldados os habitantes da Peninsula. O odio da
servidão resuscitou os dias de Viriato e de Sertorio. Cada
rochedo, cada tronco, de
arvore, cada balsa escondeu um inimigo; e para repellir os oppressores
até os velhos saccudiam os gelos da edade como mancebos, e
as crianças pelejavam como homens. Por um, que expirava,
erguiam-se mil. N'esta nova seára de Cadmo o ferro, tocando
a terra, levantava legiões de heroes. O chão
fugia debaixo
dos pés aos veteranos da Italia e do Egypto, e a espada dos
marechaes, quebrada sem gloria, ameaçava em vão
as fragas de um territorio, que, alastrado de cadaveres, e abrazado
pelas armas e pelos incendios, até cuspia de si os ossos do
estrangeiro, negando-lhes a paz do tumulo!
Oviedo, a antiga e venerada côrte das Asturias, recordando,
que suas montanhas tinham sido berço e asylo da
renascença
christã, alçou ousada o seu estandarte. Cadix e
Sevilha acompanharam-n'a. Granada e Valencia insurgiram-se logo depois.
Toledo, Santander de Biscaya, Saragoça, Tortosa, e Galliza,
não ficaram atraz. Dentro em pouco os esquadrões
[104]
francezes, encanecidos nas
luctas d'esta epocha de prodigios, já não
chamavam seu mais do que ao terreno aonde combatiam.
As juntas de salvação e defeza, á
medida que as terras se iam sublevando, exprimiam o seu pensamento de
porfiada resistencia. Filhas legitimas da
revolução, os revezes e os sacrificios
não as desanimavam. Diversas e oppostas muitas vezes no
caracter e nos costumes, nenhuma trahiu o seu juramento. Preferindo
para mortalha da Hespanha os muros voados e as torres arrazadas das
praças de guerra e das antigas cidades, todas rejeitaram a
clemencia injuriosa, que lhes promettia o perdão em troca do
soberbo dominio a que a Europa quasi inteira curvava então a
cerviz.
Os successos correram como a impaciencia dos contendores.
A invasão, que talára a provincia de Granada,
derrotadas por Castaños as tropas imperiaes, foi obrigada a
retroceder. A capitulação de Bailen quebrou o
prestigio das legiões invenciveis. Os francezes, acossados
de posto em posto, tiveram de evacuar Madrid, e recuando deante do
impeto da nação armada, só
pararam ás margens do Ebro. Os capitães mais
ousados aprendiam, finalmente, a conhecer, que vale mais o
esforço de um povo unanime, do que a espada feliz do mais do
maior homem de armas.
A junta central de Aranjuez, composta de deputados de todas as
provincias, constituiu-se como representante de Fernando VII, captivo
em Valençay, e assumiu a suprema
direcção, conferida pelas necessidades e o
heroismo pelo paiz. A Inglaterra, senhora por tanto tempo do sceptro
dos mares, disputando a Napoleão em todos os campos de
batalha a primazia no continente, ouviu de repente os clamores dos
descendentes de Pelaio, e
[105]
contemplando o arrojo, com que elles se atreviam contra o poder que
desmaiava os monarchas mais poderosos, estremeceu de jubilo, e saudou
n'este commettimento audaz a aurora do dia de Waterloo.
Em Portugal, apezar de não ser menos vivo e intenso o odio,
não foi tão prompta a
explosão. Mas a chamma, por calar debaixo de cinzas,
não rompeu por isso com menor violencia.
No dia 5 de fevereiro de 1808, na occasião, em que as
auctoridades francezas se reputavam mais firmes, reuniram-se
encobertamente em Lisboa seis homens, que nenhuma
distincção hierarchica apontava para chefes, mas
que a firmeza da vontade e o despreso dos perigos recommendam ao louvor
da posteridade. Chamavam-se Matheus Augusto, José Maximo
Pinto da Fonseca Rangel, José Carlos de Figueiredo, Antonio
Gonçalves Pereira e André da Ponte de Quental da
Camera. Juraram na presença de Deus empregar as
forças, os bens, e a vida com fervor até
conseguirem restituir ao principe regente, a sua corôa, e
á patria o seu esplendor e liberdade.
Juntavam-se ás oito horas da noite alternadamente uns em
casa dos outros, e desde logo se occuparam de minar o chão
debaixo dos passos dos invasores, descobrindo no meio do seu cortejo os
illudidos e os coactos para os descriminar dos vendidos e traidores, e
sondando o animo dos officiaes militares, dos magistrados, e dos
ecclesiasticos para indagar a sua disposição,
apurando aquelles com que podia contar.
Esboçada a conspiração, e protegida
por inviolavel segredo, principiaram os primeiros conjurados a attrahir
outros, engrossando o numero dos cumplices. Á policia,
regida por Lagarde, chegaram cedo os echos d'esta empreza,
[106]
que, tomando corpo á
proporção
que os acontecimentos caminhavam, era já na primavera de
1808 uma verdadeira potencia, fortificada pelos votos concordes do
patriotismo portuguez, e pela coadjuvação de
valiosos auxiliares recrutados nas fileiras do exercito nacional, nas
casas mais illustres da fidalguia, e nas classes respeitadas do clero,
da toga, e do commercio.
Quando Junot embarcou em virtude da capitulação
de Cintra, só os cabeças de bando,
representantes, perante o Conselho Conservador, da multidão
dos adherentes, excediam de
cento e
oitenta, e os homens, de
que podiam dispor, não baixavam de tres, ou quatro mil, com
sete peças de artilheria, 370 cavallos do regimento da Luz,
e da guarda real da policia, 112 officiaes avulsos, e 710 bayonetas!
Saltemos agora as semanas, que nos separam dos meiados de junho de
1808, e observemos o estado das cousas já bastante alterado
no curto espaço de sete mezes.
Determinára a Providencia que do excesso dos males, que
flagellaram a Peninsula se gerassem as causas, de que primeiro renasceu
a independencia, e depois a liberdade. As scenas de Bayona, e a
repressão cruel dos tumultos de Madrid despertaram a
Hespanha do somno, em que a falsa alliança dos francezes a
embalava. Badajoz sublevou-se a par de outras terras importantes no dia
30 de maio, e á sua voz principiou a provincia do Alemtejo a
agitar-se. Ao norte a Galliza, com os bellos portos do Ferrol e da
Corunha, e a sua população briosa e accumulada,
não
hesitou egualmente em saccudir o jugo.
Os dez mil hespanhoes aquartelados no Porto, que depois da morte do
general Taranco obedeciam ao marechal de campo D.
[107]
Domingos Ballesta, receberam ordem da junta
para recolherem, aprisionando o general Quesnel, governador militar da
cidade, e todos os officiaes e soldados, de que podessem apoderar-se.
Ballesta executou a ordem, e chamando as auctoridades da segunda
capital do reino, perguntou-lhes, antes de partir, por quem se
decidiam? Pela patria, responderam alguns.
O castello de S. João da Foz, de que era major Raymundo
José Pinheiro, arvorou a bandeira portugueza, e a
guarnição communicou com o brigue inglez
Eclipse, o qual
esperava os acontecimentos, cruzando proximo da costa. O povo
não se moveu. A
occasião ainda não estava madura.
Os timidos conselhos do brigadeiro Luiz de Oliveira prevaleceram. O
Porto tornou a submetter-se ao governo de Napoleão I.
A 9 de julho chegou a Lisboa a noticia da
insurreição das tropas hespanholas e da
prisão de Quesnel.
O perigo eminente estimulou o duque de Abrantes.
A divisão Caraffa, composta de seis batalhões de
infanteria, de um regimento de cavallaria, e de algumas baterias de
artilheria, ardia em desejos de imitar seus irmãos de armas,
provocada pelos emissarios expedidos a toda a pressa de Sevilha e
Badajoz. Junot antecipou-se. Vinte e quatro horas depois os soldados de
Fernando VII, presos e desarmados, embarcavam para bordo dos
pontões francezes, e sómente poucas companhias do
regimento de Murcia e alguns hussards do Maria Luiza conseguiam
escapar-se.
Por meio d'este golpe ousado o general em chefe, retaliando as
hostilidades dos patriotas, soube refrear a tempo as impaciencias e a
animosidade dos habitantes irritados. Loison
[108]
saíu a 17 de Almeida sobre o
Porto com a sua columna, afim de se oppor ás tentativas da
Junta de Galliza, e a 20 passava o Douro no Pezo da Regua. Mas o dia
das iras populares tinha alvorecido. Rodeado por todas as partes de
inimigos invisiveis, que fuzilavam suas tropas por traz das vinhas e
dos rochedos, pendurados sobre a corrente torva e arrebatada do rio,
volveu já sobre a noite ao Pezo da Regua, e tornou a vadear
o Douro para a outra margem, abençoando a
precipitação boçal dos camponezes, que
o salvára quasi por milagre de uma ruina completa.
O Minho e Traz os Montes, sublevadas em massa, acabavam de empunhar as
armas, proclamando a independencia. Mais alguns passos de Loison
além de Mesãofrio, mais prudencia e calculo da
parte dos aggressores, e a columna franceza encontrava a sepultura
n'aquelles penhascos e desfiladeiros immortalizados pela sua derrota!
Em quanto Junot quebrava por um lance audacioso a espada nas
mãos dos batalhões de Caraffa, Manuel Jorge Gomes
Sepulveda, tenente general, e governador militar do norte, em edade
provecta, acclamava a restauração da dynastia de
Bragança, e era seguido pelas terras mais notaveis das duas
provincias.
No dia 18 a revolução rebentou no Porto, e no dia
19 foi
nomeada a
primeira junta portugueza, cujo papel havia de ser tão
importante nos successos, que se precipitavam. Coimbra Pombal, e Leiria
seguiram o exemplo do Porto, e a insurreição
crescendo e alargando-se, batia pouco depois ás portas de
Lisboa, ameaçando o dominio estrangeiro, tanto pelo lado do
norte, como pelo lado do sul. Desde os Algarves até Evora e
Beja levantou-se o mesmo grito de exterminio correspondido por milhares
de vozes.
[109]
Antes de combater a insurreição a ferro, o duque
de Abrantes chamou em seu auxilio o braço ecclesiastico,
convidando-o a fulminar as populações armadas.
Uma pastoral do cabido patriarchal representou como crime e peccado
inexpiavel a resistencia ao grande e invencivel Napoleão,
declarando a culpa sujeita a excommunhão maior sem prejuizo
das penas temporaes. Esta profanação sacrilega
serviu só de
aviltar aos olhos do paiz os ministros do altar, que não se
envergonhavam de offerecer o incenso do templo e o beijo de Judas
contra a liberdade á vontade despotica dos oppressores. Os
raios mal forjados nas sacristias caíram frios e inermes
deante da resolução e da perseverança
dos que pelejavam pela patria, e a famosa
proclamação ao Divino, despresada como merecia,
não roubou ás fileiras nacionaes um só
defensor.
A resposta de Bonaparte em Bayona á
deputação portugueza foi mais eloquente para
fazer de nós soldados, do que as excommunhões
dictadas no quartel general francez. O imperador, julgando a
occupação de Portugal legitima depois da partida
da familia de Bragança, tractava o pequeno reino desamparado
com os rigores devidos a uma colonia ingleza!
Era a sua idéa e a sua politica. Pouco lhe importavam o amor
e a confiança dos novos subditos. Não os temia
nem o preoccupava o que havia de dispor afinal ácerca do seu
destino. Junot, que os conhecia melhor, tinha procurado attrahil-os, e
chegára a linsongear-se com a esperança de os
adormecer a ponto de lhes riscar da memoria as saudades da dynastia e
da independencia. A obediencia imposta pela força
afigurava-se-lhe esquecimento, e nos seus officios ao ministro da
guerra o
[110]
governador de Paris traduzia os
vivas venaes da plebe ao sabor dos seus desejos, pintando a
nação tranquilla, submissa, e satisfeita. A
explosão das provincias e os murmurios da capital vieram
depressa acordal-o d'este sonho!
Olhou. Não viu em volta de si, senão odios mal
reprimidos, ou adhesões falliveis e compradas. A pobreza e a
miseria, filhas do bloqueio, que paralysava o commercio, tornavam ainda
mais critica a sua posição. O cambio do papel
moeda subira a 31 e a 32 por cento; o pão custava 75
réis o arratel. A carestia dos generos, tornando a vida
difficil e dolorosa para as classes indigentes, aggravava o
descontentamento geral. A Junta dos Tres Estados, reunida para pedir um
rei a Napoleão, proporcionou ao juiz do povo José
de Abreu Campos, a occasião appetecida de manifestar os
verdadeiros sentimentos do paiz, desenganando o duque de Abrantes, de
que se achava só e detestado com o seu exercito no meio de
populações hostis, que suspiravam pela hora de
restaurar a liberdade e o throno de seus principes.
No mez de junho estavam dissipadas todas as illusões.
Admirado do arrojo com que paizanos quasi sem defeza se arriscavam ao
encontro de legiões aguerridas, Junot exclamava:
«Portuguezes! Que delirio é o vosso? Em que abysmo
de males vos despenhaes? Ao cabo de
sete
mezes de paz e
harmonia, porque razão correis ás
armas?» Concluindo com
a lei marcial, ameaçava as villas e cidades com o saque e o
incendio, e os cidadãos com a morte!
Se estivesse mais lembrado da sua juventude deveria recordar-se do modo
por que a França respondêra heroicamente aos que
lhe apontaram a espada ao peito dizendo o mesmo.
X
Tolda-se o tempo
Transportemo-nos um pouco antes dos successos esboçados nas
paginas antecedentes aos paços da
inquisição, situados no Rocio
de Lisboa, aonde hoje ergue o seu frontão votado
ás Musas o theatro de D. Maria II. Em algumas das salas e
aposentos do antigo palacio dos Estáos, restaurado pelo
marquez de Pombal, assentou Lagarde as
repartições da policia geral do reino. Era justo!
Ao lado do santo officio da fé o santo officio da
usurpação. As duas
inquisições fraternalmente hospedadas uma a par
da outra não podiam offender-se do acaso que as unia!
Soldados da guarda real da policia, corpo fundado e disciplinado pelo
conde de Novion, emigrado francez que as victorias de Bonaparte e a
invasão de 1807 lançaram outra vez nos
braços dos seus compatriotas, guardavam as portas de
fóra, ou de espadas em punho vigiavam os corredores e
camaras, que precediam o quarto reservado aonde o proconsul se
encerrava com os seus confidentes.
Deixemos passar esses vultos, que
pisam os
[112]
sobrados nas pontas dos pés, escorregando quasi como
sombras. São rodas secundarias da machina. O olhar enviezado
e inquieto, o rosto meio escondido na dobra do capote, e a humildade
rasteira denunciam, sem necessidade de mais exame, os delatores
obscuros, ou os agentes provocadores, destacados nas ruas e
praças, ou nas tavernas para escutar e repetir os clamores
de indignação das
multidões. Esperemos que algum personagem de elevada
gerarchia appareça, e nos introduza no gabinete discreto e
só accessivel a poucos eleitos, aonde o magistrado
estrangeiro conta as pulsações
do coração de Portugal, e segue com a vista fria
e penetrante os estremecimentos de cholera, ou de impaciencia do paiz,
cançado da oppressão e envergonhado do silencio,
em que a supporta ha sete mezes!
O general Junot, governador de Paris, entra pelo braço do
conde da Ega, seguido de seus ajudantes de campo. O ministro Herman,
encarregado dos negocios do reino e da fazenda, ex-commissario
imperial, não se demora atraz d'elle. Lunyt, secretario
d'estado da marinha e da guerra já os tinha precedido. A
concorrencia de taes pessoas inculca acontecimento notavel, e
é de crer que o conselho se não separe sem que
alguma providencia venha esclarecer o segredo dos ultimos dias e dos
ultimos sucessos. Quem nos abrirá caminho até ao
famoso reposteiro, que deante da entrada da sala vedada representa para
os profanos o papel de véu de Pythagoras? As sentinellas,
immoveis como estatuas, velam fieis ás ordens recebidas. Os
porteiros, em ar protector, ou mysterioso, despedem os pretendentes e
os importunos. Um cordão de empregados corta á
curiosidade todos os passos. Gritou-se, porém ás
armas. O uniforme de um official superior reluz na extremidade
de extenso
[113]
corredor. Os
subalternos inclinam-se profundamente, e respondem em voz submissa
ás perguntas imperiosas, que lhes dirige. Acompanhemos este
iniciado. É o capitão de mar e guerra Magendie,
commandante da marinha. Seguindo-o, temos a certeza de não
encontrar obstaculos.
Quando o recem-chegado franziu o reposteiro de panno escarlate orlado
de branco, no meio do qual campêa uma aguia azul colossal, e
empurrou de leve um dos batentes da porta, a discussão
já se havia travado, segundo parecia, menos placida, do que
promettiam os annos e auctoridade dos diversos membros do governo,
sentados á roda da comprida mesa, coberta de couro, e
cingida até ao chão de um rodapé de
tela encarnada. A mesa occupava o centro da casa. Junot, facil de
conhecer pela estatura, boa presença, e garbo do porte,
achava-se em pé junto da cabeceira, com o rosto inflammado,
e a mão no punho da espada. Lagarde, á sua
esquerda, analyzava com o olhar prescrutador todas as physionomias,
traçando com a penna sobre uma folha de papel algumas
palavras soltas. Pallido, ou antes livido, retratava no rosto a astucia
unida á expressão repulsiva de um cynismo cruel e
glacial.
Herman, á direita do general em chefe, sereno, aprazivel, e
delicado, com um lapis entre os dedos enfeitados de anneis, justificava
ao primeiro volver de olhos a reputação de
melindre e de primor, merecida desde que se estreára na
carreira publica exercendo as funcções de consul
em Portugal. Vestia em todo o apuro da moda do seu tempo. Casaca de
lemiste talhada á franceza com botões de metal e
golla alta, collete branco aberto, que deixava sobresaír a
finissima cambraia da camisa e da tira engommadas em pregas
miudissimas, calções de seda, meia a estalar na
[114]
perna, sapatos e fivelas de ouro cravejadas.
