The Project Gutenberg eBook of O Atheneu (chronica de saudades)

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Title: O Atheneu (chronica de saudades)

Author: Raul Pompéia

Release date: July 17, 2022 [eBook #68541]
Most recently updated: October 18, 2024

Language: Portuguese

Original publication: Brazil: Livraria Francisco Alves

Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana USP Digital.)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O ATHENEU (CHRONICA DE SAUDADES) ***



RAUL POMPEIA



O
ATHENEU



(CHRONICA DE SAUDADES)



2ª Edição definitiva

(Conforme os originaes e os desenhos deixados pelo autor)



FRANCISCO ALVES & Cia   AILLAUD, ALVES & Cia
RIO DE JANEIRO   PARIS
168, RUA DO OUVIDOR, 168     96, BOULEVARD MONTPARNASSE, 96
S. PAULO   (LIVRARIA AILLAUD)
65, RUA DE S. BENTO, 65   LISBOA
BELO HORIZONTE   73, RUA GARRETT, 73
1055, RUA DA BAHIA, 1055   (LIVRARIA BERTRAND)




Propriedade litteraria e artistica dos editores.




INDICE

CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII




O ATHENEU




I

«Vaes encontrar o mundo, disse-me meu pae, á porta do Atheneu. Coragem para a lucta.

Bastante experimentei depois a verdade d'este aviso, que me despia, num gesto, das illusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regimen do amor domestico, differente do que se encontra fóra, tão differente, que parece o poema dos cuidados maternos um artificio sentimental, com a vantagem unica de fazer mais sensivel a creatura á impressão rude do primeiro ensinamento, tempera brusca da vitalidade na influencia de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hypocrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outr'ora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.

Euphemismo, os felizes tempos, euphemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a actualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base phantastica de esperanças, a actualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de purpura ao crepusculo—a paysagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.

Eu tinha onze annos.

Frequentara como externo, durante alguns mezes, uma escola familiar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglezas, sob a direcção do pae, distribuiam educação á infancia como melhor lhes parecia. Entrava ás nove horas, timidamente, ignorando as licções com a maior regularidade, e bocejava até ás duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos que o collegio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contacto da malandragem, de não sei quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Esta recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos mezes de externato; com a lembrança de alguns companheiros—um que gostava de fazer rir á aula, especie interessante de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberancia callosa que tinha; outro, adamado, elegante, sempre retirado, que vinha á escola de branco, engommadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do hombro á cinta por botões de madreperola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injuria crespa, um palavrão cercado de terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam ás mestras por duas iniciaes como em monogramma.

Leccionou-me depois um professor em domicilio.

Apezar d'este ensaio da vida escolar a que me sujeitou a familia, antes da verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações novas da nova phase. O internato! Destacada do conchego placentario da dieta caseira, vinha proximo o momento de se definir a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus ás primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! especie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscopio, que eu fazia formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao equilibrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto,—massa tempestuosa das antipathias geographicas, encontro definitivo e ebullição dos seculares odios de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providencia Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as pendencias pela concordia promiscua das caixas de páu. Força era deixar á ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a somnolencia morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos á sombra dos tinhorões, na transparencia adamantina da agua...

Mas um movimento animou-me, primeiro estimulo sério da vaidade: distanciava-me da communhão da familia, como um homem! ia por minha conta empenhar a lucta dos merecimentos; e a confiança nas proprias forças sobrava. Quando me disseram que estava a escolha feita da casa de educação que me devia receber, a noticia veio achar-me em armas para a conquista audaciosa do desconhecido.

Um dia, meu pae tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de lagrimas os cabellos e eu parti.

Duas vezes fôra visitar o Atheneu antes da minha installação.

Atheneu era o grande collegio da época. Afamado por um systema de nutrida reclame, mantido por um director que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o geitosamente de novidade, como os negociantes que liquidara para recomeçar com artigos de ultima remessa; o Atheneu desde muito tinha consolidado credito na preferencia dos paes, sem levar em conta a sympathia da meninada, a cercar de acclamações o bombo vistoso dos annuncios.

O Dr. Aristarcho Argollo de Ramos, da conhecida familia do visconde de Ramos, do Norte, enchia o imperio com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas provincias, conferencias em diversos pontos da cidade, a pedidos, á sustancia, atochando a imprensa dos logarejos, caixões, sobre tudo, de livros elementares, fabricados ás pressas com o offegante e esbaforido concurso de professores prudentemente anonymos, caixões e mais caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas publicas de toda parte com a sua invasão de capas azues, roseas, amarellas, em que o nome de Aristarcho, inteiro e sonoro, offerecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de alphabeto dos confins da patria. Os logares que os não procuravam eram um bello dia surprehendidos pela enchente, gratuita, espontanea, irresistivel! E não havia senão acceitar a farinha d'aquella marca para o pão do espirito.

E engordavam as letras, á força, d'aquelle pão. Um benemerito. Não admira que em dias de gala, intima ou nacional, festas do collegio ou recepções da corôa, o largo peito do grande educador desaparecesse sob constellações de pedraria, opulentando a nobreza de todos os honorificos berloques.

Nas occasiões de apparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grillos: Atheneu! Atheneu! Aristarcho todo era um annuncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei—o autocrata excelso dos syllabarios; a pausa hieratica do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que elle fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino publico; o olhar fulgurante, sob a crispação aspera dos supercilios de monstro japonez, penetrando de luz as almas circumstantes—era a educação da intelligencia; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciencias limpas—era a educação moral. A propria estatura, na immobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia d'elle: aqui está um grande homem... não vêem os covados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas massiças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os labios, fecho de prata sobre o silencio de ouro, que tão bellamente impunha como o retrahimento fecundo do seu espirito,—teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do illustre director. Em summa, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, d'esta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da propria estatua. Como tardasse a estatua, Aristarcho interinamente satisfazia-se com a affluencia dos estudantes ricos para o seu instituto. De facto, os educandos do Atheneu significavam a fina flôr da mocidade brasileira.

A irradiação da reclame alongava de tal modo os tentaculos através do paiz, que não havia familia de dinheiro, enriquecida pela septentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade domestica mandar d'entre seus jovens, um, dois, tres representantes abeberar-se á fonte espiritual do Atheneu.

Fiados nesta selecção apuradora, que é commum o erro sensato de julgar melhores familias as mais ricas, succedia que muitas, indifferentes mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá mandavam os filhos. Assim entrei eu.

A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por uma festa de encerramento de trabalhos.

Transformara-se em amphitheatro uma das grandes salas da frente do edificio, exactamente a que servia de capella; paredes estucadas de sumptuosos relevos, e o tecto aprofundado em largo medalhão, de magistral pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava aos cachos deliciosos anginhos, ostentando atrevimentos roseos de carne, agitando os minusculos pés e as mãozinhas, desatando fitas de gaze no ar. Desarmado o oratorio, construiram-se bancadas circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alumnos occupavam a archibancada. Como a maior concorrencia preferia sempre a exhibição dos exercicios gymnasticos, solemnisada dias depois do encerramento das aulas, a accommodação deixada aos circumstantes era pouco espaçosa; e o publico, paes e correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se esperava, tinha que transbordar da sala da festa para a immediata. Desta ante-sala, trepado a uma cadeira, eu espiava. Meu pae ministrava-me informações. Diante da archibancada, ostentava-se uma mesa de grosso panno verde e borlas de ouro. Lá estava o director, o ministro do imperio, a commissão dos premios. Eu via e ouvia. Houve uma allocução commovente de Aristarcho; houve discursos de alumnos e mestres; houve cantos, poesias declamadas em diversas linguas. O espectaculo communicava-me certo prazer respeitoso. O director, ao lado do ministro, de acanhado physico, fazia-o incivilmente desapparecer na brutalidade de um contraste escandaloso. Em grande tenue dos dias graves, sentava-se, elevado no seu orgulho como em um throno. A bella farda negra dos alumnos, de botões dourados, infundia-me a consideração timida de um militarismo brilhante, apparelhado para as campanhas da sciencia e do bem. A letra dos cantos, em côro dos falsetes indisciplinados da puberdade; os discursos, visados pelo director, pansudos de sisudez, na bocca irreverente da primeira idade, como um Cendrillon mal feito da burguezia conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos rodantes de manivella, ou exaggerados, de voz cava e caretas de tragedia fora de tempo, eu recebia tudo convictamente, como o texto da biblia do dever; e as banalidades profundamente lançadas como as sabias maximas do ensino redemptor. Parecia-me estar vendo a legião dos amigos do estudo, mestres á frente, na investida heroica do obscurantismo, agarrando pelos cabellos, derribando, calcando aos pés a Ignorancia e o Vicio, miserrimos trambolhos, consternados e esperneantes.

Um discurso principalmente impressionou-me. Á direita da commissão dos premios, ficava a tribuna dos oradores. Galgou-a firme, tezinho, o Venancio, professor do collegio, a quarenta mil réis por materia, mas importante, sabendo falar grosso, o timbre de independencia, mestiço de bronze, pequenino e tenaz, que havia de varar carreira mais tarde. O discurso foi o confronto chapa dos torneios medievaes com o moderno certamen das armas da intelligencia; depois, uma prelecção pedagogica, tacheada de flôres de rhetorica a martello; e a apologia da vida de collegio, seguindo-se a exaltação do Mestre em geral e a exaltação, em particular, de Aristarcho e do Atheneu. «O mestre perorou Venancio, é o prolongamento do amor paterno, é o complemento da ternura das mães, o guia-zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa que vae ás conquistas do saber e da moralidade. Experimentado no labutar quotidiano da sagrada profissão, o seu auxilio ampara-nos como a Providencia na terra; escolta-nos assiduo como um anjo de guarda; a sua licção prudente esclarece-nos a jornada inteira do futuro. Devemos ao pae a existencia do corpo; o mestre cria-nos o espirito (sorites de sensação), e o espirito é a força que impelle, o impulso que triumpha, o triumpho que nobilita, o ennobrecimento que glorifica, e a gloria é o ideal da vida, o louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma do crente! A familia é o amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com o amor forte que ensina e corrige, prepara-nos para a segurança intima inapreciavel da vontade. Acima de Aristarcho—Deus! Deus tão sómente; abaixo de Deus—Aristarcho.»

Um ultimo gesto espaçoso, como um jamegão no vacuo, arrematou o rapto de eloquencia.

Eu me sentia compenetrado d'aquillo tudo; não tanto por entender bem, como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As paredes pintadas da ante-sala imitavam porphyro verde; em frente ao portico aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior. Flanqueando a majestosa porta d'esta escada, havia dous quadros de alto relevo: á direita, uma allegoria das artes e do estudo; á esquerda, as industrias humanas, meninos nús como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta symbolica—psychologia, pura do trabalho, modelada idealmente na candura do gesso e da innocencia. Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um d'elles, convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que não seria o collegio, traducção concreta da allegoria, ronda angelica de corações á porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da virtude!

Por occasião da festa da gymnastica, voltei ao collegio.

O Atheneu estava situado no Rio Comprido, extremo, ao chegar aos morros.

As eminencias de sombria pedra e a vegetação selvatica debruçavam sobre o edificio um crepusculo de melancolia, resistente ao proprio sol a pino dos meios-dias de Novembro. Esta melancolia era um plagio ao detestavel pavor monacal de outra casa de educação, o negro Caraça de Minas. Aristarcho dava-se palmas d'esta tristeza aerea—a atmosphera moral da meditação e do estudo, definia, escolhida a dedo para maior luxo da casa, como um appendice minimo da architectura.

No dia da festa da educação physica, como rezava o programma (programma de arromba, porque o secretario do director tinha o talento dos programmas) não percebi a sensação de ermo tão accentuada em sitios montanhosos, que havia de notar depois. As galas do momento faziam sorrir a paysagem. O arvoredo do immenso jardim, entretecido a côres por mil bandeiras, brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha alegria; os vistosos pannos, em meio da ramagem, fingiam flôres collossaes, numa caricatura extravagante de primavera; os galhos fructificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma uberdade carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu pae prendia-me solidamente o pulso, que me não extraviasse.

Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para respirar. Adiante de mim, um sujeito mais proximo fez-me rir; levava de fóra a fralda da camisa... Mas não era fralda; verifiquei que era o lenço. Do chão subia um cheiro forte de canella pisada; através das arvores, com intervallos, passavam rajadas de musica, como uma tempestade de philarmonicas.

Um ultimo aperto mais rijo, estalando-me as costellas, espremeu-me, por um estreito córte de muro, para o espaço livre.

Em frente, um gramal vastissimo. Rodeava-o uma ala de galhardetes, contentes no espaço, com o pittoresco dos tons energicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os lados apinhava-se o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com cadeiras quasi exclusivamente occupadas por senhoras, fulgindo os vestuarios, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a mão enluvada, com o leque, á altura da fronte, contra a rutilação do dia, num bloco de nuvens que crescia do céu. Acima do estrado, balouçavam docemente e sussurravam bosquetes de bambú, projectando franjas longuissimas de sombra pelo campo de relva.

Algumas damas empunhavam binoculos. Na direcção dos binoculos distinguia-se um movimento alvejante. Eram os rapazes. «Ahi vêm! disse-me meu pae; vão desfilar por diante da princeza.» A princeza imperial, Regente nessa época, achava-se á direita em gracioso palanque de sarrafos.

Momentos depois adiantavam-se por mim os alumnos do Atheneu. Cerca de trezentos; produziam-me a impressão do innumeravel. Todos de branco, apertados em larga cinta vermelha, com alças de ferro sobre os quadris e na cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço de pontas livres. Ao hombro esquerdo traziam laços distinctivos das turmas. Passaram a toque de clarim, sopesando os petrechos diversos dos exercicios. Primeira turma, os halteres; segunda, as massas; terceira, as barras.

Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam simplesmente nos exercicios geraes.

Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispozeram-se em pelotões, invadiram o gramal, e, cadenciados pelo rhythmo da banda de collegas, que os esperava no meio do campo, com a certeza de amestrada disciplina, produziram as manobras perfeitas de um exercito sob o commando do mais raro instructor.

Diante das fileiras, Bataillard, o professor de gymnastica, exultava, envergando a altivez do seu successo na extremada elegancia do talhe, multiplicando por milagroso desdobramento o compendio inteiro da capacidade profissional, exhibida em galeria por uma serie infinita de attitudes. A admiração hesitava a decidir-se pela formosura masculina e rija da plastica de musculos a estalar o brim do uniforme, que elle trajava branco como os alumnos, ou pela nervosa celeridade dos movimentos, effeito electrico de lanterna magica, respeitando-se na variedade prodigiosa a unidade da correcção suprema.

Ao peito tilintavam-lhe as agulhetas do commando appensas de cordões vermelhos em trança. Elle dava as ordens fortemente, com uma vibração penetrante de corneta que dominava á distancia, e sorria á docilidade mecanica dos rapazes. Como officiaes subalternos, auxiliavam-no os chefes de turma, postados devidamente com os pelotões, sacudindo á manga distinctivos de fita verde e canutilho.

Acabadas as evoluções, apresentaram-se os exercicios. Musculos do braço, musculos do tronco, tendões dos jarretes, a theoria toda do corpore sano foi praticada valentemente alli, precisamente, com a simultaneidade exacta das extensas machinas. Houve após, o assalto aos apparelhos. Os apparelhos alinhavam-se a uma banda do campo, a começar do palanque da Regente. Não posso dar idéa do deslumbramento que me ficou d'esta parte. Uma desordem de contorsões, deslocadas e atrevidas; uma vertigem de volteios á barra fixa, temeridades acrobaticas ao trapezio, ás perchas, ás cordas, ás escadas; pyramides humanas sobre as parallelas, deformando-se para os lados em curvas de braços e ostentações vigorosas de thorax; fórmas de estatuaria viva, tremulas de esforço, deixando adivinhar de longe o estalido dos ossos desarticulados; posturas de transfiguração sobre invisivel apoio; aqui e alli uma cabecinha loura, cabellos em desordem cacheados á testa, um rosto injectado pela inversão do corpo, labios entre-abertos offegando, olhos semi-cerrados para escapar á areia dos sapatos, costas de suor, collando a blusa em pasta, gorros sem dono que caíam do alto e juncavam a terra; movimento, enthusiasmo por toda a parte e a soalheira, branca nos uniformes, queimando os ultimos fogos da gloria diurna sobre aquelle triumpho espectaculoso da saude, da força, da mocidade.

O professor Bataillard, enrubecido de agitação, rouco de commandar, chorava de prazer. Abraçava os rapazes indistinctamente. Duas bandas militares, revezavam-se activamente, communicando a animação á massa dos espectadores. O coração pulava-me no peito com um alvoroço novo, que me arrastava para o meio dos alumnos, numa leva ardente de fraternidade. Eu batia palmas; gritos escapavam-me, de que me arrependia quando alguem me olhava.

Deram fim á festa os saltos, os pareos de carreira, as luctas romanas e a distribuição dos premios de gymnastica, que a mão egregia da Serenissima Princeza e a pouco menos do Esposo Augusto alfinetavam sobre os peitos vencedores. Foi de vêr-se os jovens athletas aos pares aferrados, empuxando-se, constringindo-se, rodopiando, rolando na relva com gritos satisfeitos e arquejos de arrancada; os corredores, alguns em rigor, respiração medida, beiços unidos, punhos cerrados contra o corpo, passo miudo e vertiginoso; outros, irregulares, bracejantes, prodigalisando pernadas, rasgando o ar a pontapés, numa precipitação desengonçada de avestruz, chegando esbofados, com placas de poeira na cara, ao poste da victoria.

Aristarcho arrebentava de jubilo. Pozera de parte o comedimento soberano que eu lhe admirara na primeira festa. De ponto em branco, como a rapaziada, e chapéo de Chile, distribuia-se numa ubiquidade impossivel de meio ambiente. Viam-no ao mesmo tempo a festejar os principes com o rizinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e ironico, desfeito em etiquetas de reverente subdito e cortezão; viam-no bradando ao professor de gymnastica, a gesticular com o chapéo seguro pela copa; viam-no formidavel, com o perfil leonino rugir sobre um discipulo que fugira aos trabalhos, sobre outro que tinha limo nos joelhos, de haver luctado em logar humido, gastando tal vehemencia no ralho, que chegava a ser carinhoso.

O figurino campestre rejuvenescera-o. Sentia as pernas leves e percorria celeripede a frente dos estrados, cheio de comprimentos para os convidados especiaes e de interjectivos amaveis para todos. Perpassava como uma visão de brim claro, subito extincta para reapparecer mais viva noutro ponto. Aquella expansão vencia-nos; elle irradiava de si, sobre os alumnos, sobre os espectadores, o magnetismo dominador dos estandartes de batalha. Roubava-nos dous terços da attenção que os exercicios pediam; indemnisava-nos com o equivalente em surprezas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por ascensões cobrejantes de gyrandola, que iam ás nuvens, que baixavam depois serenamente, diluidas na viração da tarde, que os pulmões bebiam. Actor profundo, realisava ao pé da letra, a valer, o papel diaphano, subtil, metaphysico, de alma da festa e alma do seu instituto.

Uma cousa o entristeceu, um pequenino escandalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos premios, recusara-se a beijar a mão da princeza, como faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho! Tinha já aos quinze annos as convicções ossificadas na espinha inflexivel do caracter! Ninguem mostrou perceber a bravura. Aristarcho, porém, chamou o menino á parte. Encarou-o silenciosamente e—nada mais. E ninguem mais viu o republicano! Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo d'aquelle olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hymno da monarchia jurada, ultima verba do programma.

Começava a anoitecer, quando o collegio formou ao toque de recolher. Desfilaram acclamados, entre alas de povo, e se foram do campo, cantando alegremente uma canção escolar.

Á noite houve baile nos tres salões inferiores do lance principal do edificio e illuminação no jardim.

Na occasião em que me ia embora, estavam accendendo luzes variadas de Bengala diante da casa. O Atheneu, quarenta janellas, resplendentes do gaz interior, dava-se ares de encantamento com a illuminação de fóra. Erigia-se na escuridão da noite, como immensa muralha de coral flammante, como um scenario animado de saphira com horripilações errantes de sombra, como um castello phantasma batido de luar verde emprestado á selva intensa dos romances cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações. Um jacto de luz electrica, derivado de fóco invisivel, feria a inscripção dourada em arco sobre as janellas centraes, no alto do predio. A uma d'ellas, á sacada, Aristarcho mostrava-se. Na expressão olympica do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, da immortalidade a que se julgava consagrado. Devia ser assim:—luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente glorioso do Pantheon. A contemplação da posteridade em baixo.

Aristarcho tinha momentos d'estes, sinceros. O annuncio confundia-se com elle, supprimia-o, substituia-o, e elle gozava como um cartaz que experimentasse o enthusiasmo de ser vermelho. Naquelle momento, não era simplesmente a alma do seu instituto, era a propria feição palpavel, a synthese grosseira do titulo, o rosto, a testada, o prestigio material de seu collegio, identico com as letras que luziam em aureola sobre a cabeça. As letras, de ouro; elle, immortal: unica differença.

Guardei, na imaginação infantil, a gravura d'esta apotheose com o atordoamento offuscado, mais ou menos de um sujeito partindo á meia-noite de qualquer theatro, onde, em magica beata, Deus Padre pessoalmente se houvesse prestado a concorrer para a grandeza do ultimo quadro. Conheci-o solemne na primeira festa, jovial na segunda; conheci-o mais tarde em mil situações, de mil modos; mas o retrato que me ficou para sempre do meu grande director, foi aquelle—o bello bigode branco, o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, photographia estatica, na ventura de um raio electrico.

É facil conceber a attracção que me chamava para aquelle mundo tão altamente interessante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o prazer que tive, quando me disse meu pae que eu ia ser apresentado ao director do Atheneu e á matricula. O movimento não era mais a vaidade, antes o legitimo instincto da responsabilidade altiva; era uma consequencia apaixonada da seducção do espectaculo, o arroubo de solidariedade que me parecia prender á communhão fraternal da escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empreza ideal de energia e de dedicação premeditada confusamente, no calculo pobre de uma experiencia de dez annos.

O director recebeu-nos em sua residencia, com manifestações ultra de affecto. Fez-se captivante, paternal; abriu-nos amostras dos melhores padrões do seu espirito, evidenciou as facturas do seu coração. O genero era bom, sem duvida nenhuma; que apezar do paletot de seda e do calçado raso com que se nos apresentava, apezar da bondosa familiaridade com que declinava até nós, nem um segundo o destitui da altitude de divinisação em que o meu criterio embasbacado o acceitara.

Verdade é que não era facil reconhecer alli, tangivel e em carne, uma entidade outr'ora da mythologia das minhas primeiras concepções anthropomorphicas; logo após Nosso Senhor, o qual eu imaginara velho, feiissimo, barbudo, impertinente, corcunda, ralhando por trovões, carbonisando meninos com o corisco. Eu aprendera a ler pelos livros elementares de Aristarcho, e o suppunha velho como o primeiro, porém rapado, de cara chupada, pedagogica, oculos apocalypticos, carapuça negra de borla, fanhoso, omnipotente e máu, com uma das mãos para traz escondendo a palmatoria e doutrinando á humanidade o b-a-bá.

As impressões recentes derogavam o meu Aristarcho; mas a hyperbole essencial do primitivo transmittia-se ao successor por um mysterio de hereditariedade renitente. Dava-me gosto então a peleja renhida das duas imagens e aquella complicação immediata do paletot de seda e do sapato raso, fazendo alliança com Aristarcho II contra Aristarcho I. no reino da phantasia. Nisto afagaram-me a cabeça. Era Elle! Estremeci.

«Como se chama o amiguinho?» perguntou-me o director.

—Sergio... dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o «seu criado» da estricta cortezia.

—Pois, meu caro Sr. Sergio, o amigo ha de ter a bondade de ir ao cabelleireiro deitar fóra estes cachinhos...

Eu tinha ainda os cabellos compridos, por um capricho amoroso de rainha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O director, explicando a meu pae, accrescentou com o rizinho nasal que sabia fazer: «Sim, senhor, os meninos bonitos não provam bem no meu collegio...»

—Peço licença para defender os meninos bonitos... objectou alguem entrando.

Surprehendendo-nos com esta phrase, unctuosamente escoada por um sorriso, chegou a senhora do director, D. Emma. Bella mulher em plena prosperidade dos trinta annos de Balzac, fórmas alongadas por graciosa magreza, erigindo, porém, o tronco sobre quadris amplos, fortes como a maternidade; olhos negros, pupillas retintas, de uma côr só, que pareciam encher o talho folgado das palpebras; de um moreno rosa que algumas formosuras possuem, e que seria tambem a côr do jambo, se jambo fosse rigorosamente o fructo prohibido. Adiantava-se por movimentos oscillados, cadencia de menuetto harmonioso e molle que o corpo alternava. Vestia setim preto justo sobre as fórmas, reluzente como panno molhado; e o setim vivia com ousada transparencia a vida occulta da carne. Esta apparição maravilhou-me.

Houve as apresentações de ceremonia, e a senhora com um nadinha de excessivo desembaraço sentou-se no divan perto de mim.

—Quantos annos tem? perguntou-me.

—Onze annos...

—Parece ter seis, com estes lindos cabellos.

Eu não era realmente desenvolvido. A senhora colhia-me o cabello nos dedos:

—Córte e offereça a mamãe, aconselhou com uma caricia; é a infancia que ahi fica, nos cabellos louros... Depois, os filhos nada mais têm para as mães...

O poemeto de amor materno deliciou-me como uma divina musica. Olhei furtivamente para a senhora. Ella conservava sobre mim as grandes pupillas negras, lucidas, numa expressão de infinda bondade! Que boa mãe para os meninos, pensava eu. Depois, voltada para meu pae, formulou sentidamente observações a respeito da solidão das crianças no internato.

—Mas o Sergio é dos fortes, disse Aristarcho, apoderando-se da palavra. Demais, o meu collegio é apenas maior que o lar domestico. O amor não é precisamente o mesmo, mas os cuidados de vigilancia são mais activos. São as crianças os meus predilectos. Os meus esforços mais desvelados são para os pequenos. Se adoecem e a familia está fóra, não os confio a um correspondente... Trato-os aqui, em minha casa. Minha senhora é a enfermeira. Queria que o vissem os detractores...

Enveredando pelo thema querido do elogio proprio e do Atheneu, ninguem mais pôde falar...

Aristarcho, sentado, de pé, cruzando terriveis passadas, immobilisando-se a repentes inesperados, gesticulando como um tribuno de meetings, clamando como para um auditorio de dez mil pessoas, majestoso sempre, alçando os padrões admiraveis, como um leiloeiro, e as opulentas facturas, desenrolou, com a memoria de uma ultima conferencia, a narrativa dos seus serviços á causa santa da instrucção. Trinta annos de tentativas e resultados, esclarecendo como um pharol diversas gerações agora influentes no destino do paiz! E as reformas futuras? Não bastava a abolição dos castigos corporaes, o que já dava uma benemerencia passavel. Era preciso a introducção do methodos novos, suppressão absoluta dos vexames de punição, modalidades aperfeiçoadas no systema das recompensas, ageitação dos trabalhos, de maneira que seja a escola um paraiso; adopção de normas desconhecidas cuja efficacia elle presentia, perspicaz como as aguias. Elle havia de crear... um horror, a transformação moral da sociedade!

Uma hora trovejou-lhe á bocca, em sanguinea eloquencia, o genio do annuncio. Mirámol-o na inteira expansão oral, como, por occasião das festas, na plenitude da sua vivacidade pratica. Contemplavamos (eu com aterrado espanto) distendido em grandeza épica—o homem sandwich da educação nacional, lardeado entre dous monstruosos cartazes. Ás costas, o seu passado incalculavel de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro: a reclame dos immortaes projectos.




II

Abriam-se as aulas a 15 de Fevereiro.

De manhã, á hora regulamentar, compareci.

O director, no escriptorio do estabelecimento, occupava uma cadeira rotativa junto á mesa de trabalho. Sobre a mesa, um grande livro abria-se em columnas massiças de escripturação e linhas encarnadas.

Aristarcho, que consagrava as manhãs ao governo financeiro do collegio, conferia, analysava os assentamentos do guarda-livros. De momento a momento entravam alumnos. Alguns acompanhados.

A cada entrada, o director lentamente fechava o livro, marcando a pagina com um alfange de marfim; fazia gyrar a cadeira e soltava interjeições de acolhimento, offerecendo episcopalmente a mão pelluda ao beijo contricto e filial dos meninos. Os maiores, em regra, recusavam-se á cerimonia e partiam com um simples aperto de mão.

O rapaz desapparecia, levando o sorriso pallido na face, saudoso da vadiação ditosa das férias. O pae, o correspondente, o portador, despedia-se, depois de banaes comprimentos, ou palavras a respeito do estudante, amenisadas pela gracinha da bonhomia superior de Aristarcho, que punha habilmente um sujeito fóra de portas com o riso fanhoso e o simples modo impellido de segurar-lhe os dedos.

A cadeira gyrava de novo á posição primitiva; o livro da escripturação espalmava outra vez as paginas enormes; e a figura paternal do educador desmanchava-se, volvendo a simplificar-se na esperteza attenta e secca do gerente.

A este vae-vem de attitudes, feição dupla de uma mesma individualidade e contingencia commum dos sacerdocios, estava tão habituado o nosso director, que nenhum esforço lhe custava a manobra. O especulador e o levita ficavam-lhe dentro em camaradagem intima, bras dessus, bras dessous. Sabiam, sem prejuizo da opportunidade, apparecer por alternativa ou simultaneamente; eram como duas almas inconhas num só corpo.

Soldavam-se nelle o educador e o emprezario com uma perfeição rigorosa de accôrdo, dois lados da mesma medalha: oppostos, mas justapostos.

Quando meu pae entrou commigo, havia no semblante de Aristarcho uma pontinha de aborrecimento. Decepção talvez de estatistica; o numero dos estudantes novos não compensando o numero dos perdidos, as novas entradas não contrabalançando as despezas do fim do anno. Mas a sombra de despeito apagou-se logo, como o resto de tunica que apenas tarda a sumir-se numa mutação á vista; e foi com uma explosão de contentamento que o director nos acolheu.

Sua diplomacia dividia-se por escaninhos numerados, segundo a categoria de recepção que queria dispensar. Elle tinha maneiras de todos os gráos, segundo a condição social da pessoa. As sympathias verdadeiras eram raras. No amago de cada sorriso morava-lhe um segredo de frieza que se percebia bem. E duramente se marcavam distincções politicas, distincções financeiras, distincções baseadas na chronica escolar do discipulo, baseadas na razão discreta das notas do guarda-livros. Ás vezes, uma criança sentia a alfinetada no geito da mão a beijar. Saía indagando comsigo o motivo d'aquillo, que não achava em suas contas escolares... O pae estava dois trimestres atrazado.

Por diversas causas a minha recepção devia ser das melhores. Effectivamente; Aristarcho levantou-se ao nosso encontro e nos conduziu á sala especial das visitas.

Saiu depois a mostrar o estabelecimento, as collecções, em armarios, dos objectos proprios para facilitar o ensino. Eu via tudo curiosamente, sem perder os olhares dos collegas desconhecidos, que me fitavam muito ancho na dignidade do uniforme em folha. O edificio fôra caiado e pintado durante as férias, como os navios que aproveitam o descanço nos portos para uma refórma de apresentação. Das paredes pendiam as cartas geographicas, que eu me comprazia de vêr como um itinerario de grandes viagens planejadas. Havia estampas coloridas em molduras negras, assumptos de historia santa e desenho grosseiro, ou exemplares zoologicos e botanicos, que me revelavam direcções de applicação estudiosa em que eu contava triumphar. Outros quadros vidraçados exhibiam sonoramente regras moraes e conselhos muito meus conhecidos de amor á verdade, aos paes, e temor de Deus, que estranhei como um codigo de redundancia. Entre os quadros, muitos relativos ao Mestre—os mais numerosos; e se esforçavam todos por arvorar o mestre em entidade incorporea, argamassada de pura essencia de amor e suspiros cortantes de sacrificio, ensinando-me a didascalolatria que eu, de mim para mim, devotamente, jurava desempenhar á risca. Visitámos o refeitorio, adornado de trabalhos a lapis dos alumnos, a cozinha de azulejo, o grande pateo interno dos recreios, os dormitorios, a capella... De volta á sala de recepção, adjacente á da entrada lateral e fronteira ao escriptorio, fui apresentado ao professor Manlio, da aula superior de primeiras letras, um homem aprumado, de barba toda, grisalha e cerrada, pessoa excellente, desconfiando por systema de todos os meninos.

Durante o tempo da visita, não falou Aristarcho senão das suas luctas, suores que lhe custava a mocidade e que não eram justamente apreciados. «Um trabalho insano! Moderar, animar, corrigir esta massa de caracteres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e encaminhar a natureza na época dos violentos impetos; amordaçar excessivos ardores; retemperar o animo dos que se dão por vencidos precocemente; espreitar, adivinhar os temperamentos; prevenir a corrupção; desilludir as apparencias seductoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação dos innocentes; espiar os sitios obscuros; fiscalisar os amizades; desconfiar das hypocrisias; ser amoroso, ser violento, ser firme; triumphar dos sentimentos de compaixão para ser correcto; proceder com segurança, para depois duvidar; punir para pedir perdão depois... Um labor ingrato, titanico, que extenua a alma, que nos deixa acabrunhados ao anoitecer de hoje, para recomeçar com o dia de amanhã... Ah! meus amigos, concluiu offegante, não é o espirito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preoccupação... É o caracter! Não é a preguiça o inimigo, é a immoralidade!» Aristarcho tinha para esta palavra uma intonação especial, comprimida e terrivel, que nunca mais esquece quem a ouviu dos seus labios. «A immoralidade!»

E recuava tragicamente, crispando as mãos. «Ah! mas eu sou tremendo quando esta desgraça nos encandalisa. Não! Estejam tranquillos os paes! No Atheneu, a immoralidade não existe! Velo pela candura das crianças, como se fossem, não digo meus filhos: minhas proprias filhas! O Atheneu é um collegio moralisado! E eu aviso muito a tempo... Eu tenho um codigo... » Neste ponto o director levantou-se de salto e mostrou um grande quadro á parede. «Aqui está o nosso codigo. Leiam! Todas as culpas são prevenidas, uma pena para cada hypothese: o caso da immoralidade não está lá. O parricidio não figurava na lei grega. Aqui não está a immoralidade. Se a desgraça occorre, a justiça é o meu terror e a lei é o meu arbitrio! Briguem depois os senhores paes!... »

Affianço-lhes que o meu tremeu por mim. Eu, encolhido, fazia em superlativo a metaphora sabida das varas verdes. Notando a minha perturbação, o director desvaneceu-se em afagos. «Mas para os rapazes dignos eu sou um pae!... os máus eu conheço: não são as crianças, principalmente como você, o prazer da familia, e que ha de ser, estou certo, uma das glorias do Atheneu. Deixem estar... » Eu tomei a sério a prophecia e fiquei mais calmo.

Quando meu pae saiu, vieram-me lagrimas, que eu tolhi a tempo de ser forte. Subi ao salão azul, dormitorio dos medios, onde estava a minha cama; mudei de roupa, levei a farda ao numero do deposito geral, meu numero. Não tive coragem de affrontar o recreio. Via de longe os collegas, poucos áquella hora, passeando em grupos, conversando amigavelmente, sem animação, impressionados ainda pelas recordações de casa; hesitava em ir ter com elles, embaraçado da estréa das calças lanças, como um exaggero comico, e da sensação de nudez á nuca, que o córte recente dos cabellos desabrigara era escandalo. João Numa, inspector ou bedel, baixote, barrigudo, de oculos escuros, movendo-se com vivacidade de bacoro alegre, veio achar-me indeciso, á escada do pateo. «Não desce, a brincar?» perguntou bondosamente. «Vamos, desça, vá com os outros». O amavel bacoro tomou-me pela mão e descemos juntos.

O inspector deixou-me entre dous rapazinhos, que me trataram com sympathia.

Ás onze horas, a sineta deu o signal das aulas. Os meus bons companheiros, de classes atrazadas, indicaram a sala de ensino superior de primeiras letras, que devia ser a minha, e se despediram.

O professor Manlio, a quem eu fôra recommendado, recommendou-me por sua vez ao mais sério dos seus discipulos, o honrado Rebello. Rebello era o mais velho e tinha oculos escuros como João Numa. O vidro, curvo dos oculos cobria-lhe os olhos rigorosamente, monopolisando a attenção no interesse unico da mesa do professor. Como se fosse pouco, o zeloso estudante fazia concha com as mãos ás temporas, para impedir o contrabando evasivo de algum olhar escapado ao monopolio do vidro.

Este luxo de applicação não provinha do simples empenho de fazer attitude de exemplar. Rebello soffria da vista, tanto que muito tarde podera entregar-se aos estudos. Recebeu-me com um sorriso benevolo de avô; afastou-se um pouco para me dar logar e esqueceu-me incontinente, para afundasse na devoradora attenção que era o seu apanagio.

Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de typos que me divertia. O Gualterio, miudo, redondo de costas, cabellos revoltos, motilidade brusca e caretas de simio—palhaço dos outros, como dizia o professor: o Nascimento, o bicanca, alongado por um modelo geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como uma fouce; o Alvares, moreno, senho carregado, cabelleira espessa e intonsa de vate de taverna, violento e estupido, que Manlio atormentava, designando-o para o mister das plata-fórmas de bond, com a chapa numerada dos recebedores, mais leve de carregar que a responsabilidade dos estudos; o Almeidinha, claro, translucido, rosto de menina, faces de um rosa doentio, que se levantava para ir á pedra com um vagar languido de convalescente; o Maurilio, nervoso, insoffrido, fortissimo em taboada: cinco vezes tres, vezes dous, noves fora, vezes sete?... lá estava Maurilio, tremulo, sacudindo no ar o dedinho esperto... olhos fulgidos no rosto moreno, marcado por uma pinta na testa; o Negrão, de ventas accesas, labios inquietos, physionomia agreste de cabra, canhoto e anguloso, incapaz de ficar sentado tres minutos, sempre á mesa do professor e sempre enxotado, debulhando um rizinho de pouca vergonha, fazendo agrados ao mestre, chamando-lhe bomzinho, aventurando a todo ensejo uma tentativa de abraço que Manlio repellia, precavido de confianças; Baptista Carlos, raça de bugre, valido, de má cara, coçando-se muito, como se o incommodasse a roupa no corpo, alheio ás cousas da aula, como se não tivesse nada com aquillo, espreitando apenas o professor para aproveitar as distracções e ferir a orelha aos vizinhos com uma setta de papel dobrado. Ás vezes a setta do bugre ricochetava até á mesa de Manlio. Sensação; suspendiam-se os trabalhos; rigoroso inquerito. Em vão, que os partistas temiam-no e elle era matreiro e sonso para disfarçar.

Dignos de nota havia ainda o Cruz, timido, enfiado, sempre de orelha em pé, olhar covarde de quem foi creado a pancadas, aferrado aos livros, forte em doutrina christã, facil como um despertador para desfechar as licções de cór, perro como uma cravelha para ceder uma idéa por conta propria; o Sanches, finalmente, grande, um pouco mais moço que o venerando Rebello, primeiro da classe, muito intelligente, vencido apenas por Maurilio na especialidade dos noves fóra vezes tanto, cuidadoso dos exercicios, emulo do Cruz na doutrina, sem competidor na analyse, no desenho linear, na cosmographia.

O resto, uma cambadinha indistincta, adormentados nos ultimos bancos, confundidos na sombra preguiçosa do fundo da sala.

Fui tambem recommendado ao Sanches. Achei-o supinamente antipathico: cara extensa, olhos rasos, mortos, de um pardo transparente, labios humidos, porejando baba, meiguice viscosa de crapula antigo. Era o primeiro da aula. Primeiro que fosse do côro dos anjos, no meu conceito era a derradeira das creaturas.

Entretinha-me a espiar os companheiros, quando o professor pronunciou o meu nome. Fiquei tão pallido que Manlio sorriu e perguntou-me brando, se queria ir á pedra. Precisava examinar-me.

De pé, vexadissimo, senti brumar-se-me a vista, numa fumaça de vertigem. Adivinhei sobre mim o olhar visguento do Sanches, o olhar odioso e timorato do Cruz, os oculos azues do Rebello, o nariz do Nascimento, virando de vagar como um leme; esperei a setta do Carlos, o quinau do Maurilio, ameaçador, fazendo cócegas ao tecto, com o dedo feroz; respirei no ambiente adversa de maldita hora, perfumado pela emanação acre das resinas do arvoredo proximo, uma conspiração contra mim da aula inteira, desde as bajulações de Negrão até á maldade violenta do Alvares. Cambaleei até á pedra, O professor interrogou-me; não sei se respondi. Apossou-se-me do espirito um pavor estranho. Acovardou-me o terror supremo das exhibições, imaginando em roda a ironia má de todos aquelles rostos desconhecidos. Amparei-me á taboa negra, para não cair; fugia-me o sólo aos pés, com a noção do momento; envolveu-me a escuridão dos desmaios, vergonha eterna! liquidando-se a ultima energia... pela melhor das maneiras peiores de liquidar-se uma energia.

Do que se passou depois, não tenho idéa. A perturbação levou-me a consciencia das cousas. Lembro-me que me achei com o Rebello, na rouparia, e o Rebello animava-me com um esforço de bondade sincero e commovedor.

Rebello retirou-se e eu, em camisa, acabrunhado, amargando o meu desastre, emquanto o roupeiro procurava o gavetão 54, fiquei a considerar a differença d'aquella situação para o ideal de cavallaria com que sonhara assombrar o Atheneu.

Como tardava o criado, apanhei aborrecido um folheto que alli estava á mesa dos assentos, entradas de enxoval, registros de lavanderia. Curioso folheto, versos e estampas... Fechei-o convulsamente com o arrependimento de uma curiosidade perversa. Estranho folheto! Abri-o de novo. Ardia-me á face inexplicavel incendio de pudor, constringia-me a garganta exquisito aperto, de nausea. Escravisava-me, porém, a seducção da novidade. Olhei para os lados com um gesto de culpado; não sei que instincto me acordava um sobresalto de remorso. Um simples papel, entretanto, borrado na tiragem rapida dos delictos de imprensa. Arrostei-o. O roupeiro veio interromper-me. «Larga d'ahi! disse com brutalidade, isso não é p'ra menino!» E retirou o livrinho.

Esta impressão viva de surpreza curou-me da lembrança do meu triste episodio, crescendo-me na imaginação como as visões, absorvendo-me as idéas. Zumbia-me aos ouvidos a palavra aterrada de Aristarcho... Sim, devia ser isto: um entravamento obscuro de fórmas despidas, roupas abertas, um turbilhão de frades bebados, deslocados ao capricho de todas as deformidades de um monstruoso desenho, tocando-se, saltando a sarabanda diabolica sem fim, no empastado negrume da tinta do prelo; aqui e alli, o raio branco de uma falha, fulminando o espectaculo e a gravura, como o estigma complementar do acaso.

A rouparia occupava grande parte do sub-chão do immenso edificio, entre o vigamento do soalho e a terra cimentada. Outra parte era destinada aos lavatorios, centenas de bacias, ao longo das paredes e pouco acima num friso de madeira os copos e as escovas de dentes. Terceiro compartimento, além d'estes, accommodava o arsenal dos apparelhos gymnasticos e o dormitorio da criadagem. Da rouparia para o recreio central atravessava-se obliguamente o saguão das bacias. Logo a sair ao pateo encontrei o benevolo Rebello, que me esperava. Insistiu com um requinte importuno de complacencia sobre o meu incidente, desculpando-me, explicando-me, absolvendo-me; tornou-se insupportavel. Para mudar de conversa, pedi informações acerca do nosso professor. Deu-m'as optimas, nem outras daria um alumno exemplar como elle. Nenhum mestre é máu para o bom discipulo, affirmava uma das maximas da parede.

Era hora de descanço; passeavamos, conversando. Falamos dos collegas. Vi então, de dentro da brandura patriarchal do Rebello descascar-se uma especie de inesperado Thersito, produzindo injurias e maldições. «Uma cafila! uma corja! Não imagina, meu caro Sergio. Conte como uma desgraça ter de viver com esta gente ». E esbeiçou um labio sarcastico para os rapazes que passavam. «Ah! vão as carinhas sonsas, generosa mocidade... Uns perversos! Têm mais peccados na consciencia que um confessor no ouvido; uma mentira em cada dente, um vicio em cada pollegada de pelle. Fiem-se nelles. São servis, traidores, brutaes, adulões. Vão juntos. Pensa-se que são amigos... Socios de bandalheira! Fuja d'elles, fuja d'elles. Cheiram a corrupção, empestam de longe. Corja de hypocritas! Immoraes! Cada dia de vida tem-lhes vergonha da vespera. Mas você é criança; não digo tudo o que vale a generosa mocidade. Com elles mesmos ha de aprender o que são... Aquelle é o Malheiro, um grande em gymnastica. Entrou graudo, trazendo para cá os bons costumes de quanto collegio por ahi. O pae é official. Cresceu num quartel no meio da chacota das praças. Forte como um touro, todos o temem, muitos o cercam, os inspectores não podem com elle; o director respeita-o; faz-se a vista larga para os seus abusos... Este que passou por nós, olhando muito, é o Candido, com aquelles modos de mulher, aquelle arzinho de quem saiu da cama, com preguiça nos olhos... Este sujeito... Ha de ser seu conhecido. Mas faço excepções: alli vem o Ribas, está vendo? feio, coitadinho! como tudo, mas uma pérola; É a mansidão em pessoa. Primeira voz do Orpheon, uma vozinha de moça que o director adora. É estudioso e protegido. Faz a vida cantando como os seraphins. Uma perola!»

—Alli está um de joelhos...

—De joelhos... Não ha perguntar; é o Franco. Uma alma penada. Hoje é o primeiro dia, alli está de joelhos o Franco. Assim atravessa as semanas, os mezes, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei. De joelhos como um penitente expiando a culpa de uma raça. O director chama-lhe cão, diz que tem callos na cara. Se não tivesse callos no joelho, não haveria canto do Atheneu que elle não marcasse com o sangue de uma penitencia. O pae é de Matto-Grosso; mandou-o para aqui com uma carta em que o recommendava como incorrigivel, pedindo severidade. O correspondente envia de tempos a tempos um caixeiro que faz os pagamentos e deixa lembranças. Não sáe nunca... Afastemo-nos que ahi vem um grupo de gaiatos.

Um tropel de rapazes atravessou-nos a frente, provocando-me com surriadas.

«Viu aquelle da frente, que gritou calouro? Se eu dissesse o que se conta d'elle... aquelles olhinhos humidos de Senhora das Dôres... Olhe; um conselho: faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se.

«Isto é uma multidão; é preciso força de cotovellos para romper. Não sou criança, nem idiota; vivo só e vejo vivo só e vejo de longe; mas vejo. Não póde imaginar. Os genios fazem aqui dous sexos, como se fosse uma escola mixta. Os rapazes timidos, ingenuos, sem sangue, são brandamente impellidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo. Quando, em segredo dos pais, pensam que o collegio é a melhor das vidas, com o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e affectuoso, estão perdidos... Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admittir protectores.»

Ia por diante Rebello com os extraordinarios avisos, quando senti puxarem-me a blusa. Quasi caí. Voltei-me; vi á distancia uma cara amarella, de gordura balofa, olhos vesgos sem pestanas, virada para mim, esgarçando a bocca em careta de riso cynico. Um sujeito evidentemente mais forte do que eu. Não obstante apanhei com raiva um pedaço de telha e arremessei. O tratante livrou-se, injuriando-me com uma gargalhada, e sumiu-se. «Muito bem», applaudiu Rebello. E á pergunta que fiz, informou: aquelle desagradavel rapaz era o Barbalho, que havia de ser um dia preso como gatuno de joias, nosso companheiro da aula primaria, do numero dos esquecidos nos bancos do fundo.

O professor Manlio teve a bondade de adiar o meu exame, e, para salvar-me das consequencias do escarneo do desastrado incidente da primeira aula, obsequiou-me na seguinte com as melhores palavras de animação. Os rapazes foram generosos. Maurilio acariciou-me a cabeça mimosamente, provando que sabia ser bom o dedinho implacavel dos argumentos. Só o amarello dos olhos vesgos teimava em fazer gaifonas á socapa.

Depois do jantar não tornei a vêr o Rebello. Como frequentava algumas aulas extraordinarias do curso superior, recolhia-se a certas horas para as salas de cima.

