Title: A Primavera
Author: Antonio Feliciano de Castilho
Release date: April 7, 2021 [eBook #65021]
Language: Portuguese
Credits: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.)
OBRAS
DE
Antonio Feliciano de Castilho
Constando-me ter havido quem reimprimisse em França, sem licença minha, dois volumes de minhas Obras, e sendo isto sobre iniquidade, manifesto roubo, declaro que perseguirei em juizo com acção de furto, em quanto a nossa Lei sobre imprensa não estabelecer outra propria para taes casos, a quem quer que, sem minha expressa licença, reimprimir esta ou outra qualquer Obra minha, ou impressas fóra as introduzir e vender neste reino.
A. F. de Castilho.
POR
Antonio Feliciano de Castilho,
Bacharel Formado em Direito, Socio da Academia das Sciencias de Lisboa, da Sociedade Juridica e da dos Amigos das Letras da mesma Cidade, da Sociedade Literaria Portuense, do Instituto Historico de Paris, da Academia Real das Sciencias e Bellas Letras de Roão.
Mais correcta, emendada, e copiosissimamente accrescentada.
Lisboa.
Na Typografia de A.I.S de Bulhões.
Rua do Soccorro de Cima N.º 39. 1.º andar.
1837.
Bem será para alguns motivo de maravilha, e de riso para muitos, a declaração por onde me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o estou principiando, e querendo Deos o levarei ao cabo, antes de conhecer a Obra para que vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles bem estirados, são hoje discorridos depois de impressa, e por tanto segundo meu costume aposentada e esquecida, a minha Primavera. N’estes quatorze annos, começados a contar aos vinte e dois da minha vida, não só se encerrou, e desvaneceo aquella melhor, mais florída e derramada parte d’ella, que tanto discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior, senão que ahi se desatou tão desfeito temporal de successos estranhos, de terrores e calamidades publicas; tantas certezas saírão vãs, realisarão-se tantos impossiveis; por tal arte se transtornou e renovou ora em bem ora em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e tenues reliquias de um passado, que ainda nós os moços alcançámos, subsistem já agora quer nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e emfim por tudo isto nos petreficámos, e envelhecemos em tanta maneira, que por mim digo, n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna desbaratado cabedal de seculos, e o Tempo[6] uma larga idade do mundo. Tantos e taes annos que da minha Obra me separão, não custará muito a crer ma tenhão tornado ao cabo tão alhea, como se d’ella só mui por longe me houvera susurrado uma leve noticia. Esta idea confusa, mas suave e suavissima como apagado retrato de antigos amores, como lua de estio contemplada em fundo de ermo, ou como vista de remotas velas ao coração do que alem-mar definha desterrado entre asperezas, esta idea toda mansa, toda rosada, toda primavera, mais temo perdê-la do que todas as minhas outras illusões, se por ventura já hoje alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez me não falte rasão, que ao reler estes Poemettos, nem ache n’elles as côres que os longes me figuravão, nem os gostos com que os hia não compondo, mas para assim dizer colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles do Mondego: tanta foi a metamorphose que de mim fizerão os livros, as couzas, e a idade! Como que tenho uma dolorosa certeza de que me acontecerá com isto o que ja me succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, as cazas onde a minha primeira infancia fôra brincada, amada e perdida: tudo achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo me dizia muita saudade e nenhum prazer; cada pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão outros tantos desenganos. Grande differença esta entre as nossas proprias antigalhas e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo misterio nos deleitão, são a primeira pagina[7] de um romanse para a imaginação; as nossas pela sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima de uma historia que assaz nos corria formosissima.
Apraz-me por tanto boiar ainda por algumas horas ao de cima d’estas fantasias, e antes de se me apagarem, se já he que isso tem de ser, alegrar com o seu reflexo estas paginas, que mal poderáõ ser muitas: sempre he cedo para lançar pelas janellas fóra os brinquedos de nossa puericia; e mal haja quem o faz sem que todo o coração se lhe aperte dentro no peito.
Por isto que digo, entenderáõ meus leitores o porque, exhausta logo no primeiro anno a primeira impressão da Primavera, tantos se tem devolvido sem que jamais me deliberasse a reimprimi-la. Pelos fins de todos os invernos e começos da melhor estação, me era ella de todos meus livreiros requerida; por mais de uma vez me senti abalado, mas a lembrança do meu desencantamento me era sempre esquiva, e repugnava-me, como uma certa simonia, o arriscar-me a por alguns cruzados malbaratar uma dilicia do sanctuario de meu animo. N’esta parte não me entenderáõ todos, mas os meus intimos confirmarião com juramento o que digo. Agora porem que até a minha pobre bibliotheca já se ahi vai rareando e desfazendo vendida, e me importa pôr entre mim e a terra do meu nascimento muita outra[8] terra de permeio, e Deos sabe para quanto tempo, obedeço aos desejos de muitos dos que ainda lem, ao conselho dos amigos, e á lei da necessidade. Reverei para a impressão, e perderei para mim este livro de saudades, livro que só fechado eu poderia ler como me convinha. E por quanto, depois de sua leitura talvez me desamparasse a vontade de aventurar algumas reflexões sobre este genero de poemas, fa-las-hei antes, e já aqui; deixando para o Prologo as que ácerca da Obra me forem por ella mesma suggeridas.
A Poesia campesina, ou segundo vulgarmente lhe dão nome, pastoril, com ser de todas a mais antiga, nunca em nenhuma parte se perdeo, dado em muitas decaisse não raro do seu credito e lustre; e segundo todas as mostras, deitará ainda até ao fim das idades literarias. Sempre moça como a terra sua mãi, mansa como os arroios seus irmãos, formosa como as flores que lhe guarnecem o chapeo de palha, livre e leve como os zefiros pela assomada dos montes, alegre, namorada e innocente como as aves na madrugada do anno, he de ver qual se vai sozinha e vivissima por entre tantas couzas mais fortes que morrem; com o seu cajado de pastora, segura entre tantos inimigos; girando todo o orbe, e por todo elle bem vinda; vingando e vencendo todos os seculos; dando a alguns d’elles de mais amoravel indole a sua propria fórma; e relevando-lhe, ainda os mais ferozes e guerreiros,[9] que lhes ella misture com a sua frauta do serão os himnos da guerra, lhes entreteça maliciosa violetas com os louros, e os campos que elles a ferro e fogo devastarão os repovoe ella de imaginadas verdura, flores e felicidade.
Hum curioso reparo poderáõ ter feito os que os fazem no ler poetas, e he, que apenas haverá algum dos chamados Epicos, para quem o campo e sua vivenda não fosse deleitoso assumpto. Compraz-se Homero de travar com as façanhas dos heroes toques e pinturas do viver natural e primitivo; Virgilio, que ja primeiro que se abalançasse ás armas e guerras tinha cantado os pastores, e doutrinado os lavradores, particularmente se recreia quando no meio das batalhas pode a uns e outros mandar algumas saudades; nos dois Orlandos e em todos os livros de cavallaria, vai igual mistura; o mesmo na Jerusalem, cujo autor havia escrito o Amintas: e d’entre os nossos, para por todos citar um, mas um que por todos valha, Camoẽs, não só afamou os Portuguezes sujeitadores de elementos e homens, mas todo se deleita em conversar os pegureiros e campos da nossa graciosa Lusitania, terra cujos filhos, se me não engano, são por indole dotados destes dois extremos, de brandura e de valor, de amor ao obscuro rusticar e ao glorioso correr de aventuras e perigos: por onde entendo que para muito mais do que são os fizera Deos, assim como fizera para muito mais do que he o grandioso torrãozinho que habitão.
Disse engenho subtil, e bons juizos crêrão, que o desejo, ancia e esperança de bem que todos temos innatamente, era claro argumento de uma vida futura, ja que nesta se nos não deparava contentamento: assim tambem dissera eu, que este natural e universal gosto á poesia amena he um indicio de que, se jamais o homem foi homem e ditoso, la nos campos o foi; que as plantas d’onde nos brotão sustento e recreação, exhalão secretamente amor para os seus vizinhos, e que pelos saudosos valles das idades patriarchaes, em quanto os bosques não caírão para em sua vez se levantarem as muralhas, as bençãos do ceo orvalhavão muito mais amiude. Alguma couza farão para aqui palavras do meu Florian, que porque d’elle são as verterei de muito boa mente—“Oh se nós podessemos ler em seu original texto os bons autores d’essa Allemanha, enlevar-nos-hia a tanta singeleza, a tanta doçura por onde de todas as outras se estremão suas obras! Em conhecer a natureza, e especialmente a natureza campezina, levão-nos elles uma infinita vantagem: amão-na mais deveras, retratão-na com tintas mais fieis. Todos nossos poemas pastoris nada tem que ver com as meras traducções de Gessner. Ninguem jamais fecha a Morte de Abel, os Idyllios ou Daphnis, sem ja se sentir mais soffrido, mais terno, mais mavioso, e porque tudo diga, mais virtuoso que antes da lição. Não respira senão moral pura e facil, e virtude[11] d’aquella que logo vem trazendo bemaventuranças. Fosse eu parocho de aldea, que sempre á estação da missa havia de ler e reler Gessner aos meus fregueses: e por certissimo tenho que todos meus aldeões se farião probos, todas minhas parochianas castas, e ninguem me havia de ao sermão adormecer.”—
Isto dizia de Gessner Florian, digno de o louvar pelo mui bem que o sabia comprehender e seguir. Isto não escrevia eu nem o dizia, mas amplamente o sentia n’esse bom tempo que ja la vai. Gessner não era para mim um nome, senão um individuo presente, um suavissimo contubernal; nem ja suas obras me erão livros, mas realidade, vida e mundo.—Sei que se não leva a bem o muito fallar um individuo de si proprio, mormente em publico, e mormente ainda quando esse individuo he tão mesquinho sujeito como eu: mas de que outra couza posso eu escrever? dos outros? não os conheço; erudito, não o sou; descubrimentos não os fiz, nem ja agora os farei: fólgo de espraiar conversa com os meus patricios, na falta de melhor assunto, fallo-lhes de mim e de meus gostos.—O mais selecto de todos elles era pois Gessner, no qual e na escolha de Poesias Allemãs por Huber, andou por alguns annos cifrada toda minha leitura, porque de quantos autores patrios meus conhecidos havião escrito e poetado de couzas rusticas, nenhum havia que ou por sobejidão de[12] engenho e argucia, ou por mal cabida escuridade, ou pelo trivial do pensamento e dicção, ou pelo desageitado do metro, ou pelo urbano artificio do que lhes parecia singeleza, ou emfim por um não sei que de mais ou de menos, lhe não lançasse lodo e arêa no jardim que bem ao meio da alma me havia sido por Gessner plantado.[1] Muito aproveitei em tão boa escola: como poeta não, que bem o sabem meus leitores; como homem sim, que disso tive mui cabal e experimentada certeza. Minhas nativas propensões beneficas se arraigarão; minha interior aspereza, que todos de si a tem, se amolleceo; sentia-me palpitar no peito um coração da idade de ouro; esvoaçava-me na cabeça uma alma inteira de Arcade; compunha todo o meu economico futuro de uma choupana, um pomarinho, e pombas mui brancas e cordeiros mui nedios; em summa, se Florian fosse meu parocho, propor-mehia[13] nas suas homilias como um santo da sua bemaventurança. Assim, e por esse tempo, foi a minha Primavera improvisada, e como ella as Flores e as Quatro Partes do Dia, Poemas que brevemente sairáõ estampados, e inteirão com o presente volume o fragil monumentinho dos annos, em que fui tal, qual desejava permanecer toda a vida.
Passe ainda adeante a sinceridade: com vergonha não só minha, mas do tempo em que vivo, confesso que d’essa ingenua bondade, pela qual eu mesmo a mim me comprazia, o de mais (como espirito que era subtilissimo) se evaporou; parte se azedou no vaso com as más sementes de odio que de fóra lhe lançavão; o resto se recozeo e estragou ao fogo das civis dissensões: procuro-me e não me acho, ou se me acho não me amo. Ainda a minha antiga choupana, os cordeiros nedios e as pombas alvissimas se me fazem lembrados por uma noite de estio, mas riem menos, e não me acenão senão fracamente. Tanto vi e vejo de alhêas maldades, tanto tem procurado os entes mais abjetos e vis amargurar-me, que nem quasi na virtude acredito, nem na possibilidade de ser feliz: e este estado, se não he de todos o mais antipoetico, se na escola romantica pode até lograr os foros do bello ideal e ultimo sublime, pelo menos he o mais avêsso á filosofia e mansidão Gessnerica. Oh quando poderáõ os dois monstros, em cujas garras inexpertamente caí, quando poderáõ Politica e[14] Romantismo dar-me um longe, uma sombra dos interiores commodos que me lá ficarão com a poesia natural e singela? E igual pergunta dolorosa poderia fazer o mundo, a ter um coração e uma voz. Ja quanto á Politica me calo, que esse voto fiz eu; mas quando será que o Romantismo exclusivo e tiranno qual se presenta, se gabe de perfumar entendimentos para o amor, de reclinar o amor como filho nos braços da virtude, e de transformar o templo da virtude em caza do contentamento? Quando será que outro homem, da laia e costumes dos nossos velhos, possa dizer na sinceridade da sua alma:—“Se eu fosse parocho, leria Byron ou Schiller á estação da missa, para tornar castas e probas as minhas ovelhas”? Mas todas estas reflexões de nado valem: a torrente vai funda e rapida, ninguem, e muito menos eu lhe poria dique. E até (que tão pouco dou pela minha filosofia) talvez que tudo o que por ahi vai, que certamente: parece bem triste e bem máo, seja bem necessario ao concerto e melhoria do mundo. Não digo eu o que as couzas são, sim o que se me ellas figurão: não as sentencêo sem appellação; na minha primeira instancia as julgo, e o que moralmente me parecem isso assento com afoita liberdade. Perde ou ganha a humana especie em cada vez mais se apartar por obra, por palavra, e por pensamento, do rural e simples theor de seu primitivo ser? por minha experiencia affirmaria que perde, mas os sabios que o decidão, e a mim seja-me licito pôr duvidas.
Não me intrometterei com o que vai por outros reinos; esse uso de qualquer contrabandista literario de nunca chegar ás couzas patrias sem primeiro haver tocado nas de França e Inglaterra, não me quadra a mim, que ao menos tenho a sufficiente consciencia e pejo para não citar o que mal conheço: em Portugal me limito. Somos nós mais felizes ou melhores que nossos avós? Certo que não; e tanto, que se esses bons e honrados velhos podessem ter adivinhado quaes seriamos nós, nós herdeiros de seus nomes, escarnecedores de seus exemplos, e deshonradores de seus castos e amigaveis costumes; nós que ao seu velho fallar e escrever de deveres, substituimos o nosso novo fallar e escrever de direitos, e á moda de ter palavra, a moda de ter palavras, ter-se-hião horrorisado como de abominação, do pensamento de gerar. Acordai do sepulchro um d’esses anciãos, que depois de pagar inteira a divida a pai e mãi, viveo todo para a mulher, matou-se pelos filhos, guardou a palavra como religião, a religião como necessidade, e cada paschoa de flores, bem com Deos, contentissimo comsigo, se ufanava de sentar ao melhor lugar de sua mesa o parocho, e todos os seus vizinhos de envolta com seus filhos. Mostrai-lhe todos os nossos progressos, que em sós algumas vantagens materiaes e corporaes se resumem: alardeai-lhe o que esperamos, mas não lhe escondaes o que destruimos: lede-lhe a primeira pagina do primeiro Jornal que topardes d’esse mesmo dia, raza de impudencia,[16] empapada com fel, estillando lagrimas, revendo sangue, suando calumnias e desavergonhamentos, respirando e soprando odios de nação contra nação, de cidade contra cidade, de familia contra familia, de irmão contra irmão, de povos contra reis, de reis contra povos, e dos homens contra a Providencia. Supponde que Deos lhe offerece renovação da vida, e offerecei-lhe vós todas as blazonadissimas excellencias do nosso viver e do nosso esperar: repellir-vos-ha com aquelle braço que antigamente defendia e não apunhalava a Patria; tapará com o resto da mortalha o rosto que só depois de cadaver córa pela primeira vez; e cerrando rijo os olhos contra a luz, e deixando-se recair pezadamente, de vós não pedirá mais do que um favor, o de lhe restituirdes a sua lagea.[2]
Emquanto assim vai o presente avesso do preterito pelo que toca á moral e á felicidade, fallo da verdadeira felicidade, d’aquella em que a moral entra como elemento, e não da fizica e corporal, da de fazenda e honras, como hoje se entende; vejamos a que ponto subirão com o movimento e progresso as nossas letras. Entrai as typografias, e dizei-me porque assim amotinão com o seu noturno[17] e diurno lavor a vizinhança? perguntei-lhes porque assim gemem e se afadigão? em quaes livros nos estão preparando mananciaes de doutrina, ou de costumes, ou de suave, honesto e ja tão precizo desenfadamento? Dissereis que nossos laboriosos maiores as deixarão esfalfadas com os copiosos frutos de suas lucubrações: o mais com que se atrevem, são ridiculos farrapos de bestiaes torpezas. Seguem-se os mezes aos mezes e os annos aos annos, sem outras literarias novidades. Terra he que ja deo optimas searas e vinhas abundosas; agora descultivada e baldia, e á lei da natureza bruta, desata toda sua força e substancia em cardos, em ortigas, em venenos e serpentes. Quantos livros, e quantos bons livros, que nós outros nem conhecemos nem ja valemos a sopesar, saíão dos nossos prelos, nos tempos em que a probidade, e a mansidão, e a concordia tinhão seu preço. Um só reinado, e ainda bem chegado a nós, e de rei que por bom se não cita, com tanta copia de literarios monumentos nos deixou avergadas as bibliothecas, que dez centos de annos como o presente não produziráõ a decima parte. São os nossos typógrafos de hoje, se com aquelles os comparamos, como os nossos cutileiros de punhaes, comparados com os bons armeiros que forjavão espadas como as de nossos heroes de boa data, que só com sua pezada presença nos maravilhão, a nós, que por nossa verbosa sabedoria, acabaremos de desbaratar tantas e tão longes terras, como nos ellas ganharão esgremindo-se.
Tal vai pois o estado literario como o social; e nem menos podia ser, porque estas duas couzas, como alma e corpo, se pertencem inseparaveis: Mão de Deos que ao corpo politico quizesse restituir a saude, por ahi lhe fortaleceria não menos o espirito; Sopro de Deos que ao espirito restituisse a luz, por ahi lhe ordenaria e vigoraria todos os movimentos. Por tanto, conhecendo e confessando que nem facil he nem possivel torcer a carreira desenfreada que o nosso mundo leva não sei para onde, todavia para mim tenho, se na cabeça está isto, se no coração, não o direi, mas tenho para mim, que mui bem fará, e muito amado será dos rectos juizos quem nos fizer volver olhos de saudade para a vida que ja se viveo, o que ainda um ou outro, aqui ou acolá poderá inteira, ou quando mais não fôr, em partes, em amostras reviver. E pois será isto uma illusão minha? Se o geral da gente vai por entre dores para uma couza que se chama perfeição, não pode um individuo em particular deixar-se ficar atraz, despir essas suadas armas de milicia conquistadora, e recolher-se, honrado desertor, lá onde viva seguro com Deos, comsigo, com poucos vizinhos, logrando-se da natureza, e desfrutando em variados prazeres todos as estações; prezentes que Deos enviou para todos os homens, mas de que os das cidades só pela folhinha tem noticia! Por quão feliz se não devêra dar o escritor desambicioso, se aos puros sons de sua lira afinada nos bosques, lograsse, não como Anfião fundar[19] e povoar cidades, não como Orfeo arrancar as feras dos arvoredos e domestica-las; mas arrancar d’entre feras humanas homens inda não corrutos, e assenta-los, para sempre feriados do reboliço dos grandes povos, no divino remanso de uma campestre solidão! De mui leves cousas e tenuissimos momentos pende ás vezes o destino de toda uma vida: assim como de um encontro fortuito resulta uma affeição amorosa, que logo produz um consorcio e um sisthema completo de existir, assim de uma palavra em uma conversa casual, da substancia de uma pagina lida em certa hora, do aspéto de um painel, podem nascer, e mil vezes terão nascido, determinações, vocação, e fados de individuos. E para vir a um exemplo recente e meu, aquelle bom livro das Prisões de Silvio Péllico (todo imbuido, releve-se-me a expressão, de uma christã e filosofica filosofia, que a maior parte das assim chamadas nem uma nem outra couza tem) aquelle bom livro, ja principiou e talvez acabará de me curar o animo: não lhe restituirá a muita harmonia com que o de Gessner mo temperára, porque a mocidade das illusões passa e não volta; mas deixar-mo-ha provavelmente assaz alto e forte, que ainda no meio das maiores tempestades repouze e abençoe tudo. E não he isto maravilha, que a alguns outros que o lerão ja eu ouvi iguaes, senão maiores encarecimentos de sua medicinal virtude.[3]
Este desvio, por onde me agora deixava ir, levar-me-hia longe, que assim he accomodado a meus gostos; mas porque he desvio o largo, e retomo o caminho que hia seguindo. A poesia amavel, a que nas mãos e seio nos vinha offerecendo ramalhetes, e frutos no regaço, e amores nos olhos, e nas fallas consolações, afastou-se d’entre nós, onde ainda a alguns poderia aproveitar, e assim como outras muitas boas artes e prendas, foi reclinar-se á espera na beira da torrente dos dias, d’onde não volverá, sem que primeiro se restaurem muitas optimas couzas e todas suas, que o mundo velho tinha produzido. Mas d’onde viráõ estas couzas? Do mesmo mundo velho? mal o creio, que o novo quebrou a ponte que os juntava, e rio de ufania vendo abismar-se fábrica que assim parecia eterna. Renasceráõ por tanto da propria natureza da terra, da indole da alma humana que ja uma vez as produzio, ou do sopro do ceo: renasceráõ tarde; renasceráõ quando nós ja não formos; renasceráõ, talvez diversas, mas renasceráõ. E quaes são estas couzas do mundo passado, cuja perda tanto dóe ás Musas e á Virtude? são as formosuras e magnificencias da religião, o respeito aos finados e a seus sepulchros, ás lições da experiencia, ás obras dos antigos homens, a veneração ás cãs, o quasi culto ás mulheres,[21] a benevolencia e sociabilidade, o aferro aos usos e modas patrias, o amor do estudo, que nós dissipámos com as leituras efemeras, e o amor do torrão natal, nobre fecundissimo sentimento, mas impossivel onde se vive sem muita brandura e sem firme certeza de permanecer. Tudo isto se perdeo para nós, e não sei que bens haja em seu lugar posto a Filosofia. A que verdadeiramente o he, ainda que esse nome se não dê, a que realmente faz homens livres e felizes, não he Furia que destrua tão venerandos objetos; ama-os, defende-os, reforma-os quando o tempo os viciou, concerta-os que se amparem mutuamente, pede-lhes frutos, e com seus frutos se fortalece.
Quando de espaço me dou a escavar estas verdades, nada me assombra a nossa crassa e desdenhosa ignorancia, mãi ou filha, e certamente socia da nossa immoralidade. Esta mal agoirada ignorancia e esta immoralidade cresceráõ; ja nossos filhos apenas saberáõ ler, e se o turbilhão que a roda leva não houver quem o suspenda, brutos e ferozes sairáõ os netos. Applicai todos os vossos sentidos ao coração da nossa Cidade: se a vida he movimento, ahi trabalha vida; se porem a vida ha-de ter um perfume, uma harmonia, ahi não ha senão morte, e aquelle movimento he de cadaver que fermenta para se dissolver. Poesia, verdadeira poesia ja n’este Reino, onde em todos os tempos pullullava espontanea, posto que raro amadurecesse, ja por consequencia acabou: quanto desde hoje se poetar nas enamoradas[22] doçuras da vida aldeã, mais não será que recordações sem germen de futuro. D’entre a memoria e o espirito, não da experimental convicção do poeta, nasceráõ esses versos, como lagrimas de balsamo, que não de dentro da arvore, mas d’entre a casca e o libro vem raras gotejando, para cairem e se perderem no terreno bravio da solidão. Oh Liberdade, Liberdade! quão mal te comprehendem os que te separão do bello! quão mal te servem os que te malquistão com os homens de bem! como involuntariamente te levão á morte os que só te pedem como summa felicidade, o direito de nada respeitar, estradas de ferro, navios de vapor, um himno, e punhaes ou carceres contra quem quer que não beber ás suas mesas! Pobre Liberdade, não he este ainda o teu dia: não és tu idolo de selvagens, mas Divindade benefica de homens prudentes.
Eis-me outra vez com a Politica, e o meu voto quebrado. Ja vejo que a minha cura não está tão adeantada como o eu suppunha: não ha remedio, amanhã releremos Silvio Péllico, e por hoje voltemo-nos com toda a diligencia a rematar, como quer que seja, este escrito.
Sáe pois o presente livro por todos os modos extemporaneo, ja porque a estação nem he d’elles nem para elles, ja porque lhe fallecêrão dias para amadurecer e sasoar, e ja porque dos que lhe tomarem o sabor, uns o taxaráõ de temporão, outros de serodio, sendo[23] que uma e outra couza he elle, e demais a mais pêco, segundo a planta de que se creou. Uma só lembrança me consola, e he, que assim mesmo ja deveo ser peor, quando da primeira vez appareceo, e mais lhe não faltárão gostadores; tanto he assim que nunca faltaráõ simpathias ao que de sua origem he bom, ainda quando desbotado e estragado pela impericia de quem o tratou. Melhor he hoje do que então era; não porque o eu tornasse á forja e á bigorna, ou o recorresse e lustrasse com esmerada lima, senão porque havendo hoje menos dados á lição dos livros, e em especial d’este genero, tambem ja não ha criticos, senão he para as acções da vida publica e domestica; por onde as obras escritas podem passar a seu salvo, sem que suas pobrezas e vergonhas sejão vistas e apupadas na praça. Desconsolada consolação he esta de se poder desafinar cantando, por se cantar entre surdos: mas esse mal, se o he, só a mim me toca, e para o descontar me sobra a lembrança, de que alguns caladamente me agradeceráõ o diverti-los do publico espetaculo. Para estes em boa hora sáia e sai o livrinho fallador de campos e amores: suave appareça como a violeta sozinha encontrada no passeio de inverno: suave e não estranhado como o raio de sol por cima de campo de batalha apoz uma noite de geada; nada aproveita elle aos cadaveres, mas alegra e consola como esperança aos que mal feridos jazião, e a quem o regelado lentor das trevas coalhava o sangue, desesperava[24] as dores, tranzia os ossos, e os descoroçoava da providencia.
Ramalhete he de flores silvestres que a meus amigos deixo na hora do apartamento, que ao menos em quanto durar lhes recordará que os amei. Terra de Portugal e outr’ora de Portuguezes, terra namorada do mais formoso ceo, terra sombreada de larangeiras e murtas, acobertada de verde e bordada alcatifa, amorosamente abraçada do Oceano, talhada e regada de tão espelhados rios, terra de tanta poesia e de tanto amor, eu te deixo! E para que ja nunca onde quer que a fortuna me detenha, me cuides de ti esquecido, terra do meu Portugal lembre-te que o meu ultimo pensamento ao sair das tuas praias foi o da tua Primavera e o da minha Mocidade.
Lisboa: 1 de Dezembro 1836.
Não erão vãos os meus receios; acabo de visitar a Primavera, não ainda para lhe emendar as miudezas, mas para a conhecer por alto, e podê-la sentenciar no todo. Reconheci-a, mas demudada, mui outra da que a tinha deixado na graça, geito e amores; trocarão-ma os annos, trocando-me. Desama-la ainda não, mas ama-la tambem ja não! Se lhe não quero mal, he só porque lhe quiz muito bem, e foi minha; mas como ja me risquei de seu namorado, não hei de chamar-lhe formosa, que o não he, nem dissimular que sejão defeitos, muitos que em bom tempo ja talvez lhe tive por perfeições e primores. Não ha remedio, prometti-me seu juiz, passará por onde houvéra de passar, se de inimigo fôra. Se ella perder do seu preço, e eu do meu, consolemo-nos ambos d’esse pouco damno; ella por não receber de mim injustiça, eu com ter obedecido á consciencia, que tambem em letras a ha. Antes porem que entremos a contas e lhe formemos o summario, releva anticipar uma dúvida não leve, que se me pode pôr, e desfazer um reparo, que deixado a si pareceria de fôrça.