Um espadim curto de bainha dourada pendia-lhe da cinta, e uma caixa de
rapé, mais preciosa pelo lavor, do que pela qualidade,
aberta a seu lado, e consultada a miudo pelos dedos distrahidos de
Junot, recommendava-se pela admiravel miniatura, cercada de aljofres,
que lhe ornava a tampa.
O conde da Ega, cuja intimidade no quartel general do largo do
Quintella as murmurações populares explicavam de
um modo pouco airoso, e que dias depois havia de substituir o Principal
Castro na pasta da justiça, escutava de pé, e com
mostras de não pequeno sobresalto, talvez provocado pelo
desassocego da consciencia, a leitura nasal, lenta, e accentuada, que
Lunyt secretario de estado continuava sem mudar de tom, estudando de
vez em quando por baixo dos oculos de ouro o effeito produzido no animo
dos ouvintes.
A entrada de Magendie, accolhida por uma
exclamação de alegria do duque de Abrantes, por
uma cortezia de Herman entre dois sorrisos, e por um gesto de
urbanidade de Lagarde, foi como o signal da explosão
até ahi contida das paixões e receios mal
reprimidos. Todos diriam que o Conselho aguardava a sua chegada para
arrancar a mascara, que o suffocava, dando largas á
expressão sincera dos verdadeiros sentimentos.
―Bem vindo, capitão Magendie! A sua demora fazia-nos temer
que faltasse. O aviso chegou-lhe tarde?...
―Não foi o aviso, general! Mas a esquadra de sir Carlos
Cotton appareceu outra vez á barra, e julguei prudente ir a
bordo das fragatas
Carlota e
Benjamin...
―E então?! interrompeu Lunyt, pondo de parte o papel que
lia, e encarando o capitão de mar e guerra.
[115] ―Fosquinhas por
ora! respondeu este encolhendo os hombros.
Entretanto...
―Podem encobrir planos de hostilidade? atalhou Herman, sorvendo com
pausa uma pitada, e dispersando depois com um piparote os
grãos que tinham saltado sobre a tira alvissima da camisa.
―É possivel. Os inglezes animados pela
sublevação dos hespanhoes, meditam desembarques
na peninsula, accudiu Lagarde em ar grave.
―Veremos se em terra são felizes como no mar! observou o
conde da Ega.
―Mesmo no mar, redarguiu Magendie, espero que não
hão de forçar-nos a barra sem deixarem nos
escolhos um par de navios. Temos de observação
entre as torres a fragata
Graça
Phenix e mais dois
vasos de alto bordo, artilhados, mas incapazes de navegar; em Belem
estão fundeadas tres charruas...
―Bem! Bem! tornou Junot. Duvido que rocem as barbas pela
bôcca de nossos canhões, Magendie!
Oxalá que todas as tempestades nos viessem só do
mar... O peior de tudo, senhores, é que o chão
treme debaixo dos pés, e...
―Que a traição vela á nossa
cabeceira? Notou Lunyt, limpando os vidros dos oculos, e falando no
mesmo tom lento e nasal, com que lia.
―É verdade, Lagarde! Conspira-se, trama-se, e
não nos dizieis nada!...
―Para que? Quando uma nação inteira
está conjurada, general, a policia passa, vê, e
dissimula. Prisões e devassas, de que serviriam,
senão de a irritar mais? Descobrir o que ella quer,
tirar-lhe os pretextos, e escolher a occasião de ferir a
muitos de uma vez pelo terror do mesmo golpe, eis o segredo dos que
sabem dominar.
[116] ―Sim! Bem sei!
É a theoria de Fouchet, do duque de
Otranto!...
―E para este caso a unica aproveitavel. O que diria o sr. conde da
Ega, tão nosso amigo...
―Eu!... Pois eu!...
―Se lhe mettessemos no castello, ou nas torres dez, ou doze parentes
de toga, e de espada, que estão conspirando a esta hora
mesmo contra o governo de sua magestade o imperador e rei?!...
proseguiu o intendente com o seu riso agudo e estridulo, similhante ao
som do córte de uma serra.
―Ah! Os parentes do sr. conde de Ega tambem são contra
nós?!... notou Junot vagarosamente.
―E os da senhora condessa ainda mais!... observou Lagarde trespassando
o general com a vista afiada e ironica.
Uma nuvem escureceu a fronte do duque de Abrantes. Aquella seta viera
cravar-se-lhe direita no peito. O guerreiro destemido, coroado tantas
vezes pela victoria no meio de proezas heroicas, era accusado de
excessiva sensibilidade perante o bello sexo; e a formosa condessa da
Ega, segundo se dizia, graças a seus enlevos e encantos,
tinha conseguido tornal-o escravo do menor de seus caprichos.
O general inclinou a cabeça, correu os dedos pela fronte
annuviada, como se quizesse saccudir com o gesto pensamentos
importunos, e, sem responder á allusão,
levantou-se, e deu
alguns passos pela casa, talvez para ter tempo de se assenhorear de si,
vencendo a commoção. Os olhos dos outros vogaes
do conselho fitaram-se no semblante do conde da Ega por um movimento
irresistivel. Sem resultado! Ayres de Saldanha, por calculo, ou por
ignorancia, não denunciava na physionomia, senão
a
indifferença apathica, prova real da mais virtuosa
[117]
confiança. Herman e Lagarde
trocaram um sorriso fino, que não abonava a sua credulidade
na innocencia apparente do fidalgo portuguez.
N'este momento a mão de um ajudante de ordens arredou as
prégas do pesado reposteiro, e sem proferir palavra entregou
a Junot dois maços cuidadosamente lacrados. O duque
recebeu-os tambem calado, e veiu sentar-se na ampla cadeira de
braços, d'onde se erguêra minutos antes. Emquanto
rompia o sobrescripto do primeiro, e corria os olhos pelo volumoso
officio, era facil notar no seu rosto, de ordinario sereno e intrepido,
a apprehensão causada por noticias desagradaveis. Antes de
passar á leitura do segundo maço, e de lhe rasgar
a capa, os que o conheciam assustaram-se, apercebendo-se de certa
hesitação momentanea, notavel em caracter
tão firme, porque seguramente inculcava mais do que
sobresalto, ou torvação. Ao mesmo tempo recebia
Lagarde um papel fechado, que não lhe causava menor cuidado,
do que os dois officios ao general. Houve um minuto, ou dois de
profundo e ancioso silencio.
―Nome de Deus! exclamou o duque de Abrantes incapaz de conter as
paixões, e amarrotando irado o papel. Verifica-se o que
sempre prognostiquei. Não me quizeram attender, decidiram
tudo em Paris sem entender nada, e agora cá estamos
nós para carregar com o peso de todas as culpas!... Quantas
vezes os avisei e lhes disse a verdade! Deram finalmente aos inglezes o
campo de batalha porque tanto suspiravam; não contentes
fizeram suas alliadas duas nações inteiras.
Veremos agora como desatam o nó!
E recostando os cotovellos na mesa, e a cabeça entre as
mãos, sem fazer caso do espanto
[118]
excitado pelas suas phrases, abysmou-se em
sombria meditação.
―O que é? O que succedeu?... perguntava o conde da Ega a
Herman.
―Pouco viverá quem o não souber! redarguiu o
malicioso diplomata, encolhendo os hombros. Rapaziadas dos portuguezes,
aposto!...
―Mais do que rapaziadas, senhor Herman! atalhou o intendente geral da
policia, que de livido se tornára verde, cujas pupillas
chammejavam, cujo sorriso era uma contorsão diabolica.
Estamos sobre um vulcão.
―Apagado! replicou o ministro do reino inalteravel. Esta gente de
Lisboa não é para emprezas altas. Queixa-se com
saudades, fala, ameaça, mas por fim faz-se d'ella o que se
quer. Em lhes não tocando nos seus lausperennes, nos seus
frades, e nas suas procissões, todos andam mansos como
borregos... Estes não me mettem medo a mim;
oxalá!...
―Medo! accudiu Junot, levantando-se de um pulo, com o rosto incendido,
e os olhos scintillantes! Medo! Quem fala em medo!? Para enxotar como
um rebanho de ovelhas toda essa plebe, toda essa espuma... basta o meu
cavallo e o meu chicote!...
―Nem tanto, senhor duque! observou Magendie. Os portuguezes
são homens e soldados. Mais de uma vez o têem
provado. Perguntae aos hespanhoes... e ao senhor conde da Ega, que
hão de conhecel-os.
Herman sorriu-se. O conde parecia petreficado. A injuria do general em
chefe feria-o no rosto como golpe de mão aberta. O
coração indignado convidava-o a repellil-a,
porém o servilismo tapava-lhe a bôcca.
Não acertava com o que fizesse. Calado deshonrava-se;
falando arriscava-se... Calou-se!
Junot caíu depressa em si. O seu animo era
[119]
generoso, embora cedesse aos impetos do sangue,
facil de inflammar, provocando paroxismos de cholera, que os seus
intimos deploravam, porque frisavam quasi por loucura frenetica. As
palavras de Magendie advertiram-n'o. Recuperando-se da embriaguez da
raiva, volveu ás maneiras cultas e urbanas, que tantas
affeições lhe grangeavam, mesmo entre os
adversarios.
―Senhor capitão Magendie, a plebe não
é a nação. Os portuguezes
são para
muito; pena é que não os soubessem aproveitar, em
quanto era tempo!... O erro não o commetti eu. Este povo
é bom, generoso, e paciente... Podiamos, deviamos ajudal-o a
regenerar-se... Preferimos tractal-o como vencido, e fazer d'elle um
inimigo!... Paciencia! Colheremos os fructos que semeámos.
Lagarde! Herman! Magendie! Vamos ter a guerra!... O segundo acto da
tragedia começa em Portugal. A Hespanha deu-nos o
primeiro... Loison escapou milagrosamente aos montanhezes sublevados no
Marão, em Amarante, e em Chaves!...
―Se escapou é o essencial! Os bandos populares sem
cabeça depressa se dispersam. Observou Lagarde.
―É verdade. Mas o chefe existe. Manuel Gomes de Sepulveda
acclamou em Traz-os-Montes o principe regente...
―Um velho de mais de oitenta annos, tropego, e quasi cego!?... accudiu
Lunyt sorrindo.
―Acrescentae, porém, velho mas habil general, valente, e
adorado!... As provincias do norte estão, ou
estarão todas em armas dentro de oito dias. Miranda, Villa
Real, Moncorvo, e Guimarães já o seguiram, ou
vão
seguil-o...
―Temos o Porto, e em quanto for nosso,
[120]
facilmente daremos a mão aos nossos exercitos de Hespanha,
interrompeu Herman.
―O Porto!... Lêde!... E passando o officio ao ministro do
reino, Junot, em quanto este o lia a meia voz aos collegas, passeiava
agitado, medindo a sala em todo o comprimento.
―O Porto? É tarde! já não lhe
accudimos. Hoje, ou ámanhã subleva-se, e
dá o
exemplo. Coimbra não se demora. Contae com ella insurgida.
Não nos lisongeemos com illusões...
―O mal, comtudo, não é irremediavel! Sejamos
fortes! exclamou Magendie. As nossas tropas devem ter vencido em
Hespanha, e...
―As nossas tropas não venceram, foram vencidas! Tornou o
general em chefe sombrio, e mordendo os beiços. A fortuna
vira-nos as costas. As divisões aguerridas recuam sobre o
Ebro. O rei José saíu de Madrid. Estamos
sós e
sem retirada no meio de um reino irritado e adverso...
―Ah! disse Herman empallidecendo. N'esse caso a partida é
arriscada. Não a julgo,
porém, perdida.
―Nem eu! Mas contemos um pouco, se nos apraz, com os inglezes. Em
Gibraltar acha-se sir Hew Dalrymple com o corpo do general Spenser. Em
Cork, na Irlanda, vão embarcar nove mil soldados. A esquadra
de sir Charles Cotton anda cruzando deante da foz do Douro, e das
bahias do Tejo e do Mondego. De um instante para outro podemos ter de
pelejar com o povo e com as tropas do rei George... N'esse caso!...
―Ameaça-nos a capitulação de Dupont
em Bailen?!... accudiu Lagarde, batendo com o punho cerrado sobre a
mesa. Oh!...
―Nunca!... Pelo menos em quanto eu viver! exclamou Junot com um gesto
admiravel de firmeza. Luctaremos! A derrota não é
menos gloriosa, que o triumpho, quando o
[121]
campo de batalha proclama o heroismo dos vencidos... Poderemos ao menos
contar com a obediencia de Lisboa? A capital em nosso poder
póde ser ao mesmo tempo segura base de
operações, e precioso penhor para o
infortunio. Lagarde! Chegou o momento. Respondeis pela tranquillidade
de Lisboa?...
Houve um momento de silencio. O intendente geral da policia, atalhado,
olhava para o papel, que lhe tinham trazido, e conservava ainda aberto,
e para o general, e hesitava.
―Que nova desgraça nos ameaça!? accudiu o duque
arrebatado. Hoje é o dia das fatalidades? Falae! Estou
preparado para tudo. Que dizeis de Lisboa?...
―Que respondo por ella, como por mim!... balbuciou Lagarde tremulo.
Bem! Não é preciso mais. Dás-nos a
alavanca de Archimedes!...
―Só depois de ámanhã em deante!...
concluiu o intendente engasgado, e convulso.
―Ah! E hoje porque não?! exclamou Junot, que os revezes
pareciam reanimar á medida que se accumulavam. Nome de Deus!
Não sois medroso. Conheço-vos! Esse papel
trouxe-vos a cabeça de Medusa? Que segredo terrivel encerra?
Vamos! Vencei a consternação, e dizei-nos o que
ha. O peior perigo, é o perigo encoberto. Quero saber!
E o duque de Abrantes assentou-se com a fronte erguida, os olhos
brilhantes, e um sorriso intrepido nos labios. Era assim que elle
costumava affrontar a morte nas batalhas.
Lagarde principiou em voz baixa a leitura. Era o plano de uma
revolução traçada
para rebentar no dia seguinte depois da procissão do Corpo
de Deus.
Os auctores d'este commettimento, todos membros do Conselho Conservador
de Lisboa, tinham sido denunciados á policia em differentes
[122]
occasiões, mas
poupados como conspiradores theoricos e inoffensivos. A ousadia do
trama excedia, porém, d'esta vez quanto podia prever-se de
audaz e decidido. O rompimento havia de começar de tarde,
ás seis horas, muito depois de concluida a festa religiosa.
Junot devia ser preso no caminho do palacio de Anadia para o Rato, as
guardas do Rocio, do Terreiro do Paço, de S. Domingos, de
Santa Clara, e do quartel general, atacadas e desarmadas, e o Castello
rendido por assalto, ou por algum artificio de guerra. As tropas
francezas privadas do seu chefe, e surprehendidas, seriam obrigadas a
depor as armas em virtude das ordens dictadas ao duque de Abrantes
pelos seus carcereiros. O povo e os soldados portuguezes coadjuvariam a
revolta occupando as ruas e as praças.
O assombro dos vogaes do governo durante a
communicação, que acabâmos de
resumir, custaria a descrever. A gravidade das physionomias tornou-se
mesmo tão solemne, que ia degenerando quasi em comica. O
unico ouvinte desassombrado e de sangue frio era o duque de Abrantes. A
idéa de se ver colhido ao anoitecer no seu transito
costumado pelos cumplices do Conselho Conservador, affigurou-se-lhe por
tal modo absurda, que, recostado no espaldar da cadeira, desatou o riso
em frouxos, suspendendo a leitura, e desengatilhando de sua
expressão severa o rosto dos que a sua hilaridade
não admirava menos, do que o plano de
sublevação forjado para a capital.
―Admiravel! Sublime!... clamava Junot estorcendo-se entre risadas.
Parece-me
que os estou
vendo d'aqui a esses illustres
conspiradores de rabicho e samarra, decidindo á pluralidade
de votos o theor das ordens, que hei de escrever depois de
prisioneiro!... Mas
[123]
é
um entremez puro o que esta boa gente imaginou: art.º
1.º O general Junot será
apprehendido, e ao mesmo tempo as guardas do Terreiro do
Paço e do Rocio!... art.º 2.º (porque o
não puzeram tambem?) O presente decreto será
registado nos livros da chancellaria da Junta Provisoria! Excellente!
Deixae-me rir, Lagarde. Sois um homem unico para desterrar tristezas.
Herman, Lunyt, e o intendente olhavam uns para os outros, pasmados, e
não sabiam se deviam conservar-se serios, ou imitar o
general. Magendie, militar e resoluto, ria a ponto de lhe saltarem as
lagrimas dos olhos. O plano peccava pela ingenuidade. Os innocentes
conspiradores fundavam todo o edificio de suas esperanças na
prisão de Junot, e essa prisão era justamente o
que lhes esquecêra assegurar. O duque de Abrantes, cujo valor
todos respeitavam, os seus ajudantes, e a escolta de cavallaria que
sempre o acompanhava, não cairiam de leve em uma cilada de
poucos homens, e para o esperar em grande numero, vigiadas como estavam
as ruas, parecia duvidoso que meia hora depois não se
achassem recolhidos na cadeia os Scevolas incumbidos d'este prologo
essencial no grande drama da restauração da
patria.
―Herman! O vosso voto sobre esta farça que terrificou
Lagarde!...
―O plano é fraco, porém a
intenção...
―De intenções, boas, más, e pessimas
está calçado o inferno! Tendes acaso receio de me
vêr preso no meio das becas dos conspiradores, suando medo
por todos os poros, e ordenando aos meus valentes soldados que
entreguem as espadas e espingardas aos milicianos de Lisboa!?... Que
gente admiravel a do vosso Conselho Conservador, Lagarde! Respeitae-os
como se respeita a innocencia. Conjurados
[124]
assim inventam-se, quando se
não acham, e guardam-se debaixo de redomas de vidro...
Art.º 1.º O general Junot será
apprehendido! Nada mais! Que bella concisão spartana! Ah!
Ah!... Quem serve de espirito santo a este cenaculo? Algum macrobio?
Alguma reliquia do tempo do marquez de Pombal, aposto?... A
conspiração dá ares de
quinhentista. Foi desenterrada de certo de algum archivo!...
―Informam-me que José de Seabra no principio
déra alguns conselhos, mas que hoje...
