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Rita
Farinha (Fev. 2009)
Obras completas de A. F. de Castilho
XIX
O Presbyterio
da Montanha
VOLUME I
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
95, Rua Augusta, 95
1905
OBRAS COMPLETAS
DE
ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
VOLUME 19.º
VOLUMES PUBLICADOS:
I |
― |
Amor
e melancolia. |
II |
― |
A
chave do enigma. |
III |
― |
Cartas
de Ecco e Narciso. |
IV |
― |
Felicidade
pela agricultura
(1.º v.) |
V |
― |
Felicidade
pela agricultura
(2.º v.) |
VI |
― |
A primavera
(1.º
vol.) |
VII |
― |
A primavera
(2.º
vol.) |
VIII |
― |
Vivos e
mortos―Apreciações moraes,
litterarias, e artisticas. |
IX |
― |
Vivos
e mortos (2.º
vol.) |
X |
― |
Vivos e mortos
(3.º
vol.) |
XI |
― |
Vivos e mortos
(4.º
vol.) |
XII |
― |
Vivos e mortos
(5.º vol.) |
XIII |
― |
Vivos
e mortos (6.º
vol.) |
XIV |
― |
Vivos e mortos
(7.º vol.) |
XV |
― |
Vivos e
mortos (8.º
vol.) |
XVI |
― |
Excavações
poeticas (1.º vol.) |
XVII |
― |
Excavações
poeticas (2.º vol.) |
XVIII |
― |
Excavações
poeticas (3.º vol.) |
XIX |
― |
O Presbyterio da
montanha
(1.º v.) |
NO PRÈLO:
XX |
― |
O
Presbyterio da montanha
(2.º v.) |
OBRAS COMPLETAS DE A.
F. DE CASTILHO
Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
XIX
O Presbyterio
da
Montanha
VOLUME I
LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
Sociedade Editora
LIVRARIA MODERNA |
|
TYPOGRAPHIA |
Rua
Augusta, 95 |
45, Rua Ivens, 47 |
1905
Advertencia dos Editores
Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos
antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa
solidão de mais de sete annos de homisio na serra
do Caramulo. A esses manuscritos, que ia publicar com o titulo de
O
Presbyterio da montanha, escreveu um prologo extenso,
descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos de
distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as
saudades de um irmão, o melhor dos irmãos, o
já então fallecido Abbade de S. Mamede da
Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo concluiu-se,
imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a
publicar-se.
O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer
como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo,
são hoje considerados espe
O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer
como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo,
são hoje considerados especies bibliographicas de primeira
raridade.
[6]
Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional
de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador,
bibliógrapho, e escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz,
outro; a fallecida snr.
a D. Maria Peregrina de
Sousa, poetisa
portuense, possuia outro, que parece ter levado caminho; Innocencio no
Tomo I do Supplemento do seu immortal
Diccionario,
não declara se era dono de algum; menciona a obra, apenas.
Quanto á parte poetica do livro projectado, essa,
não impressa, desappareceu em parte. Só algumas
poucas peças
encontrámos, umas inteiras outras incompletas; materiaes
truncados da collecção. Salvando esses versos,
cumprimos um dever moral, e outro literario.
O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico
de um edificio ainda em
construcção, e já em ruinas;
é inquestionavelmente uma das obras mais curiosas e
instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a historia, a
lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o
folk-lore,
d'aquella
região alpestre, tão portugueza, mas
tão desconhecida, tudo isso é tratado com amor,
com o cuidadoso amor de um archeologo-poeta.
Appareceu tambem uma
Introducção em
verso sôlto a certo poema intitulado
O
Sepulcro, historia de uma noite de S. João,
projectado pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito
phantastico, infelizmente por concluir. Entendemos não menos
intercalar essa curiosa Introducção, no seu logar
chronologico, por varios motivos: dá-nos
[7]
Castilho sob uma
feição poetica diversa da sua habitual, e
pinta-nos o estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia
soffregamente o ar, a vida, os usos populares da montanha. O
Sepulcro
é
pois optimo contribuinte d'este truncado banquete literario, e
fôra imperdoavel, apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do
borrão original, que possuimos pela letra do amoravel
secretario Augusto Frederico, para esta licção
actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor ditadas em
1864.
Além do
Sepulcro, outras
peças, portuguezas e latinas, já impressas nas
Excavações, teriam logar
aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, pela sua indole; mas o autor
preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. Facil é ao leitor
intelligente o procural-as.
Á MEMORIA
DO
EXEMPLAR DE IRMÃOS
AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO
PRIOR DE
S. Mamede da Castanheira do Vouga
Em testemunho publico e perenne
DE
AFFECTO E GRATIDÃO
Offerece
Antonio Feliciano de Castilho
PREAMBULO
I
O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o
classifical-o podesse por alguma via valer a pena.
Não é historico, nem ficticio; não
é didactico, philosophico, nem descriptivo; não
é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de
tudo isso, de tudo isso participa.
Nem sequer é um livro; é uma congérie
de pequenas coisas, todas mais ou menos obscuras, e quasi todas
desconnexas, e de pensamentos não procurados, se
não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem
determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles
banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que
ha em casa,
...dapibus
mensas oneramus
inemptis,
[12]
para hospedar a
cortesãos que lhe passaram pela porta. Não
procura enganal os: com mãos limpas e
coração lavado lhes
põe diante o que só para si tinha tratado na sua
horta, ceifado no seu chão, cevado no seu pateo, ou colhido
do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem; algumas
flores, já pode ser que as apresentará em vasos
de barro; mas como vos assoalha com bom rosto quanto possue,
não se vos alardeia de abastado, nem se compara com os
visinhos de casas altas e balcões envidraçados.
Como quer que vós d'elle o fiqueis, não
ficará elle descontente de si mesmo á despedida.
*
Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de
carreira, parte apenas esboçado ou apontado, ha hoje doze,
treze, quatorze, quinze, e dezasseis annos, sem pensar no Publico; para
mero desenfadamento de horas abhorrecidas; para ajudar a correr mais
depressa, em sitios tristes e ermos, uns tempos muito ermos, muito
tristes, e para mim, que nunca bem atinei com o futuro, muito
desconfortados de esperanças.
Como todo o meu fim em fazer versos não era outro
senão o fazel-os, de todo o modo me nasciam bem.
Não tinham de apparecer entre gente; não os
educava; não os corrigia; não lhes punha galas e
arrebiques. Assim sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.
Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que
não tornasse; achei-os
[13]
os mesmos que os tinha deixado:
sinceros, mas incultos e semi-silvestres, como nados e creados que eram
por entre troncos e penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por
fora o mesmo que por dentro faz a consciencia.
Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram
filhos; contavam já annos: recordavam-me tempo de saudades;
eram me saudades elles proprios; reconheci-os; dei-lhes o
meu nome; com elle os apresento.
II
Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu
que
se
compõem para o Publico; e, bem hajam elles!:
não levam á praça senão o
que teem averiguado que por lá se deseja e se procura;
põem de parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao
interesse ou gosto alheio.
Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.
Não sou eu que vou para os leitores; são os
leitores que teem de vir para mim, se as quizerem ler.
Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; as suas
occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela
minha rudeza; os seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da
sua vida, pelo recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte
desconhecida e pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só
vista de cima pelo ramo de tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela
andorinha cujo ventre branco
[14]
ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar
desde aqui (a fim de que não venham depois obrigar-me por
divida que eu não contraio), que a unica
deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar
alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no
interior da casa alheia, e nos segredos do visinho.
É o que faz com que, por mais futeis que pareçam
as memorias, que alguns escrevem de suas vidas, e as correspondencias
epistolares, quando por acaso vão dar ao prelo sem terem
sido ordenadas para elle, commummente são lidas com
interesse.
É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as
achadas de antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma
antiga vivenda particular ou casa rustica, onde os vasos e
utensís do viver quotidiano veem logo suscitar na phantasia
os costumes, o trato, e o ser intimo, da gente que ali houve.
Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o
ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos
banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas
ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos;
confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas,
de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e
virações do ceo, do sussurro das plantas, dos
sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu,
deixando de si menos v
Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o
ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos
banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas
ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos;
confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas,
de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e
virações do ceo, do sussurro das plantas, dos
sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu,
deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e a
lampada que allumiou
[15]
calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.
Os monumentos são artificiaes, e artificiosos;
são estudados, e emphaticos; a historia que elles resam
é fria. Mas cá, o romance que engenhamos,
ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado,
é todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.
*
As
impressões de viagens
estão sendo ao presente um genero de Literatura mixta mui
usado e mui querido.
Não admira: para os autores é facil; para os
leitores, recreativo quando menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que
todos temos muito ou pouco; sem cançasso nem más
poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por aguas do mar;
sem desabrimento de estações; sem saudades do que
lá
fica para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que
é repetir algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a
pessoa a viajar em corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando
aonde ninguem a espera, nem festeja, nem conhece, e onde não
ouve pelas ruas palavra nem som da sua creação.
A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos
atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam,
com a nossa casa e familia, sem até nos demovermos do nosso
quarto nem da nossa cama, se como Ovidio somos, que punha entre os
regalos da vida o de ler deitado.
[16]
*
Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o
gosto de conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são
extranhos, e não medir as distancias que nol os apartam, que
esse, pelo contrario, é o maior desconto do peregrinar,
¿por que se apeteceriam mais as viagens á
França, á
Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás
margens do Rheno,
á Russia, ao Egypto, á China, ou ainda
á Lua, do que a um qualquer monte da nossa terra,
só conhecido de seus moradores e visinhos?
¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em
cujas faldas está assentado S. Mamede da Castanheira do
Vouga, como um neto no regaço de sua avó triste e
taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se abriu a arca
depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.
Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar
montanhezes, agrestes porém bons; e tão bons,
que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal productivos, nos
seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e
pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios,
entalados nos córregos, ou inclinados a scismar tristezas
sobre algum rio fundo e triste, nunca se lembraram de vos invejar a
vós outros as vossas cidades opulentas e festivas.
Estes, com falarem portuguez, são para vós
estrangeiros, ou quasi. Como taes, não vos despraza
conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com quem por entre elles
demorou annos, e de boa-mente lá iria
[17]
agora enterrar os restos cançados
da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe lá
ficou em quieto desterro para todo sempre.
[1]
III
A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região
o novo Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade
minha continuada e sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a
sua pequena familia, de que era eu parte inseparavel.
Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais
florídos; Lisboa, a do nosso berço e da nossa
infancia. Uma e outra me chamariam pelos affectos em qualquer parte do
mundo em que eu estivesse; e não houvera eu
valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que
então cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos
elle e eu, por nos sentirmos um como o outro tão encantados
com o nosso futuro, já palpado e colhido ás
mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os
outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias,
mais amenas ou mais vívidas,
[18]
por aquellas gentilezas
incultas e mais poeticas de uma natureza quasi primitiva.
*
Passámos n'uma
bateirinha remada por uma velha moleira da
margem, o viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje
corrupto, segundo a tradição, o
bom
fiar de certa moça mui santa, que junto d'elle
vivia n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o
trabalho da sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros
lhe viesse o appellido, significando
pepinal, ou
rio das terras dos pepinos; pacifico rio, que
então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas
altas e verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de
se deter enlevado na amenidade de tal painel.
Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para
um e outro cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes,
só de longe a longe interruptas de um sovereiro torcido e
mal posto, ou de um rebanho; terreno boleado e ondeado como um lago,
que em meio de tempestades se houvesse petrificado por encanto.
São já fronteiras do Caramulo.
IV
A freguezia de S. Mamede não se vê em parte
alguma; é dispersa, e emboscada. A magreza da terra
não dá para grandes espessuras de
povoação.
O aspecto do paiz, para quem só o atravessa
[19]
é de inhospedeiro. Mas que
se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea
e desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em
todos os
corações. É porque a
solidão é de si mais
affectuosa, e a pobreza mais liberal e larga, que o rico povoado.
Esta differença e vantagem que os moradores levam
á sua terra, experimentámol-as nós
ainda antes de chegarmos á egreja e
residencia, sahindo a receber o seu Pastor novo não
só os maioraes, se não quasi todo
o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das cerejeiras
e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde
áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas
brancas.
A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para
o seu adro muito verde, apresenta-se solitaria. Das
povoações em que a freguezia se divide, nenhuma
lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia
parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de
traz, como serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por
entre os plátanos, que o portal do seu pateo toucado e
semi-velado das mais espêssas, crespas, e lustrosas heras,
onde jámais se esconderam e cantaram melros.
Ambos os edificios ficam no meio do
passal, antiga quinta «das
Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do
sinuoso deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes,
que ali teem o seu foco espiritual.
Um grande silencio rodeia largamente a
[20]
casa da oração. O presbyterio não lh'o
quebra.
Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo
rustico mas espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da
sua frontaria principal unicamente para o ceo, e para umas formosas e
corpolentas laranjeiras, que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle
clausuradas, o modesto domicilio, proporcionado pelo que sempre
deverá ser o pastor de tal rebanho, não se
retrahiu para mais longe, por traz da sombra do santuario, porque
não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez mais
precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa
para
além a esconcear,
descer, e
afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e
espumifero rio de S. Mamede.
Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a
grande altura, por cima das aguas escuras e raro alcançadas
do sol, communica esta com a ribanceira ulterior, não menos
carrancuda, fragosa, arripiada, e a pique.
Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até
ao moirisco logar de Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da
penedia d'alem-rio, entremeia apenas distancia, que, pela calada das
noites, deixa ouvir de parte a parte os ladridos dos cães de
gado, as cantigas do serão, e os alertas dos gallos a
deshoras. E comtudo, aquelle
quasi-nada para os ouvidos e olhos, é
para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem
perigos.
As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte,
giram enleadas e perplexas,
[21]
torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a esquerda, como
espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a
subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.
Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres,
são os unicos entes vivos, que por ali se affoitam a tomar
pé. Os seus frutos vermelhos, quando o vento lh'os despega
maduros, vão sumir-se entre as espumas arrebatadas.
Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes
escarpas, com poucas braças de ceo por cima, e por baixo de
si o rugir de tantas aguas, dá as
sensações de um
bello horror.
Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas
esquecidas para aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas
vezes ahi me veio por tardes de Junho, em quanto, calado e estendido
sobre as táboas, gastadas e rôtas da humidade, me
gosava da viração transpirada pela corrente.
¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma
inspiração de religiosa poesia no fundador, a que
fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço,
como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja?
¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão
escura, tão angustiada, tão clamorosa, e com
tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras
inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo
ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre,
tão aberta, o dia inteiro, ao generoso sol dos campos,
tão gorgeada a ambas suas portas
[22]
de passarinhos, tão garrida de
espadanas sobre as campas do pavimento, e nos seus cinco altares
tão ridente de flores silvestres, symbolo da alma refugida
das tormentas do mundo para o ineffavel asylo da Fé e das
Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e
transição dos dois extremos, a casinha do Pastor,
alva como a confiança, verdejante e florida como as
promessas, recatada como a esmola, inexhaurivel no seu celleiro como a
Providencia, tácita como a meditação,
com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas para a
torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores de
Deus para o firmamento.....
O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a
torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou
Mamante, foi um humilde e obscuro pastor de gado na
Capadócia, e do qual toda a Egreja do Oriente
pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou
martyr, por volta do anno 274 da nossa era.
O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o
vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres
e pacificos arredores, para o Menino, já moço na
valentia, ou para o moço, ainda menino na innocencia.
Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos
concertou.
[23]
V
Era a residencia, quando a ella chegámos,
decrépita e caduca: apparencia de choça fabricada
de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior; por fora
negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de inuteis e
desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor a havia
em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado.
A transformação foi rapida e completa. Os
alpendres desappareceram. Na casa remoçada entrou por
vidraças abundancia de luz. O pateo desafrontado foi
revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de cal bem candida,
logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro n'elle
plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que
n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já
não existe na terra, o outro declina para o occaso, elle,
medrando ainda, é já, como lh'o eu
augurára nos
meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu tronco cinco
palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura.
[2]
O novo Prior, o Rev.
do snr. Padre Antonio
José Rodrigues
de Campos, a quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho,
varão de virtude, e espirito cultivado
[24]
por Letras, filho d'aquellas boas
terras, e amigo nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do
nosso nome, conserva e zéla tudo aquillo com amor.
É para mim delicia o considerar, que á sombra
grande d'aquelle cedro, que eu regava todos os dias, quando um menino
de tres annos o poderia ainda arrancar sem custo, lerá
talvez, depois do seu Breviario, este livrinho das minhas memorias, em
que deposíto o seu nome mollemente reclinado entre tantas
outras saudades minhas.
VI
Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me
escondeu sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de
1834, o ninho em que nasceram, sem pensarem em abrir o vôo
que hoje abrem para o mundo, estas poesias montesinhas.
Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo
esboçado, peço-lhes ainda um pouco de
indulgencia, para lhes dar a conhecer, por alto, os arredores.
*
O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo
por traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno,
a escoar-se cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.
Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e
erma de Falgozelhe, se boleiam
[25]
melancolica mas graciosamente as suas hortas, os seus pomares, a sua
fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras, que
até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois
de povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada
horizontal, por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar,
até ir bater, lá ao longe, na
capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe servem de
limite.
Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias
folgavam de avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades
protectoras da Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo
agricola como este, do que achar a casa do
Creador,
e a do seu
dispenseiro, no centro da abundancia das messes, e saudal
a com a invocação de um
Pastorinho santo?
O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S.
Sebastião, por entre duas grinaldas de oliveiras e vinha, o
meu passal até ao adro; costeia a egreja e a casa pela
direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai mergulhando
para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura sombria da fonte
sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja antiga, um altar
de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, assoberbada com
um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um troço
de lança enferrujado de musgo.
[26]
VII
Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé
d'este altar, onde já ninguem ajoelha, sobre sepulturas que
hoje são tremoços, e recordemos a obscura
historia d'este sitio.
¿Por que razão só as grandes ruinas se
hão-de haver por merecedoras de
attenção? Todo o passado é poetico;
todo o evocar imagens humanas de sob a terra que pisamos, é
proveitoso para alguma coisa. Nas solidões, mormente como
esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, e que onde
hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de
ninho quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos
bons, e até festas.
Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da
Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela
margem de cá ás aguas do S. João do
Monte, que logo a diante troca o nome no de S. Mamede, um
moço por nome Jorge, humilde de
geração como tudo quanto por ali nasce e se cria,
mas de coração alto e espiritos levantados.
Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal
uma velha, que o ouvira em pequenina a seus paes, que o tinham recebido
não sabia de quem)... mas emfim, namorára-se, que
o sabia ella, de certa moça de alem-rio, guardadora de
cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro grau
de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da
[27]
sua vivenda entre penedos, levava, os dias
com os olhos sempre içados aos cabeços de
Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de
serguilha, ou do seu sombreiro preto; e ainda não de todo
malcontente, quando, por entre os penedos pardos e as urzes
côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do
precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que
obedeciam á sua voz melodiosa.
A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a
esperdiçava cantando n'aquellas solidões,
parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a estava captando com
ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido entre as
nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a
interrompesse, porque não sabia de coisa mais de molde para
o seu coração.
Vel-a á sua vontade, não a via se não
aos domingos na egreja; e nem então, que para esses dias
tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias muito alvas, e
tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe
que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a
fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das
aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que
prestem para communicar dois estados tão diversos.
*
Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é
poesia; e poesia não é vida. Ousou, e declarou-se
a medo á sua formosa; não foi repellido.
Affoitou-se a mais:
[28]
ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario em confissão. O
que
entre elles se passou, não se sabe; taboas de confessionario
não são carvalhos dodónios que
chocalhem tudo. O que se sabe, é que a moça
não tornou
a apascentar para aquella banda, e que elle, pouco depois, deixou a
terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos, sem
dizer nada a ninguem, e não levando senão o
fatinho que tinha no corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo
dizem, era grande, e o seu amor, que não era pequeno.
Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el
Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus
para onde, e para quê.....
No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento,
assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida,
apegou-se com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse
com tudo seu a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria,
uma capella da sua invocação com duas Missas por
semana, defronte de Falgozelhe, onde vivia a noiva do seu
coração, por cima da Talhada, onde tinha os
irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o
baptisaram a elle, e onde a avistava todos os domingos.....
Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria
muito em semelhante lance, em que as ondas formavam, por instantes
montanhas tão altas e escarpadas, porém mais
temerosas e feias que ess'outras, entre cujas quebradas, e por cujos
visos, elle variára a sua infancia.
[29]
Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.
Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em
Angeja, que em boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e
nunca mais tornou a aventurar-se sobre aguas do mar.
Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que
ainda ali se divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi
demolido, para ir servir como materiaes na
edificação de parte da residencia, e da egreja
nova, que já sabeis lhe estão visinhas.
*
―¿Mas o fim de seus amores?―me perguntareis
vós.
Memoria é essa que eu tambem procurei, porém
não consegui desencantal-a.
O que só pude desenterrar da tradição,
foi: que este mesmo Jorge viera a casar-se na freguezia; que tivera um
filho nascido na póvoa da Talhada; que este se
ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e
arribára a
Cardeal; em memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada
da antiga, e mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito
amadas, uma Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com
braços em baixo e em cima, oleada de verde, doirada nas
pontas, e n'ella pintados tres cravos, duas chagas, e uma
corôa de espinhos.
Vê se, venera-se, e
commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na parede do
[30]
arco cruzeiro da banda direita; e
affirma-se, que na capella de S. Jorge permanecêra com egual
honra em quanto ella durou.
Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma
póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro
velho, e onde o que só fazia bulha no meu tempo era um
pequeno moinho, rôto por todos os lados aos ventos e chuvas,
foi, ou não, nascido do consorcio a que o Padre Vigario e
seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não
alcancei; e não quero
invental-o. Provavel me parece que sim, quando me lembro do que a minha
velha me contava d'aquelles amores, e o combino com a ideia que formei
da constancia no bem querer dos moradores da minha serra.
A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a
Jorge, qualquer apostaria que o foi sempre. A fortuna
entulhára com riqueza o abysmo que os separava; e S. Jorge,
que não é Santo para meias victorias, havia
forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto.
Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de
pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome
ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os
recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e
beber á saúde da futura
geração algumas malgas de vinho verde na sua casa
da Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do
Monte.
[31]
VIII
A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o
antigo oratorio dos Condes da Feira; e a residencia, já
depois duas vezes transformada, albergue do feitor que elles ahi tinham
para lhes receber os fóros, e lhes tratar d'aquella sua
quinta, chamada, como já tocámos, «das
Limeiras».
Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto,
havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão,
do Bispado de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de
distancia da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para
Alcafaz, pertencente agora á freguezia de Agadão,
sitio ainda desfavoravel pelo estirado
e descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem
ermida, casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a
sustentação de Parochia sobre si.
N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos
hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus
amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a
espessura das moitas então creava, segundo parece, como
ainda hoje cria lobos. Folga a phantasia comparando e contrapondo
aquelles tempos a estes, e reanimando o actual silencio com um reflexo
e ecco da vida estrepitosa de outra edade.
[32]
IX
Explorámos as convisinhanças do templo e
residencia. Estendâmos agora os olhos até
ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico
senhorio.
*
D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o
logar das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S.
João Baptista, e sua fonte muito fresca.
Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da
Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa
com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do
Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que
desde as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no
alto do seu oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam,
de extrema a extrema do Reino, quantas noticias o revolvem,
sem que a boa da villa, nem outro algum dos logares que entram na sua
abençoada
confederação de rustica ignorancia, as adivinhem,
nem suspeitem, nem cubicem.
A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a
humilde póvoa de Falgarinho, de não mais que oito
visinhos.
Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se,
n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres
pessoas.
[33]
Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores,
e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e
agradavel quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de
Nossa Senhora do Livramento.
Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S.
João do Monte, que a seus pés corre,
está em amphitheatro o Avelal-de-cima,
de vinte e quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da
egreja.
Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis,
a meio quarto de legua está para o nordeste o
Avelal-de-baixo, logarejo de quarenta e sete almas, e uma capella de
Nossa Senhora da Conceição.
Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo
bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de
observação.
Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi
toda a costa dos Ferreiros, passa-se o rio de S. João do
Monte, junto ao seu confluente Alcafaz (nome arabe, que significa
«o salto»)
nome
que para ali está, ha mais de
setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a
sua origem, nem se corromper.
Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa
Talhada, de honrada memoria, berço de um Cardeal, de um
fundador de capellas, e de um namorado de lei; tres celebridades para
um ninho hoje de quatorze almas, coberto de loisas e colmo, e coroado
de sarças e medronheiros; dista-nos um quarto de legua para
nordeste.
[34]
Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede
(que toma este nome na juncção dos dois
afluentes) se atravessa na ponte de pau que já sabeis, e
onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a apanhar
á fresca.
Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas
rochas, toma-se a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda,
que em travessia da montanha, sobre a esquerda do rio, leva
até ao casal do Fontão, de onze almas, sito na
margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz, a quarto
e meio de legua para nós.
Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a
encosta; e no cimo se encontra a povoação de
Falgozelhe, de setenta e uma almas, posta a um quarto de legua da
egreja, a les-sueste, quasi na extremidade occidental de um
ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração
é o que á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz.
Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por
outra ponte de pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo
está o pequeno e vistoso logar da Falgarosa, de trinta e
seis moradores, com uma sua ermida da Senhora da Boa-Morte, a tres
quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o delicioso de seus
pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de
sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo,
com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje
rege aquelle rebanho.
[35]
Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de
se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S.
Mamede.
Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda,
de cincoenta almas, com sua capella de S. Gonçalo, a quarto
e meio de legua a sudoeste da egreja. Redonda se chama, por estar
á borda de um leito semi-circular.
*
Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas
confrontações externas.
Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do
Préstimo; pelo poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da
Aguada de cima, e Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão,
filial, ou annexa, que aínda
então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre
si; paiz ainda por ventura mais serrano e variado, mas que eu
não cheguei a descobrir.
X
O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um
corpulento ramo do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em
voz de Moiros quer dizer «abobada», ou montanha
boleada á feição d'ella.
Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros
ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que
merece. Mas, sobre que nunca o visitei, apesar de tão
visinho, recearia apoucar-lhe a
[36]
veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas
noticias que d'elle tive.
Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando
d'entre as nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa
em tempestades, em frutos magra, mas opíma
em homens e
mulheres de antiga tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da
fome, e da nudez; é um paiz de selvagens
christãos, para o qual as rudes terras do meu S. Mamede
estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios
poderia estar a antiga Attica.
*
Dois monumentos accrescentam veneração ao
Caramulo, quanto o podem mesquinhas obras humanas ás
grandiosas moles naturaes.
N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos
principios d'este seculo,
uma
especie de zimborio de doze
palmos de altura, pouco mais ou menos, de pedra muito bem lavrada e
argamassada. Para quê, não dizem; mas dizem que
por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da
circumvisinhança, por occasião da guerra
peninsular, commetteram demolil-o; mas só lhe poderam fazer
pelo norte um pequeno estrago. Dura em pé, e só
é accessivel do
nascente por uma vereda estreita e tortuosa.
O outro monumento não é menos enigmatico, e deve
estar farto de ver passar seculos e desfazer-se
gerações.
N'uma arremeçada crista, a duzentos passos
[37]
da egreja do Espirito Santo de Arca,
se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de
Arca». É
uma
desconforme loisa
inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por esteios de
pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo
sido um arrancado para as obras da visinha egreja.
Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura
dezasseis; de grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte
quatorze, pelo poente onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam
de altura doze palmos, só da flor da terra para cima; de
largura, um que fica para o poente apresenta nove palmos, tendo de
grossura pelo poente palmo e meio, e pelo nascente um palmo. Um, que
diz para o sul, tem de largura, por baixo quatro palmos e meio, e por
cima tres, e de grossura um palmo de cada lado. O ultimo, que
está para o norte, tem de largura, por baixo cinco palmos e
polegada, e por cima quatro palmos e polegada.
¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que
eras, e para que fim, se alevantou ali aquella, que á
phantasia se figura bruta meza de gigantes silvestres?
¿Sería obra de fortificação
n'um systema de guerra desconhecido? Quasi que nem possibilidades o
abonam. Uso agrícola, industrial, ou civil, nem a
imaginação mais inventiva lh'o rastreia. Memoria
de algum varão ou feito insigne, já a poderia
ser. Mas então,
¡a que rudes tempos a não havemos de referir,
visto como nem data, nem letra, nem escultura tôsca, nem
vestigio algum de arte
[38]
nem de
architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira!
Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais,
quando se adverte na semelhança que tem com os altares
druidicos, ainda hoje conservados em varias partes do que
foram Gallias e Germania.
Verdade é, que por estas nossas terras não rezam
as Historias, que se estendesse aquella abominavel seita de
sacrificadores de humanas victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que,
perseguidos, como o vieram a ser, pelos Imperadores romanos, alguns
druidas se refugiassem para este Occidente, e aqui, em retiros
montesinhos, menos accessiveis a pesquizas e
perseguições, professassem e mantivessem o seu
culto, do qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade
comparadas) não muito discreparia talvez a
religião do Endovélico lusitano.
Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem,
se vale a pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro
dos meus affectos.
XI
Nada concita aos logares veneração, como a
antiguidade.
Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além
de Moiros, Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure,
não rastejo noticia d'essas edades, com que fazer obra.
[39]
Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve
memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas
terras, nem ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem
tradições o denunciam. O solo enguliu tudo; e
nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou letra para enigmas.
Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra
da sua lavoira, na primeira valleira que se encontra á
direita do caminho indo para Agueda, se vê uma fiada de
umas como
torrinhas, que se estende por mil e quarenta palmos; das quaes
torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e algumas
porções deseguaes de muros esboroados a delir-se.
E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se
dá em uma furna chamada «a buraca da
cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva; a
qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de
largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é
geral fama que fôra aberta pelos Moiros.
*
Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou
se, dizem os netos,
que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S.
João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus
thesoiros por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.
N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a
estancia, e que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro.
[40]
Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente
já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem
medo os rebanhos para a sua visinhança; cantam aos seus
hombraes trovas muito christans; e quem quer, lhe devassa (como eu fiz)
o seu palacio subterraneo.
A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina
aberta, pelos Moiros sim, mas não para tirar oiro, que
é sempre a primeira conjectura, nem para serventia militar,
que é sempre a segunda, se não só, e
prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de
lá mana, muito fresca e saborosa, mas em pequena copia.
*
Sobre as fortificações engenha cada um a sua
hypóthese.
Ha quem as supponha posteriores á
invenção da artilharia, por se lhe figurar que
só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros
as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por
ali outros vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares
demonstra, que elles por lá viveram. E se por lá
nasceram e se crearam, não podiam deixar de fortificar-se e
defender-se contra commettimentos de inimigos, que é esse um
instinto natural a todos os homens, mas nos homens das montanhas mais
energico.
*
Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto
que o seu nome, se
[41]
christão não é (como de certo
não é), tambem por arabe se não
reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga?
Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que
podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella
serrana região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi
deixaram menos rasto que em muitas das terras visinhas, seria porque a
bruteza do monte era já então como hoje, que
não dava meios nem licença para grandes obras.
Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito
faziam em tirar da terra pão com que se manterem;
¡quanto mais, erigirem castellos, pontes, ou mesquitas, de
que se podessem admirar fragmentos depois de sete seculos!
Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo
de outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar
d'estes, se acalentaram creanças com versos do
Alcorão. Outras arvores, de que estas são remota
descendencia, viram passar á sombra das suas copas
esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda,
e turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje
é talvez poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e
ficariam confusos e immoveis se revivessem para ouvir as da nossa
lingua.
Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos,
que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de
mim o são e serão sempre.
[42]
*
Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes,
manteem-se ainda antigos. As novidades das
civilisações são como
a escravidão, e os diluvios: tarde chegam a engulir as
serras.
A Linguagem é ali, como
os ares, de uma admiravel pureza e
lucidez. Se os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se
perdessem, pela conversação corrente d'aquellas
aldeias e póvoas se poderia restaurar.
Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos,
phraseado, e
construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um
palrar de sésta de segadores entre carvalheiras rusticas, ao
estridor das cigarras amadas de Anacreonte, do que entre o ranger dos
prelos e o resfolegar das balas, n'um anno inteiro da melhor
typographia de Lisboa.
Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos,
como o
nanja o
bofé, o
canté, o
quiçá, e mil
outros, sôam por lá sem extranheza em boccas de
mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de namoradas de dezoito
nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.
Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós
aos netos a das crenças e praticas piedosas, e com esta a de
muitos seus erros e abusões. São os insectos e
musgos parasitas da arvore robustissima da Fé.
Abençoada
a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os ramos ou
cerceal-a pelo pé.
O tempo vai fazendo a pouco e pouco o
[43]
seu officio. Não ha curas nem
reformações mais prudentes e certas do que as
suas, quando á força lh'as não ajudam
ou
contrariam.
Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade
de apparições, phantasmas de almas do
outro-mundo, Moiras encantadas, thesoiros escondidos e lobis-homens; e
ainda hoje a mór parte dos moradores acredita nos
esconjuros, feitiços, bruxarias,
adivinhações, e virtudes de certas praticas e
fórmulas, para curar ou empecer.
Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis,
dão comtudo sua côr poetica muito particular ao
Povo, cuja simplicidade primitiva no viver e trajar harmonisam com taes
simplezas da intelligencia.