He o reparo e a dúvida; que pois he o Livro inamavel por defeitos a seu proprio autor, não havia porque de novo o semear em público, antes importava pôr todos os meios para que o nunca mais vissem, nem d’elle se fizesse menção; que o contrario he faltar a toda a reverencia, que aos leitores se deve, dando-os por broncos para conhecer o máo; ou á caridade natural comsigo proprio, expondo-se sem fôrça de obrigação a menoscabos, se não injurias.
Não quero responder que em dar o que ha quando ou emquanto não ha melhor, ja o que o faz se ha de haver por desempenhado; nem que, para reo que sem tratos e sôlto confessa os delitos, sempre por bom direito se usou de misericordia; melhores me parecem do que estes, os meus fundamentos: e ei-los aqui.
Primeiro: que andando a Primavera ja impressa e corrente por muitas mãos, e não podendo ser recolhê-la eu de novo, e desluzi-la da memoria de muitos que a bem agazalharão, melhor arbitrio he, pois que tem de se conservar no mundo, renascer n’elle expurgada de muitos vicios da primeira impressão, e se a paciencia me acudir com o preciso valor, retocada no que pertence ao literario.
Segundo: que havendo talvez ainda, e podendo vir a haver, moços que se dem a poetar, acontecerá que entre os mais livros portuguezes[27] que ás mãos lhes cheguem, vão de envolta os meus (assim mo promette sua boa fortuna, que os livros a tem como os homens, e ás vezes os mais ruins muito melhor do que os bons): mãos de principiantes não sabem escolher, os amores, amenidades e branduras da Primavera cáem muito a gente moça, ir-se-hião traz o gosto, e beberião muitos defeitos; do que seria minha a culpa, se eu não procurasse agora arrancar boa parte d’elles, e contra os demais os não precavesse com honestas advertencias.
Terceiro, finalmente: que eu pretendo antes ser bem conhecido pelo que fui, sou, e hei de ser, do que só pelo que sou; porque nascendo-nos o presente do passado, ainda que diverso, e produzindo-nos ainda que tambem diverso, o futuro, o sermos só conhecidos pelo que somos não he sermos conhecidos. He pensamento que merece ser entendido. Alexandre Dumas o explicará. Sem pedir venia traduzo o passo, com quanto seja longo, certo de que o não parecerá.
—“A maior desgraça da crítica, ainda quando se não sae com ignorancias e velhacarias (diz elle no prologo da Catharina Howard) consiste em sentenciar uma Obra nova desmembrada do feixe literario cuja he parte: ahi está porque nunca se póde avaliar um livro com exacção antes da morte do autor; e mais ainda he preciso que Deos lhe haja concedido[28] desde o primeiro até o ultimo, os dias, que para acabar seu edificio se lhe fazião mister; por quanto, se antes de tempo morreo, o monumento que traçára tem de ficar incompleto para sempre como a Sé de Colonia, e os homens mal justos para com elle ainda para alem da sepultura, lançar-lhe-hão á conta de humana fraqueza o ter-lhe ficado certo vão por tapar, quando a morte de invejosa e apressada lhe veio atar as mãos, e ja talvez para se arrematar mais não faltava que uma só pedra: ora por aquelle vão, he que a crítica se mette e entra, quer o autor esteja vivo, quer defunto.”
“De trez idades se compoem a vida de quem nasceo fadado a dar de si produções, e em trez periodos se desparte: como couza alta e nobre que he, tem primeiramente sua base por onde se começa; depois um cume onde se chega; ultimamente la por dentro um motivo, tenção e fim particular para onde se torna a descer. Pelo que, he necessario que o homem tenha vivido todas estas trez idades e que o seu talento haja cursado estes trez periodos, para se poder avaliar aquelle talento no seu todo, aquelle homem na sua produção.”
“Primeira idade, quando a fantasia prevalece á rasão. A esta idade de viço pertencem as horas que tão despedidas voão dos vinte e cinco aos trinta e cinco. He o periodo para dever inventar Hamlet quem se chamar Shakespeare,[29] o Cid quem tiver nome de Corneille, os Salteadores quem for Schiller.”
“Segunda idade, em que a fantasia e a rasão se embalanção, ajudando-se mutuamente, e vindo a formar das suas duas uma só força neutra. A esta idade vigorosa pertencem os dias que vão correndo dos trinta e cinco aos quarenta e cinco. He o periodo em que os mesmos trez sujeitos produzem O Rei Lear, Cinna, Wallenstein.”
“Terceira idade, em que a rasão prevalece á imaginação. A esta idade de reflexão pertencem os annos que descem dos quarenta e cinco aos cincoenta e cinco. He o periodo em que elles compoem Ricardo III, Polyeuctes, Guilherme Tell.”
“Ora pergunto, ficarião completos Schiller sem Wallenstein e Guilherme Tell, Corneille sem Cinna e Polyeuctes, e Shakespeare sem O Rei Lear e Ricardo III?”
“Parece-me portanto que nunca devêra a crítica requerer de um poeta, senão as obras de sua idade; e bem sabemos nós como o faz ella sempre ao revez, sendo as obras que mais se empenha em querer extorquir de um engenho as dos annos que ainda não vingou, ou as dos outros annos que ja deixou transpostos. Pelo que toca a uma obra que vem condizendo com o periodo d’onde dimana, nunca a[30] impertinencia dos juizes a dá por cabal: são uns Aristarchos sem paciencia, que acodem logo com a crítica a cada pedra de per si, ao passo que ainda se está guindando, sem advertirem que aquella pedra só assente e junta com as outras pedras he que ha de dar prova da traça e desenho geral do architéto: são como uns pomareiros esquipaticos, que não tomando em conta o inalteravel fio das quadras do anno, pedem fruta madura á primavera, frutos verdes ao verão, e ao outono flores.”—
Bem haja Alexandre Dumas, que tão artificiosa e claramente me decifrou, e me ajudou a pôr em limpo uma verdade, cujos ares muito ha que eu tomava de longe; uma verdade que eu andava adivinhando como por entre nevoas.
Ora pois, dos trez apontados motivos de determinação, foi este ultimo o de maior momento: quiz dar completo o meu retrato, menos o intellectual do que o moral, a quem desejasse conhecer-me: não podia omittir como feição o que eu havia sido, e ainda antes d’aquella primeira idade, que dos vinte e cinco decorre até os trinta e cinco annos. A Primavera, escrita aos vinte e dois, tinha por tanto de entrar encorporada na collecção das minhas Obras. Se a refundisse pelo meu gôsto de hoje em dia, não sei se ficára melhor, mas sei que ficára outra, e por conseguinte falsa como feição. Tudo quanto era seu geito, seu pensar,[31] seu ser proprio passará intato; e n’isso, se se hão de perdoar gabos a quem sem disfarces nem dó se disciplina deante do Povo por peccados poeticos, n’isso digo, alguma couza ha de bom, sem o que não tivera agradado a tanta gente. O por onde a lima pode e deve correr afoita e sem dó, são—as numerosas faltas de boa falla portugueza—desleixo de frase—e estiramento de períodos.
Quero-me explicar, não para os Mestres, sim para os novéis no officio de escrever, com os quaes particularmente converso nos meus prologos; e porque não havia eu repartir do fruto de minha tanta ou quanta experiencia com quem não a póde ainda ter, nem suppri-la com seguir cursos de Bellas-letras que entre nós se não ensinão? Um dos maiores delitos literarios, e em que mais usualmente cáem os moços, he o desprezo de lingua e corréção; delito que per si basta para descontar muitos meritos intrinsecos de escritura. Sem bem saber sua lingua, diz Boileau, o autor mais divino nunca passará, por muito que faça, de máo escritor. He ella a ferramenta para este genero de lavor da alma; e quem poem as mãos na obra sem primeiro ajuntar, conhecer, escolher e apontar bem os instrumentos de que se ha de valer, nem se pode mostrar bom artífice, nem merecer desculpa de o não ser.
Toda a Musa em creança padece dispepsia de versos, diabetes disséra quem se menos prezára[32] de cortez com Divindades. Na primeira idade he costume, e por muitas rasões, das quaes não será a mais fraca a aversão ao trabalho, presumir-se antes de facilidade e presteza no escrever, do que de corréção e primor: coração e fantasia tudo anda ligeiro, querem que a penna lhes obedeça, como se ella podesse; forção-na, e dahi resulta que pensamento ou afféto que lá dentro era soberbo, apparece cá fora frio, mesquinho, desengraçado; e maravilha-se o escrevedor quando a mesma couza que valentemente o agitava, em quanto em si a revolvia, depois de passada para o papel adormenta os ouvintes, e a elle proprio o desconsola. De todos os defeitos de autor, talvez se podesse affirmar que só este he verdadeiro, real e absoluto defeito; porque, se os pensamentos e affetos de cada idade são della, e dessoão e descontentão a todas as outras, tem por si o serem d’ella, e como taes se defendem por conterem verdade e pintarem o homem; não assim a lingua, que em todas as idades he ou deve ser uma, não provando outra couza o faltar-se a ella, senão que se quer fallar antes de se ter aprendido. Sou experimentado, e por bem do proximo direi com vergonha minha, que no que me ficou escrito d’essa quasi infancia poetica, as couzas nem me espantão nem me offendem, ainda quando as desapprovo, mas a linguagem e o dizer me fazem de continuo caír as faces; e por isso que he escolho em que naufraguei tão desastradamente, o assignalo com tanta miudeza e teima;[33] nem cançarei de o assignalar e accender-lhe em cima boa luz de farol, em quanto vir, como vejo, outros, que nem por idade se absolvem, esbarrar n’elle e perder-se a todas as horas. Mancebos, (se os ha ahi que se dem ás letras) vós que encetaes a mui ardua e perigosa vereda que pelas letras conduz á fama, seja qual fôr o genero de poesia para onde propendais, seja qual fôr o vosso não vulgar engenho, sejão quaes forem os louvores que os velhos na arte vos concedão, e os applausos com que as sociedades vos afoutem, não vos deis pressa de apparecer: os conselhos que Horacio vos deu, durão com toda a fôrça que a natureza e a pratica lhe bafejarão. Deve-se compor de espaço, consultar os bons e peritos, guardar por nove annos, chamar, e tornar a chamar dez vezes á unha a obra ja perfeita. O amor proprio nos persuade e impelle a apparecermos cedo, devia elle, se não fôra cego, ter-nos mão para nos não sairmos senão a horas;
Muito mais vale começar jornada com dia claro, do que, para adeantar horas, largar a pouzada pelo escuro da noite, em que os tropeços são faceis, perigosas as quedas, e quasi certo o extravio, que a final lançadas as contas nos farão chegar mais tarde e menos gostosos ao lugar que demandâmos. Repetirei, porque nunca o repeti-lo será de sóbra, o que ja por semelhante occasião disse em outro meu[34] livrinho, contra esta enfermidade que se tornou praga, e nos traz a todos lastimosamente gafados; não ha mais remedio senão soccorrermo-nos aos livros mestres de nossa lingua. A aversão que vós outros, gente moça, lhes tendes, bem sei d’onde nasce, que tambem eu por ahi passei: correm para vós como rio caudal os livros d’essa França, todos especiosos e doirados, todos galhardos e louçãos, arrebicados e argutos no dizer, promettedores de maravilhas nos titulos e indices, conversando comvosco paixões fortes e brandos affetos, uns vomitando republica por todas as folhas, outros por todos os poros exhalando commodissima incredulidade, e todos á uma embebidos do presente, afinados pelo vosso ponto, e se o posso dizer, mancebos como vós mesmos. Não ja assim os nossos patrios autores: estes não vos sáem ao caminho; pouzão, antes jazem, pela escuridão êrma das bibliothecas, mal envoltos na grosseira capa de seu tempo, enterrados no pó, meio devorados dos bichos; se os olhais por fóra, parece-vos que a vida vos não daria para um só volume: se os consultais por dentro ja os titulos vos não namorão, os indices vos descoroçoão: folheai-los por alto, vem os milagres incriveis, a historia encarecida ou chã, a poesia enleada e escura, o estilo incorreto e desflorido, o amor grave e sizudo, os costumes castos, a moral severa, a fé religiosa e inconcussa: cada pagina na sua simplicidade apregoa Deos, revem por cada poro o cheiro do mundo velho: mas esforçai,[35] affazei-vos por alguns dias a soffrê-los e comsenti-los; continuá-los-heis sem tedio, logo com gôsto, com ancia, reconhecendo a final quanto as primeiras mostras vos havião mentido, como pelo meio e fundo d’aquelle enganoso dissabor andavão sumidas galas, joias, riquezas, maravilhas, que vos enchem os olhos, vos cativão a vontade, e fazem que vos peze do tempo que os não conhecestes. Assaz nos divertimos do caminho, rasão he que a elle nos tornemos.
O segundo defeito geral que me occorreo n’esta leitura, foi o que eu chamei desleixo de frase. He este muito menos grave que a impureza da lingua, sendo-o todavia assaz que mereça quanta reformação lhe eu possa fazer. Quando quem não cura da pureza de sua lingua, cura ao menos de lhe não deitar remendo de panno estranho ou novo que não seja vistoso e garrido, quando o que se não preza de dizer limpa e castamente, ao menos timbra no exprimir com viveza não vulgar, com certo matiz, com certa novidade, algum passo mais se lhe póde conceder. Procurei se ao menos teria eu posto algum pouco d’isto, e achei um desconsolado não. A locução não me pareceo tão poeticameme figurada como convinha em poesia, ainda pastoril; os epíthetos erão tão sem succo e bastos como a caruma no mato. Uma e outra couza requerião, em quem as quizesse bem emendar, muita paciencia, e muitissima mais[36] da que eu tenho. De ambas, mormente dos epíthetos, procurarei limpar a maior; todos não he possivel: tanto e por tal geito estão com toda a Obra cozidos e enraizados, que lhes vale o que ás ervas parasítas em parede velha mas necessaria; foução-se-lhe algumas demazias, perdoa-se ao resto, com o medo que em faltando, se esboroe a parede, e venha ao chão toda delida.
Tambem me queixei de estiramento de períodos. He defeito portuguez, peninsular, meridional. Dava-me agora na vontade tornar a culpa ao sol, que n’estas suas terras faz que tudo se desaperte, e derrame, e desate em viço e sobejidão: mas fiquem esses milagres do sol para os esquadrinhadores metafisicos, a quem inda assim, não quero mal; e eu, melhor que a nenhuma outra causa, lançarei aquella minha diffusão ás costas dos annos em que escrevia, com o que sempre fico de bom partido, por das minhas a tirar. O que he grandemente verdade, he ser este defeito para muitissimos leitores, principalmente mancebos ou hospedes nas regras de escrever, virtude, e a virtude contrária vicio. Saírão a Noite do Castello e Ciumes do Bardo muito mais contraídos e apanhados em couzas e palavras, do que estes Poemettos e as Cartas de Echo: pois comtudo muitos houve e ha, que por isso mesmo ficárão preferindo aos novos os antigos e até velhos opusculos. A cada hora me diz um que me torne ao meu primeiro caminho; outro[37] que não desampare o novo: uns, que estas ultimas obras se não lem senão de escaço numero; outros que as passadas não occupão meia hora os olhos dos homens graves e bons juizes. Oh! quem reconheceo nunca a verdade da fabula do velho, do rapaz e do burro como o triste, que para expiação talvez d’algum grande peccado, entrega e desampara a público os partos do seu tinteiro! Pois que não póde ser contentar a todos, ir-me-hei como e por onde o meu juizo, gôsto e natureza me levarem.
A poesia substancial e severamente escrupulosa, he o mais das vezes descontada por uma certa desharmonia: a muita harmonia, ainda quando mais apoucada de ideas, ja entretem suavemente: qualquer leitor se entende com taes escritos, ninguem com elles se cança; são um genero de musica facil, que ainda quando não exprime affetos, se ouve com gosto; são como um deslizar de barco por uma agoa mansa: por isto he que os livros do Porto e Tristezas de Ovidio se lem de um cabo a outro com muita deleitação.—Inter utrumque: nem tanto apêrto como Almeno na chamada tradução de Ovidio; nem tanta soltura como o seu amigo, e outr’ora meu mestre, Elpino Duriense[4] nas poesias originaes;[38] nem tanto pospor a harmonia e clareza á brevidade como Filinto; nem tanto sacrificar o entendimento ao ouvido como Elmano. Isto foi o que me pareceo lograr na Noite do Castello, e Ciumes do Bardo, e não me arrependo se por ventura o consegui.
Tanto não, mas alguma couza d’isto fôra o que eu quizera na Primavera: alguma couza, para poder com ella reconciliar os severos; tudo não, por não dessimilhar em demazia esta parte do retrato.
Até aqui descubrimos defeitos que importa emendar, agora os vamos ver do outro genero, em que me não he licito bolir, por serem essencia do livro: erão aquelles no tocante á lingua, estilo, e metro, que ainda que importantes, não passão de accidentes da obra; estes são da alma, vida, e pensamento da mesma obra. Entremos pelo descritivo (não será portugueza a voz, mas o uso e necessidade lhe valeráõ.) Descritivos se chamão em geral todos os poemas deste genero, e como a taes, parece que tudo quanto for pintar dentro do quadro do seu painel, lhes compete e convem. Não he comtudo bem assim, porque as[39] descrições, por mui formosa e naturaes que se ostentem, tambem canção a imaginativa de quem lê, quando umas ás outras se vem succedendo perennemente e sem um bom entremeio de narração, ou outro valente interesse, que por um modo verosimil as reuna, separando-as ao mesmo tempo, para que se não confundão, nem se afrontem, nem esmoreção. Não o advertio Delílle, e d’ahi procedeo não bastar seu altissimo engenho para livrar seus poemas de enfadosos. Ora este livro he quasi um embrechado massiço de descrições; e assim, se o posso dizer, mais para ou olhos da alma do que para o seu entendimento. Mas serão ao menos estas pinturas, consideradas uma por uma, de algum preço por fineza de tintas, ou pontualidade de desenho? autos são em que me não compete dar sentença. O Padre Kinsey, ou o Portuguez que em seu nome escreveo, disse que eu não pintava bem a natureza; talvez que outro tanto, e ainda peór, se devesse dizer da mór parte de nossos poetas; mas não he contra elles, senão contra mim só que eu enfeixei varas no princípio d’este prologo: como os applicados noviços se não enganem comigo por minha culpa, que se desvairem e percão com os outros, paciencia! Aqui está comtudo o que me parece; este descritivo he desbotado e de côres pouco vivas e proprias se com o de Gessner ou Kleist se compara, mas he o melhor que eu soube; eu que nem podia ir-me pelos campos fazendo, como de si dizia Kleist, caçadas poeticas de[40] imagens, nem discorrê-los como Gessner, de lapis na mão. Ja póde ser que o Padre Kinsey, ou o seu ponto, não houvessem de se me avantajar muito, se lhes coubesse tirar ás escuras, ou quasi, o retrato da natureza: muito mais faz quem atravessa o Tejo a nado, do que hum Almirante Inglez que em segura e bem apercebida náo rodêa a esfera; poderá este trazer mais riquezas e informações, mas á fé que não prova mais fôrças e esfôrço que o desconhecido nadador de uma só corrente.
Passemos ávante, e das descrições entremos nos affetos. N’esta parte direi pouco, porque sem embargo de que o desabrimento com que me castigo onde entendo merecê-lo, me podia deixar alguma licença para tambem me louvar pelo que em mim visse de bom, melhor he que nos louvores, em que mais facilmente nos podêmos enganar, nos contentemos de ser ouvintes. Ainda assim, não acabo eu de dizer tão pouco, que muito bem se não entenda ja que no tocante a affetos não quero muito mal á minha Obra: fallo dos affetos em geral, porque passos ha n’ella a cujo affeto não sei ja hoje querer mal nem bem; honesto, formoso, e macio me parece, sei que n’esse tempo devia ser meu, porque eu não compunha, tirava do coração, mas ja o não posso entender cabalmente, e avaliar. Esses passos, apezar de tudo e de mim, hão de passar intatos, que em assunto de branduras o eu de hoje respeita religiosamente ao eu de algum[41] dia; e porque tudo diga, ainda que quizera emendar, não saberia. Sim me inclino a que haverá (e ja de alguns m’o boquejarão) excesso, redundancia, languidez em tantas suavidades, caricias e extremos de bem querer a tudo, e a todos. Inclino-me e talvez o creio: mas que havia de cortar? a que havia de perdoar, se assim como o eu antigo valia tanto mais que o eu presente, póde ser que o melhor se me figurasse agora peór, e o peór melhor?
Digamos duas palavras da Mithologia. Ja não sou tão emperrado pagão como n’outro tempo; desconsola-me ver o desmedido uso que d’ella fiz. Não se entenda por isto que me alistasse debaixo das bandeiras triunfaes dos modernos espanca-numes, nem que tiro vãgloria de botar pelo mundo pregáõ, como Beranger, que os Deuzes ja saírão do meu credo. Todo o excesso em crer ou não crer, em admittir, ou recusar me parece hoje em dia um disparate, de que sempre, mais por aqui mais por ali, vem a resultar contras e arrependimentos. Enjoa-me a fabula dos Lusiadas, e muita, e muita, e muita outra: aborrece-me quasi todo o emprego que dos Romanos para cá se tem feito d’ella, incredulus odi. Só consinto na fabula parca, explicavel, e só a amo quando soberbamente poetada. Alumiarei com um exemplo: quero-a assim como a derrama ás mãos chêas por suas tão poeticas prozas o christianissimo Chateaubriand, esse mesmo que de longe visto, assim parece guerrea-la. Nada d’isto[42] acho eu pelo commum no meu livro: de cada canto me surde uma Divindade; a boa parte d’ellas não responde verdade, e se alguma couza ahi vierão fazer, certo que não foi inspirar-me um só rasgo poetico. Porque pois as deixarei? porque não substancia do livro, e n’elle tem posse velha e apozentadoria.
Dêmos a derradeira parte do prologo, que em prologos deve ser sempre esta a de vantagem, a algum poucachinho dizer sobre a moral. Moral hoje, moral em livro de poeta, grande novidade e grande estranheza! Sim hoje, que ainda ha muito quem se preze de viver honesto, virtuoso e pela antiga: sim em livro de poeta, e por isso mesmo; visto como tudo quanto era contra ella o tem a proza a si tomado, não será muito que lhe abra sua porta a poesia, e lhe dê guarida em um pobre cantinho térreo de sua pousada, como he este: inda mal, que até cá, no fundo de tamanha escuridão e penuria, por todas as fendas e agulheiros do mal reparado edificio poetico lhe chegaráõ as risadas sem alma nem sal de seus inimigos, e contra essas não ha valer-lhe. Ha pois do titulo d’este livro a dentro, dado se não prometta senão primavera, um como ar de bondade e saude para o animo, de socego e bemaventurança para a vida: e por isso he que, a despeito da todas suas manchas, me parece bem, como ja no Ante-Prologo deixei tocado, atira-lo, como sementinha de erva medicinal, ao baldio sáfaro e corruto[43] d’esta idade. Bem estou eu antevendo quantos de mim hão de haver lástima, por me assentar no meio de tão ferida e accesa batalha, por cantar entre tantas vozerias de odios. Paciencia! tambem sei que homem sentado não sóbe, nem a trôco de cantigas se comprão riquezas e valimentos: mas cada qual tem sua estrella, e a minha, que outra vez descobrio depois de largo eclipse, esta foi, e esta ha de ser; oxalá que para sempre! Com o bom de Archimedes me pareço n’isto, o qual na hora que a cidade estava sendo entrada do inimigo, e alagada das torrentes de ferro e fogo, nem tinha ouvidos para o estrondo, nem deixava de proseguir na composição da lustrosissima esfera celeste, unicos amores que no canto calado de sua casa o desvelavão. Havia ahi uma não sei que magnanimidade; e a ninguem deixa de doer a cutilada do soldado feroz que despede tal cabeça para cima de tal obra. Mas quando me ólho, e me vejo a brincar com flores e cordeiros, ao tempo que em redor de mim estão no chôco tão grandes destinos do mundo, não me lastimo, porem rio-me, e cuido estar vendo em mim proprio um menino, que por um dia de tempestade, enthesoura conchas e forma lagoazinhas na praia, emquanto andão á vista galeões alterosos á luta com os elementos, e na mesma praia uns pasmão, outros se aterrão, outros suspirão pelo instante do naufragio para se arremessarem aos despojos, apenas o mar os cuspir.—Fugindo me hião agora outra vez[44] os pés pela antiga ladeira abaixo: e a moral, esquecida até por quem lhe deo couto! Com ella sou, e com ella determino acabar.
He a moral na maior parte d’estes poemas pura, facil e amavel; e se não tão efficaz como a de Gessner, não he porque o eu dezejasse menos, he porque podia menos atavia-la, e aformozea-la do que elle, e atavios e formozuras até servem para fazer do bom optimo. Todos os amores de que se urde e tece a domestica felicidade, se achão aqui representados por um modo que se recommendão, e d’elles se imbue de mui bom grado o animo; o amor filial, o paterno, o materno, o conjugal, a amizade, até o affeto aos animaes, arvores, flores, e mais creaturas de Deos, companheiras nossas n’este mundo, aqui vem de envolta com a recreação. Porque tudo diga, pelo gostador ou gostadora d’este livro daria eu mais, e mais quizera viver com elle debaixo do mesmo telhado, e tratar quer negocios quer passatempos, do que, se dizê-lo ouro, com gostadores e pregoadores d’outros livros que estamos vendo rebentar de muito mais avultados engenhos. Se eu tivesse filhos e filhas a quem dar criação, sei que emquanto não podessem ler Gessner, e seus bons imitadores estrangeiros, lhes daria a Primavera; e ja não digo o mesmo das Cartas de Echo, e muito menos da Noite do Castello, e Ciumes do Bardo. Mas, acudirá algum prudente, couzas se deparão na Primavera que mais são para ser defendidas a[45] donzellas, e resguardadas de fantasias ainda verdes, do que para se aconselharem por doutrina. Sim as ha, e todas essas paginas que para idades encorpadas e apercebidas de experiencia bem podem não ser damnosas e parar em mero deleite, todas rasgára e déra ao fogo antes de lhes entregar a obra para lição: e porei exemplos; na Festa de Maio, os fins dos episodios de Galatea e Ignez de Castro, no mesmo poema boa parte da republica de Chipre, como o culto religioso da Natureza, os bens em communidade, a nudez, o divorcio, o cazamento de um com muitas et cetera. Antes de passar adeante, trasladarei, que alguma couza fará para aqui, parte de uma Nota que ácerca da republica de Chipre se lia na primeira edição, a pag. 169.
—“Note-se que este poema está muito longe de dever ser considerado como didático; que toda esta republica de Chipre he meramente um Dithirambo, aonde a licença do poeta he muito mais ampla do que em outro qualquer genero de poesia; que esta sociedade de que se ha de formar a republica, he de poetas, homens de quem vulgarmente se diz que mais dão ao prazer do que á rasão; e que em boca de poeta se poem a arenga recitada no templo. Para os avisados escusada fôra a nota, mas para os fanaticos, que ignorão ter a Musa do Dithirambo licença para nos seus delirios arremetter contra tudo, he indispensavel.”
Era este arrasondo o melhor que o caso admittia, porem melhor houvéra sido não carecer d’elle; e se ainda por elle se pode perdoar á republica de Chipre, não assim ás demais desenvolturas, como as dos dois ja apontados episodios. Porque as puz umas e outras? vá mais penitencia. Puz as pinturas amorosas em quasi nudez, porque estava n’aquella sazão da vida e do anno, em que todos nos deliciamos nas fantasias sensuaes, e se somos poetas, cuidamos morrer abrazados e afrontados em não desabafando. Porque não expurguei d’ellas esta segunda edição? pelo mesmo motivo do retrato, e não outro. Quanto ao culto da Natureza, e á gente nua, e aos maridos de muitas mulheres, são necedades taes, que não merecem que nos detenhâmos em as refutar: são d’aquellas demencias, cujo aggregado dá o que entre moços que esfolheão livrinhos bem doirados e térsos, se denomina filosofia, e que só dura emquanto a experiencia e o tempo nos não desmamão da presunção; pelo que, e pela rasão geral, ja muitas vezes apontada, de querer mostrar-me qual fui, vivão, durem e passem, que depois d’isto ja a ninguem farão mal.
Eis aqui por alto, mas com toda a lealdade, o juizo que da Primavera formei; he primavera por matos de serra, com mais flores do que graças, com mais ares saudaveis do que ervas medicinaes, mui tibia de fragrancias mimosas, mui nua em muita parte de terreno, mas com seus longes de campos e cazaes felizes,[47] e muitas saudades lá pelos extremos confusos do seu horizonte. Quem se d’estas cousas contenta, fico se recreie com ella; e quem com ella se recrear, para amigo o quero, que esse saberá, como eu, amar muito os homens, fugindo-os; e enfadado, como eu, das terras onde não ha ver passaros senão em gaiola, nem verdura fóra de gigas, nem arvoredo que não seja pintado, nem pastores e innocencia senão na opera e trajados de seda e veludo, nem felicidade senão em promessas de políticos, irá procurar-se, achar-se, e lograr-se de Deos, de si, e dos penhores de sua alma no seio e entranhas da vida campestre. Oh, se assim fosse!... e se Deos a um tal me désse ainda por vizinho!...
Lisboa 4 de Dezembro de 1836.
Lisboa 29 de Março de 1837.
Quando todo estava no trabalho de desempenhar minha palavra, e fazer ainda mais do que no Prologo deixára promettido, revendo cuidadosamente, afeiçoando, podando e enxertando de novo este volume, sobreveio-me aos 2 de Fevereiro passado, o maior infortunio de minha vida, uma perda de que em nenhum tempo[48] se me poderá o coração consolar. Quebrarão-se-me as forças para continuar no trabalho, bem como se esvairão muitos, antes todos, meus projetos. Ja não arrancarei (e para que?) este pouco e inutil resto de mim mesmo da terra que encobre a minha melhor metade: aqui procurarei, se tanto podér ainda, pagar com uma pouca fama e muitas lagrimas, a quem a mim me deo até á sua ultima hora seus olhos, seu amor, toda sua alma. Qual ficou este livro tal sae, e muito inferior ao que eu promettia, podia e devia fazer. Se algum de meus leitores entende por experiencia o que seja padecer n’uma viuvez uma completa orfandade, esse passará com indulgencia, e ainda suspirando, pelos muitos defeitos que na leitura lhe occorrerem. Aos sem alma não tenho que dizer: se quizerem castigar o espirito meio morto, porque não pôde mais, fação-no, que dôres d’essas não acharáõ ja em mim lugar nenhum.
Vai a Epistola em tudo outra da que fôra na primeira Edição: conserva a invenção e os pensamentos, mas emendou-se a linguagem, apertou-se o estilo, deu-se alguma côr mais ás imagens, explicarão-se melhor alguns pensamentos, reformarão-se e afinarão-se quasi todos os versos.
Eu mandei o meu Genio campestre apanhar flores por entre os gelos do inverno. Formosas não saírão, bem o sei, porem n’esta estação do anno não mas dá melhores o estreito jardimzinho que me as Musas doarão nas fraldas do Parnaso. A ti, minha Irmã, me ordena o coração que as offereça. Felicidade será para mim, se quando para o teu lado me tornar, tu me disseres abraçando-me:—“Eu amo as flores que tu me enviaste, no meu seio as guardo: as da primavera menos me contentão do que estas, que o teu Genio campestre colhe no teu jardim, por entre os gelos do inverno.”
Fôra o inverno de 1821 para 22 dos mais desabridos e temerosos de que entre os vivos se faz memoria. Na Beira, onde me então achava, vião-se arrancados e espedaçados bosques, olivaes e pomares, sementeiras afogadas, pontes demolidas, e os rios sem margens. Dos 25 de Dezembro até os 9 de Janeiro, que me demorei em uma aldeinha, uma legua desviada de Coimbra, saboreando no trato cordeal de alguns amigos e parentes as férias, então mui festivas, de meus estudos, foi sempre tão atada e rigorosa a porfia das invernadas, que nos falseou quasi de todo a recreação mais apetecida dos que fartos da cidade, vão alguma hora ao campo desenfadar-se. De não passear nos vingavamos o melhor que o tempo e lugar no-lo consentião: práticas desaffrontadas de constrangimento, temperadas de bom sal, e muitas vezes substanciaes; a voltas d’ellas, leituras accommodadas ao mais dos gostos, poesia, e improvisos de charadas e adivinhações nos enchião as horas não contadas. As espaçosas noites e boa parte dos dias, se levavão n’estes e semelhantes passatempos, em de redor de uma farta fogueira, segundo he costume d’aquellas terras. Por alguma rara tarde, quando o sol descobria, e o ar um pouco mitigado nos consentia saír, nos hiamos, ora pelo jardim onde se explanava um soberbo lago, outr’ora pela orla mais assoalhada dos laranjaes,[54] que mui corpulentos e viçosos, acenavão de seus ramos com frutos e flores, pondo a vista, o cheiro e o gôsto em doce competencia de delicias. Era ainda aquillo, ou ja era, umas lembranças, uns longes de primavera no coração do inverno, saíamos da prisão dos lares, aproveitavão-se com sofreguidão: talvez nenhum dia de perfeita primavera na longa cadêa d’elles me pareceo nunca melhor e mais ledo, do que estas pobres tardes sonegadas ao mez do Natal. A fantasia enganada do sol, toda se me desatava em poeticas flores, o que n’esses tempos só por maravilha me acontecia fóra da primavera, e luares do verão. Quando vinha a noite, acceita ao meu coração, (que sempre de si o conheci, não sei porque, amigo de com ella suspirar saudades), e ja todos ao conchego do nosso lume fiel nos tornavamos alvoraçados, comigo só me hia pouzar a um canto, colhendo, concertando e accrescentando com mui entranhado contentamento, quantas florinhas me havia brotado a fantasia. De saudades da primavera me parece ainda agora que nascião todas; o que certo sei, he que ahi, e n’um imaginar d’estes meus, me veio a lembrança e desejo de escrever á Primavera uma Epistola. Se n’isto abusei ou não da licença tão concedida a poetas, não o sei; sei que no ditar estes versos para se escreverem, e no conceber-lhes o assunto a passear ou a seroar, gozei prazeres que ja a crítica me não póde tirar. Se contra o bom juizo pequei, todo o meu pezar he não poder outra vez peccar[55] pelo mesmo modo, nem outra vez namorar-me da Primavera: os annos que a trazem ás arvores no-la levão a nós, e ja la vão quinze, (quinze annos!) sôbre o tempo em que eu brincava com estas innocencias.
Lisboa: 9 de Dezembro de 1836.
Em dois Cantos se divide agora este Poema, para commodo de quem lê. Entendi em apertar melhor que da primeira vez, este feixe de flores, se o he: algumas deitei fóra sem fazerem mingoa; as demais forão refrescadas, e se me não engano mais algum viço ganharão. Puz-lhe com tão boa vontade as mãos como na Epistola: pelo que, sem deixar de ser o mesmo, he outro; he o mesmo no essencial e intrinseco, todo outro no lustre e na toada.
Á maneira das arvores, que acordando do sono do inverno ao bafo omnipotente da primavera, como que ressuscitão com o riso e vida nos primeiros olhos e flores, o meu engenho começa a matizar-se das suas, com a tornada d’estes dias puros e deleitosos aos amigos do campo. As primicias, que d’ellas pude colher, forão para a grinalda que apresentei na Festa da Primavera celebrada com os meus amigos. Depois de a haver tirado do altar da Deosa que governa a mocidade do anno, a quem senão a ti, ó minha Mãi, devêra offerecer esta grinalda? sim: outrem qualquer a engeitára por de nenhum preço; de ti sei eu certo que lhe acharás uma graça especial, mais finas côres, e fragrancias mais suaves: emfim me atrevo esperar que póstos amorosamente os olhos na minha Obra, entenderás, sem o dizer, como eu sinto todo o amoroso da gratidão, ao cuidar em quem me deo alem do ser, a educação, e todos os mais carinhosos desvelos: alguns suspiros e lagrimas, para cúmulo da minha felicidade, serão talvez por ti, ó minha Mãi, espalhados na minha ausencia.
Remontando a vêa do Mondego até obra de um quarto de legua para cima da Cidade, encontra-se na margem do poente um gracioso retiro, selvatico sem aspereza, e como que enfeitado sem arte: dissereis que em hora de contentamento o fizera a Natureza, para algum dia hospedar no regalo d’aquellas suas sombras um ajuntamento de poetas seus. De Lapa dos Esteios pozerão nome ao sítio em dias remotos, segundo soa, os vinhateiros e pomareiros que de umas e outras varzeas do rio costumavão acudir ali por paos, com que estear suas parreiras e arvores derreadas com o pezo da fruta. Ainda permanece o nome, porem ja o arvoredo se não desbarata pelos vizinhos, e a Lapa, de tão solitaria e amena que he, parece a appetecida estancia do Genio da liberdade.
Entra-se por um breve cáes ornado de cinco alterosas arvores, das quaes uma torcendo-se toda para o rio, se debruça para saudar e cobrir[80] com a sua sombra os bateis que chegão. No tôpo do cáes, e fronteira a quem desembarca, se alevanta um genero de muralha nativa de rochedo, rôto em muitos seios. Esta penedia, até aos nove ou dez palmos de altura, sóbe nua e só ornada de sua mesma aspereza; d’ahi para cima, como envergonhada de sua dura condição, se esconde toda com um frontal de heras, que ora resaem como cabeços pendurados, ora se recolhem para fantasiarem la por dentro suas grutazinhas e labirinthos, d’onde ás vezes se estão vendo saír por um cabo e por outro os passaros, que depois de beber e se banharem na vêa da agoa, se empoleirão pelos lamegueiros vizinhos, namorando e cantando a suavidade e fresquidão de suas habitações. Pelo lado direito d’esta aprazivel scena, sóbe uma cerrada espessura de bosque pequeno, onde os olhos se enleão na confusão de troncos e folhagem: pelo esquerdo abre-se para cima uma escada rustica mas commoda, de doze degraos. Tecem-lhe estendido toldo dois lamegueiros velhos, e outras arvores mais pequenas se abração por ali, travadas com mil voltas de hera. Dá esta subida em uma planura sôbre o comprido com seus assentos de ambas as bandas, isto he da terra e do rio, o qual por entre um basto arvoredo, que d’ahi por uma especie de promontorio, vai descendo até lhe metter os pés na corrente, se está vendo a furto transparecer: das primeiras cabeças d’este arvoredo cáe para os assentos uma boa a vedada sombra. O puro e perfumado dos[81] ares, a vária presença da terra e aguas, o susurrar dos ramos abanados da viração, as melodiosas querellas das aves, em summa o natureza enfeitada só de suas mãos, e paz e descanço de deserto, são a fonte perenne dos encantamentos d’este sítio. Uma ladeira suave opposta á escada, e ainda mais sombreada, despede em outro cáes com seus degraos nativos de rocha até á agua. He este menos bem assombrado que o primeiro: não tem relva, nem arvore, nem verdura afóra ada muralha no tôpo, toda velada de musgos, matizados com seus tufos de fetos silvestres, congossas e um sem numero de outras plantas e ervas, sobresaindo a espaços alguns ramos solitarios de figueira brava: mas o que de interior graça lhe fallece, lho compensa a larga vista que para fóra desfruta.
Era chegado o primeiro dia de primavera. Tratado e assentado estava de ha muito entre mim e meus amigos, como iriamos passa-lo juntos, em uma romaria e festa poetica á honra d’aquella mais formosa parte do anno. Não faltavão á volta da Cidade muitos sitios accommodados ao intento, antes não creio que possa haver no mundo outra verdadeira Arcadia, que em tão pequeno espaço resuma tantos: mas d’entre todos coube á Lapa dos Esteios a palma da competencia. De doze se compunha o rancho, todos amigos, poetas e academicos.
Por volta de meio dia, pouco mais, nos ajuntámos com muita alegria e abraços, e todos com as nossos ramalhetes de primavera nas mãos, nos pozemos alvoraçadamente em caminho para o rio, onde ja o barco nos aguardava. O ar estava puro: contra o sol que ardia rijo, nos acudia com refrigerio um pouco vento, que ao mesmo tempo nos fazia mui boa feição para contrastar a corrente. Saltámos e partimos.—Em quanto alguns por um e outro bordo ajudavão o favor do ar com o trabalho de suas varas, repellindo o álveo, e fazendo-nos resvalar mais prestes á medida de nossos desejos, os demais amotinavão ao longe ambas as ribeiras com suas cantigas de amores, entoadas em chusma. A cada momento porem se quebrava por si o canto, para se contemplar e encarecer o muito que a natureza e o artificio podérão e soubérão crear para enlevo de olhos, por ambas aquellas dilatadas margens e campos: pradaria verde e florída, outeiros risonhos, cazaes branqueados, grangearia e recreação de quintas, pomares, hortas, jardins, e mil arbustos curvos por entre choupos e salgueiros até beijarem a agua, esse era o painel em que meus amigos se hião enlevando, e que a mim, que pelo longe que era posto, o não podia nem por nevoas enxergar, me desentranhou algum suspiro, dando-me a sentir no meio da geral alegria alguns momentos magoados, recostado na borda da embarcaçaõ.
Mil couzas pequenas, e por ventura vãs (mas quaes ha que sejão taes para gente moça em dia de júbilo?) matizarão toda esta viagem: taes como a grita que de subito alevantámos ao passar por baixo do arco grande da ponte, aonde as vozes, refletindo do massiço da cantaria, nos ressortião para os ouvidos com uma estranha soada, como que por aquella porta e esteiro estivessemos entrando um mar nunca d’antes descoberto; despedidas á Cidade que de nós se alongava, branca e assentada em seu monte, até que desapparecia, e ás margens que para nós arremettião correndo com seus estendaes, lavradores e rebanhos, para logo nos passarem alem, fugir-nos e perderem-se; a vista de um bando immenso de pombas, que levantando-se espavoridas com a nossa passagem, de um ilheo de arêa onde se estavão a beber e banhar-se, nos atravessarão pela proa e forão derramar-se todas queixosas pela ribanceira vizinha; o ceo a espelhar-se inteiro nas aguas ufanas de retratarem multiplicado o sol da primavera com toda sua magnificencia: semelhantes nadas produzião em somma um genero de felicidade a estes moços Anacreontes viajando, á qual, para de todo o ser, só faltava poder durar.
De instante para instante importunavamos os barqueiros, perguntando insoffridos quanto nos restava do caminho. Cuidava-se ver a Lapa dos Esteios em quantas soledades apraziveis nos apparecião ao longe. Emfim a apontárão[84] com o dedo; levantão-se todos, todos com clamor unísono a saudão. Saltámos logo no primeiro cáes, deixando o nosso barco amarrado a uma arvorezinha, que se algum curioso vier visitar aquelle sitio, he a terceira da parte esquerda. Uns de outros derramados, nos fomos prestesmente por onde o acaso ou a fantasia nos levavão, correndo e devassando toda aquella solidão, que por algumas horas vinhamos povoar: e tornando-nos a ajuntar no alto, onde tão commodos assentos se nos deparavão. “Esta Lapa disse um, para estancia e habitação das Musas parece feita; por aqui as heras pendem de toda a parte!” Sobre o que, se procedeo logo á lição dos poemas que todos levavamos. Aqui usarão meus amigos para comigo de huma cortezia, de que por mais que fiz me não foi possivel defender-me, ordenando-me com seus rogos que os meus versos, para os quaes o ultimo lugar em tal companhia podéra ainda ser de muita honra, rompessem antes de outros aquelle acto. Estes, a que eu pozera o titulo que ainda tem O Dia da Primavera, ja primeiro que o sitio fosse escolhido se achavão feitos, rasão porque não ha que procurar n’elles a pintura d’elle. Concebêra eu um dia de Primavera levado pelos campos em contentamento com aquelles companheiros; tomei de minha livre imaginação o que me pareceo bastaria para o encher; e poetei-o sem me obrigar a nenhuma outra verdade.
Elmiro (que todos havião arcadicamente tomado para si nomes de pastores) assim como a leitura foi rematada, veio para mim com um listão de heras nas mãos, e mo lançou, a todo o poder que eu pude para me escusar, do hombro direito ao lado esquerdo.—Seguio-se Anfrizo, o qual em pé junto de mim, e com uma coroa em punho, recitou uma formosa Ode, toda floreada dos louvores que a amisade lhe figurava poderem-me bem assentar; e chegado que foi á ultima estrofe, me coroou abraçando-me. Tambem a esta honra me foi forçado ceder, com quanto claramente em mim sentisse o muito que vinha mal empregada: a amisade ordenava, o dia era seu, rendi-me. Era a grinalda de artificiosissimo lavor, mui fresca, e tecido de louros, heras e cópia de flores naturaes; guardei-a com ufania e como joia; quizera conserva-la para sempre, mas representava gloria, e minha, murchou, desfez se, largos annos ha que he pó, e pó disperso.
Dado que ja então fosse tal o meu triunfo, qual nem em sonhos de ambição o podéra antever, Josino, a cuja feiticeira Musa ja eu era, muito havia, devedor, inda o subio de ponto, lendo antes de um poema, pequeno em extensão mas grande e grandissimo em merecimento, um elogio a mim em tão delicados versos, que não posso menos de perdoar-lhe a lisonja.
Aulizo[5] leo um longo poema intitulado A Primavera, que todo respirava amor aos campos e á virtude, ataviado de mui mimosas galas poeticas, e de mui particular doçura e sabor para os ouvidos: nem se cuide que sangue ou amisade ou vãgloria me fazem fôrça para o dizer, que antes o dissimulára eu, se o ser irmão e amigo fossem partes para, quando a todos os mais vou distribuindo seu preço, lho sonegar a elle; e ainda assim talvez o não ousára, se tão boas testemunhas não valessem a confirma-lo.
Foi esta leitura interrompida de uns sons de flauta, que por cima das cabeças, e de mui perto nos vinhão: era o meu caro amigo, Horacio portuguez, José Fernandes de Oliveira Leitão de Gouvea, que alvoraçando-nos e alvoraçado, nos apparecia ao cimo da curta escada que da Lapa sobe para a Quinta das Canas, que lhe fica sobranceira. Forão tudo clamores de alegria, recebendo entre nós, poetas todos verdes, o nosso decano e patriarcha; cercámo-lo com abraços, das mãos lhe furtarão a flauta, foi levado de repente a todos os recantos do nosso Parnaso, contando-lhe todos á uma o que até ali se passára, que vezes se fallára n’elle, e se desconfiára de sua promettida vinda. Este homem amavel, jovial, incapaz de estudadas gravidades, dado e corrente com todos, bom sem merecimento de esfôrço,[87] filosofo sem o cuidar, coração que ainda não saío nem ja agora sairá da infancia, homem só comsigo parecido, que a ninguem imitou nunca, nem de outrem será nunca imitado, e cuja vida, se alguem soubesse escrevê-la, sairia tão original e unica como elle mesmo, este digo, nascido para ser alma de qualquer ajuntamento moço e alegre, tomou para logo seu quinhão na Festa. Deu-se fim ao poema interrompido com a chegada do novo socio, que muitas outras vezes o tornou a interromper com applaudir e abraçar o poeta. Josino, que assim como o ouvia fôra entrançando uma coroa de hora da arvore mais chegada, mal que o ultimo verso expirou, se foi com ella, por entre as palmas de todos, premiar a fronte do cantor.
Elmiro, que de apoz se seguio, nos cativou as attenções com um poema de muita invenção e belleza, aonde outra vez a amizade me brindou com perfumes seus, para os não dizer da lizonja. Igualmente o coroámos; e outro tanto se foi fazendo aos demais, que recitarão poemas mais breves ou traduções.
Salicio[6] repetio uma mimosissima tradução livre de uma parte da Primavera de Thompson: Albano, uma tradução em lindas quadras do Idillio Primavera de Gessner: Francilio, uma tradução em proza de Utz, que[88] leo de pé com o copo em punho, e rematou com um brinde: Franzino uma versão da Primavera de Cramer: cerrando-se finalmente este rico banquete poetico com mais de quatrocentos versos de um poema de meu irmão José Feliciano de Castilho, que pelo muito menino que ainda áquelle tempo era, não foi dos menos vitoriados.
Todos estavamos coroados, e o rancho se espalhou. “Ja la vai o sol abaixo; os seus raios apenas tocão ja os cumes dos outeiros d’alem: aproveitar o tempo!” bradarão alguns amigos da borda de uma eira que dominava a Lapa: e todos sentimos que a tarde nos hia insensivelmente escapando. Então ao som da flauta do nosso Horacio, começarão todos de dançar e saltar, e as aves incitadas da musica, levantarão mais alto os gorgeios da tarde. As folhas das heras, que por ali guarnecião todas as arvores, e algumas flores voavão ás mãos chêas como em chuva, de uns contra os outros. De quando em quando se alevantava alguma voz inculcando, porque o fossem todos ver, algum particular gracioso e ainda não observado d’aquelle sítio. Chamando Aulizo pelos outros, lhes fez notar do cáes mais arido, o como o rio d’ali visto, á conta de sua curvidade se afigurava lago cercado de collinas desiguaes, coroadas e semeadas de larangeiras, oliveiras e pinheiros, e cazaes alvejando, enxergando-se mais a longe, e por entre estes, outros outeiros, quasi a se desvanecer[89] na distancia e sombra da tarde. Debuxava eu no animo toda aquella scena saudosa; saía-me o quadro maravilhoso, mas era por ventura verdadeiro? não o sei.
Uma merenda saborosa nos appareceo de repente e como por encanto: Elmiro fôra o magico providente. Toalhas brancas de neve estendidas no cáes do desembarque, forão povoadas de primorosos manjares, garrafas ja de dias, e copos coroados de verdura: uns rolos de arvores estendidos em quadro nos valerão de assentos: dois meninos gémeos, vestidinhos da branco, erão os Ganimedes do nosso banquete folgazão. Parte assentados, parte reclinados em diversas posturas, outros por entre estes girando com os copos e pratos na mão, boas descaídas, descuidos a tempo, apontadas graciosidades e risos do íntimo, brindes com o copo alto na direita, enviados a mui longes e mui diversas terras (que não havia um só que da sua não padecesse ausencia e se não finasse com saudades), outras saudes ora mais ora menos sumidas, a objetos nomeados umas vezes e outras não, mas mui bons de adivinhar pelos suspiros e geito do saudador, a voltas e proposito d’isso narrativas e contos para folgar, musicas alegres de flauta mil vezes começadas e outras tantas interrompidas, e outros muitos nadas com que a penna se não atreve, convinhão em aprazivel mistura para encantar a ultima hora da Festa da Primavera.
Posto era o sol, mas o ceo ainda não carregado de noite: havia-se de partir, faltava o animo para o fazer; instavão os barqueiros, crescião n’elles a rasão e o importunar, acabárão comnosco que nos rendessemos. Despedidos os amorosamente da Lapa ja áquella hora entranhada de escuridão temerosa; com os pés ja postos na beira da agua, nenhum queria ser primeiro que trocasse terra de tanta festa, por um barco que nos hía tornar para onde vida de proza e cuidados nos aguardava: senão quando, levantando o bom Gouvea a voz, com ella suave e chêa que se hía por aquellas margens alem, começa de cantar A minha Lilia morreo; improviso seu, chêo de uma branda tristeza, que aos cançados e não fartos de gozar costuma ser segundo gozo. Assim hia elle até n’isto imitando o seu Horacio, que nos poeticos festins que dava ao Genio da alegria, nunca se esquecia com seu quinhão de pensamento para a morte. Profundo era o silencio que de toda a parte cercava o nosso cantor; só se ouvia o murmurio baixinho da corrente.
Não havia quem nos apartasse: por derradeira vez nos tornámos ainda á Lapa, travou-se uma dança por despedida, e fez-se uma saude geral ao lugar e ás trez Graças que ali costumão a vir muitas vezes[7], até que emfim[91] nos embarcámos, com as nossas coroas na cabeça. Foi aos barqueiros defendido usar de vara, antes se lhes encommendou que nos deixassem embora ir, tão mansa e perguiçosamente como á vêa mal desperta do rio parecesse, e ainda n’aquelle pouco descer das aguas houvéramos nós tido mão, se podessemos.
Pareceo bem, para atalhar a confusão de tantas vozes como as que ali fervião juntas, nomear á maneira do Rei do vinho nos festins dos antigos, um que nos governasse. Este foi Gouvea por acclamação unanime. Lembrou um que d’ahi ao deante nos ficassemos uns aos outros dando o tratamento de confiança, que a boa amizade consente e requer: approvou-se. “E quemquer que a esta lei desobedeça, haja-se por expulso da Sociedade dos Amigos da Primavera.” Approvou-se com alvoroço; levantarão-se todos abraçando-se, apertando-se entre si as mãos, e dando-se entre risos o tratamento novo tão amiudado para lhe quebrar a estranheza, que ninguem se entendia.—“Todos os Socios (gritou outro, e de novo se fez silencio) hão de conservar até que o tempo as destrua, estas suas coroas, se não monumentos de gloria, penhores certo que mais vale, de horas felizes:” approvou-se por lei o que ja todos levavão no coração bem votado. Suscitou-se depois que recitasse cada um segundo a ordem dos assentos, alguma sua poesia breve, e que mais lhe parecesse accommodada á occasião. Não faltárão aqui seus debates,[92] lembrando uns como apoz tanto recitar, tinha a cantoria muito melhor cabida do que os versos nus, outros affirmando que a flauta melhor que nenhuma outra cousa diria com a hora, sítio, e calada grande do rio: até que um veio conciliar a diversidade dos pareceres, dizendo que umas couzas não tolhião as outras, antes podião ir todas a revezes tendo seu lugar: o que assim se cumprio.
A serenidade da noite junta com as saudades do dia, nos fez achar inefavel doçura nos sons da flauta, que parecião modulados pela melancolia, e se esvaíão ao longe nos ares. Se ás vezes o acaso nos levava mais para uma das margens, uns frouxos echos chêos de doçura a tristeza se comprazião de repetir a musica e as palmas com que a nós applaudiamos. Emquanto um só cantava em meia voz, e nós o ouviamos calados, a face na mão, e meio reclinados contra o rio, suave nos era escutar como as quasi insensiveis ondas, com som muito mais baixo nos vinhão beijar os lados do batel, d’onde, se fugião partindo, com um murmurinho saudoso.
Descemos em terra, e abraçando-nos repassados de igual amizade, e das mesmas lembranças, votámos logo ali nova Festa em honra do primeiro dia de Maio, a qual se veio a fazer, como ao deante o declarará o volume: e todo esse meio tempo de uma até á outra, foi tecido de doces memorias, fantasias poeticas, tenções e esperanças de prazer.
Assim se podia e sabia ainda então passar dias mansos, innocentes e bemaventurados!
Lisboa: 2 de Janeiro de 1837.
FIM DO CANTO PRIMEIRO.
FIM DO POEMETTO
Trazia este verso na primeira edição a seguinte Nota—Eis àhi os primeiros esdruxolos que fiz em minha vida, e espero que sejão os ultimos, ainda que por isso que fique excluido da communhão de certa Seita moderna.—Supprimi-a, e no declarar o porque, vou dar não equivoca prova da minha candura. Prezar-se um escritor de mais amigo da verdade que de Platão e de Aristoteles, alguma couza he; mostrar porem que mais do que a si proprio a ama, certo que não he vulgar o exemplo, e esse tenho eu dado, e não raro, ja fallando ja escrevendo limpa e rasgadamente o que de minhas Obras me parece. He um bom propozito que eu fiz em meu interior, e espero não quebrantar nunca, não só porque de si he honesto e nobre, senão que por este meio, o qual não[132] custa mais do que algum suspiro á nossa vaidade que sempre se torce e confrange de ser mostrada nua, me estremarei da manada dos charlatães literarios, de quem nem o estomago me consente fallar. E porque chegue por direito caminho á questão dos esdruxolos, recordarei com vénia e boa paz dos leitores, o que ja no Prologo da terceira Edição das minhas Cartas de Echo deixei tocado; com a differença, que d’esta vez o farei mais explicitamente.
No tempo em que eu cursava meus estudos na Universidade de Coimbra, florecia ella com muitos e bons engenhos de mancebos dados ás Bellas-letras. E porque ainda então se não tinhão accendido os desastradissimos odios das parcialidades políticas, a Hobbesiana propensão de guerrear se exercia nas letras. Duas seitas de escrever se contavão; a cada uma das quaes não faltavão admiradores, apostolos e evangelistas, assim como por isso mesmo inimigos, escarnecedores e parodiadores. Os Livros em que uma juramentava os seus adeptos, erão Gessner e Bocage; Filinto era o Alcorão da outra. Gessner quanto ás couzas e affétos, e Bocage quanto ao térso e lustroso de estilo e metro, erão os idolos de uma; os da outra erão, quanto a couzas e affétos Filinto, quanto a estilo e metro Filinto, e Filinto quanto a tudo em que Filinto podesse bem ou mal ser imitado. Tinha cada uma d’ellas suas vantagens e seus descontos, como agora claramente[133] diviso, quando as considero com animo livro e desassombrado de preoccupações. Não fallarei aqui de Gessner, porque ja no Prologo o fiz; confrontarei somente, e de corrida, Elmano e Filinto.
A ambos dotára natureza de talentos, bem que entre si diversissimos, assaz fortes todavia que podessem cunhar á sua feição a poesia do seus tempos. Elmano, que talvez em seu genero nos ficará sendo unico, de fôrça devia deslumbrar e encantar pelo caudal inexhaurivel, brilhante e estrepitoso de sua vêa, que eu appellidarei, e ria quem rir, um Niagara de talento: e assim como, os que pasmão deante d’essa grande catarata de puro embevecidos em sua cópia e magnificencia, não tem olhos para notar o esteril do seu curso, o assolador do seu ímpeto, e os penedos que rója envoltos e desfarçados com suas aguas, assim os que presentes assistirão ao poetar de Bocage, ou da tradição o receberão, fascinados com os seus estrondos, espumas e iris, mal se podem lembrar de lhe desejar afféto, sizo, e exatidão, que muitas vezes lhe fallecem.
Cinco couzas, pelo menos, para o bom poeta se requerem: faculdade inventiva—faculdade sensitiva—sciencia—lingua—e ouvido; e ainda com estas cinco outra, que talvez resultará rempre de sua união, e sem a qual todas as mais seráõ baldadas; fallo d’aquelle discernimento pronto, que a muitos erradamente pafeceo[134] instinto, e a que se costuma dar nome de gôsto. Em raros sujeitos concorrem tantos predicados; por isso só de longe a longe apparecem os maximos poetas, e ja se dão por grandes aquelles a quem menos faltou d’estes requisitos. —
Faculdade inventiva ou não a tinha, ou apenas a tinha Manoel Maria; a sua queda para tradutor bastaria para indicio, se de indicios te carecesse aonde claras reluzem as provas: um Fado, um Jove, Eternidade, Natureza, Sóes e Caos são o index rerum notabilium da maior parte de seus escritos; e tanto abunda n’estes bordões sustedores e disfarçadores de sua fraqueza, como Ferreira (e quem descobrirá os meus?) na cançada repetição do esprito, Jorge de Montemayor na de hermoso e hermosura, Pina e Mello na de alento e impulso, Alfeno Cynthio na de santo (epítheto, que por mais não ter onde o pegue, até o poem, se bem me lembro, como arrebique na cara de suas pastoras e namoradas): com a differença que os particulares bordões d’estes poetas, e ainda outros de outros muitos, não são em suas Obras senão meras circunstancias e accidentes, e os de Bocage menos são estribilhos do que fundo o substancia de inteiros e repetidos periodos.
De faculdade sensitiva talvez o houvesse menos escaçamente dotado a natureza, mas outras qualidades que lhe ella mesma deo em maior auge, taes como volubilidade de fantasia,[135] aspereza de condição, espirito sobranceiro e satírico, e coração, como elle mesmo confessa.
Mais propenso ao furor do que á ternura, lhe entibiarão os affétos benignos, de que sé a longes distancias lhe sáe, como a descuido, algum reflexo. A estes máos e naturaes elementos accrescêrão desvarios da fortuna ou do acaso, bem valentes para de todo lhe seccarem a fonte das branduras. Vida mal preparada de educação, nua dos amoraveis habitos domesticos, desalumiada de doutrina e estudo, aturdida de applausos contínuos e encarecidos, amargurada amiude de pobreza, vagabunda entre amigos não amados e por terras não suas, vida, porque tudo diga, corrida á ventura e sem norte conhecido, desenfreada de todas as leis, sôlta por todos os vicios, cínica por timbre, e por indole silvestre e bravia, como podia ser que lhe não tisnasse no germen os affétos maviosos? Isso foi, e isso conhece quem bem attento o ler e meditar. Mas em desconto, as paixões fortes como o ciume, a colera, a vingança, sente-as e pinta-as vigoroso, assim como todos os objétos grandiosos, remontados, encarecidos, ou terriveis. Não vos debuxará um mendigo, avergado de annos, estendido n’umas palhas esquecidas, junto do cão seu ultimo companheiro, e orando no desamparo da noute, por quem, sem o convidar para a sua fogueira do inverno, lhe deo fóra da porta meia fatia de pão; nem ainda as carícias de uma mãi a seu filho: mas dir-vos-ha, rico e altisono, os impetos de uma tempestade,[136] a sanha de uma batalha, as iras de uma madrasta, ou as furias de um infeliz que pragueja sua má ventura.
Os affétos e a invenção póde a sciencia por álgum modo suppri-los, opulentando-nos com os affétos e invenção de melhores autores, uma vez que por nós tenhamos a arte de bem escolher, bem digerir, e bem converter esses literarios alimentos em substancia nossa, em nosso proprio ser: ainda mui boa estrella he essa, e não poucos dos afamados desde Virgilio até ós nossos dias, só á sciencia, e a essa arte de a aproveitar, haverão devido a melhor parte do seu credito. He o saber, princípio e fonte de bem escrever, dizia o Mestre dos poetas; e dizia o dos oradores, que uns e outros era mister entenderem de tudo. E se ja isso foi nos tempos antigos conselho e quasi preceito, preceito absoluto se tornou, e necessidade, para quem escreve n’estes tempos, em que a luz se derramou mais ampla, em que as sciencias, cançadas de viver sobre si, se congregarão como boas irmãs em uma só familia, juntarão os seus patrimonios em commum, e cada uma ajudando a todas as outras, vem a por todas ellas receber um infinito accrescimo em seu peculio. Limitadissima era a instrução de Bocage: o latim e o francez, na primeira de cujas linguas mormente era primoroso sabedor, segundo referem, podérão ter-lha dado copiosissima: mas nem a viveza de seu animo, os prazeres e os divertimentos que em seu cerrado[137] círculo o trazião como enfeitiçado, lhe permittião estudos, nem são elles facil couza para pobres e viciosos, nem o que era saudado por divino, como quer que desatasse na voz o acceso turbilhão de suas ideas, carecia de ir excavar em livros o suado cabedal, com que outros negocêão veneração.
Quanto á linguagem, não será pêjo dizer, que a usava limpa e sã, não se podendo taxar a sua de mendiga e remendada, como a ja muitos de seus contemporaneos vinha acontecendo, nem encarecer de rica e ambiciosa: pouco tinha lido do portuguez, mas esse pouco com aproveitamento: só d’isso ajudado, e do latim la se foi remindo e esteando a sua Musa sem emprestimos do francez; e este carecer de vicios ja então era grande virtude. Para lhe darem, como a texto, cabimento em nosso Diccionario[11], não vejo eu razão sufficiente, assim como a não ha para o desprezo e esquecimento, em que os havidos por puritanos o deixárão cair. Uma couza he porem verdade irrefragavel, e he, que em nenhum escritor, antigo nem moderno, apparece a lingua portugueza mais senhoril e polida, mais igual e ao meio entre o usual e o sublime, entre a penuria e a prodigalidade.
Somos chegados á harmonia, o mais eminente[138] merito de Bocage, e no qual nem antecessor teve, nem ainda até hoje successor. De todas as partes que em Bocage concorrião para poeta, nenhuma havia tão delicada, e em que tanto se houvesse a natureza esmerado como o ouvido. A verdadeira musica dos nossos metros, particularmente do hendecassíllabo, não só a desempenhou e ensinou elle, senão que a inventou; e com felicidade tão rara, que não cuido se possa a pontar hespanhol, e nem por ventura italiano que o iguale, e mais he o italiano pela abundancia de suas brandas e variadas vogaes, pelo moderado e macio de suas consoantes, pelas licenças e elasticidade de seus vocabulos, muito mais pronto e domavel para todo o uso métrico do que o portuguez. Poucos estafárão tanto os consoantes como Bocage (e ainda ahi he grande o seu louvor, que não he dado rimar mais primorosamente); mas a ninguem erão os consoantes mais escuzados: são esses para o verso uns arrebiques e sinaes com que os mal assombrados se disfarção, para poderem apparecer, mas de que os graciosos e bellos não carecem, nem os devem consentir, por não parecerem menos do que são. Porque não ouzarei eu dizer, que mais são os seus versos poeticos, do que era poeta elle proprio? Como simples cantilena agradão, agradão ainda quando por vãos os engeita o juizo e o coração por frios: um estrangeiro que ignorante d’esta lingua os ouvisse bem e devidamente ler, recrear-se-hia como com a toada de um bem tangido instrumento. Grande excellencia[139] por certo he esta, á qual principalmente deveo levar traz si suspensos e encantados os animos, e por onde logrou ser, sem o cuidar, fundador de uma escola, que se me não engano, ainda de todo não passou. Toda a gloria de engenho he oiro em que nunca faltão fezes: o produzir pela mágica de sua versificação uma seita de versificadores, por honroso se podéra haver, se aos discipulos podesse ter transmittido, juntamente com as normas, o talento, a fôrça, a graça e o gôsto com que as produzia e aperfeiçoava: porem quiz algum Genio máo, para lhe humilhar a vaidade e descontar a vitoria, que a maior parte de seus sectarios menos lhe tomassem a melodia do que os escarcéos, as empollas, os trocadilhos, as apóstrofes, as redundancias, e os versos que ja se hoje chamão de dobrar,
versos, que parcamente lançados, como nas Obras de Virgilio, tem graça; semeados a frouxo são affeites e desdoiros do estilo.
Do seu gôsto ja me julgo dispensado de fallar, porque me parece que o que d’isso podéra dizer por si mesmo está nascendo do que fica dito. Concluamos: o que de Bocage digo em[140] geral, com suas exceções se ha de entender, porque por uma parte muitas paginas ha suas, mormente em algumas traduções do francez, onde parece lhe esqueceo pôr o tal verniz de dicção e sons que para si inventára, e de que a ninguem deixou a verdadeira receita: e por outra parte tambem, obras ternos suas, mormente sonetos e traduções latinas, cabaes e redondissimamente perfeitas.—Passemo-nos já a tomar iguaes contas a Filinto.
Muito mais melindroso he este processo, até porque ja o querer tomar-lhas será para seus apaniguados um crime de leso Apollo, e primeira cabeça. Valha-me porem a declaração que faço, de que em tudo quanto disser, não seguirei outras partes que as de minha razão, declarando previamente que muito pouco dou eu mesmo por ella; mais são consultas que faço que sentenças que profiro, e antes exercicios de imparcialidade do que acintei de inimigo: de ninguem o sou, quanto mais de poetas, de perseguidos, de velhos, de mortos. Foi tempo em que eu, obscuro poetastre do Mondego, ria e vazava epigrammas contra o tradutor dos Martyres: hoje se me afigure muito mais valioso. He elle o mesmo, mudei eu; Deos sabe quantas vezes mudarei ainda com os annos: do mudar não he nossa a culpa; nossa he porem, e feíssima a de persistir no erro conhecido; se a republica literaria tivesse inquisidores, por heresia e contumacia que não havião relaxar ao braço secular. Ha[141] por ahi muito homem do meu officio que possa dizer de si outro tanto? Mas deixemos esses que estão vivos, e vamo-nos a Filinto.
Se he ou não creador, ja vi ser renhida questão entre ociosos: para mim tenho que semelhante titulo mal lhe pode caber. O frequente verter ha pouco disse eu que denunciava esterilidade; e podéra accrescentar uma sentença ainda mais desabrida, que ha muito encontrei, cuido que nas Lições literarias do Doutor inglez Blair, e que muito me caío; a saber, que o costume de traduzir, bem que olhado pela rama pareça dever ser frutífero, sempre ao cabo vem a desgastar-nos a faculdade inventiva. Compara-lo hei com o linho, que apezar de tão precizo no mundo e de tão agradavel aos lavradores depois de colhido, por isto só desgosta a muitos d’elles, que a terra onde se criou fica magra, e como elles dizem queimada para outras novidades. Muito mais de metade dos tomos de Filinto trazem no titulo os nomes de autores estranhos, devendo-se ainda lançar a este rol por boa restituição, bastantes Obras, que talvez por descuido, imprimio sem nenhuma menção de serem, como erão, vertidas. As imitações são no merito e inconvenientes meias traduções, e as do nosso poeta são numerosissimas, disfarçadas umas, outras manhosamente dissimuladas. No resto que he de sua lavra, apenas se nos depara couza que abone talento original e produtivo a: são os chamados lugares communs de poesia[142] filosofica, que ja por safados custão a passar, e as tão esfalfadas visões e apparecimentos de Apollos, de Musas, de Amores, de Pégasos, e de outros mil defuntos, a quem o tempo ja comeo o balsamo, e que todavia são ainda a unica povoação de quasi todos seus poemas, tanto jocosos como sérios. Algumas vezes me vem desconfianças de que n’aquelle passo da Sátira do Bilhar, em que o nosso Tolentino parece rir de certas Odes, contra Filinto hia tirada a seta de sua crítica:
Em affétos porem sobreleva a Bocage, e não abunda. A espaços lhe vislumbrão assomos d’aquella sismadora melancolia, que mais ou menos respira em todos os bons poetas. As amarguras e saudades, que em tão larga vida e desterro lhe não faltárão, alguma, e não rara vez, lhe soprárão versos amoraveis, e deliciosos de tristeza. He este de todos os dotes de poeta o mais caramente comprado; sendo assim que Deos sabe quantas vezes em applaudir um verso que nos toca, batemos por ventura palmas a calados infortunios de quem no-lo escreveo. Não nos assuntos ditos sentimentaes se conhece tanto o verdadeiro sentimento, como nos de indole mais fria e izenta; porque, se n’estes ultimos apparece inesperada[143] uma palavra maviosa, n’uma flor de festa uma nôdoa de lagrima a descuido, ahi vem o infallivel documento de ternura e suavidade: e d’estas sombras de lagrimas, d’estas palavras, maviosas achamo-las em Filinto.
Na sciencia he que elle mais notoriamente leva a palma ao seu contendor. Que muito? com o dôbro de vida, com precizáõ de estudar para se divertir das mágoas e ganhar pão, com o ar e tráfico de Paris onde todos inspirão e expirão letras, e com tão espaçosa velhice, pingue quadra em que as paixões quietando nos deixão todo o silencio, remanso e curiosidade necessarios para o estudo! Tornarão-se-lhe familiares os classicos portuguezes e latinos, de uns e outros dos quaes talvez Bocage não tivesse acabado dois ou trez volumes; familiares os classicos francezes, hespanhoes e italianos, e ainda as versões dos inglezes e allemães. Á roda d’elle chovião de dia a dia, e de hora a hora, os frutos novos de todos os ramos das Sciencias, de que he impossivel a quem por lá vive não provar, até sem querer, e ao cabo não se nutrir e fortificar. Entretanto repararia eu, se o ousasse, que para quem logrou concurso de tão favoraveis circunstancias, como as que a sua má estrella lhe deparou, não saío Filinto o que se podéra esperar de noticioso e culto; e ou desaproveitou o maná que ás mãos do espirito lhe chovia, ou se o tomou lhe não luzio. Á primeira d’estas duas conjéturas me inclino, porque segundo o que[144] de seu natural alcanço por suas Obras, parece-me que na lição das estranhas mais se hia á caça de vocabulos e frases curiosas, insolentes e atrevidas, do que de doutrinas e filosofia. A sua era meã e usual: cançados louvores á Liberdade, á Amisade e á sã Virtude, ao estudo, ao descanço e ao deleite, alguns arremeços de encontro aos Bonzos e Naires, eis ahi sondado até ao lastro o seu poço de saber moral: alguma historia não rara antiga e moderna, eis todo o seu saber positivo; e todo o seu saber natural, alguns dos principios geraes e diarios das Sciencias fisicas. E certo, que se mais avultados fossem estes seus cabedaes, e vêa mais fecunda lhe consentisse anciar mais altas couzas do que palavras e frases, não se deixára ficar tanto atraz no meio de um seculo novo e alado de poesia; não se contentára o seu estro abstémio com a agua do Parnaso até á ultima hora da vida; e não nos deixára seus volumes pejados quasi só de fabula, como armarios de muzeu antiquario, onde se não vai procurar qual he o mundo em que vivemos, mas deduzir de troncados e desluzidos fragmentos, o que em tal ou tal parte da terra houve lá n’outros tempos, com os quaes e com a qual só pouco ou nada temos. Diz um Escritor insigne[12], que a poesia assim como ontr’ora viveo de fabula, revive hoje e se apascenta de verdade. Melhor dissera que de verdade viveo em todos os tempos a nobre[145] poesia, pois que o que para nós se descubrio fabula, era nos dias em que appareceo e florio, verdade de factos, ou capa allegórica de verdades, mui crida e sincera.—Resumamos; Filinto soube mais que Bocage, menos do que podéra, e diverso do que devêra saber.
A linguagem, de que pela ordem se me segue fallar, mais requeria n’este caso um tratado, do que uma nota de fugida. Algum dia o tentarei, quando me achar mais de assento e sobre mão do que agora, que as justas raias d’este escrito me estão tolhendo. He a linguagem e elocução a principal feição caraterística de Francisco Manoel, como de Manoel Maria o he a harmoniosa elegancia.
A torrente das hipérboles e conceitos hia arrazando e engolindo todo o nosso Parnaso, quando para lhe pôr a ella diques, e a elle salva-lo, e repovoa-lo de natureza, appareceo a Arcadia. Detençosa e ardua se representava a obra, como aquella em que a razão nua tinha de lutar com a imaginação delirante. Para anteparar ímpetos de vêa tão engrossada com as contínuas nascentes e tão copiosas de Italia, Hespanha e Portugal, ja tão senhora do leito e dominadora das margens, era mister que braços fortes lhe levantassem muralhas solidas de grossa e pezada cantaria. Virão os Arcades como lhes estavão á mão as obras, não todas primorosas, mas quasi todas massiças dos nossos quinhentistas e dos romanos classieos:[146] erão accommodadas ao intento, dizião com seu gôsto e costume; valerão-se d’ellas, accrescentarão-lhes as suas proprias, levantarão o muro; bramio, quebrou e escoou-se a inundação. Raro he o bem, que só porque o he, não traga outros comsigo: dos trabalhos, que havião tido por fim acabar com os nojos e puerilidades do falso engenho, nasceo um conhecimento mais profundo da linguagem, mais extremoso amor á sua pureza, e o comêço do encarniçado e ainda não findo pleito, entre a puridade e o gallicismo. Verdade he que n’este segundo campo se não guerreou com tão favoravel marte como no primeiro, porque se as maravilhas da Fenix Renascida passárão, os gallicismos fôrão em successivo crescimento, sendo ja hoje tão caudaes e trasbordados, que princípio a desconfiar não haverá remedio senão rendermo-nos, encruzar os braços, e deicharmo-nos ir ao fundo: tanto estou convencido de que nem a propria razão he poderosa contra o espirito de um povo: e a final de contas, Deos sabe, até n’isto, o que he razão!
Era Filinto, por sua amizade e commercio íntimo com os sujeitos de maior credito na Arcadia, e por motivos de sua propria conveniencia, homem que de necessidade devia entrar na pendencia, e sustenta-la até á ultima: n’isso assentou, e o cumprio mui pontualmente. Entendeu desde todo o princípio, como aquelle a quem não fallecia bom juizo, em se prover das armas seguras e bem[147] temperadas, sem que lhe não conviria arriscar-se no combate: e se as defensivas que vestio lhe podessem ter saído tão impenetraveis ás setas do ridiculo como as offensivas que meneou erão fortes e penetrantes, guapissimo Cavalleiro houvéra apparecido, e invencivel. Do antigo portuguez e do latim instituio concertar toda sua armadura: com diurna e nóturna mão versou pois os monumentos de ambas estas linguas; e quanto do portuguez ja feito se podia enthezourar, ou se lhe podia accrescentar por derivação, por composição, por analogia, por translação, ou por qualquer outra licença poetica, sem embargo de desenvolta e extrema, tudo ouzou com ardimento verdadeiramente admiravel. Fez estranheza a novidade, offenderão-se os mimosos com o escabroso e difficil de tal estilo, arripiarão-se os pusillanimes com o arrôjo, os ignorantes e priguiçosos com a immensa fadiga que bem vião seria necessaria para entender, não só imitar e seguir, quem tão por fóra caminhava das veredas batidas e vulgares. Todos estes, e com elles os invejosos, saírão em campo, combaterão, e apuparão, e quanto mais apupavão e combatião, mais recrescia em Filinto o acintoso proposito de se não descer do começado, antes encarecê-lo sempre até o ultimo ponto. Outra causa havia que para isto lhe fazia fôrça, e era conhecer como sem estes bordados, recamos e relêvos de frase, o cabedal de suas galas poeticas appareceria, qual em realidade era, grosso, commum e de mui baixa valia.[148] Mas quer o movesse esta causa bem perdoavel, quer fosse generosidade com que se offerecia aos motejos, e desapreço de muitos, com o só intuito de restaurar, e avantajado, o edificio do idioma portuguez, sempre fica certo que n’este particular mereceo mui bem de sua patria, e a deixou muito mais medrada do que a achára. Oxalá que dois ou trez mais, dotados de igual credito, pozessem como elle peito á empreza; e muito embora demaziassem como elle: cunhassem a flux tudo quanto dão as minas portugueza e romana; ainda muito oiro puro de dicção viria enriquecer-nos, e facilitar-nos o tracto; pôsto que tambem como elle lá cunhassem á mistura oiro enfezado, não de lei, nem de receber: o juizo público estremaria umas de outras moedas, e as engeitadas a ninguem farião mal, se não fosse ao credito de seu autor. Assim crescêra cabedal, que ainda mingoa para as obras do engenho patrio. Nossa lingua, qual por ora a temos, e até restituindo-lhe todos seus fóros caídos, todas suas joias enterradas, não supre as hodiernas precizões do espirito. Quando a esfera do saber, sentir e pensar se está de hora para hora dilatando no mundo, do qual nós outros (ainda que o não pareçâmos) somos tambem parte, forçado hé que a esféra da expressão ao mesmo compasso se dilate, e engrandeça. Repôr ao idioma quanto ja teve será louvavel consciencia, porem não bastará, se apoz isso se lhe não dér com mão liberal, mas prudente, quanta substancia nova elle possa receber e commutar, para[149] que na apostada carreira que os entendimentos das nações agora levão para o infinito desconhecido, o da nossa, por fraco e sem azas, se não deixe ficar atraz.
Uma reflexão quero eu aqui fazer, mais que a taxem de digressão; não será nova para os que escrevem, mas servirá para que os que lem se abstenhão mais de acoimar pobrezas em nossos poetas. Ja das palavras se averiguou serem ellas fio e arrimo de que a mente se vale para melhor ir seguindo por suas ideas sem queda nem tropêço. Pois se as palavras, que não passão de reflexos e retratos do pensamento, tem virtude para o fecundar, menos ainda se duvidará precizar a imaginação poetica de uma abundante linguagem, para se manifestar por obras, assim como o pintor de finas e variadas tintas para seus paineis, e o musico de instrumento pronto e copiosamente registado, para enlevar os animos. O poeta francez, porque tem uma lingua que á fôrça de bem cultivada por muitos e differentes engenhos, se accommoda préstes e serviçal aos pensamentos mais subtis e novos, e aos affétos mais delicados e passageiros, d’ella se ajuda para inventar, e com ella exprime completamente o que inventou. Não assim nós, que em pertendendo alçar-nos por cima das communs ideas do nosso paiz, nos achâmos, sem o cuidar, pensando em francez; e se isso, que bem ou mal nos apparece na alma, tentâmos passa-lo para o papel, suâmos, bramimos, aqui nos faltão de todo as[150] expressões, ali só tibias nos acodem, outras mal determinadas e mal entendidas, outras estiradas em perífrases. Dai-me o proprio Lamartine nascido nas margens do Tejo, e pedi-lhe uma só Meditação, uma só epocha de Jocelyn; grande será o acêrto se as conceber, quasi impossivel que as escreva. Ponderou Condillac mui avizadamente, que a razão porque apparecião em certo povo e tempo maior numero de varões abalisados em letras, era o ponto de crescimento e sufficiencia abastada a que chegou n’esse tempo a lingua d’esse povo. Melhor será que o deixemos por sua boca doutrinar-nos, que bom missionario he em couzas d’estas.
“Acontece com as linguas (diz elle) o mesmo que com os algarismos dos geómetras: quanto mais perfeitas são, mais vistas novas nos offerecem, e mais nos dilatão o espirito. Os bons acertos de Newton de antemão havião sido preparados pela escolha dos sinaes que antes d’elle se fizera, e pelos methodos de calculo ja imaginados. Se mais cedo nascesse, podéra ter sido homem grande para o seu seculo, mas não fôra agora maravilha d’este nosso. Outro tanto vai pelos demais generos. A boa fortuna dos engenhos mais bem aparelhados inteiramente depende dos progressos da lingua no seculo em que vivem, porque os vocabulos correspondem aos algarismos dos geómetras, e o modo de empregar os vocabulos corresponde aos methodos do calculo. Por tanto,[151] em uma lingua aonde ha penuria de palavras ou de construções bem azadas, ha os mesmos obstaculos em que a geometria topava antes do invento da algebra. O idioma francez foi por largo discurso de tempo tão pouco ageitado aos progressos do espirito, que se imaginarmos Corneille em cada um dos seculos ascendentes da monarchia franceza, quanto mais ao remontar nos fôrmos afastando do em que viveo, tanto mais, e gradualmente, irá mingoando o seu engenho, e chegar-se-hia por ultimo a um Corneille que nenhuma prova poderia dar de talento.”
Voltemos a Filinto. Não decedirei se houve ou não bom fundamento para o allegarem por autor e texto, como o fizerão na quarta edição do Diccionario de Moraes: nem ouzaria eu pôr mão no fogo pela infallibilidade de sua pureza, porque (mas a medo e sommisso vai o dito, que por dito e não sentença merece vénia) aqui ou acolá se me figura enxergar por suas paginas algumas nódoas d’aquella mesma côr a que nunca perdoou odio. Mas se as ha, são manchas, no passo que o geral de sua escritura he recheado de muitas preciosidades para quem poz peito a bem escrever esta lingua. Por toda a parte lhe estão pullullando lusitanismos em vocabulos, frases, collocação, inversões, geito e feição de períodos, que se houver gôsto em quem lê para os joeirar e limpar de alguma mistura chôcha ou sédiça, farão muito bom sustento para poetas e prozadores. Se houver gôsto, puz[152] eu, e muito que o puz de indústria, porque, os que d’elle carecerem, lição tal só os fará mais ridiculos; os que ainda o não houverem formado, e se metterem por esses onze e mais volumes sem bom e constante Mentor, não sei se em linguagem e em poesia viráõ nunca a dar fruto que bem saiba e se abençoe.
Em summa, Francisco Manoel do Nascimento foi um martyr da religião de nossa lingua: para lhe lançar mais gloria cerceou a sua propria: com o excessivo das joias com que a arreou, deixou-a affétada, e menos matrona grave do que bailarina de corda; sim habilidosa e leve, mas dengosa e presumida: mostrou-lhe o como e por onde devia subir á perfeição, a que por outros, porem tarde e mui tarde, será levada: foi, porque tudo diga, um destemperado despertador, que nos poz a pé para o dia das letras.—Quero repetir, fez serviço talvez maior que nenhum dos classicos, mas he de todos o menos para seguir ás cegas. Bem haja elle que tocou a alvorada para nos acordar, mas mal haja quem quizer ficar com trombeta tão rouca e dissonante a tocar alvoradas todo o dia: ja estamos acordados, cabe agora aproveitar o tempo, como gente de juizo.
Se da lingua passâmos em Filinto á harmonia métrica, damos maior salto que o de Léucade, e como cumprindo igual oraculo, ou nos afogamos em um mar bravo, ou de lá surdimos curados de todo o amor a tal poeta.[153] Em nenhuma das quatro ou cinco partes do globo, e em nenhuma era se metrificou jamais lão dura, desleixada e insolentemente. Se alguma vez se esquece com dois ou trez versos bons, logo se vinga com duas ou trez duzias, que se os reduzissem a linhas iguaes, não serião mais nem menos que desaceiada proza. E ainda he para agradecer quando só lhe falta melodia, porque algumas vezes nos dispara versos, em que as pauzas vem todas desconjuntadas, e outros, em que sobejão síllabas, por mais que a maço as procuremos entalar e embeber umas por outras.—A sua rima he por via de regra desnatural a pobre: os seus sonetos e toda sua lírica de consoantes, enxabimentos ou arripíos. Bem se alcança como erão arrufos de maltratado, as injurias que em muitas partes vomitou contra a rima, e não como as de Boileau, vozes só de um juizo rigoroso, que de dentro das letras as media. Nos defeitos de versificador fez de idade para idade successivos enotados progressos, sendo assim que ou por desleixo, ou por certa petulancia, em que engenhos grandes muitas vezes cáem, tomando por timbre o escarnecer do Publico, quanto mais hia usando do officio, tanto mais desprimoroso se foi mostrando, até ganhar tão duro callo na consciencia, que nem a deliciosa harmonia dos versos de Racine lhe podia ja ao cabo inspirar, um só verso toleravel de tradução.