―Não quer saber d'elles para nada!?... É
evidente! José de Seabra, duas vezes ministro de estado,
sisudo, e espirituoso, morria de vergonha se visse o seu nome ligado a
similhante satyra do senso commum... Art.º 1.º O
general Junot!... Desculpem, mas é incrivel! Os
desembargadores e os padres de Lisboa cuidam que um general francez
é algum passaro raro, que se apanha e mette na gaiola para o
ensinar a cantar o hymno nacional!?... Lagarde! Prohibo-vos de tocar
nos veneraveis juizes, fidalgos, frades, abbades e negociantes, de que
se compõe este bemaventurado Conselho. Dae graças
a Deus pela sua existencia, e não os incommodeis. D'alli
não vem de certo mal! Oxalá que Sepulveda fizesse
parte d'elle, esperando pela minha prisão para se sublevar.
O Porto ainda poderia salvar-se!
―Mas, general, o dia de ámanhã parece-me
critico, observou o intendente, que o riso e os motejos do duque tinham
confortado pouco. Não é só gente da
capital a que sae
ás ruas. Os arrabaldes e o Ribatejo despovoam-se, e talvez
fosse mais prudente prohibir a procissão, e prender por
algumas horas os cabeças conhecidos dos arruidos
populares...
―Pela gloria do imperador! Enlouqueceis, senhor Lagarde?!...
Assustam-vos tanto os
[125]
planos
ridiculos de uns poucos de dementes, que vos não envergonha
o argumento de fraqueza, que dariamos, escondendo-nos com medo dos
frades e das irmandades de Lisboa? A procissão ha de
saír. Nada de
prisões! Os nossos soldados trazem polvora e bala nas
patronas. É quanto basta!... Meus senhores, hoje, o general
Junot, depois das seis horas da tarde sae do palacio da Anadia para o
Rato, e vae ser apprehendido. Ah! Ah! Está encerrado o
conselho. Herman enfeitae-vos bem ámanhã. Tereis
de pegar a uma das varas do palio. Magendie não deixeis
apprehender os nossos navios.
Lagarde, mandae saber ao hospital se ha logares vagos na casa dos
orates; os vossos amigos do Conselho Conservador acabam todos
lá. Lunyt, vinde commigo; tenho que vos communicar... isto
é se não receiais que o general Junot
seja apprehendido no
caminho para o largo do Quintella. Ah! Ah!... Senhor conde da Ega
acceita um logar na minha carruagem?... Note que lhe
offereço um posto perigoso.
E o duque saíu precedido por Magendie e acompanhado do conde
e do secretario de estado da guerra e da marinha. Herman e Lagarde, que
ficaram atraz, olharam um para o outro, interrogando-se com a vista e
com o gesto.
―O que devo fazer? perguntou o intendente.
―Nada. É o melhor!
―Mas!...
―Meu querido senhor Lagarde, o homem que ha de prender Junot...
não está de certo no Conselho Conservador de
Lisboa! Redarguiu o ministro rindo. Socegue!
Momentos depois o intendente tocava a campainha, e por ordem sua um
porteiro introduzia no gabinete o sargento Cabrinha e
[126]
o seu assessor Gaspar Preto, por alcunha o
Sapo.
Saberemos a seu tempo o que alli vinham fazer aquellas duas boas almas.
XI
Achilles e Nestor
Em quanto no palacio do Rocio se representava a scena, a que assistiu o
leitor, em uma casa, situada quasi no arrabalde, perto de Campo de
Ourique, no qual trabalham ranchos de operarios sem repouso a levantar
um acampamento militar para as tropas francezas, que Junot recolhe das
provincias, e concentra na capital, iremos encontrar alguns dos
personagens, que deixámos na Ponte de Asseca, n'aquella
tempestuosa noite, que viu as proezas do sargento Cabrinha, a
evasão de Paulo de
Azevedo,
e as
artes diabolicas do astuto lavrador João da Ventosa.
Estava formoso o dia, mas quente. Nem um leve sopro de aragem meneava
as cortinas de caça, que por detraz das quatro janellas da
frontaria substituiam os modernos e elegantes
stores. A casa, de um só
andar, caiada de branco, pintada de verde claro em todas as portas,
grades, hombreiras, e maineis respirava aceio e alegria. Um muro baixo
rodeava o jardim, d'onde as rozas de trepar, as baunilhas, e outras
plantas, subindo pelas paredes,
[128]
vinham debruçar do espigão seus
festões floridos e recendentes.
Um preto quasi anão, grosso, roliço, com a
carapinha semeada de cans, indicio de provecta edade, e brincos de
prata nas orelhas, acabava de varrer, gemendo e rosnando, os tres
degraus de pedra, que desciam da porta da entrada para a viella quasi
deserta.
No jardim a areia, fina e vermelha, das ruas, orladas de buxos
recortados, rangia debaixo dos pés de duas pessoas, que
passeavam, conversando em voz submissa. No angulo, que olhava para as
terras, um mirante entrelaçado de caracoleiros e jasmins,
offerecia em seus bancos de cortiça commodo assento aos que
desejassem recrear a vista, espairecendo-a pelos largos horisontes, que
d'alli se descobriam.
―Não perca o animo nas vesperas da victoria, senhor Manuel
Coutinho! Lembre-se de quem é, e creia mais em si, e em
nós... deixe-me ter tambem um momento de vaidade!... Deus ha
de ser por este reino, e não ha de permittir...
O homem que proferia estas palavras era um velho de aprazivel aspecto,
trajado em habitos ecclesiasticos, inculcando na phisionomia, na voz, e
nas maneiras, a prudencia que dão os annos, e a experiencia
do mundo unida á confiança e ao enthusiasmo
sereno, que nascem do coração, que ardem com
viveza aquecidos pelo calor de uma alma generosa, e que os gelos da
edade nem amortecem, nem apagam.
O sorriso meigo e tranquillo, que lhe franzia os labios, contrastava de
visivel modo com as sombras de profunda tristeza, que escureciam o
rosto do amante de Leonor de Azevedo, e com a expressão de
desalento retratada em suas feições abatidas.
[129]
Quem attentasse, todavia, com mais cuidado no semblante palido do
mancebo, e sobre tudo no fulgor dos olhos, que despediam por vezes
lampejos quasi sinistros, denunciando as intimas
commoções, logo percebia, que, se um assomo
repentino de duvida, ou desconforto podéra abalar por
instantes a energia d'aquella forte vontade, depressa a
reacção a havia de despertar do lethargo, e que
pouco depois, em logar de ser necessario reanimal-a, todo o poder da
persuasão seria pequeno para a conter dentro de limites
razoaveis.
―Deus?!... exclamou Manuel Coutinho, respondendo á ultima
phrase do ancião, e volvendo
ao céu, limpido e azul, um olhar de amarga
desesperação. Não se esqueceu
Elle de nós? Não está com os inimigos
do
seu nome e da nossa liberdade?!...
―Não diga isso. Caia em si. Não vê que
accusa a divina justiça? Deixe-a caminhar...
―Coxa e lenta como a dos homens?!... Senhor bispo! Sou moço
e militar, desculpe-me, mas não posso supportar com
paciencia christã o espectaculo de tantas miserias e de
tantos crimes!... Fala na justiça de Deus?! Aonde estava
ella, quando o Vigario de Christo, arrancado por mãos
sacrilegas da sua cadeira, foi como seu divino Mestre arrastado de
prisão em prisão, de opprobrio em opprobrio, por
turbas de soldados á voz de Bonaparte?...
―Estava no Calvario, como no dia em que padeceu o Redemptor! Continue!
―Ah! E porque dorme ella, quando nações inteiras
choram escravas o seu martyrio, e banhadas em sangue invocam a morte
nos campos talados, nas cidades saqueadas, nos patibulos e nos
carceres, a morte, unica esperança que lhes resta, depois de
roubados os seus altares, de incendiadas as suas moradas,
[130]
de infamadas suas esposas e filhas, e de
dispersas como vil pó as cinzas de seus paes e de seus
avós?!...
―Quem lhe diz, que dorme, e não que aguarda a sua hora?
Quantos seculos durou a perseguição da egreja e a
tyrannia dos Cesares?... E hoje, d'esse colosso romano, que assoberbava
o mundo, o que sobrevive? Ruinas, memorias, e a cruz triumphante
alçada no Vaticano!... Tranquillize-se, conforme-se,
espere...
―Que espere!... Mas elles, os verdugos, os malvados, acaso esperam?
Paulo de Azevedo, duas vezes salvo por nós, escapou por fim
aos laços do infame Lagarde? Está no castello,
bem sabe, e o conselho de guerra, que ha de julgal-o, tem
sêde do seu sangue... Hoje,
ámanhã, de uma hora para a outra, as balas de um
pelotão!... Não tenho animo de o imaginar!...
Vel-o morto, assassinado, e não poder valer-lhe!... E sua
filha, a desgraçada, que já não tem
lagrimas que verter, que sente a todos os instantes no
coração o frio da morte,
ameaçando o que mais ama e estremece n'este mundo?!... E hei
de esperar?! Resignar-me! Deixal-o morrer?!...
―Ha de esperar, sim. Que remedio!... Paulo de Azevedo está
em perigo, porém ainda não morreu...
―É verdade. Mas para o salvar?!...
―Havemos de empregar todas as nossas forças.
―Oh! accudiu o mancebo, cujo desespero rompeu por fim em dolorosa
ironia. Hão de salval-o! Contam assaltar o castello, prender
Junot, e colher Lagarde como um lobo no seu antro?!... Lagarde!... O
auctor de todos os nossos infortunios!... ajuntou em voz cava e com
terrivel expressão. Pelo menos esse não se
rirá impune, festejando o ultimo suspiro da sua victima.
Lagarde pertence-me. Sou o
[131]
seu
juiz, e a minha justiça não coxêa,
nem dorme, como a da Providencia.
―Não blaspheme, e escute, se póde! Os dias da
usurpação estão contados. Quem
sabe! Ámanhã mesmo talvez troquemos o lucto da
escravidão pelas galas...
―Sonho! Irrisão!... bradou Manuel Coutinho saccudindo com
força o braço do seu interlocutor.
Aonde estão os homens para isso? Bastaria o som de um tambor
para os espantar, e Junot conhece-os. Cuida que dou fé
ás proclamações e aos conciliabulos do
Conselho Conservador? Becas, sotainas, velhos fracos, negociantes, e
frades, que tremem da sua sombra, ousarão nunca medir-se com
os soldados de Bonaparte em um combate?!... Senhor bispo de Malaca, se
palavras e balas de papel matassem, então sim, mas!...
―Manuel Coutinho, a dor torna-o injusto. Essas becas e esses frades
são mais fortes, do que os soldados em volta de suas
bandeiras. Lembre-se de que puzemos a cabeça
em cima do cepo, e de que estamos resignados a padecer!...
Não esperava que o escarneo caísse da sua
bôcca sobre nós! Aprende-se mais depressa a morrer
com ruido no meio do fogo e dos alaridos de uma batalha, do que a
aguardar o algoz sobre os degraus do cadafalso?... E ninguem sabe
melhor se elle póde ferir, e se todos estamos decididos a
jogar a cabeça n'esta partida... em que apostámos
honra, bens, e vida pela patria...
―Sei, mas o povo cala-se e obedece. Lisboa chora e supporta. O
reino...
―O reino accordou, e não torna a adormecer. Por isso lhe
disse que estavamos nas vesperas da victoria...
―O reino accorda?! Mas eu ignoro tudo!... Senhor bispo de Malaca!...
Compadeça-se da minha impaciencia. Bem vê! Estou
quasi louco!
[132]
Conte com o
meu braço, com o meu sangue. Ha alguma
esperança?...
―Ha mais do que esperanças, ha factos. Prepare-se! dentro
em pouco o seu posto será nas fileiras de seus compatriotas,
no exercito da independencia. Leia! Adore os designios profundos da
Providencia.
Manuel Coutinho, arrancando-lhe quasi da mão o papel, que
lhe offerecia, correu-o todo em um relance de olhos, e apenas o sentido
lhe penetrou a intelligencia, o sangue em ondas affluiu ás
faces, as pupillas faiscaram, e uma expressão de jubilo, e
de enthusiasmo subito avivou-lhe as feições.
―O norte sublevado!... murmurava lendo, e detendo-se, como se julgasse
impossivel o que lia. O Porto talvez levantado a esta hora!
Traz-os-Montes e o Minho ámanhã, ou depois em
armas!... Os inglezes em Cork, ou já no mar para
desembarcarem!...
E o suor borbulhava-lhe na fronte, e a vista scintillante devorava cada
lettra do escripto.
―Meu Deus! Se isto é sonho, ou delirio meu, fazei que nunca
desperte d'elle.
―Então, filho, disse o bispo sorrindo-se com
mansidão, ainda acha que a justiça divina
coxêa, e dorme? Arrepende-se agora da sua pouca
fé?! Pois bem! Já vê que as becas
e as sotainas ainda valem alguma coisa. O milagre fez-se, e um bispo
é quem ha de no Porto presidir, ao governo do reino
restaurado. Sei-o de certeza.
―Seguiu-se uma pausa curta, durante a qual os olhos e as
mãos do mancebo se elevaram ao céu em um gesto
sublime de gratidão e de crença fervorosa. Depois
a cabeça
inclinou-se, a vista fitou-se no chão, os braços
descaíram e duas lagrimas de dor e de alegria saltaram do
coração, e correram vagarosas pelas faces.
[133]
O bispo contemplava o rosto do amante de Leonor de Azevedo, e traduzia
com a perspicacia dos annos e da reflexão os signaes
fugitivos da lucta das paixões.
Por fim venceu a razão. Manuel Coutinho, como se quebrasse
de repente a prisão, que lhe paralyzava as faculdades,
serenado o semblante, acabou de exhalar em um suspiro a maior
oppressão, que lhe confrangia o peito.
―Fui temerario, senhor bispo. Falei mal de Deus e dos homens! Cegou-me
o orgulho, e deixei-me arrastar pelas loucuras da tristeza. Desesperei
da Providencia no momento em que ella nos accudia!...
―Só Deus é grande, filho! O que somos, e o que
podem os nossos juizos falliveis em presença da sabedoria
eterna?! Arrepende-se? É o essencial. Vamos ao que importa.
Já viu D. Leonor?...
―Não! Faltou-me o valor. O que havia de dizer
áquella infeliz, ferida de tantos golpes a um tempo?... A
imagem do patibulo de seu pae, visão lugubre e incessante,
segue-a por toda a parte. Nos seus olhos leio o desespero e a morte.
Amo-a, senhor bispo, amo-a desde a infancia, como não amei
minha mãe, como não estremeço meus
irmãos, como
não adoro... ia soltar uma blasphemia!...
Enlaçadas desde a meninice pela mesma ternura nossas duas
almas ha muito que não fazem senão uma. O que
ella sente e chora, as suas lagrimas de sangue, caem-me todas, ardentes
como fogo, aqui, dentro do peito, e escaldam-m'o. O véu
branco da noiva será em breve o negro fumo da
orphã, e viuva sem chegar a ser esposa, sei, adivinho, que
um claustro
começará a abrir-lhe a sepultura, aonde ella,
aonde nós havemos de descançar ambos!...
Não sem eu me vingar primeiro!
[134] ―Manuel Coutinho,
deixe a Deus o cuidado de punir! Socegue! A voz da
liberdade, a voz da patria chamam por nós. Seja homem! Seja
soldado! Tem uma espada, não faça d'ella um
punhal, arma de traidores!... Leonor está mais tranquilla,
mais resignada. Vi-a hoje, e já falámos a seu
respeito...
―E ella?!... Disse-lhe?! Espera?!...
―Disse-me tudo e espera. Paulo de Azevedo não morreu, e
havemos de salval-o. Tenha mais fé. Não atormente
com os delirios da sua paixão a existencia propria, e
aquella alma sensivel e melindrosa, que treme que uma
imprudencia, venha abismar no mesmo naufragio os dois amores da sua
vida!... Se não fosse o seu genio arrebatado confiava-lhe um
segredo, que Leonor se não atreveu nunca a dizer-lhe, porque
receia os impetos da sua cholera, mas que havia por outro lado de
aplacar-lhe a afflicção...
―Diga-me tudo, senhor bispo. Prometto, juro vencer o meu genio.
―Veja lá! Dá-me a sua palavra de cavalheiro de
fazer o que eu lhe aconselhar depois?...
―Dou. O segredo?...
―A vida de Paulo de Azevedo não corre por ora risco.
É o penhor com que Lagarde tenta extorquir a D. Leonor uma
promessa de casamento...
―Oh o infame!... E eu aqui de braços cruzados!...
―Se me não me escuta, calo-me. Lembre-se da sua promessa.
―Sou mudo. Sou uma estatua.
―Bom! Saiba, pois, que o intendente da policia imaginou enriquecer um
sobrinho arruinado, dotando-o com os bens da filha de Paulo de Azevedo.
Pediu-lhe a mão em Mafra
[135]
ha mezes, foi repellido, e vingou-se perseguindo o cavalheiro e
sua filha...
―Assim a causa de todas as desgraças sou eu!?... atalhou o
mancebo impetuoso. Leonor e seu pae padecem por amor de mim, e no meio
de seus prantos e do lucto da sua alma aquelle anjo nem uma queixa
soltou ainda contra o algoz da sua vida! Porque sou eu que a torno
infeliz e inconsolavel!... Hei de mostrar-me digno do sacrificio! Hei
de...
―Comece por se mostrar digno das minhas confidencias, escutando-as.
Observou o bispo com um sorriso. Lagarde ameaça Paulo de
Azevedo, tem-lhe a espada suspensa de um fio sobre a cabeça
para vencer a filha; mas no fim é tão interessado
como nós em
conservar vivo o unico fiador de suas esperanças!... O
conselho de guerra não se reune, e mesmo que chegue a ser
convocado, a sentença não passa do papel.
―E Leonor?!...
―Altiva e varonil redobra as resistencias. Mesmo ao pé do
cadafalso de seu pae prefere morrer com elle, creio, a comprar-lhe o
perdão por um preço vil...
