Title: O Primeiro de Maio
Author: S. de Magalhães Lima
Release date: May 15, 2010 [eBook #32379]
Most recently updated: January 6, 2021
Language: Portuguese
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MAGALHÃES LIMA
O
1.º de Maio
Marchez, l'humanité ne vit pas d'une idée,
Elle en allume une autre á l'eternel flambeau
CASA BERTRAND—JOSÉ BASTOS
CHIADO
LISBOA
O PRIMEIRO DE MAIO
O
PRIMEIRO
DE MAIO
POR
S. DE MAGALHÃES LIMA
Marchez, l'humanité ne vit pas d'une idée,
Elle en allume une autre á l'eternel flambeau
LISBOA
TYP. DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA
1894
{4}
{5}
Á MEMORIA
DO
MEU QUERIDO MESTRE
E
SAUDOSISSIMO AMIGO
BENOIT MALON
Lisboa, 2 de dezembro de 1893.
Magalhães Lima.
{6}
{7}
Recordo-me perfeitamente. Era uma manhã de agosto. Na vespera, Cipriani havia me dito: «amanhã, ás 11 horas, na gare de S. Lazare!»
Fomos ambos pontuaes. Tomámos os nossos bilhetes, e seguimos no trem de Asnières. Era ali, na rua de Colombes, que vivia, ou que agonisava, para melhor dizer, Benoit Malon. Subimos a longa escadaria que conduzia a um terceiro andar. O mestre dormia tranquillamente. Mas, presentindo-nos, afastou docemente o lenço branco que lhe encobria o rosto, e estendeu-nos a mão com carinho e alvoroço, abraçando-nos e beijando-nos, ao mesmo tempo.
A sua physionomia, abatida e amarellecida pelo uso da morphina, tinha o aspecto doentio, morbido,{8} de quem, havia muito, não dormira ou se achara dominado por terriveis convulsões. O quarto era pequeno, illuminado por uma janella que deitava para a rua. Sobre o leito em desalinho, alguns jornaes, dobrados uns, abertos outros—Le Rappel, La Petite Republique Française, La Justice... A atmosphera estava impregnada d'aquelle cheiro caracteristico das longas enfermidades dolorosas. A um lado do leito uma mesa, completamente coalhada de garrafas e frascos, uma pequena pharmacia, para assim o dizer; e a outro lado a figura luminosa, transparente e doce de Mademoiselle Estelle Husson, a enfermeira querida e dedicada, que teve a rara coragem e a excepcional perseverança de atravessar os seis longos mezes da doença, passando as noites em vigilia, ao lado do enfermo, sem se deitar...
—É uma heroina!—disse-me Amilcare Cipriani.
E era-o, com effeito.
Conservo ainda hoje a sua imagem, intensamente gravada no meu espirito saudosissimo. Uma bata branca envolvia o seu corpo flexivel e franzino, e uma pallidez marmorea se desenhava na sua figura delicada de madona, de olhos azues e de longas tranças louras. Dir-se-hia uma irmã do doente, pelo soffrimento e pela dôr que a caracterisavam.
Benoit Malon não podia fallar. Escrevia n'uma lousa que tinha sempre ao seu lado, e que elle mesmo limpava, de quando em quando, com uma pequena esponja.
Fez-me muitas perguntas. Felicitou-me pela publicação do meu livro—La Fédération Ibérique, que havia dado a Geisler, para que a elle se referisse{9} na Revue Socialiste.—Porque não publica V., em volume, as suas impressões, sobre o congresso operario de Zurich?—disse-me por fim.
Prometti-lhe solemnemente que o faria.
Venho hoje cumprir a minha promessa; e, á tua memoria sacratissima, consagro
o fructo do meu labor, ó morto querido!{10}
{11}
O congresso confirma a resolução do congresso de Bruxellas, assim concebida:
O congresso, afim de conservar ao 1.º de Maio o seu verdadeiro caracter de reivindicação do dia normal de 8 horas de trabalho e de affirmação de lucta de classes, resolve:
Que deve fazer-se uma manifestação unica em que tomem parte os trabalhadores de todos os paizes;
Que esta manifestação se realise no dia 1.º de maio, e se suspenda o trabalho, n'esse dia, em toda a parte onde seja possivel fazel-o.
Adopta tambem a emenda seguinte:
A democracia socialista de cada paiz tem o dever de empregar todos os seus esforços para conseguir a suspensão do trabalho no dia 1 de maio, encorajando todas as tentativas feitas, n'este sentido, pelas differentes organisações locaes.
O congresso resolve mais:
A manifestação do 1.º de maio, pelo dia normal de 8 horas de trabalho, deve, ao mesmo tempo, ser, nos diversos povos, a affirmação da energica vontade que anima o proletariado moderno de pôr um termo, por meio da revolução social, ás desegualdades de classes, devendo tambem manifestar o pensamento commum ao proletariado de alcançar, pelas reformas sociaes, a paz universal, como uma consequencia da paz obtida dentro de cada nação.
(Congresso de Zurich.—Resolução tomada na sessão de 11 de agosto de 1893).
A celebração do primeiro de maio, significa e representa, ao mesmo tempo, uma affirmação e um protesto: affirmação de direito e de justiça contra os privilegios e os preconceitos do mundo, e protesto da humanidade trabalhadora contra o despotismo e a servidão social. Affirmar esse direito e relembrar essa justiça é o dever dos que trabalham; protestar contra a iniquidade de que são victimas, é a obrigação dos que soffrem.{12}
Encontramos-nos em face de um velho mundo que desaba. Os reis e os dictadores esgotam os thesouros dos seus respectivos paizes em munições e armamentos, e preparam-se para o supremo combate. Por toda a parte a duvida e a incerteza. Alguma cousa de sombrio e de lugubre caracterisa este terrivel periodo, chamado de transição. De duas uma: ou a guerra irrompe, n'uma época mais ou menos proxima; ou a revolução rebentará, como a consequencia logica, inevitavel, da crise economica a que esta nova barbarie, denominada pomposamente exercito permanente, arrastou as sociedades modernas.
O capitalismo explora, e a guerra mata e aniquila. O operario encontra-se em frente d'estes dois inimigos; e elle, que representa o trabalho e a producção, combate os exploradores; e elle, que significa paz, amor e concordia, detesta e odeia a guerra.
Reivindicar para a collectividade os beneficios do trabalho e da paz—eis a aspiração do proletariado moderno. A essas aspirações, chamamos nós socialismo; e, por seu turno, a gloriosa commemoração do primeiro de maio, não é outra cousa senão a affirmação solemne e collectiva das reivindicações operarias.{13}
No proximo anno preterito que acaba de desapparecer, arrastando na sua cauda varredora todo um mundo de lagrimas e de ficções, a humanidade perdeu cinco dos seus melhores amigos e a revolução cinco dos seus apostolos mais queridos e predilectos.
O primeiro de maio, que, antes de tudo, significa paz e solidariedade, presta homenagem aos mortos illustres. Façamos reviver os Mestres. O seu exemplo é o nosso ensinamento, e a sua memoria luminosa é a origem dos nossos esforços e dos nossos sacrificios. Por elles vivemos, e pela sua lição sacratissima nos abalançamos aos supremos heroismos e aos supremos martyrios. Bem hajam elles, os bons, os santos, os immortaes, os calumniados de todos os tempos e de todos os paizes; bem hajam{14} os simples, os eternamente ingenuos: foram elles que nos ensinaram; são elles ainda os que, atravez dos escolhos que as paixões semeiam na sociedade, nos guiam e conduzem ao ideal abençoado, á terra promettida da liberdade e da fraternidade humana!
*
* *
O odio destróe e espalha a guerra. Só o amor póde construir e trazer a paz. Benoit Malon era a personificação do altruismo e da bondade humana. Era um santo e um virtuoso. Ninguem o excedeu em virtude. Ninguem o egualou em abnegação e desinteresse. Por isso a sua morte pôz o lucto nos corações e encheu de afflição todas as boas almas, candidas e generosas. Elle não foi só o mestre do socialismo: foi o exemplo vivo de quanto póde a vontade, quando levada e dirigida pelo amor e pela curiosidade{15} do saber. Elle foi a encarnação da alma moderna, em lucta com o presente e crente no futuro, pondo o ideal acima dos mesquinhos interesses do mundo e as ideias e os principios acima da ganancia sórdida dos homens e das sociedades.
Ah! sim!—dizia-me, pouco tempo depois da sua morte, Aurelien Scholl, o scintillante chronista parisiense—elle foi um dos raros e um dos privilegiados d'este fim de seculo! O meu pobre amigo vinha almoçar commigo de quando em quando. Um dia a minha creada perguntou-me, se poderia aproveitar a hora do almoço, para coser o sobretudo do sr. Malon, e se elle repararia... Respondi-lhe que cosesse o sobretudo, porque o sr. Malon nem sequer daria por tal... É que elle era tão bom, tão bom—rematou Scholl—que até as creadas de servir o amavam!
Eis aqui uma narrativa que vale bem por uma biographia! E tudo quanto podessemos accrescentar a estas palavras, ao mesmo tempo tão simples e tão pittorescas, seria superfluo e inutil. Nem mais ambicionaria, por certo, o chorado e saudosissimo author do Socialismo integral!
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Luiz Ruchonnet foi, por duas vezes, presidente do conselho federal da florescente e grandiosa republica suissa. Era um sincero amigo da paz, e,{16} como todos esses visionarios e sonhadores, que em Inglaterra se chamam Cobden, Hodgson Pratt, Henry Richard, Cremer, Darby, em França, Charles Lemmonier, Frederico Passy, Emile Arnaud, René Goblet, Edmond Thiaudière, A. Millerand, Camillo Pelletan, Augusto Vacquerie; na Italia, Bonghi, Siccardi, Mazzoleni, Theodoro Moneta; na Dinamarca, Frederico Bajer; na Belgica, Laveleye, Janson, Cesar de Paepe, La Fontaine; na Allemanha, Franz Wirth, Baumbach, Adolfo e Eugenio Richter; na Austria, a baroneza de Suttner e o dr. Adler; na Suissa, Angelo Umiltá, Carlos Menn, M.me Goegg; na America, Alfredo Love, dr. Trueblood, M.me Belva Lockwood—elle pertenceu a essa gloriosa raça de philantropos e humanitarios, que atravessam o mundo, deixando atraz de si um rasto de luz, e cujos nomes se perpetuam, atravez os tempos e as gerações, consagrados pela historia, pela sciencia e pelo trabalho.
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Na historia do livre pensamento, Ramón Chíes occupava um dos primeiros logares e era uma das personalidades mais em vista. Era um revolucionario por temperamento e por convicção. Não queria a republica simplesmente pela republica. Queria a republica sim! para elevar e engrandecer a sua patria aos olhos de nacionaes e estrangeiros. Para{17} elle a republica era uma phase transitoria; a phase organica e positiva estava no socialismo. Por isso foi, ao mesmo tempo, um socialista e um federalista. Tribuno, ninguem o excedeu em eloquencia, na defeza do luminoso principio da fraternidade e da solidariedade humana; publicista e jornalista de pulso, foi um apostolo constante, ardente, impetuoso e dedicado da federação iberica.
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Victor Schoelcher pertenceu a essa mocidade alegre e enthusiasta que forneceu ao author dos Miseraveis o seu typo d'Enjolras, o estudante de todas as sociedades secretas e de todas as conspirações. Franco-mação e conspirador, filiou-se na loja franceza dos Amis de la verité e na Sociedade Aide-toi, le ciel t'aidera.{18}
Estas eram, com algumas outras, as associações dos malfeitores d'aquelles tempos, no dizer picante e ironico de um distincto jornalista parisiense.
A grande e gloriosa figura de Schoelcher destaca-se na sua brilhantissima campanha contra a escravidão. Quiz vêr de perto e observar pelos seus proprios olhos a triste situação dos negros. E, para poder denunciar ao mundo a ignominia e a barbarie dos homens, partiu para a America, d'onde regressou, com o coração angustiado pela dôr e o espirito horrorisado por tudo o que havia presenceado e visto. Sendo sub-secretario d'Estado, no ministerio da marinha, por occasião da revolução de 1848, o seu primeiro cuidado foi apresentar um decreto para a libertação immediata dos negros.
Schoelcher encontrava-se ao lado de Baudin, na celebre e já hoje historica barricada da Bastilha.
A tropa marchava sobre a barricada, sem dar um tiro.
«—Amigos! gritou Schoelcher, voltando-se para o povo, nem um tiro até que a tropa abra o fogo.{19} Avancemos; se ella atirar, a primeira descarga será nossa; se nos matar, vós nos vingareis.»
E dirigindo-se depois aos soldados:
«—Nós somos os representantes do povo, exclamou. Em nome da constituição, reclamamos o vosso concurso, para fazer respeitar as leis do paiz. Vinde a nós; será vossa a gloria.»
E avançou para os soldados, commandados por um official. Seis dos seus collegas seguiram-n'o. A tropa parou indecisa.
—Cumpro as ordens, respondeu o official. Retire-se, se não quer que dê a voz de fogo.
—Mate-nos, se quizer, replicou Schoelcher.
E, dando o exemplo que foi seguido pelos companheiros, gritou: «Viva a Republica!»
O official mandou carregar.—«Avançar!»—ordenou.
Ouviu-se o ruido sêcco das baterias. Alguns representantes descobriram-se e quedaram-se com o chapéu na mão, esperando serenamente a morte. N'esse instante, um soldado atacou Schoelcher á baioneta. Os defensores da barricada, suppondo que se attentava contra a sua vida, desfecharam e mataram o soldado. A tropa respondeu por uma descarga geral. Foi então que Baudin subiu á barricada para exhortar os soldados. Uma bala feriu-o na fronte, cahindo logo fulminado.
Schoelcher, n'esse dia memoravel da sua vida, esteve á altura dos grandes heroes; e, á semelhança dos antigos paladinos, só abandonou o campo, quando nada mais restava a fazer. A barricada da Bastilha fôra improvisada de um momento para o outro; {20} construida no ar, para assim o dizer, sem elementos de resistencia, desfez-se e cahiu como um castello de cartas. Mas o patriotismo opera milagres. E só patriotas sinceros e devotados seriam capazes de semelhante audacia e de semelhante arrojo!
Chamaram-lhe idealista—um puro e nobre idealista!—a elle, que todos os seis mezes, na camara franceza, apresentava um projecto de lei para a abolição da pena de morte. Para o mundo, egoista e utilitario, são idealistas e são sentimentalistas, todos os que lhe não acceitam as falsas convenções e o tôrpe e vilissimo mercantilismo. E é precisamente de idealistas e de sentimentalistas que carecem e precisam as sociedades modernas! As grandes commoções da historia foram um producto do ideal e do sentimento humano. Assim como é preciso pensar para obrar, na phrase de Augusto Comte, é tambem preciso sentir para querer. Nem d'outro modo se comprehende o patriotismo, nem d'outro modo se poderiam comprehender as revoluções e os grandes dramas sociaes.
Perdida a causa em que pozéra todo o seu heroismo e todos os seus esforços, Schoelcher emigrou para Inglaterra, onde permaneceu durante o imperio, regressando a Paris em 1870. Estava no Hotel-de-Ville, a 4 de setembro, e tomou parte na defeza de Paris, na sua qualidade de chefe d'Estado-maior da guarda nacional.{21}
*
* *
Um dia Victor Consideram dirigia-se á Escola Polytechnica, e atravessava os caes de Paris, bouquinant, como dizem os francezes, isto é, entretendo-se a vêr as curiosas livrarias, de livros raros e antigos, que guarnecem as varandas dos caes, na margem esquerda do Sena, e que constituem uma das primeiras curiosidades da grande capital da França, quando, subito, se lhe deparou uma obra que lhe despertou a attenção e a curiosidade. Era o Nouveau monde commercial de Fourier. Abriu-o, leu-o e estudou o minuciosamente.
No fim do livro, Fourier dizia, pouco mais ou menos, o seguinte:
«Precisa-se um capitalista, para realisar um novo mundo. Carta para minha casa.»
E designava a sua morada.{22}
Considérant apresentou-se em sua casa.—«Não sou o seu homem, disse. Não tenho dinheiro, mas comprehendi-o».
Fourier havia encontrado o seu primeiro discipulo, que lhe levava a mais que os capitaes pedidos—o genio para vulgarisar as suas theorias.
Fourier nutrira, desde creança, um horror invencivel pelo commercio. Filho de commerciante, e tendo apenas sete annos de edade, ouviu um dia o pae gabar-se á mãe de haver enganado um cliente. Vexado por este proceder que qualificou de villão, procurou o freguez, afim de participar-lhe o occorrido. Valeu-lhe a indiscrição um bom par de bofetadas; mas, desde esse momento, votou ao commercio esse odio que transparece nos seus primeiros livros.
«Possuo o segredo da felicidade, para todos os homens—dizia».—Intimaram-n'o a provar praticamente a sua asserção.—«Escrevel-o-hei—respondeu».
«O genero sahe das mãos do productor, custando 3, por exemplo, e chega ás mãos do consumidor valendo 9. O intermediario, isto é o commerciante, ganhou, portanto, 6, na sua commissão, o que não succederia evidentemente, supprimindo-se o intermediario, e estabelecendo-se, pura e simplesmente, a troca entre productores e consumidores.
O seu systema baseava-se sobre o principio da felicidade humana, e o ideal do mosteiro de Théléme não foi estranho ás suas concepções. «A felicidade consiste em cada um fazer o que quizer.» Mas, fazendo cada um aquillo que quer, corre tambem o{23} risco de fazer o que os outros não querem. A esta objecção respondia elle que na natureza tudo se equilibra—o mal e o bem.
Fourier era um poeta, mas tinha-se por homem pratico. Uma occasião, terminando uma conferencia sobre o futuro da humanidade: «E agora, concluiu, preparemos o cosido.»
Ninguem contesta o grande alcance philosophico, da theoria phalansteriana; mas a sua parte organica e sociologica, observou muito bem Anthero de Quental, é quasi a negação do verdadeiro socialismo, positivo, liberal e moral.
Victor Considérant pretendeu primeiro fundar um phalansterio em Conde-sur-Végre que não passou de uma tentativa infructuosa. A ideia, porêm, fructificou mais tarde, embora de modo differente, por occasião da fundação de uma colonia de velhos, n'aquelle mesmo paiz, que se denominou—«o phalansterio.»
Em Texas estabeleceu Considérant, não um phalansterio, mas uma colonia agricola. Uma sedição, organisada por Cantagrel, desapossou-o do territorio e obrigou-o a retirar-se com sua esposa. A colonia prosperou a principio; depois desaggregou-se. Era mal vista pelos naturaes por causa da sua falta de religião—diziam.
Um pintor de Paris, Capy, ensinava a musica. «Todos os domingos, respondia elle a um inspector americano, fazemos musica.» Ah! n'esse caso, é differente, exclamaram os bons Yankees, sempre ali ha um pouco de religião, uma vez que se canta.»{24}
E a verdade é que as censuras cessaram. Os membros da colonia, tambem, por seu turno, deixaram de ser phalansterianos.
É mister ir a Iowa, para encontrar uma colonia communista—a Icaria. Tudo ali é commum, sem mesmo exceptuar as mulheres. Podem-se estabelecer uniões temporarias, mas de curta duração; se as uniões se prolongam, a authoridade intervêm, porque, nesse caso, affirmam os estatutos, a cousa torna-se immoral.
Vejamos, porêm, como Victor Considérant considerava a organisação da nova ordem social.
O primeiro feudalismo que sahiu da conquista militar, havia feito concessão do sólo aos chefes militares e aos nobres, subordinando as populações conquistadas á pessoa dos conquistadores pela servidão da gleba.
A guerra industrial e commercial, succedendo é guerra militar, sob a fórma de concorrencia, em que o capital e a especulação ficam forçosamente senhores do trabalho pobre, tende a constituir, pelas suas conquistas, uma nova servidão—não a servidão pessoal e directa, mas a servidão indirecta e collectiva, o dominio, em massa, da classe dos possuidores de capitaes, das machinas e dos instrumentos de trabalho, sobre a classe dos desherdados.
E, com effeito, os proletarios das cidades e dos campos, considerados collectivamente, estão sob a dependencia absoluta d'aquelles que monopolisam os instrumentos de trabalho.
Este grande facto economico e politico póde traduzir-se, pela seguinte formula, na vida pratica:{25} «Para ter que comer todo o proletario é obrigado a subjeitar-se a um patrão.»
A revolução não se completou, pela simples emancipação politica, isto é pelo dogma metaphysico da egualdade perante a lei, ou da liberdade pura e simples.
A antiga sociedade havia sido organisada, pela guerra e para a guerra. A nova sociedade terá de ser organisada pelo trabalho e pela paz e para o trabalho e para a paz.
O problema dos nossos dias não póde pois, visar senão á libertação dos servos da industria, dando a todo o homem que queira trabalhar o direito aos instrumentos do trabalho, tornando-o assim proprietario dos fructos do seu labor, e creando a ordem, a cooperação e a convergencia no campo industrial.
A solução d'este problema, que não é outra cousa senão a transformação do salariado, a moderna fórma de escravidão, constitue o complemento da revolução, e póde e deve intitular-se o problema social.
Tal era, em rapidos traços, a doutrina d'essa altissima personalidade e d'esse bello caracter que se chamou Victor Considérant, e que tantas vezes vimos atravessar o boulevard S.t Michel, no bairro latino, consagrado pela mocidade das escolas e venerado por todos os que, acima dos materialismos do mundo, põem o supremo ideal da bondade e da felicidade humana.{26}
*
* *
Freiland! (terra livre, paiz livre)—tal é o titulo do livro de Theodoro Hertzka, um austriaco e um sociologo eminente.
Pelos meados de julho de 18...—assim principia a narrativa de Hertzka—lia-se o seguinte nos principaes jornaes da Europa e da America:
«Sociedade livre internacional
«Acaba de constituir-se um grupo de individuos de todas as partes do mundo civilisado, com o fim de emprehender e tentar a resolução do problema social.
«Ao cabo de muitas e pacientes investigações, opinou-se pela creação de uma communidade, estabelecida sobre as bases, ao mesmo tempo, da liberdade mais ampla e da justiça economica, a qual, mantendo de uma maneira absoluta a independencia pessoal de cada trabalhador, lhe assegure o{27} gôso completo e integral do producto do seu trabalho. Para fundar a mencionada communidade, occupar-se-ha uma vasta região, n'um local que não tenha possuidor, mas que seja fertil e proprio para a colonisação.
«N'esta região, a sociedade livre não reconhecerá nenhum direito de propriedade sobre o sólo, quer a favor de um individuo quer a favor da communidade.
«Para cultivar o sólo, como, de resto, para realisar toda a especie de producção, constituir-se-hão associações, sendo cada uma administrada como melhor o entender, e distribuindo, entre os seus membros, o resultado da producção, consoante o trabalho de cada um. É facultativo a cada membro o filiar-se na associação que escolher e de a abandonar tambem a seu bel-prazer. A communidade encarrega-se de fornecer gratuitamente os capitaes aos productores, com a condição d'estes os restituirem. Os individuos incapazes de trabalhar, assim como as mulheres, teem direito aos meios de subsistencia, á custa da sociedade. A receita indispensavel para a acquisição dos objectos, acima mencionados, assim como para as despezas de interesse geral, será assegurada por uma quota tirada do rendimento bruto de cada producção. A sociedade livre internacional possue já o numero de membros e de capitaes sufficientes para a realisação do seu plano. Sendo, porém, de opinião, por um lado, que o resultado d'esta tentativa ha de ser tanto mais seguro e efficaz, quanto maiores e mais importantes forem os meios de que disposer, e desejando, por outro lado, offerecer a todos o ensejo de poderem participar da empreza, a sociedade, pelo presente aviso, faz saber ao publico que os pedidos e offertas de qualquer natureza que sejam, devem ser dirigidos para Haya, Bochstraat, 57.
«A sociedade livre internacional celebrará em Haya, no dia 20 do proximo mez de outubro, uma assembléa politica em que serão apreciadas as ultimas resoluções, afim de realisar praticamente a sua obra.
Haya,... de julho, 18..
Pelo comité da sociedade livre internacional.
Karl Strahl{28}
Este annuncio produziu uma profunda emoção na imprensa e no publico. O nome do signatario, que era conhecido não só pela sua posição social, senão ainda por ser um dos primeiros escriptores da Allemanha em sciencia economica, afastava todo e qualquer pensamento de mystificação ou de equivoco.
Realisou-se um congresso que foi aberto pelo seguinte discurso de Strahl:
«A convicção de que a communidade, á fundação da qual vamos proceder, é destinada a extinguir a pobreza e a miseria pela base e a destruir com ella todos os desgostos e todos os crimes que devem ser considerados como uma consequencia forçada da miseria e da pobreza, essa convicção, apercebe-se não só nas palavras, senão tambem na maneira de obrar da maioria dos nossos consocios e no profundo e desinteressado enthusiasmo, segundo o qual cada um—na medida das suas forças—se tem applicado ao fim commum. Quando publicámos o nosso appêlo, eramos apenas 84; os recursos de que podiamos dispôr orçavam por 11.400 libras sterlinas; presentemente a sociedade compõe-se de 5.650 membros e o seu fundo monta a 205.620 libras sterlinas. Convêm notar que esta somma, não nos foi fornecida simplesmente pelas classes pobres que habitualmente se consideram como as unicas interessadas no problema social. E isto torna-se ainda mais evidente percorrendo a lista dos socios. Irresistivelmente, chega-se á conclusão de que a aversão e o horror, inspirados pelas actuaes condições sociaes, attingiram tambem as classes que, á primeira vista,{29} parecem aproveitar com as privações dos desherdados da fortuna. A resolução do problema social impõe-se hoje, por tal fórma, que até os ricos e os favorecidos da sorte não duvidam concorrer com alguns milhões de libras, para a fundação da nova communidade, auxiliando-nos e participando da nossa empreza. N'este facto, mais do que em qualquer outro, repousa a convicção de que a nossa obra não poderá deixar de fructificar.
«Trata-se de escolher a região onde poderemos realisar o nosso projecto. Toda e qualquer localidade europeia está naturalmente posta de parte, por rasões faceis de comprehender; a Asia, egualmente; e, em particular, devemos assignalar os pontos onde sóem acclimatar-se os emigrantes de raça caucasica, sendo facil que se estabelecessem conflictos com as organisações juridicas e sociaes de outros tempos. Na America e na Australia, os governos conceder-nos-hiam, com prazer, um territorio espaçoso, bem como a liberdade dos nossos movimentos; mas ainda ahi difficilmente poderia a nossa communidade encontrar garantia contra os ataques hostis e assegurar o repouso e a segurança, indispensaveis a um successo rapido e certo. Resta-nos a Africa, o continente mais antigo, e, sem embargo, aquelle cuja descoberta foi a mais recente. A parte central interior encontra-se ainda sem possuidor. Podemos encontrar ali, não só um espaço sem limite e um repouso assegurado, senão tambem as condições mais favoraveis, quanto ao clima e á fertilidade do sólo, desde que a escolha seja acertada. Ha paizes, a uma grande altitude, reunindo as vantagens dos tropicos{30} e dos Alpes, que aguardam uma immigração. As communicações com esses paizes montanhosos, situados no coração do continente negro, são certamente muito penosas, mas é precisamente isso de que havemos mister para principiar. Propômos pois, que se procure a nova patria, no interior da Africa equatorial. E pensamos, principalmente, no paiz das altas montanhas do Kenia. Concorda a assembléa com a escolha?»
Foi unanime o assentimento. Ouviram-se vozes que exclamavam:
«Para deante, e antes hoje do que amanhã!»
Era evidente que a maioria estava disposta a pôr-se a caminho sem mais delongas.
De novo o presidente toma a palavra para declarar que as cousas nem sempre podem marchar tão depressa, como muitas vezes se deseja. A nova patria terá primeiro de ser escolhida e conquistada, o que representa uma empresa arriscada e difficil. O caminho tem que fazer-se por entre desertos e florestas inhospitas. Não poderemos evitar os combates com as tribus selvagens e hostis, e, por isso, só nos poderão convir homens fortes e validos, e não mulheres, creanças ou velhos. Alêm d'isso, teremos que apurar os milhares de immigrantes que deverão acompanhar-nos, atravez d'aquellas regiões, e de os organisar devidamente; 200 emigrantes, entre os quaes 4 naturalistas, 3 medicos, 8 engenheiros e 4 representantes de outros ramos technicos, ricamente providos de armas, de machinas, de sementes, de mercadorias e de utensilios de viagem, formarão a vanguarda da expedição.{31}
A narração d'esta marcha até ao Kenia, constitue uma das partes mais interessantes do livro, devendo accrescentar-se que a descripção das grandiosas montanhas africanas não é obra de pura phantasia, mas é, ao contrario, extrahida das narrativas dos exploradores africanos que visitaram aquellas regiões. A expedição faz a sua primeira paragem em um valle delicioso, situado a 1:700 metros de altitude, ao sopé de um formidavel massiço do Kenia e das suas magnificas geleiras, e que se appellidará, por causa da sua belleza e da sua fertilidade, o valle do Eden. Com as provisões e os utensilios de que vão providos, podem os valentes porta-bandeiras da gloriosa caravana fazer os preparativos necessarios, para receber o principal grupo dos associados, se bem que só alguns mezes mais tarde, por occasião da chegada do comité director á base do Kenia, é que o paiz, onde refulgirá a liberdade, será baptisado com o nome de Freiland, pondo-se então, em pratica a nova organisação do trabalho, consoante os principios freilandezes.
Para todos os que se interessam pelo estudo das questões sociaes, e ainda para todos os que pensam que as modernas sociedades, desorganisadas como estão e lançadas em bases falsas, devem ser reconstruidas, segundo um principio de justiça e de moralidade, o livro do escriptor allemão é de um interesse palpitante[1]. Digamos tambem que o author{32} do Freiland teve a rara felicidade de despertar em muitos espiritos, pela sua maravilhosa obra, escripta em fórma de romance, o desejo ardente de fundar uma sociedade em tudo semelhante áquella que tão brilhantemente concebeu e descreveu.
Para vulgarisar e fazer a propaganda da ideia, creou e fundou a sociedade uma revista mensal, orgão dos associados:—«Freiland, organ der Freilandvereine».
Temos á vista uma carta de Theodoro Hertzka em que nos communica a partida de Hamburgo da primeira expedição, por todo o mez de janeiro do corrente anno, dirigindo-se ao Kenia, que fica a 600 milhas da costa de Este, exactamente sob o Equador.
E eis aqui está o motivo por que, depois de ter prestado homenagem á memoria dos mortos queridos, eu entendi que não devia continuar o meu trabalho, sem d'aqui saudar enthusiasticamente o honrado e illustre apostolo de uma nova organisação social, fazendo votos ardentes pelo completo triumpho dos seus ideaes.{33}
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Ao chegarmos a Zurich, na tarde de 6 de agosto de 1893—Amilcare Cipriani e eu—um soberbo e imponentissimo espectaculo se nos offereceu logo á vista, como só a Suissa seria capaz de offerecer e realisar. As sociedades do Grütli desfilavam pelas ruas da cidade, com os seus estandartes e philarmonicas á frente, no meio do enthusiasmo e das acclamações da multidão. Estas associações constituem uma das grandes e uma das primeiras forças da poderosa republica. A sua origem é lendaria, e deriva do local, onde se reuniram os amigos de Guilherme Tell, quando decidiram conspirar contra Gessler.
As sociedades do Grütli constituiram-se e organisaram-se, a principio, com um caracter puramente patriotico; mas teem-se transformado, pouco a pouco, e hoje são, na sua maioria, socialistas.
Nada mais bello e magestoso do que o desfilar d'esses 9:000 trabalhadores, todos pittorescamente vestidos com os trajos das suas profissões e os distinctivos correlativos, e precedidos por 150 bandeiras, quatro das quaes eram vermelhas.
São estas as procissões da republica, e ninguem que as presenceie póde deixar de se descobrir reverente{34} e solemnemente. O homem livre, associado e independente substituia o soldado escravo, tyrannisado e ás ordens de um senhor; ao principio da guerra contrapunha-se o principio da solidariedade humana; ao militarismo, o socialismo; ás armas e aos petrechos de guerra, os instrumentos do trabalho e os symbolos da paz.
O cortejo havia sido organisado em honra dos congressistas. Na rua, o povo formava alas á passagem dos seus representantes. Calculava-se em mais de 40:000 o numero dos cidadãos que accorreram ao chamamento dos iniciadores do congresso. Nas janellas os espectadores applaudiam phreneticamente e lançavam flôres á passagem dos manifestantes. A recepção era digna e estava em tudo e por tudo á altura das ideias que se glorificavam. Celebrava-se a abertura do congresso operario socialista e não havia, com effeito, melhor meio para solemnisar a gloriosa data.
Fallemos, porém, de Amilcare Cipriani.
Tenho deante de mim o seu retrato. Na sua physionomia transparece a bondade do seu coração, e nos seus olhos a candura e a gentileza da sua alma. Guardo d'elle a recordação saudosissima de um homem que põe a sua dignidade e o seu brio pessoal acima dos seus interesses e das suas conveniencias; do apostolo que colloca as ideias e os principios acima das paixões humanas; do revolucionario, emfim, que ao amor da humanidade sacrifica a vida, a familia, o bem estar e a tranquillidade. D'elle poderia dizer que é um exemplo a seguir e a imitar, e d'elle afirmarei, sem receio de contestação, que{35} é unico e excepcional, no meio de uma sociedade mercantil, gananciosa e covarde.
Amilcare Cipriani tem hoje 47 annos de edade, dos quaes 22 foram passados no carcere. Honrado, valente e desinteressado, nunca hesitou, sempre que a causa da liberdade careceu do seu braço para a defender. Bateu-se, como um heróe, no Egypto; bateu-se na Grecia: bateu-se pela Italia, a sua patria querida e bateu-se pela França, a sua patria de adopção.
Na parte inferior do seu retrato, e escriptas pelo seu proprio punho, lêem-se as seguintes phrases que synthetisam perfeitamente as suas aspirações e o seu credo social:
«Il proletariato, per essere libero ed emancipato, deve assingersi a rovisciare, colla forza, tutto l'ordine sociale existente.
Contre l'oppressione la ribellione é un diritto.»
Está aqui o homem politico. Fallemos agora no homem particular, no amigo e no companheiro queridissimo.
Soffreu sempre, com a maior resignação, todas{36} as crueldades e todas as privações da existencia, sem um queixume, sem uma magoa, sem uma palavra de odio ou de rancor. Muitas vezes o seu almoço é um copo de agua e um pequeno pão de 15 centimos.
Tendo amigos sinceros e dedicados, nunca pediu, para si, um real a nenhum d'elles. Se tem apenas 20 centimos no bolso, come com esses 20 centimos: se não tem dinheiro não come. Estando em Londres exilado, nem sequer tinha um quarto onde dormir. Por noites geladas e frias, com as botas rotas, sem abrigo, sem dinheiro no bolso, era obrigado a andar horas seguidas pelas ruas da enorme cidade, para não ser preso por vagabundo.
Quando falleceu o nosso querido e lealissimo amigo Benoit Malon, foi elle quem se conservou ao lado d'elle, durante quatro dias consecutivos; foi elle quem o vestiu e quem velou o cadaver, sem se deitar, sem sentir a menor fadiga, não pensando senão na amisade e no carinho que lhe consagrara durante a vida, e que tão bem retribuido foi pelo glorioso mestre. Mas no dia do enterro, apossou-se d'elle o desalento, no cemiterio do Pére Lachaise. Passavamos ao lado do tumulo do grande cidadão Anatole de la Forge.
—«Eis aqui um que foi candidato á presidencia da republica, que se bateu heroicamente pela sua amada França, e que teve de recorrer ao suicidio para não morrer de fome!—disse.—Eis a sorte que naturalmente me está tambem reservada—continuou.—Mas eu, se um dia me suicidar, hei de escolher o muro dos federaes para o fazer, e, quando,{37} junto d'elle, encontrarem o meu cadaver—que o transportem para onde muito bem quizerem, sem pompas nem discursos... Detesto as comedias e as representações theatraes deante de um cadaver.»
Ah! bom e querido amigo! n'essa hora angustiosa, tu pensaste na ingratidão dos homens, e, em frente do camarada morto, avaliaste a torpeza do mundo e a inanidade das suas palavras hypocritas e fementidas!
Os longos soffrimentos produzem, ás vezes, estes desanimos crueis. São momentaneos, é certo, mas são dolorosos.
Sahimos do cemiterio e fomos almoçar juntos. Duas horas depois, Amilcare Cipriani havia recobrado animo, e fallava-me em ir bater-se na Sicilia, ao lado dos seus compatriotas, victimas da miseria e do despotismo.
Que honradissimo caracter! e que gloriosa e brilhante personalidade!
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As sessões do congresso realisaram-se n'um vasto salão de concertos, um dos mais espaçosos da cidade, o Tonhalle, rodeado por uma enorme galeria, onde podiam accommodar-se muitas centenas de pessoas. Ao fundo, n'uma especie de palco, coberto de verdura e ornado com os estandartes das associações, destacava-se um magnifico retrato em{38} busto de Karl Marx. Em redor e collada á galeria, a inscripção do chefe, impressa em grandes caracteres, e traduzida em vinte e duas linguas: «Proletarios de todo o mundo, uni-vos!»
Grandes mesas, collocadas parallelamente umas ás outras, enchiam o vastissimo salão, sendo cada uma d'ellas occupada pelos representantes de uma dada nacionalidade.
A representação da Allemanha não augmentara. Era quasi a mesma do congresso de Bruxellas. Á frente d'ella encontravam-se Liebknecht, Bebel e Singer. A novidade foi a representação dos novos, hostis ao velho grupo; e d'entre esses, chamados os independentes, devemos destacar Werner e Körner.
Da Belgica, estavam Hector Denis, Jean Volders e Emile de Vanderwelde; da Hollanda, Domela Nieuwenhuis; da Hespanha, Pablo Iglesias; da Roumania, Mille; da Inglaterra, Max Avelling: da França, Allemane, Argyriadés, Jaclard, Veber, Degay, Borlioz; da Austria, Adler, Fankel.
Augmentára consideravelmente a representação da Italia.
Além de Madame Anna Koulischoff e Turati, um sociologo eminente e director da Critica social, de Milão, assistiam ao congresso Antonio Labriola, lente cathedratico da Universidade de Roma; Prampolini, deputado, etc.
Entre as senhoras que tomaram assento na assembléa, notavam-se, como acima deixamos dito, Anna Koulischoff, russa, antiga nihilista, que fez o seu curso na Universidade de Milão, onde hoje exerce a clinica; Madame Mendelssohn, da Varsovia, casada{39} com Mendelssohn, que fôra expulso de Paris, por nihilista; Madame Vera Sassulich, a notavel heroina que, em 1878, desfechou o seu rewolver sobre o general Trepoff, o miseravel chefe de policia de S. Petersburgo, inimigo dos nihilistas e que tantas victimas arremessou para a Siberia. Trepoff morreu e Vera Sassulich, a grande libertadora, emigrou, sob um nome supposto, escapando ao furor das auctoridades russas, e vivendo ora na Italia, ora na Suissa. É uma mulher de armas, no bom sentido da palavra, honesta, intransigente e sincera e devotada amiga da liberdade e da humanidade.
O congresso foi encerrado com a grata e inesperada apparição do velho companheiro e continuador de Marx—Frederico Engels. Quando o presidente annunciou que se achava na sala um dos illustres precursores do socialismo, todos se pozeram de pé, e no palco surgiu, então, a figura gloriosa de Engels. O enthusiasmo foi indescriptivel. Uma estrondosa salva de palmas coroou esta agradavel surpresa. Viva a Communa!—gritou a delegação francesa. Viva Engels!—exclamaram todos numa voz unisona, formidavel e estridente.{40}
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Os paizes onde o socialismo está hoje, incontestavelmente, mais bem organisado e desenvolvido, são a Allemanha e a Belgica. Na França dividem-se e subdividem-se os grupos, chocam-se as personalidades, e os odios e as desintelligencias evidenceiam-se a cado passo. Na Inglaterra, apesar dos progressos realisados, n'estes ultimos tempos, principalmente pela adhesão das Trades—Unions, ainda o socialismo não representa o que póde chamar-se um partido politico.
Na Allemanha, os mesmos pruridos militaristas que se observam nas altas regiões, reflectem-se, com maior ou menor intensidade, no partido socialista. Nota-se, principalmente, este facto nos congressos, onde, a um simples aceno do deputado Singer, todos os delegados approvam ou reprovam, consoante as instrucções de ante-mão estabelecidas. A mesma disciplina do exercito estende-se aos partidos e aos agrupamentos politicos. E ai! d'aquelle que se desviar destas normas: corre o risco de ser expulso, sem mais appêlo nem aggravo.
O partido socialista está pois, organisado, na Allemanha, como um verdadeiro partido politico, um partido de governo, poderiamos, talvez, dizer, com uma caixa de resistencia, os seus jornaes, as suas{41} associações e os seus milhares de filiados, em todas as cidades, em todas as villas e em todas as aldeias do vasto imperio. Todos, sem excepção, são obrigados a concorrer para as despesas do partido, e, n'este facto, reside a base do direito de cada um, como partidario ou membro da associação. Não se concebe um partido, sem os recursos indispensaveis, para fazer face ás eventualidades de momento e para combater o adversario, com vantagem. Os allemães sabem isto, e eis ahi está o motivo porque o numero dos partidarios do socialismo sobe de dia para dia na Allemanha, e por que os socialistas contam, presentemente, com quarenta e sete deputados no Reichstag, tendo augmentado, a representação partidaria, nas ultimas eleições.
Liebknecht, um dos chefes consagrados pela opinião, e o director do Vorwöerths, o orgão do partido na imprensa, tem ácerca da politica a mesma opinião que poderia ter, em campanha, um general ácerca da guerra. Deante do inimigo, o dever é unir fileiras; e, todo aquelle que abandonar ou se arredar{42} do seu posto, tem de ser considerado como desertor. E aqui está o motivo porque, no partido operario socialista allemão, nem se admittem os dissidentes nem os independentes. Todos por um e um por todos!—eis a maxima dos chefes. E n'este simples facto, muito digno aliás de ser imitado, por todos os partidos avançados, está a origem da força, do desenvolvimento e dos progressos do socialismo na Allemanha.
Na Belgica acabam os socialistas de alcançar um enorme triumpho, pela conquista do suffragio universal que até aqui não possuiam. O belga é homem essencialmente pratico. O partido socialista, tendo reconhecido a necessidade de organisar as suas forças, estabeleceu as grandes cooperativas de consumo, principalmente de pão e de carvão, e logrou attrahir a si o elemento trabalhador, disciplinando-o, pelo interesse, e pela conveniencia, que da associação economica poderia advir á sua futura existencia. E as cooperativas belgas tornaram-se assim, não só valiosos elementos de cooperação, senão poderosas e temiveis armas de combate, pois que, dos lucros a destribuir, ficam sempre em caixa uns tantos por cento, para as despesas da propaganda. Não raro tem succedido fazerem as cooperativas face a uma gréve, distribuindo, diariamente, aos grevistas, alguns milhares de pães.
Não póde contestar-se o enorme progresso, feito pelo socialismo em França que acaba de eleger quarenta e nove deputados, tendo, principalmente, alcançado, em Paris, um assignalado triumpho. Mas é para lastimar que não seja completa a união entre{43} os differentes grupos que representam as ideias socialistas. A franca adhesão de René Goblet, A. Millerand, J. Jaurés, Camille Pelletan e outros notaveis politicos e publicistas, deu ao partido um grande e decisivo impulso, e creou-lhe, na camara, uma situação politica innegavel.
A Petite Republique Française é hoje, na imprensa, o orgão do novo grupo. O seu redactor principal—A. Millerand—é um escriptor de raça e um dos mais brilhantes e eloquentes oradores da camara franceza. O programma por elle exposto na sessão de 16 de fevereiro de 1893, foi adoptado por quasi todos os candidatos socialistas, nas ultimas eleições: «Revisão democratica da Constituição de 1875; modificação radical e profunda, no interesse dos trabalhadores dos campos e das cidades, da nossa legislação economica e do nosso systema de imposto; acquisição para o Estado do Banco de França, das minas e dos caminhos de ferro, arrancando-os das mãos da alta finança.»
O primeiro acto politico de Millerand, foi a defesa dos mineiros de Monceau les Mines, em 1882. Desde então, nunca mais houve gréve em França, em que elle não tenha posto o seu talento e as suas grandes faculdades de orador ao serviço das victimas dos patrões gananciosos e usurarios. E assim o vêmos na brecha, defendendo successivamente os mineiros de Decazeville, os grevistas de Vierzon, e os mineiros de Carmaux que o haviam escolhido como arbitro.
Foi elle o defensor de Duc-Quercy e Roche, em Villefranche, de Lafargue e Culine, perseguido por{44} causa dos fusilamentos de Fourmies, de Baudin, em Bourges, e de muitos outros.
Adversario implacavel da alta finança, Millerand pronunciou, contra a renovação do privilegio do Banco de França, um dos seus mais bellos discursos, «atacando essa realeza do ouro que trata de egual para egual com a Republica, e que, mercê da fraqueza e da cumplicidade dos regimens anteriores, chegou á situação em que actualmente se encontra.»
E, melhor que todas as periphrases, uma citação poderá dar-nos uma ideia da sua eloquencia. A peroração do seu discurso, relativo ao privilegio do Banco de França, em que convida a burguezia a unir-se ao movimento de transformação universal que se opera no mundo economico, é notabilissima:
«A massa dos trabalhadores, libertada por tres revoluções, poz-se a caminho; quer que o suffragio universal tenha por complemento necessario o bem estar universal. Pensa que ha contradicção{45} em que um povo seja, ao mesmo tempo, miseravel e soberano.
«A nação quer entrar na posse e no gozo de instituições, que até hoje teem sido exploradas, apenas em proveito de um pequeno numero de favorecidos. Vós não retardareis, nem a sua marcha, nem as suas conquistas. É mister saber fazer a tempo os sacrificios necessarios.
«Responder-me-hão, talvez, os defensores do privilegio, que o sacrificio, que lhes pedimos poderá sahir caro ao paiz. Assim o pensam, estou convencido. Não ponho em duvida nem a sua sinceridade nem a sua boa fé. A illusão não é nova. É velha como a humanidade...
«Assim como outr'ora succedeu com a nobreza, a burguezia invoca os serviços já prestados, e os que, por ventura, ainda poderá prestar. Não nego os seus serviços. É, sem duvida, bella e grande a parte que, ha cem annos, tem tomado no desenvolvimento do commercio e da industria e no aperfeiçoamento das sciencias. Se pretende invocar os seus serviços, como outros tantos titulos ao reconhecimento publico, está no seu papel e no seu direito. Mas se pensa poder abusar da sua antiga supremacia, para manter, na sombra e no esquecimento, a multidão dos desherdados que, por sua vez, pedem lhes seja reconhecido o direito que teem á luz, á acção, ao desenvolvimento integral da sua personalidade; a participação, n'uma palavra, á vida e á felicidade; n'esse caso, está irremediavelmente perdida. Eu quereria apenas que a sua teimosia e a sua obstinada resistencia não custassem muito caro ao paiz.{46}
«O progresso é cego, ingrato e brutal: os interesses particulares valem pouco deante d'elle. N'esta grave questão do credito, como em todas as outras, o que devemos fazer é aplanar-lhe o caminho, facilitando a sua marcha, e poupando assim ao paiz de que somos servidores algumas d'essas luctas violentas, d'essas convulsões dolorosas, d'essas supremas crises de sangue e de lagrimas, que até aqui teem assignalado cada uma das étapes, cada um dos progressos da historia e da evolução humana.»
A Petite République, collaborada por alguns dos principaes socialistas francezes, entre os quaes convêm assignalar René Goblet, Jules Guesde, Marcel Sembat, J. Jaurés, Ed. Vaillant, Eugène Fournière, Hovelacque, E. Baudin, Gustave Rouanet, Dumas, Pierre Baudin, René Viviani, Clovis Hugues, Paul Lafargue, Camelinat, Duc-Quercy, Gérault-Richard, Madame Paule Mink, etc., é, por sem duvida, o grande reducto do socialismo parisiense, e em volta d'elle, teem os adversarios e conservadores de todas as côres e matizes estabelecido um verdadeiro estado de sitio, atacando-o, formulando accusações e inventando calumnias, que não servem para outra cousa senão para exaltar ainda mais a ideia, se é possivel, elevando e glorificando aquelles que a defendem.
Tambem o socialismo agrario se tem desenvolvido, em França, de uma maneira espantosa. Acaba de o provar o ultimo congresso dos socialistas agrarios, realisado em Auxerre, em que tomaram parte quasi todos os deputados do partido operario socialista. A maior parte dos congressistas estavam{47} de blusa de trabalho e de tamancos, com as mãos calejadas da enxada.
Os socialistas agrarios francezes possuem hoje mais de 150 secções, organisadas no Este e no Norte. O deputado Thivrier representa na camara o elemento socialista da população rural do Allier.
Thivrier assiste de blusa azul ás sessões parlamentares. Fóra do parlamento tambem a não despe nunca. Conheci-o no Coq d'Or da rua Montmartre. Apresentou-m'o Cipriani. O Coq d'Or é o rendez-vous de todos os socialistas militantes. Pelas 6 horas da tarde, são certos, n'aquella cervejaria, Eugene Fournière, Gustave Rouanet, Gérault Richard, Camélinat, Baudin, Degay e muitos outros.
Thivrier é dotado de caracter energico; homem de poucas palavras, mas firme e resoluto; e isso explica a attitude por elle tomada na camara franceza, por occasião da sua expulsão.
O camponez é, em geral, refractario á propaganda socialista. Os socialistas da cidade variam inteiramente de processo, quando se trata da população rural. A propaganda, em vez de ser humanitaria,{48} transforma-se em socialismo pessoal, baseado no communismo liberatorio—a união dos pequenos proprietarios e caseiros communaes, em opposição aos syndicatos patronaes e aos grandes agricultores.
O congresso de Auxerre elaborou já o programma das reivindicações dos socialistas agrarios.
Na Gran-Bretanha e Irlanda, o movimento socialista tem feito grandes progressos. Pela primeira vez, foram nomeados para assistir a um congresso, em Zurich, os membros do parlamento, como delegados de organisações operarias.
Coube a John Burns, o heroe de 1887, e o eloquentissimo deputado de hoje, essa suprema honra e essa suprema gloria.
Os trabalhadores agricolas começam tambem a despertar n'aquelle paiz, e o partido operario acaba de se constituir, como partido independente, sem ligações com os antigos partidos, o que demonstra evidentemente que o movimento socialista tem ali augmentado em poder e extensão.{49}
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O partido socialista italiano divide-se em duas grandes escolas: a escola evolucionista e a escola revolucionaria. A primeira tem recrutado os seus numerosos adherentes na alta Italia e na Italia central, ao passo que a segunda tem recrutado especialmente os seus adherentes na Italia meridional.
Mas, áparte a questão de methodo, as duas escolas caminham conjunctamente, tornando-se muitas vezes difficil delimitar os dois campos.
Os evolucionistas consideram a revolução como uma fórma violenta da evolução, e pensam que, sem haver necessidade de a provocar, a revolução ha de produzir-se violentamente no dia em que todos os trabalhadores tiverem adherido ao socialismo.
Os revolucionarios, admittindo as grandes vantagens que resultam de um paciente e demorado trabalho de preparação, sustentam que o operario italiano é já bastante socialista, para que seja necessario ainda esperar. Segundo a opinião d'estes ultimos, uma longa espera poderia levar os trabalhadores a duvidarem do triumpho da sua causa.
Á organisação dos fasci dei lavoratori se deve o enorme desenvolvimento que ultimamente tem adquirido o movimento socialista na Italia.
Os fasci (fachos) são associações operarias, tendo{50} por base a cooperação e por fim o triumpho do collectivismo, segundo as theorias de Karl Marx. As mulheres tambem são admittidas.
O primeiro fascio foi fundado em Catanea, ao sopé de Etna, no dia 1.º de maio de 1890. Em menos de quatro annos, fundaram-se na Sicilia mais 160 fasci. O numero de adherentes subia, ainda ha poucos mezes, a 300:000, na sua maioria agricultores.
O sr. Giolliti, então presidente de conselho, principiou a preoccupar-se seriamente com o movimento socialista dos fasci, e, num intuito de repressão, mandou á Sicilia o commandante Sensales, senador, com o fim de dissolver aquellas associações.
Sensales estudou, inquiriu, investigou, e nada encontrou que podesse servir de pretexto a uma dissolução; o que não impediu o ministro de encher a Sicilia de soldados, obrigando as auctoridades a uma repressão rigorosa e até sangrenta, se tanto fosse necessario. O massacre de Giardinello foi o resultado d'estas ordens.
Mas as medidas de rigor, empregadas pelos emissarios do governo, não serviram senão para augmentar a popularidade dos fasci, já então muito grande, chamando para elles as attenções de toda a Italia. Os seus fundadores aproveitaram as circumstancias, para crear novas secções e recrutar alguns milhares de novos adherentes, de modo que o numero dos associados dos fasci, pode hoje bem avaliar-se em 400:000. Em pouco tempo será de meio milhão.
Os fasci passaram da Sicilia para o continente, onde a sua organisação avança rapidamente, e em{51} especial na Calabria, nos Abruzzos, na Ponille e na Romagna. Em Roma e Napoles, tambem foram fundadas muitas secções dos fasci.
A propaganda pelo facto é repellida pelos socialistas italianos, que nada esperam da dynamite. O partido socialista italiano não é terrorista, mas pacificamente revolucionario, na phrase consagrada.
Semelhantemente ao que succede na Irlanda, o socialismo agrario, tem tomado, na Italia, um incremento espantoso, n'estes ultimos tempos. Os governos são impotentes para o debellar. Não basta só mandar fusilar o povo faminto que se revolta nas ruas e nas praças publicas, como succede na Sicilia. Emquanto as causas do mal subsistirem, os effeitos hão de continuar a dar-se, fatal e irremediavelmente. O que importa pois, na Italia, é conjurar a crise economica e financeira que a levaram á ruina, e d'isso não serão capazes os governos monarchicos. Por isso o partido socialista, que já hoje constitue um partido forte e invencivel, ha de ir augmentando de dia para dia, até ao momento do seu triumpho. As adhesões a estas idéas emancipadoras, chegam a cada passo e de todos os pontos do paiz. O grande escriptor Edmundo de Amicis converteu-se ao socialismo, e é hoje uma das suas figuras mais salientes. Collajani, o celebre deputado que levantou no parlamento a questão dos bancos, é tambem socialista. Collajani é o temivel adversario de Lombroso. Combate o atavismo, e sustenta, com os positivistas modernos, que o individuo não é senão um producto do seu meio. Giuseppe Felice, o deputado siciliano, que foi preso por{52} occasião dos acontecimentos da Sicilia, é uma das mais nobres e sympathicas personalidades do movimento agrario, e é muito considerado entre os seus concidadãos. O mesmo com Claudio Treves, um moço de raro e excepcional talento, e tantos outros que seria longo enumerar aqui.
Para mostrar quanto o socialismo agrario tem uma rasão de ser na Italia, basta que façamos um pequeno estudo sobre os impostos n'aquelle paiz.
«Vejamos o que paga uma familia operaria na Romagna. O chefe da familia ganhou, durante o anno, 586 liras e 72 centimos. Comprou 7 hectolitros de trigo. Mas esse cereal paga o direito de 5 francos por kilo. Segue-se pois, que de imposto para o Estado e para lucro dos que vivem á sombra da protecção aduaneira, o operario foi logo espoliado em perto de 26 francos.
«Comprou tambem 7 hectolitros de milho, e sobre essa compra teve de pagar 6 francos de imposto.
«Pelo vinho nada pagou, porque apenas bebeu agua. Compra, por semana, um litro de sal para sua casa. Com esse consumo lucrou o governo, no fim do anno, 15 francos e 60 centimos. Pela sua illuminação, gasta, cada semana, em sua casa, 20 centimos com petroleo. No fim do anno somma esta despesa 10 francos e 40 centimos. Só á sua parte, embolsa o governo 7 francos e 10 centimos.
«Vivendo mais que modestamente, a familia, em todo o anno, gastou em fato 15 francos e 25 centimos. Em impostos, exigem-lhe cêrca de 3 francos. De modo que só n'estas verbas, o contribuinte concorreu para o Estado com 10 por cento do seu ganho.{53}
«Junte-se a tudo isto os impostos directos, os impostos supplementares de consumo e outros que ha em muitas communas da Italia, e ver-se-ha a rasão que assiste ao desgraçado que, trabalhando mais do que póde, deixa nas garras do fisco quasi todo o resultado do seu labor.
«A miseria é tanta e tamanha, que, nas pequenas communas da Sicilia, o povo apenas póde comer pão ordinarissimo, fabricado com farelos. E, nas ricas e uberrimas planicies da Lombardia, as classes trabalhadoras tambem não teem para se alimentar mais que a polenta, uma especie de massa de farinha de milho, havendo muitos que, por extrema pobresa, nem sequer podem temperar com sal essa miseravel comida.»
Ora foi precisamente contra este triste estado de cousas, que o sympathico e honrado deputado siciliano de Felice levantou o grito de revolta que logo se repercutiu em todo o paiz, com a rapidez de um relampago.
De Felice Jiuffrida nasceu em Catanea, no anno de 1860.
Socialista convicto, havia-se assignalado na imprensa, pelos seus rudes ataques contra a monarchia, o que lhe valeu varias condemnações. Em 1887, durante a epidemia cholerica, que dizimava o sul da{54} Italia, deu provas de grande dedicação e de altissimo valor. O governo quiz distinguil-o com a medalha de ouro; mas elle recusou a distincção, dizendo, «que da monarchia só acceitava a perseguição.»
Algum tempo depois, tendo sido condemnado a dois annos de prisão, por abuso de liberdade de imprensa, refugiou-se em Malta, d'onde regressou, em 1892, eleito, ao mesmo tempo, por Catanea e por Palermo.
Foi, em virtude da parte activa e intelligentissima que tomou na organisação dos Fasci, especialmente na Calabria e na Romagna, que o governo ordenou a sua prisão.
Foram dissolvidos os Fasci, sob protexto de attentarem contra as instituições; mas não morreram as idéas e os principios por elles representados. Ao contrario, avigoraram-se na lucta. De Felice foi o glorioso interprete da opinião popular. A consciencia publica estava com elle e applaudiu-o. Isto basta, para que seja immorredoura a sua obra e seja glorificado o seu nome, que é o nome de um bravo e o nome de um heróe!
No congresso operario de Bruxellas, em 1891, nem a Italia nem a Suissa poderam apresentar relatorio: tão escassas eram as forças socialistas n'aquelles dois paizes. Em dois annos os progressos realisados por elles são superiores a toda a expectativa e de molde a surprehender todos os espiritos.
Na Suissa todas as organisações profissionaes se constituiram em federação. A federação dos syndicatos profissionaes{55} tem progredido de dia para dia, possuindo uma receita de 28.000 francos, dos quaes 15.800 são reservados a soccorros, em casos de gréve. É de cêrca de 15.000 o numero de associados. A federação operaria suissa conta 200.000 adherentes. A sociedade suissa do Grütli comprehende 350 secções, com 15.000 societarios, possuindo um orgão central, o Grütli, que se publica tres vezes por semana.
A estas organisações, convêm ajuntar o partido democratico socialista suisso que existe, na sua fórma actual, desde 1888, possuindo, em commum, com a federação dos syndicatos profissionaes um orgão especial—o Arbeiterstimme (a Voz do operario).
No conselho nacional suisso, não contam os socialistas senão um representante. Mas é certo que o movimento se alastra por todo o paiz, a passos de gigante. Particularmente, são para registar os progressos realisados pelo partido na Suissa allemã.
Em Hespanha, o partido socialista contava cêrca de 30 grupos, por occasião do congresso internacional de Bruxellas; segundo o relatorio, apresentado ao congresso de Zurich, o partido conta hoje 50, dos quaes 6 pertencem aos trabalhadores agricolas.
Nas ultimas eleições geraes para deputados, obtiveram os socialistas 7:000 votos—2:000 a mais do que os obtidos nas eleições de 1890.
Na Hespanha,—e é este o principal facto a notar—o movimento socialista, que, não ha muito ainda, comprehendia quasi exclusivamente os trabalhadores manuaes, tem ganho, pouco a pouco, o{56} professorado, os jornalistas e os homens de letras; e hoje, pode-se dizer afoitamente que o socialismo cathedratico está, no visinho paiz, á altura d'aquelles que, como a Belgica e a França, mais se vangloriam com o progredimento das novas ideias nas escolas e nas universidades.
Em Portugal continuam os socialistas, n'uma propaganda activa e utilissima, prégando as vantagens e os beneficios do principio da associação de classe, reclamando dos poderes publicos leis protectoras do trabalho, reunindo congressos, publicando jornaes e obras de propaganda, e tornando-se em tudo dignos dos esforços dos seus irmãos e camaradas no estrangeiro. O modo firme, serio e correcto por que os socialistas portuguezes celebraram o primeiro de Maio, no proximo preterito anno de 1893, bastaria para lhes attrahir as sympathias do publico, se outros factos os não tivessem já recommendado ao suffragio popular.{57}
O programma do partido operario socialista francez, que é hoje considerado como o programma commum a todos os partidos operarios, foi elaborado por Jules Guesde e Paulo Lafargue. Digamos pois, algumas palavras, ácerca de cada um dos dois apostolos do socialismo.
Jules Guesde póde e deve ser considerado, em França, como o verdadeiro chefe do partido operario marxista. E, se tivessemos de avaliar os seus meritos pelo numero das condemnações já soffridas por causa do socialismo, o seu logar de honra seria na primeira fila e ao lado dos primeiros combatentes da ideia. A sua primeira condemnação, em Montpellier, a cinco annos de prisão, por causa de um artigo, publicado no jornal Os Direitos do homem,{58} teve uma grande influencia na sua existencia politica e no desenvolvimento do seu espirito.
Mes Guesde refugiou-se em Italia e depois na Suissa, onde encontrou muitos francezes exilados, por causa dos acontecimentos da Communa. Bakounine e Marx estavam então em lucta. Guesde não se pronunciou, nem por um nem por outro, contentando-se apenas em assimilar a doutrina de Marx; e por tal fórma o conseguiu, que hoje os dois nomes, o do fundador do socialismo allemão e o do propagandista do collectivismo marxista, em França, são inseparaveis.
Voltando a Paris, em 1876, Guesde tentou baldadamente fazer a propaganda da doutrina allemã. A primeira proposta collectivista, feita em 1878, no congresso de Lyon, foi regeitada por grande maioria.
Todavia, em Paris, devia realisar-se, n'esse mesmo anno, um segundo congresso, por occasião da exposição universal. O governo quiz prohibil-o. A minoria guesdista, porém, não fez caso da prohibição; reuniu-se, recebeu solemnemente os delegados estrangeiros e estabeleceu a base do collectivismo.{59} Guesde proseguiu nos seus trabalhos, com trinta e sete dos seus amigos, pronunciou um notavel discurso, considerado como um verdadeiro manifesto do socialismo revolucionario, e tornou-se, por esse facto, o chefe incontestado do partido.
Tornava-se mister um programma ao socialismo francez. Guesde fôra encarregado, pelo congresso de Marselha, de o elaborar. Partiu para Londres, e redigiu-o ali sob a direcção de Marx e com a collaboração de Lafargue e de Engels.
O congresso nacional do Havre, ao qual foi submettido, approvou-o, estabelecendo definitivamente a ruptura entre collectivistas e cooperativistas. O partido operario adoptára o principio da lucta de classes, da propriedade collectiva e da revolução.
N'este programma havia, todavia, uma lacuna. Não se havia pensado senão no operario das cidades. O trabalhador dos campos fôra esquecido. Foi essa a missão do congresso de Marselha de 1892.
No seu ultimo manifesto eleitoral, Jules Guesde repelle os meios violentos. A revolução, escreveu, é antes um resultado, um facto, do que uma doutrina, e desde que os socialistas resolveram recorrer e acceitar o suffragio universal, é porque renunciaram, pelo menos provisoriamente, aos outros meios. No programma do partido operario, já formulara, de resto, o principio «de que a organisação socialista deveria ser levada a cabo por todos os meios de que o proletariado podesse dispôr, sem excluir o suffragio universal.»
Jules Guesde deve contar quarenta annos de edade, e foi quem, no congresso de Paris, em{60} 1889, propoz a manifestação do 1.º de Maio. É hoje deputado por Roubaix. Na camara franceza está-lhe reservado o successo a que dão direito o seu grande saber e a sua notavel eloquencia.
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Estão ainda certamente na memoria de todos os fusilamentos de Fourmies do 1.º de Maio de 1891, e o julgamento e a condemnação de Paulo Lafargue, por «ter prégado o socialismo no departamento do Norte,»—no dizer dos seus juizes. Pois foi precisamente este facto que o levou á camara dos deputados. O mesmo departamento do Norte, entendeu que devia corrigir as demasias e a violencia do governo, elegendo-o deputado. Havia um ou dois mezes que Lafargue déra entrada no carcere, sahindo d'ali, victorioso e triumphante, em direcção ao palacio Bourbon.
O dr. Lafargue é uma das figuras mais originaes{61} do partido socialista. Ao mesmo tempo, theorico e homem de acção, ha seguramente trinta annos que se mantem na lucta, e sempre com a mesma altivez e com a mesma dedicação.
Sendo estudante de medicina em 1866, foi elle um dos organisadores do congresso de Liége, onde a bandeira negra se arvorou, como que para indicar que a França estava de lucto. No seu regresso, o imperio vingou-se, excluindo-o de todas as faculdades.
Lafargue partiu então para Inglaterra. Fez em Londres o conhecimento de Karl Marx, que o iniciou no socialismo scientifico, alistando-o na Associação internacional dos trabalhadores.
Genro de Karl Marx, occupou-se activamente da organisação do partido socialista francez, cujo programma, elaborado no gabinete do celebre revolucionario, é em parte obra sua.
Foi tambem em Londres que elle se ligou com Jules Guesde. Permaneceram ambos fieis á doutrina orthodoxa e são, em França, os seus verdadeiros representantes.
—É na officina—dizia Lafargue na sessão da camara dos deputados de 16 de fevereiro de 1893—é na officina que principia a exploração da classe operaria; é ali que ella é roubada do producto do seu trabalho, e é por isso que, na sociedade actual, a classe operaria que tudo produz, é precisamente aquella que nada possue, ao passo que a classe que não trabalha é possuidora de toda a riqueza social, e governa a nação economicamente e politicamente.»{62}
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Considerando que a emancipação da classe productora é a de todos os seres humanos, sem distincção de sexo nem de raça;
Considerando que os productores não serão nunca livres, emquanto não estiverem na posse dos meios de producção (terras, officinas, navios, bancos, credito, etc.)
Considerando que não ha senão duas fórmas pelas quaes os meios de producção poderão pertencer-lhes, a saber:—a fórma individual que nunca existiu, como facto geral, e que tende, cada vez mais, a ser eliminada pelo progresso industrial;—e a fórma collectiva, cujos elementos materiaes e intellectuaes são constituidos pelo proprio desenvolvimento da sociedade capitalista;
Considerando que esta apropriação collectiva não póde sahir senão de uma acção revolucionaria da classe productora, ou do proletariado, organisado em partido politico distincto;
Considerando que semelhante organisação deve ser levada a cabo por todos os meios de que o proletariado dispõe, incluindo o suffragio universal, transformando-o de instrumento de corrupção, como até hoje tem sido, em instrumento de emancipação;
Os trabalhadores socialistas, tendo por alvo dos seus esforços a expropriação politica e economica{63} da classe capitalista e o regresso á collectividade de todos os meios de producção, decidiram, como meio de organisação e de lucta, entrar em todas as eleições com as seguintes reivindicações:
A.—Parte politica
1.º—Abolição de todas as leis sobre a imprensa, as reuniões e as associações, e, em especial, a Associação Internacional dos trabalhadores.—Suppressão do livrete, ferrete ignominioso da classe operaria, e de todos os artigos do codigo, estabelecendo a inferioridade do operario em face do patrão, e a inferioridade da mulher em face do homem;
2.º—Suppressão do orçamento dos cultos, e o regresso á nação dos bens chamados de mão morta, moveis e immoveis, que hoje pertencem ás corporações religiosas, comprehendendo todos os annexos industriaes e commerciaes das referidas corporações;
3.º—Suppressão da divida publica;
4.º—Abolição dos exercitos permanentes e armamento geral do povo;
5.º—A Communa na posse da sua administração e da sua policia.
B.—Parte economica
1.º—Repouso de um dia por semana, ou prohibição legal de mais de seis dias de trabalho sobre sete.—Reducção legal do dia de trabalho a oito horas{64} para os adultos.—Prohibição do trabalho, nas officinas particulares, dos menores com menos de quatorze annos; e reducção do dia de trabalho a seis horas, desde os quatorze até aos dezoito annos.
2.º—Vigilancia dos aprendizes pelas corporações operarias;
3.º—Minimum legal dos salarios, determinado e fixado annualmente, segundo o preço local dos generos, por uma commissão de estatistica operaria;
4.º—Prohibição legal aos patrões de poderem empregar os operarios estrangeiros por um salario inferior ao dos operarios nacionaes;
5.º—Egualdade de salario, em egual trabalho, para os trabalhadores dos dois sexos;
6.º—Instrucção scientifica e profissional de todas as creanças, á custa da sociedade, representada pelo Estado e pela communa;
7.º—Manutenção, á custa da sociedade, dos velhos e invalidos do trabalho;
8.º—Suppressão de toda a ingerencia dos patrões na administração das caixas operarias de soccorros, de previdencia, etc., restituindo-as á gestão exclusiva dos operarios;
9.º—Responsabilidade dos patrões em materia d'accidentes, garantida por uma caução em dinheiro, lançado nas caixas operarias, e proporcional ao numero dos operarios empregados e aos perigos que a industria apresenta;
10.º—Intervenção dos operarios, nos regulamentos especiaes das differentes officinas; suppressão do direito usurpado pelos patrões de poderem castigar{65} os operarios por meio de multas ou de reducções nos salarios;
11.º—Annulação de todos os contractos, que hajam alienado a propriedade publica (bancos, caminhos de ferro, minas, etc.) e a exploração de todas as officinas do Estado, confiadas aos operarios que n'ellas trabalharem;
12.º—Abolição de todos os impostos indirectos e transformação de todos os impostos directos n'um imposto progressivo sobre os rendimentos que vão alêm de 3:000 francos.—Suppressão da herança em linha collateral e de toda a herança em linha directa que exceda a somma de 20:000 francos.
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a) Abolição de todas as leis sobre a imprensa, as reuniões e as associações, e, em especial, da lei contra a Associação Internacional dos Trabalhadores;
b) Suppressão do livrete, ferrete ignominioso da classe operaria, e de todos os artigos do codigo que estabelecem a inferioridade do operario perante o patrão e a inferioridade da mulher perante o homem.
Para que haja realmente liberdade, em materia de imprensa, não basta legislar, impondo multas e prisão aos que d'ella abusam, attenuando e modificando{66} as penas, ou substituir o julgamento correccional pelo julgamento de jury.—O que se torna indispensavel e urgente, é abolir todas as leis existentes contra e sobre a imprensa, a começar pela lei que condemna, por diffamação, sem prova dos factos allegados, e que permitte assim aos ricos e aos poderosos de abusarem da situação especial em que se encontram, relativamente aos que nada possuem e aos que nada podem.
Para que haja realmente liberdade, em materia de reunião, não basta substituir o regimen actual por um novo regimen, mais ou menos hypocrita e mais ou menos sophismado, permittindo os comicios em recinto fechado e prohibindo-os na rua e na praça publica.—O que se torna indispensavel e urgente, é a abolição de todas as leis, que subordinam ás condições de local, de tempo, de numero e de pessoas, o exercicio de um direito tão rudimentar como o direito de reunião.
Para que haja realmente liberdade, em materia de associação, não basta permittir o uso d'este direito aos que estão nas boas graças dos governos, embaraçando-o e difficultando-o aos contrarios, pela exigencia de formalidades, tão ridiculas como absurdas.—O que se torna indispensavel e urgente, é a abolição de todas as leis sobre as associações, qualquer que seja a sua natureza e o seu fim.
Mas a revolução não nos trouxe apenas a liberdade; deu-nos tambem a egualdade civil. E é, em nome d'essa egualdade, que temos o direito e o dever de reclamar a suppressão do «livrete», bem como todos os artigos do codigo que estabelecem a{67} inferioridade da classe operaria perante a classe dos patrões.
O livrete que assemelha o productor de todas as riquezas á meretriz, collocando-o no mesmo plano, sobre ser uma ignominia, é tambem infamante e improprio dos nossos tempos. Se o ferrete foi abolido para os grandes criminosos condemnados ás galés, como é que pode conservar-se para os trabalhadores do mundo moderno? Apenas a fórma variou, por isso que, sendo o livrete obrigatorio para todos os que são forçados a viver da venda do seu trabalho, nenhum movimento da vida operaria poderá escapar á policia. Para mudar de localidade e até para mudar de officina, são os trabalhadores forçados a apresentar essa prova da sua identidade e do seu comportamento anterior. De modo que aos patrões fica a liberdade plena de os admittirem ou de os expulsarem das suas officinas, conforme lhes aprouver. É uma inquisição de nova especie que se torna mister abolir não só dos codigos, senão tambem dos usos particulares. O operario será admittido em todas as officinas e em todos os estabelecimentos, quer do estado quer de particulares, sem que os patrões lhe possam exigir a minima formalidade. Condemnamos, por egual, o livrete e os attestados individuaes, que collocam os trabalhadores na mesma situação de inferioridade moral perante os seus superiores.
Ha, felizmente, paizes onde a licença para trabalhar não é já exigida. Na explanação d'estes artigos, não nos dirigimos, porém, a este ou áquelle paiz, a esta ou áquella localidade: fazemos a critica{68} geral do systema e apreciamos os factos que se assignalam e observam nas modernas sociedades.
Na mesma ordem de reformas, entra a abolição dos artigos que estabelecem a inferioridade da mulher perante o homem.
Que nos resta então da egualdade perante a lei—o novo evangelho da nova civilisação—se, na ordem civil assim como na ordem politica, continuam a coexistir duas leis differentes, uma para o homem e outra para a mulher?
Diz-se, geralmente, que a mulher nasceu para os trabalhos caseiros. Mas essa limitação vae desapparecendo de dia para dia. E, hoje, a mulher applica-se a muitos outros trabalhos que antigamente só pertenciam aos homens, como correios e telegraphos, empregos e serviços dos grandes armazens e dos grandes restaurantes, casas de modas, lojas, caminhos de ferro e tantos mais que seria longo e superfluo ennumerar aqui.
O socialismo moderno não reconhece distincções fundadas e baseadas sobre os sexos. Quer se trate de reuniões quer se trate de congressos, a mulher é chamada e eleita, com os mesmos titulos, que o homem. Ao partido operario—que é o partido de todos os explorados, sem distincção de sexo nem de raça.—cabe pois, o dever de se associar ás suas reivindicações.
Art. 2.º—Suppressão do orçamento dos cultos e regresso á nação dos bens, chamados de mão morta, que pertençam ás corporações religiosas, comprehendendo todos os annexos industriaes e commerciaes destas corporações.{69}
Na grande republica dos Estados Unidos da America, a Egreja, ou, para melhor dizer, as differentes egrejas nada teem com o Estado. Os cultos constituem, naquella nação, uma industria particular, como a industria das rolhas ou a industria da cortiça.
Paga quem consome.
É este o principio, adoptado por todos os publicistas e pensadores da escola avançada. A separação da Egreja e do Estado, faz hoje parte de todos os programmas radicaes e constitue uma das principaes reivindicações da philosophia moderna.
O regresso á nação da propriedade mobiliaria e immobiliaria das corporações religiosas, encontrou um precedente na revolução operaria de 18 de Março. Tem, alêm d'isso, a vantagem de educar as massas, ensinando-as a rehaver aquillo que lhes foi extorquido pela violencia e pela fraude, isto é—na linguagem do programma socialista—ensinando-as a expropriar os seus expropriadores.
Art. 3.º—Suppressão da divida publica.
A divida publica, com effeito, dil-o Karl Marx no seu Capital, «dá ao dinheiro improductivo o valor reproductivo, sem que por isso haja de correr os riscos e os transtornos inseparaveis do seu emprego industrial ou da usura particular.»
A suppressão da divida que o partido operario reclama, aliviaria os habitantes de cada paiz de uma grande parte do imposto que, actualmente, são obrigados a pagar e constituiria, portanto, um novo rendimento annual para cada familia e para cada cidadão.{70}
Art. 4.º—Abolição dos exercitos permanentes e armamento geral do povo.
Está hoje provado que os exercitos permanentes, com os progressos das armas e dos instrumentos de guerra, e ainda com a rapidez dos telegraphos e dos caminhos de ferro que obrigam a uma immediata mobilisação de massas enormes, não são garantia sufficiente á defensão efficaz de um paiz. Em geral, os governos precisam e servem-se d'elles, não para esmagar o inimigo que lhes ultraja a bandeira ou lhes viola as fronteiras, mas para intimidar e reduzir ao silencio os adversarios, que, dentro da nação, os perturbam e incommodam. E eis ahi está o motivo porque os exercitos, na actualidade, longe de serem um elemento de defeza nacional, são, ao contrario, um elemento de defesa, para as classes dirigentes, que teem n'elles o seu unico e principal apoio, quando se trata de salvaguardar os seus interesses e os seus haveres, ainda que para isso seja preciso fuzilar a canalha ou atirar sobre o povo inerme e faminto!
O partido operario socialista condemna a guerra, e, por isso, repelle os exercitos permanentes. O armamento geral do povo não só traria, como consequencia, uma economia para cada paiz, senão ainda desarmaria, por completo, a burguezia. A nação armada até ao seu ultimo homem, tornar-se-ha mais forte e poderosa do que nunca, e será—digamol-o assim—inatacavel. Para isso bastará que a instrucção militar complete a instrucção scientifica e profissional, assegurada socialmente a todos os menores sem distincção; que a espingarda, posta na escola nas{71} mãos de todos, esteja, ao sahir da escola, nas mãos de cada um, e que, depois de uma rapida passagem pelas bandeiras, todos os annos se realisem as grandes manobras, para manter a cohesão indispensavel, entre elementos individualmente superiores, obrigando-os a contrahir o habito das operações collectivas.
O poder militar da Suissa, não se apoia n'outras razões e corrobora praticamente esta nobre e generosa aspiração.
Art. 5.º—A communa na posse da sua administração e da sua policia.
A cummuna é a escola primaria da sciencia politica. É ali que se adquirem as primeiras noções de disciplina e os primeiros rudimentos da vida publica.
O partido operario não espera certamente chegar á solução do problema social pela simples conquista do poder administrativo na communa. A abolição do salariado—essa escravidão do mundo moderno, peior que a do mundo antigo—não é uma questão communal, mas sim uma questão nacional e internacional, e só poderá resolver-se pela posse do poder central ou do Estado. Mas é certo que a conquista das communas constitue outros tantos meios de recrutamento e de lucta, para a classe proletaria.
No dia em que as communas estiverem na posse da sua administração e da sua policia, os conflictos com o poder central tornar-se-hão impossiveis, se todos os municipios, comprehendendo a sua missão, se ligarem e federarem, afim de constituirem uma liga municipal que poderá e deverá ter uma influencia decisiva nos destinos de cada paiz.{72}
Art. 1.º—a) Repouso de um dia por semana, ou prohibição legal de mais de seis dias de trabalho sobre sete.
b) Reducção legal do dia de trabalho a oito horas para os adultos.
e) Prohibição do trabalho, nas officinas particulares, dos menores com menos de quatorze annos, e reducção do dia de trabalho a seis horas, dos quatorze aos dezoito annos.
a) A necessidade de um dia de repouso por semana, é hoje reconhecida por todos, e impõe-se como uma questão de moral e de hygiene. Mas não basta reconhecel-o. É mister que seja legal a prohibição, estabelecendo-se uma penalidade aos patrões que obrigam os seus operarios a trabalhar mais de seis dias sobre sete.
b) O primeiro congresso da Internacional, o congresso de Genebra de 1866, estabeleceu «que o dia de trabalho devia ser de oito horas»; por isso que, diziam os considerandos, a primeira condição, sem a qual seria baldada toda a tentativa de melhoria e de emancipação, é a limitação legal do dia de trabalho. Esta limitação impõe-se, afim de restaurar a saude e a energia physica dos operarios, assegurando-lhes a possibilidade de um desenvolvimento intellectual, de relações sociaes e de uma acção politica. Os operarios dos Estados Unidos reclamaram, durante muito tempo, esta limitação, e o Congresso adoptou-a como um dos artigos dos programmas{73} governamentaes. O secretario d'Estado do departamento da guerra, no Reino Unido, respondendo a John Burns, que, na camara dos communs, pedira informações, ácerca da experiencia do dia normal de 8 horas, no arsenal de Woolwich, asseverou que o resultado fôra excellente, e que o governo resolvêra estabelecer, para todos os arsenaes inglezes, o dia normal de 8 horas.
E ninguem pense que a reducção do dia de trabalho traria, como consequencia, a reducção do salario.
O patrão occupa, presentemente, dois operarios, para obter 24 horas de trabalho, ou dois dias de 12 horas. Se o dia legal fosse de 8 horas, seria forçado a empregar tres. Os operarios sem trabalho voltariam á officina, e, aquelles que trabalham, não estando já sob a ameaça de serem substituidos, poderiam, sem duvida, aproveitar a situação para exigir e obter um augmento de salario. A reducção do dia de trabalho teria, como consequencia necessaria, um augmento de salario.
c) Nas modernas sociedades, as creanças pertencem aos capitalistas, que as arrancam ao lar domestico e ao conchego da familia, para as converterem em instrumentos de sordida e desmesurada ganancia. Semelhante facto nunca se presenciara, nas sociedades anteriores, ainda mesmo nos peiores tempos da escravidão. O menor, condemnado desde tenra edade, ás torturas de dez e doze horas de trabalho na officina e na fabrica, e não offerecendo a minima resistencia, era ainda mais explorado que o homem e a mulher. E tão deshumana{74} se tornou a exploração que o Estado se obrigou a protegel-o contra o patrão e o pae de familia. Este, invocando a authoridade paterna permittia-se a liberdade de vender os seus filhos, segundo as necessidades da situação; aquelle, invocando a liberdade anarchica da sociedade capitalista, arrogava-se o direito de impôr ao menor mais horas de trabalho do que geralmente se impõe a um forçado nas galés.
Art. 2.º—Vigilancia dos aprendizes pelas corporações operarias.
A aprendizagem, constitue, para os patrões, um meio de ter trabalho sem necessidade de o pagar. O aprendiz, a quem nada se ensina, é transformado em creado, e ordinariamente empregado nos trabalhos mais grosseiros que os operarios se recusam a fazer. Em geral só quando finda a aprendizagem é que o trabalhador começa de aprender o seu officio. Para remediar estes males, é indispensavel que o aprendiz seja confiado á protecção e á vigilancia das corporações operarias.
O aprendizado desapparecerá no dia em que a educação manual se combinar com a educação intellectual. Com o desenvolvimento da mechanica e a divisão do trabalho, a aprendizagem tende de dia para dia a ser substituida pela instrucção geral, ministrada ás creanças nas escolas publicas.
Art. 3.º—Minimum legal dos salarios, determinado e fixado annualmente, segundo o preço dos generos, por uma commissão de estatistica operaria.
Dizer minimum, o mesmo é que dizer salario que permitta, pelo menos, viver trabalhando.
Com o aperfeiçoamento e a generalisação da machina,{75} os salarios diminuiram e tornaram-se insufficientes. O excedente que todos os dias vae augmentando da offerta do trabalho sobre a procura, fel-os descer ainda abaixo do strictamente indispensavel á alimentação quotidiana de cada operario. A fixação de um minimum foi, por isso, considerada como um grande progresso.
Esta justa reivindicação, formulou-a, pela primeira vez, Charles Fourier, em 1831. Viver trabalhando ou morrer combatendo!—tal era o lemma inscripto na bandeira negra dos primeiros revoltados do trabalho, que não reclamavam outra cousa senão um minimum de existencia ou de salario, e que, por esse principio, se deixaram matar heroicamente, defendendo, até ao ultimo sacrificio, os interesses e o futuro da classe trabalhadora.
Desde que, em todos os ramos de trabalho, possa ser determinado, por uma estatistica operaria, um minimum de salario, e desde que se torne obrigatorio para os patrões, ficará o salariado senhor da mais poderosa das armas, para levantar o preço da mão obra.
O minimum de salario não deve ser, para os operarios, senão um meio para chegar ao maximum.
Art. 4.º—Prohibição legal aos patrões de poderem empregar operarios estrangeiros por um salario inferior ao dos operarios nacionaes.
Ao capitalista, é-lhe indifferente que o operario seja nacional ou estrangeiro; o que lhe importa é que o salario seja diminuto.
Os operarios estrangeiros (belgas, allemães, italianos, hespanhoes), obrigados a emigrar por causa{76} da miseria, muitas vezes dominados e explorados por engajadores, ignorando a lingua, os preços e os costumes do paiz, são condemnados a aceitar as condições que os patrões lhes impõem e a trabalhar por salarios que os operarios da localidade regeitam. E ainda, em egualdade de circumstancias, preferem os patrões os estrangeiros, para evitar resistencias e amotinações.
A 5 de maio de 1880, a Sociedade de Economia politica discutiu as vantagens que poderiam advir da substituição dos operarios francezes por chinezes. O consul geral dos Estados Unidos, que estava presente á sessão, objectou que a introducção dos chinezes era corruptora por causa da sua immoralidade e perigosa por causa das miserias e das revoltas operarias que d'ahi derivavam.
—Nada importa!—responderam severamente os economistas francezes: «O chinez é muito trabalhador, vive de quasi nada, contentando-se com um modico salario. Na California, onde um branco exige 10 fr. por dia, o chinez contenta-se com 2 fr. 50. Que venham os bons chinezes, e tanto peior para os operarios francezes, se isso os incommoda. Talvez a lição lhes aproveite!»
O dr. Lunier (inspector geral dos serviços administrativos no ministerio do interior) observava que a vinda dos chinezes não estava tão longe como se suppunha: «É provavel que, em breve, a emigração chineza possa fazer-se por terra, e que tenhamos então de assistir a emigrações, que trarão á nossa velha Europa a sua sobriedade, a sua paciencia no trabalho, e, como consequencia, a mão d'obra barata.»{77}
A isso e só a isso, aspiram os patrões; e a prohibição legal de poderem empregar operarios estrangeiros, por um salario inferior aos dos operarios nacionaes, deriva não só de um principio de moralidade, para evitar a exploração até aqui seguida, senão tambem da protecção que á lei deve merecer o trabalho nacional.
Art. 5.º—Egualdade de salario, em egual trabalho, para os trabalhadores dos dois sexos.
O partido operario, assim como não pede a expulsão dos estrangeiros, não reclama tambem a prohibição do trabalho para a mulher, nas fabricas ou nas officinas. O que pede e reclama para a mulher, para a operaria, é a protecção a que ella tem direito tanto como o homem; o que pede e reclama é que a um trabalho egual corresponda egualdade de salario para todos os trabalhadores, sem distincção de sexo.
O motor mechanico, tornando a mulher tão apta, como o homem, para a maior parte dos trabalhos, permitte hoje, nas fabricas e officinas, o emprego do braço feminino, em substituição da antiga força muscular. Não foi a falta do braço masculino que provocou a industrialisação da mulher: foi sim! a desmedida ambição do patrão de obter a mesma somma de trabalho por um salario muito inferior. De modo que a operaria foi inventada, por um lado, para augmentar os proventos dos patrões, e, por outro lado, para reduzir o operario á fome.
É mister acabar com semelhante abuso, tornando a operaria egual ao operario, e não a sua concorrente.{78}
Para que a mulher seja senhora de si mesmo, para que recobre a liberdade do seu corpo, fóra da qual não ha senão prostituição, qualquer que seja a legalidade das relações que possa ter com o outro sexo, é mister que ella encontre em si os meios de subsistencia, independentemente do homem.
Art. 6.º—Instrucção scientifica e profissional de todas as creanças, á custa da sociedade, representada pelo Estado e pela communa.
Do direito á existencia, deriva logicamente o direito ao trabalho, e d'este a obrigação, para o Estado e para a communa, de ministrar gratuitamente a todas as creanças, sem distincção de sexo, a instrucção scientifica e profissional.
Para trabalhar, é preciso saber e poder trabalhar, e d'ahi se conclue, por um lado, a necessidade da instrucção, e, por outro lado, a necessidade não menos instante para o operario, de chegar á posse dos instrumentos de producção.
Lepelletier Saint-Fargeau comprehendêra perfeitamente estes principios, quando, a 15 de julho de 1793, submetteu á Convenção um projecto de lei, assim concebido:
«Art. 1.º—Todas as creanças serão educadas á custa da Republica,—as do sexo masculino da edade dos cinco aos doze annos e as do sexo feminino dos cinco aos onze.
«Art. 2.º—A educação nacional será egual para todos; recebendo todos a mesma alimentação, o mesmo vestuario, a mesma instrucção e os mesmos cuidados.»
O trabalho do homem é tanto mais productivo{79} quanto a sua intelligencia fôr mais cultivada[2]. O trabalho de um homem ignorante não vale mais do que o trabalho de um animal de egual força.
A monomania do emprego publico é um resultado da falta de ensino profissional. Em Portugal, a burocracia absorve a maior parte das receitas publicas, precisamente porque são poucos aquelles que se acham habilitados a trabalhar.
Não basta só que as escolas ensinem a lêr: é mister tambem que ensinem a trabalhar, isto é que, a par do pão do espirito, se ministre egualmente a todos o pão do corpo.
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Art. 7.º—Manutenção pela sociedade dos velhos e invalidos do trabalho.
O trabalhador produz mais do que consome. Encarregando-se dos velhos e invalidos do trabalho, a sociedade não faz senão retribuir aos operarios aquillo que lhes é devido. É justo que um homem que passou a sua vida a vestir, a calçar e a alimentar os seus semelhantes e a construir as suas habitações, tenha tambem o vestuario, a casa e o alimento assegurados, quando, em consequencia da edade ou de qualquer enfermidade, não se encontre já apto para trabalhar.
O ultimo codigo feudal da Russia, de 1795, estatuia o seguinte: «O senhor deve fazer ministrar a{80} educação a todos os camponezes pobres, procurando tambem os meios de existencia áquelles dos seus vassalos que não possuem terras e soccorrendo os que cahirem na indigencia.»
O servo transformou-se em salariado, e a liberdade burgueza deixou o operario, sem garantias, entregue ás exigencias do seu estomago e á mercê dos caprichos da fortuna. O militar e o funccionario do Estado teem direito a reformas e aposentações. O empregado do commercio succede muitas vezes ao patrão. Só ao operario, só áquelle que passou a sua vida a enriquecer os seus semelhantes, é recusado o direito que se concede aos demais membros da sociedade, isto é o direito de viver. Não lhe basta a incerteza de encontrar trabalho: ainda para mais lhe negam o que os senhores feudaes não negavam aos seus servos—a protecção na velhice e na doença. E eis ahi está porque o partido operario, não só por dever de humanidade, senão ainda por dever de solidariedade, inscreveu este artigo no seu programma.
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Art. 8.º—Suppressão de toda a ingerencia dos patrões na administração das caixas operarias de soccorros, de previdencia, etc., restituindo-as á gestão exclusiva dos operarios.
Na grande industria que multiplicou os riscos do trabalho, os patrões obrigam geralmente os operarios a tirarem, no fim de cada semana, uma certa{81} quantia dos seus magros salarios, para fazerem face solidariamente aos accidentes, á doença e á velhice. As grandes companhias de caminhos de ferro e minas chegaram mesmo a instituir um fundo, destinado a uma caixa, com essa applicação. Comprehende-se a tactica. Quanto mais os salariados estiverem no caso de se soccorrerem mutuamente, tanto menos terão os patrões de dispender com elles.
As caixas são, na sua quasi totalidade, sustentadas com o dinheiro dos operarios. Mas os proprietarios e capitalistas, no intuito de fiscalisarem esses fundos da previdencia e da solidariedade operaria, chamam a si a gerencia e a administração das referidas caixas, concorrendo tambem com uma parte, para o mesmo fim. O que os patrões desejam é evitar, por esta fórma, que os trabalhadores possam servir-se d'esse dinheiro, empregando-o n'uma gréve ou em qualquer cousa que possa contrariar os seus interesses ou os da sua industria.
É indispensavel que o proletariado se emancipe de semelhante tutella, transformando o fundo das caixas operarias num poderoso instrumento de emancipação social.
Art. 9.º—Responsabilidade dos patrões em materia d'accidentes, garantida por uma caução em dinheiro, e proporcional ao numero dos operarios empregados e aos perigos que a industria apresente.
Este artigo traduz um principio de justiça, e representa uma compensação para todos os que, no trabalho, expõem a vida e arriscam a saude. Quem, nas grandes empresas, aufere os grandes lucros e os enormes proventos, é o capitalista e o proprietario.{82} É justo pois, que, em caso d'accidente, sejam elles os responsaveis, indemnisando e garantindo, por meio de uma caução, os que affrontaram o perigo, para os enriquecer e locupletar. Em caso de desastre, occorrido nas fabricas e nas officinas, o invalido, a viuva e o orphão teem direito a serem amparados e protegidos; e esse amparo e essa protecção não pode exigir-se senão áquelles que foram a origem, embora indirecta, do seu infortunio, e que, muitas vezes, pelo seu desleixo e pela sua desmesurada ganancia, contribuiram poderosamente para esses tristes e dolorosos acontecimentos.
A indemnisaçao a pagar seria, n'este caso, lançada na caixa operaria, e avaliada por um jury escolhido na corporação. Só os proprios operarios seriam capazes de avaliar o que custa e o que vale, para o trabalhador, a perda de um braço, a perda de uma perna ou a perda de uma vida.
Quem nunca visitou uma mina, não sabe o que é o risco no trabalho. Superior á rhetorica dos economistas está a realidade das cousas. Que todos os que nos lêem se dignem, um dia, descer a uma mina, e que nos digam depois, se não assiste ao operario o direito sagrado de reclamar uma indemnisaçao, em caso d'accidente, áquelle por quem se sacrificou, e que locupletou, sem outra compensação, alêm de um salario diario representando o stritamente indispensavel para não morrer de fome?!
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Art. 10.º—A intervenção dos operarios nos regulamentos{83} especiaes das differentes officinas; suppressão do direito usurpado pelos patrões de poderem castigar os operarios, por meio de multas ou de reducções nos salarios.
A intervenção dos operarios nos regulamentos especiaes das differentes officinas é uma salvaguarda á dignidade e á saude da classe trabalhadora. Muitas vexações inuteis serão supprimidas por este meio; muitas medidas hygienicas, hoje despresadas ou recusadas pelo fabricante, serão postas em pratica, no interesse da collectividade.
Sob a fórma de multas, que se traduziam na retenção de uma parte do salario, o patrão abusava, muitas vezes, do operario, trazendo-o debaixo de um jugo de ferro, feroz e insupportavel. O patrão não pode arvorar-se em juiz, adoptando o codigo penal que muito bem lhe aprouver para multar o operario ou condemnal-o, segundo os caprichos da sua vontade.
A justiça é fundada sobre uma delegação social. O direito moderno não admitte outra; porque o contrario seria o despotismo, o abuso, a fraude e a violencia. E é por isso que se justifica e se torna indispensavel a intervenção dos operarios nos regulamentos especiaes das differentes officinas—precisamente para que o patrão fique reduzido á sua esphera de acção, e impossibilitado de vexar os trabalhadores, por meio de penalidades, que, alêm de uma tyrannia e de uma brutalidade sem nome, representam para o capitalista, um interesse e um beneficio.{84}
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Art. 11.º—Annulação de todos os contractos que hajam alienado a propriedade publica (bancos, caminhos de ferro, minas, etc.), e a exploração de todas as officinas do Estado, confiadas aos operarios que n'ellas trabalharem.
O partido operario pede a annulação, pura e simples, dos contractos que teem permittido a um bando de capitalistas de se locupletarem, á custa da nação. O partido operario pede essa annulação, não para que o Estado, entrando na posse das minas, dos caminhos de ferro e dos bancos, e tornando-se, por sua vez, productor, os explore, em seu proveito, como tem succedido com os correios e telegraphos, com a moeda, com os tabacos e outros serviços publicos, de que faz monopolio, mas sim, para confiar a sua exploração aos operarios, encarregados d'esses trabalhos.
O programma socialista pede que a exploração das officinas do Estado seja confiada aos operarios, que n'ellas trabalharem, com o duplo fim de melhorar a sua triste situação e de provar experimentalmente, que, pela sua propria iniciativa e responsabilidade, estão aptos para emprehender a referida exploração.
Sobre este assumpto divergem as escolas. São uns de opinião que todos os serviços publicos devem ficar a cargo do Estado e da communa; outros porém, sustentam que a absorpção gradual das industrias particulares pelo Estado augmentaria sensivelmente{85} o numero dos salariados que o mesmo Estado explora. Teremos occasião de voltar ao assumpto no ultimo capitulo d'esta obra.
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Art. 12.º—a) Abolição de todos os impostos indirectos e transformação dos impostos directos n'um imposto progressivo sobre os rendimentos que forem alêm de 3:000 francos.
b) Suppressão da herança em linha collateral e de toda a herança em linha directa que exceda a somma de 20.000 francos.
Nas sociedades burguezas, o imposto é um encargo a que tem de sujeitar-se todo o cidadão, afim de garantir a sua pessoa e a sua propriedade. Ha duas especies de imposto—o imposto pessoal, ou imposto de sangue que todo o cidadão tem de satisfazer pelo serviço militar, e o imposto impessoal que satisfaz pelo abandono e entrega de uma parte dos seus rendimentos.
Para ser equitativa a distribuição do imposto, todo o cidadão deveria ser soldado e abandonar ao Estado uma parte do seu rendimento, progressivamente, e proporcional á sua quantidade. Se o que possue 100 fr. paga 10 fr., o que possue 1000 deverá pagar 200 fr., e o que possue um milhão, 400.000 fr.
Os impostos indirectos que recahem sobre os generos de consumo (pão, vinho, vestuario, etc.) obstam a que seja equitativa a sua distribuição. Por{86} exemplo: o operario que come por dia 1 kilo de pão paga duas vezes mais imposto do que o capitalista que come apenas meio kilo.
O imposto indirecto é um meio jesuitico, inquisitorial, de depennar e de reduzir á miseria o operario, sem que elle d'isso se aperceba.
Os ricos repellem o imposto progressivo que os obrigaria a pagar na proporção dos seus rendimentos; o imposto indirecto favorece-os de um modo escandaloso, e eis ahi está o motivo porque o defendem e applaudem.
A abolição dos impostos indirectos e a creação de um imposto progressivo sobre o rendimento, reduziria seguramente o preço dos generos. A remodelação e transformação do imposto, seria para o operario a melhoria das suas condições de existencia. O augmento, nos impostos indirectos, tem-se traduzido praticamente por um augmento na mortalidade. A creação do imposto progressivo poder-se-hia traduzir por um augmento na alimentação e na vida das classes trabalhadoras.
A Convenção havia estabelecido um imposto gradual e progressivo sobre o luxo e sobre todas as riquezas. Mas não teve tempo para o applicar.
Montesquieu, e todos os economistas orthodoxos, como Adão Smith, J. B. Say e Rossi, pronunciaram-se pelo imposto progressivo. J. B. Say e Rossi, affirmaram-n'o claramente nas seguintes palavras: «Não deixaria de ser razoavel que os ricos contribuissem para as despezas do estado, na proporção do seu rendimento, e ainda com mais alguma cousa alêm d'essa proporção.»{87}
Na Suissa está o imposto progressivo em vigor na maioria dos cantões. Mas nem só a republica o perfilha e o applica. Tambem a real Inglaterra e a imperial Allemanha acceitaram e introduziram o imposto progressivo, no seu systema de impostos directos.
b) A herança estabelece, na sociedade, um privilegio e uma desegualdade revoltante. A sua suppressão impõe-se, e, se não completamente, pelo menos parcialmente. Em virtude da herança, a instrucção, a educação, o gôzo, o bem estar contituem o privilegio dos favorecidos da fortuna. O pobre, o infeliz que não herdou, tem de subjeitar-se aos caprichos do acaso e á lei do seu destino. O partido socialista quer a suppressão da herança em linha collateral, restringindo-a e limitando-a a 20.000 francos na linha directa.
N'outra parte diremos a que seria applicado o excedente das heranças, desde que ultrapassassem esta somma.
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A titulo de curiosidade, publicamos, em seguida, o primeiro programma dos socialistas portuguezes, desde que se contituiram em partido. É um documento, por muitos titulos, importante, e que merece ser lido e apreciado pelo publico. A sua approvação data do 1.º congresso socialista, realisado em{88} Lisboa, nos principios de 1877, tendo sido elaborado, após o celebre congresso de Haya, onde Portugal esteve representado por Lafargue.
Vigorou até 1882, anno em que se celebrou n'esta capital uma conferencia dos delegados de Lisboa e Porto, sendo então substituido pelo actual programma que, ordinariamente se publica na quarta pagina do Protesto Operario.
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O trabalho é a condição de existencia de todos os individuos.
Todos teem o dever de trabalhar imposto pela natureza.
Com os productos do trabalho de todos deve subsistir a sociedade, e com os productos do trabalho da sociedade, effeituado por todos, deve subsistir cada individuo.
A massa do trabalho da sociedade, que deve constituir a sua riqueza, deve constituir a propriedade social, commum ou publica.
A parte do trabalho de cada individuo constitue a sua riqueza, e a riqueza do individuo deve constituir a propiedade individual.
Sendo a propriedade social por natureza commum, ou publica, a propriedade individual deve ser privada ou pessoal.
Tambem devem ser communs, ou publicas, as riquezas naturaes, não creadas pela sociedade, nem pelos individuos.
Taes são as condições de existencia da sociedade justa, isto é, em que todos os individuos subsistem pelo seu proprio trabalho, e em que a sociedade subsiste pelo trabalho de todos; em que o producto do trabalho de cada individuo é propriedade sua, e em que o producto do trabalho de todos, ou{89} da natureza, não é propriedade de alguem, mas sim da sociedade toda.
A constituição da sociedade injusta é differente.
Na sociedade injusta os individuos não subsistem todos pelo seu proprio trabalho, e a sociedade não subsiste pelo trabalho de todos.
Uma parte da sociedade trabalha para si e para a outra parte que não trabalha, produzindo os meios de subsistencia de todos os individuos.
Um individuo trabalha como dois e mais, ou o duplo, ou pela metade do preço e por menos, para produzir os meios de subsistencia dos individuos que os não produzem.
Os meios de subsistencia, em que consiste toda a especie de propriedade, são produzidos por uma parte dos individuos, e apropriados pela outra, que os não produz.
A riqueza, ou a propriedade, é o producto do trabalho de todos os individuos accumulado na mão de alguns.
Os productores, ou creadores, da propriedade individual e publica não possuem mesmo a parte com que subsistem. Esta parte é-lhes vendida, ou arrendada, pelos proprietarios, que accumulam mais productos do trabalho alheio por meio das transacções mercantes, isto é, das transacções da propriedade transformada em mercadorias.
D'este modo se constitue a sociedade com proprietarios e não proprietarios, com os possuidores da propriedade de todos os individuos e com os não possuidores, que a produzem.
A sociedade consta assim de duas classes: a dos ricos e a dos pobres ou proletarios, a superior e a inferior, a dominadora e a dependente ou salariada.
Os proprietarios industriosos occupam-se em fazer trabalhar os proletarios na agricultura, na fabricação e na manufactura dos meios de subsistencia, isto é, da propriedade transformada em mercadorias como objecto de commercio, de viação e de jogo.
A classe dos proletarios, ou miseraveis, conta tambem milhares de individuos que não produzem: taes são os mendigos{90} e os defensores salariados da propriedade, escolhidos pelo estado de entre os mais vigorosos, para que não a tomem aquelles que a produzem. Estes subjugam-se a si e a seus eguaes.
A sociedade injusta subsiste só pela violencia, isto é, uma parte da sociedade arranca violentamente á outra a sua propriedade.
A violencia existe sem manifestar-se, por ter sido no principio das sociedades policiadas estabelecida pela força, depois attestada pelas leis, depois acceita e transmittida por costume, pelas mesmas leis e pela mesma força.
Na epoca actual os proletarios, obrigados pela necessidade, constituem a sua classe de salariados, determinados a fazerem da associação um poder, que modifique as violencias dos proprietarios industriosos, pela proposição e estabelecimento de condições, taes como:
1.ª Estabelecimento do dia normal de trabalho, egual quanto possivel em todos os officios e em todas as estações;
2.ª Diminuição do tempo de trabalho;
3.ª Elevação dos salarios;
4.ª Salubridade e segurança dos logares onde se executa o trabalho;
5.ª Melhoramentos particulares, tanto dos salarios como do tempo de trabalho, para os que exercem officios de sua natureza penosos e insalubres;
6.ª Extincção do trabalho de jornal nos officios em que fôr applicavel o estabelecimento de tabellas de preços dos trabalhos;
7.ª Extincção das categorias nos officios, taes como: ajudantes e serventes, devendo considerar-se as divisões do trabalho não como categorias, mas como ramos e especies do mesmo trabalho;
8.ª Abolição dos regulamentos das fabricas e manufacturas, como especie que é de contrato unilateral, em que são partes os proprietarios e os miseraveis, tendo os proprietarios,{91} como teem, liberdade de acção para despedir os trabalhadores e appellar para as leis nos casos de attentados;
9.ª Egualdade do tempo de trabalho e dos salarios das mulheres e dos homens;
10.ª Exclusão das creanças das fabricas e manufacturas, e relação do tempo de trabalho dos menores com a sua idade;
11.ª Abolição do tempo determinado de aprendizagem, e prohibição de outros misteres estranhos a cada officio;
12.ª Estabelecimento e eleição de commissões de exame e vigilancia compostas de officiaes, que julguem da aptidão dos aprendizes em periodos determinados e curtos;
13.ª Egualdade de tratamento para os aprendizes, como individuos racionaes, evitando-se assim a educação aviltante que lhes incutem os costumes da obediencia passiva;
14.ª Extincção dos signaes exteriores de obediencia e submissão, como improprios da natureza humana;
15.ª Exclusão dos proprietarios e seus representantes das sociedades de trabalhadores, taes como: monte-pios, cooperativas, de recreio, instrucção e outras, com o fim de evitar a dominação e o servilismo.
Ao mesmo tempo os proletarios, tendo conhecimento da situação politica da sociedade, constituem-se em partido politico, determinados a crearem um poder, que modifique as violencias politicas da classe dominante, fazendo tambem representar nos poderes do estado os seus interesses de classe, excluidos das instituições politicas e civis.
O movimento politico da classe dos proletarios é transitorio. Existirá em quanto existirem classes, subordinando-se ás circumstancias e necessidades occorrentes.
Presentemente, o modo de effeituar o movimento politico dos proletarios consiste em modificar o poder legislativo, pela substituição dos individuos que o compõem, e que representam sómente a classe e os interesses da classe proprietaria.
O pensamento, a aspiração, o fim, do movimento dos proletarios constituidos em classe e em partido, é a implantação{92} e a constituição da sociedade justa. A este movimento tudo é subordinado, inferior e transitorio.
Os proletarios de todas as nações civilisadas, constituindo a associação internacional dos trabalhadores, da qual nos declaramos um ramo, effeituam o mesmo movimento, e em cada uma organisam-se e procedem conformes ás instituições politicas.
Em Portugal, onde os poderes politicos são constituidos publicamente, os proletarios procedem dentro das instituições para realisarem o seguinte:
1.º
Instituição dos municipios.
a) Constituição dos municipios com todos os contribuintes da sua circumscripção.
Divisão dos municipios em circulos administrativos, e constituição d'estes com todos os contribuintes da sua circumscripção.
Serem contribuintes todos os individuos maiores que exerçam alguma profissão.
b) Celebração de sessões periodicas, tanto nos municipios como nos circulos, onde os contribuintes, constituidos em assembléas, proponham, discutam e resolvam os respectivos interesses publicos.
c) Creação de corpos gerentes, tanto dos municipios como dos circulos, por eleição dos contribuintes nas assembléas respectivas.
Responsabilidade individual dos membros dos corpos gerentes municipaes e dos circulos perante as assembléas respectivas, e sua sujeição á justiça commum.
d) Elaboração dos recenseamentos dos contribuintes, tanto dos circulos como dos municipios, pelos corpos gerentes respectivos.
Validação dos recenseamentos municipaes para todos os effeitos civis e politicos, publicos e privados.
e) Administração dos rendimentos dos municipios feita pelos municipios, e a dos circulos feita pelos circulos, sem dependencia{93} de poderes centraes, nem de regulamentos, nem de corpos e auctoridades superiores.
f) Integração dos municipios na administração das suas escolas, dos hospitaes, cadeias, vias publicas, correios e telegraphos, da sua circumscripção.
g) Repartição e cobrança das contribuições publicas feitas pelos municipios, e as d'estes pelos circulos ou pelos gremios de profissões.
Concurso e ordenados fixos para todos os officiaes de fazenda, effeituados por cada municipio.
Installação das repartições de fazenda nos edificios municipaes.
Responsabilidade dos officiaes de fazenda perante as assembléas respectivas, e sua sujeição á justiça commum.
h) Provisão dos officios de juizes e seus escrivães, tanto do civel como do crime, por concurso aberto pelos municipios respectivos.
Eleição dos jurados.
Nomeação dos officiaes de justiça subalternos pelos juizes e jurados.
Fixação dos vencimentos de todos os officiaes de justiça, tanto superiores como subalternos, pagos por cada municipio.
Installação dos tribunaes de justiça em edificios municipaes.
Responsabilidade dos officiaes de justiça perante as assembléas, e sua sujeição á justiça commum.
i) Instituição da policia municipal, regida e paga por cada municipio.
j) Estabelecimento de escolas de ensino technico de artes e officios, tanto ruraes como fabris, nos municipios, geridas e sustentadas por elles.
m) Alimentação, vestuario e objectos de ensino dados pelos municipios aos menores miseraveis que frequentem as escolas.
—Consequencias:
Abrogação do codigo administrativo, e sua substituição por{94} disposições geraes no codigo fundamental, isto é, substituição de leis por instituições, que estabeleçam e garantam as liberdades politicas, publicas e individuaes, pela extincção das camaras municipaes, das juntas geraes, dos conselhos de districto, dos governos civis, das administrações dos concelhos, das regedorias e das juntas de parochia.
2.º
Conformação dos codigos civil, commercial, judicial e penal com as disposições de egualdade civil e politica estatuidas no codigo fundamental, abrogando-se no civel a parte que regula as condições da servidão e todos os contratos unilateraes.
Revisão periodica dos codigos.
Abolição do juramento, tanto no fôro politico, como no civil, judicial e militar.
3.º
Constituição do poder legislativo com os delegados representantes de cada municipio, eleitos nas assembléas dos circulos pelos seus contribuintes.
4.º
Abolição do recrutamento e das matriculas maritimas.
Serviço militar voluntario.
Sujeição dos militares ás leis e aos tribunaes communs nos casos de offensas de direitos civis e politicos.
5.º
Reducção de todas as contribuições, tanto para o estado como para os municipios, a uma unica, directa.
Extincção immediata das barreiras, estabelecendo a livre circulação dos generos alimenticios.
Creação de bilhetes de contribuição divisiveis e vendaveis como os sellos, para que todos possam opportunamente compral-os durante o anno e pagarem assim a sua contribuição.{95}
6.º
Extincção dos privilegios a companhias e associações. Rescisão de seus contratos com o estado, e sua sujeição e de seus membros á justiça commum.
7.º
Extincção dos privilegios, subsidios ou mercês, subvenção ou intervenção do estado e dos municipios a individuos, a empresas, a estabelecimentos e a instituições industriaes, scientificas, litterarias e religiosas.
8.º
Taxação de todos os serviços publicos ao estrictamente necessario para o custeamento das suas despezas correntes.{96} {97}
A solidariedade operaria não é senão um resultado da cooperação. Disse-o Cesar de Paepe, num discurso eloquentissimo, pronunciado no congresso internacional cooperativo de Paris.
«Não ha, na Belgica, um Lassalle e um Schultze inimigos, exclamava o illustre chefe do socialismo belga; ha sim! um partido operario que é, ao mesmo tempo, cooperativista, republicano e socialista.»
E accrescentou:
«Os cooperadores belgas associaram-se sempre ás manifestações em favor do suffragio universal.
«As nossas sociedades cooperativas não têem por fim realisar interesses para alguns individuos, senão, ao contrario, desenvolver os sentimentos de solidariedade entre os seus membros.»{98}
A cooperação dos trabalhadores póde e deve tomar-se em dois sentidos differentes: um sentido restricto e um sentido amplo e generico. No primeiro caso, a cooperação limita-se a explorar as cooperativas sociaes, quer sejam as de producção, quer sejam as de consumo, quer sejam as de credito. No segundo caso, a cooperação estende-se alêm das fronteiras e affirma-se pelo principio da solidariedade de classe, no combate quotidiano contra o capitalismo e o industrialismo, em favor das reivindicações operarias.
Do mesmo modo que para todo o cidadão ha duas patrias—a patria onde cada um exerce a sua actividade e essa outra grande patria, a que estamos vinculados pelos nossos ideaes e pelas nossas aspirações, que se chama humanidade; assim tambem a cooperação dos trabalhadores tem de ser, ao mesmo tempo, nacional e internacional: nacional pela affirmação da solidariedade operaria, em cada{99} paiz, e internacional pela affirmação da solidariedade com os companheiros de todos os paizes, de todas as raças, de todas as religiões e de todas as linguas.
Da legislação internacional do trabalho, fizeram os socialistas o artigo 1.º do seu programma. O internacionalismo manifesta-se, a cada passo, nas relações entre os povos. A facilidade de communicações tem concorrido extraordinariamente para isso. Mas ao facto material da rapidez nas viagens, devemos juntar o facto moral da transformação, realisada nos velhos processos politicos e da corrente, cada vez mais intensa e cada vez mais poderosa, das idéas modernas.
Proletarios de todo o mundo, uni-vos! Era esta a divisa de Karl Marx, e é esta a divisa do socialismo revolucionario.
Mas a verdadeira união só poderá conseguir-se pelas associações de classe. No dia em que o proletariado tiver realisado este grande e supremo desideratum, n'esse dia terá soado a hora da sua emancipação. E deante do formidavel exercito, não haverá nem canhões Krupp nem espingardas Kropateschaek que valham ou prevaleçam. Isto matará aquillo. O proletariado organisado matará a realeza armada. O trabalhador vencerá o soldado. O homem livre e consciente transformará o velho mundo, enthronisando a paz e a justiça, no logar onde campeava a iniquidade e a desegualdade social.
A beneficencia publica e particular, a caridade official e outros palliativos de egual natureza, são impotentes para resolver o problema, porque humilham{100} aquelle que se pretende beneficiar, rebaixam os caracteres, engendram a preguiça e entreteem a mendicidade.
Não se trata apenas, de soccorrer os pobres: o que se trata é de supprimir a pobreza. E para isso é mister que a sociedade, em vez de uma madrasta odienta, se converta em mãe protectora e disvelada; é mister que a todos, sem excepção, seja garantido o direito á instrucção e o direito ao trabalho, que são uma consequencia do direito á existencia; é mister que a educação e os meios de produzir não constituam o privilegio de uma minoria rica e favorecida da sorte; é mister, não só que todos sejam eguaes perante a lei, senão tambem que todos sejam eguaes perante a sociedade, pelo desenvolvimento physico e moral, pela posse dos instrumentos de producção e pelo gozo do credito; é mister, emfim, que o altruismo e a bondade se sobreponham ao egoismo e á crueldade das modernas sociedades.
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Ha quem pense que as cooperativas operarias podem concorrer poderosamente para a extincção da miseria. Não somos d'esse numero. As cooperativas, (e quando fallo em cooperativas, refiro-me particularmente ás cooperativas de consumo) podem, quando muito, attenuar, e attenuam, com effeito, as condições de existencia do proletariado.{101} Mas d'ahi, a resolver o problema da sua emancipação, vae um abysmo.
Quer isto dizer que tenham sido estereis todas as tentativas feitas para manter e sustentar as cooperativas? De modo algum. Entre os que tudo pedem e esperam da iniciativa das corporações operarias e os que tudo esperam do Estado, entre os dois exclusivismos, ha um meio termo que Malon synthetisava nas palavras de um velho proverbio: Aide-toi, les pouvoirs publics t'aideront.
Os esforços cooperativos e corporativos, do mesmo modo que a procura de uma melhoria immediata, devem ter por alvo a educação administrativa e a organisação dos trabalhadores, para se chegar á abolição do salariado, com o concurso dos poderes publicos, influenciados primeiro e conquistados depois.[3]
Tal era o programma do pae da cooperação, o illustre Robert Owen; mas não foi esta a politica seguida pelos seus successores, que mutilaram a ideia do mestre, fazendo da cooperação um fim, quando não é nem deve ser senão um meio.
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Durante muito tempo, foi grande e profunda a inimisade entre cooperativistas e socialistas, se bem que o principio da cooperação tenha uma origem{102} caracterisadamente socialista, tendo sido, como já dissemos, Robert Owen o seu primeiro apostolo. A elle se devem as primeiras tentativas de cooperação; foi elle quem inventou a palavra e quem propagou a theoria. Robert Owen, o inventor e o apostolo das sociedades cooperativas—escrevia d'Assaily que para todos deve ser insuspeito, pela sua tendencia conservadora e retrograda—pretendeu realisal-as n'um estabelecimento, onde o trabalho collectivo abraçasse, ao mesmo tempo, a agricultura e a industria; onde o espirito tivesse, como o corpo, a sua parte de legitima satisfação; onde o trabalho fosse voluntario; onde não fosse punida a minima infracção; onde não fossem obrigatorias quaesquer privações, e onde o respeito dos direitos fosse o resultado d'um mutuo interesse.»
A idéa de Robert Owen era demasiadamente idealista e synthetica para o proletariado da Inglaterra. Mas, pratico como é, o operario inglez descobriu-lhe logo o lado util, e assim nasceram as cooperativas de consumo, que, após algumas tentativas, chegaram a ter um resultado brilhante nos Pionniers de Rochdale.
Só é efficaz a cooperativa de consumo; a de producção é impotente para luctar com outras emprezas congeneres, attenta a difficuldade em obter o capital que é, por via de regra, superior ás forças operarias; e a de credito, por seu turno, tropeça praticamente com embaraços e obstaculos insuperaveis.
Devemos, porém, repetir, com Malon, que todas as fórmas cooperativas servem, em geral, para preparar{103} a educação administrativa do proletariado, tornando-o mais apto para as reivindicações de ordem politica e social.
Os socialistas fazem mal, rebaixando e combatendo as tentativas cooperativistas. Do mesmo modo que a iniciativa individual só por si seria impotente, assim tambem a acção dos poderes publicos não poderá ser nunca verdadeiramente benefica, se não fôr secundada pelos esforços collectivos de um proletariado já familiarisado com as difficuldades administrativas das organisações politicas e economicas.
Sob este ponto de vista, a cooperação, verdadeira escola de pratica industrial e commercial, desembaraçando-se pouco a pouco do primeiro exclusivismo, é uma excellente preparação para as reformas sociaes, que o proletariado terá um dia de arrancar aos poderes publicos.
N'uma palavra, cooperadores e socialistas são militantes na mesma obra de renovação e de justiça. Os trabalhos de uns e as luctas dos outros completam-se mutuamente, e a sua união apressaria o dia, por todos desejado, da emancipação humana.
Associamos-nos pois, de todo o coração ao generoso appêlo dirigido aos socialistas por Louis Bertrand, que é, ao mesmo tempo, um dos primeiros vulgarisadores do collectivismo e um cooperador pratico.
«Á obra pois, companheiros, á obra! Não esqueçais nunca que qualquer nova sociedade cooperativa é um passo a mais para a sociedade do futuro, a sociedade que sonhamos, feita de justiça e de solidariedade,{104} e na qual todos encontrarão o seu bem-estar em troca de um trabalho facil e remunerador.
«Mas não olvideis, sobretudo, que o fim a attingir não se limita a beneficiar ou a fazer beneficiar os operarios de alguns francos por semana ou por mez, e que é preciso ter sempre em vista o fim supremo: a libertação completa da classe operaria pela suppressão do salariado e pela applicação das doutrinas socialistas.»[4]
Na cooperação belga destacam-se cinco grandes realisações, porventura as primeiras e as mais solidas realisações do principio cooperativista: a sociedade do Vooruit (àvante), de Gand; o Progrés, de Jolimont-La-Louvrière; a Maison du Peuple, de Bruxellas; o Werker, d'Anvers; e a Populaire, de Liége.
A mais importante, o Vooruit, possue uma padaria, officinas de calçado, de vestuario, de quinquilheria,{105} armazens de carvão e um café restaurante onde é prohibida a venda de bebidas alcoolicas. O Vooruit possue tambem uma caixa de soccorros, sendo os doentes curados gratuitamente. O jornal que se intitula Vooruit tira por dia 10:000 exemplares. A sociedade Vooruit tem 40 administradores e 150 empregados, e fazem negocios 2.500.000 francos por anno. O centro de estudos, as camaras syndicaes, as sociedades de musica e de gymnastica, constituem outras tantas secções da cooperativa que tem servido de modelo a todas as outras cooperativas belgas.
Anseele é o gerente do Vooruit, como Jean Volders é o gerente da Maison du Peuple. A elles se deve uma parte da propaganda socialista da Belgica, porque as cooperativas, n'aquelle paiz, apresentam uma feição eminentemente revolucionaria e constituem, para o proletariado, uma formidavel arma de combate. Quantas grèves não teem sido sustentadas com o pão e o carvão distribuido pelas cooperativas?! É que os belgas fizeram das cooperativas de consumo,{106} ao mesmo tempo, um elemento de interesse pessoal, de resistencia politica e de propaganda socialista. Os dividendos a distribuir a cada associado constituem o fundo social do partido. E d'este modo, tão digno de ser imitado, organisaram os socialistas belgas o mais poderoso e valente exercito que temos visto e admirado, o grande e honrado exercito da sciencia e do trabalho, o invencivel exercito do povo, o exercito do futuro!
Os cinco grupos, acima referidos, não comprehendem, ainda assim, todo o movimento cooperativo belga, que, em 1889, havia attingido os algarismos seguintes:
Cooperativas alimenticias | 53 |
Padarias | 36 |
Bancos populares | 19 |
Sociedades de producção | 18 |
Syndicatos agricolas | 15 |
Cooperativas de industriaes e commerciantes | 10 |
Pharmacias populares | 6{107} |
Uniões de credito | 5 |
Diversas sociedades | 17 |
Total | 179 |
E Jean Volders não descança um momento, percorrendo a Belgica em missão de propaganda, uma e mais vezes por anno, espalhando a ideia e attrahindo proselytos á sua generosa causa!
Uni-vos pois, trabalhadores! Organisae-vos e defendei-vos, creando escolas, estabelecendo cooperativas, fundando associações de classe e preparando-vos por todos os meios, para o supremo combate contra os vossos exploradores e os vossos inimigos. Sois hoje o numero e sereis ámanhã a qualidade! Para isso uma unica cousa bastará:—que vos associeis, nacional e internacionalmente. Na associação está a vossa força. Usae d'ella! Reuni os vossos elementos. Instrui, trabalhae, educae-vos. Sereis os vencedores. O mal não está n'este ou n'aquelle paiz: está na sociedade em geral. Os governos recuam e os reis e imperadores pensam que a salvação está na morte ou no desapparecimento dos insubmissos e rebeldes. Puro engano! Os effeitos hão ser os mesmos, emquanto subsistirem as mesmas causas. Eliminae o mal, pela vossa perseverança na lucta e pela vossa constancia no combate. Formae, adestrae os vossos batalhões. Sois regimento e sereis exercito. Tendes por vós a razão e a justiça. Confiae no futuro. Que a voz de commando seja só uma e que a obediencia seja geral e completa!{108}
O proletariado é só um, tem um só interesse e uma só aspiração. Não conhece raças, nem linguas, nem religiões. No dia em que elle quizer, nenhuma outra vontade lhe será superior. A humanidade é o supremo ideal, e, pensando n'ella, abstrahimos de nós mesmos, e das miserias e torpezas do mundo.{109}
O movimento em favor da paz, vae-se accentuando de dia para dia. É consolador registar o facto e apreciar as suas consequencias.
Sobe a mais de cincoenta o numero das sociedades da paz de que temos conhecimento e que realmente funccionam.
ALLEMANHA
Sociedade da Paz (presidente o conde Bodner)—Wiesbaden.
Sociedade da Paz em Berlim (presidente o dr. Mühling)—Berlim.
Sociedade da Paz em Ulm (presidente H. Eberle)—Neu-Ulm.
Sociedade da Paz em Francfort (presidente Franz Wirth)—Francfort.
Sociedade da Paz em Constança (presidente professor Martens)—Constanz.{110}
INGLATERRA
International Arbitration and peace association (presidente Hodgson Pratt)—London.
Peace Society (presidente Joseph Pease)—London.
Local Peace Association (presidente M.elle Peckover)—Wisbech.
Peace Society of Liverpool (presidente Thomas Suape)—Liverpool.
International Arbitration League (presidente Cremer)—London.
Local Peace Association (presidente Rowntree)—York.
Woman's Peace and Arbitration Society (presidente Thompson)—Birkenhead.
AUSTRIA
Oesterr. Friedensgesselschaft (presidente a baroneza de Suttner)—Vienna.
Societé Universitaire de la paix (presidente dr. Steckel)—Vienna.
BELGICA
Section belge de l'arbitrage et de la paix (secretario Lafontaine)—Bruxellas.
DINAMARCA
Association pour la neutralisation de la Danemark (presidente Frederico Bajer)—Copenhague.
FRANÇA
Ligue internationale de la paix et de la liberté (presidente Emile Arnaud)—Luzarches.
Societé française de l'arbitrage entre nations (presidente Frederic Passy)—Neuilly.
Ligue du Bien public (presidente Pierre Potonié)—Fontenay.
Societé de la paix du familistére de Guise (presidente Bernardot)—Guise.
Societé de la paix perpétuelle par la justice internationale (presidente Philippe Destrem)—Paris.
Groupe des amis de la paix du Puy-de-Dóme (presidente Pardoux)—Clermont-Ferrani.
Association des jeunes amis de la paix (presidente Dumas)—Paris.{111}
Societé universitaire internationale (presidente Dumas)—Paris.
Societé de la paix d'Abbeville et de Ponthieux (presidente Jules Tripier)—Eancourt.
Union Méditerranéenne (presidente Gromier)—Paris.
Comité de la Sarthe (presidente Destriché)—Sarthe.
Société de la paix de Felletin (presidente Abbé Pichot)—Felletin.
HOLLANDA
Pax Humanitate (presidente Schook)—Amsterdam.
Société Générale de la paix (presidente Moddermann)—Haya.
ITALIA
Union Lombarda (presidente Theodoro Moncta)—Milão.
Comité Romano da Paz (presidente Boughi)—Roma.
Sociedade da paz de Turim (presidente Armandon)—Turim.
Sociedade da paz de Palermo (presidente Aguanno)—Palermo.
Sociedade da paz e da arbitragem de Perugia (presidente Leopoldo Tiberi)—Perugia.
SUECIA
Sociedade da Paz (presidente Wawrinsky)—Stockholmo.
SUISSA
LIGA INTERNACIONAL DA PAZ E DA LIBERDADE
—Comité central (secretario M.me Goegg)—Genève.
—Secção de Neuchatel (presidente Gustavo Renaud)—Neuchatel.
—Secção de Berne (presidente W. Marcussen)—Berne.
—Secção de Saint Gall (presidente Schimd)—Saint Gall.
—Secção de Zurich (presidente Gustavo Vogt)—Zurich.
—Secção de Genebra (presidente dr. Cordés)—Genève.
ESTADOS UNIDOS DA AMERICA
—Sociedade americana da paz (presidente dr. Trueblood)—Boston.
Sociedade christã para a arbitragem da paz (presidente Wood)—Philadelphia.
Associação nacional da arbitragem (presidente Gardener)—Washington.{112}
National Association for the Promotion of Arbitration (presidente Lockwood)—Washington.
Associação da arbitragem da California (presidente Berwick)—Monterey (California).
Universal Peace Union (presidente Loye)—Philadelphia.
Peace Department of the N. W. C. T. U. (presidente Bailey)—Maine U. S. A.
Peace Association of friends in America (Daniel Whill secret.)—Richmond, Ind. U. S. A.
South Carolina Peace Society—Columbia S. C.
Illinois Peace Society (presidente Allen)—Chicago III.
Connecticut Peace Society (Whipple, secret.)—Old Mistic Conn. U. S. A.
Rhode Island Peace Society (Robert, secret.)—Providence R. I. U. S. A.
Friend's Peace Association of Philadelphia (presidente Wickersham)—Philadelphia.
National Peacy Society (presidente Ellen Lease)—Topeka (Kausao) U. S. A.
A paz constitue hoje o supremo desideratum da humanidade trabalhadora. Mas a paz tem um complemento indispensavel—a liberdade e a justiça. D'este modo o antigo adagio: Si vis pacem, para bellum (Se queres a paz prepara a guerra), que havia sido substituido por est'outro, não menos illusorio: Si vis pacem, para pacem (Se queres a paz prepara a paz), foi transformado, ao sopro da revolução, pelo seguinte principio: Si vis pacem, para libertatem (Se queres a paz prepara a liberdade).
Com o progresso dos tempos, reconheceu-se porém, que a paz pela liberdade era ainda pouco, e Aurelio Saffi, traduzindo as aspirações dos philosophos{113} e pensadores da sua época, estabeleceu o lemma da paz pela liberdade e pela justiça (si vis pacem, para libertatem et justitiam).
Mais tarde, Carlos Lemmonier reforçou esta formula, demonstrando que a paz, assim como a liberdade, não devia ser um fim, mas apenas um meio. E os philantropos, aceitando a observação, principiaram então de apregoar a paz pela liberdade e por amor da justiça.
A formula de hoje—diz ajuizadamente Emile Arnaud—a unica que corresponde ao estado actual da Europa e á situação especial de cada paiz, é a seguinte: Si vis justitiam, para pacem (Se queres a justiça, prepara a paz).
E, uma vez que fallamos em Emile Arnaud, o glorioso continuador da doutrina de Carlos Lemmonier, devemos dizer que dos apostolos e evangelistas da paz, é elle um dos mais ardentes, um dos mais convictos e um dos mais activos. A Liga Internacional da Paz e da Liberdade está organisada como nenhuma outra sociedade, com ramificações em toda a Suissa e secções e comités em todos os outros paizes da Europa.{114}
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* *
Em caso de guerra, qual deverá ser a attitude do partido operario socialista?—perguntava-se no congresso de Zurich.
Domela Nieuwenhuis, o sympathico e benemerito chefe do socialismo na Hollanda, já havia respondido a esta pergunta no congresso de Bruxellas, em 1891.
Em caso de guerra, aconselhava Nieuwenhuis a proclamação de uma gréve militar e de uma gréve geral. Esta mesma idéa havia já sido enunciada na mesma cidade de Bruxellas, em 1868, por occasião do Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores. Por unanimidade havia sido approvada a resolução seguinte:
«O congresso recommenda, sobretudo, aos trabalhadores a suspensão de todo o trabalho, no caso em que uma guerra viesse a explodir nos seus respectivos paizes. O congresso conta sufficientemente com o espirito de solidariedade, que anima os trabalhadores, que não se negarão a prestar o seu apoio a esta guerra dos povos contra a guerra.»
Cesar de Paepe propôz dois meios:
1.º A recusa em satisfazer o serviço militar, ou, o que vale o mesmo, a gréve geral;
2.º A resolução definitiva da questão social, ou, por outros termos, a revolução social na Europa.{115}
O militarismo não póde ser combatido com simples protestos. Á guerra é mister oppôr a guerra, diz muito bem Domela Nieuwenhuis. Já era este tambem o grito de Victor Hugo. Guerra á guerra! Morte á morte!
Não basta só condemnar a guerra. É mister impedil-a, por todos meios, evital-a e deshonral-a, ainda na phrase do Mestre.
No manifesto, feito por occasião da guerra civil em França, e redigido por Karl Marx, o conselho geral da Internacional declarou que, no longo curso da historia, uma unica guerra podia justificar-se—era a guerra dos escravos contra os senhores. Eis o motivo porque, em caso de guerra, nós devemos responder, recusando-nos ao serviço militar, quer dizer, proclamando a guerra civil. O partido socialista quer acabar com as guerras nacionaes, substituindo-as pela guerra internacional, cujo ultimo resultado será a emancipação do proletariado.
Propômos a gréve geral, sobretudo nos officios e profissões, que tenham qualquer relação com a guerra, porque isso póde ser de grande utilidade.{116}
Com effeito, se, em caso de proclamação de hostilidades, os operarios fizerem tudo quanto poderem, para destruir as rêdes telegraphicas, os rails, as machinas, numa palavra para impedir o encontro dos exercitos, é claro que a guerra se tornará impossivel.
Apesar de tudo—concluia Domela Nieuwenhuis[5]—continuaremos a nossa propaganda, para fazer germinar a idéa da recusa de serviço em caso de guerra, acompanhada de uma grève geral. Esta idéa fará o seu caminho. O proletariado deve arriscar o seu sangue unicamente contra o seu unico e verdadeiro inimigo: o capitalismo.
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Para acabar com a guerra, propõe Michel Revon, pelo seu lado, e com elle outros notaveis pensadores, á frente dos quaes se encontra Frederico Passy, a arbitragem internacional. Atravessamos um periodo de transição—escreve elle[6]—que póde durar ainda dois ou tres annos, mas que não poderá prolongar-se. Em dez annos, ou a guerra geral terá arruinado a Europa, ou o militarismo se haverá{117} tornado impotente. A lucta entre o espirito da guerra e o espirito da paz, está por ora indecisa. O momento «psychologico» poderá surgir em 1894, como em 1895 ou em 1896.
Em 1900 é que não.
Segundo o criterio desenvolvido por Michel Revon no seu bello livro, a guerra teve outr'ora a sua rasão de ser. Foi já um phenomeno divino, mas é hoje um anachronismo e uma brutalidade sem nome. Em tres seculos os armamentos actuaes pertencerão aos museus archeologicos.
São precisos os exercitos permanentes, para quê?—Para que os ricos durmam descançados, como dizia Balzac?
É precisa a guerra para quê? Para devastar e exterminar a humanidade? N'esse caso, proclamem tambem as vantagens das epidemias que dizimam as populações e das grandes catastrophes que enchem de victimas as localidades.
A guerra só se justificava entre povos barbaros, em plena noite da historia.
Vergniaud pinta-nos effectivamente os povos, combatendo durante a noite, como amigos ou irmãos que se não conhecessem, mas promptos a abraçarem-se e a fraternisarem, desde que a luz, descobrindo-os, os tornou conhecidos uns dos outros.
Quem é que não conhece o obra prima de Proudhon:—a Justiça e a Vingança perseguindo o crime? A victima jaz por terra; o assassino foje; no ambiente azulado da noite, entrevêem-se, porém, as duas deusas agitando-se, terriveis e fataes, compasso{118} seguro e tranquillo; ellas sabem perfeitamente, as immortaes, que, cedo ou tarde, o criminoso lhes hade cahir nas mãos, porque nenhum ainda lhes escapou. Esta perseguição dramatisada do mal pelo direito, esta vibrante condemnação d'esse hediondo crime que se chama a guerra, esta passagem formidavel da vingança e da justiça de Deus, não é outra cousa, no fundo, senão a propria revolução da civilisação humana. É, n'uma palavra, a verdade suprema da historia, o seu principio de vida e o seu mais salutar ensinamento.
Para todos aquelles que, estudando a historia, observaram as duas tendencias que nos offerecem as civilisações da antiguidade—a tendencia para a paz e a tendencia para a guerra, n'uma lucta épica, semelhante á lucta entre a morte e a vida; para aquelles que, analysando o christianismo, as perturbações da edade média, e o esforço immenso do papado, chegaram emfim, aos tempos modernos, e á transformação dos Estados europeus, para esses não póde a arbitragem internacional apresentar a minima duvida, por isso que ella não é senão o resultado dos progressos alcançados pelo direito positivo moderno, que nol-a apresenta em nossos dias, na sua preparação social, na sua elaboração juridica e nas suas applicações.
A arbitragem é, no dizer de Revon, uma reforma absolutamente necessaria, muito possivel de realisar, mas, ao mesmo tempo, de uma difficuldade extrema, visto como a sua pratica depende não só de uma transformação moral, economica, juridica, e sobretudo do meio em que terá de se desenvolver,{119} senão tambem do funccionamento de uma jurisdicção internacional, sob todas as suas fórmas variadas, insensiveis, e necessariamente ligadas umas ás outras, desde a simples arbitragem facultativa até ao tribunal geral, no triplice ponto de vista da sua organisação, da sua competencia e do seu processo.
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«A guerra é um facto barbaro, e os exercitos são instituições barbaras, disse-o Victor Considérant. O principal dogma da republica democratica—Liberdade, Egualdade, Fraternidade—constitue, com a guerra e os exercitos, uma triplice contradicção. O progresso nos povos deve contribuir para o desapparecimento da guerra, transformando os exercitos destructores em exercitos productores.»
Herbert Spencer, no fim do terceiro volume dos seus Principios de Sociologia, resume do seguinte modo o seu profundissimo estudo sobre as instituições politicas:
«A possibilidade de um estado social superior, tanto em politica, como em geral, depende de um facto fundamental: a cessação da guerra. Tal é a conclusão mais importante a que chegam todas as partes do nosso trabalho. Depois de tudo o que dissémos, é inutil insistir ainda sobre os effeitos da persistencia do militarismo, o qual, conservando as instituições adaptadas ás suas necessidades, impede{120} ou neutralisa a transformação d'essas instituições ou d'essas leis n'um sentido mais equitativo, ao passo que a paz permanente ha de ser seguida necessariamente por melhoramentos sociaes de toda a especie.
«A guerra deu tudo o que podia dar. A occupação da terra pelas raças mais poderosas e intelligentes é um beneficio, já realisado em grande parte; o que está por conquistar não reclama senão uma cousa: a pressão crescente que exerce uma civilisação industrial sobre uma barbarie que recúa. A integração que fusiona grupos simples em grupos compostos, como resultado de um estado de guerra, e que conduz no fim de certo tempo á formação das grandes nacionalidades, é uma operação que parece ter tocado o seu termo. Os imperios formados de povos estranhos uns aos outros, desmembram-se ordinariamente, quando desapparece a força coerciva que os mantinha. E, ainda quando mesmo ficassem unidos, não poderiam jámais constituir um todo harmonioso. Uma federação pacifica é o unico processo de consolidação que se póde prevêr.»
Tal é a opinião do grande philosopho. Para elle a paz é o fundamento da moral.
Era esta tambem a opinião de Kant que consagrou a moral como a base de toda a politica. Em sua opinião, todo o direito civil, politico ou internacional constitue uma ligação entre duas vontades, e baseia-se no respeito reciproco das liberdades. Quer se trate de dois povos, quer de duas pessoas, o estado de guerra significa estado de natureza, e é um{121} dever sahir d'elle. Sob o ponto de vista da rasão, não ha senão um meio de tirar os Estados da situação violenta em que se encontram, renunciando á liberdade anarchica dos selvagens, e submettendo-os ao imperio de leis mais liberaes, afim de formar assim um Estado de nações (civitas gentium) que possa augmentar insensivelmente, até abraçar, pouco a pouco, todos os povos da terra.
Será chimerico este ideal de paz? Não, responde Kant, por isso que é obrigatorio.
E que terá de realisar-se, prova-o não só o inevitavel progresso do direito, senão tambem o progresso dos interesses.
Os interesses economicos deverão tornar a guerra impossivel. A natureza garante a paz, pelo simples equilibrio das paixões humanas.
A federação dos povos não será só o desarmamento dos reis e imperadores; será tambem o aniquilamento da guerra.
No dia em que todos os cidadãos souberem conciliar, no seu coração, a idéa de patria e a idéa de humanidade, n'esse dia a paz pela federação haverá triumphado definitivamente no mundo.
O que torna os povos inimigos uns dos outros, é o sentimento de nacionalidade, levado até á barbarie. Mas o homem moderno é essencialmente cosmopolita. O amor pela patria não exclue o amor da humanidade. Ao contrario, estes dois sentimentos completam-se e identificam-se, num mesmo ideal e n'uma mesma aspiração de progresso. Da comprehensão d'este principio deriva, a nosso ver, toda a moderna philosophia social.{122}
Dir-nos-hão, talvez, que não somos patriotas. A esta accusação responde Alfredo Naquet, o grande e glorioso pensador, n'uma soberba carta que nos dirigiu, a proposito da Federação Iberica:
«Não! se o patriotismo é feito de um espirito estreito e sectario, e á custa do odio dos outros povos e de aspirações militares—eu não sou patriota.
«Mas se o patriotismo consiste em amar profundamente o paiz onde nascemos, e onde exercemos a nossa actividade, n'esse caso sou patriota.
«Amo apaixonadamente a França. Amo-a porque foi no seu espirito que moldei o meu cerebro, e porque as minhas aspirações, os meus sentimentos, e os meus instinctos, n'ella se desenvolveram; amo-a porque ella constitue um factor indispensavel do grande trabalho humano; e, mesmo por cosmopolitismo, teria ainda de ser patriota. Amo-a bastante para tudo sacrificar por ella e pela sua defesa no dia em que fosse necessario—a minha fortuna, a minha liberdade e a minha vida.
«Mas estou convencido que a patria europeia será{123} tão superior ás patrias de hoje, como a França o é á Borgonha, a Hespanha á Andaluzia, e o Reino-Unido á Inglaterra ou á Escocia.
«E, no dia em que fôr possivel substituir a patria nova ás antigas patrias, sem prejuizo do amor e das homenagens que estas nos merecem, n'esse dia, entre o que foi grande e o que deverá ser ainda maior, a minha escolha far-se-ha sem hesitação.
«Não tenho a esperança de assistir a esse espectaculo radioso. É provavel, quem sabe? que eu morra francez, pensando quasi exclusivamente, além das minhas meditações philosophicas, na defesa, na grandeza e na prosperidade d'este bello e nobre paiz. Mas invejo aquelles que tiverem de assistir á creação dos Estados-Unidos da Europa.»
E pensam assim todos os grandes pensadores modernos. No estabelecimento de uma Federação occidental, baseava Littré toda a politica do futuro. Emile de Laveleye conclue o seu bello livro La Démocratie, pela apologia de uma federação fraternal. Federalista foi Garibaldi, que presidiu, em 1867, ao primeiro congresso da Liga Internacional da paz e da liberdade; federalista foi Mazzini; federalista foi Victor Hugo. São federalistas todas as sociedades de paz, que, presentemente, existem e funccionam. Em Italia, como em Hespanha e Portugal, o federalismo ganha terreno de dia para dia. O proprio sr. Crispi, actual presidente de conselho de ministros, declarava, n'um dos seus ultimos discursos que era para a federação que os povos caminhavam. Em França, são muitos os partidarios da federação. Citemos, principalmente, dois—um por{124} ser o representante destas idéas no parlamento, e outro por ser, na imprensa, o seu glorioso interprete. Refiro-me a René Goblet e a Augusto Vacquerie.
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Para bem se apreciar esta altissima personalidade, seria necessario fazer a historia da politica franceza d'estes ultimos vinte annos. Eleito deputado á Assembléa Nacional em 1871, Goblet nunca mais deixou de pertencer ao parlamento, a não ser no periodo que decorreu desde as eleições geraes de 1889 até á sua eleição para o senado em 1891.
Goblet pensa, e muito bem, que a republica é mais alguma cousa do que uma simples mudança de pessoal governamental, e que deve, sob pena de morte, tirar todas as consequencias do seu principio, correspondendo plenamente á confiança que o povo n'ella deposita. E eis ahi o motivo porque não duvidou aproximar-se dos socialistas. Mudar de instituições, unicamente{125} para beneficiar meia duzia de favorecidos de um dado partido ou de uma determinada politica, é cousa que não póde merecer o sacrificio do povo. Se, com a mudança de instituições, se não póde, ao mesmo tempo, reorganisar economicamente a sociedade ou remodelar o seu modo de ser social, a transformação é esteril e sem resultado.
Assim pensa Goblet, e assim deveriam pensar todos os que sinceramente amam os principios republicanos.
«Duas especies de politica são possiveis—dizia elle n'um dos seus maravilhosos discursos: a politica conservadora e a politica de progresso, que consiste em realisar as reformas politicas, sociaes, economicas, financeiras e administrativas, que, em todos os tempos, foram consideradas, como que o programma necessario da democracia republicana.»
Goblet é republicano socialista, e é, na actual camara franceza, um dos chefes mais authorisados do glorioso grupo a que pertencem Millerand, Jaurés, Rouanet, etc., e que pretende a revisão immediata da Constituição e a discussão e approvação de alguns dos primeiros artigos do programma socialista.
É tambem federalista convicto, e um d'aquelles que acreditam que é no estado federativo que reside o futuro para as nações da Europa. O problema da guerra só no principio federalista poderá encontrar a sua solução logica e natural. É esta a sua opinião que muito o honra e a que eu não posso deixar de prestar a minha respeitosa e profunda homenagem.{126}
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Augusto Vacquerie é, em França, o continuador da obra de Victor Hugo. Jornalista primoroso, poeta e escriptor dramatico applaudidissimo, a sua vida podia e devia servir de modelo a todos os que ás letras e á politica se consagram. É um puro, na verdadeira accepção da palavra, e nunca jámais a ambição maculou os seus principios ou a vaidade toldou as suas aspirações. Propugnador das doutrinas do Mestre, tem sempre defendido, com enthusiasmo e ardôr, o bello e supremo ideal da creação dos Estados Unidos da Europa, como meio de pôr um termo aos conflictos internacionaes e de levar os povos á fraternisação universal, pela pratica e realisação dos principios federaes.
Augusto Vacquerie é hoje, na Europa, um dos principaes e um dos mais brilhantes apostolos da{127} federação latina, e, como premissa, da federação iberica. É d'aquelles que acreditam como nós, que só pelo federalismo poderemos chegar á suppressão dos exercitos permanentes, e, consequentemente, á suppressão da guerra.
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A federação dos povos tornará a guerra impossivel. Mas, emquanto a federação se não realisa, urge estabelecer a arbitragem internacional, como meio pacificador. Está ainda na memoria de todos a decisão que o tribunal de arbitragem, constituido pelo tratado de Washington, deu ácerca das reclamações do Alabama. O conflicto levantado entre os Estados Unidos e a Inglaterra foi assim regulado de uma maneira pacifica. O governo inglez acatou a sentença, sendo obrigado a pagar ao governo americano uma indemnisação de 75 milhões de francos.
Ora, se a questão do Alabama poude assim ser resolvida, sem derramamento de sangue, porque não hão de resolver-se, pelo mesmo processo, todas as questões internacionaes?
Sob o ponto de vista juridico e sob o ponto de vista politico, é pois, evidente a necessidade da arbitragem: sob o ponto de vista juridico, porque, sem um systema de arbitragem, o direito das gentes é um edificio incompleto; sob o ponto de vista{128} politico, porque a situação actual exige manifestamente uma solução.
Mas os systemas é que variam; havendo uns que advogam a jurisdicção internacional facultativa, outros que defendem a creação de tribunaes internacionaes especiaes, outros ainda que são por um tribunal internacional geral desprovido de sancção, e os ultimos que acceitam o tribunal internacional geral, mas com sancção.
Poderá, porém, realisar-se a arbitragem internacional, independentemente da ideia de federação?
Opinam uns pela affirmativa, sendo outros de opinião que só, pela constituição dos Estados Unidos da Europa, poderemos chegar á realisação effectiva e immediata da arbitragem.
O sabio professor, Emile de Laveleye publicou, em 1873, um interessante estudo, sobre as causas actuaes da guerra na Europa, concluindo pelo estabelecimento de um tribunal internacional. Dois eram os meios aconselhados pelo eminente publicista, para acabar com o flagello da guerra: em primeiro logar, mostrando aos povos e convencendo-os, que, em nenhum caso, teriam a ganhar com{129} a guerra, e, em seguida, realisando duas grandes reformas juridicas: a elaboração de um codigo internacional e a creação de um tribunal para o applicar. Este tribunal seria permanente, reunindo-se todas as vezes que se levantasse um conflicto internacional, tendo a sua séde na capital de um paiz neutro—a Suissa ou a Belgica—e sendo composto dos representantes diplomaticos das potencias, coadjuvados por juristas versados na sciencia do direito das gentes.
Laveleye era um apostolo da ideia federativa, e propunha este alvitre, por o considerar de mais facil acceitação por parte dos governos actuaes.
Para aquelles que admittem o principio federalista, o tribunal internacional não deve ser senão um dos orgãos do futuro estado juridico. Quatro são as instituições, essenciaes a este systema: uma convenção federativa, que garantisse ás nações associadas a soberania e a autonomia de cada uma; uma lei, livremente votada por todas essas nações, e pela qual seriam julgados todos os conflictos, litigios e difficuldades que se levantassem entre ellas; um tribunal, com membros eleitos por estas mesmas nações, que pronunciasse a sentença em ultimo recurso sobre as questões que lhe fossem submettidas; e um poder executivo, tambem livremente eleito por todas as nações, encarregado de assegurar a execução da lei e as determinações do tribunal. Os partidarios d'esta doutrina não visam sómente, por este systema, a aperfeiçoar o direito internacional ou a estabelecer uma jurisdicção internacional obrigatoria; vão mais alêm e chegam a{130} um resultado final pela creação dos Estados Unidos da Europa.
A guerra é um crime, condemnado pela moral, pelo direito e pela philosophia social.
A sciencia e o trabalho exigem o seu desapparecimento immediato.
Como?
Pela arbitragem internacional e pela federação. Entre estados confederados, a solução impor-se-hia sem difficuldade. Na espectativa porém, e, em caso de guerra, é dever appellar para a arbitragem, sempre que o permittam as circumstancias especiaes dos paizes, cujos interesses se degladiam.
«Ou o desarmamento ou a ruina!»
—É este o dilemma que se levanta, sinistro e ameaçador, ante as potencias da Europa, cada dia mais sobrecarregadas com a contribuição de guerra.
Se tal estado continua por mais dez annos, os receios de guerra haverão desapparecido, dizia Liebknecht e muito bem; o resultado será, então, a ruina geral, e, como consequencia ainda, a revolução social triumphante e generalisada a todos os paizes.
Bem sabemos nós que a arbitragem internacional ha de triumphar e ha de estabalecer-se no mundo, como uma consequencia logica da federação. Mas, emquanto o actual estado de cousas subsistir, não seria demais que as nações submettessem as suas contendas a um tribunal arbitral, imitando, d'este modo, a Inglaterra e os Estados Unidos da America, na questão Alabama.
Isto seria possivel, e isto seria, principalmente, humanitario.{131}
O espirito moderno detesta a guerra. Só o trabalho liberta. Só a paz emancipa. Convertamos os exercitos da destruição em exercitos da producção e da abundancia.
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Depois da morte do general Eudes, e, ainda mais, depois da scisão que se deu no partido blanquista, por causa do boulangismo, ficou sendo Eduardo Vaillant o chefe incontestado do partido communista revolucionario, que preconisa o emprego da acção, da força, da propaganda pelo facto, para conquistar o poder e fazer cessar as iniquidades sociaes.
Sob a sua iniciativa, porém, a concepção do velho Blanqui parece haver passado por uma especie de transformação. O movimento insurrecional de 1871, deixára no espirito de Vaillant uma impressão profunda e inextinguivel.
Vaillant não limita o seu communismo ás forças productoras e a repartição dos productos, segundo as necessidades de cada um, vae até á organisação da communa de Paris, como primeiro passo para o estabelecimento da nova ordem social.
Na sua profissão de fé, encontra-se esta ideia, profundamente accentuada:
«É mister dar ao paiz, emancipado da tyrannia administrativa, policial e judiciaria, como elemento{132} do seu organismo politico, a organisação communal e cantonal, dando a Paris a liberdade communal, e fazendo-a entrar no direito commum, pelo restabelecimento da Communa de Paris.» Mais adeante pede, «que a communa seja senhora da sua administração, das suas finanças, e da sua policia.»
A vida politica de Vaillant, começou no anno terrivel. Regressando da Allemanha, por occasião da declaração de guerra, fez parte da communa, refugiando-se depois em Inglaterra.
A amnistia trouxe-o novamente a França, em 1880.
Ao lado de Blanqui que os eleitores de Lyon e Bordeaux haviam arrancado á prisão, Vaillant prosegue na sua obra revolucionaria, organisando o comité central revolucionario e sendo um dos fundadores do jornal—Ni Dieu ni Maitre, que pouco tempo poude resistir ás forças combinadas da policia e da reacção.
Foi eleito conselheiro municipal em 1887, 1890 e 1893, e é hoje um dos deputados socialistas de Paris.
Foi elle o auctor de um importantissimo projecto de lei apresentado ultimamente, em nome do partido{133} socialista, á camara dos deputados sobre a suppressão do exercito permanente e a sua transformação progressiva em milicias nacionaes.
Artigo primeiro.—É supprimido o exercito permanente.
«Esta suppressão far-se-ha pela transformação immediata e rapida do exercito permanente em milicias nacionaes, de modo que o poder defensivo da nação, longe de diminuir, pelo contrario se eleve e augmente, até ao ponto de poder pôr em acção integralmente todas as suas forças. A defeza do paiz e da Republica, da sua independencia e das suas liberdades, tornar-se-hia, assim, invencivel.»
É a renovação do projecto de Blanqui e de Gambon.
«A Republica franceza, pela transformação democratica das suas instituições militares, deve pôr-se ao abrigo de todos os perigos de guerra ou de invasão, e de toda a ameaça de intervenção ou influencia de qualquer inimigo estrangeiro. Para esse fim, devem ser educadas, exercidas e organisadas todas as suas forças, e aproveitados todos os cidadãos validos.»
O desarmamento só poderá realisar-se, em virtude de um accôrdo, feito e acceite pelas differentes potencias. Não se concebe que uma nação desarme, ficando á mercê de nações inimigas e armadas. Seria um contrasenso e uma leviandade sem nome.
O notavel criminalista italiano, N. Colajanni, termina o capitulo da guerra e do militarismo, da sua Sociologia criminale, pelas seguintes, conceituosas palavras:{134}
«Em resumo: a guerra e o militarismo engendram o desgosto de todo o trabalho util; favorecem a tendencia para a preguiça; despertam no soldado novas necessidades, sem os meios necessarios para as satisfazer; excitam os primitivos instinctos, ferozes e egoistas, transformam o respeito do direito em respeito exaltado pela força bruta; conduzem ao servilismo e á prepotencia; e, por vias directas e indirectas, levam á miseria, ao suicidio, á alienação mental e ao crime.—Taes são os tristes resultados d'estas instituições sinistras, deduzidos das provas historicas e estatisticas.
N'uma palavra—conclue o illustre e honrado socialista—«o militarismo constitue a verdadeira escola do crime.»
O eminente escriptor e philosopho russo, Léon Tolstoi, é de opinião que a principal origem da guerra deriva da actual ordem social, baseada sobre a violencia. A organisação militar dos estados modernos está toda concentrada nas mãos dos governos, que não desejam perder o monopolio, servindo-se para isso de meios poderosos, taes como o terrorismo, o egoismo, a disciplina militar, etc.
A guerra, apesar de iniqua, não poderá nunca ser destruida, senão pela educação, generalisada a todos os paizes. Quando a maioria dos povos reconhecer que a guerra é injusta, n'esse dia cessará a guerra. Esta revolta do direito e da justiça contra a força e a violencia, está certamente destinada a fazer algumas victimas; mas, como todas as idéas nobres e generosas, penetrará, pouco a pouco, nas consciencias e acabará por triumphar.{135}
Em Paris, publicou-se recentemente um livro interessantissimo de A. Hamon, o sabio socialista, sobre a psychologia do militar de profissão, que não podemos deixar de mencionar n'este logar, por ser de uma actualidade palpitante.
O dr. Hamon parte do principio de que a criminalidade legal é infima, quasi inapercebivel, relativamente á criminalidade occulta.
O fim da profissão militar é a guerra, e toda a guerra implica necessariamente a violencia, manifestando-se por assassinatos, violações, pilhagens e incendios.
Os individuos que escolhem esta profissão, fazem-n'o levados pelo seu interesse pessoal. Taes individuos sentem-se predispostos para a violencia pela sua organisação psychica, resultante do seu organismo physiologico, pelo meio em que vivem e pela sua educação profissional.
O livro de A. Hamon é a justificação da Delenda Caserna do capitão Siccardi. Estabelece a superioridade moral dos exercitos nacionaes sobre os exercitos profissionaes. Nos primeiros encontra-se maior respeito pela dignidade humana, e isto basta para que se não registem os actos de grosseria, de brutalidade e de violencia, que se registam ordinariamente nos segundos.
«O militarismo é a escola do crime!»—tal é a conclusão a que chega Hamon no seu bello estudo de psychologia social.
Quando é, porém, que os povos poderão celebrar, no mundo, o supremo beneficio da paz, do amor e da concordia?!{136}
Quando é que o homem se libertará, por completo, dos velhos prejuizos selvagens e das antigas e barbaras tradições?
Quando soará a hora da completa maioridade e da completa emancipação?
A humanidade caminha,—lentamente, é certo!—mas caminha...
Confiemos no futuro!{137}
Relativamente ao trabalho das mulheres nas fabricas, o congresso de Zurich adoptou as seguintes resoluções, promettendo envidar, n'esse sentido, todos os esforços dos seus delegados:
—Dia de trabalho maximo de dez horas para as mulheres, e de seis horas para as jovens de menos de dezoito annos;
—Descanço semanal de trinta e seis horas consecutivas;
—Prohibição do trabalho nocturno;
—Prohibição do trabalho das mulheres em todas as industrias insalubres;
—Prohibição do trabalho das mulheres nos quatro{138} mezes seguintes ao parto e nos dois ultimos mezes de gravidez;
—Creação dos logares de inspectoras de fabricas, em numero sufficiente á efficaz vigilancia de todas as officinas, onde se empreguem mulheres;
—Applicação d'estas disposições a todas as mulheres empregadas nas fabricas, officinas, armazens e na industria domestica e agricola.
De futuro reclamar-se-ha formalmente a equiparação dos salarios das mulheres, conforme o seu trabalho.
A situação da mulher, na sociedade, constitue evidentemente uma das questões mais importantes do nosso seculo, e reclama por isso um estudo especial. A população da Europa, é formada, na sua maioria, por mulheres. D'ahi a sua importancia, e o grande numero de opiniões, formuladas, ácerca da sua condição. Pensam uns que é a vocação natural da mulher que determina a esposa, a mãe e a dona de casa. Mas esquecem que, apenas, uma parte minima da população feminina está no caso de preencher os seus deveres. Contam-se por milhões, as mulheres que nunca poderam ser nem esposas, nem mães, nem donas de casa, e muitas outras que nem sequer poderam satisfazer a esta vocação natural, sendo, como é, o casamento, para ellas, uma escravidão, graças ás condições da industria moderna. Outros reclamam o accesso da mulher a todos os ramos do trabalho, manual e intellectual, e outros vão ainda mais longe pedindo que lhes sejam tambem conferidos direitos politicos.
Na opinião de Bebel, este assumpto está intimamente{139} ligado á questão social. A sua solução, assim como a da questão operaria, é impossivel, emquanto não forem radicalmente transformadas as condições do actual estado social.[7]
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Os defensores da ordem actual dizem e sustentam que o casamento é a base da familia, esta a base do Estado, e que, por conseguinte, atacar o casamento o mesmo é que atacar a sociedade e o Estado.
Perguntaremos, em primeiro logar, qual dos casamentos é o mais moral?
Será o casamento forçado, o casamento venal da sociedade actual, ou o casamento livre, fundado sobre o amor e a estima reciproca, e que, de resto, não poderá realisar-se senão n'uma sociedade socialista?
O casamento dos nossos dias, que é um resultado{140} de considerações puramente materiaes, está intimamente ligado á sociedade actual e destinado a cahir com ella. A lucta pela existencia, tornando-se, de dia para dia, mais acerba, transformou o casamento n'um acto de perfeita especulação mercantil.
A prostituição é, pois, uma instituição necessaria á sociedade burgueza, e tão necessaria como a policia, o exercito permanente, a egreja, etc.
Na Grecia, em Roma e na Edade-Média, a prostituição era organisada pelo Estado, e Santo Agostinho chegou mesmo a affirmar a sua necessidade. A sociedade burgueza, não só a julgou indispensavel, senão tambem a regulamentou.
Hügel, na sua historia sobre a Estatistica e regulamentação da prostituição em Vienna, exprime-se do seguinte modo:
«Com os progressos da civilisação, a prostituição transformar-se-ha, adoptando uma fórma mais doce e mais conveniente, mas existirá emquanto existir o mundo.»
Quaes são as consequencias d'este estado de cousas?
As doenças syphiliticas e a degeneração da humanidade que d'ellas resulta.
O abaixamento progressivo da moral.
A humilhação da mulher e a sua escravidão.
O infanticidio e o suicidio das mulheres são devidos, em grande parte, á prostituição, devendo ainda accrescentar-se que são os orphãos e os filhos bastardos que constituem, tambem, em grande parte, os criminosos da nossa sociedade burgueza.{141}
A sociedade inteira encontra-se em estado de enervamento e de excitação, sendo a mulher a victima.
Mulheres ha que sentem e vêem claramente a situação, e procuram remedial-a. Reclamam primeiro a sua independencia economica. Pretendem ser admittidas em todos os trabalhos e em todos os empregos que a sua força physica e a sua capacidade moral lhes permittem; pedindo, sobretudo, o accesso ás chamadas profissões liberaes.
Serão justas e realisaveis semelhantes tendencias?
É isso o que procuraremos demonstrar.
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O casamento, na antiguidade, era fundado sobre o despreso e a escravidão da mulher; o casamento christão tinha, por principio, a inferioridade e a servidão da mulher; o casamento burguez actual baseia-se sobre a unica conveniencia dos interesses mercantis e ainda na subordinação da mulher. Pela primeira d'estas fórmas matrimoniaes, o filho era para o pae uma simples cousa; pela segunda, o seu servo; e pela terceira quasi se póde dizer que continua sem direito. É indispensavel libertar a mulher e conceder direitos aos filhos. O casamento futuro terá, por condição, a escolha revogavel dos interessados, escolha livre e baseada unicamente sobre as affinidades intellectuaes, moraes e physicas. Assim{142} ficarão assegurados a felicidade e o aperfeiçoamento dos conjuges; assim poderá effectuar-se a perpetuação da especie nas melhores condições moraes e physicas[8]
Todos os socialistas dos partidos operarios são partidarios da emancipação da mulher, e da manutenção e educação dos filhos pela Communa ou pelo Estado. A unica divergencia está em saber se, de futuro, as uniões deverão ou não ser consagradas pela lei, admittindo todos que devem ser fundadas sobre a livre escolha dos affectos.
O inconveniente da familia actual não é, como querem alguns, a monogamia que deve considerar-se a fórma mais digna da união dos sexos e que subsistirá, atravez de todas as reformas e innovações. É antes, a sua quasi indissolubilidade, a subordinação legal da mulher, e o rebaixamento do sentimento, pela preoccupação de um mercantilismo vil que preside aos actos conjugaes.
O congresso internacional de Bruxellas de 1891 affirmou, no seu programma, a egualdade completa dos dois sexos, e reclamou para a mulher os mesmos direitos civis e politicos, concedidos aos homens. Como esposa, como mãe de familia, como trabalhadora, a mulher é tão interessada como o homem, na confecção das leis. A humanidade compõe-se, por egual, de homens e mulheres, inseparaveis em direitos e eguaes perante a justiça.{143}
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A burguezia, diz Bebel, concedeu á mulher a independencia individual e o direito ao trabalho: resultou d'aqui a sua admissão em quasi todos os ramos da industria.
A burguezia reconheceu que era esse o seu interesse, por isso que o trabalho da mulher é menos retribuido que o do homem.
E isto porquê?
Porque a mulher foi sempre considerada como um ser subordinado, inferior ao homem, por causa das suas particularidades sexuaes. Sendo muitas vezes forçada a suspender o seu trabalho, os capitalistas exploraram habilmente essa circumstancia, como pretexto para o abaixamento do salario.
Além d'isso, a mulher é mais docil, mais paciente que o homem, deixando-se tambem explorar mais facilmente do que elle.
D'este modo, a mulher substitue o homem, e, é, por seu turno, substituida pela creança.—Tal é «a ordem moral» na industria moderna.
Em vista de semelhantes abusos, tem-se já pedido a prohibição completa do trabalho da mulher.
Não esqueçamos que o machinismo representou um papel importante na transformação industrial e que foram justamente os progressos do machinismo, que, supprimindo os trabalhos mais rudes, tornaram{144} possivel o emprego da mulher em certos ramos da industria.
Só um limitado numero de pessoas, porém, graças ao auxilio dos seus capitaes, podem aproveitar os resultados que as descobertas scientificas trouxeram á sociedade; e é revoltante que milhares de operarios sejam lançados á margem, em virtude dos progressos do machinismo que substituiu o trabalho manual.
Resulta de tudo isto, que se torna indispensavel mudar as actuaes bases sociaes, procurando-se a fórma de uma distribuição mais equitativa dos bens e dos instrumentos de trabalho.
Na sociedade nova, os instrumentos de trabalho serão propriedade de todos, sem distincção de classes nem de sexos. Cada um será obrigado a trabalhar, e os melhoramentos e as descobertas technicas a todos aproveitarão.
A mulher tornar-se-ha egual ao homem, podendo exercer e desenvolver as suas qualidades physicas e intellectuaes e gosar de todos os seus direitos.
Sustentam alguns que a mulher é inferior ao homem, sob o ponto de vista intellectual, e que não é susceptivel de uma elevada cultura, sendo, como é, o peso do seu cerebro inferior ao do homem.
Se a mulher é hoje menos intelligente que o homem, provém isso de haver sido descurada a sua educação. Quanto ao cerebro, não é o peso que lhe é necessario, mas a boa organisação e o exercicio. Averiguou-se, além d'isso, que, em muitos homens notaveis, o peso do cerebro era quasi egual á média dos cerebros femininos.{145}
No dia em que a mulher fôr tão instruida, tão educada e tão desenvolvida, como o homem, n'esse dia terá proclamado a sua emancipação, pela conquista dos seus direitos civis e politicos, e pela equiparação do seu salario ao do homem, em todos os ramos da industria.
Para esse estado caminhamos. Na vida da familia, tem-se operado, n'estes ultimos cincoenta annos, uma verdadeira revolução. A mulher tornou-se mais livre, e está menos adstricta ás funcções de dona de casa. Com o andar dos tempos chegará a emancipar-se completamente.
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Na sociedade nova, a mulher, gosando de inteira independencia, não estará mais exposta a qualquer dominio ou exploração, e tornar-se-ha a egual do homem. Receberá a mesma educação que o homem, excepto nas especialidades em que a differença de sexo exige uma cultura especial. Como o homem, ella poderá pois, desenvolver livremente as suas forças, as suas capacidades physicas e intellectuaes, e escolher, para a esphera da sua actividade, o que fôr conforme aos seus gostos e ás suas aptidões.
Pelo que respeita ao amor, a mulher gosará de tanta liberdade como o homem. Poderá, pelos mesmos titulos, manifestar os sentimentos que elle lhe inspirar. Na sua união, não será guiada senão pelo{146} amor, como nos tempos primitivos. Tal união dependerá de uma simples combinação particular, sem o concurso de nenhum funccionario, com a differença de que a mulher deixará de ser a escrava do homem e não lhe será dada como um presente ou uma mercadoria.
Devemos pois, trabalhar para esse futuro proximo que ha de inaugurar o regimem das uniões monogamicas, livremente contractadas, e, em ultimo caso, tambem livremente dissolvidas, por simples consentimento mutuo, á semelhança do que se faz já hoje com os divorcios, nos diversos paizes europeus, em Genebra, na Belgica, na Roumania, etc., e com a separação na Italia.
O discernimento, a instrucção e a independencia facilitarão as uniões. No caso em que a antipathia, o desgosto, e a incompatibilidade de genio succedessem ao amor, entre o homem e a mulher, a moral impôr-lhes-hia o dever de romperem uma união, que, não sendo já baseada sobre o affecto, se havia tornado anormal.
N'uma palavra, sendo supprimida a herança, os casamentos de mero interesse deixarão de ter uma razão de ser.
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As mulheres francesas acabam de alcançar a sua primeira victoria, no campo politico: o senado adoptou, em primeira leitura, um projecto de lei que{147} concede á mulher o direito de participar, como eleitora, na formação dos tribunaes de commercio. Se a camara partilhar esta opinião, de hoje em deante as mulheres commerciantes poderão nomear os seus juizes.
A 3 de dezembro de 1883, a camara dos deputados tinha de examinar a nova lei que lhe era proposta, sobre a eleição dos juizes consulares. A commissão das petições, havia recebido de Madame Maria Deraismes uma petição, pedindo para que fosse extendido ás mulheres este direito de suffragio. O relator introduziu effectivamente, na lei, uma emenda, assim concebida: «Os membros dos tribunaes de commercio serão eleitos pelos commerciantes e pelas commerciantes...» A commissão, porém, por rasões de simples opportunidade, não adoptou esta emenda.
Na sessão de 11 de Março de 1884, o deputado Hubbard apresentou um novo projecto, em que se propunha «que as mulheres commerciantes tinham pela lei obrigações e encargos especiaes inherentes á qualidade da sua profissão. A commerciante paga, como o commerciante, um imposto especial, a patente; está submettida ás disposições rigorosas da lei commercial; póde ser declarada fallida e póde ser perseguida por quebra fraudulenta. É impossivel citar uma unica das obrigações impostas aos homens que lhe não incumbam. Estando submettida aos mesmos deveres especiaes, é justo que aproveite dos direitos especiaes que a lei confere ao commerciante. E desde que ao commerciante é dado eleger os magistrados que teem de julgar as suas causas,{148} á commerciante, sob pena de inferioridade, não póde deixar de ser concedido o mesmo direito.»
O relator terminava, affirmando que as mulheres que teem a direcção e a responsabilidade de um estabelecimento commercial, assignalam-se, em geral, mais que os homens, por qualidades de ordem, de economia e de probidade.
A 17 de fevereiro, a camara dos deputados tomava em consideração um relatorio do sr. Colfavru favoravel aos direitos civis da mulher.
Finalmente, em junho de 1889, Ernesto Lefèvre, vice-presidente da camara, com mais 53 dos seus collegas, renovou a iniciativa da proposta, que tinha por fim conferir ás mulheres o eleitorado nos tribunaes de commercio. A camara tomou-a na devida consideração, elegendo-se uma commissão de 9 membros, todos favoraveis ao projecto, e, sendo votada a lei, depois de approvado o relatorio do sr. Colfavru.
Após quatro annos e meio de demora, acaba tambem o senado de dar o seu assentimento ao projecto. O tempo pouco faz ao caso. O importante a registrar, foi o triumpho obtido pelas mulheres, triumpho que não será certamente o ultimo, e que é, porventura, o primeiro de uma longa serie de outros a contar e a celebrar.
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Entre as mulheres que, em França, mais se teem distinguido na gloriosa campanha, em favor da emancipação{149} da mulher, seria ingratidão esquecer Madame Paule Mink, que, ainda nas ultimas eleições, foi apresentada como candidata á deputação por Paris.
Conheci-a, em Madrid, por occasião do centenario de Colombo. Era delegada ao congresso dos livres pensadores e fôra-me recommendada por Benoit Malon e P. Argyriadés.
Modesta, despretenciosa e dedicada, Madame Paule Mink tem sido para muitos uma incomprehendida, mas é seguramente para todos um bello e luminoso talento, engastado n'um coração de oiro.
Quem a visita, na sua casa de Paris, encontra-a sempre rodeada das suas gentis filhas que estremece e adora, e absorvida pela leitura dos seus authores predilectos. É uma mãe disvelada e terna e uma companheira leal e affectuosa.
Madame Paule Mink fez parte da Communa de Paris, e ainda ultimamente, por occasião da greve de Pas de Calais, foi presa, no momento em que se preparava para fazer uma conferencia, e depois julgada e condemnada.
As perseguições teem-lhe avigorado ainda mais, se{150} é possivel, as convicções purissimas. Nada a contraria e nada a desalenta. Faz consistir toda a sua felicidade, no amor de seus filhos e na dedicação pela causa a que se entregou de corpo e alma. É uma altruista, no bom e verdadeiro sentido da palavra. Não conhece obstaculos e não conhece sacrificios. Nem as privações, nem as difficuldades da vida, lograram jámais perturbar-lhe o animo ou aniquilar-lhe a vontade indomavel. Não é só uma mulher forte; é tambem um grande e superior caracter, e, n'este duplo aspecto, reside o segredo do seu poder, como evangelista e como propagandista da causa social.
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Não encerraremos já agora este capitulo, sem prestar uma homenagem devida a P. Argyriadés, pelo serviço que prestou á democracia socialista, com a traducção analytica da bella e gloriosissima obra de Augusto Bebel—A mulher e o Socialismo.
Alto, forte, robusto, dotado de um temperamento excepcional e de qualidades verdadeiramente superiores, Panagiotis Argyriadés nasceu em Castoria, na Macedonia, a 15 de agosto de 1852. Em 1872, installou-se em Paris, fazendo-se inscrever na faculdade de direito. Em 1878, assistiu, como representante da Grecia, ao congresso dos orientalistas que se realisou n'aquella cidade, e, no anno seguinte, ao de Londres, tambem como delegado do seu paiz. Em{151} 1875, publicou um interessante opusculo sobre a Pena de morte, considerada sob o ponto de vista philosophico, moral, legal e pratico, que teve as honras de ser citado, na tribuna do senado, por Victor Schoelcher. Foi depois d'esta bella estreia que se entregou inteiramente ao socialismo. Naturalisou-se francez, em 1880; e d'esta época em diante, assignalou-se no fôro, pela defeza de muitas causas importantes que, ao mesmo tempo, lhe grangearam renome e gloria. Em 1883, foi elle quem organisou a manifestação em honra de Flourens; mais tarde, foi ainda, pela sua iniciativa, que se provocou o protesto publico contra a chegada a Paris do rei Affonso XII que acabava de ser nomeado coronel de uhlanos. Em 1885, fundou La Question Sociale, a popularissima revista que todos conhecem e que tão relevantes serviços tem prestado aos principios socialistas.{152}
O Almanach de la Question Sociale que é o melhor, no seu genero, que se publica na grande capital da França, vae já no seu quarto anno, e foi fundado com eguaes intuitos e eguaes aspirações. É um excellente repositorio do actual movimento socialista, e recommenda-se a todos os que se interessam pelo estudo e pela solução dos problemas sociaes.
Tambem lhe é devido o numero commemorativo da Manifestação do 1.º de Maio que, nos dois ultimos annos, se publicou em Paris.
P. Argyriadés reside em Autenil, numa deliciosa e aprasivel vivenda, a vinte minutos dos Campos Elyseos. A sua casa é o ponto de reunião de todos os escriptores e pensadores socialistas. Foi ali que eu, pela primeira vez, travei conhecimento com Allemane, um glorioso trabalhador e um chefe incontestado; foi ali, em almoços intimos, e numa dôce e pura confraternidade, que tive o inolvidavel prazer de estreitar relações com alguns dos principaes vultos do socialismo moderno—com Pierre Lavroff, o honrado revolucionario russo, um convicto e um fanatico; com Adolphe Tabarant, o auctor do Pequeno cathecismo socialista, um poeta adoravel, e um espirito vivo e scintillante; com Paul Cassard, o intrepido e valente redactor do Peuple, de Lyon; com Aurelien Scholl, o mais delicioso e original conversador que temos encontrado, a prosa transformada em arte, a palavra feita esculptura; com Sanial, um americano, trazendo ao socialismo as lições da sua experiencia e as observações da sua longa pratica na vida; com Duc-Quercy, tão{153} attrahente pela sua physionomia energica e communicativa, como pelo seu caracter firme e decidido; e com tantos outros cujos nomes constituem a immensa e gloriosa pleiade de publicistas, de revolucionarios e de combatentes que bem poderiamos denominar a ala dos namorados do Bem, da Verdade e da Justiça.
A estas pequenas festas de familia preside de ordinario uma senhora que occulta, sob o pseudonymo de Marianne, um bello e juvenil talento de escriptora, e que, além de mãe disvelada e de esposa extremosa, é tambem a companheira gentilissima do nosso querido e honrado amigo: é M.me Argyriadés.
Juntos os dois esposos formam como que um nucleo de propaganda socialista, de uma influencia decisiva e de um largo e elevado alcance. O socialismo internacional e cosmopolita não tem, seguramente, em França, melhor vulgarisador nem mais dedicado e intelligente apostolo!{154} {155}
Já n'outro logar o dissémos: o socialismo desenvolve-se, por toda a parte, de uma maneira espantosa. Nas eleições geraes para deputados, de 1889, obteve o partido socialista, em França, 90:000 votos nas ultimas eleições de 1893, elevou-se essa votação a 500:000 votos, cabendo a Paris 226:000. Na Inglaterra, o paiz do individualismo, conseguiram os socialistas levar ao parlamento onze deputados, na eleição de 1892. A limitação das horas de trabalho e a garantia obrigatoria nos accidentes, são uma prova provada da importancia e da influencia d'esse grupo, na camara dos communs. Na Austria, e especialmente na Bohemia e na Silesia, o partido operario dispõe de uma forte organisação. Na Suissa, á frente do seu programma, inscrevem{156} os socialistas o direito ao trabalho; na Dinamarca, pela eleição de 1893, foram sete socialistas eleitos para o conselho municipal de Copenhague; em França, por duas vezes, no mez de Janeiro corrente, esteve o governo da republica ameaçado de dar a sua demissão: a primeira vez pela proposta de Paschal Grousset, o antigo communista e um pamphletario destemido, sobre a amnistia, e a segunda vez pela emenda de Jaurés, um pensador e um parlamentar distinctissimo, ácerca da conversão dos titulos da divida publica. Emfim, não ha já hoje governo ou individuo, qualquer que seja a sua posição ou fortuna, que não acompanhe ou se não interesse pela solução dos problemas sociaes. O exercito do futuro é cada vez mais numeroso. Sobre o fundo vermelho da sua bandeira, desfraldada aos ventos, destaca-se esta divisa, escripta em letras de fogo: «Emancipação de todos os opprimidos e de todos os explorados. Renovação total, pela bondade, pelo amor, pela sciencia, pela justiça e pela solidariedade.»
A todos se afigura não só possivel, senão tambem inevitavel uma revolução social.
Luiz Blanc dizia-o ha cincoenta annos, dirigindo-se á burguesia franceza.
«Deve tentar-se uma revolução social:
«1.º—Porque a actual ordem social está cheia, em demasia, de iniquidades, de miserias e de servidões, para que possa durar muito tempo;
«2.º—Porque não ha ninguem que deixe de ter interesse n'uma nova ordem social;
«3.º—Porque, emfim, esta revolução, tão necessaria,{157} é possivel e até facil de se proclamar pacificamente.»
Assim fallava o eloquente author de L'histoire de dix ans, ha meio seculo. De então para cá, os factos teem-lhe dado rasão. A transformação social impõe-se a todos os espiritos, a todos os paizes e a todos os governos, e isto explica, até certo ponto, o motivo porque o socialismo está tanto em voga e porque o perfilham e adoptam os povos modernos, não só por intermedio dos seus pensadores mais notaveis, senão tambem pelos seus representantes de classe e pelos interpretes da opinião popular.
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Toda a theoria, como toda a civilisação, diz Benoit Malon, tem a sua dominante, pela qual se julga e afere. A dominante da sociedade contemporanea encontra-se na pratica do individualismo universal, pelo odioso cada um para si e pela guerra de todos contra todos.
De todas as questões que o socialismo pretende resolver, é, sem duvida, a questão da propriedade a mais importante. Da sua solução depende o juizo a fazer sobre o pensamento social contemporaneo. O collectivismo derivou do modo de conceber a apropriação das cousas. Ha mais de quarenta annos que os socialistas procuram explicar a significação d'esta palavra, e, sem embargo, o vulgo ainda{158} muitas vezes confunde o collectivismo com o communismo, não obstante haver uma differença radical entre um e outro.
No communismo, as forças productoras e os productos, postos em commum, ficam sob a gestão directa do Estado; o collectivismo não é senão a inalienabilidade das forças productoras, collocadas sob a tutella do Estado, que, por seu turno, as confia, temporariamente e mediante indemnisação, aos grupos profissionaes. N'estes grupos a repartição faz-se pelo prorata do trabalho. O consumo é inteiramente livre. Cada um gasta, conforme lhe apraz, o equivalente que lhe cabe, do producto do seu trabalho, depois de satisfeitos os encargos sociaes.
O collectivismo é pois, uma concepção socialista que comporta:
1.º—A apropriação em commum, mais ou menos gradual, da terra, dos instrumentos de producção e da troca;
2.º—A organisaçao corporativa, communal ou geral, da producção e da troca;
3.º—A faculdade para cada trabalhador de dispôr, a seu bel prazer, do equivalente de maior valor por elle creado;
4.º—O direito ao desenvolvimento integral para as creanças; o direito á existencia para os invalidos do trabalho; e a garantia, para todos os validos, de um trabalho remunerador na associação da sua livre escolha.
Querer isto—affirma muito bem Malon—não é perfilhar os erros do communismo utopico: é combinar simplesmente a necessidade do concurso para{159} a producção com a justiça economica e as justas exigencias da liberdade humana.
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Não se destróe radicalmente senão aquillo que se substitue—dizia Danton, na sua phrase grandemente revolucionaria.
O Estado socialista oppõe:
1.º—ao estado de guerra, a paz internacional e a federação dos povos;
2.º—aos antagonismos economicos, a organisação solidaria da producção e da distribuição das riquezas;
3.º—á ignorancia, a universalisação do saber e a cultura moral.
Todos os pensadores progressistas são pois, accordes em reconhecer que os Estados socialistas, de um futuro mais ou menos proximo, hão de ser formados por republicas federadas, que, em si mesmo, não serão outra cousa, senão uma estreita federação de communas, engrandecidas e transformadas, politica e socialmente. Para essa concepção de fórmas sociaes superiores se dirigem presentemente todas as vistas e todas as escholas. Só os processos variam, segundo o individuo que os emprega ou segundo o meio em que teem de actuar.
Vejamos, primeiro, como Augusto Bebel, um socialista{160} republicano, segundo a sua propria confissão, concebe as relações sociaes que hão de vigorar n'um regimen socialista, isto é, n'uma sociedade futura.
A.—A expropriação capitalista inherente ao novo regimen, será feita em proveito de todos e no interesse de toda a sociedade. Realisada esta expropriação, a sociedade assentará em novas bases e a existencia humana mudará por completo. A organisação actual tornar-se-ha inutil, e o proprio Estado se tornará desnecessario, tendendo a desapparecer, como desappareceram as religiões, desde que deixou de existir a crença no sobrenatural.
B.—A lei fundamental da sociedade socialista é o trabalho para cada um dos seus membros sem distincção de sexo.
Esta lei é justa e necessaria. Em primeiro logar, ninguem póde satisfazer as suas necessidades sem trabalhar. Sendo valido, ninguem tem o direito, por outro lado, de viver do trabalho do seu semelhante.{161}
A organisação da sociedade, fundada sobre a liberdade e a legalidade, na qual cada um responde por todos assim como todos respondem por cada um, suscitará um sentimento de solidariedade, uma emulação e um desejo de trabalho até hoje desconhecidos. D'esta fórma o trabalho tornar-se-ha mais productivo e o producto aperfeiçoar-se-ha.
A falta de trabalho, tão frequente nos nossos dias, não poderá existir na sociedade futura, que apenas produzirá para consumir, em harmonia com os principios de justiça e tendo sempre em vista o bem geral.
C.—Na sociedade futura, a producção, mudando de fórma, fará desapparecer o commercio, apanagio da sociedade actual.
Em vez dos milhares d'intermediarios que hoje existem, teremos os grandes estabelecimentos, e o transporte dos productos far-se-ha por uma fórma completamente nova.
D.—Na nova organisação as terras serão propriedade commum, assim como o foram já no começo da civilisação, mas com fórmas sociaes superiores.
O bem estar de uma população depende do grau de cultura que o sólo attingir. Emquanto a terra se conservar como propriedade privada, nunca a cultura se aperfeiçoará. Os pequenos proprietarios não dispõem para isso dos meios necessarios, e os grandes proprietarios, com as suas florestas e os seus parques, deixam por cultivar uma grande parte das suas terras.
Pela fórma indicada desapparecerá o contraste secular entre a população das cidades e a população dos campos.{162}
E.—Com a expropriação do sólo e dos instrumentos de trabalho, desapparecerá um grande numero de abusos e de males que nos affligem na organização actual.
O que determina hoje a posição dos homens, na sociedade, é a quantidade maior ou menor de dinheiro que possuem. No futuro estado socialista, a sociedade fará tudo por si mesmo. Nem as pessoas nem as classes poderão prejudicar-se entre si. O estado, tornando-se inutil, desapparecerá. Não haverá pois, nada a governar nem a supprimir ou a opprimir.
Com o Estado desapparecerá naturalmente tudo o que o representa: ministros, parlamentos, policia, prisões, exercito permanente, procuradores, advogados, n'uma palavra, todo o apparelho da dominação politica. A sociedade ficará na plena posse de si mesmo.
F.—Na organisação actual reclama-se, para todos, o mesmo nivel d'instrucção e de educação.
Ora esta egualdade é impossivel no regimen burguez, conforme o demonstra Augusto Bebel. Para receber uma instrucção mediana é preciso ter dinheiro e vagar. No Estado socialista as condições do desenvolvimento physico, moral e intellectual serão as mesmas para todos. Cada um poderá pois, instruir-se e viver, conforme as suas aptidões e os seus gostos.
G.—Sob o regimen futuro a vida social tornar-se-ha publica.
São os factos que o provam. A vida tem-se modificado sensivelmente n'estes ultimos dez annos. A existencia torna-se cada vez menos familiar, e, em pouco, será passada inteiramente nas officinas, nos{163} campos, e nos locaes publicos, destinados ao estudo e á instrucção.
H.—Bebel diz que, sendo melhoradas e augmentadas as vias de communicação na sociedade futura, as viagens de instrucção tornar-se-hão mais faceis do que succede no actual regimen. O trabalho será regulado, de modo a permittir a viagem, ao mesmo tempo, de prazer e de estudo.
Quanto aos velhos, aos invalidos, e aos doentes, quando já não possam trabalhar, a sociedade fornecer-lhes-ha os meios indispensaveis á existencia.
As doenças tomar-se-hão mais raras, por isso mesmo que a vida será mais regular. A alimentação será preparada scientificamente nos estabelecimentos publicos. A vida de familia será transformada por completo.
Bebel diz ainda que o socialismo não póde ser realisado por um povo, isoladamente. Á primeira vista parece que o principio das nacionalidades domina o mundo. Mas é um erro. O internacionalismo cosmopolita começa realmente a penetrar nas populações. Todos os povos se encontram nas mesmas condições sociaes. Por toda a parte se observam as mesmas luctas de classes que serão decisivas antes do fim do seculo XIX.
No novo estado social, fundado sobre bases internacionaes, as nações civilisadas formarão uma federação d'onde será banida a guerra. A paz universal não é um sonho nem uma aspiração de visionarios. Um progresso dará logar a outros progressos, e a humanidade avançará sem cessar para um ideal de perfeição illimitada.{164}
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A noção de patria encerrou-se primeiro na tribu; depois na cidade; mais tarde na provincia, e por ultimo na nação. Porque é pois, que a patria não ha de ser continental ou intercontinental (europeio-americana) e finalmente planetaria?
A philosophia antiga dizia: Dignidade, Moderação, Virtude; o Christianismo: Fé, Esperança, Caridade; o boudhismo: Vontade, Justiça, Affinidade; o XVIII seculo: Investigação, tolerancia, sensibilidade; a revolução franceza: Liberdade, egualdade, fraternidade; o socialismo utopico: Dedicação, solidariedade, harmonia; o socialismo integral terá por divisa: Justiça, fraternidade, solidariedade.
Taes serão os principios do Estado social do futuro, no conceito de Benoit Malon.
Não nos accuseis de utopista, diz elle. Possuimos o saber e a actividade; o que nos falta é a doutrina e a boa vontade. Nas federaçães europeia, americana e planetaria do futuro, estas quatro forças estarão unidas, e, pelo seu poder, constituirão a origem da felicidade e tenderão a suavisar, no interesse de todos os seres, a crueldade da situação actual.
Como politica, o socialismo aconselha: o emprego de todos os meios de lucta: a resistencia economica (grève); voto; e, sendo necessario, a{165} força, a geradora das sociedades novas, no dizer de Marx.
Tão longe não ia decerto Malon. Elle não renegou nunca o espirito revolucionario que reputava indispensavel á existencia e á disciplina dos partidos operarios. Mas estava persuadido que o convencimento e a persuasão valiam mais que a força, como elementos de propaganda e de transformação social.
Vejamos qual era a sua concepção, sobre o Estado socialista, pela socialisação dos monopolios. Mas antes d'isso fallemos rapidamente n'um outro artigo, tambem do seu programma.
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Charles Burkli apresentou, sobre este assumpto, ao congresso de Zurich, uma proposta muito notavel e muito bem deduzida:
«O congresso, considerando que a lei é o interesse escripto do legislador; que na legislação a determinante deve ser o interesse do povo; que os corpos representativos, segundo a experiencia, representam mais os capitalistas do que os operarios; e que as leis, por conseguinte, se fazem a favor do capital, em detrimento da classe operaria; que o parlamentarismo, em toda a parte onde domina sem limites, conduz á corrupção e ao ludibrio do povo; e que só pela intervenção directa na legislação é{166} que o povo adquirirá a consciencia da sua força, condição indispensavel á liberdade da classe operaria:
«Declara que é uma condição preliminar da suppressão de todo o dominio de classe, que as classes operarias intervenham, como o mais poderoso meio de combate politico, a favor da legislação directa pelo povo, segundo a qual o povo exercerá o direito de proposição para as leis (iniciativa) e o direito da votação das leis (referendum).»
Foi Mauricio Rittinghausen o instigador d'esta ideia e o seu propagandista mais authorisado.
Convencido que só o collectivismo na legislação, isto é, a participação de todos na confecção das leis, póde corresponder ao collectivismo da propriedade, e que nunca chegaremos a este segundo meio, a não ser por intermedio do primeiro: convencido ainda que o systema representativo, embora fira o privilegio, não resolverá nunca a questão social; Rittinghausen tentou construir sobre este principio um systema governamental que tornou applicavel ás grandes nações modernas, compostas de milhares de individuos, e foi este o systema que elle intitulou a legislação directa pelo povo.
Foi a 8 de setembro de 1850, que appareceu, na Démocratie Pacifique, o primeiro dos tres artigos intitulados—a legislação directa pelo povo ou a verdadeira democracia. Rittinghausen viu-se logo atacado por Luiz Blanc, Emile de Girardin e Proudhon. Mas teve por si o apoio das massas. Poucos mezes depois, mais de trinta e seis jornaes defendiam a nova theoria. Proudhon publicava, por esse{167} tempo, a sua grande obra: Idée générale de la Révolution, e dizia:—Supponhamos que é esta a questão: «O governo será directo ou indirecto?»—A avaliar pelo successo que acabam de ter, para a democracia, as ideias de Rittinghausen e Considerant, quasi se póde affirmar, com uma quasi certeza, que a resposta da grande maioria será pelo governo directo...»
Após longos annos de lucta, Rittinghausen logrou ver inscripta a legislação directa, no programma da democracia socialista allemã, approvado pelo congresso d'Eisnach, em agosto de 1869.
Só em 1868, porém, foi a legislação directa, introduzida em Zurich, por Charles Burkli, o mesmo que apresentou ao congresso de 1863 a proposta a que acima nos referimos.
Mauricio Rittinghausen nasceu em Huckeswagen (Allemanha) a 12 de Novembro de 1814 e falleceu em Ath (Belgica) a 29 de dezembro de 1890.
O systema parlamentar deu já, por toda a parte, o que tinha a dar. A legislação directa pelo povo é o unico systema governamental que corresponde, em politica, ás exigencias e ás necessidades do socialismo moderno.
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O direito á existencia deve ser fundado sobre o direito ao trabalho. Por seu turno o direito ao trabalho engendra a organisação social do trabalho,{168} d'onde deriva a necessidade de um ministerio do trabalho.
As attribuições d'este ministerio seriam:
1.º—A applicação rigorosa das leis industriaes, melhoradas e completadas;
2.º—A reorganisação do trabalho das prisões, de molde a proteger os interesses do trabalho livre, e a tornar mais justas, mais humanas e mais moralisadoras as relações entre a administração e os condemnados;
3.º—O estabelecimento de um serviço especial de estatistica, que sirva de informação aos productores (operarios e patrões) e aos commerciantes, ácerca das condições do mercado do trabalho e da troca;
4.º—Reorganisação do trabalho nas manufacturas e outros estabelecimentos do Estado;
5.º—Instituição de uma camara operaria consultiva do trabalho, em bases rigorosamente corporativas, e de uma camara do commercio e da industria, destinada a apresentar os projectos que teriam de ser discutidos em publico;
6.º—Instituição de um grande conselho arbitral, eleito em parte pelos syndicatos operarios, e em parte pelos syndicatos dos patrões e pelas camaras de commercio, e que se pronunciaria sobre todas as questões economicas a elle submettidas pelas partes interessadas;
7.º—A reorganisação do ensino agricola, industrial e commercial;
8.º—A reorganisação dos trabalhos publicos, comportando a constituição de exercitos industriaes,{169} de quadros permanentes mas de pessoal variavel, e que poderiam ser quadruplicados em certas estações e redobrados em épocas de crise;
9.º—A fundação de colonias agricolas e viticolas;
10.º—O exercicio racional da força de ponderação, afim de attenuar ou prevenir as crises, de regularisar o mercado e de preparar a organisação social do trabalho.
A reorganisação do credito far-se-hia, lançando um pesado imposto sobre a agiotagem, abolindo as leis que permittem a emissão de titulos ao portador e a formação das sociedades anonymas, e prohibindo a especulação.
Por seu turno, a reorganisação judiciaria realisar-se-hia por uma justiça prompta, simplificada e gratuita.
Emfim, todas as questões de finanças e de credito seriam resolvidas pela nacionalisação dos bancos.
Mas estas reformas tornar-se-hiam irrealisaveis, se a collectividade, Estado ou Communa, conforme os casos, não procedesse á transformação, em serviço publico productivo, dos monopolios de facto que gera espontaneamente o systema capitalista, e a que chamaremos a SOCIALISAÇÃO DOS MONOPOLIOS.
A regra effectivamente, estabelecida pela theoria do socialismo, é a seguinte: desde que uma industria ou o principal elemento de uma industria, passa, pela sua natureza e pelo seu desenvolvimento, ao estado de monopolio, constituindo uma poderosa agglomeração de forças productoras, incumbe á collectividade{170} exploral-a em régie ou fazel-a explorar, sob a sua direcção, mediante indemnisação.
D'este modo, além dos monopolios do Estado já constituidos, figuram, na primeira linha, os caminhos de ferro, as minas, os poços de petroleo, as fontes de aguas mineraes, os canaes, as fabricas de armas, os grandes fornos, as companhias de vapores, as grandes officinas de machinas, que, por seu turno, devem ser collocados sob a direcção do Estado e transformados gradualmente em serviços nacionaes productivos.
Esta socialisação dos organismos dominantes da producção e da viação, tem o seu complemento logico e inevitavel na communalisação dos monopolios urbanos, que, por sua vez, seriam tambem transformados em serviços communaes. N'esta cathegoria entram:—a illuminação (gaz e electricidade); os transportes em commum (omnibus, tramways, carruagens); o serviço das aguas (fornecimento, banhos e lavatorios communs), os grandes armazens; os serviços de provisão (padarias e talhos municipaes), o serviço pharmaceutico e a habitação.
A organisação dos serviços communaes presuppõe uma completa reconstituição communal, baseada sobre uma população de cinco mil habitantes, pelo menos.
Uma sociedade, onde se tivessem operado semelhantes transformações—conclue Benoit Malon—teria progressiva e pacificamente vencido a miseria e a ignorancia, organisando socialmente o trabalho, creando uma nova consciencia social, fundada sobre as bases indestructiveis da liberdade politica,{171} da justiça economica e da solidariedade humana.
Muitos serão os chamados e poucos serão os eleitos—dizia a antiga formula christã. Todos serão chamados e todos serão eleitos—tal é a divisa da moderna escola socialista.
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Por socialismo integral deve entender-se o socialismo encarado sob todos os seus aspectos, em todos os seus elementos de formação, e com todas as suas possiveis manifestações.
O sentimento não abdicará nunca, e será sempre o primeiro mobil dos actos humanos—disse-o Claude Bernard na sua Philosophia experimental.
Faz socialismo o sabio, o pensador, que, ao cabo das suas longas investigações sobre a natureza das cousas, descobre o mysterio da evolução universal.
Faz socialismo o inventor, quando applica as forças productoras do homem, favorecendo a multiplicação dos productos e diminuindo, ao mesmo tempo, a duração e as agruras do trabalho.
Faz socialismo o escriptor quando no livro, no drama ou no jornal, faz a apotheose dos sentimentos de justiça para com os homens e de piedade para com os animaes.{172}
Faz socialismo todo aquelle que combate pela liberdade.
Faz socialismo o altruista que passa a sua existencia, fazendo o bem, soccorrendo, consolando e fortalecendo os que soffrem e os que são desventurados.
Faz socialismo o poeta, quando canta o heroismo, a bravura, o desinteresse e consagra as grandes e supremas virtudes civicas.
Faz socialismo o professor, quando á orthodoxia das velhas formulas inuteis, antepõe o sagrado ideal de emancipação humana, prégando-o e ensinando-o aos seus discipulos.
Emfim, o socialismo já não é apenas uma doutrina abstracta. O socialismo faz-se e pratica-se por toda a parte: por sentimento uns, por convicção muitos, por raciocinio outros e por necessidade todos. E d'ahi a grande variedade de escolas e um sem numero de theorias e de programmas.
Mas, em nosso juizo, é o socialismo professoral ou cathedratico aquelle que mais tem concorrido para o desenvolvimento da ideia emancipadora, no seio das sociedades modernas. E entre os principaes apostolos da escola, seria erro imperdoavel esquecer os professores belgas que tão grande relevo teem sabido dar ás doutrinas socialistas. Não fallando já no fallecido Emile de Laveleye, o mais celebre dos economistas contemporaneos e auctor de um livro que se tornou classico—Da propriedade e das suas fórmas primitivas, cumpre-nos mencionar aqui Hector Denis, Guilherme de Greef, o sabio auctor da Introducção à sociologia, e Emile de Vanderwelde{173} que, sendo advogado, pertence, todavia, a esse glorioso grupo.
A Universidade livre de Bruxellas conta, no seu seio, dois socialistas—Hector Denis e Guilherme de Greef, e um anarchista—Elisée Reclus.
Estão ainda na memoria de todos os recentes acontecimentos, que se originaram pela suspensão official do curso de Elisée Reclus. Os estudantes tomaram uma parte activa no assumpto. Hector Denis, o reitor da Universidade, demittiu-se, e Guilherme de Greef interveiu a favor dos que protestavam contra a intervenção dos poderes publicos. O governo viu-se obrigado a reconsiderar, e o socialismo sahiu mais uma vez triumphante da lucta.
Na campanha figurou tambem Emile de Vanderwelde, antigo alumno da Universidade, um nobre e generoso espirito e auctor de um bello estudo sobre os parasitas organicos e os parasitas sociaes.
Emile de Vanderwelde exerce, sobretudo, uma acção espiritual sobre o socialismo belga. A sua influencia é enorme, e o seu prestigio cresce e augmenta de dia para dia.{174}
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Entre os socialistas cathedraticos, ha uma escola moderada que aspira á implantação da theoria socialista por uma transformação gradual e lenta da sociedade actual. Assim, são alguns de opinião que, para se chegar á completa abolição da propriedade, se deverá principiar pela abolição da grande propriedade que estabelece um desequilibrio economico no mundo, concentrando e monopolisando nas mãos de alguns os capitaes e os recursos que deveriam estar nas mãos de todos. Outros fazem distincção entre a propriedade industrial e a propriedade agricola, reclamando a suppressão da primeira e conservando a segunda, visto mediar uma enorme distancia entre o industrialismo e a agricultura.
Succede o mesmo com relação á grande e á pequena industria e com relação ás heranças. N'este ponto divergem tambem muitos socialistas, querendo uns a extincção total das heranças, além de uma certa quantia e revertendo o excedente para o fundo da educação nacional, contentando-se outros apenas, com a sua extincção immediata em linha collateral.
Como quer que seja, ha um ponto fundamental em que todos estão de accôrdo—a negação do existente. É indispensavel pois, destruir o que está para o substituir. E a reconstrucção social será tanto mais facil, quanto maior fôr o numero de ideias{175} emittidas. Da variedade de theorias é que hade resultar a unidade do conjuncto. E a lucta travada entre o capitalismo e o proletariado ainda mais apressará e favorecerá a solução do problema.
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A evolução que, n'estes ultimos annos, se tem operado na parte sã, intellectual, deixem-me dizer assim, da nova geração portugueza, é muito digna de registar-se. Á frente d'esses moços estudiosos e enthusiastas, encontra-se Fernando Martins de Carvalho, um grande e solido talento, disciplinado pelo estudo da philosophia moderna e educado na convivencia dos grandes mestres da sciencia social.
A tendencia federalista e socialista accentua-se na nova geração portugueza, como um resultado da corrente internacionalista que, por toda a parte, se impõe e affirma, e como uma consequencia logica e necessaria das ideias do nosso tempo.
Prova este facto que marchamos para a conquista de um novo ideal e que a politica, entre nós, vae perdendo o seu antigo caracter sentimental e jacobino, para se transformar n'uma solução organica, positiva, liberal e moral.
Procedendo assim, a nova geração portugueza affirma a sua solidariedade com o movimento social{176} moderno e mostra-se em tudo digna e á altura dos grandes problemas que agitam a sociedade.
Parabens muito sinceros a todos esses bons e leaes companheiros, e, em especial, a Fernando Martins de Carvalho, o chefe incontestado da gloriosa crusada!
Os periodos que vão lêr-se representam mais do que um simples estudo ou uma simples aspiração: são, para assim o dizer, o programma ou o manifesto dos novos. Por isso julgámos que tinham aqui o seu logar, e que seria de summa utilidade reproduzil-os, embora n'elles se notem umas lisongeiras referencias á minha pessoa que não posso nem devo attribuir senão á muita bondade de Martins de Carvalho.
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«A aproximação do individualismo economico do individualismo politico é o resultado de uma viciosa associação de ideias. A sociologia moderna deve acceitar o individualismo, como solução politica, e o communismo, como solução economica. Nem ha qualquer conflicto entre estas duas formulas, restrictas aos campos proprios:—o neminem laede, essa formula fundamental do individualismo, tem evidentemente consequencias communistas; não lesar a ninguem é não tolher a ninguem a apropriação do necessario, não é apenas não perturbar ninguem na sua situação actual, justa ou injusta. Spencer, que generalisou a economia orthodoxa na sociologia,{177} é decididamente individualista e affirma a tendencia evolutiva para a propriedade social.
Do primitivo communismo genealogico, de caracter familiar, passou-se para o communismo local, dos que habitam o mesmo territorio. Dos communismos das tribus passa-se para o communismo universal, para a confederação de todas as communas.
A passagem de uma a outra fórma do communismo deu logar ao individualismo economico, a desintegração, successiva e gradual, do communismo genealogico, desde o condominio familiar até á simples quota legitimaria dos parentes. O individualismo não poderá ser uma integração social; os elementos que elle dispersou precisam de se integrar n'uma nova fórma communista.
A evolução social realisa-se em virtude da lei do uso e do desuso, de que deriva a divisão do trabalho, e que é o principio fundamental do transformismo, em que se accentua hoje uma renascença lamarckista. Lamarck deveria ter applicado aquella lei, que applicou só aos organismos individuaes, tambem directamente aos organismos collectivos, ás especies. A influencia do uso e do desuso actua sobre os orgãos dos organismos individuaes, mas actua tambem sobre os organismos individuaes, como orgãos dos organismos collectivos. A doutrina da selecção natural não representa senão uma tentativa para applicar á differenciação das especies a lei do uso e do desuso; na selecção social, uma fórma da selecção natural, desapparecem todos os inuteis, embora as subsistencias cheguem para todos.{178} A evolução realisa-se pela differenciação estructural das massas organicas primitivas, constituindo os organismos individuaes; pela differenciação dos organismos individuaes formando o protoplasma social primitivo, em variedades, especies, reinos. Uma especie constitue-se organicamente pela successão de fórmas cada vez mais perfeitas da divisão do trabalho, pela formação de uma solidariedade social, generalisando-se gradualmente dos pequenos grupos ás raças, e a toda a especie; á concorrencia vital dentro das especies succede-se a concorrencia vital com outras especies, até que umas e outras entrem n'um hyper-organismo superior, que irá até estabelecer a solidariedade de toda a existencia.
A sociedade, que começou a sahir da primitiva homogeneidade communista pela anthropophagia, com manifestações juridicas notaveis, como por exemplo a condemnação do criminoso a servir de alimento á tribu,—pelas fórmas parasitarias e commensalistas, vae pouco a pouco aproximando-se da fórma superior da divisão do trabalho,—o communismo, que é a fórma de repartição nos organismos perfeitos—a cada orgão segundo as suas necessidades.
Á medida que esta evolução se realisa a concorrencia social torna-se cada vez menos intensa; o parasitarismo interno da especie transforma-se em parasitarismo com relação ás outras especies. As profundas differenciações anthropologicas, produzidas pelas velhas fórmas parasitarias da constituição social, vão-se attenuando. A analogia real da sociedade com o organismo, que tem sido muito exaggerada{179} e tem dado logar a mil hespanholadas scientificas, a doutrinas muito estheticas que se têem destacado por gemmiparidade das theorias de Comte e Spencer, não nos póde levar a idealisar a sociedade futura como a perfeita reproducção do organismo individual, com a sua forte differenciação de estructura, a sociedade é um organismo superior, que reproduz na sua phase embryonnaria a evolução dos organismos individuaes (como pela lei biogenetica o individuo reproduz na vida fetal toda a evolução organica anterior), mas que na sua phase post-embryonnaria a continua.
A economia da divisão do trabalho, que se succede á primitiva economia communista, tem duas phases preparatorias: uma militar, violenta,—a escravidão, a servidão, o feudalismo—, outra pacifica,—o capitalismo moderno. A distribuição da riqueza pelo producto do trabalho, dando logar á intervenção da concorrencia, produz o capitalismo; a theoria communista quer que se pague o trabalho-funcção social e não o trabalho-producto, como o capitalismo e mesmo o collectivismo, uma doutrina transitoria evidentemente, e que se vê em difficuldades para provar que o capital não é accumulação de trabalho, coisa absolutamente indifferente no ponto de vista communista.
As castas não são diversas raças, diversos povos, que se sobrepõem; são differenciações anthropologicas, que se formam dentro de todas as sociedades pela acção de factores eminentemente sociaes, as fórmas primitivas da divisão do trabalho. As castas correspondem ás raças occipital—a exploradora{180} pela violencia—e á frontal, a primitivamente explorada, que se liberta pela intelligencia;—a theoria de Gratiolet é verdadeira, admittindo-se factores sociaes da differenciação dentro das primitivas raças, que pouco a pouco desapparecem perante as nacionalidades, um parasitismo de que resultam differenciações anthropologicas, e perante as castas. O militarismo exterior e internacional e o militarismo nacional ou aristocracia, têem origens economicas, e produzem differenciações anthropologicas.
No regime communista primitivo o direito é a coacção á adaptação social pela intimidação, ou o appressamento violento da inadaptação. Existia a promiscuidade. Havia perfeita egualdade economica e perfeita egualdade politica.
Fez-se sentir a necessidade da divisão do trabalho: ia-se constituir a primeira fórma de parasitarismo. Ninguem ousava violar a tradição, com profunda sancção religiosa, da propria tribu. Começa a guerra permanente entre as tribus de bimanos. O que se não aventurava a escravisar individuos, a monopolisar femeas, a apossar-se da propriedade da propria tribu, cahia sobre a tribu visinha. O individualismo começou pela escravidão dos extrangeiros, pela exogamia, pelo roubo da propriedade das outras tribus. Constituiu-se um direito internacional, fundamentalmente differente do direito do clan;—conflicto anthropologico, o direito tinha um caracter collectivo;—crime e pena eram conflictos ethnicos.
Constituiram-se assim em casta os homens de guerra, passando depois a exercer a violencia sobre{181} a propria tribu. O direito entre as castas passou a ser cópia do direito internacional; o velho direito interno só persistiu em survivances nas relações entre os membros das classes inferiores.
Á casta, como a todos os grandes factores sociaes, devia corresponder uma differenciação anthropologica. A anthropologia criminal, quando nega os factores economicos do crime, não repara em que a selecção natural das raças tem segundo o darwinismo, de que essa escola deriva, uma origem economica—o facto registado pela lei de Malthus.
Á primitiva selecção individual devia pouco a pouco substituir-se uma selecção entre os grupos anthropologicos, que se iam formando, selecção naturalmente preventiva, d'ahi a formação da escravidão, que é uma fórma de caracter duradouro da selecção e que se substituiu á pena de morte do criminoso e do prisioneiro de guerra; d'ahi a formação na aristocracia da familia polygamica, destinada a garantir a rapida multiplicação da casta superior, e acompanhada de diversas medidas restrictivas da multiplicação da casta inferior.
Pouco a pouco tem ido perdendo de intensidade a fórma violenta do individualismo, pelo apparecimento do capitalismo e pelo cruzamento das castas, primitivamente prohibido, que caracterisa as fórmas sociaes superiores, como o cruzamento das raças caracterisa a domesticação com respeito ao estado selvagem. O caracter de conflicto anthropologico do direito na phase primitiva do militarismo tem pouco a pouco desapparecido de diversos dos seus ramos; primitivamente aquelle direito que hoje só{182} tem sancção civil, tinha uma sancção penal. Hoje o direito penal tende a tornar-se tão contractualista como o direito civil; Spencer baseia toda uma theoria penal sobre a organisação systematica da indemnisação de perdas e damnos.
Á medida que o militarismo vae declinando, vae-se realisando no direito internacional uma endosmose do direito interno progressivo; o contrario precisamente do que se deu nas origens do militarismo.
Resultado de todos estes progressos sociaes é o desapparecimento evolutivo das differenciações anthropologicas, a que as castas e as nacionalidades deram origem.
Contra o que o collectivismo affirma, somos de opinião que o capitalismo representa um progresso. A evolução realisa-se pela acção cada vez menor da hereditariedade, permittindo a evolução rapida da especie, por adaptações repetidas. A organisação em castas, a hereditariedade politica e economica, correspondeu a phases inferiores da transformação da especie: hoje sobre a hereditariedade predomina a adaptação, na sua fórma seleccional, que tem como consequencia politicamente o regime representativo, economicamente o regime capitalista. As selecções, não sendo fixas pela hereditariedade, que, tanto nas suas consequencias politicas, como nas suas consequencias economicas, tende a desapparecer, é uma transição necessaria para o regime da egualdade, em que as progressivas adaptações da especie não se realisarão seleccionalmente, mas solidariamente.{183}
É um facto conhecido o da degeneração das aristocracias, facto perfeitamente egual ao da degeneração das raças indigenas perante a civilisação branca, e ao da degeneração das raças criminosas,—selecções militaristas e aristocracias abortadas, raças d'origem teratologica,—perante o homem normal. Á degeneração das aristocracias correspondeu necessariamente a formação das monarchias; era facil no decorrer da degeneração da casta, uma familia garantir-se o poder monarchico. Quando a degeneração se estende ás dynastias, a monarchia torna-se temperada ou constitucional. É possivel que na degeneração da burguezia perante o quarto estado, pelo mesmo processo historico appareçam novos cesarismos.
Vejamos os factores intellectuaes da evolução social. O homem primitivo faz corresponder á sensação o mundo exterior; á ideia, que julga independente da sensação, o espirito, a substancia: eis a origem do substancialismo, do livre-arbitrismo, da doutrina das ideias innatas, da theoria da creação. Reconhecida a dependencia causal da ideia para a sensação, substitue-se ao principio da substancialidade o principio de causalidade, e funda-se a sciencia moderna, positiva, monista, determinista e evolucionista. Por fazer do positivismo uma questão de methodo e não determinar precisamente a origem do causalismo e todas as suas consequencias, Comte acceitou a irreductibilidade dos phenomenos e a relatividade dos conhecimentos, principio que occasionou esta recente recaida idealista. A evolução scientifica não é deductiva, como queria Comte, mas inductiva,{184} das ciencias do espirito para as sciencias mais geraes, as do mundo inorganico; é assim que, por exemplo, a doutrina da evolução appareceu successivamenie na sociologia, na biologia e na physico-chimica. Note-se que na astronomia ainda se admitte a evolução-circular, da nebulosa á nebulosa, e a evolução-circular foi precisamente a primeira phase do evolucionismo social; e que nada ha ainda sobre a evolução geral physico-chimica. Conhecem-se os factores psychologicos da marcha social; conhecem-se os seus factores biologicos ainda; e muito mal os factores inorganicos.
A doutrina do livre-arbitrio deu origem ao contractualismo na politica, no direito economico, na familia e no direito penal, punindo o crime, não o criminoso. O determinismo, que successivamente, visivelmente na criminologia, tem passado da sua fórma statica, para uma fórma dynamica, evolucionista, do motivismo psychologico ao condicionalismo biologico e anorganico, tem como consequencia necessaria uma constituição socialista. O direito economico fundar-se-ha sobre o destino social dos actos, não sobre o livre-arbitrio dos contrahentes; reconhecido o governo de leis sociologicas, e o progresso, contradictorio com o livre-arbitrio, isto é, a eterna possibilidade do homem pensar e praticar indifferentemente, desapparecerá a necessidade do Estado, resultado theorico da necessidade de uma eterna intervenção coactiva para levar o livre-arbitrio ao Bem; a pena terá um fim socialista, a adaptação do criminoso á sociedade. Esta adaptação será facil, contra o que julga a antropologia criminal, que admitte{185} a evolução anthropologica e social e nega a evolução anthropologica e social dos criminosos, que, sabendo que a symbolica juridica mostra bem que a origem da propriedade foi a conquista e que a origem da successão foi o culto dos mortos, chama aos attentados contra a propriedade—delictos naturaes. A probidade actual que é senão o habito violentamente creado de respeitar a desegualdade economica, hereditariamente transmittido?
Differimos do collectivismo:—na nossa solução final economica, que é communista; na theoria politica, que é o anarchismo scientifico; no processo theorico, por isso que fazemos sociologia anthropologica e por não fazermos sociologia exclusivamente economica. Os primitivos socialistas como os primeiros economistas nem sequer suspeitaram a sociologia, viveram no especialismo economico; n'uma segunda phase economista e socialista levaram a explicação economica a todos os phenomenos sociaes, fizeram sociologia economica; n'uma terceira phase a economia orthodoxa generalisou-se com as outras sciencias sociaes na sociologia spenceriana. Tudo hoje tambem faz prever a constituição de uma sociologia socialista. A biologia nunca ousou explicar a evolução organica só por factores economicos—os que dizem respeito á nutrição. O collectivismo é, em Marx principalmente, um argumento ad hominem com relação á economia orthodoxa, de cujas entidades metaphysicas tirou consequencias habeis, mas scientificamente infundadas; Karl Marx vê-se obrigado a contradizer violentamente as suas theorias,{186} aproximando o seu socialismo da formula communista da distribuição.
Differimos do anarchismo, apesar de acreditarmos que o Estado tende a desapparecer pelas rasões que démos e ainda pelas legitimas deducções sociologicas da doutrina lamarckiana da creação natural dos instinctos, em virtude da qual o Estado perderá a sua rasão de ser apenas tenha formado habitos, que, tornados hereditarios, sejam a base moral da sociedade futura:—na theoria determinista e anthropologica, e pelo sentimento profundo da evolução historica. É preciso contar com a historia, a hereditariedade psychologica; o espirito social não é evidentemente a taboa rasa da velha psychologia materialista. A evolução tem periodos revolucionarios; a lucta pelo direito de Jhering é a theoria do progresso sanguinolento das sociedades. Mas não podemos como o anarchismo ou como o jacobinismo fazer do crime politico uma metaphysica revolucionaria. Dissémo-nos communistas: devemos notar que a unica theoria socialista de que saiu uma sociologia, foi uma doutrina communista, a de Saint-Simon, cuja influencia na obra de Comte é conhecida.
É nitida a nossa posição. Libertos completamente das velhas doutrinas, hereditariedade morbida muitas vezes secular do espirito collectivo, affirmamos a necessidade de uma reconstrucção social completa. As velhas theorias sociaes, que são senão as velhas tendencias inconscientes, a que se quer dar um pretexto de que se faz pedantemente uma sociologia, como o hypnotisado dá um pretexto pueril e julga{187} da sua iniciativa os actos suggeridos e que inconscientemente praticou?
É no partido republicano o logar dos novos, não vencidos por essa surménage mental da historia que caracterisa o momento, para quem a sociologia não é apenas um libretto da Portugueza, que fazem uma critica intellectual do que existe, e que deixam a velha critica jacobina, uma parte de policia carregada.
É preciso que o partido republicano faça, porém, vigorosamente affirmações socialistas e federalistas. Estas duas correntes poderosas teem sido vehementemente representadas na propaganda republicana por Magalhães Lima, contra aquelles, para quem a republica é toda a sciencia social e um ménagesinho patriotico, e que fazem a sociologia pacata do bom homem Ricardo.
A questão politica não é indifferente, contra o que alguns deduzem do principio socialista de que as transformações politicas teem apenas factores e destinos economicos. Os novos devem pois, collocar-se ao lado dos republicanos, porque a solução politica immediata é a mesma. Socialistas, achamo-nos reunidos aos orthodoxos, que piedosamente julgam o socialismo uma metaphysica do roubo. Aproxima-nos uma especie de isomorphismo, porque as nossas e as suas doutrinas crystalisam nas mesmas formulas politicas.
Socialismo rasgado, não um socialismo que seja um dilettantismo da Historia, e que corresponda á velha formula—panem et circenses, politica internacional definida e sem hesitações, tem sido a propaganda{188} vehemente feita por Magalhães Lima, que assim abriu uma nova phase na historia do partido republicano portuguez. Os novos podem, pois entrar sem hesitações na vida nova do partido.»
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E, uma vez que fallámos nos novos, seria ingratidão esquecer aquelles que, pela sua influencia, pela sua dedicação, pela sua actividade e pela sua propaganda, tanto contribuiram para o derramamento d'estas ideias no povo portuguez. Refiro-me a José Fontana e Sousa Brandão.
Ser republicano ou ser socialista n'estes tempos que vão correndo, cousa é que não importa um grande acto de coragem ou de audacia. Mas para affirmar as opiniões republicanas e socialistas, na época em que aquelles dois benemeritos o fizeram, requeria-se ainda mais que coragem e audacia—requeria-se uma grande independencia de caracter e um grande e soberano despreso pelas conveniencias e interesses pessoaes.
Os que modernamente vieram para a politica, não sabem, nem podem mesmo avaliar, o que custava a propaganda n'aquelle tempo. Era uma lucta cruel e constante, com a familia, com os amigos, e{189} com tudo e com todos. Ser republicano o mesmo era que ser um doido mau. Socialismo era synonimo de pilhagem e de liquidação social.
Os partidos por via de regra, ingratos para com os seus servidores. Superior, porém, á gratidão dos partidos, ha o applauso da propria consciencia. E só pela satisfação do dever cumprido, vale bem a pena supportar as chufas dos adversarios, as calumnias dos maldosos e a perseguição dos inscientes e dos inconscientes.
José Fontana era muitas vezes calumniado por aquelles que o não comprehendiam. De Sousa Brandão sorriam-se os finorios e os homens praticos, como se tivessem dó d'elle. Fui d'essa época, e sei o que isso era e o que isso custava! Mas que importava? Os calumniadores calaram-se e os disfructadores desappareceram. José Fontana e Sousa Brandão são hoje venerados e consagrados, em Portugal, como o são egualmente, na Allemanha, Karl Marx e Lassale.
E isto porquê?
Precisamente porque elles representaram, na sociedade{190} portugueza, mais alguma cousa do que as suas proprias pessoas. Elles foram os genuinos interpretes de uma ideia que honraram e glorificaram, pela sua coherencia, pela sua abnegação e pelo seu civismo. Foram dois puros e foram dois fortes. Era differente o processo de cada um. Mas o ideal, o fim, o objectivo era o mesmo em ambos. José Fontana era o apostolo da Internacional, e ella ahi está hoje mais solida e mais viva do que nunca, apesar da perseguição dos governos! Sousa Brandão foi o evangelista das sociedades cooperativas, e ellas ahi estão hoje a impôr-se por toda a parte e em todas as classes, apesar dos embaraços e obstaculos que o capitalismo lhe levanta!
Ha quem desanime na lucta e ha quem cance, durante o caminho. Nem um nem outro souberam nunca o que era o desanimo ou o cansaço. Trabalharam, combateram, perseveraram e seguiram sempre ávante como os crentes das antigas religiões. Edificaram sobre as ruinas e construiram sobre os{191} escombros do velho mundo. A obra ahi está—bella, soberba, imponente. O exemplo é d'aquelles que não morrem nunca e a lição é das que aproveitam sempre. Inspiremo-nos no seu nobre e magnanimo exemplo e reavivemos nos nossos espiritos a grandeza e a sublimidade da sua lição.
A homenagem aos mortos deve constituir um culto para os vivos. E, quando os
mortos se chamam José Fontana e Sousa Brandão, a homenagem reveste então o
duplo caracter de um preito ao amigo querido e de uma apotheose pelo bravo,
pelo apostolo e pelo heróe.{192}
{193}
Bom ou máu, ahi fica um rapido esboço do actual movimento. Foi simples a nossa missão. Desejando que todos vissem pelos proprios olhos e palpassem pelas proprias mãos, limitámos-nos a fazer a historia do que é e do que se passa. Historiámos; não criticámos; narrámos; não commentámos. Savoir pour prévoir, afin de pouvoir—tal era a maxima de Augusto Comte. Saber para prevêr, afim de poder—tal deve ser o principio de todos os que, presentemente, se dedicam e consagram aos estudos politicos e sociaes.
Não confundamos o ideal com a utopia. O ideal de hoje é a realidade de ámanhã. O ideal,—disse muito bem Elie Réclus, não é senão o desenvolvimento da realidade. A utopia não passa, muitas vezes, do espirito ou do cerebro que a gerou. Mas não succede o mesmo com o ideal que encontra sempre uma realisação pratica, no mundo. O socialismo é o ideal do seculo XIX e será a realidade do seculo XX. Muitos governos monarchicos começam já a aceitar-lhe as reivindicações e as consequencias. Gladstone{194} perfilhou, para o seu programma liberal, o dia normal das 8 horas de trabalho e a responsabilidade nos accidentes. É socialista o imperador da Allemanha e são socialistas todos os governos da Europa. Comprehende-se. Fazendo concessões ao proletariado, os reaccionarios e ultramontanos procuram defender-se da onda que os ameaça, prolongando d'este modo a sua existencia, embora á custa de uma especulação e de uma hypocrisia. Não acontece porém, o mesmo com os partidos avançados. Esses teem de acompanhar o movimento, sob pena de se suicidarem, não o fazendo. Ahi fica a advertencia. Quem tem olhos para vêr, veja; quem tem ouvidos para ouvir, oiça.
N'este livro reproduzi, a largos traços, as minhas impressões sobre o congresso operario de Zurich de 1893, desenvolvendo os assumptos ali tratados, segundo o criterio das diversas escolas socialistas. Aos novos me dirijo, porque só dos novos ha alguma cousa a esperar. Os velhos são impenetraveis ás ideias modernas. Concorre, para isso, o egoismo e a intransigencia da edade. Seria absurdo esperar qualquer cousa de proficuo e de util de elementos gastos, cançados, e, em parte, desacreditados. Já uma vez o disse e não cessarei de o repetir. O bom senso publico não reconhece, em geral, senão dois partidos—o partido dos que avançam e o partido dos que recúam. Deixemos recuar os que tudo sacrificam ao seu interesse pessoal e á sua desmesurada ganancia; deixemos recuar os timidos, os covardes e os impotentes; e avancemos nós, unidos, fortes e disciplinados—unidos na acção, embora{195} divergentes na doutrina; fortes pelo sentimento do dever, e disciplinados pela solidariedade das ideias e dos principios.
A festa do 1.º de de maio do corrente anno será uma nova affirmação da força e da importancia do proletariado internacional.
Michelin, o illustre deputado socialista, apresentou ultimamente, na camara franceza, o seguinte projecto de lei:
«O trabalho é a origem unica e legitima da riqueza. Nenhum producto póde existir sem o trabalho, que é a condição essencial da liberdade e da prosperidade do homem, e só, por meio d'elle, se póde assegurar o progresso e moralisar a sociedade.
«Os trabalhadores tomaram a iniciativa da celebração de uma festa annual, com o fim de honrar o trabalho. Peço por isso, á camara que decrete, no sentido de considerar esta festa nacional.
Os poderes publicos, cuja missão consiste em dar satisfação ás aspirações do povo, não podem senão associar-se a um sentimento tão elevado, demonstrando assim o desejo sincero em que estão de examinar, para as attender, as justas reivindicações dos trabalhadores que constituem a immensa maioria do paiz.
«Por estas rasões, tenho a honra de submetter á camara o seguinte projecto:
Art.º unico—O 1.º de Maio é declarado o dia da festa nacional e annual do trabalho.»
Michelin deseja, por este modo, consagrar o 1.º de Maio, assim como se tem consagrado o 14 de{196} julho que é o dia da festa da Republica. Perderia a festa dos operarios, n'este caso, o seu caracter de resistencia, e converter-se-hia n'uma celebração pacifica do trabalho. Nada mais nobre e digno! Aos termos da proposta, associou-se enthusiaticamente o grande poeta socialista, Clovis Hugues, embora outros divergissem por desejarem conservar ao 1.º de Maio a sua feição, radical e revolucionaria, de combate e de opposição ao existente.
De um ou de outro modo, a celebração do 1.º de Maio não deixará de fazer-se.
Ha um problema a resolver. É a questão magna do seculo. Ou os governos o resolvem, ou as sociedades terão de passar por um cataclismo terrivel.
É este o dilemma. E da solução do assumpto dependerá, no futuro, a felicidade e o bem-estar dos povos!
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1.º—Benoit Malon | 14 |
2.º—Ramón Chies | 17 |
3.º—Victor Schoelcher | 18 |
4.º—Victor Considerant | 21 |
5.º—Theodoro Hertzka | 26 |
6.º—Amilcare Cipriani | 35 |
7.º—Frederico Engels | 39 |
8.º—Liebknecht | 41 |
9.º—Millerand | 44 |
10.º—Thivrier | 47 |
11.º—John Burns | 48 |
12.º—De Felice | 53 |
13.º—Jules Guesde | 58 |
14.º—Paulo Lafargue | 60 |
15.º—Cesar de Paepe | 98 |
16.º—Louis Bertrand | 104 |
17.º—Anseele | 105 |
18.º—Jean Volders | 106 |
19.º—Emile Arnaud | 113 |
20.º—Domela Nieuwenhuis | 115 |
21.º—Alfredo Naquet | 122 |
22.º—René Goblet | 124 |
23.º—Augusto Vacquerie | 126 |
24.º—Emile de Laveleye | 128 |
25.º—Eduardo Vaillant | 132 |
26.º—M.me Paule Mink | 149 |
27.º—P. Argyriadés | 151 |
28.º—Augusto Bebel | 160 |
29.º—Emile de Vanderwelde | 173 |
30.º—José Fontana | 189 |
31.º—Sousa Brandão | 190 |
[1] Freiland. Ein soziales Zukunftbild. Leipzig, Duncker und Humblot, 1889, 10 mk; Dresden, E. Pierson, 1891 e 1892, 3 mk.—Freeland, traducção ingleza por Arthur Ranson. Londres, Chatto e Windus, 1892, 6 sh.—Freiland und die Freilandbewegung. Vienna, 10 pf., traduzido por H. La Fontaine, advogado em Bruxellas, sob o titulo de Freiland, un roman collectiviste. Extraits et résumé. Bruxelles. 1892. Imprimerie Veuve Mounom.
[2] Horace Greeley.
[3] B. Malon—Socialismo integral.
[4] Louis Bertrand.—La Cooperation, ses avantages et son avenir.
[5] Discurso proferido no congresso de Zurich.
[6] Michel Revon—L'arbitrage international.
[7] Serviu-nos de guia, n'este estudo, a traducção analytica da obra de Rebel—La femme et le socialisme—publicada por P. Argyriadés. Vulgarisando a excellente doutrina, procurámos fazer obra de propaganda e nada mais.
[8] B. Malon—Le Socialisme Integral.