Title: Neves de antanho
Author: conde de António Maria José de Melo César e Meneses Sabugosa
Release date: November 13, 2022 [eBook #69343]
Language: Portuguese
Original publication: Portugal: Lisboa Portugalia
Credits: The Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive)
Conde de Sabugosa
NEVES DE ANTANHO
Ignez negra—Amores do senhor D. Jorge—D. Brites de Lára—Um romance na Côrte de D. João III—Desculpa de uns amores—A filha de Pedro Nunes—Soror Violante do Céo—D. Francisco Manoel de Mello—Antonia Rodrigues—Amor aos livros—Ramalho Ortigão—Um beija-mão de Anno Bom no Paço da Ajuda
PORTVGALIA
EDITORA
LISBOA: R. DO CARMO, 75
RIO DE
JANEIRO: R. BUENOS AYRES, 145
O Minuete—Comedia em 1 acto. Não entrou no mercado.
Poemetos—Versos, 1 vol. 1882.
De Braço dado—Collaboração com o Conde de Arnoso. 1 vol. 1894. Exgotada.
O Paço de Cintra—Com illustrações de Sua Magestade a Rainha. 1 vol. 1903.
Na guella do Leão—Conto. 1 vol. Exgotada.
Auto da Festa—de Gil Vicente. Com uma explicação prévia. 1 vol. 1906.
Embrechados—1.ª edição. 1 vol. 1908. Exgotada.
Embrechados—2.ª edição. 1 vol. 1908.
Historiadores Portuguezes—Conferencia realisada na Liga Naval em 1909. 1 vol. Exgotada.
Donas de Tempos Idos—1.ª edição. 1 vol. 1912. Exgotada.
Gente d’Algo—1.ª edição. 1 vol. 1915. Exgotada.
Auto de Natural Invenção—de Ribeiro Chiado. Com uma explicação prévia. 1 vol. 1917.
Donas de Tempos Idos—2.ª edição. Com um prologo e cartas ineditas. 1 vol. 1918.
Neves de Antanho—1 vol. 1919.
NO PRELO
Gente d’Algo—2.ª edição. Com um prologo inédito.
EM PREPARAÇÃO:
A RAINHA D. LEONOR
[Pg 7]
Entrando a entoar, com uma pontinha de melancholia, a celebre balada—Dames du temps jadis, o poeta François Villon, em sua linguagem docemente archaica e ao de leve desbotada, interroga, n’um estribilho famoso:—Où sont les neiges d’antan?
La Royne Blanche comme un lys,
Qui chantait à voix de sireine,
Berthe au grand pied, Biettris, Allix,
Harembouges qui tint le Mayne,
Et Jehanne la bonne Lorraine
Que Angloys brulèrent à Rouen,
Où sont-ils, Vierge, souveraine?...
Mais où sont les neiges d’antan?
Já seculos antes d’este poeta aulico do quinhentismo francez, o Rei Trovador D. Diniz, n’uma das suas cantigas de escarnho, empregára em bom portuguez d’esse tempo o vocabulo antano.
E o nosso Jorge Ferreira de Vasconcellos, com menos graça, mas com vernacula auctoridade, legitima, na sua Aulegraphia dizendo:—hûa hora de um bom acerto como o de Antanho—a expressiva[Pg 8] locução, que tão de geito me serve para designar, no livro que ides ler, as figuras ou as cousas, que se vão diluindo no passado, como neves derretidas pelo tempo.
A belleza fugidia das mulheres que seduziram, que dominaram, ou que a paixão venceu; os ciumes que consumiram corações, hoje mortos, de heroes feitos captivos; as illusões de sabios attrahidos pela eterna esphinge; os tragicos destinos de Reis, de Principes, e grandes do mundo dominados pela fatalidade, ou arrastados pelas vozes de sereias perfidas, tudo aquillo que, em tempos que já lá vão, teve na historia, na chronica, ou na lenda um momento de fulgorosa existencia, e que se vae apagando nos nevoeiros de Antanho, merece uma menção no rol das reminiscencias, onde o cuidado piedoso do artista tenta crystallisar as cousas vagas e tenues, que se vaporisavam na atmosphera...
Por isso fixar, por um instante que seja, nas paginas de um livro, ephemero como este, as feições dos rostos que sorriram, ou das almas que palpitaram, e que a acção dos annos vae corroendo, tem para mim uma especie de voluptuosidade, como a que acaricía o animo das creanças quando modelam estatuas feitas de neve que se derrete, ou edificam castellos construidos com areias que o vento espalha!
Neves e areias!—Embora movediças, inconsistentes, volateis e transitorias como as velhas luas que os mezes devoram, como as nuvens que se espreguiçam, como o fumo que se espalha no ar, e[Pg 9] como as sombras que fogem pelo chão, são comtudo elementos para recompor os capitulos das memorias de Antanho.
Mas por que Antanho?
Se a alguem causar estranhesa este termo, ou o alcunhar de rebuscado, julgando que por affectação dou preferencia a vocabulos desusados, despresando a linguagem correntia e chan, breve corrigirá a accusação fazendo-me justiça.
Nunca manegei um diccionario em cata de palavras antiquadas para surprehender artificiosamente a estupefacção do leitor, nem recorri de fito feito á licção dos classicos, no proposito de apparelhar uma phrase com alfaias de molde a inculcar-me senhor dos arcanos da lingua.
Adoro a simplicidade no dizer e a naturalidade no discurso. Os melhores auctores são sempre, para mim em qualquer lingua, os que escrevem com mais clareza. Foi com esses que se formou a grammatica e se creou o gosto. Castilho,—Garrett, Herculano—mestres de todos nós, depois de rumiarem a herança dos avoengos litterarios atravez da confusa syntaxe medieva, ou da labyrinthica construcção quinhentista, ou dos pretenciosos gongorismos dos humanistas, ou dos prolixos arrazoados do seculo XVIII, deram com a sua prosa castiça, ao nosso lindo idioma, a crystalina[Pg 10] transparencia, que tão bem se harmonisa com a sua aristocratica origem.
Se, porém, no decorrer da oração, pinga, do bico da minha penna um vocabulo de que se perdeu o uso, ou uma locução que, embora tocada da ferrugem do tempo, expressa significativamente a ideia, não me tolhe o receio de que me alcunhem de affectado, ou me accuzem de calamistrar propositamente os periodos. Deixo-o ficar.
Assim eu pudesse, com engenho e arte, trazer á minha prosa os termos, os vocabulos, as locuções, hoje perdidas, que tanta nobreza e lustre davam á linguagem portugueza.
Assim eu soubesse usar com discreto artificio das riquezas, que nos legaram os bons doutores da palavra escripta!
Quem lograsse hoje pôr ao serviço de ideias modernas a ferramenta com que trabalharam os Barros, os Coutos, Manuel Bernardes ou Francisco Manuel de Mello, quem conseguisse dar aos pomposos processos do classicismo novas articulações, e a flexibilidade que torna a phrase ductil e lhe dá graça, teria creado a forma mais elegante do verbo humano.
Já um sabio conspicuo preconisava, como a melhor receita para nos desfazermos do ranço dos extrangeirismos, que tanto tem contribuido para a nossa desnacionalisação, o uso diario de—caldos de Vieira.
Estomagos ha, bem sei, que não acceitam de bom grado tão substancioso alimento e se obstinam nutrindo-se com traducções atabalhoadas de romances francezes.[Pg 11] Se porém cada traductor ou cada operario de lettras, todas as manhãs, antes de entrar na officina, se decidisse a confortar o esophago com uns goles de humanidades, em breve a multidão dos leitores se encontraria mais rica nas boas artes e com um glosario mais abundante.
Vem isto a pello para explicar a preferencia dada ao vocabulo Antanho no titulo com que embucei este livro.
É antiquado? Cahiu n’um meio esquecimento? Não está admittido no emprego diario, nem adoptado na giria das salas?
Mas que me diga quem quer que me leia se, para significar tudo aquillo que é anterior ao momento actual, ao anno em que vivemos (ante annum) não o julga mais proprio, mais perfilhavel e de mais agradavel euphonia que o corriqueiro Passado.
No termo Passado, é certo cabe tudo o que existiu no tempo, e os homens registaram nos seus papyros, canhenhos e tabuas enceradas, ou seja Tacito nas paginas dos Annaes, ou Suetonio nos Doze Cesares, ou Strabão na Geographia, ou os chronistas, narradores, memoristas e bisbilhoteiros de Côrte, desde o indiscreto Saint Simon ao mexiriqueiro Pepy nos Gossips da gente ingleza; e entre os nossos o Bispo do Grão Pará nas suas Memorias, ou a dôce Condessa de Atouguia nas confidencias auto-biographicas.
Mas em Antanho conchava-se melhor aquillo cujo desapparecimento nos deixa a penosa sensação de[Pg 12] que não volta mais, de tudo o que se esvae na poeira da vida, de tudo o que a lenda envolve na nebulosa recordação, de tudo quanto o bafejo das edades embaciou, de tudo quanto a morte fez tombar.
Do Passado tracta a Historia, illuminada pela Philosophia.
Antanho é a evocação animada do que existiu, amorosamente acariciada pela phantasia.
O Passado é a realidade positiva testemunhada por documentos.
Antanho é a reconstrucção conjectural das eras anteriores.
O Passado é a biographia da humanidade.
Antanho é o poema da Vida e da Morte.
Plutarcho escreve acerca dos varões illustres do Passado.
Camões canta as glorias do Portugal de Antanho.
Na toada d’este vocabulo escuta-se como que um echo da voz longinqua das gerações extinctas. E sente-se n’elle não sei que perfume de saudade, tão portuguez, que é lastima pensar que portuguezes o vão esquecendo.
Ha na lingua ingleza duas palavras semelhaveis entre si que designam com propriedade feliz o duplo sentido que pode ter o termo—Historia.
History quando na apreciação dos factos o historiador[Pg 13] os liga e explica com leis, que a sciencia ensina. Story quando o chronista ou o narrador conta casos ou evoca figuras, deixando o leitor avaliar a importancia do que á vista da sua alma apparece.
A primeira é como que orgão pomposo de cathedral tangido pelos pontifices da Sciencia.
A segunda é o maneirinho harmonium chromatico, que papagueia sem emphase tudo quanto o compositor organista fareja nos codices, ou desentranha da tradição, ou desencanta nas lendas avitas, repetidas á lareira.
Não imaginem, porém, que vão encontrar n’este livro Historias da Carochinha ou Contos de Fadas, taes como nol-as narravam as velhas creadas de nossas Avós:
«Era uma vez uma Princeza, que se agradou de um pastor...» Não!
As velhas cuvilheiras morreram ha muito, e não deixaram successores.
As Fadas fugiram espavoridas com a balburdia que por ahi vae.
Os pastores só cuidam em reclamar com arreganho augmento de salario e diminuição de horas no trabalho.
E as Princezas e Infantinhas (onde ainda as ha!) tremem receiosas, escutando o rouquejar dos sociologos e politicos que teimam em nivellar a humanidade... por baixo.
Este livro rasteirito e terra-a-terra não é pois tecido com fios de imaginação, nem na sua trama se[Pg 14] bordam anecdotas improvisadas, ou conjecturas faltas de bôa fiança!
Homens e factos, paysagens e scenas, fallas e gestos, toda a acção que se desenrolla em tragedia, em drama, ou em simples farça, foram colhidos nas obras, que rezam com veracidade acerca das coisas dos bons tempos d’outróra.
Desde a era dos Affonsinhos quando o bravo Ibn Enrik, temido pelos mouros, mas muito donoso e bem camuz de entender damas, se comprazia em donear com galanteios, e desde as auróras de Aviz, quando o Mestre andava na empreza afanosa de consolidar a independencia, até ao surgir e desapparecer das figuras de hontem, ainda fixadas nas nossas retinas, Portugal é tão fertil em assumptos pittorescos que não ha mister recorrer a ficções, ou engendrar romances fabulados para embalarmos a imaginação com idyllios bucolicos, ou retemperarmos as almas com a memoria de acções heroicas praticadas pela gente lusa.
É assim que os medalhões que tenho trazido entre dedos, e cuja serie vou continuando para meu desfastio, reproduzem imagens reaes de creaturas que viveram.
E parecendo escolhidos ao sabor do accaso ou do capricho, são comtudo suspensos pelo mesmo nastro, como contas de uma gargantilha, que um unico fio de retroz atravessa.
Não obedece a factura d’esses paineis, como não obedeceu a dos anteriores, a tyrannia de escholas.
E por isso n’elles não se estabelecem theses, nem[Pg 15] se proclamam theorias, nem se tentam resolver questões sociaes.
São simples productos de uma olaria indigena todos nascidos do mesmo sentir portuguez; d’aqui são terrantezes, e todos modelados com o barro da mesma barreira amassado com agua dos nossos rios, e cosidos com o calor do sol que nos aquece.
Tem talvez por isso um ar de familia que os irmana e em cada qual o leitor encontrará uma feição caracteristica da nossa raça tão rica de qualidades typicas.
Abrindo ao publico esta nova sala da minha galeria não quero comtudo obrigal-o a uma visita enfadonha de museu, com Baedecker em punho, forçando-o á contemplação de quadros consagrados pelas indicações banaes dos Guias dos viajantes.
Convido-o apenas, mais outra vez, a uma digressão livre, na companhia de cicerones caseiros cujas arengas são buscadas nos melhores alfarrabios.
Com o auxilio do bom Fernão Lopes, e das tradições locaes, conseguiremos obter um logar junto á estacada para assistirmos á lucta de duas valentonas da edade-média, perante D. Filippa de Lancastre e a sua côrte.
O palreiro conego Braz da Motta levar-nos-ha a Almeirim, ao Paço dos nossos Reis, onde tomaremos parte nos festejos com que se celebraram as bodas dos Duques de Aveiro.
Com Francisco de Andrade e D. Antonio Caetano de Sousa auscultaremos o coração serodio do Senhor D. Jorge, perdido de amores, aos 70 annos, pela tenrinha D. Maria Manoel.
[Pg 16]
E guiados pelas proprias confidencias escutaremos as pulsações do amoroso Francisco de Moraes, o Palmeirim, rendido aos pés da bella Torcy.
Com o nosso contemporaneo, o erudito Prestage, entraremos de passagem no carcere onde D. Francisco Manoel de Mello encastellava periodos sonoros, e amaldiçoava a sua paixão amorosa.
Depois, acompanhados por Duarte Nunes de Leão seguiremos attentos as peripecias que provocaram a vingança da filha de Pedro Nunes, o cosmographo, e as aventuras da heroica amazona aveirense, Antonia Rodrigues, hoje homem, ámanhã mulher, que deixou brado em Mazagão.
Não hesitaremos tambem em penetrar indiscretamente, levados pelo maldizente Costa e Silva ou pelo sisudo Barbosa Machado, nas cellas do convento da Rosa, ou nas do convento da Esperança onde emmurcheceram Violante do Céo, Magdalena da Gloria, Maria do Céo e outras freirinhas, preciosas flôres do seiscentismo, exhalando sonetos, soliloquios, e villancetes, de amortecido perfume.
Se algum dos meus leitores se enfadar, em meio da jornada, tem um recurso facil.
Fecha o livro e recolhe-se nas proprias cogitações, certamente mais interessantes que os meus arrazoados.
E eu não lhe quererei mal, porque isso não me tolherá que vá continuando a regar com agua de Neves de Antanho as plantas do horto portugalense.
St.º Amaro—Junho 1918.
[Pg 17]
SUMMARIO
Lua do mel—A primeira separação—Incursões na Galliza—Morte de Ruy Mendes de Vasconcellos—Regresso a Coimbra—Doença do Rei—Partida do Duque de Lancastre—Viuvez de Nun’Alvares—Projecto de ataque a Melgaço—A côrte da Rainha é convidada a assistir—As duas contendoras—Lucta de mulheres—Victoria de Ignez Negra.
Eram casados de pouco, quando foram obrigados a separar-se, porque as exigencias da lide guerreira assim o impunham a El-Rei D. João I.
Em plenilunio de mel, a loura Filippa de Lancastre, affectuosa e ternamente enlaçada no noivo, que a politica do pae lhe outorgára, e a quem desde logo a sua alma se rendera, sentiu como que se lhe arrancassem o coração, quando ficou assim, sósinha em terra extranha.
É certo que a rodeavam donas nobres, e cuvilheiras de qualidade, mas todas eram portuguezas. É certo que a acompanhavam Prelados, dignitarios, e doutores, gente de estirpe ou de consideração, mas pouco de molde a saber consolar-lhe o animo saudoso.
Ainda houve, no momento da partida, uma voz que parecia interpretar o seu sentimento. Era Gonçalo Mendes que exclamava:
[Pg 18]
—«Senhor! N’este Reino sohia de haver um costume de antigo tempo que o homem no anno que casava, não havia de ir em guerra, nem ser constrangido para ella. E vós que ha tão pouco que casastes o quereis agora britar e vos ir fóra do reino?»
D. João I, porém, não era homem que a lua de mel edulcorasse mollemente, nem que cedesse a exhortações de brandura emolliente.
Respondeu com sobrecenho: «que assim lhe cumpria por defensão da sua terra, e fazer damno a seus inimigos.»
E arredou-se do Porto, penetrando em Castella, para ajudar o sogro na sonhada conquista do throno d’aquelle reino.
Fruindo fortuna vária, mas sempre com arreganho, essa pequena hoste, ainda rutilante da gloria alcançada em Aljubarrota, Atoleiros e Valverde, atravessou o rio de Maçãs, entrando em terra inimiga.
Iam os dois condestaveis—Nun’Alvares, o de Portugal—e João de Hollanda, (irmão do rei de Inglaterra), condestavel do duque de Lancastre.
Na vanguarda caminhava o Prior do Hospital, D. Alvaro Gonçalves Camello, emquanto que n’uma das alas montava soberbo Martim Vasques da Cunha, que Mem Rodrigues na sua linguagem imaginadora dizia «ser tão bom como D. Galaaz» o cavalleiro da Tavola Redonda. Acompanhava-o a gente do mestrado de Christo, que levava em vez de bandeira, um grande «prumão» ou pennacho de plumas, n’uma lança de armas.
Na outra ala luzia com garbo Ruy Mendes de Vasconcellos, sempre ardido e desenvolto no commetter; Gonçalo Vasques Coutinho, «tão bom como D. Tristão», e outros mais. Era na propria consciencia do bando heroico, uma côrte d’esse novo—Rei Arthur, Flor de Lys—D. João I de Portugal.
Seguindo em imaginação a marcha da hoste na sua tarefa affanosa de ataque, de conquista e de rapina, assistimos maravilhados á rude e energica actividade d’este Rei de 30 annos, ao mesmo tempo severo e lhano, audaz e cauteloso, prompto,[Pg 19] e cruel até, em reprimir, mas generoso no premiar, inexoravel com os delinquentes mas affavel, familiar e bom camarada com os companheiros de armas.
Verdadeiro chefe, sabia mandar.
Perfeito Rei, na missão paternal, era o protector do seu povo.
E elle lá vae montado galhardamente, vestindo com elegancia, o loudel de panno de sirgo branco com a cruz de S. Jorge, incitando uns, gracejando com outros, e discutindo com Nun’Alvares a precedencia na vanguarda, que este não queria ceder ao Duque de Lancastre...
Atacaram Benavente, tomaram Roales e Valdeiras, e cercaram Villa Lobos, havendo aqui e além escaramuças, e correndo-se pontas, sempre com brilho e lustre para a gente portugueza.
Desafiavam ás vezes os inimigos a combates singulares: agora um creado do Condestavel, Alvaro Gomes, que «sem fraldão e bem desenvolto» deu em terra com um castelhano seu contendor; logo Mamborni pelos portuguezes e o francez Ruby pelos castelhanos; aquelle levando o bacinete sem cara, este com dois calmaes e um gorjal, o que não lhe evitou ser posto fóra da sella, tombando limpo no chão. Mais depois é a façanha de Ruy Mendes que, sahindo da sua tenda sem armadura, e apenas com o escudo no braço e lança na mão, dá caça aos castelhanos fazendo-os mergulhar nas aguas turvas da cava. Essa imprudencia valeu-lhe uma reprehensão do Rei, ao qual bem humorado e em tom de graça, o valente responde:
—«A la fé! Eu sou Rodrigo, tão bem las faço, como las digo.»
E logo adeante dá-se a escaramuça, junto a Castro Verde, d’este mesmo Ruy Mendes de Vasconcellos, que foi attingido perto do hombro por um virotão, que o feriu.
A scena é descripta tão pittorescamente pelo velho Fernão Lopes, que, para não lhe tirar o sabor, a copiamos tal como ella apparece na chronica:
[Pg 20]
«E como veiu á tenda e foi desarmado disse a aquelles que eram presentes:
—«Por certo eu sou ferido d’herva.»
E os outros dizendo que não, elle aprofiando que sim, foram-n’o dizer a El-Rei, ao qual pezou muito d’esto, e veiu logo alli por lhe tirar tal imaginação esforçando-o que não era nada, respondeu elle e disse:
—«Senhor, eu ouvi sempre dizer que aquelle que ferem com herva, que lhe formeguejam os beiços, e a mim parece que quantas formigas no mundo ha, que todas as tenho em elles.»
—«Pois assim é, disse El-Rei, bebei logo da ourina, que é mui proveitosa para esto.»
Elle disse que não beberia por cousa que fosse; El-Rei afincando-o todavia, e elle dizendo que não, como mavioso senhor, com desejo de sua saude, por lhe mostrar que não houvesse nojo, gostou da ourina e disse contra elle:
—«E como não bebereis vós do que eu bebo?»
Elle não o quiz fazer por quanto lhe dizer poderam.
El-Rei vinha-o vêr cada dia duas e tres vezes, e ao terceiro dia estando com elle fallando, dizendo-lhe muitas razões de esforço, elle disse contra El-Rei:
—«Senhor, eu vos tenho em grande mercê vossas palavras e visitação, mas entendo que em mim não ha senão morte...»
«El-Rei como ouviu isto, voltou as costas e sahiu da tenda com os olhos nadando em lagrimas... e logo esse dia fez seu acabamento, de cuja morte El-Rei e o Duque e todos os do arraial tomaram grande nojo e tristeza...»
Poderá a nota naturalista da anecdota, no que se refere á pharmacopêa medieval, provocar um sorriso de leve enjôo a alguma leitora menos affeita á pratica das rudes tisanas emborcadas por nossos avós.
Mas ninguem se furtará a uma enternecida admiração, sentindo a grandeza da scena.
Na barraca de campanha armada em terra inimiga jazia o[Pg 21] bravo batalhador moribundo, padecendo horrores, com os tormentos causados pela lança que os toxicos violentos do strophantus ou da digitallis, haviam envenenado, e conhecendo estoicamente os symptomas precursores da morte.
Junto ao catre improvisado, e de entre os companheiros de armas, destacava-se D. João I, camarada nas pelejas e nos triumphos, com as lagrimas bailando-lhe nos olhos, inquieto, ancioso, commovido a ponto de não hesitar na prova do repugnante medicamento, que preconizava como infallivel.
Elle ás vezes tão duro, que fazia lembrar seu justiceiro pae, n’aquelle lance deixava humanamente revelarem-se requintes de sensibilidade.
Era esse punhado de heroes, cujos animos abrigavam não só as qualidades brutaes e violentas, que levam á victoria, mas as delicadas dedicações e devotadas amizades promptas para o sacrificio, que fazia exclamar o Duque de Lancastre quando presenceava as suas façanhas:
—«Oh! que bom Portugal!
—«Oh! que bons Portuguezes!»
Quando, terminada aquella campanha, no fim do mez de Julho, El-Rei vinha com a sua hoste de Guimarães pelo Porto em direitura a Coimbra, onde então estava a Rainha, ao chegar ao Curval, pequeno povoado a meio caminho das duas cidades, sentiu-se acommettido de doença.
Dôr de quentura, diagnosticaram os physicos, consultados sobre o caso.
«Que a doença parecia grave—acrescentavam;—que já tinham cahido enfermos muitos dos homens de armas, com a mesma molestia, causada talvez pelos excessivos calores da estação; e que era conveniente avisar a Rainha.»
Partiu logo, a galope, uma estafeta sem parar até Coimbra, onde, de visita a sua filha, se achava tambem o Duque[Pg 22] de Lancastre. O mensageiro subiu á Alcaçova, penetrou nas abobadas que levavam á sala dos archeiros, e, offegante, descarregou-se do penoso recado.
Logo foi grande, e tão ruidoso, o borborinho nos Paços de Coimbra, que chegou aos aposentos de D. Filippa, surprehendendo-a dolorosamente.
Longe de ser, como a alguns se tem affigurado, uma mulher fria, fleugmatica, pedaço de gelo importado de Inglaterra, que o sol da nossa terra não logrou derreter: longe de ser apenas uma creatura de dever, forja geradora de altos Infantes, e rigida disciplinadora de côrte, a loura ingleza, que tão grande missão veiu cumprir no mundo, era amoravel, e ternamente devotada ao marido, que ella sentia «tão concordavel ao seu desejo.»
Demonstram-n’o, além das palavras dos chronistas (talvez sujeitas a reservas) o que é mais e o que é melhor, alguns factos que revelam a sua indole carinhosa e meiga, a sua alma toda entregue ao homem a quem, além de tudo, a ligava um sentimento de gratidão, pela preferencia que lhe dera sobre sua irmã D. Catharina, mais nova, talvez mais formosa, e com direitos, por sua mãe, a um throno—o throno de Castella.
Bem sabia ella que o Rei não a escolhera por amor, pois D. João I, entendendo que pretender esse throno para si, seria um perigo para Portugal, optara pela solução mais convinhavel á sua politica.
Entretanto era certo ter sido ella a eleita. E as mulheres nunca são indifferentes a uma preferencia. Além d’isso, o coração não carece de razões para se decidir.
Gosta-se, porque se gosta!
E porque a loura Rainha recem-casada adorava o marido, apenas o soube doente determinou partir.
Não attendeu a pedidos, exhortações, e supplicas para que desistisse de commetter tamanha imprudencia.
O verão corria abrazador e doentio (diziam-lhe) os caminhos eram asperos, e as mulas facilmente tropeçariam nos corregos pedregosos dos montes até ao Curval. Uma queda desastrosa[Pg 23] podia ameaçar, e até destruir a esperança de um herdeiro, que se ia annunciando propiciamente. A nada cedeu.
Conselhos do pae que com a sua voz arrastada, mas persuasiva insistia, sensatamente, rogos das damas, representações dos physicos e dos homens sisudos, tudo foi inutil para a demover.
Organisou-se prestes a caravana.
Donas, aias e camareiras, besteiros portuguezes e alguns archeiros inglezes, prepararam-se sem demora para a abalada.
Com infinitas cautelas accommodaram as andas que haviam de transportar a Rainha, e não tardou que a cavalgada se puzesse em marcha, caminhando todos em silencio, e ruminando cada qual pensamentos inquietadores.
A Rainha, por um phenomeno frequente nas almas alvoroçadas com a approximação da desgraça, recordava os tempos da sua ephemera felicidade. Rememorava as bodas ainda recentes, com os festejos, justas, danças e trebelhos. Revia o cortejo sahindo do Paço Episcopal do Porto, através das ruas atapetadas de «verduras e cheiros». Olhava, com os olhos d’alma, a figura do seu noivo, que se lhe affigurava um archanjo, montado n’um cavallo branco em pannos de ouro, junto ao d’ella, que era levado de redea pelo Arcebispo. Escutava o echo das trombetas, das pipias e das musicas, que se casavam com as acclamações da multidão em delirio.
Relembrava a sala do banquete com as mesas mui guarnidas em volta das quaes se sentavam os bispos, os fidalgos, os burguezes do logar, donas e donzellas do Paço e da cidade. E repassava, commovida na memoria a scena dos prelados á luz das tochas, benzendo o leito nupcial.
Depois, era a primeira separação tão custosa ao seu affecto, mas em que o via partir são, forte, todo entregue á ancia de batalhar...
E agora?...
Agora era uma onda de amargura levantada no coração pelas más novas; era o receio do que iria encontrar; era a ameaça do destino que lhe afogava a garganta; era o prognostico[Pg 24] de um sortilegio sinistro que lhe opprimia as entranhas, em que se estava gerando o futuro Rei de Portugal.
O Duque de Lancastre, aparentando mocidade, apezar dos seus sessenta e tantos annos, ia tambem apprehensivo, embora desfarçasse a perturbação que lhe trazia ao animo tantas interrogações inquietadoras.
Até que ponto a morte provavel do genro alteraria a situação, e perjudicaria o exito das suas ambições?
Aos espiritos de todos os outros que acompanhavam a Rainha affluiam semelhantemente incertezas afflictivas.
Em alguns, (almas generosas, incondicionalmente devotadas ao Rei,) dominava a angustia e o receio de o perderem, sem a mistura de outro sentimento.
Outros pesavam dentro em si, n’aquella balança de egoismo, inseparavel da natureza humana, os prós e os contras que um desenlace funesto traria ás conveniencias proprias. E o interesse, a principal força determinante das acções dos homens, segredava-lhes perfidamente soluções diversas para o seu proceder ulterior.
Se a creança nascesse viavel, quem seria o Regente na menoridade?
Se, porém, a Rainha não désse á luz um herdeiro a quem iria de vez o governo do Reino?
Do lado de Castella redobrariam as pretenções!...
O rancho conturbado caminhava silenciosamente, sob a oppressão de agourentos presagios.
Chegaram ao Paço do Curval. Alli, o estado do Rei não era de molde a tranquillizar, ou desfazer cuidados.
Quando a Rainha e o Duque seu pae viram o enfermo, vencido pela febre «tão fraco e sem esforço que adur lhe podem fallar, ficaram nojosos e tristes».
Os cirurgiões interrogados temiam que a prostração em que a quentura deixára o Rei o levasse em pouco. Ouvindo isto, a desditosa Rainha, atormentada, e exhausta com a violencia da jornada e das commoções, sentiu que alguma coisa se despedaçava dentro em si... e moveu uma creança.
[Pg 25]
Com este parto prematuro e desastrado, iam-se todas as alegres esperanças, desmoronava-se o edificio da sua felicidade sonhada, e... (cousa rara na vida) da sua felicidade realizada.
Via-se sósinha, casada de pouco em terra extranha, fallecer-lhe logo assim tudo o que a fortuna lhe trouxera «e bem se tinha por mal aventurada entre as mulheres do mundo». Chorava, pedindo á morte que a levasse primeiro.
Na Camara proxima, onde os lamentos da Rainha, por serem energicamente suffocados, não chegavam, o Rei, conscio do seu estado, tomava providencias.
Mandava chamar o Condestavel, agora ausente no Alemtejo. Fazia testamento. E dispunha-se a morrer perdoando a alguns fidalgos que mandára, tempos antes, encarcerar.
Era solemne o momento. A Rainha, receiosa de que a morte lhe roubasse o marido, como lhe roubára o filho, levantou-se e, embora gravemente combalida, arrastou-se até ao quarto onde o Rei agonizava.
Não sabia reter as lagrimas. A voz embargava-se-lhe na garganta. Olhava-o, sem articular uma palavra, tomada d’aquella ancia com que nas occasiões decisivas tentamos arpoar um vislumbre de esperança.
Comtudo os olhos do Rei, semi-cerrados, e a sua respiração offegante não permittiam illusão!...
Então aquella mulher, a quem o destino parecia ter talhado uma tão radiante missão, sentiu-se miseravelmente infeliz, e cahiu junto á cama do moribundo n’uma convulsão de choro, implorando a protecção de Deus e da Virgem Maria.
Assim se conservou largo tempo...
Pelas janellas entreabertas ouvia-se de quando em vez o carpir do povo, sempre exhuberante nas manifestações do seu sentir. Os lamentos da multidão, impressionada com os presumiveis sinistros casavam-se com as preces roufenhas dos sacerdotes, e com os soluços da Rainha.
Sentia-se o destino da Nação suspenso por um fio...
A autonomia de Portugal dependia de um alento d’aquelle[Pg 26] homem, estendido n’um catre estreito, junto do qual o vulto de D. Filippa continuava rezando...
Passaram horas...
Como se a mysteriosa acção das préces, e o esforço superhumano d’aquelle coração de mulher posto n’um só affecto, operassem mais efficazmente que as drogas ministradas pelos physicos, o arquejar do robusto arcabouço foi-se tranquillisando, os olhos começaram a descerrar-se, e o enfermo entrou a renascer para a vida...
Estava salvo D. João I!
Foi do Curval convalescer a Coimbra, onde a Rainha tambem se libertou do pezadelo que lhe opprimira o animo. Recomeçou para os dois o idyllio interrompido.
De breve dura, porém, havia de ser o repouso, que nem D. João I era homem que se deixasse ficar em lazer descuidado, quando tantos negocios lhe sollicitavam a attenção.
Cumpria despachar o sogro que começava a ser um estorvo sério, e cuja empreza ia perdendo probabilidades de exito. Cumpria reunir Côrtes para a resolução de alguns negocios de Estado. Cumpria caminhar sobre Melgaço, unica praça que no Minho ainda conservava voz por Castella.
Foi resolvido partir logo, de Coimbra para o Porto, onde El-Rei e a Rainha, que o acompanhava, despediram o Duque de Lancastre e a sua reduzida hoste, que, em seis galés, n’uma clara manhã de fins de Setembro largou de foz em fóra, para Bayonna, então ingleza.
Desembaraçado assim do hospede, e aviados outros assumptos, que se antolhavam urgentes, dirigiu-se D. João I para Braga a reunir as Côrtes.
Foi durante ellas que D. Nuno Alvares Pereira, o Condestavel, teve noticia da morte de sua mulher. Correu ao Porto onde ella fallecera, fez-lhe exequias solemnes, mandou a filhinha[Pg 27] para Lisboa á guarda da Avó—Iria Gonçalves—e, arrumadas assim as cousas domesticas, voltou para Braga onde o reclamava o interesse do Estado, verdadeiro fulcro do seu espirito.
Negocio de Estado era tambem por certo e de alta importancia para D. João I, essa viuvez de Nun’Alvares.
Grande conchavador de casamentos, até mesmo sem audiencia prévia dos interessados, El-Rei resolveu logo, de accôrdo com a Rainha, casar o seu Condestavel com D. Beatriz de Castro, filha do Conde D. Alvaro Pires, «uma donzella assaz formosa e bem filha d’algo». Proxima parenta da linda Ignez, collo de garça possuia porventura o mesmo poder de encanto que seduzira o Rei D. Pedro. Este viuvo, porém, era pouco susceptivel de se deixar captivar com graças femininas.
Avesso por indole ao tracto conjugal, não lhe soffria tambem o animo independente aquella imposição de um consorcio, assim improvisado.
Resistiu bisonhamente,—ao Rei com uma simples negativa; á Rainha, pela qual professava um respeitoso affecto, respondeu esquivamente:—«Para offerecer a D. Brites os braços, era preciso que estivessem desarmados e não convém ainda lançar a espada.»
Excusa de guerreiro! Sentir de monge!
Desobrigado assim, e livre da teia em que podia ser enleiado, levantou vôo para entre Tejo e Guadiana, onde a fronteira estava ameaçada.
D. João I conhecia o seu irmão d’armas. Era inutil insistir, podendo até qualquer teima provocar alguma d’aquellas desavenças, que entre os dois ás vezes surgiam.
D. Beatriz, se acaso edificára n’aquelle terreno o castello da sua felicidade, viu-o desfeito em nevoa, antes mesmo de o habitar. E continuou, (até que ao deante levou outro destino) a ser ornamento na Côrte de D. Filippa, acompanhando-a como as outras na jornada que logo El-Rei emprehendeu sobre Melgaço, e onde por certo foi das que mais applaudiram a aventura da aguerrida Ignez Negra, que logo vamos presencear.
[Pg 28]
Compunha-se a casa da soberana de nobres senhoras que El-Rei puzera ao seu serviço. A ella pertenciam: como aia e camareira-mór D. Beatriz Gonçalves de Moura viuva de Vasco Fernandez Coutinho, senhor de Liumil, e como damas a filha d’esta, Tareja Vasques Coutinho, viuva do filho do Conde D. Gonçalo, e, portanto, cunhada de Leonor Telles; a irmã d’aquella, Leonor Vasques, que depois casou com D. Fernando, que chamaram de Bragança, filho do Infante D. João; D. Biringueira Nunes Pereira, prima do Condestavel e filha de Ruy Pereira, que morrera na peleja das náos ante Lisboa; e ainda outras que formavam um luzido batalhão volante, n’esse cortejo que ia assistir ao mais typico episodio d’aquella épocha.
D. João I preparava-o adrede para mostrar á Rainha como se assediava uma praça, e para exhibir perante a sua côrte, a valentia dos homens d’armas, que vinham consolidando a independencia do Reino.
Era uma genuina galanteria de guerreiro medieval, esse desejo de fazer assistir a fina flôr da Côrte feminina ao rude embate dos seus besteiros contra a fortaleza rebelde. E era ao mesmo tempo um poderoso incitamento para a hoste, esse torneio revelador da arte, da dextreza, e do valor com que se pelejava.
Era tambem uma vistosa parada de forças combatentes perante os olhares mulheris, o mais aguilhoante estimulo da cavallaria gloriosa.
Era, finalmente, uma ala de namorados de nova especie, batalhando em frente de suas damas.
Era, em resumo, uma phantasia de heroe!
Marchou a numerosa comitiva de Braga para Monsão, onde D. Filippa foi acampar, indo logo a seguir ao mosteiro de Santa Maria de Fiães, perto de Melgaço. Acompanhavam-n’a João das Regras—o Doutor, João Affonso de Santarem, e ainda outros lettrados e jurisperitos, mais exercitados no manejo das Pandectas e das Institutas, que no brandir das espadas e dos arremeções.
[Pg 29]
Corria o mez de Janeiro de 1388. As chuvas tinham ensopado os campos. A payzagem minhota, tão festiva de cambiantes durante o verão, com os seus soutos de castanheiros florentes; com as suas videiras de enforcado enroscando-se nos troncos e ensombrando os pateos das habitações; com os fétos de franjas recortadas, adornando as sebes; com as heras e musgos revestindo os penedos graniticos; com o velludo esmeraldino das nogueiras, e as folhas bicolores das filias opulentas; com a pradaria clara rindo alegremente na voluptuosidade das regas abundantes; toda essa symphonia de verde, executada a grande orchestra, sob a regencia de um sol brilhante, que vivifica o torrão; que se reflete nas lantejoulas de feldspatho e de mica, que atapetam os caminhos como pó de diamantes, e que dá a essa região o geito de um sorriso da natureza; essa payzagem apresentava n’aquella quadra do anno a physionomia rabujenta de uma creança amuada.
O inverno ia rigoroso. As chuvas tinham engrossado as levadas e avolumado os regatos, difficultando a marcha da hoste guerreira, e os movimentos da comitiva real. Por isso o sequito proseguia lentamente, mas sem desfallecimento.
O tropear dos cavallos e dos machos sobre o lagedo da estreita estrada romana, que segue de Monsão a Remoães, e d’ali á aldeiazinha do Prado, galgando os rios com a ponte do Mouro e a ponte da Folia (duas reliquias de eras já idas), que as urzes e as heras enfeitavam com garridice; o vozear dos homens de armas; as exclamações e gritos femininos; e as pragas rouquenhas dos moços bagageiros e conductores de equipagens, alvoraçavam a gente do campo.
Aqui e além deparavam-se n’uma volta do caminho povoações ou casas isoladas.
E do fundo escuro dos estreitos postigos, perfurados nos rusticos tugurios de pedra cinzenta, debruçavam-se bustos de mulheres com olhar curioso. De sobre os muros, cabeças hirsutas[Pg 30] de camponezes olhavam embasbacados os comboieiros de munições, e pasmavam para as hacaneas em que cavalgavam as donas, as aias, as creadas e as crystaleiras. Dos cancellos surdiam garotos a misturarem-se na comitiva, mendigando sobejos dos farneis; emquanto bandos de gallinhas e de patos fugiam espavoridos da perseguição da soldadesca, que dissimuladamente tentava deitar-lhes a mão, na expectativa de uma ceia restauradora.
E a extensa comitiva colleando pelos caminhos do valle deixava á esquerda os montes levemente ondulados de Galliza a padrasto do rio Minho, e começando a subir a encosta, que vae ao Prado, avistava já a senhoril Melgaço com a sua torre tão nobre a destacar-se sobre o verde escuro dos pinheiros de Bouças.
A Rainha com a sua côrte, contornando Melgaço, foi aposentar-se no opulento mosteiro de Fiães, onde os oitenta monges benedictinos, com o Dom Abbade á frente, a vieram receber fidalgamente na avenida que conduzia á portaria do convento.
El-Rei D. João I, ficou com as suas mil e quinhentas lanças, afóra a gente de pé, no campo a nordeste de Melgaço, onde logo ordenou que se assentasse o arraial.
Armaram-se as tendas em que pousaram, além do soberano, o Prior do Hospital, D. Alvaro Gonçalves Camello; D. Pedro de Castro, que havia pouco abraçára a causa de Portugal; João Fernandes Pacheco, (filho de Diogo Lopes, assassino de Dona Ignez), de quem Mem Rodrigues dizia ter as qualidades de Lancelote do Lago, e muitos outros capitães e senhores.
Tudo se preparou para a arremetida.
Melgaço, dentro das fortes muralhas em que D. Diniz envolvera a quadrada torre affonsina guarnecida de dentes que mordem o céo, era defendida por Alvaro Paes de Souto Maior, e Diogo Preto Eximeno, que tinham trezentos homens de armas e muitos peões.
Além da gente de guerra era a pequena villa povoada por moradores pacificos, cujas familias habitavam as casinholas[Pg 31] de granito, com pequenas escadas exteriores, de poucos degraus, e um varandim, que formavam junto à parte interna das muralhas estreitos arruamentos.[1]
Entre as familias que n’esse fim do seculo XIV se acoitavam n’aquelles habitaculos, havia a de uma portugueza a quem, por se ter bandeado com os castelhanos, tinham dado a alcunha da Arrenegada.
Era esforçada. Era o que o povo chama uma refilona e, como todos os renegados, odiava figadalmente os seus antigos compatriotas.
Fervia-lhe o sangue em cachão com o presencear, do alto das muralhas, os preparativos do campo portuguez. Ardia em furia e ancia de arremetter ella propria. E não foi extranha aos primeiros lançamentos de trons contra os nossos.
Assistiu tambem inquieta e fervilhante ás primeiras escaramuças, rejubilando logo que viu que, com uma setta, fôra ferido Pero Lourenço de Tavora, um portuguez do arraial. Era uma verdadeira virago, mais aguerrida que muitos dos seus camaradas castelhanos.
Durante nove dias houve tiroteio sendo lançadas contra o arraial sessenta pedras de trons, ao que do lado portuguez foi correspondido, não havendo grande damno de parte a parte.
[Pg 32]
Resolveu-se então El-Rei a mandar armar em cima da ponte da villa, um engenho, com que os sitiantes arremessavam muitos projecteis que destruiram algumas casas e caramanchões de Melgaço.
Ao mesmo tempo mandou que nas immediações se cortasse madeira, e se acarretassem materiaes para se construirem duas escadas e uma bastida, formidavel machina de guerra sobre rodas, de temeroso effeito contra as praças fortes.
Descreve Fernão Lopes minuciosamente essa bastida, muito larga de roda a roda, e de padral a padral; com os seus tres sobrados madeirados de pontões, para serem guarnecidos de homens de armas; com estrados de mui grossos caniços para se andar por cima; com escadas de alçapão e nos pontões superiores, tres mil pedras de mão, que mandaram apanhar pelas regateiras. Havia tambem trebolhas cheias de vinagre para evitar o fogo, e seis grandes caniços forrados de carqueja, assim como vinte e quatro couros verdes de boi para guardar o fogo que viesse.
Era um rudimento do moderno Tank; era o precursor d’essa machina de guerra, que nos campos da Belgica está actualmente exercendo a sua terrivel acção devastadora.
Ésta de D. João I, que levou quinze dias a construir, era mais modesta e de mais acanhados recursos. Mas o seu effeito, ainda antes de manobrar, foi efficaz, pois os de dentro, que assistiam aterrados á fabricação do apparatoso engenho, apressaram-se a pedir treguas, propondo que João Fernandes Pacheco conferenciasse com Alvaro Paes. Por mandado de El-Rei chegou-se o Pacheco á barbacã, e de dentro, encostado ao muro, fallou-lhe o commissario castellão. Longo espaço de tempo durou esta conversação entre os dous guerreiros arvorados em plenipotenciarios. E emquanto elles fallavam, assediados e assediadores suspenderam as investidas, acudindo ao animo de uns, (os mais pacificos) esperanças de uma concordancia; refervendo no de outros (os mais belicosos) desejos impacientes de recomeçar a pugna. D’estes o mais irreprimivel era o da Arrenegada que ardia em sanha. Sabendo que os dous chefes não se[Pg 33] tinham accordado resolveu então provocar um combate singular, pois sabia que entre a gente do arraial se achava um contendor digno d’ella.
Era uma mulher d’aquella região, a quem chamavam Ignez Negra.
Negra por appellido de familia? Talvez!
David Negro se chamava o rabbi de Castella que urdiu o enredo contra D. Leonor Telles. E Affonso Pires—o Negro—era o escudeiro de Nun’Alvares na vespera de Valverde.
Familias com o nome de Negrão e Negreiros tem havido em Portugal, pertencendo á primeira, no seculo XVIII, o poeta da Arcadia—Almeno Sincero.
Ou, seria antes a nossa Ignez, negra, porque a sua pelle exageradamente trigueira, como a da Sulamite do Cantico dos canticos, (nigra sum sed formosa) contrastasse com a das suas conterraneas, quasi todas alvas, de olhos claros e cabellos aloirados, revelando a origem celta das nobres raças?
A iconographia portugueza é assás pobre. E, se nos faltam retratos de tanta figura predominante, não é maravilha que a galeria das mulheres illustres careça de qualquer documentação ácerca das feições da modesta, mas valente portugueza dos arredores de Melgaço.
Figuramol-a, porém, por artificio de imaginação, com encrespado cabello da côr do seu appellido; olhos igneos como o seu nome de Ignez; a pelle acastanhada, adusta e curtida pelo mordente sol dos campos, na ceifa. Magra, musculosa e com farto buço a atapetar-lhe o labio superior. Peito chato como o das amazonas. Typo levemente aciganado e plebeu, mas não destituido de encanto. E no seu todo o interesse que provoca sempre uma personalidade fortemente accentuada.
Visitando a casa onde segundo a tradição ella habitou depois da sua proeza,—a Venda da Angelina—(hoje um predio modernizado), ou percorrendo as ruazinhas estreitas que descem até á porta de D. Affonso, encontrámos algumas moradoras ao soalheiro, que, por comparação retrospectiva, nos ajudaram[Pg 34] a recompôr uma effigie da Ignez Negra, porventura sua remota parenta. Devia ser assim como a evocámos!
Quando lhe chegou aos ouvidos o desafio da Arrenegada acceitou prazenteiramente o repto.
Entretanto El-Rei enviára á Rainha recado para que viesse. Os engenhos estavam concluidos, e quasi aplanado o caminho pelo qual se devia fazer rodar a bastida e encostal-a ás muralhas.
É possivel que o mensageiro annunciasse tambem no Mosteiro de Fiães, onde D. Filippa se achava, o desafio entre as duas mulheres de Melgaço.
E isso seria certamente escutado com curiosa attenção pelo mundo feminino que rodeava a Rainha. Ávidas deviam estar por certo as suas damas e cuvilheiras, de distracções e recreios, tão escassos n’aquella solidão.
E logo entre o mulherio quantos commentarios sobre o projectado duello! Nas velhas, altos escarcéos, e motivo para ralharem de tão descomposta escaramuça. Nas novas, grande jubilação com a espectativa de commoções.
Por isso quando n’aquella manhã do principio de Março a Rainha, com a sua Côrte, se apromptou para descer de Fiães a Melgaço, eram agitadas as discussões acerca do projectado combate.
A primavera annunciava-se promettedora. O ar gelado da manhã befejava a pelle do rosto das senhoras, que, ao montarem se embuçavam friorentas nos seus manteus e biocos.
Na descida, quasi a pique, da ingreme ladeira, que durante uma hora percorreram, caminhando pelos carreiros do monte escalvado, algumas das bôas donas iam só attentas ao perigo, que offerecia o marchar hesitante dos cavallos sobre os pedregulhos das veredas agrestes.
E quando as facas em que iam montadas punham o pé[Pg 35] com menos segurança, o que trazia a imminencia de um tropeção, ouviam-se exclamações afflictas das mais timoratas, provocando risadas escarninhas entre as resolutas. Outras olhavam maravilhadas a paysagem deslumbrante, o panorama das extensas ondulações que formam o berço delicioso em que se espreguiça voluptuosamente o rio Minho.
Além á esquerda os montes de Pernidêllo, em cuja verdura se aninhava o conventinho de Paderne. Mais ao largo Monsão, a patria de Deu-la-Deu. E, como a manhã era clara, lá muito ao longe, quasi se distinguia a nobre Valença. Para a direita inferiormente, e já em terra extranha, as pequenas povoações gallegas tão maneirinhas... que appetecia dal-as como brinquedo a uma creança!
A maior parte, porém, da comitiva só tinha olhos para a villa de Melgaço, alli em baixo com a sua airosa torre quadrada, que uma corôa de ameias enfeitava, e para a povoação em redor d’ella, mettida nas faixas das muralhas defensoras, promettendo um espectaculo attrahente, quando se rendesse á força, como femea dominada pelo seu legitimo senhor.
Por de fóra d’essa muralha estendia-se em arruamentos de tendas de campanha o arraial portuguez, sobresahindo a barraca elegante tomada em Aljubarrota aos Castelhanos, que já servira em Ponte de Mouro para firmar a alliança ingleza. E, informe, como um animal antediluviano, destacava-se a medonha bastida, prompta a atacar.
A comitiva da Rainha continuava a sua marcha descente. O caminho agora começava a estreitar-se entre muros e sebes avivadas de silvados e plantas agrestes, e tão apertado que mal cabiam a dous de fundo todos os do acampamento, sendo difficil a passagem quando de frente encontravam um boisinho barrosão de hastes enormes, ou as récuas de mulas que levavam provisões ao convento. Esse corredor serpenteante (quasi escadaria) de mais de meia legua, desembocava abruptamente em pleno acampamento. N’este, o Rei que logo veiu receber a Rainha, começou explicando o modo de arremetter, e como se realizaria a escaramuça entre as duas mulheres.
[Pg 36]
Na Côrte dos Valois, perto de trez seculos depois, em plena Renascença, os combates singulares, antigo julgamento de Deus, tornaram-se solemnidades quasi festivas, que chegariam ao apogeu de brilho no celebre torneio em que Jarnac, o favorito da Duqueza d’Etampes, jarretou o pomposo Châtaigneraie, defensor de Diana de Poitiérs, na liça rutilante de St. Germain, sob os olhares do Rei, da nobreza, e de todas as summidades da França.
Aqui, porém, n’esse final do seculo XIV, e n’este canto da Peninsula, as escaramuças, perante uma côrte mais guerreira, que polida, mais austera que licenciosa, se não tinham o esplendor das ceremonias theatraes que deslumbram, não eram menos impressivas, ou menos importantes os seus resultados.
Pelo contrario. Na Côrte de Henrique II digladeavam-se dois adversarios para liquidarem uma intriga de alcôva.
No arraial de D. João I batiam-se duas mulheres, disputando a honra de dous exercitos, empenhados em fixar a fronteira do Reino.
N’essa manhã do começo de Março em que a Arrenegada sahiu pelo postigo da fortaleza, para vir defrontar-se com a sua competidora Ignez Negra, todos de um lado e outro se dispuzeram a presencear o espectaculo d’esta pugna de nova especie, a que deram fóros de combate, e que a chronica regista com a designação honrosa de escaramuça entre duas mulheres bravas. Bravas no sentido de valorosas, e bravas na acepção de ferinas.
Os de dentro subiam aos parapeitos das cortinas e bastiões, debruçando-se curiosos. Os do arraial formavam circulo em volta das luctadoras, saudando com vozearia carinhosa Ignez Negra a portugueza, e enchendo de vaias e apupos a desnaturada castelã.
As almas tambem têm sexo, como os corpos. Assim se aclaram, quando a natureza as troca, tantos casos inexplicaveis, tantas anomalias flagrantes—homens mulherengos, mulheres viragos.
Nos corpos d’estas duas moravam almas de luctadores valentes,[Pg 37] herdadas talvez de seus avoengos; dos que em eras remotas haviam ajudado a expulsar da Peninsula as raças invasoras.
Foi logo impetuoso o primeiro embate das justadoras. Com furia, com sanha, com rancor atiraram-se uma á outra sem mais armas do que as unhas, com que reciprocamente rasgavam as carnes, e os dentes com que se esfacellavam. Atropellando-se, arrancando os cabellos, afogando-se nos fortes braços nervosos, derrubando-se alternadamente na lucta; ensaguentadas, esfarrapadas, e rugindo como feras prolongaram durante minutos a encarniçada peleja.
Davam mais a impressão de dois monstruosos animaes ennovellados em trapos, cabellos e sangue, que de duas mulheres humanamente construidas.
O drama começava a abalar o animo ainda dos menos susceptiveis de soffrer commoções, quando a Arrenegada, ou porque tivesse menos elasticidade nos musculos que Ignez Negra, ou porque o espirito dos que renegam crenças e opiniões é sempre menos resistente, entrou a fraquejar, cahindo logo desfallecida.
Então Ignez, que a supplantára, foi gloriosamente levada em triumpho e saudada com acclamações, ao som de trombetas e charamellas festivas.
Alguns escriptores, seduzidos pela idéa de attribuir a este episodio o resultado da empreza, outros, copiando aquelles, (o que é pecha vulgar em quem não se dá grande trabalho nas investigações) affirmam ter sido decisiva para a entrega do castello a pugna entre as duas mulheres.
Phantazias!
A verdade é que, se este duello animou e excitou a coragem dos Portuguezes, foi só d’ahi a horas, na manhã de segunda-feira, trez de Março, que a praça se rendeu pela acção dos nossos guerreiros e poder dos engenhos.
[Pg 38]
Conta-o Fernão Lopes fazendo-nos assistir ao movimento da bastida sobre as suas rodas, avançando dezoito braças; depois á escalada dos que «se chegavam tanto á Villa que punham um pé no muro outro na escala», atirando-se, primeiro que todos, o Prior do Hospital.
A peleja foi feroz. Dez homens no mais alto estrado levavam pedras de mão que arremessavam aos de dentro, (como agora se arremessam granadas) emquanto outros se atiravam ao muro com grossos páos.
De cima choviam pedras e fachos incendiados de mistura com imprecações e insultos («desmesuradas palavras») que assanhavam o animo de D. João I.
Por isso, o Rei assomado e iracundo, quando os de dentro, reconhecendo a propria inferioridade, pediam novamente treguas, recusou qualquer avença e resolveu continuar o assedio á viva força.
Então João Rodrigues de Sá, o das Galés—voz sensata—alvitrou que era de bôa politica acceitar a capitulação. D. João I, brutalmente, retorquiu:
«Quem medo houver não vá na escala.»
Subiu uma onda de sangue ás faces do guerreiro, que tinha ainda frescas as quinze cicatrizes de feridas, que recebera quando foi do ataque das Galés na Ribeira de Lisboa. E resentido respondeu:
—«Eu, Senhor, não sei se dizeis vós isso por mim, mas cuido que nunca me vós a mim por tal conhecestes.»
E o Rei, cahindo em si, pois que n’elle estes assomos de colera eram logo dominados pela força calmante da razão, emendou:
—«Nem eu não o digo por vós. Mas digo-o, porque os hei já por tomados.»
Dividiam-se ainda as opiniões. Uns queriam continuar o assalto, na esperança de farta preza. Outros seguiam o alvitre razoavel do ponderado Sá, com o qual o Rei concordou afinal, enviando o Prior do Hospital a acceitar a preitezia e estipular as condições.
[Pg 39]
Foram todas acceites. Não só entregariam a villa e castello a El-Rei, mas obrigavam-se a sahir da fortaleza em gibões sem outra cousa...
Assim foi. No dia seguinte, o rapazio foi apanhar feixes de varas verdes, e cada um dos que pela porta do castello ia sahindo era, por escarneo, obrigado a empunhar um d’esses ramos.
Alguns mordiam-se de raiva pela humilhação imposta.
Houve até um escudeiro fidalgo que, fincando os joelhos em terra, pediu a El-Rei que lhe entregasse as suas armas e lhe poupasse a deshonra, ao que D. João I galhardamente accedeu.
Outros, comtudo, com riso forçado, e levemente alvar, como gracejando, tomavam o expediente «por sabor» de dizer aos garotos que lhes davam as hastes verdes:—«Ai, rogo-te ora que me dês uma bem direita e bôa».
Não ficou nenhum! Quando na quinta-feira seguinte, depois de cincoenta e trez dias de assalto, o castello e villa de Melgaço foram entregues a João Rodrigues de Sá, para governar; e quando El-Rei e a Rainha retiravam festivamente com a sua comitiva em direitura a Monsão, do alto da muralha, que olha para noroeste, um vulto de mulher (segundo reza a tradição local), empunhando a bandeira gloriosa das quinas, agitava com ufania esse pendão redemptor.
Era Ignez Negra a batalhadora, imagem symbolica das energias femininas, proclamando assim a victoria que consolidava de vez a fronteira no extremo norte de Portugal.
Se Aljubarrota tem a illustral-a pittorescamente Brites de Almeida, a denodada padeira, e a sua lendaria proeza, não é menos digno de registo, no livro de ouro da epopéa joannina das luctas pela independencia, o feito mais authentico e mais significativo de Ignez Negra a heroina de Melgaço.
[Pg 40]
[1] Ainda hoje, emquanto isto escrevemos, (Agosto 1917), a villa conserva algumas d’essas viellas de pittoresco aspecto, e é, em parte, cintada com as veneraveis muralhas que tanto a enobrecem.
Consta-me, porém, que o municipio, com a deploravel mania de «modernizar», vicio incorrigivel das nossas edilidades, umas boçaes, outras mal orientadas, está attentando criminosamente contra a magestade da sua terra, dilacerando-lhe os vetustos flancos para «fazer dinheiro» e colher materiaes destinados a um edificio publico! Um tribunal, segundo me informam, que será provavelmente semelhante ao matadouro com que já se orgulha! Uma lastima! Se alguma entidade ha, que possa impedir o sacrilegio, accuda breve a afastar esta vergonha de Portugal.
[Pg 41]
SUMMARIO
Os dois filhos de D. João II—Idyllio do Principe D. Affonso—O bastardo D. Jorge—A posse dos mestrados—Projectos de seu Pae—Morte de D. João II—Viagem de El-Rei D. Manoel a Castella—A Perigosa—Enxame de poetas, e adoradores. Casamento do Senhor Dom Jorge—O drama de D. Guiomar, filha do Conde de Marialva—Viuvez de D. Jorge—Paixão senil—D. Maria Manoel.
Encontrámos já por vezes, no decurso d’estas palestras, ou seja nas Donas de tempos idos ou na Gente d’Algo, a figura curiosa, embora apagada, do Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra, Mestre de Santiago e de Aviz, nascido do idyllio de D. João II com D. Anna de Mendoça, nos bosques de Sernache do Bomjardim.
Mas, se o leitor sentir o inexplicavel antojo de acompanhar-nos em mais esta jornada, recordaremos juntos algumas occorrencias, e a aventura amorosa d’esse personagem, que esteve para ser Rei de Portugal, pelo desapparecimento do filho legitimo, o Principe D. Affonso, quando este, no areal de Almeirim, depois de arrastado pelo cavallo, se deixou morrer entre a noivazinha que a politica lhe dera, e a Rainha D. Leonor, sua mãe, que com esse filho via sumir-se a maior affeição que lhe tomava a alma.
D. Affonso e D. Jorge—os dois filhos do Principe Perfeito—tiveram destinos oppostos na esphera sentimental.
[Pg 42]
Ao passo que o herdeiro, condemnado por mofina parca a uma morte prematura, esboça precocemente com uma D. Branca o ephemero romance de amor, que teve a passageira duração de um sorriso e de uma lagrima, o Senhor D. Jorge só foi arpoado pela grande paixão da sua vida quando ia no declinar.
Segundo suppõe, e com bons fundamentos, o Sr. Anselmo Braancamp Freire, no seu livro «Critica e Historia», aquella Dona Branca, por quem se sentiu preso o primogenito de D. João II, era filha de Vasco Fernandes Coutinho, e portanto sobrinha do Conde de Marialva.
Captivou ella o coração do moço Principe, a ponto de ficar esse pequeno episodio amoroso celebrado nos versos do Prior de Santa Cruz, de D. João, camareiro-mór, de Pedr’Ome, de Nuno Pereira, e d’outros poetas aulicos, que em trovas dolentes o consagraram.
O «Cancioneiro Geral», de Garcia de Resende, deixa adivinhar a tristura dos dous namorados nas cantigas que têm como rubrica: «... pelo principe D. Affonso, quando casou D. Branca, com quem elle andava d’amores».
Começam assim:
«Lloran mys ojos
y my coraçon
Y con mucha razon.»
«Lloran my pena,
my mal non fengydo,
my dicha no buena,
tan lexos d’olvido
Morio my sentido
de biva passyon
con mucha razon.»
Depois Nuno Pereira accode, dizendo sobre o mesmo assumpto:
[Pg 43]
«Lloran dos vidas
con grande agonya,
la vuestra y la mya,
por seren partidas.»
Sente-se que houve uma mão de ferro a desunir os dous amantes, pois lá o diz Dom Martinho da Silveira nas trovas que fez «quando casou dona Branca Coutinho»:
«e pois vemos não poderdes
resistir ás opressões
com que casastes,
dó na côrte pelo serdes
tomaram mil corações,
que vós quebrastes.»
Entre esses mil corações enternecidos contava-se o do Principe D. Affonso que, segundo o pintam as chronicas era «muito cheio de branduras e prezava-se muito da sua gentileza.»
A rapariga, como era natural, tambem prezava a gentileza d’esse ephebo real que:
«Por sua gran formusura
foi no mundo nomeado
angelica creatura.»
e que «se vestia sempre de tabardos com martas ao pescoço forradas de setim e guarnecidas de ouro.»
Ora os requebros do Principe D. Affonso e de D. Branca desagradavam de certo ao aspero D. João II, a quem não convinha nem uma ligação clandestina, da qual podia provir um rebento indesejavel, nem um casamento que lhe desmancharia o taboleiro politico. Agastava-se com a indole branda e macia do filho, «mais inclinado ás cousas d’El-Rei D. Affonso V, seu avô, que ás suas.»
[Pg 44]
Censurava-o muitas vezes por tentar transgredir a ordenança que prohibia sedas e brocados, chaparias e canotilhos, e increpava-o por não trazer capas abertas nem espada. Vendo-o preferir a companhia de homens delicados á dos rudes homens d’armas, reprehendia-o e amoestava-o com mau modo. Mas... não podia tirar-lhe o seu natural.
A antithese entre os dous caracteres era tão profunda como fôra entre a de seu pae cavalheiroso, idealista, sonhador, e a sua de homem de Estado, intransigente, frio e positivo.
Agora á antinomia dos animos juntava-se a dos corações! O Principe D. Affonso era um amoroso, D. João II um politico.
Aquelle deixára-se enfeitiçar pela rapariguinha namoradeira que era o «Ai Jesus» da roda cortezã. Este sentia o perigo das frioleiras sentimentaes. E, com a implacavel decisão com que sempre resolvia os negocios de Estado, determinára desunir os dous pombos arrulhadores.
Assim, a encantadora sobrinha do Conde de Marialva, a seductora Branca dos Porquês de Setubal, a Coutinha dos Serões do Paço, onde as palavras coutinhas eram equivalentes de galanteio, foi levada a casar com Jorge de Mello por alcunha o Lageo, capitão, e anadel-mór de besteiros.
O Principe, esse, pouco depois, e ainda todo enleiado nas recordações do seu entretenimento amoroso, estava destinado a cumprir o estipulado por seu pae com os Reis Catholicos, Fernando e Izabel, consorciando-se com a Infanta sua prima filha d’estes.
Tinham os dous passado parte da infancia juntos, em Moura, quando foi das terçarias, á guarda da Infanta D. Beatriz.
Conheciam-se. Estimavam-se. Attrahia-os mesmo uma reciproca sympathia. E como ao tempo que a Infanta veiu de Castella, já D. Branca tinha sido afastada da Côrte, havia mezes, com o seu Lageo, a primeira entrevista começava a ser appetecida pelo Principe.
Ao encontro da noiva vieram a Extremoz o Pae e o Filho, incognitos, trazidos pela curiosidade.
[Pg 45]
O Rei desejando saber se a promettida Nóra que vinha de Castella teria as qualidades que as suas ambições requeriam. O Principe avaliar as mudanças que o tempo, esse grande esculptor, operára na esthetica e na plastica d’aquella creaturinha que, havia dous annos, elle deixára franzina, pallida, esmaiada, nas fraguras da insalubre villa alemtejana.
Apparecia-lhe ella agora n’um scenario de sonho, entre as suas nove Damas, cardeaes, nobreza de Castella, numerosos cavalleiros, ao som de musicas festivas, entre bandeiras das suas cores e armas, que no alto das torres e muros tremulavam, e acompanhada por folias de homens e moças que, nas ruas armadas de tapeçarias, bailavam sobre os ramos de espadanas. E vinha tão linda, que o proprio Duque de Beja (o futuro Rei D. Manoel) que a fôra esperar, sentira subitamente a faísca, que havia de incendiar-lhe no animo a paixão pela noiva de seu Primo.
Este chegára a Extremoz com o seu Pae., ambos «vestidos de caminho». Dirigiram-se logo para a casa junto do Castello onde habitava a Princeza, que n’esse momento jantava com a sua comitiva, e que tão alvoroçada ficou que, interrompendo o banquete, veiu ao topo da escada esperal-os, e alli ajoelhou commovida.
O Rei fez-lhe um discurso. O Principe, porém, ficou calado, suspenso, encantado com a transformação. E é de crêr que n’essa hora se desvanecesse por completo na sua memoria a imagem de D. Branca, que a esse tempo déra já descendencia ao marido, Capitão-mór de Mazagão.
Dos sentimentos do Principe dá conta, e em termos expressivos, o chronista Garcia de Resende no seguinte trecho que tem o sabor especial da sua prosa:
«E á sexta-feira e ao sabbado esteve a Princeza no dito mosteiro (Nossa Senhora do Espinheiro), onde d’El-Rei e do Principe por suas pessoas foi sempre visitada. E segundo fama antes d’ella entrar na cidade, alli nas casas do mosteiro, onde pousava, teve o Principe ajuntamento com ella, o que de muitos foi estranhado por ser em casa de Nossa Senhora, e de[Pg 46] tanta devoção. E affirmou-se por mui certo que n’aquella noite cahiu da parede da igreja uma ameia junto da camara d’onde jouveram, a qual ameia até hoje não foi concertada, e está assim por memoria que os frades d’isso fizeram.»
Os bons dos monges resmungaram, ao que se vê, pela supposta irreverencia, mas os dois Principes amorosos já haviam a esse tempo, um pouco prematuramente, mas com legitimo direito, saccado uma somma de caricias, que ambicionavam, por essa innocente lettra de cambio, talvez presentindo que o futuro lhe reservava pouca duração na felicidade.
Effectivamente logo oito mezes depois das pomposas festas d’Evora rebentava a tragedia de Almeirim.
Na cabana do pescador do Alfange, junto ao Tejo, o Principe ia agonizando. O silencio pavido da Rainha e da Princeza recem-casada, contrastava com o alarido dos prantos e com as desvairadas manifestações da assistencia afflicta «dando todos em si muitas bofetadas, depenando muitas e honradas barbas e cabellos e as mulheres desfazendo com suas unhas e mãos a formosura dos seus rostos que lhes corriam em sangue.»
Acompanhando a Rainha e a Princeza, primeiro a pé desatinadamente, e depois em mulas emprestadas, viera tambem, e agora assistia recolhidamente ao passamento do irmão, o Senhor D. Jorge, mocito de pouco mais de nove annos que, havia pouco andava na Côrte.
Perante a certeza da morte do herdeiro do throno, logo alli se levantaram em muitas imaginações, entre lamentos e queixumes extravagantes, as duvidas sobre a futura successão.
A Rainha em 1483 estivera á morte com um movito que a inhabilitara a dar ao Rei outro herdeiro.
Restavam dois: D. Manoel Duque de Beja, irmão da Rainha, que a essa hora fôra já chamado de Thomar; e o Senhor[Pg 47] Dom Jorge a quem D. João II, seu pae, queria tanto ou mais que ao moribundo.
É que o bastardo, aquelle pequenote que agora estava alli junto ao catre, mal ageitado n’uma aljubeta, saccudido por soluços, fôra o filho dos seus amores. Sentia correr n’elle o proprio sangue. Achava-lhe (talvez com illusões de pae), qualidades que lhe lisongeiavam o orgulho, emquanto que ao Duque seu primo e cunhado, todo affecto aos Braganças, se não o odiava nem perseguia, repugnava-lhe comtudo pensar que por elle essa familia, inimiga e rebelde, havia de apossar-se do seu espolio politico, usufruir as vantagens da faina rude em que se empenhara para engrandecer o poder real.
O Sr. D. Jorge, que nascera em 1481, ia breve entrar na puberdade.
Fôra educado em Aveiro por sua tia a Princeza D. Joanna, filha de D. Affonso V, até que, por morte d’ella viera para a Côrte, trazido por seu pae, a quem a Rainha D. Leonor nobremente, e com uma dignidade que o orgulho nativo fazia realçar, prometteu ao marido que d’elle cuidaria ella propria como se fosse seu.
Cumpriu-o... até á morte do herdeiro.
Durante os treze mezes que esteve no Paço, D. Jorge foi tratado como um segundo filho.
Depois... Depois seguiu-se o drama violento que as chronicas deixam claramente entrever, e a que D. Antonio Caetano de Sousa chama na Historia Genealogica—domesticos dissabores—e que nós a mais de quatrocentos annos de distancia concebemos, recompomos, e scenographamos conforme a nossa imaginativa e os elementos que conhecemos.
Esses elementos, nascidos da humana condição de cada um dos personagens, e gerados na profundeza dos seus animos, são, conforme as indoles e caracteres dos figurantes: em D. Leonor um mixto de ciumes retrospectivos, agora assanhados com a ferida aberta no seu coração de mãe, a repugnancia em ver o lugar do seu proprio filho occupado pelo bastardo, o amor proprio de Rainha, que não podia resignar-se a ver que[Pg 48] D. Anna de Mendoça, havia tempo commendadeira era Santos-o-Novo, viesse a ser mãe do Rei; em D. João II era a voz do sangue clamando em favor do proprio filho, era a razão de Estado que se afigurava lucrar mais collocando D. Jorge no throno, era a sua phobia brigantina, era a sua alma tempestuosa exarcebada pela desgraça; em D. Manoel, simples Duque de Beja, era a natural ambição, era a visão das grandezas, a corôa de Rei, o interesse da familia e, já no fundo, bem no fundo do coração, a miragem da posse da Princeza, agora viuva, que desde a primeira vista o seduzira, e que d’ahi a poucos annos veiu a ser a primeira das suas trez mulheres.
Não nos occuparemos agora das peripecias d’esse drama, nem da lucta de sentimentos entre essas trez principaes figuras.
Olhemos para a causa das divergencias—o Senhor D. Jorge,—assim chamado por não ter ainda o titulo de Duque, que depois recebeu, e não poder usar o de Principe.
O mesmo tratamento se dava ao irmão do justiçado Duque de Bragança, que foi chamado o Senhor D. Alvaro.
O filho illegitimo foi logo, desde que o Principe morreu, afastado do Paço por El-Rei, no intuito de «tirar paixão á Rainha sua mulher com a vista da Senhor D. Jorge». Entregou-o aos cuidados do Conde de Abrantes, em casa de quem esteve alguns mezes, emquanto tentava desfazer as repugnancias de sua mulher á legitimação do bastardo, e emquanto ia pedindo ao Papa Innocencio VIII Bullas que o investissem no Mestrado da Ordem de Santiago e no governo e administração da Ordem de Aviz.
Chegaram essas Bullas.
Então, no proposito de engrandecer o filho, e talvez com o designio de ir preparando o que hoje chamariamos a opinião publica, acostumando-a á ideia da sua supremacia, determinou dar toda a solemnidade á cerimonia da posse dos mestrados.
Convocou numerosa e selecta assistencia á egreja do convento de S. Domingos e alli, a 12 de Abril de 1492, com a sua[Pg 49] presença, o que mais avolumava a pompa e magestade do acto, foi celebrada missa solemne, em seguida á qual, todos os commendadores e cavalleiros das duas Ordens deram obediencia ao novo mestre.
Novo e moço. Tinha apenas onze annos, quando n’aquelle vasto templo dominicano passaram em sua frente, prestando-lhe homenagem, guerreiros de Toro, e nobres cavalleiros, cortezãos e fidalgos, ostentando nos magnificos mantos brancos a verde cruz floreteada de Aviz, e a vermelha de Santiago.
Pequenino pela edade e por ser miudo de estatura, o Mestre D. Jorge, com uma tunica de brocado sob o manto, acceitava como devidos á sua hierarchia os preitos dos cavalleiros das Ordens, ao passo que El Rei D. João II, remirando-se no filho, ruminava no modo de o legitimar para o deixar como successor. Bastardo? Que importava?
Bastardo fôra tambem o mestre de Aviz, D. João I, seu bisavô. E João das Regras com a sabedoria que trouxera de Bolonha, demonstrara a validade dos seus direitos.
Onde se encontraria um João das Regras para D. Jorge? Á falta d’elle nomeou-lhe para aio D. Diogo Fernandes de Almeida, que logo depois foi Prior do Crato, sendo já cavalleiro da Ordem de S. João de Rhodes. Heróe d’Africa, os seus feitos gloriosos tornavam-n’o indicado para formar um homem.
O pequeno, porém, era de natureza brando, frimatico (como então se dizia).
D. Diogo não soube ou não poude fazer fermentar na sua alma quieta a levadura da ambição. Adolescente, deixou-se levar emballado na corrente da vida, fluctuando como uma flôr rara sobre as ondas movediças, que agitavam a Côrte.
Assistiu, primeiramente, impassivel (talvez até ignorando-o) ao drama que se desenrolava e de que elle era o fulcro innocente.
Acceitou depois, com boa feição e de animo complacente, a chuva de graças que sobre elle foi cahindo durante a longa mocidade.
O Pae, disistindo de proposito de fazer d’elle Rei de Portugal,[Pg 50] recommenda no testamento a D. Manoel, a quem deixa o Reino, que «se não tiver filhos o nomeie seu successor e sempre se queira haver com elle.»
Por esse testamento assignado na Villa das Alcaçovas a 29 de Setembro de 1495, faz doação ao filho, da cidade de Coimbra em Ducado, e de tudo mais que tivera o Infante D. Pedro.
Recommenda-lhe tambem que supplique para elle ao Papa o mestrado de Christo, pelo que D. Jorge ficava mestre das trez Ordens, o que significava uma situação florescente em honras, em influencia e em riquezas.
Não contente com isto, insta no mesmo testamento, com D. Manoel, para que conceda ao novo Duque de Coimbra a mão da primeira filha que vier a ter.
Era ainda uma ancora feita de esperança, lançada no futuro a favor do filho.
Feito o testamento, D. João II, muito doente, hydropico, malenconizado, e sentindo retalhadas as entranhas pela peçonha que bebêra, havia annos, n’um pucaro junto á Fonte Coberta, partiu das Alcaçovas para Monchique, no Algarve, onde esperava encontrar allivios.
O filho acompanhou-o. Mas nem a presença d’elle o distrahia, nem as danças e luctas dos vaqueiros da Serra o alegravam, nem a corrida aos porcos lhe desenferrujava as articulações.
Tomou dois banhos com pouca cautella, bebeu agua das Caldas mais do que devêra e, peorando, resolveu regressar, indo dormir a Alvor.
D. Jorge apresentou-se em Villa Nova de Portimão, d’onde foi ver o Pae duas vezes.
Ruy de Pina dá a entender que essas visitas rapidas deram azo a conjecturas ácerca da successão.
A verdade, porém, é que já a esse tempo o Rei temia «rebates de carne», que, dias depois, quando se sentia morrer, mais ainda quiz evitar, afastando de si o filho, cuja presença lhe trazia ao espirito lembranças das faltas commettidas no passado.
[Pg 51]
A sua morte, nas casas de Alvaro de Ataide, em Alvor, remata com singella belleza o drama impressivo que foi a vida desse homem tamanho.
Emquanto transportavam o corpo de D. João II para a Sé de Silves, o filho, que completára em Agosto quatorze annos, ficou em Portimão.
Alli, recebeu todos os Senhores e Fidalgos, que então estavam no Algarve, e d’alli voltava, quando encontrou Henrique Correia (meio irmão de sua Mãe), que lhe trazia uma carta de pezames de D. Manoel, então já Rei, que se achava em Monte-mór-o-Novo.
O aio Diogo Fernandes d’Almeida levou-o logo a saudar o Soberano.
Já então D. Manoel estava seguro no throno e descançado ácerca d’aquellas «duvidosas alterações» que, nos ultimos dias de vida do primo e cunhado, lhe assaltavam o animo.
Recebeu, por isso, com boa avença o rapazelho, que agora definitivamente deixava de ser um temivel obstaculo ás suas ambições, e escutou com favoravel disposição o discurso em que o velho aio o recommendava á sua generosidade.
Não era necessaria tanta eloquencia. O Rei D. Manoel logo satisfez o pedido, outorgando fartos beneficios ao pequeno primo.
O Bispo D. Jeronymo Osorio no seu livro «De rebus Emmanuelis», transpõe em linguagem de Tacito a falla do ancião. Alli se vê que a grandiloquencia de D. Diogo arrancou lagrimas ao benigno Soberano (adeo fuit Emmanuellis maeror excitatus). A ventura (e elle foi o Rei venturoso) dispõe o animo para a magnanimidade.
Passaram annos.
A vida corria serena para o moço Duque. De indole bonachã, torna-se bem acceito do Rei e da Rainha, que já fôra[Pg 52] sua cunhada durante aquelles mezes em que estivera casada com seu meio irmão, o Principe D. Affonso.
Encontravam-se agora como primos, e ella renovava ao Duque de Coimbra, já quasi um homem, a amizade um tudo nada protectora, que havia annos concedera ao pequeno Senhor D. Jorge.
Em 1498, quando foi da viagem solemne dos Reis de Portugal a Castella, para serem jurados herdeiros d’aquella Corôa, foi resolvido que o Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra, os acompanhasse n’esse passeio triumphal.
Com D. Manoel—o Sátrapa do occidente—que já sonhava collocar na cabeça a corôa imperial da Peninsula—Portugal, Castella, Aragão, Leão—e tambem a da Sicilia, iam os nomes mais illustres: Dom Diniz irmão do Duque de Bragança, o Senhor D. Alvaro, D. Francisco de Almeida, Tristão da Cunha, João Fogaça e muitos outros.
Ao chegarem a meia legua de Toledo, El-Rei D. Manoel destacou D. Jorge, Duque de Coimbra, com alguns do sequito, para irem áquella cidade saudar os Reis Catholicos, seus sogros.
Caminhava a vistosa cavalgada, levando á frente D. Jorge, de figura menineira, mas de porte airoso e nobre, e seguia pela estrada arida e amarellenta, que leva á antiga capital wisigothica, quando, quasi ás portas da cidade, o veiu receber, com todas as honras, Fernando, o Catholico.
Promptamente se apearam o Duque de Coimbra e os seus para lhe beijarem a mão. Mas era tal a multidão curiosa, e tão miudinha a estatura do Duque, apezar dos seus dezesete annos, que se sumiria no aperto se não o erguessem, tomando-o nos braços, D. João de Menezes, mordomo-mór, e o esforçado D. Fernando Martins Mascarenhas, capitão de ginetes. O Rei D. Fernando, ao ver assim levantada aos hombros de dois cortezãos, a figurinha delicada de um rapaz imberbe, perguntou surpreso, quem era, que assim lhe apresentavam.
Apenas ouviu nomear o filho de D. João II, descobriu-se reverente, com uma grande cortezia e mandou-o montar a cavallo,[Pg 53] levando-o á sua direita, e dispensando-lhe d’ahi em diante as maiores deferencias.
Sobre a cabeça do feliz Duque iam sempre cahindo honrarias e benesses.
Pouco tempo depois de voltarem ao Reino, fez-lhe El-Rei doação das Villas de Montemor-o-Velho, de Penella, de Torres Novas com seus termos e o Reguengo de Campores, com muitas terras e Padroados.
E como a esse tempo ainda não tinha filha casadoira com que o juntasse, cumprindo o que em testamento lhe recommendára D. João II, procurou nos circulos de escol quem pela categoria, situação e belleza pudesse vir a dar uma duquezinha de Coimbra capaz de figurar no esplendor da Côrte manoelina.
Andava então na roda do Paço, e fazia as delicias dos Serões, uma senhora, parenta proxima de El-Rei, cortejada por todos os poetas e versejadores, e de formusura tão rara que em trovas e motes a cantavam, dando-lhe o sobrenome significativo de a Perigosa.
E perigosa era decerto D. Brites ou Beatriz de Vilhena, pois que, se facilmente se apaixonavam por ella todos os homens, difficilmente podia pertencer a algum, visto que era filha do Sr. D. Alvaro, irmão do Duque de Bragança, e portanto muito chegada ao throno.
Este Sr. D. Alvaro era alguem. Sem appellido, pois o não tinham os filhos dos Duques de Bragança, batalhara valentemente em Toro, achara-se no cerco de Samora, e fôra perseguido, como todos os Braganças, por D. João II que, primeiramente, o empurrou para fóra do Reino e depois lhe confiscou a casa e bens.
Recolhido com carinho por Fernando e Izabel de Castella, para alli mandou ir a mulher e os filhos. D. João II, porém,[Pg 54] fizera constar ao Conde de Olivença, sogro do Sr. D. Alvaro, que desejava ficasse no Reino uma filha do desterrado a quem daria toda a casa e fazenda do pae.
Entregue á rainha D. Leonor, ficou vivendo no Paço, D. Beatriz, que tomou o appellido de Vilhena.
Tornando-se assim senhora de uma grande fortuna, e brilhando na Côrte com uma rara formosura, era deveras perigosa a altiva Beatriz, em torno da qual enxameavam, chamuscando as azas, numerosos poetas e adoradores.
Foi D. Diogo, filho do Marquez de Villa Real, quem lhe deu a alcunha com o celebre rifão:
«Nam s’espera outro rremedio
de quem vyr a periguosa
se nam vida douidosa.»
Accorreram á chamada numerosos versejadores e poetas palacianos que, em cantigas de louvor com mais ou menos metro, lhe exaltavam a belleza, lhe censuravam a altivez, ou se queixavam do seu rigor.
D. Nuno da Cunha referindo-se aos signaes que lhe apimentavam o rosto diz com intenção:
As duuidas, que nos days
cada ora em nossas vidas
eu as tinha bem sabidas,
senhora, em vossos ssynaes
Em vossos sinaes mortaes,
em que nam vi douidosa
minha vida periguosa.
Ao passo que D. Nuno, como vemos, era inspirado pelos provocantes lunares do rosto da Perigosa, João Fogaça, Védor da Casa d’El-Rei, exclamava com mais enthusiasmo que estro e que grammatica:
[Pg 55]
«Quem loouar e quem disser
muy grande verdade dys,
y nam se enguana,
que nam a hy ygoal molher
a senhora dona Briatys
de Vylhana
Polo qual nam ha rremedio
a cousa tam periguosa
nem ha molher tam fermosa.»
D. Affonso de Ataide, Senhor d’Atouguia, esse então, indo-se-lhe os sentidos só de encaral-a, dizia:
«Mas olhos y coraçam,
nesta vida duvidosa,
escolhem a mays periguosa!»
Tambem não faltou Garcia de Resende que lhe diz:
Quem na vyr, nam pode ver
se nam de ssy maao pesar,
poys tem çerto o padeçer,
y a pagua do perder
soo com ve-la se paguar.
Mas goay de quem ss’afastar
de ver cousa tam fremosa,
que seja tam periguosa!
D. Joanna de Mendoça, que supponho ser a futura Duqueza de Bragança, celebre pela formosura, entrou tambem com a sua cantiga:
«Por acudir ao rrifam
nam sey cousa que nam faça,
até confessar na praça
[Pg 56]tudo o que nele vos dam.
E pareçe-me rrezam,
que poys soys tam periguosa,
nam sejays despiadosa.»
Fizeram tambem versos á perturbadora creatura Jorge Barreto, o Conde de Alcoutim, o Conde de Portalegre, o Barão d’Avito, D. Luiz de Menezes, etc.
Mas o que parece mais exaltadamente apaixonado é D. Diogo, filho do Marquez de Villa Real. Este tem no Cancioneiro uma longa poesia em oitavas na qual «se aqueixa comsigo mesmo» e que termina assim:
«meu tormento tam estranho,
que nam ha hy mal tamanho
que não s’acabe ou m’acabe.»
Logo a seguir n’umas trovas «A huma guedelha de cabellos que viu ha Senhora D. Beatriz de Vilhena» exclama:
«Cabelos de fremosura,
que me tanto namoraram,
ditosa minha ventura,
que sereys a sepultura
dos olhos que vos olharam.»
Foi esta rapariga, que á força de encantos se tornava perigosa, quem El-Rei D. Manoel e sua irmã a Rainha D. Leonor destinaram ao Duque de Coimbra.
Irão os leitores talvez conjecturar que, assim casada, ella veiu a dar n’uma das muitas malmaridadas de que rezam as chronicas coscuvilheiras. E imaginarão talvez que teve uma vida matrimonial tormentosa o consorte d’esta Duqueza tão rodeada de galanteios e paixões.
Mas, porque a natural altivez a defendesse, ou porque não fosse facilmente accessivel o seu coração, ou porque sinceramente gostou do marido que, embora de pequena estatura, era[Pg 57] bem talhado, a verdade é que o Duque, que não lhe fizera versos, apesar de ter sido discipulo de Cataldo Siculo, e que não a assediára com declamações sentimentaes teve a sorte inesperada de ser querido pela appetecida de tantos, pela admirada de todos.
E a vida continuou a correr desannuviada para o Mestre de Santiago.
Administrava com cuidado a sua grande casa, e governava com tino as ordens militares o que não era uma sinecura, pois reunia com frequencia Capitulos, fazia ordenar Estados e definitorias (que ficaram conhecidos com o titulo de Estatutos do Mestre D. Jorge) e correspondia-se com a Curia para obter privilegios e regalias em favor dos Freires.
Ora em Lisboa, ora em Setubal, ora em Palmella, os Duques de Coimbra ostentavam grande estado, e gozavam de poderosa influencia.
Em 1508, quando El-Rei D. Manoel determinou ir soccorrer Arzilla, achava-se o Duque em Setubal. Apenas soube da intenção do soberano, aprestou numerosos navios, e, levando gente sua, correu a Tavira a juntar-se ás tropas reaes.
Não se realizou a expedição. Mas d’este caso resultou uma vistosa parada das forças de que dispunha o Duque.
Não foi maninha a formosa D. Beatriz. Deu ao marido oito filhos dos quaes o primogenito foi D. João de Lancastre, 1.º Duque de Aveiro e Marquez de Torres Novas de romantica memoria, que mais adiante encontraremos.
Foi tambem seu filho D. Affonso de Lancastre que veiu a ser pae do 3.º Duque de Aveiro.
E outros teve, entre os quaes D. Jayme Bispo de Ceuta que vieram a representar um papel curioso na opposição aos amores de seu pae.
Emquanto viveu El-Rei D. Manoel foi o Duque de Coimbra amimado constantemente com provas de affavel generosidade, e carinho.
Se adoecia, logo o Rei o visitava pessoalmente, o que era testemunho de grande consideração. E tão alta era reputada[Pg 58] essa honra que a primeira vez que o Duque adoeceu depois da morte de D. Manoel, seu filho El-Rei D. João III reuniu Conselho para resolver se o devia visitar.
Os do Conselho approvaram, mas o Duque resentiu-se com a idéa da consulta.
No dia em que D. João III se apeiou á porta do palacio do Senhor D. Jorge estava este convalescente. El-Rei sem demonstrar apressurado zelo, atravessou as salas de espera, as do estado e deixando de lado a sala do Throno, dirigiu-se directamente aos aposentos particulares do Duque. Estava este ennovelado n’um ferragoulo de velludo escuro, quasi sumido entre os braços de uma cadeira de couro com pregaria amarella, e assistia interessado a uma partida de xadrez, que dois creados jogavam, para o divertirem, quando El-Rei entrou. Este, vendo retirar a mesa e taboleiro, perguntou ao Duque se gostava de vêr jogar. Respondeu este logo, sublinhando as phrases:
—«Senhor! Quando El-Rei vosso pae, que santa gloria haja me honrava com sua presença, por me divertir nas doenças, elle mesmo com summa benignidade se punha a jogar por me divertir.»
Este remoque levava a intenção de mostrar o desgosto que tivera com o saber que El-Rei, consultara o conselho para o visitar, o que contrastava com as intimidades recebidas de El-Rei D. Manoel.
Os Reis desadoram que lhes joguem biscas. D. João III, mais arguto do que muitos julgam, sentiu o alcance da picuinha e enguliu em secco. Abreviada a visita retirou-se carrancudo.
Este caso não os desuniu. Mas o que é certo é que nunca houve d’este Rei para com D. Jorge aquelle carinho que elle merecera aos dois predecessores.
Bem se mostrou quando foi do conhecido escandalo provocado pelo Marquez de Torres Novas.
Recordemol-o de passagem, visto que d’elle foi protagonista um filho do Senhor Dom Jorge.
[Pg 59]
D. Francisco Coutinho, 4.º Conde de Marialva, e Meirinho-mór do Reino, era, no primeiro quartel do seculo XVI, um dos mais notaveis fidalgos da Peninsula. Os seus annos (andava pelos setenta quando a tempestade estalou), os seus serviços (já fôra Alferes-mór de El-Rei D. Affonso V, e batalhára em Castella e em Africa), a sua fortuna (pois a casa Marialva era reputada das mais ricas) tornavam-n’o respeitado por todos, gozando de uma grande reputação e auctoridade.
Tinha uma filha unica, D. Guiomar, que «pela pessoa e riqueza era considerada o maior casamento que então havia em Hespanha».
O velho Conde, embora nobre e rico, ambicionava para a cabeça da filha uma corôa fechada, e não lhe desagradava a idéa de que ella trocasse as suas armas por um escudo com banco de pinchar. Queria vel-a Infanta de Portugal. Não se atreveu a aspirar ao herdeiro do throno. Mas como El-Rei D. Manoel tinha mais filhos pretendera que este a acceitasse para o Infante D. Fernando então ainda creança.
O Rei Venturoso não era indifferente á seducção do oiro. Accedeu aos desejos do Conde, por lhe parecer (escreveu elle) cousa proveitosa para o Infante e para o Reino.
Morrendo entrementes D. Manoel, seu filho, D. João III, não se demorou em dar cumprimento ao ajustado e, na casa do Conde de Marialva, em Março de 1522, fizeram-se as capitulações para se effectuar o casamento logo que o Infante chegasse aos dezesete annos.
Estavam as cousas n’este ponto, quando um dia surje no Paço o velho Conde de Marialva, allucinado, afflicto, fóra de si, e deita-se aos pés d’El-Rei clamando justiça.
Era o caso que D. João de Lancastre, Marquez de Torres Novas, filho da Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra, com um atrevimento inaudito, viera oppôr-se ao matrimonio de D.[Pg 60] Guiomar, allegando «que muito antes do contracto com o Infante Dom Fernando era elle casado clandestinamente com a filha do Conde, e determinára pôr este caso em juizo».
—«Era uma affronta á sua velhice (gritava o velho), era uma injuria ás suas cãs. Era tambem para El-Rei um insulto, pois que, fiado na pouca edade do soberano, o Marquez esperára a morte d’El-Rei D. Manoel, julgando que a inexperiencia do successor lhe facilitaria a empresa.»
D. João III ouviu attentamente o velho Conde...
Cá fóra, nas ante-camaras do Paço, segredava-se o acontecimento. Pode bem imaginar-se o alvoroço que levantou. Começavam a esboçar-se partidos. Uns, a favor do Conde, lamentavam vel-o assim desconsiderado, n’uma edade que não podia desforçar-se.
Outros, baixinho, accusavam-n’o de ambicioso, verdugo da filha, sacrificando á sua ambição os sentimentos d’ella.
Na côrte, na cidade, em toda a parte, por onde a nova ia alastrando, os commentarios ferviam ao sabôr das paixões. Cada qual interessava-se por um dos personagens, e todos se interrogavam sobre a decisão d’El-Rei.
Este fôra prudente. Levou o pleito ao Conselho. Entretanto mandava prender no Castello de Lisboa o Marquez de Torres Novas, e desterrava para fóra da côrte o Duque de Coimbra, pae d’este.
A prisão não atemorizou o indomito Marquez, que depois já no Castello barafustava, e que, proseguindo na demanda, mandou intimar o Conde de Marialva a que lhe entregasse a filha.
O caso aggravava-se.
Os Infantes D. Luiz e D. Fernando mexiam-se proclamando a justiça do Conde e verberando asperamente o procedimento do atrevido pretendente.
Por seu lado, já em Setubal, para onde se exilára, o Duque de Coimbra punha em campo a sua influencia.
Ao Rei, seria licito, usando do poder absoluto, decidir a contenda desde logo. Mas havia pontos duvidosos, e a consciencia[Pg 61] não lhe permittia n’uma coisa «tam secreta como esta antremetter-se em fazer nem impedir casamentos».
Deixou correr no juizo ecclesiastico a demanda, que se foi arrastando durante nove mezes. O tempo na sua acção esmoedora ia desfazendo arestas. Morreu o Velho Conde. D. Guiomar interrogada por lettrados canonistas e theologos sobre se era casada com o Marquez, negou peremptoriamente.
O tribunal em vista de, pelo processo «não se provar bastantemente o contrario», decidiu o litigio em favor do Infante que já andava enfadado e desgostoso.
As bodas effectuaram-se. O Infante D. Fernando e sua mulher foram viver para Abrantes.
Pairava, porém, não sei que sinistro e agourento destino sobre o casal. Poucos annos depois de unidos, achando-se o Infante na villa de Azinhaga, referiu a alguns fidalgos, seus intimos, que sonhára n’essa noite ter visto sahir de sua casa em Abrantes, trez tumbas cobertas de negro. Não fez caso. Mas no dia seguinte recebeu recado de ter morrido n’aquella villa a filha unica que lhe restava. E partindo para alli a consolar sua mulher, morreu em Novembro, e ella em Dezembro.
Estava cumprido o sonho. Os fados tinham vingado o Marquez de Torres Novas.
Qual a verdade sobre os factos e sentimentos dos auctores d’este drama?
Qual o segredo do coração de D. Guiomar?
Um leve manto de mysterio ficou sempre entrecobrindo a romanesca historia. E a phantasia, tão propria de cerebros peninsulares, foi bordando sobre o assumpto lendas sentimentaes.
Ainda no meiado do seculo passado, Camillo Castello Branco n’um drama ultra-romantico, intitulado o Marquez de Torres Novas, (por signal bem inferior ao seu talento) architecta uma inverosimil acção eivada de erros historicos e de aleijões nos caracteres.
A versão official, que os chronistas estamparam, dá a entender que o Marquez, por ser muito novo e mal aconselhado[Pg 62] urdiu aquelle enredo sem que na realidade tivesse havido união clandestina.
Elle proprio alguns annos depois, movido talvez por um sentimento cavalheiroso, escrevia á Rainha D. Catharina:
«Fui prezo e depois degredado da côrte por culpas que se offereceram, o que eu não confesso, nem Deus tal queira, eram alheias e não minhas nem de Sua Alteza por nossa edade, e d’isto porque não pareça que allego com testemunhas mortas, ainda poderei mostrar papeis ou papel, em que mostraria minha innocencia contra quem me culpasse.»
O chronista-mór, Francisco de Andrade, que viveu poucos annos depois dos acontecimentos acaba o capitulo em que os refere com estas palavras:
«A apressada morte de ambos (D. Guiomar e D. Fernando) e dos filhos que d’elles nasceram e a ruina da casa Marialva que tambem se apagou de todo foi occasião de haver no reino alguns juizos sobre este casamento e não faltou quem houvesse n’este caso por justa a sentença do céo.»
Juizes do Deus!
E a Duqueza de Coimbra D. Brites de Vilhena?
Essa, que, emquanto rapariga moça, tantas paixões levantou, foi durante os 30 annos de casamento a mais devotada companheira do mestre D. Jorge. Com elle esteve sempre no desterro em Setubal, e, entregando-se a obras piedosas, fundou juntamente com o marido o mosteiro de S. João d’aquella villa, onde entraram trez filhas suas, e onde se mandou sepultar.
Para a sua morte, que succedeu pelos annos de 1580, não contribuiram pouco os desgostos causados pelo escandalo levantado pelo filho, e o desterro d’este.
Nenhum dos Poetas que celebraram a sua formosura entoou endechas á sua morte. A Perigosa deixára de o ser e ia esquecendo...
[Pg 63]
O Duque que lhe sobreviveu muitos annos procurou consolações.
De uma, ou de mais que uma innominada (passageiros amores!) ficaram trez filhos todos D. Jorges, e todos clerigos, e ainda uma filha D. Joanna de Lancastre que foi recolhida no Mosteiro de Santos-o-Novo.
N’esse Mosteiro era commendadeira, já quasi octogenaria, e muito envelhecida, D. Anna de Mendoça, antiga amante de D. João II, e mãe do Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra.
Levava vida exemplar.
O Duque, ou por ver sua mãe, ou para tratar da administração da Ordem de Santiago, a que o convento pertencia, vinha ás vezes de Setubal a Lisboa, aposentando-se n’uns quartos junto ao real Mosteiro.
D’alli fazia repetidas visitas ao Paço, desde a reconciliação com os Soberanos.
N’esse anno de mil quinhentos e quarenta e tantos, a estada em Lisboa foi prolongando-se. As sahidas succediam-se cada vez mais a miudo, comprazendo-se o mestre em frequentar principalmente a casa da Rainha D. Catharina.
Em torno da Soberana enxameava por esse tempo um bando de damas, algumas formosissimas, outras de graça encantadora, e quasi todas de espirito scintillante.
D. Jorge, habil no galanteio, doneador e bom cortezão, embora já serodio, deleitava-se na pratica do regio gyneceu, e deliciava com os seus ditos aquelle esquadrão volante das Donas e Donzellas da Camara.
Entre estas ultimas havia uma de dezeseis annos, que lhe prendia mais a attenção. Era D. Maria Manoel, filha de D. Francisco de Lima, já fallecido, e de D. Francisca de Vilhena, que fôra dama da Rainha.
O Duque, em tempo, fizera á mãe uma pontinha de côrte.
Esboçára mesmo um idyllio, que pouco passára dos prolegomenos, e que, tendo ephemera duração, deixou comtudo nos dois uma recordação amavel.
O chronista Francisco de Andrade, fallando ácerca d’este[Pg 64] episodio, diz assim: «com quem, andando no Paço o mestre travara outros amores».
Seriam amores. Mas não foi amor. Não passaria, talvez, de uma amizade amorosa que, por uma reacção exotica de chimica sentimental, se transformou primeiramente n’um interesse accentuado pela rapariguinha filha d’aquella com quem flirtára. E o interesse que pouco a pouco foi crescendo em intensidade, e sempre n’um movimento ascencional a pouco trecho desabrochou n’uma paixão violenta.
Um caso de transubstanciação psychica.
A Rainha, que ao principio, não fizera reparo maior nas assiduidades de D. Jorge, cuja edade lhe parecia garantia para a seriedade da sua Casa, quando se inteirou do encantamento de que fôra tomado o primo, determinou dar providencias.
O mundo feminino do Paço agitou-se. D. Maria Manoel sentiu em volta de si condensarem-se nuvens ameaçadoras de borrasca.
Mas... deixava-se adorar...
Não estava ainda inventada a palavra snobismo. Comtudo, o sentimento que o vocabulo traduz na sua graduação variadissima, e nos infinitos cambiantes não é só d’este ou d’aquelle tempo, é fundamentalmente humano. Vaidade lisongeada, ambição de honrarias, ostentação de intimidade com os poderosos da terra, seducção pelas grandezas, desejo de brilhar com luz alheia, são modalidades da alma humana, que vem com pequenas differenças ab initio.
A nossa Mãe Eva, tal como a descrevem na famosa scena, seduzida pela serpente, que lhe accena com grandezas e lhe desvenda mundos desconhecidos, é já rudimentarmente snob e profundamente feminina.
Como não o seria D. Maria Manoel, Dama da Rainha D. Catharina, perante a miragem d’uma corôa de Duqueza, promettida por um homem que, para attenuar as devastações da edade, tinha ainda attractivos proprios, e um grande prestigio pessoal?
Deixava-se adorar...
[Pg 65]
Mas a Rainha, cuja austeridade em materia de amores chegou a tocar no desabrimento e aspereza, inspirando até, ao que parece, a Camões desterrado a celebre ode que diz:
«Oh crua esquiva e fera
Duro peito cruel e empedernido;»
a Rainha, que os amores do Senhor Dom Jorge contrariavam, interveiu severa, impedindo a continuação das entrevistas.
Então o Duque, como se fosse namorado imberbe, entrou a escrever bilhetes e a mandar recados á Dama da Rainha, por creados ou terceiras pessoas, com pouca cautela e recato.
Amigos e parentes censuravam-n’o inutilmente.
A paixão desenfreada do Duque não conhecia barreiras. Queria forçosamente casar com a rapariguinha, désse por onde désse.
E ella ia-se deixando adorar...
Então o filho do Senhor D. Jorge, o Marquez de Torres Novas, agora já Duque de Aveiro, que tão contrariado fôra nas suas pretensões á mão de D. Guiomar Coutinho, foi quem se levantou com mais sanha, oppondo-se ao casamento do pae. Ajudava-o n’essa empreza D. Jayme, seu irmão, Bispo de Ceuta, que, por ser creatura muito affecta á Rainha, que o fez Capellão-mór, contribuia para crear todos os obstaculos ao casamento do Duque, dando-se então a estranha situação de se ver um Prelado, um Bispo, um Principe da Egreja oppor embaraços ás amorosas pretensões do seu progenitor.
Elle e o Duque de Aveiro dirigiram-se ao pae, expondo-lhe respeitosamente, mas com firmeza, os inconvenientes do casamento.
Não negavam virtude a D. Maria Manoel. Mas a rapariga tinha dezasseis annos e o Duque quasi setenta...!
(Corvisart havia de dizer trezentos annos depois: «Aos setenta ha sempre filhos». Os dois Lancastres, menos cynicamente e com mais respeito, apropriavam-se do espirito d’esta formula.)
[Pg 66]
Com este enlace, diziam, corriam risco a saude e a vida do pae; era ameaçada a fazenda da sua Casa; e não seria decoroso dar-lhes por mãe quem podia ser filha de qualquer d’elles.
O Duque repelliu bruscamente a monitoria dos filhos. Havia de casar por força. Era uma paixão indomita, devastadora.
Disse-se então á bocca pequena que, de uma vez que D. Maria sahiu do Paço para ir a casa da mãe, o Duque a recebêra por mulher e lhe mandára depois ao Paço um escripto confirmando este acto.
E D. Maria ia-se sempre deixando adorar...
Mas agora já sentia tambem o amor proprio golpeado pelos enredos contra ella preparados.
Além d’isso a sua propria familia incitava-a a concluir o casamento.
Estavam as coisas n’este estado, e a intriga continuava fervilhando quando surgiu uma circumstancia que até ahi não occorrera á mente de ninguem—os dois noivos eram parentes em terceiro grau! Grande satisfação no partido do Duque de Aveiro que a esse tempo já estava casado com D. Juliana de Lara, filha do Marquez de Villa Real.
Enorme desprazer na familia da noiva que via assim retardado o almejado enlace.
O Duque porém não esmoreceu. Pelo contrario! Mostrou-se mais tenaz em proseguir no intento.
Então, pelos fins de Março, D. João III, que via o caso ir ganhando importancia e avinagrando-se, chamou-o á sua presença. Fallou-lhe como parente que prezava a dignidade da familia, e como Rei a quem cumpria zelar a boa ordem da Côrte, e o decoro nos seus principaes. Terminando, emprazou o mestre de Santiago a que desistisse da sua louca pretenção.
O arguido curvou a cabeça; agradeceu os conselhos e chegou mesmo a fazer promessas. Promessas com restricções mentaes (entenda-se) que depois havia de invocar para não[Pg 67] obedecer. Tinha a attitude de um rapaz leviano na presença minaz de um pae severo. Mas... passados dias esquecia promessas e protestos e, levado pela impetuosidade do sentimento, declarava publicamente que já era casado com D. Maria por palavras de presente, e que mandára pedir ao Nuncio dispensa da affinidade.
Novo sobresalto do Duque filho.
Indignado El-Rei mandou chamar outra vez o Senhor D. Jorge. Reprehendeu-o severamente. E como as respostas d’este fossem confusas, ordenou-lhe que se retirasse para Setubal.
O velho apaixonado, roendo o freio, teve que ceder.
De lá, vencido, mas não convencido mandou, em Outubro, um recado a El-Rei.
Da linguagem embuçada d’esse papel, que se encontra nas «Provas da Historia Genealogica», e não póde deixar de ser authentico, de tal modo n’elle transparece o sentir do Duque, deduz-se que houvera realmente casamento.
Affirma mesmo esse papel que fôra em Janeiro.
N’elle se queixa do filho, que, com a opposição que fazia lhe ia encurtando a vida. E então, melhor seria, (dizia elle), morrer por ter casado, do que por motivo dos desgostos causados pelo Duque seu filho.
Casuistica amorosa!
Todo este documento, aliás curioso, e feito com raciocinio de apaixonado, é digno de figurar n’um curso de psychiatria.
Á Rainha escreveu o Senhor D. Jorge tambem, implorando que interviesse junto de El-Rei D. João III. E no paroxismo da paixão chegava a dizer, que quanto mais o contrariassem, mais esbanjaria a fazenda de sua Casa. (Esta ameaça era dirigida contra os dois filhos que sabia patrocinados pela Rainha.)
O Rei mandou responder-lhe em Novembro. Entre outras coisas dizia-lhe que «não póde chamar-se casado quem não tem faculdade para isso pelo gráo de parentesco sem dispensa.»
Para terminar dava-lhe o golpe de misericordia.
Annunciava-lhe que o Papa e o Nuncio tinham negado a licença!!!
[Pg 68]
Era o desmoronar de todos os castellos que a sua imaginação romanesca construira! Os dois annos que lhe restaram de vida levou-os a consumir-se... e a distillar illusões.
Quando em 1550, pouco antes de morrer, fez testamento, a paixão estava já como que volatilizada pela temperatura elevadissima que lhe abrazára o coração durante o periodo em que viveu caminhando no seu sonho exaltado.
N’uma verba d’esse testamento diz em palavras que, embora frias na apparencia, encerram ainda uma prova de affecto:
«Deixo a D. Maria Manoel, pela obrigação que lhe tenho em lhe prometter de casar com ella se o Santo Padre dispensar, mil cruzados da terça do dote que minha filha D. Elena me ha de levar e assim lhe deixo um Alvará do Duque meu filho em que me promette a valia de cem mil réis de renda para minhas obrigações em vida de sua pessoa para assim e na maneira que se no dito alvará contém que quero que haja non cazando ella, e casando, se distribuir em obras como acima digo.»
D. Antonio Caetano de Sousa na «Historia Genealogica» entende que este dizer é uma prova de que o Duque não tinha casado.
Salvo melhor interpretação, parece-nos que o Duque escreveria assim, prevendo que, se lhe chamasse sua mulher, os herdeiros se prevaleceriam da nullidade por não ter havido dispensa, e lhe negariam o legado.
«Que quero que haja non cazando ella.» Dizia o Duque no testamento.
Ella, porém, poucos annos passados, ajustou-se a casar com um parente viuvo, D. Manoel de Sousa e Silva, aposentador-mór da Casa de El-Rei D. Sebastião.
O parentesco entre os dois era apertado e tornava-se necessaria uma dispensa de Roma.
[Pg 69]
Eram demorados n’esse tempo os tramites para resolução d’estes negocios. E os noivos impacientavam-se com as longuras.
Que fazer?
D. Manoel de Sousa resolveu partir para Roma na empreza de facilitar a concessão. Obtida a desejada licença, regressou triumphante a Lisboa.
D. Maria Manoel tinha morrido entretanto!
E assim o Duque de Aveiro não teve que pagar o legado áquella que seu pae tão loucamente adorára.
[Pg 71]
SUMMARIO
A côrte de El-Rei D. Manoel—Duas estrellas—D. Joanna de Mendoça e D. Brites de Lara. Quem eram—D. Brites é pretendida por muitos—O Marquez de Villa Real, o Duque de Bragança e o proprio Rei desejavam-n’a para seus filhos—O Principe Herdeiro fez-lhe a Côrte. Interpretação de textos desfavoravel ao bom nome de D. Brites. Rectificação das accusações—D. Brites casa com o Conde de Alcoutim—É mãe da primeira Duqueza de Aveiro
E trabalhay por andardes
com as damas,
laa vos onray de danardes
suas famas.
(De Francisco Mendez de Vasconcellos hyndo-se meter frade—Cancioneiro geral, tomo III, pag. 435)
Em plena Côrte manoelina a formosa D. Brites de Lara foi astro de primeira grandeza.
N’esse periodo da Renascença em Portugal, quando tudo desabrocha com exhuberancia florente: quando os sabios transformam a astrologia na sciencia de observar o céo, e de caminhar nos mares, e as artes passam a inspirar-se nos ideaes da antiguidade pagã; quando já chegam de Além-mar as náos abarrotadas de ouro e especiarias, e os capitães trazem protestos de vassallagem dos potentados do Oriente; quando os[Pg 72] Reis do mundo pedem allianças e offerecem a sua bemquerença; quando a ogiva severa das cathedraes gothicas se transforma nas bracejantes nervuras de pedra em ramificações artificiosamente brincadas, e da Italia vem os primeiros sopros do humanismo nas lettras, a vida aulica toma aspectos novos de fausto, de grandeza, de elegancia e de graça.
As embaixadas partem com ostentação a levar Infantas a Monarchas e Principes, e a apresentar ao Papa, soberano da christandade, dadivas e homenagens.
Nas coutadas de Cintra echôam as trombetas das caçadas régias, em perseguição de veados e javalis.
No Tejo navegam docemente as galeotas com musicas festivas, levando o Rei Afortunado ás merendas dos caramanchões de Santos-o-Velho.
Nas ruas e praças o bom povo de Lisboa vê com pasmo atravessor o cortejo, em que D. Manoel, a cavallo, é precedido pelo rhinoceronte, pela onça brava que lhe dera o Rei de Ormuz, e pelos cinco elephantes trazidos do Industão, que borrifam com aguas rosadas os toucados das meninas curiosas debruçadas das adufas rotuladas.
Baylos mouriscos, com suas retortas e folias, meneiam-se ao som dos alaúdes, pandeiros e tamboris, rufados pelas languidas agarenas, nas viellas estreitas da Alfama, subindo em danças até á Alcaçova.
Nos serões dos Paços da Ribeira, de Almeirim e de Evora, a voz de Gil Vicente e dos seus comicos exalta a fama de Portugal, a belleza das suas mulheres e a bravura dos homens.
Os rimadores palacianos e versejadores cortezãos compõem trovas, vibram apodos, entoam vilancetes e tecem enredos amorosos.
A vida é uma festa! A Côrte um scenario deslumbrante.
Entre as muitas Guiomares, Leonores e Isabeis, de quem os echos do Cancioneiro e registos mundanos repetem indiscretos ruge-ruges, duas formosas mulheres deixam fama do seu encanto—D. Joanna de Mendoça e D. Brites de Lara.
[Pg 73]
Aquella, cantada em verso por todos os poetas. Esta, cortejada por Duques e Principes.
D. Joanna, porque era triumphantemente bella e porque ella propria cultivava as lettras com relevo, inspirou muitos cantares e despertou muitas paixões. Celebrou-a o rendido Simão de Souza nas suas trovas enternecidas, e adorou-a o Duque de Bragança D. Jayme, aquelle que annos antes n’um delirio de ciume matara a primeira mulher, e que depois de conquistar Azamor veiu, n’um accesso de paixão ardente, depôr a sua alma triste no regaço da linda Joanna e coroal-a duqueza.
Não é d’ella que nos occupamos agora. Deixemol-a ir para o seu remanso de Villa Viçosa curar com o balsamo de uma felicidade tranquilla o espirito atormentado do melancholico Duque.
Trouxemol-a á memoria porque viveu na mesma roda e brilhou na mesma esphera em que se movia Brites de Lara. E sendo grande o prestigio da sua belleza, convem notar que não tolheu o poder de seducção que esta exercia.
D. Joanna, futura Duqueza de Bragança, tinha na dominante formosura a severidade olympica das deusas, e uma leve melancholia no geito, que fazia exclamar um dos seus adoradores, quando uma vez a Rainha a prohibiu de sahir:
Não cureis de vos queixar
nem deis lugar á tristeza,
folgae, dama de folgar...
Por isso os Lucenas, os Sousas, os Telles, Vimiosos, Alvitos, e quantos mais! (são quatorze os poetas que no Cancioneiro lhe dedicam versos) andavam captivos seus a incensar com trovas, glosas e cantigas a fulgurante inspiradora.
Mas Brites, mais nova e com mais frescura, tinha no olhar provocante, na boca risonha, no meneio airoso do seu corpinho bem moldado, todas as graças herdadas da avó hespanhola...
Porque esta rapariga azougada, que enfeitiçava Principes,[Pg 74] esta sobrinha d’El-Rei D. Manoel, sobre cuja cabeça esteve por um momento suspensa a corôa real, tinha uma avó castelhana, muito bonita tambem, como o nome da sua terra ducal—Villa Hermosa.
O Duque de Vizeu, irmão de El-Rei D. Manoel, quando estivera em Castella, pelo capitulo acerca das tercearias, encontrou viuva a Duqueza de Villa Hermosa, cunhada de Fernando, o Catholico, e neta, por sua mãe, de D. Ignez de Castro e de D. Pedro I.
O Duque de Vizeu e a viuva impressionavel do mestre de Calatrava encontraram-se na Côrte dos Reis Catholicos. Elle, o futuro apunhalado de Setubal, galhardo, bom cavalleiro, e com um certo lusitanismo que ás hespanholas agrada; ella livre de peias matrimoniaes, e envolvendo-se com donairoso gesto nos véos elegantes da viuvez recente.
Entreabriram, nas respectivas existencias, um parenthesis amoroso, que breve se encerrou, mas do qual resultou uma creança que o pae trouxe cuidadosamente para Portugal quando finda a sua missão.
El-Rei D. João II, porém, logo que se desfez summariamente do Duque, determinou ao tenebroso Antão de Faria que mandasse crear o pequeno em segredo e longe da Côrte, na casa de um lavrador de Portel... não fosse a creança, pela sua origem, crear-lhe difficuldades de futuro.
A essa obscura villa alemtejana mandou El-rei D. Manoel, quando subiu ao throno, buscar o sobrinhito, e casou-o com D. Joanna de Noronha, da casa de Villa Real, nomeando-o em seguida Condestavel.
Foi d’esta união, de pouca dura, que nasceu em 1501 a linda Brites em quem, segundo a phrase do conspicuo D. Antonio Caetano de Sousa, a natureza «ajuntou descrição e formosura sobre o real sangue que lhe deu o nascimento, que fez a esta senhora tão esclarecida, que a habilitava digna consorte de um soberano.»
E quasi esteve a sel-o.
Vejamos como.
[Pg 75]
A sua meninez passou-se junto da mãe, a Condestabelleza viuva, e a sua radiante mocidade illuminou os salões dos Paços de El-Rei D. Manoel, seu tio-avô, que se revia n’ella desvanecidamente.
Ainda ia nos quatorze annos, e já em volta lhe borboleteavam pretendentes; uns presos da sua belleza, outros attrahidos pela sua grande fortuna, e situação eminente. Quantos!
A Condestabelleza viuva era irmã de Marquez de Villa Real, D. Fernando. Este tinha um filho—o Conde de Alcoutim—e para elle ambicionava a appetecida sobrinha.
Por seu lado o Duque de Bragança, D. Jayme, que frequentava assiduamente a casa de sua prima, (os Villa Reaes eram primos dos Braganças), via enlevado o desabrochar promettedor de D. Brites, cujo rostinho enfeitiçava todos em redor. Alguem chegou até a julgar que o sorumbatico Duque, visitava D. Joanna de Noronha porque «estando hi sua filha bordada de louçainhas» se sentia elle proprio namorado, pretendendo-a para si.
Deste rumor chegou echo aos ouvidos do Marquez de Villa Real, que se julgava seguro d’esta noiva para seu filho, fundado n’uma supposta promessa de El-Rei. E como detestava o Duque de Bragança, e não estava longe de suppôr que este projecto nascesse no intuito de «o danar» fazendo-lhe picardia, escreveu uma carta desabrida a El-Rei.
Mas não era para si que o Duque de Bragança D. Jayme a queria, pois talvez já a esse tempo andasse tomado de amores pela que devia ser sua segunda mulher, e ainda não estava desligado d’um compromisso que por elle tomára El-Rei D. Manoel, de casar com D. Leonor de Noronha, filha do Marquez, senhora de grande erudição, mas de poucos attractivos femininos.
Era para o proprio filho, D. Theodosio, embora tamanino, que o Duque de Bragança ambicionava a gentil noiva.
[Pg 76]
Havia, porém, da parte de El-Rei D. Manoel, como se vae ver, uma intenção reservada.
Damião de Góes, o chronista, diz-nos que sendo ella «hua das formosas e bem dispostas mulheres que em seu tempo houve n’estes regnos com as quaes partes e nobreza de sangue, e bom dote que tinha, trouxe sempre opinião de casar com o Infante D. Fernando, filho terceiro D’El-Rei D. Manoel, posto que fosse muito mais moço que ella.»
E accrescenta:
«Mas por isto não lhe succeder á vontade...»
É necessario notar que a vontade d’ella não era casar com o Infante. El-Rei é que, conforme elle proprio diz, a desejava «para algum dos meus filhos»... Excepto o mais velho, já se vê.
Ora, foi esse justamente, o herdeiro, o futuro D. João III, que esboçou um idyllio amoroso com a seductora prima.
Creados os dois na aula régia, eram frequentes as ocasiões de se encontrarem; de trocarem olhares a que davam significativa intenção; de entrarem juntos nos mesmos jogos de cartas que entretinham os serões, ou nos folgares que alegravam as horas da sésta nos jardins realengos.
Assistiam com egual interesse ás diversões de altanaria, quando, nos campos de Almeirim, os falcoeiros reaes largavam os açores e gerifaltes encarapuçados, a alarem-se elegantes na perseguição da voaria, pelas crystallinas manhãs da leziria ribatejana.
Sublinhavam as mesmas allusões nos Autos de Mestre Gil. Riam-se juntos das mesmas facecias com que os chocarreiros, bobos, e anões os debicavam nas ante-camaras. E nas festas da Capella ouviam com egual unção os sons do orgão a gemer plangente, emquanto na atmosphera se aspirava aquelle perfume mixto de rosmaninho, de alecrim e de incenso que tão favoravelmente dispõe as almas á terneza.
Os quinze annos d’ella rimavam com os do Principe.
E d’este rythmo das duas mocidades ia nascendo suavemente um sentimento...
[Pg 77]
Não ainda uma paixão.
Mas o lume ia-se ateando com indiscreta chamma, e os roazes do mundo já entravam o boquejar o caso.
É que, quando D. Brites vinha com sua mãe, de Santarem a Almeirim, assistir a alguma caçada ou torneio em que o Principe tomava parte, involuntariamente o seguia com o jacto luminoso dos seus olhos negros.
E quando, em Lisboa, nos Paços da Ribeira, as figuras declamavam no tablado as suas fallas com emphase, não era raro surprehender o herdeiro do throno, distrahido das arengas, procurar com a vista interessada as louçainhas da garrida Lara.
Á perspicacia de El-Rei D. Manoel não escapou o embevecimento do filho, que assim ia contrariar os seus planos. Ou talvez algum mexerico caseiro lhe segredasse que já na côrte se formavam conluios e projectos sobre a possibilidade d’aquelle enlace.
Occorreu-lhe talvez então á lembrança, que no reinado antecedente tambem o Principe herdeiro andara, muito novo ainda, captivo dos olhos languorosos de D. Branca Coutinho, e a promptidão com que o inflexivel D. João II atalhou o devaneio amoroso.
N’este caso tratava-se apenas de um namorico passageiro, uma iniciação de adolescentes. E a perturbante D. Brites não passaria para o Principe d’aquillo a que os Hespanhoes chamam—novia de verano, querendo significar que estes laços corrediços se atam e se desfazem com a mudança de uma estação, deixando apenas uma recordação risonha. Tudo levava a crer que assim fosse. Mas á imaginação do monarcha afigurava-se o perigo imminente, e resolveu acudir-lhe, retirando o fogo de ao pé da estopa. Não que a estopa já se estivesse inflamando, como parece quererem alguns deduzir do exame de uns documentos vindos a lume ha poucos annos.
Vem aqui a talho fallar n’esses documentos.
[Pg 78]
Foi Luciano Cordeiro, a quem João Bastos, o Director da Torre do Tombo, os revelou, que veiu com elles a publico no appendice de um folheto que tem por titulo—A Segunda Duqueza—e que mais propriamente se deveria chamar—A segunda mulher do Duque D. Jayme. Mas isso não vem para o caso.
Prestando homenagem ás qualidades de investigador d’aquelle publicista, que enriqueceu com alguns trabalhos a litteratura historica, seja-nos comtudo licito, sem menoscabo pela sua memoria, discordar da hermeneutica que usou na glosa d’estes textos.
Levado pelo engodo de apresentar inédito, de destruir lenda, de faire du nouveau, exagera a importancia d’esses documentos, ultrapassa o alcance das palavras e illude-se com a intenção de quem as escreveu.
Uma vez enveredado no labyrintho das conjecturas, tenta desfazer o testemunho dos chronistas, e explica a seu sabor os motivos do terceiro casamento de El-Rei D. Manoel, para o que architecta um plano de politica matrimonial, que vae muito além dos designios d’aquelle monarcha.
O que nos diz a Historia pela penna do coevo Damião de Góes, e de Francisco de Andrade, que não muito longe d’esse tempo viveu?
El-Rei D. Manoel, que era na verdade um grande casamenteiro, como o fôra Dom João de Bôa Memoria, distribuia a seu talante as noivas conforme os interesses internacionaes, ou conveniencias de familia.
E assim, no proposito de continuar a alliança com Castella, determinara pedir para seu filho, o Principe D. João, a irmã de Carlos V.
Entretanto enviuvou. E quando, tempo depois, chegou á Côrte o retrato de Leonor, que o artista favorecera com attrahente[Pg 79] belleza, tanto se deixou embelecar com a pintura, que resolveu guardar para si o original.
D’ahi nasceu o despeito do futuro D. João III, o resentimento contra seu pae e o refrear a custo o sentimento pela madrasta.
Pela morte do Rei, esboçou-se até, como é sabido, um projecto de casamento com a Rainha viuva. E são conhecidas as peripecias d’este drama de que já em outros estudos nos occupámos, e a que alludem os historiadores desde Andrade na Chronica e Frei Luiz de Souza nos Annaes, até ao sisudo auctor da Historia Genealogica.
Luciano Cordeiro, porém, pega nos documentos em que fallamos, e d’elles tira conclusões, por vezes engenhosas, mas tão enfeitadas pela imaginação, que alteram os acontecimentos e (digamos a verdade) collocam pouco geitosamente alguns dos personagens d’esta historia.
É tempo de dizermos quaes sejam os documentos.
Quatro cartas existentes na Torre do Tombo, entre os papeis do Corpo Chronologico.
A primeira e segunda d’essas cartas são do Marquez de Villa Real, dirigidas a El-Rei D. Manoel a 10 e 11 de Agosto de 1515.
O opulento fidalgo estava nas suas terras de Villa Real, quando de Lisboa recebeu um aviso que o alvoroçou.
Annunciava-lhe o zeloso correspondente, que na Côrte se tratava de dar casamento á promettida noiva de seu filho, o Conde de Alcoutim. E com quem? Com o seu primo co-irmão, o seu maior inimigo, o Duque de Bragança D. Jayme («Inymigo pubriquo» confessa o Marquez).
Facil é conceber o seu furor com o recebimento de taes novas. Ferido no orgulho, que era apanagio da sua raça, escreve sem detença a El-Rei, queixando-se amargamente, e pedindo-lhe «que atalhe este caso».
Essas duas cartas, em que a par da firmeza das expressões ha um certo resaibo litterario, demonstram que o Marquez, Dom Fernando, manejava com egual energia a espada e[Pg 80] a penna. Aquella nas campanhas d’Africa em que se distinguira. Esta, nas horas de lazer do seu solar transmontano.
Na segunda carta relembra o Marquez que em Setubal o Monarcha lhe assegurara, que o Duque de Bragança casaria com sua filha Leonor, para com esta união acabarem as desavenças e «haver concerto» entre elle e D. Jayme.
Dos outros dois documentos apresentados por Luciano Cordeiro, é auctor o proprio Rei D. Manoel.
O primeiro é em fórma de Instrucções dadas a um secretario para as transmittir ao Duque de Bragança, seu sobrinho.
N’este papel datado de 5 de Outubro de 1520, D. Manoel trata dos projectos de casamento para sua sobrinha D. Brites de Lara.
N’elle se vê que o Duque pedira a ambicionada noiva, não para si, como o Villa Real suppunha, mas para seu filho, D. Theodosio, e vê-se tambem que El-Rei só consentiria n’isso, se não se fizesse o casamento com algum dos Infantes seus filhos.
Tambem o papel nos diz que tendo o soberano farejado o namorico da sobrinha com o Principe herdeiro, o que contrariava os seus projectos, decidira que ella casasse com o Conde de Alcoutim, como o pae d’este reclamara cinco annos antes.
O outro documento é uma carta de 20 de Dezembro, de El-Rei D. Manoel, em resposta a uns apontamentos que o Duque de Bragança lhe mandára sobre o caso.
Esses apontamentos, pelo que se deduz da carta de El-Rei, seriam uma contradicta a algumas affirmações acerca da sobrinha, exposta por D. Manoel.
É lamentavel não haver conhecimento d’esses apontamentos, pois nos elucidariam sobre os obstaculos (pejos lhe chama D. Manoel) antepostos pelo Duque ás resoluções do monarcha. Ao que se vê o Duque persistia na sua reclamação, e, por isso, El-Rei empraza-o a encontrarem-se em Lisboa no mez de Janeiro afim de, pessoalmente, lhe expôr as razões que o tinham movido.
[Pg 81]
D’estes documentos, que effectivamente nos esclarecem alguns pontos da chronica cortezã, tira Luciano Cordeiro conclusões imprevistas e, com especiosa hermeneutica, chega a encontrar n’elles elementos para explicar os ignorados motivos do casamento de El-Rei D. Manoel com a noiva do proprio filho.
Para isso, obrigando as palavras a significarem mais do que naturalmente os lexicons permittem, tem que dar como certo que D. Brites, no seu idyllio com o Principe D. João, resvalou imprudentemente, se não impudentemente, pelas margens floridas do rio, que banha os valles de Cythera.
E tem que attribuir ao proprio Rei a feia pecha de conspurcar a honesta fama de sua sobrinha, assumindo, declaradamente cynico, o papel odioso de atirar a pobre menina, com a sua supposta mancha, ao thalamo do Conde de Alcoutim, tambem seu parente, e um bravo militar, que servia em Ceuta.
Luciano Cordeiro depois de expôr aquillo a que elle chama—a Lenda—, e que é a Historia tal como nol-a transmittiram os chronistas comtemporaneos dos factos, apresenta a versão, que dá como assente, quando diz:
«Perjudicada a idéa do casamento do Duque D. Jayme com a litterata filha do seu orgulhoso adversario, o Marquez de Villa Real, ficára naturalmente mallogrado tambem o outro termo do régio plano:—o casamento do filho do Marquez com a juvenil sobrinha d’este e do Rei, Dona Brites de Lara, a neta do Duque de Vizeu. É até permittido duvidar da sinceridade do Rei quando em Setubal a promettera por nóra ao Marquez, como este lhe lembrava na colerica carta de 1515. D. Manuel tinha acerca de D. Brites bem diversas ideias.»
Fallando depois na inclinação de Dona Brites pelo herdeiro, accrescenta aquelle escriptor: «embarcaram ambos n’um idyllio de secretos e desaustinados (sic) amores, emquanto o Rei, o Duque e o Marquez, gente pratica e sisuda disputavam gravemente a quem ella havia de querer e dar-se. Deu-se a D. João. Não deixa duvida o dizer dorido e indignado do proprio D. Manoel a D. Jayme.»
[Pg 82]
Como se vê, Luciano Cordeiro dá como certo aquillo que o proprio D. Jayme (mais interessado e mais bem informado que o impetuoso escriptor) parece contestar nos seus apontamentos.
Mas além d’essa affirmação, Luciano Cordeiro accrescenta que «surprehendidos por El-Rei estes amores... e dada a obcessão apaixonada do Principe D. João por D. Brites... não sómente a revelação positiva d’este caso até agora escondido, desconhecido, e absolutamente inedito dissolve e arreda o conto já de si soffrivelmente inconsistente da paixão do Principe por D. Leonor, que não vira, como illumina e explica, facil e naturalmente a historia do terceiro casamento de Dom Manoel».
Depois, seduzido ainda pela ideia de modificar a Historia affirma que D. Manuel, vendo que o herdeiro envolvido em tratos de amores com D. Brites se recusaria a honrar o compromisso do pae e a sacrifical-a ao empenho da politica real, desposando a Princeza castelhana, resolve elle tomal-a como esposa.
Por este arrazoado aqui resumido já o leitor sente a inconsistencia da critica d’este investigador, que na ancia de tirar effeitos de documentos escondidos, desconhecidos e ineditos, se lança nas regiões da phantasia, chegando a interpretar a mania que sempre teve D. João de se vestir á portugueza, como uma homenagem a Dona Brites, em opposição aos que ostentavam trajos flamengos para fazerem a côrte á nova Rainha.
Mas não pára aqui. Para fortalecer a sua these entra em considerações psychologicas, que deixam todos os personagens a sangrar.
«Zelando, diz elle, affectuoso e austero, a honra do Duque e da Casa de Bragança—quem sabe se lembrando-se da tragedia de Vila Viçosa?—Dom Manoel diz-lhe assim sem reservas, carinhosa e honradamente que a noiva que lhe promettera, e elle queria para o filho, não lh’a aconselharia, não lh’a dará agora, que não é digna d’elle, e do futuro Duque, pois não soube guardar a honra de mulher. E ao mesmo tempo[Pg 83] friamente, calculadamente sem uma palavra de hesitação ou escrupulo, atira essa mulher que elle proprio repudia e infama, para os braços de um nobre e moço soldado...»
Vamos já vêr como a razão fria e a justiça feita ao caracter dos personagens apresentados, desfaz este edificio architectado, com boa fé, sim, mas com imprudente leviandade.
Antes d’isso, porém, não resistimos a abrir um parenthesis, registrando um thema ou exercicio litterario que, por ser bordado sobre este caso, tem interesse e é pittoresco.
O Sr. Theophilo Braga, no decurso da analyse das obras de Gil Vicente, allude a este episodio sentimental, mas não lhe liga a importancia que a Luciano Cordeiro merece.
Diz até: «É mesmo natural que o Principe se adiantasse nos amores com D. Brites de Lara pelo despeito do terceiro casamento de seu pae com a irmã de Carlos V, que pretendia para sua esposa.»
Por esta versão o adiantar nos amores, ao contrario do que pensa Luciano Cordeiro, seria o effeito da paixão mallograda, uma especie de reacção contra o rapto paterno.
Sem entrarmos a escabichar nos recessos da psychologia joannina, vejamos como o commentador de Gil Vicente entende haver nas obras do comediographo referencias aos amores do Principe.
Tanto no Auto das Fadas como principalmente na Comedia de Rubena, encontrou o Sr. Theophilo Braga «elementos d’essa intriga amorosa» e até «uma allusão delicada á paixão do Principe, que a teria comprehendido, pois que Gil Vicente, n’aquella comedia, romantiza a situação d’esses amores, velando algumas circunstancias.»
Por muito que diligenciassemos achar, lendo e relendo esta ultima comedia, as pretendidas allusões, e tentassemos levantar o sendal que velou as taes circunstancias, não encontrámos maneira[Pg 84] de identificar a Rubena, gemendo ao sentir as dores da maternidade, com a avó de D. Brites; nem esta com a pastorinha Cismena, que nas suas invocações exclama:
«Oh! mãe de filha perdida
Oh! filha de mãe prenhada
Sem ventura.»
Tambem não encontrámos a menor parecença entre o futuro D. João III, e o pastorinho per nome Joanne, que pergunta a Cismena quando entra em scena:
«Di, rogo-te Cismeneninha
Viste-m’a minha burrinha?»
E sobre tudo não vemos motivo para D. João se lisongear com a allusão.
Nos versos, com que o Licenciado apresenta o argumento da peça, quer o Sr. Theophilo Braga encontrar uma referencia á aventura amorosa do Duque de Vizeu:
«En tierra de Campos allá en Castilla
Habia un abad, que alli se moraba
Tenia una hija, que mucho preciaba,
Bonita, hermosa á gran maravilla.»
Com este trocadilho, especie de calembourg, formado com o tirar meia palavra ao final de um verso—villa—para o juntar a um adjectivo anterior—hermosa, formando o titulo—Villa Hermosa, com que alludiria á Duqueza, o nome d’esta heroína fica por tal fórma rebuçado que, embora demonstre engenho, não abona a hypothese. E menos se encontrará qualquer fundamento para ella no decorrer da peça em que a phantasia do poeta vôa de Castella para Creta; mettendo em scena pastores, diabos, feiticeiras, e todo o arsenal vicentino.
Não é licito tambem pensar que em plena côrte de D.[Pg 85] Manoel, já casado com D. Leonor no tempo em que a Rubena se representou (1521) o comediographo na intenção de ser agradavel (?) ao Principe, se permittisse recordar o galanteio de pouca dura entre este e a priminha, agora tambem já casada com um grande fidalgo, um valente militar, um homem que Gil Vicente estimava e respeitava.
São provas d’esses sentimentos as citações referentes ao marido de D. Brites que se encontram nas obras do poeta.
Entre as orações dos Grandes de Portugal a Nossa Senhora, depois de enterrado D. Manoel, lá poz Gil Vicente a do Alcoutim. E no Romance á acclamação de D. João III, quando os Grandes do Reino lhe beijam a mão, depois dos dizeres do Duque de Bragança, do Mestre de Santíago, do Marquez de Villa Real, do Bispo d’Evora e dos Condes de Marialva de Penella, de Tentugal, e da Feira accrescenta:
«Diria o Conde d’Alcoutim
Beijando a mão preciosa:
Deus vos dê vida ditosa
E tire os dias de mi.
Pera vossa vida e nossa», etc., etc.
Ora Gil Vicente não poria esta linguagem na bocca do Conde, se porventura tivesse querido na Comedia de Rubena lisonjear o Principe com allusões, aliás de máu gosto, aos suppostos amores da Condessa, embora do tempo de solteira.
Esta tentativa, porém, de encontrar na Rubena situações e personagens identicos aos do episodio cortezão, se carece de fundamento, não deixa de ser engenhosa como jogo de espirito, habilmente architectado com mais ou menos verosimilhança.
Fechado este parenthesis voltemos agora á outra these. Essa colloca tão deploravelmente todos os actores que entram[Pg 86] em scena, traz á historia consagrada tão grandes modificações, e carrega com tão graves responsabilidades os chronistas que a escreveram, que necessitamos examinal-a com alguma attenção e desprevenido criterio.
Não pretendo de modo algum, (seja dicto desde já), arvorar-me em paladino da nobre Brites, futura Condessa de Alcoutim, futura Marqueza de Villa Real, e mãe d’aquella que havia de ser a primeira Duqueza de Aveiro.
Não o necessita a sua memoria.
Nem tenho procurações, enviadas de além tumulo, dadas pelos que se pretende fazer figurar tão deprimentemente n’este pequeno drama. É excusado pois allegar provas de que El-Rei D. Manoel não era um cynico e um diffamador; de que o Duque D. Jayme, cujos defeitos a historia registra sem poupança, não póde ser acoimado de ambicioso vulgar, que põe de parte escrupulos na ganancia de augmentar o patrimonio do filho; de que o Marquez de Villa Real era incapaz de menosprezar a dignidade do seu nome reclamando e acceitando uma nóra «já poluida» como quem realiza um «soberbo negocio»: e de que o Conde de Alcoutim não era homem que ao voltar de Ceuta soffresse a imposição de lavar, com o seu nome limpo, a mancha cahida na candura virginal da noiva.
Finalmente não venho com a pretensão de defender os creditos dos chronistas Damião de Góes e Francisco de Andrade, accusados de terem contribuido com os «seus testemunhos autorizados» para se formar aquillo a que se chama a Lenda, mas deixando «adivinhar nas entrelinhas a verdade». Nem tão pouco me arrogo a tarefa de desviar de sobre a cabeça de Frei Luiz de Sousa a culpa de ter insinuado «com a sua penna cortezã» motivos falsos para o casamento de D. Manoel, ou de illibar D. Antonio Caetano de Sousa do delicto de «fazer cópias viciadas por piedosa ou cortezã intenção, forçando e escondendo quaesquer vestigios que certamente encontraria, do recalcado escandalo.»
A minha intenção é sómente pôr de sobreaviso o leitor,[Pg 87] para se não deixar involuntariamente seduzir pelo apparato conjectural da versão romantizada.
Muito longe leva a phantasia quando se pretende a todo o transe defender uma these, acariciada pelo amor proprio de auctor!
Conheci pessoalmente Luciano Cordeiro. Tinha um excellente caracter. Era um trabalhador bem intencionado, um investigador a quem se devem muitos trabalhos de merecimento.
Mas não só litterariamente carecia de uma penna attica que tornasse menos pesada a sua prosa, e mais elegante a sua erudição, como tambem nos seus juizos era arrastado por violencia tão intransigente no apresentar das affirmações, que chegava a attingir a bôa memoria de algumas figuras femininas e a auctoridade de alguns historiadores.
Já na obra intitulada: Senhora Duqueza, pretendendo, aliás com bom designio, descarregar a memoria do Duque, desnuda indirectamente o coração de D. Leonor, e entra tambem a accusar D. Antonio Caetano de Sousa e outros genealogistas.
Menoscaba-lhes a probidade profissional e alcunha-os de falsarios, sem outro motivo senão o do auctor da Historia Genealogica, e os outros escriptores, não favorecêrem a sua these.
Aqui o caso é identico. Arrastado pela ideia de rectificar episodios historicos, excedeu a méta, e atropellou os obstaculos que encontrava.
Os documentos a que nos referimos, embora valiosos e interessantes, não têem o pezo que lhes attribue, nem d’elles se podem extrahir as conclusões de alcance historico que n’elles deseja encontrar.
Começa por dar a duas palavras alli empregadas o seu significado actual que differe do que então ellas tinham.
Honra—Escandalo. Não possuiam estes vocabulos, no seculo XVI o sentido que agora se lhes liga e com que Luciano Cordeiro interpreta os periodos da carta de D. Manoel.
Por isso quando aquelle Monarcha escreve ao Duque D. Jayme dizendo que:
«Se seguiram entre meu filho e ella algumas cousas de[Pg 88] amores e que isso foi tão adeante sem eu ser d’isso sabedor, que quando o soube era já muito desservido do que era passado, que de nenhuma cousa o podia ser mais nem fallecia muito para de todo não ser muito anojado e dentre mim e o Principe meu filho se seguir mui grande escandalo» (repito) El-Rei D. Manoel quando isto escrevia, não queria ligar á palavra escandalo a ideia que hoje lhe ligamos.
Não pretendia fallar na revelação espalhada de um caso escabroso ou no conhecimento pelo publico de scenas vergonhosas. Não! Queria apenas significar que algumas cousas de amores entre o Principe e D. Brites, isto é, o idyllio encetado, se fosse progredindo, podia trazer desavença entre elle e o filho, que estava destinado a outra alliança.
N’este mesmo sentido, e a proposito do casamento de El-Rei D. Manoel com D. Leonor, emprega Francisco de Andrade esta palavra quando diz:
«onde tiveram de lançar mão aquelles que desejavam de semear escandalos e desavenças entre o Principe e El-Rei seu Pae».
Escandalo, com sentido de divulgação de actos vexatorios e deshonestos, é termo recente e empregado sem grande correção.
Assim tambem a palavra—honra.
Quando na sua carta El-Rei D. Manoel diz: «vendo como por esta mulher estar tão fóra d’aquillo que eu esperava e com tanta magua da sua honra» não queria dizer que ella a tivesse perdido, como hoje se diria em linguagem de noticia de gazeta, para annunciar a quéda irreparavel de qualquer burguesinha loureira.
Apenas quiz, como tio-avô, informar o Duque de que ella decidindo-se a acceitar o galanteio do Principe, quando elle a destinava a um dos Infantes, exorbitara, e não honrara as determinações que lhe impuzera.
Nem o Rei D. Manoel, cavalleiroso e nobre como era, iria, pela bocca de um Secretario e mettendo na confidencia o Conde de Vimioso, e o proprio Duque D. Jayme, diffamar uma[Pg 89] parenta sua, uma orphã quasi creança, que lhe devia merecer attenções especiaes.
Sómente, encarando o galanteio do filho como uma ameaça á realização dos seus planos, e desejando afastar da côrte tão perigosa e perturbadora creaturinha cuja belleza iria causar «desaseguo» e tirar «descanso e contentamento» resolveu, antes que houvesse mais corações captivos e cerebros estonteados, que ella casasse com o primitivo noivo, que a levaria para o faustoso solar de Villa Real, ou para o seu commando de Ceuta.
Descobre-se na mensagem de El-Rei D. Manoel, é certo, bastante azedume por ver que a tentadora rapariga lhe alterava os projectos, e contrariava a vontade, que era casal-a com um dos Infantes. Resistir-lhe era motivo bastante para o exasperar. Enfeitiçar-lhe o filho, uma aggravante que trazia magoa para a sua honra.
Cumpria por tanto dar-lhe depressa um destino, que evitasse futuras complicações.
Iracundo, chega mesmo a affirmar na carta, que lhe diminuira o dote.
Mas d’ahi a cahir na baixeza de declarar, que a sobrinha era barregã de seu filho e que por isso a ia dar a outro sobrinho, ha grande distancia, que não se deve galgar de animo leve.
O proprio Duque D. Jayme, a quem El-Rei dirigia a mensagem, deu tão pequena importancia ao incidente, que nos seus apontamentos, em que responde ao Rei, ainda a pretende para seu filho, como se deprehende da contra-resposta de D. Manoel.
Este no entanto intimava por um cartão a seu filho que puzesse ponto no derretimento, e compunha d’este modo as peças do xadrez matrimonial, evitando um chéque ao Rei.
E ella, a quasi Infanta, a filha do Condestavel, seria a cabecinha leviana, a estouvanada, aquella a quem pesava mais o coração do que a cabeça, como a querem figurar?
[Pg 90]
Formosa, sim. Todos o asseguram. Seductora, sem duvida. Sensivel e romanesca a sua imaginação, levantar-se-hia em vôos audaciosos até ao throno, sem que isso revele uma aspiração desairosa, posta em pratica por processos degradantes.
Tinham-lhe dicto que um seu primo a pretendera. Mas esse estava em Ceuta, entregue ao commando militar e talvez desinteressado. Tinham-lhe tambem affirmado que D. Jayme a desejava para seu filho. Mas este era uma creança. Finalmente todos lhe diziam que o proprio Rei a destinava a um dos seus.
Que espanta pois, que ella, aceitando este alvitre, se inclinasse para aquelle que pela sua edade, pela aureola que o cercava, pela convivencia entre os dois, mais se adjectivava ao seu sentir? O Principe D. João!
Seria atrevida a ambição?
Mas a Rainha D. Leonor não era filha de Rei.
Tambem não o fôra D. Ignez de Castro. E, arrepiando mais na historia, lembrar-se-hia de D. Leonor Telles, e da mulher de D. Sancho II—D. Mecia Lopes de Haro, que era filha do Cabeça Brava; recordando-se tambem de D. Mathilde de Bolonha, que casara com o que havia de ser D. Affonso III.
Então?
Não era ella sobrinha de El-Rei D. Manoel? Não a tratava elle como futura nóra?
Mas este é que decidira de outro modo, quando ao filho remetteu o cartão, manifestando a sua vontade de que mudasse de ideias.
E o filho, o Principe D. João, que Luciano Cordeiro quer fazer-nos suppôr apaixonado pela Prima, não se achava tão absorvido pelo «amoroso enlevo» que não fosse, interpretando a seu modo a ordem paterna, cultivar a intimidade d’uma certa Izabel Moniz, cuvilheira da Rainha, e filha do alcaide Carrança, de quem teve um filho.
Já esquecera a novia de verano.
Ora coincidindo com o desvanecimento do sonho azul de[Pg 91] D. Brites, chegava a Lisboa, escorrendo gloria, o filho do Marquez de Villa Real.
Era D. Pedro de Menezes uma prestigiosa figura.
Como erudito tem lisonjeira menção nas obras de Cataldo Siculo, que em seus escriptos louva a eloquencia d’este Conde de Alcoutim, tanto em prosa como no verso latino, chegando a dizer-lhe n’uma carta:
«Non solum te nostratibus Poetis praefero, sed veteribus illis comparo.»
Seu avô, D. Pedro, achando-se um dia a jogar a chóca (especie do moderno golf) com outros fidalgos, foi chamado por D. João I para ir defender Ceuta. Pegou no páo com que estava jogando e disse para quem lhe trouxera o recado: «Com este cajado irei defender Ceuta dos Mouros». Por isso o escudo de armas de Villa Real tem por legenda—Aleo—isto é, o páo ou bastão com que D. Pedro batalhou.
Este tambem, como o seu antepassado, déstro e habil nos jogos athleticos, trocou o aleo com que jogava a chóca, pela espada com que entrou em Ceuta no anno de 1512.
Governou essa praça, e durante os cinco annos que alli permaneceu «conseguiu muitos triumphos e teve gloriosos successos».
Se não era um futuro Rei, era o herdeiro de um grande nome, parente da Casa Real, senhor de muitas villas e logares e... um noivo attrahente.
Quando desembarcou, vindo da Africa, tinham já corrido dois annos sobre o caso sentimental, que não passára de um flirt (permitta-se-me a expressão applicada a um namorico do seculo XVI), que apenas tivera importancia pelo muito que irritára El-Rei D. Manoel.
No coração da rapariguinha operara-se já, como n’uma retorta de laboratorio chimico, a reacção natural de que o tempo é poderoso agente.
Phantasias, ambições, sonhos de grandeza, chimeras côr de rosa, e todos os elementos com que na alma feminina se compõe[Pg 92] a imagem da Felicidade, tinham fermentado salutarmente no seu animo.
O passado não fôra a fallencia de uma vida, porque o devaneio interrompido não causára a derrocada irremediavel da sua existencia.
Fôra apenas uma miragem entrevista e logo desfeita, como as nuvens da primavera; uma illusão de optica sentimental, que a sua vista firme agora rectificava.
E o futuro Marquez de Villa Real não era apenas um premio de consolação na loteria matrimonial, nem um marido complacente destinado a aposentar cabecinhas levianas.
Grande homem de bem, bravo militar, intelligente, elegante e habil cortezão, seduzia com a sua personalidade dominante mais que uma imaginação feminina em busca de ideal.
Não foi por isso constrangida, nem arrastada pelo despeito, que D. Brites o acceitou.
O proprio Rei D. Manoel no seu escripto diz «tenho sabido que he com deliberada vontade de casar com o Conde d’Acoutym.»
Não foi tambem por obediencia ao Rei, que parecia querer impôr este casamento, nem ao pae que tanto o desejava, que o Conde a tomou por mulher.
Casou porque n’ella conheceu qualidades que a tomavam digna de continuar a sua nobre raça, e certamente tambem, seduzido por aquelle poder de encanto, que Damião de Goes celebra quando na sua chronica lhe chama: «uma das formosas e bem dispostas mulheres que em seu tempo houve n’estes reinos.»
As nupcias realisaram-se em 1520, no mesmo anno em que D. Joanna de Mendoça, a outra estrella do firmamento palaciano, se escondia nos Paços solarengos de Villa Viçosa.
Ambos os casaes foram felizes. Cada um a seu modo.
O Duque D. Jayme sentiu a mão delicada da antiga Inspiradora de Poetas, sarar-lhe a ferida, aberta na alma pelas recordações sombrias.
[Pg 93]
D. Brites e o Conde D. Pedro, esses, sem que recordações ou remorsos perturbassem as horas calmas do seu viver, nem suspeitando que mais de trezentos annos depois, futuros historiadores fossem projectar na sua mocidade fócos de luz artificial para refazer a historia, tiveram numerosa prole.
D’elles nasceu, além do 1.º Duque de Villa Real, aquella gentillissima Juliana, cujo encanto, como veremos no capitulo seguinte, tambem viria a ser causa de episodios ferteis em scenas dramaticas.
D. Brites vendo crescer a filha herdeira da sua belleza, pensaria talvez, com prophetico e penoso alvoroço, que nem sempre a graça e a formosura são dotes invejaveis, porque toda a superioridade, seja ella qual fôr, é sempre o alvo dilecto da malicia humana.
[Pg 95]
SUMMARIO
Prisão do Barão da Alvito—O heroe da aventura romantica—A filha de Brites de Lara—O romance—Entrevista nocturna—Evasão por uma janella—Quem era a verdadeira heroina?—D. Juliana defende-se—Condemnação de D. João Lobo—O Duque de Aveiro—O casamento—Epilogo.
Estava a Côrte em Santarem, nos fins do anno de 1546, quando occorreu um acontecimento extranho, que excitou vivamente as curiosidades mundanaes.
Fôra preso o Barão d’Alvito, D. Rodrigo, e mandado para o Castello de Soure.
Por que usaria El-Rei de tanto rigor para com o seu Védor da Fazenda?
Fallava-se n’um caso de amores. Mas o Barão tinha 52 annos, e o seu officio imprimira-lhe um caracter de seriedade, incompativel com aventuras galantes.
Então os mais bem informados mexeriqueiros das rodas paçãs esclareciam: Que não era elle o heroe do novellesco successo, mas sim seu filho, D. João Lobo, o qual aspirando á mão de D. Juliana, a filha da Marqueza de Villa Real, puzera em pratica um expediente, que esperava ser decisivo para o bom exito da sua empreza...
Mas acode aqui de certo, borbulhando na curiosidade do leitor, o desejo de saber quem sejam tão eminentes personagens.
[Pg 96]
Para lhe evitar o enfado de percorrer calhamaços de linhagistas, chronicas, ou codices de nobiliarchia, apresentar-lh’os-hei de seguida, conforme as boas fontes m’os indicam.
Vejamos primeiro quem seja o encarcerado.
Estes Lobos, de Alvito, enchem a Historia, desde os fins do seculo XV, sendo mencionados ora no desempenho de altos cargos, como os de embaixadores e Escrivães de Puridade; ora nas emprezas guerreiras, batalhando em Castella ou em Africa; ora nos saraus do Paço, compondo rifões, apodos, e cantigas do mal dizer; ora envolvidos em aventuras amorosas; ora luzindo em justas e torneios; ora elles proprios apodados e chasqueados por outros poetas palacianos.
Este D. Rodrigo era filho de D. Diogo, 2.º Barão d’Alvito, que estivera na batalha de Toro, que fôra estimado de D. João II, e que tivera habilidade de escapar á perseguição de que foi victima seu irmão, Fernão da Silveira. Entrou como aventureiro nas justas de Evora, trazendo um leão rompente com esta divisa:
«Con sus forças y my fee
todos mys males dobré.»
Effectivamente, soube navegar nas revoltas aguas da Côrte do Rei terrivel, e nas mais amenas, mas tambem perigosas da de El-Rei D. Manoel. Poeta e namorado, fez versos a varias senhoras, entre as quaes D. Filippa de Abreu.
Na farça do Velho da Horta, representada por Gil Vicente em 1512, vem elle assim citado na ladainha:
«Oh Santo Barão d’Alvito
Seraphim do deus Cupido
Consolai o velho afflicto.»
A qualidade da pessoa, a importancia dos que se lhe dirigiam, e o cuidado com que Garcia de Resende compilou as producções dos versejadores palacianos, fez com que elle ficasse[Pg 97] perante a posteridade notado por um incidente burlesco, aliás vulgar na misera humanidade, mas que nem sempre tem como actor um Védor da Fazenda, como chronista um Conde de Vimioso, e como reporter um Garcia de Resende.
Fôra o caso que n’uma jornada de Almeirim para Lisbôa... Deixemos, porém, fallar o Cancioneiro, que diz:
«Trouas que fez o Conde (de Vimioso) ao Barão (d’Alvito) porque vindo com el rrey d’Almeyrim para Lixbôa em hum batel, se lhe destemperou o estamago, e sahyo em uma cirvilha, a fazer seus feytos em huma lezira:
«Abaixo de Escaropym
através de Saluaterra
O Barão sahyo em terra
Quanto trouxe d’Almeyrim.»
e continúa relatando carnavalescamente o comico incidente, em versos que não eram destinados a mais, que a uma innocente brincadeira entre parentes. Não são porém, só as cantigas de escarnho do cancioneiro que o tornam memorado. A maneira como se houve no modo de apaziguar Lisbôa, quando El-Rei D. Manoel aqui o mandou para pacificar a populaça, excitada a matar judeus na celebre sangueira de 1506, dá mostra do grande valor d’aquelle que João Rodrigues de Sá mencionou assim:
«O dyno de ser escrito
por quem lhe dê seu louvor,
Barão, d’Alvito senhor
e Villa nova d’Alvito».
Um dia quando estava fazendo a barba para ir beijar a mão a El-Rei, que o fizera Conde, morreu de uma apoplexia.
Seu filho foi D. Rodrigo, o 3.º Barão, aquelle que foi[Pg 98] preso por ordem de D. João III como dissemos no começo d’esta narrativa.
Era Vedor de Fazenda, como quem diz, Ministro das Finanças.
Este logar, de grande importancia, pelas dependencias que tinha, grangeou-lhe numerosos amigos, mas, como sempre acontece, ainda mais adversarios e malquerentes. Uns gabavam o seu engenho, revelado em versos de bôa factura, como aquelles dirigidos a D. Beatriz de Vilhena, ou a satyra ás Damas do Paço, «que tinham feito um rol dos homens que havia para casar e entre elles alguns mais que sexagenarios.»
Exaltavam tambem a fórma como se desempenhára da missão de que o incumbira El-Rei D. João III, quando o enviou á Côrte de Carlos V, por occasião da morte da Imperatriz.
Os seus inimigos, porém, não lhe poupavam remoques, chegando até a accusal-o de não ser indifferente ás offertas com que as partes tentavam corrompel-o. D’esta maledicencia faziam-se écho varias boccas, mesmo entre as dos seus mais chegados. Assim o revela Suppico, que em um dos seus Apophthegmas nos conta o seguinte:
«Praticavam certos fidalgos, presente El-Rei D. João III, em fidalguias antigas, e avoengos passados. Entrou n’este tempo D. João de Menezes, e disse Dom Rodrigo Lobo, Barão de Alvito: Aqui vem D. João, que sabe muito dos passados. Respondeu-lhe: Dos passados não sei nada: agora dos presentes da vossa casa sei muito. Era notado o Barão de aceitar».
Se é verdadeira a anecdota de Suppico aquelle trocadilho com a palavra presente devia soar menos bem aos ouvidos de Dom Rodrigo, tanto mais que o caso se passava na presença do Rei, cujo valimento podia ser abalado.
Sel-o-hia effectivamente? E a ordem de prisão com pretexto ou motivo na aventura de seu filho, proviria da quebra do agrado régio, e diminuição de confiança? É o que vamos ver.
[Pg 99]
Mas o que fizera o rapaz?
Apaixonára-se pela formosa D. Juliana, filha dos Marquezes de Villa Real.
Era por todos os motivos uma noiva appetecivel.
O bisavô, D. Pedro de Menezes, primo do Rei, fora 3.º Conde de Villa Real, 7.º Conde de Ourem, e casára em 1462 com D. Beatriz, filha do Duque de Bragança, D. Fernando. Nada menos!
Quando D. Pedro foi nomeado Governador de Ceuta, tendo apenas vinte annos, alguns arguiram esta eleição pela sua pouca edade: mas o Rei atalhára:
«Os filhos da casa de Villa Real já nascem emplumados.»
D. Juliana, portanto, nascera emplumada. E se considerarmos que, além da alta hierarchia, tinha dotes de belleza notavel, comprehende-se que o moço D. João Lobo, filho do Barão, levantasse os olhos para a orgulhosa patricia.
Esquiva? Talvez! Mas o apaixonado rapaz, além de confiar em si, presumia ser attendido, visto que ia recebendo cartas de inilludivel e terna acquiescencia aos seus emprehendimentos.
N’esse tempo não era muito facil estabelecer um commercio amoroso entre gente da Côrte, como fôra pouco antes, quando a mocidade alegre se reunia em festas e serões. Não quer isto dizer que os não houvesse já n’essa occasião, e até com esplendor. Umas vezes no Paço, outras no palacio de D. Duarte, e dos outros Infantes, algumas vezes tambem nas residencias dos Condes de Linhares, dos Condes de Vimioso, dos Condes de Redondo, reunia-se ainda por este tempo a nata da aristocracia portugueza em tertulias de requintada intellectualidade. Nos Paços da Ribeira, de Almeirim e Coimbra representaram-se então muitos dos autos do irreverente Gil, e foi perante D. João III que o frade ribaldo Ribeiro Chiado poz em scena o seu—Auto da natural invençam. Foi[Pg 100] no pateo de Estacio da Fonseca, com assistencia escolhida, que se representou o memoravel—Auto de El-Rei Seleuco—do moço Luiz de Camões, que tanto deu que fallar. Mas em todas estas diversões respirava-se um ambiente sisudo e grave. Na Côrte dançava-se, sim, mas somente a arrastada pavana e a ceremoniosa galharda. E a Rainha D. Catharina, assim como desterrára dos serões os bailes pulados, era tambem inexoravel no que dizia respeito a galanteios, aventuras amorosas, e casos de paixão ardente.
Por isso nas assembléas do Paço, de onde a alegria ia fugindo, e cada vez mais a rigorosa etiqueta imperava, não era facil a D. João Lobo encontrar a linda Juliana de Lara, a quem de certo, se fosse como dantes, não deixaria de dirigir trovas de louvor, do mesmo modo que a outras haviam feito seu pae, seu avô e todos os Silveiras, seus proximos parentes e afamados poetas palacianos.
Mas os apparecimentos de D. Juliana eram raros. O pae morrera em 1543 e o lucto conserval-a-hia largo tempo alongada de festejos. Além d’isso os Menezes, Villa Reaes, orgulhosos e exclusivos, não entrariam frequentemente no convivio de outras familias nobres.
O apaixonado Alvito recorreu então ao classico expediente das cartas, servindo-se como intermediario de uma creada da casa dos Marquezes. O chefe da familia, Dom Miguel de Menezes, era uma creança que pouca attenção dava aos casos domesticos. A Marqueza viuva, bastante recolhida, não podia tambem fiscalizar as manobras da creada.
Ora, como as respostas das cartas que escrevia eram animadoras, D. João Lobo, julgando-se acceito, aventurou-se, com o escudo das seguranças recebidas, a pedir D. Juliana em casamento.
A Marqueza de Villa Real D. Brites de Lara e seus cunhados D. Nuno Alvares e D. Leonor, surprezos e arranhados no seu orgulho, esbravejaram.
Como se atrevia o pimpolho a levantar tão alto as suas vistas? Os Lobos eram de boa linhagem. Sim! Eram poderosos,[Pg 101] influentes e astutos no manejar o valimento régio. Mas não era o bastante para aspirarem a uma neta de Reis, a uma parenta proxima dos Braganças, a uma filha dos Menezes, Villa Reaes que nasciam já emplumados. Vedor da Fazenda! Tinha isso, é certo, algum valor. Mas o que era em presença dos titulos e senhorios do Marquez D. Pedro, pae de Juliana? Fôra elle 5.º Conde e 3.º Marquez de Villa Real, 2.º Conde de Alcoutim e Valença, 5.º Capitão General de Ceuta, Senhor das Villas de Valença do Minho, de Caminha e Terra de Valadares, das Villas de Almeida, Alcoentre, Chão de Couce, Pousa Flôres e Maçãs de D. Maria, Alcaide Mór de Leiria, etc.. Praticára façanhas em Ceuta durante cinco annos, e a sua gloriosa memoria não podia agora ser amesquinhada, alliando sua filha com quem lhe era inferior em nobreza.
Por outro lado, os Alvitos, beliscados na sua prosapia com a recusa insolita, assanharam-se e respingaram com aprumo: que a sua nobreza e fidalguia, attestada no escudo—cinco lobos passantes de negro, armados e linguados de vermelho, bordadura azul carregada de oito aspas de ouro—nada desmerecia da dos Menezes.
Então, em vez de discutir gráos de nobreza, o impaciente D. João resolveu assediar a fortaleza, sempre na ideia de que encontraria n’ella recebimento. Era o golpe de audacia dos que tentam a fortuna.
Uma noite, altas horas, já Santarem dormia, a Marqueza viuva e os filhos, recolhidos havia muito, sentiram um estampido estranho do lado da rua, e não muito longe dos aposentos de D. Juliana. Sobresaltados chamaram os creados, que verificaram ter sido arrombada uma adufa e ter «alguem lançado as portas da dita janella para fóra do coiçe.»
Foi, então visto um vulto saltar precipitadamente, levando «certas peças e vestidos.»
Alguns affirmavam ter reconhecido D. João Lobo, filho do Barão de Alvito, que assim indicava ter acolhimento intimo nos quartos de D. Juliana.
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O caso era grave. Tanto mais que D. João Lobo, interrogado, affirmou ser já casado com ella.
Ora, (e aqui complica-se o enredo,) á nobre heroina d’este romance havia El-Rei já destinado outro casamento, sem contudo ainda ter dado d’isso conhecimento ao interessado.
Tratava-se de a unir ao Duque de Aveiro, D. João de Lancastre, filho do Senhor D. Jorge e, portanto, neto de El-Rei D. João II.
Dava-se pois uma circumstancia curiosa. Este Duque de Aveiro fôra aquelle que, sendo ainda Marquez de Torres Novas, declarára ter clandestinamente casado com a filha do Conde de Marialva promettida ao Infante D. Fernando, irmão de D. João III.
O Destino tem ás vezes caprichos curiosos! O Acaso, nas phantasiosas curvas da sua acção mysteriosa, levava agora D. João Lobo a representar para com o Duque de Aveiro o mesmo papel, que este havia desempenhado com relação ao Infante D. Fernando.
Teria D. João III aproveitado as circumstancias para applicar a pena de Talião ao Duque, que em tempo se oppuzera ao casamento de seu irmão, impondo-lhe agora uma noiva que outro reclamava?
Não é provavel. Os factos têm uma explicação natural e simples.
Da parte de D. João Lobo havia uma paixão amorosa e isso, se não torna legitimas, faz no entanto perdoar as maiores loucuras.
Sem que tenhamos procuração d’esse romanesco fidalgo para lhe desaggravar a memoria adduziremos no entretanto, algumas attenuantes á leviandade de architectar a comedia da janella arrombada, e de se declarar casado com a innocente filha da Marqueza de Villa Real.
Recebera cartas d’ella, allegava o rapaz, em sua defesa, e essas cartas autorisavam-n’o a entrar em casa da sua noiva, ou, para melhor dizer, de sua mulher.
A declaração do casamento clandestino era expediente muito[Pg 103] usado n’aquelles tempos para o conseguimento do fim desejado, sem que o caso tivesse caracter de gravidade, que hoje teria para qualquer das partes. D. Pedro I affiançou ter casado clandestinamente com D. Ignez de Castro. O Rei D. Fernando assim quiz casar com D. Leonor Telles. O Marquez de Torres Novas agora Duque de Aveiro (este que D. João III destinava a D. Juliana) oppuzera-se ao casamento de D. Guiomar Coutinho allegando que com ella era casado.
Então?
Além d’estes exemplos, e superior a todos, o desvairamento sentimental do moço Alvito merecia talvez uma absolvição.
Mas El-Rei D. João III não o entendeu assim. As intenções do rapazelho contrariavam-n’o.
Os desposorios clandestinos não lhe agradavam. Estes «casamentos a furtos» tão vulgares no seculo XVI, eram validos, segundo as constituições do Arcebispado de Lisboa de 1537 sendo o homem de 14 annos e a mulher de 12.
Mas ia-se d’elles abusando, com manifesto prejuizo da boa ordem. E quantas vezes se simulavam, ou se inventavam! Este era menos que provavel ter-se realisado. E além d’isso vinha prejudicar planos assentes, pelos quaes se resolvêra dar um premio de consolação ao Duque de Aveiro, que se retirara amuado para Setubal, porque pretendendo casar com uma filha do Duque de Bragança, D. Jayme, e casar tambem sua irmã, D. Helena, com o Duque de Barcellos, fôra-lhe isso negado. Causara-lhe essa recusa manifesto descontentamento pois andava sempre emprehendendo «em que a grandeza da sua casa não fosse assombrada da de Bragança de que sempre viveu com emulação, trabalhando por estabelecer entre ellas equilibrio.» Ora, não era muito facil achar compensação para o casamento a que aspirava. Só se se fosse buscar á casa de Villa Real, parente de El-Rei e dos Braganças. Estava por isso indicada D. Juliana, e assim o havia decidido D. João III, quando rebentou o episodio de D. João Lobo e se espalhou a fama da sua aventura nocturna, com arrombamento[Pg 104] da janella, e a descida subrepticia com as vestes na mão...
Cumpria tomar providencias rapidas. A primeira a que se procedeu foi á prisão do velho Barão de Alvito, e ao seu encerramento no Castello de Soure. Parece a repetição da fabula do Lobo e do Cordeiro; com a variante de que aqui o Cordeiro era Lobo, e em vez de ser Filho era Pae de quem assim perturbava as aguas limpidas da Côrte...
Mas porque mandava o soberano prender assim o pae do delinquente?
O Sr. Teophilo Braga, fallando de passagem n’este poeta palaciano, aproveita logo a occasião para dar uma roda de inepto ao Rei dizendo: «D. João III, como estupido, mandou o Barão D. Rodrigo Lobo preso para o Castello de Soure».
Existe, porem, uma carta, do Barão dirigida a El-Rei, muito comprida (transcripta, bem como alguns outros documentos relativos a este caso, pelo Sr. Anselmo Braamcamp Freire no livro terceiro dos Brazões da Salla de Cintra.) que nos indica os motivos que imperariam no animo do monarcha para assim proceder. Por este documento se vê que se dizia que o Barão, pae, auxiliava o filho na sua empreza; e que tendo-lhe El-Rei recomendado que o vigiasse não o fizera devidamente.
Parece que se dizia tambem que por ter alliados na casa da Marqueza, dera um officio rendoso a um creado de D. Leonor de Noronha tia de D. Juliana: e que dava de comer a moços de casa da Marqueza com o intuito evidente de os subornar.
A tudo isto responde o Barão D. Rodrigo, com allegações confusamente expostas mas que constituem uma defeza clara. Falla na sua idade de 52 annos, nos 21 durante os quaes foi[Pg 105] Vedor da Fazenda o que lhe acarretara inimigos, seus accusadores agora.
Brada que a primeira mercê a cabo de tantos serviços prestados, não deveria ser pagar assim muitos annos innocencios. Insinúa que o casamento com D. Juliana não era desegual, visto que «fidalguia eu sou contente da que meus filhos e eu temos»; e accrescenta, com mais basofia que sinceridade, a affirmação de «que se me D. Nuno Alvares (tio de D. Juliana) pedisse meu filho para a sua sobrinha que lh’o não dera.»
A carta onde, a par d’esta fanfarronada, o Barão atira algumas biscas a D. Nuno Alvares, foi recebida por El-Rei ainda sob a impressão dos acontecimentos.
Metteu-a na boceta, e, longe de mandar soltar o pae, deu ordem para que o filho fosse tambem preso e se procedesse á devaça e julgamento.
Andava o Rei mal humorado porque n’essa occasião foi-lhe entregue um papel, sem subscripto, que se dizia ser assignado por D. Juliana, e todo com lettra d’ella, declarando ser casada!
Agora o caso tornava-se mais serio, visto ser a propria interessada quem fazia esta affirmação.
Ella, porém, informada do enredo que se urdia em volta da sua pessoa, e sentindo-se alvejada pela maledicencia de uns, pelas settas de escarneo dos outros, e pelas reticencias no sentir de muitos, mandou pedir a El-Rei que fizesse justiça, ordenando uma rigorosa investigação para aclarar tão melindroso caso.
O Monarcha promptamente accedeu.
O borborinho malevolo levantado pela bisbilhotice acerca d’estes casos indiscretos ia alastrando, quando El-Rei nomeou dois Desembargadores do Paço e do Conselho para juntamente com o Corregedor da Côrte fazer «todas as diligencias, exames e inquirições per que se a verdade do dito caso podesse bem saber».
N’uma manhã d’esse inverno de 1546, á porta do palacio dos Marquezes de Villa Real, em Santarem, apeavam-se das[Pg 106] pacificas mulas, em que vinham montados, os magistrados encarregados por El-Rei de interrogar a nobre donzella D. Juliana.
A Justiça em todos os tempos se tem revestido com trajes de grande solemnidade, e com espectaculosa ostentação para impôr o seu austero prestigio e inspirar respeito no desempenho das suas funcções.
Se ainda hoje, nos nossos democraticos pretorios, o juiz, o delegado, e o proprio official de diligencias, envergam com certa gravidade a béca e a volta tradicionaes, para se proceder ao julgamento de qualquer rufião da Alfama; se a robe rouge ainda veste pomposamente o magistrado do Palais de Justice que manda para os carceres de Paris qualquer apache de Montmartre; se na Royal Court of Justice o Presidente encaixa com sisudez a peruca do seculo XVIII para applicar alguns dias de hard-labour aos malandrins do Whitechapel, com que cerimoniosa pompa se apresentariam as Justiças do muito alto e muito poderoso Rei o Senhor D. João III para procederem ao interrogatorio da nobre filha dos Marquezes de Villa Real, reclamada como sua mulher pelo filho do Védor da Fazenda!
Com caras graves, vestes severas e empunhando com circumspecção as varas symbolicas, attributo do officio, os magistrados subiram as escadas, conduzidos pelo mordomo da casa, que os introduziu no salão.
Alli a velha Marqueza, seu filho o moço D. Miguel, e talvez tambem o tio D. Nuno Alvares aguardavam os Desembargadores, que iam inquirir sobre a veracidade do escripto, que fôra apresentado a El-Rei como sendo assignado por D. Juliana.
Esta, de pé, junto a uma credencia, sobre a qual jaziam, n’uma encadernação sobria e rica, os Santos Evangelhos, esperava, levemente arrogante, o Corregedor da Côrte e os seus companheiros, que se curvaram reverentes ao entrarem. Vestida de negro, com simplicidade, apresentava como unico[Pg 107] adorno uma cruz de ouro, que lhe pendia do pescoço, presa por um grilhão.
A cabeça emergia airosa da alta golinha. Uma ligeira nuvem de tristeza attenuava a altivez e desdem da physionomia, denunciadora de nobre raça.
Sem emphase, mas com firmeza, dirigiu-se ao Corregedor da Côrte, apresentando-lhe um papel em que escrevera a sua defesa. E para que não se puzesse em duvida tel-o escripto por sua mão, repetiu por palavras o que n’elle exarara.
Os dedos corriam-lhe nervosos na cadeia de oiro, mas a voz era serena, segura a dicção, e cada phrase soava sonoramente na vasta quadra em que a scena se ia passando.
«Peço digam a El-Rei nosso Senhor, que os mandou cá, que lhe beijarei as mãos por se lembrar de minha orfandade e desamparo. Se meu pae, que morreu em seu serviço, vivera agora, não se houvera este rapaz (e sublinhava com ligeiro desprezo as palavras este rapaz) de atrever-se a fallar em mim, levantando este falso testemunho. Sua Alteza (era o tratamento que ao Rei se dava ainda) ha de lembrar-se que sou bisneta do Duque D. Diogo, seu tio, e filha e neta dos mais leaes vassallos que Sua Alteza tem tido. Cumpre-lhe, portanto, dar o castigo que tão grave caso merece, para que em toda a parte se saiba a justiça que Sua Alteza mandou fazer. E para que n’isto sejaes mais certos, a vós, senhores, como a justiças de Sua Alteza, juro n’esta Vera Cruz que tenho ao pescoço, que lhes amostro (e com a mão alva e esguia elevava a cruz á altura dos olhos dos homens de lei, e n’ella punha os beiços respeitosamente) e a estes Santos Evangelhos em que ponho as mãos, que isto foi o mór falso testemunho que se nunca levantou.»
Depois, já menos solemnemente, mas com a mesma firmeza, accrescentou:
—«Nunca me passou pelo pensamento que este homem isto cuidara, nem nunca por nenhuma pessoa, mulher nem homem, nem moço, nem menino me foi dado recado seu, nem carta sua, nem nunca vi lettra sua, nem nunca pelo pensamento[Pg 108] me passou que com outro homem podia casar senão com o Duque de Aveiro.»
Como podia restar ainda alguma duvida, pois se havia fallado em cartas d’ella, promptificava-se a, presente El-Rei, escrever e fazer a sua assignatura.
Concluindo, dizia:
—«E peço a Sua Alteza, por quanto assim ha cartas falsas feitas em meu nome, queira que perante elle escreva. E porque eu fazia outro signal (ou assignatura), antes de agora, e por fazer má lettra, me ensinava a escrever o Dr. Manoel Vaz, mestre do Marquez meu irmão, e porque dantes eu fazia um Y grego no signal (Julyana ou Yuliana?) e agora faço um grande, porei aqui ambos os signaes.»
E escrevendo no papel que era destinado a El-Rei as duas assignaturas em presença dos Desembargadores, prestou de novo juramento e entregou-lhes o escripto.
O tom, a segurança de si propria, a fé com que jurara, o grande ar com que representára esta scena, davam um cunho de sinceridade ás suas affirmações. Não podia mentir quem fallava d’esta maneira. Assim o entenderam os magistrados que se retiraram recuando, e, d’isso convencidos, desceram a escada. Depois, bifurcando-se nas sellas, esporearam as anafadas azemulas em direcção ao Paço.
Não se fez esperar largo tempo a sentença que reza pouco mais ou menos assim:
«Manda El-Rei nosso Senhor, vistos estes autos e o libello que por parte da justiça foi dado contra D. João Lobo, filho do Barão d’Alvito, e vistas as diligencias e inquirições que se fizeram sobre o caso... e havendo respeito á sua menor idade, que vá degredado por dez annos para o Brasil, e que depois de cumprir o dito degredo[Pg 109] não entre na Côrte, nem a quinze leguas nem na villa de Santarem emquanto viver.»
A sentença condemnatoria causou grande impressão nas rodas mundanas em que parentes, amigos e simples curiosos, tinham seguido com attenção e avida curiosidade este enredo, que não sabiam esclarecer. Era então verdade a culpa de D. João, com a aggravante de se provar ser falsario e calumniador? Se o não era, como se explicava que o rapaz, embora leviano, mas que nunca faltara aos preceitos da honra, forjasse cartas, e viesse assegurar a existencia de um casamento nunca realisado?
Chegou afinal a apurar-se que elle não fôra culpado. Ao que parece, a alma damnada, a inspiradora e, porventura, figurante ou representadora da comedia, era uma creada da casa dos Villas Reaes que illudia o moço D. João, fazendo-lhe crer que era bem acceito de sua ama. Fabricava ella propria as cartas de D. Juliana, puzera talvez em scena o pretendido casamento, e, (quem sabe?) talvez o consummasse no mysterio d’aquella noite em que o apaixonado se encontrou dentro da praça, e intentou, ou se viu obrigado a arrombar a janella do aposento de D. Juliana.
Não ficaram documentos explicativos da interferencia da creada, que nos elucidem sobre os intuitos que a levaram a compor este auto vicentino, nem sabemos o destino que a moça teve.
Começaria talvez por uma simples complacencia para com as solicitações do namorado pretendente, seduzindo-a tambem a mira nas esportulas chorudas, dadas pelo generoso D. João. Fingia bôa avença da parte de D. Juliana.
Iria depois complicando-se por tal fórma a trama urdida que difficil seria recuar.
Teria tambem, (não é isso impossivel) o coração interessado; e não podendo comer á mesa do banquete, diligenciaria, com dissimulações e embustes, saborear algumas migalhas que lhe não eram destinadas?
Sendo assim, o desvairado D. João teria cahido n’um logro[Pg 110] levado pela conhecida sentença que diz: Quod volumus facile credimus. E elle, que tanto queria aquelle casamento, acreditaria facilmente nas apparencias mentirosas.
As cartas asseguravam-lhe amor correspondido, as entrevistas, nocturnas e rapidas, confirmavam-lhe essa convicção, e a comedia do casamento a furto (se a houve) mais lhe consolidaria essa crença. Quando entrou de noite em casa de D. Juliana, supporia talvez de bôa fé encontrar-se com sua mulher.
Muito penoso lhe havia de ter sido o accordar do sonho, sentindo-se roubado nas suas aspirações, afastado do valimento régio, e alvo das zombarias de todos os que estão sempre dispostos a folgar com os males alheios.
Mas nem calumniador, nem falsario era o pobre moço. Isso não!
Se não ha provas indiscutiveis da sua innocencia, nem documentos, que revelem os artificios occultos empregados pela ladina cuvilheira dos Villa Reaes para attrahir o incauto áquella ratoeira, ha testemunhos que, embora indirectos, são a cabal demonstração de que o procedimento de D. João Lobo e de seu pae, era menos condemnavel do que se suppunha.
Quanto ao pae, é eloquente a sentença dada em Julho de 1548, isto é pouco mais de um anno depois da prisão.
No seu accordão, os Desembargadores de El-Rei, ordenam que, em vista dos autos e da devaça, ao Barão D. Rodrigo seja levantada a menagem sob que estava preso no Castello de Soure, e permittem-lhe ir para sua casa.
Logo em seguida D. João III determina que venha para a Côrte servir o seu officio. Isto é reintegra-o no lugar de Védor da Fazenda, que exerceu até á morte, que succedeu em 1559. E não só lhe dá o cargo como lhe restitue a privança.
Estão cheios de anecdotas comprovativas da intimidade entre o soberano e o vassallo as paginas das chronicas e os Apophthegmas de Suppico.
Querem ouvir dois?
«Ordenando El-Rei D. João III que se fizesse um livro,[Pg 111] em que se escrevessem todas as mercês que até então tinha feito, e se sommassem; como soube que estava acabado, mandou que lh’o levassem, e juntamente outro em que estavam registadas todas as mercês que El-Rei D. Manoel seu pae fizera; e achando que até alli as suas valiam dobrado lhe disse o Barão, que era um dos Ministros com quem El-Rei communicava aquelle particular.
—«Não achará Vossa Alteza n’esse livro ter-me feito outra mercê mais que só de um açôr.»
Respondeu-lhe El-Rei:
—«E o potro que vos trouxe o Almoxarife de Beja, sahiu bom?»
Entendeu o Barão o remoque e disse promptamente:
—«Senhor sahiu um sendeiro.»
De outra vez, refere o bom do Suppico, estando El-Rei em despacho com o Barão d’Alvito e o Secretario Damião Dias se leu a petição de um rendeiro que estava preso por 500 cruzados que devia á Fazenda. El-Rei perdoou-lhe 300. O Barão mandou logo passar a Provisão d’essas partes mas o Secretario entrou em duvida sobre a quantia, o que originou disputa entre os dois magistrados. Atalhou então o Rei dizendo:
—«Pois que, cada um de vós me entendeu em differente fórma razão é que me incline para a melhor parte». E perdoou tudo a esse homem.
Este pequeno episodio, se demonstra a generosidade de El-Rei, dá tambem a medida da boa harmonia entre o monarcha e o seu Secretario das Finanças.
Isto pelo que respeita á plena rehabilitação do pae.
Com referencia ao filho, D. João Lobo, accusado dos crimes de diffamação, arrombamento, e outras acções feias praticadas em detrimento da reputação da filha da Marqueza de Villa Real, sabemos que nem sequer foi obrigado a partir para o degredo. E, se chegou a sahir do Reino, voltou logo. Mas ainda melhor demonstra não só o perdão, o apreço em que vieram a ser tidas as suas qualidades, o alvará de Abril de[Pg 112] 1560, que o nomeia por morte do seu pae, Védor da Fazenda com o ordenado de cento e oito mil e trezentos e trinta e trez reaes, fóra os emolumentos que deviam ser importantes.
Assentou, assim, como em chão de relva humida, a poeirada que o episodio do estouvado D. João levantara.
Não é conhecido, já o dissemos, o destino que teve a ardilosa camareira que, por espirito de intriga, ou de ganancia (auri sacra fames, que ataca ainda os mais humildes) ou talvez por erotica paixão, teceu a teia em que se iam enredando os Alvitos e a nobre Juliana.
D’esta é que sabemos como epilogou o romance.
Vamos a vêl-o.
Já contámos como o Duque de Aveiro se retirara rabugento para Setubal, quando El-Rei lhe embaraçou a pretensão de casar com a filha do Duque de Bragança e de casar sua irmã D. Helena com o Duque de Barcellos.
Foi tal o seu desprazer (diz D. Antonio Caetano de Sousa), deu-se por tão sentido, que não cuidou mais durante a vida de seu pae em tomar estado.
Os casamentos e os casos de amor fizeram por um capricho do destino segregar muita bilis a este D. João de Lancastre, filho da gentil «Perigosa», e do Senhor D. Jorge, aquelle que nascera num episodio romantico de D. João II.
Na mocidade tivera a louca pretensão de se declarar casado com D. Guiomar Coutinho, filha do Conde de Marialva, o que tantos dissabores lhe dera. Depois fôra o desvairo de seu pae (e d’esse achaque não estava então ainda curado) intentando, perto dos setenta, casar com D. Maria Manoel mocinha de dezeseis annos, ao que elle Duque de Aveiro tivera de se oppôr com uma energia que deu brado. Em seguida viera a contrariedade de lhe impedirem a alliança com os Braganças. Agora chegavam-lhe aos ouvidos rumores que misturavam[Pg 113] o seu nome entre os dos personagens do caso de Santarem.
—Que significaria esta atoarda? Perguntava a si proprio o Duque quando no inverno de 1547 se achava em Evora convalescendo, (talvez do figado combalido) e que El-Rei o mandou chamar a Almeirim onde estava a Côrte.
—Que lhe quereria El-Rei?
Até então nunca fôra Sua Alteza prodigo para com elle em graças, intimidades ou bons dias.
E embora alguns biographos affirmem que El-Rei era inclinado ao Duque, os factos tinham demonstrado o contrario.
Cumpria, porém, acatar as ordens do soberano.
Promptamente mandou selar o seu melhor troteiro, e ordenou que o acompanhassem alguns officiaes e creados, seguindo logo os azemeis e mulas bagageiras.
Pela estrada que corre da capital do Alentejo atravez a leziria até á pittoresca Almeirim, D. João de Lancastre ia ruminando a natureza das determinações de El-Rei.
Empreza militar?—Embaixada?
—Governo em Além-mar?
Porventura passava-lhe na mente a verdadeira causa da chamada. Ter-lhe-hiam chegado aos ouvidos os echos das declarações de sua prima D. Juliana perante os magistrados.
Zum-zuns indiscretos, talvez lhe tivessem trazido algumas palavras de El-Rei...
Á medida que se approximava de Almeirim, atravessando a paizagem plana dos campos de Muge, e quando lá ao longe via já recortarem-se na linha do horizonte as torres de Santarem, ia elle cogitando no destino que o esperava.
—Casamento? As ordens de El-Rei não se discutem. E d’ahi, talvez não lhe desagradasse a ideia (quem sabe?) de transformar a appetitosa Villa Real n’uma Duqueza de Aveiro.
Ia já nos 46 annos e a sua grande casa ameaçava não ter por elle successão. Não lhe repugnava pois a espectativa de que El-Rei lhe fallasse no assumpto.
O Palacio Real de Almeirim, fundado por D. João I, e que[Pg 114] El-Rei D. Manoel engrandecêra e alindára, já apparecia agora, n’aquelle approximar de noite fria de inverno, como uma grande mole escura, picada de luzes.
O Duque de Aveiro apeou-se á porta das casas que habitava o Arcebispo do Funchal, e ahi ficou alojado.
Logo na manhã seguinte se avistou com os soberanos, e El-Rei, sem mais preambulos, propoz-lhe para esposa D. Juliana.
D. João de Lancastre, Duque de Aveiro, não era um sonhador, um amoroso, um poeta, nem tampouco um artista. Intelligente, sim. Escriptor mesmo. Mas as suas obras denotam mais tendencias de erudição religiosa, que sensibilidade perante o encanto feminino.
Entretanto (considerava de si para si) D. Juliana era formosa, e as suas qualidades seduziam-no.
Não foi, portanto, constrangido que beijou a mão a El-Rei, agradecendo o interesse na conservação da sua Casa; e referindo-se «á que elegera para sua mulher, affirmou que nenhuma podia ser-lhe mais conveniente que aquella que lhe insinuava.»
Este rasgo do cavalheiroso Duque abafou por completo as ultimas murmurações dos soalheiros da Côrte.
Todos agora approvavam a determinação dos soberanos e a boa aceitação do Duque, que logo se ficou em Almeirim, preparando as bodas.
Na presença d’El-Rei se fez o ajuste do dote, assignando-se o contrato a 29 de Janeiro.
Não nos interessam os dizeres d’esse extenso documento, que contém numerosos artigos e demonstra a grandeza dos personagens que se uniam.
Olhemos apenas para as cerimonias e festejos a que este consorcio deu ensejo.
Quem nos vae guiar para assistirmos a essa festança é Braz Luiz da Motta, um conego da Sé de Lisbôa, que foi testemunha de vista, e que por isso escrevendo ao Cabido, a narrar-lhe as peripecias, se alonga em pormenores que necessariamente[Pg 115] temos que rezumir, embora com pena, por serem interessantes.
Foi a 1 de Fevereiro de 1547, que Dom Nuno Alvares, tio da noiva, a trouxe de Santarem em umas andas, especie de leito portatil ou palanquim, conduzido por azemolas possantes. Hospedou-a em sua casa.
Logo no dia seguinte, o Infante D. Luiz, o Cardeal, muitos bispos e toda a nobreza, montavam a cavallo, indo buscar o Duque de Aveiro á sua pousada.
Vestia, segundo diz o conego, de panno preto tozado, pelote e capa aberta, gorro de velludo com uma estampa, e um collar honesto. Montava um cavallo branco, sendo conduzido entre os Principes ao Paço, em cujo terreiro entraram, passando o arco. N’esse terreiro estava D. João III, tambem a cavallo. Recebeu-o affavelmente, debruçando-se sobre o arção da sella para lhe fallar.
A multidão era enorme e apinhava-se de tal fórma nos terraços, escadas, galerias, e varandas, que se deram alguns episodios, entre comicos e dramaticos.
Conta-nos o bom do Braz Luiz, que n’uma certa varanda e escada que a ella dava accésso, a gente era tanta, e carregavam uns sobre os outros com tal força, que o mainel d’essa escadaria rebentou, cahindo a gente, uma sobre outra, de cabeça para baixo «e os que traziam más calças descobriram as suas pobrezas, e os que as não traziam boas nem más mostravam aquillo que Deus lhes deu». Entre os gemidos de uns que sentiam as cabeças esmechadas, e a risota dos outros que tinham presenciado o espectaculo da natureza, a que o conego se refere, recolheram o Rei, o noivo e a Côrte á sala onde estava armado um estrado sob o docel.
Quando alli chegou a Rainha, a futura Duqueza, e as damas, veiu o Nuncio, que recebeu os nubentes.
Depois d’esta cerimonia começou o serão.
É difficil imaginar o que seria uma d’estas funcções na Côrte mais rica e faustosa da Europa, para celebrar as bodas dos Duques de Aveiro, ambos parentes de El-Rei. Nas paredes[Pg 116] os Razes e as tapeçarias de Flandres figuram scenas da antiguidade ou da mythologia. A luz macia dos brandões, que os pagens, vestidos de côres garridas, empunham, illumina as salas, povoadas da melhor nobreza. Brocados e sedas, e pannos de ouro adornam as lindas portuguezas.
Fios de perolas entrançam-se nos seus cabellos, e nos afogadores rutilam pedrarias custosas. Os purpoens e justilhos dos cortezãos entrecruzam-se com as vestes prelaticias dos Bispos e do Nuncio.
A musica da camara, em que se fazem ouvir João de Badajoz e os Baenas, Nicoláo de Estovar, tangedor de harpa, e os ministris mais habeis, entôa uma marcha mesurada, ao som da qual começa o baile.
Dansam: El-Rei com a Rainha D. Catharina, grave e severa nos seus velludos escuros; o Infante D. Luiz com a Infanta D. Maria, cuja belleza loira, porte altivo e deslumbrante donaire attrahem todas as attenções.
Não menos chamam a curiosidade os dois esposados, dansando juntos; ella graciosa no curvar das reverencias, elle inclinando-se com cortezia nos compassados movimentos.
E depois d’estes pares, os dos mais senhores da Côrte: as duas Bocanegras—D. Maria, a camareira-mór, e D. Cecilia, a mais nova, D. Maria de Menezes, D. Violante de Lemos, já edosa, que fôra dama da Rainha D. Leonor, e, muito novinha, a seductora Catharina de Ataide, pensativa, um pouco alheada, cuidando no seu poeta, e escondendo talvez no seio aquelle retrato de que elle disse:
«Retrato vós não sois meu
Retrataram-nos mui mal,
Que a sereis meu natural
Foreis mofino como eu.»
Ella sentindo o contacto d’este retrato e suspeitando as perseguições que ameaçavam o original, o moço Luiz de Camões, é possivel que errasse os passos da pavana. Errava-os[Pg 117] decerto, porém, com tanta graça, que era um regalo dos olhos. Assim o sentiam todos, desde os Condes de Portalegre, da Castanheira, da Vidigueira, e D. Affonso de Portugal, filho do Vimioso, e D. Francisco de Mello, filho do Marquez de Ferreira e muitos mais, até aos bobos e graciosos de El-Rei, que entre guinchos, dichotes e chufas que atiravam a granel sobre as cabeças mais gradas, não deixavam de celebrar a seu modo as bellezas femininas.
Eram esses bufões D. Fernando Roxas—marmanjo-mór, o Panasco, preto creoulo, cujos ditos eram famosos, e eram D. Felix e D. Briando.
«Os truhões chocarreiros com guitarras
Que aplazen aos reis, aos principes, aos infantes.»
Ao dar das nove horas terminou o serão.
Acabavam cedo estas seroadas da Côrte. É que além de ser esse o costume, cumpria n’essa noite ir accommodar o noivo na sua pousada, bem como todos os assistentes, alguns dos quaes tinham vindo de longe e para longe iam, afim de na manhã seguinte, logo ás 8 horas, estarem prestes para se celebrar a missa pontifical, em que o bispo do Funchal devia lançar as bençãos aos Duques de Aveiro. Eram complicadas as fórmulas do Cerimonial Romano.
Foi longo o jantar, e só pela tarde se organizou a cavalgada que havia de levar a nova recem-casada a casa do Duque seu senhor.
Occorre agora perguntar se os echos d’esta rija festa, levados pela indiscreção de algum alviçareiro desastrado, chegariam ao retiro onde a esse tempo se amofinava D. João Lobo, filho do Senhor de Alvito.
Vozes de orgão na capella real, charamellas, sacabuxas,[Pg 118] trombetas e atabales da fanfarra de El-Rei, o repicar festivo dos sinos das torres de Almeirim, annunciando as bodas, talvez fossem n’esse Fevereiro luminoso inquietar as vigilias do infeliz namorado.
Elle, no emtanto, tinha em si recursos para reagir contra as perrices do destino.
Não se deixou succumbir.
Tempos depois, já desvanecido o sonho amoroso, casava com D. Leonor Mascarenhas, filha do Capitão de Ginetes de El-Rei, e decorridos trinta annos veiu a rematar heroicamente a sua existencia ao som clangoroso das trombetas de guerra.
Entre estas duas datas a vida correu serena, e talvez feliz nos dois casaes.
D. João Lobo foi Vedor da Fazenda com agrado da Rainha Regente.
E o Duque de Aveiro desempenhou honrosas, difficeis, e ostentosas missões. Entre outras a da sua ida a Castela em 1552, com notavel pompa, a tomar entrega da Princeza D. Joanna, que veiu para casar com o Principe herdeiro, e que havia de ser a mãe de D. Sebastião. Para avaliar a grandeza d’essa embaixada basta dizer que, além de vinte parentes, todos com as suas comitivas, o Duque levava quinhentos homens de cavallo, oitenta alabardelos da sua guarda, e dois arautos, todos vestidos de sua libré roxa, amarella, e branca; e era seguido por cincoenta azemolas de bagagem.
Era opulenta a sua casa, era faustosa e intellectual a existencia do erudito fidalgo. E a residencia, assim como as dos Braganças, Vimiosos Borbas e Redondos, era frequentada pelos bons engenhos, que deixaram rasto notavel na litteratura portugueza.
Alli se encontravam o cerimonioso Caminha, o namorado Lopes Leitão, Francisco de Moraes, autor do «Palmeirim de Inglaterra», o Doutor Antonio Ferreira e, fulgurante entre os maiores—Camões, que mantinha com o Duque estreitas relações de espirito.
[Pg 119]
Da sua quasi intimidade dá-nos amostra a anecdota, referida por Juromenha quando conta a vida do Poeta.
«Indo o Duque de Aveiro (diz o biographo) ouvir missa a Nossa Senhora do Amparo, ahi encontrou o Poeta, e perguntando-lhe o que queria da sua mesa respondeu-lhe logo que bastava que lhe mandasse uma gallinha: esqueceu-se o Duque, ou fingio esquecer-se, e, depois de haver jantado, quando já não havia outra cousa, lhe mandou uma peça de carneiro, e o Poeta pelo mesmo creado lhe respondeu:
«Já eu vi a taverneiro
Vender vacca por carneiro,
Mas não vi, por vida minha,
Vender vacca por gallinha
Senão ao Duque de Aveiro».
Não pareça esta anecdota indicar parazitismo deprimente por parte de Camões, nem desdem ou falta de consideração do Duque, mas antes um despretencioso commercio de estima.
Elle proprio Duque de uma vez quando El-Rei o enviou á raia da Hespanha buscar a Princeza, e tendo n’essa occasião recebido de Setubal um solho, mandou de presente ao monarcha o saboroso peixe dizendo: «Que folgaria que soubesse tão bem a Sua Alteza como a elle lhe sabia a arraya de que lhe fizera mercê».
Da Duqueza pouco sabemos depois que casou, senão que manteve a linha orgulhosa e altiva que desde tamanina revelou. Mostra-o a insistencia com que, conversando um dia com o Duque de Bragança, D. Theodosio, lhe ia dando no decorrer da palestra o tratamento de «Vossa Senhoria».
Elle dissimulou cortezmente o despeito, mas na despedida disse-lhe sorrindo: «Advirta Vossa Excellencia (e sublinhava o tratamento) que cada um dá o que tem comsigo».
Ora, nesse tempo, só a casa de Bragança tinha «Excellencias» de juro.
Era a duqueza, ao que parece, boa educadora dos filhos,[Pg 120] em contrario do Duque, o qual tinha com elles taes complacencias que levaram alguem a dizer:
«O Duque não é pae, é irmão mais velho de seus filhos.»
Educados com rigor ou sem elle, os Duques modelaram-lhes as almas com tão preciosa argilla que todos foram notaveis, e o mais velho, o Segundo Duque de Aveiro, escreveu com lettras de sangue uma das mais bellas paginas da lamentosa epopêa.
1578! Junho arde. O ar escalda. No ambiente passam ondas de um fluido subtil que agita as multidões.
Lisboa nervosa, Lisboa quasi festiva, Lisboa em alvoroço, vibra n’um grande movimento de almas.
O Rei vae partir! Portugal quasi todo o acompanha, e todo o segue com os corações anciosos.
Nas ruas passa a cavallo, bello, sobre-humano, fulvo como um archanjo, entre os clamores, os gritos, as preces, e a ternura do povo que o acclama, El-Rei D. Sebastião em caminho dos galeões que o hão de levar á vizinha Africa.
Com o Rei vae a fina flôr da gente portugueza. Sedas, velludos, télas de ouro e prata cobrem os corpos elegantes e esforçados. Nas cabeças, levemente embriagadas pela ambição de gloria, as plumas das gorras presas por firmaes de brilhantes, tremulam ao sabor da aragem. Os cavallos mordendo freios de ouro, são sellados com os mais ricos arnezes, e nos xaireis levam bordados os escudos da melhor nobreza. As esporas que lhes tocam de leve o flanco são tambem de ouro, assim como os estribos em que os cavalleiros apoiam os pés.[Pg 121] É o caminhar de um exercito em festa, sacudido pela febre da conquista.
Entre os que o compõem dois, e dos mais graduados, nos interessam agora.
Um já começa a branquear, mas tem vigor no aspecto; e no olhar decisão e energia.
É D. João Lobo, Barão de Alvito que vae seguindo com a vista o moço Duque de Aveiro, filho da formosa D. Juliana, aquella que, trinta annos antes, tanto o enfeitiçara, e pela qual se ia perdendo.
Este, gentil de apparencia e seguido de numerosa companhia demonstra já o ardor exhuberante com que vae bater-se.
Quando em 4 de Agosto nos areaes de Alcacer Kibir, se deu a grande batalha, ambos foram heroicos no morrer.
O Barão com a experiencia da idade e a agudeza do engenho quando sentiu inevitavel a catastrophe, pela allucinação de El-Rei D. Sebastião, volta-se para Frei João da Silva gritando: «Por que não havemos nós de prender este homem?»
—«É tarde!» respondeu o frade.
—«Pois se é tarde, redarguio o Barão de Alvito, rezemos pelo Rei, pelo Reino, e pelos Vassallos.»
E morreu como um bravo!
O Duque, esse, fogoso, ardente, indomavel era a melhor ilharga do Rei.
Logo a 2 de Agosto, dois dias antes da batalha foi por D. Sebastião enviado a reconhecer o inimigo levando o Guião real. Arriscada era a missão e por isso tanto mais a apreciou. Foi o primeiro que encarou com os mouros.
Horas depois mettia-se com o seu batalhão no mais acceso da refrega.
A sua acção pessoal, nas trez avançadas que praticou, e em que «obrou milagres de valor» é das mais bellas estrophes d’esse poema de perdição.
Na investida tremenda e furiosa que Dom Sebastião deu com o melhor da nobreza para livrar a artilharia, o Duque de Aveiro retalhado de golpes, pereceu gloriosamente. Pouco[Pg 122] depois D. João de Portugal que assistira á mortandade dirigia-se a D. Sebastião exclamando:
«Só nos resta morrer!»
«Morrer, sim», murmurou com melancholica tenacidade o Rei, «morrer sim, mas devagar!»
Era como um dobre funebre acompanhando o anniquilamento d’essa geração que, se teve culpas, loucuras, leviandades e devaneios, resgatou tudo com sublime heroicidade.
[Pg 123]
SUMMARIO
As glorias portuguezas disputadas por estrangeiros. O Palmeirim de Inglaterra attribuido a hespanhoes. Controversias. Os trabalhos de Purser—Alguns dos documentos mais interessantes. A desculpa de uns amôres feita por Francisco o Moraes. A sua paixão pela bella Torcy na Côrte de França. As mimosas de El-Rei. Identificações. Coração ferido. A Infanta D. Maria acolhe benevolamente o poeta. Morte mysteriosa.
É sina das glorias portuguezas verem-se disputadas por extranhos!
Um punhado de aventureiros audazes e sonhadores embarca-se um dia em rudes galeões, em airosas fustas, ou em resistentes carraças e, de longada vae ao mundo revelando novos mundos...
Logo vêm Italianos, Hespanhoes, Francezes, e até Inglezes reivindicar a prioridade dos seus descobrimentos. E comtudo, se da Europa amputassem esta nesgasita occidental que as ondas beijam, e onde os monstros marinhos cantam extravagantes balladas; se supprimissem da Historia o povo que foi seduzido pela mysteriosa Atlantida, pelo mysterio do Preste João, e que, por loucura aventureira se metteu aos mares, o homem não teria tão rapidamente caminhado, a humanidade não poderia tanto a tempo ter-se alastrado pela terra, e muito mais tarde haveria conquistado o globo.
[Pg 124]
Um cavalleiro portuguez, Vasco de Lobeira, que as ideias de cavallaria andante embriagavam, escreve, na volta do seculo XIV, o seu Amadis de Gaula. E logo a sorte mofina envolve n’uma nebulose o auctor e o romance, de maneira que, conforme diz o Dr. João de Barros nas Antiguidades e cousas notaveis de antre Douro e Minho, «como estas cousas se seccam em nossas mãos os Castelhanos lhe mudaram a linguagem e attribuiram a obra a si.» Deram-lhe como auctor um Montalvo ainda mais indeciso na sua personalidade que o nosso Lobeira.
Um mathematico de genio, que lia nos astros e comprehendia a harmonia das espheras, inventa o instrumento que melhor ajudaria os navegadores a proseguirem na sua rota sem escolhos; e sem detença vem os Francezes com o seu Vernier, pretender que o aparelho d’este precede, se não no tempo, pelo menos nas vantagens, o nonio do nosso immortal Pedro Nunes.
Antonio Ferreira, o culto humanista, rendilha em correctissimos versos soltos a sua Castro, obra prima do nosso cyclo classico.
Pois o plagiario Bermudez não ousou arrogar a si a paternidade da obra, valendo-se da precedencia da edição da sua insipida Nise lastimosa?
Ainda mais. Um conego engenhoso e atrevido atira uma tarde, do alto do Castello de Lisbôa, em Agosto de 1709, a celebre Passarola, sua invenção, avó veneranda dos modernos Zeppelins. Soffregamente, os Montgolfiers em França affirmam que se haviam antecipado ao nosso Bartholomeu de Gusmão.
E não param aqui os latrocinios.
Recuando um pouco no tempo, topamos com o mais engenhoso romance de Cavallaria que o seculo XVI produziu—O Palmeirim de Inglaterra, lido e relido por cavalleiros e donas, amado por todos os que sentiam ainda na imaginação esvoaçar a pluma ligeira da poesia medieva, e se compraziam em admirar a valentia dos heróes que vencem gigantes e resgatam donzellas prisioneiras. Pois essa novella, que Francisco[Pg 125] de Moraes offerece á erudita e talentosa Infanta D. Maria, que durante dezenas de annos desperta em todos os animos masculinos valor e ancia de combates, e em todos os corações de mulher sympathia e admiração pelas proezas dos Palmeirins, Florianos e Dramusiandos, esse quasi poema que ao proprio Camões inspira a Tenção de Miraguarda, tambem tem sido regateado á gloria do seu auctor, attribuindo-o até a outros Portuguezes. Assim, o proprio Cervantes, ao dar o golpe mortal na Cavallaria Andante, quando figura na livraria de D. Quixote o barbeiro e o cura condemnando á fogueira os livros culpados da exaltação do engenhoso manchego, e exceptuando por serem excellentes o Amadis e o Palmeirim, refere-se a este ultimo dizendo: «este libro, señor compadre, tiene autoridad por dos cosas: la una por que él por sí es muy bueno; y la otra, porque es fama que lo compuso un discreto Rey de Portugal.»
Um Rei de Portugal? D. Duarte diziam uns, D. João II diziam outros sem grande attenção pela chronologia e sem grande senso critico. Como se ao melancholico filho do Rei D. João I sobrasse tempo depois de escrever o Leal Cavalleiro ou o Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sella, para se embrenhar na narrativa das extraordinarias aventuras, que se emmaranham nos 172 capitulos do famoso romance. Ou como se D. João II, entre os festejos de Evora e o proseguimento de sua empreza governativa, tivesse disposição e embocadura litteraria para se comprazer na tarefa de explicar como o cavalleiro do Dragão desencantou Leonarda, e como a mesma Leonarda foi tambem desencantada pelo sabio Daliarte.
Mas não é essa competencia, que mais affronta a paternidade do nosso Moraes. Cervantes, que não era um erudito ou um bibliophilo, attribuiu ao Palmeirim aquella origem, e ainda assim fallando pela bocca do Licenciado.
Outros Hespanhoes, porém, viriam disputar em favor de compatriotas seus, a proveniencia do notavel romance ao imaginoso Thesoureiro de El-Rei D. João III.
[Pg 126]
Depois de mais de dois seculos de incontestada naturalidade portugueza, apparece, em 1826, o livreiro-bibliophilo D. Vicente Salvá, que, fugido de Valencia, foi estabelecer-se em Londres, a berrar aos quatro ventos, no seu famoso catalogo, que descobrira uma edição hespanhola do Palmeirim, anterior á portugueza de 1567, e que o seu auctor era um tal Ferrer. Este Ferrer, diga-se de passagem, não foi mais que um modesto mercador de livros, escriba de segunda ordem.
Mas logo depois o filho de Salvá, illudido por um acrostico da edição de 1547, julga descobrir que não foi Ferrer o auctor da obra, mas sim Luiz Hurtado, um poeta menor, incapaz de o escrever por falta de engenho, e por falta de edade. Tinha apenas uns 15 annos.
Dividiram-se então os campos, envolvendo-se os contendores na celebre controversia, e foram com erudição apresentados os mais rebuscados argumentos (alguns fundados em ingenuas subtilezas) para comprovar as asserções com que os de cada nação reivindicavam o Palmeirim.
Do lado dos Hespanhoes formaram na primeira fila Salvá e D. Pascoal Gayangos, que foram seguidos por outros criticos e diccionaristas bibliographicos.
Defendendo a origem portugueza, encontrâmos o sabio hespanhol Benjumea, o brasileiro Odorico Mendes, D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Pinto de Mattos, o Sr. Theophilo Braga e mais recentemente o escriptor inglez William Edward Purser, que em 1904 publicou um livro digno, a todos os respeitos, de attento exame e de uma gratidão sem reservas por parte de todos os Portuguezes que prezam as glorias da sua terra.
William Purser, em 464 paginas de prosa cerrada, encara no seu Palmeirin of England o assumpto em todos os seus aspectos, e, occupando-se principalmente da controversia, demonstra[Pg 127] com argumentos irrespondiveis a origem portugueza da novella que Francisco de Moraes compoz, quando foi a França como Secretario de D. Francisco de Noronha, futuro Conde de Linhares, Embaixador de Portugal.
Não caberia aqui, ainda que me propuzesse extrahir e distilar a quinta essencia do assumpto ou apontar as questões que têm levantado o famigerado romance de cavallaria, bem como as polemicas litterarias a que tem dado azo. O sabio inglez trata de todas. Quem quizer aprofundar o caso terá, portanto, depois de ler os trez volumes do Palmeirim, o que não é tarefa ligeira para o leitor de hoje (pois que o mesmo Purser diz a respeito da novella: a work no one reads) de compulsar vagarosamente a obra do critico.
São de natureza varia os argumentos por elle usados; uns colhidos no estudo intrinseco do romance, outros fundados na chronologia, outros na comparação do merecimento de Francisco de Moraes, da sua cultura, do seu estylo, da situação social que occupou em Portugal e na Côrte de Francisco I, com as individualidades inferiores dos dois Hespanhóes, o Ferrer e o Hurtado.
Um dos mais engenhosos argumentos é o que devemos á paciencia do critico inglez, e que faz parte do capitulo em que coteja as duas versões, phrase por phrase. Prova com elle exuberantemente terem sido os Hespanhóes que traduziram (em estylo, aliás incaracteristico e insipido) o texto portuguez e não Francisco de Moraes que trasladou o de Hurtado.
Purser comparando os dois textos, e fazendo notar que a nossa palavra saudade não tem equivalente em hespanhol, encontrou no Palmeirim de Inglaterra, em portuguez, cincoenta e sete vezes esta palavra e sempre empregada com propriedade. No texto hespanhol é omittida trez vezes, e nas outras cincoenta e quatro é substituida pelas palavras—alegria—cuidado—gozo—soledad—deseo—deleite—etc; evidentemente rodeios para evitar a difficuldade da traducção de uma palavra intraduzivel.
[Pg 128]
Abençoada seja a benedictina perseverança com que o estudioso inglez catou a prosa de Francisco de Moraes!
Mais uma vez a palavra—saudade—tão nossa, veiu dar uma certidão de naturalidade a uma obra escripta na doce lingua portugueza.
Outro argumento que melhor ainda demonstra essa naturalidade e constitue, por assim dizer, uma prova n’este processo de investigação de paternidade, é o episodio que no Palmeirim de Inglaterra toma os capitulos 137 a 147, em que são descriptas as justas em honra de quatro senhoras francezas, esclarecido pela comparação com o escripto de Moraes, que nas suas obras se intitula: Desculpa de uns amores, que tinha em Pariz com uma dama franceza da Rainha D. Leonor, por nome Torsi, sendo portuguez pela qual fez a historia das damas francezas no seu Palmeirim.
Recordemos esse pequeno romance, seguindo o proprio Moraes, que n’elle foi heroe e chronista, e percorramos não só aquelle escripto em que nos deixou a sua confidencia, mas tambem a carta dirigida ao Conde de Linhares, onde encontraremos uma scena flagrante das recreações algo desregradas das damas da côrte franceza.
Desculpa de uns amores... é o titulo com que foi divulgada a curiosa declaração.
Desculpa? N’esta confissão, especie de auto-biographia amorosa, que alguem já comparou ás de Rousseau, por se comprazer em mostrar-se á posteridade n’uma postura de geito ingrato, o nosso Moraes é tão ingenuamente sincero, que não extranhamos que quizesse como que desculpar-se de, em edade já avançada, se deixar envenenar pela amorosa pestilencia distillada nos olhos maliciosos da escarnicadeira Torcy.
Para um meridional facilmente inflammavel, como era o thesoureiro particular de D. João III, que no seu proprio dizer[Pg 129] tinha «a condição namorada como em especial a tem os Portuguezes» e já anteriormente se sentira muitas vezes tomado de amores, era perigosa aquella creatura formosa, loureira, voluvel, e prezada do seu parecer, que estonteava todos os cortezãos de Fontainebleau, Dijon, Pariz e Melun. Vejamos como operou a feiticeira, e como se deixou captivar o indefenso portuguez.
Reinava em Portugal D. João III pelos annos de mil quinhentos e quarenta e tantos, quando em França o voluptuoso e inconstante Francisco I, aos pés da Duqueza d’Etampes, ou borboleteando entre as mimosas da côrte, esquecia a Rainha Leonor com quem casara, em virtude do contracto de Madrid de 1526, depois da batalha de Pavia.
La Reine Alianor, a irmã de Carlos V, fôra bella, quando na mocidade, as feições do seu retrato, devido ao pincel de Clouet, haviam perturbado de tal sorte a imaginação de El-Rei D. Manoel de Portugal, duas vezes viuvo, e quinquagenario, que, levado de paixão serodia, a roubou ao filho (depois D. João III) de quem estava noiva.
Agora, embora conservasse as linhas da sua belleza (belleza que, diga-se de passagem, um retrato existente em Hampton-Court não deixa suspeitar), começava a envelhecer e faltava-lhe o sufficiente prestigio para segurar o coração e dominar os sentidos do seu inquieto marido, o sybarita Valois, galanteador e artista.
Mas esse Rei, porque era cavalheiroso e magnanimo, rodeava a Rainha, embora imposta por Carlos V, o rival odiado, de uma côrte brilhante. E as damas que a serviam eram as mais illustres e mais formosas de França.
Á casa da Rainha Leonor pertenciam entre outras Madame de l’Estrange, Mademoiselle de Macy, Madame de Telligny, e, a mais que todas perturbante, Mademoiselle de Torcy.
Caçadas e justas, torneios e monterias succediam-se ora nos frescos bosques de Sonia «que agora chamam Dijon», ora na floresta de Fontainebleau, cujo palacio o Rei, seduzido[Pg 130] pelas graças da Renascença e influenciado pela Duqueza d’Etampes adornava com as maravilhas de Jean Goujon.
Era deslumbrante a côrte que Francisco de Moraes ia encontrar em França, para onde partiu em 1540 como Secretario do Embaixador D. Francisco de Noronha. Tão grande era o poder de seducção de que este dispunha que, sendo o posto que ia occupar sobremaneira ingrato, pouco depois de alli estar tinha conquistado as boas graças do Rei, da Rainha, dos cortezãos, e tornara-se o mimalho da sociedade franceza.
Não era isso empreza facil se pensarmos que Francisco I tinha sobejos motivos de aggravo da nossa côrte, que bem penosos eram para o seu orgulho, pois sentia a politica portugueza toda inclinada a Castella. Carlos V o adversario feliz, casára com uma filha do El-Rei D. Manoel, a doce Imperatriz Isabel; e D. João III depois de rejeitar Carlota, a filha de Francisco I, casára com D. Catharina, irmã do Imperador...
Acertadamente procedia portanto o Rei de Portugal escolhendo, para o representar em Paris, o insinuante e intelligente fidalgo. Teve este durante a sua estada em França uma melindrosa missão. D. João III destinara sua filha D. Maria ao filho de Carlos V, Filippe, o futuro Diabo do meio dia.
Francisco I não podia olhar com boa avença este consorcio que mais ia engrandecer o detestado competidor. O Rei de Portugal, querendo evitar complicações, julgou preferivel não dar d’isto conhecimento ao monarcha francez. Nem mesmo chegou a consultal-o.
A noticia, porém, voou até Pariz, e foi sabida na Côrte, antes que D. Francisco de Noronha a farejasse. O Embaixador passou por isso um mau bocado.
A scena que o chronista Francisco de Andrade nos deixa adivinhar é caracteristica e pittoresca.
De uma vez que o representante portuguez foi ao Paço, onde tinha facil accesso e onde era recebido com «muyta festa e bom gasalhado» notou que a atmosphera aulica tinha arrefecido subitamente. «Viu no Paço tão notavel differença que até nos lacaios se enxergava muito claramente. Porque a gente[Pg 131] franceza é a que mais se transforma ao gosto ou desgosto de El-Rei.»
Penetrou no emtanto até junto do soberano, que encontrou com sobrecenho, e de aspecto carregado. Pelas salas e antecamaras a frieza dos cortezãos annunciava-lhe borrasca. Não conhecendo a causa d’aquella novidade, o sobresalto não foi pequeno, sobretudo quando Francisco I, não podendo conter a colera que lhe invadira o animo, o levou para o vão de uma janella, onde, com palavras asperas, o increpou desabridamente. Queixava-se do procedimento do Rei de Portugal que, estando com elle em paz, fôra casar a filha com o herdeiro do seu maior inimigo, sem ao menos lhe dar as razões porque o fizera.
O Embaixador que nada sabia, e que carecia de instrucções para proceder, ficou engasgado. Mas não se desconcertou. Foi deixando explodir a sanha do irritado monarcha, emquanto reflectia na attitude que melhor convinha tomar.
Via no fundo da sala os cortezãos segredando, e adivinhava nas physionomias ironicas e sorridentes a satisfação com que alguns assistiam ao seu desfavor. Avaliando a gravidade da situação, logo que as queixas de Francisco I iam esmorecendo, pediu licença para responder. E com destreza se houve no seu arrazoado, jurando que ignorava tudo, mas que era sua convicção que o silencio de El-Rei de Portugal, longe de ser uma desconsideração, demonstrava o desejo de manter boa amizade... Enfeitou com tal arte esta these aliás difficil de defender, que Francisco I, ouvindo-o discretear «ficou n’isto tão satisfeito que com muito riso e festa levantou o Embaixador nos braços (porque era homem de muito grande corpo e de muitas forças), dizendo-lhe: Ah monsiour (sic) dom Francisco, dera Paris por um homem como vós.»
O gelo derreteu-se milagrosamente. E a fina flôr da gente palaciana, que de longe observava o extranho espectaculo, logo fez correr a noticia de bocca em bocca pelas camaras e recamaras, de modo que o valimento de D. Francisco ficou outra vez consolidado.
[Pg 132]
Quem era este Embaixador? Filho segundo do Conde de Linhares, por seu Pae descendia dos Villa Reaes e dos Braganças, sendo portanto proximo parente da Casa Real. Seu irmão primogenito, D. Ignacio, que na primeira mocidade fôra intelligente e valoroso, deixara-se dessoradamente arrastar a uma vida crapulosa de prazeres faceis. Attrahido pelos encantos equivocos de hetaïras de viella, sacrificava á Venus plebeia em orgias de baixa esphera, o que fez determinar sua mulher D. Isabel de Ataide, filha de Vasco da Gama, a recolher-se a um convento, desgostosa por ver o marido dominado e amollecido pelas comborças, que infestavam as betesgas da Alfama. Conscio da propria degradação, D. Ignacio, afim de mais livremente se entregar ás suas fugas para Cythera, pediu, ou foi pelo Rei induzido a pedir, a renuncia do titulo e da casa, em que succedeu o secundo-genito D. Francisco de Noronha que assim foi o 2.º Conde de Linhares.
Os Linhares, Noronhas, com excepção de D. Ignacio, eram gente dada ás cousas do espirito, e na sua casa prestou-se fervoroso culto ás lettras. Esse culto foi intensificado com o casamento de D. Francisco.
Sua mulher, Violante de Andrade, provinha de uma casa nobre tambem, e toda rica de tradicções litterarias. A essa familia pertenceu Diogo de Paiva de Andrade, o grande prégador; o heroico frade agostinho, Frei Thomé, auctor vernaculo dos «Trabalhos de Jesus», Francisco de Andrade, o chronista; sem contar que d’essa estirpe brotaram tambem os Ericeiras, tão nobres no patriciado das lettras como no do sangue, e no das armas. E de D. Violante e D. Francisco foi filho aquelle D. Antonio de Noronha, o amigo dilecto de Camões que, ao saber da morte do pobre moço, lhe dedicou o lindo soneto:
[Pg 133]
«Em flôr vos arrancou, de então crescida,
Ah! Senhor D. Antonio a dura sorte...
e que termina:
«Na memoria das gentes vivereis.»
Basta este verso para tornar immorredouro o nome de D. Antonio.
Entre aquelles que frequentavam a casa dos Linhares, todos notaveis por varias fórmas,—Fernão da Silva; Francisco de Moura, estribeiro mór do Senhor D. Duarte; João Lopes Leitão, o famoso pagem da lança, Caminha, o mesurado poeta, e Luiz de Camões, o turbulento amigo do moço D. Antonio,—encontrava-se frequentemente Francisco de Moraes, filho do Thesoureiro-mór do Reino.
As suas faculdades eram muito apreciadas e aproveitadas pelos Senhores d’aquella familia.
A elle por vezes recorriam, como se vê da petição dirigida a El-Rei por D. Ignacio, para que a seu irmão D. Francisco passasse o titulo e a casa.
Francisco de Moraes nascêra nos fins do século XV. Fôra na primeira mocidade, moço fidalgo da casa do Infante D. Duarte.
O cargo de seu pae e o seu proprio obrigaram-n’o a manejar cifras e algarismos.
Mas nem a tarefa da contabilidade lhe turvou a inspiração, nem o ambiente severo da Côrte lhe abafou as ebulições e effervescencias do coração.
Poeta, versejou em portuguez e castelhano. Cavalleiro e namorado, o mesmo é dizer—ardente de animo, terno de coração—foram varias as crises amorosas que atravessou, como elle proprio confessa. Não deixaram, porém, esses passageiros enternecimentos outro vestigio que não fosse a ingenua confidencia[Pg 134] (ou auto-biographia amorosa) que nos faz pela bocca do seu heroe Florendo do Deserto, ajoelhado aos pés da Torcy.
Pelas suas occupações, que lhe davam facil accesso na intimidade dos soberanos, e pela sua acceitação em casa dos Linhares, estava naturalmente indicado para Secretario da Embaixada de D. Francisco, que partiu para Pariz no anno de 1540.
Cumpre aqui n’um ligeiro parenthesis desfazer a impressão, que porventura tenham deixado no animo de algum leitor desprevenido, os periodos em que Odorico Mendes, o escriptor maranhense, que denodadamente defendeu a origem portugueza da novella, dá a entender que Francisco de Moraes foi na embaixada como mentor ou guia de Dom Francisco de Noronha. O Embaixador ficaria assim com um papel de simples representação, sem nada emprehender senão com a ajuda do intelligente Secretario.
Odorico Mendes, o douto Brasileiro, deixou-se arrastar pelas suas tendencias cegamente democraticas, quando escreve o seguinte: «Era costume, o de nomear-se um figurão para o posto superior, e alguem de boa cabeça para segundo.»
Deve notar-se que o figurão era um espirito cultivado, que logo de entrada conquistou as boas graças e resolveu negocios importantes, como é sabido.
E Francisco de Moraes, quando chegou a Pariz, nem mesmo a lingua franceza entendia, como elle proprio confessou na Desculpa de uns amores...
Nada prova isso em seu desabono, mas desfaz a atoarda que alcunha de inepto espaventoso o Embaixador, que tão habil se mostrou no desempenho da sua missão.
Um e outro eram dotados de engenho. Um e outro possuiam qualidades para se fazerem apreciar.
E o valimento do Embaixador facultou a Francisco de Moraes, o Secretario, facil acolhimento nos circulos palacianos. Valendo-se d’isto, e porque era conhecedor do coração humano, este soube habilmente explorar o affecto maternal da Rainha Leonor fallando-lhe na filha que ficára em Lisboa, e[Pg 135] evocando com tacto e arte subtil os tempos em que moça, adorada e feliz, quando casada com El-Rei D. Manoel, ella era a soberana radiôsa na Côrte de maior explendor da Europa.
A Rainha agora ia já entrando na edade mofina.
Desapparecêra a frescura da mocidade; o marido voluvel cultivava descuidadamente os alfobres em que floresciam as suas damas de honor; o irmão implacavel continuava a guerra; e, lá longe, sobre o Tejo, a filha, a Infanta D. Maria, unico arpão que devéras a prendia á vida, aboborava n’um quasi sequestro em que D. João III a conservava por não lhe convir que a Irmã sahisse de Portugal.
Francisco de Moraes facilmente encontrou o caminho d’aquella alma desterrada, d’aquelle coração maternal ulcerado, d’aquelle orgulho de soberana dolorida. Fallava-lhe em castelhano. Perfumava-lhe a imaginação de recordações, e o coração de consolos.
Descrevia-lhe a filha, a Infanta, então em todo o esplendor da sua altiva belleza loura, requestada por Soberanos e por Principes; narrava-lhe a existencia austera, mas de requintado lustre que ella levava nos Paços da Alcaçova Velha e nos de Santa Clara, onde a esse tempo já se reunia uma Academia douta e elegante.
A estes colloquios do Secretario portuguez assistiam ás vezes as damas da Reine Alianor, que eram para elle um motivo de constante curiosidade e lhe davam a impressão de fructos exoticos de desconhecido, mas appetecivel sabor.
Com os seus cincoenta annos ainda florescentes olhava attento aquelle feminino batalhão volante, que frequentemente tinha ensejo de observar.
É elle proprio quem o conta n’uma carta dirigida ao Conde de Linhares, D. Antonio, pae do Embaixador, datada de Melun, em 10 de Dezembro de 1541.
São d’essa carta os seguintes periodos que transcrevemos, conservando-lhes a redacção original para não tirar o sabor á descripção do jogo da pella (partida de lawn-tennis ou foot-ball), a que assistiu nos jardins de Fontainebleau:
[Pg 136]
«Antontem, que foram oito d’este mez, se partio el-rey de Fontenableo, e foy dormir a hua vila d’aly tres leguas, que chama Valença, e nam levou as damas comsigo que he maior milagre... No mesmo dia depois del-rey partido, se sairam ao campo a Delfyna, madama Marguaryta filha del-rey, madama de Etampes, a duqueza de Monpensé, que he nova e das famosas d’esta terra, sobrinha del-rey, filha de hua sua irmãa, e tambem dizem que avó, por sobeja amizade que tem com Monsior d’Orlyens. Na verdade cousas d’esta calydade sam quaa tam desacostumadas que se non deve de crer; sairam mais Mamsy, que é a mimosa del-rey, e madama de Latranja e outras da mesma banda, e metidas em hum cerco de cordas grandes que mandaram fazer repartidas em deus bandos, em vasquinhas de tafetaa curtas e manguas de camisa, porque os dias n’este tempo sam quaa quentes, jugaram a péla huas contra outras, e duas ou tres por muito destras davam d’arras juguar sempre co pee; pode vossa senhoria crer que aas vezes tomavam o voléo mais alto do que era necessario pera lhe ficarem cubertos os artelhos, e ainda que se fiassem nas calças que chegavam tee o gyolho, tambem afirmo a vossa senhoria que tinham ruim fiador. Eu me achey presente a esta festa, que aquele dia por mandado do senhor D. Francisco fuy a Fontenableo a negocio, crendo que el-rey e a corte estavam ali e sey que quaa pareceo muy bem e tambem sei que em nossa terra nam parecera asy. E pera que os brincos tivessem mais graça acercando-se da banda de fóra do cerco hum padre theologo da ordem de Sam Domingos que agora prega todo o avento á Raynha, e não sey se de muyto servidor se de namorado começou servyr de fóra do cerco as pélas que vinham perdidas de dentro. No principio ainda parecia que ho fazia com menos despejo, mas como a cousa começou a andar, deu cõ abyto no campo, e se o jogo durara muyto, parece-me que assy como se despejou do abyto de cima, se despira de todo para ficar mays desenvolto. Afirmo a vossa senhoria que foy um dos mays destros juguadores de péla que nunca vy. Acabado de perder huma das partes aquelas princezas[Pg 137] e senhoras se foram daly tee o paço, que seria doze tiros de bésta juguando o aleo e saltando huas por cima das outras; tambem aqui avya aas vezes saltar mal e cayr cos focinhos pera baixo, mas ynda que as novas sejam pera o senhor Marquez, como a carta é pera vossa senhoria, não posso dizer tudo, senam que o padre pera nam ver desonestydades remetya as que cahiam e cobertas cõ manto as ajudava a levantar; duas cousas lhe vy em extremo mavyoso e ligeiro o que eu nam cuydey que avia n’eles, que de conversaveis já he manqueira veelha que lhe ha-de durar tee morte.
Aa noute coatro ou cinquo d’estas senhoras em que entrou Tampes, Latranja, Mansy, madama de Monpensé, e despidas em calças e camisa com frauta e tamboril vyeram em mascara a casa da raynha onde contrafizeram volteadores e sempre muito mal; soo o pino acertou de ter graça n’ele madama de Mansy. A raynha parece que nam lhe pareceu tam bem a festa e porque nam ousou dizel-o mandou despejal a casa porque não podesse ser vista de muytos...»
Esta narrativa tão cheia de vida é feita com uma segurança de processos, que revela a penna habil de um romancista, o lapis de um humorista, e a ironia de um observador de costumes.
O observador, porém (pobre d’elle!) era homem, era um meridional impressionavel, era um portuguez de coração sensivel.
A atmosphera da côrte embriagava-o. A desenvoltura das ageis jogadoras de pella espicaçava-lhe os sentidos. As serenadas com frauta e tamboril boliam-lhe como cocegas na epiderme. E as vasquinhas curtas de tafetá, que não encobriam tudo, davam-lhe volta ao juizo.
Com o seu antiquado pelote de brocado á usança portugueza, tão querido de D. João III, e que tanto destoava das[Pg 138] modas francezas, que os amaneirados e dengosos Valois iam introduzindo, sentia-se quasi um anachronismo, desageitado e levemente rustico, entre os requintes das provocantes bellezas das mimosas d’El-Rei.
Essas que elle encontrava na camara da Rainha Leonor, quando era recebido pela virtuosa senhora, interessavam-n’o por motivos varios.
Alli via por vezes a Princeza Margarida filha do Rei e futura Duqueza de Saboya—a mãe do povo—casta e séria no meio da côrte frivola e licenciosa. É esta que Francisco de Moraes, no seu romance, faz figurar com o nome de Gratiamar (filha do rei Arnedos) dôce anagrama de Margarita, da qual Brantôme dizia: «elle eut le coeur grand et haut».
Alli encontrava tambem aquella a que chama a Delfyna, nem mais nem menos que Catharina de Medicis, a esse tempo já casada com o futuro Henrique II.
Conheceu tambem a Duqueza de Montpensier, «que é nova e das famosas d’esta terra».
N’esta palavra famosa ha reticencias, e intenções de interpretação que ficam á responsabilidade de Moraes, bem como no parentesco que lhe attribue, e com o qual deixa transparecer alguns dos maliciosos ruge-ruges, que apodavam como sobeja a amizade d’esta Princeza com o Duque d’Orléans.
Outras muitas attrahiam os olhares do cortezão portuguez, avido de sensações novas, e attrahido pelo espectaculo deslumbrante d’essa sociedade, onde brilhavam como lantejoulas todos os vicios, todas as graças e todas as qualidades da Renascença.
Quatro d’ellas, porém, lhe prenderam os sentidos. E uma os sentidos e o coração.
As trez primeiras apparecem-nos recentemente identificadas com mais ou menos felicidade e segurança pelo escriptor inglez a que já alludimos. Mansi—Telensi—e Latranja, que figuram no romance, parece serem a representação phonetica de nomes de senhoras francezas, que a pronuncia de um portuguez fazia soar assim.
[Pg 139]
Mansi, portanto, seria Mademoiselle Macy, depois Madame de Pont de la Haute de Magdelaine, que n’um banquete d’esse anno (1541) figurou á esquerda de Francisco I. com Diana de Poitiers, a Duquesa d’Etampes e a Condessa de Vertus. Era «amada e servida por El-Rei, com o que se ennobrecia muito».
Telensi devia ser aquella «gracieuse Damoyselle de Teligny», de que falla Billon, referindo-se á elegancia agradavel da sua distincta personalidade.
E Latranja é, sem duvida, Mademoiselle de l’Estrange, que fôra amante do Delphim Francisco, (fallecido havia poucos annos) e a quem um poeta aulico chamou n’um epigramma lisongeiro «face d’ange».
Uma, porém, enfeitiçou completamente o nosso Moraes: Claudia Blosset, dame de Torcy; a coquette Torsi «de grão valor»; Torsy a dama da Rainha, a quem Brantôme nas Dames galantes se refere significativamente, dizendo «J’ay ouy conter à Madame Fontaine Chalandry dite la belle Torcy...» Foi a ella tambem que Clement Marot, o poeta da côrte, n’uma das suas saborosas, picantes e espirituosas estrennes, disse:
«Damoyselle de Torcy,
Cest an cy
Telle estrenne vous desire,
Qu’un bon coup vous puissiez dire
Grand mercy.»
De nobre estirpe, pois que descendia da grande familia normanda dos Estouville, figura na Historia genealogica da Casa Real de França, do P.ᵉ Anselme, como filha de Jean de Blosset, Senhor de Torcy.
A nobreza de sangue dava-lhe um ar altivo, arrogante, encaprichado e desdenhoso, que quadrava bem com a sua elevada estatura. Tão alta e tão acima das outras que, quando Francisco I distribuira em 1538 velludo e setim, para que cada uma das damas da Rainha e da Princeza Margarida, fizesse dous vestidos, emquanto vinte e uma d’ellas recebiam apenas[Pg 140] dez váras dos preciosos estofos, a Mademoiselle de Torcy foram dadas nada menos de onze.
«Gram soberba (diz Moraes), acompanhava aquellas senhoras e a da Senhora Torsi maior que todas. De mais confiada ou mais cruel todo seu fundamento era na confiança do seu parecer e fermosura: e como de nenhuma outra cousa se quizesse ajudar, suas mostras eram acompanhadas de desdem isenção, e altiveza; e sobre isto esquecida de todos os serviços e vontade, com que lh’os faziam.»
Por estas palavras e por todas que accodem á penna de Moraes, sempre que falla, ficticiamente no romance, de Torsi a dama da Rainha Melicia, ou que se refere, na realidade, a Torsi «gram pessoa», na Desculpa de uns amores... sente-se quanto a soberba creatura o deslumbrava, e que tormentos lhe causou.
A perigosa rapariga manejava com artificio subtil a arma cruel da indifferença affectada, o que, por um phenomeno vulgar em casos de paixão morbida, excitava o temperamento naturalmente arrebatado do fogoso lusitano. «O repouso de Torsi, juntamente com o pouco caso que fez de ver que a olhavam, fizeram n’elles maior massa que nenhum dos outros.» São d’elle (no romance) estas palavras indicadoras do gráo elevado a que ascendera o seu thermometro amoroso.
Ao encanto que o avassallava juntava-se, ainda para o vencer, o cicate inquietador do ciume, farpão de amor, que ella, com a natural perversidade dos animaes felinos, explorava para seu divertimento, dispensando a outros, favores que a elle negava.
De uma vez que a Côrte se dirigia, para assistir ás Vesperas, atravez da galeria de Diana, para a sumptuosa Capella da Trinité, o Embaixador de Inglaterra que, como tantos outros, andava preso das graças da formosa Torcy, e lhe prodigalizava as suas assiduidades, offereceu-lhe o braço. E, conduzindo-a, poz n’isso tanta significação de galanteio que o pobre Moraes sentia estalar o coração vendo-os passar sorridentes e felizes.
[Pg 141]
De outra vez, entrando n’um aposento, surprehendeu o Duque de Chatillon (Monsieur de Xatillon, diz elle), «gentil homem de edade juvenil, lançado no regaço» da leviana Torcy.
Quando estes casos se davam o romanesco Francisco de Moraes, dilacerado, com o cerebro em ebulição e os nervos vibrantes, corria a encerrar-se no quarto e fazia versos. Atirava ao papel, sempre docil e fiel confidente de poetas, a expressão do seu tormento.
As novellas de cavallaria tinham grande acceitação na Europa inteira. Liam-n’as com interesse não só as mulheres frivolas ou sentimentaes mas tambem espiritos sérios, almas voltadas para os horizontes da graça celestial ou da politica dos homens, que tiravam prazer de tal leitura. Santo Ignacio, Santa Thereza, Diogo Furtado de Mendonça, o proprio Imperador Carlos V, eram leitores apaixonados d’essas maravilhosas bugigangas.
Francisco I fôra educado quasi exclusivamente com a leitura de romances de cavallaria andante. Sire de Boissy dera-lhe a beber desde creança um leite capitoso, com a licção dos Amadis e quejandos, que geravam muita acção heroica e muita exaltação amorosa. A alma do complicado Valois, assim formada, encaminhou-o na vida, que para elle foi um verdadeiro romance de aventuras.
O Secretario da Embaixada portugueza, cuja phantasia era povoada tambem pelos heroes das fabulas cavalleirosas, e pelas aventuras romanescas, encontrou-se assim n’um ambiente propicio á expansão da sua actividade sentimental. Imaginou então fabricar elle proprio façanhas, descrever acções heroicas, exaltar rasgos amorosos... Emprehendeu escrever o Palmeirim de Inglaterra.
Levava-o já adeantado quando o fulminou a paixão pela[Pg 142] formosa dama da Rainha Leonor. N’essa altura introduziu na traça do romance o episodio das quatro Senhoras. Como vingança? Como desabafo? Como homenagem? É difficil sondar á distancia de mais de trez seculos a alma do namorado poeta, e procurar nos escaninhos mais fundos do seu ser os sentimentos que dictavam os periodos em que faz figurar a bella desdenhosa. Entretanto esses dez capitulos cotejados com o escripto intitulado Desculpa de uns amores... são um valioso auxilio para o conhecimento da psychologia do auctor, e uma prova de ter sido por elle escripta primitivamente essa obra, cuja paternidade os Hespanhoes reclamaram.
Mas não é nosso intento agora entrar na controversia.
Voltemos aos quartos da Rainha Leonor, onde Francisco de Moraes encontrava a linda Torcy, seu enlevo e seu tormento.
Surprehendeu-o esse furacão quando já se julgava ao abrigo de paixões. Elle proprio o diz: «Não sei que isto foi que em idade já desviada de pensamentos ociosos cobrei um cuidado novo... Não cuidava que em tal idade amor tivesse poder, agora sei que a nenhuma não perdôa.»
Não lhe soffreu o animo callar-se. Declarou-se, ora com os olhos, á portugueza, naquella linguagem que toda a mulher entende; ora com palavras que ella não percebia, manifestando a sua paixão e esperando que fosse acceita benevolamente, ou pelo menos que lhe désse um doce engano.
«Não quiz mais enfadal-a (confessa elle) com razões, pois eram ditas em vão. Affirmei os olhos nella guiados do coração e d’alma, porque já desesperado de outro remedio aquelle me dava a vida, e chegado a casa fiz um vilancete ao mesmo proposito, e em castelhano, porque me pareceo que aquella linguagem lhe seria mais leve de entender:
«Ya que yo no se hablaros
Pongo los ojos em vos...»
[Pg 143]
Mas, depois arrependendo-se, compoz outro vilancete em portuguez, «que hei que faço injuria á minha natureza querer bem como portuguez e escrevel-o em castelhano». E dizia-lhe :
«Para se poder passar
O grande mal, quando vem
Ha-se de fiar de alguem...»
Elle confiava-o ao papel, e fazia versos. Torcy não os entendia. E que entendesse?! A maliciosa e frivola pariziense, toda entregue ás futilidades da sua vida de prazer, de festas e de dissipação mundana, era forçosamente avessa áquella furia amorosa, e toda se arripiava com as impulsivas demonstrações sentimentaes do impetuoso Portuguez.
Deixou perceber o enfado que lhe causavam.
Elle então lançou mão de um expediente que poderá surprehender o leitor de hoje. Mas se recordarmos os livros de cavallaria andante, e até mesmo o D. Quixote, tão ingenuamente desastrado em muitos lances amorosos, não estranharemos ver Francisco de Moraes cahir de joelhos aos pés da bella Torcy em plena sala da Rainha de França...
A mais genuina expressão da Cavallaria é o culto da Mulher.
Pela sua Dama combatiam os cavalleiros. Usavam d’ella as côres e as emprezas, punham nos escudos as iniciaes dos seus nomes, morriam contentes na liça sob o seu olhar, ou corriam mundos em cata de occasiões para a defender. O culto enternecido que a Cavallaria medieval prestou á Virgem Maria tinha por motivo ser Ella a Mulher entre as Mulheres.
Á ideia de Cavallaria ligavam-se todos os sentimentos nobres, levantados, intransigentes em pontos de honra, incondicionalmente submissos ao predominio da Mulher.
[Pg 144]
E Francisco de Moraes, que viveu o seu Palmeirim e na sua vida é retintamente cavalleiro, e impenitentemente namorado, não hesita nem recúa perante o que hoje achariamos ridiculo. Ajoelha-se deante da mulher que o captivou, e desabafa enternecidamente.
«Na camara da Rainha, á vista d’ella e de suas damas, ajoelhado em terra, comecei com palavras mui compostas trovadas do acatamento de sua pessoa e presença antes de confessar a culpa a pedir perdão d’ella. Não sei se de ufana de si mesma, se do lugar onde estava, se enfadada de me não entender me disse que não era contente que a amasse tanto, mandando-me que o não fizesse d’alli por diante.»
A romanesca alma de Francisco de Moraes defrontava-se assim com a gelida ironia de uma coquette de raça, apenas occupada na adoração da sua pessoa.
N’uma tal ou qual ingenuidade nativa, no seu idealismo poetico e apaixonado, o enternecido portuguez é um verdadeiro precursor de D. Quixote.
E, guardadas as devidas proporções, a bella Torcy, insensivel ao calor das inflammadas palavras de Moraes, lembra, não sei por que, a Dulcinéa, assediada com as declarações do heróe manchego.
Uma na Côrte requintada de Francisco I impertinente e zombeteira, a outra boçal, rustica, asselvajada na sua aldêa de Toboso, são ambas o typo do eterno feminino divinizando-se e esquivando-se ás adorações dos seus devotos, e são um exemplo do fundamental contraste entre a poetica phantasia dos apaixonados e a prosaica indifferença das naturezas imperturbaveis e frias.
Para a Torcy zombeteira e artificiosamente esquiva, o poeta portuguez alli ajoelhado era apenas um joguete, um motivo de galhofa, era mais uma pella do torneio com as companheiras que assistiam á scena entre frouxos de riso. Obrigou-o a repetir as queixas e desculpas amorosas em portuguez e castelhano, e, triumphante conquistadora, orgulhosa voltava-se para as outras escarninhas, commentando com malicia[Pg 145] com as contorsões da sua victima. Elle, então, escreve no seu caderno:
«Estas palavras me entendeo mal, mas parece que lhe soaram bem (ingenua illusão!) que me mandou duas ou tres vezes que lh’as tornasse a dizer, e porque no portuguez mas entendia peior, quis que as dissesse em castelhano, e virando o rosto para uma dama que estava da outra parte, me deixou, e praticou com ella, parece-me a mim que á minha custa...»
Esta confissão tão sincera não acarreta sobre o pobre apaixonado nem uma leve sombra de ridiculo, como podia suppor-se, imaginando o amorudo quinquagenario, de joelhos, na roda das raparigas, maliciosas, desfructadoras, trocando umas com as outras sorrisos zombeteiros, emquanto escutavam a aravia, para ellas inintelligivel, do romantico declamador.
Pensando que a victima é uma das mais lidimas glorias da litteratura quinhentista, um escriptor de grande engenho, que a paixão trazia tresloucado, perdido, caminhando n’um sonho, aquillo que a leitura do episodio nos inspira é uma irresistivel sympathia pelo auctor do Palmeirim de Inglaterra, e uma inevitavel malquerença contra as levianas encarnicadeiras que assim manteavam o poeta, com a mesma desenvoltura com que os moços da venda hespanhola, se divertiam fazendo saltar Sancho Pança sobre o cobertor.
Não deixou Francisco de Moraes de se sentir, e attribuindo grande parte do seu desfavor a enredos fomentados pela inveja de alguns dos cortezãos francezes, dá largas na sua narrativa ao rancor que lhes dedica, pintando-os constantemente vencidos.
Uma vez é Brecião de Rocafort (Rochefort) que soffre um revez e «fica corrido de fazer tão pouco»; outra vez é Rober Roselim (Ruper) que cahe no chão, abrindo-se-lhe as feridas e soltando-se-lhe as veias; ainda outra vez é o Conde de Brialto (Brialte) levando um braço quebrado, ou o Conde Gisar tirado do campo quasi sem vida.
[Pg 146]
E sempre os Francezes são apresentados com inferioridade.
Este desforço havia de trazer ao romancista amoroso, e despeitado, consequencias nefastas, como vamos ver.
Entretanto, ia elle terminando o seu admiravel romance.
Leria alguns dos capitulos do seu livro á Rainha Leonor?
É possivel. E não custa a crêr que ella transmitisse a expressão do seu agrado á filha, a Infanta D. Maria, que em Lisboa era o fulcro brilhante da culta Academia.
A esta Princeza deu certamente Francisco de Moraes conhecimento directo dos seus trabalhos. E não só isso, mas até lhe dedicou a novella, quando ella era noiva do Duque de Orléans.
Na douta biographia d’esta Princeza, traça D. Carolina Michaëlis um formoso quadro phantaziando a impressão que a leitura do Palmeirim causaria no cenaculo feminino, composto pelas damas e donzellas da intelligente filha de El-Rei D. Manoel.
«Durante semanas (escreve a erudita academica), as aventuras tanto do fidalgo e poeta namorado, que havia sustentado lá fóra a fama do typo nacional, como os feitos de D. Duardos e D. Florendos, e a esquivez de Miraguarda alimentavam decerto a imaginação do cenaculo. Reunidas na bibliotheca ou na sala de lavor, emquanto a Infanta e as suas damas bordavam custosos paramentos, dando côr e vida ás linhas traçadas por Francisco de Hollanda, as latinas Luiza e Joanna e as musicas Angela e Paula revezavam-se na leitura do Palmeirim. Acabado um capitulo, começava a discussão das bellezas litterarias».
Este romance acabara-o em Pariz, o imaginario poeta e ao passo que ia remoendo a paixão pela endiabrada franceza.
Os ultimos mezes passados em França foi-os arrastando, ora no palacio do Embaixador, ajudando D. Francisco de Noronha no seu labor diplomatico, ora na Camara da Rainha, cujo coração, magoado pelas infidelidades do Rei, se condoía com os tormentos do infortunado Secretario, ora nas galerias de Fontainebleau, onde via passar ás vezes Francisco I, já a[Pg 147] esse tempo comballido pelos effeitos da mysteriosa vingança do marido da bella Ferronière.
Junto da Rainha, que delicadamente sabia lastimal-o, sentia Francisco de Moraes o conforto nascido na piedade tão feminilmente consoladora. Do Rei recebia provas de consideração, pois o intelligente monarcha sabia quanto o Palmeirim era notavel. Nos cortezãos, que frequentavam o Palacio, advinhava, sob a contrafeita deferencia, um sentimento mesclado de emulação e de imperceptivel motejo, que as suas infelicidades sentimentaes porventura provocavam.
Quando terminou a Embaixada e o Secretario encofrou nas arcas das bagagens os gibões de velludo, as gargantilhas de renda, que ostentava na côrte, os papeis do Estado, os manuscriptos da sua novella, e, de mistura, as illusões que lhe haviam enfeitado o espirito, experimentou certamente um allivio.
Recordando amarguras e displicencias passadas, e o desprazer de ter vegetado com tão ingrata sorte na atmosphera artificial d’aquella estufa parisiense, bem diversa da distante e saudosa Lísboa, appellava no seu animo para a recepção que lhe estaria reservada na patria.
E não o trahiu essa esperança.
Quando chegou a Portugal já o seu romance tinha corrido de mão em mão, inflamando todas as imaginações femininas e exaltando os animos cavalleirosos.
O proprio Rei D. João III, embora n’essa quadra andasse dorido ainda com a morte de seu filho natural D. Duarte, pelo qual em signal de lucto, tomou um capuz (tão ostensiva foi a sua mágua!...), pelote e carapuça de arbim cardado, não deixou de attender á belleza da obra e aos meritos litterarios do seu engenhoso auctor. Concedeu-lhe logo, bem como a seus descendentes a graça de usarem o appellido de Moraes Palmeirim.
[Pg 148]
É sem duvida o mais lindo titulo a que um homem de lettras póde aspirar:—usar o nome da sua obra-prima!
Sentiu então a gloria bafejal-o com meiguice, compensando-o de antigos dissabores. E o acolhimento que recebeu da Infanta D. Maria, a quem dedicou a obra, foi dos melhores balsamos para cicatrizar antigas feridas no seu orgulho.
Escutava-o quando elle lhe fallava da mãe, e lhe referia os casos da Côrte franceza. Animou-o, louvou-lhe a novella... Que efficaz unguento é o applauso para alguns espiritos!
O lisonjeiro ambiente, que lhe acariciou o amor-proprio, foi sarando as chagas do amor-paixão.
Esqueceu a Torcy, e nem talvez tomasse cuidado quando em França pelos annos de 1553 ella casou com Luiz de Montberon, Senhor de Fontaines Chalendray.
Entretanto os annos iam correndo e as phantasias do coração assentavam pouco a pouco, como poeira no fundo de frasco tranquillo. Então Francisco de Moraes pensou em casar tambem, como aposentação sentimental.
Não mencionam as biographias os dotes physicos ou as qualidades d’aquella que o acompanhou no outomno da vida.
Formosa? Intelligente? Bondosa?
Ignoramol-o.
Mas Barbara Madeira, sua mulher, (não sei porque este nome indica uma matrona virtuosa e fecunda) deu-lhe effectivamente numerosa descendencia, d’onde proveiu gente illustre, entre a qual o talentoso Padre Balthazar Telles, da Companhia de Jesus.
As honras tambem o aureolaram. Foi commendador da Ordem de Christo. Teve um cargo no Paço. Era universalmente considerado.
Quando já passava bastante dos 70, indo uma vez, a entrar, já de noite, no rocio de Evora, cahiu varado pelo golpe de um punhal, que mysterioso embuçado lhe vibrou.
[Pg 149]
Quem seria? Que motivo haveria para assassinar o velho e glorioso novellista?
Alguns escriptores attribuem esta morte a manejos da Inquisição. Mas o terrivel tribunal, se quizesse castigal-o, tinha outros meios ao seu dispôr:—os carceres—os tormentos—os autos de fé.
Attribuiram tambem alguns o crime á sanha dos Jesuitas. Foi moda durante certo tempo, entre historiadores e homens de lettras, imputar todos os attentados praticados na sombra, ás forças occultas da famosa Companhia.
A verdade, porém, é que não se acham motivos para que os Jesuitas lucrassem em supprimir o escriptor.
Outros, porém, e talvez com o faro mais apurado, querem imputar a morte do auctor do Palmeirim de Inglaterra a algum d’aquelles cavalleiros francezes, que tinham sido maltratados no romance.
Levara muitos annos a vingança em fermentação.
Mas n’aquella epocha os livros circulavam morosamente, e os despeitos e os odios conservavam durante muito tempo a força do rancor. Se a suspeita é certa, como parece, Francisco de Moraes teria morrido victima do seu coração que muito tinha amado a formosa Torcy, e victima do proprio talento, com que tão certeiramente alvejou os rivaes, que o tinham supplantado!
[Pg 151]
SUMMARIO
O bem molherigo de Portugal—A donzella Guiomar—moradora na Calçada. Filha do Cosmographo mór—O sabio—Os discipulos—Astrologia—Astronomia—O romance da Filha—Traição do pretendente. A cutilada—Entrada no Convento.
Escrevendo a respeito do «bom molherigo» de Portugal, e especialmente do «valor e animo das mulheres portuguezas», Duarte Nunes do Leão, no livrinho posthumo, a Descripção do Reino de Portugal, que seu sobrinho Gil fez imprimir, falla com particular enternecimento na «donzella moça D. Guiomar,» cujo animo levantado e varonil tanto o assombrou.
Foi o laborioso Licenciado eborense contemporaneo da endiabrada rapariga, e talvez a conhecesse, pois no minusculo mundo da intellectualidade d’esse tempo o Desembargador Duarte Nunes—chronista—e o Doutor Pedro Nunes—cosmographo-mór—embora a identidade dos patronimicos não seja prova de que houvesse parentesco, de certo cultivavam relações de espirito, e até porventura conviveram, visto que ambos habitaram por vezes, simultaneamente, Evora, Lisboa, e talvez mesmo Coimbra.
Acabou Duarte Nunes de escrever o seu livro em 1599, «estando recolhido na villa de Alverca, por causa do mal de que Deus nos livre» (a peste que então lavrava). E como é[Pg 152] todo composto de notas, e esta de que nos occupamos foi registada nos seus canhenhos pouco depois do escandaloso caso, a que vamos assistir, não se atreveu o Doutor a esmiuçar circunstancias ou tirar a lume pormenores da picaresca aventura, que tornou celebre D. Guiomar, dando-lhe como alcunha: a da cutilada.
Não que o amedrontasse o genio assommado da resoluta menina, pois as referencias que houvesse de fazer-lhe seriam todas em seu abono. Mas talvez porque na familia do imbelle casquilho coimbrão, heroe da romanesca historia, havia gente de importancia, e creaturas rancorosas e vingativas, como veremos.
É de lastimar que, por esta ou por outra razão, não nos dêem mais informações acerca de D. Guiomar, nem o repositorio a que alludimos, nem as «Noticias chronologicas da Universidade de Coimbra», de Francisco Leitão, onde se encontram os famosos versos, já por alguem attribuidos a Camões:
«Senhora Dona Guiomar.
Moradora na Calçada...»
Mas, á falta de indiscreções de soalheiro, que tornariam mais picante a anecdota, temos de nos soccorrer dos estudos feitos ácerca da vida e obras do seu glorioso pae.
O nome d’este, mais que regionario, mais que nacional, mais que europeu, porque o seu engenho notavel, e a sciencia que possuiu ajudaram os navegadores portuguezes no proseguimento das suas derrotas, logrou fama universal.
Se, porém, as suas obras o tornaram celebre e lhe dão um logar unico entre aquelles, que teem contribuido para fazer crescer o patrimonio dos conhecimentos da humanidade, e se a invenção do Nonio, o pequeno instrumento tão precioso para as observações astronomicas, perpetuou a nome do genial Portuguez, a sua vida, sendo pouco conhecida, escassamente nos ajuda nas investigações para architectar o romance, que deixou a sua filha apontada á nossa curiosidade.
[Pg 153]
Entre os modernos escriptores, o sr. Alberto Pimentel, aproveitando-se do que diz Duarte Nunes do Leão, um pouco tambem das Noticias de Francisco Leitão, e mais que tudo da propria phantasia, compoz uma novella que, embora interessante, é como muitos dos chamados romances historicos, obra principalmente de imaginação.
Quando o distincto escriptor engendrou a sua Dama da Cutilada, novella que se encontra n’um volume intitulado Portugal de Cabelleira, editado no Pará, em 1875, quasi nada se sabia da vida de Pedro Nunes e nada da de sua filha, além da scena que adiante vamos relatar.
Mas com o recente movimento de estudos historicos, que tem trazido á luz factos ignorados, ou rectificado os confusos, na biographia do Cosmographo-Mór, podemos adiantar-nos um pouco (muito poucochinho!) no campo das conjecturas pelo que diz respeito á filha, conhecendo-lhe a raça, a nacionalidade da mãe, a sua situação social, a regalada mediania em que vivia, o nome do heroe da aventura amorosa, e os motivos plausiveis, que o levaram a um proceder descortez.
Depois de muitos escriptos, além dos que já apontámos, em que se trata das obras, e se dá algumas noticias da vida de Pedro Nunes, como são as de Ribeiro dos Santos, Stokler, Varnhagen, etc., veiu em 1889 Sousa Viterbo, o cego-vidente, que tantos documentos curiosos arrancou ao limbo dos archivos, e publicou nos seus Trabalhos nauticos dos Portuguezes um artigo ácerca de Pedro Nunes.
Depois, os estudos recentissimos dos distinctos academicos Dr. Luciano Pereira da Silva, General Brito Rebello, Antonio Baião, Rodolpho Guimarães, etc., trouxeram, além de valiosa contribuição para se dar um balanço sério aos tratados scientificos do Mathematico, alguns dados para accrescentar ás suas notas biographicas.
Antes de fallar da filha, fallemos d’elle e de seus discipulos.
[Pg 154]
Entre as individualidades gigantes do grande seculo portuguez, aquelle periodo aureo que decorre entre Aljubarrota e Alcacer-Kibir, avulta com singular relevo a do auctor do Tratado da Esphera, Dos Crepusculos, da Arte de Navegar, essa inconfundivel figura do grande Nonius.
O mathematico Pedro Nunes, philosopho e um quasi nada astrologo, como adiante veremos, foi um notavel professor de Artes, expressão que no seu tempo abrangia, segundo a divisão aristotelica—o trivio—em que figurava a grammatica, a rhetorica e a dialetica; e o quadrivio, constituido pela geometria, arithmetica, astronomia e musica.
A sua crescente fama apontou-o, desde moço á attenção de El-Rei D. Manoel, perspicaz farejador de meritos, e contrastador de capacidades, que lhe confiou a missão de ensinar as sciencias mathematicas e a philosophia a seus filhos.
Ensinou trez gerações de Principes e, o que ainda é melhor, formou o espirito scientifico, dos mais eminentes cerebros do seu tempo.
Que mestre e que discipulos!
Não só lhe ouviram as licções D. João, que depois foi Rei, e o Infante D. Luiz, «sacra anchora da nação, delicias de Portugal», e o Infante D. Henrique, depois Cardeal e Rei, e o Infante D. Duarte e D. Antonio Prior do Crato, e El-Rei D. Sebastião, mas aproveitaram-lhe os ensinamentos, além de successivas gerações de ouvintes anonymos, e de infinitos navegadores e pilotos, que foram guiados, na «liquida estrada», pelas luzes da sua arte de marear, D. João de Castro, o heroe da India, auctor dos Roteiros, e o proprio Camões!
D’entre os Principes, discipulo dilecto foi o Infante D. Luiz, quarto filho de El-Rei D. Manoel, nascido em 1506, a quem o Mestre dedicou o Tratado da Esphera.
Esse Principe deixou da sua memoria um rasto luminoso.
[Pg 155]
Poeta, generoso Mecenas, fogoso guerreiro, arguto estadista, faustoso amphytrião, homem de sciencia e amoroso cavalleiro, quando a gente começa a ler ácerca da sua vida deixa-se insensivelmente ficar a maldizer da sorte, que o poz em quarto logar na série dos filhos de El-Rei D. Manoel.
Seu irmão, o bisonho D. João III, sentia-lhe a superioridade, e, dominado por um semi-ciume, semi-admiração, ora reclamava a sua voz auctorisada no Conselho para a resolução de casos difficeis na administração do Reino, ora contrariava os seus projectos de emprezas guerreiras e allianças conjugaes. Foi contra a vontade do Rei, o qual mais de uma vez lhe promettera um commando, sem nunca o deixar ir batalhar em Africa ou na India, que resolveu fugir de Evora e clandestinamente partir com os navios de Antonio de Saldanha, para levar auxilio ao cunhado, o Imperador Carlos V, contra os infieis.
N’essa expedição pediu para se incorporar um pequenito ruivo, cuja viveza era notavel. Chamava-se Luiz de Camões e ambicionava tornar-se bem acceito do Infante.
Presentia, de certo, o turbulento pagenzito a gloria que o Infante havia de alcançar no cerco de Goleta e na jornada de Tunis, cuja conquista aconselhara, contra o parecer dos capitães de Carlos V.
Do coração amoroso d’este Infante dá testemunho a firmeza com que recusou desposar a Princeza Edwige, filha do Rei da Polonia, com o contrapeso do seu grande dote, porque a esse tempo andava captivo dos encantos da formosa Violante Gomes, a Pelicana, appetitosa judia, de quem havia de nascer o Prior do Crato.
Mas se foi elle proprio quem desviou aquelle casamento, foram outros que o impediram de casar com a Rainha de Escocia, Maria Stuart, de tragica e voluptuosa memoria; com a filha de Francisco I, de França; com Maria, Rainha de Inglaterra (the bloody Mary), com a filha de seu irmão D. Duarte, que foi Duqueza de Parma, e com a que foi mulher de Felippe[Pg 156] II, projectos atropelados pelo irmão, pela cunhada, e pelo Imperador.
Tão bem dotado pela natureza e fadado para maiores feitos, este Principe cultivava carinhosamente as lettras. Attribuem-se-lhe, com mais ou menos fundamento, muitos dos sonetos que andam nas obras de Camões, e o Auto do D. Duardos, que figura nas de Gil Vicente, bem como o dos Captivos ou dos Turcos, que se suppunha perdido e que ultimamente foi encontrado.
Tambem d’elle existe um soneto, que se conserva na bibliotheca de Evora.
Além do cultivo das artes, e da faina a que o obrigava a sua alta posição social, applicava este Principe a sua actividade intellectual no estudo das sciencias mathematicas, em que foi leccionado por Pedro Nunes, e escreveu um Tratado dos modos, proporções e medidas, e outro sobre a Quadratura do circulo.
Condiscipulo era d’este Infante, nas licções de Pedro Nunes, um moço de nobre ascendencia, filho segundo de uma grande Casa, onde, como em muitas outras illustres, as lettras eram um segundo morgado, e que, levemente excentrico, revelara desde pequeno um assombroso engenho, e um caracter de rija tempera, que a Historia havia de eternizar nas pedras das fortalezas da India; nas phrases emphaticamente lapidares de Jacintho Freire de Andrade; nas paginas dos Roteiros celebres, nas estancias da Villa de Almada ou nas penedias e bosques silvestres de Penha Verde, para onde se retirava, escondendo soffregamente a lua de mel com uma prima, ou fugindo «com antecipada velhice» ás ambições da Côrte. Arredío e avesso a seducções mundanas, mais ambicioso de gloria que de mercês, e preferindo a honra a honrarias, se não era mimoso na aula régia, onde El-Rei D. João III «que o amava por valoroso, lhe era comtudo pouco affecto, por altivo,» foi tido em alto apreço na aula de Pedro Nunes, onde acompanhava o Infante D. Luiz, de quem foi intimo, e de quem, no fim da vida, havia de receber, com os emboras pela victoria, aquella famosa carta que começa: «Honrado Viso Rei!...»
[Pg 157]
Porque aquelle rapaz, que ouvia com tão grande proveito a exposição das doutrinas do Cosmographo e que havia d’ellas tirar noções para escrever, «nas horas que lhe perdoavam os cuidados da guerra, a descripção das Costas da India, signalando baixos e recifes, a altura da elevação do Polo em que estão as cidades, restingas, angras e enseadas, as monções dos ventos, condições das marés arrumando as linhas em taboas differentes; tudo com tão miuda geographia que o podera esta só obra fazer conhecido se já o não fôra, tanto pelo valor militar», esse rapaz, era o futuro heroe do Diu, era—D. João de Castro!
A ligação intellectual entre os dois grandes vultos que foram o Infante D. Luiz e D. João de Castro, e a influencia de cada um nas sciencias do seu tempo, dariam ensejo para um capitulo interessante, que seria todo em louvor e exaltação dos merecimentos do mestre commum, o mathematico Nunes.
Outros discipulos teve elle, por diversos motivos attrahentes, e que dariam tambem pretexto a pittorescos quadros evocativos da epocha, se seguissemos em imaginação o doutor envergando o seu gibão de bombazina parda, montado em mula pacata, caminhando pelas congostas e viellas da Lisboa mourisca, em direcção á Alcaçava, onde El-Rei residia ainda, emquanto não se terminavam as obras dos Paços da Ribeira.
Nos aposentos reaes esperavam os Infantesinhos. E, chegado alli, levemente curvado pelo habito do estudo, vel-o-hiamos dobrar o joelho perante esses pequenos Infantes que, uns mais rebeldes, outros menos, lhe ouviam as praticas.
O seu perfil adunco, revelador de homem de nação, desenhando-se sobre o damasco vermelho das paredes, daria á scena uns tons caracteristicos e significadores das relações que entre as duas raças até esse tempo existiam. De uma parte, os christãos aproveitando as faculdades scientificas ou financeiras[Pg 158] dos judeus de quem colhiam conhecimentos, remedios medicinaes, bom manejo de finanças; e da outra os hebreus recebendo em troca uma certa tolerancia nas leis e nos costumes, e auferindo elevados juros de suas agencias.
Breve ia acabar este estado de cousas, com o começo das perseguições já proximas.
Entretanto, a fama de christão novo, que vagamente pairava sobre o Cosmographo, nunca o prejudicou directamente.
Reis e Principes, mesmo depois, em tempo do Cardeal Rei, intransigente e inquisidor, tinham pelo glorioso mathematico carinhosa predilecção.
É que recordavam, talvez, as sessões de estudo nos palacios reaes e nos aposentos dos Infantes, onde D. João III ainda tamanino aprendera noções geographicas, arithmeticas e os prolegomenos da philosophia aristotelica; onde o Infante, depois Cardeal D. Henrique, ouvira as theorias de Ptolomeu e as correcções apresentadas áquelle systhema, pelo sabio professor; e onde o Infante D. Duarte, depois da sua licção com mestre André de Rezende, empregado com o resumir em latim o tratado De Predicabilibus e as cathegorias de Aristoteles, ou em declamar de côr o livro De officiis, de Marco Tulio, recitando-o tambem ao revez, pegando na ultima palavra e palrando todo o capitulo de deante para traz, se entregava, com a memoria ainda desarticulada por este exercicio, ás prelecções de Pedro Nunes, que lhe explicava como traduzira do latim o livro sobre a esphera, com que Sacro Bosco, o monge inglez, revolucionara a astronomia.
Tambem o sabio mestre dera prelecções de Philosophia e Mathematica ás filhas d’este Infante. Primeiramente á Senhora D. Maria que havia de vir a ser Princeza de Parma por casar com Alexandre Farnesio, creaturinha meuda e feia, mas com uma certa graça no vestir e grande applicação ás boas lettras latinas e gregas. Tão impressionavel era esta com as bellezas da poesia que, abrindo por duas vezes as obras de Petrarcha, as fechou subitamente, como castigando-se, e temendo que o seu espirito devoto fosse excessivamente captivado pelas profanidades[Pg 159] do adorador de Laura. Para esta deviam ser apaziguamento da sensibilidade, e perservativo de tentações mundanas, as demonstrações algebricas, e os elementos de Euclides, que o mestre lhe ministrava.
Egualmente, e com proveito semelhante, recebia d’elle licções a Infantasinha D. Catharina, que depois foi Duqueza de Bragança, concorrente com Filippe II ao throno de Portugal, e avó de El-Rei D. João IV.
Dois discipulos teve ainda Pedro Nunes, cujos genios altaneiros pareciam estar destinados a reagir contra a disciplina dos raciocinios mathematicos, e a cujos animos insubmissos parecia dever repugnar o rigor das demonstrações algebricas:—El-Rei D. Sebastião, e D. Antonio, Prior do Crato.
E, comtudo, ambos aquelles espiritos se deixaram attrahir pela seducção do genio do mestre.
D. Antonio «cuja viveza era tanta que o poz em estado de encontrar no Cardeal algum desagrado» ouvira Pedro Nunes com preveito, segundo se affirma, principalmente em Logica e Metaphysica.
Emquanto a D. Sebastião, o irriquieto ephebo corôado, todo elle absorvido no maravilhoso da missão que se impuzera, levado pela attracção dos perigos que o fazia buscar a lucta com animaes ferozes, a braveza das ondas do mar em noites de temporal, as corridas doidas nos matagaes do Alemtejo, e os misanthropicos recolhimentos nos bosques sombrios de Cintra; essa alma de heroe n’um corpo desiquilibrado, symbolo de uma raça e de uma nação decadentes; esse a quem chamaram o Nun’Alvares da perdição, e que tinha a ferverem-lhe no cerebro as imagens do Rei Arthur e dos companheiros da Tavola Redonda; o capitão de Deus como a si proprio se appellidava; embora por indole pareça pouco disposto a attender com serenidade ás regras para resolver equações de segundo grau, ou a seguir as tentativas para obter o maximo divisor de duas expressões algebricas, é certo que ouvia com tão feliz resultado as lições de Pedro Nunes e que fez por sua propria iniciativa uns commentarios á Esphera de Sacro[Pg 160] Bosco, a que Bavão no Portugal cuidadoso e lastimado, chama «muy doutos, e engenhosos os quaes vistos pelos peritos na materia não acharão que emendar».
Eram as lições dadas n’aquella sala dos Paços da Ribeira onde estava preparado um bofete preto de pau santo, com o seu tinteiro, pennas, papel e uma palmatoria de marfim, sem disciplinas. (Não reza a chronica se este delicado instrumento de fustigação e de correcção pedagogica era applicado por D. Aleixo de Menezes, ou por algum dos Padres da Companhia, ahi presentes, ás mãos nervosas do pequeno D. Sebastião. Mas era decerto á dos turbulentos moços fidalgos da chacotada d’El-Rei, que tambem recebiam lições.) Sobre o bofete a ampulheta marcava, com o correr da areia, a hora destinada á licção, emquanto n’uma cadeira de espaldas o discipulo attento escutava a palavra do cosmographo explicando-lhe o movimento das espheras. Uma parte do saber de Pedro Nunes interessaria principalmente o imaginoso Rei—a astrologia—á qual, apezar da sua probidade scientifica, o grande espirito do sabio, influenciado pelas ideias ainda imperantes, não se poude eximir completamente.
Conhecia o moço Rei talvez, e isso devia inquietar-lhe o animo, o aviso sinistro com que o Mestre prognosticára a sua Avó, a Rainha D. Catharina, desgraças para o Seu Reinado se não addiasse a solemnidade da entrega.
Conta assim o caso o chronista no seu Portugal cuidadoso e lastimado. «Convocou-se a nobreza e Prelados do Reino; e estando tudo prompto (no mez de Janeiro de 1568) para se fazer a Real funcção da entrega em terça-feira 20 do dito mez, dia de S. Sebastião com que El-Rei cumpria justamente os quatorze annos, dois dias antes veio fallar á Rainha Pedro Nunez cosmographo-mór do Reino, e mestre nas mathematicas d’El-Rei e lhe disse: que posto que elle exercitava pouco a parte da mathematica que julga de sucessos futuros pela ter por fallivel e cheia de incerteza, comtudo que o grande amor que tinha a El-Rei e o zelo do seu serviço, e bem da sua pessoa e obrigavão a sahir do seu costume, e levantar figura sobre[Pg 161] o dia, e tempo em que se lhe havia de fazer entrega do governo, e se desvelára em apurar o juizo d’ella quanto permittia sua sciencia e as regras de mathematica e depois de muy bem conciderado o que alcançava, lhe pareceo conveniente avisar a sua Alteza que, sem dar a entender a causa porque o fazia, cuidasse muito em dilatar o acto da entrega alguns dias, ainda que não fossem mais que tres, porque elle affirmava segundo o que entendia, que se El-Rey começasse a governar n’aquelle dia, seria seu Reinado instavel, cheio de inquietação ordinaria e de muy pouca dura.»
Cento e trinta e cinco annos antes, mestre Guedelha, um astrologo tambem, fizera prophecia semelhante a El-Rei D. Duarte, assegurando-lhe que Jupiter ia retrogrado e o Sol decahido. Então, como agora, o aviso fôra desattendido.
A Rainha D. Catharina agradecendo o zelo do cosmographo-mór, declarou-lhe que já estava tudo preparado para o dia de S. Sebastião; que o Cardeal julgaria ridicula a causa do addiamento e que era melhor encommendar o negocio a Deus, guardando em segredo o que lhe tinha communicado.
Pedro Nunes atalhou dizendo:
—«Até essa razão tinha eu por tam certa que estive para o dizer a Vossa Alteza antes de lha ouvir; e assim vejo que são inevitaveis os trabalhos d’este Reyno da parte dos quaes Vossa Alteza será testemunha ainda que não dou remate d’elles.»
Dá-nos este dialogo uma impressão inesperada, porquanto (circumstancia curiosa!) é a Rainha viuva, orphã de todos os filhos, com a alma retalhada por tantos desfortunios, e com o espirito sempre alvoroçado pelo temperamento do seu fogoso neto; é a velhinha que a desventura parecia dever predispôr para acceitar todos os vaticinios e presagios dados por essa sciencia ainda então respeitada e temida, que affasta o prognostico agourento, e é o sabio com a intelligencia habituada ás demonstrações rigorosas e positivas que attende ás indicações mysteriosas dadas pela conjugação dos astros.
É que a infelicitada Rainha encommendava «todo o negocio a Deus, em cuja mão estavam os bons successos» e o astrologo,[Pg 162] cosmographo-mór, que se julgára obrigado a «levantar figura recorrendo á parte da Mathematica que julga dos successos futuros» entendia que, embora tudo estivesse dependente da Vontade de Deus, deviam respeitar-se as causas segundas.
E quem sabe, se ainda um dia a sciencia, no seu caminhar, não dará razão a mestre Guedelha e ao Dr. Pedro Nunes!
Vaticinios, agouros, presagios, horoscopos, vôos d’aves, sentenças de pythonizas, threnos de prophetas, prognosticos de astrologos, formam um cortejo de tentativas para conhecer a acção futura das forças mysteriosas da natureza, actuando sobre os destinos humanos. E tambem infinda é a serie de esforços empregados para conjurar os maleficios de entes sobrenaturaes. Amuletos, sacrificios a divindades hostis, mãos de finado, varas de condão, figas de osso, cordas de enforcado; e os segredos da magia branca, da negra, bem como de todas as sciencias occultas desde a nigromancia á cabala; os dictames da astrologia contra a conjuncção dos astros; os exorcismos da Egreja contra as bruxas, duendes, lobishomens, vampiros, diabos, ou contra as desgraças annunciadas pelo piar das corujas e o uivar dos cães; tudo isso que os espiritos fortes englobaram na palavra superstição, e que é como que um presentir de leis ignoradas pela intelligencia limitadissima do homem, na perpetua ancia de descobrir meios de defender a sua miserrima fraqueza contra o poder dos perigos que o rodeiam, tudo isso occupou durante seculos, e continúa a occupar (ai de nós!) o fragil cerebro da humanidade.
Pedro Nunes, annunciando á Rainha D. Catharina desgraças para o reinado do neto, é bem o sabio do seu tempo—crente em Deus e na astrologia, mas já levemente sceptico, não confiando muito n’essa sciencia tanta vez fallivel, e comtudo (concebivel contradicção) receiando, ainda assim, ver cumpridos os prenuncios sinistros.
Quem sabe se recolhendo n’esse dia a casa, e topando com a sua Guiomarzita, ainda então pequena, não encontraria na[Pg 163] conjuncção dos astros motivo para a apertar mais soffregamente contra o peito, com receio de vir a perdel-a?...
Mas não antecipemos.
Tivesse ou não suspeita dos avisos do mestre, fundados no zelo pelo seu serviço, e amor pela sua pessoa, El-Rei D. Sebastião demonstrou-lhe sempre affecto e consideração.
Em 1572 manda-o vir de Coimbra, onde residia, já jubilado, para o ouvir acerca do projecto que então affagava de reformar os pesos e medidas do Reino.
Eram frequentes as vindas a Lisboa de Pedro Nunes, pois, por occasião das partidas das frotas para o Ultramar, era reclamado o seu saber para superintender nos aprestos scientificos das náos, e para instruir os pilotos, e orientar os navegadores, cabendo-lhe assim um farto quinhão da gloria d’aquelles, que contribuiram para a grandeza d’este torrãozinho lusitano, e para facilitar a empreza dos seus habitantes na derrota heroica iniciada pelo Infante D. Henrique.
Outra especie de gloria estava ainda reservada para o genial cosmographo.
Além de ser mestre do padre Clavio, denominado o Euclides do seculo XVI, reformador do kalendario romano, que tem o nome de gregoriano, teve como discipulo um vulto que excede todos.
Indirectamente, por meio das suas obras, se não por alguma communicação directa, que desconhecemos, Pedro Nunes foi o mestre de Camões, e com elle collaborou nos Lusiadas.
Poeta elle proprio, não nos seus versos, que são mediocres, mas no vôo de aguia com que a sua imaginação atravessou os espaços e pairou nas regiões sidereas, fluctuando na grande machina do mundo entre as nove espheras, o cosmographo, reformador de toda a sciencia astronomica do seu tempo, impressionou a alma lyrica do grande poeta, que, nas suas obras,[Pg 164] colheu noções acerca dos céos que rodeiam a terra, das estrellas, dos astros, dos planetas e dos movimentos dos corpos, que povoam os espaços celestes.
As theorias do astronomo, fundindo-se no cadinho cerebral do épico, transformam-se nos mais formosos decassylabos com que, em lingua humana, um poeta póde fallar dos phenomenos da natureza, assimilando o rigor da sciencia e a harmonia d’um lyrismo cheio de pittoresco.
Nos eruditos artigos publicados na Revista da Universidade de Coimbra pelo Dr. Luciano Pereira da Silva, intitulados: A Astronomia dos Lusiadas, o sabio professor expõe lucidamente o estado das sciencias astronomicas no seculo XVI, as ideias de Pedro Nunes e a applicação que d’ellas fez Luiz de Camões com a leitura do Tratado da Esphera publicado em 1537.
A esses artigos remettemos o leitor, curioso d’estes assumptos, que, se ainda os não conhece, nos dará alviçaras pelo bom aviso. Como tambem lhe aconselhamos os preciosos trabalhos do actual Director da Torre do Tombo, o Sr. Antonio Baião, elucidativos para a biographia do cosmographo, rectificando erros, e ampliando-a com noticias saccadas dos processos do Santo Officio. Tambem valiosos repositorios de elementos para conhecer a vida e obras de Pedro Nunes são os dois opusculos publicados pelo distincto academico Rodolpho Guimarães, e os artigos do General Brito Rebello.
Não nos adeantam, porém muito estes trabalhos acerca da filha famosa do cosmographo, e da sua ruidoza aventura.
Ainda assim os processos da Inquisição com os depoimentos dos sobrinhos-netos, e de varias testemunhas encaminham-nos o espirito em conjecturas provaveis.
Envelhecia docemente em Coimbra, onde definitivamente estabelecera residencia, n’umas casas da Calçada, (provavelmente[Pg 165] entre o Convento de Santa Cruz e a congosta que subia pelo Arco de Almedina,) o velho professor estimado por uns, venerado por outros, discutido por alguns que lhe contestavam os acertos scientificos e invejado por muitos, pois, além da gloria que o aureolava, attribuiam-lhe bens de fortuna.
A mulher, D. Guiomar de Areas, uma hespanhola de que se namorara quando em 1523 (tinha então 21 annos) lia em Salamanca uma cadeira de mathematica, morrera havia tempo deixando-lhe algumas filhas e dois filhos. Estes foram para a India. As meninas, umas iam casando, as outras faziam por isso. Um alvará do começo do reinado de D. Sebastião estabelecia que: «havendo respeito aos serviços que o Doutor Pedro Nunes meu cosmographo-mór, tem feito a El-Rei meu senhor hei por bem de lhe fazer mercê para a pessoa que casar com uma de suas filhas do officio de contador de Elvas»... Facil foi por isso á mais velha D. Briolanja casar em 1566 com Manoel da Gama Lobo que recebeu em dote aquelle officio depois transformado n’uma tença de 50.000 reaes.
D. Francisca, a segunda, foi professar á Lorvão, e alli morreu freira.
D. Guiomar, que acompanhava seu pae, deixou-se galantear por um rapaz pertencente a familia distincta da terra, um tal Heitor de Sá, de quem nada mais se sabe alem da proeza que vamos referir.
Devia a rapariga ser formosa. Assim o attestam as poesias que lhe chamam bella dama, o que não custa a crer imaginando um perfil hebraico, temperado pela graça castelhana.
Além dos encantos pessoaes seria chamariz para o pretendente a segurança de altas protecções e a perspectiva da herança paterna.
Teria o cosmographo conhecimento do namorico?
E contrariaria elle os amores de sua filha, ou por egoismo de velho, que vê fugir-lhe a companhia, ou por conhecer pecha na familia do Heitor?
Houve um Diogo de Sá, talvez parente d’este, que n’um livro intitulado—De navigatione libri tres—atacava vivamente[Pg 166] Pedro Nunes; e outro Diogo de Sá (senão o mesmo) que lançara contra os hereges um escripto, a que alguem já attribuiu a intenção de renovar contra Pedro Nunes a perseguição em tempo iniciada contra Damião de Goes.
Fosse o que fosse, Heitor de Sá, por sua parte, começou a esfriar, diminuindo com esquivança as suas assiduidades, e causando com esse desapego grande desgosto a D. Guiomar, a quem prometera casamento. Alguns supuzeram que a fama de christão novo, agora assacada a Pedro Nunes, afastara o pretendente, a quem os parentes davam reproche por tencionar assim conspurcar-lhes o sangue limpo.
É facil de imaginar quanto a deserção de Heitor affrontou D. Guiomar, que, vendo-se tão dolorosamente desprezada, adoptou o expediente de citar o perjuro perante o Bispo da diocese, que então era D. Manoel de Menezes.
Assim, convocado pela intimação, apoiada com a auctoridade do Prelado, o remisso noivo compareceu na egreja de S. João de Almedina, contigua aos paços episcopaes.
Renovado pelo Bispo D. Bernardo no seculo XII, o pequeno templo tinha na sua architectura, antes das ultimas transformações que soffreu, um vago parentesco, um ar de familia, com a visinha Sé, cujas naves romanicas haviam sido scenario de tanto drama no decurso dos tempos.
Tambem agora, sob as abobadas que abrigavam o tumulo do Bispo D. Paterno, sentia-se um desassocego de animos, precursor de borrasca, nos grupos que vinham chegando com desvairados impulsos.
Inclinavam-se uns á parte de D. Guiomar, cuja sisudez e mocidade recatadas eram atropeladas pela offensa recebida. E lamentavam que a injuria feita á velhice veneranda do cosmographo não pudesse ser desaggravada pelos filhos agora ausentes na India.
Outros, da parcialidade dos Sás, rosnavam maldizentes, salpicando de doestos a filha de Pedro Nunes, e alcunhando-a de enredadora.
Para ella aquelle momento era grave e decisivo. Envolta[Pg 167] no manteu negro que fazia sobresahir a sua pallidez, cravava os olhos no chão, atraiçoando-lhe apenas a commoção o palpitar das azas do nariz, revelador do seu natural irrascivel.
O Bispo sizudo e grave, arrogando-se auctoridade de juiz inflexivel, sentia comtudo no intimo um pendor favoravel á justiça da accusadora. Adivinha-se essa parcialidade de animo no decurso dos acontecimentos narrados por Duarte Nunes de Leão, contemporaneo do drama, e nas declarações dos sobrinhos da heroina quando foram depôr, passados annos, no Tribunal do Santo Officio.
N’aquelle momento, porém, se lá bem no fundo orientava a sua sympathia para a filha do cosmographo, pelo interesse que lhe merecia a situação de desamparo em que a via, pela consideração que votava ao sabio, agora velho e alquebrado, cuja reputação enchia o mundo, e se tambem era pouco caroavel d’essa familia dos Sás, de onde brotara o petulante pimpolho, que alli se apresentava, a attitude do Prelado, julgador austero e pastor das suas ovelhas, era da mais intransigente impassibilidade.
Tem esta scena, passada em S. João de Almedina, de Coimbra, um sabor medieval, embora succedesse no declinar do seculo XVI.
Tinham affluido muitos curiosos áquella especie de tribunal, ou pretorio erecto sob as abobadas sagradas do vetusto templo, presidido pelo Bispo, que lhe dava a um tempo o aspecto solemne, que a sua alta cathegoria impunha, e uma feição familiar da auctoridade paternal para com os filhos espirituaes.
A assembléa escutava attenta as interrogações do Prelado.
Quando este perguntou a Heitor de Sá, se effectivamente, promettera casamento a D. Guiomar, como ella affirmára, ou se, como alguem chegara a avançar, esse casamento se tinha realizado, houve em todo o auditorio uma suspensão...
As palavras do accusado echoaram claras e peremptorias.
Assegurou que nunca fizera tal promettimento, e que nem mesmo conhecia D. Guiomar.
[Pg 168]
Todos os olhos se voltaram para ella interrogativos. Em alguns apontava a ironia, n’outros o desdem, em muitos commiseração.
Então, a pallidez da sua physionomia tornou-se mais livida, o olhar mais negro, e n’aquella alma de hespanhola, fermentada pelos rancores de israelita, levantou-se impetuosa uma onda de indignação e de odio.
Tremeram-lhe as mãos esguias com instinctivo furor. A direita, encontrando ao alcance o canivete do estojo, que lhe pendia da cinta, levantou-se ameaçadora e antes que alguem pudesse suspender-lhe o gesto, a enfurecida rapariga, com segurança de punho, retalhou o rosto do perfido com uma funda cutilada.
Impellido pela agudeza da dôr e pela perturbação que lhe causava o borbotár do sangue da ferida hiante, o malfadado heroe arrancou da espada e arremetteu contra D. Guiomar.
Mas, ou porque a vista turvada o não deixasse bem enxergal-a, ou porque um resto de cavalheirismo o impedisse de commetter outra cobardia, descarregou a espadeirada sobre uma columna da egreja.
A este tempo, já D. Guiomar cahira de joelhos perante o altar, pedindo perdão a Deus pelo sacrilegio commettido, e ao Bispo pelo desacato e escandalo que causara.
É facil de imaginar o sentimento de estupor que nos primeiros momentos se apoderou da assembléa e o borborinho que lhe succedeu.
Os parciaes dos Sás reclamavam energicamente a punição da culpada.
Os animos iam levedando de fórma que ameaçavam tumultos.
O Bispo atalhou promptamente, ordenando que D. Guiomar fosse levada para o Aljube, onde permaneceu. Mas não se contentava a familia de Heitor com tanta benignidade. Exigiam castigo mais severo. E não o obtendo recorreram aos tribunaes, moveram influencias, e conseguiram que da Côrte[Pg 169] viesse um magistrado com provisões, em vista das quaes a desditosa Guiomar foi removida para o Castello.
Resentido com esta affronta, o Bispo D. Manoel de Menezes, escreveu a El-Rei, e como que para affirmar a sua auctoridade e interessar mais profundamente aquillo a que hoje chamariamos a opinião publica, lançou sobre a cidade um interdicto cujo effeito era: cessatio a divinis, expediente bem doloroso para a população, que durante trez ou quatro mezes esteve privada de soccorros espirituaes, e por isso em permanente excitação de animos.
Entretanto, mandava retirar da masmorra a prisioneira, e tornava a fazel-a conduzir para a Aljube, carcere menos duro que o do Castello.
Grande alarido dos Sás, que chegaram a fazer correr insidiosas suspeitas ácerca dos motivos por que o Bispo favorecia D. Guiomar.
O velho cosmographo consumia-se de desgosto. A sua nomeada corria agora mundo, entrançada com o apimentado escandalo.
Pasto das linguas chilreadoras, o caso foi aproveitado pelos poetas palreiros, que logo começaram a mettel-o nos seus villancetes, chacotas e canções.
Pela calada das noites luarentas ouvia-se por vezes a voz d’um estudante, acompanhada pela viola, entoar:
«Senhora Dona Guiomar,
Moradora na Calçada,
Que destes a cutilada,
Senhora Dona Guiomar
Que moraveis na Calçada,
Mereceis tença d’el-Rei
Pois destes a cutilada».
e outra voz respondia:
[Pg 170]
«Foi mui grande o valor d’ella
E pouca a vergonha d’elle
Mas se ella ficou sem elle
Elle não ficou sem ella».
Era ambigua a interpretação d’esta quadra. Mas o sentimento geral continuava a ser favoravel ao cosmographo e á filha, pois que até os vates mais graves entraram a thuribulal-a com sonetos encomiasticos, que correram impressos.
Ainda em 1826, isto é, perto de trezentos annos depois de ella morta, foi dado á estampa em Coimbra o folheto, hoje raro que tem por titulo: Sonetos a D. Guiomar filha do Dr. Pedro Nunes, sobre a cutilada que deu em Coimbra, opusculo attribuido a Joaquim Ignacio de Freitas. Revelam os versos engenhos chochos, mas enthusiasmos vibrantes quando declamam:
«Alma formosa e bella produzida
Do famoso cosmographo e divino,
Illustre gloria, espelho crystallino,
Corôa das mulheres mais subida:
Valerosa donzella esclarecida,
Esmalte glorioso do ouro fino,
Celebre-se teu nome de contino,
Tua fama, tua honra, tua vida.
Seja com louvor alto mui cantado
D’antiga Coimbra o blasão famoso,
Serpente, Leão, Vaso, e bella dama.
E seja juntamente sublimado
Dona Guiomar, o teu peito animoso,
Pois fez um feito illustre de tal fama».
[Pg 171]
E outro soneto, depois de evocar Cleopatra, e Lucrecia, termina assim:
«Quem é que a nossa fama escureceu?
Guiomar, que se vingou co’o duro córte
De quem tingir sua fama pretendeu.
Vive na terra? não, porque escolheu
Um meio tão seguro em vida e morte,
Que estando cá na terra está no Céo.»
Refere-se este ultimo verso á sua clausura, porque o Pae entendeu que a melhor solução para o melindroso caso seria que D. Guiomar entrasse n’um convento, á semelhança da irmã que professara em Lorvão.
D. Manoel de Menezes tinha uma irmã abbadessa em Santa Clara. Suggeriu a adopção d’aquelle mosteiro por tantos titulos nobre.
Acceito o alvitre, promptamente começou a espalhar-se na cidade que a formosa protagonista de tão dramatico reboliço ia sahir do Aljube.
Novamente se alvoroçaram os parentes amigos e sequazes de Heitor de Sá, cuja ferida apenas cicatrizava, emquanto o nome de D. Guiomar corria, já accrescentado com a prestigiosa alcunha de: a da cutilada.
Resolveram por isso tirar estrondosa vingança na passagem d’ella para o Mosteiro.
O caso era embaraçoso. Resolveu-o a animosa rapariga por uma fórma original.