A sala do professor Manlio era ao nivel do pateo, em pavilhão independente do edificio principal, com duas outras do curso primario, o alojamento da banda de musica e o salão supplementar de recreio, vantajoso em dias de chuva. Formando angulo recto com esta casa, uma extensa construcção de tijolo e taboas pintadas, sala geral do estudo no pavimento terreo e dormitorio em cima, concorria para fechar metade do quadrilatero do pateo, que o grande edificio completava, estentendo-se em duas alas, como os braços da reclusão severa. No fundo d'esta caixa desmedida de paredes, dilatava-se um areal claro, esteril, insipido como a alegria obrigatoria, algumas arvores de cambucá mostravam, em roda, a folhagem fixa, com o verdor morto das palmas de igreja, alourada a esmo da senilidade precoce dos ramos que soffrem, como se não coubesse a vegetação no internato; a um canto, esgalgado cypreste subia até as gotteiras, tentando fugir pelos telhados.

Sem o Rebello, achei-me ahi como perdido, em meio dos rapazes. Os conhecidos da aula desappareciam no tumulto que as salas todas despejavam.

Nem um só de quem me podesse aproximar. Rente com a parede, para que me não dessem attenção, insinuei-me até o logar d'onde o inspector Sylvino, um grande magro, de avultado nariz e suissas dilaceradas, olhar miudo e vivo como chispas, em orbitas de antro, fiscalisava o recreio, graduando a folgança, á mercê de um temivel canhenho. Sentava-se á entrada do portão do lavatorio. Um pouco além da cadeira do Sylvino, fiquei a salvo. Do seguro retiro avistava, no terreiro, fresco das largas sombras da hora, o movimento dos collegas.

Num ponto e noutro formavam-se pequenos sarilhos, condensando irregularmente a dispersão dos alumnos. Eram os pobres novatos que os veteranos sovavam á cacholeta, fraternalmente.

Perto de mim vi o Franco. Sempre de penitencia; em pé, cara contra a parede. Como Sylvino dava-lhe as costas, divertia-se a pegar moscas para arrancar a cabeça e vêr morrer o bichinho na palma da mão. Perguntei-lhe por que estava de castigo. Sem olhar, de máu modo: «Lá sei! disse elle. Porque me mandaram.» E continuou a pegar as moscas. Franco era um rapazola de quatorze annos, rachitico, de olhos pasmados, face livida, palpebras pisadas. Á fronte, com a expressão vaga dos olhos e obliquidade dolorida dos supercilios, pousava-lhe uma nevoa de afflicção e paciencia, como se vê no Flos sanctorum. A parte inferior do semblante rebellava-se; um canto dos labios franzia-se em contracção constante de odiento desprezo. Franco não ria nunca. Sorria apenas, assistindo a uma briga séria, interessando-se pelo desenlace como um apostador de rinha, enfurecendo-se quando apartavam. Uma quéda alegrava-o, principalmente perigosa. Vivia isolado no circulo da excomunhão com que o diretor, invariavelmente, o fulminava todas as manhãs, lendo no refeitorio perante o collegio as notas da vespera.

Os professores já sabiam. Á nota do Franco, sempre má, devia seguir-se especial commentario deprimente, que a opinião esperava e ouvia com delicia, fartando-se de desprezar. Nenhum de nós como elle! E o zelo do mestre cada dia retemperava o velho anathema. Não convinha expulsar. Uma cousa d'estas aproveita-se como um bibelot do ensino intuitivo, explora-se como a miseria do ilota, para a licção fecunda do asco. A propria indifferença repugnante da victima é util.

Tres annos havia que o infeliz, num supplicio de pequeninas humilhações crueis, agachado, abatido, esmagado, sob o peso das virtudes alheias mais que das proprias culpas, alli estava,—cariatide forçada no edificio de moralisação do Atheneu, exemplar perfeito de depravação offerecido ao horror santo dos puros.

Varias vezes nessa tarde fui assaltado pela chacota impertinente do Barbalho. O endemoninhado caolho puxava-me a roupa, esbarrava-me encontrões e fugia com grandes risadas falsas, ou parava-me de subito em frente, e, revestindo-se de quanta seriedade lhe era susceptivel o açafrão da cara, perguntava: «Mudou as calças? Um inferno. Até que afinal, o meu desespero estourou.

Foi á noite, pouco antes da ceia. Estavamos a um canto mal illuminado do pateo, quasi sós. O biltre reconheceu-me e arreganhou uma inexprimivel interjeição de mofa. Não esperei por mais. Estampei-lhe uma bofetada. Meio segundo depois, rolavamos na poeira engalfinhados como feras. Uma lucta rapida. Avisaram-nos que vinha o Sylvino. Barbalho evadiu-se. Eu verifiquei que tinha o peito da blusa coberto de sangue que me corria do nariz.

Uma hora mais tarde, na cama de ferro do salão azul, compenetrado da tristeza de hospital dos dormitorios, fundos na sombra do gaz mortiço, trincando a colcha branca, eu meditava o retrospecto do meu dia.

Era assim o collegio. Que fazer da matalotagem dos meus planos?

Onde metter a machina dos meus ideaes naquelle mundo de brutalidade, que me intimidava com os obscuros detalhes e as perspectivas informes, escapando á investigação da minha inexperiencia? Qual o meu destino, naquella sociedade que o Rebello descrevera horrorisado, com as meias phrases de mysterio, suscitando temores indefinidos, recommendando energia, como se colleguismo fosse hostilidade? De que modo alinhar a norma generosa e sobranceira de proceder com a obsessão pertinaz do Barbalho? Inutilmente buscara reconhecer no rosto dos rapazes o nobre aspecto da solemnidade dos premios, dando-me idéa da legião dos soldados do trabalho, que fraternisavam no empenho commum, unidos pelo coração e pela vantagem do collectivo esforço. Individualisados na debandada do receio, com as observações ainda mais da critica do Rebello, bem diverso sentimento inspiravam-me, A reacção do contraste induzia-me a um conceito de repugnancia que o habito havia de esmorecer, que me tirava lagrimas áquella noite. Ao mesmo tempo opprimia-me o presentimento da solidão moral, fazendo adivinhar que as preoccupações minimas e as concomitantes surpresas inconfessaveis dariam pouco para as e effusões de allivio, a que corresponde o conselho, a consolação.

Nada de protector, dissera Rebello, Era o ermo. E, na solidão, conspiradas, as adversidades de toda a especie, falsidade traiçoeira dos affectos, perseguição da malevolencia, espionagem da vigilancia; por cima de tudo, céu de trovões sobre os desalentos, a furia tonante de Jupiter-director, o tremendo Aristarcho dos momentos graves.

Lembranças da familia desviaram-me o curso ás reflexões. Não havia mais a mão querida para acalentar-me o primeiro somno, nem a oração, tão longe nesse momento, que me protegia á noite como um docel de amor; o abandono apenas das crianças sem lar que os asylos da miseria recolhem.

A convicção do meu triste infortunio lentamente, suavemente, anniquilou-me num conforto de prostração e eu dormi.

Pela noite a dentro, comparsas de pesadelo, perseguiram-me as imagens varias do atribulado dia; a pegajosa ternura do Sanches, a cara amarella do Barbalho, a expressão de tortura do Franco, os frades descompostos do roupeiro. Sonhei mesmo em regra. Eu era o Franco. A minha aula, o collegio inteiro, mil collegios, arrebatados, num pé de vento, voavam leguas a fóra por uma planicie sem termo. Gritavam todos, urravam a sabbatina de taboadas com um enthusiasmo de turbilhão. O pó crescia em nuvens do sólo; a massa confusa ouriçava-se de gestos, gestos de galho sem folhas em tormenta agoniada de inverno; sobre a floresta dos braços, gesto mais alto, gesto vencedor, a mão magra do Maurilio, crescida, enorme, preta, torcendo, destorcendo os dedos sofregos, convulsionados da hysteria do quinau... E eu caía, unico vencido! E o tropel, de volta, vinha sobre mim, todos sobre mim! sopeavam-me, calcavam-me, pesados, carregando premios, premios aos cestos!

A sineta, tocando a despertar, livrou-me da angustia. Cinco horas da manhã.




III

Se em pequeno, movido por um vislumbre de luminosa prudencia, emquanto applicavam-se os outros á peteca, eu me houvesse entregado ao manso labor de fabricar documentos autobiographicos, para a opportuna confecção de mais uma infancia celebre, certo não registraria, entre os meus episodios de predestinado, o caso banal da natação, de consequencias, entretanto, para mim, e origem de dissabores como jamais encontrei tão amargos.

Natação chamava-se o banheiro, construido num terreno das dependencias do Atheneu, vasta toalha d'agua ao rez de terra, trinta metros sobre cinco, com escoamento para o Rio Comprido, e alimentada por grandes torneiras de chave livre. O fundo, invisivel, de ladrilho, offerecia uma inclinação, baixando gradualmente de um extremo para outro. Accusava-se ainda mais esta differença de profundidade por dois degráus convenientemente dispostos para que tomassem pé as crianças como os rapazes desenvolvidos. Em certo ponto a agua cobria um homem.

Por occasião dos intensos calores de Fevereiro e Março e do fim do anuo, havia ahi dous banhos por dia. E cada banho era uma festa, naquella agua gorda, salobra da transpiração lavada das turmas precedentes, que as dimensões do tanque impediam a devida renovação; turbulento debate de corpos nús, estreitamente cingidos no calção de malha rajado a côres, enleiando-se os rapazes como lampreias, uns immergindo, reapparecendo outros, olhos injectados, cabellos a escorrer pela cara, vergões na pelle de involuntarias unhadas dos companheiros, entre gritos de alegria, gritos de susto, gritos de terror; os menores agrupados no raso, dando-se as mãos em cacho, espavoridos, se algum mais forte chegava.

Dos maiores, alguns havia que faziam medo realmente, singrando a braçadas, levando a hombro a resistencia d'agua; outros se precipitavam cabeça para baixo, volteando os pés no ar como cauda de peixe, prancheando sem vêr a quem. E, borbulhando entre os nadadores, fartas ondas de resaca se emborcavam e iam transbordar pelas immediações do banheiro alagando tudo.

Ao longo do tanque, corria o muro divisorio, além do qual ficava a chacara particular do director. Á distancia, viam-se as janellas de uma parte da casa, onde ás vezes eram recolhidos os estudantes enfermos, fechadas sempre a venezianas verdes.

Trepada ao muro e meio escondida por uma mouta de bambús e ramos de hera, vinha Angela, a canarina, vêr os banhos da tarde. Lançava pedrinhas aos rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e mergulhavam, buscando o seixo. Angela, torcendo os pulsos, reclinando-se para traz, ria perdidamente um grande riso, desabrochado em corolla de flôr através dos dentes alvos.

Ao primeiro banho, amedrontou-me a desordem movimentada.

Procurei o recanto dos menores. Determinava a disciplina a divisão dos banhistas em tres turmas, conforme as classes de idade. Mas, o descuido da fiscalisação permittia que as turmas se confundissem e o inspector de serviço, com a varinha destinada aos retardatarios, vigiava, affastado, de sorte que ficavam expostos os mais fracos aos abusos dos marmanjos que as espadanas d'agua acobertavam. Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no fundo prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um impulso violento caí de costas; a agua abafou-me os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado. Num desespero de asphyxia, pensei morrer. Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso; e bracejava, á tôa, immerso a desfallecer, quando alguem me amparou. Um grande tomou-me ao hombro e me depôz á borda, estendido, vomitando agua. Levei algum tempo para me inteirar do que occorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo. «Ia afogar-se!» disse elle, amparando-me a cabeça emquanto me desempastava os cabellos de cima dos olhos. Meio aturdido ainda, contei-lhe effusivamente o que me haviam feito. «Perversos!» observou-me o collega com pena, e attribuiu a brutalidade a qualquer peste que fugira no atropello dos nadadores, desvelando-se em solicitudes por tranquillisar-me. Tive depois motivo para crêr que o perverso e a peste fôra-o elle proprio, na intenção de fazer valer um bom serviço.

Mas a consequencia immediata do facto foi que forcei a repugnancia que o Sanches me causava e me fiz todo gratidão para com elle e intima amizade. Curiosa e accidentada tinha de ser essa minha aventura de apego e confiança...

No Atheneu formávamos a dous para tudo. Para os exercicios gymnasticos, para a entrada na capella no refeitorio, nas aulas, para a saudação ao anjo da guarda, ao meio-dia, para a distribuição do pão secco depois do canto. Por amor da regularidade do organisação militar, repartiam-se as tres centenas de alumnos em grupos de trinta, sob o directo commando de um decurião ou vigilante. Os vigilantes eram escolhidos por selecção de aristocracia, asseverava Aristarcho. Vigilante era o Malheiro, o heróe do trapezio; vigilante era o Ribas, a melhor vocalisação do Orpheon; vigilante era o Matta, mirrado, corcundinha, de espinha quebrada, appellidado o mascate, mellifluo no trato, nunca punido ninguem sabia por que, reputação de excellente porque ninguem se lembrava de verificar, que, entretanto, Rebello apontava como chefe da policia secreta do director; vigilante o Saulo, que tinha tres distincções na instrucção publica; vigilante Romulo, mestre cook, por alcunha, uma besta, grandalhão, ultimo na gymnastica pela corpulencia bamba, ultimo nas aulas, dispensado do Orpheon pela garganta rachada de requinta velha, mas exercendo no collegio, por excepção de saliencia na largura chata da sua incapacidade, as complexas e delicadas funcções de zabumba da banda. Não sei se este geito particular para o bombo, formula musical do annuncio, não sei se uma celebre herança que Romulo esperava de afortunados parentes, verdade é que entre todos fôra Romulo apurado por Aristarcho para o invejavel privilegio de seu futuro genro.

Diversos outros vigilantes contavam-se como estes, eleitos por um criterio que dava ensejo a que o escolhido por valentia á barra fixa representava no estudo um papel contristador; vice-versa, outro, como Ribas, exemplar nas aulas, magricella e esgotado, mal podia ao trapezio vacillar a acrobacia simplificada do prumo.

Sanches era tambem vigilante.

Estes officiaes inferiores da milicia da casa faziam-se tyrannetes por delegação da suprema dictadura. Armados de sabres de páu com guardas de couro, tomavam a sério a investidura do mando e eram em geral de uma ferocidade adoravel. Os sabres puniam summariamente as infracções da disciplina na fórma: duas palavras ao serra-fila, perna frouxa, desvio notavel do alinhamento. Regimen siberiano, como se vê, do que resultava que os vigilantes eram altamente conceituados.

No caso particular da nossa fortuita aproximação, não podia deixar de influir consideravelmente, a bella importancia collegial do vigilante Sanches. Mas outras circumstancias concertaram-se para determinar a nova feição das minhas disposições conforme se accentuou depois do incidente do banho.

Já me era licito julgar iniciada na convivencia intima da escola. Chamado por Manlio a provas, consegui agradar, conquistando uma aura que me devia por algum tempo favorecer. Encontrei o Barbalho. Tinha a face marcada pelas minhas unhas; evitou-me. No recreio commetti a injustiça de ir deixando o Rebello. Tambem o amavel camarada tinha na bocca um máu cheiro que lhe prejudicava a pureza dos conselhos; demais, falava prendendo a gente com dedos de torquez e soltando os aphorismos a queima-roupa. Por seu lado, o venerado collega correspondeu ao movimento massando-se commigo e amuando. Durante as aulas, em que nos sentavamos perto um do outro, absorvia-se em sua desesperada attenção e era como se estivesse a muitas milhas. Se, todavia, por imprescindivel necessidade tinha de me falar, então dirigia-me a palavra com a habitual affabilidade de joven cura.

Estava acclimado, mas eu me acclimara pelo desalento, como um encarcerado no seu carcere.

Depois que sacudi fóra a tranca dos ideaes ingenuos, sentia-me vasio de animo; nunca percebi tanto a espiritualidade imponderavel da alma: o vacuo habitava-me dentro. Premia-me a força das cousas; senti-me acovardado. Perdeu-se a licção viril de Rebello: prescindir de protectores. Eu desejei um protector, alguem que me valesse, naquelle meio hostil e desconhecido, e um valimento directo mais forte do que palavras.

Se não houvesse olvidado as praticas, como a assistencia pessoal do Rebello, eu notaria talvez que pouco a pouco me ia invadindo, como elle observara a efffeminação morbida das escolas. Mas a theoria é fragil e adormece como as larvas friorentas, quando a estação obriga. A lethargia moral pesava-me no declive. E, como se a alma das crianças, á maneira do physico, esperasse realmente pelos dias para caracterisar em definitiva a conformação sexual do individuo, sentia-me possuido de certa necessidade preguiçosa de amparo, volupia de fraqueza em rigor impropria do caracter masculino. Convencido de que a campanha do estudo e da energia moral não era precisamente uma cavalgata quotidiana, animada pelo clarim da rhetorica, como nas festas, e pelo verso emphatico dos hymnos, entristeceu-me a realidade crua. Desilludi-me dos bastidores da gloriosa parada, vendo-a pelo avesso. Nem todos os dias do militarismo enfeitam-se com a animação dos assaltos e das voltas triumphaes; desmoralisava-me o ram-ram estagnado da paz das casernas, o prosaismo elementar da fachina.

Com esta crise do sentimento casava-se o receio que me infundia o microcosmo do Atheneu. Tudo ameaça os indefesos. O desembaraço tumultuoso dos companheiros á recreação, a maneira facil de conduzir o trabalho, pareciam-me traços de esmagadora superioridade: espantava-me a viveza dos pequenos, tão pequenos alguns! O braço do Sanches vinha assim salvar-me, segunda vez, de submersão, acudindo na vertigem do momento.

Eu não estudava: a minha conta era, entretanto, regular, por um concurso de elementos eventuaes direitos da recente matricula á benevolencia, a minha recommendação ao professor Manlio, com os retalhos alinhavados de sciencia anterior. Mantinha-me em satisfactoria média; mas o risco da decadencia era constante. O methodo constituia o peior obstaculo; sem o auxilio de alguem, mais pratico, estava perdido. Sanches havia sem duvida de valer-me com a sua capacidade de grande estudante, sobretudo com a boa vontade insinuativa que desinteressadamente manifestava. Sem falar no proveito que rendia esta affeição, empunhando por meu favor o terrivel sabre de vigilante, com guardas de couro!

Com effeito não tardou que elle me desse a mão como a Minerva benigna de Fenelon.

Entrei pela geographia como em casa minha. As anfractuosidades marginaes dos continentes desfaziam-se nas cartas, por maior brevidade do meu trabalho; os rios dispensavam detalhes complicados dos meandros e affluiam-me para a memoria, abandonando o pendor natural das vertentes; as cordilheiras, immensa tropa de amestrados elephantes, arranjavam-se em systemas de orographia facillima; reduzia-se o numero das cidades principaes do mundo, sumindo-se no chão, para que eu não tivesse de decorar tanto nome; arredondava-se a quota das populações, perdendo as fracções importunas, com prejuizo dos recenseamentos e maior gravame dos uteros nacionaes; uma mnemonica feliz ensinava-me a enumeração dos estados e das provincias. Graças á destreza do Sanches, não havia incidente estudado da superficie terrestre que se me não collasse ao cerebro como se fosse minha cabeça, por dentro, o que é por fóra a esphera do mundo.

A seu turno a grammatica abria-se como um cofre de confeitos pela Paschoa. Setim côr de céu e assucar. Eu escolhia a bel prazer os adjectivos, como amendoas adocicadas pelas circumstancias adverbiaes da mais agradavel variedade; os amaveis substantivos! voavam-me á roda, proprios e appellativos, como creaturinhas de alfenim alado; a etymologia, a syntaxe, a prosodia, a orthographia, quatro gráos de doçura da mesma gustação. Quando muito, as excepções e os verbos irregulares desgostavam-me a principio; como esses feios confeitos crespos de chocolate: levados á bocca, saborosissimos.

A historia patria deliciou-me em quanto pôde. Desde os missionarios da catechese colonisadora, que vinham ao meu encontro, com Anchieta, visões de bondade, recitando escolhidas estrophes do evangelho das selvas, mandando adiante, coroados de flôres, pela estrada larga de areia branca, os columins alegres, aprendizes da fé e da civilisação, acompanhados da turba selvagem do gentio côr de casca de arvores, emplumados, sarapintados de mil tintas, em respeitosa contricção de fetichismo domado, avultando do seio, do fundo da matta escura, como uma marcha phantastica de troncos. Até ás éras da Independencia, evocação complicada de sarrafos commemorativos das alvoradas do Rocio e de anceios de patriotismo infantil; um principe fundido, cavalgando uma data, mostrando no lenço aos povos a legenda official do Ypiranga; mais abaixo, pontuadas pelas salvas do Santo Antonio, as acclamações de um povo mesclado que deixou morrer Tiradentes para se esbofar em vivas ao ramo de café da Domitilla.

Cada pagina era um encanto, prefaciadas pela explicação complacente do collega. Graças á habilidade das suas apresentações, apertei a mão aos mais truculentos figurões do passado, aos mais poderosos. Antonio Salema, o cruel, sorriu-me; o Vidigal foi gentil; D. João VI deixou-me rapé nos dedos. Conheci de vista Men de Sá, Mauricio de Nassau; vi passar o heróe mineiro, calmo, mãos atadas como Christo, barba abundante de apostolo das gentes, um toque de sol na fronte lisa e vasta, escalvada pelo destino para receber melhor a corôa do martyrio.

A historia santa revelou-me este épico, quem o diria?—o conego Roquette! E eu bebi a embriaguez musical dos capitulos como o canto profundo das cathedraes. Ouvi suspirar a Crença, o idyllio do Eden, o amor primitivo do Genesis, invejado dos anjos, sob o olhar magnanimo dos leões; ouvi a queixa terna do primeiro par banido para a dôr, para o trabalho; Adão vergonhoso, vestindo as parras da primeira pruderie, Eva a envolver a nudez joven de lyrios na tunica de ouro das madeixas, cobrindo com as mãos o ventre, obscenidade, das mães, stigmatisada pela maldição de Deus.

E crescia o canto na abóbada e o orgão falava á tradição inteira do soffrimento humano supplantado pela divindade. Modulava-se a harmonia em suave gorgeio, entoando a elevação dos psalmos, o extase sensual do Cantico dos Canticos na bocca da Sulamita, e a seducção de Booz enredado no estratagema honesto da ternura, e a melancolia tragica de Judith, e a serena gloria de Esther, a princeza querida.

Subitamente, entreabriu-se o quadro sonoro para irromper o côro das lamentações. Acabavam no ar, luciolas extinctas, os derradeiros sons da harpa de David; perdia-se em écos a derradeira antistrophe de Salomão; sumiu-se á extremidade do campo a imagem de Ruth, ao braço o feixe louro de trigo; entrou a Hebréa sombria na tenda de Holophernes, levando nos labios o beijo assassino; cobriu-se a apparição luminosa de Esther com o somno da noite de Mardocheu. Era a gamma dolente dos terrores. Clamavam as imprecações do diluvio, os desesperos de Gommorrha; flammejava no firmamento a espada do anjo de Sennacherib; dialogavam em concerto tetrico as supplicas do Egypto, os gemidos de Babylonia, as pedras condemnadas de Jerusalem. Vozeava o tenebroso grave das prégações dos prophetas. Embalde o fulgor das transfigurações, como o livido fuzil, escancarava abertas de luz sobre a tormenta nocturna; Ezequiel tinha a visão do Eterno; Elias visitava o Mysterio numa escapada de chammas. Nada. A musica solemne era o miserere. Nem o clarão da alvorada de Bethlem na Judéa debellava a sombra, nem a miragem viva do Thabor. A epopéa agonisava ao rodar do seculo; ecoava numa caverna onde havia um tumulo; bradava triumpho um momento pela Resurreição do Justo; morria, emfim, lento, lento com a prece dos martyres do amphitheatro, com a longinqua prece subterranea dos refugiados das Catacumbas.

A doutrina christã, annotada pela proficiencia do explicador, foi occasião de dobrado ensino que muito me interessou. Era o céu aberto, rodeado de altares, para todas as creações consagradas da fé. Curioso encarar a grandeza do Altissimo; mas havia janellas para o purgatorio a que o Sanches se debruçava commigo, cuja vista muito mais seduzia. E o preceptor tinha um tempero de uncção na voz e no modo, uma sobranceria de director espiritual, que fala do peccado sem macular a bocca. Empunha quasi compungido, fincando o olhar no tecto, fazendo estalar os dedos, num enlevo de abstracção religiosa; expunha, demorando os incidentes, as mais cabelludas manifestações de Satanaz no mundo. Nem ao menos dourava os chifres, que me não fizessem medo; pelo contrario, havia como que o capricho de surprehender com as phantasias do Mal e da Tentação, e, segundo o lineamento do Sanches, a cauda do demonio tinha talvez dous metros mais que na realidade. Insinuou-me, é certo, uma vez, que não é tão feio o dito, como o pintam.

O catecismo começou a infundir-me o temor apavorado dos oraculos obscuros. Eu não acreditava inteiramente. Bem pensando, achava que metade d'aquillo era invenção malvada do Sanches. E quando elle punha-se a contar historias de castidade, sem attenção á parvidade da materia do preceito theologico, mulher do proximo, Conceição da Virgem, terceiro-luxuria, brados ao céu pela sensualidade contra a natureza, vantagens moraes do matrimonio, e porque a carne, a innocente carne, que eu só conhecia condemnada pela quaresma e pelos monopolistas do bacalháu, a pobre carne do beef, era inimigo da alma; quando rectificava o meu engano, que era outra a carne e guizada de modo especial e muito especialmente trinchada, eu mordia um pedacinho de indignação contra as calumnias á santa cartilha do meu devoto credo. Mas a cousa interessava e eu ia colhendo as informações para julgar por mim opportunamente.

Na taboada e no desenho linear, eu prescindia do collega mais velho; no desenho, porque achava graça em percorrer os caprichosos traços, divertindo-me a geometria miuda como um brinquedo; na taboada e no systema metrico, porque perdera as esperanças de passar de mediocre como gymnasta de calculos, e resolvera deixar a Maurilio ou a quem quer que fosse o primado das cifras.

Em dous mezes tinhamos vencido por alto a materia toda do curso; e, com este preparo, sorria-me o agouro de magnifico futuro, quando veio a fatalidade desandar a roda.

Referi que Sanches me provocava uma repugnancia de gosma. Depois do caso da natação, o reconhecimento predominou sobre a repulsa e eu admitti as assiduidades com que de então por diante me quiz beneficiar o companheiro. Afinal, porém, tornou-me a apparecer o affastamento instinctivo que me separava do rapaz.

Descrente da fraternidade do collegio, cuja personificação representava-me o Barbalho, eu temia o alvoroço do recreio. Conservar-me na sala das licções era uma medida de prudencia. Estes intervallos regulamentares de descanço, aproveitava-os para me adiantar no curso. Pois bem, durante estes momentos de applicação excepcional em que ficavamos a sós, eu e o grande, definiu-se o fundamento da antipathia presentida. A franqueza da convivencia augmentou dia a dia, em progresso imperceptivel. Tomávamos logar no mesmo banco. Sanches foi-se aproximando. Encostava-se, depois, muito a mim. Fechava o livro d'elle e lia no meu, bafejando-me o rosto com uma respiração de cançaço. Para explicar alguma cousa, distanciava-se um pouco; tomava-me, então, os dedos e amassava-me até doer a mão, como se fosse argilla, cravando-me olhares de raiva injustificada. Volvia novamente ás expansões de affecto e a leitura proseguia, passando-me elle o braço ao pescoço como um furioso amigo.

Eu deixava tudo, fingindo-me insensivel, com um plano de rompimento em idéa, embargado, todavia, pela falta de coragem. Não havia mal naquellas maneiras amigas; achava-as, simplesmente, despropositadas e importunas, maxime não correspondendo a mais insignificante manifestação da minha parte.

Notei que elle variava de attitude quando um inspector mostrava a cabeça á entrada da sala e quando pretendia informar-me de alguma disciplina transcendente.

Então o mestre singular formalisava-se de gravidade severa e distante. Esta inconstancia era o meu alarme. Foi afinal um entretenimento. Eu perdia muitas vezes o fio da leitura para attender ás artimanhas d'aquella novissima comedia.

Por um dia de muito calor, acabava elle de enunciar como um padre uma pagina de religião, os diversos actos de Contricção, de Attricção, de Fé, de Esperança, de Caridade, quando propoz que eu lh'os repetisse sentado aos seus joelhos. Achei inutil a commodidade e repeti a licção passeando pela sala. Que diabo! Aquelle sujeito queria tratar-me definitivamente como um bêbê! Com pouco mais lhe daria o excesso de extremos para me offerecer uma volta de cueiros! Ah! que se ainda me vivesse no animo a bravura audaz que trouxera de casa, sem duvida nenhuma ha muito tempo que eu tinha despachado o Sanches com a cartilha pelas ventas. Mas eu era outro, e a vontade vegetava tenra e ductil como um renovo, depois do anniquilamento da primeira decepção. Fui transferindo o conflicto.

Ás vezes a minha resistencia passiva desapontava o preceptor. Elle encarava-me terrivel, e como quem diz: «perde a protecção de um vigilante!», ou disfarçava a impertinencia em riso amarello, numa abstracta expressão de physionomia, que era aliás o facies, de uma idéa fixa.

Os exercidos corporaes effectuavam-se á tarde, uma hora depois do jantar, hora excellente, que habituava a digestão a segurar-se no estomago e não escorrer pela guela quando os estudantes se balançavam a barra-fixa, pelas curvas.

Reconheci o bello campo das manobras quando lá fui pela primeira vez, depois da matricula; tive saudade das flammulas sobre o gramal verde. Mesmo, porém, desmontada a alegria de encommenda das festas, era um sitio amenissimo o campo. Descoberto a todo o céu, parecia mais abundante de ar; eu lá vingava os pulmões da compressão cerrada do regimen interno.

Findos os exercicios, partia o professor Bataillard, e, guardados por dois inspectores, o Sylvino e o João Numa, ou João Numa e o velho Margal, venerando invalido hespanhol querido de todos, ou o Margal e o Conselheiro, tinhamos, os alumnos, um prazo de recreio até cair a noite.

Uma vez, ao escurecer, passeando eu calado, com o Sanches igualmente, vendo escapar o dia para além das montanhas, percebi que o meu companheiro balbuciava uma pergunta. Falou desattento, admirando o crepusculo com a testa franzida, na meia abstracção que era o seu rictus costumeiro. Estavamos a um rodeio da avenida que circumdava o gramal, opposto á cancella onde conversavam os inspectores. Os collegas jogavam a barra através da grama, ou se divertiam ao saut-de-mouton em pontos affastados. Como não apprehendi a pergunta, o Sanches repetiu. Escapou-me involuntario o riso... Abarbava-me a mais rara especie de pretendente! Eu ria com franqueza, mas abysmado. Era de uma extravagancia original aquelle Sanches! Hoje, elle é engenheiro em uma estrada de ferro do sul, um grave engenheiro...

Vendo que não nos podiamos entender, metteu entre nós o esplendor da tarde, e resolvemos o embaraço concordando ambos num parecer unanime a respeito.

Durante os dias que se seguiram, Sanches esteve frio. Tive medo de perdel-o. Deu-me as licções sem uma só das intragaveis ternuras. Exprimia-se brevemente, entre enfezado e triste. Suspeitei uma revolução de caracter e julguei ter achado o que me convinha: um amigo moderado, que me livrasse dos vexames da vida collegial dos pequenos. O caso era outro. Sanches comprehendera que a ingenuidade tinha contraminado os zelos do seu ensino. Manobrava, então, para voltar á carga.

Entretanto, deu-se o cuidado de insistir na preparação edificante.

Inventou uma analyse dos Lusiadas, livro de exame, cuja difficuldade não cessava de encarecer.

Guiou-me ao canto nono, como a uma rua suspeita. Eu gozava criminosamente o sobresalto dos inesperados. Mentor levou-me por diante das estrophes, rasgando na face nobre do poema perspectivas de bordel a fumegar alfazema. Barbaro! Havia um trajo de modestia sobre a verdade do vocabulo; elle rasgava as tunicas de alto a baixo, grosseiramente. Fazia do meneio gracil de cada verso uma brutalidade offensiva. Eu acompanhava-o sem remorso; reputava-me vagamente victima, e me dava á crueldade, submisso, adormecido na vantagem da passividade. A analyse aguilhoava as rimas; as rimas passavam, deixando a lembrança de um requebro impudente. E o ar severo do Sanches imperturbavel.

Tomava cada periodo, cada oração, altamente, com o ademan sisudo do anatomista: sujeito, verbo, complementos, orações subordinadas; depois o significado, zás! um córte de escalpello, e a phrase rolava morta, repugnante, desentranhando-se em podridões infectas.

Iniciou da mesma forma um curso pittoresco de diccionario. O diccionario é o universo. Gaba-se de esclarecimento, mas atordôa, á primeira vista, como a agitação das grandes cidades desconhecidas. Encarreirados nas paginas consideraveis, os nomes seguem estranhamente com a numerosa prole dos derivados, ou sós, petits-maîtres faceiros, os gallicismos; vaidosos dandys os de proveniencia albionica. Molestam-nos com a maneira desdenhosa, porque os não conhecemos. As significações prolongam-se interminas, entrecruzam-se em confusa rêde topographica. O inexperiente não conquista um passo na immensa capital das palavras. Sanches estava affeito. Penetrou commigo até aos ultimos albergues da metropole, até á cloaca maxima dos termos chulos. Descarnou-me em caricatura de esqueleto, a circumspecção magistral do Lexicon, como polluira a elevação parnasiana do poema.

Eu me sentia amesquinhado sob o peso das revelações. Causava terror aquella sabedoria de cousas nunca sonhadas. O honrado director espiritual percebeu que havia agora um ascendente de dominio que me curvava. Olhava-me então de frente e tinha ousados risos de malicia. Depois dos dias de reserva, chegou-se de novo com uma segurança de possuidor forte. Eu andava num deploravel desmantelo de energia. Rebello, de vez em quando, acabrunhava-me, através dos oculos azues, com um olhar de desprezo ou condolencia ainda mais aviltante. Meu pae vinha vêr-me todas as semanas; eu mostrava os premios de applicação, conversava de casa; o resto calava. Sempre desconfiado e receioso dos outros, o meu companheiro era quasi exclusivamente Sanches. Sempre juntos eu e elle. Sabia-se no Atheneu que elle era meu explicador, suppunham até que pago. Não causavam estranheza as nossas relações.

Comtudo Sanches, como os mal intencionados, fugia dos logares concorridos. Gostava de vaguear commigo, á noite, antes da ceia, cruzando cem vezes o pateo de pouca luz, cingindo-me nervosamente, estreitamente até levantar-me do chão. Eu aturava, imaginando em resignado silencio o sexo artificial da fraqueza que definira Rebello.

Estimulado pelo abandono, que lhe parecia assentimento tacito, Sanches precipitou um desenlace. Por uma tarde de aguaceiro erravamos pelo saguão das bacias, escuro, humido, rescendendo ao cheiro das toalhas mofadas e dos ingredientes dentifricios, solidão favoravel, multiplicada pelos obstaculos á vista que offereciam enormes pilares quadrados em ordem a sustentar o edificio,—quando, sem transição, o companheiro chegou-me a bocca ao rosto e falou baixinho.

Só a voz, o simples som covarde da voz, rastejante, collante, como se fosse cada syllaba uma lesma, horripilou-me, feito o contacto de um supplicio immundo. Fingi não ter ouvido; mas houve intimamente a explosão de todo o meu asco por semelhante individuo, e muito calmo, desviando apenas a vista, pretextei a falta de um lenço, que me endefluxara a friagem e... fui buscal-o.

Fóra da zona magnetica em que me captivava o bom amigo, concertaram-se os meus instinctos sopitados de revolta e Sanches passou a ser um desconhecido. Sacrificava-se de golpe o amigo, o explicador e o vigilante: um rasgo de heroicidade. Ao primeiro encontro depois do rompimento, o homem viu que estava tudo acabado. Andou a rondar-me, temperando o olhar com um brilho de facadas.

A occasião é que não era a melhor para o conflicto. Conveniencias do ensino tinham feito dividir-se em duas turmas a aula do professor Manlio, e eu fôra incluido na secção confiada ao Sanches, como auxiliar idoneo. A consequencia foi o que devia ser. Maltratado e condemnado pelo ajudante, provando mal em razão do sobresalto no exame de verificação a que me sujeitou o professor, desmoralisado em reprehensão solemne com grande regosijo do Sanches, jurei vingança. Escandalisaria o mundo com uma vadiação sem exemplo! Percorrera a materia toda em rapida antecipação de estudo. Isto, porém, não bastava. Bastasse! foi o meu lemma. E toca a desandar. Fiquei abaixo do Barbalho, aliás fóra de classificação decente; fiquei abaixo do Alvares. Fui o ultimo da aula! Resultado razoavel, para emprego de uma energiazinha que despontava.

Ao mesmo tempo, como os philosophos atribulados, busquei a doce consolação dos astros.

Aristarcho iniciara um curso nocturno de cosmographia.

Estrellas era com elle. O nobre ensino! Nenhum professor, sob pena de expulsão, abalançava-se a intrometter-se nas onze varas da camisola, de astrologo. E vissem-no, á janella, indicando as constellações, impellindo-as através da noite com o pontudo dedo! Nós discipulos, não viamos nada; mas admiravamos. Bastava elle delinear sabiamente um agrupamento estellino ás alturas, para cada um de nós por seu lado ficar mais a quo. E voava, fugindo, a poeira phosphorecente.

Quanto a mim, o que sobretudo me maravilhava era a coragem com que Aristarcho fisgava os astros, quando todos sabem que apontar estrellas faz crear verrugas.

Uma vez, muito enthusiasmado, o illustre mestre mostrou-nos o Cruzeiro do Sul. Pouco depois, cochichando com o que sabiamos de pontos cardeaes, descobrimos que a janella fazia frente para o Norte: não atinamos. Aristarcho reconheceu o descuido: não quiz desdizer-se. Lá ficou a contra-gosto o Cruzeiro estampado no hemispherio da estrella polar.

Eu tomei amor ás cousas do espaço e estudava profundamente a mecanica do infinito pelo compendio de Abreu.

Para as noites brumosas, Aristarcho tinha os apparelhos. Uma infinidade de machinismos do ensino astronomico, exemplificando o systema solar, a theoria dos eclipses, a gravitação dos satellites, as espheras concentricas, terrestre e celeste; a de dentro, de cartão lustrado; a de fóra, de vidro. Um atravancamento indescriptivel, sobre a mesa, de estrellas e arames torcidos, rodas dentadas de latão, lampadas frouxas de naphta parodiando o sol. Aristarcho dava á manivella e gyrava tudo. Com o pince-nez grosso de tartaruga, á ponta do nariz, dominava o tropel dos mundos.

«Vêem, dizia, explicando a natureza, vêem a minha mão aqui?»

Mostrava a mão direita, ao realejo, bella manopla felpuda de fazer inveja a Esaú:

«É a mão da Providencia!»




IV

Periodo sereno da minha vida moral, capitulo a escrever sobre uma banqueta de altar, ou com o alphabeto azul que delinêa o fumo do incenso no ar tranquillo, inolvidaveis tregoas de intimo socego em toda a minha juventude, eis em que se tornou a minha amarga descida ao fundo descredito escolar.

A astronomia, como os céus do psalmo, levou-me á contemplação. O mal na terra, descripto pelo Sanches com uma pericia de conhecedor e praticante, tomou vulto no seio das minhas cogitações. A incredulidade primeira acabou em meu espirito, reconhecendo o descalabro d'este val de lagrimas em que vivemos. Ao tempo que devia consagrar á minha rehabilitação nos estudos, puz-me a estudar, como Ignacio de Loyola, talvez na mesma idade, a rehabilitação do mundo.

Encarnei o peccado na figura de Sanches e carreguei. Nutria talvez no intimo o ambicioso interesse de um dia reformar os homens com o meu exemplo pontifical de virtudes no solio de Roma; mas a verdade é que me dediquei conscienciosamente ao santo empenho de merecer essa exaltação, preparando-me com tempo. Perdido o ideal scenographico de trabalho, e fraternidade, que eu quizera que fosse a escola, tinha que soltar para outras bandas os pombos da imaginação. Viveiro seguro era o céu. Ficava-me a vendagem da eterna felicidade, que se não contava.

Accresce que predispunha ao enlevo a tristeza oppressa de discipulo máu em que eu jazia. E como nos pequenos esforços que tentava para me reerguer ninguem dava attenção, deixei-me ficar insensivel, resignado, como em desmaio sob um desmoronamento. Tinha a consciencia em paz, a consciencia que é o espectaculo de Deus. Servia-me a crença como um colchão brando de malandrice consoladora. Note-se de passagem que apezar dos anceios de bemaventurança, eu ia mal no catecismo como no resto.

A mais terrivel das instituições do Atheneu não era a famosa justiça do arbitrio, não era ainda a cafua, asylo das trevas e do soluço, sancção das culpas enormes. Era o Livro das notas.

Todas as manhãs, infallivelmente, perante o collegio em peso, congregado para o primeiro almoço, ás oito horas, o director apparecia a uma porta, com a solemnidade tarda das apparições, e abria o memorial das partes.

Um livro de lembranças comprido e grosso, capa de couro, rotulo vermelho na capa, angulos do mesmo sangue. Na vespera cada professor, na ordem do horario, deixava alli a observação relativa á diligencia dos seus discipulos. Era o nosso jornalismo. Do livro aberto, como as sombras das caixas encantadas dos contos de maravilha, nascia, surgia, avultava, impunha-se a opinião do Atheneu. Rainha caprichosa e incerta, tyrannisava essa opinião sem correctivo como os tribunaes supremos. O temivel noticiario, redigido ao sabor da justiça suspeita de professores, muita vez despedidos por violentos, ignorantes, odiosos, immoraes, erigia-se em censura irremissivel de reputações. O julgador podia ser posto fóra por uma evidenciação concludente dos seus defeitos; a diffamação estampada era irrevogavel.

E peior é que lavrava o contagio da convicção e surprehendia-se cada um consecutivamente de não haver reparado que era mesmo tão ordinario tal discipulo, tal collega, reforçando-se passivamente o conceito, até consummar-se a obra de vilipendio quando, por ultimo, o condemnado, sem mais uma suggestão de revolta achava aquillo justo e baixava a cabeça. A opinião é um adversario infernal que conta com a cumplicidade, emfim, da propria victima.

Com excepção dos privilegiados, os vigilantes, os amigos do peito, os que dormiam á sombra de uma reputação habilmente arranjada por um justo conchavo de trabalho e captivante doçura, havia para todos uma espectativa de terror antes da leitura das notas. O livro era um mysterio.

Á medida que se desenrolava a gazetilha, as ancias iam serenando. Os victimados fugiam, acabrunhados de vergonha, opprimidos sob o castigo incalculavel de trezentas carinhas de ironia superior ou compaixão de ultraje. Passavam junto de Aristarcho ao sair para a tarefa penal de escripta. O director, arrepiando uma das coleras olympicas que de um momento para outro sabia fabricar, descarregava com o livro ás costas do condemnado, aggravante do injuria e escarneo á pena de diffamação. O desgraçado sumia-se no corredor, cambaleando.

Quando a cousa não dava para coleras, Aristarcho limitava-se a sublinhar com uma ponderação qualquer a sentença cathedratica; ora uma exclamativa de espanto, ora uma ameaça, ora um insulto vivo e breve, ora um conselho amortalhado em funebre dó.

Ás vezes enlaçava com dous dedos o menino pela nuca e o voltava, tremente e submisso, para o collegio attento, offerecendo-o ás bofetadas da opinião: «Vejam esta cara!...»

A criança, livida, fechava os olhos.

Em compensação, não havia expressamente punições corporaes.

O professor Manlio, sempre considerando a recommendação, poupou-me longamente ao castigo formidavel das partes. Perdeu por fim a paciencia e fulminou-me.

No dia seguinte ao almoço, amargava eu, sem assucar que me bastasse, o resto do café quinado da espectativa (porque Manlio tinha-me prevenido), quando ouvi Aristarcho, alargando pausas dramaticas de commoção, ler, claro, severo: «O Sr. Sergio tem degenerado...»

Eu havia figurado já na gazetilha do Atheneu com algumas notas de louvor; guardou-se a sensação para a nota má. O director olhou-me sombrio.

No fundo do silencio commum do refeitorio, cavou-se um silencio mais fundo, como um poço depois de um abysmo. Senti-me devorado por este silencio hiante. A congregação justiceira dos collegas voltou-se para mim, contra mim. Os vizinhos de logar á mesa affastaram-se dos dois lados, para que eu melhor fosse visto. De longe, da copa, chegava um ruido argentino, horrivel, de colheres á lavagem; os tamarineiros no parque ciciavam ao vento.

Aristarcho foi clemente. Era a primeira vez, perdoou.

A peior hypothese do systema do pelourinho era quando o estudante ganhava o callo da habitualidade, um assassinato do pudor, como succedia com o Franco.

Dias depois da terrivel nota, voltava eu a figurar com outra má, menos philosophicamente redigida, porém aggravada de reincidencia. Aristarcho não perdoou mais. Houve ainda terceira, quarta, por diante. Cada uma d'ellas doia-me intensamente; comtudo não me indignavam. Aquelle soffrimento eu o desejava, na humildade devota da minha disposição actual. Chorava á noite, em segredo, no dormitorio; mas colhia as lagrimas numa taça, como fazem os martyres das estampas bentas, e offerecia ao céu, em remissão dos meus pobres peccados, com as notas más boiando.

No recreio, andava só e calado como um monge. Depois do Sanches não me aproximava de nenhum collega, senão incidentemente, por palavras indispensaveis. Rebello tentou attrahir-me; ou desviava. Sanches, rancoroso, perseguia-me como um demonio. Dizia cousas immundas. «Deixa estar, jurava entre dentes, que ainda hei de tirar-te a vergonha.» Na qualidade de vigilante levava-me brutalmente á espada. Eu tinha as pernas roxas dos golpes; as canellas me incharam. Se Barbalho se lembra de vingar a bofetada, creio que me submettia á letra evangelica.

Durante este periodo de depressão contemplativa uma cousa apenas magoava-me: não tinha o ar angelico do Ribas, não cantava tão bem como elle. Que faria se morresse, entre os anjos, sem saber cantar?

Ribas, quinze annos, era feio, magro, lymphatico. Bocca sem labios, de velha carpideira, desenhada em angustia—a supplica feita bocca, a prece perenne rasgada em beiços sobre dentes; o queixo fugia-lhe pelo rosto, infinitamente, como uma gotta de cêra pelo fuste de um cyrio...

Mas, quando, na capella, mãos postas ao peito, de joelhos, voltava os olhos para o medalhão azul do tecto, que sentimento! que doloroso encanto! que piedade! um olhar penetrante, adorador, de enlevo, que subia, que furava o céu como a extrema agulha de um templo gothico!

E depois cantava as orações com a doçura feminina de uma virgem aos pés de Maria, alto, tremulo, aereo, como aquelle prodigio celeste de garganteio da freira Virginia em um romance do conselheiro Bastos.

Oh! não ser eu angelico como o Ribas! Lembro-me bem de o vêr ao banho: tinha as omoplatas magras para fóra, como duas azas!

E eu era feliz nesse tempo, quando invejava o Ribas.

Havia na minha febre religiosa certo numero de reservas, que pareciam o germen de futuro libertino, como dizem os padres mineiros; eu não admittia a confissão, não pensava em communhão, estranhava os exaggeros do culto publico, votava antipathia aos homens de batina. Santa Rosalia era a minha devoção.

Porque Santa Rosalia? Não havia motivo: era uma pequena imagem em cartão, gravura de aço e aguadas de fino colorido, lembrança que me dera uma prima, então morta, e eu guardava em memoria amavel.

Era boa a priminha. Mais velha do que eu tres annos, carinhosa, maternal commigo. Brincava pouco, velava pelos irmãos, pela ordem da casa, como uma senhora. Tinha os olhos grandes, grandes, que pareciam crescer ainda quando fitavam, negros, animados de um movimento suave de nuvem sobre céu macio; o semblante claro, branco, puro, de marmorea pureza, coando uma transparencia de sangue a cada face. Raro falava; desconhecia a agitação, ignorava a impaciencia. Sabia talvez que ia morrer. Ao vêl-a passar, sem rumor, como os espectros femininos do sonhador americano—leve na terra como o roçar da veste de um anjo, sentia-se com aperto de coração que não pertencia ao mundo aquella criança: buscava, errante na vida, buscava apenas o repouso da fórma, sob a campa, em sitio calmo, de muito sol, onde chorassem as rosas pela manhã—e a liberdade etherea do sentimento.

Um dia, não sei se do pranto que tinha nos olhos, vi animar-se o rosto á pequenina gravura. Eu pensava na prima; descobri na imagem uma identidade commovente de traços physionomicos com a pequenina morta. Guardei então, como um retrato, Santa Rosalia.

Com a evolução de mysticismo era natural completar-se a consagração da estampa; canonisada triumphalmente no concilio ecumenico dos meus mais intimos votos.

Era a sala geral do estudo, á beira do pateo central, uma peça incommensuravel, muito mais extensa do que larga. De uma das extremidades, quem não tivesse extraordinaria vista custaria a reconhecer outra pessoa na extremidade opposta. A um lado, encarreiravam-se quatro ordens de carteiras de páu envernisado e os bancos. Á parede, em frente, perfilavam-se grandes armarios de portas numeradas, correspondentes a compartimentos fundos; deposito de livros. Livros é o que menos se guardava em muitos compartimentos. O dono pregava um cadeado á portinha e formava um interior á vontade. Uns, os futuros sportmen, criavam ratinhos, cuidadosamente desdentados a tesoura, que se atrellavam a pequenos carros de papelão; outros, os politicos futuros, criavam cameleões e lagartixas, declarando-se-lhes precoce a propensão pelo viver de rastos e pela cambiante das pelles; outros, entomologistas, enchiam de casulos dormentes a estante e vinham espiar a efflorescencia das borboletas; os colleccionadores, Ladislaus Nettos um dia, fingiam museus mineralogicos, museus botanicos, onde abundavam as delicadas rendas seccas de filamentos das folhas descamadas; outros davam-se á zoologia e tinham caveiras de passarinhos, ovos vasados, cobras em cachaça. Um d'estes ultimos soffreu uma decepção. Guardava preciosamente o craneo de não sei que phenomenal quadrupede encontrado em excavações de uma horta, quando verificou-se que era uma carcassa de gallinha!

Eu tive idéa de armar em capella o compartimento do meu numero. Havia compartimentos enfeitados de chromos e desenhos; o meu seria um bosque de flôres, e eu acharia uma lampada minuscula para conservar lá dentro accesa. Ao fundo, em dourado passe-partout alojaria Santa Rosalia, a padroeira.

O projecto caiu pela difficuldade das flôres. Pagando a um criado, mal conseguia um bogari, um botão qualquer por dia. Tive de accommodar a gravura na gaveta do movel que possuiamos ao dormitorio, perto da cama, para as escovas e os pentes.

E todos os dias, sobre o papel, testemunho de assidua veneração, depositava uma flôr, mantendo na gaveta o clima tepido dos meus fervores, symbolisados num tributo de perfume.

Quando, no dia primeiro, sorriram as rosas mysticas de Maio, saudei-as enternecido do alto das janellas do salão azul, como as mensageiras do amor de Maria.

Iam começar os hymnos pela manhã no oratorio do Atheneu. Abençoados momentos de contricção e ternura, em que á disposição venturosa do corpo, depois do banho, vivia um pouco o recolhimento da poesia christã, no magnifico salão, guardando ainda, como os vapores matinaes das escarpas, as ultimas sombras da noite por entre os crespos do estuque.

O sol vinha tambem á capella e collava de fóra a fronte ás vidraças, brando ainda do despertar recente, fresco da toilette da aurora, com medo de entrar, corado da vergonha de não rezar, pobre astro atheu. Pelas janellas abertas, esgalhavam-se para dentro frondosas ramas de jasmineiro, como uma invasão de floresta; e os jasmins da vespera, cançados, debulhavam-se em conchinhas de nacar pelo soalho, mortos, expirando no ambiente a alma livre do aroma.

Nós, ajoelhados, resentidos da influencia moral do scenario, oravamos sinceramente. Não havia muito mal a colher nos corações daquella mocidade, naquelle instante, repousando na tregoa da oração das miseriazinhas da hora commum.

Eu não olhava para o altar. Lá estava rica, no throno illuminado, sobre tres ordens de palmas, a imagem da Senhora da Conceição Immaculada, alteando á fronte a corôa de prata, onde engastavam pedraria os reflexos das luzes. A minha contricção, o meu canto pertenciam a Santa Rosalia, ao querido, cartão singelo que eu trazia dentro da blusa de brim, que comprimia ao peito com a mão, exacerbando o extase da fé pelo magnetismo do santo contacto.

O mez de Maio foi a culminação do periodo anagogico de crença. Coincidiu com essa época levarem-no ao leito os incommodos de meu pae, impedindo-lhe ás visitas do costume ao Atheneu. Eu pensava nos seus soffrimentos, e era isto mais um thema para as variações do mysticismo.

A neblina de melancolia, baixada sobre o collegio da altura da cordilheira, repercussão da tristeza verde das mattas, pesava-me aos hombros como a loba de um seminarista, como o voto de um frade; eu passeava na circumscripção do recreio como num claustro, olhando as paredes, brancas como tumulos caiados, limitando as preoccupações do espirito á minha humilhação diante de Deus, sem olhar para cima, na modestia curvada dos brutos—annullando-me a mim mesmo na angustia do pensamento religioso, como no sacco de panno bicudo, preto, do farricoco.

O céu, que a imaginação buscara d'antes, como os canticos buscam os zimborios, caía agora sobre mim como um solideo de bronze.

Triste e feliz.

Ninguem sabia dos sonhos e attribuiam á excentricidade o meu amor á solidão e ao socego.

Durante o hymno do anjo da guarda, no recreio abrigado, ao meio-dia, os estudantes, afogueados e transpirando ainda dos folguedos, paletós empapuçados sobre a cinta de couro, cabellos revoltos, não tomavam o rito a sério, e era a dureza dos vigilantes que os constrangia ao respeito d'aquelles dez minutos de religião. Só o Ribas e eu... e se não diminuiam as afllicções da terra e os nossos apertos, não é que o não pedissemos ao Anjo...

Cantavamos a primeira estrophe (o Ribas marcava o diapasão) e as seguintes, até á ultima, que acabavam todas por uma longa nota esfusiada em foguete, cantavamos com um esforço de adoração que bem compensaria, em caso de balanço, a leviandade irreverente de todos os collegas.

O diapasão do Ribas era ama deliciosa nota, tratada a pastilhas, guardada a cache-nez nos dias frios, furto sem duvida ao thesouro de gorgeios de algum sabiá descuidado. Aristarcho adorava esta nota. As vezes, na aula de musica chamava o Ribas e pedia-lhe aquella, aquella... a do hymno...

Ribas candidamente, por agradar ao director, punha de fóra a mimosa nota, como uma balinha de parto, côr de ambar, na ponta da lingua. Ao meio-dia era o momento. Ribas volvia os olhos e deixava partir, primeiro que todos, o precioso som. O collegio entoava depois, e as vozes iam todas, as nossas, em perseguição da primeira. Baldado esforço; que a do Ribas recolhia-se aos córos celestiaes, festejada na cordialidade fraternal dos harmonicos, ao passo que as nossas, desenganadas, voltavam da investida num retrocesso icario, desmembradas, desengonçadas, espaços a baixo como um bando de garças tontas. A distancia, o conjuncto podia passar por um cantico.

Uma hora de oração que aborrecia era a da noite, antes do recolher.

O movimento do dia sobrecarregava-nos com uma reacção irresistivel de fadiga. O somno chumbava-nos as pestanas como linhas de tarrafa. O harmonium da capella, dedilhado pelo Sampaio, hoje medico parteiro, e applicado a extrahir vagidos como outr'ora extrahia os accordes—produzia vagarosamente roncos de somneira da sésta de um tigre, fungados sonoros da digestão dormida de um abbade. Alguns meninos cantavam cabeceando, desmaiando a voz em vastos bocejos. Nas primeiras linhas, dos pequenos, estavam muitos de olhos fechados, bem longe dos cuidados da prece. Eu gozava o prazer da mortificação, sustendo-me fervoroso durante a reza nocturna.

Para isso, levava no bolso um punhado de pedrinhas, com que formava no soalho um genuflexorio despertador, fitando arregaladamente os olhos, ardidos de somno, na lingueta tiritante do fogo das velas...

Alludi varias vezes ao revestimento exterior de divindade com que se apresentava habitualmente Aristarcho.

Era um manto transparente, da natureza d'aquelle tecido leve de brisas trançadas de Gautier, manto sobrenatural que Aristarcho passava aos hombros, revelando do estofo nada mais que o predicado de majestade, geralmente estranho á industria pouco abstracta dos tecelões e á trama concreta das lançadeiras.

Ninguem conseguiria tocar com o dedo a mysteriosa purpura. Sentia-se, porém, o influxo da realeza impalpavel.

Assim é que um simples olhar do director immobilisava o collegio fulminantemente, como se levasse no brilho ameaças de todo um despotismo cruento.

O director manobrava este talento de imperio com a pericia do corredor sobre o pur sang sensivel.

A sala geral do estudo tinha innumeras portas. Aristarcho faria apparições, de subito, a qualquer das portas, nos momentos em que menos se podia contar com elle.

Levava as apparições ás aulas, surprehendendo professores e discipulos. Por meio d'este processo de vigilancia de inopinados, mantinha no estabelecimento por toda parte o risco perpetuo do flagrante como uma atmosphera de susto. Fazia mais com isso que a espionagem de todos os bedeis. Chegava o capricho a ponto de deixar algumas janellas ou portas como votadas a fechamento para sempre, com o fim unico de um bello dia abril-as bruscamente sobre qualquer machinação clandestina da vadiagem. Sorria então no intimo, do effeito pavoroso das armadilhas, e cofiava os majestosos bigodes brancos de marechal, pausadamente, como lambe o jaguar ao focinho a pregustação de um repasto de sangue.

Nos momentos de ira e de exaltações eloquentes é que sabia fazer-se em verdade divino. Era mais que uma revelação temerosa do Olympo; era como se Jupiter mandasse Mercurio catar á terra os raios já disparados e os unisse ao stock inavaliavel dos arsenaes do Etna, para soltar tudo, de uma só vez, de uma só colera, num só trovão, anniquilando a natureza sob a bombarda omnipotente.

Mas não sómente parodiava elle os furores olympicos. Aquella alma ductil de artista sabia decair até á blandicia, até á lagrima a proposito.

Jupiter guardava para a opportunidade a caricia de edredon, o gesto flexuoso do soberano cysne. Expandia-se ás vezes sobre o Atheneu em rompimentos de amor paterno, tão derramado, tão geitosamente sincero, que não tinhamos remedio senão replicar no mesmo tom, por um madrigal de enternecimento de filhos.

E admiravamos.

A hora solemne do meio-dia Aristarcho aproveitava para distribuir uma merenda de conselhos, depois do canto e antes de outra de fatias, incomparavelmente mais bem recebida. Muitas vezes não eram só conselhos. Tambem reprimendas em massa por culpas collectivas, arrecadações de cigarros, ou pequenos processos summarios em que se averiguava a autoria de delictos importantes, como encher de papel picado uma sala, cuspir ás paredes, molhar a privada, e mesmo muito mais graves, como num episodio do Franco, que se prende ao periodo beato das minhas reminiscencias.

Assistia o Mestre com a attenção de costume á reza cantada, fazendo gyrar nos dedos uma medalha do relogio sobre o collete, na abertura do fraque. Ao final, depois de um intervallo preparatorio, aperitivo de emoções, tomou a palavra num tom solemne de revelação e referiu, com toda a grandeza de que era susceptivel, a hypothese, reclamando a indignação vingadora do Atheneu.

Franco, no domingo da vespera, aproveitando a largura da vigilancia no dia vago, fôra vadiar ao jardim. E para tomar agua de um poço ahi existente, cuja bomba não funccionava em regra, deliberou, imaginem! humedecer a bucha aspiradora com um liquido que Moysés seria capaz de obter no arido deserto, sem milagre mesmo e sem Horeb. Agora considerem que o referido poço fornecia agua para a lavagem dos pratos.

Um murmurio de horror elevou-se das alas de estudantes.

«Adianta-te, Franco», mandou Aristarcho.

Com a insensibilidade petrea que o encouraçava para as humilhações, saiu Franco do logar e de cabeça baixa, como um cão, foi parar no centro da sala. Alli esteve por alguns segundos, exposto, no meio do enorme quadrado de alumnos. Os olhares caíam-lhe em cima, como os projectis de um fuzilamento.

O que mais indignava, era pensar que se havia comido em pratos lavados depois da profanação irremediavel da lympha. Passado este effeito, com que contava para a punição moral, o director concluiu o libello. Ficassemos tranquillos, estavam puros os labios. Franco tinha sido surprehendido por um copeiro que o prendera, e fôra a bomba incontinente declarada—interdicta.

Muita gente duvidou da opportunidade da interdicção. Limpavam com asco a lingua no lenço, esfregavam a bocca até esfolar.

«O porco! bramia Aristarcho. O grandissimo porco!» repetia como um deus fóra de si. Em redor todos apoiavam a energia da corrigenda. Resolveu-se, porém, deixar com vida o criminoso.

Aristarcho marcou apenas dez paginas de castigo escripto á noite, e passar de joelhos as horas de recreio, a começar da presente.

Formulado o veredicto, Franco caiu de rotulas no soalho com estampido, como se repentinamente se lhe houvesse estalado ás pernas uma mola.

«Ahi não! aqui, tratante!» gritou o director, indicando a porta do salão. Cantava-se a oração do meio-dia, como sabem, na casa das recreações em dia de chuva, que alargava tres boas portas para o pateo central. Aristarcho estava perto da do meio.

De joelhos neste ponto, Franco, ao pelourinho: diante das chufas dos maus e da alegria livre de todos. Como esta porta era caminho dos rapazes até as bandejas onde se elevavam as pilhas seductoras da merenda, ficava ainda o condemnado com um reforçozinho de pena. Passando por elle, os mais enfurecidos deram empurrões, beliscaram-lhe os braços, injuriaram-no. Franco respondia a meia voz, por uma palavrinha porca, repetida rapidamente, e cuspia-lhes, sujando a todos com o arremesso dos unicos recursos da sua posição.

Até que um grande, mais estouvado, fel-o cair contra o portal, ferindo a cabeça. A este, Franco não respondeu; pôz-se a chorar.

Os inspectores fiscalisavam o serviço do pão, prevenindo espertezas inconvenientes.

Escaparam-lhes os máus tratos.

As desventuras do pobre rapaz e as minhas proprias haviam-me levado para o Franco. Eu me constituira para elle um quasi amigo. Franco era silencioso, como arreceiado de todos, tristonho, de uma melancolia parente da imbecilidade; tinha accessos refreados de raiva, queixas que não sabia formular. Os livros, causa primeira de seus desgostos, faziam-lhe horror. A necessidade de escrever por castigo promovera nelle a habilidade dos galés: adquirira um desembaraço pasmoso na faina de encher de garranchos paginas e paginas. Esta interminavel escripta fizera-lhe callos ao canto das unhas: meus dedos perderam o brio, dizia elle nos momentos de amargo humor, em que improvisava sarcasmos contra si mesmo.

A principio fugia de mim, resmungando cousas indecifraveis. Depois acceitou-me. Mas não excediam as suas confidencias o restrictissimo limite de uns grunhidos de aversão, historias de desastres pandegos que sabia, ingenuas observações a respeito de assumptos infantis, referencias de odio aos superiores.

Uma vez recebeu carta da provincia, uma das poucas que lhe chegavam por anno. Depois da leitura percebi que tinha lagrimas nos olhos. O pranto era-lhe um acontecimento na physionomia, invariavelmente de uma pasmaceira de mascara de arame. Interessei-me por aquelle soffrimento; elle deu-me a carta a ler. O pae do Franco era um pobre desembargador desterrado nos confins de Matto-Grosso, com oito filhos. Uma carta dolorosa. Fôra entregue directamente pelo caixeiro do correspondente, escapando á curiosidade do director, que gostava de espiar a correspondencia dos alumnos. Falava em vir á côrte no fim do anno, com todos os sacrificios, falava em encontrar o filho bom menino, educado, estudioso. Contava depois, entre exclamações consternadas, que uma filha, a mais velha, desapparecera do collegio onde estava, em companhia de um professor de piano, homem casado, sendo encontrada tres ou quatro dias depois ao abandono. Em vão tinham feito perguntas á infeliz no interesse da punição do culpado; sepultara-se a mocinha num mutismo desolador, como se houvesse perdido a voz, recusando alimento, não tirando do chão os olhos desvairados, escravos da contemplação demente da vergonha.

—Como tem descido Sergio, lastimavam os inspectores, palestrando a ordem do dia com o director, é o intimo do Franco.

Ainda que isso não fosse rigorosamente exacto, não foi surpreza para mim vêr o excommungado convidar-me para uma extraordinaria empreza á noite. «Vingar-me da corja!» murmurava, gargarejando um riso incompleto e azedo. Isto á tardinha, depois da gymnastica, no mesmo dia do processo da bomba.

Conseguira no lusco-fusco escapar á sala onde o haviam encerrado para a tarefa das paginas. E juntos eu e elle, porque eu lhe acceitara o convite com uma facilidade que ainda hoje não comprehendo, galgámos um canto de muro que havia no pateo e saltámos para o jardim florestal.

Em baixo das arvores era já noite espessa. Demos uma volta no escuro acompanhando a curva de uma alameda. O Franco ia adiante calado, andando leve e rapido como uma sombra no ar. En o seguia irresistivelmente, como sonhando, num sonho de curiosidade e de espanto. Que ia fazer o. Franco? Aonde ia elle? Chegámos ao capinzal a um de cujos lados extremos ficava a natação. Logo ao portão de ingresso nesse terreno, havia um deposito de lixo, onde os jardineiros accumulavam as varreduras da chacara, negrejando putrefactas, virando estrume ao tempo.

Franco deteve-se junto ao monturo. Sempre em silencio e activamente, como para não perder aquelle raro estimulo de vontade que o impellia, foi examinando o lixo com o pé.

A um canto, entre tocos de bambú, tiniram garrafas. Franco abaixou-se e como em acção mecanica, sem se voltar, apanhou uma garrafa, outra e outra; foi-me dando, sobraçou ainda outras e proseguimos, o Franco adiante, leve e rapido, sempre no seu andar de sombra, como suspenso e diffuso na nevoa quasi lucida do campo aberto.

Atravessámos o capinzal quasi sumidos entre as altas bandas de capim d'Angola, cuja escura vastidão se constellava de vagalumes e vibrava da grita intensa dos grilos e do clamor dos sapos. Diante da natação o Franco parou e me fez parar, «A minha vingança!» disse entre dentes, e me indicou a toalha d'agua do grande tanque. A massa liquida, immovel, na calma da noite, tinha o aspecto de lustrosa calçada de azeviche; algumas estrellas repetiam-se na superficie negra com uma nitidez perfeita.

Com o mesmo modo atarefado de todo aquelle singular emprehendimento, o Franco acercou-se de mim, tirou-me as garrafas que me dera e desappareceu da minha vista.

Eu ouvi que elle quebrava as garrafas uma por uma. D'ahi a pouco reapparecia, trazendo as abas da blusa em regaço. E começou a lançar então com o maior socego ao tanque para todos os lados, aqui, alli, dispersamente, como semeando, as lascas do vidro que partira. Um breve rumor de mergulho borbulhava á flôr d'agua, abrindo-se em circulos concentricos os reflexos do céu. Eu vi muitas vezes contra o albor mais claro do muro fronteiro, passando, repassando, a sombra do sinistro semeador.

«A minha vingança!» repetiu-me ainda o Franco. «Para o sangue, sangue, accrescentou com o rizinho secco. Amanhã rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguem soubesse que eu me vingo!»

Ao falar mostrava-me o lenço que enxugara o sangue do golpe á testa.

O justo terror da aventura, era logar vedado, por aquellas horas, só me assaltou quando, a pular o muro do pateo, fui cair entre as mãos do Sylvino. Nos apuros da alhada, mal vi o Franco seguro pelo pescoço, como um ladrão em flagrante.

Em presença do director, no escriptorio inquisitorial, improvisei uma mentira. Foramos colher sapotis, affirmei, explicando á tremenda arguição a estranheza da sortida. O director marcou a pena de oito paginas. Franco, que andava com um deficit de vinte pelo menos, teve de accrescentar mais estas ao passivo insolvavel. Pela vergonha da tentativa de furto e no systema dos castigos moraes, addicionou-se a observação supplementar: passariamos, os delinquentes, no outro dia, as horas do almoço e do jantar, ao refeitorio, de pé, carregando em cada mão quantos sapotis coubessem.

Todo o requinte de punição não me deu cuidado; pelo contrario, estava nas condições do meu programma de pequeno martyr ad majorem gloriam. Ao deixar o escriptorio outra cousa preoccupava-me. Ardia de remorsos; tinha cacos de garrafa na consciencia. A armadilha sanguinaria de Franco obsedava-me como um delicto meu.

Depois das horas do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os dormitorios, fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro paginas. Devorava-me o remorso como uma febre; aterrava-me a idéa do banho na manhã seguinte, os rapazes atirando-se á vingança perfida, a agua toldada de rubro. Impossivel fazer mais uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos medios.

A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, ás escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos collegas, pedindo que espalhassem? A controversia avultava-me no craneo como uma inchação de meninges. Dar-se-ia caso que Franco, possuido de arrependimento, fosse apresentar cedinho aos inspectores a delação do proprio feito? Cheguei a tentar o engodo da consciencia com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectiva do sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, á borda, gemendo, extrahindo difficilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cumplice, que o permittira, e maior culpado, que me não cegava a razão, em summa, de justa desforra...

Ergui-me da cama, e descalço nas taboas frias, para vêr se me acalmava o mal-estar, errei pelos salões adormecidos.

Os collegas, tranquillos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, pallejante da anemia de um repouso sem sonhos. Alguns affectavam um esboço commovedor de sorriso ao labio; alguns, a expressão desanimada dos fallecidos, bocca entre-aberta, palpebras entre-cerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóes alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, alliviando-se depois por um d'esses longos suspiros da adolescencia, gerados, no dormir, da vigilia inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanço uma attitude ideal de vôo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de caricias. O ar de fóra chegava pelas janellas abertas, fresco, temperado da exhalação nocturna das arvores; ouvia-se o grito compassado de um sapo, martellando os segundos, as horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gaz, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de aza de mosca, dispersava-se igual sobre as camas, doçura dispersa de um olhar de mãe.

Que venturosa segurança naquelle museu de somno! E amanhã, pobres collegas! o banho, a volta, pés ensanguentados, listrando de vestigios vermelhos o caminho!

Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa Rosalia; beijei-a com lagrimas, pedi conselho como um filho. A inquietação não passava. Atravessei ainda os dormitorios devagarinho, que me não ouvisse o Margal, accommodado num biombo a um dos angulos do salão azul. Uma crepitação dos ossos do tornozelo esteve a ponto de me comprometter. Dentro do biombo, tossiram; parei um momento; curou-se a tosse; prosegui.

Desci ao primeiro andar do edificio; entrei na capella.

A capella em trévas, de um negrume absoluto de merinó preto. A escuridão dava-lhe uma amplitude de subterraneo, mysteriosamente sentida no espaço. Não tive medo. Fui até ao altar. Tropecei no estrado. Ajoelhei-me no chão e descancei a testa nos braços a um dos angulos do estrado do oratorio. Rezei.

Na qualidade de máu estudante não sabia até ao fim nenhuma oração. Rogava por minha conta, improvisando supplicas, vehementes, angustiosas, que deviam forçar a hombro a porta de S. Pedro. Implorava de Deus directamente, sem o intermediario empenho da minha padroeira. Até que, não posso dizer como, adormeci.

Uma palmada acordou-me. Era dia. Ergui-me vexado, de camisola, diante do Margal e de uma porção de collegas que miravam. «É somnambulo, é somnambulo», explicavam.

Esta saída dispensava-me de dizer a que fôra alli; encampei a explicação, concordando. «Que horas são? perguntei. Seis horas, responderam. Chegamos agora mesmo do banho.» Tinham os cabellos empastados sobre os olhos. «E os cacos?!» gritei espavorido. Examinei os pés dos companheiros. Nas chinelas com que desciam ao banho não via sangue! Esclarecia-se: houvera ordem de banhos de chuva no competente banheiro, alojado em um dos commodos baixos do Atheneu, pelo motivo de ter servido seis vezes a agua da natação. Graças ao Senhor! Vinha-me do céu esta solução de aguas sujas, alcançada pela minha prece. Dilatou-se-me a alma em ditoso allivio.

Á minha interjeição explosiva de cacos, os collegas suppuzeram tontura de somno. Não assim o inspector, que me chamou a indagar. Nova mentira: durante a escapada dos sapotis, uma garrafa, que arremessei de máu geito, fizera-se em cacos contra o muro, sobre o tanque. Providenciou-se. O criado encarregado de varrer o tanque, com o zelo da domesticidade, chamou attenção para o numero dos fragmentos; tão extraordinaria era a hypothese da intenção perversa que não pegou.

No mesmo dia estive com o Franco, durante os recreios, a completar a pena. Não me disse palavra acerca da decepção da sua vingança. Julgando-se compromettido, concentrava-se na insensibilidade de carapaça que o defendia, esperando tudo, a minha delação, uma trovoada de doestos, a cafua, um accrescimo ao deficit permanente da divida penal. Aborrecia-se, porém, da necessidade de ser punido por um fiasco de tentativa.

Quanto ao requinte da exposição no refeitorio, mãos cheias de sapotis, não houve meio de obrigar-me Aristarcho. Concordara em ficar de pé; não era pouco. Franco naturalmente submetteu-se e lá esteve, braços abertos, a fazer de fructeira no interesse do systema das punições moraes. Tanto melhor para o systema.

Á vista da reluctancia, calculou-se em paginas de escripta quanto podiam valer dous punhados de sapotis; reducção difficil, que a justiça collegial alcançou mathematicamente, pronunciando uma condemnação que me daria que fazer até mais de meia-noite.

Este rasgo de vigor mentia ao meu religioso papel de submissão e soffrimento. Foi o repentino prenuncio de proxima refórma no interior espiritual. E, como as evoluções da vontade sabem extrahir de qualquer facto a hermeneutica do determinismo, deu-se immediatamente uma occorrencia que ponderou muito na transformação.

De noite, novamente ao lado do Franco, a fatigar-me na tarefa das paginas, tive que ficar até tarde numa das salas do primeiro andar. Pelas dez e meia, o director, antes de sair para casa, veio vêr-nos. «Ainda escrevem... estes peraltas?...» disse-nos de enorme altura, á guisa de boas-noites, e desappareceu confiando-nos ao amavel João Numa, bacoro, inspector das salas de cima. Na sua qualidade de gorducho, o João não era diligente. Apenas viu partir Aristarcho, trancou a ultima porta do Atheneu e foi dormir.

Acabrunhado pela noitada anterior, estava eu de somno que mal podia erguer a cabeça. De uma vez que cedi ao cançaço fui despertado por sentir que me alisavam a mão. Adormecera sobre o braço direito contra a carteira, pousando o rosto na tinta do castigo, deixando cair o braço esquerdo para o banco. Um instante depois estava fóra da sala, de um pulo, como se tivesse reconhecido em sonhos que o Franco era um monstro.

Ao dia immediato saí da cama como de uma metamorphose. Imaginei, generalisando errado, que a contemplação era um mal que o mysticismo andava traidoramente a degradar-me: a convivencia facil com o Franco era a prova. O Atheneu honrava-me, por esse tempo, com um conceito que só depois avaliei. Eu não me julgava assim tão apeiado, mas suppuz-me directamente a caminho de um mergulho. Se a alma tivesse cabellos, eu registraria neste ponto um phenomeno de horripilação moral.

Fiquei perplexo.

O triumpho na escola podia ser o Sanches; em compensação, a humildade vencida era o Franco. Entre os dous extremos repugnantes, revelavam-se-me tres amostras typicas á linha do bem viver: Rebello, um ancião; Ribas, um angelico; Matta, o corcunda, um policia secreta. Para angelico decididamente não tinha geito, estava provado, nem omoplatas magras; para ancião, não tinha idade, nem oculos azues, nem máu halito; para ser o Matta, faltava-me o justo caracter e a corcova... Onde estava o dever? Na cartilha? Na opinião de Aristarcho? Na misanthropia senil dos oculos azues?

Salteou-me nisto, ás avessas, o relampago de Damasco: independencia.




V

Devo, entretanto, é minha ephemeride religiosa a maior somma de gratidão. Suavisou-me com a complacencia divina o periodo de vadiação profunda e amollecimento hypnotico com que me pesou a atmosphera do Atheneu. Toda a perseguição de castigos, sem prejuizo da minha delicadeza moral resvalava pelo cilicio da penitencia; eu emergia forte das provações. Que tranquillidade, na apathia, ter por fiador a Deus!

Iamos á missa nos domingos. Todos abriam os livrinhos, para que o director os visse attentos. Eu não abria o meu. Deixava apenas fugir-me o espirito para o alto e adherir á abóbada como as decorações sagradas, ajustar-se estreitamente nos detalhes da architectura do templo como o ouro subtil dos douradores, conservar-se lá em cima, ávido ainda de ascensão, ambicioso de céu como a baforada dos thuribulos.

Havia accessos communicativos de tosse que lavravam nas fileiras. Eu não tossia. Havia convulsões de riso, mal contidas no lenço, mal dominadas por um olhar de Aristarcho, de joelhos á frente do collegio e mãos cruzadas sobre o castão do unicornio; como certa vez que um cão bregeiro e sem principios, mesmo ao elevar-se a santa Particula, entrou e escapou-se com o casquete de um fiel contricto. Eu resistia ao riso.

Cantavamos ao côro em dias solemnes. Melhor organisação vocal possuiria o Orpheon do que a minha; mas se cantassem os corações em vez dos labios, nenhum hymno evolaria mais largo, mais bello que o meu. Traziam-nos agua com assucar num jarro de vidro para molhar as cordas vocaes. Eu rejeitava esta doçura terrena.

O Atheneu concorria para o brilhantismo das procissões. Eu me embrulhava amplamente na opa, encarnada como os sacrificios, que me podia enrolar tres vezes: empunhava uma tocha que me martyrisava os dedos com os pingos ardentes de cêra. E lá ia, cobiçando ainda a força lombar dos mascates para ter ás costas, eu só, aquelles pesados andores; invejando o garbo ao presidente da Philarmonica particular Prazer do Rio Comprido, que vinha após no prestito, com o estandarte S. P. M. P. R. C., e o punho athletico de um equilibrista de perchas para levar correcto e rijo os balançados guiões.

Com que tristeza, ao entrar a procissão, quando o director nos mandava seguir para o collegio, com que tristeza não espiava de longe, pela porta, o interior flammejante do templo! Lá ficava a festa de Deus... e nós para o Atheneu soturno, em marcha inexoravel! Eu sacudia a cabeça com desespero; não podia soffrer a privação d'aquella alegria, gozar na alma a orgia de fogo dos altares, subir com o pensamento, degráus, degráus, ao throno scintillante, arrojando-se para cima na escalada da Gloria.

Depois d'esses enthusiasmos foi-se-me a religião escurecendo.

Era meu vizinho, na sala geral do estudo, Barreto, um personagem duplo, que representava, nas horas de recreio, a folgança em pessoa e tinha momentos de meditação trevosa com esgares de terror e falava da morte, da outra vida, rezava muito, tinha figas de pau, bentinhos, medalhazinhas em cordões, que saltavam fóra do seio ao brinquedo.

Iniciara-me Sanches no Mal; Barreto instruiu-me na Punição. Abria a bocca e mostrava uma caldeira do inferno; as palavras eram chammas; ao calor d'aquellas praticas, as culpas ardiam como sardinhas em frege.

Barreto andara num seminario rigoroso, regimen de nitro para congelar as ardencias da idade. Era magro, testa de Alexandre Herculano, beiços finos, olhos pretos, refulgentes, saídos, physionomia geral de caveira em pelle reseccada de mumia. No queixo viam-se-lhe dous fios unicos de barba, em caracol, cada um para a sua banda.

Só elle, talvez, conheceu-me as preoccupações beatas. Senhor do meu fraco, pôz-se a informar dos pavores da fé com a emphase satisfeita de um cicerone. Recordo-me de um assumpto: a communhão sacrilega! A proposito, Barreto me deu um livro a ler, um livro cruel, que descrevia cousas dignas de Moloch; crianças directamente justiçadas pela celeste colera, uma d'ellas que, por haver commungado sem confissão prévia, illudindo ao sacerdote, fôra apanhada pela roupa entre dous cylindros de aço d'uma machina e reduzida a pasta, acabando impenitente, maldita, sem tempo para um ai Jesus... Era-me incrivel que de uma simples hostia podesse a thaumaturgia da crendice obter tantos effeitos de terror.

Barreto commentava reforçando. Mettia medo acceso em iras santas de prégador, demonstrando quão longe ainda estavam os castigos da Providencia, na terra, dos supplicios da eternidade. Descrevia o inferno como se tivesse visto. Rubida caverna, dragões verde-negros, côr de limo, serpentes de ferro em brasa enroscando os condemnados, demonios fulvos revolvendo tachos de asphalto em fusão, outros espiritos caudatos levando a chuço magotes, para os tachos, de inconsolaveis reprobos.

Li a Nova Floresta, de Bernardes. O reverendissimo autor veio retocar a obra do Barreto, com as suas narrativas de illuminado terrifico.

Comecei a achar a religião de insupportavel melancolia. Morte certa, hora incerta, inferno para sempre? juizo rigoroso; nada mais negro!

Era cedo demais, para que eu podesse pesar philosophicamente a revelação; encontrei, todavia, embaraço invencivel no ritual das ceremonias. Eu que, nos melhores dias, não conseguira formular litteralmente uma só prece do catecismo, esbarrei definitivamente na prescripção fastidiosa do preceito. Ir á missa, muito bem; mas o resto e ainda mais a dependencia dos senhores ministros do culto... Em duas palavras: a sacristia e o inferno, provaveis escandalos e horrores inevitaveis, desgostaram-me de tudo. Demais, eu tinha por vezes tentado dar boa conta, estudando um pouco e rezando muitissimo, com um pequeno jejum ainda por cima; ao dia seguinte, nota má! Era um descredito para o favor divino. Que custava á summa Omnipotencia modificar em licção sabida uma ignorancia soffrivel, como transmutara em fartura sem conta uma miseria de cinco pães?

Ia-se por esta fórma a exaltação dos meus fervores, quando me achei envolvido no episodio dos cacos. A attribulação do remorso reaccendeu por um momento a chamma decadente; o resultado da minha supplica nesse duro transe não provara mal; muito adiantada, porém, ia a decomposição do meu extase. Eu esqueci a circumstancia com a ingratidão facil dos pretendentes servidos. E cheguei á conclusão audaz.

Não tendo força para estacar de arranco a torrente dos seculos christãos, consegui ao menos ficar á margem. Ignorante do atheismo, limitei-me a voltar o rosto aos phantasmas do eterno. Subi ao dormitorio, tirei da gaveta Santa Rosalia, guardei a flôr da ultima offerenda, secca, porque a minha pontualidade de culto faiscava já, depuz-lhe em despedida um osculo, e, sem mais profanação, fil-a baixar á sala de estudo, onde lhe commetti o modesto encargo de marcar as paginas de um volume. Estava demittida a minha padroeira!

Pouco depois, algum apaixonado de gravuras raptou-m'a, e eu lamentei apenas perder a lembrança da saudosa prima.

Maio tinha passado e as rosas; acabaram-se as orações á Virgem. Sem os hymnos da manhã, sem o sorriso a côres de Santa Rosalia, restava-me o Deus dos novissimos, das communhões sacrilegas, o Deus selvagem do Barreto. Positivamente não quiz saber do carrasco; alijei a metaphysica como um pesadelo. E me achei de novo sósinho no Atheneu; sósinho mais do que nunca. Com os astros apenas do meu compendio, panorama da noite consoladora.

E ainda bem, que voltava da crença pela Via-lactea, como para a crença fôra. Retirada honrosa de um desengano.

Os dias de saída eram de quinze em quinze. Partia-se ao domingo, depois da missa; voltava-se á segunda-feira, antes das nove da manhã. Os dias santos de guarda occasionavam saídas de vespera. O commissario dos generos e despenseiro insistia com o director afrouxasse mais o systema de feriados. Os rapazes precisam passear, gryphava elle, com a liberdade de mordomo confidente. Aristarcho replicava com a invenção cordata dos generos de terceira, elasticidade insensivel dos orçamentos.

Havia, porém, saídas extraordinarias de premio ou de obsequio.

A cada licção julgada boa, o professor assignava um papelucho amarello, bom ponto, e entregava ao distincto. Dez premios d'estes equivaliam a um cartão impresso, boa nota, como dez vezes vinte réis em cobre valem um nickel de duzentos. O systema decimal applicava-se mais á conquista de um diploma honroso, equivalente a um baralho de dez cartões de boa nota. Com tal diploma era o estudante candidato á condecoração final de uma medalha, de prata ou de ouro, conforme fosse mais ou menos optimo nos diversos superlativos do merecimento escolar. Reduzia-se assim a papel o valor pessoal, na clearing-house da directoria; ou, melhor: adaptava-se a theoria de Fox ao processo das recompensas, com todos os riscos de um cambio incerto, sujeito aos panicos de banca-rota, sem um criterio de justiça a garantir, sob a ostentação do papel-moeda, a realidade de um numerario de bem aquilatada virtude.

Fosse como fosse, certo é que, com os bilhetes de boa nota, comprava-se uma saída, e isto era o importante, como nos paizes de más finanças: desde que o papel tem curso, de que vale o valor?

Inutil é dizer que me não chegavam nunca as saídas de premio. Tanto melhor me sabiam as outras.

Durante a primeira quinzena de collegio, o pensamento de um feriado e regresso á familia inebriou-me como a anciedade de um ideal fabuloso. Quando tornei a vêr os meus, foi como se os houvesse adquirido de uma resurreição milagrosa. Entrei em casa desfeito em pranto, dominado pela exuberancia de uma alegria mortal. Surprehendia-me a ventura incrivel de mirar-me ainda nos olhos queridos, depois da eternidade cruel de duas semanas. Não! A magnanimidade do cataclysmo temido favorecera o meu tecto. Deus permittira, na largueza prodiga da summa bondade, que eu revisse a nossa casa sobre os alicerces, o nosso tão lembrado tecto e a chaminé tranquilla a fumar o spleen infinito das cousas immoveis e elevadas.

Com o tempo habituei-me á feliz probabilidade de achar na mesma os prezados lares, e ousei nos momentos da scisma collegial fundamentar projectos de divertimento sobre a esperança de que, abusando a minha ausencia e só para me atormentar o coração, a terra se não havia de abrir e devorar exacta e exclusivamente o que me era mais caro.

Não foram, porém, preoccupações pueris de temor, nem prospectos de folguedo que levei ao primeiro dia de saída depois da demissão de Santa Rosalia.

Vinha buscar-me um criado. Eu, adiante do portador, na minha fardeta de botões dourados, parti do Atheneu, grave e mudo como um diplomata a caminho da conferencia. Ia effectivamente ruminando a mais séria das intenções: affrontar uma entrevista franca com meu pae, descrever-lhe corajosamente a minha situação no collegio e obter um auxilio para reagir.

Meu pae acabava de deixar o leito. Nada sabia dos meus ultimos insuccessos. Ficou admirado e consternado. D'ahi o exito completo da minha entrevista.

Dias depois, no collegio, eu era um pequeno potentado. Derrubei o Sanches; consegui a revogação da disciplina das espadas; reconquistei a benevolencia de Manlio; levantei a cerviz! Desembaraçado do arbitrio pretencioso de um vigilante, o trabalho agradou-me. Um conselho de casa affirmou-me que havia a nobre opinião de Aristarcho e a opinião ainda melhor da cartilha, mas havia uma terceira—a rainha propria, que se não era tão boa, tão abalisada como as outras, tinha a vantagem alta da originalidade. Com uma palavra fez-se um anarchista.

D'ahi por diante era fatal o condicio entre a independencia e a autoridade. Aristarcho tinha de roer. Em compensação, adeus esperanças de ser um dia vigilante! principalmente: adeus indolencia feliz dos tempos beatos!

Para a campanha da reacção, armazenei uma abastança inextinguivel de vaidade e deliberei menosprezar do melhor modo premios e applausos com que se diplomavam os grandes estudantes. Habituado á vida do internato, nutria a certeza de conseguir sósinho quanto não podera com o amparo de um amigo, nem com a ajuda de Deus. No firme proposito de me não fazer exemplar nem me applicar ao cobrejamento de habilidades a que o papel de modelo obrigava, estabeleci, comtudo, a razoavel mediocridade sem compromissos, de um novo programma.

Poucos premios ganhava dos papeluchos amarellos; era contrapeso facilitava aos poucos que me vinham a emancipação bohemia do cisco. Por esta escala foram ter alguns com o meu nome ao gabinete do director. Aggravo de desdem que se não perdoaria jamais.

Desenvolveu-se nas alturas uma antipathia por mim, que me lisongeava como uma das formas da consideração. Chegava eu assim, por trajecto muito differente do que sonhara á desejada personificação moral de pequeno homem.

Invejosos da minha altivez, os inimigos fizeram partido. Sanches era o chefe, na cortina; Barbalho era o leader abertamente. Eu sorria vaidoso, levando de vencida a guerrinha, como a espuma á proa de um barco.

Este foi o caracter que mantive, depois de tão varias oscillações. Porque parece que ás physionomias do caracter chegamos por tentativas, semelhante a um estatuario que amoldasse a carne no proprio rosto, segundo a plastica de um ideal; ou porque a individualidade moral a manifestar-se, ensaia primeiro o vestuario no sortimento psychologico das manifestações possiveis.

Reinavam no Atheneu duas perniciosas influencias que contrabalançavam efficazmente o porejamento de doutrina a transudar das paredes, nos conceitos de sabedoria decorativa dos quadros, e ainda mesmo a policia das apparições ubiquas e subitaneas do director. Cousa difficil de precisar, como a disseminação na sociedade, do principio do mal, elemento primario do dualismo theogonico. O meio, philosophemos, é um ouriço invertido: em vez da explosão divergente dos dardos—uma convergencia de pontas ao redor. Através dos embaraços pungentes cumpre descobrir o meato de passagem, ou acceitar a lucta desigual da epiderme contra as puas. Em geral, prefere-se o meato.

As maximas, o director, a inspecção dos bedeis, por exemplo, eram tres espinhos; as referidas influencias eram mais dous. A mocidade ia transigindo do melhor geito com as bicudas imposições das circumstancias.

Representavam-se as influencias dissolventes por duas especies de encarnação, fundidas em hybridismo de disparate—a da fórma feminina personificada em Angela, a canarina, ou antes a camareira de D. Emma, e a de um encontro de taboas humildes, conjunctadas ás pressas, por força do prosaismo incivil de um episodio da economia organica.

Falavam assim á imaginação, impressões de relance, um olhar banhado de lascivia, a tempestade galopante das roupas, em desordem de fuga, calculada para effeitos de irritação, um descuido de alças afrouxadas ao corpinho, um proposito de poças d'agua em dias de chuva, obrigando a saias curtas e canellas núas, ora a uma porta em rapida passagem, ora através do parque frondoso; ou ao escriptorio, por motivo de recados de D. Emma cuja frequencia desesperava o director; ou sobre o muro da natação, ou a qualquer canto com os copeiros, em duetto de idyllio que se espiava; ou em graçola aventurada aos inspectores, que se babavam.

Os grandes pilheriavam; os pequenos, sérios, olhavam como quem aprende.

Depois, a conspiração dos sarrafos, o favor ao vicio á sombra do pinho alcatroado, a penuria do fumo, a mendicidade das fumaças concedidas por beneplacito de dedicação, a pontinha do bird's eye de bocca em bocca, como o chimarrão do Rio Grande, mordida, salivada, saboreada com todo o gosto acre do que se esconde e que é vedado, e a lembrança solitaria, devastadora das imagens do mal, distantes, inalcançadas, dança de flôres doudas ao vento; a correspondencia covarde acolhida num intersticio de traves como em asylo de infima miseria; as obscenas leituras, e o alvoroço do receio perpetuo, adubo caustico de prazer máu; a vaidade de illudir, a secreta mofa, o appetite de cupim pela demolição invisivel do que está constituido, a urdidura preoccupada, extenuante de uma tramazinha de hypocrisias minimas e complicadas—vivescencia vermicular dos estimulos torpes, respirada no ambiente corrompido do retiro, nascida de baixo, de um buraco, propaganda obscura da lama.

E diluia-se pelos semblantes a pallidez creme, cavavam-se olhares vitreos das regiões do impaludismo endemico.

Soavam-me ainda aos ouvidos as predicas de ascetismo do Barreto. Para elle o mal era femea. O Sanches entendia que era macho. Amarrava-lhe um rabo ao coccyx e criava o Satanaz bilontra, immoral e alegre. A cauda do demonio do Barreto era de rendas. Na rua do Ouvidor, faria o Satanaz—fanfreluche. Uma cousa horrivel, com dous olhos, destinados á perdição dos homens. Saia digna de consideração, só a de padre, que, por signal, é batina, não é saia. O mais não passava de pretexto da moda parisiense para disfarçar o pé de cabra. Cuidado com Satanaz sorriso! um sorriso com duas pernas, um abraço com dous seios, uma pantomima do inferno, faceira e traidora, gracioso e comburente, d'onde por descuido e por acaso vae-se desprendendo a humanidade, como as cobrinhas pyrotechnicas de Pharaó. O menor descuido, desgraça eterna!

Contou-me que o porteiro do seminario em que estivera, para não ser despedido, fôra intimado a separar-se da propria irmã. Deus, para vir ao mundo, tinha severamente elaborado o mysterio excepcional de uma virgindade sem mancha. E, se não fossem as prophecias, que não podiam ficar compromettidas, o vehiculo a Conceição, por amor da insexual pureza, teria sido o carapina José, ou mesmo o velho Zacarias, ainda mais respeitavel pela calva.

A theologia do Barreto me calara fundo, e eu resolvera piedoso enxotar quanta imagem de sorriso viesse pousar-me á idéa. Virando a pagina dos fervores, a theoria ficou-me de resto, do Satanaz feminino. Com a pureza a mais, natural da idade, ia zombando de Angela e pompas adjacentes. Fechado o peito como a paz de Jano, e exteriormente a vaidade me amparava.

Para me prevenir ainda mais, veio uma occorrencia provar pelo facto que o Barreto tinha razão acerca da influencia feminina; uma occorrencia que ensanguentou os annaes do estabelecimento, entristecendo o director, embora a final se lhe tornasse agradavel pelo muito que fez falar do Atheneu.

Tinhamos acabado de jantar e corria como sempre a recreação, que precedia a hora da gymnastica. Das bandas da copa, ordinariamente socegada, chegou-nos subitamente um rumor de algazarra. Era estranho.

O alarido cresceu; uma altercação violenta; depois fragor de lucta, o estrondo de uma mesa tombando. Depois gritos de soccorro; mais gritos; a voz de Aristarcho aguda, dando ordens como em combate. Estavamos attonitos.

De repente vimos assomar á porta, que dominava o pateo sobre a escada de cantaria, um homem coberto de sangue. Um grito de horror escapou a todos. O homem precipitou-se em dous pulos para o recreio. Trazia um ferro na mão gottejando vermelho, uma faca de lamina estreita ou um punhal.

«Matou! matou! gritavam da copa; pega o assassino!»

Sobre os passos do fugitivo vinham diversas pessoas. João Numa, gordinho, livido e tremulo, ao descer a escada, rolou, partindo os oculos na pedra.

Aristarcho, a uma janella, bem certo da inviolabilidade pessoal, ao peitoril, desenvolvia uma energia sem limites, mandando pegar o homem da faca. Os inspectores do recreio tinham azulado. Os rapazes berravam como loucos.

Inesperadamente reapparece o Sylvino, muito branco, com as suissas mais pretas, pelo contraste do medo:

«Esperem! esperem! dizia convulso, como quem traz na algibeira um expediente salvador. Esperem!»

Exactamente no meio do pateo abriu as immensas pernas de Rhodes magro, e levou á bocca um apito.

Infelizmente, com a força do sopro engasgou-se o assobio, depois de dous chilros falhos.

Cercado pelos criados que o perseguiam com trancas e cacetes, o homem da faca, cuja intenção era escapulir para o jardim, encostou-se a uma parede, «Deixem-me passar, que mato mais um,» rosnava, com a physionomia faiscante, «Caminho para mim!» repetia, agitando o ferro num fremito de cascaveis.

Alguns moços destemidos tinham-se avizinhado e completavam o imprudente cerco.

«Abre!» rugiu praguejando o criminoso acuado. E, de um salto de fera, arremessou-se contra os sitiantes, brandindo a faca.

Com a milagrosa destreza do instincto de conservação, cada um safou-se como pôde: o perseguido passou como um tiro. «Fugiu!» clamavam de todos os lados.

Quando o vimos cair de bruços.

Alguem se precipitara inesperadamente ao seu encontro e, escorando-o com o joelho e empolgando-o pelo gasnete, com o punho o fizera rodar por terra.

Era o Bento Alves!... Com uma das mãos, o bravo collega opprimia a cara ao sujeito contra o solo, ralando-a na areia, com a outra, por um prodigio de vigor, immobilisava-lhe o braço armado. Com o esquerdo livre, o criminoso firmava, tentando erguer-se. Esmagava-o a pressão de um monolitho.

Quando foram em auxilio, já o Bento Alves desarmara o adversario, coagindo por meio da tenaz dos dedos com que lhe ferrava o congote.

De toda parte, acclamavam-no heróe. Á janella, de longe, Aristarcho, enthusiasmado, esquecia o divino aprumo e bracejava como um moinho de vento, sem conseguir dar voz á emoção.

Bento Alves retirou-se com a faca em trophéu, deixando o criminoso sob uma pilha de valentes da ultima hora e criados que o suffocavam.

Quando o pobre diabo pôde tomar pé, manietado, amarrado de mil maneiras por cintas de couro, como as mumias no envoltorio de tiras, acercou-se d'elle o Sylyino e o aggrediu covardemente com um sermão de moral.

Era criminoso dizia-se. De que crime? Dentro de alguns momentos o collegio inteiro o sabia.

O homem da faca era um dos jardineiros do Atheneu. Durante o jantar enfrentara-se de razões com um criado da casa de Aristarcho e o matara. Havia algum tempo que disputavam os dous a primazia no coração de Angela; uma terrivel pendencia. O criado de Aristarcho julgava-se na legitima posse d'esse escrinio de affectos, pela convivencia ao lado da bella, consorciados maritalmente na intimidade dos alguidares, onde as mãos se confundiam como as louças ou na sociedade affectuosa do serviço dos aposentos do director e da senhora, permutando entre si dichotes assucarados, á flagellação dos tapetes.

O jardineiro, patricio da camareira, dava por si a razão de nacionalidade, o facto de haverem chegado á America na mesma turma de immigrantes e uma autoação completa de juramentos idoneos da seductora.

Levados a tal aperto os nós da paixão não se desatara; cortam-se. O jardineiro cortou. Por mór azedume da situação, dizem que Angela de parte a parte estimulava os adversarios declarando a cada um por sua vez preferil-o exclusivamente.

Confiado o assassino aos urbanos, tornou-se a victima o objecto das attenções.

Era este um rapagão de trinta annos, pardo e sympathico. O assassino era mais escuro, especie de andaluz de touradas, baixo, solido, grosso como um cepo de açougue.

Apenas desappareceu o criminoso, o collegio inteiro assaltou a escada, desejosos de vêr o assassinado. Á porta do refeitorio, porém, Aristarcho despachou: «não têm que ver!» Ao mesmo tempo a sineta importuna badalava chamando á forma. O professor Bataillard, de branco, no cinturão vermelho, appareceu ao lado do director. Os rapazes morderam-se de raiva. E não houve nunca no mundo dous superiores mais odiados.

Mas a teia da disciplina tinha malhas de maior largura. Alguns rapazes acharam meio de se esgueirar até á copa, e eu tambem com elles.

Desde muito, andava querendo ver um cadaver, espectaculo real, de mãos contrahidas, revirados beiços. As carias iconographicas de parede deixavam-me impassivel, com as estampas theoricas de cerebros a descoberto, globos oculares exorbitados, ventres golpeados em abas, mostrando visceras, figuras humanas de pé, descançando a um quadril, movendo a supinação num geito de complacencia passiva, esfolados para que lhes vissemos as veias, modelos vivos da sciencia em pose de supplicio, constancias de brahmane, como á espera que houvéssemos aprendido de cór a circumvolução do sangue, para vestir de novo a pelle e os musculos deslocados. Não me bastava.

Nos grandes armarios havia melhor: peças anatomicas de massa, sangrando verniz vermelho, legitima hemorrhagia; corações enormes, latejantes, humidos á vista, mas que se destampavam como terrinas; olhos de cyclope, arrancados, que pareciam viver ainda estranhamente a vida solitaria e inutil da visão; mas olhos que se abriam como fôrmas de projectis de entrudo. Mas eu queria a realidade, a morte ao vivo.

Lembrava-me de ter visto um anjinho, entre velas no caixão agaloado, simples carinha amarellenta, sombreada de azul em nodoas dispersas, em mãos crispadas numa fita, cobrindo-se de flôres a immobilidade do ultimo somno. Vira ainda uma velha, na eça elevada, uma opulenta velha que morrera sem herdeiros. Ao redor, choravam muito as tochas pranto de cêra côr de mel, inconsolaveis, espichando compridas chammas, que pareciam subir ao tecto com um filete de fumo. Distinguiam-se bem os dous pés para dentro, em botinas de panno; e o nariz pronunciando-se sob o lenço de rendas.

Isto não era ter visto cadaver. Eu queria o cadaver flagrante, despido dos artificios de armação e religiosidade, que fazem do defunto simples pretexto para um cerimonial de apparato. O que me convinha era o galho por terra, ao capricho da quéda, decepado da arvore da existencia, tal qual.

O cadaver do criado estava em condições; com a vantagem do adereço dramatico do sangue e do crime, como nos theatros.

Encaminhava-me, pois, para a cozinha e sentia palpitações fortes, abalando-me certo modo de agradavel pavor. A cozinha do Atheneu, além dos alojamentos da copa, era espaçosa como um salão. Ás paredes scintillava o trem completo de cobre areiado, em linha as peças redondas como uma galeria de broqueis. No centro uma comprida mesa servia de refeitorio á criadagem.

Naquella occasião havia muita gente perto da mesa. Vi pelas costas pessoas alheias ao estabelecimento. Disseram-me que estava presente a autoridade e tratava de remover o morto. Aquella gente toda devia ser, de costas, a autoridade policial, feição do poder publico que eu não discriminava ainda bem, mas já considerava. Caído ao soalho, vi o cadaver sobre uma esteira de sangue.

Guardava ainda a contorsão esquerda da agonia; á bocca fervia-lhe um crivo de espuma rosada; trajava collete fechado, calças de casimira grossa. Os ferimentos não se viam. Os olhos estavam-lhe inteiramente abertos e de tal maneira virados que me fizeram estremecer.

Alguns minutos depois de minha entrada, chegaram dous sujeitos com uma rêde. Os copeiros ajudaram a apanhar o corpo; os homens da rêde o levaram.

Impressionou-me para sempre o desfallecimento flacido dos membros, quando levantaram o cadaver, a molleza da cabeça, rodando nos hombros, com um movimento proprio dos que padecem intoleravel angustia, e um choque subito para traz que me gelou o sangue, empinando-se o queixo e o nó da garganta, rasgando-se a bocca, brusco, como se o ferido vomitasse um resto tenaz da vida.

Após a rêde, pela escada da cozinha, saíram todos; eu fiquei. Examinava ainda o chão alagado de sangue quando alguem, passando, afagou-me os cabellos: era Angela!

Morió, disse, indicando o sangue, arregalando as sobrancelhas, e desappareceu com o andar de bamboleio.

Primeira vez que reparei que era bonita a canarina. Sim, senhor! E para o demonio culpado de tão horrivel incidente fui de uma benevolencia tal de opinião que me nasceram remorsos.

Angela tinha cerca de vinte annos; parecia mais velha pelo desenvolvimento das proporções. Grande, carnudo, sanguinea e fogosa, era um d'esses exemplares excessivos do sexo que parecem conformados expressamente para esposas da multidão—protestos revolucionarios contra o monopolio do thalamo.

Atirada de modos, como o dithyrambo do amor ephemero; vasia como as estatuas ôccas; sem sentimentos, material e estupida, possuia, entretanto, um segredo satanico de graduar os largos olhos de sepia e ouro, animar expressões no rosto que dir-se-ia viver-lhe na face uma alma de superficie, possante, capaz dos altos martyrios da ternura e de interpretar os poemas tragicos da dedicação.

Gostava de arregaçar as mangas para mostrar os braços, luxo de alvura, braços perfeitos de princeza, que davam que pensar ao espanador humilde no serviço da manhã. Exposta ás soalheiras, revestira-se a côr branca do rosto de um moreno calido, tom fugitivo de magnolias fanadas, invulneravel aos rigores de ar livre, como deve ter sido outr'ora a epiderme do Ceres. Ferissem-lhe a tez os dardos corrosivos da insolação, vinha-lhe apenas ao rosto um rubor mais bello, e não lhe tirava mais o sol á mocidade da carne do que á propria terra, sob a calcinação dos ardores; uma primavera de rosas.

Consciente da formosura, Angela abusava.

E era do mal livrar-se. Começava por um jogo de virtude. Enxugava em ar de seriedade os labios humidos; as palpebras, de longas pestanas, baixavam sobre os olhos, sobre o rosto, viseira impenetravel do pudor. Convidava á adoração colhendo aos hombros o manto da candura, refugiando-se na indifferença hieratica das vestaes. Depois, uma pontinha de ingenuo sorrir, olhos fechados ainda; gradação de infantilidade que substituia á vestal uma criança esquiva e timida, rindo, voltando a cara. Os olhos, por fim, aventuravam-se de relance, uma temeridade de noiva possivel, nada mais, volvendo ao retrahimento scismador. Depois, a contemplação confiada; romance inteiro, linha por linha, de uma virgindade. Até que subito, meu castissimo Barreto! aquella virtude, aquella meiguice, aquella esquiva candura, aquella nubilidade melancolica, aquella physionomia honesta, pesarosa talvez de ser amavel, fendia-se em dous batentes de porta magica e rodava em explosão o sabbath das lascivias.

Os olhos riam, distillando uma lagrima de desejo; as narinas offegavam, adejavam tremulas por intervallos, com a vivacidade espasmodica do amor das aves; os labios, animados de convulsões tetanicas, balbuciavam desafios, promettendo submissão de cadella e a doçura dos sonhos orientaes. Dominava então pela offerta abusiva, de repente; abatia-se á derradeira humiliação, para attrahir de baixo, como as vertigens. Alli estava, por terra, a prostituição da vestal, o hymeneu da donzella, a deturpação da innocente, tres servilismos reclamando um dono; appetite, appetite para esta orgia rara sem convivas!

Não escolhia amores. Era de todos como os elementos; como os elementos, sem remorso das desordens e depredações. Franqueava-se á concorrencia. Havia lugar para todos á sombra dos cabellos castanhos que lhe podiam vestir as copiosas fórmas, fartos, perpetuamente seccos, que ella sacudia a correr como uma poeira de feno.

Aquelle modo do olhar, passando, de Angela, clarificou-me a imaginação das sombras de terror em que me enleiara o alvoroço do acontecimento da tarde e a vista horrivel do cadaver.

Depois da façanha, Bento Alves, o heróe, sumiu-se; commentavam-lhe de mais a bravura. Nem aos exercicios do campo compareceu.

Bento Alves era um mysterioso. Mysteriosos são no collegio os que não andam a atravancar o espaço com as gatimanhas das suas expansões. Frequentava as aulas superiores; sem que fosse um estudante de rumuroso merito, fazia-se respeitar dos mestres e condiscipulos. Sisudo como certos rapazes de intelligencia menor que se arreceiam do ridiculo, não sómente pela sisudez impunha-se ao respeito. Consideravam-no principalmente pela nomeada de herculeo. Os fortes constituem realmente uma fidalguia de privilegios no internato. No tumulto da existencia em commum, fundem-se as distincções de classe na democracia do colleguismo; as cambiantes de fortuna apagam-se no figurino geral das blusas pardas. Os titulos de superioridade prevalecem primitivamente no criterio semi-barbaro dos verdes annos; o punho valido chega a fazer vantagem sobre a propria vantagem do favoritismo.

Alves não alardeava de forte; evitava disputas, não jogava o pulso, proferia exercitar-se á gymnastica sem espectadores. Ás vezes, por brinquedo, cingia o braço, a um collega entre o pollegar e o médio e fechava-lhe sob a manga um bracelete roxo dolorido. Aquelles que se sujeitavam ao formidavel ensaio de tatuagem por compressão, acercavam-se, d'ahi por diante, de Bento Alves com os escrupulos da mais reservada prudencia.

Entretanto era molle, da preguiça monumental dos animaes pujantes. Veloz, detestava a carreira; alegre, fugia aos folguedos. Gostava do seu socego; desviava os incommodos da convivencia distribuida, transbordante dos estimados. Não se falava d'elle no Atheneu. Limitavam-se a temel-o em silencio.

Depois da valorosa façanha a que o tinha levado a casualidade, teve de vêr-se heróe á força. Um desespero. Se algum companheiro caía na tolice de dizer-lhe alguma cousa relativamente ao crime do jardineiro, Bento Alves rasgava a conversa com um monosyllabo de impaciencia, encrespando-se como um javali. Apezar de tudo foi o pobre modesto percutido, laminado sobre a bigorna da notoriedade.

Felizmente o barulho da entrada para o Atheneu de um moço celebre veio modificar a odiosa voga.

Acabava de matricular-se Nearcho da Fonseca, pernambucano de illustre estirpe.

Apresentou-se com o pae, vulto politico em galarim no tempo. Era um mancebo de dezesete annos, rosto cavado, cabellos abundantes, de talento não commum, olhar vivo, moroso de importancia, nariz adunco, avançado, secco, quasi translucido como um nariz de vidro. Franzino como a infancia desvalida, magro como uma prelecção de osteologia, surprehendeu-nos, entre outras, uma recommendação a seu respeito, pelo proprio director ás barbas do pae:—Nearcho da Fonseca era um grande gymnasta!

Talentoso que fosse, concebiamos, se por nada mais, ao menos pela cabelleira... Mas um gymnasta aquelle espectro da necessidade!

A juventude, entretanto, é a eterna esperança: nós esperamos por uma exhibição comprobante.

Abalou-se a tribu dos acrobatas, dos athletas; toda a rapaziada de brio, o Luiz á frente, que localisava na protuberancia nodosa do biceps o pundonor supremo da creatura, preparou na mais vasta admiração um aposento consideravel para acolher o confrade.

Formados trezentos, á tarde, diante dos apparelhos, foi em movimento de avidez que ouvimos Bataillard com o cavalheirismo que o distinguia, convidar a exhibir-se o grande Nearcho.

Estava presente o director; estava presente o respeitavel progenitor de Blondin. O Atheneu olhava.

Nearcho deixou a fórma, rompendo a marcha com o pé esquerdo, segundo a regra, mãos á ilharga, sério como um bispo, e encaminhou-se para o trapezio com o passo medido das emas, imperturbavel como quem sabe profundamente a technica do marchar. Perto do apparelho, sempre de mãos á cinta, volta a volver! virou-se para o collegio, teso, e quebrou para nós um duro salamalek, conservando por segundos a effracção angular das figurinhas delineadas, representando a lavoura, na cantaria historica do Egypto.

Assumptavamos anciosos.

Depois do comprimento, Nearcho empunhou a barra do trapezio, pollegar para baixo, segundo a pragmatica das posições. E fez uma flexão. Ah! não sabeis, profanos que sois, quanto vale a flexão dos membros superiores! A formula no mundo ideal da mecanica é a alavanca de Archimedes; da applicação pratica e contundente é o murro britannico. Constate nisto: encolher as munhecas.

Nearcho fez uma, fez duas, fez cinco! Seguiu-se uma vira-volta, e Nearcho ao trapezio, de cócoras, pôde perambular sobre o pasmo circumstante o pausado beque... Não era tudo, porém! Nearcho arranjou mais umas phantasias de cambalhotas, capazes de transformar radicalmente os principios firmados da arte dos trambolhões, e beneficiou-nos, suando, com um sorriso triumphal.

Faltava a sorte do fim. Nearcho espichou quanto pôde a lamentavel ausencia de musculos e deu-nos... uma sereia! A sereia é tudo que ha de mais elementar, de mais pulha, de mais tolamente ostentoso em materia do apparelhos. O sujeito segura-se ás cordas, levanta os pés da barra, mette os pés pelas mãos e de cabeça para a terra empurra o ventre. O pobre Nearcho, desbarrigado, não tinha ventre para empurrar.

Não empurrou cousa nenhuma; quando muito uns ossinhos que lhe saíam á altura do umbigo como cabos de faca. Pulou ao chão.

Estava exhibido o acrobata! Nós olhavamos uns para os outros, bestificados, em compostura abatida de caras-d'asnos. Aristarcho percebeu e reprehendou-nos com o sobrecenho. Nós comprehendemos delicadamente: estava alli o respeitavel pae de um collega...

Uma roda de palmas, claras, estrepitantes, inacabaveis, percorreu as fileiras com a electricidade communicativa das acclamações.

Nearcho, altivo, agradeceu com o nariz.




VI

O futuro tinha reservado para Nearcho um feixe de melhores palmas, uma galhada de louros mais legitimos como tempero de victoria.

O Gremio Litterario Amor ao Saber, instituição recente, seria o verdadeiro theatro dos seus soberbos alcances.

Duas vezes ao mez congregavam-se os amigos das letras, numa das salas de cima; a mesma das licções astronomicas de Aristarcho. Havia ainda para illuminar as sessões pedaços de materia cosmica pelos cantos, esfrangalhada pela analyse do mestre. Não quer dizer que merecesse as eternas luminarias da ironia a benemerita associação.

As suas reuniões comparecia eu timidamente, para nada mais que simplesmente abusar, por excessivo consumo, de um direito dos estatutos: podiam os alumnos, todos do Atheneu, em silencio humilde, mariscar o que fossem deixando os segadores do trigal das litteraturas.

Assistente infallivel, saía cheio com a rhetorica espigada, que ia espalmar, prensando no diccionario, conservas de espirito, reliquia inapreciavel do Bello.

A difficuldade que encontrava um estudante para forrar-se ao privilegio de gremista, fazia-me mais a fundo veneral-o.

Nearcho não teve o menor embaraço. Entrara para o estabelecimento muito adiantado. Foi immediatamente proposto, acceito e empossado. Á primeira sessão, depois do triumpho ao trapezio, tive occasião de aprecial-o á gymnastica do verbo.

Debatia-se este problema, dos inesgotaveis das aggremiações congeneres: Quem foi maior, Alexandre ou Cesar? indagação historica difficil evidentemente de levar a cabo sem o auxilio da trena.

Nearcho arranjou a cousa a olho e distinguiu-se com a esperada galhardia. Falou durante hora e meia com uma fluencia que lhe angariava para sempre o epitheto de facundo. Juxtapôz com o primor de um varegista de fazendas—Cesar sobre Alexandre Cesar protestou contra a maneira, de barriga para o ar, que nada tinha de artistica; além d'isso espetava-o a armadura de Alexandre. Aquillo faria rir a Pompeu no armario das legendas e a maledicencia do senado, compromettendo-se a seriedade secular do homem que foi, viu e venceu... Nearcho manteve-o inexoravelmente durante o percurso do parallelo critico. Cesar não podia contar com os legionarios do bom tempo; alli esteve a fazer caretas na sujeição inerme, anima vilis dos documentos. Alexandre, que afóra o capacete, via-se ainda maiorzinho que o outro, teve mais paciencia, deixando-se medir até á peroração, com a boa vontade de um defunto. Venceu com effeito. Nearcho proclamou-o magno dos magnos, diversas pollegadas maior que o temerario do Rubicon.

O Gremio esclarecido rejubilou. A discussão encerrou-se, não havendo mais quem falasse. Tambem havia cinco sessões que eram os pobres guerreiros tratados a metro.

Por este memoravel dia arvorou-se Nearcho em notabilidade firmada. Esqueceram todos que elle fôra matriculado sob o quasi compromisso de não dar um passo que não fosse um salto mortal, não descançar senão de pernas para cima em cadeiras equilibradas sobre garrafas, não ter outro recreio que não fosse a corda bamba, por não destoar da percorrida fama. Ficou em olvido a estréa acrobatica. O Gremio Amor ao Saber tomou-o a si, em posse exclusiva, como um orgulho.

Não faltavam, entretanto, poetas, jornalistas, polemistas, romancistas, criticos, folhetinistas. A sociedade tinha o seu orgão, O Gremio, impresso no Lombaerts, de que podiam ser canudos á vontade os socios quites e ainda, por maior riqueza de harmonias, os honorarios.

Entre os honorarios figurava Aristarcho, presidente, collaborando sempre no periodico com a transcripção em avulso das maximas de parede, e mandando sempre para a quarta pagina um annuncio garrafal do Atheneu, que pagava para auxiliar á empreza. Na interessante publicação appareciam quadrinhas mysticas do Ribas e sonetos lubricos do Sanches. Barreto publicava meditações, especie de harpa do crente em prosa arrebentada.

O rodapé-romance era uma imitação d'O Guarany, emplumada de vocabulos indigenas e assignada—Aimbiré.

Nearcho atirou-se á especialidade dos parallelos. Começou logo por dous de pancada: Scylla e Mario, Tito e Nero. No expediente promettia-se um terceiro curiosissimo: Plutarcho e os beocios.

Esta quéda para as linhas equidistantes, talento aliás de carril urbano e annexos muares, foi mais uma razão de prestigio para o extraordinario rapaz.

A eloquencia representava-se no Gremio por uma porção de categorias. Cicero tragedia—voz cavernosa, gestos de punhal, que parece clamar de dentro do tumulo, que arrepia os cabellos ao auditorio, franzindo com fereza o sobr'olho, que, se a rhetorica fosse susceptivel de assignatura, accrescentaria ao fim de cada discurso pesadamente: a mão do finado; Cicero modestia—formulando excellentes cousas, atrapalhadamente, no embaraço de um perpetuo début, desculpando-se muito em todos os exordios e ainda mais em todas as confirmações, lagrimas na voz, difficuldade no modo, selecto e engasgado; Cicero circumspecção—enunciando-se por phrases cortadas como quem encarreira tijolos, homem da regra e da legalidade, calcando os que e os cujo, longo, demorado, caprichoso em mostrar-se mais raso do que o muito que realmente é, amigo dos periodos quadrados e vasios como caixões, attenuando mais em cada conceito a attenuante do conceito anterior, conservador e ultramontano, porque as cousas estabelecidas dispensam de pensar, apologista ferrenho de Quintiliano, retardando com intervallos o discurso impossivel para provar que divide bem a sua elocução, com todos os requisitos da oratoria, pureza, clareza, correcção, precisão, menos uma cousa—a idéa; Cicero tempestade—verborrhagico, por páus e por pedras, precipitando-se pela fluencia como escadas abaixo, accumulando avalanches como uma liquidação boreal do inverno, annullando o effeito de assombroso destampatorio pelo assombro do destampatorio seguinte, eloquencia suada, offegante, desgrenhada, ensurdecedora, pontuada a murros como uma scena de pugilato; Cicero franqueza—positivo, indispensavel para o encerramento das discussões, dizendo a cousa em duas palavras, em geral grosseiro e mal falante, prompto para offerecer ao adversario o encontro em qualquer terreno, especie perigosa nas assembléas; Cicero sacerdocio—sacerdotal, solemne, orando em tremolo, alçando a testa como uma mitra, pedindo uma cathedral para cada proposição, calçando aos pés dous pulpitos em vez de sapatos, especie venerada e acatada.

Nearcho introduziu o typo ausente do Cicero penetração—incisivo, fanhoso e implicante, gesticulando com a mãozinha á altura da cara e o indicador em croque, marcando precisamente no ar, no soalho, na palma da outra mão o logar de cada cousa que diz, mesmo que se não perceba, pasmando de não ser entendido, impacientando-se até ao desejo de vasar os olhos ao publico com as pontas da sua clareza, ou derreando-se em frouxos de compaixão pela desgraça de nos não comprehendermos, porcos e perolas.

O gesto incisivo, mais a facundia desimpedida, mais o talento historico dos parallelos, consagrou a primazia do gremista.

O presidente effectivo da sociedade era o Dr. Claudio, professor da casa, homem de capacidade, benevolo para os desgarros de tolice da juventude, que teria desgosto para uma semana, se imaginassem que faltara a uma sessão por menosprezo. Esta constancia do chefe era o grande elemento de prosperidade do Amor ao Saber. O Dr. Claudio conduzia os trabalhos com verdadeira pericia de automedonte, esclarecia os embroglios, forjava adjectivos de encomio que ia dando a cada um por sua vez e a todos os estimáveis consocios, propunha algumas theses e achava graça em outras. Nas sessões solemnes pronunciava o discurso official.

A maior utilidade do Gremio para mim era a bibliotheca. Uma collecção de quinhentos a seiscentos volumes de variado texto, zelados pela vigilancia cerberesca do Bento Alves, bibliothecario, eleito de voto unanime.

Alves era da associação, como quasi todos os alumnos do curso superior. Filiava-se ao grupo sympathico dos silenciosos, usufruindo os lucros da circumstancia de não ser do regimento a taramela obrigatoria. Fóra da bibliotheca, os seus serviços aos intuitos do Gremio resumiam-se no apoiado! consciencioso e firme, á disposição sempre da melhor idéa, em questões elevadas, e do mais sabio alvitre em questões de ordem.

Alguns rapazes, não do Gremio e que não houvessem, nas letras, manifestado grammaticalmente notavel geito para a conjugação subrepticia do verbo adquirir, podiam obter do presidente o direito de ingresso na sala dos livros. Eu, como amigo que era das bonitas paginas impressas, apresentei candidatura. E como não divertia bastante o jogo da barra ao sol, nem o rapa-tira-deixa-pôe das pennas de aço e das carrapetas, nem o correr á panellinha das bolas de vidro espiraladas de côres, fez-se-me a bibliotheca a recreação habitual.

Esta frequencia angariou-me dous amigos, dous saudosos amigos—Bento Alves e Julio Verne.

Ao famoso contador do Tour du monde devo uma multidão numerosa dos amaveis phantasmas da primeira imaginação, excentricos como Fogg, Paganel, Thomas Black, alegres como Joe, Passepartout, o negro Nab, nobres como Glenarvan, Letourneur, Paulina Barnett, attrahentes como Aouda, Mary Grant. Sobre todos, grande como um semideus, barba nitente, luminosa como a neblina dos sonhos, o lendario Nemo da ilha Mysteriosa, taciturno da lembrança das justiças de vingador, esperando que um cataclysma lhe cavasse um jazigo no seio do Oceano, seu vassallo, seu cumplice, seu dominio, patria sombria do expatriado.

Possuia minha litteratura completa de thesouros de meninos, contos de Schmidt; visitara uma por uma no meu burrinho as feiras da sabedoria de Simão de Nantua; estudara profundamente pelas aventuras de Gulliver as vacillações da vida, onde, mal acabamos de zombar da pequenez extrema, vem sobre nós o ludibrio da extrema grandeza, especie de Pascal de mammadeira entre Liliput e Brobdignak; chegara á perfeição de duvidar das emprezas de Munchausen. Isto tudo sem falar nos Lusiadas do Sanches, no reverendo Bernardes, na refinada pilheria do Bertholdo e no Testamento do Gallo, symbolo aliás muito philosophico da odiosidade das successões, que por ventura do herdeiro autorisa o destripamento do gallinaceo como a tortura shakspereana de Lear.

Julio Verne foi festejado como uma migração do novidade. Onde quer que me levasse o Forward ou o Duncan, o Nautilus ou o balão Victoria, a columbiada da Florida ou cryptogramma de Saknussen, lá ia eu, esfaimado de desenlaces, prazenteiro, ávido como os tres dias de Colombo antes da America, respirando no cheiro das encadernações as variantes climatericas da leitura, desde as areias africanas até aos campos de crystal do Arctico, desde os grandes frios sideraes até a aventura do Stromboli.

A amizade do Bento Alves por mim e a que nutri por elle, me faz pensar que, mesmo sem o caracter de abatimento que tanto indignava ao Rebello, certa effeminação pode existir como um periodo de constituição moral. Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me podia valer; porque me respeitava, quasi timido, como se não tivesse animo de ser amigo. Para me fitar esperava que eu tirasse d'elle os meus olhos. A primeira vez que me deu um presente, gracioso livro de educação, retirou-se corado, como quem foge. Aquella timidez, em vez de alertar, enternecia-me, a mim que aliás devia estar prevenido contra escaldos de agua fria. Interessante é que vago elemento de materialidade havia nesta affeição de criança, tal qual se nota era amor, prazer do contacto fortuito, de um aperto de mãos, da emanação da roupa, como se absorvessemos um pouco do objecto sympathico.

Na bibliotheca, Bento Alves escolhia-me as obras: imaginava as que me podiam interessar; e propunha a compra, ou as comprava e offerecia ao Gremio, para dispensar-se de m'as dar directamente. No recreio não andavamos juntos; mas eu via de longe o amigo, attento, seguindo-me o seu colhar como um cão de guarda. Soube depois que ameaçava torcer o pescoço a quem pensasse apenas em me offender; seu irmão adoptivo! confirmava.

Eu, que desde muito assumira entre os collegas um bello ar de impavida altania, modificava-me com o amigo, e me sentia bem na submissão voluntaria, como se fosse artificial a bravura, á maneira da conhecida petulancia feminina.

A malignidade do Barbalho e seu grupo não dormia. Tremendo da represalia de Alves, faziam pelos cantos escorraçada maledicencia, digna d'elles.

Ás vezes na bibliotheca, emquanto eu lia, Alves olhava-me do outro lado da mesa central de panno verde, com a mão á fronte e os dedos mergulhados nos cabellos. Olhava-me e eu o sentia sem levantar a vista, comprehendendo no mais fino refolho de ninada vaidade que aquella contemplação traduzia o horror do ridiculo, proverbial em Bento Alves, manietando-lhe rijamente uma demonstração effusiva. Não fosse a critica uma creatura do tempo, eu poderia achar comica a situação dos personagens d'esta scena de platonismo. Não havendo a critica para falsear a psychologia por desdobramento, limitava-me a ser sincero, como o pobre amigo. Ás vezes vinha-lhe á palpebra uma lagrima sem origem.

No movimento geral da existencia do internato, desvelava-se caprichosamente; sabia ser de modo inexprimivel, fraternal, paternal, quasi digo amante, tanta era a minudencia dos seus cuidados. Não havia regalo, d'essas mesquinhas cousas de preço enorme na carestia perpetua da prisão escolar, de que se não privasse o Alves, em meu proveito, desesperando-se, a fazer pena, se eu tentava recusar. Á conversa, falava da familia no Rio Grande do Sul; tinha duas irmãs; falava d'ellas, do tempo passado que não as via, muito claras, de bellos olhos, uma de quinze annos, outra de doze; elle tinha dezoito. Falava de cuidados hygienicos meus, mudar de cama no salão azul, que estava muito perto das janellas, e isto havia de ser nocivo... Outras ninharias, em tom de sentida brandura, como se desejasse decrescer das proporções solidas de sua conformação para reduzir-se á exiguidade balbuciante de uma carcassazinha de avó, minguada de velhice, animada, ainda e apenas, pela febre do ultimo alento, pela necessidade de carregar ainda alguns dias um coração, um affecto.

Os estatutos do Gremio marcavam duas occasiões de solemnidade: as festas annuaes de abertura e do encerramento dos trabalhos. Além d'estas, as sessões commemorativas que a casa resolvesse.

Para as festas litterarias, levava-se ao pavilhão do recreio um grande estrado, tres mesas que se alinhavam para a directoria, sob um rico panno côr de vinho, de ramagens negras, que lembravam tinteiros entornados de mau agouro, e uma tribuna familiarmente appellidada caranguejola.

Esta caranguejola, enorme e pesada, que parecia protestar, a cada solavanco, contra o caracter de movel que lhe queriam á força impingir, fazia figura em todas as salas do Atheneu, conforme as exigencias da rhetorica. Localisada a conferencia, a prelecção, a pratica solemne, abalava-se a misera e punha-se em caminho, aos encontrões, seguindo o fadario de mostrador ambulante de eloquencia. Nestas circumstancias não era uma simples tribuna, era um verdadeiro prognostico. Em se movendo a caranguejola, discurseira imminente. Teve um dia de razoavel orgulho: d'ella serviu-se no Atheneu o professor Hartt, para uma conferencia de anthropologia.

Quando a vimos andar um dia e soubemos que aquillo significava a installação do Amor ao Saber, congregou-se o Atheneu, unificado no mesmo impulso de enthusiasmo, e pela primeira vez a tribuna marchou sem o cerimonial das topadas. Despedimos os criados, tomámol-a nós aos hombros; levámol-a em ovação.

A festa inaugural esteve animada. Mais do que se esperava, infelizmente.

Encheu-se de bancos e cadeiras austriacas o vastissimo salão. Ao centro, em frente, a mesa da directoria; á esquerda, os convidados; á direita, os outros alumnos, o resto, como sé diz das maiorias sem voz activa.

Sobre o panno avinhado de ramagens, abria-se a pasta do secretario; sobre a tribuna scintillava crystallino o copo das urgencias instantes.

Poucos oradores. Aristarcho, presidente honorario, abriu a sessão com a chave do peregrino verbo, recommendando a nova associação como um tentamen honroso e de muito fructo para os moços applicados, que teriam ensejo de se dar ao cultivo da oratoria e das bellas letras.

Subiu em seguida á tribuna o presidente effectivo.

Com a facilidade da sua elocução, fez o Dr. Claudio a critica geral da litteratura brasileira: a galhofa de Gregorio de Mattos e Antonio José, a epopéa de Durão, o idyllio da escola mineira, a uncção de Sousa Caldas e S. Carlos, a influencia de Magalhães, os ensaios do romance nacional, a gloria de Gonçalves Dias e José de Alencar.

E passou a estudar a actualidade.

O auditorio que escutava, interessado, mas tranquillo, começou a agitar-se.

O orador representava a nação como um charco de vinte provincias estagnadas na modorra paludosa da mais desgraçada indifferença. Os germens da vida perdem-se na vasa profunda; á superficie de coagulos de putrefacção, borbulha, espaçadamente, o halito mephitico do miasma, fermentado ao sol, subindo a denegrir o céu, com a vaporisação da morte. Os passaros calados fogem; as poucas arvores proximas no ar parado, debruçam-se uniformes sobre si mesmas num desanimo vegetativo, que parece crescer, descendo,—prosperidade melancolica de salgueiros. O horizonte limpo, remoto, desfere golpes de luz obliqua, reptil, que resvalam, espelhando fachas parallelas, immoveis, sobre o dormir da lama.

Por entre os raros canniços, emergem olhos de sapo, meditando a vantagem d'aquella paz sombria, indolencia negra, em que chega a ser vigor de vontade estrebuchar quatro arrancos através da onda grossa em busca da femea. A arte significa a alegria do movimento, ou um grito de suprema dôr nas sociedades que soffrem. Entre nós, a alegria é um cadaver. Ao menos se soffressemos... A condição da alma é a prostração comatosa de uma inercia morbida. Quem nos dera a tonicidade lethal de uma vasca. Trituramos a vida por igual como um osso; roemos o dia, pacientes, de rojo, sobre o ventre, como cães ao pasto. Fosse manjar o craneo de Rogerio, ao menos teriamos a tragedia... Nada! A condição é o descanço ininterrupto do anniquilamento no plano infinito da monotonia. E não é o tecto de braza dos estios tropicaes que nos opprime. Ah! como é profundo o céu do nosso clima material! Que irradiação de escapadas para o pensamento a direcção dos nossos astros! O pantano das almas é a fabrica immensa de um grande emprezario, organisação de artificio, tão longamente elaborada, que dir-se-ia o empenho madreporico de muitos seculos, dissorrando em vez de construir. É a obra moralisadora de um reinado longo, é o transvasamento de um caracter, alagando a perder de vista a superficie moral de um imperio—o desmancho nauseabundo, esplanado, da tyrannia molle de um tyranno de sebo!...

Calculem agora que estava entre os convidados o Dr. Zé Lobo, pae de um alumno, devoto jurado e confirmado das instituições, irmão de não sei quantas ordens terceiras, primo de todos os conventos, advogado de causas religiosas, conservador em summa, enraivado e militante. O sebo da tyrannia caiu-lhe nos melindres como um pingo de vela benta.

«Protesto!» rugiu, rubro e rouquenho, dilacerando as barbas e erguendo o punho. Não podia admittir que viessem á sua vista ensebar as instituições! Por maior desgraça estava tambem presente o Senador Rubim, avô de outro alumno, senador de máus bofes, um pae da patria padrasto, sem considerações nem papas na lingua.

«Quem protesta contra o sebo da tyrannia é burro!» redarguiu ao apartista com a pachorra temivel dos velhos insolentes.

—Burro, não! clamou o outro, empallidecendo sob a vergasta da injuria, nervoso, perturbado pela attenção da sala inteira que o encarava. Burro, não! taes expressões são indignas de V. Exª., um senador e um velho!...

—Burro, sim!... repetia o outro vagarosamente, com um arreganho enfastiado de insulto. Burro, sim!...

Aristarcho conservava-se á presidencia, na pasmaceira de páu dos idolos affrontados. O salão enorme, alumnos e convidados, tumultuava em vagalhões, fragmentado em partidos oppostos, uns pelo senador e pela anarchia, outros pelo advogado e pela ordem publica. Muitos gesticulavam de pé; havia estudantes, gritando em cima dos bancos. Os insultos voavam como pelouros; os protestos rangiam como escudos feridos; havia mãos pelo ar que pediam espadas.

Aproveitando-se do escarcéu, o advogado ousara arremessar uns desaforos ao senador. O outro, sem ouvir bem, ia replicando com a impertinencia do seu estribilho: «Burro, sim», ate que, impaciente, pôz remate á polemica com as cinco letras da energia popular que Waterloo fez heroicas, Victor Hugo fez épicas e Zola fez classicas.

Sob o peso da conclusão, Zé Lobo cedeu.

Aristarcho achou que era tempo de funccionar a presidencia e sacudiu sobre o tumulto o badalo da ordem.

O orador na tribuna, erecto e calmo, promontorio sobre a tormenta, esperava que o alvoroço chegasse a termo. Apenas viu arrefecer o furor dos improperios:

«Corramos um véu sobre o scenario desolador,» continuou; «venha em soccorro a esperança de um renascimento.» E por ahi habilidosamente conduzindo a oração, acabou por um quadro de futuro, armado em aurora sobre a tribuna, portico de luz, jorrando um deslumbramento que extasiou os ouvintes com o encanto dos vaticinios felizes, levando o sopro da viração matutina as nuvens do desanimo esfumadas antes sobre o panorama.

Tiveram a palavra, ainda, dous estudantes, que moeram uma quantidade profusa de phrases communs a proposito de letras e litteratos. O filho do director, o republicanozinho que conhecem, tinha no bolso dez tiras, dez brulotes de eloquencia incendiaria, que resolveu suffocar depois do escandalo collossal do sebo.

A segunda sessão solemne do gremio, comquanto mais pacifica, não foi menos importante.

Realisou-se em principios de Outubro, pelas immediações das férias. A concorrencia foi maior, compareceram senhoras em grande numero, o que não succedera na de installação; houve mais capricho de ornatos na sala; forrou-se a tribuna de verde e amarello; inscreveram-se os mais aproveitados campeões da oratoria do Amor ao Saber. O collegio compareceu fardado; a directoria, de casaca.

A conferencia do Dr. Claudio foi subversiva, mas em sentido diverso da primeira. Versou não mais sobre a litteratura no Brasil, porém sobre a arte em geral:


Arte, esthetica, esthesia é a educação do instincto sexual.

A manutenção da existencia individua tem a razão de ser no instincto de vitalidade da especie. O momento presente das gerações nada mais é que a ligação prolifica do passado com a posteridade. E a razão de ser das especies? A indagação não perscruta.

Para que o individuo perdure, momento genesico da existencia especifica no tempo, é indispensavel adaptar-se ás imposições do meio universal. O rio a correr não despreza o detalhe do mais insignificante remanso, nem póde sophismar o obstaculo do menor rochedo no alvéu. O criterio inconsciente do instincto é o guia da adaptação.

O esforço da vida humana, desde o vagido do berço até o movimento do enfermo, no leito de agonia, buscando uma posição mais commoda para morrer, é a selecção do agradavel. Os sentidos são como as antennas salvadoras do insecto titubeante; vão ao encontro das impressões, avisadores opportunos e cautelosos.

A cada mundo de sensações notaveis corresponde um sentido. Os sentidos, theoricamente delimitados, são cinco, multipla transformação de processo de um unico—o tacto, exactamente o sentido rudimentar das antennas.

Faz-se, tacteando instinctivamente a procura dos agradaveis: agradavel visual, agradavel gustativo, agradavel tangivel, em summa. O agradavel é essencialmente vital; se é ás vezes funesto, é porque o instincto póde ser atraiçoado pelas illusões.

A perfectibilidade evolutiva dos organismos em funcção, manifestando-se prodigiosamente complexa, no typo humano, corresponde á revelação, na ordem animal, do mysterioso phenomeno personalidade, capaz de fazer a critica do instincto, como o instincto faz a critica da sensação.

A informação de reportagem de cada sentido não desperta, portanto, no homem a actividade cerebral dos impulsos de preferencia, de repugnancia, simplesmente, como nos outros animaes; mas amplia, pela psychologia inteira dos phenomenos espirituaes, a variedade infinita das comparações, permutadas de mil modos na unidade do espirito como as peças de um jogo maravilhoso sobre o mesmo panno.

Duas são as representações elementares do agradavel realisado: nutrição e amor.

Os animaes inferiores, não favorecidos por um razoavel coefficiente de progresso, produzem secularmente a condição da inferioridade: olham, tocam, farejam, ouvem, não provam com demasiado escrupulo e devoram grosseiramente para depois amar, como sempre fizeram.

O homem, por desejo de nutrição e de amor, produziu a evolução historica da humanidade.

A nutrição reclamou a caçada facil—inventaram-se as armas; o amor pediu um abrigo, ergueram-se as cabanas. A digestão tranquilla e a perfilhação sem sobresaltos precisaram de protecção contra os elementos, contra os monstros, contra os malfeitores,—os homens tacitamente se contractaram para o seguro mutuo, pela força maior da união: nasceu a sociedade, nasceu a linguagem, nasceu a primeira paz e a primeira contemplação. E os pastores viram pela vez primeira que havia no céu a estrella Vesper, expandida e pallida como o suspiro.

Mas era preciso que fossem leitos de amor as crinas de ouro e fogo dos leões, e que houvesse marfim, metaes luzentes, pedraria, sobre a alvura lactea da carne amada, que não bastavam beijos para vestir; era preciso deliciar a gustação, com o requinte das estranhezas. E os homens levaram a conquista aos reis da floresta, ao ventre do solo; foram colher aos ares os incolas mais raros, emplumados de luz como creações canoras do sol; e foram buscar ás ondas os mais esquivos viajores do abysmo, singrando celeres, phantasticos, na sombra azul, cm cauda um reflexo vago de escamas,—para morder-lhes á vida.

Urgiu ainda a fome, urgiu mais o amor e veio a guerra, a violencia, a invasão. Curvaram-se os captivos ao latego vencedor e foram abatidas as escravas sob a garrada lascivia sanguinaria, faminta de membros avulsos, olhos sem alma, labios sem palavra, formas sem vontade, pretexto miseravel de espasmos. Formaram-se os odios de raça, as oppressões de classe, as corrupções vingadoras e demolidoras.

Mas a scisma evoluiu tambem, aquella scisma poetica da pastoral primeva que buscara os astros no céu para adereço dos idyllios. O fundo tranquillo e obscuro das almas, aonde não chega o tumultuar de vagas da superficie, inflammou-se de phosphorescencias; geraram-se as aureolas dos deuses, coalharam-se os discos das glorias olympicas; as religiões nasceram.

Mas era preciso que fosse palpavel o espectro da divindade: as rochas descascaram-se em estatuas, os metaes se fizeram carne e houve templos, houve cultos, houve leis, vieram prophetas e pontifices ambiciosos. E esta evolução da scisma que fôra amante, feita instrumento da tyrannia, deu logar ás praticas do terror, aos apostolados do morticinio.

Mas uma lyra ficara da geração primeira de scismadores, e as cordas cantavam ainda e os sons falaram no ar as epopéas do Oriente e da Grecia. Roubou-se aos sacerdotes tyrannos o monopolio dos deuses para jungil-os á atrelagem do metro; que levassem, através dos seculos, o carro triumphal da estrophe, onda sonora de vibrações immortaes.

E os esculpidores dos idolos legaram o segredo da fabrica, revelando que vinham de um molde de barro aquellas arrogancias de bronze, e que se fazem deuses como as amphoras. E os artistas modernos recomeçaram, chamando a religião ao atelier, como um modelo de hora paga; e gravaram em tinta, pelos muros, as visões mysticas da crença.

A nitidez artistica das formas fizera crer aos homens que morava realmente um espirito sagrado na porosidade do marmore, e que realmente havia em proporções infinitas uma tela de olympos e paraisos, onde as côres do anthropomorphismo artistico viviam soberanas, olhando o mundo lá em baixo, vasando a urna providencial das penas e das alegrias.

Decaídas as phantasias sentimentaes, reformou-se o aspecto do mundo. Os deuses foram banidos como effeitos importunos do sonho. Depois da ordem em nome do Alto, proclamou-se a ordem positivamente em nome do Ventre. A fatalidade nutrição foi erigida em principio: chamou-se industria, chamou-se economia politica, chamou-se militarismo. Morte aos fracos! Alçando a bandeira negra do darwinismo spartano, a civilisação marcha para o futuro, impavida, temeraria, calcando aos pés o preconceito artistico da religião e da moralidade.

Sobrevive, porém, o poema consolador e supremo, a eterna lyra...

Reinou primeiro o marmore e a forma; reinaram as côres e o contorno; reinam agora os sons,—a musica e a palavra. Humanisou-se o ideal. O hymno dos poetas do marmore, do colorido, que remontava ao firmamento, fala agora aos homens, advogado energico do sentimento.

Sonho, sentimento artistico ou contemplação, é o prazer attento da harmonia, da symetria, do rhythmo, do accôrdo das impressões, com a vibração da sensibilidade nervosa. É a sensação transformada.

A historia do desenvolvimento humano nada mais é do que uma disciplina longa de sensações. A obra de arte é a manifestação do sentimento.

Dividindo-se as sensações em cinco especies de sentidos, devem os sentimentos corresponder a cinco especies e igualmente as obras de arte.

Da sensação acustica vem a esthesia acustica: sentimento nos sons, nas palavras—eloquencia e musica; da sensação da vista, a esthesia visual, o sentimento na fórma, no traço e no colorido,—esculptura, architectura, pintura; da sensação palatal e olfactiva nasce o sentimento do gosto e do perfume,—artes menos consideradas pela relativa inferioridade dos seus effeitos. A sensação do tacto, secundada por todas as outras, dá logar ao sentimento complexo do amor, arte das artes, arte matriz, razão de ser de todas as especies de esthesia.

O primeiro momento contemplativo de um amoroso foi o advento da esthetica, no gozo visual das linhas da formosura, na delicia auditiva de uma expressão inarticulada, que fosse emittida com expressão, na commoção de um contacto, na aspiração inebriante do aroma indefinido da carne. A obra d'arte do amor é a prole; o instrumento é o desejo.

Depois da arte primitiva e fundamental do tacto, a arte do ouvido. A obra de arte é a phrase sentida, habil para produzir emoção; o instrumento é a linguagem.

Esta arte devia mais tarde ramificar-se em eloquencia propriamente e poesia popular, graças á aproximação hybrida de terceira arte, do ouvido, a musica.

Com o progresso humano, o sentimento artistico da symetria e da harmonia destacou-se analyticamente da arte de amar. E, depois da arte primordial, descendente immediata do instincto erotico, da qual se desprendera, sob a fórma selvagem das interjeições primitivas, a arte da eloquencia; e em seguida, sob a forma de expressões homometricas, a poesia popular e a primeira musica; nasceram as artes intencionaes, de imitação, da esculptura, da architectura, do desenho. Depois da poesia popular, amorosa ou heroica, veio a rhapsodia.

Ainda mais, segundo um traçado naturalissimo de filiação, o sentimento da symetria, trasladado para a esphera das relações sociaes, serviu de plano á organisação das religiões, filhas do pavor, e das moralidades, invenção das maiorias de fracos. Com o predominio insensato das religiões, o amor deixou de ser um phenomeno, passou a ser um ridiculo ou uma cousa obscena.

Por um raciocinio de retrocesso, se ponderarmos que a moralidade é a organisação symetrica da fraqueza commum, que a religião é a organisação symetrica do terror, que a symetria, isto é, harmonia e proporção, é a norma artistica das imitações plasticas da ingenua admiração da creatura primitiva, e que esta admiração prazenteira, testemunhada por uma tentativa de desenho ou de estatua, por um canto popular ou por uma interjeição vehemente, nada mais é do que um modo accentuado de um esforço de attenção, e que a primeira attenção dos homens do principio,—a lenda de Adão que o diga,—devia ser do individuo de um sexo para o individuo de outro sexo, teremos averiguado o aphorismo paradoxal de que a arte subjectivamente, o sentimento artistico, nas suas mais elevadas, mais ethereas manifestações, é simplesmente—a evolução secular do instincto da especie.

Esta é a sua grandeza, e por isso vae zombando, através das idades, das vicissitudes tempestuosas do combate pela nutrição, dos proprios exasperos homicidas do amor.

A arte é primeiro espontanea, depois intencional.

Manifesta-se primeiro grosseiramente, por erupções de sentimento, e faz o amor concreto, a interjeição, a eloquencia rudimentar, a poesia primitiva, o primitivo canto. Manifesta-se mais tarde, progressivamente, por effeitos de calculo e meditação e dá o epos, a eloquencia culta, a musica desenvolvida, o desenho, a esculptura, a architectura, a pintura, os systemas religiosos, os systemas moraes, as ambições de synthese, as metaphysicas, até as formas litterarias modernas, o romance, feição actual do poema no mundo.

As manifestações espontaneas são coevas de todas as sociedades; a poesia popular, por exemplo, não desapparece, nem a eloquencia, ainda menos o amor. As manifestações intencionaes, ampliações, aperfeiçoamentos do modo primitivo de expressão sentimental, sujeitam-se aos movimentos e vacillações de tudo que progride.

O coração é o pendulo universal dos rhythmos. O movimento isochrono do musculo é como o aferidor natural das vibrações harmonicas, nervosas, luminosas, sonoras. Graduam-se pela mesma escala os sentimentos e as impressões do mundo. Ha estados d'alma que correspondem á côr azul, ou ás notas graves da musica; ha sons brilhantes como a luz vermelha, que se harmonisam no sentimento com a mais vivida animação.

A representação dos sentimentos effectua-se de accôrdo com estas repercussões.

O estudo da linguagem demonstra.

A vogal, symbolo graphico da interjeição primitiva, nascida espontaneamente e instinctivamente do sentimento, sujeita-se á variedade chromatica do timbre como os sons dos instrumentos de musica. Gradua-se em escala ascendente u, o, a, e, i, possuindo uma variedade infinita de sons intermediarios, que o sentimento da eloquencia suggere aos labios, que se não registram, mas que vivem vida real nas palavras e fazem viver á expressão, sensivelmente energica, emancipada do preceito pedagogico, de improviso, quasi inventada pelo momento.

Ha ainda na linguagem o rhythmo de cada expressão. Quando o sentimento fala, a linguagem não se fragmenta por vocabulos, como nos diccionarios. É a emissão de um som prolongado, a crepitar de consoantes, alteiando-se ou baixando, conforme o timbre vogal.

O que move o ouvinte é uma impressão de conjuncto. O sentimento de uma phrase penetra-nos, mesmo enunciado em desconhecido idioma.

O timbre da vogal, o rhythmo da phrase dão alma á elocução. O timbre é o colorido, o rhythmo é a linha e o contorno. A lei da eloquencia domina na musica, colorido e linha, seriação de notas e andamentos; domina na esculptural, na architectura, na pintura: ainda a linha e o colorido.

Na sua qualidade de representação primaria do sentimento, depois do facto do amor, a eloquencia é a mais elevada das artes. Dahi a supremacia das artes litterarias,—eloquencia escripta.

A eloquencia foi a principio livre, fiel ao rhythmo do sentimento; influenciada pela musica monotona dos mais antigos tempos, cadenciou-se em metro regular e monotono como a musica. Aproveitada como recurso mnemonico, libertou-se da musica, guardando, porém, a fórma do metro igual e da quantidade equivalente, que havia de ser um dia a metrificação da syllaba, que havia de dar em resultado a monstruosidade da rima, o calembour feito milagre de perfeição.

A musica seguiu á parte a sua evolução.

Na arte da eloquencia da actualidade accentuasse uma reacção poderosa contra o metro classico; a critica espera que dentro de alguns annos o metro convencional e postiço terá desapparecido das officinas da litteratura. O sentimento encarna-se na eloquencia, livre como a nudez dos gladiadores e poderoso. O estylo derribou o verso. As estrophes medem-se pelos folegos do espirito, não com o pollegar da grammatica.

Hoje, que não ha deuses nem estatuas, que não ha templos nem architectura, que não há dies iræ nem Miguel-Angelo; hoje que a mnemonica é inutil, o estylo triumpha, e triumpha pela fórma primitiva, pela sinceridade vehemente, como nos bons tempos em que o coração para bem amar e o dizer não precisava crucificar a ternura ás quatro difficuldades de um soneto.

Qual a missão da arte? Originaria da propensão erotica fóra do amor, a arte é inutil,—inutil como o esplendor corado das petalas sobre a fecundidade do ovario. Qual a missão das petalas córadas? De que nos serve a primavera ser verde? As aves cantam. Que se aproveita do cantar das aves? A arte é uma consequencia e não um preparativo. Nasce do enthusiasmo da vida, do vigor do sentimento, e o attesta. Agrada sempre, porque o enthusiasmo é contagioso como o incendio. A alma do poeta invade-nos. A poesia é a interpretação de sentimentos nossos. Não tem por fim agradar.

E, depois, reclamar titulos de utilidade ás divagações graciosas de uma energia da alma, que significa em primeira manifestação a propria perpetuidade da especie?!

Além de inutil, a arte é immoral. A moral é o systema artistico da harmonia transplantado para as relações da collectividade. Arte sui generis. Se é possivel efficazmente o regimen social das symetrias da justiça e da fraternidade, o futuro ha de provar. Em todo caso, é arte differente e as artes não se combinam senão em productos falsos, de convenção.

Poema intencionalmente moral é o mesmo que estatua polychroma, ou pintura em relevo. Apenas uma cousa possivel, nada mais; ha tambem quem faça flôres, com azas de barata e pernas.

A verdadeira arte, a arte natural, não conhece moralidade. Existe para o individuo sem attender á existencia de outro individuo. Póde ser obscena na opinião da moralidade: Leda; póde ser cruel: Roma em chammas, que espectaculo!

Basta que seja artistica.

Cruel, obscena, egoista, immoral, indomita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana—acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da sciencia que se corrige; embriaga como a orgia e como o extase.

E desdenha dos seculos ephemeros.

Á vista da tranquillidade do auditorio, subentende-se que não estavam presentes os dous heróes da primeira sessão solemne: o Dr. Zé Lobo não viera, para não encontrar o Senador; o Senador Rubim não viera, para não encontrar o Dr. Zé Lobo: impulsos equivalentes em sentido contrario annullam-se.

Havia na sala diversos ouvintes que se distrahiam de perseguir com attenção a galopada de hippogrypho, em que se elevava a eloquencia do orador.

Bento Alves, um; outro o Malheiro, moreno, nervoso, carrancudo, o primeiro gymnasta; outro, Barbalho.

A preoccupação de Bento Alves era uma injuria. Entre elle e Malheiro havia rixa velha de emulação. Malheiro não lhe perdoava a culpa de ser bravo. Os proprios prodigios da força e agilidade, applaudidos e proclamados pelo Atheneu, não davam para saciar a vaidade. De que valia ser forte, se era impossivel a applicação do seu esforço para affrouxar uma fibra á musculatura do Bento? Ah! não ser possivel por suggestão desfiar uma a uma aquellas meadas de arame, reduzir a infantilidade debil aquella corpulencia odiosa! Por que não iriam os desejos da inveja, como vampiros, sorver o sangue áquella força, a vida, gotta a gotta, áquelle vigor de ferro?

Bento Alves não dava mostras de perceber a rivalidade. Malheiro evitava-o. Era impossivel conservar-se um momento perto do collega, que lhe não dessem impetos de assaltal-o.

A façanha da prisão effectuada pelo rival definitivamente retirava-lhe a gloria de valoroso unico. Malheiro entrou em melancolia trancada. O rosto moreno amorenou-se mais; a animação de um brilho não lhe chegava á janella do olhar; o sorriso nos labios não abria a porta. Dir-se-ia um frontispicio de lucto.

Ficou a ruminar o projecto de um encontro.

O meu bom amigo, exaggerado em mostrar-se melhor, sempre receioso de importunar-me com uma manifestação mais viva, inventava cada dia nova surpreza e agrado. Chegara ao excesso das flôres. A principio, petalas de magnolia secca com uma data e uma assignatura, que eu encontrava entre folhas de compendio. As petalas começaram a apparecer mais frescas e mais vezes; vieram as flôres completas. Um dia, abrindo pela manhã a estante numerada do salão do estudo, achei a imprudencia de um ramalhete. Santa Rosalia da minha parte nunca tivera um assim. Que devia fazer uma namorada? Acariciei as flôres, muito agradecido, o escondi-as antes que vissem.

Mas o Barbalho espiava, ultimamente constituido fiscal occulto dos meus passos.

As circumstancias o tinham aproximado do Malheiro, e o açafroado caolho pretendia manejar a rivalidade dos dous maiores: um conflicto entre Malheiro e Bento podia ser a vergonha para mim.

O Malheiro, com o vozeirão grave de contrabaixo, começou a infernisar-me por epigrammas. Queria incommodar o Alves mortificando-me, julgando que me queixasse. Eu devorava as affrontas do marmanjo sem descobrir o meio de tirar correcta desforra. Barbalho lembrou-se de tomar as dôres. Depois de incitar o Malheiro contra mim, incitou o Bento contra o Malheiro. Procurou-o mysteriosamente e informou: «o Malheiro não passa pelo Sergio que não pergunte quando é o casamento... é preciso casar... Ainda hoje pediu convite para as bodas. O Sergio está desesperado.»

O furor do Alves não se descreve, furor poderoso dos calados. Uma onda de apoplexia ruborisou-lhe as faces. Por unico movimento de indignação contrahiu os dedos, como estrangulando. Procurou o Malheiro e com a voz talvez alterada, mas sem odio, fez intimação: «amanhã é a sessão de encerramento; em meio da festa saímos ambos; preciso falar-lhe das bodas.»

Malheiro percebeu: era o sonhado encontro!

Apenas desceu da tribuna o presidente effectivo do Gremio, os adversarios deixaram as cadeiras. Barbalho saiu pouco depois. Notei o movimento e adivinhei mais ou menos.

Quando saímos do pavilhão, finda a solemnidade, um criado entregou-me um enveloppe, uma carta do Alves, a lapis. «Estou preso; antes que te digam que por alguma indignidade, previno: por ter dado uma licção ao Malheiro.»

Minutos depois, Franco, muito satisfeito, contava a todos: «tinham luctado no jardim o Malheiro e o Alves; que briga dos dous brutos!» Alves saíra ferido com um golpe no braço, acreditam que de navalha; Malheiro estava no dormitorio. Avisados pelo Alves, os criados tinham ido buscal-o sem sentidos, ao fundo de um bosquete no parque. «Sem sentidos! garantia o Franco; que pandega! que sopapos! ora o Malheiro malhado!»

Soube-se que Barbalho espreitara o combate através dos arbustos. Antes de o vêr acabado, correra activo, e concentrando a vesgueira numa só attenção de intrigante, preparara as cousas de modo que, ao voltar do jardim, Bento Alves foi surprehendido por uma ordem de prisão do director.

Não denunciar nunca é preceito sagrado de lealdade no collegio. Os contendores recusaram-se a explicações. Bento Alves negou o braço a exame e a curativo; Malheiro, em pannos de sal, fingindo-se muito prostrado, offerecia o mais impenetravel silencio ás indagações de Aristarcho e protestava esborrachar as ventas a quem caísse na asneira de insinuar o bedelho no que não era da sua conta.

«Ora o malhado!...» resmungavam os collegas; mas tratavam de esquecer o caso.

Por minha parte, entreguei-me de coração ao desespero das damas romanceiras, montando guarda de suspiros á janella gradeada de um carcere onde se deixava deter o gentil cavalheiro, para o fim unico de propôr assumpto ás trovas e aos trovadores medievos.




VII

O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se póde gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.

Tinhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama accidentado das montanhas da Tijuca, ostentosas em curvatura toraxica e frentes felpudas de collosso: espectaculos de excepção, por momentos, que não modificavam a seccura branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pateo central, quente, insupportavel de luz, ao fundo d'aquellas altissimas paredes do Atheneu, claras da caiação, do tédio, claras, cada vez mais claras.

Quando se aproxima o tempo das férias, o aborrecimento é maior.

Os rapazes, em grande parte dotados de tendencias animadoras para a vida pratica, forgicavam mil meios de combater o enfado da monotonia. A folgança fazia época como as modas, metamorphoseando-se depressa como uma serie de ensaios.

A peteca não divertia mais, palmeada com estrepito, subindo como foguete, caindo a rodopiar sobre o cocar de pennas? Inventavam-se as bolas elasticas. Fartavam-se de borracha? Inventavam-se as pequenas espheras de vidro. Acabavam-se as espheras? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de linhas a giz no soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarella, e todas as suas variantes, primeira casa, segunda casa, terceira casa, descanço, inferno, céu, levando-se á ponta de pé o seixozinho chato em arriscada viagem de pulos. Era depois a vez dos jogos de corrida, entre os quaes figurava notavelmente o saudoso e rijo chicote queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pateo central animava-se com a revoada das pennas, o estalar elastico das bolas, passando como obuzes, ferindo o alvo em pontaria amestrada, o formigamento multicôr das espheras de vidro pela terra, com a gritaria de todas as vozes do prazer e do alvoroço.

Depois havia os jogos de parada, em que circulavam como preço as pennas, os sellos postaes, os cigarros, o proprio dinheiro. As especulações moviam-se como o bem conhecido ophidio das corretagens. Havia capitalistas e usurarios, finorios e papalvos, idiotas que se encarregavam de levar ao mercado, com a facilidade de que dispunham fóra do collegio, fornecimentos inteiros, valiosissimos, de Mallats e Guillots que os habeis limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e sellos inestimaveis que os colleccionadores praticos desmereciam para tirar sem custo; fumantes ebrios de fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça, repimpados á turca sobre os coxins da barata fartura.

As transacções eram prohibidas pelo codigo do Atheneu. Razão de mais para interessar. Da letra da lei, incubados sob a pressão do veto, surgiam outros jogos, mais expressamente caracteristicos, dados que espirravam como pipocas, naipes em leque, que se abriam orgulhosos dos bellos trunfos, entremostrando a pansa do rei, o sorriso galhardo do valete, a symbolica orelha da sota, a paysagem ridente do az; roletas miudas de cavallinhos de chumbo; uma alluvião de fichas em cartão, pullulantes como os dados e córadas como os padrões do carteiro.

A principal moeda era o sello.

Pelo sinete da posta dava-se tudo. Não havia premios de licção que valessem o mais vulgar d'aquelles coupons servidos. Sobre este preço, permutavam-se os direitos do pão, da manteiga ao almoço, da sobremesa, as delicias secretas da nicotina, o proprio decoro pessoal em si.

A raiva dos colleccionadores, caprichando em exhibir cada qual o album mais completo, mais rico, transmittia-se a outros, simples agentes de especulação; d'estes ainda a outros com a seducção do interesse. No collegio todo, só Rebello talvez e o Ribas, primeiro fundeado no porto da misanthropia senil que o distanciava do mundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de anjo feio aos pés de Nossa Senhora, escapavam á mania geral do sello, melhor, á geral necessidade de premunir-se com valor corrente para as emergencias.

No commercio do sello é que fervia a agitação de emporio, contractos de cobiça, de agiotagem, de esperteza, de fraude. Accumulavam-se valores, circulavam, fructificavam; conspiravam os syndicatos, arfava o fluxo, o refluxo das altas e das depreciações. Os inexpertos arruinavam-se, e havia banqueiros atilados, espapando banhas de prosperidade.

Falava-se, com a reserva tartamuda dos caudatarios do milhão, de fortunas imponderaveis... Certo felizardo que possuia aquelles immensos exemplares da primeira posta na Inglaterra, os dous rarissimos, ambos! o azul e o branco, de 1840, com a estampa nitida de Mulrady: a Gran-Bretanha braços abertos sobre as colonias, sobre o mundo; á direita, a America, a propaganda civilisadora, a conquista da savanna; á esquerda, o dominio das Indias, coolies sob fardos, dorsos de elephantes subjugados; ao fundo, para o horizonte, navios, o trenó canadiano que foge á disparada das rennas; no alto, como as vozes aladas da fama, os mensageiros da metropole.

Joias d'este preço immobilisavam-se nas collecções, inalienaveis por natureza como certos diamantes. Nem por isso era menos ardente a mercancia na massa febril da pequena circulação; da quantidade infinita dos outros sellos, rectangulares, octogonaes, redondos, ellipsoidaes, alongados verticalmente, transversalmente, quadrados, lisos, denteados, antiquissimos ou recentes, inglezes, suecos, da Noruega, dinamarquezes, de sceptro e espada, sumptuosos Hannover, como retalhos de tapeçaria, cabeças de aguia de Lubeck, torres de Hamburgo, aguia branca da Prussia, aguia em relevo da moderna Allemanha, austriacos, suissos de cruz branca, da França, imperiaes e republicanos, de toda a Europa, de todos os continentes, com a estampa de um pombo, de navios, de um braço armado; gregos com a effigie de Mercurio, o deus unico que ficou de Homero, sobrevivo do Olympo depois de Pan; sellos da China com um dragão esgalhando garras; do Cabo, triangulares; da republica de Orange com uma larangeira e tres trompas; do Egypto com a esphinge e as pyramides; da Persia de Nasser-ed-Din com um pennacho; do Japão, bordados, rendilhados como pannos de biombo e de ventarolas; da Australia, com um cysne; do reino de Hawaii, do rei Kamehameha III; da Terra Nova com uma phoca em campo da neve; dos Estados-Unidos; de todos os presidentes da republica de S. Salvador com uma aureola de estrellas sobre um vulcão; do Brasil, desde os enormes mal feitos de 1843; do Perú com um casal de lamas; todas as côres, todos os sinetes com que os estados tarifam as correspondencias sentimentaes ou mercantis explorando indistinctamente um desconto minimo nas especulações gigantescas e o imposto de sangue sobre as saudades dos emigrados da fome.

A sala geral do estudo, comprida, com as quatro galerias de carteiras e a parede opposta de estantes e a tribuna do inspector, era um microcosmo de actividade subterranea. Estudo era pretexto e apparencia, as encadernações capeavam mais a esperteza do que os proprios volumes.

A certas horas reunia-se alli o collegio inteiro, desde os elementos de primeiras letras até os mais adiantados cursos. Agrupavam-se por ordem de habilitações; o abc diante da porta de entrada, á direita; á extrema esquerda, os philosophos, cogitadores do Barbe, os latinistas abalisados, os admiraveis estudantes do allemão e do grego. Baralhavam-se as tres classes de idades; podia estar um marmanjo empacado á direita na carteira dos analphabetos, e podia estar um bêbê prodigio a desmammar-se na philosophia da esquerda. O acaso da collocação podia sentar-me entre o Barbalho e o Sanches, como podia da affeição do Alves desterrar-me uma legua. Dependia tudo do adiantamento.

Como compensação d'estas desvantagens havia os telegraphos e a correspondencia de mão em mão. Os fios telegraphicos eram da melhor linha de Alexandre 80, subtilissimos e fortes, accommodados sob a taboa das carteiras, mantidas por alças de alfinete. Em férias desarmavam-se. Dous amigos interessados em communicar-se estabeleciam o apparelho; a cada extremidade, um alphabeto em fita de papel e um ponteiro amarrado ao fio; legitimo Capanema. Tantas as linhas, que as carteiras vistas de baixo apresentavam a configuração agradavel de citharas encordoadas tantas, que ás vezes emmaranhava-se o serviço e desafinava a cithara dos recadinhos em harpa de carcamano.

Havia o genio inventivo no Atheneu, esperanças de riqueza, por alguma descoborta milagrosa que o acaso deparasse á maneira do pomo de Newton. Occorre-me um perspicaz que contava fazer fortuna com um privilegio para explorar ouro nos dentes chumbados dos cadaveres, uma mina! Foi assim a invenção malfadada do telegrapho-martellinho. Tantas pancadinhas, tal letra; tantas mais, tantas menos, taes outras. Os inventores achavam no systema dos signaes escriptos a desvantagem de não servir á noite. O elemento base d'esta refórma era uma confiança absoluta na surdez dos inspectores; aventuroso fundamento, como se provou.

As primeiras pancadinhas passaram; apenas os estudantes mais proximos sorriam disfarçando. Mas o martellinho continuou a funccionar e ganhou coragem. No silencio da sala, gottejavam as pancadas, miudas, como o debicar de um pintainho no soalho.

No alto da tribuna, o Sylvino coçou a orelha e ficou attento; começava a implicar com aquillo. Silencio... silencio, e as pancadinhas de vez em quando.

Foi o diabo. Inesperadamente precipitou-se do alto assento como um abutre, e com a finura do officio foi cair justo sobre o melhor de um despacho. Seguiu-se a devastação. Examinando a carteira, descobriu a rêde consideravel dos outros telegraphos. Foi tudo raso. Brutal como a furia, implacavel como a guerra—oh Havas!—o Sylvino não nos deixou um fio, um só fio ao novello das correspondencias! De carteira em carteira, por entre pragas, arrancou, arrebentou, destruiu tudo, o vandalo, como se não fosse o fio telegraphico listrando os céus a pauta larga dos hymnos do progresso e a nossa imitação modesta uma homenagem ao seculo.

A violencia não fez mais que augmentar o trafego dos bilhetinhos e suspender temporariamente a telegraphia.

De mão em mão como as epistolas, corriam os periodicos manuscriptos e os romances prohibidos. Os periodicos levavam pelos bancos a troça mordaz, aos collegas, aos professores, aos bedeis; mesmo a pilheria blasphema contra Aristarcho, uma temeridade. Os romances, enredados de atribulações febricitantes, attrahindo no descriptivo, chocantes no desenlace, alguns temperados de grosseira sensualidade, animavam na imaginação panoramas ideados da vida exterior, quando não ha mais compendios, as luctas pelo dinheiro e pelo amor, o ingresso nos salões, o exito da diplomacia entre duquezas, a festejada bravura dos duellos, o pundonor de espada á cinta; ou então o drama das paixões asperas, tormentos de um peito malsinado e sublime sobre um scenario sujo de bodega, entre vomitos de máu vinho e palavradas de barregã sem preço.

Com a proximidade das férias de anno, tudo desapparecia. O aborrecimento imperava.

A impaciencia da expectativa de livramento fazia intoleravel a reclusão dos ultimos dias.

Organisavam-se os preparativos para a grande exposição de trabalhos da aula de desenho, as aulas primarias estavam a ponto de entrar em exames, dos particulares semestraes, em que o director sondava o aproveitamento. Estes cuidados não podiam combater a inercia expectante dos animos.

No salão do estudo poucos abriam livro. Os rapazes alargavam os cotovellos sobre a carteira, fincavam o queixo nas costas da mão e abstrahiam-se com o olhar immovel, idiotismo de espera, como se tentassem perceber o curso das horas no espaço. Por traz da casa, no quintal do director, ouvia-se cantando Angela, cantilenas hespanholas, sinuosas de molleza; mais longe, muito mais, em zumbido indistincto, como um horizonte sonoro, as cigarras trilavam, agitando o ar quente com uma vibração de fervura.

Nas horas longuissimas do recreio, os rapazes passeavam calados, destruindo a communhão usual dos brincos, como se temessem estragar mais alegria naquelle captiveiro, certos de melhor emprego breve. Pelas paredes a carvão, pelas taboas negras a traços brancos, arranhada na caliça, escripta a lapis ou a tinta, por todos os cantos via-se esta proclamação: Viva ás férias! determinando a ansiedade geral, como um pedido, uma intimativa ao tempo que fosse menos tardo, oppondo, cruel, a resistencia impalpavel, invencivel dos minutos, dos segundos, á chegada festiva da boa data.

Bento Alves, depois de assegurar que unicamente por mim se havia sujeitado á humilhação que soffrera, andava propositalmente arredio.

Eu, solitario, ia e vinha como os outros, percorrendo o pateo, marcando a bocejos os prazos alternados de impaciencia e resignação, vendo pairar por cima do recreio um papagaio que soltavam meninos da rua para as bandas do Atheneu. Invejava-lhe a sorte, ao papagaio cabeceando alegre, ondeando a balouçar, estatelando-se no vento, passaro caprichoso, dominando vermelho o vasto rectangulo azul que as paredes cortavam no firmamento, solitario, solitario como eu, captivo tambem—mas ao alto e lá fóra.

Relaxava-se o horario; professores faltavam; era menos rude a inspecção. Os alumnos iam por toda parte á vontade. Faziam roda de palestra nos dormitorios, pilando enfastiadamente os mais duros assumptos, murmurações esmoidas, escabrosidades pulverisadas, trituradas malicias, algumas vezes malicias ingenuas se é possivel, caracterisando-se no conciliabulo o azedume tagarella do cançaço podre de um anno, conforme a psychologia de cada salão.

Os dormitorios appellidavam-se poeticamente, segundo a decoração das paredes: salão perola, o das crianças, policiado por uma velha, mirrada e má, que erigira o beliscão em preceito unico disciplinar, olhos minimos, chispando, bocca sumida entre o nariz e o queixo, garganta escarlate, Uma população, de verrugas, cabeça pennugenta de gypaeto sobre um corpo de bruxa; salão azul, amarello, verde, salão floresta, dos ramos do papel, aos quaes se recolhia a classe innumeravel dos médios. O salão dos grandes, independente do edificio, sobre o estudo geral, conhecia-se pela denominação amena de chalet. O chalet fazia vida em separado e mysteriosa.

O policiamento dos dormitorios competia aos diversos inspectores, convenientemente distribuidos.

Na época attenuavam-se os zelos da policia. O proprio gypaeto do perola batia as azas para a folia, uma innocente folia de noventa annos.

A palestra corria desassombrada.

Deitavam-se uns a uma cama, outros cercavam agrupados nas camas proximas e atacavam os assumptos.

No salão dos médios:

«D. Emma... D. Emma... não se murmura á tôa... Reparem na maneira de falar do Chrysostomo... Tem motivo, um rapagão... Palavra que os apanhei sósinhos, juntinhos, conversando, á distancia de um beijo...

—O melhor é que o Chrysostomo não vae para a rua... Que diabo, nem tanto vale o grego, que se pague a beijocas descontadas pela mulher.... Tenho para mim que o negocio ainda acaba mal e porcamente, kakós kai ruparós com uma estralada...

—Ora, directores! emprezarios! fabricantes de sciencia barata e prodigios de carregação, com que empulham os papaes basbaques... O que querem é a frequencia do negocio... Falem cá em annuncios... Mulher ao balcão... Que chamariz, uma carinha seductora! Eu por mim, se fosse director, inaugurava um Kindergarten para taludos; uma bonita directora á testa e quatro adjunctas amaveis... Não haveria nhonhô graudo que não morresse pelo ensino intuitivo. Como não haviam de pagar para cortar pauzinhos no meu jardim! E que serviço ao progresso do meu paiz: estimular á Frœhel as intelligencias perrengues e as adolescencias atrazadas...

—Pois eu seria capaz de guerrear o estabelecimento. Se fosse director, teria o cuidado de ser tambem ministro do imperio... Revogava a Instrucção Publica e approvava a minha gente por decreto, tudo de pancada e com distincção.

—Qual! eu, se fosse director, seria safado! Não ha nada neste mundo como ser safado! Uma bonita meninada, que festança! Os meninos gostam da gente, a gente gosta dos meninos e o collegio cresce: crescite!... D'ahi a pouco tanta matricula, que precisariamos mudar de casa...

—Que canalha! Que linguinhas... Safa! Pois eu cá só digo mal d'aquelle typo do Lyceu Marcello, que tem na face a costura cicatrizada do talho que lhe fez um discipulo em certa aventura com o mais pacifico dos utensilios, e que, ainda assim, foi apanhado no Cassino deixando aberto num divan o carnet de baile, cuidadosamente illustrado de symbolos... pedagogicos.

A palestra no perola era muito mais candida, e, principalmente, nada pessoal.

Curso improvisado de obstetrica elementar, pura especulação. Todos queriam saber; apertavam-se vinte pequenos em roda do problema, como aquellas figuras da licção de Rembrandt. Qual a origem das especies? Eram investigadores. Ninguem adiantava um passo. Estava ausente o gypaeto, que talvez podesse explicar. Feliz quem póde conhecer a causa das cousas! Como é a entrada na vida? Ordem dorica? jonica? composita? As imaginações trabalhadas formigavam avidamente sobre a questão; ninguem penetrava. Desenrolavam-se as theorias domesticas, angelico-gynecologicas.

Havia em Paris uma grande empreza de exportação, da qual eram agentes em todo o mundo os parteiros, e commissaria central no Rio M.me Durocher. Vinha o genero nos berços, encaixotados, mijadinhos e chorosos. Esta theoria tinha o merecimento philosophico de prescindir das causas finaes. Os metaphysicos inclinavam-se mais para a intervenção da sobre-natureza: por occasião do Natal havia de noite uma distribuição geral de herdeirozinhos pela terra, chuva de pimpolhos, para compensar a matança dos innocentes, tão prejudicial no tempo de Herodes. Inutil dizer que os referidos innocentes vinham outr'ora ao mundo pela mão dos mesmos portadores das credenciaes da revelação, hoje em desuso.

E a academiazinha de investigadores amimava documentos, sorrindo alguns da credulidade dos outros, exhibindo em refutação credulidade de diverso quilate; alguns, mais positivos, adduzindo observações proprias, porque os meninos espiam, offerecendo á opinião dos collegas uma nota ponderosa, edificando-se lentamente o systema como os systemas se edificam, aproveitando-se apenas o elemento franqueado pelo apoio commum.

Dous ultimos pareceres concorreram opportunamente para desatar os embaraços e a assembléa dispersou-se. Um cearensezinho, de cabello á escova, intelligente e silencioso, amigo de responder por um geito especial de virar os olhos, senhor de um sorriso desconcertante que sabia armar a proposito, falando baixinho e explicito, introduziu no debate a descripção minuciosa, sem perda de fofos nem apanhados, da toilette balnearia das mulheres do sertão na provincia, descendo ao rio, de um bello panno sympathico em que o raio do sol nascente representa de fio mais grosso. Outro parecer foi a grosseira chacota de um caturra barrigudinho, fronte de novilho, miniatura de arrieiro, brutal e maroto, filho de um criador abastado do Paraná e instruido para todas as exigencias praticas da industria paterna. Estava alli a ouvir desde o principio sem dizer palavra, esperando a conclusão. Suppondo que o cearense ia fazer a luz, atirou-se adiante, interrompeu-o e concluiu largando o enxurro, espojando-se farto na garotada, como a cria da estancia no lodo fresco.

A vadiagem dos dormitorios não consistia só em palestra. Depravados pelo aborrecimento e pela ociosidade, inventavam extravagancias de cynismo.

O Cerqueira, ratazana, sujeito comico, cara feita de beiços, rachada em bocca como as romans maduras, de mãos enormes como um disfarce de pés, galopava a quatro pelos salões, zurrando em fraldas de camisa, escoucinhando uma alegria sincera de mú. Maurilio, o dos quinaus, não era exclusivamente o campeão da taboada que conhecemos; tinha outra habilidade notavel e prestava-se com applauso a uma experiencia original de fluidos inflammaveis. Este rapaz escapou de morrer, em um dos ultimos naufragios da nossa costa; um ex-collega escreveu-lhe: Quem os semeia, colhe tempestades.

As provocações no recreio eram frequentes, oriundas do enfado; irritadiços todos como feridas; os inspectores a cada passo precisavam intervir em conflictos; as importunações andavam em busca das susceptibilidades; as susceptibilidades a procurar a sarna das importunações. Viam de joelhos o Franco, puxavam-lhe os cabellos. Viam Romulo passar, lançavam-lhe o appellido: mestre cook!

Esta provocação era, além de tudo, inverdade. Cozinheiro, Romulo! só porque lembrava a culinaria, com a carnosidade bamba, fofada dos pastellões, ou porque era gordo das enxundias enganadoras dos fregistas, dissolução morbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais volumosa saude? Romulo era simplesmente e completamente o confeiteiro das esperanças doces de Aristarcho.

Anafado de apparencia, e ainda mais ancho de fortuna, significava bem o que se diz um bom partido. Aristarcho tinha uma filha; saude, fortuna: um genro ideal; ainda por cima bonachão e pacato.

A Melica, a altiva e requebrada Amalia, lambisgoia, proporções de vareta, fina e longa, morena e airosa, levava o tempo a fazer de princeza. Dous grandes olhos pretos, exaggero dos olhos pretos da mãe, tomavam-lhe a face, dando-lhe de frente a semelhança justa de um bello I com dous pingos. Por estes olhos e por sobre os hombros, que tinha erguidos e mephistophelicos, derramavam-se desdens sobre tudo e sobre todos. Possuia e petiscava a certeza facil de que o Atheneu em peso andava caído por ella, e morava no andor imaginario d'aquella idolatria de trezentos. Trezentos corações, trezentos desdens. A eminencia do pae sobre aquelle mundozinho desprezivel dava-lhe vida á vangloria, e ella gostava de visitar o collegio para ter occasião de exercitar a altivez culminante, misturada, do sexo e da gerarchia. Quanto a Romulo, era o primeiro no seu desprezo. Timbrava em não prestar-lhe attenção. Designava-o esplendidamente:—o parvo. Melica era bem conversada e preciosa.

Romulo philosophava por Epicuro. Desdens não matam. Havia de bom naquella attitude de noivado perenne, uma serie de utilidades: cargo de vigilante, privilegios de benevolencia, um jantar de vez em quando com o director,—isto é, uma folga ao paladar imaginada em sonho por quantas boccas, no regimen obrigatorio e destemperado da casa, menu permanente, inviolavel como a letra das constituições.

Quando vinha Melica ao Atheneu, era Romulo o primeiro a aproximar-se, o ultimo a ser visto. Aristarcho chamava-o ás vezes e levava a passeio com a menina. Melica, toda donaire e orgulho, passava adiante e permittia, quando muito, que Romulo a seguisse cabisbaixo e mudo, como um hippopotamo domesticado. Diga-se, a bem da verdade, que o gorducho esperava rir por ultimo ao pae e á filha.

Em um estabelecimento de rumorosa fama como o Atheneu não se podia deixar de incluir no quadro das artes a musica de pancadaria.

Passava despercebido o harmonium do Sampaio, religioso e bálbuce. Estimava-se como cousa somenos a rabequinha do Cunha, choramigas e expressiva, nas mãos do esguio violinista; manhoso o instrumento como uma casa de maternidade, pallido o musico, espichadinho e chlorotico; dando ares de graça a linguagem das cravelhas por meio de sons que imitavam a quasi aphasia timorata e infantil do Cunha, descambando em syncopes, de vez em quando, estendendo guinchos hystericos de amor vadio, saltitando pizzicatos como as biqueiras de verniz do Cunha, amigo de valsar, agil no baile como as fitas, as plumas e as evaporadas tulles.

Considerava-se razoavelmente o piano do Alberto Souto, bochechas largas de maestro em effigie, pianista portento que viera parar ao Atheneu, depois de percorrer a Europa á cata de triumphos, redondo, curto e musical como um cylindro de realejo; famoso pela gargalhada soez, bagaço espremido da vaidade, da cobiça, que lhe ficara dos successos do palco e das surras da aprendizagem; e pela estupidez secca nos estudos, como se a intelligencia lhe houvesse escapado pelos dedos para os teclados em deserção definitiva.

Mas a predilecção de Aristarcho era pela banda, pela pancadaria, grita vibrante dos cobres, fuzilaria das vaquetas, levando gente á janella quando o Atheneu passava, dando rebate á admiração das esquinas, o estrepito das caixas troando á marcha dobrada como um eco de combates, furor infrene, irresistivel, de zabumbada em feira.

A banda tinha casa propria e um professor bem pago. Os instrumentistas gozavam de particular favor nos relaxamentos de disciplina; nas occasiões de festa eram mimoseados, com um brinde de gulodices; condecoravam-se com distinctivos de prata, que nem os harmoniosos concertantes do Orpheon logravam pilhar.

Ainda na banda graduava-se a predilecção de Aristarcho, segundo a importancia de sonoridade dos timbres. O grave bombardão, o ophiclide, a trompa, o trombone, o proprio sax, destinados ao mister secundario de acompanhamento, recuando, como lacaios, na encenação sonora, homens de armas servilmente bravos nas investidas brilhantes, ou timidos pagens, arrepanhando o abandono de caudas escapadas ao luxo regio das grandes notas do canto,—valiam menos ainda, na estima do director, que na marcação da partitura.

Predilecto era o flautim, florete feito som, tenue, penetrante, perfuração de agulhas; predilecta era a requinta, especie de flautim rachado, aggressiva como a vibração do dardo das serpentes; o fagote, augmentativo de requinta, unico apparelho capaz de produzir artificialmente a fanhosidade colerica das sogras; o claro oboe, larynge metallica de um cantor de epopéas, heroico e bello; o piston frenetico e vivo, estandarte á mostra sobre a celeuma, harmonisando, centralisando a instrumentação como um regimento de cavalleiros. Predilectos porque gritavam mais! Predilecto principalmente o tambor e o bombo tonante, primazia do estrondo, a trovoada das pelles tezas, que a tormenta sobraça nos arroubos de carnaval canalha dos seus dias e que sobraçava, no Atheneu, Romulo, o graxo Romulo, o nedio, o opulento, o carissimo genro das esperanças caras.

Foi exactamente por esta seriação de preferencias acusticas que chegou Aristarcho á descoberta do seu favorito. E por acaso.

Durante uma festa escolar, exhibia-se a banda. Distrahe-se o bombo e solta fóra de tempo um magnifico tiro, que ia bem á composição executada como uma gotta de tinta Monteiro numa aquarella. Metade dos ouvintes acreditaram que aquillo era um capricho wagneriano enxertado de proposito; outra metade não conteve o riso.

Aristarcho admirava o bombo em solo, solidão das salvas em pleno mar, factor grandioso de sonoridade que o Zé Pereira multiplica. Mas o riso dos convidados incommodou-o.

Acabada a festa, mandou vir á presença o artista do estampido. Apresenta-se o musico e não sei como se entenderam que, em vez de castigo, retirou-se Romulo do gabinete com os foraes vantajosos de genro ad honorem.

O escandaloso favor suscitou uma reacção de inveja.

Romulo era antipathisado. Para que o não manifestassem excessivamente, fazia-se temer pela brutalidade. Ao mais insignificante gracejo de um pequeno, atirava contra o infeliz toda a corpulencia das infiltrações de gordura solta, desmoronava-se em sôcos. Dos mais fortes vingava-se, resmungando intrepidamente.

Para desesperal-o, aproveitavam-se os menores do escuro. Romulo, no meio, ficava tonto, esbravejando juras de morte, mostrando o punho. Em geral procurava reconhecer algum dos impertinentes e o marcava para a vindicta. Vindicta inexoravel.

No decorrer enfadonho das ultimas semanas, foi Romulo escolhido, principalmente, para expiatorio do desfastio. Mestre cook! via-se apregoado por vozes phantasticas, saídas da terra; mestre cook! por vozes do espaço, rouquenhas ou esganiçadas. Sentava-se acabrunhado, vendo se se lembrava de haver tratado panellas algum dia na vida; a unanimidade impressionava. Mais frequentemente, entregava-se a accessos de raiva. Arremettia bufando, espumando, olhos fechados, punhos para traz, contra os grupos. Os rapazes corriam a rir, abrindo caminho, deixando rolar adiante aquella ambulancia damnada de elephantiasis.

A uma das vaias estive presente. Romulo marcou-me. Pouco depois encontravamo-nos no longo corredor que levava á bibliotheca do Gremio. Situação embaraçosa. Eu vinha, elle ia. Parar? Recuar? Emquanto hesitava, fui-me adiantando. Romulo, de salto, empolgou-me a golla da blusa. Sacudia a ponto de macerar-me o peito. «Então, seu cachorro (sic), diga-me aqui, se é capaz, quem é mestre

A injuria equilibrou-me do espanto. Estava tudo perdido. Deitei bravura. «Mestre, mestrissimo cook!» gritei-lhe á barba. Não sei bem do que houve. Quando dei por mim, estava estendido em baixo do uma escada. Entraram-me na cabeça tres pregos, que havia nos ultimos degráus. Ponderando que tinha no futuro tempo de sobra para vingança, levantei-me e sacudi da roupa a poeira humilhante da derrota.

Afinal, o dia chegou dos exames primarios.

Provas de formalidade para as transições do curso elementar: primeira aula, para a segunda, segunda para a terceira, terceira para o ensino secundario.

Levavam-se assentos e mesas para o salão do oratorio, vestido o altar de um reposteiro, e repotreava-se a commissão solemne, da qual faziam parte personagens da Instrucção Publica, com o director e os professores.

Aristarcho representava, na mesa, o voto pensado do guarda-livros. Contas justas: approvação com louvor, cambiando ás vezes para distincção simples; atrazo de trimestre, approvação plena com risco de simplificação; atrazo de semestre, reprovado.

Havia no Atheneu, fóra d'esta regra, alumnos gratuitos, doceis creaturas, escolhidas a dedo para o papel de complemento objectivo do caridade, timidos como se os abatesse o peso do beneficio; com todos os deveres, nenhum direito, nem mesmo o de não prestar para nada. Em retorno, os professores tinham obrigação de os fazer brilhar, porque caridade que não brilha é caridade em pura perda.

Nas provas do terceiro anno, as distincções foram tão numerosas, que me veio ter as mãos uma, sem escandalo aliás, que desde muito perdera o medo e começava a quadrar-me a aisance das demonstrações, como um mal contaminado do director. Fiz um figurão, apanhei a deliciosa nota, que levei a mostrar em casa, como um bichinho raro, mimando-lhe o pello fino, beijocando-lhe a focinheira. Sanches teve louvor; Manlio, louvor; Cruz, louvor tambem, graças á especialidade da cartilha, em que era provecto, espantando a commissão julgadora com a ladainha toda de Nossa Senhora e ameaçando-nos com o calendario de cór. Santo por Santo, observações adjacentes, mais a designação das festas moveis e das luas, como o proprio doutor Ayer das pilulas catharticas o não faria. Gualterio, palhaço, foi reprovado. Nascimento, o bicanca, fungou de satisfação: plenamente. Negrão, Almeidinha, Alvares, distincção. Contra a distincção d'este ultimo, o professor Manlio protestou surdamente; o bronco do Alvares com distincção! Baptista Carlos, o bugre das settas, bomba! Diante da commissão mostrou-se muito surprehendido das perguntas, como se tivesse alguma cousa com aquillo; Barbalho, bomba. Barbalho pae andava atrazado semestre e meio e Barbalho filho não deixou de salvar as apparencias com uma escrupulosa collaboração de asneiras. O optimo, o veneravel Rebello não compareceu: deixara o collegio, havia mezes, por causa dos olhos.

Emquanto na sala verde, emparedada de porphyro polido, esperava, com os collegas, que apparecesse á porta o inspector que devia ler o resultado do escrutinio, foi-me parar a vista aos quadros de alto relevo, das artes e das industrias, os risonhos meninos nús, fraternaes, em gesso puro e innocencia. Senti-me velho. Que longa viagem de desenganos! Alguns mezes apenas, desde que vira, á primeira vez, as ideaes crianças vivificadas no estuque pelo contagio do enthusiasmo ingenuo, ronda feliz do trabalho... Agora, um por um que os interpretasse, aos pequenos hypocritas mostrando as nadegas brancas com um reverso igual de candura, um por um que os julgasse, e todo aquelle gesso das facezinhas rechunchudas córaria de uma sancção geral e esfoladora de palmadas. Não me enganavam mais os pequeninos patifes. Eram infantis, alegres, francos, bons, immaculados, saudade ineffavel dos primeiros annos, tempos da escola que não voltam mais! E mentiam todos! Cada rosto amavel d'aquella infancia era a mascara de uma falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se alli de pureza a malicia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação, a covardia, a inveja, a sensualidade brejeira das caricaturas eroticas, a desconfiança selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, da impotencia, o collegio, barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo do Mestre, confederação de instinctos em evidencia, paixões, fraquezas, vergonhas, que a sociedade exaggera e complica em proporção de escala, respeitando o typo embryonario, caracterisando a hora premente, tão desagradavel para nós, que só vemos azul o passado, porque é illusão e distancia.

Para a exposição dos desenhos foram retiradas as carteiras da sala de estudo, forradas de setim escuro as paredes e os grandes armarios. Sobre este fundo, alfinetaram-se as folhas de Carson, manchadas a lapis: pelo sombreado das figuras, das paysagens, pregaram-se, nas molduras de friso de ouro, os trabalhos reputados dignos d'esta nobilitação.

Eu fizera o meu successozinho no desenho, e a garatuja evoluira no meu traço, de modo a merecer encomios. A principio, o bosquejo simples, linear, experiencia da mão; depois, os esbatimentos de tons que consegui logo como um matiz de nuvem; depois, as vistas de campo, folhagem rendilhada em bicos, pardieiros em demolição pittoresca da escola franceza, como ruinas de páu podre, armadas para os artistas. Depois de muito moinho velho, muita vivenda de palha, muito casarão deslombado, mostrando as miserias como um mendigo, muita pyramide de torre aldeã esboçada nos ultimos planos, muita figurinha vaga de camponesa, lenço em triangulo pelas costas, rotundas ancas, saias grossas em pregas; sapatões em curva, passei ao desenho das grandes cópias, pedaços de rosto humano, cabeças completas, cabeças de corcel; cheguei á ousadia de copiar com toda a magnificencia das sedas, toda a graça forte do movimento, uma cabra do Thibet!

Depois da distincção do curso primario, foi esta cabra o meu maior orgulho. Retocada pelo professor, que tinha o bom gosto de fazer no desenho tudo quanto não faziam os discipulos, a cabra thibetana, meio metro de altura, era aproximadamente obra prima. Ufanava-me do trabalho. Não quiz a sorte que me alegrasse por muito. Negaram-me á bella cabra a moldura dos bons trabalhos; ainda em cima—considerem o desespero! exactamente no dia da exposição, de manhã, fui encontral-a borrada por uma cruz de tinta, larga, de alto a baixo, que a mão benigna de um desconhecido traçara. Sem pensar mais nada, arranquei á parede o desgraçado papel e desfiz em pedaços o esforço de tantos dias de perseverança e carinho.

Quando os visitantes invadiram a sala, notaram na linha dos trabalhos suspensas duas enigmaticas portas de papel rasgado. Estranhavam, ignorando que alli estava, interessante, em ultimo capitulo, a historia de uma cabra, de uma cruz, drama de desespero e espolio miserando de uma obra prima que fôra.

As exposições artisticas eram de dous era dous annos, alternadamente com as festas dos premios. Conseguia-se assim uma quantidade fabulosa de papel riscado para maior riqueza das galerias. Cobria-se o metim desde o soalho até ao tecto. Havia de tudo, não só desenhos. Alguns quadros a oleo, do Altino, risonhas aquarellas accidentando a monotonia cinzenta do Faber, do Conté, do fusain. Os futuros engenheiros applicavam-se ás aguadas de architectura, aos desenhos coloridos de machinas.

Entre as cabeças a crayon retincto, crinas de ginete, felpas de onagro lanzudo, inclinando o funil das orelhas, cerdosas frontes hirsutas de javalis, que arreganhavam presas, perfis de audacia em collarinhos de renda, abas atrevidas de feltro, plumas revoltas, physionomias de marujo, selvagens, arrepiadas, num sopro de borrasca, barbas incultas, carapuça esmurrada sobre a testa, cachimbo aos dentes; entre todas estas caras, avultava uma collecção notavel de retratos do director.

O melindroso assumpto fôra inventado pela gentileza de um antigo mestre. Preparou-se modelo; um alumno copiou com exito; e, depois, não houve desenhista amavel que não entendesse zeladamente dever ensaiar-se na respeitavel veronica. Santo Deus! que ventas arranjavam ao pobre Aristarcho! Era até um desaforo! Que olhos de blepharite! que boccas de beiços pretos! que calumnia de bigodes! que invenção de expressões aparvalhadas para o digno rosto do nobre educador!

Não obstante, Aristarcho sentia-se lisonjeado pela intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha subtil do crayon passando, brincando na ruga molle da palpebra, dos pés de gallinha, contornando a concha da orelha, calcando a commissura dos labios, entrevista na franja dos fios brancos, definindo a severa mandibula barbeada, subindo pelas dobras obliquas da pelle ao nariz, varejando a pituitaria, extorquindo um espirro agradavel e desopilante.

Por isso eram acatados os desenhistas da veronica.

Os retratos todos, bons ou máus, eram alojados indistinctamente nas molduras de recommendação. Passada a festa, Aristarcho tomava ao quadro o desenho e levava para casa. Tinha-os já ás resmas. Ás vezes, em momentos de spleen, profundo spleen de grandes homens, desarrumava a pilha; forrava de retratos, mesas, cadeiras, pavimento. E vinha-lhe um extase de vaidade. Quantas gerações de discipulos lhe haviam passado pela cara! Quantos affagos de bajulação á effigie de um homem eminente! Cada papel d'aquelles era um pedaço de ovação, um naco de apotheose.

E todas aquellas cousas mal feitas animavam-se e olhavam brilhantemente. «Vê, Aristarcho, diziam em côro, vê; nós que aqui estamos, nós somos tu, e nós te applaudimos!» E Aristarcho, como ninguem na terra, gozava a delicia inaudita, elle incomparavel, unico capaz de bem se comprehender e de bem se admirar—de vêr-se applaudido em chusma por alter-egos, glorificado por uma multidão de si-mesmos. Primus inter pares.

Todos, elle proprio, todos acclamando-o.




VIII

No anno seguinte, o Atheneu revelou-se-me noutro aspecto. Conhecera-o interessante, com as seducções do que é novo, com as projecções obscuras de perspectiva, desafiando curiosidade e receio; conhecera-o insipido e banal como os mysterios resolvidos, caiado de tédio; conhecia-o agora intoleravel como um carcere, murado de desejos e privações.

Desenvolvido á força e habilitado no torvelinho moral do internato, aproveitara os dous mezes de feriado para espreitar a animação da vida exterior. A sala, a sociedade, os negocios da praça publica, que na infancia são como contactos de nevoeiros resvalando pela imaginação, que nos despertam com um estardalhaço de pesadelo, que fogem, que somem-se, deixando-nos readormecidos no esquecimento da idade, ao tempo em que preferimos da soirée os bons bocados, das toilettes os laços de côres rutilas, ignorando que ha talvez na vida alguma cousa mais assucar que o assucar, e que o toque macio póde uma vez levar vantagem á coloração fulgurante, quando invejamos das posições sociaes modestamente o garbo de Phaetonte nos carros de praça ou a bravura rubente de umas calças de grande uniforme, sem saber que as ambições vão mais alto e que ha commendadores; o movimento do grande mundo não me apparecia mais como um theatro de sombras. Comecei a penetrar a realidade exterior como palpava a verdade da existencia no collegio. Desesperava-me então vêr-me duplamente algemado á contingencia do ser irremissivelmente pequeno ainda e collegial. Collegial, quasi calceta! marcado com um numero, escravo dos limites da casa e do despotismo da administração.

Havia a escassa compensação dos passeios. Uniformisava-se de branco o collegio como para as festas de gymnastica, com os gorros de cadarço, e saíamos a dous, a quatro de fundo, tambores, clarins á frente.

No anno anterior, os passeios tinham sido insignificantes, marchas alegres pelo arrabalde. Vinham ao peitoril as mocinhas, e nós todos, anchos de militarismo, despendiamos elegancia prodigamente. Eram melhores as excursões á montanha. Subiamos aos Dous Irmãos, caminho do Corcovado, marchavamos até á Caixa d'agua. Ahi debandavamos, na amenissima chapada.

Os passeios eram depois do jantar. A noitinha voltavamos, dando balanço ás notas de sensações, um deslumbramento verde de floresta, um retalho de afogueado crepusculo, um canto de cidade ao longe diluido em fumaça côr de perola, ou o olhar de uma dama e o sorriso de outra, projectis inoffensivos de namoro que na hypothese de andar a gente em fórma têm o defeito da incerteza, se vêm expressamente a nós, se ao vizinho, e a nós apenas por uma casualidade de ricochete—o ciume eterno dos serra-filas que a Praia Vermelha conhece.

Os nossos passeios foram mais consideraveis.

Primeiro ao Corcovado, assalto ao gigante, hoje domado pela vulgaridade da linha ferrea.

Ás 2 horas da noite, troaram os tambores como em quartel assaltado. Os rapazes, que mal haviamos dormido, na excitação das vesperas, precipitaram-se dos dormitorios. Ás 3 e pouco estavamos na serra.

Aristarcho rompia a marcha, valente como um mancebo, animando a desfilada como Napoleão nos Alpes.

Passeio nocturno de alegria sem nome. As arvores beiravam a estrada de muros de sombra num e noutro ponto rendada de frestas para o céu limpido. No caminho, trevas de tunnel e agitação confusa das roupas, malhada a esmo de placas de luar brando—reptil immenso de cinza e leite em vagarosa subida. Que sonho de cócegas experimentaria o colosso, na dormencia de pedra que o prostrava ainda, espezinhado pela invasão! Subiamos. Pelas abertas do arvoredo devassavamos abysmos; ao fundo, a illuminação publica por enfiadas, como rosarios de ouro sobre velludo negro.

Á boa altura, acampamos para o café. Criados que nos precediam com o farnel, improvisaram um balcão, e nos serviam successivamente na ordem da fórma. Felizes alguns, conseguiram uma gotta de fino Porto, mais quente que o café, reforçando com um banho interno de conforto contra a umidade da altitude e da hora, inflamando a coragem como um punch, avivando a alegria como um brinde de fogo.

O espaço apparecia mais claro sobre a renda das ramas; as ultimas estrellas por entre as folhas emmurcheciam como jasmins, e fechavam-se. Aristarcho deu ordens á banda. A subida recomeçou em festa, um dobrado triumphal rasgou o silencio das montanhas espavorindo a noite; o bombo de Romulo trovejou robusto, com imensa admiração da passarada que o espiava metendo o bico á beira dos ninhos, que o cobiçava talvez para genro, aturdindo os echos com um repente brutal de alvorada.

Ao passo que nos elevavamos, elevava-se igualmente o dia nos ares. Apostava-se a vêr quem primeiro cançava. Cada avanço da luz no espaço era como um excitante novo para a jornada, suavisando a doçura do alvorecer todo o esforço da ascensão. Quando a musica parava, ouviamos na alvenaria do grande encanamento, pelos respiradouros, as aguas do Carioca, ciciando queixas poeticas de naiade emparedada.

Avistavamos por hiatos de perspectiva a bahia, o Oceano vastamente desdobrado em chammas, extenso cataclysma de lava.

No planalto do Chapéo de Sol parámos. O director convencionou que, ao signal de debandar, assaltariamos na carreira o espigão de granito empinado á extrema do monte. A rapaziada acclamou a proposta e, com um alarido barbaro de peleja, arrojámo-nos á conquista da altura.

Chegou na frente o Tonico, meninote nervoso, de S. Fidelis, especialista invicto da carreira, corredor de pratica e principios, que de cada exame da Instrucção Publica fugia duas vezes á chamada, entendendo que a fuga é a expressão verdadeira da força, e a bravura uma invenção artificial dos que não podem correr.

Romulo fez a asneira de tentar o espigão; ficou a meio caminho, suffocado, inanimado, roncando por terra.

Almoçámos ás dez horas, cada um para seu lado, depois da distribuição frugal do mantimento. Fartos de paysagem, formámos para a descida.

Descida penosa. Tinhamos imprudentemente esgotado as forças na folgança. A marcha de volta foi uma miseria. Formámos ainda, mas já não havia quem olhasse para o alinhamento. As correias frouxas escapavam á cintura, as blusas ás correias; os pés cambavam, mal equilibrados no calçado, bambeavam os joelhos passadas de bebado.

As crianças adiante voltavam os olhos dolorosamente para o director, segurando-se uns aos outros pelos hombros, seguindo em grupos atropellados como carneiros para a matança. Aristarcho, tão lépido como na subida, estimulava o seu povinho, chasqueando compadecidas ironias.

Quiz recorrer ao estimulante da musica. Os musicos, derreados, haviam deixado os instrumentos na carroça da matalotagem que vinha longe. Nem tambores, nem clarins; apenas Romulo, atraz de todos, trazia o bombo de roldão pela estrada como uma pipa.

Por maior tormento, fundia-se a soalheira em chumbo ardente sobre nós, accendendo reflexos insupportaveis na areia da estrada, emquanto reverberava o dia lá em baixo, sobre as casas, pelos jardins nublados de vaporisações de estio, sobre a vegetação das montanhas, a florescer das tristes flôres da Paixão da alleluia.

Voltavamos de um dia alegre como soldados batidos. A ordem de marcha decompôz-se aos poucos. Quando chegámos ao Rio Comprido, iamos por bandos dispersos, arquejantes, os de maior folego na vanguarda; depois, em cauda interminavel de alquebramento, os mais fracos, até aquelles que ficavam pelo chão como enfermos, e que os inspectores buscavam como gado perdido.

No portão do Atheneu, mãos ás cadeiras, dentinhos brancos á vista, esperava-nos Angela, fresca e forte, e recebia com uma vaia de risadas aquella entrada de vencidos, homens e moços.

Quando, tempos passados, annunciou-se o grande pique-nique ao Jardim Botânico, certo não foi objecção a lembrança d'este descalabro de fadiga. Tinhamos almoçado na montanha; tratava-se agora de ir jantar ao jardim. Promptos!

Ao meio-dia, apeava o Atheneu dos bonds especiaes á porta do grande parque. Atravessámos cantando um dos hymnos do collegio as arcarias elevadas de palmas. Junto ao lago da avenida, debandámos.

No bosque dos bambús, á esquerda, estavam armadas as longas mesas para o banquete das quatro horas. Graças á boa vontade dos paes, prevenidos opportunamente, vergavam as taboas, sobre cavalletes, ao peso de uma quantidade rabelaiseana de acepipes. Á parte, em cestos, no chão, amontoavam-se fructas, caixas e frascos de confeitaria.

Era por um d'esses dias caprichosos, possiveis todo o anno, mais frequentes de verão, em que as bategas de chuva fazem alternativa com as mais sadias expansões de sol, deliciosos e traidores, em que, parece, a alma feminina se faz clima com as incertezas de pranto e riso.

Chovera uma vez ao partirmos, outra vez em viagem; havia no jardim muita humidade na relva e sob as folhas caidas; ás alamedas de mais sombra, via-se a areia crivada recentemente dos pequeninos furos que cava o gottejar do arvoredo. Mas eram tão claros os trechos de bom tempo, no intervallo dos nimbos, que não podiam apprehensões de aguaceiro entibiar a franqueza de alegria a que estavamos preparados.

A rapaziada dispersou-se pelos gramados para a montanha, para os cannaviaes e pomares de ingresso vedado. Alguns, munidos de anzoes, acocoravam-se á beira do açude, como batrachios, emquanto esperavam que picasse a probabilidade difficil de um peixe.

Os de espirito calmo buscavam sitios de soledade, iam passear a scisma silenciosa; os sentimentaes, com o instincto dos photographos paysagistas, ensaiavam, comparavam, applaudiam os melhores pontos de vista, ou, simplesmente, dous a dous, intimos, seguiam para longe, braços pela cintura, balbuciando dialogos lentos. Os menores corriam, armando animadissimos brincos, atiravam-se ás borboletas, iam pelos cursos d'agua canalisada através do parque, perseguindo a fuga de um graveto, trepido, inalcançavel na evasão rapida da lympha. Nos enredamentos obscuros do bosque, exactamente onde o artista grego incluiria um satyro, podia-se surprehender sob uma blusa o confiado abandono bucolico de outros collegas.

De quando em quando, um signal de clarim. Tocava-se a reunir e fazia-se a distribuição das gulodices. Muitos não compareciam.

Ás quatro horas a banda de musica assignalou com o hymno nacional o grande momento da festa campestre.

De todos os pontos do jardim começaram a chegar magotes pressurosos de uniformes brancos. Os vigilantes, energicos, regularisavam a occupação dos logares.

Ao correr da mesa, fechou-se o bloqueio ameaçador de dentaduras.

No centro alinhavam-se as peças, sem conta, frias, sem môlho, appetitosas, entretanto, da côr tostada e do aroma succulento.

Os garfos agitavam-se inimigos, amolavam-se os trinchantes nas mãos dos copeiros...

Obrigados a uma sobranceria stoica de philosophos, depois da provação definitiva do forno, nem os perús, nem os leitões, nem os timidos frangos mostravam aperceber-se da situação arriscada.

Os frangos, de pernas para traz, sobre o dorso, cabeça escondida na aza, pareciam dormir sonhando o calembour das pennas perdidas; os redondos bacoros, encouraçados na bella côr de torresmo, serviam-se dos olhos de azeitona para não mais vêr as seducções mentidas da existencia, empenhados em ensinar aos homens como se leva a cabo o supplicio culinario dos palitos, com a aggravante azeda dos limões em rodella; os perús, soberbos até á ultima e menos philosophicos, prescindiam francamente da cabeça, orgulhosos apenas da vastidão do peito, enfunando a vaidade cheia do papo, hypertrophia de farofa.

Guarnecendo os assados, perfilavam-se as garrafas pretas desarrolhadas, conglobavam-se montes de maçãs, peras, laranjas, apoiadas ás nacionalissimas bananas, como um traço de nativismo. Os pudins, as marmeladas, as compotas enchiam os vãos da toalha, com um zelo apertado de mediador plastico. Mesmo sem metter em conta as postas de roastbeef com que contribuirá Aristarcho, percebe-se que era de truz o jantar.

Quando os rapazes sentaram-se, em bancos vindos do Atheneu de proposito, e um gesto do director ordenou o assalto, as taboas das mesas gemeram. Nada pôde a severidade dos vigilantes contra a selvageria da boa vontade. A licença da alegria exorbitou em canibalismo.

Aves inteiras saltavam das travessas; os leitões, á unha, hesitavam entre dous reclamos igualmente energicos, dos dous lados da mesa. Os criados fugiram. Aristarcho, passando, sorria do espectaculo como um domador poderoso que relaxa. As garrafas, de fundo para cima, entornavam rios de embriaguez para os copos, excedendo-se pela toalha em sangueira. Moderação! moderação! clamavam os inspectores, afundando a bocca em aterros de farofa dignos do Sr. Revy. Alguns rapazes declamavam saudes, erguendo, em vez de taça, uma perna de porco. Á extremidade da ultima das mesas um pequeno apanhara um trombone e applicava-se, muito serio, a encher-lhe o tubo de carne assada. Maurilio descobriu um repolho recheiado e devorava-o ás gargalhadas, affirmando que era munição para os dias de gala. Cerqueira, ratazana, curvado, redobrado, sobre o prato, comia como um restaurante, comia, comia, comia como as sarnas, como um cancro. Sanches, meio embriagado, beijava os vizinhos, caindo, com os beiços em tromba. Ribas, dyspeptico, era o unico retrahido; suspirava de longe, anjo que era, diante dos reprovados excessos da bacchanal.

Em meio do tumulto ebrifestante, ouviram-se palmas. Á cabeceira da mesa principal, apresentavam-se de pé Aristarcho e o empertigadinho e cuprico professor Venancio. Era a poesia! Venancio de Lemos costumava improvisar, mais ou menos préviamente, estrophes analogas nas festas campestres...

Outros professores, que tinham concorrido ao piquenique, davam-se á faina grosseira de jantar. Elle, não.

Havia um quarto de hora que andava mysteriosamente por uma aléa de bambús, esfiapando as barbicas, a gaforina, palpando a testa, arrancando inspiração ao couro cabelludo, passando, nervoso, repassando, espiado furtivamente pela nossa admiração. Ninguem ousava acercar-se, temendo perturbar a elaboração do genio.

Muchôchos adoraveis das brisas, que andaes pela malta, gemedoras fontes, que desfiaes á tôa as lagrimas de vossos penares, amaveis sabiás cantores, que viveis de plantão na palmeira da litteratura indigena, sem que vos galardôe uma verba da secretaria do imperio, vinde commigo repartir o segredo do vosso encanto! Seductoras rolinhas, um pouco da vossa ternura! Vividos colibris, a mim! que sois como os animados tropos no poema frondoso da floresta... E as inspirações vieram. Primeiro, cerimoniosamente, á altura, volteando espiraes de urubú sobre a carniça; depois, de chofre, caindo-lhe ás bicadas sobre o estro. O estro entorpecido acordou. Fez-se hippogrypho um asno morto. O poeta foi registrando as estrophes.

Quadras de rima facil de participios, espancados pelo camartello contundente dos agudos.

Sustou-se em toda a linha o furor gastronomico dos rapazes. Ficámos a ouvir, surpresos.

Murmuraram as brisas; as fontes correram; tomaram a palavra os sabiás; surgiram palmeiras em repuxo; houve revoadas de juritys, de beija-flôres; todas essas cousas, de que se alimentam versos communs e de que morrem á fome os versejadores. Subito, do melhor das quadras, exactamente quando o poeta apostrophava o dia sereno e o sol, comparando a alegria dos discipulos com o brilho dos prados, e a presença do Mestre com o astro supremo, mal dos improvisos prévios! desata-se das nuvens espessadas uma carga d'agua diluvial, unica, sobre o banquete, sobre o poeta, sobre a miseranda apostrophe sem culpa.

Venancio não se perturbou. Abriu um guarda-chuva para não ser inteiramente desmentido pelas gotteiras e continuou, na guarita, a falar enthusiasticamente ao sol, á limpidez do azul.

Não querendo desprestigiar o estimavel subalterno, Aristarcho fingia acreditar no improviso e, indifferente, deixava cair o aguaceiro. As abas do chapéo de palha murchavam-lhe ao redor da cabeça, o rodaque branco desengommava-se em pregas verticaes gottejantes.

Para os rapazes a chuva foi novo signal de desordem. Deixou-se o poeta com a sua inspiração arrebatadora de bom tempo; recomeçou a investida aos pratos.

A abóbada de folhagem que nos cobria, em vez de attenuar a violencia das aguas, concorria para fazer mais grossos os pingos. Pouco importava. A philosophia impermeavel do director servia-nos tambem de capa. Que chovesse! Era o môlho dos manjares que nos faltava. As fructas lavadas luziam com um verniz de frescura que o proprio outomno não possue. O vinho estendia-se pela toalha encharcada numa generalisação solemne de purpura. O banho opportuno do banquete vinha temperar a demasiada aridez das farinhas de recheio. «Acabamos pela sopa, descobriu Nearcho, o penetrante, por onde o vulgo principia!»

Qual acabavamos! Ninguem acabou. Succedeu que, com os fundilhos molhados, ninguem quiz mais sentar-se. Gyrou o atropello ao redor das mesas; os bancos foram repellidos a ponta-pés. Repartia-se o doce sem equidade; quem não avançava a tempo ficava sem elle. Dous inspectores, João Numa e o Conselheiro, a pretexto de decidir uma contenda, arranjaram-se com uma caixa de pecegada e desappareceram.

A chuva desculpava a bebida. Era inacreditavel o consumo de brindes. Brindes a Aristarcho, brindes aos companheiros, ao Sylvino, ao poeta, ao sol, aos temporaes, ao trovão scandinavo; inimigos figadaes, no transporte do prazer, reconciliaram-se; Barbalho saudou-me fogosamente. Romulo, já tonto, affastado das mesas, brindava o copeiro que lhe arranjara uma garrafa; depois brindou a noiva; o criado, bebendo tambem, tocou-lhe o copo.

Como escurecia, o director fez o clarim chamar á fórma.

Debaixo do aguaceiro que não cessava, o collegio alinhou-se como bem pôde. Muitos, queixando-se de saude delicada, obtiveram, dispensa d'esta inopportuna disciplina de equilibrio; seguiram adiante para o portão abrigado do jardim... Após, fomos os outros, em marcha regular, pingando de molhados. A fita vermelha dos gorros desbotava-se-nos pelo rosto em fios sanguineos.

Quando chegámos ao portão, já nos esperavam os bonds especiaes. Do outro lado da rua, á entrada do conhecido restaurante, appareceu a familia do Aristarcho com alguns professores, que lá tinham jantado. D. Emma, pelo braço do Chrysostomo, a Melica altivamente só e distanciada.

No collegio, tivemos ordem de subir a descanço nos dormitorios. Preventivo louvavel de prudencia, depois dos excessos e da tempestade soffrida. O descanço foi simplesmente um prolongamento da pandega do passeio. Para cessar a desordem, tocou-se a estudo... Baixámos ao salão geral. Aristarcho, reassumindo a dureza olympica da seriedade habitual, apresentou-se e perguntou asperamente se pretendiamos que a vida passasse a ser agora um pique-nique perpetuo na desmoralisação. Tacitamente negámos e a tranquillidade normal entrou dos eixos.

Não sabiamos que, a essas horas, preparava o segredo da alta justiça uma trama de intrigas, que devia estragar em terrores a lembrança do grande passeio.

Á hora da ceia, na mesma porta em que se lia a gazetilha das aulas, sombrio como nunca, vagaroso como os compassos de requiem, tetrico como o juizo final, entrou o director.

Pausa preliminar, fremito de sensação pelo refeitorio:

«Tenho a alma triste», começou, cavernosamente. Uma cinta de trovões no horizonte, rostos da tormenta da tarde, faziam fundo ás palavras em côro eschyliano.

«Tenho a alma triste. Senhores! A immoralidade entrou nesta casa! Recusei-me a dar credito, rendi-me á evidencia»... Com todo o vigor tenebroso dos quadros tragicos, historiou-nos uma aventura bregeira. Uma carta comica e um encontro marcado no Jardim. «Ah! mas nada me escapa... tenho cem olhos. Se são capazes, illudam-me! Está em meu poder um papel, monstruoso corpo de delicto! assignado por um nome de mulher! Ha mulheres no Atheneu, meus senhores!»

Era uma carta do Candido, assignada Candida.

«Esta mulher, esta cortezã fala-nos da segurança do logar, do socego do bosque, da solidão a dous... um poema de pouca vergonha! É muito grave o que tenho a fazer. Amanhã é o dia da justiça! Apresento-me agora para dizer sómente: serei inexoravel, formidando! E para prevenir: todo aquelle que directa ou indirectamente se acha envolvido nesta miseria... tenho a lista dos comprometidos... e que negar espontaneo auxilio ao procedimento da justiça, será reputado cumplice e como tal: punido!»

Este convite era um verdadeiro arrastão. Remexendo a gaveta da consciencia e da memoria, ninguem havia, póde-se affirmar, que não estivesse implicado na comedia collegial dos sexos, ao menos pelo enredo remoto do ouvi dizer. Ouvir dizer e não denunciar logo, era um crime, dos grandes na jurisprudencia costumeira. A devassa promettida fazia alarma geral. Como prevêr as complicações do processo? Como adivinhar o segredo tremendo da lista?

Aristarcho ufanava-se de perspicacia de inquisidor. Sob a saraivada das perguntas, ameaças, promessas, o interrogado perturbava-se, compromettia-se, entregava-se e trahia os outros; nos processos do gabinete, os factos floresciam em carymbo, fructificavam em cacho; a pesquiza de uma culpa descobria tres, sem contar as ramificações da cumplicidade de outiva.

Ao retirar-se, o director deixou na sala uma estupefacção de pavor.

Eu, particularmente, tinha valiosos motivos de sobresalto. A guerra latente que já me ligava ao director, como as conjuncções disjunctivas, exacerbara-se com um episodio gravissimo, rompimento decisivo.

A caminho da bibliotheca, no mesmo logar do infeliz encontro com o enorme Romulo, achei-me inesperadamente com o Bento Alves.

As sympathias do excellente companheiro não tinham diminuido. Durante as férias, fôra vêr-me em casa, travando relações com a minha familia. Fui recommendado insistidamente ao amigo, que me valesse, nas difficuldades da vida collegial, contra o constante perigo da camaradagem perniciosa. Durante o mez de Janeiro não nos vimos. Por occasião da abertura das aulas, notei-lhe um calor novo de amizade, sem effusões como d'antes, mas evidentemente testemunhado por tremores da mão ao apertar a minha, embaraços na voz de amoroso errado, bisonho desviar dos olhos, denunciando a reluctancia de movimentos secretos e impetuosos. Ás vezes mesmo, um reflexo assustador de loucura accentuava-se-lhe nos traços.

Interessava-me aquella agonia comprimida. Estranha cousa, a amizade que, em vez da aproximação franca dos amigos, podia assim produzir a incerteza do mal estar, uma situação prolongada de vexame, como se a convivencia fosse um sacrificio e o sacrificio uma necessidade.

Durante os primeiros dias do anno, poucos alumnos chegados, ficavamos horas inteiras em companhia. Trouxera-me um presente de livros, com dedicatoria a côres, de bella calligraphia, inscripta em rosas entrelaçadas de chromo, Recordo-me tambem de um dulcissimo cofre dourado de pastilhas e outras ridicularias de amabilidade que me offerecia, passado de vergonha pela insignificancia do obsequio. Confusamente occorria-me a lembrança do meu papelzinho de namorada faz de conta, e eu levava a seriedade scenica a ponto de galanteal-o, occupando-me com o laço da gravata d'elle, com a mecha de cabello que lhe fazia cócega aos olhos; soprava-lhe ao ouvido segredos indistinctos para vêl-o rir, desesperado de não perceber. Uma das irmãs casara no Rio Grande; elle mostrou-me o retrato do noivo, um par de bigodes negros descaidos, com a noiva, um rosto oval correcto e puro, o turbilhão nevoento dos véus. Deu-me um botão de flôr de laranjeira que tinham remettido.

Andavam assim as cousas, em pé de serenidade, quando occorreu a mais espantosa mudança.

Não sei que diabo de expressão notei-lhe no semblante, de ordinario tão bom. Desvairamento completo. Apenas me reconheceu, atirou-se como fizera Romulo e igualmente brutal. Rolámos ao fundo escuro do vão da escada. Derribado, contundido, espancado, não descurei da defeza. Entrevi na meia obscuridade do recanto um grande sapato embolorado. Luctando na poeira, sob o joelho esmagador do assaltante, ataquei-lhe a cabeça, a cara, a bocca, a formidaveis golpes de tacão, apurando a energia de sola ferrada com a omnipotencia dos extremos. Bento Alves deixou-me bruscamente.

Tinhamos luctado em silencio, sem que nada mais se ouvisse do que os encontrões pelo soalho. No corredor, entretanto, vimos Aristarcho que chegava como em soccorro. Bento Alves passou; immobilisou-o com o olhar sem vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicidio e desappareceu, tropego, manchado de pó, labios inflammados, desordem nos cabellos.

Aristarcho veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o adversario, empoeirado e sujo como de rolar sobre escarros.

Respondi-lhe com violencia.

«Insolente!» rugiu o director. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu, «Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente! Confessa-me tudo ou mato-te.»

Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a excitação do primeiro combate; não podia olhar conveniencias de respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O director arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: «Sergio!ousaste tocar-me!»

—Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.

—Criança! feriste um velho!

Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.

—Fui vilmente injuriado, disse.

—Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao proprio pae, e os parricidas serão malditos.

O tom commovido d'este final inesperado impressionou-me até o intimo d'alma. Estava vencido. Fiquei por um minuto horrorisado de mim mesmo. De volta do atordoamento, achei-me só no corredor. A saída dramatica do director augmentou-me ainda remorsos. Houve uma reacção de esforço moral e desatei nervosamente em pranto, chorei a valer, amparando-me ao peitoril de uma janella.

Contava certo com um castigo excepcional, uma comminação qualquer do celebre codigo do arbitrio, em artigo cujo gráo minimo fosse a expulsão solemne.

Esperei um dia, dous dias, tres: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do Atheneu na mesma tarde do extraordinario desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do afamado systema das punições moraes e que Aristarcho delegara ao abutre da minha consciencia o encargo da sua justiça e desaffronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dous pagadores promptos, só pela futilidade de uma occorrencia, desagradavel, não se duvida, mas sem testemunhas.

O caso morreu em segredo de discrição, encontrando-nos eu e o director num conchavo bilateral de reserva, como se nada houvesse.

O resentimento, porém, devia ser fundo e a perspectiva tormentosa do processo ameaçava-me como o ensejo imminente da desforra.

Não foi possivel dormir tranquillo.

Á hora do primeiro almoço, como promettera, Aristarcho mostrou-se em toda a grandeza funebre dos justiçadores. De preto. Calculando magnificamente os passos pelos do director, seguiam-no em guarda de honra muitos professores. A porta fronteira, mais professores de pé e os bedéis ainda, e a multidão bisbilhoteira dos criados.

Tão grande a calada, que se distinguia nitido o tic-toc do relogio, na sala de espera, palpitando os ansiados segundos.

Aristarcho soprou duas vezes através do bigode, inundando o espaço com um bafejo de todo-poderoso.

E, sem exordio:

«Levante-se, Sr. Candido Lima!

«Apresento-lhes, meus senhores, a Sr.ª D. Candida, accrescentou com uma ironia desanimada.

«Para o meio da casa! e curve-se diante dos seus collegas!!»

Candido era um grande menino, beiçudo, louro, de olhos verdes e maneiras difficeis de indolencia e enfado. Atravessou de vagar a sala, dobrando a cabeça, cobrindo o rosto com a manga, castigado pela curiosidade publica.

«Levante-se, Sr. Emilio Tourinho...

Este é o cumplice, meus senhores!»

Tourinho era um pouco, mais velho que o outro, porém mais baixo; atarracado, moreno, ventas arregaladas, sobrancelhas crespas, fazendo um só arco pela testa. Nada absolutamente conformado para galã; mas era com effeito o amante.

«Venha ajoelhar-se com o companheiro.»

«Agora, os auxiliares...»

Desde as cinco horas da manhã trabalhava Aristarcho no processo. O interrogatorio, com o appendice das delações da policia secreta e dos timidos, compromettera apenas dez alumnos.

A chamado do director, foram deixando os logares e postando-se de joelhos em seguimento dos principaes culpados.

«Estes são os acolytos da vergonha, os co-réos do silencio!»

Candido e Tourinho, braço dobrado contra os olhos, espreitavam-se a furto, confortando-se na identidade da desgraça, como Francesca e Paolo no inferno.

Prostrados os doze rapazes perante Aristarcho, na passagem alongada entre as cabeceiras das mesas, parecia aquillo um ritual desconhecido de noivado: a espera da benção para o casal á frente.

Em vez da bênção chovia a colera.

«... Esquecem paes e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilancia ineluctavel de Deus!... Na face estanhada não lhes pegou o beijo santo das mães... caiu-lhes a vergonha como um esmalte postiço... Deformada a physionomia, abatida a dignidade, aggravam ainda a natureza; esquecem as leis sagradas do respeito á individualidade humana... E encontram collegas assás perversos, que os favorecem, calando a reprovação, furtando-se a encaminhar a vingança da moralidade e a obra restauradora da justiça!...»

Não posso atear toda a rhetorica de chammas que alli correu sobre Pentapolis. Fica uma amostra do enxofre.

Isto, porém, era um começo. Conduzidos pelos inspectores, saíram os doze como uma leva de convictos para o gabinete do director, onde deviam ser litteralmente seviciados, segundo a praxe da justiça do arbitrio.

Consta que houve mesmo pancada de rijo. Os condemnados negaram, depois. Em todo caso, era de effeito o simples consta, engrandecido pela refracção nebulosa do boato.

Concluida a chamada dos indiciados, a sala inteira respirou desafogo. No recreio, a rapaziada dispersou-se com gritos festivos.

Franco, sobretudo, estava de um contentamento nunca visto. Casualmente em liberdade, por não ter havido leitura das notas, fazia da circumstancia uma pirraça contra o Sylvino: «Eu é que sou o máu; repetia andando á roda, eu é que sou o bandalho, a peste do collegio!... O máu sou eu só!...» Sylvino foi gradualmente perdendo a paciencia. Atirou-se por fim ao Franco, desesperado, lançou-o á terra, metteu-lhe os pés. Alguns rapazes protestaram com gritos, Sylvino ameaçou. Fogosos da exaltação desordeira do passeio da vespera, que por momentos dominara o terror do processo, reuniram-se em massa contra o Sylvino. O inspector salvou a força moral refugiando-se no alto da escada e fazendo de cima tregeitos energicos com a carteira e o lapis.

Á tardinha, em nome do director, foram convocados a castigo os cabeças do motim.

Eu no meio. Fomos alinhados vinte e tantos no corredor que partia do refeitorio. Na qualidade de presos politicos, victimas de generosa sedição, não nos vexava a penitencia. Uns conversavam gracejando, outros sentavam-se no soalho. Junto de mim ficava um armario dos apparelhos escolares, revestindo-se a vidraça de uma tela protectora de metal. Atravez do arame, na ultima luz vespertina, eu espiava lá dentro os queridos planetas de vago brilho, como a noite encarcerada ainda.

Por traz do armario, havia uma porta. Conversavam do outro lado, na saia das visitas, Aristarcho e o guarda-livros. Chegavam-me palavras perdidas, «... De boa familia... dous, um descredito!... Vão pensar... Expulsar não é corrigir... Isto é o menos; não ha gratuitos?... Sim, sim... Quanto a mim... desagradavel sempre riscar... bórra a escripta... Em summa... mocidade...»

Acabavam de accender a illuminação do Atheneu.

Decididamente, era um dia nefasto. Do corredor, ouvimos enorme barulho no pateo. Recomeçavam as vaias. Protegidos pela noite, mostravam-se mais alvoroçados os rapazes. Era um tumulto indescriptivel, vozear de populaça em revolta, silvos, brados, injurias, em que os gritos estridulos dos pequenos destacavam-se como arestas da massa confusa de clamores.

Os inspectores chegaram aterrados a procurar o director, mostrando a cara salpicada de verrugas vermelhas. Adivinhei. Era a revolução da goiabada! Uma velha queixa.

A comida do Atheneu não era pessima.

O razoavel para algumas centenas de tolinhos. Possuia mesmo o condimento indispensado das moscas, um regalo. Mas aborrecia a impertinencia insistida de certos pratos. Uma epidemia, por exemplo, de figados guizados, o anno todo! Ultimamente, havia tres mezes, a goiabada molle de bananas, manufactura economica do despenseiro.

Aristarcho empallideceu de despeito. Visava-o directamente a desaforada insurreição. E isto no mesmo dia em que fizera espectaculo da justiça tremenda. Não quiz, entretanto, arriscar o prestigio. Vimol-o no corredor, incerto, sem sangue, mandando que voltassem os bedéis a acalmar.

Torturava-o ainda em cima o ser ou não ser das expulsões. Expulsar... expulsar... fallir talvez. O codigo, em letra gothica, na moldura preta, lá estava imperioso o formal como a Lei, prescrevendo a desligação tambem contra os chefes da revolta... Moralidade, disciplina, tudo ao mesmo tempo... Era de mais! era de mais!... Entrava-lhe a justiça pelos bolsos como um desastre. O melhor a fazer era chimpar um murro no vidro amaldiçoado, rasgar ao vento a letra de patacoadas, aquella porqueira gothica de justiça!

Quando informaram qual o motivo das assuadas, saiu-lhe um peso do coração! «Ah! Tinham motivo... Mas aquillo era patota do despenseiro... Pedras que lhe atirassem seria pouco... Mas não tinha culpa... Era industria secreta a goiabada de bananas!...»

A sineta, chamando á ceia, pacificou os animos. Espalhou-se que Aristarcho rendia-se á revolta e ia falar.

Á mesma porta em que apparecera formidavel de manhã, surgiu-nos transformado, manso, liso como a propria cordura e a lealdade; altivo, comtudo, quanto comportava a submissão.

«Mas por que, meus amigos, não formularam uma representação? A representação é o motim reduzido á expressão ordeira e papeliforme! Qual a necessidade da representação por assuadas? Têm todos razão... Perdôo a todos... Mas eu sou tão enganado como os senhores... Até hoje estava convencido de que a goiabada era de goiaba... A verba consagrada é para a legitima de Campos... Nesta casa não ha miserias!... Quando alguma cousa faltar, reclamem, que aqui estou eu para as providencias, vosso Mestre, vosso pae!... Legitimo cascão de Campos... Aqui têm as latas... Mais latas!... leiam o rotulo... Como podia eu suspeitar...»

Emquanto o director falava, ia-lhe um copeiro amontoando em torno quanta lata vasia encontrou na copa. Grandes caixas redondas de folha, espelhantes como luas, com o letreiro em barra. Aristarcho mirava-se nos luminosos documentos da sua inteireza. «Legitimo cascão! legitimo cascão, meus senhores!» garantia, tamborilando com os nós dos dedos numa tampa.

Escangalhavam-se as pilhas fragorosamente pelo soalho, mas o montão subia, em desordem, scintillando reflexos amarrotados do gaz. Aristarcho avultava sobre as latas, como o principio salvo da autoridade. A justificação era completa. Mais algumas palavras azeitadas de ternura, e todo resentimento cedia, e nós saudavamos o director, grande alli, como sempre, sobre o chammejamento do Flandres.




IX

A amnistia dos revolucionarios aproveitou por extensão aos execrandos réus da moralidade. Já frouxa a fibra dos rigores, Aristarcho despediu-os do gabinete com a penitencia de algumas dezenas de paginas de escripta e reclusão por tres dias numa sala. Desprestigiava-se a lei, salvavam-se, porém, muitas cousas, entre as quaes o credito do estabelecimento, que nada tinha a lucrar com o escandalo de um grande numero de expulsões. Quanto ao encerramento dos culpados na trevosa cafúa, impossivel, que lá estava o Franco, por exigencia expressa do Sylvino, como causador primeiro das inqualificaveis perturbações da ordem no Atheneu.

Esta resolução agradou-me summamente. Pena seria, em verdade, que perdesse eu, logo depois do Bento Alves, tão desastradamente concluido na historia sentimental das minhas relações, o meu amigo Egbert.

Adquirira-o com a transição para as aulas secundarias, onde o encontrei com outros adiantados. Vizinhos de banco, comprehendemo-nos, mutuamente sympathicos, como se um proposito secreto de cousa necessaria tivesse guiado o acaso da collocação.

Conheci pela primeira vez a amizade. A insignificancia quotidiana da vida escolar em que a gente se aborrece, é favoravel ao desenvolvimento de inclinações mais sérias que as de simples conveniencia menineira. O aborrecimento é um feitio da ociosidade, e da mãe proverbial dos vicios gera-se tambem o vicio de sentir.

A convivencia do Sanches fôra apenas como o affeiçoamento agglutinante de um sinapismo, intoleravel e collado, especie de escravidão preguiçosa da inexperiencia e do temor; a amizade de Bento Alvos fôra verdadeira, mas do meu lado havia apenas gratidão, preito á força, commodidade da sujeição voluntaria, vaidade feminina de dominar pela fraqueza, todos os elementos de uma fórma passiva de affecto, em que o dispendio de energia é nullo, e o sentimento vive de descanço e de somno. Do Egbert, fui amigo. Sem mais razões, que a sympathia não se argumenta. Faziamos os themas de collaboração; permutavamos significados, ninguem ficava a dever. Entretanto, eu experimentava a necessidade deleitosa da dedicação. Achava-me forte para querer bem e mostrar. Queimava-me o ardor inexplicavel do desinteresse. Egbert merecia-me ternuras de irmão mais velho.

Tinha o rosto irregular, parecia-me formoso. De origem inglesa, tinha os cabellos castanhos entremeados de louro, uma alteração exotica na pronuncia, olhos azues de estrias cinzentas, obliquos, palpebras negligentes, quasi a fechar, que se rasgavam, entretanto, a momentos de conversa, em desenho gracioso e largo.

Vizinhos ao dormitorio, eu, deitado, esperava que elle dormisse para vêl-o dormir e acordava mais cedo para vêl-o acordar. Tudo que nos pertencia, era commum. Eu por mim positivamente adorava-o e o julgava perfeito. Era elegante, déstro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o coração, até á côr da pelle e á correcção das fórmas. Nadava como as toninhas. A agua azul fugia-lhe diante em marulho, ou subia-lhe aos hombros banhando de um lustre de marfim polido a brancura do corpo. Dizia as licções com calma, difficilmente ás vezes, embaraçado por aspirações anciosas de asphyxia. Eu mais o prezava nos accessos doentios da angustia. Sonhava que elle tinha morrido, que deixara bruscamente o Atheneu; o sonho despertava-me em susto, e eu, com allivio, avistava-o tranquillo, na cama proxima, uma das mãos sob a face, compassando a respiração ciciante. No recreio, eramos inseparaveis, complementares como duas condições reciprocas de existencia. Eu lamentava que uma occorrencia terrivel não viesse de qualquer modo ameaçar o amigo, para fazer valer a coragem do sacrificio, trocar-me por elle no perigo, perder-me por uma pessoa de quem nada absolutamente desejava. Vinham-me reminiscencias dos exemplos historicos de amizade; a comparação pagava bem.

No campo dos exercicios, á tarde, passeavamos juntos, voltas sem fim, em palestra sem assumpto, por phrases soltas, estações de borboleta sobre as doçuras de um bem estar mutuo, inexprimivel. Falavamos baixo, bondosamente, como temendo espantar com a intonação mais alta, mais aspera, o favor de um genio benigno que estendia sobre nós a amplidão invisivel das azas. Amor unus erat.

Entravamos pelo gramal. Como ia longe o borborinho de alegria vulgar dos companheiros! Nós dous sós! Sentavamo-nos á relva. Eu descançando a cabeça aos joelhos d'elle, ou elle aos meus. Calados, arrancavamos espiguilhas á grama. O prado era immenso, os extremos escapavam já na primeira solução de crepusculo. Olhavamos para cima, para o céu. Que céus de transparencia e de luz! Ao alto, ao alto, demorava-se ainda, em cauda de ouro, uma lembrança de sol. A cupola funda descortinava-se para as montanhas, diluição vasta, tenuissima de arco-iris. Brandos reflexos de chamma; depois, o bello azul de panno, depois a degeneração dos matizes para a melancolia nocturna, prenunciada pela ultima zona de roxo doloroso. Quem nos dera ser aquellas aves, duas, que avistavamos na altura, amigas, declinando o vôo para o occaso, destino feliz da luz, em pleno dia ainda, quando na terra iam por tudo as sombras!

Outras vezes, subiamos ao duplo trapezio. Embalavamo-nos primeiro brando, affrontando a caricia rapida do ar. Pouco a pouco augmentava o balanço e arriscavamos loucuras de arremesso, assustando o Atheneu, levados em vertigem, distendidos os braços, pés para frente, cabeça para baixo, cabellos desfeitos, ebrios de perigo, ditosos se as cordas rompessem e acabassemos os dois, alli, como uma só vida, no mesmo arranco.

Liamos muito em companhia. Paginas que não terminavam, de leituras delicadas, fecundas em scisma: Robinson Crusoé, a solidão e a industria humana; Paulo e Virginia, a solidão e o sentimento. Construia-mos risonhas hypotheses: que faria um de nós, vendo-se nos apuros de uma ilha deserta?

—Eu, por mim, iniciava logo uma furiosa propaganda a favor da immigração e ia clamar ás praias, até que me ouvisse o mundo.

—Eu faria cousa melhor: decretava preventivamente o casamento obrigatorio e punha-me a esperar pelo tempo.

A pastoral de Bernardin de Saint-Pierre foi principalmente o nosso enlevo. Parecia-nos ter o poema no coração. A bahia do Tumulo, de aguas profundas e sombrias, festejada apenas algumas horas pelo sol a prumo, em suave tristeza sempre; ao longe, por uma bocaina, a fachada, á vista, branca, da igreja rustica de Pamplemousses.

Ideavamos vagamente, mas inteiramente, na meditação sem palavras do sentimento, quadro de manchas sem contorno, ideavamos bem as scenas que liamos da singela narrativa, almas que se encontram, dous coqueiros esbeltos crescendo juntos, erguendo aos poucos o feixe de grandes folhas franjadas, ao calor da felicidade e do tropico. Comprehendiamos os pequeninos amantes de um anno, confundidos no berço, no somno, na innocencia.

Reviviamos o idyllio todo, instinctivo e puro. «Virginie, elle sera heureuse!...» Animavamo-nos da animação d'aquellas correrias de crianças na liberdade agreste, gozavamos o sentido d'aquella topographia de denominações originaes—Descoberta da amizade, Lagrimas enxugadas, ou de allusões á patria distante. Ouviamos palmear a revoada dos passaros, disputando ao redor de Virginia, a ração de migalhas. Percebiamos sem raciocinios a philosophia sensual da mimosa entrevista.

«Est-ce par ton esprit? Mais nos mères en ont plus que nous deux. Est-ce par tes caresses? Mais elles m'embrassent plus souvent que toi... Je crois que c'est par ta bonté... Mais, auparavant, repose-toi sur mon sein et je serai délassé.—Tu me demandes pourquoi tu m'aimes. Mais tout ce qui a été élevé ensemble s'aime. Vois nos oiseaux élevés dans les mêmes nids, ils s'aiment comme nous; ils sont toujours ensemble comme nous. Écoute comme ils s'appellent et se répondent d'un arbre à l'autre...»

Confrangia-nos, emfim, ao voltar das paginas, a difficuldade cruel das objecções de fortuna e de classe, o divorcio das almas irmãs, quando os coqueiros ficavam juntos. E a imminencia constrictora do austro, da catastrophe, a lua cruenta de presagios sobre um céu de ferro...

E guardavamos do livro, cantico luminoso de amor sobre a surdina escura dos desesperos da escravidão colonial, uma lembrança, mixto de pezar, de encanto, de admiração. Que tanto pôde o poeta: sobre o solo maldito, onde o café floria e o niveo algodão e o verde claro dos milhos de uma rega de sangue, altear a imagem phantastica da bondade. Virginia coroada; como o capricho omnipotente do sol, formando em gloria os filetes vaporosos que os muladares fumam, que um raio chama acima e doura.

Com o Egbert experimentei-me ás escondidas no verso. Esboçámos em collaboração um romance, episodios medievaes, excessivamente tragicos, cheios de luar, cercados de ogivas, em que o mais notavel era um combate devidamente organisado, com fuzilaria e canhões, antecipando-se de tal maneira a invenção de Schwartz, que ficavamos para todo o sempre, em litteratura, a salvo da increpação de não descobrir a polvora.

Quando ouvi-lhe o nome, á chamada, dos compromettidos no processo, soffri como a surpreza de um golpe. Desesperou-me não achar o meio de compartir com elle a vergonha.

Qual a especie de cumplicidade que se attribuia? Não quiz saber; fosse o mais torpe dos réus, era o meu amigo: tudo que soffresse, muito culpado embora, era, no meu conceito, uma provação da fatalidade. E fazia-me estremecer a idéa de que iam maltratar creatura tão mansa, tão complacente, tão amavel, feita de sensibilidade e brandura, contra quem o mal seria sempre uma injustiça, que eu prezaria com todos os defeitos, com todas as maculas, na facilidade de perdão das cegueiras sentimentaes, estranhezas da preferencia, que envolve tudo, no ser querido, a phrase limpida do olhar ou o cheiro acre, mesmo impuro, da carne.

Quando nos tornámos a vêr, nenhum teve para o outro a minima palavra; ficámos a um banco, lado a lado, em expansivo silencio. E nunca, depois, nem por allusão distante, nos referimos ao caso. Coincidencia instinctiva de um respeito reciproco, odio talvez commum de uma recordação ominosa.

Desde o mez de julho do anno anterior, cursava os estudos elementares das linguas, alegrando-me a acquisição do vocabulo estrangeiro, commercio com a linguagem dos grandes povos, como se provasse a goles a civilisação, como se bebesse a realidade do movimento humano nos paizes remotos que os cosmoramas pintam, em que vagamente acreditavamos como se acredita em romances.

Seguiu-se a massada dos interminaveis themas.

Nas aulas superiores, a facilidade adquirida amenisava o trabalho. As paginas sorriam de litteratura, com o sorriso conhecido dos objectos familiares.

Os professores eram bons e moderados. O do francez, Mr. Delille, nome de poeta applicado a um urso, honrado urso, inoffensivo e benevolo; saudoso do terceiro imperio, cujo desastre o deportava para a vida de aventuras além mar; barbado como um colchão de crinas, por um vigor de cabello denso, luxuriante, ruivo queimado no logar da bocca, mais longe preto, atravez do qual passavam-nos simultaneamente baforadas expressivas de cachaça e regras de Halbout. O professor de inglez, Dr. Velho Junior, nome de contradicção ainda, o melhor dos homens: zeloso, explicador detalhado, sem exaltar-se nunca, calvo como a occasião, mas que excellente occasião de se estimar e querer bem!

A companhia do Egbert ultimava a situação e o estudo era uma festa.

O professor Venancio leccionava tambem inglez; escapei-lhe ás garras, felizmente: uma fera! chatinho sob o director, terrivel sobre os discipulos; a um d'elles arremessou-o contra um registro do gaz, quebrando-lhe os dentes. Manlio, além das primeiras letras, regia a cadeira especial do portuguez.

Graças ao estudo do outro anno, alcancei soffrivelmente o meu attestado de vernaculismo, garantido pela competencia official; graças tambem ás tinturas do latim, em que me iniciara o padre-mestre frei Ambrosio, respeitavel, de nariz entupido, gesticulando com o Alcobaça, rezando a ar tinha com a intonação ôcca e funda das missas cantadas, consumidor de rapé por um convento, culpado, assim, de cheirar-me ainda hoje a Paulo Cordeiro o magnifico idioma do qui, quæ, quod, produzir-me espirros uma simples reminiscencia de Sallustio.

Era costume no Atheneu licenciar-se um pouco do regimento da casa a estudante de certa ordem, que estivesse em vespera de exame. Saía-se então para o jardim com os livros e a commodidade do trabalho a bel-prazer. Companheiros sempre, aproveitavamos, eu e o Egbert, com toda vontade, a regalia consuetudinaria. Antes da data memoravel do francez, muito passeiámos pelas avenidas de sombra Chateaubriand, Corneille, Racine, Molière. O theatro classico dava para grandes effeitos de declamação. Quanta tragedia perdida sobre as folhas seccas! Quanto gesto nobre desperdiçado! Quantas soberbas falas confiadas á viração leviana e passageira!

Um era Augusto, outro Cinna; um Nearcho, outro Poliuto; um Horacio, outro Curiacio, D. Diogo e o Cid, Joas e Joad, Nero o Burrho, Philinto e Alceste, Tartufo e Cleantho. O arvoredo era um scenario deveras. Dialogavamos, com toda a força das encarnações dramaticas, a bravura cavalheiresca, o civismo romano, as apprehensões de rei ameaçado, o heroismo da fé, os arrufos da misanthropia, as sinuosidades do hypocrita. Uma estatua de deusa anonyma, de louça esfolada, verde de velhice, constituia o auditorio, auditorio attento fixamente, comedido, sem demasias do applauso nem reprovação, mas constante e infatigavel.

Para o desempenho dos papeis femininos havia difficuldades; cada um queria a parte mais energica do recitativo. Tirava-se a sorte, e, segundo o acaso, um de nós ou o outro enfiava som cerimonia as saias de qualquer dama e ia perfeita a toilette do sentimento, noivado de Chimène, desespero de Camilla, lucto de Paulina, ambição de Agrippina, soberania de Esther, astucia de Elmira, dubiedade de Celimène. Outro papel custoso de distribuir era o do Burrho, papel honesto, entretanto, e altamente sympathico. Ninguem o queria fazer, o virtuoso conselheiro de Nero.

Melhor que a prerogativa do estudo livre era uma especie de premio, não catalogado nos estatutos, com que Aristarcho gentilmente obsequiava os distinctos. Levava-os a jantar em sua casa, uma honra! á mesma toalha com a princeza Melica, dos olhos grandes.

Quiz o bom fado que obtivessemos, os dous amigos, a prezada nota, e, registre-se perenne! examinados pelo professor Courroux, o tremendo Catão das bolas pretas, terror universal dos bichos!

O director recebeu-me da Instrucção com um abraço contrafeito de estylo; percebi que ainda escorria a fistula dos resentimentos. Convidado Egbert, força ora que o fosse eu tambem, e o fui, de má vontade, por formula. Cumpria-me forjar pretexto e recusar o convite, mas attrahia-me certo numero de curiosidades, por exemplo: vêr como comia a Melica, uma cousa de subido interesse.

Lembro-me, entretanto, que havia flôres sobre a mesa, que estava, a queimar a sopa; não reparei sequer se esteve presente a filha do director.

Uma attenção absorveu-me exclusiva e unica. D. Emma reconheceu-me era aquelle pequeno das madeixas compridas! Conversou muito commigo. Um fiapo branco pousava-me ao hombro do uniforme; a boa senhora tomou-o finamente entre os dedos, soltou-o e mostrou-me, sorrindo, o fio levissimo a cair lentamente no ar calmo... Estava desenvolvido! Que differença do que era ha dous annos! Tinha idéa do haver estado commigo rapidamente, no dia da exposição artistica...

—Um peraltinha! interrompeu Aristarcho, entre mordaz e condescendente, de uma janella a cujo vão conversava com o professor Chrysostomo.

Eu quiz inventar uma boa réplica sem grosseria, mas a senhora me prendia a mão nas d'ella, maternalmente, suavemente, de tal modo que me prendia a vivacidade tambem, prendia-me todo, como se eu existisse apenas naquella mão retida.

Depois da interrupção de Aristarcho, não sei mais nada precisamente do que se passou na tarde.

Miragem seductora de branco, fartos cabellos negros colhidos para o alto com infinita graça, uma rosa nos cabellos, vermelha como são vermelhos os labios e os corações, vermelha como um grito de triumpho. Nada mais. Ramalhetes á mesa, um caldo ardente, e sempre a obsessão adoravel do branco e a rosa vermelha.

Estava a meu lado, pertinho, deslumbrante, o vestuario de neve. Serviam-me alguns pratos, muitas caricias; eu devorava as caricias. Não ousava erguer a vista. Uma vez ensaiei. Havia sobre mim dous olhos perturbadores, vertendo a noite. Parece que me olhava tambem, não tenho certeza, do outro lado, por entre as flôres, o professor Chrysostomo.

Empossado no seu grande orgulho, que mesmo em casa fazia valer, Aristarcho presidia; tão alto, porém, e tão longe, que dir-se-ia um ausente.

De volta ao Atheneu, senti-me grande. Crescia-me o peito indefinivelmente, como se me estivesse a fazer homem por dilatação. Sentia-me elevado, vinte annos de estatura, um milagre. Examinei então os sapatos, a vêr se haviam crescido os calcanhares. Nenhum dos symptomas estranhos constatei. Mas uma cousa apenas: olhava agora para Egbert como para uma recordação e para o dia de hontem.

D'ahi começou a esfriar o enthusiasmo da nossa fraternidade.




X

Bem differente esta exaltação deliciosa do abatimento espavorido da vespera, da manhã mesmo, na secretaria da Instrucção Publica. A expectativa mortal das chamada; uma insignificancia: o terror academico! que nos sobresalta, que nos deprime como o que ha de mais grave. E por occasião das provas de francez já não era estreante.

A estréa do primeiro exame foi de fazer febre. Tres dias antes pulavam-me as palpitações; o appetite desappareceu; o somno depois do appetite; na manhã do acto, as noções mais elementares da materia com o appetite e com o somno. Memoria in albis.

O professor Manlio animava; a animação, lembrando o perigo, assustava mais. Esmagava-me por antecipação o peso enorme da bastilha da rua dos Ourives, como os tribunaes ferozes, sem appello; a terrivel campainha penetrante da abertura da solemnidade, os reposteiros plumbeos de espesso verde, sopesando as armas imperiaes, as formidaveis paredes de alvenaria secular. Que barbaridade aquella conspiração toda contra mim, contra um, de todos aquelles perfis rebarbativos, continuos, o Mattoso, o Neves Leão, as commissões, qual mais poderosa e carrancuda; o Conselho da Instrucção no fundo, cousa desconhecida, mythologica, entrevista como as pinturas religiosas das abóbadas sombrias, onde as vozes da nave engrossam de resonancia, emprestando a força moral á justiça das commissões, com o prestigio da elevação e do inaccessivel; mais alto que tudo, o Ministro do Imperio, o Executivo, o Estado, a Ordem social, apparato enorme contra uma criança.

Entrava-se pela rua da Assembléa, para o saguão ladrilhado.

Alli estive não sei que tempo, como um condemnado em oratorio. Em redor de mim, morriam de pallidez outros infelizes, esperando a chamada. Um, o mais velho de todos, cadaverico, ar de Christo, tinha a barba rente, pretissima, como um queixo de ébano adaptado a uma cara de marfim velho.

De repente abre-se uma porta. De dentro, do escuro, saía uma voz, uma lista de nomes: um, outro, outro... ainda não era o meu... Afinal! Não houve nem tempo para um desmaio. Empurraram-me; a porta fechou-se; sem consciencia dos passos, achei-me numa sala grande, silente, sombria, de tecto baixo, de vigas pintadas, que fazia dobrar-se a cabeça instinctivamente. Uma parede vidraçada em toda a altura, de vidros opacos de fumaça, côr de pergaminho, coava para o interior um crepusculo fatigado, amarellento, que pregava mascaras de ictericia ás physionomias.

Entre as vidraças e os logares que eram destinados aos examinandos, ficava a mesa examinadora: á direita um velho calvo, baixinho, de alouradas cãs, rodeando a calva em franja de dragonas, barba da côr dos cabellos, reclinava-se ao espaldar da poltrona e lia um pequeno volume com o esforço dos myopes, esfregando as paginas ao rosto. Á esquerda, um homem de trinta annos, barba rareada por toda a face, palpebras inclusive, oculos escuros, cabello secco, caracolando. A claridade, batendo pelas costas, denegria-lhe confusamente as feições. O terceiro, presidente da commissão, não se via bem, encoberto pela urna verde de frisos amarellos.

Distribuiu-se o papel rubricado. Um dos examinadores levantou-se, apanhou com um movimento circular um punhado de pontos e lançou-os á urna. A urna de folha cantava ironica sob o cair dos numeros, sonoramente.

Tirou-se o ponto; momento de angustia ainda...

Depois: estrophe dos Lusiadas! Estavamos livres da expectativa. Não me preoccupou mais a difficuldade do ponto.

Depois do ditado, como em relaxamento de cançaço do espirito, esqueci o inventario natural dos conhecimentos que a prova reclamava. Puz-me a pensar nas primeiras leituras de Camões, no Sanches, nos banhos da natação, na maneira de rir de Angela, no criado assassinado, no processo do assassino, que fôra julgado havia pouco... Tres pancadinhas que senti no calcanhar, chamaram-me das distracções.

Voltei-me: era o meu vizinho da mesa de traz, o queixo de ébano que pedia soccorro. «Valha-me que estou perdido, não atino com a ordem directa!»

O ruido d'esta phrase balbuciada, sibilou bem forte para attrahir a attenção da mesa. Atirei-lhe a oração principal, mas tive medo de acudir inteiramente. Além d'isso, precisava cuidar do proprio interesse. Deixei o pobre Christo de marfim entregue ao desespero de uma lauda deserta. De vez em quando, o infeliz espetava-me as costas com a caneta.

Para a prova oral fui mais animado. A nota da escripta era tranquillisadora.

Os exames oraes eram todos nas salas de cima. Entrava-se pela rua dos Ourives. Os examinandos estavam em geral mais calmos. Além d'estes, enchia-se o saguão da escada com a turba-multa dos assistentes, confusão de fardetas, fraques surrados, sobrecasacas, todas as idades, todos os collegios representados, além dos estudantes avulsos de aulas particulares, em cujo numero confundiam-se caras suspeitas de farroupilhas, exemplares definidos de vagabundagem.

O Atheneu era invejado. Victimas do uniforme, os discipulos de Aristarcho passeiavam entre os grupos dos collegios rivaes, soffrendo dichotes, com uma paciencia recommendada de boa educação.

Fumava-se. No ambiente sem luz pairava fixo o nevoeiro dos halitos e um cheiro de sarro intoleravel; emplastravam-se de cusparadas as paredes; passeiava-se arrastando os pés na areia do ladrilho; resoavam grandes gargalhadas de ship-chandler; chasqueava-se a palavrões. Alguns rapazes de sorrisos frouxos, sem expressão, maneiras reles, arrebitavam para o alto, com as costas da mão, chapéos de palha suja, e passeiavam gingando. Os mais distinctos davam caminho, repuxando um canto desdenhoso de labios, perfilando mais a elegancia.

Um reboliço extraordinario agitou a multidão. Acabava-se de descobrir na cal, coberta de epigrammas e rabiscos, uma nova inscripção de muito espirito: versalhada satyrica contra o professor Courroux, da mesa de francez, rimando em u, sempre em u, de cima a baixo, com uma fertilidade pasmosa de epithetos.

Nem de proposito! na mesma occasião entrava e lançava-se precipitadamente pela escada o terrivel professor. «Não o conhece? Lá vae!» indicou-me um companheiro mais proximo.

—Não o conhecia...

Vi-o, magro, anguloso, feio, olhando com ferocidade continua, não se sabia felizmente para quem, porque era estrabico. Por elle começou o meu improvisado informante, e, conhecendo que eu andava atrazado a respeito, não me deixou mais: «Se tem empenho, fura; se não tem, babáu. Bancas de peixe! O peixe é caro ás vezes, mas é sempre peixe de mercado. Olhe o Meirelles da philosophia, aquelle compridão de barba russa; o empenho é a Ritinha Pernambucana da rua dos Arcos; o Simas da mesa de geographia, um pançudo appellidado esphera terrestre, mimoseiem-no com um par de gallos de briga... o Barros Andrade... comprem-lhe os pontos... aquelle diabo da rhetorica que me bombeou ha dias... falem-lhe nos versos, que não ha suissas mais amaveis. O seu director é que os comprehende. Quando entra aqui é uma onça; o proprio tecto branco empallidece; levantam-se, saúdam o soberano! Agora, ha homens respeitaveis: o velho Moreira, o sympathico Ramiro, de sorriso patriarchal...»

Do topo da escada, gritaram para o saguão que ia principiar a chamada dos de portuguez.

Quando subia, vi um movimento enorme de rapazes na rua: um rolo! Silvavam os apitos. Atracavam-se os estudantes com os carroceiros a sopapos de ida e volta, segundo o bello costume do tempo.

Prestavam-se os exames numa grande sala de muitas janellas, de velhos caixilhos em xadrez apertado, vidros grossos, antigos, mal fundidos, offerecendo espessuras desiguaes e densidades verdes. Um parapeito de ferro em grade dividia o salão por dous lances; o mais espaçoso para os assistentes. No outro havia duas mesas de exame: a de mathematicas, perto da entrada, a de portuguez, mais adiante, e tão chegadas que se fundiam-as respostas de uma com as perguntas da outra, resultando admiraveis effeitos de applicação das sciencias exactas á philologia.

Antes da cerimonia palestrava-se, a meia voz. Um sujeito entrou, deixando cair a bengala. Olharam todos, «Não conhece?» indagou-me o officioso companheiro.

Um sexagenario, encanecido e helicoidal, cara lambida de padre, cabellos brancos ondeando pelos hombros em bossa, sobrecasaca illimitada riscando o chão a cada passo. «O conselheiro Villela, ou, melhor, o conselheiro Tieitch, uma instituição! Vae presidir ás mathematicas. Preside a tudo, conforme é preciso. Incorruptivel! Catão e Bruto sommados... Na banca de inglez, ha uns annos, reprovava a todos... Como não?! dizia; se erram escandalosamente no tieitch! Muito depois, apanharam-no consultando o Tautphœus: Que diabo, Barão, é este celebre tieitch em que tanto se erra?...»

Quando no dia do jantar subi para o dormitorio com o Egbert, dançava-me no espirito, reduzida a miniatura, a imagem de Emma (era agradavel supprimir o D.), pequenina como uma abelha de ouro, vibrante e incerta.

Sonhei: ella sentada na cama, eu no verniz do chão, de joelhos. Mostrava-me a mão, recortada em puro jaspe, unhas de rosa, como petalas incrustadas. Eu fazia esforços para colher a mão e beijar; a mão fugia; chegava-se um pouco, escapava para mais alto; baixava de novo, fugia mais longe ainda, para o tecto, para o céu, e eu a via inattingivel na altura, clara, aberta como um astro.

Ella ria do meu desespero, mostrava-me o pé descalço, que a calçasse; não permittia mais. Calçar-lhe apenas o arminho que alli estava, o pequeno sapato, branco, exanime, voltando a sola, sem o conforto calido do pé que o pisava, que o vivificava. Eu me inclinava, invejoso do arminho, sobre o crivo de seda da meia, milagre de industria para o qual concorrera cada dia do seculo industrial com um esforço, tecido impalpavel, de fibras vivas, filtrando a transparencia branda do sangue, involucro subtil de um mimo de joelho, de perna, de tornozelo, irremediavelmente desfalcado do espolio glorioso da estatuaria pagã. Calçal-a apenas! Mas eu a fazia torcer-se, calçando-a, de dôres numa tortura ardente de beijos, exhalando eu proprio a alma toda em chamma.

Que outra creatura eu era ao despeitar! A apparição encantadora extincta; mas eu soffria da reacção de trévas que succede aos deslumbramentos.

Continuava cordialmente com o Egbert. Parecia-me, entretanto, a sua amizade agora uma cousa insufficiente como se houvesse em mim uma selvageria amordaçada de affectos.

Egbert parecia ás vezes um intruso. Passeiando com elle, que differença de outr'ora! produzia-me o effeito de uma terceira pessoa. Eu preferia andar só.

Não sei por que conveniencia de accommodação, fui transferido para o dormitorio dos maiores. Esta mudança distanciava-me ainda mais do Egbert; passámos a nos encontrar sómente á tarde, no campo.

Depois das aulas, subia para o dormitorio, aproveitando-me do relaxamento da policia do salão.

O inspector responsavel era o Sylvino. Receioso de uma represalia dos grandes, o prudente bedel deixava andar.

Eu deitava-me preguiçoso, ouvindo a grita do pateo, como cousa absolutamente alheia à minha vida. Contava as taboas do tecto, porção de traços parallelos que se perdiam num reflexo da tinta. Ás vezes lia narrativas de Dumas, que não distrahiam. Em outras camas, deitados como eu, de cai a para cima, cruzando os botins, alguns collegas fumavam, soprando, devagarinho, columnas de fumo que subiam verticalmente e rodavam azues. A um canto, no fim do salão, jogavam tres parceiros, bocejantes, accentuando sem enthusiasmo as alternativas do azar como uma partida de somnambulos. Muita vez na modorra pesada da sésta, as costas aquecidas da posição, fechando-se-me os olhos, ao brilho do sol que adivinhava lá fóra no terreiro abrazado, eu adormecia. A hora da aula ou do jantar, um companheiro puxava-me.

Estes intervallos de dormencia sem sonho, sem idéa, sem definida scisma, eram o meu socego. Pensar era impacientar-me. Que desejava eu? Sempre o desespero da reclusão collegial e da idade. Vinham-me crises nervosas de movimento, e eu cruzava de passos freneticos o pateo, sofrego, accelerando-me cada vez mais, como se quizesse passar adiante do tempo. Nem me interessavam as intrigas do salão. E que intrigas! exactamente a substancia do afamado mysterio do chalet.

A uma das extremidades do comprido salão, armava-se o biombo do Sylvino, grande caixão de pinho a meia altura do tecto, com uma porta e uma janella de palmo quadrado, d'onde saiam emanações de roupas suadas e varias outras, cheiros indecifraveis de pouco asseio; d'onde saia mais, durante a noite, crescendo, decrescendo, um roncar enorme, fungado de narigudo.

Os rapazes furavam orificios com verrumas para espiar, e tinham achado a legenda do Sylvino. Depois d'isto, vinha a demographia especial da terceira classe, a distribuição por familias regulares, ou por aproximações eventuaes, conforme os caracteres, sob a divisa commum do nada haver, ou como entendiam outros nada vêr. Louvavam-se os exemplos de fidelidade; commentavam-se as traições; censuravam-se as tentativas de seducção; improvisava-se a theoria do lar e do leito; cantava-se o hymno bacchico dos caprichos volantes, do enthusiasmo passageiro. Chamavam-me a mim o Sergio do Alves. Fazia-se a critica dos novos sob um ponto de vista inteiramente d'elles. Apostavam a vêr quem seria primeiro. Exigiam juramento de segredo, para passar adiante uma historia que tinham por sua vez jurado não contar a ninguem. Serviam-se mutuamente em pasto ás boas risadas, anecdotas espessas, com ou sem applicação, conforme o pedido e o paladar do ensejo. Toda a chronica obscura do Atheneu redigia-se alli, em termos explicitos e fortes, expurgada dos arrebiques de recato, de inverdade, pelo escrupulo das commissões investigadoras. O Sylvino que se fosse! Não tinha nada com a conversa dos rapazes. Uma das melhores maximas do chalet era esta, caracteristica:—Fica revogado o director.

Tudo que na primeira classe e na segunda era extraordinario, alli era normal e corrente. Todas as idades, desde o Candido até o Sanches.

Das classes inferiores, havia quem fizesse empenho em mudar para a terceira. No ambiente torvo da intriga, insinuava-se o vaevem silencioso das ficções, drama joco-sério dos instinctos, em illusão convencional e grosseira. E investiam-se dos diversos caracteres convictamente os mancebos, explorando o momento ephemero da pelle, novidade tenra do semblante, como elemento de artificio, deleitando-se no engano, tomando a peito a caricatura da sensualidade.

Havia o que affectava moderação no capricho, conhecendo o desvio em regra, como o ladrão sabe ser honesto no roubo; com o ar sério, espantadiço das femmes qui sortent; havia os ingenuos, perpetuamente infantis, não fazendo por mal, risonhos de riso solto, com o segredo de adiar a innocencia intacta atravez dos positivos extremos; havia os enthusiastas da profissão, conscientes, francos, impetuosos, apregoando-se por gosto, que não perdoavam á natureza o erro original da conformação: ah! não ser eu mulher para melhor o ser! Estes faziam grupo á parte, conhecidos publicamente e satisfeitos com isto, protegidos por um favor de sympathia geral, inconfessado mas evidente, beneplacito perverso e amavel de tolerancia que favoneia sempre a corrupção como um applauso. Elles, os bellos ephebos! exemplos da graça juvenil e da nobreza da linha. Ás vezes traziam pulseiras; ao banho triumphavam, nús, demorando attitudes de nympha, á beira d'agua, em meio da collecção mesquinha de esqueletos sem carnes nas tangas de meia, e carnes sem fórma. Havia os decaídos, portadores miseraveis de desprezo honesto, culpados por todos os outros, gastos ás vezes antes do consumo, atormentados pela propensão de um lado, pela repulsa de outro, mendigos de compaixão sem esmola, reduzidos ao extremo de conformar-se deploravelmente com a solidão.

Com estes em contraposição, os de orgulho masculino, pelludos, morenos, nodosos de musculos, largos de ossada, e outros mirrados de malicia, insaciaveis, de voz tremula e narinas ávidas de bode, os gorduchos de beiço vermelho relachado, fazendo praça de uma superioridade por que nem sempre zelaram antes da madureza das banhas.

Angela dominava-os a todos; vencia-os.

As janellas abertas para o quintal do director eram fortemente gradeadas de madeira; por entre as travessas olhavamos.

Angela fazia-se menina para brincar e correr com vivacidades de gata. Rolava no chão, envolvendo a cara nos cabellos seccos, soltos. Saltava agitando o ar com as roupas; colhia flôres e jogava, distribuindo por igual a todos, que ella a todos queria bem. Quando não havia muitos, ás grades do salão, descuidava-se, apparecia em corpinho e saia branca, afrouxando o cordão sobre o seio, mostrando o braço desde a espadua, espreguiçando-se com as mãos ambas á nuca e os cotovellos para cima, contando para a janella historias que não acabavam mais, emquanto ás axillas, em fofos de camisa, ia escapando a indiscrição dos fios fulvos. Sempre ao sol! sempre alegre! filha selvagem da luz, fauna indomavel das regiões quentes, affrontando a temperatura como as leoas, insensivel e sobranceira.

Cantava.

Só no canto era triste; canções nostalgicas repassadas do sentimento de cousas distantes, um lar amigo de paes, um coração de adolescente, conhecido uma vez antes da emigração para sempre, canções da ilha em que se ouvia o murmurio do oceano calmo e das brisas viajadas, e o grito angustiado das gaivotas e a celeuma longe da maruja á faina; acompanhando um estribilho insistente de amor, amor malandro de gente pobre á beira-mar, feito de peixe, de ociosidade triste e de calor.

Ás vezes era grosseira: dialogava ao desafio em chacota desbocada, com quem quizesse; impacientava-se abruptamente e desapparecia, arremessando uma praga de bem acabada torpeza. Fazia pilheria; tinha um collegio tambem para receber internos, externos, meio-pensionistas. Batia no ventre.

E com a grosseria, com a chacota, com o estribilho sentimental, com os descuidos do corpinho, com as flôres, com as turbulencias, de criança sem modos, Angela era a rainha da attenção e da curiosidade; inflammava-se o chalet em conflagrações de enthusiasmo. Se passava algum tempo sem apparecer, collavam-se ás grades, perscrutando a sombra das arvores do quintal, carinhas sem conta, chapadas de saudade.

E divertia-se a apreciar os ardores engaiolados dos seus meninos, entretendo-se a desesperal-os como quem atiça o brazeiro para vêr a erupção das fagulhas, o rodopiar dos rubis candentes, com um prazer graduado entre o orgulho da castellã requestada do cem paladinos o a expectativa palpitante do carname em postas de um festim de jaula.

Com o tempo vim a descobrir que uma camarilha de espertos conseguira sophismar alguns páus da grade da ultima janella, tres ou quatro leitos além do meu, e passavam de noite, quando o silencio se fazia, a tomar fresco no jardim do director. Preferiam as noites escuras, que têm mais estrellas e mais segredo, e preferiam as noites de chuva, que em questão de fresco são decisivas. Desciam por uma corda de lençóes torcidos e voltavam ás vezes como pintos, mas refrescados sempre. Por medida de prudencia, não passeavam mais de dous por noite, fazendo sentinella um durante a ausencia do outro.

Disse que me não interessavam as intrigas e preoccupações geraes do salão; não fui preciso; e não sei como possa ser neste ponto sem recorrer ás modalidades de expressão—actualmente, virtualmente, que o anachromismo injusto condemnou. Pouco se me davam factos; o espirito seduzia. Talvez por isso fiz a descoberta do sophisma da camarilha; incommodando-me a liberdade secreta, o regabofe ás altas horas, como um roubo feito a mim, aos companheiros, illudidos no somno, traição odiosa á nossa tolice de descuidados. Veio-me uma noite a tentação violenta de espalhar o segredo por todos, desmoralisar os finorios, conduzir o Sylvino e mostrar-lhe os sarrafos ageitados á deslocação, trahir mereridamente aos traidores. Medi as objecções: além de feia delação de voluntario da espionagem, podia ser asneira. Talvez soubessem todos, menos eu, simplesmente por estar de pouco na terceira classe. Experimentei. Conservei-me acordado até á hora, com uma paciencia e um esforço de caçador de emboscada. No momento flagrante, ergui-me na cama, esfregando os olhos, fingindo-me admirado. Não houve remedio senão iniciar-me. Os dous da noite contaram. Malheiro era o chefe da troça, uma troça de nove, muito discretos, muito habeis; tambem quem trahisse apanhava.

A minha irritação contra o sophisma abrandou sem desfazer-se. Sempre que por acaso algum rapaz surprehendia os expedicionarios da frescata, era incontinente alliciado para as vantagens e sob as ameaças. O murro fabuloso do Malheiro era a sancção.

Não quiz as vantagens, mesmo murro á parte. Não que me não escaldassem as horas nocturnas ao chalet. Ah! o passeio livre do jardim! as grades abertas do carcere forçado! Mas uma hesitação prendia-me, de compromissos antigos commigo mesmo, compromissos de linha recta, não sei como diga, razões velhas de vaidade vertebrada; aversão ao subterfugio; ou talvez um medo que me occorreu por ultimo, sem fundamento: fosse uma vez, e de volta não achasse mais a corda para subir.

Outro signal de que não escapava á psychologia commum do chalet foi um accesso de furor que tive de suffocar, um dia que falaram de D. Emma diante de mim. Que me importava D. Emma? Uma boa senhora, nada mais, que me festejara com excesso de complacencia, nos limites, porém, da hospitalidade de rigor para muitas pessoas amaveis.

Deixara uma simples lembrança de gratidão, que começava a apagar-se.

Repetiam as murmurações do professor Chrysostomo, frioleiras de maldade. Pelas janellas gradeadas indicavam junto do muro da natação as venezianas da enfermaria e faziam a apologia da enfermeira, enfermeirazinha cuidadosa.

Com um geito incomparavel para o tratamento dos casos graves do coração. E vinham com historias de estudantes muito mal de imaginarias molestias... Doeu-me aquillo, como se me houvessem ferido o mais santo escrupulo de sentimento. Uma infamia, uma infamia, esta affirmação de cousas improvadas!

No meio d'esta temporada de descontentamento, tive um dia de prazer, prazer malvado, mas completo. Dormia no chalet o famoso Romulo. Occupava a cama inteira de ferro com a fartura de adipo e resomnava, no extremo opposto do salão, com a mesma intensidade que o Sylvino; falava fino o diabo e roncava grosso. Era um dos taes da troça do Malheiro.

Quando tocava-lhe a vez, reforçavam-se os lençóes e saíam mais dous páus.

Uma noite que o vi descer, tive idéa de pregar-lhe uma peça. Arriscadissima, como vão vêr, mas eu contava com o concurso, depois, do interesse de todos em abafar o negocio.

Lembram-se do receio infundado de que falei. Estava de sentinella o companheiro, que recollocava a grade, até que um aviso do quintal pedisse a corda. Offereci-me para substituil-o. O collega foi dormir.

Com o sangue-frio das boas vinganças, sem a menor pressa, evoquei a memoria da affronta que me devia Romulo. Era justo. Recolhi pouco a pouco a corda de lençóes, firmei forte as barras da grade e fui dormir. Chovia a potes; tanto melhor: a injuria, que o sangue não lava, bem póde lavar uma ducha de enchurro.

Estava vingado!

No outro dia appareceu o gorducho entanguido, encatarrhado, furibundo, em chinellos sem meias, calças, camisa de naufrago, miserando, cercado pelo espanto de todos e pela galhofa.

Passara a noite sob a janella pedindo misericordia ao sarrafo impassivel, toda a noite, inundado pelo aguaceiro, até que, ao romper do dia, Aristarcho o foi achar no lastimoso estado.

A noiva não viu, que acordava tarde. O sogro atinou espertamente com a aventura. Fez-se de esquerdo.

«Ora o rapaz!...» exclamou com uma satisfação muito intima.

E estranhou apenas que o bom do genro se deixasse pegar como um lorpa.




XI

O Dr. Claudio encetou uma serie de prelecções aos sabbados, á imitação das que fazia ás quintas Aristarcho sobre logares communs de moralidade. Philosophia, sciencia, litteratura, economia politica, pedagogia, biographia, até mesmo politica e hygiene, tudo era assumpto; interessantissimas, sem pesadas minuciosidades. Depois da astronomia do director, nenhuma curiosidade me valera tão bons minutos de attenção.

Narrava-nos a vida. As festas plutonianas do movimento, da ignição; a genese das rochas, fecundidade infernal do incendio primitivo, do granito, do porphyro, primogenitos do fogo; o grande somno millenario dos sedimentos, perturbado de convulsões titanicas.

Falava da anthracita e da hulha, o lucto feito pedra, lembrança tragica de muitas éras orgulhosas do planeta, monumento da prehistoria das arvores, negro, que a industria dos homens devasta. Descrevia a escadaria dos terrenos, onde existe a pegada impressa do genio das metamorphoses, subindo, desde a vegetação florestal dos fetos até ao homem quaternario. Falava-nos de Cuvier e da procissão dos monstros resurgidos, caminho dos museus, o megatherio potente, tardo, balançando as passadas, sujo, descamando saibro e as concreções seccas do lodo diluviano, solemne, conscio da carga de seculos que transporia.

Vinha depois a alluvião moderna das zonas formadas, o solo fecundo, lavradio. E o mestre passava a descrever a vida na humidade, na semente, a evolução da floresta, o gozo universal da chlorophylla na luz. Falava-nos do cerne, o generoso madeiro, o tronco, que sangra em Dante, que sustenta nos mares o commercio, Neptuno inglez do tridente de ouro. Falava-nos da poesia ignorada da vegetação marinha nos abysmos, e da giesta, isolada nas altas neves, flôr do ermo, a degradada eterna do inaccessivel.

Depois, a historia dos brutos, os grandes bramidos de macho nas regiões virgens, os dramas do egoismo na selva, do egoismo rude da força que póde, cégo, formidavel, sagrado como a fatalidade. E corria inteira a serie das classificações, mostrando a vida no infinitesimo, a microbia invisivel, omnipotencia do numero, sociedade inconsciente da monada, solidaria para a morte e para as reconstrucções impereciveis da terra.

O homem finalmente—ventre, coração e cerebro, politica, poemas, criterio: a alma, universo de universo, imagem de Deus, reflector immenso, anthropocentrico, do dia, das côres, que o sol inflamma, que o sol não sente.

Falava uma vez sobre educação.

Discutiu a questão do internado. Divergia do parecer vulgar, que o condemna.

É uma organisação imperfeita, aprendizagem de Corrupção, occasião de contacto com individuos de toda origem? O mestre é a tyrannia, a injustiça, o terror? o merecimento não tem cotação, cobrejam as linhas sinuosas da indignidade, approva-se a espionagem, a adulação, a humilhação, campeia a intriga, a maledicencia, a calumnia, opprimem os predilectos do favoritismo, opprimem os maiores, os mais fortes, abundam as seducções perversas, triumpham as audacias dos nullos? a reclusão exacerba as tendencias ingenitas?

Tanto melhor: é a escola da sociedade.

Illustrar o espirito é pouco; temperar o caracter é tudo. É preciso que chegue um dia a desillusão do carinho domestico. Toda a vantagem em que se realise o mais cedo.

A educação não faz almas: exercita-as. E o exercicio moral não vem das bellas palavras de virtude, mas do attrito com as circumstancias.

A energia para affrontal-as é a herança de sangue dos capazes da moralidade, felizes na loteria do destino. Os desherdados abatem-se.

Ensaiados no microcosmo do internato, não ha mais surprezas no grande mundo lá fora, onde se vão soffrer todas as convivencias, respirar todos os ambientes; onde a razão da maior força é a dialectica geral, e nos envolvem as evoluções de tudo que rasteja e tudo que morde, porque a perfidia terra-terra é um dos processos mais efficazes da vulgaridade vencedora; onde o aviltamento é quasi sempre a condição do exito, como se houvesse ascensões para baixo; onde o poder é uma redoma de chumbo sobre as aspirações altivas; onde a cidade é franca para as dissoluções babylonicas do instincto; onde o que é nullo, fluctua e apparece, como no mar as perolas immersas são ignoradas, e sobrenadam ao dia as algas mortas e a espuma.

O internato é util; a existencia agita-se como a peneira do garimpeiro: o que vale mais e o que vale menos, separam-se.

Cada mocidade representa uma direcção. Hão de vir os disfarces, as hypocrisias, as suggestões da habilidade, do esclarecimento intellectual; no fundo a direcção do caracter é invariavel. A constancia da bussola é uma; temos todos um norte necessario: cada um leva ás costas o sobrescripto da sua fatalidade. O collegio não illude: os caracteres exhibem-se em mostrador de franqueza absoluta. O que tem de ser, é já. E tanto mais exacto, que o encontro e a confusão das classes e das fortunas equipara tudo, supprimindo os enganos de apparato, que tanto complicam os aspectos da vida exterior, que no internato apagam-se no socialismo do regulamento.

E não se diga que é um viveiro de máus germens seminario nefasto de máus principios, que hão de arborescer depois. Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflecte. A corrupção que alli viceja, vae de fóra. Os caracteres que alli triumpham, trazem ao entrar o passaporte do successo, como os que se perdem, a marca da condemnação.

O externato é um meio termo falso em materia de educação moral; nem a vida exterior impressiona, porque a familia preserva, nem o collegio vive socialmente para instruir a observação, porque falta a convivencia de mundo á parte, que só a reclusão do grande internato occasiona. O internato com a somma dos defeitos possiveis é o ensino pratico da virtude, a aprendizagem do ferreiro á forja, habilitação do luctador na lucta. Os deuses sacrificam-se; não prevalecem. Os gymnasios são para os privilegiados da saude. O rheumatismo deve ser um pessimo acrobata. Erro grave combater o internato.

Cumpre que se institua, que se desenvolva, que floresça e se multiplique a escola positiva do conflicto social com os máus educadores e as companhias perigosas, na communhão corruptora, no tédio de claustro, de inacção, de carcere; cumpre que os generosos ardores da alma primitiva e ingenua se disciplinem na desillusão crua e prematura, que nunca é cedo para sentir que o futuro importa em mais que flanar facilmente, mãos ás costas, fronte ás nuvens, através das praças desimpedidas da republica de Platão.

Durante a conferencia pensei no Franco. Cada uma das opiniões do professor, eu applicava onerosamente ao pobre eleito da desdita, pagando por trimestre o seu abandono naquella casa, aluguel do desprezo. Lembrava-me do desembargador em Matto-Grosso e da carta que eu lera e da irmã raptada, da vingança extravagante dos cacos, da timidez baixa das maneiras, da concentração muda de odios, dos movimentos incompletos de revolta, da submissão final de escorraçado que se resigna. Tive pena.

Depois da conferencia fui visital-o.

Estava de cama no salão verde, á direita, perto das janellas. Andava adoentado desde a ultima vez que fôra á prisão.

Embaixo da casa. Fazia-se entrada pelo saguão cimentado dos lavatorios; sentia-se uma impressão de escuro absoluto; para os lados, á distancia, brilhavam vivamente, como olhos brancos, alguns respiradouros gradeados daquella especie de immensa adega. O chão era de terra batida, mal enxuta. Impressionava logo um cheiro humido de cogumelos pisados. Com a meia claridade dos respiradouros, habituando-se a vista, distinguia-se no meio uma especie de gaiola ou capoeira de travessões fortes de pinho. Dentro da gaiola um banco e uma taboa pregada, por mesa. Sobre a mesa um tinteiro de barro. Era a cafúa.

Engaiolava-se o condemnado na amavel companhia dos remorsos e da execração; ainda em cima, uma tarefa de paginas, para a qual o mais difficil era arranjar luz bastante. De espaço a espaço, galopava um rato no invisivel; ás vezes vinham subir ás pernas do condemnado os animaezinhos repugnantes dos logares lobregos. Á soltura surgia o preso, pallido como um redivivo, espantado do ar claro como de uma cousa incrivel. Alguns achavam meio de voltar verdadeiramente abatidos.

Franco saiu doente.

Alguns collegas mostravam interesse por elle. Franco respondia com aspereza: não tinha nada! Eram todos culpados; havia de adoecer, havia de adoecer gravemente para que tivessem remorsos, elles mesmos, o Sylvino, Aristarcho, todos os seus algozes! Raciocinava como as victimas da antiga escola, que se deixavam morrer fiadas no espectro. E occultou que soffria.

Devorou-o por semanas uma febre ligeira, mas impertinente. Expunha-se á soalheira, ao sereno, de proposito.

Um dia não pôde levantar-se.

Dorzinha de cabeça, explicava. Vinham-lhe nauseas, elle corria á janella. Em baixo havia um pé de magnolias, copado como um bosque; elle no intervallo dos arrancos entretinha-se em aprumar o fio visguento do vómito contra as amplas flôres alvas.

Encontrei-o mal.

Com a cabeça afundada no travesseiro, sumido sob a porção de cobertores que os vizinhos haviam cedido, affectava o descuido infantil, na physionomia, a indifferença horripilante, suprema dos que não vão longe. Fiquei surprehendido e aterrado.

O medico, a chamado de Aristarcho, viera duas vezes. Condemnou a idéa de remover-se o doente; recommendou cuidado com as vidraças; diagnosticou uma febre qualquer, redigindo o recipe, partindo ambas as vezes com a discrição hermetica que faz a importancia da classe.

Perguntei ao Franco como passava. Elle agitou de vagar as palpebras e sorriu-se. Nunca lhe conheci tão bello sorriso, sorriso de criança á morte. Oito horas da noite. O gaz attenuado produzia effluvios contristadores de claridade. Retirei-me sem aprofundar a vista pelos outros dormitorios, em cujas vidraças espelhantes devia passar successivamente a minha sombra. Procurei o director e communiquei-lhe os meus terrores.

No dia seguinte, um domingo alegre. Franco estava morto.

O correspondente compareceu em pessoa para as indispensaveis providencias. Transferiu-se o corpo para a capella, onde se erigia a eça. Aristarcho chorou; mas o saimento foi modesto; não convinha ao collegio o apparato de um grande enterro, pregão talvez de insalubridade.

Eu nada vi; quando subi ao salão verde novamente, estava tudo acabado. Alguns rapazes revolviam curiosos na gaveta do Franco o espolio da morte, uma escova de dentes esfiapada, tingida do carmim de um pó chinez, uma velha correia sem fivella, uma photographia gorda de mulher despindo os seios, cartas á tôa e um maço consideravel de boas notas, arranjadas ninguem sabe como, com assignaturas falsas de professores, e o nome de Franco, fraude de successo com que o pobre pretendia maravilhar o magistrado de Cuyabá.

Desmanchando-se a cama, caiu dos lençóes um cartão: uma gravura, Santa Rosalia! a minha padroeira desapparecida. Morrera talvez beijando-a, o pária.

Pouco tempo depois, o Atheneu em festa.

Preparava-se a solemnidade da distribuição biennal dos premios. As benemerencias andavam famintas de corôas. Suspenderam-se as aulas. Era preciso começar o preparativo com grande anterioridade, porque se projectava cousa nunca vista. Alguns discipulos tinham prevenido ao director, guardavam-lhe uma surpreza: a offerta de um busto de bronze! Aristarcho predispunha-se para a surpreza com todas as veras da alma. Um busto! era a remuneração que chegava dos impagaveis esforços, a sonhada estatua. Vinha-lhe aos pedaços. Começavam pela cabeça; mais tarde, offerecer-lhe-iam o abdomen, bella pança metallica e magnifico umbigo de bonzo gordo, saliente como um murro; depois, o prolongamento do corpo, aos roletes, gradualmente... Ah! quando lhe offerecessem as botas!... Depois, não seria preciso mais: o pedestal, elle mesmo offerecer-se-ia para adiantar. E parafusaria, accumuladas, as peças do seu orgulho, a pilha dos seus anhelos, a estatua! surgida aos poucos da sinceridade vagarosa das oblações, como difficilmente a gloria, do escrutinio demorado dos tempos.

Devia ser uma solemnidade sem memoria nos fastos da pedagogia triumphante, um obelisco de despezas, de luxo, de esplendor, a cuja ponta, como a erupção de uma cratera, saltasse a surpreza, galardão das altas qualidades e pirraça suprema á concorrencia dos rivaes.

Não havia sala no Atheneu que comportasse tão vasta festividade; nem o proprio logar dos recreios abrigados. Resolveu-se cobrir de lona o pateo central, sobre grandes mastros plantados convenientemente. Uma barraca incalculavel, a maior barraca que a imaginação humana tem concebido, que abrangesse na sombra quatro mil pessoas, com o panno emprestado aos toldos, ao velame de uma esquadra. Embaixo, as archibancadas; reservando-se, no meio, espaçosa arena para a exhibição dos laureados. Por intermedio do ajudante-general da armada, que tinha dous filhos no estabelecimento, podia-se commodamente obter a lona.

Durante alguns dias chegaram ao Atheneu cargas immensas de panno. Espichavam-se os rolos no pateo, ao longo das paredes. Appareceram em seguida as madeiras e os carpinteiros, um povo de carpinteiros.

Em meio dos operarios iam e vinham os estudantes, ajudando, atrapalhando, ás carreiras, aos saltos, aos gritos, presentindo a felicidade do dia solemne. Aristarcho approvava o tumulto; queria vêl-os alegres. A morte do Franco produzira uma penumbra de panico; alguns rapazes tinham ido para casa, receiosos da febre.

O alvoroço dos preparativos reanimava o Atheneu. Em poucos dias atravancou-se o pateo de postes e travessões, taboas e pés de serra, como um desmedido estaleiro. Os martellos batiam por todos os cantos com a crepitação continua dos tiroteios. Desapparecia a terra sob a poeira dos páus cortados. Aristarcho fiscalisava o serviço como mestre de obras, rondando calado, sério, sorvendo satisfeito as emanações da serragem fresca, cheiro de officina, cheiro do trabalho, ouvindo attritar os serrotes com um rumor de fabrica, que lembrava os haustos de offego do vapor ao vaevem poderoso dos embolos. Havia um prazer especial naquillo; crescer do chão em tres dias por honra sua a floresta das vigas e barrotes, ao esforço de tantos homens activos e azafamados; cantarem as taboas sob os malhos, desdobrando-se escadas e bancadas como um desafio ás exaltações, e prejulgar do effeito total, quando tudo fosse belbutina e panninho, e o concurso da população invadisse, e assomasse, de um terremoto de acclamações o busto, altaneiro e luzente.

Certo não foi tão nobre o orgulho d'aquelles monarchas das pyramides, idiotas macabros e collossaes, architectos inuteis de sepulcros.

Partiram os carpinteiros, apresentaram-se os armadores. Estenderam-se sobre o vigamento os toldos, as velas, como um céu de lona. As janellas do pateo abriam-se para o amphitheatro como tribunas.

Os armadores comprometteram em sanefas todo o pundonor do talento. Tudo que póde produzir de apparatoso o bem combinado das côres vivas e os apanhados de cassa fluctuante, e os lambrequins pintados do coreto, e as columnatas de papelão; tudo que póde a concordancia assombrosa da scenographia e da ripa, armou-se no pateo profusamente.

Na arena central expandia-se um tapete pardo, de flôres claras. Em parte da archibancada, convenientemente disposta, alinhavam-se cadeiras. Os estudantes e os assistentes somenos sentar-se-iam na taboa dura. As abertas de construcção que não podiam ficar assim em osso, foram empannadas de velludo com frisos de galão. Vermelho e ouro. Acima dos assentos havia uma linha de balaustres espiralados de fitas. Em cada balaustre um escudo com o nome do um pedagogo celebre. Por delicadeza incluiram o nome de Aristarcho varias vezes. Aristarcho não reparou.

Um dos lados do tapete ondeava-se em quatro degráus para um longo estrado, fronteiro á entrada do amphitheatro, apoiado á parede da sala geral de estudo. Erguia-se alli um throno, sob um docel, para a Princeza Regente. De vez em quando, Aristarcho, cançado de tanto mover-se, subia ao throno, sentava-se. Fazia-lhe bem o docel por cima. E dava regras aos armadores, de lá, como um soberano precavido dictando o esplendor da coroação.

Os iniciadores da subscripção do busto haviam concluido a tarefa. Eram dous: o Climaco, alumno gratuito, e o professor de desenho. Climaco, moço de espirito pratico, não levou muito a ruminar uma feliz idéa. E se offerecessemos um busto ao nosso director? Lembrou-se a principio de congregar os gratuitos; mas repelliu immediatamente a lembrança por inexequivel. A gratidão podia-se subscrever por todos; saía mais barato. Entrou em campo. Os primeiros assaltados pelo convite ficaram frios. Diabo! não estavam dispostos assim, a ser gratos de uma hora para outra. Consultasse os collegas, que, se a idéa pegasse, não teriam duvida. Alguns mais acanhados assignaram logo; alguns, ainda, dos pequenos assignaram sem saber claramente o que significava a cousa. Em poucos minutos a existencia da subscripção estava no dominio publico. Começou a pressão irresistivel de facto. Que miseria! hesitar por dez mil réis! Quem teria coragem de furtar-se ao testemunho publico de agradecimento que a offerta do busto significava? Era uma desfeita ao director! Os primeiros signatarios encarniçavam-se com despeito em coagir os outros, como se não quizessem ser os unicos sangrados.

Já não era preciso esforço do iniciador. A idéa ganhava terreno por si; em dous dias inteirava-se a subscripção. Muitos pegavam á vista; os que não tinham dinheiro iam tirar ao escriptorio, e o guarda-livros em segredo debitava o valor, despezas diversas, na conta do trimestre.

Diante da facilidade de obter o dinheiro, Climaco resolveu sensatamente dispensar do rateio os gratuitos: adheriam com a intenção sincera. Razoavel. Quando principiaram os preparativos da solemnidade, já o busto, obra de zeloso artista, estava fundido.

No dia 13 de Novembro, ás nove horas, começou a affluencia. O amphitheatro do pateo estava fechado ainda. Os convidados que appareciam, depois de comprimentar o director, espalhavam-se a passear em grupos pelo jardim, ou percorriam as salas do estabelecimento, examinando os apparelhos escolares, as cartas de parede, as maximas sabias, meditando a seriedade do ensino naquella casa. A aflluencia augmentou. Os convites tinham sido distribuidos largamente pela cidade. As onze horas era difficil circular no Atheneu. A festa principiava ás duas. Ao meio-dia franqueou-se o amphitheatro.

Foi como se se houvera aberto o seio de Abrahão. A ultima demão dos armadores fôra digna do primeiro esforço. Cruzavam-se, fazendo volta ás archibancadas, no alto, em bambinella, em fachas entrelaçadas, balançantes, o côr de rosa dos sorrisos infantis com uma tira alaranjada do arrebol; immediatamente depois, uma zona de vivo escarlate, ferindo sangue ás veias do mais subido jubilo; aprumavam-se as columnatas dos escudos; debaixo dos escudos, oito soberbos degráus da archibancada, velludo e galões. Perto do throno, elevava-se um palanque para o corpo docente; ao lado opposto, symetricamente, outro palanque para a banda de musica e para os cantores. Não se via mais o tecto de lona: alças enormes de ramaria e flôres enredavam-se ao alto em graciosa desordem, flaccidas, pendentes, como um diluvio de primavera a desprender-se. Entre o verdor carregado dos festões do tecto e o tapete pardo, vagava a serenidade obscura das cathedraes e das florestas, neblina penetrante de recolhimento. As pessoas que entravam guardavam silencio. O pouco que se ouvia de vozes era baixinho, cochichos de missa, surdina avelludada, amortecida, como se estivesse falando o tapete. A cornija de sanefas vibrava em desconcerto com a melancolia religiosa do recinto. Algumas nesgas da lona sobre a folhagem contrastavam ainda mais, abrindo-se á irrupção do dia.

Os alumnos entravam fardados, subiam, abancavam-se á esquerda, fazendo tremer o edificio todo de carpintaria. Aristarcho veio ficar á porta. Immenso reposteiro, rubro, de grandes borlas, desviava-se acima d'elle como para mostral-o. Calças pretas, casaca, peito blindado de condecorações, uma fita de dignitario ao pescoço, que o enforcava de nobreza. Mirando! A suprema correcção, a envergadura imponente do talhe, a majestade dominadora da presença, fundia-se tudo numa mesma umbigada de empafia. Os rapazes olhavam com o prazer do soldado que se orgulha do commandante. O Mestre invejavel, desempenado, brilhante para a festa, como se houvesse engolido um armador.

Ao redor de Aristarcho, ajudantes de ordens, apressavam-se os membros de uma commissão de recepção, composta de professores de bella presença, e alumnos em condições semelhantes. Realisavam com o director um cerimonial interessante de hospitalidade. Na entrada do amphitheatro comprimia-se a multidão dos convidados. Aristarcho e os ajudantes espiavam, farejavam, descobriam os paes, as familias dos de mais elevada posição social, que pescavam para o ingresso preterindo os mais proximos. Os escolhidos eram levados para as archibancadas de cadeiras. Se encontravam nos logares especiaes quem para lá não houvessem conduzido, convidavam delicadamente a levantar-se; que a familia do visconde de Tres Estrellas não podia ir para as taboas núas. Este rigor de etiqueta fazia suar a commissão, embaraçada na massa da concorrencia. Aristarcho aproveitava tambem para desforrar-se dos pagadores morosos da escripturação. Afinal deu na vista a pescaria dos selectos. Houve murmurios, estremecimento de surda revolta; os convites eram todos iguaes! e a pretexto de haver crescido a multidão, foram-se muitos esgueirando sem mais vêr director nem commissionados de cortezia.

O amphitheatro encheu-se tumultuariamente.

A Princeza Serenissima, com o augusto esposo, chegou pontual ás duas horas, accedendo ao convite que recebera primeiro que ninguem.

As duas e tres minutos, subia á tribuna Aristarcho. Não preciso dizer que a caranguejola soffrera mais uma das grandes commoções da malfadada existencia. Alli estava, paciente e quadrada, no exercicio effectivo de porta-rhetorica. Ficava á direita do solio da princeza e diante do Orpheon.

Aristarcho inclinou-se ligeiramente para a Graciosa Senhora. Passeou um olhar sobre o amphitheatro. Não pôde dizer palavra. Pela primeira vez na vida sentiu-se mal diante de um auditorio. A massa de ouvintes apertava-se curiosa na linha das bancadas, em curva de ferradura. A côr preta das casacas e paletots generalisava-se no espaço como uma escuridão desnorteadora; amedrontava-o o semi-circulo negro, enorme. A impressão simultanea do publico impedia-lhe reconhecer uma physionomia amiga que o animasse. Mas urgia improvisar alguma cousa antes da eloquencia rabiscada que trazia em tiras de papel... Quando o olhar foi ter a um objecto que o chamou á consciencia de si mesmo. Diante da tribuna erigia-se uma peanha de madeira lustrosa; sobre a peanha uma fórma indeterminada, mysteriosamente envolta numa capa de lã verde. A surpreza! Era elle, que alli estava encapado na expectativa da opportunidade; elle bronze imperterrito, sua effigie, seu estimulo, seu exemplo: mais elle até do que elle proprio, a tremer; porque bronze era a verdade do seu caracter, que um momento absurdo de fraqueza desfigurava e subtrahia. Lembrou-se de que o vasto barracão, as alças de flôres, o vigamento, a belbutina, a architectura dos palanques, os galões alfinetados, todas as sanefas de panninho, o olhar dos discipulos, a presença da população, o busto na capa verde, tudo era o seu triumpho por seu triumpho, e o embaraço desvaneceu-se. A inspiração ferveu-lhe de engulho á guela, vibrou-lhe electrica na lingua, e elle falou. Falou como nunca, esqueceu o calhamaço sobresalente que trouxera, improvisou como Demosthenes, inundou a arena, os degráus do throno as ordens todas da archibancada até á oitava, com o mais espantoso chorrilho de facundia que se tem feito correr na terra.

O assumpto conjectura-se. Agradecimentos, o elogio de seus penares de apostolo. Abria a casaca e mostrava. Debaixo das commendas tinha as cicatrizes. As settas que lhe varavam a alma não se podiam vêr bem por causa do collete. Avaliava-se pela descripção: devia ser horrivel. Depois dos soffrimentos, os serviços.

O educador é como a musica do futuro, que se conhece em um dia para se comprehender no outro: a posteridade é que havia do julgar. Quanto ao seu passado, nem falemos! não olhava para traz por modestia, para não virar monumento, como a mulher de Loth. Com o Atheneu estava satisfeito; uma sementeira razoavel; não se fazia rogar para florescer. Corações de terra roxa, onde as licções do bem pegavam vivo. Era cair a semente e a virtude instantanea espipocava. Uma maravilha, aquella horta fecunda! Antes de maldizerem, do hortelão, calumniadores e invejosos julgassem-lhe os repolhos, pesassem-lhe os nabos, as tronchudas couves, crespas, modestas, serviçaes, as candidas alfaces, as sensiveis cebolas de lagrima tão facil quanto sincera, as instruidas batatas, as delicadas abóboras, que todos vão plantar e ninguem planta; os alhos, typos eternos, ás vezes porros, da vivacidade bem aproveitada; sem contar os arrepiados maxixes, nem as congestas beringelas, nem os mastruços innommaveis, nem os agriões amargos, nem os espinafres insignificantes, nem o caruru, a bertalha, a trapoiraba dos banhos, que tem uma flôr galante, mas que afinal é matto. Horta paradisiaca que ufanava-se de cultivar! A distribuição dos premios mostraria.

Podia concluir voltando á vacca fria do louvor em bocca propria; preferiu uma simples bomba qualquer de rhetorica, porque o mestriculo Venancio ia tambem falar, e, na qualidade de pagem por dedicação, disputava-lhe sempre uma ponta para carregar do manto de glorias.

Seguiram-se algumas peças da banda do Atheneu e os hymnos escolares.

Na parte concertante diziam que Aristarcho mandara encartar um solo de zabumba para exhibir o genro. Caçoadas.

A premiação foi, como devia ser, exuberante. Aristarcho leu um relatorio do movimento litterario nos dous ultimos annos. Lembrou o nome dos alumnos de medalhas de ouro e prata, desde a fundação da casa, e convidou o secretario a evocar, por ordem de merecimento, os novos premiados. Extensa lista. A cada nome descia um alumno, branco de emoção, atrapalhando os passos; e transpunha a arena.

Á esquerda do throno estava uma longa mesa, a que sentavam-se o Ex.mo ministro do imperio e varios figurões da Instrucção Publica.

Diante d'elles, a cavalleiro, encobrindo-os, erguia-se uma pyramide verde de corôas de carvalho, papel e arame, e outra de corôas de ouro, idem, idem. Ouro para os de medalha; carvalho para o resto, em quantidade.

No estrado, a pouca distancia, ramas de livros luxuosamente encadernados. O premiado recebia tres, dous, um d'aquelles volumes, a medalha, a menção honrosa, um sermãozinho amavel do ministro, e saía com tudo, zonzo.

Em caminho, pelas costas, á traição, um inspector enfiava-lhe um dos diademas de papel; até os olhos, quando era grande de mais; e peior ainda quando era pequeno, porque o misero laureado tinha de o aguentar em equilibrio até á bancada.

O publico batia palmas, talvez ao premio, talvez á sorte.

Ribas, o Matta Corcundinha, Nearcho, o Saulo das distincções e mais outro, alcançaram medalha de ouro. Romulo, Malheiro, Climaco, Sanches, Maurilio, Barreto, mais uns quinze, medalha de prata. Eu, o Egbert, o Cruz da doutrina, o açafroado Barbalho, o Almeidinha, o Negrão e numerosissimos outros, a singela menção honrosa. Aos não contemplados, ficava a compensação de desfazer raso na justiça distribuida.

Na massa dos convidados, diversas centenas de representantes da boa sociedade, havia pessoas verdadeiramente notaveis: titulares de solida grandeza, argentarios de mais solidos titulos, vultos politicos de bella estampa e tradições sonoras, uns exhibindo á fronte as neves pensativas do hibernal senado, outros a energia moça da camara temporaria, medicos celebrisados por façanhas cirurgicas, ou simplesmente pela vivisecção reciproca de mazellas em pleno logradouro publico dos «a pedidos».

Havia jornalistas, litteratos, pintores, compositores; entre as senhoras, accumuladas principalmente nas bancadas especiaes, distinguiam-se perfis soberbos de rainha em toda a efflorescencia da formosura, que a claridade branda do logar vaporisava idealmente; havia ostentações de pedraria e vestuarios que impressionavam; havia juventudes de labios e de olhar enervantes ou arrebatadoras, morenas, forçando magicamente o torpor da sésta sensual sob a caricia oppressora de um pequenino pé victorioso, louras convidando a um enlace de transporte á nuvem, mais alto! ao retiro ethereo onde vivem amor as estrellas duplas... Nada d'isso era o grande attractivo, nada conseguia altear-se para nós um palmo na perspectiva geral da multidão; o nosso grande cuidado era o poeta, «o poeta!» murmurava o collegio, uns á procura, outros indicando. Era aquelle de pé, mão ao quadril, vistosamente, no palanque do professorado, entornando para as duas bandas, sobre as pessoas mais proximas, uma profusão assombrosa de suissas.

D'entre as suissas, como um gorgeio do bosque, saía um bello nariz alexandrino de dous hemistichios, artisticamente longo, disfarçando o cavallete da cesura, tal qual os da ultima moda no Parnaso. Á raiz do poetico appendice brilhavam dous olhos, vivissimos, redondos, de coruja, como os de Minerva. Tão vivos ao fundo das orbitas cavas, que bem se percebia alli como deve brilhar o fundo na physionomia da estrophe. O grande Dr. Icaro de Nascimento! Vinha ao Atheneu exclusivamente para declamar uma poesia famosa, que havia algum tempo era o successo obrigado das festas escolares do Rio: O mestre. Logo depois dos premios, teve a palavra.

Durante meia hora houve uma cousa estranha: uma convulsão angustiosa de barbas no espaço. Crescente. Desappareceu o poeta, desappareceu o palanque, encheu-se o amphitheatro, foi-se o throno com a Alteza Regente, a longa mesa com Aristarcho e o Ex.mo do imperio, ennovellaram-se as archibancadas, desappareceu tudo numa expansão incalculavel de suissas, jubileu de queixos. Ninguem mais se via, nada mais, no cahos tormentoso de pellos, onde uma voz passava atroadora, carga tremenda de esquadrões pela noite espessa, calcando versos como patadas, esmagando, rompendo avante.

Até que tornamos a ver o nariz. Acalmaram pouco a pouco as barbas. Recolheram-se como uma inundação que se retira. Estava acabada a poesia. Ninguem percebeu palavra do berreiro, porém a impressão foi formidavel.

Depois de uma parte de concerto, que foi como descanço reparador, seguiu-se a offerta do busto. Teve a palavra o professor Venancio.

Aristarcho, na grande mesa, soffreu o segundo abalo de terror d'aquella solemnidade. Fez um esforço, preparou-se. É preciso ás vezes tanta bravura para arrostar o encomio face a face, como as aggressões. A propria vaidade acovarda-se. Venancio ia falar: coragem! A oscillação do thuribulo póde fazer enjôo. Elle receiava uma cousa que talvez seja a enxaqueca dos deuses: tonturas do muito incenso. Gostava do elogio, immensamente. Mas o Venancio era de mais. E alli, diante d'aquelle mundo! Não importa! Viva o heroismo.

Era conveniente postar-se em attitude severa bastante e olympica, para corresponder á glorificação de Venancio. Prompto.

O orador accumulou paciente todos os epithetos de engrandecimento, desde o raro metal da sinceridade até o cobre ductil, cantante das adulações. Fundiu a mistura numa fogueira de calorosas emphases, e sobre a massa bateu como um cyclope, longamente, até accentuar a imagem monumental do director.

Aristarcho depois do primeiro receio esquecia-se na delicia de uma metamorphose. Venancio era o seu esculptor.

A estatua não era mais uma aspiração; batiam-na alli. Elle sentia metallisar-se a carne á medida que o Venancio falava. Comprehendia inversamente o prazer de transmutação da materia bruta que a alma artistica penetra e anima; congelava-lhe os membros uma frialdade de ferro; á epiderme, nas mãos, na face, via, adivinhava reflexos desconhecidos de polimento. Consolidavam-se as dobras das roupas em modelagem resistente e fixa. Sentia-se estranhamente massiço por dentro, como se houvera bebido gesso. Parava-lhe o sangue nas arterias comprimidas. Perdia a sensação da roupa; empedernia-se, mineralisava-se todo. Não era um ser humano: era um corpo inorganico, rochedo inerte, blóco metallico, escoria de fundição, fórma de bronze, vivendo a vida exterior das esculpturas, sem consciencia, sem individualidade, morto sobre a cadeira, oh, gloria! mas feito estatua.

«Coroemol-o!» bradou de subito Venancio.

Neste momento, o Climaco estrategicamente postado, puxou com força um cordão. Da capa verde dilacerada, emergiu a surpreza: o busto da offerta. Um pouco de sol rasteiro, passando a lona, vinha de encommenda estilhaçar-se contra o metal novo.

—Coroemol-o! repetia Venancio, num vendaval de acclamações. E saccando da tribuna esplendida corôa de louros, que ninguem vira, collocou-a sobre a figura.

Aristarcho caiu em si. Referia-se ao busto toda a oração encomiastica de Venancio. Nada para elle das bellas apostrophes! Teve ciumes, O gozo da metamorphose fôra uma allucicação. O acclamado, o endeosado era o busto: elle continuava a ser o pobre Aristarcho, mortal, de carne e osso. O proprio Venancio, o fiel Venancio, abandonava-o. E por causa d'aquillo, d'aquella cousa mesquinha sobre a peanha, aquelle pedaço de Aristarcho, que nem ao menos era gente!

Mal acabou de falar o professor, viu-se Aristarcho levantar-se, atravessar freneticamente o espaço atapetado, arrancar a corôa de louros ao busto.

Louvaram todos a magnanimidade da modestia.

Mas o dia acabou insipido para o director. Ruminava confusamente a tristeza d'aquella rivalidade nova—o bronze invencivel.

Por que não usam os grandes homens, em vez de poltronas, pedestaes?

Que vale a estatua, se não somos nós? A adopção do pedestal nas mobilias teria ao menos a vantagem de facilitar a provação da gloria, de vez em quando, da gloria effectiva, gloria actual, gloria pratica.

Tinha-se alli a um canto a columna. Era vir a necessidade, nada mais facil: galgava-se a elevação, ensaiava-se a postura, esperava-se immovel que cedesse o espasmo. Mas... não! força era acceitar a verdade amarga.

O monumento prescinde do heróe, não o conhece, demitte-o por substituição, sopêa-o, anulla-o.

Com os diabos! Por que ha de ser isto afinal a immortalidade: um pedaço de marmore sobre um defunto?!

Á noitinha retiravam-se os convidados, as familias, multidão confusa de alegrias e despeitos. As mães acariciando muito o filho sem premio, os paes odiando o director, olhando como vencidos para os que passavam satisfeitos, os outros paes, os collegas do filho, menos infatuados da propria victoria que da humilhação alheia.

Humilde, a um canto, á beira da corrente dos que iam, pouco além da entrada do amphitheatro, mostraram-me uma familia de lucto—a familia do Franco. O desembargador, de chapéo na mão, esquecendo de cobrir-se; homem baixo, physionomia acabrunhada, longas barbas grisalhas, calvo, olhos miudos, palpebras em bolsa.

Tinha vindo de Matto Grosso um anno mais tarde do que pretendia. O correspondente dera a noticia.

Andava agora mostrando á familia o Rio de Janeiro. Viera á festa collegial, ao collegio do filho, para distrahir a filha, a raptada, que alli estava com a mãe e duas irmãs menores, muito pallida, delgada, num idiotismo sombrio, insanavel de melancolia e mudez, pestanas caidas, olhar na terra, como quem pensa encontrar alguma cousa.




XII

Musica estranha, na hora calida. Devia ser Gottschalk. Aquelle esforço agonisante dos sons, lentos, pungidos, angustia deliciosa de extremo gozo em que póde ficar a vida porque fôra uma conclusão triumphal. Notas graves, uma, uma; pausas de silencio e tréva em que o instrumento succumbe e logo um dia claro de renascença, que illumina o mundo como o momento phantastico do relampago, que a escuridão novamente abate...

Ha reminiscencias sonoras que ficam perpetuas, como um echo do passado. Recorda-me, ás vezes, o piano, resurge-me aquella data.

Do fundo repouso caído de convalescente, serenidade extenuada em que nos deixa a febre, infantilisados no enfraquecimento como a recomeçar a vida, inermes contra a sensação por um requinte morbido da sensibilidade—eu aspirava a musica como a embriaguez dulcissima de um perfume funesto; a musica envolvia-me num contagio de vibração, como se houvesse nervos no ar. As notas distantes cresciam-me n'alma em resonancia enorme de cisterna; eu soffria, como das palpitações fortes do coração quando o sentimento exacerba-se—a sensualidade dissolvente dos sons.

Lasso, sobre os lençóes, em conforto ideal de tumulo, que a vontade morrera, eu deixava martyrisar-me o encanto. A imaginação de azas crescidas, fugia solta.

E reconhecia visões antigas, no tecto da enfermaria, no papel das paredes rosa desmaiado, côr propria, enferma e pallejante... Aquelle rosto branco, cabellos de ondina, abertos ao meio, desatados, negrissimos, desatados para os hombros, a adorada dos sete annos que me tivera uma estrophe, parodia de um almanak, valha a verdade, e que lhe fôra entregue, sangrento escarneo! pelo proprio noivo; outra igualmente clara, a pequenina, a morta, que eu prezara tanto, cuja existencia fôra no mundo como o revoar das roupas que os sonhos levam, coma a phrase fugitiva de um hymno de anjos que o azul embebe... Outras lembranças confusas, precipitadas, mutações macias, incançaveis de nuvens, enlevando com a tonteira da elevação; lisas escapadas por um plano obliquo de vôo, oscillação de prodigioso aerostato, serena, em plena atmosphera...

Panoramas completos, uma partida, abraços, lagrimas, o steamer preto, sobre a agua esmeralda, inquieta e sem fundo, a gradezinha de cordas brancas cercando a pôpa, os salva-vidas como grandes collares achatados, cabos que se perdiam para cima, correntes que se dissolviam na espessura vitrea do mar; a camara dourada, baixa, suffocante, o torvelinho dos que se accommodam para ficar, dos que se apressam para descer aos escaleres...

Uma janella. Em baixo, o coradouro, espaçoso; para diante mangueiras arredondando a copa sombria na tela nitida do céu; além das mangueiras, conglobações de cumulus crescendo a olhos vistos, floresta collossal de prata; de outro lado, montanhas arborisadas, expondo num ponto e noutro, saliencias peitoraes de ferrugem como armaduras velhas. No coradouro estendidas, peças de roupa, iriadas de sabão, meias compridas de ourela vermelha, desenroladas na relva, saudosas da perna ausente, grandes lençóes, vestidos rugosos de molhados; acima do coradouro, cordas, ás cordas camisas transparentes, decotadas, rendadas, sem manga, lacrimejando espaçadamente a lavagem como se suassem ao sol a transpiração de muitas fadigas; saias brancas que dançavam na brisa a lembrança choreographica da soirée mais recente.

Quando o vento era mais forte, enfunava as roupas estendidas, inflando ventres de mulher nas saias, nas camisas. Angela apparecia. Sempre no seu raio de sol, como as fadas no raio de lua. Saudava-me á janella com uma das exclamações vivas de menino surpreso. Sem paletot, ás mãos, empilhados, dous montes de roupa enxaguada. Ajudava a lavadeira para distrahir-se. Falava olhando para cima, affrontando o dia sem cobrir os olhos.

Estava aborrecida, uma preguiça! uma preguiça! uma vontade de deitar no collo! começava as infinitas historias, narradas de vagar, como derretidas no labio quente, muito repisadas, de quando era pequena, aventuras da immigração, as casas onde trabalhara; contava as origens do drama do outro anno... Tratara de accommodar os dous para vêr se as cousas chegavam a bom termo; a desgraça não quiz. Agora, para falar a verdade, gostava mais do que morreu. O assassino era muito máu, exigia cousas d'ella como se fosse uma escrava; era bruto, bruto. Mas era de Hespanha; companheiros de viagem, e um homem bonito! sacudido, eu bem tinha conhecido; mas judiava d'ella; batia, empurrava: olhe, ainda tinha signaes, e levantava candidamente o vestido para mostrar, no joelho, na coxa, cicatrizes, manchas antigas que eu não via absolutamente, nem ella.

Cessava a musica...

As venezianas abertas davam entrada á claridade do tempo. Entrava simultaneamente um borborinho imperceptivel de arvores, falando longe, gorgeios ciciados de passaros, gritos humanos indistinctamente, attenuados pela immensa distancia, martelladas miudas de canteiro, tremor de carros nas ruas, miniatura extrema de trovão, parcellas infimas da vida pulverisadas na luz...

A porta da enfermaria descerrava-se de vagarinho e na matinée de musselina elegante e frouxa apparecia a amavel senhora. Vinha verificar se eu dormia, saber como passava agora.

Bastava a sua presença para reanimar-me no leito. Tão boa, tão boa no seu carinho de enfermeira, de mãe.

Junto da cama, um velador modesto e uma cadeira. Emma sentava-se. Pousava os cotovellos á beira do colchão, o olhar nos meus olhos aquelle olhar inolvidavel, negro, profundo como um abysmo, bordado pelas seducções todas da vertigem. Eu não podia resistir, fechava as palpebras; sentia ainda na palpebra com o halito de velludo a caricia d'aquella attenção.

Ao fim de algum tempo, a senhora, a vêr se eu tinha febre, demorava-me a pequenina mão sobre a testa, finissima, fresca, deliciosa como um diadema de felicidade.

Eu me perdia numa somnolencia sem nome que jamais lograram produzir os mais suaves vapores do narcotismo oriental.

Com o regimen fortificante d'esta therapeutica, voltava-me rapidamente a saude.

Logo depois da festa de educação physica, que foi alguns dias depois da grande solemnidade dos premios, eu adoecera. Sarampos, sem mais nem menos. Por motivo dos seus padecimentos, meu pae seguira para a Europa, levando a familia. Eu ficara no Atheneu, confiado ao director, como a um correspondente.

Meia duzia de rapazes eram meus companheiros. Que terrivel soledade o Atheneu deserto. No pateo, o silencio dormia ao sol, como um lagarto. Vagavamos, bocejando pelas salas desmontadas, despidas; as carteiras amontoadas num canto, na caliça os pregos sómente das cartas com alguns quadros restantes de maximas, por maior insipidez, os mais teimosos conselhos moraes. Nos dormitorios, as camas desfeitas mostravam o esqueleto de ferro pintado, o xadrez das chapas cruzadas. Principiava um serviço vasto de lavagem, envernizagem, caiação; vieram pintores reformar os aspectos do edificio que se renovavam todos os annos.

Os tristes reclusos das férias, ficavamos, no meio d'aquella restauração geral, como cousas antigas, do outro anno, com o deploravel inconveniente de se não poder caiar de novo e pintar.

Nesta situação, como do excesso de brilho das paredes em sol, que debatiam fulgores na melancolia morna da circumvizinhança dos morros, começaram a doer-me os olhos até á lagrima, forrou-me a lingua um sabor desagradavel de castanhas cruas. Seria isso o gosto do aborrecimento? Pesava-me a cabeça, o corpo todo, como se eu me cobrisse de chumbo.

Assim passei alguns dias, sem me queixar. Certa manhã, descubro no corpo, um formigueiro de pintinhas rubras. Aristarcho fez-me recolher na enfermaria, um prolongamento de sua residencia para os lados da natação. Veio medico, o mesmo do Franco; não me matou. D. Emma foi para mim o verdadeiro soccorro. Sabia tanto zelar, animar, acariciar, que a propria agonia aos cuidados do seu trato fôra uma resurreição.

A enfermaria era um simples lance da casa; especie de pavilhão lateral, com entrada independente pela chacara e communicando por dentro com as outras peças.

A senhora não deixava a enfermaria. Vigiava-me o somno, as crises de delirio, como uma irmã de caridade.

Aristarcho surgia ás vezes solemnemente, sem demorar. Angela nunca. Fôra-lhe prohibida a entrada.

Junto da cama, D. Emma commovia-se, mirando a prostração pallida, ao reabrir os olhos de um d'esses periodos de somno dos enfermos, que tão bem fingem de morte. Tirava-me a mão, prendia nas della tempo esquecido; luzia-lhe no olhar um brilho de pranto. A alimentação da dieta era ella quem trazia, quem servia. Ás vezes por gracejo carinhoso queria levar-me ella mesma o alimento á bocca, a colherinha de sagú, que primeiro provava com um adoravel amúo de beijo. Se precisava andar no aposento para mudar um frasco, entreabrir a janella, caminhava como uma sombra por um chão de paina.

Eu me sentia pequeno deliciosamente naquelle circulo de conchego como em um ninho.

Quando entrei em convalescença, a graciosa enfermeira tornou-se alegre. Ás escondidas do medico, embriagava-me, com aquella medicina de risos, gargarejo inimitavel de perolas a todo pretexto. Tagarellava, agitava-se como um passaro preso. Cantava, ás vezes, para adormecer-me, musicas desconhecidas, tão finamente, tão subtilmente, que os sons morriam-lhe quasi nos labios, brandos como o adejo brando da borboleta que expira. Quando me julgava adormecido, arranjava-me ao hombro a colcha, alisando-a sobre o corpo; uma vez beijou-me na tempora. E retirava-se, insensivelmente, evaporava-se.

Por um acaso da distribuição acustica dos compartimentos da casa, ouvia-se bem, agradavelmente amaciado, o som do piano do salão. A amavel senhora, para mandar-me da sua ausencia alguma cousa ainda, que acariciasse; que me fosse agradavel, traduzia no teclado com a mesma brandura sentida as musicas que sabia cantar. Nenhuma violencia de execução. Sentimento; apenas, sentimento, successão melodica de sons profundos, destacados como o dobre em Novembro, dos bronzes; depois, uma enfiada brilhante de lagrimas, colhidas num lago de repouso, final, sereno, consolado... effeitos commoventes da musica de Schopenhauer; fórma sem materia, turba de espiritos aereos.

A primeira vez que me levantei, tremulo da fraqueza, Emma amparou-me até á janella. Dez horas. Havia ainda a frescura matinal na terra. Diante de nós o jardim virente, constellado de margaridas; depois, um muro de hera, bambús á direita; uma zona do capinzal fronteiro; depois, casas, torres, mais casas adiante, telhados ainda á distancia, a cidade. Tudo me parecia desconhecido, renovado. Curioso esplendor revestia aquelle espectaculo. Era a primeira vez que me encantavam assim aquellas gradações de verde, o verde negro, de faiença, luzente da hera, o verde fluctuante mais claro dos bambús, o verde clarissimo do campo ao longe sobre o muro, em todo o fulgor da manhã. Tectos de casas, que novidade! que novidade o perfil de uma chaminé riscando o espaço! Emma entregava-se, como eu, ao prazer dos olhos. Sustinha-me em leve enlace; tocava-me com o quadril em descanço.

Absorvendo-me na contemplação da manhã, penetrado de ternura, inclinei a cabeça para o hombro de Emma, como um filho, entrecerrando os cilios, vendo o campo, os tectos vermelhos como cousas sonhadas em affastamento infinito, através de um tecido vibrante de luz e ouro.

Desde essa occasião, fez-se-me desesperada necessidade a companhia da boa senhora. Não! eu não amara nunca assim a minha mãe. Ella andava agora em viagem por paizes remotos, como se não vivesse mais para mim. Eu não sentia a falta. Não pensava nella... Escureceu-me as recordações aquelle olhar negro, bello, poderoso, como se perdem as linhas, as fórmas, os perfis, as tintas, de noite, no anniquilamento uniforme da sombra... Bem pouco, um resto desfeito de saudades para aquella inercia intensa, avassallando.

Apavorava-me apenas um susto, alarma eterno dos felizes, azedume insanavel dos melhores dias: não fosse subitamente destruir-se a situação. A convalescença progredia; era um desgosto.

No pequeno aposento da enfermaria, encerrava-se o mundo para mim. O meu passado eram as lembranças do dia anterior, um especial affago de Emma, uma attitude seductora que se me firmava na memoria como um painel presente, as duas covinhas que eu beijava, que ella deixava dos cotovellos no colchão premido, ao partir, depois da ultima visita, á noite, em que ficava como a esperar que eu dormisse, apoiando o rosto nas mãos, os braços na cama, impondo-me a lethargia magnetica do vasto olhar.

O meu futuro era o despertar precoce, a anciada esperança da primeira visita. Saltava da cama, abria imprudentemente a vidraça, a veneziana. Ainda escuro. Uma luz em frente, longinqua, irradiava solitaria, reforçando pelo contraste a obscuridade. Por toda a parte o firmamento limpo. O mais completo silencio. Dir-se-ia ouvir no silencio azul das alturas a crepitação das estrellas ardendo.

Eu tomava ao leito. Esperava. Não dormia mais. Ao fim de muito tempo, entrava na enfermaria, vinha ter aos lençóes, de mansinho, como uma insinuação derramada de leite, a primeira manifestação da alvorada. O arvoredo movia-se fóra com um bulicio progressivo de folhagem que acorda. A luz meiga, receiosa, desenvolvia-se docemente pelo soalho, pelas paredes.

Havia no aposento um grande chromo de paysagem, montanhas de neve no fundo, mais á vista, uma vivenda desmantelada, uma cachoeira de anil e pinheiros espectraes, trabalhados, encanecidos por um seculo de tormentas. A madrugada subia ao quadro, como se amanhecesse tambem na região dos pinheiros. Eu esperando. A madrugada progredia.

Toucava-se a vegetação de côres diurnas. Dialogava o primeiro trilar da passarada. Eu esperando ainda. E ella vinha... com a aurora.

Trouxe-me uma vez uma carta, de Paris, de meu pae.

«... Salvar o momento presente. A regra moral é a mesma da actividade. Nada para amanhã, do que póde ser hoje; salvar o presente. Nada mais preoccupe. O futuro é corruptor, o passado é dissolvente, só a actualidade é forte. Saudade, uma covardia, apprehensão outra covardia. O dia de amanhã transige; o passado entristece e a tristeza afrouxa.

Saudade, apprehensão, esperança, vãos phantasmas, projecções inanes de miragem; vive apenas o instante actual e transitorio. É salval-o! salvar o naufrago do tempo.

Quanto á linha de conducta: para diante. É a honesta logica das acções.

Para diante, na linha do dever, é o mesmo que para cima. Em geral, a despeza de heroismo é nenhuma. Pensa nisto. Para que a mentira prevaleça, é mister um systema completo de mentiras harmonicas. Não mentir é simples.

... Estou numa grande cidade, interessante, movimentada. As casas são mais altas que lá; em compensação, os tectos, mais baixos. Dir-se-ia que o andar de cima esmaga-nos. E como cada um tem sobre a cabeça um vizinho mais pobre, parece que a oppressão, aqui, pesa da miseria sobre os ricos.

A agitação não me faz bem.

Abro a janella para o boulevard: uma effervescencia de animação, de ruido, de povo, a festa illuminada dos negocios, das tentativas, das fortunas... Mas todos vêm, passam diante de mim, affastam-se, desapparecem. Que espectaculo para um doente. Parece que é a vida que foge.

Dou-te a minha benção...»

Momento presente... Eu tinha ainda contra a face a mão que me dera a carta; contra a face, contra os labios, venturosamente, ardentemente, como se fosse aquelle o momento, como se bebesse na linda concha da palma o gozo immortal da viva verdade.

«Ah! Tem ainda um pae» disse Emma, uma querida mãe, irmãos que o amam... Eu nada tenho; todos mortos... apparecem-me ás vezes á noite... sombras. Ninguem por mim. Nesta casa sou de mais... Deixemos essas cousas.

Não sabe o que é um coração isolado como eu... Todos mentem. Os que se aproximam são os mais traidores...»

A convivencia quotidiana na solidão do aposento estabelecera a entranhada familiaridade dos casaes.

Emma affectava não ter mais para mim avarezas de colchete. «Sergio, meu filhinho.» Dava-me os bons dias. Saia, voltava fresca, como grande, vernal sorriso rorejado ainda do orvalho das ablações. Rindo sem causa: da claridade feliz da manhã, de me vêr forte, quasi bom.

Debruçava-se expansiva, resplendendo a formosura sobre mim, na golla do peignoir, como um derramamento de flôres de uma cornucopia.

Tomava-me a fronte nas mãos, collava á d'ella; arredava-se um pouco e olhava-me de perto, bem dentro dos olhos, num encontro inebriante de olhares. Aproximava o rosto e contava, labios sobre labios, mimosas historietas sem texto, em que falava mais a vivacidade sanguinea da bocca, do que a imperceptivel confusão de arrulhos cantando-lhe na garganta como um collar sonoro.

Achava-me pequenino, pequenino. Sentava-se á cadeira. Tomava-me ao collo, acalentava-me, agitava-me contra o seio como um recem-nascido, inundando-me de irradiações quentes de maternidade, de amor. Desprendia os cabellos e com um ligeiro movimento de espaduas fazia cair sobre mim uma tenda escura. De cima, sobre as faces, chegava-me o bafejo tepido da respiração. Eu via, ao fundo da tenda, incerto como em sonhos, a fulguração sideral de dous olhos.

E fôra preciso que soubesse ferir o coração e escrever com a propria vida uma pagina de sangue para fazer a historia dos dias que vieram, os ultimos dias...

E tudo acabou com um fim brusco de máu romance...

Um grito subito fez-me estremecer no leito: Fogo! logo! Abri violentamente a janella. O Atheneu ardia.

As chammas elevavam-se por cima do chalet, na direcção do edificio principal. Immenso globo de fumo convulsionava-se nos ares, tenebroso da parte de cima, que parecia chegar ao céu, illuminado inferiormente por um clarão côr de cobre.

Na casa de Aristarcho reinava o maior silencio.

As portas abertas, todos tinham saído. Precipitei-me para fóra da enfermaria.

Entre os reclusos das férias, contava-se um rapaz, matriculado de pouco, o Americo. Vinha da roça. Mostrou-se contrariado desde o primeiro dia. Aristarcho tentou abrandal-o; impossivel: cada vez mais enfezado. Não falava a ninguem. Era já crescido e parecia de robustez não commum. Olhavam todos para elle como para uma fera respeitavel. De repente desappareceu. Passado algum tempo vieram tres pessoas reconduzindo-o; o pae, o correspondente e um criado. O rapaz, amarello, com manchas vermelhas, movediças, no rosto, mordia os beiços até ferir. O pae pediu contra elle toda a severidade. Aristarcho, que tinha velleidades de amansador, gloriando-se de saber combinar irresistivelmente a energia com o modo amoroso, tranquillisou o fazendeiro: «Tenho visto peiores.»

Carregando a vista com toda a intensidade da força moral, segurou o discipulo rijamente pelo braço e fel-o sentar-se. «Tu ficarás, meu filho! O moço limitou-se a responder, cabisbaixo, possuido de repentina complacencia: «Eu fico.» Dizem que o pae o tratava terrivelmente, vendo-o apresentar-se em casa, evadido.

Com a proximidade da festa dos premios o caso do desertor ficou esquecido, e ninguem foi jamais como elle exemplo de cordura.

Ardia effectivamente o Atheneu. Transpuz a correr a porta de communicação entre a casa de Aristarcho e o collegio.

Não havia ainda começado serviço serio de extincção. A maior parte dos criados eram licenciados por occasião das férias; os poucos restantes andavam como doudos, incertos, gritando: fogo!

Fui achar Aristarcho no terraço lateral, agitado, bradando pelas bombas, que estava perdido, que aquillo era a sua completa desgraça! Ao redor d'elle pessoas do povo, que tinham acudido, trabalhavam para salvar o escriptorio, antes que viessem as chammas.

O incendio principiara no saguão das bacias.

Por maior incremento no desastre, ardia tambem, no pateo, uma porção de madeira que ficara das archibancadas, aquecendo as paredes proximas, reseccando o travejamento, favorecendo a propagação do fogo.

O susto de tal maneira me surprehendera, que eu não tinha exacta consciencia do momento. Esquecia-me a vêr os dragões dourados revoando sobre o Atheneu, as salamandras immensas de fumaça arrancando para a altura, desdobrando contorsões monstruosas, mergulhando na sombra cem metros acima.

O jardim era invadido pela multidão; vociferavam lamentações, clamavam por soccorro. Dominando a confusão das vozes, ouvia-se o apito da policia em alarma, cortante, electrico, e o rebate plangente de um sino, á distancia, como o desanimo de um paralytico que quizera vir.

O fogo crescia impetos de enthusiasmo, como alegrado dos proprios clarões, desfeiteando a noite com a vergasta das labaredas.

Sobre o pateo, sobre o jardim, por toda a circumvizinhança choviam fagulhas, contrastando a mansidão da quéda com os tempestuosos arrojos do incendio. Por toda a parte caíam escorias incineradas, que a atmosphera flagrante repellia para longe como folhas seccas de immensa arvore sacudida.

Quando as bombas appareceram, desde muito tinham começado os desabamentos. De instante a instante um estrondo, prolongado de descarga, ás vezes surdo, agitando o solo como explosões subterraneas. Ás vezes, a um novo alento das chammas, a columna ardente desenvolvia-se muito, e avistavam-se as arvores terrificadas, immoveis, as mais proximas crestadas pelas ondas de ar torrido que o incendio despedia. As alamedas, subitamente esclarecidas, multiplicavam as caras lividas, olhando. Na rua, ouvia-se arquejar presurosamente uma bomba a vapor; as mangueiras, como interminaveis serpentes, insinuavam-se pelo chão, collavam-se ás paredes, desappareciam por uma janella. Nas cimalhas, destacando-se em silhueta, sobre as côres terriveis do incendio, moviam-se os bombeiros.

Perdido completamente o lance principal do edificio; sala de entrada, capella, dormitorios todos da primeira e da segunda classes. Uma turma de salvação procurava isolar o refeitorio e as salas proximas, entregando-se a um serviço completo de vandalismo, abatendo o telhado, cortando o vigamento, destruindo a mobilia.

Para o terraço lateral, onde conservava-se Aristarcho, impassivel sob a chuva chamuscante das fagulhas, chegavam continuamente os destroços miserandos da salvação: armarios despedaçados, apparelhos, quadros de ensino inutilisados, mil fragmentos irreconheciveis de pedagogia sapecada.

A frente do Atheneu apresentava o aspecto mais terrivel. De varios pontos do telhado, semelhando columnas torcidas, espiralavam grossas erupções de fumo; ás janellas superiores o fumo irrompia tambem, por braços immensos, que pareciam suster a mole incalculavel de vapores no alto. Com a falta de vento, as nuvens, accumuladas e comprimidas, pareciam consolidar-se em pavorosos rochedos inquietos. Ás janellas do primeiro andar as chammas appareciam, tisnando os humbraes, ennegrecendo as vergas. Tratadas a fogo, as vidraças estalavam. Distinguia-se na tempestade de rumores o barulho crystallino dos vidros na pedra das saccadas, como brindes perdidos da saturnal da devastação.

Nos logares ainda não alcançados, bombeiros e outros dedicados arremessavam para fóra camas de ferro, trastes diversos, veladores, que vinham espatifar-se no jardim, com um fracasso de esmagamento. As imagens da capella tinham sido salvas no principio do incendio. Estavam enfileiradas ao sereno, á beira de um gramal, voltadas para o edificio, como entretidas a vêr. A Virgem da Conceição chorava. Santo Antonio, com o menino Jesus ao collo, era o mais abstracto, equilibrando a custo um resplendor desproporcional, offerecendo ante os terrores a amostra de impassibilidade do sorriso palerma, que lhe emprestara um santeiro pulha.

O trabalho das bombas, nesse tempo das circumscripções lendarias, era uma vergonha. Os incendios acabavam de cançaço. A simples presença do Coronel, irritava as chammas, como uma impertinencia de petroleo. Notava-se que o incendio cedia mais facilmente sem o empenho dos profissionaes do esguicho.

No sinistro do Atheneu a cousa foi evidente. Depois das bombas, a violencia das chammas chegou ao auge. Do interior do predio, como das entranhas de um animal que morre, exhalava-se um rugido surdo e vasto. Pelas janellas, sem batentes, sem bandeira, sem vidraça, estaladas, carbonisadas, via-se arder o tecto; desmembrava-se o telhado, furando-se boccas hiantes para a noite. Os barrotes, acima de invisiveis brazeiros, como animados pela dôr, recurvavam crispações terriveis, precipitando-se no sumidouro.

No meio da multidão commentava-se, explicava-se, definia-se o incendio.

«Que felicidade ser o desastre em tempo de férias!—Dizem que foi proposital...» Affirmava-se que o fogo começara de uma sala onde estavam em pilha os colchões, retirados para a lavagem da casa. Diziam que começara simultaneamente de varios cantos, por arrombamentos do tubo de gaz perto do soalho. Alguns suspeitavam de Aristarcho e aventuravam considerações a respeito das circunstancias financeiras do estabelecimento e do luxo do director.

A noticia do incendio, apezar da hora, espalhara-se em grande parte da cidade. Nas ruas do arrabalde havia um movimento de festa. Grande numero de alumnos tinham concorrido a testemunhar. Alguns empenhavam-se com bravura no serviço. Outros cercavam o director, em silencio, ou fazendo exclamações sem nexo e manifestando os symptomas da mais perigosa desolação.

Aristarcho, que se desesperava a principio, reflectiu que o desespero não convinha á dignidade. Recebia com toda a calma as pessoas importantes que o procuravam, autoridades, amigos, esforçados em minorar-lhe a magoa com o lenitivo proficuo dos offerecimentos. Affrontava a desgraça soberanamente, contemplando o anniquilamento de sua fortuna com a tranquillidade das grandes victimas.

Acceitava o rigor da sorte.

Et comme il voit en nous des âmes peu communes
Hors de l'ordre commun il nous fait des fortunes.

Depois de algumas horas de somno, voltei ao collegio. O fogo abatera. Parte da casa tinha escapado. Refeitorio, cozinha, copa, uma ou duas salas. Foram respeitados os pavilhões independentes, do pateo. Funccionavam ainda as bombas, refrescando o entulho carbonisado e as paredes. De todos os lados, como de extensa solfatara, nasciam filetes de fumaça, mantendo um nevoeiro terroso e um cheiro forte de madeiras queimadas. As paredes mestras sustentavam-se firmes, varadas de janellas, como arrombamentos iguaes, negrejantes como da acção continua de muitas idades de ruina.

Sobre as paredes internas que restavam, equilibravam-se pontas de vigamento, revestidas de um bolor claro de cinza, tições enormes, apagados. Na atmosphera luminosa da manhã fluctuava o socego funebre que vem no dia seguinte sobre o theatro de um grande desastre.

Informaram-me de cousas extraordinarias. O incendio fôra propositalmente lançado pelo Americo, que para isso rompera o encanamento do gaz no saguão das bacias. Desapparecera depois do attentado.

Desapparecera igualmente durante o incendio a senhora do director.

Dirigi-me para o terraço de marmore do outão. Lá estava Aristarcho, tresnoitado, o infeliz. No jardim continuava a multidão dos basbaques. Algumas familias em toilette matinal passeavam. Em redor do director muitos discipulos tinham ficado desde a vespera, inabalaveis e compadecidos. Lá estava, a uma cadeira em que passara a noite, immovel, absorto, sujo de cinza como um penitente, o pé direito sobre um monte enorme de carvões, o cotovello espetado na perna, a grande mão felpuda envolvendo o queixo, dedos perdidos no bigode branco, sobr'olho carregado.

Falavam do incendiario. Immovel! Contavam que não se achava a senhora. Immovel! A propria senhora com quem elle contava para o jardim de crianças! Dôr veneranda! Indifferença suprema dos soffrimentos excepcionaes! Majestade inerte do cedro fulminado! Elle pertencia ao monopolio da magoa. O Atheneu devastado! O seu trabalho perdido, a conquista inapreciavel dos seus esforços!... Em paz!... Não era um homem aquillo; era um de profundis.

Lá estava; em roda amontoavam-se figuras torradas de geometria, apparelhos de cosmographia partidos, enormes cartas muraes em tiras, queimadas, enxovalhadas, visceras dispersas das licções de anatomia, gravuras quebradas da historia santa em quadros, chronologias da historia patria, illustrações zoologicas, preceitos moraes pelo ladrilho, como ensinamentos perdidos, espheras terrestres contundidas, espheras celestes rachadas; borra, chamusco por cima de tudo: despojos negros da vida, da historia, da crença tradicional, da vegetação de outro tempo, lascas de continentes calcinados, planetas exorbitados de uma astronomia morta, sóes de ouro desthronados e incinerados...

Elle, como um deus caipora, triste, sobre o desastre universal de sua obra.

Aqui suspendo a chronica das saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a occasião passageira dos factos, mas sobretudo—o funeral para sempre das horas.



Rio de Janeiro—Março de 1888.




FIN