TEÓFILO BRAGA
PARNASO PORTUGUÊS MODERNO
GUIMARÃES & C.ª—Editores
R. da Misericórdia (Ex. R. do Mundo), 68—LISBOA
PARNASO PORTUGUEZ
MODERNO
OBRAS COMPLETAS DE THEOPHILO BRAGA
1864—1877
Poesia |
Visão dos Tempos, 1 vol. |
Tempestades Sonoras, 1 vol. |
Ondina do Lago, 1 vol. |
Torrentes, 1 vol. |
Folhas Verdes, (Versos dos 15 annos) 1 vol. |
Tradições | Historia da Poesia popular portugueza, 1 vol. |
Cancioneiro popular, 1 vol. |
Romanceiro geral, 1 vol. |
Cantos populares do Archipelago açoriano, 1 vol. |
Floresta de Romances com forma litteraria, 1 vol. |
Historia da Litteratura portugueza | Introducção á Historia da Litteratura portugueza, 1 vol. |
As Epopêas mosarabes, 1 vol. |
Trovadores gallecio-portuguezes, 1 vol. |
O Amadis de Gaula, 1 vol. |
Os Poetas palacianos, 1 vol. |
Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, 1 vol. |
Vida de Sá de Miranda, 1 vol. |
Vida de Camões, 1 vol. |
Eschola de Camões==Os Lyricos, 1 vol. |
Eschola de Camões==Os Epicos, 1 vol. |
Vida de Gil Vicente, 1 vol. |
A Tragedia classica e as Tragicomedias, 1 vol. |
A Baixa-Comedia e a Opera, 1 vol. |
Garrett e os Dramas romanticos, 1 vol. |
Bocage, sua Vida e Epoca litteraria, 1 vol. |
Historia do Romantismo (no prélo), 1 vol. |
Pedagogia | Grammatica portugueza fundada sobre o methodo hist. comparativo, 1 vol. |
Manual da Historia da Litteratura portugueza, 1 vol. |
Antologia portugueza, e Poetica historica, 1 vol. |
Parnaso portuguez moderno, 1 vol. |
Dissertações | Historia do Direito portuguez (Dissertação do doutoramento, em 1868.) 1 vol. |
Caracteristicas dos Actos Commerciaes (Dissertação do Concurso na Academia polytechnica do Porto, 1868.) brox. |
Espirito do Direito Civil moderno (Dissertação do Concurso na Faculdade de Direito, na Universidade, em 1871) brox. |
Theoria da Historia da Litteratura portugueza (Dissertação do Concurso no Curso Superior de Lettras, em 1872) 1 vol. |
Ensaios | Estudos da Edade Media, 1 vol. |
Poesia do Direito, 1 vol. |
Contos phantasticos, 1 vol. |
Edições criticas | Obras de Christovam Falcão, 1 vol. |
Obras completas de Camões, 3 vol. |
Gaia de João Vaz, 1 fol. |
Obras poeticas de Bocage, 7 vol. |
Cancioneiro portuguez do Vaticano, (no prélo) 1 vol. |
Obras primas de Chateaubriand, 1 vol. |
Obras escolhidas de Balzac. |
PARNASO PORTUGUEZ
MODERNO
PRECEDIDO DE UM ESTUDO
DA
POESIA MODERNA PORTUGUEZA
POR
THEOPHILO BRAGA
Professor de Litteraturas modernas no Curso Superior
de Lettras
LISBOA
FRANCISCO ARTHUR DA SILVA—EDITOR
72, Rua dos Douradores, 72
1877
A propriedade d'esta edição em Portugal pertence a Francisco
Arthur da Silva, e no Brazil ao ill.ᵐᵒ sr. Manuel Silvestre
da Silva Couto, residente no Maranhão.
Typographia da Bibliotheca Uniuersal, rua dos Calafates, 93.
[v]
Na Antologia portugueza, onde reunimos tudo quanto
conheciamos de mais bello e caracteristico da nossa poesia
desde o seculo XII até ao presente, apenas pudemos
esboçar os alvores do romantismo com um pequeno excerpto
de Garrett; no Parnaso moderno desenvolvemos
este periodo com uma escolha do que tem produzido de
melhor a geração de rapazes, que em grande parte constitue
hoje a litteratura portugueza contemporanea.
Muitos foram os chamados e poucos os escolhidos;
lêmos centenares de livros de versos; e no processo da
nossa pequena escolha observámos as correntes de banalidade
que atrophiaram um grande numero de poetas.
Para garantirmos o nosso criterio contra o enfado de
uma leitura esteril ou contra a surpreza de uma fórma
desconhecida, copiámos materialmente pela nossa mão
todas as composições d'este livro. Em Portugal todos são
poetas, uns em segredo, como um vicio occulto; outros
não passam dos limites ephemeros do jornalismo; outros
alentam o fogo sagrado até aos vinte cinco annos, como
o sr. Herculano; outros têm a coragem de produzir volumes,[vi]
e o que mais assombra, continuam a publicar
versos depois de directores de secretaria, depois de serem
embaixadores e ministros. D'isto mesmo proveiu a
difficuldade da selecção; de alguns poetas distinctos nada
apresentamos, ou porque não pudemos obter as suas
obras, ou quando as alcançámos, já este livro estava
quasi impresso.
Adoptámos a disposição ethnica, subdividindo o Parnaso
em lyricos portuguezes, brazileiros e gallegos; na
introducção adiante serão explicadas as relações entre
estes grupos poeticos, de um modo que nos parece
ficar bem patente o espirito por onde se deve renovar o
lyrismo moderno. Attendemos sempre á belleza da fórma,
aproveitando os typos tradicionaes da estrophe e a
estructura mais nova e imprevista; assim nos parece que
os futuros cultores da poesia portugueza acharão aqui
poderosos estimulos para mais altas concepções.
[vii]
DA POESIA
MODERNA PORTUGUEZA
SUAS TRANSFORMAÇÕES E DESTINO
I
A par das grandes descobertas scientificas do nosso
seculo, que pela via inductiva conduziram á demonstração
integral dos phenomenos cosmicos pelo movimento
etherodynamico; e bem assim da vasta synthese de todos
estes factos verificaveis, que pela via deductiva
levaram a estabelecer a Philosophia positiva, a par d'estas
profundas transformações da consciencia moderna, a
Poesia ainda tem um destino ligado ás necessidades sociaes.
Nem todas as sugestões que provocam a aspiração individual
podem ser satisfeitas pela demonstração scientifica,
nem todos os problemas que emergem da actividade cerebral
podem ser resolvidos pela deducção philosophica.
E comtudo o espirito humano propõe-se sempre as mesmas
questões, mas já hoje se não satisfaz com as soluções
theologicas, nem com as hypotheses metaphysicas.
Os velhos mythos theologicos são hoje estudados comparativamente,
e a sciencia deriva d'elles as vastas
concepções poeticas dos cantos hymnicos, da degeneração
epica, dos contos populares, e do rito cultural que levou
ao drama hierático; por seu lado a Metaphysica ao tornar-se[viii]
incompativel com o progresso das sciencias, dissolve-se
em uma exhuberante poesia, como as concepções
de Schelhing, de Hegel ou de Schopenauer, que inconscientemente
se encontram em intimas analogias com as
phantasmagorias das escholas brahmânicas e buddhicas.
Em vez de ter pertenções a systema de synthese
deductiva, a aspiração metaphysica só deixará de ser
uma manifestação doente tornando-se francamente Poesia.
Só assim realisará um grande destino, o servir de
expressão ás mil aspirações indefinidas da nossa individualidade
social. Algumas composições de M.ᵐᵉ Ackermann
abrem esta nova phase da idealisação. Assim como
a poesia antiga servia para perpetuar e dar sentido ás
vetustas tradições das raças, a poesia moderna sem despresar
a tradição, é o orgão mais apto para manifestar
as aspirações da consciencia moderna. N'este uso está
implicito o seu fim revolucionario.
Na poesia portugueza, como temos largamente provado
pelos nossos trabalhos historicos, o escriptor esteve
quasi sempre separado do povo; raramente se soube inspirar
da sua tradição, e por isso a aspiração e o caracter
nacional não foram servidos por uma litteratura bem
distincta entre as outras litteraturas romanicas. Em
compensação, a nacionalidade portugueza atrophiada
pelo cesarismo e pelo catholicismo, e, por esta causa,
não tendo no mundo moderno uma existencia accentuada
pelos progressos scientificos e industriaes, serviu-se
sempre da poesia como um meio de protesto, como o
grito da sua aspiração revolucionaria. No seculo XIII
achamos a dura sirvente contra os Alcaides que atraiçoaram
D. Sancho II, para servirem as pertenções do
clero a favor de D. Affonso III[1]. No seculo XV, achamos[ix]
a satyra vehemente de Luiz de Azevedo contra os
traidores que provocaram e consummaram o assassinato
do Infante D. Pedro em Alfarrobeira[2]. No seculo XVI o
vigor nacional é atrophiado pelo regimen do favoritismo
do paço, que corrompe a aristocracia com as capitanias
da India e Brazil; a poesia protestou contra os validos
devassos, como se vê n'essas quadras ou trovas da Maria
Pinheira, attribuidas a Damião de Goes, contra o Conde
da Castanheira[3], e Manuel Machado de Azevedo n'outras
quadras bem sentenciosas avisa seu cunhado Sá de
Miranda contra a prepotencia dos Carneiros e Carvalhos,
que dispunham arbitrariamente de todos os poderes. A
satyra vehemente, acerba e allusiva inspira as melhores
quintilhas e tercetos de Sá de Miranda; e Camões, nos
Disparates da India, e sobretudo nos Luziadas, verbera
uma aristocracia enfatuada e estupida, e o abuso da auctoridade
clerical que invade a esphera civil em o Concilio
de Trento, que se apodera da instrucção publica do
paiz, que funda os terriveis tribunaes da intolerancia
nos Indices Expurgatorios e nas fogueiras dos Autos de[x]
Fé, que isola Portugal da communicação scientifica da
Europa a pretexto de combater a entrada dos principios
da Reforma, e que por ultimo nos entrega aos castelhanos
de Philippe II.
Tudo isto teria existido sem protesto, se não fossem
os versos de Gil Vicente, nas suas farças; as quadras
anonymas conservadas como curiosidade pelos genealogistas;
algumas estancias de Camões na grande epopêa,
e, o que mais assombra, alguns epigrammas populares,
que se transmittiram na tradição[4].
Quando no seculo XVII a lingua portugueza deixava
de ser usada nos livros, foi a comedia popular que manteve
a sua cultura, e se inspirou das campanhas da restauração
nacional, como vemos nas comedias de Pedro
Salgado. Diante da mudez imposta pelo Santo Officio,
a poesia teve ainda a audacia do protesto no poemeto
Os ratos da Inquisição, de António Serrão de Castro[5].
No seculo XVIII, pode-se affirmar com rigor, foi a
poesia o orgão de propagação das ideias dos encyclopedistas
em Portugal; o proprio Marquez de Pombal protegia
[xi]tacitamente a dispersão das cópias do Hyssope de
Diniz. José Anastacio da Cunha na Oração universal
eleva-se ao lyrismo pantheista de Goëthe, sendo preso e
sentenciado pelo Santo Officio. Bocage é preso pelo Intendente
Manique, e dá-se por base da perseguição a
epistola Pavorosa illusão da eternidade, que exerceu uma
acção menos profunda do que a Voz da Razão, ainda
hoje estimulo secreto que leva a classe burgueza a fazer
o processo critico da sua consciencia. Cabe a Bocage
a gloria d'este serviço[6].
Nas luctas pela liberdade constitucional, os antigos
Outeiros poeticos tornaram-se politicos, como o da Sala
dos Capellos em 1820, e nas recitas theatraes era a poesia,
ainda bastante arcádica, que agitava com uma linguagem
nova a alma moderna. Separada da tradição,
pelo esquecimento e obliteração systematica do passado,[xii]
a poesia portugueza vale muito por estes gritos revolucionarios
que a tornam uma verdade na vida nacional.
Ainda hoje o lyrismo da mocidade acorda mais o senso
commum, produz mais movimento na opinião, do que todos
os cursos scientificos com juramento previo da conceição,
e da inviolabilidade real.
As duas influencias predominantes do fim do seculo
XVIII na poesia portugueza, o filintismo e o elmanismo,
prolongaram-se até ao primeiro quartel do seculo XIX;
Garrett (Jonio Duriense) admirava Filinto Elysio, e ao
estudo da estructura riquissima e sempre nova dos seus
versos deveu esse segredo de belleza do verso solto
do poema Camões. Castilho admirava Bocage, e elle
mesmo árcade romano (Mémnide Egynense) calcava a sua
metrificação sobre as tautologias elmanistas. Se não fosse
a emigração forçada dos partidarios do regimen constitucional
em 1824 e 1829, a litteratura portugueza não
saía d'este sulco; Garrett emigrou, e por isso comprehendeu
o romantismo, Castilho esteve refugiado na abbadia
de S. Mamede da Castanheira do Vouga, e por isso
esterelisou-se muitos annos em traducções latinas, que
a ninguem aproveitam. Garrett inspirou-se da tradição
antiga e da aspiração moderna da nacionalidade, Castilho
entrincheirou-se na erudição dos classicos da côrte
de Augusto, e quiz submetter a este criterio a mocidade
que despontava. D'aqui resulta mais tarde o rompimento
individualista e indisciplinado da chamada Eschola de
Coimbra (1865.)
Só muito tarde é que Almeida Garrett conseguiu descobrir
uma das formas mais eloquentes do lyrismo moderno,
nas Folhas cahidas; as composições em grande
parte insulsas das Fabulas, do João Minimo, das Flores
sem fructo, accusam o grande esforço d'esse genio para
quebrar os moldes arcádicos em que sentira desde criança.[xiii]
Bastou para tanto uma simples aproximação da
realidade; nos ultimos annos, Garrett achou-se envolvido
em uma paixão censuravel, e a expressão de todas
as suas emoções, a descripção delicada das situações
imprevistas em que se achava, as confidencias, as vacillações
da sua passividade, os favores concedidos de
surpreza, as recordações e por fim a indifferença da
parte da que era tão frivola como as outras da sua recente
aristocracia, tal é o quadro deslumbrante e fascinador
das Folhas cahidas. Este livro appareceu tarde,
e por isso não exerceu uma influencia saudavel; Pato,
Gomes de Amorim, E. Vidal e alguns outros bem quizeram
pulsar essa corda, mas faltava-lhes, não diremos
talento, mas verdade.
Castilho não conseguiu accentuar a sua tendencia
lyrica; dominado ainda pela Modinha do seculo XVIII,
como na Joven Lilia, incapaz de conhecer a belleza d'esses
idylios modernos, como o seu de Pedro gaiteiro, elevando-se
á expressão artificiosa do Canto do Jau, lançou-se
outra vez no mundo classico e poz-se a traduzir do grego
através do francez um supposto Anacreonte. Todos se
imaginavam poetas, e n'esta doce illusão só Herculano
se salvou com a Harpa do Crente, porque antes dos vinte
cinco annos tinha lido alguma cousa de Klopstock e de
Schiller. Tudo o mais estava anachronico, como Sarmento,
Costa e Silva, Cabral de Mello, Fernandes Leitão e
Campello. A poesia lyrica só podia renascer entre uma
geração de rapazes; e onde encontral-a compacta, crente,
enthusiasta? Em Coimbra o espirito revolucionario precedeu,
pela imitação das tragedias philosophicas de Voltaire,
o pensamento dos homens de 1820. Coimbra continuou
sempre a ser o fóco do espirito novo, e em contradição
com a rotina cathedratica, que bajulava o
absolutismo e se isolava na sua soberba cardinalesca. Assim[xiv]
como a poesia foi sempre na civilisação portugueza
a linguagem de protesto de uma consciencia atrophiada,
assim Coimbra nos apparece tambem na historia como a
capital do nosso lyrismo; ali cantaram Sá de Miranda,
Ferreira, Camões, Jorge de Monte-Mór, Bernardes,
Soropita, Francisco Rodrigues Lobo, Garção, em pleiadas
que se succederam até ao seculo XIX segundo as correntes
litterarias que percorriam a Europa. De Coimbra
sáem tambem Garrett e Castilho.
Na renovação do lyrismo moderno é de Coimbra que
partem os mais poderosos e decisivos impulsos; a escola
do Trovador reune a mocidade academica de 1848, de
que o principal vulto foi João de Lemos. Mas essa mocidade
vivia no idylio insulso «sobre as azas da saudade»,
como se vê na festa da Primavera; inspirava-se
do christianismo de Chateaubriand, acreditava devotamente
na monarchia, contentava-se com tres nomes da
historia patria para symbolisar toda a tradição nacional,
e na sua ingenuidade não sabia conhecer as banalidades
que punha em verso de redondilha, nem sabia os justos
limites de uma exhuberancia fastidiosa. Ao entrar nas
lides politicas esta camada esterilisou-se, e os poucos que
conservaram um debil culto litterario ficaram constituindo
a pretendida geração nova. Esta devera ser considerada
a primeira phase da Eschola de Coimbra. Passou
rapida; quasi que desconheceu o espirito revolucionario,
e influiu sobre Portugal inteiro contagiando um falso estylo
poetico, causa de todos os máos livros de versos que
ainda apparecem de algum incomprehendido de provincia.
A vida academica é excepcional; a mocidade acha-se
de repente livre dos vinculos da familia, senhora de si,
meia irresponsavel, e em conflicto de costumes, de opiniões,
de vaidades, e separada da direcção espiritual dos[xv]
seus professores. Vive na indisciplina, alimenta-se das
phantasmagorias theoricas, dispende um immenso vigor
na dialectica, e por ultimo quando entra na realidade da
vida em grande parte succumbe. O lente occulta a sua
ignorancia e estupidez no isolamento doutoral; despreza
o estudante, a quem nunca dirige a palavra, e
impõe-se respeito pelo terror da reprovação! A mocidade
liga-se contra este pedantismo, alimentando-se com
as suas proprias leituras, fortalecendo-se com exercicios
de argumentação, e amarrando os seus ogres a epigrammas
eternos, como este:
Aquelle homem feio
E de aspecto máo,
É o Pedro Penedo
Da Rocha Calháo!
ou a epithetos pittorescos, como o Cão de quinta, o Doutor
Hemoroide, o Marmellada.
Ali a cada geração academica succede-se a influencia
de um dado philosopho; já no seculo passado o
Intendente Manique accusava nas suas Contas para as
Secretarias quaes os livros que andavam nas mãos dos
estudantes, taes como as obras de Voltaire, Rousseau,
Reynal, Bayle, Hobbes, etc. Na epoca de Garrett lia-se
secretamente Dupuis; e ás differentes gerações se foram
succedendo Chateaubriand e Aimé Martin, depois Krause,
depois Pelletan, Quinet e Michelet, depois Vico, Hegel
e Augusto Comte. Foram differentes correntes de
ideias que revolucionaram o espirito da mocidade; os
seus professores ficaram na ordem mental em uma especie
de nirvana buddhico. D'essa mocidade, os que se
impulsionaram pelas theorias metaphysicas ao entrarem
na vida publica nada deram, e deixaram atrazar as[xvi]
cousas pela sua propria esterilidade. Sob a influencia de
Aimé Martin e Krause, succedeu-se na poesia a segunda
phase da Eschola de Coimbra, representada pelo
Novo Trovador. O seu principal vulto foi Soares de Passos;
veiu n'essa epoca em que ao exagero das paixões
no theatro correspondia no lyrismo a melancholia tenue
representada na Allemanha por Novalis, na Inglaterra
pelos Lakistas, em França por Millevoye e Lamartine,
e na Italia por Leopardi e Manzoni. Soares de Passos
inspirou-se d'este desalento contagioso mas tardio, a que
o proprio Garrett, em França, não escapou no poema Camões.
Elle é o poeta da tristeza; todos os sentimentos
que retrata, a admiração por Camões, a elevação deísta
diante do Firmamento, a independencia no canto do Escravo,
em tudo o tom natural a que vem sempre ter é
a tristeza. Esta caracteristica explica-nos toda a sua
acção litteraria. Esse sentimento de pesar e desgosto,
em parte motivado pela doença physica de que morreu,
tirou-lhe a individualidade, não o deixou ser iniciador;
nenhuma das suas bem trabalhadas odes era capaz de
suscitar uma eschola de poesia; é geralmente imitador,
agrada-lhe o vago e indeterminado, e por isso traduz o
primeiro canto de Fingal; ainda com o fervor dos bons
tempos de um Werther, imita as balladas phantasticas do
norte, conhecidas através das versões de Marmier, como
no Noivado do sepulchro; é mystico, seguindo Lamartine
na Morte de Socrates e no Firmamento. Esse sentimento
de tristeza expresso sem banalidade mas sem individualidade,
tornou os versos de Soares de Passos distinctos
entre a multidão das collecções metricas, sobretudo quando
a morte prematura do poeta veiu dar o perstigio prophetico
aos seus presentimentos. Soares de Passos escreveu
pouco em metro octosyllabo, o bastante para se conhecer
que nos seus primeiros tempos de noviciado poetico[xvii]
de Coimbra soffreu a influencia da eschola do Trovador.
A sua perfeição explica-se pelo limitado numero
de composições que deixou; emendava sempre, calculadamente
e com a pericia de quem tem só um sentimento
a exprimir e já muitas vezes retratado[7].
O que fez Soares de Passos para a tristeza, fez João
de Deus para o amor; n'elle começa a terceira phase da
Eschola de Coimbra. Ninguem sentiu melhor o idealismo
camoniano, perdido desde o fim do seculo XVI, ninguem
levou a fórma á mais alta perfeição, ninguem como elle
exerceu ainda uma acção mais funda e salutar na transformação
da poesia portugueza. É o mestre de nós todos.
Deixou entre as gerações escholares uma tradição
luminosa como de um provençal, e a sua organisação
absolutamente artistica prejudica-o no conflicto de uma
sociedade burgueza. O que lhe faltava, e que esterilisava
as suas faculdades creadoras, suppriram-n'o os poetas
do periodo indisciplinado da Eschola de Coimbra,
que por seu turno actuaram sobre o genio de João de
Deus; suppriram-n'o pelo estudo, primeiro, de Quinet e
Michelet, depois de Vico, Hegel e Augusto Comte, d'onde
provieram esses dois ramos da poesia revolucionaria, socialista
representada pelas Odes modernas, e da concepção
philosophica da historia realisada na Visão dos Tempos.
N'este caminho a poesia portugueza achou outra
vez o seu destino. O que provinha da anarchia metaphysica
dispendeu-se em um clarão repentino[8], o que conduziu[xviii]
para a synthese positiva tornou-se fecundo, produzindo
a exploração scientifica das tradições da nacionalidade
portugueza, a creação da nossa historia litteraria,
e a base critica para o estudo da nossa pedagogia, da
politica e da previsão do que é preciso que se faça. Á
influencia das Odes modernas pertence essa poesia chamada
satanica, de um pessimismo á Baudelaire, facil
de imitar e mais facil em illudir o gosto dos que aspiram
a uma ordem nova. A Visão dos Tempos, pouco imitada
no pensamento, exerceu maior influencia pela fórma
da versificação e dos poemetos; o pensamento era converter
em mythos modernos e conscientes a concepção
philosophica das grandes epocas da humanidade, ao contrario
dos mythos anonymos e inconscientes das edades
primitivas que ainda hoje nos estão atrazando; a fórma
procurava alliar a acção de Garrett com a de João de
Deus. A apparição d'este espirito novo está ligada a
uma grande pugna litteraria, encetada com a carta intitulada
Bom senso e bom gosto e Theocracias litterarias[9].
A esse impulso appareceram novos obreiros, que
inauguraram a sciencia da Linguistica e da philologia[xix]
romanica, e a Archeologia artistica; a educação scientifica
elevou-se, como se viu na nova questão litteraria
do Fausto e na Bibliographia critica de Historia e
litteratura; a critica dos costumes achou a sua direcção
nas Farpas, e o romance attingiu a sua admiravel perfeição
realista no Crime do Padre Amaro. A falta de
efficacia de todo este movimento provém da desmembração
dos obreiros. Pelo criterio ethnico da historia litteraria
e pela philologia, é que a poesia brazileira e gallega
foram comprehendidas como fórmas homogeneas do
lyrismo portuguez; longo tempo desprezadas, é d'ellas
que ha de vir o descobrir-se o verdadeiro espirito d'este
lyrismo nosso, que apenas se faz valer não pelo que tenha
de nacional, mas sómente pelo modo como serve a
ideia revolucionaria.
II
A poesia lyrica do Brazil encerra um grande facto
ethnologico; d'elle derivaremos a sua comprehensão e o
porque da sua originalidade. Esse lyrismo é superior em
vehemencia sentimental e em novidade de fórmas ao lyrismo
portuguez; e comtudo dá-se n'essas fórmas tão
caracteristicas um phenomeno de regressão, pelo qual
tomam vigor typos estrophicos conservados pelos antigos
colonos portuguezes, mas totalmente esquecidos na mãe
patria, que só agora por um processo de erudição se vão
encontrar nos seus velhos Cancioneiros palacianos. O ardor,
a passividade, a morbidez que toma a linguagem
das emoções, o desalento ou a acedia da vida, mesmo a
facilidade com que tornam natural a imitação de Byron[xx]
e de Musset, resultam de um temperamento contrahido
pelo cruzamento dos primeiros colonos portuguezes
com as raças ante-historicas do Brazil[10]. Quando o Brazil
começou a ser povoado, e as suas feitorias se convertiam
em cidades, ainda em Portugal apparecia casualmente
nos versos de Christovam Falcão, Gil Vicente,
Sá de Miranda e Camões algum vago fragmento de Serranilha
galleziana, genero lyrico de origem popular, que
pela sua belleza chegára a penetrar nos Cancioneiros
aristocraticos. Foi este typo lyrico, decahido na metropole
pela imitação castelhana do seculo XV, e pela imitação
italiana no seculo XVI, que reappareceu nos costumes
coloniaes, adquirindo importancia litteraria, a ponto
de vir a apoderar-se de novo, sob a fórma brazileira da
Modinha, do gosto da côrte e da sociedade portugueza
do seculo XVIII. Essas estrophes cadenciadas com retornellos
de enlouquecer e com tonadilhas de uma melodia
sensual, que hallucinavam o proprio Beckford, eram
cantadas essencialmente por mulatos[11]. Aqui está o problema[xxi]
ethnico, cuja importancia não escapa aos modernos
antropologistas. Diz Quatrefages: «Posto que os
cruzamentos modernos não remontem além de tres seculos,
tem já produzido resultados que põem fóra de duvida,
que, raças, notaveis sob todos os aspectos, pódem
provir da mestiçagem. Os Paulistas do Brasil são um
exemplo frisante. A provincia de Sam Paulo foi povoada[xxii]
por portuguezes e açorianos[12] vindos do velho mundo,
os quaes se alliaram aos Guayanazes, tribu caçadora e
poetica, aos Carijos, raça bellicosa e cultivada. D'estas
uniões regularmente contrahidas, resultou uma raça, cujos
homens têm-se sempre distinguido pelas suas proporções,
força physica, coragem indomavel, resistencia ás
mais duras fadigas. Quanto ás mulheres, a sua belleza
fez nascer um proverbio brasileiro que attesta a sua superioridade.
Se ella se accentuou outr'ora por expedições
aventureiras para a exploração do ouro ou da escravatura,
foi ella tambem quem primeiro fez a plantação
da canna do assucar e a creação de gados.» Apoiando-se
sobre as observações de Ferdinand Denis, Quatrefages
transcreve estas palavras: «Hoje em dia o mais
auspicioso desenvolvimento moral, como o renascimento
intellectual notabilissimo, parecem pertencer a Sam Paulo[13].»
Na poesia popular brazileira ainda se encontra a
coexistencia das duas raças no mixto das canções em
lingua portugueza e tupi, tal como na edade media da
Europa encontramos a fórma do descort; eis uma amostra
da tradição do Pará, e do Amazonas:
Te mandei um passarinho
Patuá mirá pupé,
Pintadinho de amarello
Yporanga ne iavé.
Vamos dar a despedida
Mandú sarará,
[xxiii]
Como deu o passarinho,
Mandú sarará;
Bateu aza, foi-se embora
Mandú sarará,
Deixou a penna no ninho
A tradição das raças ante-historicas conserva ainda
fabulas mythicas, como a da origem da noite, a do Jabuti,
e muitas d'ellas entraram como contos populares
na vida domestica de Sam Paulo, Goyaz e Matto-Grosso,
taes como a historia de Saci Sereré, Boitatá e Curupira.
É este elemento tradicional vigoroso que faz despontar
na litteratura brazileira essa esplendida efflorescencia
das creações epicas no seculo XVIII, como o Uraguay,
o Caramurú, e ainda no seculo XIX os Tymbiras,
e Confederação dos Tamoyos. Mas deixemos de parte
esta ordem de creações que depende do sentimento da
nacionalidade nas civilisações modernas. O ardor das paixões
do mestiço, a sua dissolução servida por uma voluptuosidade
artistica, como a poesia ou a musica, tornam
estas duas fórmas aphrodisiacos inebriantes e communicativos,
que dão em terra prematuramente com os
talentos mais auspiciosos, como Alvares de Azevedo, Casimiro
de Abreu, Castro Alves e Varella. A vida domestica
resente-se d'este fervor, e os costumes publicos manifestam
por outro lado recorrencias de usos peculiares
do tupi (os bagachas). O cruzamento primitivo fez redobrar
a intensidade sentimental; quem se lembra da
velha phrase de Lopo de Vega: «Eu, senhora, tenho
olhos de criança e alma de portuguez» só a póde comprehender[xxiv]
agora diante da exaltação do brazileiro. Nós somos
hoje menos alguma cousa.
A persistencia do typo tradicional da Serranilha
galleziana na colonia do Brazil liga-se e explica-se pela
descoberta de um grande facto desconhecido até hoje na
historia da humanidade—a civilisação da raça turaniana[15].
O problema desdobra-se em duas questões, que
se ligam e se explicam. Nas fórmas lyricas da Europa
da edade media, apparecem cantos communs á Italia e
Sicilia, á França meridional, Aquitania, Galliza e Portugal.
Esta unidade do lyrismo novo-latino levou a suppôr
uma origem commum para todas as litteraturas meridionaes.
Por outro lado a persistencia d'esse typo lyrico
no Brazil, explicar-se-ha não só pelo isolamento e
espirito archaico colonial, mas pelas grandes analogias
com os cantos lyricos dos tupinambás, e sobretudo pela
descoberta da ethnologia moderna da origem turaniana
das raças ante-historicas da America. Tratemos separadamente
de cada uma d'estas questões de litteratura
comparada.
Um problema importante tem sido proposto pelos
philologos romanicos sobre as analogias intimas entre as
fórmas lyricas da poesia moderna das litteraturas nova-latinas,
a começar da Provença. Dando conta na Romania,
da publicação dos Canti antichi portoghesi, diz M.
Paul Meyer: «Je remarque que plusieurs des piéces editées
par M. Monaci (n.ᵒˢ IV, IX) sont fort analogues,[xxv]
pour le fond comme par la forme, à nos anciennes ballettes
(voir celles que j'ai publiés dans mes Rapports, fl.
236—9) ou aux baladas provençales. Je n'en conclue
pas que les poésies portugaises qui ont cette forme soient
imitées du français ou du provençal, mais qu'elles sont
conçues d'après un type tradicional qui a du être commun
à diverses populations romanes sans qu'on puisse
determiner chez la quelle il a été crée[16].» N'estas palavras
se indica o problema da unidade do lyrismo moderno:
nenhum philologo conseguiu ainda explicar a origem
d'esta identidade de fórmas. O meio para o resolver
está no criterio ethnico e comparativo; em primeiro
logar a zona d'onde irradiou o lyrismo que se propagou
para a Provença, Italia, Sicilia, Galliza e Portugal, foi na
Aquitania; é tambem pelo criterio ethnico que se conhece
que n'esta zona existiu uma raça iberica, absorvida
pelos immigrantes indo-europeus, raça cujas tendencias
e até fórmas lyricas peculiares se confirmam pelos hymnos
acadicos modernamente traduzidos pelos assyriologos.
As recentes descobertas da civilisação turaniana,
que antecedeu as grandes civilisações historicas, a persistencia
das superstições accádicas dos cultos magicos
na Europa da edade media, tornam este facto da unidade
do lyrismo como uma simples evolução.
O estudo comparativo das litteraturas tem levado a
aproximar certas formas tradicionaes muito antes de se
conhecer se entre ellas existiria alguma connexão historica;
as analogias intimas têm por vezes conduzido a
procurar essas relações, que se vão verificando do modo
mais surprehendente. No lyrismo popular da Europa, a
começar desde a epoca provençal, existem formas espontaneas,
taes como as Pastorellas, que se repetem em todos[xxvi]
os povos meridionaes, sem que estas differentes nacionalidades,
tão separadas pelo regimen monarchico, se
imitassem mutuamente; este genero de cantos penetrou
na litteratura da egreja da edade media, sob a forma de
Prosas, e nos Cancioneiros aristocraticos sob a forma de
Serranilhas e Dizeres. A diffusão commum d'este genero
de origem popular era attribuida á situação geographica
especial da Aquitania, cujas escholas trovadorescas podiam
influir simultaneamente em França, na Italia e em
Portugal e em Hespanha; o estudo ethnico da Aquitania
leva a descobrir que esse territorio foi primitivamente
occupado pela raça ainda agora representada pelo
Basco actual, isto é, pela raça turaniana. N'este mesmo
typo de cantos lyricos entram as pastoraes sicilianas;
e a Serranilha portugueza foi encontrar nas colonias
do Brazil analogias com os cantos dos tupis, modernamente
filiados no mesmo tronco turaniano. Eis determinada
uma origem ethnica commum para explicar as
analogias de uma vasta tradição lyrica popular. Pelas
modernas leituras dos documentos cuneiformes, têm-se
conhecido o eminente genio lyrico da raça turaniana
conservado na inspiração perpetuada nos hymnos accadicos.
Sobre este ponto são de grande auctoridade as
palavras de F. Lenormant, explicando alguns d'esses
hymnos: «Ao mesmo tempo elles nos revelam no povo
de Accad um verdadeiro impulso de inspiração poetica,
que exerceu uma acção decisiva sobre os começos da
poesia semitica e contribuiu para formar-lhe o seu genio.
Ha ali um lyrismo que attinge por vezes uma grande elevação,
e que desde já deve revindicar o seu logar na historia
litteraria do Oriente antigo. Além d'isso, a critica
deve tambem attender aos fragmentos de um lyrismo
mais familiar, popular e gnomico, que parece ter tido
entre o povo de Accad um grandissimo desenvolvimento,[xxvii]
e do qual os hierogrammatas do Assurbanipal formaram
collecções. São proverbios rythmados, provenientes de antigas
canções. Já se publicou a copia de um tijolo que
contém um grande numero d'elles, e M. Oppert já notou
a importancia d'esta collecção traduzindo alguns dos
seus proverbios... De mais, M. George Smith annunciou
ter descoberto nas suas excavações recentes na Assyria
uma outra collecção egual, que entregou ao Museu
Britannico. Ha d'este lado uma mina a explorar, e
que promette ser fecunda.
«Alguns proverbios não consistem em mais do que
uma simples phrase, extraída evidentemente de um canto
mais desenvolvido, e que a felicidade da expressão tornara
sem duvida proverbial, como esta sobre o calcadouro
da colheita:
—Diante dos bois, que caminham a passos apressados
sobre as espigas, ella calcou vivamente.
«Muitas vezes cada um d'elles forma um todo completo
no seu laconismo, uma pequena canção de alguns
versos,—se é que se permitte esta expressão quando
ainda é desconhecido o rythmo e o metro—que lembra
as velhas canções populares chinezas do Chi-King. Em
geral o pensamento é de uma lhaneza delicada, ás vezes
maliciosa e um pouco melancholica, com uma feição
de philosophia pratica. Tal é este pequeno trecho, que
exprime a inutilidade dos esforços excessivos:
—Eu fiz ir bem para o alto meus joelhos,
a meus pés não deixando repouso,
e, sem nunca ter descanço,
o meu destino afastou-se sempre...
[xxviii]
«Outros, finalmente, entre estes curtos trechos nos
conduzem ao meio da vida dos campos e dos seus usos;
são numerosos na collecção publicada, e attestam claramente
a sua origem popular. Eis aqui por exemplo uma
Canção com dois retornellos, que se devia cantar em alguma
festa campestre á qual se attribuia uma influencia
de bom augurio sobre a safra das messes:
O trigo que se alevanta direito
chegará ao cabo do seu bom tamanho:
o segredo
nós conhecemol-o.
O trigo da abundancia
chegará ao cabo do bom crescimento;
o segredo
É este rigorosamente o typo das Pastorellas provençaes,
italianas, gallezianas, portuguezas e hespanholas,
dois versos assonantados com um estribilho sempre repetido.
Vejamos um paradigma portuguez:
Vayamos, irmana, vayamos dormir
nas ribas do lago, hu eu andar vi
a las aves meu amigo.
Vayamos, irmana, vayamos folgar
nas ribas do lago, hu eu vi andar
a las aves meu amigo! etc.
[18]
O mesmo se repete nos cantos populares liturgicos[xxix]
da edade media, derivados de uma corrente desconhecida
da tradição popular. Lenormant achou grandes analogias
entre a forma d'essas Pastorellas accadicas e as
cantigas chinezas da collecção Chi-King; de facto o turaniano
é uma raça mixta da branca e amarella, e a
concepção chineza naturalista do Thian é a mesma dos
espiritos elementares da Chaldêa, o espirito do céo Zi-Anna,
dos turanianos. Por ultimo o typo dos Proverbios
de Salomão é tambem fixado por Lenormant nos velhos
hymnos accadicos. Todos estes factos estão em harmonia
com as recentes descobertas da historia, que tanto
as civilisações semiticas como aryanas se fundaram sobre
os progressos já realisados pela mais poderosa das
raças ante-historicas, a turaniana.
Sob este criterio novo, as raças da America apparecem
como um grande ramo turaniano, cujas linguas são
agglutinativas, cujas crenças são um fetichismo atrazado:
«São mui dados a feitiços, e o feiticeiro que ha em
cada aldeia é o seu oraculo[19].» D'Assier recorda um facto
importante: «lembram o typo mongolico, a ponto de
um d'elles... criado de Augusto Saint Hilaire, vendo um
dia uns chinezes n'uma rua do Rio de Janeiro, correu
para elles chamando-lhes tios[20].» Em Cuyabá e no Paraguay
existem aterros artificiaes em que se levantam
edificações, como costumavam fazer os turanianos de Babylonia
e da Assyria; a sua chronologia baseava-se sobre
o anno lunar[21] como no primitivo systema chronologico
dos turanianos do Egypto; e entravam nas batalhas,
ululando, tal como descreve Silio Italico, das tribus
ibericas[22]. Finalmente, as analogias das linguas americanas[xxx]
com o sansckrito, explicam-se por um grande
fundo de vocabulos turanianos das raças vencidas (sudras,
kadraveas) sobre que se constituiu a civilisação
aryana. Assim os factos são trazidos ás suas causas naturaes.
No livro recente l'Origine turanienne des Américains
Tupis-Caribes, já se procura verificar esta grande these
ethnographica, que liga as raças das duas Americas á
raça mestiça que prestou os primeiros elementos ás civilisações
do Egypto e da Chaldêa. Alguns dos caracteres
do tupi coincídem com o genio turaniano, como o gosto
da poesia e da musica; no manuscripto do Roteiro do
Brazil, da Bibliotheca de Paris, o tamoyo é descripto
como grande musico e bailador; e os tupinambás eram
os rhapsodos, improvisando Areytos segundo esse genio
epico que na Chaldêa inventou o poema de Isdubar, no
Mexico o Popol-Vuh, e na Finlandia o Kalevala. Os
seus cantos lyricos, entoados ao som da maraca e do
tamboril constavam de refrens rimando com o ultimo
verso da estrophe, e podendo ser considerados como voltas
sobre motes improvisados; esta caracteristica, ajudando
a facilidade da improvisação, os dialogos ajudando
a monotonia da melopêa, tudo leva a presentir em
germen o mesmo typo poetico que na Europa deu a Ballada,
a Pastorella e a Serranilha; d'aqui a espontaneidade
da confusão da poesia dos dois povos, e o motivo
da persistencia da Serranilha portugueza na Modinha
brazileira e no seu lyrismo moderno.
Os cantos funebres conservam a mesma designação
tanto entre os Tupis como no Béarn; lá são os Areytos,
e aqui os Aurusta. Os cantos funebres são communs a todos
os povos meridionaes em que existe elemento turaniano;
taes são os Lamenti ou Triboli em Napoles, os Attitidos na
Sardenha, os Voceri, na Corsega, na Bretanha, os Aurost[xxxi]
no Béarn, e as Endexas e Clamores em Portugal e Hespanha.
Gonzalo Fernandes de Oviedo, na General y Natural
Historia de Indias, emprega a designação de Areyto,
como o romance narrativo hespanhol:[23] «ni los niños é
viejos dejarán de cantar semejantes areytos...»
E o auctor do livro Origine turanienne des Américains,
tambem a emprega no sentido epico: «La litterature
des Tupis, comme celle des Caribes, ne se trouvait
que dans les Areytos, ou traditions des hauts faits de
leurs devanciers, qu'ils chantaient en dansant, au son
d'instruments.»[24] Na Europa, como vimos, persistiu a
designação no Aurust, do Béarn, e, segundo a phrase de
Oviedo, parece ter sido empregada em Hespanha, como a
Aravia o foi em Portugal[25]. As lamentações dos mortos
nas Vascongadas chamam-se Arirrajo, forma proxima do
Areyto e do Aurust[26].
Do canto funebre dos bearnezes, os Aurusta, fala o
collector das Poésies bearnaises, (p. VII, ed. Pau, 1852):
«nos funeraes, quando a familia do defunto, para celebrar
sua memoria, não pode senão achar lagrimas, duas
mulheres, poetisas de profissão, semelhantes ás Voceratrices
da Corsega, improvisam coplas cantadas sobre um
tom lamentavel: uma lembra as boas acções do defunto,[xxxii]
e a outra as más, imagens d'estes dous genios do bem e
do mal que parecem conduzir o homem na vida; este
uso que se encontra entre outros povos, mas que em nenhum
apresenta um caracter tão eminentemente religioso
e moral, tem o nome de Aurusta[27].» Em uma edição anterior
d'este livro, com o titulo de Chansons et Airs populaires
du Béarn, colligidas por Frederic Rivares, se
define precisamente esse genero: «Os funeraes apresentam
uma particularidade notavel. Logo que o doente
exhala o ultimo suspiro, o seu corpo é estendido no chão,
no meio da casa, e rodeado de uma multidão de mulheres
que oram e velam lançando a espaços gritos lamentosos
e medonhos gemidos. A mulher do defunto e os
parentes mais proximos estão á frente das carpideiras e
improvisam cantos em que são celebradas as suas virtudes.
Este signal de dôr e affeição acompanham o morto
até á ultima morada, e a occasíão em que a terra vae
cobrir os caros despojos é indicada por uma explosão
de gritos e de lamentações.
«Portanto o Aurust (é assim que se chama este
canto) contém outras vezes mais do que louvores; é antes
um julgamento do que uma oração funebre, e mais
do que uma vez os parentes e o clero foram escandalisados
por improvisos mais proprios para denegrir o morto
e mesmo os vivos do que a excitar as magoas da sua
perda[28].»