Estava-se nas proximidades da Semana Santa, que em Santa Clara era celebrada com solemnidades pomposas. As tochas de cêra e os pannos para realizar os officios religiosos, eram conduzidos para aquelle convento em grandes canastras, ás costas de homens.
A valorosa aspirante a noviça, de concerto com as freiras,[Pg 172] mandou ir ao Aljube um d’esses moços com o seu canastrão, e n’elle se acommodou, como tocha do cereeiro.
O trajecto não era longo, e o carregador foi escolhido entre os possantes.
Seguiu elle caminho com a sua carga pela Calçada, em direcção á margem esquerda do rio, onde estava situado o Convento de Santa Clara (hoje em ruinas).
Proximo á Portagem, e mais adiante, n’aquelle alargar dos peitoris, em circulo, a que chamavam o O da ponte, numerosos grupos em fallatorio ruidoso dispunham-se a atacar o cortejo que, suppunham, havia de conduzir a prisioneira.
Entretanto, o carregador caminhava, não sem inquietação, receiando que os discolos, descobrindo o embuste, o atacassem.
Lá de dentro do seu escondedouro, a destemida Guiomar animava-o, exhortando-o a proseguir.
«Que nada temesse (dizia baixinho), porque Deus, a quem ia servir, os guardaria.»
Em volta o tumulto ia crescendo. Homens armados dispunham-se a atacar os que provavelmente viriam guardando a protegida do Bispo.
Previa-se rixa bravia. E emquanto as bravatas ameaçadoras recrudesciam, e se cruzavam no ar imprecações violentas, a voz doce de D. Guiomar, despercebida dos energumenos, acompanhava n’um rythmo suave os passos cadenciados do seu rude salvador.
Finalmente, chegaram ao Mosteiro!
A madre rodeira, prevenida, correu a aldraba, entreabriu meia porta que, passado o homem com a sua canastra, se fechou sobre o batente, emquanto o ganhão se sumia nas sombras da crasta, onde depositou o precioso fardo.
Estava salva a filha do cosmographo!
A historia é muda sobre a sua vida conventual.
Cá fóra, porém, as paixões humanas continuaram agitando-se em volta do seu nome.
Pedro Nunes, alquebrado pela edade, roido de maguas, e talvez com saudades da filha, deixou-se morrer pouco depois.
[Pg 173]
Os Sás não abrandaram na sua sanha, e continuaram a calumniosa tarefa, distingindo peçonha sobre a reputação do Bispo, conforme consta de umas notas marginaes postas n’um exemplar do livro—Descripção de Portugal—, que existia na livraria dos Condes de Vimieiro e em que se dizia: «Esta obra toda foi feita pelo Bispo D. Manuel de Menezes, não sei se a canastra, mas sei que foi levada á conta e cargo do Bispo, cuja irmã era abbadessa.»
Uma tal Maria Barreira, no depoimento do processo intentado em 1624 contra os netos do cosmographo, que eram accusados de judaisar, accentúa mais e diz: «quando de sua casa D. Guiomar fora a perguntas á egreja, e depois da cutilada, os Sás se juntaram e insultaram o Bispo D. Manuel de Menezes, entendendo que elle favorecia a dita D. Guiomar.»
N’esse curioso processo, sente-se palpavel o odio dos Sás, sedentos de vingança por o seu parente ter apanhado pelas queixadas (palavras de uma testemunha) a celebre cutilada e vão n’um bando, como gibelinos contra guelfos, perseguindo os sobrinhos de D. Guiomar...
Emquanto na turbulenta Coimbra, outr’ora tão pacata, capuletos e montecchios se crivam com dardos envenenados, Romeu e Julieta, ao revez dos amantes de Verona, continuam distanciando-se cada vez mais, de corpo e de espirito. Elle, curando a cicatriz que, mau grado seu, lhe ha de perpetuar a memoria com ridiculosa fama. Ella professando em Santa Clara, abafando no habito cinzento rancores ou despeitos, e porventura afogando em lagrimas ainda vestigios do seu amor desprezado!
[Pg 175]
SUMMARIO
Viola, instrumento e flôr—No seculo Violante Montesino. O seiscentismo portuguez. As musas—Violante comediographa. Trocadilho e galanteio—A paixão da poetisa.—A sua profissão. As cellas das freiras preciosas. Uma suspeição injuriosa. Rythmas e Soliloquios. A velhinha do Convento da Rosa.
«Viola, instrumento e flôr!»
É assim que a ella se dirige um Doutor seu contemporaneo, recitando-lhe alguns versos lamechas, todos rescendentes ao gongorismo, ainda então em moda na litteratura e nas salas.
Esse Doutor thuribulario, e, ao que parece, levemente emprehendedor no seu galanteio, cortejando a poetisa, que desabrochava no pleno irradiar da mocidade, e jogando n’um trocadilho com o nome suave de Violante, allude, com intenção, á belleza recatada da musa, formosa como as violetas, e ao seu estro, harmonioso como as violas d’amor. Não foi d’ella bem acceite.
Respondendo de improviso ao atrevido poetrasto, n’uma decima, que o deve ter deixado estarrecido, a esquiva rapariga termina assim:
«Nem instrumento, nem flôr, Pois nenhum me ha de tocar. Pois nenhum me ha de colher.»
[Pg 176]
E realmente pouco depois, mordida por despeito amoroso, que transparece em alguns dos seus versos, encerra-se, sem que uma vocação violenta a arraste, n’um claustro onde vae emmurchecendo e definhando, como flôr nunca colhida, e como instrumento—que jámais fosse tangido por mão de homem.
Quem é a esquiva versejadora, que assim se defende dos madrigaes com que a incensam?
Violante Montesino, se chamou no mundo aquella que foi uma das mais caracteristicas individualidades litterarias d’esse seculo XVII, tão desdenhado pela critica moderna, mas tão rico de cultivadores da nossa lingua.
Entre aquelles que, no seiscentismo portuguez, levaram o idioma patrio á perfeição pelo culto da palavra, e que melhor sentiram o genio da lingua, manejando-a com uma technica nunca até ahi attingida, nem depois excedida; e junto áquelles que escreveram o castelhano com tal perfeição que se tornaram classicos em Hespanha, figurou n’um relevo precioso a personalidade de Violante do Céo, com as suas «Rythmas», os seus «Soliloquios», e com o Parnaso Lusitano.
E não é pouco ser alguem a escrever, n’esse período em que Rodrigues Lobo dá á phrase uma suavidade que emballa o ouvido, e Antonio Vieira arredonda os periodos, enriquecendo-os com a rebuscada propriedade dos termos; em que D. Francisco Manoel de Mello usa, na concisão da sua prosa, uma elegancia e elasticidade, que encanta ainda o leitor d’hoje; e em que Manoel Bernardes põe notas ineditas na harmonia da sua linguagem opulenta. Nem tão pouco é facil, (como a ella foi,) destacar-se no verso entre os que mais engenhosamente fizeram sujeitar o fogo da inspiração ás exigencias do metro e da rima, jogando com hyperboles e outros artificios de que usaram Gabriel Pereira de Castro, estofando de synonimias e locuções abundantes a famosa «Ulyssêa»; e D. Bernarda Ferreira[Pg 177] de Lacerda gemendo e cantando com rigor vernaculo as suas «Soledades do Buçaco»; e D. Joanna, Condessa da Ericeira, philosophando em oitavas nebulosas no «Despertador del Alma al sueño de la vida» e tantos mais, não esquecendo duas freirinhas do aristocratico convento da Esperança que, embora hoje quasi ignoradas, poetavam com muito valor, ao mesmo tempo que Violante. Tem qualquer d’ellas duas tanta graça no dizer e tanta frescura no estylo, que bem mereceram o piedoso gesto com que o Dr. Mendes dos Remedios as evocou n’uma recente collectanea, dando á estampa algumas das suas poesias.
De Maria do Céo, filha de Antonio de Eça de Castro e de Catharina de Tavora, resta-nos, além de outras obras, a Preciosa, em que revela uma inspiração nascida, não só de cogitações divinas, mas de graciosa feição mundanal, como transparece n’aquela deliciosa egloga, que Rodrigues Lobo não regeitaria. e que diz assim:
Montanheza que foste á fonte
Como suspeito,
Que trouxeste agua nos olhos
Fogo no peito.
Quem te trocou no caminho,
Serrana dos olhos negros?
Pois te conheço só hoje
Pelo que te desconheço?
Como suspeito,
Que encontraste teus cuidados
A roubar-te taes assocegos?
E a outra, Magdalena da Gloria, ou antes Leonarda Gil da Gama, como realmente se chamava, nascida n’um refego da Serra de Cintra, que nos seus Brados do Desengano trata o amor com tal sanha, que mais parece vingança de coração dolorido, que precaução contra os perigos que d’elle provêem. Assim, n’uma composição que intitula o Baile e em que[Pg 178] entram como figuras:—o Amor—duas Damas—o Apetite—dois galantes, faz aparecer o Amor, vestido de pobre, encostado a uma aljava e resmungando:
«El amor soy, que he llegado
A tal pobreza, que pido
Por sustentar mi decoro
Limosna como mendigo.
Hay quien quiera limosna
Dar al dios Cupido?»
Outras houve poetizas de talento, na mesma quadra, como D. Leonor de Menezes, Condessa de Atouguia, auctora da novella El desdeñado mas firme; Maria de Mesquita Pimentel, que escreveu o Triumpho do Divino Amor; D. Marianna de Luna (grande amiga de Violante) que compoz o Ramilhete de Flores; Izabel Corrêa, que, por motivos religiosos, se ausentou para Hollanda, onde publicou El Pastor Fido, e mais outras ainda, que o Padre Antonio dos Reis celebra no seu Enthusiasmus Poeticus, e que formam a brilhante pleiade, onde é astro de primeira grandeza Violante do Céo.
Corria o anno de 1619 e Lisboa preparava-se para receber com festejos pomposos Filippe III, o pallido filho do Diabo do Meio Dia, que parecia afinal ter-se decidido a realizar a promessa, feita havia dez annos, de visitar a capital de Portugal.
Projectava-se armar nas ruas arcos festivos e porticos imponentes; erigir sobre pedestaes vistosos estatuas e figuras symbolicas; entoldar as ruas e adornar as janellas com preciosas colgaduras; desfraldar galhardetes nos innumeros mastaréos; fazer jorrar agua de rosas das fontes improvizadas; e construir estrados e palanques nos sitios onde deveria passar o cortejo.
[Pg 179]
A cidade de Lisboa, apesar da mingoa do Thesouro, deliberára dar ao Rei duzentos mil cruzados para a sua jornada, afóra as avultadas quantias destinadas aos festejos.
De porta para porta, na Rua Nova, os mercadores nacionaes ou extrangeiros—os ataqueiros, que faziam atacas, os roupavelheyros, os relojoeiros de sol, os confeiteiros, os vendedores de porcelanas e outras cousas da India, e os que vendiam crystaes de Veneza—commentavam os preparativos ao sabor das predilecções.
—Decidiu-se finalmente Sua Magestade Catholica a visitar este seu burgo, dizia com pouco dissimulada malquerença, um algibebe remedeiado a um seu vizinho, rico mercador de sedas, velludos, damascos e tafetás. Mas para se metter a caminho carece das ajudas d’esta cidade e das villas que vae atravessando.
—E muito devemos agradecer á Providencia respondia o interpellado, senão succeder como ha alguns annos, quando o fallecido Marquez de Castello Rodrigo (que o inferno queime!) fingindo ceder ás reclamações dos povos, aconselhava o seu amo, que anda sempre em viagens de recreio, a alongar uma até cá. No fim de contas...
—No fim de contas, commentava um vendedor de especiarias, que voltava da Ribeira, El-Rei exigia cem mil cruzados, só á capital, para fazer a viagem, e, deitando poeira aos olhos do povo, mandou chamar galés e soldados de Italia para lhe fazerem acompanhamento.
—E depois d’essa comedia, nem cá pôz os pés, atalhou uma velha embiocada, com o seu matéo de briche, que vendia padinhas, n’uma cabana ambulante. Ainda me lembra de quando eu era rapariga, e tinha bastas vezes o bom dia de vêr passar n’esta rua o Senhor Rei D. Sebastião, muito galhardo... com o seu prepõem de velludo... n’um cavallo com freio e estribos de ouro... e os fidalgos atraz muito luzidos...
Agora já não ha côrte e está muito syncopada a galanteria. Tempos que já lá vão!
—E que hão de voltar! retorquiu um velhote de gabinardo[Pg 180] cinzento, com olhar de iniciado. Annunciam-n’o as prophecias. Lá o diz o sapateiro de Trancoso...
Os mercadores abastados, vendo o caminho em que enveredava a conversa, entreolharam-se receiosos, não fossem os esbirros denuncial-os. E desviando o curso aos commentarios, o mercador de sêdas apressou-se a informar:
—Os Inglezes vão levantar no Pelourinho Velho um arco magestoso, que os officiaes de bandeira de S. Jorge tencionam ornamentar ricamente.
—Aqui na rua Nova, que é a mais bella da cidade, (basofiou um homem de alentado corpanzil, com pronuncia extrangeira, que ouvira silencioso a ementa dos festejos), nós, os Flamengos, para mostrarmos quem somos, vamos construir, todo de madeira e lona, um edificio de cento e vinte pés de altura e sessenta de largura, com columnas e pedestaes para dezesete estatuas, e um frontão que ha de fazer morderem-se de inveja os Italianos, que dizem ir adornar á sua custa as portas da Sé...
—Parece que a festa mais galante (aventou o loquaz negociante de estofos) entre todas as momarias que se projectam, será no dia do juramento do Principe herdeiro a representação de uma peça, que o Senado da Camara escolheu para solemnizar esse acontecimento. Dizem que entre muitas, foi escolhida a comedia de uma menina de dezoito annos apenas, que é muito sabedora d’isto de versos e que ha de vir a hombrear com o grande Quevedo...
—D. Francisco? interrogou com intenção um hespanhol, mestre de manicordio e de orgão, o que está escrevendo a Historia del Gran Tacaño...
—Qual D. Francisco (replicou o Portuguez), Vasco Mousinho de Quevedo auctor de Affonso, o Africano, natural alli de Setubal. Que nós Portuguezes em poetas, como em tudo, não ficamos abaixo dos hespanhoes...
—Essa tal menina (disse então com ares de alviçareiro o mercador de especiarias) que por signal é muito formosa, ainda hontem a vi aqui passar quando ia, grave e sisuda, acompanhada[Pg 181] de seus paes, o Sr. Manoel da Silveira Montesino e a Sr.ᵃ D. Helena Franco, que moram alli perto da Sé, dar licção de harpa e de canto. Tão dotada de engenho é ella, que a sua comedia, ou auto, ou lá que é, foi a preferida para ser representada na presença de El-Rei e da Côrte.
—E como se chama essa joia litteraria? interrogou com sorriso sceptico um estudante de rhetorica, que descia das Escolas Geraes.
—Santa Eugenia ou Santa Engracia, respondeu o mercador. E já não é a primeira composição da sua lavra...
E o colloquio proseguiu n’aquelle soalheiro de Lisboa de então, fertil de bisbilhotice, que n’essa occasião mais fervilhava com a approximação dos festejos.
Effectivamente Fillippe III de Hespanha, II de Portugal, que já em 1611, escutando os conselhos do Ministro Christovam Moura promettera vir a Lisboa (sem ter cumprido a promessa), resolvera agora (Maio de 1619) a instancias do seu valido Duque de Uzeda realizar a viagem, como remedio para os perigos e embaraços que a cada passo surgiam no Governo de Portugal.
Entrou por Elvas e Estremoz em 13 de Maio. Em 14 descansou em Evora.
Presenceou alli espectaculos varios, tendentes a desannuviarem o seu espirito sombrio, ou a fortificarem o seu ardor religioso. Visitando as aulas ouviu discutir algumas theses de philosophia, em que sobresahiu o irmão do Marquez de Fereira, Rodrigo de Mello. Applaudiu tambem a representação de uma obra dramatica executada pelos estudantes, e animada com danças, folias, tramoias, e transformações de monstros e figuras.
Mas o que lhe mereceu maior interesse foi a realização de[Pg 182] um auto de fé, em que se queimaram muitos réos, e que durou desde manhã até á noite.
Consolado assim na sua fé, mas não socegado no seu animo. Filippe mostrava-se inquieto. Não lhe sahiam do sentido as reclamações dos povos descontentes; as queixas contra o Governador; as exigencias de que o Principe herdeiro ficasse regendo Portugal. E recordava agastado aquella scena, quando fôra da passagem por Elvas em que o Duque de Bragança, D. Theodosio, com orgulho soberano, recusara dar Excellencia ao seu valído o Duque de Uzeda, originando-se assim uma animosidade entre os dois, que fermentou depois, levedando sempre.
Tratavam de lhe proporcionar distracções. Elle, porém, desconfiado não apreciava com regalo os espectaculos, que a natureza e o artificio dos povos lhe offereciam.
Chegando a Almada ficou deslumbrado com o panorama do Tejo e o doce espreguiçar de Lisboa nas suas sete collinas. Mas quando á noite via o luzir dos fogareus com que os operarios se alumiavam para ultimar os preparativos, ou dos archotes que acompanhavam o coche de algum nobre, logo lhe assaltava o animo um enxame de presentimentos e agouros.
Resolveu deter-se no Convento dos Jeronymos em Belem, antes de fazer a entrada solemne em Lisboa. Alli se demorou um mez esperando as galés de Hespanha que por precaução o haviam de acompanhar pelo Tejo, desde o Restello até á ponte dos Mercadores, junto ao Paço de Ribeira.
Foi um cortejo luzido. Doze galés e mais dois mil baixeis ornamentados seguiam a galeota real á qual Neptuno sahiu ao encontro tirado em um carro marinho por quatro phocas, e acompanhado de tritões montados em baleias, espadartes e crustaceos enormes. O Deus dos Mares, depois de dar ao monarcha as boas vindas, encorporou-se no sequito. Na ponte, D. Filippe foi acolhido delirantemente pela população da cidade em festa.
Portugal n’esse momento acreditava, ou diligenciava[Pg 183] acreditar, que o Rei, de boa fé, vinha tentar uma solução que salvaguardasse os brios nacionaes...
Ficaria o moço Principe Rei de um Portugal independente?
N’essa esperança abriam-se sorrisos, desfraldavam-se bandeiras, ostentavam-se galas nos vestidos, faziam-se brilhar ao sol as pedrarias,—trazidas do Oriente—rubis brilhantes, esmeraldas rutilando em collares, em gargantilhas, em copos de espadas, e nos cabellos das bellas portuguezas.
Filippe, ligeiramente curvado, e tendo no olhar aquella sombra de desconfiança, que herdara do pae, atravessou a cidade n’um deslumbramento. Quando ao cahir da noite fez a sua entrada nos Paços da Ribeira, entre cincoenta moços de Camara que, empunhando tochas accesas allumiavam a larga escadaria, e que, precedido pelas trez guardas reaes dos archeiros, subia levado na magnificencia do triunpho ao som dos instrumentos e vozes que entoavam em côro, exclamou já socegado de animo e convencido da sinceridade do acolhimento jubiloso—«Só neste dia sei que sou verdadeiramente Rei».
E dando largas a um bom humor, que não era habitual, passou os dias seguintes desfructando os desfastios espectaculosos que lhe offereciam as danças dos padeiros e collareos, as folias, e as chacotas populares, e outros festejos, que lhe davam a illusão do amor de um povo agradecido. E agradecidos estavam effectivamente aquelles que o acclamavam, jubilosos por sobre elles ter feito cahir uma chuva de vinte mil cruzados, e os que aproveitavam com a suspensão, por trez dias, dos direitos do consumo de peixe na cidade.
Em 14 de Julho na sala grande do Paço da Ribeira, celebrou-se a ceremonia do juramento do Principe.
Foi então n’essa noite ou n’uma das que se lhe seguiram que o Senado offereceu a representação de uma peça theatral composta pela poetisa Violante Montesino, cuja mocidade, formosura e talento precoce despertavam a mais viva curiosidade.
[Pg 184]
Além do exito que obteve, e esse foi grande, não ficou outro vestigio d’essa producção litteraria.
Sobre o proprio titulo e assumpto os auctores discordam. Emquanto Barbosa Machado na Bibliotheca Lusitana e Garcia Perez no Catalogo Razonado se referem a esta peça theatral, chamando-lhe Santa Engracia, outros, como Costa e Silva no Ensaio biographico e critico dizem: «Contava esta poetisa apenas dezoito annos de idade quando compoz a comedia Santa Eugenia, que foi representada com grande apparato na presença de Filippe III quando este visitou Lisboa em 1619.»
Fosse, porém, heroina do drama Santa Eugenia, abbadessa na Alsacia, ou como de preferencia crêmos, Santa Engracia virgem e martyr, natural de Braga que, com o peito rasgado e o coração ás escancaras, ainda clamava a sua fé em Christo, o certo é que o exito da linda musa lusitana foi retumbante, mettendo na sombra uma tragicomedia de grande apparelho theatral posta em scena pelos jesuitas, com esplendor extraordinario, em honra de Filippe com o titulo de: Descoberta e conquista da India.
Para nos descerrarem um pouco as cortinas da sala em que se realisou a representação do drama de Violante, faltam-nos os registos da palrice mundana, que modernamente as gazetas fornecem aos leitores, curiosos de conhecer o movimento da gente elegante a que se chama—a Sociedade.
Carecemos de um jornal d’esse tempo para procurarmos n’aquelle cantinho em que a leitora actual, cada manhã ou cada tarde, procura anciosa quem faz annos, quem dançou no baile, ou quem recitou no saráo de arte; os que vão casar e os que estão doentes; quem partiu e quem chegou; como vestiam as dirigentes da moda, e quem concorreu ás reuniões da tafularia, falta-nos essa tagarelice informadora, de que alguns sorriem e que todos lêem, para sabermos como a côrte do soberano hespanhol acolheu a peça da poetisa portugueza, e para buscarmos os nomes dos que compunham o auditorio brilhante.
[Pg 185]
O que sabemos é que todos á uma applaudiram o nascente talento d’aquella a que desde logo ficaram chamando «Fenix de los ingenios lusitanos».
Violante conheceu então a deliciosa embriaguez do triumpho. Pelo prestigio da sua formosura, pelo poder do seu engenho, pela graça da sua mocidade encantadora, captivou todas as imaginações. Poetas e cortezãos exaltaram-n’a na linguagem alambicada do tempo, e crearam em volta d’ella uma atmosphera de gloria e de adulação, que a envolveu em ondas de incenso lisongeiro.
Ficou consagrada!
Foi provavelmente n’esse periodo da sua existencia que se deu o episodio a que já atraz alludimos, quando com tanta vivacidade respondeu aos versos do Doutor apaixonado.
N’uma d’aquellas reuniões da Lisboa seiscentista que já não eram os saráos da côrte joannina ou manuelina, mas discretas assembléas, rudimentos de academias que então começavam a pullular, n’um desses cenaculos familiares onde as classes já entravam promiscuamente, acorrendo a ellas desembargadores escolhidos na magistratura alitteratada, dignidades ecclesiasticas decorativas ou eruditas, e membros da alta burguezia, á qual pertencia a familia de Violante, certo Doutor recitou-lhe uns versos em que, invocando o seu nome, a comparava ás violetas e ás violas.
Ella, repentista e manejando com facilidade a decima (forma de estrophe muito usada no versejar de então), repelliu o intencional trocadilho, retorquindo:
«Contradizer hum Doutor
Nem sei que he temeridade,
Porém com huma verdade
Quero pagar um louvor.
Nem instrumento nem flor
[Pg 186]Sou, porém se o posso ser
Ninguem trate de emprehender
O que não ha de alcançar,
Pois nenhum me ha de tocar
Pois nenhum me ha de colher.
Por que não acceitou ella o galanteio do legisperito?
E porque se mostrava assim esquiva?
A este tempo já teria sentido de certo a alma invadida por aquella paixão amorosa, que lhe trouxe na vida tempestade tão grande, que a ella deveu talvez a resolução decisiva da sua existencia.
Conforme alguem já notou, nos proprios versos da celebre poetisa se póde seguir o fio do seu romance sentimental, tanto quanto é possivel procurar vestigios de coração entre as selvas do cultismo, dos arrebiques litterarios, dos trocadilhos, impostos pelo gosto da moda.
Áquelle que lhe tinha prendido os sentidos chama ella Silvano, certamente um véu cryptonimico em que esconde o nome do homem de que chora a ausencia, a quem exproba pelas infidelidades, de quem tenta vingar-se, e por causa de quem abandona o mundo.
Não transcrevemos das suas poesias, (muitas das quaes aliás se lêm na integra com prazer) senão o que fôr guia para nos esclarecer um pouco ácerca da sua biographia e da vida do seu coração. E assim, da Ode que foi escripta por ventura logo depois da partida do seu escolhido, só copiaremos as primeiras estrophes, que são documentos caracteristicos da casuistica amorosa de uma portugueza sentimental.
Diz ella:
«Amante pensamento
Nuncio de amor, terceiro de vontade;
Emulação do vento,
Lisonja da mais triste soledade;
Ministro da Lembrança.
[Pg 187]Gosto na posse, allivio na esperança,
Já que de minhas queixas
A causa idolatrada vás seguindo,
Dize-lhe que me deixas,
Dize-lhe que estou morta mas sentindo,
Que póde mal tão forte
Fazer que sinta, ái triste, a mesma morte.
Dize-lhe que é já tanto
O pesar de me vêr tão dividida,
Que só me causa espanto
A sombra que me segue de uma vida
Tão morta para o gosto
Como viva, ái de mim para o desgosto.»
Seguem-se mais algumas estrophes, que são variantes do mesmo thema, cuja substancia são os trez versos seguintes
«Pois para quem padece o mal d’ausente
Que he só remedio entendo
Ver o que quer, ou fenecer querendo.»
N’este primeiro periodo da sua paixão quasi todos os versos são fabricados com a idéa exclusiva da morte causada por sentir saudades; da vida consagrada a padecer por ellas.
O soneto seguinte, todo dedicado ao ausente querido revela na intencional pobreza de rimas (só usa de duas palavras) o proposito de tornar bem patente o seu modo de sentir.
É como se nos abrisse o peito, para que possâmos devassar o mechanismo do seu coração, e as subtilezas da sua psychologia amorosa.
Se, apartada do corpo a doce vida
Domina em seu lugar a dura morte;
De que nasce tardar-me tanto a morte,
[Pg 188]Se ausente d’alma estou que me dá vida?
Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.
Ah suspirado ausente! se esta morte
Não te obriga a querer vir dar-me vida,
Como não m’a vem dar a mesma morte?
Mas se n’alma consiste a propria vida
Bem sei que se me tarda tanto a morte
He porque sinto a morte de tal vida!
Não tome o leitor este soneto como um modelo, nem como specimen da arte poetica da escriptora.
Veja n’elle apenas um testemunho interessante, uma especie de thermometro collocado na axilla da lisboetazinha de 1620, que, marcando os gráos de exaltação sentimental da musa amorosa, quando, rendida e morta de saudades pela ausencia do amante, deita mão de um artificio litterario em voga n’esse tempo, para confidenciar ao papel o seu tormento.
Quem percorrer os cinco volumes da Fenix Renascida ou as poesias amorosas que Maria da Veiga Tagarro, nos deixou na Laura de Anfriso; quem ler as redondilhas e romances de D. Francisco de Portugal, e todos os gemidos das freiras apaixonadas por Deus ou pelo Mundo, n’esse periodo de convencionalismo litterario, sentirá como aquella geração amava e traduzia o amor em verso. E comprehenderá então como atrás das franjas gongoricas e dos conceitos rebuscados da musa, palpitava vivamente o coração de Violante.
N’um extasis exclama ella de uma vez:
Que suspensão, que enleio, que cuidado
É este meu, tyranno Deus Cupido?
Pois tirando-me emfim todo o sentido,
Me deixa o sentimento duplicado.
[Pg 189]
Depois começamos a sentir o latejar offegante do seu inquieto amor, quando a invade o ciume. E então despreza as consolações dos parentes e amigos que, com raciocinios cansados e sempre servidos n’estes casos, tentavam desviar-lhe o sentido da obcessão sentimental em que vivia. Os paes, vendo-a estiolar-se, ou ir-se deixando morrer, chamavam em auxilio o physico da casa um esculapio encarregado (eterna illusão de pae!) de a chamar á vida, de lhe dar saude. Mas ella, n’um arranque responde a todos estes cuidados exclamando:
«Cessen ya los remedios
Que para vivir me applican,
Que quien de zelos se muere
No es bien que moriendo viva,
Dexen ya d’importunarme
Cansadas philosophias,
Que nunca males del alma
De Esculapio necesitan.
Muera quien amando tanto
Mereció tan poca dicha,
Que en vez de correspondencias
Experimente tyrannias.
Muera quien siendo constante
Fué tan mal correspondida,
Que tributando verdades,
Adquerió solo mentiras.
[Pg 190]
Com o assalto que lhe deu o ciume, a que um seu contemporaneo chamou «sarna de amor, que faz doer e gostar juntamente», adoeceu-lhe o espirito.
O ciume é máu conselheiro. Violante escutou-o, e lentamente foi-se-lhe envenenando o animo e foram-se-lhe alterando as particulas de sangue. Mulher que julga castigar uma infidelidade, praticando outra, crava em si propria um punhal, abre uma ferida que raramente cicatriza.
Assim ella, inexperiente e impulsiva, suppondo-se aggravada, deixou-se cortejar por algum dos galantes profissionaes, que enxameavam por esse tempo nos adros das egrejas da moda, ou nos pucaros d’agua e nas merendas das amigas de sua mãe. Loureira (como quem diz coquette, a la moda de então) cahiu na facilidade e ligeireza de que resmunga D. Francisco Manoel de Mello quando diz:
«Mulheres ha leves e gloriosas prezadas do seu parecer loureiras, cuido eu que lhes chamavam nossos antigos, por significar que a qualquer bafo de vento se movião.»
Também um rifão popular diz: «Menina loureira, uva de parreira.» Ora, Violante foi loureira, não por indole mas por despeito. E allegando que o infiel
«Hizo locuras por otra,
Fué fino en las astucias...
cahiu no laço armado pelo seu desespero e, conforme nos declara:
«Mas pensando en los agrabios
Tanto me venció la furia,
Que admitti divertimientos,
Veras amorosas nunca.
Chegaria elle a ter noticia d’estes divertimientos, e resolveria castigal-a pelo silencio?
O caso é que durante cinco annos não deu signal de si.[Pg 191] É o que nos revelam as duas quadras das Rythmas que registam este episodio do enygmatico romance da poetiza:
Despues de un lustro d’ausencia,
Despues de tanta fortuna
El que negava respuestas
Me hace agora perguntas.
Matar-me quiere de nuevo
Porque como alfim se occulta
No teme ser homecida
Y mas de vida que es suya.
Adivinha-se, mais que se lê, este pequeno drama de amor. Um biographo, dando largas á imaginação, pretende que ella se deixou envolver tão desastradamente nas malhas da rêde, que ella propria lançára, que afinal confessa a uma amiga «que o tal amante, por divertimiento, tinha feito tanta impressão em sua alma que não sabia decidir-se entre os dois».
Parece-me esticar demais a hermeneutica querer tirar esta conclusão das confusas queixas de Violante.
O que não offerece duvida é que de um ou do outro, d’aquelles com quem flirtou, recebeu desdens que a molestaram.
Assim o declara a Nise, sua confidente, n’uma longa poesia.
Teve a vibratil creaturinha com o abandono, ou com a frieza do homem que adorava, uma commoção profunda.
E, como qualquer movimento do seu espirito crystalizava em versos reveladores, logo a sua alma dolorida gemeu em estrophes que dão a voz do seu desespero:
Coração! Basta o soffrido
Ponhamos termo ao cuidado,
Que hum despreso averiguado
Não he para repetido;
[Pg 192]Basta o que havemos sentido
Não demos mais ao tormento,
Que passa de soffrimento
Dar por um desdem tyranno
Toda a alma ao desengano
Toda a vida ao sentimento.
Fujamos d’este perigo
Livremo-nos, coração!
Que não he bom galardão
O que parece castigo.
Eu comvosco e vós comigo
Melhor o mal passaremos,
Pois entre amantes extremos
Tão divididos ficamos,
Que se nos communicamos
He só quando padecemos.
D’esta excitação nasceu provavelmente o passo que deu, e que havia de transformar a sua vida.
Sem haver uma causa conhecida que a afastasse da casa paterna, do mundo que a adulava, dos admiradores que festejavam a sua formosura e o seu engenho, e dos pretendentes que aspirávam á sua mão, Violante subitamente, contrariando a vontade dos paes, que a adoravam, determinou encerrar-se n’um mosteiro.
Foi para muitos um mysterio a sua resolução, e ainda hoje alguns biographos teimam em ignorar o motivo d’esta renuncia a tudo o que seduz e attrahe as mulheres.
A este tempo ainda não tinham apparecido impressas as poesias de Violante, e aos poucos que as conheciam faltava o faro necessario para surprehender, nas moitas e nas selvas embrenhadas dos sonetos, decimas e odes da musa, o segredo do seu amor.
[Pg 193]
As amigas iniciadas—as Nises, as Menandras, as Belisas—não trahiram a confidencia da musa dolente. Mas as queixas, apezar de congeladas em versos hirtos, derretem-se, quando esses versos são humedecidos pelo bafo tepido de uma interpretação carinhosa, e pela sympathia do critico. É facil então de ver que não a chamava uma vocação irresistivel. Impellia-a o coração esmagado.
Tão fracas eram n’esse periodo as suas tendencias mysticas, tão pouco intenso o fogo do amor divino, que o que principalmente lhe assaltava o animo era receios de um arrependimento, e de que, ao olhar para traz, a espicaçassem saudades dos attractivos do mundo que deixava.
Relembrando a estatua de sal em que se transformára a mulher da Loth, invocava Deus, exclamando:
Oh nó permittais vós que arrependida
Los ojos buelva más a lo que dexo
Pues otro ya, Señor, femineo sexo
Por bolver a mirar quedo sin vída.
Por isso, rapidamente, sem olhar para traz, (não fosse ainda a imagem perturbadora do infiel detel-a), entrou como noviça em Agosto de 1629 no Convento de Nossa Senhora do Rosario, a que o vulgo chamava—da Rosa.
Era este convento situado na rua das Farinhas, da Freguezia de S. Lourenço, e fôra edificado no terreno que um tal Vicente Martins Michão, sobrinho do Bispo de Silves, doára em 1279, para n’essa courella de vinha ser instituido um mosteiro de Dominicanas.
Desde o seculo XIII até á era de seiscentos vinha o sagrado cenobio augmentando-se e enriquecendo, a ponto de, quando Violante n’elle entrou, ser um dos mais opulentos e povoados da capital. Frey Nicoláo de Oliveira, que escreveu[Pg 194] por este tempo as «Grandezas de Lisboa», diz que «havia n’elle cento e trinta mulheres entre freiras e servidoras».
Por que escolheu Violante este convento?
Vivia ella junto á Sé, na casa em que nascera a 30 de Maio de 1602. Era perto da rua das Farinhas. Tinha n’aquelle mosteiro amigas, talvez confidentes, e de certo tambem o seu confessor, que porventura lhe ouvira queixas mais concretas do que as reveladas nos seus versos.
As tradições de recato d’este convento quadravam ao seu feitio espiritual e, por seu lado, attrahia-a a ideia de que a ordem não era demasiadamente apertada, e de que a disciplina permittia confortos defesos á de outras communidades, como á da Madre Deus, na qual as freiras não tinham serviçaes.
O Padre Manuel Bernardes, contemporaneo de Soror Violante, querendo exaltar a modestia das Claristas, escreve n’uma das apostrophes da Nova Floresta:
«D’estes escrupulos hoje ha poucos, ou se os ha devem passar pela peneira da consciencia, porque é rara. Ver hoje uma cella d’estas, que não são Santa Clara, é ver uma casa de estrado de uma noiva, laminas, oratorios, cortinas, sanefas, rodapés, tomados a trechos com rosas de maravalhas, banquinhas de damasco, franjadas de seda ou de ouro, pias de crystal, guarda-roupas de Hollanda, caçoulas, espelhos, craveiros, mangericões, ou naturaes ou contrafeitos, passarinhos, cachorrinhos de manga, que, se adoecem de puro mimo, se chama o mais perito na arte de os curar, jarros, ramalhetes, porcellanas, brinquinhos de sangria, figuras de alabastro ou de gesso, frutas escolhidas para coroar as molduras da alcova ou dos contadores, perfumes, alambiques, todo o genero de arame para a fabrica dos doces, almarios para os recolher, criadas para o ministerio da casa, tecto da cella com taes paizagens, relevos e pinturas que passam para as mãos dos officiaes as bolsas dos parentes e devotos mais ricos. Oh! que temos licença e assim não violamos o voto...»
Eram assim as cellas das freiras, de que o doce Bernardes extranhava o sybaritismo. E assim devia ser a de Soror[Pg 195] Violante do Céo, tendo ainda a accrescentar-se junto do cachorrinho de manga e das sanefas tomadas a rosas de maravalhas, a harpa que tangia em horas de inspiração, e o bufete onde escrevia as suas Rythmas, os Soliloquios, os Divinos e humanos versos.
Este titulo quadra bem na obra em que foram reunidos n’um Parnaso Lusitano muitos dos versos sahidos d’aquella cella, onde a famosa dominicana no seu habito branco, ora se entretinha com Deus em meditações mysticas, ora se dirigia aos grandes da terra—Reis—Principes e Nobres—ora desentranhava do proprio coração gritos de profano affecto, de que se arrependia depois:
«Si escrivi, si canté de objecto humano,
Y no solo de vós, Divino objecto,
En la publicidad de tal defecto
Bien castigado está mi error profano.»
Vem aqui a talho de foice uma pergunta, que estou sentindo aflorar á bocca de quem me lê. Pergunta indiscreta, maliciosa talvez, mas natural, quando se conhece a alma inflammada da monja da Rosa, e quando se recordam leituras em que passam phantasmas leves de freiras amorosas, ou tragicas, ou de leviana memoria.
Perguntar-se-me-ha, (como se eu tivesse o privilegio da madre vigilante, que, ao longo do claustro ou dos corredores da Rosa, escutava os colloquios mysteriosos das noviças), perguntar-se-me-ha se nenhuma aventura de profano amor perturbou a existencia de Soror Violante desde os 23 annos, em que para alli entrou, até os 91, em que morreu quasi de subito n’uma noite fria de Janeiro de 1698.
Não é possivel garantir que nos seus sonhos, ou que nas horas perigosas da quadra do anno, em que a natureza se renova e invade com os philtros estonteadores os organismos vivos,[Pg 196] o seu coração não recordasse as doces tempestades dos tempos em que, moça, o sentia bater apressado. Não asseguramos tambem que nas trevas das suas noites de vigilia se não desenhasse luminoso o espectro d’aquelle que a fizera padecer.
Mas durante os sessenta e trez annos que n’aquella cella recordou e formulou em verso os seus lamentos, não entrou alli homem, senão porventura na imagem, já muito diluida d’aquelle Silvano, que primeiro lhe despertou o coração ou do outro, que por desgraça distinguiu passageiramente. Mas só a imagem.
Um ponto melindroso ha, porém, na sua vida sentimental que um seu biographo tratou com menos delicadeza.
Costa e Silva, referindo-se á mania das que entravam para freiras por despeito, escreveu o seguinte:
«Creio que foi esta a sorte de Soror Violante do Céo, não só pelo seu modo de vida todo profano, mas porque a idéa de piedade, e o fervor religioso, não póde de modo algum combinar-se com varias poesias que se deparam entre as suas, tão cheias de arrebatamentos apaixonados, de admirações da formosura, de certa Menandra, de colloquios ternos, de finezas ardentes, e, o que é mais em estylo tão natural, despido dos seus costumados gongorismos, como ditado pelo coração e não pelo espirito, que dão motivo para desconfiar muito da sua honestidade.»
E o casmurro commentador transcrevendo uma poesia que julga de equivoca interpretação e reveladora de intimidades suspeitas, accrescenta:
«Ora, como me parece que uma amizade simples e pura nunca usou de semelhante linguagem, presumo que, sem escrupulo, poderei inferir d’esta e de outras poesias que a moderna[Pg 197] Sapho ardeu nas chammas d’aquelle amor inatural de que foi accusada a antiga Sapho.»
A poesia em que o resmungão encontrou resaibos lesbianos e um indicio de paixão amorosa por essa Menandra, a quem se dirige com hyperbolica emphase, não é prova senão dos exageros da escola e da epocha. D’essa poesia destacamos as quadras em que Costa e Silva encontrou prova do amor inatural de Soror Violante:
«Se vivo en ti transformada
Menandra, bien lo averiguas,
Pues quando me atiras flechas
Hallas en ti las heridas.
Flechas me tiras al alma
Mas quando flechas me tiras
Como en ti misma mi hieres
Hallas la herida en ti misma.
Tu mano candida, e bella,
Dulce Señora, lo diga,
Pues siendo yo la flechada
Ella fué solo la herida.
Ya no dirás que en tu mano
No tienes el alma mia;
Pues quando el alma mi hieres
Sangre tu mano destila.»
Não defendemos o mau gosto que esta gymnastica de vocabulos revela, mas o que é certo é que qualquer freira escrevendo a outra freira, ou qualquer Filis dirigindo-se a uma Cloris sobre materia de amizade, usava de metaphoras e de hyperboles tanto ou mais inflammadas, que as das poesias da[Pg 198] nossa Violante, sem que d’isso se inferisse que eram inspiradas pela sensualidade.
A transposição para uma oitava acima, como na éra de seiscentos se fallava e escrevia em toda a Europa, sem excepção da Inglaterra, onde o Eufuismo introduzido por Lyly florescia, torna suspeitos, lidos hoje, trechos que então eram de uso corrente.
Se a cella da musa dos Divinos e humanos versos se tivesse transformado em alcova almiscarada de espasmos lubricos, não seria ella decerto que viria devassar os mysterios do tabernaculo, em quadras que são, não o nego, expansões algo alambicadas de amizade requintada, mas nunca requebros amorosos de femineas concupiscencias.
Para se avaliar do sentido que Soror Violante ligava ao sentimento de amizade deverá ler-se o soneto em que ella se dirige a uma amiga, cujo transparente anagrama de Belisa indica uma Isabel, talvez D. Isabel de Castro, a quem tambem dedicou uma epistola por ocasião da morte da Rainha D. Luiza.
É como se respondesse á suspeita que sobre ella recahiu, não em vida, mas duzentos annos depois de morta.
«Belisa, el amistad es un tesoro
Tan digno de estimar-se eternamente,
Que a su valor no es paga sufficiente
De Arabia e Potosi la plata e oro.
Es la amistad un licito decoro,
Que se guarda en lo ausente y lo presente
Y con que un amigo el otro siente
La tristeza, el pesar, la risa, el lloro.
No se llama amistad la que es violenta
Sinó la que es conforme simpatia,
[Pg 199]De quien lealtad hasta la muerte ostenta.
Esta amistad es, que hallar queria
Esta la que entre amigas se sustenta
Y esta, Belisa, en fin la amistad mia.»
Ora diga-me o leitor imparcial, se quem faz este soneto tinha de Sapho a paixão ardente.
E são tantas as senhoras a quem Soror Violante se dirige á Condessa de Penaguião e á Duqueza de Aveiro, ás poetisas D. Marianna de Luna e D. Bernarda Ferreira de Lacerda, á Condessa da Vidigueira e a outras mais, sem que das suas poesias rescenda o aroma capitoso com que a poetisa grega perfumou as suas, que entro a suppôr ter Costa e Silva tido o proposito preconcebido de attribuir a Soror Violante costumes, que melhor se conformam com as liberdades lesbias, do que com as austeridades das filhas de S. Domingos.
A vida da monja da Rosa, no longo periodo que vae desde a sua profissão em 1629 até 1693, corre sem ser cortada de outros incidentes, que não sejam as producções litterarias com que ia celebrando factos, e dirigindo-se a personagens importantes.
Saúda a acclamação de D. João IV n’um soneto em perguntas e respostas, genero muito em moda, que já Camões cultivara.
Dirige muitas cartas á Duqueza de Medina—Celi, que devem ser interessantes, mas de que na Bibliotheca Publica, onde as procurámos, por indicação do catalogo de Garcez Perez, não encontrámos vestigio.
Dedicou rimas ao padre Antonio Vieira, a Manuel Severim de Faria, a Antonio de Sousa de Macedo, etc.
E solicitada para concorrer com as suas producções aos certamens litterarios, que se realizavam quer no Convento do[Pg 200] Carmo, quer nas varias Academias, vê coroadas e premiadas essas poesias e sente-se festejada pela fina flôr do cultismo.
Por isso não lhe faltam encomios e elogios.
É Antonio dos Reis que no seu Enthusiasmus poeticus, a sauda em latim. É Souza Caria que traduzindo esse elogio lhe chama:
«A celebre Violante
A delicia do Céo, da terra o gosto».
É Antonio de Sousa de Macedo que na Eva e Ave a chama insigne e nas Flores de España e Excelencias de Portugal a saúda como auctora de Obras admirables.
É Froes Perim no Theatro Heroino e Juan Loar de Brito no Theatro Luzitano; é Frei Lucas de Santa Catharina na continuação da Historia de S. Domingos.
É D. Francisco Manoel de Mello que diz rendidamente: «Soror Violante do Céo em tudo de seu appellido por juizo e virtude»; e é Manoel de Faria e Sousa que na Fuente de Aganipe lhe diz: «Viola antes que lirio, antes que rosa». É tambem Jacintho Cordeiro, poeta então em voga, que no anno de 1636 publicando o Elogio dos poetas lusitanos (livro hoje rarissimo) falla da nossa musa dizendo:
«Que es Violante deidad cuya camena
A valientes ingenios desafia
Com tanta admiracion que alçando el vuelo,
Las lettras hurta del insigne abuelo.»
Não alongaremos a lista de nomes d’aquelles que a louvaram, nem continuaremos a accumular citações, mas relembremos ainda que, achando-se em Ruão no anno de 1646 o Conde de Vidigueira, D. Vasco Luiz da Gama, Almirante da India (marido da Condessa, que se vestia de pardo na sua ausencia, como se vê da dedicatoria em um soneto) chegou áquella cidade o capellão do Conde, um tal Dom Leonardo de S. Joseph, levando[Pg 201] na sua bagagem o manuscripto das Rythmas, que a freira lhe confiara. Logo o intelligente fidalgo, avaliando o merito da obra, a mandou dar á estampa na imprensa de Maury, sahindo á luz com alguns preliminares, entre os quaes a dedicatoria do capellão, que em prosa e em verso lhe chama «Aguia de Portugal, decima musa da Hespanha.»
E agora, leitora curiosa, se me perguntaes, a mim que não sou seiscentista, que não sou D. Francisco Manoel de Mello, que não sou capellão do Conde Almirante, qual o meu sentir ácerca da celebre musa dir-vos-hei sem ambages:
—Nem aguia nem gallinha.
Os seus versos, se não têem o sopro do genio que faz estremecer de admiração, não merecem comtudo o desdem com que os paladares modernos os regeitam.
Violante foi na mocidade a rapariguinha bem dotada que, logo de estreia, uma côrte aclamou.
Foi depois uma mulher apaixonada por um vago anonymo, ausente, infiel, e que, segundo ella pensava «fazia loucuras por outra». Vingou-se. Mas logo mal ferida sentiu o ferro retalhal-a. Atirou-se para o convento.
O romance é banal. Mas é sempre interessante saber-se como sente um coração feminino, sobretudo quando a heroina escreve em estrophes a sua autobiographia.
Sómente n’este caso, a linguagem, que o gosto do seu tempo lhe impôz, foi como uma fôrma de cobre em que a massa ligeira de uma alma de mulher endurecesse nos moldes convencionaes.
Por isso, indiscreta leitora, visto que instaes em saber se deveis lêr, para vosso agrado, todas as poesias de Soror Violante do Céo, dir-vos-hei que... somente devereis ler algumas, escolhidas nas anthologias. E sendo difficil obter as obras completas, que ha muito se esgotaram, encontrareis n’esse[Pg 202] obstaculo uma desculpa plausivel para vos absterdes de percorrer as numerosas paginas das Rythmas, do Parnaso, e dos Soliloquios em que se repetem com monotona insistencia os Villancicos ao Nascimento, á Visitação, á Ascenção com que a velhinha do Convento da Rosa ia distillando o seu espirito e volatilizando a sua alma amorosa.
[Pg 203]
SUMMARIO
Duas obras recentes—De Ruy Chianca, no Theatro. De Edgar Prestage, em livro—Valor da obra do erudito lusophilo—Trabalho exhaustivo sobre o escriptor seiscentista. A vida do D. Francisco, suas viagens, suas aventuras, sua prisão. Lenda romantica—O duello nas sombras—A sua divisa: Quare?
Estabeleceu certa academia um premio valioso para ser conferido ao sabio zoologo, que escrevesse a mais completa e notavel memoria sobre o Leão.
Trez candidatos concorreram ao certamen: um Francez, um Inglez, um Allemão.
O Francez, espirito vivo, intelligencia captadora, facetada, assimiladora, que lêra Buffon, e admirára a elegancia de estylo com que o nobre Conde escrevia historia natural, empunhando uma penna de ouro, com mão bem tratada e esguia emergindo das preciosas rendas, sobraçou um volume d’essa historia, encadernado em marroquim, or sur tranches, e tomou um carro que o conduziu ao Jardin des Plantes.
Alli, em frente da jaula d’um formoso specimen do rei dos animaes, emquanto as amas e creadas da visinhança ouviam dengosas os requebros dos soldados, e as borboletas se perseguiam amorosas entre a folhagem, estudou os movimentos do soberbo animal, idealizou-lhe a existencia, e, em seguida, n’uma barraca da feira Neuilly, assistiu attento ás coleras d’um bando de leôas, excitadas pelo chicote de uma domadora que, vestida[Pg 204] com maillot, dava tiros de polvora secca, em frente das fauces escancaradas dos bichos truculentos.
Poucas semanas depois tinha escripto um volume faiscante, pulverizado de anecdotas, livro de leitura interessante e facil, que foi devorado por milhares de leitores.
O Inglez comprou um fato de linho, um capacete de cortiça, uma boa carabina de caça, varias obras de viagens, um livro em branco para tirar notas e tomou um bilhete a bordo d’um transatlantico que o levou a um porto da Africa.
D’alli penetrou na Libya, procurando a região onde melhor pudesse observar a vida, os usos, os costumes das soberbas féras em plena natureza. Passou noites no embrenhado das florestas, e nas quebradas dos montes, onde echoam os rugidos dos magestosos animaes, e ouviu os bramidos das fulvas leôas amorosas nas clareiras alumiadas pelo luar africano.
Surprehendeu nos antros o ciume das mães; as luctas sanguinolentas entre os machos com o cio; o esphacelar das victimas colhidas nas caçadas. Elle proprio matou valorosamente, para se defender, medonhos leões, e trouxe exemplares preciosos para o estudo da raça. Ao fim de dez annos, tinha escripto um livro bem documentado, vivido, verdadeiro. Um livro de consulta, um livro de sciencia, um livro de bibliotheca.
O Allemão, esse, limpou os cristaes dos seus oculos de ouro, penetrou na bibliotheca imperial de Berlim, requisitou todas as obras de historia natural escriptas nas seis mil linguas que se fallam no mundo, abancou n’um dos mais reservados cantos da sala de leitura, e começou a ler, tomando apontamentos sobre tudo quanto se tem escripto ácerca do Leão, desde as obras fundamentaes de sabios até ás dissertações phantasistas a respeito do leão alado de S. Marcos nos monumentos de Veneza, não esquecendo as referencias á fabula do immortal Phedro. Ego nominor leo... O Allemão tem lido, lido, lido. Já lá vão vinte annos e juntou notas para outros tantos volumes de uma futura obra colossal!
Occorreu-me ao espirito a anecdota que precede ao ler as duas obras recentes (emquanto não apparece a terceira) inspiradas[Pg 205] na personalidade de D. Francisco Manoel. O polygrapho seiscentista não é positivamente um leão. Mas o facto de ter sido agora assumpto de um drama de Ruy Chianca, e de um estudo biographico de Edgar Prestage, trouxe-me a confirmação do caso, que tão bem caracteriza as tres raças.
Francisco Manoel de Mello! A todos os que estudam, ainda que superficialmente, litteratura portugueza, este nome recorda o auctor da «Carta de Guia de Casados», dos «Apologos dialogaes», das «Epanaphoras», o diplomata da Restauração, o prisioneiro da Torre de Belem, e mais ainda o heroe do romanesco duello nas sombras, o supposto rival de D. João IV, e a victima da sua paixão pela Condessa de Villa Nova.
Dados estes elementos tentadores, o espirito meridional do sr. Ruy Chianca, todo vibrante ainda do seu triumpho com o exito de «Aljubarrota», toma o auctor do «Fidalgo Aprendiz», colloca-o em scena, apresentando-o entre personagens, mais de imaginação que de historia, e, dando-o como typo da nobreza de sentimentos da raça portugueza, exalta-o e celebra-o.
«Porque é poeta e nobre audaz e ciumento»
e tambem ainda porque, segundo elle põe na propria bocca do seu heroe:
«Poeta e bom fidalgo á moda portugueza
Bato-me onde é precizo em lidima defeza.
Por que? Pela divisa escripta em minha espada.
Por quem? Por meu amor. Por quem? Por minha amada.»
Não sei se quem não conhecer a individualidade de D. Francisco Manoel, tão complexa, e tão cheia de incertezas e de[Pg 206] penumbras na vida do coração; quem não tiver perfeito conhecimento das suas obras litterarias, nas quaes o culteranismo, triumphante n’esse tempo, é tão elegantemente subjugado por um bom gosto artistico, raro nos seus contemporaneos; se quem não tiver lido os cem volumes de que se compõe a opulenta lista das suas obras; se quem não tiver saboreado nos «Apologos dialogaes» a «Visita das Fontes» e os «Relogios fallantes» tão ricos de conceitos, noticias, e bom sal attico; se quem não conhecer as discussões ora eruditas, ora piegas da «Academia dos Generosos»; se quem não tiver compulsado os diccionarios bibliographicos de Barbosa Machado e de Innocencio, e os estudos de Costa e Silva, Alexandre Herculano, e Camillo Castello Branco; não sei, repito, se o espectador que assistir desprevenido ao drama intitulado: «Dom Francisco Manoel» ficará com uma ideia approximada do homem notavel, que se chamou assim. É incontestavel, porém, que a sua attenção será sollicitada com sympathia para as qualidades reaes d’esse attrahente vulto, que o auctor do drama phantaziou galhardamente, e para a nobreza de sentimentos, que caracterizam a sua classe, predicados que são postos em formosos versos, n’um peito genuinamente portuguez. E porventura essa obra de arte, concebida e executada com a impetuosidade de um quasi improviso, n’um jacto de lyrismo, induzirá muitos a irem buscar nas fontes noticias acerca da individualidade do heroe, e a lerem nas obras de investigação o que se tem escripto com relação a esse personagem tão rodeado de interrogações, a esse soldado, diplomata, philosopho e poeta, sobre cuja acção politica a historia falla alto; sobre cujo valor intellectual os seus livros são eloquentes attestados, que perpetuam a sua fama; e cuja existencia sentimental a lenda envolve n’uma atmosphera de mysterio propicia ás hypotheses romanescas.
Em todo o caso é obra digna de ouvir-se agradabilissimamente.
O mais recente estudo, o mais notavel, e o que mais noticias encerra ácerca da vida e obras de D. Francisco Manoel de Mello é o «Ensaio biographico», grosso volume in-8.º, que[Pg 207] se deve ao trabalho exegetico do escriptor inglez Edgar Prestage.
Espirito namorado das coisas portuguezas, alma lusitanisada até ao amago, a força de seducção que o levára a trasladar para o seu idioma Azurara na «Chronica do descobrimento e conquista da Guiné»; as «Cartas da Freira portugueza»; e o «Suave Milagre» de Eça de Queiroz, attrahia-o, desde alguns annos, para o vulto que no seculo XVII tão caracteristicamente representa a gente lusa, e que melhor cultiva a sonora e doce lingua de Portugal.
Conservando as qualidades fundamentaes da sua raça, e a segurança dos processos na investigação, o critico inglez entendeu que devia usar o idioma portuguez, tratando de um escriptor cuja linguagem Herculano aponta como modelo de estylo «pelo qual se vê quão rica e bella é esta nossa lingua, que para exprimir affectos não carece de neologismos, nem de enredar-se em archaismos». Prestage resolveu pois fallar d’esse portuguez na lingua portugueza.
O esforço enorme assim realizado pelo critico bilingue não se compara á alternativa facil com que os nossos quinhentistas e seiscentistas empregavam indifferentemente a lingua patria e a castelhana, de que é exemplo o proprio D. Francisco Manoel reputado classico, aqui com os seus «Apologos» e «Carta de Guia de Casados»; lá em Hespanha com o seu «Movimento de Cataluña».
Por isso mesmo é mais para admirar a temeridade do escriptor inglez que, habituado a formular a ideia na simples e regular syntaxe de sua lingua, se aventurou a tratar da vida e obras de um requintado cultista, ligeiramente eivado de gongorismo, e tão avesso na redacção complicada do pensamento á simplicidade ingleza quanto a glotte de um saxonio é rebelde á harmonica e suave musica da dicção portugaleza.
O esforçado escriptor sahiu-se da sua empreza com muita honra, e o seu livro que modestamente baptisou com o nome de «Esboço biographico» é trabalho de grande valor, e está destinado[Pg 208] a figurar em todas as bibliothecas de estudiosos de Portugal, do Brazil, da Hespanha e da America latina.
Embora por vezes a construcção da phrase deixe no paladar um resaibo, ou ligeiro travo que indica a sua proveniencia britanica, a redacção sempre clara leva-nos arrastados pelo interesse, atravez dos nove capitulos do livro, confiando plenamente na honestidade da factura, e na segurança dos processos empregados.
Para muitos se afigurará exagero de segurança, tanta é a minuciosidade com que se procura uma data: se discute um facto; se verifica uma lacuna; se averigua a existencia de indicios até agora desprezados; e com que se cata as obras do escriptor para n’ellas ir encontrar elementos biographicos.
Mas nunca é demasiada a investigação em livros d’esta indole, ainda mesmo quando as conclusões sejam de natureza negativa.
É portanto bem para apreciar a paciencia com que o auctor da biographia lê attentamente as obras do escriptor; com que interroga todos os que lhe possam fornecer elementos uteis, com que se corresponde com os directores dos archivos nacionaes e extrangeiros; com que entra nos cartorios das antigas familias que ainda os teem; com que examina os registos de nascimento, casamentos e obitos das parochias de Lisboa; com que percorre as ruas, praças e beccos estreitos, e com que estuda antigas plantas da velha Lisboa do seculo XVII.
Procedendo assim, e a exemplo de Herculano que do «Memorial» dirigido a D. João IV tira dados biographicos, consegue, cotejando textos e analysando documentos, alguns até hoje inéditos, e estudando as «Cartas Familiares», as «Tres Musas del Melodino», as «Epanáphoras», etc., reconstituir a vida do escriptor e, o que é mais difficil, sondar por vezes o seu intimo pensar.
No proseguimento d’esta tarefa apresenta Prestage o problema, ainda hoje insoluvel, dos motivos da paixão de D. Francisco Manoel, e da supposta connexão entre a sua desgraça e a aventura amorosa que, segundo alguns, deu causa ao desagrado regio, e á vingança de um marido.
[Pg 209]
Esse problema desperta a curiosidade, com a attracção irresistivel do mysterio.
O escrupuloso biographo apresenta-o tal como foi posto pelos seus predecessores, e indica as soluções alvitradas. Deixa ao leitor o decidir-se pela solução, que melhor convenha ao seu espirito. E, se não omitte a sua opinião, tambem não a impõe como dogma.
Ora como o caso é interessante; como os enredos que motivaram a prisão do moço militar formam uma trama emmaranhada, que nunca se desfiou bem, nem durante os doze annos de encarceramento, nem quando regressou do exilio, nem depois da sua morte; e, como nos depoimentos da historia apparece, trazido por mexericos, o echo do testemunho d’um avô meu, (echo, note-se bem, mas não voz propria), redobrei a attenção com que li o livro, e especialmente quando dá conta das versões, com que se tem querido explicar o drama.
No livro de Edgar Prestage são apontadas todas essas versões, desde as notas sisudas e graves de Alexandre Herculano, no «Panorama», até ás phantasiosas noticias publicadas por Camillo Castello Branco, na ancia, com que algum tempo enfermou, de deprimir a Casa de Bragança, e com as quaes pretende desatar todas as duvidas, e alumiar todos os pontos obscuros.
É sabido que D. Francisco Manoel de Mello, descendente por sua mãe do Duque de Bragança, degolado em Evora, e portanto ainda parente de D. João IV, depois de estudar humanidades no Collegio de Santo Antão, com o Padre Balthazar Telles, o historiador da Ethiopia, embarcou aos 16 annos, como aventureiro, na armada commandada por D. Manoel de Menezes, o chronista de D. Sebastião.
Batalhou nos Paizes Baixos; e foi como mestre de campo[Pg 210] na armada de Antonio Oquendo contra os Hollandezes do canal da Mancha; militou no exercito do Marquez de los Veles, contra a Catalunha revoltada; e já antes da Restauração de 1640 foi diplomata habil por parte do Duque de Bragança, explicando com astucia em Madrid os tumultos de Evora, que inquietavam o Governo hespanhol.
A sua passagem, na Côrte de Madrid, pelas rodas elegantes, deixou fama. E foi festejada a sua assistencia nos celebradissimos saraus e festins, onde soube usar a arte subtil do cortezanismo, e as amaveis manhas de requintada galanteria.
Corria fama da sua maneira de cortejar as senhoras quando, subindo aos estribos dos côches em que passeavam no Prado, elle as entretinha com motes, que provocavam riso e galhofa; e celebrava-se a sua sciencia de bem dizer e engenho em contar casos, ora narrando as proezas de D. Simão da Silveira, em frente do balcão das damas da Rainha, quando lhes fazia terreiro, ora alludindo á naturalidade com que a Condessa de Lalaim, jantando á mesa de Margarida de Valois, se desabotoára, mostrando o seio, para dar de mamar a um filho que creava. A sua conversação salpicada de dictos, de annexins, de anecdotas, de epigrammas picantes, era saboreada com prazer nas tertulias e seroadas, onde por este conjunto de qualidades mundanas, D. Francisco era apreciado como modelo de verdadeiro cortezão: ao mesmo tempo diplomata habil, militar arrojado e poeta galanteador.
Foi, por isso mesmo, bem acceito das mulheres, debicando com ellas se eram «leves e gloriosas, prezadas do seu parecer» (euphemismo com que se referia ás coquettes, a quem comparava a loureiros, por indicar que a qualquer bafo leve de vento se moviam), e sabendo lisonjeal-as, se eram interessantes, com o aguçar-lhes as qualidades femenis, cultivando assim com pericia «toda a casta de damarias e matronerias». E ao passo que desafiava com malicia o riso das que tinham bons dentes, e aquelle feitio a que chamava «graça na boca e cova na face», requestava as que «traziam castanhetas na algibeira,[Pg 211] sabiam jacaras, e entendiam de mudanças de sarambeque, com indicios de desenvolturas.» Tinha além d’isso receitas seguras para lidar com ellas, como revela na «Visita das Fontes» com o aphorismo que diz: «A mulher é como a laranja. Se muito apertada logo amarga. Quer-se levada por bem, mas não pelos cabellos.»
Não lhe perjudicava o exito, e o prestigio, a sua fealdade, se realmente era feio, como parece indicar aquella anecdota, que vem referida n’um codice da Bibliotheca Nacíonal de Lisboa, e que é attribuida ao Conde de S. Lourenço. Diz assim:
«A Senhora Rainha D. Luiza tinha um quarto aonde ella só entrava e muito occultamente ia pôr seu alvaiade e seu carmin de cara. Este quarto tinha por cima da porta ou de uma janella, uma bandeira, á qual muitas vezes, estando a Rainha dentro subia um macaco, por lhe permittir o comprimento da sua cadeia e d’alli observava as operações da mascara.
Quebrou o macaco hum dia a sua cadeia e, pela bandeira da janella ou porta, entrou no gabinete; foi-se logo aos unguentos e appareceu no Paço feito muito galante Dama.
A Rainha, desesperada, mandou matar o macaco, na mesma occasião infelizmente que uma Dama do Paço, prima de D. Francisco Manoel, n’aquella occasião preso de pouco, se foi lançar aos pés da Rainha, banhando-se em lagrimas, a pedir a Real intercessão por seu primo que era assaz homem de um semblante muito feio, talvez tanto como era bello espirito.
A Rainha, em colera, persuadida que a Dama lhe ia pedir pelo macaco, deu-lhe logo a exclusão, prevenindo o peditorio, dizendo-lhe: «Não, não. Não me peças por elle que ha de morrer, porque é muito feio.»
Cahiu a pobre Dama com um accidente, fulminada da injusta sentença da Rainha, que condemnou o innocente animal pelo mesmo delicto em que ella era comprehendida e em que tinha sido a mestra do macaco, que por isso mesmo que era feio, queria fazer-se bonito.»
[Pg 212]
A anecdota é engraçada, mas não nos assegura a fealdade de D. Francisco.
Este Conde de S. Lourenço, meu avô, a quem, diga-se de passagem, são attribuidas com mais ou menos authenticidade muitas anecdotas, nasceu muito depois da morte de D. Francisco Manoel a quem só conheceu por tradição, e pela leitura das obras d’aquelle a que chamava bello espïrito.
Emquanto á prima que desmaiou aos pés da Rainha, quando foi do mofino equivoco, o seu testemunho é suspeito.
Pois que emquanto com os labios o alcunhava de feio, com o indiscreto desmaio trahia o sentimento que a dominava.
Chamava-se ella D. Maria de Portugal, e foi depois Condessa de Penalva.
Era irmã do Conde da Ponte, Marquez de Sande, e acômpanhou como Dama a Rainha D. Catharina a Inglaterra. Quem sabe se nas vigilias da brumosa ilha, não lhe pairava na imaginação a figura do encarcerado primo, menos disforme que a imagem que apresentára á Rainha D. Luiza.
Camillo Castello Branco, não sei com que fundamento, assegura que elle era «gentil, moço de trinta annos, corajoso e poeta, o primeiro e mais galan de quantos então abrilhantavam os saraus da primeira fidalguia».
Não existem retratos para averiguar. Mas o que é tradição é que nas suas peregrinações pela Europa, teve triumphos, e que sejam quaes forem os lances do drama que causou a sua prisão, parece ter captivado alguns corações. Entre elles um, que ficou na lenda.
Seria essa aventura que occasionou a sua desgraça?
Vejamos.
O crime de que foi accusado, e pelo qual foi preso e condemnado, caréce de fundamento.
[Pg 213]
Um certo Francisco Cardoso, creado do Conde de Villa Nova, D. Gregorio, andava de amores com uma tal Catharina, mulher de um antigo creado de D. Francisco Manoel chamado João Vicente, que fôra despedido por seu amo.
O marido mandou matar por trez homens o Cardoso, sendo o cadaver d’este encontrado em uma viella, que subia para o Limoeiro.
Foi aberta devassa, e os assassinos postos a tormentos declararam que fôra D. Francisco que os incumbira do crime. Os trez sicarios foram justiçados: João Vicente, o marido de Catharina, e antigo creado de D. Francisco, foi condemnado ás galés; e este enclausurado, victima ao que parece de vingança de inimigos publicos e encobertos.
Quem eram elles? É sobre isso que paira o mysterio.
Attribuem uns essa prisão á vingança de D. João IV; outros ao odio do Conde de Villa Nova, porque o moço escriptor era bem querido da Condessa; outros ainda a inimigos politicos que depois de perderem o desgraçado Secretario de Estado, Francisco de Lucena, aproveitaram o assassinato do Cardoso, e o resentimento de um creado despedido, para armarem o tenebroso enredo que perdeu o infeliz D. Francisco.
E todas estas versões se entrelaçam nas sombras, formando um d’estes enygmas historicos, que tentam dramaturgos e romancistas.
A mais romantica das versões é a que se encontra n’um livro de Linhagens attribuido a Joseph Cabedo de Vasconcellos e Manoel Moniz Castello Branco, versão explorada por Camillo com toda a veia de arte e azedume, que caracteriza o seu modo de escrever.
Segundo elle, D. Francisco, apaixonado pela formosa Condessa de Villa Nova, esperava uma noite, cioso e desconfiado, n’um canto escuro do pateo de um palacio, espaçoso vestibulo, que se chamava o Pateo das Columnas, perto do Limoeiro, quando um vulto se approximou embuçado. D. Francisco perguntou quem era. Não recebendo resposta, desafiou o desconhecido, e cruzaram as espadas.
[Pg 214]
Ao tilintar do ferro accudiu sobresaltada a Condessa, com uma luz na mão. Os duelistas separaram-se.
Mas o embuçado, que era D. João IV, tambem enfeitiçado pela Condessa, conhecera a voz do rival, que lhe era familiar, e d’ahi a vingança attribuida ao Rei.
Esta versão, que é deprimente para todos os personagens, pois faz da Condessa, além de leviana, dobre e refalsada, de D. Francisco um ciumento ridiculo, do Conde D. Gregorio um inverosimil barba-azul envenenador de trez consortes, que successivamente o enganaram, e de D. João IV um rufião de congostas escusas e um algoz coroado, esta versão, repito, não resiste á critica. Embora houvesse no caso um fermento de amores e ciumes que sempre fazem levedar o folhado dos corações, não foi assim baixo o papel de D. João IV, e o proprio Camillo o confessa n’uma nota correctiva publicada, annos depois da primeira afirmativa, na «Bohemia do Espirito» isentando o Rei da responsabilidade dos infortunios de D. Francisco.
O sisudo e taciturno Costa e Silva no seu «Ensaio bigraphico-critico sobre os melhores poetas portuguezes», dá a esta versão um aspecto mais réles e burguez, pois diz que D. Francisco «era victima da vingança de uma alta personagem a quem offendera sem o saber, e sem intenção; pois encontrando-se os dois ás escuras em casa de certa moça, passaram ambos a vias de facto e houve entre elles alguns bofetões».
Por esta fórma o enfadonho Costa e Silva conserva o odioso da historia, tirando o perfume romantico á pittoresca aventura de capa e espada.
Por outra maneira se quer explicar o caso n’uma advertencia, que se encontra no codice da Bibliotheca Publica, a que já nos referimos. Diz assim: «D. João José Ansberto de Noronha, Conde de S. Lourenço, homem de prodigiosa memoria e muito grande instrucção em toda a litteratura e historia, me disse hoje, 4 de Maio de 1790, que não ouvira jámais fallar nesta briga, mas sim que sendo D. Francisco Manoel suspeitoso ao Rei por algumas informações de Castella, ou verdadeiras[Pg 215] ou falsas, fizera propor a D. Francisco Manoel, pela Condessa de Villa Nova, o plano de uma conspiração contra o Rei, ferindo pelos mesmos pontos das noticias ou suspeitas que tivera. Á conversação desta nova Dalila assistio o Rei, occulto com hum panno de raz, e o infeliz amante tendo a fraqueza de condescender na proposição, e a fineza de não a denunciar, cahio na desgraça do Rei para não incorrer na de traidor».
O Bispo do Gram Pará nas suas memorias conta a mesma historia pela fórma seguinte: «A Condessa de Villa Nova e Figueiró foi objecto da affeicção de D. Francisco Manoel de Mello. Allude a ella quando diz: Nuevo la vi. D. João IV querendo provar a fidelidade de D. Francisco persuadiu a Condessa que o tentasse.
D. Francisco para lisonjeal-a disse que seguiria o partido de Castella. Foi preso.
Assim m’o revelou o Conde de S. Lourenço».
Essa historia deixa assim collocados, ainda mais desastradamente que a outra, os que n’ella entram.
D. João IV passa a ser um esbirro, um aguazil; a Condessa uma sereia perfida e desprezivel; D. Francisco um patetinha lamecha e pueril; e o Conde de S. Lourenço um bisbilhoteiro indiscreto.
Sem pretender arvorar-me em paladino d’este meu avô, querendo desvanecer defeitos ligeiros que, se porventura os tivesse, eram bem compensados pelas qualidades brilhantes, que dão tão grande interesse á sua personalidade, devo dizer que é muito duvidosa a authenticidade de qualquer d’aquellas affirmativas, e sobretudo das insinuações malevolas que encerram.
A Advertencia, onde são colhidas, é uma nota anonyma lançada n’um codice e não merece grande confiança. A segunda variante é tirada das Memorias do Bispo do Gram Pará, manuscripto publicado por Camillo, de cuja authenticidade alguns duvidam.
Mas se effectivamente o Conde de S. Lourenço tivesse[Pg 216] referido o caso a Frei João de S. Joseph, não o affirmava como testemunho (pois a scena se passára havia mais de um seculo), mas apenas como echo dos zum-zuns maliciosos trazidos na tradição, e ainda não registrado na chronica escandalosa.
Este Conde de S. Lourenço foi, com mais trinta e tantos companheiros, preso á ordem do Marquez de Pombal no Forte da Junqueira, onde esteve dezoito annos.
Era tão excepcional a sua memoria que se conta ter escripto nas paredes do carcere o «Velho e Novo Testamento», sem auxilio de livro. Parece que tambem escreveu um «Tratado para a educação do Principe», que nunca chegou a publicar-se.
Os dissabores passados na masmorra, que um companheiro de prisão—o Marquez de Alorna—descreve no livro intitulado «Prisões da Junqueira», deram ao seu espirito uma ampliação morbida na visão das cousas, um poder maravilhoso de evocar personagens e factos que a sua imaginação ideava. Quando sahiu da cadeia, e recolheu á casa da Congregação do Oratorio, onde foi companheiro do poeta Bocage, a originalidade da sua conversação dava a muitos, que não possuiam a facilidade de comprehender os cambiantes da palavra, a impressão de que a sua razão desvairava. Outros, tomando á lettra as divagações da fecunda phantasia, registravam-n’as como assertos. Assim o Bispo do Gram-Pará e o anonymo da Advertencia terão recolhido como affirmações, simples boatos, que o Conde referia, se é certo que os referiu, pois não estava isso na indole intellectual do auctor da «Carta ao Marquez de Ponte de Lima sobre a Regencia do Reino».
Voltando agora ás causas da prisão de D. Francisco Manoel, e pondo de parte as explicações romanescas, (posto que pareça certo que o infortunado poeta teve effectivamente uma paixão pela formosa Condessa) inclinamo-nos a que a perseguição, que soffreu, tivesse sido motivada por odios politicos. Entre os seus perseguidores parece na verdade ter figurado D. Gregorio, o marido da Condessa. Mas não ha indicios[Pg 217] de ter sido o ciume que o aguilhoou na sua furia contra o amoroso D. Francisco.
Rancor é certo que existia, como prova uma carta do Embaixador de Hespanha em Roma ao Rei D. Filippe, em que dá noticia de o Conde reclamar contra a presença de D. Francisco na capital, depois de ter sido solto.
Prestage, no seu livro, onde o leitor póde encontrar «tudo o que se tem escripto sobre esta questão tão complexa», aponta de passagem uma circumstancia, que abre um horizonte á critica e um incentivo a novas investigações. Refiro-me á condemnação de D. Agostinho Manoel, parente de D. Francisco. Tudo leva realmente a crer que a causa da accusação fosse semelhante á que tornou suspeitos e acarretou ao patibulo este D. Agostinho, o Duque de Caminha, o Marquez de Villa Real e o Conde de Armamar.
A atmosphera de desconfiança e suspeição, creada na sociedade portugueza pela conspiração dos Grandes contra D. João IV, e o estado de espirito do monarcha, ameaçado de perder a corôa, são motivos sufficientes para explicarem a perseguição que D. Francisco soffreu.
É eloquente aquelle periodo do «Memorial» dirigido por elle a El-Rei, a quem diz: «No mesmo dia em que eu estava diante de um esquadrão (no Alemtejo), governando-o contra os inimigos de Vossa Majestade, estava alguma pessoa—que d’esta pratica já haverá dado a Deus contas—n’esse Paço persuadindo a Vossa Majestade me mandasse prender porque eu sem duvida, a juizo da sua bondade, hia com animo de me passar a Castella. Fundava bem essa sua suspeita em me haver eu escusado de testemunhar contra Francisco de Lucena aquillo que eu não sabia».
É emquanto a mim n’estas palavras do proprio D. Francisco Manoel, dirigidas ao Rei, que se deve ir procurar a explicação da sua odysséa. E na excitação dos espiritos, vibrantes ainda com a tragedia do Rocio que pôz um epilogo á conspiração, é que se deve buscar o fermento com que os inimigos do talentoso escriptor, architectaram a sua desgraça.
[Pg 218]
Ciumes, se os houve por parte de um marido, só podem ter contribuido para que este diligenciasse prolongar o encarceramento.
Da parte do Rei, que se correspondia em cartas com D. Francisco Manoel, depois de preso, e que até o consultava sobre negocios publicos, não se nota vislumbre de azedume ou rivalidade; como tambem não transparece em tudo quanto D. Francisco escreveu.
Então que resta da imaginada vingança de um Rei que ardendo em zelos ferinos se transforma em «algoz coroado»?
Phantazias de novellistas!
Em toda esta emmaranhada questão aguça-nos a curiosidade saber alguma cousa acerca da heroina do romance (se o houve), aquella requestada Condessa de Villa Nova, cuja physionomia esquiva se rebuça n’uma mantilha de mysterio.
O Conde D. Gregorio foi casado trez vezes. E não concordam aquelles que mais acreditam na rivalidade entre o Rei e o escriptor, sobre qual das trez Condessas enfeitiçou a ambos. Uns preferem para causadora da tenebrosa historia a primeira, que foi D. Brazia ou D. Branca de Vilhena, filha do Conde da Sortelha. Outros talvez prefiram como enredadora do drama amoroso D. Guiomar da Silva, segunda mulher do Conde D. Gregorio e filha do Conde de Odemira. Finalmente, Camillo, seguindo os genealogistas que consultou, decide-se pela terceira, D. Marianna de Lencastre «de peregrina formosura e a mais cantada dos poetas fidalgos d’aquelle tempo».
E com a phantazia camilliana decide sem hesitação que o Conde seu marido envenenara esta terceira consorte, como já tinha envenenado as duas primeiras, e apresenta-o como um Borgia, prodigo em ministrar fortes dóses de peçonha ás successivas condessas.
Ora, a «Historia Genealogica» e alguns linhagistas bem informados dão noticia de que D. Marianna, dezoito ou vinte annos depois d’este drama, não só estava com vida, mas casou segunda vez com o Conde de Aveiras, Luiz Telles da Silva,[Pg 219] tendo enviuvado do Conde de Villa Nova a 14 de Abril de 1662.
Se é certo que tivesse havido da sua parte qualquer especie de sentimento pelo talentoso fidalgo, encarcerado a 19 de Novembro de 1644, já de ha muito o coração lhe arrefecera, não tendo resistido á ausencia do amoroso poeta, que ia transitando de carcere para carcere, do Castello para a Torre de Belém: da Torre velha para Ribamar...
E elle? Que sentia na prisão onde permaneceu tantos annos?
«Entrei n’esta prisão honrado, sahirei por força abatido; entrei são, sahirei doente; entrei mancebo, sahirei velho; entrei accommodado, sahirei pobre. Tudo o que perco, e já não posso cobrar, dou por bem perdido quando a grandeza de Vossa Majestade não consentir acabem meus inimigos que eu entrando tambem innocente, saia culpado».
Estas palavras dirigidas ao Rei não dão a impressão de um rival despeitado e opprimido, fallando ao seu competidor victorioso. Não falla ahi (nem é natural que fizesse confidencias amorosas n’um memorial ao Rei) nos sentimentos que porventura o atormentavam, como tambem pouco ou nada se fazem sentir os seus infortunios de coração nas obras que escreveu—cartas, apologos, poesias ou tratados.
Quem, porém, esquadrinhar bem os seus escriptos encontra phrases, que abrem frestas reveladoras sobre a alma do captivo sentimental, que sabia fallar de amor. Assim, diz elle: «quando nisso me ponho, sei amar de uma arte nova. Porém, tambem digo que passar ruins dias e peiores noites por gente loureira é cousa trabalhosa».
Se quando isto escrevia ainda não estava preso, o que sentiria quando nas longas noites da Torre de Belém, banhada pelo Tejo que o luar chapinhava, ruminasse sobre a fidelidade da leviana e loureira creatura que porventura, á mesma hora nos Paços da Ribeira em festa, escutava galanteios e finezas?
[Pg 220]
«Encerrado en una torre,
me guardan dentro del mar,
como en el nacar la concha
guarda la perla oriental».
Pobre poeta esquecido! Pobre coração atormentado!
Para suavisar amarguras, trocou angustias sentimentaes em moeda litteraria.
As lettras, que são um grande refugio espiritual, trouxeram-lhe uma occupação, e dos annos passados na inactividade forçada resultaram algumas das obras primas da litteratura portugueza.
«Aos emulos que o perseguiram, escreve Herculano, deve elle a gloria que cerca o seu nome.
Se não fosse a dura e larga prisão, porventura teria gastado os seus dias no meio dos tumultos da guerra e dos enredos cortezãos. Assim, os invejosos que pretendiam deprimil-o, foram aquelles mesmos que contribuiram para que lhe coubesse o que neste mundo mais preço e valor tem—o renome e a immortalidade».
Prestage tambem considera bemaventurados os infortunios de D. Francisco Manoel, «que delle fizeram um grande homem e um grande escriptor».
Será assim? Talvez não! Costumam os amadores do canto de certas aves cegal-as com um ferro em braza afim de as tornarem mais canoras e melodiosas. Quer-me parecer que as volatas do rouxinol nos salgueiros, e que os trillos do pintasilgo nas giestas, tem mais sabor e harmonia que os gorgeios por força dolentes do «ruysenhol captivo que canta de noute e faz saudades», ou que o pintasilgo preso ao poleiro, por cadeia de latão, na loja do barbeiro.
É pois de crer que o talento de D. Francisco Manoel, desabrochando livre nos paços, nas salas nobres, nos campos de batalha, no convivio do seu amigo Quevedo—o pae da graça—e nas tardes de ocio no Rocio, onde os casquilhos da Côrte tinham prazo-dado, teria produzido mais «Apologos[Pg 221] dialogaes», mais «Guerras da Catalunha», mais «Epanaphoras» e mais obras poeticas, embora fosse mais reduzido o numero de allegações juridicas e memoriaes.
Mas, metade dos seus cem volumes que escrevesse, já eram de sobejo para immortalizar o classico escriptor que marca uma phase na evolução da nossa lingua.
A obra de Prestage sobre D. Francisco Manoel de Mello é o que os Inglezes chamam an exhaustive work.
Desde a noticia sobre a familia em que nasceu, até ao ultimo capitulo em que faz um apanhado sobre o homem e o escriptor, os seus amores e a sua descendencia, o auctor do ensaio vae seguindo com minuciosa attenção cada um dos trabalhos litterarios do prodigioso polygrapho, tirando d’elles preciosos dados para a sua biographia e para a analyse psychologica da sua interessante individualidade.
Os capitulos sobre o exilio no Brazil; sobre as viagens; sobre a «academia dos generosos», em que ha a curiosa relação dos certamens, e a lista dos socios; sobre as negociações para o casamento de D. Affonso VI e sobre a morte do escriptor, encerram paginas não só de biographia, mas de historia.
E dos documentos que são annexos ao volume, alguns ha bem curiosos, como aquelle que testemunha as relações de D. Francisco Manoel com o Governo hespanhol logo depois da Restauração, e que tanto fazem meditar sobre a concepção de patriotismo n’aquelle turvado periodo. Augmentam esses documentos o valor da obra, e tiram-lhe todo o caracter de panegyrico, pois não poupam o espectaculo de algumas mazellas espirituaes.
O ensaio biographico está destinado a ser não só o breviario de todos aquelles que quizerem conhecer D. Francisco Manoel de Mello, mas a formar a base fundamental do monumento que é devido ao inconfundivel escriptor.
[Pg 222]
Esta obra faz cahir o véo de sobre alguns pontos escuros e duvidosos da vida de D. Francisco Manoel, e, por engenhosas e rebuscadas conjecturas, encaminha o espirito do leitor a hypotheses provaveis. Mas não tem pretenção a desvendar de vez muitas das circumstancias em que está envolvida a existencia do interessante vulto seiscentista, nem dissipar por completo essa nebulose que nunca se esfarrapará em volta do nome prestigioso do escriptor.
No frontespicio de muitas das suas obras figura a enygmatica palavra: «Quare?»—«Por que?»
A concisão com que é feita essa pergunta encerra um mundo de interrogações, que dão á figura de D. Francisco Manoel de Mello juntamente com a poesia do infortunio, a poesia do mysterio.
[Pg 223]
SUMMARIO
A Veneza Luzitana é seu berço—Vinda para Lisboa—Educação livre—Repressões—Revolta—Partida para o desconhecido destino, Mazagão—Annos de serviço militar—Galanteios de ambos os sexos—A Donzella que vae á guerra—Confissão inesperada—Desposorios—Regresso ao Reino.
Em Aveiro, a linda Veneza luzitana, nasceu, a 31 de Março de 1580, Antonia Rodrigues, que havia de dar brado no seu tempo.
O pae, Simão Rodrigues, mareante de profissão, passava a vida laboriosa no mar, embarcado nas galés, que, ou partiam com longinquo rumo, carregadas de sal, para o ultramar, ou se dirigiam aos bancos da Terra Nova, á pesca do bacalháo, ou iam seguindo a costa, em busca de acasos raramente lucrativos.
A mãe, Lianor Diaz, mourejava para ajudar o sustento da familia. Casara a filha mais velha, que logo partira para Lisboa.
A pequena Antonia herdara do pae, e talvez dos remotos avós, phenicios ou celtas, que n’aquellas paragens tinham abordado em passadas éras, a attracção pelo desconhecido, e o animo resoluto, avido de aventuras. Quando bebia na aragem, que vinha dos lados da barra, cem as emanações salinas,[Pg 224] o philtro mysterioso, que impelliu os nossos navegadores para a conquista do mundo, sentia ferver-lhe tumultuosamente nas veias o sangue. E pelos minusculos canaes da ria, que serpenteava na planicie, ou pelas estreitas viellas da antiga villa, lá ia de envolta com a garotada turbulenta em perigosas excursões sobre jangadas improvisadas, ou em luctas monumentaes de pedrada. Era o tormento da mãe, que não podia domar aquelle pequeno animal bravío. Era o enlevo do pae, que, nas occasiões em que não embarcava, se revia na filha, quando ella partia, já dominadora, commandando o infantil exercito, ou organizando giganteas partidas de jogo de barra, em que se distinguia, apezar da edade, por ser dextra e agil.
A vida, porém, corria difficil para a familia. Os invernos quasi haviam atulhado de areia a barra, e a navegação fôra perjudicada com esse impedimento. Os canaes transformados em paúes tornaram-se estereis e doentios. Nas marinhas diminuiu a producção do sal, e por pouco não se extinguiu a industria da pesca. A villa, agora insalubre, ia-se despovoando pouco a pouco.
O antigo embarcadiço sentiu de perto a miseria. Foi então que sua mulher, a valorosa Lianor, resolveu levar a pequena Antonia para Lisboa, onde a outra filha se estabelecera. Afigurava-se-lhe que o genio indomito d’aquelle seu rebento meio selvagem, se disciplinaria melhor longe das complacencias do pae, e no contacto da gente da capital, mais polida de maneiras, que os miseraveis habitantes da decadente Aveiro.
O certo é que, pelos annos de mil quinhentos e noventa e tantos, metteram-se as duas a caminho, arrostando com as difficuldades e perigos d’uma viagem, tão arriscada n’aquelles tempos, quer por mar, onde os corsarios inglezes e hollandezes atacavam as embarcações mal defendidas, quer por terra, onde os ciganos aos cardumes surprehendiam os viajantes nas estradas, e até nas albergarias, ou dependencias de conventos em que pousavam.
Vieram encontrar Lisboa bem diversa das pinturas com[Pg 225] que lh’a haviam figurado—primeiro ruidosa, festiva, brilhante, quando fôra da expedição para a Africa com D. Sebastião e a flor da nobreza; depois amargurada, deprimida, orphã de Rei e de côrte, quando da morte do Cardeal D. Henrique; depois ainda tumultuaria, nervosa, excitada por occasião da phantasmagorica acclamação do Prior do Crato; finalmente, galvanizada, com a organização e preparativos da partida da Invencivel Armada, para a qual tinham dado:
«Naples ses brigantins, Cadix ses galions
Lisbonne ses marins, car il faut des lions».
Na Lisboa onde entravam, respirava-se agora a atmosphera soturna das povoações subjugadas, sentia-se a tristeza apagada de uma terra de provincia, votada ao desdem pelo poder central.
O Palacio Real fechado, depois da partida do Vice-Rei, Archiduque Alberto, era na sua mudez taciturna a imagem do Portugal de então.
A filha mais velha de Lianor Diaz acceitou a missão de hospedar a irmã, o que não foi pequeno encargo para uma, nem grande motivo de regosijo para a outra.
A mais velha era azeda e violenta de genio. Pretendia governar com aspereza a rapariga que, passando já dos doze annos, manifestava cada vez mais o seu espirito de independencia, andando a flaino pelas congostas da antiga Alfama; subindo perto do Castello, d’onde enxergava ao longe o Tejo, que lhe avivava saudades da sua Costa Nova; renovando com a gaiatada do largo de S. Christovão e das Cruzes da Sé as proezas de Aveiro.
Eram então grandes partidas do jogo do pião, do homem,[Pg 226] da laranjinha, do pegochuna, da cunca e sobretudo da barra, em que a rapariga revelava especial destreza e habilidade, como para todos os exercicios a que os Inglezes dão o nome generico de sport, vocabulo que os modernos lexicographos traduziram por desporto, palavra cuja significação é antes folgança, que jogos athleticos.
Outras vezes a pequena Antonia deitava até á Ribeira das Náos, onde se quedava pasmada, admirando toda a faina maritima, que ainda alli era muita, a despeito da progressiva decadencia, que a acção do Governo hespanhol ia tornando cada vez mais sensivel.
Ainda alli se construiam galeras, carracas, fustas e caravellas; ainda alli se carregavam as embarcações, que levavam homens e mantimentos para as nossas possessões, ainda alli se apparelhavam as armadas que iam a combater, e se descarregavam as que vinham da India com especiarias.
Estas excursões pouco proprias de uma rapariga que ia entrar n’uma puberdade promettedora; cujas fórmas começavam a desenhar-se em linhas felizes; e a cujo caminhar cadenciado os exercicios physicos tinham dado uma elegancia especial, não agradavam á sizuda e rebarbativa irmã primogenita.
Começaram então os reparos, as prohibições, as repressões, que em vez de alcançarem o recato e a compostura requeridas, mais excitaram no animo da insubmissa Antonia o espirito de revolta.
Ás recriminações da sensatez, correspondiam os impetos insubordinados.
De um lado o resguardado viver no interior da habitação lisboeta da edade média, com as gelosias de rotulas cerradas, e adufas cahidas, na qual a femea semi-arabe, ancilla enclausurada tradicionalmente, fiava durante as horas da sésta, até que entre lusco e fusco sahia a pedir ás visinhas lume para apromptar a ceia do marido, e a depenicar um pouco na reputação alheia; do outro lado a alma celtibera, impetuosa e independente que destroça cadeias, e rompe preconceitos, que[Pg 227] é ciosa de emancipação individual, que se governa a si propria, indomavel, e que se encarna nas figuras de Brites de Almeida, a lendaria padeira de Aljubarrota; em Izabel da Veiga a heroina de Diu; em Filippa de Vilhena e Magdalena de Lencastre, as matronas da restauração; na filha do cosmographo Pedro Nunes, a freira de Coimbra; e em nossos dias n’uma neta de Vasco da Gama, cujo nome de Constança é já glorioso.
As duas irmãs representavam as qualidades typicas da mulher portugueza da pequena burguezia n’aquella quadra—a que, educada no recato moirisco, tinha a existencia quotidiana limitada pelo horizonte da sua rua, e as aspirações reduzidas a ver passar de anno a anno as pompas do «Corpus Christi»; e a que, deslumbrada com as aventuras narradas pelos capitães de navios, que regressavam de remotas paragens, sonhava com os explendores do Oriente, com os jardins de Ceuta, com os dramaticos encontros com piratas no alto mar, e com os cercos famosos das fortalezas da Africa e da India, em que as mulheres representavam por vezes tão insigne papel. Com estas narrativas de epopeia e miragem de riquezas, começava a levedar na alma da rapariga a aspiração de emigrar em companhia dos que partiam...
D’esta antinomia de caracteres havia de nascer necessariamente um conflicto de vontades. A mais velha, exigente e escudada com a razão, impunha recolhimento; a mais nova resistindo, proclamava emancipação. O resultado não se fez esperar.
Uma manhã Antonia enfiou na cabeça o seu capello, alforjou no bolso de briche o pequeno peculio que a mãe lhe deixára; e eil-a ahi vae pelas tortuosas quelhas em direcção á rua dos mercadores de fato feito e roupavelheiros, á porta dos quaes se penduravam, balouçando ao sabor do vento, casacos, vareiros alcatroados, e calçotas oleadas dos pescadores da Costa. Alli ajustou um «vestido conforme ao trajo dos moços que vivem no mar em navios mercantes» e munida de uma thesoura dirigiu-se para o campo, fóra de portas. Não ficava n’esse tempo longe para qualquer dos lados, pois Lisboa ainda estava quasi toda encerrada nas muralhas de D. Fernando.
[Pg 228]
Sahindo pelas portas da Trindade, logo alli achou perto de Santa Catharina o que procurava, isto é, um lugar escuso onde, depois de cortar o cabello despiu o trajo de mulher e envergou o de grumete. Desceu então pelo corrego junto da muralha, e vindo dar ao Cata-que-farás dirigiu-se á Ribeira, perto das tercenas navaes.
Fervilhavam-lhe no cerebro projectos arrojados, atravessavam-lhe a alma de creança rajadas de emancipação.
Chegando á praia encontrou o formigueiro humano em plena actividade. Calafates e carpinteiros de machado trabalhavam nos arcabouços de pequenos bateis destinados á navegação costeira, emquanto outros alcatroavam os bojos de galeras inclinadas. Regateiras açodadas, confundindo os seus prégões com a algaravia da marujada, offereciam fructas, bebidas, frituras de peixe salgado. Alguns da soldadesca dos terços resmoneavam, queixando-se de serem mal pagos, e substituidos nas fortalezas de Cascaes e Setubal por guarnições hespanholas. Por entre a arraia alguns vultos embuçados em seus gibões, maldiziam dos vexames dos Castelhanos ou dos senhores governadores do Reino, e suspiravam olhando para os lados da Barra, em cata de um galeão phantastico, que lhes havia de trazer o Encoberto, o Rei legitimo, o desejado D. Sebastião...
Mas logo se calavam olhando desconfiados em redor não fosse algum esbirro denuncial-os, e dar que fazer á corda com que fôra enforcado o Rei da Ericeira, á galé em que se sumira o Rei de Penamacor, ou ao garrote com que Filippe II engravatou o Pasteleiro de Madrigal.
Carregadores espadaudos, transportando fardos de mercadorias, eram seguidos por mendigos andrajosos, que procuravam na peugada bagos de trigo esvasiados dos saccos mal compostos, ou sardinha petinga, escapada das canastras abarrotadas. Marinheiros mercenarios concertavam com os capitães de navios mercantes as soldadas de futuras derrotas. Outros embarcadiços preparavam-se para a largada.
Entre estes, o mestre de uma caravella carregada de[Pg 229] trigo, prestes a partir, lamentava-se de que á ultima hora lhe desertára um grumete, que lhe fazia grande falta na viagem.
Antonia ouvindo a queixa sentiu-se tocada pelo destino, e obedecendo a uma força irresistivel, offereceu-se para substituir o marinheiro remisso. O mestre da galera olhou-a sobranceiro e desdenhoso. Parecia-lhe atrevimento do franganote. Quem lhe garantia as aptidões do rapaz? Hesitava.
O marujito, porém, inculcou-se como sabedor da arte de marear, e prompto para qualquer mister.
O capitão achou esperto o pimpolho, leu-lhe nos olhos vivos determinação e arrojo, e impellido pela urgencia determinou-se a engajal-o.
Partiu a caravella com rumo a Mazagão.
Durante a viagem tudo correu á maravilha. O novo grumete, activo, desembaraçado e agil, causava o espanto da tripulação pela fórma como realizava as manobras e serviços de bordo, trepando pelos mastros e tomando as velas, talvez por invocar reminiscencias do officio paterno, e a pratica das suas proezas na ria de Aveiro. Sempre álerta, era o primeiro arriba ao toque de alvorada, e á noite o ultimo a recolher. Dormia a qualquer canto do porão embrulhado no varino. E era tanto o seu recato, que os companheiros de camarata nunca suspeitaram o seu sexo.
É vulgar este contraste apparente entre uma grande desenvoltura de maneiras e a fundamental honestidade no viver. Não é rara tambem a inversa.
Entre as borboletas loiras, que esvoaçam em volta das lampadas electricas de Leicester Square em Londres, ha expressões virginaes, olhos azues cheios de innocencia, sorrisos ingenuos que se transformam em espasmos lubricos apenas se vendem por alguns schillings. Em compensação quanta manola sevilhana se pavonea no passeio das Delicias, de cigarro ao canto da bocca e punhal na liga, que não consentiria sequer que um atrevido esboçasse o minimo gesto de familiaridade equivoca.
[Pg 230]
A mulher de Claudio tinha no rosto as linhas hieraticas da sua dignidade imperial, e comtudo, chegada a noite, prostituia-se nas alfurjas de Roma, tornando um symbolo o seu nome de Messalina. Ao contrario, Jeanne d’Arc cavalga escarranchada e vestida de homem á caça de Inglezes nos campos de Patay, dorme nos arraiaes, de conserva com os arcabuzeiros de Carlos VII, e sahe pura, virginal, intemerata de todas as promiscuidades perigosas.
Assim a nossa heroina.
A pureza do seu espirito, a castidade do seu organismo preservam-n’a de avaria no contacto com a marujada, e nas intimidades do dormitorio.
Alma e corpo atravessam immaculadas as concupiscencias dos rudes mareantes.
Passaram dias. A travessia n’aquelle tempo, embora o barco fosse veleiro, era demorada. E a derrota não isenta de perigos n’esses mares infestados de piratas mouros e christãos. O capitão porém era homem de longa pratica, muito saber e prompta resolução. Entretanto havia nas suas maneiras dubias qualquer cousa que inspirava desconfiança a Antonia. A sua perspicacia teve ensejo de apurar-se na forçada convivencia de bordo e o seu faro não a enganava, como veremos.
Aproaram emfim a Mazagão, cuja fortaleza e casaria branca o pequeno grumete, trepado á verga da sobre-prôa, foi o primeiro a signalar.
Tinham os Portuguezes aportado alli em 1502 (havia quasi um seculo) e logo edificaram um castello no sitio em que existia uma torre. Mais ao deante, quando o Duque de Bragança D. Jayme voltou da sua expedição famosa da tomada de Azamor, que fica d’alli duas leguas, tão boas informações deu a El-Rei D. Manoel sobre a excellente bahia e amenidade[Pg 231] do sitio, que logo este resolveu mandar para alli o architecto João de Castilho, o Velho, que, levando operarios e materiaes, entrou a construir a cidade.
Asturiano de nascimento, mas Portuguez de coração, o talentoso artista dotou a sua patria adoptiva de formosos monumentos. Compoz em pedra alguns dos mais bellos poemas da arte manuelina. Foi o auctor das abobadas e pilares do Cruzeiro dos Jeronymos em Belem; foi o mestre das obras da Batalha por morte de Matheus Fernandes; e foi-o tambem das obras reaes no Convento de Christo em Thomar. Poeta na architectura, lança ainda uma projecção luminosa sobre o nome de dois vultos eminentes no patriciado das lettras portuguezas—os dois Castilhos nossos contemporaneos.
Em 1543 João de Castilho, depois de ter estado em Arzila, parte para edificar a praça de Mazagão e delinear a cidade, que ainda hoje conserva tantos vestigios do dominio portuguez.
Poz n’esse trabalho toda a sciencia que exigia a construcção d’uma fortaleza a cada passo atacada pela moirama, que vinha aguerrida e cheia de sanha em tentativas de vingança assediar esse porto portuguez. E poz nas construcções toda a arte com que o seu genio se enriquecera em Italia, então em plena explosão de Renascença. Os baluartes, as bombardeiras de onde a grossa artilharia de bronze vomitava granadas em occasião de ataque, as seteiras dos parapeitos, as ameias ao longo das muralhas, a ponte levadiça sobre as fundas cavas, davam á curiosa fortaleza não só a segurança requerida, mas a elegancia, que caracteriza as construcções do nosso periodo aureo, tão lindamente manifestado na Torre de Belem.
Ás habitações da cidade João de Castilho deu a graça da sua arte, e as commodidades exigidas pelas condições sociaes dos moradores—ou gente da nobreza e familias da guarnição que da metropole tinham vindo acompanhar os seus parentes, ou mercadores que ensaiavam o trafico nos raros intervallos da paz.
Mazagão ficou assim constituindo um dos pontos fortificados[Pg 232] d’essa costa de Africa ao longo da qual Ceuta, Tanger, Arzila, Azamor, Zafim serviam de theatro ás façanhas dos fidalgos, que alli iam ganhar as suas esporas de oiro, antes de passarem á India. Impellidos por esse espirito de cavallaria andante, que caracteriza grande parte da nobreza n’aquelle declinar da Edade Média, muitos faziam d’essas praças de Africa a sua escola de guerra. Em cada uma punhados de bravos arriscavam quotidianamente a vida em correrias, rechaçando com valentia os marroquinos que vinham de Fez, e colhendo, além de gloria, rebanhos de gado. Não era raro tambem aprisionarem formosas moiras, que traziam captivas ás suas noivas, ás suas mães, e ás suas damas, que as tomavam como escravas.
Não foi, porém, só de cruezas feita a epopeia de Portugal em Africa. Então, como agora, a par das brutalidades proprias da guerra, e da braveza com que o animal humano ataca o seu adversario, creaturas de bondade attenuavam com mãos piedosas os horrores da chacina. Assim o mostra o episodio passado em Alcacer—Ceguer no meiado do seculo XV, em que D. Izabel de Castro, Condessa de Vianna, esboça um movimento humanitario, que se torna um embrião da moderna Cruz Vermelha.
A mulher de D. Duarte de Menezes foi uma precursora das heroicas enfermeiras que, abandonando as frivolidades de uma vida de prazer, os confortos de uma existencia farta de gozos, e as elegancias, adornos e joias caras, envergam a simples bluza de linho, de que a braçadeira é divisa e galão honroso.
Passou-se o caso quando em 1459 o Rei de Fez resolveu tomar Alcacer, suppondo a guarnição exhausta e o Governador prestes a render-se. Dera-lhe essa esperança uma carta apprehendida no ar, atada ás pennas de uma seta. (N’aquelle tempo a correspondencia entre as praças e os navios era feita, á falta de telegraphia sem fios, por meio de setas). Ora uma, que levava a carta angustiosa de D. Duarte de Menezes, dirigida á caravella do Védor da Fazenda que viera do Reino,[Pg 233] e com a noticia da penuria em que se achava, foi colhida por um moiro, e isso resolveu os Arabes a um combate encarniçado, de que afinal resultou a victoria para os nossos. No mais acceso da peleja aconteceu desembarcar, vinda de Lisboa, D. Izabel de Castro, mulher do Governador, com comitiva numerosa. Era a irmã do 1.º Conde de Monsanto, senhora de grande intelligencia e muita auctoridade entre a gente do seu tempo. Foi recebida com enthusiasmo pelos heroicos defensores da praça. E como na refrega muitos tinham cahido feridos, resolveu ella logo organizar soccorros e prodigalizar confortos espirituaes. Conta-o Ruy de Pina na sua chronica quando diz: «... assim pelo reparo que os feridos e doentes em sua cura d’ella recebiam, como pelo favor de suas donzellas com que os fidalgos fronteiros se favoreciam e folgavam melhor de pelejar, porque ella tinha em sua casa gentis mulheres filhas de homens honrados que, guardada em tudo a sua honra e honestidade, sabiam bem fallar e tratar os homens como mereciam». Estava assim esboçada a Cruz Vermelha.
Fechado este parenthesis voltemos á nossa Antonia, que tinhamos deixado abordando a Mazagão como grumete, na caravella carregada de cereaes, onde servia com o nome de Antonio.
Teve então o Governador uma denuncia certificando-lhe «que o mestre da caravella fizera furto e falsidade no trigo que levava». Procedeu-se a um inquerito, ou, como n’esse tempo se dizia, abriu-se uma devassa para averiguar, «tirando-se do caso testemunhas». Uma d’ellas foi o grumete Antonio, que compareceu perante uma especie de conselho composto do governador e alguns magistrados. Logo a todos impressionou a viveza do olhar do marujito, a sua expressão intelligente[Pg 234] e decidida, a sua airosa cabeça enquadrada pelo cabello cortado á altura do mento, e aquella apparencia de ephebo, um mixto de escudeiro e de pagem, que lhe dava ao mesmo tempo um ar marcial, e a graça de cortezão.
Interrogado disse a verdade sem rebuço nem receio, a despeito dos olhares minazes do mestre do navio, que esperava assim atemorizal-o.
Não sabemos qual foi a sentença do Tribunal. É porém certo que Antonio revelou tudo, desde as suspeitas, que logo no principio da viagem o tinham assaltado ácerca da honestidade do mestre, até á prevaricação no caso das medidas. O rancor do embarcadiço transudava nos olhos injectados: pelo que não era de invejar a sorte que esperava o intrepido marujo, quando se achasse de novo na caravella á mercê do seu odio.
O Governador da fortaleza não consentiu portanto que o rapaz fosse exposto ás iras vingativas do mareante, e desde logo assentou praça, como soldado, ao grumete Antonio Rodrigues.
Começou elle immediatamente a mostrar a sua destreza no manejar das armas, e quando ia com os outros camaradas ás barreiras e estacadas a todos levava vantagem. Nas ruas e praças publicas, em occasião de exercicios, era tão desembaraçado na esgrima que logo passou a ser notada a sua pericia.
Fallando d’este periodo, diz o chronista seu contemporaneo: «fazia suas vigias de noite sem nunca faltar n’ellas, e com os soldados comia, e se deitava na cama, e dormia entre elles, vestido porém sempre com gibão e ceroulas, que nunca andava sem ellas, por onde não foi conhecido».
Durante mais de um anno fez serviço entre os peões. Mas notando-lhe as qualidades e valor o Capitão encorporou-o entre os de cavallo, dando-lhe soldo e mantimentos como aos outros cavalleiros.
Chegou então o capitulo mais brilhante da sua carreira militar, em que a valentia lhe proporcionou luzentes victorias[Pg 235] sobre os moiros infieis, e o seu garbo conquistas sobre os corações christãos.
Diz d’elle o chronista Duarte Nunes de Leão: «Sendo de cavallo se avantajou dos outros a destreza, e bom ar, e ligeireza com que cavalgava do chão: e no commetter aos inimigos nas emprezas maiores e de importancia, sempre o Capitão o nomeava e mandava na deanteira como ao mais destro cavalleiro que tinha. E assim se achou em muitas pelejas e encontros onde foram captivos e mortos muitos mouros principaes e seus cavallos, de que Antonio Rodrigues participava como o melhor cavalleiro da companhia. Velava de noite nos muros seus quartos sem faltar, e sahia ao campo com sua espingarda a cavallo a fazer lenha e feno. E muitas vezes ajudava a matar porcos no campo dos mouros, de que trazia sua parte».
Quando vemos figuradas nos azulejos portuguezes as apparatosas caçadas ao porco bravo, em que cavalleiros de vistosas casacas e emplumados tricornes, perseguem com suas lanças, e seguidos de ululante matilha, o javardo, emquanto os couteiros, e moços do monte, sopram nas buzinas, concebemos facilmente como os heroes d’esse exercicio varonil, tão dilecto da gente de escol, alvoraçava imaginações femininas. E não nos causa espanto ver que n’aquelle canto da Africa o denodado caçador Antonio Rodrigues que tinha fama de atravessar com o acerado chuço a pelle dos animaes bravios, trespassasse tambem com os olhares os corações das formosas portuguezas.
«Por parecer um mancebo mui gentilhomem e de muita graça (diz o chronista) era mui bem olhado e favorecido das donzellas de Mazagão».
Entre ellas havia uma, cujo nome a historia não registra, talvez para não a vexar pelo seu equivoco, que se apaixonou loucamente pelo arrojado cavalleiro. Nos combates em que elle entrava, tão encarniçados que, segundo o costume, dois frades de São Francisco, com o crucifixo levantado contra os moiros, se collocavam no mais alto do castello para inspirar confiança aos soldados, não era raro ver a amorosa rapariga[Pg 236] acompanhar as outras mulheres da povoação, moças e velhas que vinham dar agua aos homens, e que muitas vezes, deixando nas mãos d’elles os pucaros emquanto bebiam, arremessavam ellas pedras contra o inimigo.
Quando o combate cessava e todos recolhiam, Antonio Rodrigues era convidado a ir descansar a casa d’aquella, que muitos consideravam já sua noiva, e que era filha de «um cavalleiro principal». Ahi era recebido com affectuosa familiaridade pelos paes e mais parentes, que lhe offereciam dadivas como se já o considerassem genro ou pessoa da familia.
Antonia, receiando que o revelar a verdade trouxesse um natural escandalo, ou graves dissabores, e sendo-lhe tambem penoso desilludir a sentimental menina, deixava-se amar sem retribuir galanteios, e empregando meios dilatorios que a tirassem de difficuldades.
Este caso original de psychologia amorosa, já de si embaraçoso para qualquer casuista, e principalmente para quem andava mais habituado a escaramuças com agarenos que a justas de corações, ou embates de almas, complicava-se agora com um facto ainda mais curioso, e a que ella não era indifferente.
Entre os olhares com que as suas numerosas admiradoras solicitavam o seu, notava por vezes o de um moço militar de boa familia, que apenas se julgava presentido, o desviava, dissimulando. E por uma circumstancia inexplicavel, emquanto todos os camaradas tratavam Antonio Rodrigues desenfastiadamente, aquelle nunca lhe dirigia a palavra, ou se a dirigia era com visivel commoção.
Cantar-lhe-iam talvez na memoria, com mysteriosa significação, os versos d’aquelle romance tão lindo «A Donzella que vae á guerra», melopêa com que em creança sua aia o adormecia:
[Pg 237]
«Tende-los peitos mui altos
Filha conhecer-vos hão.
—Venha gibão apertado
Os peitos encolherão.
Senhor Pae! Senhora Mãe!
Grande dôr de coração.
Que os olhos do Conde Daros
São de mulher, de homem não!»
Esta situação de equilibrio instavel de sentimentos durou cinco annos.
E se o derivativo das batalhas com os moiros espaçava uma solução inevitavel, é certo tambem que a forçada intimidade n’uma cidade pequena, e n’uma sociedade limitada; a influencia do clima ardente tão propicio á explosão das paixões; e os perigos compartilhados com frequencia, elemento que tão fortemente concorre para o estreitamento de laços sentimentaes, espicaçava os cerebros e os sentidos dos actores d’este pequeno drama.
Repugnava ao instincto de rectidão de Antonio Rodrigues o embuste, embora forçado, em que vivia; desadorava a comedia que estava representando, tanto em contraste com os lances e investidas guerreiras, em que por vezes andava empenhada; e apiedava-se do engano em que via enredar-se a doce creatura, que lhe davam como noiva.
É possivel tambem que os impulsos do seu sexo, tão longamente reprimidos, a levassem a julgar necessario tornar regular a situação. Talvez mesmo não fossem extranhos a esse estado de espirito os olhares esquivos, quasi envergonhados, do moço militar.
[Pg 238]
Afigurava-se-lhe, porém, embaraçoso resolver este caso.
Não era correcto confessar a qualquer homem a sua ambigua situação. E difficilmente encontraria uma mulher, mesmo entre as matronas da cidade, que lhe escutasse de boamente a confidencia arriscada.
Durante muita noite de vigia na barbacan da fortaleza, durante muitas horas de ronda nos arredores do castello, meditou sobre o passo que tinha a dar.
Lembrou-se afinal que, entre os clerigos, que mais piedosamente confortavam os moribundos em occasião de batalha, e que mais reputação gozavam de saber tranquillizar os espiritos anciosos, destacava-se o Padre Provisor. Resolveu abrir-se em confissão ao austero magistrado ecclesiastico que, habil em questões de jurisdicção ecclesiastica, era ao mesmo tempo subtil manejador de almas e de casos de consciencia. Elle melhor que ninguem lhe indicaria o modo de proceder.
Ouviu-a surpreso o Padre Provisor, e logo lhe aconselhou a que ambos se dirigissem ao Governador Diogo Lopes de Carvalho, que sempre dispensára protecção ao moço militar, afim de lhe fazerem a extranha revelação.
Mais surprehendido ficou ainda o Governador, que o Padre, com tão inesperavel noticia.
E o que mais lastimava n’aquella insolita occorrencia, era ter que assim perder um dos seus melhores cavalleiros.
Mas forçoso era submetter-se ás circumstancias, e inevitavel o regresso de Antonio Rodrigues ao sexo a que pertencia.
Procurou-se então a casa de uma familia honesta onde pudesse recolher-se, e vestir o fato que lhe era proprio.
Não foi custosa a iniciação, porque a varonilidade de Antonia provinha mais da sua energia de animo, que da mascula rudeza de maneiras. Não era a virago das revoluções da rua; era antes o athleta androgyno dos collegios athenienses, cujas fórmas foram consideradas a suprema expressão da esthetica.
O novo trajo, longe de se desageitar no seu corpo, deu-lhe[Pg 239] a graça feminina com que adquiriu um encanto proprio. Era isso o que lhe affirmava a familia que a recolheu. E Duarte Nunes do Leão, que a conheceu mais tarde, quando ella tinha trinta e cinco annos, achava-a «bem parecida, com muita graça no fallar, e grande viveza no espirito que justificava a sua fama».
Mas como seria encarada a metamorphose pelos seus antigos camaradas? E como a olhariam as raparigas que a tinham requestado? E que pensaria o official que de longe a olhava com timidez?
Então, ella, que tinha afrontado tempestades, balas de moiros, e arremettidas de féras, intimidava-se com a ideia de ver menos bem acolhido o seu novo avatar; a sua transformação de guerreiro em donzella. Pensou voltar ao Reino.
Aproveitaria a partida de qualquer familia que regressasse, e assim dissimuladamente subtrahia-se a commentarios indiscretos. Entretanto, não ousava apparecer em publico, tanto lhe parecia que todos haviam de encaral-a com zombaria ou menosprezo.
Enganava-se.
Duarte Nunes do Leão assevera «que a foram visitar as donzellas a que ella fallava amores, as quaes mudaram o amor que lhes tinham em amizade, e lhe pagaram as galanterias que lhes dizia com presentes de rocas e fusos, e outros taes ditos».
Ha n’esta offerta uma leve ironia, um innocente debique. Mas não a podia molestar; nem era essa a intenção das raparigas, logradas, mas não rancorosas.
O governador, que muito se lhe affeiçoara, e todos os da villa, tanto homens como mulheres, oppuseram-se á sua partida.
Entretanto aquelle a quem, de havia muito, a figura de Antonia impressionara, sem que nunca o tivesse revelado, e que era pessoa de qualidade, apresentou-se solicitando a sua mão.
Ha situações difficeis de sustentar. O marido de cantora[Pg 240] celebre que assiste diariamente aos duettos da mulher com um tenor almiscarado; o da dançarina, que a vê desnuda e provocante piruetando perante espectadores em irreverente observação; o da mulher cujo talento pertence exclusivamente ao publico; o da feminista, que reivindica direitos politicos e a emancipação da tutela marital; o da mundana, que em bailes e em festas provoca adulações, segredos equivocos, colloquios prolongados, contactos em danças lascivas...
Mas de todas a mais estravagante é por certo a qualidade de marido de um soldado reformado, de um marujo na reserva, de um cavalleiro d’Africa.
E comtudo a casta attitude de Antonia, a sua candidez intemerata, o juizo recto, a doçura do seu animo, collocavam a esposa do moço official n’uma atmosphera ideal que não acarretava ridiculo sobre o noivo.
Partiram para o Reino logo depois do casamento.
A noiva recemcasada trazia entre as joias do enxoval uma dadiva pouco vulgar—a certidão, que o governador lhe dera, dos seus serviços pelas armas, e das acções de valor que commettera em successivas batalhas. Um attestado authentico de heroe d’Africa!
Parece que essa qualidade nada perjudicou a ternura do casal, visto que pouco depois lhe nascia um filho. Pelo menos de um, temos noticia.
Felippe III, isto é Filippe II de Portugal, quando veiu a Lisboa em 1619 quiz vel-a.
Tinha essa entrevista por motivo não sómente satisfazer a curiosidade do monarcha, mas talvez um intuito politico.
Era conhecido o prestigio da valorosa amazona a quem chamavam a cavalleira portugueza.
O soberano hespanhol no intento em que então estava[Pg 241] de captar as boas disposições da Nação que, embora o estivesse recebendo com festejos espaventosos—cortejos, illuminações, danças e arcos triumphaes—era no entanto ainda ciosa de autonomia, aproveitava todos os meios de lisonjear, sem compromettimento, essa illusão. Affigurou-se-lhe que era um passo habil dar um testemunho da sua graça á heroina, que tão brilhantemente tinha honrado o brio portuguez.
Mandou chamal-a.
Accudiu Antonia Rodrigues ao convite. E pouco depois subia a grande escadaria do Paço da Ribeira, onde o Rei se achava, depois de ter vindo do convento dos Jeronymos.
Atravessou a sala dos Tudescos, entre os olhares curiosos da côrte, e foi introduzida na Camara onde Filippe III dava audiencias.
Devia ser um espectaculo curioso o encontro d’essa mulher forte, desempenada, de rosto aberto e olhar decidido, com o valetudinario e debil monarcha!
A pallidez de familia, tão pronunciada em Filippe, e as feições caracteristicas da casa d’Austria, tornadas celebres depois por Velasquez, nos rostos compridos e nos beiços proeminentes dos famosos quadros, contrastavam com a pelle de Antonia, tisnada pelo sol africano; com o seu rude dizer, ainda por polir; e com as maneiras de quem tinha a cavallo espetado alguns javalis e muitos moiros.
O Rei, ou por diplomacia, ou porque realmente a heroina lhe agradasse, conversou-a longamente. Acabou o colloquio (conforme diz o chronista) por lhe fazer mercê de duzentos cruzados para ajuda de custo, uma fanga de trigo em cada mez, e uma tença de dez mil réis em sua vida.
Mais ao deante tomou um filho para moço da sua camara, em attenção aos serviços d’ella.
[Pg 242]
Frey João de São Pedro, ou para melhor dizer Damião de Fróes Perym, (anagrama que servio de cryptonimo ao frade hieronimita) insere no seu Theatro Heroino um capitulo dedicado á intrepida cavalleira. Se não nos dá copiosas noticias, pois Frey João é pobre de erudição e de interesse, constitue comtudo um justo panegyrico celebrando o seu valor.
E D. Antonio da Costa no livro intitulado «A mulher em Portugal» tambem lhe dedica duas paginas, mais encomiasticas e laudatorias que noticiosas. Os dois escriptores contribuiram assim, cada um conforme a sua fazenda, com pedras valiosas para a base do monumento, que em tempo devia ter sido levantado, perpetuando a memoria da heroina.
Porque, encontrando-se n’ella tantas das qualidades da nossa raça aventurosa, sonhadora, resoluta; e tantas das virtudes da mulher portugueza, energica, valente, e leal, bem teria merecido a intrepida amazona (é esse o voto do licenceado Duarte Nunes do Leão) uma estatua equestre na melhor praça de Mazagão!
[Pg 243]
Já depois de composto este artigo o sabio investigador General Brito Rebello a quem tanto deve a litteratura historica, teve a amabilidade de me fornecer a nota seguinte, que transcrevo a titulo de curiosidade, e que vem corroborar as affirmações do chronista, havendo apenas divergencia na quantia que foi dada como tença á heroina o que para nós pouca importancia tem, visto que não é a abastança do casal que nos interessa.
Ev El Rey faço saber aos que este aluará uirem que auendo respeito a Antonia Rodriguez seruir na villa de Mazagão cinco annos despingardeiro de cavallo e de pee em trajos desoldado, ey por bem de lhe fazer merçe de cinqo mil reis de tença cada ano em sua vida pagos no almoxarifado da dita uilla alem dos dez mil reis de tença que tem nas obras pias os quaes cinqo mil reis começará a uencer de treze de nouembro deste ano presente em diante ê que lhe fiz esta merçe. Pello que mando ao almoxarife do almoxarifado da dita uilla que ora he e ao diante for que do dito tempo pague a dita Antonia Rodriguez os ditos cinqo mil reis de tença em sua vida como dito he, e pello treslado deste que será registado no liuro de sua despesa pello escriuão de seu cargo e conhecimentos da dita Antonia Rodriguez lhe será leuado em conta o que lhe pella dita maneira asi pagar, e este ualera como carta sê êbargo da ordenação do 2.º[Pg 244] Liuro titulo XX ê contrario, Diogo de Sousa o fez ê Lixboa a quatro de dezembro de j̃ bjᶜ e dous. Sebastião d’Abreu o fez escreuer.
Archiv. da Torre do Tombo, Chancel. de Felip. II, Doaç. Liv. 12, fl. 18 vᵒ
N. B.—Por não haver na typographia o signal e til, usou-se do accento circumflexo quando a graphia do documento indicava aquelle accento.
[Pg 245]
SUMMARIO
O livro na antiguidade. A paixão pelo livro—Bibliographos, bibliophilos, bibliomaniacos, bibliolatras, bibliotaphios, biblioclastas, bibliophobos. As encadernações. O livro do futuro—Sociedade de Bibliophilos Barbosa Machado.
Affirma Renan algures que, de hoje a algumas centenas ou milhares de annos, terão completamente desapparecido da memoria dos homens todos os livros que actualmente conhecemos, com excepção da Biblia e talvez das obras de Homero.
É possivel que a prophecia mofina do mais attico escriptor francez do seculo passado, sahida da sua penna prestigiosa n’um dia de melancholico desalento, venha a realisar-se, sendo precipitado no fundo sorvedoiro dos tempos todo o vasto cabedal do saber humano, desde que o pensamento se materialisou na palavra, e a palavra escripta se juntou a outras, para formar—o Livro.
E, assim como a acção destruidora dos flagellos tem devorado o recheio das mais famosas bibliothecas da antiguidade, taes como a que Osymandias estabeleceu no seu maravilhoso palacio de Thebas, e sobre cuja porta fez gravar a[Pg 246] conhecida inscripção: Remedios para a alma, e a celebre de Alexandria, que Ptolomeu Soter dotou com os setecentos mil volumes, queimados depois, segundo a lenda, pelo musulmano Omar, ou desapparecidos com a ruina do templo de Serapis,—assim tambem a acção demolidora dos annos irá talvez, em successivos outomnos cyclicos, fazendo cahir no chão do esquecimento, e apodrecendo na terra, as folhas da grande arvore do saber humano, d’onde hão de sahir novas folhas vivas, pelos seculos dos seculos...
E, pela mesma fórma que pouco ou nada resta de tudo quanto compunha essas colossaes bibliothecas, em cujos escrinios e columbarios se encerravam os preciosos volumen de papyros de Saïs, fabricados com agua do Nilo, e de pelles respançadas de cordeiros de Pergamo,—é tambem para recear que, no cumprimento da prophecia do mestre, desappareça tudo quanto enche as modernas livrarias, cuja colossal bibliographia é impossivel organisar no seu conjuncto, tantos são os milhares de publicações que em cada dia e a cada hora apparecem em todos os paizes, escriptas em qualquer das seis mil linguas do mundo, e nascidas da vertiginosa producção litteraria da nossa epocha.
Se assim fosse, se o vacticinio se cumprisse, tempo haveria em que a humanidade do futuro não teria a delicia suprema de conhecer o effeito da leitura das obras primas, que nos legou a antiguidade hellenica e a latinidade classica; ignoraria a deleitosa impressão de sentir em consonancia com os poetas, que tem agitado a alma moderna; desconheceria o theatro de Shakespeare, o de Racine, o de Corneille e o de Molière, os tercetos de Dante, os sonetos de Camões, as obras de Schiller e as de Calderon e Cervantes; deixaria de admirar a força prestigiosa da palavra com que alguns privilegiados de genio tem feito vibrar os nervos do animal humano, e os trabalhos que tem transmittido o patrimonio da sciencia de geração em geração, n’esta faina incessante a que se convencionou chamar progresso; seria privada de avaliar a acção d’aquelles que dotaram a raça humana com ideias e beneficios; ter-se-hiam apagado[Pg 247] na memoria dos homens os nomes de Newton, Lavoisier, Darwin, Pasteur... E, quem sabe? deixaria até, (se a revolução de que fallamos adeante se realisar,) de conhecer, de possuir, de consultar essa coisa preciosa que é o Livro.
O Livro! A paixão por esse objecto que na sua essencia se compõe apenas de laminas, de rolos ou de algumas folhas, em cuja superficie são traçados, pintados ou impressos alguns caracteres, symbolicos ou alphabeticos, sendo tudo envolvido n’uma capa ou capsa, que varia segundo a epocha, o gôsto e a fortuna do seu possuidor, essa paixão é uma das que mais fundas raizes tem no animo das gentes cultas, e que apresenta fórmas mais diversas.
Bibliographos, bibliophilos, bibliomaniacos, bibliolatras, bibliotaphios, e até mesmo (pois tambem existe a paixão do odio) biblioclastas e bibliophobos, são outros tantos amorosos do Livro, da sua essencia ou da sua fórma externa.
Que poderoso é o attractivo que exerce no animo do amador de livros a edição estimada, o exemplar raro, a encadernação de luxo!
Quem tem visto esse amador nas lojas dos nossos alfarrabistas—o velho Rodrigues, do Pote das Almas,—o Silva, por alcunha o Frade, da rua dos Retrozeiros, de quem o filho herdou, aperfeiçoando-a, a technica da sua arte, e a memoria feliz, que faz da sua cabeça um diccionario bibliographico; quem tem percorrido os estendaes dos ferro-velhos da Feira da Ladra, onde se vendem volumes a vintem; quem tem assistido aos leilões das bibliothecas que se dispersam, e observa a physionomia interrogadora e interessada d’esse bibliophilo que fareja e segue a pista do volume ambicionado, encontra-se perante um dos entes humanos, que mais exclusivamente é absorvido por uma paixão, e que, para a satisfazer, commetterá loucuras e até crimes.
Quem não conhece casos de bibliokleptas celebres, que roubam sem escrupulos livros que appetecem?
Uma edição princeps, como algumas das que encerra o quarto dos Reservados na nossa Bibliotheca Nacional; um[Pg 248] volume raro, quer seja impresso, como o Boosco deleytoso, quer manuscripto, como o Cancioneiro d’Ajuda; uma encadernação da escola italiana ou franceza do seculo XVI, tem para os amorosos do livro, bibliophilos ou bibliomaniacos, o maior poder de seducção que na vida póde existir.
O prestigio do livro impõe-se por diverso modo, conforme a indole do apaixonado.
Querem alguns a sua bibliotheca composta de livros raros ou preciosos, embora em numero reduzido, como o nosso André de Resende, o archeologo eborense, ou como Barbosa Machado, o sabio oratoriano, que possuia uma das mais escolhidas bibliothecas do seu tempo, ou como o suisso Goulier, que vivia como um asceta, quasi sem comer, para, com as suas economias, poder comprar qualquer maravilha typographica de Jean de Tournes in-12ᵒ, ambicionada durante annos.
Querem outros a collecção numerosa, ou seja que a variedade e o prazer da ostentação os impulsione, como aquelle arcebispo de Evora que possuia onze mil volumes, aos quaes os maliciosos chamaram as onze mil virgens, ou que a sofreguidão e a furia de amontoar os domine, como o parisiense Boulard, que, na sua insania, chegou a comprar varios predios em Paris, os quaes foi recheando com os seiscentos mil volumes que pela sua morte deixou.
Livros ha cujo valor, para certos bibliophilos, nasce de circunstancias especiaes, alheias ás suas qualidades bibliographicas, como aquelle exemplar da 2.ª edição de Shakespeare que serviu de leitura a Carlos I na prisão, e que conserva notas á margem, da mão do infeliz monarcha; e aquelle outro manuscripto de Leonardo de Vinci, em que esse assombroso engenho do Renascimento italiano lançou as bases scientificas da aviação, preciosidades, que se conservam na bibliotheca de Windsor e que evocam tão grandes figuras. Quem[Pg 249] não sentirá (mesmo os que não são dominados pela mania do livro) uma piedosa e particular commoção, ao contemplar o encantador volume das Horas da Rainha D. Leonor, pensando em que tanta vez n’aquellas paginas assentaram os olhos da intelligente viuva de D. João II, e foram folheadas pelas suas mãos esguias, nas vigilias da Madre de Deus; ou quem não apreciará, pelo seu valor archeologico e artistico, aquelle codex do mosteiro de Lorvão que A. Herculano fez conduzir para a Torre do Tombo, e cujas illuminuras são deliciosas precursoras das figuras hieraticas dos pintores modernos?
Para outros amadores de livros, têm mais seducção as lindas edições dos seculos XVII e XVIII, obras eruditas, pomposas, ostentando a gravidade do classicismo, impressas em papel de luxo, de largas margens, como convem á sua nobreza, ornadas de gravuras a buril, com iniciaes ornamentadas e vinhetas floridas terminando os capitulos, e o magestoso frontispicio a duas côres, seguido das licenças necessarias, e da emphatica dedicatoria a El-Rei Nosso Senhor, ao Principe ou ao Mecenas...
Alguns tambem ha ainda, colleccionadores, mais do que bibliophilos, que estimam sobretudo as Miscellaneas, tão usadas entre nós no seculo XVIII, e posteriormente, nas quaes o capricho do amador juntava folhetos das mais desvairadas proveniencias e diversos auctores, ou subordinava o feixe de opusculos a um assumpto determinado.
Mas o que a muitos encanta e seduz (e ainda hoje, como outr’ora ha quem possua riquissimas collecções d’esta especialidade) é o aspecto exterior do livro, independentemente da sua alma. Para estes a vestimenta, a encadernação é tudo, como tão pittorescamente o significa François Fertiault no seu livro «Sonetos de um bibliophilo», quando diz:
De loin vous en flairez l’arome avant-coureur;
Vous contemplez, ravi, sa date reculée;
Vous caressez du doigt sa marge immaculée,
[Pg 250]Et de sa rareté vous prônez la valeur.
Vous en aimez la tranche à la vive couleur,
La nervure du dos, ou svelte ou potelée,
La robe au blanc satin, d’un filet dentelée,
Le noir chagrin, brodé par le fer du doreur.
As encadernações são, para alguns amigos do livro, um vasto capitulo cheio de delicias.
As de luxo, trabalhadas nas officinas venezianas e florentinas, que ornavam a bibliotheca do afamado Maoli; as celebres encadernações à la salamandre de Francisco I de França, e os artefactos dos famosos encadernadores de Henrique III e de Henrique IV, Nicolau Eve e seu filho Clovis, provocam ainda hoje a admiração de quem visita as bibliothecas onde ellas se encontram.
Foi entre nós um grande amador de bellas encadernações El-Rei D. João V, o Magnifico, que tinha enviados em todos os centros intellectuaes da Europa, com o encargo de comprarem as mais valiosas obras litterarias, e de as fazerem encadernar luxuosamente.
A maior parte d’essas maravilhas foram destruidas pelo terremoto, e pelo incendio que se lhe seguiu.
Os ricos exemplares doirados por folhas e com ellas azaradas; os de seixas finamente trabalhadas com oiro; os que apresentavam os mais bellos ferros nos seus marroquins; as encadernações em velludo vermelho, tão nobres, e as de pergaminho, tão severas; as lindas capas de madeira com metaes preciosos e outras de segredo, com a sua pequena corrediça onde se escondiam miniaturas profanas e licenciosas, ou reliquias devotas; as innumeras encadernações de phantasia, feitas com pelle de animaes diversos—a panthera, o crocodilo, a serpente, o bacalhau e a phoca—tudo foi destruido na catastrophe de 1755.
Não refere a historia se, n’essa espectaculosa bibliotheca[Pg 251] do intelligente Rei, havia tambem, como n’algumas outras, encadernações feitas com pelle humana.
Estas phantasias macabras davam um valor especial ás obras a que se applicavam.
Assim, era grande a estimação em que o medico inglez Dr. Ashew tinha dois volumes encadernados com a pelle d’uma feiticeira do Yorkshire, Mary Ratman, que fôra enforcada pelo crime de assassinio.
Um rico negociante de Cincinnati mandou encadernar a Viagem Sentimental, de Stern, com a pelle d’uma negra; e com as das costas d’uma chineza o livro Tristam Shandy, do mesmo auctor.
Goncourt conta, no seu jornal, que um encadernador do Faubourg St, Honoré era especialista em aproveitar a pelle dos seios femininos nos seus trabalhos. E o editor Lireux affirma ter visto um exemplar da Justine, do Marquez de Sade, encadernado em pelle de mulher.
O insigne astronomo Flammarion foi uma vez convidado pela Condessa de Saint Auge, enthusiasta do seu talento, para ir passar uns dias no pittoresco castello que ella habitava no Jura. Parece que o sabio admirou com desvanecimento os hombros decotados da linda condessa...
Pouco depois, morria ella, e o seu medico escrevia a Flammarion dizendo que, para cumprir o desejo da morta, lhe enviava a pelle do peito que tanto o encantára na noite da despedida, pedindo-lhe que com ella fizesse encadernar o seu proximo livro.
É assim que, na bibliotheca do philosopho, figura ainda hoje a obra «Terras do Ceu», encadernada com a pelle da romantica condessa. E nas folhas azaradas a vermelho, do livro, fez o sabio semear estrellas d’oiro, que lhe recordam as noites scintillantes do Jura...
Extravagante idyllio!
[Pg 252]
Se o amor ao livro, como todo o sentimento humano, reveste as mais diversas fórmas, desde o culto que se dedica ao volume, que os olhos d’um ente querido e ausente leram em horas felizes ou em horas de tristeza e desalento, e desde a soffreguidão com que alguns ciumentos do livro (que tambem os ha), os conhecidos bibliotaphios, que, com sofrega avareza, reservam exclusivamente para si o uso das suas livrarias, até á ostentação dos vaidosos que adquirem por centenas de libras o exemplar unico que, n’um leilão retumbante, faça espalhar o seu nome por todo o mundo e lhes lisongeie o amor proprio—se essa paixão do livro é tão profunda e tão complexa, não o é menos o sentimento opposto—o dos bibliophobos e biblioclastas.
Por espirito religioso, ou de seita, ou de raça, ou de politica, a historia está cheia de casos de devastação de livros. Hecatombes medonhas! Inutil é mencional-as.
Mas de todas as causas de ruina d’essa coisa tão essencial até hoje á vida da humanidade—o Livro—duas predominam e ameaçam consumar o seu desapparecimento.
Uma, a acção destruidora do tempo com o seu cortejo de insectos, de humidades, de incendios, de vandalismos, de ignorantes despresos e do fatal esquecimento.
Outra, e essa está por emquanto apenas esboçada nas brumas do futuro, vem a ser a transformação da palavra escripta.
N’um recente estudo intitulado «Prosodia e Ortographia» Coelho de Carvalho tratando dos caracteres alphabeticos, e dos signaes representantes das syllabas escreve:
«Ora desde que se conhece que todo o som é resultado do movimento e que este, como todo o movimento deslocando uma porção de materia, traça no espaço uma linha, a successão de pontos por que a massa deslocada vae passando; e, sabendo nós que a falla é produzida pela mobilidade de uma[Pg 253] massa de ar, que variamente impellida dentro do apparelho vocal, produz sons de modalidades diversas, conforme a intenção emotiva que determina a emissão do ar; e se a sciencia physica achou a forma pratica de tornar visivel, por instrumento de phonographia, a linha de cada um d’esses movimentos; nenhuns outros traços graphicos, senão aquelles que tal instrumento desenhar, podem ser representativos das unidades sonicas da linguagem.»
E propõe como unica reforma: «fazer na ortographia: substituir o alphabeto pelo syllabario systematisado da linguagem, substituindo, para dar o caracter da syllaba, as figuras sonicas que o phonographo nos der, á compilação das chamadas lettras».
Sendo assim, (e parece-me que o talentoso escriptor tem a visão d’uma revolução na escripta,) o que será no futuro o livro?
Um rolo phonographico?
Uma fita como a dos apparelhos Morse?
Voltarão as bibliothecas a ser a antigo columbarium, especie de pombal cujas paredes eram cheias de ninhos (que as tornavam semelhantes ás modernas lojas de papeis pintados) onde se encerravam os rolos que foram os primitivos livros?
No melhor dos casos, e conservando, por um movimento adquirido e tradicional, a antiga fórma, o que haverá nas suas paginas?
Caracteres cabalisticos. Figuras sonicas de mysteriosa apparencia.
Hão-de passar ainda, eu bem o sei, alguns lustros antes que se torne definitiva a reforma prevista, e antes que as gerações do futuro se habituem á pratica da racional, mas para nós (que vivemos na era do alphabeto) inesthetica fórma do livro que ha-de vir.
Quando ella, porêm, se realisar, apenas algumas das obras-primas da humanidade serão transportadas á nova graphia.
E o resto do actual patrimonio bibliographico?
[Pg 254]
Será considerado, por aquelles que usarem correntemente o syllabario phonographado, uma herança archeologica? Um thesouro de eruditos? Uma fórma anachronica da materialisação da palavra? Uma quasi enigmatica escripta cuneiforme?
É difficil atravessar com a vista algumas camadas de tempo, e poder futurar o que será a litteratura d’aqui a mil annos.
É certo, porém, que no homem ha-de haver sempre, cumulativamente com o anceio de novas conquistas, a curiosidade retrospectiva, o culto do passado.
E por isso é de crer que os netos dos nossos netos, querendo reconstituir o viver da antiguidade nos tempos em que se lia pelo alphabeto, deitem mão d’esses objectos, que para elles serão de curiosidade archaica a que seus avós chamaram—livros.
A esse tempo a livraria terá já perdido o seu caracter de ser vivo (pois uma bibliotheca é como um animal cujo organismo se renova incessantemente) e será um museu, como todos os museus, cemiterio de arte, sarcophago onde se conservam, como cadaveres, os objectos curiosos, que as passadas gerações nos legaram.
Para que essa herança preciosa se perpetue, ou para que, pelo menos a sua força, se prolongue por largas centenas de annos, devem tender os esforços d’aquelles que deveras amam o livro.
Por isso as sociedades dos bibliophilos têem na vida dos povos uma missão conservadora de incontestavel alcance, tanto mais benefica, quanto mais valiosos forem os monumentos a que o seu amor vigilante se applique.
A bibliographia portugueza é rica e gloriosa.
Patriotica e util é, portanto, a missão d’aquelles que—amadores, colleccionadores de livros e estampas, ou curiosos de bibliotheconomia, iconographia e artes subsidiarias do livro—se juntaram sob a invocação do venerando patrono Barbosa Machado. Com nenhum outro nome podia melhor baptisar-se[Pg 255] esta prestimosa Sociedade, do que com o do erudito abbade de Sever, pois que, assim como elle, fundando a sua Bibliotheca Luzitana, assentou as bases da nossa bibliographia e nos legou um thesouro de conhecimentos inestimavel, assim os esforços d’esta Sociedade tenderão a conservar, para os tempos que hão de vir o patrimonio da Bibliotheca Portugueza.
[Pg 256]
[2] Prefacio do primeiro numero do Boletim da Sociedade de Bibliophilos Barbosa Machado.
[Pg 257]
SUMMARIO
A sociedade portugueza de então—O Paço—A Thebaida da Ajuda—A casa de Castilho—O hotel de Rambouillet na Rua Formosa—Casa dos Ficalhos nos Caetanos—S. Carlos—O Chiado—As Camaras—A Academia—Os ataques de Ramalho—Piparotes na burguezia macaqueadora—Os vencidos—Soldado e monge.
«Celui qui n’a pas vécu en France
pendant les années qui précédèrent
la Révolution, ne sait
pas ce que c’est que la douceur
de vivre».
Isto, ou cousa semelhante, affirmava Talleyrand, Principe de Benavente, aquelle que atravessou uns poucos de regimens, sempre na primeira fila, onde melhor podia satisfazer as tendencias das suas faculdades estheticas e as exigencias do seu requintado sybaritismo.
Entre nós, outro tanto se poderá avançar de quem não tiver vivido nos ultimos decennios do seculo XIX.
Sem curar agora de esboçar um quadro synoptico da vida portugueza n’esse periodo, nem de analysar a politica, as finanças, as relações internacionaes, que absorveram a attenção de estadistas, de diplomatas e dirigentes de collectividades, demos o braço ao forasteiro que, vindo de fóra, encontrasse[Pg 258] em Lisboa, esse conjuncto composto de algumas dezenas de pessoas, a que se convencionou chamar: a sociedade.
Não sociedade apenas no sentido restricto das listas que enchiam a secção do High-Life no Diario Illustrado, ou o Carnet mondain nas Novidades e no Tempo, mas esse organismo que funcciona em todos os agrupamentos civilisados, constituindo o seu escol, e que entre nós (sem atendermos agora a exigencias de synchronismo) vae desde a côrte, em que El-Rei D. Luiz, academico e homem de lettras traduz Shakespeare, e a Rainha D. Maria Pia, que deslumbrára as Tulherias com a sua distincção, resuscita em Ajuda galas de outros tempos; em que El-Rei D. Carlos, homem de sciencia e artista, produz os memoraveis trabalhos de oceanographia e ornithologia e concorre ás exposições com paysagens e marinhas cheias de luz e côr, e a Rainha D. Amelia funda instituições de beneficencia e emprehende com o seu lapis o catalogo de objectos de arte antiga, que se encontravam dispersos em cathedraes, conventos e museus; e em que El-Rei D. Manuel preside, ainda muito novo, á Academia Real das Sciencias e toma parte activa nas sessões; até ás festas, bailes, paradas, serões d’arte onde todas as elegancias brilham, onde ha mulheres formosas, que são intelligentes, e homens sisudos, que são mundanarios.
Tomemos o braço d’esse peregrino, extranho ao nosso mundo, mas curioso d’elle, e percorramos em sua companhia estancias várias.
Entremos de improviso na austera Thebaida da Ajuda, e alli encontraremos Alexandre Herculano escrevendo, como monge erudito, a sua Historia de Portugal, ou evocando no Monasticon figuras de intensa vida, emquanto palestram, no desfastio dos frugaes pospastos, Bulhão Pato, discipulo dilecto, e outros que já hoje se abrigam «á sombra dos cyprestes».
Mais lá adeante, alli em S. Francisco de Paula, penetremos na casa patriarchal de Castilho, o mestre do verso castigado,[Pg 259] que, na sua cegueira luminosa, enrolando com os dedos torcidas de papel, vae iniciando na Arte o filho bem dotado, ou escuta com desvanecimento a voz harmoniosa de Thomaz Ribeiro, que lhe recita os primeiros cantos do D. Jayme, com os quaes traz uma nota inédita ao lyrismo portuguez.
Subamos depois as escadas do palacete da Rua Formosa, onde D. Maria Kruz recebe, como na sala azul d’um novo hotel de Rambouillet, a fina flôr e a nata da intellectualidade do seu tempo: Garrett, janota, disfructando a plena aura do principado das lettras e favoneiado pela sua nomeada romantica; José Estevam com a sua facundia grandiloquente, enthusiasta, exhuberante; Casal Ribeiro, de sorriso ironico, pequena estatura, grande cabeça, maior talento; Fontes, o estadista mais representativo do systema representativo; Rebello da Silva, que entrançára já na corôa de louros, ganha com os seus trabalhos historicos, a Mocidade de João V; Andrade Corvo, homem de sciencia, que interessava as leitoras de romances com o seu Anno na Côrte.
Avancemos pela calçada dos Caetanos, até casa dos Ficalhos, onde a Condessa, seguindo as tradições maternas, e o Conde, a mais completa individualidade do seu meio—homem de sciencia, homem de lettras, homem do mundo—acolhem, tempo depois Antonio de Serpa, que transita, com o espirito sempre moço, d’aquella sociedade para esta, e vem camaradar ainda com a garrula precocidade tão promettedora de Carlos Valbom; com o engenho pluriforme de Oliveira Martins; com a espiritualidade zombeteira de Eça de Queiroz; com a perspicacia diplomatica de Luiz Soveral sempre monoculisante; com o talento polytypico de Carlos Mayer; com a gloria já consagrada de Guerra Junqueiro, o poeta; com a sociabilidade communicativa de Bernardo Pindella, privilegiado da natureza e enfant gaté de todas as salas.
Caminhemos mais e paremos em S. Carlos nas noites de gala (um deslumbramento!) ou nas de simples recitas, e alli encontraremos em cada camarote nomes que significam alguma coisa.
[Pg 260]
Ouviremos recordações dos tempos de Farrobo, das festas das Larangeiras, e, por uma associação de ideias, das dos Marquezes de Vianna, de Penafiel, dos Palmellas, ou no Calhariz, com as representações da Sobrinha do Marquez, ou no Rato, com as do Marquis de Villemer... E entrando n’esse palacio do Rato percorramos o atelier da Duqueza tão inspirativo d’arte e opulento de maravilhas; e as salas onde os retratos de Lawrence sorriem acolhedores; e a casa de jantar onde as ceias em honra da Duse e de Sarah Bernhardt eram espiritualisadas pela conversação de Maria Amalia Vaz de Carvalho, de João da Camara, de Mousinho de Albuquerque, de D. Antonio de Lencastre.
Desçamos depois o Chiado em tardes alegres de inverno, quando a tafularia fervilha em busca de modas novas na Aline, ou de commoções mysticas nas conferencias religiosas dos Martyres, e emquanto grupos no seu lazer meridional, ás portas das tabacarias e livreiros, observam as mulheres que passam ou paroleiam sobre os casos do dia.
E n’esses grupos veremos Antonio Ennes depois de acabar o artigo para o Dia; Gervasio Lobato—o Labiche portuguez—; Sousa Viterbo que, apesar de erudito e investigador, aprecia o modernismo e vae á livraria Gomes buscar ferramenta litteraria; José Antonio de Freitas, culto espirito de lettrado, e fluente conversador, que informa ácerca dos ensaios, em D. Maria, da sua traducção do Hamlet; e Alberto Braga, que justifica a sua reputação de cavaqueador inegualavel.
Passemos depois na Avenida entre as olaias em flôr quando pela tarde se cruzam equipagens de luxo, e cavalleiros em puros-sangues acompanham amazonas irreprehensiveis, que por vezes são a Rainha D. Amelia, a Condessa de Paris, a Princeza Helena, futura Duqueza d’Aosta.
Avancemos até ao Campo Pequeno e alli podemos ainda assistir a algumas touradas vistosas, das que fazem lembrar as do Castello Melhor e as do Vimioso.
Retrocedamos agora e vamos ao Parlamento. Nos Deputados[Pg 261] discursa, manejando cifras com a clareza de um professor e a habilidade de um algebrista, Marianno de Carvalho, mathematico e politico.
Na dos Pares escutaremos, n’um assombro, a voz de Antonio Candido, que dá á tribuna portugueza a magestade da eloquencia atheniense.
Vamos depois alli perto a Jesus, á Academia Real das Sciencias, onde authenticos Principes de Sangue confraternizam com os Principes da Sciencia e das Lettras que são Latino Coelho, Thomaz de Carvalho, Pinheiro Chagas o Conde de Ficalho. E, se atravessarmos as ruas da Baixa, talvez vejamos maravilhados passar alguns d’aquelles cortejos deslumbrantes em que os coches de D. João V, bamboleando-se suspensos em corrêas, ou as lindas carruagens amarellas de gala á ingleza, transportam Soberanos, Princezas formosas e as suas Damas emplumadas...
Sem pretendermos alongar este escolio e sobrecarregar demasiadamente a nomenclatura, recordemos que n’essa sociedade dos ultimos sessenta annos, havia grandeza, intellectualidade, elegancia, brilho, movimento, tudo o que seduz, e attrahe e encanta, tudo o que causa la douceur de vivre.
Foi esse o meio que Ramalho veiu encontrar em Lisboa, que logo captivou as suas tendencias e em que foi acolhido com agrado.
O seu espirito apetrechado para a critica dos costumes com uma intelligencia sã, um grande poder de ironia, um engenho independente, uma luneta de vidros ampliadores, e uma mochila recheiada de factos, de phrases incisivas, de piparotes petulantes, de dardos ligeiros, e beliscões travessos, não se voltou contra essa sociedade, frondeur ou juvenalesco, como muitos querem assacar-lhe, vendo nas suas obras contradicções e incoherencias.
[Pg 262]
Não! O que elle atacou de frente foi outra classe, que junto a esta vivia, por um phenomeno de superfetação social. Ridicularisou as rodas em que meninas olheirentas e homens casposos, de unhas sujas, arremedavam os grandes modelos romanticos, deformando-os com sentimentalismo réles: deu palmadas nos ventres venerados de personalidades balofas; troçou da burguezia macaqueadora das raças velhas, de quem usurpára corôas e brazões; espetou com alfinete escarninho os balões assoprados pelo charlatanismo indigena; caricaturou graves personagens conselheiraes, e envolveu n’uma surriada devastadora tudo o que era postiço, falto de valor moral e de sinceridade.
A par d’isto prégou hygiene a uma geração que a ignorava. Ensinou a ensaboar muitos corpos faltos de limpeza. E, com aquelle poder de suggestão, que era uma das qualidades do seu talento, quantos banhos frios elle fez tomar no pino do inverno a pobres rheumaticos, que depois da leitura das Farpas, obedecendo submissos aos mandamentos do apostolo, iam tiritantes, sacrificar-se sob a chuva de douches matinaes!
Quanto fato talhado á ingleza appareceu, com o seu exemplo, substituindo janotismos pretenciosos em corpos de peralvilhos!
E a quantos pés atormentados em escarpes e botas afiambradas o seu andar, pisando bem, ensinou a calçar sapatos folgados de sola grossa!
Pôs á moda ser lavado e ser alegre. O seu rir tinha mais de Rabelais que de Voltaire.
Poz isso o trabalho demolidor de Ramalho não foi dirigido contra o edificio do Portugal antigo (então ainda de pé) cujas linhas architectonicas de magestosa grandeza a sua alma de artista enternecidamente amava.
Os projecteis, feitos de critica, que as catapultas da sua prosa arremessavam eram sobretudo destinados ás camadas de mediocres, que mascaravam, com jactancia pedantesca a fachada do monumento lusitano.
[Pg 263]
Estudando a distancia a sua obra descobre-se melhor a flexuosidade regular das linhas, a pureza dos contornos, a harmonia do conjuncto.
Ha mais unidade entre as primeiras e as ultimas palavras de Ramalho, que nas obras de muitos, que se affligem com as suas contradicções apparentes.
Se por vezes os tiros disparados no calor da refrega iam ferir homens ou corporações, que a sangue frio preferiria poupar, logo, com a lealdade dos fortes e das consciencias limpas, tratava de encontrar remedio para o desprazer causado.
Não se chama a isto incoherencia, chama-se honradez de processos.
As duas feições que melhor caracterisam a personalidade de Ramalho Ortigão, mais que a sua philosophia, mais que a viveza dos seus apodos e a crueza dos seus sarcasmos, eram: a sensibilidade do artista e a sua envergadura moral.
A melodia cantante e a limpidez espelhada da sua prosa; a cadencia dos periodos nas demonstrações eloquentes; a luz e a côr que iluminam as suas paysagens; a potencia visual nas descripções; o geito com que ductilisa a syntaxe por vezes hirta da lingua portugueza; a vibratilidade perante os aspectos do mundo externo e a força virtual na transmissão de impressões; a capacidade de captar com delicia todas as manifestações da arte e da natureza, e a faculdade de as transformar em obras-primas de graça no dizer, são qualidades que fazem de Ramalho um dos mais perfeitos cultores do verbo portuguez.
Mas a par d’estes predicados, e sobranceiramente a elles, avultam as linhas nobremente simples do seu caracter integro.
Por isso sentia a alegria de viver, revelada n’uma perfeita saúde de alma independente, sempre alheia a intrigas de partidos, a bisbilhotices de conventiculos, a enredos de facções, a parcialidades de seitas, a invejas de corrilhos.
Orgulhoso da sua penna, manejava-a com a elegancia d’um mosqueteiro seiscentista de capa e espada, ostentando[Pg 264] no sombreiro de aba larga a pluma tremulante de generosas illusões, nascidas na sua perenne mocidade.
De uma das vezes que um grupo de amigos a que Ramalho pertencia, e que se reunia periodicamente, ora no Hotel Bragança, onde a garrafeira era famosa, ora debaixo das latadas verdejantes da «Perna de Pau», uma horta afamada dos suburbios de Lisboa, e durante um dos repastos, cujo fim principal era cultivar a planta rara de uma camaradagem isempta de outros interesses que não fossem o convivio espiritual e o despretencioso commercio de ideias, trocadas á medida que iam borbulhando nas nascentes, sem preoccupação de litteratice ou emphasis academica, Oliveira Martins, por quem então a aza da politica ainda não tinha roçado, conservava-se callado e alheio á palrice geral.
Era assim ás vezes o Philosopho, como amigavelmente os do grupo lhe chamavam, admirando-o e venerando-o como Sabio na dupla acepção d’esta palavra, isto é: homem de Sciencia e possuidor de Sabedoria.
Se os seus silencios eram acatados, a sua palavra era escutada com carinhosa attenção. N’esse dia, despertado por um pendor da conversação, começou a discorrer ácerca da intoxicação das almas pelos venenos distillados com a faina excitante da vida moderna, toda cheia de luctas de interesses, de combates de opinião, de ancias de subir, de struggleforlifismo.
E depois, com aquelle inclinar de cabeça que lhe era proprio, ia demonstrando como a Egreja Catholica, sempre previdente em armazenar confortos espirituaes, soubera encontrar o remedio para retemperar cerebros e vigorar animos atacados da nevrose da vida agitada; aconselhando o isolamento individual, ou collectivo na contemplação e contacto directo com a natureza.
[Pg 265]
E então, entre sério e risonho, suggeria, que, semelhantemente, como prophylaxia moral para o grupo, e tonico efficaz para cada um dos seus membros, realisassemos um retiro espiritual laico na solidão da serra da Arrabida.
A alma de poeta de Oliveira Martins, o seu mysticismo sonhador, o seu desdem pelo vulgo e pela Deusa Banalidade, davam-lhe a faculdade de considerar realisavel este projecto, embora proposto com sorridente falta de confiança na vocação dos eleitos. Com o leve pessimismo que melancholisava a sua concepção da existencia, trazia desde já para designar a comunidade aquella formula então para alguns inexplicada—Os vencidos da vida.
Esta proposta da fundação de um novo Port Royal, ainda que nas deliciosas sombras que envolvem o palacio do Calhariz (que seria pedido aos seus proprietarios); este projecto de vida monastica embora laical e ephemera, apresentado assim em circumstancias tão avessas á sua realisação, encontrou um acolhimento de natureza reservada em todo o grupo, sendo recebido, conforme os temperamentos respectivos, entre o ligeiro franzir de sobrolhos exclamativo, e o sorriso quasi zombeteiro dos mais irreverentes.
Um, porem, o encarou a sério com a sinceridade que punha em todas as manifestações da sua alma. Foi o mais alegre de todos nós, o mais são de espirito, aquelle de quem Carlos Mayer, na sua pittoresca linguagem, vendo-o chegar, alto, aprumado, exhuberante de vida, bem assente na existencia dizia: «Lá vem elle com a sua Ramalhal figura.»
Ha dias recordei este episodio, lendo n’um jornal aquella admiravel auto-biographia legada a seu filho, em que, com uma tão elevada simplicidade e tanta grandeza de animo, Ramalho diz: «Fiquei para todo o sempre—intimamente o reconheço—um tanto frade e um tanto soldado. Ficaram-me de pequeno indestructiveis gostos de ordem, de disciplina, de solidão.»
E mais adeante accrescenta:
«O acaso fez de mim um critico. Foi um desvio de inclinação[Pg 266] a que me conservei fiel. O meu fundo é de poeta lyrico.»
E é verdade! Aos seus instinctos, (por mais parodoxal que isso pareça), não repugnava a disciplina doutrinaria, nem ao seu espirito a ideia da completa absorpção de todo o ser no seio de Deus.
Sentia-se um soldado e um monge.
Mas na realidade era essencialmente um poeta lyrico.
[Pg 267]
SUMMARIO
A Côrte—Romaria de grande gala—Alguns personagens—No anno de 1891—O Rei doente—Tentativas de organisação de um ministerio—Martens Ferrão—A anecdota das perdizes—João Chrysostomo—O seu ministerio—Baptista de Andrade—Laudator temporis acti.
É de hontem, mas parece já um capitulo arrancado de alguma chronica esquecida, a evocação de figuras e scenas, que a repetição do dia de Anno Bom faz passar nitidamente na nossa retina espiritual.
Figuras, algumas d’ellas que na voragem se sumiram, outras a quem o Tempo irreverente vae empoando as cabeças.
Scenas, que se diluem nos nevoeiros de um passado recente, mas cuja recordação vae tendo aquelle atrahente poder e mysterioso encanto, que fez exclamar ao mais attico dos prosadores francezes:
«C’est une puissante douceur que de sentir revivre en soi les vieux âges.»
Abrindo no dia d’hoje[3] um parenthesis ás preoccupações[Pg 268] com que os telegrammas da grande guerra trazem alvoroçados os espíritos e confrangidos os corações, e fazendo votos para que o anno que entra traga a Portugal a parte da victoria a que tem direito, seja-nos licito repassar na memoria uma das solemnidades com que a liturgia tradicional celebrava o inicio de um novo anno.
Não era apenas uma exhibição ostentosa de pompas, uma feira de vaidades, ou um estendal pueril de mantos, de joias, de fardas e de condecorações.
Não era, como muitos praguentos affirmavam, o curvar servil de algumas centenas de dorsos perante a hieratica rigidez dos idolos reaes; nem a mesquinha caricatura da cortezania, com que a musa offenbachiana se celebrisou, nas notas gaiatas e ditos picarescos do Barba Azul, de galhofeira memoria.
Não tinha tambem o humilhante aspecto de subserviencia que algumas almas artificialmente e postiçamente orgulhosas attribuiam á cerimonia de um Beija-mão, alardeando, com supposta altivez, argumentos sediços e logares communs sobre a dignidade humana.
No fundo da consciencia d’estes philosophos (d’aquelles que a tinham) uma voz lhes segredaria ser muito menor aviltamento beijar a mão de uma Rainha (pois que o uso já de ha muito revogára a pratica de a beijar ao Rei) do que incensar com lisongerias qualquer tyranete de capelista.
A recepção do Anno Bom significava mais e melhor que uma simples parada de grandezas, e um monotomo desfilar de funccionalismo anonymo.
Era uma solemnidade symbolica, ordenada pelo rito tradiccional das Aulas Regias, para significar a intima reunião do Rei—Pae e Pastor d’um povo—com os representantes de todas as forças da Nação, n’uma reciproca aspiração ao bem commum.
A Côrte, no significado de assembléa que rodeia um soberano na sua missão augusta de governar, e formada com o que antigamente compunha os Trez Estados, juntava-se n’esse[Pg 269] dia, em que o kalendario volta uma pagina no revolvêr do Tempo, para se congratular com o magistrado supremo, e com elle trocar votos tendentes á estreia de um anno feliz.
Na vespera realisára-se na Sé o Te-Deum em acção de graças pelo acabamento do anno anterior.
No dia seguinte abrir-se-hia o Parlamento, a que a Constituição attribuia a tarefa de fazer leis.
N’esta data, as Camaras legislativas e municipaes, os Prelados, os Grandes do Reino, os representantes do Exercito e das Corporações administrativas e scientificas, concorriam ao Paço para solemnisarem em grande gala o Anno Bom.
Desde manhã, pela extensa ladeira que de Alcantara leva ao Palacio de Nossa Senhora de Ajuda, uma fila de carruagens ia conduzindo, em fardas rutilantes, em uniformes garridos, em vestes prelalicias de setim, e em roçagantes sedas brancas com manto azul, o corpo diplomatico, os Ministros, os Conselheiros de Estado, os magistrados, a officialidade de terra e mar, e as senhoras emplumadas com os vistosos cocares do seu caracteristico vestuario de Damas.
Transportes varios, uns modestos puxados por famelicos rocinantes, outros levados a trote largo pelos impacientes pur sang, iam entrando sob as abobadas do atrio, ao som do «Hymno da Carta», que a banda da guarda de honra entoava.
De quando em vez um coche apparecia, balouçando-se nas correias das suas molas.
Era agora o do Duque estribeiro-mór que quatro machos de Alter tiravam.
Era depois o do Marquez de Vallada, com a creadagem vestindo librés verdes, que elle adoptára da casa de sua mulher, uma senhora Lafões. Era ainda o dos Duques de Palmella, conduzindo a Camareira-mór e o Commandante das[Pg 270] guardas reaes, ella com o seu busto patricio emergindo de entre rendas, elle envergando a farda vermelha do seu cargo.
Pela grande escadaria ia subindo numerosa concorrencia ataviada de galas, emquanto que no portal do pateo, junto aos aposentos da Rainha Mãe, se apeiavam aquelles que pelos seus officios deviam esperar os soberanos, que vinham do Paço de Belem, aquella graciosa vivenda construida por D. João V.
Lá em cima, nos salões, o Conde-mestre-sala dispunha os recemchegados.
Na galeria de D. João IV ficavam as camaras, os officiaes de todas as armas e os magistrados. Na Sala do Throno o corpo diplomatico, enfileirando ao fundo, os chefes de missão com os seus secretarios, e, do lado direito as ministras com as mulheres dos secretarios de legação.
Pelas salas que deitam sobre o Tejo espalhavam-se os altos Corpos do Estado e todas as Dignidades do Paço.
Na volta das duas horas o cortejo entrava na Sala do Throno, vindo á frente o Conde de Ficalho, que então servia de Mordomo-mór, empunhando a Negrinha, o famoso bastão de marfim encimado por uma cabeça de preta, esculpida em ébano, que symbolisava o poder dos Reis de Portugal nas conquistas de Além Mar.
Á sua direita o Duque de Loulé, Estribeiro-Mór; e á esquerda o Duque de Palmella, capitão dos Archeiros.
El-Rei D. Carlos, corpulento, mas, n’esse anno a que nos vimos referindo, emmagrecido ainda pela doença recente, nobre no andar compassado, e com aquelle olhar azul investigador, que n’um relance abrangia toda a sala, era ladeado pelas duas Rainhas.
Á direita, a Rainha D. Amelia, altissima, radiante na sua belleza meridional, coroada por um diadema rútilo, dominava ainda mais pela irradiação impressiva da sua personalidade, que pela estatura elevada. Da esquerda, a Rainha D. Maria Pia, fulva, elegante, tendo na expressão um sorriso doloroso de enygmatica significação. Pela primeira vez, desde que enviuvara,[Pg 271] assistia a uma recepção. O velludo negro que a vestia accentuava os traços d’aquella figura tragica, em que se confundiam um poder de seducção, que attrahia, e não sei que influxo de fatalidade, que fascinava.
Segurava o manto da primeira a Duqueza Camareira-mór, em cujo perfil se liam bem desenhadas as linhas espirituosas do seu avô Palmella.
E, tomando a cauda da segunda, a Marqueza de Unhão, em plena mocidade e formosura, sempre alvo da curiosidade dos estrangeiros, que a sabiam descendente directa de Vasco da Gama.
Seguiam-se a estas todas as damas, em cujos mantos azues figuravam, bordados a prata, os brazões heraldicos da familia de cada uma. Depois os Ministros, os Officiaes-móres e a Casa militar, que iam tomar os respectivos logares.
El-Rei dirigia-se ao Corpo diplomatico, a cujo chefe—o Nuncio—(que n’este anno era Monsenhor Vanutelli, depois cardeal, e por vezes indicado para Papa) fallava primeiramente, seguindo depois a escala pela ordem de antiguidades. A cada um, em algumas palavras, se referia ou ao respectivo soberano, ou a negocio pendente, aproveitando assim a occasião para facilitar a tarefa do seu ministro dos Estrangeiros.
Acabado o cercle, e subindo os soberanos ao throno, começava o desfilar, encetando-o a Decana do Corpo diplomatico, que depois das trez mesuras, mais ou menos airosamente succedidas, se retirava.
Essas trez mesuras em frente do Throno, no meio da vasta sala, sob todos os olhares assestados n’uma attenção curiosa, eram o triumpho ou o tormento das senhoras que as executavam; algumas com graça e elegancia, outras, mais timidas ou menos dotadas, com acanhamento, de geito desastrado.
Depois, pelo espaço de duas horas ou mais, era a passagem da numerosa concorrencia colleando como uma enorme serpe pelo vasto recinto.
E durante o decurso do cortejo as conversações, a principio segredadas, quebravam um quasi nada o rigor da etiqueta,[Pg 272] e generalisavam-se depois n’um besoirar de vozes sumidas, trocando impressões, conforme o canto da sala.
Entre as senhoras—«toilettes», theatros, o ultimo romance. Entre politicos—os casos que agitavam a opinião publica.
N’esse anno de 1891, (occorreu-me esta data, entre outras ephemerides, por marcar verdadeiramente o principio do reinado, que se iniciára quatorze mezes antes, e decorrera em sobresaltos) o ministerio João Chrysostomo, no poder desde outubro, apparecia pela primeira vez n’uma recepção em Ajuda.
O Rei, no rigor do verão, cahira perigosamente enfermo. O poder estivera jacente durante largas semanas. Na sua convalescença, D. Carlos, perante a crise politica que se aggravára com o fracasso do tratado de 20 de Agosto, e vendo-se impossibilitado de recorrer a qualquer dos dois partidos, pois os ultimos insuccessos tinham affastado ambos do governo, chamára de Roma Martens Ferrão, que alli era Embaixador.
Era um antigo marechal da velha guarda. Militára com Fontes, com Andrade Corvo, com Casal Ribeiro. Como tal, poderia talvez formar um gabinete. E se não, como Conselheiro d’Estado e como seu antigo Aio, o Rei esperava d’elle um conselho.
O diplomata não se fez esperar.
N’uma tarde dos começos do outomno os dois conversaram largamente, n’aquella varanda do Paço de Belem, em cujas paredes de azulejo um Hercules executa os seus lendarios trabalhos.
O antigo politico, agora reformado e alheio ao commercio dos homens, que tornariam viavel uma situação, hesitára em tomar um encargo que reputava esteril. Declarava-se contraindicado para tal empreza.
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Á sua experiencia de velho affigurava-se como melhor alvitre espaçar, protelar, não precipitar os acontecimentos.
Então, perante a insistencia do que fôra seu discipulo, referiu que o Rei Victor Manoel, quando o taboleiro do xadrez politico se baralhava, recorria sempre a um expediente efficaz. Retirava-se para as montanhas do seu Piemonte, e alli, durante uns dias, caçava perdizes. No regresso, as peças do xadrez tinham-se composto por si proprias.
O Rei ouviu silencioso a anedocta das perdizes (que n’esse tempo correu mundo) e embora fosse caçador apaixonado, não seguiu o exemplo do Avô italiano.
Continuou porfiando na sua faina até que, aproveitando o prestigio do general Abreu e Sousa, respeitado entre os partidos politicos pela sua honradez e patriotismo, conseguiu formar um gabinete em que entravam elementos de procedencias varias.
Miudinho de figura, com a sua barbicha inquieta e o olhar sagaz, adoçado por uma benevolencia communicativa, o honrado e energico militar inspirava confiança para a empreza difficil de abrandar as paixões excitadas pelas recentes convulsões de caracter internacional.
Vinha n’esse dia á frente do seu Ministerio saudar o chefe do Estado.
Confiára o encargo de resolver o conflicto recente a Barbosa du Bocage que, violentamente arrancado do gabinete de naturalista, puzera todo o seu patriotismo e clara intelligencia no encetar as laboriosas e delicadas negociações para normalisar as nossas relações com a Inglaterra.
A seu lado destacava-se a figura attrahente de Thomaz Ribeiro, Ministro das Obras Publicas, aureolado pela gloria nas lettras patrias, pelos triumphos na oratoria, e pelo exito nas missões que desempenhára na India e no Brazil. Conversando com elle amigavelmente, o titular da Marinha e Colonias, Antonio Ennes, magro, erecto, sublinhando as palavras sóbrias com um sorriso de espirituosa ironia. Os dois entendiam-se pela intelligencia e pelo coração. N’esse momento,[Pg 274] deixadas as preoccupações das suas pastas, reciprocavam a sincera admiração, que a ambos inspirava a figura moral da Rainha D. Amelia.
Antonio Emilio de Sá Brandão, que entrára para a Justiça, representáva n’esse ministerio a antiga nobreza de toga, á qual se orgulhava de pertencer, tendo ascendido a Presidente do Supremo Tribunal.
E, como Ministro do Reino, Antonio Candido, o Principe da palavra, e a mais fulgurante gloria da tribuna portugueza, cuja personalidade se impunha pela força do talento, pela rigidez do caracter, e pela arte com que manejava os homens e conduzia os acontecimentos; correcto na sua casaca com a banda de S. Thiago, consagrando o valor do sabio e do artista do verbo, avançou até aos degraus do throno para apresentar ao Monarcha os discursos com que havia de responder ás saudações das Camaras.
Pequenos grupos, formados segundo as affinidades politicas ou sociaes, trocavam impressões sobre os successos recentes. José Luciano approximára-se de Antonio de Serpa, significando com esse gesto que a imprensa dos dois partidos, a do progressista com o Correio da Noite, a do regenerador com a Gazeta de Portugal, se harmonisava para dar força ao Ministerio na sua acção patriotica.
E no canto da janella grande, que abre sobre a Outra Banda, o conde de Valbom, arguto, destro no argumentar, e insistente, expunha qualquer plano a Lopo Vaz, ministro da vespera e ministravel para o dia seguinte, que o ouvia com aquella ironia bonancheirona a que alguns chamavam machiavelismo, e outros habilidade politica.
Hintze Ribeiro, que então ainda não empunhava o bastão de chefe, mas que ia creando atmosphera, attrahia, com o iman da sua subtil dialectica, elementos para futuras situações.
Entre os zun-zuns mundanos e os quolibet politicos, surgiam commentarios a algumas raras abstenções na concorrencia.
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—Porque faltaria Fulano?
—Influenza?
—Hum!
—Talvez grippe politica!
—E Sicrano?
—Um leve amúo, que brevemente se desfará!...
No entanto, o desfilar continuava...
A figura aprumada do Cardeal Patriarcha D. José Netto, impassivel como se fosse destacada d’um painel bysantino, apoiava, conforme a pragmatica instituida por D. João V, o pé direito no primeiro degrau do Throno para significar a sua cathegoria de Principe da Egreja, sem comtudo deixar de ser dignatario da Casa Real.
E tambem sereno, e pouco communicativo, o chefe da Casa Militar, Baptista d’Andrade, o glorioso Almirante das guerras d’Africa, fazia recordar, pela sua ingenua e simples heroicidade, o Santo Condestavel, de quem por vezes em algumas solemnidades segurou o estoque.
Entre os grupos alguem recordava o inconsciente valor com que, n’um ataque ao gentio, elle perseguira os rebeldes valentemente entre tiros e zagaias. E porque, tropeçando, a farda se lhe empoeirasse e elle com naturalidade a saccudisse, sob a metralha, correu desde logo no sertão a lenda que o dava como invulneravel, affastando com desdem as balas.
Se alguem lhe fallava, respondia em monosyllabos, sem casmurrice, mas sem a affabilidade do pescador de influencias.
A sua personalidade inspirava tão grande confiança, que a muitos occorria dever ser aproveitado o seu prestigio em serenar a agitação que pela capital do norte lavrava.
Não foi necessaria essa intervenção.
Effectivamente, d’ahi a trinta dias rebentava um movimento no Porto, que promptamente foi acabado.
Devera-se isso á lealdade dos que a elle se oppuzeram. Assim como se deveu á energia e sensata acção do governo e á envergadura dos homens que o compunham, ter renascido[Pg 276] a tranquillidade publica que o paiz disfructou durante um largo periodo.
Relembrando factos, currente calamo e sem outro auxilio que a memoria, é possivel que o quadro fique defeituoso e careça de melhores pincelladas para um feliz colorido.
Servirá elle, comtudo, para trazer ao espirito do leitor pretexto ou motivo para lançar um olhar retrospectivo á sociedade portugueza dos fins do seculo passado, e para me acompanhar a mim, incorregivel laudator temporis acti, na commemoração de uma solemnidade cuja recordação já se vae escondendo entre os flocos brancos das neves de antanho.
[3] 1 de Janeiro de 1918.
Composto e impresso no “Centro Tipografico Colonial” em Lisboa, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro findou-se a impressão aos XXVII de Maio de MCMXIX.