Do muito que só deixo apontado se deduz a idea que para mim tenho do seu gôsto; melhor[154] será do que só deixa-la deduzir, declara-la. Parece-me pois ser o seu gôsto pouco e máo; e n’isto estribo o parecer: 1.º que para suas Obras originaes costumava de escolher fracos sujeitos—2.º que as pejava de taes invenções que ja em tempo de Romanos o não erão—3.º que por vida se repete, e por costume redunda—4.º que na ordem desordenadissima em que seus escritos pôz, anda o peor tão travado com o melhor, e as puerilidades vergonhosas com as Odes que lhe lucrárão nome, que sem que o lustre do bom disfarce o máo, o esqualor e nojo d’este deturpa e estraga aquelle—5.º que se para traduzir elegeo ás vezes bons originaes, taes como o Oberon e os Martyres, outras os escolheo desenganadamente incapazes, taes como a triste historia em verso da Guerra Púnica: outras vezes, escolhendo originaes optimos, nem antevio, nem pelo discurso do trabalho conheceo, nem sequer sentio depois de findo (porque talvez se o sentisse nos houvéra poupado a ler a versão), que havia n’essas Obras exclusivos e essencialidades, quer da lingua em que estavão feitas, quer do engenho que as fizera; haja vista ás tão graciosas e admiraveis fabulas de Lafontaine, que em Filinto parecem tanto as mesmas, como a estampa de Bertoldo se podéra julgar retrato do Apollo de Belveder. etc. etc. etc. etc.
Taes são hoje para mim Filinto e Bocage: mui outros dos que ja me parecêrão, e talvez[155] dos que me hão de parecer quando novos livros, novas couzas, e o rodear dos annos me houverem feito sou ordinario e incontrastavel officio. N’aquellas eras pois, que ja eras antigas se me representão aquelles meus tempos, caía todo com o meu Gessner em braços, para a parte de Bocage, mancebo e lustrozo; e se me figurava que se lograsse trava-los, fundi-los em um, faria obra de se me agradecer. Os partidarios de Filinto, que não sei porque, trazião guerra declarada com Bocage, vierão saindo de seus montes escarpados, empeçados e tenebrosos, para dar váias e tirar remêssos de epigrammas ao nosso bando: cerrámo-nos com a bandeira, démos sobre elles com iguaes armas, foi batalha campal, rôta e sem misericordia: não houve mórtos nem cativos, poucos transfugas, feridos muitos. Recolhidos nas trincheiras, cantámos uns e outros, como he costume, o Te deum da vitoria; dobrámos a altura aos vallos, e profundez aos fossos que nos estremavão; jurámos não acceitar nunca pazes, quanto menos commette-las, nem consentir em alguma couza que ás dos inimigos se parecesse. Eu que fôra dos mal feridos e ainda palpava as costuras, como havia de faltar a nenhum ponto da conjuração? Muitos d’elles merecerião tratados, mas porque não fazem para o fim d’esta Nota, venho aos esdruxolos, e só libarei a materia.
Da natureza, como quer que seja, nos vem sempre o gôsto; mas sendo que a moda, que[156] muitas vezes se gera de um acaso, introduz o uso, e este chega a mudar ou alterar a natureza, vem a ser o gôsto em muitos casos enleada materia e muito esquiva para questão, abonando-se talvez por ahi o proverbio, que sobre gôstos prohibe disputar. Dir-me-hão, que nada tem a natureza com os métros, que só a moda a seu talante os cria e os acaba: he e não he verdade; mas tambem isso deixaremos de parte, por pedir digressão larga e mui sobida filosofia. Em breve, parece-me que a fantasia ou o acaso inventa os métros, a moda os espalha e rege, a nossa natureza se lhes affaz, mas deve quanto podér afeiçoa-los e conchega-los comsigo. Das dez, onze ou doze síllabas de que pode constar o nosso verso heroico, quiz a moda que o numero de onze fosse em Portugal, Hespanha e Italia o usual e corrente; moda que estribou no ser d’estas linguas, em que a quantia de vozes graves excede á das agudas e dactílicas. Costumou-se o ouvido com a igualdade da queda, criou uma certa natureza, e todas as vezes que inopinadamente o obrigão a outra queda maior ou menor, como que se espanta e sobresalta: porei exemplo nos que sobem ou descem ás escuras e ja pelo tino uma escada; se lhes falta no subir um degráo com que ainda contavão, o pé que no ar pôz firmeza cáe em falso, e comsigo leva todo o corpo estremecido; se lhes sobeja um no descer, o pé que ja se dava por assente, não desce mas atropella e traspoem. Por tanto, regra geral, o verso grave, que he o da moda e tambem o da[157] nossa natureza, he o de que nos deveremos servir: como porem entre as couzas sujeitas á poesia, se nos deparem algumas, cuja indole póde ser esse mesmo estremeçáõ, ou atropellamento, razão será que em taes casos bem averiguados e por via de excéção, acudamos á idea com o verso que melhor lhe condiz: os exemplos são faceis de colher nos autores, não gastaremos com elles papel. Ora para se consentir n’esta excéção, não deixa de haver outro motivo de algum momento, e verdadeiramente he elle o mesmo em que a regra geral se fundou; porque as estranhezas, que por desagradaveis persuadírão á regra, por uteis nos conformão com a excéção, sendo que tem virtude para nos espertarem, quando o embalar da monotonia nos vai adormecendo. Não por outra causa, vierão os melhores metrificadores latinos em variar, ainda que rarissima vez, os seus hexámetros perfeitos com o espondaico ou com um monosíllabo final: ambos nos abalão; os primeiros em certo modo como os esdruxolos, os segundos como os agudos; e abalando-nos a propozito, por exemplo para sentirmos a queda do animal no famoso procumbit humi bos, deixão-nos afiados para proseguir com attenção, e melhor tomar o gôsto ao caminho, que outra vez continúa lizo e macio, passado o tropêço.
Assentámos o princípio, vejamos se o uso lhe tem sido conforme. A Italia, attenta a prontidão, e musica de sua lingua, devêra ser[158] d’estes trez povos do sul o mais aprimorado em toda a qualidade de metrificação, e todavia he o contrario no hendecasíllabo sôlto, podendo dizer por si o que o seu Ovidio poz na boca de Narciso, que a sua riqueza a fez pobre: os seus poetas, ainda os modernissimos, sôbre não curarem dos sons que recheão o verso, e quantas vezes nem das pauzas, sôbre estirarem desmesuradamente os seus períodos, consentindo que os versos se travem e encadêem de contínuo, misturão sem nenhum motivo de effeito, os versos agudos e esdrúxolos com os graves, segundo o acaso lhos vai deparando. He o mesmo que succede a quem possue terra de sobejo fertil e facil: ella que supra por si ás primeiras precizões; trabalhe-se o necessario para que não falte, o resto, que bastaria para a fazer paraizo, dê-se á priguiça. Os francezes, que tão menos poetica lingua tinhão, obrigados por essa mesma pobreza a cultiva-la, esmerados e incançaveis, ¡quanto a não levão ja por arte, adeante do que por natureza podéra ser a italiana! são n’uma parte os paúes de Hollanda a produzir; na outra, terras pingues e dobradas de Otaiti a regalar com pão e frutos espontaneos aos semi-nus e ociosos naturaes. D’este versejar de italianos, me dizia uma vez José Agostinho de Macedo, que a maior parte de taes poesias lhe dava a lembrar as récuas de mulos de almocreve, que enfiados e prezos uns a outros, ao som dos chocalhos enfadosos, la se vão, ora tropeçando ora erguendo-se, continuando o caminho, e sempre chegão com a carga[159] onde tem de ir. Quando assim fallo, quero que se entenda que me não refiro a todos sem excéção, mas só ao geral d’aquelles poetas. Bem pode ser que os haja agora primorosissimos que eu não conheça, e dos conheçidos alguns ha com quem não serei tão severo taes como Monti na tradução da Illiada, Fóscolo se me não engana a lembrança que d’elle me ficou, Alexandre Manzoni, e Felice Romani.
Em Portugal, pois que a lingua era tambem préstes e serviçal, e os que n’ella poeta vão se comprazião de se irem sempre na pista dos Toscanos, sente-se nos poetas antigos o mesmo desmazelo. La andão com os versos graves os esdruxolos inuteis, ainda que não frequentes e os agudos aos cardumes. Camões, que de todos elles foi por ventura o de mais delicado ouvido, rimando hendecasíllabos, até na epopea não duvidou em os pôr, quando acaso lhe apparecião, e sem nenhuma intenção ou fito poetico; o que a Vasco Mauzinho de Quebedo seu inferior em poesia, mas superior, se he lícito dizê-lo, em metrificar, por tal arte desagradou, que em todo o poema de Affonso Africano nunca interpolou com elles versos graves, e d’isso faz alarde em seu prologo.
N’esta incerteza correo a couza até os nossos tempos, em que dois homens de fôrça, dois athletas da poesia, representando cada um uma das encontradas opiniões, devião ter perante[160] os olhos publicos um calado e rijo certame, para decisão ultima da contenda. Foi Bocage o mancebo, cavalleiro da metrificação liza e uniforme; o velho Filinto da mista e libérrima. Todo o empenho de Bocage era a harmonia constante, todos os seus versos forão graves, e de compasso batido. Nascimento queria por cima de todas as outras couzas dar todas suas ideas, boas ou más, graudas ou miudas, mui bem pintadas e repintadas, que ainda quando insignificantes, não deixassem de ferir na vista. Servia Bocage ao metro como a senhor: Nascimento, como de escravo se servia d’elle, trazia-o rôto, contrafeito, demudado, e por todas as ilhargas estalando com o pezo da carga. Se he lícito comparar estes dois poetas com outros dois romanos, de muito mais subidos quilates, digo, que são na metrificação hendecasíllaba, o que nos dístichos elegíacos eróticos forão Ovidio e Propercio. O dísticho de Ovidio he sempre torneado por medida, nada lhe falta nem sóbra, reluz de polido, e algumas vezes pouco péza: nos de Propercio ha sempre mais succo de couzas (bastante espremeo d’elles Ovidio para seu remedio); mas o hexámetro sáe amiude desalinhado, o pentámetro dissonante da sua usual toada, acabando não em dissíllabo, como para bem o requer o geito de tal metro, mas em trissílabos e quadrissíllabos á moda de Catullo; partem-se menos apuradamente os hemistíchios, embebe-se e embrulha-se em demazia o pentámetro no hexámetro, e, o que mais rijo he, o hexámetro de um dísticho[161] no pentámetro do anterior; o que não tira ser Propercio, em meu conceito, um poeta de mui alta valia (e não sei se diga que o unico amante apaixonado dos antigos, com licença dos grammaticos e dos priguiçosos que o engeitão por escuro), e Ovidio um dos mais bem assombrados engenhos do mundo.
Do que levo ponderado, se he exáto como cuido que he, segue-se que nem Bocage, nem Filinto erão para modellos absolutos, e que tão desacordado andava quem não consentia em verso que grave não fosse, como quem esdruxolava por vida e fóra d’aquelles casos em que o esdruxolar traz em si mesmo a desculpa e o louvor. Entendi que ja por acinte o fazião, e por acinte contra acinte escrevi essa Nota da primeira edição, que atraz deixo trasladada. Fôra o voto pueril, conheci-o assim como o sangue alvoraçado da batalha me esfriou, mas tão sobre maneira se oppunha a vergonha a uma retratação, que permaneci até hoje sem um esdruxolo em tantos versos soltos como tenho impresso, e tantos mais que ainda não saírão á luz. Quantas vezes, compondo a Noite do Castello e o Bardo, não senti tentações e ímpetos de romper e acabar por uma vez com uma prizão imaginária, que a olhos vistos me estava tolhendo mui bons effeitos poeticos; e comtudo confrangia-me, esquivava-me, escrupuleava, e não podia acabar comigo que me resolvesse, podendo dizer como aquelle rei de França La se vai tudo, menos a honra. Os passos d’esses poemas[162] em que tal me acontecia, por si se estão indo agora denunciando, póstos os dactílicos imitativos nos lugares, que abaixo do final se podem reputar pelos mais autorizados e distintos do verso, que são o ponto do hemistíchio ou pauza do meio verso, e o comêço do seguinte, quando fica bem cortado e estremado. — D’este livro ao deante me dou por desobrigado do voto; e eis aqui, me parece, o como lã para os outros me hei de haver: nunca porer só por pôr ou por me forrar trabalho, verso dactílico; nunca o engeitarei quando a fôrça, graça ou qualquer outra vantagem da poesia o requererem. Bem quizera dizer outro tanto dos agudos, mas ahi ainda o meu antojo he forte; sei que a razão não está menos por elles, e não ouzo segui-la: veremos o que o tempo, grande causador de mudanças, poderá trazer comsigo.
Pag. 118. verso 6.
Quando um autor, para publicar os seus pensamentos se entrega á nossa boa fé o lealdade, os nossos olhos e mãos para logo mudão[163] de dono, ficão seus; tem de vigiar e selar o depósito confiado, para que nada se lhe accrescente nem cercêe: qualquer palavra, qualquer vírgula de mais ou de menos, por muito que as pareção estar pedindo este ou aquelle passo do texto, são mais que violação de testamento, porque ideas são propriedade mais real e sagrada do que bens da fortuna. Assim he, mas cumpre que não seja assim na presente occasião: faltarei ao direito do autor e á minha obrigação de secretario, para cumprir com outra mais santa lei, a do amor fraterno, alliviando aqui, e em mais de uma maneira, o meu coração, ás escondidas do mesmo autor, para quem serão grande novidade estas linhas, quando de alguem (que não de mim) as chegar a ouvir ler.
Direi em primeiro lugar, que na Festa da Primavera, cujas honras forão na maior parte a meu Irmão, os versos a que esta Nota vai lançada tanto abalo fizerão em mim, que pela primeira vez os lia, que eu me vi necessitado a interrompê-los coberto de lagrimas e afogado em soluços, para me ir lançar no seio d’elle, protestando-lhe assim, com um silencio que eu não tive palavras para romper, que os seus dezejos de vivermos para sempre unidos, ja em mim erão necessidade, e que o pensamento de separação se me representava tão atroz e impossivel como a elle. Eu o vi profundamente commovido entre os meus braços, e foi esta a primeira vez em que nos-fizemos[164] uma declaração tão expressa e amor, nós que semelhantes aos Dois amigos de Gessner, sempre tinhamos vivido e contávamos com viver um para o outro, sem ainda uma só vez nos havermos dado o nome de amigos. O meu voto, ufano-me de o dizer, tem sido santamente cumprido: ja la vão quinze annos, e eis-me aqui ao lado d’elle, eis-me tão inseparavel como tinha sido desde menino até áquella hora! que digo? ainda mais, porque para reparar a perda horrivel que elle acaba de experimentar; eu carecia de ter agora em mim, em vez de um, dois ou mais corações para lhe offerecer.
Agora cumpre-me preencher o principal fim d’esta Nota, transcrevendo para aqui alguns versos parallelos a estes, de um meu Poemetto, que com o titulo de Primavera recitei n’aquelle mesmo Dia. Os elogios que o leitor vai achar, não mos inspirou só a amizade fraternal, mas a convicção em que ainda hoje estou, e hoje muito mais, do subido mérito do elogiado. Aqui era o lugar de desmentir um grande numero, talvez a maior parte das sentenças, que sôbre a valia d’estes poemas a sua modestia (em tudo excessiva) lhe dictou no Ante-Prologo, e principalmente no Prologo d’este Livro: mas não cuido que a minha licença possa chegar tanto adeante: calar-me-hei, bastando-me agora ter desabafado, por algum modo, nos versos que se vão ler.
O mais deslavado e insôsso Poemetto na primeira edição, erão Os Cantos de Abril. Só a invenção fôra boa; na execução e estilo revia um tão contínuo desprimor, que me foi necessario demolir e reedificar. Por tanto, com o mesmo titulo he obra diversa, muito melhor, mas não perfeita, porque ja para a emenda da emenda não chegou a paciencia.
He a educação o maior prezente que de homem se pode haver. Vós, meu Pai, fizestes mais do que educar-me: superior a uma preoccupação tão geral quão perniciosa, vistes nascer o meu engenho poetico e não o destruistes, viste-lo crescer e não o contrastastes, senão que antes lhe déstes amparo, bafo e desvelos. Eis aqui por tanto um reconhecimento da minha gratidão.
Oxalá possão estes versos, que me afouto a vos offerecer, agradar-vos tanto, como os Cantos de Abril, no silencio da noite e debaixo do parreiral da cabana, agradárão ao bom Menalca.
Notar-se-ha que por todos os Poemettos d’este livro se dão sempre versos á infancia, e n’este Idillio tem ella não uma parte, nem a principal, senão o todo: se o porque, pode importar a alguem, agora lho direi brevemente.
Parece-me um Menino, de todas as couzas graciosas que Deos fez u graciosissima. Aquelle ajuntamento e consonancia de tantos dotes; formosura, d’elle proprio nem buscada nem sabida; graças que lhe ninguem ensinou; singeleza e candura; alegria, fraqueza, innocencia; e muito afféto, e muito mostra-lo; e total descuido do porvir; e não o temer nada; e a poesia particular do seu dizer; e a sua grammaticazinha natural que a nó nos faz rir, couzas são estas que apoz si me levão esquecido e encantado. No trato d’estes botões da humanidade, que vem abrindo, parece-me, e ja pareceo a muitos, poderem-se lucrar boas vantagens: ja não fallo em seu bondoso contentamento que talvez se pega, e na felicidade de recobrarmos horas de meninice, imitando-os, sem saber, a elles, como elles nos imitão a nós; fallo porem no muito que o nosso espirito se acostuma então a estremar o bom do máo, e a joeirar cá dentro o puro do impuro, para nem por sonhos profanar o que das[172] mãos da natureza saío e se conserva santo. E demais, um Menino não sabe nada, quer saber tudo, e por tudo nos pergunta: ¿não he isso estar-nos pondo a caminho de muitos descobrimentos de verdades e relações das couzas, que nunca aliás por nossa preguiça ou descuido fariamos?—Muitas pessoas vejo, e faz-me pena, desamarem as creanças, despreza-las, havê-las por menos de gente, tolher-lhes as fallas, as obras de sua idade, e Deos sabe se tambem o entendimento: eu por mim, quero-lhes muito, porque entendo que excedem em valia aos seus desprezadores, e sinto que a mim me levão grande vantagem em bondade e ventura. De um ajuntamento esplendido mil vezes tenho fugido para elles: no campo, melhor que em nenhuma outra parte, saboreio esta doçura a meu contento. Todos os pequenos das aldeas em que tenho estado me conhecem, e sei que são meus amigos: apinhão-se-me ao redor em me vendo; invento jogos, historias ou conversas para elles; divirto-os, divertem-me; uns com outros, e uns de outros aprendemos.
Erão horas bem doiradas essas de minha vida, como as ja tivéra João Jaques, como as terão tido muitos, e como as poderáõ ter quantos as dezejarem.
Lisboa: 7 de Janeiro de 1837.
Na muita rama que ao Idillio decotei para esta segunda edição, ninguem, por mais que a cate, poderá achar fruto, nem sequer uma triste flôr, se a não he o passo que para aqui traslado, da falla de Alexis pag. 96 na primeira edição; ácerca do qual e de tudo o mais quanto supprimi ou accrescentei, releva reclamar pela maior indulgencia dos leitores. Não ma negará quem ja alguma vez houver experimentado como de todas as couzas, que parecendo tenues, são agras e laboriosas, a mais agra, laboriosa, e não sei se diga impossivel, he poetar e metrificar as fallas da infancia: caminho he esse que estreitissimo corre por entre precipicios, sendo maravilha que ahi os maiores engenhos se tenhão, e sigão sem caír ou para a direita ou para a esquerda. O primeiro e melhor juiz do homem candido he a sua consciencia: a minha me diz que os trez filhos de Menalca nem sempre, antes poucas vezes, fallão como conviria: de sobejo são poetas para meninos e rusticos; e tanto, que se não fôra a resalva, que logo do comêço lhes vai lançada, de serem filhos de improvizador, e por elle doutrinados no canto, não haveria perdão que de ridiculos os salvasse.
Segue-se o excerpto, com todos seus defeitos e aleijões de nascença:
Se nos trez Poemettos precedentes pude fazer muito mais do promettido no Prologo, n’este último fica a minha palavra empenhada. Pouquissimos de seus defeitos mais palpaveis cheguei a apagar, e esses quasi só de linguagem. Receoso de me vir a faltar o tempo ou o animo, se desde a primeira pagina do Livro me começasse a esmerar seguidamente, fôra minha primeira occupação ir por todo elle despontando, á ventura e sem ordem, o que me apparecia pessimo, justamente como no Prologo deixára promettido. Conheci logo que este trabalho era insufficiente: entrei no outro mais miudo e ordenado; refundi a cito a Epistola, o Dia da Primavera, os Cantos de Abril, nenhuma das quaes Obras cheguei com tudo a lustrar. A Festa de Maio, por ser a derradeira, quasi ficou, e até nova edição (se algum dia se fizer) ficará, como era. O maior bem que lhe pude fazer, foi abri-la em dois Cantos, para que o leitor achasse marco onde descançar em tão enfadonha e comprida estrada.
SENHORAS,
A segunda tarde, que passámos em Festa na vossa Lapa, não tem jamais de nos esquecer. O vosso gracioso e cortez descer a ouvir-nos, as carícias com que amimastes o nosso Maiozinho, dando-lhe entre vós assento, detendo-o nos regaços, beijando-o, ¿como he que nos não havião de cativar, a nós, que o cingíramos de suas galas, o sentáramos em throno, pôsto que menos para apetecer, e o levantáramos por Divindade em nossos Cantos? Finalmente aquelle vosso generoso trocar de nome á Lapa, querendo que por nosso respeito se ficasse chamando dos Poetas, em tamanhos obrigações nos pozerão, que as Musas nos acodiráõ para um dia vos provarmos que nós, Sacerdotes seus, não somos ingratos. A minha, de mais atrevida que he, me envia adeante, a tributar-vos este Poema, que pois o approvastes, ja não he de vós indigno. He prezente de uma Deoza do Parnaso, não podem as trez Graças rejeita-lo.
Pelas trez horas da tarde do primeiro dia de Maio de 1822 ja nós, a Sociedade dos poetas Amigos da Primavera, nos achávamos á sombra das arvores, pelo Encanamento do Mondego, esperando anciosamente o batel, que nos havia de tornar á Lapa dos Esteios, para celebrarmos a Festa de Maio: de tantos que lá fôramos no Dia da Primavera, só faltava Anfrizo, em cuja vez recebêramos Antíono, mancebo mui dado a bons estudos, versado na lingua e poesia allemã, e autor ja então de Anacreonticas e Idillios de muito preço.
O suspirado batel acudio cedo á nossa ancia: todo toldado, alcatifado e cingido com mui curiosas invenções de verdes e flores, vinha parecendo o naviozinho do Primeiro Navegante. Abica, saltâmos-lhe dentro todos juntos; larga, vogâmos contentes e cantando. Quem bem quizesse pintar com a penna affétos do coração, não achára bastante um volume para historiar esta só tarde. Dezejára eu muito convidar cortezmente meus leitores a nos acompanharem, tomando seu quinhão em nosso folgar;[194] mas não o posso, e ainda mal, que o de maior valia fica-lo-hão perdendo. Hiamos todos tão unidos em vontade, conformes em gôsto, feriados de cuidados, crentes na ventura, chêos e cercados de poesia, e namorados da natureza, que os todos só parecião um, um só moço, transportado em bemaventurança.
Ora cantando, ora encarecendo, quasi adorando as varias gentilezas que a perto e a longe, e por toda a parte se presentavão e renovavão de contínuo, aportámos apoz uma hora, na formosa Lapa dos Esteios. Erguemo-nos, vozeâmos, voão do barco para o ceo foguetes que todo o ar estrugem, e para a margem os hinos de uma orchestra que comnosco hia. Diz a musica muito com todos os affétos da alma, mas do contentamento, onde o ha, faz alvorôço, que muitas vezes prorompe em lagrimas. D’esta maneira triunfal saltámos para o cáes, voámos ao alto da Lapa. Conhecia-nos o sítio pelos mesmos, desconheciamo-lo nós por melhorado: obrados erão sobre a natureza milagres de Maio. Ja as arvores alardeavão ás virações montes de folhagem, que pelo ar se embalavão ao sol; era agora o rio ainda mais puro, os ares mais temperados e benignos. ¿Quereis haver alguma idea da habitação das almas felizes? quereis pintar os lugares onde as Ninfas, os Faunos e Pan apparecião aos pastores innocentes na idade de oiro? entrai a Lapa dos Esteios pelos graciosos dias de Maio. He a Primavera nos princípios uma linda menina;[195] mas não sabe firmar o passo, balbucia, tudo teme, não se decide em nada, suas graças ja se annuncião claramente mas ainda se não desenvolverão; em Maio he moça toda viçosa de mocidade, a quem ledos cortejão Amores e Prazeres, cujo sorrir endoidece o pensamento, e vai entender com os corações. Tinha a Natureza dado a segunda mão e ultima ao lugar; mas a Arte quizera entrar com ella á competencia, sem comtudo lhe desacatar a primazia: tudo estava varrido e puro e concertado de um sem numero de vasos de muitas, e finissimas flores.
No alto assentámos o altar do Deozinho Maio: todo elle era verdura; duas colunas, artificiosamente fabricadas de flores, e rematadas em umas maçanêtas de igual marmore, se alevantavão dos dois cantos da frente, e communicando-se no cimo por um semicirculo, que na materia e primor não desdizia do resto, ajudavão a formar um genero de portico bem vistoso e engraçado; os lados, fundo e abobada do recinto erão de ramos verdes de todas as qualidades, bem entrelaçados e bordados de frescas e vermelhas rosas; no meio estava um assento pequeno, á feição de poial rústico, tecido de lustrosas heras, onde se via recostado o Maio em acto mui gentil, e com um geito todo seu. Era um Menino de cinco annos, louro como o sol, e alvo como a neve, cabellos crespos e annelados, caídos por um e outro hombro: de roupagem, não tinha outra de seu[196] que um aventalinho, que debaixo dos peitos lhe descia aos joelhos; o qual, assim como os listões que de cima dos hombros lho vinhão tomar encruzando-se por deante e pelas costas, estava recamado de cedro e buxo, com sua orla mui accesa de flores de romeira, cravos, e rosas: calçava cothurnos de seda escarlate; na cabeça ostentava corôa de verdura, e do braço esquerdo como que acenava ás vontades com um cabazinho, farto dos frutos do seu tempo; e tudo por modo tal, que a bôca se não sabia determinar se o diria nu ou vestido, nem a fantasia dos poetas se o quereria simples Menino, ou verdadeira Divindade.
Mandámos por dois dos nossos vizitar e convidar para a Festa as amaveis Senhoras, cuja he a Lapa, as quaes na quinta que por cima fica tem seu perpétuo domicilio. Não tardarão: recebemo-las como convinha, nós com a festa dos nossos musicos, e com muitos seus abraços as Senhoras, que abaladas dos annuncios de tão bôa tarde, nos tinhão feito a honra de acudir ao sítio. Ja era crescido o auditorio, e muito para contentar e accender engenhos: fomo-nos uns a outros seguindo com os poemas que levavamos, os quaes em fórma de rito religioso, se recitavão em pé deante do altar, fazendo a nossa orchestra uma harmoniosa ráia de poema a poema, que para tudo as tardes de Maio deixão tempo. Poz-se-lhe remate com os vinhos e saudes d’uma saborosa merenda, como á primeira tarde da Primavera se havia[197] feito. Passou-se o serão parte pelas salas, outra parte pelo jardim das nossas hospedeiras.
A noite era uma das mais bellas de tal mez: a lua brilhantissima despedia até os horisontes um clarão quasi diurno, não se enxergando nuvem por todo o descampado do seu céo; refletia-se, e desenrolava sua alcatifa de movediça prata ao longo d’esse Mondego tão digno de seus amores; o ar era tão manso e quêdo, que as luzes, curiosamente distribuidas por entre os vasos de flores, nem de leve estremecião; suave era de ver sair por toda a parte d’entre planta e planta uns reflexos verdejantes mui amigos dos olhos, muito mais da fantasia de poetas.
Prazeres que o coração estriou por uma noite assim enfeitiçada, não são para se poderem pintar. Pouco tardou que a sociedade, como acontece, se não soltasse e dispartisse em ranchos pequenos: a musica errante e fóra dos olhos, umas vezes folgando, suspirando outras, e outras como quem sismava algumas amorosas mágoas, hia-se ja pelos arvoredos da quinta, ja ribeiras do rio acima e abaixo, tão grata, que ainda não sei couza que mais quizesse. Muitos e muitas baillavão arcadicamente sob a abobada do céo, em quanto nós outros, os que das Musas só fôramos fadados para versos, os estudavamos e repetiamos á porfia. Algumas semelhantes horas devia ter passado o primeiro que escreveo Elisios.
Era a noite crescida para muito alem do meio, quando nos despedimos; e la foi caír na eternidade um dia, que ainda agora me persegue saudoso, e apoz o qual nenhum outro veio semelhante.
FIM DO CANTO PRIMEIRO.
FIM DA FESTA DE MAIO.
Como das bagatelas que forçadamente tenho semeado por alguns d’esses Jornaes, que he o mesmo que escrever em folhas e atira-las ao ar, algumas haja que não mereção de todo perder-se, estas me pareceo i-las recolhendo a meus livros, por qualquer modo que fossem achando cabida, para não ser como a Sibilla de Cumas, que em uma vez se lhe desmandando com os ventos as folhas que tinha escritas, ja para sempre tirava d’ellas o sentido: neo ponere in ordine curat. Por isso traslado[264] do Num. 3 do Jornal dos Amigos das Letras, todo o seguinte Artigo[15].
Antonii Feliciani de Castilho,
GALATEA: CARMEN.
Advertencia Preliminar
O fragmento latino que se vos offerece, sob o titulo de Galatea, he huma tentativa e nada mais: e quem mo quisesse haver a ostentação, não só mostrára quam pouco me conhece, mas ainda com atrocissima injúria me aggravaria. Discorridos são hoje mais de dez annos, depois que, desejoso de refrescar lembranças de conhecido com as Romanas Musas companheiras e alegria de minha infancia, me dei ao passatempo de metrificar em latim, ja os pensamentos que primeiros me occorrião, ja algum episodio de minhas proprias obrinhas; sendo assim, que esta fabula de Galatea a trasladei do Poema da Festa de Maio, no meu livro[265] da Primavera. Sei bem que não ha hoje, e especialmente por cá, leitores para o latim, sendo a final chegado o prazo de, com razão e sem o mínimo escrupulo, se poder chamar tal lingua morta e enterrada: sei mais que, inda mal, não respondem estes meus versos ao que eu anciára que elles fossem, e nem valem mais que uma boa parte dos ahi impressos na custosa Coléção de Poetas do nosso Padre Reis; e com tudo, a despeito d’estas duas tão fortes razões, e tão valentes para me deverem dissuadir, convim em que tão pobre couza se désse á estampa. Será, segundo muitas vezes se escreve em Prologos, para incitar engenhos a fazerem melhor? não. Pois será, como tambem em Prologos se usa de escrever, para que os Aristarchos me ensinem o que, o como, e o por onde devo corrigir e melhorar? menos; que não sei eu de um só que se hoje occupe com semelhantes vaidades. Como por tanto me livrarei da desmerecida taxa de presunçoso? confessando, como tambem em Prologos se costuma, mas d’esta vez com verdade, que o faço por obedecer a dezejos de pessoa, com quem muito me importa estar em tudo bem.
A questão, se sim ou não se ha de o homem alimentar de substancias animaes, tem sido muitas vezes, e com oppostas sentenças, debatida por filosofos, poetas, naturalistas e medicos. A affirmação e a negação achárão para argumentos ja uso e consenso de povos em todos os tempos, ja razões intrinsecas tiradas de nossa propria conveniencia. He assunto que requeria larga escritura, e em que a qualquer seria facil dissertar eruditamente. Voar-lhe-hei pelas summidades.
Aquella vaga tradição, que em toda a parte permanece, de uma primitiva idade do mundo innocente e felicissima, entre as couzas de que reza, aponta sempre o não se comer de animal algum, senão só de frutas, hervas, leite e mel. De outro modo se não podião sustentar, conforme parece pelo ancianíssimo Genesis, os moradores do Paraizo, não só homens, porem todos os viventes. Quadrava o preceito e toava o uso pelo menos á humana natureza, que ainda agora, se a bem espreitarmos na infancia, ou antes de alterada por contrarios habitos, se afflige e revolve com o aspéto do sangue e morte. Verdade he, que depois da queda de nossos primeiros pais, nem o Testamento velho nem o novo, tornão a prohibir as carnes; mas toques[270] da mesma nativa compaixão para com os animaes não lhes faltão, dos quaes pelo menos se deduz por bom discurso, que se os tivermos de comer, ainda ahi nos devemos haver com a possivel mansidão, poupando cruezas escuzadas, como são, e se costuma, atormenta-los na agonia por lhes refinar o sabor, caçar, montear e pescar por passatempo e pelo mero gôsto de malfazer. Lê-se nos Proverbios, segundo as versão dos Setenta: Justus miseretur animas jumentorum suorum; viscera autem impiorum crudelia.—O que justo fôr ha de se apiedar da condição dos seus brutos; mas as entranhas dos impios não se apiedão da nenhuma couza.—No Exodo: Non coques hædum in lacte matris suæ.—Não cozas o cabrito no leite de sua mãi.—He dito para ser ruminado, pelo mimoso do afféto que recende. No Deuteronomio: Si ambulans per viam, in arbore vel in terra nidum avis inveneris, et matrem pullis vel ovis desuper incubantem, non tenebis eam cum filiis sed abire palicris, ut bene sit tibi, et longo vivas tempore.—Se o acaso te deparar no caminho, quer em arvore quer no chão, um ninho de ave, e a mãi estiver a agazalhar os filhos ou os ovos, não a tomes com os filhos, senão que em boa hora a deixes ir, para que boa estrêa te venha, e vivas largos annos.—
Entre os Santos Padres, que são os depositarios e dispenseiros do espirito christão, alguma couza se podéra citar que autorizasse este[271] genero de piedade. Sabida he a de que usou S. Anselmo, uma vez para com uma lebre, outra para com um passarinho. Tertulliano se maravilha de que entre christãos, os haja que se accommodem a ser carniceiros: nescio an dolendum an erubescendumn sit;—não sei, diz elle, se mais he para se haver lástima, se vergonha. S. João Chrisosthomo escreva, que se não podia ser santo sem uma estremada suavidade de affétos, e muita vehemencia de bem querer, não só aos nossos, mas ainda aos estranhos, em tanta maneira que até aos brutos animaes abranja essa mansidão. (Homil. 29. na Epist. ad Rom.) E dizia bem, que nas vidas de não poucos santos resplandecem as provas. S. Francisco de Assiz resgatava os cordeiros que hião para o córte, pagava e soltava as redadas dos peixes e os viveiros das aves. Mas não apontemos mais, por não enjoar filosofos, digo filosofos de nossa terra, dos que nos assoalhão filosofia de torna viagem, porque os lá de fóra ja deixarão muito para traz a impiedade.
Não he porem necessario ser christão, senão que basta ser homem, para repartir com os brutos do thesouro da charidade, de que muitos d’elles usão a seu modo, não só para com os seus, mas para comnosco. Sendo assim que onde os não maltratão, são elles de indole muito mais benigna: em Inglaterra, segundo se diz, nem ha cão que ladre, nem besta que escoucinhe: em não sei que ilha dezerta, acharão[272] os primeiros descobridores, em aportando, (segundo encontrei na Escolha de Viagens por John Adams) serem tão cortezes as aves de que toda era chêa, que não fogião dos novos hospedes, antes os festejavão e se deixavão pôr a mão; semelhantemente ao que da ilha das Garças aponta João de Barros Dec. 1 Liv. 1 Cap. 7, aonde “como não erão traquejadas de gente (as garças e outras aves), ás mãos tomarão (os marinheiros de Nuno Tristão) tanta quantidade d’ellas, que ficou por refresco ao navio.” Dos leões he corrente entre os naturalistas não perseguirem, mas esquivarem-se dos perseguidores, embrenhando-se cada vez mais pelos seus sertões adentro, sendo alias mui leves de domesticar, e folgando de acompanhar, como rafeiros innocentes, a trôco de qualquer esmola de pão, por largo espaço de leguas. Muitas são em toda a parte, mormente em Africa, as serpentes, que namoradas do bom gazalhado, trocão seus matos pelas pouzadas humanas, e n’ellas se hão como boas comadres da familia. O cavallo do Arabe he o contubernal e primeiro amigo de seu dono: um bom Arabe na morte do seu cavallo deveria de se expressar pouco mais ou menos como Millevoye o suppoem na Elegia. Muitos prezos tem logrado domesticar aranhas e ratos, até o ponto de, no meio das asperezas de um segredo, se poderem esquecer por muitas horas do seu desamparo, crueldades e injustiças humanas. No páteo da rezidencia parochial de S. Mamede da Castanheira do Vouga,[273] todos os dias a horas certas viamos acudir ao almoço e cêa que ás nossas pombas desparriamos, todos os passarinhos da vizinhança, que ja traziamos tão correntes, que nos vinhão comer aos pés, por saberem (porque os brutinhos sabem muito mais do que nós outros cuidâmos) que n’aquella cazinha da solidão moravão amigos seus, e nunca terem ouvido tiro, nem enxergado rede no pequeno arredor do templo e passaes solitarios.[16] Se a tudo isto e a muitos outros exemplos se lançar conta, alguma verdade se achará no affirmarem poetas, que no discaír da idade de oiro, ao mesmo tempo que se os homens corromperão degenerando em crueis, se forão as feras tornando bravias e desabridas.
Em todos os tempos, e até por fóra e mui longe d’esta religião charidosa, houve quem bem entendesse como entes nossos conterraneos n’este orbe, irmãos nossos em viver, sentir, padecer e acabar, com sangue e coração como nós, com amor, prazeres e filhos como nós, bebendo como nós no immenso vaso do pai commum o mesmo ar, a mesma luz, as mesmas aguas, e comendo comnosco á mesma mesa do universal banquete, poderião quando muito servir-nos de pasto; mas fóra d’ahi, qualquer[274] injúria que se lhes accrescentasse, seria hortorosa profanação e violação da natureza. Plutarcho e Quintiliano referem, que os Athenienses castigarão severamente algumas sevicias commettidas contra animaes. O Alcorão espalhou por todos os povos, que largamente senhorea, muita d’esta benignidade: raro Mahometano deixará de matar a fome ao cão de seu inimigo. Na China passa esta beneficencia muito adeante. Que no-lo diga em seu estilo chão o nosso Fernão Mendes, ou talvez o Jesuita que em seu nome, e por um modo tão rijo de crer, compilou tantas e tão preciosas noticias do Oriente, mui desacreditadas em tempo, ja hoje em parte mui abonadas de verdadeiras. Padre ou marinheiro, diz assim: (falla de uma feira que no rio de Batampina, em caminho de Nanquim para Pequim, se faz com mais da duas mil ruas de barcaças, nas quaes ha para vender tudo a que no mundo se pode pôr nome.) “Ha tambem outras embarcações em que os homens trazem grande soma de gayolas com passarinhos viuos e tangendo com instrumentos musicos dizem em voz alta á gente que os ouve, que libertem aquelles cativos que são criaturas de Deos, a que muita gente acede a lhes dar esmola com que resgata daquelles cativos os que cada um quer e os lança logo a avoar, e toda a gente dando hũa grande grita lhe diz, pichau pitanel catão vocaxi, que quer dizer, dize lá a Deos como cá o servimos. Ha outros homens que noutras embarcações trazem grandes panellas cheyas de agoa,[275] em que trazem muitos peixinhos viuos que tomão nos rios nũas redes de malha muyto miudas, tambem pela mesma maneira vem bradando que libertem aquelles cativos por seruiço de Deos que são innocentes que nunca peccarão, a que tambem a gente dando sua esmola, comprão daquelles peixinhos os que querem e os tornão logo a lançar no rio, dizendo, vayte embora, e lá dize de mym este bem que te fiz por seruiço de Deos. E estas embarcações em que estas cousas se trazem a vender não se hão de contar por menos soma que de cento e duzentas para cima.”
Na India são n’esta virtude extremosissimos. Alguns viajantes tanto encarecem a couza, que chegão a affirmar haverem por lá, ainda no seculo passado, hospitaes para as mais asquerosas sevandijas, como piolhos, pulgas e persovejos.
Pôsto que tudo quanto até aqui tenho trazido, possa parecer uma diversão do principal propozito, não o he, por quanto d’estes misericordiosos affétos he que se tem em parte derivado a abstinencia de carnes, observada por muitas pessoas, communidades, seitas e povos: em parte digo, porque em outros diversos fundamentos tem tambem estribado, como veremos.
E pois que a ultima que tocámos foi a India, a ella tornemos, levando por explorador e lingua, não algum estrangeiro, de que[276] outros se contentão mais, mas um patricio nosso, dos varios que para tal officio se podérão tomar: he Duarte Barbosa, e diz:
“Ha neste regno (de Guzarate) outra sorte de Gentios, que chamaom Bramanes, estes nom comem carne, nem pescado, nem nenhũa cousa que mora, nem mataom, nem menos querem uer matar, por asy lho defender sua idolatria; e guardaom isto em tamanho estremo que he cousa espantosa, porque muytas uezes acontece leuarem-lhe hos Mouros bichos, e pasarinhos uiuos, e fazerem que hos querem matar perante eles, e estes Bramanes lhos compraom e resgataom, dando-lhe por eles muyto mais do que ualem, por lhe saluarem has uidas, e soltalos. Se tambem El Rey, ou ho gouernador da tera, tem algũu homem, porculpas que cometese, julgado ha morte; ajuntamse eles, e compramno ha justiça, se lho quer uender, pera que nom mora; e tambem algũus Mouros pedintes, quando querem auer esmola destes, tomaom muy grandes pedras, e daom com elas emsima dos ombros e barigas, como que se querem matar perante eles, e porque ho nom façaom, lhe daom muytas esmolas, e que se uaom em pas; outros trazem faquas, e daom-se cõelas cutiladas pelos braços e pernas, e pera se nom matarem lhes daom muytas esmolas; outros lhe uem has portas ha querer lhe degolar ratos e cobras, ha hos quaes eles daom muyto dinheiro por ho nom fazerem, e desta maneira saom dos Mouros muy apreciados:[277] estes Bramanes se achaom no caminho algũu golpe de formiguas, aredam-se buscando por honde pasem sem bas pisarem. E em suas casas de dia çeaom; de dia nem de noyte acendem candea, per caso de algũs mosquitos nom irem morer no lume da candea; e se todauia tem grande necesidade de acenderem de noyte, tem hũa alenterna de papel ou de pano agomado, pera cousa nenhũa uiua poder ir morer dentro no fogo; se estes criaom muytos piolhos, nom hos mataom, e quando hos muyto aqueixaom mandaom chamar hũs homeins que antre eles uiuem, que tambem saom gentios, e eles hos haom por de santa uida, e saom come irmytães, uiuendo em muyta abstinença por reuerencia dos seus Deoses; estes hos cataom, e quantos piolhos lhe tiraom poemnos em suas cabeças, e hos criaom com suas carnes, em que dizem fazerem muy grande seruiço ha seu Idolo, e asy guardaom hũus e outros com muyta temperança ha ley de nom matarem: estes Gentios saom muy delicados e temperados em seu comer; seus manjares saom leites, manteiga, açuquar, e aros, e muytas conseruas de diuersas maneiras; seruem-se muyto de cousas de fruyta e ortaliça, e deruas de campo pera seus manjares; honde quer que uiuem tem muytas ortas e pomares.”
Na Historia de Mysore, lê-se que em Bengala, quando a violencia da fome a devastou em 1774, consumindo-lhe obra de trez milhões d’almas, forão em muito grande numero os[278] Indios que antes quizerão deixar-se morrer á mingoa, do que acabar comsigo comer carne de animaes.
Frequente e antigo he na India este antojo, e tão notorio, que não ha porque afogar o discurso com mais exemplos. Bem podia proceder isso em parte da vegetavel abundancia e espantosa cultura d’aquellas terras, e de alguma especial compleição do clima, ou natureza ou costumes dos moradores, ou algumas outras circunstancias, segundo as quaes os corpos se dessem melhor com os pastos leves e frugaes: viria depois a religião consagrar por dogmas seus os conselhos da higiene, como com vinho, toucinho e abluções aconteceo em muito oriente á conta da lepra: para melhor incutir o preceito, cerca-lo-hia de fabulas amigas da imaginação do vulgo, como a encarnação dos Deozes em corpos de brutos, e a transmigração das almas humanas por differentes sortes de viventes até parar na vacca; materias estas de que as historias e perigrinações fazem larga menção. Dos Indios podérão tomar por mão a crença os Egipcios, os quaes, sendo moradores de solo não menos liberal, devião tambem perdoar grandemente aos animaes, em quem reverenciavão suas Divindades, ou santuarios ambulantes que d’ellas forão: e confirma-me na suspeita a conveniencia, que ja de alguem deverá ter sido notada, do boi Apis do Egito com a vacca ainda hoje sagrada dos Indios. Do Egito provavelmente trouxe[279] Pithagoras para a Italia, em tempos de Numa ou Servio Tullio, a sua metempsícosa com a defensão do uso das carnes. Não pegou a invenção, se não foi em alguns escolares fanaticos de tamanho mestre; e nem filosofos pelo tempo adeante a sustentarão, nem poetas se valerão d’ella, afóra Ovidio nas metamorfoses, e só como narrador; e mais não deixava de ser fecunda e bem assombrada crença para poesias. Não pegou, porque não vinha propria á indole do solo ou ao temperamento dos Italos, ou, o que he mais certo, porque encontrava os antiquissimos usos de umas gentes, que primeiro tinhão sido pastoras e depois guerreiras.
Na Ilha da Palma, acharão os nossos, quando descobrião, conquistavão e amansavão aquelle archipelago, (senhorio traspassado depois em Castella, mas padrão glorioso do nosso Infante D. Henrique) serem mantimento dos moradores hervas, leite e mel.—Com este particular exemplo me acóde a memoria, mas alguns outros semelhantes de outras ilhas me parece ter achado pelas historias, de que me não ficou nem fiz a lembrança preciza.
Com a propagação da fé christã renasceo religiosa a abstinencia na Europa, por motivo não de brandura, mas de mortificação. Apparecerão Ordens numerosas de religiosos, primeiro só de homens, logo tambem de mulheres, que renunciando todos os carnaes deleites[280] para melhor apurarem os do espirito, tomando o exemplo dos primitivos eremitas que se abastavão com as hervas, raizes, frutas silvestres, e aguas dos montes, não só cortarão pelas demazias na quantidade do sustento, não só o estreitarão com regra de jejuns, mas em varios de seus institutos o expurgarão de todo animal terrestre ou volatil, não consentindo, quando muito, senão em algum marisco secco e fraco, para regalo das festas. E he para notar como ainda os mais rígidos observantes logravão saude inteira e robusta, e chegavão ao ultimo fio da velhice: mens sana in corpore sano.
Annos ha que me recordo de ter achado em uma Gazeta de Lisboa, estar-se creando em Manchester uma seita, que por filosofica defendia tomar qualquer sustento animal. Era noticia de Gazeta, não affirmarei que tivesse pé, e se o teve, não sei em que parou.
Ja que estamos com Inglezes, fallemos de Franklin. Este homem, a quem a probidade e o juizo fizerão filosofo e liberal, e não a devassidão e o estouvamento, tendo lido, di-lo elle, o livro em que Tryon recommenda a dieta vegetal, determinou-se em a observar. Pô-lo por obra, e limitando-se em arroz e batatas, e ás vezes ainda em menos, como passas, bolaxa ou pão, com uma gota de agua, não só forrou do seu salario (era ainda então compositor de imprensa) com que poder comprar livros, mas do seu tempo acerescentou[281] para estudos o que as refeições e digestões lhe podérão consumir: fez progressos proporcionados á clareza de ideas e fortaleza de percepção, que são o fruto da temperança no comer e beber. Seguio constante por algum tempo, não pouco, até que chega á ilha de Block, assiste a uma pesca, revolvem-se-lhe nas entranhas as maximas do seu Tryon, dá por genero de assassinio aquelle matar viventes, que nem tinhão feito nem erão capazes de fazer o mínimo mal. Poem-se os mortos ao lume, recende o guizado; o filosofo no seu tempo gostára apaixonadamente de peixe; entra pelo nariz a tentação, estremece a filosofia, e em boa hora lhe acode com uma bulla de composição, lembrando-lhe como ao abrir e limpar d’aquelles peixes, lhes víra dentro do buxo outros peixinhos mais pequenos. “Pois que he isto, diz elle entre si, se vós uns a outros vos comeis, porque não hei de eu tambem comer-vos a vós?” N’essa hora e com esta palavra se lhe quebrou o fadario; o que muito bem prova, acrescenta o bom homem, sermos nós animaes racionaes, sabendo, como sabemos, achar pretextos plausiveis para quanto nos póde dar gôsto.
Outro autor muito afamado de nossos dias, Raynal, era igualmente sobrio. A Senhora Marqueza d’Alorna, que muitas vezes o teve a jantar, me contou, que nunca o víra comer mais que algumas poucas hervas e fruta, nem beber senão agua. Era, observava ella, como um conviva das Ninfas, custando a crer como[282] com aquellas refeições de idillio se podessem sustentar tantos nervos d’alma e de pensamento.
Se depois de autores de livros se póde citar quem não sabe ler, em Grada, lugarejo da Bairrada, vivia um moço que eu conheci, o qual nunca provára vacca. Perguntado a causa, não era religião, nem filosofia, nem tedio natural, mas effeito de um vehementissimo e entranhado amor que tinha aos bois, com quem se creára, com quem vivia, lavrava, e dormia paredes meias. Rústico era, e sem o cuidar discorria e fallava como o Sabio de Cheronea, quando dizia, que por tudo quanto o mundo tinha, não venderia nunca o boi que em seu serviço envelhecêra.
Afóra os monges, filosofos e amigos dos bois, ha ainda uma grande quantia de homens, puro comedores de vegetaes em quasi todo o anno: são os moradores das serras e aldêas pobres, a quem a estreiteza de sua fortuna mal dá licença para chegarem á carne por entrudo e paschoa, e poucas mais vezes e só escassissimamente, ao pescado, vizita mui rara em terras mesquinhas do sertão. De choupanas sei eu, e quasi de inteiros lugares, pelas abas da Serra do Caramulo, onde oito annos vivi, que de pouco mais se sustentão que do pão de centeio e milho, batatas e alguns legumes: e estes asperissimos banquetes, em que até pelo demais fallece o agro vinho verde de seus[283] montes, trazem-os comtudo mais rijos e sãos no trabalho, do que as grandes ucharias aos mimosos das cidades.
Acabarei estes exemplos com o que melhor conheço, que he o meu. Quando eu compuz estes versos da Festa de Maio, era como ja no Ante-Prologo disse, todo Gessnérico: trazia a alma toda a nadar no coração empapado com os mais brandos affétos do mundo, como rosa a boiar em vaso de leite: amava as plantas e tratava com ellas como com entes sensitivos; todos os entes sensitivos amava-os como amigos e companheiros: tinha fantasia pronta, que muito ajuda em todo o genero de bem querer; esta me revelava de contínuo e me ataviava de suas fabulas e côres a particular vida e cheíssimo mundo de cada inséto; e porque esse seu mundo e vida dizia tanto com o meu, e o commum de seus substanciaes interesses com o commum dos substanciaes interesses dos homens, acontecia que imaginando-me ora grilo, ora passaro, ora borboleta, tinha aprendido uma perfeita, e se dizè-lo posso, egoista charidade para com todos elles. Ouvi debater a questão do uso das carnes: as razões affirmativas podião ter mais fôrça, mas as negativas dizião com o meu gôsto; he meia persuasão; caírão-me tão bem, que logo me dei, se não por convencido, por persuadido: e como persuadido e convencido escrevi os versos, que por isso aos indifferentes se de contrária sentença, devem parecer, como em verdade são, sobejos, exagerados e declamatorios.
Era o escrito fruto de minha opinião; mas esta, como accontece, se roborou por elle, e até tal ponto se confirmou, que do que até alí não passára de poetica theoria, instituí fazer prática minha em toda a vida, renunciando qualquer genero de alimento animal. Por duas vias se fazia de mal o tenta-lo, ja porque em couza tão excetuada do geral não deixarias de caír estranhezas e zombarias, ja porque tanta sobriedade entre quem a não usava, era genero de martirio continuamente renovado. Mas contra estes dois contrastes prevalecião outros dois argumentos: primeiro, minha consciencia, que repugnava banquetes de sangue: segundo, o presuposto em que estava, de que as faculdades da alma se havião de adelgaçar e crescer onde o corpo fosse favorecido da parcimonia. Metti-me Pithagorico aos vinte e trez d’Agosto do anno de 1822, tendo sido gastos os mezes, que desde a feitura do poema decorrerão até esse, em acabar de me resolver e aparelhar para tão grande façanha; e permaneci na observancia do voto até vinte e trez d’Agosto do seguinte anno. Acabei o noviciado, e em lugar de professar, despedi-me. Tive minhas razões; e ainda que pouco se me havia de dar agora do que se podesse dizer ácerca de um indivíduo, que n’esse tempo tinha o nome que eu hoje tenho, e do qual, segundo as theorias dos medicos, não conservo hoje uma só particula, sendo eu um, vivo e junto; elle outro, morto e disperso por todo esse mundo: todavia, porque ainda temos commum um leve som,[285] que he o nome, quero lançar pontualmente na balança do juizo dos meus leitores os seus porques; e bons ou máos, forão estes.—Primeiro: que a abstinencia de uma só pessoa não poupava uma unica existencia de animal. Segundo: que era presunção ridicula o desquitar-se um sujeito, por alguns argumentos, de uma opinião e uso quasi universal, sendo assim que todos os homens, guerreando-se entre si por crenças religiosas, por sisthemas filosoficos, por principios de política e sciencias, por modas e gostos, todos se conformavão no comer das carnes. Terceiro: que realmente era obstinação o desconhecer como a natureza nos não aparelhára só para comer e digerir vegetaes. Quarto: estar-nos ella dando nos proprios animaes, que uns de outros se sustentão, uma prova de ser menos escrupulosa do que Pithagoras e a poesia. Quinto: que ella propria os multiplica á proporção do que uns a outros devem tragar. Sexto: que se ella faz com que cada passada, cada pedra que movemos, cada gota de agua que engolimos, cada fruto ou folha que aproveitamos, cada sôpro que inspiramos ou expiramos, cada movimento emfim que fazemos, ainda dos mais indispensaveis para a vida, a destrua a milhões e milhões de entes conhecidos, e a numero talvez ainda maior de desconhecidos, não ha porque nos tenha a grande peccado, o aumentar-mos por nosso bem a lista com mais algumas unidades. Setimo: que o adelgaçamento e crescimento de minhas faculdades intelletuaes que eu esperára[286] d’aquella mais leve nutrição, não só se não tinha verificado, mas antes o contrário succedêra, pôsto que de diversas causas podésse pender o successo: e por muito tempo me ficou o costume de, quando via versos fracos e desengraçados, dizer: Devião estes de ser compostos por quem não comia senão hervas. Outavo, ultimo, e não leve motivo: que ainda que pouco dado ás delicias da gula, o cheiro e presença de melhores iguarias do que as minhas, de dia em dia me tentava mais, e quando succedia achar-me entre gente alegre e em mesa de festa, as ondas de tentação, que eu forcejava dissimular o melhor que podia, crescião e redobravão com os motejos dos circunstantes, que bem poderião ter sal, mas não que adubasse as minhas insôssas hervas.
De todos os varios antecedentes deduzo, que sem embargo das objeções, autoridades e exemplos, o uso das carnes se ha de ter por licito, e por dithirambico o que lá fica no texto: mas que fóra do caso de necessidade ou clara utilidade, e alem do ponto em que essa necessidade ou utilidade pararem, toda a sevicia contra viventes he immoral, injusta, insensata, e digna de muito grande castigo.
E tanto isto assim he, que, porque todo o carniceiro de officio contrahe na alma e nos modos alguma couza de cruento e de tigre, em muitas partes se tem por infame. Em Portugal, nenhum mechanico honrado e de conta acceitaria[287] um tal para sogro ou genro, ainda com grosso cabedal de renda; nem de boca plebea pode saír mais afrontosa injúria que o nome de magarefe. Em Inglaterra não os admittem jurados em causa crime. Na principal ilha das Canarias encontrárão seus descobridores, que os naturaes, com viverem á lei de sua rudeza silvestre, “havião por couza mui torpe esfolar alguem gado, e n’este mister de magarefes lhes servião os cativos que tomavão; e quando lhe estes falecião, buscavão homens dos mais baixos do povo para este officio, os quaes vivião apartados da outra gente e não os communicavão em aquelle mister” (Barr. Dec. 1. L. 1. C. 12.)—Bem hajão os inglezes, que formão sociedades para proteger animaes, e abençoado seja o inglez Deputado Martin, que para lhes fazer bem, se arrosta com os escarneos dos praguentos. Bem hajão os allemães, que em seus campos não perdoão multa municipal aos que, no levar rezes pelos caminhos, as atravessão deante de si na albardadura, ou tolhidamente as apinhoão dentro em carros. E bem haja a nossa Camara, quando conseguir desterrar o escandalo do afrontoso trato que nossos carreiros dão a seus bois, como ja desterrou a atroz e immoral matança dos porcos perante os olhos do povo.
Quero rematar com uma reflexão, que ja acima podéra ter cabido, mas que por dezejar da-la por conselho, e pô-la onde melhor se recommendasse, muito de industria deixei para[288] o fecho. Vai o dito a pais e educadores, a quem toca. Nada importa mais, do que affazer cedo os meninos a uma grande suavidade de costumes: assim foi creado o bom Montaigne. Se os eu tivesse, parece-me que tambem assim os crearia, e bem bons frutos lhes havia de colher na minha velhice. Primeiro que tudo, parece-me que me conformaria com Rousseau em os não alimentar desde o leite senão com vegetaes, por entender como elle, serem estes mais accommodados a suas naturezas, e mais proprios para fisicamente os suavizar e humanar. Mas não quero agora averiguar isto que pertence a medicos; outro he o meu alvo. Não consentíra jamais que presenceassem espetaculos de atrocidades ou injustiça; e quando a minha má estrella lhos presentasse, procuraria afea-los com boas razões, mais de affétos e lagrimas que de raciocinios. As urbanas corridas de touros e as aldeanas festas de alanceamento de pombos, frangos e patos, como couzas antiquissimas e nacional feição, as respeito; mas não levára la os meus tenrinhos, que são mui branda cera para qualquer bom ou máo cunho. Se de alguem lhes fosse insinuada a correntissima abusão de nossos provincianos, de que em casa que devasta ou maltrata os ninhos do seu beirado, tudo vai para traz e de fôrça se ha de aguardar por enterramento, calára-me, porque acho razão a Fontenelle em dizer, que se na mão tivesse fechadas todas as verdades do mundo, Deos o defendesse de a abrir.
Dar-lhes-hia, da Historia natural poetizada, tanta luz, quanta bastasse para levarem grande interesse nos fados de cada individuozinho que respira: um raio de tal luz póde bastar para pôr fim a muita dureza que provenha de cegueira. Conheci e tratei com um parocho de fóra da terra, que desgostoso de que uma sua fregueza, rapariga nova, não pozesse reparo em maltratar animaes, a chamou brandamente, explicou-lhe como tudo que era nascido devia ter algum entendimento, capacidade para dores e prazeres, parentes, amigos e affeições. Com isto só a fez outra, e tão outra desde essa hora, que onde depois se lhe fazia de mister dar morte a uma pomba ou gallinha, ainda que em seu páteo não forão creadas, ja o coração se lhe confrangia, tremião-lhe os pulsos, e chegada á execução, não corria mais sangue da ferida, que mal acertava, do que lagrimas de seus olhos.—De mim mesmo me parece agora, que se escrevi os versos a que me refiro, e em commenta-los me alargo tanto, e uma e outra couza de tão boa mente, de tudo deve ter sido raiz a creação, em tudo excellente e n’esta parte bem empregada, que meu pai se esmerou em dar a todos seus filhos.
Outra couza fizera eu principalmente; era commetter-lhes o trato e tutela de alguns animaes caseiros, a quem podessem chamar seus.[290] N’este exercicio aprenderião a ser observadores, vigilantes, serviçaes; tomarião com o gôsto da propriedade o amor do trabalho, havendo-se ja por algum modo como pais de familias; costumar-se-hião a acautelar, previnir e amar; tomarião para toda a vida o geito de amparar fracos e desvalidos, e de não ver um qualquer indivíduo, sem logo compor na imaginação a historia completa do seu viver, do seu padecer, do seu precizar.
Da efficacia de tal methodo, e tão simples, e tão formoso, tenho eu uma muito amavel prova de minhas portas a dentro. Uma mulher, toda boa, toda extremosa, tomou unicamente a peito o vingar-me da natureza; cerca-me de contínuo, como um anjo, de amor e de luz; empresta-me olhos para eu ver o mundo e as obras dos seculos; tira deante dos meus passos todos os espinhos no caminho da vida; inventa-me um encantamento novo para cada minuto; diz-me e faz-me entender como a verdadeira felicidade se não compoem de grandes pedaços, mas sim de atomozinhos que de longe se não podem perceber; repete-me e persuade-me que nasci para as Musas e para o amor, e não para a política, nem para os odios, serve-me, vela-me e defende-me como a filho, ama-me como a esposo, zela o meu nome como o de irmão; lançou a sua vida na minha vida, o seu pensamento no meu pensamento; existe pelo meu amor, morreria se lhe elle faltasse. Quem lhe ensinou tão generosa, tão nova benevolencia?[291] quem lhe deo tantos segredos de fazer feliz? as suas aves e pombas, a sua amiga, e alguns livros, unica sociedade da cella, onde desde seus annos verdes a Providencia ma estava guardando e aperfeiçoando[17].
Por estes versos começa uma torrente caudal de couzas vãs e doidas ácerca das mulheres,[292] e relações dos dois sexos, que ora mais, ora menos turva, se vai alongando até pag. 254. A pezar de se devolver por leito de quasi proza, e por entre margens para meu gôsto mal assombradas, bom seria que por ellas nos podéramos ir detendo a pescar, e a examinar algumas das couzas mais graúdas que vão na chêa: serião questões apraziveis de ociosa filosofia, mas prometti no prologo despreza-las; perdoar-lhes-hemos, deixa-las ir seu caminho. Passem a seu salvo as regras de namorar á antiga; a arte não de amar mas de enredar e colher, como o são quantas com titulo de amar se tem escrito; a poligamia, menos de Mahometano do que de Tupinamba; o divorcio e ulteriores nupcias dos divorciados e divorciadas; a botecuda nudez dos sexos &c. La se avenhão como poderem todas essas puerilidades com seus inimigos, que se de minha Musa nascêrão, muito ha que eu e ella as desherdámos. O meu ponto agora he assentar boas pazes para sempre com as damas. Todas minhas Obras, não só esta, Cartas de Echo, Amor e Melancolia, Noite do Castello, Ciumes do Bardo, me devem ter perante ellas representado cavalleiro descortez de desleal poesia. Tempo he de mudar de cores, abjurar o erro, e para merecer o perdão, que ellas de puro boas concedem antes de pedido, romper lanças em favor de sua fama, não só contra inimigos, se os podem ter, mas contra mim proprio, pelas ter aggravado. He uma Nota estreita arena para tão singular duello: mas embora, que para outro dia e campo desafiado fica o eu mancebo[293] desatinado e altivo d’outro tempo por mim grave, reflexivo e respeitoso; o eu versejador por mim pensador; o eu academico e solteiro por mim cazado e recolhido: emfim por mim conhecedor do terreno do combate o eu ignorante d’elle, a cuja face ja n’esta hora arremésso a luva, e lhe digo “Mentiste, e mercê de Deos e de minha Dama, provar-to-hei.” Mas pois que he forçado ficar para outro dia a pendencia, aqui não farei mais do que um pouco ensaiar-me para ella, campeando soltamente e esgremindo nos ares.
Nenhuma couza tem sido mais experimentada no mundo e mais vezes definida que o amor, nenhuma ha tão mal e imperfeitamente comprehendida como o amor. Fallo do amor dos homens, unico de que os homens podem fallar: o das mulheres he ainda mais incomprehensivel, e certamente muito mais espantoso, quando verdadeiro. O que pretende dar regras de amar, como alguns outros fizerão antes de mim, e como eu proprio supponho que pretendi, assemelha-se ao astronomo, que tendo endoidecido á força de ter velado as noites a observar os astros, presumisse, riscando órbitas com o lapis, constrangê-los a segui-las: as esferas e os affétos saem do nada ao sôpro de Deos, resplandecem com a sua luz propria e misteriosa, vão-se ora afastando ora aproximando de seus centros pelo caminho que sua natureza lhes ordena, eclipsão-se na hora prescrita, desappareceráõ quando Deos fôr servido; sem que em tudo isso haja querer,[294] escolha, presciencia, ou conhecimento de nossa parte. Amamos uma mulher, e certa mulher; porque temos de a amar; porque he necessidade sua e nossa que a amemos; amamo-la pelo modo que a natureza quer e não outro, não he uma acção mas uma paixão: se a premião o premio he gratuito, se a punem he injusto o castigo, porque não recáem sôbre um effeito de eleição. Ama-se uma mulher, repito, sem o procurar, sem o cuidar, sem arbitrio, a despeito da razão, da vontade e dos votos, como á rosa, como á lua, como á harmonia, como aos sabores dos frutos deliciosos. Para ellas se vai como os rios dos montes para os valles, como a chamma para o ceo, como a pedra do ar para a terra, como o menino para os peitos da ama, como o coração para o prazer. N’estas occasioẽs todo em nós he extraordinario, e se o posso dizer, sobre-natural: sentimo-nos fôrças que não possuiamos para querer, seguir, abraçar e reter: o pensamento se torna infinito, porque o objéto que procurâmos, como uma metade nossa que nos foge, nos apparece infinito. Por dentro d’aquellas graças fisicas, de que os sentidos se namorão, imagina-se um mundo estranho e illimitado de perfeições, de que se namora a alma: ahi se dezeja tudo quanto he capaz de embellezar a vida; o dezejo he logo esperança, a esperança certeza, a certeza delirio, e novamente dezejos; e quem porá limites a dezejos, a delirios, a esperanças? O abrangimento do infinito da Divindade em um corpo humano não he misterio que o amor não saiba muito bem entender. He[295] aqui o lugar de confessar que a este sobre-humano conceito, que da mulher amada se faz, mil vezes corresponde plenissima realidade.
Por mais que a natureza se aprimore em modelar, tornear, corar, amaciar, brunir, bafejar e endeozar o fisico da mulher, as suas graças, o seu merito, o seu ser de mulher não são esses dotes, sujeitos ao tempo e dependentes de um ar, assim como nas flores não são mel as pétalas vistosas e coradas, o cheiro suave e attrátivo, que o sol e o vento attenuão e desbaratão. Diz-se que as feiticeiras tem o seu encantamento em um novêlo; o novêlo do feitiço das mulheres está no seu coração e no seu espirito, que n’ellas he tambem coração. O coração da mulher não mora descançadamente reclinado no peito como o nosso, por toda sua alma esvoaça perdido de amor, gemendo de amor, como uma ave mãi e feliz por todos os ramos de um bosque de primavera: sente-se-lhe o frémito das azas, ouve-se-lhe a harmonia em tudo quanto diz, em tudo quanto cala, no que faz como no que deixa de fazer, no que pensa, recorda ou espera, nas lagrimas e no riso, no enfado e no contentamento, na vigilia e no sono. O coração lhe está á porta interior de cada sentido recebendo as impressões; para elle e por elle veẽm, para elle e por elle ouvem, para elle e por elle presencêão a natureza, communicão com ella e comnosco. Um sôpro divino formou a alma do homem, a da mulher de um beijo delicioso deveo ser formada.
Este afféto, esta doçura, esta, quero eu dizê-lo, feminidade da mulher são de tão alta natureza, tão estremes de liga, tão independentes do fim mesmo para que a providencia a destinou, que me parece ainda despojada de sentidos, poderia amar vehementemente como os espiritos angelicos. Que será quando os sentidos confluem, para atear com sua materia inflammavel este fogo celeste? ¿quando a Vestal, afrontando todo o futuro, deixa apagar no altar da Deoza de sua infancia a luz virginal que velou por tantos dias e noites? ¿quando na turbação insólita d’estas trevas desconhecidas, se entregou toda e com todo seu futuro ao ente que a implorou como Divindade, e que ella sabe e sente em si tornará feliz por cima de todas as felicidades? ¿quando uma vez encetou prazeres, cujo maior encanto para ella se da-los recebendo-os, e não os receber sem ao mesmo tempo consummar mais de um doloroso sacrificio? Oh então he o amar do amar! o afféto, que ja em profundeza não podia crescer, cresce em superficie, e trasborda todo e para toda a parte, como um perfume abundante; então he que sem voz pronunciou o sempre; que sentio apertar-se-lhe nas entranhas a indissolubilidade do consorcio, porque o amor de fantasia se fez realidade, de dezejo destino, de suspiro occulto gloria; a tudo tem ja direito porque ja deo tudo, não póde dezejar ser de outrem porque a outrem não teria tanto que dar. E he esta a grande differença da mulher ao homem, e do amor ao amor: o d’ella tem[297] um abono e côr de eternidade, o nosso um elemento e uma côr de tempo. Podéra ser emblema do nosso, uma náo alterosa e possante, surta em uma bahia aprazivel, mercadejando e folgando com a terra, empavezando ufania de flammulas e galhardetes, aferrada ao fundo do mar com uma unha de ferro, mas podendo de uma hora para outra arranca-la ou picar a amarra, desfraldar as velas que sempre estão prestes, e vogar atravez de todas as ondas, por cima de todos os abismos, a mercadejar e folgar no extremo opposto do mundo: emquanto a feminil affeição, como barquinha contente e desambiciosa, feita para os ocios de sua enseada, coroada a pôpa ora de flores abertas ora de esperançosos verdes, sem deitar nenhuma ancora, não foge nunca d’entre aquellas margens conhecidas; por entre ellas vai e vem avoejando de contínuo, levando e trazendo sempre commodos e alegrias, sem curar que de sua barra em fóra haja outros mares, n’esses mares outras bahias; delicia-se na sua, onde tudo a festeja e saúda por seu nome, onde se entende com todos os ventos, todos os refugios conhece para o dia da tempestade. O amor do homem, com os sentidos satisfeitos muita vez se satisfaz e adormece; como o frizão dos Jogos Olímpicos, que chegado apoz violenta carreira a tocar na meta, surdo até ás vozes da gloria que esporeou, se estirava para repouzar ou para morrer. O amor da mulher, satisfeitos os sentidos, se restaura, resurge mais puro e extremoso, mais vivaz e[298] promettedor; semelhante ás plantas, quando desfallecidas nos afrontamentos do verão se dessedentão com a chuva de uma nuvem que passsou, e viçosas reverdecem para embalsamar os ares de seu valle. Uma de muitas razões que para esta differença podem concorrer, he que n’essa hora adquirio a mulher direitos, o homem contrahio obrigações; as obrigações pezão, os direitos agradão, as obrigações limitão e apoucão, os direitos accrescentão e engrandecem. Trocarão-se os papeis na scena, o seguidor esquiva-se, a perseguida segue. O amor do homem he só amor, o amor da mulher he amor e amizade: elle, porque pertence ao mundo, á gloria e a tantas outras paixões, só tem meio coração, meia vontade, meio tempo para dar á sua companheira; esta, separada do mundo pelo mesmo mundo e pela natureza, por isso mesmo mais raramente accessivel a outras paixões, dá ao seu amigo todo o coração, toda a vontade e toda a vida; dar-lhe-hia se podesse mais vida, e mais coração, mas não mais vontade: com elle, por elle, e para elle existe, na propria ausencia o tem presente; e quando cessa de abraça-lo, he para se gozar de o ter abraçado, e cuidar como logo o abraçará de novo, e volverá a ser d’elle amado, fazendo-o feliz.
Tal he o theor da natureza: tem excéções e numerosas. Corações ha de homens, que sem ser effeminados, não desdirião n’um peito feminino; e corações de mulheres, que talvez[299] bem nascidos e bem fadados, mas torcidos depois pela educação, quebrados pela sociedade, corrutos pelos exemplos, merecem as satiras, demaziadamente geraes, com que os autores de sua degeneração todos os dias lhe poem ferrete: mas essas, mais infelizes do que culpadas, os desgraçados que as pintem e condenem, eu pinto a mulher amante, a mulher perfeita, a mulher mulher, a mulher como a concebi, como a conheço, como a adoro. Foi esta a que Deos fez e temperou de poesia e harmonia lá na origem do mundo, quando vio que não era bom que o homem vivesse só. Esta he a que depois de nos dar a vida, no-la suaviza e apura; no-la multiplica em entes novos; no-la adoça nos momentos derradeiros; nos ama ainda, quando ja não somos; dá seus beijos amorosos a uma pedra, porque do nosso nome lhe conserva uma letra; e consummando o seu destino de amar, felicitar, sacrificar-se, ajoelhada na terra, nos vizita no mundo das sombras; estreitando o seu commercio com os ceos que a esperão, para nós só os invoca, e depois de no-los ter dado em amostra no tempo á fôrça de amor, á fôrça de amor no-los grangêa na eternidade.
Custa a crer como um ente, que he metade da nossa especie, que das duas he a mais amavel metade, a mais carinhosa, em tantas couzas nosso igual para nos attraír, mas com tantas differenças de nós para se nos unir ainda mais, que se tem defeitos de nós os recebe,[300] e nos dá em troca, sem o cuidar, tantas das virtudes que possuimos, custa, digo, a crer como um talento, a quem sua propria fraqueza devêra tornar inviolavel, pôde ver-se em todos os tempos, e provavelmente continuará a ser até ao fim dos seculos, alvo e emprego das críticas mais desabridas, e mais grosseiras calúnias. Divindade extraordinaria, a quem seus proprios ministros e sacrificadores insultão adorando-a, e que de cima de seu altar, fragil mas eterno, inalteravel em sua mansidão, derrama sôbre bons e máos a felicidade! Que a filosofia as injuriasse não espantára. La Bruyere foi cruel para com ellas, Larochefoucault furioso, nenhum d’elles justo, nem sequer francez: a filosofia não anda sem os filosofos, e todos sabem como os dados a esse triste officio, são pelo demais almas seccas e incapazes de avaliar branduras, entendimentos sem olhos de imaginação, unicos proprios para julgar da verdadeira belleza; homens emfim eremiticos, rusticos e ignorantes no meio da sociedade; e para remate de suspeição, ja alongados pelo inverno da vida: da-se á filosofia o que as mulheres ja não querem.
A poesia não tem sido menos descomedida: a poesia, que d’ellas e para ellas nasceo, cujas Divindades forão com razão pelos antigos fabuladas em fórma feminil, como as Graças, como os Genios de tudo quanto ha amavel na natureza, a poesia, a seu máo grado, lhes tem sido rebelde todas quantas vezes[301] os poetas, por de sobejo amantes e zelosos, precizárão desabafar desgraças verdadeiras ou fantásticas: a lira acostumada a lhes entoar seraficamente não louvores senão hinos, resoou execrações, ás quaes respondêrão numerosos echos; porque onde o numero dos ingratos e indignos era grande, não podia o dos maltratados e queixosos ser pequeno: e d’ahi nascêrão essas civis guerras da literatura a favor e contra o sexo, guerras batalhadas nas salas e saráos, nos passeios em romagens, nas merendas das comadres e nas academias, desde o Japão até Portugal, desde os serões da arca diluviana até os nossos dias, em que o amor cedeo á política, e as questões das mulheres ás questões dos ministerios: Factus est repente de cœlo sonus, tamquam advenientis spiritus vehementer.... Ahi vinha ja querendo-se intrometter o meu demonio meridiano: ápage!
Para as grandes pelejas de que fallava, se despejárão todos os arsenaes da mística theologia, da methafísica, da historia sagrada e profana, das fabulas e anecdotas, da fisiologia e novellas. Ficou largamente juncado o campo de cadaveres em folio, em quarto, em outavo, em doze, em dezeseis, em trinta e dois, em sessenta e quatro; de pergaminho, de marroquim, de seda, de taboa, de papelão, de carneira, de papel: defuntos quasi todos sem amenta, e cujos nomes, se os houvesse de compilar, encherião maior livro do que este. Depois do derramamento de tantos rios de tinta, ainda[302] pende a mesma questão; ainda até ao fim do mundo se tem de trazer para ella couzas que pareção novas; e as cinzas de Lucrecia, Dido, Phryne, Sapho, Aspasia, Arria, Cornelia, Osmia, Heloiza; Christina, Catharina, Maria Thereza; as cinzas das que habitárão cazaes, harens, palacios, mosteiros; as cinzas de Ninivitas, Gomorritas, Babilonicas, Espartanas, Atticas, Romanas, Africanas, Botecudas, Amazonas bellicosas, Indicas Bailladeiras, Viuvas Indostanicas, continuárão a ser revolvidas, pizadas e adoradas por modos sempre differentes, e quasi sempre cegamente, até á consummação dos seculos. A mulher fisica principia a ser conhecida, a mulher intellétual sê-lo-ha, a mulher moral he o infinito.
A mocidade, quadra da vida em que reinão os mais encontrados ventos, em obras a maior vassalla e tributária do sexo, he, fallando, escrevendo, e talvez pensando, a sua maior detrátora. Uma conversação de mancebos, embora amantes, não se detem senão em rebaixar o merito das mulheres: nascidos os disséreis das pedras de Deucalião e criados ás tetas das lobas. Qual pode ser a causa d’esta mais que montezinha ferocidade? Será inveja á superioridade modesta? será despeito de vencidos? não; essas vitorias, e ainda essas superioridades em virtudes, que não são as distintivas do nosso sexo, facilmente se perdoão. He a causa o mesmo natural instinto, que faz que os soldados em tempo de guerra, seroando[303] entre as armas á fogueira ociosa do seu rancho, encareção as derrotas do inimigo, e lhe assaquem fraquezas que não tem, para a si proprios accrescentarem animos e determinação para as futuras pelejas.
Facil he carecer das loucuras da idade que ja não temos, ou que ainda não temos; blazona-se d’isso, mas não he virtude: carecer porem dos vicios proprios dos nossos annos seria virtude, mas tão rara he, que o despossui-la deve merecer vénia dos sizudos. Era eu em toda a fôrça de minha adolescencia, quando entre coetâneos e a seu contento, cantava em meus versos destinados os fracos e imperfeições de algumas mulheres, como fracos e imperfeições de todas ou da maior parte. Da falsidade que n’isso havia me corro, mas muito mais do pouco delicado tom do meu cantar, porque se me figura agora delito ainda muito mais grave, do que attribuir-lhes defeitos, o pintar-lhos inamavelmente: a graça he o seu primeiro mérito, injuria-las graciosamente ainda não he de todo injuria-las. De muita nuvem se desaffronta, e de mui grande carga respira um coração confessando suas culpas, mormente quando pelas confessar se torna a entrar absolto e regenerado na estima e benevolencia das dominadoras do mundo: quasi se folga, como me está succedendo, de ter tido a culpa, para merecer a vénia e saborear a reconciliação.
Transfuga dos arraiaes dos levantados, ás trincheiras[304] d’ellas me recolho, não só com as armas com que as guerriei, para as defender, mas com uma bandeira para chamamento e reunião de outros. Ressuscitaria, se podesse, para o meu novo campo todos os bem nascidos espiritos das idades cavalleiras e cortezes, para procurarmos salvar da ultima ruina o feminil imperio, que de dia para dia vai sendo entrado, talado e engolido da Política; fero monstro em que tão mal assenta feminino! E se o conseguissemos, se os moços que deixárão os affétos pelos debates, as sociedades pelos clubs, os versos e cartas apaixonadas pelos jornaes frios e praguentos, quizessem volver a seu natural officio de amar, de agradar e divertir-se, ¡como se não amaciaria esta bruteza quasi, cínica de nosso tempo illuminado, em que se não sabe ler! A propria Liberdade lucraria, porque os seus nervos e verdadeiros espiritos vitaes não são outros senão as virtudes e as bondades: ¿e quem como as mulheres, nos poderia ainda attrair da praça onde se briga, odêa e persegue, para a casa onde se quer bem e se folga, para a cosa onde até á ultima velhice nos educâmos, para a casa onde de bondades e virtudes nos dão ellas a todos os momentos exemplos vivos e formosissimos? Tellus, et domus, et placens uxor! Oh se eu podesse mostrar este meu pensamento, como me está florejando na alma! dizer com palavras a mulher como a sei no meu coração!... mas feminina he a mão com que escrevo, ¿como dezenharia ella o seu retrato?
Se o fim de qualquer obra he a sua coroa, custará a achar obra tão mal coroada como esta Primavera. Dos quatro Poemas he a Festa de Maio o ínfimo, não contribuindo pouco para isso o seu estirado comprimento: e da Festa de Maio a ínfima parte he sem nenhuma dúvida a segunda e última. Boa e mui fertil era a idea primitiva, na qual, mas só na qual, mui casualmente me encontrára com o allemão Gerstenberg no dithirambo que traz titulo Chipre. Desenvolveo elle a sua, pôsto que em prosa, como poeta mui valente: derramei eu, e enfraqueci a minha em pobrissimos versos (era tempo que na maior parte dos dias compunha trezentos e mais) que bem podérão, sem detrimento de pensamentos, ser reduzidos ao terço do seu numero. Ja poderei parecer importuno com tanto repetir confissão das minhas faltas; mas antes isso, do que se diga que eu as córo ou tapo, ou com tantos annos ainda não caí em as conhecer cabalmente. Quem a este meu cortar pelas proprias roupas chamasse affétação, muito se enganára comigo: censuro-me, não para atalhar alhêas censuras; menos para provocar defezas aos que sempre folgão, quer em bem quer em mal, de encontrar as opiniões dos que escrevem; mas censuro-me e em todas minhas couzas marco seu[306] preço, para que os agora principiantes lá ao deante se não queixem de mim, como eu podéra agora queixar-me de outros, com cujos livros me criei. Consciencia e Verdade, ainda em mesquinhas letras, devem de ser escrupulosamente servidas: tem uma e outra alguma couza de tão divinas, que por mais dolorosos sacrificios que de nós lhes façamos, no-los pagão com íntima satisfação. Certo he que fazendo o que eu faço, se corre perigo de vir a um grande dissabor, como he, depois de sinceramente confessados os defeitos, saírem os nescios na arte de criticar, e que nunca uma só linha escrevêrão, aproveitarem-se cobardemente de taes revelações, vozea-las como descobrimentos seus, e vingando-se de sua propria esterilidade, triunfar miseravelmente dos descuidos, sem nenhuma menção das boas partes. Ja isso por mim passou depois que dissertei ácerca da invenção da Noite do Castello. Onde tal se escreveo, quem o escreveo, e como o escreveo não o direi, que não quero em livros meus andar carreando dementes para a posteridade, se he que meus livros tem de la chegar, como cá chegárão alguns bem ruins dos tempos atraz. E a final, que valem semelhantes pregoẽs e taes pregoeiros, comparados com as suas duas maiores inimigas que são a verdade e a consciencia? podéra accrescentar a vergonha. Em meu conceito nada. Por tanto sigão elles por seu caminho, onde se afogão em lodo, e todos lhes cospem na face; e eu, que nem sequer os tenho em assaz de conta para[307] os odiar, continue o dar documentos do unico merito de que me prézo, que he a candura. Para dar culto á Verdade e á Consciencia, não sacrificarei alhêas famas, que me não pertencem, mas pela minha rasgarei afoito: far-lhes-hei de meu sujeito intellétual, o que de seus corpos diz Fernão Mendes que fazião la em Tinagoogoo certos penitentes, que em procissões públicas se hião espedaçando ante os carros triunfaes dos seus idolos, e por fim se arremessavão por deante das rodas, para serem talhados e esmagados: a que toda a gente, como refere o bom perigrino, com uma grande grita dezia: pachiloo a furão; que quer dizer: a minha alma com a tua. E decendo logo de cima do carro um sacerdote ... se chegava áquelles bemaventurados ou malaventurados ... e ajuntando os pedaços e as cabeças ... os mostravão ao povo de cima do mais alto sobrado do carro onde hia o idolo, dezendo n’um tom muito sentido: “Rogai peccadores todos a Deos, que vos faça dignos de serdes santos como este que agora morreo em sacrificio de cheiro suave.”
FIM.
Os trez seguintes Artigos vem, mutatis mutandis, trasladados da Guarda Avançada, Jornal campeão da Carta e da Rainha, como todos os d’esse tempo, sem excétuar um unico; Jornal exagerado, e muitas vezes injusto sem querer, como o serão sempre os redigidos por almas novas e ardentes, sinceras e poeticas, inexpertas e temerarias, que presumem que uma revolução póde realizar os filantrópicos sonhos de um solitario; Jornal emfim de que eu fui collaborador, quando vivia para a política, ainda que não da política, e do qual perante minha consciencia me recordo com pezar mas sem peijo, porque talvez fez males e grandes males, não aspirando senão ao bem. Tanto he verdade, que só a moderação he capaz de dar frutos abençoados! Relêa-se o meu Prologo do Tributo Portuguez. Aqui não quero accrescentar mais nada sobre materias, sim importantissimas, mas que eu ja dou todas por um malmequerzinho dos campos. — Sáem pois os Artigos substancialmente os mesmos. Pena será, se passado agora tanto tempo depois de escritos, os que por la estão espectadores das couzas públicas os acharem muito mais applicaveis aos presentes dias; e ainda maior lástima, se para o deante não vierem a perder boa parte de sua verdade.
Remato com o louvor, que no Prologo deixei[312] promettido, de meu mestre e amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos: fragmento copiado do Num. 2 do Jornal dos Amigos das Letras. Se a alguem parecer que não cáe este sob o titulo de Primavera, paciencia; recebão-no como Nota, agazalhem-no como filho de gratidão. Para mim recende elle muita primavera de puericia, e de um jardim das Musas.
Eis aqui os primeiros dias da graciosa estação. Das flores lhe chamárão os poetas; melhor podérão chamar-lhe flor do anno. A terra, como viuva ainda verde que se enfeita para novas bodas, a terra pelo sol repassada de amorosa quentura, vendo-o volver a afaga-la, depois de lhe haver por tanto tempo fugido, arrêa-se de todas suas galas, esperançosa sorrí por entre a sua grinalda florída, embebe-se em perfumes, acerca-se de musicas voluptuosas, e suspira brandamente dentro nos arvoredos recem vestidos, nos valles alcatifados, pelas margens dos rios outra vez serenos. Com razão foi a Primavera consagrada dos antigos ás Musas e Graças: com razão se escolhião as suas vésperas para o Pontifice Maximo accender o novo fogo, que devia durar todo o anno: com razão os pais de nossa lingua derão a esta parte do anno um nome feminino, e os pintores apparencias de formosa moça; emquanto Estio, Outono e Inverno pela aspereza, pela fôrça, pela gravidade, pertencião a outro sexo. Cada fonte se aliza em um espelho; cada pedra se veste em assento aveludado; cada haste nua se desaperta n’um ramalhete: tornão-se os bosques outras tantas republicas populosas,[314] cujos cidadãos, livres como as virações, voão, cantão, brincão, acaricião-se, desposão-se, educão a sua prole bafejada do ceo, e parecem não respirar senão o prazer da independencia, da ternura e da melodia. A natureza revoca á vida innumeraveis especies de animaes de que o Inverno só continha o germen; ás outras infunde, como aos passaros, um contentamento, uma ligeireza, uma attráção, que o Inverno lhes havia roubado ou amortecido. Do ceo chove fecundidade sôbre tudo que he vivo; e tudo o que he vivo sáe trajado de festa, e por toda a parte encontra mesa que Deos lhe assoalha, carregada de sua abundancia com luxo, magnificencia e formusura.
A humana especie não podia em tão geral favor ser esquecida, antes foi o seu quinhão de todos o mais largo. O amor, que para nós não tem uma estação exclusiva, n’esta entretanto se nos desenvolve com recrescida atividade: he porque o proprio ar, empregnado de elementos vitaes, nos está coando aos peitos uma extraordinaria energia: he porque tudo em de redor exemplos são que nos cativão: he porque o alvoroço e festa do universo convidão o coração a gozar: he porque ao florir da rosa dos jardins, muita e muita rosa esmorecida se reanima nas faces da belleza: he porque a voz da mulher então sáe, não sei como, ainda mais doce; e tanto ellas mesmas sem o saber o sentem, que em toda a parte em que as horas e circunstancias do seu canto não andão[315] assentadas nas tarifas da moda, insensivelmente se achão a cantar, e este novo attrátivo parece n’ellas uma necessidade, como he nas aves da primavera. Dir-se-hia que a natureza nos manda as flores nos dias em que o amor nos instiga a offerecê-las.
Mas os feitiços da Primavera não se limitão nos da recreação e amor. Um medico vos dirá que he ella a estação da saude; um sabio a do vigor mental; um navegante a do princípio de confiança nos seus mares: o artífice a saúda como a que abre a porta a longos dias; o pastor como a mãi da abundancia; o agrícola vê as esperanças do anno desparzidas por suas terras, por suas vinhas, por seus pomares. Ah! só os homens das cidades, tristemente condenados á fadiga e ao luxo, quasi não encontrão a primavera no seu anno! Para esses reduz-se a mais algumas horas de luz, e a uma pouca mais serenidade em um ceo sem horizontes. Se ao menos se podesse esta serenidade reflétir nas nossas almas!... mas os redemoinhos das novidades, os raios das intrigas ambiciosas, o frio do desalento e carregadas nuvens ao longe esterilizão tudo, e se uma ou outra flor de esperança nos desabrocha a medo, lá está logo a reflexão, filha do conhecimento dos homens, que a faz com um sôpro desapparecer. O anno dos nossos destinos teve um inverno bem longo e rigoroso: n’elle sulcámos a terra para semear liberdade e ventura, adubámo-la com o nosso sangue e corpos de nossos[316] irmãos, regámo-la com o nosso suor e lágrimas; e agora que nós e nossos filhos esperavamos ao menos a florescencia que nos augurasse frutos para o futuro, a Deos approuve de outro modo, e uma torrente de iniquidades, que não quer parar, continúa a assolar a terra de nossos avós.
Este mez, assim chamado por abrir o seio da terra á fecundidade; consagrado desde a infancia de Roma á Deoza da formosura, á Mãi das Graças, Amores, e Jogos, he o primeiro que ouza, por debaixo ainda das últimas nuvens chuvosas do inverno, sair e folgar com seu manto verde, e bordado de flores. O dia da sua entrada era para os nossos antepassados uma festa popular, menos estrepitosa que o Carnaval, de que parecia imitação, mas tambem mais innocente e serena. Ignoro se esse costume o herdárão elles de nações mais antigas, com quanto dos Romanos o não houvessem, de quem tantos outros lhes vierão. Tão pouco me recordo de haver lido alguma origem historica aos brinquedos rituaes do primeiro de Abril; mas sabido he que elles existírão em nossa terra, e inda hoje se lhes conservão os restos, mormente pelas Provincias. O dinheiro pregado nas ruas, as cartas, e prezentes de lôgro, a pedra que chamavão das agulhas, a fôrca de Judas, e outras quejandas bagatelas para rir, estão entretendo n’esta hora bastantes dos nossos aldeões do norte.
As lembranças velhas tem para mim muito grande saudade, e doçura; doe-me o coração quando vejo ir-se perdendo estas seculares tradições que a ninguem fazião mal, ainda que[318] nascidas em berço de superstição, e que de bom tinhão o transportar-nos a tempos sabidos, e remotos, ou a tempos mais remotos ainda, e ignorados. E que he o que as apaga, e fica em seu lugar? odios, pobreza, e desgraças. Oh! aonde estará um poeta amigo dos serões e da innocencia, que se apresse em nos escrever os Fastos do nosso bom Portugal? No meio da confusão desconsolada do presente, nós beijariamos essa obra como santa reliquia em terra de infieis: veriamos um iris vão mas brilhante, entre nuvens de tormenta. Para excitar algum bom engenho a no-lo dar, he que eu coméço, e continuarei sempre a recordar nos seus dias proprios as nossas antiguãlhas: o que farei com muita avidez, porque d’aqui a alguns annos, o investiga-las será ja tarde. Assim os pintores Italianos se deleitão copiando os restos amortecidos das pinturas a fresco que sobre-vivem ao grande Imperio, e os antiquarios trasladão avidamente os enrolados livros das cidades soterradas, antes que de todo se desfação em pó.
He a apparição d’este mez uma festa da natureza, em que sempre os homens se alegrárão: quizeramos poder tributar-lhe algumas flores pelas tantas que nos elle concede. Não teçamos o seu encomio d’aquillo que sendo sensivel a todos não carece de ser descrito. Zéfiros e rosas, rolas e rouxinoes, abelhas e borboletas, a terra toda verde, o ceo todo azul, as noites começando a fugir como envergonhadas de esconder as alegrias da natureza, objétos são que ainda que desde a origem do mundo se apresentem sempre novos, já se tornárão lugares communs nas descrições da poesia. Voltemo-nos para as recordações; embalemos e adormeçamos com ellas por um pouco o espirito martirisado dos absurdos e crueldades d’estes máos tempos, em que ja se não crião fabulas risonhas e innocentes, coloridas pela imaginação, animadas pelo amor.
Forão os homens antigos os que idolatras da concordia, para melhor a insinuarem á terra, collocárão nos astros a sua imagem brilhante, e ao signo de Maio chamarão o signo dos Gémeos. Elles forão os que sensiveis aos encantos das Artes, consagrarão este mez a um Deos, que vivificando a natureza pela luz e calor, presidia com a Lira na mão aos prestigiosos artificios que a embellezão. Almas petrificadas[320] ha ahi, para quem estas saudades do mundo antigo são frivolas, comparadas com um artigo de gazeta; para nós he delicioso andar mergulhando pelo oceano dos seculos, e não voltar a assentar-nos na nossa Ilhota escabrosa e esteril, senão carregados dos coraes, das pérolas, das riquezas formosissimas, que se cá não produzem. O fundador de Roma dedicou aos mancebos (Juvenes) o mez de Junho; era essa a idade que lhe fazia ganhar vitorias, mas ja primeiro havia consagrado o Maio aos velhos (Majores), porque feroz como era, Romulo experimentava o afféto que nos attráe para com o antigo. Passemos por alto Festas misteriosas da Deoza Bona, celebradas pelas Romanas no primeiro de Maio, em todo o segredo dos Penates e sem testemunha de varão; visitas das Vestaes ao Pontifice Maximo e principaes Magistrados da Republica; contemplemos a expiação dos Lémures, pois que usos nossos me parecem ter d’ahi recebido origem.
Á meia noite levantava-se o pai de familias, hia-se descalço, calado, e chêo de terror santo, á fonte, dando por todo o caminho amiudados estalos com os dedos para afugentar os genios máos. Lavava trez vezes as mãos, e tornando-se para casa, vinha atirando uma a uma, por cima da cabeça e para traz de si, favas negras, de que trazia chêa a boca, e articulando taes palavras—com estas favas me resgato a mim e aos meus:—o que por nove vezes repetia, sem olhar para traz, para não espantar[321] o espétro que vinha apanhando as favas negras. Tomava agua por uma ou duas vezes, batia n’um vaso de bronze, e para conjurar a sombra a lhe largar a casa, por nove vezes repetia—Sahi, ó manes paternos.—Eis provavelmente d’onde provierão estes sustos vagos que ainda se dão a sentir aos homens rusticos no princípio de Maio; este uso de se repartirem e comerem castanhas seccas para evitar que o Maio se apodere de nós. A imaginação do bom povo perdeo de vista essas larvas, mas o medo que ellas produzírão lhe ficou: he uma especie de moeda, que safada como está de passar de mãos em mãos, ainda conserva a sua valia.
Outros costumes de Maio tem o nosso Portugal, a que folgáramos que alguem escavasse e descobrisse a raiz, sendo certo que na historia a devem ter. O Maio pequenino, que seguido de todas as crianças do bairro, corre enfeitado de flores, as ruas da cidade, ao som de um cantar antigo e uniforme; aquellas mimosas Maias tão arraiadas e donosas, que á orla dos caminhos se encontrão comprimentando os passageiros; aquell’outro estilo, ja talvez hoje passado, de se deitarem n’um mesmo leito um casal de creanças innocentes, para se lhes cantar em roda um como epithalamio, ou trova de suas bodas; os descantes amorosos dados com a viola n’esta occasião pelos aldeões ás suas escolhidas; não provirá tudo isto de alguma ja perdida lembrança de cultos da Deoza[322] Maia? E a usança de ornar com flores Maias as portas e interior das casas, não será reflexo distante dos festejos Romanos á Deoza Bona?
A religião, que para si tomou ornato de tantas joias ao Paganismo, não se desdenhou tambem de perfilhar este mez. Em muitas freguezias, pelas nossas provincias do norte, o bom Parocho vai benzer no princípio de Maio a bandeja de rosas que entre os devotos se distribuem e se commungão, porque esta flor abençoada traz felicidade.—Vem depois aquellas tão esperançosas, tão cantadas e tão sabidas Ladainhas de Maio.—Hoje os camponezes de França vão plantar o seu Maio á porta das pessoas honradas da sua freguezia: os Inglezes renovão de certo modo as antigas Vigilias de Venus: os Gregos, como se os seus poetas d’outro tempo os inspirassem ainda, e a era das Elegias tornasse a reviver, vão descantar amores e pendurar grinaldas aos umbraes das suas inclinações: e os moradores de Roma, segundo nos foi dito por quem lá foi a essa terra de saudades, ainda agora se reunem na fonte de Egeria a respirar as delicias da natureza, debaixo d’aquelle ceo de tanto amor, que não a pensar em Numa e na grandeza antiga dos Romanos, de que a elles só veio em herança a terra coberta de muitas ruinas.
¿Para que servem todas estas memorias, nos estão perguntando os insaciaveis de Politica?[323] e nós não lhes sabemos responder senão que a nós estes pensamentos nos fazem muito bem, e que aos amigos de passatempos innocentes se não ha de prohibir o que a ninguem faz mal. Deixai-nos ser algum dia do anno semi-pagãos. São as superstições da Politica ambiciosa as que empecem á felicidade, mas estes graciosos prejuisos de nossos pais a nenhuma couza do mundo danão. E de mais, se havemos de dizer toda a verdade, a fé, que a estes pobres erros acompanha, costuma trazer comsigo muita piedade religiosa, e n’ella alguma doçura moral, que nem sempre vai por onde vai a desenganada Filosofia. Ditoso d’aquelle engenho que podesse trazer outra vez ao mundo a innocencia que nos lá ficou no paiz das fabulas! mas interromper um sonho de poesia quando se julga que a felicidade vem apoz os nossos passos, voltarmo-nos, como Orfeo, para a abraçar, e vermo-la fugir e desapparecer n’um ai, e um mundo de realidades dolorosas estender-se immenso deante de nós, oh! isto he muito triste!
Pôsto que o escrever de Varão tão conhecido dentro e fóra d’este Reino, qual foi o Sr. Antonio Ribeiro dos Santos, já possa a muitos parecer escusado, o deixar de o fazer, mais que seja por alto, nem a opportunidade da occasião mo consente, nem menos mo consentiria o gôsto, que sempre do refrescar essas memorias me resulta; por quanto na primavera de minha vida, e primeira manhã de minha poesia, foi que a boa de minha fortuna me deu conhecer este Nestor de nossa Literatura, que já então, ao cabo da sua longa e proveitosa carreira, ornado de muitos méritos de sciencias e virtudes, respeitado e apontado de longe, pouzava sereno e magestoso, aguardando pela sua hora, á beira da eternidade.
Que fosse nascido nas terras do Douro, d’onde lhe prouve tomar nome de Elpino Duriense; que fizesse com bons mestres seus estudos; que se tornasse, lendo na Universidade de Coimbra, um de seus mais lustrosos luminares; que na Igreja e no Estado occupasse mui subidos empregos; que fosse o amigo e centro de quantos bons engenhos em seu tempo florecerão, não faltará quem o escreva entre seus outros muitos louvores. Tão pouco me deterei[325] dispartindo entre a Jurisprudencia, a Historia, as Antiguidades, a Literatura, e a Poesia o opulentissimo cathalogo de suas Obras, cuja maxima, e por ventura optima parte, ainda até agora não viu a luz. Não hão de ser mãos tão debeis como as minhas as que revolvão tamanhos trofeos, nem em tão pequeno espaço como este coubéra retratar completo Homem que abrangeu duas idades, bem fazendo-lhes mutuamente a uma pela outra; anticipando em meio do seculo passado o gôsto, o apuro, a filosofia d’este nosso; transplantando para o presente o estudo, a boa fé, o saber do passado; e legando ao futuro thesouros que andou desencantando das antiguidades remotissimas. Menos arremessados são meus dezejos, e mais seguros, que só quero levar meus leitores a com este bom velho encetarem conhecimento.
Corre a primavera do anno de 1814 ou 15, que eu certo o não sei. A morada de Elpino, que em um dos mais desafrontados altos de Lisboa está formosamente situada, longe do bolicio, como bem cabia á sua indole pacifica e genio estudioso, he um templo de Musas, religiosamente vedado aos olhos e vozes de profanos, isto he dos máos e ignorantes, unicos de todos os entes para quem sua porta e animo não erão hospedeiros. Por aquellas salas, gravemente ataviadas á laia dos nossos antigos, de sedas e arrazes, alcatifas, tremós, espaldares e soberbos quadros dos mais perigrinos pintores, reina o silencio, e uma lembrança dos[326] antigos e abundosos tempos de nossos avós, que tanto conforma com os nobres e portuguezes pensamentos de suas poesias, as quaes se raras vezes voão sublimes, nunca, nem por sombras, desmentem da boa moral e sã filosofia. Aqui o bom Elpino nos recebe cordialmente, a meus irmãos e a mim; os filhos do seu amigo são seus amigos, os estudiosos das Musas portuguezas e romanas são os seus amores. O ancião, que ainda entre sabios podéra ser ouvido como oraculo, remoça-se conversando com meninos, apouca-se para que o melhor comprehendão, orna-lhes a moral e o estudo com quantas flores sabe; do centro da gloria lhes ensina por onde se abre o caminho que para lá conduz; e pelo grande espirito e persuasão com que falla, talvez consegue crear algumas vehementes vocações literarias. Outras vezes nos convida para a bibliotheca, suas delicias, e nos acompanha com a alegria na boca. Os seus olhos, como que ao fim de tanto lêr ja quizessem descançar para sempre, não lhe alumião o caminho; e semilhante áquelle grande Bardo Ossian, a quem velho e cego, piedosa conduzia a moça Malvina para os logares usados de sua inspiração, no hombro de uma menina, sua afilhada e leitora, segurava o bom de Elpino uma das mãos, emquanto com a outra arrimada a um bordão, palpava o caminho, e se ajudava em seu quebrado andar.
Era a bibliotheca o íntimo retiro d’este ermitão do Parnaso, fugida para longe das casas,[327] pôsto que tão quietas, e frescamente assentada em meio de muitas sombras, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares. Grandissima cópia de livros, longamente procurados e custosamente juntos, e entre os quaes se estremavão no numero e riqueza os Gregos, os Romanos, e os antigos Portuguezes, alí estavão juntos, entre o susurro estudioso das ramas e os cantares descuidosos dos passaros. Um Apollo de marmore com a sua lira em punho, parecia estar-se mui bem cabido e contente no meio d’aquelle seu alcaçar, cercado de tantos seus cultores, servido por tão venerando Sacerdote. Lembranças são estas que trago colhidas de minha infancia, e que transplanto para aqui, por não querer que se percão.
Áquelle Homem, n’aquellas tardes, e debaixo d’aquelle této, devo a grande veneração que ainda hoje consagro aos meus livros latinos, não poucos dos quaes mos deu elle proprio; e tocados de suas mãos poeticas, me inspirão ainda agora poesia e virtude, até cerrados, e n’elles confio que me hajão de servir de pranchas, com que n’este pélago de freneticas e descompostas innovações, me não deixe, como tantos que mais valião do que eu, totalmente sossobrar. Nos seus ouvidos indulgentes lançava não só as primicias dos meus versos, mas ainda as traças e esperanças de obras que borbulhavão de uma seiba virgem de quatorze annos. Escutava elle tudo com desvellada benevolencia, umas vezes apontando-me melhores[328] caminhos ou mais faceis, outras desviando-me de commettimentos maiores que meus annos e forças; agora revelando-me regras, logo insinuando-mas com exemplos, com que sempre fiel e muito a ponto lhe acudia a memoria. Não he verdade que ha em tudo isto um não sei que, por onde o que o pratíca não póde menos ser de um grande homem? Oxalá meus esforços melhor houvessem respondido a suas diligencias, ou me não houvesse elle desamparado no começo da carreira, para a qual apenas me aparelhou! Sim, porque embora me hajão a vaidade, a gratidão péde que eu publique, foi este Pontifice das Musas que me iniciou no seu culto, e no seu paternal enthusiasmo me disse—Tu serás poeta.—Scena digna de um pincel eloquente: um ancião coroado de louros, e cego como Homero, sagrando ao culto da mais bella das Artes, um menino cego como elle!
[1] Alguma vez publicarei o que acerca d’isto disputamos por Cartas, de Lisboa para Coimbra, o Padre José Agostinho de Macedo e eu. Negava aquelle escriptor, de incontrastavel talento, que a Poesia Allemã e Suissa mais fosse do que a nossa rica em graças naturaes, e amena frescura, antes affirmava que a nossa a excedia grandemente. Ou não escrevia elle deveras, ou se convenceo do erro, como será de ver das Cartas, quando ellas aparecerem. O motivo porque até hoje as tenho dos publicos olhos resguardadas, outro não foi senão recêo de que se me attribuisse a vãgloria a publicação de uma disputa em que tamanho sujeito me cedeo, principalmente sendo notorio que o favor que em seus escritos deu ás minhas primeiras tentativas poeticas e infantis, jamais o denegou com o andar do tempo, antes o reforçou com mui graciosos louvores.
[2] Conceder-lha-heis, se ja não tiverdes determinado emprega-la em outro uso, ou fundar nesse sitio alguma caza de Commissão que nada faça, ou algum quartel de guarda que legisle sobre os destinos publicos.
[3] O Livro Le mie Prigione, quanto á utilidade prática leva, me parece, a palma á Imitação de Kempis. Em Kempis apparece a descrição da caridade e piedade, em Silvio a applicação d’ellas aos successos da vida. Kempis aconselha, Silvio ensina a perdoar, a amar, e a ser feliz, em despeito da fortuna: dá o exemplo d’isso, he elle proprio o exemplo.
[4] Quem bem reparar na justiça rigorosa (de cruel a taxaráõ alguns) com que eu proprio trato a minha Musa, perdoar-me-ha quando por amor ás nossas letras, aponto um defeito em meu mestre e amigo o Snr. Antonio Ribeiro dos Santos. Inda assim, porque me não fique remordendo a consciencia, como expiação, e mui suave, porei no fim do volume um penhor do meu respeito e grato animo a tão grande varão; capitulo ja impresso no Jornal dos Amigos das Letras, mas por isso mesmo apenas conhecido.
[5] Meu irmão Augusto Frederico de Castilho.
[6] Meu irmão Adriano Ernesto de Castilho.
[7] As Senhoras Mellos, a quem pertence a Lapa e a Quinta das Canas.
[8] Na Primavera de meu Irmão Augusto Frederico de Castilho ha um lugar parallelo, não quanto á expressão, mas quanto ao pensamento principal. Releva porem que em duas couzas se advirta: a uma, que nenhum de nós foi plagiario, nem o podiamos ser, porque todos compunhamos em segredo; a outra, que o passo do poema, em que elle descreve Nize a figurar de Primavera, leva grande vantagem de valia a estes versos!
[9] Augusto Frederico de Castilho.
[10] O meu amigo Jose Vitorino Freire Cardozo da Fonseca (Etmiro) tinha começado em uma sua quinta na Beira um jardim, tal como o descrevo aos seguintes versos, e que pretendia consagrar á minha memoria. Mal haja aquelle, a quem semelhante penhor de amizade não enternece!
[11] Veja-se a Quarta Edição do Diccionario chamado de Moraes.
[12] Lamartine no Prologo de Jocelyn
[13] Em Maio se poem o ponto aos Estudos da Universidade, que eu n’aquelles tempos cursava. Só os que por ahi tem passado, podem entender o alvoroço com que he recebido.
[14] Antigo nome da Serra de Estrella d’onde nasce o Mondego.
[15] Por esta occazião me importa fazer um annuncio ao Publico. Ei-lo: declaro que se esse Jornal inexperadamente acabou, não foi minha a culpa, assim como de nenhum dos sócios, mas somente dos acontecimentos, assim publicos como privados da Sociedade: com elle nunca tive outras algumas relações senão as onerosas e de trabalho, que eu tomava comtudo com muito gôsto. Todos os sócios o sabem, mas interessa-me que o saiba toda a gente, para me salvar de quaesquer desasizadas reclamações.
[16] Em podendo ser, publicarei um volume de poesias, que lá compuz acerca d’aquella bemaventurada solidão, onde annos vivi ignorado e contente, na residencia de meu Irmão Augusto Frederico.
[17] Tudo isto, que eu julgava para sempre meu, passou! Aprouve a Deos mostrar-me só de relance a felicidade! Pouco mais de dois annos a illustre e digna sobrinha de Nicolau Tolentino de Almeida, a Senhora D. Maria Izabel de Baenna Coimbra Portugal, se sacrificou toda a felicitar-me: o Pai de todo o amor e de toda a virtude a chamou logo para o seu seio: era aquelle um Anjo que faltava no ceo. Esta Nota ao poema, vai como se achava feita quando ella ja me não escrevia, senão a espaços, mas ainda se comprazia de me ouvir dictar. Quando o seu fim era ja inevitavel, todos o sabião e talvez ella mesma, e eu contava ainda com largos annos de fortuna. O mesmo advirto quanto ás mais Notas e accrescentamentos d’este Livro, que tudo estava pronto (faltando só algumas poucas notas que não fiz nem ja farei) antes do fatal dia um de Fevereiro passado: dois se imprimio erradamente no Post Scriptum do Prologo. Se outrem não tivesse conservado essa data, e me não advertisse da inexatidão em que mal informado caí, ainda agora a podéra eu ignorar: esse dia, as vesperas e os seguintes não tiverão para mim nenhuma ráia nem de luz, nem do sôno, nem de alguma outra das couzas que estremão os dias.—12 de Maio de 1837.
Pag. | |
Ante-Prologo | 5 |
Prologo | 25 |
Post-Scriptum | 47 |
Epistola á Primavera | 49 |
Dedicatoria a minha Irmã | 51 |
Duas Palavras de Introdução | 53 |
Epistola | 57 |
O Dia da Primavera Poemetto | 75 |
Dedicatoria a minha Mãi | 77 |
Historia da Festa da Primavera | 79 |
O Dia da Primavera Canto I | |
A Manhã | 95 |
O Dia da Primavera Canto II | |
A Tarde | 111 |
Notas ao Poemetto antecedente | 131 |
Nota 1.ª (Elmano e Filinto—versificação esdruxola e aguda &c.) | 131 |
Nota 2.ª de Augusto Frederico de Castilho | 162 |
Os Cantos de Abril Idillio | 167 |
Dedicatoria a meu Pai | 169 |
Advertencia | 171 |
Os Cantos de Abril | 173 |
Nota ao Idillio (Excerpto de alguns versos da primeira Edição do Idillio, rejeitados n’esta segunda) | 186 |
A Festa de Maio Poemetto | 189[330] |
Dedicatoria ás Senhoras da Lapa dos Esteios | 191 |
Historia da Festa de Maio | 193 |
A Festa de Maio Canto I | 199 |
—— Canto II | 225 |
Notas á Festa de Maio | 263 |
Nota 1.ª (Com a tradução para latim dos amores de Galatea no Cant. 1 da Festa de Maio) | 263 |
Nota 2.ª (Piedade para com os animaes—alimento animal &c.) | 269 |
Nota 3.ª (Em desaggravo das mulheres) | 291 |
Nota 4.ª (Sôbre o 2.º Canto da Festa de Maio) | 305 |
Mais Primavera | 309 |
Advertencia | 311 |
Março (Princípio da Primavera) | 313 |
Abril | 317 |
Maio | 319 |
Ácerca da Pessoa do Sr. Antonio Ribeiro dos Santos | 324 |
FIM