*
Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto
vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos,
são por ora totalmente incognitos na serra. A moda
não exerce por lá as suas costumadas
devastações de cabedaes, bons costumes, e saude.
Os vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma
uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal
renova as suas folhas e flores.
Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada
ás costas das suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e
tecida por suas mães, mulheres, e filhas, apizoada e tinta
(quando o é) sem sahir da freguesia. Trazem
[44]
grandes chapeos pretos desabados,
grande bordão ferrado, menos para defensa, que para arrimo
pelo resvaladio das ladeiras, e tamancos cravejados.
As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra,
sáia de burel de meio pizão, côr de
pinhão ou preta, collete comprido justo, sem
apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de
burel mais apertado no tear, e sem pizão, que lhes serve de
capa, lançado ao desgarre por sobre os hombros. A
cabeça, cobrem-n-a, ou com o
mesmo mandil, ou com um chapeo como o dos homens. As suas tamancas
são menos grosseiras. O lenço de seda ao
pescoço é, como as arrecadas e o
cordão de oiro, o ultimo da magnificencia, e as flores da
urze ou da carqueja o mais galante enfeite dos seus sombreiros.
São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou
romagens, quando calçam, com meias brancas, tamanquinhos de
pregaria doirada com sua meia palla de marroquim vermelho, vestem
roupinhas de pano burel fino, ou chita, põem gorjetes de
filó, ou
lenços de cassa bem pregados, e capoteiras de pontas
compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as mais ricas e senhoras
teem mantilhas e sapatos.
XII
A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita
como a cultura do solo ingrato, só põe mira no
essencial: em desenvolver os sentimentos naturaes e religiosos, o
afferro
[45]
á
justiça e á verdade, os differentes
amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o
respeito á velhice e ao infortunio.
As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas.
Esses discursos de
cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora
deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam,
inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e
dizem-n-o como o pensam.
Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para
ser bons lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas
mães, depois de terem sido bons filhos e boas filhas; e
n'isso limitam a sua ambição.
Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para
folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras,
em saraus esplendidos.
Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam
a nossa, que é melhor.
Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um
só livro em toda a freguezia; mas os louvores da sua
moralidade dariam com que encher mais de um livro para nos envergonhar.
A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o
coração bem nascido dará gosto. A
mercê e o
vós de nossos maiores são
tratamentos para os raros casos em que não cabe o
tu.
Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um
dos outros. O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou
á meza do mais rico; isto é, do que na sua tulha
[46]
tem centeio ou milho para
todo o anno; e o abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com
os seus bois a geirasinha do indigente que a não pode pagar;
e lhe leva pendurado na canga do arado o sacco da semente, para que
elle tenha tambem, lá para o verão, que ceifar
para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por instinto, que as
lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas para
quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as presenceia.
É um povo agricola, que ainda não aprendeu a
envergonhar-se do seu parentesco chegado com a terra. Entre elles se
diz «lavrador», e
«trabalhador», como em Londres
«fabricante», ou «lord», em
Roma
«cardeal», ou «monsenhor», em
Paris
«sabio», ou «homem de Letras»,
e em Lisboa «deputado», ou
«millionario».
As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão,
com o seu paquife de pâmpanos e espigas, e a letra
Ut
operaretur terram, de qua sumptus.
*
¡Que impressão, a principio de espanto, logo de
respeito, e a final de amor, me não fez o presenciar, como,
ao revéz da pragmatica das cidades, o trabalho das
mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior
vergonha!!
Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido
o sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava
[47]
(como as andorinhas do seu beirado para
o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal roupido, carrear o
adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na
roça dos mattos entre os seus operarios. A estes,
¿que os poderia admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios,
e dos Camillos, se alguem lh'a lesse, a não ser a
admiração dos
historiadores?
*
As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não
poderiam deixar de ser mais varonís do que os homens de
muitas outras terras, e de todas as deliciosas.
Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha,
com o seu costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes,
que vão formando semelhante á precedente a
geração seguinte, só são
passatempos do serão, á luz da candeia, das
pinhas bravas, ou da fogueira, que allumia e alegra os penates
afumados. Madrugam como a aurora para os trabalhos fortes. Os bois
conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente jungir e guiar pelas suas
mãos. Na vindima, carregam á cabeça
cestos, que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as
mãos alvas e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas
ceifas, transportam á cabeça montanhas de
espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan sob
o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua grinalda
de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em
bemaventurança para dez familias. Nas renques
[48]
dos saxadores e dos
roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião
não mais leve, deixal-os muitas vezes para traz, e
envergonhal-os com seu riso de triumpho.
Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O
exercicio, Anjo custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra
ao mesmo tempo no sangue a saude, que do sangue se côa ao
leite, e do leite aos filhos. Seriam as amasonas da paz, se
não tivessem ambos os peitos muito bem inteiros, e se os
homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as lidas.
*
Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz,
que moralmente parece distar do nosso duas mil léguas,
é a
sujeição da mulher; facto que eu não
moraliso, mas só historio.
As mais graves, tanto como as mais somenos, não
só á laia das Penélopes
e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio
até meia-perna; não só no
tráfego de porta a dentro, na cosinha para a familia e para
os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de
ministrar de pé, como servas, á meza de seus
maridos e filhos, nem em dias de festa ou bodo, quando a assistencia de
hospedes mais poderia assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as.
São sempre aquillo: sempre passivas, boas, e contentes.
[49]
XIII
Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão
já minuciosas e pueris estas noticias; mas hei-de
já agora continual-as, e seja com vénia sua. A
outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns
annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem
renteado as asperezas das serras, alguem festejará encontrar
estas antigualhas, nas folhas já por ventura rôtas
e descosidas d'este livro.
Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao
commum da nossa gente; mas então hão-de ser
antigualhas fosseis, e portanto com veneração
duplicada venerandas.
*
A indole da gente é de si commedida e pacifica.
De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre
ella achar amostras, que emfim, terra é, e não
paraiso; mas nem tantas proporcionalmente, nem tão feias e
monstruosas em geral, como em outras partes, e em quasi todas.
Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com
todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico;
ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de
trabalhar contínuo, para se despender em vida de enredos,
corrupção e maleficios; nem tão
extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o
despeito, o despenhem de salto em
[50]
salto até ao fundo da
depravação.
É o
inter utrumque, a
aurea
mediocritas.
Conservam inteira a Fé religiosa.
Não lêem, nem conhecem, nem levariam á
paciencia, jornaes que desorientam, desencantam, e põem o
genero humano em guerra viva comsigo mesmo.
E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura
toda novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e
venenosa, que por cá nos trabalha, e de cujos herpes adoecem
até as familias, que a maldizem, e a repulsam da sua porta.
Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de
só provir da fragilidade, ou dos impulsos subitos da
natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na consciencia
remordimentos.
Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a
julgam; quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida
como aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se
conchava.
D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais,
resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e
innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em
graças exteriores, em tactica, em egoismo infernal e
assolador. Nos amores ponhâmos o exemplo:
*
Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e
persuade: tendem á união, de que se originam as
familias, e por onde a especie se mantém.
[51]
Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior
arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além
do ocio lhes fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que
estimulam e irritam as phantasias, para o casamento se namoram, e
não por alardo; para goso do
coração, e não da vaidade.
Põem no merecer as diligencias que outros põem no
conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar no
repellir e despresar depois de saciados.
Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de
seducções, de emboscadas, enganando-se e
sacrificando-se um ao outro.
A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem
se ufana em desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um
theatro, ou no vão de uma janella de club, em noite de
baile, um copioso canhenho, meio historico meio fabuloso, dos seus
triumphos. Ali, ali é que as mulheres se podem gabar de ser
amadas, pois o são sem disfarces nem encarecimentos;
são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem
modistas, nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem
mestres, nem lisonjeiros, nem romances, as transformaram.
São-n-o pelo que são, e não pelo que
possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.
Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão
lá supprir lindezas do corpo,
graças do animo, ou preciosidades do
coração.
Não é entre prestigios deslumbradores, n'um
ambiente de calor artificial, estimuladas
[52]
ou vencidas do exemplo, da
occasião, do medo ao ridiculo, e da audacia emprehendedora,
não é ao abrigo do estrondo e confusão
de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras
declarações; é
ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de
suas mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva
com as parentas e amigas, em derredor da merenda, á sombra
das carvalheiras.
São amores que se não escondem, porque
não teem de quê; amores que se exhalam debaixo do
ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada capella do festejo, ao
som folgasão da
Mirontella roncada
pela gaita de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante
do arraial.
No progresso de taes inclinações é
sabedora e consentidora toda a visinhanca; e esta mesma notoriedade
defende os nossos namorados, tanto de se deixarem arrastar de seus
mutuos desejos, como de se desvairarem e cahirem em infieis.
Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações,
não menos obrigado a
lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia
commetteria galantear a conhecida por
emprêgo de outrem, certo em que nenhuns
lucros lhe surtiria o empenho, senão só motejos e
descredito.
D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma
constancia verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o
bem-querer d'estes Jacobs e d'estas Rachéis.
¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser
sinceras, hão de confessar que a escolha
[53]
que n'um baile fizeram... só
durou até que veio o baile seguinte! ¡Quantas,
quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que pelas duas orelhas
que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo
tempo) se poderia contar, perguntando á sua modista franceza
quantos vestidos novos lhes havia feito!
Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno
passado, demorar-se mais a encher a malga para certo segador que para
todos os outros, e pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a
pôr á cabeça a gavella das
espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este
anno; continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua
mulher, os cuidados dos filhos e da casa a impidam de seguir, como
antes, por passos contados, o seu gosto.
Observação tão curiosa como
verdadeira:
Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós,
que a variedade dos serviços rusticos tão a miudo
lhes depara, rodeadas da Natureza por todas as partes, vendo livre o
amor nas aves e nos rebanhos, favorecidas pela solidão
selvática e pelo
silencio, e pelas moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois
crepusculos em cada dia, e em cada semana de inverno por tantas
tempestades improvisas, como aquella que rendeu e debellou a vidual
constancia de Dido e a piedade de Enêas, quando o hymeneu deu
com o relampago o signal de suas bôdas, e as nymphas pelos
altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de fragilidade
como a de Dido por phenómeno
[54]
se apontam; e annos e annos se devolvem, sem que
um só se realise.
Quando porém se dá, e vem a lume filho
não de benção, o peccado de amor
não se carrega de crueldade. O innocente não se
faz victima expiatoria dos culpados, perdendo a vida entre as
mãos de quem lh'a deu; horror nefandíssimo,
inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; nem
tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas
da noite, á porta lá ao longe de um desconsolado
asylo, aberto pela misericordia em lagrimas ás lagrimas dos
filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor para se
crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, e se
finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias.
Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo
infanticidio moral, mereceria qualquer das minhas serranas um falso
titulo, que ainda mais a faria corar, que a tácita
confissão da sua culpa. Sabe renunciar os louvores com que
d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu cadaver
do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa;
tudo... como lhe fique para consolação da sua
queda o encanto ineffavel de apertar nos braços o seu filho.
Se o mundo todo, se o proprio amante, a desamparasse, tudo tudo
esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se afortunada. De
não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a consciencia
de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o sublime
encargo, o natural sacerdocio da maternidade.
Estas resignadas victimas, immoladas por
[55]
um amor, por outro amor ressuscitadas mais
interessantes, estas victimas, em quem a virtude, produzida pelo
arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi em lustre a
virgindade, são poucas; são rarissimas;
custar-nos-hia a encontrar uma. Quando porém a
desencantasseis, lembrando vos do que sabeis d'estas nossas grandes
terras, fio-vos que bastante commiseração e
respeito vos infundira.
*
Casas de perdição para a mocidade, como nos
povoados grandes se alinham em ruas e ruas, e até
já por villas e aldeias
vão surdindo, não se conhecem lá, nem
se poderão tão cedo conhecer.
Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de
vergonha, a que se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em
que as sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso,
são victimas das victimas que ellas sacrificam.
Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se
transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade
dos casaes.
XIV
Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve
de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento.
*
Os casamentos não são nunca determinados por
considerações de haveres ou de jerarchia.
[56]
O cálculo rala pouco
os pensamentos d'estas gentes, acostumadas a viver com pouco, e a
confiar muito na Providencia. As palavras
dote e
escrituras apenas seriam entendidas.
Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e
economia, a ajuntar para
uma cama de roupa,
uma teia de estôpa, outra de linho, uma peça de
burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma panella e dois pratos,
uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires de milho, e
outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da fortuna, e trata
logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.
O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo
commum, consta de um anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro
uma camisa para o dia grande.
Mal que este desponta, vê já de pé os
dois afortunados, garridos e bizarros com o seu
aceio
dos domingos: ella, sobretudo,
flammante como uma Imagem, com arrecadas, cordões, e
alfinetes sobre lenço de seda, mantilha lustrosa, ou chapeo
de feltro novo com enfeites.
As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e
visinhas, que de boa-mente
lhes
acodem, cada uma com o seu
melhorado, convencidas como estão
(especialmente as solteiras) de que alguma coisa da
benção matrimonial poderá vir apegada
aos diches e galas que figuraram no apertar das mãos.
Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se
preparam de vespera para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que
[57]
sendo florído tem
mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do
travesseiro
(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem
liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e
lan; no que, vai grande condão de conformidade de animos,
perfeição de ajuntamento, e dura do bem-querer;
com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, não
faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.
O pretendente, com os seus apaniguados, espera já
á porta da noiva a sua sahida. Esta apparece emfim, como uma
aurora da serra, incendida de pejo, e orvalhada com as lagrimas da
mãe; e segue com o rancho, a pé, caminho da
egreja, levando ás costas as bençãos
do pae, em que ainda por lá se
crê, a turbação no seio, e nos ouvidos
os votos e resas de bom agoiro, recitadas com fé por alguma
velha mais sabida.
A egreja está já á sua espera aberta,
juncada de espadana, com o altar enflorado de fresco, e a alampada
atiçada.
A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas
cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a
todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do
sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso
sobre os deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo
do templo não é interrompido com
pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de tropa,
brados de mendigos, assobios
[58]
de rapazes, martellar de artifices, zabumbas de arlequins.
Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai
profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e
afugentar as evocadas memorias de
Lia,
de Rachel, e de Rebecca.
O que unicamente chega lá de fóra, é o
chilrar de algum passaro sobre alguma cerejeira do adro, o amoroso
carpir de alguma rôla na matta de S. Sebastião, ou
a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no
trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da
Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da
progénie de Adão.
Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com
mais clara e muito mais formosa benção.
*
É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a
Deus não ser mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de
dois nomes um só nome, como de duas metades distinctas se
forma um todo inseparavel.
É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra,
solemnissimo, e que, por isso mesmo, se deveria por todos os modos
pintar com indeléveis e suaves tintas na memoria, para que a
sua imagem no meio das tentações podesse acudir
como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.
Quem se recordar de que proferiu o seu
[59]
voto, e escutou com jubilo outro egual,
onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de
obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde
com o sol entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e
fragrancias naturaes com as virações, quem,
repito, de tudo isto se recordar, ha-de-lhe parecer que Deus percebeu
melhor as suas palavras; ha-de alguma vez devanear em si (mas que o
não diga) que bem poderia ser que alguns Anjos estivessem
ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a
prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a
mulher...
*
Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos
alvoroçados, e por entre os parabens e vivas dos
assistentes, encontram, começando logo no adro, de praso a
praso, por toda a extensão do caminho até
á casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro,
ramos de pinheiro, oliveira, roble, canas verdes, e quantas hervas e
plantas bravas menos espinhosas ou mais floridas brota o monte.
Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua
toalha, e ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa,
estão, postos de antemão pelos muchachinhos que
formam a primeira frente do préstito triumphal, um prato de
bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os quizer tomar;
outro vazio, para a gratificação voluntaria, que
ninguem deixa de lhe lançar.
Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa,
[60]
e industria mais esmerada; foram esses
prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de seus
afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes
naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos
padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem
concertadas que podem, um á moça, outro ao
mancebo; os quaes, logo a diante, de ordinario entre si os trocam; e
junto á salva dos ramalhetes se vê um abundante
refresco de bebida e comida para todo o acompanhamento, sendo o acepipe
obrigado ás filhós de mel.
Em cada uma d'estas
estações chove
de todas as partes a saraivada dos confeitos; bebe-se á
saúde dos «bem
empregados» e «de quem d'ahi a nove mezes ha-de
vir.»
*
O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos
convivas quantos admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as
boas vontades prestes para quem se quizer apresentar.
Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e
o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse
«o desposado» (contra a regra do nosso falar
galanteador), porque o logar da direita se lhe dá a elle. A
dignidade varonil em nenhum lance esquece entre aquellas gentes
primitivas.
N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e
com um
[61]
só talher, e
bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer durar a
refeição
dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu
bonissimo sentido, que não podia ser outro senão
representar a communidade e harmonia intima, em que esperavam e
professavam de viver.
*
Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas,
rabecas, e ferrinhos, dando se a rôdo comer e beber aos
tangedores.
Em quanto dançam, algumas moças donzellas se
furtam subtilmente á companhia, para irem enfeitar de flores
o leito nupcial, desfolhar entre os lençoes rosas de cheiro
(se a estação as dá), e guarnecer a
roca e fuzo symbolicos de amores perfeitos.
Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita
da quinta que é meia-noite, ha já muito que os
obsequiadores bondosos teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas
de calmaria de certo suavissimas, apóz um dia todo por fora
e por dentro tão festejado e tão
revôlto.....
XV
O nascer de cada filho é uma festa.
Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e
mostra a experiencia que se não enganam), crêem e
repetem, que filhos ainda em casa pobre são riqueza; que por
taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a lhes
acudir com mais larga mão;
[62]
e que a meza, por ter mais Anjinhos ao
pé de si, se não ha-de fazer mais
escaça, se não medrar á
proporção de
tão bons hóspedes.
E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes
um onus, um sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se
ouvem mães e paes deploral-a como castigo e praga;
lá na serra, onde ha trabalho proporcionado a cada edade,
lá na serra, onde, como em enxame bem regido, todos os
consumidores são productores; lá, onde
só
são necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes
são os mestres, o exemplo
lição, a laboriosidade e sobriedade
herança; ninguem se atormenta sorteando na phantasia
empregos ou futuros novos para a sua progénie. Lá
os filhos são
rebentões, que alegram, remoçam, e
espécarão a seu tempo a velhice decadente de
quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.
*
Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres
experimentadas em taes lances, que supprem a falta de parteiras e
doutores, tem-se já prompta a canastra que lhe ha-de servir
de berço.
Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é
escrupulosamente velada, para que não venham bruxas
malfazejas a chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol
candeia bem experta; e ao clarão d'ella, com os olhos fitos
no innocente, e quasi sempre em pé para que as
não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as
amigas da casa.
[63]
Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão
entoando com a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do
pé embalam brandamente o bercinho. Algumas folhas de
oliveira ou palma, que figuraram no altar em Domingo de Ramos,
queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam muito
bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e janellas.
*
Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de
romanas crenças a graça, a fragrancia poetica, o
saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu sinto.
¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e
tão christan como ella é, praticam o mesmo que os
legionários romanos provavelmente ensinaram a nossas
avós ha mil annos, e mais, pelo terem visto fazer nas
aldeias da sua terra a suas mães e mulheres!
¡Cuidar que estamos vendo, com pequena
degeneração, o que o mais rico poeta da
Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente!
E se não,
oiçâmol-o, e julgareis:
Negreja ao réz do Tibre
annoso Helerno,
santo bosque, onde levam sacrificios
inda agora os Pontífices romanos.
Ali nasceu outr'ora, ali vivia
a que nossos avós chamavam
Grane,
casta Nympha, de excelsos pretensores
[64]
pedida vezes mil e em vão
pedida.
Era seu exercicio errar nos campos,
as feras perseguir com dardo agudo,
e as redes emboscar nos fundos valles.
Inda que aljava ao lado
não trouxesse,
criam-n-a irman de Phebo; o parentesco
não poderia, ó Phebo, envergonhar-te.
Quando algum namorado a requestava,
tinha prompta a
resposta.―«Aqui,―dizia―
ha nímia luz, e a luz
dobra a vergonha...
Se preferes entrar n'aquella gruta,
sigo-te.»―Á gruta o crédulo voava;
ella torcia o passo, ia á carreira
das moitas na espessura
homisiar-se;
d'ali desencantal-a era impossivel.
Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;
combateu lhe o rigor
com brandos rogos,
e a sólita resposta obteve em
prémio:
que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe;
segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge.
O que
lhe fica apóz vê Jano. Ó louca,
no
usado esconderijo em vão confias;
olha como t'o observa, e
t'o devassa.
Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus
braços;
eil-o comtigo a sós na cava penha,
onde havias buscado o teu
refugio.
Saciados os sôffregos
desejos,
―«Em
paga d'este goso―exclama o Nume―
dos quícios a tutella eu
te confio;
pela honra perdida esta conserva.»
Assim falando,
candida varinha
lhe entrega, com que os tétricos asares
das
protegidas portas afugente.
[65]
Existem de brutal voracidade
umas infames aves;
não já essas
que de Phineu a meza espoliavam,
mas
da mesma relé: cabeça grande,
fito olhar, bico
audaz, grizalhas plumas,
garra adunca; esvoaçam pela noite;
onde encontram creança ao desamparo,
que a ama deixou
só, prestes a empólgam,
arrancam-n-a do
berço, e a dilaceram.
Diz que as lactentes
vísceras co'os róstros
lhes picam, lhes devoram;
teem as fauces
sempre repletas de sorvido sangue.
Do estridor
com que as trevas
alvorótam,
lhes vem o nome: estriges
se
nomeiam.
Estas pois, quer de si nascessem aves,
quer em aves, de
velhas que antes foram,
fatal conjuro marso as encantasse,
penetraram
de Proca no aposento.
Com cinco soes de edade, o innocentinho
era ao bando ferino
egregio pasto.
Já co'as gulosas linguas ferem, sugam
o tenro
peito nu; sôam do infante
os consternados trémulos
vagidos,
com que, á falta de voz, auxilio pede.
Corre a ama assustada; acha nas faces
do caro alumno seu
lavado em sangue
das brutas garras os crueis vestigios.
¿Que
fará? vê-lhe o rosto exangue,
murcho,
que na côr arremeda as tardas folhas
já do
rígido inverno bafejadas.
Corre a Grane; o successo lhe relata.
―«Cobra
valor―a Nympha lhe responde;―
[66]
viverá teu
alumno.»
Entrada ao berço,
acha a mãe, acha o pae,
sôltos em pranto.
―«Eis-me; enxugae as
lágrimas―exclama;―
vou tornar-vol-o
são.» Diz, e tres vezes
de medronheiro com
frondosa vara
fere da estancia as portas; outras tantas
co'a mesma vara
o limiar sinála;
rega o ádito; as aguas com que o
rega
encerram salutifera mistura.
Entranhas cruas de
bimestre porca
toma nas mãos, e diz:
―«Aves da noite,
í-vos, deixae as
puerís entranhas.
N'esta pequena victima tenrinha
o tenro
pequenino aqui resgato;
é coração por
coração; tomae-o;
por visceras são
visceras; redima
esta existencia immunda outra mais nobre.»
Finda a sacra
oblação, corta o
deventre,
e esmiunçado o vai
pôr aos ares livres,
prohibindo do rito ás testemunhas
olhal-a então
ninguem; por fim colloca
a vara de oxiacanta, o don de Jano,
na
janellinha que dá luz ao quarto.
Consta que desde então
não mais
volveram
ao berço aves ruins;
saude, cores,
tudo refloresceu
no innocentinho.
[3]
[67]
*
O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois
côvados de baêta encarnada ou verde, vinho,
assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, conforme o dia em que acerta. A
madrinha dá um vestido, duas camisas, e uma touca. Cada um
dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu brio.
Este dia é quasi tão festivo como o do casamento,
pois n'elle se cumpre a benção que no primeiro
dia se recebêra, e está salvo o interessante
pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que
as bruxas nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo
do peccado.
XVI
Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e
baptisado, cada povoação celébra a
sua, pública, no dia do Orago da sua capella. Tem fogo do ar
e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns aos
outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o
consentem, andam já desde a vespera á tarde pelo
adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o tambor, e despovôa-se
a visinhança com o chamariz do fogo de vistas nomeado de
armação, ou
parreira.
Por esta occasião, nas casas principaes, isto é,
nas menos apertadas, saltam-se até a meia-noite as
danças, pela mór parte cantadas, do bom Portugal
velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle
vivente archivo
[68]
de antiguidades, nem
já, quasi, os nomes se conservam. São o
caracol,
o
Senhor da serra, o
lundú,
ou
landum, o
escalhabardo, a
ribaldeira,
o
Francisco bandalho, etc.
A excitação do saltar, a virtude inspiradora do
vinho verde, e um poucochinho o natural desejo de brilhar diante das
raparigas e dos rapazes, fazem ás vezes com que ahi
appareçam, como nas romarias, como nos serões dos
lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de gosto, poetas e
poetisas que trovam de repente, e á porfia, por
espaço de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.
*
Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.
Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem,
estão em pé, um diante do outro, no meio da roda
dos ouvintes. A toada de que se ambos servem, é sempre das
mais populares, e vai toda remançada, para que as ideias e
rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou
desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de
declamação accentuada.
O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro
versos, correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou
consoantes; isto é: usam das quadras correntes em todo o
Reino.
Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme
lhes convém.
Principiam (é obrigado) por uma especie
[69]
de elogio, ou vénia, ao dono da casa,
se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se
é em terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou
dos seus proprios amores; e d'ahi, muitas vezes sem
transição, saltam para um genero entre elles
muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico
fescenino»,
se, de envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como
entre os Antigos, os dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se
empulham e desempulham, como os dois pastores virgilianos, com
surriadas de impropérios sempre ao galarim, sem que o fogo
das palavras prenda nunca nos corações. Com a
mesma
feição com que dizem, com a mesma ouvem; e
tão avindos saem da contenda, como n'ella entraram.
Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da
sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por
mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e
que tudo quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.
*
Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes
porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é:
que a primeira metade de cada quadra tem frequentemente um sentido
diverso, e desconnexo do sentido da segunda metade.
Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma
verdade vulgar, uma
[70]
imagem campestre,
a exposição succinta de qualquer facto, mas sem
relação alguma com o assumpto que se versa, o
qual só nos dois versos ultimos apparece.
Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em
pratica de amigos com meus leitores:
O loireiro bate bate,
que eu bem o sinto bater.
Para comigo cantares
has-de tornar a nascer.
Á couve se come a folha;
come-se a raiz ao nabo.
Só te espero ver casado
sendo mulher o diabo.
Navio d'el-Rei é grande,
é grande e chega ao
Brazil.
Se namorares alguma,
não seja á luz do
candil.
Sequidão cria o centeio,
frescura cria os repolhos.
¡Quem me estreára comtigo,
menina, os
lençoes de folhos!
Já se vê, por estas amostras, que a
improvisação não é
tão difficil coisa, nem para tantos encarecimentos, como a
teem feito alguns viajantes, d'estes que só viajam no seu
quarto, embarcados na sua poltrona.
É por cá o mesmo, que provavelmente
[71]
será por toda a parte, sem exceptuar a
Italia, com que tanta bulha se nos faz.
Al porto di Livorno
è giunto un bastimento.
Cara, morir mi sento!
mi sento, o Dio, mancar!
XVII
Muito, porém, se enganára, quem inferisse que
toda a poesia dos meus serranos é de egual teor; porque,
sobre conservarem muita xácara de bons tempos, com as suas
lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices
e aprasiveis como ellas (o que já não seria
pequeno cabedal), cantam, e ás vezes engenham com singular
felicidade, quadras repassadas de amoroso affecto e graça
natural, que um poeta de nome não enjeitaria.
E ¿que muito? ¿Por que não haviam de
nascer estros por ali, onde ha tanta Natureza, tantos sitios
inspirativos, tão bons ocios na solidão, tantos
amores (¡e amores
tão bem empregados!), e tão largos horizontes
para a saudade!
¿Por que não haviam elles de nascer, quando
até pelas nossas encruzilhadas mal cheirosas e escuras,
pelos nossos botequins fumosos e azoinados, pelas casas d'essas ruas
feias, onde olhos e ouvidos se perdem e afogam em prosidade vil,
rebentam, viçam, e não raro florejam, talentos de
estimação e de valia?
[72]
Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades,
muitas coisas lhes empecem (não falando no desamor que os
esfria, e nas parvoas invejas que os matam); aos montanhezes,
afóra a Natureza, que lhes abunda, tudo mais lhe
mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha
poesia, como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde
pastor, appareceram as Musas, não invocadas, para o
bemfadarem.
*
¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não
esperdiçam, e, por falta de um prodigio que os desencante,
fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!
De uma pobre mocinha ovelheira
posso eu dizer; que por tardes de
verão muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado
nos degraus da capella de S. Sebastião; ella ali perto,
cantando e fiando em pé á sombra de um sobreiro,
no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como bem se pode crer,
¡enfeitiçados com a placidez de tão
livres horas em logares tão fugidos, tão
sobranceiros ao mundo todo!
De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos
corados, não da memoria se não do espirito; e o
espirito d'ella, estava-se conhecendo que lhe residia no
coração, tão bem,
tão bem, tanto a seu grado, como em estufa bem quente uma
planta mimosa, que um ameaço de frio mataria.
[73]
Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca
ouvira de obras de poesia senão as cantigas da sua terra, o
murmurinho dos seus rios; de madrugada a cotovia perdida pelos altos do
ceo; ao meio-dia as porfias das cigarras; ao descahir da tarde o
badalar longinquo das Ave-Marias; ao cerrar da noite o
regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus moradores, os seus
rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus
rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a
alma; de noite os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do
seu namorado.
Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha
encarecer o que ella improvisava para as suas ovelhas, que a
não entendiam; para mim, que me occultava com mil cuidados
para não afugentar tão melodiosa ave; e para o
ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se
ao-pé da sua.
Era a inspiração lyrica mais formosa, se
não a mais remontada. Eram os objectos do seu limitado
universo a mirarem-se na limpidez dos seus affectos, virginaes e
namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras destillando-se cada uma da
sua ideia com a propria côr, com a propria fragrancia que lhe
competia. Era o metro a correr, sem quebra nem extravasamento, a flux,
sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as rimas a vir poisar
espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da outra, como em dois
arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois passaros gorgeando.
Era tudo, emfim, quanto
[74]
a Arte requer, e só a Natureza pode dar aos seus mimosos
¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!...
Até já as suas ovelhas se esqueceriam d'ella.
Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais
vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus
poemas. Se ainda canta... já não é a
terra
quem a ouve. Remontou o vôo muito mais alto que o da cotovia
sua mestra; engolfou-se por entre as scismadoras estrellas, que tantas
coisas em segredo lhe ensinavam; e virgem entre os Anjos, irman entre
seus irmãos, entretece a sua voz immortal no cantico sem
limite
XVIII
Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem
menção da sua Musica.
É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos
dizer de muita; e conserva puro e extréme o primitivo sabor.
Condiz com a Linguagem, com o trajar, com os costumes; seria excellente
oráculo para consultarem os modernos compositores de operas
nacionaes. Assim se temperariam para os nossos ouvidos, os quaes, posto
que affeitos de annos para cá a peregrinas melodias de muito
mais altos quilates, ainda comtudo se ageitam e conchegam melhor com as
toadas sentidas e singelas da nossa creação.
Nas boas horas fique a musica italiana,
[75]
pois que entrou, e nos cahiu, e o merece;
mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda,
não se diga que aposentámos
nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por
trazer vasquinha e falar chão.
Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o
até (se já
não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a
granel por essas comedias e farças, em que fala gente do
nosso sangue e dos nossos nomes. Mas uma vez ou outra (
al
de
menos por
cortezia, como dizem os meus serranos), deixem-nos ouvir em
boccas patricias coisa que nos alembre das cantilenas de nossas amas,
cantilenas que, ainda depois de apagadas da memoria, lá se
ficam algures no
coração, com quanto basta de vida para
ressurgirem ao primeiro aceno.
Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e
arbustos exóticos da mais admiravel louçania;
mostre-nos lá, emboscadinho na herva, o malmequer da nossa
primeira adolescencia, a papoila retinta, que nos ria d'entre o verde
da seára, quando meninos; a papoila e o malmequer muito mais
nos hão-de conversar com o
coração um só minuto, que todas
ess'outras flores mais soberbas em toda uma primavera.
Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que
muita vez n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com
saudades os descantes da serra.
Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de
difficuldades, a dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe
revolve aos pés, a sumir os seus píncaros
florídos
[76]
e trémulos pelas nuvens, admiro-a, applaudo-a, e
esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o
coração.
Porém certas cantigas que eu sei... não as
applaudi, não as admirei quando as ouvi, mas senti-as
repassar-me até ás fibras intimas;
assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em
substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do
silencio.
Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares,
da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter
encontrado.
E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas
não são algumas, até para orelhas
forasteiras, quanto mais para as do seu molde!
*
¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de
condão! ¡Se, em vez de vos falar do que por
vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos
lá de subito, a beberdes com aquelles ares bonissimos
aquellas cantorias agrestes, sem cultura, sem enxerto, luxuriantes de
natureza, macias, avelludadas, rescendendo a amor e
contentamento!
Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas
por mãos perítas, nos podiam abastar de muito
oiro, que a Arte, batendo-o e cunhando-o a seu modo, poria em facil
giro com geral proveito.
O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas
solidões, edificaria como Amphião novas Thebas,
attrahindo e
[77]
congregando com a
sua lyra penedias e florestas.
¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final.
Mas por ora, o thermómetro do patriotismo assignala graus
para baixo de zero.
Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se
teem voltado; e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo,
querendo Deus; ¿mas quando? sabe-o Elle.
Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer
levantar-se. Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que
se admiram em alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem
pequeno custo, bem farta corôa grangeára.
¿Que digo «custo»? ¿Onde ha
ahi delicia como é o viajar caçador de Artes, por
toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com
agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto
dos thesoiros que se tomam?
*
Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus
espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular
feição de melancolia mui suave, era a
extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes a
perder de fôlego. É donosa coisa;
mórmente pela noite, e ao longe...
A explicação d'esta singular maneira deve ser,
segundo me parece, o costume de cantarem muitas vezes a sós
por lombas descampadas e cumes de oiteiros, d'onde a voz tem de correr,
e correr, primeiro que tope com ouvido em que se hospéde.
Outras vezes
[78]
é
ao-pé de estrépito de aguas,
que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em
paragens de eccos, nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si
mesma namorando.
*
De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro
por estirado valle, ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras
conversando por cantoria; e, graças a este methodo de irem
fiando cada syllaba... comprida... comprida... entendiam-se (podendo
apenas enxergar-se), como se estiveram assentadas mão por
mão, e muito manas, á
soalheira no seu aido.
Sustentam-se estas entoadas conversações, em
prosa inteiramente desatada de rithmo, e não obstante
rimada, rimada por um modo tão insólito como
facil.
Exemplo:
¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:
―Ó ia, eu te digo
ó Maria,
Ó iga, que se tu
és minha amiga,
Ó á, botes as cabras para
cá,
Ó enda para me ajudares a comer a merenda,
Ó eijo, que
tenho aqui brôa e queijo,
Ó ôas, e umas
maçans muito bôas.
E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a
outra interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão
no colloquio por ter chegado a sua vez.
[79]
XIX
Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica.
Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.
*
As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos
as de cada familia e as de cada aldeia) são: o Anno-bom, o
Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e o Natal.
*
O Anno-bom não é ao presente senão um
rebate para comesaina rasgada, e se deitar uma can fora.
As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado,
já lá vão.
Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras
ao cabo se desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao
romper do primeiro sol do anno os cachopinhos de cada
povoação, todos em bando, o mais bem arreados que
podiam, com suas sacólas, ou alcôfas,
ás costas, a cantarem de porta em porta, e, percorrido o
logar, de aldeia em aldeia, até se lhes acabar o dia, umas
trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de campanudos louvores
á bizarria do pae ou mãe de familias, e
desfechando sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou
pão branco, para a ajuda do
refestêllo;
contribuição com força de Lei, mas de
que todos se desempenhavam á boa-mente.
[80]
*
O Carnaval, é como ainda nós por aqui o
conhecemos nos seus dias aureos, tríduo de folia desatada,
guerra porfiada e bem rida de todos contra cada um, e de cada um contra
todos.
São as pulhas, as peças, os esguichos, os
pós, a laranja
.....que
derruba o chapeo,
de que o bom
Filinto com tanta
saudade se lembrava lá em
París, o rabo-leva de tripas entufadas, a mão de
ferrugem da chaminé com azeite pelos fucinhos, as
estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho
com sal, as filhós com trapos, e todos os mais
adminiculos, que no
ritual classico se conteem.
Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se
não veja povoa nem viva alma, duas coisas se
hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e apupar;
toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra
são descargas de espingardaria. Ninguem tem
caçadeira velha em termos de dar fogo, que não
saia com ella a salvar.
N'esta occasião (não sei por quê) o rio
de S. Mamede parece marcar fronteira entre duas
nações inimigas; a metade
cíterior, e a metade ulterior da freguesia, formam dois
exercitos, que, disposto cada um na sua banda pelos altos mais patentes
e convisinhos aos seus adversarios, para lá lhe atira por
cima da torrente, sem folga nem misericordia, turbilhões de
chascos, de apupos, de rugidos
[81]
de buzinas, de buxas accezas, e fumarada. Estremece a terra sob
os pés; retumbam pelo ouco dos valles, pelas refolhadas e
sinuosas lapas das ribanceiras, os rolantes trovões
centuplicados...
O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado
asninho, visitando as povoações, com barbas
brancas em faces avinhadas, e canna em punho para se abordoar, facil,
prasenteiro, com séquito de rapazía a abuzinar, e
de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem
poderá ser o próprio Sileno das bacchanaes,
metamorphoseado pelo tempo, constante parodiador das suas mesmas obras,
pois não é necessaria grande
perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se
conciliaram diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as
saturnaes; por embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e
quejandas (o numero era folgado).
As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos
redís e apriscos, para se estarem regalando ao banquete da
familia, teem um Carnaval particular, um Carnaval nómada e
silvestre, cosinhado e comido ao ar livre, e a que ellas chamam
«o seu gôrdo».
O
gôrdo, para o qual de
tempos se andam aparelhando, é feito por varias d'ellas em
commum, convidadas e admittidas outras amigas, e algumas vezes tambem
alguns moços seus parentes.
Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um
gôrdo; e ainda agora me está sabendo.
[82]
Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso
de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um
vestíbulo de areia parda e fina, á borda da agua.
não lhes faltando os competentes
.....vivo
sedilia saxo.
O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os
comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria
folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de
leite recem-mugido.
Terminaram com uma dança no areal, por não haver
melhor, e debandaram, cada uma atraz do seu gado, quando já
lá por cima branquejavam estrellas. A fogueira
serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na
corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as
levaria.
Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos,
parecidas com o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas,
travada com ellas, uma usança ha ali, que só ali
ha, e que eu aponto, não só
porque me ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não
porque dará luz para se entender o poema que a diante vai,
com o titulo de
Domingo gordo dos montanhezes.
N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S.
Sebastião, que já sabeis
orla o passal pela banda do poente, todos os
[83]
moços solteiros da freguesia, a
plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o quê,
e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para
isso a Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para
suas terras a folgar.
Nem o introductor, nem o tempo da introducção
d'esta pratica, são já hoje conhecidos.
É uma tradição piedosa, uma lei moral,
sem nenhum genero de comminação, mas
tão á risca obedecida, como se as tivera.
É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um
bello exemplo de desinteresse; pois na plantação
quem só ganha
é a selva, que se dilata, e o Santo, a quem se engrossam os
rendimentos.
Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a
capellinha, ou de algum outro Bemaventurado, com fama de
boa-mão para casamentos, ainda se aventaria um motivo
pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que
só da peste é advogado!...
Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra,
¡e oxalá dure sempre! ¡e
oxalá por muitas partes o imitassem!
*
Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de
nós outros, bastam duas considerações:
a d'elles é festa
do espirito, e mais do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem
do espirito.
Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva
lhes faz estar vendo ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie
humana;
[84]
e do corpo tambem, porque
o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas
succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e
bem jejuada quarentena.
Move suavemente os corações acompanhar a
procissão, que da egreja sai depois da Missa cantada, com os
seus cirios accezos, cantando as aleluias, atravessa o amplo adro
alcatifado de bordada relva, sombreado das suas cerejeiras
já revestidas, atravessa o passal por entre as alas das
pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se
espairece ao longe, como uma piedosa exultação,
por entre os mattos rejuvenescentes.
O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As
arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado
de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora
todas suas galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a
Natureza parece ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe
entôam canticos, como os homens, as mulheres, e as
creanças. A aleluia ressôa em toda a parte;
lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os
corações ferve o amor de Deus, o amor da
Natureza, e o amor mutuo.
¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os
arroubados requebros do Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh!
¡que permutar de boas-festas! Mal o presumem, os que todas as
cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um cartão
alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.
Recolhida a procissão, tornam-se todos
[85]
correndo a suas casas, a acabar de as
pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se
de ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores
baixellas; crepíta o lume na cosinha revôlta;
idéia-se um simulacro de altar, ou se enroupa uma cama de
lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o senhor Prior, com a
sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar (quando mais
não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da
familia falta á porta para receber a aspersão de
agua benta, que elle ao entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras
rituaes da benção: «Paz
a esta casa, e a todos que n'ella moram.»
Tal visitação, que (já se
vê) se não conclue no primeiro, nem muitas vezes,
no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda
de prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada
fogo; não pelos saccos de folares que se ajuntam; mas pelo
muito que assim de novo se apertam os vinculos mutuos do Pastor e do
rebanho.
*
No 1.º de Maio põem, á entrada das
habitações,
maias, que
são ramos de
sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com
seus fuzos, carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo
se fadam a terra e a casa: a terra, para que dê linho
comprido e sedoso; a casa, para que se guarde e mantenha
próspera.
¿Quem não vê n'estas maias outra
degenerada herança dos nossos antigos senhoreadores?
[86]
No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo domestico dos seus
Lares,
deuses protectores da poisada, e cujos idolos se tinham junto ao fogo
da cosinha, ou em nichos por de traz da porta principal. Revestiam-n-os
de pelle canina; e em monumentos antigos se vê ao
pé d'estes deuses representado o animal symbolo da
fidelidade, e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio
nos seus
Fastos nol-o
descreve. Brindavam-n-os com libações de bom
comer e beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de
flores, e já de lan.
Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois
acreditavam que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se
compraziam de habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde
vivia gente do seu sangue.
Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do
mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas.
Vieram Lares
viaes (dos caminhos),
compitaes
(das
encruzilhadas),
urbanos (os padroeiros de cada
cidade),
publicos (os mantenedores dos
publicos edificios),
rusticos (os custodios do
campo),
hostis (os amparadores contra inimigos),
marinhos (os guardiães dos navios).
É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem
Romanos, se haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de
suas religiosas praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre
estrangeiros; e bem boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle
cahos de poeticissimos desatinos e devassidões.
[87]
Fazia venerar e amar a
casa; com a casa, a familia; com a familia, os sãos costumes
da creação. Ainda por cima, fazia resplandecer
luzeiros de esperança na
cerração das adversidades; o que dá
coração e brios para as resistir.
Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana
provincia Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que,
aliás, podem ser documentos, além de outros, o
nome de
lareira, geralmente
conservado ao lastro da chaminé, e o proprio de
lar, com que em Traz-os-Montes se chama a corrente
de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a
fogueira.
Já cada um inferirá que as
maias dos meus serranos, festejo que só
á casa se refere,
coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como quer que seja,
o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de
ter, aquella origem.
Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito
christão, ainda mais poetico, chamado das
Rogações ou
Ladainhas de Maio.
Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e
acompanhando em chusma as entoadas preces da Egreja, a
procissão, que lá se vai, humilde, atravez dos
campos desatados em flor. Imploram as bençãos do
Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos
não devorem a vinha ou seára; que
intempéries do ar e trovejados granizos não
derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares.
[88]
*
O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado
de dia pelos oiteiros, de noite pelos serões.
Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que
se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora,
não sem graça), que por ali em louvor do Baptista
se exhalaram outr'ora do seio de poetas desconhecidos.
A medo me rendo á tentação urgente de
as mostrar; que, despojadas da sua melodia, desquitadas das vozes
tão frescas e juvenís das suas cantoras, e nuas
dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e sombras
em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão
parecer-se comsigo mesmas.
Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja
differença na substancia, vai tanto, como de uma formosa
donzella podéra differir o seu cadaver.
Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que
no fundo da alma se me estão ainda cantando, por entre
simulacros de figueiras, que entretecem sobreceo verde á
fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, não as
contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil
maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com
que umas rusticasinhas de roca á cinta tratam o Santo
Precursor. São amores velhos; não ha que lhes
dizer.
―¿San-João das
barbas doiradas,
onde foste
ter as orvalhadas?
―Fui as ter áquellas hortas,
recordar
aquellas cachopas.
[89]
Recordae, recordae, perguiçosas,
que da fonte
já veem as formosas,
com as talhas cheias de cravos,
que
lh'os deram os seus namorados,
com as talhas cheias de flores,
que
lh'as deram os seus amores.
San-João, rico cavalleiro,
companheiro de Nosso Senhor,
acompanhae a minha alma
quando d'este mundo fôr.
―¿Por que tendes, San-João,
esses sapatinhos
brancos?
―Para passear ás moças
domingos e dias
santos.
―¿D'onde vindes, San-João,
que assim cheirais
á macella?
―Venho da serra da Estrella,
de fazer uma
capella.
―¿D'onde vindes, San-João,
pela calma sem
chapeo?
―Venho beber agua fresca,
que faz calor lá no ceo.
Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os
aferidores e malsins da Literatura, que, se me tomam, com isto nas
mãos, dão comigo do avêsso.
Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes.
Á noite accendem fogueiras, dançam, cantam,
namoram, e galhofeiam em de redor d'ellas.
[90]
Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao
sereno, que lhes ha-de n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu
futuro, e chamuscam as hervas e flores, que sabem de constancias e
inconstancias.
Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes
virtudes e preservativos; mas especialmente o de S. João do
Monte, á conta do seu nome bento.
Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta
colhem ramos orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram
de raio; trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os
partos, apertando-se nas mãos.
A agua da fonte da manhan de S. João é como a
primeira que chove em Maio: torna o carão formoso.
*
Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo
descoberto, não correndo o tempo de invernia. São
rebordans a granel, entre grande larada de brazido, a estoirarem e a
acerejar-se, em quanto um farto lombo de cevado rechína e
fumega em vergante espeto de pau, a pingar n'uma telha ou frigideira.
É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos
rapazitos, e pelos visinhos menos folgados, que todos então
se convidam.
Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já
então arripiada. Mas... quanto
mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e para
a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os
animos dos convivas.
[91]
Á fé que lhes não falta por
quê. O dia que apóz vem, é o dos
finados; dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos,
para todos quantos, com Fé ou sem ella, possuem um
entendimento, e meditam.
¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem
mais devaneador e recolhido, que homens acostumados a
solidão, curtidos nas duras realidades da vida, remotos do
cortesão bulicio, embotador pessimo de toda a sensibilidade!
*
Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a
noite não quieta.
Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe,
até se esvaecerem, os tons afflictos, que a nenhuma de
tantas poisadas deixam de dizer algum segredo de dor, e de encommendar
algum suffragio. ¡Oh! ¡se
não se elevarão elles, e bem ferventes, exhalados
pela voz do sangue, pelo amor, pela amisade, pela caridade!
Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz
bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura
se descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis
côro de Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta,
pelo meio da povoação, a supplicar em nome dos
penados de alem mundo, que para si não podem requerer,
esmola de orações, refrigerio para os ardores que
lá padecem.
Não ha seio tão escudado, que um santo horror o
não estremeça; egoismo tão
empedrenido, que sustenha as lagrimas.
[92]
...Até que o solemne pregão transpõe e
se esvai; e na calada se torna a perceber o dobre longinquo da egreja.
Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o
interior.
Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que
vão de aldeia em aldeia
amentando as almas, arrastavam d'antes
grilhões aos pés, o que ainda augmentava o pavor
do seu pregão.
Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes
quem entre nós os soffreria? Por
lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, como
exactores que são de um
tributo da outra vida.
Desde o romper d'alva não descança a egreja de
absorver povo. Todos os caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques,
todas as ladeiras, todos os valles, todos os oiteiros, o brotam e
expedem á porfia.
Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o
moço em flor de annos; a donzella; os irmãos,
pequeninos e já orphãos,
pela mão de sua mãe; todos graves, cuidosos,
taciturnos; todos lá por dentro orando; todos anhelando
irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali
assistirem ao incruento Sacrificio.
Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o
semi-festim da vespera é quasi geralmente descontado pelo
jejum mais rigoroso.
*
Emfim vem o Natal.
Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas
christianissima
[93]
(quizera eu dizer)
do Christianismo, nenhures cabe tão em cheio, nem tanto com
os animos e corações se coaduna, de veras crida e
com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.
Víreis o Presépio de Belem, não
já por caprichosas artes remedado, mas em tão
cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a adoral
o.
Disséreis que ao soar da ave da meia-noite,
desferiu vôo d'entre as estrellas, de que se
corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos
pegureiros com o pregão de «Gloria e
Paz», com a nova de ser nascido o Desejado das gentes.
¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de
toda a parte confluem pelo escuro em demanda do Menino!
Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso
dentro n'alma.
O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par
aberto, é a santa Gruta.
Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o
Divino Infante.
O adro vê dançar as rondas de camponezes
á roda de um monte de arvores accezas, ao som da
gaita e do tamboril.
Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada.
Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as
cantigas da benta noite. Cada um d'estes córos é
exclusivamente composto das moradoras de cada margem do rio que biparte
a freguesia. Vai entre ellas a mesma rivalidade, que já
descobrimos entre
[94]
os homens,
quando no Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um
estrepitoso arremêdo de combate.
É a qual dos bandos trará mais formosas quadras
para entretecer com as antigas, mais argentinas falas e melhores
requebros para as gargantear. Cuida-se ouvir musica de Seraphins;
exulta o coração; e, sem vergonha, se
estão sentindo as faces humedecer-se.
Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que
se estão vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em
braços do Parocho o Menino, a fazer colheita de beijos e
louvores, de supplicas e offertas. Então é que
surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e
á porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de
ordinario, a todos, os mui primorosos artefactos de pinhões
e frutos sêccos.
¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que
ali pendem ao collo de suas mães! vão-se-lhes os
olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz
lindezas tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se
destinam, com os seus olhos tão azues, a bocca
tão amorosa, as faces tão coradas como as
maçans que se lhe offerecem, é já a
Elle que só
cubiçam; e só choram, porque o não
deixam
acompanhal-o.
*
Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente.
¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem
a destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé?
[95]
É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na
resposta.
*
Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza,
nobres de humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores
de S. Mamede da Castanheira do Vouga.
XX
Que eu por lá versejasse, já a ninguem
ficará sendo maravilha; antes, sim, a podéra ser,
que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas as
rasões d'isso de si mesmas se confessam.
Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me
foram totalmente desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri
possivel, que houvessemos jámais, eu nem coisa minha, de
reparecer no mundo.
Assim, só por desabhorrimento é que poetava de
longe em longe; isto é: poetava por fóra, e no
papel, que no coração e no
animo estava eu comigo a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de
leve me acreditarão os que d'isto sabem) não foi
a que se escreveu, se não a que deslizou suave, entre
sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, suspira e
medita.
Escrever só para si, não sei que ninguem escreva;
é trabalho supérfluo, e que, se
dá fruto, o dá ruim, que de pêco e
descorado nos desconsola.
[96]
¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou
affecto, que no trabalho de se corporificar para sahir a lume e correr
por mãos e olhos, não perde muito do seu
primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou do seu
calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja que
era seu, e que era elle mesmo em grande parte?
Isto dos livros não são senão uns
retratos mortos, umas toadas, reflexos, e sombras, de festas que se
fazem n'um interior, e de que os passageiros, por mais que se lhes
abram as janellas, e que elles appliquem os olhos e ouvidos,
só podem perceber a totalidade, e conjecturar as
circumstancias.
O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros
de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda
para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder,
ás concepções e aos affectos.
*
Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que
peor é) do livrinho, está em que a maior e melhor
parte dos condões e feitiços da montanha, que ora
cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis,
então que eu os tratava e d'elles vivia colmado, me
não faziam os effeitos, que atravéz dos vidros da
saudade me produzem.
Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o
perdido; que já por isso dizia Rousseau, que nunca
tão bem falaria da liberdade, como entre ferros da Bastilha.
[97]
¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a
abrolhar? é no meio do outono a desvestir-se. ¿A
do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que
tirita e se encanece de geada.
¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros,
não é paraiso, para onde todos, todos, nos
quizéramos tornar?
¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo
extremo os camponezes, se acabassem de entender os bens que
logram!»
Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar,
é este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a
instante m'o explica.
Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e
collo descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando
importunas obrigações me veem ripar e consumir as
semanas a dia e dia, os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto.
Pela conversação pacifica das moitas e torrentes
me definho, quando, no mais fortuito, no mais leve, tratar com homens
me aguardam sempre desencantamentos, desconsolos, rasões
para os desprezar, ou para fugil-os.
Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor.
Aqui, pelo contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.
Lá, a benevolencia é semente de benevolencia,
para dar cento por um. Aqui, é grão que sempre
degenéra, ou não germina, ou brota villans
ingratidões, que envergonham até a quem as ouve.
[98]
Lá, o folgar é franco, e as festas são
festas. Aqui, o folgar é escaço e fingido; as
festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de gladiadores,
que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns aos outros, e
aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.
O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo
mais cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão
roda; e em vez de o esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como
o Iscariotes por sua mão, para escarmento a sevandijas e
lição a paes que estão creando feras
bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de
applaudil-o por medo, apertar lhe a
mão
dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, com sabel-o
expulso de muitas portas.
Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para
o que Deus os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia,
para macío agazalho nas horas do somno ou da
doença, para gala candida dos altares, e a final para
curativo de feridas.
Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao
alvorecer de Maio, a sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do
seu linho, a cabo de tão bons serviços, poderia
vir ainda a converter-se em papel para a nossa Imprensa, isto
é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e absurdo, a
ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de
descredito e odios, em disseminador de todos os principios de
dissolução,
já moral, e já politica?!
¡Pôr-lhe ella a
sua roca para benção! ella, a boa filha das
serras,
[99]
fêmea sincera e verdadeira, coração
lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe
ella encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre
companheira, a que tão santas maximas e tão
formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar á sementeira
o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que
vale o mesmo.
XXI
¡Que de vantagens para o ermo não são
todas estas!
E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem
nascido!
Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de
espaço e tempo, e pela
contraposição, que se conhecem. ¡E eu
malbaratei quasi tudo isso!...
........ munera nondum
Intellecta deum!....
Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão
quebrantador martyrio da experiencia,
¡Como me não agarrára, com raizes mais
fundas e tenazes que o meu cedro, ao chão da vida facil,
innocente, e obscura! ¡Como não
borbotára em hymnos o meu jubilo! ¡Como
não saudára com lagrimas de
gratidão a aurora, tornando a encontral-a! ¡Que
não palrára com as torrentes! ¡Que
noites
[100]
desveladas sob o
pavilhão estrellado e vastissimo da montanha!
Em vez de
rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar
este painel noticias de logares, e até de usos, tudo eu
mesmo visitára com devoção de
peregrino; tudo
revolvêra; com tudo me identificára.
As saudades, que de lá para aqui me estão
salteando, d'aqui para lá já não
atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira
sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me
perdessem logo.
*
―O abdicar―dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro
e hortelão de Salona―o abdicar é o
começo do viver.
¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso
da fortuna o rir, o dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na
primeira hora que empunhassem, com animo feito, uma rabiça
ou um foicinho!
¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e
até imperios romanos, como elle, quando renunciar o pouco, o
quasi nada, que se tem de cidade.... só de o cuidar, tanto
namora a phantasia!
¡Se jamais virá tempo de eu poisar em
torrão meu, debaixo de sombras minhas, a cabeça
encanecida e regalada!
Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e
limas, como o presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda,
quanto o filhinho mais pequeno atravessasse correndo de um
fôlego. Mas isto em solidão bem
solidão,
[101]
onde só os
astros me enxergassem,
só as estações me visitassem, e da
banda do mundo nada me chegasse, senão o vento,
já expurgado e esquecido de humanas vozes.
Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio
e reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.
Ahi me reverdecêram o coração e mais o
espirito, que me elles por cá trazem tão
lastimosamente desfloridos e murchos.
Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol
remoçador de quanto existe.
A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa
eólia entre jasmineiros, pendente em hombral de gruta
ás virações da primavera.
Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em
tarefas ephémeras e sem gloria, posto que não sem
consciencia e diligencia, se me desbarataram na galé da
Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) nas palhas d'essa
doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do Universo;
doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.
Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me
enguliu, com os annos que me tomou, outros tantos da minha existencia
para diante; pois em cada tomo de periodico, sincera e honradamente
redigido, se podia escrever este epitaphio:
Aqui jaz um anno
de fadiga e dois de vida de.... Orae por elle.
[4]
[102]
Vendem-se ainda primogenituras
por menos que prato de lentilhas.
Vingára-me (¡oh! ¡se me
vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda
por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes,
appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os
seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden.
Parve,
nec invideo, sine
me, liber, ibis in Urbem.
*
―¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus
gostos e desejos?―dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que
sabemos, que nunca faltam, escoimadores
ex-officio do alheio.
―Senhor meu,―lhe respondo eu já:―pois é por
isso mesmo, de não passarem de fabula os meus gostos e
desejos, que se me ha-de relevar o dar-lhes eu largas no papel.
Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal,
coroados de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar
do Empyrio a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o
tempo que n'estas palavras gasto aproveitara-o melhor, em correr para o
meu refugio, beijal-o, replantal-o,
aformosental-o. E em lá
vindo o florído Maio, ride-vos de pagão que
brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor.
*
¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem
por longe se pareça com a de um
[103]
viver remançado, em casa sem
numero, nem espias, ao som da Natureza, á lei da propria
inclinação; sem ouvir horas que nos chamem, sem
encontrar com glosadores que nos aboquem no ar
acções e palavras, para nol-as tingirem de branco
em preto; nem cahir nas garras de ociosos, que vos
emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma noite
de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que
são a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de
abhorrimento; seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de
quem vos não vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido,
refulgente epigramma de esmalte contra meritos e virtudes; e de noite,
interrompido na meditação, ou cortado no melhor
do somno, pelo retroar de carroagens, que em fluxo e refluxo continuo
levam e trazem, sempre a correrem para nada, pygmeus,
histriões, da farça séria d'este
mundo?
Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura,
ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis
mais depressa
coisa a ella parecida, do que não por estas
almotaçadas metrópoles, onde se blasona que ella
tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre são festas
acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao
mesmo tempo: este, o
Te Deum; aquelle, o
De
profundis; um, o
Quomodo cecidit civitas plena populo; outro, o
Cantemus Domino; qual, o
Miseremini
mei; qual, o
Ecce sacerdos magnus.
Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade,
derrubaram-n-a do seu
[104]
pedestal
as aguas do diluvio de Noé, quando arrojavam cada coisa para
seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o pedestal razo, com o
formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha de ser ermo
pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. Aqui,
pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo.
*
E quando não, mettei bem por dentro a mão na
consciencia; e, deixado o palavrório que não
sôa muito senão por ser vazio
(como tambor de foliões), dizei-me, ou dizei-o a
vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem que
desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, e
não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem
alvoroto de praças, e reboliço de vizinhos, pois
diante de suas janellas o que só se meneia e conversa
são arvores, e por cima do seu tecto não moram
senão hervas, que mal ciciam, e só recebem de
visitas passarinhos ou borboletas?
¿Quem mais livre?
Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu,
sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o
cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos
convites. ¿Quem mais livre?
Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as
occupações de todo o dia. ¿Quem mais
livre?
Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons
somnos, pão, e para conduto um
[105]
apetite desenganado, entre o trabalhar,
repito, canta, ou traz o espirito a monte, a sabor de suas
chyméras (que tambem as tem como qualquer outro); e
é este o mais invejavel privilegio do trabalho corporal,
sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não
captivar senão os braços; cavando,
podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da obra, estar armando
doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir com os companheiros,
ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a alegria que se
esconde.
Este
deus in nobis, unica das
divindades campestres em que se pode crer, perguntae se não
será para muitas invejas aos taciturnos enxames que pejam
escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi
todos os que remam á consciencia o seu remo na
galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais
livre?
Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o
meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço,
para folgar entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de
coser ao lume que o aquece. Não tem de ir fazer sala a
ninguem; respira a peito cheio; não ha que ciar se de mulher
e filhas, que
não dá a terra operas nem bailes; filhas e mulher
á roda lhe serôam, tão satisfeitas como
elle. Não se levanta ali jogo, que, por
tentação ou falso pondonor, o obrigue a
pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida.
Não o compellem a ajudar com desatinos seus os alvitristas
regedores do mundo em sêcco; nem mesmo a ouvir ler, n'uma
coisa mal-cheirosa chamada periodico (especie de cogumellos
[106]
da Imprensa, em que entre os
não maléficos tantos ha de sapo), o artigo
famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe levantam
falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do chylo. Quem
não tem com que incite invejas, seguro está de
vis praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre?
Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas
destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não
creal-os o sitio, nada reluz na poisada que os attráia.
Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os
pães para a tulha, o vinho para a adega, o azeite e os
frutos para a dispensa, a hortaliça para a panellinha de
barro, as filhas para o casamento, os rapazes para lhe pagarem na
velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o Ceo, onde
crêem de fé que os estão seus parentes
esperando.
¿Então, será, ou não
será, este um viver dez vezes mais livre e afortunado que o
nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o
direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo,
que não deixei na matéria udo nem
miudo; ¡como se miudos houvera no que são
condições de boa
ventura!
Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu
proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao
coração de alguns d'estes, que vivem na
Côrte por fadario, por vezo, ou por inercia, sempre
mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou podendo, se uma
hora olhassem
[107]
por si, adquirir, sem
nenhuma difficuldade, o que eu, e outros taes, tão
baldadamente supplicamos á fortuna: uma vivenda campestre,
uma existencia natural, serena, commoda, florescente, risonha para a
pessoa, dadivosa e exemplar para os visinhos, manancial de riqueza
privada e publica, abonadora de bons costumes, e de afortunada
descendencia; uma existencia, em summa, que, a de mais de retemperar
corpo, animo, e coração, para se n'ella
saborearem,
até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto,
quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.
*
Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o
medicinalissimo
Livro da Solidão do
Doutor Zimmermann. Aprenderiam a
perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a
embellezarem-se n'ella, a serem e a fazerem venturosos, quanto
é dado havel-os n'este mundo tão instavel,
tão fugidio, tão calabreado de bens e males.
O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra
servindo; na solidão é um homem. Na sociedade,
é uma
partícula irresistivelmente arrebatada n'um redemoinho; na
solidão um todo quieto.
Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde
uma vez passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra
d'ella; porque o homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro
das humanas tirannias, se faz em algum modo semelhante á
creança;
[108]
readquire
o que quer que seja da sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus
gostos, dos seus brincos.
¿Quem se lembraria de pôr um barco de
cortiça (ainda que de seu natural tivesse o ousal-o) n'um
tanque do
Passeio publico,
cercado dos fumantes do Marrare, e dos
collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas que
fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa,
até só para si, faz d'isso; e mais se encanta em
o fazer, que um ricaço em torrear palacios.
Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no
cêvo das armadilhas que lhes andou dispondo, edifica
á borda de um arroio uma azenha de dois palmos, com seu
rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear,
respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para
horas.
Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam
com a familia de um coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva,
como Werther e Hugo se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e
reinos de animálculos, em que só o mancebinho
muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam enlevar.
¡A solidão! ¡a solidão!...
provae-a, sequer, affligidos do mundo, e pregoareis d'ella o que eu me
não affoito a encarecer-vos.
*
Um só achaque hei-de eu impôr á boa da
solidão, á gentil namorada de Rousseau, de
Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos;
[109]
e vem a ser: que, pois nos descalleja o
coração, banhado nas suavidades da mãe
Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos
detrai, assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas,
quando não as podemos extirpar. No ermo ressôam
mais alto os gemidos, como na calada da noite se dão a ouvir
mais claras as vozes.
Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita
colheita, o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos
enfermos, quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo
aquillo; e o coração, que não tem para
dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange todo, e
se espedaça.
¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão
pouco! ¡sería tão
festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria!
¡deixaria, por corôa de beneficios, tão
sinceros, tão
duradoiros agradecimentos!
*
Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que
d'aquellas alturas se não percebem; mas a que menos de todas
se percebêra é o coração
metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus
ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
terrestre, e ferrolham-n-a a sete
chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, c
Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que
d'aquellas alturas se não percebem; mas a que menos de todas
se percebêra é o coração
metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus
ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
terrestre, e ferrolham-n-a a sete
chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, conquistar a unica
invejavel gloria, emendando os erros
[110]
da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.
Então sim, que haveria que se lhes invejar.
Dôr d'alma é, na verdade, não poder
homem na solidão pagar por estes, e por si mesmo, dividas
grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá estende os
braços valedores até onde lhe é dado.
Onde
não chega a remediar com obras, ajuda com o bom conselho,
com as recommendacões poderosas, com as
esperanças, com a presença, com a
uncção da palavra amigavel, com o deixar correr
sobre a ferida o balsamico das lagrimas. Assim, se terá
sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo trabalhos, e no
seio coração.
XXII
Isto presenciei eu:
O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural
pejo me veda transladar louvores, que por lá se
lêem em todos os peitos, contava entre as primeiras de suas
ditas a beneficencia, que não pára onde se lhe
exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo Bispo
Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem ainda
para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.
Era para ver (se elle não poséra tanto em
recatal-a) a alacridade, a sôffrega alacridade, com que ia
levar aqui um pão, que se devorava como vida que em
realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos,
a
[111]
reconciliação;
ao ocioso, o convite para
trabalho; ao orphanado, a paciencia; ao errado, a luz para atinar
com a senda, e o bordão para a seguir; ao moribundo, o
conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, cunhada de uma banda com a
effigie do coração, da outra com a da Cruz
florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se
cambía; o affecto
fraternal.