Um canto lyrico do bearnez Navarrot Lous adious
de la ballé d'Aspe, refere-se a este costume do seu paiz:
Qué dic, praübeit, l'amne qué s'em desligue
Daüme abadesse a biénét m'
aurousta[29]!
[xxxiii]
Traduzido em portuguez, corresponde litteralmente:
Que digo, pobres, a alma que se me desliga,
Dona abadessa vinde-me aurustar (carpir).
Na epoca de D. João I ainda era costume em Portugal
bradar sobre finado, e existia o costume das carpideiras,
como entre os turanianos da Caria.
Na moderna nacionalidade brazileira, a lingua tambem
se vae alterando, constituindo um verdadeiro dialecto
do portuguez; cada um dos elementos da mestiçagem
contribue com as suas alterações especiaes[30]. O elemento
colonial modifica a accentuação phonetica, de um
modo mais exagerado do que nas ilhas dos Açores; o
som do s, como o ch gallego, torna-se sibilante e mavioso
sobretudo nos pluraes; as construcções grammaticaes
distinguem o se condicional do reflexivo si, e os pronomes
precedem os verbos, como: Me disse, em vez de
disse-me. No vocabulario, o portuguez conserva os seus
provincianismos actuaes, e os archaismos do tempo da
colonisação. Da parte do elemento ante-historico, uma
certa indolencia na pronuncia exerce a grande lei da
queda das consoantes mediaes e vogaes mudas; assim
senhor é siô; senhora, sinhá; os finaes das palavras vão se
contrahindo, perdendo os seus suffixos caracteristicos,
como pió em vez de peor, casá, em vez de casar. Na
parte do vocabulario é que se nota mais profundamente[xxxiv]
a acção do elemento ante-historico, pela profusão innumera
de palavras de lingua tupi introduzidas na linguagem
familiar de todo o imperio[31]. Algumas d'essas palavras
já vão penetrando na lingua portugueza continental
pelo regresso dos colonos ricos[32], assim como nas guerras
de Flandres os soldados portuguezes trouxeram esses
vocabulos que se chamaram frandunagem. A lucta
instinctiva para manter a pureza da lingua portugueza
está ligada ao facto politico da preponderancia do sangue
portuguez na constituição da nova nacionalidade;
assim na provincia onde o portuguez é mais archaico,
em Minas Geraes, o elemento portuguez é puro e continúa
a ser catholico como no seculo XVI, e conservador
timorato. Nas provincias onde prevalece o cruzamento
das raças selvagens, existe o espirito revolucionario,
como em Sam Paulo, e o odio ao portuguez puro como
em Pernambuco. Aqui estão as condições necessarias
para um permanente estimulo contra a acção enervante
do meio climatologico, um movel de energia scientifica
e industrial; a capital do Rio de Janeiro pelo seu inextricavel
cosmopolitismo está destinada a realisar o accordo
de todos estes elementos para a obra da autonomia
nacional, cujo sentimento, transparecendo já na litteratura,[xxxv]
revela que o destino d'ella é identificar todas as
divergencias n'este mesmo sentimento.
O moderno lyrismo brazileiro representa nas suas
fórmas materiaes ou estrophicas a velha tradição das
Serranilhas portuguezas tão bem assimiladas pelo turaniano
da America; a ardencia explosiva da paixão amorosa,
a lubricidade das imagens, a seducção voluptuosa
do pensamento, accusam o sangue do mestiço, devorado
pelo seu desejo, como em Alvares de Azevedo ou Casimiro
de Abreu. A creação definitiva da litteratura brazileira
consiste em tornar estes factos conscientes.
III
Entre os differentes dialectos romanicos da peninsula
nenhum recebeu mais prematuramente a forma escripta
do que o gallego, pelo qual se introduziu a poesia provençal
nas côrtes de Portugal e de Hespanha[33]; por circumstancias
politicas nenhum perdeu tão cedo a vida litteraria,
ficando apenas fallado por um povo desde muito
tempo annullado pela absorpção castelhana. Ao formarem-se
as primeiras litteraturas da peninsula, o gallego
foi a linguagem em que se poetava na côrte de Castella,
como se vê pelas Cantigas de Affonso o Sabio, e na
côrte de Portugal, como está bem patente nas mil duzentas
e cinco canções do Cancioneiro da Vaticana, e
nos centenares de canções da collecção da Ajuda; por
esse dialecto hoje desprezado, admittido apenas para
uso das relações intimas das necessidades infantis, é[xxxvi]
que se podem explicar certas formas litterarias, como
as Serranilhas, e certos phenomenos linguisticos do portuguez
e castelhano como o che por te e por pl. Effectivamente,
a Galliza deve ser considerada como um
fragmento de Portugal, que ficou fóra do progresso de
nacionalidade. Apesar de todos os esforços da desmembração
politica, a Galliza não deixou de influir nas formas
da sociedade e da litteratura portugueza: nas luctas
de D. Affonso II, refugiaram-se na Galliza bastantes
trovadores portuguezes, como João Soares de Paiva, e
nas luctas de D. Fernando, refugiaram-se em Portugal
um grande numero de familias nobres da Galliza, como
os Camões, os Mirandas, os Caminhas, d'onde provieram
os grandes e os maiores escriptores da esplendida epoca
dos Quinhentistas.
Nas epocas em que a litteratura portugueza fixava
as formas da lingua, ainda bastantes vestigios do gallego
transparecem inconscientemente na linguagem dos escriptores,
quando se aproximam da dicção popular. No
Cancioneiro de Resende, em um Vylancete do Conde
de Vimioso, se acha o galleguismo:
querend' esquexer-vos (fl. 85, col. 6.)
Nas comedias de Jorge Ferreira, cheias de locuções
populares, abundam estes factos: «pagam-se de bem
che quero;» (Eufros., 259) «fallou o boi e dixo bee;»
(ib. 279) na comedia Aulegraphia: «Sempre fostes
d'esses dichos.» (fl. 37 v.) «o som de bem che farei e
nunca lhe fazem.» (fl. 20); «minha madrinha é azougue,
e joga o dou-che-lo com quantos aqui ancoram.»
(fl. 59, v.) «Andaes vós a bons dichos de philosophos.»
(fl. 76. v.)
Em Sá de Miranda, nas Eclogas, sobretudo quando[xxxvii]
imita a linguagem popular, pollulam os galleguismos:
Onde quer que cho demo jaz (Ed. 1804, p. 220.)
Não sei quem che por famoso (Id. 291.)
Antre nós che era outro tal. (Id. 223.)
Disse então. E assi che vae? (Id. 232, passim.)
Dos Autos de Gil Vicente tiraremos os bastantes
para se reconhecer este fundo da lingua:
Cha, cha, cha, raivaram ellas (Ob. t. I, p. 131.)
Que a ninguem tanto mal quige (Id. p. 135.)
Se xe m'eu isso soubera (Ib. p. 136.)
Que te dixe, mana emfim? (Ib. p. 142.)
Que homem ha hi-de pucha (Ib. p. 172.)
Isto hi xiquer irá (Ib. p. 247.)
A Deos douche alma dizer. (Ib. p. 261.)
Assi xe m'o faço eu. (III, 162.)
Até em Camões ainda persistem as formas gallegas,
como na cantiga:
Hei me de embarcar n'um barco;
e nos Lusiadas na expletiva a, tão peculiar do dialecto
em que o grande epico chegou a escrever dois sonetos.
Bem cedo as relações ethnicas de Portugal com a
Galliza foram desconhecidas, e este facto é uma consequencia
do desprezo que os escriptores tiveram pela tradição
nacional. O nome de gallego tornou-se desprezivel
em Portugal, e os grandes poetas oriundos de familias
gallegas usaram-no n'esse sentido. Assim diz Sá
de Miranda em uma Serranilha:
Sola me dexaste
En aquel yermo
Villano, malo, gallego. (Ob., 1804, p. 404.)
[xxxviii]
E o proprio Camões, nos Lusiadas, deixou essa
phrase injusta: «Oh sórdido gallego...» ao passo que o
povo portuguez derivou da sua indole pacifica o velho
amphigurí:
Duzentos gallegos
não fazem um homem...
As povoações do Alemtejo chamam gallegos a todos os
moradores do Ribatejo, pela transmissão inconsciente
de uma tradição perdida. Isto bastará para explicar o
assombro que deve causar aos conterraneos o vêrem a
poesia moderna gallega occupando um logar devido ao
lado da poesia portugueza, como uma das suas formas
archaicas; seguimos o rigoroso criterio scientifico, deixando
as preoccupações vulgares.
Pelo estudo da poesia gallega, é que se podem comprehender
as formas do lyrismo portuguez; e a desmembração
d'esse territorio, que ethnicamente nos pertence e
tem permanecido para nós extranho durante tantos seculos,
é que prova a falta absoluta de plano na nossa vida
politica. A verdadeira origem da tradição lyrica da Galliza
está ligada á sua constituição ethnica; esse lyrismo
provém da eschola da Aquitania, onde a raça pertencia,
segundo Strabão, mais ao typo iberico do que ao
gaulez. Segundo as modernas descobertas da Antropologia
e da Linguistica sabe-se que o Ibero, ou o basco
actual, é de raça turaniana. Quando Silio Italico, escrevendo
no seculo I, faz no poema historico da Segunda
guerra punica a lista dos diversos povos da Peninsula
que acompanharam Anibal na expedição contra a Italia,
diz da Galliza:
Fibrarum et pennœ, divinarumque sagacem,
Flammarum, misit dives Gallaecia pubem
Barbara nunc patriis ululantem carmina linguis,
[xxxix]
Nunc pedis alterno percussa verbere terra
Ad numerum resonas gaudentem plaudere cetras,
Haec requies, ludusque viris, ea sacra voluptas.
(Lib. III, V. 345.)
Esta descripção coincíde com muitos caracteristicos
da raça turaniana. Acclarando as interpretações de Sarmiento,
poremos em relevo este sentido novo. Nas Memorias
para la Historia de la poesia y poetas españoles, diz
este critico patricio de Feijó: «Primeiramente llama a
este pais de Gallicia rico (dives) acaso por los varios y
preciosos metales que de alli salian para los romanos,
y aun hoy se benefician.» De facto sabe-se hoje que a
industria metalurgica é de origem turaniana, e que os
vestigios d'esta raça se encontram sempre junto dos
grandes jazigos minereos. Diz mais Sarmiento: «supone
que tenian idioma proprio y aun idiomas diferentes
(propris linguiis). Esto contra los que imaginan un solo
idioma nacional en toda España en tiempo de los carthaginezes.»
A fusão das tribus turanianas com os celtas
lygios (tal como se deu na Irlanda) formando os celtiberos,
fazia-se notar aos romanos pelos seus differentes,
dialectos. Continúa Sarmiento: «supone los gallegos
devotos y religiosos, pues los supone con sacrificios y
demas diestros y sagaces en consultar á sus dioses, y
al extispicio de sus victimas, ya en el auspicio de las
aves, ya finalmente en la observancia, aun que vana,
de los movimientos, color, volumen, voracidad y direcion
de las llamas de sus holocaustos.» As formas magicas
da religião accadica, o culto do fogo, e os nomes de divindades
naturalistas que se acham nas Inscripcões colligidas
por Hubner, dão a prova demonstrada d'essa
raça turaniana, que desceu do norte da Europa. Finalmente
Sarmiento: «dice que usaban en sus diversiones,
juegos y fiestas sagradas de hymnos, canto, musica y[xl]
bailes: ulutantem... carmina... alterno verbere pedis...
ad numerum resonas cetras[34].»
Esta grande abundancia de cantos e hymnos sagrados,
tal como se descobriram nos livros accádicos, levam-nos
a fixar que sob a forma celtica, acobertada com
o nome de Galliza, existe uma camada social turaniana,
da antiga diffusão que occupava a Aquitania e a Sicilia.
É justamente n'estes pontos que subsistem as fórmas lyricas
analogas ás gallegas, e portanto nenhum conhecimento
seguro se póde ter do genio d'este povo sem tirar
a luz da sua origem turaniana, tão persistente na
indole e fórmas da sua civilisação. Os instrumentos musicos
a que cantavam eram, como diz Silio Italico, ritu
moris Iberi... barbara cetra, o que confirma, que no primeiro
seculo christão ainda era sensivel esse caracter
turaniano. A acção exercida pelo elemento celtico, romano,
e mais tarde suévico sobre a raça turaniana pelo
menos até ao Mondego, é complexissima: o celta desenvolveu
a tendencia poetica amorosa, fazendo esquecer
pelas prescripções druidicas os cantos religiosos; o romano
influiu na creação precóce de um dialecto e na industria
agricola; a estabilidade do suevo, tornado pacifico
pelas suas grandes derrotas, manteve essa passividade
que o gallego conserva na constituição das modernas
nacionalidades da Peninsula.
De todas estas camadas ethnicas se conservam vestigios
poeticos, e com assombro o dizemos, na tradição
actual; são de origem turaniana os cantos de Alalála;
são celticos os Cantares guayados; são romanos os cantos
de Ledino, são suevicas ou germanicas as Chacones. Falaremos
d'aquelles cantos tradicionaes que explicam o
lyrismo moderno.
[xli]
O Alalála é a neuma patriotica dos cantos gallegos,
que os romanos julgavam ser o ulular; é ella que hallucina
o que está ausente da sua patria, e que o cura da
saudade nostalgica, chamada em Hespanha morrinha
gallega. Um proverbio vasconço diz: Bethico leloa, isto
é, «o eterno lelo,» ou—antigo e persistente como este
estribilho nacional, que Silio Italico tomou como caracteristico.
Na poesia euskariana conserva-se este vestigio
cantabrico, que pela sua aproximação dos costumes irlandezes,
se vê que é o estribilho de uma canção funebre
ou areyto:
Lelo, il lelo
lelo, il lelo
leloa zarac (çaray?)
il leloa.
Outras canções vasconças conservam o mesmo estribilho,
tantas vezes considerado como um individuo:
Eta lelori bay lelo...
Etoy
lelori bay
lelo,
leloa çaray
leloa[35].
Na poesia popular portugueza ainda se encontra em
Coimbra e Açores o estribilho:
Lari lole
Como vae airosa,
Com a mão na transa,
Tudo isto se liga a um veio perdido da poesia primitiva
da grande raça turaniana, como se confirma por[xlii]
um canto funebre da Irlanda sempre acompanhado como
o estribilho ullaloo[37]. A demonstração torna-se mais rigorosa
desde que este mesmo estribilho apparece entre
raças isoladas, de origem turanica.
Diz o Abbade Bertrand: «Os Chulalanos nas suas
festas cantavam, dansando em volta de Teocalli (casa
de Deus) um canto que começava pelas palavras tulanian,
hululaez, que não pertence a nenhuma lingua actual
do Mexico... O grito de alegria dos Kaulchadales, alkalalai,
lembra tambem a mesma fórmula pelas ultimas
syllabas...» Os saxões caminhavam para a guerra ao
grito de alelá, grito que é ainda o haleli das caçadas.
Em uma canção portugueza do Cancioneiro da Vaticana,
se repete Edoy (Etoy) lelia, leli, leli. Como se explica a
persistencia d'este refrem primitivo, ao passo que se foi
perdendo o genero poetico? Sabe-se que o Arabe trouxe
para a peninsula um grande numero de superstições turanianas,
e assim fez reviver formas quasi extinctas da
civilisação que trazia; a Serranilha é de designação
arabe, como os Fados, (Huda) e um dos sete atributos
que os derviches repetiam frequentes vezes ao dia era:
La ilahi ill'Allah (não ha deus senão Allah), que parece
quasi o estribilho gallego moderno: Alalála, lála la.
No grande Cancioneiro portuguez da Bibliotheca do
Vaticano, ainda se encontra um vestigio das antigas
cantigas de Alalála; pertence essa composição a Pedro
Anes Solaz, e é do mais alto valor archeologico:
Eu, velida, dormia,
le-li-a, d'outra!
[xliii]
E meu amigo venia,
edoy le-li-a d'outra.
Nen dormia e cuydava
lelia d'outra!
E meu amigo chegava
edoy lelia d'outra!
O meu amigo venia
lelia d'outra!
E d'amor tambem dizia
edoy lelia d'outra.
O meu amigo chegava
lelia d'outra
E d'amor tambem cantava
edoy lelia d'outra!
Muyto desej'ey, eu amigo,
lelia d'outra,
Que vos tevesse comigo
edoy lelia d'outra!
Leli, leli, por deus lely
lelia d'outra!
Bem sey quem non diz leli
edoy lelia d'outra.
Bem sey eu quem diz lelya
lelia d'outra!
Demo xe quem non diz lelia
[xliv]
As varias formas poeticas, que se encontram na Europa,
o liedle do dialecto suisso, o lied allemão, o liod irlandez,
leod anglo-saxão, o leudus da baixa latinidade,
o leoi irlandez, o lai bretão, correspondendo ao genero do
lelo basco e Alalála galleziano, e lelia portuguez, accusam
uma origem commum, que se pode explicar pela
tradição lyrica da raça turaniana na Europa. O sentido
da palavra lai, que ficou nas litteraturas como caracteristico
de um genero lyrico, é especialmente musical.
Uma outra neuma caracteristica da Peninsula, mas já
peculiar da raça celtica é o Guay, que chegou a constituir
um genero dos cantares guayados, do que ainda falla
Gil Vicente. Os romances peninsulares assim como começavam
«Helo, helo, por do viene» tambem tem outro
principio, como «Guay Valencia, Guay Valencia.» É aquelle
grito celtico Woe! Woe! que ainda hoje se conserva
na Escossia como uma vehemente expressão natural. A
gaita de folles da Escossia é similhante á gaita gallega,
em tempo admtida no exercito hespanhol como meio salutar
na nostalgia dos recrutas da Galliza. Como o gaëls
das montanhas da Escocia, que, longe da patria, na America
do norte ou nas florestas do Canadá, falla o inglez,
mas sonha e sente no dialecto gaëlico, é assim o gallego
entregue aos trabalhos braçaes longe da sua patria, ou
nas guarnições militares; as cantigas do Alalála, a Muiñera
trazem-lhe á lembrança o ár das suas montanhas:
Ayriños de miña terra, que elles aspiram n'esse hausto
de saudade, Guay!
Vejamos como por seu termo a influencia do genio
celtico faz prevalecer esse profundo caracter de unidade
tradicional do lyrismo moderno. Na civilisação da Peninsula,
a Galliza occupa uma posição excepcional como
a Provença para com a França; a sua longa tranquilidade
fel-a adoptar o gosto lyrico da Eschola da Aquitania;[xlv]
e assim como a poesia provençal foi o desenvolvimento
litterario de cantos tradicionaes do meio dia da França
(celto-romana) como ainda se descobre por uma rubrica
de uma canção do conde Poitiers, na Galliza sugere as
formas novas e o estylo lyrico popular aos trovadores
portuguezes e castelhanos. Não basta sómente Strabão
considerar os Aquitanios mais parecidos com os Iberos
(da fusão celtibera) do que com os gaulezes (reconhecidos
como raça scythica[39]) ha um fundo commum de poesia
lyrica pertencente á Italia, á Provença, á Galliza, e a
Portugal, que comprova a existencia de um mesmo elemento
ethnico n'estes paizes. Onde povos celticos se cruzaram
com iberos, ou tribus turanianas, persistiu a primitiva
tradição lyrica. A publicação moderna de algumas
Pastorellas provençaes levou a presentir pela comparação
essa unidade. Os restos de Dizeres e Serranilhas, que Gil
Vicente intercala nos seus autos, são vestigios de canções
gallegas do seculo XIV, tal como se lêem no Cancioneiro
portuguez da Vaticana[40].
Uma Pastorella de Guido Cavalcanti traz estes versos
quasi identicos a uma das serranilhas de Gil Vicente:
E domandai si avesse compagnia?
Ed ella me rispose dolcemente
Che sola, sola per lo bosco gia
[41].
E em Gil Vicente:
Cheguei-me per'ella com gram cortezia,
Disse lhe:—Senhora, quereis companhia?
Disse-me: Escudeiro, segui vossa via
[42].
[xlvi]
Em um poeta do Cancioneiro geral, achamos um vilancente
immensamente parecido com uma canção bearneza
e com outra do sul da Franca; eis o vilancente de
Francisco de Sousa:
Abaix'esta serra
verey minha terra!
Oh montes erguidos,
Deixae-vos caír,
Deixae-vos sumir
E ser destroydos!
Poys males sentidos
Me dam tanta guerra
Na canção bearneza de Gastão Phebus, existem estes
mesmos elementos tradicionaes:
Aquères mountines
Qui ta haütes soun,
M'empèchen de béde
Mas amous oun soun.
Si subi las béde
Ou las rancountrá,
Passéri l'ayguete
Em um canto provençal moderno de Jasmim, ao referir-se
aos refrens que ressôam pelos áres, intercala
este vestigio tradicional das antigas pastorellas:
[xlvii]
Aquellos muntaynos
Que tam hautos sun,
M'empachon de beyre
Mas amus un sun;
Baycha-bus, muntaynos,
Planos, hausabús,
Perque posqui beyre
A persistencia da tradição lyrica na Galliza, é que
a tornou o centro de irradiação litteraria nas côrtes peninsulares
onde o seu dialecto era empregado na linguagem
poetica, como o provençal no norte da França. A
conquista romana veiu muito cedo influir na constituição
do dialecto gallego, sem alterar a tradição poetica;
influiu bastante na forma da industria agricola. Diz
Sarmiento: «Galicia, mi patria, es la Provincia que mas
voces latinas conserva, y en especial en quanto toca á
agricultura. Digolo, porque lei por curiosidad de verbo
ad verbum, á Caton, Varron, Columella y Palladio[46].»
A Galliza foi o primeiro territorio da Peninsula que sofreu
e ficou submettido á invasão dos barbaros do norte;
os Suevos, que se apoderaram d'ella eram um dos ramos
mais civilisados das raças germanicas, e chegaram a
estender o seu dominio até ao Tejo. A sua derrota, por
Theodorico, na batalha de Urbius, restringiu-os ao territorio
gallaico, e a sua adopção do catholicismo, fez
com que o Suevo perdesse os seus mythos odinicos, e por
tanto não pode elaborar os cantos epicos, que teriam sido
um estimulo de resistencia e de cohesão nacional. Por
causa do catholicismo entraram em conflicto com os Vandalos,[xlviii]
que seguiam as doutrinas de Ario, e pelo catholicismo
veiu a prevalecer a erudição morta das escholas
latinas, dando ao novo dialecto uma forma bastante artificial.
Uma vez privado das antigas ambições de conquista
e da actividade das armas, o Suevo ficou sedentario,
e pelas condições do territorio em que estava limitado,
entregou-se ao trabalho da agricultura; o lyrismo
desenvolveu-se sob as emoções da vida rural, mas a
emphyteuse romana, e os direitos de mão-morta tornaram
a lavoura um trabalho de servos e a Galliza um
paiz de desgraçados. A influencia da lingua dos suevos
sobre o gallego actual fazendo com que tivesse uma poesia
muito mais cedo do que as outras linguas da Peninsula,
é assim caracterisada por Helfrich e Declermont:
«Comparando a vocalisação do dialecto suabio actual á
do portuguez, julga-se ter achado a solução do problema.
Foram os Suevos, que, primeiro do que todas as outras
tribus germanicas se estabeleceram na Galliza, e
admittindo que a lingua allemã recebesse na bocca dos
Suevos, desde a sua primeira apparição historica, uma
vocalisação distincta da do gothico, não custará a attribuir
a intonação nasal, particular ao dialecto suabio, e
que se encontra de uma maneira surprehendente no portuguez,
á influencia da lingua dos Suevos sobre o novo-latino
que acabava de se formar unicamente na Galliza[47].»
E Sarmiento, tão investigador das antiguidades
da Galiza, affirma: «Quando Portugal estaba em posesion
de los Moros, se hablava ya en Galicia el idioma
vulgar, aunque dudo que se escribiesse; como ni aun hoy
se escribe. Pero esto no impide que se cantasse, e que
en el se hiciesen varias coplas, que despues se pasaran
al papel...» (op. cit., p. 200). D'estes cantos populares[xlix]
existem preciosos especimens no Cancioneiro da Vaticana,
mas sobretudo existe a canção épica com que o genio
do Suevo reagiu contra a invasão arabe da peninsula;
tal é a tradição de Peito Burdello, gallega na forma,
conservada em Portugal:
No figueiral figueiredo
A no figueiral entrei;
Seis nenas encontrara
Seis
nenas encontrei...
[48]
D'outras formas epicas conserva-se apenas a designação
de Chacone, tambem commum a Portugal, Hespanha,
França e Italia, como vestigio do elemento germanico
(wisigothico, franko e lombardo). O mais antigo romance
hespanhol hoje conhecido, tem a fórma gallega,
e foi por nós restituido sobre o apographo da Vaticana[49].
Uma das causas porque a lingua gallega se tornou o
dialecto particular da poesia lyrica tanto de Portugal
como de Castella alem da communicação primeira com
os trovadores da Aquitania, está no estado de desenvolvimento
politico d'estes dois paizes. Castella, não tinha
ainda dominado as differentes provincias de Hespanha,
nem garantido contra ellas a sua propria independencia;
a unidade soberana das Hespanhas era disputada pelo
Aragão e por Leão. Só no meiado do seculo XV, sob
Fernando e Izabel é que essa unidade politica se fez; e
é a datar d'esse tempo que a lingua castelhana toma
desenvolvimento, reduzindo as outras linguas a dialectos
restrictos e particulares; era no principio do seculo XV
que o marquez de Santillana fallava do uso gallego na
poesia castelhana não só referindo-se ás poesias de Affonso[l]
o Sabio, educado na Galliza, mas a essa especie
de renascença do genio poetico da Galliza em Villasandino,
em Macias e Juan Rodrigues del Padron, seus contemporaneos.
A influencia da lingua gallega cessa no
momento em que o castelhano, por effeito da unidade
politica, se constitue em disciplina grammatical e em
lingua official. N'este mesmo periodo do seculo XV já a
lingua portugueza estava mais contraída do que a castelhana,
já distinguia a sua epoca archaica, porque desde
a constituição da nacionalidade portugueza ou melhor,
desde que recebeu forma escripta, não teve nunca a lutar
com as aberrações dialectaes, e por isso o seu desenvolvimento
em vez de dispender-se em unificação
deu-se no sentido do neologismo e da disciplina.
Mas o uso da lingua gallega em Portugal, sobretudo
na poesia, proveiu, em parte, do elemento aristocratico,
e em parte pela immobilidade d'esse dialecto, que era
uma como especie de apoio no meio das perturbações que
as colonias francezas e inglezas, e as povoações mosarabes
e mudgares conquistadas podiam produzir na nova
sociedade. A separação do portuguez do gallego consistiu
na immobilidade do mesmo dialecto em um ponto, e
do seu progresso successivo e litterario em outro.
Os limites da Galliza, na epoca da constituição da
nacionalidade portugueza, demonstram materialmente a
relação em que estavamos para recebermos e imitarmos
essa poesia popular e esse novo dialecto. Diz Herculano:
«No seculo XI a extrema fronteira da Galliza ao
occidente, parece ter-se dilatado ao sul do Douro, nas
proximidades da sua foz, pela orla do mar até alem do
Vouga; mas seguindo ao nascente o curso d'aquelle rio,
os sarracenos estavam de posse dos castellos de Lamego,
Tarouca, S. Martinho de Mouros, etc.[50]» No antigo[li]
Cancioneiro da Ajuda, encontra-se a cada verso o xe,
por te:
Fazer eu quanto x'el quer fazer. (Canc. n.º 55.)
Mais pois vejo que x'el quer assi
Poil-o el faz xe me mal fazer. (N.º 158.)
Estas fórmas explicam-nos a tendencia da lingua
portugueza em converter a combinação pl em ch, como
em plus, chus, plantar, chantar, planto, chanto, plano,
chão, platus, chato, que na corrente erudita se conservam
na sua pureza latina, como plantar, pranto, plano,
prato. O Cancioneiro da Vaticana conserva entre os
trovadores portuguezes muitos poetas gallegos taes como
Affonso Gomes, jograr de Sarria, Fernam Gonçalves
de Senabria, João Ayras, burquez de Santiago,
João Romeu, de Lugo, João Soares de Paiva, que foi
morrer á Galliza por amores de uma infanta, João Vasques,
de Talavera, Martim de Pedrozelos, João Nunes
Camanes, Vasco Fernandes de Praga e outros muitos.
A Galliza, nas luctas da côrte portugueza no tempo de
D. Affonso II, D. Affonso III e D. Fernando I, foi uma
especie de paiz neutro para onde se acolhiam os fidalgos
portuguezes; os fidalgos gallegos recebiam em Portugal
o melhor acolhimento e não receiaram seguir o
partido de D. Fernando, tendo por isso de se refugiarem
na sua côrte depois de vencidos. Aquelles poetas
quinhentistas portuguezes, Sá de Miranda e Camões,
que ligaram ao nome de gallego um sentido de desprezo,
eram oriundos d'esta emigração politica do fim do seculo
XIV; e foram elles que acharam a feição nacional
da nossa poesia e nos libertaram da subserviencia litteraria
de Castella, em que estavamos, como se vê pelo
Cancioneiro geral, de Resende.
[lii]
Era preciso que a tradição poetica popular da Galliza
fosse profunda para que, ainda depois de Affonso o
Sabio, quando já a Galliza não tinha vida politica, produzisse
poetas lyricos de tal forma inspirados, como Villassandino,
Macias, Juan Rodrigues del Padron, Jerena
e Arcediago do Toro, para que no fim do seculo XIV
luctassem contra a influencia do novo lyrismo da Italia,
que entrava por Sevilha. Nas litteraturas a fecundidade
e originalidade individual correspondem sempre á
existencia de um vigoroso elemento de tradição popular;
esta grande lei da critica moderna verifica-se na Galliza.
No meado do seculo XV escrevia o Marquez de
Santillana ao Condestavel de Portugal: «E depois acharam
esta Arte, que Maior se chama, e Arte Commum,
creio, nos reinos de Galliza e Portugal, onde não ha
que duvidar, que o exercicio d'estas sciencias mais do
que em nenhumas outras regiões e provincias de Hespanha
se costuma; em tanto gráo, que não ha muito tempo,
quaesquer Dizidores ou Trovadores d'estas partes
ou fossem Castelhanos, Andaluzes ou da Extremadura
todas as suas obras compunham em lingua gallega ou
portugueza. E ainda é certo que recebemos os nomes
de arte, como: maestria mayor, e menor, encadenados,
lexapren e mansobre[51].»
D'este trecho, se infere: 1.º Existencia da Arte
commum, usada pelos Dizidores, que compunham em
maestria menor essas obras que o Marquez no § XV chama
«cantigas, Serranas e Dizeres portuguezes, e gallegos.»
2.º Que a par d'esta fonte popular coexistia a Arte
Mayor, usada pelos Trovadores, que escreviam em metro
limosino ou endecassyllabo, (eschola da Aquitania)
sendo as suas composições mais artificiaes, como os encadenados,
lexapren e mansobre. 3.º Que o dialecto gallego[liii]
era usado na poesia lyrica tanto em Portugal, como
em Castella, na Extremadura e Andaluzia. No seculo
passado teve o erudito Sarmiento uma polemica com
Don Thomaz Sanchez, tomando no sentido mais absoluto
as palavras do Marquez de Santillana: «Yo como
interessado en esta conclusion, por ser gallego, quisiera
tener presentes los fundamentos que tuvo el Marquez de
Santillana; pero en ningun Autor de los que he visto,
se halla palabra que pueda servir de alguna luz[52].» No
tempo de Sarmiento já eram estudadas as poesias de
Affonso o Sabio escriptas em dialecto gallego, conforme
o reconheciam Diego Ortiz de Zuniga e Papebroquio e
hoje todos os philologos. Sarmiento depois de reconhecer
tambem a lingua em que escreveram Macias e Padron,
conclue: «De este modo se entiende y se confirma
lo que escribió el Marquez de Santillana sobre el
idioma de los antiguos Trobadores castellanos, andaluces
y estremenhos.» (p. 200.) Quando o Marquez de
Santillana assignalava esta influencia da Galliza, escrevia
«não ha muito tempo»; este limite da influencia gallega
assigna-se em Hespanha com a introducção da imitação
italiana em Castella por Micer Imperial, e com relação
a nós os portuguezes com a imitação de João de Mena
começada pelo infante D. Pedro. O ultimo vestigio d'esta
unidade poetica da Peninsula foi assignado por Sarmiento
na comparação dos Adagios gallegos: «Los Adagios
gallegos son los mismos que los de los Portuguezes y
Castellanos mas antiguos[53]; y los Catalanes, que son semejantes
á los Francezes...» (Ibid., 178.) No seculo XV[liv]
ainda em Portugal Camões escreveu dois sonetos em lingua
gallega, cuja intenção se não pode conhecer; no seculo[lv]
XVII o Marquez de Montebello caracterisa o gosto
das mulheres de Braga pelo canto em córos, tal como [lvi]no seculo XVIII observa Sarmiento na Galliza; diz o
Marquez: «Com grande destreza se exercita a musica,
que é tão natural em seus moradores esta arte, que succede
muitas vezes aos forasteiros que passam pelas ruas,
especialmente nas tardes do verão, parar e suspenderem-se
ouvindo as trovas que cantam em córos com fugas
e repetições as raparigas, que, para excitar o trabalho
de que vivem lhes é permitido...» (Vida de Manoel
Machado de Azevedo.) Sarmiento escrevendo em 1741,
observa tambem a influencia da mulher na poesia popular
da Galliza: «Ademas d'esto he observado que en
Galicia las mujeres no solo son poetisas, sino tambien
musicas naturales.» (P. 237.) Esta caracteristica explica-se
ethnicamente: «los paizes que estan entre los dos
rios Duero y Miño, pertenecian á Galicia y no á Lusitania.
Ptolomeo expresamente pone dos classes de gallegos:
unos Bracharenses cuya capital era Braga; y otros
Lucenses, cuya cabeza era Lugo. Pero despues que Portugal
se erigió en reyno á parte, agregó muchos paizes
de Galicia. De esto ha resultado que muchas cosas, que
en realidad son gallegas han passado por portuguezas;
etc.» (Ib. p. 201.) Isto se pode applicar á antiga tradição
do Peito Burdelo ou do tributo das donzellas, versificada
na Galliza, e hoje só conhecida em Portugal[54].
Caracterisando a poesia popular da Galliza, continúa
Sarmiento: «Generalmente hablando, assi en Castilla
como en Portugal y en otras provincias los hombres son
los que componem las coplas e inventam los tonos ó ayres;
y ahi se vé que en este genero de coplas populares,
hablan los hombres con las mujeres ó para amarlas
ó para satyrisarlas. En Galicia es el contrario. En la
mayor parte de las coplas gallegas hablan las mujeres[lvii]
con los hombres; y es porque ellas son las que componen
las coplas sin artificio alguno; y elas mismas inventan
los tonos ó ayres a que las han de cantar, sin
tener ideia del arte musico.» (Ib. p. 237.) Este caracteristico
é mui bem observado, com a differença porém,
no que diz respeito a Portugal, se deve exceptuar o Minho,
o qual, não só pelo que vimos do trecho do Marquez
de Montebello, como pelo estado actual da tradição
alli, são as mulheres que exclusivamente cantam
e improvisam, e os homens em geral conservam-se mudos,
pelo seu estado de estupidez. Um moderno escriptor
que viveu no Minho, dá-nos a seguinte noticia
do estado da poesia popular: «Passei á orla das cortinhas
onde mourejavam as moças da aldeia, e ouvi-as cantar
ladainhas e versos de Sam Gregorio. Quedaram de
cantar e romperam n'um murmurio monotono: resavam
a corôa.» O phenomeno da Galliza e do Minho em que
as mulheres são as que conservam a poesia, é o resultado
da sua ultima decadencia; os padres prohibem as
cantigas amorosas e impõem a Ladainha ou o Bemdito.
As Romarias, são um meio em que o fanatismo das classes
populares se concilia com as suas tradições lyricas;
a Galliza e o Minho tem as Romarias como as suas festas
mais queridas, como o pretexto dos seus cantos e
dansas. Muitas das antigas Serranilhas do Cancioneiro
da Vaticana alludem aos logares das romarias:
Ir a San Salvador...
A la egreja de Vigo...
Ir a Santa Cecilia...
Ora vou a San Servando...
Ide a San Mamede, ver-me-hedas... etc.
Estes versos formavam um genero ainda conhecido
em Portugal no principio do seculo XVI pela designação[lviii]
de Cantos de ledino. A descripção que Sarmiento faz
d'este costume da Galliza corresponde tambem ainda
hoje ao nosso Minho: «Aun hoy executan lo mismo aquelles
nacionales quando van á algun santuario ó Romeria.
Siempre van en tropa hombres y mujeres. Estas cantando
coplas al asunto y tocando un pandero; uno de
los hombres tañendo flauta; y otro ó otros dançando continuamente
delante hasta cansarse, y entran otros despues.
Es verdad que non lleban armas para batirlas al
compas, pelo lleban en su logar un genero de instrumento
crustico que en el pais llaman ferreños (em portug.
ferrinhos) y en Castella sonajas[55].» Pela poesia popular
da Galliza se explicam as formas dos Cantares de Amigo
dos nossos Cancioneiros aristocraticos, as Serranilhas,
cujos refrens ainda prevalecem hoje no lyrismo brazileiro,
os cantos guayados e de ledino, ainda lembrados
em Portugal no seculo XVI, os caracteristicos dos cantos
do Minho entoados por mulheres e ao mesmo tempo a
falta de tradições epicas.
Os trovadores e jograes que figuram no Cancioneiro
da Vaticana, constituiram um genero poetico d'esta caracteristica
tão especial dos cantos populares gallegos;
a par de muitas canções de uma metrificação artificial
e de um sentimento requintado, apparecem os mais suaves
idylios em um parallelismo quasi biblico, com retornellos
repetidos, em que são as mulheres que fallam dos
seus namorados, despedindo-se, esperando-os, arrufando-se
com elles, pondo prazo para romarias. Chamou-se
a este genero Cantares de Amigo, e o que assombra é a
persistencia d'esta fórma, que se elevou do povo até á
imitação aristocratica, obtendo a predilecção de el-rei
Dom Diniz, e como tornou a desapparecer dos Cancioneiros[lix]
ficando até hoje nos costumes populares. Algumas
d'essas cantigas de amigo eram tão proverbiaes que os
segreis as intercallavam no meio das suas composições,
como fazia Ayres Nunes, repetindo:
Sol-o ramo verde, frolido
Vodas fazem ao meu amigo;
e choram olhos de amor.
(Canc. da Vat., n.º 454.)
Uma canção de João de Gaya, termina com esta rubrica
preciosa: «Esta cantiga foy seguida de uma baylada
que diz:
Vós avedes los olhos verdes
e matar-me-hedes com elles.»
(Canc. da Vat., n.º 1062.)
Em outro logar o mesmo jogral satyrisando o alfaiate
do bispo Dom Domingos Jardo, apresenta a rubrica:
«Diz uma cantiga de vilaño:
Ó pee d'huna torre
bayla corpo e giolo,
vedel o cós, ay cavalleiro.»
Estes vestigios accentuam a corrente popular que
entrou nos Cancioneiros, e nos dão a origem das mais
bellas composições ou fórmas tradicionaes que ahi se conservam.
Portugal, Galliza e Brazil tão separados pelas vicissitudes
politicas, conservam ainda inteira a sua unidade
ethnica na tradição litteraria. É o que pretendemos fazer
sentir n'este livro.
[lx]
Pelo estudo da sua tradição é que as nacionalidades
revivem; é pelo conhecimento do seu desgraçado passado
que Portugal saberá traçar o seu novo destino. Na
moderna nacionalidade brazileira o elemento portuguez
da provincia de Minas, está destinado a manter a integridade
de um povo facil a ser desnaturado por um excessivo
cosmopolitismo. No seculo passado começou na
Galliza um movimento nacional da tradição, pelos eruditos
Feijó, auctor do Theatro critico, Sarmiento, o que
até então melhor estudou as origens litterarias de Hespanha,
e Sobreyra, que deixou os manuscriptos Ideia de
un Diccionario de la lengua gallega. No emtanto as agitações
napoleonicas embaraçaram esse progresso local, e
a Galliza annullada pela centralisação castelhana, perdeu
a sua lingua. Esta queda reflecte-se no annexim popular:
Sei que porque estás na Coruña
Xa non queres falar en galego
[56].
O afastamento da Galliza de Portugal provém do esquecimento
da tradição nacional e da falta de plano politico
em todos os que nos tem governado. Em Portugal
o espirito moderno penetra, mas ainda, é considerado como
revolucionario. Na Galliza o estudo da tradição recomeçou
já; a lingua tem já uma grammatica composta
por D. Xam Anton Saco Arce[57], e um diccionario por
D. Juan Cuveiro Pinhol; tem já uma historia, por D.
Manoel Murguia, e a poesia é cultivada por vultos sympathicos[lxi]
como Elvira Luna d'o Castillo, D. Rosalia Castro
de Murguia, D. Ramon Rua Figuénsa, Valentin L.
Carvajal, Alberto Camiño, D. José Benito Amado, e
Turnes, que fazem reviver esse dialecto outr'ora peculiar
das côrtes peninsulares. E por isso que cada paiz
tem o seu lyrismo bem caracterisado, em Portugal a
poesia é o unico agente da ideia avançada que trabalha
para a transformação futura; no Brasil predomina ainda
a feição colonial, conservando as fórmas perdidas desde
o seculo XVI na poesia portugueza; na Galliza, a
poesia tem a ingenuidade e o fervor de uma renascença.
Theophilo Braga.
[lxii]
[lxiii]
OBRAS POETICAS CITADAS N'ESTE LIVRO
Folhas cahidas, por Alexandre Garrett, 1869.
Excavações poeticas, por A. Feliciano de Castilho,
1844.
Harpa do Crente, por Alexandre Herculano, 1860.
O Trovador, Coimbra, 1848.
Poesias, de Luiz A. Palmeirim.
Murmurios, por Augusto Lima, 1851.
Poesias, por A. A. Soares de Passos, Porto, 1858.
A Grinalda, vol. I-VI. Porto.
O Novo Trovador, Coimbra, 1856.
Canticos, de J. S. Mendes Leal, Lisboa, 1858.
Versos, de R. de Bulhão Pato.
Primeiras Inspirações, por E. Marecos, Lisboa, 1858.
Flores do Campo, por João de Deus, Porto, 1876.
Folhas soltas, por João de Deus, Porto, 1876.
Odes modernas, por Anthero do Quental, Porto, 1875.
Visão dos tempos, por Theophilo Braga, Porto, 1870.
Heras e Violetas, por Guilherme Braga, Porto, 1869.
Rimas, de Alberto Telles, Coimbra.
A Alma nova, por Guilherme de Azevedo, Lisboa,
1874.
Harmonias phantasticas, por Sousa Viterbo, Porto,
1875.
Poema da Miseria, por Candido de Figueiredo, Coimbra,
1874.
Claridades do Sul, por Gomes Leal, Lisboa, 1875.
Scenas contemporaneas, por Claudio José Nunes, Lisboa,
1873.
Obras, de Àlvares de Azevedo, Rio de Janeiro,
1862.
[lxiv]
Cantos, por Gonçalves Dias, Leipzic, 1860.
Novos Cantos, pelo mesmo.
Ultimos Cantos, pelo mesmo.
Primaveras, por Casimiro de Abreu, Lisboa.
Contradicções poeticas, por Junqueira Freire.
Suspiros, por Gonçalves de Magalhães, Paris, 1859.
Cantos do Ermo e da Cidade, por Fagundes Varella.
Poesias, por Castro Alves, Bahia, 1870.
Quadros, por Joaquim Serra, Rio de Janeiro, 1873.
Ideias e Sonhos, por Sousa Pinto, Lisboa, 1872.
Novas Poesias, por Bernardo Guimarães, Rio de Janeiro,
1876.
Phalenas, por Machado Assis.
Flores e Fructos, por Bruno de Seabra, Rio de Janeiro,
1872.
Alvoradas, por Lucio de Mendonça, Rio de Janeiro,
1875.
Nebulosas, por Narcisa Amalia, Rio de Janeiro, 1872.
Flores sylvestres, por Bettencourt Sampaio, Rio de
Janeiro, 1860.
Parnaso Maranhense, Maranhão, 1861.
Poesias, de Franco de Sá, S. Luiz do Maranhão, 1869.
Consoladoras, por Filgueiras Sobrinho, Paris, 1876.
Miniaturas, por Gonçalves Crespo, Coimbra, 1871.
Estrellas errantes, por Quirino dos Santos, Campinas,
1876.
Peregrinas, por Octaviano Hudson, Rio de Janeiro,
1874.
Cantares gallegos, de D. Rosalia Castro de Murguia,
Madrid, 1870.
Trovas e Cantares, Madrid, 1859.
Espinas, frores e follas, por Valentin T. Carvajal.
La Galicia, periodico.
[1]
PARTE I
OS LYRICOS PORTUGUEZES
[3]
OS CINCO SENTIDOS
São bellas, bem o sei, essas estrellas,
Mil côres divinaes tem essas flôres;
Mas eu não tenho, amor, olhos para ellas;
Em toda a natureza
Não vejo outra belleza
Se não a ti, a ti!
Divina, ai! sim, será a voz que afina
Saudosa, na ramagem densa, umbrosa,
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Se não a ti, a ti.
Respira, n'aura que entre as flôres gira,
Celeste incenso de perfume agreste.
Sei... não sinto: minha alma não aspira
Não percebe, não toma
Se não o doce aroma
Que vem de ti, de ti.
Formosos são os pômos saborosos,
É um mimo de nectar o racimo;
E eu tenho fome e sêde... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
É só de ti, de ti.
[4]
Macia, deve a relva luzidia
Do leito ser, por certo, em que me deito;
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras caricias,
Tocar n'outras delicias
Se não em ti, em ti!
A ti! ai, a ti n'os meus sentidos
Todos n'um confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti, a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, p. 169. Lisboa, 1869.
RETRATO
(N'um album)
Ah! despreza o meu retrato
Que eu lhe queria aqui pôr!
Tem medo que lhe desfeie
O seu livro de primor?
Pois saiba que por despique
Eu sei tambem ser pintor:
Co' esta penna por pincel,
E a tinta do meu tinteiro,
Vou fazer o seu retrato
Aqui já de corpo inteiro.
[5]
Vamos a isto. Sentada
Na cadeira moyen-âge,
O cabello en chaitellaines,
As mangas soltas. É o traje.
Em longas prégas negras
Caía o velludo e arraste,
De si com desdem regio
Com o pésinho o affaste...
N'essa attitude! Está bem:
Agora mais um geitinho;
A airosa cabeça a um lado
E o lindo pé no banquinho.
Aqui estão os contornos, são estes,
Nem Daguerre lh'os tira melhor;
Este é o ar, esta a pose, eu lh'o juro
E o trajar que lhe fica melhor.
Vamos agora ao difficil:
Tirar feição por feição;
Entendel-as, que é o ponto,
E dar-lhe a justa expressão.
Os olhos são côr da noite,
Da noite em seu começar,
Quando inda é joven, incerta
E o dia vem de acabar.
Tem uma luz que vae longe,
Que faz gosto de queimar:
É uma especie de lume
Que serve só de abrazar.
[6]
Na bocca ha um sorriso amavel,
Amavel é... mas queria
Saber se é todo bondade
Ou se meio é zombaria.
Ninguem m'o diz? O retrato
Incompleto ficará,
Que n'estas duas feições
Todo o sêr, toda a alma está.
Pois fiel como um espelho
É tudo o que n'elle fiz;
E o que lhe falta, que é muito,
Tambem o espelho o não diz.
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, p. 208.
VIBORA
Como a vibora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que á nascença o espedaçou.
Para elle nascer morri;
E em meu cadaver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, p. 196.
[7]
ESTE INFERNO DE AMAR
Este inferno de amar como eu amo!
Quem m'o poz aqui n'alma... quem foi?
Esta chamma que alenta e consomme,
Que é a vida, e que a vida destroe,
Como é que se veiu a atear,
Quando, ai quando se hade ella apagar?
Eu não sei, nem me lembra, o passado,
A outra vida que d'antes viví
Era um sonho talvez... foi um sonho,
Em que paz tão serena a dormí!
Oh que doce era aquelle sonhar...
Quem me veiu, ai de mim! despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os puz.
Que fez ella? eu que fiz? Não n'o sei;
Mas n'essa hora a viver comecei...
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, p. 149.
QUANDO EU SONHAVA
Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
[8]
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora que estou desperto
Agora a vejo fixar...
Para quê?—Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrella incerto
No immenso firmamento,
Uma chimera, um vão sonho,
Eu sonhava—mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dôr, não n'a conhecia...
............................
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, p. 190.
CASCAES
Acabava alli a terra
Nos derradeiros rochedos,
A deserta árida serra
Por entre os negros penedos
Só deixa viver mesquinho
Triste pinheiro maninho.
E os ventos despregados
Sopravam rijos na rama,
E os céos turvos, annuviados,
O mar que incessante brama...
Tudo alli era braveza
De selvagem natureza.
[9]
Ahi, na quebra do monte,
Entre uns juncos mal-medrados,
Sêcco o rio, sêcca a fonte,
Hervas e matos queimados,
Ahi n'essa bruta serra,
Ahi foi um céo na terra.
Alli sós no mundo, sós,
Sancto Deus! como vivemos!
Como eramos tudo nós
E de nada mais soubemos!
Como nos folgava a vida
De tudo o mais esquecida!
Que longos beijos sem fim,
Que fallar dos olhos mudo!
Como ella vivia em mim,
Como eu tinha n'ella tudo,
Minh'alma em sua razão,
Meu sangue em seu coração!
Os anjos aquelles dias
Contaram na eternidade:
Que essas horas fugidias,
Seculos na intensidade,
Por millennios marca Deus
Quando as dá aos que são seus.
Ai! sim, foi a tragos largos,
Longos, fundos que a bebí
Do prazer a taça:—amargos
Depois... depois os senti
Os travos que ella deixou...
Mas como eu ninguem gosou.
[10]
Ninguem: que é preciso amar
Como eu amei—ser amado
Como eu fui; dar e tomar
Do outro sêr a quem se ha dado,
Toda a razão, toda a vida
Que em nós se annulla perdida.
Ai, ai! que pesados annos
Tardios depois vieram!
Oh! que fataes desenganos,
Ramo a ramo, a desfizeram
A minha choça na serra,
Lá onde se acaba a terra!
Se o visse... não quero vel-o
Aquelle sitio encantado;
Certo estou não conhecel-o,
Tão outro estará mudado,
Mudado como eu, como ella,
Que a vejo sem conhecel-a!
Inda alli acaba a terra,
Mas já o céo não começa;
Que aquella visão da serra
Sumiu-se na treva espessa,
E deixou núa a bruteza
D'essa agreste natureza.
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, p. 177.
[11]
DESTINO
Quem disse á estrella o caminho
Que ella hade seguir no céo?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz á planta: florece!
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lh'os enreda?
Ensinou alguem á abelha
Que no prado anda a zumbir
Se á flôr branca ou á vermelha
O seu mel hade ir pedir?
Que eras tu meu sêr, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem...
Ai! não m'o disse ninguem.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céo gira a estrella,
Como a todo o ente o seu fado
Por instincto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino...
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.
Almeida Garrett, Folhas
Cahidas, p. 151.
[12]
NÃO ÉS TU
Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ár,
Córava da mesma côr,
Aquella visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.
Toda assim; o pórte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ella descia,
Como um véo que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a belleza.
Era assim; o seu fallar,
Ingenuo e quasi vulgar,
Tinha o poder da rasão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.
Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.
Mas não és tu... ai! não és:
Toda a illusão se desfez.
Não és aquella que eu vi,
[13]
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lh'o senti.
Almeida Garrett. Folhas Cahidas, p. 188.
GOSO E DOR
Se estou contente, querida,
Com esta immensa ternura
De que me enche o teu amor?
—Não. Ai, não! falta-me a vida,
Succumbe-me a alma á ventura:
O excesso do goso é dor.
Doe-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo
No coração me poisou.
Absorto em tua belleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não ha sêr bastante
Para este gosar sem fim
Que me inunda o coração,
Tremo d'elle, e delirante
Sinto que se exhaure em mim
Ou a vida—ou a rasão.
Almeida Garrett, Folhas Cahidas, pag. 153.
[14]
EU, ANTÃO VERISSIMO E A MOSCA
(Parabola)
Eu tive um condiscipulo amantissimo
Que era um santo rapaz, e nada cábula,
Trasmontâno: por nome Antão Verissimo,
E, como eu, estudava para rábula.
Tinha por vil a herdada vida agricola,
E rindo-se, assignava na matricula.
Sapato engraixadinho, e meia fina
Substituiu á tamanca costumada;
Á véstea de burel—capa e batina,
Gôrro ao grosso chapéo, Paschoaes á enxada;
A senhoria ao tu, á brôa o trigo...
E um viver novo ao seu viver antigo.
Se o habito por si fizesse o monge,
Sem precisar disposições internas,
Se para um côxo em pouco tempo ir longe
Lhe bastasse o cuidar que tinha pernas;
Sem duvida seria Antão Verissimo
Estudante, e estudante chapadissimo.
Como lavrando desbancava a mil,
Suppoz, que estudar leis e segar erva
Seria o mesmo, não sabendo o: nil
Invita dices, faciesve Minerva;
E um Canon de Genuense (que diz muito!):
Não tentes o que excede o teu bestunto.
[15]
Os termos de Paschoal e Cavallario
Gastava a procurar o dia inteiro
No martyr, descosido diccionario;
E á noite decorava ao candieiro.
Ir á aula, almoçar, jantar, cear,
Só tinha vago; o mais era estudar.
Dizem, que—quem porfia mata caça;
Julgo proverbio de cabeça tôsca.
Vamos á historia: Um dia na vidraça
Viu o nosso doctor azoada môsca
Esvoaçar, zunir, andar marrando,
Passagem pelo vidro procurando.
Pôz de parte um momento a Lei Mental,
E co'os olhos no insecto, exclama assim:
«Oh! que teimoso e estupido animal!
Embora teimes, teimarás sem fim:
Por entre ti e o sol não vês que está
Um vidro, que passagem te não dá?
«Segue o exemplo das mais, que andam com gosto
A dançar sobre aquelle assucareiro;
Do amigo que ali dorme chucha o rosto,
Depois esmóe a andar no travesseiro.»
Eu, que dormir fingia, e não dormia,
Da tal offerta em troco assim dizia:
—Déste á môsca um conselho prudentissimo;
Tão bons os dês tu sempre em sendo rábula!
Mas és qual Frei Thomaz, Antão Verissimo,
Ou como o homem da tranca, na parabola,
Dez vidros furaria esse animal
Antes que entendas uma Lei Mental.
[16]
Entre ti e a sciencia ha vidros baços;
Nem tu, nem cem de ti os romperiam;
Vende o candieiro, a lôba, os calhamaços,
Torna-te ás terras que batatas criam.
É melhor ser um farto lavrador,
Do que um mirrado e estupido doctor.
Manda ao inferno os livros sybillinos,
Vem para a cama conversar commigo;
De Horacio eu fallarei, tu de pepinos,
Depois eu de Virgilio e tu de trigo.
Tire das leis com que dar uso aos queixos
Quem póde; e cada qual gire em seus eixos.—
N'esta fabula historica se intíma
O que ninguem ignora e não se observa:
A tal sentença velha, obra mui prima
Do: Nada faças, se o não quer Minerva.
Isto é, que um genio, que nasceu de encôlhas
Não vá metter-se a redactor de folhas:
Que um mestre sapateiro afreguezado,
Não vá ser na tragedia actor primeiro,
Que em transportes de principe ultrajado
Ralhará como mestre sapateiro;
Quem nasceu para chufas e chalaça
Nem epopêas, nem tragedias faça;
Que aquelle que nasceu para ladrão,
Seja ladrão de estrada e não juiz;
Procurador, letrado ou escrivão;
[17]
Que um bóde se não metta a ser derviz,
Nem um burro a academico; nem... nem...
Exemplos d'isto numero não têm.
A. F. de Castilho, Excavações Poeticas, p. 138. Lisboa, 1844.
[18]
MOCIDADE E MORTE
Solevantando o corpo, os olhos fitos,
As magras mãos cruzadas sobre o peito,
Vêde-o, tão moço, velador de angustias,
Pela alta noite em solitario leito.
Por essas faces pallidas, cavadas,
Olhae, em fio as lagrimas deslizam;
E como o pulso, que apressado bate,
Do coração os éstos harmonisam!
É que nas veias lhe circula a febre,
É que a fronte lhe alaga o suór frio;
É que lá dentro á dôr que o vae roendo,
Responde horrivel intimo cicío.
Encostado na mão o rosto acceso,
Fitou os olhos humidos de pranto
Na alampada mortal ali pendente,
E lá comsigo modulou um canto.
É um hymno de amor e de esperança?
É oração de angustia e de saudade?
Resignado na dôr saúda a morte,
Ou vibra aos céos blasphemia d'impiedade?
É isso tudo tumultuando incerto
No delirio febril d'aquella mente,
[19]
Que, baloiçada á borda do sepulchro,
Volve apóz si a vista longamente.
É a poesia a murmurar-lhe n'alma,
Ultima nota de quebrada lyra;
É o gemido do tombar do cedro;
É triste adeus do trovador que expira:
«Meia-noite bateu, volvendo ao nada
Um dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te bem, oh campa mysteriosa...
Eu vou, eu vou! Breve serei comtigo!
Qual tufão que ao passar agita o pégo,
Meu placido existir turvou a sorte.
Halito impuro de pulmões ralados
Me diz que n'elles se assentou a morte.
Em quanto mil e mil no largo mundo
Dormem em paz no mundo, eu velo e penso,
E julgo ouvir as preces por finados,
E ver a tumba e o fumegar do incenso.
Se dormito um momento, acordo em sustos;
Pulos me dá o coração no peito,
E abraço e beijo de uma vida extincta
O ultimo socio, o doloroso leito.
De um abysmo insondado ás agras bordas
Insanavel doença me ha guiado,
E disse-me:—No fundo, o esquecimento:
Désce; mas desce com andar pausado.—
[20]
E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:
Busco parar; parar um só instante!
Mas a cruel, travando-me da dextra,
Me faz cair no fundo, e grita—Avante!—
Por que escutar o transito das horas?
Algumas d'ellas trar-me ha conforto?
Não! Esses golpes que no bronze ferem,
São para mim como dobrar por morto.
Morto! morto!—me clama a consciencia;
Diz-m'o este respirar rouco e profundo;
Ai! porque frémes coração de fogo,
Dentro de um peito corrompido e immundo!
Beber um ár diáphano e suave,
Que renovou da tarde o brando vento,
E convertel-o, no aspirar continuo,
Em bafo apodrecido e peçonhento!
Estender para o amigo a mão mirrada,
E elle negar a mão ao pobre amigo;
Querer unil-o ao seio descarnado,
E elle fugir, temendo o seu perigo!
E vêr após um dia inda cem dias,
Nús de esperança, ferteis de amargura,
Soccorrer-me ao provir, e achal-o um ermo,
E só, bem lá no extremo, a sepultura!
Agora!... quando a vida me sorria,
Agora... que meu éstro se accendêra,
Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,
Como se enlaça pelo campo a hera,
[21]
Deixar tudo e partir, sósinho e mudo;
Varrer-me o nome escuro esquecimento,
Não ter um ecco de louvor, que afague
Do desgraçado o humilde monumento!
Oh tu, sêde de um nome glorioso,
Que tão fagueiros sonhos me tecias,
Fugiste, e só me resta a pobre herança
De vêr a luz do sol mais alguns dias.
Vestem-se os campos de verdor primeiro:
Já das aves canções no bosque eccôam;
Não para mim, que só escuto attento
Funéreos dobres que no templo sôam.
E eu que existo, e que penso, e falo e vivo,
Irei tão cedo repousar na terra?!
Oh, meu Deus, oh meu Deus! um anno ao menos;
Um louro só... e meu sepulchro cerra;
É tão bom respirar, e a luz brilhante
Do sol oriental saudar no outeiro!
Ai, na manhã saudal-a posso ainda;
Mas será este o inverno derradeiro!
Quando de pômos o vergel fôr cheio;
Quando ondear o trigo na planura,
Quando pender com aureo fructo a vide,
Eu tambem penderei na sepultura.
Dos que me cercam no turbado aspecto,
Na voz que prende desusado enleio,
No pranto a furto, no fingido riso,
Fatal sentença de morrer eu leio.
[22]
Vistes vós criminoso que hão lançado
Seus juizes nos trances da agonia,
Em oratorio estreito, onde não entra
Suavissima luz do claro dia;
Diante a cruz, ao lado o sacerdote,
O cadafalso, o crime, o algoz na mente,
O povo tumultuoso, o extremo arranco,
O céo e inferno, e as maldições da gente:
Se adormece, lá surge um pesadello,
Com os martyrios da sua alma accorde:
Desperto logo, e á terra se arremessa,
E os punhos cerra, e delirante os morde.
Sobre as lageas do duro pavimento
De vergões e de sangue o rosto cobre;
Ergue-se e escuta com cabellos hirtos
Do sino ao longe o compassado dobre.
Sem esperança!...
Não! Do cadafalso
Sóbe as escadas o perdão ás vezes;
Porém, a mim... não me dirão: És salvo!
E o meu supplicio durará por mezes.
Dizer posso:—Existi! que a dor conheço!
Do goso a taça só provei por horas;
E serei teu, calado cemiterio,
Que, engenho, gloria, amor, tudo devoras.
Se o furacão rugiu, e o debil tronco
De arvore tenra espedaçou passando,
Quem se doeu de a ver jazendo em terra?
Tal é o meu destino miserando!
[23]
Numem do santo amor, mulher querida,
Anjo do céo, encanto da existencia,
Ora por mim a Deus, que hade escutar-te,
Por ti me salve a mão da provídencia.
Vem; aperta-me a dextra... Oh foge, foge!
Um beijo ardente aos labios te voára;
E n'este beijo venenoso a morte
Talvez este infeliz só te entregára!
Se eu podesse viver... como teus dias
Cercaria de amor suave e puro!
Como te fôra placido o presente;
Quanto risonho o aspecto do futuro!
Porém, medonho espectro ante meus olhos
Como sombra infernal perpetuo ondeia,
Bradando-me, que vae partir-se o fio
Com que da minha vida se urde a teia.
Entregue á seducção emquanto eu durmo,
No turbilhão do mundo heide deixar-te!
Quem velará por ti, pomba innocente?
Quem do prejurio poderá salvar-te?
Quando eu cerrar os olhos moribundos
Tu verterás por mim pranto saudoso;
Mas quem me diz que não virá o riso
Banhar teu rosto triste e lacrimoso?
Ai, o extincto só herda o esquecimento!
Um novo amor te agitará o peito:
E a dura lagea cubrirá meus ossos
Frios, despidos sobre terreo leito!
[24]
Oh Deus, por que este calix de agonia
Até ás bordas de amargor me encheste?
Se eu devia acabar na juventude,
Por que ao mundo e aos seus sonhos me prendeste.
Virgem do meu amor, porque perdel-a?
Porque entre nós a campa hade assentar-se!
Tua suprema paz em goso ou dores
Do mortal que em ti crê, póde turbar-se?
Não haver quem me salve! e vir um dia
Em que de minha o nome inda lhe désse!
Então, senhor, o umbral da eternidade,
Talvez sem um queixume transpozesse.
Mas, qual flôr em botão pendida e murcha
Sem de fragancias perfumar a brisa,
Eu poeta, eu amante, ir esconder-me
Sob uma lousa desprezada e lisa!
Porque? Qual foi meu crime, oh Deus terrivel?
Em te adorar que fui, senão insano?...
O teu fatal poder hoje maldigo!
O que te chama pae, mente: és tyranno.
E se aos pés de teu throno os ais não chegam;
Se os gemidos da terra os áres sómem;
Se a providencia é crença van, mentida,
Porque geraste a intelligencia do homem?
Porque da virgem no sorrir poseste
Santo presagio de suprema dita,
E apontaste ao poeta a immensidade
Na ancia da gloria, que em sua alma habita!
[25]
A immensidade!... E que me importa herdal-a,
Se na terra passei sem ser sentido?
Que val eterno vaguear no espaço,
Se nosso nome se afundou no olvido?
..........................................
Alexandre Herculano, Harpa do Crente, p. 63. 2.ª edição. Lisboa, 1860.
[26]
A LUA DE LONDRES
É noite; o astro saudoso
Rompe a custo o plumbeo céo;
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, humido véo.
Traz perdida a côr de prata,
Nas aguas não se retrata,
Não beija no campo a flor;
Não traz cortejo de estrellas,
Não falla de amor ás bellas,
Não falla aos homens de amor.
Meiga lua, os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d'alem do mar?
Foi na terra tua amada.
N'essa terra tão banhada
Por teu limpido clarão?
Foi na terra dos verdores,
Na patria dos meus amores
Patria de meu coração?
Oh que foi! deixaste o brilho
Nos montes de Portugal,
Lá onde nasce o tomilho,
Onde ha fontes de cristal;
Lá onde veceja a rosa,
[27]
Onde a leve mariposa
Se espaneja á luz do sol;
Lá onde Deus concedera
Que em noites de primavera
Se escutasse o rouxinol.
Tu vens ó lua, tu deixas
Talvez ha pouco o paiz
Onde do bosque as madeixas
Já têm um floreo matiz;
Amaste do ár a doçura,
Do azul céo a formosura,
Das aguas o suspirar!
Como hasde agora entre gelos
Dardejar teus raios bellos,
Fumo e nevoa aqui amar?
Quem viu as margens do Lima,
Do Mondego os salgueiraes,
Quem andou por Tejo acima,
Por cima dos seus cristaes;
Quem foi ao meu patrio Douro,
Sobre fina areia de ouro,
Raios de prata espargir,
Não pode amar outra terra,
Nem sob o céo de Inglaterra
Doces sorrisos sorrir.
Das cidades a princeza
Tens aqui; mas Deus, egual
Não quiz dar-lhe essa lindeza
Do teu e meu Portugal;
Aqui a industria e as artes,
Alem de todas as partes
[28]
A natureza sem véo;
Aqui ouro e pedrarias,
Ruas mil, mil arcarias,
Além... a terra e o céo.
Vastas serras de tijolo,
Estatuas, praças sem fim
Retalham, cobrem o sólo
Mas não me encantam a mim;
Na minha patria uma aldêa,
Por noites de lua cheia
É tão bella, e tão feliz!
Amo as casinhas da serra,
C'o a lua da minha terra,
Nas terras do meu paiz.
Eu e tu, casta deidade,
Padecemos egual dôr,
Temes a mesma saudade,
Sentimos o mesmo amor;
Em Portugal o teu rosto
De riso e luz é composto;
Aqui triste e sem clarão;
Eu lá sinto-me contente,
E aqui lembrança pungente
Faz-me negro o coração.
Eia, pois, oh astro amigo,
Voltemos aos puros céos,
Leva-me, oh lua, comtigo,
Preso n'um raio dos teus;
Voltemos ambos, voltemos
Que nem eu nem tu podemos
Aqui ser quaes Deus nos fez;
[29]
Terás brilho, eu terei vida,
Eu já livre, e tu despida
Das nuvens do céo inglez.
Londres 30 de março
de 1847
João de Lemos, O Trovador, p. 362. Coimbra, 1848.
A VIDA
O homem chora mal nasce,
Adulto chora tambem;
Curvado já sobre a campa,
Mais dor no peito inda tem.
Aos vinte chora, porque ama,
Aos trinta vêr-se illudido;
E quando desce ao sepulchro,
Até por ter existido.
D. João de Azevedo, Ibid. p. 303.
[30]
TASSO NO HOSPITAL DOS DOIDOS
São negras estas arcadas,
Sepulchral este lagedo,
Lugubres estas escadas,
Estas paredes põem medo;
Estas prisões são soturnas,
São medonhas como as furnas,
Escondidas sob o chão;
Nenhum bem aqui me afaga,
Tudo aqui a mente esmaga,
Tudo opprime o coração!
Nem do norte a meiga brisa,
Nem um lampejo da lua,
Nem raio do sol deslisa
N'esta caverna tão núa:
Lá d'essas grades do fundo
Vem-me, n'um côro profundo
Gargalhadas infernaes;
Surgem lá rostos desfeitos,
Que em visagens, em tregeitos
De loucura dão signaes.
Santo Deus, que sina a minha!
Onde estou ninguem m'o disse,
Mas um poeta adivinha;
É nas covas da doudice:
[31]
Vivo n'esta horrivel casa,
Onde a mente se me abrasa
Té o martyrio tocar;
Onde a rasão se entibia,
Onde triste, dia a dia,
Vejo as forças acabar:
Onde a mudez mais pungente
Me torna vil a pobreza,
Onde ninguem se consente
Que me afague na tristeza;
Onde a sêde me devora,
Onde debalde se implora
Uma palavra d'amor;
Onde o frio me consomme,
Onde, longe em longe, a fome
Vem augmentar este horror.
Eu, doudo! Dizei-o, montes
De Solima encantadora!
Fallae, vastos horisontes,
D'essa Asia abrasadora!
Dize-o tu, oh Godofredo,
Ou tu, valente Tancredo,
Que em meus versos exaltei!
Dizei, Armida formosa!
Dizei, Clorinda famosa!
Dizei todos que eu cantei!
Eu doudo! Erguei-vos juntos,
Defendei vosso cantor!
Fallae, oh santos assumptos
Que eu cantei com tanto amor!
Falla tambem Aguia d'Éste,
[32]
Que por mim teu vôo ergueste
Inda dos mundos alem!
Fallae, sepulchro de Christo,
Falle o canto nunca visto,
Falla tu, Jerusalem!
Tasso, Tasso que fizeste
Para tal condemnação?
Á corôa os olhos ergueste
Sem te importar o brazão!
Foste amar uma princeza,
Não tendo tanta riqueza,
Não tendo nobreza egual;
Teu amor é o teu crime,
É o grilhão que te opprime
N'esta masmorra fatal!
Sou doudo por ter amado
A bella irmã de um reinante!
Sou doudo por ter logrado
Da princeza amor constante!
Doudo, sim, doudo por ella,
Por ella que é minha estrella,
Por ella, por mais ninguem;
Por ella, que é minha vida,
Sim por ella, a mais querida
Das damas que o mundo tem.
Por ella, que o viu pobre
Só das musas bemfadado,
E desceu do solio nobre,
Deu amor ao desgraçado;
Por ella, tão extremosa,
Que rejeita desdenhosa
[33]
D'altos principes a mão,
Para não ir n'outros braços
Partir nossos doces laços,
Dar a outro o coração.
Eis o crime, o crime horrendo,
Que me deu prisão tão dura,
Onde entre doudos gemendo
Vou correndo á sepultura!
Eu amei e fui amado,
Era assás. Sou desgraçado,
Não nasci para o prazer;
No livro do sello eterno
Estava escripto este inferno,
Na desgraça heide morrer.
Não importa! é minha herança
Soffrer sempre e não gosar;
Se a Affonso cabe a vingança,
Ao Tasso cabe o chorar:
Se a elle um peito de féra,
Onde só vingança impera,
Se a elle a corôa ducal,
Ao Tasso cabe a poesia,
Cabe a fonte da harmonia,
Cabe a corôa que mais val.
Eu não troco a sorte avara,
Que é meu mesquinho condão,
Por teu sceptro de Ferrara
Manchado de ingratidão.
Se não morres, é que eu pobre
Dei a penna á casa nobre,
Em cantos a celebrei;
[34]
Eu não morro, porque o céo
Eternos versos me deu
Com que as Cruzadas cantei.
A. Xavier Rodrigues Cordeiro.
LUIZ DE CAMÕES
Que poeta que não era
Da linda Ignez o cantor!
Quem mais de que elle dissera
D'esse fero Adamastor!
Era um astro fulgurante,
Era um poeta gigante,
Tinha mais alma que o Dante,
Cantava com mais amor!
No peito coberto de aço
Lhe batia um coração,
Que nem os cantos do Tasso
Sonharam maior paixão!
Era um cantor e soldado,
Era um vate enamorado,
[35]
Foi um poeta inspirado,
Como os de hoje já não são.
Bem nos cantos se lhe marca
O signal do seu pensar;
Nascera, como Petrarcha,
Já fadado para amar!
Vêde bem o sentimento
Com que dá, sôltas ao vento,
Queixas mil do seu tormento,
Tristezas do seu trovar!
A sorte fel o poeta,
Das cinzas da pobre Ignez;
O mundo fel-o propheta
Do destino portuguez!
Poeta da desventura,
Previu a sorte futura,
Escreveu com mão segura
A prophecia que fez!
Deus, que deu aos portuguezes
D'alem mar as regiões,
Que nos livrou dos revézes,
Deu-nos o rei das canções,
Fômos o povo escolhido;
O nosso nome temido
Hoje só é conhecido
Pelos cantos de Camões.
Foi-se-lhes a vida em desgosto,
Ao que a patria assim cantou;
Mais poeta que Ariosto,
Que belleza nos legou!
[36]
Pungido de acerbas dores,
Pelo Tejo, seus amores,
Foi o rei dos trovadores,
Foi o cysne que expirou.
Como Ovidio, desterrado
Lá na gruta de Macáo,
Só tem o pranto enxugado
Pela mão do pobre Jau;
De escravo tornou-se amigo,
E no peito, só comsigo,
Supportou cruel castigo,
Mas nunca se tornou máo.
Debruçados sobre os Cantos,
Da nossa fama padrão,
Bem juntos verteram prantos
Sobre a nossa escravidão!
Mas Camões... a vil tutella
D'essas hostes de Castella...
Não pôde chorar sobre ella,
Morrera-lhe o coração.
Que poeta! e que soldado!
Que trovador tão leal!
De todos abandonado
Só achou um hospital!
Mas a fama portugueza,
N'este sec'lo de torpeza,
Só tem por toda a grandeza
A Camões por pedestal.
Alli vivem as victorias
Já do povo, já do rei;
[37]
Alli vivem as memorias
Alcançadas pela lei;
É pharol de nossa fama,
Alli vive o Castro e o Gama,
Em versos alli proclama
Triumphos da nossa grey.
A Camões por monumento
Só resta um livro, não mais;
D'aquelle genio portento
Não temos outros signaes;
Mas que importa, se a memoria
Do cantor da nossa gloria
Alcançou maior victoria
Nos seus cantos colossaes!
L. A. Palmeirim, O Trovador, p. 323.—Poesias, p. 112.
[38]
INFANCIA E MISERIA
Se eu tivera o pincel omnipotente
De Raphael, de Rubens ou d'Apelles;
Se o milagroso escôpro de Canova
A minha dextra ousada manejasse;
Se na pedra ou na téla a vida eterna
Eu podésse infundir c'um leve sôpro,
Que magestoso, que eloquente grupo
Ou na téla ou na pedra hoje criára!
Era um grupo formoso, um quadro augusto,
Qual antes nunca vi, qual vejo ainda
No fulgor da verdade ante meus olhos,
Que de vêl-o e descrel-o se não cançam;
Não, não era, não foi visão nem sonho,
Mas verdade sómente... a existencia
N'uma phase commum... a humanidade
No relêvo dos factos cinzelada!
Era um grupo formoso, um quadro augusto,
Não de amor, de ventura ou de alegria,
Mas de infortunio e dôr, e de miseria,
Casados por ludibrio á innocencia!
Era a infancia dormindo na desgraça,
Esquecendo risonha a voz da fome,
[39]
Era a vida a raiar entre os andrajos,
A indigencia assentada ao pé do berço!
Quasi ás portas de um templo consagrado
Ás artes, ao prazer, ao luxo, aos ricos,
Quando a turba pejava as aureas portas
Do marmoreo edificio... ao pé, bem perto
Sobre as humidas pedras do lagedo,
Jaziam abraçadas tres crianças
Cujo anjo tutellar, e cujo amparo
Era apenas o somno da innocencia!
Dormiam todas tres; quanto era bello
Vel-as unidas, enfeixadas n'uma,
Repartindo o calor dos tenros corpos,
Como o pão que despertas mendigavam!
Quanto era bello o vel-as—como a ave
Que em presença da morte esconde n'aza
A plumosa cabeça—reclinadas
No regaço da fome e da miseria!
Dormiam todas tres; talvez bem doce
Roçando levemente aquellas almas
Um breve, meigo sonho de alegria
Fizesse palpitar-lh'os debeis peitos!
Mas não, não pode ser... não pode o Eterno
Deslumbrar-nos em sonhos co' a ventura
Quando se hade acordar á voz da fome
Estendendo a quem passa a magra dextra!
Como eram já sombrios, macilentos,
Aquelles infantis, serenos rostos
Onde a vida em botão abria a custo,
Como a flôr que desponta em plaga extranha!
[40]
Nas pallidas feições como se liam
De um precoz soffrimento os negros traços?
Como a livida fome lhes roubava
O placido sorriso da innocencia!
Que triste sorte e amargurada vida
Arrastavam sem queixa aquelles anjos!
Em logar dos brinquedos innocentes
E dos gosos sem par da curta infancia,
Mendigavam, coitadas, no abandono
O pão negro e acerbo da indegencia,
Sem um tecto a não ser o céo da patria,
E sem mãe... se não tu, oh caridade!...
Até quando, oh meu Deus, até que dia
Se hade ver no banquete da existencia
Um manjar que não seja para todos,
Um logar de que alguem possa expulsar-se?
Até quando será o mundo inteiro
Patrimonio d'alguns, e para os outros
A penuria, a nudez, o desamparo,
E por só privilegio a fome e o carcere?
Dormiam todas trez; que meigo somno
O veneno da vida lh'adoçava!
Como em cada feição se via impresso
O benefico olvido da existencia!
Irmãs no sangue, e na desgraça gémeas,
Embaladas talvez no mesmo berço,
Dormiam todas tres na mesma pedra
Igual somno da infancia e desconforto!
Eu vi aquelle grupo! era formoso
De soffrimento e graça; illuminava-o
[41]
De um extranho fulgor a magestade
Sinistra, mas augusta, da miseria!
Eu vi aquelle grupo! assim não visse
N'aquelle estreito quadro a negra historia
De muitas gerações... assim não lesse
Teu pungente epigramma, oh sociedade!
Augusto Lima, Murmurios, p. 91. Lisboa, 1851.
ÁS ESTRELLAS
Lindas, mimosas saphiras
Que o véo da noite bordaes,
Dizei-me, estrellas, dizei-me,
Se é de amor que palpitaes?
Vós... que sempre bemfazejas,
A luz tão pura nos daes,
Não tereis lá nas alturas
Quem escute vossos ais?
Haveis de ter só por fado
Luzir, luzir, e não mais?
Não creio, estrellas, não creio.
Sois tão formosas!... amaes.
Augusto Lima, O Trovador, p. 196.
[42]
O FIRMAMENTO
Gloria a Deus! eis aberto o livro immenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escripto!
Eis de seu tabernáculo corrida
Uma ponta do véo mysterioso:
Desprende as azas, remontando á vida,
Alma que anceias pelo eterno goso!
Estrellas que brilhaes n'essas moradas,
Quaes são vossos destinos?
Vós sois, vós sois as lampadas sagradas
De seus umbraes divinos.
Pullulando do seio omnipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas de seu carro ardente
Ao rolar através da immensidade.
E cada qual de vós um astro encerra,
Um sol que apenas vejo,
Monarcha d'outros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguem pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que daes vida,
[43]
Escuros para nós qual nossa esphera
Vos é nas trevas da amplidão sumida?
Mas vós perto brilhaes, no fundo accêsas
Do throno soberano;
Quem vos hade seguir nas profundezas
D'esse infinito oceano?
E quem hade contar-vos n'essas plagas
Que os céos ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustem as vagas
Dos sóes que um dia romperão na altura?
E tudo outr'ora na mudez jazia
Nos véos do frio nada;
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Elle fallou! e as sombras n'um momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Elle fallou! e o vasto firmamento
Seu véo de mundos desfraldou ovante!
E tudo despertou, e tudo gira
Immerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lyra
Cantando os seus louvores.
Cantae, oh mundos que seu braço impelle,
Harpas da creação, fachos do dia,
Cantae louvor universal áquelle
Que vos sustenta e nos espaços guia!
Terra, globo que geras nas entranhas
Meu sêr, o sêr humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
[44]
Tu és um grão d'areia arrebatado
Por esse immenso turbilhão dos mundos,
Em volta de seu throno levantado
Do universo aos seios mais profundos.
E tu, homem, que és tu, ente mesquinho
Que soberbo te elevas,
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas?
Que és tu com teus imperios e colossos?
Um átomo subtil, um frouxo alento;
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas que sacode o vento.
Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes
Á razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chamma das ideias:
Alegra-te, immortal, que esse alto lume
Não morre em trevas de um jazigo escasso!
Gloria a Deus, que n'um atomo resume
O pensamento que transcende o espaço!
Caminha, oh rei da terra! se inda és pobre,
Conquista aureo destino,
E de seculo em seculo mais nobre
Eleva a Deus teu hymno!
E tu, oh terra, nos florídos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto de amor reune aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões de espheras!
Dizem que já sem forças, moribunda,
Tu vergas decadente:
[45]
Oh! não, de tanto sol que te circumda,
Teu sol inda é fulgente!
Tu és joven ainda: a cada passo
Tu assistes d'um mundo ás agonias,
E rolas entretanto n'esse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.
Mas ai! tu findarás! além scintilla
Hoje um astro brilhante;
Ámanhã, eil-o treme, eil-o vacilla,
E fenece arquejante:
Que foi? quem o apagou? foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada;
Foram seculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.
Um dia, quem o sabe? um dia, ao pêso
Dos annos e ruinas,
Tu cahirás n'esse vulcão accêso
Que teu sol denominas.
E teus irmãos tambem, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflamma,
Attrahidos emfim, quaes borboletas,
Cahirão como tu na mesma chamma.
Então, oh sol, então n'esse aureo throno
Que farás tu ainda,
Monarcha solitario, e em abandono,
Com tua gloria finda?
Tu findarás tambem, a fria morte
Alcançará teu carro chammejante:
Ella te segue, e prophetisa a sorte
N'essas manchas que toldam teu semblante.
[46]
Que são ellas? talvez os restos frios
D'algum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo.
Talvez, envolta pouco a pouco a frente
Nas cinzas sepulchraes de cada filho,
Debaixo d'elles todos de repente
Apagarás teu vacillante brilho.
E as sombras poisarão no vasto imperio
Que teu facho allumia;
Mas que vale de menos um psalterio
Dos orbes na harmonia?
Outro sol como tu, outras espheras
Virão no espaço descantar seu hymno,
Renovando nos sitios onde imperas
Do sol dos sóes o resplendor divino.
Gloria a seu nome! um dia meditando
Outro céo mais perfeito,
O céo d'agora a seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então, mundos, estrellas, sóes brilhantes,
Qual bando d'aguias na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no fundo do universo.
Então a vida, refluindo ao seio
Do fóco soberano,
Parará concentrando-se no meio
D'esse infinito oceano;
E acabado por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na immensidade—
[47]
O silencio, aguardando a voz futura,
O throno de Jehovah, e a eternidade!
A. A. Soares de Passos, Poesias, 145. 2.ª ed. Porto, 1858.
ANHELOS
Que immenso vacuo n'este peito sinto!
Que arfar eterno de revolto mar!
Que fogo ardente, que já mais extincto
Sómente afrouxa para mais queimar?
Ai! esta sêde que meu peito rala,
Talvez a apague mundanal prazer:
Ali ao menos poderei fartal-a,
Ou n'um lethargo sem paixões viver.
Mas d'essa taça já pensei... não quero!
Quero deleites que inda não sentí...
A lucta, os riscos d'um combate féro!
Talvez encantos acharei alli.
A lucta, os riscos, em acção travadas
Guerreiras hostes disputando o chão;
O sangue em jorros, o tinir d'espadas,
O fumo e o fogo de voraz canhão!
Ali os gosos de um feroz delirio
Á luz das armas sentirei em mim,
Ou n'uma d'ellas o funéreo cirio
Que á paz dos mortos me conduza emfim.
Mas não, não quero sobre a terra escrava
A vós tyrannos immolar o irmão...
[48]
O mar, o mar, que em sua furia brava
Ninguem domina com servil grilhão!
O mar, o mar! sobre escarcéus revoltos
Em fragil lenho fluctuar me apraz
Ao som das vagas e dos ventos soltos,
E das centelhas ao clarão fugaz.
Alli sorrindo da feroz tormenta,
E dos abysmos que me abrir aos pés,
Dentro d'esta alma de prazer sedenta
Sublime goso sentirei talvez.
Mas o mar livre tem um leito ainda
Que os meus anélos poderá suster...
O espaço! o espaço! na amplidão infinda
Talvez que possa o coração encher.
O espaço, o espaço! qual ligeiro vento
Irei lançar-me n'esse mar sem fim,
E a longos tragos aspirar o alento,
Sentir a vida que desejo em mim...
Ora aguia altiva, desprezando o sólo,
O rei dos astros buscarei então,
Ora entre as neves do gelado pólo
Voarei nas azas do veloz tufão.
Mas solitario, sem cessar errante,
De que valêra na amplidão correr?...
A gloria, a gloria, que em painel brilhante
Me offerece a imagem d'um maior prazer!
A gloria, a gloria, mil trophéus ganhados,
Mil verdes palmas e laureis tambem;
Triumphos, c'rôas e sonoros brados
[49]
Da turba: É elle!—repetindo alem...
Então em sonhos d'uma vida infinda
Verei a chamma d'immortal pharol,
Que em meu sepulchro resplandeça ainda,
Bem como a lua quando é morto o sol.
Mas não, que a inveja com a voz mentida,
A luz em sombras poderá tornar...
O amor, o amor, que redobrando a vida,
A vida n'outrem me fará gosar!
O amor, o amor, celestial perfume
Que a mão dos anjos sobre nós verteu,
Doce mysterio que n'um só resume
Dous pensamentos aspirando ao céo!
O amor, o amor, não mentiroso incenso
Que em frios labios só no mundo achei,
Mas immutavel, mas sublime e immenso
Qual em meus sonhos juvenís sonhei...
O amor! só elle poderá n'esta alma
Risonhas crenças outra vez gerar,
De minha sêde mitigar a calma,
E inda fazer-me reviver e amar.
A. A. Soares de Passos, Poesias, pag. 43.
[50]
UMA PHANTASIA DE THALBERG
Foi n'uma negra noite...
Sósinho, á beira mar...
Ai, toca-me esses cantos
Que m'a fazem lembrar!
E o vento era tão frio!
Chamei então por Deus...
E Deus foi mudo, e mudos
A terra, o mar e os céus.
Sorri-me!... Era uma vaga
Que alem vinha a bramir...
Ai, toca-me esses cantos,
Que gosto de os ouvir!
Um véo de negras nuvens
Não vem o céo turbar?
Ás vezes ha prazeres
N'um triste recordar.
E que saudade eu sinto
Lembrando-me d'então!
Ai, toca-me esses cantos,
Que tão saudosos são.
[51]
Oh, longe, longe! E ouvi-te...
Não penses que eu menti...
Que diga o vento e as rochas
O que eu chamei por ti.
E não me ouviste. O oceano
Gemendo ouviu meus ais!...
É tam triste esta musica!...
Ai não m'a toques mais.
S.—A Grinalda, vol. I, pag. 28.
AO SOL
Que te importam a ti, astro fecundo,
Essas mil gerações de fragil barro,
Que vês, qual denso pó, brotar no mundo
Sob as ardentes rodas do teu carro?
Quando, nuncio da vida, a mão do eterno
Te fez brilhar no espaço a vez primeira,
Medonhas sombras, e continuo inverno
Cobriam a teus pés a terra inteira.
[52]
Mas apenas a luz doirando os ares,
Veiu annunciar-lhe, oh sol, o teu destino,
O gelo róla convertido em mares,
E a terra sólta da existencia o hymno,
Que mais querias tu? No immenso grito
Que exhalava, acordando, a natureza,
Nas ondas, nas florestas, no infinito
Vias gravado, oh sol, tua grandeza.
E disseste comtigo:—A vida e as flores
São o rastro que deixo em meu caminho,
Quando, cingido d'immortaes fulgores,
Em mortas solidões rólo sósinho.
Disseste; e proseguindo o immenso trilho,
N'outras regiões entraste socegado,
E em cada globo a que chegou teu brilho,
D'um novo genesís ouviste o brado.
Que te importava o mundo? Á luz immensa
De teus lucidos mantos desprendida,
Já o verme infeliz que vive e pensa
Para te festejar saudára a vida;
E se acaso de novo, oh sol fecundo,
Encontrasses a terra erma e gelada,
D'entre as ruinas fataes do antigo mundo
Fizeras mil nações surgir do nada.
Que tinha, pois, comtigo a obscura raça
Que só diz grande, e bella e omnipotente,
Mas que, envolta no pó, sussurra e passa,
Sem jámais encarar teu brilho ardente?
[53]
Deus o mandou, oh sol. Ás tuas plantas
Nunca da terra o passageiro grito
Irá turbar as harmonias sanctas
Das espheras que vagam no infinito.
Não! Embora as nações caiam por terra
Com seus templos, suas leis, seus monumentos;
Tu passarás tranquillo, á luz da guerra,
Por cima dos cadaveres sangrentos.
Rica de magestade, á flôr dos mares,
Bella n'outr'ora a Atlantida reinava,
Casando o torvo som d'impios folgares
Do rude oceano á voz ruidosa e cava.
Debalde em torno d'ella a tempestade
Soltava, ás noites, infernal lamento...
Deus mandava-lhe ignota mocidade
No rugir dos trovões, na voz do vento,
E ella rindo vaidosa, á luz errante
Que o céo, a terra, e as ondas accendia,
Clamava ao mar revolto:—«Eia, oh gigante,
Repete a voz de Deus, responde á orgia.
Que tens? Porque deitado ao pé das fragas,
Gemes a custo em vil torpor submerso?
Brinca tambem, oh mar, enrola as vagas,
E vem se pódes embalar meu berço.»
Mas um dia fatal, em torno d'ella,
A sombra d'Elohim pairou nos ares,
E ao som ruidoso de infernal procella,
Passou rente c'o a terra erguendo os mares.
[54]
E ella, qual flôr secca e mirrada,
Que a lava arroja em turbilhões de fumo,
Sentiu metter-lhe os hombros a rajada,
E arrastal-a no chão sem lei, sem rumo.
E hoje, que é d'ella, oh Sol? N'essas paragens
Ainda em pé, na gavêa, o marinheiro
Ergue altivo seus canticos selvagens
Procurando um albergue hospitaleiro:
Mas em torno de si, no mar deserto,
Só vê mil rolos de fervente espuma,
E a gaivota que fende em giro incerto
Do horisonte longinquo a densa bruma.
E tu, oh sol, tu passas como d'antes,
Sereno, magestoso e solitario,
Doirando as vastas solidões fluctuantes,
Que são da pobre Atlantida o sudario.
Deus creou-te immortal. Seu braço immenso
Gravou no teu clarão: Gloria e mysterio.
E entre nuvens de canticos e incenso
Deu-te de ignotas solidões o imperio.
Eia, caminha pois—esparge ufano
N'esses ermos sem fim teus mil fulgores,
E deixa o homem levantar insano
D'um orgulho infundado os vãos clamores.
Eu já li nas canções de antiga raça
Que um dia cahirás do excelso throno,
Como as penhas, que o raio despedaça,
Ou como as folhas que desprende o outono.
[55]
E ri-me. O vérme insano, o rei obscuro
Por suas mãos em farça vil coroado,
Imaginar-se um deus, lêr no futuro,
E erguer aos astros pavoroso brado!
Elle, que ao teu clarão surgindo ufano
Do seio inerte da brutal materia
Nem vê nos céos, nos montes, no oceano
De seu fadario horrivel a miseria!
Elle julgar-se um deus!... Mas n'outra edade
Também eu te bradei louco d'amores:
—A ti, a ti, oh sol, a immensidade,
Mas a nós... as paixões, a crença e as flores.—
Doido! Que importa caminhar na terra
Ebrio de amor, d'aspiração e gloria,
Se tudo, tudo que este mundo encerra
Tem de esquecer por fim nossa memoria?
Que vale, oh sol, n'um extasis profundo
Crear mil sonhos de immortal belleza,
Se nem um élo, um só, nos prende ao mundo?
Se nada tem comnosco a natureza?
Segue, segue o teu curso, astro bemdito,
Que entre milhões de sóes vaidoso passas
Derramando nos seios do infinito
O ardente germen de futuras raças.
Tu, sim, és immortal.—Na tua frente
Reluz etherea, inextinguivel chamma,
Que sempre, sempre, á voz do omnipotente,
De novas éras o raiar proclama.
[56]
Tu sim, és immortal. Embora o dia
Perdido, ao longe, na veloz carreira
Deixes de novo a terra arida e fria
Buscando n'outros céos a errada esteira;
Embora; ao teu clarão todo o universo
Clamará ao Senhor: «Senhor, piedade!»
E elle fendendo os céos em luz submerso,
Te mostrará de novo a immensidade.
1854
Alexandre Braga, Grinalda, t. II, p. 134.
HYMNO Á LUA
Levanta-te! surge, rainha modesta,
Que vens pudibunda da noite na festa
Teu sceptro tomar;
De traz das montanhas, o que é que tu sondas?
O sol? não o temas, que ha muito nas ondas
Se foi occultar.
E a noite é tão triste sem ti, meiga lua!...
Sem ti o regato perdido fluctúa,
Não sabe onde vae;
[57]
Pratêa-lhe as aguas co'a luz argentina,
E as margens lhe alegra, que a densa neblina
Ao ver-te, se esvae.
A noite é bem triste sem ti, astro lindo;
Mas quando apparecer, das nuvens abrindo
Os pallidos véos,
Tão linda e tão seria, teu gesto profundo
Parece o de virgem que vaga no mundo,
Mas scisma nos céos.
Sem ti as montanhas que ondeam distantes
No pardo horisonte, não tem habitantes,
Ninguem móra lá;
Mas quando as envolve de candidos mantos,
Visões namoradas de aérios encantos
Teu brilho lhes dá.
Eu amo-te sempre! quer brilhes entre ondas,
De nuvens gigantes, que timida escondas
O casto fulgor;
Bem como o futuro que sonha o poeta,
Nos sonhos incertos, de mente inquieta
Já gôso, já dor.
Ás vezes amiga das velhas ruinas,
O antigo mosteiro calada illuminas
Beijando-lhe a cruz;
E a cruz mutilada, já meio pendida,
Ao ver-te, remoça; que tu lhe dás vida
Co'a magica luz.
Ás vezes espreita por entre cyprestes
A estancia dos mortos, e os tumulos véstes
[58]
Com mantos de dó;
Alli surprehendes a virgem que, leda
Se crê isolada... e um nome segreda,
Que tu ouves só.
E o homem não ama teus palidos mantos;
Á vida aspirando, dedica seus cantos
Do sol ao fulgor;
Mas quando são findos os sonhos da vida,
Quem vem afagal-o na extrema guarida?
Teu mystico amor.
Eu não, eu não gosto da luz orgulhosa
D'esse astro que alegra co'a chamma pomposa
Da vida o festim...
O sol! não é elle que pinta os martyrios,
Nem roxos amores, nem candidos lyrios;
Mas tu, lua, sim.
Que digam os sabios, que o sol sempre ardente,
Se para nós surge n'um outro occidente
Sumir-se lá vae...
Mas eu, n'este mundo tambem passageiro,
Quero antes a lua modesto lazeiro,
Que vive e se esvae.
J. S. da Silva Ferraz, O Novo Trovador, p. 163. Coimbra, 1856.
[59]
A VIDA
Ao longe! ao longe! quem ir lá me déra
Colher virente louro, ou linda flor,
N'esse jardim d'eterna primavera,
Todo cheio de luz e esplendor.
Tem o louro, veneno em suas bagas...
Tem espinhos as rosas mais gentis...
Avante! talvez possa minhas chagas
Curar na solidão, viver feliz.
Quem é d'esses jardins que vi formosos,
Cobertos de perfume e de verdor?...
Nos espinhos até sentia gozos,
Agora de não vel-os sinto a dor.
Caminha, louca, alem; caminha ávante!
O que julgas o nada é tenue véo:
[60]
Depois d'elle corrido, tens adiante
Bem mais lindo jardim, bem mais, o céo.
1853
A. C. Louzada, Grinalda, t. VI, p. 43.
A FILHA DA MOLEIRA
Oh senhora mãe,
Deixe-me ir á festa,
Que não ha nenhuma
Mais linda do que esta.
Arcos, fogo e musica,
Arraial tão lindo!...
E moços e moças
Conversando e rindo.
Ir lá tambem posso;
Já não sou pequena,
Sou da mesma edade
Da Rita Morena.
[61]
Estou já crescida,
Sou quasi da altura
Da Rosa, que em breve
Casa o senhor Cura.
Já sei molinhar
Como um bom moleiro,
No moinho do milho,
E mais no alveiro.
Já posso co' trigo;
Já chego á moéga,
Vou mesmo ao travouco,
Se ás vezes adrega.
Se no tremonado
A farinha é grada,
Sei dar na estadêa
Geitosa pancada.
E se o grão cae pouco
Sobre a segurelha,
Desando o torno,
Desço mais a quelha.
Quem faz d'estas cousas
Já não é criança:
Já póde ir ás festas,
Já canta e já dança.
Dê-me o chapéu fino,
E a roupa asseada,
Que eu ir lá não devo
Toda enfarinhada.
[62]
Heide ir de chinellas,
De meias de linho,
Camisa mui branca...
Mas não de farinha.
Não quero se ria
De mim todo o povo;
Dê-me a saia verde,
Quero o gibão novo.
Que se eu levo o outro
Tão coçado e antigo,
Não virão os moços
Conversar commigo.
Eu quero mostrar-me
No largo da egreja,
E mordam-se as outras
Embora de inveja.
E se perguntarem
Quem é a gaiteira,
Saibam pois que é filha
Da Thereza moleira.
Henrique Augusto, A Grinalda, t. III, p. 7. Porto, 1860.
[63]
A TROCA DA MINHA LYRA
Uma vez que eu recolhia,
Para dar aos meus amores,
No jardim da poesia
Um ramo de varias flores,
Trouxe, pousada na rosa,
Leve e gentil mariposa.
Olhando-a então mais de perto,
Reconheci que a belleza
Excede muito, de certo,
Nos reinos da natureza
Aquella que um vate gera,
E á qual eu já culto déra!
Vi as escamas subtis
Em forma de bellas pennas,
Que dão ás azas matiz,
E as delicadas antennas:
E comecei a ver mais,
Estudando os animaes.
Vi a próvida formiga,
Vi a aranha tecedeira,
Vi a abelha nossa amiga,
[64]
Vi a vêspa carniceira:
E o sirgho, que a sêda tece,
Com que os homens enriquece.
Vi as conchas variadas
Na fórma, grandeza e côres,
Umas nas aguas salgadas,
Lá vivem com seus amores;
Outras nos rios e fontes;
E outras nos valles e montes.
Que bizarra a creação!
Que o cantinho mais escuro
Não deixara na exempção
D'um habitante seguro!
Que as entranhas d'outros têm
Entes com vida tambem.
Se á lyra desafinada
Já cantei a noite e o sol,
Hoje, sem lyra, sem nada,
Serei tambem rouxinol:
Cantarei da natureza
Solida graça e belleza;
E porque amor não me inspira,
Já troquei a minha lyra
Pela casca d'um caracol.
1862
Augusto Luso, Grinalda, t. VI, p. 103.
[65]
A ESMOLA DO POBRE
Nos toscos degráos da porta
De egreja rustica e antiga,
Velha trémula mendiga
Implorava compaixão.
Quasi um seculo contado
De atribulada existencia,
Eil-a, enferma e na indigencia,
Que á piedade estende a mão.
Duas crianças brincavam
A distancia, na alameda;
Uma trajava de sêda,
Da outra humilde era o trajar!
Uma era rica, outra pobre,
Ambas loiras e formosas,
Nas faces a côr das rosas,
Nos olhos o azul do ár.
A rica, ao deixar os jogos,
Vencida pelo cançasso
Viu a mendiga,—e ao regaço
Uma esmola lhe lançou.
Ella recebe-a; e a criança,
[66]
Que a soccorre compassiva,
Em préce fervente e viva,
Aos anjos encommendou.
De um ligeiro sentimento
De vaidade possuida,
Á criança mal vestida
Disse a do rico trajar:
«O prazer de dar esmolas
A ti e aos teus não é dado;
Pobre como és, coitado,
Aos pobres o que has de dar?»
Então a criança pobre,
Sem más sombras de desgosto,
Tendo o sorriso no rosto
Da egreja se aproximou,
E após, serena, em silencio,
Ao chegar junto da velha,
Descobrindo-se, ajoelha,
E a magra mão lhe beijou.
E a mendiga, alvoroçada,
Ao collo os braços lhe lança,
E beija a pobre criança,
Chorando de commoção!
É assim que a caridade
Do pobre ao pobre consola;
Nem só da mão sae a esmola,
Sae tambem do coração.
Julio Diniz, (Gomes Coelho) Grinalda, t. VI, p. 115.
[67]
PORTUGAL VELHO NO SECULO XIX
Os nossos avós jarretas,
Lá nos tempos carunchosos,
Ao lume, contando pêtas,
Entre creados idosos,
Passavam noutes seletas.
Polkas, chás e contradanças
São cousas que nunca viram!
Todas as suas mestranças
D'Africa os mouros sentiram
Na ponta das fortes lanças.
Tinham barbas não pequenas,
Bigode em fórma avultada;
Cabelleiras nazarenas,
Nunca usaram nem pomada
Que lhes ungisse as melenas.
Vinha o padre capellão
As vidas dos santos lêr,
E muitas vezes então,
Quem a Asia fez tremer
Chorava de compunção!
[68]
Crença tão sincera e pia
Creou quasi homens divinos!
Da descrença hoje a mania
Cria apenas figurinos
Com fórmas varias de enguia!
Môsca subtil hoje pende
Sob mesquinho bigode...
Quem a tal miséria attende
Com razão duvidar póde
D'onde esta barba descende!
Palavra de um portuguez
Valia como escriptura:
Da barba cabellos trez
Hypotheca eram segura
Quando o grande Castro a fez!
Palavras hoje, aos milhões,
Não faltam,... isso é verdade;
Mas vê-se tremer sezões,
Quem teve tanta bondade
Que emprestou os seus tostões!
No castello de Faria
Sustentou leal soldado
Essa herdada valentia,
Com que um cidadão honrado
A vida á patria offer'cia!
Soube n'Africa o Menezes,
Soube n'India o Mascarenhas,
Mostrar ao mundo, mil vezes,
[69]
Que eram mais firmes que penhas
Os peitos dos portuguezes.
Hoje a walsa e a contradansa ...
Suprem bem Tanger e Diu;
Foi outr'ora o Gama um pança,
E o Albuquerque um sandio
Que nem merecem lembrança!
Do bom Faria a firmeza
Faz hoje morrer de riso!
Imbecil por natureza
Cuidava, o pobre sem siso,
Achar na morte a nobreza!
Que parvo! Se se entregára
Com geitinho aos castelhanos,
Talvez dinheiro alcançára
Com que rico aos lusitanos
Para outra vez se passára!
Com estes passos e trespasses
Descobriu-se um grande int'resse!
Os heroes são os cachaços,
Que onde dinheiro apparece
A honra lhes cae nos braços!
Sópre o norte com excesso,
Sópre o sul, leste ou poente,
É bom vento, e bom succeso!
Quem crava melhor o dente
Toca a méta do progresso!
[70]
Ao antigo Portugal
Parece estar bem provado
Quanto o louvor caiba mal...
Que é tontura ser honrado
Sem n'isso ganhar real.
1867 Visconde de Azevedo, A Grinalda, t. VI, p. 20.
AVE CAESAR
(Á morte de Carlos Alberto, rei do Piemonte)
I
Eil-o, o teu defensor, oh liberdade;
Eil-o, no extremo leito! Á humanidade
O tributo pagou!
Da nobre espada á lamina abraçado,
Viveu soldado-rei, e, rei-soldado
Sobre a espada expirou.
Rasgou-lhe ovante as margens do destino;
Foi-lhe rôta bordão de peregrino
Essa espada leal!
Hoje é cruz. Do aço puro a cruz só resta,
Sentinella da campa ao mundo attesta
Que o heroe era mortal.
[71]
Os Œdipos de um drama incerto e vario
Talharam-te na purpura o sudario;
Deixaram-te ermo e só!
Salve, oh rei! Rei no solio e no abandono;
Mais rei no exilio do que os reis no throno,
Rei até sobre o pó.
II
Salve, oh martyr, coroado
Dos espinhos da paixão;
N'uma nova cruz pregado
D'uma nova redempção!
O teu Golgotha foi este.
Aqui te cobre um cypreste
Muita gloria e muita dôr;
Aqui teus mares plantaste;
Vencido, aqui triumphaste
De ti mesmo vencedor!
O calix já trasbordava:
Bebeste-o. Foi Deus que o quiz!...
Deu a vida á Italia escrava,
E a sua alma ao seu paiz.
Não dobra a fronte suprema:
Impondo o pó no diadema
Dos extranhos foge á lei,
E, holocausto derradeiro,
Expia a dor do guerreiro
Na sepultura do rei!
Foi longa aquella agonia!
Foi curta aquella afflicção!
Desceu rapida n'um dia
[72]
Da cabeça ao coração.
Entre as balas despedidas,
Entre as phalanges caídas,
Ficou tranquillo e de pé,
Como o cedro da montanha,
Que, da tormenta na sanha,
As selvas prostradas vé!
Pela Italia, Hespanha e França
Depois, calado, galgou;
E por momentos descança
Onde o somno lhe faltou!
Chega, observa, scisma e pára.
O soldado de Navára
Quer ter por leito final,
Quer por leito das batalhas
Este berço de muralhas
Que fez livre Portugal;
Onde a nossa liberdade
Martyr, heroica nasceu,
Pela sua magestade
Heroica e martyr morreu.
Das glorias tuas, oh Douro,
Accrescentaste o thesouro
O que é ligando ao que foi,
Cingiu teu braço robusto
D'um heroe ao resto augusto
A memoria d'outro heroe!
Ambos firmes combateram
Para a patria libertar;
Ambos do throno desceram,
Para a vida á patria dar;
[73]
Ambos reis, ambos soldados,
Ambos fieis a seus fados,
Mostraram que no provir
Podem ambos muitas vezes,
No triumpho ou nos revezes
Eguaes da historia surgir.
III
Ferve o sangue, troveja a batalha!
Tine o ferro, rebomba o canhão!
Pavorosa sibila a metralha,
Varre as filas, dispersa-as no chão.
Lá galopam, se imbebem, se enlaçam
Uns aos outros, rivaes esquadrões;
Corpo a corpo ferventes se abraçam
Em sangrentos, crueis turbilhões.
No lampejo do gladio vermelho
Fulge o raio que a morte vibrou!...
Sem seu filho a gemer deixa um velho,
Seu esposo uma esposa deixou.
D'essa immensa procella da guerra,
D'esse ardente, confuso stridor,
Que ficou? Uma corôa por terra,
Uma bella cativa, um senhor!
Pobre Italia, tão bella e tão triste
No teu vasto, florído jardim!
Foi-te ingrata a fortuna, cahiste;
Mas a quéda de um povo tem fim.
[74]
Infelizes! Da turba guerreira
Fica um resto, que, prompto a morrer,
Cobre a face co' a rôta bandeira,
Para ao menos a affronta não vêr.
Mudos prantos os rostos consommem,
Dos valentes de Goito... Que adeus!
Era a sombra de um rei e de um homem,
Que passava em silencio entre os seus.
E passava. Expirar não lograra
Sob o golpe que em vão procurou;
Mas a vida que o céo lhe deixára
Entre os braços da patria a deixou.
IV
Salve, salve, oh magestade
Moribunda a succumbir!
Como o espinho da saudade
Te havia fundo pungir!
Como o homem soffreria
Do monarcha na agonia!
Longe do que era tão seu,
Da esposa e filhos briosos,
E dos campos seus formosos,
E do seu formoso céo!
—Patria, adeus! Italia minha,
Oh terra que tanto amei!
Se te não fiz ser rainha,
Não quiz mais tambem ser rei!
Adeus, margens do Tessino,
Sentença do meu destino!
[75]
Adeus, povo que escolhi;
Sê tu justo e livre e forte,
Possa dar-te a minha morte
O que em vida não vencí.—
Assim dizia; e lançando
Os olhos em derredor,
E vendo afflicto chorando
Outro povo aquella dor,
Resoluto accrescentara:
—O soldado de Navára
Morre contente afinal,
Morre ao ecco das batalhas,
N'este berço de muralhas,
Que fez livre Portugal.—
J. S. Mendes Leal, Canticos, p. 227. Lisboa, 1858.
[76]
SE CÓRAS NÃO CONTO
Tu queres que eu conte um sonho que tive,
Não sei se acordado, não sei se a dormir:
Foi todo singelo, foi todo innocente,
Tu córas—sorris-te; tens medo de ouvir?
Não córes, escuta; não fujas de mim,
Que o sonho foi sonho de casta invenção;
Já crês—não duvidas—verás como é lindo
O sonho innocente do meu coração.
Eu via em teus labios um meigo sorriso,
Em teus olhos negros um terno mirar,
Teu seio de neve a arfar docemente.
Sentia nas faces o teu respirar.
E tu não fallavas, mas eu entendia,
E tu não fallavas,—mas eu bem ouví
Amor!—na minh'alma a voz me dizia,
E um beijo na fronte não sei se o sentí.
Já vês, o meu sonho é sonho innocente,
O resto eu te conto; como hades gostar!
É todo singelo—de amores sómente,
Verás que ao ouvil-o não hasde córar.
[77]
Depois apertando teu corpo ligeiro,
Cingindo teu collo no braço a tremer,
Ouvi uma falla—e o que ella dizia
Agora acordado não posso dizer.
Não posso contar-t'a, só pude sentil-a,
Não posso contar-t'a senão a sonhar
No sonho innocente—no sonho de amores
Que tu, duvidosa, julgavas córar:
Não posso contar-t'a, nem sei se acordado
O que ella dizia se póde entender;
Eu sei que sonhando pensei que era sonho,
E agora acordado a não posso esquecer.
Mas tu porque escondes a face córada?
Não tem nada o sonho que faça córar?
É todo singello—é todo innocente,
Que importa um abraço, se é dado a sonhar?
Mas tu não te escondas, que eu fico calado,
Não quero offender-te a casta isempção,
Não torno a contar-te depois de acordado
O sonho innocente do meu coração.
[78]
O DOIDO
Passei!—O povo na praça
Se apinhava todo alli;
Olha-me a turba devassa,
E chama-me doido, e rí.
Retiniu a gargalhada,
Soturna, fria, pausada,
Perdeu-se ao longe,—pensei
Um momento em mim;—vaidade!
Á turba dei, por piedade,
O meu desprezo, e passei!
Porque luctas, sociedade,
Contra o genio?—Não venceu
Teus sophismas a verdade
Nos labios de Galileu?
E era um doido! De demencia
Alcunhaste a intelligencia
Cujo peso te esmagou;
Não chamaste louco ao Tasso
Por fender n'um vôo o espaço
Que o talento lhe apontou?
E eu, doido; porque sósinho
Não imploro amor, nem dó!
[79]
Firme trilho o meu caminho,
Mas quero trilhal-o só.
Ver-me só n'este degredo,
Não profanar um segredo,
Nem ir, mendigo servil,
Pedir gloria; não careço
De vender-me pelo preço
De um sorriso estulto e vil.
Se soffrí muito... calei-me,
Repreza ficou a voz;
No inferno d'alma abrazei-me...
Mas eu era e a dor a sós.
A ninguem pedi esmola
De uma lagrima que rola
Nas faces por compaixão;
Foram só meus gemidos,
Não quiz vêr prostituidos
Mysterios do coração.
Tantas fui n'esta alma ardente
Visões lindas conceber!...
Que desengano pungente!
Encontrei uma mulher
Em vez das visões divinas,
Colloquei-me entre as ruinas
Do meu passado e porvir;
Olhei a vida de perto,
Tinha um horisonte incerto,
Quiz força para reagir;
E tive-a. Da dependencia
As algemas quebrei eu;
Nem sequer a esta existencia
[80]
Pedí o influxo do céo;
Porque uma vez, não me esquece,
Balbuciei uma prece,
D'angustia soltei um ai,
Da magoa o brado no anceio
Que não teve ecco no seio
De um senhor, que é Deus... que é pae!
Ao soffrimento puz termo,
Suffoquei n'alma as paixões,
E no peito achei um ermo
De affectos, de sensações;
Parto de um golpe as cadeias
Que me anciavam: e nas veias
Livre o sangue tem calor;
Encontro-me só, mas forte,
Salvo o espirito da morte,
De um marasmo assustador.
D'estes hombros, n'um momento,
Arrojei ao longe a cruz;
E pedí ao pensamento
Em vez das trevas a luz.
Quiz ver e vi: que não sente
Ninguem, que a palavra mente
Que quer dizer—coração;
É o homem meu inimigo,
E ao que me bradou—amigo,—
Recusei volver lhe a mão.
Da mulher á face impura
Que me fallou em amor
Com hypocrita candura,
Com calculado fervor,
[81]
Com mentido enthusiasmo,
Cuspi acerbo sarcasmo;
Forcei-a aos olhos baixar;
E a mulher e o homem vingáram
Tamanha affronta e bradaram:
Deixem o doido passar!
O doido passa; não venha
Ser-lhe de estorvo ninguem,
N'um abysmo se despenha
Rindo ao mal e rindo ao bem!
Que vos importa se espande
Sua alma assim?—se elle é grande
Porque em si é grande a fé;
Se vós tremeis por bem pouco...
Porém vêdes sempre o louco
Firme, impassivel, de pé.
Ernesto Marecos, Primeiras Inspirações, p. 119. Lisboa, 1865.
Ella morreu?... Pois d'ella nada existe?...
Triste do sêr que só na vida colha
Os resquicios da flor que se desfolha,
E o riso que desmaia!... Ai, triste, triste!...
Que tudo o que eu amar logo se extingue!
No cuidado jardim dos meus amores,
Que nem uma só flor, de tantas flores,
Heide vêr e querer que vice e vingue!
Que sina é pois, meu Deus, a minha sina?
Parece que ando sempre adstricto á morte;
Fujo do que é vivaz e alegre e forte,
Busco tudo o que chora e a fronte inclina.
Mais quero ao pôr do sol que á rósea aurora;
Mais que ao botão acceso, á flor que pende;
Mais que ao peito que lucta, ao que se rende;
Mais que ao riso feliz, á voz que implora.
Não sei que tem a pallidez do outono,
E o frémito das folhas desbotadas;
Lembra-me em noites no prazer passadas
Um sonho de ternura antes do somno.
[83]
Alguma cousa vaga e transparente
Que enlaça co'a visão a realidade,
Que affaga e que sorrí, mas faz saudade
Por que enche d'agua os olhos do vidente.
Eu vi-a e senti n'alma que a adorava,
Que fragancia! que flor! que novidade!
É que a mystica luz da eternidade
Já da entre-aberta campa a illuminava.
E eu louco ante visão tão pura e bella,
Nem via em tanta luz sombra da morte,
Nem me lembrei da minha ingrata sorte,
E eu sabia que amal-a era perdel-a!
Adeus!... Se existe o céo... a eternidade?...
Se nos veremos no paiz risonho?...
A vida transitoria e a morte... é sonho?...
Meu Deus! porque nos dás esta saudade?
1869 Thomaz Ribeiro, Grinalda, t. VI, p. 7.
[84]
A VIDA
Foi-se-me pouco a pouco amortecendo
A luz que n'esta vida me guiava,
Olhos fitos na qual até contava
Ir os degraus do tumulo descendo.
Em se ella annuveando, em a não vendo,
Já se me a luz de tudo annuveava;
Despontava ella apenas, despontava
Logo em minha alma a luz que ia perdendo.
Alma gémea da minha, ingenua e pura
Como os anjos do céo (se o não sonharam...)
Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura.
Não sei se me voou, se m'a levaram,
Nem saiba eu nunca a minha desventura
Contar aos que inda em vida não choraram.
Ah! quando no seu collo reclinado
—Collo mais puro e candido que arminho,
Como abelha na flor do rosmaninho
Osculava seu labio perfumado;
Quando á luz dos seus olhos... (que era vel-os,
E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!)
Lia na sua bocca a Biblia santa
Escripta em letra côr dos seus cabellos;
[85]
Quando a sua mãosinha pondo um dedo
Em seus labios de rosa pouco aberta,
Como tímida pomba sempre álerta,
Me impunha ora silencio, ora segredo;
Quando, como a alvéola, delicada
E linda como a flor que haja mais linda
Passava como o cysne, ou como, ainda
Antes do sol raiar, nuvem doirada;
Quando em balsamo d'alma piedosa
Ungia as mãos da supplice indigencia,
Como a nuvem nas mãos da providencia
Uma lagrima estilla em flor sequiosa;
Quando a cruz do collar do seu pescoço
Estendendo-me os braços, como estende
O symbolo d'amor que as almas prende,
Me dizia... o que ás mais dizer não oiço;
Quando, se negra nuvem me espalhava
Por sobre o coração algum desgosto.
Conchegando-me ao seu candido rosto,
No perfume d'um riso a dissipava;
Quando o oiro da trança aos ventos dando
E a neve de seu collo e seu vestido
—Pomba que do seu par se ia perdido,
Já de longe lhe ouvia o peito arfando;
Tinha o céo da minha alma as sete côres,
Valia-me este mundo um paraiso,
Distillava-me a alma um doce riso,
Debaixo de meus pés nasciam flores.
[86]
Deus era inda meu pae. E emquanto pude
Li o seu nome em tudo quanto existe
—No campo em flor, na praia árida e triste,
No céo, no mar, na terra e... na virtude!
Virtude! Que é mais que um nome
Essa voz que no ár se esvái,
Se um riso que ao labio assome
N'uma lagrima nos cae!
Que és, virtude, se de luto
Nos vestes o coração!
És a blasphemia de Bruto
—Não és mais que um nome vão.
Abre a flor á luz, que a enleva,
Seu calix cheio d'amor,
E o sol nasce, passa e leva
Comsigo perfume e flor!
Que é d'esses cabellos d'oiro
Do mais subido quilate,
D'esses labios escarlate,
Meu thezoiro!
Que é d'esse halito, que ainda
O coração me perfuma!
Que é do teu collo de espuma,
Pomba linda!
Que é d'uma flor da grinalda
Dos teus doirados cabellos;
D'esses olhos, quero vel-os,
Esmeralda!
[87]
Que é d'essa alma que me déste!
D'um sorriso, um só que fosse,
Da tua bocca tão doce,
Flor celeste!
Tua cabeça, que é d'ella,
A tua cabeça d'oiro,
Minha pomba! meu thesouro!
Minha estrella.
De dia a estrella d'alva empallidece;
E a luz do dia eterno te ha ferido.
Em teu languido olhar adormecido
Nunca me um dia em vida amanhecesse.
Foste a concha da praia. A flor parece
Mais ditosa que tu. Quem te ha partido,
Meu calix de crystal, onde hei bebido
Os nectares do céo... se um céo houvesse!
Fonte pura das lagrimas que chóro!
Quem tão menina e moça desmanchado
Te ha pelas nuvens os cabellos d'oiro!
Sóme-te, vela do baixel quebrado!
Sóme-te, vôa, apaga-te, meteoro!
É n'este mundo mais um desgraçado.
E as desgraças, podia prevel-as
Quem a terra sustenta no ár,
Quem sustenta no ár as estrellas,
Quem levanta ás areias o mar.
Deus podia prevêr a desgraça,
Deus podia prevêr e não quiz;
[88]
E não quiz, não... se a nuvem que passa
Também póde chamar-se infeliz!
A vida é o dia d'hoje,
A vida é ai que mal sôa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que vôa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvae;
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cae!
A vida é flor na corrente,
A vida é sôpro suave,
A vida é estrella cadente
Vôa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma apoz outra lançou,
A vida—penna cahida
Da aza d'ave ferida—
De valle em valle impellida,
A vida o vento a levou!
Como em sonhos o anjo que me afaga
Leva na trança os lyrios que lhe puz,
E a luz quando se apaga
Leva aos olhos a luz;
Como os ávidos olhos d'um amante
Levam comsigo a luz d'um doce olhar,
[89]
E o vento do levante
Leva a onda do mar;
Como o tenro filhinho quando expira
Leva o beijo dos labios maternaes,
E á alma que suspira
O vento leva os ais;
Ou como leva ao collo a mãe seu filho,
E as azas leva a pomba que voou,
E o sol leva o seu brilho,
O vento m'a levou.
E tu és piedoso,
Senhor! és Deus e pae!
E ao filho desditoso
Não ouves um só ai!
Estrellas déste aos áres,
Dás perolas aos mares,
Ao campo dás a flor,
Frescura dás ás fontes,
O lirio dás aos montes,
E tiras-m'a, Senhor!
Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo,
Estendo os braços, e, palpando o mundo,
O céo, a terra e o mar vejo a meus pés;
Buscando em vão a imagem do meu anjo,
Soletro á froixa luz d'um moribundo
Em tudo só—talvez...
Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto
Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando
Vou polo mundo vêr se a posso vêr;
[90]
E onde, como a palmeira do deserto,
Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando
A sombra do meu sêr.
Meu sêr voou na aza da aguia negra
Que levando-a, só não levou comsigo
D'esta alma aquelle amor!
E quando a luz do sol o mundo alegra,
Chrysalida nocturna, a sós commigo,
Abraço a minha dôr!
Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia
Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço
Achas depois seus atomos subtis;
Inda has de ouvir a voz que ouviste um dia,
Como a sua Leonor inda ouve o Tasso...
Dante... a sua Beatriz!
—Nunca; responde a folha que o outono,
Da haste que a sustinha a mão abrindo,
Ao vento confiou;
—Nunca; responde a campa, onde, do somno,
E quem talvez sonhava um sonho lindo,
Um dia despertou.
—Nunca; responde o ai que o labio vibra;
—Nunca; responde a rosa que na face
Um dia emmurcheceu:
E a onda, que um momento se equilibra
Em quanto diz ás mais: deixae que eu passe!
E passou e... morreu!
João de Deus, Flores do Campo, p. 160. 2.ª ed. Porto, 1876.
[91]
ADORAÇÃO
Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par!
Contemplei-o de longe, mudo e quedo,
Como quem volta d'aspero degredo
E vê, ao ár subindo,
O fumo do seu lar!
Vi esse olhar tocante,
D'um fluido sem igual!
Suave, como lampada sagrada,
Bemvindo, como a luz da madrugada,
Que rompe ao navegante
Depois do temporal.
Vi esse corpo d'ave
Que parece que vae
Levado, como o sol ou como a lua,
Sem encontrar belleza egual á sua,
Magestoso e suave,
Que surprehende e attrae!
Attrae, e não me atrevo
A contemplal-o bem;
[92]
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta,
N'aquelle santo enlevo
D'um filho em sua mãe!
Temo, apenas presinto
A tua apparição!
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor, que eu sinto,
É uma adoração!
Que azas previdentes
Do anjo tutelar
Te abriguem sempre á sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!
João de Deus, Folhas soltas, p. 31. Porto, 1876.
SYMPATHIA
Olhas-me tu
Constantemente:
D'aí concluo
Que essa alma sente!...
[93]
Que ama, não zomba,
Como é vulgar;
Que é uma pomba
Que busca o par!...
Pois ouve; eu gemo
De te não ver!
E, em vendo, tremo
Mas de prazer!...
Foge-me a vista...
Falta-me o ár...
Vê quanto dista
D'aqui a amar!
João de Deus, Folhas soltas, p. 131.
A CIGARRA E A FORMIGA
Como a cigarra o seu gosto
É levar a temporada
De junho, julho e agosto
N'uma cantiga pegada,
De inverno tambem se cóme,
E então rapa frio e fome...
[94]
Um inverno a infeliz
Chega-se á formiga, e diz:
—Venho pedir-lhe o favor
De me emprestar mantimento,
Matar-me a necessidade!
E, em chegando a novidade,
Faço até um juramento,
Pago-lhe, seja o que fôr!
«Mas, (pergunta-lhe a formiga,)
O que fez durante o estio?
—Eu, cantar ao desafio.
«Ah! cantar? Pois minha amiga,
Quem leva o estio a cantar
Leva o inverno a dançar.
João de Deus, Folhas soltas p. 66.
O DINHEIRO
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça o maldito,
Tem tanto chiste o ladrão!
O fallar? falla de um modo...
Todo elle, aquelle todo...
[95]
E ellas acham-n'o tão guapo ...
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Pápo.
E a cegueira da justiça
Como elle a tira n'um ai!
E sem pegar n'uma pinça,
E só dizer-lhe: Ahi vae...
Operação melindrosa
Que não é lá qualquer cousa;
Catarata! tome conta;
Pois não faz mais do que isto,
Diz um juiz que o tem visto:
Tlim!
Prompta.
N'essas especies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquelle diabo faz.
Sem saber nem patavina
De grammatica latina,
Quer-se a gente d'ali fóra?
Vae elle com taes fallinhas,
Taes gaifonas, taes coisinhas...
Tlim!
Ora...
Aquella physionomia
E lábia que o diabo tem!
Mas n'uma secretaria
Ahi é que é vel-o bem!
[96]
Quando elle, de grande gala,
Entra o ministro na sala
Aproveita a occasião:
Conhece este amigo antigo?
—Oh meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!
João de Deus, Flores do Campo, pag. 147.
AMORES... AMORES...
Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola,
Que tenha um só par.
Eu tenho um moreno,
Tenho outro de cór,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfez-se-me o pejo
E o gosto ficou?
[97]
Um d'elles por graça
Deu-me um, e depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.
Abraços, abraços
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a rasão.
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ár.
Amores, amores,
Deixal os dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colhêr.
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra côr,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.
João de Deus, Flores do Campo, p. 71. 2.ª ed.
[98]
A SOMBRA
Quando Christo sentiu que a sua hora
Em fim era chegada, grave e calmo,
Sereno se acercou dos que o buscavam.
A turba vinha em armas! Mas, de tantos,
Nem um só se atreveu a dar um passo,
A pôr a mão no Filho do Homem.—Todos
De olhos no chão, as armas encobriam
Ante Jesus inerme.
Então aquelle
Que o tinha de entregar, aproximando-se,
O tomou nos seus braços, murmurando:
«Que Deus te salve, Mestre!» E, sobre a face
O beijou, como fôra contractado.
Então os mais, chegando-se, o prenderam.
Mas Jesus, sem os vêr, lhes perdoava;
De olhos no céo, seguía-os sereno.
Era duro o caminho. Sobre um monte
Iam, e dos dois lados, lá em baixo,
Cobria a treva a terra toda.
Quando,
Porém, sobre o mais alto d'esse monte
[99]
Foram emfim chegados, de repente
Viu-se-lhe uma das faces alumiar-se
De uma luz doce e branda, mas immensa!
E quanta terra, desde o monte ao oceano,
Lhe ficava do lado aonde virada
Lhe estava aquella face, reflectindo-a,
Tudo se esclarecia—valle e serra
E a metade do céo—apparecendo
Como em puro luar, ou qual se fosse
Vir nascendo uma aurora d'esse lado.
E essa face radiante era a que Judas
Não chegára a tocar.
Porém a outra,
Que elle beijara, conservou-se escura,
Como se o crime d'elle ali guardasse...
Onde a virava, era uma noite immensa,
Coberto o horisonte de nevoeiro...
Partido o mundo em dois, essa metade
Era a que se ficara envolta em sombras.
........................................
Foi d'essas sombras que se fez a Egreja!
1865
Anthero de Quental, Odes modernas, p. 129. 2.ª ed. Porto, 1875.
Como o vento ás sementes do pinheiro
Pelos campos atira e vae levando...
E, a um e um, até ao derradeiro,
Vae na costa do monte semeando;
Tal o vento dos tempos leva á Idéa,
A pouco e pouco, sem se vêr fugir...
[100]
E nos campos da vida assim semêa
As immensas florestas do porvir!
Anthero do Quental, Odes modernas, p. 135
Ha dous templos no espaço—um d'elles mais pequeno;
O outro, que é maior, está por cima d'este;
Tem por cúpula o céo, e tem por candelabros
A lua ao occidente, e o sol suspenso ao éste.
De sorte que quem stá no templo mais exiguo
Não póde vêr nascer o sol, nem póde vêr
As estrellas no céo,—que os tectos e as columnas
Não o deixam olhar, nem a cabeça erguer.
É preciso abalar-lhe os tectos e as columnas,
Porque se possa erguer a fronte até aos céos...
É preciso partir a Egreja em mil pedaços
Porque se possa vêr em cheio a luz de Deus.
1864
Anthero do Quental, Odes modernas, p. 155.
VERSOS ESCRIPTOS NA MARGEM
D'UM MISSAL
Bem póde ser que nossos pés dorídos
Vão errados na senda tortuosa,
Que o pensamento segue nos desertos,
Na viagem da Idéa trabalhosa...
[101]
Que a arvore da sciencia, sacudida
Com força, jámais deite sobre o chão,
Aos pés dos tristes que ali 'stão anciosos,
Mais do que o fructo negro da illusão...
Que o livro do Destino esteja escripto
Sobre folhas de lava, em letra ardente,
E não chegue a fital-o o olho humano
Sem que se offusque e cegue de repente...
Póde ser, que na lucta tenebrosa
Que este seculo move sob o céo,
venha a faltar-lhe o ár, por fim, faltando-lhe
A terra sob os pés, bem como Anteo...
Que do sangue espalhado nos combates,
E do pranto que cae da triste lyra,
No árido chão da esperança humano
Mais não nasça que a urze da mentira...
Que o mysterio da vida a nossos olhos
Se torne dia a dia mais escuro,
E no muro de bronze do Destino
Se quebre a fronte—sem que ceda o muro...
E que o pensamento seja só orgulho,
E a sciencia um sarcasmo da verdade,
E nosso coração, louco vidente,
E nossas esperanças só vaidade.
E nossa lucta, vã! talvez que o seja!
Cego andará o homem cada vez
Que vê no céo um astro! e os passos d'elle
Errados pelo mundo irão, talvez!
[102]
Mas, oh vós que prégaes descanço inerte,
No seio maternal da ignorancia,
E condemnaes a lucta, e daes ao homem
Por seu consolo o dormitar da infancia;
Apostolos da crença,... na inercia...
Vós que tendes da Fé o ministerio
E sois reveladores, dando ao mundo
Em logar de um mysterio... outro mysterio;
Se quanto o Universo tem no seio,
E quanto o homem tem no coração,
O olhar que vê, e a alma que adivinha,
O pensar grave e a ardente intuição,
Se nada—em terra e céo—pôde ensinar-nos,
Do fado humano o immortal segredo,
Nem os livros profundos da sciencia,
Nem as profundas sombras do arvoredo,
Se não ha mão audaz que possa erguel-o
O tenebroso véo do Bem e Mal...
Se ninguem nos explica este mysterio...
Tambem o não dirá nenhum Missal.
1865 Anthero do Quental, Odes modernas, p. 143.
[103]
ONDA VIVA
—Chame-te Sudra quem servil te nota,
Deixem-te as castas com horror sagrado,
Calquem-te, Pária, Fellah, bronco Ilóta,
Façam-te Escravo em Roma, ai, é baldado;
És sempre o mesmo homem ultrajado!
A natureza deu-te a força, e vida
Que não succumbe á violação proterva!
Como a prancha que arrasta onda batida,
Como revive a amaldiçoada erva,
Assim poder extranho te conserva.
Erva, cujas raizes derrocaram
De ergástulos e templos velhos muros,
Que nas ruinas seu vigor mostraram,
Cobrindo de verdura os seixos duros,
Só com ter de ár e luz uns haustos puros.
Os que te viram sob o aspecto novo,
A ti, o ignobil da vetusta edade,
Como lisonja te chamaram Povo;
E envolvidos na pávida anciedade
Deixaram-te provar da egualdade.
[104]
Como foi que subiste a tanta altura?
Não és aquelle mesmo intonso e hirsuto,
Sem vontade ou direito; por ventura
Bebendo o choro mudo, nunca enxuto?
Vivendo equiparado sempre ao bruto?
Não és aquelle a quem o sol aquenta
Pela graça dos reis, pois que um relance
Das Bastilhas te arroja á morte lenta?
Da crassa escravidão deixaste o alcance?
Da gleba adscripta sacudiste o transe?
Como ousaste pensar por ti um dia,
Rodeado de bonzos como andáras?
Chamaste a Providencia; a Theologia,
A escarnecer-te com devotas caras,
Respondia queimando-te nas áras.
E foi possivel germinar a ideia,
Sob esse craneo duro, tantas vezes
Decepado nas praças, porque cheia
Um dia trasbordára a taça as fézes,
E ousaste resistir a mil revézes?
Explorado do berço á sepultura,
Tu, conservado estupido por plano,
Como foi que subiste a tanta altura?
Lançando da cerviz o jugo insano,
Reclamando isso que é do sêr humano?
«Perguntas bem! Direi toda a verdade:
De luz, terra e trabalho, de ár e ideia,
[105]
Da santa aspiração da liberdade,
De tudo quanto o peito vivo anceia,
Um dogma nos privou por culpa alheia.
O velho egoismo nos privou de tudo!
Fomos baixando até cahir exangue;
Rasgava-nos o peito o ferro agudo,
E quando estava já para a dor mudo
Só não poderam esgotar-lhe o sangue.
E o sangue correu sempre,—e quente arrasta
Provocando a embriaguez da liberdade,
Lavando o stigma que separa a casta,
Minando a secular fatalidade
Que fez do atroz arbitrio Auctoridade!
Quando o rei paternal, d'entre o arminho
Triumphante exclamava:—Quero e posso!
Lançava ao ár o cópo cheio de vinho;
Tambem ao derrubar o alto colosso,
Nos derramámos sempre o sangue nosso.
O sangue, o sangue nosso! o vinho forte
Da garantia cívica romana!
Na sua enchente rompe o dique á sorte.
Como Christo augmentou o vinho em Cana,
O sangue fez a egualdade humana.
[106]
O SEPULCHRO DE VIRGILIO
I
Era chegado o Apostolo eloquente
Cansado, e firme n'uma fé robusta,
Da romagem longinqua do Oriente,
Por hordas sevas da região adusta:
Vinha trazer á Capital da Gente
Que impera no orbe e com poder assusta
De armas e leis, poder egual não visto,
O Verbo novo que dissera Christo.
Vira o Apostolo uma fresca gruta,
Entrou, sentou-se em vago esquecimento.
Queria forças para entrar na lucta,
E repouso de quem recobra alento;
Santos carmes do velho Lacio escuta
Agitando-lhe o incerto pensamento.
É bem que te extasies e arrebates
Co'a a lingua dos Juristas e dos Vates!
Sentou-se extenuado sobre as bordas
Do tumulo sagrado de Virgilio!
Transpondo os mares, e sedentas hordas,
Mal comprehende o Apostolo esse idylio
Que resôa das invisiveis cordas
Da alma grega no etrusco domicilio.
[107]
Elle quer possuir essa magia
Para espalhar a fé viva que o guia.
Virgilio! A natureza era serena!
Com mansidão o mar longe estuava
Na forte placidez de quem sem pena
Do promontorio os vinculos quebrava.
Atito pesaroso de uma avena
Graça de infancia á paisagem dava;
Era limpido o ár! Cariz de Italia...
Quem tiver mais poesia n'alma exhale-a.
Havia o quer que é, de mysterioso
Que perturbava o Apostolo fervente,
A revelar-lhe com tristeza e goso,
Que vinha tarde ás bandas do Occidente,
Fallar do Verbo novo e doloroso
Da liberdade humana florescente!
Sobre o tumulo d'esse augusto Vate
Medita nas palavras do resgate.
Repousou a cabeça somnolenta
Da campa de Virgilio sobre a lagem;
A mente em sonho vago representa
Que chegou tarde tarde da romagem.
E chorou como aquelle que se ausenta
Do seu amigo, para a eterna viagem,
E chorou! Concentrou-se a natureza
Para ouvil-o em sua intima tristeza:
II
«Oh alma bem fadada, só nascida
Para sentir o bello e a verdade!
Para ti minha vinda foi perdida.
[108]
«Ao conhecer-te, quem chorar não hade
Vendo morrer no erro e culpa d'Eva
O melhor coração da antiguidade?
Tu foste como o guia, quando leva
A luz adiante, e a todos alumia;
Só para si não vae rompendo a treva!
Ah, presentiu a ideal melancholia
Que faz do novo dogma a essencia, quando
Sunt lacrymae rerum! proferia.
Virgilio! Ah, como apostolo seria
O que dava á verdade essa linguagem
Profunda, humana e viva da poesia!
Se Paulo, ai, tarde! da longiqua viagem
Pudesse vir a tempo, em tua procura,
Do Verbo novo dando-te a mensagem!
Ter eu vindo tão tarde! desventura.
E ser já tarde! que lethal tristeza,
Para salvar esta alma ingenua, pura!»
E chorou! concentrou-se a natureza.
III
Longo foi o silencio, como aquelle
Que procede o ruir da tempestade,
Antes que o vendaval rijo atropelle
As ondas, contra as quaes urrando brade!
Paulo chorava por essa alma imbelle,
[109]
Com magua e suavissima saudade
Ás lagrimas, da compunção alarde,
Respondeu-lhe uma voz:
Não vieste tarde! E vê se poderias
Ao maximo pontifice do Justo
Leval-o a crêr na Graça que annuncias?
Não podera esquecer a todo o custo
O nexo da harmonia das vontades,
Por um dogma de privilegio augusto.
Cuspido ás praias pelas tempestades
Vieste Paulo, a tempo a dar a nova
D'esse mysterio ás immoraes cidades.
Em quanto da Justiça déra prova
Roma! foi grande, soberana e forte.
Quem haverá que a outra ideia a mova?
Mas essa luz que sempre foi seu norte,
Um dia a apaga a purpura devassa:
Do carcomido imperio segue a sorte.
Antepondo á Justiça, arbitrio ou Graça,
Vae, Paulo! agora é tempo, e entra em Roma,
Se fallas em Justiça, a plebe passa...
Ella não te percebe! Ah Paulo, dóma
A plebe ignava com o doce engano
De cousa que se palpe e que se coma...
[110]
Da bem aventurança pinta o arcâno;
Mas a doutrina só será fecunda
Quando o teu Christo se tornar romano.
.......................................
Theophilo Braga
PHRASE DE MIGUEL ANGELO
I
Oh Dante! oh nova aurora da Poesia,
Duro juiz da inulta liberdade!
Quando entraste dos prantos na Cidade,
Perguntaste a Virgilio, ao doce guia:
—D'onde vem tal fragrancia e harmonia?
Vozes de amor de tanta suavidade?
Que se aclara a amplidão da escuridade
Sobre o estertor da hórrida agonia?—
Viste pairando em nuvem diamantina
Voar Paulo e Francesca, triste e amante;
Quizeste ouvir que dôr é que os fulmina.
Interrogaste o mestre n'esse instante;
Mas respondeu a bella florentina:
La bocca me bacció tutto tremante.
II
Fria, dentro de um féretro estendida,
Eu vi passar tambem, d'esta janella,
[111]
Ai! para sempre e nunca mais, aquella
Que fôra para mim ideal e vida.
Ah Vittoria Colonna, não vencida;
Vae-se-me da esperança a luz com ella;
Sem rumo e sem phanal, d'entre a procella
Que eu fique como a nave já perdida.
O espirito se abysma em vacuo immenso,
A solidão é vasta mas suffoca;
Da dor irremediavel me convenço:
Eu pergunto—que mão lethal me toca?
Vel-a morta levada... ah scismo e penso:
Sem nunca ter beijado aquella bocca!
O PRISIONEIRO
(Diante de uma cabeça de Miguel Angelo)
Uma palavra diz toda a desgraça:
—Ter por si a rasão, eis o seu crime!—
O despota o conhece; busca traça
Para esconder a victima que opprime.
Ferros! vossos anneis encadeados
Venham soldal-o para sempre ao muro;
Abobadas! calae-lhe ardentes brados,
Trevas! summi-o no estertor do escuro.
[112]
Mas tudo é pouco. O prisioneiro pensa
No rancor do tyranno e adormece;
A natureza é mãe: na dor immensa
Accolhe o que nas ancias desfallece.
Então, em somno longo e descuidoso
Aos sitios mais queridos d'outras éras,
A mente vôa e aviva com repouso
Passadas illusões, doces chimeras.
Quem cuidará que o inerme prisioneiro
Esquecido do peso das algemas
Ouve os colloquios do amor primeiro?
Do adeus final as expressões extremas?
Ali lhe transparece sobre os labios
O arpejo ignoto de suave riso,
Sereno como a profundez dos sabios,
Triste como o luar quando indeciso.
Pensa que é livre! o somno é liberdade
Para esse a quem nenhum consolo reste;
Qual será mais feliz? a auctoridade
Nunca logrou um instante como este.
Vela o tyranno, tendo álerta os guardas,
Entre canhões, muralhas, torres, fossos;
Lá quando o somno chega em horas tardas,
Ouve ais, vê sangue, estrepitos, destroços:
Escuta os gritos surdos da revolta
Do povo que a si mesmo faz justiça;
É negro o pezadello, o horror o escolta,
Quer despertar, remorso o infeitiça.
[113]
Este, dormindo, já se sente escravo,
Arrastado por praças, com vergonha;
Mas quem jaz mudo sob o iniquo aggravo
Que é livre, livre, ai prisioneiro, sonha.
Qual será mais feliz? um quando dorme,
É só para sentir terror, fraqueza;
E áquelle que succumbe ao peso enorme
Diz-lhe ser livre, a santa natureza.
Bem haja a eterna força que lhe inspiras
Que não conhece algemas—a vontade!
Prepotentes! quebrae ante ella as iras,
Embalem-nos os sonhos da verdade.
(Junho, 25—1872.) Theophilo Braga.
NAPOLEÃO MORIBUNDO
Como o grande astro, pallido e já frio
Vae a afundar-se lento no horisonte!
Olhos vagos, de extremo desvario
Dão um sinistro aspecto áquella fronte!
A fronte sombra gélida a cobriu
Como os nimbos no vertice do monte;
Aguia, que vae morrer sacode as azas,
Tal se agitou, e disse então:
—Las-Casas!
Estás ahi? És sempre o egual amigo,
Mais vinculado a mim pela desgraça!
[114]
Attenta nas palavras que te digo...
A custo sae a voz já surda e baça!
Um pezo enorme aqui, duro castigo,
Me opprime o peito, augmenta e ameaça.
Repara, arquejo de agonia e medo,
Tira de sobre o peito este penedo!
Sim, um penedo! alguem o detem sobre
O peito exhausto para meu desdouro;
Serei eu como o sapo que se encobre
Sob a pedra? ou recondito thezouro?
Mais opprime! sem ár e luz que sóbre
Acovarda-me o pezo d'esse agouro...
A pedra o gello seu me communica,
E como a pedra o corpo inerte fica!
Ouve. Acordei de um sonho longo e aziago
Na vertigem da febre que devora;
Prostra-me o pezadello máo, persago,
Que me levou alem dos mundos fóra.
Por onde eu ia me seguia o estrago,
Pude então meu destino ler; e agora
A mim voltei; ah, sobre mim o bloco
Assim encontro... E como o palpo e toco!
Fatalidade immensa; fim medonho!
Menos que Prometheu, do mundo antigo!
Como Sysipho á fraga não me opponho,
Nem faço como Ajax da rocha abrigo.
Sucumbo! escuta o tenebroso sonho,
Attenta na visão que aqui te digo,
Verás d'onde caíu este penedo
De que fiz pedestal... guarda segredo:
[115]
VISÃO DO PAROXISMO
Vi-me perdido, como outr'ora Dante,
Não na floresta escura, mas bem perto
D'uma montanha que encontrei diante
Do passo temerario, vão, incerto;
No flanco da montanha, a mais gigante,
Deparei antro lóbrego e aberto,
Quiz conhecer o goso de ir perdido,
E entrei, com esperança, destemido.
Era um algar profundo, escuro, mudo,
Gotejando a humidade e a doença;
Frio, como o terror! e mais que tudo
Ermo, como o que nunca teve crença!
Com a audacia da edade o passo ajudo,
Através da visagem feia e densa;
Quero ir lá dentro ouvir a Pythonissa
Na solidão dos que só tem justiça.
Era a via subterrea, má, sem tento,
Debaixo da Montanha aos céos erguida,
Interminavel como o soffrimento,
Desconhecida como o entrar da vida.
Foi impavido adiante o pensamento,
Quem romperia a tétrica avenida?
Oh, não foram por certo as alimarias
Sim, bem o sei, foi geração de Párias.
Parecia que o pezo da montanha
Já o sentia no offegar cansado;
A crassa escuridão era tamanha
Que ultrapassava os dogmas do peccado.
[116]
A tristeza que o peito ali me banha
Similhava a do homem ultrajado;
Silencio, egual ao seculo confuso,
Que não deixou protesto contra o abuso.
E tacteando trépido prosigo
Como o que deu por falta, e em vão procura;
Mas como a tradição de um tempo antigo
Paralisou-me uma humidade escura!
Senti-me vérme dentro de um jazigo,
E vi que a vida quer a luz só pura;
E dentro, lá nos infimos cancéllos
Ouvi ruido como de martellos;
Pancadas longas, de quem rompe e escava
Na compacta pedreira e a derruba,
O som pela caverna retumbava;
Fui avançando! quer eu desça ou suba
Mais se distingue a varia faina brava,
Como o leão, quando sacode a juba!
Ais e vivas, lamentos e cantigas
Soam como animando nas fadigas.
Cheguei mais perto. Vi-os! eram tantos...
Cataduras de Cyclopes, de athletas!
Rostos sulcados por calados prantos,
Peitos transidos por ignotas setas;
Na expressão moral, brutos e santos;
Tão ingenuos como almas de poetas;
Rudes, leaes, e rotos mas contentes;
Chamam isto—trabalho—aquellas gentes:
Levantavam os malhos contra a rocha,
Responde ella com afiadas lascas;
[117]
E quando no trabalho a força afrouxa,
Um canto anima as vacillantes vascas!
O canto ou grito da agonia roxa,
Çà ira! voz das intimas borrascas,
Vinha ao bater dos malhos dar compasso,
Trazer alento no mortal cansasso.
Muitos caíam já sem força, em terra,
Mudos, outros ficavam sepultados
Nas barreiras por culpa d'este que erra
Indo minar em perigosos lados.
Mas que poder sublime o canto encerra!
Çà ira! levam eccos prolongados;
E ao trabalho de novo metem hombros,
Na dor e na coragem sempre assombros.
Cheguei mais perto, ao perto dos mineiros:
—Oh raças condemnadas ao trabalho,
Criadas na fadiga, e os primeiros
Que procuraes romper tão duro atalho!
E para quem do Golgotha o madeiro
Só produziu o secco e esteril galho,
Que sentença condemna a essa luta
De vencerdes a natureza bruta?
«Vamos minando o alteroso Monte.
Temol-o atravessado pela base!
Procuramos a luz d'outro horisonte,
Nós sentimol-a! é esta a nossa phrase.
Sem um astro que a via nos aponte,
Vamos errantes, acertando quasi,
Mergulhados no frio e escuridade,
Dá-nos calor o ideal da liberdade.
[118]
«Ha gerações que aqui nasceram méstas;
E que se nasce livre aquella ignora!
Outra trabalha equiparada ás bestas,
E pensa que só vive quando chora.
Umas cáem na vala, restam estas
Na esperança de achar a nova aurora!
Sobre nós a montanha peza horrenda
Na tradição de seculos tremenda.
«Çà ira! Pois Encélado palpita,
Sacudindo a montanha sobre o dorso;
A montanha é a tradição maldita,
Immovel como os dogmas do remorso,
Impassivel como uma lei escripta...
Nós proseguimos no baldado esforço
Porque os filhos de nossos filhos vejam
A luz que os nossos olhos tanto almejam.
«Nós transmittimos o fatal legado
Que herdámos sem saber como nem quando...»
E quando olhava para aquelle lado
Lá onde o Çà ira! ia levando,
De repente ficou tudo calado!
Vi transluzir clarão suave e brando...
Jôrros de luz, que as trevas longe sómem,
Eu conhecí, era—Os Direitos do Homem!
Por ti, que gerações foram á vala
Afirmando o que a tradição mais nega!
E emquanto o pranto em cada rosto falla,
E a vêr a claridade cada um chega;
Lembrou-me a mim dever eu gradual-a,
A diáphana luz que a olhos céga;
[119]
—Oh, parae um instante! sabei que essa
Luz repentina é como a treva espessa.
Confiae hoje em mim; que eu vá adiante
A vêr se algum abysmo aí está aberto;
Quem sae da escuridão não vê distante,
Sustae o passo trépido e incerto!—
Como entra o mensageiro alegre, ovante
Na Promissão, saindo do dezerto,
E emquanto choram n'uma effusão terna,
Cheguei então á bocca da caverna.
Que mundo extranho, que planicie infinda,
Que ár saudável, tépido e fagueiro!
Que céo azul, que paizagem linda,
A harmonia embalava o mundo inteiro.
Bloco enorme de pedra estava ainda
Na bocca da caverna sobranceiro,
Cresceu-me esta ambição danada minha,
E vi a fragil lasca que o sustinha.
Á posse d'esse mundo a mente eu alço;
Sentí o egoismo de querer tal mundo
Só para mim; e eu, misero e falso,
Inda escutava o cantico jocundo,
De prompto o bloco intrepido descalço!
Rolou o pedra da caverna ao fundo;
Como se entaipa n'uma furna o urso,
Pensei interromper do tempo o curso.
Sepultos outra vez deixei em trevas
Miseraveis que seculos luctaram;
Abafei-te, hymno ardente, que sublevas,
Puz um dique aos golphões que extravasaram;
[120]
Cobri o quadro das angustias sévas
Que a tradição e a ordem ameaçaram;
Sobre essa pedra eu presenti a gloria
Fiz o meu pedestal perante a Historia.
Ouves, Las-Casas? choras, fiel amigo?
A custo sae-me a voz já surda e baça...
O meu destino foi, á força o digo,
Missão de um blóco em sua inerte massa.
Eu o sinto opprimir-me por castigo
O peito, e com seu pezo me ameaça;
No estertor de Job, ai se me ouvissem!
Melius erat si natus non fuissem.—
Como se afunda do alto no oceano
A mó do Apocalypse amaldiçoada,
Tal para sempre no desprezo humano
Se imerge essa existencia egoista, errada.
Vomitou destruição o ignobil cano,
Da morte e do que é morto fez parada!
E se a dor sente alivio no improperio,
Sirva-lhe de alvo sua vida e imperio!
[121]
ÁS MÃES
Oh santas, que embalaes os berços das crianças,
E assim lh'o revestis de floreas esperanças;
Que andaes sempre a cuidar das almas por abrir,
E a verter-lhes no seio o germen do porvir!
Sois vós que, pela mão, da gloria á vida inquieta
Levaes um vosso filho, um pallido propheta,
Que é Newton ou Petrarcha, Angelo ou Raphael,
Com o pincel e a pena, o compasso e o cinzel,
Fazendo enobrecer quem lhes seguir o exemplo!
Sois vós que o conduzis ao portico do templo
Onde o porvir corôa os genios immortaes,
E mal chegadas lá de todo o abandonaes
Sem aguardar sequer, nas sombras d'uma arcada,
A grande acclamação que festeja a entrada!
E modestas que sois! tornaes a vosso lar
E só vos contentaes em vel-o atravessar
Coroada de laureis a frente scismadora,
Um arco triumphal, que o cérca d'uma aurora.
Mas nós, cabeças vans, escravos pelo amor,
Andamos a dizer; «Beatriz! Leonor!»
E o nome vosso, oh mães, não lembra um só instante.
Quem sabe o nome vosso, oh mães de Tasso e Dante?
Oh santas! perdoae; lá tendes o Senhor
Que vos cobre de luz, de bençãos e de amor,
[122]
Fazendo abrir ao sol as vossas esperanças!
Oh santas, emballae o berço das crianças!
1864
Guilherme Braga, Grinalda t. V, p. 25.
AMIGOS...
Era da Terra-Nova: um formidavel cão.
O homem que m'o vendeu, chamava-lhe—Sultão,
E creio que o trazia ha dois annos comsigo;
Eu só lh'o quiz comprar para ter um amigo ...
Depois que lh'o paguei, o soberbo animal
Lançou-lhe um triste olhar d'estes que fazem mal,
Que envolvem um adeus, talvez o derradeiro!
O dono, distrahido a contar o dinheiro,
Nem mesmo reparou n'essa muda afflícção,
E disse-me a sorrir; «É um bravo, este Sultão!
Bem nutrido e leal: dedicado e robusto!
Mas... pode acreditar que lh'o dou pelo custo...
Já me salvou a vida uma vez no alto mar.»
Disse isto, e cortejou-me e partiu...
A scismar
N'aquella ingratidão, que tantas me recorda,
Do pescoço do cão desamarrando a corda,
Em voz alta eu bradei: Bem o dizias tu,
Oh poeta immortal: Le chien c'est la vertu
Qui ne pouvant se faire homme, s'est faite bête.
E como em todo o olhar uma alma se reflecte,
[123]
A alma d'aquelle sêr que vinha atraz de mim...
Curvo, humilde, ou talvez resignado por fim,
No olhar que então lhe vi, das sombras do seu nada
Parecia dízer-me:—Obrigada, obrigada!
1866
Guilherme Braga, Heras e Violetas, p. 239. Porto, 1869.
PLATÃO
Quando ao cair das sombras, o sol já semi-morto
Tornava côr das rosas o anil do mar Egeo
Onde veleiras cymbas singravam para o porto
Abrindo as azas brancas, como as aves do céo;
Do promontorio Sunium ao viso magestoso,
Que banha o pé nas aguas, ascendia Platão;
E, como lendo as folhas de um livro mysterioso
Derramava seus olhos na infinita amplidão...
O sol desce! o sol desce! seu derradeiro lume
Diz aos montes e ás vagas melancolico adeus,
E o sabio sempre immovel no purpurado cume,
Com a vista no espaço finge a estatua de um deus.
Sobre a roca de Egina, vem surgindo a seu turno
Vésper, tingindo as aguas de azulado fulgor;
As estrelas despontam, e o sabio taciturno
Com o dedo nos labios pensa no infindo Amor.
[124]
Mas, eil-o que estremece! n'um transporte impetuoso
Do seu negro, amplo manto se desembuça então,
Depois estende os braços ao plaino rumoroso,
E brada, erguendo os olhos á etherea solidão:
«D'este grande poema, portentos, harmonias,
D'esta hora, só d'esta hora, mysteriosa assim,
Só d'esta hora de doces e santas alegrias,
Eu aprendo o que podes, oh Potencia sem fim!
És tu, oh Natureza que a rigidez me ensinas,
Que os sophistas da Eschola, na Eschola assombrará,
Em ti bebo a Sciencia, que das coisas divinas
Tenho, que o mundo busca, mas no mundo não ha!
Que logar fica á duvida em corações, que o effeito
Mago d'estes momentos faz d'amor palpitar?
Oh virações do empyreo, purificae-me o peito,
Para que os meus bons Genios o possam habitar.
Descei, oh meus patronos! descei do excelso empyreo!
Já minha alma está pura! homem novo já sou!
Não pezam em mim sombras e duvida e delirio!
A luz da eterna aurora para mim já raiou.
Chamma d'amor celeste me aquece a intelligencia,
Minha rasão, qual aguia, paira no extremo céo,
E, á luz mysteriosa da minha consciencia,
Vejo através da tumba, da morte rasgo o véo!
Immortal! que presagios. Immortal! que delirio,
Immortal! que alegrias. Que crêr e que esperar!
Purificae-me o peito, vós, virações do empyreo,
Para que os meus bons Genios lá possam habitar!»
[125]
Diz—e do Promontorio deixa o cume elevado,
Que dos Genios da Noite já cercam turbilhões,
E, ao rir da nova aurora, com a voz de inspirado,
Descreve á turba absorta suas grandes visões!
1871
Leonel de Sampaio (Vicente de Faria) Grinalda, vol. III, p. 88.
N'UM TUMULO
Envolve-se a existencia em dois mysterios:
Berço e campa—dois óvulos diversos;
Dos berços faz-se o pó dos cemiterios,
Das campas sae o pollén dos berços.
Mysterioso circulo da vida
Que esmaga em cada giro uma alma, um ente,
Que rasga em cada volta uma ferida,
Que deixa em cada sulco uma semente.
[126]
DILEMMA
Eu, quando aos labios teus o pejo assoma
Como no céo a nuvem matutina,
Ou, quando esse rubor que te illumina
Occultas entre as ondas da aurea cóma,
Parece que estou vendo, n'esse pejo,
A timidez da pomba que tem medo
Do mais leve sussufro do arvoredo,
Cuidando que o rumor lhe pede um beijo
A ti também, meu Deus! tudo te assusta!
Que medo podes ter quando eu te fallo?
Porque córas assim quando me calo?...
Parece que até mesmo a olhar te custa!
Se te fallo de amor não me respondes,
Se te tento beijar, sorris córando;
E concedes o beijo, mas, curvando
A fronte ao seio aonde tu a escondes.
Esconde; olha, eu por mim não me arrenego;
O que te digo é que esse teu receio
Faz ás vezes com que eu te beije o seio
Como errando o caminho... se estou cego!...
[127]
Desterra para longe esse embaraço!
Vamos, olha para mim, mas sem tal pejo!...
Vamos, se não córares dou-te um beijo,
Se córares... então dou-te um abraço.
Alexandre da Conceição, Grinalda, vol. V, p. 29.
SIC TRANSIT...
Um dia frei Manuel das Bentas Chagas
Limpava ás sujas mangas da batina
Do seu teimoso pranto as grossas bagas,
Sentado á sombra de uma velha ruina.
Ruíra, ha muitos annos o convento,
Onde lédo passara a mocidade,
E vinha agora alí, por seu tormento
Curtir as agras dores da saudade.
«Frei Manuel, (lhe pergunto) que pezares
Turvam teu rosto que em tal pranto lavas?
Tens culpa que ruissem os altares
Do templo, onde ao Deus vivo celebravas?
Não tens culpa, bem sei, choras os damnos
Da santa religião, pois viste um dia
[128]
O que fôra trabalho de mil annos
Cair ás mãos da ignara hypocrisia?»
Frei Manuel me responde:—Esse tão bello
Tempo da vida asceta não lamento;
Choro, sim, mas por vêr o carmatello
Não respeitar a adega do convento.
A BENÇÃO DA LOCOMOTIVA
A obra está completa. A machina flammeja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ár;
Mas antes de partir, mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.
Como ella é com certeza o fructo de Caim,
A filha da Rasão, da independencia humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,
E convertam-n'a á fé catholica-romana.
Devem n'ella existir diabolicos peccados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metaes
Saem da natureza, impios, excommungados,
Como saímos nós dos ventres maternaes.
[129]
Vamos, esconjurae-lhe o demo que ella encerra,
Extrahi a heresia ao aço lampejante!
Ella acaba de vir das forjas de Inglaterra,
Ha de ser com certeza um pouco protestante.
Para que o monstro côrra em férvido galope,
Como um sonho febril, n'um doido turbilhão,
Além do machinista é necessario o hyssope,
E muita theologia... além de algum carvão.
Atirem-lhe uma hostia á bocca famulenta,
Preguem-lhe alguns sermões, obriguem-n'a a resar,
E lancem na caldeira um jorro d'agua benta,
Que com agua do céo talvez não possa andar.
O URSO BRANCO
Elle é descommunal, titânico, felpudo;
Anda sinistramente a farejar na treva,
E causa-nos horror, como um gigante mudo.
Vive na escuridão phantastica do Neva,
E já ouvi dizer que essa alimaria informe
É também como nós filho de Adão e Eva.
[130]
Rasteja pela sombra; e mesmo quando dorme
Conserva sempre aberto um olho coruscante
Como um cacto real ensanguentado, enorme.
É o despota feroz o Cesar triumphante
D'uma crepuscular, longinqua Babylonia,
Que é como um pezadelo, uma visão do Dante.
Nas convulsões febris da bestial insomnia
Estorce-se a lamber as garras sensuaes,
Ruminando lá dentro o craneo da Polonia.
Anda espreitando ao longe as torres orientaes,
As flexas de Stambul, as morbidas almêas
Com o riso cruel dos lobos imperiaes.
Tira o sangue do povo e manda abrir-lhe as veias,
E os duques-generaes e os bispos-cortezãos,
Misturam-no com vinho e bebem-no nas ceias.
Satanaz é seu pae, e os tigres seus irmãos,
Depois de realisar doidas carnificinas,
Lava com agua benta as sanguinarias mãos.
Sobre os campos do mal semeia as guilhotinas,
Mergulha brutalmente a plebe esfarrapada
Na bronzea escuridão de tenebrosas minas:
Por isso quando vae de fronte levantada,
Entre o clamor febril da guarda pretoriana,
Erguendo para a luz a flammejante espada,
Debaixo de seus pés, em confusão insana,
Sente-se revolver um mar de imprecações,
Que abala o fundamento á consciencia humana.
[131]
Justiça! vae abrir as furnas dos leões!
Desce d'aquelle inferno ás gélidas entranhas,
E arranca-me de lá os tristes corações,
Que sentem sobre si o peso das montanhas.
Transforma n'uma lança os ferros das algemas!
Vae aos gelos do norte, as solidões estranhas...
Procura a fera brava; eia, mulher, não tremas!
Embebe-lhe sem dó no musculoso flanco
A lança virginal das coleras supremas.
Monta no teu corcel! Agarra o urso branco:
Ensina-lhe a dansar umas grutescas dansas,
E dá-o de presente a um magro saltimbanco
Que o mostre n'uma feira aos risos de crianças.
NOVO PETRARCHA
Ia o sol desmaiando no occidente,
E disseste-me então: «Ah! doce amante,
Ditosa eu fôra se inspirasse um Dante:
Em seus cantos vivera eternamente!»
[132]
Fez-se em minh'alma a luz. Um poema ingente
Inspirado encetei desde esse instante.
Aqui o tens, oh musa; em tom vibrante
N'elle celebro o nosso amor ardente.—
E mais lhe disse o trovador:—No Pindo,
E na fronte ao deus loiro consagrada,
Estes versos compuz de amor infindo.—
E ella com voz doce e namorada:
«Oh! como és bom, e que poema lindo:
Excede a Joven Lilia abandonada.»
TO BE, OR NOT TO BE
Não te parece esta existencia clara,
E deploras em o vate da tristeza
Abandone com tanta ligeireza
Quanta mulher gentil ancioso amára.
Mais frio em Blondin sobre o Niagára,
Julgas minh'alma em vis paixões accesa;
E comtudo, nas ostras da belleza
Eu só procuro o amor, pérola rara.
[133]
Seja a mulher como um reptil hedionda,
O typo ideal da estupidez suprema,
Um monstro informe que da luz se esconda;
Ou seja a Venus do marmoreo poema,
Um modelo de artistas, a Gioconda;
Ser ou não ser amado, eis o problema.
STELLA-MARIS
Soltava a barca da pesca
As azas brancas de neve
Aos mansos ventos do sul!
Estava a tarde tão fresca;
Estava o céo tão azul.
Ella corria assim leve
Como a espuma que fazia
Na carreira que levava!
Se a vela toda se enchia
A borda toda virava;
Se a vela cheia tombava
A barca toda se erguia!
[134]
Era assim que a mariposa
D'aquelle vasto oceano
Volitava em manso abril,
Sobre a onda buliçosa
Que ia e vinha, em giro eterno,
Beijar as fragas, sutil.
Eu na rocha mudo e quedo
Seguia a vela co'a vista
De quem vê a que é só vista
Com suave e doce medo!
E n'aquelle engano d'alma
Que arrobada trazia,
Sem saber que confundia
A que o fogo, branda, accalma,
A que o éstro accende em mim,
Com a barca fugidia
Que corre, e corre, perdido
O rumo e norte sem fim...
Até d'ella me esquecia!
Que pois me era esquecido
D'este mundo em que vivia.
Foi então, Deus meu, que assombro!
Que um não sei que de tão leve
Sentí poisar no meu hombro...
—Mão de neve,
D'onde vens?
[135]
Quem te deu, gentil mãosinha,
Esse aroma, essa magia,
Que tu tens?
Esse encanto d'onde vinha?
D'onde vens?
Louco de mim, que não via
Luz que doiras o meu dia,
Que eras tu...
Perdido n'aquelle enlevo...
Eu, que a ventura te devo
Que possúo.
Depois, inclinada a face
Como o céo que lá se arquêa,
Apontaste ao longe a aldêa
Que sobre o monte renace
Á luz de cada manhã,
Como rosa, que sobre haste
Abre as pétalas mimosa,
E a barquinha me apontaste
Que se ía librando airosa
Tão louçã!
Uniste as mãos; e olhando,
Co'esse olhar que amor te dá,
O céo, que a tarde incendeia,
Murmuraste suspirando,
E com voz de magoa cheia
—A vida... lá!
[136]
Através da transparencia
Do teu bello rosto oval,
Ve-se-te a alma—como chamma
N'uma urna de crystal.
Quando te vejo, é como se no mundo
Ninguem mais existisse alem de nós.
Não vejo mais ninguem: reinas a sós,
E em ti com tudo o mais eu me confundo.
A terra, o vasto mar, o céo profundo
São accessorio teu; e na tua voz
Ouço a toada harmonica e veloz
De quanto ha n'este espaço em que me inundo.
Nas dobras d'este manto universal,
Em que tudo o que é, se involve e alista,
Creio que só de ti vem bem e mal;
Tudo se move, e move-o a tua vista,
E, se a verdade queres que te fale,
Não sei se Deus és tu, se um Deus exista...
[137]
FALA A ORDEM
Pequeno, d'onde vens cantando A Marselheza?
Da barricada infame? ou d'outra vil torpeza?
Que esplendido porvir! Do nada apenas saes,
Começas a morder as purpuras reaes,
Oh filho trivial da livida canalha!
E, vamos! deixa ver... guardaste uma navalha?
Não tremas, que eu bem vi! que trazes tu na mão?
Intentas já limar as grades da prisão,
Fazendo scintillar um ferro contra o solio,
Archanjo que adejaes nos fumos do petroleo?...
Mas, vamos! abre a mão; não queiras que eu te dê.
Bandido, eu bem dizia!—A carta do A B C...
Guilherme de Azevedo, A Alma nova, p. 37. Lisboa, 1874.
Ó machinas febrís eu sinto a cada passo,
Nos silvos que soltaes, aquelle canto immenso,
Que a nova geração nos labios traz suspenso
Como a estancia viril d'uma epopêa d'aço!
[138]
Emquanto o velho mundo arfando de cansaço
Prostrado cae na lucta; em fumo negro e denso
Levanta-se a espiral d'esse moderno incenso
Que offusca os deuses vãos, annuviando o espaço!
Vós sois as creações fulgentes, fabulosas
Que, vibrantes, crueis, de lavas sequiosas,
Mordeis o pedestal da velha Magestade!
E as grandes combustões que sempre vos consommem
Começam, n'um cadinho, a refundir o homem,
Fazendo resurgir mais larga a humanidade.
Guilherme de Azevedo, Ib. p. 69.
A REPUBLICA
Tremeis? Vêde-a dormindo socegada,
A deusa dos combates sempiternos:
Rugem-lhe em torno os horridos invernos,
E tudo é para ella uma alvorada.
Não penseis que ella durma, embriagada
No somno grato dos reaes phalernos;
Como Dante, desceu aos vís infernos,
E repousa momentos da jornada.
[139]
Filhos do negro val, filhos da serra,
Erguei os vossos gladios coruscantes,
Á luz d'aquelle olhar que se descerra.
Ide, apertae-lhe os seios uberantes!...
De cada gota que cahir na terra
Hão de surgir impavidos gigantes.
Sousa Viterbo, Harmonias phantasticas, p. 97. Porto, 1875.
HETAIRAS
Vós envolveis o corpo nas roupagens
Mais finas, elegantes, caprichosas;
Vêdes passar, alegres, voluptuosas,
Do amor fidalgo as lubricas imagens.
Adormeceis nas plácidas carruagens,
Murchaes no seio as pudibundas rosas,
E queimaes essas boccas sequiosas
Nas boccas feminis dos louros pagens.
Tendes tudo; os theatros, a riqueza,
As noites de delirio e morbideza,
Todas as tentações, todos os brilhos!
[140]
E só não tendes nas estereis pomas,
Oh Venus das esplendidas Sodomas,
Uma gota de leite para os filhos!
Sousa Viterbo, Harmonias phantasticas, p. 145.
AO SOL
Tu sim, tu é que tens d'um deus a essencia!
Reconhece-se a tua divindade
Na branca luz formada de bondade,
Mais bella de que o peito da innocencia.
Teus raios são os raios da existencia,
Espadas da justiça e da verdade,
E, n'esse livro azul da immensidade
És em letras de fogo a Providencia.
Ah! se um dia a materia desvairada,
Perdendo-se em seu proprio cataclismo,
Te congelar a esphera abrazeada.
Hade a terra chorar no teu abysmo,
E quando apalpe a immensidão do nada,
Ha de soltar rugidos d'atheismo.
Sousa Viterbo, Harmonias phantasticas, p. 151.
[141]
TREVAS
Quiz vêr o carcere. Só n'elle havia
Uns vultos pálidos de torvo aspecto,
Respirava-se a custo, e parecia
Que me esmagava o ennegrecido tecto.
Era um mar de paixões, em calmaria;
Mar outr'ora revôlto e irrequieto;
Apenas pela abobada sombria
Revoava, a zumbir, nocturno insecto.
Cheguei-me á turba vil, encarcerada,
Em cuja face se cravára o stigma
Do crime, que nos faz estremecer.
E perguntei:—Que dolorosa estrada
Vos trouxe aqui?—E a turba, a esphinge, o enigma
Rugir na sombra:—«Não sabemos lêr...»
Candido de Figueiredo, Poema da Miseria,
p. 153. Coimbra, 1874.
[142]
OURO
Dizia o ouro á pedra: «Ente mesquinho,
Que profundo scismar sempre te prega
Á beira d'uma estrada, ou d'um caminho,
Pasmada, mas sem vêr, eterna cega?
Em vão o orvalho a ti te lava e rega!
Em ti não cresce nunca pão nem vinho,
Dura e inutil—o lodo é teu visinho,
E o homem só, por te pisar, te emprega.
Em ti só medra e cresce o cardo, os lixos,
Tu serves só d'abrigo ao lodo e aos bichos,
E ensanguentas os pés descalços, nús.
Oh pedra! quanto a mim sou a riqueza!»
A cega disse então, com singeleza:
—Eu tambem guardo no meu seio a luz!
Gomes Leal, Claridades do Sul, p. 33. Lisboa, 1875.
[143]
A CANALHA
Eu vejo-a vir ao longe perseguida,
Como d'um vento livido varrida,
Cheia de febre, rota... muito além...
—Pelos caminhos asperos da Historia—
Emquanto os Reis e os Deuses na gloria
Não ouvem a ninguem!
Ella vem tríste, só, silenciosa,
Tinta de sangue... pallida, orgulhosa,
Em farrapos, na fria escuridão...
Buscando o grande dia da batalha,
—É ella! É ella! A livida Canalha!
—Caín, é vosso irmão!
Elles lá vêm famintos e sombrios,
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leito e pão, descalços, semi-nús...
—Nada, jámais, sua carreira abranda!
Fizeram Roma, a Inglaterra e a Holanda,
E andaram com Jesus!
São os tristes, os vis, os opprimidos,
—Em Roma são marcados e batidos,
Passam cheios de vastas afflicções!...
Nem das mezas lhe atiram as migalhas!
Morrem sem nome, ás vezes, nas batalhas,
E andam nas sedições.
[144]
Vêm varridos do aspero destino!
Em Roma e velha Grecia erram, sem tino,
Nos tumultos, enterros, bacchanaes...
Nas praças e nos porticos profundos...
E disputam, famintos e immundos,
O lixo aos animaes!
São os párias, os servos, os illotas,
Vivem nas covas humidas, ignotas,
Sem luz e ár; arrancam-lhes as mães...
—Passam, curvados, nas manhãs geladas!
E, depois de já mortos, nas calçadas,
Devoram-os os cães.
Elles vêm de mui longe... vêm da Historia,
Frios, sinistros, maus como... a memoria
Dos pesadellos tragicos e maus...
—Eu oiço os reis cantando em suas festas!
E elles, elles—maiores do que as florestas—
Chorarem nos degraus!
É uma antiga e lugubre legenda!
—Vão, sempre, sempre, sós na sua senda,
Sublimes, heroicos, rotos, vis...
Cheios de fome, ás luzes das lanternas,
Cantando sujas farças, nas tabernas,
Chorando nos covís.
—Alguns dormem em covas quaes serpentes!
Viveram, entre os povos, e entre as gentes,
Vergados d'um remorso solitario...
—Sabem, de cór, os reinos devastados!
E vieram, talvez, ensanguentados
Da noite do Calvario!
[145]
Têm trabalhado, occultos, noite e dia,
Ó réis! ó réis! as luzes da orgia
De subito, que vento apagará!
—Corre no ár um ecco subitaneo,
E escuta-se, no seu subterraneo,
O riso de Marat!
Chega, talvez, a hora das contendas!
Ó legionarios! desertae as tendas,
Já demolem os porticos reaes...
Os que tem esgotado a negra taça,
—Cantam, ao vento, os psalmos da Desgraça,
E a historia dos punhaes!
Vão, ha muito, na sombra, foragidos,
Pelas neves, curvados e transidos,
Emquanto Deus se aquece nos seus Céos!
—Vem do Sul uma lugubre toada,
E escuta-se Rousseau, na agua furtada,
Gritar—Que me quer Deus!?
Erguem-se ebrios de mortes, de vinganças,
Assoma lá ao longe um mar de lanças,
Resôam sobre os thronos os machados...
E a Europa vê passar, cheia de assombros,
Ferozes, em triumphos, aos seus hombros,
—Seus reis esguedelhados.
Á voz das legiões rotas, sombrias,
Desabam pelo mundo as monarchias...
Tremem os graves bispos... e depois...
Que mais farão? perguntam, desolados,
—Vão ser, inda depois, crucificados
Os deuses e os heroes!
[146]
........................................
........................................
Vae prolongada a barbara orgia!
No silencio da noite intensa e fria,
Vem uns echos perdidos de batalha...
Como uns ventos do norte impetuosos,
São uns passos, nas trevas, vagarosos,
Os passos da Canalha!
Elles vêm de mui longe... mui distantes
Como sonoros batalhões gigantes,
Como ondas negras de afflicto mar...
N'uma viagem tragica e ingloria,
—Ha muito, pela noite da Historia,
Que os oiço caminhar!
Quem sabe quando vêm... é longa a estrada,
D'esta comprida e aspera jornada
Quem sabe quando, emfim, descançarão?
Atapetem as pedras de flores,
Lá vêm queimados, rotos, vencedores,
Altivos e sem pão.
Não raiou inda o dia da Justiça!...
Mas, breve, talvez, se oiça a nova missa,
E dispersem-se tetricos caudilhos...
Vão talvez, vir os tempos desejados!
—E, então, por vossa vez, ó reis sagrados,
—Saude aos maltrapilhos!
[147]
AO COMBATE!...
Retumba pelo espaço desolado
Como que um brado immenso, prolongado,
Como os eccos sinistros de batalha;
Anda no ár um fluido mysterioso,
E ouve-se, ao longe, o passo vagaroso
Da «livida canalha».
É ella, é ella, a triste, a desherdada,
Cheia de lodo vil, esfarrapada,
Arrastando, nas trevas, as algemas:
Caminha em busca de um ideal mais puro,
E vae fundir, nas chammas do futuro,
Os sceptros e os diademas.
.................................
E eil-a que assoma, no horisonte escuro,
Essa phalange heroica do futuro,
Como as vagas do mar phosphorecente:
Vem perseguir as sanguinosas féras,
Os monarchas e as lúbricas pantheras,
A prostituta gente.
Vêm caminhando sempre; nada impede
A carreira ao colosso que nem cede
Ás legiões dos cezares sombrios.
[148]
Trazem nas mãos as paginas da Historia,
E a Justiça e o Direito e, na memoria,
A fome, a sêde e os frios.
São elles os escravos e opprimidos,
Esses que dormem tristes, escondidos,
Nas ruinas das velhas cathedraes:
Andam minando a antiga sociedade
E hão de, em breve, sentar a Liberdade
Nos thronos imperiaes,
Andam cavando a sepultura immensa
Que ha de involver, na escuridão intensa,
As venenosas viboras reaes;
Revigora-os a força do heroismo,
E hão de calcar, aos pés, o despotismo
E os tigres e os chacaes.
Hão de esmagar-vos, sim! ó reis sagrados,
Vós, os deuses dos seculos passados,
Tereis mais de um Calvario, em breve... agora;
Mas não vereis um pranto piedoso,
Heis de morrer, ao grito tumultuoso,
Dos miseros d'outr'ora;
Miseros que hão de ser mais que gigantes,
Que hão de arrancar, com suas mãos possantes,
O fundamento ás velhas monarchias;
Que hão de lançar ás trevas do passado
O velho despotismo, ensanguentado,
E gasto nas orgias;
Miseros, sim! mas d'esses cuja gloria
Se ha de inscrever nas paginas da Historia
[149]
Dos sublimes combates da Justiça;
Miseros!... e vós, ó reis repletos,
Sereis como que uns symbolos completos
D'uma feroz cubiça:
Tendes nas mãos o ferro dos destroços,
E levantaes os thronos sobre os ossos
De milhares de povos immolados;
Bebeis com sangue o vinho, em aurea taça,
E adormeceis, ao grito da desgraça,
Sinistros e embriagados.
...........................................
...........................................
...........................................
...........................................
...........................................
Lançaes, por toda a parte, o luto e a morte...
Mas vae haver uma vingança forte...
Tremei agora, ó grandes criminosos;
—Approxima-se a hora da batalha...
Eil-a, já perto, a livida canalha,
Os vís, os asquerosos.
São elles os plebeus, os desgraçados,
Cheios de fome, tristes, descarnados,
Como espectros das lendas tenebrosas;
Deixam as trevas de um passado escuro,
E vão depôr nas aras do futuro
As—palmas victoriosas.
Vêm terminar a noute dos horrores,
E hão de sair altivos, vencedores,
[150]
Da luta contra a velha realeza;
Ha de unil-os o braço da Egualdade,
E inundal-os a luz da Liberdade,
Ao som da Marselheza.
.....................................
Mas percorra-se, breve, a longa senda,
Conquistemos os louros da contenda,
Abram-se agora as jaulas imperiaes;
Á luta! irmãos! á luta!... «Democratas,
Poisae o pé sobre as cabeças chatas
Das viboras reaes!...»
A. Bettencourt Rodrigues.
UM HEROE
É dia de batalha! Em fumo suffocados
Desde o romper do sol, duzentos mil soldados
Luctam a ferro e fogo.
Um d'elles,—um dragão
Curvado no selim, e em frente do esquadrão,
Como racha uma cunha os tóros de um pinheiro,
Embebe-se feroz n'outro esquadrão fronteiro,
Fazendo-o rebentar em rotos vagalhões.
Qual se na mão vibrára um raio, as multidões
[151]
Vergam, fundem-se á luz do aço de sua espada.
Apoz o lampejar de cada cutilada
Chovem jorros de sangue em meio d'essa mó
Que aos pés do seu cavallo, e em turbilhões de pó,
Desenlaça os cordões do seu dobar confuso.
Incendeia-lhe a raiva o torvo olhar diffuso
Por tudo o que inda vive! e do seu labio á flor
Fuzila a imprecação, se o fatigado açor
Da morte, um só momento, encolhe a garra curva.
Depois a noite desce, enregelada e turva,
Co'as brumas d'esse mar de sangue. Desde então
Findára a lucta horrenda; e o esplendido dragão,
O grande heroe do dia, após tão bom regalo,
Limpa tranquillo a espada ás clinas do cavallo.
De repente uma voz interrogal-o vem,
Qual se de dentro d'elle a voz partira:
«Quem
Venceu n'esta batalha em que mataste tanto?
Que salvadora ideia, ou que principio santo
No sangue baptisaste? e, cego de furor,
Porque te foi prazer a ancia da alhêa dôr?
Das lascas do metal dos elmos, que partiste,
O que forja a victoria? aguda lança em riste
De encontro aos peitos nús de alguns de teus irmãos?
Ou martello que parta os ferros em que as mãos
Lhes roxeiam no cêpo, ambas acorrentadas?
Que lumes surgirão do choque das espadas,
Em que se aqueça mais a cinza do teu lar,
Quando—volvido á choça onde te foi buscar
A guerra—em torno a ti pedirem as crianças
Calor, abrigo, e pão? Que férvidas vinganças
Reclamarás de quem, pela primeira vez,
Tu viste hoje e que ainda, ha bem pouco, talvez
[152]
A mil leguas de ti, em vez de humanas vidas
Ceifava, como tu, as messes resequidas
Á luz do sol do céo e do outro sol da paz?
De que lado partiu o desafio audaz?
Da força do direito, ou do empuxão da força?
O que faz com que o ferro esmague, quebre e torça
Armas e corações em funebre tropel?
Que sabes tu, que sabe o teu feroz corcel
De mappas ou de leis, de imperios ou de raças,
Para que, contemplando os rombos das couraças
D'onde sae pingo a pingo a vida a gottejar,
Tranquillo o coração e indifferente o olhar,
Escutes o estertor e as ancias da agonia
De uns pobres como tu?»
O grande heroe do dia
Os hombros encolheu em frente á mortal grei,
Sorriu bestialmente, e respondeu:
«Não sei!»
Claudio José Nunes. Scenas contemporaneas, p. 73. Lisboa, 1873.
ESPOSA, FILHA E MÃE
Passou por mim n'um dia venerando
Um grupo que em minh'alma ainda hoje brilha:
Uma linda creança hia guiando
[153]
Um velho cego e triste.
Ao vêr como o guiava, eu disse: «Existe
O santo amor de filha.»
Annos depois—não sei como, nem quando—
Encontrei o botão já feito rosa...
Fitava o meigo olhar que mal esconde
Thesouros de meiguice,
N'um homem, por tal fórma que quem visse
Diria: «Amor de esposa.»
Encontro-te hoje a mesma, apenas vejo
Novos cuidados que ao teu rosto vêm,
E ao vêr com quanto amor tu dás um beijo
N'um sêr que tens ao peito,
Digo: «Bemdito Deus, que assim te ha feito
Esposa, filha e mãe.»
[155]
PARTE II
OS LYRICOS BRAZILEIROS
[157]
SONHANDO
Na praia dezerta que a lua branqueia,
Que mimo! que rosa, que filha de Deus!
Tão pallida—ao vel-a meu sêr devaneia,
Suffoco nos labios os halitos meus.
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzella, onde vaes?
Tem pena de mim.
A praia é tão longa! e a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma;
De noite aos serenos—a areia é tão fria,
Tão humido o vento que os áres perfuma!
És tão doentia!
Não corras assim!
Donzella, onde vaes?
Tem pena de mim.
A brisa teus negros cabellos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor;
Teus seios palpitam—a brisa os roçou,
Beijou-os, suspira, desmaia de amor.
Teu pé tropeçou...
Não corras assim!
[158]
Donzella, onde vaes?
Tem pena de mim:
E o pallido mimo da minha paixão
N'um longo soluço tremeu e parou;
Sentou-se na praia; sósinha no chão
A mão regelada no collo pousou!
Que tens, coração,
Que tremes assim?
Cansaste, donzella?
Tem pena de mim.
Deitou-se na areia que a vaga molhou,
Immovel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o somno fechou,
E nem o seu collo de neve tremia.
O seio gelou?...
Não durmas assim!
Oh pallida fria,
Tem pena de mim.
Dormia—na fronte que niveo suár!
Que mão regelada no languido peito!
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gélido leito!
Nem um resonar!...
Não durmas assim!
Oh pallida fria
Tem pena de mim.
Aqui no meu peito vem antes sonhar,
Nos longos suspiros do meu coração,
Eu quero em meus labios teu seio aquentar,
Teu collo, essas faces e a gélida mão!
[159]
Não durmas no mar!
Não durmas assim
Estatua sem vida,
Tem pena de mim!
E a vaga crescia seu corpo banhando,
As candidas formas movendo de leve!
E eu via-a suave nas aguas boiando,
Com soltos cabellos nas roupas de neve!
Nas vagas sonhando
Não durmas assim;
Donzella, onde vaes?
Tem pena de mim!
E a imagem da virgem nas aguas do mar
Brilhava tão branca no limpido véo!
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céo!
Nas aguas do mar
Não durmas assim!
Não morras, donzella,
Espera por mim!
M. A. Alvares de Azevedo, Obras, t. I, p. 67. Rio de Janeiro, 1862.
[160]
SONETO
Pallida, á luz da lampada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do mar ella dormia!
Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das aguas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
Era mais bella! o seio palpitando...
Negros olhos as palpebras abrindo...
Fórmas núas no leito resvalando...
Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti—as noites eu velei chorando,
Por ti—nos sonhos morrerei sorrindo!
Alvares de Azevedo, Ibid. t. I, p. 131.
LEMBRANÇA DE MORRER
Quando em meu peito rebentar-se a fibra
Que o espirito enlaça á dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lagrima,
Em palpebra demente.
[161]
E nem desfolhem na materia impura
A flor do valle que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tedio
Do deserto, o poente caminheiro,
—Como as horas do meu longo pesadello
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como um desterro da minh'alma errante,
Onde fogo insensato a consummia;
Só levo uma saudade—é d'esses tempos
Que amorosa illusão embellecia.
Só levo uma saudade—é d'essas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, oh minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pae... de meus unicos amigos,
Poucos—bem poucos—e que não zombavam
Quanto, em noites de febre endoidecido.
Minhas pallidas crenças duvidavam.
Se uma lagrima as palpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos labios me encostou a face linda!
Só tu á mocidade sonhadora
Do pallido poeta déste flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gosar de teus amores.
[162]
Beijarei a verdade santa e núa,
Verei cristallisar-se o sonho amigo...
Oh minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céo, eu vou viver comtigo.
Descancem o meu leito solitario
Na floresta dos homens esquecida,
Á sombra de uma cruz, e escrevam n'ella:
—Foi poeta—sonhou—e amou na vida.
Sombras do valle, noites da montanha,
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silencio derramae-lhe canto!
Mas quando preludia ave d'aurora
E quando á meia noite o céo repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Deixae a lua pratear-me a lousa.
Alvares de Azevedo, Ibid. t. I. pag. 198.
NO DIA DO ENTERRO DE...
A vida é uma comedia sem sentido,
Uma historia de sangue e de poeira,
Um deserto sem luz...
A escara de uma lava em craneo ardido...
[163]
E depois sobre o lodo... uma caveira,
Uns ossos e uma cruz!
Parece que uma atroz fatalidade
A mente insana no provir alenta
E zomba da illudida!
O frio vendaval da eternidade
Apaga sobre a fronte macilenta
A lampada da vida.
Não digas, coração, que alma descança
Quando as ideias no prazer enfurda
O escarneo zombeteiro...
Que loucura!... a manhã o peito cansa,
Resta um enterro... e uma resa surda...
E depois... o coveiro!
Fermente a seiba juvenil do peito,
Vele o talento n'uma fronte santa
Que o genio empallidece...
Embalde! á noite, ao pé de cada leito
O phantasma terrivel se levanta...
E seu bafo entorpece!
E comtudo essa morte é um segredo
Que gela as mãos do trovador na lyra
E escarnece da crença;
Um pesadêllo—uma visão de medo...
Verdade que parece uma mentira
E inocula a descrença!
E quem sabe? é a duvida medonha!
Quem os véos arregaça do infinito
E os tumulos destampa?
[164]
Quem, quando dorme, ou vela, ou quando sonha
Ouviu revelações no horrendo grito
A rebentar da campa?
E quem sabe? é a duvida terrivel:
É a larva que aos labios nos aperta
Entreabrindo o sudario!
A realidade é um pesadêllo incrivel!
Semelha um sonho a lápida deserta
E o leito mortuario!
E quando acordarão os que dormitam?
Quando estas cinzas se erguerão tremendo
Em nuvens se expandindo?
Perguntae-o aos cyprestes que se agitam,
Ao vento pela treva se escondendo,
Nas ruinas bramindo!
E comtudo parece um desvario,
Blasphemia atroz o cantico atrevido
Que rugem os atheus;
Sem a sombra de Deus é tão vasio
O mundo—cemiterio envilecido!...
Oh! creiamos em Deus!
Creiamos, sim; ao menos para a vida
Não mergulhar-se n'uma noite escura...
E não enlouquecer...
Utopia ou verdade, a alma perdida
Precisa de uma ideia eterna e pura
—Deus e céo... para crêr.
Consola-te! nós somos condemnados
Á noite de amargura: o vento norte
[165]
Nossos pharoes apaga...
Iremos todos, pobres naufragados,
Frios rolar no littoral da morte
Repellidos da vaga!
Alvares de Azevedo, Ibid., t. I, p. 335.
TRINDADE
A vida é uma planta mysteriosa
Cheia de espinhos, negra de amarguras,
Onde só abrem duas flôres puras
Poesia e Amor...
E a mulher... é a nota suspirosa
Que treme d'alma a corda estremecida,
—É fada que nos leva alem da vida
Pallidos de languor!
A poesia é a luz da mocidade,
O amor é o poema dos sentidos;
A febre dos momentos não dormidos
E o sonhar da ventura...
Voltae, sonhos de amor e de saudade!
Quero ainda sentir arder-me o sangue,
[166]
Os olhos turvos, o meu peito langue,
E morrer de ternura.
Alvares de Azevedo, Ibid., t. III, p. 47.
SE EU MORRESSE ÁMANHÃ!
Se eu morresse ámanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria,
Se eu morresse amanhã!
Quanta gloria presinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas corôas
Se eu morresse ámanhã!
Que sol! que céo azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito,
Se eu morresse ámanhã!
Mas essa dôr da vida que devora
A ancia de gloria, o dolorido afan...
[167]
A dor no peito emudecera ao menos,
Se eu morresse ámanhã!
Alvares de Azevedo, Ibid., t. I, p. 343.
PEDIDO
Hontem no baile
Não me attendias!
Não me attendias
Quando eu fallava.
De mim bem longe
Teu pensamento!
Teu pensamento
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos,
Sobre outros olhos
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
[168]
Com tal sorriso
Que apunhalava.
Tu lhe fallaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce
Que me matava.
Oh não lhe falles
Não lhe sorrias,
Se então querias
Experimentar-me.
Oh não lhe falles
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias
Que era matar-me.
A. Gonçalves Dias, Cantos, p. 22. Leipzic, 1860.
LYRA
Se me queres a teus pés ajoelhado,
Ufano de me vêr por ti rendido,
Ou já em mudas lagrimas banhado;
[169]
Volve, impiedosa,
Volve-me os olhos,
Basta uma vez!
Se me queres de rojo sobre a terra,,
Beijando a fimbria dos vestidos teus,
Calando as queixas que meu peito encerra,
Dize-me, ingrata,
Dize-me: Eu quero!
Basta uma vez.
Mas se antes folgas de me ouvir na lyra
Louvor singelo dos amores meus,
Porque minha alma ha tanto em vão suspira;
Dize-me, oh bella,
Dize-me: Eu te amo!
Basta uma vez.
Gonçalves Dias, Ib., p. 117.
O SOMNO
Nas horas da noite, se junto ao meu leito
Houveres acaso, meu bem, de chegar,
Verás de repente que aspecto risonho
[170]
Que toma o meu sonho,
Se o vens bafejar!
O anjo, que ao somno preside tranquillo,
Ao anjo da terra não cêda o logar;
Mas deixe-o amoroso chegar-se ao meu leito,
Unir-se ao meu peito,
D'amor offegar.
As notas que exhalam as harpas celestes,
Os gosos que os anjos só podem gosar,
Talvez tambem frúa, se ao meu peito unida
Te encontro, oh querida,
No meu acordar!
Gonçalves Dias, Novos Cantos, p. 186.
MEU ANJO, ESCUTA...
Meu anjo, escuta: quando junto á noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como suspiro que um menino exhala;
Na voz da brisa que murmura e falla
Brando queixume, que tão triste cala
[171]
No peito teu?
Sou eu; sou eu; sou eu!
Quando tu sentes luctuosa imagem
D'afflicto pranto com sombrio véo,
Rasgando o peito por acerbas dôres;
Quem murcha as flores
Do brando sonho?—Quem te pinta amores
De um puro céo?
Sou eu; sou eu; sou eu!
Se alguem te accorda do celeste arroubo,
Na amenidade do silencio teu,
Quando tua alma n'outros mundos erra,
Se alguem descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro, que no peito encerra;
Sou eu; sou eu; sou eu!
Se alguem se afflige de te vêr chorosa,
Se alguem se alegra co'um sorriso teu,
Se alguem suspira de te vêr formosa
O mar e a terra a enamorar o céo;
Se alguem definha
Por amor teu,
Sou eu; sou eu; sou eu!
Gonçalves Dias, Ultimos Cantos, p. 378.
[172]
AMOR E MEDO
I
Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh bella,
Comtigo dizes, suspirando amores:
«Meu Deus! que gelo, que frieza aquella!»
Como te enganas! meu amor é chamma
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo, é que te adoro louco...
És bella,—eu moço; tens amor,—eu medo!...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silencio ou vozes,
Das folhas seccas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véo da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me entumece os seios,
E ao vento fresco do caír das tardes
Eu me estremeço de crueis receios.
É que esse vento, que na varzea—ao longe,
Do côlmo o fumo caprixoso ondeia,
Soprando um dia, tornaria incendio
A chamma viva que teu riso atêa.
[173]
Ai! se abrazado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz:—que seria da plantinha humilde
Que á sombra d'elle tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrára a planta qual queimára o galho,
E a pobre nunca reviver podera
Chovesse embora paternal orvalho!
II
Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Sôltos cabellos nas espaduas núas!...
Ai! se eu te visse, Magdalena pura,
Sobre o velludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volupia doce,
Os braços frouxos—palpitante o seio.
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginaes do pejo,
Trémula a falla a protestar baixinho...
Vermelha a bocca, soluçando um beijo!...
Diz:—que seria da pureza d'anjo,
Das vestes alvas, do candor das azas!...
—Tu te queimáras, a pizar descalça,
Criança louca, sobre um chão de brazas!
No fogo vivo eu me abrazára inteiro!
Ebrio e sedento na fugaz vertigem;
[174]
Vil, machucára com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a innocencia que teu labio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos paúes da terra.
Depois... desperta no febril delirio,
Olhos pisados, como um vão lamento,
Tu perguntáras: que é da minha corôa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês; trahi-me no fatal segredo.
Se de ti fujo, é que te adoro e muito,
És bella,—eu moço; tens amor, eu—medo.
Casemiro de Abreu, Primaveras, p. 131. Lisboa.
NA RÊDE
Nas horas ardentes do pino do dia
Ao bosque corri;
E qual linda imagem dos castos amores,
Dormindo e sonhando cercada de flores
Nos bosques a vi!
[175]
Dormia deitada na rêde de pennas,
O céo por docel,
De leve embalada no quieto balanço,
Qual nauta scismando n'um lago bem manso,
N'um leve batel.
Dormia e sonhava;—no rosto, serena,
Qual um seraphim;
Os cilios pendidos nos olhos tão bellos,
E a brisa brincando nos sôltos cabellos,
De fino setim!
Dormia e sonhava—formosa, embebida
No doce sonhar,
E doce e sereno, n'um magico anceio
Debaixo das roupas batia-lhe o seio
No seu palpitar.
Dormia e sonhava,—a bocca entre-aberta,
O labio a sorrir;
No peito cruzados os braços dormentes,
Compridos e lisos quaes brancas serpentes,
No collo a dormir!
Dormia e sonhava—no sonho d'amores
Chamava por mim;
E a voz suspirosa nos labios morria
Tão terna e tão meiga qual vaga harmonia
De algum bandolim!
Dormia e sonhava—de manso cheguei-me
Sem leve rumor,
Pendi-me tremendo e, qual fraco vagido,
Qual sopro da briza, baixinho ao ouvido
Fallei-lhe de amor!
[176]
Ao halito ardente o peito palpita...
Mas sem despertar;
E como nas ancias de um sonho que é lindo,
A virgem na rêde córando e sorrindo...
Beijou-me a sonhar!...
Casimiro de Abreu, Ibid., p. 95.
MARTYRIO
Beijar-te a fronte linda:
Beijar-te o aspecto altivo,
Beijar-te a tez morena;
Beijar-te o rir lascivo.
Beijar o ár que aspiras,
Beijar o pó que pisas,
Beijar a voz que soltas.
Beijar a luz, que visas.
Sentir teus modos frios,
Sentir tua apathia,
Sentir até repudio,
Sentir essa ironia;
Sentir que me resguardas,
Sentir que me arreceias,
[177]
Sentir que me repugnas,
Sentir que até me odeias;
Eis a descrença e a crença,
Eis o absyntho e a flor,
Eis o amor e o odio,
Eis o prazer e a dor!
Eis o estertor da morte,
Eis o martyrio eterno,
Eis o ranger dos dentes
Eis o penar do inferno.
Junqueira Freire, Contradicções poeticas, p. 79.
TAMBEM ELLA
Ella tambem ouviu o som das vagas
Sobre os rochedos—e talvez dissesse:
—O som das aguas que embellece os outros,
Não me embellece.
Ella tambem sentiu a fresca aragem
Sobre os cabellos—e talvez dissesse:
[178]
—A fresca aragem que adormece os outros
Não me adormece.
Ella tambem deitou-se no sereno
Sobre estas relvas—e talvez dissesse:
—Este sereno que empallece os outros
Não me empallece.
Ella tambem olhou estas montanhas
Sobre as campinas—e talvez dissesse:
—A vista d'ella, que embevece os outros
Não me embevece.
Ella tambem andou ao sol ardente
Sobre as planicies—e talvez dissesse:
—O sol ardente que enrubece os outros
Não me enrubece.
Ella tambem provou dos cardos frescos
Sobre as areias—e talvez dissesse:
—O gosto d'elles, que arrefece os outros,
Não me arrefece.
Elle tambem sentou-se n'este muro,
Sobre estas pedras—e talvez dissesse:
—Esta quadra gentil que encanta os outros
Já me aborrece.
Este quadro gentil agrada aos outros,
É bello todo—ella talvez dissesse!
—Porém tão longe o meu amor! oh, tudo
Tudo fallece!
Sim, ella o disse merencoria e amante,
Impios não duvideis que ella o dissesse:
[179]
—Tão longe d'elle assim! sem vida tudo,
Tudo parece!
Junqueira Freire, Ibidem, p. 117.
A FLOR SUSPIRO
Eu amo as flores
Que mudamente
Paixões explicam
Que o peito sente,
Amo a saudade,
O amor perfeito,
Mas o suspiro
Trago no peito.
A forma esbelta
Termina em ponta,
Como uma lança
Que ao céo remonta.
Assim, minha alma,
Suspiros geras
Que ferir podem
As mesmas féras.
[180]
É sempre triste,
Ensanguentado,
Quer secco morra,
Quer brilhe em prado.
Taes meus suspiros...
Mas não prosigas,
Ninguem se move
Por mais digas.
D. J. Gonçalves Magalhães, Suspiros poeticos, p. 239. Pariz 1859.
LYRA
Quando me volves teus formosos olhos,
Meigos, banhados de celeste encanto,
Rasgo uma folha da carteira, e a lapis
Escrevo um canto,
Quando nos labios do rubim mais puro
Mostras-me um riso seductor, faceto,
Encommendo minh'alma ás nove muzas,
Faço um soneto.
Quando ao passeio, no mover das roupas,
Deixas de leve vêr teu pé divino,
[181]
Sinto as arterias palpitarem tumidas,
Componho um hymno.
Quando no marmor das espaduas bellas,
As negras tranças a tremer sacodes,
Ebrio de amor, sorvendo seus perfumes,
Rimo dez odes.
Quando á noitinha, me fallando a medo
Elevas-me do céo á luz suprema,
Esqueçoi-me do mundo e de mim mesmo,
Gero um poema.
L. N. Fagundes Varella, Cantos do ermo e da cidade, p. 149.
O MESMO
Desde a quadra a mais antiga
De que rezam pergaminhos,
Cantam a mesma cantiga
Na floresta os passarinhos;
Tem o mesmo aroma as flores,
Mesma verdura as campinas,
A briza os mesmos rumores,
Mesma leveza as neblinas;
[182]
Tem o sol as mesmas luzes,
Tem o mar as mesmas vagas,
O dezerto as mesmas urzes,
A mesma dureza as fragas;
Os mesmos tolos o mundo,
A mulher o mesmo riso,
O sepulchro o mesmo fundo,
Os homens o mesmo siso;
E n'este insipido giro,
N'este vôo sempre a esmo,
Vale a pena, em seu retiro,
Cantar o poeta, mesmo?
Fagundes Varella, Ibid., p. 151.
SERENATA
Em teus travessos olhos,
Mais lindos que as estrellas
Do espaço, ás furtadelas
Mirando o escuro mar;
Em teu olhar tyrannico,
Cheio de vivo fogo,
[183]
Meu sêr, minh'alma afógo
De amor a suspírar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
D'esses mimosos labios
Que ao beija-flor enganam,
D'onde perpetuos manam
Perfumes de encantar;
D'esses lascivos labios,
Macios, purpurinos,
Ouvindo os sons divinos
Me sinto desmaiar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
Tuas madeixas virgens,
Cheirosas, fluctuantes,
Teus seios palpitantes
Da sêde do gozar;
Tua cintura estreita,
Teu pé subtil, conciso,
Obumbram-me o juízo,
Apagam-me o pensar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
Ai quebra-me estes ferros
Fataes que nos separam,
Os doudos que os forjaram
Não sabem, não, amar.
[184]
Da-me o teu corpo e alma,
E á luz da liberdade,
Oh minha divindade
Corramos a folgar.
Se teus encantos todos
Eu fosse enumerar!...
Fagundes Varela, Ibid., p. 43.
ESTANCIAS
O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mysterio,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo imperio.
O que eu adoro em ti não são teus lábios,
Onde perpetua juventude móra,
E encerram mais perfumes do que os valles,
Por entre as pompas festivaes da aurora.
O que eu adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o mármor descorára,
E ao contemplar a esplendida harmonia
Phidias, o mestre, seu cinzel quebrára.
[185]
O que eu adoro em ti não é teu collo
Mais bello que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asylo
Aonde o genio das paixões habita.
O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto vôo de uma abelha
Cheias de medo em seu abrigo temem.
O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.
São as palavras de bondade infinda
Que sabes murmurar aos que padecem,
Os carinhos ingenuos de teus olhos,
Onde celestes gozos transparecem!...
Um não sei que, de grande, immaculado,
Que faz estremecer quando tu fallas,
E eleva-me o pensar além dos mundos,
Quando abaixando as palpebras te callas.
E por isso em meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de incenso em aras santas,
E das turbas solicitas no meio
Tambem contricto hei te beijado as plantas.
E como és linda assim! Chammas divinas
Cercam-te as faces placidas e bellas,
Um longo manto pende-te dos hombros,
Salpicado de nitidas estrellas!
[186]
Na douda pyra de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...
Tinhas nos olhos o perdão sómente!
Fagundes Varella, Ibid., p. 68.
O CANTO DOS SABIÁS
Serão de mortos anjinhos
O cantar de errantes almas?
Dos coqueiros florescentes
A brincar nas verdes palmas,
Estas notas maviosas
Que me fazem suspirar?
São os sabiás que cantam
Nas mangueiras do pomar.
Serão os genios da tarde
Que passam sobre as campinas,
Cingindo o collo de opalas,
E a cabeça de neblinas,
E fogem, nas harpas de ouro
Mansamente a dedilhar?
[187]
São os sabiás que cantam,
Não vês o sol declinar.
Ou serão talvez as preces
De algum sonhador proscripto,
Que vagueia nos desertos,
Alma cheia do infinito,
Pedindo a Deus um consolo
Que o mundo não póde dar?
São os sabiás que cantam.
Como está sereno o mar!
Ou quem sabe as tristes sombras
De quanto amei n'este mundo,
Que se elevam lacrimosas
De seu tumulo profundo,
E vêm os psalmos da morte
No meu desterro entoar?
São os sabiás que cantam.
Não gostas de os escutar?
Serás tu, minha saudade?
Tu meu thezouro de amor?
Tu que ás tormentas murchaste
Da mocidade na flor?
Serás tu? Vem, sê bem vinda,
Quero-te ainda escutar!
São os sabiás que cantam
Antes da noite baixar.
Mas ah! delirio insensato!
Não és tu sombra adorada!
[188]
Não ha canticos de anjinhos,
Nem de phalange encantada
Passando sobre as campinas
Nas harpas a dedilhar!
São os sabiás que cantam
Nas mangueiras do pomar!
Fagundes Varella, Ibidem, p. 34.
O ADEUS DE THEREZA
A vez primeira que eu fitei Thereza,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A walsa nos levou nos giros seus...
E amámos juntos... E depois na sala
Adeus!—eu disse-lhe, a tremer co'a falla...
Ella, córando, murmurou-me:—Adeus!
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcôva sahia um cavalleiro
Inda beijando uma mulher sem véos...
[189]
Era eu... Era a pallida Thereza!
Adeus!—lhe disse, conservando-a preza...
E ella entre beijos murmurou-me:—Adeus!
Passaram tempos... sec'los de delirio,
Prazeres divinaes... gozos do empyreo...
Mas, um dia volvi aos lares meus,
Partindo eu disse: Voltarei, descança!...
Ella chorando mais que uma criança,
Ella em soluços murmurou-me:—Adeus!
Quando voltei, era o palacio em festa!...
E a voz d'ella e de um homem lá na orchestra
Preenchiam de amor o azul dos céos.
Entrei... Ella me olhou branca, surpreza!
Foi a ultima vez que eu vi Thereza!...
E ella arquejando murmurou-me:—Adeus!
Castro Alves, Poesias, p. 47. Bahia, 1870.
[190]
IMMENSIS ORBIBUS ANGUIS
I
Resvala em fogo o sol dos montes sobre a espalda
E lustra o dorso nú da india americana...
Na selva zumbe emtanto o insecto de esmeralda,
E pousa o colibri nas flores da liana.
Ali, a luz cruel, a calmaria intensa!
Aqui, a sombra, a paz, os ventos, a cascata...
E a pluma dos bambús a tremular immensa...
E o canto de aves mil, e a solidão, e a mata...
É a hora em que, fugindo aos raios da esplanada,
A Indigena, a gentil matrona do deserto,
Amarra aos palmeiraes a rêde mosqueada,
Que, leve como um berço, embala o vento incerto...
Então ella abandona-lhe ao beijo apaixonado
A perna a mais formosa, o corpo o mais macio,
E, as palpebras cerrando, ao filho bronzeado
Entrega um seio nú, moreno, luzidio.
Porém d'entre os espatos esguios do coqueiro
Do verde gravatá nos caxos reluzentes,
Enrosca-se e desliza um corpo sorrateiro
E desce devagar pelos cipós pendentes.
[191]
E desce... e desce mais... á rêde já se chega...
Da india nos cabellos a longa cauda sóme...
Horror!... aquelle horror ao peito eis que se apega!
A baba quer o leite! A chaga, sente fóme!
O veneno quer mel! A escama quer a pelle!
Quer o almiscar perfume! O immundo quer o bello!
A lingua do reptil—lambendo o seio imbelle!...
Uma cobra por filho... Horrivel pesadello!...
II
Assim, minh'alma, assim um dia adormeceste
Na floresta ideial da ardente mocidade...
Abria a phantasia a pétala celeste...
Zumbia o sonho d'ouro em doce obscuridade...
Assim, minh'alma, déste o seio (oh dor immensa!)
Onde a paixão corria indómita, fremente!
Assim bebeu-te a vida, a mocidade e a crença
Não bocca de mulher... mas de fatal serpente...
Castro Alves, Ibid., p. 170.
[192]
QUANDO EU MORRER
Quando eu morrer... não lancem meu cadaver
No fosso de um sombrio cemiterio...
Odeio o mausoléu que espera o morto
Como o viajante d'esse hotel funéreo.
Corre nas veias negras d'esse marmore
Não sei que sangue vil de messalina;
A cova, n'um bocejo indifferente
Abre ao primeiro a bocca libertina.
Eil-a, a náo do sepulchro—o cemiterio...
Que povo extranho no porão profundo!
Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as plagas sem fim do outro mundo.
Tem os fogos-errantes por santelmo,
Tem por velâme os pannos do sudario...
Por mastro o vulto esguio do cipreste,
Por gaivotas—o mocho funerario...
Ali ninguem se firma a um braço amígo,
Do inverno pelas lugubres noitadas...
No tombadilho indifferente chocam-se,
E nas trevas esbarram-se as ossadas...
[193]
Como deve custar ao pobre morto
Vêr as plagas da vida além perdidas,
Sem vêr o branco fumo de seus lares
Levantar-se por entre as avenidas!
Oh! perguntae aos frios esqueletos
Porque não tem o coração no peito...
E um d'elles vos dirá: Deixei-o á pouco
De minha amante no lascivo leito.
Outro: Dei-o a meu pae. Outro: Esqueci-o
Nas innocentes mãos de meu filhinho...
Meus amigos! Notae: bem como um passaro
O coração do morto volta ao ninho.
Castro Alves, Ibid., p. 187.
OS PERFUMES
O perfume é o invólucro invisivel
Que encerra as fórmas da mulher bonita,
Bem como a salamandra em chammas vive,
Entre perfumes a sultana habita.
Escrinio avelludado onde se guarda
Collar de pedras—a belleza esquiva,
[194]
Especie de crysálida, onde móra
A borboleta dos salões, a diva.
Alma das flores—quando as flores morrem,
Os perfumes emigram para as bellas,
Trocam labios de virgens por boninas,
Trocam lirios por seios de donzellas.
Ali—sylphos travessos, traiçoeiros
Vôam cantando em languido compasso,
Occultos n'esses cálices macios
Das covinhas de um rosto ou d'um regaço.
Vós, que não entendeis a lenda occulta,
A linguagem mimosa dos aromas,
De Magdalena a urna olhaes apenas
Como um primor de orientaes redomas.
E não vêdes, que ali na myrra e nardo
Vae toda a crença da judia loura...
E que o oleo que lava os pés de Christo
É uma resa tambem da peccadora.
Por mim eu sei que ha confidencias ternas,
Um poema saudoso, angustiado,
Se uma rosa de ha muito emmurchecida
Róla acaso de um livro abandonado.
O espirito talvez dos tempos idos
Desperta ali como invisivel nume...
E o poeta murmura suspirando:
Bem me lembro... era este o seu perfume!
E que segredo não revela acaso
De uma mulher a predilecta essencia?
[195]
Ora o cheiro é lascivo e provocante!
Ora casto, infantil, como a innocencia!
Ora propala os sensuaes anceios
D'alcôva de Ninon ou Margarida,
Ora o mysterio divinal do leito
Onde sonha Cecilia adormecida.
Aqui, na magnólia de Celuta
Lambe a solta madeixa que se estira;
Unge o bronze do dorso da cabôcla,
E o marmore do corpo da Hetaíra.
É que o perfume denuncia o espirito
Que sob as fórmas feminis palpita...
Pois como a salamandra em chammas vive,
Entre perfumes a mulher habita.
Castro Alves, Ibid., p. 167.
RASTO DE SANGUE
É a hora do crepusculo,
Que viração tão grata!
Geme o riacho quérulo,
Nem um cantor na mata.
[196]
Desce a ladeira ingreme
Um touro de repente,
E vae nas frescas aguas
Fartar a sêde ardente.
Os juncos tremem, subito
Sôa, medonho ronco,
E o jaguar precípite
Pula de traz de um tronco.
Debalde o touro curva-se,
Recúa, dá um salto,
E o jaguar mais flacido
Sabe pular mais alto.
O touro parte célere
Soltando um grito horrendo!
Sobre elle a féra escancha-se,
Tambem lá vae correndo.
Vôam por esses páramos,
O touro em grandes brados;
Soltar querem das órbitas
Os olhos inflammados.
Espuma, arqueja! a lingua
Da bocca vae pendente!
Garras e dentes crava-lhe
A fera impaciente.
Largo rastilho rubido
Embebe-se na areia,
O sangue jorra calido
Da lacerada veia.
[197]
Contrae-se a forte victima
Luctando com braveza!
Porém o algoz impavido
Lá vae... não deixa a prêza!
Correram mais! que insania!
Que scena pavorosa,
Passada no silencio
Da selva escura, umbrosa.
Emfim n'um precipicio
Os dois vão baquear...
Cahiram lá exânimes
O touro e o jaguar.
Joaquim Serra, Quadros, pag. 45. Rio de Janeiro, 1873.
A MINHA MADONA
Alva, mais alva do que o branco cysne,
Que alem mergulha e a pennugem lava;
Alva como um vestido de noivado,
Mais alva, inda mais alva!
Loura, mais loura do que a nuvem linda
Que o sol á tarde no poente doura:
Loura como a virgem ossianesca,
Mais loura, inda mais loura!
[198]
Bella, mais bella que o raiar da aurora
Apoz noite hybernal, negra procella;
Bella como a açucena rociada,
Mais bella, inda mais bella!
Doce, mais doce, que o gemer da brisa;
Como se d'este mundo ella não fosse...
Doce como os cantares dos archanjos,
Mais doce, inda mais doce!
Casta, mais casta, que a mimosa folha
Que se constringe, que da mão se afasta,
Assim como a Madona immaculada
Ella era assim tão casta!...
Joaquim Serra, Ib., p. 121.
AS DUAS ESCRAVAS
Eu vejo-as abraçadas,
Ambas em luto envoltas,
Co' as loiras tranças soltas,
Cobrindo os hombros nús;
A desprender gemidos
Dos seios palpitantes,
E os olhos supplicantes
Fitos na mesma cruz.
[199]
E pende-lhes dos pulsos
A mesma atroz cadeia,
Seus labios incendeia
A mesma imprecação:
«Infamia eterna! (exclamam)
Aos nossos oppressores!
Senhor! vêde os horrores
Da nossa escravidão!»
—Mas quem sois vós, augustas
Imagens do martyrio?
Que assustador delirio
Vos tem curvado assim?
Em vossos rostos leio
A dor, a magoa, a insonia:
«Eu chamo-me—Polonia.
—E eu sou a pobre Erin...»
A. de Sousa Pinto, Ideias e Sonhos, p. 11. Lisboa, 1872.
[200]
CANTIGA
Aqui n'este arvoredo,
Das sombras no segredo,
Oh, vem!
Por estes arredores
O bosque outros melhores
Não tem.
O ruivo sol da tarde
Já nas montanhas arde,
D'além!
A lua alvinitente,
Nas portas do oriente
Lá vem.
A viração fagueira
A rapida carreira
Detem,
E dorme preguiçosa
No calix da mimosa
Cecem.
[201]
Ninguem na sombra escura
Verá nossa ventura,
Ninguem!
Sómente os passarinhos
Occultos nos seus ninhos
Nos vêm.
Do bosque entre os verdores
Se occupam só de amores,
Tambem!
E a lua, que desponta,
Jámais segredos conta
De alguem.
Debaixo do arvoredo,
Na gramma do vargedo
Oh, vem,
Á sombra d'este abrigo
Fallar a sós commigo,
Meu bem.
Bernardo Guimarães, Novas Poesias p. 143. Rio de Janeiro, 1876.
[202]
QUANDO ELLA FALLA
Quando ella falla, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ella falla!
Meu coração dolorido
As suas maguas exhala,
E volta ao gozo perdido
Quando ella falla.
Pudesse eu eternamente
Ao lado d'ella escutal-a,
Ouvir sua alma innocente
Quando ella falla.
Minha alma já semi-morta,
Conseguira ao céo alçal-a,
Porque o céo abre uma porta
Quando ella falla.
Machado Assis, Phalenas p. 29.
[203]
O LEQUE
(De Tan-Jo-Lu)
Na perfumada alcova a esposa estava,
Noiva ainda na vespera. Fazia
Calor intenso; a pobre moça ardia,
Com fino leque as faces refrescava.
Ora, no leque em boa lettra feito
Havia este conceito:
«Quando, immovel o vento e o ár pesado,
Arder o intenso estio,
Serei por mão amiga ambicionado;
Mas volte o tempo frio,
Ver-me-heis a um canto logo abandonado.»
Lê a esposa este aviso, e o pensamento
Volve ao joven marido:
«Arde-lhe o coração n'este momento
(Diz ella) e vem buscar enternecido
[204]
Brandas auras de amor. Quando mais tarde
Tornar-se em cinza fria
O fogo que hoje lhe arde,
Talvez me esqueça e me desdenhe um dia.»
Machado Assis, Phalenas, p. 121.
LAURA
—D'onde vens, Laura? «De casa.»
—Vaes á festa? «Já se vê.»
—Tão sósinha? «O que tem isso?»
—Vou comtigo... «Para o que?»
—Para ensinar-te o caminho...
«Agradeço-lhe o favor;
Eu sei de cór estas bandas,
Obrigada, meu senhor.»
—Olha o demo se te encontra...
«Pergunto ao demo o que quer.»
—E se elle quizer um beijo?
«Dou-lhe até mais, se quizer.»
[205]
—Ora, anda cá; dá-me o beijo,
Porque o demonio em mim vês...
«Já me estava parecendo...»
Ficará para outra vez.
—Vá d'esta vez um abraço...
«Abraço?»—Sim; o que tem?
«Mamãe me disse outro dia...»
—O que te disse a mamãe?
«Que a rapariga solteira
Em abraçando um rapaz...
Ferve-lhe o sangue nas veias,
E depois...» —E depois? «Zás!»
Arregaçando o vestido
Deitou-se Laura a correr;
Deixando-me boquiaberto,
Co'o sangue todo a ferver.
Bruno de Seabra, Flores e Fructos, p. 115. Rio de Janeiro, 1862.
[206]
A PROTECÇÃO DOS REIS
Ai do poeta que se accolhe a um throno,
E que implora de um rei mão protectora!
Ai d'elle! n'esse putrido ambiente
Pende-lhe morta a fronte sonhadora.
Assim ao viajor da Africa adusta
Hospitaleiro abrigo lhe similha
Uma arvore gigante; e elle adormece
Morto á sombra lethal da mancenilha!
Lucio de Mendonça, Alvoradas, p. 149. Rio de Janeiro, 1875.
[207]
FRAGMENTOS
Minh'alma é como a rôla gemedora
Que delira, palpita, arqueja e chora,
Na folhagem sombria da mangueira;
Como um cysne gentil de argenteas plumas,
Que fallece de amor sobre as espumas
A soluçar a queixa derradeira.
Meu coração é o lothus do Oriente,
Que desmaia aos languores do occidente,
Implorando do orvalho as lácteas pérolas;
E na penumbra pallida se inclina,
E murmura rolando na campina:
—Oh brisa, me transporta ás plagas cérulas.
Ai, quero nos jardins da adolescencia
Esquecer-me das urzes da existencia,
Nectarisar o fel de acerbas dôres!
Depois... remontarei ao paraiso,
Nos labios tendo os lirios do sorriso,
Sobre as azas dos mysticos amores.
Narcisa Amalia, Nebulosas, p. 59. Rio de Janeiro, 1872.
[208]
AI DE MIM!
Ai! dizes que não me queixe?
Que de vogar eu me deixe
N'um mar de scismas sem fim?
Que não lamente meu fado,
Desprezado,
Desprezado sempre assim!
Ai de mim!
Que distante dos teus olhos,
Nas trevas por entre abrolhos,
Vagando ás tontas sem fim,
Não maldiga a triste vida
Dolorida,
Dolorida sempre assim?
Ai de mim.
Ai, se tu és minha estrella,
Que luz, que brilha tão bella
N'esse horisonte sem fim,
[209]
Porque te occultas? Sem norte...
Cruel morte,
Cruel morte eu soffro assim!
Ai de mim.
Bettencourt Sampaio, Flores sylvestres, p. 26 Rio de Janeiro, 1860.
A —
Teus olhos brilhantes
Me cegam de luz;
São vivos diamantes
De raios cingidos
Da noite embutidos
Em dois cilios nús.
Teus olhos que agitam,
Que queimam, que fitam,
Teus olhos brilhantes
Me cegam de luz.
Mas ai! não pudessem
Teus olhos ser taes!
Que morte elles dessem,
Não fogo e martyrio
Da mente ao delirio,
[210]
Do peito a meus ais!
Se nunca elles matam,
Mas se alma arrebatam,
Ai! nunca pudessem
Teus olhos ser taes!
Teu corpo fluctúa
Qual concha no mar,
Mais doce que a lua,
Mais frouxo que a espuma,
Mais tenue que a pluma
Nos braços do ár;
Se a dansa os vestidos
Te agita—aos sentidos
Teu corpo fluctúa
Qual concha no mar.
Mas ai! nunca eu visse
Como és tão gentil!
Que nunca sentisse
Teu corpo engraçado
Voar balançando
Na dansa subtil!
Se roe-me o desejo,
De ver-te e não vejo,
Ah! nunca te visse
Como és tão gentil.
Teus seios me turvam
A vista e a rasão:
Nas roupas se curvam
Tão presos, tão vivos...
Oh! doces cativos,
Quebrae tal prisão,
[211]
E inquietos, travessos
Do collo nos gêssos
Teus seios me turvam
A vista e a rasão.
E Deus faz na terra
Mulheres assim!
E quando o homem erra,
Perdido de amores,
Será, meus senhores,
Um doudo por fim?
Se o peito suspira,
Se a mente delira,
Se Deus faz na terra
Mulheres assim?
F. Dias Carneiro, Parnaso maranhense, p. 115. Maranhão, 1861.
O PASSEIO
Não foi nos campos, onde a vida corre
Placida, longe do rumor do mundo,
Onde um suspiro, que nos labios morre,
Traz o segredo de um amor profundo;
[212]
Onde o arroio de cristal deslisa
Por entre o aroma de mimosas flores;
Onde parece que a formosa lua
Respira e sente, como nós, amores!
Não foi nas praias onde as brandas vagas
Vem á tardinha soluçar, gemer;
Onde os amantes com o sorrir nos labios
Sonham venturas de um feliz viver;
Onde a donzella que só pensa e scisma
Em aureos sonhos, que os amores tem,
Meiga suspira e arroubada escuta
Canções do nauta, que do mar lhe vem.
Não; essa noute em que eu feliz sentia
Sobre o meu braço tua mão pender,
Entre os ruidos d'esse mundo louco
Serena vimol-a perpassar, correr!
E no bulicio d'este mundo frivolo
Entre essa turba sempre louca e van,
Eu recolhia tuas phrases soltas
No imo peito com fervor e afan!
Que de venturas em aspirar teu halito;
Fixar teus olhos que o pudor baixava!
Manso, bem manso te batia o seio,
Que eu em delirio contra o meu chegava.
E a voz tão fresca e argentina e pura,
Que me parece estar ouvindo ainda!
Se n'este mundo já gozei ventura,
Foi n'essa noute, n'essa noute linda.
[213]
Em puro extasis minha voz tremia,
Talvez te lembres, descórado estava!
Tudo o que eu vi era só pompa e risos,
Tudo de amores e prazer fallava.
Que noite linda, que luar formoso!
Meu peito ardente de prazer tremia!
De tuas tranças aspirava o aroma,
Sobre o meu braço tua mão pendia.
E no bulicio d'este mundo frivolo
Serena vimol-a perpassar, correr
A noite linda que me deu prazeres,
Sonhos, venturas de um feliz viver!
F. Vieira de Sousa. Parnaso maranhense, p. 119.
MEUS ANHELOS
Se bem o digo, mulher, a hora infausta.
Em que da vida a luz primeira eu vi,
Se ao duro embate de uma cruel sorte
Até hoje, mulher, não succumbí,
O devo a ti!
[214]
Se presinto glorias n'um provir remoto,
E vejo estrada nova que não vi,
Se eu aspiro, mulher, do louro as palmas,
E ás duras provações, não esmoreci,
O devo a ti!
Se morte ingloria receioso temo,
Se a vãos perigos sempre me sorri,
É p'ra dizer-te no momento extremo:
Vivi! em vão luctei, morro por ti!
F. G. F. de Mattos, Parnaso maranhense, p. 125.
UM AMOR
Eu sinto a fronte palpitar de idéas,
Eu sinto o peito palpitar de ardor!
O que me falta pois? o que preciso?
Um amor!
Um amor, um amor de virgem bella,
Cheia de mocidade e de pudor!
Eu só procuro, só desejo e quero
Um amor!
[215]
Não permittas, meu Deus, que triste passe
De minha juventude toda a flor,
Sem que ao menos inspire, e sinta e gose
Um amor!
A. J. Franco de Sá, Poesias, p. 55. S. Luiz do Maranhão, 1869.
QUEM SABE? TALVEZ!
Existe uma virgem que o céo me destina,
Com quem delirante meu peito já sonha;
Eu vejo-a na fórma da virgem risonha,
Do céo nas estrellas, na flôr da campina,
Á noite, do bosque por entre a mudez;
Na brisa que passa por entre os palmares,
A voz bem lhe escuto que falla inda a medo...
Eu sinto na fronte seus meigos olhares!...
Quem dera-me ao peito cingil a bem cedo...
Quem sabe? talvez!
E tu nada sentes? tu nada procuras?
Nos quadros tão lindos que tu phantasias
Um dia brilhante de occultas magias,
De amores ardentes, de infindas venturas,
Ó virgem! não viste siquer uma vez?
[216]
Nos breves delirios, nos teus devaneios,
Nos vagos desejos da mente inquieta,
Que o peito te abalam, arfando-te os seios,
Não sonhas ás vezes o amor de um poeta?
Quem sabe? talvez!
Tu sonhas; que virgem não sonha de amores?
Tu sonhas um doce viver duplicado,
Viver como os anjos de amor exaltado,
Viver de perfumes, de luz, como as flores,
Que Deus como as flores e os anjos te fez;
E uma alma formada de amor como a tua
No mundo que habitas procuras de certo...
Debalde... tua vista vacilla, fluctua...
E esse ente, quem sabe si existe bem perto?
Quem sabe? talvez!
Quem sabe si a virgem que o céo me reserva,
Que pura e formosa diviso na mente,
Que o peito me pede, que o peito presente,
P'ra quem puro, isento, fiel se conserva,
Quem sabe si és tu? no riso, na tez,
Nos olhos... na face tão pallida e bella...
Uns áres, uns visos comtigo lhe noto...
Nos longos cabellos... Quem sabe si és ella?
Aquella a que em sonhos minha alma já voto?
Quem sabe? talvez!
Quem sabe? de tarde seguindo teus passos
O anjo dos sonhos parece que vejo,
Meu peito palpita, e vem-me o desejo,
De, louco de amores, voar a teus braços,
Beijar-te os cabellos, morrer a teus pés!...
E tu não presentes, oh virgem! que eu ardo
[217]
E quando teus olhos de encanto celeste
Os olhos ardentes encontram do bardo,
No peito de virgem tu nunca disseste:
Quem sabe? talvez!
Ah! dize... si és tu, fugir-me não tentes,
És tu que procuro? ah! dize, que eu creio...
Tu flores bem frescas abrigas no seio?
Bastantes perfumes no peito tu sentes?
Um céo de ternura tu tens que me dês?
Ah! falla, responde, teu dito me traga
Um mar de delicias, de amor, de ventura;
Ah! dize-me—-sim,—do peito me apaga
A phrase terrivel, que a mente murmura:
Quem sabe? talvez!
A. J. Franco de Sá, Poesias, p. 63. S. Luiz do Maranhão.
O AMOR UM DIA NOS PRENDEU, QUERIDA
O amor um dia nos prendeu, querida,
Como dous élos de uma só cadêa;
Sômos dous sôpros de uma mesma vida,
As duas azas de uma mesma idéa:
[218]
Dous pensamentos n'uma mesma alma,
Nascendo juntos e sorrindo apoz;
Somos dous ramos de uma mesma palma,
Somos dous eccos de uma mesma voz.
As duas aves que em jardim volteiam,
Buscando flores para o ninho olente,
Ou duas nuvens que nos céos vaguêam
Illuminadas pelo sol nascente.
Se cantas, gemo, e no scismar suspira
Minha alma em sonhos ideaes, azues;
Somos dous cantos de uma mesma lyra,
Somos dous raios de uma mesma luz.
Se ris, me rio, e no prazer unidos,
O mundo diz-nos: «São felizes, sabios...»
Se soffres, chóro; somos dous gemidos
De um mesmo peito a nos morrer nos labios.
Quaes duas vagas que tu vês, rolando,
N'uma se unir, no mesmo mar correr,
Os nossos peitos foram-se abraçando
No mesmo affecto que nos faz viver.
Deos nos fizera de uma egual natura,
Nós nos sentimos como irmãos no amor;
Somos dous risos de uma só ventura,
Somos dous prantos de uma mesma dôr:
As duas folhas, de pureza francas,
Do livro santo onde tu lês—amar!
Que somos nós? as duas velas brancas
Ardendo vivas, sobre um mesmo altar.
[219]
Que as nossas almas, uma á outra unida
Vôem no sonho de um eterno afago,
Bem como vogam na indolente vida
Dous brancos cysnes sobre um mesmo lago.
No mesmo fogo o nosso olhar queimemos:
Na mesma fé as nossas almas crentes;
No mesmo aperto as nossas mãos liguemos,
No mesmo beijo os nossos labios quentes.
Filgueiras Sobrinho, Consoladoras, p. 52. Paris, 1876.
A SÉSTA
Na rêde, que um negro moroso balança,
Qual berço de espumas,
Formosa creoula repousa e dormita,
Emquanto a mucamba nos áres agita
Um leque de plumas.
Na rêde perpassam as trémulas sombras
Dos altos bambús;
[220]
E dorme a creoula de manso embalada,
Pendidos os braços da rêde nevada
Mimosos e nús.
A rêde, que os áres em torno perfuma
De vivos aromas,
De subito pára, que o negro indolente
Espreita lascivo da bella dormente
As tumidas pômas.
Na rêde suspensa dos ramos erguidos
Suspira e sorri
A languida moça cercada de flores;
Aos guinchos dá saltos na esteira de côres
Felpudo saguí.
Na rêde, por vezes, agita-se a bella
Talvez murmurando
Em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
Que triste colono por noites formosas
Descanta chorando.
A rêde nos áres de novo fluctua,
E a bella a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
De negros captivos os cantos magoados
Soluçam no ár.
Na rêde olorosa, silencio! deixae-a
Dormir em descanço!...
Escravo, balança-lhe a rêde serena;
Mestiço, teu leque de plumas acena
De manso, de manso.
[221]
O vento que passa tranquillo, de leve,
Nas folhas do engá,
As aves que abafem seu canto sentido;
As rodas do Engenho não façam ruido,
Que dorme sinhá.
A. C. Gonçalves Crespo, Miniaturas, p. 14. Coimbra, 1871.
O FILHO DA LAVANDEIRA
Um dia, nas margens do claro Atibáia,
Estava a cativa sósinha a lavar;
E um triste filhinho do rio na praia,
Jazia estendido no chão a rolar.
A pobre criança que o vento açoitava,
De frio e de fome chorava e chorava.
A misera negra, co'o rosto banhado,
No pranto que d'alma trazia-lhe a dor,
Prendeu-a com força no seio abrazado
De magoas, de angustia, de susto e de amor.
Pendendo a cabeça no collo da escrava
A pobre criança chorava e chorava.
[222]
«Meu filho querido, no meio dos mares,
Lá onde governa sómente o meu deus,
Lá onde se estendem mais lindos palmares,
Porque não nasceste cercado dos meus?»
E a pobre criança no seio da escrava,
Fitando-a tristinha, chorava e chorava.
«Meus paes lá ficaram; são livres, cantando
Que vida contente que passam por lá!
E tu, meu filhinho, commigo penando,
Esperas a morte nas terras de cá.»
Os ventos cresciam: o sol declinava,
E a pobre criança chorava e chorava.
«Ai, não! que dos pretos as almas não morrem!
Havemos ainda p'ra os nossos voltar:
As aguas tão mansas dos rios que correm
Nos levam bem vivos ao largo do mar.»
Nas aguas já meio seu corpo nadava,
E a pobre criança chorava e chorava.
«As aves, os bosques, as serras que vemos,
Não são como aquellas de onde eu nasci!
Tão doces folgares risonhos quaes temos,
Tão bellos, tão puros não ha por aqui.»
E os fundos gemidos o ecco levava,
E a pobre criança chorava e chorava.
«Oh vamos, meu filho, ao sólo jocundo
Aonde a existencia nos corre gentil;
Emquanto cativos houver n'este mundo
Os negros não devem viver no Brazil.»
A casa era perto; chamavam a escrava,
E a pobre criança chorava e chorava.
[223]
Assim soluçou! e no seio estreitando
O caro filhinho, nas aguas caiu;
Depois, muito tempo de leve boiando,
Sumiram-se os corpos nas voltas do rio.
Debalde procuram, procuram a escrava,
Se a pobre criança nem mais lá chorava!
F. Quirino dos Santos, Estrellas errantes, p. 75, 2.ª ed. Campina, 1876.
AS CRIANÇAS
Deixae-as vir a mim!—o Christo assim dizia,
Das crianças beijando as frontes radiosas.—
Pertence á candidez dos lirios e das rosas
O reino de meu pae, eterno de alegria!
Deixae-as vir a mim!—o Christo assim dizia.
Deixae-as vir a mim com toda a liberdade,
As crianças adoro humildes ou zangadas;
As innoxias, tambem, estridulas risadas,
Não ha n'essa expansão os sulcos da maldade:
Deixae-as vir a mim com toda a liberdade.
[224]
Deixae-as vir a mim; eu amo as criancinhas,
Nos folguedos gazís, no lar silenciosas;
E quando eu as contemplo insontes, descuidosas,
Estudo-lhe da face as curvas e covinhas.
Deixae-as vir a mim; eu amo as criancinhas.
Deixae-as vir a mim; são luzes do porvir,
Almas cheias de amor e aureas esperanças;
Nos olhos divinaes de todas as crianças
Ha mundos de candura e crenças a florir.
Deixae-as vir a mim são luzes do provir.
Octaviano Hudson, Peregrinas, p. 7. Rio de Janeiro, 1874.
[225]
CANTOS POPULARES BRAZILEIROS
I
CHACARA DO CEGO
(Da provincia do Ceará)
—Sinhá da casa
Venha vêr seu pobre;
Nem por vir pedir
Deixo de ser nobre.
«Não póde ser nobre
Quem vem cá pedir;
Não ha que lhe dar,
Já póde seguir.»
—Não usais commigo
Tanta ingratidão:
D'este pobre cego
Tende compaixão:
«Eu não sou dona,
Nem governo nada;
A dona da casa
Ainda está deitada.»
[226]
—Si está deitada
Ide-a chamar,
Que o pobre do cego
Lhe quer fallar.
«Acordai, senhora
Do doce dormir,
Vinde ver o cego
Cantar e pedir.»
—«Si elle canta e pede
Dae-lhe pão e vinho,
Para o pobre do cego
Seguir seu caminho.
Larga, Anninha, a róca,
E tambem o linho,
Vae ensinar o cego
Seguir seu caminho.»
«Aqui fica a róca
Acabou o linho;
Marchae, adiante, cego,
Lá vae o caminho.»
—Anda, anda, Anninha,
Mais um boccadinho,
Sou curto da vista,
Não enchergo o caminho.
«De conde e fidalgo
Me vi perseguida;
Hoje de um cego
Me vejo rendida.»
[227]
—Cala-te, condessa,
Prenda tão querida,
Eu sou este conde
Que te pretendia.
«Cala-te, conde,
Não digas mais nada,
Só quero saiâmos
D'aqui d'esta estrada.»
Infinitas graças
Vos dou, meu senhor,
Já ter vencido
Um cruel amor.
II
CHACARA DE D. JORGE
(Do Ceará)
Dom Jorge se namorava
D'uma mocinha mui bella,
Pois que apanhando servido
Ousou logo de ausentar-se,
Em procura d'outra moça
Para com ella casar.
[228]
Juliana que d'isso soube
Pegou logo a chorar,
A mãe lhe perguntou:
—De que choras minha filha?
«É Dom Jorge, minha mãe,
Que com outra vae casar.»
—Bem te disse, Juliana,
Que em homens não te fiasses;
Não era dos primeiros
Que as mulheres enganasse.
—«Deus te salve, Juliana,
No teu sobrado assentada!»
«Deus te salve, rei Dom Jorge,
No teu cavallo montado.
Ouvi dizer, rei Dom Jorge
Que estavas para casar?»
—«É verdade, Juliana,
Já te vinha desenganar.»
«Esperae, rei Dom Jorge,
Deixa eu subir a sobrado,
Deixa buscar um copinho
Que tenho para ti guardado.»
—«Eu lhe peço, Juliana,
Que não haja falsidade;
Olhe que sômos parentes,
Prima minha, da minh'alma.»
«Eu lhe juro por minha mãe,
Pelo Deus que nos criou,
Que rei Dom Jorge não logra
Esse seu novo amor.»
—«Que me deitas, Juliana,
N'este seu copo de vinho,
Estou com as redeas nas mãos,
[229]
Não enchergo meu russinho.
Ai qu'é do meu paisinho,
Por elle pergunto eu?
Eu morro, é de veneno
Que Juliana me deu.
—Morra, morra o meu filhinho,
Morra contricto com Deus,
Que a morte que te fizeram
Ella quem vinga sou eu.
—«Valha-me Deus do céo,
Que 'stou com uma grande dor;
A maior pena que levo
É não vêr meu novo amor.»
III
CHACARA DE FLORES-BELLA
(Do Ceará)
—Mouro, se fôres ás guerras,
Trazei-me uma cativa!
Que não seja das mais nobres,
Nem tambem de villa minha;
[230]
Seja das escolhidas
Que em Castelhana havia.
Saiu o Conde Flores
Fazer essa romaria:
A Condessa como nobre
Foi em sua companhia.
Mataram o Conde Flores,
Cativaram Lixandria,
E trouxeram de presente
Á rainha de Turquia.
—«Vem cá, vem cá minha moura,
Aqui está vossa cativa;»
—Já vou entregar as chaves
As chaves da minha cozinha.
«Entregae, entregae, senhora,
Que a desgraça foi minha;
Ainda hontem ser senhora,
Hoje escrava da cosinha.
Ao cabo de cinco mezes
Tiveram os filhos n'um dia;
A moura teve um filho,
A cativa uma filha.
Levantou-se a moura
Com tres dias de parida,
Foi á cama da escrava:
—Como estaes, escrava minha?
«Como hei de estar, senhora,
Sempre na vossa cosinha.»
Foi olhando para a criança,
Foi achando muito linda:
[231]
—Se estivesses em tua terra
Que nome tu botarias?
«Botaria Flores-Bella,
Como uma mana que tinha,
Que os mouros carregaram
Sendo ella pequenina.
—Si tu a visses hoje
Tu a conhecerias?
«Pelo signal que tinha
Só assim a conhecia!»
—Que tinha um lirio roxo
Que todo peito cobria!
«Pelo signal que me dais,
Bem parece mana minha.»
—Vem cá, vem cá minha moura
Que te dizes tua cativa.
«Eu já estou bem agastada,
E já me vou anojar
Tu mandaste lá buscar,
O teu cunhado matar.»
—Si eu matei meu cunhado
Outro melhor te hei de dar.
Farei tua irmã senhora
Da minha monarchia!
«Eu não quero ser senhora
Da tua monarchia
Quero ir para a minha terra
Onde eu assistia.»
—Aprontae, aprontae a náo,
Mais depressa em demasia.
Para levar Lixandria,
Ella e sua filhinha.
«Adeus, adeus Flores-Bella!
—Vae-te embora Lixandria.
[232]
E dae lá muitas lembranças
Á nossa parentaria.
Que eu fico como moura
Entre tanta mouraria.»
LUNDUNS E MODINHAS
(Pará)
Quanta laranja miuda,
Quanta florinha no chão;
Quanto sangue derramado
Por causa d'essa paixão.
[58]
Quem vae a Pará, parou;
Quem bebe açahy ficou.
(S. Paulo)
Pinheiro, dá-mi uma pinha,
Roseira dá-mi um botão,
Morena, dá-mi um abraço,
Que eu te dou meu coração.
[59]
[233]
(Cuyabá)
O bicho pediu sertão,
O peixe pediu fundura,
O homem pediu riqueza,
A mulher a formosura
[60].
(Pará)
Te mandei um passarinho,
Patuá mira pupé; (Dentro de uma caixa pequena)
Pintadinho de amarello
Iporãnga ne iavé. (E tão formoso como você.)
(Amazonas)
Vamos dar a despedida
Mandu sarará,
Como deu o passarinho
Mandu sarará;
Bateu aza, foi-se embora,
Mandu sarará,
Deixou a pena no ninho
(De Ouro preto)
Vamos dar a despedida,
Como deu a pintasilva;
Adeus, coração de prata,
Perdição da minha vida.
[234]
Vamos dar a despedida,
Como deu a saracura;
Foi andando, foi dizendo
Mal de amores não tem cura.
[62]
(Maranhão)
Quem quizer comer mangabas
Vá no pé da mangubeira,
Vá comendo, vá gostando,
Vá mettendo na algibeira.
Cajueiro pequeno,
Carregado de flores,
Eu tambem sou pequeno,
Carregado de amores.
Quando eu era pequenino,
Que aprendia o b-a, bá,
Minha mestra me ensinava
O Lundum do Mon-Roy.
[235]
BATUQUE DOS CURURUEIROS
(De Cuyabá)
Em cima d'aquelle morro
Siá dona!
Tem um pé de jatobá;
Não ha nada mais pió
Ai, siá dona!
Do que um home se casá.
DESAFIO DOS CURURUEIROS
(De Cuyabá)
—Eu passei o Parnahyba
Navegando n'uma barça;
Os peccados vem da saia,
Mas não pode vir da carça.
[236]
«Dizem que a muié é farça,
Tão farça como papé,
Mas quem vendeu Jesus Christo
Foi home, não foi muié
[63].
(De Rio de Janeiro)
Sinhasinha, vá-se embora
Vá p'ra casa direitinha,
Não me faça como honte
Que se me ficou no caminho.
Não me encorrilhe meus babados,
Não me suje meu collarinho.
Cupidinho das quedas,
Cae aqui cae acolá;
Não venha cahir nos braços
Da minha amante Iá, Iá.
Ora que gostos
Você mi dá!
Gosto de ti,
Ladrão, vem cá.
Mandei fazer um anel
Na ilha do Paquetá
Para metter no dedinho
Da minha amante Iá Iá.
[237]
A CHULA (a tres vozes)
(Ceará)
Lá nos campos de Cendrêa
Meu corpo vi maltratado!
Tudo isto experimentei
Só por ser seu bem amado.
Vem aos meus braços,
Meu bem amado,
Vem consolar
Um desgraçado.
Si eu não te quero bem
Deus do céo me não escute;
As estrellas me não vejam,
A terra me não sepulte.
Vem aos meus braços,
Meu bem amado,
Vem consolar
Um desgraçado.
N'aquelle primeiro amor
Que no mundo teve a gente,
[238]
O amor cravado n'alma
É lembrado eternamente.
Vem aos meus braços,
Meu bem amado,
Vem consolar
Um desgraçado.
SARABANDA
(Ceará)
—Aqui estou, minha senhora,
Com dôr no meu coração,
Bem contra minha vontade
Fazer-lhe esta citação.
«Tambem tenho minha casa
Mui da minha estimação;
Tudo darei á penhora,
Porem as cadeiras não.
Tambem tenho minha cama
Coberta de camellão,
[239]
A barra de setim nobre,
O forro de camellão;
Tudo darei á penhora,
Porem as cadeiras não.
Tambem tenho cinco escravos,
Tres negros e dois mulatos
Mui da minha estimação,
Tudo darei á penhora
Porém as cadeiras não.
—Venha cá, minha senhora,
Deixe-se de tantas besteiras,
Que no mundo não falta ourives
Que lhe faça outras cadeiras.
[240]
[241]
PARTE III
OS LYRICOS GALLEGOS
[243]
Airiños, airiños, aires,
Airiños da miña terra;
Airiños, airiños, aires,
Airiños, leváime a ella.
Sin ela vivir non podo,
Non podo vivir contenta,
Qu'á donde queira que vaya,
Cróbeme unha sombra espesa.
Cróbeme unha espesa nube
Tal preñada de tormentas,
Tal de soidás preñada,
Qu'á minha vida envenena.
Leváime, leváime airiños,
Com'unha folliña seca,
Que seca tamen me puxo
A callentura que queima.
Ay! si non me levás pronto,
Airiños da miña terra;
[244]
Si non me levás, airiños,
Quiçaes xa non me conesan
Qu'a frebe que de min come,
Vaime consumindo lenta,
E no meu corazonsiño
Tamen traidora se ceiba.
Fun n'outro tempo encarnada
Com'á color de sireixa,
Son oxe descolorida
Com'os cirios das igrexas,
Cal si unha meiga chuchona
A miña sangre bebera:
Vou-me quedando muchiña,
Com'unha rosa qu'inverna,
Vóume sin forzas quedando,
Vóume quedando morena,
Cal unha mouriña moura
Filla de moura ralea
Leváime, leváime, airiños,
Leváime á donde m'esperan
Unha nay que por min chora
Un pay que sin min n'alenta,
Un hirman por quen daria
A sangre das miñas venas,
E un amoriño á quen alma
E vida lle promettera.
Si pronto non me levades,
Ay morrerei de tristeza,
Soya n'unha terra extraña,
Dond'extraña m'alumean,
Donde todo canto miro
Todo me dic'; extranxeira!
[245]
Ay, miña pobre casiña!
Ay, miña vaca bermella!
Años, que valás nos montes,
Pombas, qu'arrulás nas eiras,
Mozos, qu'atruxás bailando,
Redobre d'as castañetas,
Xás-co-rras-chás das cunchiñas,
Xurre-xurre d'as pandeiras,
Tambor do tamborileiro,
Gaitiña, gaita gallega,
Xa non m'alegras dicindo:
Muiñera! muiñera!
Ay quen fora paxariño
De leves alas ligeiras!
Ay con que prisa voara
Toliña de tan contenta,
Para cantar á alborada
Nos campos da miña terra!
Agora mesmo partira,
Partira com'unha frecha,
Sin medo as sombras da noite,
Sin medo da noite negra.
E que chovera ou ventara,
E que ventara ou chovera,
Voaria, e voaria
Hastra qu'alcanse á vela.
Pero non son passariño
E irey morrendo de pena,
Xa en lagrimas convertida,
Xa en suspiriños desfeita.
Doces galleguiños aires,
Quitadoiriños de penas.
Encantadores d'as auguas,
[246]
Amantes d'as arboredas,
Musica dás verdes canas
Do millo d'as nossas veigas,
Alegres compañeirinos,
Run-run de tódalas festas,
Leváime nas vosas alas,
Com'unha folliña seca,
Non permittás qu'aqui morra,
Airiños da miña terra,
Qu'ainda penso, que de morta,
Eide sospirar por ela.
Ainda penso, airiños, aires,
Que dimpois que morta sea,
E aló pólo composanto,
Dond'enterrada me teñam,
Pasés na calada noite
Runxindo antr'á folla seca,
Ou murmuxando medrosos
Antr'as broncas calaveras,
Inda dimpois de mortiña
Airiños da miña terra,
Éivos de berrar: ¡Airiños,
Airiños, leváime á ela!
D. Rosalia Castro de Murguia, Cantares
gallegos, p. 87. Madrid, 1872.
[247]
CANTAR GALLEGO
Acolá enriba
Na fresca montaña,
Qu'alegre se crobe,
De verde retama,
Meniña morena
De branco vestida,
Nubiña parece
No monte perdida.
Que xira, que corre,
Que torna, que passa,
Que rola, e mainiña
Serena se para.
Xa embolta se mira
N'espuma que salta,
Do chorro que ferve
Na rouca cascada.
Xa erguida na punta
De pena sombrisa
Immoble cál virxe
De pedra se mira.
A cofia de liño
A os ventos voltada
As trenzas descoida
[248]
Qu'os aires espalhan;
Tendídal-as puntas
Do pano de seda,
As alas d'un anxel
De lonxe semellan.
Si as brisas da tarde
Xogando con elas
As moven ca gracia
Qu'un angel tivera.
Eu penso ¡coitado
De min! que me chaman,
Si as vexo bulindo
Na verde enramada;
Mas ay, qu'os meus ollos
M'engañam traidores,
Pois von, e lixeira
Na niebra s'esconde;
S'esconde outras veces
Na sombra dos pinos
E cant'escondida
Cantares dulciños,
Qu'abrasan, que firen,
Ferida d'amor
Que teño feitinha
No meu corazon.
Que feita, que linda,
Que fresca, que branca.
Deu Dios á meniña
Da verde montaña!
Qu'hermosa parece,
Que chore, que xima!
Cantando, sorrindo,
Disperta, dormida!
[249]
Ay, si seu pay
Por regalo ma dera,
Ay, non sentira
No mundo mais penas!
Ay, que por tela,
Commigo por dama
Eu llá vestira,
Eu llá calzara.
D. Rosalia Castro de Murguia, Cantares gallegos, p. 75.
Cantan os galos pr'ó dia,
Érguete, meu ben, e vaite,
—Como m'ei d'ir, queridiña,
Como m'ei d'ir e deixarte.
—D'eses teus olliños negros
Como doas relumbrantes,
Hastr'as nosas maus unidas
As vagoas ardentes caen.
¿Como m'ei d'ir si te quero?
Como m'ei d'ir e deixarte,
Si cá lengua me desvotas,
E có coraçon me atraes?
N'un corruncho do teu leito
[250]
Carinhosa m' abrigaches;
Có teu manso caloriño
Os frios pés me quentastes;
E d'aqui xuntos miramos
Por antr' ó verde ramaxe,
Cal iba correndo á lua
Por enriba dos pinares.
¿Como queres que te deixe,
Como que de ti m' aparte,
Si mais qu' á mel eres dulce,
E mais qu'as froles soave?
«Meiguiño, meiguiño meigo,
Meigo que me namoraste,
Baite d' onda min meiguinho
Antes qu'ó sol se levante.
—Ainda dorme, queridiña,
Antr' as ondiñas do mare,
Dorme por que m' acariñes
E por qu' amante me chames,
Que sol' onda tí, meniña,
Pódo contento folgare.
«Xa cantam os paxariños,
Érguete, meu ben, qu' é tarde.
—Deixa que canten, Marica,
Marica, deixa que canten...
Si tí sintes que me vaya,
Eu relouco por quedarme.
«Conmigo, meu queridiño
Mitá dá noite pasaches.
[251]
—Mais en tanto ti dormias
Contenteime con mirarte,
Qu' asi sorind' entre soños
Coidaba qu' eras un anxel,
E non con tanta pureza
O pé d' un anxel velase.
«Asi te quero, meu ben,
Com' un santo dos altares,
Mais fuxe... qu' ó sol dourado
Por riba dos montes saye.»
—Irey, mais dame un biquiño
Antes que de ti m' aparte;
Qu' eses labiños de rosa
Inda non sei como saben.
«Con mil amores chó dera,
Mais teño que confesarme,
E moita vergonza fora
Ter un pecado tan grande.»
—Pois confesate, Marica,
Que cando casar nos casen,
Non ch' han de valer, meniña,
Nin confesores, nin frades.
Adios, cariña de rosa!
«Raparigo, Dios te garde,»
D. Rosalia Castro de Murguia, Cantares gallegos, pag. 21.
[252]
Un repoludo gaitero
De pano sédan vestido,
Com' un principe cumprido,
Cariñoso e falangueiro,
Antr' os mozos o pirmeiro
E nas siudades sin par,
Tiña costum' en cantar
Aló po la mañanciña:
Con esta miña gaitiña
As nenas ei d' enganar.
Sempre pó la vila entraba
Con aquel de señorio,
Sempre con poxante brío
Co tambor s' acompasaba:
E si na gaita sopraba,
Era tan doçe soprar,
Que ven fixera en cantar
Aló po la mañanciña:
Con esta miña gaitiña
As nenas ei d'enganar.
Todas por él reloucaban,
Todas por él se morrian,
[253]
S' o tiñam cerca, sorrian,
S' ó tiñam lonxe, choraban:
Mal pecado! non coidaban,
Que c' aquel seu frolear
Tiña costum' encantar
Aló pó-la mañanciña:
Con esta miña gaitiña
As nenas ei d' enganar.
Camiño da romeria,
Debaixo d'unha figueira,
Canta menina solteira
¡Querote! lle repetia...
Y él c' á gaita respondia
Por á todas envoucar,
Pois ven fixeira en cantar
Aló pó-la mañanciña:
Con esta miña gaitiña
As nenas ei d' enganar.
Elas louquiñas bailaban
E por xunta d' el corrian,
Cegas... cegas que non vian
As espiñas qu' as cercaban;
Probes palomas buscaban
A luz qu' as iba queimar,
Pois qu' el soupera cantar
Aló pó-la mañanciña,
Ó son da miña gaitiña
As nenas ei d' enganar.
¡Nás festas, canto contento!
¡Canta risa nas fiadas!
Todas, todas namoradas
[254]
Deranll' ó seu pensamento;
Y él que d'amores sedento
Quixo á todas enganar,
Cand'as veu dimpois chorar
Cantaba nas mañanciñas,
Non sean elas toliñas
Non veñan ô meu tocar.
D. Rosalia Castro de Murguia, Cantares gallegos, p. 47.
O DESCONSOLO
D'esta fontiña á beira froleada
Sentado á sombra d'un choron estou
Doido o peito, a alma esconsolada,
Triste morrendo pouco á pouco vou.
Desde qu'a negra morte aquella prenda
Que tanto quixen me arrancou sin dor,
Solás non acho en nada, e solta renda,
A pena, choro o meu perdido amor.
Quen o diria! tão garrida e nova,
Doce cal rula, e branca cal xasmin,
[255]
Tan cedo habias de baixar á cova,
Piedade, céos, ay, piedá de min.
Solo quedei no mundo, solo, solo,
Qu'ei de facer?... chorar e mais chorar!
E qu'ainda te vexo no meu colo,
Sabeliña, querida, maxinar.
Xa non iremos mais polas roleiras
En compaña amorosa ás moras, non;
Nin baixo das follosas ameneiras
As coitas che direi do corazon.
Cantas veces da auga d'esta fonte
Che dice, mina vidiña, pola mao!
Cantas os dous deixabamos o monte,
Por tomar aqui o fresco, aló no brau.
E nas tardes de outono... ¡non te acordas...
Mais ¿que digo acordar? si te perdin?
Partenseme, ay do corazon as cordas
Penso qu'ainda aqui estás... louco de min!
N'outono... pois con alegria moita
Nos ibamos ó longo castañal,
E a rebaladas eu guindabava froita
Mentras ti regalabas meu cantar
E tamen cando... ¿pero á que memoria
Fago de tempo aquel? ay! calarei!
Mirame, Sabeliña, desde a groria;
Por ti de cote triste chorarei.
Alberto Camino, ap. Trovas e Cantares, p. 329.
[256]
O ALALALAA
Si é que escoitades cando ó sol morre,
Cando á ovelliña no monte bala,
Un canto tenro, vago e subrime
Que commovida vos deixa a yalma;
Un canto brando pero queixoso
Que de pasados recordos fala,
E o mellor canto da nossa terra,
E o alalalaa.
Cántan-o as mozas que o gando coidan,
Cántan-o os homes que os eidos labran,
Cantando os nenos que san da escola
Van isa cántiga...
¡Ay que feitizos eiqui en Galicia
Ten ó alalalaa...!
Cand'os gallegos morren de coitas
Entr'os misteiros d' as suas montanas,
Entoan ó canto con moita forza,
Y-enton semellan, nas enramadas,
Ises gorxeos dos roulsinores
Cando saudan á lus da yalba,
Ises murmuxos que ten-o rio,
Ises concertos que fan as auras...
[257]
Dempois qu' o entoan con moita forza
Con toda a forza da sua yalma,
Van-o baixando pouquiño a pouco
Hastra que logo na gorxa esmaya,
Como unha queixa que leva o vento,
Cal un sospiro qu'o peito garda.
¡Ay! non m' esquenzen d' aquella tarde
As oxe mortas legrias santas,
Cando eu ouvia por ves primeira,
Aló no monte, lonxe, o alalalaa!...
¿Qué canto e ise?—eu perguntéille
A unha garrida xóven aldeana
Qu' un feixe d' erba, na sua cabeza
Chea de negros rizos, levaba,—
Y ela miróume co aquilos ollos
Qu' a duas estrellas s' assemellaban,
E co-a sonrisa nos roxos lábios,
Asina dixo con moita gracia:
«A cantiguiña qu' astra nos chega
Conmovedora, doida, branda,
E o feitizo d'istas ribeiras,
A compañeira da nossa yalma,
E o consolo das penas fondas,
O pano limpo que enxuga as vágoas,
O millor canto da nossa terra,
E o alalalaa!...
O meu cortexo veira da fonte,
E n' unha noite de lua crara,
Vendo que estaba cantando, estraida,
Sonando amores, un alalalaa...
Díxome logo qu' enchin á ola
E cando ó pobo m' encamiñaba:
[258]
—«Por Dios che rogo que cando estemos
Os dous soliños, miña Mariana,
Si é que non queres me volva tolo,
Non mais entoes ise alalalaa...;
Seica che deron iman as meigas,
Seica che deron sua voz as fadas;
Tí fasme dano, si é que me queres
Miña xoiña, non cantes, cala.—»
¡Meu Dios! ¿qu' estrano é que se volvan
Loucas d'amores as aldeanas,
Si ti puxeches no chao gallego
As melodias d' un alalalaa?...
Ise lenguaxe do sentimento,
Isa amorosa doida cántiga,
Forte ó comenzo, tenra no tono,
E lastimeira, cando s' apaga:
E necesairo non ter no peito
Un sentimento nobre, nin alma
Pra que indifrente pódea escoitar-se
Aló nas noites de lua crara
Nista adourada bendita terra,
Un alalalaa...
Cando se queixan os paxariños,
Cando murmuxan as frescas augas,
Cando os prefumes do val s' esparxen,
Cando sospiran as ledas auras,
E cando as tristes campás d'a irexia
Dobran ás animas,
¡Ay! que feitizos eiqui en Galicia
Ten o alalalaa...
Valentin L. Carvajal, Espiñas, follas e frores, p. 5. Ourense, 1876.
[259]
DOORA
Unha nena abouraba ó seu cortexo,
C'o ardente anhelo d'o primeiro amor:
Na ansiedá d'os seus prácidos ensonos
Falando á solas, con amante voz
Decía: «¡Quen me dera pr'adouralo,
Ter moitos..., pêro moitos curazós!»
Amou constante e foi correspondida;
Ela siguiu amando, il, olvidou:
Cando sola se viu, cando perdera
A fé sagrada d'o primeiro amor,
Escramaba entre vágoas e sospiros;
«¡Quen poidera vivir sem curazon!»
Valentin L. Carvajal, Espiñas, follas
e frores, p. 14.
[260]
Á CARTA D' A GUERRA
Unha probiña xente d'unha aldea,
Sempre agardando carta d'un rapaz
Que camiñou para a guerra, vindo as noites,
Xa non fay outra cousa que chorar.
Os coitadiños pensan que chorando
Danll'a xoya que garda ó seu amor
Ises consolos tenros que non teñem
Os que levan ferido o curazon.
Chega por fin ó cobizado dia,
Ven o carteiro, dálles o papel,
E sin perda de tempo, todos xuntos
As sospiradas letras van leer:
«Meus quiridiños pais: fólgome moito
Si vostedes s'atopan oxe bos
Cal desexo para min, (comenza asina,
Di asina ó primeiro ringuilon.)
Saberán que n'a guerra d'as Provincias
Non hay mais que roinas e door
E mortos, xa se ve unhos e outros.
Vão sementando a morte c'os cañós.
(Chegando eiquí, á nai toda afrixida
A leutura d'a carta fay parar;
Dinlle que cale..., ¡Pero quen afoga
Os tristes sentimentos d'unha nay!)
[261]
Siguen leendo: «Cando camiñamos
Xa de dia ou de noute, sempre vou
C'o pensamento n'isa pobre aldea
Ond'a miña frorida edá pasou;
Os soutos que no vrao lle prestan sombra,
Seus regatos e montes vexo eiquí,
Os ecos d'as campás d'aquela Igresia,
Tránm'os ventos da terra onde nacin.
Meus queridiños pais... ¡con que lenguaxe
Os recordos me veñen á falar
D'unhas cousas que falan d'outras cousas
Que non podo nin sei adiviñar!
.......................................
Meus quiridiños pais, si é que m'esquece
D'escribirlle á Sabela de Pitin,
Díganlle que me queira é non me deixe,
Díganlle que me queira é non me deixe,
Que viva e teña amor soilo pra min.
¡Ay! aldeiña... ¡Cantas veces poño
En ti o pensamento e curazon...,
Eydos, montes e soutos de Caldelas,
Lonxe de vos, eu morro de door!
Adios, quiridos pais, que teño presa;
Si poidera subir á xeneral,
Cantas cousas lies dera o seu filliño
C'oxe, coitado d'il, non pode dar.
Adios, quiridos páis, hast'outro dia,
A cantos lle pergunten que é de min,
Diganlle qu'estou bó, denlle recordos,
Canto queiran vostés ¡Adios!—Xoaquin.»
(Unha carta d'a guerra, ó un tesouro
Pr'a coitada xentiña d'o rapaz,
[262]
Carta que dempois leen os veciños,
O maestro y-o crego d'o lugar.)
Valentin L. Carvajal, Espinas, follas e frores, p. 30.
¡QUEN POIDERA CHORAR!
Eu, chorei sendo neno, moitas veces;
Pranto de pelras aquil pranto foi:
Tiña forza n'os ollos, mais non tiña
forza n'o curazon.
Chorei dempois cando xa feito home
Loitaba c'os delirios d'a pasion,
Y-os meus ollos souperon o que eran
As vágoas de door.
Logo mais tarde, cando as penas fondas
Deixáronme sin grorias nin pracer,
Eu cobizei chorar, pero non tiven
Mais que vágoas de fél.
As mortas illusiós, os desenganos
Consumiron a yalma c'o pesar;
Pidínll'os ollos vágoas ¡ay coitado,
Xa non puden chorar!
[263]
Pranto dichoso, fonte de consolo,
Xa pr'a min as tuas augas non virán:
Cando c'os anos pérdense as legrias,
¡Quén poidera chorar!
Valentin L. Carvajal, Espinas, follas e frores, p. 37.
DOORA
Dis que queres vivir pra gozar moito;
¡Ay probe nena! xuzgas que o pracer
D'os teus primeiros xuveniles anos,
Eterno pode ser;
Hoxe vives no ceo, eres un ánxel,
Sobre frores camiñam os teus pés;
Mañan..., cando non vexas mais qu'espiñas,
Cobizarás morrer.
Valentin L. Carvajal, Espinas, follas e frores, p. 60.
[264]
PRELUDIO
(Trad. do Castelhano)
O meu corazon soíño
ê morada de cantares;
nel agarimados viven
coma no seu niño as aves;
É cando a dôr os desperte,
ou cando pracer os chame,
encherán de sons alegres
ou do tristesiña os aires.
A guitarriña qu'eu toco
sente como unha persona;
unhas veces canta é rïe,
outras veces xime e chora.
A côr d'o teu rosto, nena,
ê coma noite de lua,
é a mata d'os teus cabelos
o mesmo que noite escura.
Cando á veiriña d'o rio
lavas os teus pes de rosa,
tembran d'amor as auguiñas,
sospira o vento antr'as follas.
[265]
Os cravos qu'en pes é mans
lle puxeron al Señor,
lévaos a nay afrixida
cravados no corason.
O mundo doum'un libro;
é eu sou tan lerdo,
que canto mái-lo estudio
méno-lo entendo.
Vay logo, é a tua nay dille
si me despresa por probe,
quro mundo da moitas voltas,
que tamen se cân as torres.
Quítate d'esa ventana
é oye un consello, meniña:
rosa que está ben gardada
os paxáros non-a pican.
Medin c'os ollos o ceo,
sondey o fondo d'o mar;
mais no corason d'os homes
fondo non puden topar.
A Dios un abogado
lle imita n'esto;
Dios fay todo de nada...
é el fay un preito.
Chistosa, churrusqueiriña,
que sal espallando vas;
¿dí cómo espallando tanta
non che s'acabou o sal?
[266]
Queixéchesme cando tiben,
xa non teño é das a volta;
a campana t'asomellas
que, si non lle dan, non toca.
Nas ventanas d'esta casa
un faro deben poñer,
para que naide se estrelle
na falsedá de vosté.
Despois de feita, Dios quixo
poñerch' un lunar por firma;
c'o sello d'as gracias suas
síñaloute esa cariña.
O dia en que ti naceches
cayeu do ceo um anaco;
cando morras é aló subas,
taparáse aquel burato.
Un home cantaba un dia,
dicind'o seu triste mal,
qu'auga no mar non topara
si por auga fosse ó mar.
O verde dos teus olliños
recordan o verde mar:
¡coitado d'aquel qu'os mire
si non axeit'a á nadar!
Cando d'auguiña saes,
cara de estrela,
O teu cabelo escuro
longo te vela;
[267]
tal coma un manto,
qu'o teu seyo de rosas
da dobre encanto.
Neste ramo de froles
que che presento,
verás, lus dos meus ollos,
un pensamento.
E é, ¡miña xoya!
qu'an que tí olvidar sabes
de ti s'acordan.
No rosal da miña vida
loucas illusiós cantaron;
o dôr tiroulle unha pedra...
¡ay de min! todas voaron.
En este longo deserto
moitiños de sede morren;
eu triste unha fonte busco...
¡quén sabe donde s'esconde!
No-mais q'unha foñte vin,
e está sequiña, está soya;
nin paxariños lle cantan,
nin árbores lle dan sombra.
D. Ventura Ruiz Aguilera, Armonias y Cantares, p. 145. Madrid, 1865.
[268]
CANTOS POPULARES GALLEGOS
I
NADAL
(Tuy)
Esta noite de Nadal
Per ser noite d'alegria,
Camiñando vay Xosé
A mais a virxen Maria.
Camiñan para Belen
Para xegaren de dia.
Quando a Belen xegaron
Toda a xente dormia;
Arrimaron-se a unha peña
Ó pé d'unha fonte fria.
San Xosé foi buscar lumbre,
Até lumbre non tragia:
—Abre las portas, portero,
A Xosé e a Maria.
«Estas portas son de ferro,
Non s'abren até el dia.»
Bajaron anxos del cielo
Que rico lumbre tragian.
Ap. Romania, t. VI, p. 260—1873.
[269]
II
A MORTE DE XESUS
(Tuy)
Juebes santo, juebes santo,
Tres dias antes de Pascoa,
Quando o Redemptor do mundo
Por seus disciplos xamaba;
Xamaba por un e un,
Dous e dous se lle xuntaba.
Despois que os tiña xuntos,
D'esta maneira fallaba:
«Qual de vós, disciplos mios,
Quer morir por mi mañana?»
Miran uños para otros,
Niun lle voltou palabra,
Senon San Xuan Bautista,
Padricador da montaña.
A roda da meia noite
Xesus Christo camiñaba;
Levaba unha cruz a cuestas
De madeira mui pesada;
C'unha corda á garganta
D'onde os xudeus puxaban:
[270]
Cada puxon que lle daban
Xesus Christo arrodillaba.
Xegou ao Monte Calvario,
Tres Marias a xorar:
Unha era Madalena,
Otra era sua irmana,
Otra era virxen pura,
Que mais passion lle daba;
Unha limpaball'os pés,
Otra limpaball'a cara,
Otra recogia o sangre
Que Xesus Christo derrama.
O sangre que lle caía
Caía en cal sagrado;
O home que o bebese
Será ben aventurado:
N'este mundo será rei
No otro santo coronado.
Quen esta oracion disera
Todos os vernes do anno,
Gañaba un canto no cielo.
Quen a sabe non a di,
Quen a oye no a deprende,
Dia do noso xuizo
Berás que conto nos ten.
Ap. Romania, t. VI, p. 260.
[271]
III
ROMANCE DE UN MAUREGATO
(Puente de Domingo Florez)
Eu jungin os meus boisiños
E leveinos á arada,
E no medio do carniño,
Acordóuseme a aguillada.
Tornei e volvin por ela
Topei a porta fechada.
—Abreme a porta, muller,
Ábreme a porta, malvada.
«Eu a porta non cha abro
Que estou facendo a colada.
Rompin a porta pra dentro
Fun por donde acostumaba,
Subin pol-a escaleira
Para coller a aguillada,
Vin estar un gato roxo
Debaixo da miña cama.
—Que é aquelo, muller,
¿Que é aquelo, malvada?
«É o gato do convento
Que anda tras da nossa gata.
[272]
Unha machado collin,
Fun a ver se o mataba.
«Qué fas, meu home, qué fas?
Que a min me bates a cara?»
IV
ROMANCE PICARESCO
Vou a dar unha voltiña
Da sala para a cociña,
Que me pareu a muller,
Voulle asar unha sardinha.
Miña nai aqui ll'estou
Desde o dia en que chegamos,
Que sin non me lle esquenceu,
Non lle estou atribucado,
Foille un dia da semana,
Do mes do presente ano.
Ja lle dixen que no mar
Déronnos queijo por rancho,
Agua moura por almorzo
Cando vimolos gabachos.
[273]
Eu gomitei como un cocho,
Non atravesei bocado,
Inda que estribaba os pés
Não estaba quedo o barco.
Chegamos a Santander,
E de cote nos cebaron
Con arroz e pan desfeito
Por que estabamos muy flacos.
Cando gordos estivemos
De Santander nos botaron
Nun barco que era mui mouro,
Era mui mouro aquel barco;
Eralle un barco sin velas,
E de cote fumegando;
Tiña un forno con caldeiras
Mais grandes que sete armarios,
E unhos ferros daban volta
Que iban zumbaleando,
E por arte de virloque
Ibamos todos andando.
Diz que con agua fervendo
Amáñan-se estes milagros:
Miña nai, faga a esperencia
Do que seria este barco
Que eu por min teño dementres
Que hade ser cousa d'encanto,
Que seriam navoyeiros
Aqueles homes tiznados.
Déalle moitas memorias
A Mingucho de Carballo,
Á miña prima Marica
Que me coide aquel boi branco,
E que me garde tamen
Por Dios e todolos santos
[274]
Unha sardiñina femia,
Porque acá todos son machos.
A SERRA DO RAÑO
(Cantiga das montañas)
Alta serriña do Raño
Ten moitas zarzas e penas,
Donde o lobo fai o cocho,
E os boutres berran nelas.
Esta serra ten seus bosques
Onde o lobo fai o cocho,
E o corzo e o porco bravo
A mais tamen o raposo.
Se por ela pasa alguen
Pode que se estemoreza,
E pode que teña medo
Que o lobo se lle apareza.
Se certa a ser de noite
Aló no mes de janeiro,
Cando berra moito a loba
Que anda ó casticeiro.
[275]
Hai que ter un gran coedado
Despois que ós corzos lles tiren
Que hay ó Ponente un regato
Pode ser que pra el biren.
Está chea de carballos
De uzes e de acibros,
Por ali é donde están
Os animais escondidos.
Ten un calejo pequeño
Aló na parte de riba
Ali se arman as córdas
Cando hai a montaria.
Esta serra é moi fria
Aló no tempo do inverno,
Estan os boutres silvando
Co o frio e con o helo.
Aló pra beas do Norte
Chamanll'o Pico de Vales.
É o punto mais bonito
Pra tirar ós animales.
Pra se o Pico de Vales
Máis pra fonte Jandaviña
É pra donde o corzo e o porco
Polo regular camiña.
O calejo que já dixen
Donde se arma a montaria
Chamanlle Louseira Vélla
Donde o lobo mais arrima.
[276]
Desengaño ós cazadores
Se algun hai que ó Raño veña,
Que vaya ganar as costas
E que se aparte da leña.
Pol o Sur de esta serra,
Pasa o camiño real:
Mirar cando o ladronciño
De dentro das uzes sal.
Desengaño ó pasageiro
Pase por el con coedado,
Que nunca tuvo bon nome
Esa gran costa do Raño.
Porque já non é o primeiro
Que d'entre das uzes sal,
Por eso algun ladron
Sofreo pena corporal.
Estamos hoje no siglo
Cando houbo un suceson,
Que o verdugo puxo ali
A cabeça de un ladron.
Por estes feitos e crimes
Que socederon no Raño,
Polo amor que teño á gente
Por eso a desengaño.
Na cabeceira hai un marco
Feito de unha pedra longa,
Tres Auntamentos devide
Monfero, Arauga, Irijoa.
[277]
A sua gran fertuniña
Devide gran estension,
Se algun non o conoce
É o marco de Pion.
AS TRES COMADRES
Elas eran tres comadres,
E dun barrio todas tres;
Juntaron unha merenda.
Para ir ó Santo Andrés.
Con seconequé,
Con el peregil,
Con domine és,
Con trispilistas,
Con domine olé, olé
Pola tua fé
No souto d'Alberto
De Jan Pirulé.
Unha puxo trinta óvos,
Para cada unha dez;
[278]
Outra puxo unha empanada,
De tres codos a otravés.
Unha dixo: Vou por viño,
Comadre, cánto traerei?
Trai no máis canado e medio,
Para volver outra vez.
Unha dixo pola luna:
Mira qué paniño ingrés;
Outra dixo polo odre:
Mira qué neno sin pés.
Alá pola media noite
Ven o marido de Inés,
Pau a unha, pau a outra,
Pau doulles, a todas tres.
Gallicia, III, 240. Colligidos da tradição popular por José Lopez de la Vega.
[279]
SERRANILLA
«Donde le dexas al tu buen amigo?
Donde le dexas al tu buen amado?
Ay, Juana, cuerpo garrido!
Ay, Juana, cuerpo galano!
—Muerto le dexo á la orilla del rio,
Dexole muerto á la orilla del vaio.
Ay, Juana, cuerpo garrido!
Ay, Juana, cuerpo galano!
«Canto me dás, volver he che le vivo?
Canto me dás, volver he che le sano?
Ay, Juana, cuerpo garrido!
Ay, Juana, cuerpo galano!
—Doyche las armas, y doyche el rocino
Doyche las armas, y doyche el caballo
[64].
Ay, Juana, cuerpo garrido!
Ay, Juana, cuerpo galano!
[280]
VILANCENTE DO NADAL
1.º Pastor:—Toquen us gallegos,
E canten os cregus;
Toca galleguiño,
Que nace o deusiño,
2.º Pastor:—Eia, pues, tocae.
2.º Pastor:— Queru eu,
Que Deus pode bir
Por bispo de Tuy.
1.º Pastor:—Toquen as gaitas
Godois e Xan Ruy.
2.º Pastor:—Ao neno cantáe
A Deus festexae,
Folgae e folgae!
2.º Pastor:— Queru eu
Que Deus é gallego
Que nace entre bois.
1.º Pastor:—Toquen as gaitas
Xan Ruy e Godois.
Festexae en pas
[281]
U rei garridiño
Que viste d'armiño
2.º Pastor:—Nun cayas a dar
Voltas galleguiño,
Que chora o deusiño.
Todos:—Toquemos, bailemos
Xunto adoremos
O neno que vemos.
App.º 5 das Trovas e Cantares.
PLEGARIA A SAN ANTONIO
(Provincia de Lugo)
Ana, pariu á Santa Ana,
Santa Ana pariu á Virgen,
Señora Santa Isabel
Pariu á San Juan Bautista:
Asin como estas cousiñas son certas,
Meu señor San Antoniño de Padua,
Eu lle pido é lle suplico
Pol o libro en que leeu,
Pol o cordon que cingeu,
Pol a vision beatifica,
Eu lle pido e suplico
[282]
Que me libre á facendiña
De raposo é de raposa,
E de can é de cadela,
E de lobo é de lobella,
Con sete brazas darredor,
Meu señor San Antoniño de Padua.
Cun padre nuestro é unha ave-maria
A miña facendiña
Me gobernaria.
San Antonio bendito,
Dádeme un home,
Anque me mate
Anque m'esfole.
Ap. Cantares gallegos, p. 71.
(De Lugo)
Arre cabaliño,
Vamos a Belen,
Que mañan é festa.
Pasado tamen.
Hoje é domingo
Mañan dia santo,
Y hoje me deito
Mañan me levanto.
Sale para fóra
Cara de macaco,
[283]
Tiroc'unha pedra,
Fagoch'un buraco.
Crou, crou,
Chocos meus ovos,
E logo vou
Crou, crou.
—Miñato miñato,
«Que levas no plato?
«Leite callado.
—Quen cho callou?
«Marica do rei.
—Cala, cala,
Que eu llo direi:
PARA AYUNTAR LA CHUVIA
Vaite chuvia,
Vente sol,
Pol os campos
D'arrebol.
[284]
Que te chama
Teu padriño,
Para arrolal o miniño,
Que che ha de dar,
Pan e viño.
Cando chove e fai sol
Anda o demo por Ferrol,
Con un saco dalfileres
Para pical as mulleres.
DICHOS COMMUNES
(Paroquia de Sola)
Amiguiñas de Miguel
Todas cargadas de mel,
E de mel e de maduro,
Ribirese don Gregorio del Mulo.
—¿Que hai n'aquel tellado?
«Un gato desfolado.
—¿Qué hai n'aquella artesa?
«Unha vella tesa.
[285]
—¿Qué hai n'aquela horta?
«Unha vella morta.
—¿Qué hai n'aquel buratiño?
«Unha campanilla.
—¿E como fai?
Tilin, tilin, tilin, tilin
[65].
—Meu compadre veu?
«Veu.
—E que me trouxo?
«Un cordonsiño
—De que color?
«De verde limon.
Sopitaipon, de verde limon,
Sopitaipon.
Miña Santiña,
Miña Santasa,
Miña cariña
De calabasa.
—Que está na rua?
«Uma espada nua.
—Que está detraz da porta?
«Uma velha morta,
—Que está n'aquelle ninho?
«Um passarinho.
—Que está n'aquelle telhado?
«Um gato pingado.
—Vamos inchotal-o?
Sápe! sápe, sápe, sápe!
[286]
Ei de emprestarbos
Os meus pendentes,
Ei d'emprestarbos
O meu collar:
Ei d'emprestarcho
Cara bonita
Si me deprendes
A pentear.
Fun ó muhiño,
D'o meu compadre,
Fun po-lo vento,
Vin pó-lo aire.
Isca d'ahi,
Galiña maldita,
Isca d'ahi
Nô me mate-la pinta.
Isca d'ahi
Galiña ladrona,
Isca d'ahi
Pra câs de tua dona.
[287]
ADVINACIONES
(Poenteareas)
Chorin, chorin
Trás torre andaba,
Se a torre caia
Chorin se alegraba.
Fun ó monte
Prantei unha estaca,
E o tiroliro
Volven para a casa.
Vai para o monte
Mira pra casa,
Ven para casa
Mira pro monte.
No monte nace,
No monte se cria,
Chegando á casa
Nunca hai alegria.
[288]
Terra branca,
Semente negra,
Cinco aradores
E unha chabella.
Non está nado,
Nin por nacer,
Non é Dios,
E pode ser.
Alto pepino
Redondo molete,
Que chova, que neve,
Jamais se derrete.
Tacon sobre tacon,
E tacon do mismo pano,
Si no cho digo chora,
Non acertas en un ano.
Estudiante lareiro
Que estudias tras do lar,
¿Cando t'hei de ver lareiro
Dal a volta no altar?
[289]
Estudiante que estudias
No arte da theologia,
Dime, ¿que ave é aquella.
Que ten peitos e cria?
Que cousa é cousa
Que ten un dente,
E chama por toda a gente?
Calza de ferro,
Viste de liño,
E tirase cun garabulliño?
¿Qué cousa e que sempre anda;
E nunca chega á casa de seu dono?
Tres pés con croa,
Trepia son, tontona?
Qué cousa é cousa.
Que pon o cu na lousa?
[290]
Mingo, Mingacho
Cara de cacho,
Bico de ovella
¿Quén che mandou
Trebellar co a nena?
Agora a nena
Está barriguda;
Juntall'os ovos
Para a paridura.
(Tradição do Valle de Valeije)
Raposo, raposo
Do cu piolloso,
Non comal'o año
De Pedro Castaño,
Que vai na riveira
Buscal'a manteiga
Para a muller
Que esta parideira,
Na porta da eira
Cun fillo varon,
Chamado Anton,
E entre tamaño
Como un perillon.
(Pueblo de Orense)
Padre nuestro pequeniño
Lévame por bo camiño,
[291]
Aló fun, aló cheguei,
Tres Marias encontrei
Preguntando por Jesus,
E Jesu'staba na cruz,
E na cruz e no altar
Cos peiños a sangrar;
—Ténte, tente Madanela,
Non vos veñas lastimar;
Que estes son os traballiños
Que por vos ei de passar.
Santo que estás no canizo
Tira castañas abaixo;
Tira das mais graudiñas,
Que ás pequenas non me baixo.
San Amaro era xastre
Pero despois foi ladron,
Non houve xastre no mundo.
Que non roubase un calzon.
Unha vella fixo papas,
E o pote botonllas fóra,
Hay un ano que foi esto,
E ainda hoxe a vella chora.
Señor San Juan de ortorio,
Feito de pau d'ameneiro,
[292]
Primo carnal dos meus zocos,
Hirman do meu tabaqueiro.
A dar fé á un que morrera
Foy un escribano torto,
Mais él á poder de cruces
Fixo parolar ó morto.
As costureiras d'ahora,
Foron feitas ó sisel;
Son amiguiñas dos homes,
Como as avellas do mel.
O crego foi a o moiño,
Meteu a cabeza dentro,
Trouxo a fariña na croa,
Para facer o formento.
O crego foi ó moiño,
E caeu da ponte en baixo,
Acudi ó crego, nenas,
Que vai pol o rio abaixo.
Fun esta noite ó moiño,
C'un fato de nenas novas,
Elas todas en camisa,
Eu no medio con cirolas.
[293]
MÁRGENES DEL MIÑO
(Salvatierra e Albeos)
Meniña, ti el-o démo,
Que me andas atentando;
Que no rio, que na fonte,
Sempre te encontro lavando.
Eu ben cho dixeu, meniña,
Eu ben te desengañei,
Dixeuche que era casado,
¿Agora qué che farei?
Miña nai ten tres ovellas
Todas tres mas ha de dar.
Unha cega y outra coxa,
Y outra que non pode andar.
[294]
O casado casa quer,
O solteyro no lla dan,
O que hade ser casado
Ha de saber ganar pan.
Por amor de vosso galo
Treydora, mala viciña,
Por amor de vosso galo
Perdin a miña galiña.
Pol amor da vosa lengoa,
(Malo rayo ne la fenda)
Pol amor de vosa lengoa
Perdin a miña facenda
[66].
Moreniño, moreniño,
Moreno como unha mora,
Non sei que tén o moreno
Que a todo o mundo namora.
O cura chamoume rosa,
Eu tamen lle respondin;
[295]
Desas rosas, señor cura,
Non as ten no seu jardin.
A Castilla van os homes,
A Castilla por ganar;
Castilla queda na terra
Para quen quer traballar.
Meniña, ponte direita,
Que teu pae te quer casar;
Ben direitiña me poño,
Que me non podo baixar.
Sardiñas frescas do mar,
Quén che me déra un milleiro,
Pantrigo de Rivadavia,
Nenas do chan d'Amoeiro.
Adios, casa de meu pai,
Con tódalas catro esquinas,
Que pra min já se acabaron
As entradas e salidas.
Teño unha nena no Porto,
Outra no Riveiro d'Avia;
Se a do Porto é bonita
A do Riveiro lle gana.
O Riveiro é alegre,
Polo tempo da vendima,
Que a vén faguer alegre
As nenas daló d'arriba.
[296]
Anque son daló d'arriba
Anque son da Carrasqueira,
Tamen sei bebei o viño
Como os guapos da Ribeira.
Cuidache porque era probe
Que já me tiñas na man;
Moitas cerdas ten un cocho
E non sai de marran.
A lua vae encuberta,
Con panos de tafetan;
Os ollos que me ben queren,
Nesta terra non están.
Casaivos, mozos, casaivos,
Que as nenas baratas van;
Vint'e cinco por un carto,
Fiadas hastra o San Juan.
MÁRGENES DEL SAR
Tócan o tambor na guerra
Tócan o moi avivado;
¡Coitadiña da miniña
Que ten o amor soldado!
[297]
¡Canta rula, canta rula,
Canta rula naquelle souto!
Coitadiña da que espera
Polo que está na man d'outro!
Non me mate a pombiña
Que está no arró da eira,
Non me mates a pombiña,
Que foi miña compañeira.
Estrelíña do luceiro
Dame a tua craridade,
Quérolle seguir os pasos,
Ó meu galan que se vaye.
Heime de embarcar num barco
Nun barquiño de papel;
Andareime toda a vida,
Para ver ó meu Manuel.
SATIRICAS
Miña nai foi-me casar
Prometeume bois e vacas,
Cando me foi dal-o dote
Deume unha cunca de papas,
[298]
Sale para fóra
Cara de macaco,
Tiroch' unha pedra,
Fagoch' um buraco.
Sale para fóra,
Deixame pasar,
Tua nai é probre
Non ten que me dar.
A muller de Roquetroque,
Non ten faldra na camisa,
Si llo sabe Roquetroque,
Non se hade ter co a risa.
As señoras son bonitas,
Porque teñen almidon:
¡Quén mas dera ver na eira
Tirando polo ligon!
Se ti viras o que eu vin,
Indo pol-a carballeira,
Vinte e cinco xastres juntos
Cosendo n'unha monteira.
Se ti viras o que eu vin
O gato n'unha ventana
Tocando n'um violin.
Se ti viras o que eu vin,
Na feira de Monterroso,
Vinte e cinco estudiantes,
A cabalo d'un raposo.
[299]
Miña nai por me casar
Prometeume canto tiña,
Cando me foi dal o dote
Pagoume c'unha galiña.
A cama do crego é boa,
Mais no médio tén un ai!
A nena que n'ela dorme
Ó reino de Dios non vai.
Yo traijo tantos dobrones
Como en la mano de dedos,
Y la brona d'esta tierra
No la comerán los perros.
Teño tres cartos e medio
Mettidos nunh agulleiro,
Casa comigo rapaza
Que teño moito dinheiro.
Tráelo sombreiro torto
Bén-o podes pôr direito,
Que anque che son moreniña
Eu a ti non me sujeito.
[300]
Se fores a San Amaro
San Amaro de Barouta,
Se fores a San Amaro
Bailarás con pouca-roupa.
Bonitiña non cha sou,
De fea non teño nada,
Non me criou miña nai
Para ti, cara lavada.
Meu siñor San Adrian
É un santo miragroso
Pedinll'o un mozo bonito
Doum'un barbas de raposo.
Eu casar ben me casaba
Recear ben o receo,
Sinto d'andar preguntando
A como val'o centeo.
Caseime no mes d'Agosto
Porque habia muito pan,
O forno de miña sogra
Cria o fieito no vran.
Ainda che ei de botar unha
Inda che ei de botar outra,
Inda che ei de botar unha
Que che ha de queimal a roupa.
Por moiro que te presumas
Verbum caro factum és,
Non eres branco de cara
E eres trenco dos pés.
[301]
Adios ti, Pontenafonso,
Non sei quen te acabará...
Trinta anos me levache
Flor da miña mocedá!
Alalala, lala, lala
Alalala, lala, lá.....
REDEDOR DE SAN ORENTE
O cantar bergantiñan,
O cantar de Bergantiños
En Iallas é malhian.
Manoeliño do vento,
Quen me dera a min saber
Donde tel-o pensamento!
Tamen o gardar é bo!
Sombreiro que o navio leva
Era do pai do abó.
Jacobiño de Fontan
Quen che cobízal a morte
Veñall' a sua, mañán.
[302]
Tomasiña do Gamallo,
Se non me caso contigo
Nunca me verás casado.
Adios meu diamante,
Joguei contigo e perdin.
O galo canta co o dia
Erguete meu ben e vaite;
¿Como me hei d'ir miña vida,
Como me hei d'ir e deixarte?
Nós d'acá, e vós d'alá
Somos tantos como vos;
Nos comemos ó carneiro,
Os cornos son para vós.
Señora Santa Lucia
A do rio do Piñeiro,
Tende conta co'a ermita
Que non a leve o regueiro.
[303]
Miña nai doume unha tunda
Co aro d'unha peneira,
Miña nai tende vergonza
Da gente que ven da feira.
En ben vin estar ó crego
Tendendo nos cuiriños;
Dixeu entre Dios e min:
Este crego ten miniños.
Se queres que vaya é veña,
De noite pol o lugar,
Manda cerrar a cadela
Que non fai sinon ladrar.
O crego cando namora
Logo promete almendriñas;
Namorai, namorai cregos,
Que vos nasan as nacidas.
Hei de vír e hei de ir
Fala no cha hei de dar;
Heite de facer moer,
Como os barqueiros no mar.
[304]
Eu arrolei a miniña
Eu arrolei o amor,
Eu arrolei a rapoza
Outro levoulle o mellor.
Antoniño, Antoniño,
Antoniño, meu amor,
Antoniño queridiño,
¿Quén che levou o color?
Antoniño, gaxo de uvas,
Vámoste depenicar,
Eres amigo das mozas
Tua nai vaite matar.
A miña muller é bella
De bella non hade andar;
Heina de por de cancela
No portelo do lugar.
O zapato quel a media,
A media quel o zapato,
Tamen á guapa meniña
Quer un rapaciño guapo.
[305]
Asnos de vir á ver,
Asnos de vir á buscar,
Cantararnos, tocararnos
Sacararnos á bailar.
Manuel, Manueliño,
Manuel feito de cera,
¿Quen me dera ser o lume
Que á Manuel derretera.
As mulleres que son boas
Dios lle dé boa fortuna;
Sarna con dolor de moas,
Ortigas pol a cintura.
Heicho de dar quiridiña
Heicho de dar que o teño,
Heicho de dar queridiña,
O anillo do meu dedo.
Mariquiña da forneira
Onte tua nai coceu,
Dame un bocado de bola
Pol a nai que te pareu.
[306]
Mariquiña da forneira
Se coceres faíme un bolo,
Se mo fai, faimo de trigo,
Que centeo non cho como.
Arriba pandero roto,
Arriba manta mollada,
Que donde estámol os homes
As nenas non valen nada.
Meniña, dille á teu pai
Que se veña ver conmigo,
Tanto é o que me debe,
Que non me paga contigo.
Aloméame, aloméa
Estrelliña, da fertura,
Aloméame, aloméa
Mentras que non ven a lua.
Non chas quero, non chas quero
Navizas do teu naval;
Non chas quero, non chas quero,
Que me poden facer mal.
[307]
Catro aves escollidas
Son as que pasan o mar,
O cuco e a golondrina,
A rula e o paspallás.
A muller que ha de ser miña
Ha de ter o cu de pau,
A barriga de cortizo
E o nariz de bacaláo.
A miña muller é bella,
Heille de sacar o coiro,
Para facer un pandeiro
Para correr o antroido.
Amoriño non desprecies
O probe pol o non ter,
Que o rico pode faltar,
E o probe non te querer.
Teño unha vaca á ganancia
Que me deu o vinculeiro,
Mais sobre todo, rapaza,
Teñoche moito diñeiro.
[308]
Achegate, dalle un bico
En señal de casamento;
Achegate que é ben rico
Non no deixes descontento.
Baila quedo, baila quedo,
Non me raches o mantelo,
Coidaches que era de pana
E echo de terciopelo.
Mellor quero ser pereira
E dar peras e reperas,
Do que ser a dama d'un xastre
Que non ten sinon gadellas.
Catro cartos para pan,
Tres e medio para viño,
Un carto para tabaco
Alá bai un realiño.
O primeiro amor que eu teña
Hade ser d'un militar;
Que anque non teña diñeiro
Ten un polidiño andar.
[309]
Alá arriba non sei donde
Dicen hay non sei que santo, etc.
Indo eu non sei por donde
Encontrei non sei con quen,
Na porta do xame esquence,
Non llo digas á nínguen.
Vinde ver o dote
Que me dou meu sogro,
Unha cabra cega
E un carnero tolo.
Rapaciños de Castilla
Tratade ben os gallegos;
Cando van, van como rosas,
Cando ven, ven como negros.
Tocan o tambor na guerra,
Tócano mui avivado;
¡Ai probiña da miniña
Que ten o amor soldado.
[310]
Vexo Vigo, vexo Cangas,
Tamen vexo a Redondela;
Vexo a ponte de San Payo,
Camiño da miña terra.
Non hay cantiga no mundo,
Que non teña seu refran,
Nunca ningueu faga conta
Senon do que ten na man
[67].
As de cantar
Que ch'ei de dar zonchos;
As de cantar
Que ch'ei de dar moitos.
O meu corazon che mando,
C'unha chave par'o abrir,
Nin eu teño mais que darche,
Nin ti mais que me pedir.
Cantan os galos pr'o dia,
Érgue-te, meu ben, e vaite.
—Como m'ei d'ir, queridiña,
Como m'ei d'ir e deixarte?
[311]
Nosa Señora da Barca
Ten o tellado de pedra;
Ben o pudera ter d'ouro,
Miña Virxe, si quixera.
Con esta miña gaitiña
As nenas ei d'enganar,
Non sean elas toliñas,
Non veñan ô meu tocar.
Adios rios, adios fontes,
Adios regatos pequenos,
Adios vista dos meus ollos,
Non sei cando nos veremos.
Eu ben vin estar o moucho
Enriba d'aquel penedo:
Non che teño medo, moucho,
Moucho, non che teño medo!
Anque ché son da montaña,
Anque ché son montañesa,
Anque ché son, non me pesa.
Si ó mar tibera barandas
Forate ver á o Brasil;
Mais ó mar ten barandas,
Amor meu, por dond'ei d'ir?
Hora, meu meniño, hora,
Quen vos ha de dar á teta?
Si tua nay vay no muhiño,
E teu pai na leña seca?
[312]
Mais ó que ben quixo un dia,
Si a querer ten aficion,
Sempre lle queda unha magoa
Dentro do seu coraçon.
Á rula que viudou
Xurou de non ser casada,
Nin pousar en ramo verde,
Nin beber d'augua crara.
Ahi tés ó meu coraçon
Si ó queres matar ben podes,
Pero como estás ti dentro,
Tamen sí ti ó matas, mórres.
Como chove mihudiño
Como mihudiño chove;
Póla banda de Laiño,
Póla banda de Lestrobe.
Miña santa Margarida,
Miña Margarida santa,
Tendes a casa no monte,
Donde ó paxariño canta.
Non quero zapatos curtos
Porque s'enterran n'aréa,
Non quero amores d'afóra
Porque xa os teño na aldeã.
FIM.
[313]
INDICE
PARNASO PORTUGUEZ MODERNO
Da Poesia portugueza moderna—suas transformações
e destinos | I-LXIV |
PARTE I |
OS LYRICOS PORTUGUEZES |
Almeida Garrett: |
Os cinco sentidos | 3 |
Retrato | 4 |
Vibora | 6 |
Este inferno de amar | 7 |
Quando eu sonhava | 7 |
Cascaes | 8 |
Destino | 11 |
Não és tu | 12 |
Goso e dôr | 13 |
A. F. de Castilho: |
Eu, Antão Verissimo e a Môsca | 14 |
Alexandre Herculano: |
Mocidade e morte | 18 |
João de Lemos: |
A Lua de Londres | 26 |
D. João de Azevedo: |
A vida | 29 |
A. X. Rodrigues Cordeiro: |
Tasso no Hospital dos doidos | 30[314] |
Luiz Augusto Palmeirim: |
Luiz de Camões | 34 |
Augusto Lima: |
Infancia e miseria | 38 |
Ás estrellas | 41 |
A. A. Soares de Passos: |
O Firmamento | 42 |
Anhelos | 47 |
S.: |
Uma Phantasia de Thalberg | 50 |
Alexandre Braga: |
Ao Sol | 51 |
I. S. da Silva Ferraz: |
Hymno á Lua | 56 |
A. C. Louzada: |
A vida | 59 |
Henrique Augusto: |
A filha da moleira | 60 |
Augusto Luso: |
A troca da minha lyra | 63 |
Julio Diniz (Gomes Coelho): |
A esmola do pobre | 65 |
Visconde de Azevedo: |
Portugal velho no seculo xix | 67 |
J. S. Mendes Leal: |
Ave! Cæsar | 70 |
R. de Bulhão Pato: |
Se córas não conto | 76 |
Ernesto Marecos: |
O doido | 78 |
Thomaz Ribeiro: |
Morta | 82 |
João de Deus: |
A vida | 84 |
Adoração | 91 |
Sympathia | 92 |
A cigarra e a formiga | 93[315] |
O dinheiro | 94 |
Amores... amores | 96 |
Anthero de Quental: |
A sombra | 98 |
Distico | 99 |
Outro | 100 |
Versos escriptos na margem d'um Missal | 100 |
Theophilo Braga: |
Onda viva | 103 |
O sepulchro de Virgilio | 106 |
Phrase de Miguel Angelo | 110 |
O Prisioneiro | 111 |
Napoleão moribundo | 113 |
Guilherme Braga: |
As Mães | 121 |
Amigos | 122 |
Legnel de Sampaio: |
Platão | 123 |
Alexandre da Conceição: |
N'um tumulo | 125 |
Dilemma | 126 |
J. Simões Dias: |
Sic transit | 127 |
Guerra Junqueiro: |
A benção da Locomotiva | 128 |
O Urso branco | 129 |
João Penha: |
Novo Petrarcha | 131 |
To be, or not to be | 132 |
Alberto Telles: |
Stella Maria | 133 |
Distico | 136 |
Santos Valente: |
Soneto | 136 |
Guilherme de Azevedo: |
Falla a Ordem | 137[316] |
Soneto | 137 |
Sousa Viterbo: |
A Republica | 138 |
Hetairas | 139 |
Ao Sol | 140
|
Candido de Figueiredo: |
Trévas | 141 |
Gomes Leal: |
Ouro | 142 |
A Canalha | 143 |
Bettencourt Rodrigues: |
Ao combate | 147 |
Claudio José Nunes: |
Um Heroe | 150 |
Luiz de Campos: |
Esposa, filha e mãe | 152 |
PARTE II |
OS LYRICOS BRAZILEIROS |
Alvares de Azevedo: |
Sonhando | 157 |
Soneto | 160 |
Lembrança de morrer | » |
No dia do enterro de *** | 162 |
Trindade | 165 |
Se eu moresse ámanhã | 166 |
Gonçalves Dias: |
Pedido | 167 |
Lyra | 168 |
O Somno | 169 |
Meu anjo escuta | 170 |
Casimiro de Abreu: |
Amor e medo | 172 |
Na rêde | 174[317] |
Junqueira Freire: |
Martyrio | 176 |
Tambem ella | 177 |
Gonçalves Magalhães: |
A flor Suspiro | 179 |
Fagundes Varella: |
Lyra | 180 |
O mesmo | 181 |
Serenata | 182 |
Estancias | 184 |
O canto dos Sabiás | 186 |
Castro Alves: |
O adeus de Thereza | 188 |
Immensis orbibus anguis | 190 |
Quando eu morrer | 192 |
Os perfumes | 193 |
Joaquim Serra: |
Rasto de sangue | 195 |
A minha Madona | 197 |
Sousa Pinto: |
As duas Escravas | 198 |
Bernardo Guimarães: |
Cantiga | 200 |
Machado Assis: |
Quando ella falla | 202 |
O leque | 203
|
Bruno de Seabra: |
Laura | 204 |
Lucio de Mendonça: |
A protecção dos reis | 206 |
Narcisa Amalia: |
Fragmentos | 207 |
Bettencourt Sampaio: |
Ai de mim | 208
|
Dias Carneiro: |
A — | 209[318] |
Vieira de Sousa: |
O passeio | 211 |
F. de Mattos:
Meus anhelos | 213 |
Franco de Sá: |
Um amor | 214 |
Quem sabe? talvel? | 215 |
Filgueiras Sobrinho: |
O amor um dia nos prendeu, querida | 217 |
Gonçalves Crespo: |
A sésta | 219 |
Quirino dos Santos: |
O filho da lavandeira | 221 |
Octaviano Hudson: |
As crianças | 223 |
Cantos populares brazileiros: |
I Chacara do Cego (Ceará) | 225 |
II Chacara de D. Jorge (Ceará) | 227 |
III Chacara de Flores-Bella (Ceará) | 229 |
Lunduns e Modinhas (Pará, etc.) | 232 |
Batuque dos Cururueiros (Cuyabá) | 235 |
Desafio dos Cururueiros (Cuyabá) | » |
Chula (Ceará) | 237 |
Sarabanda (Ceará) | 238 |
PARTE III |
OS LYRICOS GALLEGOS |
D. Rosalia Castro de Murguía: |
Airiños, airiños, aires | 243 |
Cantar gallego | 247 |
Cantan os gallos pr'ó dia | 249 |
Un repoludo gaitero | 252 |
Alberto Camino: |
O desconsolo | 254[319] |
Valentin Carvajal: |
O Alalalaa | 256 |
Doora | 259 |
A carta d'á guerra | 260 |
Quen poidera chorar | 262 |
Doora | 263 |
Ruiz Aguilera: |
Preludio | 264 |
Cantos populares gallegos: |
I Nadal (Tuy) | 268 |
II A morte de Xesus (Tuy) | 269 |
III Romance de un Mauregato (Puente de Domingo-Flores) | 271 |
VI Picaresco | 272 |
A serra do Raño | 274 |
As tres Comadres | 277 |
Serranilla | 279 |
Vilancete do Nadai | 280 |
Plegaria a S. Antonio | 281 |
Perlengas | 283 |
Dichos communes | 284 |
Adiviñaciones | 287 |
Jogos e Plegarias | 290 |
Márgenes del Miño | 293 |
Márgenes del Sar | 296 |
Satiricas | 297 |
Rededor de San Orente | 301 |
Serenatas con alalalaa | 302 |
ERRATAS
PAG. | VERSO | ERRO | EMENDA |
---|
20 | 16 | apodrerido | apodrecido |
108 | 20 | Longe | Longo |
110 | 1 | Da tua | Da |
118 | 13 | Impossivel | Impassivel |
119 | 24 | jocundot | jocundo, |
127 | 13 | perguntou | pergunto |
130 | 16 | trigues | tigres |
132 | 15 | em | que |
181 | 3 | na | no |
190 | 4 | calibri | colibri |
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