―Bem sei! O seu coração envergonha o de muitos
homens!... Como se chama o sobrinho de Lagarde, esse noivo feito
á força, cujo papel,
tão nobre (!) entra como parte principal na tragedia de
nossas desventuras?... accrescentou Manuel Coutinho em voz lenta e
sombria, a que um toque de ironia cruenta avivava a
expressão.
―Porque o pergunta?
―Para ajustar no mesmo dia todas as minhas contas.
―Já se esqueceu da sua promessa?
―Não! Mas!...
―Quando for tempo de o desligar d'ella sem perigo seu e nosso...
então falarei. Agora não.
[136]
Sabe que ámanhã, depois da
procissão
do Corpo de Deus, se esperam grandes novidades?
―Aonde?... Se soubesse a minha impaciencia?!...
―Em Lisboa. Aonde queria que fosse?...
―E contam commigo?... Qual é o posto que hei de occupar?...
Asseguro-lhe que só por cima do meu cadaver...
―Sei muito bem. Guarde para si a noticia, vá ver Leonor,
demore-se pouco, porque ella espera uma visita, ou antes duas...
―Visitas!... De quem?...
―Segredo de estado. Depois saberá...
―Porém!...
―Não insista. Se podesse dizer-lh'o, cuida que me calava? A
proposito! Se por acaso estiver lá em cima, quando elles...
digo, quando as visitas chegarem, jura pela sua honra obedecer em tudo
a Leonor, e voltar aqui pela escada do meu gabinete?...
―Mas!... Tantas precauções fazem-me suppor!...
―Supponha o que quizer. Jura?...
―A minha confiança na sua virtude é tal, que de
olhos fechados me entrego em suas mãos. Juro!
―Não ha de arrepender-se. Sem isso não o deixava
subir...
―Mas padre, mas senhor bispo! Essas visitas são
então de inimigos?...
―Talvez! E então?! Cobre-os, quem quer que sejam, o tecto
d'esta casa, recebo-as como hospedes, é quanto basta,
julgo!...
―Oh! Dava metade da minha vida por adivinhar...
―O caso não merece o sacrificio!... Deixe instruir o
processo, deixe informar os juizes, e quando lhe chegar a sua vez...
nós o chamaremos.
―Obrigado! Como instrumento cego?!...
[137] ―Não.
Como um coração generoso, como
um amigo seguro, porém... perigoso. Estamos perdendo tempo!
Leonor espera-o. Nem uma palavra do que se conversou aqui, e sobre tudo
recorde-se do que jurou...
―Hei de cumprir a minha palavra como homem de honra, mas depois, sr.
bispo!...
―Depois... O que Deus quizer! Dá o mundo tantas voltas em
poucas horas, Manuel Coutinho, que nos deitâmos rapazes, e
ás vezes accordamos velhos. Deixe andar os homens e as
cousas. Creia no tempo. É grande medico. Adeus! Vou tractar
de uma doença, que dá maior cuidado... Portugal
está enfermo e não póde esperar.
E despedindo-o com um sorriso e um aceno de mão cheio de
bondade, o velho prelado entrou para um aposento terreo, cujas portas
de vidraças abriam sobre o jardim, em quanto o mancebo
voltou em busca da escada de pedra, que subia para as salas do primeiro
andar.
XII
Arcades ambo!
―Está certo do que affirma? Veja lá!... A
policia não gosta de
representar papeis tristes, e um erro nas circumstancias actuaes
póde ter consequencias... Repita! Viu os homens? Sabe o seu
intento?...
―Vi, sim senhor! Largava a falua quando eu cheguei, e por um triz me
não apanham!... Sempre curti um medo! A gente não
ganha para sustos...
―Está bom! E como soube que vinham para a
revolução, que os inimigos de sua
magestade o imperador e rei tramaram para ámanhã
durante a procissão do corpo de
Deus? Olhe bem! Não se allucine...
―Não ha engano, não senhor. Aqui trago quem
ouviu tudo. Gaspar, chega-te! S. ex.ª dá
licença. Dize para ahi o que saccaste do bucho
ao alarve do Paulo Penedo, e o que ouviste na Ponte da Asseca.
―Ah! Este homem ouviu?!... Bem! Então que fale.
O dialogo, que estamos escutando, tinha-se travado, como o leitor
já percebeu de certo,
[139]
entre o intendente Lagarde, o sargento
Cabrinha, e o seu assessor Gaspar Preto.
Os honrados malsins, farejando a denuncia lucrativa, corriam de Villa
Franca, aonde se haviam transportado a cavallo, e traziam nos alforges
nada menos do que uma boa conspiração para
attrahir sobre si a chuva de ouro, com que o ministro francez costumava
recompensar os serviços relevantes dos seus agentes.
Ainda que o sargento desempenhasse o papel principal, manda a verdade
que se diga, que a gloria do descobrimento pertencia de direito
ás longas e afiadas orelhas do seu digno assessor.
Fôra o
Sapo,
apezar de meio homiziado depois da prisão de Paulo de
Azevedo, devida, como sabemos, á sua traiçoeira
actividade, quem, espreitando os passos do Antonio da Cruz e do
João da Ventosa, e as idas e voltas nocturnas dos
embuçados, que frequentavam a casa arruinada da Ponte da
Asseca, principiára a desconfiar de que as ruidosas
cavalhadas das almas do outro mundo nas salas desertas do palacio
encobriam planos politicos.
Para melhor se certificar, provou Gaspar, que não
roubára a alcunha por que era conhecido.
Cozeu-se, como o
Sapo, com as pedras
caídas, que do lado da porta do João da Ventosa
pegavam com o tapume, por onde elle introduzia as visitas, segundo
vimos atraz, nos quartos do primeiro andar, penou frios e fomes,
tiritou de mêdo mais de cem vezes, mas por fim conseguiu o
seu fim.
Seis dias antes da festa do Corpo de Deus, ás onze horas da
noite, por um luar esplendido, colheu em flagrante tres dos fantasmas,
que tanto desejava avistar, e teve a rara felicidade de os conhecer a
todos.
[140]
Viu-os entrar. Ficou firme no seu posto. A divindade protectora dos
mexericos segredava-lhe que se os olhos tinham alcançado
muito, os ouvidos ainda podiam obter mais. A sua paciencia merecia
premio, e o demonio, cujo era, não lh'o negou.
Quando se ía já sentindo quasi
inteiricado de jazer enroscado, como a serpente, os
conspiradores saíram. Principiava a aclarar a madrugada. Um
d'elles, o capitão de milicias de Rio Maior, dotado de uma
voz de baixo profundo, voltando-se para os outros, disse-lhes:
―Façam-me uma fogueira bem vistosa lá pelos
sitios de Leiria, e assem-me n'ella esses hereges e jacobinos, que os
de aqui ficam por minha conta! Não havemos de ser menos que
os de Bragança e Villa Real! Viva o principe regente, nosso
senhor!
Os poderes do orgão vocal do herculeo capitão
eram tão extensos, que este desafogo innocente do seu
patriotismo seria assaz perigoso, se a solidão e a noite o
não cubrissem. Entretanto os amigos, menos intrepidos,
recommendaram-lhe prudencia, e o gigante, docil como uma
creança, submetteu-se, encolhendo os hombros, a estes
conselhos timidos. O morgado de Penin e outro cavalheiro apartaram-se
então um pouco. Quiz o acaso que fosse para o lado,
justamente, em que o virtuoso Gaspar se occultava; e o terror do malsim
subiu tal ponto, que esteve um instante para o trahir!
Vendo de repente o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o
Manuel da Aramanha, o resurgido, tão proximos do seu covil,
que bastaria um d'elles extender o braço para o agarrar,
não foi senhor de si. Vinham atraz dos personagens
principaes, e tudo inculcava que não vinham por curiosos. O
Sapo, frio de neve, e todo um
calafrio de medo, ennovellou-se
[141]
n'uma bola para occupar menos espaço, e fez a Nossa Senhora
da Saude a promessa solemne de uma missa e de uma perna de
cêra se permittisse, que nenhum dos cinco désse
com elle alapado n'aquella toca, seguro de que, se escapasse por
milagre ao alentado varapau do ex-assassinado fazendeiro, a bala da
espingarda, que o moleiro trazia ao hombro, não o erraria de
certo em nenhum caso.
Os conspiradores estavam longe de se supporem espiados, e traziam
outros cuidados.
Voltando-se para Antonio da Cruz, o morgado disse-lhe:
―Já sabes! No dia de Corpo de Deus has-de estar em Lisboa.
És lá preciso!
―Se meu amo mandar!
―De certo. Mas sei que manda. O Paulo Penedo não tarda com
as ordens... E você, sôr João da
Ventosa, deixa-se ficar por cá, ou acompanha tambem o
Antonio á côrte?
―Eu, sôr morgado, lá por ir, ia; mas assim sem
saber o que a gente lá vae fazer?!...
―Ora! Vae dar um passeio, vêr a procissão, que se
despovoam aldêas e logares para accudir a ella... e
depois!... Adivinha-me este dedo, que o seu cajado talvez
não fique por lá parado!... Gosta dos
francezes?...
―Como o diabo da cruz, senhor! Pelo amor que lhes eu tenho... e o bem
que me fizeram!...
―Pois vá, homem, que póde ser que não
perca o seu tempo. Ás vezes d'onde menos se espreita sae
coelho...
―V. s.
a que diz isso!... Está bom.
Não
é preciso mais. Senhor mandar, preto obedecer!... E tu,
Antonio Simões, estás ahi sem atar nem desatar?
Porque não vens com o Antonio e commigo á festa?
Tens medo dos francezes, homem?
―Salva tal logar, sôr compadre! Mas que
[142]
quer você que eu vá fazer
á
côrte pregado no meio das ruas como uma estaca? Com mil
cobras? Se por lá bispasse o alma ruin do sargento, ou
aquelle excommungado
Sapo, ainda,
ainda; mas qual! sumiu-se a terra com elles!...
―Qual sumiu! Aposto um almude dobrado contra duas canadas singelas em
como as duas osgas estão pegadas em alguma parede de
Lisboa...
―Veja lá, sôr compadre! Se tem palpite n'isso
é outra cousa: pernas a caminho. N'um sopro deito o
albardão á égua...
Não morro quieto se não racho de meio a meio
aquelles dois patifes.
―O
Sapo fica por minha conta,
atalhou o moleiro. Prometti-lh'o e hei de cumprir. Você,
sôr João, que me diz da figueira
de José Lopes, alli em cima, no alto do logar?
―Ora essa! Que é boa arvore. Porque?...
―Pois juro-lhe que dá figos de enforcado para o anno.
Antonio me não chame eu se não pendurar do
pescoço em um dos ramos o judas do Gaspar Preto antes do dia
do natal!...
―Você sempre tem cousas, sôr Antonio!
―Vá com o que lhe digo. De mais, pouco ha de viver quem o
não vir.
―Então, rapazes? atalhou o morgado, que estivera
conversando a meia voz durante o colloquio dos tres. Quem vae a
Lisboa?...
―Saberá v. s.
a que nós
todos tres!
―Ora assim é que é. Gosto de os vêr de
feição. Bebam por lá um copo, ou dois,
de vinho á minha saude, e outro á do principe
regente, nosso senhor, o qual, querendo Deus, muito cedo teremos
n'estes reinos para gloria da patria e da santa religião!...
E o morgado, assim como o
E o morgado, assim como os ouvintes, desbarretaram-se com toda a
reverencia como
[143]
bons catholicos
e vassallos fieis e respeitosos.
―Adeus, Antonio, proseguiu. Recados a teu amo! Diz-lhe que
nós cá estamos, e que o que fêr
soará.
Sôr João! Volte depressa. A caldeira
está ao lume, ha de ferver, e póde ser necessaria
a casa...
―Quando v. s.
a mandar, sôr morgado.
―Olhe! Se no meio da procissão, ou depois, houver algum
barulho, não me metta as mãos nas algibeiras.
Dê-lhes com alma, desanque-me
os jacobinos moa-m'os como farinha, hein?...
―Vá v. s.
a descançado.
―Vou! Vou! Vocês não deixam mal o Ribatejo.
Até á volta. São horas.
Os tres de fóra foram buscar os cavallos, e d'ahi a pouco
desappareciam a galope pela Ponte da Asseca. O lavrador e os seus
amigos recolheram-se tambem logo. D'ahi a instantes resonavam a somno
solto.
Quem não tinha vontade de dormir era o
Sapo, o qual, arrastando-se do
esconderijo, fulo de terror, respirava a custo, estirando os
braços, mais morto do que vivo.
A ameaça do Antonio da Cruz soava-lhe nos ouvidos como um
dobre funebre, e por vezes sentia já em
imaginação os
gorgomillos tão apertados como se lh'os estreitasse a
promettida e fatal corda!
A reputação merecida do moleiro de não
quebrar palavra dada fazia-o de mil côres, e a voz da
consciencia, que só o susto tinha o condão de
accordar de véras, advertia-lhe, que provocára,
não uma, porém cem
vezes, o castigo.
Não vendêra elle ao sargento o segredo do asylo em
que se homiziava Paulo de Azevedo, abusando da hospitalidade de Antonio
da Cruz, o qual, tendo-o poupado, o julgára grato?
Não fôra causa da prisão do Cavalheiro
[144]
de Mafra, da magoa de Leonor, e do
desespero de Manuel Coutinho? Agora mesmo, não
colhêra um segredo, que podia custar a vida e a liberdade a
tantas pessoas?
Gaspar era logico. Convencido de que a sentença proferida
era irrevogavel, tractou de se eximir aos seus rigores pelos meios
usuaes, isto é, accumulando novas
traições.
Coxeando e rastejando partiu para a villa, aonde amanheceu á
porta do sargento, cuja cholera exacerbada pela certeza de ter servido
de alvo á irrisão na famosa noite dos fantasmas,
soube artificiosamente exaltar. O
Sapo
acabou de o petrificar, narrando-lhe as ameaças do Antonio
Simões da Aramanha, e o plano, interceptado por elle, de
grandes tumultos em Lisboa durante, ou depois da procissão
do Corpo de Deus.
A noticia valia o seu pezo em ouro, e Cabrinha decidiu-se a ser em
pessoa o portador d'ella.
A chegada de Paulo Penedo, emissario de Manuel Coutinho para chamar o
moleiro em seu nome á capital, confirmou as
informações do agente. Gaspar, a troco de
pão, queijo, vinho, arrancou sem difficuldade ao camponez
boçal quanto elle vira e ouvira do patrão em
Lisboa. Separou-se, deixando-o convencido de que o amante de Leonor de
Azevedo não tinha mais leal amigo.
Depois d'esta ultima proeza, os dois malsins começaram a
jornada até Villa Franca, aonde haviam de embarcar, o
sargento ardendo em impaciencia de cingir na fronte os louros, e de
sepultar no bolso as peças de 7$500, que Lagarde
não cisava aos que o serviam zelosamente: o
Sapo, cujas vigilias eram cada noite mais
tormentosas, acompanhando o patrono a Lisboa, primeiro para se afastar
o mais possivel da figueira do alto do Valle,
[145]
depois, para ter o gosto de vêr
mettidos na enxovia do Limoeiro, graças á sua
honrada lingua, o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o
Antonio Simões.
Já os ouvimos confessar ao intendente da policia, que por um
instante não caíram na bôcca
do lobo em Villa Franca, e encontrando-os no gabinete do ministro, no
exercicio de suas funcções, convem notarmos, que
tinham sido activos no desempenho da sua missão, como homens
fieis aos interesses proprios, e devotos da causa que
abraçavam.
Lagarde escutára com attenção o
depoimento lucido e conciso, que o
Sapo, sem
trepidar, lhe recitou, como licção aprendida de
cór, admirando a prodigalidade, com que a natureza
favorecêra este ente quasi disforme e rachitico, que,
encarado á primeira vista, não promettia,
senão fraqueza e estulticia.
Depois de tomar algumas notas, consultando um, ou dois papeis, e
tornando-os a encerrar nas gavetas do bofete, o intendente conservou-se
silencioso por momentos, scismando profundamente.
―A conspiração existe, dizia elle comsigo. Aqui
estão as provas d'ella; mas quem ha de persuadir o duque, e
vencer o seu amor proprio? A leitura d'aquelle maldito plano
atrazou-nos!... Não importa. Deixal-os rir! A mim compete-me
velar para que riam sem perigo.
Virando-se depois para os agentes, que aguardavam calados as suas
ordens, acrescentou:
―Sargento! Estamos na pista de um trama complicado. Fique em Lisboa
com este homem, e procure hoje de tarde o meu secretario Loisy. Elle
lhe dirá o que ha de fazer.
Estas palavras, e o gesto do ministro avisaram os dois, de que a
audiencia estava terminada.
[146]
Saíram logo, mas ainda Lagarde não tinha tido
tempo de percorrer com os olhos um papel, que acabavam de lhe entregar,
abriu-se uma porta particular, e entrou no escriptorio um mancebo, de
rosto jovial, vinte oito annos de edade, e figura esbelta,
realçada pelo uniforme de official de cavallaria, trajado
com garbo. Era seu sobrinho Armand de Aubry.
XIII
Dois parentes
O intendente accolheu o recem-chegado com um sorriso, e extendeu-lhe a
mão com amizade. Aubry apertou-lh'a sem ceremonia, encarou-o
com ar malicioso por momentos, e disparou-lhe depois na cara a mais
longa e estrepitosa risada, que de certo tinham ouvido aquellas
paredes, desde que a Santa Inquisição reinava
dentro d'ellas.
―Ah! Ah! exclamou fazendo esforços em vão para
se reprimir. Que duas figuras unicas, que duas corujas agoureiras acabo
de encontrar no corredor!... Pelo que vejo a procissão de
ámanhã leva anjos, demonios, serpentes, e
até estafermos do mais curioso feitio. Estes dois
são magnificos. Sobre tudo um... o mais baixo. É
admiravel!
―Porque? atalhou Lagarde.
―Porque, meu tio? A pergunta é rara! Aquella
cabeça de anão, aquella cara de papel, e os
saltos de rã da perna coxa promettem á festa um
palhaço soberbo. Por quanto
[148]
se aluga aquelle senhor? Juro-lhe que vale
quanto pesa... em cobre. Dou-lhe os parabens! Foi um achado. Posso
saber o que elle custa á policia de sua magestade o
imperador e rei?!...