Ali, sim, que é o ser Parocho.
¡Oh officio divinamente instituido, como te hão
degenerado annos frios de descrença e desamor!
¡Com que maravilhoso laço
não cifravas o que de mais nobre, o que de mais amavel, se
abrange nas ideias da eternidade e nas do mundo!
O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso
de eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os
mysterios, os preceitos, os exemplos, as ameaças, os
anáthemas,
as absolvições, os confortos, e os jubilos. Todos
os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra
d'elle.
Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de
Fé, á nossa espera diante da fonte da
Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos
purificar.
Arribados á edade da rasão e dos delirios,
tornavamol-o a achar na piscina da penitencia para nos restituir, com
eloquencia affectiva de Apóstolo, a foragida paz do
interior.
No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos
entregavam, com bençãos d'alma e sincera
prophecia, a mão tremente da futura mãe de nossos
filhos.
Nas calamidades publicas, era a sua voz
[112]
supplice e crente, e afogada em lagrimas, a que levava, como guia
segura, o côro de todas as nossas á
presença do Senhor da Natureza.
Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da
concordancia, que primeiro apparecia.
Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos
alçava.
Nas tribulações, elle o nosso mais previsto
conselheiro.
Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado.
Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e
aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças
para o caminho.
Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros
medicos iam longe, e até nossos paes e nossos filhos nos
deixavam sós. Com preces fervorosas nos acompanhava,
até que a terra nos submergisse; e ainda então
nos não largava, senão para ir
instaurar novas preces por nós sobre os altares.
Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com
quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da
sua pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e
pequenos,
só temido dos maus, ainda que tambem d'esses respeitado.
Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa,
elle, que tão amenos quadros do casamento sabia apresentar
aos noivos ao recebel-os, contava por irmãos e filhos todos
os seus parochianos; tinha o seu thálamo de oiro
[113]
a aguardal-o no paraizo,
região que todos os dias entrevia atravéz das
folhas do seu breviário; e, se ainda no
coração lhe
podia alguma ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como
esposa; em quem se revía; que se recreava em ataviar, em
enriquecer, em lhe adquirir galas de roupas, de sedas, de joias, de
flores, de perfumes; em cujas festas se remoçava; em cujos
canticos se desvanecia de misturar a sua voz.
No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava
tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um
representante da Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse
caracter augusto e sobrehumano.
A hora em que elle expirava, hora de consternação
e alaridos para todo um povo, era a unica, talvez, em que pelos
espiritos fuzilavam alguns relampagos de duvidas sobre a
justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO; duvidas, que a
bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus olhos
fechados, já não podia fulminar, mas que a sua
presença, mal chegavam a beijar-lhe os pés como a
bemaventurado, promptamente desvanecìa. Bem se adivinhava,
ao olhal-o, que a sua morte não era mais que somno; e bem se
entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão
zeloso trabalhar, era rasão colher descanço e
premio, como só lá em cima os pode haver.
*
Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e
prospérrimas da Christandade.
[114]
De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas
tão raro, que a dedo se apontam; e ainda se não
hão-de crer, se
não fôrem vistos bem por miudo, e contrasteados
bem de espaço.
De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça.
Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte
sempre algum achaque principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a
febre da superstição; está agora no
frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com
elle, até que do alto lhe venha o remedio.
*
Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma
de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca,
nem um phantasma.
A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra,
pegou-se d'ella, pelo contacto, primeiro á superior, depois
á infima.
Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta
entra na conta.
A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada
já quer ir convalescendo; já convalesce em muitas
partes, se em nenhuma se acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu,
por isso mesmo, e por ser a mais rude e numerosa, labora no auge da
enfermidade, e ainda muito longe (segundo todos os symptômas)
de se restaurar.
Hoje o materialismo é especialmente plebeu.
Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo
[115]
a raio e raio, e descendo manso e
manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro
desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam
tudo.
Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda
noite, nem se derrama da Imprensa, de que a mean classe é
representante.
O Poder, fingindo
proteger, apenas
tolera os escassos restos da crença. Se
alguma vez lhes dá consideração,
é
quando se lhe antólha que os poderá empregar, por
material, para obras politicas a seu modo.
A Literatura, ou por especulação de popularidade,
ou por extravagancia de muito joven, ou porque o seculo XVIII do
«Paiz modelo» só poude chegar
cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem
á unica Religião civilisadora, tão
decepada e desgeitosa se avém, que, por entre as suas
expremidas lagrimas de compuncção, se lhe
está vendo voltear por dentro dos labios o seu lembrado
sorriso de septicismo.
A sua religiosidade é um cálculo;
¡grande mal! é um cálculo transparente;
¡mal
ainda muito mais funesto!
Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida,
não é da verdade real e absoluta que diz, mas da
utilidade (ou necessidade) de que seus ouvintes a acreditem.
Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e
aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e
ás escuras por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro
para a turba.
Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o
Christo»
(como lhe ella sempre chama),
[116]
que a sua cabeça ennastrada de loiros não
fique, mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada
de espinhos.
¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras
aleluias da Fé e da Moral, este vaidoso e vanissimo
apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo do falso nome de
Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas, paginas
desconnexas, reformadas, e adulteradas?
Quanto entre si concordavam as inspirações dos
quatro Evangelistas, tanto discrepam uns dos outros (e não
raro de si mesmos) os novos evangelhos d'estes missionarios sem
missão. Á prima-vista se averigua que lhes
fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a
unidade. ¿Quem se irá
apóz taes innovadores? Ninguem.
Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só
valeriam para acabar de destruir, se podesse ser destruida a
Religião de Jesu-Christo.
A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem
a força, nem o poder da terra tem a minima
jurisdicção para alterar.
Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um
átomo de menos, sem um átomo de mais... ou
nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a
cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem
estupidamente n'uma cruz desbenzida, revirado com a cabeça
para a terra, e os calcanhares contra o Ceo. Em tal caso o
indifferentismo, e até o atheismo, seria menos descommodo e
mais logico dobradamente.
[117]
*
Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o
poderia fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo,
¿como é que a trata a autoridade mundana?
Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe,
protectora desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a
cabeça despojada do diadema luminoso, diz-lhe que se apegue,
para não cahir, ao sceptro que a diante lhe caminha.
¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco roborava os
thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os
seus inimigos o ludibriem!
A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da
arvore da vida, d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer
derramal-a sobre as multidões pelo crivo immenso da
Imprensa, e ficar impune; ou o seu castigo, se por erro lhe cahir o da
Lei, orçará apenas pelo dos crimes leves, e
indifferentes ao Estado.
*
Não é ainda tudo.
Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como
filhos e herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra
já meio derretido, luz do mundo já
mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e
relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo
os nas temporalidades odiosas.
[118]
Repitâmol o:
não é isto culpa de ninguem, sendo de todos
desaventura. É uma calamidade providencial, que
lá se encaminha para fins certamente gloriosos, que
não podemos enxergar.
Em Religião, como em Politica, somos nós,
enfatuada geração de hoje,
mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros
hão-de ceifar em vindo a quadra.
Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em
que os direitos e os deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido
nome não seja, como pomba timida, empolgado por abutres
ferozes logo ao abrir o primeiro vôo; em que todas as causas
santas e uteis se conheçam e respeitem; em que nem a
régia tribu de Judá seja, como outr'ora,
apesinhada pela de Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje,
mercenária, captiva, e escrava da de Judá.
Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e
frutear (como a vara do Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de
alimento, de forças, de esperança, e de
felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, então os
pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi mendigos, e
cuja fronte perdeu o sello da eleição,
tornarão a assentar ao-pé da arca
santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas
dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas
penetrem melhor até ao velho os gemidos do mais necessitado
que elle, e para que os olhos d'elle entrevejam as estrellas.
¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias
[119]
da Egreja acrisolada pelo fogo!
Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.
*
O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não
acredita em malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de
recommendar aqui, uma verdade, que a sua posição
d'elles lhes não deixou talvez ainda perceber; verdade
importante para applicações, verdade a cujo
escurecimento se pode imputar já muito e muito damno:
O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades,
uma importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e
prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição
humana poderia confrontar a sua.
Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano
é quasi um pastor sem rebanho; não conhece as
ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A ellas, falta-lhes o tempo e a
vontade para o rodearem; a elle, se para o officio entrou com zelo e
propositos magnanimos, tudo se lhe veio a acabar com a
esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez tambem
a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços
se haviam sempre de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua
voz, se lograsse vencer o estrépito circumfuso,
só serviria para lhe atrahir escárneos e motejos,
ou de fanatico, ou de tartufo.
Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e
abscônditas sobre tudo, ainda
[120]
não é totalmente
assim. Á entidade
abstracta
Parocho se conserva, no respeito e
benevolencia dos subdítos, um resto da sua antiga majestade,
da sua
benéfica influencia, das suas altissimas prerogativas.
Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas,
uma especie de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos
Patriarchas, e os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um
magistrado sem appellação para as consciencias;
um censor, não em nome da Lei (como os de Roma),
porém em nome, e com delegação,
e por inspiração, do Espirito de Verdade, com
quem se crê ter commercio no fundo do santuario. Qualquer que
seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como
á principal.
Tal é, repito, a entidade
Parocho em abstracto.
XXIII
Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se
não deverão empregar-se as mais incessantes, as
mais efficazes diligencias, para que o provimento das parochias (das
rusticas ao menos) recaia sempre em homens de cultivado e provado
entendimento, de sincera e illustrada Fé, humanos e
caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel trato.
Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que,
segundo sua qualidade, teem de dessedentar e fertilisar, ou de
esterilisar e consumir, a terra que os rodeia.
N'estes agros tempos de contínua
revolução
[121]
e peleja, ou
porque tão momentosa
ponderação não occorresse, ou porque a
vista, de dentro da cidade, não traspassa os muros d'ella,
ou porque conveniencias pessoaes e ephémeras, mas urgentes,
mas gravissimas, tenham feito postergar
considerações de maior utilidade, mas de effeito
mais tardío; as egrejas ruraes, como as urbanas, jazem, pelo
commum, peor que ao desamparo: entregues, não como egrejas,
a homens de oração e de esmola, mas, como torres
e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do
conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.
¡Oh! que não sem rasão se collocou a
rixosa urna dos suffragios politicos na extranhada mansão
dos serenos suffragios religiosos. A um clero secularisado, competia um
templo secularisado tambem.
*
E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade;
é peccado, que todas ellas peccam; ou, para falar com mais
justiça, é
açoite que Deus mette na mão de cada uma, quando
lhe chega a sua hora de ephémero triumpho.
Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até
ás mais illusas, como as devemos suppôr,
cordealmente empenhadas na civilisação e no
progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a
[122]
O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso,
nem tudo permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas
suas pelejas, a Politica reconhecer limites, onde o Ceo e a
rasão os teem marcado?
Combatam se os adversarios; mas não
se envenenem as aguas; e se a desavença é entre
consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para aquecer
o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que
já deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que
ainda podem liberalisar o mesmo a nossos netos.
¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos
do Templo?
Se é chyméra a Religião, se Jesus
não é em realidade senão «o
Christo»,
vão fóra tartufías, que não
deshonram menos a uma nação que a um individuo;
acabe-se de uma vez com
superstições
importunas e dispendiosas.
Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o
sol; se o sol é ainda agora a vida do genero humano; se a
Cruz é o unico pezo que faz crescer a quem a soffre; se na
terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda
a negação expira nos labios de quem chega a ouvir
como se amiudam os anhélitos do estertor, forcejae, forcejae
para restituir, ó vós que ainda o podeis, ao
santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle conhece, ao Povo
os unicos oráculos em que elle pode crer, ás
miserias o seu antigo e tão amado
refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já
tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram.
[123]
¿Não é assaz amplo o thesoiro que
entre as mãos tendes de destinos humanos?
¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas
as magistraturas, todos os magisterios, todas as
exacções, todas as
administrações, não vos
dão de sobejo com que pagar ou empenhar amisades, zelos, e
serviços, sem ser mistér que o povo de Deus
venha, escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda,
carregar a pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?
Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada
porque elles não existem para ella. Os moradores de
Sião não entôam os seus inspirados
canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de Babylonia.
Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os
seus moradores.
A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha.
A Cidade santa restaurará as suas festas.
Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e
despedindo-os das vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da
vossa parcialidade, qualquer que ella seja, se torne mais fraco.
Pelo contrario: então é que a victoria, filha das
bençãos da terra e do Ceo, ha-de poisar para
sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso estandarte,
porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os
fortes, os que bastam per si para se defenderem. E
Pelo contrario: então é que a victoria, filha das
bençãos da terra e do Ceo, ha-de poisar para
sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso estandarte,
porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os
fortes, os que bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a
quem o Senhor outorgará dominação,
porque elles lhe hão
restituido os sacrificios.»
[124]
XXIV
Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso
assumpto.
*
Logo que na legislação entrar mais
bom-senso que
politica, mais
realidade que
ficção, mais pensamento de semear que de ceifar,
mais amor do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da
milicia sagrada devolver-se-hão inteiramente, francamente,
sem restricções mesquinhas e nocivas, das
mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros
naturaes: os Prelados.
O Governo se gloriará de haver se desembaraçado
de uma tarefa, de pouca importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia
de incerteza, e de responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha
ainda mais, de haver facultado com a sua
restituição o incremento da religiosidade; por
ella o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas;
por tudo, o da prosperidade do Estado.
Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei,
podér escolher por si mesmo, affeiçoar de
espaço, collocar por sua mão, os vigias de cada
um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem
duvída de que
então os desacertos nas ponderadas escolhas
hão-de ser tão raros, como os acertos o
são no actual systema, em que são as
casualidades, quando não as affeições
ou os interesses, que predominam?
[125]
*
Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a
todos), as eleições do
poder temporal teem merecido a geral approvação;
teem recahido, pelo commum, em varões de mui notoria
sciencia e prudencia, equidistantes dos dois oppostos fanatismos,
concertados nos costumes, e zelosos discretamente.
Graças, graças ao poder temporal, que
já deu o primeiro passo, passo de gigante, para a suspirada
reformação. Agora os restantes hão de
seguir-se, porque
são consequencia.
Logo que soube, e quiz, prepôr ao
Episcopado varões taes, logo que manifestou ao mundo que
n'elles a todos os respeitos se fiava, tacitamente se obrigou a lhes
repôr... (estas suas usurpadas regalias, ia eu dizer, e era
um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua cruz, este
accrescimo de trabalhos e mortificações, este
para uma consciencia melindrosa martyrio das horas todas.
Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os
hombros a tão duro redobramento de carga, se a caridade,
obrigada nos do seu officio, os não
forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com
exultação, e seguir via pelas asperezas do
Calvario para o Ceo.
*
¿E que são em verdade os Parochos, ou antes:
¿que foram os Parochos desde os antigos seculos da sua
instituição, que foram, se não uns
coadjutores dos Prelados maiores,
[126]
para fazerem chegar até aos minimos e mais obscuros
recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e
os seus exemplos?
Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um
só, e quasi sempre velho e cançado,
não podiam alcançar
tão longe como o seu espirito; medicos de populosos
hospitaes de almas (e de corpos tambem), não lhes chegando
as forças para estarem dia e noite a todas as cabeceiras,
contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, estudarem
todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em todos e com
todos, segundo a maravilhosa expressão do
Apóstolo das gentes; distribuiram em cada
enfermaría quem os supprisse, quem os fizesse sempre estar
presentes, quem em seu nome, e segundo a sua sciencia, receitasse e
administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse de subito acudir.
¿Como póde portanto, quando militam as mesmas
rasões que presidiram á
creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em
que tudo vai falsificado?
Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens
inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e
não ha-de ser sempre; e cabe nos esperar que nem
continuará a ser por muito tempo.
O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o
indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os
presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres,
vão ser como essas torrinhas, que se branqueiam e se
perfumam de
[127]
incenso para morada de
pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão,
até ao possivel auge, em creanças innocentes e
instruidas, em adultos pios e laboriosos, em mulheres castas e amantes
do seu lar e dos seus deveres, em velhos pacientes, resignados e
conselheiros, em sólo bem cultivado e bem festivo; e o
Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que lhe
virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte.
XXV
Não venha agora, no processo d'esta
santificação, intrometter se o
Cardeal-diabo
do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a
máscara é de vidro, já d'aqui lh'a
havemos de quebrar nas mãos, batendo-lhe em cheio com tres
nomes todos presados: França, Italia, Inglaterra.
*
¿Que nação mais ciosa das suas
immunidades, que a franceza? ¿Que
nação menos para consentir á Egreja o
que de jus estricto lhe não compita?
Nenhuma.
Ora em França, bem sabemos todos que são
unicamente os Prelados os que formam o seu Clero. Educam-n-o
longamente. Instruem-n o copiosamente, por livros não
escolhidos
(como entre nós) pela Autoridade civil, ainda que (de si se
entende) sujeitos á sua inspecção.
Acostumam n-o
ás praticas do seu não facil ministerio. Estudam,
provam, e contraprovam, a aptidão e especial
[128]
préstimo de cada um. Aproveitam
só os que n'esse crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram;
e outra vez os escolhem á mão, para os irem
repartindo pelas Parochias do modo que mais aproveitem; pois de ver
está, que, differindo em indole e circumstancias as
povoações como os individuos, tal individuo, que
em tal povoação
quadrará á justa, a afortunará
afortunando-se; n'outra, que menos lhe molde, valerá menos,
trabalhando e padecendo mais.
*
O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor;
porque, se lá os Bispos
são independentes, como em França, para o
provimento de suas egrejas, não é porque em
mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o Sceptro
é Bago juntamente.
*
Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por
ultimo a Gran Bretanha.
Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida
se não tolerada, não acarinhada se não
temida pelo seu progressivo, cada vez mais rapido, mais assombroso,
engrandecimento, gosa se, não obstante, por longa e pacifica
posse, d'este seu não
privilegio, se
não
direito essencial; e os seus Bispos são
pelo menos tão independentes no tocante á cura de
almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas os
proprios Bispos protestantes.
[129]
XXVI
Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo
a regeneração do Clero pelos seus principes
(unicos legitimos em tudo que ao seu ministerio se refere) cabe esperar
que a optima parte das nossas populações ruraes
se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que a minha gente de
S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida
até por cortesãos, quando sahirem a folgar no
campo algum estio.
Para então é que este livrinho, semelhante aos
frutos que amadurecem em casa e ás escuras, ha-de ter para
mais alguem o sabor que eu já lhe tomo.
*
Se elle consegue, para além das raias da minha
expectação, fazer com que um só
captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou
que um unico solitário aprenda a conhecer alguma parte da
sua encoberta bemaventurança, já não
trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos maiores triumphos
literarios.
FIM DO PROLOGO
Notas de Castilho a este Preambulo
NOTA I
Fontes de estudo
Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela
mente que houvesse algum dia de bosquejar esta humilde
Odyssêa dos sitios e gente d'ella, nada trouxe apontado a tal
respeito. Revolvendo as minhas memorias não escritas, achei
n'ellas consideraveis lacunas, mormente no tocante á
topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. N'esta
pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S.
Mamede da Castanheira, o Rev.
do Padre Antonio
Jozé
Rodrigues de Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos
imperfeito o meu painel, em que faltará tudo, á
excepção de verdade nas
coisas, e nos retratos parecença.
NOTA II
Parochos
Na generalidade que estabeleço, por muito convencido,
caberá fazer algumas gloriosas
excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho,
[132]
n'esta freguesia de Santa
Isabel
[5], o
Rev.
do Padre Jozé Jacintho Tavares,
é
varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de
sãos costumes, sobredoirados de indole sociavel e amena, e
incançavel na caridade. As reparações
e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que
elle serve, nada são comparados com os soccorros de
pão, de letras, e de
instrucção christan e civil, que já
começam a disfrutar os indigentes da sua freguesia. Largos
são ainda os seus projectos; ajude-o a Providencia;
deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade
filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá
transformado, pela educação, creancinhas ainda
hontem desamparadas, e a pique de perdimento. Não quiz
perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o clamor da
gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto.
FIM DO PRIMEIRO VOLUME
Notas:
[1] O
Doutor
de capello José Feliciano de Castilho
Barreto falleceu na Castanheira do Vouga a 6 de Março de
1827, e foi enterrado na capella mór da egreja parochial.
Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os seus restos mortaes para
o jasigo da sua familia no cemiterio dos Praseres em Lisboa, onde se
conservam.
Os
Editores
[2] Existe
ainda este cedro que tem alcançado
descommunal corpulencia. Chamam-lhe por lá
o cedro do poeta, ou
do
Castilho.
Os
Editores.
[3]
Ovidio―
Os
Fastos―Liv.
VI.
[4]
Allusão aos amargores da
redacção da
Revista Universal
Lisbonense, minuciosamente narrados
nas Memorias
de Castilho.
Os
Editores.
[5]
Castilho morava então na rua de S.
Marçal.
Os Editores.
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sociedade editora
Livraria Moderna
95―RUA AUGUSTA―LISBOA
Obras completas de A. F. de Castilho
XX
O Presbyterio
da Montanha
VOLUME II
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
95, Rua Augusta, 95
1905
OBRAS COMPLETAS
DE
ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
VOLUME 20.º
VOLUMES PUBLICADOS:
I |
― |
Amor
e melancolia. |
II |
― |
A
chave do enigma. |
III |
― |
Cartas
de Ecco e Narciso. |
IV |
― |
Felicidade
pela agricultura
(1.º v.) |
V |
― |
Felicidade
pela agricultura
(2.º v.) |
VI |
― |
A primavera
(1.º
vol.) |
VII |
― |
A primavera
(2.º
vol.) |
VIII |
― |
Vivos e
mortos―Apreciações moraes,
litterarias, e artisticas. |
IX |
― |
Vivos
e mortos (2.º
vol.) |
X |
― |
Vivos e mortos
(3.º
vol.) |
XI |
― |
Vivos e mortos
(4.º
vol.) |
XII |
― |
Vivos e mortos
(5.º vol.) |
XIII |
― |
Vivos
e mortos (6.º
vol.) |
XIV |
― |
Vivos e mortos
(7.º vol.) |
XV |
― |
Vivos e
mortos (8.º
vol.) |
XVI |
― |
Excavações
poeticas (1.º vol.) |
XVII |
― |
Excavações
poeticas (2.º vol.) |
XVIII |
― |
Excavações
poeticas (3.º vol.) |
XIX |
― |
O Presbyterio da
montanha
(1.º v.) |
XX |
― |
O
Presbyterio da montanha
(2.º v.) |
NO PRÉLO:
OBRAS COMPLETAS DE A.
F. DE CASTILHO
Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
XX
O Presbyterio
da
Montanha
VOLUME II
LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
Sociedade Editora
LIVRARIA MODERNA |
|
TYPOGRAPHIA |
Rua
Augusta, 95 |
45, Rua Ivens, 47 |
1905
I
A PRIMEIRA NOITE NA SERRA
... Ibi hæc
incondita solus
montibus et silvis studio jactabat inani.
¿Vélo?
¿Sonho? ¿Deliro?!
¿Em solitario monte,
que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte
nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,
de mundo a tumultuar, de cidades a rir...
n'este ermo ignaro, frio, mudo...
aqui... (¿deliro?
¿ou sonho?) aqui meu lar, meu
tudo!
¡o meu presente e o meu
porvir!
Genio invisivel da montanha,
de astros, de sol, o ceo te banha;
o mar de longe te acompanha
no livre cantico sem fim.
Escada de
Jacob da terra ao firmamento,
a
mansão tua é
monumento
da potencia, do amor, das glorias
d'Eloïm.
Emquanto, em derredor do solio teu
sublime,
a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,
se volve, se transforma, e sua angustia exprime
n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,
a variedades sobranceiro
mantens-te qual surgiste, e do cahos
primeiro,
e do diluvio assolador.
[6]
Silencio e paz comtigo habita;
o ermo é como o eremita;
loucas vaidades não cogita;
ama o seu rustico trajar;
em apparente inercia ama que ferva
occulto
de seus affectos o tumulto,
seus extasis, seus ais, seus gostos,
seu orar.
Sim, Genio da montanha, Archanjo de
poesia:
eu creio em ti; eu creio em
que alma ingenua, pia,
póde ouvir de tua harpa a casta
melodia,
e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;
sim; mas eu, frivolo, profano,
á solidão
extranho, affeito ao mundo insano,
¿que hei-de esperar?
¿que tenho aqui?
Toda a minh'alma se entristece,
e se confrange, e se ennoitece,
ao ver que a sorte lhe destece
de um sopro os aureos sonhos seus.
Sonhava applausos, gloria...
¡em desterro desperto!
sonhava mundo... ¡acho um
deserto!
sonhava inda illusões...
¡e escuto-lhes o adeus!
Náufrago, perco a lyra em
meio da viagem.
¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal
paragem,
quem me resurgirá? Dos montes a linguagem...
oiço... escuto... medito... e em vão quero
entender
é como
uns sons de ignota
fala;
qual ás penhas o mar, me
inunda e me resvala,
sem me abalar, nem me embeber.
¡Oh!
¿á
minh'alma taciturna
que importa, ó montanha soturna,
que de perfumes sejas urna
da terra erguida sobre o altar?
[7]
¿que o ceo te ria azul,
mais amplo e mais de perto,
que o sol
doirado, ao teu deserto
mais cedo suba, e á tarde
o
desça com pesar?
Vir mais tardia a noite, a aurora vir
mais cedo,
¿que me
aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,
só ouvindo os
tufões e os corvos no arvoredo,
bramirei:―«¡Cresce o tempo! ¡oh!
¡supplicio cruel!
¡são mais
pesares,
mais saudades,
mais estro a arder em vão,
mais
visões de
cidades,
mais
tentações a
dar-me fel!...»
¡Ai! ¡mundo!
¡ai! ¡eccos seductores!
¡Tanto vate a ceifar
louvores!...
¡Tanto
moço a
colher amores!...
¡Tantos
loireiros e rosaes!...
E eu n'esta solidão a
torcer-me arraigado,
qual roble que geme indignado,
vendo ao
longe no Oceano os lenhos triumphaes!
Assim ruge, baldão de
vingativo nume,
esse que a argilla
outr'ora encheu de ethereo lume;
assim, nos gelos sua, agrilhoado ao
cume
do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz.
Só o abutre de eterna fome,
que o grande
coração algoz sem fim lhe come,
responde em ais á sua voz.
Fenece o dia. ¡Hora jocunda,
que eu tanto amava! ¡hora
fecunda
dos cantos meus! ¿por
que me
inunda
nova amargura o
coração?
¿Sino crepuscular,
tôas funéreo dobre?
a serra em luto se me encobre;
a nocturna mudez duplica a
solidão.
[8]
Nenhuma luz scintilla; humana voz
não sôa.
De
estrellas a accender-se o Empyrio se povôa;
tal a fada
Coimbra, a senhoril Lisboa,
nest'hora a quem as olha, entram no escuro
a abrir
de luzeiros um labyrinto.
¡Ceos!
¡Não oiço eu troar...
seus coches!... O que sinto
é
vento em selvas a rugir.
Calae, fugi, ventos agrestes;
sumi-vos, lampadas celestes;
n'um seio a delirios já
prestes
não susciteis mais
tentações.
Ou antes... aturdi-me, Euros bravos;
ou antes...
vós, astros,
cifras de
diamantes,
o arcano me aclarae lá
d'essas
regiões.
¡Oh! ¡se
á minha razão,
contradictoria, altiva,
que ás trevas sente horror, e
á clara
Fé se esquiva,
de vós, faroes do Ceo, baixasse a
crença viva,
que aos moradores do ermo inspira a vossa
luz!...
¡se me volvesseis as
ditosas
esp'ranças que hei
perdido, alvas, ethereas rosas,
com que se enfeita e esconde a
Cruz!...
Tornar-se-me-hiam de improviso
a solidão, em paraizo;
a magua, em perenne sorriso;
em alto cantico, a mudez;
a mallograda
lyra, o não colhido loiro,
em
harpa augusta, em palmas d'oiro;
e o monte, solio então,
veria o mundo aos pés.
Delirios sempre vãos, fugi
de um peito enfermo;
tu,
só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr
termo;
ermo para ambições, é inferno,
e
não ermo;
para a humilde piedade é que elle
espelha o Ceo.
[9]
Gentis phantasmas de cidades,
vinde, escondei-me o ermo em vossas
claridades,
como um esquife em aureo veo.
¡Vinde, cercae-me,
endoidecei-me,
(embora em saudades me eu
queime)!
O somno, as vigilias enchei-me
da vossa esplendida vizão.
¿Val o riso choroso as
festas da loucura?
vinde, guiae-me á
sepultura,
crente no amor, na gloria, e rindo
á solidão.
¡Eu blasphemo, eu desvairo!
Aos encontrados votos,
nem ecco
respondeu n'estes covões ignotos.
Não, cumes
glaciaes, tão outros, tão
remotos
dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;
não, no silvestre seio
vosso,
nem de amenas
ficções apascentar-me posso,
nem menos as posso esquecer.
¡Valor! ¡valor!
¿Quem do futuro
sondou jamais
o abysmo escuro?
¡Apenas chego
e já
murmuro!
¿O de que tremo
acaso sei?
Esperemos: talvez que inglorios, mas
doirados,
aqui me aguardem, recatados,
dias de
estro e de paz, quaes nunca disfrutei.
Se além, no presbyterio,
humillima choupana,
(Vaticano, e
Queluz da pobre grei serrana)
mais que fraterno amor
sollícito se afana
em me afôfar o ninho, a vida em
me inflorar;
se n'um retiro verde e
mudo,
por elle tenho o leito, a mesa, o
doce estudo,
sombras no estio, o inverno ao lar;
[10]
se a solidão
que me
apavora,
sómente o
fôr vista
de fóra;
se em seus
recôncavos demora
gente feliz,
povo de irmãos;
se do antigo viver, das
crenças
de outra edade,
vestigios guarda a
soledade;
se poesia se vive entre estes
aldeãos;
se a alegria, serena, isenta de
pesares,
como a fresca saude, habita os
puros ares;
se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e
mares,
se Deus em toda a parte á Natureza ri...
coração meu,
não desanimes,
gozos que não
prevês, e
cantos mais sublimes,
encontrarás talvez aqui.
¡Ah! sendo assim,
¡que importa a fama!
Tambem
philoméla derrama
sua
harmonia ás selvas que
ama
longe de ouvintes e do sol.
Cantarei. ¿Meu cantar mais
ambições
teria
que a viva, a lustrosa poesia,
de
perolas que a flux borbóta o rouxinol?
Castanheira do Vouga
Outubro de 1826.
[11]
II
O SEPULCRO
OU
HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO
(POEMA)
INTRODUCÇÃO
(QUE É MELHOR DORMIR, QUE
LER)
(Ermo alpestre entre cabeços
de rocha e pinheiros, na
serra
do Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um
arrieiro, ambos a cavallo, transviados na montanha.)
I
―Bem lh'o disse eu, perdemos o
caminho;
a velha era por
força alguma bruxa.
Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a
touca!
―Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?)
tres vezes
t'o ensinou.
―Nem trinta vezes
que eu passasse por elle, o
aprenderia;
a
não ser pelo rasto que deixasse
esmurrando o nariz por essas
lapas.
Já levo sem ferrage ambas as mulas;
perdeu-se o
norte; não descubro casa,
nem gente, nem caminho, e
é quasi noite.
[12]
Patrão, por meia legua
mais ou menos,
não se
deixa uma estrada como aquella,
que costeava o monte á beira
da agua.
A velha era uma bruxa, e nós dois asnos.
―Dize um
que vale dois, mas dois não digas.
Se tomámos o
atalho em vez da estrada,
toda a culpa foi tua; eu não
queria,
porem teimaste; e eu não me opponho a teimas.
―Mas
eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita,
com ar de
santa, e palavrinhas manças,
nos rabiscou co'o pau no
pó da estrada
tão claramente as idas, as venidas
d'esta serra sem fim, não lhe escapando
lomba, moiteira,
torcicólo ou brenha,
que a mula mesma entenderia o mappa!
¿Quem não cahia em tal? cahiam todos.
E de mais
¿quem nos diz que aquelles riscos
não tinham
diabrura ou nigromancia
capazes de encarchar um Santo em carne?
¿E quem me diz a mim que a grenha russa
não vai
ao pé de nós?
¡talvez sentada
na anca da mula!...
¡fúgite,
demonios!
Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;
quem mais
anda, mais sabe; e eu não sou tolo,
nem creancinha de honte.
¡Olha o diabo!
bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;
caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a
parta!
¿que havemos de fazer nestas alturas?
―Tornarmos
para traz.
―¿Por este escuro?
¿quer dar cabo das mulas,
e
estoirar-me?
¡co'um milhão de diabos!!...
―Pois fiquemos.
―E as mulas comam terra, como os
sapos,
e
nós carqueja.
―As noites são bem curtas.
[13]
―Se ao menos se avistasse alguma
venda...
―Em rompendo a manhan teremos tudo.
Por agora apeemo-nos.
(Apeiam-se.)
*
―No inferno
estoire entre um milhão de
Satanazes
o que
inventou primeiro andar de noite;
era o maior ladrão...
¿Que bulha é
essa?
―Não é nada; uma pedra que rebola.
―¡Que rebola!? ¡e sem mão!
será bonito,
mas nem por isso engraço.
¿E aquelle bruto
lá em cima no pinhal, que
guincha tanto!
―Algum mocho.
―Más balas o atravessem,
e lhe acabem co'a casta antes de
um'hora;
cuidei que era outra coisa. Eu na taverna
valho por cinco ou
seis; mas cá perdido,
e então de noite, um pisco
me põe medo.
―Pois dorme.
―¿O
quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás
barbas!
só se eu fôsse
algum bêbado.
Esta noite
nem pregar olho, nem largar das unhas
dois penedos; e ao
pé já está
reforço.
―Golgan, já que não foi por
nossa escolha,
busquemos contentar-nos co'a poisada,
que inda
não é tão má como
o parece.
¡Quantos ha menos bem acomodados
por esse mundo
agora! uns em cadeias,
outros entre ladrões,
náufragos outros,
estes em luto, aquelles em
doença.
Bastantes em colxões de plumas
fôfas
revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,
cuidados
tristes, asperos remorsos.
¡Quantos até nas salas
mais alegres,
entre as luzes, e as muzicas, e as danças,
mas
em face de um sôffrego banqueiro,
[14]
padecem mais que um reo chegando
á fôrca
Não ha mal sem peor; qualquer estado
se se
compara, é bom; com cara alegre
suavisam-se os incommodos;
um fardo
n'um hombro impaciente é fardo e meio.
Quem
não soffre um descommodo pequeno
nos grandes morre; um leve
desagrado
dá realce ao prazer quando nos volta.
Qualquer
estado, e pessimo que seja,
tem seu lado risonho; e é da
prudencia
d'entre os picos da silva achar a amora.
Amen.―Brava
o latim; dá
ceia e cama.
―A falta d'esta ceia é novo adubo
do
almoço de amanhan; e emquanto á cama,
¿que outra melhor do que esta em mez de Junho?
Nem paredes
nem tectos, que nos roubem
a viração da noite
apoz a calma;
por entre essa quebrada dos penhascos
lá em
baixo o mar co'os seus murmurios frescos;
sobre nós, e por
baixo das estrellas,
pendendo como um lustre, este carvalho
cravejado
de insectos que entre-luzem;
dois rouxinoes ao longe; as lageas,
mornas.
Vê; que soberba camara!; que leitos
desde a origem
dos seculos nos guarda
no seio d'esta brenha a Natureza!
―Ao menos
não tem pulgas. ¡Xó,
canalha!
¡leva rumor! é bom pregar de coices.
Não durma, Sôr Doutor.
―Não tarda muito
que eu não entre a sonhar
¡Que bellos sonhos
não devem ser os de uma noite
d'estas!
―Tenha lá mão com isso; o que eu
prometto,
para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada
de casos
que eu passei na minha vida;
tão rara, que podia ir
á
Gazeta!
[15]
*
Uma vez ia eu só; era em
Novembro;
chuviscava e fazia um
tal escuro
que era metter os dedos pelos olhos.
(Lembrou-me esta a
proposito da mula
escoicinhar sem causa.) E era bom tempo
aquelle;
andava Christo pelo mundo;
tinha eu mais duros, que patacos hoje,
e
andava o oiro aos pontapés da gente;
tambem...
¡já cá não torna!
O grande caso
é que n'aquelle tempo era eu solteiro,
e rapaz
bonitote; e havia muitas
que me fizessem fogo; eu cuido, e é
certo,
que não pelos vintens; nem pela cara;
mas isto de
casar co'um almocreve,
seja elle o diabo dos infernos,
parece a todas
bem: é uma delicia
ter o seu homem só de vez em
quando,
em logar do espião de um pegamaço
com
residencia fixa em ar de abbade.
Mas... não é bom
falar na vida alheia.
*
Como lhe ia contando, era almocreve;
chamavam-me o Chupista.
¡Oh! que bolaxa
que eu pespeguei na cara do coécas
que me inventou a alcunha em certa venda!
qualquer creança
lhe moia os queixos;
já lá está onde o
pague
¿Onde ia o ponto?
¡ah! sim; era almocreve e
recoveiro;
e andava com dez machos todo o anno
a correr quanto valle e
monte havia
para cobrar o fôro aos Frades Cruzios.
Que isto
do fôro é bom, nem que pareça;
[16]
uns pagam-lhe borel, outros centeio,
queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,
gallinhame por arte do diabo,
ovos, e até o musgo onde se empalham.
[1]
Não ha
n'um pardieiro um desgraçado
que não deva pagar
alguma nica.
Já vê donde me vinha a minha alcunha;
mas sem rasão; é porque andava ás
ordens.
Tambem já tenho ouvido alguns autores,
tal como o
meu cunhado, e mais uns certos,
que é coisa bem mal feita a
tal derriça;
Mas bem feito ou mal feito, eu não
sou Papa.
Vamos cá co'o meu conto.
*
Era uma noite,
cuido que já lh'o disse,
ali por Maio,
e fazia um luar... que era um consolo.
Eu saio a meu
avô; se é boa a estrada,
gósto de andar
de noite havendo lua;
cá pelas brenhas não, que
não sou
lobo.
Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,
em cima de uma carga de
presuntos,
pela estrada real, co'os sete machos
a dormitar ao som da
chocalhada.
Vinhamos caminhando em certo passo
de quem gosta da noite,
ou vem sem pressa,
ou de quem traz comida a gente farta.
*
Que lhe digo, em abono da verdade,
que servir Santa-Cruz
não dá desgosto:
pagam bem, fazem festa ao
gallinheiro,
[17]
vendo os machos no
pateo é uma alegria!...
¡aquillo até os
olhos se lhes riem!
dão pinga, e de cear, e muitas vezes
vi
eu estar vai não vai a dar-me um beijo
o Frade gordo que
recebe o saque.
¡Bom tempo! ¡bom de lei!
já
cá não torna.
Não durma Sôr
Doutor.
―Não durmo; acaba.
―¡Acabar! não
acabo em toda a noite,
nem que estoire a barriga do diabo.
Inda eu
não comecei. Lembra-me um Frade
que havia em Santarem; tinha
um cachaço,...
por tal signal que até revia
enxundia;
¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!...
¡Mas aquillo! a prégar era uma joia;
um
sermãosinho d'elle atarantava
e punha tudo azul. Tinha a
constancia
de arrumar prègações de
duas horas.
N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...
(e olhe, foi
tanto, que eu, e muita gente,
já tinhamos dormido
á regalada)
disse muito pausado: «Eu
principio.»
Assim faço eu tambem. Todos
devemos
tirar das
prègações algum
proveito.
Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia;
porém tenha lá mão, que a levo errada.
*
Nesse dia á tardinha, na
estalage
tinha entrado uma
velha; era um diabo,
que isso... só visto! pequenina, magra,
muito preta; era um bilro de pau santo.
Tinha pela cabeça um
lenço pardo
atado pela barba, um manteo ruço,
e
uma mantinha exotica e de agoiro.
[18]
Tinha então uma cara
não sei como;
nem parecia
cara; era um nó cego
que fazia azoar a toda a gente;
mas
muito experta; e uns olhos como um bixo.
¡Tambem aquella rez
tinha no corpo
muita pipa de sangue de creanças!
*
Cheguei eu á estalage, e
ia com fome;
vou-me á
carga do fôro, agarro uns ovos,
mando
os frigir com mel, que é papa
fina;
e então para quem tem de andar de noite
dizem que
é bom, que livra do catarro,
já se sabe com
quatro pingarolas.
Ia se preparando o meu
guizado,
e era um cheiro tão bom pela cosinha,
que isso
não ha dizer. Já dois gallegos,
e mais, tinham
ceado; andavam tolos
a cochichar, e ás voltas pela casa,
um
olho em mim, outro olho na tigella,
e eu muito concho a rir, e a pescar
tudo.
Basta dizer que me pediram ambos
que vendesse um
quinhão; ¡e isto em gallegos!
*
Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.
Mas o monstro da
velha era uma estaca
ali muito direita ao pé dos ovos,
com
cada olho aberto, ¡que te parto!
Era mesmo um olhar de inveja
e zanga.
Logo eu tive má fé co'a tal menina
quando ella perguntou quem era o dono.
Porém quem mal
não usa mal não cuida;
sentei-me á
meza a codear nos ovos.
[19]
Ora
agora o vereis: a minha amiga
amúa-se n'um canto, mais
vermelha
que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella.
Ferra os olhos em mim com tal quezilia,
que a não ser por
temer a Deus e a ella,
batia-lhe co'o prato pelas trombas.
Botava cada
lagrima... ¡de punho!
dava cada suspiro, a excommungada,
¡que punha medo! accendo o meu cigarro,
pago, monto a
cavallo, e sigo a estrada.
Era já noite escura, e
um vento frio
como o gran Satanaz.
*
¿Que diabo é isso?
ressona?; ou já na
costa anda algum moiro?
―Avante; são as ramas que
sussurram.
―Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando
pela estrada
real por ser já tarde,
e a assobiar sósinho o
tiroliro.
Vai senão quando,
estacam-se-me as bestas.
Á esquerda, como ahi, ficava um
monte;
d'esta banda um pinhal muito fechado;
de sorte que o caminho (e
então mui longe
de todo o povoado) era um soturno,
que nem
Roldão o andava áquellas horas.
Entrei logo a
suar e a arripiar-me;
e as mulas n'um inferno de pinotes
sem
quê nem para quê; davam taes rinchos,
que se fundia
o chão; pregavam coices,
que assoviavam no ar;
¡que contradança!
era uma groza de diabos doidos,
e eu mais doido, no meio, á bordoada.
[2]
[20]
Aqui
digo eu como dizia o Frade
n'outro sermão de um Santo;
não lh'o pinto
por não ter um pincel.
Mas faça
ideia
que tal eu ficaria lobrigando
(¡eu te arrenego diabo!)
uma luzerna
a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo,
lá longe no pinhal. Que era bruxedo
tive eu logo de
fé; muitos que m'o ouvem
riem-se, e tal; deixal-os rir; ha
bruxas;
que isso sei eu; ¡e então ali!
¡tão tarde!
Por força era algum sabbado
lá d'ellas,
que as taes amigas juntam-se de noite
a fazer os
seus sabbados, o mesmo
como nós no Natal á meia
noite...
Ha muita comezana de creanças,
sarrabulhos de
sangue, cambalhotas,
e umas rizadas..... que até Deus se
admira.
No meio anda um pretinho muito gordo,
que é o
proprio diabo em carne e osso.
Diz então muita coisa a todas
ellas,
dá-lhe lá seus conselhos, toma contas
do
que teem feito, e..... acaba a tal comedia.
Untam-se co'uma untura que
lá sabem,
transformam-se em corujas e mosquitos,
o diabo e o
lume sorvem-se na terra
dizendo boa noite até tal dia,
e
ellas voltam-se a casa a armar já outras.
Isto sabia-o eu
como os meus dedos.
Lembrou-me a tal gulosa da estalage,
e
então é que dei tudo por perdido.
Deitei
fóra o cigarro, e entro em voz baixa
(¡sempre isto
do pavor faz muita asneira!)
[21]
entrei eu
co'as mãos postas para as mulas
a pedir-lhes co'as lagrimas
nos olhos,
pelas Almas Bemditas, que deixassem
todo aquelle motim, que
me perdiam;
que fugissem d'ali, que andavam bruxas,
e que pé
ante pé viessem vindo;
que eu promettia uma
ração dobrada.
Partimos. De repente
desembésta
d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto
direito para nós como uma xára.
Com seis
milhões de grozas de diabos!
¿quem havia de ser,
senão a velha?
Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,
chega ao cimo, e de lá muito sizuda
entra a dizer-me adeus,
e (¡t'arrenego!)
a fazer-me uma cara dos infernos...
―¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?
―Certo
é que lembrou bem; tambem agora
lá me faz
confusão ter visto a cara.
¿Escuro? isso era
escuro como um prego;
não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e
vi-lh'a;
¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje
tão bem encasquetada no juizo,
que a podia pintar, e era
pintura,
que urrariam os bois se lh'a mostrassem.
Quer escuro quer
não, vi-a, e está dito.
*
Mas o bom não foi isso; o
mais bonito
foi entrar de
repente o gallinhaço
nas canastras da carga em cantarolas,
a
romper, a fugir, e eu pila pila
para aqui, para ali, correndo
ás cegas
sem as poder juntar. Foi
se-me a noite
n'esta labutação; de cada canto
[22]
sentia um cacarejo, ia
ás carreiras,
gallinha... por um oculo. Já rouco,
moido e desesp'rado, ao romper d'alva
vejo as minhas senhoras mui
contentes
todas juntas n'um bando ao pé das mulas.
*
Mas alto; esta é peor.
¿Não
vê? repare:
¡um clarão para ali!! d'esta
nos trincam;
¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a
morte!!
―Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta?
―Para nós ambos de Fieis defuntos.
―De San
João.
―¡Ah! sim; pois é fogueira,
e não
é outra coisa. ¡Ora o diabo!
sempre tive uma
colica soffrível.
Mas vamos nós a andar, se lhe
parece.
Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,
n'umas rasões
que teve com meu tio,
que era barbeiro então, e o Padre
Mestre
era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,
ia fazer-lhe a barba e
mais ao preto,
que era um tição que só
á
bofetada;
¡mas muito presumido! ¡e então
por
moças
dava o grande magano um cavaquinho!!...
Com que emfim,
tinha o Padre este ditado:
aonde ha lume ha fumo; e eu então
digo
que por força onde ha lume ha-de haver gente;
e que
onde ha gente ha casa; e toda a casa
tem a sua cosinha, e
então ceâmos.
E é partir de repente em
quanto ha lume.
...........................................................
...........................................................
[23]
II
Eis aqui um dialogo de ensanchas
sem
geito, sem sabor, sem fim, sem
nexo―
grita o leitor perdendo as estribeiras.
¿Onde foi
isto? ¿ou quando? ¿quem
são elles?
¿onde vão?
¿d'onde veem?
*
Leitor amigo,
ha duas horas que soubéras
tudo,
se o cruel
arrieiro o permittisse;
mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.
Quanto a elle, presumo que o conheces;
o nome do outro autor
dir-t'o-hei n'um verso
não peor que outros muitos
portuguezes:
Antonio Feliciano de Castilho.
Venho do Minho de assistir
a bodas;
recolho me outra vez á
Castanheira
[3]
a casa do Prior, a fazer versos,
beber-lhe o vinho
verde, e dormir muito.
O theatro da scena é certo monte
de
que me esquece o nome; o anno, e o dia,
Mil oitocentos e vinte e oito,
á noite,
vespera de S. João. Se mais desejas,
é perguntar, que eu te respondo a tudo.
*
Mas o melhor (se queres um conselho)
é fazer-me um favor,
ao qual protesto
ser toda a vida grato: anda comnosco;
[24]
a
noite está bellissima; podemos
ir co'o nosso vagar
pataratando,
e conduzindo as mulas pela redea.
Mas tens medo ao Golgan;
pois boas noites;
fica-te em paz, regala te, que eu juro
que estando em
teu logar fazia o mesmo.
Se queres, faze ás paginas
seguintes
onde vai mais Golgan (porque já agora
hei-de
contar a historia por miudo)
faze, digo, a taes paginas o mesmo
que eu,
tu, e elle, e nós, e vós, e elles,
fazemos
ás dos Martyres
do Padre,
que são apezar d'isso uma obra prima.
Passa-as em
claro, e dize que já leste.
Quem fala assim não
quer suor alheio.
E adeus; até mais ver que vou com pressa.
............................................................
............................................................
III
―Olhe lá, Sôr
Doutor; diz um livrito,
que a
gente sem falar é como os burros;
e eu digo que diz bem.
Quero contar-lhe,
para ver se se encurta este caminho,
o mais que se
passou depois da historia.
Mas vá picando a
mula; ¡olhe a fogueira!
*
Com que, como eu já disse,
ao outro dia
vi as gallinhas
ao redor das bestas;
torno-as a pôr na carga, e digo logo:
A
Santa-Cruz não vão vocês de certo;
nem
vocês, nem a carga dos presuntos,
nem nada que aqui vai,
¡com trinta infernos!
[25]
Servos de Deus tão bons,
tão meus amigos,
¡haviam comer tal! ¡metter no corpo
talvez quanto
bruxedo ha neste mundo!
Deus me livre do mais, que de
encarrêgos
posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas
direito
á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,
com carga e tudo.
―¿As mulas!
―Pois as mulas
tinham tantos diabos na muchilla
como as gallinhas, os
boreis, e os ovos.
Mas eu era rapaz; se fosse agora,
não
digo que o fizesse. O divertido
foi andar eu trez annos para quatro
a
correr Portugal e Hespanha toda
a buscar confessor; ¡tudo
ignorante!
Padre douto, nem um que me absolvesse.
Por fim achei o filho
de um cigano,
dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.
Mas
então penitencia não falemos;
se a quizesse
rezar, ¡nem toda a vida!
Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro
duro,
e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;
mas disse-me que havia
até ser velho
mortificar o corpo co'um vergalho,
e com
muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato!
Sabe
então o que fiz inda algum tempo?
era correr de
chôto os meus pedaços,
e depois
descançar.
*
Deixemos isto,
que não lhe importa muito,
e a mim nem nada;
vim para a minha terra apenas pude,
muito pimpão, e cheio
como um ovo.
[26]
Namorei,
namoraram-me bastantes;
por encurtar rasões, casei com uma
que era filha do irmão de um primo ou tio
de um meu compadre
Abreu, que era cunhado
da sogra d'esta mesma rapariga,
e enteado do
irmão do Cura velho;
tudo gente limpinha, muito boa,
e
temente ao Senhor, que é todo o caso.
Gastei para
impôr Bulla os meus tanturrios,
¡e não
foi lá tão pouco!
¡Veja agora:
¡para a gente casar largar dinheiro!
É como ir para a India ou para a fôrca,
e pagar
inda em cima aos da sentença.
Perguntei ao Banqueiro a causa
d'isto,
disse me elle que a causa era nós termos
quatro
humores no corpo, e d'aqui vinha
haver os quatro grãos na
parentela;
que ella era minha prima, e que entre primos
havia os quatro
grãos todos inteiros.
Não se riu, nem me eu ri;
paguei-lhe em peças
não só os quatro
grãos que se
não viam,
mas ainda mais cá certa brincadeira.
*
Deixar; fosse o que fosse; emfim,
casei me.
Aquelle mez primeiro é uma delicia;
foi
todo elle um cantate; muito
amigos,
muito beijo, e comer; muita broega,
muita romage, e tudo muito
e muito.
Nunca houve um par assim tão contentinho;
nanja na
aldeia e na comarca em roda;
era até amizade escandalosa.
Tanto assim, que o Prior, mais era amigo
de fazer a vontade a toda a
gente,
n'um dia santo á pratica da Missa
[27]
deu-me um foguete ¡caspite!
Disse
elle
que marido e mulher com tal namoro
era coisa mais vil que mil
diabos.
Fizemos-lhe a vontade antes de muito;
ella entrou-me a azoar
com trinta coisas,
e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,
o
asneirão do Juiz, que era vizinho,
tomou isto em trambolho,
e ameaçou-me
de me encaixar no fundo dos infernos.
*
¿E então que
lhe parece a entaladella?
Vivia
em paz, ralha o Prior; dezanco-a,
vem o Juiz, promette-me a enxovia.
É como o conto de um palerma velho
que ia a pé
co'um rapaz e mais um burro.
―Bem sei.
―Pois sim senhor. Com que, tivemos,
não digo bem; teve ella
oito ou dez filhos;
e sempre a dois e dois; forte coelha!
Entrei a dar
á bruta; acudiu povo,
ella fugiu, mas eu fugi sem ella.
E
d'então para cá desandou tudo.
E hoje ando aqui
por moço de arrieiro,
a perder noites, e a estrompar as
ventas.
Aqui está por que eu digo que este mundo
é coisa muito celebre! uns ovitos
e uma pinga de mel fizeram
tudo.
............................................................
*
¡Brava!
¿não ouve uns sinos que
repicam?
¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o
Vinagre!
¡e viva a ceia e a cama que estão perto!
[28]
IV
Com effeito, assim era; a poucos
passos
já se ouvia
tambor, gaita de folles,
risadas, bombas. Apressando as mulas
na
direcção dos sons e da fogueira,
descemos uma
encosta, a cujas abas,
entre uns poucos de antigos castanheiros,
uns
cinco ou seis pastores se occupavam
a abobadar de murta uma fontinha.
Interromperam logo o seu trabalho
para nos vir saudar; mostraram pena
de ouvir que nos perdêramos no monte,
off'recendo
á porfia os seus albergues.
Não findara a
benevola contenda,
se um d'elles agarrando o freio á mula
me
não posesse a andar; agradecendo
os desejos dos mais que
inda ficavam,
segui affoitamente o nosso guia.
*
Uma ponte de pau que
atravessámos
coberta de
chorões, nos poz á borda
de um trigo
já maduro e sussurrante,
contiguo ao seu casal.
¡Quanto eu folgara
de descrever tudo isto! Uma casinha
plantada ahi como risonha ilhota
n'um vasto mar de tremulas searas,
e
clara como a neve, ou como a lua
que a espreitava do ceo por entre as
folhas
de um esquivo parreiral. Junto ás paredes,
de rosas e
limeiras revestidas,
canapés de cortiça
apresentavam
a imagem do descanço e a do convite.
Não era necessario entrar a porta,
[29]
para já conhecer o
domicilio
da
hospedage e da paz; que as proprias auras,
como que em tão
poeticas folhagens
se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo
o
estranho!»
*
Não longe lhe ficava a sua
aldeia
na c'roa de
um oiteiro; pensarieis,
vendo-as tão perto, e um bosque a
separal-as,
a aldeia tão brilhante de fogueiras
e esta casa
tão só mas tão alegre,
pensarieis,
como eu, ver n'uma festa
moça ausente e feliz, amante e
amada,
que entre o prazer commum não quer nem deve
ir
desfazer seus pensamentos doces.
*
Visinho seu mui proximo era o templo,
aos valles do arredor
alardeando
na sua torre branca um Anjo de oiro,
e a um lado a
Residencia, occulta em parte
n'um ramilhete de altas cerejeiras.
*
Nunca mão de pintor juntou
n'um quadro
objectos mais simpathicos. Tal como
trépido arroio em tacita
espessura
das copas bebe a sombra, e envia ás copas,
do sol
reflexo voadores raios,
do casal a presença alegra o templo;
a presença do templo está lançando
sobre o casal o sério da virtude.
Tudo isto sob um ceo de
fertil benção,
[30]
sobre um chão de
abundancia, e no
ar mais puro!
―¡Meu Pae,!―grita o pastor entrando
á pressa―
minhas irmans! ¡um hospede!―
*
A tal nome,
como se fosse
á voz de alguma fada,
com repentina luz nos apparecem
creanças folgasans, esbeltas moças,
um
ancião, e uma velha. Imagináreis
ver
Graças, ver Amores, ver Napêas,
trajados de
aldeãos, e honrando os lares
de Baucis e
Philémon, que o parecem
na edade e na virtude os meus dois
velhos.
*
Não mora entre seáras a etiqueta;
mas sobre
herdada meza de pinheiro
em troco adeja a cordeal franqueza,
o bom
desejo adubo da abundancia,
e a amisade dos bons, filha do instincto,
que nasce qual relampago, mas dura.
Deu-se o primeiro instante ao
comprimento,
logo o segundo aos commodos;
o resto á
conversa, e ao bulicio de tal noite.
*
Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,
vital perfume de mellifluos
bolos,
que em molles virações traz a alegria.
Aquella vai e vem compondo a meza;
esta afervora a ceia, e a cada
instante
corre á janella que descobre a aldeia.
Juntam-se
á bulha os sinos da parochia,
[31]
que o
sacristão na vespera do Orago
jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra.
O festivo repique
exalta as mentes,
os meninos não param, correm, gritam,
repartem bombas, furtam-se valverdes,
e rindo ameaçam fogo
á pipa velha.
A boa annosa mãe ralha do estrondo,
e o faz inda maior; o esposo enfia
uma sobre outra historias do seu
tempo.
O avito candieiro de tres lumes
cobre da meza o centro, e chama
á ceia;
a sôlta sociedade eis se lhe aggrega.
Não foi longo o festim, mas cada copo
lhe augmentava o
praser. ¡Salve tres vezes,
ó dos tres lumes
candieiro avito!
¡quanto amor, quanta paz, que bens, que
festas
não tens visto florir em tua casa!
¡quantas
mãos tão felizes como puras
te hão
accendido em noite igual! ¡quem sabe
que de memorias para ti
conservas!
¡Em premio da hospedage aqui te accendam
longas
eras em noites semelhantes
dignos de seus avós contentes
netos!
*
Iria a muda apostrophe adiante,
mas ouviu-se o
zabumba.―¡Ahi veem! ¡são
elles!―
dizem todos, e todos saem pulando.
―Olhae; olhae;
¡nem uma luz na aldeia!
este anno veio tudo. ¡Que
alegria
terá o nosso Parocho!
―Maria,
dá cá o meu
chapéo.
―¡Corre, Pedrinho!
―¿Onde está
meu
irmão?
[32]
―¡Não se
demorem!
―Vamos dançar.
―Perdi as alcaxofras.
―Vinde por cá;
passemos-lhes
adiante;
que rancho que lá vem!.....................
..........................................................
........................... Golgan, que eu fosse,
não pintara a
estrondosa miscellanea
que vôa do cazal ao Presbyterio.
Lavra
nos proprios velhos o alvoroço;
vão co'os mais
quasi a par; lavra em mim mesmo,
estranho á festa. O pateo
illuminado
nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.
―Viva o nosso
Prior!...
―¡Viva!!!...
Mil vozes
restrugem o ecco apenas avistaram
rindo á janella
o velho gordo e alegre.
―¡Viva o Senhor San João!
¡viva a
alegria!
V
Bate o zabumba; a muzica rebenta;
fogem foguetes pelos ares livres
estrepitando; o campanario ovante
de jubilo endoidece; repentina
por
dez partes acceza alta fogueira
dentro de um vasto circulo purpureo
mostra o prazer brincando em cada rosto.
Bello é ver n'este
lance as raparigas
compondo mais o lenço, alevantando
o
chapeo, que o semblante lhes encobre,
dando, como a descuido, um toque
leve,
mas gracioso, ás flores que lh'o adornam,
e
á flor do seio, e ao laço do collete.
¡Quantos nós ata amor n'esses instantes!
[33]
¡quantos outros aperta!
¡em quantos outros
embebe o espinho de um sutil ciume!
¡Chiton! temos o Parocho na frente;
e as cangalhas
vêem mais do que parece.
A alegria decente, eis o estribilho
com que
recheia as praticas. Se cantam,
co'a cabeça e co'o
pé bate o compasso;
se pulam boa dança em honra
ao Santo,
bota fora uma can. Por isso o baile
circula agora a estridula
fogueira;
por isso o San João vai toda a noite
injuriado em
canticos devotos.
VI
Meia noite. Que som mysterioso!
interrupção no
baile e nos descantes.
*
Fada das amorosas prophecias,
tu, tu passaste agora em concha aerea
tirada pelo zephyro; sentimos
todos nós tua magica
presença.
¡Boa viagem, Fada, e boa noite!
¡Salve, hora duodecima; bateste,
e descerrou-se a porta do
futuro.
Sua nevoa desfeita em orvalhadas
vai nas plantas eleitas, vai
nas flores
mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes
benção, certeza, amor, felicidade.
Já
se interrompem bailes e descantes.
Embebida em potentes nigromancias
[34]
toda esta multidão por
modos
varios
exerce escrupulosa altos mysterios.
Mas renasce o
alvoroço; é porque os copos
dos bilhetes
fatidicos chegaram
da ama nas mãos com riso de importancia.
―Não falta aqui rapaz nem rapariga―
diz ella;―o senhor
Padre escreveu todos,
mesmo á vista do rol dos confessados.
Meia noite já deu; quem quer casar-se,
pode vir vindo.
Ao grande reboliço
succedeu a
attenção, que a cada sorte
outra vez se converte
em gargalhadas.
Por cada par que amor approvaria,
veem disparates
comicos ás duzias,
e dão rebate ás
palmas e epigrammas.
O proprio bom do velho applaude a tudo,
e por
primeira vez da sua vida
encontra em si chorrilhos de finuras.
Já pede a uma o bolo do noivado;
quer ser padrinho de outra;
e ás mais bonitas
quer baptisar de graça os
pequerruchos.
Muito custa no mundo o ser discreto
sem descambar o pé!
coisas escapam...
que é por Deus não haver o
Santo Officio,
como esta ao nosso padre:
―Olhae, rapazes,
vai n'estas sortes o que vai no mundo:
o acaso e a
Providencia, ao que parece,
ambos lêem pelo mesmo Breviario.
Não foi dos mais christãos o epiphonema,
mas fez
rir. O Golgan neste comenos
[35]
chega,
furta uma sorte, e diz abrindo-a:
―Esta, seja quem fôr,
é cá p'ra
nostri.
Pede que a leiam; lê-se-lhe:―O
coveiro.―
Mudo o povo se entre-olha; e de repente
co'as
pragas do Golgan destampam risos,
como os que o padre Homero encaixa
aos deuses;
¡inextinguiveis risos! Mas não cede
a
chufas nem a agoiro o varão forte;
e com mão bem
segura extrae sublime
do outro copo outra sorte:―Ambrosia
Trécula.
Então do pateo o riso clamoroso
deveu-se ouvir no Artabro e
Guadiana
retumbou nos ceos: Trécula...
Trécula.
―¿Quem diabo é esta Ambrosia?―o heroe pergunta.
―Sou eu―responde a ama.
―¡Está brincando!
é talvez sua neta ou
titrineta. ―Vá-se, tolo.
―Olhe cá, senhora tia,
não vai a arrenegar;
não lhe pergunto
por cara, corpo e modos, que são
lindos;
¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa?
Com o desdem mais dramatico, a matrona
voltou costas; e o
bêbado prosegue:
―Sô Reverendo, não lhe
aceite os banhos,
que eu sou casado, e ponho impedimentos.
Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem
tirar tambem; tirei;
¿quem tiraria?
uma das filhas do meu bom
Philémon.
Recebi parabens de todo o povo;
deixei-o bem
disposto a divertir-se,
[36]
e tornei co'o o meu sogro
ao
nosso
albergue.
Instou que me deitasse; respondi-lhe
que em noite de
San-João ninguem se deita;
que alem d'isso a jornada
fôra curta,
e sem nimia fadiga; ultimamente
que, pois que
elle esperava a mais familia,
esperava eu tambem; não sendo
airoso
faltar á noiva no primeiro dia.
―Cedo, mas só co'a clausula―disse elle―
que
inda amanhan sois nosso.
―Assigno.
―¡Bello!
*
Então toca a palrar até que venham.
Saiâmos, que faz calma; alem, na eira,
sobre a alta palha do
centeio novo
tomaremos a fresca e as orvalhadas.
*
Disse, e fez se. ¡Que ceo!
¡que paz!
¡que
noite!
na molle aragem das fagueiras horas
meu
coração feliz desabroxado
me enchia de um perfume
egual ao vosso,
nocturnas flores, que o gosais sosinhas.
¡Quem podesse apanhar, prender na vida
estes momentos
lubricos, momentos
que só caem do ceo durante a noite,
e
só na solidão! Temi perdel-os
co'a triste
distracção de mutuas falas.
Lembrou-me haver
notado no meu velho
um genio amigo de contar historias;
pedi-lhe uma
qualquer, bem decidido
a deixal-o á vontade espanejar-se
sem
lhe dar attenção; mas enganei-me,
Pondo o rosto
na mão, nos céos os olhos,
[37]
entra a buscar pela memoria antiga
algum caso mais raro; e como desse
casualmente co'a vista em certo lume
n'um cabeço remoto,
*
―Ouvi―me disse;―
por aquella luzinha lá ao
longe
lembra-me um caso, e um caso que foi certo,
passado ali no Minho ha
largos annos.
Inda eu conservo em casa uns Breviarios
de um Padre
irmão da minha avó materna,
que
poderão servir de documento.
Elle mesmo o escreveu nas
folhas brancas
do principio e do fim dos quatro tomos.
E era um clerigo
honrado, o que escrevia;
merece tanta fé como a Escritura.
Diz elle então ali (nem é só elle;
minha Avó sua irman dizia o mesmo):
que esta nossa familia
inda descende
da Rosa de quem fala a dita historia.
A minha
avó foi Rosa, e tinha o nome
de sua mãe; a minha
mãe foi Rosa;
a vossa noiva
é Rosa; e
n'esta casa,
querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.
*
Depois d'este preambulo de Rosas,
veio a historia, e encantou-me; ou
fossem causa
hora e sitio, ou a amavel singeleza
com que narrava o
historiador das medas,
ou já
disposição com que eu me
achasse.
Creio que sim: do espirito do ouvinte
vem mais de meio o
merito das obras.
[38]
Por exemplo: da Eneida o livro quarto
dias ha que me enfada; ha
tambem dias
em que se atura o
Italico do
Padre;
[4]
e
em que se entende um pouco a pálrea bruta
que
aos brutos deu do amavel Lafontaine.
[5]
Nada parece mal, trazido a
tempo;
fora de tempo, tudo. A mesma coisa
entre obras e leitores
acontece,
que entre os garfos e as arvores: se enxertam
quando o
não pede o tronco e o veda a lua,
¡adeus ramo
bastardo! e se ao contrario,
penetra a seiva toda, e pula o ramo.
Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,
que protestei contar-vol-o a
meu modo;
e o poema seguinte é o desempenho.
Tivesse elle, o
que em vão lhe hei procurado,
da prosa do meu sogro o tom
singelo,
talvez, leitores meus, o relerieis.
Inventar, descrever, compor os versos,
são os tres
pés, da trípode de Apollo.
Já sabereis do Reverendo Kinsey
que eu não tenho
invenção; que nada
pinto
co'a verdadeira côr da Natureza;
que os versos meus
são bons, mas que aborrecem;
o que não tira que
um poéta eu seja
digno de ser notado entre os que vivem.
[39]
Ora, quanto á
invenção d'este poema,
bem vedes que a
não ha, ou se a ha que é
d'outrem.
E quanto ás descripcões, fiz o possivel
para não metter mais que as do meu
sogro.
Mas faltava o melhor, e o mais difficil:
versificar á moda. Atirei fora
o Virgilio, o Racine, e o
Metastasio,
gebos todos monótonos, que enfiam
os versos bons
e os optimos aos centos;
atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;
estudei, fiz ensaios, compuz paginas
de embréxados
velhissimos e esdruxulos,
e não foi sem proveito o estudo
acerrimo.
*
Perdoae se este livro inda vai falho
d'esses donaires que
travêssos fogem
de mal expertas mãos; soffrei-o em
quanto
vou destilar sobre outro o
Elucidario,
qual se espreme um limão
sobre um guizote.
Abril de 1831.
III
EPISTOLA
A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA
(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho)
Da paz de um ermo ao
turbilhão da côrte
a Musa
de Castilho á do seu Costa
saude e amor. Já outra
primavera
se enflora, a seu pesar, desde que ausente
pede aos montes a
irman, que a não suspira,
e dorme ao lado de um feliz
ingrato.
Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios
em cantos cujo ecco
além não passa
..........................................................
1831―Abril, 21.
IV
O PRESBYTÉRIO
¡Salvè, principio e fim dos meus passeios!
¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha,
cobre ha perto de um lustro os meus autores,
meus castellos no ar, meus
faceis versos!
¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas
limas,
festivo ornato das paredes brancas;
co'o teu portão
patente oppresso de heras;
e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,
brasão futuro do obumbrado pateo!
¡Salvè outra vez, meu presbytério!
¡Salvè!
*
Hoje, que o caprichoso do meu estro
(bem sabes se elle o é)
deixa inconstante
versos índa no chôco, outros que
apenas
vão da casca a sahir, outros que breve
teem de fugir
do ninho em vôos livres,
entrou, mal veio a aurora
esclarecer-te,
a doidejar-te em roda, a namorar-te,
qual borboleta
ociosa ou leve abelha.
Pois que elle o quer.... cantemos-te; e
perdôa
se o canto falador, transpondo os cumes
das tuas
cerejeiras, fôr mais longe
revelar tua humilde obscuridade.
[44]
*
A antiga mediania, a
segurança,
a paz, o amor dos Ceos, o
amor dos homens,
genios foram, que em bençãos
presidiram
aos alicerces teus. De Pário monte
não
foi mistér que entranhas te enviassem
chão,
columnas, e abóbadas, e estatuas;
tuas portas sem chave
não cresceram
lá nas florestas do
hemisphério opposto.
Foi visinho pinhal teu sôlho
e tecto;
deu-te paredes mais visinho oiteiro;
portões e meza
um cedro bom da extrema.
Não custaste nem lagrimas a pobre,
que á força te cedesse a choça avita,
nem odioso suor; e não se dormem
somnos melhores em Belem
nem Mafra.
*
¿Que importa que no centro d'estes ermos
vivas
tão só, que apenas descortines
n'um dos altos
d'em torno esquiva aldeia?
Tu e o templo co'as messes que vos cingem
bastais no quadro agreste; em vós affluem
(como em sua
Queluz) nos festos dias
ondas e ondas de amaveis saudadores.
Os
rebanhos ociosos não desdenham
tôjo em flor, que
te doira o chão das mattas,
d'onde envôltos co' os
trémulos balidos,
veem cantos de amorosas guardadoras
endoidecer teu ecco.
Os caminheiros
abençôam-te a
sombra; aqui teem
fonte,
que em tua relva, ao fresco das parreiras,
detém,
dessedentando-as, caravanas
que vão ou veem no alpestre
Caramulo.
[45]
*
O anjo das flores liberal te arqueia
de bordada verdura as rescendentes
claras janellas.
Um bulicio manso
de amigas vozes teu recinto alegra.
Na sua
tépida choça os bois ruminam
ante o feno em
montões; dorme no páteo
farto
esquadrão lanigero; ao sol pôsto,
cão,
dos lobos terror, te vela as noites;
teus gallos as demarcam
vigilantes.
Co'a luz primeira arrulha-te alvejando
cypria nuvem
plumosa; e apenas saltam
da
dextra mão
mesquinha os grãos doirados,
em torno da gentil madrugadeira
de toda a parte os hospedes revôam.
Bicam por entre as pombas
á porfia
a gallinha de filhos rodeada,
o manso grasnador do
aquoso tanque,
o vaidoso perú, que ri cantando,
e
vós, e vós, mais vivos do que todos,
não chamados, mas sempre a nós bemvindos,
passarinhos do ceo, turba sem dono.
*
Singelo presbyterio, ¡oh!
¡como te amo,
co'o teu ar
casaleiro! Amo o teu forno,
tão social á noite; a
simples sala,
quasi sempre deserta; a livraria,
deserta rara vez; estas
alcôvas,
que enche um só leito; e a adega,
assoviada
do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia
da
cheirosa vendima; e o teu celleiro,
alto, arejado, e tão
patente aos pobres,
como as portas do templo convisinho.
[46]
*
¡Floresças para
o Ceo e para a terra
nos
inconstantes seculos! ¡floresças,
feliz, co'o
feliz dono, edade longa!
E se, lá no futuro, algum amigo,
sócio dos dias bons, saudoso e triste,
torcendo a estrada, a
te pedir viesse
novas do teu cantor,―«Amou me, e amei-o―
lhe dirias mostrando-te; e―«Seus ossos―
juntaria o teu
velho―aqui descançam.»
*
Sim; apraz-me cuidar que inda os meus
restos,
gratos aos bons d'este
recanto obscuro,
onde escapei no seculo de sangue,
cá
ficarão n'este ocio, inda alguns dias
do simples montanhez
talvez chorados.
*
Oh santa perseguida Liberdade,
¡onde te achei!.... Onde
não vivem homens;
n'um torrão bravo que
não chama invejas.
*
Em quanto, ora que a noite o ceo regela
humida e turva, tantos ricos
enchem
de bocejante enôjo as assemblêas,
e tantos,
tantos miseros, sem lares,
sem consôlo, sem pão,
sem voz de amigo,
só reos de patrio amor, dormem nas furnas,
pelas praias do Oceano, e pelas rochas
(sublimes troncos pelo
pé cortados)...
[47]
tua clara fogueira nos aquece;
¡graças,
graças a um Deus!
Assim
vagava
sobre o universo undoso a arca do
justo.
*
Nós, depois de annos tres,
inda esperâmos.
Ainda
do trovão eccos retumbam.
Ainda os escarceos assoladores
remugem lá por fóra. Ainda a pomba
co'o ramo de
oliveira inda não volve.
*
¡Oh santa perseguida
Liberdade!
¡Oh! ¡Se
eu podesse, a trôco dos meus
dias,
restituir-te á minha Patria!....
*
Basta.
Esperemos ainda. Oremos sempre;
e
talvez que não tarde a grata aurora,
em que, a adejar da
serra pelos pincaros,
venha de longe a nuncia das venturas,
a pomba com
o seu ramo de oliveira!...
Castanheira de Vouga
Maio de 1831.
V
A LYRA DO DESTERRADO
(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho)
Era a noite dos finados;
sombria noite de outono.
Entre sinos
acordados
lá jaz Roma entregue ao sono;
seus luzeiros
apagados.
Do ceo pelo rôto manto
só brilham frouxas
estrellas;
sai a custo o clarão santo
dos templos pelas
janellas;
e Petrarcha vela emtanto.
Véla Petrarcha, e suspira
no leito amoroso e ermo;
olhos na
véla que expira;
saudades no peito enfermo;
nem gloria
sonha, nem lyra.
Qual raio sôlto de lua
por móveis aguas vibrada
n'um bosque inteiro flutúa,
tal adeja no passado
a saudosa
mente sua.
¿Quem dirá seus pensamentos?
a douta lingua
está muda.
¡Que paixões, que
sentimentos,
no rosto, que aspeitos muda,
veem transluzir por momentos!
Ora é dor, ora é sorriso,
esperança,
amor, transporte;
queixas, ternuras diviso;
desce aos abysmos da morte,
vôa aéreo ao Paraizo.
¡Não falar o Vate agora
co'os labios que move
apenas!
¡Que torrente abrazadora!
¡que amor!
¡que incendidas penas!
¡quão nova a
paixão não
fôra!
Vai a noite adiantada;
humido vento assovia;
treme a luz quasi apagada.
Do grão Cantor que vigia
ferve a mente a sonhos dada.
―«Eís o templo conhecido
que os meus destinos
encerra.
A mãe terna, o pae querido,
cá m'os tem
no seio a terra.
Cá vi Laura, e fui perdido...
........................................
Castanheira do Vouga
1830...(?)
VI
EPISTOLA
(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho)
A minha primavera emfim renasce.
Té n'este horror
selvatico dos montes
roupas traja nupciaes a Natureza.
O ceo azul, o ar
morno, as aguas puras,
tudo nos diz «amor»;
dizem-n-o as aves
chalreando ao florir das alvoradas;
bala o rebanho
alegre; armento o muge;
na folha nova zéphiro o cicia;
a
camponeza em meio de mil flores,
que lh'o exhalam balsamico, o suspira,
e ao viçoso tapiz, á sombra vasta
macia e
tentadora lança os olhos.
Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,
enleva a fonte e as arvores
nocturnas,
cantando amor, da lua ao raio incerto,
lições que mais de um ente ao longe estuda
(e
pratica talvez); em sons de lyra,
solitario eu tambem,
lições de affectos
de cá te envio ao
centro da cidade.
[52]
N'esse ruidoso vórtice de
povo,
de vãos praseres,
de negocios futeis,
a geral rotação te arrasta
ás cegas;
é dever da amisade erguer-te aos olhos
luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas
pode não
ver a táboa ás vezes perto;
pode a praia ignorar,
e tel a em face.
Táboa amor te lançou da praia
firme;
ledo e fausto Hymeneu te está chamando.
..........................................................
VII
A ROMARIA
Lá vem Maio rosado.
Já floreja
nas planicies,
verdeja pelos montes;
é o mez de Amor, é o mez de
Philoméla.
Aureo amanhece o dia suspirado
da romaria annual; léguas em
roda
já tudo é festa, esp'rança, e
regosijo.
As povoações, desertas. Por estradas,
por torcidos atalhos, por oiteiros,
correm de toda a parte ornados
bandos.
Lá retrôa nos eccos aturdidos
a matinal
girandola ruidosa;
acorda ao longe a torre com repiques;
um povo de cem
povos misturado
enche a vozeada selva, a acceza ermida,
e de ondeado
matiz cobre o terreno.
Arfa ao sol, no alto mastro volteando,
triumphante bandeira alvi-cerúlea.
Vai e vem, ora chega, ora
se allonga,
não está em nenhum sitio, e assoma em
todos,
a alma da festa, a gloria do Gallego,
a aguda gaita
túmida e franjada,
que ao rufado tambor sócia,
repete
a moda velha e alegre, amor dos campos.
[54]
Em vidrado alguidar reluzem n'agua
os doirados
tremóços, que afadigam
com compradores a
afrontada tia.
As navalhas e anéis, o apito, o espelho,
se
assoalham mais além; na alva toalha,
alva e folhuda,
estão chamando o exul.
Em cima de seus carros triumphantes
os laureados tonéis, reis da alegria,
dão n'um
fogo perenne a vida a tudo.
Aqui se ouve o descante ao desafio,
que a viola ora segue, ora
acompanha.
Ali se apinham para ver as danças,
que a discorde
rabecca entorta ás vezes.
Lá, se entorna o licor
em puros vidros;
ao pé se adoça a fresca
limonada.
Aqui se comprimentam; além chamam;
um se perde, outro se
acha, outro convida.
Este corre; esta pára a ataviar-se,
por
mostrar o cordão e o lenço novo.
Estirados na
relva os velhos palram;
grita o rapaz. O amante, recostado
ao
páu, por onde um braço lhe serpeia,
faz longa
côrte á tímida futura,
que em resposta
de amor lhe dá
tremóços.
N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens.
Lá sai a procissão; lá foram todos.
¡Ah! depois do jantar comido ás sombras,
cada um
levará, volvendo a casa,
gratas lembranças para o
anno inteiro.
VIII
O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES
OU
A MATTA DE S. SEBASTIÃO
Versos
na
plantação de uns carvalhos junto
á egreja de S. Mamede
da Castanheira do Vouga pelos rapazes
solteiros da freguezia
no Domingo do Carnaval de 183...
I
N'este dia, em que o povo tumultuando
nos casaes, nas aldeias, nas
cidades,
troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,
por copos,
danças, máscaras, e risos
nas saturnaes
christans; quando se espraia,
desde o seio de Roma aos fins da terra,
de um praser contagioso alta vertigem;
¿por que retreme ao
golpe das enxadas
sob os meus pés a solitaria encosta?
*
¡Saude a vós, a
vós louvor. Bemvindos,
montanhezes, fieis aos priscos usos!
O cântaro do estylo ahi
está coroado,
risonho e prestes a inundar os copos;
o
prémio á vista vos redobre as
forças.
[56]
*
Rasgae co'o duro ferro a terra dura;
de vossos paes a matta veneranda
em torno de seu santo antigo dono
se accrescente por vós.
Plantae, que é tempo,
no chão, sagrado de suor
devoto,
ó presente annual, que o Ceo prospére.
*
Onde quer que elle jaz,
abençoemos
as cinzas do homem bom,
lá d'essas eras
que a pia usança introduziu
primeiro.
¡Quanto a sua virtude era risonha!
―«Cada solteiro plantará n'este ermo
mais uma
arvoresinha de anno em anno,
que lá em cima
encontrará seu premio.»
¡Oh! estes
rogos, sim, este pedido,
doce e desint'ressado,
uncção respira;
manda mais do que as Leis; morrer
não deve.
*
Produz, produz a miudo, ó
Natureza,
por teu bem, por bem
nosso, homens como esse.
Haja quem diga ao joven par, que ás
aras
sobe apenas amante, e desce esposo:
―«Hoje, que
são já fruto
esp'ranças de hontem,
entrae sorrindo pelo chão
da vida;
plantae, plantae um'arvore que o lembre.»
*
Quando a cabana festival se enrama,
se enflora a meza, e os
aldeãos visinhos
[57]
veem
festejar na casa um filho novo,
a mão paterna, de praser
tremendo,
orne de um novo tronco o prédio avito.
*
¿Depois de suspirada e
curta ausencia
volve um
irmão das terras estrangeiras?
¿Convalesce um
parente? ¿Em bem se acaba
suado, volumoso, eterno pleito,
que empobreceu o avô, o filho, e o neto?
¿Fizestes
o adversario amigo vosso?
¿Sorriu-vos a ventura?
¿É farto o
anno?
A sêrdes Reis, alçáreis
monumentos;
¿que vale um monumento? O homem dos campos
melhores pode erguer a menos custo:
plante sobre o caminho arvores
férteis.
Por elle o passageiro ardendo em calma
ache a
sombra hospedeira que o recreie.
Por elle o pobre, que seu
pão mendiga
de casal em casal, de monte em monte,
que
não vê ceo, nem lar onde se aqueça,
nem feno onde descance, e em todo o mundo
só tem por
património a caridade,
ache a fruta a pender em curvos
ramos,
a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.
Assim, do bem de
um só germinariam
mil bens communs; e do praser de um homem
o publico praser, publicas bençãos.
II
Se tendes de nascer, nascei mui breve,
sensiveis
corações a quem Deus guarda,
a gloria de influir
eguaes costumes.
[58]
Desde
já nossas lagrimas de affecto
correm por vós; ao
seio do futuro
nós vos lançamos desde
cá louvores.
III
Sentemo-nos, em quanto os vossos
filhos
aqui se embebem na tarefa
honrosa,
sentemo-nos á sombra, a vós bem grata,
do carvalhal que as vossas mãos plantaram,
homens das cans,
antigas testemunhas
dos tempos que não são.
*
Vós, deputados
das mortas
gerações aos
vivos de hoje
como pregões propheticos; thesoiro
de
saudades, de dor, de experiencia;
bons velhos, á vossa alma
taciturna
aprazem mais que a festa os pensamentos.
*
Falae: ¿d'onde vos nasce
essa tristeza
profunda a um tempo e
vaga, amarga e doce?
¿Será de
enfeitiçada sympathia
que nos attrai á terra, ao
chão da vida,
chão sempre cubiçado e
sempre ingrato?
*
O coração,
zeloso da existencia,
compara os dias
seus do tronco aos dias,
e a conta desegual o opprime e o fecha.
¡Annos a nós, e seculos aos bosques!...
Planta o
pae, mas a sombra hospéda os filhos;
[59]
netos, que não
verá,
gosarão d'ella;
e indiff'rentes incógnitos
vindoiros
rirão contentes ao folhudo abrigo.
*
Mas, velhos, mui ditoso o que em seu
predio
dispõe arvore
fértil de esperanças,
que irá legada
aos filhos de seus filhos.
Prophecias de amor lhe expande o seio,
sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos.
Mas feliz egualmente o que em seu predio
possue vaidoso um tronco
hereditario.
*
Na réga, e ao vir da flor,
e ao dar do fruto,
¿como ha-de não pensar em seus maiores?
Um lh'o
plantou, os outros lh'o trataram;
¿Como ha-de recusar-lhe
uma saudade,
um suspiro, um suffragio, um elogio?
A gratidão
medita á mesma sombra
onde já meditára
o amor paterno.
Esta arvore mortal é o santo marco,
em que
se juntam, se entrelaçam, crescem,
dos idos o interesse e o
dos vindoiros;
nó de affeição, que os
seculos reune.
*
¿Vedes vós essa
mãe, que ha tantos
annos
chora um filho alem-mar, em longes terras?
Mostrae-lhe um
passageiro a dar á vella
para o porto feliz; ¡com
que ternura
lhe não dará, chorando, um longo
abraço,
que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,
[59]
e todo o amor de mãe lhe
exprima n'elle!...
¡E com quanto alvoroço o
desterrado
não cingirá o amavel mensageiro!...
Eis o emblema da arvore, cruzando
viva e lembrada o Oceano das edades,
mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.
IV
¿Qual de vós,
repoisando n'esta cama
de folhas
mortas, qual de vós, no meio
d'esses troncos musgosos,
seculares,
não viaja com o espirito espraiado
por esse mundo
antigo e antigos homens?
Sim, vossa alma se apraz, phantasiando
de lhe
restituir quanto houve d'elles:
uma vida, uma choça, herdade
e patria.
Deslembram cans; rugosas faces riem;
reviveis n'um minuto
annos de infancia
sob a affeição de um pae, de um
pae nos lares;
sem cuidados, sem prole, e sem temores,
entrais folgando
o limiar da vida.
¡Podesse n'este ponto o pensamento,
como
ave em ramo flórido e viscoso,
deter-se a recordar, ficar
pregado!
¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o
sonho,
e a extincta geração recai nas campas.
*
¿Mas quê?
¿d'esses antigos plantadores
nada mais resta além de uns troncos mudos
n'este universo
movediço e instavel?
¿nem uma só
lembrança, um dito, um
nome?
Tudo passou sem mínimo vestigio,
como os sons leves de
um descante ao longe.
................................................................
[61]
V
Bons aldeões, estas
sombras regaladas
vos falam nos
avós; porém comigo,
comigo, extranho, e novo em
meio d'ellas,
conversam no aureo tempo a que assistiram;
recordam-me as
edades do Universo,
e os varios povos, e os paizes varios,
contemporaneos do nascente mundo.
*
Intonsas, invioladas, venerandas,
outras selvas, como esta que nos
fecha,
fecharam do homem a primeira origem.
Sob as verdes
abóbadas immensas
as velhas tradições
nol-os descrevem
pobres e alegres, nús e satisfeitos,
saboreando em ocio a glande e a fonte,
dormindo sobre a folha, e sem
pedirem
outra casa, outro templo, outra cidade.
*
A pouco e pouco o numero crescia,
minguando a pouco e pouco a
singeleza.
Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam;
a um
Maio eterno as estações succedem;
o ar se gela e
accende, alaga e silva;
já bravejam leões,
já bramam tigres;
o homem se acoita ao seio das cavernas.
*
Vós, troncos,
até ali seus companheiros,
acudís a servil-o; ¡e em quantos modos!
[62]
lá, crepitais em
rútila fogueira;
aqui, das feras prohibís a
entrada;
dais uma clava ao caçador valente;
na
serviçal cortiça um berço aos
filhos;
leitos a amor, assentos á velhice,
aos enxames um
lar, um copo ás festas.
*
Das precisões ao grito, o
engenho acorda;
lá
surgem povoações, curraes,
tugúrios,
e uma capella ás rusticas deidades.
Lá rompe o novo arado a terra dura;
lá geme, a
transportar enormes pezos,
o carro, e sulca atónitos
caminhos.
O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;
a rudeza se
pule; as artes crescem;
a especie racional das mais triumpha.
*
As gerações do
ceo, do mar, da terra,
tudo
é já seu; os campos lhe obedecem;
faltava o
Oceano; affoita quilha o rasga.
*
Então foi, que estas
arvores, tão uteis
no patrio
continente, abriram vôo
sobre o liquido abysmo a novos
climas.
*
¿E em que parte do globo,
arvore excelsa,
te podes
presentar, que não recordes
uma façanha, um
culto, um grão successo?
[63]
*
¿Na Grecia? Mas o Grego
inda hoje conta
que foste invicta
clava em mão de Alcides;
vê-te, suspira, bate o
chão raivando
de achar-se escravo, e de não
ter-lhe as forças.
¿Na Grecia? Mas o Grego inda
hoje conta
do arvoredo Dodónio as mil respostas,
o passado e
o porvir patente a todos,
e o livro do destino aberto ao mundo.
*
¿Na Ausónia?
Mas Cybelle amou teus ramos;
Roma os
sagrou a Jove; e, fulminada,
eras tremendo agoiro a todo o Imperio.
¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica?
*
¿Nos campos?
¿E
Phílémon, o
justo, o caro aos
deuses?
*
¿Nas Gallias? em seus
barbaros oiteiros
tu, só,
eras o altar, o deus, e o templo.
*
¿Na Caledonia, em Morven,
junto aos lagos,
sobre os cumes,
á beira das torrentes?
Lá tu viste Tremnor,
Fingal, e os bravos,
reunidos na vespera do sangue
em nocturno festim
que allumiavas,
quando na harpa dos bardos reviviam
os feitos dos
heroes do antigo tempo.
[64]
*
¡Salve, eleito Israel!
Eis-nos em campos
de Sichem. Vejo os
principes e os velhos,
os juizes, as tribus, apinhar-se
em torno ao
tabernáculo de Sila.
Por cima d'este mar ondeado e vivo
reina de praia em praia alto silencio.
Sublime como o cedro do deserto,
se levanta Josué, braço do Eterno,
em nome do
Senhor, que o manda e inspira;
os favores do Ceo recorda ao povo;
renasce a Fé; os idolos se arrazam;
―«¡Gloria ao Deus de Israel!―vozeia a turba―
¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!
―Erga-se um
monumento,―exclama o chefe―
que, se infieis um dia os esquecerdes,
vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.»
E a monumento
põe no logar santo
enorme pedra á sombra de um
carvalho,
que abrigava co'a copa o santuário.
[7]
Despede o
Povo, e em paz contente expira;
em paz, que já
não vê
perjúrios novos.
*
Escrava de Madian a plebe expia,
na miseria e no opprobrio, os males
torpes
que fez ante o Senhor. Mas inda existe
um justo, a quem Deus fie
o libertal-a:
é Gedeão, é o
Josué
segundo.
[8]
Este, em quanto seu pae lança aos caminhos
medroso olhar á espera do inimigo
[65]
para fugir com elle, ajunta
á pressa
o trigo que limpou.
Vê de repente
um Anjo, que debaixo do carvalho
se assenta, e
lhe repete a lei do Eterno.
Esse mesmo carvalho é testemunha
da belleza do alado mensageiro,
da voz de
salvação mandada ao Povo,
e do holocausto acceito
e posto em cinzas,
e do altar, a quem Paz foi
dada em
nome.
*
E este, que tão frondoso
opáca os valles,
¿por que o rodeia um bando taciturno
dos fortes de Galaad?
as suas armas
jazem quebradas; sua dor vai funda;
dos olhos tristes
para o ceo voltados
pelo rosto amarello lhes escorre
grosso pranto, que
alaga as f'ridas frescas.
Choram Saul, e a régia
descendencia,
que mortos no combate aqui descançam.
Para o
Monarcha agigantado e invicto
nenhuma estátua se
erguerá na campa.
Sua columna e funebre palacio
preparou-lh'os com tempo a Natureza:
o tronco, rei da selva, o
está cobrindo.
*
¡Mas quanto é
mais tocante o que se eleva
nas
faldas solitarias da montanha!
Ali Débora jaz; ali Rebecca
chora na morte a que a nutriu na infancia,
ama no
coração, mãe nos extremos,
de seus
primeiros e ultimos segredos
[66]
confidente fiel no lar paterno,
querida socia na feliz viagem,
e no lar
conjugal seu doce allivio.
¿Arvore a tanto affecto
consagrada
na affectuosa Biblia irá sem nome?
o carvalho
das lagrimas lhe chamam.
VI
¡Que uso tão
doce aos
corações piedosos!
Reverdecei, costumes do bom
tempo,
quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,
tinham sob um ceo
livre a sepultura.
A Morte, menos barbara do que hoje,
com avarenta
mão não ferrolhava
sob um tecto pezado, entre
altos muros,
as prezas, cá de fóra em
vão pedidas.
Não era um templo um
cárcere de mortos.
Dormiam mollemente em terra franca,
em
jardins frescos, em copadas selvas.
Esta esp'rança
adoçava um pouco o amargo
do ultimo trago aos labios
moribundos.
Este bem, tão pequeno em mal tão
grande,
¡quanto valor não tinha aos que ficavam!
O
irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo,
podiam livremente,
a toda a hora,
ir regar de seu pranto amadas cinzas,
fartar saudades,
inflammar lembranças,
delirar doce a noite, e o dia inteiro,
e de praser a um peito onde palpitam
superstições
de amor ou de amisade,
dizer:
«Este tapiz relvoso o cobre;
esta ave lhe gorgeia; esta aura
sôlta
o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;
a primavera
m'o visita, e espalha
[67]
tambem
por cima d'elle o seu regaço;
esta violeta é sua,
hei-de colhel-a;
d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,
nutre-se do
seu pó, vive por elle,
é elle mesmo em parte;
arvore amiga,
recebe o nome caro, hoje sem dono,
toma os
abraços que não posso dar-lhe.»
*
Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas.
A
arvore, Deus a fez como passagem
do mundo que respira ao mundo inerte;
commum co'os animaes, commum co'a terra,
vive e não sente;
habita e ignora o mundo,
sympathisa co'a morte e co'a existencia,
é grata ás cinzas, á saude
é grata.
*
¡Que férreos
somos nós, que a um como
vago
atiramos sem dó perdidos, mixtos,
o detestado, o amigo,
o estranho, e o nosso!
Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros
arrojasse o que os seculos pouparam,
bronzes, escritos, marmores
romanos,
ou, derrotando porticos, columnas,
theatros, colliseus,
palacios, templos,
em serra inutil amontoasse as pedras,
¿quem não vertêra em lagrimas o sangue?
¡E ante a nossa affeição teem menos
pezo
que as
ruinas de Roma as que são nossas?!...
¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes,
espectaculos, jogos, aureas festas,
jardins, parques!... ¡e
aos miseros que gemem,
e aos peitos melancólicos, viuvos,
[68]
ha-de negar se um canto onde
pranteiem!?...
¿De tanto mundo que pertence aos vivos
nada
dareis aos seus antigos donos?
¡nem um torrão
perdido, e uns troncos nullos?!...
*
¿Quando virá um
dia, em que estes bosques,
semeados de tumulos não altos,
de lugubres saudades se
povôem?
Então, a propria Morte, hoje
tão sêcca,
terá sua grinalda; a dor, seu gosto;
e visitas o
pó, e cultos o ermo.
*
Pelas noites mui placidas do estio,
ao duvidoso alvor da lua incerta,
bello será, sentado n'este sitio,
ver vir, d'aqui, d'ali,
frouxos, dispersos,
o do casal, o morador na aldeia,
entrar chorando, e
procurar seus mortos.
Aqui duas irmans resam de joelhos
sobre o seio
materno sepultado.
Aqui o velho attento as contas passa
pelos dedos
convulsos, e se encosta,
sem o saber, na fallecida esposa.
O filho aos
pés da mãe co'os mais
soluça
o Padre-Nosso apenas aprendido.
Deitado ao lado do
submerso amigo,
o amigo devaneia antigos annos.
Por toda a parte, as
lagrimas e affectos,
memorias doces, orações e
esp'ranças.
*
¿E a quem não
conviria egual retiro?
N'elle a
tristeza encontraria um pasto;
[69]
a sciencia, reflexões; o
vicio, escolhos;
a leviandade,
assento; a desventura,
consolação; o amor,
silencio e pranto.
Ensaiára-se o infante para a vida;
o
velho, para a morte; o moralista
viria achar
uncção para a verdade;
o orador,
persuasões, ternura, encantos.
*
Ó filhos da montanha,
¡oh! libertae-vos
de um
preconceito vão; é toda a terra
a terra do
Senhor; afora o vicio,
debaixo d'este ceo nada é profano.
A
benção do Pastor consagraria
vosso asylo feliz; e
a Cruz em meio
todo de um santo influxo enchêra o bosque.
VII
Mas, em quanto esses dias vos
não raiam,
bons velhos,
vigiae que, de anno em anno,
aos juvenis futuros plantadores,
em vez de
se afrouxar, se inflamme o zelo.
Cresça com seu favor por
estas serras
a geração dos vegetaes gigantes.
Com
todos vós conversam todos elles
sem cobrir campas;
guardam-vos saudades,
são parentes de todas as aldeias,
e o
brasão da montanha é o vosso parque.
Sobre tudo
influi que a vossa raça
trema ao só nome do
brutal machado
que ouse violar a veneranda herança.
O que
só Deus medrou, só Deus derribe.
[70]
*
Crêde-me (eu já
vi outras) vossa terra
é descrida, enteada á Natureza.
Cumpre a
vós adoçar-lhe o aspecto agreste,
amiudar-lhe no
oceano ermo dos ares
estas ilhas, virentes, graciosas,
que espalhem
primavera pelos montes,
que attráiam as volantes caravanas
do rouxinol, da rôla, e da andorinha.
VIII
Lá em baixo a casa humilde
que branqeja,
entre os alegres
plátanos e o templo,
quasi que pasma, e se entristece e
encolhe,
de ver em torno a solidão tão vasta.
Como que está pedindo... ao menos bosques;
não
tem outros jardins, outros passeios,
que offereça a seu dono, o Pastor
vosso.
Preparae desde já para o futuro
sombras novas aos
novos successores,
e refrigério estivo ás cans do
velho.
Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.
Mil vezes sua voz
reconhecida
rogará paz ditosa aos vossos netos,
quando,
serena a mente, e sôlta a vista
lá fôrem
divagar, ora embebidos
nos psalmos, nos poeticos arrojos,
ora admirando
o Autor e o Nó dos mundos,
no largo azul dos ceos, no alto
dos troncos
e no zumbir e no voar do insecto.
*
¡Surgi! ¡surgi!
Lá jazem as enxadas.
Velhos, surgi! La voltam triumphantes,
findo o novo trabalho, os vossos
filhos.
[71]
Agora espumem copos,
sôem risos,
exulte a dança, alonguem-se os
cantores.
Conquistastes o inculto á Natureza:
forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas.
Toda
a vasta planicie, hontem tão erma,
¡que povoada
vai já! ¡como promette
lembrar ao vosso gado,
ás vossas filhas!
UM VELHO
Sim, dará sombra e vai
povoado o valle:
mas fosse eu rico, e
lhe dobrára encantos.
SEGUNDO VELHO
¿E como, irmão?
O PRIMEIRO
No alto d'este oiteiro,
d'onde se avista o mar, o ceo, a
terra,
poria
uma capella, e um San-Mamede
co'o rosto de um menino, e o rir de um
Anjo;
nas mãos o cajadito, o alforge ao lado,
e o seu
rafeiro ao pé todo soberbo
co'a colleira escarlate, e todo
amigo
a lamber o seu Santo. É bom que os altos
se
c'rôem de capellas, que levantem
o pensamento aos Ceos, no
campo espalhem
devoção e piedade, e aos
peregrinos
ensinem o caminho e a vista alegrem.
UM PASTOR
Sim, co'o santo pastor de guarda aos
bosques,
¿que haviam de
temer, nem cães nem gado?
[72]
Nos degraus da capella, á
sombra inquieta,
longas séstas sonháramos de
amores.
TERCEIRO VELHO
Já lá
vão o bom tempo e os bons
costumes;
foi-se a abundancia e os corações
piedosos.
Esses fundavam templos, como o nosso,
n'um árido
deserto; e hoje.... se estala
no campanario um sino, em ocio eterno
fica mudo a pender dos braços podres.
IX
Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,
serei eu quem consagre o
vosso oiteiro;
não a Mamede, não ao pastor
martyr,
mas á contrita amavel Peccadora.
¿Não valem mais as lagrimas que o sangue?
¿Mais que heroico valor não nos commove
doce
humildade e penitencia longa?
E de mais: se ás
aspérrimas proezas
vos não destina o Ceo, todos
nascestes
captivos frágeis de amorosas culpas.
Muita virgem
no monte solitario
tentada pelo amor e pelo amante,
só com
ver a capella ha-de livrar-se,
e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.
E quando aqui errantes missionarios
vierem dar, e á sombra
dos carvalhos,
as turbas apinhadas instruirem,
¡que
persuasões, que lagrimas, que exemplos
hão-de
tirar da veneranda Imagem!....
[73]
*
¡Qual me ri já
na mente o grão
projecto!
Eu serei pois o fundador de um culto
que aos frutos da moral
reuna flores.
im; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente?
.............................................................
X
Partiram. E eis-me só.
Todos partiram.
O
alvoroço do entrudo os chama aos lares.
¡Oh!
¡Bemdita a ignorancia d'estas serras!
O rustico inda ri na
Patria em luto,
e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.
¡Bem
sabe elle que lagrimas aos mares
d'este horizonte em roda
estão correndo!
¿Sabe elle que o atro dia
é menos atro?
A paz, a confiança, as alegrias,
a
abundancia, a união de antigos Lusos,
não
deixaram, fugindo, um só vestigio.
No vaivem das
facções, que se entrevencem,
tudo se perde e
esquece, afora a raiva.
Os bons usos, as festas populares,
a romaria
alegre, as patrias danças,
vão-se apagando...
Aqui, mesmo na brenha,
a pastora, esquecendo os seus amores,
canta a
questão dos Reis, o hymno da guerra,
sons novos, que o seu
gado e o ecco extranham.
*
Ó Patria, bella Italia do
Occidente,
tu que egual a
Parthénope repoisas
debaixo da invejada laranjeira
e do
mirto florido, ao deleitoso
ruido de aguas limpidas, no abri
[74]
de um ceo inspirador
tão proprio ao genio,
ó bella Italia do
Occidente, ó Patria,
¿era pois fado teu lidar sem
fruto
para seres a inveja, a flor das gentes?....
A guerra, sim, te
coroou co'as palmas
das quatro partes do orbe, e as naus do mundo
trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros.
Mas as flores das
artes, mas os frutos
das sciencias, no chão dos outros povos
com tanto custo e com suor medrados,
¿espontâneos
no teu medraram nunca?...
¿Tiveste nunca os dons, que em paz
florentes
ornam e absolvem da conquista os loiros?
¡Que
imperios teem cahido! e tu, tu ousas,
hoje ainda, aspirar á
eternidade!!...
Talvez bem perto os seculos se cheguem,
que
hão-de ver cego arado andar lavrando
tuas cidades de
esquecido nome,
e o rebanho indiff'rente apascentar-se
sobre os teus
tribunaes, theatros, praças.
*
Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo,
Lusitania, que
á borda do Oceano
brilhas qual deusa em majestade e em
graça.
Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes
entre tropheos em pó, lavada em sangue.
Deshonrada
Cleópatra, inda és bella,
mas já nas
veias te circula a morte.
¡Ai de quem nutre as
áspides no seio!...
*
¡Ó Patria,
ó Patria, com que voz
tão baixa,
com que pejo te expróbro!
¡Ah! se
podéres,
[75]
perdôa meu furor,
vê só meu pranto;
ó Patria, ó mãe, ó misera
querida!...
*
¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que
seria?
¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são
homens
que nos matam irmãos... ¡Alerta!...
oiçâmos...
.................................................................
IX
O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO
Dia
em que o Poeta
plantou por suas mãos um cedro no pateo
da residencia parochial da Castanheira do Vouga
(FRAGMENTO)
..........................................................
Se, de teus
annos na madura força,
a mão que te ora planta
inda fôr viva,
essa mesma, já trémula e
caduca,
no tronco te abrirá, com pio exforço,
graciosa capellinha, onde sorria
um San-João, o Santo alegre
do ermo,
trajo de pelles, juvenil frescura,
olhos nos Ceos, aos
pés cordeiro branco.
*
N'essa noite poetica e devota,
em que
o praser, centuplicando aspectos,
povôa, anima, encanta o mundo inteiro,
agua e terra, ar e
ceo, tudo é macio,
em que a velhice, a mocidade, a infancia,
sympathisam no vago da alegria;
quando n'alma insaciavel de delicias
se
juntam, com mistura inexplicavel,
ao saudoso passado, aos bens
presentes,
as mil visões do esplendido futuro;
[78]
quando em laço phantastico
se
aggregam
da vida e eternidade os pensamentos,
gosos,
superstições, fraquezas, cultos,
qual ramalhete
de cipreste e rosas
na caprichosa mão das feiticeiras;
n'essa noite, das noites invejada,
a ti concorrerão por toda
a parte,
té das aldeias do horizonte extremo,
dançantes bandos que a viola guia.
*
Verás girar seus bailes
clamorosos
em redor das
estrídulas fogueiras;
ouvirás os seus
cânticos em côro
devoto e ennamorado. A bomba foge,
zune fugindo, e sollapada estoira;
o buscapé no ar
caracolando
morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,
dispersa os grupos, gasta-se raivando,
e entre os risos rebenta
atroando os ares;
ali circula em vórtice perenne
a roda leve
espadanando incendios,
chovendo oiro luzente e estrellas alvas;
aqui
floreia o fúlgido valverde,
vesuviosinho que arremette
ás nuvens;
arranca o vôo e vai rugindo aos astros
o ignívomo foguete estrepitoso.
*
¡E a musica entretanto!
¡e as doces falas!
¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta!
¡e essa mão dada a furto e a furto acceita!
¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes
da
meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada!
[79]
¡e as sortes que a fortuna
extrai
ás vezes,
e muitas mais a próvida malicia!
¡e a fonte que amanhece entre descantes,
e pasma rindo de se
ver coroada
de festões verdes e entrançadas
flores!
¡Que noites, que alegrias, que triumphos,
te aguardam
no porvir, me estão na mente!
[9]
...............................................................
X
O MOSTEIRO
Vós, que sois do amavel
sexo
ardentes adoradores,
que
girais de bella em bella,
qual leve abelha entre as flores,
que sabeis n'um só momento
a mil deusas incensar,
e pareceis
de ternura
não poder-vos saciar,
mancebos, o mundo é vosso;
mil bellas o mundo tem;
mas
não choreis as que á sombra
repoisar das aras
veem.
Se um jardim, florído, immenso,
encontrais na sociedade,
¿que importa que poucas rosas
lhe furte a mão da
piedade?
poucas rosas, que dispostas
vão depois na solidão
lançar mais doces perfumes,
seguras de extranha
mão.
[82]
Vagae, vagae livremente
nos jardins da Idália Venus;
segui as Nymphas e as Graças
pelos seus bosques amenos;
os prazeres vos rodeiem,
os jogos em torno vôem;
a mocidade
vos ria;
espêssas rosas vos c'rôem;
¿que falta aos desejos vossos?
¡ah! soffrei, sem
murmurar,
ver d'entre os vergéis florídos
poucas
pombas desertar,
poucas pombas, que innocentes,
e temendo o caçador,
vão nos ermos solitarios
buscar um fado melhor.
Do Libano opacos cedros,
de Sião bosque tranquillo,
vós, palmeiras de Idumêa,
prestae-lhes seguro
asylo.
Estranhas vistas não turbem
os seus piedosos segredos;
contentes á sombra vivam
dos sagrados arvoredos.
Silencio, paz, e ternura,
alva estrella de innocencia,
e a vista de um
ceo risonho,
lhes doirem toda a existencia.
[83]
Murmúrio de castas fontes,
perfume de simples flores,
lhes paguem jardins que infestam
os abutres e os açores.
Eu vos lamento e vos chóro,
insensiveis
corações,
que de um mosteiro entre os muros
não vêdes senão prisões.
Córae da vossa loucura.
Correi a ver de mais perto
o Eden
recatado ao mundo
no seio d'este deserto.
Modestas virgens o habitam,
que só não teem
liberdade
de colher em frutos de oiro
as festas da sociedade.
Segui-me, segui-me affoitos,
entremos. Abriu-se o templo.
Seus ermos,
ao mundo ignotos,
inteiros d'aqui contemplo.
¿Não vêdes sobre os altares
com
graça engrupadas flores
lançar torrentes de
aromas,
brilhar co'as mais vivas cores?
N'esses prados invisiveis
tambem pois se eleva a aurora;
sol, e
zephyros, e fontes,
lhes dão sorrisos de Flora.
[84]
Essas pois, que vós julgaveis
desgraçadas
prisioneiras,
teem praseres, teem delicias,
teem jardins,
são jardineiras.
Vêde ornar formosa Imagem
rico manto que fulgura,
de oiro e
sedas matizado
com vistosa bordadura.
Vêde a grinalda florida;
vêde o ramo; estes
jasmins,
estes lirios, estas rosas,
não são
já de seus jardins.
Não devem sua existencia
nem á terra nem ao Ceo,
e nem zephyros nem fontes
serviram no augmento seu.
Formou-as arte engenhosa;
poude mais que a Natureza;
deu mais vida
ás suas flores;
prestou-lhes egual belleza.
¿Sabeis, que mãos feiticeiras
obraram prodigios
taes?
eis o trabalho e os recreios
d'essas piedosas Vestaes.
Ellas no côro apparecem;
e, ao som dos orgãos
divinos,
de sua alma aos Ceos se elevam
devotos brilhantes hymnos.
[85]
Innocentes e macias,
d'estas vozes a mistura
sem perturbar os
sentidos
infunde n'alma ternura.
Em seus canticos não reina
terreno vulgar affecto;
é mais puro, é mais sublime
de seus amores o
objecto.
O pensamento que as ouve,
sai da térrea
habitação,
deixa os ares, das esphéras
atravessa o turbilhão,
vê do Empyrio as portas de oiro
abertas á
humanidade,
rompe audaz, vai submergir-se
no fulgor da Divindade.
Cessa a musica, e de novo
volve a mente ao patrio mundo;
mas dos
virgineos desertos
primeiro se arroja ao fundo.
Lá divisa, em liberdade,
nas livres tranquillas horas,
dadas
a cantos diversos
estas formosas cantoras.
Na sombra d'aquelles bosques,
n'aquelles molles passeios,
tambem pois
das Musas entram
os aprasiveis recreios.
[86]
Olhae por fim seus aspectos,
¿Não vedes
vós a bondade,
a alegria da innocencia,
as virtudes da
piedade?
Eis os Genios que lhes tornam
encantadora a existencia:
as virtudes da
piedade,
os praseres da innocencia.
A amisade entre ellas reina;
¿os encantos da amisade
não prestarão, por ventura,
delicias á
soledade?
Mas basta, insensatos, basta;
á scena se corra o veo;
não profanem vossos olhos
mais tempo os átrios do
Ceo.
Ide no mundo esquecel-as,
em vez de as irdes chorar;
e o vosso mundo
vos baste,
como lhes basta um altar.
Mas esperae; respondei-me;
consultae vosso interior:
¿sois
ditosos co'os sorrisos
de um falso inconstante amor?
¿Sabeis vós o que amor seja?
¿Satisfaz-se o coração
com esses fogos
incertos,
e essa eterna agitação?
[87]
¿Não virá talvez um dia,
em que,
mais sabios, queirais
unir os vossos destinos
á melhor
d'entre as mortaes?
¿Como a haveis de achar no mundo,
no mundo, cujos enganos
vós conheceis, ajudastes,
seguistes, por tantos annos?
Tremereis de um laço eterno.
A vossa pena consiste
em
pensardes que a virtude
que não tendes, não
existe.
Então aqui vos espero,
n'estes quietos retiros.
Estes muros
que insultaveis,
ouvirão vossos suspiros.
Entre estas virgens mimosas,
que severa educação
forma, longe dos humanos,
á sombra da solidão,
viréis procurar o objecto,
cuja ternura innocente
vos deve
tornar a vida
risonha, pura, e contente.
Não detesteis um recinto,
onde Amor, onde Hymeneu,
onde um
Genio, amigo vosso,
vosso thesoiro escondeu.
[88]
Pensae, pensae que ali vive,
cresce em virtude e talentos,
e em
graças, aquella que ha-de
doirar os vossos momentos.
Qual arbusto delicado,
que a viçosa louçania
mostrar em seu proprio clima,
em seu proprio ceo, devia,
mas foi por mão inimiga
trazido a estranhos logares,
onde
murcho cederia
a influxos de infestos ares,
se da estufa compassiva
lhe não fosse aberto o seio,
onde
vegeta e floresce
de arbustos eguaes no meio;
ali não receia as neves;
não treme da tempestade;
gosa o sol; vive no mundo,
vivendo na soledade;
de extranhos somente é visto;
tem louvor; é
cubiçado;
mas das flores, mas dos frutos,
não
é jamais despojado.
¡Mil vezes feliz, mil vezes,
quem ousa, á luz da
verdade,
queimar a máscara d'oiro
ás larvas da
sociedade!
[89]
Medrae, sagrados mosteiros;
medrae, desprezando a inveja;
jamais
fulminar-vos possa
calumnia que em vão troveja.
Brilhae, como ilhas florídas,
no meio do mar profundo
de
vicios, crimes, e horrores,
que alaga, que abrange o mundo.
Sêde o asylo das virtudes,
do Eden a propria entrada,
o
enlace dos Ceos co'a terra,
do Empyrio a sublime escada.
Coimbra―1826 (?)
XI
SANTA MARIA EGYPCÍACA
(Fragmento de um poema)
...........................................................
Prostrada aos
pés da Cruz, ante a caveira,
jaz solitaria a Egypcia. Rios
descem
de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam,
*
¿Tão nova, e
isenta? ¡Oh!
não; mudou de amores.
Dos primeiros só guarda a
dor e as penas;
mas os novos, os ultimos, protesta
conserval-os em
vida, e em morte havel-os.
*
Té aqui, pela alma escura
só lhe ardiam
relampagos dispersos; derretido
raio dos Ceos lhe côa pelas
veias.
*
Brilhou no mundo como a flor de um
dia.
Os soes vivos, os ventos
importunos,
lhe ameaçavam fim; ruins borboletas
captivas da
belleza iam murchal-a.
Imprevisto invisivel jardineiro
a tempo a salva,
e a transplantou no ermo.
[92]
*
No mundo, sobre o abysmo, hontem
folgava
impróvida e
leviana; hoje pranteia
na solidão, mas sob um Ceo que a
espera.
As cidades, em que ídolo brilhára,
inda a
chamam em vão, e em vão a aguardam.
De um lustro
que a houveram, ¡quantos lustros
lhe volveram saudade!
*
Em viço de annos,
e mais bella que as flores todas
juntas
das dezassete suas primaveras,
qual fugaz sonho de manhan de estio,
foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde.
Murcharam
festas; esmorecem danças;
os banquetes, diffusos pela noite,
já não veem despertar ternura e risos.
Nas
roseiras intactas se desfolham
os botões das grinaldas; o
alaúde,
que falou tanto amor nas mãos da bella,
discorde jaz, e mudo...
*
Ella, entretanto,
co'os mimosos pés
nús calcando
areias,
desornado o cabello, envôlta em pelles,
timida,
envergonhada, pesarosa,
vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.
Mil vezes
á avesinha se compára,
sem família,
sem lar; corre erradia;
¿não ha-de ambas manter a
paz que é de
ambas?
Beija a caverna frígida que a hospéda,
e
agradecendo este hórrido paraizo
ao Deus que lh'o depára,
esquece o mundo,
ou sem saudade e com horror o aviva.
[93]
*
Ai coração
tão amplo, onde estuava
mar
de affectos sem conto, escoado agora,
¿quem o ha de encher?
¡em solidão
tão funda!
¿quem o ha-de encher? Já o
enche o que enche
tudo,
o que brilha na luz, no sol, nos astros,
corre nos
aquilões, anima os troncos.
*
Só conversa com Deus, e a
Deus só ouve.
Este
seio, estas tranças desatadas,
são brinco
só do vento do deserto.
Esta mão, tão
mimosa e tão querida,
só procura, excavando a
terra ingrata,
a amorosa raiz, ou já se encurva
para dar
agua aos labios sequiosos.
A aurora a vem saudar já de
joelhos.
Não ha um sol, não ha na noite um astro,
que não saiba os seus ais e eternas preces.
Nem que passe o
chacal, a hiena, a onça,
foge, ou quebra os devotos
exercicios.
Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;
e a Estrangeira
não treme; ora, e descança.
*
Ao fresco desmaiar da extrema tarde,
quando os raios do sol
já mal doiravam
da longinqua palmeira o incerto cume,
¡que vezes, assentada, e sustentando
na eburnea
mão o pallido semblante,
atraz do astro fogoso e fugitivo,
mandava o coração, mandava os olhos!
[94]
*
―«Além―dizia―além,
n'esse Occidente,
corre o santo Jordão delicias minhas,
que o Salvador banhou,
que eu passei mesma.
Talvez aquella nevoa que lá brilha,
mudada em rosa, em purpuras, em oiro,
seja da santa veia alegre filha,
Além... Jerusalem, Sião,
Judêa...»
*
E a taes nomes, enxames de memorias,
de saudades, de affectos, lhe
adejavam
pela alma, alegre em parte, em parte escura.
Raro, mas inda
ás vezes lhe assomavam
no involuntario somno ideias meigas.
Inda, uma vez ou outra, o amor banido
entrava de relance o antigo
alvergue,
e apóz elle os passeios namorados,
os theatros
esplendidos, as galas,
as mezas rindo, os bailes desenvôltos;
e as victorias, e as chusmas dos praseres,
como á sua rainha
vão saudal-a.
Acordava sorrindo, a Cruz fitava;
e atirando
se á terra, e sôlta em
chóros,
pagava erros não seus com dor bem sua.
*
Taes se lhe vão no ermo
deslizando
dias e annos, sem ver na
areia impressos
mais vestigios que os seus.
*
De tempo em tempo,
só vê talvez, ou
ver presume ao
longe,
[95]
do horisonte nas
sombras pavorosas,
o ténue pó da immensa
caravana,
que vai de Alépo á Méka em
certa
estrada.
Por ella ora, e entre o orar lamenta
a devota
fanática impiedade.
*
Tal vai manando a limpida existencia.
Egual ao ramalhete que desmaia,
e
se esfólha no altar entre os perfumes,
tal, sem gosto e sem
dor, e sem que o note,
perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia
encantos, já seu mal, e mal do mundo.
O juvenil das formas
exteriores
concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas
se esconde um
coração de amor não
farto.
*
Quem a tivesse visto, e a visse agora,
sentiria o que sente o viajante,
quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,
saudosos restos, da gentil
Palmyra.
Uma e outra já gloria do Universo;
agora mudas,
sós, e deslembradas,
e socias no deserto, e eguaes no
exemplo.
*
Meio seculo a viu prantear sosinha
annos ligeiros da fugaz infancia.
Ao
fim da gran carreira, o Ceo lhe envia
o solitario Zózimo,
como ella
ancião virtuoso, e habitador das covas,
que lhe
oiça a longa vida, a anime, e exforce;
lhe dê
perdão e paz de um Deus em nome.
[96]
*
Pela primeira vez contente e alegre,
ousando olhar os Ceos,
―«¿Trareis,―lhe disse―
á pobre
peccadora o manjar de Anjos?»
―«Sim.»
E partiu.
Com vista prolongada
ella o segue; co'os olhos no deserto
o espera todo
o dia; ¡e este é tão
longo!...
¡tarda tanto o bom hóspede!...
*
Passou-se
um anno inteiro. É elle
agora; é elle;
conheço o fraco andar que o zelo apressa,
e as cans, e a
calva, e as faces penitentes...
*
Chega; clama; a caverna
não responde;
grita, e só
ouve a si. Olha em redondo,
vê-a jazer na areia, e a areia
escrita
por mão trémula, errante, ao que parece:
Bom Zózimo, por santa
caridade
enterra o corpo da infeliz
Maria.
Aqui morri no dia em que te fôste.
Encommenda-me a
Deus, e Deus t'o pague.
..................................................................
XII
EPISTOLA
Ao
meu amigo o Desembargador
Manuel Venancio
Deslandes
(NO DIA DOS MEUS ANNOS)
FRAGMENTO
Em torno ao teu amigo
estão fervendo,
Deslandes meu, na hora
em que te escreve,
de uma festa caseira o reboliço.
*
Bem que alveje de neve o Caramulo,
e um frígido
suão de lá nos venha,
ninguem hoje de frio aqui
se queixa.
Não descança nem pé, nem
mão, nem lingua;
o sumptuoso lar arde em tres
fógos;
o forno se afogueia; a branca meza
vai-se de
loiça e vidros alegrando.
*
Uma estuda em compôr as
sobremezas;
outra enrama de loiro
alta ferrugem
das vigas da cosinha; esta, sizuda,
de riscado avental e
nus os braços,
[98]
com importancia e afan revira
espêtos;
aquella, anda
scismatica, e raivosa
de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,
que
além de um alecrim, de umas violetas,
nascidas por engano,
além de rosas,
frágeis, sem cheiro, e languidas,
não cria
com que se enflore a meza dos meus annos.
*
¿Porque é,
quando a sorrir divagam todos,
quando
só para mim se andam tecendo
estas pompas domesticas, agora
que a potente amisade em meu obsequio
para tudo fazer até
fez estros;
agora, emfim, que aos raios da alegria
não ha um
coração que se
não abra...
¿por que se fecha o meu?
¿Dará
(não creio)
da Natureza o luto um certo assombro
ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado
d'esta
patria amargura, a filtre aos gostos,
qual vaso que azedado a tudo
azéda?...
..........................................................
26 de Janeiro
de 1833.
FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA
NOTAS DOS EDITORES
AO VOLUME I DO
PRESBYTERIO DA MONTANHA
Da villa da Castanheira―No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de
Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o
sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam
da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella
entra em correição o seu
Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja parochial da
invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da
Feira, que rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo
tem uma freguezia dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de
Aguadão, que consta de 100 visinhos. É curado
annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu Prior. Tem
este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que
fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes
de todo genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes
ordinarios, Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão
da Camara, Juiz dos Orphãos
com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da
Ordenança.
(
Chorographia portugueza pelo Padre
Antonio Carvalho da Costa.―T. II, pag. 176―1708.)
[100]
Castanheira do Vouga―Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de
Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem
803 visinhos. Está
situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S.
Mamede. Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros
são do Santissimo, de Nossa Senhora da
Expectação, com sua irmandade, e outro de S.
Jorge. O Parocho é Prior, apresentação
da
casa do Infantado; tem de renda 400$000 reis. Tem tres ermidas, que
são: a do Espirito Santo, a de Nossa Senhora do
Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra
são milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa
um Juiz ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios
Aguedão, Alfusqueiro, e Agueda.
(
Diccionario geographico pelo Padre
Luiz Cardoso. 1751.)
*
Castanheira do Vouga.―Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago
S. Mamede; o Parocho é Prior da
apresentação da Casa do
Infantado; rende 480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e
de Coimbra 7; tem 58 fogos.
Ágadão―Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por
Orago Santa Maria Magdalena; o Parocho é Cura da
apresentação do Prior da Castanheira; rende
40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem
102 moradores
(
Portugal sacro-profano―por Paulo
Dias de Niza; cryptonimo do Padre Luiz
Cardoso―Lisboa―1767―8.º―2
vol)
*
Castanheira do Vouga.―Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do
Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140
fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto
administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da
Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um
monte proximo á serra do Caramulo. A Casa do Infantado
[101]
apresentava o Prior, que tinha
400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz
algum vinho, e do mais pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a
16 de Junho de 1514. Era cabeça do concelho do seu nome e
tinha Juiz ordinario, Camara, Escrivães, e mais
Justiças. Passam pela freguezia
os rios Agueda, Aguedão, e Alfusqueira.
(
Portugal antigo e moderno―por
Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal―Lisboa, 1874).
*
Dapibus mensas oneramus
inemptis
Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto
é, vivemos, sem comprar, das nossas lavras proprias.
Citação de Virgilio
(
Georgicas, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina
variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é:
....Sero que revertens
nocte domum, dapibus mensas
onerabat
inemptis.
Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que
vamos ouvir
na traducção de Castilho:
......Alembra-me
que
outr'ora,
lá por onde o Galeso
arrasta a veia escura
por
entre loiros chãos de cereal cultura,
junto á
Ebália cidade, a de torreados muros,
conheci um corycio em
annos já maduros,
dono de uma chanzinha ali desamparada.
O
pobre do torrão de si não dava nada:
nem pasto
para bois, nem para um fato hervinha.
Sumitico de pães,
escasso para vinha,
era um sarçal fechado; e no
sarçal, comtudo,
o bom velho, a poder de diligencia e
estudo,
tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno
com
seve de jardim para maior adorno,
alvos lirios, verbena, e papoilas de
prato.
Não trocára co'os Reis seu parco haver
tão grato.
Recolhia ao casal já noite; e,
¡que riqueza
de iguarias de graça a assoberbar-lhe
a meza!
[102]
Passámos n'uma bateirinha,
remada por uma velha moleira da
margem, o
víçoso rio de Bolfiar.
Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O
caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos
modernos, deram cabo da antiga viagem tão pittoresca.
Uma especie de zimborio
de doze palmos de altura.
Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que
primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação
do Reino.
Uma desconforme loisa
inteiriça horizontalmente aguentada
nos ares por esteios de pedra.
Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em
muitas partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da
sciencia moderna.
A Linguagem é ali, como os
ares, de uma admiravel pureza e
lucídez.
O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho
o seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas
Excavações
poeticas o que elle diz do velho camponez Francisco Gomes,
creado da casa, e «um dos mais chapados classicos»
que elle jamais encontrou.
Lia, Rachel e Rebecca
Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel.
Achando-se Rachel ajustada para casar com Jacob, teve Labão
astucia de lhe substituir Lia, apesar de menos formosa. Foi
mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá,
Issachar, Zabulon, e Dina.
[103]
Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve
José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que
ainda se conserva e mostra o seu tumulo.
Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de
Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob.
Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan,
são encantadoras de singeleza e graça nas
descripções que d'ellas nos
deixaram os Livros santos.
Uma pobre mocinha
ovelheira
Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era
Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta
na sua
Chave do enigma.
Filinto e o entrudo
Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom
Francisco Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da
velha Lisboa.
¡Viva o meu Portugal!
¡viva a laranja
que
derruba o chapeo!
exclamava elle em París, ao lembrar-se das
grosseiras costumagens dos Portuguezes, felizmente meio
polídas já hoje.
Citações
latinas
Essas duas são de Virgilio
(
Eneida, Livro I)
Fronte sub adversa scopulis
pendentibus antrum;
intus
aquae dulces, vivoque sedilia saxo;
nympharum domus.
Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um
antro; e lá dentro correm aguas doces, e apparecem assentos
como que talhados na rocha viva; verdadeira
habitação de nymphas.
[104]
As
rogações de Maio
Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado,
fallecido no anno 475.
O ubi campi!
Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II
das
Georgicas:
Rura mihi et rigui placeant
in vallibus amnes;
flumina
amem silvasque inglorius. O ubi campi
Spercheosque, et virginibus
bacchata Lacaems
Taygeta!......
Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles;
encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou.
¿Onde estais, campinas? ¿onde estás,
rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas alegres
virgens espartanas?
Castilho traduziu assim este trecho:
Então amar só
quero os rios e arvoredos,
de
glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos!
ai ribeiras
do Spérchio, oiteiros do Taygéto,
das virgens de
Lacónia ás órgias
predilecto,
¿onde, onde me estais vós?....
Parve, nec invideo, sine
me, liber, ibis in urbem
Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das
Tristezas.
Dirigindo-se
ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no desterro, entre os
gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno livro; has-de entrar
sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal.
Parte, ó meu pobre livro;
irás sem mim,
sosinho,
correr na gran Cidade incognito caminho
traduziu alguem
[105]
Zimmermann
João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de
Berne, a 8 de Dezembro de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi
abalisado sabio. Nomeou-o medico da sua camara em 1768 el-Rei de
Inglaterra; el Rei de Prussia Frederico, o grande, foi tratado por elle
na sua ultima doença, e deveu allivios aos seus cuidados
intelligentes. O Principe russo Orloff foi de proposito com sua mulher
consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se a S. Petersburgo falou
d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina, que em 1784
procurou attrahir á sua côrte aquelle
luminar da sciencia. Elle pediu excusa, porque a vida mundana
não condizia com os habitos que tinha creado o seu espirito;
não se ofendeu a eminente Princeza, e conferiu-lhe a ordem
de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu morrer-lhe entre os
braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho.
Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de
outras obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa,
publicou em 1756 o seu
Tratado da Solidão,
onde todas as vantagens moraes do isolamento são defendidas
com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia
exagerada.
O Passeio publico e o
Marrare
Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico,
riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas
Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar
os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos
Restauradores até á
extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No
sitio exacto do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande
tanque redondo (hoje no jardim da Graça).
O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no
Chiado.
ADDITAMENTO
Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu
bom irmão, pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres
sermões que ainda restam d'este. As suas obras ineditas
mandou o proprio Doutor Augusto Frederico de Castilho que lh'as
queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as seguintes:
I |
― |
O sermão de S.
Pedro, ou da Fé; |
II |
― |
O
sermão da esmola, ou da Caridade; |
III |
― |
O sermão
nas exequias do senhor D. Pedro IV; |
IV |
― |
A pastoral dedicada ao seu
rebanho episcopal de Beja; |
V |
― |
Uns versos na Primavera
de
Antonio Feliciano. |
SERMÃO
DA
ESMOLA OU DA CARIDADE
Prégado
na 5.ª dominga da Quaresma de 1839
na
Sé de Lisboa
pelo Conego Arcipreste da mesma Sé,
o Doutor de capello em Canones Augusto Frederico de Castilho
Jesus abscondit se, et
exivit de
templo.
Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.
De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de
Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por
escondido, deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu
serviço. Jesus vivo, e na occasião de que trata o
Evangelho, estava no mundo, e faltava no templo. Jesus, hoje, por dois
milagres de fé e amor, por duas eucharistias,
está no templo, e mais no mundo: no
templo,
encoberto no
Sacramento; no
mundo, encoberto nos seus pobres.
N'uma e n'outra parte o devemos servir com egual zelo.
Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer
á fome e ao frio os necessitados, não
é de christão; é
fé morta. Soccorrer aos infelizes, sem crer (se tal
é possivel)
[110]
n'Aquelle que elles representam, é caridade morta; tambem
não é de christão.
Vós pareceis christãos pela fé, pois
que vindes á casa de Deus; vós o pareceis, mas
não o sois, porque essa fé é morta;
cumpre que se resuscite pela caridade.
Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que
é a caridade pratica e activa; é o christianismo
na sua parte mundana, o culto do Verbo humanado aos olhos de todos, a
religião de todas as religiões, a philosophia de
todas as philosophias, o axioma para todos os entendimentos, o dogma
até para o atheismo. O objecto é o mais
accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa
faria á vossa piedade, se vos exigisse a
attenção.
Alma e coração, discurso e affectos, convencem e
persuadem como dever a esmola. Não creou a Natureza
irmãos privilegiados, e morgados na familia dos homens: para
uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para outros, encargos de
miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou malicias, estabeleceram
essa desegualdade; e andou tambem ahi traça
recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se
uns de outros não carecessemos, não nos
amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos,
não fôramos
virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, desentranhada de
nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e purissima
fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos,
[111]
pois, a Natureza; a Providencia nos
desegualou; e n'esta contradicção apparente,
é que
Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus
conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça,
quiz que tivessemos uma norma de egualdade; na Providencia, isto
é, na sua caridade, que aprendessemos a restabelecer, quanto
em nós coubesse, aquella egualdade primitiva por mutuos
soccorros.
O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho
mimoso da Providencia, depositario e executor da Justiça de
Deus, transumpto e argumento de sua bondade e misericordia.
O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o
patrimonio dos pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo
injustiça e barbaridade, egual á do depositario
que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que
converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a
substancia do seu pupillo; é ainda mais: é
declararmo-nos inimigos de Deus, desacreditando, e dando, de certo
modo, quebra áquella Providencia, cujos éramos
dispensadores e supplementos; áquella Providencia, que
não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes pelo
ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae
Celeste.
Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra
bello, generoso, heroico, brota (não duvidemos) da caridade.
Deus, para tornar as virtudes caras, e accessiveis até aos
mais faltos de discurso, não creou a caridade,
senão que a tirou de suas proprias entranhas,
[112]
e orvalhando-a sobre a terra, lhe deu por
benção que de todas as mais virtudes fosse ella
semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos
ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato,
instinto (¿por que o não diremos?), instinto
moral.
Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais
profundo, mas tambem o mais extenso de todos os affectos, para que,
sobre encher-nos o coração de virtude, ella nol o
podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, nol-a podesse tornar
permanente.
¡Oh! ¡que maravilhosa não é
esta caridade, que em todas as edades, e em todas as circumstancias da
vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre lhe renascem objectos, e
infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, como elle, toda a Natureza
creada, passa dos homens aos animaes brutos, d'estes aos proprios entes
insensiveis, adivinha infortunios, inventa e persuade soccorros,
até para entes que os não sabem agradecer, que os
não requerem, que os não precisam!
Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos;
momentos em que se não sabe conter, nem governar; suspiros,
lagrimas, e desalentos; enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas,
como tudo lhe nasce do amor e compaixão, tudo é
terno, tudo
é mavioso e consolador. Virtude de virtudes, virtude unica
onde não ha excessos.
Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras
primas da creação. ¡Ah! ¡que
se jamais
se podessem tributar ao homem cultos, que só á
Divindade
[113]
se devem, ninguem tanto
os merecêra, como esses que, possuindo os thesoiros dos bens
terrestres, os derramam no seio
dos infelizes!
Porém, meus irmãos, não é
mistér uma brandura de animo requintada, para nos movermos
com os infortunios dos nossos semelhantes, e procurarmos-lhes o
remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um
animalsinho, morto de fome, transido de frio, desamparado ás
inclemencias de uma noite de inverno, e invocando a nossa piedade com
aquelles gritos lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes
para dizerem as suas dores, qual de nós se não
sentiria profundamente condoído, não correria a
abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah!
¿e deixariamos
no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso
irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens
possuimos, cuja felicidade é tão travada com a
nossa, e cuja desgraça tem sido talvez effeito da nossa
injustiça, da nossa barbaridade?
¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o
coração... ¿que digo? que o trazeis
defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores mais doridos da
Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se
estão sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis,
¿que uso mais util farieis vós de vossos bens, do
que seria o acudir-lhes? Na vossa avidez insaciavel (semelhantes ao
inferno, que, por mais victimas que lá chovam,
não cessa de clamar
affer,
affer, mais e mais), uns de vós,
ó ricos do mundo, se contentam
com a visão beatifica dos seus cofres;
[114]
a sua alegria, a sua felicidade, o seu
proximo, o seu mundo, a sua alma, o seu Deus, tudo seu ali jaz; ali
enterraram o coração, e o conservam mais duro,
mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que amontoaram; em
quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus
thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por
luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem,
sem destino, sem uma só utilidade real. Mais loucos ainda e
mais infelizes, outros emfim, parecendo arrenegar dos beneficios da
Providencia, os cofres que ella confiou nas suas mãos, elles
os despedaçam e espalham, não só sem
vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de
si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios,
abysmaram a rasão, destruiram as forças,
aniquilaram a saude, anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus
irmãos, ¡que de
inquietações, de violencias, de trabalhos e de
dores, para comprar uma eternidade desgraçada!
¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o
inferno!
Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses
dinheiros de maldição, preço dos
tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os dias se renova nos
seus pobres, que vós entregais e desamparais sem piedade,
com esses dinheiros de maldição, ides comprar um
arrependimento esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o
odio dos homens, a vingança de Deus, os tormentos eternos!
[115]
¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara
opulencia! Injustiça para com os infelizes, cujos bens
sonegamos, cujos lamentos não queremos escutar, cuja morte
mesmo antecipamos muitas vezes.―Injustiça para com Deus, de
quem recebemos esses bens, com a condição da
caridade, e cuja Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos
beneficios e esmolas, desde que entramos no
mundo.―Injustiça para comnosco mesmos, a quem fechamos as
portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os
sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de
toda a felicidade.―Injustiça, emfim, para com todo o genero
humano, de quem nos afastamos, a quem não queremos
pertencer, de quem até nos declaramos inimigos.
¿E para onde fugirão os nossos olhos, que
lá não vá a miseria publica
perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos
desgraçados,
porque nunca a nossa immoralidade foi tão barbara.
Realisou-se sobre tantos irmãos nossos parte grande das
maldições, com que Deus, por bocca de
Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por
todas as guaridas da indigencia; visitae os tugurios e choupanas
miseraveis das aldeias, das maiores povoações, e
até das
cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e
variedade
de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e doentias,
mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de
pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas;
¡quantas se não chamam poisadas e casas, que antes
são covas,
[116]
masmorras,
ou jazigo de viventes! ¡de quantos não
é cama a terra humida, e vestido o que nem lhes encobre a
nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos, chorando
e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais
infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na
Natureza,
além do sol que os aquece, e do ar que respiram, e
começam a conhecer tão cedo a dureza dos homens,
obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar por si mesmos com
que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas
tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas
sem protecção, em quem, sobre o desamparo e
dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus
bens arrancados por crédores, e quantas vezes por
ladrões, debaixo do nome de crédores!
¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores
ás suas forças, ou á sua
creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com
o suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está
derretendo e mirrando! ¡Tantos enfermos expirando
á mingua, sem medico, sem tratamento, sem remedios, sem
enfermeiros, sem alma viva que os console, que lhes suscite as ideias
da Eternidade, e até sem um lençol que os
amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços,
e do uso dos sentidos mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados
para a borda dos caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol,
as chuvas, os frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros
de outra especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem
lar, sem nada, nem um amigo, sósinhos em meio de tanto
mundo!
[117]
¡Mas que me canço eu a enfeixar o que
não tem conta! E quando de taes miserias conseguisse fazer
aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras não
ficariam de fóra,
mais profundas, e mais miserias, porque ellas mesmas refogem e se
escondem! As ruas e as praças, com todos os seus clamores e
penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie
está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não
sei que reflexo de verniz e doirado, um não sei que ruido
festivo, um perfume de opulencia e sabores, um certo sorrir, um raio de
sol, um aspecto de céo azul, uma vida e uma
esperança, que são disfarce, e mascara da
existencia do povo, real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida.
Sahindo-se para a rua, deixam-se á porta as lagrimas, e
cuidados verdadeiros, e toma-se na bocca e faces o contentamento
postiço. Por fóra andam os corpos em toda a sua
gala; mas dentro, por todo esse immenso
dentro, nas entranhas d'esse infinito
massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos sem
termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão
chorando milhares de corações,
estão-se desesperando milhares de almas.
Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira
para se recrear, por esses caminhos tão lageados de
marmores, tão ataviados de vidros de cores, de metaes
brilhantes, de todas as espumas mais formosas do luxo, se Deus
permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos por entre que
duas montanhas de infortunio, vai caminhando!
[118]
¡oh!
¡como de repente, semelhante a Pharaó, na estrada
do Mar Vermelho, desabariam de todas as partes a afogal-o ondas e mares
de dor!
Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da
caridade, ¡quantos pobres envergonhados que abafam
soluços e gemidos entre as quatro paredes da sua casa! Nas
horas da noite, quando das dansas, dos jogos, dos espectaculos, e de
peores logares, saem torrentes de mundanos, em quem parece que o tempo,
o dinheiro, a saude e a fama pesam insoffrivelmente, ¡que de
vezes se lhes não atravessam diante uns phantasmas de
penuria, em fórma já de mulheres, já
de meninos,
já de anciãos, a quem a vergonha do sol
não consentíra sahir dos seus sepulcros! De um
portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, nos saem as suas
vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de que
não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo
a mão a receber a esmola, e a abençoar a
caridade; algum vos esconde um rosto, que, em melhores dias, tinheis
visto brilhar á luz da prosperidade.
Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os
dias, e não temem o aspecto da noite, porque já
não podem ser mais infelizes, é Deus quem nol os
envia ao encontro, menos por elles que por nós, menos para
alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem algum affecto
ao coração gasto, algum pensamento fundo e
importante á alma dissipada. ¡Felizes
vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos da
[119]
desgraça, estas embaixadas
solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que, em vez de os
repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade,
com a esperança ao queixume, e com a
commiseração a quem não
cuidava que no mundo a houvesse!
―Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que
me desatinam, que me desesperam (dizeis vós),
¿quem me abona a sua pobreza? e concedendo-lh'a,
¿quem me affirma que não é ella
castigo da sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que
vos importa? Se póde ser uma coisa ou outra, dae; antes
lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em vaso cheio, ou
em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a quem
do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe
recusasseis, padecêra n'um dia o que vós
não padeceis n'um anno, ou, para o não padecer,
commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle n'este
mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós,
que tão de repente sentenciais o desgraçado que
não conheceis, ¿por que
vos não sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a
vós?
Póde não ser pobre o que vos
pede.―Sim, e algumas vezes se tem visto.―
Póde
ter merecimentos para muito mais ainda do que padece.―Sim,
que é homem como
vós, e com mais razão do que vós para
aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde
ser; ¿mas examinastes vós se
era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a esmola por tal motivo,
¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a
injuria?
[120]
¡Ah! em quanto
sentenciais uma alma que não conheceis, e condemnais o vosso
semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais
razão não tem elle para condemnar a vossa alma,
que vós mesmos lhe descobristes inteira com uma
só palavra!
Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a
concessão), que todos esses andam expiando peccados seus;
são até criminosos e facinorosos; que nem um
d'elles tem necessidade; são até abastados e
opulentos; que todo o mendigo é um salteador e um
millionario. ¿Estais contentes com a concessão,
ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o
não ha. Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos
apresentar pobres, de uma pobreza processada e demonstrada, que vos
não importunam nem se queixam, dos quaes muitos, dos quaes
inteiras classes, não mereceram, nem poderam merecer, o seu
estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito
que o sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas
mães; ahi os tendes, que a Misericordia mesma não
basta a amamental-os e vestil-os, e, de seus pobres bercinhos, caem em
cardumes nas sepulturas, e vôam a ir depôr na
presença de Deus,
contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes dado a vida por um peccado,
por um peccado ainda mais mortal (se é licito
dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a
morte.
¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem
innocentes. Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida,
onde se queria educar e felicitar um seculo novo, e que, por falta de
caridade publica, morreram,
[121]
depois de tão bem nascidos e esperançosos.
¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice,
tambem e mais desvalida, onde os soccorros nunca são
sobejos, nem sufficientes; porque muitos mais são sempre os
que batem e choram áquellas portas de refugio, que os que a
estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro
á meza do convite de Deus.
Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o
Senhor chamando o
coração, e por toda a parte vos tem cercado do
dever da esmola.
¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias.
¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos,
a quem falta pão, lar, vestido, mundo, que o não
conhecem, nem elle os conhece; militares que envelheceram nas armas e
morrem á míngua; viuvas e orphãos de
servidores do Estado, a quem se não paga, nem com
esperanças.
¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos
políticos vencidos, em quem não é
mister longo
exame para se reconhecer a desgraça, porque é
corollario evidente de causas notorias. A terça parte de uma
edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais
longe, tem sido entre nós consumidos em
dissenções e odios. Com successivos terremotos
politicos, teem desabado as mais altas torres de fortuna;
desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram
arrancadas de
furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes
esperanças; os caminhos trilhados e sabidos subverteram-se;
[122]
por onde se descia,
sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum
dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de
oiro, e o ancião doirado, que ainda hontem lhe houvera
matado a fome, lhe alonga a mão, da margem do caminho,
clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o
presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado;
entendo os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e
bens do futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males
extraordinarios, que não são, para que assim
digâmos, nem do
homem, nem da Natureza, nem de Deus, mas sim da mudança, da
transformação
da fortuna, da fortuna cega, que, no trocar das mãos, quebra
sem pejo, nem dó, nem consciencia, o que depois todos choram
e ninguem concerta.
Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que
não vemos, pela peior de todas as cegueiras, que
é o não querer ver. E quando d'esta somnolencia,
d'este lethargo, d'esta morte do coração,
acordamos algum momento a este som
Esmola a este vosso
irmão pelas chagas de Nosso Senhor Jesu-Christo,
já nos
reputâmos muito generosos, se em vez do silencio ou de uma
injuria, lhe acudimos com um
Deus o favoreça;
e
tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos
vãos ou peccaminosos que traziamos; e lá
deixámos para traz a Jesu-Christo morto de fome, a
Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o
seu estado de abjecção
[123]
os não obrigasse á
humildade ínfima,
se o uso de soffrer estas repulsas os não tornasse
já meio insensiveis, se elles nos podessem retorquir,
«¡Quê! (nos responderiam)
¿Deus que nos favoreça? Deus nos favoreceu com
esses bens que indevidamente retendes; Deus nos favoreceu com os
thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes.
¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis
acaso tental-o? ¿que elle obre em nosso favor um milagre
desnecessario? ¿que torne a chover o maná do
céo, não sobre um
deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, que
por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas
dádivas? Esse maná vós o possuis, e
encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará que se
corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos
favoreça,
deshumanos? Sim, sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os
merecimentos que terieis na sua presença em serdes
misericordiosos, elle os accumula sobre a nossa
resignação; com os infortunios que nos
accrescentais, e os prémios que rejeitais, se
juntarão em nosso favor aos prémios de que a sua
misericordia nos achar dignos.»
¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza
fossemos capazes de entender os gritos e lagrimas de tantos paes de
familias, cujas familias podem dizer que não teem pae,
tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas
desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos
enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos
pobres envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a
[124]
significação
das suas dôres e
desalento, que uma reprehensão amarga da nossa barbaridade
para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão
para com Deus; acharíamos, sim, acharíamos
até n'esses lamentos, a
expressão propria com que devêramos deplorar
nós mesmos a dureza, antes ferocidade, dos nossos
corações.
Não só, meus irmãos, as nossas
liberalidades atalham todas estas miserias, mas ainda vão
precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre rapariga, a cuja
honra se preparam violentos ataques. O Céo a
dotára das qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou
de algum modo desfazer a obra do Céo, juntando-lhe a pobreza
com a formosura. Do seio da opulencia, um libertino já
vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario da
virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e todas
as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que exaltaram o
seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os
seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque;
frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na
repulsa, o merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a
seducção, de mãos dadas com a
indigencia... ¿não vencerão cedo
ou tarde? Chegou emfim esse dia; ¡venceu! e com um sorriso
infernal applaudiu o seu triumpho, e a desgraça que
consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre victima. Ali
jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo;
ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que,
[125]
depois de a desgraçar, chegou mesmo a
aborrecel a; ali jaz na mesma
indigencia que d'antes, porém mais infeliz agora; a sua
honra fugindo abalou-lhe todas as outras virtudes. Em odio a Deus e a
si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um refugio no mundo? nenhum,
porque o traidor, declarando-se seu cruel inimigo, foi divulgar o
segredo, e exigir esses applausos infames, que tanto mereceu.
¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, seriais
sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te
houvesse a tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e
modesto, onde vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos
homens, ¿não se teria afastado ainda o raio que
reduziu a cinzas o desambicioso edificio da tua felicidade?
Além é um moço, que,
cançado da dureza dos homens, começa a
não conhecer as leis na sua necessidade. Por toda a parte
repellido, julgou direito prover por si mesmo, e a todos os despeitos,
á sua
conservação.―«Todos esses a quem
recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não
quero a sua felicidade; mas tenho, como elles, direito de
viver.»―Levado assim pelos raciocinios errados do vicio, ou
só por um instinto que lhe bafejou a injustiça
dos homens, começou por pequenos furtos; passou a maiores;
nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; zombou de
todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e
acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o
affasta do precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe
[126]
tira deante dos olhos dois futuros
que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere
perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas
correspondentes, em si e na sua duração, a crimes
de que nunca se arrependeu, e damnos que nunca tiveram
restituição. E quando elle passar para o
patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis:
«Não tenho
coração para taes espectaculos;»
¡como se esse mesmo coração
não fosse o seu peor
algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso!
N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade,
mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas
esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os
amigos que o atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que
se vê precipitado n'uma desgraça a que
não prevê termo na sua
desesperação, insulta o Céo, blasfema
da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe
se irá
(como tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender
um laço, por onde arranque uma existencia que o importuna!
¿E a caridade e a ternura não poderão
ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe rebentar as
lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o
coração?
¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e
abençoar o pão com que lhe sustentamos uma vida
que lhe fizemos amar ainda?
¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas
não déstes vós ás almas
generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos
alcançava uma côroa o que salvava os dias do seu
[127]
concidadão,
¡que honras não merece dos
outros homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma
vida infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que
já suppunham surdo e injusto! ¡e que
até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da
miseria que lhes arrancariam os meios de
salvação!
¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para
reconhecermos como bem real esta doce obrigação
da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que mais
fortes motivos não tem o homem christão, para ser
esmoler, segundo as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os
deveres da caridade não são para nós
simplices axiomas, ou
preceitos da philosophia; não são o resultado de
um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas vieram
não só confirmar, mas dar ainda, se é
possível, uma
extensão muito maior a tudo quanto n'esta parte a
Religião natural nos havia imposto.
Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos
modos, até indirectos, nos não é
persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós todo o
thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais
perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo
qual nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as
Escrituras); não só nos adornou de todas as
graças que perdemos na desobediência de nossos
paes, mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem
(mais parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma
habitação commoda e feliz.
[128]
Esse sol que nos allumia o theatro do
mundo, essas estações que lhe mudam as scenas, os
frutos saborosos e delicados que rompem da terra, os vestidos que nos
cobrem, o ar que respiramos, o somno que nos restaura as
forças, os prazeres que nos lisonjeiam os sentidos, os
prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do
coração, são outras tantas esmolas,
com que Deus proveu desde a eternidade ao homem, sobre fraco e
indigente, ingrato a tantos beneficios.
Na sábia disposição com que de mais o
Eterno Padre arranjou todo o grande systema da Natureza,
¿não nos deu Elle uma grande
lição de caridade, estabelecendo em todas as suas
obras uma encadeacão successiva e mutua de dependencias e
soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares liberalisam as suas aguas
ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em chuvas, a terra
ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos mares;
e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo se
conserva, se reanima, se restaura.
D'esta mesma sorte, não só as grandes
porções da Natureza, mas ainda os seus minimos
individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e os
soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes
á existencia dos outros. É assim que, por toda a
parte envolvidos pela Natureza, do meio da qual nos elevamos, como
obras as mais perfeitas, não só nos
não
devemos resvalar a uma condição inferior
á da
propria materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade,
quanto nos devemos
[129]
considerar
como entes, cuja conservação é mais
importante para a manifestação da gloria de Deus.
O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia,
desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de
felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o
seu sangue, lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o
Céo e a terra.
O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de
santificação, e nos accode com esmolas continuas,
desde que abrimos os olhos, até que deixamos o mundo; pelo
baptismo assenta os nossos nomes no livro da vida; confirma-nos e
augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas vezes
quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos
anjos; e accode-nos até com remedios temporaes, á
hora em que as portas do carcere se vão abrir, e a alma
sôlta reverter á sua origem.
Mas não só pelo seu exemplo e meios
tão indirectos nos persuadiu Deus a esmola; não
é uma simples recommendação,
é um dos preceitos mais rigorosos:―
Ego
proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et pauperi qui
tecum versatur in terra: Sou eu, é o teu proprio
Deus, quem te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e
ao pobre, que lida comtigo sobre a terra. Esta lei tão
clara, tão precisa e absoluta na sua letra,
¿terá acaso todos esses caractéres que
devem sempre manifestar-se em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e
seja o proprio Deus quem nol-a interprete.
[130]
É
justa e necessaria:
necessaria muito mais ainda para o bem espiritual dos bem-feitores, do
que para o commodo temporal do soccorrido. A esmola, segundo
Jesu-Christo, é um acto de Religião,
conjuntamente com a oração e jejuns; é
pois
rigorosamente um meio expiatorio; é um commercio que temos
com Deus por meio do nosso proximo; é uma agua copiosa (diz
o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio das nossas iniquidades;
é uma santa usura, em que trocamos bens superfluos e
temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros
que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão
sempre clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas
que nunca teem de se estragar nem de esgotar-se, que nunca nos
serão roubadas nem podem ser consumidas; é um
seguro para o dia da
afflicção; é finalmente um arrimo a
que nos soccorremos para não cahir.
Mais: é
util, considerada
mesmo temporalmente para quem a dá. O Espirito-Santo o disse
tambem nos Proverbios:
Aquelle que der ao pobre, de nada
carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas,
cahirá tambem na pobreza.―Eis aqui, meus
irmãos, eis
aqui patente o terrivel segredo da vingança divina, quando
aniquilla tantas fortunas que pareciam tão solidamente
estabelecidas:
Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil
inanes. Sim, porque as maldições,
ó ricos do mundo, que o pobre vos lança em
segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas
imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca
d'elle arredará os seus
[131]
olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, sereis
ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos
thesoiros;
et sepultus est in
inferno. E se as vossas riquezas vos são
consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso
inferno no mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa
quéda seja mais espantosa, ou para que os vossos
descendentes, que
não são culpados nas vossas iniquidades,
não
experimentem a punição da vossa dureza, e recebam
juntos esses bens a que irão dar um justo emprego.
¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes
vós, pelo contrario, que homem algum se arruinasse
jámais pelas suas larguezas com os pobres?
¿Não é antes uma verdade,
confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as familias de mais
caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o
Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os
prophetas: «Se derramares toda a tua misericordia sobre os
necessitados, e encheres de consolação almas que
gemiam na afflicção, a tua casa se
tornará
como um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será
tão perenne como a fonte que a todos offerece os seus
licores, e por mais que a bebam nunca se esgota, nem cessará
de correr.» ¿E o Redemptor não disse
ainda mais expressamente:
Date et dabitur
vobis? ¿Não compara elle a
retribuição com que o
Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades,
com uma medida avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os
lados, que se nos vasará para o regaço?
¡Oh! não duvidemos:
[132]
os bens
do misericordioso, repartidos pelos infelizes, são o azeite
e a farinha milagrosa da santa viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a
Escritura, comeu ella e a sua casa; e desde aquelle dia nunca lhe
faltou a farinha no pote, nunca o azeite do vasinho se diminuia.
Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de
bençãos as Escrituras não veem
chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o
Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no
mundo, o livre das mãos dos seus inimigos, o allivie no
leito da sua dôr. O que dispersar os seus bens pelos pobres,
viverá de seculo em seculo na memoria dos homens,
abençoado será o seu nome, e n'elle se
despontarão as settas envenenadas da calumnia.
Justitia
ejus manet in saeculum saeculi. Exaltabitur in
gloria. Ab auditione mala non timebit. ¿Que
significam tantas promessas, meus irmãos, tantos premios,
tanta abundancia de bençãos, as glorias do
Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem benefico?
¿Que sacrificio tão importante se vai exigir
d'elle? ¿a que lances heroicos o querem persuadir?
¿que perdas soffrerá
que cumpra contrabalançar por premios de tão alta
valia? ¿Exige-se-lhe a mendicidade e a miseria, em que
viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um exterminio de todas
as paixões? ¿uma
abnegação de todos os prazeres? ¿as
mortificacões da penitencia? ¿a constancia e
morte gloriosa dos martyres? Não, não.
Pede-se-lhe só amor e provas
de amor para com seu irmão; pedem-se-lhe só
lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe
[133]
intima que dê, com prejuizo
seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas
empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e
patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para
lhe pedir só as migalhas superfluas da sua meza.
¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a
vossa! ¡Remunerardes como sacrificio uma virtude, e
acceitardes como virtude o que nada custa ao
coração!
¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres
mais doces da consciencia! ¡Considerardes em mais do que
homem a quem só cumprìu com deveres da
humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que
trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já
nol-o havieis dado com essa
condição! ¡Acceitardes, finalmente,
esses bens frageis, temporaes e caducos, esses bens que só
devemos á vossa liberalidade, como moeda correspondente em
valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros infinitos!
Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos
nos deveriamos abysmar, vós me chamais, meus
irmãos, vós me fazeis descer ás
profundezas da vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um
segredo bem importante. ¿E não adivinho eu quaes
teem sido, desde que enunciei o thema e objecto do meu discurso, os
pensamentos de muitos de vós, da maior parte, ou antes de
quasi todos os que me escutais?―«Feliz (exclama cada um de
vós, no seu coração) feliz de mim, se
eu podera soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me
veria de posse do Céo. Porém Deus não
me destinou
[134]
a mim esses premios e
bençãos; e se a esmola fôra um meio
indispensavel de salvação,
eu me perderia sem remedio, não por minha culpa, mas por
culpa da fortuna. Todos os meus bens escassamente chegam para a minha
sustentação e da minha
casa.»―Assim pensais; assim buscamos pretextos para illudir
todos os preceitos até os mais terminantes e expressos da
Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua presença,
dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa propria
crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu
do Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos,
que ahi estão comvosco. Folgais talvez com a sua
confusão; e a doutrina da caridade, a doutrina de tanto
amor, só serve de despertar em vós a insolencia,
o desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa
semente se perca d'este modo; que só a acceite um pequeno
torrão de terra, e que em vez de produzir os bellos frutos
do Senhor, a maior parte do seu campo, ou quasi todo elle, continue a
só desatar-se em cardos e espinhos. Afugentemos as aves
d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e não
consintâmos
que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por mais pequeno, da
sua terra.
Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem
excepção, vos achais obrigados a ella; e esta
universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o seu segundo
caracter de lei.
Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a
outra do coração.
[135]
Tão longe vai, pois, a esmola
como a caridade; e para podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos
possuir um coração. ¿Não
tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por
tantos famintos. ¿Escassamente vos chega o pão,
mas tendes algumas roupas superfluas? Cobri com ellas tantos
nús.
¿Nada tendes hoje? Promettei para ámanhan; enchei
de esperanças o seio vazio de todas as
consolações.
¿São a caso insignificantes os bens que vos
restam para os frutos da caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que
deis só um copo de agua fria a um dos mais pequenos do
mundo, lembrando-vos de que elle é meu discipulo (vos diz
Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que
não ficará sem recompensa. ¿Nada
tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes que dar?
Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a
vossa fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não
mentis ao
desgraçado, se na verdade vos achais privado de todo o
genero de haveres, ainda possuis muitos bens em que não
reparaveis. São os que existem dentro do vosso
coração.
Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre todas as
feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com
o vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que
os ricos sem elle, afogados nos seus thesoiros. Consultae esse
coração; ouvi como um oraculo as suas
respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus impulsos.
¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi
á morada do rico. Entrae affoitos.
Pintae-lhe as miserias do seu semelhante.
[136]
Mostrae que só os interesses da
humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os vossos
olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae as
eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos
corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com
o pão e com a carne, que vos deu essa Providencia, que assim
soubestes interessar.
¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o
trabalho dos vossos braços. Advogae perante o poderoso a
causa do fraco. Desfazei os enredos e calumnias, que ennegreceram vosso
irmão, que lhe roubaram todas as
protecções.
¡Não tendes que dar! Congraçae o homem
com o homem, a familia com a familia.
¡Não tendes que dar! Visitae tantos
desgraçados, que gemem por esses carceres; persuadi-lhes a
paciencia, e a resignação evangelica;
confortae-os com palavras doces, com esperanças
consoladoras. Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com
mão carinhosa, os remedios; animae-o com os vossos sorrisos,
e fazei que troque os suspiros da sua dôr e do seu desalento
em suspiros de ternura, em expressões de confôrto;
que veja os Céos abertos, e que goze antecipadamente de
premios, que, se não fosseis vós, talvez
não tivesse de possuir.
¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a
tantos meninos, e ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de
vosso proximo na presença, assim como na ausencia. Ajudae-o
com as vossas orações.
Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que
[137]
dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas.
São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca
se esgota para um christão. Tomae a vós uma parte
do seu infortunio, e elles ficarão menos oppressos.
¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do oiro!
¡De quantos e quantos modos, não sabe
reproduzir-se a beneficencia!
Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia,
porque elles alcançarão misericordia.
Eis aqui as bençãos e os premios do
Céo, recahindo sobre todos vós, sem
exclusão de um só. Ahi vos tendes tão
ricos, aos olhos do Senhor, como esses ricos, cuja dureza lamentaveis,
a cujos bens vos promettieis dar um melhor emprego, se os possuisseis.
¿Quem vos detem? ¿por que não correis
a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a
merecerdes essas bençãos e premios,
que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê!
¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o
zêlo, que murmura, que reprehende, que insulta nos outros a
infracção dos deveres, em quanto os julga
alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por
mais injusta contradicção, as fraquezas, que
não
perdoamos no mundo, sendo em nós, já as sabemos
desculpar; ¡e quantas vezes não passam de
desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão,
se a humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os
interesses do mundo, se as bençãos do tempo e da
Eternidade, se todos os premios de Deus, emfim, nada podem comvosco,
possam-n-o, ao menos, as suas ameaças, castigos e
maldições,
[138]
que vão constituir a sua
lei perfeitamente obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter.
¿Recusais a misericordia de Deus? Já
não tendes que escolher. Só lhe ficaram as
vinganças.
Affastae-vos, ó santa familia de infelizes. Pobresinhos do
Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover fogo e colera do
Céo. Para além, para além,
é o vosso refugio, á dextra do Eterno Padre.
Venite
ad me, omnes qui laboratis,
etc. ¿Não vos tinha elle dito que os
vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as
humiliações se lhes converteriam um dia em
triumphos? Sim, sim, ó
famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos,
¡jubilae! Vós nunca cessastes de ser os seus
filhos muito amados. Eu vou reassumir todos os thesoiros (vos diz elle)
que a minha Providencia repartira pelos vossos barbaros oppressores. Eu
lhes havia dado mais altos meios do que a vós mesmos de
alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos
custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de
os fazer ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o
vós, ó meus pobres; frutos que eu vou recolher e
guardar para sempre no meu seio; elles foram arvores estereis, que,
dominando toda a sementeira, a açoitaram com os ramos, a
damnaram com a sombra, a devoraram com as raizes; infecundas e nocivas
eu as arranquei em meu furor; eu vou lançal-as ao fogo.
Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no incendio eterno, que
foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu tive fome, e
vós me não déstes de comer; eu tive
[139]
sêde, e vós
me não déstes de
beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e
não me vestistes; enfermo e encarcerado, e não me
visitastes. Todas as vezes que despedistes, que calcastes os pequenos
do mundo, a mim, a mim o fizestes.
¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença
de maldição estampar-se hoje com letras de fogo e
indeleveis nos vossos corações. Este Jesus
escondido nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos
templos, coberto de remendos, macilento, prostrado debaixo do
pêso de tantas cruzes, é um rei de majestade,
é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda a sua
cólera, e de cujas sentenças nunca
poderêis mais appelar. ¡Oh! compadecei-vos d'elle,
soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e humilhado, para
o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador.
¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o
coração me-diz que esta semente não
será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros
e consolações.
Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda
é tempo. Aqui promettemos soccorrer-vos com o que
é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a
vós, cahido, a vós humilhado, para vos
não experimentarmos depois accusador, testemunha, vingador e
inexoravel. Antes que nos-accendais esses fogos de
maldicção,
já era nossos corações temos accezos
outros, que muito mais são vossos: os da caridade.
Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em
tôrno da meza do vosso banquete celestial, aonde se assenta o
opulento Salomão
[140]
a par
do Lazaro mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador
arrependido com o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos
sôbre o vosso seio; e n'um abraço de eterno amor
nos-apertae a todos sôbre o vosso
coração paternal, por todos os
séculos dos séculos.
Assim seja.
INDICE
I |
― |
A primeira noite na serra |
5 |
II |
― |
O sepulchro, ou historia de uma noite de S.
João |
11 |
III |
― |
Epistola a João Evangelista Pereira da
Costa |
41 |
IV |
― |
O Presbyterio |
43 |
V |
― |
A lyra do
desterrado |
49 |
VI |
― |
Epistola a |
51 |
VII |
― |
A romaria |
53 |
VIII |
― |
O Domingo gordo dos
montanhezes |
55 |
IX |
― |
O S. João nas faldas do
Caramulo |
77 |
X |
― |
O mosteiro |
81 |
XI |
― |
Santa Maria
Egypcíaca |
91 |
XII |
― |
Epistola ao Desembargador
Deslandes |
97 |
|
|
Notas ao 1.º
volume |
99 |
|
|
Additamento |
107 |
|
|
Sermão da Esmola ou da
Caridade |
109 |
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sociedade editora
Livraria Moderna
95―RUA AUGUSTA―LISBOA
Notas:
[1] Verbi
gratia na quinta da Domanderes.
Nota do autor.
[2]
Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos
com o gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz
descarregar uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos
ladrões, pelas
muitas perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.―
Nota do secretario
Augusto.
[3] A
Castanheira
do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da
Feira, a uma legua de Agueda.
Nota
do autor.
[4] A
traducção de parte de Silio
Italico pelo Padre Francisco Manoel do Nascimento (Filinto Elysio.)
Nota
do autor.
[5]
Traducção da escolha das Fabulas de
Lafontaine pelo mesmo.
Nota
do autor.
[6]
(O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.)
Nota
dos Editores.
[7]
Josué―cap. XXIV
[8]
Juizes―cap. VI.
[9] Foi este
fragmento publicado na
Revista
Universal Lisbonense de 19 de Junho de 1845―Tomo IV, pag.
582.
Os
Editores.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos: