Title: Iracema
Author: José Martiniano de Alencar
Release date: March 30, 2022 [eBook #67740]
Language: Portuguese
Original publication: Portugal: COMPANHIA NACIONAL EDITORA
Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by Hathi Trust Digital Library.)
NOTICIA BIOGRAPHICA
MEU AMIGO
IRACEMA
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX
CAPITULO XX
CAPITULO XXI
CAPITULO XXII
CAPITULO XXIII
CAPITULO XXIV
CAPITULO XXV
CAPITULO XXVI
CAPITULO XXVII
CAPITULO XXVIII
CAPITULO XXIX
CAPITULO XXX
CAPITULO XXXI
CAPITULO XXXII
CAPITULO XXXIII
NOTAS
CARTA AO DR. JAGUARIBE
José Martiniano do Alencar. Este grande escriptor brazileiro, mais conhecido pelo nome de José de Alencar, nasceu no Ceará no dia 1 de janeiro de 1829, sendo filho, ao que parece, do illustre politico do mesmo nome. Dizemos "ao que parece" porque nas biographias d'este grande escriptor, que temos presentes, não se accusa a sua filiação. Pode ser lapso, pode ser outro motivo qualquer que não precisamos de apurar. O que é certo é que José Martiniano d'Alencar mostrou desde creança um grande engenho. Tinha 17 annos quando em 1840 se matriculou na faculdade de direito de S. Paulo para tomar, como tomou, o grau de bacharel, tendo ido porém em 1848 concluir os seus estudos juridicos e formar-se na eschola de Olinda.
Em S. Paulo começou a manifestar-se o seu talento litterario, publicando varios artigos n'um periodico intitulado: Ensaios, e redigido pelos estudantes da Faculdade, que appareceu em S. Paulo nos annos de 1840 a 1848.
Em 1851 concluiu Alencar o seu curso, e veiu logo para o Rio de Janeiro, entregando-se então com mais desafogo aos trabalhos litterarios. Estreiou-se na capital do imperio escrevendo no Correio Mercantil um artigo de critica acerca das Poesias de Augusto Zaluar. N'esse mesmo anno, como que para mostrar que as suas preoccupações litterarias o não desviavam de estudos mais áridos, escreveu alguns artigos sobre a reforma hypothecaria, e em seguida começou a escrever, sempre no Correio Mercantil umas revistas semanaes, intituladas: Ao correr da penna assignadas com a sigla Al.
Em julho de 1855 sahiu da redacção do Correio Mercantil, e passou a collaborar no Jornal do Commercio, onde escreveu, entre outros artigos, um a respeito de Thalberg, outro a respeito do Othello e outro ácerca do padre Mont'Alverne. Em outubro de 1855 assumiu a direcção do Diario do Rio de Janeiro, que conservou até 1858.
Em 1856 publicou o seu primeiro folheto, que devia ser seguido por tamanho numero de volumes. Esse folheto intitulava-se: Cartas sobre a confederação dos Tamoyos, e era uma collecção de folhetins que haviam sido publicados no Diario do Rio de Janeiro, e em que se fazia a critica do celebre poema de Gonçalves Dias.
Em 1857, finalmente, sahia o Guarany o famoso romance brazileiro, que produziu um verdadeiro enthusiasmo, e que deu a José d'Alencar os fóros, emquanto a nós merecidissimos, de primeiro romancista brazileiro. Alguns criticos rabujentos notavam que aquelles Indios de José de Alencar eram plus beaux que nature, que eram uns Indios ideaes, muito diversos das creaturas porcas, rebaixadas e deprimidas que representam na actual civilisação brazileira o elemento indigena. Esses criticos porém esqueciam-se de uma cousa: de que os Indios actuaes não são os Indios que viviam livremente na floresta, na plenitude da sua força e da sua independencia, e tambem de que, se os guaranys de Alencar são pelo menos Indios de excepção, Indios de excepção eram tambem de certo aquelle suave Uncas, o ultimo dos mohicanos, e o pensativo Chingachgook, que viviam em tão santa harmonia com o Longa Carabina, aquelle Nathaniel Bempo, personagem querido de Fennimore Cooper.
Mas os protestos, se os houve, desappareceram no meio do coro unisono dos applausos. O Brazil tinha finalmente uma litteratura sua, bem sua, romances que se não modelavam pelas formas velhas e gastas dos romances europeus. A America do Sul tinha emfim o seu Cooper.
Pery, Izabel, Alvaro, Ayres Gomes foram personagens que ficaram, para sempre gravados no espirito do publico brazileiro, e, para mais se consagrar a gloria do Guarany, até o grande maestro brazileiro Carlos Gomes escolheu este formoso romance para d'elle se extrahir o libretto da sua opera o Guarany, que é a sua obra prima, a obra prima da musica brazileira, e uma das notaveis operas do nosso tempo, que já hoje tem fama universal, e é representada com applauso em todos os theatros do mundo.
O que, porém, sobretudo se apreciava no Guarany, e a esse respeito não havia diversidade de opiniões, era a belleza incomparavel do estylo, a magnificencia das descripções da natureza.
Ao mesmo tempo tentava José de Alencar o theatro, e, depois de fazer representar uma comedia de valor secundario Verso e reverso, dava ao theatro a sua obra prima, tambem uma das obras primas do theatro brazileiro, O Demonio familiar. É esta comedia um magnifico estudo dos costumes brazileiros, e foi decerto um profundo golpe vibrado á escravatura, porque o seu entrecho se cifra principalmente na demonstração da influencia nefasta do moleque na familia brazileira. O Demonio familiar é esse moleque, elemento permanente de discordia e de desmoralisação.
O Guarany e o Demonio familiar bastavam para assegurar a gloria de um escriptor; mas José de Alencar foi sempre consummido por uma sede insaciavel de escrever. Trabalhava com uma rapidez tal que isso prejudicava muitas vezes o acabado das suas obras, e impedia-o de lhes fazer attingir a perfeição, a que poderiam aliás ter chegado tanto quanto isso é possivel a obras humanas.
No theatro, pois, ao Demonio familiar e ao Verso e reverso seguiram-se o Credito, e os Jesuitas, drama que foi retirado de scena, porque o publico abandonou por tal forma o theatro em que elle se representava que diz um critico de Alencar, que talvez no Rio de Janeiro não fosse visto por um cento de pessoas. Esta ausencia do publico indignou muito José de Alencar que, publicando o drama, o precedeu de um prefacio em que diz que dava o drama á luz publica, só para que se visse que, se o theatro brazileiro não existia, não era por falta de bons auctores, nem de boas peças, mas sim pelo inqualificavel retrahimento do publico. Este accesso de vaidade não era permittido a um homem de tão verdadeiro merecimento como era José de Alencar. Effectivamente não tinha razão alguma: o drama os Jesuitas era detestavel, pueril, sem caracteres bem desenhados, sem acção logica, sem cousa alguma do que constitue verdadeiramente o merito de uma obra litteraria.
Não desanimou Alencar, e deu á scena as Azas de um Anjo, drama que se modelava um pouco pela Dama das Camelias, com a excepção de que no fim Margarida Gautier casa com Armand Duval. Um critico brazileiro muito divertido, que assigna com as iniciaes J. S. uma obra verdadeiramente inepta intitulada Manual de litteratura, diz a respeito das Azas de um Anjo o seguinte:
"É uma tocante oração em favor da perdida.
"No fim, sobretudo, no casamento d'esta com Luiz, nada ha de francez. É um traço de bondade e abnegação, proprio do caracter brazileiro, que o francez não approvaria."
Esperamos ainda assim que no Brazil não sejam extremamente vulgares esses actos de abnegação e de bondade, porque a geração que resultasse d'estes actos de bondade podia ser exquisitamente qualificada.
Mas o que é curioso é que, apesar d'esta peça ser a apotheose do caracter brazileiro, a auctoridade prohibiu que se representasse, e J.S. acha muito justa a prohibição. Já se vê que não quer que no theatro se ponham em relevo para ensinamento do publico a bondade e a abnegação tão proprias do caracter brazileiro.
José de Alencar acudiu em defeza da sua peça na imprensa, e outros escriptores o apoiaram. Effectivamente a pudibunda censura brazileira mostrou-se muito mais transigente com peças de um valor muito inferior ao das Azas de um Anjo.
A ultima peça de José de Alencar foi a Mai, representada em 1860.
N'esse mesmo anno era elle nomeado consultor do ministerio da justiça, e recebia a carta de conselho.
José de Alencar, ao passo que ia ganhando um brilhante nome litterario, não abandonava a politica nem descurava as cousas praticas da vida. Fôra, havia muito, nomeado professor de direito mercantil no Instituto Commercial do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo entrava como deputado na camara, pertencendo, porém, ao grupo conservador, em vez de se enfileirar, como o outro José Martiniano de Alencar, nas phalanges do partido liberal. Na sua carreira de empregado publico foi tambem, além de consultor do ministerio da justiça, director de secção.
A acção da politica no litterato sente-se na Guerra dos Mascates, romance em dois volumes, que elle publicou a bastante distancia de tempo um do outro, cujo enredo se trava em 1710 no tempo das desavenças dos moradores de Olinda com os do Recife, mas que tem apenas por intento fazer retratos contemporaneos com os nomes do seculo XVIII. Esta intenção era por tal forma transparente que no parlamento lh'o lançaram em rosto, porque effectivamente Alencar não se contentava com o desenho moral dos personagens, fazia o retrato physico tanto ao vivo que ninguem podia deixar de reconhecer o retratado. Assim o governador de Pernambuco D. Sebastião de Sousa Caldas é evidentemente o imperador D. Pedro II, o secretario Barbosa Lima é o visconde do Rio Branco, outro personagem é o marquez de S. Vicente, outro o barão de Inhomerim, etc., etc.
O retrato do imperador não está muito lisongeado, e não devia agradar ao personagem escolhido para modêlo, que se podia até considerar como injuriado positivamente. Comtudo, isso não obstou a que o imperador, em 1868, quando se formou o ministerio conservador, acceitasse a entrada de José Martiniano de Alencar para a pasta da justiça. Esteve porém pouco tempo no ministerio. Uma dissidencia no seio do partido conservador fêl-o sahir do governo, levando-o a ir sentar-se na camara ao lado dos dissidentes.
Continuando, porém, a apreciar o litterato, o romancista, citemos ainda dois dos seus melhores romances: o Gaúcho e Iracema. O caracter do gaúcho, que adora a sua egua Morena, que a entende, que lhe fala e que a escuta, está traçado com uma rara perfeição. Iracema é sobretudo um romancinho adoravelmente escripto. Nunca o estylo de Alencar attingiu tão delicada suavidade. Exhala-se de cada periodo como que o perfume das flores com que se elabora o mel das suas palavras. O sr. Pinheiro Chagas teve occasião de prestar a este livro a merecida homenagem. Fez porém algumas observações relativas á mania que teem alguns escriptores brazileiros, e um d'elles era Alencar, de pretenderem modificar as formas grammaticaes da lingua. Alencar entendeu dever responder na segunda edição do seu romance á critica do escriptor portuguez. Essa replica parecia-se um pouco com o prefacio dos Jesuitas. Manifestava uma grande vaidade realmente inadmissivel em escriptor de tão elevado merito, e mostrava um desprêso completo pelas regras mais elementares da philologia.
As Minas de prata passam por ser um dos seus menos bons romances; encerra comtudo algumas scenas primorosas. Queixam-se os paulistas de que as paizagens da sua provincia descriptas no Til, são perfeitamente phantasistas; Ubirajara, A pata da Gazella, O tronco do ipê, se não augmentaram a reputação do grande romancista não a prejudicaram tambem. O Sertanejo, muito criticado por alguns, parece-nos comtudo um dos seus bons romances. As paizagens que elle descreve são as paizagens da sua provincia natal, que elle conhece perfeitamente, e o typo do vaqueiro que ama em silencio a filha do seu patrão e que procura, com uma raiva intima, afastar todos aquelles que ella possa amar, está traçado com vigor.
Os seus romances de côrte, se assim nós podemos exprimir, são inferiores aos seus romances do sertão. Nem firmou alguns d'elles com o seu nome, Diva e Luciola, romances moldados pela comedia Azas de um Anjo tratam da rehabilitação de peccadoras; Cinco minutos, uma das suas primeiras obras e a Viuvinha são romances ligeirissimos, graciosamente desenhados; a Senhora encerra uma situação fortemente dramatica, mas mal desenvolvida. Trata-se de um homem de vis sentimentos, que despreza uma rapariga pobre que o adorava e despreza-a por ella ser pobre. Tempos depois, acceita o casamento com uma mulher deshonrada por outro homem, porque este lhe paga por uma avultada somma a venda do seu nome. Ora essa mulher é a tal que elle desprezara e que o seu desprêso arrojara pelo caminho da prostituição. O assumpto prestava-se, como vêem, ás mais dramaticas situações.
No genero de pamphletos, e obras politicas, etc., escreveu ainda José de Alencar, que sempre se mostrou hostil ao imperador, a imagem imperial, e as Cartas de Erasmo. Publicou em volume os seus discursos parlamentares de 1809, e os de 1871. É tambem sua, uma obra intitulada Estatistica da provincia do Ceará.
José de Alencar veiu á Europa em 1870. Voltando ao Brazil, foi inesperadamente colhido pela morte no anno de 1877, quando acabava de completar 48 annos, e quando se achava portanto na força da vida. A sua morte enluctou a litteratura brazileira e aquelles mesmos que tinham combatido Senio, pseudonymo querido de José de Alencar, foram os primeiros a render homenagem ao grande vulto, logo que elle desappareceu da scena publica.
(Do Diccionario Popular).
Este livro vae naturalmente encontral-o no seu pittoresco sitio da varzea, no doce lar, que povoa a numerosa prole, alegria e esperança do casal.
Imagino que é a hora mais ardente da sesta.
O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias nataes: as aves emmudecem; as plantas languem. A natureza soffre a influencia da poderosa irradiação tropical, que produz o diamante e o genio, as duas mais sublimes expressões do poder creador.
Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de rezes, que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, ha quantos annos, em outro sitio, não muito distante do seu. A dona da casa terna e incansavel manda abrir o côco verde, ou prepara o saboroso creme do burity para refrigerar o esposo, que pouco ha recolheu de sua excursão pelo sitio, e agora repousa embalando-se na macia e commoda rêde.
Abra então este livrinho, que lhe chega da côrte imprevisto. Percorra suas paginas para desenfastiar o espirito das cousas graves que o trazem occupado.
Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se illudam as reminiscencias da infancia avivadas recentemente. Senão, creio que ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da varzea. Derrama-o a briza que perpassou os espathos da carnauba e a ramagem das aroeiras em flôr.
Essa onda é a inspiração da patria que volve a ella, agora e sempre, como volve de continuo o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri.
O livro é cearense. Foi imaginado ahi, na limpidez d'esse céo de cristallino azul, e depois vasado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rustica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rêde, entre os murmures do vento que crepita na arêa ou farfalha nas palmas dos coqueiros.
Para lá, pois, que é o berço seu, o envio.
Mas assim mandado por um filho ausente, para muitos extranho, esquecido talvez dos poucos amigos, e só lembrado pela incessante desaffeição, qual sorte será a do livro?
Que lhe falte hospitalidade, não ha temer. As auras de nossos campos parecem tão impregnadas d'essa virtude primitiva, que quantas raças habitem ahi a inspiram com o halito vital. Receio sim que seja recebido como extrangeiro e hospede na terra dos meus.
Se, porém, ao abordar ás plagas do Mocoribe, fôr acolhido pelo bom cearense, presado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos tempos prosperos, estou certo que o filho de minha alma achará na terra de seu pae, a intimidade e conchego da familia.
O nome de outros filhos ennobrece nossa provincia na politica e na sciencia; entre elles o meu, hoje apagado, quando o trazia brilhantemente aquelle que primeiro o creou. N'este momento mesmo a espada heroica de muito bravo cearense vae ceifando no campo da batalha ampla messe de gloria.
Quem não pode illustrar a terra natal canta as lendas suas, sem metro, na rude toada de seus antigos filhos.
Acolha pois a primeira mostra e offereça-a a nossos patricios a quem é dedicada.
Este pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro: o outro lhe direi depois que o tenha lido.
Muita cousa me occorre dizer sobre o assumpto, que talvez devera anticipar á leitura da obra, para prevenir a surpreza de alguns e responder ás observações ou reparos de outros.
Mas sempre fui avêsso aos prologos; em meu conceito elles fazem á obra, o mesmo que o passaro á fructa antes de colhida; roubam as primicias do sabor litterario. Por isso me reservo para depois.
Na ultima pagina me encontrará de novo; então conversaremos a gosto, em mais liberdade do que teriamos n'este portico do livro, onde as etiquetas mandam receber o publico com a gravidade e reverencia devida a tão alto senhor.
Rio de Janeiro—Maio de 1865.
J. de Alencar.
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba:
Verdes mares que brilhaes como liquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros:
Serenae verdes mares, e alisae docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvalle á flôr das aguas.
Onde vae a affouta jangada, que deixa rapida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?
Onde vae como branca alcyone buscando o rochedo patrio nas solidÕes do oceano?
Tres entes respiram sobre o fragil lenho que vae singrando veloce, mar em fora:
Um joven guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano: uma creança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermittente traz da praia um écho vibrante, que resôa entre o marulho das vagas:
—Iracema!...
O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos prêsos na sombra fugitiva da terra: a espaços o olhar empanado por tenue lagrima cahe sobre o giráu, onde folgam as duas innocentes creaturas, companheiras de seu infortunio.
N'esse momento o labio arranca d'alma um agro sorriso.
Que deixára elle na terra do exilio?
Uma historia que me contaram nas lindas varzeas onde nasci, á calada da noite, quando a lua passeava no céo argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.
Refresca o vento.
O rullo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas; desapparece no horisonte. Abre-se a immensidade dos mares: e a borrasca enverga, como o condor, as foscas azas sobre o abysmo.
Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas revoltas, e te poje n'alguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas auras: e para ti jaspeie a bonança mares de leite.
Em quanto vogas assim á discripção do vento, airoso barco, volva ás brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra onde revoa.
Além, muito além d'aquella serra, que ainda azula no horisonte, nasceu Iracema:
Iracema, a virgem dos labios de mel, que tinha os cabellos mais negros que a aza da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jaty não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu halito perfumado.
Mais rapida que a corsa selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipú, onde campeava sua guerreira tribu, da grande nação tabajara. O pé gracil e nú, mal rosçando, alisava apenas a verde pellucia que vestia a terra com as primeiras aguas.
Um dia, ao pino do sol, ella repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oitycica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acacia silvestre esparziam flores sobre seus humidos cabellos. Escondidos na folhagem os passaros ameigavam o canto.
Iracema sahiu do banho: o aljofar d'agua ainda a roreja, como á dôce mangaba que córou em manhã de chuva. Emquanto repousa empluma das pennas do gará as flechas de seu arco; e concerta com o sabiá da mata pousado no galho proximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto d'ella. Ás vezes sobe aos ramos da arvore e de lá chama a virgem pelo seu nome; outras remexe o urú de palha matisada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da jussára com que tece a renda, e as tintas de que matisa o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Deante d'ella e todo a contemplal-a, está um guerreiro extranho, se é guerreiro e não algum máu espirito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das aguas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rapido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gottas de sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro impeto, a mão lesta cahiu sobre a cruz da espada; mas logo sorrio. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é symbolo de ternura e amor. Soffreu mais d'alma, que da ferida.
O sentimento que elle pôz nos olhos e no rosto, não sei eu. Porem a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da magoa que causara. A mão que rapida ferira, estancou mais rapida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando comsigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
—Quebras commigo a flecha da paz?
—Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? D'onde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
—Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuiram, e hoje tem os meus.
—Bemvindo seja o extrangeiro aos campos dos Tabajaras, senhores das aldeias, e á cabana de Araken, pae de Iracema.
O extrangeiro seguiu a virgem através da floresta.
Quando o sol descambava sobre a crista dos montes, e a rôla desatava do fundo da mata os primeiros arrulhos, elles descobriram no valle a grande taba: e mais longe, pendurada no rochedo, á sombra dos altos joaseiros, a cabana do Pagé.
O ancião fumava á porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando os sagrados ritos de Tupan. O tenue sôpro da brisa carmeava, como frocos de algodão, os compridos e raros cabellos brancos. De immovel que estava, sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas profundas.
O Pagé lobrigou os dois vultos que avançavam; cuidou vêr a sombra de uma arvore solitaria que vinha alongando-se pelo valle fora.
Quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seu olhar como o do tigre, feito ás trevas, conheceu Iracema, e viu que a seguia um joven guerreiro, de extranha raça e longes terras.
As tribus tabajaras, d'além Ibyapaba, falavam de uma nova raça de guerreiros, alvos como flôres de borrasca, e vindos de remota plaga ás margens do Mearim. O ancião pensou que fôsse um guerreiro semelhante, aquelle que pisava os campos nativos.
Tranquillo, esperou.
A virgem aponta para o extrangeiro e diz:
—Elle veiu, pae.
—Veiu bem. É Tupan que traz o hospede á cabana de Araken.
Assim dizendo, o Pagé passou o cachimbo ao extrangeiro: e entraram ambos na cabana.
O mancebo sentou na rede principal, suspensa no centro da habitação.
Iracema accendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que havia de provisões para satisfazer a fome e a sede: trouxe os restos da caça, a farinha d'agua, os fructos silvestres, os favos de mel e o vinho de cajú e ananaz.
Depois a virgem entrou com a igaçaba, que enchêra na fonte proxima de agua fresca para lavar o rosto e as mãos do extrangeiro.
Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho Pagé apagou o cachimbo e falou:
—Vieste?
—Vim: respondeu o desconhecido.
—Bem vieste. O extrangeiro é senhor na cabana de Araken. Os Tabajaras tem mil guerreiros para defendel-o, e mulheres sem conto para servil-o. Dize, e todos te obedecerão.
—Pagé eu te agradeço o agasalho que me déste. Logo que o sol nascer deixarei tua cabana e teus campos onde vim perdido; mas não devo deixal-os sem dizer-te quem é o guerreiro, que fizeste amigo.
—Foi a Tupan que o Pagé serviu: elle te trouxe, elle te levará. Arake n nada fez pelo hospede; não pergunta d'onde vem, e quando vae. Se queres dormir, desçam sobre ti os sonhos alegres: se queres falar, teu hospede escuta.
O extrangeiro disse:
—Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os Pytiguaras, inimigos de tua nação. Meu nome é Martim, que na tua lingua diz como filho de guerreiro; meu sangue o do grande povo que primeiro viu as terras de tua patria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar ás margens do Parahyba, de onde vieram: e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os vastos sertões do Apody. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os Pytiguaras de Acaraú, na cabana do bravo Poty, irmão de Jacaúna, que plantou commigo a arvore da amizade. Ha tres sóes partimos para a caça; e perdido dos meus vim aos campos dos Tabajaras.
—Foi algum máu espirito da floresta que cegou o guerreiro branco no escuro da mata: respondeu o ancião.
A cauâm piou, além. na extrema do valle. Cahia a noite.
O Pagé vibrou a maracá, e sahiu da cabana: porém, o extrangeiro não ficou só.
Iracema voltára com as mulheres chamadas para servir o hospede de Araken, e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.
—Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer emballe a tua rêde durante a noite; e o sol traga luz aos teus olhos, alegria á tua alma.
E assim dizendo Iracema tinha o labio tremulo, e humida a palpebra.
—Tu me deixas? perguntou Martim.
—As mais bellas mulheres da grande taba comtigo ficam.
—Para ellas a filha de Araken não devia ter conduzido o hospede á cabana do Pagé.
—Extrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ella que guarda o segredo da jurema e o mysterio do sonho. Sua mão fabrica para o Pagé a bebida de Tupan.
O guerreiro christão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.
A grande taba erguia-se no fundo do valle, illuminada pelos faxos da alegria. Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança em torno a rude cadencia. O Pagé inspirado conduzia o sagrado tripudio e dizia ao povo crente os segredos de Tupan.
O maior chefe cia nação tabajara, Irapuam, descêra do mais alto da serra Ibyapaba, para levar as tribus do sertão contra o inimigo Pytiguara. Os guerreiros do valle festejam a vinda do chefe e o proximo combate.
O mancebo christão viu longe o clarão da festa, e passou além, e olhou o céo azul sem nuvens. A estrella morta que então brilhava sobre a cupula da floresta, guiou seu passo firme para as frescas margens do Acaraú.
Quando elle transmontou o valle e ia penetrar na matta, o vulto de Iracema surgiu. A virgem seguira o extrangeiro como a brisa subtil que resvalla sem murmurejar por entre a ramagem.
—Porque, disse ella, o extrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos Tabajaras?
O christão sentiu quanto era justa a queixa, e achou-se ingrato.
—Ninguem fez mal ao teu hospede, filha de Araken. Era o desejo de vêr seus amigos que o afastava dos campos dos Tabajaras. Não levava o presente da volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema.
—Se a lembrança de Iracema estivesse na alma do extrangeiro, ella não o deixaria partir. O vento não leva a areia da varzea, quando a areia bebe a agua da chuva.
—A virgem suspirou:
—Guerreiro branco, espera que Cauby volte da caça. O irmão de Iracema tem o ouvido subtil que pressente a boicininga entre os rumores da matta; e o olhar do oitibó que vê melhor na treva. Elle te guiará ás margens do rio das garças.
—Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta na cabana de Araken?
—O sol, que vae nascer, tornará com o guerreiro Cauby aos campos do Ipú.
—Teu hospede espera, filha de Araken: mas se o sol tornando, não trouxer o irmão de Iracema, elle levará o guerreiro branco á taba dos Pytiguaras.
Martim voltou á cabana do Pagé.
A alva rêde que Iracema perfumara com a resina do beijoim guardava-lhe um somno calmo e doce. O christão adormeceu ouvindo suspirar, entre os murmurios da floresta, o canto mavioso da virgem indiana.
O gallo da campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu limpido trinado annuncia a aproximação do dia.
Ainda a sombra cobre a terra. Já o povo selvagem colhe as redes na grande taba e caminha para o banho. O velho Pagé que velou toda a noite, falando ás estrellas, conjurando os máus espiritos da treva, entra furtivamente na cabana.
Eis retroa o boré pela amplidão do valle.
Travam das armas os rapidos guerreiros, e correm ao campo. Quando fôram todos na vasta ocára circular, Irapuam, o chefe, soltou o grito de guerra.
—Tupan deu á grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as serras, que manam os corregos, com os frescos ipús onde cresce a maniva e o algodão; e abandonamos ao barbaro Potyuara, comedor de camarão, as areias núas do mar, com os sêccos taboleiros sem agua e sem florestas. Agora os pescadores da praia, sempre vencidos, deixam vir pelo mar a raça branca dos guerreiros de fogo, inimigos de Tupan. Já os emboabas estiveram no Jaguaribe; logo estarão em nossos campos; e com elles os Potyuaras. Faremos nós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a serpente enrosca pelos galhos?
O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando a fronte, cobre o rubido olhar:
—Irapuam falou; disse.
O mais moço dos guerreiros avança:
—O gavião paira nos ares. Quando a nambú levanta, elle cae das nuvens e rasga as entranhas da victima. O guerreiro tabajara, filho da serra, é como o gavião.
Troa e retroa a pocema da guerra.
O joven guerreiro erguera o tacape; e por sua vez o brandio. Girando no ar, rapida e ameaçadora, a arma do chefe passou de mão em mão.
O velho Andira, irmão do Pagé, a deixou tombar, e calcou no chão, com o pé agil ainda e firme.
Pasma o povo tabajara da acção desusada. Voto de paz em tão provado e impetuoso guerreiro! É o velho heroe, que cresceu na sanha, crescendo nos annos, é o feroz Andira quem derrubou o tacape, nuncio da proxima lucta?
Incertos todos e mudos escutam:
—Andira, o velho Andira, bebeu mais sangue na guerra do que já beberam cauim nas festas de Tupan, todos quantos guerreiros allumia agora a luz de seus olhos. Elle viu mais combates em sua vida do que luas lhe despiram a fronte. Quanto craneo de Potyuara escalpellou sua mão implacavel, antes que o tempo lhe arrancasse o primeiro cabello? E o velho Andira nunca temeu que o inimigo pisasse a terra de seus paes: mas alegrava-se quando elle vinha, e sentia com o faro da guerra a juventude renascer no corpo decrepito, como a arvore sêcca renasce com o sopro do inverno. A nação tabajara é prudente. Ella deve encostar o tacape da lucta para tanger o memby da festa. Celebra, Irapuam, a vinda dos emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos. Então Andira te promette o banquete da victoria.
Desabriu emfim Irapuam a funda colera:
—Fica tu, escondido entre as igaçabas de vinho, tica, velho morcego, porque temes a luz do dia, e só bebes o sangue da victima que dorme. Irapuam leva a guerra no punho de seu tacape. O terror que elle inspira voa com o rouco som do boré. O Potyuara já tremeu ouvindo rugir na serra, mais forte que o ribombo do mar.
Martim vae a passo e passo por entre os altos joaseiros que cercam a cabana do Pagé.
Era o tempo em que o doce aracaty chega do mar, e derrama a deliciosa frescura pelo arido sertão. A planta respira; um dôce arrepio irriça a verde coma da floresta.
O christão contempla o occaso do sol. A sombra, que desce dos montes e cobre o valle, penetra sua alma. Lembra-se do lugar onde nasceu, dos entes queridos que alli deixou. Sabe elle se tornará a vel-os algum dia?
Em tôrno carpe a natureza o dia que expira. Soluça a onda trepida e lacrimosa; geme a brisa na folhagem; o mesmo silencio anhela de afflicto.
Iracema parou em face do joven guerreiro:
—É a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto do extrangeiro?
Martim pousou brandos olhos na face da virgem:
—Não, filha de Araken: tua presença alegra, como a luz da manhã. Foi a lembrança da patria que trouxe a saudade ao coração presago.
—Uma noiva te espera?
O forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espadua, como a tenra palma da carnaúba, quando a chuva peneira na varsea.
—Ella não é mais doce do que Iracema, a virgem dos labios de mel; nem mais formosa! murmurou o extrangeiro.
—A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde se enlace. Iracema não vive n'alma de um guerreiro: nunca sentiu a frescura de seu sorriso.
Emmudeceram ambos, com os olhos no chão, escutando a palpitação dos seios que batiam oppressos.
A virgem falou emfim:
—A alegria voltará logo á alma do guerreiro branco; porque Iracema quer que elle veja antes da noite a noiva que o espera.
Martim sorriu do ingenuo desejo da filha do Pagé.
—Vem! disse a virgem.
Atravessaram o bosque e desceram ao valle. Onde morria a falda da collina o arvoredo era basto: densa abobada de folhagem verde-negra cobria o adyto agreste, reservado aos mysterios do rito barbaro.
Era de jurema o bosque sagrado. Em torno corriam os troncos rugosos da arvore de Tupan; dos galhos pendiam occultos pela rama escura os vasos do sacrificio: lastravam o chão as cinzas de extincto fogo, que servira á festa da ultima lua.
Antes de penetrar o recondito sitio, a virgem que conduzia o guerreiro pela mão, hesitou, inclinando o ouvido subtil aos suspiros da brisa. Todos os ligeiros rumores da mata tinham uma voz para a selvagem filha do sertão. Nada havia porém de suspeito no intenso respiro da floresta.
Iracema fez ao extrangeiro um gesto de espera e silencio, e desappareceu no mais sombrio do bosque. O sol ainda pairava suspenso no viso da serrania: e já noite profunda enchia aquella solidão.
Quando a virgem tornou, trazia n'uma folha gottas de verde extranho licor vasadas da igaçaba, que acabava de tirar do seio da terra. Apresentou ao guerreiro a taça agreste.
—Bebe!
Martim sentiu perpassar nos olhos o somno da morte: porém logo a luz inundou os seios d'alma: a fôrça exhuberou no coração. Reviveu os dias passados melhor do que os tinha vivido: fruiu a realidade de suas mais bellas esperanças.
Eil-o que volta á terra natal, abraça sua velha mãe, revê mais lindo e terno o anjo puro dos amores infantis.
Mas porque, mal de volta ao berço da patria, o joven guerreiro de novo abandona o tecto paterno e demanda o sertão?
Já atravessa as florestas; já chega aos campos do Ipú. Busca na selva a filha do Pagé. Segue o rastro ligeiro da virgem arisca, soltando á brisa com o crebro suspiro o doce nome:
—Iracema! Iracema!...
Já a alcança e cinge-lhe o braço pelo talhe esbelto.
Cedendo á meiga pressão, a virgem reclinou ao peito do guerreiro, e ficou alli tremula e palpitante como a timida perdiz, quando o terno companheiro lhe arrufa com o bico a macia penugem.
O labio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome e soluçou, como se chamara outro labio amante. Iracema sentiu que sua alma se escapava para embeber-se no osculo ardente.
E a fronte reclinava, e a flôr do sorriso desabrochava já para deixar-se colher.
Subito a virgem tremeu; soltando-se rapida do braço que a cingia, travou do arco.
Iracema passou entre as arvores, silenciosa como uma sombra: seu olhar scintillante coava entre as folhas, quaes frouxos raios de estrellas: ella escutava o silencio profundo da noite e aspirava as auras subtis que afflavam.
Parou. Uma sombra resvallava entre as ramas; e nas folhas crepitava um passo ligeiro, se não era o roer de algum insecto. A pouco e pouco o tenue rumor foi crescendo e a sombra avultou.
Era um guerreiro. De um salto a virgem estava em face d'elle, tremula de susto e mais de colera.
—Iracema! exclamou o guerreiro recuando.
—Anhanga turvou sem duvida o somno de Irapuam, que o trouxe perdido ao bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra sem a vontade de Araken.
—Não foi Anhanga, mas a lembrança de Iracema, que turvou o somno do primeiro guerreiro tabajara. Irapuam desceu de seu ninho de aguia para seguir na varzea a garça do rio. As vozes da taba contaram ao ouvido do chefe que um extrangeiro era vindo á cabana de Araken.
A virgem estremeceu. O guerreiro cravou n'ella o olhar abrazado:
—O coração aqui no peito de Irapuam, ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a presa. O extrangeiro está no bosque, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame a filha de Araken.
A pupilla negra da virgem scintillou na treva, e de seu labio borbulhou como gottas do leite caustico da euphorbia, um sorriso de despreso:
—Nunca Iracema daria seu seio, que o espirito de Tupan habita só, ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras! Torpe é o morcego porque foge da luz e bebe o sangue da victima adormecida!...
—Filha de Araken! Não assanha o jaguar! O nome de Irapuam voa mais longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras. Que o guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra para o vencedor.
—O guerreiro branco é hospede de Araken. A paz o trouxe aos campos do Ipú, a paz o guarda. Quem offender o extrangeiro, offende o Pagé.
Rugiu de sanha o chefe tabajara:
—A raiva de Irapuam só ouve agora o grito da vingança. O extrangeiro vae morrer.
—A filha de Araken é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse Iracema travando da inubia. Ella tem aqui a voz de Tupan, que chama o seu povo.
—Mas ella não chamará! respondeu o chefe escarnecendo.
—Não, porque Irapuam vae ser punido pela mão de Iracema. Seu primeiro passo, é o passo da morte.
A virgem retrahiu d'um salto o avanço que tomara, e vibrou o arco. O chefe cerrou ainda o punho do formidavel tacape; mas pela vez primeira sentio que pesava ao braço robusto. O golpe que devia ferir Iracema, ainda não alçado, já lhe trespassava, a elle proprio, o coração.
Conheceu quanto o varão forte, é pela sua mesma fortaleza, mais vencido das grandes paixões.
—A sombra de Iracema não esconderá sempre o extrangeiro á vingança de Irapuam. Vil é o guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher.
Dizendo estas palavras, o chefe desappareceu entre as arvores. A virgem sempre alerta volveu para o christão adormecido; e velou o resto da noite a seu lado. As emoções recentes, que agitaram sua alma, a abriram inda mais á doce affeição, que iam filtrando n'ella os olhos do extrangeiro.
Desejava abrigal-o contra todo o perigo, recolhel-o em si como em um asylo impenetravel. Acompanhado o pensamento, seus braços cingiam a cabeça do guerreiro, e a apertavam ao seio.
Mas quando passou a alegria de vêr o extrangeiro salvo dos perigos da noite, entrou-a mais viva a inquietação, com a lembrança dos novos perigos que iam surgir.
—O amor de Iracema é como o vento dos areaes; mata a flôr das arvores: suspirou a virgem.
E afastou-se lentamente.
A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã dissipou os sonhos da noite: e arrancou de sua alma a lembrança do que sonhara. Ficou apenas um vago sentir, como fica na moita o perfume do cacto que o vento da serra desfolha na madrugada.
Não sabia onde estava.
Á sahida do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava n'um tronco aspero do arvoredo: tinha os olhos no chão: o sangue fugira das faces; o coração lhe tremia nos labios, como gôtta de orvalho nas folhas do bambú.
Não tinha sorrisos, nem cores, a virgem indiana; não tem borbulhas, nem rosas, a acacia que o sol crestou; não tem azul, nem estrellas, a noite que enluctam os ventos.
—As flôres da matta já abriram aos raios do sol; as aves já cantaram: disse o guerreiro. Porque só Iracema curva a fronte e emmudece?
A filha do Pagé estremeceu. Assim estremece a verde palma, quando a haste fragil foi abalada; rorejam do espato as lagrimas da chuva; e os leques ciciam brandamente:
—O guerreiro Cauby vae chegar á taba de seus irmãos. O extrangeiro poderá partir com o sol que vem nascendo.
—Iracema quer vêr o extrangeiro fora dos campos dos Tabajaras; então a alegria voltará ao seu seio.
—A juruty, quando a arvore secca, abandona o ninho em que nasceu. Nunca mais a alegria voltará ao seio de Iracema: ella vae ficar, como o tronco nú, sem ramas, nem sombras.
Martim amparou o corpo tremulo da virgem; ella reclinou languida sobre o peito do guerreiro, como o tenro pampano da baunilha que enlaça o rijo galho do anjico.
O mancebo murmurou:
—Teu hospede fica, virgem dos olhos negros: elle fica para ver abrir em tuas faces a flôr da alegria e para colher, como a abelha, o mel de teus mimosos labios.
Iracema soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristeza:
—Guerreiro branco, Iracema é filha do Pagé, e guarda o segredo da jurema. O guerreiro que possuisse a virgem de Tupan morreria.
—E Iracema?
—Pois que tu morrias!
Esta palavra foi sopro de tormenta. A cabeça do mancebo vergou e pendeu sobre o peito: mas logo se ergueu.
—Os guerreiros de meu sangue trazem a morte comsigo, filha dos Tabajaras. Não a temem para si, não a poupam para o inimigo. Mas nunca fóra do combate elles deixaram aberto o camocim da virgem na taba de seu hospede. A verdade falou pela bôcca de Iracema. O extrangeiro deve abandonar os campos dos Tabajaras.
—Deve: respondeu a virgem como um ecco.
Depois a sua voz suspirou:
—O mel dos labios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no tronco da guabiroba: tem na doçura o veneno. A virgem dos olhos azues e dos cabellos do sol guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o mel da assucena.
Martim afastou-se rapido, e voltou, mas lentamente, A palavra tremia em seu labio:
—O extrangeiro partirá para que o socego volte ao seio da virgem.
—Tu levas a luz dos olhos de Iracema, e a flôr de sua alma.
Reboa longe na selva um clamor extranho. Os olhos do mancebo alongam-se.
—É o grito de alegria do guerreiro Cauby: disse a virgem. O irmão de Iracema annuncia a sua boa chegada aos campos dos Tabajaras.
—Filha de Araken, guia teu hospede á cabana. É tempo de partir.
Elles caminharam par a par como dois jovens cervos ao pôr do sol atravessam a capoeira recolhendo ao aprisco d'onde lhes traz a brisa um faro suspeito.
Quando passavam entre os joazeiros, viram que atravessava além o guerreiro Cauby, vergando os hombros robustos ao peso da caça. Iracema caminhou para elle.
O extrangeiro entrou só na cabana.
O somno da manhã pousava nos olhos do Pagé como nevoas de bonança pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha.
Martim parou indeciso; mas o rumor de seu passo penetrou o ouvido do ancião, e abalou o corpo decrepito.
—Araken dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.
O velho ficou immovel:
—O Pagé dorme porque já Tupan voltou o rosto para a terra e a luz correu os máus espiritos da treva. Mas o somno é leve nos olhos de Araken, como o fumo do sapé no cocuruto da serra. Se o extrangeiro veiu para o Pagé, fale; seu ouvido escuta.
—O extrangeiro veiu, para te annunciar que parte.
—O hospede é senhor na cabana de Araken; todos os caminhos estão abertos para elle. Tupan o leve á taba dos seus.
Vieram Cauby e Iracema:
—Cauby voltou; disse o guerreiro tabajara. Traz a Araken o melhor da sua caça.
—O guerreiro Cauby é um grande caçador de montes e florestas. Os olhos de seu pae gostam de vêl-o.
O velho abriu as palpebras e cerrou-as logo:
—Filha de Araken, escolhe para teu hospede o presente da volta, e prepara o moquem da viagem. Se o extrangeiro precisa de guia, o guerreiro Cauby, senhor do caminho, o acompanhará.
O somno voltou aos olhos do Pagé.
Emquanto Cauby pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu a sua alva rede de algodão com franjas de pennas, e accommodou-a dentro do urú de palha trançada.
Martim esperava na porta da cabana. A virgem veiu para elle:
—Guerreiro, que levas o somno de meus olhos, leva á minha rede tambem. Quando n'ella dormires, falem em tua alma os sonhos de Iracema.
—A tua rede, virgem dos Tabajaras, será minha companheira no deserto: venha embora o vento frio da noite, ella guardará para o extrangeiro o calor e o perfume do seio de Iracema.
Cauby sahiu para ir á sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta. Iracema foi preparar o moquem da viagem. Ficaram sós na cabana o Pagé que resonava, e o mancebo com a sua tristeza.
O sol transmontando, já começava a declinar para o occidente, quando o irmão de Iracema tornou da grande taba.
—O dia vae ficar triste, disse Cauby. A sombra já caminha para a noite. É tempo de partir.
A virgem pousou a mão de leve no punho da rêde de Araken.
—Elle vae! murmuraram os labios tremulos.
O Pagé levantou-se em pé no meio da cabana e accendeu o cachimbo. Elle e o mancebo trocaram a fumaça da despedida:
—Bem ido seja o hospede, como foi bem vindo á cabana de Araken.
O velho andou até á porta, para soltar ao vento uma espessa baforada de tabaco: quando o fumo a dissipou no ar, elle murmurou:
—Jurupary se esconda para deixar passar o hospede do Pagé.
Araken voltou á rêde e dormiu de novo. O mancebo tomou as suas armas mais pesadas que chegando suspendera ás varas da cabana e se dispôz a partir.
Adiante seguiu Cauby: a alguma distancia o extrangeiro: logo apóz d'elle Iracema.
Desceram a colina e entraram na matta sombria. O sabiá do sertão, mavioso cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia, soltava já os preludios da suave endeixa.
A virgem suspirou:
—A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vão ser longas tardes sem manhã, até que venha para ella a grande noite.
O mancebo voltara-se. Seu labio emmudeceu, mas os olhos falaram. Uma lagrima correu pela face guerreira, como as humidades que durante os ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos.
Cauby avançando sempre, sumira-se entre a densa ramagem.
O seio da filha de Araken arfou, como o ésto da vaga que se franja de espuma, e soluçou. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pállido reflexo para illuminar a sêcca flôr das faces. Assim em noite escura vem um fogo fatuo luzir as brancas areias do taboleiro.
—Extrangeiro, toma o ultimo sorriso de Iracema... e foge!
A bôcca do guerreiro pousou na bôcca mimosa da virgem. Ficaram ambas assim unidas como dois fructos gemeos do araçá, que sahiram do seio da mesma flôr.
A voz de Cauby chamou o extrangeiro. Iracema abraçou para não cahir o tronco de uma palmeira.
Na cabana silenciosa medita o velho Pagé.
Iracema está apoiada no tronco rudo, que serve de esteio. Os grandes olhos negros, fitos nos recortes da floresta e rasos de pranto, parece estão n'aquelles olhares longos e tremulos enfiando e desfiando os aljofares das lagrimas, que rorejam as faces.
A ará, pousada no girau fronteiro, alonga para sua formosa senhora os verdes tristes olhos. Desde que o guerreiro branco pisou a terra dos Tabajaras, Iracema a esqueceu.
Os roseos labios da virgem não se abriram mais para que ella colhesse entre elles a polpa da fructa ou a papa do milho verde; nem a dôce mão a affagára uma só vez, alisando a penugem dourada da cabeça.
Se repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não se voltava para ella, nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e amiga, que d'antes tão suave era ao seu coração.
Triste d'ella! A gente tupy a chamava jandaia, porque sempre alegre estrugia os campos com seu canto fremente. Mas agora, triste e muda, desdenhada de sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e sim o feio urutão que sómente sabe gemer.
O sol remontou a umbria das serras; seus raios douravam apenas o viso das eminencias.
A surdina merencoria da tarde, que precede o silencio da noite, começava de velar os crebros rumores do campo. Uma ave nocturna, talvez illudida com a sombra mais espessa do bosque, desatou o estridulo.
O velho ergueu a fronte calva:
—Foi o canto da inhuma que accordou o ouvido de Araken? disse elle admirado.
A virgem estremecêra; já fóra da cabana voltou-se para responder á pergunta do Pagé:
—É o grito de guerra do guerreiro Cauby!
Quando o segundo pio da inhuma resoou, Iracema corria na matta, como a corça perseguida pelo caçador. Só respirou chegando á campina, que recortava o bosque, como um grande lago.
Quem seus olhos primeiro viram, Martim, estava tranquillamente sentado em uma sapopema, olhando o que passava alli. Contra, cem guerreiros tabajaras com Irapuam á frente, formavam arco. O bravo Cauby os affrontava a todos, com o olhar cheio de ira e as armas valentes empunhadas na mão robusta:
O chefe exigira a entrega do extrangeiro, e o guia respondera simplesmente:
—Matae Cauby, antes.
A filha do Pagé passara como uma flecha: eil-a deante de Martim oppondo tambem seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros. Irapuam soltou o bramido da onça atacada na furna.
—Filha do Pagé, disse Cauby em voz baixa. Conduz o extrangeiro á cabana: só Araken pode salval-o.
Iracema voltou-se para o guerreiro branco:
—Vem!
Elle ficou immovel.
—Se tu não vens, disse a virgem, Iracema morrerá comtigo.
Martim ergueu-se; mas longe de seguir á virgem, caminhou direito a Irapuam. A sua espada flammejou no ar.
—Os guerreiros do meu sangue, chefe, jamais recusaram combate. Se aquelle que tu vês não foi o primeiro a provocal-o, é porque seus paes lhe ensinaram a não derramar sangue na terra hospedeira.
O chefe tabajara rugiu de alegria; sua mão possante brandio o tacape. Mas os dois campeões mal tiveram tempo de medir-se com os olhos; quando fendiam o primeiro golpe, já Cauby e Iracema estavam entre elles.
A filha de Araken debalde rogava ao christão, debalde o cingia em seus braços buscando arrancal-o ao combate. De seu lado Cauby em vão provocava Irapuam para attrahir a si a raiva do chefe.
A um gesto de Irapuam, os guerreiros afastaram os dois irmãos; o combate proseguiu.
De repente o rouco som da inubia reboou pela matta; os filhos da serra estremeceram reconhecendo o estridulo do buzio guerreiro dos Pytiguaras, senhores das praias, encombradas de coqueiros. O ecco vinha da grande taba, que o inimigo talvez assaltava já.
Os guerreiros precipitaram-se, levando por deante o chefe. Com o extrangeiro só ficou a filha de Araken.
Os guerreiros tabajaras, acorridos á taba, esperavam o inimigo deante da caiçara.
Não vindo elles sahiram a buscal-o.
Bateram as matas em tôrno e percorreram os campos; nem vestigios encontraram da passagem dos Pytiguaras; mas o conhecido fremito do buzio das praias tinha resoado ao ouvido dos guerreiros da montanha; não havia duvidar.
Suspeitou Irapuam que fosse um ardil da filha de Araken para salvar o extrangeiro; e caminhou direito á cabana do Pagé. Como trota o guará pela orla da mata, quando vae seguindo o rastro da presa escápula, assim estugava o passo o sanhudo guerreiro.
Araken viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. A virgem referia os successos da tarde: avistando a figura sinistra de Irapuam saltou sobre o arco, e uniu-se ao flanco do joven guerreiro branco.
Martim a affastou docemente de si, e promoveu o passo.
A protecção, de que o cercava a elle guerreiro a virgem tabajara, o desgostava.
—Araken, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuam veiu buscal-o.
—O hospede é amigo de Tupan; quem offender o extrangeiro ouvirá o rugir do trovão.
—O extrangeiro foi quem offendeu a Tupan, roubando a sua virgem, que guarda os sonhos da jurema.
—Tua bôcca mente como o ronco da jiboia: exclamou Iracema.
Martim disse:
—Irapuam é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes!
O Pagé falou grave e lento:
—Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flôr de seu corpo, ella morrerá; mas o hospede de Tupan é sagrado; ninguem lhe tocará, todos o servirão.
Irapuam bramio; o grito rouco troou nas arcas do peito, como o fremito da sucury na profundeza do rio.
—A raiva de Irapuam não pode mais ouvir-te, velho Pagé! Caia ella sobre ti, se ousas subtrahir o extrangeiro á vingança dos Tabajaras.
O velho Andira, irmão do Pagé, entrou na cabana; trazia no punho o terrivel tacape e nos olhos uma raiva ainda mais terrivel.
—O morcego vem te chupar o sangue, se é que tens sangue e não mel nas veias, tu que ameaças em sua cabana o velho Pagé.
Araken affastou o irmão:
—Paz e silencio, Andira.
O Pagé desenvolvera a alta e magra estatura, como a caninana assanhada, que se enrista sobre a cauda, para affrontar a victima em face. As rugas affundaram; e repuxando as pelles engelhadas esbugalharam os dentes alvos e afilados:
—Ousa um passo mais, e as iras de Tupan te esmagarão sob o peso d'esta mão sêcca e mirrada!
—N'este momento, Tupan não é comtigo! replicou o chefe.
O Pagé rio; e o seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da ariranha.
—Ouve seu trovão, e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza.
Araken proferindo essa palavra terrivel, avançou até o meio da cabana; alli ergueu a grande pedra e calcou o pé com fôrça no chão: subito, abriu-se a terra. Do antro profundo sahiu um medonho gemido, que parecia arrancado das entranhas do rochedo.
Irapuam não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentiu turvar-se a luz nos olhos, e a voz nos labios.
—O senhor do trovão é por ti; o senhor da guerra será por Irapuam.
O torvo guerreiro deixou a cabana; em pouco seu grande vulto mergulhou-se nas sombras do crepusculo.
O Pagé e seu irmão travaram a pratica na porta da cabana.
Martim ainda surprêso do que vira, não tirava os olhos da funda cava, que a planta do velho Pagé abrira no chão da cabana. Um surdo sumor, como o echo das ondas quebrando nas praias, ruidava alli.
O guerreiro christão scismava; elle não podia crêr que o Deus dos Tabajaras desse ao seu sacerdote tamanho poder.
Araken percebendo o que passava n'alma do extrangeiro, accendeu o cachimbo e travou do maracá:
—É tempo de applacar as iras de Tupan, e calar a voz do trovão.
Disse e partiu da cabana.
Iracema achegou-se então do mancebo; levava os labios em riso, os olhos em jubilo:
—O coração de Iracema está como o abaty n'agua do rio. Ninguem fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araken.
—Arreda-te do inimigo, virgem dos Tabajaras; respondeu o extrangeiro com asperesa de voz.
Voltando brusco para o lado oposto, furtou o semblante aos olhos ternos e queixosos da virgem.
—Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos d'ella, como se fôra o verme da terra?
As falas da virgem resoaram docemente no coração de Martim. Assim resoam os murmurios da aragem nas frondes da palmeira. O mancebo sentiu raiva de si, e pena d'ella:
Não ouves tu, virgem formosa? exclamou elle apontando para o antro fremente.
—É a voz do Tupan!
—Teu Deus falou pela bôcca do Pagé. Se a virgem de Tupan abandonar ao extrangeiro a flôr de seu corpo, ella morrerá!...
Iracema pendeu a fronte abatida:
—Não é voz de Tupan que ouve teu coração, guerreiro de longes terras, é o canto da virgem branca que te chama!
O rumor extranho que sahia das profundezas da terra, apagou-se de repente: fez-se na cabana tão grande silencio, que ouvia-se pulsar o sangue na arteria do guerreiro, e tremer o suspiro no labio da virgem.
O dia ennegreceu; era noite já.
O Pagé tornára á cabana; sopesando de novo a grande lage, fechou com ella a bôcca do antro. Cauby chegára tambem da grande taba, onde com seus irmãos guerreiros se recolhera depois que bateram a floresta, em busca do inimigo Pytiguara.
No meio da cabana, entre as redes armadas em quadro, extendeu Iracema a esteira da carnauba, e sobre ella serviu os restos da caça, e a provisão de vinhos da ultima lua. Sé o guerreiro tabajara achou sabor na ceia, porque o fel do coração que a tristeza expreme não amargava seu labio.
O Pagé bebia no cachimbo o fumo sagrado de Tupan, que lhe enchia as arcas do peito: o extrangeiro respirava, ar ás golfadas para refrescar-lhe o sangue effervescente; a virgem distillava sua alma como o mel de um favo, nos crebros soluços que lhe estalavam entre os labios tremulos.
Já partiu Cauby para a grande taba; o Pagé traga as baforadas do fumo, que prepara o mysterio do sagrado rito.
Levanta-se no resomno da noite um grito vibrante, que remonta ao céo.
Martim ergue a fronte e inclina o ouvido. Outro clamor semelhante resoa. O guerreiro murmura, que o ouça a virgem e só ella:
—Escutou Iracema, cantar a gaivota?
—Iracema escutou o grito de uma ave que ella não conhece.
—É a atyaty, a garça do mar, e tu és a virgem da serra, que nunca desceu as alvas praias onde arrebentam as vagas.
—As praias são dos Pytiguaras, senhores das Palmeiras.
Os guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar, se chamavam a si mesmos Pytiguaras, senhores dos valles; mas os Tabajaras, seus inimigos, por escarneo os apellidavam Potyuaras, comedores de camarão.
Iracema não quiz offender o guerreiro branco; por isso falando a respeito dos Pytiguaras, não lhes recusou o nome guerreiro que elles haviam tomado para si.
O extrangeiro reteve por um instante a palavra no seu labio prudente, emquanto reflectia:
—O canto da gaivota é o grito do guerra do valente Poty, amigo de teu hospede!
A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poty, irmão de Jacaúna, subio das ribeiras do mar ás alturas da serra; rara é a cabana onde já não rugiu contra elle o grito da vingança, porque em quasi todas o golpe de seu valido tacape deitou um guerreiro tabajara em seu camocim.
Iracema cuidou que Poty vinha á frente de seus guerreiros para livrar o amigo. Era elle sem duvida que fizera retroar o buzio das praias, no momento do combate. Foi com um tom misturado de doçura e tristeza que replicou:
—O extrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vão morrer, porque ella não falará.
—Saia essa tristeza de tua alma. O extrangeiro partindo-se de teus campos, virgem tabajara, não deixará n'elles rasto de sangue, como o tigre esfaimado.
Iracema tomou a mão do guerreiro branco e beijou-a.
—Teu sorriso, continúa elle, apagou a lembrança do mal que elles me querem.
Martim ergueu-se e marchou para a porta.
—Onde vae o guerreiro branco?
—Adeante de Poty.
—O hospede de Araken não pode sahir d'esta cabana, porque os guerreiros de Irapuam o matarão.
—Um guerreiro só deve protecção a Deus e a suas armas. Não carece que o defendam os velhos e as mulheres.
—Não vale um guerreiro só contra mil guerreiros; valente e forte é o tamanduá, que mordem os gatos selvagens por serem muitos e o acabam. Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu corpo; as armas d'elles voam alto e direitos como o anajê.
—Todo o guerreiro tem seu dia.
—Não queres tu que morra Iracema, e queres que ella te deixe morrer!
Martim ficou perplexo:
—Iracema irá ao encontro do chefe Pytiguara e trará a seu hospede as falas do guerreiro amigo.
O Pagé sahiu emfim de sua contemplação. O maracá rugiu-lhe na dextra; tiniram os guisos com o passo hirto e lento.
Chamou elle a filha de parte:
—Se os guerreiros de Irapuam vierem contra a cabana, levanta a pedra e esconde o extrangeiro no seio da terra.
—O hospede não deve ficar só; espera que volte Iracema. Ainda não cantou a inhuma.
Tornou a sentar-se na rede o velho. A virgem partiu, cerrando a porta da cabana.
Avança a filha de Araken nas trevas; pára e escuta.
O grito da gaivota terceira vez resôa ao seu ouvido; ella vae direito ao logar d'onde partiu; chega á borda de um tanque; seu olhar investiga a escuridão, e nada vê do que busca.
A voz maviosa, debil como susurro de colibri, resôa no silencio.
—Guerreiro Poty, teu irmão branco te chama pela bôcca de Iracema.
Só o ecco lhe respondeu.
—A filha de teus inimigos vem a ti, porque o extrangeiro te ama, e ella ama o extrangeiro.
A lisa lace do lago fendeu-se; e um vulto se mostra, que nada para a margem, e surge fora.
—Foi Martim quem te mandou, pois tu sabes o nome de Poty, seu irmão na guerra.
—Fala, chefe Pytiguara; o guerreiro branco espera.
—Torna a elle e diz que Poty é chegado para o salvar.
—Elle sabe, mandou-me para te ouvir.
—As falas de Poty sahirão de sua bôcca para o ouvido de seu irmão branco.
—Espera então que Araken parta e a cabana fique deserta; eu te guiarei á presença do extrangeiro.
—Nunca, filha dos Tabajaras, um guerreiro Pytiguara passou a soleira da cabana inimiga, se não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do mar.
—A vingança de Irapuam fareja em roda da cabana de Araken. Trouxe o irmão do extrangeiro bastantes guerreiros Pytiguaras para o deffender e salvar?
Poty reflectiu:
—Conta, virgem das serras, o que aconteceu em teus campos depois que a elles chegou o guerreiro do mar.
Iracema referiu como a colera de Irapuam se havia assanhado contra o extrangeiro, até que a voz de Tupan, chamada pelo Pagé, tinha apasiguado seu furor.
—A raiva de Irapuam é como a andira; foge da luz e voa na treva.
A mão de Poty cerrou súbito os labios da virgem; sua fala parecia um sopro.
—Suspende a voz e o respiro, virgem das florestas; o ouvido inimigo escuta na sombra.
As folhas crepitavam de manso, como se por ellas passasse a fragueira nambú. O rumor partido da orla da matta, vinha discorrendo pelo valle.
O valente Poty, resvallando pela relva, como o ligeiro camarão. de que elle tomara o nome e a viveza, desappareceu no lago profundo. A agua não soltou um murmurio, e cerrou sobre elle sua limpida onda.
Iracema voltou á cabana; em meio do caminho seus olhos perceberam as sombras de muitos guerreiros que rojavam pelo chão, como a intanha.
Araken vendo-a entrar, partiu.
A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poty; o guerreiro christão ergueu-se de um impeto para correr á defeza de seu irmão Pytiguara. Cingiu-lhe o collo Iracema com os lindos braços:
—O chefe não carece de ti; elle é filho das aguas; as aguas o protegem. Mais tarde o extrangeiro ouvirá em seus ouvidos as falas amigas.
—Iracema, é tempo que teu hospede deixe a cabana do Pagé e os campos dos Tabajaras. Elle não tem medo dos guerreiros de Irapuam, tem medo dos olhos da virgem de Tupan.
—Elles fugirão de ti.
—Fuja d'elles o extrangeiro, como o oitibó da estrella da manhã.
Martim promoveu o passo.
—Vae, guerreiro ingrato; vae matar teu irmão primeiro, depois a ti. Iracema te seguirá até aos campos alegres onde vão as sombras dos que foram.
—Matar meu irmão, dizes tu, virgem cruel?
—Teu rasto guiará o inimigo aonde elle se occulta.
O christão estacou em meio da cabana; e alli permaneceu mudo e quedo. Iracema receosa de fital-o, tinha os olhos postos na sombra do guerreiro, que a chamma do fogo projectava na vetusta parede da cabana.
O cão felpudo, deitado no borralho, deu signal de que se approximava gente amiga. A porta entretecida dos talos de carnaúba foi aberta por fora. Cauby entrou.
—O cauim perturbou o espirito dos guerreiros; elles vem contra o extrangeiro.
A virgem ergue-se de um impeto.
—Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupan, para que ella esconda o extrangeiro.
O guerreiro tabajara, sopesando a lage enorme, emborcou-a no chão.
—Filho de Araken, deita na porta da cabana, e nunca mais te levantes da terra, se um guerreiro passar por cima do teu corpo.
Cauby obedeceu: a virgem cerrou a porta.
Decorreu breve trato. Resoa perto o estrupido dos guerreiros; travam-se as vozes iradas de Irapuam e Cauby.
—Elles vêm; mas Tupan salvará seu hospede.
N'esse instante, como se o Deus do trovão ouvisse as palavras de sua virgem, o antro mudo em principio retroou surdamente.
—Ouve! É a voz de Tupan.
Iracema cerra a mão do guerreiro, e o leva á borda do antro. Somem-se ambos nas entranhas da terra.
Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do espumante cauim, se inflammam á voz de Irapuam, que tantas vezes os guiou ao combate, quantas á victoria.
Aplaca o vinho a sêde do corpo; accende outra sêde maior na alma feroz. Rugem vingança contra o extrangeiro audaz que affrontando suas armas offende o Deus de seus paes, e o chefe da guerra, o primeiro varão tabajara.
Lá tripudiam de furor, e arremettem pelas sombras; a luz vermelha do ubiratan, que brilha ao longe, os guia á cabana de Araken. De espaço em espaço erguem-se do chão os que primeiro vieram para vigiar o inimigo.
—O Pagé está na floresta! murmuram elles.
—O extrangeiro? pergunta Irapuam.
—Na cabana com Iracema.
O grande chefe lança o terrivel salto; já é chegado á porta da cabana, e com elle seus valentes guerreiros.
O vulto de Cauby enche o vão da porta; suas armas guardam deante d'elle o espaço de um bote do maracajá.
—Vis guerreiros são aquelles que atacam em bando como os caetetús. O jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem só o inimigo.
—Morda o pó a bocca torpe que levanta a voz contra o mais valente guerreiro dos guerreiros tabajaras.
Proferidas estas palavras, ergue o braço de Irapuam o rigido tacape, mas estaca no ar; as entranhas da terra outra vez rugem, como rugiram, quando Araken accordou a voz tremenda de Tupan.
Levantam os guerreiros medonho alarido; e cercando seu chefe o arrebatam ao funesto lugar e á colera de Tupan, contra elles concitado.
Cauby extende-se de novo na soleira da porta; seus olhos adormecem; mas seu ouvido vella no somno.
A voz de Tupan emmudeceu.
Iracema e o christão perdidos nas entranhas da terra, descem a gruta profunda. Subito uma voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus ouvidos:
—O guerreiro do mar escuta a falla de seu irmão?
—É Poty, o amigo de teu hospede: disse o christão para a virgem.
Iracema estremeceu:
—Elle fala pela bôcca de Tupan.
Martim respondeu emfim ao Pytiguara.
—As falas de Poty entram n'alma de seu irmão.
—Nenhum outro ouvido escuta?
—Os da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão!
—A mulher é fraca; o tabajara traidor; e o irmão de Jacaúna prudente.
Iracema suspirou: e pousou a cabeça no peito do mancebo:
—Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos, para que ella não ouça.
Martim repelliu docemente a gentil fronte:
—Falle o chefe Pytiguara; só o escutam ouvidos amigos e fieis.
—Tu ordenas, Poty fala. Antes que o sol se levante na serra, o guerreiro do mar deve partir para as margens do ninho das garças; a estrella morta o guiará ás alvas praias. Nenhum tabajara o seguirá, porque a inubia dos Pytiguaras rugirá da banda da serra.
—Quantos guerreiros Pytiguaras acompanham seu chefe valente?
—Nenhum; Poty veiu só, com suas armas. Quando os espiritos máus da floresta separaram o guerreiro do mar de seu irmão, Poty veiu em seguimento do rastro. Seu coração não deixou que voltasse para chamar os guerreiros da sua taba; mas expediu seu cão fiel ao grande Jacaúna.
—O chefe Pytiguara está só; não deve rugir a inubia que chamará contra si todos os guerreiros tabajaras.
—É preciso para salvar o irmão branco; Poty zombará de Irapuam, como zombou quando combatiam cem contra ti.
A filha do Pagé, que ouvira callada, debruçou-se ao ouvido do christão:
—Iracema quer-te salvar e a teu irmão; ella tem seu pensamento. O chefe Pytiguara é valente e audaz; Irapuam é manhoso e traiçoeiro como a acauan. Antes que chegues á floresta, cahirás; e teu irmão da outra banda cahirá comtigo.
—Que fará a virgem tabajara para salvar o extrangeiro e seu irmão? perguntou Martim.
—Mais um sol e outro, e a lua das flores vae nascer. É o tempo da festa, em que os guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado, e recebem do Pagé os sonhos alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreiro branco deixará os campos do Ipú, e os olhos de Iracema, mas não sua alma.
Martim estreitou a virgem ao seio; mas logo a repelliu. O toque de seu corpo, doce como a assucena da mata, e quente como o ninho do beija flôr, espinhou seu coração; porque lhe recordou as palavras terriveis do Pagé.
A voz do christão disse a Poty o pensamento de Iracema; o chefe Pytiguara, prudente como o tamanduá, pensou e respondeu:
—A sabedoria fallou pela bôcca da virgem tabajara Poty espera o nascimento da lua.
Nasceu o dia e expirou.
Já brilha na cabana de Araken o fogo, companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céo, as estrellas, filhas da lua, que esperam a volta da sua mãe ausente.
Martim se emballa docemente; e como a alva rêde que vae e vem, sua vontade oscilla de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos affectos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.
Iracema recosta-se langue ao punho da rêde; seus olhos negros e fulgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o extrangeiro, e lhe entram n'alma. O christão sorri; a virgem palpita; como o sahy, fascinado pela serpente, vae declinando o lascivo talhe, que se prostra sobre o peito do guerreiro.
Já o extrangeiro a prime ao seio; e o labio avido busca o labio que o espera, para celebrar n'esse adyto d'alma, o hymineo do amor.
No recanto escuro o velho Pagé, immerso em sua contemplação e alheio ás cousas d'este mundo, soltou um gemido doloroso. Pressentira o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presagio para a raça de seus filhos, que assim echoou n'alma de Araken?
Ninguem o soube.
O christão repelliu do seio a virgem indiana. Elle não deixará o rastro da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não vêr; e enche sua alma com o nome e a veneração do seu Deus:
—Christo!... Christo!...
A serenidade volta ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, elle sente correr-lhe pelas veias uma scentelha de ardente chamma. Assim quando a creança imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflammadas que lhe queimam o corpo.
Fecha os olhos o christão, mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bella. Em balde chama elle o somno ás palpebras fatigadas; ellas se abrem, máu grado seu.
Desce-lhe do céo ao atribulado pensamento uma inspiração:
—Virgem formosa do sertão, esta é a ultima noite que teu hospede dorme na cabana de Araken, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu somno seja alegre e feliz.
—Manda; Iracema te obedece. Que pode ella para tua alegria?
O christão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pagé:
—A virgem de Tupan guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!
Um triste sorriso pungiu os labios de Iracema:
—O extrangeiro vae viver para sempre á cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araken; e elle quer que o somno já feche suas palpebras, e o sonho o leve á terra de seus irmãos!
—O somno é o descanço do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O extrangeiro não quer levar comsigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixal-a no coração de Iracema!
A virgem ficou immovel.
—Vae e torna com o vinho de Tupan.
Quando Iracema foi de volta, já o Pagé não estava na cabana; tirou do seio o vaso que alli trazia occulto sob a carioba de algodão entretecida de pennas. Martim lh'o arrebatou das mãos, e libou as gottas poucas do verde e amargo licor. Não tardou que a rede recebesse seu corpo desfallecido.
Agora podia viver com Iracema, e colher nos seus labios o beijo, que alli viçava entre sorrisos, como o fructo na corolla da flor. Podia amal-a, e sugar d'esse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.
O goso era vida, pois o sentia mais vivo e intenso; o mal era sonho e illusão, que da virgem elle não possuia mais que a imagem.
Iracema se affastara oppressa e suspirosa.
Abriram-se os braços do guerreiro e seus labios; o nome da virgem resoou docemente.
A juruty, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as azas e vôa a conchegar-se ao tepido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.
Quando veiu a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante accendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebões da manhã scintilla o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruido amor.
Martim vendo a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para tornal-os a abrir.
A pocema dos guerreiros, troando pelo valle, o arrancou ao doce engano; sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos labios da virgem o beijo que alli se espanejava.
—Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu d'elles sua alma. Na vida, os labios da virgem de Tupan, amargam e doem como o espinho da jurema.
A filha de Araken escondeu no coração a sua alegria. Ficou timida e inquieta, como a ave que presente a borrasca no horisonte. Affastou-se rapida, e partiu.
As aguas do rio depuraram o corpo casto da recente esposa.
A jandaia não tornou á cabana.
Tupan já não tinha sua virgem na terra dos Tabajaras.
O alvo disco da lua surgiu no horisonte.
A luz brilhante do sol empallidece a virgem do céo como o amor do guerreiro desmaia a face da esposa.
—Jacy!... Mãe nossa!... exclamaram os guerreiros tabajaras.
E brandindo os arcos lançaram ao céo com a chuva das flechas o canto da lua nova:
"Veiu no céo a mãe dos guerreiros; já volta o rosto para vêr seus filhos. Ella traz as aguas, que enchem os rios e a polpa do cajú.
"Já veiu a esposa do sol; já sorri ás virgens da terra filhas suas. A doce luz accende O amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da joven mãe."
Cae a tarde.
Folgam as mulheres e os meninos na vasta ocara; os mancebos, que ainda não ganharam nome de guerra por algum feito brilhante, discorrem no valle.
Os guerreiros seguem Irapuam ao bosque sagrado, onde os espera o Pagé e sua filha para o mysterio da jurema. Iracema já accendeu os fogos da alegria. Araken está immovel e extactico no seio de uma nuvem de fumo.
Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma offerenda a Tupan. Traz um a succulenta caça; outro a farinha d'agua; aquelle, o saboroso piracem da trahira. O velho Pagé, para quem são estas dadivas, as recebe com desdem.
Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupan ordena o silencio com um gesto, e tres vezes clamando o nome terrivel, enche-se do Deus, que o habita:
—Tupan!... Tupan!... Tupan!...
Tres vezes o echo ao longe repercutio.
Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor.
Araken decreta os sonhos a cada guerreiro, e destribue o vinho da jurema, que transporta ao céo o valente tabajara.
Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm ao deante de suas flechas paras e traspassarem nellas; fatigado alfim de ferir, cava na terra o bucan, e assa tamanha quantidade de caça, que mil guerreiros em um anno não acabarão.
Outro, fogoso em amores, sonha que as mais bellas virgens dos tabajaras deixam a cabana de seus paes e o seguem captivas do seu querer. Nunca a rêde de chefe algum embalou mais voluptuosas caricias, que elle as frue n'aquelle extase.
O heroe sonha tremendas lutas, e horriveis combates de que sahe vencedor, cheio de gloria e fama. O velho renasce, na prole numerosa, e como o secco tronco donde rebenta nova e robusta sebe, cobre-se ainda de flôres.
Todos sentem a felicidade tão viva e continua, que no espaço da noite cuidam viver muitas luas. As boccas murmuram; o gesto falla; e o Pagé, que tudo escuta e vê, colhe o segredo das almas desnudas.
Iracema, depois que offereceu aos guerreiros o licor de Tupan, sahio do bosque. Não permittia o rito que ella assistisse ao somno dos guerreiros e ouvisse falar os sonhos.
Foi d'ali direito á cabana, onde a esperava Martim.
—Toma as tuas armas, guerreiro branco. É tempo de partir.
—Leva-me onde está Poty, meu irmão.
A virgem caminhou para o valle; o christão a seguio. Chegaram á falda do rochedo, que ia morrer á beira do tanque, em um massiço de verdura.
—Chama teu irmão!
Martim soltou o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta cahio; e o vulto do guerreiro Poty appareceu na sombra.
Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.
—Poty está contente porque vê seu irmão, que o máo espirito da floresta arrebatou de seus olhos.
—Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poty; todos os guerreiros o invejarão.
Iracema suspirou, pensando que a affeição do Pytiguara bastava á felicidade do extrangeiro:
—Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araken vae guiar os extrangeiros.
A virgem seguio adeante; os dois guerreiros apóz. Quando tinham andado o espaço que transpõe a garça de um vôo, o chefe Pytiguara tornou-se inquieto, e murmurou ao ouvido do christão:
—Manda á filha do Pagé que volte á cabana de seu pae. Ella demora a marcha dos guerreiros.
Martim entristeceu; mas a voz da prudencia e da amizade penetrou em seu coração. Avançou para Iracema; e tirou do seio uma voz doce para acalentar a saudade da virgem:
—Mais affunda a raiz da planta na terra, mais custa arrancal-a. Cada passo de Iracema no caminho da partida, é uma raiz que lança no coração de seu hospede.
—Iracema quer-te acompanhar até onde acabam os campos dos Tabajaras, para voltar com o socego em seu peito.
Martim não respondeu. Continuaram a caminhar, e com elles caminhava a noite; as estrellas desmaiaram e a frescura da alvorada alegrou a floresta. As roupas da manhã, alvas como o algodão, appareceram no céo.
Poty olhou a mata e parou. Martim comprehendeu e disse a Iracema:
—Teu hospede já não pisa os campos dos Tabajaras. É o instante de separar-te d'elle.
Iracema pousou a mão no peito do guerreiro branco:
—A filha dos Tabajaras já deixou os campos de seus paes; agora pode falar.
—Que guardas tu em teu seio, virgem formosa do sertão?
Ella pôz os olhos cheios no christão:
—Iracema não pode mais separar-se do extrangeiro.
—Assim é preciso, filha de Araken. Torna á cabana de teu velho pae, que te espera.
—Araken já não tem filha.
Martim tornou com gesto rudo e severo:
—Um guerreiro da minha raça jamais deixou a cabana do hospede, viuva de sua alegria. Araken abraçará sua filha, para não amaldiçoar o extrangeiro ingrato.
A virgem pendeu a fronte; velando-se com as longas tranças negras que se esparziam pelo collo, cruzando ao gremio os lindos braços, recolheu em seu pudor. Assim o roseo cacto, que já desabrochou em formosa flôr, cerra em botão o seio perfumado.
—Tua escrava te acompanhará, guerreiro branco: porque teu sangue dorme em seu seio.
Martim estremeceu.
—Os máos espiritos da noite turbaram o espirito de Iracema.
—O guerreiro branco sonhava, quando Tupan abandonou sua virgem, porque ella trahio o segredo da jurema.
O christão escondeu as faces á luz.
—Deus!... clamou seu labio tremulo.
Permaneceram ambos mudos e quedos.
Afinal disse Poty:
—Os guerreiros tabajaras despertam.
O coração da virgem como o do extrangeiro, ficou surdo á voz da prudencia. O sol levantou-se no horisonte; e seu olhar magestoso desceu dos montes á floresta. Poty de pé como um tronco decepado esperou que seu irmão quizesse partir.
Foi Iracema quem primeiro falou:
—Vem: emquanto não pisares as praias dos Pytiguaras, tua vida corre perigo.
Martim seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as arvores, como a selvagem acoty. A tristeza lhe roia o coração; mas a onda de perfumes que deixava na brisa a passagem da formosa tabajara, açulava o amor no seio do guerreiro. Seu passo era tardo, o peito lhe offegava.
Poty scismava. Em sua cabeça de mancebo morava o espirito de um abaeté. O chefe pytiguara pensava que o amor é como o cauim, o qual bebido com moderação fortalece o guerreiro, e tomado em excesso abate a coragem do heroe. Elle sabia quanto veloz era o pé do tabajara; e esperava o momento de morrer defendendo o amigo.
Quando as sombras da tarde entristeciam o dia, o christão parou no meio da mata. Poty accendeu o fogo da hospitalidade. A virgem desdobrou a alva rêde de algodão franjada de pennas de tucano e suspendeu-a aos ramos de arvore.
—Esposo de Iracema, tua rêde te espera.
A filha de Araken foi sentar-se longe, na raiz de uma arvore, como a cerva solitaria, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco. O guerreiro pytiguara desappareceu na espessura da folhagem.
Martim ficou mudo e triste, semelhante ao tronco d'arvore a que o vento arrancou o lindo cipó que o entrelaçava. A brisa perpassando levou um murmurio:
—Iracema!
Era o balido do companheiro; a cerva arrufando-se ganhou o doce aprisco.
A floresta distillava suave fragrancia e exhalava harmoniosos arpejos; os suspiros do coração se difundiram nos murmures do deserto. Foi a festa do amor e o canto do hymeneo.
Já a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora de Poty repercutio no susurro da mata:
—O povo tabajara caminha na floresta!
Iracema arrancou-se dos braços que a cingiam e mais do labio que a tinha captiva: saltando da rede como a rapida zabelé, travou das armas do esposo, e levou-o atravez da mata.
De espaço a espaço o prudente Poty escutava as entranhas da terra; sua cabeça movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem que se embalança no cocuruto do rochedo, aos varios lufos da proxima borrasca.
—O que escuta o ouvido do guerreiro Poty?
—Escuta o passo veloz do povo tabajara. Elle vem como o tapyr, rompendo a floresta.
—O guerreiro pytiguara é a ema que vôa sobre a terra; nós o seguiremos, como suas azas; disse Iracema.
O chefe sacudio de novo a fronte:
—Emquanto o guerreiro do mar dormia, o inimigo correu. Os que primeiro partiram já avançam além como as pontas do arco.
A vergonha mordeu o coração de Martim.
—Fuja o chefe Poty e salve Iracema. Só deve morrer o guerreiro máo, que não escutou a voz de seu irmão e o pedido de sua esposa.
Martim arripiou o passo.
—A alma do guerreiro branco não escutou sua bocca Poty e seu irmão só tem uma vida.
O labio de Iracema não fallou: sorrio.
Treme a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara.
O grande Irapuam, primeiro, assoma entre as arvores. Seu olhar rubido viu o guerreiro branco entre nuvens de sangue; o grito rouco do tigre rompe de seu peito cavernoso. O chefe tabajara e seu povo, vão precipitar-se sobre os fugitivos, como a vaga encapelada que rebenta no Mocoribe.
Eis late o cão selvagem.
Poty solta o grito da alegria:
—O cão de Poty guia os guerreiros de sua taba em soccorro teu.
O rouco buzio dos Pytiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna, senhor das praias do mar, chegava do rio das garças com seus melhores guerreiros.
Os Pytiguaras recebem o primeiro impeto do inimigo nas pontas erriçadas de suas flechas, que elles despedem do arco aos molhos, como o coandú os espinhos do seu corpo. Logo apóz sôa a pocema, estreita-se o espaço, e a luta se trava face a face.
Jacaúna atacou Irapuam. Prosegue o horrivel combate que bastára a dez bravos, e não esgotou ainda a força dos grandes chefes. Quando os dois tacapes se encontram, a batalha toda estremece como um só guerreiro até ás entranhas.
O irmão de Iracema veio direito ao extrangeiro, que arrancara a filha de Araken á cabana hospedeira; o faro da vingança o guia; a vista da irmã assanha a raiva em seu peito. O guerreiro Cauby assalta com furor o inimigo.
Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, vio de longe Cauby e fallou assim:
—Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araken. Se o guerreiro Cauby tem de morrer, morra elle por esta mão, não pela tua.
Martim pôz no rosto da selvagem olhos de horror:
—Iracema matará seu irmão?
—Iracema antes quer que o sangue de Cauby tinja sua mão que a tua; porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ella não.
Travam a luta os guerreiros. Cauby combate com furor, o christão defende-se apenas; mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro contra os botes do inimigo.
Poty já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seu valido tacape. Martim lhe abandona o filho de Araken, e corre sobre Irapuam.
—Jacaúna é um grande chefe; seu collar de guerra dá tres voltas ao peito. O tabajara pertence ao guerreiro branco.
—A vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna ama o amigo de Poty.
O grande chefe Pytiguara levou além o formidavel tacape. O combate renhio-se entre Irapuam e Martim. A espada do christão. batendo na clava do selvagem fez-se pedaços. O chefe tabajara avançou contra o peito inerme do adversario.
Iracema silvou como a boicininga, e se arremessou ante a furia do guerreiro tabajara. A arma rigida tremeu na dextra possante e o braço cahio desfallecido.
Soava a pocema da victoria. Os guerreiros pytiguaras conduzidos por Jacaúna e Poty varriam a floresta. Os tabajaras, fugindo, arrebataram seu chefe ao odio da filha de Araken que o podia abater, como a jandaia abate o procero coqueiro roendo-lhe o cerne.
Os olhos de Iracema estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadaveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugiam em nuvem negra de pó. Aquelle sangue que enrubecia a terra era o mesmo sangue brioso que lhe ardia as faces de vergonha.
O pranto orvalhou seu lindo semblante.
Martim affastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema. Deixou que sua dor núa se banhasse nas lagrimas.
Poty voltou de perseguir o inimigo. Seus olhos se encheram de alegria vendo salvo o guerreiro branco.
O cão fiel o seguia de perto, lambendo ainda nos pellos do focinho, a marugem do sangue tabajara de que se fartára; o senhor o acariciava satisfeito de sua coragem e dedicação. Fora elle quem salvara Martim, alli trazendo com tanta deligencia os guerreiros de Jacaúna.
—Os máos espiritos da floresta podem separar outra vez o guerreiro branco de seu irmão Pytiguara. O cão te seguirá d'aqui em deante, para que mesmo de longe Poty acuda a teu chamado.
—Mas o cão é teu companheiro e amigo fiel.
—Mais amigo e companheiro será de Poty, servindo a seu irmão que a elle. Tu o chamarás Japy, e elle será o pé ligeiro com que de longe corramos um para o outro.
Jacaúna deu o signal da partida.
Os guerreiros pytiguaras caminharam para as margens alegres do rio onde bebem as garças: alli se erguia a grande taba dos senhores das varzeas.
O sol deitou-se, e de novo se levantou no céo. Os guerreiros chegaram aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquella parte da montanha, que por ser despida de arvoredo e tosquiada corno a capivara, a gente de Tupan chamava Ibyapina.
Poty levou o christão aonde crescia um frondoso jatobá, que affrontava as arvores do mais alto pincaro da serrania, e quando batido pela rajada parecia varrer o céo com a immensa copa.
—N'este logar nasceu teu irmão, disse o pytiguara: Martim estreitou o peito ao tronco enorme:
—Jatobá, que viste nascer meu irmão Poty, o extrangeiro te abraça.
—O raio te decepe arvore do guerreiro Poty, quando seu irmão o abandonar.
Depois o chefe assim falou:
—Ainda Jacaúna não era um guerreiro, Jatobá, o maior chefe, conduzia os Pytiguaras á victoria. Logo que as grandes aguas correram, elle caminhou para a serra. Aqui chegando, mandou levantar a taba, para estar perto do inimigo e vencêl-o mais vezes. A mesma lua que o vio chegar, alumiou a rêde onde Sahy sua esposa, lhe deu mais um guerreiro de seu sangue. O luar passava por entre as folhas do jatobá; e o sorriso pelos labios do varão possante, que tomara seu nome e robustez.
Iracema aproximou-se.
A rôla, que marisca na areia, se o companheiro se afasta, adeja inquieta de ramo em ramo e arrulla para que lhe responda o ausente amigo. Assim a filha da floresta errara pela encosta, modulando o singelo canto mavioso.
Martim a recebeu com a alma no semblante; e levando a esposa do lado do coração e o amigo do lado da força, voltou ao rancho dos pytiguaras.
A lua cresceu.
Tres sóes havia que Martim e Iracema estavam nas terras dos Pytiguaras, senhores das margens do Camocim e Acaraú. Os extrangeiros tinham sua rêde na vasta cabana do grande Jacaúna. O valente chefe guardou para si a alegria de hospedar o guerreiro branco.
Poty abandonou sua taba, para acompanhar seu irmão de guerra na cabana de seu irmão de sangue, e gosar dos instantes que sobejavam do amor de Iracema para a amisade, no coração do guerreiro do mar.
A sombra já se retirou da face da terra: e Martim vio que ella não se retirara ainda da face da esposa, desde o dia do combate.
—A tristeza mora na alma de Iracema!
—A alegria para a esposa só vem de ti; quando teus olhos a deixam as lagrimas enchem os seus.
—Porque chora a filha dos Tabajaras?
—Esta é a taba dos Pytiguaras, inimigos do meu povo. A vista de Iracema já conheceu o craneo de seus irmãos espetado na caiçara; o ouvido já escutou o canto de morte dos captivos tabajaras; a mão já tocou as armas tintas do sangue de seus paes.
A esposa pousou as duas mãos nos hombros do guerreiro, e reclinou ao peito d'elle:
—Iracema tudo soffre por seu guerreiro e senhor. A ata é doce e saborosa; quando a machucam azeda. Tua esposa não quer que seu amor azede teu coração; mas que te encha das doçuras do mel.
—Volte o socego ao seio da filha dos Tabajaras; ella vae deixar a taba dos inimigos de seu povo.
O christão caminhou para a cabana de Jacaúna. O grande chefe alegrou-se vendo chegar seu hospede; mas a alegria fugio logo de sua fronte guerreira. Martim dissera:
—O guerreiro branco parte de tua cabana, grande chefe.
—Alguma cousa te faltou na taba de Jacaúna?
—Nada faltou a teu hospede. Elle era feliz aqui; mas a voz do coração o chama a outros sitios.
—Então parte, e leva o que é preciso para a viagem. Tupan te fortaleça, e traga outra vez á cabana de Jacaúna, para que elle festeje tua boa vinda.
Poty chegou: sabendo que o guerreiro do mar ia partir, falou:
—Teu irmão te acompanha.
—Os guerreiros de Poty precisam de seu chefe.
—Se tu não queres que elles vão com Poty, Jacaúna os conduzira á victoria.
—A cabana de Poty ficará deserta e triste.
—Deserto e triste será o coração de teu irmão longe de ti.
O guerreiro do mar deixou as margens do rio das garças, e caminhou para as terras onde o sol se deita. A esposa e o amigo seguem sua marcha. Passaram além da fertil montanha, onde a abundancia dos fructos creava grande quantidade de mosca, do que lhe veio o nome de Meruoca.
Atravessam os corregos que levam suas aguas ao rio das garças, e avistam longe rio horisonte uma alta serrania. Expira o dia; nuvem negra voa das bandas do mar: são os urubus que pastam nas praias a carniça que o oceano arroja, e com a noite tornam ao ninho.
Os viajantes dormem em Uruburetama. Quando o sol voltou, chegaram ás margens do rio, que nasce na quebrada da serra e desce a planicie enroscando-se como uma cobra. Suas voltas continuas enganam a cada passo o peregrino, que vae seguindo o tortuoso curso: por isso foi chamado Mundahú.
Perlongando as frescas margens, viu Martim no seguinte sol os verdes mares e as alvas praias onde as ondas murmurosas, ás vezes soluçam e outras raivam de furia, rebentando em frocos de espuma.
Os olhos do guerreiro branco se dilataram pela vasta immensidade; seu peito suspirou. Esse mar beijava tambem as brancas areias do Potengi, seu berço natal, onde elle vira a luz americana. Arrojou-se nas ondas e pensou banhar seu corpo nas aguas da patria, como banhara sua alma nas saudades d'ella.
Iracema sentiu chorar-lhe o coração; mas não tardou que o sorriso de seu guerreiro o acalentasse.
Entretanto Poty, do alto do coqueiro, flexava o saboroso camoropim que brincava na pequena bahia do Mundahú; e preparava o moquem para a refeição.
Já descia o sol das alturas do céo.
Chegam os viajantes á foz do rio onde se criam em grande abundancia as saborosas trahiras; suas praias são povoadas pela tribu dos pescadores, da grande nação dos Pytiguaras.
Elles receberam os extrangeiros com a hospitalidade generosa, que era uma lei de sua religião; e Poty com o respeito que merecia tão grande guerreiro, irmão de Jacaúna, maior chefe da forte gente pytiguara.
Para repousar os viajantes, e acompanhal-os na despedida, o chefe da tribu recebeu Martim, Iracema e Poty na jangada, e abrindo a vela á brisa, levou-os até muito longe na costa. Todos os pescadores em suas jangadas seguiam o chefe e atroavam os ares com o canto de saudade, e os murmures do uraçá, que imita os soluços do vento.
Além da tribu dos pescadores estava mais entrada para as serras a tribu dos caçadores. Elles occupavam as margens do Soipé, cobertas de matas, onde os veados, as gordas pacas e os macios jacús abundavam. Assim os habitadores d'essas margens lhe deram o nome de paiz da caça.
O chefe dos caçadores, Jaguarassú, tinha sua cabana á beira do lago, que forma o rio perto do mar. Ahi acharam os viajantes o mesmo agasalho que haviam recebido dos pescadores.
Depois que partiram do Soipé, os viajantes atravessaram o rio Pacoty, em cujas margens cresciam as frondosas bananeiras balançando os verdes pennachos; mais longe o Iguape, onde a agua faz cintura em torno dos comoros de areia.
Além assomou no horisonte um alto morro de areia que tinha a alvura da espuma do mar. O cabo sobranceiro aos coqueiros parece a cabeça calva do condor, esperando alli a borrasca, que vem dos confins do oceano.
—Poty conhece o grande morro das areias? perguntou o christão.
—Poty conhece toda a terra que tem os Pytiguaras desde as margens do grande rio, que forma um braço do mar, até á margem do rio onde habita o jaguar. Elle já esteve no alto do Mocoribe, e de lá viu correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos, teus inimigos, que está o no Mearim.
—Porque chamas tu Mocoribe, o grande morro das areias?
—O pescador da praia, que vae nas jangadas, lá onde voa a aty, fica triste, longe da terra e de sua cabana, onde dormem os filhos de seu sangue. Quando elle volta e que seus olhos primeiro avistam o morro das areias, a alegria volta ao seio do homem. Então elle diz que o morro das areias dá alegria!
—O pescador diz bem; porque teu irmão ficou contente como elle, vendo o monte das areias.
Martim subiu com Poty ao cimo do Mocoribe. Iracema seguindo com os olhos o esposo, divagava como a jaçanan em tôrno do lindo seio, que alli fez a terra para receber o mar. De passagem ella colhia os doces cajús, que aplacam a sede aos guerreiros, e apanhava as mimosas conchas para ornar seu collo.
Os viajantes estiveram em Mocoribe tres sóes. Depois Martim levou seus passos além. A esposa e o amigo o seguiram até á embocadura de um rio cujas margens eram alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por elle formava uma bacia de agua christalina, que parecia cavada na pedra como um camocim.
O guerreiro christão. ao percorrer essa paragem, começou de scismar. Até alli elle caminhava sem destino, movendo seus passos ao acaso; não tinha outra intenção mais que affastar-se das tabas dos Pytiguaras para arrancar a tristeza do coração de Iracema. O christão sabia por experiencia que a viagem acalenta a saudade, porque a alma pára emquanto o corpo se move. Agora sentado na praia pensava.
Poty veiu:
—O guerreiro branco pensa; o seio do irmão está aberto para receber seu pensamento.
—Teu irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens do Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua raça. N'estas aguas as grandes igaras que vem de longes terras se esconderiam do vento e do mar; d'aqui ellas iriam ao Mearim destruir os brancos tapuias alliados dos Tabajaras, inimigos de tua nação.
O chefe pytiguara meditou e respondeu:
—Vae buscar teus guerreiros. Poty plantará sua taba junto da mayr de seu irmão.
Aproximava-se Iracema. O christão mandou com um gesto o silencio ao chefe Pytiguara.
—A voz do esposo se calla, e seus olhos se abaixam quando chega Iracema. Queres tu que ella se affaste?
—Quer teu esposo, que chegues mais perto, para que sua voz e seus olhos penetrem mais dentro de tua alma.
A formosa selvagem desfez-se em risos como se desfaz a flor do fructo que desponta, e foi debruçar-se na espadua do guerreiro.
—Iracema te escuta.
—Estes campos são alegres, e mais serão quando Iracema n'elles habitar. Que diz teu coração?
—O coração da esposa está sempre alegre junto de seu senhor e guerreiro.
O christão, seguindo pela margem do rio, escolheu o logar para levantar a cabana. Poty cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de Araken ligava os leques da palmeira para vestir o tecto e as paredes: Martim cavou a terra com a espada e fabricou a porta das fasquias da taquára.
Quando veiu a noite os dois esposos armaram a rede em sua nova cabana; e o amigo no copiar que olhava para o nascente.
Poty saudou o amigo e faltou assim:
—Antes que o pae de Jacaúna e Poty, o valente guerreiro Jatobá, mandasse a todos os guerreiros pytiguaras, o grande tacape da nação estava na dextra de Batuireté, o maior chefe, pae de Jatobá. Foi elle que veiu pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou os tabajaras para dentro das terras, marcando a cada tribu seu logar; depois entrou pelo sertão até á serra que tomou seu nome.
Quando suas estrellas eram muitas, e tantas que em seu camocim já não cabiam as castanhas que marcavam o numero, o corpo vergou para a terra, o braço endureceu como o galho do ubiratan que não verga; seus olhos se escureceram.
Chamou então o guerreiro Jatobá e disse:—Filho, toma o tacape da nação pytiguara. Tupan não quer que Batuireté o leve mais á guerra, pois tirou a força de seu corpo, o movimento do seu braço e a luz de seus olhos. Mas Tupan foi bom para elle, pois lhe deu um filho como o guerreira Jatobá.
Jatobá empunhou o tacape dos Pytiguaras. Batuireté tornou o bordão de sua velhice e caminhou. Foi atravessando os vastos sertões, até os campos viçosos onde correm as aguas que vem das bandas da noite. Quando o velho guerreiro arrastava o passo pelas margens, e a sombra de seus olhos não lhe deixava que visse mais os fructos nas arvores ou os passaros no ar, elle dizia em sua tristeza:—Ah! meus tempos passados!
A gente que o ouvia chorava a ruina do grande chefe; e desde então passando por aquelles logares repetia suas palavras; d'onde veiu chamar-se o rio e os campos, Quixeramobim.
Batuireté veiu pelo caminho das garças até áquella serra que tu vês longe, onde primeiro habitou. Lá no pincaro o velho guerreiro fez seu ninho alto como o gavião, para encher o resto de seus dias, conversando com Tupan. Seu filho já dorme embaixo da terra, e elle ainda na outra lua scismava na porta de sua cabana, esperando a noite que traz o grande somno. Todos os chefes Pytiguaras, quando acordam á voz da guerra, vão pedir ao velho que lhes ensine a vencer, porque nenhum outro guerreiro jamais soube como elle combater. Assim as tribus não o chamam mais pelo nome, senão o grande sabedor da guerra, Maranguab.
O chefe Poty vae á serra vêr seu grande avô; mas antes que o dia morra elle estará de volta na cabana de teu irmão. Teus tu outra vontade?
—O guerreiro branco te acompanha. Elle quer abraçar o grande chefe dos Pytiguaras, avô de seu irmão; e dizer ao velho que renasce em seu neto.
Martim chamou Iracema; e partiram ambos guiados pelo Pytiguara para a serra, do Maranguab, que se levantava no horisonte. Foram seguindo o curso do rio até onde n'elle entrava o ribeiro da Pirapora.
A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas, onde salta o peixe no meio dos borbotões de espuma. As aguas alli são frescas e macias, como a brisa do mar, que passa entre as palmas dos coqueiros, nas horas da calma.
Batuireté estava sentado sobre uma das lapas da cascata; e o sol ardente cahia sobre sua cabeça núa de cabellos e cheia de rugas como o genipapo. Assim dorme o jaburú na borda do lago.
—Poty é chegado á cabana do grande Maranguab, pae de Jatobá, e trouxe seu irmão branco para vêr o maior guerreiro das nações.
O velho soabriu as pesadas palpebras, e passou do neto ao extrangeiro um olhar baço. Depois o peito arquejou e os labios murmuraram:
—Tupan quiz que estes olhos vissem antes de se apagarem o gavião branco junto da narseja.
O abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se moveu.
Poty e Martim julgaram que elle dormia e se afastaram com respeito para não perturbar o repouso de quem tanto obrára na longa vida. Iracema que se banhava na proxima cachoeira, veiu-lhes ao encontro, trazendo na folha da taioba favos do mel purissimo.
Discorreram os amigos pelas floridas encostas até que as sombras da montanha se extenderam pelo valle. Tornaram então ao logar onde tinham deixado o Maranguab.
O velho ainda lá estava na mesma attitude, com a cabeça derrubada ao peito e os joelhos encostados á fronte. As formigas subiam pelo seu corpo; e os tuins adejavam em torno e pousavam-lhe na calva.
Poty poz a mão no craneo do velho e conheceu que era finado: morrera de velhice. Então o chefe pytiguara entoou o canto da morte; e depois foi á cabana buscar o camocim, que transbordava com as castanhas do cajú. Martim contou cinco vezes cinco mãos.
Entanto Iracema colhia na floresta a andiroba, de que foi ungido o corpo do velho no camocim, onde a mão piedosa do neto o encerrou. O vaso funebre ficou suspenso ao tecto da cabana.
Depois que plantou ortiga em frente á porta, para deffender contra os animaes a oca abandonada, Poty despediu-se triste d'aquelles logares, e tornou com seus companheiros á borda do mar.
Quatro luas tinham alumiado o ceu depois que Iracema deixara os campos do Ipú; e tres depois que ella habitava nas praias do mar a cabana de seu esposo.
A alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como a andorinha, que abandona o ninho de seus paes, e emigra para fabricar novo ninho no paiz onde começa a estação das flôres. Tambem Iracema achara ali nas praias do mar um ninho do amor, nova patria para o coração. Ella discorria as amenas campinas, como o colibri borboleteando entre as flôres da acacia. A luz da manhã já a encontrava suspensa ao hombro do esposo e sorrindo, como a enrediça, que entrelaça o tronco e todas as manhãs o coroa de nova grinalda.
Martim partia para a caça com Poty. Ella separava-se então d'elle, para mais sentir o desejo de tornar a elle.
Perto havia uma formosa lagoa no meio de verde campina. Para lá volvia a selvagem o ligeiro passo. Era a hora do banho da manhã; atirava-se á agua, e nadava com as garças brancas e as vermelhas jaçanans. Os guerreiros pytiguaras, que appareciam por aquellas paragens chamavam essa lagoa da belleza, porque n'ella se banhava Iracema, a mais bella filha da raça de Tupan.
E desde esse tempo as mães vinham de longe mergulhar suas filhas nas aguas da Porangaba que tinham a virtude de tornar as virgens formosas e amadas pelos guerreiros.
Depois do banho Iracema discorria até ás faldas da serra do Maranguab, onde nascia o ribeiro das marrecas. Ali cresciam na frescura e sombra as fructas mais saborosas de todo o paiz; d'ellas fazia copiosa provisão, e esperava, embalando-se nas ramas do maracujá, que Martim tornasse da caça.
Outras vezes não era a Jererahú que a levava sua vontade, mas do opposto lado, junto da lagoa da Sapiranga, cujas aguas diziam que inflammavam os olhos. Cerca d'ahi havia um bosque frondoso de muritys, que formavam no meio do taboleiro uma grande ilha de formosas palmeiras. Iracema gostava do Murityapuá, onde o vento suspirava docemente; ali espolpava ella o vermelho côco, para fabricar a bebida refrigerante, endossada com o mel da abelha, que os guerreiros amavam durante a maior calma do dia.
Uma manhã Poty guiou Martim á caça. Caminharam para uma serra, que se levanta ao lado da outra do Maranguab sua irmã. O alto cabeço se curva á semelhança do bico adunco da arara; pelo que os guerreiros a chamaram Aratanha. Elles subiram pela encosta da Guaiuba por onde as aguas descem para o valle, e foram até o corrego habitado pelas pacas.
Só havia sol no bico da arara quando os caçadores desceram de Pacatuba ao taboleiro. De longe viram Iracema, que viera esperal-os á margem de sua lagoa da Porangaba. Caminhou para elles com o passo altivo da garça que passeia á beira d'agua: por cima da cariola trazia uma cintura das flores da maniva que era o simbolo da fecundidade. Collar das mesmas cingia-lhe o collo e ornava os rijos seios palpitantes.
Travou da mão do esposo, e a impoz no regaço:
—Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ella será mãe de teu filho!
—Filho, dizes tu? exclamou o christão em jubilo.
Ajoelhou ali e cingindo-o com os braços, beijou o ventre fecundo da esposa.
Quando se ergueu, Poty falou:
A felicidade do mancebo é a esposa e o amigo, a primeira dá alegria; o segundo dá força: o guerreiro sem a esposa é como a arvore sem folhas nem dores; nunca ella verá o fructo: o guerreiro sem amigo é como a arvore solitaria no meio do campo que o vento embalança; o fructo d'ella nunca amadura. A felicidade do varão é a prole, que nasce d'elle e faz seu orgulho; cada guerreiro que sahe de suas veias é mais um galho que leva seu nome ás nuvens, como a grimpa do cedro. Amado de Tupan é o guerreiro que tem uma esposa, um amigo e muitos filhos; elle nada mais deseja senão a morte gloriosa.
Martim unio o peito ao peito de Poty.
—O coração do esposo e do amigo falou por tua boca. O guerreiro branco é feliz, chefe dos Pytiguaras, senhores das praias do mar; e a felicidade nasceu para elle na terra das palmeiras, onde reacende a baunilha, e foi gerada do sangue de tua raça, que tem no rosto a côr do sol. O guerreiro branco não quer mais outra patria, senão a patria de seu filho e de seu coração.
Ao romper d'alva Poty partiu para colher as sementes de crajurú que dão a mais bella tinta vermelha, e a casca do angico de onde sae a cor negra mais lustrosa. De caminho sua flecha certeira abateu o pato selvagem que planeava nos ares: e elle arrancou das azas as longas penas. Subindo ao Mocoribe, rugiu a inubia. A refega que vinha do mar levou longe o ronco som. O buzio dos pescadores do Trahiry, e a trombeta dos caçadores do Soipé, responderam.
Martim banhou-se na agua do rio, e passeou na praia para secar o corpo ao vento e ao sol. Ao seu lado ia Iracema e apanhava o ambar amarello que o mar arrojava. Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a alva rede, para que o amor do guerreiro se deleitasse n'ella.
Voltou Poty.
Foi costume da raça, filha de Tupan, que o guerreiro trouxesse no corpo as cores de sua nação. Traçavam em principio negras riscas, sobre o corpo, á semelhança do pello do coaty de onde procedeu o nome d'essa arte da pintura guerreira. Depois variaram as cores; e muitos e muitos guerreiros costumaram escrever os emblemas de seus feitos.
O extrangeiro tendo adoptado a patria da esposa e do amigo, devia passar por aquella ceremonia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de Tupan. N'essa intenção fora Poty prover-se dos objectos necessarios.
Iracema preparou as tintas. O chefe, embebendo as ramas da pluma, traçou pelo corpo os riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande nação pytiguara. Depois pintou na fronte uma flecha e disse:
—Assim como a seta traspassa o duro tronco, assim o olhar do guerreiro penetra n'alma dos povos.
No braço um gavião:
—Assim como o anajê cahe das nuvens, assim cae o braço do guerreiro sobre o inimigo.
No pé esquerdo a raiz do coqueiro.
—Assim como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro, o pé firme do guerreiro sustenta seu corpo.
No pé direito pintou uma aza:
—Assim como a aza da majoy rompe os ares o pé veloz do guerreirro não tem igual na corrida.
Iracema tomou a rama da penna e pintou uma folha com uma abelha sobre: sua voz resoou entre sorrisos:
—Assim como a abelha fabrica mel no coração negro do jacarandá, a doçura está no peito do mais valente guerreiro.
Martim abriu os braços e os labios para receber corpo e alma da esposa,
—Meu irmão é um grande guerreiro da nação pytiguara; elle precisa de um nome na lingua de sua nação.
—O nome de teu irmão está em seu corpo, onde o poz tua mão.
—Coatiyabo! exclamou Iracema.
—Tu disseste; eu sou o guerreiro pintado; o guerreiro da esposa e do amigo.
Poty deu a seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres do guerreiro. Iracema havia tecido para ella o cocar e a arassoia, ornatos dos chefes illustres.
A filha de Araken foi buscar á cabana as iguarias do festim e os vinhos de genipapo e mandioca. Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram as dansas alegres. Durante que volviam em torno dos fogos da alegria, resoavam as canções.
Poty cantava:
—Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é a amisade de Coatyabo e Poty.
Acudiu Iracema.
—Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim é Iracema junto a seu esposo.
Os guerreiros disseram:
—Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatyabo entre o irmão e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratan, e sua sombra protege a relva humilde.
Os fogos da alegria arderam até que veio a manhã; e com elles durou o festim dos guerreiros.
A alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho levaram a amarellecer.
Uma alvorada, caminhava o christão pela borda do mar. Sua alma estava cançada.
O colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho de cotão até que volta rio outro anno a lua das flores. Como o colibri, a alma do guerreiro tambem se satura de felicidade, e carece de somno e repouso.
A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo, as caricias da terna esposa que o esperavam na volta, o doce carbeto no copiar da cabana já não acordavam n'elle as emoções d'outrora. Seu coração resonava.
Iracema brincava pela praia: os olhos d'elle tiravam-se d'ella para se estenderem pela immensidade dos mares.
Viram umas azas brancas, que adejavam pelos campos azues. Conheceu o christão que era uma grande igara de muitas velas, como construiam seus irmãos; e a saudade da patria apertou em seu seio.
Alto ia o sol; e o guerreiro, na praia seguia com os olhos as azas brancas que fugiam. Debalde a esposa o chamou á cabana, debalde offereceu a seus olhos, as graças d'ella e os fructos melhores do campo. Não se moveu o guerreiro, senão quando a vella se sumiu no horisonte.
Poty voltou da serra, onde pela vez primeira fora só. Tinha deixado a serenidade na fronte de seu irmão e achava alli a tristeza. Martim saiu-lhe ao encontro:
—A igara grande do branco tapuia passou no mar. Os olhos de teu irmão a viram voar para as margens do Mearim, alliados dos Tupinambás, inimigos de tua e minha raça.
—Poty é senhor de mil arcos; se é teu desejo elle te acompanhará com seus guerreiros ás margens do Mearim para vencer o Tapuytinga e seu amigo o traidor Tupinambá.
—Quando for tempo teu irmão te dirá.
Os guerreiros entraram na cabana, onde estava Iracema. A maviosa canção n'esse dia tinha emudecido nos labios da esposa. Ella tecia suspirando a franja da rede materna, mais larga e espessa que a rede do hymeneo.
Poty, que a viu tão occupada, fallou:
—Quando a sabiá canta é o tempo do amor; quando emmudece, fabrica o ninho para sua prole; é o tempo do trabalho.
—Meu irmão falla como a ran quando annuncia a chuva; mas a sabiá que faz seu ninho, não sabe se dormirá n'elle.
A voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo. Martim pensava: as palavras de Iracema passaram por elle, como a brisa pela face lisa da rocha, sem echo nem rumores.
O sol brilhava sempre sobre as praias do mar, e as areias reflectiam os raios ardentes; mas nem a luz que vinha do ceu, nem a luz que ia da terra, espancaram a sombra n'alma do christão. Cada vez o crepusculo era maior em sua fronte.
Chegou das margens do Acaraú um guerreiro pytiguara, mandado por Jacaúna a seu irmão Poty. Elle veio seguindo o rastro dos viajantes até o Trahiry, onde os pescadores o guiaram á cabana.
Poty estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar com respeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca do mensageiro.
—O Tapuytinga, que estava no Mearim, veio pelas matas até o principio da Ibyapaba, onde fez alliança com Irapuam, para combater a nação pytiguara. Elles vão descer da serra ás margens do rio em que bebem as garças, e onde tu levantaste a taba de teus guerreiros. Jacaúna te chama para deffender os campos de nossos paes: e teu povo carece de seu maior guerreiro.
—Volta ás margens do Acaraú o teu pé não descance emquanto não pisar o chão da cabana de Jacaúna. Quando ahi estiveres dize ao grande chefe:—"Teu irmão é chegado á taba de seus guerreiros." E tu não mentirás.
O mensageiro partiu.
Poty vestiu suas armas, e caminhou para a varzea, guiado pelo passo de Coatyabo. Elle o encontrou muito além, vagando entre os canaviaes que bordam as margens de Jacarehy.
—O branco tapuia, está na Ibyapaba para ajudar os Tabajaras a combater contra Jacaúna. Teu irmão corre a deffender a terra de seus filhos, e a taba onde dormem os camocins de seus paes. Elle saberá vencer depressa para voltar á tua presença.
—Teu irmão parte contigo. Nada separa dois guerreiros amigos quando troa a inubia da guerra.
—Tu és grande, como o mar e bom como o céo.
Os dois amigos abraçaram-se; e seguiram com o rosto para as bandas do nascente.
Caminhando, caminhando, chegaram os guerreiros á margem de um lago, que havia nos taboleiros.
O christão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar: a tristeza sahiu de seu coração e subiu á fronte.
—Meu irmão, disse o chefe, teu pé creou raiz na terra do amor; fica, Poty voltará breve.
—Teu irmão te acompanha; elle disse, e sua palavra é como a seta de teu arco; quando soa, é chegada.
—Queres tu que Iracema te acompanhe ás margens do Acaraú?
—Nós vamos combater seus irmãos. A taba dos Pytiguaras não terá para ella mais que tristeza e dôr. A filha dos Tabajaras deve ficar.
—Que esperas tu então?
—Teu irmão se afflige porque a filha dos Tabajaras pode ficar triste e abandonar a cabana, sem esperar pela sua volta. Antes de partir elle queria socegar o espirito da esposa.
Poty reflectia:
—As lagrimas da mulher amollecem o coração do guerreiro, como o orvalho da manhã amollece a terra.
—Meu irmão é um grande sabedor. O esposo deve partir sem ver Iracema.
O christão avançou. Poty mandou-lhe que esperasse; da alvaja do setas que Iracema emplumara de pennas vermelhas e preta e suspendera aos hombros do esposo, tirou uma.
O chefe pytiguar vibrou o arco: a seta rapida atravessou um goiamum que discorria pelas margens do lago, e só parou onde a pluma não a deixou mais entrar.
Fincou o guerreiro no chão a flecha, com a presa atravessada e tornou para Coatyabo.
—Tu podes partir agora. Iracema seguirá teu rastro; chegando aqui verá tua seta, e obedecerá á tua vontade.
Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flôr da lembrança, o entrelaçou na haste da seta, e partiu alfim seguido por Poty.
Breve desappareceram os dois guerreiros entre as arvores. O calor do sol já tinha seccado seus passos na beira do lago. Iracema inquieta veio pela varzea seguindo o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras doces vestiam os campos quando ella chegou á beira do lago.
Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum trespassado, o ramo partido, e encheram-se de pranto.
—Elle manda que Iracema ande para traz, como o goiamum, e guarde sua lembrança, como o maracujá guarda sua flôr todo o tempo até morrer.
A filha dos Tabajaras retrahiu os passos lentamente, sem volver o corpo, nem tirar os olhos da seta de seu esposo, e tornou á cabana. Ahi sentada á soleira, com a fronte nos joelhos esperou, até que o somno acalentou a dôr em seu peito.
Apenas alvorou o dia, ella moveu o passo rapido para a lagoa, e chegou á margem. A flecha lá estava como na vespera: o esposo não tinha voltado.
Desde então á hora do banho, em vez de buscar a lagoa da belleza, onde outrora tanto gostara de nadar; caminhava para aquella, que vira seu esposo abandonal-a. Sentava-se junto á flecha, até que descia a noite, então recolhia á cabana.
Tão rapida partia de manhã, como lenta voltava á tarde. Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas aguas da Porangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viuva, na margem do rio, chamavam aquelle sitio da Mocejana, a abandonada.
Uma vez que a formosa filha de Araken se lamentava á beira da lagoa da Mocejana, uma voz estridente gritou seu nome do alto da carnaúba:
—Iracema! Iracema!...
Ergueu ella os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda jandaia, que batia as azas, e arrufava as pennas com o prazer de vêl-a.
A lembrança da patria, apagada pelo amor, resurgiu em seu pensamento. Viu os formosos campos do Ipú; as encostas da serra onde nascera, a cabana de Araken; e teve saudades; mas ainda n'aquelle instante, não se arrependeu de os ter abandonado.
Seu labio gaseou em canto. A jandaia abrindo as azas, esvoaçou-lhe em torno e pousou no hombro. Alongando fagueira o collo, com o negro bico alisou-lhe os cabellos e beliscou a bocca vermelha como uma pitanga.
Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia esquecendo-a no tempo da felicidade; e agora ella vinha para a consolar no tempo da desventura.
Essa tarde não voltou só á cabana. Durante o dia seus dedos ágeis teceram o formoso urú de palha que forrou da felpa macia da monguba para agasalhar sua companheira e amiga.
Na seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou. A linda ave não deixou mais sua senhora; ou porque depois da longa ausencia não se fartasse de a vêr, ou porque advinhasse que ella tinha necessidade de quem a acompanhasse em sua triste solidão.
Uma tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavam pelas praias do mar. Seu coração palpitou mais apressado.
Instantes depois ella esquecia nos braços do esposo tantos dias de saudade, e abandono que passara na solitaria cabana. Outra vez sua graça encheu os olhos do christão; a alegria voltou a habitar em sua alma.
Como a secca varzea, com a vinda do nevoeiro, reverdece e matisa-se de flôres, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e sua belleza esmaltou-se de meigos e ternos sorrisos.
Martim e seu irmão haviam chegado á taba de Jacaúna, quando soava a inubia; elles guiaram ao combate os mil arcos de Poty. Ainda d'essa vez os Tabajaras, apesar da alliança dos brancos tapuias do Mearim, foram levados de vencida pelos valentes Pytiguaras.
Nunca tão disputada victoria e tão renhida pugna, se pelejou nos campos que regam o Acaraú e o Camocim; o valor era igual de parte a parte, e nenhum dos dois povos fora vencido, se o Deus da guerra não tivesse decidido dar estas plagas á raça do guerreiro branco, alliada dos Pytiguaras.
Logo apóz a victoria o christão tornára ás praias do mar, onde construira sua cabana. De novo sentiu em sua alma a sede do amor; e tremia de pensar que Iracema houvesse partido, deixando ermo aquelle sitio tão povoado outrora pela felicidade.
O christão amou outra vez a filha do sertão, como da primeira vez, quando parece que o tempo não poderá exhaurir o coração. Mas breves sóes bastaram para murchar aquellas flôres de um coração exilado da patria.
O imbú, filho da serra, se nasceu na varzea porque o vento ou as aves trouxeram a semente, vingou, achando boa terra e fresca sombra; talvez um dia copou a verde folhagem e enflorou. Mas basta um sopro do mar, para tudo murchar. As folhas lastram o chão; as flôres leva-as a brisa.
Iracema tambem foge dos olhos do esposo, porque já percebeu que esses olhos tão amados se turbam com a vista d'ella, e em vez de se encherem de sua belleza como outrora, a despedem de si. Mas seus olhos d'ella não se cançam de acompanhar á parte e de longe o guerreiro senhor, que os fez captivos.
Ai d'ella!... Sentiu já o golpe no coração e como a copaiba ferida no amago, distilla lagrimas em fio.
Uma vez o christão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seus olhos buscaram em torno e não a viram.
A filha de Araken estava além, entre as verdes moitas de ubaia, sentada na relva. O pranto desfiava de seu bello semblante; e as gotas que rolavam a uma e uma cabiam sobre o regaço, onde já palpitava e crescia o filho do amor. Assim cahem as folhas da arvore viçosa antes que amadureça o fructo.
—O que espreme as lagrimas do coração de Iracema!
—Chora o cajueiro quando fica tronco secco e triste. Iracema perdeu sua felicidade, depois que te separaste d'ella.
—Não estou eu junto a ti?
—Teu corpo está aqui; mas tua alma vôa á terra de teus pais, e busca a virgem branca, que te espera.
Martim doeu-se. Os grandes olhos negros que a indiana pousara n'elle o tinham ferido no amago.
—O guerreiro branco é teu esposo: elle te pertence.
A formosa tabajara sorriu em sua tristeza:
—Quanto tempo ha que retiraste de Iracema teu espirito? Antes teu passo te guiava para as frescas serras e os alegres taboleiros; teu pé gostava de pisar a terra da felicidade e seguir o rastro da esposa. Agora só buscas as praias ardentes, porque o mar que lá murmura vem dos campos em que nasceste; e o morro das areias, porque do alto se avista a igara que passa.
—É a ancia de combater o tupinambá que volve o passo do guerreiro para as bordas do mar: respondeu o christão.
Iracema continuou:
—Teu labio seccou para a esposa, como a canna quando ardem os grandes sóes; perde o grato mel e as folhas murchas não podem mais brincar quando passa a brisa. Agora só fallas ao vento da praia para que elle leve tua voz á cabana de teus paes.
—A voz do guerreiro branco chama seus irmãos para deffender a cabana de Iracema e a terra de seu filho, quando o inimigo vier.
A esposa meneou a cabeça: do fructo do genipapo e buscam a flôr do espinheiro; a fructa é saborosa, mas tem a côr dos Tabajaras; a flôr tem a alvura das faces da virgem branca. Se cantam as aves, teu ouvido não gosta já de escutar o canto mavioso da graúna; mas tua alma se abre para o grito do japim, porque elle tem as pennas douradas como os cabellos d'aquella que tu amas!
—A tristeza escurece a vista de Iracema e amarga seu labio. Mas a alegria ha de voltar á alma da esposa, como volta á arvore a verde rama.
—Quando teu filho deixar o seio de Iracema, ella morrerá, como o abaty depois que deu seu fructo. Então o guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra extrangeira.
—Tua voz queima, filha de Araken, como o sopro que vem dos sertões do Icó, no tempo dos grandes calores. Queres tu abandonar teu esposo?
—Vêem teus olhos lá o formoso jacarandá, que vae subindo ás nuvens; a seus pés ainda está a secca raiz da murta frondosa, que todos os invernos se cobria de rama e bagos vermelhos, para abraçar o tronco irmão. Se ella não morresse, o jacarandá não teria sol para crescer áquella altura. Iracema é a folha escura que faz sombra em tua alma; deve cahir, para que a alegria alumie teu seio.
O christão cingio o talhe da formosa indiana e a estreitou ao peito. Seu labio levou ao labio da esposa um beijo, mas aspero e amargo.
Poty voltou do banho.
Segue na areia o rastro de Coatyabo, e sobe ao alto da Jacarécanga. Ahi encontra o guerreiro em pé no cabeço do monte com os olhos alongados e os braços estendidos para os largos mares.
Volve o Pytiguara as vistas e descobre uma grande igara, que vem sulcando os verdes mares, impedida pelo vento:
—É a grande igara dos irmãos de meu irmão que vem buscal-o!
O christão suspirou:
—São os guerreiros brancos inimigos de minha raça, que buscam as praias da valente nação pytiguara, para a guerra da vingança: elles foram derrotados com os Tabajaras nas margens do Camocim; agora vem com os seus amigos os Tupinambás pelo caminho do mar.
—Meu irmão é um grande chefe. Que pensa elle que deve fazer seu irmão Poty.
—Chama os caçadores de Soipé e os pescadores do Trahiry. Nós iremos ao seu encontro.
Poty accordou a voz da inubia: e os dois guerreiros partiram ambos para o Mocoribe. Pouco alem viram os guerreiros da Jaguarassú e Camoropim que corriam ao grito de guerra. O irmão de Jacaúna os avisou da vinda do inimigo.
O grande maracatim corre nas ondas, ao longo da terra que se dilata até ás margens do Parnahyba. A lua começava a crescer quando elle deixou as aguas do Mearim; ventos contrarios o tinham arrastado para os altos mares, muito alem do seu destino.
Os guerreiros pytiguaras, para não espantar o inimigo se occultam entre os cajueiros; e vão seguindo pela praia a grande igara: durante o dia avultam as brancas velas; de noite os fogos atravessam a negrura do mar, como vaga lumes perdidos na mata.
Muitos sóes caminharam assim. Passam alem do Camocim, e afinal pisam as lindas ribeiras da enseada dos papagaios.
Poty manda um guerreiro ao grande Jacaúna e se prepara para o combate. Martim, que subiu ao morro de areia, conhece que o maracatim vem recolher no seio da terra; e avisa seu irmão.
O sol já nasceu; os guerreiros guaraciabas e os tupinambás seus amigos, correm sobre as ondas nas ligeiras pirogas e pojam na praia. Formam o grande arco, e avançam como o cardume do peixe quando corta a correnteza do rio.
No centro estão os guerreiros do fogo, que trazem o raio; nas azas os guerreiros do Mearim que brandem o tacape.
Mas nação alguma jamais vibrou o arco certeiro, como a grande nação pytiguara; e Poty é o maior chefe, de quantos chefes empunharam a inubia guerreira. Ao seu lado caminha o irmão, tão grande chefe como elle, e sabedor das manhas da raça branca dos cabellos do sol.
Durante a noite os Pytiguaras fincam na praia a forte caiçara de espinho: e levantam contra ella um muro de areia, onde o raio esfria e se apaga. Ahi esperam o inimigo. Martim manda que outros guerreiros subam á copa dos mais altos coqueiros; alli defendidos pelas largas palmas, esperam o momento do combate.
A setta de Poty foi a primeira que partiu, e o chefe dos guaraciabas o primeiro heroe que mordeu o pó da terra extrangeira. Rugem os trovões na dextra dos guerreiros brancos; mas os raios que desferem mergulham-se na areia, ou se perdem nos ares.
As settas dos pytiguaras, já cahem do céo, já voam da terra, e se embebem todas no seio do inimigo. Cada guerreiro tomba crivado de muitas flechas, como a presa que as piranhas disputam nas aguas do lago.
Os inimigos embarcam outra vez nas pirogas, e voltam ao maracatim em busca dos grandes e pesados trovões, que um homem só, nem dois, podem manejar.
Quando voltam, o chefe dos pescadores, que corre nas aguas do mar como o veloz camoropim, de que tomou o nome, se arroja nas ondas, e mergulha. Ainda a espuma não se apagára, e já a piroga inimiga se afundou, parecendo que a tragára uma baleia.
Veiu a noite, que trouxe o repouso.
Ao romper d'alva, o maracatim fugia no horisonte para as margens do Mearim. Jacaúna chegou, não mais para o combate e sim para o festim da victoria.
N'essa hora em que o canto guerreiro dos pytiguaras celebrava a derrota dos guaraciabas, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerara n'essa terra da liberdade, via a luz nos campos da Porangaba.
Iracema cuidou que o seio se lhe rompia: e buscou a margem do rio, onde crescia o coqueiro.
Estreitou-se com a haste da palmeira. A dôr lacerou suas entranhas; porém logo o choro infantil inundou todo o seu ser de jubilo.
A joven mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços e com elle se arrojou ás aguas limpidas do rio. Depois suspendeu-o á teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e amor.
—Tu és Moacyr, o nascido de meu soffrimento.
A ará, pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacyr; e desde então a ave amiga em seu canto unia ao nome da mãe, o nome do filho.
O innocente dormia; Iracema suspirava.
—A jaty fabrica o mel no tronco cheiroso do assasfraz; toda a lua das flores vôa de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas ella não prova sua doçura, porque a irara devora em uma noite toda a colmeia. Tua mãe tambem, filho de minha angustia, não beberá em teus labios o mel do sorriso.
A joven mãe passou aos hombros a larga faxa de macio algodão, que fabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco; e seguiu pela areia o rastro do esposo, que ha tres sóes partira. Ella caminhava docemente para não despertar a creancinha adormecida como o passarinho sob a aza materna.
Quando chegou junto ao grande morro das areias, viu que o rastro de Martim e Poty seguia ao longo da praia; e adivinhou que elles eram partidos para a guerra. Seu coração suspirou; mas seus olhos sêccos buscaram o semblante do filho.
Volve o rosto para o Mocoribe.
—Tu és o morro da alegria; mas para Iracema tu não tens senão tristeza.
Tornando, a recente mãe pousou a creança sempre dormida na rêde de seu pae, viuva e solitaria em meio da cabana; ella deitou-se ao chão, na esteira onde repousava, desde que os braços do esposo se não tinham aberto mais para recebel-a.
A luz da manhã entrava pela cabana, e Iracema viu entrar com ella a sombra de um guerreiro.
Cauby estava em pé na porta.
A esposa de Martim ergueu-se de um impeto e saltou ávante para proteger o filho. Seu irmão levantou da rêde a ella uns olhos tristes, e falou com a voz ainda mais triste:
—Não foi a vingança que arrancou o guerreiro Cauby aos campos dos Tabajaras; elle já perdoou. Foi a vontade de ver Iracema, que trouxe comsigo toda a sua alegria.
—Então bemvindo seja o guerreiro Cauby na cabana de seu irmão: respondeu a esposa abraçando-o.
—O nascido de teu seio dorme n'essa rede; os olhos de Cauby gostariam de vêl-o.
Iracema abriu a franja de pennas; e mostrou o lindo semblante da creança. Cauby depois que o contemplou por muito tempo, entre risos, disse:
—Elle chupou tua alma.
E beijou nos olhos da joven mãe, a imagem da creança, que não se animava tocar com receio de offender.
A voz tremula da filha resoou:
—Ainda vive Araken sobre a terra?
—Pena ainda; depois que tu o deixaste sua cabeça, vergou para o peito e não se ergueu mais.
—Dize-lhe que Iracema é morta já, para que elle se console.
A irmã de Cauby preparou a refeição para o guerreiro, e armou no copiar a rêde da hospitalidade para que elle repousasse das fadigas da jornada. Quando o viajante satisfez o appetite, ergueu-se com estas palavras:
—Dize onde está teu esposo e meu irmão, para que o guerreiro Cauby lhe dê o abraço da amizade.
Os labios suspirosos da misera esposa moveram-se como as petalas do cacto que um sopro amarrota, e ficaram mudas. Mas as lagrimas debulharam dos olhos e cahiram em bagas.
O rosto de Cauby annuviou-se:
—Teu irmão pensava que a tristeza ficara nos campos que abandonaste; porque comtigo trouxeste todo o riso dos que te amavam!
Iracema seccou os olhos:
—O esposo de Iracema partiu com o guerreiro Poty para as praias do Acaraú. Antes que tres sóes tenham allumiado a terra elle voltará e com elle a alegria á alma da esposa.
—O guerreiro Cauby o espera para saber o que elle fez do sorriso que morava em teus labios.
A voz do tabajara enrouquecera; seu passo inquieto volveu a esmo pela cabana.
Iracema cantava docemente, embalando a rêde para acalentar o filho.
A areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara, que vinha das bordas do mar depois da abundante pesca.
A joven mãe cruzou as franjas da rede, para que as moscas não inquietassem o filho acalentado, e foi ao encontro do irmão:
—Cauby vae tornar ás montanhas dos Tabajaras! disse ella com brandura.
O guerreiro annuviou-se:
—Tu despedes teu irmão da cabana para que elle não veja a tristeza que a enche.
—Araken teve muitos filhos em sua mocidade; uns a guerra levou e morreram como valentes; outros escolheram uma esposa, e geraram por sua vez numerosa prole: filhos de sua velhice, Araken só teve dois. Iracema é para elle como a rôla que o caçador tirou do ninho. Só resta o guerreiro Cauby ao velho Pagé, para suster seu corpo vergado, e guiar seu passo tremulo.
—Cauby partirá quando a sombra deixar o rosto de Iracema.
—Como vive a estrella da noite, vive Iracema em sua tristeza. Só os olhos do esposo podem apagar a sombra em seu rosto. Parte, para que elles não se turvem com tua vista.
—Teu irmão parte para agradar tua vontade; mas elle voltará todas as vezes que o cajueiro florescer para sentir em seu coração o filho de teu ventre.
Entrou na cabana. Iracema tirou da rêde a creança; e ambos, mãe e filho, palpitaram sobre o peito do guerreiro tabajara. Depois Cauby passou a porta, e sumio-se entre as arvores.
Iracema, arrastando o passo tremulo, o acompanhou de longe até que o perdeu de vista na orla da mata. Ahi parou: quando o grito da jandaia de envolta com o choro infantil, a chamou á cabana, a areia fria onde esteve sentada, guardou o segredo do pranto que em bebera.
A joven mãe suspendeu o filho á teta; mas a bocca infantil não emmudeceu. O leite escasso não apojava o peito.
O sangue da infeliz diluia-se todo nas lagrimas incessantes que não estancavam dos olhos; nenhum chegava aos seios, onde se forma o primeiro licor da vida.
Ella dissolveu a alva cariman e preparou ao fogo o mingáo para nutrir o filho. Quando o sol dourou a crista dos montes, partiu para a mata, levando ao collo a creança adormecida.
Na espessura do bosque está o leito da irara ausente; os tenros caxorrinhos grunhem enrolando-se uns sobre os outros. A formosa tabajara approxima-se de manso. Prepara para o filho um berço da macia rama do maracujá; e senta-se perto.
Põe no regaço um por um os filhos da irara; e lhes abandona os seios mimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungio do mel da abelha. Os caxorrinhos famintos precipitam-se gulosos e sugam os peitos avaros de leite.
Iracema curte dôr, como nunca sentiu; parece que lhe exhaurem a vida; mas os seios vão-se entumecendo; apojaram afinal, e o leite, ainda rubro do sangue, de que se formou, esguicha.
A feliz mãe arroja de si os caxorrinhos, e cheia de jubilo mata a fome ao filho. Elle é agora duas vezes filho de sua dôr, nascido d'ella e tambem nutrido.
A filha de Araken sentiu afinal que suas veias se estancavam; e comtudo o labio amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurar-lhe as forças. O gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso o sabor em sua bocca formosa.
Descamba o sol.
Japy sae do mato e corre para a porta da cabana.
Iracema sentada com o filho no collo, banha-se nos raios do sol e sente o frio arripiar-lhe o corpo. Vendo o animal, fiel mensageiro do esposo, a esperança reanimou seu coração; quiz erguer-se para ir ao encontro de seu guerreiro e senhor, mas os membros debeis se recusaram á sua vontade.
Cahiu desfallecida contra o esteio. Japy lambia-lhe a mão desfallecida, e pulava travesso para fazer sorrir a creança, soltando uns doces latidos de prazer. Por vezes, afastou-se para correr até á orla da mata, e latir chamando o senhor, logo tornava á cabana para festejar a mãe e o filho.
Por esse tempo pisava Martim os campos amarellos do Tauape: seu irmão Poty, o inseparavel, caminhava a seu lado.
Oito luas havia que elle deixara as praias da Jacarecanga. Depois de vencidos os Guaraciabas na bahia dos papagaios, o guerreiro christão quiz partir para as margens do Mearim, onde habitava o barbaro alliado dos Tupinambás.
Poty e seus guerreiros o acompanharam. Depois que transpuzeram o braço corrente do mar que vem da serra de Tauatinga e banha as varzeas onde se pesca o piau, viram emfim as praias do Mearim, e a velha taba do barbaro tapuia.
A raça dos cabellos do sol cada vez ganhava mais a amizade dos Tupinambás: crescia o numero dos guerreiros brancos, que já tinham levantado na ilha a grande itaoca, para despedir o raio.
Quando Martim viu o que desejava, tornou aos campos da Porangaba, que elle agora trilha. Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoribe; já lhe bafeja o rôsto o sopro vivo das vagas do oceano.
Quanto mais seu passo o aproxima da cabana, mais lento se torna e pesado. Tem medo de chegar: e sente que sua alma vae soffrer, quando os olhos tristes e maguados da esposa, entrarem n'ella.
Ha muito que a palavra desertou seu labio secco; o amigo respeita este silencio, que elle bem entende. É o silencio do rio quando passa nos logares profundos e sombrios.
Tanto que os dois guerreiros tocaram as margens do rio, ouviram o latir do cão, que os chamava, e o grito da ará, que se lamentava. Eram mui proximos á cabana, apenas occulta por uma lingua de mato. O christão parou calcando a mão no peito para soffrear o coração, que saltava como o poraquê.
—O latido de Japy é de alegria, disse o chefe.
—Porque chegou; mas a voz da jandaia é de tristeza. Achará o guerreiro ausente a paz no seio da esposa solitaria, ou terá a saudado matado em suas entranhas o fructo do amor?
O christão moveu o passo vacillante. De repente, entre os ramos das arvores, seus olhos viram sentada, á porta da cabana, Iracema, com o filho no regaço e o cão a brincar. Seu coração o arrastou de um impeto, e toda a alma lhe estalou nos labios.—Iracema!...
A triste esposa e mãe sôabrio os olhos, ouvindo a voz amada. Com esforço grande, poude erguer o filho nos braços, e apresental-o ao pae, que o olhava extactico em seu amor.
—Recebe o filho de teu sangue. Vieste a tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento para dar-lhe!
Pousando a creança nos braços paternos, a desventurada mãe desfalleceu como a jetyca se lhe arrancam o bulbo. O esposo vio então como a dôr tinha murchado seu bello corpo; mas a formosura ainda morava n'ella, como o perfume na flôr cabida do manacá.
Iracema não se ergueu mais da rêde onde a pousaram os afflictos braços de Martim. O esposo, em quem o amor renascera com o jubilo paterno, a cercou de caricias que encheram sua alma de alegria, mas não a poderam tornar á vida; o estame de sua flôr se rompera.
—Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amaste. Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entro seus cabellos.
O labio emmudeceu para sempre; o ultimo lampejo despediu-se dos olhos baços.
Poty amparou o irmão em sua grande dôr. Martim, sentiu que um amigo verdadeiro é precioso na desventura; é como o outeiro que abriga do vendaval o tronco forte e robusto do ubiratan, quando o broca o copim.
O camocim recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoriferas; e foi enterrado ao pé do coqueiro, á borda do rio. Martim quebrou um ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa. A jandaia pousada no olho da palmeira repelia tristemente:—Iracema!
Desde então os guerreiros pytiguaras que passavam perto da cabana abandonada e ouviam resoar a voz plangente da ave amiga, se afastavam, com a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia. E foi assim que veiu a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os campos onde serpeia o rio.
O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no fragil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quiz deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora.
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da patria. Seria a predestinação de uma raça?
Poty com os seus guerreiros esperava na margem do rio. O christão lhe promettera voltar; todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia os olhos ao mar a vêr se branqueava ao longe a vela amiga.
Afinal volta Martim de novo ás terras, que foram de sua felicidade, e são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas areias, derramou-se por todo o seu ser um fogo ardente, que lhe requeimou o coração: era o fogo das recordações accesas.
A chamma só applacou quando elle tocou a terra onde dormia sua esposa; porque n'esse instante seu coração transudou, como o tronco do jetahy nos ardentes calores, e refrescou sua pena de lagrimas abundantes.
Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com elle a mayri dos christãos. Veio tambem um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.
Poty foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho: não soffria elle que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quiz que tivessem ambos um só Deus, como tinham um só coração.
Elle recebeu com o baptismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na lingua dos novos irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde elle viu a luz primeiro.
A mayri que Martim erguera á margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e o bronze sagrados resoou nos valles onde rugia o maracá.
Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu amigo branco; Camarão assentou a taba de seus guerreiros nas margens da Mocejana.
Tempo depois, quando veiu Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros brancos, Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia.
Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.
Muitas vezes ia sentar-se n'aquellas doces areias, para scismar e acalentar no peito a agra saudade.
As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o mavioso nome de Iracema.
Tudo passa sobre a terra.
Pag. 10.—Argumento historico.—Em 1603, Pero Coelho, homem nobre da Parahyba, partiu como capitão-mór de descoberta, levando uma força de 80 colonos e 800 indios. Chegou á foz do Jaguaribe e ahi fundou o povoado que teve nome de Nova-Lisboa.
Foi esse o primeiro estabelecimento colonial do Ceará.
Como Pero Coelho se visse abandonado dos socios, mandaram-lhe João Soromenho com soccorros. Esse official, auctorisado a fazer captivos para indemnisação das despezas, não respeitou os proprios indios do Jaguaribe, amigos dos Portuguezes.
Tal foi a causa da ruina do nascente povoado. Retiraram-se os colonos, pelas hostilidades dos indigenas; e Pero Coelho ficou ao desamparo, obrigado a voltar a Parahyba por terra, com sua mulher e filhos pequenos.
Na primeira expedição foi do Rio-Grande do Norte um moço de nome Martim Soares Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos indios do littoral e seu irmão Poty. Em 1608 por ordem de D. Diogo Menezes voltou a dar principio á regular colonisação d'aquella capitania: o que levou a effeito fundando o presidio de Nossa Senhora do Amparo em 1611.
Jacaúna, que habitava as margens do Acaracú, veiu estabelecer-se com sua tribu nas proximidades do recente povoado, para o proteger contra os indios do interior e os francezes que infestavam a costa.
Poty recebeu no baptismo o nome de Antonio Fillippe Camarão, que illustrou na guerra hollandeza. Seus serviços foram remunerados com o foro de fidalgo, a commenda de Christo e o cargo de capitão-mór dos indios.
Martim Soares Moreno chegou a mestre de campo e foi um dos excedentes cabos portuguezes que libertaram o Brazil da invasão hollandeza. O Ceará deve honrar sua memoria como de um varão prestante e seu verdadeiro fundador, pois que o primeiro povoado á foz do rio Jaguaribe foi apenas uma tentativa frustrada.
Este é o argumento historico da lenda; em notas especiaes se indicarão alguns outros subsidios recebidos dos chronistas do tempo.
Ha uma questão historica, relativa a este assumpto; fallo da patria do Camarão, que um escriptor pernambucano quiz pôr em duvida, tirando a gloria ao Ceará para a dar á sua provincia.
Este ponto aliás somente contestado nos tempos modernos pelo Sr. commendador Mello em suas Biographias, me parece sufficientemente elucidado já, depois da erudita carta do Sr. Basilio Quaresma Torreão, publicada no Mercantil n.° 26 de 26 de Janeiro de 1860, 2.ª pagina.
Entretanto farei sempre uma observação.
Em primeiro logar a tradicção oral é uma fonte importante da historia, e ás vezes a mais pura e verdadeira. Ora na provincia de Ceará em Sobral não só se referiam entre gente do povo noticias do Camarão, como existia lima velha mulher que se dizia d'elle sobrinha. Essa tradicção foi colhida por diversos escriptores, entre elles o conspicuo auctor da Corographia Brasilica.
O auctor do Valoroso Lucideno é dos antigos o unico que positivamente affirma ser Camarão filho de Pernambuco; mas além de encontrar essa asserção a versão de outros escriptores de nota, accresce que Berredo explica perfeitamente o dito d'aquelle escriptor, quando falla da expedição de Pero Coelho de Souza a Jaguaribe, sitio d'aquelle tempo e tambem no de hoje da jurisdicção de Pernambuco.
Outro ponto é necessario esclarecer para que não me censurem de infiel á verdade historica. É a nação de Jacaúna e Camarão que alguns pretendem ter sido a tabajara. Ha n'isso manifesto engano.
Em todas as chronicas se falla das tribus de Jacaúna e Camarão, como habitantes do littoral, e tanto que auxiliam a fundação do Ceará, como já haviam auxiliado a da Nova-Lisboa em Jaguaribe. Ora a nação, que habitava o littoral entre o Parnahyba e o Jaguaribe ou Rio-Grande, era a dos Pytiguaras, como attesta Gabriel Soares. Os Tabajaras. habitavam a serra de Ibyapa, e portanto o interior.
Como chefes dos Tabajaras são mencionados Mel Redondo no Ceará e Grão Deabo em Piauhy. Esses chefes foram sempre inimigos irreconciliaveis e rancorosos dos portuguezes, e alliados dos francezes do Maranhão, que penetraram até Ibyapaba. Jacaúna e Camarão são conhecidos pela sua alliança firme com os portuguezes.
Mas o que solve a questão é o seguinte texto. Lê-se nas memorias diarias da guerra brasilica do conde de Pernambuco:—1834, Janeiro, 18: "Pelo bom procedimento com que havia servido A. Ph. Camarão o fez El-rei capitão-mór de todos os indios não somente de sua nação, que era Pytiguar, mas das outras residentes em varias aldeias."
Esta auctoridade, além de contemporanea, testemunhal, não pode ser recusada, especialmente quando se exprime tão positiva e intencionalmente a respeito do ponto duvidoso.
Pag. 19.—Onde canta a jandaia.—Diz a tradicção que Ceará significa na lingua indigena—canto de jandaia.
Ayres do Casal, Corographia Brasilica, refere essa tradicção. O senador Pompêo, em seu excellente diccionario topographico, menciona uma opinião, nova para mim, que pretende vir Siará da palavra saia-caça, em virtude da abundancia de caça que se encontrava nas margens do rio. Essa etymologia é forçada. Para designar quantidade, usava a lingua tupy da desinencia iba; a desinencia ára junta aos verbos designa o sujeito que exercita a acção actual; junta aos nomes o que tem actualmente o objecto—exp. Coatyara—o que pinta.—Jussara—o que tem espinho.
Ceará é nome composto de cemo—cantar forte, clamar, e ará, pequena arara ou periquito. Essa é a etymologia verdadeira, e não só conforme com a tradicção, mas com as regras da lingua.
Pag. 20.—I. Giráu.—Na jangada é uma especie de estrado onde accommodam os passageiros: e ás vezes o cobrem de palha. Em geral é qualquer estiva elevada do solo e suspensa em forquilhas.
II. Iracema.—Em guarany significa labios de mel—de ira—mel e tembe labios. Tembe na composição altera-se em ceme, como na palavra ceme-yba.
III. Graúna é o passaro conhecido de cor negra luzidia.—Seu nome vem por corrupção de guira passaro e una, abreviação de pixuna de preto.
IV. Jaty.—Pequena abelha que fabrica delicioso mel.
Pag. 21.—I. Ipú.—Chamam ainda hoje no Ceará certa qualidade de terra muito fertil, que fórma grandes corôas ou ilhas no meio dos taboleiros e sertões, e é de preferencia procurada para a cultura. D'ahi se deriva o nome d'essa comarca da provincia.
II. Tabajaras.—Senhores das aldeias—de taba—aldeia—e—jara—senhor. Essa nação dominava o interior da provincia, especialmente a Serra da Ibyapaba.
III. Oitycica.—Arvore frondosa, apreciada pela deliciosa frescura que derrama sua sombra.
IV. Gará.—Ave palludal, muito conhecida pelo nome de guará. Penso eu que esse nome anda corrompido de sua verdadeira origem, que é—ig, agua e ará, arara; arara d'agua, pela bella côr vermelha.
V. Ará.—periquito. Os indigenas como augmentativo usavam repetir a ultima sillaba da palavra e ás vezes toda a palavra—como murémuré. Muré, frauta—murémuré, grande frauta. Arára vinha a ser pois o augmentativo de ará, e significaria a especie maior do genero.
VI. Urú.—Cestinho que servia de cofre ás selvagens para guardar seus objectos de mais preço e estimação.
VII. Crautá.—Bromelia vulgar, de que se tiram fibras tão ou mais finas que as do linho.
VIII. Jussara.—Palmeira de grandes espinhos, das quaes se servem ainda hoje para dividir os fios da renda.
Pag. 22.—I. Uiraçaba.—aljava—de uira seta e a desinencia—caba—cousa propria.
II. Quebrar a flecha.—Era entre os indigenas a maneira symbolica de estabelecerem a paz entre as diversas tribus, ou mesmo entre dois guerreiros inimigos. Desde já advertimos que não se extranhe a maneira porque o extrangeiro se exprime falando com os selvagens: ao seu perfeito conhecimento dos usos e lingua dos indigenas, e sobretudo a ter-se conformado com elles a ponto de deixar os trajos europeus e pintar-se, deveu Martim Soares Moreno a influencia que adquiriu entre os indios do Ceará.
Pag. 23.—I. Ibyapaba.—Grande serra que se prolonga ao norte da provincia e a extrema com Piauhy. Significa terra aparada. O Dr. Martins em seu glossario lhe attribue outra etymologia. Iby-terra—e pabe—tudo. A primeira porém tem a auctoridade de Vieira.
II. Igaçaba.—de ig—agua e a desinencia çaba—cousa propria.
Pag. 24.—I. Vieste.—A saudação usual da hospitalidade era esta:—Erc ioubé—tu vieste? pa-aiotu, vim sim. Auge-be, bem dito. Veja-se Lery, pag. 286.
II. Jaguaribe.—maior rio da provincia; tirou o nome da quantidade de onças que povoavam suas margens. Jaguar—onça—iba—desinencia para exprimir copia, abundancia.
III. Martim.—Da origem latina de seu nome, procedente de Marte, deduz o extrangeiro a significação que lhe dá.
IV. Pytiguaras.—Grande nação de indios que habitava o littoral da provincia e estendia-se desde o Parnahyba até o Rio Grande do Norte. A orthographia do nome anda mui viciada nas differentes versões, pelo que se tornou difficil conhecer a etymologia.
Iby significava terra; iby-tira veiu a significar serra, ou terra alta. Aos valles chamavam os indigenas iby-tira-cua—cintura das montanhas. A desinencia jara senhor, accrescentada, formou a palavra Ibyticuara—que por corrupção deu Pytiguara—senhores dos valles.
V. Mau espirito da floresta.—Os indigenas chamavam a esses espiritos caa-pora, habitantes da mata, d'onde por corrupção veiu a palavra caipora, introduzida na lingua portugueza em sentido figurado.
Pag. 25.—I. As mais bellas mulheres.—Este costume da hospitalidade americana é attestado pelos chronistas. A elle se attribue o bello rasgo de virtude de Anchieta, que para fortalecer a sua castidade, compunha nas praias de Iperoig o poema da Virgindade de Maria, cujos versos escrevia nas areias humidas, para melhor os polir.
II. Jurema.—Arvore mean, de folhagem espessa; dá um fructo excessivamente amargo, de cheiro acre, do qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o effeito do hatchis, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa fruia n'elles melhor do que na realidade. A fabricação d'esse licor era um segredo, explorado pelos Pagés, em proveito de sua influencia. Jurema é composto de ju-espinho e rema cheiro desagradavel.
Pag. 26.—I. Irapuam.—de ira-mel e apuam redondo: é o nome dado a uma abelha virulenta e brava, por causa da forma redonda de sua colmeia. Por corrupção reduziu-se esse nome actualmente a arapuá. O guerreiro de que se trata aqui é o celebre Mel-redondo, assim chamado pelos chronistas do tempo, que traduziam seu nome ao pé da lettra. Mel-redondo, chefe dos Tabajaras da serra Ibyapaba, foi encarniçado inimigo dos portuguezes, e amigo dos francezes.
II. Acaracú.—O nome do rio é Acaracú—de acará garça—co—buraco, toca, ninho, e y—som dubio entre i e u, que os portuguezes, ora exprimiam de um, ora de outro modo, significando agua. Rio do ninho das garças é pois a traducção de Acaracú; e o rio das garças a de Acaraú. Usou-se aqui da liberdade horaciana para evitar em uma obra litteraria, obra de gosto e artistica, um som aspero e ingrato. De resto quem sabe se o nome primitivo não foi realmente Acaraú, que se alterou como tantos outros, pela introducção da consoante?
III. Estrella morta.—A estrella polar, por causa da sua immobilidade; orientavam-se por ella os selvagens durante a noite.
IV. Boicininga.—é a cobra cascavel—de boia, cobra e cininga chocalho.
V. Oitibó.—é uma ave nocturna, especie de coruja.
Pag. 27.—I. Espiritos da treva.—A esses espiritos chamavam os selvagens curupira, meninos máus—de curumim, menino, e pira máu.
II. Boré.—frauta de bambú,—o mesmo que muré.
III. Ocara.—praça circular que ficava no centro da taba, cercada pela estacada, e para a qual abriam todas as casas. Composto de oca, casa e a desinencia ara, que tem; aquillo que tem a casa, ou onde a casa está.
IV. Potyuara.—comedor de camarão; de poty—e uara. Nome que por desprêso davam os inimigos aos Pytiguaras, que habitavam as praias e viviam em grande parte de pesca.
Este nome dão alguns escriptores aos Pytiguaras. porque o receberam de seus inimigos.
Pag. 28.—I. Pocema.—grande alarido que faziam os selvagens nas occasiões solemnes, como em começo de batalha, ou nas expansões da alegria; é palavra adoptada já na lingua portugueza e inserida no diccionario de Moraes. Vem de po-mão e cemo clamar; clamor das mãos, porque os selvagens acompanhavam o vozear com o bater das palmas e das armas.
II. Andira.—morcego: é em allusão a seu nome que Irapuam dirige logo palavras de despreso ao velho guerreiro.
Pag. 29.—Aracaty.—Significava este nome bom tempo de ara e catú. Os selvagens do sertão assim chamavam as brisas do mar que sopram regularmente ao cahir da tarde, e correndo pelo valle do Jaguaribe se derramam pelo interior e refrigeram da calma abrasadora do verão. D'ahi resultou chamar-se Aracaty o logar de onde vinha a monção. Ainda hoje no Icó o nome é conservado á brisa da tarde, que sopra do mar.
Pag. 32.—I. Afflar.—Sobre este verbo que introduzi na lingua portugueza do latim afflo, já escrevi o que entendi em nota de uma segunda edição da Diva que brevemente ha de vir á luz.
II. Anhanga.—Davam os indigenas este nome ao espirito do mal; compõe-se de anho atrito, só e anga alma. Espirito só, privado do corpo, phantasma.
Pag. 36.—I. Camocim.—vaso onde encerravam os indigenas os corpos dos mortos e lhes servia de tumulo; outros dizem camotim, e talvez com melhor orthographia, porque se não me engano o nome corrupção da phrase co buraco, ambyra defuncto, anhotim enterrar—buraco para enterrar o defuncto—c'am'otim. O nome dava-se tambem a qualquer pote.
II. Guabiroba.—Deve ler-se Andiroba. Arvore que dá um azeite amargo.
III. Cabellos do sol.—Em tupy guaraciaba. Assim chamavam aos europeus que tinham os cabellos louros.
Pag. 38.—I. Moquem.—Do verbo mocaém assar na labareda. Era a maneira por que os indigenas conservavam a caça para não apodrecer, quando a levavam em viagem. Nas cabanas a tinham ao fumeiro.
II. Senhor do caminho.—assim chamavam os indigenas ao guia—de py, caminho e guara, senhor.
Pag. 39.—I. O dia vae ficar triste.—Os tupys chamavam a tarde carúca, segundo o diccionario: Segundo Lery, che caruc acy, significa—"estou triste." Qual d'estes era o sentido figurado da palavra? Tiraram a imagem da tristeza, da sombra da tarde, ou a imagem do crepusculo do torvamento do espirito?
II. Jurupary.—demonio; de juroboca e apara torto, aleijado. O bocca torta.
III. Ubaia.—fructa conhecida da especie engenia. Significa fructa saudavel, de uba-fructa e aia saudavel.
Pag. 41.—I. Jandaia.—Este nome que anda escripto por diversas maneiras nhendaia, nhandaia e em todas alterado é apenas um adjectivo qualificativo do substantivo ará. Deriva-se elle das palavras nheng—falar—antan, duro, forte, aspero, e ara desinencia verbal que exprime o agente—nh' ant' ara; substituido o t por d—e o r por i, tornou-se nhandaia, d'onde jandaia, que se traduzirá por periquito grasnador.
Do canto d'esta ave, como se viu, é que vem o nome de Ceará, segundo a etymologia que lhe dá a tradicção.
II. Inhuma.—Ave nocturna palamedea. A especie de que se fala aqui é a palamedea chavaria, que canta regularmente á meia noite. A orthographia melhor creio ser anhuma, talvez de anho, só, e anum, ave agoureira conhecida. Significaria então assim anum solitario, assim chamado pela tal ou qual semelhança do grito desagradavel.
Pag. 42.—Inubia.—Trombeta de guerra. Os indigenas, segundo Lery, as tinham tão grandes que mediam um diametro na abertura.
Pag. 43.—Guará.—Cão selvagem, lobo brazileiro. Provêm esta palavra do verbo u comer, do qual se forma com o relativo G e a desinencia ara o verbal g-u-ára comedor. A syllaba final longa é a particula propositiva ã que serve para dar fôrça á palavra.
G-u-ára-ã realmente comedor, voraz.
Pag. 44.—I. Jiboia.—Cobra conhecida: de gi machado e boia cobra. O nome foi tirado da maneira porque a serpente lança o bote, semelhante ao golpe do machado; pode traduzir-se bem cobra de arremesso.
II. Sucury.—A serpente gigante que habita nos grandes rios e engole um boi. De Suu, animal e cury ou curu roncador. Animal roncador, porque de feito o rouco da sucury é medonho.
III. Se é que tens sangue e não mel.—Allusão que faz o velho Andira ao nome de Irapuam, o qual como se disse significa mel redondo.
IV. Ouve seu trovão.—Todo esse episodio do rugido da terra é uma astucia, como usavam os pagés e os sacerdotes de toda a nação selvagem para imporem á imaginação do povo. A cabana estava assentada sobre um rochedo, onde havia uma galeria subterranea que communicava com a varzea por estreita abertura; Araken tivera o cuidado de tapar com grandes pedras as duas aberturas, para occultar a gruta dos guerreiros. N'essa occasião a fenda inferior estava aberta e o Pagé o sabia; abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo antro espiral com estridor medonho, e de que pode dar uma idéa o sussurro dos caramujos.—O facto é pois natural; a apparencia sim maravilhosa.
Pag. 45.—Abaty n'agua.—Abaty—arroz; Iracema serve-se da imagem do arroz que só viça no alagado, para exprimir sua alegria.
Pag. 53.—I. Ubiratan.—Páo ferro, de ubira—páo e antan duro.
II. Maracajá.—Gato selvagem.
III. Caetetus.—Porco do mato, especie de javali brazileiro. Do caeté—mato grande e virgem—e suu caça, mudado o s em t na composição pela euphonia da lingua. Caça do mato virgem.
IV. Jaguar.—Vimos que guará significa voraz. Jaguar tem inquestionavelmente a mesma etymologia; é o verbal guara e o pronome ja nós. Jaguar era pois para os indigenas todos os animaes que os devoravam. Jaguareté o grande devorador.
V. Anajê.—Gavião.
Pag. 55.—Acauan, ave inimiga das cobras—de caa pão e uan—do verbo u, que come pão.
Pag. 56.—Sahy.—Lindo passaro azul.
Pag. 57.—I. Carioba.—Camisa de algodão, de cary branco e oba roupa. Tinham tambem a arassoia de arára, e oba, vestido de pennas de arara.
II. Á cintura da virgem.—Os indigenas chamavam a amante possuida aguaçaba, de aba, homem, cua, cintura, çaba cousa propria; a mulher que o homem cinge, ou traz á cintura. Fica pois claro o pensamento de Iracema.
Pag. 59.—I. Jacy.—A lua. De já—pronome, nós, e cy—mãe.—A lua exprimia o mez para os selvagens; e seu nascimento era sempre por elles festejado.
II. Fogos da alegria.—Chamavam os selvagens tory, os fachos ou fogos; e toryba, a alegria, a festa, a grande copia dos fachos.
Pag. 60.—Bucan.—Significa uma especie de grelha que os selvagens faziam para assar a caça; d'ahi vem o verbo francez boucaner. A palavra é da lingua tupy.
Pag. 63.—I. Acoty.—cotia.
II. Abaeté.—varão abalisado; de aba—homem e eté—forte, egregio.
Pag. 66.—I. Jacaúna.—jacarandá preto—de jaca, abreviação de jacarandá, e una, preto. Este Jacaúna é o celebre chefe, amigo de Martim Soares Moreno.
II. Coandú.—porco espinho.
III. Seu collar de guerra.—O collar que os selvagens faziam dos dentes dos inimigos vencidos era um brazão e tropheu de valentia.
Pag. 68.—I. Japy.—significa, nosso pé, de ja—pronome, nós e py pé.
II. Ibyapina.—De Iby-terra, e apino, tosquiar.
III. Jatobá.—grande arvore real. O logar da scena é o sitio da hoje Villa Viçosa, onde diz a tradição ter nascido Camarão.
Pag. 71.—I. Meruoca. De mera, mosca, e oca, casa. Serra junto do Sobral, fertil em mantimentos.
II. Uruburetama.—patria ou ninho de urubus: serra bastante alta.
III. Mundahú.—rio muito tortuoso, que nasce na serra de Uruburetama. Mandé, cilada, e hu rio.
IV. Potengi.—rio que rega a cidade do Natal, d'onde era filho Soares Moreno.
Pag. 72.—I. As saborosas trahiras.—É o rio Trahiry trinta leguas ao norte da capital. De trahira, peixe e y, rio. Hoje é povoação e districto de paz.
II. Soipé.—paiz da caça. De Sôo caça, e ipé lugar onde. Diz-se hoje Siupé, rio e povoação pertencente a freguezia e termo da Fortaleza, situada á margem dos alagados chamados Jaguarassú na embocadura do rio.
III. Pacoty.—Rio das pacobas. Nasce na serra de Baturité e lança-se no Oceano duas leguas ao norte de Aquirás.
IV. Iguape.—Enseada distante duas leguas de Aquirás. De Ig, agua, cua, cintura e ipé, onde.
Pag. 73—I. Mocoribe.—morro de areia na enseada do mesmo nome a uma legua da Fortaleza; diz-se hoje Mucuripe. Vem de Corib alegrar e mo, particula ou abreviatura do verbo monhang fazer, que se junta aos verbos neutros e mesmo activos para dar-lhes significação passiva—exp.caneon affligir-se, mocaneon fazer alguem afflicto.
II. Rio que forma um braço de mar.—É o Parnahyba, rio de Piauhy. Vem de Pará. mar, nhanhe, correr e hyba, braço; braço corrente do mar. Geralmente se diz que Pará significa rio e Paraná mar; é inteiramente o contrario.
Pag. 74.—I. Mayr.—cidade. Talvez provenha o nome de mayr extrangeiro, e fosse applicado aos povoados dos brancos em opposição ás tabas dos indios.
II. Brancos tapuias.—em tupy, tapuitinga. Nome que os Pytiguaras davam aos francezes para differença-los dos Tupinambás. Tapuia, significa barbaro, inimigo. De taba, aldeia e puyr, fugir,—os fugidos da aldeia.
Pag. 75.—I. Batuireté.—narseja illustre, de batuira e eté. Appellido que tomara o chefe pytiguara, e que na linguagem figurada valia tanto como valente nadador. É o nome de uma serra fertilissima e da comarca que ella occupa.
II. Suas estrellas eram muitas.—Contavam os indigenas os annos pelo nascimento das pleiades no oriente; e tambem costumavam guardar uma castanha de cada estação de cajú. para marcar a idade.
III. Jatobá.—arvore frondosa, talvez de jetahy, oba, folha e a, augmentativo; jetahy de grande copa. É nome de um rio e de uma serra em S. Quiteria.
Pag. 76.—I. Quixeramobim.—segundo o Dr. Martins traduz-se por essa exclamação de saudade. Compõe-se de Qui, ah! xere, meus, amôbinhé, outros tempos.
II. Caminho das garças.—Em tupy Acarape, povoação na freguezia de Baturité a nove leguas da capital.
III. Maranguab.—A serra de Maranguape distante cinco leguas da capital, e notavel pela sua fertilidade e formosura. O nome indigena compõe-se de maran guerrear e coaub sabedor; maran talvez seja abreviação de maramonhang, fazer guerra, se não é, como eu penso, o substantivo simples guerrear, de que se fez o verbo composto. O Dr. Martins traz etymologia diversa. Mara, arvore, angai, de nenhuma maneira, guabe, comer. Esta etymologia nem me parece propria ao objecto, que é uma serra, nem conforme com os preceitos da lingua.
IV. Pirapora.—Rio do Maranguape, notavel pela frescura do suas aguas e excellencia dos banhos chamados da Pirapora, no lugar das cachoeiras. Provem o nome de Pira, peixe, pore, salto: salto do peixe.
Pag. 78.—O gavião branco—Batuireté chama assim o guerreiro branco, ao passo que trata o neto por narseja: elle prophetisa n'esse parallelo a destruição de sua raça pela raça branca.
Pag. 79. II. Porangaba.—significa belleza. É uma lagoa distante da cidade uma legua em sitio aprasivel. Hoje a chamam Arronches: e nas suas margens está a decadente povoação de mesmo nome.
II. Jererahu.—rio das marrecas; de jerere—ou irêrê, marreca, e hu agua. Este lugar ainda hoje é notavel pela excellencia da fructa, com especialidade as bellas laranjas conhecidas por laranjas de Jererahu.
III. Sapiranga.—lagoa no sitio Alagadiço Novo, a cerca de 2 leguas da capital. O nome indigena significa olhos vermelhos, de ceça, olhos e piranga vermelhos. Esse mesmo nome dão usualmente no norte a certa ophtalmia.
IV. Murytiapuá.—de murity—nome da palmeira mais vulgarmente conhecida por burity, e apuam, ilha. Logarejo no mesmo sitio referido.
V. Aratanha.—de arára, ave e tanha, dente. Serra mui fertil e cultivada em continuação da de Maranguape.
VI. Pacatuba.—de paca e tuba, leito ou couto das pacas. Recente, mas importante povoação, em um bello valle da serra da Aratanha.
VII. Guayúba.—De goaia, valle, y, agua, jur, vir, be por onde; por onde vem as aguas do valle. Rio que nasce na serra da Aratanha e corta a povoação do mesmo nome a seis leguas da capital.
Pag. 81.—I. Ambar. As praias do Ceará eram n'esse tempo muito abundantes de ambar que o mar arrojava. Chamavam-lhe os indigenas, Pira repoti esterco de peixe.
II. Coatyá.—pintar. A historia menciona esse facto de Martim Soares Moreno se ter coatyado quando vivia entre os selvagens do Ceará.
Pag. 82.—Coatyabo.—A desinencia abo significa o objecto que soffreu a acção do verbo, e talvez provenha de aba, gente, creatura.
Pag. 90.—Imbú.—Fructa da Serra do Araripe que não vem do littoral. É saborosa e semelhante ao cajá.
Pag. 93.—I. Tupinambás.—Nação formidavel, ramo primitivo da grande raça tupy. Depois de uma resistencia heroica, não podendo expulsar os portuguezes da Bahia emigraram até o Maranhão onde fizeram alliança com os francezes que já então infestavam aquellas paragens. O nome que elles se davam significava—gente parente dos Tupys—de Tupy—anama—ba.
II. Maracatim.—Grande barco que levava na proa tim—um maracá. Aos barcos menores ou canoas chamavam igara—de ig—agua—e jara, senhor; senhora d'agua.
Pag. 95.—Moacyir.—Filho do soffrimento—de moacy, dôr e ira, desinencia, que significa sahido de.
Pag. 96.—Faxa.—É o que chamam vulgarmente typoia; rejeitou-se o termo proprio do texto por andar degradado no estylo chulo.
Pag. 97.—Chupou tua alma.—Creança em tupy é pitanga, de piter chupar e anga alma; chupa alma. Seria porque as creanças attrahem e deleitam aos que as vêem; ou porque absorvem uma porção d'alma dos paes? Cauby fala n'esse ultimo sentido.
Pag. 99.—Cariman.—Uma conhecida preparação de mandioca. Caric, correr, mani, mandioca. Mandioca escorrida.
Pag. 100.—Tauape, lugar de barro amarello, de tauá e ipé. Fica no caminho de Maranguape.
Pag. 103.—Copim.—Insecto conhecido. O nome compõe-se de co buraco e pim ferrão.
Pag. 104.—Albuquerque.—Jeronymo d'Albuquerque chefe da expedição do Maranhão em 1612.
Pag. 117.—Colibri.—D'esse lethargo do colibri no inverno fala Simão de Vasconcellos.
Pag. 125—Mocejana.—Lagoa e povoação a 2 leguas da capital. O verbo cejar significa—abandonar; a desinencia ana indica a pessoa que exercita a acção do verbo. Cejana—significa o que abandona. Junta a particula mo do verbo monhang, fazer, vem a palavra a significar o que fez abandonar ou que foi lugar e occasião de abandonar.
Eis-me de novo, conforme o promettido.
Já leu o livro e as notas que o acompanham; conversemos pois.
Conversemos sem cerimonia, em toda a familiaridade, como se cada um estivesse recostado em sua rede, ao vaivem do languido balanço, que convida á doce pratica.
Se algum leitor curioso se puzer á escuta, deixal-o. Não havemos por isso de mudar o tom rasteiro da intimidade pela phrase garrida das salas.
Sem mais.
Ha de recordar-se você de uma noite que entrando em minha casa, quatro annos a esta parte, achou-me rabiscando um livro. Era isso em uma quadra importante, pois que uma nova legislatura, filha de nova lei, fazia sua primeira sessão; e o paiz tinha os olhos n'ella, de quem esperava iniciativa generosa para melhor situação.
Já estava eu meio descrido das cousas, e mais dos homens; e por isso buscava na litteratura diversão á tristeza que me infundia o estado da patria entorpecida pela indifferença. Cuidava eu porém que você, politico de antiga e melhor tempera, pouco se preoccupava com as cousas litterarias, não por menos preço, sim por vocação.
A conversa que tivemos então revelou meu engano; achei um cultor e amigo da litteratura amena; e juntos lemos alguns trechos da obra, que tinha, e ainda não perdeu, pretenções a um poema.
É, como viu o como então lhe esbocei a largos traços, uma heroida que tem por assumpto as tradicções dos indigenas brazileiros e seus costumes. Nunca me lembrara eu de dedicar-me a esse genero de litteratura, de que me abstive sempre, passados que foram os primeiros e fugaces arroubos da juventude. Supporta-se uma prosa mediocre, e estima-se pelo quilate da idéa; mas o verso mediocre é a peor triaga que se possa impingir ao pio leitor.
Commetti a imprudencia quando escrevi algumas cartas sobre a Confederação dos Tamoyos dizer: "as tradições dos indigenas dão materia para um grande poema que talvez um dia alguem apresente sem ruido nem apparato, como modesto fructo de suas vigilias."
Tanto bastou para que suppozessem que o escriptor se referia a si, e tinha já o poema em mão; varias pessoas perguntaram-me por elle. Metteu-me isto em brios litterarios; sem calcular das forças minimas para empresa tão grande, que assoberbou dois illustres poetas, tracei o plano da obra, e comecei-a com tal vigor que a levei quasi de um folego ao quarto canto.
Esse folego susteve-se cêrca de cinco mezes, mas amorteceu; e vou-lhe confessar o motivo.
Desde cedo, quando começaram os primeiros pruridos litterarios, uma especie de instincto me impellia a imaginação para a raça selvagem indigena. Digo instincto, porque não tinha eu então estudos bastantes para apreciar devidamente a nacionalidade de uma litteratura; era simples prazer que me deleitava na leitura das chronicas e memorias antigas.
Mais tarde, discernindo melhor as cousas, lia as producções que se publicavam sobre o thema indigena; não realisavam ellas a poesia nacional, tal como me apparecia no estudo da vida selvagem dos autoctonos brazileiros. Muitas pecavam pelo abuso dos termos indigenas accumulados uns sobre outros, o que não só quebrava a harmonia da lingua portugueza, como perturbava a intelligencia do texto. Outras eram primorosas no estylo e ricas de bellas imagens; porém certa rudez ingenua de pensamento e expressão, que devia ser a linguagem dos indigenas, não se encontrava ali.
Gonçalves Dias é o poeta nacional por excellencia ninguem lhe disputa na opulencia da imaginação, no fino lavor do verso, no conhecimento da natureza brazileira e dos costumes selvagens. Em suas poesias americanas aproveitou muitas das mais lindas tradicções dos indigenas; e em seu poema não concluido dos Timbiras, propoz-se a descrever a epopea brazileira.
Entretanto, os selvagens de seu poema falam uma linguagem classica, o que lhe foi censurado por outro poeta de grande estro, o dr. Bernardo Guimarães; elles exprimem idéas proprias do homem civilisado, e que não é verosimil tivessem no estado da natureza.
Sem duvida que o poeta brazileiro tem de traduzir em sua lingua as idéas, embora rudes e grosseiras, dos indios; mas n'essa traducção está a grande difficuldade; é preciso que a lingua civilisada se molde quanto possa á singeleza primitiva da lingua barbara; e não represente as imagens e pensamentos indigenas senão por termos e phrases que ao leitor pareçam naturaes na bôcca do selvagem.
O conhecimento da lingua indigena é o melhor criterio para a nacionalidade da litteratura. Elle nos dá não só o verdadeiro estylo, como as imagens poeticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendencias de seu espirito, e até as menores particularidades de sua vida. É n'essa fonte que deve beber o poeta brazileiro; é d'ella que ha de sahir o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.
Commettendo portanto o grande arrojo, aproveitei o ensejo de realisar as idéas que me vagueavam no espirito, e não eram ainda plano fixo; a reflexão consolidou-as e robusteceu.
Na parte escripta da obra foram ellas vasadas em grande copia. Se a investigação laboriosa das bellezas nativas feita sobre imperfeitos e espurios diccionarios exhauria o espirito; a satisfação de cultivar essas flores agrestes da poesia brazileira, deleitava. Um dia porém fatigado da constante e aturada meditação ou analyse para descobrir a etymologia d'algum vocabulo, assaltou-me um receio.
Todo este improbo trabalho que ás vezes custava uma só palavra, me seria levado á conta? Saberiam que esse escropulo de ouro fino, tinha sido desentranhado da profunda camada, onde dorme uma raça extincta? Ou pensariam que fôra achado na superficie e trazido ao vento da facil inspiração?
E sobre esse, logo outro receio.
A imagem ou pensamento com tanta fadiga esmerilhados, seriam apreciados em seu justo valor, pela maioria dos leitores? Não os julgariam inferiores a qualquer das imagens em voga, usadas na litteratura moderna?
Occorre-me um exemplo tirado d'este livro. Guia chamavam os indigenas, senhor do caminho, pyguara. A belleza da expressão selvagem em sua traducção litteral e etymologica, me parece bem saliente. Não diziam sabedor do caminho, embora tivessem termo proprio, coaub, porque essa phrase não exprimiria a energia de seu pensamento. O caminho no estado selvagem não existe; não é cousa de saber. O caminho faz-se na occasião da marcha atravez da floresta ou do campo, e em certa direcção: aquelle que o tem e o dá, é realmente senhor do caminho.
Não é bonito? Não está ahi uma joia da poesia nacional?
Pois talvez haja quem prefira a expressão rei do caminho, embora os brasis não tivessem rei, nem idéa de tal instituição. Outros se inclinarão á palavra guia, como mais simples e natural em portuguez, embora não corresponda ao pensamento do selvagem.
Ora escrever um poema que devia alongar-se para correr o risco de não ser entendido, e quando entendido não apreciado, era para desanimar o mais robusto talento, quanto mais a minha mediocridade. Que fazer? Encher o livro de gryphos que o tornariam mais confuso e de notas que ninguem lê? Publicar a obra parcialmente para que os entendidos proferissem o veredicto litterario? Dar leitura d'ella a um circulo escolhido, que emittisse juizo illustrado?
Todos estes meios tinham seu inconveniente, e todos foram repellidos: o primeiro afeiava o livro; o segundo o truncava em pedaços; o terceiro não lhe aproveitaria pela ceremoniosa benevolencia dos censores. O que pareceu melhor e mais acertado foi desviar o espirito d'essa obra e dar-lhe novos rumos.
Mas não se abandona assim um livro começado, por peor que elle seja; ahi n'essas paginas cheias de rasuras e borrões dorme a larva do pensamento, que pode ser nympha de azas douradas, se a inspiração fecundar o grosseiro casulo. Nas diversas pausas de suas preoccupações o espirito volvia pois ao album, onde estão ainda incubados e estarão cerca de dois mil versos heroicos.
Conforme a benevolencia ou severidade de minha consciencia ás vezes os acho bonitos e dignos de verem a luz; outras me parecem vulgares, monotonos, e somenos a quanta prosa charra tenho eu estendido sobre o papel. Se o amor de pae abranda afinal esse rigor, não desvanece porem nunca o receio de "perder inutilmente meu tempo a fazer versos para cabocolos."
Em um d'esses volveres do espirito á obra começada, lembrou-me da experiencia in anima prosaico. O verso pela sua dignidade e nobreza não comporta certa flexibilidade de expressão, que entretanto não vae mal á prosa mais elevada. A elasticidade da phrase permittiria então que se empregassem com mais careza as imagens indigenas, de modo a não passarem desapercebidas. Por outro lado conhecer-se-hia o effeito que havia de ter o verso pelo effeito que tivesse a prosa.
O assumpto para a experiencia, de antemão estava achado. Quando em 1848 revi a nossa terra natal, tive a idéa de aproveitar suas lendas e tradições em alguma obra litteraria. Já em S. Paulo tinha começado uma biographia do Camarão. A mocidade d'elle, a amisade heroica que o ligava a Soares Moreno, a bravura e lealdade de Jacaúna, alliado dos portuguezes, e suas guerras contra o celebre Mel Redondo; ahi estava o thema. Faltava-lhe o perfume que derrama sobre as paixões do homem a belleza da mulher.
Sabe você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar o livro; precisava dizer todas estas cousas, contar o como e porque escrevi Iracema. E com quem melhor conversaria sobre isso do que com uma testemunha de meu trabalho, a unica, das poucas, que respira agora as auras cearenses?
Este livro é pois um ensaio ou antes amostra. Verá realisadas n'elles as minhas idéas a respeito da litteratura nacional; e achará ahi poesia inteiramente brazileira, haurida na lingua dos selvagens. A etymologia dos nomes das diversas localidades, e certos modos de dizer tirados da composição das palavras, são de cunho original.
Comprehende você que não podia eu derramar em abundancia essa riqueza no livrinho agora publicado, porque ellas ficariam desfloradas na obra de maior vulto, a qual só teria a novidade da fabula. Entretanto ha ahi de sobra para dar materia á critica, e servir de base ao juizo dos entendidos.
Se o publico ledor gostar d'essa forma litteraria, que me parece ter algum attractivo e novidade, então se fará um esforço para levar ao cabo o começado poema, embora o verso pareça na época actual ter perdido a sua influencia e prestigio. Se porém o livro fôr acoimado de serdiço e tedioso, ou se Iracema encontrar a usual indifferença, que vae acolhendo o bom e o mau com a mesma complacencia, quando não é o silencio desdenhoso e ingrato; então o auctor se desenganará de mais esse genero de litteratura, como já se desenganou do theatro; e os versos como as comedias passarão para a gaveta dos papeis velhos, reliquias autobiographicas.
Depois de concluido o livro e quando o reli apurado na estampa, conheci me tinham escapado senões que poderia corrigir se não fosse a pressa com que o fiz editar; noto algum excesso de comparações, certa semelhança entre algumas imagens, e talvez desalinho no estylo dos ultimos capitulos que desmerecem dos primeiros. Tambem me parece devia conservar aos nomes das localidades sua actual versão, embora corrompida. Se a obra tiver segunda edição será escoimada d'estes e de outros defeitos, que lhe descubram os entendidos.
Agosto de 1995.
J. DE ALENCAR.