E o official dizendo isto ria como um louco, afagando o bigode louro, e
saccudindo o pó das botas de montar com a ponta do junco
flexivel, que trazia na mão.
―Não custa barato, Armand! redarguiu o intendente,
sorrindo-se tambem. Aquelle anão, assim mesmo contrafeito e
ridiculo como te pareceu...
―Esse
pareceu é
delicioso, meu tio! Continue. Sou todo ouvidos.
―Vale mais do que muitos homens guapos e bem postos.
―Quem tal diria! Então é um diamante bruto?...
―Talvez. Dentro em pouco vel-o-has chefe...
―Chefe? Muito bem. E de que tenciona invental-o chefe? Acaso a policia
conta distraír os portuguezes de suas saudades, armando
tablados ao ar, e escripturando polichinellos?
―Não! redarguiu Lagarde um pouco enfadado dos motejos do
sobrinho. A policia aspira a funcções mais
modestas. Lisboa, esta cidade immunda como as do Oriente,
começa já a ser outra cousa... As ruas...
―Tá! Tá! Meu tio. Esse elogio dos
serviços da policia, na sua bôcca é
capaz de abrandar as pedras... das mesmas ruas. A proposito!
Denuncio-lhe os cães vadios. Resistem ás ordens
como janizaros. Hontem á meia noite estivemos em perigo de
sermos devorados, eu, e o meu cavallo! Que morte para um official do
exercito imperial!... Diga-me: o anão, de que
tractâmos, será nomeado executor da alta
[149]
justiça contra as matilhas
famintas? A cara do personagem é de um verdadeiro Herodes, e
não desmente o officio. Puah! O maldito sempre deixou aqui
um cheiro patibular!...
―Armand! Não te cansaste ainda?!...
―Oh! Cuida meu tio, que os assumptos recreativos se encontram a cada
canto n'esta boa terra? O que admiro mais é a sua
longanimidade. Parece incrivel! Aturar fechado n'este gabinete dias,
semanas, e mezes, entre cachos de malsins e grinaldas de larapios
aposentados! Santo Deus! Que emanações
asquerosas. É de engulhar até o estomago a um
tubarão!...
―Ainda! Armand, o que sinto mais, do que a triste sociedade, que sou
obrigado a admittir...
―Diga tristissima, meu tio, que não diz senão a
verdade. Os melhores dir-se-íam
desenterrados das enxovias, ou das galés...
―Então! O que deploro, mais do que isso, é essa
tua leviandade incuravel. O homem, que estás escarnecendo,
prestou-nos a ambos um serviço relevante...
―Não sabia. Pelo que observo o precioso aborto accumula as
funcções de palhaço
ás de nigromante? Faz magia branca nas ferias. Excellente!
―Ah, Aubry! Quando te verei um momento serio e preoccupado dos deveres
da tua posição?
―Quando uma bala me varar o peito, ou a cabeça. Se
não levasse a vida a rir e a folgar, entre dois amores, um
que hoje foge para volver ámanhã, outro que
arrebata e embriaga; o amor dos sentidos e o amor da gloria; cuida que
valia a pena de a arrastar de desengano em desengano, de revez em revez
até aos rheumatismos, e aos defluxos asthmaticos da velhice?
Por alma de meu pae! Nasci e hei
[150]
de
acabar com esta sina. Sou assim feito. Não tem remedio! Mas
apezar de rir muito, de chorar pouco, e de preferir o lado comico ao
aspecto lugubre da existencia, ajuntou, tornando-se um tanto grave,
creia que este coração, facil em se
alvoroçar com a promessa de uns bellos olhos pretos, azues,
ou verdes, a côr é indifferente uma vez que sejam
formosos (!), é incapaz de trahir a honra e a amizade, ou de
se aviltar por nenhum preço...
―Bem sei. Por isso te estimo. Desejava-te só menos
estouvado. Não póde ser?
accrescentou sorrindo-se involuntariamente do gesto negativo do
sobrinho. Paciencia! Escuta-me. Aquelle homem, que saiu d'aqui ha
pouco... Não rias! ao qual ignoro porque pozeram a alcunha
de
Sapo...
―Quem seria o philosopho que tão bem chrismou o reptil?
Preciso abraçal-o! O
Sapo?! Mas é
verdadeiramente um sapo o seu homem, meu tio! Bom! Não se
agaste. Já me calo. Passo a estar serio e aprumado como uma
estatua... Diga!
―Aquelle homem... foi quem descobriu o asylo de Paulo de Azevedo, e
entregou á policia a sorte do cavalheiro, do qual depende...
―Cuidei que lhe tinha escapado! interrompeu o mancebo. Pareceu-me
ouvir-lhe dizer que duas vezes...
―O tivemos nas mãos, e que nos escorregou por ellas,
zombando de nossas diligencias? É verdade. Não te
enganaste. Mas á terceira fomos mais felizes. Estava
escondido aqui mesmo em Lisboa, e mandei-o prender... O sargento
Cabrinha, um dos meus agentes mais activos, e este
Sapo, que ainda
promette ser melhor...
―Ah, meu tio, fale-me de tudo menos d'esse miseravel. Deploro
vêl-o convertido em Plutarco de similhante monstro...
[151] ―Pois sim. Mas
attende-me. Lavemos agora um pouco a nossa roupa suja
em familia. O que te resta dos bens de tua casa?...
―Dividas e credores, replicou Armand com um sorriso stoico sublime.
―Nada mais?...
―Acha pouco? Dividas desassocegadas e credores inquietos!... Tenho com
que me entreter toda a minha vida.
―Um!... Pois de todas as propriedades, que herdaste, mobilias, ouro,
prata... não possues absolutamente nada?!...
―Nada!... O ouro a que posso chamar meu... e assim mesmo só
por uma audaciosa figura de rhetorica, porque o não paguei
ainda... trago-o aos hombros... são as dragonas!
―Ah! Então o naufragio foi completo!?... E com que contas
para o futuro?...
―Essa é boa! Conto com os meus vinte e oito annos, com esta
figura soffrivel, com a saude á prova de todas as fadigas,
que devo á minha compleição, e que tem
sido o
desespero dos medicos, e com o acaso de uma bala, ou de uma proeza, que
me eleve em patente, ou me deixe no campo como muitas outras buxas de
canhão, que valem menos do que eu.
―És louco!...
―Sou philosopho!
―Talvez! Mas dize! Eras filho unico. Teus paes deixaram-te...
―A sua benção e alguns punhados de escudos nas
gavetas. Que quer, meu tio?! As Aspasias de París, as
Sylphides do corpo de baile, e as Musas da opera vendem os sorrisos
caros. Não imagina!... E sorriram tanto, e com tal
graça para mim, que as mãos abriram-se-me
sem as sentir... Quando caí na realidade... sabia de
cór todas as piruetas e saltos de Vestris, todos os passeios
e casas de
[152]
pasto de mais fama, e podia
dar licções de gosto e de ouvido a todas as
platéas civilizadas... Mas nem um real no bolso para
afugentar o demonio! Encolhi os hombros e fiz-me soldado.
―Bem sei. Porém a herança de tua tia?!...
―Santa e excellente velha!... Saltam-me as lagrimas dos olhos ainda
quando me recordo d'ella! A herança da boa tia veiu nas
poucas horas de melancholia, que tenho penado em minha vida.
―Isso não explica!... Lembro-me de ter ouvido falar em
terras...
―Oh, de certo. Um bom par de geiras... Eram muito fracas. Vendi-as por
economia.
―Mattas e pinhaes!?...
―Magnificos!... Eram muito sombrios. Troquei-os a dinheiro para me
não entristecerem.
―Uma casa de residencia vasta com jardins?...
―A casa era humida e constipava-me. Os jardins precisavam de muito
amanho, e não apparecia jardineiro. Desfiz-me da casa e dos
jardins.
―Uma mobilia antiga, mas rica?!
―Custava-me muito caro o transporte, cedi-a.
―Percebo!... N'esse caso estás?...
―Como diz o livro de Job: Nú saí do ventre de
minha mãe, e despido de bens da fortuna descerei
á cova.
―Admiro o teu sangue frio. Não te parece já
tempo de assentar, e de mudares de vida...
―Conforme a mudança! Saltar da agua fria para
caír no fogo, não sei se é
peior.
―Armand! É necessario cazares, e que o dote de tua
mulher...
―Chegue para remendar a capa esburacada do mendigo?!
[153] ―Mais do que
isso. É preciso que dê para uma capa
nova.
―Não digo que não. Mudarei ainda de pelle. Estou
prompto.
―Estimo. Falei-te na filha de Paulo de Azevedo...
―É moça?...
―Dezoito annos.
―Feia como uma herdeira, ou desastrada como as morgadas?...
―Não. Linda, airosa, e gentil como uma parisiense.
―Santo Deus!... E esse thesouro, essa fada, mimo de todas as
perfeições, guardou
até hoje o seu coração livre
á espera de
um perdulario, de um estouvado, que nunca viu?! Meu tio! Sabe que o
unico ridiculo, de que tenho medo, é da sorriada merecida de
Jorge Dandin?...
―Repito. É uma menina séria, prendada, e
espirituosa...
―Não duvido. Antes isso! A ingenuidade de Agnés
sempre me assustou muito! Essa menina... Mathilde?... Clara?...
―Leonor! Leonor de Azevedo...
―É verdade! Leonor!... Essa Leonor não estava
justa a cazar com um cavalheiro, tambem fidalgo, official,
capitão, creio eu, do segundo regimento do Porto, licenciado
depois do tumulto das Caldas?... Se não erro, elle
chama-se?...
―Manuel Coutinho! accudiu o intendente. Não houve nunca
promessa de cazamento, enganas-te. As duas familias davam-se muito. O
que poderia existir era algum namorico, alguns requebros naturaes...
innocentes...
―Sim! Sim! Muito innocentes. Sabe que nunca me resolvi a
calçar sapatos de defuncto, e que de sapatos de vivos gosto
ainda menos?... Uma pergunta, meu tio?... Hei de
[154]
ser sempre noivo por
procuração? Conta cazar-me sem eu vêr
nunca minha mulher... nem até no oratorio da policia?...
Lagarde piscou os olhos, assoou-se com ruido, e coçou depois
ao de leve a ponta do nariz aquilino. Eram os gestos, que n'elle
inculcavam hesitação e perplexidade.
―Cazares sem vêr tua mulher?! exclamou rindo constrangido.
Pelo amor de Deus! Quem te metteu isso na cabeça?
―Cuidei! Como os principes cazam pelos retratos...
―Has de vêl-a, adoral-a, e agradecer-me de mãos
postas a escolha.
―Estou certo, meu tio. Porém!... Como o meu voto me parece
essencial desejo dal-o em consciencia. Quando me apresenta a D.
Leonor?...
―Um dia cêdo! Ámanhã talvez! redarguiu
o intendente, agitando-se, e estorcendo-se na cadeira, como se o
assento fossem brazas.
―E porque não ha de ser hoje. Sou tão
curioso!...
―Hoje! Sem a avisar! De mais tenho que despachar... Espero...
―O honrado sargento, ou o palhaço talvez?!... Vamos.
Decida-se. Hoje, ou nunca!
Alea
jacta! como nós
diziamos no collegio. Os bons palpites aproveitam-se. O matrimonio
é um grilhão de ferro coberto de
flôres... Quem sabe se ámanhã eu terei
medo da felicidade conjugal, e me arrependerei? Seja docil! Deixe-me
vêr hoje esse portento encoberto...
―Pois bem! Faça-se a vontade ao teimoso, contestou Lagarde,
depois de alguns instantes de reflexão, tirando o relogio do
bolso, e consultando-o. São dez horas. Ao meio dia aqui te
espero.
―Viva o melhor dos tios! bradou Armand,
[155]
rindo, e abraçando-o. Diz o
rifão: em quanto venta molha a véla! Quero remar
com a maré. É verdade que na Ponte da Asseca, em
um casarão arruinado, apparecem aventesmas, e que um
troço de milicianos debandou por uma noite de tempestade,
fugindo de um fantasma?...
―Porque?
―Nunca tive a honra de conversar particularmente com nenhum espectro,
e desejava certas informações sobre o paraizo e
sobre o purgatorio...
―Os fantasmas da Ponte da Asseca sabes o que são? accudiu o
ministro agastado. Um bando de conspiradores, que a policia vae
desmascarar e punir.
―Jesus, que ares tragicos, meu tio! Pela sua vida não
represente de tyranno. O papel cai-lhe mal. Dê-me essa
missão a mim. Adoro as aventuras, e Cazote é o
meu idolo... Quem sabe se irei lá encontrar algum diabo
amoroso?
―Pois bem, irás! atalhou Lagarde sorrindo. Mas
já te previno. O que lá acharás
são morgados lorpas, e rebeldes endurecidos. Agora adeus.
Não te esqueças. Ao meio dia em ponto!
―Ao meio dia em ponto! respondeu o sobrinho, saudando-o, e saindo.
XIV
Amor
Quando Manuel Coutinho assomou aos umbraes da porta do aposento,
acabava Leonor de lêr uma carta de seu pae, escripta com a
firmeza de animo, que tornava tão nobre o caracter do velho
cavalheiro. Da sua prisão do castello, com a morte eminente
e a vingança de poderosos inimigos suspensa sobre a
cabeça, falava Paulo a sua filha com o mesmo socego, com que
o faria solto e desaffrontado. Nem uma queixa! Nem um indicio de
tristeza, ou desalento! Ausente em uma viagem longa, ou
distraído em uma partida de caça,
não tractaria com indifferença mais soberana as
vigilias e amarguras do carcere.
Dizia-lhe que o seu processo, apressado a principio pelo odio, agora
coxeava, retido por mão occulta. Zombava da vigilancia, com
que era guardado,
attribuindo-a
á scena comica da sua evasão no palacio da Ponte
da Asseca.
Perguntava-lhe por Manuel Coutinho, e pedia-lhe que recommendasse ao
mancebo muita paciencia e conformidade, e
resignação para atravessar os dias dolorosos do
captiveiro.
[157]
Finalmente,
lembrava-lhe em estylo risonho alguns episodios de suas
peregrinações pelas aldeias e casaes do Ribatejo,
assegurando-a, de que o descanso do corpo e a serenidade do espirito
iam obrando n'elle o prodigio de o transformarem, de seco e agil, em um
ente mais obeso, mais corpulento, e mais oleoso, do que fr. Raymundo,
frade notavel em Mafra pela estatura agigantada, pela estupidez, e pela
voracidade.
Aonde a sua ternura extremosa se denunciava, e a alma stoica deixava
perceber a ferida dos espinhos da saudade, era nos conselhos dados
á donzella, e nos gracejos constrangidos, com que a motejava
ácerca da alvura da tez e das rosas pallidas, tão
festejadas no seu rosto, deplorando que o sol, as geadas, e a vida
alpestre de uns poucos de mezes as tivessem queimado! Rogava-lhe
ironicamente, que aprendesse de alguma dama franceza o segredo
d'aquella frescura artificiosa, que só ellas sabiam fabricar
para engano da edade, e conservação de
successivas
gerações de adoradores.
Apezar do tom jovial, a carta era mais triste do que se respirasse
sincera melancholia. Leonor, avaliando o coração
paterno pelo seu, sentiu correrem-lhe as lagrimas e empanar-se-lhe a
vista á proporção que a
ía lendo. Dotada, tambem, de indole varonil e soffredora
adivinhava facilmente as apprehensões e os tormentos, que
aquellas lettras escondiam, e quasi revia por baixo d'ellas as nodoas
do pranto suffocado por uma vontade forte.
A donzella recostava-se em uma marqueza de palhinha. O braço
nù do cotovello para baixo descansava em um velador entre
duas jarras de porcelana cheias de rozas e madresilvas. Duas portas de
vidraças abertas sobre o jardim, para onde se descia por
escada de poucos
[158]
degraus deixavam
entrar a luz em jorros. A sala era atapetada de esteira, e estava
ornada de alguns paineis de paizagem, pendentes das paredes estucadas.
Nos vãos das portas duas gaiolas douradas encerravam aves
africanas de vistosas plumagens. Em cima do marmore de um
tremó, entre flores, jazia esquecido o livro, que tivera na
mão pouco antes de rasgar anciosa o sobrescripto da carta,
que viera interrompel-a. A um lado, no bastidor, sobre a tela repregada
notava-se ainda a agulha picando a talagarça na petala
delicada da ultima flor, cujo matiz deixára em meio. Um
vidro de peixes, de cores cambiantes, enfeitava a mesa fronteira ao
tremó e ao espelho.
―A filha de Paulo de Azevedo vestia de escuro sem
affectação. Um corpete, dos que então
se chamavam
Mimosos, de seda preta com
guarnições singelas, e cintura curtissima,
desenhava mal a rara elegancia d'aquelle corpo esbelto, moldado pelas
graças. Uma fita larga, com laço e pontas caidas,
unia-o á saia de tafetá de cauda alta, orlada com
uma barra de requifes; mas a saia, segundo a moda do tempo,
não era menos desairosa do que o corpete; e n'esta nossa
epocha de crinolines e balões de verga de aço a
magreza da roda, e a estreiteza do córte, que a cingia aos
membros quasi a ponto de accusar de mais as fórmas, faria
estalar de riso um conciliabulo de modistas e petimetres. Uma singela
cruz de coral, encastoada em ouro, e suspensa de um fio de aljofres
debruçava-se sobre o collo de neve, que um poeta sem
exageração denominaria verdadeiro collo de
garça. O penteado, não menos singular para os
nossos dias, que o feitio do trajo, era todo de anneis irregulares,
acompanhando a testa em figura quasi de diadema, e rematando no alto da
cabeça por uma flor natural cravada nas tranças.
Sapatos
[159]
de setim de entrada muito
baixa, cobriam ou antes descobriam o pé mais breve e mais
lindo, que um estatuario poderia desejar para modelo das extremidades
de uma Hebé. A manga do corpete desnudava todo o
braço, que na pureza e correcção das
linhas
não desmentia a formosura do semblante, o enlevo namorado
dos olhos, e a expressão nobre, quasi altiva, e apesar
d'isso ingenua e suave da physionomia.
Vendo-a assim reclinada, com os atomos dourados do sol a brincar-lhe
nos cabellos, com a meiga pallidez, que um carmin fugaz e transparente
apenas córava por momentos, e com aquella melancholia
tão feiticeira pousada na vista, perdida com o pensamento
bem longe de si e de tudo o que a cercava, um pagão, se a
contemplasse de repente, hesitaria entre Juno e Diana, mas de certo
não equivocaria sua belleza casta com os encantos mais
faceis da lasciva deusa de Paphos.
Manuel Coutinho, que a amava, que desde a infancia a vira crescer em
annos e attractivos, deteve-se suspenso de
admiração, não
se atrevendo a despertal-a do enlevo com o ruido de seus passos. Mas o
coração tem sentidos mais subtis, que os
ordinarios. Sem o vêr, sem ter percebido a sua chegada,
Leonor adivinhou que era elle, e a sua alma, fugindo á dor,
logo voou a encontral-o. Um suspiro á flor dos labios, um
sorriso em que a magoa e o jubilo se fundiam, duas lagrimas congeladas,
tremendo nas pestanas, disseram ao mancebo, que o sonho se
quebrára, e que a amante, baixando das illusões
do devaneio, volvia ás realidades doces, mas bem tristes, da
existencia, e da paixão.
Leonor olhou para elle. N'este simples volver de olhos disse tudo,
calados os labios, mas cheia de luz a vista radiosa. Um rubor, que
[160]
esmorecia, e breve tornava a avivar-se,
denunciou ao mesmo tempo o sobresalto da alegria e as tremulas
palpitações do peito. O mancebo, não
menos rendido, porém mais impetuoso, soltou a alma em um
suspiro de entranhavel affecto, prostrando-se-lhe aos pés e,
adorando-a, quasi como se adora a Deus. O que ambos falaram mudos
n'este momento só póde concebel-o quem
já gosou tambem as delicias por vezes acres das
expansões do primeiro amor. Á donzella ria a
esperança na bôcca e nas pupillas. Ao amante,
olvidados os zelos e amarguras das confidencias, que acabára
de escutar, tumultuavam no seio agitado as
commoções, como vão e vem as ondas
inquietas espumando sobre a areia.
Por fim a mão estreita e melindrosa extendeu-se para o
obrigar a erguer-se. Um beijo ardente, seguido de mil osculos, n'essa
mão que não fugiu, affrontou de novas e vivas
cores as faces da filha de Paulo de Azevedo.
Desviando com um gracioso gesto de infinita brandura o amante
ajoelhado, e constrangendo-o a levantar-se com o imperio só
dos olhos. Leonor disse-lhe:
―Veiu tarde!... Não imagina o cuidado com que o
esperava!...
―Leonor! Leonor! exclamou Manuel Coutinho incapaz de se vencer.
Jure-me que não dará nunca a outro esta
mão, que tenho nas minhas, como penhor da nossa ventura...
―Juramentos?! Já se não contenta com menos?
Não crê em mim?!...
―Como em Deus!
―É de mais agora. Basta a fé... Teve noticias de
meu pae? Será possivel ao menos demorar a
sentença? que o ameaça. Quando me lembro!...
Manuel! E nós aqui n'estes colloquios, quando elle.. geme
desamparado, e se prepara para a morte... que será tambem a
[161]
minha, porque, se o perder, sei que
não posso, que não hei de sobreviver-lhe!...
―Não diga isso. Seu pae está mais perto da
liberdade, do que da morte...
―Quem lh'o disse? Elle escreveu-me. Aqui está a carta; mas
só confia em Deus! Ha alguma novidade? Veja que
padeço ha tantos dias, chorando quasi orphã
aquella vida, que é tudo para mim... Diga! Devo ter ainda
esperança?...
―Deve!... O bispo, e sua irmã não lhe contaram
nada?...
―Não! Mas o que ha? Ouvil-o-hei da sua bôcca... A
boa nova será para mim mais risonha!
―O Porto vae acclamar o principe regente. Sepulveda sublevou as
provincias do norte! O Alemtejo e o Algarve fazem e farão o
mesmo!... Os francezes acossados retiram sobre Lisboa de toda a
parte!...
―Seja para sempre glorificado o vosso nome, meu Deus! exclamou a bella
enthusiasta, caindo de joelhos, e erguendo as mãos. Os
ferros do captiveiro são asperos e pesados e a minha alma,
ferida e cega de prantos, nem já a vista se atrevia a elevar
ao ceu para vos pedir justiça!... O dia da liberdade
começa a raiar. Manuel! O seu posto não
é aqui,
é ao lado de nossos irmãos que pelejam e morrem
pela patria...
―Bem sei. Parto em dois dias. Vinha dizer-lh'o.
―Perdoe-me. Tenho pressa de vêr meu pae! Quero dever-lhe o
seu resgate... As damas antigamente mandavam os cavalleiros correr
aventuras, e não os premiavam senão coroados de
louros. Quer ser meu cavalleiro?... ajuntou com um sorriso e em um tom
irresistivel.
―Não o sou já? Que votos póde fazer
que eu não cumpra?
[162] ―Vá! A
empreza é gloriosa. Ajudará a
restaurar a patria, a restituir o throno ao seu rei legitimo, e um pae
extremoso aos braços da sua filha!... Porque não
sou homem?! Nunca invejei tanto uma espada!...
―Quem sabe, accudiu o mancebo sorrindo, se os dias das amazonas
não voltarão!...
―Porque o diz zombando?...
Cuida que me faltaria o valor?... Estou louca! Desculpe! De balde quero
dissimular a minha fraqueza mais do que posso. Elles são
briosos; hão de combater aqui como combateram em toda a
parte... Quantas victimas! Quanto sangue! Manuel! Não seja
temerario! Quero tornar a vel-o!... Oh! se uma bala, se um golpe!...
―Deus será comnosco. Havemos de vencer. Anime-se!
―E eu?!... Ficarei só entre dois amores, que são
toda a minha esperança, entre duas saudades, que prendem
toda a minha alma! Só! Não sem outra companhia
mais do que receios e cuidados, sem outras armas senão as
minhas lagrimas e orações!... Attentando, depois,
na confissão que acabava de soltar, vermelha de pejo como
uma roza, cobriu o rosto, e o pranto, rebentando, principiou a
deslisar-se-lhe por entre os dedos. O mancebo, exaltado,
lançou-se outra vez a seus pés, e em vozes
suffocadas e incoherentes repetiu-lhe mil protestos. A final, Leonor
levantou a face orvalhada d'aquellas lagrimas tão suaves
para ambos, e os bellos olhos sorriram humidos, como o sol de abril por
entre chuveiros finos. Uma vista longa e apaixonada beijou com
ineffavel delirio a vista do amante, que se sentia desfallecer de
jubilo, e que sem forças para exprimir com palavras o
alvorço, amiudava os osculos frementes nas mãos,
que tremiam, entregando-se a seus carinhos.
―Leonor! disse depois de alguns momentos.
[163]
Agora póde vir a morte,
póde redobrar o infortunio, achar-me-hão forte!
Sei que sou amado! Levo commigo a confissão da sua
ternura!...
―Ingrato! accudiu ella com meigo requebro. Era preciso que um instante
de dor, mais poderoso que o pejo, lhe dissesse o que devia ter
adivinhado!?... Não sabia que a ninguem, a mais ninguem...
depois de meu pae, tenho a affeição...
―Porque não diz o amor!... Teme ver-me feliz?!...
―Pois sim! O amor! redarguiu, alçando a fronte com nobre
altivez, e fitando no mancebo um olhar de indizivel e terno orgulho.
Porque hei de encobrir o que sinto; porque hei de negar o que
não posso esconder? Amo!... Desde a nossa infancia jurei que
não teria outro esposo. Não é crime
escutar o
coração! Amo-o, Manuel Coutinho!...
―Leonor!...
―Agora ouça! Antes de partir, volte aqui. Deante de Deus
estamos unidos. Quero dar-lhe uma prenda, que nos recorde a alegria
triste d'este dia!... A guerra vae a principiar. A sua ausencia
póde ser larga... Hei de supportal-a com toda a constancia,
hei de ser digna mulher de um soldado!... Volte! Lembre-se de que deixa
n'esta solidão metade da sua alma em troca da minha que leva
toda... Quero vêl-o victorioso, coberto de gloria, mas!...
Que eu não fique viuva sem ser esposa! Tem outra amante que
vae servir, a patria! Sacrifique por ella... tudo... tudo! menos a vida
que me pertence! Adeus agora! Preciso de socegar o animo para uma
visita, que espero, e da qual depende talvez a sorte de meu pae...
―Lagarde!?... atalhou Manuel Coutinho irado e sombrio de repente.
Porque se sujeita
[164]
a ouvir esse
monstro, auctor de nossas desgraças?
―Porque o meu dever o manda. Cuida que ha sacrificio, que me custe,
para salvar meu pae? Oxalá que viesse pedir-me todo o meu
sangue em preço do sangue d'elle!
―Sabe o que Lagarde quer exigir-lhe pela soltura do sr. Paulo de
Azevedo? perguntou o mancebo tremulo e pallido.
―Sei! contestou ella serenamente.
―E conta responder-lhe?!... interrompeu o amante ancioso.
―Não lhe disse que o amava? Duvida do meu
coração, ou da minha fé!? Pela
vida de meu pae estou prompta a immolar tudo, menos... a honra do seu
nome, que é sagrada, e a minha alma, que é
livre... O esposo, que posso ter, já o escolhi.
―Obrigado, Leonor, pela doce promessa! Partirei tranquillo... Mas,
então porque escuta Lagarde? Com que espera movel-o?...
―É o meu segredo. Todos os sacrificios, menos um! Tudo
menos vender-me, ou aviltar-me!... Não ouviu rodar uma
carruagem? É a d'elle! Sáia por aquella porta...
Não! Não! ajuntou, notando a
agitação do
amante. Não lhe devo occultar nada! Entre para aquelle
gabinete!... Mas jure-me, que ouça o que ouvir, veja o que
vir, mesmo que eu fosse ameaçada... o seu braço,
a sua voz, a sua
presença, é como se estivessem ausentes...
―Juro! Mas se elle ousar!...
―Não ousa! De mais, sei, e posso defender-me! Creia em mim.
Agora vá! Um momento! Deixe-me colher forças para
o combate!... E pousando-lhe na fronte os labios de rosa afagou-lh'a
com um beijo.
―Leonor!... exclamou elle ebrio de jubilo.
―Recompense-me! Seja homem! Hoje a nossa arma é a
paciencia. Não o sente? Sobe
[165]
a escada... Vá! Nem um gesto, nem uma
palavra! Responde pela vida de meu pae!
E impellindo-o com maviosa brandura obrigou-o a entrar para o gabinete,
cuja porta de vidraças recatavam duas cortinas de seda
despregadas quasi até ao chão.
Depois, levando a mão ao peito, como se quizesse contel-o,
alçou a vista com expressão sublime e magoada, e
aguardou que a porta se abrisse.
Não tardou. Lagarde d'ahi a um instante appareceu entre os
umbraes.
XV
Cubiça e Nobreza
O intendente geral da policia era homem de sala. No tracto usual
ninguem o excedia em delicadeza.
Apenas apontou ao limiar, inclinando-se profundamente, adeantou-se com
o chapéu na mão. Com o sorriso estereotypado nos
labios beijou a mão, que Leonor de pé,
séria,
e grave, nem lhe estendeu, nem lhe recusou.
Seguiu-se uma pausa curta durante a qual a vista do ministro se cruzou
com a da donzella, frias e penetrantes ambas como duas espadas.
A um aceno cortez da filha de Paulo de Azevedo, offerecendo-lhe
cadeira, Lagarde escusou-se com o gesto, ajuntando logo risonho:
―Minha senhora... Venho como supplicante mover a piedade da belleza
deshumana, e os supplicantes não se assentam em
presença dos juizes.
―Vem mover a minha piedade, ou offerecer-me a sua?! accudiu a donzella
em tom ironico. Não mudemos os papeis! A supplicante devo
ser eu. O vencedor não veiu
[167]
aqui dictar-me as condições na idéa de
me achar resignada a escutal-as e a submetter-me?!... Não o
incommoda ficar de pé?...
―Não, minha senhora. Tenho de pedir licença para
lhe apresentar outra visita...
―Outra visita?!
―Meu sobrinho...
―Seu sobrinho?!...
―Era tempo, não lhe parece?...
―Eu!...
―Percebo! É-lhe indifferente? Consinta que junte duas
palavras. Quer que lhe fale como amigo?...
―Se póde!... Receio tanto o intendente geral da policia!...
―Não receie. Seja menos injusta. Desejo-lhe bem. Respeito a
sua firmeza, préso os seus sentimentos de filha extremosa, e
sei que se quizer ha de fazer a felicidade do marido que preferir.
―Tantos louvores, sr. Lagarde!... Ha quantos mezes me avalia assim?
accudiu Leonor sorrindo, mas tornando-se logo séria.
Confesse que tenho motivos fortes para suppor o contrario. Costuma
tractar, como nos tractou a nós, as pessoas que lhe merecem
bom conceito?!...
―Ah, cruel!... volveu o ministro, córando um pouco,
porém disfarçando a
torvação momentanea com o riso. As setas
são agudas, e essa mão mimosa aponta-as com uma
certeza! Pois bem! Se fiz o mal, posso ao menos dar-lhe remedio... O
conselho de guerra ámanhã, ou depois, reune-se
para julgar seu pae... A sentença depende das provas, e as
provas principaes estão nas minhas mãos. De mais,
Lunyt, o secretario de estado dos negocios da guerra, é meu
amigo intimo... Já vê! Se
eu interceder e ajudar... o sr. Paulo de Azevedo sae absolvido e
solto...
[168] ―Bem o sei,
redarguiu a donzella. Quererá o sr. Lagarde?...
―Duvída?! Porque tem tão pouca fé?...
―Porque não acredito facilmente em conversões
repentinas. Perseguiu-nos sem tregua, não socegou em quanto
não teve meu pae em ferros, e hoje... offerece-me ser o seu
protector!?... Ha grande mysterio n'isto, não o negue!...
Temo que exija tanto da minha gratidão em premio, que eu
não deva acceitar!
―Nada escapa á sua agudeza! Quer saber tudo? Tem
razão. Joguemos liso. Posso interessar-me, e ser ouvido,
falando a favor do pae da noiva de Armand, de meu sobrinho; mas percebe
muito bem, por maiores que fossem os meus desejos de servir, que o
empenho não teria a mesma força, se o mettesse em
beneficio de estranhos... de pessoas desaffectas ao governo de sua
magestade o imperador e rei. Agora permitte que meu sobrinho entre?
Espera as suas ordens n'aquella saleta...
―Pois sim. Uma palavra antes, sr. Lagarde. É a noiva, ou
é o dote, o que mais o tenta n'este negocio?!...
―Oh, minha senhora, que pergunta! Que offensa!... O dote?!...
Não faz mal, de certo o dote, a riqueza nunca se despreza;
porém o thesouro d'essa linda mão!...
―Supponha que... em troca da sua... como hei de dizer?
―Diga amisade, minha senhora, amisade sincera. Fale affoutamente!...
―Talvez seja muito. Benevolencia parece mais natural... Supponha,
pois, que em troca da sua benevolencia eu cedia o dote, e guardava a
linda mão...
que é já de outro, e que em nenhum caso,
aconteça o que acontecer... darei a seu sobrinho?...
Leonor falava serena, e sorrindo-se, porém a voz e o tom
affirmavam assás, que a proposta
[169]
era positiva, e que a
resolução tomada seria inabalavel. Lagarde
franziu o sobrolho, raspou com o dedo a ponta do nariz, cortejou-a em
silencio, e reconcentrou-se por instantes como quem reflectia.
―O dote sem a mão?! disse por fim lentamente, e esbrugando
as palavras como se as pezasse. Julga, minha senhora, que seria
possivel?...
―Depende da minha vontade, e estou prompta.
―Não me entendeu! É uma esmola, que nos quer
fazer a meu sobrinho e a mim, ou uma peita, com que espera subornar o
ministro?...
A interrogação parecia aspera; porém o
olhar e a voz não podiam ser mais amaveis. Leonor concebeu
esperanças.
―Nem uma, nem outra cousa! É um testemunho de
reconhecimento. Protesto-lhe que dos tres a mais agradecida serei eu.
―Esquece-lhe, que o mundo dirá, que me vendi!...
Não pode ser! Uma esposa não se nota que seja
generosa, porém uma estranha!... Minha senhora,
não decida nada sem o conhecer. Armand está aqui.
É moço,
é gentil, é brioso. Merece-a. Sei que o accusam
de ser um pouco estouvado e perdulario. Não o defendo.
São defeitos que o matrimonio corrigirá.
Veja-o!... Tome tempo!... Não me julgue tão mau
como dizem os meus inimigos. Tudo ha de compor-se.
―Deus permitta! replicou a filha de Paulo de Azevedo.
Mas a sua phisionomia espirituosa traduzia perfeitamente, sem os
disfarçar, a malicia e o despreso, com que assistia ao
combate da avidez e da cubiça na alma de Lagarde, impaciente
de receber o que lhe promettiam, mas preso ainda, apezar do cynismo,
pelos escrupulos de um resto de decoro e de respeito
[170]
da sociedade. Talvez, que não o
embaraçasse pouco n'este conflicto a idéa, que
formava do caracter do sobrinho, e a apprehensão de que elle
recusasse favores, cuja origem o cobriria de opprobrio.
―Deus quer o nosso bem, e ha de permittir!... atalhou o magistrado,
todo brandura e delicadeza. Sobre tudo se fizermos da nossa parte...
―Da minha tudo, menos!...
―Não diga isso!... Esse
menos é que precisamos
que desappareça. Meu sobrinho é um cavalheiro...
―Affiança-m'o?... N'esse caso estou socegada. O
menos virá d'elle!...
Uma sombra escureceu o rosto do intendente. Ainda não lhe
occorrêra esta hypothese, e um estremecimento nervoso
avisou-o, de que ella podia converter-se em obstaculo insuperavel. Que
certeza tinha de que Aubry annuisse ao pacto infame, que procurava
extorquir, fazendo da cabeça de Paulo de Azevedo o penhor da
docilidade de sua filha?
―Não imaginemos coisas tristes! redarguiu contrafeito. Seu
pae, lembre-se, está preso, e em vesperas de ser
sentenciado...
―Meu pae, tornou a donzella altiva, saberá morrer, que lh'o
ensinaram os seus antepassados; o que nunca soube, nem ha de aprender
na velhice, é a vender o sangue da sua alma, a ventura e a
dignidade de sua filha para salvar a vida.
―N'esse caso!... Mas o pobre Armand!... Falámos tanto
d'elle que por fim esqueceu-nos! Como ha de estar impaciente. Tinha um
desejo tão ardente de vir aqui!... Ah, ri-se? Não
acredita?!... Pois é verdade. Dá
licença?!...
E sem aguardar mesmo o aceno secco de cabeça, com que Leonor
respondeu, Lagarde,
[171]
precipitando-se
direito á porta, cortou com esta saída theatral a
conversação no
ponto, em que ameaçava tornar-se tempestuosa. Em quanto elle
saia, a donzella enxugou á pressa duas lagrimas, reprimidas
até então pelo orgulho,
e inclinou a fronte como se lhe faltasse o vigor para supportar mais.
Durou só um momento esta fraqueza. Um minuto depois erguia a
face, e tornava a obrigal-a a exprimir a frieza glacial do papel
forçado, que se via constrangida a representar. Um rapido
volver de olhos á porta de vidraças, detraz da
qual Manuel Coutinho escutava, e um suspiro ancioso foram os ultimos
signaes do seu desalento.
O intendente entrava com o sobrinho.
Vendo-o, Leonor córou, e fez-se logo, pallida.
O mancebo, contemplando-a, sentiu-se vencido de repente, e conheceu que
aquella bella e doce imagem se lhe gravára profundamente no
coração. A tristeza resignada, que respiravam as
feições da donzella, a sua vista magoada, mas
serena e quasi severa, e a casta e graciosa elegancia do porte,
acabaram de o render. O semblante, em que um momento antes sorria
zombeteira a mofa do conquistador, seguro do triumpho, desarmou-se
instantaneamente da expressão quasi insolente, e
inclinando-se, perturbado, e reverente, Armand saudou a filha de Paulo
de Azevedo como poderia saudar uma rainha no seu throno.
―Aqui vem a seus pés mais este captivo, minha senhora!
exclamou o intendente no estylo refinado e galanteador da
côrte franceza. Compadeça-se d'elle.
Não consinta que suspire em vão!
Armand empallideceu. Não era com gracejos vulgares e pueris,
que elle agora desejava
[172]
expressar á donzella a admiração. O
official, de ordinario tão solto e audacioso, já
não achava phrases que pintassem o estado da sua alma. Mas
se os labios eram mudos, falavam os olhos, e o proprio enleio
significou uma homenagem á amante de Manuel Coutinho.
―Veja como a adora! proseguiu Lagarde, que, sem o querer, representava
o papel comico de um tutor de entremez. Que victoria, minha senhora!
Fez como Cesar, viu, e venceu!...
―Ah! interrompeu Leonor, deixando cair de alto sobre o tio e o
sobrinho uma vista ironica e aguda, que os gelou a ambos, porque o
despreso e o escarneo, que exprimia, traspassava.
―Meu tio!... murmurou Armand confuso, e recuando como ferido de uma
bala.
Houve uma breve pausa. O ministro estudava um exordio, que o salvasse
dos apuros do lance, em que se mettêra,
amaldiçoando interiormente Aubry, cuja falsa delicadeza
começava a assustal-o. A filha de Paulo de Azevedo, em
pé, branca como uma estatua de alabastro, mas imperiosa,
amparava o corpo gentil com a mão no espaldar da cadeira e
n'esta posição, cheia de dignidade, aguardava
silenciosamente, que um dos dois ousasse dizer-lhe tudo.
O mancebo, que a interjeição de Leonor fizera
córar até á raiz dos cabellos, e que a
vista de tantas graças e enlevos cada vez seduzia mais,
esperava ancioso, que o intendente, auctor do enredo, lhe rompesse o
caminho, temendo adivinhar na mudez e no ar soberano e offendido da
bella portugueza um trama, que a honra o obrigasse a desmentir.
―Armand, minha senhora, disse por fim Lagarde, que o amor proprio e a
cubiça forçavam a insistir, encarrega-me de lhe
pedir,
[173]
que se digne receber os
testemunhos de seu respeito e adoração.
―Sempre como procurador?!... atalhou ella com um sorriso ironico.
―Em pessoa, minha senhora, em pessoa!... Se não veiu mais
cedo é que...
―Meu pae não estava ainda quasi no oratorio, e o sr.
Lagarde temia que a filha fosse menos docil?
―Oh!... bradou Armand, encarando o ministro severamente, e
adeantando-se impetuoso. Minha senhora, balbuciou depois, se aqui vim
foi attrahido por uma doce esperança, que vejo ter sido
chimerica... Posso saber o que meu tio quiz fazer, valendo-se do meu
nome? Presinto um segredo de violencia, talvez de iniquidade, mas,
juro-lhe pela minha honra, que estou innocente... que sou incapaz de
acceitar a sua mão, que me faria bem ditoso, agora o sinto,
se livremente m'a não désse. Peço-lhe
a verdade! Ao
menos não me condemne sem me ouvir!...
Lagarde não soube conter-se. Um raio, que lhe estalasse de
repente sobre a cabeça, não o teria desfigurado
tanto. Empregado o ardil classico do famoso quadro do sacrificio de
Ephigenia, escondeu metade da cara no lenço de assoar,
pedindo a Deus que um alçapão propicio se lhe
abrisse debaixo dos pés para o sumir da vista irritada dos
personagens, cujas explicações previu, que iam
desmascaral-o inteiramente.
Leonor, escutando as nobres palavras de Aubry, recompensou-as com um
olhar sympathico. O semblante perdeu a expressão severa, e a
voz, meiga e commovida, vibrou harmoniosa, como um canto suave, no
peito agitado do official francez.
―Agradecida! redarguiu offerecendo-lhe pela primeira vez a
mão, que elle beijou estremecendo.
[174]
Não tenho que lhe
perdoar... Agora vejo! O sr. Lagarde... como hei de dizer toda a
verdade!? O sr. Lagarde prendeu meu pae, accusou-o, e tem suspensa
sobre a sua vida a espada de um conselho de guerra... Tinha-me falado
ha mezes n'este casamento... A minha recusa aggravou-o... e hoje, aqui
mesmo, veiu propor-me salvar meu pae se eu consentisse...
―Oh, meu tio! interrompeu o mancebo fulminando o intendente com os
olhos, e vermelho de colera e pejo. Não diga mais, minha
senhora. Adivinho a resposta. Regeitou!...
―Regeitei! continuou a donzella. A minha mão pertence a
outro; o meu amor não se vende.
―Nem o meu nome se infama! rugiu Aubry tremulo de raiva. Sr. Lagarde
agradeça ao sangue, que nos corre nas veias, a minha
paciencia! Se não fosse! E suffocado em ira apertou os
punhos, e levou-os á fronte. Lagrimas de
indignação rebentaram de seus olhos seccos. O
intendente parecia petrificado.
―Offereci o dote sem a noiva; proseguiu Leonor. Era o meu resgate. Oh,
perdoe sr. Aubry, não o conhecia ainda. Depois que o
ouço... não lhe faria a affronta de suppor...
―Vê! accudiu o official, colhendo o ministro do
braço, e saccudindo-o com furia. Vê a que me
expoz?!... Meu tio, tenho vergonha, queima-me os labios dar-lhe este
nome! Quem lhe deu o direito e a ousadia de arrastar o meu, o nobre
appellido de meus virtuosos paes pelo lodo de suas torpezas?! Sou
pobre, accrescentou voltando-se convulso para a filha de Paulo de
Azevedo, mas a pobreza supportada com valor, com alegria, como eu a
supportei sempre, não desdoura, engrandece. Hoje
não possuo outras riquezas, senão o orgulho da
propria indigencia, que nunca ajoelhou,
[175]
o respeito do nome sem macula que
herdei, e esta espada... que póde abrir-me o caminho da
gloria, ou o da sepultura!... Nunca me passou pela idéa, que
houvesse no mundo um coração tão vil e
corroido,
que se atrevesse a cuspir no meu rosto e sobre as cinzas dos que mais
amei a injuria de me aviltar ausente a
especulações infames!... Socegue, minha senhora!
Todos os thesouros da terra, depois d'isto, não me obrigavam
a acceitar a sua mão, ainda que m'a offerecesse.
―Louco! D. Quixote! Nescio!... rosnou Lagarde, ao qual a generosa
declaração do mancebo restituiu a voz, e redobrou
a ira de se ver descoberto e punido.
―Senhor Lagarde! disse Armand, cravando n'elle um olhar sombrio. Sei
que devo parecer-lhe nescio e estouvado. Glorio-me da censura. O que me
faria córar eternamente seria um elogio... depois do que
acabo de ouvir.
―Senhor Aubry, observou Leonor, creia que nunca hei de esquecer a
nobreza do seu caracter. Aonde quer que a fortuna o leve... conte com a
minha amisade. Não sou ingrata. Se meu pae escapar...
―Ah! exclamou o mancebo. Esquecia-me! Senhor Lagarde! ajuntou,
travando rijo do braço ao ministro, que se ia desviando para
se evadir desapercebido. Uma palavra antes de sair! Os vinculos do
nosso parentesco estão rotos de hoje em deante. Quer que o
mundo ignore os motivos? Ponho uma condição a
esse sacrificio da minha parte!...
―Condições?!... interrompeu o intendente,
ameaçando o sobrinho e Leonor com os olhos e com o gesto.
―Condições, sim! atalhou o mancebo friamente.
Offereço-lhe o seu perdão, e a minha
indifferença...
[176] ―Offereces-me o
teu perdão? É admiravel! Que me
importa o teu perdão?...
―Em troca de um acto de generosidade... forçada. Bem
vê que lhe faço
justiça, e que digo
forçada, proseguiu
Aubry, contendo-o, e dominando-o com a vista.
―Oh! exclamou Lagarde, rindo convulso e constrangido. A scena era para
se ver no theatro francez! Enlouqueceste Armand?!...
―Não! redarguiu Aubry, cerrando os dentes e crescendo para
elle indignado. Não enlouqueci! Mas ninguem até
hoje me affrontou impunemente. Em tres dias o pae d'esta senhora ha de
estar absolvido e solto...
―Ah! É de mais! accudiu o ministro affectando intrepidez,
porém assustado. E se não estiver?
póde acontecer que as tuas ordens não sejam
cumpridas á risca. Se não
estiver pódes dizer-me o que farás? Accommettes a
policia, fuzilas o conselho de guerra, ou assaltas os moinhos de vento
de Monsanto?!...
―Por Deus, senhor Lagarde, não tente a minha paciencia!
bradou o official empallidecendo de colera, em quanto as pupillas
scintillantes faiscavam mil ameaças. Se não
estiver livre e absolvido... como lhe mando!... ouve? juro-lhe pela
santa memoria de minha mãe, á qual deve
só n'este momento a
vida! que ámanhã o nome mais infame do imperio
será o seu!...
O intendente fez-se branco e recuou, lendo na vista inflammada do
sobrinho o odio e o despreso.
―Armand! exclamou balbuciando, renegas o teu sangue por estranhos?!
Unes-te aos inimigos da tua patria contra mim!?...
―Os inimigos combatem-se com as armas na mão,
não se salteam nos corredores da policia, pedindo-lhes a
bolsa, ou a vida!...
[177]
Fez-me
córar de vergonha! A maior injuria, que podia irrogar-me,
era suppor alguem que eu fosse cumplice de mercados tão
vilões...
―És uma criança! Julgas o mundo pelos
romances!...
―Basta! clamou o mancebo. Quer acaso convencer-me?! Se não
obedecer ao que lhe disse, que é o desaggravo da minha honra
ultrajada, não se admire do que eu fizer!...
―Do que fizeres! Ameaças?! Crês que te receio?...
Em eu te desamparando cuidas que vales alguma cousa?! rugiu o
intendente exasperado.
―Hei de valer sempre o que vale um nome honrado! Não
preciso de mais. Repito. Tome bem sentido! Se o pae de D. Leonor
não for solto em tres dias...
―Não é. Que mais?! atalhou o ministro, cruzando
os braços.
―O general Junot e o conselho do governo saberão como se
enriquece o intendente geral da policia! Vou revelar-lhes tudo.
Então veremos.
―Tu! Meu sobrinho! exclamou Lagarde retrocedendo fulminado.
―Eu! Seu sobrinho por minha desgraça. Escolha agora.
Voltou-se depois para Leonor, que o dialogo tornára immovel,
e acrescentou:
―Minha senhora, adeus. Levo d'aqui a admiração
da sua formosura, e a magoa de ter sido causa innocente de suas
lagrimas. Sei que me perdoa, e que me fica estimando. Não
peço mais. Socegue. Mesmo sem o dote, o senhor Lagarde ha de
servir seu pae... Elle sabe que eu costumo cumprir a minha palavra.
Vamos, ajuntou apontando a saída ao ministro com um gesto
imperioso. O luto entrou comnosco n'esta casa... É tempo de
[178]
deixarmos que a alegria e a
tranquillidade voltem.
E quasi obrigando Lagarde a retirar-se, lançou sobre Leonor
um olhar de apaixonado enlevo, inclinou-se com um suspiro, e
desappareceu.
―Manuel Coutinho, disse a donzella, erguendo a fronte de repente,
depois de alguns momentos de silencio, ouviu tudo?...
―Tudo, redarguiu elle, que não se demorou em vir
lançar-se de novo a seus pés.
―Então sabe a divida que hoje contrahi... que ambos
contrahimos com Armand de Aubry. Espero que a vida d'elle lhe seja
tão sagrada...
―Como a de um irmão, respondeu Manuel. É uma
grande alma.
―Alviçaras! Alviçaras! Senhora D. Leonor! Gritou
a voz do bispo do lado do jardim. Os inglezes estão a
desembarcar. O nosso captiveiro pouco durará se Deus quizer.
E o prelado entrou afadigado e tremulo de jubilo no aposento, aonde os
dois lhe abriam os braços não menos
alvoroçados.
FIM DO PRIMEIRO VOLUME
NOTAS AO PRIMEIRO VOLUME
I
O poder do ministro eclipsou-se com o
ultimo suspiro do principe e,
com elle expiraram as tradições viris e os
commettimentos reformadores...
pag. 24.
O governo do marquez de Pombal abrangeu todo o reinado de el rei D.
José I. Varios, e mais ou menos parciaes, foram os juizos
dos contemporaneos ácerca da
administração severa, intolerante, e absoluta,
mas a muitos respeitos fecunda e reorganizadora de Sebastião
José de Carvalho e Mello. A obra, que emprehendeu, o
rejuvenescimento da unidade monarchica sustentado pelo apoio das
classes medias devia encontrar, e de feito encontrou, a
opposição dos
privilegios, dos abusos, das hypocrisias, e do fanatismo. No
paço a familia real, nos gremios puritanos da nobreza os
fidalgos mais poderosos, nas corporações
religiosas a
companhia de Jesus, declararam guerra mortal e incessante ao ministro,
aos seus actos, e ás suas tendencias. Para a familia real
Sebastião José de Carvalho
era quasi um inimigo da força e da consciencia do rei. Para
a nobreza arrogante e affeita a dominar o poder despotico de um
ministro, que não acurvava as vontades, ou as leis ao aceno
imperioso dos eleitos de sangue azul era um peão fidalgo,
insolente e soberbo, que importava
derrubar e punir o mais depressa possivel. Finalmente, para os
jesuitas, cuja influencia dilatada nos ultimos annos de valimento
durante o reinado de D. João V, não consentia
emulos, e muito menos
peias, os planos atrevidos do secretario d'Estado, representando
ameaças e perigos perennes para a prosperidade da sociedade,
equivaliam a um cartel, que a todo o
[180]
transe convinha acceitar e concluir pela
derrota do orgulhoso sob pena de aplanar aos adversarios os caminhos do
triumpho.
A firmeza do rei, o prestigio que a auctoridade monarchica possuia
ainda, e a intrepidez do ministro venceram estas resistencias
colligadas. Por que preço,
porém? Que o digam os carceres e prisões povoadas
de suspeitos, réos apenas muitos d'elles de alguma
opinião mais livre. Que respondam os processos, as
alçadas, os degredos, e os supplicios, paginas luctuosas de
um governo inexoravel e vingativo. Copiando do cardeal de Richelieu
até as perfidias cruentas, Pombal assignalou com um rasto
patibular as principaes
estações da sua
administração. Por fim escorregou e caiu no
sangue vertido muitas vezes sem necessidade. Os horrores, que afogaram
nos tratos e crueldades da praça de Belem a famosa
conspiração de
1758, a expulsão
dos
jesuitas; os castigos atrozes
contra os tumultuarios do Porto; a execução de
João
Baptista-Pelle; o encarceramento prompto e perpetuo de quantos podia
receiar como rivaes, ou como censores pelo nome, pela integridade, pela
jerarchia, ou pela sciencia são nodoas indeleveis e
accusadoras, que não
apagam o merecido elogio de outros actos, nem a recta e desassombrada
apreciação de suas reformas uteis e
opportunas.
O marquez de Pombal tentava em parte o impossivel. Não
admira, por isso, que na queda arrastasse comsigo quasi tudo o que nos
monumentos do seu governo era fragil, instavel, e transitorio. A
monarchia pura tinha envelhecido muito e depressa para ser exequivel
salval-a por meio da transfusão de idéas e
principios repugnantes á sua índole, contrarios
aos
preconceitos e crenças do povo e das classes elevadas, e sem
base firme em que assentasse uma construcção
duravel. Os tres reinados de D. Affonso VI, D. Pedro II e D.
