Title: A Mao e A Luva
Author: Machado de Assis
Release date: September 20, 2016 [eBook #53101]
Language: Portuguese
Credits: Produced by Laura Natal Rodriguez and Marc D'Hooghe at
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by the Bodleian Library, Oxford.
Os trinta e tantos annos decorridos do apparecimento desta novella á reimpressão que ora se faz parece que explicam as differenças de composição e de maneira do autor. Se este não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lh'a deu outr'ora, e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa.
Não existia, ha muito, no mercado. O autor acceitou o conselho de confiar a reimpressão ao editor dos outros livros seus. Não lhe alterou nada; apenas emendou erros typographicos, fez correcções de orthographia, e eliminou cerca de quinze linhas. Vae como saiu em 1874.
M. De A.
Ésta novella, sugeita ás urgências da publicação diaria, saiu das mãos do autor capitulo a capitulo, sendo natural que a narração e o estylo padecessem com esse methodo de composição, um pouco fóra dos hábitos do autor. Se a escrevêra em outras condições, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum colorido mais aos caracteres, que ahi ficam esboçados. Convem dizer que o desenho de taes caracteres,—o de Guiomar, sobretudo,—foi o meu objecto principal, senão exclusivo, servindo-me a acção apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis. Incompletos embora, terão elles saido naturaes e verdadeiros?
Mas talvez estou eu a dar proporções muito graves a uma cousa de tão pequeno tomo. O que ahi vae são umas poucas paginas que o leitor esgotará de um trago, se ellas lhe aguçarem a curiosidade ou se lhe sobrar alguma hora que absolutamente não possa empregar em outra cousa,—mais bella ou mais util.
Novembro de 1874.
M. De A.
—Mas que pretendes fazer agora?
—Morrer.
—Morrer? Que ideia! Deixa-te disso, Estevão. Não se morre por tão pouco....
—Morre-se. Quem não padece estas dores não as póde avaliar. O golpe foi profundo, e o meu coração é pusillanime; por mais aborrecivel que pareça a ideia da morte, peior, muito, peior do que ella, é a de viver. Ah! tu não sabes o que isto é?
—Sei: um namoro gorado....
—Luiz!
—.... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o genero humano, e Malthus perderia o latim. Anda, sobe.
Estevão metteu a mão nos cabellos com um gesto de augustia; Luiz Alves sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dous no corredor da casa de Luiz Alves, á rua da Constituição,—que então se chamava dos Ciganos;—então, isto é, em 1853, uma bagatella de vinte annos que lá vão, levando talvez comsigo as illusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurarios!) uma triste, crua e desconsolada experiencia.
Eram nove horas da noite; Luiz Alves recolhia-se para casa, justamente no occasião em que Estevão o ia procurar; encontraram-se á porta. Alli mesmo lhe confiou Estevão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas historias de amor, velhas como Adão, e eternas como o ceu. Os dous amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os vencer, se a Luiz não occoresse uma transacção.
—Pois sim, disse elle, convenho em que deves morrer, mas ha de ser amanhã. Cede da tua parte, e vem passar a noite commigo. Nestas ultimas horas que tens de viver na terra dar-me-has uma lição de amor, que eu te pagarei com outra de philosophia.
Dizendo isto, Luiz Alves travou do braço de Estevão, que não resistiu dessa vez, ou porque a ideia da morte não se lhe houvesse entranhado deveras no cerebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que é mais provavel, por esses dous motivos juntos. Vamos nós com elles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luiz foi beijar a mão de sua mãe.
—Mamãe, disse elle, hade fazer-me o favor de mandar o chá ao meu quarto; o Estevão passa a noite commigo.
Estevão murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram funebres como um cypreste. Luiz viu-lhe então, á luz das estearinas, alguma vermelhidão nos olhos, e adivinhou,—não era difficil,—que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou elle mentalmente. D'alli foram os dous para o quarto, que era uma vasta sala, com tres camas, cadeiras de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretaria,—vindo a ser ao mesmo tempo, alcova e gabinette, de estudo.
O chá subiu dahi a pouco. Estevão, a muito rogo do hospede, bebeu dous goles; accendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, em quanto Luiz Alves, preferindo um charuto e um sophá, accendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre o ventre e contemplando o bico das chinellas, com aquella placidez de um homem a quem se não gorou nenhum namoro. O silencio não era completo; ouvia-se o rodar de carros que passavam fóra; no aposento, porêm, o unico rumor era dos botins de Estevão na palhinha do chão.
Cursavam estes dous moços a academia de S. Paulo, estando Luiz Alves, no quarto anno e Estevão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos intimos, tanto quanto podiam sel-o dous espiritos differentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estevão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de animo, affectuoso e bom, não daquella bondade varonil, que é apanagio de uma alma forte, mas dessa outra bondade molle e de cera, que vai á mercê de todas as circumstancias, tinha, além de tudo isso, o infortunio de trazer ainda sobre o nariz os oculos côr de rosa de suas virginaes illusões. Luiz Alves via bem com os olhos da cara. Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoismo, e se não era incapaz de affeições, sabia regel-as, moderal-as, e sobretudo guial-as ao seu proprio interesse. Entre estes dous homens travara-se amizade intima, nascida para um na sympathia, para outro no costume. Eram elles os naturaes confidentes um do outro, com a differença que Luiz Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
Estevão referira ao amigo, desde tempos, toda a historia do amor, agora mallogrado, suas esperanças, desalentos e glorias, e, emfim, o inesperado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o capitulo mais delicioso do romance—no sentir delle—caiu de toda a altura das illusões na mais dura, prosaica e miseravel realidade.
A namorada de Estevão,—é tempo de dizer alguma cousa della,—era uma moça de 17 annos, e, por ora, simples alumna-professora no collegio de uma tia do nosso estudante, á rua dos Invalidos. Estevão tinha-a visto, pela primeira vez, seis mezes antes, e desde logo sentiu-se preso por ella, «até á morte», disse elle ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de tão estirado prazo. Qualquer que elle fosse, porém, o prazo fatal daquelle captiveiro, a verdade é que Estevão no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida—amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ella? Estevão dizia que sim, e devia crel-o; alguns olhares ternos, meia duzia de apertos de mão significativos, embora a largos intervallos, davam a entender que o coração de Guiomar—chamava-se Guiomar—não era surdo á paixão do academico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.
O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.
—Faz-me um favor? disse um dia Estevão apontando para a flor que ella trazia nos cabellos; esta flor está murcha, e, naturalmente, vai deital-a fóra ao despentear-se; eu desejava que m'a désse.
Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabello, e deu-lh'a; Estevão recebeu-a com egual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do ceu. Além da flor, e para supprir as cartas, que não havia, nada mais obtivera. Estevão durante aquelles seis compridos mezes, a não serem os taes olhares, que afinal são olhares, e vão-se com os olhos donde vieram. Era aquillo amor, capricho, passatempo ou que outra cousa era?
Naquella tarde, a tarde fatal, estando ambos a sós, o que era raro e difficil, disse-lhe elle que em breve ia voltar para S. Paulo, levando comsigo a imagem della, e pedindo-lhe em cambio, que uma vez ao menos lhe escrevesse. Guiomar franziu a testa e fitou nelle o seu magnifico par de olhos castanhos, com tanta irritação e dignidade, que o pobre rapaz ficou attonito e perplexo. Imagina-se a augustia delle diante do silencio que reinou entre ambos por alguns segundos; o que se não imagina é a dor que o prostrou,—a dor e o espanto,—quando ella, erguendo-se da cadeira em que estava, lhe respondeu, saindo:
—Esqueça-se disso.
—Pois quanto a mim,—disse Luiz Alves ouvindo pela terceira vez a narração de tão cru desenlace; quanto a mim, obedecia-lhe pontualmente; esquecia-me disso e ia curar-me cima dos compendios; direito romano e philosophia, não conheço remedio melhor para taes achaques.
Estevão não ouvia as palavras do amigo; estava então assentado na cama, com os cotovellos fincados nas pernas, e a cabeça mettida nas mãos, parecendo que chorava. A principio chorou em silencio; mas não tardou que Luiz Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se convulsivamente, a soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saiam do peito, a puxar os cabellos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d'alma tudo aquillo, tão lastimosamente natural, que emfim o commoveu, e não houve remedio se não dizer-lhe algumas palavras de conforto. A consolação veiu a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a pouco, e as lagrimas estancaram, ao menos por algum tempo.
—Sei que tudo isto hade parecer-te ridículo, disse Estevão sentando-se na cama; mas que queres tu? Eu vivia na persuasão de que era amado, e era-o talvez. Por isso mesmo não entendo o que se passou hoje. Ou o que eu suppunha ser amor, não passava talvez de passatempo ou zombaria...
—Talvez, talvez, interrompeu Luiz Alves, comprehendendo que o melhor meio de o curar do amor era metter-lhe em brios o amor-proprio.
Estevão ficou alguns instantes pensativo.
—Não, não, é possível, contestou elle. Tu não a conheces. É uma grave e nobre creatura, incapaz de conceber um sentimento desses, que seria vulgar ou cruel.
—As mulheres...
—Já pensei se aquillo de hoje não seria uma maneira de experimentar-me, de ver até que ponto eu lhe queria... Escusas de rir-te, Luiz; eu nada affirmo; digo que pode ser. Não admira que ella fizesse esse calculo,—um bom calculo, nesse caso, todo filho do coração...
A imaginação de Estevão desceu por este declivio de floridas conjecturas, e Luiz Alves entendeu que era de bom aviso não espantar-lhe os cavallos. Ella foi, foi, foi por alli abaixo, redea frouxa e riso nos labios. Boa viagem! exclamou mentalmente o collega voltando a estirar-se no sophá. A viagem não foi longa, mas produziu effeito salutar no animo do namorado, adoçando-lhe as penas, circumstancia que Luiz Alves aproveitou para lhe falar de cem cousas alheias ao coração e divertil-o do pensamento que o absorvia. Conseguiu o seu intento durante meia hora, e conseguiu mais, por que fez com que o collega risse, a principio de um riso amargo e dubio, depois de um riso jovial e franco incompatível com intuitos tragicos. Mas, ai triste! a dor delle era uma especie de tosse moral, que aplacava e reapparecia, intensa ás vezes, ás vezes mais fraca, mas sempre infallivel. O rapaz acertara de abrir uma pagina de Werther; leu meia duzia de linhas, e o accesso voltou mais forte que nunca.
Luiz Alves acudiu-lhe com as pastilhas da consolação; o accesso passou; nova palestra, novo riso, novo desespero, e assim se foram escoando as horas da noite, que o relogio da sala de jantar batia secca e regularmente, como a lembrar aos dous amigos que as nossas paixões não acceleram nem moderam o passo do tempo.
A aurora para os dous academicos coincidiu com as badaladas do meio dia, o que não admira, pois só adormeceram quando ella começava a apagar as estrellas. Estevão passou a noite,—a manhã, quero dizer,—muito socegado e livre de sonhos maus. Quando abriu os olhos extranhou o aposento e os objectos que o rodeavam. Logo que os reconheceu, despertou-se-lhe, com a memoria, o coração, onde já não havia aquella dor aguda da vespera. Os successos, embora recentes, começavam a envolver-se na sombra crepuscular do passado.
A natureza tem suas leis imperiosas; e o homem, ser complexo, vive não só do que ama, mas também (fôrça é dizel-o) do que come. Sirva isto de excusa ao nosso estudante, que almoçou nesse dia, como nos anteriores, bastando dizer em seu abono que, se o não fez com lagrimas, também o não fez alegre. Mas o certo é que a tempestade serenara; o que havia era uma ressaca, ainda forte, mas que diminuiria com o tempo. Luiz Alves evitou falar-lhe de Guiomar; Estevão foi o primeiro a recordar-se della.
—Dá tempo ao tempo, respondeu Luiz Alves, e ainda te has de rir dos teus planos de hontem. Sobretudo, agradece ao destino o haveres escapado tão depressa. E queres um conselho?
—Dize.
—O amor é uma carta, mais ou menos longa, escripta em papel velino, córte-dourado, muito cheiroso e catita; carta de parabens quando se lê, carta de pezames quando se acabou de ler. Tu que chegaste ao fim, põe a epistola no fundo da gaveta, e não te lembres de ir ver se ella tem um «post-scriptum»...
Estavão applaudiu a metaphora com um sorriso de bom agouro.
Duas vezes viu elle a formosa Guiomar, antes de seguir para S. Paulo. Da primeira sentiu-se ainda abalado, por que a ferida não cicatrisara de todo; da segunda, pôde encaral-a sem perturbação. Era melhor,—mais romantico pelo menos, que eu o puzesse a caminho da academia, com o desespero no coração, lavado em lagrimas, ou a bebel-as em silencio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei de eu fazer? Elle foi daqui com os olhos enxutos, distrahindo-se dos tedios da viagem com alguma pilheria de rapaz,—rapaz outra vez, como dantes.
Um mez depois de chegar Estevão a S. Paulo, achava-se a sua paixão definitivamente morta e enterrada, cantando elle mesmo um responso, a vozes alternadas, com duas ou tres moças da capital,—todas ellas, por passatempo. Claro é que dous annos depois, quando tomou o grão de bacharel, nenhuma ideia lhe restava do namoro da rua dos Invalidos. Demais, a bella Guiomar desde muito tempo deixara o collegio e fora morar com a madrinha. Já elle a não vira da primeira vez que veiu á corte. Agora voltava graduado em sciencias juridicas e sociaes, como fica dito, mais desejoso de devassar o futuro que de reler o passado.
A corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os que transpuzeram a linha dos Cincoenta divertia-se mais do que hoje, eterno reparo dos que já não dão á vida toda a flor dos seus primeiros annos. Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como no tempo delles, o que é natural dizer, porque cada homem vê as cousas com os olhos da sua edade. Os recreios da juventude não são de certo egualmenle nobres, nem egualmente frivolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o merecimento não é della,—a pobre juventude,—é sim do tempo que lhe cae em sorte.
A corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cholera—; bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao theatro. O Cassino abria os seus salões, como os abria o Club, como os abria o Congresso, todos tres fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homericos do theatro lyrico, a quadra memoravel daquellas lutas e rivalidades renovadas em cada semestre, talvez por um excesso de ardor e enthusiasmo, que o tempo diminuiu, ou transferiu,—Deus lhe perdôe,—a cousas de menor tomo. Quem se não lembra,—ou quem não ouviu falar das batalhas feridas naquella classica plateia do Campo da Acclamação, entre a legião casalonica e a phalange chartonica, mas sobretudo entre esta e o regimento lagruista? Eram batalhas campaes, com tropas frescas,—e maduras tambem,—apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de estalinhos. Uma noite a acção travou-se entre o campo lagruista e o campo chartonista, com tal violencia, que parecia uma pagina da Illiada. Desta vez, a Venus da situação saiu ferida do combate; um estalo rebentára no rosto da Charton. O furor, o delirio, a confusão foram indescriptiveis; o applauso e a pateada deram-se as mãos,—e os pés. A peleja passou aos jornaes. «Vergonha eterna (dizia um) aos cavalheiros que cuspiram na face de uma dama!»—«Si for mister (replicava outro) daremos os nomes dos aristarchos que no saguão do theatro juraram desfeitear Mlle. Lagrua.)»—«Patuleia desenfreada!»—«Fidalguice balofa!»
Os que escaparam daquellas guerras de alecrim e mangerona hão de sentir hoje, após dezoito annos, que despenderam excessivo enthusiasmo em cousas que pediam repouso de espirito e lição de gosto.
Estevão é uma das relíquias daquella Troya, e foi um dos mais fervorosos lagruistas, antes e depois do grão. A causa principal das suas preferencias, era de certo o talento da cantora; mas a que elle costumava dar, nas horas de bom humor, que eram todas as vinte e quatro do dia, tirantes as do somno, essa causa que mais que tudo o ligava aos «arraiaes do bom gosto» dizia elle, era,—imaginem lá,—era o buço de Mlle. Lagrua. Talvez não fosse elle o unico amador do buço; mas outro mais férvido duvido que houvesse nesta boa cidade. Um chartonista machiavelico, aliás escriptor elegante, elevava o tal buço á cathegoria de bigode, comprehendendo sagazmente que, se o buço era graça, o bigode era excrescencia; e elle nem ao labio da Lagrua queria perdoar.
—Oh! aquelle buço! exclamava Estevão nos intervallos de uma opera, aquelle delicioso buço hade ser a perdição da gente de bem! Quem me dera ir encaracolado por alli acima, até ficar mais proximo do ceu, quero dizer dos seus olhos, e ser visto por ella, que me não descobre na turba innumeravel dos seus adoradores! Querem saber uma cousa? Alli é que ella hade ter a alma, e eu quizera entreter-me com a alma della, e dizer-lhe muita cousinha que tenho cá dentro á espera de um buço que as queira ouvir.
Estevão era mais ou menos o mesmo homem de dous annos antes. Vinha cheirando ainda aos cueiros da Academia, meio estudante e meio doutor, alliando em si, como em edade de transição, o estouvamento de um com a dignidade do outro. As mesmas chimeras tinha, e a mesmas simplesa de coração; só não as mostrára nos versos que imprimiu em jornaes academicos, os quaes eram todos repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo. Nelles confessava o rapaz á cidade e ao mundo a profunda incredulidade do seu espirito, e o seu fastio puramente litterario. A collação de grão interrompeu, ou talvez acabou, aquella vocação poetica; o ultimo suspiro desse genero que lhe saiu do peito foram umas sextilhas á sua juventude perdida. Felizmente, que só a perdeu em verso; na prosa e na realidade era rapaz como poucos.
Posto fizesse boa figura na academia, mais presava do que amava a sciencia do direito. Suas preferencias intellectuaes dividiam-se, ou antes abrangiam a polilica e a litteratura, e ainda assim, a politica só lhe acenava com o que podia haver litterario nella. Tinha leitura de uma e outra cousa, mas leitura veloz e á flor das paginas. Estevão não comprehendería nunca este axioma de lord Macaulay—que mais aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e dahi vinha o seu nenhum apego ás sciencias que estudara. Venceu a repugnancia por amor proprio; mas, uma, vez dobrado o cabo das Tormentas disciplinares, deixou a outros o cuidado de aproar á India.
Suas aspirações políticas deviam naturalmente morrer em germen, não só porque lhe minguava o apoio necessario para as arvorecer e fructificar, mas ainda por que elle não tinha em si a força indispensavel a todo o homem que põe a mira acima do estado em que nasceu. Eram aspirações vagas, intermittentes, vaporosas, umas visões legislativas e ministeriaes, que tão depressa lhe namoravam a imaginação, como logo se esvaeciam, ao resvalar dos primeiros olhos bonitos, que esses, sim, amava-os elle deveras. Opiniões não as tinha; alguns escriptos que publicara durante a quadra academica eram um complexo de doutrinas de toda a casta, que lhe fluctuavam no espirito, sem se fixarem nunca, indo e vindo, alçando-se ou descendo, conforme a recente leitura ou a actual disposição de espirito.
Por agora militava nas fileiras do lagruismo, com ardor, dedicação e fidelidade de bom apostolo. Não era abastado para pagar o luxo de uma opinião lyrica; nascera pobre e não tinha parente em boa posição. Alguns poucos recursos possuia, provenientes do seu officio de advogado, que exercia com o amigo Luiz Alves.
Uma noite assistira á representação de Othello, palmeando até romper as luvas, acclamando até cansar-lhe a voz, mas acabando a noite satisfeito dos seus e de si. Terminado o expectaculo, foi elle, segundo costumava, assistir á saida das senhoras, uma procissão de rendas, e sedas, e leques, e veus, e diamantes, e olhos de todas as cores e linguagens. Estevão era pontual nessas occasiões de espera, e raro deixava de ser o ultimo que saía. Tinha agora os olhos pregados em outros olhos, não pardos como os delle, mas azues, de um azul-ferrete, infelizmente uns olhos casados, quando sentiu alguem bater-lhe no hombro, e dizer-lhe baixinho estas palavras:
—Larga o pinto, que é das almas.
Estevão voltou-se.
—Ah! és tu! disse elle vendo Luiz Alves. Quando chegaste?
—Hoje mesmo, respondeu o collega; venho sequioso de musica. Vassouras não tem Lagrua nem Othello...
—Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estevão, que, ainda falando em prosa, cultivava as suas metaphoras poeticas. Fizeste bem; não te perdoaria se preferisses a outra, a lambisgoia, que aqui nos querem impingir por grande cousa, e que não chega aos calcanhares do buço...
Interrompeu-se. Luiz Alves acabava de comprimentar ceremoniosamente alguem que passava; Estevão volveu a cabeça para ver quem era. Era uma moça, que elle não chegou a ver, porque já descia as escadas; mas tão elegante e gentil que os olhos lhe fuzilaram de admiração.
—Algum namoro? perguntou ao amigo.
—Não; uma visinha.
A desfilada acabou; sairam os dous e foram dalli cear a um hotel, seguindo depois para Botafogo, onde morava Luiz Alves, desde que perdera a mãe, alguns mezes antes.
A casa de Luiz Alves ficava quasi no fim da praia de Botafogo, tendo ao lado direito outra casa, muito maior e de apparencia rica. A noite estava bella, como as mais bellas noites daquelle arrabalde. Havia luar, ceu limpido, infinidade de estrellas e a vaga a bater mollemente na praia, todo o material, em summa, de uma boa composição poetica, em vinte estrophes pelo menos, obrigada a rima rica, com alguns exdruxulos rebuscados nos diccionarios. Estevão poetou, mas poetou em prosa, com um enthusiasmo legitimo e sincero. Luiz Alves, menos propenso ás cousas bellas, preferia a mais util de todas naquella occasião, que era ir dormir. Não o conseguiu sem ouvir ao hospede tudo quanto elle pensava ácerca daquelle «pinto, que era das almas,» aquelles olhos azues, « profundos como o ceu,» exclamava Estevão.
Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os taes olhos o perseguissem, ainda em sonhos, ou porque extranhasse a cama, ou por que o destino assim o resolvera, a verdade é que Estevão dormiu pouco, e, cousa rara, accordou logo depois de apparecer a arraiada.
A manhã estava fresca e serena; era tudo silencio, mal quebrado pelo bater do mar e pelo chilrear dos passarinhos nas chacaras da visinhança. Estevão, amuado por não poder conciliar o somno, resolvera-se a ir ver a manhã, de mais perto. Ergueu-se de manso, lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem café ao jardim, para onde foi sobraçando um livro que acaso topou ao pé da cama.
O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chacara visinha por uma cerca. Relanceando os olhos pela chacara, viu Estevão que era plantada com esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas curvas e duas grandes ruas rectas. Uma destas começava das escadas de pedra da casa e ia até o fim da chacara; a outra ia da cerca de Luiz Alves até á extremidade opposta, cortando a primeira no centro. Do lugar em que ficava Estevão só a segunda rua podia ser vista de ponta a ponta.
Sentou-se o bacharel em um banco que alli achou, recebeu a chicara de café, que o escravo lhe trouxe dahi a pouco, accendeu um charuto e abriu o livro. O livro era uma Pratica Forense. Demos-lhe razão ao despeito com que o fechou e atirou ao chão, contentando-se com o canto dos passaros e o cheiro das flores, e a sua imaginação tambem, que valia as flores e os passaros.
Deus sabe até onde iria ella, com as azas faceis que tinha, se um incidente lh'as não colhera e fizera descer á terra. Da casa visinha saíra um roupão,—elle não viu mais que um roupão,—e seguira pela rua que enfrentava com casa, a passo lento e meditativo. Estevão, que adorava todos os roupões, fossem ou não meditativos, deu as graças á Providencia, pela boa fortuna que lhe deparava, e afiou os olhos para contemplar aquella graciosa madrugadora. Graciosa, ainda elle não sabia se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava que o fosse.
A deliciosa paisagem ia ter emfim uma alma; o elemento humano vinha coroar a natureza.
Ergueu-se Estevão, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver melhor,—e ser visto, digamos a verdade toda,—aquella desconhecida visinha, que devia ser por força a que Luiz Alves comprimentara no theatro. Acteon christão e modesto, não sorprehendia Diana no banho, mas ao sair delle; todavia, não palpitava menos de commoção e curiosidade.
O roupão ia andando.
A primeira cousa que Estevão pôde descobrir é que a visinha era moça. Via-lhe o perfil, em cada aberta que deixavam as arvores, um perfil correcto e puro, como de esculptura antiga. Via-lhe a face côr de leite, sobre a qual se destacava a côr escura dos cabellos, não penteados de vez, mas frouxamente atados no alto da cabeça, com aquelle deleixo matinal que faz mais bellas as mulheres bellas. O roupão,—de musselina branca,—finamente bordado, não deixava ver toda a graça do talhe, que devia ser e era elegante, dessa elegancia que nasce com a creatura ou se apura com a educação, sem nada pedir, ou pedindo pouco á thesoura da costureira. Todo o collo ia coberto até o pescoço, onde o roupão era preso por um pequeno broche de saphira. Um botão, do mesmo mineral, fechava em cada pulso as mangas estreitas e lisas, que rematavam em folhos de renda.
Estevão, da distancia e na posição em que se achava, não podia ver todas estas minucias que aqui lhes aponto, em desempenho deste meu dever de contador de historias. O que elle viu, além do perfil, dos cabellos, e da tez branca, foi a estatura da moça, que era alta, talvez um pouco menos do que parecia com o vestido roçagante que levava. Pôde ver-lhe também um livrinho, aberto nas mãos, sobre o qual pousava os olhos, levantando-os de espaço a espaço, quando lhe era mister voltar a folha, e deixando-os cair outra vez para embeber-se na leitura.
Ia assim andando, sem cuidar que a visse alguem, tão serena e grave, como se atravesára um salão. Estevão, que não tirava os olhos della, mentalmente pedia ao ceu a fortuna de a ter mais proxima, e anciava por vel-a chegar á rua que lhe ficava diante. Comtudo, era difficil que lhe parecesse mais formosa do que era, vista assim de perfil, a escapar por entre as arvores. O jovem bacharel, par não perder o sestro dos primeiros tempos, avocava todas as suas reminiscencias litterarias; a desconhecida foi successivamente comparada a um seraphim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memoria delle havia mais aereo, transparente, ideial.
Em quanto elle trabalhava o espirito nestas comparações poeticas, não descabidas, se quizerem, em tal lugar, e ao pé de tão graciosa creatura, ella seguia lentamente e chegara á encrusilhada das duas grandes ruas da chacara. Estevão esperava que voltasse á direita, isto é, que viesse para o lado delle, mas sobretudo receiava que seguisse pela mesma rua adiante e se perdesse no fundo da chacara. A moça escolheu um meio termo, voltou á esquerda, dando as costas ao seu curioso admirador e continuando no mesmo passo vagaroso e regular.
A chacara não era em demasia grande; e por mais lento que fosse o passo da madrugadora, não gastaria ella immenso tempo em percorrer até o fim aquella porção da rua em que entrára. Mas alli, ao pé daquelle coração juvenil e impaciente, cada minuto parecia, não direi um seculo,—seria abusar dos direitos do estylo,—mas uma hora, uma hora lhe parecia, com certeza.
A moça entretanto, chegando ao fim, parou alguns instantes, pousou a mão nas costas de um banco rustico que alli havia e enfrentava com outro, collocado na extremidade opposta. A outra mão descaira-lhe, e os olhos tambem, o que magoou o seu curioso observador. Seriam saudades de alguem? Estevão sentiu uma cousa, a que chamarei ciume antecipado, mas que na realidade eram invejas da alheia fortuna. A inveja é um sentimento mau; mas nelle, que nascera para amar, e que, além disso, tinha em si o contraste do nascimento com o instincto, um berço obscuro e umas aspirações á vida elegante,—nelle a inveja era quasi um sentimento desculpavel.
A moça voltou e veiu pela rua adiante. Emfim, disse comsigo Estevão, vou contemplal-a de mais perto. Ao mesmo tempo, receioso de que, descobrindo alli um extranho, guiasse os passos para casa, Estevão afastou-se do logar em que ficára, resoluto a apparecer, quando ella estivesse proxima á cerca do jardim. A moça vinha andando com o livro fechado, e os olhos ora no chão, ora nas andorinhas e camachilras que esvoaçavam na chacara. Se trazia saudades, não se lhe podiam ler no rosto, que era quieto e pensativo, sim, mas sem a menor sombra de pena ou de tristeza.
Estevão do logar onde estava podia examinar-lhe as feições, sem ser visto por ella; mas foi justamente do que não cuidou, desde que lh'as pôde distinguir. Valia a pena, entretanto, contemplar aquelles grandes olhos castanhos, meio velados pelas longas, finas e bastas pestanas, não maviosos nem quebrados, como elle os cuidara ver, mas de uma belleza severa, casta e fria. Valia a pena admirar como elles communicavam a todo o rosto e o toda a figura um ar de magestade tranquilla e senhora de si. Não era ella uma dessas bellezas que, ao mesmo tempo, que subjugam o coração, accendem os sentidos; falava á intelligencia primeiro do que ao coração, tanto a arte parecia haver collaborado com a natureza naquella creatura, meia estatua e meia mulher.
Tudo isto podia ver e considerar o nosso bacharel. A verdade, porém, é que a nenhuma destas cousas attendeu. Desde que distinguíra as feições de moça, ficou como tomado de assombro, com os olhos parados, a bocca entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o coração.
A moça chegara á cerca; esteve de pé algum tempo, olhou em derredor e por fim sentou-se no banco que alli havia, dando as costas para o jardim de Luiz Alves. Abriu novamente o livro, e continuou a leitura do ponto em que a deixara tão só comsigo, tão embebida no livro que tinha deante, que não a despertou o rumor, aliás sumido, dos passos de Estevão nas folhas seccas do chão. Teria percorrido meia pagina, quando Estevão, reclinando-se sobre a cerca, e procurando abafar a voz para que só chegasse aos ouvidos della, proferiu este simples nome:
—Guiomar!
A moça soltou um grito de sorpreza e de susto, e voltou-se sobresaltada para o lado donde partira a voz. Ao mesmo tempo levantára-se. A impressão que lhe produzira, e não sei se tambem algum ar de colera que lhe notasse no rosto; e além de tudo, o remorso de não haver suffocado aquelle grito de seu coração, fez com que Estevão, quasi no mesmo instante murmurasse em tom de súpplica:
—Perdoe-me; foi uma scentelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de todo.
Guiomar,—sabemos agora que era este o seu nome,—olhou séria e quieta para o seu mal aventurado interruptor, dous longos e mortaes minutos. Estevão, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o coração palpitava-lhe com força, como a despedir-se da vida. A situação ora em demasia afflictiva e embaraçosa para que se podesse prolongar mais. Estevão ia corteja-la e despedir-se; mas a moça, com um sorriso de mais piedade que affecto, murmurou:
—Está perdoado.
Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mão, que elle apertou,—apertou não é bem dito,—em que elle tocou apenas, o mais ceremoniosamente que podia e devia naquella situação.
E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dalli, a verem ambos o espectro do passado, aquelle tão amargo passado para um delles. Guiomar foi a primeira que rompeu o silencio, fazendo a Estevão uma pergunta natural, como não podia deixar de ser naquellas circumstancias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que elle podia ouvir:
—Ha dous annos que nos não vemos, creio eu?
—Ha dous annos, murmurou Estevão abafando um suspiro.
—Já está formado, não? Lembra-me ter lido o seu nome....
—Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tía...
—Não a vejo ha muito tempo, interrompeu Guiomar; eu saí do collegio, logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Saí a convite da baroneza, minha madrinha, que lá foi buscar-me um dia, allegando que eu já não tinha que aprender, e que me não convinha ensinar.
—De certo, assentiu Estevão.—Minha tia é que não deixou nem podia deixar de ensinar; acabou no officio.
—Acabou?
—Morreu.
—Ah!
—Morreu ha cerca de um anno.
—Era uma boa creatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silencio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi..., Está admirando esta flor?
Estevão, apanhado em flagrante delicto de admiração, não da flor mas da mão que a sustinha,—uma deliciosa mão, que devia ser por força a que se perdeu da Venus de Milo, Estevão balbuciou:
—Com effeito, é linda!
—Ha muita flor bonita aqui na chacara. A baroneza tem immenso gesto a estas cousas, e o nosso jardineiro é homem que sabe do seu officio.
Aquelle natural acanhamento da primeira occasião foi desapparecendo aos poucos, e a conversa veiu a ser, não tão familiar, como outr'ora, mas em todo o caso menos fria do que a principio estivera. Havia, comtudo, uma differença entre os dous: elle, sem embargo do desembaraço, sentia-se abalado e commovido; ella, porém, vencido o sobresalto do principio, mostrava-se tranquilla e fria, sempre polida e grave, risonha ás vezes, mas de um risonho á flor do rosto, que não lhe alterava a serenidade e compostura.
O sitio e a hora eram mais proprios de um idylio, que de uma fria e descolorida pratica. Um ceu claro e limpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tepida, a vegetação em derredor, todo aquelle reviver das cousas parecia estar pedindo uma egual aurora nas almas. Estas é que deviam falar alli a sua lingua dellas, amorosa e candida, em vez da outra, cortez, elegante e rigida, que a nenhum delles desprazia, de certo, mas que era muito menos volontaria nos labios de Estevão.
Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor.
Estevão, que a maior parte do tempo ficara a ouvil-a, observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturaes, ainda que podiam ser calculadas naquella situação. A Guiomar que elle conhecera e amara era o embryão da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito; faltava-lhe outr'ora o colorido, mas já se lhe viam as linhas do desenho.
A conversa durou cerca de tres quartos de hora, uma migalha de tempo para elle, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ella foi a primeira a dizer-lh'o.
—O senhor fez-me perder muito tempo. Ha talvez uma hora que estamos aqui a conversar. Era natural, depois de dous annos. Dous annos! Mas o que não era natural, continuou ella mudando de tom, era atrever-me a falar com un estranho neste déshabillé tão pouco elegante...
—Elegantissimo, pelo contrario.
—O senhor tem sempre um comprimento de reserva: vejo que não perdeu o tempo na academia. Vou-me embora. São horas da baroneza dar o seu passeio pela chacara.
—Será aquella senhora que alli está no alto da escada? perguntou Estevão.
—É ella mesma, respondeu Guiomar. Está á espera que lhe vá dar o braço.
E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mão a Estevão, dizendo:
—Passe bem, senhor doutor, estimei vêl-o.
Estevão tocou-lhe levemente na mão, fina e macia, e inclinou-se respeitoso. A moça caminhou para casa. Elle acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ella, desta vez a passo accelerado, resvalava por entre as arvores até subir as escadas da casa. Viu-a dar o braço á madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez.
Estevão ainda ficou algum tempo encostado á cerca, na esperança de que ella olhasse ou dirigisse os passos para aquelle lado; ella porém, passou indifferente, como se nem da existencia delle soubera. Estevão retirou-se dalli cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o éco vago e surdo desta interrogação:
—Entro num drama ou saio de uma comedia?
O passeio da baroneza durou pouco mais de meia hora. O sol começava a aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chacara, o calor aconselhava á boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o braço, e ambas, seguindo pelo mesmo caminho, guiaram para casa.
—Parece muito tarde, Guiomar, disse a baroneza ao cabo de alguns segundos.
—E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um encontro que tive aqui na chacara.
—Um encontro?
—Um homem.
—Algum ladrão? perguntou a madrinha parando.
—Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha mestra de collegio... sabe que morreu?
—Quem disse isso?
—O sobrinho, o tal sugeito que encontrei aqui hoje.
—Você está zombando commigo! Um homem na chacara?
—Não era bem na chacara, mas no jardim do Dr. Luiz Alves. Estava encostado á cerca; trocámos algumas palavras.
A baroneza olhou para ella alguns segundos.
—Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada, porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu.—Mas as apparencias....Que qualidade de homem é esse sobrinho?
Interrompeu-as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco annos, alta e magra, cabello entre louro e branco, olhos azues, aceiadamente vestida, a Sra. Oswald,—ou mais britannicamente, Mrs. Oswald,—dama de companhia da baroneza, desde alguns annos. Mrs. Oswald conhecêra a baroneza em 1846; viuva e sem familia, acceitou as prospostas que esta lhe fez. Era mulher intelligente e sagaz, dotada de boa indole e serviçal. Antes da ida de Guiomar para a companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presença de Guiomar, que a baroneza amava extremosamente, alterou um pouco a situação.
—São nove horas! disse de longe a ingleza; pensei que hoje não queriam voltar para casa. O calor está forte; e a senhora baroneza sabe que não é conveniente expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias.
—Tem razão, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que o passeio começou tarde.
—Porque me não mandou chamar?
—Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott...
—Milton, emendou gravemente a ingleza; esta manhã foi dedicada a Milton. Que immenso poeta, D. Guiomar!
—Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e lá dentro a ouviremos com melhor disposição.
Foram as tres andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era vasta, com seis janellas para a chacara. Dalli seguiram para uma saleta, onde a baroneza sentou-se na sua poltrona, a esperar a hora do almoço. Guiomar saiu para ir cuidar da toilette; e a baroneza que desde alguns minutos estivera cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. Oswald, sem dizer palavra.
Era ella uma senhora de cincoenta annos, refeita, vestida com esse alinho e esmero da velhice, que é um resto da elegancia da mocidade. Os cabellos, côr de prata fosca, emmolduravam-lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, não por desgostos, que os não tivera, mas pelos annos. Os olhos luziam de muita vida, e eram a parte mais juvenil do rosto.
Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser egualemente feliz desde o dia do noivado até o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas já lá iam alguns annos, e da crua dor que tivera ficara-lhe agora a consolação da saudade.
—Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a sós, disse ella á ingleza, que se achava a alguns passos de distancia.
Mrs. Oswald foi ate a porta espreitar se viria alguém e voltou a sentar-se ao pé da baroneza. A baroneza estava outra vez pensativa, com as mãos crusadas no regaço e os olhos no chão.
Estiveram as duas alli silenciosas alguns dous ou tres minutos. A baroneza despertou emfim das reflexões, e voltou-se para a ingleza:
—Mrs. Oswald, disse ella, parece estar escripto que não serei completamente feliz. Nenhum sonho me falhou nunca; este, porém, não passará de sonho, e era o mais bello de minha velhice.
—Mas porque desespera? disse a ingleza. Tenha animo, e tudo se hade arranjar. Pela minha parte, oxalá pudesse contribuir para a completa felicidade desta familia, a quem devo tantos e tamanhos benefícios.
—Benefícios!
—E que outra cousa são os seus carinhos, a protecção que me tem dado, a confiança...
—Está bom, está bom, interrompeu affectuasamente a baroneza; falemos de outra cousa.
—Della, não é? Diz-me o coração que com alguma paciencia tudo se alcançará. Todos os meios se hão de tentar; e todos elles são bons se se trata de fazer a felicidade sua e della. Bem está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juizo. Por em quanto só vejo um obstaculo: a pouca disposição...
—Só esse?
—Que outro mais?
—Talvez outro, disse a baroneza abaixando a voz; póde ser que não, mas tão infeliz sou neste meu desejo, que hade vir a ser obstaculo, talvez.
—Mas que é?
—Um homem, um moço, não sei quem, sobrinho da mestra que foi de Guiomar... Ella mesma contou-me tudo ha pouco.
—Tudo o que?
—Não sei se tudo; mas emfim disse-me que, estando a passear na chacara, vira o tal sobrinho da mestra, junto á cerca do Dr. Luiz Alves, e ficara a conversar com elle. Que será isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomeça agora,—agora, que ella já não é a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha filha, a filha do meu coração.
A commoção da baroneza ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. Oswald pegou-lhe affectuosamente das mãos e procurou conforta-la com outras palavras de esperança e confiança. Disse-lhe, além disso, que o simples conversar com esse homem, que aliás nenhuma delias conhecia, não era razão para suppor uma paixão anterior.
—Emfim, concluiu a ingleza, custa-me crer que ella ame a alguem neste mundo. Por em quanto estou que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra senão essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do enthusiasmo á frieza, e da confiança ao retrahimento. Ha de vir a amar, mas não creio que tenha grandes paixões, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responder-lhe actualmente pelo seu coração, como se tivesse a chave na minha algibeira.
A baroneza abanou a cabeça.
—Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem é elle, e que relações de affecto houve no passado.
—Parece-lhe possivel?
—Naturalmente!
A ingleza proferiu esta unica palavra com a segurança necessaria para serenar o animo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ella, como quem reflectia.
—Ha occasiões, disse emfim a baroneza ao cabo de alguns segundos de silencio, ha occasiões em que eu quasi chego a sentir remorsos do amor que tenho a Guiomar. Ella veiu preencher na minha vida o vacuo deixado por aquella pobre Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou comsigno, para mal de sua mãe. Se havia de ser infeliz, melhor é que a chore morta, com a esperança de a ir encontrar no ceu. Mas não lhe quiz mais, nem talvez tanto, como a esta criança, que levei á pia, e de quem Deus me fez mãe...
A baroneza calou-se; ouvira passos no corredor.
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com tão singellos meios o fizera, que não desdizia daquelle matinal desalinho em que o leitor a viu no capitulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado para realçar a um tempo a abundancia dos cabellos e a senhoril belleza da testa. As pontas bordadas de um collarinho de cambraia dobravam-se faceiramente sobre o azul do vestido de glacé, talhado e ornado com uma simplicidade artistica. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel,—um dos mais bellos paineis que havia por aquelles tempos em toda a praia de Botafogo.
—Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu assomar á porta da saleta.
E Guiomar sorriu com tanta, satisfação e gôzo ao ouvir-lhe esta saudação familiar, que um observador attento hesitaria em dizer se era aquillo simples vaidade de moça, ou se alguma cousa mais.
A baroneza poz os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a moça reparou, e que a tornaram séria durante alguns rapidos segundos. Mas sorriu depois; e pegando das mãos da madrinha deu-lhe dous beijos no rosto, com tanta ternura e tão sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento.
—Não precisa falar, disse Guiomar, já sei que me acha bonita. É o que me diz todos os dias, com risco de me perder, porque se eu acabo vaidosa, adeus, minhas encommendas, ninguem mais poderá commigo.
Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros cuidados, e a nós tambem, amigo leitor. Em quanto as tres almoçam, relanceemos os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e tão singular, como dizia Mrs. Oswald.
Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno não sei de que repartição do Estado, homem probo, que morreu quando ella contava apenas sete annos, legando á viuva o cuidado de a educar e manter. A viuva era mulher energica e resoluta, enxugou as lagrimas com a manga do modesto vestido, olhou de frente para a situação e determinou-se á luta e á victoria.
A madrinha de Guiomar não lhe faltou naquelle duro transe, e olhou por ellas, como entendia que era seu dever. A solicitude, porém, não foi tão constante a principio como veiu a ser depois; outros cuidados de familia lhe chamavam a attenção.
Guiomar annunciava desde pequena as graças que o tempo lhe desabrochou e perfez. Era uma creaturinha galante e delicada, assaz intelligente e viva, um pouco travêssa, de certo, mas muito menos do que é usual na infancia. Sua mãe, depois que lhe morrera o marido, não tinha outro cuidado na terra, nem outra ambição mais, que a de ve-la prendada e feliz. Ella mesma lhe ensinou a ler mal, como ella sabia,—e a coser e bordar, e o pouco mais que possuia de seu officio de mulher. Guiomar não tinha difficuldade nenhuma em reter o que a mãe lhe ensinava, e com tal affinco lidava por aprender, que a viuva,—ao menos nessa parte,—sentia-se venturosa. Has-de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta simples expressão de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo á applicação.
A casa em que moravam era naturalmente modesta. Alli correu a infancia,—mas solitaria, o que é um pouco mais grave. A mãe, quando a via embebida nos jogos proprios da edade, infantilmente alegre,—mas de uma alegria que fazia mal a seus olhos de mãe, tão fundo lhe doia aquelle viver,—a mãe sentia ás vezes pularem-lhe as lagrimas dos olhos fora. A filha não as via, porque ella sabia escondel-as; mas advinhava-as atravez da tristeza que lhe ficava no rosto. Só não adivinhava o motivo, mas bastava que fossem maguas de sua mãe, para lhe descair tambem a alegria.
Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viuva, ainda mais dolorosa que a primeira. Na edade apenas de dez annos, tinha Guiomar uns desmaios de espirito, uns dias de concentração e mudez, uma seriedade, a principio intermittente e rara, depois frequente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer á mãe que eram prenuncios de que Deus a chamava para si. Hoje sabemos que não eram. Seria acaso effeito daquella vida solitaria e austera, que já lhe ia affeiçoando a alma e como que apurando as forças para as pugnas da vida?
A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ella estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chacara pertencente a uma casa da visinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumára-se a ir espairecer alli os olhos, já serios e pensativos. Naquella tarde, como estivesse olhando para as mangueiras, a cobiçar talvez as doces fructas amarellas que lhe pendiam dos ramos, viu repentinamente apparecer-lhe deante, a cinco ou seis passos do lugar em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam por entre as arvores os seus vestidos, e faziam luzir aos ultimos raios do sol poente as joias que as enfeitavam. Ellas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe dispensou talvez algum affago; mas foram-se, e com ellas os olhos da interessante pequena, que alli ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memoria o quadro que passára.
A noite veiu, a menina recolheu-se pensativa e melancolica, sem nada explicar á solicita curiosidade da mãe. Que explicaria ella, se mal podia comprehender a impressão que as cousas lhe deixavam? Mas, como a mãe entristecesse com aquillo, Guiomar domou o proprio espirito e fez-se tão jovial como nos melhores dias.
Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade superior aos seus annos. Com ella, e a viveza intellectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo o que a mãe lhe ensinara, e melhor ainda do que ella o sabia, desde que o tempo lhe permittiu desenvolver os primeiros elementos.
Aos trese annos ficou orphã; este fundo golpe em seu coração, foi o primeiro que ella verdadeiramente pode sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. Já então a madrinha a fizera entrar para um collegio, onde aperfeiçoava o que sabia e onde lhe ensinavam muita cousa mais.
Vivia ainda então a filha de baroneza, uma interessante creança de trese annos, que era toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava a casa da madrinha; a edade quasi egual das duas meninas, a affeição que as ligava a belleza e meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre a madrinha e a afilhada os laços puramente espirituaes que as uniam antes. Guiomar correspondia aos sentimentos daquella segunda mãe; havia talvez em seu affecto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O affecto era espontaneo; o encarecimento é que seria voluntário.
Tinha a moça dezeseis annos quando passou para o collegio da tia de Estevão, onde pareceu á baroneza se lhe poderia dar mais apurada educação. Guiomar manifestára então o desejo de ser professora.
—Não ha outro recurso, disse ella á baroneza quando lhe confiou esta aspiração.
—Como assim? perguntou a madrinha.
—Não ha, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que a senhora me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve cumprir. A minha é... é ganhar o pão.
Estas ultimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que á força. O rubor subiu-lhe ás faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha.
—Guiomar! exclamou a baroneza.
—Peço-lhe uma cousa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade.
A madrinha sorriu e approvou-a com um beijo,—assentimento de boca, a que já o coração não respondia, e que o destino devia mudar.
Pouco tempo depois padeceu a baroneza o golpe quasi mortal a que alludiu no capitulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quasi levou a mãe á sepultura.
A affeição de Guiomar não se desmentiu nessa dolorosa situação. Ninguém mostrou sentir mais do que ella a morte de Henriqueta, ninguém consolou tão dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus annos; todavia revellou ella a posse de uma alma egualmente terna e energica, affectuosa e resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira dona da casa; a catastrophe abatera a propria Mrs. Oswald.
O coração da pobre mãe ficára tão vasio, e a vida lhe pareceu tão agra e deserta sem a filha, que ella morreria talvez de saudade, se não fora a presença de Guiomar. Nenhuma outra creatura poderia preencher, como esta, o logar de Henriqueta. Guiomar era já meia filha da baroneza as circumstancias, não menos que o coração, tinham-n'as destinado uma para a outra. Um dia, em que a afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para sua casa.
—Você será a filha que eu perdi; elle não me amou mais, nem eu já agora teria outra consolação.
—Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mãos.
A baroneza estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos pés e poz-lhe a cabeça no regaço. A boa mãe curvou-se e beijou-lh'a ternamente, com os olhos naquella filha que os successos lhe haviam dado, e o pensamento no ceu, onde devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou para si.
Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha, onde a alegria reviveu, gradualmente, graças á nova moradora, em quem havia um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e não breve, o modo de viver entre a madrinha e Henriqueta, Guiomar poz todo o seu esforço em reproduzir pelo mesmo teor os habitos de outro tempo, de maneira que a baroneza mal pudesse sentir a ausencia da filha. Nenhum dos cuidados da outra lhe esqueceu, e se em algum ponto os alterou foi para augmentar-lhe novos. Esta intenção não escapou ao espirito da baroneza, e é superfluo dizer que deste modo os vinculos do affecto mais se apertaram entre ambas.
Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava a moça, não menos, a plena harmonia de seus instinctos com a sociedade em que entrára. A educação, que nos últimos tempos recebera, fez muito, mas não fez tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra,—melhor diremos, começal-a. Ninguem adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquella moça, a origem mediana que ella tivera; a borboleta fazia esquecer a chrysalida.
Aquelle conselho de Luiz Alves, na fatal noite de dous annos antes, não ha duvida que era judicioso e devera ter ficado no espirito de Estevão. Não convinha reler a carta, sob pena de lhe achar um post-scriptum. Estevão era curioso de epistolas; não pode ter-se que não abrisse aquella. O post-scriptum lá estava no fim.
Vindo á linguagem natural, Estevão saiu do jardim de Luiz Alves com o coração meio inclinado a amar de novo a mulher que tanto o fizera padecer um dia. Daqui concluirá alguem que elle verdadeiramente não deixára de a amar Póde ser; havia talvez debaixo da cinza uma faisca, uma só, e essa bastava a repetir o incendio. Mas fosse de um ou de outro modo, o certo é que Estevão saiu dalli com o príncipio do amor no coração.
Todo aquelle dia foi de alvoroço e agitação para elle, que não se resignou logo, antes buscou reagir contra a entrada da paixão nova. A tentativa era sincera; as forças é que eram escassas. Elle desviava de si a imagem da moça; ella, porém perseguia-o, tenaz, como se fora um remorso, fatal como a voz de seu destino.
Estevão nada disse a Luiz Alves do encontro e da conversa qui tivera com a moça no jardim; e não lh'o escondeu por desconfiança, mas por vergonha. Que lhe diria porém elle que o não tivesse visto e percebido Luiz Alves? Da janella de seu quarto, que dava para o jardim, enfiando os olhos pela fresta das cortinas pôde observa-los durantes aquelles tres quartos de hora de innocente palestra. O espectaculo não o divertiu muito; Luiz Alves achou um pouco atrevida a escolha do logar.
A circumstancia de os ver juntos chamou-lhe a attenção para a coincidencia do nome da visinha com o da antiga namorada do collega; era naturalmente a mesma pessoa.
—Vai contar-me tudo, pensou Luiz Alves quando viu o collega affastar-se da cerca e dirigir os passos para casa.
Estevão, como disse, foi discreto. Vinha preocupado, muito outro do que entrára na vespera, a ler-se-lhe no rosto alguma cousa mais séria do que elle proprio costumava ser.
Tinha Estevão contra si o passado e o futuro. O presente, sim, defendia-o; elle sentia que alguma cousa o distanciava de Guiomar. Mas o passado falava-lhe de todas as doces recordações,—as menos amargas,—e a memoria quasi não sabe de outras quando relembra o que foi. O futuro acenava-lhe com as suas esperanças todas, e basta dizer que eram infinitas. Além disso, a Guiomar que elle via agora, surgia-lhe no meio de outra atmosphera,—a mesma que o seu espirito almejava respirar; e apparecia-lhe para fugir logo. Sobre tudo isto o obstaculo, aquella porta fechada, que bem podia ser a da cittá dolente, mas que em todo o caso elle quizera ver franqueada ás suas ambições.
Os dias correram alternados de confiança e desanimo, tecidos de ouro e fio negro, um lutar de todas as horas, que acabou como era de prever e devia acabar. O coração levou Estevão atraz de si.
Nenhum meio, dos que tinha á mão, lhe esqueceu para ver Guiomar. As janellas da casa estavam quasi sempre desertas. Duas ou tres vezes aconteceu vel-a de longe; ao approximar-se-lhe, sumira-se o vulto na sombra do salão Não perdia theatro; mas só duas vezes teve o gosto de a ver: uma no Lyrico, onde se cantava Somnambula, outra no Gymnasio, onde se representavam os Parisienses, sem que elle ouvisse uma nota da opera, nem uma palavra da comedia. Todo elle, olhos e pensamento, estava no camarote de Guiomar. No Lyrico foi baldada essa comtemplação; a moça não deu por elle. No Gymnasio, sim; o theatro era pequeno; comtudo, antes não fôra visto, tão tenazmente deviou ella os olhos do logar em que elle ficára.
Nem por isso deixou Estavão de ir esperal-a á saida, collocar-se francamente no seu caminho, sollicitar-lhe audazmente os olhos e attenção. A familia desceu da 2a ordem pela escada do lado de S. Francisco; a estreiteza do logar era excellente. Dava o braço á baroneza um moço de vinte e cinco annos, figura elegante, ainda que um tanto affectada. Desceram todos tres e ficaram á espera do carro alguns minutos. Na meia sombra que alli havia destacava-se o rosto marmoreo de Guiomar e a gentileza de seu talhe. Seus grandes olhos vagavam pela multidão, mas não fitavam ninguem. Ella possuia, como nenhuma outra, a arte de gozar, sem as ver, as homenagens da admiração publica.
Irritado com a indifferença da moça, vagou Estevão toda aquella noite, a sós com o seu despeito e o seu amor, tecendo e destecendo mil planos, todos mais absurdos uns que outros. A taça enchera de todo; era mister entornal-a no seio de um amigo, de um amigo que houvesse nas suas mãos o unico remedio que elle nessa occasião pedia;—a chave daquella porta. Luiz Alves era esse homem.
—Outra vez caido! exclamou elle rindo quando Estevão lhe contou tudo. Eu já o havia percebido. Isto de mulheres... Queres então que te leve lá?
—Quero.
Luiz Alves reflectiu alguns intantes.
—E uma viagem, não te seria bom fazer uma viagem? Já sei o que me vás dizer; mas tambem não te proponho uma viagem de recreio, á Europa. Olha, arranjo-te, se queres, um logar de juiz municipal...
A proposta era sincera; Estevão cuidou ver-lhe uma ponta de zombaria e ergueu os hombros com enfado. A proposta, entretanto, merecia ser examinada; era uma carreira, e vinha de um homem que estava a entrar na vida politica, que esperava dahi a algumas semanas o resultado de uma eleição, com a certeza, ou quasi, de haver triumphado. Era influencia que nascia, e de força viria a crescer. Mas para Estevão, naquella occasião, toda a carreira publica, influencia, futuro, leis, tudo estava nos olhos castanhos de Guiomar.
—Eu amo-a, disse elle emfim, isto para mim é tudo. Póde bem ser que tenhas razão; talvez me espere algum grande desgosto; mas são reflexões, e eu não reflicto agora, eu sinto...
—Em todo o caso, acudiu Luiz Alves, desempenho o meu dever de amigo; digo-te que vocês não nasceram um para outro; que, se ella te não amou naquelle tempo, muito menos te amará hoje, e que emfim...
Luiz Alves estacou.
—Emfim? perguntou Estevão.
—Emfim pedes-me um sacrificio, concluiu rindo o advogado, por que também eu já a namorisquei... Não é preciso carregares o sobr'olho; foi namoro de visinho, tentativa que durou pouco mais de vinte e quatro horas. Com vergonha o digo, ella não me prestou uma migalha de attenção sequer, e eu voltei aos meus autos.
—Então... gostas della? perguntou Estevão.
—Acho-a bonita e nada mais. Aquillo foi um lançar barro á parede; se acceitasse, casava-me; não acceitou...
—Já vês que somos differentes.
—Queres, então?...
—Um serviço de amigo.
—Bem, disse por fim Luiz Alves, faça-se a tua vontade. A baroneza vai cuidar agora de um processo e mandou-me falar. Eu passo-te a prebenda; entrarás alli, como advogado, o que de alguma maneira me tira um peso da consciência.
Estevão, que só pedia um pretexto, acceitou a offerta com ambas as mãos, e agradeceu-lh'a com tão expansiva ternura, que fez sorrir o outro.
A promessa cumpriu-se pontualmente. Luiz Alves apresentou Estevão á baroneza, na seguinte noite, como seu companheiro e amigo, como advogado capaz de zelar os interesses da illustre cliente. A recepção, foi geralmente boa, salvo por parte de Guiomar, que pareceu aborrecida de o ver naquella casa. Quando Estevão a saudou, como quem a conhecia de longo tempo, ella mal pode retribuir-lhe o cumprimento; em todo o resto da noite não lhe deu palavra. Daquella parte o acolhimento não podia ser peior; mas Estevão sentia-se feliz, desde que vel-a, respirar o mesmo ar, nada mais pedindo por ora, e deixando o resto á fortuna.
De todas as pessoas de casa da baroneza, a primeira que reparou na indifferença com que Guiomar tratára Estevão, foi Mrs. Oswald. A sagaz ingleza afivellou a mascara mais impassivel que trouxera das ilhas britannicas e não os perdeu de vista. Nem da primeira nem da segunda vez viu nada mais que os olhos delle, que sollicitavam os della, e os della que pareciam surdos. Havia de certo uma paixão, solitaria e desattendida.
—Sabe que descobri um namorado seu? perguntou ella alguns dias depois a Guiomar.
Guiomar fez um gesto de estranheza.
—Entendamo-nos, observou a ingleza; não digo que a senhora o namore também; digo que é elle quem anda apaixonado. Não adivinha?
—Talvez.
—O Dr. Estevão.
Guiomar fez um gesto de desdem.
—Vejo que tinha adivinhado, disse Mrs. Oswald; também não era difficil. Quem tem alguma pratica destas cousas fareja uma paixão a cem legoas de distancia, por mais que ella busque recatar-se dos olhos estranhos. Os namorados geralmente suppõem que ninguem os vê; é uma lastima. Olhe, da senhora posso eu jurar que não está namorada de pessoa nenhuma.
—Que sabe disso? perguntou Guiomar deitando os olhos para o espelho de seu guarda vestidos. Pois estou, mas de mim mesma.
Mrs. Oswald desatou a rir, de um riso grave e pausado. Ella sabia que a moça tinha orgulho de suas graças; era bom caminho affagar-lhe o sentimento. Disse-lhe muita cousa bonita, que não vem para aqui, e concluiu pondo-lhe as mãos nos hombros, encarando-a fito a fito, a emfim rompendo nestas palavras, meias suspiradas:
—A senhora é a flor desta sua terra. Quem a colherá? Alguem sei eu que a merece...
Guiomar ficou séria, e desviou brandamente as mãos da ingleza, murmurando:
—Mrs. Oswald, falemos de outra cousa.
Não era a primeira vez que Mrs. Oswald alludia a alguma cousa que desagradava a Guiomar, nem a primeira que esta lhe respondia com a sequidão que e leitor viu no fim do capitulo anterior. A boa ingleza ficou séria e calada alguns dous ou tres minutos, a olhar para Guiomar, apparentemente buscando interrogar-lhe o pensamento, mas na realidade sem saber como sair de situação. A moça rompeu o silencio:
—Está bom, disse ella sorrindo, não vejo razao para que se zangue commigo.
—Não estou zangada, acudiu promptamente Mrs. Oswald. Zangada porque? Pêza-me, de certo, que a natureza me não dê razão, e que uma alliança tão conveniente, para ambos, seja repellida pela senhora; mas se isto é motivo de desgosto, não pode sel-o de zanga....
—Desgosto?
—Para mim.... e naturalmente para elle.
Guiomar respondeu com um simples sacudir de hombros, sêcco e rápido, como quem se lhe não dava do mal ou não acreditava nelle. Mrs. Oswald não atinou qual destas impressões seria, e concluiu que fossem ambas. A moça, entretanto, pareceu arrepender-se daquelle movimento; travou das mãos da ingleza, e com uma voz ainda mais doce e macia que de costume, lhe disse:
—Veja o que é ser creança! Não parece que ainda em cima me zango com a senhora?
—Parece.
—Pois não é exacto. Isto são caprichos de menina mal educada. Dei para não gostar que me adorem... Minto; disso gósto eu; mas quizera que me adorassem somente, não lhe parece?
E Guiomar acompanhou estas palavras com uma risadinha mimosa e uns gestos de creança travêssa, que destoavam inteiramente da sua gravidade habitual.
—Já sei, gosta de uma adoração como a do Dr. Estevão, silenciosa e resignada, uma adoração..
E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escriptura na ponta dos dedos, continuou por este modo, accentuando as palavras:
Uma adoração como a que devia inspirar José, filho de Jacob, que era bello como a senhora: «por elle as moças andavam por cima da cerca...»
—Da cerca? perguntou Guiomar tornando-se séria.
—Do muro, diz a Escriptura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei porque. Não core! Olhe que se denuncia.
Guiomar corára deveras; mas era a altivez e o pundonor offendido que lhe falavam no rosto. Olhou fria e longamente para a ingleza, com um desses olhares, que são, por assim dizer, um gesto da alma indignada. O que a irritava não era a allusão, que não valia muito, era a pessoa que a fazia,—inferior e mercenaria. Mrs. Oswald percebeu isto mesmo; mordeu a ponta do labio, mas transigiu com a moça.
—Meu Deus! disse ella. Parece que se zangou por uma bricadeira á toa. Bem sabe que eu não podia querer aggraval-a; suppol-o é offender-me a mim,—a mim, que também lhe tenho affecto de mãe....
A ultima palavra aquietou, o animo de Guiomar; ella tinha cedido ao impulso do seu caracter altivo, mas a razão veiu depois, e o coração tambem, que não era mau. A ingleza, que possuía longa pratica da vida e sabia ceder a tempo, uniu o gesto á palavra e chamou-a com os braços para si. Guiomar deixou-se ir, um pouco de má vontade, e a conversa teria acabado alli, se Mrs. Oswald não lhe dissesse com a mais doce voz que daquella garganta podia sair:
—Convença-se de que eu sou importuna e indiscreta por affeição, e que a felicidade desta familia é toda a ambição da minha alma. Não pode haver intenção melhor do que esta. Um conselho ultimo,—ultimo se me não consentir mais falar-lhe nisto;—eu creio que a senhora sonha talvez de mais. Sonhará uns amores de romance, quasi ímpossiveis? digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ella não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.
Guiomar cravara desta vez os olhos no chão, com a expressão vaga e morta de quem os apagou para as cousas externas. As palavras de Mrs. Oswald responder-lhe-hiam acaso a alguma voz intima? A ingleza proseguiu na mesma ordem de ideias, sem que ella a interrompesse ou desse signal de si. Quando ella acabou, Guiomar estremeceu, como se acordasse; levantou a cabeça, e lenta, e commovida, proferiu esta unica resposta:
—Talvez tenha razão, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos são tão bons!
Mrs. Oswald abanou a cabeça e saiu; Guiomar acompanhou-a com os olhos, a sorrir, satisfeita de si mesma, e a murmurar tão baixo que mal a ouvia o seu proprio coração:
—Sonhos, não, realidade pura.
Supponho, que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no dialogo que precede, se é que já não suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baroneza,—aquelle moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Gymnasio.
Era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis annos. Jorge chamava-se elle; não era feio, mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o poeta, e esta maxima não é só applicavel à poesia, mas tambem ao homem. Jorge tinha um lindo bigode castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais bellos, se elle não os movesse com affectação, ás vezes feminina. O mesmo direi dos modos, que seriam faceis e naturaes, se os não tornasse tão alinhados e medidos. As palavras saíam-lhe lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificencia do autor. Não as proferia como as demais pessoas; cada syllaba era por assim dizer espremida, sendo facil ver ao cabo de alguns minutos, que elle fazia consistir toda a belleza da elocução nesse alongar do vocabulo. As ideias orçavam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma codea de gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em cousas leves e folgazãs.
Taes eram os defeitos apparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um peccado mortal, o setimo. O nome que lhe deixara o pae, e a influencia da tia podiam servir-lhe nas mãos para fazer carreira em alguma cousa publica; elle, porém, preferia vegetar á toa, vivendo do peculio que dos paes herdára e das esperanças que tinha na affeição de baroneza. Não se lhe conhecia outra occupação.
Não obstante os defeitos apontados, havia nelle qualidades boas: sabia dedicar-se, era generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor á velha parenta. A baroneza, pela sua parte, queria-lhe muito. Guiomar e elle eram as suas duas affeições principaes, quasi exclusivas.
Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baroneza, e não menos de si propria. A baroneza tambem tinha os seus sonhos, como ella mesma disse, e esses eram deixar felizes aquellas duas crianças. Jorge pela sua parte estava dispóto a estender o collo ao sacrificio; e, bem examinadas as cousas, talvez amasse sinceramente a moça. A differença entre elle e Estevão é que o seu amor era tão medido como os seus gestos, e tão superficial como as suas outras impressões.
Do que ahi fica dito, facilmente comprehenderá o leitor que, dos dous namorados, só um percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estevão andava-lhe nos olhos, enchendo-os de maneira que elle não podia ver nada mais além de Guiomar.
Ao cabo de duas semanas a situação de Estevão podia dízer-se menos má; na opinião delle era excellente. A baroneza soube quem elle era; Guiomar contara-lhe tudo; mas a ingleza, não menos que a observação propria, lhe mostrou que nenhum perigo corria Guiomar, e excluido o perigo, restavam as boas qualidades do bacharel, que de todo lhe caiu em graça. Mrs. Oswald navegou nas mesmas aguas mansas. O proprio Jorge, naturalmente por que confiava em si, não temeu do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancellos da sua gravidade. Que admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez?
Aquelle bom rapaz tinha a salutar crendice da esperança, em que muita vez se resumem todas as bençãos da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era, mas bem pouco bastava a contental-o. A imaginação multiplicava os zeros; com um grão de areia construiria um mundo. A affabilidade de uns e a cortezia de outros, tanto bastou para que elle se julgasse quasi no termo de suas aspirações; e posto não lhe désse Guiomar uma só das animações de outro tempo,—que aliás tão frageis eram, ainda assim acreditou elle piamente que o amor nascia, ou renascia, naquelle rebelde coração.
Guiomar, no meio das affeições que a cercavam, sabia manter-se superior ás esperanças de uns e ás suspeitas de outros. Egualmente cortez, mas egualmente impassível para todos, movia os olhos com a serenidade da isenção, não namorados, nem sequer namoradores. Ella teria, se quizesse, a arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme elles fossem impacientes ou tibios; faltava-lhe porém o gosto,—ou melhor, sobrava-lhe o sentimento do que ella achava que era a sua dignidade pessoal.
Um dia de manhã accordou Estevão com a resolução feita de dar o golpe decisivo. Os corações frouxos tem destas energias subitas, e é proprio da pusilanimidade illudir-se a si mesma. Elle confessava que nada havia feito, e que a situação exigia alguma cousa mais.
—Nunca as circumstancias foram mais propicias do que hoje, pensava o rapaz; Guiomar trata me com affabilidade de bom agouro. Demais, ha nella espirito elevado; ha de reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de sala.
A resolução estava essentada; restava o meio de a tornar affectiva. Estevão hesitou largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmittil-o por via do papel. Qualquer dos modos tinha para elle mais perigos que vantagens. Elle receiava ser frio na declaração escripta ou incompleto na confissão oral. Irresoluto e vacillante, ambos os meios adoptou e repelliu, a curtos intervallos; emfim, deferiu a escolha para outra occasião.
O acaso suppriu a resolução, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito.
Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baroneza, foram passear á chacara. Estevão que, como Luiz Alves, era dos convivas, affastou-se gradualmente dos outros grupos, e approximou-se daquella cerca historica onde, após dous annos de ausencia e esquecimento, vira, ja transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que elle punha os olhos nesse sitio, depois da conversa, que ahi tivera com ella. A commoção que sentiu foi naturalmente grande; resurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o ceu brilhante, o doce alento da manhã, e por fim a figura da moça, que alli appareceu, como a alma do quadro, trazendo-lhe recordações, que elle julgava mortas, esperanças que suppunha impossiveis.
Estevão curvou a cabeça ao doce peso daquellas memorias, a alma bebeu, a largos haustos, a vida toda que a imaginação lhe creava e talvez a noite o tomasse na mesma attitude, se a voz maviosa de Guiomar, lhe não dissesse a poucos passos de distancia:
—Sr. doutor, perdeu alguma cousa?
O rapaz volveu rapidamente a cabeça, e viu a moça, que atravessava uma das calhes proximas, a olhar e a sorrir para elle. Estevão sorriu tambem, e com uma presença de espirito assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como elle era, promptamente respondeu:
—Não perdi nada, mas achei uma cousa.
—Vejamos o que foi.
E Guiomar approximou-se, a passo firme e seguro, e Estevão, sem muito vacillar, alli mesmo forjou uma reflexão philosophica a respeito de um insecto que casualmente passava por cima de uma folha secca. A reflexão não valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco forçada e de acarreto; a moça sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando elle, colhendo as forças todas, a fez deter com estas palavras:
—E se eu tivesse achado outra cousa?
—Ainda mais! exclamou ella voltando-se risonha.
Estevão deu dous passos para Guiomar, desta vez commovido e resoluto. A moça fez-se seria e dispoz-se a ouvil-o.
—Se eu tivesse achado neste logar, continuou elle, longos dias de esperança e de saudade, um passado que eu julgára não reviver mais, uma dor occulta e medrosa, vivida na solidão, nutrida e consolada de minhas próprias lagrimas? Se eu tivesse achado aqui a pagina rota de uma historia começada e interrompida, não por culpa de ninguem na terra, mas da estrella sinistra da minha vida, que um anjo mau accendeu no ceu, e que, talvez, talvez ninguem nunca apagará?
Estevão calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar.
Aquella declaração repentina e rosto a rosto estava tão longe do temperamento do rapaz, que ella gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Elle proprio admirava-se do atrevimento que tivera; e emquanto pendia dos labios da moca, repassava na memoria, aliás confusamente, o que tão a frouxo lhe saira do peito naquella hora de abençoada temeridade.
—Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, é natural que preferisse achar outra cousa menos melancolica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta occasião de falar, com a viva imaginação que Deus lhe deu; n'um ou n'outro caso, porém, posso de certo lastimal-o ou admiral-o, mas não me é dado ouvil-o.
E Guiomar ia de novo affastar-se, quando Estevão, receiando perder a occasião que a fortuna lhe offerecia, disse de longe com voz triste e supplice:
—Attenda-me um só munito!
—Não um, mas dez—respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto para elle—e serão provavelmente os ultimos em que falaremos a sós. Cedo á commiseração que me inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silencio em que se tem conservado até hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma só palavra.
A moça falára n'um tom secco e imperioso, em que mais dominava a impaciencia do que a commiseração a que vinha de alludir. O coração de Estevão batia-lhe como nunca,—como o coração costuma bater nas crises de uma angustia suprema. Todo aquelle castello de vento, laboriosamente construido nos seus dias de illusão, todo elle se esboroava e desfazia, como vento que era. Estevão arrependera-se do impulso que o levára a violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos intimos, a abrir mão de tantas esperanças, alimentadas com o melhor do seu sangue juvenil.
Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam medir-se, ella serena e quieta, elle tremulo e gelado.
—Uma só palavra, repetiu Estevão, e essa adivinho que será de desengano. Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma cousa, força é que lhe diga tudo,—feliz, se me restar, ao menos, a maior fortuna a que já agora posso aspirar,—o seu remorso.
Guiomar ouvira-o tranquillamente; a ultima palavra fel-a estremecer. Sorriu, entretanto, de um sorriso um pouco voluntario e esperou.
A narração foi longa, tanto quanto o permittiam a occasião, o logar e a pessoa; durou apenas dez minutos. Estevão nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera out'rora, nem o que agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanças que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto emprehendêra para ler a ventura de a contemplar de perto, de gozar naquelle escasso ponto da terra a maior de todas as bem aventuranças.
Tal é a transcripção, não litteral, mas fiel, do que disse Estevão durante esse dez minutos. As palavras caíam-lhe tremulas e a voz saía-lhe sumida, em parte por que elle forcejava em a abafar, afim de que o não ouvissem, em parte porque a commoção lhe comprimia a garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloquência vinha do coração.
Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a principio um meio riso parecia desabrochar-lhe os labios, mas não tardou que pelo rosto abaixo lhe caísse um veu mais compassivo e humano. Havia nella impaciencia e anciedade de acabar, de sair dalli; era, sem duvida, o receio de que a ausência se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia também commiseração e piedade.
—Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estevão concluindo; sobretudo agora, só eu, só a minha cabeça é a causa unica de tudo. Parecia-me ver o contrario do que existia; cheguei a suppor que havia em seu coração alguma cousa que não era a total indifferença; vejo que foi tudo illusão.
O tom em que elle falára era o mesmo das palavras que ahi ficam, todas humildes e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma submissão assim devia por força commover a uma mulher amada. Guiomar falou-lhe sem azedume:
—Era illusão, disse ella. O sentimento que me acaba de revellar inteiro, ninguem o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso?
—Nenhuma.
—Nem o senhor tambem, e espero que esta mutua justiça avigore o sentimento de estima devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, não póde haver outra cousa,—da minha parte ao menos. É pouco, de certo...
—Não é pouco, é cousa differente, interrompeu Estevão.
—Mas não espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção.
Estevão abriu a bocca para falar, mas não achou palavra que lhe dissesse o que sentia; levou a mão ao coração, que batia fortemente, e ficou a olhar para ella com os olhos seccos e parados, a voz extincta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquelle desengano, que lhe cumpria não voltar alli mais, pelo menos com a assiduidade da esperança; e assim era que a unica e amarga satisfação de a ver, nem essa já agora se lhe consentia.
—Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, vença-se a si proprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma creança.
—Talvez, respondeu o moço suspirando.
—E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossiveis.
Guiomar estendeu-lhe a mão, em que elle tocou levemente.
A baroneza appareceu, entretanto, a algumas braças de distancia; vinha encostada ao braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ella já não ouvia. Tinha os olhos cravados nos dous interlocutores de ha pouco. A moça apenas vira de longe a madrinha, deu affoutamente o braço a Estevão, e seguiram ambos a encontrar-se com ella; o rosto de Guiomar não revelava nada; o de Estevão vinha perturbado e abatido. A baroneza franziu a testa:
—Jorge, disse ella em voz baixa, precisamos conversar.
A baroneza, quando se lhe approximaram os dous interlocutores da cerca, mais receiosa ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até gracejadora; mas o abatimento de Estevão era tão mal disfarçado, que de duas uma,—ou ella acabava de lhe dar o ultimo desengano,—ou aquillo era apenas um arrufo serio, que o moço não podia ou não queria esconder de olhos extranhos. Isto é o que a baroneza pensou. O que ella concluiu foi que, em todo caso, urgia tentar alguma cousa em favor do maior,—do unico senho da sua velhice.
Jorge não percebeu a verdadeira razão porque a tia lhe dissera ser necessário conversar com ella; imaginou que se trataria de Guiomar e Estevão,—mas estava longe de suppor todo o alcance da entrevista.
A entrevista não pode ser logo nesse dia; as visitas ficaram alli até tarde, e a noite foi a mais agradavel e distrahida de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e reflectir-se-lhe no rosto,—tantas vezes pensativo, mas agora tão frio e tão nú.
Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque é mister havel-a, e muita, para vir até aqui, e seguir até o fim, uma historia, como esta, em que o autor mais se occupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos, que de outra qualquer cousa, por que outra cousa não se animaria a fazer;—não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquella jovialidade de Guiomar eram punhaes que se lhe cravavam no peito ao nosso Estevão. Elle não podia suppol-a abatida; mas penalisada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nelle, isto, sim, imaginava que sería. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dalli mais cedo do que pensára e quizera sair.
Na alcova, se elle podesse vel-a mais tarde na alcova, solitaria e toda comsigo, sentada na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabellos desfeitos, os pésinhos mettidos nas chinellas de setim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objecto em objecto, como se reproduzissem fóra as attitudes interiores do pensamento, alli não só elle a adoraria de joelhos, mas até poderia suppor que alguma preoccupação lhe tirava o somno e que essa era nem mais nem menos elle proprio.
Talvez fosse; em parte ao menos seria elle. Guiomar não tinha um coração tão mau, que lhe não doessem as maguas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas fosse uma, ou fossem muitas as causas daquella preoccupação, a verdade é que ella durou muito tempo. Guiomar passou da poltrona á janella, que abriu toda, para contemplar a noite,—o luar que batia nas aguas, o ceu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais dasconsoladora lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ancias, paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam comnosco, debaixo daquella azul eternidade, impassivel e muda como a morte.
Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ella era toda da vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe importava,—ou quem lhe chegara a fazer comprehender esta philosophia secca e arida? Ella vivia do presente e do futuro e,—tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lh'o enchiam,—tamanho, que bastava a occupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.
A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram accordal-a, na fórma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo á dedicação filial de que ja dera tantas provas. A baroneza, entretanto, estava preoccupada; o passeio foi differente do dos outros dias.
Ao meio-dia metteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e sairam a uma visita. A baroneza ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou dahi a pouco.
A baroneza não perdeu tempo em circunloquios. Apenas viu o sobrinho interpellou-o directamente:
—Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.
Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingenuo que corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz. Puchou gravemente os punhos da camisa, concertou a gravata, e respondeu singellamente:
—Não me atrevia a falar-lhe destas cousas...
—Porque não?—interrompeu a baroneza; são assumptos que se podem tratar entre mim e ti, sem desar para nemhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald?
—É.
—Amas deveras, ou...
—Deveras. Recuaria, se visse que uma alliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa familia; mas, posto que ella seja...
—Guiomar é minha filha, apressou-se a dizer a baroneza.
—Justamente; não pode haver melhor titulo.
—Tem ainda outro, continuou a baroneza; é uma alma angélica e pura. Henriqueta não teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espirito superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equivoco do nascimento. Finalmente é de uma belleza pouco commum...
—Rara, titia, póde dizer que é de uma belleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez lhe luziu nos olhos alguma cousa, que não era a gravidade de costume.
—Já vês, proseguiu a baroneza, que ella possue todos os direitos ao amor e á mão de um homem, como tu.
A baroneza tinha um coração ingenuo e lizo, sem desvios nem astucias; comtudo, ha occasiões em que o mais recto espirito emprega, como por instincto, finuras diplomaticas. A boa senhora tinha tanto a peito aquella união do sobrinho com a afilhada, que não confiava só do amor; procurava interessar-lhe tambem o amor proprio.
Jorge curvou-se com affectada modestia.
—Um homem, como eu,—disse elle—vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e esse é muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a adornam...
—Só uma, Jorge, só uma qualidade santissima: é a de amal-os, a ti e a ella. Por isso foi immenso o gôsto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita que se eu tivesse a fortuna de ver a vocês unidos e felizes, morreria contente.
—Oh! isso! disse Jorge com ar de duvida.
—Julgas impossivel o casamento?
—Impossivel, não; impossivel, nada ha. Mas... mas supponho que a vontade della é indispensavel, tão indispensavel como duvidosa.
—Duvidosa! Estás certo disso?
Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, não agitado de todo, mas um pouco fóra da impassibilidade usual. A ideia do casamento apparecia-lhe agora um pouco mais possivel e exequivel, desde que a tia francamente lhe propuzesse alliança.
—Estás certo disso? repetiu a baroneza.
—Certo não; mas ha toda a razão para a duvida. Guiomar sabe que eu gósto della; e comtudo não me dá o menor signal de corresponder aos meus sentimentos.
Jorge expos longamente todas as razões que tinha para crer que a vontade de Guiomar não correspondia á delle; referiu-lhe, com a maior exacção e fidelidade, uns tres on quatro episodios que lhe pareciam boa prova daquillo que dizia. A baroneza não ouvia tudo com egual attenção. Quando elle acabou:
—Guiomar será muito vexada,—disse ella—e ás vezes, e por isso mesmo, tem essas apparencias frias. Nada impede, porém, a que venha a amar-te, se é que ja te não ama. Ha nella certa altivez natural, que póde explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria penoso receber o amor de alguem que julgasse levantal-a até si.
—Isso, talvez...
—Mas esse sentimento, que póde ser e é honroso, não é de certo invencivel.
Todas estas palavras da baroneza lisonjeavam o sobrinho, em cujos labios pairava agora um sorriso de íntima satisfação. De quando em quando não ouvia elle nada do que lhe dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; elle escutava-se a si proprio. O amor de Guiomar começava a parecer-lhe possivel; tudo quanto a baroneza lhe dizia era razoavel, com a vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situação. Demais, até que ponto a baroneza conjecturava ou revelava? Bem podia ser que ella tivesse lido mais fundo no coração da moça.
Estas reflexões fel-as Jorge, em quanto a baroneza continuava a falar e a desenvolver a ideia que ultimamente indicara. Até aquelle dia havia elle limitado toda a sua acção a alguns olhares, e raras palavras de comprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animação; pareceu-lhe chegado o ensejo de sair daquella paz armada.
Guiomar chegou d'ahi a pouco e achou-os na «saleta de trabalho,» euphemismo elegante, que queria dizer litteralmente—saleta de conversação entremeada de crochet. Mrs. Oswald vinha com ella; ambas riam alegremente de não sei que episodio visto no caminho. Jorge erguera-se, pausado mas risonho, apertou a mão de Guiomar,—apertou-a deveras, mais do que era usual e cortez. Guiomar não pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saude, transmittiu á madrinha as lembranças que lhe mandavam e dispoz-se a sair.
Durante esse tempo, Jorge olhava para ella, enlevado deveras na contemplação de toda aquella nobre figura, agora mais bella que d'antes, desde que se lhe tornara possivel a alliança ha muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns taes ou quaes vestigios lubricos, donde se podia colher que, se elle fosse poeta, e poeta arcadico, editaria pela millionesima vez a comparação da Venus e dos seus seus infalliveis amorinhos; comparação detestavel, sobretudo, porque a casta belleza de moça, se alguma cousa pagã lhe podia ser chamada, seria antes Diana convertida ao Evangelho.
Jorge saiu dalli singularmente agitado; a conversa da baroneza dera-lhe nervo e resolução, e o quadro do casamento começou a desenhar-se-lhe no espirito, como o relogio que o menino tem de usar pela primeira vez. Até alli deixara-se elle ir á feição das aguas; agora via a necessidade e a possibilidade de abicar á riba feliz do matrimonio.
As duvidas de Estevão não lhe saltearam o espirito; apenas chegou a casa travou da penna, e lançou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que todavia refundiu duas ou tres vezes, primeiro que a désse por prompta. Acabada a redacção final, transcreveu aquella prosa do coração na mais nitida folha que havia em casa,—dobrou o metteu-o na algibeira.
De noite foi á casa da tia. Achou as senhoras á volta de uma meza; Guiomar lia, para a madrinha ouvir, um romance francez, recentemente publicado em Paris e trazido pelo ultimo paquete. Mrs. Oswald lia tambem, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edição Constable, de Edimburgo.
Jorge veiu interrompel-as um pouco, mas só interromper, porque a leitura continuou logo depois, ajudando elle proprio a Guiomar naquella filial tarefa. Veiu o chá, veiu depois a hora de recolher, e a baroneza deu por findo o serão, ainda que o livro estava quasi findo.
—Um capitulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas mãos.
A baroneza sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lançou aquella dedicação do sobrinho; recusou comtudo, por estar a cair de somno.
—Eu é que não me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro commigo.
—Ah! disse Jorge com um gesto de satisfação.
E emquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha até á porta do quarto, e Mrs. Oswald marcava a pagina e fechava o seu livro, Jorge egualmente fechava o outro, mas com tal demora e cuidado, que deu muito que entender á ingleza. Se ella chegou entender, vel-o-hemos depois; o certo é que o livro foi emfim entregue a Guiomar, tendo a pagina marcada, não com a fita que lá estava pendente, mas com um pedacinho de papel.
O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centímetros de altura; mas por mais exiguas que tivesse as dimensões, bem podia ser que levasse alli dentro nada menos que uma tempestade próxima.
Meia hora depois, indo a abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha de Jorge. Não tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, rescendendo a amores. O espirito de Guiomar estava tão longe d'aquillo que não suspeitou nada e distrahidamente o abriu. A primeira palavra escripta era o seu nome; a ultima era o de Jorge.
O primeiro gesto de Guiomar foi de colera. Se elle pudesse espreita-la pelo buraco da fechadura, e ver-lhe a expressão do rosto, é mui provavel que se lhe convertesse em aborrecimento todo o amor que até agora nutria. Mas elle não estava alli, a moça podia traduzir fielmente no rosto os movimentos do coração.
—Mais um, pensou ella; este porém...
E desta vez o gesto não foi de colera, foi de alguma cousa mais, metade fastio, metade lastima, mescla difficil e rara.
A moça ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer ler, como a hesitar entre queimal-o ou restitui-lo intacto a seu autor. Mas a curiosidade venceu por fim; Guiomar abriu o papel e leu estas linhas:
«Guiomar! Perdoe-me se lhe chamo assim; as convenções sociaes condemnam-me de certo, mas o coração approva, que digo? elle mesmo escreve estas letras. Não é a minha penna, não são os meus labios que lhe falam deste modo, são todas as forças vivas da minha existencia, que em alta voz proclamam o immenso e profundo amor que lhe tenho.
«Antes de o ler neste papel, já a senhora o hade ter visto, pelo menos adivinhado nos meus olhos, na doce embriaguez que em mim produz a presença dos seus. Persuado-me de que todo o meu esforço em recalcar este affecto é vão; por mais que eu sinceramente deseje esquecel-a, não o alcançarei nunca; não alcançarei mais que uma afflição nova. O remorso de o tentar virá coroar os demais infortunios.
«Porque razão rompo hoje o silencio em que me tenho conservado, medroso e respeitoso silencio que, se me não abre a caminho da gloria, ao menos conserva-me a palma da esperança? Nem eu mesmo saberia responder-lhe; falo, porque uma força interior me manda falar, como trasborda o rio, como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse, do mesmo modo que morrerei de desespero, se além do perdão que lhe peço, ma não der uma esperança mais segura do que esta, que me faz viver e consumir.—Jorge.»
Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra de analyse e reflexão, e ao cabo da segunda achava-se tão fria como antes da primeira. Olhou algum tempo para o papel e mentalmente para o homem que o havia escripto; emfim, poz a carta de lado, abriu o livro e continuou o romance.
Mas o espirito, que não ficara tão indifferente como o coração, entrou a fugir-lhe do romance para a vida com tal tenacidade que não houve remedio senão irem os olhos atraz delle, e a moça de novo mergulhou nas reflexões que lhe suggeria o caso da paixão de Jorge.
Paixão não era,—não o seria ao menos no sentido inteiro do vocabulo; mas alguma cousa menos, ou parecida com ella, e ainda assim verdadeira, via bem Guiomar que o poderia ser. Até que ponto chegaria entretanto, o seu adorador, se ella o desattendesse logo; e, dado o amor que a baroneza tinha ao sobrinho, até que ponto a recusa iria magoal-a? Guiomar varreu do espirito os receios que lhe nasciam de taes interrogações; mas sentiu-os primeiro, pezou-os antes de os arredar de si, o que revelará ao leitor em que proporção estavam nella combinados o sentimento e a razão, as tendencias da alma e os calculos da vida.
Excluido o receio, voltou-lhe o riso, aquelle riso interior, que é o mais involuntario e cruel, e tambem o menos arriscado que a gente póde dar ás fatuidades humanas. Não podia ser tão despresivel assim o amor de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades boas, e que emfim era tambem distincto, ainda que a sua distincção primasse antes por um estylo rendilhado e complicado, que não é o melhor. Guiomar via tudo isso, e por outro lado, não podia obstar que elle a amasse; nem por isso achava menos temeraria aquella confissão.
A moça reflectia tambem na posição especial que tinha naquella casa o sobrinho da baroneza; via-se obrigada á presença delle, e talvez á luta, porque o pretendente não recuaria do primeiro golpe. Não havia taes receios da parte de Estevão; ella reconhecia que a paixão deste era ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas comparava as indoles dos dous homens, e se ambos lhe pareciam de fraca compleixão moral, nem por isso desconhecia que ao bacharel faltava certa presumpção que distinguia o outro, e com a qual teria talvez de pelejar.
Quando ella fez esta comparação entre os dous homens, ficaram-lhe os olhos um pouco mais molles e quebrados, obra de tres minutos apenas, mas tres minutos que, se Estevão soubera delles, trocaria por elles o resto de toda a vida. E comtudo, não era amor nem saudade; alguma sympathia, sim, ainda que leve e sem consequencia; mas sobretudo era pena de o não poder amar,—ou ainda melhor—era lastima de que tal coração não fora casado a outro espirito.
Guiomar reflectiu ainda muito e muito, e não reflectiu só, devaneou também, soltando o panno todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos navegamos alguma vez na vida, quando nos cança a terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação della porém não era doentia, nem romantica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em regiões selvaticas ou adormecer á beira de lagos azues. Nada disso era nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra.
Volveu emfim e olhos cairam-lhe na carta. A realidade presente não se lhe podia mostrar de peor modo. Guiomar ergueu-se irritada, lançou mão do papel e machucou-o febrilmente; ia talvez rasgal-o, quando ouviu bater de manso á porta.
—Quem é? perguntou.
—Sou eu, respondeu a voz de Mrs. Oswald.
A moça foi abrir a porta; a ingleza entrou, trajada de dormir, e um vivo espanto nos olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns segundos. Guiomar assustada perguntou:
—Que é? aconteceu alguma cousa a minha madrinha?
—Longe vá o agouro! exclamou a ingleza. Não lhe aconteceu nada; a senhora baroneza dorme naturalmente a somno solto. Venho porque do meu quarto pareceu-me ouvir rumor de passos aqui, e depois vi luz. Pensei que tivesse algum incommodo. Mas, pelo que vejo, continuou a ingleza deitando os olhos para a mezinha em que pousava o livro aberto,—pelo que vejo ainda não acabou de ler o seu romance...
—Não li ainda uma linha, depois que me recolhi, respondeu Guiomar cravando os olhos no rosto da ingleza, como tomada de um pensamento subito.
—Deveras!
—Li outra cousa, continuou a moça; li este papel.
Mrs. Oswald inclinou-se para ler também o papel, que aliás adivinhou qual fosse; Guiomar atirou-o sobre a mesa.
—Não precisa, disse ella; é uma declaração amorosa.
—De quem? perguntou a ingleza abrindo uns olhos espantados e obedientes.
—Leia o nome.
Mrs. Oswald leu a assignatura da carta, que a moça do novo lhe apresentava.
—Naturalmente, continuou Guiomar, ha nisto obra sua...
—Minha! interrompeu a outra um pouco mais rispidamente do que costumava falar.
Guiomar tinha ido sentar-se; o pésinho impaciente batia no tapete, com um movimento rapido e regular; cruzára os braços sobre o peito, fitando a ingleza com uns olhos em que se podia ler a viva exacerbação do espirito. Seguiu-se curto silencio; Mrs. Oswald puxou outra cadeira e sentou-se perto da moça.
—Por que ha de ser injusta commigo? disse ella dando á voz um tom mellifluo e supplicante; porque não ha de ver as cousas, como ellas naturalmente são? O que ha nisto é uma coincidencia curiosa, mas nada mais. Se lhe falei em semelhante cousa algumas vezes, foi porque eu mesma percebi o amor que lhe tem o Sr. Jorge; é cousa que todos veem. Imaginei que o casamento, neste caso, seria agradavel á Sra. baroneza a quem sou grata. Posso ter feito mal...
—Muito mal, interrompeu Guiomar; são cousas de familia em que a senhora nada tem que ver.
Guiomar levantou-se outra vez, deu alguns, passos, e voltou a sentar-se. Com o movimento desprenderam-se-lhe os cabellos e cairam-lhe sobre os hombros. Mrs. Oswald approximou-se della para os colher e atar, mas a moça seccamente a repelliu:
—Deixe, deixe...
E ella mesma os recompoz com as suas mãosinhas finas, e ficou depois a olhar para o chão, a morder o labio, a respirar fortemente, como se contivera a palavra que forcejava por sair impetuosa e colerica. Mrs. Oswald não disse nada durante alguns minutos; esperou que passasse o periodo agudo da irritação. Quando lhe pareceu que ella afrouxava, rompeu emfim o silencio.
—Fiz mal, fiz não ha duvida, mas a intenção não podia ser melhor. Talvez não me creia; paciencia! O que lhe peço,—nem lhe peço,—o que eu acredito piamente é que não me hade attribuir algum interesse de ordem...
Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar, mas Guiomar não protestou, quero dizer não protestou de viva voz; fez apenas um gesto negativo, bastante a satisfazer os melindres da ingleza. A moça foi sincera; não attribuia realmente a nenhum interesse vil,—pecuniario,—a acção de Mrs. Oswald. Nem por isso a absolvia,—não só porque ella viria concorrer talvez para uma crise penosa, mas também,—bom é notal-o outra vez,—porque a condição da ingleza naquella casa era relativamente inferior.
A ingleza continuou a falar em defeza propria, a justificar miudamente os bons sentimentos do coração, e a prometter que deixava por mão todo aquelle negocio, a seu juizo, o melhor que a moça podia fazer.
—A experiencia da vida, concluiu ella, devia ter-me convencido de que o melhor de todos os sentimentos é um egoismo quieto e calado.
Em quanto ella falava assim, Guiomar parecia volver a tranquilidade habitual. A mudança foi,—não súbita,—mas um pouco mais rapida do que devera ser, tratando-se de um espirito, como o della, em que as impressões não eram superficiaes nem momentaneas. Havia até uns toques de affabilidade no rosto e na voz, quando ella começou, a falar, o que revelaria talvez ser aquella mudança muito voluntaria e meditada.
—Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as cousas chegassem a este ponto, e que elle se lembrasse de escrever semelhante carta, confessando uma paixão que acredito sincera, mas a que o meu coração não póde corresponder. Amores não se encommendam como vestidos: sobretudo não se fingem, ou não se devem fingir nunca.
—Oh! decerto!
—Eu gosto delle, como parente que é de minha madrinha, e também por que ella lhe tem affeição de mãe, como a mim; somos uma especie de irmãos, nada mais.
—Tem muita razão, assentiu Mrs. Oswald. A senhora pensa e fala como um doutor. Que se lhe ha de fazer? Quem não ama não ama. Delle é que eu tenho pena!
—Gosta muito de mim, não? perguntou Guiomar fitando os olhos na ingleza.
—Oh! parece que sim! A senhora deve sabel-o tanto como eu; eu sei o que tenho visto, e creio que é muito.
—Eu nunca vi nada, respondeu seccamente Guiomar.
A resposta de Mrs. Oswald foi um sorriso de incredulidade, que a outra não viu ou não quiz ver. Houve uma pausa; Guiomar continuou nestes termos:
—Mas seja como for, a minha resposta é negativa. Estou que elle não me fará a injuria de querer casar commigo, sem que eu o ame...
Guiomar parou, como a esperar, que a outra lhe dissesse alguma cousa. Desta vez coube a Mrs. Oswald não responder nada, nem com a voz nem com o gesto. A moça inclinou o corpo poz os braços sobre os joelhos, com os dedos cruzados, e entre um riso amavel e um olhar affectuoso, continuou:
—A senhora podia, se acaso elle alguma vez lhe falou nisso ou vier a falar-lhe, podia dissuadi-lo de taes ideias, dizendo-lhe simplesmente, a verdade e dando-lhe conselhos, os conselhos que a senhora hade saber dar, e que elle aceitará de certo, porque é um bom coração, um caracter estimavel...
—Oh! excellente! um moço excellente!
E as duas ficaram a olhar uma para a outra, Guiomar a sorrir, mas de um sorriso, que era uma contracção voluntaria dos musculos, e a ingleza a fazer um rosto de piedade, e adoração, e pena, e muita cousa junta, que a moça só começou a comprehender, quando ella rompeu o silencio deste modo:
—Estou a duvidar se devo dizer-lhe o resto.
—O resto? perguntou Guiomar admirada. Pois que ha mais?
A ingleza approximou a cadeira. Guiomar endireitou o busto e esperou anciosa a revelação,—se revelação era,—que lhe ia fazer Mrs. Oswald. Esta não falou logo; era razoavel hesitar um pouco, lutar comsigo mesma, antes de dizer alguma cousa. Emfim, com um movimento de quem ajunta as forças todas e as emprega em cousa superior á coragem usual:
—D. Guiomar, disse ella, pegando-lhe nas mãos, ninguem póde exigir que se case sem amar o noivo; seria na verdade uma affronta. Mas o que lhe digo é que o amor que não existe por ora, póde vir mais tarde, e se vier, e se viesse seria uma grande fortuna...
—Mas acabe, acabe, interrompeu a moça com impaciencia.
—Seria uma grande fortuna para a senhora, para elle, ouso dizer que para mim, que os estimo e adoro, mas sobretudo para a Sra. baroneza.
—Como assim? disse Guiomar.
—Oh! para elle seria a maior fortuna da vida, porque é hoje o seu mais entranhado e vivo desejo, o seu desejo verdadeiramente da alma. A senhora...
—Está certa disso?
—Certissima.
—Não creio, não vejo nada que...
—Creia, deve crer. Se me promette nada dizer desta nossa conversa, nem fazer suspeitar por nenhum modo o que lhe estou contando...
—Fale.
—Pois bem,—continuou Mrs. Oswald abaixando a voz, como se alguem podesse ouvil-a na solidão daquella alcova, e no silencio, profundo daquella casa, que toda dormia,—pois bem, eu lhe direi que por ella mesma tive noticia deste seu desejo. Quando eu percebi a paixão do Sr. Jorge, falei nisso a sua madrinha, gracejando na intimidade que ella me permitte, e a senhora baroneza em vez de sorrir, como eu esperava que fizesse, ficou algum tempo pensativa e séria, até que rompeu nestas palavras: «Oh! se Guiomar gostasse delle e viessem a casar-se, eu seria completamente feliz. Não tenho hoje outra ambição na terra. Ha de ser a minha campanha.»
—Minha madrinha disse isso? perguntou Guiomar.
—Tal qual. A resposta que lhe dei foi que o casamento não era impossivel, e que nada mais natural do que virem a amar-se duas pessoas a principio indifferentes. O amor nasce muita vez do costume.
Guiomar já mal ouvia o que lhe estava dizendo a ingleza; se ainda olhava para ella, era com os olhos indecisos e empanados, de quem vae toda absorvida em pensamentos intimos.
—Foi desde esse dia, continuou Mrs. Oswald, que me pareceu conveniente falar-lhe algumas vezes nisso, sondar-lhe o coração, ver se elle favorecia o sonho de sua madrinha, tornando feliz toda esta casa... Fiz mal, convenho; mas a intenção era a mais respeitavel e santa deste mundo.
—De certo, murmurou Guiomar.
Mrs. Oswald pegou-lhe n'uma das mãos e beijou-a affectuosamente. Guiomar não a repelliu nem sequer pareceu dar-se-lhe da ternura da ingleza. As duas olharam-se uns breves minutos, sem dizer nada, como a lerem na alma uma da outra.
Guiomar não tinha a experiencia nem a edade da ingleza, que podia ser sua mãe; mas a experiencia e a edade eram substituidas, como sabe o leitor, por um grande tino e sagacidade naturaes. Ha creaturas que chegam aos cincoenta annos sem nunca passar dos quinze, tão simplices, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o crepusculo é o prolongamento da aurora. Outras não; amadurecem na sazão das flores; vem ao mundo com a ruga da reflexão no espirito,—embora, sem prejuiso do sentimento, que nellas vive e influe, mas não domina. Nestas o coração nasce enfreiado; trota largo, vae a passo ou galopa, como coração que é, mas não dispara nunca, não se perde nem perde o cavalleiro.
O que a afilhada da baroneza buscava ler no rosto de Mrs. Oswald era se effectivamente a madrinha nutria aquelle desejo, ou se tal revelação não era mais do que um embuste. O leitor sabe que era verdadeira; mas admittirá, sem duvida, que a moça só depois de muito interrogar e examinar lhe désse fé. Creu emfim; creu, porque era verosimil, creu porque a ingleza não se arriscaria a qualquer indiscrição da parle della, que de todo a desmascararia.
—Parece-me, disse Mrs. Oswald, que não fiz mal em lhe dizer tudo o que sabia. Conselhos não lhe dou nenhuns; o melhor delles não vale a voz do proprio coração. O seu é puro e recto; consulte-o de boa vontade, e verá se ha nelle indifferenca, ou se alguma faisca...
—Eu sei! interrompeu Guiomar. Não me lembrou consultal-o nunca.
—Faz mal, elle é o relogio da vida. Quem o não consulta, anda naturalmente fóra do tempo. Mas que vejo! continuou Mrs. Oswald deitando os olhos para o reloginho de Guiomar. Naquelle outro relogio faltam dez minutos para uma hora! Uma hora! Que diria a Sra. baroneza se soubesse que ainda estamos aqui de conversa! Retiro-me; Deus lhe dê um somno socegado, e sobretudo a faça feliz, como merece. Não lhe recommendo juizo, porque o tem de sobra. Adeus, até amanhã.
E Mrs. Oswald sahiu pé ante pé em direcção ao seu quarto.
Guiomar ficou só, alli sentada ao pé da cama, a ouvir o passo surdo, e cautelloso da ingleza. Quando o som morreu de todo, e o silencio da noite volveu ao que era, profundo e sepulchral, a moça deixou cair os braços na cama, e a cabeça nas mãos, e um suspiro desentranhou-se-lhe do peito, longo, ruidoso, magoado,—o primeiro que o leitor lhe ouve desde que a conhece—e emfim estas palavras arrancadas da alma, tão doloridas,—ia dizer tão lacrimosas,—vinham ellas:
—Oh meus sonhos! meus sonhos!
Não chorou; a alma della era das que não tem lagrimas, em quanto lhe restam forças. Os olhos estavam seccos e firmes quando ella os ergueu das mãos; o resto tinha vestigios do abalo, mas não havia nelle desanimo, menos ainda desespero.
Durante uma inteira e comprida semana, deixou Estevão de apparecer no escriptorio onde trabalhava com Luiz Alves; não appareceu tambem em Botafogo. Ninguem o viu em todo esse tempo nos logares onde elle era mais ou menos assiduo. Foram seis dias, não digo de reclusão absoluta, mas de completa solidão, porque ainda nas poucas vezes que saiu, fel-o sempre a horas ou em direcções que a ninguem via, e de ninguem era visto.
Mas não fôra essa crua e malfadada crise, e é quasi certo que elle metteria uma lança na Africa daquelles dias, que era um ponto muito serio e grave, a questão magna da rua do Ouvidor e da casa do José Thomaz, a ponderosa, crespa e complicada questão de saber se a Stephanoni estrearia no Ernani. Esta questão, de que o leitor se ri hoje, como se hão de rir os seus sobrinhos de outras analogas puerilidades, esta pretenção a que se oppunha a Lagrua, allegando que o Ernani era seu, pretenção que fazia gemer as almas e os prelos daquelle tempo, era cousa muito propria a espertar os brios do nosso Estevão, tão marechal nas cousas minimas, como recruta nas cousas maximas.
Infelizmente elle não apparecia, não sabia sequer do conflicto e do debate, occupado como estava em travar o aspero e sangrento duelo do homem contra si mesmo, quando lhe falta o apoio, ou a consolação dos outros homens. Todo elle era Guiomar; Guiomar era o primeiro e o ultimo pensamento de cada dia. A sombra da moça vivia ao pé delle e dentro delle, no livro em que lia, na rua solitaria onde acaso transitava, nos sonhos da noite, nas estrellas do ceu, nas poucas flores de seu inculto jardim.
Um leitor perspicaz, como eu supponho que hade ser o leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que elle teceu, diversos e contradictorios, como é de razão em analogas situações. Apenas direi por alto que elle pensou tres vezes em morrer, duas em fugir á cidade, quatro em ir affogar a sua dor mortal naquelle ainda mais mortal pantano de corrupção em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espirito apenas um joguete de sensações continuas e variadas. A força, a permanencia do affecto não lhe bastava a dar seguimento e realidade ás concepções vagas de seu cerebro,—enfermo, ainda quando estava de saude.
A ideia do suicidio fincou-se-lhe mais a dentro no espirito, certa tarde em que elle saiu a espairecer, e viu um enterro que passava, caminho do Cajú. O prestito era triste,—ainda mais triste pela indifferença que se lia no rosto dos que iam piedosamente acompanhando o morto. Estevão descobriu-se e sinceramente desejou ir alli dentro, mettido naquellas estreitas tabuas de pinho, com todas as suas dores, paixões e esperanças.
—Não tenho outro recurso, pensou elle; é necessario que morra. É uma dôr só, e é a liberdade.
Ao voltar para casa, uma creança que brincava na rua, em camisa, com os pés na agua barrenta da sargeta, fel-o parar alguns instantes, invejoso daquella boa fortuna da infancia, que ri com os pés no charco. Mas a inveja da morte e a inveja da innocencia foram ainda substituidas pela inveja da felicidade, quando ao recolher-se viu as janellas abertas de uma casa visinha, e a sala illuminada, e uma noiva coroada de flores de laranjeira, a sorrir para o noivo, que sorria igualmente para ella, ambos com o sorriso indefinivel e unico da occasião.
Os cinco dias correram-lhe assim, travados de enojo, de desespero, de lagrimas, de reflexões amargas, de suspiros inuteis, até que raiou a aurora do sexto dia, e com ella,—ou pouco depois della, uma carta de Botafogo. Estevão quando viu o creado da baroneza, á porta da saia, com uma carta na mão, sentiu tamanho alvorôço, que não ouviu nada do que elle lhe disse. Supporia que a carta era de Guiomar? Talvez; mas a illusão durou os poucos instantes que elle gastou em romper a sobrecarta e desdobrar a folha de papel que vinha dentro.
A carta era da baroneza.
A baroneza perguntava-lhe graciosamente se elle havia morrido, e pedia que fosse falar-lhe ácerca da demanda que ella trazia. Estevão chegara já ao estado de só esperar um pretexto para transigir comsigo mesmo; não podia havel-o melhor. Escreveu rapidamente duas linhas de resposta, e á uma hora da tarde apeava-se de um tilbury á porta da funesta e deliciosa casa, onde havia passado as melhores e as peores horas da vida.
—Sabe porque razão lhe dei este incommodo, além do prazer que tinha em vel-o? perguntou a baroneza logo depois dos primeiros comprimentos.
—Disse-me que era por causa da demanda...
—Sim, precisamos assentar algumas cousas, antes da nossa partida.
—V. Ex. sae da côrte?
—Vamos para o roça.
Estevão empallideceu. Na situação delle, aquella viagem era a melhor cousa que lhe podia acontecer; comtudo, fez-lhe mal a noticia. A conversa que se seguiu foi toda sobre o assumpto forense, e durou uma longa hora, sem que apparecesse Guiomar. Ao despedir-se atreveu-se Estevão a perguntar por ella.
—Anda passeando, respondeu a baroneza.
Estevão despediu-se da constituinte, que o acompanhou até á porta da sala, repetindo-lhe algumas recommendações, que o advogado mal pôde ouvir e absolutamente lhe não ficaram de memoria.
A esperança de ver a moça levara-o, mais que tudo, áquella casa; saía sem ter o gosto de a contemplar ainda uma vez; mais do que isso, ameaçado de a não ver tão cedo, ou quem sabe se nunca mais. Ia elle a reflectir nisto e a approximar-se da porta, onde parava ao mesmo tempo um carro. Estevão estremeceu naturalmente, ante de ver quem ia apear-se; grudou-se ao portal, com os olhos fitos na portinhola, que um lacaio abria apressadamente.
A primeira figura que desceu foi a nossa conhecida Mrs. Oswald, que o fez, sem dar tempo a que Estevão lhe offerecesse a mão. O bacharel, desde que a vira, approximara-se rapidamente da portinhola.
Guiomar desceu logo depois. A mão apertada na luva côr de perola pousou levemente na mão de Estevão que estremeceu todo. A moça fez-lhe um comprimento risonho, murmurou um agradecimento e recolheu-se com a ingleza. Era pouco; mas esse pouco alvoroçou o bacharel, que enfiou d'alli para a cidade, em direcção ao escriptorio.
Luiz Alves admirou-se de o ver; não foi com um espanto de seis dias, como devera ser, mas de quarenta e oito horas, quando muito. Que admira? A preocupação de Luiz Alves por aquelles dias era a candidatura eleitoral; a boa nova devia chegar-lhe na primeira mala do norte. Ora, em boa razão, um homem que está prestes a ser inscripto nas tabuas do parlamento, não póde cogitar muito dos amores de um rapaz, ainda que o rapaz seja amigo e os amores verdadeiros.
Estevão não perdeu tempo em circumloquios; foi entrando e entornando a alma toda, afflicta e consolada a um tempo, no seio do velho amigo e companheiro. A cada trecho da confissão plena que elle alli lhe fez, respondia um commento, ora serio, ora gracioso de Luiz Alves. Quando Estevão porém lhe deu noticia de que a familia da baroneza ia para a roça, Luiz Alves recolheu o meio-riso que lhe pousava nos labios desde começo, e com a mais subita e sincera admiração exclamou:
—Para a roça!
—Disse-o agora mesmo a baroneza.
—Mas...
Luiz Alves não acabou; olhou ainda meio duvidoso para Estevão, e ficou algum tempo calado, a coçar o queixo com a faca de marfim e a olhar para uma gravura que pendia na parede fronteira.
—Na situação em que estou, continuou Estevão, has de dizer que a viagem é uma felicidade para mim. Pois não é; não admitto a viagem. Se ella sair da côrte, eu saio também.
—Tu estás doudo!
—Talvez.
Luiz Alves saiu daquella natural indifferença com que o ouvia, e lhe falava sempre em tal assumpto. Falou-lhe carinhoso,—talvez pela primeira vez na vida. O que lhe disse foi apenas ume edição augmentada de que lhe havia dito em anteriores occasiões,—agora com maior fundamento, porque depois do formal desengano de Guiomar, não havia outro recurso mais que ir esquecel-a de todo.
—Oh! isso nunca! interrompeu Estevão. Demais, não sei, não estou certo se ella falava de coração naquella tarde...
A candidez com que Estevão disse isto era a fiel traducção de seu espirito, e a razão de taes palavras, não a procure o leitor em outra parte mais que não seja aquelle sorriso de ha pouco, ao pé do carro, sorriso que lhe bailava no cerebro, como raio de sol coado por entre nuvens negras de tempestade.
Luiz Alves sacudiu a cabeça e enfiou os olhos pelas folhas rabiscadas de uns autos que tinha diante, e que entrou a folhear vagarosamente. Subito, bateu uma pancadinha, com a mão espalmada sobre os papeis, e levantou a cabeça:
—Ha um meio talvez de saber tudo, disse elle, de saber se ella verdadeiramente te ama, ou... Posso tenta-lo, com uma condição.
—Qual?
—A condição de eliminares as tuas pretenções. Que diabo ganhas tu em nutrir uma paixão sem efficacia nem remedio?
Esta promessa era a mais dura que se podia arrancar de um coração, em que as gerações de esperanças se succediam quasi sem solução de continuidade; fel-a, todavia, Estevão, talvez com a secreta resolução de a trahir.
Luiz Alves ficou só dahi a alguns minutos. As ultimas palavras que disse ao collega foram duas ou tres pilherias de rapaz; mas apenas ficou só tornou-se serio, e inclinando o corpo para a frente, com os braços na secretaria, e a raspar as unhas com um canivete, alli esteve largo tempo, como a reflectir, longe de Estevão, que aliás já não ía perto, e ainda mais longe dos autos que tinha diante de si. Mas em que pensava elle, se não era em Estevão, nem nos autos, nem tambem, por agora, nas suas esperanças eleitoraes Paciencia, leitor; sabel-o-has daqui a nada. Contenta-te com a noticia de que, ao cabo de vinte minutos daquella abstracção, Luiz Alves volveu a si, proferindo em alta voz esta simples palavra:
—Não ha duvida; é uma ambiciosa.
E descativado daquella preoccupação, enterrou-se de todo na leitura dos autos.
Mal recomeçára Luiz Alves a leitura dos autos, entrou no gabinete o criado apresentando-lhe um bilhete de visita.
—Que entre! disse o advogado lendo o nome do sobrinho da baroneza.
E logo se ouviu no corredor o passo medido e lento do mancebo, que d'ahi a nada assomava á porta do gabinete, fazendo uma cortezia, sisuda, mas graciosa.
—Venho incommoda-lo, doutor? perguntou Jorge.
—Pelo amor de Deus! exclamou o advogado erguendo-se e indo buscal-o á porta. Não me incommodaria em caso nenhum; agora, sobretudo, que a leitura de uns papeis me fatigou sobre maneira, a maior fortuna que eu poderia desejar é a presença de um homem de espirito.
Jorge agradeceu este comprimento um pouco emphatico, e retribuiu-o com outra lisonjaria muito mais extensa e de maior alcance. Quer dizer que elle vinha pedir alguma cousa. Effectivamente, passados os minutos de introito e desfiadas as generalidades, Jorge impertigou-se mais do que até alli estivera e desfechou esta pergunta abrupta:
—Sabe que venho pedir-lhe uma cousa grave?
Luiz Alves inclinou-se.
—Grave e simples ao mesmo tempo, continuou o sobrinho da baroneza; mas antes disso precisava saber se é tão amigo da nossa familia, como ella o é do senhor.
—Oh! de certo!
—O senhor é o menos assiduo, talvez, das pessoas que lá vão, apezar de visinho; só agora o vejo alli mais a miudo; entretanto é como flor que se trahe pelo aroma; minha tia tem a seu respeito a melhor opinião do mundo; acha-lhe uma gravidade, e eu tambem a sinto, e nem comprehendo que um homem possa ser outra cousa. Os taes espiritos futeis...
—São insupportaveis, concluiu Luiz Alves ancioso por chegar ao objecto da visita.
O objecto era a viagem da baroneza. Um commendador, amigo do finado barão, e fazendeiro em Cantagallo, tinha promessa da viuva, havia dous annos, de ir lá passar algum tempo. A baroneza esquivara-se sempre a cumprir a palavra dada; agora porém, tal fora a insistencia, que se resolvera a ir. Ora, o que Jorge vinha propor era—, expressões delle,—uma conjuração de amigos para dissuadir a tia daquelle projecto. Affiançava ao advogado que, ainda descoberta a conjuração, teria elle a vida sã e salva.
Luiz Alves suppoz a principio que aquillo era um simples pretexto; mas, tendo observado que a bella Guiomar não era indifferente ao rapaz, comprehendeu que este tinha na conjuração proposta, um interesse inteiramente pessoal. Emfim, Jorge chegou a confessar que, se a tia insistisse em sair da côrte, elle não tinha remedio senão acompanha-la.
O accôrdo não foi difficil; ficou assentado que fariam todos os esforços para dissuadir a baroneza. Jorge quiz sair logo; reteve-o Luiz Alves algum tempo mais, com expressões de louvor habilmente tecidas e mais habilmente encastoadas na conversação; e tambem deixando-se ir á feição do espirito delle, acceitando-lhe as ideias e os preconceitos, e applaudindo-os discretamente,—serio, quando elles o eram ou pareciam ser,—chocarreiro quando vinham com ar de graça,—respondendo emfim a todos os gestos e meneios do outro, como faz o espelho por officio e obrigação:—toda a arte em summa de tratar os homens, de os attrahir e de os namorar, que elle aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na vida publica.
De noite foi Luiz Alves á casa da baronesa, onde poucas pessoas havia, todas de intimidade. A dona da casa, sentada na poltrona do costume, tinha ao pé de si uma senhora da mesma edade que ella, egualmente viuva, e defronte as suiças brancas e aposentadas de um ex-funccionario publico. N'um sophá, viam-se Mrs. Oswald e Jorge a conversarem em voz, ora muito baixa, ora um pouco mais elevada. Adiante, dous moços contavam a duas senhoras o enredo da ultima peça do Gymnasio. Mais longe, uma moça da visinhança gabava a outra a tesoura de Mme. Bragaldi, que pedia meças, dizia ella, ao pincel do scenographo, seu marido. Emfim, junto a uma das janellas via-se uma mocinha, viva e bonita, a dizer mil ninharias graciosas a outra pessoa, que era nada menos que a nossa conhecida Guiomar. A conversa, assim dividida, tornava-se ás vezes geral, para recair logo no particularismo anterior; os grupos modificavam-se tambem de quando em quando, do mesmo modo que o assumpto, e assim se iam matando agradavelmente as horas, que não resistiam, coitadas, nem apressavam o passo um minuto sequer.
Luiz Alves aggregara-se ao grupo da baroneza, ao qual não tardou juntar-se Jorge. O advogado teve a discrição de esperar que o assumpto viesse de si, se viesse, ou de o introduzir na conversa, quando lhe parecesse de feição. Mas Jorge, que estava impaciente, arrastou o assumpto ao debate. Luiz Alves, mostrou-se fiel á palavra dada; declarou amavelmente que se oppunha á viagem, como visinho e amigo, que reclamaria em ultimo caso o auxilio de força publica; que era um erro e um crime deixar aquella casa viuva da benevolencia e da graça e do gosto e de todas as mais qualidades excellentes que alli iam achar os felizes que a frequentavam; que, emfim, o mal era tamanho, que não deixaria de ser peccado, posto não viesse apontado nos cathecismos, e como peccado, seria de força punido, com amargas penas, no outro seculo, pelo que, e o mais dos autos, era sua decisão que a baroneza devia ficar.
Todas estas razões foram ditas como deviam de ser, de um modo galante e folgazão, a que a baroneza respondia egualmente, e que não daria nada mais de si, se Luiz Alves, mudando de estylo, não fosse pôr o assumpto em differente terreno.
—Digamos a verdade, Sra. baroneza, a viagem ha de ser-lhe immensamente incommoda, se for so isso; suas forças não são de certo eguaes ás de seus primeiros annos; sua saude é melindrosa e não poderá soffrer tanta fadiga. Confesso que falo em nome de certo interesse pessoal de amigo e de visinho; mas a principal razão não é essa. Se houvesse um motivo urgente, bem; mas tratando-se apenas de uma promessa feita ha tanto tempo, seria crueldade da minha parte não insistir que ficasse.
A baroneza defendia-se, e Luiz Alves não tardou em reconhecer de si para si que ella não se defendia com o vigor de uma resolução original e propria. A conversa, entretanto, tornára-se mais geral; de todos os lados partiam votos de opposição.
Guiomar havia já alguns minutos que não attendia á interlocutora; tinha o ouvido afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguem a observava; mas é privilegio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquillo que as outras não veem ou não podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tedio que lhe causava aquella opinião unanime contra o projecto da baroneza, mas ainda a expressão de um genio imperioso e voluntario.
—Estamos de accordo, creio eu? perguntou Luiz Alves olhando alternadamente para a baroneza e as outras pessoas.
—Não é possível, doutor, respondia a boa senhora.
—De certo que não é possível, interveiu Guiomar do lugar onde estava. A viagem não offerece risco, nem minha madrinha está invalida. Demais, é uma promessa feita; não se pode deixar de cumprir.
Esta opinião, dita em tom sêcco e firme, ainda que a voz nada perdesse do seu natural avelludado, equivaleu a um pouco de agua fria lançada na fervura triumphante dos animos.
—Guiomar tem razão, disse a baroneza; já agora é preciso ir; são apenas tres ou quatro mezes.
Luiz Alves olhou longamente para Guiomar, como a procurar ver-lhe no rosto todas antecedencias da resolução da baroneza. A opposição afrouxara; Jorge chamou em vão o advogado em seu auxilio. A resolução da tia, se alguma vez fora abalada, tornara-se outra vez firme.
Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha. Jorge fitou-a com uma expressão de vaidade e cobiça. Luiz Alves, que se achava de pé, recuou um pouco para deixal-a passar. Os olhos com que a contemplou não eram de cobiça nem de vaidade; a leitora, que ainda lembrará da confissão por elle mesmo feita a Estevão, supporá talvez que eram de amor. Talvez,—quem sabe?—amor um pouco socegado, não louco e cego como o de Estevão, não pueril e lascivo, como o de Jorge, um meio termo entre um e outro,—como podia havel-o no coração de um ambicioso.
—O Dr. Luiz Alves defende causas más, disse Guiomar sorrindo para elle; não se trata de uma cousa impossivel. Quanto a mim, Cantagallo só tem um inconveniente; sera menos divertido que a côrte; mas o tempo passa depressa...
—Nesse caso, disse Jorge suspirando eu tambem dispenso theatros e bailes; sacrifico-me á familia.
—Queres ir comnosco? perguntou a baroneza alegremente.
—Que duvida!
Guiomar mordeu o labio inferior, com uma expressão de despeito, que pôde conter e abafar, sem que ninguem a percebesse, ninguem, excepto Luiz Alves. Um sorriso tranquillo e perspicaz roçou os labios do advogado, em quanto a moça, para esconder a impressão que lhe ficara, de novo se dirigiu á janella, onde esteve alguns momentos sósinha, meia voltada para fóra e meia guardada pela sombra que alli fazia a cortina. Um rumor de passos fel-a voltar-se para dentro. Era Luiz Alves.
—Ah! disse ella fingindo-se tranquilla; agradeço-lhe não haver insistido mais nos seus conselhos.
—A intenção era boa, respondeu Luiz Alves em voz baixa; mas será agora excellente; nem tudo está perdido: eu me incumbo de salvar o resto.
Guiomar franziu a testa com o mais vivo e natural espanto; tal espanto que parecia havel-a feito esquecer outro sentimento, igualmente natural:—o do despeito que lhe causaria aquella singular familiaridade. Mas o assombro dominou tudo; Guiomar sentiu que elle lera nella a razão da insistencia e o desgosto do resultado.
A ruga desfez se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os olhos. Havia nelles uma interrogação imperiosa, que a alma não se atrevia a transmittir aos lábios. Se ha nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capitulo seguinte.
Luiz Alves comprehendera toda a expressão dos olhos de Guiomar; era, porém, homem frio resoluto. Inclinou o busto com toda a graça correcta e de bom tom, e disse-lhe na voz mais branda que lhe permittia o seu orgão forte e severo:
—Parece-lhe que fui um pouco audaz, não é? Fui apenas sincero; e ainda que a sua delicadeza me condemne, estou certo de que ha em seu coração misericordia de sobra...
Guiomar tinha readquirido toda a posse de si mesma.
—Está enganado, disse ella, não o condemno, pela simples razão de que o não entendi.
—Tanto melhor, redarguiu Luiz Alves sem pestanejar; o meu delicto nesse caso não passou da esphera da intenção.
—Mas... referia-se á viagem?
—Referia-me; perguntava quando iam.
Esta presença de espirito de Luiz Alves ia muito com o genio de Guiomar; era um laço de sympathia. A moça respondeu que o commendador viria buscal-as dahi a quinze ou vinte dias.
—Tres mezes apenas? perguntou o advogado.
—Tres ou quatro.
—Quatro mezes não é a eternidade, mas Cantagallo, para uma carioca da gemma, hade ser um degredo, ou quasí... Oxalá,—continuou Luiz Alves, concluindo mais depressa do que queria, ao ver que Jorge se approximava da janella,—oxalá não lhe faça esse exilio esquecer o que solemnemente lhe digo neste momento: que a senhora tem uma alma grande e nobre, e que eu a admiro!
Jorge chegára; a conversa tinha de acabar ou tomar differente rumo.
As ultimas palavras de Luiz Alves eram singularmente dispostas para deixar sulco profundo na memoria da moça. Não era uma declaração de amor, nem uma cortezania de sala cousas todas que ella ouvira muita vez, que podiam lisongea-la, e de certo a lisongeavam; era mais que um comprimento e não chegava a ser uma declaração. Commoção, não a havia na voz do advogado; firmeza, sim, e um ar de convicção profunda. Guiomar olhou para elle quasi sem dar pela presença de Jorge; mas Luiz Alves voltara-se para o recem-chegado e falava-lhe em tom jovial, bem differente daquelle que empregára pouco antes.
Se esse contraste era premeditado,—não sei se o era,—não podia vir mais de feição ao espirito de Guiomar. De quantos homens a moça tratára até alli, era o primeiro que lhe inspirava curiosidade, e tambem, naquella occasião, a primeira pessoa que só compadecia della. Veja o leitor:—curiosidade e gratidão;—veja se ha duas azas mais proprias para arrojar uma alma no seio de outra alma,—ou de um abysmo, que é ás vezes a mesma cousa.
Eu disse—compadecia—e esta só palavra, desacompanhada de outra cousa, póde fazer crer ao leitor que, durante aquelles dias em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar uma creatura desditosa. Nada disso; a situação era a mesma, não a mesma anteriormente á carta de Jorge, mas a mesma da noite em que ella a recebeu, situação, de certo, assaz sombria e carregada para um coração que receia ser constrangido, mas não desesperada nem angustiosa.
A baroneza, se soubera dos factos, ou se pudera ler na alma da moça, seria a primeira a dar-lhe todas as consolações. Mas não sabia. Seu desejo,—ou antes o sonho da velhice, como ella dizia n'um dos anteriores capitulos,—era deixar felizes a afilhada e o sobrinho, e entendia que o melhor meio de os deixar felizes era casal-os um com o outro. A noticia que tinha do coração da moça, a este respeito, era incompleta ou inexacta; pintavam-lhe como frieza o que era repugnancia. Mrs. Oswald dava-lhe sempre esperanças de exilo feliz e proximo, as coleras da moça não lh'as contava nunca. Da carta de Jorge não soube, nem da scena havida na alcova. O casamento continuava a apparecer-lhe com todas as probabilidades de uma esperança realizavel.
Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão pertinaz esperança, e terá razão; mas os olhos da baroneza não são os da leitora; ella só lhe via o lado bom,—que era realmente bom,—ainda que de uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via nem podia ver-lhe a frivolidade grave do espirito, nem o genero de affecto que se lhe gerava no coração.
Jorge era o seu unico parente de sangue,—filho de um irmã que vivêra infeliz e mais infelizmente morrêra, não repudiada, mas aborrecida do marido, circumstancia que lhe tornava caro aquelle moço. Mais do que a afilhada, não; nem tanto, de certo; o coração não chegaria para dividir-se egualmente em tão grandes porções; queria-lhe, porém, muito, quanto bastava para desejal-o feliz, e trabalhar por fazel-o. Accrescentemos que o destino da irmã sempre lhe estava presente ao espirito, e que ella receiava egual sorte a Guiomar; em Jorge parecia-lhe ver todos os dotes necessarios para tomal-a venturosa.
Infelizmente, Mrs. Oswald, sabedora daquelles secretos desejos e mais ou menos confidente dos sentimentos de Jorge, achara azada occasíão esta para patentear toda a gratidão de que estava possuida e a profunda amizade que a ligava á familia da baroneza. Interpoz-se para servir aos outros, e mais ainda a si propria. Viu a difficuldade, mas não desanimou; era preciso armar ao reconhecimento da baroneza. Por isso não hesitou em confiar a Guiomar o desejo da madrinha, exagerando-o, entretanto,—por que nunca a baroneza dissera que «tal casamento era a sua campanha,» e Mrs. Oswald attribuiu-lhe esta phrase mortal para todas as esperanças e sonhos da moça. Mas, se falava demasiado ao pé de uma, era muito mais sobria de palavras com a outra, e da exageração ou da attenuação da verdade resultara aquelle perenne estado de luta abafada, de receios, de indecisão e de amarguras secretas. Convém dizer, para dar o ultimo traço ao perfil, que esta Mrs. Oswald não seguia só a voz do seu interesse pessoal, mas também o impulso do proprio genio, amigo de pôr á prova a natural sagacidade, de tentar e levar a cabo uma destas operações delicadas e difficeis, de maneira que, se houvesse uma diplomacia domestica,—ou se se creassem cargos para ella, Mrs. Oswald podia contar com um lugar de embaixatriz.
Vindo agora á narração dos successos da historia, cumpre que o leitor saiba, que a carta de Jorge não teve resposta escripta nem verbal. No dia seguinte ao da entrega foi elle jantar a Botafogo; mas Guiomar não saíra do quarto, a pretexto de uma dor de cabeça; a baroneza passou o dia com ella; Jorge apenas conseguiu saber, quando de lá saiu, que a moça ia melhor. Nos subsequentes dias nenhuma resposta foi ás mãos do pretendente, nem elle conseguiu haver uns cinco minutos de conversa solitaria com a moça; Guiomar esquivava-se sempre, com aquella arte summa da mulher que aborrece, e que é nem mais nem menos egual á da mulher que ama.
Um dia, porém, não houve meio de fugir; e Jorge, que não tinha nenhuma commoção na voz, porque não tinha muita no coração, olhou para ella com olhos direitos e francamente lhe pediu uma palavra de esperança ou de desengano. A moça hesitou alguns segundos; contudo era preciso responder. Venceu a repugnância dizendo-lhe com um frio sorriso:
—Nem uma nem outra cousa.
—Nem desengano? perguntou Jorge alvoroçado.
—Ninguem pode dar nem uma cousa nem outra, disse ella; costumamos acceital-as do nosso destino.
Não era responder, como vê o leitor; Jorge ia pedir uma decisão mais transparente, mas a moça aproveitara-se da primeira impressão e esquivara-se. Quando elle recobrou a voz não viu mais que a fimbria do vestido, que se perdia na volta de uma porta.
Guiomar encurtou as redeas á familiaridade que existia entre ella e Jorge; mas, se o tratava com mais reserva, não o fazia com sequidão nem frieza, nem deixava de ser polida e affavel. A dignidade natural que havia em toda a sua pessoa servia-lhe, além disso, como de uma torre de marfim, onde ella se acastellava e mantinha em respeito o pretendente.
Dos dous homens que lhe queriam, nenhum lhe falava á alma; ella sentia que Estevão pertencia á phalange dos tibios, Jorge á tribu dos incapazes, duas classes de homens que não tinham com ella nenhuma affinidade electiva. Não egualava, de certo, os dous pretendentes; um era simplesmente trivial, outro sentimental apenas; mas nenhum delles capaz de crear por si só o seu destino. Se os não egualava, tambem os não via com os mesmos olhos; Jorge causava-lhe tedio, era um Diogenes de especie nova; atravez da capa rota da sua importancia, via-se-lhe palpitar a triste vulgaridade. Estevão inspirava-lhe mais algum respeito; era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma especie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem azas para voar até lá. O sentimento de Guiomar em relação a Estevão não podia nunca chegar ao amor; tinha muito de superioridade e perdão.
Com outra indole, aspirações differentes e vivida em diversa esphera, ama-lo-hia com certeza, do mesmo modo que elle a amava. Mas a natureza e a sociedade deram-se as mãos para a desviar dos gozos puramente intimos. Pedia amor, mas não o quizera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da terra seria para ella o maximo dos infortunios, se lh'a puzessem n'um ermo. Creança, iam-lhe os olhos com as sedas e as joias das mulheres que via na chacara contigua ao pobre quintal de sua mãe; moça, iam-lhe do mesmo modo com o espectaculo brilhante das grandezas sociaes. Ella queria um homem que, ao pé de um coração juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subil-a aonde a vissem todos os olhos. Voluntariamente, só uma vez acceitara a obscuridade e a mediania; foi quando se propoz a seguir o officio de ensinar; mas é preciso dizer que ella contava com a ternura da baroneza.
Já o leitor ficou entendendo que a viagem a Cantagallo era obra quasi exclusiva de Guiomar. A baroneza relutara a principio, como das outras vezes fizera, e o commendador pouca esperança tinha já de a ver na fazenda. Mas o voto de Guiomar foi decisivo. Ella fortaleceu, com as suas, as razões do commendador, allegando não só a obrigação em que a madrinha estava de desempenhar a palavra dada, mas ainda a vantagem que lhe podiam trazer aquelles tres mezes de vida roceira, longe das agitações da côrte; emfim, invocou o seu proprio desejo de ver uma fazenda e conhecer os habitos do interior.
Não havia tal desejo, nem cousa que se parecesse com isso; mas Guiomar sabia que na balança das resoluções da madrinha era de grande peso a satisfação de um gosto seu. O sacrificio duraria tres ou quatro mezes; ella afrontaria, porém, dez ou doze se tantos fossem necessarios, para fugir algum tempo ás pretenções de Jorge, sem embargo de lhe repugnar todo o viver que não fosse a vida fastosa e agitada da côrte. Eu, que sou o Plutarcho desta dama illustre, não deixarei de notar, que, neste lance, havia nella um pouco de Alcibiades,—aquelle gamenho e delicioso homem de Estado, a quem o despeito tambem deu forças um dia para supportar a frugalidade spartana.
Infelizmente, Jorge reduziu todos esses calculos a nada. Ella contava com o seu demasiado apego aos regalos da côrte, não contava com as suggestões de Mrs. Oswald, que percebera o plano, e torcera a primeira resolução de Jorge, que era ficar e esperar. O sacrificio da parte delle era compensado pela probabilidade da victoria, a qual não consistia só em haver por esposa uma moça bella e querida, mas ainda em tornar muito mais summarias as partilhas do que a baroneza deixaria por sua morte a ambos. Esta consideração, que não era a principal, tinha ainda assim seu peso no espirito de Jorge, e, sejamos justos, devia tel-o: possuir era o seu unico officio. Assim era que não só a moça deixava de obter um bem, mas cahia de um mal em outro maior; tel-o ao pé de si, onde as distracções seriam menos promptas e variadas, equivalia a adoecer de fastio e morrer de inanição.
Imagine-se por isso em que estado lhe ficou o espirito depois da declaração de Jorge. Não havia meio de fugir ao pretendente, era preciso tragal-o. Esta perspectiva abateu-lhe totalmente o animo. Uma confidente, em taes situações, é um presente do ceu; mas Guiomar não a tinha, e se alguma pessoa lhe merecesse tal confiança, é certo ou quasi certo que lhe não diria nada. Suas dores eram altivas, as tristezas de seu coração tinham pudor. Espiritos desta casta ignoram a consolação que ha, nas horas de crise, em se repartirem com outro; triste, mas feliz ignorancia que lhes poupa muita vez o contacto de uma consciência aleivosa e ruim.
No meio do longo reflectir, soaram-lhe na memoria as palavras de Luiz Alves; ella ouviu-as de novo, taes quaes elle as proferira, desde a phrase descortez até à expressão respeitosa. Uma era o commentario da outra, e ambas podiam explicar-lhe o caracter de Luiz Alves, se tivesse alguns elementos mais para conhece-lo; em todo o caso, era a ponta do veu levantada. Embora se lhe não podesse ler no fundo do espirito, via-se desde já qual era o seu methodo de acção.
Qualquel outro homem, depois do effeito produzido pela primeira declaração, não se atreveria ou não lhe importaria tentar mais nada para desfazer o projecto da viagem. Mas o espirito de Luiz Alves tinha a obstinação do dogue. Era-lhe necessario que a familia da baroneza não saisse da côrte; este objecto havia de alcança-lo a todo o trance. Elle espreitava as occasiões, aproveitava as circumstancias, tinha a habilidade de intercalar o pedido em qualquer retalho de conversação, onde menos apropriado pareceria a qualquer outro. Jorge applaudia-o com as forças todas de que podia dispor o seu interesse. A baroneza oppunha ás suggestões do advogado a resistencia molle e atada de quem deseja aquillo mesmo que recusa.
—O doutor é terrivel, dizia ella. Em se lhe mettendo uma cousa na cabeça, ninguem mais o tira dahi.
—Justamente, é uma ideia fixa. Sem ideia fixa não se faz nada bom neste mundo.
Guiomar sustentava a resolução da madrinha, posto não o fizesse a miudo, nem no mesmo tom secco e imperioso da primeira noite. Seu impulso era ser coherente; ao mesmo tempo não queria parecer aos olhos de Luiz Alves que lhe acceitava o concurso para obter o que aliás desejava de todo o coração; sería laval-o da primeira culpa.
O argumento que mais influia no animo de todos, o que devera ter affastado a ideia de semelhante viagem, era o perigo de affrontar o cholera-morbus que por aquelle tempo percorria alguns pontos do interior. Um dia de manhã soube-se que em Cantagallo havia apparecido o terrível inimigo. Desta vez Luiz Alves triumphou sem dizer palavra; a baroneza recuou deante daquelle facto brutal.
A viagem desfez-se pois, a contento de todos, salvo talvez de Mrs. Oswald, que receiava muito da mocidade casadeira da côrte, e dos bellos olhos castanhos de Guiomar. Mrs. Oswald temia ver surgir a cada passo um novo inimigo emboscado em algum theatro ou baile, ou quando menos na rua do Ouvidor, e não via que o inimigo novo podia ser que estivesse litteralmente ao pé da porta. A sagacidade da ingleza desta vez foi um tanto myope. A razão é que Luiz Alves, em todos aquelles seus preliminares, houve-se com habilidade; longe de procurar a moça, parecia nada haver alterado nos seus sentimentos, nem desejar mudar a especie de relações que até alli mantinha. Guiomar, entretanto, não podia deixar de comparar aquella especie de attenciosa indifferença que havia delle para ella, com as palavras que anteriormente lhe ouvira, e o resultado da comparação não lhe parecia muito claro.
Na noite do mesmo dia em que ficou assentado defferir a viagem para melhores tempos, achavam-se em casa da baroneza algumas pessoas de fóra; Guiomar, sentada ao piano, acabava de tocar, a pedido da madrinha, um trecho de opera da moda.
—Muito obrigada, disse ella a Luiz Alves que se approximára para dirigir-lhe um comprimento. Está alegre! Parece que é a satisfação de me haver mallogrado o maior desejo que eu tinha nesta occasião.
—Não fui eu, disse elle, foi a epidemia.
—Sua alliada, parece.
—Tudo é alliado do homem que sabe querer, respondeu o advogado dando a esta phrase um tanto emphatica o maior tom de simplicidade que lhe podia sair dos labios.
Guiomar curvou a cabeça e esteve alguns instantes a perpassar os dedos pelas teclas, em quanto Luiz Alves, tirando de cima do piano outra musica, dizia-lhe:
—Podia dar-nos este pedaço de Bellini, se quizesse.
Guiomar pegou machinalmente na musica e abriu-a na estante.
—Era então vontade sua? perguntou ella continuando o assumpto interropido do dialogo.
—Vontade certamente, porque era necessidade.
—Necessidade,—tornou ella começando a tocar, menos por tocar que por encobrir a voz; mas necessidade por que?
—Por uma razão muito simples, porque a amo.
A musica estacou. Guiomar erguera-se de um salto. Mas nem o gesto da moça, nem a sorpresa das outras pessoas, perturbou o advogado; Luiz Alves inclinou-se para o mocho, como a concertal-o, e voltando-se para Guiomar, disse-lhe graciosamente:
—Pode sentar-se-agora; está seguro.
Guiomar sentou-se outra vez muda, despeitada, a bater-lhe o coração como nunca lhe batera em nenhuma outra occasião da vida, nem de susto, nem de colera, nem... de amor, ia eu a dizer, sem que ella o houvesse sentido jamais. Não se demorou muito tempo alli; com a mão tremula folheou a musica que estava aberta na estante, deixou-a logo e levantou-se.
Nestes derradeiros movimentos ninguem reparou; e se alguem pudesse reparar em alguma cousa, a moça tomara a peito desvanecer todas as suspeitas. A primeira impressão fora profunda, mas Guiomar tinha força bastante para dominar-se e fechar todo o sentimento no coração.
O que se passou depois, quando, livre de olhos estranhos, pôde entregar-se a si mesma, isso ninguem soube, a não serem as paredes mudas do quarto, ou o raio de lua coado pelo tecido raro das cortinas das janellas, como a espreitar aquella alma faminta de luz. Soube-o, talvez, o seu espelho, quando no dia seguinte lhe reflectiu o rosto desfeito e os olhos quebrados. Se foi a meditação nocturna que os amolleceu e apagou, não o perguntou elle, naturalmente porque o sabia; mas talvez advertiu comsigo que se eram assim mais bellos, pediam outro rosto em que caissem melhor. O de Guiomar queria-os como elles eram, severos, firmes e brilhantes.
A baroneza tambem não deixou de ver que a afilhada não accordara com o mesmo ar do costume; achou-a taciturna e distrahida.
—Eu, madrinha? perguntou Guiomar simulando um sorriso de admiração.
—Será engano de meus olhos.
—Não é outra cousa; estou como sempre, como hontem, como amanhã. Passei a noite um pouco mal, é verdade; mas o que tive desapareceu inteiramente. A prova...
Guiomar parou neste ponto, chegou-se á madrinha e deu-lhe um beijo.
—A prova, continuou ella, é que ainda hoje me acha bonita, não é?
—Creança! respondeu a baroneza, dando-lhe uma pancadinha na face.
A tranquillidade da moça era simulada; apenas a madrinha voltou as costas, cobriu-se-lhe o rosto com o mesmo veu. Ella aprendera desde creança a disfarçar as suas preoccupações.
Quanto a Luiz Alves, posto houvesse contado com o seu methodo cru e abrupto, saiu dalli sem plena certeza do resultado. Esta incerteza abalou-o mais do que elle suppunha; e foi, sem duvida, a primeira occasião em que sentiu que a amava devéras, ainda que o seu amor fosse como elle mesmo: placido e senhor de si. No dia seguinte, Estevão interrogou-o a respeito de Guiomar.
—Creio, disse elle depois de reflectir alguns instantes,—creio que por ora não deves perder as esperanças todas.
Durante tres dias deixou Luiz Alves de ir á casa da baroneza, estando aliás a morrer por isso. Entrava porém no plano esta ausencia; era das instrucções que elle mesmo dera ao seu coração; não havia remedio senão observal-as.
No quarto dia recebeu um bilhete da baroneza que o comprimentava pela eleição. A mala do norte chegára, e com ella a noticia da victoria eleitoral. Estava Luiz Alves deputado; ia emfim dar a sua demão no fabricos das leis. Estevão foi o primeiro que o felicitou; era o antigo companheiro dos bancos da academia; tanto ou mais do que os outros devia applaudir aquella boa fortuna. Não lhe escondeu, entretanto a inveja que ella lhe mettia:
—Deputado! suspirou elle. Oh! eu tambem podia ser deputado.
Estevão dizia isto, como a creança deseja o dixe que vê no collo de outra creança,—nada mais. Eram os seus sonhos de outr'ora, que renasciam taes quaes eram, inconsistentes, vagos, prestes a dissiparem-se com o primeiro raio da manhã.
Luiz Alves apressou-se a ir agradecer á baroneza a felicitação. Guiomar teve um leve estremecimento quando o viu, mas recebeu-o tranquilla e risonha, quasi indifferente. O advogado era habil; não a perseguiu com os olhos; sobre accordar a attenção das demais pessoas, era seguir o methodo commun. Elle não queria parecer-se com os outros.
Guiomar, entretanto, observava-o a espaços, de revez, como a querer sorprehendel-o; a pouco e pouco, porém, o seu olhar foi sendo mais direito e firme. O de Luiz Alves era natural e egual como antes era, como era ainda agora com todos.
Ao sair, junto á porta de uma sala, onde acaso a topou, Luiz Alves teve occasião de lhe dizer esta simples palavra:
—Perdoou-me?
A moça retirou a mão, que elle tinha presa na sua, e furtou o corpo, ao mesmo tempo que lhe caiam as palpebras.
—Perdoou-me? repetiu-elle.
Guiomar retirou-se sem dizer palavra. Luiz Alves esperou que ella desapparecesse e saiu. A moça, entretanto, ficou irritada por nada lhe ter respondido, sendo verdade que nada achou nem acharia talvez que lhe responder; mas arrependeu-se e pensou longo tempo naquillo.
Quer dizer que o amava? Quer dizer que estava prestes a isso. A arraiada branqueava o ceu, tingiria depois o cimo dos montes, entornar-se-hia emfim pela encosta abaixo, até apparecer o sol,—o sol contemporaneo de Adão, e do ultimo homem que hade vir.
Dalli a dias, entrando Luiz Alves em casa da baroneza, teve a boa fortuna de encontrar a moça sosinha, na sala do trabalho, d'onde a baroneza se ausentára cinco minutos antes. Mrs. Oswald achava-se fóra. Era a hora da tardinha; o dia estava prestes a afogar-se no seio da noite.
Guiomar, mollemente sentada n'uma cadeira baixa, tinha um livro aberto sobre os joelhos e os olhos no ar. Luiz Alves sorprehendeu-a nessa attitude meditativa, mais bella do que nunca, porque assim, e áquella hora, e com o vestido meio escuro que lhe realçava a côr de leite da face, tinha um quê de gracioso e severo, ao mesmo tempo, que parecia buscado de proposito para recebe-lo.
—Minha madrinha já vem, disse Guiomar logo depois de lhe estender a mão, que elle apertou e sentiu um pouco tremula.
—Talvez daqui a cinco minutos, disse elle; é bastante para decidir o meu destino. Duas vezes lhe perguntei se me perdoara; pela terceira lhe peço que me responda; custa pouco uma unica palavra; custa menos ainda, um unico gesto.
A moça olhou algum tempo para o livro que tinha diante de si. A manhã, porem, era já alta no coração de Guiomar, a claridade intensa, o sol quente e vivo, por que ella não olhou muito tempo para o livro, nem hesitou mais do que era natural e exigivel naquella occasião. Dous minutos depois fez o gesto, um gesto só, mas ainda mais eloquente do que se ella falasse,—estendeu-lhe a mão.
Luiz Alves apertou-lh'a entre as suas.
A commoção era natural em ambos; alli estiveram alguns instantes calados, elle com os olhos fitos nella, ella com os seus no chão. As mãos tocavam-se e os corações palpitavam unisonos. Decorreram assim cinco breves minutos. Ella foi a primeira que rompeu o silencio.
—Um gesto, um só gesto, e é o meu destino que lhe entrego com elle, disse Guiomar olhando em cheio para o moço.
—Ainda não. Se os nossos destinos se ligarem, estou convencido de que o meu amor, pelo menos, terá a virtude de a tornar feliz. Mas nada está feito ainda, e se eu fui breve e apressado na confissão, não o desejo ser na consagração que lhe peço.
Luiz Alves calara-se; a moça olhava para elle como buscando entende-lo.
—Sim, continuou elle; melhor é que não ceda a um instante de enthusiasmo. Minha vida é sua; todo o meu destino está nas suas mãos... Comtudo, não quero sorprehender-lhe o coração neste momento; no dia em que me julgar verdadeiramente digno de ser seu esposo, ouvi-la-hei e seguila-hei.
A resposta da moça foi apertar-lhe as mãos, sorrir, e embeber os seus olhos nos delle. O passo da baroneza interrompeu esta contemplação.
Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntario aquelle sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar á nossa heroina a castidade do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades affectivas. Até ahi só; dahi por diante entrava a fria eleição do espirito. Eu não a quero dar como uma alma que a paixão desatina e cega, nem faze-la morrer de um amor silencioso e timido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava essas flores do coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sitios agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de janella rustica. Ella queria-as bellas e viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto sobre movel raro, entre duas janellas urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas flores pelas cortinas de cachemira, que deviam arrastar as pontas na alcatifa do chão.
Podia dar-lhe Luiz Alves este genero de amor? Podia; ella sentiu que podia. As duas ambições tinham-se adivinhado, desde que a intimidade as reuniu. O proceder de Luiz Alves, sobrio, directo, resoluto, sem desfallecimentos, nem demasias ociosas, fazia perceber á moça que elle nascera para vencer, e que a sua ambição tinha verdadeiramente azas, ao mesmo tempo, que as tinha ou parecia tel-as o coração. Demais, o primeiro passo do homem publico estava dado; elle ia entrar em cheio na estrada que leva os fortes á gloria. Em torno delle ia fazer-se aquella luz, que era a ambição da moça, a atmosphera, que ella almejava respirar. Estevão dera-lhe a vida sentimental,—Jorge a vida vegetativa; em Luiz Alves via ella combinadas as affeições domesticas com o ruido exterior.
Uma vez entendidos, é difficil que dous corações se encubram, pelo menos aos olhos mais sagazes. Os de Mrs. Oswald eram dos mais finos. A ingleza percebeu dentro de pouco tempo que entre elles havia alguma cousa. Interrogar a moça era inutil, sobre perigoso; seria ir, de coração leve, em busca de odio, talvez. Todavia se ainda fosse possivel salvar tudo? Guiomar resistiria difficilmente a um desejo de madrinha; era possível vencel-a por esse lado.
Mrs. Oswald concebeu então um projecto insensato, que lhe pareceu aliás excellente e de bom aviso. O desejo de servir a baroneza e levar uma ideia ao fim tapou-lhe os olhos de razão. Ella foi directamente a Jorge.
—Sabe o que me está parecendo? disse ella. Parece-me que ha mouro na costa.
—Mouro na costa! exclamou Jorge com uma tal expressão de desgosto, que era facil comprehender o fundo de suspeita já existente em seu espirito.
—Nada menos, disse a ingleza; mas um mouro que se póde capturar.
E a ingleza expoz um plano completo que o sobrinho da baroneza ouviu um tanto perplexo. O plano consistia em ir Jorge pedir a moça á baroneza, em presença della propria. A baroneza, que nutria o desejo de os ver casados, não deixaria de fazer pezar o seu voto na balança, e era muito difficil que a gratidão de Guiomar não decidisse am favor de Jorge.
—A gratidão... e o interesse, continuou ella; Devemos contar tambem com o interesse, que é um grande conselheiro intimo. Ella não ha de querer sacrificar a affeição da madrinha, que para ella vale...
—Oh! que triste lembrança! interrompeu Jorge, recuando diante da ideia de Mrs. Oswald.
A ingleza sorriu,—e deixou por mão aquelle argumento; firmou-se porém no da affeição. Guiomar não se opporia a um desejo da madrinha; era urgente dar-lhe o golpe. Jorge não se atrevia a sorprehender por esse meio a acquiescencia da moça; mas acreditava na efficacia delle, e sobretudo receiava perder a causa. Uma vez que a vencesse, tudo podia confiar do tempo e do seu amor.
O conselho foi seguido pontualmente. De noite, em presença da baroneza á hora da despedida,—porque elle hesitara a maior parte do tempo,—praticou Jorge aquelle acto insensato de declarar á moça que a amava e de lhe pedir a mão. A tia sorriu de contentamento, mas teve a prudencia de não proferir nada emquanto Guiomar, empallidecendo, nada dizia, porque nada achava que dizer.
O silencio durou cerca de tres e quatro minutos, um silencio acanhado a vexado, em que nenhum delles se atrevia a reatar a conversação. A baroneza, pela sua parte, imaginava que os dous estavam emfim entendidos, e que a declaração era autorisada pela moça. O enleio de Guiomar não era dos que podessem dar cabimento a esta supposição; mas a boa senhora via com os olhos dos seus bons desejos.
—Pela minha parte, declarou emfim a baroneza, não me opponho; estimaria muito que acabassem por ahi. Mas é negocio do coração; devo esperar a resposta de Guiomar.
E voltando-sa para a afilhada:
—Pensa e resolve, minha filha, disse ella; e se fores feliz, sel-o-hei ainda mais do que tu.
Duas vezes pairou a negativa nos labios da moça; mas a lingua não se atrevia a repellir a palavra do coração. No fim de alguns instantes:
—Reflectirei, respondeu ella beijando a mão a madrinha; e continuou voltando-se para Jorge:—Boa noite! Até amanhã.
Na mesma noite em que Jorge, cedendo ás suggestões de Mrs. Oswald, tentava o ultimo recurso que no intender da ingleza havia, achava-se Luiz Alves em casa, commodamente sentado n'uma poltrona de couro, defronte da janella com os olhos no mar e o pensamento nas suas duas candidaturas vencidas. Meia noite estava a pingar; uma pessoa descia de um tibury e batia-lhe á porta.
Era Estevão.
Luiz Alves naturalmente admirou-se de o ver alli áquella hora; mas Estevão explicou-lhe tudo.
—Venho passar meia hora comtigo, ou a noite toda se quizeres. Estava em casa aborrecido, a pensar... bem sabes em que...
—Nella? interrompeu Luiz Alves.
—Agora e sempre.
Luiz Alves torceu o bigode, e olhou tres ou quatro vezes para o collega, em quanto este tirava o chapeu e dispunha-se a ir buscar uma cadeira para sentar-se ao pé do outro.
—Estevão, disse Luiz Alves depois de algums instantes de reflexão, e voltando a poltrona para dentro, ouve-me primeiro e resolverás depois se ficas a noite ou se te vás embora immediatamente. Talvez escolhas este ultimo alvitre.
—Vás falar-me de Guiomar?
—Justamente.
Estevão sentou-se defronte de Luiz Alves. Seu coração batia appressado; dissera-se que toda a sua vida pendia dos labios do amigo. Houve um instante de silencio.
—Nenhuma.... nenhuma esperança então? murmurou Estevão.
—Disseste a fatal palavra! exclamou Luiz Alves. Sim, não tens nenhuma esperança.
—Mas.... como sabes?
—Não me interrogues; eu não poderia dizer-te tudo o que ha. Poupa-me, ao menos, esse triste dever.
Estevão sentiu arrasarem-se-lhe os olhos d'agua. Quiz falar, mas as palavras iam-lhe saindo envoltas em soluços.
Luiz Alves fumava tranquillamente, acompanhando com os olhos os rolinhos de fumo que lhe fugiam da ponta do charuto. Este silencio durou cerca de dez minutos. O mar batia compassadamente na praia. A voz da onda e o latido de um cão ao longe eram os unicos sons que vinham quebrar a mudez daquella hora solemne para um desses dous homens que ia perder até o repouso da esperança.
Estevão foi o primeiro que falou:
—Ama a outro, não é? perguntou elle com a voz tremula.
—Ama, respondeu surdamente Luiz Alves.
Estevão ergueu-se e deu alguns passos na sala, sem dizer palavra, a morder a ponta do bigode, parando ás vezes, outras traduzindo com um gesto desordenado os sentimentos que lhe tumultuavam no coração. A dor devia ser grande, mas a manifestação já não era a mesma que o leitor lhe viu, dous annos antes, quando elle foi confiar ao amigo o primeiro desengano de Guiomar.
—Parece-me que eu adivinhava isto mesmo, disse elle, emfim, parando em frente de Luiz Alves. Este desejo que me accometteu de vir aqui, a este hora, sem certeza de encontrar-te, era mais um beneficio do meu destino. Devia esperal-o. Que vida tem sido a minha, Luiz! Agarrei-me, nem sei por que, á esperança de ser amado por ella, de a vencer pela piedade, ou pelo remorso, ou por qualquer outro motivo que fosse,—o motivo importava pouco... O essencial é que ella me pagasse em ternura e amor todas as dores que curti, as lagrimas todas que tenho devorado em silencio... E era so essa esperança que ainda me dava forças... que me fazia crer feliz, como pode sel-o um desgraçado, como podia sel-o eu, que nasci debaixo de ruim estrella.... Oh! se tu souberas... Não, não sabes, nem ella tambem, ninguem sabe nem saberá nunca tudo quanto tenho padecido, tudo quanto....
Interrompeu-se. Duas lagrimas, espremidas do fundo do coração, saltaram-lhe dos olhos e desceram-lhe rapidas a perder-se entre os cabellos raros e finos da barba. Elle sentiu que outras podiam vir, e foi sentar-se n'um sophá, meio voltado de costas para Luiz Alves. As outras vieram, porque o coração ainda as tinha para as dôres supremas; mas correram-lhe silenciosas, sem um soluço, sem uma queixa unica.
Luiz Alves lavantara-se e chegara á janella. Seu espirito, apezar de frio e quieto, parecia agora um pouco alvoroçado. Não era dor; e não sei se lhe podia chamar remorso. Mau-estar apenas, e commiseração. O coração era capaz de affeições; mas, como ficou dito no primeiro capitulo, elle sabia rege-las, modera-las e guia-las ao seu proprio interesse. Não era corrupto nem perverso; tambem não se póde dizer que fosse dedicado nem cavalheresco; era, ao cabo de tudo, um homem friamente ambicioso.
Estevão levantara-se outra vez e pegara no chapeu.
—Vem cá, disse Luiz Alves entrando e indo ter com elle; vejo que estás mais homem do que antes. Resta o que sejas completamente; varre da memoria e do coração tudo o que possa referir-se...
—Que remedio! interrompeu Estevão sorrindo amargamente; que remedio tenho eu se não esquece-la! Mas quando?
—Mais breve talvez do que suppões...
Luiz Alves não acabou; Estevão olhara para elle com um gesto de espanto e fora sentar-se outra vez.
—Mais breve do que supponho! exclamou elle. Tu não tens coração: não tens sequer observação nem memoria. Não vês, não sentes que esta paixão é o sangue do meu sangue, a vida da minha vida? Esquece-la! Era bom se eu a pudesse esquecer; mas a minha má sina até essa esperança me arranca, porque este padecer intimo, constante, ha de ir commigo até á morte...
Desta vez era Luiz Alves que passeava de um lado para outro. Em seu espirito despontava uma ideia, que elle examinava, a ver se a poria alli mesmo em execução. Era dizer-lhe tudo. Estevão viria a sabel-o mais tarde; melhor era que o soubesse logo e por elle. Ao mesmo tempo reflectia na exaltação dos sentimentos do rapaz; a dor certamente se lhe aggravaria, em sabendo que era elle o preferido de Guiomar. O coração, que perdoaria a um extranho, condemnaria ao amigo.
Estevão, assentado, com os olhos no tecto, parecia entregue ás suas reflexões, mas só parecia, por que elle não pensava, evocava antigas memorias, fazia surgir diante de seus olhos a figura gentil de Guiomar, sentia-lhe o imperio dos bellos olhos castanhos, ouvia-lhe a palavra doce e avelludada entornar-se-lhe no coração. Não evocava só, creava tambem, pintava com a imaginação a felicidade que lhe poderia dar a moça, se entre todos os homens o escolhera, se elles dous vinculassem os seus destinos. Elle via-a ao pé de si, cingia-lhe o braço em volta da cintura, enchia-lhe de beijos os cabellos, tudo isto em meio de uma paisagem unica na terra, porque a abundancia da natureza cresceria ao contacto daquelle sentimento puro, casto e eterno. Não falo eu, leitor; transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os vôos que elle abria por esse espaço fóra, unica ventura que lhe era permittida.
No meio dessas visões foi accordal-o Luiz Alves.
—Tens razão de sentir, disse este; mas não gastes o coração, que ha maiores sorpresas na vida... Em todo o caso, deixa-me dizer-te que nenhuma razão tens de censura...
—Censuro eu alguém?
—Ha no amor um germen de odio que póde vir a desenvolver-se depois. Talvez chegues a accusala de te não querer; nesse dia reflecte que os movimentos do coração não estão nas mãos da vontade. Ella não tem culpa se outro lhe despertou o amor.
—Ah! incumbiu-te da defesa!
Luiz Alves sorriu; elle contava com a recriminação.
—Não, não me incumbiu da defesa, disse elle; sou eu que a tomo por minhas mãos. Que defendo eu aqui se não a natureza, a razão, a logica dos sentimentos, dura e inflexivel como toda a outra logica? Ha no fundo das tuas palavras um sentimento de egoismo...
—O amor não é outra cousa, respondeu Estevão sorrindo por sua vez. Queres que inda em cima lhe agradeça este desespero? Queres que vá apertar a mão ao homem que a soube vencer?
Luiz Alves mordeu a ponta do labio e acercou-se da janella. Quando ia a voltar para dentro ouviu um rumor na janella ao pé, a primeira da casa da baroneza. Luiz Alves deu um passo mais. Não viu ninguem; viu apenas o resto de um vestido que fugia e um objecto que lhe caia aos pés. Inclinou-se a apanhal-o. Era uma grande folha de papel envolvendo, para lhe dar mais peso, outra folha pequena dobrada em quarto. Luiz Alves aproximou-se da luz, e leu rapidamente o que alli vinha escripto. Leu, metteu o papel na algibeira e encaminhou-se disfarçadamente para a janella. Ninguem; a casa da baroneza dormia.
Quando voltou para dentro, Estevão tinha-se levantado. Elle vira cair o papel, apanhal-o e lel-o Luiz Alves. Não entendeu nada do que se passara; mas seu olhar como que pedia uma explicação.
Luiz Alves foi direito ao fim.
—Estevão, disse elle, vás saber a verdade toda; não poderia occultar-te o que se ha passado, nem conviria talvez que tu a soubesses por boca de outro. Guiomar podia amar-te, eras digno della, e ella digna de ti; mas a natureza não os fez um para o outro. São duas almas excellentes que seriam infelizes unidas. Quem ha aqui que censurar? Mas se a natureza explica o sentimento della, egualmente explica o de um terceiro, que sou eu. Tu confiaste-me as dores e as esperanças de teu coração; era conhecer toda a minha amisade e a profunda estima que sempre te consagrei. Mas nem tu nem eu contavamos commigo; por que tambem eu tenho coração, e os prestigios da belleza tambem falam á minha alma. Não a pude ver a frio. A paixão obscureceu-me. Nesta minha felicidade de amar e ser amado, acredita que sou alguma cousa infeliz, por que ha lagrimas tuas, ha o teu padecer longo e cruel, que eu imagino e deploro. A confissão é franca; não te falo em arrependimento, porque são actos do coração e não da consciência, que essa é pura e honrada. E depois desta exposição fiel, cuido que lastimarás commigo o encontro em que o acaso ou a má sorte nos reuniu a todos tres; mas não me accusarás nem me recusarás a tua velha estima. Falo só da estima; a amisade, creio que não poderá ser a mesma. Mas presarás o meu caracter. Pela minha parte, nem uma nem outra cousa perece; sei o que vales. Não sei aonde nos lançará a onda do destino amanhã. Pela ultima vez, porém, espero que apertarás a mão do teu amigo.
Luiz Alves concluíra estendo-lhe a mão. Estevão olhou para elle, mas não disse uma só palavra, não fez um gesto unico: caminhou para a porta e saiu.
—Estevão! gritou Luiz Alves.
Mas só lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do tilbury que rolava surdamente na terra humida da praia.
Luiz Alves levantou seccamente os hombros; chegou-se á luz e releu o escripto.
Não era preciso reler o papel para entendel-o; mas olhos amantes deliciam-se com letras namoradas. O papel continha uma palavra unica:—Peça-me,—escripta no centro da folha, com uma lettra fina, elegante, feminina. Luiz Alves olhou algum tempo para o bilhete, primeiramente como namorado, depois como simples observador. A lettra não era tremula, mas parecia ter sido lançada ao papel em hora de commoção.
Desta observação passou Luiz Alves a uma reflexão muito natural. Aquelle bilhete, pouco conveniente em quaesquer outras circumstancias, estava justificado pela declaração que elle proprio fizera á moça alguns dias antes, quando lhe pediu que o conhecesse primeiro, e que no dia em que o julgasse digno de o tomar por esposo, elle a ouviria e acompanharia. Mas se isto era assim em relação ao bilhete, não o era em relação á hora. Que motivo obrigaria a moça a deitar-lhe da janella, á meia noite, aquelle papel decisivo, eloquente na mesma sobriedade com que o escrevêra?
Luiz Alves concluiu que havia alguma razão urgente, e portanto, que era preciso acudir á situação com os meios da situação. Quanto á razão em si, não a pôde descobrir. Occorreu-lhe o facto, aliás patente, da côrte que o sobrinho da baroneza fazia a Guiomar, mas ignorava as circumtancias que lhe eram relativas, e não pôde passar além.
Não direi que Luiz Alves gastasse a noite a cavar fundo no terreno das conjecturas vagas. Não era homem que perdesse tempo em cousas inuteis; e nada mais inútil naquella occasião do que tentar explicar o que nenhuma explicação podia ter para elle. O que resolveu foi obedecer ao recado da moça; pedi-la sem hesitação nem preambulo. Mas se o caso lhe não produziu insomnia, não deixou de lhe estender a vigilia, além da hora usual, como era de geito naquella occasião solemne, sobretudo, tratando-se de creatura que por aquelles tempos era a inveja e a cobiça de muitos olhos. Luiz Alves não era, como Estevão, um adoravel scismador, não se nutria de imaginações e devaneios, alimento que funde pouco ou nada, mas scismou algum tempo, embebeu-se uma hora na contemplação ideial da mulher que elle soubera escolher. O somno chegou, e o devaneio confundiu-se com o sonho.
Guiomar dormiria tão repousadamente como elle? Dormia; a noite, porém, fora-lhe muito mais agitada e amarga, como era natural depois da declaração de Jorge e das insinuações da madrinha.
A moça recolhera-se ao quarto, logo depois da declaração. As pessoas da casa nada puderam ler-lhe no rosto, salvo a pallidez repentina e o rubor que se lhe seguiu: mas, logo que ella se achou só, deu toda a expansão aos sentimentos que até alli pudera conter.
O primeiro delles era o despeito; Guiomar sentia-se humilhada com aquella declaração, assim feita, de emboscada e sobresalto, para arrancar-se-lhe um consentimento que o coração e a indole repelliam. Nenhuma consulta, nenhuma autorisação prévia; parecia-lhe que a tratavam como ente absolutamente passivo, sem vontade nem eleição propria, destinado a satisfazer caprichos alheios. As palavras da madrinha desmentiam esta supposição; mas, a noticia que ella tinha da resolução da baroneza, neste negocio, diminuia muito o valor de taes palavras. Se era uma campanha, como dissera Mrs. Oswald, queriam constrangel-a com apparencias de moderação, e o tempo que lhe deixavam para reflectir era-o realmente para considerar, sosinha comsigo, na necessidade de pagar os benefícios que recebêra.
Não a accusem de ter feito estas reflexões, logo que entrou no quarto, com os olhos scintillantes e os labios frios de colera. Eram naturaes; primeiramente porque suppunha que o seu casamento com Jorge estava deliberado e se realisaria, quaesquer que fossem as circumstancias; depois, porque a alma della era melindrosa; não esquecia os beneficios recebidos, mas quizera que lh'os não lembrassem por meio de uma violencia: fazel-o, era o mesmo que lançar-lh'os em rosto.
—Não! murmurava emfim a moça, forçar-me, reduzir-me á condição de simples serva, nunca!
Mas esta colera apaziguou-se, e o coração venceu o coração. Guiomar recordou a constante ternura da baroneza para com ella, a sollicitude com que lhe satisfazia os seus menores desejos, que eram alli ordens, e não combinava tamanho amor com a supposta violencia que lhe queria fazer. Não tardou em arrepender-se das palavras incoherentes que lhe haviam fugido, e dos sentimentos maus que attribuíra ao coração da baroneza. Cruzou as mãos no peito e ergueu o pensamento ao ceu, como a pedir-lhe perdão. Guiomar, em meio das seducções da vida, que tantas eram para ella e de todo lhe levavam os olhos, não perdera o sentimento religioso, nem esquecera o que lhe havia ensinado a fé ingenua e pura de sua mãe.
A cólera acabára, mas veiu depois a luta entre a gratidão e o amor,—entre o noivo que lhe propunha a affeição da madrinha e o que o seu proprio coração escolhera. Ella nem ousava tirar as esperanças á baroneza, nem immolar as suas proprias,—e uma de duas cousas era preciso que fizesse naquella solemne occasião. O que sentiu e pensou foi longo e cruel; mas se tal duello podia travar-se-lhe na alma, não era duvidoso o resultado. O resultado devia ser um. A vontade e a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos, mas hão de sempre vencer, porque ellas são as armas do forte, e a victoria é dos fortes. Guiomar tinha de decidir por um dos dous homens que lhe propunha o seu destino; elegeu o que lhe falava ao coração.
A resposta, porém, não podia a moça demoral-a nem esquival-a, não convinha, talvez, prolongar a luta e a duvida. Quando isto pensou, veiu-lhe ao espirito uma ideia decisiva, a de confessar tudo á madrinha. Hesitou, porém, entre fazel-o ella propria ou por boca de Luiz Alves, cujas palavras, apontadas acima trazia escriptas na memoria. Preferia este meio; mas não lhe bastava preferil-o, era mister realisal-o, e para isso só dous modos tinha, escrever-lhe ou falar-lhe. O segundo podia não ser tão prompto, e talvez falhasse occasião apropriada; adoptou o primeiro, e recuou logo. A carta seria mandada por um famulo, mas o espirito de Guiomar era a tal ponto sobre si que repelliu semelhante intervenção. A janella estava aberta; dalli viu luz na sala de Luiz Alves e a sombra do moço, que passeava de um lado para outro. Occorreu-lhe então a ideia que poz por obra, conforme ficou dito no capitulo anterior.
Tal é a historia daquella palavra escripta rapidamente n'uma folha de papel. Apesar da declaração de Luiz Alves e das circumstancias em que a moça se achou, o leitor facilmente comprehenderá que ella não a escreveu sem pelejar comsigo mesma, sem vacillar muito entre a repugnancia e a necessidade. Afinal foram vencidos os escropulos, que é tanta vez o seu destino delles, e força é dizer que não os vencem nunca de graça, porque elles falam, arrazoam, obstam o mais que podem, mas é vulgar passarem-lhes por cima. A moça entretanto, apenas lançara a carta, arrependeu-se; a dignidade teve remorsos; a consciência quasi a accusava de uma acção vil. Era tarde; a carta chegára a seu destino.
Na manhã seguinte, a baroneza acordou mais alegre que de costume. Cuidara ver em Guiomar, na noite anterior, alguma cousa que só lhe pareceu enleio natural da situação. Guiomar erguera-se tarde; a manhã estava chuvosa e a madrinha não deu o seu passeio. A moça foi beijar-lhe a mão e a face, como costumava, e receber della o osculo materno. O rosto parecia cançado mas um veu de affectada alegria disfarçava-lhe a expressão natural, á semelhança das posturas de toucador, de maneira que a baroneza, pouco ledora de physionomias, não discerniu naquella a verdade da impostura. Impostura, digo eu, devendo entender-se que é honesta e recta, porque a intenção da moça não era mais do que não amargurar a madrinha, e tirar-lhe motivo a qualquer afflicção antecipada.
—Dormiu bem a minha rainha de Inglaterra? perguntou Mrs. Oswald, pondo-lhe familiarmente as mãos nos hombros.
—A sua rainha de Inglaterra não tem coroa, respondeu Guiomar comum sorriso contrafeito.
Pela volta do meio dia, recebeu a baroneza uma carta de Luiz Alves. Abriu-a e leu-a. O advogado pedia-lhe a mão de Guiomar. Poucas linhas, cortezes, simplices, naturaes, feitas por quem parecia senhor da situação.
—Mrs. Oswald, disse a baroneza á sua dama de companhia que se achava na mesma sala, leia isto.
A ingleza obedeceu.
—Isto não quer dizer nada, observou ella depois de alguns instantes. É um pretendente mais; devemos crer, porém, que são muitos, e que se os outros não lhe escrevem cartas destas, é por que são menos affoutos. A Sra. baroneza pensa que os olhos de sua afilhada são innocentes? continuou a ingleza sorrindo. Eu cuido que devem estar carregados de crimes, e que ha mortos...
—Mas não vê, Mrs. Oswald, interrompeu a baroneza, que esse homem parece estar autorisado?
Mrs. Oswald calou-se como quem reflectia. Logo depois expoz uma serie de argumentos e considerações, se não graves em substancia, pelo menos nas roupas com que ella os vestia, umas roupas seriamente britannicas, como as não talharia melhor a melhor tesoura da camara dos communs. Toda ella dava ares de um argumento vivo e sem réplica. Havia em seus cabellos, entre louro e branco, toda a rigidez de um syllogismo; cada narina parecia uma ponta de um dilemma. A conclusão de tudo é que nada estava perdido, e que a felicidade de Jorge era cousa não só possivel, mas até provavel, uma vez que a baroneza mostrasse,—era o essencial,—certa resolução de animo muito util e até indispensavel naquella occasião. Mrs. Oswald offerecia-se para ir chamar a moça immediatamente.
—Pois vá, vá, disse a baroneza.
A ingleza saiu d'alli e foi ter com Guiomar. Quando a viu de longe compoz um sorriso, e Guiomar, vendo-a sorrir, sentiu como que um movimento interno de repulsa.
—Venho buscal-a, disse Mrs. Oswald, para uma cousa que a senhora está longe de imaginar.
Guiomar interrogou-a com olhos.
—Para casar!
—Casar! exclamou Guiomar sem comprehender a intenção da mensageira.
—Nada menos, respondeu esta. Admira-se, não? Tambem eu; e sua madrinha egualmente. Mas ha quem tenha o mau gosto de apaixonar-se por seus bellos olhos, e a affronta de a vir pedir, como se se podissem as estrellas do ceu...
Guiomar comprehendeu de que se tratava. Olhou desdenhosamente para a ingleza, e disse em tom secco e breve:
—Mas, conclua, Mrs. Oswald.
—A senhora baroneza manda chamal-a.
Guiomar dispoz-se a ir ter com a madrinha; Mrs. Oswald fel-a parar um instante, e com a mais meliflua voz que possuia na escala da garganta, disse:
—Toda a felicidade desta casa está em suas mãos.
Mrs. Oswald tinha falado de mais. A baroneza não a incumbira de dizer á afilhada a razão porque a mandava chamar. Aconteceu, porém, que aquella indisçrição não foi a unica. Mrs. Oswald, em vez de esquivar-se e deixar que entre Guiomar e a baroneza fosse tratado o assumpto que as ia reunir, cedeu á curiosidade, e acompanhou a moça.
A baroneza estava sentada, entre duas janellas, com a carta aberta nas mãos, tão attenta em relel-a, que não ouviu o rumor dos pés de Guiomar e de Mrs. Oswald.
—Madrinha chamou-me? perguntou Guiomar parando em frente della.
A baroneza ergueu a cabeça.
—Ah! É verdade; sim; chamei-te. Senta-te aqui.
Guiomar arrastou a cadeira que ficava mais proxima e sentou-se ao pé da baroneza. Esta, entretanto, havia dobrado lentamente a carta, e tinha os olhos no chão, como a procurar por onde começaria. Quando os levantou deu com a ingleza. Ia já a falar, mas estacou. A affeição que lhe tinha não impediu que achasse demasiada familiaridade a presença de Mrs. Oswald em semelhante occasião. Esperou alguns instantes; mas como a ingleza parecesse inteiramente distrahida:
—Mrs. Oswald, disse a baroneza, vá ver se ja deram de comer aos passarinhos.
A ingleza percebeu que estes passarinhos, naquelle caso, eram uma pura metaphora, e que a baroneza nada mais fazia do que pedir-lhe delicadamente que se fôsse embora. Todavia, não se deu por achada.
—Parece-me que não, disse ella; vou já saber disso.
—Olhe, disse a baroneza quando ella já ia a meio caminho; encoste-me essas portas, e dê ordem para que ninguem nos interrompa.
A ingleza obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ninguem lh'a pôde ver, e não se perdeu nada.
As duas ficaram sós.
—Senta-te aqui, Guiomar, disse a baroneza indicando um banquinho que lhe ficava aos pés.
Guiomar deixou a cadeira e foi sentar-se no banquinho, pousando amorosamente os braços nos joelhos da madrinha. Esta cingiu-lhe a cabeça com as mãos, e assim esteve longo tempo sem falar, mas eloquente naquella mudez, em que a palavra pertencia ao coração. Ambas estavam commovidas; e Guiomar, de envolta com um suspiro, murmurou este unico e doce nome:
—Mamãe!
Era a primeira vez que ella lhe dava este nome, e tão fundo lhe calou na alma á baroneza que a resposta foi cobril-a de beijos.
—Sim, tua mãe, disse a madrinha; a que te deu o ser não te amaria mais do que eu. Tens a alma e a ternura da filha que o ceu me levou, e se todas as mães que perdem filhos podessem substituil-os do mesmo modo, desapparecia do mundo a maior e mais cruel dor que ha nelle...
A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as mãos e beijar lh'as. Seguiu-se uma pausa, em que a commoção a pouco e pouco desappareceu, e a baroneza olhou para a carta de Luiz Alves, amarrotada pelo gesto de Guiomar.
—Guiomar, disse ella emfim, já reflectiste no pedido de hontem á noite?
A moça esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luiz Alves; a pergunta da baroneza desnorteou-a um pouco. Sua intelligencia, porém, era clara e sagaz; a resposta foi outra pergunta:
—Uma noite será bastante para decidir de todo o resto da vida? disse ella sorrindo.
—Tens razão, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer ver realizado um desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que é um excellente caracter?
—Excellente, respondeu a moça.
—Uma boa alma, continuou a baroneza, e um moço distincto. Parece gostar muito de ti, segundo disse hontem, não? É natural; só me admira que não te amem muitos mais.
A baroneza parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a levantar os olhos.
—Deves saber, continuou a baroneza,—que eu estimaria ver que este casamento se effectuasse; estou convencida de que te faria feliz, e a elle também, pelo menos tanto quanto é possivel julgar das cousas presentes... Que diz o teu coração?
E como Guiomar não respondesse logo:
—Ah! esquecia-me do que me disseste ha pouco. Uma noite não é bastante para decidir de todo o resto da vida. Bem; ouvir-me-has mais duas cousas. A primeira é que... Lê tu mesma esta carta.
A baroneza deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luiz Alves fazia de sua mão. Em quanto ella percorria com os olhos as poucas linhas escriptas, a madrinha parecia observa-la fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a impressão que o pedido lhe fazia, se espanto, se satisfação. Não houve espanto nem satisfação apparente; Guiomar leu a carta e entregou-a á madrinha.
—Leste? É a primeira cousa que eu queria dizer-te. O Dr. Luiz Alves pede-te em casamento; tens de escolher entre elle e Jorge. A segunda cousa é que dos dous pretendentes Jorge é o que meu coração prefere; mas não sou eu que me caso, és tu; escolhe com plena liberdade aquelle que te falar ao coração.
Guiomar erigiu o busto e olhou direitamente para a madrinha, com taes signaes de espanto no rosto, que esta não poude deixar de lhe perguntar:
—Que tens?
A moça não respondeu; quero dizer não lhe respondeu com os labios; travou-lhe da mão e apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ella como a reflectir. A expressão de seu rosto passara do espanto á satisfação e desta a uma cousa que parecia a um tempo indignação e asco.
—Oh! madrinha! exclamou Guiomar, porque se não entenderam logo os nossos corações? Não havia mister pôr de permeio um espirito importuno e desconsolador. Se eu advinhara essas palavras que acabou de dizer, não teria padecido metade do que me fazem padecer ha longos dias...
—Padecer?
—Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu coração que falou e o meu que ouviu; posso agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a affligir.
Não precisava dizer mais nada; a escolha que ella ia fazer estava já indicada pelo menos. Entendeu-o a baroneza, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviu-lhe o suspiro, e percebeu a tristeza subita; arrependeu-se de ter ido tão longe.
—Percebo, respondeu a baroneza, queres dizer que dos dous pretendentes escolhes o Dr. Luiz Alves?
A moça conservou-se calada; a madrinha olhava para ella com uma expressão de anciedade que a affligiu.
—Fala, repetiu a baroneza.
—Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns instantes.
A baroneza estremeceu.
—Falas serio? Não creio; não é esse o sentimento do teu coração. Vê-se que não é. Queres illudir-me e a ti também. Percebo que o não amas; não o amaste nunca. Mas amas ao outro, não é? Que tem isso? Não me dá o prazer que eu teria se... Que importa, se fores feliz? A tua felicidade está acima das minhas preferencias. Era um sonho meu; desejava-o com todas as forças; faria o que pudesse para alcançal-o; mas não se violenta o coração,—um coração, sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casarás com elle.
Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do coração aos labios e querer rompel-os, não foi ella quem a proferiu, foi a madrinha; e se leu attento o que precede verá que era isso mesmo o que ella desejava. Mas porque o nome de Jorge lhe roçou os lábios? A moça não queria illudir a baroneza, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu coração, para que a madrinha conferisse, por si mesma, a traducção com o original. Havia nisto um pouco de meio indirecto, de tactica, de affectação, estou quasi a dizer de hipocrisia, se não tomassem á má parte o vocabulo. Havia, mas isto mesmo lhes dirá que esta Guiomar, sem perder as excellencias de seu coração, era do barro commum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes dirá tambem que, apezar de seus verdes annos, ella comprehendia já que as apparencias de um sacrificio valem mais, muita vez, do que o proprio sacrificio.
A baroneza acabára de falar. A alegria do rosto de Guiomar confirmou a sua primeira impressão, e se a escolha era contraria ao que ella desejava, a satisfação da afilhada pagou-lhe tudo quanto ella ira perder. Era assim aquella alma de mãe; boa, dedicada e generosa.
—Oh! madrinha! obrigada! exclamou a moça. Não me fica odiando?
—Oh! exclamou a baroneza com um tom de reprehensão.
E puxou-a para si, e abraçou-a com amor. Guiomar correspondeu ao movimento, e as duas confundiram as suas alegrias intimas e affeições sinceras.
Mrs. Oswald viu-as dahi a pouco, risonhas e entendidas. Era facil concluir qual dos dous pretendentes vencera; Guiomar não receberia de tão boa cara o sobrinho da baroneza. Tudo estava acabado; e talvez que a sua propria pessoa padecêra naquelle lance ultimo. A baroneza pedira a Guiomar que lhe explicasse a que padecimentos alludíra, mas a moça preferiu não dizer nada, não só por não affligir a madrinha, como por não dar um aspecto de rivalidade á situação entre ella e Mrs. Oswald.
A escolha estava feita, o consentimento dado. A baroneza respondeu nessa mesma tarde ao pretendente feliz. Estevão teria manifestado ruidosamente toda a alegria que semelhante resposta lhe causára; sua alma apaixonada e exuberante contaria a Deus e aos homens aquella immensa fortuna; Luiz Alves encerrou o prazer, aliás grande, dentro de si; pensou na moça e no futuro alguns instantes, mas não falou delles a ninguém.
A baroneza escreveu nesse mesmo dia ao sobrinho, communicando-lhe a resposta de Guiomar. Os leitores não terão difficuldade de admittir que o coração de Jorge não sentiu o golpe profundamente, mas sentiu alguma cousa. Não foi nessa noite á casa da tia; não foi tembem na segunda; na terceira chegou a descer as escadas; na quarta embicou para Botafogo.
—Tudo está acabado, disse-lhe a tia verdadeiramente sentida.
—Acabado! suspirou Jorge.
—Agora, é preciso animo; espero que serás homem.
—Oh! serei homem! suspirou outra vez Jorge.
E dous suspiros, arrancados do peito de um homem tão grave, deviam ser por força dous suspiros gravissimos, como facilmente acredita o leitor.
Effectivamente a physionomia do moço não tinha abatimento nem afflicção; não a amarrotava o menor vestigio de noite mal dormida, menos ainda de lagrimas enxutas. Alegre não era, mas grave e austera, como elle a trazia sempre, a contrastar com o retezado do bigode.
A baroneza imaginou comtudo que a dor do sobrinho devia te-lo mortificado muito; apertou-lhe as mãos com ternura e disse-lhe ainda algumas palavras de animação.
Imagine-se o que seria o primeiro encontro de Jorge com Guiomar. A moça estava serena, talvez risonha e até compassiva. Se tivesse de casar com elle odiara-o de certo; agora já lhe perdoava o amor. Jorge pela sua parte não deixou de ficar um tanto abalado, em parte commoção, em parte constrangimento, sendo porém o constrangimento maior do que a commoção. Nos labios pairou-lhe um desses sorrisos em que o olhar penetrante do povo ou a sua imaginação pintoresca descobriu a côr amarella. Se outro fosse o aspecto, é provavel que ella lhe conservasse, ao menos, o respeito. Mas aquelle sorriso perdeu-o de todo no animo de Guiomar.
Na primeira occasião que se lhe offereceu, expandiu-se Jorge com Mrs. Oswald.
—Perdeu-se tudo... murmurou elle.
A ingleza não respondeu.
Jorge continuou ainda a falar, e a ingleza e ouvir, mas a ouvir só, e a querer divertil-o daquelle assumpto.
—Tudo se perdeu, disse emfim o sobrinho da baroneza, talvez por culpa sua.
—Minha? perguntou Mrs. Oswald.
—Sua.
—Mas...
Jorge hesitou um instante.
—Não mostrou calor sufficiente, disse elle emfim.
—Que quer? disse Mrs. Oswald. O coração não se pode dominar, nem ha meio de impor-lhe um sentimento. D. Guiomar é uma santa creatura, ama devéras ao seu rival; ha nada mais justo do que casa-los?
—De maneira que...
—De maneira que tudo era licito fazer na supposição de que ella não amava a outro, mas uma vez que ama...
Luiz Alves, na noite do dia em que recebeu a carta, foi á casa da baroneza, que o recebeu com o melhor de seus sorrisos. A felicidade de Guiomar fazia-a completamente feliz; nem iras, nem resentimentos, como annunciara Mrs. Oswald. Todo o castello de cartas caíra por terra, desde que a sinceridade da baroneza interveiu.
Marcado o casamento para dous mezes depois, todo o tempo de intervallo foi despendido pelos noivos naquelle deleitoso viver, que já não é o colloquio furtivo do simples namoro, nem é ainda a intimidade conjugal, mas um estado intermedio e consentido, em que os corações podem entornar-se livremente um no outro. Aquelles não tinham nada do amor extatico e romanesco de Estevão, mas amavam sinceramente, ella ainda mais do que elle, e tão feliz um como outro.
A gente que os conhecia commentou de todos os modos e feitios aquelle caso inesperado, e a mais de um roeu a inveja do favor com que o ceu tratára a Luiz Alves. A gentileza e a elegancia da moça não encontravam objecção no espirito de ninguem; todos as confessavam e applaudiam, porque até o silencio mortificado de algumas bellezas rivaes, se porventura as havia,—era tambem applauso e do melhor. Quanto ao caracter de Guiomar, divergiam muito as apreciações; e um dia, em que Luiz Alves lhe contava uns trechos de conversa ouvidos a furto, e de que era objecto a noiva, ella pareceu reflectir longo tempo, e emfim respondeu:
—Não admira que haja tanta opinião differente; é natural, porque nunca vulgarisei o meu espirito. Entretanto, a opinião dos outros importa-me pouco; eu quizera saber a sua.
—A minha é que é um anjo.
Guiomar fez um gesto gracioso de enfado, como quem não esperava aquelle comprimento velho e commum, aliás eternamente, novo,—porque não ha outro mais prompto e mais bello nas nossas linguas christãs. O noivo sorriu, mas nada lhe disse, e todavia podia dizer-lhe alguma cousa,—aquillo, pelo menos, que o leitor lhe ouviu n'um dos capitulos anteriores.
—Se não sabe o que sou,—continuou Guiomar,—eu mesmo o direi, para que se não case commigo assim de emboscada, e não lhe aconteça unir-se a um demonio, suppondo que é um anjo...
—Um demonio! exclamou Luiz Alves rindo.
—Nem mais nem menos, retrucou ella rindo tambem. Saiba pois que sou muito senhora da minha vontade, mas pouco amiga de a exprimir; quero que me adivinhem e obedeçam; sou tambem um pouco altiva, ás vezes caprichosa, e por cima de tudo isto tenho um coração exigente. Veja se é possível encontrar tanto defeito junto.
Luiz Alves respondeu que eram tudo qualidades excellentes, e esteve quasi a dizer que lhe faltava mencionar ainda outra, que era a fundamental de todas; preferiu alludir a ella depois do casamento.
O casamento effectuou-se, no dia marcado, com as solemnidades do estylo. A manhã daquelle dia trajava um manto de neblina cerrada, que o nosso inverno lhe poz aos hombros, como para resguardal-a do rigor benigno da temperatura, manto que ella sacudiu dalli a nada, afim de se mostrar qual era, uma deliciosa e fresca manhã fluminense. Não tardou que o sol batesse de chapa nas aguas tranquillas e azues, e nessas collinas onde o verde natural ia alternado com a alvura das habitações humanas. Vento nenhum; apenas uma aragem, branda e fresca, que parecia o ultimo respirar da noite já remota, e que só a trechos agitava as folhas do arvoredo.
A chacara naquelle dia era a mesma que nos outros, mas Guiomar achou-lhe um aspecto novo e melhor, uma como expansão divina que animava as cousas em redor della. Toda a alma feliz é pantheista; parece-lhe que Deus lhe sorri de dentro da flor que desabrocha, do fundo da agua que serpeia murmurando, e até de envolta com o cipó humilde e rustico, ou no seixo bronco e despresado do chão. Era assim a alma de Guiomar naquella manhã. Nunca as arvores, as flores, a gramma rasteira lhe pareceram mais vecejantes; o sentimento interno hauria aquella vida exterior, do mesmo modo que o pulmão bebia o puro ar matinal.
De envolta com essas sensações communs a toda a alma, havia ainda as que eram della,—della, que via alli o seu ultimo sol de moça solteira e contemplava por antecipação a aurora nova, o dia longo e feliz de suas férvidas ambições. Neste ponto despia a sua fantazia as azas de folha agreste, com que andara a pairar no meio daquella vegetação, para envergar outras de seda e brocado, e voar sabe Deus a que sitios de grandeza humana.
O acaso quiz que naquella manhã vestisse o mesmo roupão com que Estevão a vira do outro lado da cerca, e trouxesse no collo e nos pulsos o mesmo broche e os mesmos botões de saphira. Não tinha o livro; mas, em falta desta circumstancia, havia outra, que era a mesma daquella celebre manhã, havia uns olhos que do outro lado do cerca a espreitavam namorados. Não eram, porém, os mesmos; eram os do noiva, com quem ella foi encontrar o seus;—e o mais doloroso de tudo é que nem a cerca, nem os demais accessorios, nada lhe lembrou o outro homem que morria por ella. A felicidade é isto mesmo; raro lhe sobra memoria para as dores alheias.
Não menos alegre do que ella parecia a baroneza naquelle dia. De longe em longe surgia-lhe na memoria a ideia do sobrinho, mas já não havia tristeza de não ter effectuado o casamento, como desejára; tão leve foi o golpe em Jorge e tão indifferente andava elle, que a boa senhora comprehendeu que o amor, se existira, não era grande, e sobretudo não perdurou; a ideia de que isto mesmo podia acontecer-lhe ao cabo de seis semanas de casado, fel-a dar graças a Deus do nenhum exito de seus planos.
Mrs. Oswald egualmente se mostrava feliz,—talvez ainda mais, porque era-o apparatosamente, como se quizesse resgatar as passadas culpas. Guiomar entendia a intenção latente das manifestações ruidosas com que ella andava a felicital-a e bajula-la; mas o dia não era de rancores nem de resentimentos, e ella recebia sorrindo as cortezanices da ingleza.
O casamento fez-se, emfim. As lagrimas que a baroneza derramou, quando viu Guiomar ligada para sempre, foram as mais bellas joias que lhe podia dar. Nenhuma mãe as verteu mais sinceras; e, seja dito em honra de Guiomar, nenhuma filha as recebeu mais dentro do coração.
Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante dos grupos de curiosos, attrahidos pela festa de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado sobre uma lagea que acaso topára alli. Quem está affeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o começo, suppõe logo que esse homem podia ser Estevão. Era elle. Talvez o leitor, em lance identico, fosse refugiar-se em sítio tão remoto, que mal podesse acompanhal-o a lembrança do passado. A alma de Estevão sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro na ferida, uma cousa a que chamaremos—voluptuosidade da dor, em falta de melhor donominação. E foi para alli, contemplar com os indifferentes e ociosos aquella casa onde reinava o goso e a vida, e naquella hora que lhe afundava o passado e o futuro de que vivera. Não o retinha a constancia do stoico; pela face emmagrecida e pallida lhe corriam as lagrimas derradeiras, e o coração, colhendo as forças que lhe restavam, batia-lhe forte na arca do peito.
Defronte delle refulgia de todas as suas luzes a mansão afortunada; detraz batia a onda lenta e melancolica, e via-se o fundo da enseada, escuro e triste. Esta disposição do logar servia ao plano que elle concebera, e era nada menos do que matar-se alli mesmo, quando já não pudesse soffrer a dor, especie de vingança ultima que queria tomar dos que o faziam padecer tanto, complicando-lhes a felicidade com um remorso.
Mas este plano não podia realisar-se, pela razão de que era mais um devaneio, que se lhe dissipou como os outros. A frouxidão do animo negou-lhe essa ultima ambição. Os olhos podiam fitar a morte, como podiam encarar a fortuna; mas faltavam-lhe os meios de caminhar a ella. Esteve alli, pois, até o fim; e em vez de mergulhar na agua e no nada, como delineára, regressou tristemente para casa, tropego como um ebrio, deixando alli a sua mocidade toda, porque a que levava era uma cousa descolorida e sêcca, esteril e morta. Os annos passaram depois, e á medida que vinham, ia-se Estevão afundando no mar vasto e escuro da multidão anonyma. O nome, que não passara da lembrança dos amigos, ahi mesmo morreu, quando a fortuna o distanceou delles. Se elle ainda vegeta em algum recanto da capital, ou se acabou em alguma villa do interior, ignora-se.
O destino não devia mentir nem mentiu á ambição de Luiz Alves. Guiomar acertara; era aquelle o homem forte. Um mez depois de casados, como elles estivessem a conversar do que conversam os recem-casados, que é de si mesmos, e a relembrar a curta campanha do namoro, Guiomar confessou ao marido que naquella occasião lhe conhecera todo o poder da sua vontade.
--Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luiz Alves, que, assentado, a escutava.
—Resoluto e ambicioso, ampliou Luiz Alves sorrindo; você deve ter percebido que sou uma e outra cousa.
—A ambição não é defeito.
—Pelo contrario, é virtude; eu sinto que a tenho, e que hei de faze-la vingar. Não me fio só na mocidade e na força moral; fio-me tambem em você, que ha de ser para mim uma força nova.
—Oh! sim! exclamou Guiomar.
E com um modo gracioso continuou:
—Mas que me dá você em paga? um logar na camara? uma pasta de ministro?
—O lustre do meu nome, respondeu elle.
Guiomar, que estava de pé defronte delle, com as mãos prezas nas suas, deixou-se cair lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o osculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquella luva tivesse sido feita para aquella mão.
INDICE
Advertência de 1907
Advertência de 1874
I. | — | O fim da carta | |
II. | — | Um roupão | |
III. | — | Ao pé da cerca | |
IV. | — | Latet anguis | |
V. | — | Meninice | |
VI. | — | post-scriptum | |
VII. | — | Um rival | |
VIII. | — | Golpe | |
IX. | — | Conspiração | |
X. | — | A revelação | |
XI. | — | Luiz Alves | |
XII. | — | A viagem | |
XIII. | — | Explicações | |
XIV. | — | Ex-abrupto | |
XV. | — | Embargos de terceiro | |
XVI. | — | A confissão | |
XVII. | — | A carta | |
XVIII. | — | A escolha | |
XIX. | — | Conclusão |