João V adeantaram a tal ponto a caducidade, que os milagres
do genio, e os prodigios da vontade o mais que poderam conseguir foi
suspender a dissolução
espaçando até ao fim do reinado seguinte a
revolução eminente. O ministro absoluto serviu-se
em muitas occasiões do poder como de uma arma cega e
demolidora, e a ferro e fogo imaginou transformar a sociedade decrepita
e moribunda em uma sociedade nova, e vigorosa e viril, filha legitima
das grandes idéas philosophicas
[181]
fadadas á conquista do
futuro. Suas leis e seus esforços provam a
elevação do
pensamento e a intensidade dos bons desejos; mas do que elle decretou
ficou de pé sómente o corpo logo tornado cadaver.
O
espirito... não eram aquelles ainda os dias da sua victoria
nem os seus meios de persuasão. Por isso com o ultimo
suspiro de D. José I baqueou não só o
poder, mas subverteram-se em grande parte até as
idéas
representadas pelo marquez de Pombal.
II
Um gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao voto do
confessor valido substituiu o mando odiado do marquez...
pag. 24.
A rainha D. Maria I contava, quando subiu ao throno, quarenta e tres
annos de edade. Nascida e educada para reinar houve um momento, em que
seu pae, segundo se affirma, concebeu a idéa de proclamar a
lei salica, cingindo a corôa na fronte juvenil do principe D.
José. Acclamada em 13 de maio de 1777 com D. Pedro III,
esposo e tio, o primeiro acto do seu governo foi um acto de clemencia.
Mandou abrir as prisões e soltar os presos d'Estado. Chamou
dos longos desterros, em que jaziam, a muitos varões
respeitaveis pelos annos, pelo caracter, e pela jerarchia. Menos feliz
do que Richelieu e Colbert o marquez de Pombal assistiu vivo
ás exequias do seu poder e á
demolição da sua obra.
Demittido dos principaes empregos exercidos por largo tempo, teve o
marquez por successores na presidencia do real erario o marquez de
Angeja, cuja lealdade D. José I attestára
espontaneamente recolhendo-se
a sua casa na fatal noite de 3 de setembro de 1778; na secretaria
d'Estado dos negocios do reino, o visconde de Villa Nova da Cerveira;
na dos negocios estrangeiros e da guerra Ayres de Sá; e na
repartição da marinha e ultramar Martinho de
Mello e Castro.
Estes cavalheiros não eram homens obscuros, ou ineptos, mas
qualquer d'elles estava longe da vigorosa iniciativa de
Sebastião José de Carvalho, e todos
juntos
[182]
confundiam e
atavam, mais do que desenredavam e esclareciam, as
resoluções.
A consciencia timida da rainha, o genio apoucado de seu marido, as
insinuações hypocritas dos beatos,
que se apoderaram logo de todas as avenidas do paço e
começaram a influir na direcção dos
negocios,
não concorreram pouco para tornar o novo reinado uma quasi
restauração de tudo quanto o marquez de Pombal
intentára destruir, ou modificar.
Combatida de escrupulos suggeridos por falsos devotos a
rasão da rainha principiou logo a vacillar, e á
prudencia e caracter limpo de allusões do seu confessor o
arcebispo de Thessalonica, D. Fr. Ignacio de S. Caetano, é
que ella deveu não se afogar mais cedo
nas trevas da demencia.
O governo de D. Maria I não foi, comtudo, um governo
absolutamente estacionario e inimigo de reformas. Se o risco das
grandes cousas traçadas pelo marquez de Pombal assustava a
capacidade menos elevada dos ministros, que lhe succederam, todos elles
ao menos manifestaram bons desejos e rectas
intenções, seguindo, ainda que muito de longe, o
espirito moderno, que alvorecia em França, e cujos
clarões ainda se
não haviam convertido nos relampagos deslumbrantes, que
precederam a revolução de 1789; ou nas
tempestades medonhas, que revelaram as subversões de 1792 e
1793.
Modesto nas idéas e nos commettimentos, o gabinete da rainha
creou a junta do codigo civil, cujos trabalhos nunca viram a luz da
estampa; fundou a Academia Real das sciencias; estabeleceu os estudos
de primeiras lettras e humanidades nos claustros das
corporações regulares; instituiu a casa Pia para
asylo das creanças orphãs; dotou as aulas de
Fortificação e a Academia de Marinha; e decretou
novas estradas e meios de as executar sob a
direcção de
José Diogo de Mascarenhas Netto.
A entrada de D. Rodrigo de Sousa Coutinho no ministerio em principios
de 1797, por morte de Martinho de Mello, introduziu na
administração um elemento
activo, emprehendedor, e dedicado por indole e tendencias a arriscar
planos mais vastos e mais altos muitas vezes, do que o consentiam as
circumstancias e as forças debilitadas da monarchia.
[183]
III
Os tres sujeitos eram nada menos, do
que tres delegados do
conselho conservador de Lisboa,
associação composta de patriotas dedicados
á
restauração da independencia, etc.,
pag. 88.
A existencia d'esta sociedade secreta politica não
é uma invenção. Saiu á luz
dos prelos da
imprensa regia um opusculo de 24 paginas de 8º, com a seguinte
denominação
Catalogo por copia
extrahido do original das sessões e actas feitas pela
sociedade de portuguezes, dirigida por um conselho
intitulado
conselho conservador de lisboa,
e
installada n'esta mesma cidade em 5 de fevereiro de 1808; tendo se
unido os installadores em 21 de janeiro do mesmo anno para tractar da
restauração da patria.
O conselho fundou-se em 5 de fevereiro de 1808 com seis socios que
eram: G... Matheus Augusto, José Maximo Pinto da Fonseca
Rangel, José Carlos de Figueiredo, Antonio
Gonçalves Pereira, André
da Ponte do Quental da Camara; José Maximo da Fonseca foi
nomeado secretario. O local das reuniões decidiu-se que
fosse alternadamente a casa de cada um dos adeptos. A hora das
conferencias ás 8 da noite.
A formula do juramento adoptada era esta: «Na nossa
presença, oh immenso, Sempiterno, Omnipotente Deus, creador
do Universo, estando em nosso accordo, sem constrangimento, ou duvida,
livres e deliberados jurámos tractar de hoje em deante com
todo o possivel disvelo, fervor, prudencia, e firmeza a causa
nobilissima da religião da patria e do throno applicando
para isso nossas forças, talentos, bens e vida
até
conseguirmos entregar este a seu dono o
principe
regente e áquelles o esplendor, a
liberdade, a gloria. Este juramento seja para sempre o fundamento da
nossa honra e da nossa felicidade, que chame sobre nós a
benção divina e os applausos da nossa
posteridade: a
violação d'elle, pelo contrario,
attrairá sobre nós as
maldições do céu e da terra; a vileza
para nós e para os nossos descendentes.»
Na setima sessão prestaram este juramento um pouco theatral
o coronel de cavallaria Alvaro Xavier
[184]
de Povoas e Fernando Romão da
Costa Athaide Teive. D'ahi em deante cresceu todos os dias o numero dos
socios e associados. Na sessão de 25.º
constituiu-se o
conselho conservador
á
pluralidade de votos e ficou composto dos seguintes deputados e
adjuntos: o bispo de Malaca D. Francisco, o D. abbade de Belem fr.
Manuel de Mesquita, o arcediago do Funchal Manuel Joaquim de Sousa, o
beneficiado Joaquim José da Costa, o marquez de Angeja D.
João, o conde de Rio Maior, o visconde da Bahia, o
desembargador Sebastião José de Sampaio, o
brigadeiro Antonio Marcelino da Victoria, os coroneis Lemos, Lacerda, e
Raposo, o tenente coronel Costa Athaide, o major Antonio Marcelino
Soares, e todos os mais socios approvados e admittidos. João
Carlos de Saldanha Oliveira e Daun, hoje duque de Saldanha, entrou
tambem no conselho inscripto sob numero 27. Consta da
relação
publicada a pag. 87 do opusculo.
O conselho desde 5 de fevereiro até ao 1.º de
outubro de 1808, em que se dissolveu, celebrou quarenta e duas
sessões. O numero dos socios ajuramentados subia a 183. O
dos auxiliares abonados por varios d'elles elevava-se a 959,
além do concurso de tropa e povo, com que contava para o
caso de um rompimento.
Os planos de sublevação, as
proclamações, os avisos ao almirante inglez sir
Charles Cotton, e os projectos da sociedade não corriam
tão secretos como elle
imaginava.
A policia franceza suspeitava, pelo menos, se não conhecia
plenamente a organização d'este nucleo;
porém não julgou prudente proceder contra elle,
temendo-se talvez mais de um processo ruidoso em circumstancias
criticas, do que dos tramas pouco bellicosos e activos dos
conspiradores. É o que se deprehende de um trecho da
Historia da Guerra da
Peninsula do general Foy.
[185]
IV
Muitos homens illustrados, que o
grandioso espectaculo dos
acontecimentos advertia, suspiravam por uma
renovação, que nunca podia ser inspirada, bem o
sabiam por experiencia, nem pelas idéas, nem pela iniciativa
de um governo caduco
pag. 101.
Allude-se no texto ao plano de uma constituição
similhante á que Napoleão I concedêra
ao
grão-ducado de Varsovia, plano concebido,
segundo
affirma o general Foy, no liv. II da sua
Histoire de
la Guerre de la Peninsule, por alguns patriotas
portuguezes,
desejosos de colherem ao menos da intrusão estrangeira os
beneficios da liberdade.
O general Foy cita como auctores principaes do plano o desembargador
Francisco Duarte Coelho, o doutor Ricardo Raymundo Nogueira, reitor do
Collegio dos Nobres, e o conego Simão de Cordes
Brandão, lente de direito natural e das gentes na
Universidade de Coimbra, e insere nas provas sob a lettra
J o projecto de codigo politico, que
então se queria pedir a Bonaparte. (Tomo II,
edição de Paris pag. 38 e
seguintes e pag. 469 e seguintes).
José Acurcio das Neves (
Historia da
Invasão dos Francezes em Portugal tomo II)
transcreve egualmente o documento, porém não diz
claramente a quem elle deve ser attribuido; mas o auctor da
Historia de El-Rei D. João
VI, vertida em portuguez
(Lisboa typographia Patriotica 1838 a pag. 189-191), depois de nos dar
tambem o projecto, accrescenta, que esta mensagem fôra
dirigida pelo doutor Gregorio José de Seixas de accordo com
muitas pessoas distinctas por engenho e
representação. Entretanto o padre
José Agostinho de Macedo, como nota o sr. Innocencio
Francisco da Silva no tomo VII do seu
Diccionario
Biliographico pag. 276, accusou em mais de um logar
de suas obras a Simão de Cordes, lançando-lhe em
rosto o
haver sido um dos que no fim do seculo passado maior impulso
tentáram dar á maçonaria em
Portugal, e principalmente em Coimbra, aonde chegára a
organizar algumas lojas.
O bispo de Vizeu no
Elogio Historico
fórma juizo
[186]
absolutamente opposto do procedimento e doutrinas de Simão
de Cordes.
Sejam, porém, as que aponta o general Foy, ou outros
auctores, o projecto de constituição redigiu-se e
corre hoje impresso. Restava o mais difficil. Era necessario achar
pessoa auctorizada, que se decidisse a apresental-o. Acceitou a
missão arriscada o juiz do povo, que era então um
tanoeiro chamado José de Abreu Campos, notavel pela firmeza
e integridade. Mais de um lance de nobre ousadia confirma esta
opinião formada com justiça ácerca do
seu caracter.
Quando o conde da Ega foi incumbido por Junot de aggregar aos membros
da
Junta dos Tres
Estados os representantes denominados dos
braços da
nação para lhes extorquir em simulacro de
côrtes um voto de adhesão, o juiz do povo
protestou contra os actos da assembléa, como illegaes e
emanados de corpo incompetente. Quando as quinas foram picadas e
substituidas pela aguia corsa, Abreu Campos negou-se a apagal-as da
cabeça da sua vara.
O juiz do povo correspondeu ás esperanças
depositadas n'elle. Intimado para assignar com o clero e a nobreza, em
nome do povo, a mensagem de 24 de maio de 1808 (provas de
l'Histoire de la guerre de la
Peninsule, par le general Foy. Paris 1827, tom. II,
pags. 467-469) o honrado tanoeiro, protestando contra o acto por nullo
e abjecto, e contra os que o practicavam por incompetentes, apresentou
o projecto de constituição composto em
fórma de petição dirigida
ao imperador, e appellou para o voto do paiz representado em
côrtes.
Esta voz isenta proclamando a emancipação
politica offendeu os ouvidos do duque de Abrantes. O juiz do povo,
chamado ao quartel general, foi asperamente reprehendido, e varias
pessoas, suspeitas de liberaes, mandadas sair de Lisboa.
Prevaleceu assim a mensagem servil dictada á simulada junta
da nação. José
Sebastião de Saldanha partiu encarregado de a apresentar a
Napoleão I. Achando, porém, já
interceptadas as
communicações da Hespanha com a
França, recolheu a Lisboa sem ter podido passar adeante da
cidade Rodrigo.
[187]
V
Deixemos passar esses vultos, que
pisam os sobrados nas pontas dos
pés, escorregando quasi como sombras. São rodas
secundarias da machina,
pag. 111 e 112.
O general Junot, intitulando-se nos seus actos governador de Paris,
primeiro ajudante de campo de S. M. o imperador e rei, e general em
chefe do exercito invasor, compôz desde principio e da
maneira seguinte o pessoal do governo em Lisboa:
Por decreto datado de Lisboa no 1.º de dezembro de 1807,
nomeou Francisco Antonio Herman commissario do governo francez junto do
conselho do reino de Portugal, o qual lhe daria conta de todas as suas
deliberações, podendo assistir a ellas, querendo,
e assignar as actas. Por decreto de 3 de dezembro, do mesmo anno foi
Herman incumbido tambem da administração
geral da fazenda. Em 8 de dezembro foi encarregado o general Laborde do
commando superior de Lisboa e o conde de Novion do commando das armas
da cidade. O marquez de Alorna recebeu a nomeação
de
inspector geral e commandante das tropas nas provincias de
Traz os-Montes, Beira e Extremadura (22 de
dezembro de 1807).
J. J. Magendie já exercia as funcções
de commandante em chefe da marinha em 1 de março de 1808,
como consta de um aviso seu aos officiaes da arma, e aos empregados do
porto de Lisboa, expedido n'essa data. P. Lagarde foi nomeado
intendente geral da policia do reino em 25 de março de 1808,
por decreto de Junot, referendado pelo secretario de Estado dos
negocios do interior e da fazenda, Francisco Antonio Herman. Por
decretos da mesma data nomeou Junot corregedor-mór da
Extremadura a mr. Pepin Bellisle, auditor do conselho de Estado, da
provincia do Alemtejo a mr. Lafond, e da provincia de entre Douro e
Minho a Taboureau, ambos tambem auditores do conselho de Estado.
Quintella foi feito corregedor-mór da Beira.
O decreto, que approvou as instrucções dictadas a
estes novos magistrados, sahiu com a data de 2 de
[188]
abril de 1808. Por decreto de 16 de abril do
mesmo anno foi Lagarde nomeado conselheiro do governo para assistir
ás sessões do conselho. A 16 de
abril já o general Junot havia recebido de
Napoleão o titulo de duque de Abrantes.
INDICE
A
Camillo Castello
Branco |
5 |
I |
― |
Uma noite
desabrida |
7 |
II |
― |
O moinho da
Raposa |
15 |
III |
― |
Duas paginas da historia
d'este
seculo |
21 |
IV |
― |
O bem soa, o mal
voa |
32 |
V |
― |
Não ha atalho
sem
trabalho |
43 |
VI |
― |
Ressurreição de
Lazaro |
55 |
VII |
― |
Segredos em toda a
parte |
67 |
VIII |
― |
Entre os
bastidores |
83 |
IX |
― |
Que talvez podesse servir de
prologo |
100 |
X |
― |
Tolda-se o tempo |
111 |
XI |
― |
Achilles e Nestor |
127 |
XII |
― |
Arcades ambo! |
138 |
XIII |
― |
Dois parentes |
147 |
XIV |
― |
Amor |
156 |
XV |
― |
Cubiça e
Nobreza |
166 |
UM REINADO TRAGICO
(Complemento da HISTORIA DE PORTUGAL)
Por *
* *
Edição Popular e Illustrada
Com grande numero de retratos dos
homens contemporaneos,
e de gravuras
representativas
dos acontecimentos mais notaveis
do reinado de D.
Carlos
Attendendo a
instantes pedidos de muitos dos assignantes da nossa
Historia de
Portugal, resolveu esta Empreza publicar um novo
livro que, embora seja como que o complemento d'aquella―e por isso
absolutamente egual em formato, papel, etc.―será no emtanto
completamente independente dos anteriores volumes, e no qual, sob o
titulo de Um Reinado Tragico, se
fará a descripção de todos os
successos politicos que vão desde o
ultimatum de 11 de janeiro de 1890
até aos tragicos acontecimentos de 1 de fevereiro de 1908,
que determinaram a subida ao throno portuguez do rei D. Manuel II.
Publicação
em fasciculos semanaes de 16 paginas,
in-4.º grande, ao preço de
60 RÉIS
ou a tomos mensaes de 5 fasciculos, ao preço de
300 RÉIS
|
SEGUINDO, DIA A
DIA, A ORDEM DA SUA COMMEMORAÇÃO
PELA EGREJA
Trabalho de compilação e de
synthese,
feito sobre
os mais modernos e conscienciosos estudos
PELO
Rev. Dr. SANTOS FARINHA
Bacharel formado em theologia pela
Universidade
de Coimbra e parocho
collado da freguezia de Santa Izabel, de Lisboa
Illustrado com centenares de gravuras
Cada fasciculo semanal de 2 folhas de 8 paginas cada, in-4.º
grande, contendo pelo menos 2 gravuras,
60―REIS―60
Cada tomo mensal de 5 fasciculos, ou 80 pag., grande formato, contendo
numerosas gravuras,
300―REIS―300
DIRIGIR OS PEDIDOS Á
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
SOCIEDADE EDITORA
Livraria Moderna―Rua Augusta, 95, Lisboa
TYPOGRAPHIA―45, RUA IVENS, 47
|
Notas:
[1] Eram
pannos lavrados, ou lisos, que vestiam as paredes.
Tambem se usavam de couro.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos: