The Project Gutenberg eBook of Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto

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Title: Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto

Author: Júlio Dinis

Release date: August 5, 2005 [eBook #16443]
Most recently updated: December 12, 2020

Language: Portuguese

Credits: Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt), Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net

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Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net

UMA FAMILIA INGLEZA

UMA FAMILIA INGLEZA

SCENAS DA VIDA DO PORTO
POR
JULIO DINIZ

Terceira Edição

Porto

Em casa de A. R. da Cruz Coutinho, Editor

18—Rua dos Caldeireiros—20

1875

TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO
Rua Ferreira Borges, 31

UMA FAMILIA INGLEZA

I

ESPECIE DE PROLOGO, EM QUE SE FAZ UMA APRESENTAÇÃO AO LEITOR

Entre os subditos da rainha Victoria, residentes no Porto, ao principiar a segunda metade do seculo dezenove, nenhum havia mais bemquisto e mais obsequiado, e poucos se apontavam como mais fleugmaticos e genuinamente inglezes, do que Mr. Richard Whitestone.

Por tal nome era em toda a cidade conhecido um abastado negociante de fino tacto commercial e genio emprehendedor, cujo credito nas primeiras praças da Europa e da America, e com especialidade nos vastos emporios da Gran-Bretanha, se firmava em bases de uma solidez superabundantemente provada.

Nos livros de registro do Bank of England, bem como nos de alguns Joint-Stock banks e dos banqueiros particulares da City ou de West-End, podia-se procurar com exito documentos justificativos d'este credito florescente.

Não era Mr. Richard homem para seguir sómente caminhos batidos, nem para empallidecer ao abalançar-se em veredas não arroteadas, onde se achava a sós com os seus esforços e tenacidade.

Por vezes arriscára capitaes a inaugurar companhias, a plantar novos ramos de commercio, a auxiliar industrias nascentes, aventurando assim proveitosos exemplos, para serem seguidos depois, já com melhores garantias de lucro, por seus collegas, caracteres em geral cautelosos e positivos e sempre desconfiados a respeito de innovações.

Apesar d'isso, as crises, essas derruidoras tempestades tão frequentes na vida do commercio, tinham passado por cima da casa Whitestone, respeitando-a. Através das nuvens negras, que tantas vezes assombram o mundo monetario, vira-se sempre brilhar a firma do honrado Mr. Richard, com o esplendor tradicional; emquanto que não sorriram fados tão propicios ás de muitos meticulosos e precatados, não obstante egoistas abstenções.

Era o caso de mais uma vez repetir o Audaces fortuna… de já estafada memoria.

Esta immunidade, em parte devida á lucida intelligencia, com a qual Mr. Richard sabia superintender nos variados negocios do seu tracto, em parte a não sei que benigno espirito, ou acaso feliz, a que muitas vezes parece andar subordinada a fortuna, valera-lhe uma illimitada confiança entre todos, com quem o negocio o ligava, confiança da qual, nem em circumstancias frivolas, se mostrou nunca indigno depositario.

O quotidiano apparecimento do negociante estrangeiro na Praça—nome que entre nós se dá ainda á rua dos Inglezes, principal centro de transacções do alto commercio portuense—festejavam-o benevolentes sorrisos, rasgadas e pressurosas reverencias, phrases de insinuante amabilidade e affectuosos shake-hands, segundo o mais ou menos adiantado grau de familiaridade, que cada qual mantinha com elle.

Ninguem se dispensava de qualquer d'estas demonstrações de estima, ou as impozesse o prestigio dos avultados capitaes e da social liberalidade do commerciante britannico, ou—como de preferencia opinarão os que melhor conceito formam dos homens—um longo passado sem mancha, uma rectidão e cavalheirismo, aquilatados todos os dias.

Mr. Whitestone não se deixava porém desvanecer com estas homenagens dos seus confrades, aliás merecidas.

Decididamente não era a vaidade o seu defeito dominante. Aspirando essa especie de incenso moral, que tão bem formadas cabeças atordôa, não sentia, no intimo, turbar-se a limpidez, verdadeiramente crystallina, da razão, n'elle pouco sujeita a esvaîmentos.

Os gêlos d'aquelle coração, formado e desenvolvido a cincoenta e um graus de latitude septentrional, não se fundiam com tão pouco.

Lôas, hymnos encomiasticos, capazes, ainda que em prosa, de atemorisar as modestias menos esquivas, protestos hyperbolicos de veneração a todo o transe, tudo isso escutava friamente e sem nem sequer experimentar certa agradavel e voluptuosa titillação da alma—se me admittem a phrase—que em quasi todos os filhos de Eva,—primeira e mal estreiada victima da lisonja—produzem sempre os panegyricos do merecimento proprio, entoados por bôcas alheias.

A mesma indifferença, a mesma, se não absoluta impassibilidade, estabilidade de razão pelo menos, com que, uns após outros, esvasiava copos de cerveja e calices do Porto e Madeira, de rhum, de cognac, de kummel, de gingerbeer, e até de absintho, libações, que a qualquer pessoa menos inglezmente organisada ameaçariam, em pouco tempo, com as mais pavorosas consequencias de um completo alcoolismo; essa mesma indifferença e impassibilidade oppunha ao effeito, não menos inebriante, das lisonjas de que lhe enchiam os ouvidos.

A eloquencia cortezã dos seus muitos enthusiastas mais do que uma vez a recebia assobiando distrahidamente, mas sem a menor affectação, o nacional God save the queen, ao qual marcava compasso com a cabeça ou com a bengala.

Não se dava ao trabalho de retribuir um cumprimento com outro cumprimento. Aquelles que teem por costume semeiar lisonjas, para depois as colherem, em proveito proprio, encontravam em Mr. Richard Whitestone terreno ingrato para tal genero de cultura; não vingavam lá.

A chamar-se delicadeza a certos requebros de linguagem, a certas subtilezas de galanteios, a certos meneios, ares e olhares convencionaes, muito á moda nas salas e que variam com as épocas, hesitar-se-hia em conceder a Mr. Richard o nome de delicado.

A delicadeza que elle praticava não era de facto essa. Fazia-a consistir toda, a sua, nos sentimentos e nas acções inspiradas pelos eternos e invariaveis dictames da consciencia e da razão, superiores portanto ás fluctuações caprichosas da moda. Era uma delicadeza natural.

Verdadeiro inglez da velha Inglaterra, sincero, franco, ás vezes rude, mas nunca mesquinho e vil, podia tomar-se por uma vigorosa personificação do typico John Bull.

Alheio e pouco propenso á metaphysica, não o namoravam as transcendentes questões de philosophia, que preoccupam doentiamente as intelligencias da época; todo votado á contemplação da face positiva da vida, se não se arroubava, como os exaltados optimistas, a considerar nos destinos futuros da humanidade, evitava tambem o estorcer-se nas garras do demonio da hypocondria, como se estorcem tantos, a quem prolongadas meditações sobre os males que perseguem o homem acabam por envenenar o pensamento.

Possuia em compensação Mr. Richard, e em alto grau, para luctar contra as occorrentes resistencias da vida effectiva, aquella qualidade de espirito, que, segundo Sterne, se diz obstinação nas más applicações e perseverança nas boas.

Outra apreciavel disposição de animo caracterisava ainda o nosso commerciante:—era a de não ser sujeito a longas mortificações, ou pelo menos—e com mais rigor talvez—a de não as manifestar nos gestos ou por quaesquer signaes exteriores.

Dir-se-hia, a julgal-o pelas apparencias, que espessa camada de estoicismo lhe encrustára o coração, libertando-o da influencia dos estimulos, que mais dolorosamente costumam commover essa viscera de tão numerosas sympathias.

N'este mundo, ao qual os Heraclitos dos seculos christãos grangearam o titulo lutuoso e elegiaco de Valle de lagrimas, não sabia successo possivel, catastrophe realisavel, com força de alterar por muito tempo a costumada expressão physionomica de Mr. Richard, de lhe desbotar sequer o colorido vigoroso, ou,—como julgo se lhe chama em linguagem technica,—o colorido quente, do qual lhe vinha ao gesto certo ar de satisfação, despertador das mais justificadas invejas.

Nos typos inglezes, que as ondas do oceano arrojam todos os dias ás nossas praias, é este phenomeno mais vulgar do que porventura se pensa.

Cada uma d'essas figuras britannicas vale por um protesto mudo, mas eloquente, contra os velhos preconceitos de poetas e de escriptores meridionaes.

Teimam de facto estes em que são indispensaveis os vividos raios do nosso desanuviado sol, ou a face desassombrada da lua no firmamento peninsular, onde não tem, como a de Londres—a romper a custo um plumbeo céo—para verterem alegrias na alma e mandarem aos semblantes o reflexo d'ellas; imaginam fatalmente perseguidos de spleen, irremediavelmente lugubres e soturnos, como se a cada momento saíssem das galerias subterraneas de uma mina de pit-coul, os nossos alliados inglezes.

Como se enganam ou como pretendem enganar-nos!

É esta uma illusão ou má fé, contra a qual ha muito reclama debalde a indelevel e accentuada expressão de beatitude, que transluz no rosto illuminado dos homens de além da Mancha, os quaes parece caminharem entre nós, envolvidos em densa atmosphera de perenne contentamento, satisfeitos do mundo, satisfeitos dos homens e, muito especialmente, satisfeitos de si.

Nem é para admirar que o romancista inglez James ousasse abrir o primeiro capitulo de um romance seu com a seguinte exclamação:

«Merry England! Oh, merry England!» Alegre Inglaterra! oh! alegre Inglaterra!

E por que se não ha de chamar alegre á Inglaterra? Como se generalisou a infundada crença de que o inglez é por força melancolico?

É uma d'estas abusões, para lhe não dar nome peior, contra as quaes ninguem se precavê com sufficiente criterio philosophico.

Repare o leitor imparcial para qualquer dos membros da colonia ingleza, á qual Mr. Richard Whitestone pertencia, e verá que nem só nos tempos em que a civilisação e a industria não tinham ainda arroteado as densas florestas britannicas, seria cabido o jovial estribilho da canção que o supracitado romancista pôz na bôca do legendario Robin Hood, seu heroe:—«Ho, merry England, merry England, ho»; póde ainda cantar, através dos nevoeiros e do fumo das fabricas, o inglez moderno, fiel depositario d'aquelle folgado caracter nacional.

Eu tenho ha muito como ponto de fé, que ainda que o spleen seja doença indigena da Gran-Bretanha, não domina tão fatalmente sob o céo Londrino, como muitos parece imaginarem.

Dryden affirma que as comedias inglezas possuem sobre as de todo o mundo incontestavel superioridade.

E querem saber a que attribuem alguns esta superioridade da comedia ingleza? Ao clima, a esse mesmo clima, que, em contrario, tantos accusam de fomentador de hypocondrias e suicidios.

O clima inconstante da Inglaterra, explicam aquelles, é proprio para favorecer o desenvolvimento d'esses caracteres excepcionaes e extravagantes, precioso e inesgotavel pábulo do espirito comico da Gran-Bretanha.—A jovialidade dá-se muito bem n'aquelle poderoso imperio.

Tom Jones e o proprio Falstaff são typos mais inglezes talvez do que uns sombrios caracteres, que Byron pôz á moda.

Ora Mr. Richard, o corajoso leitor do Times, o inimigo declarado da França, apesar de certa seriedade de convenção, era metal inglez, livre de toda a liga.

Nos maiores empertigamentos, a que o respeito pela pragmatica ingleza o constrangia, lá lhe estava o gesto a denunciar, que era artificial tudo aquillo.

Emquanto ao physico…, emquanto ao physico era Mr. Whitestone caracterisadamente inglez.

Não supprirão estas palavras mais circumstanciada descripção?

Não ha entre nós quem, ao ver por ahi, nos maiores e mais mesclados ajuntamentos, certa ordem de typos masculinos, hesite em attribuir-lhes por patria a velha Albyon, a filha dos nevoeiros, a rainha dos mares, a terra dos meetings, dos puddings e de muitas cousas mais?

Pois bem, todos esses caracteres, todos esses signaes distinctivos dos mais perfeitos exemplares da classe, achavam-se reunidos na pessoa de Mr. Richard Whitestone, como certidão de naturalidade, limpa da menor viciação.

Era aquella conhecida tez, quasi côr de tijolo; aquelles olhos azues, á flor do rosto, a resplandecerem como saphiras; aquelles cabellos e suissas ruivas, que, sem grande violencia de imagem, poder-se-hia talvez comparar ás lavaredas do fogo, que lhe inflammava constantemente as faces injectadas; os dentes regulares, como enfiaduras de perolas, e alvos, como os caramélos das montanhas; a postura erecta; os movimentos promptos, e no rosto o tal continuado ar de satisfação.

Do vestuario podia dizer-se quasi o mesmo.—Não falseava o typo. Era ainda inglez de lei.

Um pequeno fraque de panno azul, fabricado nas melhores officinas de Yorkshire ou do West of England; as calças, curtas e estreitas, dentro das quaes as descarnadas tibias podiam fazer o effeito do embolo em corpo de pneumatica; as botas esguias e compridas, onde a elegancia era sacrificada á solidez; gravata e collete alvissimos, como os de um lord do parlamento, e, de inverno, vestidura completa de gutta-percha que, n'estas épocas utilitarias e prosaicas, veio substituir as impenetraveis armaduras da idade média—taes eram as peças principaes do guarda-roupa do honrado negociante. Coroava finalmente tudo isto o chapéo, aquelle chapéo de fórma invariavel, castello roqueiro inaccessivel ás ondas destruidoras da moda; baluarte inabalavel no meio dos ventos encontrados dos humanos caprichos; o chapéo, cujo molde classico dá a um grupo de inglezes um aspecto, que é só d'elles; o chapéo, expressão symbolica da indole industrial e fabril da famosa ilha, pois desperta lembranças das chaminés, que ouriçam o panorama das suas mais manufactureiras cidades.

Respirando, havia mais de vinte annos, a atmosphera perfumada do nosso clima meridional, e bebendo, em todo este tempo, da propria fonte o predilecto das mesas britannicas, o genuino Portwine—esse nectar, cujo aroma, ainda mais que os da nossa atmosphera, é grato ás pituitarias inglezas, Mr. Richard Whitestone não conseguira, ou melhor, estas influencias, com todos os outros feiticeiros attractivos da nossa terra, ainda não haviam conseguido de Mr. Richard Whitestone dois importantes resultados:—a adopção dos habitos de vida peninsular, contra os quaes antes reagia sempre com a inteira inflexibilidade de suas fibras britannicas, e o respeito á grammatica portugueza, que, em todas as quatro partes, maltratava com uma irreverencia, com um desplante de bradar aos céos e de desafiar os rigores da férula mais indulgente.

Não desmentia Mr. Richard a asserção do auctor das Lendas e Narrativas, quando affirma que sempre que um inglez, em casos desesperados, recorre a algum idioma estranho, nunca o faz, sem o torcer, estafar, e mutilar com toda a barbaridade de um verdadeiro Kimbri.

De facto, as cinzas de Lobato e de Madureira deviam agitar-se na sepultura sempre que Mr. Whitestone fallava, porque as regras mais triviaes de regencia e de concordancia eram por elle atropelladas com uma frieza de animo, com uma fleugma, com uma impassibilidade, somente comparaveis ás de um membro do Jockey-Club, ao passar com o cavallo por cima do corpo de algum transeunte inoffensivo ou competidor derrubado na arena.

Não era mais feliz a prosodia, a alatinada prosodia d'este recanto peninsular.

As combinações grammaticaes de Mr. Richard, ao fallar a nossa lingua, saíam marcadas com um verdadeiro cunho britannico. Venus, a propria Venus, perderia aquellas illusões, que nos refere o cantor dos Lusiadas, se porventura ouvisse o portuguez que elle pronunciava.

Transparecia de alguma sorte nas orações do seu discurso o credito liberal de um verdadeiro cidadão de Londres. O espirito conciliador e ordeiro, o constitucionalismo arreigado n'aquelle animo inglez, e adhesão aos principios interventores adoptados no seu paiz, parecia haverem-se estendido, extravagantemente, ao campo da syntaxe portugueza, levando Mr. Richard, n'um excesso de tendencia harmonisadora, a tentar n'ella concordancias de substantivos e adjectivos contra a absoluta e insuperavel repugnancia de generos e de numeros; e a modificar a constituição grammatical de um paiz alliado, como a Inglaterra gosta de modificar a sua constituição politica.

O effeito reunido d'aquella prosodia e syntaxe era ás vezes de uma resultante comica que não actuava impunemente sobre os ouvidos, aliás não muito pechosos, dos collegas commerciaes, em cujos labios sorrisos de malicia mal disfarçada vinham por instantes afugentar a sisudez de profissão.

Mr. Whitestone percebia-os e bem lhes suspeitava o sentido, mas era completamente indifferente ao que percebia e suspeitava.

Se o contradissessem na pronuncia de uma palavra ingleza, embora das mais controvertidas, se descobrisse um sorriso nos circumstantes, na occasião em que elle estivesse fallando a patria lingua, então sim, então era possivel que chegasse a exaltar-se a ponto de quasi ameaçar o imprudente com uma irreprehensivel applicação da nobre sciencia dos boxers, quasi divina arte do sôco, que, desde Jack Brougton, tem sido cultivada em Londres «com fanatismo e ensinada com talento»—textuaes palavras de um escriptor ex-professo.

Mas os sorrisos, que lhe valiam as atrocidades praticadas por elle nas grammaticas estrangeiras, esses, soffria-os com impassivel indifferença e não sei até se com certos vislumbres de orgulho e regosijo.

II

MAIS DUAS APRESENTAÇÕES, E ACABA O PROLOGO

O honrado chefe da casa Whitestone tinha dois filhos: uma gentil lady, mimosa planta do Norte transplantada, aos dois annos, para o nosso clima, e um rapaz, mais novo do que ella, e nascido já em Portugal.

Eram Jenny e Carlos.

Jenny era uma d'estas jovens inglezas, cuja suavidade e correcção de contornos, alvura e delicadeza de tez e puro dourado dos cabellos, lhes dão uma apparencia tão subtil e vaporosa, e, quasi direi, tão celestial, que se espera a cada passo vel-as desprenderem-se da terra e dissiparem-se, como instantanea visão luminosa, diante dos olhos, que por momentos offuscaram.

Delicadas, como o arminho, que chega quasi a subtrahir-se á sensação do tacto, de delicado que é, estas poeticas organisações septentrionaes possuem tanto de vago, tanto de immaterial, que, junto d'ellas, apodera-se de nós, entes profanos e grosseiros, certo invencivel constrangimento, como se receiassemos com um sôpro desvanecel-as, crestal-as com o olhar, maltratal-as com o gesto.

Os desejos não vôam até alli; rodeia-as uma atmosphera de virginal castidade, no seio da qual esses filhos alados da imaginação abatem-se asphyxiados.

Bellezas, como ella, foram por certo as que inspiraram as imagens de virgens dos cantos de Ossian ao espirito de quem quer que foi seu auctor, d'aquellas virgens, que o bardo comparava á neve da planicie e cujos cabellos imitavam o vapor do Cromla, dourado pelos raios do occidente.

Se no azul meigo dos olhos de Jenny se não concentrava o fogo das paixões de um coração ardido, nem se descobria a scintillação denunciadora de phantasias exaltadas, havia n'elle não sei que mysteriosa e suave luz, como se de reflexo levado para alli do mais intimo da alma; os labios, delgados e levemente comprimidos, não se agitavam sob o imperio de tumultuosos sentimentos, mas fixavam-se em continuo sorriso, expressivo de affabilidade e de brandura, promettedor de placidas, mas duradouras felicidades; o seio, sempre modestamente afogado no vestido liso e singelo, embora não tivesse o arfar voluptuoso, que arrebata as imaginações, animava-se da ligeira ondulação, denunciadora do sereno sentir da mulher, a quem Deus confia os destinos da familia; d'esses sympathicos vultos de mãe, de irmã e de esposa, por todos encontrados ou sonhados ao menos uma vez na vida, astros inaccessiveis ás violentas tempestades, que tantas vezes ameaçam o horizonte domestico, anjos pacificadores entre os seus, que com todos repartem carinhos e afagos, que com lagrimas e sorrisos a todos consolam e recompensam; se, vendo Jenny, podia ainda lembrar o amor, era o amor da mulher sempre casta que, ao estender a fronte candida aos beijos affectuosos do esposo, baixa ainda os olhos, córando com todo o pejo de uma primeira entrevista, e fita-os no berço do filho adormecido sob a vigilancia dos seus cuidados.

A estatura esbelta da joven ingleza, o andar, sem os requebros languidos das nossas elegantes, a fronte pura e de gracioso modelo, coroada por um diadema de formosos e desadornados cabellos louros, o olhar entre affavel e melancolico, a voz meigamente sonora e cadenciada, tudo emfim, de modo inexplicavel como variadas phrases da mysteriosa linguagem da belleza, denunciava os encantos, as doçuras d'aquelle caracter feminino, tão alheio a fraquezas mundanas, que mais se dissera angelico.

Sentia-se, vendo-a, que para ella nunca o amor seria um passatempo, um capricho apenas, gosado entre risos, terminado sem lagrimas. Talvez nunca tão violenta paixão a chegasse a dominar até; porém, se nascesse, seria como essas plantas, que mal se desentranham em galas de folhagem e de flores, mas que se prendem por tenazes e penetrantes raizes ao solo d'onde brotaram.

Em Jenny, a paixão de amante, a ter de lhe inquietar o coração, difficilmente se revelaria, a não ser adivinhada; mas depois, se o fosse, ou havia de consagrar-se na de esposa, de sublimar-se na de mãe, ou lentamente a consumiria; ser-lhe-hia fatal, se por não comprehendida, não chegasse a realisar essa santificada evolução.

Almas assim estão talhadas ou para a felicidade celeste ou para a maxima tortura; que eu não sei de outra maior, do que a d'aquelles que concentram em si o soffrimento e suffocam todas as manifestações de dor, quando ás vezes a revelação lhes poderá dar lenitivo.

Mas o céo de Jenny era ainda limpido, e amena a corrente da vida.

Um rapido e imperceptivel movimento de labios, um desvanecido contrahir de fronte e—a não ser illusão isto,—um como escurecer do puro azul d'aquelles olhos amoraveis, eram os unicos vestigios das raras luctas travadas entre a sua razão poderosa, bem que de mulher, e os impulsos de diversos affectos, lucta sempre decidida pela victoria da primeira.

Mas eram raras essas nuvens, tão raras como diaphanas, tão diaphanas como passageiras.

Estava-lhe quasi sempre no seio aquella mesma placidez que se lhe lia no semblante.

E nem porisso se julgue frio e insensivel o caracter d'ella; animavam-o tambem os raios vivificadores dos sentimentos, que nos prendem á terra; mas, com o influxo da vida, não transmittiam esses raios a lavareda que destroe.

Será menos energico e abençoado o calor do sol, porque não inflamma os bosques e as cidades, como o incendio que a mão do homem ateia? Mas um cobre de verdura os prados e de flores os ramos, e alumia o hemispherio inteiro; o outro calcina as plantas que abraça, e a pouca distancia estende a sua claridade fatal; qual será mais poderoso e effectivo?

Em Jenny os affectos do coração pareciam-se com as chammas dos lampadarios sagrados, que, em honra de Deus, illuminam o interior dos templos. O vel-as luzir eleva o pensamento a meditar cousas do céo.

Ha entes assim, que tudo santificam; paixões, que n'uns acalentam vicios, são n'elles efficazes impulsos para sublimes virtudes.

O calix, que, em mãos profanas, preside aos banquetes e ás orgias, consagrado no altar, transforma-se em symbolo mysterioso da mais augusta religião.

Deus desce tambem a muitas almas, para tornar em holocausto digno de si as paixões originarias d'ellas.

Carlos era, sob muitos respeitos, differente da irmã.

Inglez pelo sangue, meridional pelo clima, onde vira, a primeira vez, a luz do dia, onde passára a infancia, onde sentira as primeiras commoções da adolescencia, o despertar da vida do coração, tinha um caracter que se ressentia d'esta, de alguma sorte, dupla nacionalidade.

Da peninsula recebera o enthusiasmo, a viveza de imaginação, a impetuosidade de sentimentos, que raras vezes reprimia; vinham-lhe da Gran-Bretanha a força de vontade, a pertinacia, o estoicismo, com que, em certas occasiões, surprendia a quantos julgavam conhecel-o; vinham-lhe até, da mesma fonte, algumas excentricidades de manifesta herança paterna—efficaz inoculação de britannismo, que não lhe consentiria mentir á origem, se alguma vez o tentasse.

Ainda que algum tanto estouvado, não deixava porisso Carlos de possuir um generoso e compassivo coração, alma sensivel a todos os infortunios, olhos a que a piedade não permittia serem estranhas as lagrimas.

Se, por acções mal refreadas, por palavras irreflectidas, as fazia tambem verter, era elle o primeiro a accusar-se, a compadecer-se, a procurar enxugal-as por toda a qualidade de sacrificios.

Capaz de heroica abnegação em bem dos outros, se frequentemente se esquecia de beneficios recebidos, como se poderia censural-o, quando, habituado a realisal-os maiores, não exigia tambem dos favorecidos a gratidão em recompensa, parecendo até desconhecer os direitos que tinha a ella?

Corajoso até á imprudencia, liberal até á prodigalidade, sincero até á rudeza desattenciosa, os seus maiores defeitos não passavam de nobres qualidades, levadas ao excesso.

O que elle não sabia, ou não podia, era conserval-as no ordeiro meio termo, tão respeitado pela sociedade.

O sangue dos vinte annos fazia doudejar aquella cabeça; os instinctos generosos faziam o tormento d'aquelle coração, porque se uma, em momentos de exaltação, conseguia romper com as generosas repugnancias do outro, a reacção era infallivel, e este, mais tarde, obrigava-a a arrepender-se, descobrindo, e exagerando até as nem sempre remediaveis consequencias dos seus desvarios e caprichos.

Carlos era d'estes homens, que encerram e alimentam no proprio seio o seu principal inimigo.

Entre Carlos Whitestone e o pae existia um cordial e puro affecto, ainda que disfarçado, em ambos elles, sob apparencias de frieza e de reserva da mais genuina indole britannica. Raras vezes se procuravam os dois, e sempre que, nas occasiões ordinarias, se viam juntos, poucas palavras trocavam. Quando mais solta se desenvolvia a loquacidade de Mr. Richard na presença do filho, era ao saborear os ultimos calices, depois do jantar de familia; mas, ainda então, a conversa quasi se reduzia a uma especie de extenso e variado monologo, recitado por aquelle e interrompido por este apenas com algumas phrases de assentimento, em que predominavam os Yess, ao mesmo tempo que os labios se armavam de um sorriso de complacencia—nem sempre segura fiança de attenção.

Carlos respeitava o pae, amava-o até com extremos capazes de lhe inspirarem os maiores sacrificios, e comtudo evitava-o, como se, junto d'elle, se não achasse á vontade.

E não achava, de facto.

Possuia Carlos um d'estes genios, que não supportam constrangimentos; ou hão de romper com elles ou evital-os.

Calava-se, onde não podia abandonar-se aos caprichos de uma conversa futil; entristecia, onde lhe fossem estranhadas as expansões de uma alegria infundada, de um d'esses irresistiveis jubilos de creança, que, como tal, em puerilidades se revela. Dessem-lhe a liberdade de poder ser estouvado, vel-o-iam talvez sisudo; mas, forçado a isto, tornava-se sombrio e de mau humor.

Ora a austeridade de costumes de Mr. Richard Whitestone, a rigidez dos seus principios de decoro e de respeito ás praxes da etiqueta ingleza, exerciam sobre Carlos uma influencia, contra a qual não tinha coragem de revoltar-se; e porisso fugia-lhe.

No pae via quasi sempre um juiz severo e inflexivel, prompto a julgal-o e a condemnal-o talvez; e Carlos, que habitualmente trazia na consciencia algum peccado de juventude a remordel-a, e que não confiava no seu poder de dissimular, furtava-se, quanto podia, ás investigações do jury paternal, sempre antevistas por elle e bem longe ás vezes do intento de Mr. Richard Whitestone.

Este, de seu lado, não amava menos extremosamente o filho; para as verduras da mocidade era indulgente, como, em tempos passados, desejara e precisara que fossem tambem comsigo; Deus sabe que esforços lhe custavam até estes sisudos ares de convenção, tão oppostos ao fundo de desafogada jovialidade do seu caracter, e que não conseguiam dissipar o sorriso, que tinha como que stereotypado nos labios.

Julgava elle, porém, do dever de pae e natural mentor, que era de Carlos, conservar sempre certo ar de hombridade e de quasi rudeza para com o estouvado, que, não raro, lhe estava dando motivos para mais severas penas.

Á sua precisão britannica repugnavam longos discursos de moral e prolixas catecheses. Laconico, n'estas cousas, por systema e por espirito nacional, nunca usava de parabolas para chamar ao aprisco a ovelha tresmalhada.

Um unico «Ho!» mas pronunciado com aquella expressão, que só a larynge britannica lhe sabe dar, um ho aspirado, guttural, eloquente, inglez emfim, combinado a um abanar de cabeça rapido e desapprovador, e a dois ou tres particulares estalidos de lingua, eram os signaes de impaciencia e de desagrado que Mr. Richard manifestava, e dos quaes mais se temia Carlos, do que se temeria de qualquer menos concisa formula, sob que podesse revelar-se a censura paternal.

Dia, em que aquelle fatal «oh!» lhe tivesse soado aos ouvidos, já não se confiava despreoccupado a inteiro prazer; passava-lhe uma nuvem no firmamento azul da juventude, limpido como o de poucas.

Promettia então emendar-se; solemnemente a si proprio o promettia, mas cêdo a promessa era esquecida até que nova e similhante occasião a renovava.

Outro era o sentir de Carlos para com a irmã.

Jenny era o seu anjo bom, e o anjo bom da familia toda, a meiga, a benigna fada, cujo olhar serenava as tempestades, e desanuviava o sol.

Com sorrisos decidia, para o bem, os combates de paixões. Debil e delicada era aquella mão, mas quantas vezes Carlos a encontrára interposta entre si e o precipicio, para lhe servir de amparo! Delgado e vacillante imaginar-se-hía aquelle braço, mas firme o sentia ella sempre ao ter de sustentar o irmão na quéda imminente, ou de eleval-o até si. Branda e suave lhe saía dos labios a voz, mas só ella se fazia escutar dos ouvidos, quando o tumulo das paixões os ensurdecia.

Não havia segredo entre os dois. De pequeno se costumára Carlos a vir contar a Jenny quasi todas as acções da sua vida, boas ou más que ellas fossem.

Referia-lhe, um por um, e com sincera ingenuidade, os pensamentos dominantes do dia, e mais do que uma vez conseguira vencer-se, quasi ao ceder á tentação de actos menos generosos, só para não ter de os confessar depois a este affectuoso juiz, e merecer-lhe uma amigavel reprehensão entre sorrisos ou o mal reprimido movimento de desgosto d'aquelles bonitos labios, o que devéras o magoava.

Nem menos o affligiriam os remorsos, se procurasse subtrahir-se á pena, não denunciando o delicto. A consciencia costumava censurar-lhe tambem estas faltas, nas raras vezes que as commettia.

Jenny, igualmente attendida pelo irmão e pelo pae, servia-se d'esta duplicada influencia para harmonisar toda a familia, nos momentos de receiada discordia.

Com uma palavra extinguia qualquer irritação, que as extravagancias de Carlos podessem ter produzido no animo de Mr. Richard; com outra dissipava no irmão as menores tendencias á insurreição, tão naturaes á idade e temperamento d'elle contra alguma medida repressiva, posta, de quando em quando, em pratica pelo pae, como em ultimo recurso.

Frequentes vezes o pequeno erario de Jenny abrira-se a solver dividas, imprudentemente contrahidas por Carlos, e a remediar todas as más consequencias das suas leviandades. Estava sempre prompta a advogar-lhe os pleitos, a minorar-lhe as culpas.

Mas tambem o que ella não conseguisse de Carlos, ninguem mais na terra o conseguiria.

Deixar adivinhar desejos, era formular pedidos; uma supplica, timidamente expressa, valia por uma ordem imperiosa. E comtudo Jenny nunca procurava tornar apparente este predominio; antes se esforçava por o dissimular.

Conhecendo, mais por muito reflectir do que por experiencia, que não a tinha, os mil mysterios e caprichos do coração humano, toda a sua admiravel diplomacia feminina estava em saber fazer-se obedecida, brincando; em aceitar e agradecer, como concessões espontaneas, o que lhe dizia a consciencia ser o resultado de suas insinuações e pedidos.

Desenvolvia-se de ordinario uma perfeita tactica, e engenhosamente tecida da parte de Jenny, em quasi todas estas conferencias intimas entre os dois irmãos.

Virtuosa e sympathica hypocrisia, com que Jenny, para dominar, se humilhava!

Quando os anjos nos imitam na dissimulação, ainda então não perdem a sua candura. São sempre anjos. Roçam com as azas pelo lôdo do mundo, mas levantam-se immaculados.

Quem ensinára a Jenny, cuja vida se deslisára quasi toda no tracto intimo de sua pouca numerosa familia, esta sciencia do coração, que dizem só adquirir-se no muito lidar com os homens e com o mundo? Já o indicamos:—a sua indole pensativa, os seus habitos de reflexão. Mais se aprende na leitura meditada de um só livro, do que no folhear levianamente milhares de volumes. Assim tambem no estudo dos caracteres. Observadores ha, que, após annos e annos gastos a viver com os homens, morrem em ingenua ignorancia a respeito d'elles; outros que, na solidão do gabinete, perscrutam no proprio coração os segredos dos mais, decifram-os, porque, descobertas ahi as leis principaes e communs a toda a natureza humana, facil é adivinhar depois as secundarias, d'onde procedem as differenças. Surprende devéras quando se vê saír d'esses cantos obscuros um homem a todos desconhecido, e que a todos parece conhecer. Como e onde aprendeu este homem tudo isto? Pela observação desapaixonada em si, ou, quando muito, nos seus mais proximos; depois a intelligencia, vigorada por este ensino, abalançou-se, guiada por vestigios na apparencia insignificantes, a inducções fertilissimas.

Carlos não sabia resistir muito tempo á irmã. Sem suspeitar que cedia, recuava passo a passo. Aproximava-se do fim, onde a habil contendora o queria levar, e, ao attingil-o, ficava surprendido de haver realisado, com tão pouco custo, suppostos sacrificios, cuja ideia só, momentos antes, o tinha feito desanimar de emprehendel-os.

Por não differentes processos, cada dia se vergava, por assim dizer, ás mãos de uma creança o caracter geralmente considerado inflexivel de Mr. Richard Whitestone.

E com tal habilidade aprendera Jenny a occultar estas pequenas, mas importantes victorias, que a todo o instante obtinha sobre os seus, que mal vinha á ideia do bom gentleman, quando, muito convencido do que dizia, se jactava de ser firme nas suas resoluções, e pouco propenso a revogar projectos formados, que, n'aquelle mesmo momento talvez, lhe estavam dando seus actos solemne desmentido.

Taes eram os principaes membros da familia Whitestone, com quem travaremos mais intimo conhecimento nos varios capitulos d'esta singelissima historia, em cujo decurso, desde já o declaramos, para não alimentar illusorias esperanças, a acção prosegue desimpedida de complicadas peripecias.

III

NA AGUIA D'OURO

Era uma das ultimas noites do carnaval de 1855.

Havia menos estrellas no céo, do que mascaras nas ruas. Fevereiro, esse mez inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos de mau humor; mas, embora; o folgazão entrudo ria-se de taes severidades e dançava ao som do vento e da chuva, e sob o docel de nuvens negras que se levantavam do sul. Graças á cheia do Douro, a cidade baixa podia bem prestar-se n'aquella época a uma parodia do carnaval veneziano.

Á porta dos theatros apinhava-se a multidão; os altos brados dos vendedores de senhas e os agudos falsetes dos mascarados atordoavam os ouvidos. Dos cabides dos guarda-roupas, provisoriamente armados nas lojas circumvizinhas aos principaes salões de baile, pendiam vestuarios correspondentes a todas as épocas e a todas as nações, e alguns, aos quaes não era possivel assignar época, nação, classe ou condição social conhecida.

Numerosos grupos de espectadores paravam diante das exposições de mascaras á venda e tornavam o transito n'aquellas ruas quasi impraticavel. Era uma fascinação analoga á que produz um conto de Hoffmann em imaginações excitaveis, e exercida n'elles por tantas mascaras enfileiradas, cuja diversidade comica de expressão e de gesto lembrava um enxame de cabeças mephistophelicas, surgindo á luz para se rirem das loucuras da humanidade.

Estes absortos contempladores a cada passo vinham a si, desagradavelmente acordados pelas pragas energicas dos conductores de carruagens, prestes a atropellal-os, ou pela interjeição pouco harmoniosa dos cadeirinhas obrigados por causa d'elles a irregularidades no andamento da sua grave e benefica tarefa. Só então, e ainda a custo, se dispersavam, para, alguns passos mais adiante, se agglomerarem de novo.

Se é licito comparar as grandes ás pequenas cousas, veremos n'estes a imagem de todos os inoffensivos scismadores d'este mundo, a quem sempre cruelmente vem despertar o embate dos afadigados em emprezas positivas.

A animação era geral na cidade.

Todos corriam com ancia… a enfastiarem-se, fingindo que se divertiam.

Alguma cousa havia tambem na Aguia d'Ouro, a anciã das nossas casas de pasto, a velha confidente de quasi todos os segredos politicos, particulares e artisticos d'esta terra; alguma cousa havia n'essa modesta casa amarella do largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.

Desde as tres horas da tarde que o tinir dos crystaes e das porcellanas, o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrepito das gargalhadas, das vozerias tumultuosas, e dos hurrahs ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal d'aquelle bem conhecido edificio; e por muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das aguas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda, através do grande rumor, que enchia as ruas.

Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contradictorias, vinham apressar os collegas na cozinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.

No entretanto o modesto e solitario freguez, a quem uma velleidade estomacal convidára a ir ceiar a humilde costelleta, principal trophéo culinario da casa, era pouco attendido e, farto de esperar, retirava-se sorrateiro e cabisbaixo.

Sob apparencias de modestia, a Aguia d'Ouro parecia d'esta vez aureolada de não sei que magestade, condigna do seu emblema.

A luz escassa de um lampeão da rua, batendo sobre a ave de Jupiter, que corôa a taboleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais brilhantes do que os do costume.

Que era noite solemne para a casa, aquella casa que tem já dado que entender a ministerios e a emprezarios lyricos, não podia haver duvida.

Cá em baixo, os serventes do café fallavam a meia voz e mostravam no olhar certo ar de preoccupação, certa importancia no gesto, como se effectivamente se estivesse passando cousa de momento no andar de cima.

O café contrastava porém com a animação que se percebia nas salas da hospedaria.

Estavam desertos os logares d'aquella abafada quadra, em cujas paredes ainda então existiam, e ameaçavam perpetuar-se, reproducções, em lona, dos combates que restabeleceram a independencia da Grecia; a luz amortecida dos candieiros não dissipava as sombras dos recantos.

O marcador do bilhar cabeceava com somno.

Os bailes de mascaras tinham derivado d'alli até os homens politicos. N'aquella noite as discussões sobre a guerra da Crimeia, então na ordem do dia, travavam-se ao som das walsas e das mazurkas, nos theatros.

Não é pois n'este logar, agora melancolico e quasi lugubre, que eu pretendo demorar o leitor.

Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e corredores, penetremos na sala d'onde provém o ruido de festa que já noticiamos.

O leitor por certo conhece o recintho. As suas particularidades architectonicas não requerem tambem as fadigas da descripção.

É um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir.

Chegamos, porém, tarde.

O fumo dos charutos ennevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar vae no fim, a desordem portanto no ponto culminante.

Ha já calices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas as posições, algumas indescriptiveis.

A vozeria é atordoadora. A confusão póde dar uma ideia de Babel.

Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transições fazem-se com uma rapidez, que surprende e embaraça os proprios interlocutores; attenção, que se desvie um segundo, é attenção perdida; não encontra depois já o dialogo onde o deixou; ás vezes a conversa generalisa-se; momentos depois, distribue-se em especialidades por diversos grupos; mais tarde, generalisa-se de novo; em certas occasiões, todas as bôcas fallam, cada um se escuta a si; n'outras algum orador consegue por instantes fazer-se escutar de todos, até que um áparte, um incidente, um gesto, restabelece a independencia primitiva. Dão-se tambem verdadeiros encruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que ouve ao da cabeceira, emquanto que os intermedios se entreteem de outros objectos; é um baralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a expressão do pensamento.

Alli falla-se em litteratura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto, discute-se politica e julgam-se n'um momento, e com a mais desenganada critica, as primeiras capacidades financeiras, diplomaticas e militares da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com tão agradavel prática, o dialogo de outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo exalta-se, tratando assumptos de theatro lyrico e premeditando pateadas e ovações; juntos d'este, dois enthusiastas de hippicultura fazem a historia pittoresca de compras, vendas e manhas de cavallos. A propria philosophia allemã fornece alimento á animação dos discursos; e tudo isto interrompido de gargalhadas, de cantigas, de juras e exclamações em todas as linguas.

Seria igualmente difficil determinar o elemento commum dos individuos reunidos alli.

Ha-os das mais diversas condições; desde o joven padre, que põe a tractos a sciencia e a paciencia dos cabelleireiros para disfarçar, quanto for possivel, os vestigios da tonsura, até o official do exercito, todo possuido das branduras civilisadoras do seculo e para quem a mesma caça é occupação barbara e afflictiva da sensibilidade; ha-os das mais diversas idades, desde o collegial de hontem, ainda imberbe e embriagado com as primeiras commoções da vida de adolescente, até o velho, que, ingenuamente persuadido de que o tempo se esqueceu de lhe ir contando os annos, deixa passar a geração, contemporanea sua, e insiste em viver, entre rapazes, vida de rapaz; ha-os em diversas circumstancias monetarias, desde o capitalista, que vê correr descuidado a fonte dos seus rendimentos, com tranquillisadora confiança no inesgotavel manancial que a alimenta até á classe dos encostados, verdadeiros martyres da moda, cuja vacuidade de bolsa lhes constrange a imaginação a fabricar systemas quotidianos para os manter, embora á custa de humiliações n'aquella atmosphera, fóra da qual já não sabem respirar; ha-os de todos os graus de intelligencia, desde o escriptor applaudido e que, sem favor ou com elle, conquistou reputação nas lettras, até o analphabeto, cujas sandices são saudadas com gargalhadas que ninguem procura reprimir na presença d'elle proprio.

Finalmente, esta reunião de elementos, debaixo de todos os pontos de vista tão heterogeneos, é uma porção da sociedade, que pretenciosamente se decora com o titulo de elegante e para pertencer á qual é difficil fazer resenha dos requisitos necessarios; pois que nem a propria elegancia—na verdadeira accepção do termo—é dote generico dos seus membros.

O motivo do jantar… O jantar não tinha motivo e era esta outra circumstancia que o caracterisava. Um jantar póde muito bem ser motivo de si mesmo: sendo possivel d'elle dizer-se de alguma sorte, em linguagem philosophica, que tem em si a «razão sufficiente da sua existencia».

Na companhia encontraremos alguem já conhecido nosso.

E como, até agora, só tenho apresentado ao leitor tres pessoas, não será prova de grande perspicacia, da sua parte, adivinhar qual d'essas tres será.

Effectivamente é Carlos Whitestone um dos convivas e não dos mais sisudos.

Ficava proximo da cabeceira da mesa. Carlos era quem mais vezes conseguira encaminhar a um fito unico todas as attenções e modificar a assembleia a ponto de se lhe poder referir o conticuere omnes da Eneida;—verdade é que não tão completamente o fizera como o heroe troyano, pois nem tinha destruição de Ilion a descrever, nem a paciencia dos tyrios a escutal-o.

Carlos Whitestone passava por estar muito em dia com os boatos comicos e escandalosos, de que sempre e em toda a parte é tão sôfrego o paladar social.

Por isso o escutavam todos com prazer.

Sinto que não chegassemos a tempo de ouvir o principio da narração, que elle levava em meio.

—O nosso homem—dizia Carlos, accendendo um charuto no de um jornalista; seu vizinho—apesar do aviso que recebera, resolveu na melhor das boas fés…

—Então é a boa fé dos maridos—commentou a meia voz um padre, que, atrazado nas operações gastronomicas, investia com denodo contra um tymbale de pombos, ainda miraculosamente intacto, e acrescentou:—Não sei de outra, que a exceda.

—Regula por essa a dos amantes ingenuos—acudiu Carlos ao commentario.

—Mas é de menos consequencias—respondeu o outro.

—Silencio, padre Manoel!—bradaram algumas vozes—Vamos lá, Carlos; e depois?

—Depois—proseguiu Carlos—enfeitou-se, perfumou-se, aparamentou-se, frisou-se…

—E tingiu-se; que não esqueça—acrescentou do fim da mesa uma voz.

—E tingiu-se; sim—disse Carlos—e feitos todos estes aprestos, caminhou para a entrevista.

—E como se realisava essa entrevista?—perguntou um militar.

—De uma maneira muito singular;—proseguiu Carlos—o conselheiro, todas as noites, depois de pousar na relva o chapéo, a bengala e as luvas, trepava como um eschilo, pela faia que fica junto da varanda e…

—Ora! Impossivel!—exclamaram alguns, rindo.

—Palavra!

—Isso é contra todas as leis da mechanica, aquelle bojo…—principiou a dizer um estudante da Universidade.

—Pelo contrario;—atalhou outro—é exactamente o bojo que o faz subir.
Lembra-te do principio de Archimedes. Os aereostatos…

A quéda do conselheiro seria uma bella experiencia para um curso de physica…

—Divertida…—annotou uma voz.

—Como exemplificando as leis da quéda dos graves… um tão grave personagem—concluiu o primeiro.

Estes sujeitos guindavam o calembourg ao supremo grau da escala do espirito.

—Então? deixem fallar Carlos; e depois?—disseram alguns curiosos.

Carlos continuou:

—N'aquella noite, porém, estava reservada ao conselheiro a mais triste surpreza; ao entrar na espessura da folhagem, deu de cara com o outro.

—Com o Victor?

—Exactamente, com o Victor. Imaginem agora vocês o soberbo dialogo, que se seguiu ao encontro.

—Devia ser preciosissimo! Que harmonioso certame de rouxinoes!

—O conselheiro principiou talvez por dizer-lhe:

Tytire, tu patulæ recubans sub tegmine fagi Formosam resonare doces Amaryllida silvas

—Protesto contra o recubans. A posição de Victor era menos commoda.

Mutatis mutandis, já se sabe.

—Ó padre Manoel, dize-nos como a tua latinidade exprimiria a posição em que estava o Victor.

—Não interrogues o padre. Não vês que elle está, como os antigos agoureiros, consultando as entranhas das aves? respeitemos a solemnidade do acto.

—Mas as consequencias, Carlos, quaes foram as consequencias?

—As consequencias foram as que vocês já sabem, o conselheiro…

N'este ponto, a narração de Carlos foi interrompida por o criado da hospedaria, que se aproximou d'elle para lhe entregar a carta.

—Com a sua permissão, meus senhores,—disse Carlos, preparando-se para abril-a.

—Bravo!—exclamou o jornalista—temos carta de algum Ecco impaciente.

E un foglio a me lasció—cantarolou um dilettante, voltando as costas da cadeira para a mesa.

—É a proposta de capitulação de alguma Troya sitiada—disse o militar.

—Cheira-me a fumo de gambiarra e ribalda; temos intriga de camarim.

—Antevejo então uma descarga de bilhetes de beneficio, a que poucos escaparemos.

Carlos sorria, ao abrir a carta.

—Ó Carlos, olha que são perigosos para as digestões os sobresaltos de coração—notou o estudante de medicina.

—Socega; é um excitante a que já estou habituado—respondeu Carlos.

De repente tornou-se serio.

—Má nova!—disseram alguns.

—O caso complica-se.

—As exigencias da beneficiada sobem até o acrostico, querem ver?

—Não é isso; aposto que mais outro conselheiro trepa uma segunda faia, e d'esta vez vinga o collega, na pessoa de Carlos.

Carlos não os escutava já. Ergueu-se, aproximou-se do aparador, e escreveu no verso do bilhete, que recebeu, algumas palavras á pressa.

Emquanto fazia isto, os companheiros do festim, fingindo dictar-lhe a resposta, diziam:

—Meu anjo, se no céo…

—Vôo nas azas do amor…

—Qual outro Leandro, eu, naufrago…

—Minha Heloïsa; se o infortunio de Abeillard…

—Julieta, quando o rouxinol…

Carlos voltou para a mesa, depois de fechar a carta e de entregal-a ao criado.

Esforçava-se por manter nos labios o sorriso; mas o esforço era visivel, circumstancia que, como sempre, lhe annullava o effeito.

—Que é isso?—disse o militar, que lhe ficava defronte—respiraste a peste n'essa carta?

—O nosso Manrique terá de correr a salvar a sua Leonora das garras de um conde de Luna?—disse o dilettante.

—Ulysses voltou aos lares domesticos; o que vale por um mandado de despejo aos…

—Um capellista, menos attencioso, insiste pelo prompto pagamento de uma avultada conta de enfeites.

—Um dominó leva a sua ingratidão até…

—Já vão numerosas as hypotheses—disse Carlos, enchendo um calix de vinho e procurando conservar ás suas palavras o tom jovial do principio da noite; depois acrescentou:—Este bilhete era para me recordar…

—Ai! recordações!…

Te souviens tu, de même, De nos transports brulants

—Para me recordar que era hoje o dia dos meus annos—concluiu Carlos.

—Devéras!

—É o que eu te digo.

Quan tu m'as dit: «je t'aime!» J'avais alors vingt ans.

—E estavas calado com isso.

—Se o ignorava! Quando o soubesse a tempo, não me teriam aqui.

—Então? Receber-nos-hias em tua casa?

—Tambem não. Costumo consagrar estes dias exclusivamente á vida de familia.

—Oh! oh! sentimentalismo!

—Britannico! Pés no fender, punch na mesa, Times na mão. E de quando em quando um monossyllabo rosnado, ou uma interjeição, que produz na garganta o effeito do acido prussico. Delicioso!

—Deve ser um céo aberto!

—Mas céo inglez, um pouco turvo de nevoeiros.

—E de carvão de pedra.

—Não esquecendo uma paraphrase de algum texto biblico.

—E umas variações vocaes sobre motivos do God save.

Carlos sorriu, respondendo:

—Creiam-me, de vez em quando, tem seus prazeres tambem um dia passado assim.

Eu quero acreditar que, dos circumstantes, muitos, se não todos, sentiam a verdade do que acabára de dizer Carlos, e tambem possuiam faculdades para apreciar estes intimos gosos de familia; mas envergonhavam-se de fazer tão claro, e em plena ceia de carnaval, tal confissão. Que querem? não está em moda trazer o coração á vista. É costume tratar, como ridiculas, todas as manifestações de sentimento; consideram-se como pequenas fraquezas que com milhares de outras, só se devem confiar na discrição das quatro paredes do nosso quarto.

Carlos porém não sabia dissimular; com verdadeira convicção e franca ingenuidade, dissera aquellas palavras, que lhe valeram allusões epigrammaticas ao que elles chamavam «respeitabilissima tendencia para pae de familias».

O bilhete, que motivára esta scena e que parecia haver impressionado devéras Carlos, era da irmã e dizia apenas:

«Charles.

É hoje o dia 19 de fevereiro. Fazes vinte annos. Julguei que seria desnecessario pedir-te para nos dares o prazer de te vermos comnosco. O pae esperava-te. Adeus.

Jenny

A este pequeno bilhete, Carlos respondeu apenas:

«Jenny.

Confiaste de mais na minha memoria; acredita que me esqueci. Não me succederia o mesmo de certo, se, em vez do meu, fosse o dia do anniversario de qualquer de vós. Fazes-me a justiça d'essa supposição, não é verdade? Agora não posso valer-lhe. Obriguei-me a seguir até o fim companheiros tão doudos como eu; e, quando os deixasse, não sei se ainda iria em estado de poder, sem profanação, sentar-me ao teu lado, á santa e patriarchal mesa de familia. Bem vês que nem vale a pena festejar o dia, em que veio ao mundo mais uma cabeça leve. Ámanhã te pedirei perdão… Como me lembrei tambem de fazer annos na segunda-feira de entrudo?!

Teu mau irmão

Charles

A final, após algumas explicações mais, um dos convivas levantou-se e empunhando o calix:

—Meus senhores, proponho que saudemos o anniversario de Carlos—bradou, em tom de brinde.

—Apoiado—responderam todos, imitando-o.

—Carlos—continuou o primeiro—bebo aos teus vinte annos! Contes pelos trezentos e sessenta e cinco dias, que se vão seguir ao de hoje, as paixões que fizeres nascer; e possas tu…

—Não se admittem longos speeches; olá! Bebamos!—disse uma voz.

—É sempre mais expressivo o gole que entra, do que a phrase que sáe—acrescentou outra.

—Até porque, devendo sempre dar-se a primazia ao mais sabio, é o vinho que a merece; pois é elle, n'este momento, o que mais sabe.

—Ora faze-nos o favor de nos poupar, ao menos agora, á difficil digestão dos teus calembourgs.

—Então? Bebamos!—insistiu o côro.

E o brinde foi geral.

Carlos correspondeu constrangido áquella saudação. Parecia-lhe estar vendo Jenny a olhal-o com uma expressão de amigavel desgosto; Jenny, a unica a fazer companhia ao velho negociante, que não pouco devia ter sentido a ausencia do filho. Durante toda a noite já não era para o pobre rapaz dissipar completamente aquella impressão penosa.

Apoderára-se de Carlos Whitestone um pensamento fixo, um quasi remorso de se ver alli; e este effeito, se não lhe distrahia completamente a attenção dos assumptos, que na sala se tratavam, enfraquecia-lhe a intensidade d'ella a ponto de nem já tomar parte nas discussões, nem o occuparem, por muito tempo, as ideias aventadas por os outros.

Á placa da camara escura, não preparada na officina photographica, é comparavel o pensamento, em occasiões assim. Lá se gravam ainda as imagens das cousas exteriores, mas, não as fixando a attenção, dissipam-se rapidamente, removidos os objectos que as motivaram.

D'ahi o tom distrahido e indifferente das raras observações feitas por Carlos no resto da noite, e a impaciencia de algumas respostas, que foi forçado a dar.

Entre muita cousa, que se disse na sala, eis o que elle ouviu, sem escutar; a qualquer d'estes assumptos não costumava Carlos, nas ordinarias disposições de espirito, recusar attenções, nem esquivar a concorrencia propria.

O jornalista, que ficava ao lado d'elle, interpellou-o pela preoccupação em que o viu.

Ora uma observação qualquer da parte d'este jornalista tendia fatalmente a degenerar em longa revista litteraria, que era difficil interromper.

—Que tem você, homem? O tal bilhete produziu um effeito quasi apopletico. Coragem! É negocio de coração? Alguma loura e nevada miss? hein? Oh! as inglezas! A desassombrada candura do seu suavissimo to flirting!—d'aquelle flartar, como, com tanta razão, traduz Garrett, á falta de melhor vocabulo.

E elle ahi principiava:

—Você já leu Garrett, Carlos? Que me diz d'aquellas Viagens, hein?
Oh! é inquestionavelmente o melhor dos seus livros. Prefiro-as ás de
Xavier de Maistre. Que eu não participo da admiração geral por Xavier de
Maistre; é preciso que saiba.

Pausa, durante a qual saboreou um gole de Xerez. Depois de alguma asserção mais arrojada, a pausa era de rigor.

Carlos, já se sabe, não redarguiu. N'este intervallo, pôde ouvir o conviva proximo, que dizia:

—Eu agora o que desejava era ter, pelo menos, trezentos contos de réis; ia d'aqui a Paris; depois…

O jornalista proseguiu:

—Xavier de Maistre inspirou-se de Sterne; é evidente; ficou porém a grande distancia d'elle. A Viagem sentimental, sim. Oh! A Sentimental journey. É um livro delicadamente temperado de uma certa especiaria philosophica, unica que se combina com vantagem á litteratura amena. O humour morreu com Sterne.—Pausa.—A demasiada philosophia gela a inspiração litteraria. Ahi tem Pope. É frio, é árido, é marmoreo.—Pausa.—Os poetas francezes não teem tanta tendencia para se deixarem philosophicar, permitta-me o neologismo. Victor Hugo, ás vezes… Qual prefere você, ó Carlos, Lamartine ou Victor Hugo? Victor Hugo é mais byroniano. E é notavel que fosse Lamartine quem cubiçasse o Childe Harold. Força de contrastes! Aquelle Childe Harold! aquelle Childe Harold! Que me diz você áquelle Childe Harold? É o unico poema verdadeiramente romantico, que se tem escripto até hoje.—Pausa.—Perdôo-lhe o Poor, paltry slaves! com que nos mimoseia. E note que eu não sou admirador cego do Byron.

Nova e maior pausa, durante a qual o orador accendeu um charuto.

Carlos continuava calado.

Percebeu então que n'um grupo vizinho se dizia:

—Quem tem uma bonita parelha é o visconde de Custoias.

—Melhor é a do Manoel Galveias.

E mais adiante:

—Perdão, menino; mas para mim a synthese não é uma mera condensação dos factos analyticos; a synthese precede a analyse, e dá a esta a força que vae buscar ao mundo interior, isto é, verte n'ella o immutavel, os principios evidentes; Kant…

O jornalista continuava:

—Eu não me regulo pela critica convencional. É o meu systema. Não me resolvo a entoar amen á opinião dos povos.—Pausa.—Por exemplo, tenho a sinceridade e a coragem de confessar que não me fascina Dante.

Grande pausa.

—Padre Manoel—dizia n'esta occasião, do fundo da mesa, um dos convivas, apontando para o calix, que levava aos labios—Ecce Deus qui lætificat juventutem meam.

O padre sorriu, mas não disse nada. Comia.

—Porque a final de contas—proseguiu o discursador—você ha de concordar commigo; Dante é um rapsodista quasi como Homero. Que é a Divina Comedia, senão o compendio das crenças religiosas d'aquelle tempo?

Pausa.

—O que ha a respeito da revolução carlista em Pamplona?—ouviu Carlos perguntar.

—Nada mais se sabe por emquanto, apenas que estão implicados alguns sargentos, cabos e paizanos—respondia outra voz.

E continuava a dissertação litteraria:

—O grande merecimento de Dante é o da fórma. Lá essa qualidade tem elle. Logo os primeiros versos:

Nel mezzo del cammin di nostra vite

Acho porém dotes superiores em Boccacio.—Então que quer? É um espirito encarnado em corpo de menor vulto, mas… você já leu o Decamaron? Deve ler. É um livro excepcional. Ha n'elle alguma cousa que vae além do seculo, em que foi escripto. E esse é o signal supremo do genio. As imitações de La Fontaine são pallidas. Desengane-se. La Fontaine, a final, era contemporaneo de Luiz XIV. N'aquella côrte não podia existir a verdadeira inspiração. Abomino a litteratura d'esse tempo. Detesto Luiz XIV e o seu seculo.—Pausa.—Molière salva-se, mas porque? Porque o genero comico tem uma índole especial. Não é a inspiração que o regula; é a analyse, é a reflexão philosophica.

—Eu aposto—berrava um politico—que se os alliados se metterem a dar o assalto a Sebastopol, não fica um só vivo.

—Veremos—questionava outro.—Deixa Omer-Pachá occupar a estrada de Sebastopol a Simphirepol e depois fallaremos. Olha que elle já desembarcou na Eupatoria com quarenta mil homens.

O jornalista continuou:

—Ha um unico homem que admiro, em qualidades comicas, mais do que Molière, é Rabelais. Oh! o Rabelais é o meu livro! Ha tres livros que nunca tiro da minha banca de estudo, nem da minha mala de viagem.

—É a Biblia, os Lusiadas e o Paulo e Virginia. Já sei. É o costume—disse emfim Carlos, levantando-se, já impaciente e procurando subtrahir-se á torrente de perguntas, respostas, apreciações criticas, cotejos e citações, que saíam, em tom categorico, da palavrosa bôca do vizinho.

—Não ha tal—respondeu este, porém, tomando-lhe o braço e levantando-se igualmente.—Esses são a formula dos tres grandes sentimentos da alma—o da religião, da patria e do amor;—bem o sei; mas confesso-lhe, o que, por temperamento, mais me seduz é a pintura social e a analyse das paixões, e só tres homens as fizeram bem: Lesage, Richardson e Rabelais. A creação de Pantagruel e Gargantua é famosa!

—Quem dizes tu que tem uma garganta famosa?—exclamou, voltando-se, um dilettante, por traz de cuja cadeira os dois passavam n'aquelle momento..—Fallas de Ponti? Oh! que mulher! Que vocalisação! Que sentimento!

—Ahi tornas tu com a Ponti—disse um velho rapaz, pronunciado adversario da prima-donna e um da numerosa seita, que passa metade do anno a suspirar pelo theatro lyrico e outra a dizer systematicamente mal das companhias escripturadas.—És capaz de sustentar que vae bem na Norma. Se ouvissem a Rossi-Cassi…

—A Rossi-Cassi! Oh! por quem és, desalmado! Não sacudas reputações cobertas pelo pó do tempo! Pff! Que poeira! Vive da actualidade.

—Fallar na Rossi com esse enthusiasmo de conhecedor equivale a um assento de baptismo feito pelo menos em 1800.

—Nego—bradou embespinhado o velho rapaz.

Parce sepultis—disse o padre.

Lascia la donna in pace—trauteou outro dilettante.

Carlos e o jornalista tinham passado adiante. O jornalista ia já a fallar em librettos de operas, em Felice Romani, em Manzoni, no Ei fu! do Cinque maggio… etc., etc., etc…

Carlos foi retido agora pela mão de um rapaz, junto do qual tinham chegado.

—Aqui está quem nos póde informar—dizia o que o segurava.—Ó Carlos, dize-nos uma cousa: conheces a Laura Viegas?

—Não—respondeu Carlos, distrahido.

—Conheces por força. A filha do Viegas, d'aquelle brazileiro, que comprou a quinta do Pedroso.

—E então?

—Mas conheces? Bem. Que dote achas tu que terá aquella rapariga?

Carlos encolheu os hombros, significando a sua ignorancia e preparava-se já para seguir para diante, quando outro, a quem igualmente preoccupava esta sciencia dos dotes, o segurou por sua vez.

—Não tem que ver; o Viegas não lhe póde dar mais de nove contos.

—Triplique, e não lhe faz favor nenhum—disse, do alto da mesa, o padre, conseguindo passar esta nota por meio de uma briga travada entre os mais disparatados assumptos.

—Ora ahi tens!—disseram os disputantes, aceitando o auxilio, como de valia provada.

O padre limpava tranquillamente os beiços e enchia um calix de malvasia.

—Então diz o padre Manoel que o Viegas…

—O Viegas tem pelo menos…—dizia de lá o padre, elevando o calix entre os olhos e a luz, e revendo-se na limpidez do licor; e antes de completar a phrase, levou-o á bôca e despejou-o de um trago.

Depois continuou:

—Tem pelo menos … pelo menos…

Aqui, enxugou os labios e emfim concluiu:

—Sessenta e sete contos de réis.

—Ora!

Carlos passára para o outro lado da mesa, seguido ainda do jornalista, que lhe ía dizendo:

—É a questão do dia—O dinheiro—A litteratura resente-se…

E d'aqui passou a fallar de Alexandre Dumas, filho, de Emile Augier, de
Ponsard … etc., etc…

—Deixa-te d'isso;—dizia no ponto da sala a que os dois chegavam, um rapaz imberbe e ainda em estudos de preparatorios—a Emilia Victorina é outra qualidade de mulher. Ainda hontem, em casa do barão de Tavares, me encontrei com ella. Trajava de Maria Stuart. Era uma perfeita rainha, uma mulher distincta, esplendida.

—Foi, foi; já não é. Descobriam-se-lhe os primeiros estragos, quando em ti appareciam os primeiros dentes.

—A idade…—dizia outro.

—Ora a idade! a idade! A mulher tem sempre a idade que parece ter.

—Concordo; mas, depois dos quarenta e tantos annos, a mulher parece ter a idade que tem.

—Barbaro! Ó Carlos, que dizes tu?

—Digo que sim—respondeu Carlos, que nem attendera á discussão.

—Está esta creança do Duarte a affirmar que prefere a Emilia Victorina á Marianna Prazeres.

—E prefiro, repito.

—Não sejas impio. Quem não acha admiravel aquella bonita cabeça da
Marianna?

—E a mão? Aquella mão comprida e delgada, onde as veias se desenham em azul; a verdadeira mão artistica, aristocratica.

—No assumpto «mãos», peço licença para citar a primeira…—das provincias do Norte pelo menos, a da Clementina Rialva—lembrou um individuo, a quem a conversa arrancou a uma quasi modorra.

—Apoiado!—entoaram muitas vozes.

—A proposito da Clementina Rialva—exclamou uma chronica viva de boatos do dia—sabem que o Chico da Lousã, sempre a tira por justiça?

—Devéras?!

—Asseverou-m'o hontem o Brito, que, como sabem, é todo d'elle.

—Terrivel catastrophe!

—Deixa lá. O Chico o mais que quer é empregar-se. Ora o Rialva, pae, tem influencia e, feitas as pazes do estylo…

—Sim, as pazes sentimentaes dos quintos actos dos dramas.

—Que influencia tem o Rialva?—perguntou, encolhendo os hombros, um mallogrado aspirante á eleição popular.

—Não. Está feito! O cunhado é empregado na secretaria do reino…

—E o ministerio deve-lhe serviços.

—Estás enganado. Foi moda fallar-se ahi muito nos serviços eleitoraes do Rialva; pois eu digo-vos que elle nem quatro votos arranjou ao Roboredo.

—Como não arranjou? Ó menino! Pois quem levou lá o Roboredo?

—Quem levou lá o Roboredo, foi…

—Eu te digo, Pires; elle teve em tempo alguma influencia no ministerio, mas depois de um certo emprego na alfandega que pediu para o sobrinho, e que não obteve, abandonou a regeneração…

—Que sobrinho? O que nós em Coimbra chamavamos o gigante Polyphemo? Oh que alarve!

—Sempre foi um homem, que teve a habilidade de concluir o curso, e que nunca se pôde conformar com a existencia dos antipodas. Dizia elle que até lhe fazia mal pensar na posição incommoda, em que haviam de viver esses pobres diabos, se existissem…

—E um dia em que elle…

Unisona e estrepitosa gargalhada, partindo de um grupo, que estava já em pé no outro extremo da sala, interrompeu a historia.

Todas as attenções e todos os olhares convergiram para alli.

Eram quatro os rapazes que riam e riam até lhes caírem as lagrimas dos olhos. Junto d'estes, o quinto mostrava, em certo ar constrangido, poucas disposições para expansão igual.

—É impagavel este homem!—dizia um dos que riam.

—Que foi? que foi?—perguntavam os que não faziam parte do grupo, rindo já com anticipação tambem.

O dos ares constrangidos respondeu:

—Não façam caso; são doudos.

—Que foi? digam—insistiam todos na sala.

—É aqui o Claudio Pires, que fez uma das suas descobertas.

—Eu disse…—tentou este interromper.

—Silencio!—bradaram muitos a um tempo.

—O Claudio!—continuou um dos que mais ria—ouvindo aqui o Lourenço fallar com elogio em um systema de comportas que viu no estrangeiro, observou-nos que havia de se dar bem por lá, porisso que nada se lhe accommoda melhor com o estomago, depois de jantar, do que as comportas.

—Comportas de marmellos, ou assim uma cousa, é o que eu disse.

A justificação foi suffocada por um côro geral de gargalhadas.

—O barbaro era capaz de roer os diques dos Paizes Baixos e sacrificar a
Hollanda a uma geral inundação.

—Que terrivel capricho estomacal!

—Vejam do que está dependente a sorte dos imperios! Esta escapou a
Volney!

E os ditos succediam-se, e cruzavam-se os epigrammas, e a confusão subia de ponto com isto.

Até que emfim uma voz dominou o tumulto.

—Reparem que são onze horas e que é tempo de fazermos a nossa entrada solemne nos bailes de mascaras.

Era o velho rapaz que fallava, e erguendo-se da mesa, exclamou, enchendo o calix:

—Ás nossas conquistas d'esta noite!

—Apoiado!—disseram todos, imitando-o.—Ás nossas conquistas.

E seguiu-se tal arrastar de cadeiras, que parecia uma tempestade.

Passados alguns minutos, desembocavam do portal da Aguia os joviaes companheiros, depois de um jantar, que durara oito horas.

Os passos de muitos resentiam-se do emprego d'esta terça parte do dia.

Um dos convivas, que estivera até alli quasi sempre silencioso, tomou então o braço de Carlos e, apoiado n'elle, caminhou, com movimentos mal seguros, por o largo da Batalha, dizendo em tom confidencial e quasi commovido, estas palavras, que ia entremeiando com prolongadas aspirações no tubo do volumoso cachimbo.

—Carlos, tu és meu amigo; talvez o único amigo que eu tenho… Por isso vou confiar de ti a ultima das impressões que eu revelei em verso… Eu gósto de fallar d'isto só com quem me entenda. Os poetas precisam de um coração para ecco. Almas de sensitiva…

Apesar da intimidade, em que ia feita a confidencia, muitos dos que a ouviram acercaram-se d'elle, porque tinha certa nomeada o engenho poetico e improvisador do que fallava assim.

Alguns porém já tinham travado conhecimento com varias mascaras desgarradas, que encontravam caminho do theatro. Dois seguiam cantando a plenos pulmões o duetto da Lucia:

O' sole più rapido a sorger t'apresta

O poeta confidencial principiou a recitar com certo enthusiasmo quasi selvagem, o seguinte hymno ao tabaco, o qual, devemos confessar, não era muito para produzir ecco nos corações:

  No centro dos circulos
  De nuvens de fumo,
  Um deus me presumo,
  Um deus sobre o altar!
  Nem d'outros thuribulos
  Me apraz tanto o incenso,
  Como o d'este immenso
  Cachimbo exemplar!

  Em divans esplendidos,
  Cruzadas as pernas,
  Fuma, horas eternas,
  O ardente Sultão.
  Subindo-lhe ao cerebro
  O magico aroma,
  Esquece Mafoma,
  Houris e Alcorão.

  Longe, oh! longe o opio,
  Que os sonhos deleita
  Da misera seita
  Dos Theriakis!
  Horror ao narcotico
  Que vem das papoulas!
  E ao que arde em caçoulas,
  No altar do Caciz!

  Que a raça gentilica
  Das zonas ardentes
  Consuma as sementes
  Do arabio café.
  Despejem-se as chavenas
  Da atroz beberagem
  Da côr do selvagem
  Da adusta Guiné.

  E a tal folha exotica,
  Delicias da China,
  Por nossa má sina
  Trazida de lá,
  Servida em familia,
  N'um morno hydro-ínfuso?…
  Anathema ao uso
  Das folhas do chá!

  Nem tu, ó alcoolico
  Humor dos lagares,
  Terás meus cantares,
  Meus hymnos terás.
  Embora das amphoras
  Vasado nas taças,
  Aos outros tu faças
  A lingua loquaz.

  Cerveja britannica,
  De furor espuma!
  De cousa nenhuma
  Me podes servir.
  Quando ouço do lupulo
  Gabarem proezas,
  Ás bôcas inglezas,
  Desato-me a rir.

  Nem venha da camphora
  Prégar maravilhas
  O das cigarrilhas
  Famoso inventor.
  Raspail é scismatico
  E eu sou orthodoxo,
  O seu paradoxo
  Não me ha de elle impôr.

  Meu canto é da America,
  Paiz do tabaco,
  Perante o qual Baccho
  Seu sceptro partiu.
  A Europa, Asia, e Africa
  E a terra hoje toda
  Este heroe da moda
  De fumo cobriu.

  Até na Laponia,
  Da gente pequena,
  Se fuma; e no Sena,
  No Tibre e no Pó,
  No Volga e no Vistula,
  No Tejo e no Douro;
  Que immenso thesouro
  Se deve a Nicot!

  Meus áridos labios
  Mais fumo inda aspirem
  Que os parvos suspirem
  Por beijos, aos mil.

  Não quero outros osculos,
  Não quero outra amante.
  Qual mais doudejante
  Que o fumo subtil?

  Tornadas Vesuvios,
  As bôcas fumegam.
  De nuvens que cegam
  Vomitam montões.
  Fumar! Oh delicias!
  Prazer de Nababo!
  E leve o diabo
  Do mundo as paixões!

—Bravo!—disseram quantos o escutavam, devéras enthusiasmados com a musa do recitador.

O proprio Carlos sorriu, menos preoccupado já. Principiava a dissipar-se-lhe a nuvem.

—Quem compra uma senha?!

—S. João! quem quer?

—Doze vintens, meus amos, doze vintens.

Com estes analogos pregões caiu um bando de negociantes de senhas sobre os recem-chegados da Aguia, que trataram de obter bilhetes da melhor maneira possivel. Cêdo entravam no salão do theatro, onde já centenares de pessoas morriam de calor, de asphyxia e de tédio; e eram trilhadas, apertadas, esmagadas quasi, aos encontrões dos mascaras, arrebatados n'um galope vertiginoso.

O leitor, que todos os annos costuma saturar-se de fastio alli tambem, com boa vontade me dispensará de o constranger a repetir mais outra vez a operação, recordando essas horas de insipidez, a que se sujeita, sob pretexto de gosar o carnaval no Porto, e para fazer o que todos fazem;—uma das mais poderosas razões dos nossos actos na vida.

Pedindo venia por tanto tempo o haver demorado, em diversão fóra dos seus habitos, provavelmente mais pacificos—o que fiz só por a necessidade que tinha de mostrar em acção o caracter do nosso heroe e exemplificar o seu systema de vida e sua companhia habitual—concordo em que nos retiremos e vamos a scenas menos agitadas do que estas, que nem consolam, nem divertem.

IV

UM ANJO FAMILIAR

Vae adiantada a manhã do dia seguinte áquelle, em que se passaram as scenas descriptas já. São mais de onze horas, Carlos dorme ainda.

Recolhera-se á hora critica, em que principiam a desmaiar as estrellas no firmamento, a agitarem-se nos ninhos as aves e a soarem na rua os sócos de alguns operarios mais matutinos. Que admira pois que durma, a sonhar talvez a continuacão, favoravel aos seus desejos, de qualquer aventura incompleta do baile da vespera?

A situação da casa de Mr. Richard Whitestone facilitava esta infracção dos direitos do dia, que se fez para vigilias e trabalho, e não para sonhos e repouso.

O leitor, que é do Porto, quasi me dispensa de dizer-lhe que era o bairro de Cedofeita aquelle, onde a familia Whitestone vivia.

Esta nossa cidade—seja dito para aquellas pessoas, que porventura a conhecem menos—divide-se naturalmente em tres regiões, distinctas por physionomias particulares.

A região oriental, a central e a occidental.

O bairro central é o portuense propriamente dito; o oriental, o brazileiro; o occidental, o inglez.

No primeiro predominam a loja, o balcão, o escriptorio, a casa de muitas janellas e de extensas varandas, as crueldades architectonicas, a que se sujeitam velhos casarões com o intento de os modernisar; o saguão, a viella independente das posturas municipaes e á absoluta disposição dos moradores das vizinhanças; a rua estreita, muito vigiada de policias; as ruas, em cujas esquinas estacionam gallegos armados de pau e corda e os cadeirinhas com o capote classico; as ruas ameaçadas de procissões, e as mais propensas a lama; aquellas onde mais se compra e vende; onde mais se trabalha de dia, onde mais se dorme de noite. Ha ainda n'este bairro muitos ares do velho burgo do Bispo, não obstante as apparencias modernas que revestiu.

O bairro oriental é principalmente brazileiro, por mais procurado pelos capitalistas, que recolhem da America. Predominam n'este umas enormes moles graniticas, a que chamam palacetes; o portal largo, as paredes de azulejo—azul, verde ou amarello, lizo ou de relêvo; o telhado de beiral azul; as varandas azues e douradas; os jardins, cuja planta se descreve com termos geometricos e se mede a compasso e escala, adornados de estatuetas de louça, representando as quatro estações; portões de ferro, com o nome do proprietario e a era da edificação em lettras tambem douradas; abunda a casa com janellas gothicas e portas rectangulares, e a de janellas rectangulares e portas gothicas, alguma com ameias, e o mirante chinez. As ruas são mais sujeitas á poeira. Pelas janellas quasi sempre algum capitalista ocioso.

O bairro occidental é o inglez, por ser especialmente ahi o habitat d'estes nossos hospedes. Predomina a casa pintada de verde-escuro, de rôxo-terra, de côr de café, de cinzento, de preto… até de preto!—Architectura despretenciosa, mas elegante; janellas rectangulares; o peitoril mais usado do que a sacada.—Já uma manifestação de um viver mais recolhido, mais intimo, porque o peitoril tem muito menos de indiscreto do que a varanda. Algumas casas ao fundo dos jardins; jardins assombrados de acacias, tilias e magnolias e cortados de avenidas tortuosas; as portas da rua sempre fechadas. Chaminés fumegando quasi constantemente. Persianas e transparentes de fazerem desesperar curiosidades. Ninguem pelas janellas. Nas ruas encontra-se com frequencia uma ingleza de cachos e um bando de creanças de cabellos louros e de babeiros brancos.

Taes são nos seus principaes caracteres as tres regiões do Porto; sendo desnecessario acrescentar que n'esta, como em qualquer outra classificação, nada ha de absoluto. Desenhando o typo especifico, nem estabelecemos demarcações bem definidas, nem recusamos admittir algumas, e até numerosas excepções, hoje mais numerosas ainda do que então, em 1855.

É claro pois que era n'este ultimo bairro que residia o illustre Mr.
Richard, e sua familia.

O nome da rua sou obrigado porém a occultal-o, para evitar indiscrições mal sofridas em terras, onde todos se conhecem.

A casa, essa posso descrevel-a, ainda que o farei com o devido artificio, para a não trahir para com algum leitor mais desoccupado.

Era uma das taes casas escuras, com vidraças de caixilhos brancos, retirada ao fundo de um jardim, nas grades do qual se entrelaçavam tão intimamente as folhas sempre verdes das Australias e os ramos floridos de japoneiras gigantes, que resguardavam de vistas curiosas as avenidas irregularmente traçadas por entre relva digna de uma paizagem ingleza.

A casa tinha um andar apenas, além do mirante. Uma especie de pavilhão, ou corpo lateral, seguia um dos lados do jardim, e vinha abrir tres amplas janellas para a rua, que era das menos frequentadas da cidade.

Era n'este pavilhão o quarto de Carlos.

Toda aquella residencia respirava certo ar de commodidade, certo confortable, esse sympathico adjectivo do vocabulario inglez.

Andavam-lhe por longe as vozes discordantes da industria e do commercio, tão funestas ás encantadas visões dos somnos matinaes.

Tudo parecia fomentar aquelle dormir reparador de Carlos, que ia absorvendo a manhã inteira, pelo menos segundo a maneira de contar o tempo dos poucos, que ainda hoje começam a dar as boas tardes logo depois do meio dia.

Jenny nunca podia adormecer emquanto não ouvisse entrar o irmão, circumstancia que, não obstante, lhe occultava para o não constranger nos seus prazeres, ou de que apenas o fazia conhecedor, quando n'esse constrangimento prevía utilidade.

Tendo por isso notado a hora avançada a que, d'aquella vez, Carlos voltára a casa, deixava-o agora dormir para que restaurasse as forças perdidas pela vigilia da vespera e porventura necessarias para vigilias novas.

Como uma joven mãe, solicita pelo somno do seu primeiro filho, desde manhã cêdo a viam os criados apparecer nas proximidades dos aposentos do irmão, a prevenir e afastar o menor ruido, que podesse despertal-o.

No extenso corredor, que medeiava entre o quarto de Carlos e o resto da casa, passeiava, desde o alvorecer, e com passos levissimos, essa doce figura de mulher, como se fora o anjo da guarda d'aquelle estouvado, que nem suspeitava sob que azas protectoras adormecera.

Ás vezes parava junto da porta de Carlos, e applicando ahi o ouvido attento, parecia espiar o menor rumor que de dentro saísse, a denunciar-lhe o acordar.

Depois afastava-se e dirigia-se lentamente para a sala opposta, onde ía inspeccionar e dirigir os preparativos do lunch de Mr. Richard, cujas horas se aproximavam já.

N'uma d'estas occasiões, em que voltava de dentro do quarto do irmão, encontrou-se com um criado, rapaz ainda, o qual, encostado á ombreira da porta do jardim, parecia tão dominado por pensamentos penosos, que nem lhe deixaram perceber a aproximação de Jenny.

A joven ingleza olhou-o com bondade, e parando junto d'elle perguntou-lhe:

—Como está sua mãe, José?

O rapaz voltou a si e tomando logo uma attitude de respeito, respondeu:

—Hoje ainda não sei, minha senhora; hontem porém deixei-a bem mal.

—Hoje não sabe?!—exclamou Jenny, desviando o olhar para o relogio do corredor, que marcava onze horas e meia—Não sabe, e é perto de meio dia!

—Então, minha senhora? Como o snr. Carlinhos se levanta mais tarde…

—Vá vel-a, José, vá. N'aquelle estado, coitada!… Sabe lá a falta que lhe estará fazendo?

—Mas, se…

—Vá; Carlos não lhe importa. Eu lhe direi. Ande, vá.

—Então muito agradecido, minha senhora,—disse o rapaz, sensibilisado com a bondade da sua joven ama.

Jenny continuou passeiando.

Ao passar junto das escadas do mirante, parou, affirmando-se em alguma cousa, que via n'ellas. Subiu dois ou tres degraus e curvou-se para observar melhor; era uma penna de ave, que o vento transportára do pateo para alli. Jenny não pôde reprimir um pequeno movimento de desagrado.

O escrupuloso amor do asseio, radicado no caracter e nos habitos inglezes, não lhe permittia ver com indifferença aquillo.

—Varreram-se hoje estas escadas, Pedro?—perguntou ella a um criado, com longo avental branco, que n'aquelle momento passava no corredor.

—Varreram, sim, minha senhora—respondeu este.

—Repare—acrescentou Jenny.—A fallar verdade são bem pouco cuidadosos.
Veja esse corrimão cheio de pó.

—É que se tornou a sujar. O vento…

—Seria; mas não tira que se limpe outra vez.

—De certo; eu vou já.

—E olhe—continuou Jenny, indicando as vidraças, que davam para o jardim—passe tambem com um panno humedecido por esses vidros tão baços e dê lustro aos metaes dos fechos.

—Sim, minha senhora; e digo tambem ao hortelão que ensaibre o jardim; depois da chuva que tem caído bem precisa d'isso—lembrou o criado, como todos os d'esta classe, mais zeloso em superintender nas tarefas dos outros do que em cumprir as suas.

Jenny fez um gesto de assentimento e passou para diante. Entrou na sala de jantar.

Lançou o olhar para a mesa, onde, sobre toalha de alvissima bretanha, brilhavam os mais puros crystaes e mais preciosa louça ingleza.

Esteve algum tempo a examinar com attenção as particularidades do serviço, accusando por vezes no gesto algum defeito que percebia.

—Pedro—chamou ella por fim, apoiando a mão no espaldar da cadeira, destinada a Mr. Richard.

O criado, que andava no corredor, acudiu ao chamamento.

—Então onde pôz a mostarda?

—Ai! é verdade.

O criado correu ao aparador a buscar esse indispensavel artigo da cozinha britannica.

—Veja como dobrou esse guardanapo.

O criado apressou-se a corrigir a imperfeição notada.

—Aquelle pão não é o que o pae quer para os lunchs. Bem sabe.

—Tem razão, minha senhora.

O pão foi substituido com celeridade, verdadeiramente ingleza.

—Desvie mais para o centro aquellas flores. Tão perto do fiambre não; chegue o prato mais para cá. Assim. Veja esse trinchador como ficou. Ficou peior agora. Assim. Ponha o Times ahi ao lado. Está bom. Póde ir.

Ficando só, por suas proprias mãos deu ainda um geito particular a tudo, attendendo a pequenas circumstancias muito do agrado de Mr. Richard e de que só ella tinha conhecimento; necessidades pueris, mas necessidades a final, e de que ninguem é isento. Correu as cortinas das janellas, para dar á sala aquellas meias sombras discretas, tanto do gosto inglez, e voltou de novo ao corredor.

Alguns passos dados, veio a ella uma criada, ainda nova, com os olhos baixos e maneiras enleiadas.

—Que tem, Luiza?—perguntou-lhe Jenny.

—Venho dizer adeus a miss Jenny, porque me vou hoje embora.

—Como vae embora! Quem a mandou?

—Ninguem, mas…

—Não está bem?

—Se estou, mas…

—Então?

—A miss Jenny sabe que a minha irmã estava a servir ahi para fóra da cidade. O trabalho era muito, coitada, e ella era tão fraca! Lidou quanto pôde, até que emfim caíu doente. Vae para casa de minha mãe. Mas como ha de tratal-a a pobre de Christo? ella, quasi entrevada e cega? Meus irmãos andam todo o santo dia por fóra, e para pagar á enfermeira?… Quem pensa n'isso? Assim vou eu… e, quando ella se achar melhor, se a miss Jenny me quizer outra vez…

—A Luiza não póde de modo nenhum deixar-nos agora.

—Mas…

—Escute; se quizer tratar de sua irmã, traga-a para ahi.

—Ó minha senhora…

—Prepare-lhe aquelle outro quarto do mirante.

—Seja por amor de Deus…

—Olhe, Luiza—apressou-se a interrompel-a Jenny—vá ver se me aprompta aquelles punhos que eu lhe disse, vá.

—Vou já fazel-o, minha querida senhora—disse a rapariga, a quem palpitava o coração alvoroçado de contentamento.

N'isto ouviram-se gritos agudos, desentoados, pungentes, que fizeram parar Jenny e assombraram-lhe a fronte serena de uma nuvem de tristeza. Vinham do andar superior aquelles gritos.

O criado, vendo-a parada a escutal-os, disse meio compungido, meio a sorrir:

—É a snr.ª Catharina; tem estado desde hontem tão impaciente!

—Pobre Kate!—murmurou Jenny, suspirando—e subiu com ligeireza as escadas, que conduziam ao mirante.

Catharina ou Kate, segundo a familiar abreviatura ingleza, era uma criada octogenaria, que tinha sido ama de Mr. Richard e jazia agora, paraplegica e demente, n'um dos quartos da casa, vigiada com carinho pela familia Whitestone e com impaciencia, a custo reprimida, por os criados e criadas. Em certos dias os accessos da velha eram furiosos e as suas imprecações, em lingua mestiça de portuguez e de inglez, e os seus gritos horripilantes punham em alvoroço toda a casa. Em momentos assim era difficil apazigual-a; tão violentas gesticulações fazia, que poucos eram os braços para impedir-lhe que se maltratasse.

—Cães!—bradava ella agora, n'aquelle estranho imbroglio linguistico, impossivel de reproduzir aqui e que fazia rir as criadas que a seguravam—Cães! Teem-me aqui presa! Querem matar-me á fome! á fome! Mas deixem estar que em vindo Dick… Elle ha de vir, ha de vir! Larguem-me! Dick! Dick!—Era o nome familiar que ella dava ainda a Mr. Richard.—Dick! pois assim queres matar-me? assim queres ver-me morrer? Não tens pena de mim? Dick! Fui eu que te trouxe ao peito, eu… Olha que sou a pobre Kate Simpleton. Dick! Dick! Livra-me d'estes demonios, que me querem afogar. Que mal te faço eu, para me deixares morrer? Larguem-me!

E por um esforço inesperado d'aquelles braços emaciados e fracos, soltou os punhos das mãos, que os seguravam, e levando-os ás faces, feria-se no rosto encarquilhado e contrahido.

N'isto entrou Jenny no quarto.

A velha apoderára-se de uma faca, que por descuido lhe tinham deixado ao alcance da mão.

Jenny fez signal ás criadas para que se afastassem do leito e aproximou-se d'elle.

—Cuidado, miss Jenny!—disse a despenseira, gorda, ruiva e sardenta matrona ingleza, que suava ainda com o esforço que sustentára.

—Cautela, menina!—repetiu a outra criada, musculosa portugueza dos arredores da Maia—Olhe que ella é perigosa n'estas occasiões.

Jenny não as attendeu.

Chegou-se ao leito da velha demente e passou-lhe nos pulsos as mãos, delicadas e debeis.

A velha estremeceu e fitou n'ella o olhar espantado e ameaçador.

—Bons dias, Kate—disse-lhe affavelmente Jenny, sem que no rosto, risonho e sereno, se desenhasse a menor sombra de receio.

Kate ficou a olhal-a por algum tempo d'aquella maneira.

—Então que ruindade é esta hoje, Kate? Nem me conheces?

A velha principiou a socegar; conservava-se porém ainda muda, e não desviava de Jenny os olhos espantados.

—Não me conheces, ama?—continuou esta, em tom mais affectuoso—Kate, então? Já nem queres conhecer a Jenny?

O rosto da octogenaria illuminou-se com um sorriso estranho, selvagem quasi; a cabeça principiou a agitar-se-lhe em movimento affirmativo, que, pouco a pouco, augmentou de velocidade, até á rapidez de certos desordenados gestos proprios d'aquelles estados de espirito; a mão soltou a faca que ainda segurava.

—Eu logo vi que me conhecias—dizia Jenny, afastando-lhe compassivamente os cabellos da fronte enrugada.—E has de estar quieta, não has de?

—Sim, sim—dizia a velha, a rir como creança, e lançava os braços em volta do collo de Jenny, aproximava-a do seio e beijava-a, murmurando com voz chorosa as mais ternas expressões de affecto da lingua ingleza.

—Sim, sim, poor thing; sim—repetia muitas vezes, cingindo-a a cada momento mais a si.

—Ai, miss Jenny, miss Jenny!—dizia a despenseira aterrada.

Jenny fez-lhe signal com o dedo, a impôr-lhe silencio, ou a mandal-a saír.

A demente, tomando a cabeça de Jenny, principiou a balançar-se como a adormecer creanças, e cantava ao mesmo tempo uma melancolica toada, com a qual, havia cincoenta annos, adormecera já o pequeno Dick, actualmente Mr. Richard Whitestone.

Eis o sentido da canção que, em dialecto escossez, ella cantava:

  Dorme, filho, que eu vigio,
  E emquanto dormes, sorri;
  Que a tua porção de lagrimas
  Eu as chorarei por ti.

Jenny não lhe offerecia resistencia. A velha chorava, cantando; a voz ia-se-lhe a enfraquecer gradualmente; por fim tomou-a um d'aquelles profundos somnos, que parece, n'esses estados, participarem já do caracter do somno final, que não vem longe.

Adormeceu entoando em voz já mal percebida:

  A tua porção de lagrimas…
  Eu as chorarei… por ti…

Jenny desprendeu-se-lhe então dos braços, conchegou-lhe a roupa, fechou a janella, e, recommendando silencio aos criados, desceu.

No fim dos degraus encontrou sentado o jardineiro da casa, com o rosto entre as mãos e soluçando.

—Que é isso, Manoel?

O velho ergueu-se com sobresalto.

—Ai, menina Jenny, é que… veja.

E apontou para o degrau da porta do jardim, onde jazia partido um vaso de porcelana com uma preciosa begonia.

—Como foi isto?—perguntou Jenny.

—O pae mandou-me trazer do quarto d'elle para a estufa este vaso e tanto cuidado me recommendou! e vae eu… veja a minha desgraça, logo ao descer a escada escorrego… Valha-me Deus, valha!

—Socegue. Meu pae não lhe ha de ralhar muito…

—Pois sim; mas se elle tanto me recommendou! E era um vaso de tanta estimação! Ai, como me principia hoje o dia, Senhor.

Jenny viu, commovida, a afflicção do velho, que nem tinha coragem para apresentar-se diante de Mr. Richard.

A bondosa rapariga baixou-se, e tomando os dois fragmentos do vaso, onde se continha ainda a terra com a begonia, uniu-os cuidadosamente, e descendo ao quintal, caminhou, segurando-os, em direcção da estufa.

—Onde vae, menina?—dizia o jardineiro admirado.

Jenny não lhe respondeu.

O velho seguiu-a.

Ao aproximar-se da estufa, onde Mr. Richard labutava em cuidados de jardinagem, Jenny disse-lhe, levantando a voz:

—Não quiz confiar a ninguem este vaso, porque… Ai!

Era o vaso, que lhe caía das mãos, e vinha fazer-se pedaços no chão, á entrada da estufa.

—Oh!—disse Mr. Richard, correndo em soccorro da begonia.

—Vêem, vêem!—dizia Jenny, fingindo-se consternada—como Deus me castiga a presumpção!

—É verdade—disse Mr. Richard agachado—um vaso tão bonito! Creança!
Olhem para esta pobre begonia! Como ficou!

—Está vingado, Manoel—continuou Jenny.—Eu a desconfiar de si, e vae…

O velho hortelão não podia fallar; emquanto Mr. Richard examinava os estragos da begonia, elle cobria de beijos a mão de Jenny, que não pôde retiral-a a tempo.

Era meio dia.

—Vamos,—disse Jenny a Mr. Whitestone—perdôe-me a culpa e venha ao seu lunch.

Mr. Richard olhou affectuosamente para a filha, a quem afagou nas faces e, separando-se com um suspiro da begonia, seguiu para casa, murmurando, a sorrir:

—Estouvada! buliçosa!

No degrau da escada não escapou á vista aguda de genuino inglez a terra, que ficára alli, como vestigio do delicto de Manoel. Jenny, que o percebeu, apressou-se a dar uma causa ao facto.

—Fui eu que estive a mudar aquellas raizes, que vieram de Inglaterra…

—Já! Não sei se seria bom. Vamos ver como ficaram.

—Agora não, que são horas do seu lunch.

Mr. Richard não insistiu e dentro de alguns segundos procedia já aos preparativos d'esta refeição matinal.

V

UMA MANHÃ DE MR. RICHARD

Mr. Richard era de uma rigorosa pontualidade nos seus actos de vida domestica. Logo pela manhã, depois de uma leitura de Biblia e de uma revista á preciosa collecção de aves e de insectos de Inglaterra, que possuia, consultando a proposito os livros de Yarrell, Shuckard, Rennie, e de outros especialistas da localidade, passava a gosar no jardim das bellezas matutinas e a exercer a sua paixão florista, cavando, mondando, semeiando os seus bem guarnecidos canteiros. Esta occupação matinal de Mr. Richard, forçoso é confessal-o, não era demasiadamente favoravel ao horto, para com o qual elle tinha aliás as melhores intenções d'este mundo.

Apesar de no seu gabinete se encontrarem constantemente abertos livros de botanica e de horticultura desde a Flora Londinensis de Curtis e as obras completas de Lindley, até ás publicações periodicas das varias sociedades horticolas de Londres, Mr. Richard Whitestone costumava fazer sciencia por sua conta e risco. Despresando os preceitos dos escriptores theoricos, juntamente com a experiencia provada do velho Manoel, ensaiava ás vezes processos, não referidos nos manuaes de jardinagem, com grave detrimento das mimosas e raras plantas, cuja acquisição, por todo o preço, obtinha nos melhores mercados da Europa e principalmente no Covent-Garden market e no Pantheon de Oxford Street.

A natureza tinha sempre muito que fazer ao remediar os resultados da arte do velho commerciante.

Felizmente para o aspecto geral do jardim, Mr. Richard Whitestone era exclusivo nas affeições floristas. A uma unica planta dedicava, em cada época do anno, os seus cuidados horticultores. Por aquelle tempo, eram as begonias as suas predilectas. Ia um destroço n'ellas, occasionado por tanto amor e cuidados, que consternava o velho Manoel, devéras affeiçoado ás plantas.

Mr. Whitestone ensaiára nas pobres uma especie de rega, á qual grande numero succumbiu. Era um liquido artificial de uma composição indigesta, e em que elle procurára reunir todos os elementos, que julgára mais proprios para lhes desenvolver a vegetação.

—Isso queima-lhe as folhinhas!—aventurára-se a dizer Manoel, vendo Mr.
Richard a temperar aquella caldeirada.

—Cala a bôca, tolo. Verás como ficarão viçosas.

Á vista do resultado, Mr. Richard teve porém de abandonar o processo, mas sem se dar por vencido.

—É que estes vasos são pouco porosos… Hei de mandar vir de Londres uns.

Era uma maneira muito de Mr. Richard, esta de sair das situações apertadas. Appellava sempre para Londres, como fiel inglez que era.

N'estes entretenimentos levava pois o tempo até á hora do lunch.

Voltava então a casa. Era uma verdadeira hecatombe de ostras qualquer refeição d'estas. O mercado do Porto a custo póde satisfazer as exigencias dos numerosos malacozoofagos da colonia ingleza, entre os quaes Mr. Whitestone occupava logar eminente. O roast-beef á ingleza, ou o fiambre, a mostarda, as batatas, a bolacha, a cerveja, o queijo de consistencia pastosa forneciam tambem estes lunchs, accommodados á robustez d'aquelle estomago saxonio, descendente dos que ainda no quinto seculo da era christã eram antropophagos—segundo affirma o auctor da Viagem de Jersey a Gran-ville.

Carlos fazia de ordinario companhia ao pae n'este repasto matinal. Mr. Richard gostava de ver o filho junto de si, em tão solemnes momentos, comquanto não trocasse com elle meia duzia de palavras; passados os cumprimentos iniciaes, era costume seu abrir o Times e acompanhar o acto manducatorio da leitura d'este interminavel jornal, interrompendo-a apenas por alguma certa phrase a recommendar ou criticar um ou outro prato.

Porisso a ausencia de Carlos n'esta manhã cavou-lhe uma ruga de descontentamento na fronte, que os ares do jardim haviam expandido, e suspendeu-lhe a aria festiva, mas por elle um tanto estragada, que entre dentes vinha trauteando ao entrar na sala.

Esta musica era a de uma das melodias de Russell, popularissimo compositor e vocalista inglez, a cujas salas, por aquelle tempo, corria em Londres a multidão ávida e enthusiasta, com o fim de o ouvir cantar as proprias composições, que elle mesmo acompanhava ao piano. Nas salas, nos theatros, nas ruas e nos campos, tanto na Inglaterra, como na America do Norte, lê-se em noticias d'essa época, repetiam-se as composições d'este musico notavel, cujo caracter nacional se aperfeiçoara na convivencia da escola italiana, sem perder com isso, diz-se, o cunho da originalidade.

De entre a collecção de melodias, ou cantos populares, publicadas n'aquelle anno em Londres, e procuradas com alvoroço pelos amadores nacionaes espalhados por todo o mundo, havia uma que Mr. Richard sobre todas amava. Era essa a que vinha trauteando ao entrar na sala.

Tanto na indole d'este musico, como na da lettra, que assigna o nome do dr. Mackay, encontrava-se de facto muito do caracteristico genio inglez, para justificar de sobra esta preferencia.

É um canto de animação aos numerosos bandos de emigrados, que de todos os pontos da Gran-Bretanha partem a cruzar os mares, á procura da riqueza, e, sem lagrimas, se despedem do berço natal, que todavia amam com fervor. Se é licito admittir que, n'estas luctas travadas no seio da sociedade actual para conquistar a riqueza, póde ainda incidir um raio d'aquelle esplendor épico, de que se illuminam os trabalhos analogos do mythologico Jason, de certo os inglezes são os heroes d'essas epopeias modernas. Aquelle desprendimento com que se separam do que amam quasi com fanatismo—a patria e a familia—, aquella coragem estoica, que os alenta nos revézes, e a firmeza de animo, que nas victorias lhes evita os somnos perigosos, dão a esses argonautas do commercio um prestigio respeitavel, que certas ridiculas exterioridades não podem suffocar.

Como complemento ao estudo do caracter de Mr. Richard Whitestone daremos aqui a traducção dos versos do dr. Mackay, por ser o conceito d'elles afinado pelo sentir do honrado negociante.

Era esta mesma canção a que os soldados inglezes entoavam na Crimeia, durante a campanha d'aquelle tempo; e ao partirem da patria, emquanto os instrumentos marciaes soltavam aos ventos as notas d'este canto popular, milhares de espectadores cantavam unisonos:

Cheer, boys!, cheer…

que são as primeiras palavras do hymno, que traduziremos assim:

«Eia! rapazes, eia! Longe de nós a ociosa tristeza. Almas varonis, a coragem nos alentará no caminho! A esperança impelle-nos para diante, e mostra-nos um esplendido ámanhã; esqueçamos portanto a escuridade de hoje.

Adeus, pois, ó Inglaterra! Ficam-te ainda muitos filhos, que como nós te amem.

Nós enxugaremos as lagrimas, que ao principio derramamos. Porque havemos de chorar, ao soltarmos as velas em busca da fortuna? Adeus, pois, adeus, Inglaterra! adeus para sempre.

Eia! rapazes, eia! pelo paiz! pelo paiz natal!—Eia, rapazes! a vontade forte imprime vigor ao braço. Eia! a riqueza recompensa o trabalho honrado; eia! eia, rapazes! pela nova terra, pela terra feliz!

Eia! uma favoravel briza sopra para nos impellir livremente sobre o dorso do oceano; o mundo seguir-nos-ha pela esteira que deixarmos; no Occidente brilha a estrella do imperio. Aqui temos fadigas e pouco a recompensal-as; além a abundancia sorrirá ás nossas penas; e nossas serão as planicies e as florestas, e o grão dourado amadurecerá para nós em campos sem limites.»

Foi pois a musica correspondente a esta canção que Mr. Richard interrompeu quando, ao entrar na sala, viu que com um unico talher estava preparada a mesa.

—Carlos está ainda na cama?—disse, voltando-se para Jenny e n'um tom, em que se revelavam ligeiros indicios de mau humor.

Cumpre-me avisar aqui os leitores de que, para dupla commodidade, minha e sua, farei fallar portuguez a Mr. Richard e até segundo as regras de uma grammatica, cuja auctoridade elle nunca reconheceu.

Jenny sentiu a necessidade de advogar a causa do irmão junto de Mr. Richard, que, já bastante indisposto com a ausencia de Carlos no dia do seu anniversario, encarava agora com maus olhos taes excessos de indolencia filial.

Profundo admirador das bellezas d'este mundo sublunar, Mr. Richard olhava o somno como um invejoso, que nos furta algumas horas de prazer n'esta vida, e ao qual, obrigado a fazer ligeiras concessões, tratava sempre como inimigo.

Á interrogação paterna, Jenny respondeu:

—Ainda.

—Ho!—acudiu Mr. Richard, com a sua monosyllabica e guttural interjeição de desgosto, acompanhando-a dos accessorios do costume.

Jenny acrescentou:

—Charles teve de se recolher hontem mais tarde…

—Escolheu bem o dia.

—Não se lembrava…

—Exquisito!

—Creia que se não esqueceria assim, se se tratasse do dia 3 de julho, do anniversario do pae.

Mr. Richard sentou-se e pôz-se a ler o Times.

Jenny sentou-se defronte d'elle, mas arredada da mesa.

—E, como se deitou tarde—proseguiu ella, passado tempo—e eu receei que a falta de descanso lhe podesse fazer mal, ordenei que o não chamassem.

—Então veio muito tarde?

—Julgo que … ás duas horas…—balbuciou Jenny.

O criado, que começára a servir Mr. Richard, pensou fazer um obsequio corrigindo:

—Perdão, miss Jenny, passava já das quatro.

—Ho!—repetiu Mr. Richard.

Jenny olhou para o criado de maneira, que lhe deu a conhecer a inconveniencia da correcção.

—Foi uma promessa, que Charles fez a uns amigos…—disse ella—e só soube o dia que era, quando já não ia a tempo de recusar.

Mr. Richard não precisava de ouvir mais nada, para suspender as suas censuras. Tinha já perdido o habito de discordar da filha. Porisso só respondeu, lendo o Times:

—Sim, sim. Está bom. O mal d'essas extravagancias é d'elle e porisso…

N'isto entrou, aos saltos, na sala um d'esses pequenos cães felpudos, pretos e pardos, verdadeiros Atilas dos ratos e rivaes dos velhos exterminadores d'esta raça perseguida.

O' Butterfly, good morning! How do you do, sir?—exclamou Mr. Richard, saudando o seu cão predilecto, que lhe estendeu a pata como para um shake-hand. Havia n'isto um requerimento a uma fatia de fiambre, o que o inglez não indeferiu.

O pequeno quadrupede sentou-se então com familiaridade na cadeira devoluta ao lado do seu dono, fazendo a devida justiça ás sobras do lunch, que lhe cabiam em partilha.

Jenny erguia-se a cada momento para servir o pae, attendendo a particularidades, futeis de mais para merecerem a observação do criado ou de outrem, que não fosse uma filha.

N'uma d'estas occasiões, Mr. Richard, como se não tivesse perdido ainda o fio da conversa anterior, disse a meia voz:

—É que ha oito dias, que nem apparece no escriptorio e … é feio isso.

Jenny não respondeu.

Era claro que durante todo o tempo, em que tinham guardado silencio, o mesmo pensamento occupára o espirito de ambos.

Receio que os redactores do Times não tivessem d'esta vez conseguido captivar a attenção do seu leitor.

Levantou-se por fim o inglez.

Lavando as mãos e estendendo a vista pelos floridos taboleiros do jardim, murmurava ainda:

—Parece mal. É mau costume.

E saíu da sala para o gabinete.

Jenny acompanhou-o.

—E demais nem tanto custa—dizia elle ainda, pelo caminho.

Enfiando o sobrecasaco e aceitando das mãos de Jenny o chapéo e a bengala, continuou no mesmo tom:

—Dá logar a que se diga … a que se repare…

Calçando as luvas de pellica côr de canna, por uma exquisitice patriotica mandadas vir de Inglaterra directamente, resmoneou ainda:

—Não sei que custe muito estar alguns minutos no escriptorio.

E, passado um momento:

—É feio, é feio.

Parecia emfim disposto a saír, mas Jenny, costumada a observal-o, descobria-lhe certa hesitação, como se se travasse n'elle uma lucta entre duas resoluções encontradas.

—Até logo, Jenny—dizia Mr. Richard, mas sem acabar de partir.

—Não sei o que me esquece!—murmurou depois com manifesta perplexidade.

Jenny correu os olhos pelo quarto.

—O lenço?—perguntou, offerecendo-lhe um que vira sobre o toucador.

—Ah! o lenço, sim … o lenço…

Era evidente que não estava satisfeito ainda.

—Agora … não me falta nada; adeus.

Jenny julgou que d'esta vez sempre saíria.

—Ah! sim—continuava elle, parando novamente.

Jenny fitou-o com olhar interrogativo.

—Não sei o que… Ah!… Então… então Carlos… não se levanta esta manhã?

—Se quer que o chame?

—Não, não… É que…

E depois, interrompendo-se:

—Não é nada.

—Deseja que lhe dê algumas ordens?

—Não… mas… Emfim, o que é tem tempo.

—Mas diga; Charles não deve tardar a erguer-se…

—É que…

E Mr. Richard, com certo modo embaraçado, aproximou-se da secretária, abriu-a e tirou de lá um magnifico relogio e corrente, de construcção ingleza, objecto que expressamente havia encommendado de Londres para presentear o filho no dia dos annos d'elle.

A ausencia de Carlos na vespera impedira-lhe realisar o affectuoso intento.

Agora como que sentia vergonha de ter a sua affeição resistido inteira ao delicto filial, e de não lhe restar já no coração força bastante para reprimir as expansões d'ella.

—Ahi está—dizia Mr. Richard a Jenny, procurando com um tom sacudido tirar ás palavras a menor sombra de affecto.—Se quizeres, pódes dar isso a teu irmão. Para elle é que eu o destinava, se hontem…

Jenny tomou o relogio das mãos do pae, a quem agradeceu com um sorriso de ternura.

Mr. Richard proseguiu:

—Que eu não sei se Carlos o quererá; ainda que é objecto de preço…

—O maior preço é ser uma lembrança sua, senhor.

Mr. Richard resmoneou um monosyllabo inglez e ensaiou um gesto de inveterado scepticismo, que não lhe saíu muito expressivo.

Jenny acrescentou:

—E de mais preço ainda, se das suas proprias mãos o recebesse.

—Queres talvez que vá acordar Carlos, para que me faça o favor de me aceitar as minhas prendas?—perguntou o pae com certo azedume.

—Mas se… logo ao jantar…

—Talvez não nos dê a honra de nos fazer companhia.

—Oh! se Carlos soubesse…

—Nada, nada. Entrega-lh'o tu, se quizeres.

E, dizendo isto, saíu da sala, atravessou o jardim e dentro em pouco tempo transpunha o portão da rua.

O criado, que o encontrou no corredor, ouviu-o murmurar ainda:

—Parece muito mal.

Mas, chegando á rua, já ia apparentemente satisfeito. Caminhava com a rapidez, peculiar ao povo para o qual o tempo é dinheiro, dirigia ao favorito Butterfly phrases de cordial affecto e trauteava por entre dentes o popular—Cheer, boys, cheer!,…

VI

AO DESPERTAR DE CARLOS

Jenny ficou ainda por muito tempo immovel junto da porta, onde se despedira do pae. O olhar corria-lhe pelos objectos que a rodeiavam; o pensamento porém não acompanhava o olhar.

Aquellas feições, em que se podia reconhecer, mysteriosamente, combinada á candura de uma creança não sei que severidade, toda maternal, tomavam agora um ar de preoccupação e melancolia, uma d'essas sombras, que as ideias graves parece projectarem no semblante de quem não aprendeu a dissimulal-as.

Jenny presentia haver chegado uma nova occasião de ser necessario intervir com a sua influencia pacificadora e angelica para dissipar a nuvem, embora tenue, que assomava no horizonte domestico.

Exercera já de um dos lados essa influencia, conseguira adoçar as disposições acerbas de Mr. Richard para com o filho; faltava-lhe porém o resto, estava ainda incompleta a obra; era preciso ensaial-a sobre Carlos tambem.

E Jenny, que bem conhecia o irmão, tinha fé em que o não tentaria debalde.

Rompia porisso um raio de confiança por entre as sombras d'aquella preoccupação.

Foi n'este estado de espirito que chamou André para que fosse acordar o irmão.

André era o mais antigo criado da casa, especie de mordomo jubilado, que servia Mr. Whitestone desde o seu estabelecimento no Porto e trouxera já ao collo os dois filhos do inglez.

—Vá,—disse Jenny—diga a Charles que eu o espero na bibliotheca.

Carlos dormia tranquillamente, quando o velho André lhe entrou no quarto. A respiração profunda, pausada e regular denunciava um somno, livre de pesadelos e de sonhos importunos.

O criado, depois de escutar algum tempo aquelle som, unico que, com o do bater da pendula vizinha, se percebia no quarto, caminhou com precaução, bem escusada a quem vinha para despertar, até uma das janellas, que entreabriu.

Espalhou-se então no aposento uma meia claridade, coada através das longas cortinas que, soltas das abraçadeiras douradas, rojavam pelo tapete.

Pôde então o velho observar a completa desordem que ia n'aquella sala.

Estes raios de luz, menos felizes do que os evocados pelo fiat lux do Genesis, póde dizer-se que vieram ainda illuminar um cháos; pois difficilmente se encontraria mais apropriada expressão para designar o aspecto do aposento, a cuja vista se dissolveu em sorrisos toda a sisuda gravidade, desenhada nos labios e nas feições do mordomo.

A scena, de facto, escapa á mais esmiuçadora descripção.

Parecia que todos os objectos, alli contidos, haviam, durante a noite, entrado em dança phantastica, de tal sorte os surprendera o dia, deslocados da natural situação.

As cadeiras, amontoadas em desordem no meio da sala, haviam usurpado as attribuições dos guarda-roupas; estes, abertos de par em par, patenteavam o interior desordenado e quasi vazio, como após um saque de cidade conquistada.

Nas mesas, nos sofás, em voltaires, no chão, por toda a parte emfim, menos nos logares competentes, via-se casacos, coletes, calças, mantas de differentes côres e feitios. O pavimento achava-se literalmente alastrado de objectos de impossivel enumeração; aqui, umas luvas, calçadas pela primeira vez na vespera e já postas de lado como inuteis; alli, alguns ramos de flores desfolhadas e murchas, cuja posse, procurada talvez com incansavel insistencia, trouxe depressa após si o abandono e o esquecimento; n'outros pontos, charutos meio consumidos, os fragmentos de uma preciosa jarra de porcelana da India, um livro, que commettera o delicto de não excitar a curiosidade, uma cadeira derrubada com o fardo que lhe pesou sobre o espaldar; cartas, collarinhos, retratos, lenços, chicotes. As esporas no logar do relogio; este pousado na beira do marmore do fogão; sobre o leito, um dominó de setim; pendente á cabeceira, o jornal da vespera e um longo cachimbo com tubo de gutta-percha; aos pés polvorinho de caça, o robe-de-chambre de damasco e o teliz da horsa favorita; no velador, um tinteiro de prata, transformado em cinzeiro de charutos; um chapéo pendurado na chave da porta; o candieiro no chão, alguns livros e mappas geographicos quasi debaixo da cama. Um abat-jour de cartão envernizado com figuras extravagantes, representando chins em posições todas chinezamente ridiculas, servia de barrete ao busto de Shakespeare, cujo pescoço estava além d'isso diplomaticamente enfeitado com uma gravata de baile; defronte, Byron, coberto com chapéo de feltro de abas largas, o qual lhe pendia galhardamente sobre a orelha esquerda, parecia fitar com petulancia o seu illustre conterraneo; no outro angulo, era aquella figura séria e bondosa de sir Walter Scott, com não sei que ares de acanhado debaixo do barrete turco, que a guerra da Crimeia pozera então á moda; e finalmente um quarto busto occultava, sob mascara de setim preto, a expressão de candura e de soffredora tristeza do cantor dos combates dos anjos e demonios, o sublime Milton.

Dir-se-hia que estes grandes personagens da litteratura ingleza, obedecendo á voz do carnaval, haviam surgido da sepultura, para virem celebrar tambem entre si, com as suas cabeças pallidas, a mais estranha mascarada.

No meio de toda esta confusão, um enorme terra-nova, de ventas leoninas e corpulencia de touro, languidamente recostado nas molles almofadas do sofá luxuoso, pousava as patas musculosas e pelludas sobre um magnifico album de gravuras, com a mais absoluta irreverencia pela preciosidade, que assim lhe servia de cabeceira e de estrado.

Imagine-se o resto.

André, o methodico André, sorria e abanava a cabeça no meio de tanta desordem. Demorou-se alguns instantes a examinar todo aquelle desarranjo, que bem simulava os vestigios de recente lucta; depois caminhou para o leito, afastou vagarosamente, de má vontade ainda, as cortinas brancas, que o resguardavam, e curvando a cabeça, fitou os olhos na fronte espaçosa e liza de Carlos, sem que se resolvesse a acordal-o de dormir tão tranquillo.

Carlos tinha a physionomia sympathica e expressiva. O melhor do typo saxonio encontrava-se alli. Os cabellos louros, curtos e naturalmente annelados, deixavam-lhe livre a fronte ampla, de bossas proeminentes, e cujos angulos se prolongavam por sobre as temporas; as côres eram do alvo delicado, proprio dos typos septentrionaes; o nariz de perfil, em que não entrava o elemento da mais desvanecida curva; os labios, algum tanto grossos e levemente encrespados n'um sorriso, entre ironico e affectuoso, prompto a caracterisar-se com facilidade igual n'um ou n'outro d'estes sentidos; as palpebras longas, salientes e nas quaes, em curvas azuladas, transparecia uma rede de pequenas veias, e em torno ás orbitas o circulo de côr desmaiadamente rôxa, vestigio de longas noites de agitadas vigilias; taes eram os traços principaes d'aquella physionomia aberta e attrahente, que, em alguns d'elles, offerecia o que quer que era de Byron. Os olhos, n'aquelle momento velados, possuiam fogo correspondente á vivacidade do espirito que os animava; as feições, paralysadas agora pelo somno, gosavam em vigilia de mobilidade extrema e eloquente, outro ponto de analogia com as do poeta inglez, segundo a crença dos seus biographos.

André acabou emfim por o chamar, mas com voz, que parecia de quem desejava não ser escutado.

—Snr. Carlos—disse elle.

Apesar de pronunciada em tom baixo, e quasi a mêdo, bastou esta palavra para o despertar.

Abriu immediatamente os olhos, fitou-os no criado e, estendendo os braços n'aquelle quasi involuntario movimento, com que todas as manhãs despedaçamos as ultimas cadeias com que nos algema o somno, deixou-lh'os cair em volta do pescoço, como para apoiar-se, dizendo ainda com voz mal distincta:

—Bons dias, André. Que horas são?

—Meio dia.

Foi a resposta que obteve, acompanhada de significativo sorriso.

Save us!—exclamou Carlos, imitando a despenseira ingleza, de quem era esta a phrase habitual, e ao mesmo tempo voltou os olhos para o relogio fronteiro, o qual, como em resposta a esta mimica interrogatoria, bateu doze lentas e sonoras pancadas.

—Pois não me parecia—continuou Carlos, ao acabar de contal-as.—Ia até estranhar-te a madrugada, sabes tu? E… e… o pae?

—Saíu já.

—E… e que disse?

André encolheu os hombros, respondendo:

—Nada.

Era a maneira de exprimir que alguma cousa dissera.

Carlos comprehendeu isto mesmo, mas não perguntou mais nada.

—Toca a pôr a pé, que são horas!—dizia o André, occupando-se a levantar alguns dos objectos que via pelo chão.

—Deshumano, cruel, que me recordas?—respondeu-lhe Carlos em tom de recitação tragica.

—Vamos, vamos, preguiçoso.

Carlos abriu ainda outra vez a bôca em gesto quasi sentimental de despedida ao somno que se afastava; afagou com a mão o colossal terra-nova, que veio pousar-lhe a cabeça nos joelhos, e abriu ao acaso o livro que encontrou á mão, um romance de Dickens, do qual leu algumas linhas distrahido.

—Então?—insistiu o André, vendo-o pouco disposto a levantar-se—Fica ahi?

—Vae-me buscar o almoço, homem. Traze-me só café. Parece-me que inda agora terminei aquelle turbulento jantar de hontem.

—Então quer almoçar aqui?

—E julgo que é uma resolução muito louvavel.

—Mas…

—Mas o quê?… Que objecções lhe pões? Falla.

—É que miss Jenny espera-o na bibliotheca.

Carlos de um salto sentou-se na cama.

—Ó pateta! e inda agora me vens com isso? Depressa—chega-me d'ahi esse robe-de-chambre.—Isso não… não vês que é um dominó?… Anda… avia-te… Aquelle lenço… O outro… Bem… Vae… Dize a Jenny que n'um momento estou com ella.

E depois de proceder com a maior celeridade áquelle ligeiro toilette de manhã, Carlos entrou na bibliotheca, onde Jenny o esperava.

Era n'esta bibliotheca que muitas vezes os dois irmãos se entregavam a leituras communs, restos de habitos adquiridos na infancia, quando pelos mesmos livros estudavam, formando um gracioso grupo de cabeças louras, objecto das contemplações apaixonadas e das bençãos cordiaes de Mr. Richard Whitestone.

—Bom dia, Charles—disse Jenny, estendendo-lhe a mão, que elle apertou affectuosamente.

—Fiz-te esperar muito, filha? Perdôa-me; mas aquelle pateta não soube dizer-me logo que tu…

—Desculpa mandar-te acordar, mas…

—Fizeste bem; senão, dormiria até á noite.

—Vieste hontem muito tarde, Charles—disse Jenny, abaixando-se disfarçadamente para acariciar o terra-nova, que se lhe deitára aos pés.

—Pois ouviste-me?

—Ouvi.

—Então acordei-te, Jenny? Não foi por falta de cautela, porém… sempre sou um desastrado!

—Não, não acordaste. Eu não tinha adormecido ainda.

—Não tinhas adormecido! Ás quatro horas! Estiveste doente, Jenny?

—Não, mas…

Carlos olhou para a irmã com uns modos, que procurou tornar severos.

—Querem ver que foi por minha causa?… Então que te tenho eu dito, Jenny? Fico de mal comtigo se tornas a ter essas canceiras por mim, a ponto de…

—Não, não foi por canceira, é que…

—É que tu és uma teimosa e o que merecias…

—Não se trata agora d'isso. Dize-me: vens hoje mais cêdo?

—Hoje! Á terça-feira de entrudo! Ó Jenny! Deixa ao menos passar o carnaval, deixa já agora acabar esta maldita época, e depois… depois verás que hei de ficar muitas noites em casa ao pé de ti e de… Tens-te enfastiado muito aqui só, não tens, pobre pequena?

—Ora, não fallo por mim; mas… é que… isso faz-te doente por certo,
Charles. Esses jantares tão longos… Essas noites tão mal dormidas…

—A mim?! A mim nada me faz mal, filha; lá por isso…

—E depois… Olha, Charles, ha devéras tanto tempo já que te não vemos comnosco, á noite… Não é por mim que fallo, repito; mas o pae… bem sabes, antigos habitos… gosta de nos ver reunidos todos… a certas horas. Coitado! Não digo sempre, mas… ás vezes, de quando em quando, se te não custasse…

—Pois sim, Jenny, pois sim. Deixa voltar o verão, que eu prometto… prometto que, muitas vezes até, hei de fazer o que dizes. Mas as noites de inverno! As noites de inverno, não obstante tudo quanto imaginou aquelle bom Thomson nas suas Estações, são tão longas para se passarem em casa!

—As de estio… depois… já sei… has de achal-as tão formosas que…

—Não—replicou Carlos, sorrindo;—então depois de eu te prometter havia de… Mas, olha cá, Jenny, tu és muito boa, e já sei que me vaes até ralhar por o que eu vou dizer; mas deves concordar em que de facto é pouco agradavel, para um rapaz da minha idade pelo menos, a maneira por que o pae costuma passar aqui as suas soirées. Aquelle eterno Times, aquelle Times sem fim aterra-me, Jenny. A Biblia é um livro que respeito e admiro, mas tremo um pouco das paraphrases dos nossos reverendos lettrados; confesso que tremo. O Tristam Shandy do Sterne já o sei de cor; no Tom Jones de Fielding, quando o não tivesse ainda lido, não haveria já capitulo de que não fosse bem informado, á força de o ouvir citar; e, a fallar verdade, ter de passar uma noite a escutar, mais uma vez, os commentarios a um e outro, com que fatalmente nos flagella o inesgotavel enthusiasmo paterno… a fallar verdade!

—Charles!—disse Jenny, em tom reprehensivo.

—E para cumulo dos males—proseguiu Carlos—estar sempre debaixo da permanente ameaça de uma visita do spleen de Mr. Morlays ou da, não menos para temer, jovialidade de Mr. Brains, Heraclito, e Democrito, inglezes que o sabor nacional tornou mais difficeis de digerir ainda, do que os proprios philosophos gregos. Ahi está o que me faz procurar aquelles logares onde, como diz Thomson: «sussurra um publico, possuido de todos os assumptos, e animado de mixtos discursos».

Jenny não pôde deixar de sorrir ás reflexões do irmão; mas, como para diminuir o effeito d'esta fraqueza, apressou-se a dizer-lhe:

—Pois sim, Charles; mas nem hontem! Hontem, na verdade!… no dia dos teus annos!…

—Então que queres, menina? Não me lembrei de tal, realmente. Acredita.
Reputo tão pouco motivo para festas o facto do meu nascimento!

—Mas os que te estimam formam melhor opinião d'esse dia. Nem lhes queres dar o prazer de t'o affirmarem?

—Daria se… se me lembrasse.

—O pae destinava-te uma surpreza. Coitado! Fez-me pena a maneira por que elle me encarregou, ainda ha pouco, de te entregar este relogio—disse Jenny, passando para as mãos do irmão o presente de Mr. Richard.

—Devéras?! Pois elle… Pobre pae! Vês? E eu que lhe roubei esse prazer! Ai Jenny, esta minha cabeça! Tu inda ao menos sabes o que me vae no coração, não é assim?

—Sei, Charles, sei.

—Mas os outros…

—Todos te fazem justiça, só tu é que…

—Mas repara, Jenny, é um relogio magnifico este; pois não é?! Bem; não ha que ver, snr. Carlos; é preciso que pela sua parte faça alguma cousa tambem. Está dito; não esperarei pelo verão. O carnaval está a expirar; acabando elle … penitenciar-me-hei na quaresma.

—O carnaval! Muito divertidos devem ser esses bailes de mascaras, para assim te attrahirem, Charles!

—Enganas-te, Jenny; são insipidos, mas… Tu não pódes talvez entender isto, que não obstante é exacto… são insipidos, mas irresistiveis ao mesmo tempo.

—Ora!

—Acredita-me. Rara é a noite em que me não encho de tédio, em que não morro de semsaboria no meio d'aquelle infernal tumulto, e então, se de lá me lembro de ti, do socego dos teus serões, do silencio das tuas noites, do teu bonito quarto côr de violeta, pergunto a mim mesmo, Jenny, por que me conservo longe d'alli, o que me afasta das portas d'esse paraizo, voluntariamente perdido por este louco, que nem merece ser teu irmão. Sinto vontade então de soltar uma lamentação como a de Eva por errar n'um mundo, que ao pé do teu, Jenny, é tambem obscuro e selvagem; por estar a respirar n'um ar bem menos puro.—Não é assim que diz o Milton?—E comtudo não tenho nenhum archangelico poder a impôr-me a expatriação. Vês?

—Estás a gracejar, Charles?

—Acredita que não. Outros te poderiam dizer o mesmo se…

—E é isso que te conservou por lá, ainda hoje, até ás quatro horas da manhã?

—Hoje? Ah, mas… perdão, Jenny; tudo tem suas excepções. A noite de hontem, por exemplo, não me deixou desagradavel memoria de si; devo confessal-o.

—Então?

—Então… é que eu tenho que te contar, e se tiveres a paciencia de me escutar e prometteres não me ralhar muito…

—Ah! pois temos culpas?

—Eu sei? Desconfio tanto de mim, que já me não atrevo a affirmar que procedesse bem. Mas tu o dirás.

Jenny sorriu.

—Ouçamos—disse ella, preparando o almoço, que um criado acabava de trazer para a sala.

VI

REVISTA DA NOITE

—Como te disse, Jenny,—principiou Carlos, procedendo áquelle extemporaneo almoço, ás horas a que muita gente encetava a séria e importante tarefa da digestão do jantar—hontem correu-me a noite mais agradavel que de costume.

—Sim? Então que te succedeu?

—Eu te conto. Levantamo-nos da mesa ás onze horas; foi um longo jantar, ao qual os brindes continuados não deixaram nunca desfallecer a animação. Entrei no theatro, um pouco atordoado e um pouco pezaroso; atordoado pelos effeitos excitantes d'aquellas muitas libações e d'aquelle ruído todo…

—E pezaroso…

—Com os remorsos que a tua carta me veio despertar.

—Ah!… remorsos?!…

—Afianço-te que os tive. N'estas disposições de animo parecia-me um inferno o theatro, verdadeiros demonios aquellas insulsas mascaras, gritos de condemnados as desafinações da orchestra…

—E ficaste?

—E fiquei; fiquei, ancioso por que o final do divertimento me auctorisasse a retirada. Já vejo que nem ideia fazes sequer d'estas cousas, que aliás são verdadeiras. Deixa-me continuar.

—Continúa—disse Jenny, folheando ao acaso um livro de gravuras inglezas, que estava na mesa.—Mas é devéras estranha essa maneira de te divertires… martyrisando-te.

—É, confesso que é. Mas outros muitos estão n'este caso; pódes crel-o.

—Bem; vamos adiante—replicou Jenny, fitando os olhos nas lettras douradas da brochura.

Carlos proseguiu:

—Deixei os meus companheiros e sentei-me extenuado; nem queria ver, nem apreciava nada do que em torno de mim succedia. A final, porém, por fazer alguma cousa, reparei nos vizinhos de hombro a hombro, entre quem a sorte me arrojára.

Jenny ergueu para o irmão a vista, com um modo particular.

—Do lado direito, encontrei um homem gordo, que dormia. Como a felicidade alheia não é espectaculo de que nos venha conforto, quando o infortunio nos punge, desviei com despeito os olhos d'esta bemaventurança e voltei-os…

—Para o lado esquerdo?

—Justamente; para o lado esquerdo.

—E… e o que achaste d'esse lado do coração, Charles?—perguntou
Jenny, sorrindo.

—Ai, Jenny! ai, minha pobre irmã! prepara a tua santa paciencia, que aqui venho eu confiar-te mais uma das minhas paixões.

—Eu logo vi; não sei porque foi que t'o estava a ler no rosto. Então é devéras uma paixão?

—Receio que sim.

—Pobre Charles! Que fatalidade!

—Estás a rir?—disse Carlos, sorrindo tambem e estendendo a chavena para a encher outra vez—Ora ouve. Ao meu lado esquerdo, do lado do coração, como dizes, estava um dóminó feminino, fitando-me de uma maneira … como nem te sei dizer… e com uns olhos… mal sabes que bonitos olhos eram aquelles, Jenny!

—Os da mascara?—perguntou Jenny, preparando a chavena.

—Não; os da mascarada, os quaes eu percebia através das aberturas oculares da elegante mascara de setim preto que ella trazia. A cabeça descaía-lhe ligeiramente sobre o hombro em postura de tanta languidez e melancolia, e n'esta posição a sêda da mascara descobria-lhe um canto de labios e um principio de collo tão bem modelados, que eu não pude desviar mais d'alli o olhar extasiado, e… e… Então que quer dizer agora esse teu sorriso, Jenny?

—Estou a admirar a rapidez com que te apaixonas e extasias.

—É que não imaginas que bonito cortôrno o d'aquelle rosto; não imaginas! Eu digo-te uma cousa, Jenny; bem sei quantas illusões andam ligadas á mascara de sêda, que, por descuido estudado, se afasta um pouco, o preciso… o conveniente… Porque na maior parte dos rostos ha pequenos pontos fracos, que a mascara artificiosamente occulta, deixando só apparecer as perfeições. Conheço que é facil illudir-se então o olhar e phantasiar-se falsamente o todo pela parte que se póde ver, conheço…

—Basta, basta, Charles. Pena é que de tão pouco te sirva o tanto que conheces, visto que ainda hontem…

—Hontem não havia, não podia haver illusão. Isso é que não. Aquella cabeça não era d'essas cabeças buliçosas, como folhas de alamo, que morrem por ser adivinhadas. Era uma cabeça scismadora, melancolica, cheia de sentimento, estremecendo a cada belleza que, com pezar seu, não podéra occultar…

—Ah! Que singular cabeça!

—E depois ha certos extremos de perfeição, que a natureza, quando os cria, não os vae desperdiçar assim em qualquer rosto, que nas mais feições destroe d'esses primores parciaes. E n'este caso estava tudo o que eu vira do perfil da minha sympathica vizinha, a quem dirigi a palavra!

—A quem dirigiste a palavra!

—Sim; que achas tu de extraordinario n'isto, para fazeres esse movimento? N'um baile de mascaras prescinde-se das apresentações, ridicula invenção da etiqueta, que eu desconfio ser originaria da nossa diplomatica Inglaterra.

A reflexão historica transformou n'um sorriso o movimento de surpreza de
Jenny.

Carlos continuou:

—E depois vaes ver que tudo quanto lhe disse podia bem ser repetido á mais ingenua lady n'um dos nossos bailes de familia. A final de contas, irmanzita, eu, que arranjei por ahi, não sei bem como, a reputação de atrevido, tenho ainda canduras, de que muitos dos mais timidos se riam já aos quinze annos.

Esta confissão, na qual alguma cousa havia verdadeira, desafiou em Jenny um gesto de duvida, que o mesmo sorriso affectuoso veio porém suavisar.

—Olha que é assim—proseguiu o irmão—e senão… escuta. Como te disse, fallei á minha sympathica vizinha. Perguntei-lhe se estava muito fatigada. Ahi tens; a pergunta é mais do que ingenua, é quasi ridicula. Que lhe censuras tu?

—A essa, de certo que nada. E depois?

—Ella respondeu-me:—«Bem mais fatigada d'isto tudo do que esperava, vindo aqui, snr. Carlos.»

—Como disseste?… Snr. Carlos?!

—É verdade, «snr. Carlos». Sabia o meu nome a mysteriosa incognita; sabia o meu nome! Está de ver que augmentou a minha curiosidade. Continuando a conversar, vim a saber d'ella que tinha vindo alli acompanhada de outros dóminós femininos, cujo humor mais galhofeiro contrastava com aquella melancólica seriedade. Ficamos a conversar um com outro, amigavelmente, innocentemente, assim como eu converso agora comtigo. E… queres que te diga? havia até alguma cousa do teu fallar, maneiras de dizer tuas, na conversa d'aquella rapariga; e era isto talvez o que me impunha certo acatamento para com ella, de que não podia livrar-me. Não imaginas a graça, o bom senso, a viveza, que revelou em todo aquelle dialogo commigo. Mostrou-se muito informada a meu respeito e até a respeito da nossa familia; houve um momento, em que deu mostras de querer fallar de ti; eu porém evitei a conversa…

—Porquê?!—perguntou Jenny, fingindo-se offendida.

—Porque…—balbuciou Carlos embaraçado, e depois, com mais resolução, continuou:—Digo-te a verdade Jenny; respeito-te muito; tenho por o teu nome uma veneração muito grande, para que me fosse agradavel ouvil-o pronunciar n'aquelles logares, e pronunciado de mais a mais por…—não obstante o favoravel conceito que continuo a fazer da desconhecida—mas… por labios que… não sei ainda… que não tenho a certeza se serão dignos d'isso. Passadas duas horas talvez n'este inoffensivo conversar, chegaram, já fartos de alvorotar o salão, alguns dos rapazes, que me tinham acompanhado. Foi-me pouco agradavel, confesso-o, a presença dos meus amigos e sobretudo desagradabilissimos os galanteadores conceitos que dirigiram á minha interlocutora e os gracejos com que a respeito d'ella me mimosearam.

—Coitada!

—Coitada? Ai, se já principias assim a lamental-a … mal vae á minha historia.

—Pois acaso?…

—Escuta. Ao principio, ella não mostrou timidez; sustentou com vivacidade o dialogo, aparando e retribuindo triumphantemente os galanteios, que elles lhe dirigiram. Mas a lucta era desigual; porque emfim os contendores, n'esta esgrima de palavras, tinham de reserva armas, de que ella não podia servir-se. Foi então, ao reconhecer isto, que se mostrou inquieta e ergueu-se para retirar-se; seguimol-a; á porta do salão ella e as companheiras voltaram-se, viram-nos e pareceram atemorisadas. Ella então, a desconhecida, dirigiu-se a mim e pediu-me que lhes servisse de protector, appellou para a minha generosidade e eu…

—Tu protegeste-as, não é verdade?—disse Jenny, juntando as mãos, e fixando no irmão um olhar de sympathia—Protegeste, não protegeste?

—Fui, fui um D. Quixote de donzellas perseguidas. Então que queres tu? Não te dizia eu que havia ainda em mim muito da candura dos quinze annos?

—Não te arrependas, Charles, não te arrependas de ser generoso.

—É certo que consegui afastar os meus associados, o que não foi pequena tarefa; fiz valer porém os direitos de descobridor e prometti-lhes revelar o segredo d'aquella mascara, segredo cuja investigação me competia. Feito isto, segui-as. Ao principio tudo foram effusões de gratidão á minha nobreza de caracter, ao meu coração, aos meus sentimentos, etc., mas, quando nos livramos das ruas mais centraes e passou o perigo da perseguição que temiam, tudo mudou de figura e principiaram já a pedir-me para tambem me retirar. Esta ingratidão offendeu-me e recusei… Então? ahi estás séria outra vez!

—E com razão, Charles. Pois pediam-te e tu… Isso já não é de generoso… Quem sabe os motivos?

—Perdôa-me, Jenny; tu é que não sabes nada d'estas cousas. Pouco generosas eram ellas. E demais, esses pedidos seriam sinceros? A regra é recusal-os sempre; e está certa de que quasi nunca a recusa offende.

—Basta que uma vez…

—Mas repara, Jenny… Valha-me Deus!… Ora vem cá. Tu estás-me ahi a phantasiar uns bailes de mascaras á tua moda. Suppões que todos estes dóminós eram… eu sei lá… outras tantas princezas disfarçadas ou outras Jennys como tu.

—Pois bem, uma vez que o disseste, vamos que era eu?…

Carlos previu o mau terreno, em que se collocava, admittindo a hypothese e porisso interrompeu a irmã, dizendo:

—Mas não supponho, nem posso suppôr, porque… porque ainda ninguem viu uma Jenny n'aquelles logares; e demais ouve, que eu não sou ainda assim merecedor de tantas severidades. Teimei, como disse, em seguil-as; para desistir, exigia conhecel-as; ellas porém recusaram tirar a mascara e sobretudo a tal, que eu mais desejava saber quem era. Ás tres horas e meia estavamos aqui defronte de casa, aonde me tinham trazido manifestamente para me tentarem a entrar. Resisti á tentação e transpuz, sem hesitar, a porta, continuando a seguil-as. As companheiras da minha incognita levavam já o caso a rir e acredito que não poriam grande duvida em darem-se a conhecer; ella porém mostrava-se… ou fingia-se, deveras afflicta; dirigiu-se a mim e de mãos juntas pediu-me que me retirasse.

—E tu?…

—Eu… eu recusei.

—Ó Charles!

—Ouve. Ella insistiu. Disse-me que lhe poderia fazer muito mal se teimasse, e eu insisti…

—Como és ás vezes tão mau!

—Mas se eu não acreditava na sinceridade d'aquelles mêdos, e agora mesmo… Mas a final, a rapariga disse-me com uma voz chorosa e na qual me pareceu descobrir tanta sinceridade: «—Peço-lhe este favor por…» Adivinhas por quem ella me foi pedir?

—Não.

—«Peço-lhe este favor por sua irmã, por Jenny»; sim, por ti, foi por ti que ella me pediu e fêl-o ajuntando as mãos com tal candura, que eu… Precisas de perguntar-me se condescendi d'esta vez?

Jenny estendeu a mão ao irmão.

—Obrigada. A final o bem triumpha sempre no teu coração. Estava certa d'isso.

Carlos baixou a cabeça, como mortificado com estes louvores da irmã. Dir-se-hia que aquellas palavras lhe estavam a fazer sentir remorsos, longe de os desvanecerem.

Depois de uma hesitação de momentos, terminou por dizer, com evidente enleio:

—Olha, Jenny… eu por fim de contas não sou homem para aceitar louvores que não mereço… repugna-me esta hypocrisia; custa-me deveras, mas… sou forçado a dizer-te que… que não sou digno d'esses applausos.

—Porquê?

—Porque… alguma cousa se passou… Eu não disse tudo ainda e… É verdade que… condescendi… sim… mas não tão desinteressadamente como… sim… porque exigi… usurpei… á maneira de compensação…

—O quê?

—Um beijo, ao qual a pobre rapariga não retirou a tempo a face e que a lançou n'uma especie de desespêro, fingido talvez, de certo… mas bem fingido…

Jenny reproduziu o gesto de desgosto.

—Mas não me condemnes, Jenny,—apressou-se Carlos a acrescentar—porque a final eu nem lhe vi o rosto, e estou provavelmente condemnado a nunca descobrir quem ella seja. Além d'isso cumpri religiosamente o promettido, renunciando a acompanhal-a, o que me custou devéras; ainda hoje me preoccupa o olhar, a voz d'aquella rapariga e quasi lamento… Vamos, não continues a olhar-me d'esse modo. Pois recusas perdoar-me, quando eu…

—A fallar verdade, mereces bem pouco que te perdoem. Mas, como cedeste em meu nome, quasi me tiraste o direito de ser severa. O final… o final… na verdade…

—E vês o meu endurecimento na culpa? foi isso de toda a aventura o que me deixou mais agradavel memoria de si…

—Então!—disse Jenny, batendo-lhe com o livro na mão—Olha se queres que retire ainda o perdão que já te dei. Que mais terás a pezar-te na consciencia? aproveita o ensejo d'esta minha disposição benevola.

—Julgo que não tenho mais nada.

—Ahi está uma alma com excellente opinião de si! Visto isso, tens cumprido todos os teus deveres?

—Mas… deveres de que genero?

—Que pergunta! Pois nem sabes os deveres que tens?! Maus indicios!
Deveres de christão, de cidadão, de filho, e de…

—O que ahi vae! o que ahi vae! Por quem és, Jenny! vamos por partes, senão…

—Pois bem, quero fallar-te agora só de uns, que me parece teres descurado um pouco.

—Falla.

—Dize-me: tens ido ao escriptorio?…

—Ai, o escriptorio!—disse Carlos, rindo—Então era d'isso que me querias fallar? Bem longe estava eu de pensar no escriptorio.

—Tens lá ido?

—Eu não.

—Não!

—Ha já bastante tempo que lá não vou, ha… mas… achas isso grande peccado?

—E pergúntal-o? Não é o trabalho um dever?

—O trabalho será.

—Então…

—É que faz sua differença. Tu não sabes como eu trabalho no escriptorio? É outra d'essas imposturas sociaes, que me fariam rir devéras, se não fossem tão fastidiosas. É preciso que saibas, minha boa Jenny, que no escriptorio, o trabalho real, o trabalho util, o trabalho—trabalho, está encarnado na pessoa de Manoel Quentino. Esse sim. É quem alli faz tudo, quem a tudo dá solução, e parece-me que o unico até capaz de o fazer. Exige-se que eu vá lá tambem, não para trabalhar; a minha cooperação o mais que faz é impacientar o bom do homem, distrahir os outros caixeiros e alterar a ordem methodica dos papeis commerciaes. Eu vou só para fingir que entro n'aquellas cousas, para representar de commerciante, embora não penetre em nenhum dos segredos ou transacções, em que anda empenhada a firma. Hoje lembram-se de me communicar o principio de certo negocio, do qual se julgam depois tão dispensados de dizer-me o resultado, como eu de perguntar por elle; ámanhã, dar-me-hão parte da conclusão de outro, cuja existencia eu ignorava ainda. Ora aqui tens como eu sou commerciante. O pae gosta de me ver lá em baixo, como representante da firma Whitestone & C.ª, e mais nada. Chego ao escriptorio, abro a janella, mostro-me ao publico como uma especie de taboleta da casa, dou tres passeios na Praça, converso em tudo, menos no negocio, e venho embora. Se isto é trabalhar…

—Mas, já que te repugna essa ociosidade, porque não trabalhas devéras?

—Porque não é costume. O trabalho é para o guarda-livros. Nós somos uma especie de padrinhos; damos o nome á creança e pagamos-lhes o enxoval, mas não nos encarregamos das fadigas da sua educação. Comtudo, já uma ou outra vez tentei trabalhar, por descargo de consciencia; mas lembrança minha era saudada com uma risada do Manoel Quentino e com o riso mal disfarçado dos outros caixeiros. Pelos modos era disparate certo.

—Pois bem; porisso mesmo que tão pouco se exige de ti é que devias ser mais assiduo.

—Mas é tão monotono! Fazes lá ideia! Odeio aquella rua dos Inglezes,
Jenny; abomino-a.

—E preferes mortificar o pae, que já hoje se queixou das tuas faltas, quando um pequeno sacrificio…

—Não lhe chames pequeno; mas, grande que seja, estou resolvido a fazel-o para te agradar. Ámanhã…

—Ámanhã!—disse Jenny, encolhendo os hombros.

—Pois então? queres que já hoje?…

—E porque não?

—Mas vê que já é tarde…

—Mais tarde será se te demorares.

Carlos emmudeceu.

—E ao mesmo tempo—proseguiu Jenny—aproveitaria a occasião de mandar saber d'aquella pobre viuva ingleza, que ha já tantos dias não apparece. Não tenho querido que lá vá nenhum criado, porque, por mais que lhes recommende, todos gostam de a aperrear, e ella, coitada, afflige-se tanto… Se tu fosses hoje ao escriptorio, ficava-te em caminho…

Jenny sabia que qualquer acção generosa servia a Carlos de estimulo para realisar sacrificios: por isso lhe lembrou esta visita de caridade a uma das muitas pobres, que a familia Whitestone soccorria. Não se enganou a previdencia da irmã.

—Está dito—disse Carlos com modo resoluto.—Vou hoje … trabalhar. Mal sabe Manoel Quentino, que é o grande motor d'aquella machina commercial, o que lhe está imminente. O homem dá ao demo o meu auxilio; mas que t'o agradeça, Jenny. Manda-me o José para me ajudar a vestir; inda hoje me não deu o gosto de o ver, o mariola.

—Ai, o José?—disse Jenny, pousando a mão no hombro do irmão—Olha, Charles, o pobre rapaz tem a mãe tão doente, que eu tive pena d'elle e mandei-o…

—Basta, basta; fizeste bem. Eu não me lembrava d'isso, senão…
Passaremos sem o José, e não passaremos mal.

Jenny abraçou o irmão, e saiu contente da sala.

Em consequencia d'este dialogo, Carlos appareceu na Praça Commercial pelas duas horas da tarde.

VIII

NA PRAÇA

Havia grande actividade na larga rua chamada dos Inglezes, á hora a que o filho de Mr. Richard Whitestone alli chegou.

A vida commercial estava então no seu auge; numerosos grupos occupavam os passeios, o centro da rua e os portaes das velhas casas, que de um e de outro lado limitam. Presta-se a curioso estudo o aspecto da Praça em occasião assim.

Nas posturas, no ademan e em varias outras exterioridades dos differentes individuos, que compõem estes grupos, póde-se encontrar indicios da posição commercial, que elles occupam.

Vêem-se homens de aspecto grave, de movimentos pausados, de palavras medidas e espremidas, escutados, aqui e além, por um auditorio attento, mudo, boquiaberto, cujas cabeças, balançando-se, como as dos bonecos de porcelana, commentam com movimentos de approvação as palavras d'estes oraculos;—são directores de bancos, ou de companhias commerciaes de outra qualquer natureza, bem ou mal reputados as primeiras capacidades da Praça; os accionistas, sempre inquietos pelo seu futuro dos capitaes, meditam cada palavra d'elles, como as de uma mensagem de Napoleão III, na abertura do parlamento francez.

Mais longe, passeiam, com ar de quem está confiado em si, outros que não escutam os primeiros, mas que os saudam com fraternal familiaridade. Não teem tão numeroso cortejo a rodeial-os, porém são igualmente cumprimentados por todas as cabeças da Praça; chamam aos labios das pessoas, a quem se dirigem, um sorriso de affabilidade, e obrigam-lhes o tronco á inclinação expressiva de acatamento, pouco differente da eloquencia persuasiva, a qual, segundo um escriptor humorista, é representada por o angulo de 85º 1/2 com o horizonte.—São estes os negociantes, que não administram capitaes alheios, mas que dispõem de grandes capitaes proprios; de quem menos directamente depende portanto a numerosa turba dos pequenos capitalistas, mas cujos destinos influem, mais ou menos, sobre os de toda a Praça. Além d'isso teem a fazel-os valer o prestigio da riqueza, prestigio que se impõe até aos que nada esperam d'ella.

Observa-se ás vezes um espectaculo, á primeira vista de difficil interpretação. Um homem, humildemente vestido, de aspecto triste, de cabeça baixa e barbas crescidas, é escutado com anciedade na roda dos mais esplendidos membros do corpo commercial; todos parecem esforçar-se por não perder a menor palavra das poucas e sumidas, que o tal homem pronuncia. De vez em quando, elle murmura não sei que phrase e limpa ou faz que limpa uma lagrima, e os outros levantam as mãos ao céo, cruzam os braços, encolhem os hombros, coçam a cabeça, dão uma volta, como a distrahir mágoas, e tornam a acercar-se d'elle, como se fosse o centro de attracção d'aquelles elementos dispersos; e toda a scena se produz de novo. Que quer dizer isto?—É um negociante fallido de pouco e rodeiado de credores, a quem, na sua humiliação, domina e que, de quando em quando apavora, calculando com voz dolente o diminuto dividendo que lhes concederá. Não ha posição social, situação na vida, por mais abjecta e precaria que pareça, que não tenha a sua aristocracia. Os ladrões teem os monarchas conquistadores; os homicidas, os duellistas e guerreiros; a pobre, a opprimida, a miseravel classe dos devedores, tem os grandes negociantes fallidos.

O olhar exercitado em estudar a physiologia da praça talvez possa distinguir do negociante, cujos pagamentos ainda em época alguma foram suspensos, aquelles, cujas remotas fracturas teem sido miraculosamente consolidadas pelos dotes das esposas. Mas a segurança e franqueza de maneiras é tão igual nas duas especies, que á nossa analyse não é possivel a discriminação.

A contrastar com todos estes, vê-se uma turba, igualmente numerosa, agitar-se na Praça, sempre a passo rapido, rapazes pela maior parte com papeis, saccas ou amostras na mão; sáem de um portal para entrar em outro; descem a calçada do Terreiro em direcção á alfandega, ao caes ou a bordo de algum navio mercante; consultam os individuos dos grupos, que já mencionamos, ou aguardam pacientes que elles os descubram e interroguem; dirigem-se-lhes então, tirando o chapéo—attenção nem sempre retribuida—; são estes os segundos caixeiros, os chamados «de fóra», os praticantes de escriptorio, os cobradores, e ainda os despachantes; aquelles, emfim, sobre quem mais pesada se exerce a carga da vida do commercio e que menos proventos auferem d'ella. Distinguem-se pelo grau de velocidade dos passos; a dos despachantes chega a ser incommoda de ver-se.

É digna de nota tambem a posição que tomam mais ordinariamente os dois interlocutores dos curtos dialogos, que a cada momento se travam no meio da rua, entre os representantes das diversas hierarchias sociaes, que se dizem—caixeiro e patrão—. O caixeiro está perfilado, com a mão na aba do chapéo e os olhos fitos nos labios do negociante; este responde-lhe, olhando para o lado e, ás vezes, sorrindo até para um collega, que de longe falla por acênos—distracção perigosa para a clareza da ordem dada, mas cujas consequencias são attribuidas depois a quem a recebeu; os patrões mais accessiveis levam a sua bondade a ponto de puxarem por o botão do casaco, ou de desapertarem o do collete do subordinado, emquante lhe dão instrucções. Quando o caixeiro expõe o resultado da commissão que executou, é-lhe permittido o accionado, mórmente se, na execução d'ella, houve a vencer a renitencia de algum devedor emerito, circumstancia, na qual póde até tentar um epigramma, com a certeza de que agradará. Porém quando são mais modestos os ares do caixeiro e mais impertinentes os do patrão, é quando o segundo está sendo convencido por o outro de um erro, que repugna ao seu amor-proprio confessar.

Ha ainda outra classe, tambem inquieta, apressada, incansavel, porém muito longe das disposições para a reverencia d'esta ultima, em que fallamos. Ha nas suas cortezias rasgadas alguma cousa de artificial, que não illude ninguem, e ás vezes a menos ceremoniatica familiaridade substitue até essas apparencias de respeito. São espantosos de tenacidade a perseguirem em certos casos o commerciante, que em vão tenta fugir-lhes; passam-lhe da esquerda para a direita, da direita para a esquerda; atravessam-se-lhe no caminho; entram com elle nos portaes, sobem com elle as escadas, invadem-lhe o ádito dos escriptorios, transpõem a barreira dos mostradores, encostam-se sem ceremonia ás escrivaninhas, batem-lhe amigavelmente nos hombros, collocam-lhe diante dos olhos garrafas, vidros, massos de fazenda, tabellas de preços, amostras de todos os generos commerciaveis, de que andam constantemente munidos e a custo se resolvem a soltar das mãos a victima, que chegaram a atacar.—São estes os corretores e agentes de casas estrangeiras.

A classe dos primeiros guarda-livros é a porção aristocratica d'esta bureaucracia ou escriptoriocracia commercial. Mostra-se principalmente á janella dos primeiros andares, onde vem, de vez em quando, descansar das fadigas de uma escripturação. De ordinario, conservam a penna entre os dedos, como para significar que é momentanea a pausa—o que nem sempre succede. Mais necessarios, e porisso mais apreciados e attendidos, gosam já de certas franquias e privilegios entre os da sua classe. É-lhes concedido fallarem da janella para a rua com algum collega ou amigo que passa; a alguns até se permitte fumar na varanda um charuto, e ausentarem-se algum tempo do escriptorio sem prévia requisição; na rua, saudam mais desassombrados os patrões e são menos distrahidamente correspondidos por estes.

Acrescente-se agora a progenie ociosa dos grandes capitalistas—commerciantes honorarios, cuja vida commercial se reduz, como a de Carlos, a passeiar na Praça até ás quatro horas da tarde; o brazileiro retirado, distrahindo-se a presenciar, como espectador, o labutar do negocio, á maneira da maritimo velho que se senta á beira-mar a olhar para as ondas, de que vive arredado já; acrescente-se ainda o empregado da alfandega, fumando o cigarro, nas frequentes entreabertas de descanso de suas laboriosas manhãs; os carrejões em disponibilidade, estacionados a cada esquina; os moços de escriptorio encostados ás ombreiras das portas: os meninos dos directores de companhias, confiados á vigilancia de algum empregado subalterno; isto tudo composto de inglezes ruivos, de allemães louros, de brazileiros escuros, de portuguezes de todas as côres, e ter-se-ha imaginado o aspecto da Praça commercial do Porto, á hora em que Carlos Whitestone a atravessou.

Carlos passava pelos differentes grupos alli reunidos como por entre gente, que toda lhe era igualmente familiar.

Como sempre, e como em toda a parte, não se constrangia alli tambem.

O genio que tinha não lhe consentia etiquetas; a sua posição social não deixava que ninguem lhe estranhasse as familiaridades.

Enfiava o braço no de um dos mais sisudos commerciantes, a quem tratava pelo nome de baptismo; de repente, deixava-o, para accender o charuto no cigarro de um segundo caixeiro de escriptorio, que o estava saboreando ás occultas, e alli mesmo pactuava com este qualquer partida de caça. Aproximava-se do grupo de capitalistas e barões, que discutiam acaloradamente o relatório de uma companhia, e cêdo, com suas reflexões e commentarios, fazia degenerar a conversa para assumpto mais frivolo e jovial; abandonava-os, e ia abraçar alguns rapazes, tão laboriosos como elle, que fallavam dos bailes da vespera ou abriam a bôca de enfadados; d'alli dirigia-se a cumprimentar um inglez esgalgado, que passava sobre uma hursa, mais esgalgada ainda, e examinava com olhos de conhecedor as qualidades physicas do quadrupede e os expedientes da arte do cavalleiro; tolhia a passagem do despachante que atravessava a correr a Praça e, apesar de tantas pressas, conseguia fazel-o parar a escutal-o: chamava pelo nome o gallego da esquina, para que lhe viesse sacudir a lama das botas, e, durante esta operação, divertia-se a bater-lhe com o chicote na copa do chapéo. Ás vezes ouvia com apparente attenção um homem, que lhe vinha fallar de certo negocio pendente do escriptorio Whitestone, mas, se a exposição se demorava, o seu interlocutor, quando menos o esperasse, achava-se só, porque Carlos fora, sem ceremonia, conversar com o guarda-livros, seu amigo, que avistára na janella de um primeiro andar. Tão depressa entrava em um dialogo com o mendigo que lhe pedia esmola, como com qualquer rapariga, cujas graças o attrahissem.

N'este genero de occupações se demorou Carlos Whitestone na Praça aquelle dia, procurando ser visto pelo pae,—unico fim que tinha na ideia.

Mr. Richard estava porém na Assembleia Ingleza ou Feitoria, da qual era assiduo frequentador.

Um dos muitos grupos, de que Carlos Whitestone se aproximou, compunha-se das mais graduadas individualidades da praça.

Carlos passou o braço por cima do hombro de um barão, enfiou o outro no de um capitalista brazileiro, e cumprimentou familiarmente um velho inglez, que estava na companhia tambem.

—O que não ha em toda a Europa é uma Bolsa assim como a do Porto—dizia um commerciante bem intencionado, em quem se encarnára a balda, muito portugueza, de pendurar no pinaculo da perfeição alguma cousa boa, que temos ainda por cá.

O inglez estremeceu de pasmo.

What!!—A exclamação saiu-lhe ingleza na violencia da explosão—Na Europa! Que diz, senhor? Vocemecê já viajou?

—Nada, não, senhor; ainda não saí do Porto; mas dizem entendedores…

—Ora então… então… A Bolsa de Londres… o Royal Exchange… não vamos mais longe… o Royal Exchange, o moderno; porque o primeiro Royal Exchange foi do tempo da rainha Elisabeth, construido por um architecto chamado Gresham, em 1500 e tantos; ardeu em 1667. Dois annos depois levantou-se o segundo; este foi construido por Jerman; ainda me lembra bem d'elle; ardeu em 1838. Estava eu em Londres. Em 1842 lançou-se a primeira pedra de novo, que foi segundo o plano de Tite, e dentro em tres annos estava completo.

—E esse quando ardeu?—perguntou Carlos.

O inglez sorriu, sem responder á pergunta, e preparava-se para entrar em circumstanciada descripção da planta baixa e alta do edificio.

Carlos interrompeu-o outra vez:

—O que estou vendo, Mr. Lyons, é que ha em Londres uma terrivel disposição para arderem as bolsas.

O barão e o brazileiro acharam extraordinaria graça ao dito de Carlos, e batendo-lhe no hombro e chamando-lhe «maganão, patusco, cabeça de vento», e outras injurias assim amaveis, não quizeram mais saber do que lhe dizia o inglez, o qual se viu constrangido e engulir o resto da noticia historica e architectonica.

—Mas, senhores!—dizia em outro grupo, para o qual Carlos se dirigiu, o meticuloso possuidor de umas cinco acções de certa companhia, a um dos directores da mesma—Eu não vejo as cousas bem figuradas. Para que hei de estar a dizer o contrario? Negocios com o governo nunca me agradaram. O governo! Quem é o governo? O governo a final não é pessoa que se penhore; porisso voto que…

—Mas repare,—dizia o director com exemplar paciencia—repare que as garantias offerecidas são das mais seguras; o governo compromette-se…

—E adeus, minhas encommendas!—tornou o outro—Ora que é scisma! Mas quem é o governo? Eu não sei quem é o governo! Uns valdevinos, que hoje são tudo e ámanhã são nada… Faz-se o contracto com uns e ámanhã respondem por elle caras novas. Não me entendo com isso. Muito bonitas fallas, sim, senhores; mas como não respondem por o que é seu… E os nossos capitaes…

Estes capitaes eram cem mil réis por junto.

O director pedia resignação a Deus, para não romper com o obstinado.

Carlos representou aqui de enviado celeste. Tomou o braço do accionista dissidente, e, sem lhe attender aos esforços, afastou-o para o passeio, dizendo-lhe a meia voz:

—O senhor já sabe do que se trata hoje na Praça? Vae organisar-se uma companhia monstro.

—Pois sim, sim; mas deixe-me, que tenho que discutir alli com o senhor…

—Ouça—insistia Carlos—é negocio dos accionistas ganharem quarenta por cento, avaliando muito por baixo.

O homem, que era de ingenuidade proverbial entre os collegas, olhou para
Carlos com gesto entre desconfiado e inquiridor.

Depois a phrase «quarenta por cento» era de uma sonoridade!

A physionomia de Carlos tomára uma expressão de sisudez irreprehensivel.

—Pois sim, mas… eu agora…—dizia ainda o homem.

Carlos insistiu:

—Olhe que lhe fallo serio. É uma companhia de capitalistas inglezes, que se vae metter n'isso. Meu pae está encarregado do trabalho da instituição. É porisso que eu…

—Mas que é a final?—perguntou o sujeito com curiosidade.

—Demais espera-se que o governo conceda um subsidio…

O homem teve vontade de perguntar quem era o governo, mas resistiu á tentação d'esta vez.

—Mas qual é o fim?—perguntou em vez d'isso.

—E o commercio do Porto vae resentir-se vantajosamente d'este commettimento—continuava Carlos, devéras embaraçado em organisar a tal companhia.

—Mas o fim da empreza? … o fim?—bradava já o outro.

—O fim? Um grande fim… uma nova via de trafego commercial entre a cidade alta e a baixa.

—Como? Alguma rua…

—Não, senhor; aproveita-se uma riqueza ainda inexplorada, que ha no seio da cidade.

Um enxame de ideias extravagantes esvoaçaram na imaginação do accionista, que já com ardente curiosidade perguntou:

—Mas… que é? como?

—Nada menos do que tornar navegavel o rio da Villa.

O accionista dissidente olhou ainda alguns instantes para Carlos; mas cêdo depois voltou-lhe as costas desapontado e procurou o director, que estivera interpellando; este porém aproveitára o ensejo e desapparecera, esquivando-se a resolver o difficil problema que o outro lhe apontára ao peito—Quem era o governo?

O leitor, que é do Porto, permitta-me que eu explique aos que o não são, que este nome pomposo de rio da Villa é dado a um pequeno riacho de aguas menos limpas que se despenha por uns sitios escusos e não mais asseiados do que ellas, até desaguar furtivamente e como envergonhado, no Douro.

O primeiro individuo de quem, depois d'este, Carlos se avizinhou, era uma potencia commercial, que ouvia amavelmente o pedido que lhe fazia um collega, para elle pedir a outro, para este pedir a terceiro e este terceiro pedir ao ministro para o ministro empregar na alfandega o filho do cunhado do primeiro que pedia. Esta complicação enredada de pedidos—da qual inevitavelmente se havia de resentir o periodo, como resentiu—parecia clarissima para o que estava sendo exorado, pois, sem pedir explicações, e como homem que logo á primeira vista entrou no ámago da questão, não fazia senão prometter applicar todo o seu valimento e ser até importuno para servir o amigo.

Carlos chegou no meio d'essas promessas cordialissimas. É preciso que se diga que Carlos sabia, por acaso, que este capitalista havia recebido, aquella mesma manhã, uma carta de Lisboa, assegurando-lhe que fora provido, no logar disputado, um parente seu. Esta circumstancia fez com que o pouco dissimulado irmão de Jenny ficasse verdadeiramente abysmado diante da impavidez, com que o negociante illudia o amigo. Obedecendo á franqueza pouco de sociedade, que dissemos ser um dos elementos do caracter d'elle, Carlos não pôde emfim reprimir-se, que não dissesse:

—Mas, senhor F., olhe o que promette; esqueceu-se de que o seu parente
C. foi, hontem mesmo, despachado para esse logar?

Seguiu-se uma careta entre os dois interlocutores, que trocaram algumas phrases, em taes casos forçosamente tolas; fartos emfim de mastigar orações sem nexo, separaram-se friamente.

O capitalista ralhou muito com Carlos; porém Carlos ainda ralhou mais com elle pela sua pouca lisura.

E o certo é que ficaram amigos. Ha nos caracteres francos e generosos como o de Carlos, o que quer que seja que dissipa resentimentos ainda aos mais reservados e egoistas.

Resolveu finalmente o irmão de Jenny entrar no escriptorio.

Ao dirigir-se para lá, viu que lhe vinha ao encontro um homem gordo, baixo e córado, que já de longe lhe estava fazendo cortezias.

Parou a escutal-o.

—V. s.ª passou bem?—disse o recem-chegado.

Carlos correspondeu ao cumprimento.

—Ora eu—continuou o homem—já ha pouco fui ao escriptorio de v. s.ª; mas nem v. s.ª nem o senhor seu pae lá estavam. Eu não sei se v. s.ª me conhece.

—Não, senhor—disse Carlos, entretido a olhar para o laço da gravata do seu interlocutor.

—Eu sou o Anastacio Rebello, que fiz aquelle carregamento de laranjas o anno passado…

Carlos fez distrahidamente um gesto affirmativo, e passou a examinar o botão de peito do snr. Anastacio Rebello.

—Ora v. s.ª—proseguiu este—ha de estar certo de que ha dois mezes… um meu correspondente de Braga me pediu… Eu não sei se o pae de v. s.ª lhe disse… Talvez não dissesse…

—Talvez não—disse Carlos, sem o attender…

—Pois o negocio é simples: este meu correspondente… que é também meu compadre… isto é, eu é que sou padrinho do filho d'elle, uma creança de treze annos, que esteve ha mezes em minha casa, a banhos na Foz, por causa de uns humores frios que…

Carlos assobiava já.

—Mas agora quer este meu compadre… Olhe; aqui está a carta que elle me escreveu;—proseguiu o homem, procurando-a no casaco—eu julgo que a trago commigo… Por ella fará ideia.

E principiou a tirar papeis sobre papeis, cartas, escriptos, ordens, letras, contas, recibos… dizendo, ao passo que examinava cada qual por sua vez:

—Não… isto é outra cousa… é a ordem para me pagarem uns cincoenta e tantos mil réis… E já não veem sem tempo… Mas onde diabo puz eu a carta?… Não é isto… Isto é o escripto de arrendamento da minha casa do Forno Velho… Isto é… Que S. Pedro é isto?… Ah! a carta do Maranhão… isto … isto é uma encommenda que me fazem de Bragança… V. s.ª não me sabe dizer onde se vende… a estampa da guerra da Crimeia?

—Eu não, senhor—disse Carlos, dando dois passos para o escriptorio.

—Encommendaram-m'a e eu…—continuava o homem, seguindo-o—Ah! achei; cá está a carta!—exclamou, segurando Carlos pela manga do casaco—Ora quer ler?

—Eu não, senhor—respondeu este, tentando evadir-se.

—«Prezado amigo e compadre—principiou o homem a ler.—«Recebi a sua de 13 e agradeço-lhe as recommendações, que me manda. A comadre…—é a mulher d'elle—recommenda-se á snr.ª D. Maria do Carmo—é a minha mulher…—e o Juca…—é o tal meu afilhado…—manda muitos beijos ao padrinho…

—Que é o senhor—disse Carlos, já impaciente com a massada.

—Justamente—respondeu o homem, sorrindo á perspicacia de Carlos.

—Pois sim, mas eu agora não posso demorar-me—acrescentou Carlos, fazendo outra tentativa para fugir.

—Isto tambem não interessa…—concordou o homem—aqui mais abaixo é que… tal, tal, tal… sim, senhores…—«A festa do Bom Jesus este anno promette ser feita com espavento e eu espero que vocemecê…»—Elles querem que eu…

—Com licença, que estou com pressa.

—Sim; isto tambem não faz ao caso. É aqui abaixo…—«A camara municipal foi reeleita, como sabe; a gente da opposição levou uma derrota que…»

Carlos já não podia mais.

—Ora, meu caro senhor, que tenho eu com isso? Faz favor de me dizer?

—Tem v. s.ª razão… É que eu julgava… Tal, tal, tal—«O seguro não quer pagar os prejuizos do incendio da minha casa da rua do Souto…»—Olhe que tambem isto de seguros…

—Adeus—disse Carlos, rompendo de todo com o snr. Anastacio Rebello.

—Ah! é aqui; agora sim—exclamou este triumphantemente—Cá está…—Aquella encommenda que eu fiz para Inglaterra…

Justamente quando o snr. Anastacio chegava ao ponto desejado, através d'aquelle mar, cheio de baixios, da carta do seu correspondente, Carlos vendo uma galante costureira, que a passos apressados atravessava a rua, deixou-o sem ceremonia para se dirigir a ella.

—Adeus, minha flor.

A rapariga respondeu-lhe:

—Ninguem o conheceu hontem no baile.

—Então esteve lá?

E proseguiu o dialogo, mesmo em presença de toda a sisuda classe commercial, que ao filho de Richard Whitestone tudo desculpava.

Anastacio Rebello dobrou a carta do compadre, e afastou-se escandalisado com o que via.

Outros rapazes aproximaram-se. A rapariga fugiu.

Carlos, depois de alguns instantes tomados por occupações analogas ás que descrevemos, caminhou emfim para o escriptorio.

Era assim que elle tratava negocios na Praça Commercial; vejamos no escriptorio.

IX

NO ESCRIPTORIO

Na velha sala de paredes cinzentas e de soalho carcomido pelo caruncho, onde Mr. Richard Whitestone tinha o escriptorio, havia vinte annos que escrevia, addicionava, subtrahia, multiplicava, e dividia algarismos, e isto tudo resmoneando, cantarolando e tossindo, o snr. Manoel Quentino, personagem da idade do seu seculo, primeiro guarda-livros da casa, e homem de habitos de vida, tão beneficiadores da saude do corpo, como mantenedores da serenidade do espirito.

Manoel Quentino era a alma d'aquelle recinto. Na confusão de papeis, com que lidava, taes como:—correspondencias, facturas, contas correntes, contas de venda, conhecimentos, primeiras, segundas e terceiras vias de letras, minutas de seguros, recibos e mais documentos commerciaes, elle só, habituado desde muitos annos áquillo, podia descobrir uma disposição ordenada.

D'isto mesmo se gabava; o que não se devia taxar de presumpção da sua parte.

Pedissem-lhe de repente a mais insignificante carta, que elle, sem hesitar, iria dar com ella. Era porém seu o segredo d'esta singular classificação, que dera ás cousas; para o proprio Mr. Richard, antolhava-se um dédalo o escriptorio, dédalo onde, ao querer orientar-se, não dispensava nunca o fio conductor das explicações do guarda-livros.

Homem de habitos regulares, a mais não poder ser, invariavelmente ao soarem as sete horas da manhã no verão, e as oito, no inverno, estava Manoel Quentino movendo a chave na porta do escriptorio; e meia hora depois, sentado já á banca, todo entregue ao trabalho da escripta. Ás tres da tarde, no inverno, e ás quatro, no verão, movia segunda vez a chave, mas em sentido contrario; exceptuando uma ou outra occasião extraordinaria, em que a affluencia de serviço o obrigava a serões.

Não era Manoel Quentino d'estes guarda-livros de mão rapida, e de prompto expediente, que n'um momento dão solução a muitos negocios juntos. Elle tudo queria feito com tempo, e, como a cada momento dizia: «para pressas é que não era»; graças, porém, á paciencia e á regularidade de trabalho, que não perdia nunca, insensivelmente o serviço adiantava-se-lhe nas mãos e difficil seria acharem-o atrazado alguma vez.

Observava pontualmente o judicioso preceito: festina lente, e comprovava, com o exemplo, a efficacia d'elle.

Queria Manoel Quentino immensamente áquelle escriptorio, tal qual se achava, assim mesmo desataviado e nú. Por vezes, Mr. Richard, e principalmente Carlos, haviam procurado realisar n'elle certos melhoramentos, que o fizessem mais commodo; tiveram porém de recuar diante das repugnancias do velho guarda-livros, que declarou affligir-se devéras com isso; e, como era elle a parte mais interessada no caso, visto que alli passava grande parte da vida, foi-lhe facil vencer.

Em resultado d'isso, continuava a deliciar-se com aquellas quatro paredes escuras, com o tecto de castanho apainelado, que o tempo ennegrecera, com o chão aspero e picado pelos insectos, com as janellas de construcção antiga, de pequenos caixilhos, e abundantes em fechos, aldrabas e postigos, com a porta de fortaleza, cujos gonzos perros tinham um chiar, que era para Manoel Quentino como o timbre de uma voz de amigo, agradavel ainda quanto pouco harmoniosa, com as escrivaninhas, os mochos, os cabides, o lavatorio e toda a mobilia emfim, feita segundo os velhos modelos dos escriptorios antigos.

Eram aquellas as testimunhas do encanecimento dos seus cabellos; como taes as amava.

Além de Manoel Quentino, compunha-se o pessoal do escriptorio de dois segundos caixeiros e um rapaz de serviço, a todos os quaes o guarda-livros accusava constantemente de mandriões e ao mesmo tempo quasi os impedia de trabalhar, pela excessiva disposição que tinha para fazer tudo por suas mãos.

Momentos antes de Carlos chegar, Manoel Quentino havia dado aos escripturarios duas cartas insignificantes a copiar e entregára-se elle, com todos os seus cinco sentidos, á redacção da correspondencia para Londres.

Dos escripturarios, um, tendo terminado a sua facil tarefa, aproveitou-se da distracção de Manoel Quentino, tirou ás escondidas da escrivaninha um romance de Paulo de Kock e pôz-se a lel-o, com a sôfrega curiosidade dos dezesete annos; o outro occupou o tempo a escrever uma carta de amores á dama dos seus pensamentos, carta em que, por incidente, foram inclusas algumas allusões epigrammaticas ao guarda-livros, a quem entre outras cousas se chamava «Argos desapiedado»; o rapaz de serviço, deixado tambem em disponibilidade, entretinha-se a perseguir as moscas da vidraça ou a traçar com o dedo lettras maiusculas nos vidros, que humedecia com o bafo. Qualquer d'estas tres occupações, sendo pouco ruidosa, mantinha-se no escriptorio um silencio, que agradava a Manoel Quentino.

Elle era o unico a interrompel-o, graças ao singular monologo, que estava de contínuo murmurando á penna com que escrevia.

Dava-se effectivamente em Manoel Quentino uma illusão singular.

Á força de lidar com a penna, á força de tão indissoluvelmente a ver associada ao seu destino, o velho guarda-livros acabára por julgal-a quasi dotada de certa intelligencia e fallava-lhe, animando-a, reprehendendo-a, sopeando-lhe os impetos, como a caprichoso corcel que se pretende guiar.

—Anda, anda,—dizia elle—que ronceira que estás hoje! Olha que não temos esse tempo, que julgas… Então?… Que é isso agora?… Pois já queres mais tinta? Depressa gastaste a que bebeste! Vá, avia-te… Bonito R! Isso não esperava eu de ti!… Adeus! Agora mais este cabello!… E sujas-me todo!… Trapalhona!… Ai, que impertinente que estás!… Adiante! adiante! adiante!… Espera, espera… Lá te esqueceu um D!… E agora?… Agora vê se te mexes entre essas duas lettras… Assim… Ah! … não toques nos SS … assim… Bem… Continúa, mas com tento… Então! Não querem ver que páras outra vez? Ora isto é demais!… Deixa estar que… Oh!

Era um borrão, que lhe caía no meio da pagina e lhe inutilisava a correspondencia quasi no seu termo.

  «Trai la rai, la rai, larai lai
  Trai, larai, larai, larão, lão
  Trai larai lai, larai larai lai,
  Trai lari, lari, lari, larão lão.
  Trai lari, lari, lari, larão lão.»

Isto era a trautear o hymno da Carta, cousa que elle fazia sempre n'estas occasiões criticas. E sem mais alguma observação pôz a folha suja de lado, preparou outra e encetou nova correspondencia, não sem primeiro substituir a penna, dizendo-lhe ao deixal-a:

—Descansa. Hoje não estás nos teus dias. Vem cá tu—dizia para outra.—Vê lá como te portas!

E, olhando fixo para ella:

—Umh! Não tens lá muito boa cara! não… Ora vamos a ver… Vá,
despacha-te, que tenho mais que fazer!… Abre os bicos… abre…
Assim… bem! Sim, senhora!… Bravo… Ninguem havia de dizer que tu…
Caspite!…

E com estas palavras de animação ia applaudindo o bom serviço da penna e quasi lhe parecia vel-a trabalhar com mais ardor, assim estimulada.

Foi n'este momento que um valente encontrão abriu a porta do escriptorio, e o terra-nova, precedendo Carlos Whitestone, invadiu o até alli silencioso e tranquillo recinto, principiando logo por entornar a infusa com agua, collocada a um dos cantos da sala.

Manoel Quentino, que estremecera com a subita apparição do quadrupede, ao ver o estrago que a sua impetuosidade produzira, pôz-se a olhar silencioso para elle e em seguida para a porta, como se contasse com mais alguma invasão, não menos revolucionaria do que esta.

Effectivamente Carlos não se fez esperar.

Good Morning, Mr. Manoel Quentino!—bradou Carlos do limiar, fazendo para o guarda-livros uma reverencia muito rasgada.

Good Morning, Mr. Charles—respondeu Manoel Quentino, encolhendo os hombros e dando ás feições um ar de paciente resignação, uma especie de bondoso mau humor.

Cumpre advertir aqui que Manoel Quentino fallava o inglez, graças á sua longa convivencia com os Her Majesty's subjects residentes na nossa cidade; mas o inglez de Manoel Quentino era, até certo ponto, como o portuguez do patrão. Causava especial sensação ouvil-o pronunciar todas as palavras inglezas n'um tom, inflexão e maneiras, do cunho mais genuinamente portuguez. Podia dizer-se que Manoel Quentino fallava portuguez em inglez.

—Ditosos olhos que o vêem!—disse elle a Carlos; e depois para o rapaz do escriptorio:—Olha aquella agua que se entornou…—e para Carlos outra vez com gesto velhaco:—Então esteve doente?

—Eu? Tenho gosado a mais florescente saude do mundo—respondeu Carlos.

—Como não tem apparecido!—Anda, avia-te rapaz!

—Tenho-lhe talvez feito aqui muita falta?

—Umh!—resmungou Manoel Quentino.

Os caixeiros, que com a entrada de Carlos haviam escondido, um o romance, outro o modelo epistolar, sorriram entre-olhando-se.

—E você como tem passado por aqui sem mim, minha flor?—perguntou Carlos, mexendo-lhe nos papeis—Cada vez mais bonito, cada vez mais contente.

—Adeus, adeus. Não bula ahi, homem! Que é o que quer? que é o que quer?

—Lumes. Não ha lumes n'esta casa? que diabo!…

—Eu logo vi. Não pensa senão em fumar. Espere lá, espere lá. Não me desarranje isso. Eu dou-lhe lumes, eu dou. Ora ahi tem. E deixe-me.

Carlos accendeu um charuto e offereceu outro a cada um dos caixeiros, que os afagaram com olhares ávidos, mas sem se atreverem a aceital-os.

—Fumem—insistia Carlos.

Manoel Quentino levantou os olhos e fixou-os nos dois rapazes.

Sob a influencia d'aquelle olhar, hesitaram ainda.

Carlos obrigou-os porém a aceitar, offereceu-lhes lume para accenderem, e emquanto o faziam, voltou-se para Manoel Quentino, e vendo a cara de contrariado com que ficava, aproximou-se d'elle:

—Que tem você, Manoel Quentino? Deixe fumar os rapazes. Não seja fossil.

—Se o pae vier por ahi, cuida que ha de gostar de… E demais a mais, é distrahil-os do serviço…

—Que serviço? Olhem o grande serviço que elles faziam!—Rapaz—acrescentou logo depois, dirigindo-se ao perseguidor das moscas da janella—vae á rua de Santo Antonio saber se aquelle meu casaco está prompto… e chega de caminho ao theatro de S. João, pergunta pelo bilheteiro e dize-lhe que vaes de meu mando tomar seis cadeiras para a recita de quinta-feira… entendes? Seis cadeiras; depois…

—E faz favor de me dizer quando é que elle ha de levar a correspondencia ao correio?—perguntou com mau humor Manoel Quentino.

—Eu sei lá d'isso? Anda, vae…

—Mas…

—Ora! mande ao correio quem quizer… Avia-te. Salta.

O rapaz saíu a correr.

Manoel Quentino encolheu os hombros.

Carlos dirigiu-se á janella, que abriu de par em par. Uma rajada de vento, entrando na sala, fez esvoaçar toda a papelada da banca de Manoel Quentino.

—Lá vae! lá vae! lá vae tudo com os diabos!—exclamou o guarda-livros—Adeus, minha vida; estou arranjado!

Carlos desatou a rir.

—Isso; ria-se, que tem muita graça! Então os senhores que fazem?—perguntou, descarregando as iras sobre os caixeiros—Ponham-se á palestra e a fumar, e eu que trabalhe; hein?

—Deixe estar que eu apanho isso—disse Carlos, continuando a rir.

E todos quatro principiaram a apanhar os papeis, dispersos por a sala.

—Vão lá saber agora…—proseguiu Manoel Quentino—vão lá saber agora a ordem em que eu tinha tudo isto! Olhem… olhem… Ficou bonita a carta do correspondente de Liverpool! Sim, senhores! Olhem para estas contas da gerencia da capella ingleza! Tambem ficaram asseiadas! Pois estas apolices… E o maldito cão a afocinhar-me na agua aquella minuta!… Passa fóra! Eh!… passa fóra, tratante.

E voltando á escrivaninha pôz-se a coordenar outra vez os papeis.

—Ó Manoel Quentino—perguntou-lhe Carlos já da janella—quem é aquella rapariga que está aqui defronte no terceiro andar? Aquella cara é nova para mim.

—Eu sei lá d'isso, homem? Tomára que me deixassem.

—Quem é, ó Paulo, você ha de saber. Um rapaz da sua idade…—disse
Carlos, dirigindo-se familiarmente a um dos caixeiros.

Era este um rapaz ainda imberbe, pallido, com certo fundo de melancolia, transparecendo por debaixo do jovial sorriso, proprio dos seus, ainda incompletos, dezoito annos.

Á pergunta de Carlos, aproximou-se da janella.

—Não sei—disse depois de ver a pessoa designada—não a conheço. O
Pires ha de saber.

Pires era o nome do outro caixeiro, que por sua vez foi chamado.

E todos tres, em resultado d'esta conferencia, ficaram encostados á varanda, praticando em varios assumptos de igual momento.

Manoel Quentino, que já tinha posto por ordem os papeis, olhava de quando em quando para a janella e principiava:

Trai la rai…

trauteava o hymno da Carta.

O vento, depois de prejudicar a papelada do guarda-livros, dirigiu os seus furores contra a pituitaria do mesmo; Manoel Quentino começou a espirrar.

—Deus me salve!—dizia elle de cada vez.

Á quinta não teve mão em si, que não dissesse a Carlos:

—O' snr. Carlos! Ora a fallar a verdade, homem! Isso sempre é um gosto exquisito! Ahi posto á janella com este vento dos diabos! Eu já estou…—e espirrava outra vez—já estou constipado.

—N'esse caso recolho-me—disse Carlos, fechando a janella e vindo debruçar-se na escrivaninha de Manoel Quentino, o qual começára de novo a correspondencia.

—Sim, senhor, snr. Manoel Quentino;—dizia Carlos expellindo uma
baforada de fumo, á qual o velho fez caretas—você será parente de
Quentino Durward, de que falla o Walter Scott? Você sabe quem era o
Walter Scott, Manoel Quentino?

—Eu não, senhor…—respondeu o velho, continuando a escrever.

—Walter Scott era um romancista. Sabe o que é ser romancista? Diga-me, já leu algum romance?

—Não, senhor, que tenho mais que fazer.

—Pois deixe estar que lhe hei de emprestar romances para ler…

—Muito agradecido.

—O primeiro ha de ser O Cavalheiro de

Os dois caixeiros fungaram do outro lado da sala.

De Harmental—concluiu maliciosamente Carlos—e acrescentou:—Não sei de que se riem estes senhores.

—É porque teem a vida muito canceirosa—respondeu Manoel Quentino.

—Depois hei de emprestar-lhe a Mademoiselle

O mesmo effeito nos caixeiros.

Mademoiselle de La Seiglière—delicada concepção de Jules Sandeau—concluiu Carlos, olhando-os com gravidade comica.

—Adeus, já me fez enganar!—exclamou Manoel Quentino—Por sua causa escrevi agora—cavalheiro—em vez de—Companhia.

—Isso emenda-se.

—Ha de emendar boas cousas.

—Emenda, sim. Olhe d'esse a faz-se bem um o; depois o m fórma-se do v e do…

—O remedio é outro…

E com exemplar paciencia começou nova carta.

—Oh! com os diabos! Então vae outra vez principiar?

—É o que o senhor faz.

—O caso é que você tem bonita lettra! Invejo-lh'a. Se me ensinasse a escrever assim!

—Não precisa.

E, para fixar a attenção, ia dizendo em voz alta o que escrevia:

—Recebi o seu favor de 14 do corrente e em resposta…

—Não preciso? Preciso tal—proseguiu Carlos—rapariga a quem eu escreva…

—Do nosso ajuste—dizia Manoel Quentino, e fallando para Carlos alternadamente:—Elle ahi vem com as raparigas; o que eu lhe queria eram os cuidados!…—O preço do genero…

—Então parece-lhe indigno o assumpto? Ora diga, Manoel Quentino, diga se, quando era rapaz, não massava tambem com o tal assumpto os velhos do seu tempo.

—E a competente commissão.—Não que eu, quando era rapaz, já tinha mais em que cuidar…—Em vista pois das ordens recebidas…—Cuida que me levantava ao meio dia para pensar em moças, e que me deitava lá por altas horas, inda por causa d'ellas?

—Então que fazia você?—insistia Carlos, tomando a penna e desenhando uma figura na margem do jornal do dia.

—Com lucros provaveis…—O que eu fazia bem o sei; ainda me não esqueceram as madrugadas dos meus vinte annos…

—Ah! madrugadas!… Bem entendo!…

—Para trabalhar, para trabalhar! Está muito enganado, se cuida que todos tiveram a sua vida. Bom era isso!—A fallencia da casa Rodrigues e…

—Grande vida a minha!—continuava Carlos—Ha lá nada mais semsabor?
Veja que precioso tempo perdido n'esta soturna sala.

E ao dizer isto ia, insensivelmente, sem reparar no que fazia, aproximando a penna da borda da carta, que Manoel Quentino escrevia, e quasi principiava a desenhar algum ornato n'ella.

—Oh! oh!—exclamou o velho, arredando-lhe a mão—Que ia fazer? Se lhe parece, suje-me agora a carta.

Carlos ergueu-se rindo e pôz-se a passeiar na sala.

—O pae inda não veio hoje aqui?

—Ha que tempos!

—E não volta?

—Ha de voltar, se Deus quizer.—É preciso fechar isto mais cêdo hoje—continuou Carlos.—Estes senhores precisam de gosar o carnaval.

—Bom carnaval é o d'este mundo!

—Que horas são?

—Duas e vinte minutos—Respondeu Manoel Quentino, sem olhar para o relogio e não errando meio minuto.

—Se meu pae…—principiava a dizer Carlos, mas foi interrompido pelo ranger das botas de Mr. Richard, que se ouviu nas escadas.

Restabeleceu-se a ordem no escriptorio.

Os caixeiros pozeram-se a escrever, e o proprio Carlos pegou em uma folha ingleza e fez que a examinava na secção commercial.

Manoel Quentino curvou-se ainda mais sobre a banca e moveu com maior agilidade a penna sobre o papel paquete, em que estava escrevendo.

Mr. Richard entrou no escriptorio com o rosto jovial e assobiando uma das suas predilectas toadas inglezas; mas, graças ao duro ouvido musical de que era dotado o velho gentleman, tão transtornada lhe saía ella, que o proprio auctor lhe custaria de certo a reconhecel-a.

O Butterfly, com a leveza, que justificava o nome de lepidoptero, que lhe tinham posto, atravessou a sala e foi cumprimentar o seu companheiro terra-nova, o qual, sentado, com a lingua de fóra, o recebeu com benevola, mas sisuda, magestade.

Todos se ergueram á entrada de Mr. Richard, em cujo rosto um olhar, exercitado em estudal-o, facilmente descobriria certa expressão de contentamento, despertada pela vista do filho, o qual, elle, n'aquelle dia, estava bem longe de esperar alli.

O plano de Jenny sortira bom effeito.

Mr. Richard dirigiu-se immediatamente ao seu gabinete particular. Carlos foi ter com elle, para lhe pedir a benção e ao mesmo tempo aproveitou a occasião para lhe agradecer o relogio e para desculpar-se de não ter assistido na vespera ao jantar de familia.

Mr. Richard Whitestone já não tinha cousa alguma no coração contra o filho. A vinda d'este ao escriptorio fora bastante para dissipar a menor sombra de resentimento.

—Não teve duvida—repetia elle muitas vezes, interrompendo a longa justificação de Carlos—não teve duvida, não teve duvida… Pois… esse relogio é de um fabricante muito acreditado, e, segundo o homem affirma aos compradores, não fará differença de meio minuto em cinco annos! Talvez seja confiança de mais!—acrescentou, rindo com vontade.

—Ou cegueira paternal—observou Carlos, rindo como elle.

—Sim, sim, ou isso, cegueira paternal, sim—concordou Mr. Richard, rindo cada vez mais e experimentando elle mesmo tambem os effeitos da tal cegueira.

E em seguida destapou duas garrafas de cerveja de Bass, tirou do armario uma copiosa provisão de bolacha e, na companhia do filho, celebrou a sua terceira refeição d'aquella manhã.

Passados minutos, voltaram ambos ao escriptorio nas melhores disposições d'este mundo.

Se Jenny os podesse ver então, como exultaria de contentamento!

Mr. Richard encaminhou-se para a escrivaninha de Manoel Quentino, Carlos sentou-se na escrivaninha opposta, e fingiu examinar os livros commerciaes.

Mr. Richard dirigiu varias perguntas ao guarda-livros, sobre alguns negocios pendentes, ás quaes Manoel Quentino deu respostas laconicas, mas peremptorias.

O inglez consultou depois algumas cartas, entregou outras ao guarda-livros, tomou notas, expediu ordens, examinou a escripturação, abriu o copiador e, de repente, voltando as costas a Manoel Quentino e dirigindo-se a Carlos:

—Já leste a carta do nosso correspondente em Londres?—perguntou com affabilidade.

—Ainda não, senhor.

—Manoel Quentino! Então porque lh'a não mostrou?!—disse o pae, voltando-se outra vez para o guarda-livros; e depois acrescentou de novo para Carlos:—Ha noticias importantes e que fazem prever a probabilidade de ser este um anno de vantajosas transacções, se por acaso…

—É um homem diligente, Mr. Leeson—notou Carlos, querendo dizer alguma cousa, mas com tanta infelicidade, que trocou o nome do correspondente de Londres pelo do de Liverpool.

—Ho!—disse logo Mr. Richard, mortificado—Leeson!… de Londres!
Repara!… de Londres!?

Carlos conheceu que tinha sido inconveniente a observação, mas o peior era que não sabia corrigil-a, pois que de todo lhe esquecera o nome do tal correspondente.

—Ai, de Londres…—dizia elle embaraçado.—Eu julguei que… sim, de
Londres; é que me pareceu…

Mr. Richard esperava ouvir o verdadeiro nome, pronunciado por o filho; mas não succedeu assim.

Manoel Quentino, que tinha bem fundados motivos—motivos, que o leitor deve prever quaes fossem—para não julgar de instante necessidade pôr Carlos Whitestone ao corrente das noticias commerciaes, abriu comtudo a escrivaninha e, procurando a carta em questão, levou-a a Carlos, não podendo disfarçar um sorriso, ao qual este correspondeu com ligeiro movimento de hombros.

Carlos, em vez de citar o nome do correspondente, pôz-se portanto a examinar a carta.

—Falle-lhe n'aquelle negocio da aguardente—disse Manoel Quentino quasi ao ouvido de Carlos, antes de se retirar outra vez para a banca onde escrevia.

Mr. Richard pozera-se a passeiar na sala, esfregando as mãos, e de quando em quando parava junto da vidraça, onde tocava um ligeiro rufo. Não estava ainda de todo restabelecido da má impressão que lhe causára o haver encontrado o filho tão pouco sciente do nome dos correspondentes da casa.

Carlos ficou a olhar para a carta commercial, mas julgo que nem a lia.
Estava pensando como havia de aproveitar o conselho, pouco explicito, de
Manoel Quentino e fallar ao pae no tal problematico negocio da
aguardente, para elle inteiramente mysterioso.

Temia, referindo-se-lhe aventuradamente, aggravar as difficuldades da sua posição, longe de diminuil-as.

Manoel Quentino continuava a escrever, lançando para Carlos, ao molhar da penna, um sorriso malicioso.

Este pousou a carta.

O pae olhava-o obliquamente, como a esperar alguma reflexão.

Carlos fitou ainda Manoel Quentino, o qual lhe fez um imperceptivel signal.

Carlos aventurou-se:

—Emquanto ao negocio da aguardente…—disse elle com certa hesitação—nada…

O effeito foi maravilhoso!

Mr. Whitestone voltou-se com viveza e, sem disfarçar a intima satisfação, que lhe causava ver o filho tão bem informado, exclamou:

—Ah! tambem reparaste? Foi o que logo me deu que entender. Cuidei que nem estavas ao facto!

Carlos, animado com o resultado, proseguiu com mais coragem:

—Como era negocio de vulto…

Manoel Quentino fez porém uma carêta, que o levou a corrigir.

—Isto é… de vulto não digo… mas…

—Mas que podia bem vir a sel-o para o futuro … é assim—atalhou Mr.
Richard.

—Exactamente—concordou o filho.

Manoel Quentino sorria.

—Mas já estive a pensar—proseguiu Mr. Richard—talvez influissem n'isto as condições do mercado em Londres. Subiria o genero a ponto de exceder o maximo indicado nas nossas cartas.

—Póde ser, mas…—dizia Carlos, olhando para Manoel Quentino, á espera de receber inspirações d'alli.

Este affeiçoou os labios como para pronunciar uma palavra, que a Carlos pareceu dever ser «juro». Por isso abalançou-se outra vez a dizer:

—E tambem o juro…

Parou, porque devéras não sabia o que devesse dizer do juro, nem se era natural imaginar que tivesse subido ou descido.

Manoel Quentino moveu a cabeça em direcção do tecto, exprimindo mimicamente a primeira hypothese.

—Talvez o juro subisse—concluiu, em vista d'isto, Carlos Whitestone.

Mr. Richard aproveitou a insinuação do filho, e evidentemente satisfeito notou com vivacidade:

—Effectivamente o juro está muito alto em Londres.

—Ha muito tempo que o não tivemos tão desfavoravel—apressou-se Carlos em dizer, d'esta vez sem hesitar, visto que dava apenas nova fórma á mesma ideia.

—É verdade que não. Creio até que ainda n'estes ultimos dez annos não subiu tanto, como agora.

Carlos percebeu em Manoel Quentino um movimento de desapprovação, que o animou a dizer:

—Isso é que não sei; dez annos será demais, comtudo…

—Olha que não é demais—insistiu Mr. Richard, devéras admirado das informações do filho; e, depois de meditar algum tempo, continuou, voltando-se para o guarda-livros:—Em que anno teve logar aquella quebra da casa Blackfield de Londres, Manoel Quentino?

—Em outubro de 1847—respondeu este, sem levantar os olhos da escripta.

—Em 47?—Ai, então tens razão, tens; 47 a 55… 8… É isso… Porque eu lembro-me de que estava então o juro a 8 por cento.

—E d'essa vez—acrescentou Manoel Quentino—o cambio era-nos mais desfavoravel que hoje.

—É isso, é isso.

Esta conversa prolongou-se por algum tempo com visivel satisfação de Mr. Richard, com bastante difficuldade para Carlos e com superior diplomacia do bondoso Manoel Quentino, que estava sendo collaborador de Jenny, na obra de pacificação domestica, encetada por ella.

Ouviram-se emfim tres horas na torre de S. Francisco, e Mr. Richard, depois de ultimo exame aos livros e algumas recommendações mais, saíu do escriptorio, dando as boas tardes a Manoel Quentino, fazendo a Carlos um signal de despedida, menos sêcco do que de ordinario, e, o que mais era, afagando na passagem o terra-nova, cousa que não praticava, senão em occasiões de grande harmonia com o filho.

Ainda mal se tinha perdido nas escadas o som dos passos de Mr. Richard e o dos latidos de contentamento do Butterfly, impaciente de liberdade, já a carta do correspondente de Londres, descrevendo uma parabola, vinha caír na escrivaninha ao lado de Manoel Quentino, e Carlos accendia novo charuto e dispunha-se a seguir o exemplo paterno.

—Até que soou a hora da redempção!—exclamou elle, pondo o chapéo na cabeça.

—Então já se vae embora?—disse Manoel Quentino, maliciosamente.

—E acha você que não tomei dóse bastante de commercio esta manhã? Isto em pleno carnaval? Que impiedade!

—Eh! eh! eh! E que me diz do tal negocio da aguardente? Então com que, está alto o juro, hein? Eh! eh! eh!

—Vi-me devéras embaraçado com a tal aguardente!

—Mas saíu-se bem.

—Agradeço-lhe o auxilio.

—Quer mandar dizer alguma cousa ao correspondente a tal respeito?

—Que vá para o diabo! Não me pôde occorrer o arrevezado nome d'esse maldito. Como se chama elle?

—Então não sabe ainda? Woodfall Hope… Uma das primeiras firmas commerciaes de Londres; e n'este negocio da aguardente…

—Não, isso mais devagar, Manoel Quentino—atalhou Carlos—não lhe aturo nem mais uma palavra a respeito do tal negocio da aguardente. Boas tardes. Adeus, meus senhores. Deixem isso e vão ver as mascaras. Adeus.

Farewell! Mr. Charles… Eh! eh! eh!…

Dentro em pouco, ouvia-se o descer apressado de Carlos, e a pancada violenta da meia cancella do portal impellida de encontro ao batente.

O escriptorio voltou ao primeiro silencio. A Praça estava quasi deserta. Como era terça-feira de carnaval, terminára mais cêdo a azafama do commercio. Os caixeiros bocejavam e o chiar da penna de Manoel Quentino augmentavam o effeito somnifero do logar.

De repente porém foi mais ruidosamente interrompido o silencio por o
«Trai larai, larai, larai, lai» do guarda-livros.

O bom homem, revendo o trabalho feito, descobriu omissões e enganos, que o obrigavam a refazel-o outra vez; a isto procedeu com exemplarissima paciencia.

Voltou a si todas as culpas.

—Ora eu devia ter mais juizo. Ainda me deixo distrahir como as creanças; merecia palmatoadas.

Depois, lembrando-se de Carlos:

—Aquelle traquinas tambem! Valha-me Deus!

Em seguida para os caixeiros:

—Os senhores podem ir embora. Vão ás mascaras, vão; e olhem se teem juizo e não arruinem a saude. Adeus. Eu ainda fico.

—Mas se quer que o ajudemos, snr. Manoel Quentino…—disseram elles, por deferencia.

—Eu quero, mas é que me deixem. Vão com Deus.

Os caixeiros não se fizeram rogar.

—Agora, juizo—continuou Manoel Quentino, ficando só—juizo, senão só chego a casa á noite, e a Cecilia ha de estar com canceira já. Como se transtornou hoje tudo! Eu, que contava acabar com isto mais cêdo, pois levava o serviço adiantado e vae… Como diabo lhe deu o rapaz para vir hoje ao escriptorio?… Bom moço, isso lá é, um coração de pomba… A cabeça é que… E n'isto de negocio, então!… Eh! eh! eh!… E o pae a imaginar ha pouco… A gente sempre tem cegueiras pelos filhos! Cala-te, bôca, que tambem não pódes fallar! Coitados dos paes! E o velho quer-lhe devéras… Toda a sua pena é o rapaz não tomar gosto para o commercio. Aquillo tambem muda… Verduras! Bom rapaz! bom rapaz! Tem a quem saír. O pae, um homem de bem ás direitas… a mãe era uma santa senhora… Pois a irmã? Isso então nem fallemos… Um anjo! E pensar que não são catholicos! A fallar a verdade! Ora adeus! protestantes d'estes, que remedio tem S. Pedro senão ir recebendo-os no céo.

Em consequencia da visita de Carlos, só ás tres e meia foi que Manoel Quentino pôde terminar a sua tarefa e fechar o escriptorio, para voltar a casa com appetite no estomago e tranquillidade no coração. Já vê o leitor que tinha razão Carlos ao assegurar que não era das mais proveitosas a sua ingerencia nos negocios commerciaes.

X

JENNY

Jenny entrou no seu quarto, logo depois da partida de Carlos para o escriptorio. Era um delicioso quarto, côr de violeta, onde se divisava o bom gosto e a elegancia desaffectada, maravilhosamente unidos a um não sei quê de austeridade ingleza, não em tal grau que destruisse a feição leve e graciosa, que compete aos aposentos de uma mulher de vinte annos, mas bastante para os despojar de certo excesso de ornamentos, que em extremo agradam a alguns espiritos, mais que femininos, pueris.

Não lhe era cabida a descripção, que um romancista francez nos faz do quarto de uma das suas heroinas, pintando-nos tão abundantes as tapeçarias e alcatifas que, em todo elle, se não mediria uma pollegada de madeira a descoberto, e tão flacidas e macias, que n'essa gaiola perfumada poderia qualquer avesita voar, de canto a canto, sem receio de magoar as azas.

Este requinte de molle elegancia parisiense mal se quadrava com a indole séria e com a actividade natural de Jenny Whitestone. Ha em toda a ingleza um pouco de puritana; no caracter das mais ternas conserva-se sempre alguma cousa que, debaixo do ponto de vista moral, corresponde áquelle esbelto e inflexivel de fórma, que lhes é proprio, tão diverso do requebrar indolente e quasi morbido das mulheres meridionaes.

Não se encontrava no quarto de Jenny um unico objecto d'essa mobilia, quasi de boneca, dos boudoirs da moda, onde predominam o papier maché, o pau rosa, a madeira branca e dourada; e os primores de uma arte, que, á força de querer apurar em delicadeza os seus productos, os faz ás vezes acanhados e ridiculos.

A elegancia, alli, não abdicava certa dignidade, á qual hoje é raro combinar-se. Nenhum dos costumados artificios da industria moderna; tudo era o que parecia ser; o marmore, marmore; o bronze, bronze; o damasco, damasco; as rendas, rendas verdadeiras. Não havia nos moveis esses tenuissimos folheados, mascarando, com madeiras de preço, outras de menos valor; nenhumas d'essas maravilhas de imitação, obtidas com vernizes e tintas; nenhuns metaes enfeitados, pelo galvanismo, com falsos titulos de nobreza. Nem um só objecto mentia dentro d'aquelle recinto.

Os caracteres, naturalmente observadores da boa fé, até n'estas cousas a amam.

A côr predominante do quarto, de um tom que agradaria a pintores, fazia vantajosamente sobresair a alvura dos cortinados do leito, castamente descidos.

Côres mais garridas só as das camelias, que, em singelas jarras de biscuit e porcellana, adornavam o toucador e o fogão.

Não usurpavam o logar, devido ás pobres flores, essa profusão de quinquilharias, hoje tanto á moda: vidros de essencias, de pomadas, de oleo, cartonagens de todos os feitios, figuras de porcellana e de jaspe, flores de pennas, de papel, de sola, de cascas de cebolas, de tudo com preferencia ás verdadeiras; retratos de rainhas e de reis, sabonetes de varias côres e fórmas e uma infinidade de pequenos objectos, que dão a qualquer d'esses gabinetes a apparencia de bazar ou de exposição de feira.

Alguns bronzes de arte, alguns purissimos crystaes de Inglaterra, algumas bonitas floreiras e uma ou outra obra de litteratura ou de religião, n'aquellas inimitaveis brochuras inglezas, era o mais que alli se podia ver.

As paredes estavam limpas de arrebicadas lithographias coloridas, representando meninas a disfarçarem um sorriso atraz do leque, a brincarem com um gato, a cheirarem uma flor, a olharem-nos através de uma luneta e em outras muitas posições todas affectadas, de tão graciosas que querem ser; em vez d'este adorno, então commum nas salas do Porto, notavam-se as mais afamadas producções do inexcedivel buril britannico e algumas aquarellas, cópias fieis de paizagens inglezas.

A luz penetrava na sala por entre discretas venezianas e cortinas, que lhe temperavam a intensidade, até o grau adequado aos habitos de viver de Jenny.

De tudo emfim vinha a este quarto um aspecto de placido recolhimento, em que se aprazia o espirito, pensador e inclinado á melancolia, da amoravel irmã de Carlos.

Era alli dentro que, corridos os reposteiros e as cortinas, recostada ás mãos a fronte pensativa, em silencio, a sós, tantas vezes, como agora, a sympathica menina se entregava a meditações abençoadas de Deus, e das quaes dimanavam jubilos suaves para quantos de perto a rodeiavam.

Agitado o coração de saudades, sempre vivas e pungentes, contemplava n'esses momentos, com fervor quasi religioso, o retrato da mãe, fiel e mimosa miniatura, que recatava como a mais preciosa das suas joias.

A imagem d'aquella, que a estremecera tanto e que parecia ainda olhal-a com um bondoso sorriso, que nem a morte lhe apagára dos labios, produzia em Jenny a mais poderosa impressão.

Ás vezes, á força de muito a contemplar, figurava-se-lhe que essas amadas feições se animavam, que um ligeiro movimento lhe corria nos labios, que um raio de vida fulgia, por instantes, nos olhos tão cheios de piedade e de tristeza.

Que alegria para o coração da pobre Jenny! Persuadia-se de que a alma da mãe, evocada pela sympathia filial, passára alli, illuminára momentaneamente a imagem inerte, e abençoára a filha, que tão pequena deixára orphã de apaixonadas caricias.

Esta illusão vivia com Jenny; era n'ella um d'esses intimos segredos do coração humano, para os quaes não há confidentes possiveis. Perante a amizade mais provada, perante o amor mais extremoso, a alma, por expansiva que seja, não se revela toda. Ha uma parte obscura do nosso mundo interior, sempre inaccessa aos olhares estranhos, onde se refugiam esses muitos segredos do eu para o eu, segredos, de que nós mesmos nos ririamos, se os labios ousassem pronuncial-os um dia;—que não ousam. Ha exemplos de perfumes tão subtis, que, aberto o vaso que os contém, quasi instantaneamente se dissipam na atmosphera; assim estes mysterios interiores, inconsistente alimento da nossa phantasia, perdem-se tambem, ao tentarmos communical-os.

Guarde cada um para si essa parte do pensamento, superstições infundadas, crenças pueris, que não podem separar-se de nós, sem que nós proprios as desconheçamos e com os estranhos zombemos d'ellas, das pobres, que não nasceram para viver senão assim, presas á alma, de cuja essencia parece receberem vida.

São como umas delicadas algas maritimas, cuja textura tenuissima se expande na agua em formosas arborisações, illudindo as esperanças dos que, namorados de tanta belleza, as arrancam de lá; fóra do ambiente, em que vegetam, cêdo se mirram e desformam.

Bem lucida e forte era a razão de Jenny, e comtudo, no mundo interior, nutria a crença illusoria—pelo menos illusoria me parece, a mim que de fóra a examino—de que aquelle retrato de sua mãe não tinha uma expressão invariavel.

Eu queria dizer que isto era sentido, e não pensado, pela bondosa menina; mas não sei se o rigor philosophico me permittirá a linguagem; e comtudo não vejo como de outra sorte dar conta d'este frequente phenomeno psychologico—o da persistencia de certas crenças irracionaes, nos espiritos mais vigorosos e logicos.

Dias havia, em que nos traços e delineamentos d'aquella miniatura, Jenny julgava descobrir um ar de alegria, que logo se lhe insinuava no coração; outros em que, pelo contrario, ganhavam vulto a seus olhos não sei que sombras de tristeza que a faziam estremecer, como se fossem presagio de mal.

Seriam reflexos de presentimentos proprios, que então a illudiam? Talvez; e ficar-se-ha comprehendendo melhor o mysterio, interpretando-o assim?

Presentimentos! Que espirito philosophico ha ahi, que os admitta?

Jenny era ainda uma creança, quando perdeu a mãe; no meio dos jogos e dos brinquedos infantis veio um dia surprendel-a este profundo golpe no coração; ao seu lado, crescera o mal ameaçador e terrivel, mas, no descuido de tão tenros annos, só dera por elle, quando a victima lhe caía prostrada nos braços. Feliz idade, a d'estas imprevidencias! N'um momento a vida inteira se lhe affeiçoou muito diversa, do como até então a antevira. Cêdo, muito cêdo, aquella creança franzina e debil, recebeu a solemne investidura da sacrosanta missão de mulher; transmittiu-lh'a a mãe, já moribunda; legou-lhe, nos derradeiros instantes, a tarefa abençoada, que até o fim cumprira, sem um só dia de desalento.

Apertando nas mãos já frias as da filha lacrimosa, que só então vira a morte, que, tanto havia, a ameaçava nos seus mais queridos affectos, incumbiu áquelles poucos annos o pesado encargo da familia; e com a voz trémula e os olhos turvados pelas sombras do adormecer final, disse-lhe que a essas mãos ia deixar entregue a paz da vida interior, a felicidade dos seus; que a ellas confiava os thesouros e balsamos de affeições e de carinhos, com que, no lar domestico, se sanam tantas dores e desillusões, colhidas lá fóra, nas luctas da sociedade; depois, cingindo ao peito a filha, como em extrema recommendação, para a qual as palavras lhe faltavam já, morreu beijando-a; ungiu-a de suas ultimas lagrimas e impressionou-lhe a mente infantil a ponto que a orphã, depois de a chorar sobre o tumulo, levantou-se mulher, mulher apesar dos seus doze annos, mulher pela sisudez dos pensamentos, pela consciencia viva e fervente da sua nova missão.

É um ensino efficaz o do infortunio! Desde essa hora fatal, como que se abriram os olhos de Jenny para verem mais fundo no coração d'aquelles que era dever seu tornar felizes. Só então principiou a reflectir que, entre os corações mais nobres e puros, se estabelecem ás vezes contrastes, de que podem resultar conflictos dolorosos; que o infortunio e as miserias da vida nem sequer proveem da funesta influencia do mal, de que se tenha deixado eivar completamente uma alma humana; que mais vezes é do encontro de duas paixões, na essencia generosas, que a tempestade se origina. No alto mar, um vento dominante póde governar o movimento e a derrota de um navio, mas é necessario que seja extrema a sua violencia, para que elle, por si só, o faça sossobrar; penetre porém o vaso mais poderoso no seio d'esses redemoinhos, que formam os ventos encontrados; e a submersão será quasi inevitavel.

É assim na vida.

Não basta que sejam grandes e sympathicos os caracteres, que laços de familia ou de sociedade prendem uns aos outros, para que entre elles exista harmonia. Que nas suas orbitas os animem movimentos contrarios, e serão já de temer os embates e as perturbações fataes.

A natureza physica tambem nos mostra como venenos energicos resultam ás vezes da combinação de elementos inoffensivos.

Tudo isto se foi esclarecendo, á força de meditações, no espirito da pequena Jenny, que tão precoce adeus teve de dizer áquellas espontaneas e não motivadas alegrias da infancia, que n'ella findaram com o ultimo suspiro da mãe.

E cêdo foi, muito cedo para uma creança ingleza que, de ordinario, na idade em que as outras principiam já a querer ser senhoras, brinca alegre e descuidada nos parques, correndo, saltando, rindo, sem se affligir por a fimbria dos vestidos ainda se lhe não humedecer na relva.

Esta livre expansão, que sabem e costumam dar á alegria as pequenas inglezas, é talvez a causa de serem desaffectadamente sérias, quando emfim a natureza, e não a arte prematura, as faz mulheres.

Cessaram pois em Jenny os risos d'essa idade, risos expansivos e irreprimiveis, que a cada palavra, que á menor causa rebentam, como da laranjeira florida chovem sobre o prado as pétalas nevadas e fragrantes, á mais leve viração que lhe agita a folhagem.

Afez-se a reflectir, a votar-se toda á felicidade dos seus, procurando insinuar-se nos pequenos segredos de caracter de cada um, para os dirigir, sem lucta funesta, na mesma esphera de acção, no mesmo circulo, em que tinham de viver.

Desde essa época principiou a crescer e a vigorar com rapidez o predominio de Jenny em toda a familia—suave sujeição, grata aos que a supportavam, como uma benção do céo.

Até então amára-se em Jenny uma creança meiga, cujas graças joviaes faziam distrahir o espirito de preoccupações mais sérias; cêdo porém tomou esse amor diverso e mais respeitoso caracter.

Em Mr. Richard Whitestone á affeição protectora, de que rodeiava a filha, principiou a misturar-se uma deferencia, que tinha seus vestigios de veneração; em Carlos, a familiaridade que as idades quasi iguaes e os jogos e estudos communs haviam feito nascer entre ambos, degenerou gradualmente em um sentimento de mais respeito, em uma docil submissão, que em todos os seus actos se denunciava.

Forte com esta dupla preponderancia, ía cumprindo Jenny religiosamente o legado da mãe, sempre com o pensamento n'ella, sempre com os olhos na sua imagem, na qual julgava entrever os reflexos da alegria ou da tristeza, que a sorte da familia devia por certo despertar n'aquella alma de justa, que a contemplava do céo.

Este oraculo, para todos mudo, só eloquente para os sentidos da filha, consultava-o Jenny com ardente fé ao encerrar-se sósinha no quarto, onde a luz e o rumor de fóra penetravam discretamente, como convinha a logar de tão piedosos mysterios.

Era triste a imagem d'esta vez!

Triste porquê?

Se os labios da irmã de Carlos trahissem n'aquelle momento as ideias, que tão profundamente a absorviam, elles fallariam d'este modo:

—Pobre mãe! porque venho encontrar-te assim triste? Não passaria ainda a nuvem d'esta manhã?… Mas era tão ligeira!… tão leve! que a mim mesma me inquietou pouco. Que adivinhas tu, boa mãe?—Isto pensava, ao beijar o retrato—Alegra-te; Carlos deve estar agora no escriptorio; pobre Carlos! É tão bondoso aquelle coração! Como elle havia de amar-te, como havia de acariciar-te, mãe, se ainda vivesses comnosco! Poucos o conhecem bem. Mas por que estás ainda triste? Has de ver como voltarão amigos. É facil reconciliar aquelles corações, que a final tanto se estremecem! Uma ou outra nuvem, que passe entre ambos, gera-a o mesmo excesso de amor. Parece-me que ia dizer como tudo se passou. A vista de Carlos foi bastante para dissipar todo aquelle resentimento… resentimento proprio de quem muito estima!… Então! Já não tens confiança na tua filha? Bem vês como todos aqui me querem. Elles de certo vêem em mim alguma cousa do teu espirito, mãe, para serem assim tão doceis com uma pobre rapariga. É á tua alma, á tua alma, que me acompanha, que elles obedecem a final. Continúa ao meu lado, mãe, e eu serei forte; não me abandones, e verás que não ha fundamentos para apprehensões. E ainda triste!—E beijava o retrato—E ainda!… e ainda… e ainda!…—beijava-o repetidas vezes.

Depois tentava a razão dissipar aquelas piedosas illusões:

—Estou louca!—pensava então Jenny—Pois como póde um retrato…

Aproximava-se mais da luz.

As illusões voltavam outra vez, como volta o enxame de abelhas que o vento afasta das flores.

—Não sei, não sei como isto é, não posso saber… mas esta expressão é mais triste do que a de hontem… De que procede esta tristeza?… A maneira por que me fallou do baile de hontem… O baile! … acaso … aquela mascara?… Mas que póde resultar d'alli?… Meu Deus! diria que ainda te pozeste mais triste! Deverei pois acreditar…

N'isto ouviu passos fóra da porta.

Quebrou-se o encanto! Como que se extinguiu toda a impressão do retrato para os sentidos, meio allucinados, da commovida… visionaria—chamar-lhe-hei assim?—Apressou-se em escondel-o.

A figura de Luiza, aquella mesma criada que já conhecemos, appareceu no limiar.

—Que é, Luiza?

—É a filha do snr. Manoel Quentino.

—Ah! chegou finalmente Cecilia? Que entre, Luiza, que entre. Nem sei para que a fez esperar—acudiu Jenny com vivacidade.

Era Cecilia uma das suas mais affeiçoadas amigas.

XI

CECILIA

Passados momentos, entrava no quarto, ligeira como uma andorinha, risonha como uma creança, a filha de Manoel Quentino. Era a unica familia que o velho guarda-livros tinha no mundo.

Jenny estendeu-lhe affectuosamente a mão … e «beijaram-se», pensará a leitora. Pois não beijaram, não, minha senhora; as inglezas poupam muito mais esse thesouro dos beijos, do que as mulheres dos outros paizes; um amigavel aperto de mãos, um sorriso, uma phrase affectuosa… e mais nada. Será para os fazer mais apreciados, quando concedidos?

Cecilia era um modelo da belleza portugueza, e portuense talvez, nas suas mais felizes realisações.

É costume entre nós, quando se quer exaltar, no conceito dos leitores, a belleza de uma mulher, classifical-a entre as hespanholas, entre as italianas, entre as allemãs, e entre as inglezas, mas nunca entre as nossas compatriotas, que soffrem, ha muitos annos, com sublime resignação de martyres, esta velha e flagrante injustiça.

Parece que o typo nacional é indigno de referencia, e que só quando d'elle aberra e, por um capricho da natureza, reveste a feição estrangeira, é que uma figura de mulher merece as fórmulas, mais ou menos sonoras e hyperbolicas, da nossa admiração.

É vulgar ouvir-se dizer:—«Como é bella! Ha n'aquelle todo vaporoso certo ar germanico!»—«Que mulher! Tem o salero de uma hespanhola!»—«Que magestade! que morbideza! É uma perfeita madonna italiana!»—«Que poetica gravidade! Dir-se-hia uma candida lady!» O que porém se não ouve, pelo menos o que eu ainda não ouvi, é: «—Que sympathica rapariga! É uma portugueza perfeita!»

A causa d'isto é o sermos nós uma nação pequena e pouco á moda, acanhada e bisonha n'esta grande e luzida sociedade europeia, onde por obsequio somos admittidos, dando-nos já por muito lisongeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós.

Falta-nos certo uso de sociedade, que ensina cada qual a occupar o seu logar. Quando não encarecemos exageradamente as cousas patrias, á maneira d'aquelle sujeito que vimos n'um dos grupos da Praça, caímos no excesso opposto e nem sequer fallamos d'ellas, como se nos corressemos da origem.

Bem que peze á vaidade nacional, é forçoso o fazer aqui, em familia, uma confissão:—Nós temos o defeito d'aquelles provincianos que, nos circulos da capital, suffocam envergonhados, como cousa de mau gosto, uns restos de amor da terra, que ainha os punge, e deitam-se a exaltar, com affectação altamente comica, os prazeres e commoções da vida das grandes cidades, que ainda mal gosaram e ainda mal saboreiam;—fallam dos theatros, dos bailes, da cantora da moda, do escandalo do dia, sem se atreverem a dizer uma palavra pelo menos das arvores, das paizagens, das tradições, dos costumes locaes, do conchego domestico da sua provincia, o que porventura os outros lhe escutariam com mais vontade; e no fim de tudo ficam mais ridiculamente provincianos, do que nunca.

Assim tambem os portuguezes, acanhados nos circulos da Europa, não ousam conferir diplomas de excellencia a cousa que lhes pertença; envergonham-se de fallar nas riquezas patrias, emquanto abrem a bôca, por convenção, a tanta insignificancia que, em todos os generos, a vaidade estrangeira apregôa como primores: levam o excesso da modestia, se é só modestia isso, até receiarem que as vistas dos estranhos averiguem do que lhes vae por casa, e agradecem, com effusões de sensibilidade, uma ou outra phrase de louvor, que, em momentos raros, elles lhes concedem.

Se ousamos fallar de Camões, ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de Milton; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o de Xerez, Chateau-Laffite e Tokay, é porque lhes deram lá fóra o diploma de fidalguia; que por nós … continuariamos, calados, a ler um e a beber o outro, sem bem conhecermos a preciosidade que liamos e que bebiamos, ou pelo menos correndo-nos de uma nos parecer sublime, e a outra deliciosa.

Ainda que se taxe um dos similes de menos delicado, é certo que o mesmo succede com as bellezas femininas; costumamo-nos ás exclamações á moda:—«Ah! as hespanholas!»—«Oh! as italianas!»—«Ai, as allemãs!» e julgariamos de mau gosto dizer em publico:—«As portuguezas!» até sem interjeição prévia a encarecer-lhes a valia.

E isto fazem-o até muitos, que nunca transpozeram as barreiras d'esta cidade, onde não abundam os typos d'essas varias bellezas exoticas.

Eu porém atrever-me-hei a arvorar a bandeira puritana n'esta campanha gloriosa.

De certo não serão os leitores que m'o levarão a mal.

Deus me defenda de querer, por forma alguma, ferir a fama tradicional de todas as já estudadas e classificadas bellezas, admittidas e exaltadas, como taes, no mundo inteiro; a minha tolerancia abrange todas; queria sómente que se abrisse tambem logar para as nossas patricias, que bem merecem essa distincção.

As portuguezas não formam typo especifico, dir-me-hão talvez; são uma variedade apenas de especie mais vasta. Sempre desejava que conhecessem Cecilia, para que depois me dissessem a qual dos typos femininos, consentidos e sanccionados, pertencia a amiga de Jenny.

Se houvesse uma fórmula unica para a belleza feminina, chamar bella a qualquer d'estas duas mulheres, agora reunidas diante do leitor, seria condemnar a outra; tão diversas, tão oppostas até, eram aquellas duas physionomias em tudo! Mas não succede assim; tem tantas maneiras de se realisar a belleza, tantos meios de excitar em nós, no mais intimo do nosso peito, essas mysteriosas vibrações que nos arrebatam, que seria loucura disputar primazias em casos assim. E isto é como no mais.

Pois por serem bellos os vergeis do Minho, perdem a belleza as leziras do Vouga, ou até as paizagens alpestres de Traz-os-Montes?

Cecilia não era loura nem trigueira, nem d'aquella côr pallida, que sonham os poetas e de que os medicos desconfiam; tingia-lhe o rosto, graciosamente oval, um colorido que, em linguagem artistica, julgo que nem tem ainda palavra creada.

Se porém, á falta de termos, sempre lhe quizessem chamar pallida, deviam acrescentar, que era de uma pallidez, através da qual se presentia o sangue cheio de vida, que ás vezes a transformava na diffusa côr de rosa de um rosto de creança; os cabellos que, por um ondado natural, se erguiam levemente no alto da fronte, vacillavam entre o negro e o castanho escuro; os olhos, sim, esses eram negros devéras, e,—qualidade bem rara em olhos!—de uma discrição impenetravel. Olhos discretos, quando de ordinario são elles os que primeiro atraiçôam e inutilisam a reserva dos labios! Olhos, que ousam fitar-vos sem deixar fugir um segredo, nem desviar-se, por desconfiarem de si proprios! Discretos, mas expressivos de sympathia e de familiar bondade! Não se imaginam os encantos de uns olhos assim! E não julguem que são por isso incapazes de eloquencia; anime-os um dia a confiança e o amor, e verão os raios offuscadores que despedem! Mas o que elles não fazem,—e bem hajam por isso—é andarem por ahi a desperdiçar eloquencia, como esses implacaveis falladores, que em toda a parte se occupam a declamar discursos. Na conformação habitual dos labios, no sorrir, no mover da cabeça, em todos os movimentos e gestos emfim, havia, em Cecilia, uma tão completa ausencia de arte, tanta naturalidade e franqueza, que a vista deixava-se ficar, com prazer suave e sem timidez, a contemplal-a.

Ha um meio de reconhecer o genero de belleza, a que pertencia Cecilia—genero que eu sustento ser o nacional:—quando, junto de uma mulher formosa, vos sentirdes á vontade, sem que a razão se vos perturbe, sem que por galanteria vos julgueis obrigados a lisonjas, sem que fermente em vós o tanto ou quanto de poesia, que encerram todos os corações; quando suavemente dominados pela branda influencia de um olhar sem requebros, podérdes sustentar com essa mulher uma conversa affectuosa, sincera, leal, como a sustentarieis com um amigo ou com uma irmã; quando, ao separar-vos d'ella, lhe apertardes cordialmente a mão, sem que nem a vossa nem a sua estremeçam ao encontrarem-se, e finalmente trouxerdes d'essa entrevista uma impressão agradavel, que mais vos acalente do que vos agite os sonhos, ficae certos de que encontrastes um dos typos de que fallo.

Aviso-vos porém que os não julgueis pouco perigosos, apreciando-os pela placidez d'estes primeiros effeitos; se levaes em conta de ventura a liberdade do coração, fugi-lhes emquanto é tempo; pois, continuando n'essa convivencia intima, natural, insinuante, correis o risco de insensivelmente vos deixardes prender, se um dia, ao tentar terminal-a, surprendeis-vos devéras apaixonados; pela dor que experimentaes, conheceis então que fundas raizes lançára já o affecto.

Eu por mim julgo mais irresistiveis as paixões que se geram assim; as que nascem rapidas, teem evolução rapida tambem, e muitas vezes apagam-se em pouco tempo.

Vendo n'isto de paixões uma especie de doenças da alma, como alguns querem, era possivel talvez estabelecer n'ellas divisão analoga á que, nas do corpo, admittem os medicos. Haveria assim paixões agudas e paixões chronicas; umas, como as doenças do mesmo nome, geradas por impressões subitas, rapidas na sua marcha, promptas na sua terminação; outras adquiridas insidiosamente, por influencias de todos os dias, e de que nem se suspeita mal, lavrando a occultas e revelando-se apenas, quando o terreno já é seu e a victoria certa.

Quaes d'ellas zombam mais da arte, devem sabel-o medicos e doentes.

Mas, voltando a Cecilia, o seu conversar, ao qual dava realce o timbre de voz, vibrante e sonoro, tinha uma vivacidade e animação, direi até uma eloquencia natural, que entretinha a ouvir-se; no decurso de qualquer conversação, era notavel a frequencia com que lhe passavam a voz e as feições por contínuas e successivas alternativas de tristeza e alegria; como alternam nas campinas a sombra e a claridade, quando atravessam rapidas o ar, as nuvens impellidas pelo norte.

Era assim que, referindo acontecimentos tristes, uma ou outra circumstancia d'elles desafiava-lhe um sorriso ou uma observação jocosa, e que, no meio da historia mais jovial, não lhe passava despercebido qualquer ligeiro vestigio de sentimento que ella tivesse, e de repente lhe desapparecia o riso dos labios e os olhos reflectiam uma generosa melancolia.

Um dia, por exemplo, contava ella a Jenny, e contava-o quasi a chorar, o infortunio de um pobre centenario, a quem seu pae soccorrera. O desgraçado velho vivia n'uma casa miseravel, e, abandonado de todos, ia succumbindo á fome, quando Manoel Quentino o disputou compassivo a morte tão tormentosa.

—Se visse o pobre homem!—dizia então Cecilia, com tremor de compaixão na voz—se o visse! Como elle nos recebia, chorando e rindo, como me pegava nas mãos para as beijar! Como erguia ao céo aquelles olhos, quasi cegos pela velhice e pela desgraça! Fazia pena! Tão trémulo, tão curvado!…—E, de repente, vindo-lhe aos labios um sorriso, que ella não reprimiu, acrescentou:—E então n'aquella idade e n'aquella miseria toda, o cuidado que o pobresinho tinha ainda com o rabicho, que usava na cabelleira! Coitado!

De outra vez contava, rindo, o episodio caricato de certo operario, seu vizinho, que voltára, uma noite, a casa em completo estado de embriaguez, e atordoára a rua inteira com expansões de extemporanea alacridade, altercando, cantando e tocando até altas horas. Tudo quanto até alli referira lhe merecera sorrisos, mas, n'um instante, cobriu-se-lhe o rosto de profunda tristeza, e suspirando, proseguiu, cingindo a mão de Jenny:

—Mas não quer saber? Quando este homem estava mais contente, vieram trazer-lhe um cão, que elle estimava muito e que n'aquella mesma noite haviam envenenado nas ruas. Parece-me que estou ainda a ver como elle ficou; esteve por muito tempo calado a olhar para o pobre animal e depois desatou a chorar e a abraçal-o, chamando-lhe seu amigo, seu companheiro, até…—acrescentou, sorrindo—até seu irmão. Mettia realmente dó. E aquella gente a rir cada vez mais! Era aquillo para rir? diga.

Justeza de observação, talento para apreciar todas as faces dos sentimentos e das acções humanas, poucas vezes os dá o estudo no grau, em que ella naturalmente os possuia.

Não se podia pois, repetimos, dizer Cecilia apaixonada como uma italiana, pensativa como uma allemã, séria como uma ingleza, languida como uma hespanhola, coquette como uma franceza, porque de nenhum d'esses typos se aproximava; era verdadeiramente portugueza, e, para caracterisar estes, só conheço uma phrase, de que talvez o leitor se vá rir, mas pela qual eu tenho inexplicavel predilecção. Associa-lhe o meu pensamento tal conjuncto de qualidades physicas e moraes, que sempre que a ouço applicar, ella só suppre para mim uma longa descripção, e se for a analysal-a não lhe encontro de certo a comprehensão, que instinctivamente lhe attribuo. Se ao leitor succeder o mesmo, conceberá o typo de Cecilia depois de eu a pronunciar.

Cecilia era o que naturalmente a todos occorre chamar—uma pobre rapariga.—N'esta expressão nada ha que faça suppôr a belleza da pessoa a quem se applica, bem sei; nem em rigor se refere a qualidade alguma moral.

É certo; porisso não analyso. Succede porém que, quando de qualquer mulher, que não conheço, ouço dizer que é—uma pobre rapariga—, não sei por que a imagino bella, bella de belleza nacional e com um coração… como o coração de Cecilia.

Aqui temos a ingleza Jenny, que não poderia receiar confrontos com a sua amiga, nem em gentileza nem em bondade; mas, não sei porquê, lembrou-me chamar a Jenny anjo e fada, e hesitaria em definil-a, como defino Cecilia.

Accusar-me-hão de dar á filha de Manoel Quentino uma feição demasiadamente burgueza, com a phrase burgueza, pela qual a caracteriso. Folgarei de que seja merecida a critica, porque…—vá aqui mais outra confissão, em que revelarei a minha coragem—, eu sympathiso mais com os typos burguezes do que com os typos aristocraticos,—e em mulheres sobretudo. Rodeia-se de mais poesia aos meus olhos a rapariga burgueza, e sem aspirações a deixar de sel-o, quando a trabalhar á luz do candieiro, do que a elegante dos salões, gastando a imaginação em problemas de toucador; a costura, a simples, a modesta costura, util e abençoada applicação da agulha feminina, agrada-me bem mais do que as bonitas futilidades do, reputado mais nobre, trabalho de bastidor; a mulher que a si propria se penteia, acho-a mais merecedora da contemplação do artista, do que a indolente que, reclinada n'uma poltrona e folheando o jornal de modas, entrega a cabeça ás mãos de uma criada ou do cabelleireiro. Esta, a ser copiada, basta-lhe por téla … um leque ou uma tampa de cartonagem.

Sim, Cecilia não tinha nada do typo aristocratico; n'isso era ella ainda genuinamente do Porto, cidade cujo principal titulo de gloria é o ter, em épocas em que a nobreza era tudo, previsto que podia e devia prescindir d'ella, para se engrandecer.

XII

OUTRO DEPOIMENTO

—Esteve doente, Cecilia?—perguntou Jenny, accommodando o chapéo da amiga.

—Não; porque m'o pergunta?

—Nem eu sei. Pareceu-me ler-lhe no rosto… e depois… veio tão tarde.

—Ai, menina,—replicou Cecilia, sorrindo e ageitando o cabello, que o chapéo desordenára—é que se soubesse… Hoje fiz de fidalga. Levantei-me depois das oito horas.

—Sim, preguiçosa? E querem então ver que se esqueceu de trazer aquelles cabeções, de que me fallou.

—Ágora. Olhe; trago esses e até mais alguma cousa…

—Bem, bem; vamos ver isso tudo—atalhou Jenny, com curiosidade.

E as duas raparigas foram sentar-se, uma ao lado da outra, no sofá proximo da janella.

—Veio só?—perguntou Jenny, momentos depois.

—Vim.

—Sem mêdo?… no dia de entrudo!…

—Mêdo nenhum. De minha casa aqui são caminhos, que podem dizer-se todos de aldeia. Quasi sempre por entre quintas e campos… Encontrei umas creancitas, que vinham da mestra, e conversei com ellas todo o tempo.

E continuando a revistar o interior de um sacco de marroquim verde com fechos de aço, Cecilia proseguiu, mudando de tom:

—Não julgue que lhe vou mostrar nenhuma preciosidade; foi uma distracção de meia hora no serão de sabbado. Esta semana tive tanto que fazer, que não pude occupar-me com estas bagatelas. Bem sabe que não me cresce muito tempo para brincar. Olhe.

E mostrava a Jenny um delicadissimo primor da arte feminina; um cabeção apenas, mas do qual, se me auxiliassem conhecimentos technicos, poderia fazer uma descripção, pelo menos do tamanho da que Homero consagrou ao escudo de Achilles.

Mas a sciencia das leitoras e a ignorancia provavel dos leitores n'este assumpto não lhes deixarão sentir a lacuna.

—Pois eu ia quasi dizer-lhe que inda acho este mais bonito, do que o outro que me mostrou ha dias—disse Jenny, demorando-se a examinar o cabeção.

—O desenho d'esse é mais delicado, mas… Ai!—acrescentou passando, a sorrir, a mão pelos olhos, e suspirando—parece-me que nem vejo, de somno que tenho!

—Somno! E levantou-se tão tarde! Que quer dizer isso hoje, Cecilia?

—É que me deitei hontem muito tarde tambem.

—A trabalhar?

Houve um intervallo de silencio, antes que Cecilia se resolvesse a responder. Jenny insistiu, elevando ao mesmo tempo os olhos para ella. Viu-a córando e como entretida a segurar um alfinete.

Os alfinetes são os principaes cumplices de todos os disfarces femininos. Sempre que uma mulher precisa de occultar um sorriso, uma turbação, um rubor, tem a certeza de encontrar estes amigos officiosos a servirem-lhe de pretexto. Ha sempre um alfinete a pregar, a despregar, e a repregar de novo.

A final porém, com visivel esforço sobre si mesma, Cecilia respondeu de uma maneira, que em vão procurou tornar natural:

—Não, Jenny, não foi a trabalhar.

Jenny presentiu um segredo n'aquelle enleio e hesitação, mas não tentou descobril-o; disfarçando as suas suspeitas, disse-lhe:

—Pôz agora de lado um trabalho de crochet, que me pareceu bonito.

Cecilia mostrou-lh'o, sem dizer nada.

E o silencio manteve-se algum tempo entre as duas, silencio de as constranger a ambas; até que emfim Cecilia, n'uma d'essas subitas resoluções tão frequentes n'ella, e pelas quaes parecia querer apressar-se a realisar um bom pensamento, antes que ulteriores reflexões viessem suffocal-o, pôz de lado, com certa impaciencia, toda a obra que tinha estendida no regaço, e tomando as mãos de Jenny, fitou os olhos, negros e cheios de vida, nos olhos azues e suavemente melancolicos, com que esta a seguia admirada:

Cecilia conservou-se ainda alguns momentos silenciosa e indecisa; mas por fim, córando mais e possuida de sobresalto, que não conseguiu disfarçar sob sorrisos:

—Jenny—disse com a voz trémula de commoção—eu sei que a menina é minha amiga, e julgo que o melhor é contar-lhe tudo…

—Seja o que for que tem para me dizer, se o que a faz hesitar é a duvida da minha amizade, posso assegurar-lhe, Cecilia, que…

—Não, não é, não podia ser—acudiu Cecilia, e por um movimento rapido, impensado, irresistivel, levou aos labios as mãos delgadas de Jenny, que não lhe pôde fugir a tempo.

—Que está a fazer?!—disse Jenny, rindo.

—Deixe-me; sabe como eu lhe quero, sabe a confiança que tenho em si, Jenny, pois não sabe? Mas é que … ha certas cousas que sempre custam a dizer.

Jenny sorriu com expressão particular; previa uma confidencia amorosa no embaraço de Cecilia.

Cecilia comprehendeu a significação d'aquelle sorriso, porque se apressou a dizer:

—Não, não é o que julga, Jenny. Não teria a menor hesitação em lh'o dizer, se fosse isso. Póde crêl-o.

Apesar da segurança, com que Cecilia o affirmava, duvido de que, tão sem custo, se resolvesse a fazer uma confidencia, que, sendo a primeira d'esse genero, faz titubear os mais arrojados. Mas acreditemol-a sob palavra, que não temos outro remedio.

—Seja o que for,—respondeu Jenny, procurando inspirar-lhe confiança—não deve ter escrupulos em m'o revelar. Escrupulos porquê? Não somos raparigas ambas? da mesma idade quasi?

—Mas a Jenny é tão differente de todas nós! Tem tanto juizo, que não póde deixar de estranhar certas cousas, que nós, as que temos a cabeça leve, fazemos sem pensar, e de que mais tarde nos arrependemos.

—Está a ser injusta ao mesmo tempo commigo e comsigo, Cecilia. Nem essa cabeça é leve, nem eu da sisudez que me faz.

—Pois bem,—continuou a filha de Manoel Quentino—estou resolvida a contar-lhe tudo, mas ha de prometter-me dizer no fim, com a maior franqueza, o que pensa do que eu lhe contar, sim? Olhe que ficamos de mal se me não disser a verdade, inda que me seja desfavoravel.

—Não ha de ser.

—Adivinho que será.

—Oh meu Deus! Cecilia, está a assustar-me—disse Jenny, jovialmente.—Ha no seu rosto e nas suas palavras tal expressão de terror, que me mette mêdo! Praticaria de facto algum crime?…

Estas palavras de Jenny, e inda mais o tom em que foram ditas, fizeram rir Cecilia, e attenuaram muito a timidez com que luctára até alli.

—O que eu quero então—disse ella—é que me deixe continuar, emquanto fallo, a cercadura d'este cabeção, que ficou em meio. Não sei de que é, mas acho-me mais á vontade tendo os olhos entretidos.

—Como quizer; mas n'esse caso, deixe-me occupar tambem os meus, examinando o fundo da sacca.

—Não trago mais nada, a não ser…

—Está bom, está bom: eu verei o que é. Principie.

Applicadas assim cada uma á occupação que escolheram, Cecilia principiou:

—Não sei se já lhe tenho fallado nas filhas do major Mattos, minhas vizinhas ha bastantes annos e antigas companheiras de mestra.

—Muitas vezes. Bem sei.

—Estas meninas são muito boas, muito minhas amigas, mas…

Jenny ergueu os olhos para Cecilia, sentindo-a hesitar.

Cecilia proseguiu:

—Mas sobretudo o que são…—digo-lhe isto a si, Jenny—são ainda mais amigas de se divertir. O genio do pae, tão alegre como o de qualquer rapaz de vinte annos, não desmereceu nas filhas, que todos os dias inventam novos divertimentos.

—É uma felicidade ter um genio assim, pois não é?—disse Jenny, examinando um pequeno bordado.

—Isso não vale nada,—acudiu Cecilia, reparando tambem—nem sei como o trouxe ahi.

Jenny arredou-a com a mão e fez-lhe signal que continuasse.

—Mas emquanto ás minhas amigas,—proseguiu Cecilia—trabalhadeiras são ellas; isso lá são, coitadas; mas, não faz ideia, n'uma hora de descanso… ás trindades, por exemplo, já não pensam senão em como hão de passar o domingo seguinte, e ahi vão lembrar ao pae um passeio pelo rio acima, um jantar na Pedra Salgada ou em Fonte da Vinha, um almoço a Leça ou á Foz, uma noite ao theatro, e é raro que o pae, que é perdido por ellas, não as satisfaça em alguns d'estes projectos, que de mais a mais lhe agradam a elle tambem, é preciso que se diga. Muitas vezes convidam-me e, devo-o confessar, teem-me valido muitas horas de verdadeira distracção, isso tem. É uma familia muito boa, e meu pae não põe a menor duvida em deixar-me ir com ella para toda a parte.

—Estava á espera de uma confidencia que me fizesse estremecer, espantar, e saem-me cousas tão naturaes e tão boas, que confesso-lhe, menina, chego a estar desgostosa—disse Jenny, fechando o sacco de marroquim, onde acabára de guardar todos os bordados e dando ás feições um fingido ar de mortificação.

Cecilia sorriu a esta reflexão, mas acrescentou:

—Ainda é cêdo. Não se apresse a julgar, que póde ter de contradizer-se depois. Havia muito tempo já… ora eu sei?… desde o anno passado, que estas meninas tinham entre si combinado um projecto, mais difficil porém de executar do que nenhum dos outros. Queriam por força que eu tomasse parte n'elle. Ao principio disse-lhes que não; mas tanto me pediram, tanto me convenceram de que não havia nada a receiar, que eu acabei por prometter que sim. Repare, Jenny, repare. Olhe que principia aqui o mau da minha historia. O projecto era…

—Espere; deixe ver se sei. Incendiar a cidade?

—Ora!

—Fazer uma revolução no paiz?

—Está a brincar?

—Partirem todas para a Crimeia?

—Jenny!

—Ás cautelas e hesitações, com que está…

—O projecto era irmos todas mascaradas ao theatro.

—Ah!—disse Jenny, não podendo reprimir um gesto e um movimento de estranheza.

Cecilia, que elevára os olhos para ella, percebeu-lh'os.

—Eu não disse? Veja como principia já a…

—Não é por isso, mas… Continue—replicou Jenny, com mais curiosidade, e não desviando já os olhos de Cecilia.

—Este projecto—proseguiu a filha de Manoel Quentino—tinha, como lhe disse, grandes difficuldades. O major, tão amigo de fazer a vontade ás filhas, não quiz ouvir fallar em tal. Ellas porém é que já não podiam tirar aquillo da ideia.

—E foram?—perguntou Jenny.

—Havia muito que andavam á espera de occasião. E o carnaval a fugir-lhes! Ha de haver porém tres dias que o major foi, por negocios militares, obrigado a saír da cidade.

—E então?…

—As filhas ficaram sós em casa com uma tia d'ellas, muito boa senhora, mas que não sabe recusar-lhes nada. Que mais queriam?

—Foram?

—Foram; hontem mesmo. Se parece que tudo se lhes preparou como ellas desejavam!

—E a menina?—interrogou Jenny, cada vez mais preoccupada com o que ouvia.

—Tinham-me convidado para ir de tarde a casa d'ellas. Depois de lá estar, mandaram, sem que eu o soubesse, recado a meu pae de que eu voltaria tarde, pois tinha de ir com ellas a uma reunião em casa de umas senhoras suas amigas.

—Visto isso…

—Era noite, quando me apresentaram um dominó e me communicaram o seu projecto. Eu ainda lhes puz algumas duvidas, mas…

—Foi?

—Fui. Ah! como está já tão séria! Não o dizia eu?

Effectivamente Jenny não teve poder de disfarçar a impressão, que lhe estava fazendo a confidencia de Cecilia, já pela natureza d'ella, já pela similhança, com a que do irmão ouvira poucas horas antes.

—Prometti dizer-lhe a verdade, Cecilia—principiou Jenny, tomando com affecto as mãos da sua amiga, que interrompera o trabalho já—e seria faltar á minha promessa occultar-lhe que me parece ter sido algum tanto aventurada essa resolução. Umas poucas de senhoras, sós, n'um logar como aquelle, onde dizem que concorre tanta e tão diversa qualidade de gente!… Emfim eu não sei bem, e pelos resultados e que melhor se póde julgar d'estes meus receios, que talvez sejam exagerados… e são de certo.

—Não são, não, Jenny. Olhe; eu, ao principio, para lhe fallar verdade, ia com certa curiosidade. Só me custava que tivesse sido necessario enganar meu pae, mas, como não fazia a menor ideia do que fosse um baile de mascaras, estava com desejos de ver; e, demais a mais, a irmã do major ia comnosco…

—E depois?

—Entramos no theatro, seriam dez horas, íamos todas mascaradas. Por signal que me ri muito com a mascara que levava a irmã do major. É notavel! foi a primeira que appareceu, e tinha alguma similhança com a cara d'ella. Assim como estas caricaturas, que logo á primeira vista se conhece de quem são.

E Cecilia quasi se distrahia com a incidente reflexão ácerca da mascara;
Jenny chamou-a porém ao assumpto.

—Mas vamos ao que lhe succedeu.

—Ah! é verdade. Andamos primeiro por alguns camarotes, em que estavam senhoras do conhecimento das minhas companheiras e a quem ellas fallaram, sem serem conhecidas. Diverti-me com isto. Que graça achei a uma senhora idosa, a quem se metteu na cabeça que nós eramos umas suas parentes de Braga, terminando em chamar-me a sua Joanninha! Coitada! ficou tão desconsolada, quando, espreitando-me os cabellos, conheceu que se havia enganado, que deveras fazia pena!—«E não é! veem, que tristeza a minha?!»—dizia ella tanto do coração, que eu não tive mão em mim, que a não abraçasse e beijasse; arrisquei-me assim a ser vista e a dar a conhecer as outras, que depois muito me ralharam por causa d'isto. Mas se eu não pude!

—Vamos—disse Jenny, sorrindo á sensibilidade da amiga.—E o resto da noite?

—Ai, Jenny, o resto da noite…—respondeu Cecilia, suspirando, como se lhe fosse custosa a confissão, e continuou:—Entramos na sala. Nunca foi a um baile d'esses? Pouco perdeu. Que calor! que confusão! Um quarto de hora depois de alli entrar, já suspirava por saír; mas ellas nem pensavam n'isso. Era meia noite talvez, vim sentar-me, cansada, enfastiada de todo aquelle tumulto.

N'este ponto Cecilia parou, como se o que tinha para dizer lhe causasse maior perturbação.

Jenny não pôde deixar de sorrir pela similhança que esta parte da confidencia tinha com a do irmão.

—Pouco tempo depois—proseguiu Cecilia—veio sentar-se junto de mim… uma pessoa…

Um alfinete fez sentir, não sei como, a necessidade de que as attenções se applicassem todas para elle, e Cecilia não recusava attender, em taes casos, ás reclamações dos seus alfinetes.

Occupada portanto a pregal-o, ou não sei se a despregal-o, continuou:

—Uma pessoa que eu conhecia; olhou para mim e… comquanto não suppozesse quem eu era, fallou-me; respondi-lhe, e por muito tempo ficamos a conversar.

—Em quê?—perguntou Jenny, com modo natural.

A esta pergunta, Cecilia hesitou.

Passados porém alguns instantes, respondeu:

—Eu sei? Em muitas cousas; e é certo que bem agradavelmente; mas cêdo depois vieram outros, menos delicados do que este…

—Do que este?! Ai, visto isto era um homem? não tinha entendido bem—notou Jenny, com ligeiro ar de malicia.

—Era; pois que tinha eu dito? Ah! sim… uma pessoa. Era um homem, era. Os que vieram fizeram-me ver mais claro a imprudencia do passo que tinhamos dado.

Jenny não perdia agora uma só palavra, uma só inflexão, uma só cambiante de côr, que observava em Cecilia. Esta não o percebia, porque os alfinetes estavam de uma impertinencia, que nem lhe deixavam attender a mais nada.

No entretanto dizia:

—O mesmo succedeu ás minhas amigas; preparamo-nos logo para deixar o baile. Vendo porém que nos seguiam, soccorri-me ao cavalheirismo do que primeiro me fallou, e isso nos valeu.

—Ah!

—Serviu-nos de guia e protector através das ruas ainda cheias de mascaras; mas insistia depois em nos conduzir a casa. Tremi ainda mais com esta insistencia, do que com a dos outros. Este conhecia meu pae e se soubesse… Oh meu Deus!… Por mais que lhe rogassemos, não queria deixar-nos; eu, perdida de susto, pedi a Deus uma inspiração. A inspiração veio, e foi poderosa. Elle deixou-nos a final, e nós entramos em casa… mas eram quatro horas da manhã.

O que faltára á confidencia podia Jenny bem suppril-o de per si; desviando porém os olhos disfarçadamente, ponderou como se pretendesse desenganar-se:

—Falta-lhe agora dizer, Cecilia, para ser completa a confidencia, quem era esse homem e qual foi a inspiração que Deus mandou á menina.

D'esta vez tambem os alfinetes de Jenny parecia exigirem certos cuidados, que ella lhe concedeu.

Cecilia balbuciava com manifesto enleio:

—Ah! quem era?… não sei; isto é… quero dizer… era…

Jenny pegou-lhe na mão.

—Seja franca até o fim—disse-lhe em tom de insinuante amizade.—Esse homem era meu irmão.

Cecilia estremeceu e olhou espantada para Jenny.

—Como o sabe?

—Sei tudo—replicou Jenny, apertando-lhe a mão com affecto.—E sei tambem a inspiração que teve, e agradeço-lh'a.

—Sabe? Mas então…

—Carlos tem o costume de me contar tudo, e ainda esta manhã… ha pouco… me tinha dito…

—Tudo?—perguntou Cecilia de uma maneira particular e córando.

—Tudo—respondeu Jenny, dando a esta palavra uma inflexão e animando-a de um sorriso, que augmentaram a intensidade d'este rubor.

Como o leitor viu, tinha havido importante omissão na confidencia de Cecilia, omissão que aquelle «tudo» de Jenny lhe mostrava agora ter sido inutil.

—E que opinião fazia elle… que opinião fazia o snr. Carlos de mim?—perguntou Cecilia com verdadeira inquietação.

Jenny revestiu-se de seriedade e reflectiu algum tempo, antes de responder.

Não se imagina como se faziam extraordinariamente bellas as feições de Jenny sob a influencia d'este ar de reflexão, que tão frequente lhe fixava o olhar e lhe desenhava uma ligeira ruga na fronte.

Cecilia consultava com apparente sobresalto aquella physionomia expressiva.

—Olhe, Cecilia,—disse Jenny por fim—como a menina ainda agora o reconheceu, não foi por certo prudente o passo que deram. A necessidade de o occultar de seu pae era bastante prova d'isso, quando nada tivesse acontecido que melhor o provasse ainda. Carlos procedeu bem e mal; bem, em as proteger; mal, depois. Elle devia ter sempre na ideia, como eu lhe disse, que alguma pessoa bem educada, e que de facto tinha desejos de occultar-se, podia ser essa mascara que elle, depois de proteger, perseguia. Disse-lh'o ha pouco ainda, mas… sabe o que elle me respondeu?

—Que foi?

—Se eu lh'o digo, Cecilia, é para que a menina faça sempre o que lhe aconselharem os presentimentos do seu bom coração, e creia que são excellentes as inspirações que lhe vierem d'ahi. Quando eu dizia a Carlos que imaginasse que era eu mesma a que estava debaixo d'aquelle dóminó, e a que me via perseguida, respondeu-me que não havia probabilidade d'isso, porque… pessoas que…

—Oh! não diga mais, Jenny, não diga mais—atalhou Cecilia, quasi fechando-lhe os labios com a mão; e os olhos inundaram-se-lhe de lagrimas que, umas após outras, lhe rolaram pelas faces.

Era uma das irresistiveis expansões d'aquella impetuosa natureza.

—Bem vê, Cecilia—proseguiu Jenny com affecto—bem vê que não tinha razão Carlos, no que suppunha. A culpa toda era d'elle. E agora não se afflija, menina. Affligir, porquê? Foi uma brincadeira de raparigas e sem consequencias além d'aquellas—acrescentou, sorrindo—de que nem a inspiração, que Deus lhe mandou, a pôde livrar. E se isto a faz chorar assim, o que ha de deixar para os infortunios reaes?

—Jenny, prometta-me nunca dizer a… a ninguem que era eu…

—Socegue. Dentro em pouco nem eu mesma o sei já.

—Oh! meu Deus só o suppôr!…

Jenny conseguiu serenar a rapida tempestade, que turvára o espirito de
Cecilia, e distrahir-lhe a attenção para outros objectos.

Antes de saír de casa de Mr. Richard, já ella tinha rido, e quando entrou na sua, trazia o espirito tranquillo, e respirava com o desafôgo dos dezoito annos, e d'aquella indole sem preoccupações.

Feliz idade e feliz coração!

XIII

VIDA PORTUENSE

Manoel Quentino habitava em uma rua proxima do extremo occidental da cidade, afastada assim do maior bulicio d'ella—bulicio que, desde as tres horas da tarde até ás seis da manhã, era para o guarda-livros insupportavel.

Os gostos de Manoel Quentino tinham de facto variações diurnas tão regulares, como as de um instrumento meteorologico.

Nas horas de vida commercial impacientava-o o socego do bairro em que vivia; ao romper do sol por detraz dos outeiros, que elle avistava ao longe das janellas do seu quarto, tomava-o a febre do trabalho; o cantar matutino das aves por entre os arbustos do quintal, a não ser aos domingos e dias santos, não o tentava a ficar a ouvil-as; parecia que mais bellezas de harmonia achava nos gritos dos vendilhões, que enchem as ruas da cidade baixa. Pelo contrario, ao declinar da tarde, entrava-lhe no coração a nostalgia domestica; começava a odiar o escriptorio, a rua dos Inglezes, o borborinho das praças, e a suspirar, como o expatriado, pela alegria do regresso; extasiava-se em ver de casa descer o astro do dia, e sumir-se no oceano; espectaculo magnifico, ao qual da varanda da sala do jantar assistia com o prazer do espectador que de um camarote de frente presenceia fascinado a vista final de gloria de um drama sacro.

O arranjo interior da pequena casa de Manoel Quentino exprimia certo bem-estar, certo conforto, que principiava a querer transpôr os limites que o separavam do luxo.

Permittiam-o os ordenados que Manoel Quentino, como primeiro guarda-livros, recebia das mãos de Mr. Richard, mãos nunca tão apertadas, que não deixassem saír algumas mealhas mais do que o ajustado.

Preciso é porém confessar que o espirito economico e a intelligente administração de Cecilia concorriam em grande parte para este resultado. Pelas suas mãos, de bem pequenas afeitas ao tracto domestico, tão escrupulosamente regulados andavam os capitaes, que não só satisfaziam ao necessario, mas derivavam-se ainda para o que se póde já dizer superfluo.

Escusado é quasi acrescentar que Cecilia era o idolo de Manoel Quentino. N'ella se concentravam todas as affeições do velho. Tinha apenas seis annos a filha, quando lh'a deixára confiada a esposa, que elle chorava ainda; emquanto cercava a innocente de constante vigilancia e de cuidados assiduos que, por inspirações do coração, soubera amenisar de carinhos e de meiguices verdadeiramente maternaes, robusteceu-se-lhe aquelle amor a ponto de referir d'ahi por diante a elle todos os outros sentimentos, que o moviam.

Nunca lhe pareceu demasiada qualquer despeza feita com Cecilia.

Empenhou-se em dar-lhe uma educação esmerada, e conseguiu-o.

Exultava de prazer, vendo crescer em vida, em intelligencia, em bondade, aquella bonita creança, junto de cujo berço velára noites e noites, scismando no futuro d'ella.

Pouco a pouco deixára-se possuir de um respeito, de uma veneração pela filha, que tinham seus vislumbres de idolatria.

A primeira madeixa loura cortada aos cabellos de Cecilia, ainda menina, trazia-a o velho sempre comsigo, como talisman milagroso; o menor bilhete, dos que ella lhe escrevia para o escriptorio, a respeito de qualquer negocio domestico, archivava-o, como reliquia, que seria profanação deixar perder.

Tinha puerilidades Manoel Quentino!… puerilidades que só farão rir aos poucos, que não as tenham tido iguaes. Movia-o, quasi até ás lagrimas, qualquer phrase affectuosa d'aquellas insignificantes correspondencias.

Como elle era feliz lendo, no alto do bilhete, por exemplo: «Meu bom pae» ou «meu querido pae», e no fim d'elle—«sua extremosa filha» ou «sua filha obediente».

Por irresistivel impulso aproximava dos labios aquellas palavras e beijava-as com fervor.

Quando, no meio do trabalho quotidiano, que elle, como vimos, executava com uma fleugma e regularidade, que deviam fazer suppôl-o homem pouco sujeito a expansões, a ideia de Cecilia lhe passava pelo espirito, tinha movimentos de creança.

Pousava a penna, interrompia a conta, correspondencia, ou o que quer que fosse em que estivesse occupado, para esfregar as mãos de contente, como o rapaz de escola ao acudir-lhe de subito a lembrança de um feriado proximo.

Ás vezes não resistia a dar dois passeios no escriptorio, trauteando, e a vir á janella, com a penna na orelha, a espreitar, por entre os vidros, a altura do sol.

Ao voltar a casa, Manoel Quentino não se distrahia pelas ruas; procurava as travessas e atalhos mais solitarios, para evitar importunos; tardava-lhe a conversa da filha.

Quando na presença d'elle se fallava em alguma epidemia, que principiasse a ameaçar a cidade, já o bom homem não podia dominar um terror intenso; revelava-se-lhe no semblante em caracteres bem evidentes e havia-lhe conquistado a reputação de pusilanime, entre os seus collegas mais novos; já até se divertiam, mal suspeitavam com que crueldade, a despertar frequentes vezes estes receios pânicos.

A ideia do risco pessoal não era porém a que o fazia empallidecer; um só receio, uma só lembrança o torturava então, era a do perigo que podia correr a vida de Cecilia.

Não se concebe em que especie de loucura o lançou uma doença da filha. O serviço do escriptorio foi pela primeira vez perturbado na sua marcha regular, e a correspondencia, em cuja nitidez caprichava Manoel Quentino, não raro lhe saía das mãos toda manchada de lagrimas. No dia em que o medico lhe deu, sorrindo, a certeza de que Cecilia estava salva, Manoel Quentino não teve mão em si, que se não atirasse, a rir e a chorar, aos braços d'elle, chamando-lhe seu bemfeitor e beijando-o com paixão.

Esta crise exacerbou aquelle já extremoso amor de pae.

Não havia sabbado em que Manoel Quentino, parco em excesso talvez comsigo, e que por isso grangeára entre os amigos a immerecida reputação de avarento, entrasse em casa com as mãos vazias, sem um mimo, uma lembrança para Cecilia, arrostando com as meigas exprobrações d'esta e com seus mal simulados arrufos.

Quantas vezes elle fazia, como costuma dizer-se, vista grossa para o azulado ameaçador dos cotovêlos e das costuras do casaco, para as quebras lastimosas do seu chapéo de seda, só com o fim de poupar algumas libras e comprar um chaile, uma marqueza, um vestido novo a Cecilia!

Só depois de repetidas insinuações, pedidos, e até affectuosas ameaças da parte da filha, só depois d'ella haver esgotado os mil recursos da sua eloquencia, é que Manoel Quentino se decidia emfim a olhar por si e a attender ás necessidades proprias.

O meio mais poderoso a que, para isso, Cecilia recorria era pedir-lhe que a acompanhasse a um logar publico qualquer. Então o guarda-livros, que não aprendera a recusar-lhe nada, promettia, scismava, coçava a orelha, examinava o fato, torcia o nariz, resmungava e, no dia ajustado, elle ahi se apresentava de uniforme novo para servir de cavalheiro á filha.

A ideia de a fazer passar por uma vexação realisára o milagre e vencera a sua modesta repugnancia.

Cecilia sabia-se objecto d'este culto, e retribuia-lh'o com attenções e carinhos, que deixavam comprehender ao pae o que devia ser a felicidade suprema.

O leitor, costumado a passar a noite no theatro, nos bailes ou nas assembleias, mal póde fazer ideia do prazer intimo com que Manoel Quentino via escurecer a tarde e scintillarem, ainda pallidas, as primeiras estrellas no céo.

Preparava-se-lhe um d'esses gôsos placidos, que são mal concebidos por quem d'elles anda arredado em habitos de vida mais turbulenta; mas aos quaes não ha talvez caracter ou temperamento humano, que não corra o perigo de habituar-se, se por algum tempo lhes experimentar as doçuras.

É mais facil, e mais vezes se realisa, a transição da vida errante, tumultuosa e agitada para estes monótonos prazeres do viver domestico, do que a inversa; como se o pendor natural da indole do homem o chamasse mais para alli.

Os serões de Manoel Quentino, aquelles seus tão apreciados serões, passavam-se todos com uniformidade tal, que, por um, se ficava, com raras excepções, a conhecel-os todos.

O fim da tarde e a noite d'aquelle dia, em que se passou a parte das scenas, que havemos descripto até aqui, podem offerecer-nos uma perfeita amostra d'elles.

Manoel Quentino, depois de jantar, viera assistir, da varanda do occidente, ao espectaculo do crepusculo e regalar a vista por sobre as quintas, jardins, casas e alamedas do vasto panorama que o mar cingia de zona prateada.

A tarde estava de chuva, mas o vento de sudoeste conseguira romper o extenso manto, que cobria o firmamento, e mostrando um pouco do azul da abobada celeste, deixava que o sol no occaso dourasse as ultimas nuvens, que d'aquelle lado limitavam o horizonte.

As occupações domesticas de Cecilia só de quando em quando lhe permittiam assomar tambem á varanda, e recostando então o braço ao espaldar da cadeira do pae, fazia notar a este as particularidades de belleza d'aquelle vasto quadro, que o espirito pouco analytico do velho sómente apreciava em globo.

—Repare n'aquella nuvem côr de rosa. Não parece mesmo uma ave com as azas abertas?—perguntava Cecilia, designando uma das taes nuvens, que o sol tingia os reflexos afogueados.

—Uma ave!—dizia Manoel Quentino, fitando o objecto designado—Então como te parece uma ave aquillo, menina?

—Pois não acha? Olhe; vê alli a cabeça, depois uma aza, depois a outra?
Olhe, agora inda parece mais; até a cauda se conhece bem…

—Eu… se queres que te falle verdade…—continuava Manoel Quentino, sem perceber ainda a similhança.

—Olhem que pae este! Pois devéras não vê? Para onde é que está a olhar?

E Cecilia vinha collocar a sua bonita cabeça na posição da de Manoel Quentino, e tão perto, que o pae não perdia o ensejo de lh'a beijar na fronte.

—Ora diga, pois não lhe parece uma ave aquillo?—insistia Cecilia.

—Eu… Ah! agora sim!—exclamou o velho, tendo a final percebido a similhança—Agora, sim, senhora! Lá está, e que grande bico que ella tem! Eh! eh! eh!… Ora o diacho!

—A menina faz favor de chegar aqui.

Era a criada Antonia, que reclamava o conselho de Cecilia em alguma difficuldade de administração domestica.

Antonia era um tão genuino typo de criada de servir, que dispensa a descripção.

Cecilia retirou-se da varanda. Manoel Quentino permaneceu com os olhos fitos no sitio, para onde lh'os dirigira a filha, até que a nuvem côr de rosa de todo se descoloriu e desformou.

Então baixou-os para a terra e scismava… na sua felicidade.

Passados instantes, Cecilia aproximou-se pé ante pé, e, sem ser presentida, veio por detraz d'elle e tapou-lhe os olhos com as mãos, perguntando:

—Adivinha quem eu sou?

—Ora tem muito que adivinhar!—respondeu Manoel Quentino, gracejando—pelas mãos se conhece logo. É a aguadeira.

—Ora vamos!—exclamou Cecilia, rindo—Mas para onde é que estava a olhar assim entretido, que nem me viu?

—Estava a ver umas obras, que além se andam a fazer. Aquillo, se me não engano, é na casa do conselheiro Arantes.

—Ora se ha de olhar para acolá, para aquellas arvores, põe-se a reparar n'essas casarias! Não lhe appetecia estar alli, debaixo d'aquelles carvalhos?

—Não é nenhum impossivel; se quizeres…

—Então promette levar-me lá?

—Prometto tudo o que tu quizeres.

—Veja o que diz! Depois, se lhe pedir alguma cousa difficil!

—Eu já estou costumado ás tuas exigencias.

—Sim? pois eu tenho uma cousa a pedir-lhe.

—Ha de ser grande.

—E é, promette fazel-a?

—Dize lá.

—Mas promette?

—Mas dize primeiro.

—Não, senhor, prometta antes.

—Bem sabes que te não digo que não.

—Mas então que dúvida tem em prometter?

—Está bom, prometto.

—Dá-me a sua palavra?

—Dou a minha palavra—disse Manoel Quentino, rindo.

—Pois o que eu queria pedir-lhe—disse Cecilia, passando os dedos por entre os cabellos brancos do pae—era que comprasse outro guarda-chuva, que, a fallar verdade, aquelle sempre está!…

—Ora! cuidei que era outra cousa!

—Não importa; mas prometteu.

—Pois sim; mas escuta…

—Ágora escuto, que tenho mais que fazer.

E retirava-se apressada para não ouvir, dizendo:

—Não quero saber, prometteu!

D'ahi a pouco era o pae que a chamava.

—Cecilia, ó Cecilia! anda depressa ver um vapor no mar.

Cecilia correu á varanda.

—Vês?

—Agora estou como o pae ha pouco com a nuvem.

—Pois não vês?! Olha; aqui mesmo ao direito d'aquella chaminé; entre aquella entre-aberta de pinheiros.

—Bem vejo. Entra ou sáe?

—Quer entrar; mas com o rio assim! Aquillo é vapor inglez. Ora traze-me o oculo.

—Agora é quasi noite e não póde distinguir nada. E demais está frio, não será mau fechar a janella e vir cá para baixo. Eu tenho tambem de trabalhar e preciso de accender luz mais cêdo.

—Pois então vamos.

Principiava então ainda mais agradavel passa-tempo para o honesto guarda-livros.

Desciam para a sala contigua ao quarto de Manoel Quentino; sala modestamente mobilada, mas em cada particularidade da qual se revelava o bom gosto de Cecilia. Se alli dentro se não encontrava nenhum movel de alto preço, nenhum objecto de elegancia luxuosa, não havia tambem as ridiculas demonstrações de um gosto grosseiro, amontoadas sem ordem, adquiridas sem escolha.

Descobria-se em todo aquelle recinto um asseio e conchego, que fazia bem contemplar.

Manoel Quentino sentava-se junto da mesa do trabalho, em uma cadeira de braços, verdadeiramente patriarchal; Cecilia trazia luz, fechava as janellas, pousava a cesta da costura e vinha sentar-se ao lado do pae.

Manoel Quentino contava alguma cousa do occorrido no escriptorio;
Cecilia correspondia-lhe, referindo o que, na ausencia de Manoel
Quentino, succedera em casa.

N'aquella noite o pae fallou muito de Carlos, das suas travessuras, do seu estouvamento, dos enganos que n'aquella manhã lhe fizera ter na escripta, do episodio da agua-ardente, dos sentimentos de Mr. Richard para com o filho, e sobre tudo do bom coração do rapaz.

Cecilia escutava-o com attenção, sem nunca o interromper com perguntas, mas tambem sem nunca levantar os olhos da costura, para os fitar no pae.

N'isto retiniu a campainha do portal.

—Ahi está o homem—disse Manoel Quentino.

—Antonia, vá alumiar—bradou Cecilia.

Ouviu-se Antonia descer pesadamente as escadas, depois algumas palavras trocadas no portal, os passos de duas pessoas subindo, e o homem, que Manoel Quentino parecia esperar, entrava para a sala, tirando o chapéo e cumprimentando os circumstantes com a invariavel fórmula:

—Muito boas noites, snr. Manoel Quentino; muito boas noites, menina.

Este homem era um vizinho e amigo de Manoel Quentino, que, havia muito tempo, ganhára o habito de vir todas as noites alli ouvir ler os jornaes, tomar chá e sustentar com o guarda-livros o mais soporifero e descosido dialogo que se póde conceber, retirando-se emfim, ao bater das nove horas, depois de agasalhar o pescoço com uma manta de lã, a qual levava sempre de prevenção para toda a parte. Chamava-se José Fortunato; fora em tempo negociante de cereaes; n'esta época era proprietario de predios velhos, possuidor de papeis de credito, homem de habitos pacificos e ideias conservadoras, modesto no vestir, discreto no fallar, fazendo ao jantar o seu forte no cozido, e, entre as maiores extravagancias da sua vida actual, contando a de comprar, de quando em quando, uma lagosta para comer de salada.

Era d'estes sujeitos, fieis observadores das leis commerciaes, e rigorosos nas suas contas, a ponto de poderem parodiar uma das petições do Padre-nosso, dizendo:—Fazei que nos paguem, Senhor, as nossas dividas, assim como nós pagamos aos nossos credores.

Esta quotidiana visita a Manoel Quentino tornára-se já para o snr. Fortunato uma necessidade, e de igual fórma a presença e o conversar do ex-negociante de cereaes, com quanto pouco ferteis em distracções, não eram menos precisas ao pae de Cecilia, que estava n'aquella idade, em que os habitos imperam com mais força, e menos se amoldam os genios ás exigencias de habitos novos.

Passados os cumprimentos de tarifa, José Fortunato tomava assento ao lado de Manoel Quentino, e principiava entre elles um dialogo, que, com as variantes que o leitor prevê, era d'este teor a fórma:

—Muito frio, snr. Fortunato—dizia um.

—E muita chuva—respondia o outro, ageitando-se.—Esteve hoje lá em baixo?

Pergunta ociosa.

—Estive.

—Então que se diz de novo?

—Nada.

—O rio vae muito cheio?

—Parece que começa a abaixar um pouco.

—Sempre está um tempo, santo nome de Deus!

—E que desgraças tem já causado!

—Que eu dou-me melhor com o frio—acrescentava d'ahi a instantes Manoel
Quentino.

—Eu lhe digo, eu tambem, para que digamos, não passo mal no inverno; tenho mais appetite; mas esta catarrhal…

Tossia, para exemplo.

Todos os dias diziam isto um ao outro.

—Para as terras é que isto vae mal.

—Já tudo está por a manta de Judas.

Phrase da linguagem popular, que quer dizer, não sei por quê, que tudo está caro.

—Pois a carne?!

—Se deixam ir todo o gado para o estrangeiro! Devia fazer-se uma lei, que prohibisse esse desafôro.

Alvitre economico, que ainda não perdeu de moda.

—Isto está o diacho!

Este apophthegma fechava quasi sempre e com chave de ouro o dialogo.
Calaram-se os dois.

Cecilia, que esperava por este silencio e já por habito sabia o que significava, ia então buscar as folhas do dia e preparava-se para ler; os dois velhos dispunham-se a escutar.

Qualquer d'elles experimentava um prazer indefinivel em ouvir ler
Cecilia.

Lia com tanta intelligencia e graça, que o snr. José Fortunato confessava, que muitas vezes, ouvindo-a, entendia cousas, em que debalde tentára penetrar, a grandes esforços de leitura propria.

Era uma scena curiosa aquella.

A compaixão paternal só perdoava a Cecilia a secção dos annuncios; o mais tudo lhes lia a condescendente rapariga; o artigo de fundo, com resignação; com intrepidez, as noticias estrangeiras; com curiosidade, as locaes; o folhetim, com mais vontade; e tudo sem o menor constrangimento, que podesse aguar aquelle prazer dos seus ouvintes.

O genio de Cecilia nem sempre lhe permittia proceder, sem commentarios, áquella leitura toda. A apologia exaltada do governo interrompia-a ella ás vezes com um áparte, capaz de produzir crise ministerial, se fosse escutado nas camaras; uma catilinaria, acerbamente opposicionista, desafiava-lhe reflexões, que neutralisavam o contagio anti-governamental que principiava a fazer das suas nas profundas convicções de ordem do snr. José Fortunato.

O leitor deve estar certo de que, por aquelle tempo, monopolisavam a curiosidade publica as variadas peripecias da guerra da Crimeia.

Cecilia era obrigada a ler aquellas descripções de carnificina, que todos os dias enchiam as columnas dos periodicos; isto o fazia ella sempre com a fronte contrahida de desgosto.

Manoel Quentino era pelos alliados, José Fortunato esposava a causa dos russos—um e outro sem saberem bem porquê. Cecilia era só pelos mortos e feridos.

Um dia parou no meio da descripção de um dos mais sanguinolentos encontros dos dois exercitos, para interpellar o pae sobre a causa d'esta guerra implacavel.

A pergunta embaraçou consideravelmente Manoel Quentino, que olhou para o snr. José Fortunato, como a ver se lhe vinha auxilio d'alli; o snr. Fortunato o mais que pôde dizer foi:—«Que a guerra era lá por causa de umas cousas».

Cecilia tambem não exigiu saber mais.

—«Os russos…—leu ella n'aquelle serão—fazem fogo durante a noite sobre o campo dos alliados; estes absteem-se de responder.»

—Teem mêdo—commentou logo o snr. José Fortunato com um sorriso.

—Isso é plano!—acudia Manoel Quentino, com ares de quem entrava no mysterio.

—«Os atiradores alliados respondem porém de dia com proveito»—continuava a ler Cecilia.

—Então? era ou não era plano? Eu logo vi—exclamou Manoel Quentino, exultando.

—Balas perdidas—replicava o outro, encolhendo os hombros com desdem.

—«Os soldados—proseguia Cecilia—pedem com enthusiasmo ao general em chefe, que dê a batalha»—e, acabando de ler isto, fez um gesto de aversão.

—Pois vão para lá!—respondia o snr. José Fortunato, como homem que conhecia a preceito os recursos de defeza da praça.

—«Em Sebastopol ha duas mil bôcas de fogo»—lia ainda Cecilia.

José Fortunato olhou para o seu amigo, com gesto provocador e triumphante; parecia que o convidava a atacar, propondo-se elle a defender com aquelles auxiliares.

Em seguida Cecilia leu que Vassif-Pachá acabava de tomar o commando do exercito da Asia.

Foi a vez de Manoel Quentino pagar o gesto do outro, como se depositasse grande confiança no Vassif e nas operações campaes do exercito da Asia. Mas o gosto de triumpho foi maior ainda quando ouviu que, a 30 de janeiro, partira para a Crimeia, Ulrich, que elle não sabia quem era, com a guarda imperial franceza; José Fortunato só teve, a compensar-lhe o receio d'esta acommettida, a noticia de que estavam seis mil russos em Pruth.

As noticias locaes eram o terreno neutro, onde caminhavam a par, e sem conflicto, as curiosidades do auditorio.

Uma cousa não podia Cecilia perdoar aos localistas, era que tratassem levianamente certos assumptos tristes: a prisão de um pobre, uma desordem domestica, uma tentativa de suicidio, por exemplo. Impacientava-se com isto, e formulava um voto de censura, que Manoel Quentino e José Fortunato apoiavam.

O noticiario vinha então abundante de descripções de desastres, causados pela cheia do Douro.

Era com consternação que Cecilia lia a narração de tantas miserias. Commoveu-a sobre tudo um facto verdadeiramente tragico, do qual ainda haverá talvez no Porto quem conserve memoria. O irmão de um piloto de um dos navios que a corrente arrebatára, depois de tentar em vão salvar o irmão em perigo, perdeu a razão, vendo-o succumbir; e esta dupla catastrophe feriu de morte o velho pae de ambos. Manoel Quentino, que tinha razões para saber o que era o amor de pae, limpou uma lagrima a occultas. José Fortunato, com ser boa creatura, tinha, em circumstancias assim, certas observações sêccas, de fazerem perder a paciencia a um santo.

Ouvindo ler aquillo, disse:

—Ora! Isso é historia! Os gazetilheiros ás vezes…

—Historia! Ó snr. Fortunato, por quem é!—exclamou Cecilia impaciente—Lembre-se de que é um irmão a querer salvar um irmão, e a vel-o morrer; de que é um pae que perde dois filhos; não acha ainda razão de mais para a morte ou para a loucura?

—Pois então o outro que não fosse metter-se ao perigo; devia lembrar-se…

—Ora devia lembrar-se!… quem se lembra de nada n'aquelles momentos? O snr. Fortunato tem cousas!

Fortunato já estava arrependido do que dissera.

—Com menos motivos—acudiu Manoel Quentino—se arriscou ha tempos na Foz o Carlitos, lá o filho do meu patrão. Virou-se no meio do rio um pequeno barco valboeiro, que ía governado por duas creanças, uma das quaes nem sabia nadar; e elle, que andava ás gaivotas com outros inglezes—que é o seu gosto—não esperou mais nada e zás… mergulhou como um peixe e salvou a creança. Depois continuou a caçar, com a roupa molhada no corpo, inda por muito tempo, em termos de ganhar qualquer doença.

Cecilia estava tão entretida a examinar não sei o quê, que vinha no periodico, tão perto tinha os olhos das lettras, que julgo nem dava attenção ao episodio, narrado por Manoel Quentino.

É verdade que, assim que o snr. José Fortunato, depois de ouvil-o, disse, com os seus modos sêccos:—«Estroinices», Cecilia levantou a cabeça com impeto e fitou-o córando e com uma expressão, pouco lisongeira para o velho.

Eu não sei bem explicar este movimento em uma pessoa distrahida, como ella estava, movimento, que aliás não teve consequencias, pois, voltando á posição anterior, passou a ler o folhetim.

Esta parte ouvia-a Manoel Quentino dormitando. Não lhe levem isto a mal os folhetinistas. José Fortunato, pelo contrario, ouvia-a com ardor; a maneira de ler de Cecilia inoculára-lhe o gosto dos romances. Tomava agora pelas peripecias um calor exagerado. Para elle era ponto de fé que tudo aquillo acontecera, e que tinham vivido, ou viviam ainda, os personagens, entre quem se travava a acção. Censurava por isso com a mesma violencia, e louvava com a mesma satisfação esses heroes phantasiados, como se fossem membros reaes da sociedade.

Lido o folhetim, Cecilia passava o jornal ao snr. Fortunato, e ia tratar do chá. Fortunato lia para si os annuncios.

Manoel Quentino passava então pelo somno.

Depois travava-se entre os dois um dialogo, todo cortado de bocejos contagiosos;—os assumptos eram para estes effeitos. Eis o programma d'esta noite:

Primeira parte:—Fortunato principia por dizer—«Pois é verdade.»—Replica-lhe Manoel Quentino—que a vida estava para elle.—«Queixe-se, que tem de quê»—diz o outro—«E não tenho pouco»—responde Manoel Quentino. Dois bocejos de ambos os lados, e pausa.

Segunda parte:—Manoel Quentino queixa-se de umas dores de cabeça.—Fortunato attribue-as ao tempo e esfrega os olhos. Manoel Quentino inclina-se a que seja antes do estomago. O outro aconselha-lhe que não use de café ao almoço. Bocejos reciprocos.

Terceira parte:—O snr. Fortunato, olhando para o tecto, nota que a sala tem diminuto pé direito. Manoel Quentino responde que, para a largura, é o bastante. O outro diz algumas palavras sobre as vantagens dos estuques. Manoel Quentino concorda e procura uma transição para fallar contra os senhorios; Fortunato responde-lhe com uma diatribe contra os caseiros. Reproduz-se um bocejo em Manoel Quentino, que se transmitte ao outro.

Quarta parte:—Fortunato diz que está a expirar o carnaval. Manoel Quentino replica que lhe não deixa saudades. Fortunato faz igual declaração. Manoel Quentino vê com maus olhos a chegada da quaresma, por causa das confissões. Discute-se quaes os confessores mais passa-culpas. Manoel Quentino lembra-se de perguntar quem inventaria isto de confissões. Fortunato fal-as remontar ao tempo dos romanos, supremo grau de vetustez, e d'elle conhecido.

D'esta vez os bocejos ficaram em meio, graças á entrada de Cecilia e de
Antonia com o taboleiro do chá.

Era notavel a transformação, operada em Fortunato. Alegrava-o o aspecto das tostas e do leite. Então que querem? Não era que o homem precisasse d'aquillo; mas emfim todo aquelle apparato bulia-lhe com a sensibilidade gustativa e, por os mysteriosos laços do physico e do moral, lá se lhe ia entender com a alma por fim.

Esta satisfação interior desentranhava-se em amabilidades para com a
Hebe domestica d'aquella ambrozia—a snr.ª Antonia.

—Ai, snr.ª Antonia—dizia elle—assim é que é; cada vez mais nova.

—Não me diga isso, snr. Fortunato; logo eu, que estou acabada.

—Acabada! Ainda mal principiou…

Eu não sei se era intenção do snr. Fortunato terminar aqui a oração, cujo sentido fica um tanto obscuro. E não o sei, porque n'este ponto Cecilia interrompeu-o, dizendo-lhe:

—Faz favor de ver se está bom do assucar, snr. Fortunato.

—Excellente, menina; mas faz-me favor de mais uma colherinha. Assim, muito bem; mais uma agora e mais nada… assim… agora mais não. Está muito bem.

Depois de cada um tomar a sua posição respectiva, o snr. Fortunato principiou a fallar, misturando na bôca as palavras com chá, com leite, e com tostas e bolos.

—Pois, menina, eu estou morto agora por ver se o tal meliante escapa da prisão.

—Pois quem foi preso?—perguntou Manoel Quentino, que, tendo estado a dormir, não sabia que o seu amigo se referia ao romance, que vinha na folha.

—Então não ouviu?—disse o snr. Fortunato, engulindo um bolo—Ella foi bem pilhada, isso lá foi. Porque o homem, pelos modos, não sabia que o desconhecido era o pae da rapariga, e tanto que elle ficou espantado quando o outro lhe appareceu, vestido de preto, e lhe disse…—Aqui o snr. Fortunato engrossou a voz.—«Eu sou a ultima das tuas victimas!»—E o filho então é que veio a saber d'isto: sim, porque até alli não sabia nada. Veio então a saber que a irmã do amigo do commendador é que tinha dado o dinheiro, que elles entregaram á tal viuva do cunhado do escrivão.

Manoel Quentino mexia machinalmente o chá, olhando boquiaberto para o amigo, sem que percebesse uma só palavra, apesar do snr. Fortunato gesticular, voltado para elle.

—Que diacho de embrulhada é essa? Eu se o entendo!

—Então não leu?—teimava o outro—Elles tinham combinado que, logo que partisse o navio, o rapaz fosse accusado do roubo feito ao commendador; e para isso mandaram dizer aos tios do defunto que as joias foram encontradas na caixa do escudeiro do desconhecido, mas…

—Mas quem demonio é essa gente toda? Que mexerofada de cousas!—exclamou Manoel Quentino, devéras impaciente.

—Então não ouviu?—insistiu o snr. Fortunato, cuja natural difficuldade de expressão se exacerbava ao expôr as enredadas aventuras de um romance francez.

Cecilia, que ao principio não attentára no dialogo comico, que se estava trocando entre os velhos, não pôde deixar de rir com vontade, ao dar por elle.

—Mas onde aconteceu isso tudo, homem?—perguntava Manoel Quentino.

—Em Paris. Pois não…

—O pae não vê que o snr. Fortunato está a fallar do romance?

—Ah! isso sim.

—Pois que cuidava?

—Eu sei lá o que cuidava. Eu cá de romances não entendo. E agora por isso lembra-me que aquelle endiabrado rapaz, o Carlitos, teimava que me havia de emprestar lá uns romances… Eh! eh! Tem diabo o rapaz.

—Tambem está um estroina!—disse o snr. Fortunato, que era dos que tinham Carlos na conta de homem perigoso.

—Mas deixe lá, que é uma boa alma!—respondeu Manoel Quentino—Ninguem lhe póde querer mal. É capaz de tirar a camisa do corpo para soccorrer um pobre. Ahi está que uma vez viram-o, era ainda dia claro, entrar na cidade, trazendo o cavallo á arreata e na sella vinha uma pobre velha, que elle encontrou na estrada com um pé desmanchado; outro que fosse… Ó Cecilia, então? onde tens tu o sentido, que nem reparas que alli o snr. Fortunato tem ha tanto tempo a chicara vazia?

—Ai, perdão—disse Cecilia, córando pela distracção em que caíra.

Não sei bem por que isto a fez córar assim; mas o facto deu-se.

O snr. Fortunato, que havia muito tossia e suspirava com o fim de chamar para si, e para a chicara, as attenções, disse por delicadeza:

—Não tinha pressa.

Manoel Quentino continuou tecendo louvores a Carlos.

—Mas emquanto á tal historia da mulher—dizia Fortunato, recebendo de
Cecilia a outra chavena—isso tambem foi parlapatice no rapaz, pois…

—Então; faz favor de ver se quer mais assucar—disse Cecilia, com um certo modo desabrido, que eu tambem não sei explicar, e que contrastava com a doçura que lhe era habitual.

O snr. Fortunato notou-o.

—Está muito bem, menina—disse elle.—Faz-me o favor de mais uma colherinha. Está muito bem.

—Menos isso, snr. Fortunato—continuou Manoel Quentino.—Bem se vê que não conhece o Carlitos. De imposturas é que elle nunca foi. Já em creança…

—Meu pae, sirva-se antes d'estes bolos—disse Cecilia de modo tão affectuoso, que alvoroçou a sensibilidade do velho.

—Deixa estar, filha, que eu cá me vou servindo.

—Pois sim—insistia o snr. Fortunato—mas que elle não é lá de muitos bons costumes, isso é que é verdade.

—Antonia, sirva aqui o snr. Fortunato—disse Cecilia sêccamente, ordem que, por excepcional, surprendeu a todos.

Tambem não sei bem explicar a razão d'esta ordem.

—Tudo isso não passa de rapaziada—proseguiu Manoel Quentino.—Mas o que se chama fundo, boa alma, isso tem.

—Olhe, snr. Manoel Quentino, homem que não toma rumo de vida…

—Tambem ha muitas más almas á testa de grandes estabelecimentos, snr. Fortunato. Se um modo de vida fosse garantia e probidade!—disse Cecilia com ironia.

—Pois bem sei que não, menina, mas…

—Mas, mas, meu caro—disse Manoel Quentino—o que ninguem póde negar é que está alli um homem de bem… é verdade isso… Muitos fazem peior com menos a desculpal-os.

O dialogo proseguiu, discutindo-se muito Carlos. Cecilia porém absteve-se de tomar parte n'elle.

Terminou o chá. O ardor da conversa baixou. Manoel Quentino presentia o somno. José Fortunato sentia-se a digerir. Cecilia trabalhava e ás vezes ficava parada com os olhos fitos na luz, como se ella lhe offerecesse qualidades novas a examinar. Davam emfim nove horas.

—Ora vamos até casa—disse José Fortunato erguendo-se.

—Olhe se se agasalha—recommendou-lhe Manoel Quentino.

—Antonia, venha alumiar—disse Cecilia.

E o snr. Fortunato, feitos os seus cumprimentos, descia as escadas, conversando com Antonia até á porta da rua a respeito de frieiras, e mettia-se em casa, onde a imaginação teimava em recordar-lhe a doce figura de Cecilia, e tudo quanto lhe dissera.

—Estranhei hoje os modos da rapariga—dizia elle ao deitar-se.

Uma perfida paixão começára, havia muito, a minar o coração do pobre homem.

Manoel Quentino, como tinha de se levantar cedo, ia-se deitar pouco tempo depois de Fortunato sair.

O dialogo entre o pae e a filha d'esta vez consistiu n'isto:

—Este snr. Fortunato ás vezes!…

—É caturra, é…

—E tem umas ideias! Boa noite, meu pae.

—Muito boa noite, minha filha. Deus te abençoe.

Cecilia retirou-se.

Apesar de na vespera se ter deitado tarde, como o leitor sabe, Cecilia não sentia somno. Parecia-lhe estar ainda experimentando o atordoamento do baile. Lembrava-lhe tudo quanto Carlos lhe dissera, e o mais que de Jenny tinha sabido, e affligia-se então. Depois vinham as reflexões de Fortunato, depois as palavras do pae e os episodios que de Carlos Whitestone referira. A final cedeu ao somno. Pouco lucrou na transição. Ha certo dormir que fatiga mais que a vigilia. Trava-se uma lucta de sonhos, que nos deixa extenuados.

Cecilia imaginou que ia n'um barco, levado pela corrente impetuosa do rio, em direcção da barra. O perigo era certo, e comtudo o barco ia cheio de mascaras que dançavam. Cecilia gritava, mas ella propria não escutava a sua voz. O barqueiro era o snr. Fortunato, e, cousa singular, ao mesmo tempo que remava, ia tomando chá. Depois vinha Carlos, com um cavallo pela rédea; mas o que mais a surprendia era que vinha pelo mar. Carlos queria salval-a, tirando-a do barco, mas as outras mascaras e o snr. Fortunato não deixavam. Porém o snr. Fortunato já não era o snr. Fortunato, mas sim um dos personagens do romance, que tanto o impressionára; e o mar tambem já não era bem mar, porque tinha camarotes em volta. E comtudo o perigo persistia, sem saber bem como ou em quê, e agora era ella a que fugia de Carlos.

Finalmente, o sonho era de um enredo complicado, tendo por elementos os diversos acontecimentos e assumptos, que mais tinham preoccupado Cecilia n'aquelle dia, mas tudo em desordem completa.

Em consequencia d'este sonho, acordou de manhã, pallida e abatida—o que não pouco inquietou Manoel Quentino.

XIV

IMMINENCIAS DE CRISE

Emquanto Cecilia passava assim pacificamente o serão d'aquella noite, andava Carlos procurando com anciedade, por todos os salões de mascaras, a sua desconhecida da vespera.

Jenny notára a impaciencia, com que o irmão tinha aguardado a noite e, ao vel-o sair, disse-lhe com modo particular:

—Adeus, Charles; quer-me parecer que te não recolherás d'esta vez pelas quatro horas da manhã.

—Quem sabe, Jenny?

—Adivinho-o.

Effectivamente não eram ainda duas horas, quando Carlos Whitestone, cansado de procurar em vão, em cada dóminó e sob cada mascara de seda, a incognita do ultimo baile, voltou a casa em pouco agradavel disposição do espirito.

Jenny, que o sentiu chegar, sorriu de novo e disse comsigo mesma:

—Inda bem, que terminou o carnaval. Charles, dentro em dois dias, já pensará em outra cousa.

Acabára de facto o carnaval. Expirára essa época votada á folia e á loucura sem rebuços e abria-se agora a da penitencia e dos sermões.

Em qual das duas ha mais verdades, mascaradas sob falsas apparencias, deixo aos moralistas decidir. Ia principiar o reinado dos véos, durante o qual a piedade e a moda levam ás sextas-feiras a multidão para a igreja de S. João Novo, e ao domingo despejam meia cidade nos arrabaldes proximos, para assistir á procissão dos Passos e ao respectivo sermão do encontro.

Quasi toda a manhã de quarta-feira de Cinza passou-a Carlos em casa.

Contra o que era de esperar do caracter d'elle, dominava-o ainda a lembrança da mysteriosa mascara; o despeito de a ter deixado escapar, sem que lhe ficassem vestigios, pelos quaes podesse um dia vir a saber quem ella fosse, concorria para o não deixar tranquillo agora. Estava dando tratos á imaginação, para se lembrar de qualquer meio conducente á solução d'aquelle problema de carnaval. Mas nenhum alvitre lhe offerecia a imaginação atormentada.

Saíu emfim, sem saber para quê, nem para onde; em vez de procurar os centros de reunião mais concorridos, e onde, de ordinario, se fazia ver e ouvir, mudou de rumo, deixou-se ir ao acaso e, passado tempo, caminhava por entre os pinhaes, que orlam a parte ainda não edificada da rua da Boa Vista.

Nos seus habitos de vida, essencialmente urbana, eram tão raras as occasiões de se ver assim entre arvores e fóra do povoado, principalmente áquellas horas do dia, que o facto estava-lhe causando uma impressão singular.

Parecia-lhe um mundo novo; e alli, a dois passos de casa!

Internou-se por pinhaes e campos, até perder de vista a estrada. Parou emfim. N'um estado moral, como o de Carlos n'aquella manhã, não são necessarios os grandes espectaculos da natureza para incitarem o pensamento a uma d'essas divagações, a que anda tão sujeito o dos poetas.

A vastidão do mar, o horizonte amplissimo, que se descobre do alto das montanhas, o fragor da cataracta, que se despenha no valle, subjugam e obrigam a meditar até os menos propensos a contemplações abstractas.

Haja porém um fermento de poesia no espirito de qualquer homem, ou tenha-se apoderado d'elle a melancolia, que é uma poesia tambem, e menores causas bastarão para se produzirem effeitos ainda maiores.

O caminhar do insecto ou o rastejar do verme por entre as folhas sêccas do chão, a lande, desprendida do ramo e arrebatada na corrente, o raio do sol, que vae colorir a maravilhosa teia que a aranha teceu nas tojeiras, nas praias o movimento de expansão das actinias, ou rosas do mar, esses verdadeiros forcados das fragas, e outros iguaes phenomenos, sem importancia para quem os vê com animo distrahido, são já alimento bastante para phantasias mais apuradas.

Carlos tinha a imaginação predisposta para estas impressões subtis, e, como raras vezes se sujeitava a ellas, recebia-as agora com duplicada intensidade.

Era pelas tres horas da tarde de um dos mais formosos dias, que nos póde conceder fevereiro. Havia no campo aquella frescura, aquelle renascer de vida que, após longos dias de chuva, traz um dia de sol claro. O céo não tinha uma nuvem, nem lhe empanava o azul o véo transparente de nebrinas. Os pinhaes estavam silenciosos, como se, julgando-se já na primavera, se tivessem calado para escutar as aves; o vento, de debil que era, mal podia agitar as folhas movediças das arvores que o inverno respeita. Era tal a serenidade da tarde, que o fumo das casas rusticas subia ao ar lentamente, em columnas direitas, sem que uma viração as quebrasse, e só muito alto se dissipava na atmosphera.

Do logar onde parára, Carlos ouvia distinctamente a voz das raparigas do campo, chamando o gado, rindo ou cantando.

Era de longe que partiam aquellas vozes, mas a amenidade da hora e o silencio deixavam-as chegar até alli sonoras e perceptiveis.

Carlos sentiu-se enlevado por tudo aquillo.

—É uma singular loucura—pensou elle—julgar que se aproveitam os dias da juventude da maneira por que eu vou passando os meus. Do homem, que teve a minha vida, emquanto novo, costuma dizer-se que soube gosar d'ella em tempo. E como é que eu d'ella gosei? Na atmosphera asphyxiante de um café; na plateia de um theatro, onde se falla e pensa em tudo menos na belleza da arte; nas assembleias semsabores; nas esquinas das praças, ou em lojas á moda. Na verdade, que delicioso viver! E o espirito, que parece sentir-se palpitar, agitar-se em nós, quando assoma a mocidade, acaba por embotar-se, por adormecer; torna-se incapaz de nos proporcionar certa ordem de gosos, para os quaes temos faculdades creadas. E diz-se então que soube gosar da vida o que voluntariamente se privou das mais gratas impressões, que podem sentir-se n'ella!

Isto dizia, ou antes, pensava Carlos, ao entranhar-se cada vez mais no pinheiral, e respirando a pleno peito a atmosphera balsamica do logar.

—Nem eu sei—proseguia elle—como ainda experimento prazer, ao achar-me aqui só. Nos habitos de vida, que fiz meus, perde-se até a faculdade de saber sentir assim, a sós; quando é talvez d'esta maneira que a imaginação mais subtil se mostra…

Vejam os leitores até onde iam já arrastando Carlos os attractivos d'aquella solidão suburbana!

Operou-se porém uma transformação nas suas ideias, que parecia vogarem, e á vela cheia, seduzidas pelas doçuras da vida de anachoreta. Um pensamento, menos misanthropo, mais social, fel-as mudar de rumo.

—Mas não—reconsiderou elle—não basta sentir; é necessario transmittir as expressões dos nossos sentimentos, e os troncos das arvores, a final de contas, não são os confidentes mais proprios. Tudo precisa de reflectir-se, para não perder na immensidade; a luz, n'um espaço vasto, dissipa-se; o som esmorece; o sentimento parece tambem enfraquecer, se outra oração, reflectindo-o, o não reforça. É porisso que a presença de um amigo… Mas que amigos tenho eu?

Tremo devéras pelos chamados amigos de Carlos, ao vel-o disposto a responder a esta pergunta, que fez a si proprio.

—F…,—continuou elle—cuja amizade não resistirá á primeira falta de senso que lhe notar n'um folhetim; C…, que romperá commigo, se eu tiver a franqueza de lhe apontar o menor defeito de equitação; L…, que abandonaria o amigo, logo que o visse seguir um terreno, onde elle corresse o perigo de enlamear as botas de polimento…, e todos os mais da mesma força. Vão lá escolher um d'esses homens para companheiro n'estas viagens sentimentaes.

Aqui interrompeu-se para observar um pequeno e agil lacerto, que fugiu espavorido ao sentil-o aproximar, e do buraco, onde se occultára, continuava espiando-lhe os movimentos com os olhos vivos e como scintillantes. Carlos achava curiosissimo este espectaculo vulgar. Depois seguiu caminho, distrahido ainda, e pensava:

—Ahi está; se eu dissesse a qualquer que me entreteve esse pequeno reptil, correndo por entre os fetos e por sobre as pedras musgosas d'aquelle muro, zombaria da minha candura; chamar-lhe-hia pieguice… Ha certas vibrações de sensibilidade, que não se póde communicar… a não ser… a não ser a um coração de mulher… Ellas sim, teem certas puerilidades sublimes, que… Ora adeus! Temos outra como a dos amigos. Se me recordar de algumas mulheres que tenho amado, que vejo eu? A S…, mulher nervosa, que teria um deliquio só ao ver aquella sardonisca—sensibilidade de toucador; a C…, essa então, mulher forte, que só um terremoto como o de Lisboa seria capaz de commover; a E…, belleza de salão, que se levanta ao meio dia, admira a natureza… nos jardins, e lamenta que a solidão não tenha gente que veja como ella a sabe apreciar…; e as outras regulam por isto. Verdade é que eu tambem com isto me satisfazia; quem sabe se procurando de outra maneira…

N'este ponto tomaram as suas meditações outro caracter. Alguns passos mais adiante, já elle meditava:

—Á força de me rir, em sociedade do amor sincero, desinteressado, dos casamentos de paixão, da vida de familia, quasi me deixei persuadir de que me ria convencido. E comtudo, se me sondar devéras… se aproveitar estes momentos raros, em que sou franco e expansivo commigo mesmo…

O leitor sabe de certo até onde podem chegar as excursões do pensamento, quando no terreno que o de Carlos ia seguindo agora; muito mais se, como elle, se está em pleno bosque e longe do rumor da cidade; se o sabe, não estranhará que, momentos depois, já assim estivesse pensando Carlos:

—Um amor bem verdadeiro, uma vida bem intima com uma mulher, a quem se queira como amante, que se estime como irmã, que se venere como mãe, que se proteja como filha…, é evidentemente o destino mais natural ao homem; o complemento da sua missão na terra…

Quando Carlos Whitestone chegára a formular, no pensamento, esta profissão de fé, que, uma ou outra vez, concebeu toda a cabeça de vinte annos, ainda das mais azadas para desvairamentos, attingia a borda do pinheiral opposta áquella, por onde havia entrado.

D'alli por diante o terreno, mais desimpedido de arvores, era occupado por campos em cultura, vinhedos, quintas, e por as casas respectivas; umas juntas, outras dispersas, e mais ou menos graciosas todas.

Carlos sentou-se no pequeno muro de demarcação do pinhal. O horizonte que tinha diante de si, era vasto, e o olhar foi, quasi ao extremo d'elle, fixar-se em uma das mais distantes d'aquellas casas, ainda que o espirito não tomasse a menor parte n'aquella apparente contemplação.

Tinha esta casa dois andares; era a face posterior a que se avistava d'alli. A varanda do primeiro andar estava toda entretecida de trepadeiras, que subiam do quintal. No intervallo das duas janellas florescia, em uma especie de alegrete, um arbusto, ao que parecia, de camelias. Na varanda do andar de cima via-se, pendurada de uma corda, que se estendia em todo o comprimento d'ella, alguma roupa branca, sobre a qual o sol batia em cheio, fazendo-lhe realçar a alvura.

Como disse, demoraram-se n'aquelle ponto da perspectiva os olhos de Carlos, sem que os seguisse, desde logo, o pensamento, absorto como estava ainda na sequencia de meditações sobre os destinos do homem n'esta vida.

Mas, instantes depois, alguma cousa se passou, que foi como que o laço de união entre o objecto das contemplações dos olhos e o das do espirito, que, desde então, se associou áquelles, no exame da modesta vivenda, em cujas vidraças o sol simulava a apparencia de um vasto incendio.

O phenomeno nada tinha de extraordinario comtudo. Na varanda de cima apparecera uma mulher; nada mais. Mas esta mulher, ainda que a distancia mal permittisse distinguil-a, mostrava, pela elegancia de estatura e pela vivacidade de movimentos, ser ainda joven. Não era para estranhar que a imaginação de um rapaz de vinte annos a suppozesse tambem formosa.

Viera examinar a roupa, que estava a córar ao sol; tirava uma e substituia-a por a que trazia de dentro; mais adiante, mudava a face exposta de outra; de quando em quando interrompia o trabalho e olhava para fóra, pondo a mão por cima dos olhos, como a abrigal-os da intensidade da luz; outras vezes, voltava-se para a sala e parecia fallar a alguém de dentro. Depois desapparecia; voltava de novo, e sempre, com manifesta solicitude, applicada ao trabalho.

Carlos seguia com prazer o ir e voltar d'aquella mulher, que a custo distinguia, mas que nem por momentos imaginou que podesse ser uma criada.

Elle, que estivera sonhando com os encantos do viver intimo, aprazia-se de imaginar agora, n'aquella casa, um d'esses mundosinhos modestos, que lhe estavam a appetecer.

—Uma esposa, nova por certo, canceirosa com os negocios domesticos…—pensava elle—Deve ser um prazer indefinivel sentir-se a gente viver sob os cuidados de um d'estes entes, votados assim inteiramente á nossa felicidade…

Era natural, desde que pensou isto, que se lembrasse de Jenny. Lembrou-se, é verdade; mas a imaginação sorriu affectuosamente áquella doce imagem, e deixou-a. Ao estado do seu coração não satisfazia só o sorriso fraternal e meigo que animava de bondade as feições da irmã. A seu pezar, surprendia-se a aspirar a mais.

A tarde adiantava-se, e Carlos não se desviava d'alli; prendia-lhe as attenções aquella casa e a sympathica visão da varanda.

A final fecharam-se as janellas. Pouco faltava para o sol se esconder de todo no mar. Carlos reparou então que era tempo de voltar a casa.

Olhou mais outra vez ainda, e com saudade quasi, para a varanda. Os seus poucos e imperfeitos conhecimentos da topographia d'aquella parte da cidade não lhe permittiram conjecturar sequer qual fosse a rua a que pertencia a habitação.

A nossa costumada discrição impede-nos de compensar este defeito.

Seguindo outra vez o caminho, por onde viera, Carlos voltou a casa, mas a passos mais apressados.

Já proximo da porta, sentiu uma mão, que se lhe pousava no hombro.
Voltou-se; reconheceu um de seus amigos.

—Que fazes tu, homem?

—Recolho-me.

—D'onde vens?

—Do campo.

—Ah! cultivas a bucolica? a poesia pastoril?

—Ás vezes.

—Dou-te os pezames. Gessner envelheceu; Florian dorme o somno dos inoffensivos. A proposito, já te mostrei o meu folhetim de critica, a respeito do volume do Serrão?

—Ainda não.

—Apparece então no Guichard esta noite. O livro é um pretexto; o que eu procuro é caracterisar a litteratura moderna, estremando os campos, hoje um pouco confusos, de romanticos e de classicos. Sabes que é o meu systema investigar nas pequenas apparencias as grandes revelações? É o que faço d'esta vez ainda. Assim, n'este estudo, serviram-me de ponto de partida duas palavras apenas; uma colhida de Racine, na Berenice; outra de Victor Hugo, no Ruy Blas. São as palavras finaes de uma e de outra tragedia. Antiochus vê partir Berenice e exclama: Helas! Ruy Blas morre nos braços da rainha e murmura: Merci! Basta-me isto.—Helas!—é o grito de dor, é o desespêro, é a falta de coragem no infortunio; é a ultima palavra de uma litteratura, que não tem confiança no futuro, de uma litteratura, que vive só do passado. Merci!—é, pelo contrario, a resignação, a esperança, o apuramento do padecer até á essencia inebriante do soffrimento proprio, que chega a confundir-se com o prazer… é pois a phrase digna de uma litteratura viva, inspirada do futuro…

A prelecção continuou; e Carlos reconheceu, pela impaciencia com que a estava escutando, a nenhuma disposição que tinha para apreciar n'aquella noite a sociedade de seus amigos. Separou-se d'este o mais depressa que pôde.

—Não serei eu que vá ao Guichard esta noite. D'esta vez farei a vontade a Jenny. Ficarei em casa—disse elle, logo que conseguiu despedir-se.

E entrou justamente quando já a campainha chamava para o jantar.

Jenny, vendo-o chegar, e notando o ar grave que trazia, murmurou comsigo:

—Ainda é cêdo para o restabelecimento. Esperemos.

XV

VIDA INGLEZA

O jantar correu, ao principio, silencioso, como de costume.

Mr. Richarde, apesar de tudo quanto promettia aquelle seu ar de satisfação, fazia as honras da mesa, usando de monosyllabos, e não se dava ao trabalho de formular uma oração inteira, sempre que com qualquer palavra solta lhe era possivel exprimir o pensamento.

Roast beef?… Salame?… Fiambre?… Ostras?—Era a maneira, pela qual elle perguntava a Carlos ou a Jenny quaes os pratos, de que preferiam servir-se.

—Mostarda… Queijo… Aquillo… Isto… Traz… Tira… Leva…—Eram as ordens, que recebiam os criados, os quaes manobravam com uma promptidão, seriedade e silencio, essencialmente britannicos.

Carlos não se mostrava mais expansivo. Além da pouca disposição para fallar, que em regra sentia diante do pae, estava n'aquella tarde muito fóra das habituaes condições de espirito, e em outra qualquer companhia de certo lhe estranhariam igualmente a taciturnidade.

Jenny dava algumas ordens, em voz baixa, aos criados, que se inclinavam diligentes para escutal-a; fazia, no mesmo tom, uma ou outra observação a Carlos, e aventurava até algumas perguntas ao pae, sem que lhe fosse possivel comtudo generalisar conversa.

Tudo isto, a regularidade e perfeito methodo de serviço, a gravidade e asseio dos criados, e a meia claridade da sala, dava não sei que aspecto solemne ao acto, como se fosse uma ceremonia funebre.

Á medida, porém, que se repetiam as libações e que o effeito dos variados vinhos se combinava na cabeça de Mr. Richard, o velho inglez principiou a despir-se d'esta soturna gravidade e a lingua a desencadeiar-se-lhe, rompendo aquella especie de mutismo, que lhe impunham as regras da etiqueta britannica.

Verificava-se n'isto uma opinião de Fielding, escriptor que disputava a Sterne as predilecções litterarias de Mr. Richard; diz effectivamente o auctor do Tom Jones que o vinho tem a propriedade de trazer á luz o verdadeiro caracter dos homens, caracter que, nos periodos de sobriedade, o artificio consegue dissimular muitas vezes. Ora, como dissemos, Mr. Richard Whitestone era sorumbatico, por convenção; mas no fundo permanecia a jovialidade, que vinha á superficie, á medida que se adiantava o jantar.

Ainda na presença de Jenny, já elle começára a ensaiar alguns gracejos, a contar passagens da sua vida de Londres, travessuras da meninice, e algumas extravagancias do tempo de rapaz.

Carlos procurava então maliciosamente o olhar da irmã, a qual, pelo contrario, evitava com discrição o d'elle; porque estas historias ambos as sabiam já de cór, tão infalliveis ellas occorriam em determinadas circumstancias.

Sempre que, em taes alturas do jantar, Carlos via servir um perú recheado, esperava já a narração de como, na sua infancia, Mr. Richard, então chamado ainda o pequeno Dick, com mais outros companheiros do collegio, tinham conseguido roubar uma d'estas aves do pateo do reverendo Jackson, seu mestre, e do detestavel assado que depois, ás occultas, fizeram com ella.

O lombo de vacca inevitavelmente lembrava a anecdota apocripha d'aquelle rei de Inglaterra, que em um accesso de bom humor armou cavalleiro este saboroso artigo comestivel, ao qual, desde então, se concederam as honras de baronet, como parece indicar o nome de Sirloin ou Sir loin, com que os inglezes o designam.

Um prato de avelãs trazia quasi sempre comsigo a historia de uma celebre aveleira, que havia em certo parque das proximidades de Londres, pelo tronco da qual tantas vezes Mr. Richard, ainda creança, trepára com feliz exito, até um dia em que, escorregando, ficou suspenso de um galho por espaço de alguns minutos.

O pudding era pretexto para fallar no monstruoso pudding que se cozinhava na Inglaterra, em não sei que solemnidade popular, e d'ahi a enumeração de muitos outros usos, e costumes nacionaes e de varias festas notaveis. Entre essas, a mais detidamente descripta era a do Lord Mayor; n'esse dia, guardado por toda a City, como dia santo, o personagem eleito para aquelle alto cargo é processionalmente levado á presença do Lord Chanceller, com o fim de ser por elle confirmada a sua eleição. Mr. Richard sabia e descrevia todas as particularidades do ceremonial, bem como todas as attribuições dos multiplicados cargos de que se compõe a excepcional corporação de Londres, desde o alto Lord Mayor até o mais modesto bedel de parochia.

Como na procissão fluvial pelo Tamisa, celebrada n'aquelle dia, Mr. Richard estivera de uma vez em riscos de se afogar, a referencia minuciosa d'este caso pedia a de um outro analogo que lhe succedera por occasião dos tumultos populares occorridos durante o processo de divorcio de Jorge IV, e varias particularidades, pouco edificantes, a respeito da rainha Carolina e do seu favorito Bergamy.

Carlos ouvia tudo isto calado, com ar de resignação e deferencia filial; Jenny com uma physionomia mais attenta, ainda que nem sempre a attenção do rosto lhe estivesse no espirito tambem.

Jenny era a primeira a retirar-se da mesa, segundo o discreto costume, hoje mais seguido, mas originariamente britannico.

Então tomavam maior incremento ainda as libações de Mr. Richard
Whitestone.

Accendia um charuto e dava-se uns ares de familiaridade, que em nenhuma outra occasião se repetiam.

Carlos, de ordinario, perdia tambem então um pouco do habitual retrahimento para com o pae, e, fumando defronte d'elle, entrava com mais desafogo n'este dialogo.

N'aquella tarde, porém, conservou-se ainda pouco expansivo, e quasi distrahido, perante a crescente communicabilidade.

N'este dialogo inter pocula eram infalliveis as referencias do negociante ao seu livro favorito—O Tristram Shandy, de Sterne.

Mr. Richard apreciava tudo n'aquelle livro extravagante. Sabia-o quasi de cór e, apesar d'isso, lia-o ainda e de todas as vezes ria com a mesma vontade, não obstante não encontrar no decurso da leitura já alguma cousa imprevista.

Carlos, ainda quando não tivesse lido a obra, tinha já razão para a conhecer a fundo, graças ás quotidianas citações do pae; era porém obrigado a escutal-o, como se tudo fosse novo para elle.

As dissertações philosophicas do pae de Tristram, as ingenuidades e venetas guerreiras do tio Tobias, as argucias e façanhas do Corporal Trim, as interminaveis e extravagantes divagações de Tristram, o supposto auto-biographo, tudo Mr. Richard citava com enthusiasmo e com vivacidade.

Nem lhe passavam por alto os episodios e as dissertações, que respiram certas liberdades, verdadeiramente rabelesianas, capazes de alvoroçar os ouvidos menos pechosos. O episodio dos amores do tio Tobias e os do seu fiel camarada, de indole menos quixotesca, eram até das passagens favoritas e das que com mais cordiaes risadas commentava.

Vinham luzes e proseguia o dialogo, nem sempre demasiado ingenuo.

Ao levantar da mesa, tomavam-se posições ao fogão; a conversa continuava, mas o ponto culminante da loquacidade e da viveza de Mr. Richard Whitestone tinha passado já.

N'este primeiro periodo de declinação sobrevinham as citações do Tom
Jones
.

Mr. Richard não se cansava tambem de exaltar aquelles soberbos perfis da penna de Fielding e as judiciosas reflexões que o auctor mistura á narrativa.

Depois, a proximidade do calor do fogão, as exhalações do carvão inglez, a preponderancia dos vapores do tabaco, e mais tarde o punch, deprimiam ainda mais os espiritos do commerciante.

Passava a fallar de politica, citava o Times; n'esta noite disse a Carlos que Lord Palmerston estava resolvido a dissolver o parlamento, no caso de não encontrar apoio na camara dos communs.

Isto já foi dito em tom soturno. Carlos era de todo indifferente aos destinos do parlamento inglez.

Depois fallou nos principaes movimentos e feitos de armas do exercito alliado na Crimeia e no provavel exito da campanha; e d'aqui entrou em considerações sobre o estado do commercio em Londres. Carlos luctava heroicamente para reprimir bocejos de fastio.

Era noite cerrada; a voz de Mr. Richard tinha já umas entonações surdas, que, combinadas ás pancadas do relogio da sala, produziam em Carlos um effeito soporifero irresistivel.

Jenny, quando pelo silencio que reinava, sentia que tinham chegado as cousas a este periodo critico, voltava outra vez á sala. Era então que o irmão aproveitava a occasião para saír.

N'esta noite ficou.

Jenny olhou-o admirada.

Carlos respondeu-lhe, encolhendo os hombros, como a exprimir a resolução de ser condescendente aquella vez, ficando.

A irmã agradeceu-lhe com um gesto; mas pensava comsigo:

—Bem sei. Ainda não te passou o desgosto pelo mau resultado da tua aventura. Paciencia!

Carlos voltára a casa, como dissemos, reconciliado com a vida domestica e convencido de que estava bem disposto para saborear os prazeres de um serão inglez.

Resolveu por isso ficar. Mas a suspeita de Jenny era tambem fundada.

Desalentado pela falta de indicações em relação ao mysterio da mascara, na qual a seu pezar pensava ainda, mingoava-lhe animo para saír, sem esperanças de o elucidar.

Mas a vida domestica, tal como se passava ao fogão, junto do qual Mr.
Richard quasi dormitava, não era a que o podia satisfazer.

O viver intimo, cujos encantos Carlos julgára ter concebido aquella tarde, era apenas o accessorio de alguma cousa mais essencial ao coração, de alguma cousa, cuja necessidade começava a sentir emfim. Sorria-lhe o conchego domestico, mas aquecido, mas illuminado por outras chammas, que não eram as que lambiam o fender do fogão; animado por mais ardentes sentimentos do que os de um affecto fraterno, ainda que dos mais estreitos, e do que os do respeito filial, ainda que dos mais arreigados e extremosos.

Estava por isso experimentando agora o desengano, e a comparar a monotonia d'aquella noite ingleza, com o prazer que imaginára poder saboreiar-se, sem abandonar os lares domesticos.

Isto fazia-o ainda mais silencioso e sombrio, do que estivera em outras noites que passára como aquella em casa.

Depois que veio Jenny succedeu o que quasi sempre succedia tambem. Mr.
Richard manifestou desejos de a ouvir tocar.

Em virtude d'isto, passaram a uma das salas proximas. Mr. Richard sentou-se ao lado do fogão, tambem accêso alli; Carlos, proximo d'elle; Jenny ao piano.

Jenny, conhecendo por experiencia as predilecções paternas, abriu a collecção dos Cantos populares de Russell e procurou uma poesia de Morris; a qual tanto o pae como o irmão ouviam sempre com piedoso recolhimento.

O motivo d'esta attenção estava sobre tudo na lettra, que parecia feita de proposito para avivar, em toda esta familia, saudades da vida passada. Foi a meia voz, mas com verdadeiro sentimento, que Jenny cantou essa poesia, intitulada a Biblia de minha mãe, cuja traducção é a seguinte:

«Este livro é tudo quanto me resta d'ella! Ao vel-o, sinto rebentarem-me irreprimiveis as lagrimas dos olhos; com os labios tremulos, com a fronte turvada, aperto-o ao coração. É esta a arvore de familia, á sombra da qual já muitas gerações se teem abrigado.—As mãos de minha mãe folhearam esta Biblia; foi ella mesma quem m'a legou ao expirar.

Ai, como me estão lembrando aquelles, cujos nomes me veem de envolta com estas memorias! Tantos que, em torno do lar, costumavam reunir-se após a oração da tarde, a conversar no que dizia este livro, em um tom que me calava no intimo do seio; ha muito que elles estão com os mortos silenciosos; mas sinto-os viver ainda aqui.

Meu pae lia este livro sagrado aos filhos, ás filhas, á familia toda! Como era sereno o olhar de minha mãe, ao curvar a cabeça para escutar a palavra de Deus! Aquella figura angelica! Ainda a estou a ver!—Que memorias me occorrem em tropel n'este momento!—De novo parece reviver, dentro das paredes d'este quarto, aquelle pequeno grupo.

Tu, ó Biblia! és o mais seguro amigo do homem! Eu tenho já experimentado a tua constancia! Quando todos me trahiam, achei-te fiel; vi em ti um conselheiro, um guia! As minas da terra não possuem o thesouro, que me compre este livro. Ensinando-me a maneira de viver, elle tambem me ensina como se deve morrer.»

O assumpto da canção ingleza, depois que Jenny a terminou, fez caír naturalmente a conversa sobre diversas passagens da Biblia; Mr. Richard citou um versiculo, outro e outro, até que uma duvida lhe impediu de proseguir: d'ahi o pedido feito por elle á filha, para verificar a exacta redacção do texto.

Jenny abriu pois o livro, que em todas as salas se encontrava sempre á mão, e leu.

Carlos gostava de ouvir ler a irmã aquellas singelas e sublimes paginas da Biblia.

Diz-se muito mal da lingua ingleza, e, de facto, ouvindo fallar certos filhos da Grã-Bretanha, lembra logo os conhecidos versos:

  O mundo a porfiar que os bretões grunhem
  E os bretões, etc., etc., etc.

porém uma voz, como a de Jenny, meiga, melodiosa, e modulada com intelligencia e graça, parece transformar essa lingua ingrata em não sei que cantar de aves, que tem attractivos, até para os que não a comprehendem.

O recolhimento religioso, com que Jenny lia os mais bellos episodios do
Velho ou do Novo Testamento, augmentava o effeito agradavel da sua voz.

Infelizmente, porém, a leitura descarnada e despida de commentos d'aquellas paginas não bastava ao fervoroso anglicanismo de Mr. Richard Whitestone, porisso, a cada passo, a interrompia para citar as interpretações de alguns dos reverendos doutores da sua episcopal igreja, ou os recentes desenvolvimentos, que ouvira ao ecclesiastico inglez na missa protestante, do Campo Pequeno.

Jenny olhava para o irmão e fazia-lhe signal para que se reprimisse, e pelo menos simulasse attenção ás divagações do pae. Serviu-se ás dez horas chá preto, e Mr. Richard readquiriu um pouco de animação para, a proposito do chá, fallar na importancia da companhia das Indias Orientaes, nos serviços feitos por ella ao commercio, na sua historia, nas difficuldades com que luctou, e nos meios de que dispunha. Em seguida expôz um projecto de lavra propria sobre o engrandecimento das colonias inglezas, formulou acerbas censuras ao systema colonial portuguez, e em seguida uma expressa condemnação da politica franceza em geral.

Mr. Richard odiava cordialmente a França. Ou elle não fosse inglez.

Emfim, ás onze horas cessou Mr. Richard de fallar; as palpebras começaram a pesar-lhe; a chamma do fogão a amortecer, sem que as tenazes fizessem o seu officio, avivando-a.

Meia hora depois, separava-se a familia, não tendo Carlos, em toda a noite, dito uma duzia de palavras.

Jenny acompanhou ainda algum tempo o irmão através dos corredores, que conduziam ao quarto de cada um.

—Então que tens tu a dizer da minha conversão? d'esta commovente e miraculosa regeneração do filho prodigo?—perguntou Carlos a Jenny, quando chegavam á porta da sala da livraria, onde deviam separar-se.

—Que não sei se será muito duradoura—respondeu a irmã.

—E como queres que o seja, Jenny? Não viste que narcoticas delicias as d'este conversar ao fogão? Dormir é um prazer; mas na minha idade!

—Então, Charles!—disse Jenny, olhando para elle, com ar de reprehensão.

—Olha, minha boa Jenny, acredita o que te digo; eu fui hoje sincero devéras nas minhas tentativas de reconciliação com a fada do lar domestico, com aquelle genio bom, que protegia a «gata borralhenta» na historia que nos contavam em creança. Vim para casa, sonhando umas delicias de viver intimo, as quaes, infelizmente, tive o desgosto de achar que eram illusorias. Tanto azul e dourado que via transformou-se em uma côr… pardacenta…

—Talvez tu sejas muito exigente.

—Ai, não o era, não. Mas que queres? Posso ter coragem para ouvir ámanhã e depois e sempre a historia do perú do reverendo Jackson? a das festas do Lord Mayor? a das assuadas á rainha Carolina? ou deve-se-me estranhar que deserte diante das subtilezas theologicas dos doutores da nossa igreja, ou…?

—Tens razão; é preciso principiar por educar o coração, antes de tentar regenerar-te.

—O coração?! Que queres dizer?

—Tu vens para casa, como vaes para o theatro; procuras distrahir-te. Ora é claro que este viver de familia não entretem uma imaginação como a tua, se é só para satisfazeres a imaginação que ficas; e concebo que tudo isto te deve ser insupportavel, se o coração se fechou já de todo aos unicos gôsos, que nós podemos prometter-te.

—Não me faças tão endurecido, que não saiba já apreciar os tocantes prazeres d'essa convivencia intima, Jenny. Julgas que não sei o que vale a tua affeição e até a do pae? Mas ouve, filha, e não sejas muito severa commigo. Emquanto o pae ha pouco fallava, muito á sua vontade, na portentosa companhia das Indias Orientaes, eu estava a pensar…

—Em quê?

—Estava a pensar em que eram inteiramente falsas certas ideias, muito bonitas, que, esta tarde, durante um passeio, que dei pelo campo…

—Pelo campo!… Tu?!

—É verdade, pelo campo, eu… mas… certas ideias, dizia, que me haviam occorrido por lá. Agora vejo melhor; e penso que se não deve até viver tão ligado, como era costume na antiga vida patriarchal. É justa, ou desculpavel pelo menos, esta tendencia moderna para afrouxar um pouco mais os laços de familia, sem amortecer de todo os sentimentos que a animam e unem, mas tornando mais independentes os habitos de viver de cada um. E é assim. Que se lucra em reunir em um feixe apertado dois ou tres homens de indoles e de gostos diversos, só porque são parentes, a ponto de impedir-lhes os movimentos, e a liberdade de acção? O mais que succede, é nenhum d'elles poder dispôr de toda a energia das suas faculdades; incommodam-se reciprocamente, de apertados que estão, e… odio não direi… mas… ás vezes… certa má vontade… pequenas dissensões, e… quando menos se espera, mais azedas discordias ainda, são as inevitaveis consequencias d'isso.

Jenny abanava a cabeça, fitando o irmão, emquanto elle fallava.

—Que doutrinas!—disse ella por fim—que triste philosophia a tua… de hoje. Cada vez te comprehendo menos, Charles.

Carlos pôz-se a rir.

—Então porquê, Jenny? Que achas tu em mim de tão incomprehensivel?

—Ha dias… na manhã que se seguiu a uma das muitas noites, que passas fóra de casa, e quando era mais natural que estivesses n'estas ideias de agora, fallaste-me com eloquencia e convencimento nas doçuras da vida de familia; persuadirias d'aquella vez o mais extraviado. Foi, ainda me lembro, a proposito de uns versos, escriptos por um amigo no teu album. Hoje então…

—Tudo se explica; é pela razão, que eu disse. Tentei apertar-me nos taes ambicionados laços, seduzido pelas promessas dos romancistas moralisadores; a final vi que me magoavam como laços que eram… Mas que versos foram esses, que me despertaram tão salutares ideias? Não me recordo.

—Se queres que t'os leia?…—perguntou Jenny, pousando a mão na chave da porta da bibliotheca, como preparando-se para abril-a.

—Se quero? peço-t'o.

Os dois irmãos entraram na sala quadrada, onde, até a meia altura da parede, corria uma estante de palissandro, abastecida de magnificas brochuras e encardernações inglezas. Havia no meio da sala uma solida mesa rectangular, em estylo antigo, com embutidos de metal nos fechos, lavores de primorosa talha nas faces, e apoiada em grossos pés, torcidos em espiral,—um perfeito modelo d'essa bella mobilia ultimamente resuscitada, graças sobre tudo ás predilecções dos inglezes, que a teem tornado já rara, de muito que a procuram. Cobriam esta mesa varias publicações recentes, periodicos estrangeiros e do paiz, e gravuras; e em volta d'ella, commodas poltronas, e escabellos com assentos estofados parecia convidarem á leitura.

Jenny pousou a luz, e, pegando em um album, que estava entre os outros livros e periodicos, principiou folheando-o, emquanto o irmão se sentava ao lado d'ella.

—Se me não engana a memoria—dizia Jenny—é a traducção de uma lenda popular da Bretanha que se intitula…—Tendo encontrado justamente a pagina que procurava, concluiu:—Amel e Pennor.

—Não tenho já a menor ideia do que seja.

—Ora ouve então.

E Jenny principiou a ler, com suavidade e graça inexprimivel, a seguinte lenda, verdadeira ou falsamente attribuida por um moderno escriptor francez á musa popular da Bretanha.[1]

  —Longe, longe d'aqui, nas costas da Bretanha,
  Poetico paiz, que um mar sinistro banha,
  Vivia, ha muito tempo, um pobre pescador,
  Que se chamava Amel, com a mulher Pennor.
  Tinham elles um filho, uma creança loura,
  Um anjo, que o porvir dos paes inflora e doura;
  Ao voltarem a casa, alegres, todos tres,
  Na praia os surprende a noite de uma vez.
  Crescia o mar veloz, medonho, ingente, forte!
  N'esse tempo as marés eram vivas. A morte
  Sobre as ondas boiava, indomita, cruel!
  Olhando para a esposa, assim lhe diz Amel:
  —«Pennor, vamos morrer! A vaga se aproxima!
  Viverás mais do que eu! Animo! Sobe acima
  Dos hombros meus, mulher. Pousa-te bem. Assim.
  E, ao veres-me sumir… ai, lembra-te de mim!»
  Pennor obedeceu. Firmando-se na areia,
  Desapparece Amel na vaga, que o rodeia.
  —«Amel! bradava a esposa; ai, pobre amigo meu!
  Qual de nós soffre mais?—tu, que morres, ou eu,
  Que te vejo morrer?»—E as aguas, que subiam,
  O corpo da infeliz no vortice envolviam.
  Olhando para o filho, assim lhe diz a mãe:
  —«Filho, vamos morrer! Olha a maré que vem!
  Viverás mais do que eu! Vá! filho, vá! coragem!
  «Sobe aos meus hombros, sobe! e ao tragar-me a voragem,
  Ai, lembra-te de mim e de teu pobre pae!»
  E o mar a submergiu. Chora a creança e vae
  Pouco a pouco afundir-se. Á flor da agua revolta,
  Apenas já fluctua a trança loura e solta…
  …Uma fada passou sobre o affrontado mar;
  Viu o cabello louro, em baixo, a fluctuar;
  Estende a mão piedosa e, segurando a trança,
  Com ella attrahe a si a pallida creança.
  E, sorrindo, dizia:—«Ai, que pesada que és!»
  Mas viu cêdo a razão; inda segura aos pés
  Do filho estremecido, a pobre mãe começa
  A erguer tambem da onda a humida cabeça.
  Sorriu a boa fada, ao ver assim os dois,
  E repetiu ainda:—«Ai, que pesados sois!»
  É que, após a mulher, seguia-se o marido
  Estreitamente aos pés da terna esposa unido.
  Ao vel-o, inda outra vez a meiga fada riu,
  E, leve, para a praia o vôo dirigiu
  Com este cacho vivo, esta humana cadeia,
  Cujos élos o amor piedosamente enleia.

Pousando o livro, Jenny continuou:

—Seguem-se mais quatro versos, consagrados á moralidade do conto, os quaes talvez me julgues dispensada de ler, por inuteis.

—De certo. A allegoria é transparente, até sem commentarios. Mas, dize-me tu uma cousa, Jenny: que faria ou que diria a boa fada se, pairando sobre a praia, um dia, em que as marés não fossem vivas, nem o mar ameaçasse devorar a piedosa familia… que faria ou diria ella, se encontrasse os tres formando o cacho vivo da imagem, tão ridiculo n'esse caso, como tocante nas condições, em que o considera a lenda? A fada por certo que sorria tambem, mas acrescentando d'essa vez: «Ai, que varridos sois!» Dize-me agora se queres que eu ajunte alguma cousa tambem, correspondente aos taes quatro versos de moralidade, que supprimiste?—terminou Carlos, tocando levemente as faces de Jenny, e com um sorriso triumphante, ao qual ella correspondeu com outro, mas replicando:

—Não, não é preciso. Mas repara, Charles, que as tempestades no mar formam-se ás vezes em um momento. E ninguem póde prever a época, em que é para receiar o perigo. Não viste como os pescadores voltavam a casa, «alegres todos tres», portanto confiados no mar? Se, tendo esta confiança, se houvessem separado e não caminhassem com as mãos unidas? Ao vir a maré, nem Amel procuraria que a esposa lhe sobrevivesse, nem Pennor tentaria salvar o filho, nem o cabello louro da creança, vindo á tona da agua, attrahiria as vistas da fada bemfazeja, dando-lhe occasião de salvar aquelle … cacho vivo… Entendes?

—E tão longe ando eu já, que vos não possa offerecer os hombros, se a maré vier um dia ameaçar-nos?

—Não, Charles; nem é a ti, tal como és, que eu ralho e quero mal; mas a um Charles, que ás vezes gostas de fingir. É singular! ha certas almas generosas que teem o vicio opposto ao da hypocrisia: esforçam-se por parecerem más! Para que has de estar a fazer mentir a tua bôca, dizendo o que não sentes?

—Não nego que houvesse algum mau humor nas minhas palavras de ha pouco, mas…

Jenny collocou-lhe a mão diante dos labios.

—Que esse «mas» fique para ámanhã. Por emquanto inda não confio muito n'elle.

—Então negas-me a justificação?

—Não vês que, melhor do que tu, te está a justificar a minha confiança?
É por isso que não quero ouvir-te. É tarde. Boa noite, Charles.

—Boa noite, Jenny.

E os dois irmãos separaram-se, apertando cordialmente as mãos.

Carlos ía mais reconciliado outra vez com as doçuras da vida domestica. Ficára-lhe muito agradavel impressão d'este dialogo com Jenny, para que podesse deixar de ser essa a sua opinião final.

XVI

NO THEATRO

Dias depois, affixavam-se cartazes nas esquinas, annunciando a Lucia de
Lammermoor
.

Mr. Richard Whitestone não era assiduo frequentador do theatro lyrico.

Havia porém uma circumstancia, que, infallivelmente, o levava lá, uma vez pelo menos.

Tendo já desesperado de ouvir no theatro do Porto musica de compositores inglezes, como Haendel, Gray, Arnold, Bishop e outros, cujos nomes a cada momento citava com enthusiasmo, resignára-se a afagar sómente o seu acrisolado patriotismo com ir ao theatro, quando se cantavam aquellas operas, cujos librettos eram extrahidos de algumas das obras primas da litteratura ingleza.

O Othello, o Macbeth, os Capulletos, as Prisões de Edimburgo, os Foscaris, o Marino Faliero e outras n'este mesmo caso, luctavam vantajosamente com o seu muito amor pelo fogão e traziam ao publico aquella physionomia, radiante de contentamento e expressiva de saude, que o leitor já conhece.

Preparava-se de antemão, n'essa tarde, relendo a obra, que servira de assumpto á opera, e ia depois com vontade para o theatro.

Não era porém Rossini, Verdi, Bellini, Ricci e Donizetti os que o attrahiam e enlevavam; era Shakespeare, era Byron, era Walter Scott, cujos grandiosos vultos lhe parecia estar vendo no palco evocados, por sua vez, pelos mesmos personagens, que o genio d'elles tinha evocado outr'ora.—A musica era o accessorio. Os applausos do publico roubava-os Mr. Richard, por patriotismo, aos maestros, para conferir áquelles seus famosos conterraneos.

No numero das taes operas contava-se Lucia de Lammermoor. Assumpto escossez, tratado por penna escosseza, e das mais admiraveis em desenhar typos sympathicos e immortaes, não era para Mr. Richard resistir-lhe. Havia de ir por força.

Foi; mandou tomar um camarote para aquella noite. A plateia nunca lhe agradou. Estava mais comsigo e com os seus no camarote; e isto de estar comsigo e com os seus tinha para elle a força de necessidade.

Era costume invariavel de Mr. Richard convidar Manoel Quentino, n'estas occasiões.

Grande mortificação causava a este tal convite, mas não se atrevia a recusar. Aceitava e agradecia até, porém, a occultas, suspirava por ter de privar-se uma noite dos suaves prazeres dos seus serões domesticos, das attenções e cuidados filiaes de Cecilia e até das monótonas reflexões do amigo José Fortunato; este não sentia menos pezar em modificar habitos já inveterados n'elle e prescindir do chá e dos bocejos do vizinho.

Mas não havia remedio. Manoel Quentino ía.

Depois de resolvido a isso, entendia então que tinha restricto dever de chegar a tempo. Era o guarda-livros a pontualidade em pessoa; em tudo observava o preceito de antes esperar do que ser esperado; e, comquanto não fosse provavel que esperassem por elle para começar o espectaculo, é certo que, pouco depois de anoitecer, viam-o já a passeiar no atrio do theatro, aguardando que lhe abrissem as portas dos corredores.

Assim fez n'esta noite.

Logo que as viu patentes, comprou o libretto da opera; porque nunca pôde tambem resignar-se a ouvir cantar, sem entender o que se cantava; subiu para o camarote e, á escassa luz que havia ainda na sala, pôz-se a ler.

Depois assistiu ao accender das serpentinas, á afinação dos instrumentos da orchestra, ao encher gradual da plateia, dos camarotes e das varandas, o que para elle constituia uma parte da divisão e não das menos curiosas. Aguava porém este inoffensivo prazer o cuidado que lhe estava dando a demora da familia Whitestone; temia já que ella não chegasse ao principio da opera. Isto não o deixava socegar.

Emfim ouviu abrir-se, atraz de si, a porta do camarote; voltou-se.

Eram Mr. Richard e Jenny, que chegavam.

Mr. Richard saudou, com familiaridade, o guarda-livros; Jenny apertou-lhe a mão com affecto.

—Não o esperava agora aqui!—disse Jenny, tirando a capa e reparando as leves desordens da sua toilette.

—O snr. Whitestone fez-me o favor de me dizer que viesse.

—E Cecilia?

—Cecilia!—disse Manoel Quentino, encolhendo os hombros—eu já lhe não digo nada. Para quê? Com'assim, não se resolve nunca a vir.

Mr. Richard, emquanto a filha se preparava, viera á frente do camarote passar um exame rapido á sala.

—E o Carlinhos?—perguntou Manoel Quentino a Jenny emquanto se encarregava, com soffrivel galanteria, de acommodar a capa, que ella acabava de tirar.

—É provavel que esteja cá—respondeu Jenny.

—Aonde? Na plateia?

—De certo.

—Tendo camarote! É vontade de gastar dinheiro!—pensou para si o economico Manoel Quentino.

Depois de tomarem todas as respectivas posições, Manoel Quentino, ficando junto da cadeira de Jenny, entendeu que não devia estar calado.

—Sempre me lembra—disse elle, portanto—quando venho ao theatro, de ver representar a celebre Josepha Thereza Soares! Aquillo é que era mulherzinha! Que tambem a Grata Nicolini… não sei se lhe diga… Se quer que lhe falle verdade, menina, agradavam-me mais as peças, que se representavam d'antes, do que as de hoje. Só os vestuarios e as vistas! Agora são salas e casacas, casacas e salas e acabou-se. É o pae que quer que a filha case com um velho rico; é a filha que quer casar com um rapaz pobre, que é poeta; é o rapaz a descompôr o velho; a rapariga a morrer… e passe por lá muito bem. Não lhe acho graça nenhuma. Eu queria que vissem: D. José II, visitando os carceresCamilla ou os subterraneosO Barba rôxaHa dezeseis annos ou os incendiariosOs sete infantes de LaraA Ignez de Castro…

E Manoel Quentino dispunha-se a continuar esta revista theatral, quando Jenny o interrompeu, perdendo assim a melhor occasião de se informar, entre outras cousas, dos merecimentos da celebre Josepha Thereza, de quem inda agora ouvimos fallar com saudades os frequentadores reformados, cujos legitimos successores são os dilletanti de hoje.

—Carlos tem ido ao escriptorio?—perguntou Jenny, a meia voz.

—Esteve lá … no outro dia, na terça-feira, por infelicidade minha—respondeu o guarda-livros, lembrando-se dos enganos a que dera occasião a tal visita.

—Porque diz por infelicidade?

Manoel Quentino ia a contar a Jenny a especie de auxilio, que lhe prestára Carlos no escriptorio; mas, parecendo-lhe ver em Mr. Richard, ainda que apparentemente distrahido, certos indicios de estar prestando attenção ao que elle dizia, julgou conveniente mudar de rumo e respondeu:

—É que eu, apesar dos meus cincoenta e cinco annos, não tenho mão em mim que não me distraia, vendo-o; e, com a minha palestra, nem trabalho eu… nem…

Aqui hesitou alguns instantes, porque lhe parecia demasiado lisongeiro o que ia dizer, mas a final sempre concluiu:

—Nem… nem… nem o deixo trabalhar a elle.

O proprio Mr. Richard mordeu os labios, para encobrir um sorriso.

Jenny, a mesma Jenny, não pôde conservar-se inteiramente séria; mas, sorrindo, agradeceu com gesto de bondade as generosas intenções do guarda-livros.

Pareceu-lhe, porém, conveniente desviar a direcção da conversa e porisso lembrou a Manoel Quentino:

—Mas ainda não me disse por que Cecilia não veio.

—E eu sei lá? Não vem, porque não quer. Já d'antes era uma santa historia para a resolver a aproveitar-se de qualquer convite, que a menina tinha a bondade de lhe fazer. É lá de um genio particular aquella pequena; e desde creança que assim a conheço! Que se lhe ha de fazer? Mas agora sobre tudo… A rapariga tem o quer que é a affligil-a. Isso é que tem. Ella bem faz por disfarçar; mas…

Manoel Quentino tomou n'este ponto ares de mysterio e proseguiu em tom mais baixo:

—Eu não sei, mas… acho-a outra ha dias para cá. Não lhe tenho querido dizer nada, porque… porque sei como ella é, e tenho mêdo de mortifical-a ainda mais, porém…

—Mas então—perguntou Jenny, sinceramente attenta ao que Manoel
Quentino lhe dizia—o que é que lhe faz julgar?…

—Acho triste a rapariga. Olhos de pae não se enganam com essa pressa. Os outros nada vêem, mas os meus… A Cecilia não era assim; quem a viu d'antes! Ella ri e graceja ainda, é verdade; mas ha alli certo modo, que eu lhe estranho. A menina, que bem a conhece, ha de ter visto…

—Não; não tenho notado mudança n'ella.

—Não que tambem… eu lhe digo… Ora deixe-me ver… Ella não voltou a sua casa desde… desde terça-feira, não? É isso mesmo. De então para cá é que eu mais tenho notado…

Jenny escutava com crescente curiosidade o que Manoel Quentino dizia.

—Ahi está que hoje…—continuou elle—depois de eu chegar a casa… mas peço-lhe, por amor de Deus, que lhe não vá dizer estas cousas; ella põe-se por lá depois a scismar…

—Fique descansado—disse Jenny, procurando não perder uma só das palavras que ouvia.

—Pois esta tarde… Eu já notára que ella ao jantar não tinha comido quasi nada… e eu, a fallar verdade, não gosto de ver aquillo. N'aquellas idades é que é o comer, e as cousas não correm bem, quando não ha appetite. Pois não lhe parece?

Jenny fez um movimento de affirmação, comquanto eu não dê por assentado que ella tivesse sobre o appetite absolutamente as mesmas ideias que Manoel Quentino.

—E depois?—perguntou ella.

—De tarde—continuou o velho—a pequena, contra o seu costume, metteu-se para o quarto, a ponto de me assustar; não tive mão em mim, que a não chamasse. Não me respondeu logo. Lembrou-me se lhe teria dado alguma cousa, e, já sobresaltado, ia a descer as escadas, para ver o que era, quando ella me appareceu, mas… ó menina, ou me engano muito, ou a rapariga tinha chorado; ella vinha a rir, vinha, mas eu…

—Foi de certo illusão sua; por que havia Cecilia de chorar?

—Pois ahi está o que me afflige. É o não saber! Ás vezes lembra-me… serei eu a causa? Ora é preciso que lhe diga que eu antes queria trabalhar como um negro toda a minha vida, e não ter um triste bocado de pão para comer, do que dar motivo a uma só lagrima d'ella.

E havia um tremor na voz de Manoel Quentino, ao dizer isto, que commoveu
Jenny.

—Socegue—disse-lhe ella, animando-o.—De certo não é a causa d'essa tristeza, que lhe parece notar em Cecilia. Que mais póde fazer por ella, do que o que faz?

—E tudo merece, menina, e mais! Assim eu podesse. É um anjo! Não imagina.

—Não imagino, sei; pois não é ella a minha mais querida amiga?

Manoel Quentino não pôde ter-se, que não tomasse as mãos de Jenny e as apertasse commovido.

N'isto rompeu a orchestra a symphonia da opera; fez-se silencio na sala.

As ideias de Manoel Quentino seguiram novo curso; esqueceu as confidencias que tinham deixado Jenny pensativa, e, prestando ouvidos á musica, fixou os olhos no panno, que esperava ver subir immediatamente.

—Pois a historia d'esta peca—dizia elle, emquanto o panno não subia—é bem bonita, mas muito triste. Pelos modos, era um fidalgo…, não me lembro agora d'onde…

E, depois de pensar um momento, acrescentou:

—De Hespanha, acho eu… Era, era de Hespanha…

Mr. Whitestone estava distrahido; mas não ha distracção possível que impeça um inglez de corrigir qualquer inexactidão, que, embora de leve, toque pela sua nacionalidade; por isso interrompeu immediatamente a narrativa de Manoel Quentino, emendando-a.

—Ho! não, não. De Hespanha! Ho! Da Escossia, da Escossia. In the Lothian county. The bride of Lammermoor, de sir Walter-Scott. É bem conhecido isso.

—Ai, é verdade, é da Escossia, é. Já me não lembrava. Pois este fidalgo, ao que parece, tinha lá umas birras com outro seu vizinho, tambem muito nobre, é verdade, mas sem nada de seu. Eram rixas velhas e até me parece que uma demanda dos meus peccados! Vae logo o… o S. Pedro e faz com que este tal se namore da irmã do outro. Que isto acontece muitas vezes.

N'este ponto foi o panno acima.

Manoel Quentino, depois de exame passado á scena, proseguiu:

—Esses homens de saias, que ahi estão, são os criados do tal fidalgo.
Andam á cata do amante, que vinha fallar com a rapariga ao jardim.

O argumento exposto por Manoel Quentino proseguiu por este teor e estylo, sem que Mr. Richard nem Jenny lhe dessem attenção.

Depois da chegada do barytono e durante o recitativo d'este, ia Manoel Quentino vertendo em vernaculo as phrases italianas que percebia, por conseguinte aquellas que menos precisavam de ser vertidas.

«Mortalnemico»—recitava no palco o barytono.—«Mortal inimigo»—traduzia o velho do camarote.—«Di mia prosapia»—dizia um.—«Elle mesmo confessa que tem prosapia»—interpretava, e d'esta vez desastradamente, o outro.—«Io fremo!»—acrescentava d'ahi a pouco tempo o cantor.—«Diz que treme»—traduzia Manoel Quentino.

E assim por diante, até que Mr. Richard, ao principiar no palco a aria:

Cruda… funesta smania.

pôz termo com ligeiro psiu aos luminosissimos esclarecimentos do guarda-livros.

Manoel Quentino calou-se logo, promettendo a continuação para o primeiro intervallo.

Antes do fim do acto, deu-se na plateia um incidente vulgar no nosso theatro, e cuja frequente repetição, em certos annos, mantem em perpetua tribulação o espirito dos emprezarios.

Á entrada da prima-donna, e antes d'ella soltar a primeira nota, romperam de um dos lados da sala alguns signaes de desagrado.

A maioria do publico, alheia ás altas questões de bastidor, elementos d'estas subitas tempestades, estranhou ver assim reprovar quem, dias antes, se applaudia com phrenesi, porventura exagerado.

Manifestou-se portanto reacção, extremaram-se os campos, desenvolvendo-se, de parte a parte, um ardor, que, durante alguns minutos, interrompeu o espectaculo.

Na plateia tudo era movimento e confusão; nos camarotes, os homens penduravam-se, para observarem, au vol d'oiseau, a borrasca humana que se lhes desencadeiava aos pés, e alguns, menos impacientes, formulavam, lá de cima, acerbas censuras, que se perdiam no espaço; as senhoras quasi desmaiavam de assustadas; outras, mais animosas, examinavam a binoculo as peripecias da contenda; a orchestra, deixando de tocar, e erguida em massa, passára a ser espectadora; os cantores cruzavam os braços e imitavam-a; os habitantes das varandas,—porventura os unicos espectadores de boa fé e de amor de arte sem mescla,—urravam de indignados; a auctoridade punha-se em pé no camarote e pedia para ser ouvida…

No meio d'este tumulto, Mr. Richard dava evidentes signaes de desagrado, traduzidos por muitos hos! por muitos estalidos de lingua, por muito sacudir de cabeça, e por pancadas de impaciencia com os nós dos dedos no encosto do camarote.

Manoel Quentino, igualmente escandalisado, era mais verboso na expressão de sua indignação.

Esse fartou-se de fallar, de ralhar, de gesticular, de censurar as auctoridades, de formular projectos absurdos de policia theatral, e isto tudo, quasi debruçado no camarote, e fitando a massa escura da plateia, cujo alvoroto ia crescendo.

Jenny olhava tambem na mesma direcção, mas o motivo era outro.

No camarote proximo ouvira fallar com severidade dos amotinadores da sala, e, entre os nomes mencionados, escutára o do irmão. Jenny estremeceu, e d'ahi vinha o cuidado com que examinava a plateia.

No entretanto, Manoel Quentino bradava:

—Eu, se fosse á auctoridade, mandava todos para o Carmo. Isto é um desaforo. Vem uma pessoa para se divertir, e vae… e vae… e vae…

A hesitação no terminar a phrase era devida a ter alguma cousa attrahido a attenção do velho para um ponto da sala.

—Oh! oh!—disse elle por fim—Ora, se elle lá não havia de estar!
Podera! A festa não se fazia sem elle. Estava de ver!

—Quem?—perguntou Jenny, receiando comprehendel-o.

—Lá está tambem o Carlinhos; pois não vê?

—Onde? Onde?—perguntou logo, com vivacidade, Mr. Richard.

Manoel Quentino sentiu ao mesmo tempo a mão de Jenny a apertar-lhe o braço, como para recommendar-lhe discrição. Antes porém de a sentir, já elle tinha percebido a necessidade de ser prudente.

—Acolá!—e apontou em direcção exactamente opposta ao logar, em que estava Carlos.

—Aonde, homem?… Não vejo.

—Pois não será elle? Alli, ao pé d'aquelle sujeito de chapéo branco. O snr. Richard ainda não vê… Admira!… Olhe, elle lá vae embora… Olhe agora… Adeus, lá foi…

—Não era elle.

—Era, era… Até me parece que elle me fez signal de lá, como quem… sim… como quem… estava zangado com este desaforo.

Principiava Manoel Quentino a prejudicar a causa que defendia, levando longe demais a defeza. Era sestro seu.

Carlos achára-se effectivamente envolvido na maior força do tumulto, ainda que com fim louvavel, qual era o de pacificar dois amigos, prestes a entrar em combate por causa d'esta questão theatral. Levantando porém occasionalmente os olhos para o camarote, percebeu um signal de supplica e inquietação em Jenny, e porisso, emquanto os olhos de Mr, Richard, guiados traiçoeiramente por Manoel Quentino, o procuravam em outro ponto, cedeu elle o logar a novos apaziguadores e saiu da plateia.

Manoel Quentino, que lhe seguia os movimentos, respirou então, dizendo:

—Elle ahi vem; verá v. s.ª que não tarda. E tem razão em vir; não se pôde estar lá em baixo com similhante gente.

Effectivamente Carlos não tardou a entrar. O primeiro olhar foi para a irmã, que soube tranquillisal-o com outro, e habilital-o a comprehender o papel, que lhe convinha representar diante do pae.

Carlos, entendendo-a, foi severo para com os desordeiros, o que evidentemente agradou a Mr. Richard.

No entretanto, havia-se restabelecido a serenidade na sala; o primeiro acto terminou sem outra novidade mais do que a de ser no fim a prima-donna applaudida com enthusiasmo pelos mesmos que a tinham pateado á entrada.

Mysterios de theatro, os quaes nunca pude penetrar.

Mr. Whitestone saíu no intervallo; Carlos ficou.

Manoel Quentino tomou então a palavra para prégar um sermão a Carlos, sobre os perigos das más companhias. Carlos escutou-o, rindo e commentando-lhe as sentenciosas palavras com ditos jocosos, que não permittiam ao velho a manutenção d'aquella seriedade, que reclamava tão substancioso assumpto.

Passado tempo, principiou Carlos a analysar as differentes toilettes e typos femininos, que adornavam os camarotes, critica em que nem sempre era em demasia benevolo. De uma das occasiões em que, para proseguir n'este exame, procurava limpar os vidros do binoculo, tirou do bolso um pequeno lenço de mulher, com cercadura de renda, para o qual se pôz a olhar admirado.

Depois, segurando-o por uma das pontas, e mostrando-o á irmã, disse, sorrindo:

—Ainda me tinha esquecido isto, Jenny.

—O quê?

—Outra apprehensão que fiz, com esperança de por ella obter esclarecimentos, e… que cabeça a minha!… nem já sabia que o tinha em meu poder…

—Mas a que te referes?

—Então esqueceste-te já da minha confidencia, no dia do carnaval?

—Ah!—disse Jenny, olhando immediatamente para Manoel Quentino.

As vistas d'este tinham-se tambem fixado no lenço, e parecia examinal-o cada vez com mais curiosidade.

—Dá-m'o—disse Jenny, estendendo a mão para recebel-o.

—Não posso—respondeu Carlos, retirando a sua, a rir.

—Dá-me licença?—disse Manoel Quentino, estendendo tambem a mão para elle.

—Para o entregar a Jenny depois?

—Não, não é; queria ver…

—Que tem você a ver com este lenço?—perguntou Carlos, dando-lh'o.

Jenny mostrava-se cada vez mais inquieta.

Manoel Quentino examinava o lenço com attenção.

—É celebre!—dizia elle—É exactamente um dos lenços que eu dei a minha filha no dia dos annos d'ella.

—Como?—perguntou Carlos, olhando para a irmã.

A inquietação de Jenny redobrava.

—Não que é exactamente!… as rendas… o bordado dos cantos… Só falta… Ah… mas a marca também!… um C.!… Este lenço é de Cecilia! Como é possível?!…

Jenny julgou que era tempo de intervir.

—Ora ahi temos o snr. Manoel Quentino embaraçado com uma cousa bem simples—disse ella, rindo.—Esse lenço, é de Cecilia, é; que duvida? Deixou-o ella, por esquecimento, ha dias… na terça-feira… em minha casa. Este buliçoso tem o costume de levar tudo do meu quarto, sem me consultar, e, julgando que era meu…

—Ah! bem me parecia que era o lenço que eu tinha dado a Cecilia. Estava admirado!

Carlos olhava para Jenny e para Manoel Quentino, como sem saber ainda bem o que pensar d'aquillo.

—Espero que m'o restituirás—disse Jenny—a mim é que compete entregal-o a Cecilia.

Carlos ia a responder, talvez imprudentemente, quando um gesto da irmã lhe impôz silencio e acabou de explicar tudo.

Emfim já não era mysterio para elle o nome da desconhecida do baile.

Tirando o lenço das mãos de Manoel Quentino e entregando-o á irmã, disse, com entonação de intelligencia, para esta:

—Tens razão, Jenny. És tu, a quem compete entregal-o. Acredita que foi por esquecimento que eu não te fallei n'este… roubo… O que reputo uma felicidade.

—Porquê?—perguntou Jenny, fazendo-se séria.

—Por… por causa da surpreza que veio agora causar ao nosso amigo
Manoel Quentino.

—Não, eu só estranhei…

Jenny mudou o assumpto da conversa.

Carlos ficou pensativo. Voltou á plateia, ao principiar o segundo acto. Todos lhe estranharam a distracção e a indifferença com que assistia á discussão, que ainda durava, sobre o facto da pateada.

Nem mais attenções lhe mereceram os cantores e a opera.

Jenny observava-o do camarote, e não deixou de reconhecer essa indiferença na posição invariavel, em que elle se conservou durante dois actos e um intervallo inteiro, como alheio a tudo o que em volta de si se passava.

—Que resultará agora de todo aquelle meditar?—pensava a irmã.

Ao principiar o ultimo acto, Carlos voltou ao camarote.

Manoel Quentino, não podendo luctar mais tempo contra a força do habito, adormecera. Mr. Richard estava absorvido em um dialogo, com um seu compatriota, de cabellos e suissas côr de neve, gravata da côr das suissas, e tez côr de rosa de Alexandria; fallavam nos triumphos lyricos da celebre Malibran, que ambos tinham, quando rapazes, escutado em Londres; no estylo de canto da phenix dos tenores—o famoso Rubini, o qual haviam admirado em 1831, no Queen's Theatre; no D. Giovanni, de Mozart, musica de que nunca se saciam os tympanos britannicos; e na Beggar's Opera de Gray—protesto do gosto nacional contra a escola italiana, que se riu do protesto.

Carlos, sentando-se junto da irmã, podia pois julgar-se a sós com ella.

—Então a minha bella incognita do dóminó de seda…—principiou elle.

Jenny olhou receiosa para Manoel Quentino.

—Não tenhas mêdo—disse Carlos.—Dorme e ameaça resonar.

—Estás agora convencido, Charles—disse Jenny ainda a meia voz—da verdade do que eu te dizia aquella manhã?

—A respeito?…

—A respeito da tua aventura da noite de carnaval. Cecilia é uma menina bem educada e de grande delicadeza de sentimentos. Deu imprudentemente aquelle passo, que Deus sabe quantos desgostos lhe poderia vir a causar, se a tua generosidade não prevalecesse a final sobre as tuas… loucuras; como ha de continuar a prevalecer ainda, assim o espero. Não estiveste tu mesmo para a perder no conceito dos que a não respeitam, porque a não conhecem? Não terias agora remorsos?

—Mas Cecilia…

—No mesmo dia, em que tu me fallaste n'isso, me veio ella contar tudo. Tambem tenho a sua confiança. E se soubesses com que receios o fez! se visses com que lagrimas não fingidas me interrompeu, quando eu lhe ia a confessar o que pensavas das mulheres, que se encontram sós e mascaradas n'aquelles logares!

—Pois tu disseste-lhe… Ó Jenny!…

—O bastante para a acautelar de passos, como aquelle; visto que nem sempre apparecem protectores que, no meio das suas velleidades, conservem ainda uns restos de sentimentos generosos…

—Valha-te Deus, Jenny! Mas… na verdade que me custa ainda a acreditar! Pois era Cecilia! Confesso-te, Jenny, que nunca suppuz que aquella rapariga tivesse tanta graça, tanta intelligencia, tanto…

—Não é d'essa injustiça que eu desejo ver-te arrependido, Charles, mas antes da do conceito que fizeste de Cecilia, do modo como a trataste, só por a veres onde nem quizeste suppôr que podesse estar tua irmã…

—E repito!—acudiu Carlos, com vivacidade.

—Pois bem, Charles—respondeu Jenny placidamente, mas em tom reprehensivo.—Digo-te eu então que as qualidades, que a vida inteira de Cecilia dão-lhe direito a exigir de ti tanta consideração e estima, como a que dizes ter-me. É ainda hoje a minha melhor amiga.

Carlos olhou para a irmã, admirado; tal era a gravidade, que lhe descobriu no olhar e na voz.

Devemos confessar que elle nunca viu em Cecilia outra cousa mais do que uma rapariga bonita, a qual muitas vezes lhe merecera olhares complacentes, mas de quem tão depressa se esquecia, como d'ella se afastava.

Recordo-me de haver dito, que esta qualidade, de não desafiar immediatamente impressões profundas, caracterisava a especie de belleza, que Cecilia possuia.

Nos seus dotes moraes nunca pensára Carlos; e para que havia elle de pensar n'isso? Por estes motivos a seriedade, de que se revestira subitamente o rosto de Jenny, impressionou-o.

—Bem, Jenny—respondeu elle, fazendo-se serio tambem.—As tuas palavras rehabilitariam até aquelles que precisassem de ser rehabilitados. E Cecilia, creio-o firmemente, não está n'esse caso. Censuras, em tudo isto, só as mereço eu. Hei de provar-te que assim o penso.

Jenny estendeu-lhe a mão.

—Agora reconheço-te pelo que és. Agradecida.

E depois, apontando para Manoel Quentino:

—Escuso de lembrar-te que elle ignora tudo.

—E ficará ignorando.

Manoel Quentino sonhava-se agora no escriptorio, a fazer uma baralhada conta de sommar.

Passados momentos, rodava pelas ruas da cidade a carruagem, que transportava a casa a familia Whitestone.

Das tres pessoas, que ella conduzia, nenhuma fallou durante todo o caminho.

XVII

CONTAS DE CARLOS COM A CONSCIENCIA

Impressionado pelas occorrencias d'aquella noite, que lhe afugentavam o somno, Carlos ao voltar a casa, encostou-se pensativo á mesa e abriu machinalmente um livro.

Quiz o acaso que fosse um volume das obras de Byron e nas Horas de
Ocio
. Carlos leu:

Woman! experiance might have told me…

a attenção já o não acompanhou ao segundo verso. Fora fatal a primeira palavra:—Woman!—mulher!—Apoiada n'este magico substantivo, a imaginação ganhou esforço e, deixando os sentidos seguirem os versos restantes, divagou, á sua vontade, mais rapida e por mais longe do que elles.

O caminho, que estes continuaram seguindo, provavelmente poderá o leitor encontral-o, se quizer, na sua bibliotheca: deixaremos porisso Byron em paz, e iremos, como podermos, atraz da imaginação de Carlos.

Principiou por se recordar da revelação que a um acaso devera momentos antes. Recordar, disse eu? Para com rigor me poder servir do termo, era necessario que tal descoberta lhe tivesse já, por instantes sequer, deixado livre o campo do pensamento; e teria? É licito duvidar.

Entrou depois Carlos em tarefa mais activa, qual foi a de tentar avivar a imagem de Cecilia, que apenas lhe apparecia como vaga reminiscencia, e velada por uma nuvem, que elle em vão procurava dissipar.

Se o leitor já alguma vez pôz hombros a emprezas d'estas, deve saber que desesperadoras difficuldades ellas trazem quasi sempre comsigo. Quanto mais ardente é o desejo de recordar uma physionomia, que ainda não temos bem gravada na memoria, tanto mais parece comprazer-se um maligno espirito de impacientar-nos, alterando-lhe completamente o typo, combinando os elementos physionomicos mais disparatados, debuxando a capricho o perfil, colorindo mentirosamente os cabellos e a tez, assombrando com a mais grosseira infidelidade as inflexões e os relevos.

Em uma palavra, Carlos, que tinha visto frequentes vezes Cecilia, ainda que nunca muito attentamente, não pôde, por mais que o tentasse, tirar da memoria uma imagem distincta d'essa rapariga.

Em compensação recordava-se do metal de voz sonoro, com que ella lhe fallára no baile, da graciosa maneira de rir, de tudo quanto lhe dissera, de todas as pequenas circumstancias d'aquella aventura do carnaval, de todas, e tão profundamente se deixou embeber n'estas cogitações que, apoiada a cabeça entre as mãos, os cotovêlos sobre a mesa, e os olhos meio fechados, nem se lembrava de Byron, que sinceramente julgava continuar a ler, nem sequer tinha consciencia do logar onde estava.

A luz amortecida diffundia no aposento soturna claridade, e o silencio era tal, que Carlos ouvia-se respirar.

De repente, como que tentando sair d'aquelle estado, afastou de si o livro com vivacidade.

Vergou a cabeça para traz sobre as costas da cadeira, e passou a mão pelos olhos, á maneira de quem desperta de um sonho. Mas, depois de avivar a luz, caiu de novo na mesma abstracção de que saíra.

Foi porém só a mão esquerda que se encostou á cabeça d'esta vez, emquanto que a direita pegou em uma penna e pôz-se a desenhar e a escrever á tôa sobre uma folha de papel branco, que lhe estava ao alcance.

Escusado é dizer que a alma não tomava parte n'isto.

Segundo a theoria de Xavier de Maistre, la bête ou o outro, que, em nós, devemos distinguir do eu, cansára-se de ler e escrevia agora. A alma, essa continuava na tarefa anterior, meditava ainda.

Observo porém que são perigosas muitas vezes as occupações, a que o tal outro se entrega, quando sacode por momentos o jugo do companheiro. O mesmo Xavier de Maistre aponta-nos exemplos d'isso.

Uma das distracções mais arriscadas é esta de escrever, A mão é indiscreta; e a razão se se descuida, está sendo atraiçoada, quando menos o pensa, por estes automaticos movimentos, que parecem sem significação.

Olhae por cima do hombro do homem absorvido em graves pensamentos, cuja mão move ao acaso a penna sobre uma folha de papel; entre muita cousa insignificante, é raro que uma ou outra palavra, um ou outro signal não symbolise, não denuncie a ideia dominante, que o possue.

Esse outro motor ou principio, que nos domina as acções, quando a consciencia não as regula e dirige, parece ter, como a alma, uma memoria tambem. Exerce-a sobre as particularidades insignificantes, que acompanharam qualquer acontecimento de importancia para o nosso destino. Impressionou-nos uma revelação? quando o pensamento se estiver occupando d'ella, a memoria do outro reproduzirá a maneira de trajar da pessoa, de quem a ouvimos, a côr das paredes do aposento, onde a escutamos, uma phrase dita simultaneamente por um homem que passava. Ora, muitas vezes estes accessorios teem ainda bastante analogia com o facto principal, para que um espirito investigador, sabendo-os, possa ir por elles, de deducção em deducção, até o fundo dos nossos pensamentos.

D'ahi vem o perigo de confiar, em taes momentos, a penna da mão, que se move sob a vontade d'este guia, o qual não tem a discrição necessaria para não deixar no papel vestigios das suas curiosas memorias.

Era o que estava succedendo a Carlos.

Principiou por desenhar, distrahidamente, um elmo; isto parece nada ter que ver com as provaveis cogitações do seu espirito, n'aquelle momento. Cumpre-me, porém, declarar que, na occasião em que no theatro, pela primeira vez, Carlos reparou em Cecilia, passava por diante d'elle um individuo, embrulhado em um manto romano e com um elmo, exactamente similhante ao do desenho.

Depois do elmo, delineou a penna uma meia mascara; aqui já a analogia é mais evidente e dispensa commentarios; uma mão, depois; pensava talvez na de Cecilia, cuja belleza notára ao apertar-lh'a, á despedida. Adiante…—agora parece maior o desacerto—um lampeão de praça! É verdade que havia um a illuminar a mysteriosa incognita, no momento em que, na afflicção, invocára o nome de Jenny, e conseguira, graças a esse nome invocado, evitar a ulterior perseguição de Carlos. E é provavel que fosse esta a razão de similhante desenho, visto que, em seguida, a mão escreveu por muitas vezes, e em diversas fórmas de lettra:—irmã, por sua irmã, por Jenny! Depois chegou a vez de um orgão de igreja;—esboço, que só julgará incoherente quem se não recordar da santa do kalendario, da qual esse é o emblema. De facto, a ideia do sacro instrumento veio de Santa Cecilia, e a ideia da santa não era das que acudiriam á mente de um protestante, se, cá na terra, alguma homonyma, por canonisar, a não chamasse lá. Após isto, escreveu uma palavra absurda, singular, inqualificavel; foi esta:—Ailicec; mas inverta-a o leitor e cessará a estranheza, que ella lhe possa causar; seguiram-se-lhe outras, não menos exquisitas, e formadas de diversas combinações das mesmas sete lettras, que emfim appareceram dispostas por ordem natural na palavra: Cecilia. Mais abaixo,—singular transição!—escreveu Carlos em caracteres bem legiveis:—Papa;—depois:—Calvino; e, acto continuo, o nome de um compatriota e amigo seu, que, mezes antes, tinha casado com uma senhora catholica.—Veja o leitor se poderá interpretar estes signaes, e ao mesmo tempo diga se não estava sendo de grande indiscrição para a alma, o outro, companheiro inseparavel d'ella.

A final a mão traçou, muito de vagar, as duas seguintes palavras reunidas:—Cecilia Whitestone.

A razão pareceu então despertar, e, espantada com o que viu feito na sua ausencia, tentou pôr termo a similhantes imprudencias; e a mão subitamente passou um traço por as duas ultimas palavras, logo depois de escriptas.

Carlos levantou-se para passeiar no quarto.

Principiou então a convencer-se de que tinha de facto sido injusto em formar tão levianamente um conceito pouco favoravel da mascara, e menos cavalheiro do que devia, no seu procedimento para com ella. Jenny havia-o reprehendido por isso tudo—e Carlos julgou ouvir a propria consciencia applaudindo Jenny. Chegou a persuadir-se de que tinha remorsos, e pareceu-lhe necessario imaginar alguma maneira de remediar tão grandes culpas.

Ouviu duas horas, ainda a pensar n'isto.

Deitou-se vestido sobre o leito; e cada vez a parecer-lhe mais necessaria e urgente uma resolução n'aquelle sentido!

Eram tres horas, quando julgou ter somno. Deitou-se por baixo da roupa, e apagou a luz.

O socego, que o rodeiava, um d'estes socegos nocturnos, tão completos que até o roer da larva invisivel, occulta no seio da madeira, se ouve distinctamente, impacientava-o, longe de convidal-o ao repouso. Quando o espirito está agitado, quando uma ideia qualquer nos inquieta, o silencio, a tranquillidade exterior parecem-nos um escarneo e irritam-nos.

Em menos de um quarto de hora já a cama estava em desordem, e a travesseira no chão. Carlos accendeu de novo a vela, trouxe um livro para a cama e esteve meia hora com elle aberto nas mesmas paginas.

Sentou-se impaciente no leito, e imaginou que tinha febre.

E assim se conservou até ás cinco horas da manhã, que foi sómente quando adormeceu, ou antes se deixou caír exhausto por o cansaço, que produz a insomnia.

E que resultou de tanto pensar? Vêl-o-hemos brevemente.

Vamos agora a casa de Manoel Quentino, onde nos encontraremos com antigos conhecimentos.

Ao voltar do theatro, contára Manoel Quentino á filha, não só o enredo da Lucia, que não podéra concluir no camarote, mas todos os principaes successos da noite; esqueceu-lhe porém o episodio do lenço, ao qual não dera importancia.

Cecilia escutou-o calada.—Dir-se-hia que já a impacientava ouvir tantas vezes fallar em Carlos; porque, de facto, parecia proposito formado em Manoel Quentino o ter sempre que contar do rapaz, d'essé estouvado, a quem, apesar de todos os estouvamentos, o bom homem queria devéras.

A julgar pela apparencia de ligeira mortificação, que tomava n'esses instantes o rosto de Cecilia, devia suppôr-se que existia n'ella uma forte antipathia para com o predilecto do pae.—Mas será prudente não confiar demasiado no rigor logico d'estas deducções physionomicas, e muito mais em mulheres.

No dia seguinte pela manhã, ao partir para o escriptorio, Manoel Quentino não deixou a filha menos melancolica do que nos anteriores; até lhe pareceu mais falta de côr. Falta de côr! Deus sabe os intimos e dolorosos estremecimentos, que estas palavras desafiam no coração de um pae! São para elle as faces rosadas de uma filha, como o firmamento para estas organisações impressiveis em excesso, onde, ao toldar-se de nuvens o céo, se projectam as sombras da tristeza; onde, quando elle ostenta um azul sem mácula, se reflecte a luz das alegrias.

Imagine-se o cuidado, com que devia partir o bom homem.

Que tratos não dava á memoria! Que concepções mais ou menos extravagantes! que minuciosas investigações sobre todos os seus proprios actos e palavras não vinha fazendo pelo caminho, só para descobrir a causa d'aquella mal disfarçada melancolia! E tudo em vão!

No escriptorio não o deixou este cuidado; mais de uma vez, se surprendeu com a penna, a incansavel companheira, parada no meio de uma palavra, com os olhos fitos no papel, e sem verem cousa alguma; em completa abstracção, elle, tão pouco propenso a isso!

Depois da morte da mulher—havia quinze annos—, e da doença de
Cecilia—havia seis—nunca tal lhe acontecera; estranhava-se.

Alguma razão tinha Manoel Quentino para estes cuidados.

Não que se podesse dizer Cecilia verdadeiramente triste; a imaginação do pae, excitada pelo seu muito amor, exagerava o mal, á força de o temer; mas perdera a despreoccupação, quasi infantil, que era natural n'ella; desgostára-se de repente de alguns passatempos, que, no meio das canceiras domesticas, ainda conservava de creança; tomára-se inesperadamente do gosto de passeiar só pelos corredores e pelas ruas do quintal, que não era proprio do seu caracter pouco meditativo, até então pelo menos. Manoel Quentino estranhava, por exemplo, não a ver fazendo saltar o agil e engraçado gato maltez, que não andava pouco sentido com a mudança; não a ouvir já cantar a meia voz, quando trabalhava á janella do quintal; ou formular observações, innocentemente satyricas, a respeito de alguns vizinhos, e as impertinentes perguntas com que, muito de proposito, costumava impacientar a criada; nem o mais ligeiro indicio denunciava agora n'ella uma indole propensa ao jovial.

Na manhã, em que Manoel Quentino luctava com as apprehensões que estas mudanças em Cecilia lhe despertavam, trabalhava ella no quarto com as janellas fechadas, contra o seu costume, e tão distrahida, que não era raro parar-lhe a agulha a meio caminho da costura.

Por mais de uma vez, Antonia, vindo consultal-a sobre negocios domesticos, foi constrangida a repetir a pergunta, porque Cecilia não a tinha comprehendido—o que, seja dito em abono da snr.ª Antonia da Natividade, não procedia de falta de clareza na redacção da phrase.

De uma d'estas fundas abstracções, tão repetidas n'aquella manhã em
Cecilia, veio arrancal-a o toque impetuoso da campainha do portal.

A este som Cecilia estremeceu e dirigiu os olhos para o relogio da sala, com um gesto de surpreza. Pouco passava da uma hora; não podia ainda ser o pae que voltasse, e raras vezes outra mão que não a d'elle fazia assim soar a campainha—muito menos áquellas horas do dia.

A estranheza augmentou e quasi degenerou em inquietação e susto com a entrada da criada, cuja physionomia não era de facto, n'aquelle momento, para tranquillisar ninguem.

A veneravel matrona trazia estampado no rosto, vigoroso de expressão, o mais completo espanto.

Cecilia, vendo-a, ergueu-se de subito e fez-se pallida, como se já aguardasse uma má noticia.

—Menina!… menina!…—dizia, a custo, a criada, fóra de respiração.

—Jesus! Que é, Antonia? que é?—perguntou Cecilia, batendo-lhe o coração com tal violencia, que parecia despedaçar-lhe o peito.

—Ai que ainda não estou em mim! continuava a outra.

—Diga, mulher! diga o que é.

—Ora que ha de ser! Ai!… Não se assuste… Safa!… Eu sempre fiquei!…

—E não diz!

—Digo, digo, menina. Pois porque não havia de dizer? Para isso vim.

—Pois não parece. Não vê o susto em que estou?

—Susto?! Não é caso d'isso, socegue… É que… aí, deixe-me, por amor de Deus, respirar…

Cecilia ajuntou as mãos com impaciencia.

—É um senhor—disse por fim Antonia—um senhor todo asseiado e bonito, que quer… Ai! sempre se me pregaram umas dores de cabeça!

—Que quer o quê, Antonia?

—Que quer fallar á menina.

—A mim! Você que diz, mulher? Isso póde lá ser!

—Tanto póde, que elle lá está.

—Lá! Aonde?

—Na sala das visitas.

—Pois mandou-o entrar?! Valha-me Deus!

—Então que havia eu de fazer? Se elle procurava a menina… Não, a delicadeza não fica mal a ninguem; sobre tudo com pessoas delicadas tambem. Havia de ver que modos aquelles tão bonitos! Obsequio vae, obsequio vem; senhora para aqui, senhora para alli; não é lá como estes cabouqueiros, que ás vezes veem por ahi, que julgam que todos foram creados a borôa e a caldo verde, como elles. Não, senhora; bem se vê que este é pessoa fina…

—Mas… é impossivel. Ha engano; não póde ser a mim que elle procura…
Você ouviu bem?

—Ouvi, menina, ouvi. Ora que scisma! Graças a Deus não estou tonta de todo. Ia agora deixar entrar assim, sem mais nem menos, um homem pela casa dentro, sem ouvir, sem perguntar… Credo, menina! melhor conceito faça de mim. Olhem agora! Ora essa não está má! Não, se eu não entendia aquillo, estava bem servida com a minha vida! Por as palavras se entende a gente e nosso Senhor nos dê sempre ouvidos para ouvir, olhos para ver e juizo para entender. Amen.

—Está bom, está bom. Já agora não ha remedio senão ir ver quem é. E o pae não estar em casa!…

—Ora não temos nenhum ataque de ladrões. Nem que fosse alguma cousa do outro mundo… Se a menina estivesse só, não digo … mas na companhia de uma pessoa de … de representação…

Cecilia parecia ainda irresoluta.

Antonia insistiu:

—Então, menina! Olhe que isso até parece mal tambem. Fazer esperar assim aquelle senhor! A final não sei de que tem receio. Então se a gente vae a…

—Ora cale-se, mulher, cale-se. Se eu sei o que você tem estado para ahi a prégar…—interrompeu-a Cecilia, já impaciente—Que hei de ir, sei eu. Já que o mal está feito…

—O mal! Ó menina, não me diga isso, por quem é. Então queria que eu…

Cecilia, depois de rapidamente se ageitar ao espelho, voltou as costas á snr.ª Antonia, e dirigiu-se para a sala onde a criada introduzira a estranha visita, que tanto a estava inquietando.

Antonia seguiu-a, resmoneando o resto das suas reflexões.

Ao entrar, não viram ninguem. A pessoa, que alli esperava, saíra para a varanda de pedra, que deitava sobre o quintal. Voltou porém, logo que percebeu que as duas haviam entrado na sala, mas, como ficasse com as costas voltadas á luz, não foi logo possivel a Cecilia reconhecer quem fosse.

Cecilia deu alguns passos, com hesitação, dizendo:

—Ao que parece, v. s.ª deve ter vindo enganado.

—Não, minha senhora, não vim. É v. exc.ª mesma que eu procuro.

Cecilia parou estupefacta. A voz, que assim lhe respondia, era-lhe conhecida; a pessoa não o era menos.

Ella reconheceu Carlos Whitestone.

O sobresalto e a confusão, que se apoderaram da filha de Manoel Quentino, n'esse momento, são indescriptiveis, mas faceis de conceber por quem tenha escutado, com Jenny, a dupla confidencia, de que atraz fizemos menção.

Cecilia teve de apoiar-se ao encosto da cadeira proxima, para disfarçar a sua turbação, as faces córaram intensamente e a custo pôde dizer, em voz tremula e sumida:

—Ó snr. Carlos!… V. s.ª aqui!…

—Venho cumprir um dever, minha senhora.

—Queira sentar-se—disse Cecilia, quasi constrangida ella propria a fazel-o para não cair.

—Tem duvida, minha senhora, em me escutar a sós?—perguntou Carlos, designando Antonia, com o olhar.

Cecilia, ainda mal senhora sua, fez signal á criada, que, collocada no limiar da porta, mostrava poucas disposições de abandonar o posto, e por isso fingiu não perceber a ordem, apesar de ter entendido bem até as palavras de Carlos.

O genio de Cecilia precisava de reagir contra o enleio, que a tomára; encontrou auxiliar na impaciencia com que repetiu a ordem, acrescentando com certo desabrimento:

—Saia.

Antonia não resistiu. Subiu as escadas, de mau humor, resmungando:

—Olhem agora o peralvilho! Ora já viram! Louvado seja Deus! Sempre ha gente n'este mundo! Que não vá eu descobrir o grande segredo! Melhores barbas do que as d'elle teem confiado na filha de meu pae. O snr. doutor Raposo, um lettrado de mão cheia… pois não punha nenhuma aquella em fallar diante de mim dos seus autos e demandas. Servi tres annos o doutor Dionysio, e, depois de jantar, contava-me tudo o que via e ouvia por casa das familias, onde tratava de medico. E, graças a Deus! nunca tiveram de se arrepender d'isso. Está para nascer o primeiro que tenha razão de queixa da minha lingua… Olha agora .. O lerma, o magricellas, o dois de paus…

E procurando parodiar burlescamente os modos de Carlos:

—Tem duvida, minha senhora, em me escutar a sós?!… Tem duvida, tem, sim, senhor; e então que acha?… Ou, se não tem, devia ter… Então escuta-se assim um creancelho, um homem, que nem põe navalha na cara, sem estar presente uma pessoa de juizo? Hein?—E ella então: «Saia!» Gósto d'isto! «Saia»; não que elle não ha mais «Saia». Não sáe, não, senhora, não sáe assim com essa pressa. Ora ahi está… Ou se sáe é porque… é porque… é por a gente querer viver bem com todos; é o que é… não é por mais nada!

A palinodia prolongou-se n'esta afinação; e a reputação de Carlos ficou de rastos no conceito da snr.ª Antonia.

Logo depois de se perder nas escadas o som dos passos de Antonia,
Cecilia, tremula e confusa, continuou:

—Não posso ainda imaginar a que deva a honra…

Carlos não a deixou proseguir.

—Perdão, minha senhora, v. exc.ª deve suppôr qual o fim, que me levou a solicitar este favor…

—Eu?!—perguntou Cecilia, a tremer.

—Sim, minha senhora—continuou Carlos—se v. exc.ª me conhecesse, se tivesse aprendido a fazer-me justiça, devia prever, ao ver-me entrar hoje aqui, em sua casa, que só um motivo me podia trazer.

—E era?—murmurou Cecilia, quasi receiando-se da resposta.

—Pedir-lhe perdão, minha senhora.

—Perdão!…

Cecilia sentiu o atordoamento precursor da vertigem, ao ouvir aquellas palavras.

—Sei tudo, minha senhora—proseguiu Carlos—e acredite que tenho sinceros remorsos de não haver adivinhado logo; nunca senti assim o effeito das minhas leviandades.

—Mas… sabe… o quê, senhor?—balbuciou Cecilia, como se tentasse ainda duvidar do que era já certeza para ella.

—Não me quer poupar ao desgosto de recordar uma scena, em que eu fui tão culpado?

—Pois Jenny disse-lhe?—exclamou, quasi involuntariamente, Cecilia, como fallando comsigo mesma.

E os olhos brilharam-lhe de lagrimas, prestes a desprenderem-se-lhe pelas faces.

Carlos atalhou-a:

—Não, minha senhora; Jenny não foi indiscreta. O acaso revelou-me tudo o que eu, desde aquella noite, tanto desejava saber. Minha irmã apenas me fez comprehender bem toda a pouca delicadeza do meu procedimento e a necessidade de uma justificação; é essa que eu venho aqui offerecer-lhe. V. exc.ª tem direito a ella, como o teria Jenny e como eu o exigiria de quem tratasse minha irmã… tão grosseiramente, como eu tratei v. exc.ª

—Mas, snr. Carlos, toda a culpa tive-a eu…

—Não diga isso! Insistir em não me reconhecer culpado é apenas uma maneira delicada de recusar-me o perdão que, de proposito, vim aqui implorar-lhe.

Cecilia não respondeu; Carlos proseguiu:

—V. exc.ª é a melhor amiga de Jenny; ella mesma, hontem, m'o disse. Peço-lhe que me não julgue indigno da sua amizade tambem, minha senhora. Eu supponho-me igualmente o melhor amigo de minha irmã. Duas pessoas, que teem assim a estima de um anjo, como aquelle, devem estimar-se uma á outra; não lhe parece?

—Mas eu, snr. Carlos, nunca tive motivos para… não tenho direito para deixar de… estimal-o.

—Perdôa-me portanto?

Cecilia guardou por algum tempo silencio, depois, fazendo esforço sobre si mesma, disse com vivacidade:

—Snr. Carlos, não fallemos mais n'isto, peço-lhe… Esqueçamos tudo, como se tivesse sido um sonho… mau.

E terminando assim o pensamento, baixou os olhos, como desfallecida pela violencia da lucta, que sustentára.

Carlos não replicou immediatamente. Houve um silencio de alguns segundos, incommodo para ambos; emfim, olhando para Cecilia:

—Esquecer!—disse Carlos, de uma maneira, que parecia mostrar não lhe ser demasiado grata a proposta, e depois acrescentou:—Pois sim… Esqueçamos, visto que assim o quer. Mas eu tenho a esquecer, arrependendo-me; já o fiz; v. exc.ª, perdoando; por que recusa fazel-o? Perdôa?

Cecilia ia de novo negar-se a admittir-lhe a culpa, mas, erguendo os olhos, viu Carlos que lhe estendia a mão e, sem bem attentar o que fazia, estendeu também a sua, murmurando:

—Perdôo.

Quando, reflectindo, a quiz retirar, e juntamente a palavra, já não era tempo.

Logo que ouviu de Cecilia o perdão, que viera de proposito solicitar alli, Carlos levantou-se.

—Obrigado, minha senhora—disse elle.—Cumpri o meu dever; agora parto satisfeito.

A pobre rapariga não podia responder mais nada; se ainda lhe estava parecendo um sonho tudo aquillo!

—Mais duas palavras só;—disse ainda Carlos, pegando no chapéo—quando v. exc.ª chegou, não estava eu aqui dentro; reparou? N'esse momento, minha senhora, acabava de fazer uma singular decoberta.

—Uma descoberta?!

—Muito singular. Ha poucos dias—continuou Carlos, aproximando-se da janella, junto da qual estava já Cecilia—passeiava eu n'aquelles pinheiraes… acolá. Meditava… nem posso bem dizer em quê. Não sei de que maneira me attrahiu a vista, e depois me occupou a imaginação, uma casa, que avistei d'alli. Tinha a varanda revestida de trepadeiras, uma roseira no intervallo das duas janellas e, no andar de cima, apparecia frequentemente uma senhora, toda occupada em trabalhos domesticos, n'esse lidar modesto, que rodeia, a meus olhos, de suave perfume de poesia as mais bellas figuras de mulher.

Cecilia baixou os olhos, córando, e pareceu entretida a examinar a andarella do castiçal de vidro, que lhe ficava á mão.

—Imagine agora a minha surpreza, quando, ha pouco, chegando aqui, reconheci esta varanda, esta janella, esta roseira, por as mesmas que de tão longe me haviam chamado a attencão. D'ahi—acrescentou, sorrindo—facil me foi concluir quem era a senhora. Não haverá mysterio n'isto? Não parece que esta roseira queria aconselhar-me de longe o passo que hoje dei? Eu, por mim, estou tentado a crêl-o, e tanto que, por gratidão, peço-lhe licença, minha senhora, para levar commigo uma memoria d'ella. Permitte-me que córte uma d'aquellas flores?

Cecilia só pôde sorrir em resposta, baixando a cabeça.

Carlos aproximou-se da japoneira e cortou um botão, ainda mal desabrochado; voltando á sala, curvou-se respeitosamente diante de Cecilia, e, depois de mais outra phrase de cumprimento, saíu.

Ella viu-o saír, sem que fizesse o menor movimento, e por muito tempo permaneceu no mesmo logar e na mesma posiçao em que havia ficado.

Dominava-lhe o espírito um turbilhão de ideias, que ora o mortificavam, ora, não sei de que maneira, o embalavam agradavelmente.

Foi ainda Antonia quem fez cessar mais esta abstracção.

—Então quem era a final este senhor de tantos recatos e cautelas?—perguntou a criada, a quem a curiosidade mordia com verdadeira sofreguidão.

—Pois não conheceu? Era o filho do snr. Ricardo, do patrão do pae…

—Ai sim?! Como está um homem! A ultima vez que o vi, era elle uma creança… Pois olhe que… a respeito de educação… póde com a que tem… Sempre é herege!

—Por que diz isso?

—Então não viu o descôco, com que lhe pediu, e na minhã cara, para me mandar embora? E a menina então… foi logo! E que queria por fim este chincharabelho?

—Nada… E sabe?… Escusa de fallar a meu pae… n'esta visita…

—É porque… Jenny… e o irmão querem causar uma surpreza a meu pae… para o dia dos annos d'elle e… avisam-me… por isso…

Decididamente Cecilia não tinha geito para mentir; hesitava, córava, a dizer isto, que não era possivel illudir-se ninguem.

A criada que, segundo ella mesma dizia, tinha olhos para ver, notou este rubor e confusão, e commentou-os a seu modo:

—Aqui anda cousa. Ora queira Deus, queira!… Nem sei se diga ao snr. Manoel Quentino… Mas nada, nada; ella lá sabe voltar o pae para onde quer e a final quem fica mal sou eu. Lá se arranjem… Humh! Uma surpreza para o dia dos annos. Pois não foste! Para mim é que elles veem com isto!

Cecilia, procurou encerrar-se no quarto; pegou de novo na costura; mas posso afiançar que não adiantou o trabalho.

Manoel Quentino tinha razão; alguma cousa affligia a filha.

XVIII

CONTAS DE JENNY COM A CONSCIENCIA DE CARLOS

Saíndo de casa de Manoel Quentino, Carlos não ia menos agitado, do que deixára a filha do guarda-livros.

Aquella visita de Carlos, visita que, a seus proprios olhos, elle procurava fazer passar como a mais natural reparação de uma das suas muitas leviandades, talvez perante a analyse imparcial tenha de receber outra qualificação, que não a de um cumprimento de dever.

Se se tratasse de outra mulher, que não fosse Cecilia, de outra com menos graças attractivas, embora com mais direitos ainda á reparação, talvez Carlos não chegasse a convencer-se tão profundamente e tão depressa, como parecia ter-se convencido, da instante e imperiosa necessidade d'aquelle passo que dera; talvez o pensamento de tal visita o não tivesse possuido toda a noite e, pelo menos, não se resolveria por certo a realisal-o, sem haver consultado Jenny, a sua boa conselheira em todos os actos da vida; mas, longe de a consultar, antes lhe andou occultando com cuidado o projecto emquanto o meditava, como com receio de ser dissuadido d'elle.

Ha certos homens, escrupulosos respeitadores da lettra das leis, que praticarão desafogados qualquer acção, averiguadamente illicita, sempre que possam sophismar os artigos do Codigo de maneira que se resalvem da pronuncia judicial; dando-se-lhes pouco que o espirito, que os dictára ao legislador, fique muito maltratado pelo sophisma.

Isto, que se pratíca com as leis civis, poucos são os que, todos os dias e a cada momento, o não fazem tambem em relação ao codigo intimo da consciencia. Raros ousam, se alguns, arrostar contra as prescripções d'este juiz inflexivel e perscrutador, e confessar o delicio desassombrados; quasi todos as discutem, as torcem, as commentam, alteram e sophismam, até as pôrem em accôrdo apparente com os actos que praticaram.

O orgulho leva muitas vezes o criminoso a recusar defender-se nos tribunaes humanos; nem o despreso geral, nem as severidades da lei são bastantes para o obrigarem a vergar a cabeça; tem coragem para adoptar o crime, deixando-lhe o nome de crime; mas esse mesmo, a sós, no tribunal da consciencia, procurará com ardor pleitear a causa, que abandonou perante juizes, de cujas mãos pôde saír a sentença de morte.

Longe de nós o querer estabelecer analogias, muito intimas, entre estes perpetradores de grandes maldades e Carlos, que, para com a consciencia, só tinha a justificar-se de um d'esses peccaditos que, mais ou menos, ha de forçosamente commetter quem tenha nas veias um sangue de vinte annos.

Mas é um tal jury o da consciencia, que, sempre que taes pleitos são necessarios no seu tribunal, a causa é já por isso má. Para as justas dispensa advogados.

Não procuremos illudir-nos nós, como Carlos; sem querer duvidar dos bons sentimentos d'elle, póde-se ir buscar outras razões para a visita, cujos promenores no ultimo capitulo relatamos.

O que é fóra de duvida é que depois d'aquella vigilia, em que o leitor o viu, não teve Carlos pensamento e imaginação, senão para descobrir um meio de tornar a encontrar-se com Cecília, e de fallar-lhe.

O resultado foi o que sabemos.

Se havia sido tão profunda a impressão produzida por a casual revelação do theatro n'aquelle espirito affectado já de vagos preludios do mal, mais a fundo se gravou ainda depois da visita feita a Cecilia.

Parecia que nas poucas palavras que n'essa entrevista Cecilia pronunciára, Carlos tinha decifrado sentidos occultos; pensava n'ellas.

Depois a coincidência de ter sido quasi evocado por aquella mal distincta figura de mulher, quando dias antes fitára de longe distrahidaraente os olhos em uma janella, avultava-lhe agora como uma cousa acima do simples acaso; por pouco estava a acreditar que a secreto influxo lhe haviam n'esse dia obedecido os olhos.

Vejam se não é serio o estado do coração de Carlos, que assim está quasi a tornal-o supersticioso.

Eram duas horas da tarde, quando Carlos chegou a casa. Tomando logo por a rua do jardim, para onde se abriam as janellas do quarto da irmã, parou por baixo d'ellas, e bateu nos vidros uma leve pancada.

Pouco depois agitaram-se, afastando-se, as cortinas, e o vulto de Jenny acudiu áquelle signal.

—És tu, Charles?! A estas horas!

—Pódes fallar-me, Jenny?

—Entra.

Carlos tornou outra vez por a rua, por onde viera; entrou no portal; atravessou alguns corredores e dentro em pouco achava-se no quarto de Jenny.

Jenny estava occupada na feitura do enxoval de uma creança recem-nascida, cuja pobre familia era soccorrida por a bondosa menina.

Carlos sentou-se ao lado da irmã.

Jenny continuou a trabalhar.

—Então que milagre é este? As magnolias do jardim haviam de fazer um espanto ao verem-te entre si a estas horas do dia!

—Sabes d'onde eu venho?—perguntou Carlos, em vez de responder, e brincando machinalmente com um colar de coraes, que tirára de cima do toucador.

—Eu, não—disse Jenny sem olhar para o irmão.

—Venho de casa de Manoel Quentino.

—De casa de Manoel Quentino? E a que foste lá?

—Pedir perdão a Cecilia.

Houve um intervallo de silencio.

Jenny voltára-se subitamente para Carlos, fixando n'elle o olhar serio e penetrante; Carlos com a cabeça baixa parecia todo absorvido na tarefa de contar o numero de coraes, de que se compunha a enfiadura.

—Dizes a verdade, Charles?—perguntou Jenny, ainda immovel, e continuando a fital-o.

—Então por que não ha de ser isto verdade?—replicou Carlos, tambem na mesma posição.

-E fallaste-lhe?

—Fallei.

—Que lhe disseste?

—Confessei-me culpado de quanto tivera logar n'aquella noite do baile e… pedi-lhe perdão…

—E ella?…

—E ella…—proseguiu Carlos, pousando emfim o colar—depois de algumas modestas hesitações… perdoou-me.

—Ah! Charles, Charles! Essa tua cabeça!…—disse Jenny a meia voz, e com inflexão benignamente reprehensiva.

—Então—tornou-lhe Carlos com modos de ligeiro enfado—Não fiz bem? Não era esse o meu dever? Eu esperava até que me applaudisses a acção e tu…

A estas palavras Jenny não pôde reprimir um movivento de impaciencia; arredou a costura em que trabalhava, tomou as mãos de Carlos, e fitando nos d'elle os olhos limpidos e serenos, como o céo de primavera, perguntou-lhe com um meio sorriso:

—Falla-me a verdade, Charles. A verdade só, entendes? Para que procuraste tu Cecilia?

—Que pergunta! Pois não te disse já? Não era do meu dever?…

—Não, não era. Melhor seria fingires sempre que ignoravas tudo, do que dares áquella pobre menina motivo para córar na tua presença. Esse acto, que dizes eu devia applaudir, não partiu do teu coração, que é muito bom e muito generoso, partiu mas foi d'esta cabeça—e pousava-lhe a mão na fronte;—d'esta cabeça, que é uma estouvada.

—És injusta d'esta vez, Jenny.

—Não sou. Quero acreditar que te illudisses a ti proprio; mas, se pensares melhor, verás que tenho razão. Hontem, ao saíres do theatro, estavas triste. Bem o senti. E por que estavas triste? Eram remorsos pela má opinião, que tinhas formado de quem te merecia sómente respeitos, que não tiveste?

—Eram.

—Não eram, Charles, não eram. Para que procuras tu enganar-me? Não eram. Tu sómente lamentavas o fim de uma aventura, á qual tinhas imaginado mais longa duração. O caracter da pessoa, de que se tratava, mostrava-te, depois que a conheceste, que eram sem fundamento as tuas esperanças, e tu então…

—Jenny!

—Para que o queres negar? Olha que eu tenho a vaidade, e o orgulho tambem, de saber ler nos teus pensamentos. Ha muito o aprendi e tu mesmo me auxiliaste.

Carlos baixou os olhos e principiou a torcer machinalmente a corrente do relogio.

Desde este momento a victoria era de Jenny. Ella comprehendeu-o e proseguiu:

—Depois a imaginação, essa travêssa imaginação, que nós ambos conhecemos, pôz-se a trabalhar. Ella não podia resignar-se a ver terminar tão depressa o romance, que phantasiára tão longo, e lidou, e lidou, e apesar de te recolheres hontem mais cêdo, não durou a tua vigilia menos do que a d'aquella celebre noite do carnaval; não é verdade? Confessa. E o coração a dizer-te, muito baixo, que devias… que era mais generoso deixar acabar tudo alli, e a imaginação a crear difficuldades, a inventar deveres, a entreter-te de não sei que pontos de honra muito exigentes; e então o coração, o pobre coração, que cada vez ia perdendo mais terreno, a lembrar-te que pelo menos consultasses tua irmã, Charles, e a outra, a má, nem isso te concedeu; provou-te a vantagem de me occultares tudo! Tinha mêdo de que eu podesse dissuadir-te! E tu a obedeceres á imaginação, e a levantares-te, a partires, a procurares Cecilia, e a pedir-lhe um perdão de creança, que em outras circumstancias te faria rir, e a pobre menina a conceder-t'o, sem bem saber o que fazia. Confessa, Charles, confessa, a verdade d'isto.

Carlos não pôde disfarçar um sorriso, e, levando aos labios a mão que a irmã pousára na sua, murmurou:

—Feiticeira!

Jenny sorriu tambem.

—Na verdade!—proseguiu ella, d'ahi a pouco—é uma forte imaginação essa tua, que tanta cousa consegue de ti! e comtudo…—acrescentou, cobrindo-se de repente de mais seriedade—e comtudo eu prefiro ainda dirigir-me ao teu coração, que tambem é forte, porque é muito sensivel e muito generoso e que a ha de poder vencer; não é verdade? É a elle que eu vou fallar, Charles, e espero que serei escutada.

—Falla, Jenny, falla. Aconselha-me. Bem sabes que ha muito te tenho por meu bom anjo. Falla—disse Carlos, affectuosamente.

—Ora dize-me, Charles—continuou Jenny, cada vez mais commovida:—não imaginas o que póde resultar d'essa tua phantasia, a deixares-te assim arrastar por ella? Cecilia até hoje tem sido feliz. No passado não tinha nada que a envergonhasse ou que lhe désse pena; no futuro não antevia nuvem, que de longe a ameaçasse. Era uma vida aquella tranquilla e serena, como não imaginas. Mas Cecilia tem dezoito annos, Charles, e um coração cheio de confiança e uma imaginação… um pouco á similhança da tua… Conheço-a, a ella tambem. Se alguma vez se apoderar d'aquelle bom espirito qualquer ideia, se passar uma hora a acalentar qualquer illusão, acredita que já não será sem esforço, e sem dor, que a arrancará de si. E dize-me, Charles: a tua consciencia, que é justa, não havia de querer mal, e muito, á tua phantasia, que é uma enganadora, se ella fizesse, com seus conselhos, nascer essa illusão, obrigando-te a sacrificar ao capricho de uma manhã o futuro inteiro de uma existencia?

—Mas de que maneira imaginas tu esse sacrificio?—interrogou Carlos, levantando os olhos para a irmã.

—De que maneira? Pois dize-me: se Cecilia, que podia esquecer aquella scena do baile e todas as suas consequencias, principiasse, depois da tua visita, a pensar mais n'ella? se, sabendo-te senhor de um segredo seu, principiasse a… a pensar mais em ti? se, córando na tua presença de acanhamento ao principio, pouco a pouco… quem sabe lá?… viesse a córar… de commoção… de… amor?…

E, ao pronunciar esta palavra, as faces de Jenny tingiam-se de desmaiado carmim.

Carlos sorriu, vendo-o.

—Tu ris, Charles? É porque estranhas em mim estas palavras ou por suppôres infundados os meus receios? Em qualquer dos casos não tens razão. O que não conheço por mim, ha muito aprendi a conhecer por os outros, e por ti, Charles, principalmente por ti. Eu sei como essas cousas se passam; como o capricho se transforma em ideia fixa, como a ideia arrasta após de si a paixão. Eu sei, Charles; que o tenho visto em ti e sei que Cecilia tem imaginação, como a tua, que a póde conduzir a esses extremos; com a differença de que em ti a paixão transforma-se ainda em esquecimento, e n'ella… Se te viesse a amar…

—Que grande mal! Amal-a-hia eu tambem, Jenny.

Jenny desviou a cabeça, procurando exprimir enfado, e tornou-lhe:

—Eu a fallar-te ao coração, Charles, e tu a responderes-me com a phantasia! Creança de vinte annos! quando se te poderá fallar serio? Pois bem; ás creanças permitte-se-lhes brincar, menos com os objectos, com que não sabem lidar ainda. Tu ainda não aprendeste a lidar com os affectos e com o coração dos outros, sem perigo para elles. Por isso eu te peço que não continues. Não imaginas o que poderia resultar d'ahi, em que luctas te verias envolvido, se um dia…

—Eu tenho coragem para luctar—disse Carlos, um pouco estouvadamente.

—Guarda-a para quando a lucta for inevitavel; mas não provoques tu mesmo a experiencia, que é sempre dolorosa.

—Não te comprehendo.

—Eu só te peço, Charles, que deixes de uma vez esse capricho, que te senhoreia ainda, bem o vejo. Pára, Charles, pára, se queres evitar no futuro o arrependimento tardío; pára, se te queres poupar a remorsos. É a tua irmã, que te pede isto, e tu… dizias estimar-me…

—Não faltava senão que o duvidasses agora, Jenny—disse Carlos, meio agastado.

—Não duvido, Charles, e tanto que tenho fé em que has de saber vencer esse capricho.

Carlos baixou a cabeça e ficou silencioso por algum tempo.

—Não sei, Jenny—disse d'ahi a pouco, levantando-se e passeiando no quarto—não sei até se é só capricho isto.

—Então é já paixão?—disse Jenny com olhar malicioso, e pegando outra vez na costura, em que trabalhava—Uma paixão de dois dias! Como cresceu depressa! Vamos, Charles; não sejas creança. Contento-me com que interrogues desapaixonado a tua consciencia, e o que ella te disser…

—Ai, não te fies muito na minha consciencia, Jenny. Não vês como ella me aconselha?

Jenny fez um gesto de incredulidade, olhando para o irmão.

—Ella? Então foi devéras a consciencia que te aconselhou a visita a
Cecilia? Falla com franqueza.

Carlos não pôde insistir.

Continuou passeiando com os olhos fitos no chão.

A final parou, e olhando para a imagem da irmã, que do espelho o fitava, disse, com modo sacudido:

—Vou tentar obedecer-te, Jenny; mas receio…

—Não me falles em receios. Sem fé nada se alcança, incredulo. Coragem! ainda ha pouco te gabavas de a possuir para as luctas.

—Adeus, Jenny. O que te posso dizer é que se podér desvanecer em mim esta impressão que me causou Cecilia…—Bem vês que te estou fallando agora com franqueza—não receiarei nunca mais pelo meu coração.

—Recordo-me de já me teres dito uma cousa assim… de outra vez.

Carlos ia a responder, mas, como se procurasse fugir a uma conversa que o mortificava, saíu com precipitação do quarto.

Jenny viu-o saír e ficou pensativa.

Momentos depois entrou Elisa com uma carta.

—De quem vem isso?—perguntou Jenny.

—De casa do snr. Manoel Quentino.

Jenny conheceu a lettra de Cecilia. Abriu a carta e leu:

«Minha boa Jenny.

Contra o que lhe tinha promettido, não me é possivel hoje visital-a. Não me sinto boa, e receio ter de me conservar em casa por alguns dias. Meu pae mostra-se inquieto pela minha saude e ainda que não seja senão para o tranquillisar, preciso de privar-me do prazer de a ver. Jenny, lembre-se de mim e peça a Deus que me conceda a bondade de coração e a serenidade de espirito da menina, pois com este meu genio e cabeça, duvido da felicidade na vida. Adeus.

Sua amiga,

Cecilia».

—Ah! tambem ella!—murmurou Jenny, ao terminar a leitura, e ficou mais pensativa do que antes, e uma pequena ruga desenhou-se-lhe na fronte.

O desalento, que parecia descobrir-se através das expressões d'aquella pequena carta, que em vão Cecilia tentára tornar jovial, justificava a ligeira nuvem que viera assombrar a fronte, habitualmente serena, da bondosa Jenny; habituada como estava ás alegrias sem motivo, á despreoccupação da sua amiga, tantas vezes reveladas em cartas e em conversas anteriores, estranhava com razão estes indicios de tristeza.

Além d'isso, o que na vespera ouvira a Manoel Quentino sobre as mudanças subitas da filha, não lhe tinha ainda esquecido.

Era no que pensava, quando Carlos a procurou no quarto; e foi essa a causa principal da apprehensão, exagerada talvez, com que soube da visita feita pelo irmão a Cecilia, e da anticipacão com que previa o futuro d'esta, tão estreitamente ligado ao procedimento de Carlos.

O estado de Carlos tambem não satisfazia. A segurança que, diante d'elle, affectára, ella propria a não sentia. Inquietava-a o acontecido, sem saber bem porquê. A seu pezar, já nenhum outro pensamento a distrahia d'aquelle.

Para tranquillisar-se, tratava de convencer-se de que eram infundados os receios. Recordava todas as passageiras inclinações que conhecera no irmão e que tão depressa, e sem consequencias más para ninguem, vira desvanecer; esforçava-se em explicar de mil maneiras a inquietação de Cecilia com exclusão d'aquella, que, não obstante, uma voz interior teimava em repetir-lhe.

De pensamento em pensamento, foi levada áquellas disposições de espirito, nas quaes se aprazia em contemplar as feições amadas da mãe, a sua conselheira de além tumulo.

E assim, a piedosa filha, com a fronte pendida sobre aquelle retrato, caíu em um meditar profundo, que por muito tempo se prolongou.

A final ergueu os olhos ao céo e pareceu dirigir-lhe uma oração mental. O olhar do Senhor baixaria sobre este anjo, que o implorava para serenar-lhe o espirito? É certo que, passados alguns instantes, diffundia-se-lhe no semblante a costumada placidez.

XIX

AGGRAVAM-SE OS SYMPTOMAS

Com toda a sua natural bondade, e superior penetração de espirito, commettera Jenny uma imprudencia.

Não hesitando em confessar ao irmão as apprehensões que sentia, ao pensar nos resultados da visita feita por elle a Cecilia, deixando-lhe entrever a possibilidade de que se originasse d'ahi, para a pobre rapariga, um d'esses sentimentos, a que imprudentemente se abrem os corações juvenis e que tão depressa adquirem ás vezes a força de paixão, Jenny, a previdente Jenny, apressára o mal, que julgára conjurar assim.

Escutando-a, Carlos, longe de reflectir nas sérias consequencias que podia arrastar comsigo tal paixão, se porventura nascesse, estava sentindo um agradavel prazer em a ouvir fallar na possibilidade d'ella; sorria-lhe já seductoramente esse amor, nas mal delineadas fórmas, sob que lhe apparecia como cousa de futuro e contingente ainda, que era.

Toda a cautela é pouca com estas imaginações, sempre promptas a voar para a região dos sonhos dourados.

É preciso usar para com ellas da prudencia que se deve ter com as creancas, surprendidas á borda de um abysmo; o brado, que se solta instinctivamente com o fim de as salvar, é que muitas vezes as precipita; mais vale encommendal-as á Providencia e não lhes mostrar o perigo, senão depois d'elle passado. Ha situações na vida em que tambem o coração se aproxima, brincando, de um despenhadeiro; todo o conselho n'este caso é igualmente arriscado; o sobresalto, que produz, póde effectuar a quéda.

Aconteceu isto com Carlos Whitestone.

É notavel a importancia que, n'estas cousas de coração, damos á opinião alheia! Andamos muito tempo a hesitar sobre o nome de certos sentimentos, que nos inspira uma mulher, e apesar de contínuo reflectir, não ousamos chamar-lhe amor; um dia, porém, encontramos o primeiro estouvado, que se lembra impensadamente de o classificar como tal, e logo a nossa opinião a curvar-se perante tão ponderosa auctoridade. Ha exemplos até de alguem quasi se chegar a convencer de que ama uma mulher, só á força de lh'o repetirem.

Mais desculpa tinha comtudo Carlos; porque não era Jenny sujeita a formar juizos levianos, nem a exprimir suspeitas e receios, que não tivessem fundamento.

Por isso tudo, saíu elle do quarto da irmã, muito peior do que viera.—E perdoem-me as leitoras, se chamo peiorar ao progredir no caminho do amor; não lhe chamaria por certo assim, se não fosse o cortejo de contrariedades, que de ordinario acompanha esta paixão.

O resto do dia passou-o Carlos no quarto, em completa ociosidade.

Ociosidade! E poderá dar-se tal nome a esses longos intervallos de repouso apparente, em que descansam os musculos, mas em que o cerebro executa porventura os seus mais violentos e fadigosos exercicios?—Se o leitor tem a infelicidade de não possuir um d'estes espiritos frios, que sem cessar absorvidos pelo cumprimento dos deveres da vida positiva, não sentem a necessidade de sacudir, de quando em quando, o jugo, para correrem por dominios mais propriamente seus, dirá se era ociosidade aquillo.

Desde esse dia, a vida de Carlos ia entrar em uma d'aquellas phases, que ao romancista, não resolvido a illuminar os seus quadros de outra luz, que não seja a da realidade, levantam serios embaraços.

Quando uma paixão sincera domina o coração do homem, exalta-se, sublima-se n'elle o que é a vida subjectiva; mas a vida exterior, a apparente, a que só avulta para quem não possue olhos que vejam, e coração que entenda o coração d'este homem, essa, baixa ao nivel das puerilidades.

Quando a dignidade varonil, o empertigamento masculino se conservam irreprehensiveis e intactos no auge de uma paixão, é de receiar sempre pela sinceridade d'ella.

Tudo quanto é convencional esquece então.

Ora, no homem mais grave e sisudo, ha sempre escondida a crença de outros tempos. O elemento pueril não morre nunca de todo em ninguem. A arte social applica-se com afan a occultar das vistas alheias esse legado da infancia; os mais sisudos são os que melhor o conseguem; mas basta um descuido de momento, uma distracção, e elle ahi vem á superfície.

Assim se explicam as proverbiaes canduras dos mathematicos e dos amantes.

Os jogos foram tambem inventados por esse motivo. Fingiu-se acreditar que era uma cousa grave o wist, o voltarete, o boston, etc., etc., para qualquer pessoa poder, em publico, entregar-se a elles, sem offensa da sisudez convencional; porque, se se não fizessem estas concessões á creança humana, que ás vezes tem impertinencias, corria-se o risco de mais escandalosas rebelliões da parte d'ella.

Mas, como dissemos, uma paixão verdadeira, uma d'essas, cada vez mais raras, paixões, nas quaes o prazer de amar lucta, em intensidade, com o de ser amado, absorve muito o espirito, para que elle possa exercer a vigilancia precisa sobre a travêssa creança, de que fallamos.

E, a não haver indulgengia da parte de quem espia estas quebras de seriedade, a victima da paixão corre o perigo de ser menos bem olhada.

Por isso temo fazer chronica do que se passou em Carlos, nos dias successivos á conferencia que teve com a irmã; porque, em tudo, pouco se nos deparará digno de um heroe de romance.

Appéllo porém para as reminiscencias dos leitores, para depois, sendo necessario, parodiar a defeza de Christo á peccadora.

Um dos primeiros phenomenos manifestados em Carlos foi uma subita timidez, n'elle verdadeiramente excepcional; uma perfeita timidez de creança; completo contraste com os seus passados arrojos, que ainda o haviam acompanhado na primeira visita feita a Cecilia.

Agora pela primeira vez se sentia acanhado.

Impellia-o o coração a tornar a ver Cecilia; saíu no meio da tarde com esse intento, dirigiu-se para a rua, onde ella morava; de longe, ao dobrar a esquina, pareceu-lhe descobril-a á janella. Que fortuna! Não é verdade? Assim parece que deveria reputar o facto. Pois não teve coragem de lhe passar pela porta e, sem ser visto, seguiu caminho differente. Mas com que má vontade ia contra si proprio!

D'ahi a pouco assomava de novo á mesma esquina; não estava ninguem á janella; pareceu animar-se com esta observação e caminhou para diante d'esta vez.

Ia ao mesmo tempo contente e mortificado, por não ver ninguem. Não sei se admittem que uma só causa tenha assim effeitos oppostos; fica-lhes livre darem ao facto a interpretação que quizerem: eu limito-me a registal-o.

Quando ia já proximo da casa, appareceu subitamente alguem á janella. Era Cecilia; adivinhou Carlos que era ella, antes de reconhecer. Com a apparição ficou mortificado e contente; outra vez o mesmo phenomeno paradoxal.

Apressou logo os passos e tomou uns ares de homem atarefado, como se quizesse dar a entender que a sua passagem por alli era puramente casual ou motivada por negocio urgente.

«Incoherencia!» dirá um galanteador de profissão. Incoherencia, é verdade; e pobre da paixão, que não dá para incoherencias. Se o rigor syllogistico resiste a uma d'estas commoções do coração, não vale a pena tomal-a a serio.

Ao passar por defronte da janella, Carlos cumprimentou Cecilia, timidamente, quasi canhestramente, sem lhe sobrar coragem para a fitar e não ousando voltar de novo a cabeça, em todo o resto da rua, que seguiu até o fim.

Interiormente redobrava a impaciencia e má vontade contra si proprio. Elle, que sempre se reconheceu arrojado, agora com acanhamentos de namorado noviço!

Parou na alameda, que ficava ao fim da rua. Não lhe saíu aquillo da ideia.—Que quer isto dizer?—pensava elle—Então não estou eu transformado em estudante de quinze annos, que nem frieza de animo tem para cumprimentar a prima, por quem julga morrer de amores? Acho-lhe graça!

E enchendo-se de brios, preparou-se, passados momentos, com maior denodo, para voltar.

Mas, apesar de todas as prevenções, a coragem ia-lhe faltando, á medida que se aproximava do logar do perigo.

Justamente na occasião, em que o attingia, chegava Manoel Quentino á porta de casa.

Era uma d'estas coincidencias felizes, de que, em outra occasião, Carlos saberia tirar partido.

D'esta vez quasi sentiu que ella se désse.

Foi obrigado a parar, depois de ter, sem a menor apparencia de audacia, cumprimentado de novo Cecilia, que estava á janella.

—Então por estes sitios!—disse-lhe Manoel Quentino admirado—O que o trouxe por aqui hoje?

Carlos balbuciou algumas palavras, que não formularam resposta alguma.

Manoel Quentino sorriu maliciosamente.

—Ora ande lá, ande lá com Deus.

Carlos córou.—Córou!

—Acredite que vim… por acaso—insistia elle.

—Sim, sim; pois eu bem sei—continuava Manoel Quentino no mesmo tom.

Carlos estava sobre brazas.

—Serio…

—Serio, sim, serio… pois é lá homem que falle de outra fórma?… Ora vá com nossa Senhora, vá… eh! eh! eh!…

Carlos não teve arte de demorar a conversa, durante a qual não aventurou um só olhar para Cecilia e nem animo lhe assistiu para aceitar o offerecimento que lhe fez Manoel Quentino de subir e descansar algum tempo.

Partiu, cada vez mais desgostoso comsigo, parecendo ter sido o seu principal empenho occultar, e não revelar, a Cecilia o que principiava a sentir por ella.

E agora uma pergunta: não o comprehenderia Cecilia? Parece racional dizer que não; mas quem póde lá adivinhar como o coração da mulher adquire certa ordem de conhecimentos, sobre tudo se…

Mas ponhamos de parte ses menos discretos; que os sentimentos de
Cecilia não são para se devassarem assim de passagem.

O resto do dia Carlos passou-o só no quarto, a ler.

Ha alguma cousa tambem de particular na maneira de ler, quando se está em taes disposições de espirito.

Preferem-se os romances; mas não é pelo lado litterario, que mais se apreciam; porém exactamente como os apreciam as creanças e a maioria das mulheres—pelas peripecias do enredo;—e, permitta-se-me dizer, que imagino ser esta a classe dos leitores, que mais deve lisongear o romancista.

Seguem-se então com ardor as phases successivas de uma paixão descripta alli; deixa-se tomar o coração de amor pela heroina; assume-se o caracter do heroe; e não se perdoa ao auctor quando termina por alguma catastrophe a historia, que escreve.

Isto aconteceu com Carlos. Symptoma terrivel! Leu em uma especie de embriaguez um romance inteiro de Walter-Scott, e muito tempo depois ficou a pensar no que lera; não tanto nas bellezas, que, em todos os generos, abundam nas ainda menos afamadas obras do grande romancista, como na felicidade dos noivos; porque, nos ultimos capitulos dos seus romances, raras vezes Walter-Scott deixa de os unir sacramentalmente.

Á noite voltou Carlos a passar por casa de Cecilia. Havia luz na sala da frente, luz que só se percebia por uma entreaberta das portas interiores. Eram as horas do serão e do chá de José Fortunato.

Carlos saboreou um prazer indefinivel em observar aquella luz. Vão vendo os leitores experientes se não é de inspirar receios o estado do Carlos.

Em casa evitava Jenny; receiava-se d'ella; Jenny, pela sua parte, julgava prudente não provocar novas conferencias sobre o assumpto.

Se ella soubesse que já não era com estes meios brandos, que havia de vencer!

No primeiro domingo, depois d'estas scenas, Carlos que, com toda a diplomacia, soubera de Manoel Quentino ser a Cedofeita que elle e a filha costumavam ir á missa, rompeu com os deveres de protestante e aproximou-se da porta d'aquelle vetusto templo catholico, ás horas a que sabia dever terminar alli o officio divino.

Passeiava na alameda lateral com toda a resolução de se fazer d'esta vez notado.

Mas, ao saír a primeira gente da igreja, apoderou-se d'elle a costumada timidez, e, já com receio de ser percebido, foi encostar-se ao portão de ferro do cemiterio contiguo, por não ter tempo de ir mais longe.

Serviu o mal a inspiração;—mal e bem ao mesmo tempo; porque, ainda n'aquelle momento, havia no espirito de Carlos o mesmo antagonismo de aspirações, que era, havia dias, o seu estado habitual.

Coincidia com o receio de ser visto a vontade de ser descoberto. Não póde haver logica na expressão, quando falta ao objecto que se exprime.

É certo porém que Manoel Quentino, saíndo da igreja com a filha, encaminhou-se para o cemiterio.

N'aquelle cemiterio repousava a mãe de Cecilia, e raro era o domingo em que Manoel Quentino, depois da missa, não ia orar alli, junto da sepultura da esposa.

Quando Carlos percebeu a direcção, que elles seguiam, era tarde para retirar-se. Manoel Quentino já o tinha visto; Cecilia tambem.

O pae sorriu-lhe com familiaridade; Cecília córou, ao corresponder ao acanhado cumprimento de Carlos.

—Então veio orar pelos mortos?—disse Manoel Quentino, com malicia.

Carlos encetou vagas explicações da sua presença alli.

—Pois se veio orar pelos mortos, achou companhia—continuou o velho;—que eu, infelizmente, tenho aqui por quem o faça. Ora deixe-me ver se encontro o cóveiro, para que nos abra a porta do cemiterio.

E, com este intento, dirigiu-se para a sacristia, deixando sem ceremonia
Carlos só na presença de Cecilia.

Precisarei de dizer que este inesperado e involuntario encontro enleiou sobremaneira os dois? Falla-se muito dos embaraços de uma primeira entrevista. Não serei eu quem os negue; quer-me porém parecer que a segunda é ainda mais difficil de sustentar, quando a primeira não foi de todo insignificante.

O que é verdade é que a imaginação de Carlos não lhe suggeriu uma só palavra que dissesse.

Nem sequer fallou no tempo! Cecilia não foi mais eloquente, fixou os olhos na porta da igreja, por onde desapparecera o pae, e emmudeceu.

N'isto uma velha mendiga, d'estas que nunca faltam á porta das igrejas ao findar a missa, aproximou-se d'elles, coxeando e gemendo.

—Meu rico senhor,—disse ella dolentemente a Carlos—tenha compaixão d'esta velhinha, que já não o póde ganhar.

Carlos não lhe dava attencão.

A velha insistiu:

—Ora dê, dê, meu fidalgo; e que nosso Senhor o veja dar.

—Não póde ser—disse distrahidamente Carlos.

A velha recorreu a Cecilia.

—Minha linda menina, peça-lhe que me dê uma esmolinha, peça; e que nosso Senhor os faça a ambos felizes, já que tão bem os talhou um para o outro.

Cecilia tentou sorrir, mas a confusão obrigou-a a baixar os olhos; Carlos não menos confuso tambem com o equivoco da mendiga, tirou do bolso uma moeda de prata e deu-lh'a, dizendo:

—Ahi tem; e vá com Deus, mulher.

Mas a mendiga entendeu que não devia supprimir assim as competentes e diffusas formulas da sua gratidão.

—Ora nosso Senhor os faça muito felizes e os deixe viver muito tempo na companhia um do outro, já que tão bem os juntou! Coitadinhos! Eu hei de rezar muito ao Senhor para que os abençoe e os tenha a ambos na sua divina guarda. Adeus, meu senhor, adeus; adeus, minha senhora. Nosso Senhor Jesus Christo os ha de sempre ver do céo e dar-lhes a felicidade que desejam. Ora coitadinhos!… Padre nosso, que estaes no céo…

Carlos e Cecilia viram-a afastar-se e sorriram, sem olhar um para o outro, e sem saber bem o que dissessem. Voltou Manoel Quentino e nenhum lhe referiu o caso, que com certeza o faria rir.

Este silencio é, no meu entender, de maxima significação.

Carlos acompanhou Manoel Quentino e Cecilia até á modesta campa, sobre a qual um nome, uma data e muitas flores marcavam o logar, onde jazia a que os dois ainda então choravam com saudade. Ao chegarem alli, Cecilia ajoelhou e recolheu-se por algum tempo em oração piedosa; Manoel Quentino, de pé, encostado á grade, orava tambem.

O contagio d'aquella commoção apoderava-se da alma de Carlos. Não sabia elle igualmente o que era ser orphão de mãe?

Duas almas, que receberam, ainda em plena infancia, a precoce provação d'esta dolorosa experiencia, devem entrar mais rapidas em intelligencia de affectos. Ha um laço invisivel a prendel-as já.

Quando no templo, ou junto de uma campa, uma se enleva na oração, a piedade filial da outra adivinha todas as palavras d'aquella prece, resente todas as angustias d'aquella dor.

Calado, triste, fitou Carlos os olhos na sympathica figura de mulher que orava assim, e quasi se sentiu impellido a ajoelhar-se-lhe ao lado e a orar tambem.

Ao erguer-se, encontrou Cecilia os olhos de Carlos, ainda fitos n'ella. Havia tanta sincera compaixão, impressa n'aquelle olhar, tanta d'essa sympathia, que desvanece hesitações e inspira confiança, que, pela primeira vez, Cecilia ousou olhal-o de face, dizendo-lhe com gesto de gratidão e commovida:

—Trouxemol-o a um triste logar, snr. Carlos. Perdoe-me se não poupei o espectaculo, pouco de alegrar, das orações de uma filha junto do tumulo de sua mãe.

—Ha muitas especies de alegria, minha senhora—respondeu Carlos.—Ás vezes os sentimentos melancolicos trazem comsigo algum prazer tambem, um prazer suave, intimo, consolador. Agradeço-lhe ter-me proporcionado um d'esses prazeres.

E calaram-se.

Manoel Quentino, findas as suas orações, deu-se pressa em saír d'aquelle logar, ao qual não era affeiçoado.

A dupla qualidade, doce e amarga, da saudade faz com que uns, para quem a primeira predomina, gostem de renoval-a; e que outros, que pelo contrario lhe sentem mais o travor do que a doçura, se apressem a fugir-lhe. Manoel Quentino era dos ultimos.

Carlos saíu com elles do cemiterio. Cecilia caminhava adiante. Carlos, com os olhos n'ella, entretinha com Manoel Quentino aturada conversa sobre os mais diversos assumptos. O velho guarda-livros fallava da agricultura, de emprezas de commercio, de politica patria, de melhoramentos municipaes, parando muitas vezes, no meio da rua, para dar mais forca ás suas reflexões. Carlos escutava-o com paciencia e docilidade, até então sem exemplo, e pelas quaes o proprio Manoel Quentino estava maravilhado.

Ás vezes, ao chegarem a uma travessa, que podia conduzir Carlos mais directamente a casa, o guarda-livros dizia-lhe:

—Agora então vae por aqui?

—Não; eu acompanho-o mais algum tempo—respondia Carlos.

—Não, mas veja lá…

—Não tem duvida; sigamos.

Só muito próximo já da casa de Manoel Quentino é que este insistiu de tal maneira com Carlos para que não fosse mais adiante, «a não querer fazer-me companhia ao jantar»—acrescentava elle—que, a seu pezar, Carlos condescendeu.

Despediu-se affectuosamente de Manoel Quentino e de Cecilia, com olhar um pouco menos timido já do que os antecedentes, mas do qual ainda se envergonharia qualquer galanteador dos menos arrojados. Ao dobrar a esquina, que lhe devia roubar á vista o pae e a filha, ousou voltar-se para olhar ainda.

Manoel Quentino desapparecia já do portal; Cecilia, que ficára um pouco atraz, voltára-se… occasionalmente—julgo eu que occasionalmente—de maneira que os seus olhares trocaram-se com os de Carlos.

Este facto, bem simples, foi durante todo o dia alimento para a imaginação do rapaz.

Não ha imaginações que de menos se sustentem, do que a dos namorados. Dê-se-lhe um facto insignificante, um sorriso, uma palavra, um olhar, e ella saberá extrahir de tão pouco infinitas riquezas de alimentação… espiritual. D'ahi em diante, o acaso…—não sei que fosse outra cousa—fazia com que, todas as tardes, Cecilia estivesse á janella, quando Carlos passava a cavallo, em direcção aos arrabaldes; e de noite, quando o snr. Fortunato principiava a notar que ia já tardando o chá, havia sempre um momento, em que Cecilia resolvia ir ver como estava o tempo, ficando alguns minutos por dentro dos vidros a contemplar o céo.

Ora queria ainda o acaso…—continuando a suppôr que era elle o motor de tudo isto—que fosse exactamente n'essa occasião, que voltasse Carlos dos arrabaldes, para onde de tarde passára. Não lhe era possivel desconhecer o perfil de Cecilia, assim apparente no fundo illuminado da janella; por isso naturalmente a cortejava, e, como a luz de um lampeão se reflectia n'aquelle momento sobre o cavalleiro, tambem Cecilia não podia deixar de reconhecel-o, e por isso naturalmente lhe correspondia ao cumprimento.

Successos d'esta importancia preencheram muitos dias mais. Não terminaria este capitulo, se fosse a registral-os todos. Amplie-o a memoria dos leitores. Póde fazel-o, porque este capitulo é commum aos romances de toda a gente.

No entretanto estranhava Jenny cada vez mais o irmão, e Manoel Quentino, de seu lado, cada vez mais se preoccupava com as mudanças no genio de Cecilia.

Carlos rompera completamente com os antigos habitos de vida. Notava-se-lhe a falta nos cafés, no theatro, nas assembleias, nos grupos dos amigos.

Passava horas e horas no quarto; ás vezes, com a cabeça pousada nas mãos, sem ler, sem escrever, sem fazer cousa alguma; outras, ouviam-o os criados passeiar por muito tempo, fumando charuto após charuto, e enchendo de fumo a atmosphera em que respirava.

Saía, ora a pé, ora a cavallo, mas quasi sempre os passeios eram para fóra da cidade. Affeiçoára-se subitamente á companhia de um velho inglez, o typo mais massador d'esta colonia portuense, a ponto de ir ás vezes esperal-o ao escriptorio e acompanhal-o com paciencia admiravel até casa—a qual ficava na direcção da de Manoel Quentino.

Se alguma vez succedia ficar ao pé de Jenny, esta admirava-se da mudança de ideias, que se operára n'elle; se procurava mostrar-se jovial, percebia-se-lhe o esforço para conseguil-o. Tudo isto dava muito que pensar á irmã.

Um dia, Jenny viu-o arremessar de si, com manifesto enfado, um livro que estava lendo.

Olhou e reconheceu um volume das obras de Byron.

—Que é isso?!—perguntou Jenny, sorrindo—Que má vontade é essa hoje contra o auctor que tanto aprecias?

—Impacienta-me ás vezes este poeta lord, para te fallar sinceramente. Ha tanta amargura e tanto sarcasmo em algumas d'estas paginas, que, pouco a pouco, nos fazemos maus, depois de uma aturada leitura d'esses admiraveis poemas. É sublime, mas é desconsolador. Leio-o com a cabeça atordoada, mas com o coração confrangido. Os instinctos da aguia são mais altos e heroicos do que os das pombas; mas nós todos queremos as pombas mais perto de casa e não nos consolaria tanto a vizinhança da aguia, embora nos excite mais a curiosidade quando, uma ou outra vez, a fitamos.

Jenny, em vez de sorrir a estas reflexões do irmão, tão alheias ao seu modo ordinario de pensar, fitou-o com maior seriedade e, depois de um instante de silencio, disse-lhe:

—Olha para mim, Charles.—Carlos levantou os olhos para ella.—Dizes isso do coração?

—Digo; por que m'o perguntas?

—Por desejar sabel-o.

E calou-se, abaixando de novo a cabeça para a costura, em que trabalhava.

De outra vez, aproximando-se da irmã, que tambem estava trabalhando, Carlos tirou-lhe da caixa da costura a Biblia, e, abrindo-a ao acaso, leu algum tempo em silencio. Depois, pousando-a sobre a mesa, disse em tom de gracejo:

—Sempre que recordo estes singelos costumes patriarchaes, descriptos no Genesis, não posso deixar de pensar nos muitos esforços que o homem parece ter feito para embaraçar, cada vez mais, o caminho da sua felicidade. Vê tu, Jenny, a simplicidade com que se fez todo este casamento de Isaac e de Rebecca, e compara-a ás mil impertinentes difficuldades, que, sob o nome de conveniencias, hoje é preciso vencer, para se realisar um intento similhante…

Jenny respondeu-lhe no mesmo tom:

—Que estás a dizer, Charles? Quererias tu devéras ver renovados esses costumes? Se, imitando Abrahão, o pae mandasse um servo, á terra dos seus avós, procurar mulher para o filho, aceital-a-hia este rebelde Isaac, embora o servo tivesse, como o da Escriptura, pedido e recebido antes de Deus a inspiração que lhe assistiu á escolha?

Carlos pôz-se a rir. Passados momentos, respondeu:

—Mas pelo menos, n'esses tempos, os que já se mettiam a talhar o futuro dos outros, inspiravam-se de boa origem; hoje… a affabilidade da mulher que abaixasse o cantaro para matar a sêde ao viandante e aos seus camêlos, não bastaria por certo para mostrar n'ella a escolhida por Deus. O servo de hoje, antes de lhe pendurar os pendentes nas orelhas, e de lhe enfiar os braceletes nos pulsos, quereria saber das posses e da posição social da rapariga…

Este dialogo, não menos do que o primeiro, deu que entender a Jenny.

Pela sua parte, Cecilia não fornecia menos motivos á estranheza do pae.

Todos aquelles symptomas, que Manoel Quentino já antes descobrira n'ella, haviam recrudescido agora.

Exagerára-se em Cecilia a especie de exaltação, frequente nas mulheres nervosas, que faz tão promptos n'ellas os risos como as lagrimas, sob a influencia de motivos igualmente pueris. Um amanhecer chuvoso e sombrio, uma flor desfolhada pelo vento, uma borboleta tolhida pela geada, avultam como desgraças grandes; o dispersar das nuvens, os primeiros rebentos de uma planta, a primeira andorinha que se vê passar, a primeira manhã que o cantar das aves sauda, desafiam expansões, proprias dos grandes jubilos.

Excita-se a impaciencia com uma palavra; vencem-se antigas aversões com um só olhar; um nada basta para destruir longos projectos; novas resoluções vigoram rapidas; acredita-se cegamente nas inspirações do momento; desconfia-se de resoluções meditadas; em uma palavra, tudo então é mobilidade no caracter da mulher. Nunca ha menos logica nos sentimentos, do que em situações assim. O coração pulsa sem rithmo regular, o rubor e a pallidez disputam incessantemente as faces virginaes, trahindo mysteriosas luctas interiores.

Manoel Quentino, pouco versado n'estes phenomenos do coração, via-lhes só as manifestações, que eram bastantes para o inquietarem. Ninguem lhe tirava da ideia que a filha estava para caír doente, que a doença da mãe se transmittiria a ella tambem. E com esta apprehensão o pobre homem era quem adoecia devéras.

XX

MANOEL QUENTINO PROCURA DISTRACÇÕES

O dia 1.º de abril de 1855 caíu ao domingo.

Mencionamos esta circumstancia, cuja exactidão o leitor póde, se quizer, verificar; porque não foi ella insignificante para os destinos das differentes pessoas, entre as quaes vae travada a acção da historia que escrevemos.

São estas cousas justamente as que tão falliveis tornam as previsões humanas; do facto ligeiro e pêco rebentam ás vezes taes e tantos successos estupendos, que não só revolucionam a sorte de um homem, mas até a dos imperios.

Como a referida circumstancia não se realisaria, se não fossem os annos bissextos, segue-se que, por tal facto, a sorte dos que figuram n'esta narração ficou ligada a não menos graúdas; personagens do que Julio Cesar e Gregorio XIII, que foram os que, em épocas successivas, regularam n'este ponto o kalendario, tal como hoje está.

Feita esta reflexão de philosophia da historia, prosigamos.

Sendo domingo, jantou Manoel Quentino mais cêdo, e, como visse de tarde que a tristeza da filha se não dissipava, insistiu com esta para que não ficasse em casa. Lembrou-lhe uma visita a Jenny. Cecilia acolheu o alvitre com repugnancia visivel.

Um sentimento de delicadeza obstava-lhe a que procurasse a sua amiga mais intima. Na mesma casa, em que ella vivia, vivia Carlos tambem, e eu julgo que o leitor terá percebido, sem que eu lh'o tenha dito, que não era já o filho de Mr. Whitestone uma pessoa indifferente para Cecilia.

Manoel Quentino instou porém com a filha para que saísse «a tomar ar e distrahir»—dizia elle—e pediu isto de maneira, que Cecilia resolveu fazer-lhe a vontade, indo visitar as filhas do major Mattos, que moravam algumas casas acima da sua.

—Vae, vae;—disse Manoel Quentino—sempre te distrahirás mais com ellas, do que ficando toda esta santa tarde commigo.

—E então o pae ha de ficar só?

—Eu… eu estou bem assim…

—Isso é que não—replicou Cecilia—irei, se me promette que vae dar um passeio tambem.

—Pois sim, sim. Tudo se ha de arranjar. Lá por isso não seja a duvida.

—Mas então vista-se.

—Deixa-me descansar.

—Eu não saio, sem o ver saír.

Manoel Quentino foi obrigado a condescender. Estava intimamente persuadido de que era vantajoso para a filha passar aquella tarde com alguem, que a distrahisse; porque elle, nas tristes disposições de espirito em que se sentia, não via bem como o fizesse.

Saíu pois, para obrigar Cecilia a saír, e, ao mesmo tempo, ia em busca de distracções tambem.

Era um excellente homem Manoel Quentino, mas dotado de pouca penetração para investigar o enigma da tristeza de uma rapariga de dezoito annos. O seu excessivo amor de pae não o deixava ver claro n'isto. Tudo se lhe figurava presagio de doença, e essa ideia fixa privava-o da necessaria frieza, para ver claro n'estas cousas.

Cada manhã, ao acordar, era um pensamento negro o primeiro que se lhe apossava do espirito—«Irei encontrar Cecilia com doença declarada?»—pensava elle.

Todas as tardes, ao voltar a casa, em vez de tremer com o anticipado prazer de encontrar e abraçar a filha, tremia com o susto de a vir achar enferma.

Por mais que fizesse para tirar aquillo da ideia, não o podia conseguir. Dormindo, inquietava-lhe os sonhos; comendo, vertia-lhe fel na comida; trabalhando, distrahia-lhe a attenção do trabalho.

Os amigos do guarda-livros viam-o com olhos inquietos e murmuravam, uns com os outros, na ausencia d'elle:

—Este pobre Manoel Quentino tem cousa que o rala.

—Está acabado, está.

—Se assim continúa, bem póde o snr. Richard ir lançando, as vistas sobre outro caixeiro, porque este…

N'esta tarde fez Manoel Quentino um esforço desesperado para saír d'aquelle sobresalto, em que andava.

Mas o pensamento humano, quando devéras tomado por uma ideia fixa, em vão se esforça por arrancal-a de si; em vão se desvia para direcções diversas; um como pendor natural o faz voltar de novo a ella. Póde-se, de alguma sorte, comparal-o a estes dados falsificados que, qualquer que seja a maneira por que se arrojem á mesa, mostram sempre aos olhos a mesma face, em virtude da desigual distribuição de massa na sua espessura.—Os phenomenos de equilibrio moral parece obedecerem a leis, comparaveis ás do equilibrio physico.—A estabilidade do pensamento está intimamente dependente da proporcional intensidade das ideias que sobre elle actuam. Agitem um pensamento e deixem-o depois entregue a si, sem novas causas a solicital-o; a ideia mais grave lhe determinará a posição de equilibrio; para que esta se possa indifferentemente verificar em qualquer sentido, é necessario que todas as ideias o solicitem com força igual—phenomeno só proprio dos espiritos fatuos.

Como vimos, Manoel Quentino não pensava por aquelle tempo senão na tristeza da filha, tristeza por elle supposta preludio de doença, que cêdo a viria disputar ao seu amor. Durante toda a tarde não houve corrente de pensamentos, suscitados pelos objectos que via, que a final de contas não terminasse n'aquelle.

Sempre que Manoel Quentino emprehendia um passeio, com o fim de se distrahir, não hesitava na escolha do itinerario. Desde tempos immemoriaes adoptára um e nem lhe passava por o sentido modifical-o. Deixava-se conduzir por o habito n'isto, como em tudo o mais. Atravessava a cidade até á Ribeira; seguia depois, pela margem direita do rio, até Campanhã; chegando ao Esteiro, tomava pela estrada de cima, que o levava ao jardim de S. Lazaro, e emfim recolhia-se a casa.

Foi o que fez n'aquella tarde. A cidade atravessou-a lidando ainda com o pensamento de tristeza, com que saíra de casa.

A primeira diversão operou-a só a vista do mercado de peixe, na Ribeira.

As lanchas valboeiras tinham, n'aquelle instante, chegado ao caes. As regateiras, os compradores particulares e os pescadores que vendiam, animavam o mercado com movimento e vozeria.

Este espectaculo, cheio de vida commercial, não achou indifferente Manoel Quentino. Agradava-lhe aquelle trafego; examinava com olhos conhecedores a excellencia do peixe, e informava-se curioso dos preços que regulavam o mercado. Ao saír d'alli, ia pensando:

—Não ha nada para arranjo domestico, como a pescada. É o peixe mais innocente que ha. Com razão lhe chamam a gallínha do mar. Ahi está a sardinha, que é gostosa; mas é mais doentia tambem. Que a sardinha de Espinho ainda não tanto, mas esta da barra!… D'onde virá a differença?… Pois não será toda ella o mesmo peixe?… Só se é da praia aqui ser mais pedregosa e o peixe saír mais batido… Que esta costa da Foz sempre é muito cheia de pedras!… Só o perigo que correm as embarcações aqui!… Ainda no outro dia, aquella grande desgraça dos oito pescadores que naufragaram!… Muita pena teve Cecilia, quando as folhas contaram de um que deixou uma creancinha orphã! Pobre Cecilia!… tem um coração!… Coitada!… É um anjo… Assim que me lembro d'aquella tristeza em que anda…

E ahi estava a ideia fixa com elle! Parece que ella propria fora a que dispozera esta fileira de ideias associadas, para conduzir a si o pensamento.

A impressão produzida pelo mercado desvanecera-se de todo; Manoel
Quentino proseguiu no passeio, já outra vez melancolico.

Mais adiante, tendo passado a ultima casa, que lhe tolhia a vista do rio e a da margem opposta, volveu naturalmente os olhos para o vulto escalvado e sombrio da Serra do Pilar, coroada pelo seu convento em ruinas e a sua igreja circular. Os tristes vestigios das guerras civis estão ainda n'aquelle logar muito evidentes, para que a lembrança d'ellas não acuda subita ao espirito de quem quer que o contemple por momentos.

Manoel Quentino, como quasi todos os portuenses da sua idade, havia sido mais do que simples espectador das scenas tragicas d'essas memoraveis épocas.

—Ha vinte e tantos annos—pensava elle—não havia, a estas horas, tanto socego, por aquelles sitios, não. Nem tambem estes passeios pela beira do rio eram tanto de appetecer como agora. Havia mais perigos, do que o dos nevoeiros do Douro. A fallar a verdade sempre era um tempo aquelle!… O que eu passei!… Parece-me que ainda foi o outro dia, e já lá vão vinte e tantos annos!… Oh! mas que alegria tambem, quando se abriram as linhas!… N'esse tempo era ainda a mãe de Cecilia uma creança. Só quatro annos depois é que eu principiei a pensar n'ella… Pobre rapariga!… Parece-me que ainda a estou a ver!… delgadinha, desmaiada, boa para todos, mas trabalhadeira ao mesmo tempo… É por isso que receio… Valha-me Deus! assim que me lembro da tristeza da pequena!…

E da Serra do Pilar e do tempo do Cerco conseguira aquella ideia dominante achar caminho para se lhe insinuar de novo no pensamento. E, o que mais é, parece que cada vez trazia comsigo maior cortejo de sinistros presagios.

Ao chegar á fonte do Carvalhinho, subiu uns degraus de pedra que alli ha, e beheu, mesmo do caneiro, alguns goles de agua; cousa que nunca se esquecia de fazer, porque tinha fé particular nas virtudes medicinaes d'aquella excellente agua.

—Ah!—dizia elle outra vez distrahido—Consola beber uma agua assim! Para aguas o Porto! Dizem que em Lisboa são más as aguas! Pois é das cousas mais precisas para a saude. É verdade que eu vejo por aqui tambem muitas doenças, apesar das aguas boas. E sobretudo a gente nova está saíndo tão franzina e tão fraca, que é uma cousa por maior! E o medo, que eu tenho, quando reparo em Cecilia! É tão delicada, tão…

E ahi estava outra vez assombrado para grande espaço de tempo.

Chegou á quinta chamada da China,—um dos passeios favoritos das classes populares portuenses.

Desciam a rampa, que antecede o portão, alguns bandos de gente do povo, rindo, cantando, em plena festa; iam em direcção ao rio. As barqueiras de Avintes aproximavam os barcos da margem para os receber; outras, ainda a grande distancia, chamavam, com toda a força d'aquelles pulmões robustos, as pessoas que vinham por terra. Cruzavam-se os barcos, movidos pelos vigorosos braços d'estas engraçadas e joviaes remeiras, e carregados com os frequentadores das diversões campestres do Areinho e da pesca do savel. Tudo era riso e cantigas no rio.

Manoel Quentino via tudo isto, e escutava entretido o canto de uma barqueira, que dizia:

  As riquezas d'este mundo
  Para mim não tem valor:
  Eu sou rica nos tens braços,
  Sou rica do teu amor.

E elle pôz-se a pensar:

—Como esta pobre gente vive satisfeita n'esta vida trabalhosa do rio!… Ao vento, á chuva, e sabe Deus o que tem em casa para comer! E é um gosto como ellas cantam e riem!… Raparigas de quinze e dezeseis annos consola vel-as já mover aquelles remos, que esfalfariam um homem, como eu. Não ha como estes ares e esta vida do campo, para fazer as pessoas robustas. Se eu adivinhasse que Cecilia aproveitaria com elles!…

E retomava o pensamento a posição de equilibrio estavel, de que por instantes se desviára.

Chegou ao ponto da margem, chamado Rego Lameiro. Ahi opéra o Douro uma das suas subitas e surprendentes transformações. Expiram as collinas fronteiras de uma e outra margem, interrompidas por um valle deliciosissimo, onde a vegetação é mais abundante, mais povoadas as verduras, e onde se encorporam em riachos as aguas escoadas dos proximos declives. Apreciam-se tão raros intervallos, em que o Douro, o severo Douro, sorri, como se aprecia um raio de alegria em rosto habitualmente carregado.

N'este sitio alarga-se o leito das aguas, diminue portanto a força da corrente d'ellas, chegando, nas marés baixas, a permittir a formação de pequenos ilhotes de areia, para onde vão brincar as creanças dos pescadores. A tortuosidade das margens, furtando á vista o seguimento do rio, dá a este a completa apparencia de um pequeno, mas pittoresco lago. Os olhos descobrem, de um lado, o extenso areal de Quebrantões, ao qual succedem prados e leziras sempre verdes, veigas fertilissimas, arvoredos espessos e, escondidas por o meio, as risonhas casas de algumas pequenas povoações campestres; adiante as quintas da Pedra Salgada, e através do véo azulado da distancia, a aprazivel aldeia de Avintes; do outro lado o palácio do Freixo com seus torreões e balaustradas e as quintas e ribeiras de Valbom e Campanhã. E se é ao fim do dia, quando o sol doura todo o quadro, reflectindo-se afogueado nas vidraças voltadas ao occidente, e a viração da tarde enfua as velas brancas das pequenas embarcações do logar, e o céo é azul e as aguas limpidas, a paizagem compensa bem os privados de gosar as bellezas mais celebradas por viajantes e poetas, as analogas das quaes só a nossa cegueira nos não deixa ás vezes ver a dois passos da porta.

Era aqui que Manoel Quentino se sentava sempre durante alguns minutos, sobre uma pedra solta da margem.

—Como isto é bonito!—pensava elle—É que nem ha outro passeio assim, nos arredores do Porto. E a tarde então está tão serena e socegada, que até se percebe d'aqui tudo o que se diz no Areinho. Se eu tivesse dinheiro, era onde comprava uma quinta. Chegando aos sabbados, saía do escriptorio e mettia-me n'um barco… ou a pé mesmo… A final é um passeio… É verdade que se viesse Cecilia, sempre era longe. Ainda que ella não se cansa… Não se cansa?… não se cansava… agora…

E a ideia negra, aquella pertinaz ideia negra, a tomar outra vez posse de Manoel Quentino! e, com o ir adiantando-se a tarde, parecia cada vez mais negra, como se as sombras crescessem para ella tambem!

D'ahi em diante, não se modificou o processo das cogitações do velho.
Uma fabrica de cortumes, umas creanças, a quem deu esmola, uns armazens,
tudo quanto viu, após varias oscillações do pensamento, faziam caír
Manoel Quentino na preoccupacão anterior.

De maneira que o passeio, aquelle passeio que o devia distrahir, antes lhe exacerbou o mal, que o atribulava.

Subia elle já a íngreme costeira, que leva do Esteiro de Campanhã até o sitio do Padrão. A tarde arrefecera subitamente. Ou fosse o resultado d'aquelle contínuo pensar em cousas tristes ou influencias de outras causas, é certo que Manoel Quentino principiou a não se sentir bom. Pesava-lhe a cabeça, como ourada; dobravam-se-lhe os joelhos de fraqueza; sentia um geral quebrantamento no corpo, que lhe dificultava já o regresso a casa; e depois a melancolia a condensar-se-lhe no coração, que parecia que lh'o estava a apertar com mão de ferro.

Quasi se arrastava por aquella custosa estrada acima desalentado e melancolico.

Chegando a uma das vendas, onde, aos domingos de primavera e estio, costumam celebrar festivas merendas alguns joviaes habitantes da cidade, chegaram-lhe aos ouvidos cantos e risadas, que, no atordoamento em que ia, o incommodavam; pareceu-lhe ouvir pronunciar o seu nome, no meio d'aquella vozeria; mas já não podia dispor da attenção para escutar o que diziam. Continuou caminhando.

De repente, appareceu á porta um dos da companhia a chamal-o.

Manoel Quentino voltou-se lentamente para elle, sem dizer palavra.

—Então d'onde vem, snr. Manoel Quentino?

—D'ahi de baixo—respondeu, com voz fraca.

—E não encontrou ninguem conhecido pelo caminho?

—Eu, não.

—Pois ainda agora o procuraram aqui.

—A mim?!

—Sim; então não sabe o que ha?—disse o sujeito, que lhe fallava com certos modos de importancia e cuidado.

O coração de Manoel Quentino principiou a bater desordenado.

—Eu não…

—Pois vieram, ha poucos minutos, procural-o aqui, para que fosse, já, já, a casa, porque…

—Porque?…—interrogou Manoel Quentino, passando-lhe um calefrio por todo o corpo e seccando-se-lhe subitamente a bôca, como em accesso de febre.

—Porque… pelos modos… sua filha… estava bastante doente…
Disseram que o tinham antes ido procurar ao escriptorio… mas…

Manoel Quentino já não escutava; encontrando forças no seu amor, sobresaltado assim, quasi deitou a correr por o mesmo caminho, pelo qual com dificuldade se arrastára até alli.

O que lhe dera o aviso pôz-se a rir, ao vel-o partir com tal pressa.

—Venham ver, venham cá ver!—dizia elle para os companheiros.

Um d'elles chegou á porta.

—Pobre homem! Chama-o. Olha que isso póde fazer-lhe mal.

—Ó Manoel Quentino! Psiu! Olhe que é hoje o l.°de abril, homem! Manoel
Quentino!

Mas o pobre velho nem o ouviu; cada vez corria mais.

Estes homens tinham celebrado o 1.° de abril—este dia que, não sei por quê, o uso popular consagra a reciprocas mystificações—ferindo no mais doloroso o coração de um pae! E ainda poderam rir!

Louvado seja Deus! Ha gente assim graciosa no mundo!

—Vão lá agora segural-o,—disse o mystificador—deixa-o, maior alegria o espera ao chegar a casa.

E voltou a divertir-se.

No entretanto Manoel Quentino proseguia n'aquella marcha rapida, desordenada, como se desejasse fazer desapparecer de subito a distancia, que inda o separava da filha, e ia murmurando:

—Cecilia… pobre filha!… Ó nossa Senhora!… que desgraça! que desgraça! para que saí eu?… Não póde ser… Mas para me virem assim chamar… Quem sabe se… Grande perigo! grande perigo, por certo! Virgem Santa! E este caminho é tão longo!… E ella morta talvez por me ver chegar… Ó filha, filha…

E as lagrimas caíam-lhe em fio pelas faces.

O atordoamento de cabeça augmentava; a energia muscular, que a nova recebida momentaneamente lhe dera, cedia de novo logar ao mesmo desfallecer, que, antes, lhe vergava os membros. O pobre velho aterrava-se ao perceber isto.

—Oh! dae-me forcas, Senhor, dae-me forças para chegar depressa! Por misericordia!—dizia elle, tremendo—A minha pobre filha!…

E os ouvidos zuniam-lhe cada vez mais; diante dos olhos, passavam-lhe, de quando em quando, faiscas, manchas avermelhadas, nuvens de sangue; ouvia o bater das fontes e das carotidas; furtava-se-lhe o chão debaixo dos pés; andava e não se sentia andar; já não tinha poder de regular os movimentos, que se succediam sem a coordenação regular.

Uns homens, que passaram por elle, pararam a examinal-o, e Manoel
Quentino ouviu-lhes ainda dizer:

—Olha como vae aquella alminha! ha de custar-lhe a dar com a porta de casa.

Estas palavras affligiram ainda mais este pobre pae, já tão afflicto.
Tinha chegado á capellinha do Padrão.

—Que angustias, meu Deus! Valei-me, nossa Senhora!—murmurou elle.

Encostou-se algum tempo ás grades da porta, porque já não podia andar.

Fez uma oração fervente, d'estas orações que, se não abrirem de prompto caminho até o throno de Deus, é porque para sempre se fecharam já as portas do céo a todas as preces da humanidade. Mais sentida, mais do coração, do que aquella, é que se não fazem no mundo.

Pareceu ganhar vigor por um pouco. Proseguiu, mas com o andar mais tardo e vacillante. Cêdo porém voltaram as ameaças do mal. Um entranhado terror apoderou-se-lhe do coração, uma como mysteriosa consciencia de proximo perigo.

As luzes da illuminação publica appareciam-lhe coloridas de vermelho. A perturbação de vista augmentou; tudo girava em volta d'elle; os objectos tornavam-se-lhe indistinctos, afigurava-se-lhe que o terreno descia de repente, e em uma descida tão rapida, que elle teve de parar para não caír. Encostou-se á ombreira de uma porta.

Ouviu a voz de alguem, que já nem viu, dizer-lhe:

—O senhor não está bom? Entre para descansar.

—Não—disse elle com certo desabrimento, como se aquelle conselho lhe desvanecesse cruelmente a illusão, que fazia por conservar ainda.

E de novo tentou caminhar.

Estava proximo do cemiterio publico, chamado do Repouso; deu mais alguns passos.

Os mesmos symptomas atacaram-o de novo e com maior violencia; a vertigem foi completa; o chão pareceu faltar-lhe.

O bom do homem ainda pôde murmurar:

—Senhor!… Senhor!… por piedade!… pois hei de morrer aqui, sem ver minha filha?!…

E caíu sobre um dos bancos de pedra da alameda que está em frente do cemiterio.

XXI

O QUE VALE UMA RESOLUÇÃO

Cecilia, pensando que o pae não prolongaria demasiado o passeio, voltou a casa ainda com dia.

Anoiteceu, porém, sem que Manoel Quentino apparecesse.

Tudo era sombras na rua: para o lado do mar coloria-se o céo do rubor inflammado do crepusculo… e ninguem!

O coração de Cecilia principiou a ennevoar-se de vagos receios, que ella até fugia de definir.

Mas estas nevoas foram-se condensando em cerração, á medida que descia a noite, e Manoel Quentino sem apparecer! A imaginação de Cecilia começava já a lembrar-lhe mil escuras explicações d'aquella extraordinaria demora.

A boa rapariga não podia socegar.

Vinha á janella com esperanças de avistar o pae no principio da rua, e retirava-se para dentro outra vez, pezarosa e assustada porque o não via.

Fallava a Antonia, desejando ouvir d'ella alguma supposicão, que a tranquillisasse; mas a criada, tambem assustada com a demora do amo, longe de a animar, aterrava-a com as suggestões da sua fertil imaginativa.

—Olhem agora!—dizia ella—Não que uma demora assim! Eu nunca vi!…
Quem sabe lá? Não lhe fosse por ahi acontecer alguma!…

—O que lhe havia de acontecer, mulher? Você tambem!—disse Cecilia, tranzida de susto com esta vaga insinuação da criada.

—O que lhe havia de acontecer?—proseguiu esta—Ellas em qualquer parte se armam. Até na cama se quebra uma perna. Veja aquelle velho, que passava d'antes todos os dias por aqui para a alfandega. Então não escorregou um dia no degrausito da porta, que não tinha mais do que isto—e indicava uma mão travessa;—caíu, e de tal maneira, que no fim de oito dias estava enterrado.

Cecilia empallidecia só de ouvir estas palavras.

—Mas, se tivesse succedido alguma cousa, tinha já mandado dizer.

—Conforme, menina… Ás vezes acontecem os males em sitios, onde ninguem conhece uma pessoa, e se se não póde fallar… Ahi está que…

—Havia logo de succeder tudo mal. Nem que o pae fosse para algum sertão de selvagens. Você tem cousas!

—Pois sim, mas o que é certo é que se a demora fosse natural, elle é que já tinha mandado aviso. Pois então não havia de saber a canceira e susto que causava á menina?

Cecilia afastou-se, impaciente, d'esta Cassandra de cozinha, e voltou á janella.

Estavam já accesos os lampeões da rua. As sombras da noite parecia estenderem-se ao coração de Cecilia.

—A menina quer que traga luz?—perguntou a criada, entrando na sala.

Esta pergunta, obrigando-a a notar o adiantado da hora, soou funebremente aos ouvidos de Cecilia.

—Não—disse ella, com voz alterada.—Luz, tão cêdo!

—Cêdo?! Onde vão as sete, menina! Está de ver que não vem.

—Que não vem! Que não vem! Você está douda, mulher? Pois não ha de vir?—exclamou, com dobrada impaciencia e quasi com raiva, Cecilia, debruçando-se mais na janella.

—A menina não faz nada em o esperar assim. Lá por estar ahi não é que elle vem mais depressa—ponderou tolamente a snr.ª Antonia.

—Não lhe importe; deixe-me—disse-lhe sêccamente Cecilia.

—Uma cousa assim!—proseguiu a criada—Não que quando a gente mal se precata! Sáe uma pessoa muito socegada de sua casa e só Deus sabe para quê! Para onde iria tambem aquella creaturinha do Senhor? Quem póde lá dizer o que lhe succedeu? Sume-te! Eu lembro-me de que um dia meu pae…

—Vá buscar luz, vá—ordenou Cecilia, para escapar ao caso, que Antonia apparelhava, com o piedoso intento de tirar d'elle talvez uma inducção pouco de tranquillisar.

Antonia saíu.

Cecilia, de assustada que estava, já não sabia o que fizesse.

Qualquer vulto, que assomava ao principio da rua, lhe parecia o pae; seguia-o com anciosa curiosidade, cêdo transformava-se em desalento esta curiosidade, porque o via passar indifferente para além da porta da casa.

Andavam já bem perto dos olhos as lagrimas em Cecilia, quando Anlonia voltou com a luz.

—Então, ainda nada?—perguntou a criada.

Cecilia não lhe respondeu.

—Quer que feche as janellas?

—Não.

—Não tem que ver; a cousa não é natural. O pae é amigo de recolher-se cêdo e não era homem que não mandasse recado, no caso de, de todo em todo, não poder vir. Ninguem me tira d'isto. Aquillo foi cousa que lhe succedeu por lá.

O relogio deu meia hora depois das sete.

—Já sete e meia! Sempre é demais! Ó menina, eu vou extrahir o chá, não acha?

—Não; cale-se para ahi. Quero lá saber de chá. Bem me importa a mim o chá. Você perdeu o juizo?

—É que o snr. José Forrunato não tarda por ahi…

—Pois se vier, veio. Não tenho mais em que pensar, senão no snr. José
Fortunato! Deixe-me, deixe-me.

Antonia era d'estas pessoas, a quem as maiores inquietações não fazem perder a ideia das suas obrigações habituaes. Emquanto o espirito se perturba e a bôca lhe traduz os pensamentos, as mãos, independentes da imaginação, proseguem na tarefa do costume.

Cecilia não; caracter apaixonado, era toda da ideia que a possuia. A irresolução, que devia áquelle estado de anciosa duvida, para tudo a inhabilitava.

Em nada consentia que lhe fallassem n'aquelle momento, nada queria escutar, de nada queria saber.

Anciada, nervosa, impaciente, febril, passava de uma para outra janella, voltava ao interior da sala, chegava ao patamar, e corria á janella outra vez.

Em uma d'estas occasiões ouviu duas mulheres, que passavam na rua, dizerem:

—Uma desgraça assim! Foram todos; uns morreram, outros ficaram aleijados para toda a vida.

O coração de Cecilia bateu com violencia ao ouvir aquillo. Não pôde reprimir-se, que não perguntasse ás mulheres de que desgraça fallavam.

E tremia de ouvir a resposta. Disseram-lhe que era de uma saibreira, que desabára na vespera sobre uns trabalhadores. Respirou!

De outra vez, era um homem que viera a correr desde o principio da rua e parára defronte da casa, irresoluto, como quem procurava reconhecer uma de entre aquellas diversas moradas. Cecilia queria perguntar-lhe quem elle procurava, mas quasi não tinha voz para o fazer, tal era o intenso terror, que se apossou d'ella, ao ver este homem.

Parecia-lhe impossivel que não fosse algum mensageiro de desgraças.

A final conseguiu fallar-lhe. O homem procurava um vizinho.

Cecilia guiou-o, ainda mal restabelecida do susto que sentira.

Tendo voltado á sala ouviu tocar a campainha do portal.

Estremeceu alvoroçada de esperanças e de temores.

—Será elle?

N'este tempo já Antonia vinha no corredor e com fleugma inalteravel atalhou:

—É o snr. José Fortunato; são as horas.

Cecilia voltou as costas despeitada e triste. Sentiu no coração uma quasi má vontade contra o nocturno visitador.

Era de facto o snr. José Fortunato que chegava.

—Muito boa noite, menina; passou bem?—disse José Fortunato, ao entrar para a sala.

—Muito afflicta, snr. José Fortunato, muito afflicta, não faz ideia!—respondeu Cecilia.

—Sim?!—tornou o outro, pousando os varios artigos do seu complicado vestuario, guarda-chuva, capote, cache-nez, luvas, chapéo, a caixa do tabaco, e tomando assento no logar do costume.

—Pois não quer saber?—continuou Cecilia—meu pae saíu esta tarde, a dar um passeio, e são as horas que vê, e não voltou ainda a casa!

—Na verdade, é… é celebre! Succeder-lhe-hia alguma cousa?

Pergunta suficientemente tola.

José Fortunato rivalisava com Antonia, na maneira de intervir na presente crise; as suas palavras, longe de serem tranquillisadoras, tinham por effeito exacerbar a inquietação e o susto.

Cecilia sentiu esse effeito, porque chegou logo á janella, com maior anciedade ainda, dizendo a tremer:

—Que lhe havia de succeder?…

—O snr. Manoel Quentino—continuava José Fortunato, placidamente sentado á mesa—havia já alguns dias que andava assim não sei como. Eu disse-lhe ainda antes de hontem:—«Homem, é preciso olhar por isso, antes que vá a mais; consulte alguem.»—Mas elle, não, senhor; tinha lá aquelle genio.

A escolha do tempo para o verbo era para fazer redobrar os terrores de Cecilia. Tinha! Este bom homem de José Fortunato era d'estas cousas; dir-se-hia que, para elle, Manoel Quentino já não podia merecer as honras do presente de um verbo! Não contente com isto principiou:

—Estas mudanças de tempo não são nada boas, sobre tudo em certas idades. Tem havido por ahi muitas molestias repentinas. Ahi está que aquelle Gambôa, que era empregado na camara, teve hontem um ataque de apoplexia e foi-se, enquanto o diabo esfrega um olho.

—Jesus! snr. Fortunato; por quem é, não falle n'essas cousas!—exclamou Cecilia angustiada—Se tivesse succedido alguma desgraça a meu pae, não havia já de ter vindo alguem dizel-o aqui? Aquillo é que se demorou…

—Pois eu não digo, menina, que… mas ás vezes; olhe que a gente para adoecer basta estar vivo e depois um desastre… Ahi está que tambem o pae tinha um outro mau costume, de que eu tambem o avisei muitas vezes; ia sempre áquelles vapores inglezes, quando elles entravam, e, apesar de ser homem pesado, porque já não é creança, usava n'ísso de muito pouca cautela, e, ás vezes, na atracação… Olhe que é uma cousa perigosa! Para quem não sabe nadar…

As palavras de José Fortunato soavam aos ouvidos de Cecilia, como um dobre a finados.

—Snr. José Fortunato!—disse ella, quasi erguendo as mãos—Não vê que com essas palavras me mata? Demais, meu pae não tinha hoje de ir a bordo de vapor algum. Hoje ao domingo! Estou a dizer-lhe que foi passeiar.

—Socegue, menina. Eu espero tambem que não tenha succedido nenhuma desgraça. Isto era um modo de fallar. Deus é bom e sabe a falta que o snr. Manoel Quentino cá fazia ainda. Nem quero que me lembre similhante desgraça! Credo! Santissima Trindade! Ainda se elle fosse homem, que tivesse regulado os seus negocios; mas parece-me que não fez ainda disposições. Eu bem sei que tudo quanto elle tem é da menina, mas ainda assim, havia ahi uns dinheiros mal parados… e… e… sempre é bom olhar por essas cousas…

Cecilia não pôde reter o pranto, que lhe acudiu aos olhos a estas lugubres considerações do seu interlocutor.

—Então não se afflija—dizia este, no mesmo tom de voz.—Que fazemos nós em nos estarmos a affligir? não fazemos nada; por isso… E demais, se fosse vontade de Deus que alguma desgraça acontecesse, a menina não ficaria desamparada; tem amigos e protectores… Perdia um bom pae, isso perdia; mas.

—Ó snr. José Fortunato, pelas almas, não me falle assim! Isso é crueldade.

—Eu não digo isto para a affligir. Socegue. Mas n'estas cousas é bom suppôr o peior.

E, ainda que nas melhores intenções, continuou o snr. José Fortunato n'este homoeopathico systema de conforto.

A agitação de Cecilia augmentava.

—Antonia!—bradou ella, vendo passar a criada no corredor—Tenha paciencia; eu não posso socegar. Esta incerteza mata-me, vá, vá você ao escriptorio, vá por ahi, vá saber… vá procurar… O snr. José Fortunato está agora aqui e… Vá. vá.

—Ó menina! não vê que é noite fechada?! Uma mulher só por essa cidade abaixo, feita uma Maria tola!

—Ó creatura, então que tem?

—Ora essa? Então que tem?!

—Não é bonito, não—concordou José Fortunato, tomando posição mais commoda.

Cecilia não lhe deu resposta, correu de novo á janella.

A rua estava deserta.

—Olhe se lhe faz mal esse ar—dizia José Fortunato.—A menina parece que está já um pouco tomada da garganta. É preciso cautela; estas constipações despresadas… Seria bom beber alguma bebida quente.

Ah! snr. José Fortunato, snr. José Fortunato! ahi anda já um pouco de egoismo; a hora do chá vae passando. Ó barro humano!

—Não sei bem o que tem mão em mim, que não vou eu mesma!—exclamou Cecilia ao voltar da janella—E se isto continúa assim, não respondo por o que farei. Oh! Não ser eu rapaz!

José Fortunato não comprehendeu qual era o seu dever n'esta occasião.
Foi defeito de percepção e não de vontade.

A intelligencia era-lhe ronceira e as boas lembranças acudiam-lhe, mas tarde; quando já não era tempo de realisal-as. Foi por isso que só teve a dizer:

—Pois olhem o milagre! Se a menina fosse rapaz!… Mas desengane-se, snr.ª D. Cecilia, se tiver succedido alguma desgraça ao pae, mais minuto, menos minuto, ella ha de saber-se.

—Agradecida, pela consolação!—não pôde deixar de dizer Cecilia, com manifesto mau humor.

—De uma vez tinha eu ido a um magusto, ahi para os lados da Cruz da
Regateira, e ao voltar…

Lá parecia ao snr. José Fortunato aquella occasião apropriadissima para contar um caso.

Antonia dispunha-se para ouvil-o.

Cecilia fez um movimento de impaciencia e voltou para a janella.

No momento, em que chegou alli, avizinhava-se vindo da extremidade da rua, opposta aquella d'onde ella esperava o pae, um homem a cavallo.

Era Carlos; voltava do costumado passeio extra-urbano.

Cecilia reconheceu-o, e acudiu-lhe uma lembrança.

Emquanto o cavalleiro vencia a distancia que o separava ainda de casa,
Cecilia voltou-se para dentro, dizendo:

—Então não querem ir saber de meu pae, não?

O emprego do verbo no plural foi um empuxão dado á pêrra intelligencia do snr. José Fortunato, o qual, pela primeira vez, se lembrou de que podiam ser de algum prestimo os seus serviços.

—Ó menina! mas não vê que é noite fechada?—disse Antonia, como, havia pouco tempo, dissera já.

O snr. Fortunato estava ainda elaborando mentalmente a descoberta que fizera. Cecilia não esperou pelo resultado de tal elaboração.

Carlos Whitestone estava por baixo das janellas d'ella, e cortejava-a.

Cecilia não hesitou.

—Snr. Carlos—disse com a voz tremula de sobresalto.

Carlos, surprendido por se ouvir chamar assim, aproximou logo o cavallo da janella.

—Minha senhora?

—Perdôe-me, por quem é, isto que faço;—continuou Cecilia—mas desde o principio da tarde que meu pae saiu e ainda não voltou a casa, nem d'elle tenho noticia! Imagine o meu susto! Sabe por acaso, se…

—E para onde foi elle, quando saiu?

—Disse-me que ia passeiar… mas…

—E não voltou!—atalhou Carlos, estranhando tambem aquella excepcional demora.

—Que lhe terá succedido, meu Deus?!—exclamou Cecilia, recebendo a communicação da surpreza de Carlos e transformando-a logo no mais apprehensivo terror.

As resoluções em Carlos eram tão promptas, como morosas em José
Fortunato.

—Socegue, minha senhora. Eu vou já saber d'isso e conte que, dentro em pouco, lhe trarei aqui seu pae.

—Oh! muito agradecida, snr. Carlos, muito agradecida!—disse Cecilia, com a voz repassada de gratidão.

Carlos cortejou-a de novo e partiu a galope.

Ao vel-o partir, a consolação de uma esperança entrou pela primeira vez no coração de Cecilia.

Carlos era para ella um d'estes homens, que, se um dia tentam o impossivel, conseguem-o.

Ao voltar-se, achou Cecilia, a dois passos de si, Antonia e o snr. José
Fortunato, que olhavam com physionomias estupidamente pasmadas.

—Que foi fazer, menina?!—disseram elles quasi ao mesmo tempo.

—Aquillo a que me obrigaram. Se podesse, ia eu. Ha muito que não estaria aqui já, cansando inutilmente o espirito a procurar explicações e só a encontral-as assustadoras; se tivesse mais alguem a quem recorrer, não iria incommodar uma pessoa, a quem…

—Mas, n'esse caso, porque me não disse? então não estava eu aqui?—-perguntou José Fortunato, com a maior candura d'este mundo.

Cecilia fitou-o com olhar de raiva e nem lhe pôde responder.

—A fallar a verdade—disse Antonia—não sei o que parece! Pois a menina vae assim, sem mais nem menos, fallar da janella para baixo, com aquelle senhor?…

—Se a vizinhança por ahi visse…—acrescentava o outro, espreitando para verificar se a sobredita vizinhança teria de facto visto—E então quem? Um cabeça no ar… o filho…

—Basta!—exclamou Cecilia, não podendo já reprimir-se mais tempo—Era escusado isto, era, se outras pessoas tivessem tido já a lembrança e a caridade de o fazer. Ha uma hora que me vêem n'esta afflicção e só sabem dar-me consolações, que fariam rir a quem não tivesse no coração esta agonia que eu tenho. Agora então veem com os reparos da vizinhança; a vizinhança não me tira uma só das canceiras com que estou, para que eu me deva importar com ella.

José Fortunato estava deveras condoído por se não ter lembrado a tempo dos seus deveres. Era sestro do homem.

—Ó snr.ª Antonia, faz favor de me vir alumiar—dizia elle, procurando já munir-se dos seus numerosos petrechos de campanha.

—Onde vae? onde é que vae?—perguntou Cecilia—Já agora o que está feito, está feito. Quando o snr. Fortunato fosse ao fim da rua, já o snr. Whitestone teria corrido a cidade toda. É melhor ficar.

José Fortunato ficou.

Tambem era qualidade sua esta pouca tenacidade, com que pugnava pelas resoluções tomadas.

No entretanto Carlos voava por toda a cidade, que, em pouco tempo, atravessou de norte a sul.

Por milagre não atropellou ninguem. Muitos dos que escaparam áquella carreira impetuosa, áquella velocidade, comparavel á do acrolitho, ficavam a murmurar phrases, mais ou menos impacientes, contra o imprudente cavalleiro.

Chegou, no fim de alguns minutos, ao escriptorio da rua dos Inglezes.

O silencio d'aquelle logar, a essas horas, formava perfeito contraste com a animação que alli reinava nas manhãs dos dias de semana.

Carlos fez estremecer a casa com as rijas pancadas que descarregou na porta.

Alguns vizinhos chegaram á janella.

O criado do escriptorio correu a receber as ordens do seu patrão mais novo.

Carlos, mesmo a cavallo, perguntou-lhe se tinha visto Manoel Quentino n'aquella tarde.

Disse-lhe o criado que o vira atravessar o mercado do peixe, em direcção a Campanhã; que, sendo esse o seu passeio predilecto, era provavel que…

Carlos não ouviu o resto, partiu a galope outra vez, na direcção indicada.

—Sume-te!—disse o criado comsigo—Parece que leva diabo no corpo.

Com igual rapidez seguiu Carlos toda a margem direita do rio, horas antes trilhada por Manoel Quentino. Era preciso ser excedente cavalleiro, para se não esbarrar por um caminho d'aquelles, a taes horas da noite e com tal impetuosidade de carreira.

Carlos dirigiu-se ao armazem de vinhos, que a casa Whitestone possuía em Campanhã. Nas vizinhanças morava o mestre tanoeiro, que acudiu a saber quem era e o que pretendia o nocturno cavalleiro, que ameaçava rebentar as dobradiças das grossas portas de castanho do armazem.

Vendo Carlos, ficou espantado. Carlos perguntou-lhe por Manoel Quentino.

O homem respondeu que, ao cerrar da tarde, o vira subir a estrada do
Padrão, e que devia ter já voltado a casa havia muito tempo.

Carlos proseguiu a sua corrida, deixando tão estupefacto este, como deixára o criado do escriptorio.

Na estrada passou por um grupo de sujeitos, que regressavam, cantando, do «bom retiro» campestre, onde, á mesa e á sombra da ramada, haviam passado a tarde inteira.

Carlos conheceu-os. Eram alguns dos mais folgazãos membros da classe commercial, pela maior parte conhecidos de Manoel Quentino.

Ia a passar-lhes adiante, quando se lembrou de informar-se com elles tambem a respeito do velho.

Responderam-lhe rindo e contaram-lhe da mystificacão, que o leitor sabe já, porque eram estes os mesmos que nós já encontramos. Os homens riam ainda, ao lembrarem-se da pressa com que Manoel Quentino galgára a costeira de Campanhã.

—Que estupida graça!—disse Carlos, preparando-se para seguir o caminho.

—Ora essa!—respondeu um do bando—Até será uma alegria para o velho, quando chegar a casa e vir que…

—Se não tiver morrido antes pelo caminho—atalhou Carlos; e, picando o cavallo, partiu a galope.

—O homem vae doudo—disse um.

—Esbarra-se!—acrescentou outro.

—É um inglez de menos. Que o leve o diabo.

E continuaram a cantar e a rir.

Carlos chegou em um momento á capella do Padrão.

D'ahi seguiu, a trote mais moderado, pela estrada, informando-se aqui e além a respeito de Manoel Quentino. Poucos indicios colheu, até que por acaso interrogou a mulher, á ombreira de cuja porta o velho guarda-livros se encostára.

Esta deu-lhe assustadoras informações do estado em que o viu, e agourou mal do destino do homem.

Verdadeiramente inquieto, proseguiu Carlos nas suas pesquizas, até chegar á alameda do Repouso.

Em um dos bancos de pedra pareceu-lhe distinguir o vulto escuro de um homem. Aproximou-se.

Com sentimento de verdadeira alegria, reconheceu Manoel Quentino.

Cêdo porém succedeu o susto a esta primeira impressão.

O velho estava immovel e com as feições transtornadas, como se fora cadaver já.

Carlos segurou-lhe o braço, que sacudiu com violencia.

—Manoel Quentino! Manoel Quentino—bradava elle.

Respondeu-lhe um som rouco e inarticulado.

Carlos chamou-o mais alto outra vez.

Áquella voz conhecida, Manoel Quentino abriu lentamente os olhos e fixou em Carlos a vista esgazeada.

—Que é isto, Manoel Quentino? Que faz aqui? Que tem? Diga: que lhe succedeu?

Depois de alguns esforços, o velho conseguiu exprimir uma resposta desordenada.

—Eu… eu vinha… não sei o que senti em mim… Quando me disseram da… doença de Cecilia… quiz correr… e… e faltou-me a vista… e… Eu já não estava bom… O frio… julgo que foi o frio… Por mais que quiz ver se me movia… Agora mesmo.

—Socegue. Sua filha está boa e só com muito cuidado pela sua demora.
Veja se póde erguer-se.

—Mas… alli… em baixo… disseram-me…

—Foi uma estupida graça de uns senhores, que, avaliando a delicadeza dos sentimentos dos outros por a dos seus, julgaram dever solemnisar o 1º de abril d'aquella maneira cruel.

—Deus lhes perdôe, se assim foi…

—Foi; disseram-m'o elles mesmos. Ande, venha. Não faça maiores inquietações em casa, do que as que já vão por lá.

—Pobre filha!… Eu vou… mas não sei se…

Manoel Quentino tentou levantar-se, porém vacillaram-lhe os passos e caíu sentado outra vez.

Carlos estava irresoluto; não sabia o partido que tomasse.

—Então, Manoel Quentino, veja se ganha forças. Experimente se póde montar a cavallo.

Novo esforço do velho, succedido de igual resultado.

O embaraço de Carlos augmentava.

Pensava já em o levar na garupa, quando passou na estrada uma sege de aluguer, que voltava para a cidade. O boleeiro deixava ir os cavallos a passo e assobiava; uma especie de jockei dormia ao lado d'elle; Carlos conheceu o boleeiro.

—Ó Gonçalo.

—Quem me chama?

—Vae vasio o carro?

O boleeiro reconheceu Carlos.

—Ah! é v. s.ª? Vae vasio, vae, sim senhor, meu patrão.

—Então ajuda-me a transportar para lá este sujeito, que está doente, e leva-nos a toda a brida para a rua de…

O boleeiro correu a prestar o auxilio pedido.

—E tu—acrescentou Carlos, para o improvisado jockei—monta n'esse cavallo, e leva-m'o a casa. Avia-te!

Carlos era obedecido como um dos freguezes de mais prompto e generoso pagamento que havia na cidade.

—E olha—disse elle ainda para o jockey—de passagem vae ainda a casa do doutor F. e pede-lhe que venha sem demora ver o snr. Manoel Quentino, a sua casa. Dize-lhe que vaes do meu mando. Anda.

O rapaz partiu como um foguete.

Carlos e o boleeiro ajudaram Manoel Quentino a entrar na sege; dentro em pouco faiscavam as pedras das calçadas sob as patas dos cavallos, fustigados com toda a alma por o boleeiro, cujo ardor o estimulo de uma gorgeta excepcional instigava.

Carlos tinha cumprido a promessa feita a Cecilia.

Foi com um grito de jubilo, que Cecilia, cujos terrores haviam recrudescido com a demora, viu parar a carruagem á porta de casa e saír d'ella o pae, amparado cuidadosamente pelo braço de Carlos Whitestone.

Os primeiros momentos absorveram-os inteiramente as expansões de alegria.

Correu ao portal e ahi recebeu nos braços o pae, chorando commovida. Desentranhava-se aquelle piedoso sobresalto em phrases soltas, sem nexo, em exclamações, em perguntas, em beijos, em lagrimas e em sorrisos.

Manoel Quentino subiu as escadas apoiado de um lado em Cecilia, do outro em Carlos. Foi assim que entrou para a sala, onde Antonia e José Fortunato, no meio de felicitações, de perguntas, e até de conselhos, lançavam olhares de desconfiança a Carlos, que nem attenção lhes dera ainda.

Passada a primeira explosão de alegria, incoherente e irreflectida, houve logar no coração de Cecíiia para duas ordens de sentimentos oppostos.

O primeiro foi de gratidão para Carlos.

Estendendo-lhe amigavelmente a mão, disse-lhe, com um olhar, uma inflexão de voz, e um rubor de faces, que multiplicavam o pouco valor da palavra:

—Muito obrigada.

Phrase insignificante, que n'esta occasião teve mais eloquencia, do que um discurso.

Depois inquietou-a outra vez o estado em que via o pae. A decomposição do rosto, a pallidez, a tristeza não habitual, reproduziram vivos os receios, que a chegada d'elle serenára.

Interrogou-o então sobre os promenores do succedido. Carlos deu uma rapida explicação. Cecilia escutava-o com o sobresalto do susto e lagrimas de reconhecimento. Antonia e José Fortunato acharam nos factos pretextos para formularem conselhos de prudencia, a que elles só deram attenção.

Cecilia redobrou de cuidados para com o pae: que os aceitava com certa frieza morbida, que a assustava.

Carlos associou-se por vezes á joven e carinhosa enfermeira e, com tão intelligente solicitude, que obteve d'ella frequentes sorrisos de approvação e de agradecimento.

Quando o medico chegou, ainda Carlos não deixára a casa.

O facultativo informou que tinha sido aquillo uma das oito fórmas de congestão cerebral, admittidas por o professor Andral, e das mais benignas. Descreveu os symptomas, apreciou as causas, formulou o tratamento, sangrou e saiu.

Manoel Quentino achava-se melhor.

Carlos despediu-se mais tranquillo e prometteu voltar.

Á saída, Cecilia apertou-lhe a mão com affecto.

Antonia resmungou.

José Fortunato recolheu-se a casa perto da meia noite e pouco satisfeito com a sua pessoa.

XXII

EDUCAÇÃO COMMERCIAL

Manoel Quentino foi constrangido pela força das circumstancias a conservar-se de cama, nos dias seguintes a este.

Impozera-lh'o o facultativo, que lhe assistira; pedira-lh'o Cecilia, e exigira-lh'o Carlos e o proprio Mr. Richard Whitestone, que viera, pela manhã, visitar o guarda-livros.

Esta necessidade de abstenção de exercício era o que mais affligia Manoel Quentino. Figurava-se-lhe que os negocios commerciaes caminhariam desordenados sem a sua cooperação; mortificava-o a ideia do cháos em que o escriptorio cairia, se por muito tempo a doença se prolongasse.

—Valha-me Deus! Como ha de ser isto agora?—dizia elle, devéras aterrado com a ideia, quando na presença de Cecilia e de Carlos, que demorára a sua visita, mais do que Mr. Richard, tomava a custo um caldo adietado, unico alimento que lhe permittia a arte medica.

—Que canceira lhe está a dar essa ninharia!—disse Carlos, procurando desvanecer aquelles cuidados—Socegue; a sua doença será de pouco tempo; a casa Whitestone não se perde com essa pressa. Lá estão os outros caixeiros.

-Ora os outros, sim!… Os outros!… É bom de dizer…

—Mas então, meu pae, que se lhe ha de fazer? Quando Deus lhe der saude, trabalhará dobrado. Agora veja, mas é se toma esse resto de caldo…

—Nem quero que me lembre! Em que desordem não irei encontrar tudo por lá! E depois, a escripturação atrazada!… Ó filha, bastará de caldo por agora.

—Só duas colhéres mais.

—E por que não ha de o Paulo fazer a escripturação?—insistiu Carlos.

Manoel Quentino fitou n'elle um olhar de espanto.

A sciencia da escripturação era para o velho guarda-livros da tal difficuldade e transcendencia, que a pergunta de Carlos soára-lhe aos ouvidos e irritára-lhe os nervos, como uma imperdoavel heresia.

—O Paulo?! O senhor tem cousas!… Cuida que escrever nos livros commerciaes é o mesmo que fazer um rol de roupa suja?!

—Ao principio não duvido que se lucte com alguma difficuldade, mas no fim de tres dias…

—Tres horas, tres horas… é melhor tres horas… Valha-o Deus! Ó
Cecilia, eu não posso levar ao fim este caldo… Tira para lá, filha…

—Era uma colhér só—disse Cecilia, fingindo que lhe obedecia, mas com um modo, que quebrou a Manoel Quentino a coragem de resistir-lhe.

—Então dá cá.—E, fechando os olhos, esgotou até ás fézes aquella especie de taça de amargura, fez uma careta, e respirou no fim, como se alliviasse de enorme encargo.

D'ahi a pouco, a ideia de faltar ao escriptorio incommodava-o outra vez. Antevia mil complicações sérias nos negocios pendentes, e tão longe ia, n'este caminho, a sua fertil imaginação, que não parava senão em imminente fallencia.

Homem habituado a não passar um só dia ocioso, exagerava as consequências da sua falta; guarda-livros, que adquirira, por trabalhosa experiencia, o saber commercial, suppunha indispensaveis annos para habilitar qualquer intelligencia a adquirir igual saber e a ordenar a escripturacão dos livros de commercio.

Por isso ouviu com espanto acompanhado de zombaria a proposta que, como extremo e efficaz recurso, Carlos acabou por lhe fazer, depois de em longa discussão sobre o assumpto ter, com o auxilio de Cecilia, combatido aquellas apprehensões.

—Está bom; socegue—disse Carlos.—Deixe-se ficar na cama o tempo que quizer e que lhe for preciso, porque, emquanto á escripturacão, eu encarrego-me d'ella.

Manoel Quentino conservou por algum tempo os olhos, muito abertos, voltados para o filho de Mr. Richard; lá lhe parecia tão extravagante aquella promessa em um homem, de cuia experiencia commercial sabia o que pensar, que nem com resposta atinou que lhe désse.

Á própria Cecília surprendeu o offerecimento. Ambos julgaram isto um gracejo da parte de Carlos. Comtudo era tão séria a expressão que tomou, n'aquelle momento, a physionomia d'elle, que Cecilia principiou logo a acreditar que não era zombaria a proposta.

Manoel Quentino não se convenceu tão depressa.

—Então com que… encarrega-se da escripturacão?—perguntou o velho, não podendo reter um sorriso, o primeiro que se lhe desenhou nos labios esta manhã.

—Encarrego, sim.

—Olhem que fortuna para a casa! Agora é que ella prospéra… Eh! eh! eh! Valha-o Santo Antonio.

—Então faz-me a injustiça de me suppôr incapaz de applicar as minhas forças a uma empreza qualquer, quando d'ahi possa provir algum bem para um amigo?

Desde que Carlos fez esta pergunta, Cecilia esposou logo mentalmente a causa d'elle: não só acreditou na sinceridade do offerecimento, mas até—vejam que confiança!—até na possibilidade, ou mais ainda, na probabilidade da sua realisação.

Manoel Quentino não era tão facil de mover dos seus juizos. Comtudo tambem o abalaram as palavras de Carlos, ainda que em outro sentido.

—Não, homem;—disse o guarda-livros, meio commovido—eu não duvido da sua boa vontade, nem do seu animo decidido para sacrificios. Bem recentes tenho provas que me não deixam duvidar. Sei que lhe devo talvez a vida. Não pense que sou ingrato. Mas, venha cá, ouça: como quer encarregar-se de um serviço, ao qual tem sempre andado estranho? Era como se eu me mettesse a ir salvar a nado alguem, que estivesse a afogar-se no meio do rio. De que me valeriam os bons desejos, se iria ao fundo, como um prégo, antes de lá chegar?

—Mas tão difficeis lhe parecem essas cousas de commercio, que, dentro em dois ou tres dias, com alguns conselhos e explicações suas, eu não me habilite a comprehendel-as?

Manoel Quentino encolheu os hombros.

—Homem, que conceito faz da minha intelligencia?!—insistiu Carlos—Demais, eu alguma cousa aprendi no collegio, que talvez me sirva. Póde ser que não ande de todo já perdida uma sciencia que, devo confessar, tenho deixado fóra do serviço desde… desde que a adquiri.

—Ora adeus! Onde vão as chuvas do anno passado? Olhem com o que elle vem! O que aprendeu no collegio!…

—Emfim tentemos. Não se perde nada em tentar. O Manoel Quentino não vae esta semana, nem talvez estes quinze dias ao escriptorio…

—Longe o agouro!

—Não vae, que não deve ir. Eu estou resolvido a experimentar a minha aptidão commercial. Quem sabe? Póde ser que adquira até gosto pelo negocio.

—Quem dera!

—Pois póde ser. Encarrega-se de me dar lições? Tres bastam-me.

—Havia de fazer boas cousas com tres lições!

—Apostemos?

—Vá, vá á sua vida. Divirta-se. Isto não é uma brincadeira como…

Carlos revestiu-se de toda a sua gravidade.

—Então, Manoel Quentino! tão leviano me julga, que não admitte que eu falle serio alguma vez?

—Não, mas…

Cecilia tomou, a mêdo, a defeza de Carlos.

—Uma vez que o snr. Carlos se offerece para o ajudar, por que não aceita?

—Ahi vem a outra! Ora para o que lhe deram hoje! Este rapaz engana-se a si proprio. Eu já disse que não duvido dos seus bons sentimentos, mas…

—Mas—atalhou Carlos—uma palavra só! Quer dar-me algumas lições de escripturação commercial? Bem vê que não perde nada com isso.

—Hão de ser curiosas!

—Sejam ou não sejam. Quer ou não.

—Não seja essa a duvida.

—Até á noite, meu mestre—disse Carlos, pegando no chapéo para sair.

—Até á noite—respondeu Manoel Quentino, divertido com a resolução de Carlos, em cujo exito não depunha fé, mas divertido a ponto de se rir com vontade e de quasi se lhe desvanecerem as apprehensões a respeito do escriptorio.

Ao saír, Carlos despediu-se de Cecilia, dizendo-lhe:

—Estão empenhados os meus brios, minha senhora. Dentro em tres dias prometto ser um caixeiro consciencioso e expedito.

Cecilia sorriu, estendendo-lhe a mão.

—Agradecida por tanta generosidade, snr. Carlos.

—E acredita que seja só generosidade?

—Então?

Carlos não replicou. Correspondeu, sorrindo, ao cumprimento de Cecilia, e saiu, sentindo um intimo contentamento ao dizer a phrase trivial:

—Até logo.

Cecilia ficou a pensar no que poderia haver, além de generosidade, no procedimento de Carlos.

Em todo aquelle dia andou tão satisfeita a filha de Manoel Quentino, que os cuidados, que a saude d'ella tinham causado ao pae, diminuiram consideravelmente; o que não foi para elle pequena garantia de melhora na saude propria.

Carlos d'alli foi para o escriptorio.

Não causou pequena surpreza a Mr. Richard ver Carlos estabelecido na banca de Manoel Quentino, examinando, com solicita attenção, os livros commerciaes, as correspondencias do dia, e algumas atrazadas; os outros caixeiros não estavam menos admirados do insolito phenomeno; e muito mais o ficaram, quando Carlos lhes dirigiu algumas perguntas sobre o andamento de certos negocios, e quando inclusivamente o viram attender alguns freguezes, que vinham pedir informações ao guarda-livros, e responder a muitos já com verdadeiro conhecimento de causa.

Em toda a Praça se fallou n'aquillo; foi um verdadeiro acontecimento no mundo commercial. Houve curioso que phantasiou negocios, só para se informar, por seus olhos, do que lhe constára.

A prompta intelligencia de Carlos, auxiliada pela educação que era creança tivera, permittiu-lhe ver claro nos processos de escripturacão, onde espiritos, menos cultos e atilados, só conseguem achar caminho, depois de muitos esforços e tentativas.

Os pontos capitaes recordou-os ou comprehendeu-os á força de reflexão; restavam-lhe pequenas duvidas, difficuldades de segunda ordem, que a experiencia de Manoel Quentino, em poucos momentos, deveria elucidar.

Estas duvidas e dificuldades, é preciso dizer-se, eram principalmente sobre a utilidade dos complicados processos de escripturação, que Manoel Quentino, fiel aos velhos systemas, escrupulosamente seguia. Carlos previa methodos mais simples e expeditos para executar certos lançamentos e operações, e, vendo adoptados os mais extensos e tortuosos, sentia-se embaraçado, suppondo haver alguma razão para a preferencia e não a podendo descobrir.

Ao sair do escriptorio levava Carlos muito adiantada a sua instruccão commercial. Havia muito tempo que não tivera tão laboriosa manhã!

Á noite, quando se preparava para ir a casa do mestre, encontrou Jenny no corredor, a qual, como gracejando, lhe disse:

—Será verdade, Charles, o que acabo agora de saber?

—Então que soubeste tu?

—Que foste hoje um canceiroso guarda-livros e que a todos maravilhaste no escriptorio com a tua applicação ao negocio.

—É verdade; tive esta manhã esse capricho.

—Capricho? Será somente capricho essa febre subita de trabalhar, que te acommetteu?

—Então que mais ha de ser?

Jenny esteve algum tempo calada, sem desviar os olhos do irmão.

—Tens razão. Será capricho. É de certo; mas talvez não tão innocente e sem importancia como o queres fazer.

—Ahi está que tambem tu és inconsequente, Jenny.

—Porquê?

—Ralhavas-me, ha dias, por o meu desapêgo aos negocios do escriptorio; agora vejo-te com vontade de me ralhares pela minha applicação.

—Se não houvesse n'ella uma intenção, de que eu desconfio!

—Uma intenção?…

Jenny mudou de tom.

—Deixas-me fazer-te uma pergunta?

—Dize.

—Aonde vaes tu agora?

Carlos perturbou-se ao responder:

—A casa de Manoel Quentino.

—Ah!…

—Bem vês que o pobre homem está doente…

—Soube agora que passou bem a tarde. Mandamos lá perguntar. Por isso, se te custa a visita…

—Mas… prometti…

—Ah!… prometteste!…

—Olha, Jenny. Digo-te a verdade. Para tranquillisar o bom homem, que não podia resignar-se a deixar o escriptorio ao desamparo, prometti-lhe encarregar-me do serviço, Mas bem sabes, ou deves suppôr, até onde chegam os meus conhecimentos commerciaes. Para tornar effectiva a promessa, careço de informações, que só Manoel Quentino me póde dar, por isso…

—E não receias que, doente como está, lhe faça mal a applicação de espirito, a que o vaes obrigar?

—São certas duvidas apenas.

—E se as expozesses antes ao pae?

Na fronte de Carlos desenhou-se uma ligeira ruga de impaciencia.

Jenny, com ar de tristeza, acrescentou, suspirando:

—Bem vejo, Charles, que esqueceste a palavra que me tinhas dado.

—Não te entendo.

—Entendes, entendes. Dize-me, se eu te pedisse que não fosses hoje a casa de Manoel Quentino?…

—Tinha que ver Jenny com caprichos, exactamente como outra qualquer mulher! Não nasceste para essas fraquezas femininas, minha boa, minha sisuda irmã.

E pegando, a rir, nas mãos de Jenny, levou-as aos labios e partiu apressado para não a escutar de novo.

Jenny viu-o sair, e uma dolorosa expressão gravou-se-lhe no semblante.

—Já não está na minha mão valer-lhe!—disse ella com amargura—Como findará isto, meu Deus!

Foi muito desagradavelmente surprendido n'essa noite o snr. José
Fortunato, ao encontrar Carlos Whitestone em casa de Manoel Quentino.
Descobriu elle n'isto indicios de grandes transtornos nos seus uniformes
habitos de vida.

A primeira noticia do facto recebeu-a de Antonia, que não via tambem com olhos favoraveis aquella intrusão.

Antonia e José Fortunato eram duas potencias alliadas e ciosas das suas prerogativas e influencias para com Manoel Quentino.

—Temos cá o homem!—dissera Antonia a meia voz, ao snr. José Fortunato quando lhe abriu a porta.

—Quem?—perguntou este, parando nos primeiros degraus da escada.

—O de hontem… O inglez…

—E a que vem elle cá?

—Eu sei. A modo que me não vae agradando isto. Pelos bonitos olhos do pae não é que…

Um negrume toldou o horizonte do coração do snr. José Fortunato.

Entrou para a sala do serão, o qual se fazia agora no quarto de dormir de Manoel Quentino, visto recommendar-lhe a medicina a prudencia de não abandonar o leito.

Á habitual saudação do recem-chegado responderam Manoel Quentino e a filha, e, no parecer do homem, alguma cousa mais distrahidamente do que do costume.

Não lhe agradou aquella distracção. Carlos fez-lhe um ligeiro signal de cumprimento e voltou á tarefa, em que parecia occupado.

Procedia-se, n'aquelle momento, á primeira lição commercial.

José Fortunato não podia comprehender o que via.

Manoel Quentino, sentado no leito, tinha no rosto a gravidade do professorado, temperada por certo sorriso de duvida nas boas intenções e na efficacia do estudo do discipulo.

De um lado do leito, sentava-se Carlos Whitestone, partilhando a attencão entre as prelecções de Manoel Quentino e as festas ao gordo gato maltez, que se lhe viera roçar pelas mãos—prova de confiança, que nunca dera a José Fortunato, apesar de mais longa convivencia.

Havia ainda outro objecto a attrahir as attenções de Carlos e porventura a maior ou mais preciosa porção d'ellas,—era Cecilia.

Em pé, do outro lado da cama, tendo na mão a costura, de que frequentemente se descuidava, seguia com curiosidade as prelecções paternas e as objecções, com que as interrompia Carlos, e não podia disfarçar de todo o riso, que a singular lição lhe desafiava.

A chegada de José Fortunato não alterou esta disposição de cousas e de pessoas; não era elle homem para constranger ninguem.

—Ora vamos a isto;—começou Manoel Quentino—para lhe fallar a verdade, não sei bem por onde principie.

—Eu lhe digo…—ia Carlos a responder, quando Manoel Quentino o interrompeu.

—Então, então! Não principie já a atrapalhar, senão não temos nada feito. Ora espere lá… Deixe-me cá ver…

E, depois de pensar algum tempo, continuou:

—Usam-se no commercio tres livros principaes…

Este começar ab ovo não agradou ao discipulo, que o atalhou dizendo:

—Já sei.

—Já sabe! Como já sabe?

—Pois nem isso havia de saber?! Creia que esta manhã, no escriptorio, levei a minha instrucção commercial ainda muito mais longe.

—Ora adeus!

—Verá.

—Então, se já sabe, escuso eu de…

—Sei que ha tres livros principaes em commercio, que se chamam: Diario,
Razão e Caixa, e que ha tambem os auxiliares.

Manoel Quentino estava devéras admirado de Carlos saber tanta cousa!

—O pae de que se admira? Eu mesma, parece-me que sabia isso tambem—disse Cecilia.

Manoel Quentino olhou para ella, e encolheu os hombros.

—Com que gente eu estou mettido! Bem;—acrescentou pouco depois para Carlos—então faça favor de me dizer o que é que não sabe, para eu lh'o ensinar.

—Olhe: eu o que desejo é obter esclarecimentos, em relação a certos pontos, sobre o que tenho duvidas. O processo da escripta a final não é cousa tão complicada, que não se possa comprehender, examinando-a com attenção; muito mais se, conseguindo despertar a memoria, alguma cousa ella nos vem tambem auxiliar. Só me parece que esse processo ainda podia ser mais simples do que o fazem.

—Não podia, não, senhor. Não venha agora para cá com modernices. Tudo é preciso.

—Não é tal. E senão vejamos: A escripturação póde fazer-se por partidas chamadas simples e dobradas; não é verdade?

—É, sim, senhor.

—E differem ellas…

—Eu lhe digo—atalhou Manoel Quentino.—Supponha o senhor que alli o snr. José Fortunato compra dez pipas de vinho á casa. Percebe?

—Que havia eu de fazer a tanto vinho?—resmoneou o snr. José Fortunato, para dizer alguma cousa.

—As quaes pipas importam—continuou Manoel Quentino—em dois contos de réis. Percebe?… O senhor escreve no Diario, em lettras grandes—sempre em lettras grandes—percebe? José Fortunato deve, por dez pipas de vinho a duzentos mil réis—dois contos de réis. Percebe?

—Sim; isso já eu sei… mas…

—Espere lá. Ou homem! Já sabe, já sabe! O senhor sabe tudo! Então se já sabe!… Este é o methodo de partidas simples.

—Perdão. Entendo que o methodo de partidas simples não se resume a tão pouco, pois que…

—Se é assim, pouco mais difficil é do que aquelle, pelo qual faço a escripturação da nossa casa—disse Cecilia, rindo, e emquanto ageitava a dobra do lençol, que Manoel Quentino desordenára.

—E creia, minha senhora—acudiu logo Carlos, no mesmo tom—que, a final de contas, muitos dos nossos caixeiros deviam tomar por modelo a simplicidade dos methodos de v. exc,ª, pois valem mais do que as baralhadas e mysteriosas escripturações de certos livros, nos quaes a melhor vista não consegue penetrar. Parece-me.

—Pois parece-lhe uma tolice—disse Manoel Quentino, a quem impacientavam estes levianos juízos criticos sobre uma arte, para elle tão transcendente como perfeita.

José Fortunato bocejava.

—Mas vamos cá—proseguiu Manoel Quentino.—Quer ver agora como fazia aquelle lançamento por partidas dobradas? Se o snr. José Fortunato, comprando o vinho, aceitasse uma lettra ou lhe endossasse alguma, pagavel á ordem d'elle; percebe? O senhor escrevia no Diario: Lettras a receber a vinho…—Note que os nomes do crédor e do devedor se escrevem sempre em lettra grande.—Percebe? Depois explicava a transacção por baixo d'estes titulos…

Não pretendendo os leitores provavelmente instruir-se em sciencia commercial, dispensar-me-hão de transcrever na integra a prelecção de Manoel Quentino.

Durante ella, manteve-se sempre em conflicto o espirito prático, o respeito ás velhas formulas, a experiencia intransigente do mestre, com o arrojo innovador, as tendencias simplificadoras e a aversão a inuteis complicações do discipulo.

Mais uma vez se verificou a eterna lucta entre a theoria e a prática; uma, com seus instinctos de joven, com seus habitos de actividade, com seus amores pelo futuro e pelo progresso; outra, com a frieza da idade madura, com uma indole, essencialmente prosaica e conservadora; fiel ao passado, que foi sem mestre, desconfiada do futuro, que não conhece, severa para com as ideias novas, cujos humores travêssos a impacientam. Uma, brincando e esperando no dia de ámanhã, como creança; outra, ralhando e suspirando pelo dia de hontem, como avó; uma, apaixonada do ideal e reparadora de tuertos, como D. Quixote; outra, odiando utupias, e contente com a ordem estabelecida de cousas, como Sancho. Em todos os campos da sciencia humana se encontram, frente a frente, estas duas filas de contendores. Emquanto o medico novo baseia raciocinios e assenta diagnosticos sobre recentes descobertas physiologicas, o prático velho encolhe os hombros, sorri, formúla ou opéra; emquanto o joven lettrado desenvolve theorias de sciencia social, vistas transcendentes de philosophia de direito; o jurista, encanecido no fôro, examina os artigos do codigo, esmiuça a lettra da lei, aconselha as partes e despacha os autos.

No exemplo que temos á vista, Manoel Quentino era o representante das ideias conservadoras; Carlos, o apostolo do progresso.

Por vezes o inabalavel rochedo da experiencia do guarda-livros foi rudemente açoutado pelas objecções, que a lucida intelligencia de Carlos contra elle despedia. Manoel Quentino fazia porém como o rochedo; não as repellia, deixava-as passar por si e ficava firme.

Manoel Quentino explicára, por exemplo, a Carlos a maneira de fazer os lançamentos, no caso de uma supposta remessa de lã para Liverpool.

Carlos combateu a longura e complicação dos processos seguidos, expondo a maneira como, no seu entender, se podia e devia simplificar a escripturação; parecia-lhe que muitas indicações feitas nos livros escusavam de ser registradas, e n'este caso estavam todas aquellas contas que, pelo processo de Manoel Quentino, eram creditadas e debitadas simultaneamente; desnecessario julgava fazer menção d'ellas, visto que ficavam logo por esse facto saldadas.

Os methodos indicados por Carlos eram tão simples, tão racionaes, tão despidos de minuciosidades defeituosas, despojavam os livros de tantas indicações superfluas, ronceiramente consagradas pelo habito, que Manoel Quentino não soube como combatel-os.

Imagine-se a contrariedade que experimentou com isto!

Não era elle homem porém que rompesse com habitos velhos e renegasse, perante as primeiras objecções de um rapaz inexperiente, o classico systema, a que fora fiel durante os muitos annos do seu tirocinio commercial; por isso retorquiu com acrimonia:

—Não sei de contos; assim é que se faz.

—Será; mas não se podia fazer tambem da maneira que eu digo?

—Podia… não podia… isto é… podia… não podia, não, senhor.

—Porquê?

—Porque não.

—Mas é, sem comparação, mais simples.

—E é com o que lhe dá! É mais simples, é mais simples… e acabou-se! Deixal-o ser!… Não se trata aqui de ser mais simples, nem menos simples… É como é e como deve ser… Estava-se mesmo á espera do senhor para vir fazer descobertas!… Até agora temos andado todos ás aranhas… Faltava cá o snr. Carlos com as suas simplicidades! Ora não está má!… É mais simples!… Pois peior; nós não queremos cousas simples… Será mau o processo, mas olhe que se tem feito e guiado muito boas casas com elle. Fie-se lá nas suas escripturações simples, e verá o que vae! Theorias!… Estou de pé atraz com ellas! Não provam bem. Negociante de theorias, fallencia no caso. É mais simples!… Olhem a grande cousa!… Mais simples era não fazer lançamento nenhum, se vamos a isso.

Carlos pôz-se a rir. Comprehendeu a repugnancia que devia encontrar Manoel Quentino em ceder n'aquella discussão e respeitou-lh'a. Recuando generosamente n'este campo, avançou n'outro; porque Cecilia soube ser grata áquella delicadeza de proceder para com o pae.

Manoel Quentino anciava por uma desforra; encontrou-a.

Duante a passada discussão, tendo-se fallado muitas vezes em facturas, o velho voltou-se agora de subito para Carlos, perguntando-lhe ex-abrupto se sabia fazer uma factura. Carlos não respondeu logo.

O homem prático presentiu n'esse campo completo triumpho. Não admittiu, por cautela, explicações verbaes; mandou vir papel, penna e tinta, e disse para o discipulo:

—Risque e encha.

Carlos hesitou. Manoel Quentino saboreou as doçuras de uma victoria.

—Ora ahi está,!—exclamou elle—Ahi está do que servem as theorias! É isto sempre… Fallam que nem um bacharel… e vae-se a trabalhar e… passe por la muito bem! não atam nem desatam!… Então? Veja se se lembra de algum methodo mais simples de sair do aperto… Qual!… Aqui é que eu os quero ver… No fogo é que se conhecem os soldados… Isto de queimar polvora em fogos presos não presta para nada… Ora escreva, escreva lá, faça o que eu lhe disser e deixe-se de theorias. Não tenha vergonha de aprender. Todos aprendem até á morte.

E principiou a indicar-lhe a maneira de riscar o papel, as inscripções que tinha a fazer, as verbas que devia registrar, e isto tudo sem lhe deixar passar por alto a minima particularidade.

Carlos obedecia-lhe com tal docilidade de discípulo, que fazia rir
Cecilia.

—Vá; escreva ahi, no alto da folha—disse Manoel Quentino—Factura de… agora um genero qualquer que queira carregar.

—De paciencia então, que é genero de que o Manoel Quentino bem precisa agora para aturar a molestia.

—Então! está a brincar ou que faz? paciencia preciso, mas é para o aturar a si.

—Paciencia confiada ao cuidado de meu pae!—dizia Cecilia—Valha-nos
Deus! que não é homem que tenha cautela com a mercadoria.

—E adeus! Estão as duas creanças a brincar. E eu que as ature!

Se Manoel Quentino tivesse mais algum conhecimento dos pequenos mysterios do coração, não fallaria assim collectivamente de Carlos e Cecilia, isto de os confundir debaixo da denominação generica de creanças era imprudente, no estado actual dos sentimentos de ambos.

Proseguiu a indicação da maneira de encher a factura e com isto terminou a lição.

Em seguida, serviu-se o chá, que n'aquella noite não soube a José
Fortunato, como de costume.

Manoel Quentino, apesar das suas impaciencias, estava, de si para si, espantado de tanto que sabia Carlos.

—Que esperteza de rapaz!—dizia elle para Cecilia, quando esta, depois de todos se haverem retirado, fazia engulir ao pae a ultima chavena de caldo d'aquelle dia e lhe arranjava os travesseiros para o somno da noite—Tem diabo! Como entende tão bem estas cousas de commercio, a que andou sempre estranho! Era capaz de enrodilhar outro, que não tivesse a experiencia, que eu tenho! Uma cousa assim! Parece até que adivinha! É até um peccado andar fóra da vida do negocio… Deem-lhe alguns annos de pratica, e verão o que d'alli sáe.

Cecília calava-se.

XXIII

DIPLOMACIA DO CORAÇÃO

A educação commercial de Carlos continuou e com os mais rapidos e auspiciosos progressos. Á segunda noite espantava elle Manoel Quentino, apresentando-lhe os lançamentos, que pela manhã fizera e nos quaes o experimentado guarda-livros nada teve que notar.

A custo pôde convencer o fogoso discipulo de que não convinha que elle proprio escrevesse nos livros geraes, onde era contra as praxes apparecer lettra de mais do que um individuo. Bastava, dizia o velho, e já não era pequeno serviço, que Carlos o auxiliasse no expediente e deixasse tudo preparado para que, ao terminar o seu impedimento, elle, Manoel Quentino, só tivesse a transcrever no Diario e no Razão as transacções operadas durante essa época.

No fim de tres ou quatro serões, Manoel Quentino já não tinha que ensinar mais ao discipulo.

Elle sabia tudo!

Terminaram pois as lições, mas não terminaram com ellas as visitas de Carlos, como seria natural que acontecesse. Mudaram apenas de caracter aquelles serões.

Carlos era agora o que se encarregava da leitura das folhas, com grande mágoa de José Fortunato, que não podia encontrar na diversão metade do prazer que n'ella recebia, quando a leitura era feita por Cecilia.

De mais a mais, Carlos divertia-se muitas vezes á custa do velho. Sabendo de Manoel Quentino que elle era possuidor de varios papeis de credito, raro era o dia em que, no decurso da leitura, não improvisava noticias e insinuações, que faziam entrever uma imminente baixa de fundos e porventura uma banca-rota.

José Fortunato declamava então contra os governos presentes, passados e futuros, com toda a acrimonia que lhe era possivel.

Quando os dois velhos tratavam ás vezes alguma discussão acalorada, Carlos aproveitava a occasião de entrar com Cecilia em um dialogo, cuja indole era cada vez mais perigosa para o coração de ambos. E senão, ouçamos.

Cecilia trabalhava, certa noite, em uma camisa de panninho para o pae.

—Que nome se dá a isso que está a fazer?—perguntou Carlos, curvando-se sobre a costura.

—É uma camisa—respondeu Cecilia, sorrindo. Pois nem conhece!?

—Que é uma camisa sei eu; não perguntava isso; mas… essa costura em que está agora a trabalhar, como se chama?

—Isto? É um posponto.

—Ah! um posponto!… Um posponto é a mesma cousa que um sobre-cosido; pois não é?

Cecilia desatou a rir a esta pergunta.

—Não, senhor, não é. Nem tem nada uma cousa com outra.

—Não?! Pois olhe… parece, porque… posponto é… como quem diz: depois do ponto; sobre-cosido, sobre ou depois do cosido, e portanto… depois do ponto tambem.

—Será; mas… em todo o caso, são cousas diversas.

—Então que differença fazem?

—Ora que curiosidade! Ha de interessar-lhe muito agora conhecer essa differença.

—E porque não? Não vê que ando com vontade de ampliar os meus conhecimentos? Não tem reparado na minha docilidade a ouvir as lições de escripturação?

—Mas essas podem servir-lhe.

—Mas vamos; um posponto é isso; muito bem. E agora um sobre-cosido?

Cecilia, rindo, procurou na obra, que estava a fazer, o exemplo já realisado de um sobre-cosido e mostrou-o a Carlos, dizendo:

—Ahi está um sobre-cosido. Agora estude a differença, a ver se a sabe explicar.

Carlos examinou-o com apparente attenção e a mais composta seriedade.

E Cecilia interrompia o trabalho, só por causa d'isto.

—Então?—perguntou ella maliciosamente, quando Carlos deu mostras de haver terminado o exame.

—Reconheço que de facto são cousas diversas, mas não posso bem dizer em que consiste a differença.

—O que o deve affligir muito.

—Mas diga—insistia Carlos, que parecia devéras empenhado em elucidar este negocio dos pospontos—todas as costuras se fazem a posponto?…

Cecilia não podia escutar com seriedade este inquerito inesperado.

—Não, senhor;—respondeu a rir—conforme a qualidade da obra, assim se prefere a qualidade do ponto.

—Ah! visto isso, o posponto… é um ponto tambem?

—Pois está claro. É um ponto que se dá assim. Ora repare.

E Cecilia, acompanhando a palavra com a acção, principiou a trabalhar com todo o vagar, ao passo que Carlos assistia á demonstração com a attenta seriedade de um discipulo. Ainda que me parece que menos vezes lhe seguiam os olhos os movimentos da agulha, do que se fixavam a admirar a perfeita modelação e delicado colorido da mão que a movia.

—Repare—dizia Cecilia—dá-se, supponhamos, o primeiro ponto; maior ou menor, conforme a delicadeza da obra, já se sabe. Assim. Ora agora, a agulha entra aqui mesmo pelo meio d'este primeiro ponto… Vê?… E vae saír adiante, de maneira que este segundo ponto tenha o mesmo comprimento do primeiro. Entende? A terceira vez entra por onde saíu a primeira, a quarta por onde saíu a segunda… e assim por diante… Entende agora?

—Muito bem. E o sobre-cosido?

—Mas como lhe deu para querer saber doestas cousas?

—É uma esquisitice. Concordo. Mas… então que quer? Mau é que eu tenha um d'estes desejos. Incommodo-me deveras, se os não satisfaço.

—Ah! Não sabia que era assim caprichoso!

—E não concebe esta maneira de sentir?

—Eu, não.

—Não diga que não. É impossivel. A imaginação feminina, sem duvida mais delicadamente sensivel do que a nossa, não póde ignorar estes pequenos caprichos. O capricho é, a meu ver, uma prova de superioridade moral em que o tem. Vamos; termine a minha lição.

—Então que quer saber agora?

—Que é um sobre-cosido?

Cecilia condescendeu ainda em lhe explicar o que era o sobre-cosido, como já lhe explicára o que era o posponto. Carlos deu-se no fim por satisfeito.

Agitou-se ainda algum tempo a discussão a respeito de assumptos d'esta natureza.

Carlos foi durante ella sempre serio; Cecilia, a cada momento, a interrompia com o riso, que lhe desafiava a estranha lição, que nunca esperára ter de dar a um discipulo d'este genero.

Em quasi todos os serões, passados em casa de Manoel Quentino, os colloquios entre Carlos e Cecilia versaram sobre objectos de igual transcendencia e sustentaram-se em um tom da mesma gravidade que este, que registamos.

Ahi estão uns colloquios inoffensivos e inconsequentes, pensará talvez o leitor. Pois engana-se, se pensa assim. Recorde-se da sentença de quem, n'estas cousas de amor, escreveu ex-professo:

Parva leves capiunt animos.

De facto, nada ha de tanta influencia para o coração como um colloquio assim, bem futil, bem insignificante, no estado a que haviam chegado os sentimentos de Carlos e de Cecilia.

Quanto mais ligeiro, quanto mais pueril é o assumpto de um dialogo d'estes, tanto mais se empenham os corações dos que o sustentam.

Os dialogos amorosos, que estamos costumados a escutar entre o galan e a primeira dama, no tablado dos theatros, ou a ler nos capitulos dos romances, dialogos cortados de interjeições e cheios de subtis theorias do mais acrisolado sentimento, são excepções na vida real; e, quando se dão, sáe-se d'elles mais livre, mais disposto a esquecer, menos propenso a sonhar; servem como de expansão aos affectos accumulados—expansão em que estes ás vezes completamente se dissipam. Mas os constrangimentos, os silencios, dos quaes a imaginação em vão procura livrar-se, e sobre tudo o conversar aturado sobre mil cousas futeis e indifferentes, isso sim, que é bem mais para temer; porque, emquanto dura a troca reciproca de formulas insignificantes, o coração põe em campo outros emissarios secretos e invisiveis, que adiantam consideravelmente as negociações pendentes e conseguem realisar a entrega da praça, sem o minimo combate manifesto.

Digam-o os numerosos pares, para quem voam as horas e desapparece o mundo, de enlevados que se entregam a esses interminaveis dialogos, motivo de zombarias apparentes e de occultas invejas dos que os não podem gosar; digam se, quando mais sinceros sentiam em si os affectos, eram metaphysicas e transcendentes especulações sobre o amor o que assim lhes absorvia as attenções e os cuidados; digam se, quando, ao terminar um d'esses felizes dias, tentavam reproduzir as impressões recebidas no decurso d'elle, recordando as palavras ditas e escutadas n'aquellas longas entrevistas, outra cousa lhes conseguia avivar a memoria que não fosse dialogos pouco dramaticos, banalidades sobre assumptos indifferentes, mas sob cujo disfarce o coração achára meio de dizer muito, e até mais eloquentemente, do que ainda poeta algum o pôde exprimir—nem o proprio Petrarca nos seus trezentos e dezoito sonetos.

Isto aconteceu a Carlos Whitestone. Poucas vezes voltára a casa mais possuido d'essa intima e indefinida alegria de quem assiste em si ao ateiar de uma paixão, do que na noite, em que se verificou o dialogo, que o leitor provavelmente julgou sem consequencias.

Prolongou-se este estado de cousas. O medico, a quem fora confiado o tratamento de Manoel Quentino, prudente em demasia, apenas lhe promettia esperanças de o deixar saír passada uma semana mais.

Carlos não pensava com frieza de animo no termo d'aquelle praso. Poderia, sem causar estranheza, continuar, ainda depois d'elle, as visitas que lhe eram já tão necessárias? Até alli servia-lhe o pretexto de vir dar contas a Manoel Quentino do serviço da manhã; mas depois?

Carlos continuou a ser diligente nos negocios do escriptorio. Mr. Richard ainda não acabára de conformar o espirito áquella mudança do filho.

Em casa de Manoel Quentino, só este era quem talvez não suspeitava um segundo motivo na assiduidade de Carlos. Antonia e José Fortunato já a commentavam havia muito.

E Cecilia? Respondam por mim as leitoras.

Uma noite ia o snr. José Fortunato a retirar-se, e entre elle e Antonia travou-se, já no portal, o seguinte dialogo:

—Então, snr.ª Antonia, que lhe parece este inglez aqui sempre mettido?

—Que quer que lhe faça? O que me admira é o snr. Manoel Quentino não reparar…

—Mas diga-lhe que…

—Eu?! Deus me livre! O snr. José Fortunato é quem…

—Eu?! Nada; n'essa me não metto; mas a snr.ª Antonia tem quasi obrigação de…

—Eu lhe digo… Eu, como o outro que diz, não quero fallar, sem primeiro me encher de razão… Hei de tirar umas informações a respeito do inglez, e depois…

—Informações de quem?

—Mesmo defronte da casa d'elle vive uma cunhada do homem da sobrinha de uma comadre minha, de quem eu sou muito conhecida e amiga; ámanhã, se tiver tempo, sempre hei de lá chegar. Porque a mim consta-me que este rapaz é um estoira-vergas dos meus peccados…

—Elle lá se vê!

—Ora o que nos havia de apparecer!

E os dois despediram-se; José Fortunato para ir curtir em casa as cruas mágoas do coração; Antonia para assentar, no repouso do travesseiro, sobre a maneira de obter da cunhada do homem da sobrinha da sua comadre as informações de que precisava, para se encher de razão.

XXIV

EM QUE A SENHORA ANTONIA PROCURA ENCHER-SE DE RAZÃO

A cunhada do homem da sobrinha da comadre da senhora Antonia habitava, como da bôca da dita senhora soubemos, defronte de Mr. Richard Whitestone. Era a morada uma pequena casa terrea, a cuja meia porta passava a inquilina metade do tempo, observando ou transmittindo aos outros o resultado das suas observações.

Se o amor de saber define etymologicamente o philosopho, difficil será encontrar algures individualidade tão bem acondicionada para se lhe encabeçar o disputado titulo, como a snr.ª Joséfinha da Agua-benta; que por este nome era sua graça conhecida em todo o bairro.

Era mais que amor de saber o que a possuia; era ancia, era febre, era delirio!

Ás nove horas da manhã do dia seguinte áquelle, em que entre José Fortunato e Antonia se tramára, in limine, aquella conspiração, de que lavramos acta, achava-se a diligente criada de Manoel Quentino, inflammada no santo ardor domestico, á porta da sua, conhecida e amiga, no louvavel intuito de colher informações a respeito de Carlos Whitestone.

—Snr.ª Joséfinha!—chamou a snr.ª Antonia para dentro de casa, elevando, em desentoado falsete, a voz inclassificavel.

—Hui!—respondeu de dentro outra voz, digna de emparelhar com esta.

—Passou bem?

—Mas quem é?

E uma figura de mulher de meia idade, perfeito typo de mulher de soalheiro, foi pouco e pouco tomando vulto e relevo no vão escuro da porta, e assomou emfim á cancella.

—Ai, pois é vocemecê, snr.ª Antonia? entre.

—Ai, nada, não entro, que não me posso demorar.

—Então que pressas são essas hoje?

—Bem vê que são nove horas, e preciso de olhar pelo jantar.

—Isso tem muito tempo—disse a snr.ª Joséfinha da Agua-benta, encostando-se á cancella, e proseguiu:—Então quem a trouxe por estes sitios?

—Fui alli adiante a um recado do patrão, e sempre quiz bater para saber de si.

—Muito obrigada. Então ainda se dá bem na casa?

—Vamos andando. Da maneira por que hoje as cousas estão, ainda não é das peiores.

—Diz bem. A soldada, a fallar a verdade… acho que não é lá das de tentar, mas…

—Está feito, está feito; ha-as melhores e ha-as peiores—disse a snr.ª Antonia, que não gostava de entrar em particularidades da sua vida, nem para isso vinha.

—Elle tambem…—insistia a outra—não póde alargar-se muito. Um caixeiro…

—Deixe lá. Ha por ahi patrões, que vivem em maiores apertos.

—Diga-m'o a mim, snr.ª Antoninha. Olhe a minha Luiza… Conhece? A filha do nosso Antonio. Pois esteve alli abaixo a servir seis mezes em casa do commendador Collaço e saíu de lá porque aquillo chega a pouca vergonha. Os criados passavam fome de rato. Olhe que chegavam a dar-lhe pão de uma semana e a comprar sardinha da caravella para a ceia d'elles. Pois quem via aquillo na rua, parecia que tinham as rendas do bispo.

—Pschi! E quando ao menos são promptos na soldada!

—Promptos?! Isso sim! A uma criada, que lá esteve tres annos, ainda hoje estão a dever um anno inteiro. Ora isso é mesmo uma dor de consciencia, não acha?

—Mas então que quer? O luxo é muito.

—É assim, é. Diz bem. É uma cousa por maior! Vocemecê ha de conhecer aquelle Maltez, que é não sei o quê na administração, um homem bem afigurado, que anda sempre com um cão preto…

—Ai, bem sei. O cunhado d'aquelle militar de quem dizem as más linguas…

—Tal e qual. Pois não sei se tem reparado no luxo com que se apresentam as filhas e a mulher. Ó santo Deus! Emfim uma cousa é ver, outra é dizer. Aqui ha dias passaram ahi todas e eu benzi-me e tornei-me a benzer! Não que nem a rainha póde luxar assim. Qual! Ora, veja a snr.ª Antoninha, o pae dizem que não ganha mais de trezentos mil réis por anno. Milagres não se fazem… O dinheiro não nasce no quintal…

—Deus sabe d'onde elle vem.

—Eu tambem sei alguma cousa, vamos lá. Sei a quem magoam muitas d'aqúellas grandezas. Olhe que a senhora d'elle tem chegado a pedir emprestado a uma rapariga, filha de uma amiga minha, que esteve lá a servir muitos annos. A rapariga, coitadinha, que se mata a trabalhar… porque ella hoje é engommadeira, teve vergonha de dizer que não, e adeus, minha vida.

—Tola foi; cá para mim é que elles vinham bem guiados.

—Por isso eu digo: a snr.ª Antoninha não é das que tem razão de queixa.

—Ai, não sou, não, senhora; isso não sou; graças a Deus.

—O passadio é bom?

—É bom, é, sim, senhora; lá n'isso não ha que dizer…

—O peior que alli tem é a prisão; pelos modos sáe poucas vezes. Tirante lá, aos domingos, o ir visitar o Senhor ao Carmo.

—Bem vê que o patrão quasi nunca está em casa… e é uma menina só…

—E a pequena não tem por ahi já a sua inclinação? Ha de ter…

—Não… Que eu saiba…

—Ha de ter, ha de ter. Hoje em dia! Olhe a snr.ª Antoninha aquella rapariga do Cosme Villas-boas, uma creança se póde dizer… pois o que ahi vae já com ella por causa do filho do escrivão!

—Sim. Então?…

—Ora! nem quero que me lembre! É um desafôro! O pae d'ella, no outro dia, pescou-o a fallar com a pequena, e correu para o rapaz com uma navalha. O rapaz fugiu, e a mãe d'elle veio então á janella e pôz-se a berrar com o velho. Sempre disseram cousas uma á outra aquellas duas creaturas! Um passo assim!

—Não que ha gente n'este mundo!

—O pae pelos modos queria-a casar com o brazileiro, que anda a fazer aquellas casas em Santa Catharina.

—Isso era uma mina para a rapariga!

—Mas então que quer? Virou-se lá para o filho do escrivão.

—Forte tola!

—E elle então que é uma figura! Não o conhece?

—Eu não.

—É mesmo cinco réis de gente. Um desconjuntado, um lorpinha…

—São gostos.

—É assim; diz bem. Mas então a sua ama…

—Essa… por emquanto… É aqui como a sua vizinha.

—Qual?

—A do inglez, a filha do patrão lá do meu amo.

—Ah! Essa então! É aquillo que alli está. É uma boa menina, isso é; muito amiga da pobreza… Exquisita como todas as inglezas, mas no mais… Olhe que, desde que somos vizinhas, ainda não teve uma palavra que me dissesse! Á janella ninguém a vê, e quando passa por aqui, faz-me uma cortezia muito séria e mais nada.

—Ella é muito da menina lá de casa.

—É. Eu tenho visto a sua ama vir ahi muitas vezes.

—É uma boa familia esta.

—É, isso é. Não ha que se lhe diga.

—O velho julgo que é pessoa capaz.

—É, é assim meio maniaco, mas a final não é mau sujeito, não. Tem suas venetas, como quasi todos os inglezes… mas…

—E o rapaz mesmo…

—O snr. Carlos? Ai, por amor de Deus, não me falle n'isso.

A snr.ª Antonia chegára emfim ao topico desejado.

—Então?

—Isso é uma peça de fazenda!

—Que me diz!

—Faz lá ideia do que alli está! Um estroina assim não ha! Recolhe-se a casa lá porque altas horas da noite. Dorme até ao meio dia. Ora veja a snr.ª Antoninha que vida póde ser a d'elle.

—Então joga?

—Elle joga, elle fuma, elle passa a vida nos botequins e nos theatros, elle bebe, elle anda sempre com más companhias.

—Que tal! Hein!

—Isso não faz ideia! Em casa anda tudo a ferver por causa d'aquelle menino. Não falla com o pae, a irmã passa um martyrio com elle. Disse-me a Susana, que é ainda minha prima, e que esteve lá a servir oito dias, que aquillo é uma pouca vergonha. Ás vezes está a mortificar aquella pobre irmã, e ralha, e ralha, e torna a ralhar, e ella então, coitadinha, chora que é uma dor do coração. Ha dias em que não faz outra cousa.

—Arrenego eu o Judas Iscariote!

—E então, snr.ª Antoninha, é um menino a quem tudo faz conta. Não sei se me entende? Seda e chita é tudo panno para elle fazer obra. Dizia o Luiz, que foi muito tempo criado d'elle, que eram tantas as cartas que recebia de differentes, que era uma cousa por maior!

—Tratante! O que elle precisava…

—Diz que ahi com uma comediante do theatro gastou elle contos de réis ao pae. Até o velho quiz mandal-o para Inglaterra.

—Fosse e nunca voltasse! Arrenego-o eu!

—É da pelle do mafarrico. Depois então diz que bebe!

—Faltava mais essa!

—Pois se elle é inglez! Às vezes, quando vem para casa, já de dia claro, chega a ser preciso deital-o na cama, porque não da accôrdo de si.

—Olhem que vergonha! Uma pessoa fina, e… A gente sempre vê cousas!…

—Aqui ha tempos… Vá vendo a snr.ª Antoninha; ia eu já a abrir a porta da rua, pela madrugada, e entrava aquella creaturinha para casa. Vinha amarello, esgadelhado; bem se conhecia o estado d'aquella cabeça.

—Não, tambem com uma vida assim não póde ir muito longe.

—Pois não, não… E é até uma felicidade para elle, se morrer.

—Aposto que a estas horas ainda dorme?

—Abriu agora mesmo as janellas. Hoje madrugou.

—Então é alli o quarto d'elle?

—É, é alli mesmo á entrada. O pae e a irmã saíram logo pela manhã cêdo. Pelos modos diz que chegou da Inglaterra um inglez muito rico com uma filha, a quem elles foram visitar. Disse-me a Dorotheia, que é a despenseira, que o velho quer ver se casa o filho com a tal ingleza.

—E o rapaz?

—O rapaz?… bem pensa elle n'isso!… Olhe lá se elle os foi visitar.

Haviam chegado as duas mulheres a este ponto do dialogo, quando entrou na rua uma sege da praça, puxada com toda a força por dois vigorosos cavallos, e veio parar á porta da casa de Mr. Richard Whitestone.

O boleeiro saltou immediatamente da taboa para receber as ordens da pessoa que vinha dentro e que as gelosias corridas das portinholas furtavam á curiosidade das duas mulheres.

Em seguida tocou á campainha; appareceu-lhe, passado algum tempo, o criado particular de Carlos; trocadas poucas palavras entre ambos, este retirou-se, voltando cêdo depois com a resposta.

Tendo-a ouvido, o boleeiro veio abrir a porta da carruagem, da qual saiu então uma senhora de elegante apparencia, toda vestida de preto e cujas feições se occultavam em um longo véo, impenetravel aos olhos ávidos de Antonia e da sua amiga.

Esta senhora desappareceu pelo portão do jardim em companhia do criado de Carlos.

A snr.ª Antonia e a snr.ª Joséfinha trocavam entre si olhares eloquentes.

—Mas…—murmurou Antonia.

—Que é?… Diga.

—Não me tinha dito que o pae e a filha haviam saído?

—Ha mais de uma hora.

—Então…

—Então o quê?

Os olhos proseguiram algum tempo o dialogo.

—Ora sempre é desafôro!—disse a snr.ª Antonia, após o dialogo, dos olhos.

—É isto que vê.

—Conheceu-a?

—Eu não.

—Mas com este descaro?!

—É para que veja.

—Não, pois não saio d'aqui, sem descobrir quem ella é, ou pelo menos…

—Ora diga a snr.^a Antoninha se isto não é fazer pouco caso da vizinhança.

E as duas continuaram n'estes santos commentarios. A snr.ª Joséfinha chegou a adiantar algumas perguntas ao boleeiro, que lhe viera pedir lume para accender um cigarro. Este, porém, só lhe pôde dizer que era uma senhora ainda nova e bonita, que morava em Santa Catharina.

Antonia tomou conta na rua.

As conjecturas continuaram até que de novo appareceu no portal a pessoa que era objecto d'ellas. Agora acompanhava-a Carlos, que, com toda a galanteria, a ajudou a entrar no carro, entrando tambem atraz d'ella, depois de haver dado algumas ordens ao boleeiro.

E o carro partiu outra vez, com toda a velocidade, pelo caminho por onde viera.

Estavam estupefactas as duas espectadoras da scena.

—Reparou?—disse a snr.ª Joséfinha.

—É que já me não escapa mais.

—Pareceu-me nova.

—E bonita.

—Então que me diz a isto?

—Que estou atordoada!

—Já viu um descaramento assim?

—Eu não.

A snr.ª Antonia retirou-se d'alli, devéras indignada e decidida a intervir em casa do amo, para desmascarar o libertino, que se introduzira sorrateiramente n'ella a pretexto de serviços desinteressados e de falsa amizade.

Antonia conseguira o seu intento, enchera-se tanto de razão, que já ameaçava trasbordar por ella fóra.

XXV

TEMPESTADE DOMESTICA

Ás quatro horas da tarde d'este mesmo dia voltava Mr. Richard Whitestone a casa, com aquelle ar de satisfação ingleza, que já lhe conhecemos, e em passo vagaroso, como de homem que terminou as tarefas sérias e principiou a gosar as doçuras do não fazer nada. Parte da manhã passára-a com um compatriota, pae de uma nevada e loura lady, a quem de facto Mr. Richard estimaria ver matrimonialmente ligado o filho.

Como n'estas intenções do discreto inglez conseguira entrar a despenseira, não sabemos nós; mas é certo que, ou por força de logica ou por occulta inspiração, havia ella acertado, ao informar a snr.ª Joséfinha da Agua-benta. Comquanto o não ter sido acompanhado pelo filho n'aquella visita matinal houvesse algum tanto desagradado ao inglez, consolava-se, esperando que elle condescenderia em o acompanhar á noite, na segunda visita que tencionava fazer.

Ia pensando n'isto o velho commerciante, precedido da ligeira Butterfly, impaciente com a morosidade do dono, que tão a miudo a obrigava a retroceder.

Trauteando por entre dentes o predilecto: cheer, boys, cheer, caminhava vagarosamente Mr. Richard pela rua das Flores acima, e pascia a vista nas bem providas exposições de ouro, que adornam um dos lados da rua, quando de repente parou defronte de uma taboleta, como se impressionado por algum objecto que vira n'ella.

Por muito tempo durou este exame.

Havia alli o que quer que fosse que o inglez tomava a peito investigar.
E não o conseguindo de fóra do mostrador, entrou na loja.

—Faz favor de deixar-me ver um relogio, que está ahi exposto?—disse elle para o ourives.

O ourives, com sorriso amavel e maneiras delicadas, satisfez-lhe promptamente ao pedido.

Mr. Richard examinou o relogio com minuciosa attenção.

—É um bello relogio!—dizia o ourives—Valioso por todos os respeitos.

Mr. Richard fez um signal afirmativo com a cabeça, e proseguiu calado no exame.

—É inglez, não é verdade?—perguntou d'ahi a instantes.

—É, sim, senhor. De fabricantes muito acreditados.

—E então… mandou-o vir directamente da Inglaterra?

—Não, senhor…

O ourives principiou a olhar para Mr. Richard com mais cuidado. O que estava pensando, ao olhal-o assim, não sei; mas uma sombra de desconfiança parecia anuviar-lhe o semblante. Passados alguns instantes continuou:

—Para fallar com franqueza a v. s.ª, ainda não ha muitas horas que o comprei.

—Ah! E… póde saber-se a quem?…

—Comprei-o a um rapaz, que eu conheço de vista, mas cujo nome ignoro…
Supponho que é tambem inglez… Vinha em carro com uma senhora…

Mr. Richard abriu muito os olhos, fitando o ourives e repetiu:

—Com uma senhora?…

—Sim, uma senhora ainda nova, vestida de preto, que ficou á espera d'elle. O rapaz entrou aqui, disse que estava para ir para fóra da terra, e propôz-me a compra do relogio e da corrente… Entramos em ajuste…

—Bem, bem; pouco me importa isso—disse Mr. Richard, com ligeiras e convulsivas contracções de labios, que eram n'elle indicio de cólera reprimida.—Vamos a saber: Por quanto m'o vende agora?

O ourives fez valer os seus direitos a algum modico lucro, direitos que Mr. Richard não lhe contestou, vindo a final a comprar, pela segunda vez, o relogio e a corrente, com que havia já presenteado o filho.

Porque não havia para elle duvida, e escusa de a haver para o leitor, de que eram exactamente aquelles mesmos os objectos que tinha agora presentes.

Ao sair da loja, Mr. Richard ia com a physionomia outra vez serena, mas lá por dentro, quem o podesse perscrutar, encontraria um grau de irritação, a que raras vezes lhe subia o genio fleugmatico.

O criado, que estava á porta quando Mr. Richard chegou a casa, era o mesmo que recebera pela manhã a visita, que tanto indignára a snr.ª Antonia.

—A que horas saíu hoje o snr. Carlos?—perguntou Mr. Richard, em tom de voz sêcco e aspero.

—Ás… ás dez horas—respondeu, já sobresaltado, o criado.

—Só?

O rapaz teve vontade de dizer que sim, mas Mr. Richard fitava-o com um olhar, que lhe desvaneceu toda a impassibilidade precisa para isso.

—Só?—repetiu o inglez, com mais força.

—Não… não senhor…—respondeu o criado.

—Então?

—Com… com…

—Com quem?—perguntou Mr. Richard, cada vez mais imperioso.

—Com uma senhora, que… que veio procural-o… mas… era já de idade—acrescentou o homem, como correctivo.

Porém Mr. Richard já lhe havia voltado as costas, entrando para casa. Jenny estranhou-o. Habil na leitura d' aquella physionomia, nem uma só ruga, que accidentalmente a carregasse, podia passar-lhe despercebida e sem lhe excitar desejos de decifral-a.

Mr. Richard respondeu benignamente, mas em poucas palavras, ás perguntas de Jenny, e quiz saber se Carlos já tinha vindo para casa.

Recebendo resposta affirmativa, acrescentou que, antes de jantar, desejava ir ao quarto d'elle.

Era esta resolução tão extraordinaria, que Jenny, ao ouvil-a, olhou fixamente para o pae.

Conheceu que alguma cousa tinha occorrido, capaz de trazer após si uma d'essas scenas violentas, que ella tanto fazia por afastar.

Pretendeu conjural-a.

—Pois vamos—disse a sorrir, e dispondo-se a acompanhar o pae.

—Não, não—respondeu Mr. Richard, afastando-a com doce violencia.—Eu pretendo… preciso de fallar-lhe a sós.

Jenny soltou-lhe o braço, a que já se apoiára desanimada com a frieza, mal occulta, d'aquellas palavras.

Mr. Richard tentou abrandar a impressão do primeiro movimento, dizendo:

—É de negocios que se trata… Até já!… No entretanto, pódes mandar servir o jantar.

Jenny viu-o partir sobresaltada e procurando em vão adivinhar a razão d'aquella entrevista.

Mr. Richard n'este tempo appareceu no quarto do filho.

Muito longe de esperar aquella visita, Carlos, recostado no canapé, pensava… em Cecilia provavelmente.

Ao ver o pae, que tão raro o procurava no quarto, levantou-se com alvoroço e mal occulto espanto.

Mr. Richard caminhou para elle, e tirando do bolso o relogio e a corrente disse, quasi gaguejando, como sempre lhe acontecia quando sob o dominio de violenta commoção:

—Ahi tem. Quando vender as… as dadivas das… das… pessoas que… que o estimam… seja para… fins que… que o não envergonhem, nem… deponham tristemente contra… o seu caracter…

Á vista do relogio foi tal a commoção que se apoderou de Carlos, que nada pôde responder; baixou os olhos, confuso, corou intensamente, como se a consciencia lhe estivesse dizendo que a severidade das arguições do pae era merecida.

Estes signaes foram por Mr. Richard interpretados como tacita confirmação das suas suspeitas.

Cresceu n'elle com isto a irritação.

—Seja extravagante muito embora… mas… mas… nunca seja… nunca seja vil…

Carlos estremeceu ao ouvir aquella palavra, e levantou com vivacidade a cabeça.

—Senhor!—exclamou, mal conseguindo o respeito filial suffocar-lhe a indignação que sentira.

—Vil, sim—repetiu Mr. Richard com mais força, como se excitado por aquella apparencia de reacção.—Quero que não faça d'esta casa theatro das suas… aventuras… escandalosas.

—Mas…

—Lembre-se de que é aqui—proseguiu, sem o attender, o pae—aqui, debaixo d'estes tectos, que não tem a delicadeza de respeitar, que é aqui que embranqueceram os cabellos de seu pae… que foi aqui que sua mãe morreu… que é aqui que vive sua irmã.

—Creio que ainda não dei motivos para…

—Quem o procurou esta manhã? Com quem saiu de carruagem? Com que fim vendeu esse relogio?

Carlos calou-se. Parecia resolvido a guardar silencio, em relação áquellas perguntas; nem era de animo tão docil, que ouvisse, sem se irritar tambem, estas severas recriminações, feitas antes de julgamento minucioso.

O seu orgulho revoltou-se.

—Não posso explicar nada d'isso, mas dou-lhe a minha palavra que…

Mr. Richard atalhou-o:

—Nem eu quero tambem averiguar dos actos da sua vida. Teem-me chegado aos ouvidos rumores de muita extravagancia sua, de que não tenho feito caso. Mas quero, mas exijo… E inda tenho força bastante para o conseguir, póde crêl-o… Quero e exijo que se respeite o meu nome e… e a minha casa. Fique entendendo.

—Mas eu já lhe dei a minha palavra de honra de que todos os meus actos d'esta manhã não podiam deshonrar nem o seu nome, que é o meu tambem, nem esta casa, que eu respeito como…

—A sua palavra de honra! Não basta. Bem vê que tenho motivos para duvidar d'ella… e porisso…

—N'esse caso, como não tenho outra garantia a offerecer, calo-me. Depois de uma resposta como essa, quando é de um pae que a recebemos, não nos resta outro partido, além do silencio—disse Carlos, com decidida resolução de não continuar este dialogo, receiando com razão que a impetuosidade do genio o levasse a esquecer a qualidade da pessoa, que altercava com elle.

Mr. Richard calou-se tambem e deu em passeiar no quarto. Depois disse, ainda com severidade, mas em tom menos elevado:

—Parece-me que concordará commigo em que me assiste o direito de pugnar pelo decôro da minha casa?

Carlos não respondeu.

—É um dever imperioso de todo o chefe de familia. A excessiva benevolencia é também immoralidade—disse ainda o pae.

O mesmo silencio da parte de Carlos.

—Espero que não tenha deixado adormecer em si tão profundamente os sentimentos de honra, que não comprehenda já este dever da minha parte.

Nenhuma resposta ainda.

Mr. Richard, que conhecia o filho, percebeu que em vão esperaria d'elle defeza ou desculpa.

Saiu portanto do quarto.

Quando fechou atraz de si a porta, Carlos atirou ao chão, com movimento de raiva, que havia muito a custo reprimia, uma preciosa jarra da China, que se fez pedaços; em seguida pôz-se a percorrer o quarto a passos largos, e ai do objecto que encontrava na passagem!

A campainha soou emfim, chamando para o jantar.

Carlos tentou dar á physionomia um aspecto de serenidade, no que foi mal succedido. Lá estava o olhar de Jenny a espial-o, e não era ella a que se illudiria com estes fingimentos pueris.

Imagine-se como correu o jantar, principiado sob taes auspicios.

O tinir dos talheres e dos crystaes era o unico ruido que interrompia o solemne silencio da sala. Até os criados andavam em bicos de pés, dominados por aquella como atmosphera pesada, que se respirava alli dentro.

Jenny ainda tentava sorrir ás vezes, mas, coitada, gelava-se-lhe o sorriso nos labios, á vista das frontes ligeiramente contrahidas do pae e do irmão. E sem poder descobrir o motivo d'aquella animadversão entre elles! Como tão de repente se condensára esta tempestade, que ella nem tempo tivera para tentar desvanecer?

O jantar terminou como começára, silencioso e triste. Carlos foi o primeiro a levantar-se da mesa. Mr. Richard não teria d'esta vez companhia para o seu tão apreciado pospasto.

O inglez começava a sentir mentalmente os effeitos de uma mudança de pensar. Estava-lhe já parecendo que havia sido muito severo para com o delicto do filho.

Podia muito bem ser que tivesse peccado por inexacta a interpretação que dera ao facto, e ainda quando não fosse, era a final uma leviandade de rapaz, que talvez não merecesse tão asperas censuras.

O tolerante inglez só esperava por o primeiro ensejo para naturalmente, airosamente, realisar a reconciliação com o filho. Onde ia já o seu resentimento?

Ficou pois devéras mortificado, assim que viu Carlos levantar-se para saír, levando comsigo as esperanças do almejado ensejo.

Olhou para Jenny, a ver se d'ella partiria alguma tentativa para reter o irmão.

Jenny, absorvida a estudar a physionomia de Carlos, não deu pelo gesto do pae.

Já Carlos ia no meio da sala, quando Mr. Richard disse, em voz alta, as primeiras palavras que, desde que se sentára dissera:

—Chegou hontem á noite… Mr. Smithfield, de Londres…

Carlos parou, ficando por alguns instantes a olhar para o pae, como se esperasse ouvir d'elle mais alguma cousa; depois continuou a caminhar para a porta.

—Chegou Mr. Smithfield e a filha, Alice Smithfield—disse ainda Mr.
Richard.

Carlos tornou a parar, e vendo que o pae não acrescentava mais nada, deu ainda alguns passos.

—É um homem, a quem a nossa casa deve muitos favores, tanto commerciaes como… pessoaes—disse Mr. Richard.

Estas palavras suspenderam outra vez Carlos, que ia já proximo da porta.

E como Mr. Richard se calasse, o filho estendeu a mão para o reposteiro.

—Estivemos lá, esta manhã, eu e Jenny.

Carlos não disse nada; esperou ainda.

Mr. Richard acrescentou:

—E ficamos de voltar esta noite… Elles partem ámanhã para o Minho e… Perguntaram por… por ti.

Mr. Richard realisára um grande esforço: pozera de parte o tom ceremoniatico com que até ahi tratára o filho.

Carlos, que já desviava o reposteiro, vendo que o pae não proseguia, curvou-se respeitosamente e saíu, como se não tivesse comprehendido o sentido d'aquellas insinuações.

Mr. Richard viu-o saír, e de novo se lhe carregaram as feições, que haviam já desanuviado de todo; ao mesmo tempo estalava-lhe entre os dedos uma avelã, com que estivera brincando, tal foi a força, de que a contrariedade lhe animou n'aquelle momento os musculos.

Jenny vira tudo isto, afflicta e irresoluta. Para sanar o mal, era necessario conhecer-lhe a causa, e ella ainda a não sabia. Levantou-se e foi encostar-se ao hombro do pae.

—Que tem?—disse-lhe com voz affectuosa.

—Faço quanto posso para viver em paz, mas já vejo que não é possivel.

—Então por quê?

—Pois não viste?

E levantou-se, dando alguns passos agitados na sala.

—Carlos tem vinte annos—acrescentou, passeiando ainda.—Aos vinte annos, ha já deveres para todo o homem… E se elle se esquece de que os tem e de que os deve e ha de cumprir… eu que sou pae…

À entrada de um criado interrompeu-o.

Mr. Richard sentou-se, pôz-se a ler o Times e recaiu no silencio, de que nada mais o tirou. Seria o Times que o absorvia assim? O que é certo é que em toda a tarde não desviou os olhos da primeira columna do jornal.

Muito enigmatica devia vir esta primeira columna, que tanto custava a ler!

Jenny dirigiu-se ao quarto do irmão.

XXVI

INEFFICAZ MEDIAÇÃO DE JENNY

Jenny foi encontrar o irmão apparentemente entretido a torcer as longas orelhas do terra nova; mas não era necessario ser muito versado em physiognomia, para perceber que lhe não estavam n'aquillo as attenções.

—Que foi isto, Charles?—disse Jenny, com a voz ainda turvada de commoção—Por amor de Deus, isto que é?

Carlos levantou a cabeça, e respondeu, fingindo sorrir:

—Não te assustes, Jenny. Eu e o pae representamos hoje uma peça do antigo repertorio, do repertorio da infancia. Elle lembrou-se de me ralhar, como a uma creança; eu fiz como as creanças costumam, amuei. Ora, aos dez e doze annos, scenas d'estas tinham para mim uma feição de tragedia; aos vinte, predomina n'ellas o caracter de perfeita comedia…

—Mas… o que se passou entre vós, que désse logar a isto?

—Nada ou quasi nada. Interpretaram mal uma acção minha. Eu podia, mas não devia, explical-a; afiancei porém, sob minha palavra de honra, que não era exacta a interpretação que lhe davam; e meu pae, que acabava de se apregoar respeitador e mantenedor da boa fama do nome Whitestone, foi o primeiro a manchal-o, duvidando de uma palavra de honra firmada com elle.

—Jesus, Charles!… Que has de sempre ter d'essas susceptibilidades com uma pessoa de quem não deves suspeitar que possa nunca fazer do teu caracter conceito algum desfavoravel!

—Mas se m'o assegurou!

—Pobre pae! E imaginas que era friamente que elle te reprehendia? Eu não sei ainda o motivo que deu origem a essa scena, que disseste, mas…

—Um motivo insignificante. Esta manhã precisei de dinheiro; era urgente a necessidade e a somma avultada. Não gósto de recorrer a outra pessoa, quando posso recorrer a mim. Demais, estava só em casa. Commigo só tinha um objecto, que promptamente me podia valer a quantia de que precisava. Era o relogio e a corrente, que recebi do pae quando…

—E foste?… Ó Charles!—disse Jenny, olhando com desapprovação para o irmão.

—Tirei da corrente este pequeno sinete de agatha, a parte menos valiosa do presente, para conservar uma memoria d'elle. Sabes que não é pelo preço dos objectos, que me offerecem, que eu os aprecio. Vendi o mais; confesso que vendi. Passadas horas o acaso fez-me o favor de conduzir meu pae pela mão justamente até á loja do ourives, onde relogio e corrente estavam já expostos á venda. Reconheceu-os, comprou-os de novo, e trouxe-m'os, dizendo-me por essa occasião algumas palavras que… que só a elle poderia, e deveria, ter a paciencia de ouvir.

—Mas… que má cabeça a tua! Para que foste vender aquelle relogio, que elle, coitado, com tanto gosto mandára vir para ti?

—Porque se tratava de alguma cousa mais importante e mais grave do que os arrufos de um pae, por mais respeitaveis que elles possam ser.

Jenny fez involuntariamente um gesto de duvida.

—Acredita-me, Jenny. Não duvides tu, como elle duvidou. Affirmo-te, tomando os mais sagrados testimunhos, que, se ainda se désse o motivo que se deu, não hesitaria, apesar do que houve, em vender outra vez este mesmo relogio e esta mesma corrente.

—Então que forte motivo foi esse?

—Não posso dizer-t'o.

—Já me não contas, como d'antes, os teus segredos, Charles?

—Este não é meu.

Jenny calou-se.

Carlos olhou por algum tempo para a irmã; depois veio pegar-lhe nas mãos, dizendo:

—Olha bem para mim, Jenny. Tu estás a duvidar tambem da minha palavra.

—Não… Charles… não duvido.

—Dize: pódes acreditar que teu irmão, com todos os seus estouvamentos, commetta uma vileza?

—Ó Charles! Que pergunta!

—Pódes acreditar que elle se esqueça por um momento do muito respeito e amor que te deve, Jenny? e da veneração que sempre teve pela memoria da mãe, que mal chegou a conhecer?

—Não, Charles, não. Para que me perguntas isso? Ninguem, melhor do que eu, te conhece o coração e te avalia os sentimentos; bem o sabes. Ninguem te faz mais justiça—respondeu Jenny, sensibilisada com a manifesta commoção, que se conhecia na voz de Carlos, quando lhe fallára assim.

—Pois de tudo isto me accusaram ha pouco… E foi meu pae!

—E julgas que o pensava, ainda quando t'o dizìa… se o disse?

—Se o não pensasse, calar-se-hia ao ver o mal que me causavam aquellas accusações e a maneira por que eu as repelli… mas insistiu.

—Perdôa-lhe tu tambem isso. Vamos; comquanto eu não faca a injustiça de te suppôr capaz de acções, tão carregadamente más, como essas que dizias, acredito tambem que não seja de tudo um justo este incorrigivel irmão que tenho, e creio que precisará um pouco da indulgencia, que recusa ter para com os outros. Tudo isso passou já. Olha, meu Charles, tu deves fazer como os lagos e como os prados, que não conservam vestigios das nuvens que os assombraram, ao passarem por diante do sol. Se visses como o pae ficou, assim que te retiraste da mesa! Coitado! Se foi injusto comtigo, está pagando bem cara a injustiça! Acredita que a sente mais do que tu. Eu estava a reconhecer n'elle o desejo de te pedir desculpa por alguma cousa, de que se arrependia já. Mas, que queres? estas passagens não se podem fazer assim depressa, ainda que haja a melhor vontade. E tu não lhe déste tempo. Serias um anjo, Charles, se fosses bom e generoso a ponto de…—E olha que era uma vingança tambem.—Se fosses bom e generoso a ponto de voltares para a sala e vires fazer companhia ao pae esta tarde…

—Tu, que me conheces, Jenny, como pódes lembrar-te d'essa proposta? Não sabes como eu sou? Percebeste alguma vez em mim a aptidão para dissimular, de que precisaria, se quizesse fazer o que me indicas? Os meus resentimentos são curtos, é verdade; mas, emquanto duram, não sei disfarçal-os. Ámanhã já nada terei na memoria talvez de tudo isto; mas hoje, mas agora, aggravaria o mal, se me apresentasse tão cêdo diante do pae.

Jenny não insistiu, porque reconheceu a verdade d'esta reflexão do irmão. D'ahi a pouco, disse-lhe:

—Dou duas horas de vida ao teu resentimento, e já é suppôl-o muito vividouro. Ao anoitecer, nem sombras haverá d'elle. Acompanhar-nos-has então a casa de Mr. Smithfield, o que será o maior prazer que pódes causar ao pae; e o dia de ámanhã virá sem nuvens.

—Não, Jenny, não vos posso acompanhar esta noite.

—Não digas que não, Charles. Então és assim reservado?

—Não; mas… tenho destino para esta noite já.

—E de tanta urgencia, que não possas…

—Não posso faltar, não.

—Ó Charles, não ouviste o que o pae disse?—«Mr. Smithfield é um homem que tem feito serviços á casa…»

—Hoje não posso; amanhã visitarei esse senhor.

—Ámanhã partem elles para o Minho.

—Tanto peior. Vêl-o-hei na volta.

—Vaes desafiar uma tempestade, recusando-te a tão pequeno sacrificio.

—Que querem? Digam a esse homem, que eu tenho mau caracter, que sou desagradecido, intratavel, grosseiro, egoista; e que por isso não deve estranhar a minha pouca pressa em ir dar-lhe os emboras pela sua feliz viagem.

Carlos disse tudo isto com impaciencia, que sobresaltou a irmã.

Foi com ligeiro tremor de voz, que ella lhe respondeu:

—Tu bem sabes que não é isso que eu posso dizer de ti, Charles, nem deixar que os outros, na minha presença, digam.

Carlos abrandou inimediatamente, ao ouvir estas palavras.

—Pobre Jenny! És a unica pessoa que me conhece devéras.

—E tu a que te conheces menos—respondeu a irmã, com doçura, e depois acrescentou:—Vens?

—Não posso.

-Charles!

—Mas se eu prometti!… Olha, Jenny, se és minha amiga, não insistas mais a este respeito; que não seja o dia de hoje tão aziago para mim, que esteja destinado a receber durante elle desgostos das pessoas a quem mais estimo.

As lagrimas assomaram d'esta vez aos olhos de Jenny.

—Era para t'os evitar, que eu insistia, Charles… Perdôa-me se…

E a commoção não a deixou continuar.

Carlos apoderou-se-lhe das mãos, que cobriu de beijos.

—Minha boa Jenny! minha generosa irmã! perdôa-me tu, perdôa a este estouvado, que nem sabe o que diz. De joelhos te devia implorar, filha, eu, que te pago em lagrimas os sorrisos que me dás. Tu a pedir-me perdão! Eu a perdoar-te, Jenny! O quê?… O conforto que me tens dado sempre?… Esta serenidade, que me fazes durar na vida, anjo? As caricias e cuidados de mãe que me ensinaste a conhecer? pobre mãe, só dois annos mais velha do que este mau filho, que não sabe senão affligil-a! É isto que tenho a perdoar-te? Dize. Não repares para as loucuras d'esta minha cabeça. E agora escuta-me. Eu desejava fazer-te a vontade, mas… hontem… o… Manoel Quentino mostrou-me desejos de celebrar na minha companhia o ultimo dia de reclusão, a que a doença o tem obrigado. Ámanhã já elle sáe. É uma pequena e suave festa de familia, e na qual sómente servem de galas os affectos e as flores. Esta manhã não pude ir visital-o, como elle me pediu… Era agora, á noite, que eu tencionava ir… Queres que eu deixe de satisfazer o desejo do pobre homem?

Jenny, depois de fitar por algum tempo o irmão, suspirou, baixando os olhos.

—Responde, Jenny—repetiu Carlos—e se julgares que, no meu logar, poderias fazel-o, sem que um pequeno remorso t'o estorvasse, eu obedeço-te e… não irei.

Jenny permanecia calada.

—Então?—repetiu Carlos.

—Que queres que te responda, Charles? Seria sem hesitação que eu te diria «vae», se estivesse convencida de que é esse sentimento de generosidade o que te chama lá.

—Então duvidas do que eu disse?

—Não. Mas duvido, e ha muito, do conhecimento que tens de ti proprio. Ensinaste-me a ler em ti, Charles, n'aquelles tempos, em que me communicavas todos os teus pensamentos; habituei-me então, e leio ainda agora, que evitas essas longas conferencias de outras épocas…

—Que evito! Pois imaginas?…

—Não imagino, sei. Cuidas tu, Charles, que tenho perdido de vista o irmão, que tão longe d'ella tem procurado andar? Ai, não tenho, não.

—E que tens visto a essa distancia?—perguntou Carlos, gracejando.

—O bastante para me affligir; o bastante para pedir a Deus que me inspire um dia, em que talvez seja mais carregada do que nunca a nuvem que venha ameaçar-nos.

—Visionaria!

—Oh! se o fosse!

—Não me dirás tu, Jenny, como te deu para seres tão apprehensiva d'esta vez! Logo d'esta, em que não é um capricho o que se apoderou do coração de teu irmão!

—Não é?

—Não, digo-t'o afoutamente, não é. É um sentimento novo para mim aquelle, a que ando sujeito… Ahi volto eu ás velhas confidencias de outros tempos; não reparas?

—D'esta vez, Charles, ha duas pessoas, que ambas me são caras, empenhadas n'isto; eis uma causa da minha inquietação. D'esta vez, se de um dos lados sómente houver sinceridade…—e será do teu lado, a havel-a sómente de um?—recaírá sobre o outro todo o peso de irremediavel infortunio; outra causa que me faz estremecer. E quando sejam sinceros ambos, não haverá tantas luctas a travar? tantos obstaculos a vencer? É de tudo isto que vem as minhas apprehensões.

—Socega, Jenny; eu tenho mais confiança no futuro do que tu.

N'este ponto, entrou um criado com recado de Mr. Richard a Jenny, de que eram horas de preparar-se para a visita a Mr. Smithfield.

—Então, Charles… Vens?—disse ella ainda uma vez para o irmão.

—Por quem és, Jenny, não insistas mais. Basta que te diga que não sei de motivo tão forte que me podesse obrigar hoje a faltar á minha promessa. O mais que fazes é perturbar-me o socego de espirito para toda a noite, com o remorso de não ter condescendido comtigo.

Jenny curvou a cabeça e saíu do quarto.

Carlos correu a retel-a á porta, para dizer-lhe ainda uma vez:

—Perdôa-me, Jenny.

Ella só pôde responder-lhe, commovida:

—Vae.

Passados minutos, vieram da parte de Mr. Richard perguntar a Carlos, se elle o acompanharia á visita ao compatriota Smithfield. Carlos respondeu que lhe era impossivel fazel-o aquella noite.

Recebendo esta resposta do filho, Mr. Richard pôz-se a esfolhar com impaciencia uma rosa que tinha na mão.

XXVII

O MOTIVO MAIS FORTE

Meia hora depois, ouviu Carlos o rodar da carruagem, que levava Mr.
Richard e Jenny á hospedaria, em que estava alojado Mr. Smithfield.

Julgára que respirarìa satisfeito, quando tivesse emfim conseguido ficar toda aquella noite á sua propria disposição; mas cêdo reconheceu que o esperára em vão.

Ha situações na vida era que, para qualquer lado que a resolução nos encaminhe, gera-se-nos sempre no animo um remorso, mais ou menos intenso, por haver abandonado os outros.

Em uma d'estas dilemmaticas contingencias se tinha achado o espírito de
Carlos.

Na vespera havia de facto promettido, não a Manoel Quentino, como á irmã dissera, mas a Cecilia, o que maior força dava ainda á promessa, que não faltaria á festa, disfarçadamente planeada por ella, para celebrar o restabelecimento do velho.

Era uma especie de innocente conspiração entre os dois; e é provavel que o leitor ou leitora não ignorem o ardor com que, de ordinario, o coração se vota a este genero de emprezas, com este genero de allianças.

Carlos não tinha coragem de faltar, nem que fosse para suspender aquellas lagrimas que vira imminentes nos olhos da irmã. Resistiu pois, como vímos.

Mas a resistencia deixou de si vestigios dolorosos; aquelle pezar, causado a Jenny, sentia-o ainda o coração de Carlos; ficára-lhe a dor intima, que até os alvoroços de prazer, excitados pela lembrança da proxima entrevista com Cecilia, pareciam exacerbar.

Porque ha d'estas contradicções nos sentimentos humanos; é por a mesma razão que, ás vezes, a negrura dos presagios mais se condensa entre os maiores fulgores da felicidade, e que se aviventa a luz de vagas esperanças nas mais tenebrosas situações da vida.

As horas porém adiantavam-se, e Carlos preparou-se para o serão festivo, que o esperava.

N'esta noite empregou na tarefa de se vestir um esmero, para que raras vezes lhe sobrava paciencia.

Parecia estar-se apromptando para um baile.

—Que importuna occasião escolheu este Mr. Smithfield para a sua visita!—pensava Carlos, emquanto ajustava ao espelho o laço da gravata de seda—Por causa d'elle é que Jenny me deixou assim pezaroso… Mas d'onde virá a exagerada apprehensão, que ella mostra d'esta vez?—E vestia o collete branco.—Não a devia tranquillisar o conhecimento que tem de Cecilia? Não devia até desejar que o meu coração se fixasse aqui, que não fosse mais longe? Só se receia de mim… Verdade é que o meu passado… Oh! mas d'esta vez…

No meio de uma turba de agradaveis pensamentos desvaneceu-se a impressão penosa, que lhe deixára a despedida da irmã.

Afagando-os a todos, terminou Carlos a sua acurada toilette e dispôz-se a partir, acompanhado por um cortejo de esperanças, tão vivas e palpitantes, que nem lhe deixavam sentir já o ligeiro remorso que, de mistura com ellas, lhe havia entrado o coração.

Ia já a transpôr o limiar da porta, quando um subito rumor de vozes, de passos apressados e gritos agudos, como arrancados por a mais dolorosa tortura, o fizeram parar.

Informou-se, cheio de inquietação, do motivo d'aquelle ruido.

—É a snr.ª Catharina, que está com um dos seus ataques—respondeu o criado, a quem elle se dirigiu.

Eram tão frequentes estes accessos na velha Kate, que, desde que Carlos soube ser essa a causa do rumor que ouvira, não lhe deu mais importancia e caminhou outra vez para a porta.

Redobrou porém a violencia dos gritos, e tanta e tão crescente angustia exprimiam, que o génio de Carlos não lhe permittiu mais tempo ouvil-os impassivel; obedecendo a generoso impulso, subiu apressado as escadas e entrou n'aquelle mesmo quarto, onde já acompanhamos Jenny.

Illuminava o aposento apenas a froixa claridade de uma lamparina, quando
Carlos entrou alli.

Em volta do leito da velha ingleza agrupavam-se todas as criadas da casa.

A pobre louca estrebuxava tão violentamente com os braços, que ellas mal conseguiam segural-os.

Gesticulando com movimentos desordenados, soltando, entre gritos agudos, palavras sem nexo, reunindo syllabas sem significação, descomposta e com os cabellos em desordem, aquella desgraçada inspirava ao mesmo tempo compaixão e terror.

Carlos aproximou-se do leito.

A velha Kate, vendo chegar uma nova figura junto de si, fitou n'elle um olhar de expressão quasi selvagem e, depois de algum tempo, pôz-se a rir e a bater as palmas, com os modos infantis proprios d'aquelles estados de embecilidade.

—Olhem!… É elle!… é elle!… —dizia ao mesmo tempo, reparando cada vez mais em Carlos—Como veio para aqui?… Inda bem que vieste!… Agora sim!… Quero ver agora quem me fará mal?… Vem cá, Dick, vem cá!… Agora sim!…

E acenava-lhe para que se aproximasse do leito.

Carlos condescendeu.

—Vejam! vejam!—dizia a velha, passando as mãos pelos cabellos de Carlos—É outra vez o Dick, que eu conheci… Este sim!… Já não tem nenhuns cabellos brancos… Este sim… Eu bem dizia que havia de voltar. O outro não era verdadeiro… Agora já não receio esses malditos, que me teem aqui presa ha tanto tempo!… Que venham!… Tu não me has de deixar só com elles outra vez, Dick, não? Olha que me matam!

—Socega, Kate, socega—disse Carlos carinhosamente—Ninguem te quer fazer mal.

—É porque tu não sabes ainda o que elles me teem feito!… Olha; repara… Não vês o cadeiado que me pozeram aos pés?… Nem os posso mover… nem os sinto!… E agora… metteram-me aqui no peito um ferro… aqui… cá o sinto dentro…. Arde, como se estivesse em braza… E este laço?… não vês este laço, que me deitaram ao pescoço?… não vês como está apertado?… suffoca-me!… Ai!… ai!…

E respirando a custo, apertava com ancia, o braço de Carlos, que a segurava.

—Então, Kate, vê se descansas;—dizia elle—eu vou já mandar tirar-te tudo isso, que te afflige assim…

—Então… manda… manda! Por compaixão, Dick, manda; não deixes martyrisar assim a velha Kate!… Por amor de teus filhos, Dick! Eu não tenho forças para soffrer tanto! Estou muito velha, Dick, muito velha!… tem compaixão de mim!…

E rompia em soluços tão expressivos de dor, que até as criadas não foram superiores á commoção.

Depois encostou a cabeça ao hombro de Carlos, dizendo-lhe ao ouvido, com expressão de susto e de mysterio:

—Foram ellas que me fizeram todo este mal, não foram?

—Não; socega…

—Foram! foram, sim!—bradou, elevando a cabeça com violencia e inflammando-se-lhe outra vez o olhar, que parecia despedir faiscas, como sempre que era contrariada.

—Pois foram, foram; mas…

—Então não fiquemos aqui. Vamos outra vez para a Inglaterra, Dick. Para que me trouxeste tu para esta casa? Para quê?

—Descansa, que havemos de ir; mas é preciso que estejas socegada.

—Estou… não vês que estou?… mas… não me deixes só, não?—acrescentava, com entonação de supplica, quasi infantil.

—Então não vês aqui tanta gente?

—Não a quero. Manda-a embora; a todos… manda-os a todos embora!… Eu quero estar só comtigo…

—Mas…

—Manda-os embora, por amor de Deus, manda-os embora!

Carlos não teve coração para resistir a este pedido da louca.

Á sua ordem saíram as criadas do quarto, deixando Carlos só com ella.

—Fecha, fecha essa porta, para que não entrem outra vez, fecha.

Carlos fechou a porta.

—E agora vem cá; senta-te aqui, ao pé de mim; eu não posso dormir, se tu aqui não estás… E eu queria dormir… Tenho somno.

E tomou entre as suas as mãos de Carlos.

Carlos sentiu que as d'ella começavam a arrefecer, d'essa frialdade de gêlo, que excita em nós uma repulsão instinctiva. Pela primeira vez lhe acudiu a ideia de que podia ser aquella a ultima noite da pobre mulher.

Este pensamento fel-o olhar para ella com mais attenção.

A escassa luz da lamparina ainda lhe permittiu conhecer a profunda alteração de feições, que a pobre demente apresentava.

Deram nove e dez horas, e Carlos não saíra de junto da velha criada, que, segura ás mãos d'elle, estremecia ao menor movimento que sentisse, como receiando ser abandonada outra vez. Era tal o terror que mostrava de ficar só, que tirou o animo a Carlos de tentar sequer deixal-a.

Assim as horas, que elle contava passar na companhia de Cecilia, iam-lhe correndo junto d'esta desgraçada octogenaria, que com discursos incoherentes, de mistura com risos e com prantos igualmente expressivos de desvario, o conservou alli.

Pouco a pouco, principiou a tornar-se-lhe mais tardia e inintelligivel a pronuncia, mais sumida a voz, mais ennevoado o olhar.

—Pozeram-me estes ferros…—murmurava ella, interrompendo-lhe a ancia, a cada instante, as palavras sem nexo que dizia—pensam que eu não sou… Kate?… sou Kate, sou!… Foi á viuva do fogueiro… que eu dei… o vestido verde… O fogueiro morreu… morreu no mar… É porque não são bons christãos… Não foi o gallo que cantou, foi a coruja… Dizia que eram esmeraldas e… assim é que a irmã se perdeu… O cedro chorava… era o pae d'ella…

Carlos, pousando-lhe a mão no pulso, mal o pôde já perceber… Tentou sair, para chamar alguem que ministrasse os soccorros precisos, mas a contracção, com que a velha o segurou, o estremecimento que lhe correu pelo corpo, ao sentir a tentativa de Carlos, obrigaram-o a desistir.

—E para quê?—pensava elle—ninguem já agora arrebatará esta presa á morte. Pelo menos que seja tranquillo o passamento. Deixal-a morrer em paz.

E ficou, ficou elle só, unico espectador d'aquella scena lugubre, d'aquelle espectaculo pouco talhado para a sua juventude, para a sua indole e para os vestidos de gala, com que, para bem outros fins, esmeradamente se preparára.

Era notavel o contraste. A velha caiu em silencio profundo, apenas cortado de surdos gemidos.

Dava meia noite, quando uma respiração mais ampla, após um profundo repouso, fechou o circulo d'aquella longa existencia.

Carlos conheceu que tinha diante de si um cadaver.

Depois de por algum tempo a encarar melancolicamente, desceu-lhe, com piedoso respeito, as palpebras sobre os olhos amortecidos.

Foi n'este piedoso mister que o vieram encontrar Jenny e Mr. Richard.
Voltando da visita a Mr. Smithfield e sua filha, souberam no portal que
Carlos não havia saído, em consequencia do violento accesso que
acommettera Kate.

Ahi mesmo se desvaneceu toda a irritação de animo em Mr. Richard.

—Então não saíu?

—Não, senhor,—disse o criado—havia-se vestido para saír, mas até agora tem estado só no quarto da snr.ª Catharina.

O velho inglez, que tinha ainda pela que fora sua ama uma verdadeira affeição, sentiu-se commovido ao ouvir isto.

Elle e Jenny correram então ao aposento de Kate.

—Expirou agora—disse Carlos, ao vel-os entrar.

O pae e a filha acercaram-se apiedados do leito.

Jenny não recusou lagrimas de saudade áquella velha mulher, que ella, tão longe, quanto lhe ia pelo passado a memoria, se recordava de ver sempre junto de si.

Mr. Richard curvou tambem a cabeça, perante aquelle tão solemne espectaculo.

Carlos ficava-lhe defronte e ao lado a irmã.

Jenny, enxugando os olhos, voltou-se para elle.

E, como se obedecesse a irresistivel impulso do coração, apertou-o nos braços, dizendo:

—É n'isto que te reconheço, Charles. Quem poderá duvidar ainda da generosidade da tua alma?

Carlos correspondeu ao abraço da irmã, beijando-a affectuosamente na fronte.

E ao descingir-se-lhe dos braços, encontrou a mão de Mr. Richard, que se estendia francamente para a sua.

—O seu proceder foi o de um homem de bem e… de coração, Charles.
Honra-o—disse, com voz tremula, o inglez.

Carlos apoderou-se d'aquella mão, que se lhe estendia, e curvou-se para beijal-a.

Perante aquelle leito mortuario desvanecera-se de todo a tempestade domestica.

Foi assim que Carlos faltou á promessa que tinha feito a Cecilia, falta que horas antes pensava e dizia não haver motivo tão forte que o levasse a commetter.

Resistiu de facto aos resentimentos do pae, resistiu,—e mais custoso lhe foi—ás lagrimas da irmã; mas não teve animo para resistir á compaixão por uma pobre mulher, velha, demente e moribunda.

Ficou, para lhe fechar os olhos.

Era assim o caracter de Carlos.

XXVIII

FORMA-SE A TEMPESTADE EM OUTRO PONTO

A snr.ª Antonia não perdera o seu precioso tempo, nem desaproveitára a sciencia adquirida por meio das observações da manhã.

Ao voltar a casa, encontrára na rua o snr. José Fortunato, e a elle, como fiel alliada, communicára logo alli o peculio de descobertas, com que enriquecera o thesouro dos seus já numerosos conhecimentos.

José Fortunato horrorisou-se com a serie de estupendas noticias, que ouviu de tão auctorisada bôca.

—Não ha que fiar nos homens de hoje!—foi a sentença que elle lavrou, depois de ponderar os famosos artigos d'aquelle libello diffamatorio.

—A mim não me enganou o melro—fez-lhe notar a snr.ª Antonia.

—Pois olhe que a mim…

—Agora o que é preciso é abrir os olhos fechados, que ha lá por casa.

—Abrir?!… Melhor seria fechar alguns, que já se abriram de mais para elle… Não sei se me entende?

—Entendo, entendo. Não ha de ter duvida. Socegue.

E a snrª Antonia, serenando assim as apprehensões do seu protegido, entrou para casa. José Fortunato ia pensando:

—Se eu avisasse o pae, mas de maneira que não soubesse que era eu…

Cecilia andava contente aquella manhã.

O seu bom coração deixára-se repassar todo de alegrias, d'essas alegrias travêssas, agitadoras, de quem não quer reflectir no que as faz nascer; alegrias que, vindo á luz, gosam da luz como as creanças, as quaes a festejam com risos e cantares, ainda sem saudades do passado, nem incertos temores do futuro, a amargurarem-lhes tão ingenuo prazer.

Pobre rapariga! Mal sabia ella, que bem de perto a seguia a nuvem, que havia de assombrar-lhe o fulgor d'aquelle contentamento!

Antonia machinava em silencio contra ella. Á similhança da aranha, em traiçoeira emboscada, aguardava paciente que aquella buliçosa borboleta, que voava em volta de si, viesse prender as azas na sua enredada teia.

Cecilia demorava-se porém pouco tempo junto d'ella, e pouco tempo em toda a parte. Lembrava uma avezita prisioneira, quando, ao amanhecer de um dia de sol desanuviado, após longos de nuvens e de chuva, bate as azas, salta de poleiro em poleiro, esvoaça de encontro ás grades da gaiola, e ensaia de novo o canto, havia muito interrompido.

Occupada com os preparativos do que ella chamava a festa do pae, Cecilia não parava um momento. Descia ao quintal, para colher flores; escondia-se no quarto, para formar ramos, e com elles enfeitar as jarras; passava á sala de Manoel Quentino, para que a ausencia não fosse estranhada, e com o fim de dizer ao pae algumas palavras de affecto; depois voltava ao quintal e sempre com a ligeireza e agilidade, proprias d'aquelle corpo flexivel e elegante e d'aquella nervosa compleição.

De quando em quando, chegava tambem á janella, esperançada em que um feliz acaso lhe satisfizesse não sei bem que secretas aspirações, as quaes talvez a leitora adivinhe.

Foi em uma d'estas occasiões, que Antonia, encontrando-se com ella no corredor, lhe disse á queima-roupa:

—Já esta manhã vi o snr. Carlos.

Cecilia perturbou-se; mas inquiriu, affectando indifferença:

—Aonde?

—Ia a saír de casa. Entrou com uma senhora nova para uma carruagem…

—Havia de ser Jenny, a irmã…

—Ai, não; não era, não, senhora. Essa tinha saído com o pae, logo pela manhã, que m'o disse a snr.ª Joséfinha. Esta tal, que eu digo, chegou de fóra. Pelos modos… é das taes comediantes do theatro… que elle conhece.

—Comediantes?!—disse Cecilia, não procurando já disfarçar a inquietação.

Após este preludio, a snr.ª Antonia entrou de alma e coração na materia, que esgotou completamente. Disse quanto ouviu, quanto viu e, mais ainda, quanto pensou e concluiu de tudo o que ouvira e vira, graças áquelle vigor de deducção logica, que era dos mais caracteristicos dotes d'esta senhora.

Cecilia, comquanto lhe parecessem exageradas as opiniões da criada, sentia que se lhe ia enlutando o coração ao ouvil-a; e que toda aquella disposição para rir e cantar, com que lhe principiára o dia, se lhe estava transformando em irresistivel desejo de chorar.

No estio dos nossos climas amanhece ás vezes o dia puro e formosissimo; o céo é azul; resplendentes os raios do sol; tepida e perfumada a viração, que agita as folhas dos arvoredos; pouco a pouco, parece que o sol desmaia; que desbota o azul do céo; que nos abafa a atmosphera inflammada; accumulam-se no horizonte, e espalham-se depois por todo o firmamento, nuvens de um azulado de chumbo;—fórma-se a trovoada.

Esta manhã de Cecilia foi bem similhante a um d'estes dias de verão.

Quando Antonia acabou de expôr as conceituosas reflexões a respeito do caracter e vida de Carlos, e de provar á saciedade ser elle possuidor das peiores qualidades d'este mundo, Cecilia separou-se subitamente d'ella e correu a fechar-se no quarto.

Foi com as faces pallidas e com os olhos vermelhos que ella appareceu diante do pae ao jantar. Contrastava tanto com estes vestigios de tristeza o sorriso, a que pretendia obrigar os labios, que o effeito era mais triste ainda.

Todo se alvoroçou o coração de Manoel Quentino, ao vel-a; tão contente pela manhã, e agora assim! Olhava para a filha, mas não se atrevia a interrogal-a.

Cecilia bem fez por se mostrar jovial; fallou sempre durante o jantar, mas havia tanto de facticio n'aquella vivacidade, que ninguem se podia illudir, quanto mais o pae!

Reinou, durante todo o dia, entre Manoel Quentino e a filha aquella especie de mutua desconfiança, que se dá sempre com duas pessoas, quando ha entre ellas um segredo, guardado por uma e suspeitado por outra, e no qual ambas evitam fallar.

Aproximou-se a noite.

José Fortunato foi pontual.

Cecília estava cada vez mais agitada; o coração era-lhe disputado por esperanças, misturadas de receios, de ver chegar Carlos á hora promettida, e por o presentimento, que lhe segredava que elle não viria aquella noite.

A impaciencia, que d'aqui lhe nascia no espirito, revelava-se nas mais pequenas cousas. Quanto mais se fechava a noite, tanto mais era para notar em Cecilia aquella especie de excitação nervosa, em que as occorrencias do dia a haviam lançado.

Chegou a ser cruel para com José Fortunato.

Ás vezes, até as respostas, que dava ao pae, saíam-lhe com certo azedume, de que immediatamente se arrependia, empregando depois tanto ardor nas desculpas, que ainda mais afligiam e inquietavam o velho.

Segundo o costume, era ainda á doença, e só á doença, que elle attribuia aquillo tudo, e por vezes, chamando a filha a si, insistiu, depois de a beijar, em lhe tomar o pulso.

Manoel Quentino, que não entendia cousa alguma de organisações nervosas, julgava ver na frequencia das pulsações em Cecilia um symptoma evidente de febre e, por sua vontade, já teria rodeiado a filha de todo esse apparato medico, com que, sob pretexto de combater uma doença, tantas vezes se aggravam incommodos ligeiros.

Deram sete, oito, nove horas, e Carlos não apparecia.

A snr.ª Antonia andava com ares triumphantes. José Fortunato trocava olhares de intelligencia com ella.

—Estou muito admirado da demora de Carlos!—dizia Manoel
Quentino.—Está decidido que não vem.

—Será melhor trazer o chá—lembrou Antonia.

—Será melhor esperar que lh'o mandem trazer—acudiu Cecilia com frieza.

Manoel Quentino, ao ouvir o tom d'esta resposta, fixou tristemente os olhos na filha. Estranhava-a.

—O snr. Carlos teve pelos modos hoje outras distracções—observou José
Fortunato.

—E eu que o diga—acrescentou Antonia.

—Que diabo estão vocês a rosnar?—perguntou Manoel Quentino.

—É que…—ia Antonia a explicar-se, quando Cecilia a interrompeu.

—Ande, Antonia, ande; traga então o chá, ande; avie-se.

E disse isto com a impaciencia de quem não admittia demoras.

Antonia obedeceu. Cecilia deixou tambem por um pouco a sala.

O snr. José Fortunato aproveitou o ensejo para fazer o seu amigo sciente do que havia, em relação a Carlos.

Muito contra o que esperava, em vez de o ver indignado e horrorisado quasi, achou-o com umas disposições para levar o caso a rir, que o maravilharam.

—Aquella cabeça não toma rumo!—dizia Manoel Quentino—Nem eu sei como por tanto tempo aturou o serviço do escriptorio! E olhe que foi bom e real serviço o que elle fez! Inda estou para saber como aquelle diabo de rapaz pôde em tão pouco tempo fazer o que a muitos leva annos! Mas então com que… esta manhã… Hein? Fugiu o passaro da gaiola? E de carruagem! Fugirá a sobredita senhora com o rapaz para o deserto? Eh! eh! eh!… Bem; então… n'esse caso… vamos nós tomando o nosso chá, snr. Fortunato, vamos. Já o podiam ter dito; escusavamos de ter alterado as horas…

Quando Cecilia voltou á sala, inda Manoel Quentino ria, a bom rir.

—Cecilia—disse-lhe elle—vamos ao nosso chá; voltamos hoje aos nossos antigos habitos, filha. Isto de passaros novos fogem, pilhando a gaiola aberta… Os que ficam são estes, como o snr. José Fortunato, que já estão trôpegos de todo… Eh! eh! eh!…

O snr. José Fortunato não gostou demasiadamente da imagem. Manoel
Quentino proseguiu:

—Aqui o amigo contou-me agora a historia de uma certa carruagem e de um certo rapaz, que Antonia lhe disse… é muito engraçada… Eh! eh! eh!

—Eh! eh! eh!—fez o snr. José Fortunato tambem—mas ficou-lhe bastante caro o entrar no duetto, visto que Cecilia o castigou, dizendo:

—Engraçada? Então é por excepção. Não é essa a principal qualidade das historias do snr. Fortunato.

José Fortunato pôz-se logo muito serio; Manoel Quentino olhou espantado para a filha.

Episodios d'estes reproduziram-se durante todo o serão d'aquella noite. Que triste não era a alegria que Cecilia affectava, ao trazer para o quarto do pae as flores, que preparára de manhã, cheia de contentamento! Lidar com flores, assim, com tanta melancolia, só quando se enfeita com ellas um tumulo. Marejava-lhe nos olhos o pezar do coração; de pouco lhe valia o sorriso nos labios. O serão acabou cêdo. Cecilia precisava de estar só; queria-se livre de todo o constrangimento, queria poder chorar, sem receio de vistas curiosas, de perguntas indiscretas, de reflexões impertinentes.

Será necessario dizer que velou toda a noite?

Levantou-se na madrugada seguinte com resolução formada.

—Eu é que era louca—pensava ella—illudi-me sem fundamento… acreditei… e por que acreditei eu?… De que me queixo?… Nem direito tenho a resentir-me. Paciencia!—dizia a meia voz, suspirando—Hei de ter força bastante para tirar esta loucura d'aqui.—E levava a mão á cabeça, e, depois de reflectir, murmurava, mais baixo ainda, descendo-a para o logar do coração:—E d'aqui nada terei que arrancar?

Manoel Quentino foi n'essa manhã para o escriptorio. A convalescença era completa, mas para o ser tambem a sua alegria seria preciso que, ao despedir-se da filha, não tivesse notado no semblante d'ella outra vez a antiga expressão dolorosa.

Horas depois d'elle saír, passava Carlos, segundo o costume, por baixo das janellas, d'onde ordinariamente Cecilia o esperava.

D'esta vez, achou-as fechadas, e corridas as cortinas.

Carlos estranhou aquillo, e por muito tempo não desviou os olhos d'ellas.

Através d'essas desapiedadas cortinas alguém o observava porém. Era
Cecilia.

Vejam como ella tentava arrancar da cabeça, ou antes do coração, o que chamára «loucura»?

E desejaria devéras arrancal-a?

Sem ser vista, seguia todos os movimentos de Carlos; viu-o passar; olhar com attenção para as janellas; caminhar mais de vagar á medida que se afastava; parar, e, parecendo tomar uma subita resolução, retroceder, atravessar a rua e entrar para o portal da casa.

Cecilia recuou, como se podesse temer ser vista de fóra.

Cêdo ouviu tocar a campainha da cancella.

Cecilia estremeceu e dirigiu-se ao corredor.

Já ahi encontrou Antonia, que descia para ver quem tocava.

—Antonia—disse-lhe rapidamente Cecília—se for alguem a procurar-me… diga-lhe que… que não posso fallar, que… estou doente… Seja quem for… Entende?

—Entendo, sim, menina—respondeu Antonia, com um sorriso de quem entende de mais.

Foi com modos desabridos que recebeu Carlos…

Este perguntou-lhe se Manoel Quentino tinha ido de facto para o escriptorio, porque, vendo todas as janellas fechadas, lembrára-se de que tivesse talvez recaído.

Antonia respondeu:

—Pois fique descansado. Foi para o escriptorio, foi, sim, senhor. Elle agora está de todo. E a menina manda dizer que não póde fallar a ninguem, porque está doente.

—Doente?!—perguntou Carlos com uma inflexão de voz, que fez quasi arrepender Cecilia, que o escutava, da ordem que dera á criada.

—Não é cousa de cuidado, graças a Deus;—proseguiu esta—mas, em todo o caso, não a deixará tão cedo receber visitas… de ceremonia. E ha de dar-me licença, que tenho a minha vida.

E, acto contínuo, ouviu-se o bater da cancella, que se fechava.

—Antonia—disse Cecilia á criada, assim que esta chegou ao patamar, trazendo nos labios um sorriso de victoria—a fallar a verdade você foi de uma grosseria!

—Ora deixe lá, menina. Tudo é preciso com certa gente.

Carlos, ao sair do portal, pensava:

—Despeitos! Será por eu não ter vindo hontem? Deus o queira; tudo se explicará em meu abono e depois o direito a uma compensação será optimo advogado na minha causa. A indifferença era peior.

D'alli foi Carlos para o escriptorio, onde deu a Manoel Quentino os parabens, pelo seu restabelecimento.

—Sinto—acrescentou—não ter podido hontem festejar, como tencionava, o seu ultimo dia de doença, mas o que houve lá em casa… Já sabe?

—Já sei—respondeu Manoel Quentino, que se mostrava algum tanto embaraçado.

—Esta manhã ia com tenção de saber de si—continuou Carlos.—Vendo todas as janellas fechadas, receiei que se tivesse sentido peior. Soube porém que era sua filha que se achava incommodada.

—Cecilia?!—exclamou Manoel Quentino, já assustado.

—Socegue—respondeu Carlos, sorrindo, porque o espanto de Manoel Quentino acabava de confirmar as suspeitas, que tivera—pela maneira por que me fallou a criada, imagino que não é de gravidade o incommodo. Nem tempo tive de averiguar d'isso, tal foi a pressa com que ella me fechou a porta. A boa mulher parecia ter mêdo de mim. Fallou-me com um arreganho!

Manoel Quentino fez que sorria; mas era evidente que alguma cousa lhe pezava no coração.

Depois de curta hesitação, aproximou-se de Carlos, e ainda com modo constrangido, disse-lhe, chamando-o de parte:

—Snr. Carlos, eu tenho-o por um homem de bem; por isso prefiro fallar-lhe com franqueza a andar com jogo encoberto, que nem é para o meu genio, nem para o seu.

Carlos ficou surprendido com aquellas palavras, tão inesperadas como mysteriosas.

—Então que temos, Manoel Quentino? Falle. Parecem communicações graves as que tem para me fazer—dizia elle, olhando-o interrogadoramente.

—Escute. Eu sei os favores que lhe devo e sei a fé que se póde depositar no seu caracter, que será tudo quanto quizerem, menos capaz de uma infamia.

Carlos escutava-o cada vez mais admirado.

Manoel Quentino proseguiu, augmentando-se-lhe o embaraço com que principiou:

—Mas… no mundo, em que vivemos, ha a verdade e ha as apparencias, e… não basta sómente attender á primeira, é preciso tambem salvar as outras…

—Mas a que vem tudo isso?—perguntava Carlos.

—A propósito de uma… de uma loucura, mas que, apesar de saber que o é, eu tenho obrigação de attender. Esta manhã veio ter ao escriptorio pela porta interna uma carta anonyma. Queira lel-a, e depois dirá o que devo fazer.

A carta, cuja lettra era visivelmente disfarçada, dizia:

«Alguem, que toma a peito a reputação dos seus amigos, avisa-o de que as visitas do snr. Carlos a sua casa, estão já dando que fallar á vizinhança. Lembre-se de que, pela sua reputação, esse rapaz é uma visita pouco propria em qualquer casa, onde existe uma menina de dezoito annos.»

Assignado: «Um amigo desinteressado.»

Carlos, acabando de ler esta carta, passou-a para Manoel Quentino, dizendo-lhe com profundo despreso:

—Estas são ferroadas de insectos, que se esmagam com o pé.

—Não julgue que me deixo levar por esses protestos de amizade desinteressada;—disse Manoel Quentino—mas, tanto peior se, como suspeito, ha antes malevolencia n'isto. A bôca, d'onde saíram estes conselhos, espalhará a calumnia; e, se tenho coragem para me rir d'ella, quando se refira a mim só, estalar-me-hia o coração, se de minha filha se dissesse uma só palavra que a affligisse, que lhe causasse uma lagrima.

—Tem razão—respondeu Carlos, curvando a cabeça, pensativo.

—Agora diga; que me aconselha que faça? Confio no seu cavalheirismo, e por isso é a si e a mais ninguem que peço conselho.

—Obrigado, Manoel Quentino—respondeu Carlos, apertando-lhe a mão.—É preciso que se me fechem as portas da sua casa.

—-Carlos! O senhor bem vê que eu não lhe mereço essa ironia.

—Não é ironia. É effectivamente preciso que eu deixe de visital-o. Eu saberei comprehender a sua posição; acredite-me. É justo que pague a leviandade, com que me afiz a habitos, que, reconheço-o hoje, não eram talvez os que a minha indole me pedia. Paciencia.

Manoel Quentino abraçou-o commovido.

Á noite, Mr. Richard e Carlos e muitos dos seus amigos assistiram na capella ingleza do Campo Pequeno ás ceremonias funebres pela velha Kate, em cuja sepultura o proprio Mr. Richard lançou, segundo o costume inglez, os primeiros punhados de terra.

No fim do enterro, Carlos despediu-se de Manoel Quentino, que viera assistir ao acto.

O bom homem, já habituado á companhia de Carlos nos serões, não teve mão em si que lhe não dissesse:

—Venha commigo, Carlos; ao menos hoje ainda. Riremos um bocado; isto de ir para casa com as ideias de um enterro na cabeça, não é grande cousa… Venha. É dar muita importancia ao mundo, privarmo-nos, por causa d'elle, da…

—Não, Manoel Quentino; convem por agora interromper as minhas visitas.
Talvez um dia o procure, mas… Adeus, adeus.

E voltou a casa.

Jenny viu-o tão melancolico, que lhe disse:

—Charles, quando d'antes tinhas alguma cousa que te affligisse, confiavas-m'a. Por que já o não fazes agora?

—Jenny, concede-me algum tempo. Talvez, dentro em pouco, eu tenha muito que te dizer e muitos conselhos a pedir-te.

Foi a resposta que obteve.

Carlos não faltou á palavra que dera a Manoel Quentino.

Dois dias se seguiram a este sem que a vizinhança do guarda-livros tivesse que reparar nas assiduas passagens de Carlos por aquella rua, nem a snr.ª Antonia de soffrer a contrariedade das suas visitas.

Mas, se na sobredita vizinhança houvesse quem depois da meia noite estivesse acordado, poderia ás vezes ver passar um homem por diante das janellas fechadas d'aquella casa, e olhal-as como se esperando que ellas a final se cansassem de sua desesperadora discrição.

Taes eram já as proporções que havia tomado em Carlos o que Jenny chamára uma phantasia!

Porque esse homem era elle.

Chegára-se a maio. Era uma d'estas noites de luar, serenas, tepidas, perfumadas, em que um instincto irresistivel nos leva a procurar as arvores, a escutar de perto o murmurio das fontes. Abafa-se nas salas.

Demorára-se Carlos d'esta vez diante das janellas de Cecilia em uma d'aquellas contemplações, de que só os espiritos frios podem ter animo de zombar, quando certo rumor na pequena janella de grades, que se abria no muro do quintal de Manoel Quentino, lhe chamou a attenção.

Carlos retirou-se para a parte assombrada da rua e esperou. A janella abriu-se, e o luar, batendo em cheio do lado d'ella, illuminóu a suave figura de Cecilia.

Carlos permaneceu immovel.

Cecilia estava só; e quem, se não ella, tinha n'aquella casa imaginação bastante para se seduzir com os encantos de uma noite assim?

Recostando-se á janella, a filha de Manoel Quentino conservava-se tambem immovel. Havia tanta languidez no reclinar da cabeça sobre a mão, tanta belleza e poesia n'aquella figura pallida, que a phantastica luz do luar mais pallida fazia, que, ainda sem ter a imaginação de Carlos, era possivel quasi acreditar por momentos ser aquillo uma apparição de noite de estio, como, nas suas lendas, as concebe a phantasia popular.

Que lisongeira voz segredou ao ouvido de Carlos, que era n'elle que aquella mulher pensava? Vaidades de coração, e tantas vezes mentirosas illusões dos desejos, quem ha ahi que possa gabar-se de nunca vos ter experimentado?

Cecilia foi subitamente despertada d'aquelle quasi sonho, em que parecia arrebatal-a a claridade do luar, por a voz de alguem que lhe pronunciava o nome por baixo da janella.

Cecilia reconheceu, estremecendo, aquella voz. Era a de Carlos.

—Ó snr. Carlos!—exclamou ella, sobresaltada e fazendo um movimento instinctivo para retirar-se.

—Escute—disse Carlos—escute-me. São poucas palavras só as que tenho a dizer-lhe. Vim aqui sem esperança de lhe fallar. Contento-me ha muitos dias com menos. Ver as janellas da casa em que mora tem-me bastado. Mas, uma vez que o acaso a trouxe ahi, deixe-me não perder a unica occasião que tenho agora para lhe dizer o que desejava…

—Mas bem vê que…

—Ouça-me. Dei a minha palavra a seu pae de que não voltaria a esta casa. Houve alguem interessado em interromper as minhas visitas, e conseguiu-o, porque eu mesmo julguei necessario interrompel-as. Acreditará que o fiz sem custo, Cecilia?

Cecilia não respondeu, porque não podia.

—De hoje em diante só um motivo me póde trazer de novo aqui, a sua casa, á luz do dia, e aos olhos de todos; mas antes, preciso interrogar o seu coração, Cecilia. Elle só me póde auctorisar a adoptal-o, esse motivo que digo.

Cecilia ganhou coragem e conseguiu emfim responder:

—Snr. Carlos, a doença de meu pae acabou. O generoso procedimento que teve para com elle, durante os dias d'essa doença, creia que fez nascer em mim sentimentos de… gratidão, que nunca mais esquecerei. Recordo-me de que fui a primeira a implorar o seu auxilio, e sei de que importancia foi o que me concedeu. Por nós quiz o snr. Carlos abandonar, e por muito tempo, habitos de vida proprios da… sua idade, e… da sua posição… O ultimo dia da enfermidade de meu pae, pelo menos, devia para si, snr. Carlos, ser o primeiro dia de liberdade e… e foi. Se meu pae entendeu que devia exigir… ou pedir-lhe que terminasse o… sacrificio, não me compete a mim ir de encontro ás resoluções de meu pae. Não vejo a necessidade de adoptar qualquer motivo para renovar umas visitas, que hoje não teem razão para serem renovadas… por isso…

—Mas, Cecilia, e se essa razão, e forte, e irresistivel, e urgente, estiver em mim, no meu coração?…

—Snr. Carlos, espero que me faça a justiça de acreditar que…—e a voz de Cecilia tremia ao dizer isto—que eu sou ainda superior a esses galanteios. Se as circumstancias, que acompanharam o nosso primeiro encontro, lhe poderam deixar impressões que o levem a tratar-me assim, peço-lhe que se recorde de que Jenny, de que sua irmã, ainda me trata como amiga, depois de saber tudo quanto n'aquella noite se passou.

—Cecilia!

—Adeus, snr. Carlos. Sei que ha muita nobreza de sentimentos na sua alma e por isso espero d'ella que comprehenda a necessidade de acabar com isto. Adeus.

E retirou-se apressadamente da janella.

Carlos ficou por muito tempo immovel no logar em que Cecilia o havia deixado, e sem saber como explicasse tão rigorosa severidade.

Não tinham decorrido muitos minutos, assomou á mesma janella um vulto que, curvando-se para a rua, disse em tom de zombaria, para Carlos:

—Muito boa noite. Com licença.

E fechou as portas da janella.

Era a snr.ª Antonia, que tinha espiado de longe Cecilia, sem que conseguisse ouvir o dialogo d'ella com Carlos.

Logo que a sua jovem ama se retirou, correu a observar quem estava na rua, viu e reconheceu Carlos ainda junto do muro.

Carlos, achando-se surprendido, estremeceu e partiu d'alli inquieto.

—Saberia ella que a ouviam e por isso fallaria assim? Ou espial-a-hão sem que o desconfie? Alguma cousa deve ter-se passado, desfavoravel para mim, para ser assim tratado. A minha falta só não explica…

E chegou a casa, pensando n'isto tudo.

XXIX

OS AMIGOS DE CARLOS

A scena, que descrevemos no precedente capitulo, aggravou o estado moral de Carlos.

Cada vez mais concentrado, passava horas inteiras no quarto ou entranhava-se pelas ruas de verdura do jardim; cada vez mais triste, nem Jenny podia já inspirar-lhe aquellas promptas alegrias de outros tempos e tanto do caracter d'elle.

Jenny convenceu-se de que era mais do que um mero capricho o que assim se assenhoreára do coração do irmão.

E em Cecilia que seria?

A filha de Manoel Quentino havia desde muito evitado a presença de sua amiga. D'isto mesmo desconfiava Jenny.

—É preciso sondar aquelle coração tambem, e se o encontrar assim… então… então…

Esta reflexão terminou-a ella sentando-se á secretária e escrevendo:

«Cecilia.

É amanhã o dia dos meus annos. Não me reservará para então a surpreza de me assegurar que ainda vive? Repare que ha dois longos mezes que a não vejo. Fico esperando-a, desde o romper do dia de ámanhã.

Sua amiga

Jenny_.»

O dia seguinte era de facto o do anniversario de Jenny.

Cecilia recebeu a carta e hesitou sobre o que lhe convinha fazer. Tinha receio de ir, temia encontrar-se com Carlos; tinha remorsos de recusar, havia tanto que evitava a companhia d'aquella que sempre lhe dera provas de tanta estima! Além de que, terminára com a doença do pae o pretexto com que ella justificava a ausencia. Era demais um dia santo o dos annos de Jenny, e, como tal, mais livre para Cecilia. Em toda a noite não resolveu comtudo o que fizesse, nem fallou a alguem do convite recebido.

Começou o dia seguinte.

Carlos acordára com a resolução formada de abraçar algum partido decisivo. Era-lhe insoffrivel a incerteza, em que estava vivendo.

Com a cabeça apoiada entre as mãos, todo recolhido ao mundo interior e cortadas as relações com o externo, procurou assim descobrir o melhor caminho, por onde saísse d'aquella situação, insupportavel para o genio d'elle.

Não sei se deva aconselhar o meio como efficaz. Talvez seja mais prudente pensar com os olhos abertos para o mundo que nos rodeia, visto que n'elle vivemos e actuamos, e que, a não o incluirmos como elemento nos nossos calculos, corremos o risco de adoptar resoluções, que mais tarde nos valham choques incessantes e dolorosos conflictos.

O pensar com os olhos fechados é só bom quando se trata de cousas puramente metaphysicas; mas procurar assim regras de procedimento na vida, é imprudente.

O resultado que produziu em Carlos este systema de pensar, foi a seguinte carta, que elle escreveu com vivacidade quasi febril:

«Cecilia.

Ha dias recusou ouvir-me, quando o acaso me aproximou de si; não leve o rigor ou a desconfiança a ponto de desviar os olhos d'esta carta que escrevo, subjugado por uma necessidade irresistivel, por uma violencia do coração. Quando lhe fallei com toda a sinceridade, que inspira uma paixão vehemente, Cecilia tomou as minhas palavras por um simples galanteio e recusou escutal-as; e não haveria na minha voz alguma cousa a assegurar-lhe que eu não mentia? Como poderei esperar agora que seja mais efficaz esta carta, á qual não posso transmittir aquillo que se não traduz em palavras: o sentimento? Como a poderei convencer, Cecilia? Se imagina sequer o respeito, a veneração que tenho pelo nome de minha irmã, não acreditará que possa mentir, invocando-o, ao affirmar-lhe que a amo, Cecilia; se crê que a memoria de minha mãe é para mim de tanta adoração e saudades, como as que se apoderavam do coração de Cecilia e lhe transluziam no rosto, quando a vi ajoelhada no tumulo da sua, pela memoria de minha mãe lh'o juro tambem Que mais quer? que mais exige? Não me julgue pelo passado; entre elle e a minha vida de hoje elevou-se uma barreira, no dia em que principiei a trazer a sua imagem no pensamento e o seu nome, etc., etc…»

Eu pouparei ao leitor a transcripção na integra d'esta carta, que proseguia assim por mais algumas paginas e em estylo que, provavelmente, lhe deve ser familiar.

Carlos terminava por pedir a Cecilia, que lhe revelasse tambem o estado dos seus sentimentos. «Qualquer que seja a resposta, obrigar-me-ha a um passo decisivo para o meu futuro», terminava elle.

Acabava de assignar, fechar e sobrescriptar esta carta, e pensava na maneira de a enviar ao seu destino, quando ouviu um som de passos e de vozes, que cada vez parecia mais proximo, até que muitas, repetidas e violentas pancadas fizeram oscillar a porta do quarto, como se ameaçasse um arrombamento.

Carlos levantou-se em sobresalto, sem que lhe occorresse logo a explicação de todo aquelle ruido.

—Olá, santo ermitão—dizia uma voz pelo buraco da fechadura—abri a porta a uns pobres romeiros, que de longe vem, attrahidos pela fama da vossa piedosa vida.

Monsieur Charles—continuava outra voz—lás des soins d'ici bas, se retira loin du tracàs, á maneira do rato da fabula, que se penitenciava em um queijo; queira Deus que este tambem…

—Por causa de uma mulher recolheu-se Achilles á tenda, abandonando os companheiros. Os invulneraveis teem destas fraquezas.

—Alto lá, a insinuação é grave ou, pelo menos, anticipada. Nada de condemnar antes de ouvir.

—Abre, abre, Carlos; por ordem superior!

Carlos teve ainda alguns momentos de hesitação.

A vozeria redobrava; repetiam-se, com mais violencia, as pancadas na porta.

Resolveu-se emfim a abril-a.

Entraram. Eram os principaes companheiros dos seus passados divertimentos, muitos dos quaes já encontramos n'aquelle jantar da Aguia d'Ouro. Fartos de o aguardarem todas as noites, sem que em nenhuma de tantas o vissem apparecer, tinham resolvido procurar esse transfuga dos seus arraiaes.

Operou-se completa mudança de scena, digna, pela celeridade, de um tablado inglez.—Em poucos momentos, um bando de rapazes invadiu o quarto; e cêdo, cadeiras, mesas, sofás e leito foram occupados por elles, como por um enxame de abelhas.—Tudo era desordem minutos depois.

—Então que é isto? que é isto? Que quer dizer esta mysteriosa reclusão?—perguntava um, estendendo-se no sofá, em postura digna do sultão.

—Como se ha de explicar este eclipse total de um dos mais luminosos astros da nossa brilhante pleiade? A Venus do proscenio de S. João chora por ti; o genio que preside á feitura das costelletas da Aguia esmorece; no Guichard a deusa do paradoxo lamenta um dos seus mais fervorosos servos; é uma serie de calamidades por ahi além. Como as explicas tu?—Isto dizia outro, vasando meio vidro de curious essence sobre o fino lenço de bretanha.

—Expliquem-as como quizerem—respondeu Carlos, sentando-se com enfado, que não procurava encobrir.

—Ora que tem isso que explicar? disse o do sofá—Não fallaram ahi em eclipses? As minhas recordações de lyceu dizem-me que o eclipse é em geral o resultado da interposição de um astro entre nós e o eclipsado. Procurem aquelle que nol-o tem occulto…

—Imaginem que estive doente—acudiu Carlos, tentando desviar a conversa da direcção que este seu amigo lhe dera.

—Rejeitada a explicação por maioria—bradou um rapaz louro e de modos feminis, typo de Apollo de cake, cartaz vivo de cabelleireiros e alfaiates, ageitando ao espelho as complicadas madeixas de um cabello monumental.

—Por unanimidade—bradaram mais dois.

—Adopto-a eu—contradictou um occupado a despejar quantas gavetas encontrava, á procura de lumes para accender o charuto.—Carlos está doente, mas… do coração… Pois que é o amor?

Ah nhe d'amore La fiamma io sento

trauteou o do toucador, cantando a aria de Rosina.

—A tua alma está doente, Carlos—sentenciou um estudante de medicina, que era tido na conta de espirituoso.—E essa pathologia é a minha especialidade.

—Que falle a sciencia então; que falle a sciencia—exclamaram alguns.

O estudante sentou-se ao lado de Carlos, revestiu-se de um ar de gravidade doutoral, e tomando-lhe'o pulso, principiou:

—A alma padece de mui variadas fórmas. Temos os pruridos da duvida, doença chronica nos philosophos que procuram a certeza; hypertrophias de crenças, mal frequente aos vinte annos; aneurismas de aspirações, muito vulgares em bachareis formados; ictericias de desespêro, nos chefes de familia numerosa; fracturas de caracter, nos homens politicos; luxações de senso commum, nos poetas; paralysias de ociosidade, nos empregados publicos; dyspepsias de indignação, nos contribuintes; noli me tangere de susceptibilidades, nos deputados fluctuantes; convulsões de enthusiasmo, em afilhados de ministros; marasmos de desalento, em pretendentes sem protecção; cancros de exigencias, em diplomatas indispensaveis; epilepsias de ciumes, nos maridos; e as cataractas do amor, em…

—É a doença de Carlos, é a doença de Carlos.

Carlos moveu-se com impaciencia.

—Pois é terrível doença!—continuou o orador—Vejamos. Causas:—É hoje inquestionavel que esta especie de cegueira procede de ordinario da exposição do doente ao fogo e esplendor de uns olhos e ao halito embalsamado de uns labios de mulher. Para evitar o contagio construíram-se em tempo varios estabelecimentos hygienicos a que chamaram conventos. A doença porém zombou d'elles, como costumam fazer as verdadeiras epidemias dos lazaretos e cordões sanitarios, e até no famoso hospicio de Thebaida se manifestaram casos d'ella. A mocidade é condição favoravel para se contrahir o mal; porém na velhice é elle mais para temer, por de mais tristes consequencias. De resto, traz de ordinario comsigo esta molestia sérias complicações.

Carlos mordia os labios de impaciencia; o amigo continnuou, entre as gargalhadas dos outros:

—Os symptomas são variados. Em geral o doente tem physionomia de parvo caracteristica; no intervallo dos accessos cáe em uma especie de beatifica idiotia, da qual nem os causticos o arrancam. Nos paroxismos chega a arrepellar os cabellos, a amarrotar os collarinhos, a soltar gritos, que bolem com a vaidade dos tigres, e arrulhar de maneira que causa o desespêro dos pombos. Nos casos mais fortes, a doença toma um caracter de malignidade e o doente faz-se poeta. N'este estado o medico perde as esperanças e reclama os sacramentos… do matrimonio.

—E o tratamento? e o tratamento?—perguntaram alguns rindo.

—A hygiene é tudo, meus amigos; mal vae se a profilaxia não atalhou a molestia. Nas Confissões de João Jacques allude-se, como preservativo, ás mathematicas. Não approvo. Para mim é averiguado que as mathematicas tem só por effeito o imprimir á doença a feição perniciosa. O mathematico amoroso é a mais rebelde especie de doente, de que ha noticia. Entra nos incuraveis. Os meus preceitos são outros. Recommendo a gastronomia, porque as funcções do estomago e do coração são antagonistas. Aconselho a leitura do Feliz independente, e de todas as obras de bom senso—antidoto do amor.—Mas se a molestia, apesar de tudo, progride, então o especifico mais heroico para radicalmente a curar…

—Qual é?—perguntaram simultaneamente.

—O casamento.

De todos os circumstantes foi Carlos o único que não applaudiu a dissertação do amigo. Passeiava a passos largos com impaciencia crescente.

—Peço-lhes, por especial favor, que me deixem em paz—disse elle, acalmada a trovoada de gargalhadas.

—Deves-nos uma confidencia—tornou-lhe o do sofá, tomando uma posição ainda mais orientalmente commoda.

—É uma satisfação—acrescentou outro, empunhando um florete, e pondo-se em posição de esgrima.

Carlos nunca se sentira de tão má vontade para com os seus amigos.

—A cousa é facil de explicar—disse elle sêccamente.—Sabem que sou, que sempre fui homem de caprichos. A agradavel convivencia dos meus amigos principiara a enfastiar-me de morte. Resolvi pois furtar-me ao prazer—invejavel—de os ver. Ahi teem. Passando-me isto, encontrar-me-hão de novo talvez, e talvez que não.

—Nada, nada. A camara, ouvidas as explicações do ministro, não se dá por satisfeita, nem passa á ordem do dia—replicou o do florete.—Ha ainda cousas a esclarecer. Você deve-nos um relatorio. Aquella celebre mascara? aquelle mysterioso dominó, que prometteu seguir até o fim do mundo, nas vesperas da sua sequestração? Nunca mais se fallou em tal, e ha quem insista em ver ahi o principio de tão subita conversão.

Carlos recebeu uma desagradavel impressão com a importuna lembrança e sentiu vontade de tomar a serio a posição bellica, que o interpellante conservava, e fazel-o arrepender de possuir tão boa memoria.

Limitou-se porém a responder:

—Não me perguntem cousa alguma a esse respeito, porque nada lhes posso dizer.

—Ah! mysterios!… Ai, amor! amor!—exclamou o do espelho, e continuou, cantando:

  Dove non ride amore
  Giorno non v'ha sereno…

—Deixem Carlos; um juramento, feito a horas mortas, tendo por testimunhas as estrellas, e uns olhos, mais brilhantes ainda, é sagrado.

—Nada posso dizer, porque nada sei—acudiu Carlos, despeitado pela interpretação que deram ás suas primeiras palavras.

—E nada sabes, porque nada viste? Meu caro, a tua discrição vae sendo de mau gosto—disse o do sofá, executando um movimento, em virtude do qual lhe subiram as pernas cincoenta centimetros e lhe desceu outro tanto a cabeça.

Eureka! Eureka!—bradou um que se aproximára da mesa—uma prova irrecusavel do crime!… O instrumento do delicto! Uma carta!…

A estas palavras Carlos estremeceu. O da descoberta empunhava com gesto triumphante a carta escripta momentos antes a Cecilia.

—Uma carta! E de que especie?—perguntava o côro.

—Ora! papier rose e odeur enivrant—respondeu o outro, aproximando-a do nariz, com gesto expressivo.

Carlos teve vontade de atirar pela janella fóra aquelle seu amigo, que proseguiu:

—E o sobrescripto diz…

—O quê?… o quê?…—perguntaram todos, acercando-se d'elle com ardente curiosidade.

—É indiscrição de mais!—exclamou Carlos, levantando-se para lhe arrancar a carta das mãos.

Os outros detiveram-o.

—Que é isso? D'onde te surgiram, á ultima hora, esses escrupulos de donzella ingenua?

—Prohibo-lhes que… — dizia Carlos, esforçando-se por se lhes livrar dos braços.

—Ora deixa-te de pieguices—respondiam elles, rindo e continuando a segural-o.—Lê tu d'ahi depressa, antes que o leão se solte. Olha que está furioso! Não imaginas.

—«Excellentissima senhora»—lia vagarosamente o da carta, como para prolongar mais a scena que o divertia.

—Ah… Ex… cel… len… tis… si… ma!—repetiam os outros, accentuando cada syllaba.

—Cecilia de…—continuava o que lia.

—Ce… ci… lia! Oh nome musical!

—Phylarmonica invocação!

—Santa patrona da harmonia!

—Inspiradora da harpa!

Por um movimento mais energico e imprevisto, Carlos conseguiu afastar o grupo, que lhe estorvava a passagem, e correndo á mesa, tirou finalmente a carta das mãos do que a havia descoberto.

—Ha certas familiaridades, para que não auctoriso ninguem—disse elle, pallido e agitado de indignação e de raiva.

Depois tocou a campainha com violencia.

Acudiu ao chamamento o seu criado particular.

Carlos entregou-lhe a carta, dizendo:

—Leva ao seu destino.

Ia o criado a retirar-se, quando elle o reteve para lhe dizer ainda a meia voz:

—Se te perguntarem… dize que é do mando de… miss Jenny.

O criado, mostrando ter comprehendido, saíu.

Todos haviam guardado silencio até então, seguindo com pasmo os movimentos de Carlos.

Depois do criado se retirar, ainda este silencio se manteve por algum tempo; a final uma voz disse:

—Bonito final de acto! O criado sáe, Carlos senta-se sorumbatico, e os outros actores contemplam-o attonitos e… aparvalhados—Tableau.

A estas palavras, todos se entre-olharam e, como se se achassem uns aos outros ridiculos, soltaram unisona gargalhada.

Carlos julgou melhor sorrir tambem, ainda que interiormente se lhe estivesse redobrando a impaciencia.

—Palavra de honra!—continuou um—que nunca vi Carlos assim. Está romantico.

—Ultra!

—Furioso!

—Como um leão!

—Como um touro!

—Como um turco!—disse o de tendencias orientalistas.

—Vá, vá, Carlos; observa os bons principios. O amor fez te selvagem.
Civilisa-te.

—Conta-nos a historia d'essa Cecilia.

—É alta ou baixa?

—Morena ou loura?

—Typo grego ou oriental?

—Aposto que é a do dóminó.

—Com certeza.

—Vá, homem; conta-nos como isso principiou.

—Olha que uma paixão concentrada é um ninho de aneurismas; cautela!—disse o medico das doenças de alma.

—Cecilia! É euphonico na verdade!

—Peço-lhes que não continuem a fallar assim de um nome que eu… respeito.

Uma risada geral acolheu o pedido.

—Ah! ah! ah! Estás muito bom!

—Está delicioso!

—Nunca o vi apurado a este ponto!

—Ó Carlos!

Povero amico~!

O rubor de despeito e de cólera tingiu as faces de Carlos.

—Repito. Que eu respeito. Julgo que me darão licença para poder fallar serio alguma vez.

—Ah! de certo. Mas, sempre que isso acontecer, eu não me hei de poder ter com riso.

—Tu a fallares serio!

—Então de facto estás apaixonado? Pois conta-nos isso. Bem sabes que os amigos são para as occasiões.

Amicus certus…

—Canta a tua aria de confidencia, que o côro te secundará…

—Quando não, procuraremos, descobriremos, e depois então seremos implacaveis, crueis! Vê lá!

—Fatal dóminó!

—Pois acreditas?

—É elle com certeza.

—Ó Carlos, acautela-te. Colheste a flor em mau terreno; apanhaste a perola em agua bem envolta, um baile de mascaras!

Carlos tentou obrigal-os ao silencio pelo silencio.

—Estou resolvido a não lhes dar explicações. Por isso quando quizerem deixar de ser inutilmente importunos…

Ainda por muito tempo não adoptaram elles essa resolução. A assembleia manteve-se em ruidosa e desordenada discussão por mais de meia hora. Carlos fingiu ler.

Emfim viu-os sair e respirou, como se livre de um peso, que lhe comprimisse o peito.

—Adeus, Carlos, muchas venturas!—dizia um.

—Faço votos pela tua felicidade—secundava outro.

—Adeus, adeus.

Um cantava:

  Ai quem me dera em Sevilha,
  Onde a travêssa hespanhola
  Sob a elegante mantilha
  As negras tranças enrola.

E a alegre companhia abandonou tumultuariamente o quarto.

XXX

PESO QUE PÓDE TER UMA LEVIANDADE

Com a saída dos amigos, não se dissipou immediatamente em Carlos a má impressão que lhe deixára aquella visita.

Não sei que haja alguem tão indifferente e sobranceiro á opinião alheia, que possa ouvir, sem se commover e revoltar, o nome só que seja de qualquer pessoa estimada, pronunciado menos reverentemente por labios estranhos e de mistura com as phrases e palavras de uma conversa leviana.

Um delicado pudor de coração sobresalta-se, quando assim exposto a olhares profanos o idolo do seu mais puro e secreto culto.

Desgostoso com os outros, não estava Carlos mais satisfeito comsigo. Soltára inconsideradamente da mão a carta escripta a Cecilia, e só agora reflectia na pouca delicadeza com que o fizera, e na inconveniente escolha de emissario. Um outro motivo de inquietação o perturbava ainda. No momento de expedir o criado com a mensagem, esquecera-lhe que, sendo dia santo, Manoel Quentino estaria provavelmente em casa; e como poderia Cecilia occultar-lhe o conteúdo da carta, ainda quando lhe dissesse que era de Jenny?

Todas estas considerações foram, a pouco e pouco, levando Carlos a um d'esses estados de impaciencia e de agitação de espirito, inconciliaveis com o repouso do corpo, o qual provocam a acção, ao movimento.

As indefinidas aspirações que, em taes estados, sentimos, sendo superiores aos meios de que dispomos para satisfazel-as, accumulam em nós excessos de energia, que se revelam por uma actividade sem plano, sem fim, á qual cedemos como a necessidade organica, não tentando, nem conseguindo regulal-a ou conduzil-a.

Por isso, como se no limitado espaço do quarto abafasse, Carlos levantou-se para saír.

Transpunha já a porta, que abria do quarto para o jardim, quando o estalar da areia sob o pizo leve de alguem que caminhava na rua proxima, lhe fez desviar a cabeça.

Por pouco lhe escapava dos labios uma exclamação de prazer.

Era Cecilia.

Esta inesperada apparição vinha tão completamente realisar os secretos e vagos desejos, que o estavam agitando; parecia tanto ser o mysterioso effeito das evocações do proprio coração, que—illusões só concebidas por quem já assim as sentiu alguma vez—Carlos quasi acreditou ser verdadeiro milagre de amor a presença de Cecilia, alli, n'aquelle momento. E tanto se convenceu d'isso, que nem tentou dissimular o que estava sentindo. Viu-a e persuadiu-se de que viera ao appêllo, que elle lhe dirigira, de que a leitura da carta bastára para a determinar, de que, cheia de confiança, vinha para dizer-lhe que aceitava a homenagem do amor, que elle lhe offerecia, e o pagava com o seu.

Dominado por este pensamento, do qual rirá sómente o leitor, que tenha já passado os quarenta annos, Carlos estendeu a mão tremula para a pobre rapariga que, mais tremula ainda, o fitava, e murmurou:

—Oh! obrigado, Cecília; obrigado por ter vindo!

Cecilia olhava-o admirada; não comprehendia ou receiava comprehender demasiado o sentido d'aquellas palavras.

—Agora ouça-me, ouça-me por piedade, Cecilia; quero dizer-lhe tudo o que em mim se tem passado desde que pela primeira vez a encontrei; ouça…

E naturalmente Carlos conservava entre as suas a mão de Cecilia, e esta, como surprendida ainda pela subita scena que estava bem longe de esperar, parecia haver perdido a consciencia do que se passava, e nem tentava retirar-se.

Carlos proseguiu:

—Cecilia, se veio, foi porque acreditou que havia sinceridade nas palavras que eu lhe disse, não é verdade? Não é verdade que não suspeitará nunca mais que seja um simples galanteio, indigno de si, o que me leva a repetir-lhe uma, e mil vezes, que a amo?

Estas palavras restituiram a Cecilia a consciencia que perdera quasi. O sangue abandonou-lhe subitamente as faces, para cêdo affluir com mais violencia a ellas; saiu-lhe dos labios um grito que mal pôde reprimir, e tentou retirar a mão, que Carlos continuava a segurar nas suas.

—Snr. Carlos!—disse ella, com a voz agitada de sobresalto e confusão.

—Não se retire assim, Cecilia. Nada receie. Amo-a muito, mas respeito-a tanto, quanto a amo; e mais depressa…

Não pôde continuar; um rumor de passos e de vozes, que se ouviu na rua, e já proximo ao portão do jardim, fel-o estremecer.

Teve um presentimento; obedecendo-lhe attrahiu rapidamente Cecilia para dentro do quarto, em cujo limiar se passára esta curta scena, e fechou sobre si a porta com precipitação.

Cecilia olhava-o assustada.

Ia a bradar, quando Carlos lhe pôz a mão na bôca, dizendo:

—Silencio por piedade!

Foi prudente. O jardim era já de novo invadido por a mesma turba de estouvados que, momentos antes, abandonára o campo. Chegaram ainda a tempo de verem fechar a porta do quarto e saudaram a descoberta com gargalhadas.

Passados momentos, escutavam-se-lhes as vozes de fóra.

—Abre a porta, abre a porta; agora é inutil a dissimulação, Carlos.
Seguimol-a, tivemos um presentimento; vimol-a entrar. Ha de ser ella.
Não o negues. Abre!

Cecilia, ao escutar estas palavras, sentia-se desfallecer.

—Oh! meu Deus!—exclamou, erguendo assustada as mãos para o céo.

Carlos parecia fulminado.

—Então, Carlos, então? Abre, que maneiras novas são essas? Tu não eras assim.

—Isso fica-te mal.

—Só queremos vel-a e retiramo-nos.

—Vel-a e apresentar-lhe os nossos respeitos.

—Então, então?

Carlos teve um momento de desespêro. Sem bem attender no que fazia, sem calcular consequencias, deu um passo em direcção da porta, com o olhar inflammado e os labios tremulos de cólera.

Impediu-lhe porém a passagem Cecilia, que quasi lhe caiu de joelhos aos pés.

—Quer-me perder, snr. Carlos!—dizia ella com a voz tomada de afflicção—Quer-me perder?!

Carlos parou, e tentando erguel-a disse, não menos commovido:

—Cecilia; juro-lhe pelo que ha de mais sagrado que…

N'este momento uma das vozes dizia:

—Então, avarento, não nos queres mostrar essa tua Cecilia?…

Estas palavras fizeram estremecer a filha de Manoel Quentino.

Ao ouvir assim o seu nome pronunciado, e d'aquella maneira, por labios estranhos, ergueu-se com um movimento energico, cheio de orgulho e de dignidade revoltada, e, cobrindo-se-lhe as faces do rubor da indignação, disse, voltando para Carlos o olhar cheio de amargura:

—Em que lhe tinha merecido eu isto, senhor?

—Cecilia!…—balbuciou Carlos, empallidecendo.

Foi ella a que d'esta vez, afastando-o com soberana altivez, caminhou para a porta em passo firme e seguro.

Carlos collocou-se diante d'ella.

—Que vae fazer?—exclamou com voz supplicante.

—Deixe-me! Menos de receiar para mim é, alli fóra, a presença d'essa gente, do que aqui a sua protecção generosa.

Esta ultima palavra saiu-lhe dos labios quasi expressiva de despreso.

—Cecilia, pois julga?…

—Alli póde haver crueldade, que nem as minhas lagrimas commovam, mas aqui… ha peior… ha a infamia… que me feriu no coração.

E o tom commovido, com que disse isto, mostrava começar a dissipar-se já a energia, de que se inspirára ao principio.

Á palavra «infamia» Carlos deixou tambem o irresoluto embaraço, que o enleiára até então; tomando as mãos de Cecilia e olhando-a em face, disse-lhe, tendo na voz toda a eloquencia da sinceridade:

—Cecilia, não ha tempo agora para me justificar. Mas aceite-me um juramento. Pela memoria de minha mãe, pela vida de meu pae, pela felicidade de minha irmã lhe juro que não mereço essas suspeitas.

Um hypocrita poderia pronunciar este mesmo juramento, mas não com o tom de persuasão e de verdade que a voz de Carlos possuia n'aquelle instante.

Não se mente assim.

Cecilia acreditou-o; todas as suspeitas, que por momentos lhe haviam assombrado o espirito, se desvaneceram.

Extincta a indignação, com a força ficticia que emprestára áquella natureza feminina, readquiriu o imperio perdido á brandura propria do sexo, que com razão n'ella confia, como na mais irresistivel arma.

Assomaram-lhe por isso, e abundantes, as lagrimas aos olhos, e, cortada de soluços, só pôde murmurar, apertando convulsivamente a mão de Carlos:

—Salve-me! Salve-me então, snr. Carlos; que estou perdida!

O ruido que, durante esta rapida scena, mais rapida a passar-se do que a descrever-se, não havia cessado, redobrava agora de vehemencia.

Carlos só achou um meio para sair d'aquella situação. Correu á sala da bibliotheca, e abriu-a. Cecilia fugiu para ella e quasi instinctivamente fechou a porta atraz de si.

O expediente era arriscado ainda, porque os criados podiam ver apparecer Cecilia d'aquella parte da casa, o que não menos a comprometteria. Não occorreu outro porém á lembrança de Carlos.

Depois de procurar por alguns instantes desvanecer todos os vestigios da agitação, que a scena descripta lhe causára, foi abrir finalmente a porta aos seus importunos amigos.

—Então tomaram-me hoje para victima de motejos, meus senhores?

—Deixa-te de ares de tyranno de comedia, que te não vão bem. Vamos a saber que é d'ella?

—Quem?

—Ora, quem! A rapariga?

—Continuam as zombarias?

—Homem, não o negues. Encontramol-a alli acima, á esquina. Não sei qual foi de nós que teve um diabolico presentimento. Seguimol-a de longe. Vimol-a hesitar, ao chegar ao portão. Symptoma infallivel! A final entrou. Corremos. Ainda assistimos ao fechar da porta… e agora esta demora pouco delicada… a tua má vontade… Demais, a alguns pareceu ouvir rumor de vozes aqui dentro. Ora vamos; confessa.

—Não te faças piegas; que sentimentalismos são esses?

—Tu que n'estas cousas foste sempre dos mais exigentes; que sempre pugnaste por os direitos de boa camaradagem!…

—Eu que o diga. Lembras-te, d'aquella vez na Carriça?

—E em Leça commigo? Cheguei a desesperar com as exigentes curiosidades d'este senhor.

—Vê lá se preferes que a procuremos.

—Querem obrigar-me a ser incivil, mandando-os saír?

—Incivil estás tu sendo já.

—E tu a fazeres drama, Carlos! Desconheço-te.

—Está decidido—disse o louro adamado—o homem reage. O remedio é facil. Procuremol-a. Elle por certo que a não confiou á familia para guardar. Deve estar escondida aqui.

—Batamos a mata. A gazella ha de apparecer.

E n'um instante principiou desordenada pesquiza em todo o aposento. Não houve movel nem escondrijo, que não fosse revistado.

—E na bibliotheca?—disse por fim uma voz.

—É verdade! Na bibliotheca!—repetiram os outros. E todos caminharam para lá.

Carlos tremeu por Cecilia.

—Prohibo-lhes que abram essa porta!—exclamou, com voz perturbada.

—Bravo! Acertamos! Ouvem-o?

—Ah! diavolo! Está fechada por dentro.

Carlos respirou.

—É a primeira vez que me lembra achal-a assim. Mysterio! Deixa ver se pela fechadura…

—Carlos, abre ou manda abrir esta porta.

—Escutem. Ha rumor lá dentro.

—Deixa ouvir.

—É ella.

O que espreitava, continuou:

—Pareceu-me que vi agora o vestido de uma mulher.

—Ah!

—Foi ler Paulo e Virginia. Conselho de Carlos, que está dado a leituras brandas.

—Ah! ah! ah!

—Pschiu! Calae-vos.

Carlos levantou-se desesperado.

—E eu exijo silencio. Alguem se aproxima. É ella. Incessu patuit dea… É mais razoavel do que tu; veio ás boas.

Carlos lembrou-se da anterior tentativa de Cecília e receiou que se renovasse.

Agora já elle lhe não poderia impedir os passos. Perdeu com esta ideia toda a força moral; sentiu-se desalentado.

A chave girou na fechadura.

—Desbarretem-se, meus senhores. Eil-a emfim!—disse um dos do rancho.

Carlos fechou os olhos, como se na presença de perigo imminente; a mão apertava-se-lhe convulsamente sobre a caixa de revolvers que tinha perto de si.

Em vez porém do tumulto que esperava ouvir, e que Deus sabe a que excesso o arrastaria, seguiu-se tão profundo silencio, que o obrigou a erguer a cabeça surprendido.

Todos os rapazes, havia pouco ainda tão turbulentos, recuavam agora calados e descobertos e como procurando occultar-se uns com os outros.

No lìmiar da porta, que se abria, apparecia a figura candida e serena de Jenny, com o braço passado pela cinta de Cecilia, a cuja cabeça, suavemente animada por um sorriso de melancolia, sustentado a custo, servia o seu hombro de apoio.

Jenny conservou-se por algum tempo assim, olhando-os com gesto composto e admirado, que parecia subjugal-os.

Havia n'esta scena um quadro que impressionava.

As feições angelicas da irmã de Carlos revelavam tanta doçura e tanta nobreza ao mesmo tempo, e as de Cecilia tanta melancolia e tambem tanta confiança na amiga a que se amparava, que os mais levianos do bando curvaram respeitosamente a cabeça diante d'aquellas duas mulheres.

Só um olhar como o de Carlos, exercitado no estudo do rosto da irmã, podia notar-lhe nos labios um leve tremor, a denunciar que áquella apparente placidez não correspondia uma completa serenidade de coração.

Era comtudo affavel e segura a voz com que ella se dirigiu aos amigos de
Carlos.

—Peço desculpa de os ter feito esperar. Julgamos que meu irmão tinha já saído e viemos ambas procurar um livro.

E depois, mostrando-lhes Cecilia:

—É minha amiga… ou mais do que amiga… é quasi minha irmã.—E acrescentou, sorrindo para ella:—Cêdo o será, não é verdade?

Cecilia estremeceu e voltou para Jenny o olhar admirado. Ia talvez a fallar.

Jenny reprimiu-a, apertando-lhe occultamente a mão; e proseguiu, sorrindo:

—Perdôe-me a indiscrição, Cecilia; talvez até nem indiscrição fosse já, porque… estes senhores são… os amigos de meu irmão Carlos.

E estas palavras soube dizel-as Jenny com delicada inflexão de ironia na voz, que augmentou o embaraço dos que a escutavam.

Curvando-se ligeiramente para elles, Jenny saíu da sala com Cecilia.

Carlos não ousou erguer os olhos para a irmã.

Vendo-a saír, voltou-se para os seus antigos companheiros, que principiavam a formular desculpas, e disse-lhes com provocadora frieza:

—Espero que estará satisfeita a sua curiosidade. Ordenam mais alguma cousa?

—Desculpa, Carlos; nós julgamos…

—Tu bem vês que não sabiamos…

—Ó menino, acredita que…

—Palavra, que pensei que era a do dóminó.

—Tambem eu.

—Espero que não leves a mal.

—Aquillo era brincadeira.

—Adeus, Carlos; apparece. Faze-te visivel.

—Mil perdões e… e parabens.

E deixaram o quarto.

Na rua diziam:

—E esta!

—Carlos casar-se!

Requiescant in pace!

—Amen.

A porta a fechar-se sobre o ultimo, e Carlos a correr á bibliotheca para ajoelhar aos pés da irmã.

—Jenny! Jenny! O amor que eu te tinha é pouco para o que te devo. É preciso adorar-te, minha irmã.

Jenny ergueu-o, e, olhando-o com expressão triste e meiga, disse:

—Deixa esse excesso de affeição para alguem, que já agora tem mais direito a ella do que eu.

E apontou para Cecilia, que, chorando, escondia o rosto no seio da amiga.

Carlos dirigiu-se a ella commovido:

—Cecilia Cecilia, quererá perdoar-me?

Cecilia estendeu-lhe a mão, sem responder, nem levantar o rosto.

Carlos curvou-se para beijal-a.

Uma lagrima assomou aos olhos de Jenny.

Erguendo-os ao céo, murmurou, dirigindo-se talvez á imagem da mãe, presente á sua imaginação:

—Obrigada! obrigada!

Que lhe agradeceria Jenny? A inspiração que d'ella lhe viera, de certo.

XXXI

O QUE SE PASSAVA EM CASA DE MANOEL QUENTINO

Voltando ao principio da manhã d'este dia, vejamos o que se passára em casa de Manoel Quentino, que assim é indispensavel á intelligencia dos ulteriores successos que temos de narrar.

Ao acordar n'aquella manhã, Cecilia não tinha ainda resolvido se aceitaria o convite de Jenny. Prolongára-se até então a lucta de resoluções, entre as quaes vacillava.

Era dia santo, como já dissemos. Manoel Quentino não tivera portanto de saír cêdo para o escriptorio. Depois de proceder a uma toilette, mais escrupulosa do que a dos dias e trabalho, envolveu-se no classico capote de cabeção, traste rico em memorias da vida passada, e desceu ao quintal, a fazer horas para a missa. Ahi, passeiando por baixo das ramadas, que de todos os lados o orlavam, e que já n'aquella época do anno se revestiam de folhas viçosas, aproveitava Manoel Quentino os raios de um desanuviado sol de primavera, cedendo pouca attenção ás flores dos alegretes lateraes, e ao gorgeio dos passaros, que por sobre a cabeça lhe andavam festejando a manhã.

O pensamento de Manoel Quentino vagueava longe d'alli.

Efectivamente todo o sombrio cortejo de ideias tristes, que a melancolia de Cecilia, havia pouco tempo, lhe suscitára, voltava a assenhorear-se de novo d'elle, e com a passada persistencia.

—Tambem esta vida, que ella passa, é de tão poucas distracções! A fallar a verdade! Aos dezoito annos! Sim… É preciso espairecer. Em vez de estar aqui a perder tempo, o que eu devo é ir por ahi fóra com ella.

E pensando assim, foi caminhando para casa.

—Cecilia—disse, ao encontrar a filha—a manhã está tão bonita! Vamos nós por ahi fóra?

—Aonde?

—Por ahi. Damos uma volta, antes da missa. Nós que fazemos aqui mettidos?

Cecilia, julgando satisfazer os desejos do pae, condescendeu.

Meia hora depois saíram ambos. Cecilia pensava ainda se se resolveria a assistir á festa do anniversario de Jenny.

Poucas palavras se trocaram entre o pae e a filha, durante todo o passeio. Vieram terminal-o a Cedofeita, aonde assistiram á missa.

Á saída do cemiterio, que, segundo o costume, foram depois visitar, Cecilia pareceu pela primeira vez saír da hesitação, em que desde a vespera estava, e disse, parando á entrada da rua, que a devia conduzir pelo mais curto caminho a casa de Mr. Richard Whitestone:

—Nem sei o que faça. Jenny pediu-me para ir passar hoje o dia com ella.

-Hoje!

—Sim, escreveu-me para m'o pedir…

—Como quizeres, filha… Ainda que hoje é dia santo e eu…

Manoel Quentino ia exprimir a pena que lhe causava o prescindir n'aquelle dia da companhia da filha, mas calou-se, receiando com isso constrangel-a. Cecilia comprehendeu-o porém.

—Eu sei, pae, eu sei que não gosta de se ver só n'estes dias, que passa em casa—e bem poucos são! Mas olhe, ha tambem certas companhias, que mais nos entristecem do que ainda a mesma solidão; e a minha hoje não podia alegral-o muito.

—Que dizes, Cecília? Que lembrança!

—Acredite-me.

—E por quê?

—Porque me sinto triste, e não poderia, por mais que fizesse, constranger-me.

Manoel Quentino commoveu-se a ponto de lhe apontarem lagrimas aos olhos.

—Eu já tinha notado essa tristeza, Cecilia, já. Não m'a descobres tu, que ha muito ella me dá cuidado—Mas, já que me fallaste n'ella, dize-me a razão: o que te afflige, o que é que tens? Não te sentes boa?

—Não me pergunte nada, meu pae; que não lhe posso… que não lhe sei responder.

Manoel Quentino ficou por algum tempo com os olhos na filha, que desviava os seus, e não pôde soltar palavra.

—Pois então vae—disse por fim Manoel Quentino—vae. A menina Jenny é boa e estou que te saberá consolar melhor do que eu… Vae! não serei eu que te aparte da companhia d'aquelle anjo.

Cecilia beijou a mão do pae, que, ao separar-se d'ella, lhe viu lagrimas nos olhos.

Á entrada da rua, por onde Cecilia seguiu, permaneceu Manoel Quentino até a perder de vista.

—Aquellas lagrimas! aquellas lagrimas!—murmurava elle, de mal comsigo mesmo por não as saber explicar—E eu que a não posso ver assim sem me dar vontade de chorar tambem! É forte cousa!

E continuou, com a cabeça baixa, a caminhar para casa.

Manoel Quentino, de distrahido que ia, não cortejou a vizinhança, acto de polidez, a que raras vezes faltava; e por pouco não ia passando além da porta de casa sem a conhecer.

Antonia, ao vel-o entrar só, perguntou admirada:

—Então a menina?

—A menina não janta em casa.

—Ora essa! E não me disseram nada!

—Ella resolveu agora mesmo.

—Sempre fazem cousas! E aonde foi ella jantar?

—A casa de Jenny.

—De quem?!

—De Jenny, do snr. Whitestone…

—Que me diz!

—Sim; a casa do snr. Richard Whitestone.

—Está bom, está! Bem digo eu!

—Então que é que tem?

—Nada; não tem nada. Visto isso, quer que tire o jantar?

—Sim, tire.

Manoel Quentino jantou pouco. Jantar, a que não assistisse Cecilia, não era jantar que lhe prestasse.

—Então o senhor não come?—dizia-lhe, a cada passo, Antonia.

—Não tenho vontade.

—Boa te vae!

Manoel Quentino levantou-se da mesa e foi sentar-se á janella.

Antonia, depois de sacudir a toalha, tossiu como quem tinha alguma cousa a dizer.

Manoel Quentino não deu por isso.

Antonia resolveu-se a tomar a iniciativa.

—Ora agora que já jantou, sempre lhe quero dizer uma cousa, snr.
Manoel.

—Diga lá.

—Ainda que, a fallar a verdade, eu não devia talvez…

—Pois então, não diga.

—Mas, por outro lado, é tambem da minha obrigação…

—Pois então, diga.

Antonia percebeu a grande indifferenca de animo, em que estava o patrão, e sentiu vontade de instigal-o um pouco.

—Ora diga-me, snr. Manoel Quentino, o senhor é cego?

—Julgo que não.

—Pois olhe que o parece. Então não tem conhecido mudança de genio cá na menina?

A pergunta alterou de facto o tom das respostas do velho guarda-livros; foi já voltado pàra a criada e com vivacidade, que respondeu:

—Tenho, sim, por quê? Você tambem?…

—Pois podéra! Aquillo são lá os modos d'ella?

—Não são, Antonia, isso não são.

—Nem para lá caminham.

—E você não sabe o que aquillo será? ella não se lhe tem queixado de algum mal, de alguma doença?…

—Doença? ora adeus! Que eu saiba não. Elle ha muitas doenças…

—Isso sei eu.

—Pois sim, mas… algumas, em que não pensa, é que… Doença do coração.

—Do coração!—exclamou Manoel Quentino, fazendo-se pallido—Pois
Cecilia queixou-se do coração? Que diz, mulher.

—Adeus, que me não entende! Quero eu dizer… Olhe… a final as cousas são assim! A menina tem dezoito annos…

—Olhem que novidade! Isso sei eu; mas queixou-se?…

—Então se sabe, se sabe, snr. Manoel Quentino, e se se não lembra de mais nada, não sei que lhe faça.

Uma ideia surgiu pela primeira vez ao espirito de Manoel Quentino, e, força é confessar, que não veio muito cêdo.

—Pois será?…—voltando-se para a criada, acrescentou com modo grave:—Antonia, você diga o que sabe. Bem vê que preciso de olhar por isso. Falle, mulher.

—Pois n'esse caso… snr. Manoel Quentino—disse a criada, como se, sómente convencida d'estas razões, se resolvesse a fallar—eu não quero encargos de consciencia, e, para seu governo, sempre lhe digo que deve vigiar por este negocio.

—Que negocio? Por que negocio hei de eu vigiar? Eu não a entendo.

—Pois não tem visto devéras o que por ahi vae?

—Eu não; você bem sabe que eu fecho a casa com as costas e por isso…

—Então aquellas visitas do filho do inglez…

—Adeus, adeus! Cuidei que era outra cousa!—redarguiu Manoel Quentino, encolhendo os hombros—Ahi vem você tambem. Pobre rapaz! Lá por ter suas verduras, já não póde entrar em uma casa, que não digam logo… Que mundo este!…

—Ai, e julga que não é assim? Então está bom. Pois ande lá, ande…

—Mas na verdade você imaginou? Ó mulher, não viu como foi e porque foi que aquelle pobre moço veio aqui a primeira vez?

—Eu, não, senhor. Pois olhe que tenho pensado bem n'isso.

—Pois não se lembra d'aquella tarde em que eu tardei e que Cecilia…

—Se me faz favor, não foi essa a primeira vez.

—Foi, sim.

—Não foi, não, senhor.

—Ó mulher! que demonio de cabeça a sua! pois, na verdade, não se lembra?…

—Eu só me lembro de que, muito tempo antes d'esse dia, veio aqui uma tarde aquelle senhor; perguntou pela menina, disse que lhe queria fallar; eu mandei-o entrar para a sala; a menina foi ter com elle; ao vel-o fez-se vermelha, como uma romã, e mandou-me sair; e eu ouvi-os estar a conversar perto de meia hora…

—Você está douda, mulher?

—Não estou, não, senhor.

—Quando foi isso?

—Logo depois do entrudo. Lembra-me bem de que foi tres ou quatro dias depois d'aquelle em que deixou ir a menina com as do Mattos; cousa que eu, no seu logar, não fazia, mas…

—Mas Cecilia não me fallou nunca n'essa visita!

—Isso sei eu.

—E você?…

A menina recommendou-me que não lhe dissesse nada, porque era uma surpreza que lhe queriam fazer… Mas, por mais que eu lhe perguntasse o que era, nada de novo.

Manoel Quentino principiava a sentir-se inquieto. Comtudo a confiança que depositava em Cecilia era tal, que, não obstante conhecer o caracter leviano de Carlos, hesitava ainda em suppôr mal do que, pela primeira vez, ouvia.

—E depois voltou?

—Até o tal dia, em que o senhor adoeceu, não; mas quem o quizesse ver era chegar, ahi a certas horas da manhã, e ao cerrar da noite, á janella.

—Sim; eu lembro-me de que ás vezes…

—Alli, a estanqueira é quem me fez reparar.

—Mas isso lá…

—Pois não tem nada, bem sei; mas, quasi sempre a menina, ás mesmas horas, estava á janella…

—Cecilia?!

—É verdade. E d'esse tempo é que vem aquella mudança n'ella.

Manoel Quentino passou a mão pela testa, como para arredar de si uma ideia afflictiva.

—Depois então—continuou Antonia—veio o pé da sua doença e dos negocios do escriptorio, e ahi o tivemos mettido em casa. Então julga o snr. Manoel Quentino devéras que elle teria paciencia para assim aturar tanto tempo, se…

—Cale-se, mulher!—exclamou Manoel Quentino, com voz alterada—Carlos é generoso. Para servir um amigo, não hesita em sacrificios.

—Será; mas olhe que não fui eu só que desconfiei.

—Era preciso ser muito infame para abusar assim da confiança de um homem velho, honrado e doente… Não; nem Carlos nem Cecilia entrariam n'essa indigna combinação!…

—Eu não digo que fosse combinação de ambos; tanto não digo eu; mas emfim… além de mim, houve quem pensasse…

—Isso sei eu; e cá recebi o golpe. A carta anonyma não deixou de me chegar ás mãos. Mostrei-a a Carlos; e saiba então que foi elle, elle proprio, que resolveu não voltar cá mais.

—Ai, sim? pois essa não sabia eu! Agora é que vejo de que casta elle é. Então quer que lhe diga? Depois que elle deixou de cá vir, uma noite ouvi correr o fecho da porta do quintal.

Era noite de luar; ainda estava a pé e espreitei á janella. A menina descia a escada do pateo.

Manoel Quentino olhava para a criada com o gesto desfigurado, e a respiração quasi suspensa.

—E depois?

—Deu-me uma pancada no coração e fui, pé ante pé, pelas escadas abaixo. Cheguei ao quintal. A menina estava á janella de grades e fallava para a rua com alguem. Com mêdo de ser vista não pude chegar-me perto e não ouvi o que diziam. Fui dar a volta, pelo lado dos limoeiros, d'onde podia ouvir melhor, mas, quando cheguei, ia a menina embora. Fui á janella, e lá o vi a elle…

—Mente! mulher! você tem estado a mentir desalmadamente!

—Ora essa, snr. Manoel Quentino! Assim Deus salve a minha alma! Isto era lá cousa que eu dissesse, se não fosse verdade?!

Manoel Quentino levantou-se e pôz-se a passeiar no quarto, com agitação.

—Pois será possivel, meu Deus, que assim possa haver maldade no coração de um homem? Carlos! Carlos, a quem eu estimava como filho, a quem eu sempre defendia, quando o accusavam de estouvado! Carlos, que se dizia meu amigo! que parecia incapaz de uma acção infame!

—Por esse mesmo tempo andava elle de carro com as comediantes…

—Se tudo isto é verdade… então… Oh! mas Cecilia tambem… Cecilia!
Ella dissimular, fingir… enganar-me! Ella!…

E o pobre velho quasi se suffocava a chorar.

—Custa-me estar a affligil-o assim, snr. Manoel Quentino; as então? que se lhe ha de fazer?—continuava Antonia—Quando ha pouco me disse que a menina tinha ido jantar a casa do inglez… veja lá, sabendo eu o que sabia… veja como devia ficar.

—Jenny foi quem a chamou; junto d'aquella nada receio por Cecilia… De todos posso vir a duvidar—quem sabe o que terei ainda de aprender?—mas de Jenny, d'essa!…

—E seria de facto a snr.ª Jenny quem mandou chamar a menina?

Manoel Quentino fitou a criada com olhar fulgurante de indignação.

—Que damnada tenção tem você hoje de me inquietar, mulher? Que maldita suspeita é essa, lingua de vibora? Não vê que póde matar-me com essas palavras envenenadas, não vê, demonio?

—Deus me perdoe, snr, Manoel Quentino, que não faço isto por mal. Mas, sabe o amor que tenho á familia, e não queria que alguma desgraça acontecesse…

—Cale-se, mulher, cale-se! Eu sei que são boas as suas intenções; mas
Cecilia disse-me que Jenny fora quem a convidara.

—Pois eu não digo que não. Eu sei até que a menina hontem recebeu uma carta de mando da snr.ª Jenny; ella não me disse o que ella continha, nem eu lh'o perguntei. Mas, esta manhã, logo depois que saíram, veio ahi um criado de lá com outra carta; não era o mesmo, mas sim um que eu vi, no dia do passeio com a comediante, e que, pelos modos, é criado só do rapaz.—De quem vem essa carta? perguntei-lhe eu.—«Vem, disse o brejeiro, com modos avelhacados e sorrindo, vem de miss Jenny». Mas, eu não sei… a carta é tão differente das que…

—E essa carta?—perguntou Manoel Quentino, fóra de si.

—Essa carta está lá dentro.

—E Cecilia?…

—Esta não a leu ella, porque veio depois que saíram.

—Vá buscar-m'a.

—Mas talvez seja da filha, talvez; eu…

—Vá buscar-m'a—exclamou Manoel Quentino, elevando mais a voz.

Em poucos momentos foi executada a ordem.

Manoel Quentino passeiava, levava as mãos á cabeça, fechava os olhos, aspirava com ancia, parecia louco.

Antonia trouxe a carta. Manoel Quentino lançou os olhos para o sobrescripto e estremeceu.

Reconhecera o talhe da lettra de Carlos!

Deixou-se cair com desalento na cadeira que tinha proxima.

—Ó meus Deus! estarei destinado a este infortunio?…—murmurava elle, com a cabeça escondida entre as mãos, através das quaes passavam as lagrimas.

Depois, com movimento de raiva, tentou abrir a carta que conservava ainda nas mãos; mas suspendeu-se por um melindroso sentimento de delicadeza, que não conseguiu vencer.

—Não, não a abrirei! Não ha infamia que desculpe uma villeza.

Antonia, que promettera farto alimento á curiosidade, suspirou de despeito.

—Então não lê?

—Não—respondeu sèccamente Manoel Quentino, que principiou de novo a passeiar pela sala a passos largos. Depois, tomando uma subita resolução, parou e disse, erguendo a cabeça:—Antonia, o meu chapéo e o meu casaco.

Antonia abriu para elle os olhos espantados.

—Credo! que vae fazer, senhor?

—O meu chapéo e o meu casaco!

—Snr. Manoel Quentino! onde é que quer ir? O senhor não está em si!

—Não ouviu, mulher?! O meu chapéo e o meu casaco!

Havia na voz do pae de Cecília uma entonação especial, que, sendo nova para a snr.ª Antonia, não pôde a experiencia d'ella dizer-lhe de que seria presagio, e por isso prudentemente resolveu obedecer, sem mais commentarios.

Dentro em pouco, voltou com os objectos pedidos, dizendo apenas, como a mêdo:

—Mas, aonde vae, senhor?

—Saber a verdade—respondeu Manoel Quentino; e, sem ulterior explicação, desceu apressado as escadas.

Antonia parecia paralysada de espanto.

—Sume-te!—dizia ella—O homem vae varrido! Ora queira Deus! queira Deus que elle não vá para ahi fazer alguma! Nossa Senhora nos livre de tentações do demonio e dos mais inimigos da alma.

A snr.ª Antonia professava um odio, desenganadamente cordial, contra os taes inimigos que mencionou.

XXXII

OS CONVIVAS DE MR. RICHARD

Na mesma manhã, em que se realisaram os acontecimentos narrados nos ultimos capitulos, Mr. Whitestone, depois de muito lidar no jardim e na estufa, transplantando, mondando, alporcando, semeiando, regando as varias plantas da sua collecção, com não pequeno detrimento de muitas, recolhera-se emfim ao gabinete, e por curiosidade abrira o volume da Vida e Opiniões de Tristram Shandy, mina inesgotavel de prazer e de instrucção para o bem disposto gentleman. De cada vez que o lia—e raro era o periodo de vinte e quatro horas que passava sem o fazer—descobria no livro cousas novas, sérias, jocosas, philosophicas, de profundeza especulativa, de utilidade prática, tudo emfim. Mr. Richard mostrava-se intimamente convencido da opinião expressa por o proprio Sterne, a respeito d'esta obra singular e de difficil classificação: «O verdadeiro Shandeismo dilata os pulmões e o coração (diz elle algures), e á maneira de todas as affecções que participam d'esta propriedade, faz com que o sangue e os outros guias vitaes do corpo corram livremente em seus canaes e que gire livre e desimpedida a roda da vida.»

Ora effectivamente meia hora de leitura de uma pagina humoristica de Sterne era em Mr. Richard remedio efficaz contra melancolias e contrariedades na vida.

Abrira Mr. Richard o livro ao acaso, e lia agora a pagina, em que se diz como o pae de Tristram, ao saber da morte de um dos filhos, encontrára lenitivo, em lhe ser este acontecimento pretexto para considerações philosophicas a respeito da morte.—«Um bem que encadeiasse a lingua de meu pae (diz Tristram), e um infortunio que a soltasse, eram quasi iguaes para elle, e ás vezes era o infortunio o mais apreciado dos dois.»

Estas palavras deram que pensar a Mr. Richard; elle imitava estes apreciadores de vinho que conservam muito tempo no paladar cada gole que sorvem, e olham com indignação para os grosseiros bebedores, que despejam de um trago tão preciosa bebida.

—E é assim;—reflectia elle, pousando o livro e saboreando a consideração que lera—ou mais ou menos succede o mesmo com toda a gente. Se fosse possivel fazer correr o mundo tanto á vontade dos que d'elle murmuram constantemente, que se lhes tirasse todo o pretexto de murmurar, causar-se-lhes-hia não pequena mortificação.

Estes pensamentos foram interrompidos por o criado, que entrou para annunciar:

—Mr. Morlays.

Verbi gratia—disse para si Mr. Richard, depois de ter dado ordem de mandar entrar o annunciado.

Effectivamente o inglez, que chegava, era um d'estes pessimistas, para quem o universo inteiro se apresenta tingido das mais escuras côres; era uma victima, ao mesmo tempo lastimavel e insupportavel, do mau humor, que o douto Feuchtersleben chama—prosa vulgar da vida, irmão do tédio e da preguiça e envenenador que lentamente traz comsigo a morte.

Mr. Whitestone, homem laborioso e contente do mundo, estava em constante opposição ao seu compatriota e amigo, que era d'estes que teem feito adquirir aos nevoeiros de Londres a immerecida fama de fomentadores do splen—fama, contra a qual principiam, com muito criterio, a protestar os homens pensadores, descobrindo antes na ociosidade, favorecida por as fabulosas riquezas de alguns lords, a causa d'aquelle mal de suicidas.

O aspecto de Mr. Morlays denuncial-o-hia á medicina antiga como uma victima d'esse mysterioso humor negro, que ella chamou atrabilis. Era a variedade do inglez, que póde denominar-se escura; e a escuridade, que lhe estava no rosto, projectava-se-lhe tambem nas disposições moraes.

O gabinete, em que se reuniam os dois inglezes, era um compendio do quanto póde tornar o curso da vida facil e suave; tudo alli respirava conforto; tudo favorecia aquelle doce repousar de fadigas melhor do que por ninguem saboreado pelos Her magesty's subjects, residentes nos nossos climas meridionaes.

Cadeiras de varias fórmas e mecanismos, nas quaes se esmerára o genio inventivo em multiplicar e variar as molas, em distribuir as articulações, em combinar os movimentos, em contornar os angulos e saliencias até accommodal-as, o mais possivel, a todas as posturas, por mais caprichosas e extravagantes, que o instincto do repouso as podesse suggerir; tapetes, onde os pés se profundavam como na relva dos campos; cortinas a temperarem a intensidade da luz, e finalmente o fogo, companheiro inseparavel d'estas organisacões do norte, ainda n'aquelle mez quasi de estio, a crepitar e a lamber com a lingua inflammada as grades do fogão. Mr. Whitestone pensava como S. Francisco de Salles, a quem attribuem a opinião de que o fogo é bom durante doze mezes no anno.

Mr. Morlays encontrou em tudo isto motivos para observações de critica atrabiliaria.

—Maus habitos, Mr. Richard, maus habitos! Estes costumes elanguescedores são os que tem operado a visivel degeneração da raça humana. As escrofulas…

—Misericordia, Mr. Morlays! Que feia palavra para antes de jantar!—exclamou Mr. Richard, rindo.

—São os males da civilisação. Depois do assucar, o peior inimigo do nosso organismo é o fogão.

—Então o assucar tambem?

—O assucar! Eu tenho para mim que a mais lastimosa descoberta da industria do homem foi a d'esse pó insidioso, que traiçoeiramente nos tem envenenado o corpo todo, misturando-se ao sangue…

—É celebre! Eu tinha ideia de que Mr. Morlays era até apaixonado pelo doce!

—E que prova isso? A nossa natureza é feita assim. Adquirido o habito do mal, até o mal, até a dor, lhe é indispensavel.

Mr. Richard ficou algum tempo calado, como a meditar sobre a lei do habito enunciada pelo seu amigo.

Depois perguntou:

—Não haverá meia hora na vida, durante a qual Mr. Morlays veja este mundo com bons olhos?

—O defeito não está nos meus olhos, creia; mas no que a elles se apresenta de contínuo. Este é o peior dos mundos, acredite.

—Tristram Shandy—disse Mr. Richard, sorrindo—lamenta tambem não ter nascido na lua ou em outro qualquer planeta, excepto Jupiter e Saturno, por causa de serem muito frios; por isso que, diz elle, em outro qualquer não lhe podiam ter corrido as cousas peior do que n'este, o qual elle julga ter sido feito com os acrescimos e as aparas dos outros… Eh! eh! eh!… Mr. Morlays não hesitaria em dizer o mesmo; estou vendo.

—E por que havia de hesitar?

O criado, entrando outra vez, annunciou Mr. Brains.

—Oh! oh!—disse Mr. Richard—ahi vem o antidoto contra a sua influencia pessimista.

—Este vê tudo azul-celeste!—notou Mr. Morlays, com sorriso de commiseração.

Ouviu-se no corredor uma voz cantando jovialmente:

God save Victoria! Long live Victoria! God save the Queen!

E Mr. Brains, inglez que reagia pertinazmente contra a sisuda etiqueta nacional, entrou com grande exhibição de cumprimentos e mesuras para a direita e para a esquerda, simulando atravessar por entre filas de personagens, que o saudavam, e ia dizendo:

—Mylords! myladies! gentleman! sem incommodo! sem incommodo!—e chegando perto de Mr. Richard:—Bons dias, lord Whitestone, bons dias; folgo muito de vos ver tão bem disposto. Oh! nosso leal subdito, lord Morlays!—como vae o diabo preto, que vos acompanha para toda a parte?

—Não tão bem disposto como o diabo côr de rosa de Mr. Brains.

—Nem por isso, nem por isso. Descuidou-se hoje, deixando-me varrer todas as ostras do mercado, sem me reservar nenhuma! Cheguei a acreditar que Mr. Morlays tinha razão; o mundo tem provações! Eh! eh!…

—Ria, ria. Eu confesso que me seria difficil imaginar outro mundo peior.

—Oh! Para isso basta supprimir as ostras da creação. Perde logo cincoenta por cento do valor que tem. Eh! eh! eh! Uma comida leve, que não compromette o estomago! antes o predispõe a mais substancial refeição.

Não acompanharemos, através das diversas transições, o longo e substancioso dialogo mantido entre os tres inglezes.

As questões mais graves, que agitavam então as intelligencias e pejavam de papeis os gabinetes diplomaticos da Europa, o destino das nações, a futura sorte dos povos, tudo, n'aquella manhã, foi tratado por elles e decidido em termos categoricos e com tanta consciencia e infallibilidade, como só a dá e permitte o fôro de subdito inglez, cujos privilegios, debaixo d'este ponto de vista, parece não terem limites. Monarcas, generaes, ministros, diplomatas, publicistas, todos passaram em comprida procissão aos olhos d'este triumvirato, que os julgou e sentenciou com a impavidez e precisão proprias do espirito britannico.

A guerra da Crimeia historiaram-a elles a seu modo: com grande exaltação da Inglaterra, e acerba critica da França, a cujo exercito nada mais concediam senão uma fanfarronice, ás vezes feliz.

Escusado será dizer que tudo isto era condimentado com reflexões lugubres de Mr. Morlays e com ditos joviaes de Mr. Brains. O primeiro, para deprimir a França, inventava exemplos de crueldade, e quasi de canibalismo, commettidos pelo soldado francez: o segundo, com o mesmo patriotico fim, contava anecdotas comicas, nas quaes se demonstrava o quixotismo dos alliados da velha Inglaterra. Mr. Whitestone aceitava tudo de boa vontade.

A illacão, que dos seus arrazoados tirava Mr. Morlays, era quasi sempre esta:

—Este mundo é um covil de feras!

A de Mr. Brains formulava-se de ordinario assim:

—Este mundo é um grande theatro.

Pouco a pouco, ascendeu a conferencia a mais sublimados assumptos. A questão politica abriu campo a mais vasta questão social, onde os dois inglezes continuaram a conservar cada um a sua provada individualidade ao serviço da causa da patria commum.

Mr. Brains, o optimista, abraçava-se com entranhado affecto ás utopias. N'este momento, estendendo a vista através dos seculos futuros, estava percebendo ao longe a tão almejada unidade dos povos, realisada por uma só nação, por uma legislação unica, por uma lingua commum; a suppressão da palavra «guerra» d'esse vocabulario universal, em consequencia de não ter objecto a que se applicar; e depois a materia, subjugada pela intelligencia, obrigada a trabalhar, e o espirito, livre da attenção as impertinentes exigencias da vida positiva, a entrar em especulações de ordem superior, em concepções metaphysicas.

—Então é que se realisará o ultimo fim do homem na terra! Que não viva eu, Mr. Whitestone, para saudar esse grande dia! Que não possa dizer, na lingua universal de então, o meu «bom dia» ao sol que romper!

Mr. Richard, sorrindo com ares de quem não tinha fé muito ardente em tão dourado futuro, perguntou:

—E que lingua será essa, Mr. Brains? alguma das existentes hoje, que se generalisará; ou outra nova, que terá de se formar ainda?

—Quem o póde dizer, Mr. Richard? Isso é segredo do futuro. Mas não ha duvida que existem grandes plausibilidades a favor da ingleza.

—Ah! sim?

—Por certo. Primeiro que tudo, é a Inglaterra a primeira nação colonial. Em todas as cinco partes do mundo é já familiar o inglez. A joven America, nos seus elementos mais vigorosos, nos que hão de vencer os outros, é de origem ingleza tambem. E depois, meu caro Mr. Richard, a França tem em si inoculado o principio destruidor, que ha de sacrifical-a; a França é papista, o que vem a ser o mesmo que estar condemnada á morte. Demais, o caracter philosophico da lingua ingleza…

Não o seguiremos agora na dissertação philologica, cujo corollario foi que, com o andar dos seculos, toda a humanidade fallaria inglez—lei que, se se realisasse, talvez concorresse a produzir grave desafinação na celebrada harmonia dos orbes, pelo lado da humanidade.

Mr. Morlays tomou a palavra para ir á mão ao compatriota.

Como era de prever, não tinham tanto de lisongeiras as vistas de Mr. Morlays sobre os destinos sociaes. A humanidade, principalmente a que não era ingleza, não devia, pensava elle, bater as palmas ao futuro, que se lhe antolhava.

Sempre que meditava n'estas cousas, Mr. Morlays, em vez de sorrir a utopias, sonhava catastrophes. Foi por isso que ponderou em tom lugubre:

—Não creio, Mr. Brains, não creio que seja possivel realisar-se d'essa maneira e por o successivo progresso dos povos essa nacionalidade univesal. Segundo o que eu tenho lido, o mundo, em que pousamos os pés, é essencialmente sujeito a convulsões; encerra um nucleo inflammado, que, a cada momento, lhe está alterando a superficie. Grandes cataclismos tem já presenciado a humanidade, e quem sabe quantos presenciará ainda? Parte dos continentes que habitamos, segundo se lê nos livros dos naturalistas, foram outr'ora todos cobertos de aguas; sendo de crer que nações de outros tempos estejam sepultadas hoje nos abysmos do mar. Ora, se no futuro se operarem ainda d'essas revoluções, como é plausivel acreditar, a parte continental do globo será submergida e do seio das aguas surgirão superficies não povoadas. O que é possivel é que, em virtude das especiaes condições geographicas da Inglaterra e da sua natureza insular, ella não participe da sorte dos grandes continentes, dos quaes está desligada; que prevaleça e sobreviva á ruina e submersão d'elles, vendo até acrescerem ao seu territorio as novas terras, que o cataclismo arrancar do fundo dos mares. Então talvez, e só assim, se poderá realisar o futuro, que Mr. Brains imagina, sendo os inglezes os unicos possuidores do globo.

Depois, como se receiasse que esta tão extravagante como patriotica theoria geologica não tivesse sido comprehendida, acrescentou:

—Porque… reparem. Vejam este chapéo—e tomou para exemplo o chapéo de panno, que servia a Mr. Richard durante as suas operações horticolas.—Supponhamos esta copa o mundo; sendo as saliencias das dobras os continentes, e as cavidades os mares; aquella pequena saliencia do meio, que fica isolada das outras, seja a Inglaterra. Carregando eu nas saliencias exteriores, até as desfazer, as cavidades elevam-se e vão augmentar a saliencia do meio. Vêem?

E, como para não perder a feição pessimista ainda n'esta concepção, concluiu:

—Talvez fosse uma felicidade que todas as saliencias se desfizessem de vez!

Já vêem os leitores que, embora por processos differentes, os dois compatriotas de Peel aguardam com fé viva o mesmo phenomeno na historia do futuro:—O soberano predominio da nação ingleza sobre o mundo inteiro.

Esta é de facto a crença de todo o verdadeiro inglez, diversificando apenas, como os dois grandes exemplares que o leitor tem á vista, na maneira de concebel-a realisada.

Mr. Richard sorriu á theoria historico-geologica do amigo.

—Será bom que, por cautela, nos vamos passando para a ilha, Mr. Morlays. O fundo dos mares não é grande clima para viver, e o consul de sua magestade não nos isentará de sermos engulidos como simples portuguezes.

Mr. Brains applaudiu cordialmente a observação do amigo Richard.

Á medida que se adiantava a manhã e que os odoriferos vapores da cozinha, atravessando as salas, chegavam ás pituitarias, britannicamente apuradas, dos convivas, a conversa principiou a baixar das alturas, por onde pairara, para assumptos mais terrenos e comesinhos.

Ás tres horas, sentindo o instincto a impellil-os para a mesa do jantar, abandonaram os tres inglezes o gabinete de Mr. Richard e passaram para a sala de recepção, onde Jenny e Cecilia, sentadas uma junto da outra, conversavam intimamente.

XXXIII

EM HONRA DE JENNY

—Oh! fez bem em vir, Cecilia;—disse Mr. Richard, caminhando com a mão estendida para a filha de Manoel Quentino—fez bem em vir alegrar a festa de Jenny.

—Alegrar!—repetiu Cecilia, trocando com a sua amiga um olhar de melancolia e de intelligencia.

—Alegrar, sim—respondeu Jenny, apertando-lhe as mãos com affecto.—Então cuida que não é alegria sufficiente a que a sua presença nos dá?

Cecilia suspirou.

—Está doente, Cecilia?—perguntou Mr. Richard, reparando para o ar de abatimento que se lhe lia no semblante.

—Uma ligeira indisposição, de que me prometteu hoje mesmo curar-se, em attenção aos meus annos, não é verdade?—respondeu Jenny por ella e em ar de gracejo.

Mr. Morlays, o lugubre, aproximou-se n'este momento de Jenny.

—Miss Jenny—disse elle—eu costumo saudar com jubilo os anniversarios das pessoas que estimo, como mais um passo dado para o livramento da vida.

—Oh! Mr. Morlays—respondeu Jenny, sorrindo—tão pesado lhe parece o captiveiro, para assim suspirar pelo termo d'elle?

—Deixe-o fallar, miss Jenny;—acudiu Mr. Brains—o mau humor de Mr. Morlays explica-se até pela presença de algumas brancas entre os seus cabellos ruivos e pelas duas sinistras pégadas de pata que já se lhe divisam no canto das orbitas.

Mr. Morlays fez uma careta e encolheu os hombros; mas não respondeu.

—Nós outros—acrescentou Mr. Brains—nós outros, os feios e fortes da humanidade—eh! eh! eh!… temos razão para nos lamentar, á aproximação das horas do occaso; mas as que na vida nos servem de astros… essas são sempre brilhantes; porque, até no occidente, nos encantam as estrellas. Veja pois sem cuidado correr o tempo, miss Jenny.

Esta galanteria, de um requinte britannico, mereceu a desapprovação de
Mr. Morlays.

—É inexacta comparação—tornou sisudamente—essa dos astros á vida do homem. A quéda e o extinguir dos astros são ficticios. Occultam-se-nos, mas não se apagam. Melhor se compararia a vida a um foguete.

—Oh! A um foguete? Singular comparação!—exclamou Mr. Brains, rindo.

—Vamos lá a ver, vamos lá a ver—disse Mr. Richard Whitestone, sentando-se.

Mr. Morlays, medindo a sala a passos largos, desenvolveu a imagem, assim:

—O homem, como o foguete, principia a animar-se por uma faisca que se ateia; eleva-se então com chamma e estrondo, pára um momento… e depois… estoura, e cáe veloz, silencioso, extincto, deixando na terra sómente o esqueleto que o fogo já não anima.

Mr. Richard sorriu á original imagem do seu amigo e conviva.

Mr. Morlays tem razão.

—E quando daremos nós o estouro da metaphora?—perguntou o risonho Mr. Brains, mostrando uma fileira de bem ordenados dentes, e depois acrescentou:—Concordo com Mr. Morlays; mas peço-lhe que note que se ha foguetes que descem como elle diz, silenciosos e extinctos, a arte pyrotechnica tem inventado tambem alguns, cuja quéda é alumiada por lagrimas de côres, que os acompanham até á terra. Eu por mim imitarei ao caír o foguete de lagrimas… Eh! eh! eh!

A conversa continuou n'este teor e fórma, até á chegada de Carlos.

Cecilia, vendo-o entrar, aproximou-se da janella, onde Jenny se lhe foi em breve reunir.

Mr. Brains saudou Carlos, cantando:

I'm afloat! I'm afloat, etc., etc.

que são as primeiras palavras de uma popular canção ingleza.

Carlos correspondeu, sorrindo, ao cumprimento.

Mr. Morlays não foi menos caracteristico do que o companheiro.

—Ainda mais outro anno nos encontramos aqui, Mr. Charles. Quem sabe onde para o anno terá de ir quem nos quizer procurar?

Mr. Brains apressou-se a responder.

—Ao cemiterio do Campo Pequeno, de certo que não, Mr. Morlays; porque, quando para alli resolvesse ir, escusado seria procural-o lá, porque é de crer que não estivesse de humor para tratar de negocios. Eh! eh! eh!…

A hilaridade não se communicou a Mr. Morlays, que pelo contrario ficou mais sombrio.

Mr. Whitestone, desde que o filho entrára, occupava-se em uma singular tarefa. Foi sentar-se ao piano e principiou a correr os dedos pelas teclas com presteza e com uma desharmonia só supportavel ao seu ouvido inglez.

Esta especie de divertimento era d'aquelles, a que, por excentricidade, mui frequentemente se entregava.

Felizmente para os dois convivas, os ouvidos d'elles não eram mais pechosos em cousas de harmonia, do que os de Mr. Richard; porque se não fosse isso, nem eu sei calcular os resultados gravissimos que podia ter aquella barbara occupação.

Cecilia, Jenny e Carlos, esses estavam muito absorvidos por os proprios pensamentos, para que os incommodasse o selvagem prazer de Mr. Whitestone, sob cujos dedos gemia, como um suppliciado, o magnifico piano de Erhard, victima d'esses caprichos anti-musicaes.

Emquanto isto se passava, Cecilia dizia a Jenny:

—Por favor lh'o peço, Jenny! Deixe-me ficar aqui! Eu não sei se poderia por muito tempo suster esta tristeza que se me pôz no coração. Tenho mêdo de chorar.

—Creança!—respondia Jenny—Não estou eu ao pé de si? Não seja assim fraca. Esse seu coração deu-se agora a phantasiar desgraças impossiveis, que não se concebem.

—Impossiveis?!

—Impossiveis, sim. Olhe, Cecilia; eu andei primeiro do que a menina em imaginar futuros negros. Cecilia ria ainda e eu estava já séria. Este Carlos tem-me obrigado muitas vezes a isto e d'esta vez sobre tudo…

—Jenny!

—D'esta vez sobre tudo, porque eu sabia que era um coração que elle encontrára no caminho e… aquelle estouvado podia não reparar… e magoal-o. Avisei-o.

—Ó Jenny!

—Avisei-o; porque, bem vê, Cecilia, todos os sacrificios são dolorosos. Sacrificar orgulhos, sacrificar vaidades, sacrificar até caprichos, tudo é sacrificar; e eu não imagino que isso se faça sem esforço; mas os sacrificios do coração… oh! esses…

—Matam!—concluiu Cecilia, quasi insensivelmente.

—Pois não matam? Isso sabia… quero dizer—emendou a sorrir—isso suppunha eu. Por isso pedi a Carlos que se esquecesse… Sim, que se esquecesse; no tempo em que eu lhe pedia isto, talvez ainda não viesse d'ahi grande mal.

Cecilia não respondeu. Um suspiro respondeu por ella.

—E quem sabe—proseguiu Jenny, olhando-a—se seria eu que me enganava ao pensar assim? É certo porém que meu irmão não me obedeceu.

—Não?—interrogou Cecilia, com expressão de duvida.

—Não; longe de esquecer, avivou impressões, e em poucos dias eram já tão fundas, que me assustavam.

Cecilia meneou a cabeça ainda, como quem duvída.

—Vamos, Cecilia; não me olhe d'essa maneira. Quem lhe ensinou a desconfiar assim? Com quem aprendeu esses modos de sorrir, tão pouco da sua idade?

Cecilia baixou, silenciosa, a cabeça.

—Convencida de que se passavam cousas novas no coração de meu irmão…

—E convenceu-se d'isso?

—Convenci. Não eram os antigos caprichos, muito meus conhecidos. Não eram aquellas phantasias, que tão bem se davam com os seus habitos de vida, que nem o obrigavam a alteral-os.

—Não eram?

—Não. Com grande espanto meu, vi-o mudar. Fez voluntariamente o que nem os meus rogos…—pois eu creio que bem vontade teria de me satisfazer—o que nem os meus rogos haviam conseguido. Desde que o percebi, desde que assim o vi tão outro do que sempre fora, mudei tambem de pensar. O meu unico fim, Cecilia, creia, era a felicidade de Carlos e a sua. Emquanto julguei que ella estava no esquecimento a tempo, trabalhei por apressal-o; desde que me convenci de que este esquecimento era impossivel, desde que me convenci de que não era n'elle que estava a felicidade… então… voltei os esforços em direcção diversa.

Tocou a campainha, annunciando o jantar.

Os dois inglezes, tão insensiveis ao escandalo musical perpetrado por Mr. Richard, estremeceram agora á voz do instrumento, tocado pela desembaraçada mão do escudeiro na sala do jantar.

—Para a mesa!—exclamou Mr. Richard, deixando em paz o piano—Não temos a esperar por ninguem.

Em consequencia da recente morte de Kate, os convites não se tinham estendido além dos dois intimos da casa—Morlays e Brains.

Os dois inglezes e Carlos encaminharam-se para as duas senhoras.

Cecilia, vendo-os, disse segurando a mão de Jenny:

—Jenny, Jenny; se é minha amiga, deixe-me ficar aqui!

—Que diz, Cecilia?

—Não posso, sinto que não posso forçar-me a ponto de…

Calou-se, estremecendo.

Carlos estava junto d'ella, offerecendo-lhe o braço para a conduzir á sala do jantar.

Jenny tinha fitado attentamente a sua amiga, e parecera convencer-se de que lhe seria effectivamente custoso o constrangimento de algumas horas, a que se ia sujeitar.

—Não, Charles;—disse, em vista d'isso e sem desviar os olhos d'ella—Cecilia não póde fazer-nos companhia. Está incommodada e precisa de alguns minutos de repouso.

Mr. Richard aproximou-se, perguntando o que era.

—Nada;—respondeu Jenny—mas seria crueldade constrangel-a. É um incommodo passageiro, mas, em todo o caso, é um incommodo.

—Será bom retirar-se ao quarto de Jenny.

Cecilia escusou-se, dizendo que ficaria bem alli.

Jenny prometteu vir em breve fazer-lhe companhia.

Mr. Whitestone indicou uma poltrona propria para descanso, e foram jantar.

—Que quer isto dizer, Jenny?—perguntou Carlos, encontrando-se com a irmã á porta da sala.

—Que está a chegar o momento de dizeres adeus ás tuas leviandades,
Charles. Quero ver que fundo de sisudez ha n'este meu estouvado irmão.

—Mas…

—Repara que esperam por nós.

E entrando para a sala, tomaram logares á mesa.

O leitor não espera de mim a fiel enumeração de todos os pratos, com que se adornou n'este dia a mesa, sempre abundante e variada, de Mr. Richard.

Nada faltou de tudo quanto possue o cunho caracteristico da cozinha britannica, desde o roast-beef ao plum-pudding, desde a batata ao chester.

Os tres inglezes fizeram as devidas honras á maestria do cozinheiro. Mr. Morlays chegou a sorrir; Mr. Brains esgotou todas as interjeições do vocabulario patrio e assegurou que nem no Erectheum club, em St. James square, se jantava melhor; Mr. Richard Whitestone contou todas as suas historias e expôz theorias de culinaria.

Jenny e Carlos eram os unicos silenciosos e preoccupados. Jenny via com impaciencia a morosidade do jantar e escutava distrahida os cumprimentos dos convivas. Carlos tremeu, como nunca, perante o inesgotavel thesouro das reminiscencias paternas.

Com todos os vagares foi o jantar aproximando-se d'aquella phase critica dos jantares, especialmente inglezes, em que a gravidade e a etiqueta são postas de lado inteiramente, em que a parte feminina levanta arraiaes e foge amedrontada ante as bandeiras da orgia que, aos primeiros toasts, começam a desenrolar-se; e em que os convivas masculinos, livres do unico laço que os refreiava, preparam-se a reproduzir nas salas scenas vulgares em mais baixos tablados.

Nada falta: vinhos entornados, crystaes partidos, toasts interminaveis, discussões em que ninguem sabe o que discute, corpos estendidos por debaixo da mesa e, em alguns, um somno digno dos sete dormentes.

Tinha attingido o jantar de Mr. Whitestone este periodo de transição.

Jenny agradecera os primeiros brindes que lhe foram dirigidos.—O proprio Mr. Morlays fora diffusissimo na sua saudação, que parecia haver modelado por a de um personagem de Dickens, como se verá do seguinte excerpto:

—E sendo Mr. Richard Whitestone um dos raros caracteres honrados que se encontram na vida—terminára Mr. Morlays—e sendo miss Jenny Whitestone em tudo digna filha de Mr. Richard Whitestone, eu faço votos pela felicidade de Jenny Whitestone, para que possa assim recompensar Mr. Richard Whitestone pela sua honradez, probidade, cavalheirismo; recompensa que Mr. Richard Whitestone não póde nem deve esperar do mundo. Sendo demais miss Jenny Whitestone a terna irmã de Mr. Charles Whitestone, coração leal, generoso, sem fermento de maldade social, eu, bebendo á saude de miss Jenny Whitestone, brindo tambem Mr. Charles Whitestone, porque o sentimento fraterno faz uma só d'aquellas duas almas, da mesma sorte que miss Jenny Whitestone receberia, como dirigido a si, um toast a Mr. Charles Whitestone, seu affectuoso irmão. De maneira que este brinde individual a miss Jenny Whitestone transforma-o a sympathia cordial que liga esta familia exemplar em um brinde collectivo á familia Whitestone. Miss Jenny Whitestone!

E bebeu.

Hear! hear!—applaudiu Mr. Brains, batendo com os nós dos dedos na mesa, o que já fizera durante todo o speech, mais por força de habito, do que por se tornar necessario o recommendar attenção em tão limitada e attenta assembleia.

Jenny agradeceu modestamente o eloquente discurso.

Mr. Richard brindou os hospedes em termos não menos laconicos.

Carlos, em poucas palavras, desempenhou-se de identicos deveres.

E os toasts succediam-se e o nivel do liquido descia nas garrafas de crystal.

Jenny levantou-se. Era tempo de deixar sós os convivas. Ia soar para elles a hora de liberdade.

Carlos viu com inveja o movimento da irmã. Não a poder imitar! Ficou porém.

A desapparecer atraz do reposteiro da sala a ultima dobra do vestido branco de Jenny e uma transformação completa a operar-se na scena.

Mr. Brains passou a perna por cima do braço da cadeira e deixou-se escorregar até ficar com a cabeça á altura da mesa. Mr. Morlays estendeu os cotovêlos por esta adiante, metteu a cabeça entre as mãos, posição na qual as faces lhe tomaram um geito de caricatura, eminentemente comico; Mr. Richard, esse fez balançar a cadeira sobre os dois pés posteriores.

Àccenderam-se charutos, cobriu-se de fumo a atraosphera da sala, encheram-se e despejaram-se copos sobre copos.

Os criados retiraram-se discretamente.

—Uma canção, Mr. Brains—disse Mr. Richard Whitestone.

—Mr. Morlays que cante—respondeu aquelle.

—Ho! Mr. Morlays! Seria capaz de nos cantar um dies illa—notou Mr.
Richard, rindo.

Mr. Morlays fez uma careta, com pretensões a sorriso.

—As digestões costumam reconciliar Mr. Morlays com a humanidade—dizia
Mr. Brains.

—As feras saciadas são menos terriveis—acrescentou Mr. Richard jovialmente e batendo com familiaridade no hombro do seu amigo Morlays.

Este tornou a sorrir, a seu modo.

—Vamos á canção!—insistiu Richard, voltando-se para Mr. Brains—Vamos á canção.

—Mas a presença aqui do amigo Morlays faz receiar que succeda como no brinde de Lucrecia. Lembra-se? Se nos saía vinho de Syracusa?

Depois dos risos, concedidos á reflexão de Mr. Brains, este dispôz-se a cantar.

Nós, os portuguezes, que mais de que uma vez alcunhamos de sorumbaticos e melancolicos os nossos alliados bretões, somos talvez na Europa o povo mais sisudo e grave dos tempos modernos.

Eu creio que nem a philosophia e o landwehr da Allemanha; nem o knout e a sombria política da Russia; nem os fuzilamentos e o militarismo da Hespanha; nem os meetings e os fenians da Inglaterra; nem o suffragio universal e a febre napoleonica da França, teem conseguido tornar as respectivas nações mais avêssas ao canto, do que a nossa. Com o nosso céo, com a nossa vegetação, com os nossos vinhos e com a nossa lingua e com tão pouca disposição para nos occuparmos de cousas sérias—e n'esse particular nenhum povo nos leva a palma—esta quasi aversão que temos ao canto, denota uma indole essencialmente sisuda e pouco de gente do meio-dia.

Em qualquer jantar nacional, qual seria o conviva que teria coragem para imitar Mr. Brains, satisfazendo ao pedido do seu amphitryão e dispondo-se a cantar?

E, se algum houvesse, com que olhos de escandalisados o não encarariam os outros?

Ninguem ha mais pussillanime diante do ridiculo do que o portuguez; ninguem que mais corajosamente o encare de face, do que o cidadão britannico. Ora o ridiculo imita os costumes insidiosos de certos cães, que mordem as pessoas que lhes fogem, e recuam diante de quem os espera a pé firme.

O que é verdade é que Mr. Brains, vergando-se sobre as costas da cadeira, com as pernas estendidas, os olhos meios fechados, a mão pousada sobre o corpo, principiou a cantar com voz de impossivel classificação, em timbre nazal e em musica inglezamente monótona, uma canção de Sharpe feita para occasiões como esta.

O sentido era pouco mais ou menos este:

  Vá! sem mêdo enchei os copos
  De vinho, côr de rubim;
  Levem-o aos labios as damas;
  Consagral-o-hão assim.

  No peito o vinho alimenta
  Da amizade o almo calor,
  E o engenho d'elle regado,
  Ascende em vôo maior.

  Enchei os copos, fiae-vos
  N'esta bebida de reis
  Com tanto que…

Estava escripto que os dotes vocaes e os talentos artisticos de Mr. Brains não seriam devidamente apreciados. A lembrança da scena do banquete da Lucrecia fora até certo ponto fatidica!

De facto, quando o inglez chegava áquelle verso da canção, um forte e cada vez mais proximo rumor, como de passos precipitados, de vozes em confusão, de supplicas e de ameaças, partindo da sala immediata, veio emmudecer a larynge do cantor e enrugar a testa de Mr. Whitestone, a quem, á hora solemne do jantar, impacientavam interrupções.

Quando ia a elevar a voz para saber a causa d'aquelle desacato, abriu-se com violencia a porta da sala, e aos olhos espantados de todos os presentes desenhou-se a figura de Manoel Quentino, pallido, agitado, como nenhum d'elles o tinha ainda visto.

Ao mesmo tempo Jenny, attrahida pelo ruido, apparecia á outra porta da sala.

Mr. Richard Whitestone olhou pasmado para o guarda-livros.

XXXIV

MANOEL QUENTINO ALLUCINADO

Melhor do que qualquer dos personagens d'esta scena, prevê o leitor os motivos do apparecimento de Manoel Quentino na sala e do estado de perturbação em que se apresentou.

As revelações da criada tinham-o feito já, como vimos, sair desorientado. Chegando a casa de Mr. Richard, soube do criado de Carlos, que Cecilia havia entrado pela manhã no jardim; mas conjecturava este que ella provavelmente se retirara já, porque a não vira mais em casa.—Os criados, que serviam á mesa, confirmaram a conjectura, assegurando a Manoel Quentino que Cecilia não tinha assistido ao jantar.

Não é possivel dizer que ideias se succederam no espirito de Manoel Quentino ao ouvir tudo isto. Correu-lhe pela vista o véo das nevoas, que antecedem uma vertigem. Tomou-se-lhe o coração de dor e de cólera; esqueceu todas as considerações que poderia ainda sopeal-o, e rompendo, em vociferações incoherentes, por entre os criados que o rodeiavam, appareceu, como vimos, verdadeiramente allucinado diante de Mr. Richard e dos estupefactos convivas.

O olhar de Manoel Quentino, animado por expressão estranha, correu em um momento a sala.

A ausencia de Cecilia acabou de perturbar o velho.

Fitou Carlos, cheio de raiva prompta a fazer explosão, e atravessando, com andar mal seguro, o espaço que o separava d'elle, veio pousar-lhe a mão no hombro, dizendo em voz suffocada e tremula por o esforço que fazia a reprimir a violencia da paixão crescente:

—Snr. Carlos, eu venho aqui saber de minha filha.

A estas palavras, Jenny descórou. Os dois inglezes conservaram-se boquiabertos; Mr. Whitestone não desviou mais de Manoel Quentino e de Carlos o olhar penetrante.

—Snr. Carlos!—repetia Manoel Quentino, com uma expressão em que se revelava ao mesmo, tempo a angustia e a cólera—Sou eu!… eu … repare bem! É um pae, que lhe vem pedir contas de sua unica filha!

Carlos, a quem a surpreza parecia haver paralysado,—a surpreza e porventura ligeiros remorsos de consciencia tambem,—olhava para Manoel Quentino e, córando e empallidecendo, permanecia como subjugado pelo olhar de irritação d'aquelle velho, que o interrogava assim.

Manoel Quentino, ao ver esta perturbação, perdeu todo o poder que ainda conservava sobre si.

—Carlos—disse elle—o senhor abusou da confiança do homem que lhe abriu sem hesitar as portas de sua casa; o senhor zombou cruelmente d'estes cabellos brancos, que foram creados em serviço honrado e sem vergonha; o senhor esmagou o coração que se lhe abrira, como o de um pae… o senhor é… é um infame!

Quem visse a postura e o rosto de Carlos julgaria verdadeira a accusação. Surprendido inesperadamente por ella, faltou-lhe a reacção para repellil-a.

Mr. Whitestone, ao escutar as ultimas palavras de Manoel Quentino, empallidecera, phenomeno raro n'elle, e que se julgaria irrealisavel.—Cêdo porém o sangue reagiu contra a repressão que o expellira das faces, e affluiu com maxima intensidade a ellas. Os olhos, brilhando com fulgor extraordinario, não se desviavam do filho, como á espera de vel-o protestar contra aquella grave accusação.

Jenny, erguendo a cabeça, por um movimento cheio de dignidade, adiantou-se na sala. Subira-lhe tambem ás faces um rubor de impaciencia, vendo o irmão emmudecer perante uma accusação, que ella sabia ser injusta.

Com fogo no olhar e vivacidade na voz, que eram pouco do caracter d'ella, disse, dirigindo-se a Manoel Quentino:

—Manoel Quentino, acaba de fazer uma accusação, que o deshonra, porque é falsa.

O velho guarda-livros voltou-se para Jenny, e em lucta entre a duvida e a esperança, perguntou anciosamente:

-Falsa?

—Sim, falsa;—repetiu Jenny com firmeza—tão falsa, como cruel! Eu sei o que a motiva…. Mas se, em dezoito annos de convivencia com Cecilia,—que são todos os que ella tem de vida,—Manoel Quentino aprendesse a conhecel-a, se depositasse mais fé nos nobres sentimentos d'aquelle coração, que é obra sua, se tivesse mais confiança na sua propria filha, hesitaria sempre ao accusal-a, e não viria aqui soltar essas expressões que a poderiam perder, embora innocente…

A porta da sala, em que Cecilia ficára, abriu-se, e a filha de Manoel Quentino appareceu, pallida e sobresaltada, porque tinha reconhecido a voz do pae e suspeitado tudo.

Jenny, vendo-a, caminhou apressada para ella, e, apertando-a nos braços, disse para Manoel Quentino:

—A filha, de quem vinha saber, estava commigo. Receia ainda por ella?

Manoel Quentino correu para Cecilia e abraçou-a com phrenesi.

Mas as suspeitas, que as informações de Antonia lhe haviam feito nascer, não estavam de todo suffocadas n'aquelle espirito.

Reparando na pallidez e no ar de abatimento da filha, e lembrando-lhe a anterior confusão de Carlos, Manoel Quentino afastou-a brandamente de si, fitou-a por algum tempo em silencio e perturbado, e depois disse com tristeza e affecto:

—Por que estás assim pallida e commovida, filha? Por que perdeste aquella alegria de outros tempos? Por que choraste?

E, voltando-se para Carlos, acrescentou já sem a primeira vehemencia, mas ainda com amargura:

—A quem hei de eu pedir contas d'estas lagrimas, snr. Carlos? Das d'ella… e das minhas?

Cecilia, ouvindo-o dizer isto, encostou-se vacillando ao seio de Jenny.

—Basta, Manoel Quentino!—disse esta com voz severa—Respeite-se! Essa exaltação é indigna de si. Respeite-se e peça perdão a Deus do que está fazendo padecer a este anjo com essas palavras. Vamos, Cecilia, não podemos ficar mais tempo junto de quem, devendo ser o primeiro a fazer-lhe justiça, é o primeiro a offendel-a, duvidando de si. Vamos.

Manoel Quentino ergueu as mãos para Jenny.

—Espere! espere! E se tem poder para me tirar do coração isto, que m'o esmaga, faça-o, faca-o! Por muito que os outros soffram, quem soffre aqui mais sou eu!

Havia na voz do pobre pae a commoção mais sincera!

Jenny parou a escutal-o.

Manoel Quentino estendeu para ella a carta de Carlos, que trouxera comsigo.

—Quem escreveu esta carta a minha filha?

Jenny ficou enleiada á vista da carta; olhou para Carlos, cuja physionomia lhe disse tudo.

Cecilia ergueu tambem a cabeça com espanto.

Em Manoel Quentino, que notou a perturbação de Jenny, redobrou com isto a anciedade, e sem attender a que ia sacrificar Cecilia, insistiu imprudentemente:

—Quem escreveu esta carta a minha filha? Esta carta recebida ainda ha poucas horas? Ella ahi está ainda como me chegou ás mãos. Abram-a, leiam-a, e, se o que contiver não justificar as minhas suspeitas… se…

E Manoel Quentino, ao dizer isto, ia já abrir a carta, quando a voz de
Mr. Richard o deteve.

—Não é preciso. Essa carta é minha.

Eram as primeiras palavras ditas por o velho inglez, desde o principio da scena, á qual assistira até então immoyel e silencioso. Mr. Richard Whitestone era homem de rapida percepção e de resoluções não mais demoradas.

Entrando-lhe a intelligencia em uma corrente de pensamentos, em poucos instantes lhe attingia o fim e, acto contínuo, formulava a si mesmo um plano de procedimento, que logo punha em pratica. Tinha já comprehendido tudo; a confusão de Carlos e o seu grau de culpabilidade, os fundamentos da accusacão de Manoel Quentino e a generosa e nobre intervenção de Jenny. Previu a imminente derrota da filha, perante um documento, cuja existencia ella não suspeitava; previu as consequencias d'esta scena; o perigo que corria a reputação de Cecilia; o descredito que resultaria para o nome de Carlos, que era tambem o d'elle—Richard—e o de Jenny; e immediatamente talhou para si papel em uma situação na qual elle só poderia intervir com bom exito.

Manoel Quentino, ouvindo ao patrão aquellas palavras, ditas em tom firme e seguro, ficou a olhal-o embaraçado.

Jenny fitou as feições inalteradas do pae e comprehendeu-o.

A boa e generosa menina sentiu desejos de se lhe lançar ao collo, para lhe agradecer aquella prompta e feliz resolução.

Carlos conheceu que lhe córavam as faces, ao ver quanta magnanimidade havia no procedimento do pae.

Era a segunda lição, que, n'aquelle dia, recebia dos seus; lição de grandeza de alma, salvadora da reputação de uma pessoa, que elle sinceramente amava, mas que, com actos irreflectidos, segunda vez ia perdendo.

—Esta carta é de v. s.ª?—repetia Manoel Quentino, deixando insensivelmente cair a carta, que conservára na mão.

Jenny correu a apanhal-a e passou-a para as mãos de Mr. Richard, que trocou um olhar de intelligencia com a filha.

Travára-se n'aquelle momento tacita alliança entre os dois para salvar a reputação de uma rapariga, innocente e indefeza.

—É minha, sim—continuou Mr. Richard, tomando a carta e abrindo-lhe naturalmente o fecho.—É minha… ou melhor, é… de nós ambos—acrescentou, designando Carlos com a mão, mas sem o fitar.—Tinhamos resolvido preparar uma surpreza a Jenny hoje, que é dia de seus annos, convidando Cecilia, que ha muito tempo não viamos aqui. Mas gorou-se o plano, porque Jenny, já antes de nós, a tinha convidado; e fez muito bem. Ahi está o que é… Esta carta foi escripta por Carlos e dictada por mim… E se duvída?—concluiu, fazendo o gesto de entregar a carta a Manoel Quentino.

Era um d'estes expedientes heroicos, que tudo podem perder ou salvar.

Servem-se d'elles, em occasiões assim, os homens de coragem e de sufficiente confiança em si proprios, para não receiarem trahir no semblante a posição critica, em que ficam collocados, depois de os empregarem.

A esses taes é quasi sempre o meio efficaz e salvador.

Manoel Quentino não ousou aceitar a prova, que se lhe offerecia.—Os habitos de respeito, contrahidos em longos annos de serviço e que um momento de indignação, quasi de delirio, lhe tinha feito esquecer, dominaram-o de novo, restituindo-lhe a sua natural brandura e timidez de caracter.

—Perdão—disse elle, quasi com humildade e como arrependido já da excitação anterior.—Perdão; eu julguei…

—Está bom, está bom—atalhou Mr. Richard com modo de quem não desejava continuar no assumpto.—É preciso ser menos… prompto em obedecer a… certas exaltações… inconvenientes.

O epitheto foi dito depois de alguma hesitação em adoptal-o.

Manoel Quentino ia ainda a abrir a bôca para desculpar-se, porém Mr.
Richard o impediu.

—Não fallemos mais n'isto…. Não vale a pena. Sente-se e faça-nos companhia á mesa.

—Perdão, Mr. Richard, mas…

Mr. Richard fingiu que o não ouvia; chamou por um criado para preparar logar e talher para Manoel Quentino. Este sentou-se, quasi sem bem reparar no que fazia.

Jenny e Cecilia saíram outra vez da sala.

O jantar continuou.

Tinha porém perdido para sempre a feição jovial do principio.

O que se passára e a presença de Carlos e de Manoel Quentino, qual d'elles mais constrangido e sombrio, inutilisavam todos os esforços de Mr. Richard para restabelecer no dialogo a perdida animação.

As libações repetiram-se, mas sem longos toasts.

—A seu sobrinho, Mr. Brains!—dizia por exemplo Mr. Richard, bebendo.

Mr. Brains fazia uma mesura a agradecer. Os outros levavam os calices aos labios.

—A seu amigo Roxboy, Mr. Whitestone!—dizia em seguida Mr. Brains.

Mr. Whitestone agradecia; os outros repetiam a saudação como anteriormente.

—Mr. Morlays, a seu tio das Indias!

Mesura de Mr. Morlays. Os outros como antes.

Estes mesmos laconicos toasts terminaram. A feição da assembleia carregava-se cada vez mais.

Mr. Richard fez um ultimo esforço para a desanuviar.

—Outra canção, Mr. Brains!—disse elle, enchendo-lhe o copo.

O inglez fitou Mr. Richard com olhos de estremunhado.

—Eu cantar! Para a transição ser menos sensivel, que cante Mr. Morlays primeiro.

Mr. Morlays grunhiu um monosyllabo imperceptivel e esvasiou até á ultima gotta o calix, que tinha defronte de si.

—Então cante Mr. Morlays—insistiu Mr. Richard, sem grandes esperanças do convite ser aceito.

Contra a espectativa geral, o sorumbatico inglez levantou-se e enfiando as mãos nos bolsos do collete, pronunciou, era tom funebre, o nome da canção que se propunha a cantar.

The old saxton—o velho cóveiro—de Park Benjamin.

Mr. Brains fez um gesto de arripiado. Mr. Morlays, imperturbavel, principiou cantando.

Eis o sentido da canção que elle, com exquisito tacto da opportunidade, julgou dever escolher:

«Junto de uma sepultura, cavada de pouco, estava o velho cóveiro, encostado á enxada, já gasta pelo uso. Tinha terminado a tarefa e parára á espera do cortejo funeral que transpunha n'aquelle momento a porta aberta do cemiterio. Era uma relíquia do tempo passado este velho! Os cabellos estavam-lhe tão brancos, como a espuma do mar; e dos labios tremulos saíam-lhe, em voz submissa, estas palavras:—Venham venham! que eu os guardo todos! Eu os guardo todos!

Sim, eu os guardo! Para homens e para creanças, anno após anno, uns de pezares, outros de alegrias, edifiquei essas casas que por ahi jazem em torno, em cada recanto d'este funereo terreno. Mãe e pae, filhos e filhas, um por um, vieram acolher-se á minha solidão. Mas, ou estranhos ou parentes, venham! venham! que eu os guardo todos! Eu os guardo todos!

Sim, eu os guardo! Muitos estão commigo, e comtudo estou só! Eu sou o rei dos mortos! Meu throno faço-o de um sepulcro de pedra ou de frio marmore, e o meu sceptro de commando é a enxada, que empunho. Todos os homens são meus vassallos, quer cheguem da choupana, quer cheguem das salas, todos, todos, todos! Agitem-se embora na ancia do prazer ou na ancia do trabalho! Venham! venham! que eu os guardo todos! Eu os guardo todos!

Sim, eu os guardo! Seu leito final é aqui; aqui debaixo, no escuro seio da terra.»—«E o cóveiro calou-se, porque o cortejo funeral passava silenciosamente n'aquella planicie. E eu disse commigo: Ao findar dos seculos, uma voz, mais poderosa do que a d'este velho cóveiro, bradará mais alto do que o tremendo clangor da trombeta final: Venham! venham! que eu os guardo todos! Eu os guardo todos!»

Imagine-se o effeito que a voz do cantor, a musica e a lettra da canção produziriam depois de um jantar.

A musica obrigava a repetir por mais de uma vez o estribilho final de cada estancia no original.

I gather them in, gather, gather, gather, I gather them in—cantava Mr. Morlays, com entonação, que fazia lembrar um sino dobrando a finados.

Não se concebe estomago que ficasse imperturbado após uma sobremesa d'estas.

O cantor seguia com malignidade, verdadeiramente satanica, o effeito do canto sobre o acto visceral dos seus amigos.

Mr. Brains reprimia a custo a indignação que sentia.

Acabando de cantar, Morlays sentou-se e bebeu novo calix de vinho.

Apenas um monosyllabo sêcco de Mr. Richard Whitestone o congratulou.

A misanthropia de Mr. Morlays, azedada com o escandalo de Manoel Quentino, folgou com a vingança que tomára. D'ahi por diante todos somente suspiravam por se levantar da mesa.

Mr. Brains foi o primeiro, que ousou fazel-o. Á indole jovial do Democrito inglez repugnava a atmosphera pesada que estava respirando alli. Mr. Morlays imitou-o. O mau humor d'este crescera de ponto com as occorrencias do dia. As suas caprichosas digestões estavam em risco de serem perturbadas, e em consequencia d'isso teve a humanidade muito que soffrer no conceito de tão hypochondriaco personagem.

Carlos retirou-se tambem ao quarto.

XXXV

A SENTENÇA DO PAE

Manoel Quentino, ficando só na presença do patrão, não se sentia á sua vontade. Foi pois com verdadeira satisfação que recebeu um recado de Cecilia, a pedir-lhe que a acompanhasse a casa.

Despediu-se de Mr. Richard, a quem dirigiu pela segunda vez mal formuladas desculpas, que o inglez recebeu com affabilidade, e ao mesmo tempo com ares de quem preferiria não ouvir fallar mais em tal.

Manoel Quentino foi ter com Cecilia, que estava na outra sala com Jenny.

—Cecilia, perdôa-me se duvidei de ti;—disse elle com a voz suffocada—perdoa a minha imprudencia de ha pouco, filha; foi uma loucura. Bem o vejo agora. Perdôa-a ao muito amor de teu pae…

A commoção não o deixou continuar.

Cecilia lançou-se-lhe, chorando, nos braços.

—Manoel Quentino, que está a fazer?—disse Jenny—Não vê como a afflige?

—Menina—respondeu Manoel Quentino, voltando-se para ella—perdôe-me tambem se pude imaginar que a sua protecção de santa…—de verdadeira santa, miss Jenny—que essa abençoada protecção podia deixar-se vencer. E, por quem é, não se esqueça de velar por ella, por minha filha!

—Mais valiosa protecção encontra Cecilia era si mesma—respondeu
Jenny.—É um coração forte.

Manoel Quentino tinha a cabeça da filha encostada ao peito; ouvindo estas ultimas palavras, cingiu-a ainda mais a si, e murmurou para Jenny, procurando não ser percebido por Cecilia:

—Forte?… Era… emquanto lhe pertencia.

Jenny demorou o olhar nas feições do velho.

Aquella resposta dava a entender que algumas suspeitas lhe restavam ainda da verdade; que elle podia estar convencido já da innocencia da filha, que podia julgar com menos severidade e duvida as tenções e procedimento de Carlos, mas sem haver fechado de tal maneira os olhos á evidencia, que suppozesse que nada havia de commum entre os corações dos dois.

Jenny respondeu, percebendo isto:

—Forte ha de sel-o sempre; resta fazel-o feliz.

—Se miss Jenny o não conseguir, quem mais o conseguirá?

—Trabalharei—disse Jenny, sorrindo.

—Dê-lhe a serenidade do seu coração e tel-a-ha salvado.

Jenny, que abraçava n'este momento Cecilia, ouvindo estas palavras, meneou a cabeça, e, entre risonha e melancolica, disse ao ouvido da sua amiga:

—Não é assim que eu desejo salvar-te.

Pela primeira vez a tratava por tu.

Emquanto se passava esta scena, Carlos de volta ao quarto engolfava-se em pensamentos profundos. Tudo quanto succedera lh'o estava reproduzindo a memoria, e cópia de affectos e de paixões agitavam-lhe o coração em palpitar desordenado.

Que lhe competia fazer? Como devia sair da posição em que se achava? De que maneira compensar com uma resolução nobre, digna dos sentimentos que percebia no coração, a insuperavel timidez, que durante o jantar se apoderára d'elle.

N'isto pensava Carlos, quando o criado lhe entrou no quarto, annunciando que Mr. Richard Whitestone o mandára chamar ao gabinete.

Carlos esperava esta entrevista, que, depois do succedido, podia dizer-se inevitavel; elle proprio a procuraria talvez espontaneamente; mas, apesar d'isso, não se sentia preparado para ella; nem outra cousa lhe succederia, talvez, quando mais espaçada fosse.

Causou-lhe pois o effeito de imprevista.

Vacillavam-lhe os passos ao dirigir-se ao gabinete do pae, como se fora um réo, caminhando para o tribunal, em que vae ser julgado.

Quando Carlos entrou, Mr. Richard estava em pé, encostado ao marmore do fogão. Tinha a expressão tão severa, quanto era possivel á sua physionomia ingleza, e conservava na mão a carta de Carlos, como quem acabava de a ler n'aquelle momento.

Carlos parou no meio da sala, esperando que o pae lhe dirigisse a palavra.

Mr. Whitestone estendeu para o filho a carta aberta, perguntando com modo rapido e incisivo:

—Que ha de verdade n'isto que se diz aqui?

—Tudo—respondeu Carlos, procurando dar á voz a firmeza, que não sentia.

Mr. Whitestone enrugou a fronte ao ouvir a resposta; fez um leve movimento de hombros e de labios, e, passando a carta para o filho, apenas lhe disse:

—Ahi a tem. Rasgue-a, queime-a. Deve fazel-o… porque destruirá assim a prova de uma nova… infamia.

As faces de Carlos cobriram-se de intenso rubor.

—Meu pae!—balbuciou elle.

—Repito-o; de uma infamia—proseguiu Mr. Richard com redobrada acrimonia.—Não sou eu o primeiro que lh'o diz; e se já se calou vergonhosamente diante da primeira accusação, não é muito que escute a segunda com a mesma… humildade.

E acabando de dizer isto, pôz-se a passeiar no quarto, como costumava quando assim exaltado, e continuou:

—É falso orgulho esse que… todo se alvoroça ao ouvir uma palavra e com tanta facilidade se conforma, ao que é bem peior, á feia acção que ella exprime. É orgulho de theatro… Não comprehendo devéras.

Carlos respondeu:

—Eu posso estranhar que a accusação me venha de quem me devia conhecer melhor, e de quem não está dominado, como o primeiro que me accusou, por um excesso de paixão violenta, mas desculpavel. Estranho e lamento que, no curto periodo de alguns dias, tenha já ouvido duas vezes de meu pae a accusação de… infame.

Mr. Richard, que, emquanto o filho fallára, ia augmentando a velocidade dos passos, com que media a sala, parou repentinamente n'este ponto e fitou Carlos com um olhar cheio de fogo.

—Estranha, por quê? Faz favor de me dizer? Não me apontará algum nome mais exacto para dar ás suas acções?… Devéras que não sei… Julgo que não quererá arguir-me de demasiado severo?… Repito o que já lhe disse no outro dia. Tenho sido em excesso benevolente comsigo, tenho fechado de proposito os olhos a muitos desvarios seus, desculpando-lh'os com o verdor dos annos. Mas acções ha, que nem a creanças se desculpam… E, sempre que nos actos de um homem existe o caracter de… baixeza…

Carlos não pôde suspender um movimento instinctivo de reacção, ao ouvir esta palavra.

Mr. Richard, percebendo-o, repetiu com mais força, e olhando fixamente para o filho:

—De baixeza… e de villania!… Em taes casos, é criminosa a indulgencia; e nunca é demais toda a severidade de opinião contra esse homem. Escusa de protestar com esses movimentos e gestos. Mais severamente do que eu, o accusava ha pouco a sua propria consciencia, obrigando-o a calar-se e a abaixar a cabeça diante das arguições d'aquelle homem… que… que… que tentára deshonrar.

—Eu já lhe disse, senhor—acudiu Carlos, com vehemencia desusada para com o pae—que tudo quanto escrevi n'essa carta é verdadeiro. Seria imprudente, fui de certo; d'isso me accuso eu; mas diz-me a consciencia que estou sendo severamente julgado e por isso…

—Era bom que a sua consciencia tivesse acordado mais cêdo. Escusava de ter deixado que da bôca de um estranho, e diante de testimunhas, caisse sobre o nome de seu pae e de sua irmã uma accusação grave e que nós mentissemos para o salvar. Esses escrupulos veem bastante tarde. Deve confessar.

Carlos curvou a cabeça e ficou silencioso.

Mr. Richard ficou tambem algum tempo calado, depois proseguiu:

—É verdadeiro tudo quanto diz n'essa carta! Lembre-se de que ainda ha poucos dias marcava n'esta mesma casa, na casa em que habita sua irmã, entrevistas a…

Carlos não o deixou continuar:

—Peco-lhe que não renove essa insinuação, senhor; já dei a minha palavra em como ella era injusta. Não posso offerecer prova mais convincente, mas custa-me devéras ver que me recusam esta. No dia em que succedeu o facto, a que allude, n'esse dia em que pela primeira vez ouvi o epitheto de infame da bôca de meu proprio pae, já eu me sentia bem outro do que tinha sido até alli. Creia-me, senhor; não é uma vã inclinação, um ephemero capricho de rapaz, o que sinto por Cecilia. A unica importante mudança de caracter, que tenho experimentado na vida, operou-a ella sem uma palavra, sem uma tenção formada, sem denunciar um desejo. Adivinhei-a talvez, mas não que ella se me revelasse nunca. Cecilia só de per si conseguiu, e sera esforço, o que nem as reprehensões de meu pae, nem os conselhos e os pedidos de Jenny haviam conseguido nunca, por isso creio na sinceridade dos meus pensamentos para com ella, por isso…

Mr. Richard escutava o filho com manifesta impaciencia; parecia que lhe seria quasi tão desagradavel o ver Carlos conseguir justificar-se, da maneira por que o estava fazendo, como persistir sob a accusacão de menos leal, que lhe tinha sido feita.

O amor proprio de Mr. Richard—porque emfim é forçoso confessar que Mr. Richard tinha amor proprio tambem—não se sentia muito lisongeado com esta sincera paixão de Carlos por Cecilia, a filha do seu guarda-livros.

Um enxame de preconceitos se alvoroçava todo a esta ideia; preconceitos que a razão clara e forte de Mr. Richard se pejaria de reconhecer como legitimos, mas aos quaes, sem o saber, se sujeitava.

Eram de diversas ordens.

Preconceitos de inglez, primeiro que tudo; nunca é com absoluta indifferença que o filho da Gran-Bretanha vê uma mulher de outro paiz roubar-lhe o coração de algum dos seus parentes. Ha em toda a alma ingleza a profunda convicção mais ou menos declarada de uma superioridade de raça, que a não deixa encarar desapaixonada alliancas d'estas.

Depois sobrevinham os preconceitos de commerciante, o qual, por mais consideração e estima que tenha por um guarda-livros, não póde de todo em todo olhal-o como de natureza igual á sua, e não se lisongeia demasiado com obter nora ou genro em casa d'elle.

Ainda o preoccupavam preconceitos de capitalista; por mais philosophicas doutrinas que estes expendam sobre a vaidade das riquezas, na pratica da vida não abstrahem d'esse elemento quando combinam calculos para resolver o problema da felicidade. Finalmente até preconceitos de pae lhe offuscavam a luz da inlelligencia, pois não obstante a severidade das arguições que lhe ouvimos, é certo que poucas mulheres no mundo lhe pareciam dignas do seu Carlos. Tudo isto o fazia pois escutar de má vontade a declaração do filho, a quem interrompeu precipitadamente.

—Está bom. Eu não preciso saber a historia das transformações do seu caracter, o qual até me parece ser demasiadamente sujeito a ellas. E se é essa a garantia unica que tem da sinceridade dos seus sentimentos, ha de concordar que é bem fraca. Mas seja como for; depois do succedido, parece-me escusado indicar-lhe o melhor partido que tem a abraçar.

Carlos elevou para o pae o olhar interrogador.

Mr. Richard guardou, por instantes, silencio; depois acrescentou:

—Dentro em oito dias sae um vapor para Londres…

—Mas…

Mr. Richard fingiu não ouvir a interrupção, e continuou:

—Ha muito que se faz necessaria uma entrevista pessoal com Mr. Woodfall
Hope, porque…

—Não sei se me será possivel obedecer-lhe, senhor.

Mr. Whitestpne voltou-se com vivacidade para o filho, e, visivelmente irritado, disse:

—Espero que não commetta a baixeza de querer demorar-se aqui, depois do que se passou. Não me faça envergonhar de o ter por filho.

Carlos desacostumára-se a arrostar por muito tempo com a severidade do pae. Sentia-se incapaz de reagir diante d'aquelle olhar. Baixou a cabeça e calou-se.

Mr. Richard acrescentou instantes depois, em voz ainda severa, porém já menos rispida:

—Póde retirar-se e faça por ser homem de bem. Ha erros que deixam vestigios, que nunca se apagam mais. Respeite as familias, porque o contrario é deshonrar a sua. Se se lembrasse de que tinha uma irmã…

N'este ponto ouviu-se rumor á porta do quarto.

—Que temos?—perguntou Mr. Richard, impaciente.

Era um criado que vinha do mando de Jenny perguntar se Mr. Richard a podia receber.

Mr. Richard fez um signal affirmativo, e voltando-se para Carlos:

—Saia. Sua irmã precisa fallar-me.

Carlos curvou a cabeça e saiu sem dizer palavra. Era ainda o réo que deixava o juiz, não o filho que se despedia do pae.

Carlos encontrou-se com a irmã na sala contigua. Ella estendeu-lhe a mão, dizendo:

—Vês, Charles, vês o resultado das tuas loucuras?

—Loucuras, Jenny! Pois ainda lhes chamas assim?

—Principio a ter vontade de lhe dar outro nome, principio; e é por isso que venho aqui.

—Que vens fazer?

—Advogar a causa de uma má cabeça, em attenção a um pobre coração, que não tem culpa nenhuma em andar unido áquella estouvada.

—Ó Jenny!—exclamou Carlos, tomando, cheio de confiança, as mãos da irmã.

—Então! Deixa-me, que o pae espera-me.

E separando-se do irmão, disse a rir:

—Que difficil papel me fazem representar em toda esta historia!

XXXVI

A DEFEZA DA IRMÃ

Jenny abriu vagarosamente a porta do gabinete de Mr. Richard.

Este andava ainda de um para o outro lado, a passos largos, com a cabeça baixa e as mãos atraz das costas.

Ao ouvir abrir a porta, parou, aguardando quem chegava.

—És tu, Jenny?—disse, ao ver o rosto da filha, e usando de uma affabilidade, que formava completo contraste com a aspereza com que se dirigira a Carlos.

Jenny aproximou-se do pae e, apoderando-se-lhe da mão, beijou-a com affecto.

—Que quer dizer isso, Jenny?—disse Mr. Richard, procurando retiral-a.

—Deixe-me agradecer-lhe, senhor, uma acção generosa, nobre, digna de si, e que me fez sentir, mais do que nunca, o orgulho de ser sua filha.

—Ora essa, Jenny. E foi para isso que vieste?—perguntou Mr. Richard, sorrindo e já sem o menor vestigio de rugas na fronte, momentos antes contrahida.

—E para mais alguma cousa—respondeu Jenny, com a respeitosa familiaridade de filha, a quem diz a consciencia que nada lhe será recusado.

—Então falla.

—Sabe tudo, não é verdade?

—Sei; infelizmente sei.

—E que tenciona fazer? E perdôe-me o querer assim penetrar as suas resoluções; mas tantas vezes voluntariamente m'as confia, que me animo…

—Fazes bem, Jenny, fazes bem—atalhou Mr. Richard, affectuosamente—Eu não me esqueço de que és uma boa conselheira.

—Bem; então d'esta vez?…

—Já reflecti; e tomei algumas providencias. Carlos partirá para Londres no vapor que…

Jenny moveu a cabeça, em signal de desapprovação.

Mr. Whitestone, percebendo o gesto da filha, olhou para ella em silencio alguns momentos.

—Parece que não approvas, Jenny.

Jenny calou-se.

—Responde, falla. Com toda a franqueza dize-me o que pensas d'esta medida.

—Pois bem; direi. Não era isso que eu esperava de meu pae.

—Então?—perguntou Mr. Richard, com levissimo tom de despeito.

—O seu proceder de ha pouco deixou-me esperar outra resolução mais… mais… mais acertada—concluiu, depois de modesta hesitação e corrigindo a força da phrase com a brandura da expressão.

—Que podia eu fazer?

Jenny, em vez de responder directamente, continuou:

—Quer obrigar a partir Charles, quando elle levaria comsigo, no coração, alguma cousa que o não deixaria ser feliz no desterro—porque é um desterro a que o vae condemnar; quer obrigal-o a partir, quando, atraz de si, aqui, deixaria alguem, que sentiria essa ausencia como uma condemnação cruel…

Mr. Richard olhou admirado para a filha, ao ouvil-a fallar assim; depois, com ar mais grave do que até ahi, respondeu, parando defronte d'ella:

—Não, Jenny; quero obrigar a partir Charles para acabar a tempo com um capricho, que podia vir a fazer a infelicidade d'elle e…—depois de hesitar por algum tempo, o velho inglez concluiu:—e d'ella, d'esse alguem de quem tu fallas, supponho eu. Não vês que é uma inclinação de dois dias essa de Carlos?

—Não é, senhor, não é. Eu sinto que não é. D'esta vez bem vejo que é sincera.

Mr. Whitestone encolheu os hombros, sorrindo.

—A Jenny ainda não aprendeu a conhecer seu irmão.

—Tenho seguido passo a passo, desde o principio, esta paixão de
Charles. Já desconfiei d'ella tambem; já receei por Cecilia, e tentei
dissuadir meu irmão do que imaginei não passar n'elle de um capricho.
Depois reconheci que me enganára.

Mr. Richard abanou a cabeça, em signal de duvida.

—Ha quanto tempo te convenceste da sinceridade d'essa paixão em
Carlos?…

—Ha muitos dias; desde…

Mr. Richard sorriu…

—E se eu tiver provas de que, ainda ha bem poucos, teu irmão era ainda o mesmo irreflectido e estouvado rapaz de outros tempos?

—Provas?…

—Se eu te mostrasse que elle hoje, ainda como d'antes, não hesita, para satisfazer doudas e pouco delicadas phantasias, em cortar por certas contemplações, respeitaveis para quem possue intactos os sentimentos de familia, ridiculas talvez para elle?

—É injusto… demasiadamente severo para Charles, senhor.

—Pergunta-lhe se foi em homenagem a essa rapariga, por quem o imaginas apaixonado ha tanto tempo, que elle vendeu o relogio, de que no dia de seus annos eu lhe tinha feito presente. Affligiu-me este facto, não por o valor do objecto, mas porque me revelou uma fraqueza na alma de meu filho, uma tibieza nos sentimentos de dignidade, que não esperava encontrar n'elle.

—Charles affirmou-me que fora um motivo poderoso o que o obrigára…

—Mentiu!—disse Mr. Richard com azedume.

—Ó senhor!—exclamou Jenny, como exprobrando-lhe a dureza da expressão.

—O motivo sei eu qual foi…

—Terá provas certas de que o sabe?

Mr. Richard vacillou a esta pergunta, dizendo depois:

—Quasi evidentes.

Jenny sorriu ao repetir:

—Quasi.

Mr. Richard, como excitado por aquelle sorriso, insistiu:

—De certo não foi Cecilia a pessoa que n'esse dia procurou teu irmão e o acompanhou de carruagem até á loja do ourives, onde se effectuou a venda.

Jenny soube pela primeira vez estas particularidades, mas, animada pela confiança que o irmão lhe souhera inspirar, disse sem hesitação:

—E são esses os unicos fundamentos da accusação?

—E julgo que…—e mudando repentinamente de tom, acrescentou:—Mas, deixando isso, a não fazer o que fiz, que querias tu que eu fizesse?

Jenny, desviando os olhos para um periodico de gravuras que estava sobre a mesa, respondeu:

—Não sei que mal haveria em ceder ao impulso d'aquelles dois corações, visto que…

Mr. Richard bateu, algum tempo impacientemente, uma pancada com a mão na secretária, junto da qual tinha parado.

—Julguei que Jenny não conhecia o mundo por o ter visto nas paginas dos romances.

—Não, senhor; não o conheço d'ahi; mas tambem o não conheço por experiencia pessoal. Das lições de meu pae obtive o pouco que d'elle sei; por isso avalio o bom e o mau das nossas acções na vida, á luz do dever e da consciencia. Não foi o que me ensinou?

Mr. Richard aceitou com um sorriso a correcção filial.

—Pois foi á luz do dever e da consciencia que eu procedi.

—Julguei que, depois do acontecido, o dever lhe aconselharia outra cousa.

—Algum absurdo? Loucuras?… Phantasias? És mulher a final, Jenny!

Jenny aproximou-se do pae, que viera sentar-se em uma cadeira junto do fogão; apoiou-se-lhe ao hombro e, a meia voz, disse-lhe como a brincar:

—Desejava agora, por um momento só, deixar de ser sua filha, senhor.

—Para quê?

—Para me atrever a fazer-lhe uma pergunta.

—Auctoriso-te a fazel-a, Jenny—respondeu o inglez, completamente desarmado contra a diplomacia da filha.

—Auctorisa? Eu sei?!

—Exijo até que a faças.

—Sou mulher a final! disse o pae… Póde ser… E como mulher tenho talvez o meu fraco pelo sentimento—preconceitos do coração… Não é isto?… Mas… era a pergunta que eu, se não fosse sua filha, lhe quereria fazer: mas esse seu espirito, recto, esclarecido e forte… julgará sem preconceitos d'esta vez?

—Que preconceitos queres que sejam os meus?—perguntou Mr. Richard, desviando os olhos.

—Quem sabe lá? Cecilia é filha de Manoel Quentino, um homem honrado, mas… subalterno; fiel, mas pobre; um caracter generoso, mas… educado na escola da obediencia; capaz de se sacrificar por nós, mas… vivendo dos ordenados da nossa casa.

—Douda! Então não me fazes a justiça de acreditar que a força da minha razão seria bastante para vencer esses preconceitos de educação… quando os tivesse?—disse Mr. Richard, porém de modo, que estava justificando Jenny.

—Assim o espero; por isso é que…

—Não—interrompeu Mr. Ricnard—não é isso o que me faz hesitar. O motivo é diverso. É porque não creio na duração dos sentimentos de Carlos; é porque lhe conheço o caracter leviano, e hesito por essa razão em fazel-o chefe de uma familia, que elle não saberia guiar e que tornaria desgraçada.

—Não é justo para com seu filho, senhor. Elle herdou os dotes do seu coração. É leal e generoso. E será salval-o, fazel-o entrar pelo coração no caminho do dever.

—Dizes-te amiga de Cecilia, Jenny, e não hesitas em arriscar-lhe assim imprudentemente a felicidade?

Jenny demorou algum tempo sobre o pae um olhar quasi malicioso.

—Eu, pelo menos—disse ella por fim—tenho uma garantia: é o coração de Charles, que está do meu partido; mas ainda ha bem pouco tempo que o pae concebia outra alliança para meu irmão, á qual até este pequeno auspicio faltava. Que fez da confiança, que então depunha em seu filho, ao querer fazel-o chefe de uma familia? Por que não hesitava então, e hesita agora? Ser-lhe-hia indifferente a felicidade de Alice Smithfield, da filha do seu amigo? De certo que não; mas é que sabia que Charles, promettendo fazel-a feliz, havia de ser fiel a essa promessa. E agora…

Mr. Richard não atinou com a resposta que désse a este argumento da filha.

Ergueu-se e voltou a passeiar.

D'ahi a instantes parou, e dirigindo-se a Jenay, disse:

—E demais, se, depois do que succedeu diante de testimunhas, eu fosse seguir o teu conselho, não soffreria a reputação d'essa pequena com isso? O mundo não veria n'este acto, que póde ser… que creio mesmo que seja, muito justo, mas que é preciso confessar tambem que não é natural, não veria n'esse acto a reparação de offensa maior?

Jenny sentiu-se alentada ao ver a nova face, que o pae dava á discussão.

—E a partida repentina e inesperada de Charles, depois dos factos que succederam, não dará logar a vozes menos favoraveis ainda para ella, para elle e… para nós todos?

Mr. Whitestone não respondeu.

—Eu conheço pouco o mundo, é verdade;—proseguiu a filha—mas parece-me que, em todo o caso, elle fallará; o que se tem a fazer é dar ás nossas acções a feição mais natural, para que menos curiosidade lhe excitem. Conduzamol-as de modo a deixar-lhe entrever os motivos, que nos convier que elle supponha; mas sem mostrarmos o proposito de revelar-lh'os, para que não desconfie da intenção e procure então os verdadeiros.

Mr. Richard olhava para a filha com um sorriso, já muito desanuviado.

—Bravo! que machiavelismo! Não te sabia tão diplomata. Vamos á applicação ao caso presente.

Jenny sorria tambem, mas de intima satisfação, porque se presentia victoriosa.

—Trata-se de diminuir pouco a pouco a estranheza do acto, que o faz hesitar; preparar as opiniões para aceital-o como natural.

—E como? Que queres que eu faça?

—O que lhe dictar o coração. Não é a mim que compete aconselhal-o.

Mr. Whitestone baixou a cabeça, com ar de reflexão.

Jenny principiou a dizer, como se fallasse para si propria, mas de maneira que fosse escutada por o pae:

—O mundo é assim. Dá-se-lhe a verdadeira explicação dos factos, raras vezes a acredita. Forja-se outra ás vezes menos natural e plausivel, quasi sempre a prefere. Principalmente se a verdadeira é generosa e nobre, e a falsa interesseira e mesquinha. A alliança de Charles com a filha de Manoel Quentino, tendo por explicação sómente o affecto dos dois, seria estranha e incomprehensivel; mas se Manoel Quentino, em vez de ser guarda-livros, fosse um socio da casa…

Mr. Richard, ouvindo estas palavras, desviou para a filha o olhar. Viu-a distrahida, examinando, com apparencias de attenção, um pesa-papeis de crystal.

Mr. Richard teve uma lembrança.

Aproximou-se da secretária, e, tomando uma folha de papel, escreveu n'ella algumas linhas.

Jenny sorria, como se estivesse de longe lendo tudo o que o pae se pozera a escrever.

No fim o inglez releu com attenção o que havia escripto; dobrou cuidadosamente o papel e entregando-o á filha, disse com rapidez, como se receiasse que a resolução, que abraçára, lhe fugisse ainda:

—Ahi tens. Entrega isso a Manoel Quentino. É uma memoria dos teus vinte e dois annos.

Jenny, que astuciosamente deixára ao pae o prazer e a gloria da boa ideia, cuja insinuação viera d'ella, suspeitou logo qual a natureza do escripto e disse com effusão:

—Agora sim! Torno a reconhecer o seu coração generoso.

—Então já sabes o que isso contém?

—Adivinho-o sem o ler. Attendendo aos antigos serviços prestados por Manoel Quentino á casa Whitestone, meu pae associa-o de hoje em diante ao negocio e á sua firma. Não é verdade?

—Quasi por formaes palavras—respondeu Mr. Richard, passando amigavelmente a mão por as faces da filha.

—Que mais ordena, miss Jenny?—perguntou jovialmente o inglez.

—Peço mais uma cousa.

—Dize.

—Peço para não fazer desde já uso d'este papel.

—Então?

—Este facto, que serve para preparar a opinião publica para o outro… não é verdade?

—Eu não prometti ainda…

—Este facto—continuou Jenny, fingindo que não ouvia a resposta—causaria ainda estranheza, se não fosse preparado tambem com antecedencias.

—Como?

—Recordo-me de que não ha muitos dias o pae me fallou de um negocio commercial, em que esteve para tomar parte a casa Whitestone, o que não fez por instancias de Manoel Quentino, instancias que a salvaram de um abalo, talvez fatal para ella. Não foi assim?

—Foi. O homem mostrou d'essa vez um tino commercial…

—A quantas pessoas fallou já d'esse serviço do seu guarda-livros?

—Que eu saiba a nenhuma. Certas tentativas, por felicidade frustradas, não é muito conveniente revelal-as, pois podem abalar a confiança na prudencia da casa…

—Pois, se me permitte dar-lhe um conselho, deixe que se faça d'esta vez excepção á regra. Durante esta semana, eu se estivesse no seu logar, fallaria a toda a gente n'aquillo. O nome de Manoel Quentino havia de andar, n'estes oito dias, nos ouvidos de todos. Toda a Praça havia de ficar sciente dos seus prestantes serviços… e depois que haveria que estranhar quando se enviasse ao pae de Cecilia este documento, em cujas dobras vae a felicidade de duas pessoas?

—E julgas tu que a gratidão é facto mais natural para o mundo, do que a iniciativa no beneficio? Se subtrahires da explicação o elemento «interesse», o facto será incomprehensivel.

—N'esse caso é deixar ao mesmo tempo suspeitar que Manoel Quentino tem conseguido accumular riquezas, e que da nossa parte…

Mr. Richard sorriu.

—Mais aceitavel será o facto á opinião, ainda que… É uma trabalhosa semana a que me destinas! Não recuso porém a tarefa; veremos o que é possivel fazer. Mas o meu egoismo não me consente ver-te assim desoccupada, emquanto eu trabalho.

—Então em que tenho a occupar-me?

—Na justificação de teu irmão. O meu assentimento aos teus ultimos projectos, Jenny, fica dependente d'essa condição. Emquanto não me convenceres de que foi nobre o motivo que levou Carlos a vender aquelle relogio, não esperes de mim…

—Mas Charles insiste em occultar-m'o.

—Pois fosse a empreza facil, que não a confiaria de ti. Não julgues isto capricho da minha parte. Tu bem deves comprehender a importancia d'essa justificação. A fé não basta; é mister provas. Os teus planos baseiam-se na excessiva confiança em teu irmão; é fraca base para a felicidade da pessoa, de quem advogas a causa.

—Procurarei obter provas.

—Então dentro de oito dias.

—Dentro de oito dias.

E o pae e a filha separaram-se do melhor accôrdo.

Os preconceitos de Mr. Richard não haviam absolutamente serenado; mas Jenny tinha conseguido, por assim dizer, destacal-os do intimo, em que elles viviam dominando, e apresental-os á vista do pae que, envergonhando-se d'elles, os renegou.

Mr. Richard estimaria ainda encontrar outra solução á crise presente; mas por causa alguma consentiria já em se mostrar sob o imperio dos seus preconceitos clandestinos.

XXXVII

COMO SE EDUCA A OPINIÃO PUBLICA

No dia seguinte Manoel Quentino saíu cêdo para o escriptorio.

Andou toda a manhã pensativo o guarda-livros.

Quanto mais reflectia na scena da vespera e em outras antecedentes, tanto mais confirmada lhe parecia a vaga desconfiança de que não fora inteiramente verdadeira a explicação de Mr. Richard.

Mas não lhe queria mal por ella o velho guarda-livros; antes inteiramente lh'a agradecia. Assustava-o porém o estado do coração de Cecilia. Seria ainda tempo de arrancar de lá aquella affeição tão louca, que por imprevidencia deixára crescer.

Nisto pensava ainda Manoel Quentino, quando entrou no escriptorio um dos mais sisudos e abastados negociantes da Praça, e muito affavelmente o cumprimentou, dirigindo-lhe as mais lisongeiras expressões sobre os seus relevantes serviços á casa Whitestone e applaudindo a sagacidade com que antevira a suspensão de pagamentos de uma poderosa casa de Londres e evitára que a firma Whitestone soffresse na quebra. Manoel Quentino ficou surprendido com o inesperado cumprimento. Elle já nem pensava n'aquillo, nem imaginava que Mr. Richard, unico que o podia contar, o conservasse tão presente na memoria.

O grande conceito, em que tinha o negociante que lhe fallára, não deixava porém ser-lhe indifferente o louvor recebido d'elle.

A surpreza do velho augmentou, quando a este primeiro se succedeu outro e quando todos os que n'aquella manhã entravam no escriptorio pareciam apostados a reproduzir, com pequenas variantes, phrases iguaes de louvor.

A consideração que Mr. Whitestone gosava na Praça fizera com que por toda ella se espalhasse com rapidez a fama dos serviços prestados por Manoel Quentino, a quem o honrado inglez, fiel ás promessas que fizera a Jenny, exaltou com uma vehemencia de phrase e de expressão, pouco habitual á sua fleugma britannica, e que por isso mesmo leve dobrado effeito.

Como sempre acontece, á medida que a noticia se transmittia, ampliavam-se os serviços de Manoel Quentino. A opinião publica, que até então nem attentára n'elle, suppondo-o um ente inteiramente nullo, soffreu um d'estes reviramentos subitos, de que por certo os leitores hão de conhecer exemplos.

Em um grupo de negociantes, estacionados no passeio da rua dos Inglezes, discutiu-se toda a manhã Manoel Quentino. Um insistia em dar a entender aos collegas que havia muito adivinhára o homem; outro proclamava-o já o primeiro guarda-livros do Porto; outro fazia valer o seu profundo conhecimento da lingua ingleza; outro a sua perfeição calligraphica; outro a sua actividade, o seu desembaraço em operações e escripta commerciaes, e a sua longa pratica, etc., etc.

—Disse-me ha pouco Mr. Whitestone—acrescentou a isto tudo um barão—que o homem tem já o seu peculio bem bonito.

Mr. Whitestone não se esquecera d'esta parte do plano de Jenny.

—Que duvida!—disseram alguns.

—Sabem o que alli está?—fez notar um brazileiro—É um bom director de banco.

—E olhe que é verdade.

Esta opinião prova a que ponto subira, em poucas horas, o credito de Manoel Quentino. Julgal-o apto para director de um banco era o mais alto grau a que podia eleval-o o conceito publico. Tal foi o effeito do artificio de Jenny.

Mr. Richard via com prazer o bom exito do plano. O amor proprio de artista estava a suffocar o resto de preconceitos, que ainda sobreviviam n'elle. Por prudencia chamou de parte Mr. Brains, que viu na Praça, e deu-lhe a entender que convinha não fallar na scena do jantar da vespera.

—Porque, Mr. Brains—disse elle—bem vê que aquelle pateta de Carlos portou-se de maneira, que será pouco airoso para um inglez se se vier a saber…

Feita esta reflexão, o orgulho nacional terminava a obra, encadeiando a lingua de Mr. Brains; a de Morlays tambem a mesma causa foi, além da misanthropica incommunicabilidade, sufficiente para a refreiar.

N'esta mesma manhã, Cecilia, achando-se só em casa, julgou ouvir uma carruagem parar-lhe á porta.

Indo á janella, ficou agradavelmente surprendida vendo Jenny, que descia de um elegante carro descoberto, entrar para o portal.

Cecilia correu a recebel-a nos braços.

—Este sol não me deixou desde pela manhã ficar quieta, Cecilia—disse-lhe Jenny.—Appeteceu-me tomar ar e vim, para me fazeres companhia.

—Eu?

—Sim, tu; e desde já te declaro que não me sinto de animo para aceitar desculpas. Veste-te e vamos.

—Mas, Jenny… repare…

—Reparo que são dez horas e que não tenho paciencia para esperar mais.
Queres que te leve á força?

—Mas estou só…

—Emquanto te vestes alguém virá de certo, e se não vier… Emfim estou resolvida a cortar por todas as objecções, ainda que seja de uma maneira absurda. Vê lá se pódes luctar commigo.

Cecilia sorriu a este capricho de Jenny; era tão pouco sujeita a elles, que a filha de Manoel Quentino suspeitou que alguma ideia occulta andava n'isto.

Retirou-se porém para obedecer-lhe.

Jenny ficou só na sala.

Não esteve muito tempo sem que ouvisse passos na escada.

Era Antonia que voltava de fóra.

Antonia não suspeitava a presença de Jenny em casa. O jockey, para evitar o resfriamento da horsa, conduzira o carro até o fim da rua, de maneira que Antonia, ao chegar, nada viu á porta, que lhe denunciasse a visita.

Achando a sala aberta, suppôz que era Cecilia que estava alli e ainda do corredor principiou a clamar:

—Bem se diz: não ha nada que o tempo não descubra. Agora mesmo acabo de saber aonde mora a tal sujeita, com quem o snr. Carlos saiu de carruagem aquella manhã. Não que nem de proposito! Ia eu…

Aqui interrompeu-se de subito, porque reconheceu que estava fallando a
Jenny, em vez de Cecilia.

—Boa te vae—exclamou Antonia, mortificada. Mas já tinha dito bastante para que Jenny não a deixasse retirar.

—Espere, acabe. Aonde mora essa senhora? Diga.

Antonia estava visivelmente embaraçada.

O typo inglez de Jenny mostrou-lhe immediatamente que era na presença da propria irmã de Carlos, que ella tinha imprudentemente avançado aquellas palavras.

Jenny não lhe deu tempo de dominar esta primeira impressão e de tomar um partido.

—Não se constranja. Falle. Está diante da irmã de Carlos. Sei o facto a que se refere. Eu tambem tenho o maior interesse em conhecer a pessoa de quem fallava. Por isso acabe o que ia a dizer…

—Ora nem vale a pena. A minha ideia não era….

Jenny resolvera não abandonar aquelle ensejo de resolver o mysterio, que se promptificára a elucidar em oito dias. Um secreto presentimento lhe assegurava que d'esta pesquiza resultaria a justificação do irmão.

—Vamos—insistiu ella, dando ás palavras o tom de familiaridade propria a inspirar confiança.—Dizia que tinha descoberto a morada d'aquella senhora…

—Eu não disse…

—Não negue. Ouça-me. Eu sei tudo o que se tem passado entre meu irmão e
Cecilia.

—Sabe?!

O que Jenny não sabia era quaes as ideias da snr.ª Antonia sobre este assumpto, e por isso continuou com a maior precaução:

—Sei, e bem vê que, não só como irmã, mas como amiga, devo… preciso de…

—Mas quaes são as tenções da senhora?

—Concorrer para evitar o infortunio de ambos—respondeu Jenny, ambiguamente.

Antonia interpretou a seu modo a resposta.

—Pois bem; eu sei que a senhora tem muito juizo, e por isso digo-lhe, esta manhã…

N'isto ouviu-se Cecilia fechar a porta do quarto.

—Silencio;—disse Jenny—Cecilia vem ahi. Vamos sair juntas. Não lhe diga nada, emquanto não fallar commigo. É para bem d'ella. Ámanhã pela manhã procure-me. Sabe onde moro?

—Sei, sim, minha senhora.

—Então não falte. Vocemecê é uma mulher de juizo, e por isso quero fallar-lhe. E não diga a Cecilia!

—Esteja descansada—disse Antonia, a quem as ultimas palavras de Jenny tinham em extremo lisongeado e ganho de coração para a causa d'ella.

Cecilia chegou á sala.

Dentro em pouco, ambas aquellas duas mulheres de belleza incontestavel, ainda que de tão diversa indole, partiam no elegante carro, conversando e rindo, com a despreoccupação da juventude.

Jenny tinha com anticipacão dado as ordens para o passeio.

Seguiram pela estrada da Foz. Passaram quasi toda a manhã á beira-mar. Jenny parecia outra. A sua seriedade ingleza cedera o logar a uma vivacidade de conversação e a um contentamento, quasi de creança.

Tudo lhe era motivo para alegria, que pouco a pouco se communicou a
Cecilia tambem.

Ha poucas cousas tão fatalmente contagiosas como a alegria das pessoas sérias.

Foi uma deliciosa manhã a das duas raparigas. Cecilia estava muito longe de prever em que terminaria aquillo.

Á uma hora voltavam para o carro e ás duas entrava elle, com grande surpreza e sobresalto de Cecilia, pela rua dos Inglezes, então em plena actividade commercial.

A presença das duas amigas causou sensação na Praça. Todos conheciam
Jenny; raros, se alguns, podiam dizer quem fosse Cecilia.

Um inglez veio cumprimentar Jenny. Ella aproveitou a occasião para lhe apresentar Cecilia. Dentro em pouco corria voz na Praça de que era a filha de Manoel Quentino a senhora que acompanhava a ingleza.

Mr. Whitestone veio receber a filha ao portal. Ao ver Cecilia, trocou um sorriso de intelligencia com Jenny. Com toda a galanteria as ajudou a descer do carro.

Foi grande a surpresa de Manoel Quentino, vendo entrar a filha no escriptorio.

Jenny applaudiu o espanto do velho, rindo com vontade. Mr. Richard tambem não ficou sério.

Não menos surprendido foi Carlos com o encontro, que estava bem longe de esperar.

Entre Cecilia, Carlos e Manoel Quentino conservou-se invencivel constrangimento.

Perto das tres horas, os grupos que estavam ainda na Praça, viram sair do portal do escriptorio a familia Whitestone, Cecilia e Manoel Quentino, e todos tomarem logar no carro. Momentos depois este, guiado por Carlos, atravessava por entre esses grupos, e seguia toda a extensão da rua, deixando atraz de si uma esteira de commentarios.

Manoel Quentino ia enleiado; Cecilia, pensativa; Jenny, contente.

XXXVIII

JUSTIFICAÇÃO DE CARLOS

No dia seguinte pela manhã, era a snr.ª Antonia introduzida com muita deferencia no quarto de Jenny. A criada de Manoel Quentino estava penhorada com tantas attenções, e era já, de corpo e alma, creatura da inglezinha, como ella chamava a Jenny Whitestone.

Jenny fel-a sentar junto de si e pediu-lhe que lhe dissesse quanto sabia da tal senhora, a quem alludira na vespera.

Antonia com muitas digressões, a que era inclinada, contou como n'aquella manhã, passando por a rua de Santa Catharina, vira estar o snr. Paulo, segundo caixeiro do escriptorio de Mr. Richard, fallando, da rua para a janella, com uma senhora, que lhe sorria com affecto. Antonia, obedecendo a natural curiosidade, affirmou-se na tal senhora e reconheceu-a a mesma que procurára Carlos e saíra com elle n'aquella manhã, em que Antonia viera colher informações da snr.ª Josefinha da Agua-benta.

—Era ella sem tirar nem pôr. Emquanto a mim, alguma comediante do theatro, porque dizem… mas perdôe-me a senhora o eu estar com isto.

Jenny fingiu não attender á opinião de Antonia e perguntou:

—E diz então que mora?

—Na rua de Santa Catharina.

E entrou na minuciosa descripção da casa, com todas as particularidades, que a podessem fazer conhecida.

Jenny já não tinha nada mais a saber de Antonia.

Ao recompensar generosamente a boa vontade da informação, disse, como para acalmar os escrupulos ficticios de Antonia:

—Creia que lhe fico ainda obrigada por o que me contou. E agora tenho a pedir-lhe outra cousa.

—Diga, minha senhora, diga.

—A snr.ª Antonia não ha de dizer que veio aqui.

—Ora essa!

—Estou certa de que não diz; além d'isso, falle verdade, quer muito mal a meu irmão?

—Eu, minha senhora?—disse Antonia, visivelmente enleiada com a interpellação.

—É provável que sim. Quasi todos são injustos para Carlos, antes de o conhecerem. Depois, vendo como elle é bom, generoso e delicado, acabam por adoral-o.

A snr.ª Antonia ficou abalada nos seus juizos a respeito dos dotes criticos da cunhada da sobrinha do homem da sua comadre.

—Ora diga—continuou Jenny—não são prevenções sómente as que tem contra meu irmão?

—Sim… eu… quero dizer… a fallar a verdade…

—Pois bem; só lhe peço que, durante alguns dias, não pense bem nem mal de Carlos, até… até ter noticias minhas.

—Ó minha senhora, pois eu pensava lá…

—Vá, vá, snr.ª Antonia, para que Cecilia não desconfie. Não lhe diga cousa alguma, nem falle na tal senhora…

—Esteja descansada.

Logo que Antonia saiu, Jenny deu ordem para prepararem o carro.

E quando lhe annunciaram que esta ordem estava cumprida, desceu ao portal e entrando para o carro, disse ao criado, que a ajudou a subir:

—Ao alto de Santa Catharina.

Em pouco tempo, achou-se transportada lá. Jenny, pelos signaes que recebera de Antonia, e conservava de memoria, pôde reconhecer a casa da tal senhora e mandou parar defronte d'ella.

Só então hesitou pela primeira vez n'esta serie de actos, a que obedecera como subjugada por quasi instinctiva violencia.

—Em casa de quem vou eu entrar?—pensou ella—-Que mulher será esta?
Carlos afiançou-me… porém…

Á porta da casa contigua estava um criado, olhando com curiosidade para o carro era que viera Jenny.

Jenny mandou perguntar a este criado informações a respeito da senhora que vinha procurar.

Obteve a resposta de que morava na tal casa uma senhora viuva, na companhia do filho.

Jenny não hesitou mais; saltou para o passeio e tocou a campainha.

Passados minutos, era recebida em uma modesta, mas asseiada sala, por uma senhora ainda bella, apesar de haver já passado o verdor da juventude.

Jenny foi direita ao fim da visita.

—Minha senhora—disse ella—eu chamo-me Jenny Whitestone.

A senhora estremeceu de surpreza. Jenny proseguiu com uma concisão, verdadeiramente ingleza:

—Venho de proposito procural-a, e não sei ainda a quem tenho a honra de fallar. O fim da minha visita é este: Meu irmão, Carlos Whitestone, saíu ha dias de casa na companhia de uma senhora; entrou em uma loja de ourives, e vendeu um relogio, que, pouco tempo antes, recebera de meu pae.—Este facto foi sabido; meu pae experimentou com isto grande desgosto, e esta acção de Carlos tem sido interpretada de maneira desfavoravel para elle e trazido comsigo dissensões domesticas, que trabalho por aplacar. Meu irmão afiança não ter sido indigno o motivo do sacrificio que fez d'aquella dadiva do affecto paterno; insiste porém em não o explicar. Eu creio na palavra de Carlos, porque o conheço; mas nem todos depositam n'elle a mesma confiança. Soube por acaso que era v. exc.ª a senhora, que n'aquella manhã acompanhava meu irmão. Poderei obter de v. exc.ª provas para a justificação de Carlos?

Emquanto Jenny fallava, a senhora mostrava-se cada vez mais agitada, como se diversas sensações se combatessem n'ella. Ao ouvir-lhe esta pergunta, respondeu com as lagrimas nos olhos:

—Póde, sim, minha senhora; mas… depois de v. exc.ª as ver, dirá se me será possivel deixar de pedir-lhe que não use d'ellas.

—Como?—perguntou Jenny, admirada.

Em vez de responder, a senhora levantou-se e aproximou-se de uma secretária, que abriu. Voltou dentro em pouco, trazendo alguns papeis na mão.

—Eu sou a mãe de Paulo, o caixeiro do escriptorio do snr. Whitestone.

—Ah!

—Queira ler esta carta, minha senhora.

Era uma carta de Paulo á mãe.

Jenny leu; a meia leitura, saltavam-lhe já as lagrimas dos olhos e comprehendia tudo.

N'esta carta Paulo confessava-se criminoso e dizia-se perdido para sempre. O muito amor, que tinha á mãe, tornára-lhe insupportavel a ideia de que a menor privação fizesse sentir á pobre senhora as amarguras de unia existencia, para cujo amparo só elle ficára, depois da morte de seu pae.—Este sentimento piedoso perdeu-o. Não bastando para tratal-a, como desejava, os ordenados do escriptorio, contrahiu dividas primeiro; para as saldar, jogou nas loterias; acresceu o mal; e mais tarde, em um momento de desespêro, durante o mez da doença de Manoel Quentino, subtrahiu uma avultada somma da caixa, fechando os olhos ás consequencias.—A confiança de Carlos era facil de illudir; mas na vespera do regresso de Manoel Quentino ao escriptorio, Paulo previu que o desconfiado guarda-livros cêdo descobriria tudo. Após o susto, veio o remorso, e após o remorso, a resolução desesperada. Para evitar o suicidio, resolveu fugir da cidade. N'esta carta despedia-se portanto da mãe, e recommendava-lhe que pedisse protecção a Mr. Richard e sobretudo a Carlos, em cujo caracter generoso o pobre rapaz confiava cegamente.

—Ó meu bom Charles!—disse Jennv, ao acabar de ler—eu bem sentia que havia de ser digno de ti o motivo, que te levou áquillo. Comprehendo tudo, meu irmão…

—Seu irmão é uma alma sublime, a quem Deus pagará em venturas as lagrimas de gratidão, que elle me tem feito derramar.

Jenny apertou commovida as mãos da senhora, que chorava.

Contou a mãe de Paulo os promenores das scenas, que se passaram n'aquella manhã: como, ao acordar, dera pela ausencia do filho e encontrára esta carta a explical-a; o seu desespêro, a sua irresolucão; a ignorancia, em que ficou sobre o destino de Paulo.—Disse depois como o bilhete de um amigo desconhecido, indicando a Paulo a hora a que devia estar a bordo do navio, lhe dera indicios.

Depois contou toda a entrevista com Carlos, a quem ella recorrera desesperada. A prompta disposição d'este para valer-lhe, como, obtida com a venda do relogio a somma do alcance de Paulo, Carlos a acompanhára á Foz, até bordo do navio, e lhe restituira o filho, que ella já suppunha perdido.

—Horas depois—concluiu ella—recebia eu em casa este bilhete de Paulo.

Jenny leu-o. Dizia apenas:

«Tudo está salvo, minha boa mãe. A generosidade do snr. Carlos livrou-me da deshonra. Resta-me o dever da regeneração, que sinto agora mais vivo do que nunca.»

—E agora diga, minha senhora, devo accusar meu proprio filho? Não era por mim que elle se perdia? E devo pagar-lhe assim? É de justiça, bem sei; mas… perdôe-me se me falta a coragem. Não desculpará esta fraqueza a uma mãe?

Jenny abraçou-a com ternura.

—Tranquillise-se, minha senhora. Não é a esse coração que eu pedirei tal sacrificio. Deus me inspirará algum meio de valer a todos. Sinto-me agora com força para tudo.

—Pobre Paulo! O muito amor que me tem foi que o levou áquillo. Ainda hoje sente remorsos tão vivos!… Elle bem faz por se alegrar, mas… conheço que lhe peza esta pena dentro da alma. «Se eu fosse só—disse-me elle ha dias—se a minha desgraça não podesse cair sobre a cabeça de mais ninguem, eu já teria confessado tudo! Envergonho-me de mim mesmo, quando penso no meu silencio.» E eu, senhora, que abençoaria a hora, em que espontaneamente elle o confessasse, não tenho coragem para dizer-lhe: Falla! Parece-me quasi uma ingratidão… Era como se eu propria, sabendo que elle se deshonrára por mim, o apontasse deshonrado aos olhos dos outros.

Jenny consolou a pobre mãe e prometteu-lhe não revelar a alguem o que d'ella acabára de saber.

Saíu d'alli com a alegria no coração a generosa irmã de Carlos.

De caminho ia pensando na maneira de proceder para patentear ao pae a innocencia de Carlos, sem trahir a confiança, que a mãe de Paulo depositára n'ella.

De subito acudiu-lhe uma ideia, que a fez sorrir. E, em vez de voltar para casa, como tencionava, deu ordem para que a conduzissem ao escriptorio da rua dos Inglezes.

Mr. Richard, que passeiava na Praça, vendo chegar a filha, aproximou-se d'ella sorrindo.

—Que madrugada é esta, Jenny?

—Admira-se? pois ha muito que ando por fóra.

—Então é dia de feira?

—Não, senhor; mas tenho hoje de lhe dar contas de um trabalho de que me encarreguei.

—Qual?

—Um problema que prometti resolver em oito dias.

—Ah! e então?…

—E então, nem tanto tempo me foi preciso; já possuo a solução; agora só me resta uma difficuldade.

—Qual é?

—Achar a maneira apropriada de lh'a fazer saber.

—Isso não custa a imaginar.

—Não é muito facil, porque prometti que não serei eu que a diga.

—E então quem ha de ser?

—É o que venho procurar.

—Aqui?

—Lá acima, ao escriptorio, onde me deixará subir e demorar algum tempo.

—Como quizeres. E póde saber-se se a solução é satisfactoria?

—A melhor possivel.

—Duvido.

—Verá.

—Verei.

—Duas palavras mais; os seus caixeiros sabem todos inglez?

—Manoel Quentino…

—Esse sei que sim; os outros?

—Paulo não o falla, mas entende-o; o outro nem o entende, nem o falla.

—Bem. Outra cousa. Ha de fazer-me uma promessa.

—Dize.

—Quando souber a solução do problema, se reconhecer que foi severo de mais para com seu filho, será, em compensação, indulgente para com o verdadeiro culpado.

—Pois ha culpados?

—Promette?

—Mas…

—Prometterei, porém…

—Até logo. Ou eu me engano muito, ou, d'aqui a meia hora, póde vir saber o resultado.

—De ti?

—De mim não. Até logo.

E desappareceu, subindo com ligeireza as escadas carunchentas do escriptorio.

Ao entrar alli dentro, Jenny revestiu-se de um d'aquelles ares graves e pensativos, que tão bem lhe iam á physionomia sympathica.

Estavam na sala Manoel Quentino, Paulo e o outro caixeiro, e todos se levantaram, ao verem entrar a joven ingleza.

—Por favor, deixem-se estar como estão—disse ella, sentando-se ao pé de Manoel Quentino.—Quero descansar algum tempo aqui; mas não interrompam os trabalhos.

—Estava bem longe de a esperar hoje por estes sitios, miss Jenny—disse
Manoel Quentino, continuando a trabalhar.

—Precisei de fallar com o pae… Mas que tem, Manoel Quentino?
Parece-me triste; Cecilia como está?

—Graças a Deus, menina, Cecilia… não está mal.

—Então não esteja triste. Para tristezas basto eu.

—Então miss Jenny está triste?

—E não pouco, Manoel Quentino.

Manoel Quentino sorriu, como quem duvidava.

—De que se ri? Julga-me incapaz de sentir a tristeza?

—Não, mas não vejo o que possa causar-lh'a.

—Então ouça e diga se o motivo não é para estes e peiores effeitos.

Jenny, passando de repente a fallar inglez, como se desejasse ser sómente comprehendida por Manoel Quentino, a quem se dirigia em tom confidencial, proseguiu:

—Charles tem excellente coração, como sabe; mas uma cabeça!… Sem o querer, é o motivo de continuados desgostos em casa. Ahi está que se dá agora com elle um facto, bem singular, que é a causa da minha tristeza.

E Jenny principiou a contar a Manoel Quentino a historia do relogio, o desgosto de Mr. Richard, a insistencia de Carlos em occultar as razões que o moveram áquella venda, razões que elle se limitava a affirmar não serem vis.

—Mas que quer?—proseguia Jenny—quem o acreditará? Eu e mais ninguem. O conceito que geralmente fazem de meu irmão, não lhe serve de fiança valiosa. Isto tem feito existir entre Charles e o pae, ha já muitos dias, uma frieza… mais do que frieza, uma quasi hostilidade, que me afflige. Se soubesse, Manoel Quentino, o que tenho chorado por causa d'elles!…

Jenny que, como dissemos, fallava agora em inglez e como quem não receiava que alguem mais a comprehendesse na sala, lançava de quando em quando olhares furtivos para Paulo e via-o mudar de cor, passar de pallido a córado, empallidecer de novo, córar outra vez, emquanto mal segurava na mão tremula a penna, com que escrevia.

Jenny seguia com prazer todos estes signaes, e por elles conjecturava que estava sendo entendida.

—Verduras!—disse Manoel Quentino, procurando desculpar Carlos.

—Que importa que o sejam? São motivo bastante para nos fazer soffrer a todos.

Jenny insistiu muito n'isto, exagerou as côres sombrias com que pintou o horizonte domestico. N'isto fallava ainda, quando Mr. Richard entrou no escriptorio. Jenny receiou que qualquer pergunta d'elle inutilisasse todo o artificio, e por isso correu ao encontro do pae e, fingindo abraçal-o, disse-lhe ao ouvido:

—Não se refira a nada do que ha pouco lhe disse e demore-se aqui no escriptorio.

Mr. Richard fez, sorrindo, um signal de assentimento.

Jenny sustentou uma conversa insignificante, sem nunca perder de vista Paulo, cuja turbação indicava uma violenta lucta interior. Jenny agourava bem do que ia observando n'elle.

Emfim deixou afrouxar a conversa e fez ao pae signal para que entrasse no gabinete. Mr. Whitestone assim o fez.

A agitação de Paulo cresceu. Jenny espiava-lhe todos os movimentos e expressões. Viu-o pousar a penna e erguer-se, como movido por forte resolução. Jenny tremeu de sobresalto! Depois fez-se pallido, passou a mão pela fronte e sentou-se outra vez. Jenny desanimou. Ergueu-se emfim resoluto, e sem parar um momento mais, dirigiu-se ao gabinete de Mr. Richard e pediu licença para entrar.

—Entre—disse de dentro a voz do negociante.

Paulo entrou, fechando a porta atraz de si.

Jenny não pôde conter-se; saíram-lhe involuntariamente dos labios estas palavras:

—Está ganha a causa!

Manoel Quentino olhou para ella admirado.

Jenny pôz-se a rir.

—Se soubesse, Manoel Quentino, que se está agora mesmo desmoronando o ultimo e pequeno estorvo, que se oppunha á sua felicidade!…

Manoel Quentino cada vez a comprehendia menos.

Jenny nada mais disse.

A conferencia de Paulo e de Mr. Richard durou muito tempo. De fóra só se percebia um indistincto rumor de vozes, sem se distinguir uma só palavra.

A final abriu-se a porta outra vez.

Passou por Jenny o tremor de incerteza.

O primeiro que saiu foi Paulo; trazia as faces afogueadas, os olhos vermelhos; mas, por entre estes vestigios de tristeza, transluzia certo ar de contentamento de alma, que tranquillisou Jenny.

Momentos depois saiu Mr. Richard. Através da impassibilidade e frieza apparente da physionomia do velho, o olhar de Jenny percebeu que lhe ia muita alegria no coração.

Mr. Richard deu algumas ordens, fez algumas recommendações, e depois, voltando-se para a filha, disse-lhe que estava á disposição d'ella. Retirava-se do escriptorio a uma hora excepcional.

Jenny acompanhou-o.

—Saíste-te perfeitamente da tua incumbencia, Jenny—disse-lhe o pae, quando a sós com ella no carro.

—Então não saí?

—E como o conseguiste?

—Mais de vagar!… Esse é o meu segredo. Diga, não estará Carlos ainda justificado?

Um sorriso foi a resposta que obteve esta pergunta; sorriso de orgulho, de affecto, de commoção, que tudo estava então experimentando aquelle coração de pae.

—Carlos tem uma alma generosa, leal; eu tenho sido devéras injusto com elle.

Jenny exultou ao ouvir esta confissão.

—Escuso de perguntar—disse ella—se foi indulgente com o culpado: tenho até a pedir-lhe perdão de ter antes exigido a promessa d'aquillo, que por certo espontaneamente faria.

—Enganas-te; eu castigo.

Jenny olhou-o inquieta.

—O castigo é um dever moral—proseguiu o pae.—É o meio de regeneração. As almas fracas e vis castigam-se com rigores; só o mêdo póde refreial-as. Mas Paulo, apesar da sua fraqueza, tem vigorosos ainda os instinctos da honra; para estes o castigo, que regenera, é o pagar a culpa com o beneficio. No mesmo dia, em que Manoel Quentino for meu socio, Paulo será nosso guarda-livros, ser-lhe-hão augmentados os salarios e confiada a caixa.

Jenny beijou as mãos do pae.

—Deus não castigaria por outra fórma.

—Não digas heresias, Jenny.

Haviam chegado a casa.

—Agora pódes fazer a Manoel Quentino o teu presente—disse Mr. Richard.

—E depois…

—Depois examinaremos de vagar o resto das tuas loucuras.

XXXIX

CORÔA-SE A OBRA

Manoel Quentino estava ainda em casa, na manhã do dia seguinte, quando Antonia lhe veio annunciar que a «inglezinha» chegára em uma carruagem e perguntava por elle.

Cecilia e Manoel Quentino correram ao encontro de Jenny.

—Estranham-me a madrugada? Que querem? Não pude dormir toda a noite com a lembrança d'esta visita. Desejava encontrar ainda em casa o snr. Manoel Quentino e como sei dos seus habitos matinaes…

—Ainda tenho meia hora—disse o guarda-livros, consultando o relogio.

—O fim da minha visita é simplesmente entregar-lhe em mão propria uma mensagem de meu pae. Quer ver?

E passou para as mãos do velho a carta, que o leitor conhece já.

Emquanto Manoel Quentino se dispunha a lel-a, Jenny dizia a Cecilia:

—Então como vae esse coração?

—O coração?

—Sim; eu não quero que elle se deixe curar senão por mim. Entendes?

—E acha-o doente?—perguntou Cecilia.

—E acha-o são?—perguntou Jenny, imitando-a.

Cecilia ia a responder, mas suspendeu-se, olhando para o pae.

—Jesus! Que tem meu pae? Olhe!

Manoel Quentino, que acabára de ler a carta de Mr. Richard, estava efectivamente perturbado; fizera-se pallido, e tremia olhando para o escripto, que conservava na mão.

Jenny sorriu.

Cecilia correu para o pae.

—Que é isso? que é o que tem?

Manoel Quentino mostrou-lhe em silencio a carta do inglez.

Cecilia leu-a em um relance de olhos. No fim, banhada de lagrimas, abraçou o pae com transporte.

—Oh que felicidade, meu pae!

O velho parecia hesitar ainda entre a alegria da nova e não sei que amargo pensamento, que teimava em enlutal-a.

—É de certo á influencia d'este anjo—disse Cecilia, designando
Jenny—que devemos esta ventura.

O guarda-livros olhou tambem para Jenny, e, com certa perturbação de voz mal disfarçada, perguntou-lhe:

—Miss Jenny, a que serviços devo eu uma tão generosa recompensa?

—Serão poucos os de dezoito annos de fidelidade, Manoel Quentino? Vamos—continuou sorrindo—querem ver que nos sáe um desconfiado? Asseguro-lhe eu, Jenny—continuou com voz firme e grave, porque julgou divisar um raio de desconfiança no olhar de Manoel Quentino—-asseguro-lhe eu, que vi escrever essa carta e que beijei, reconhecida, a mão que a escreveu, asseguro-lhe que póde e que deve aceitar a mercê—se mercê se póde chamar—com a certeza de que a obteve por nobres e reaes serviços.

Estas palavras desarmaram Manoel Quentino. Todas as sombras suscitadas pela leitura se desfizeram.

Havia-lhe de facto occorrido, que lhe queriam compensar d'aquella maneira as tenções, menos leaes, de Carlos para com a filha, e, com esta ideia, o orgulho e o despeito, mal sopeados ainda, revoltaram-se-lhe no coração outra vez.

Mas o conceito, em que tinha Jenny, não lhe deixava supportar estes escrupulos, desde que por ella os via condemnados.

Agora porém era Cecilia a que ficava pensativa.

Passada a primeira expansão de alegria, que a felicidade do pae lhe despertára, acudiu a reflexão a fazel-a meditar sobre as tenções de Jenny.

Esta, que observava a amiga, chamou-a de parte.

—Que ares graves são esses, Cecilia?

—Jenny, deixa-me fazer-lhe uma pergunta?

—Não; se for feita de maneira tão ceremoniosa. Vê que não é assim que eu te trato.

—Mas…

—É condição para que te escute. Falla.

—Diga-me…

A um gesto de Jenny, corrigiu, sorrindo:

—Dizes-me toda a significação d'isto?

—De quê?

—D'esta generosa acção, que eu sinto vir da… tua inspiração?

—Então não te basta a explicação que dei? Tão impossivel te parece já a gratidão, que…

—Não, mas as circumstancias, que occorreram… o que se passou…

—Que tem tudo isso?

—Jenny, perdôa-me; mas a minha consciencia obriga-me a pôr de parte todas as reservas e a fallar-te com franqueza…

—E inda agora o fazes?

—Responde-me… Quaes são as tuas tenções?

—Que tenções?

—As tuas tenções… a meu respeito?

—Ah!… As melhores tenções d'este mundo… Fazer-te feliz.

—Mas repara, Jenny, que eu não o posso nunca ser, á custa de sacrificios alheios.

—E quem é que se vae sacrificar?

—Não sei, mas… acudiu-me um pensamento… louco por certo… mas inquieta-me… A tua generosidade é capaz de tudo…

—Vamos lá a ver esse pensamento louco, que te occorreu.

—N'aquella manhã, no dia dos teus annos, quando me appareceste, como o anjo de misericordia, em um momento de afflicção… lembras-te?

—Vamos adiante… O anjo de misericordia é que veio de mais ahi…

—N'esse momento, ouvi-te dizer algumas palavras, que tremi de comprehender, depois quando disseste a… teu irmão que eu tinha direitos a exigir d'elle a affeição que…

—E não tinhas?

—Ouve-me, Jenny. D'aquella vez a tua angelica presença bastou para me salvar; mas se não bastasse, quando eu tivesse sido surprendida, como o acaso me arriscou a ser, alli, só, n'aquelle logar, e ficasse perdida na opinião de todos, coberta de vergonha e de despreso, ainda assim preferiria retirar-me só com a minha consciencia, que me não accusava, a usar dos direitos a essa reparação, que dizias. Exigir affeições! Repara bem, Jenny:—Exigir!—E podem lá exigir-se affeicões? Receber as apparencias d'ellas, em vez da realidade! E a quem dá isso venturas?

—Tens razão, Cecilia. Vê; eu também sou do teu pensar, e comtudo teimo em fazer-te feliz. E sinceramente confesso que isto hoje é um passo dado no caminho, em que entrei e que estou disposta a seguir até o fim.

—Mas…

—Com franqueza, Cecilia. Falta-nos o tempo para rodeios. Acreditas ou não na affeição de Carlos?

—Não.

—Que não tão desenganado!—tornou Jenny, sorrindo—Ha de custar-me a perdoar-t'o. Não sei se sabes que tomei sobre mim o justificar meu irmão. Já tenho alcançado muitas victorias. Meu pae confessou-se já hontem injusto para com elle. A tua criada Antonia está meia abalada tambem.

—Antonia?!

—É verdade. Eu suspeitei que meu irmão tinha n'ella um inimigo, e parece-me ha ver acertado. E senão dize-me: não foi Antonia quem te contou a historia de certa visita, que Carlos recebeu?

Cecilia desviou os olhos, ao ouvir a referencia ao delicto, que com tão amargas censuras lhe fora de facto contado pela criada.

—Bem vejo que me não enganei—continuou Jenny.—Pois até Antonia se dará por vencida a final. Emquanto á tal visita… dir-te-hei de passagem que tudo está satisfactoriamente explicado.

—Como?—perguntou Cecilia com vivacidade.

—É segredo que meu irmão te poderá revelar, quando… entre ti e elle não devam existir segredos.

—Tarde viria então, para me aproveitar, o esclarecimento.

—Até lá contenta-te com a minha palavra; ou tambem duvídas d'ella?

A volta de Manoel Quentino á sala interrompeu o dialogo.

Cecilia ficou no fim d'elle com mais confiança no futuro, e mais frequentes lhe assomaram os risos aos labios no resto da manhã.

Espalhou-se rapidamente na Praça, durante aquella manhã, a nova da promoção de Manoel Quentino.

Choveram-lhe parabens de todos os lados, cresceu na opinião publica a reputação do guarda-livros.

Conceituando altamente a classe commercial, não podia Manoel Quentino ficar indifferente, ao sentir-se guindado por ella na escada da consideração. Deixava-se possuir de legitimo orgulho, que, não obstante, o não fazia soberbo.

Paulo foi no mesmo dia nomeado guarda-livros, com augmento de ordenado.

O pobre rapaz recebeu com lagrimas a nomeação. Estas lagrimas estavam vingando Mr. Richard.

As manifestações publicas de intimidade entre as duas familias repetiram-se, graças aos artificios de Jenny.

Uma noite, Cecilia, obrigada por ella, appareceu no theatro.

Os amigos de Carlos reconheceram-a, e os boatos do proximo casamento de Mr. Richard com a filha do seu novo socio principiaram, desde então, a transpirar na cidade com certa insistencia.

A phantasia de alguns novelleiros explicava o facto por motivos occultos, dando a entender que os serviços, que devia a casa Whitestone a Manoel Quentino, eram maiores do que os reconhecidos por ella e que as economias do velho guarda-livros tinham valido para atalhar os males causados pelos arrojos do patrão. Desde que se achára assim meio de fazer intervir na explicação o elemento interesse, os animos aceitavam-a de mais boa mente.

Tinha Mr. Richard razão.

Partira porém um vapor para Londres e, após o primeiro, outro e outro, sem que o velho commerciante inglez fizesse lembrar ao filho o cumprimento da sua sentença.

Uma manhã, estava Mr. Richard no gabinete, enthusiasmado na contemplação da chamada «Águia dourada», ou technicamente: Aquila Chrysaetos, raro visitador dos suburbios de Londres, que elle recebera nas vesperas de um seu amigo de Boxhill, onde fora caçada e morta, quando d'este quasi extase de colleccionador o arrancou o rumor da porta do gabinete que se abria; Mr. Richard voltou-se e viu o rosto da filha, que espreitava para dentro.

—Entra, Jenny, entra—disse elle, com a affabilidade com que sempre lhe fallava.

Jenny entrou.

—Que te traz por aqui, tão de madrugada?

—Encarreguei-me de uma apresentação, que peço licença para fazer-lhe.

—De uma apresentação?! De quem?

—De uma pessoa—respondeu Jenny maliciosamente—que lhe quer pedir as suas ordens para Londres. Ha muitos dias já que tinha de partir para lá.

Mr. Whitestone olhou, sorrindo, para a filha, cujas palavras, com o seu sahor epigrammatico, o deliciavam.

—Que entre, que entre o teu recommendado.

Jenny abriu a porta e introduziu Carlos na sala.

Apesar da timidez, que sentia sempre na presença do pae, Carlos recebia agora coragem da consciencia de ter ganho de antemão a causa, que vinha por formalidade advogar alli.

—Meu pae—disse elle, adiantando-se para Mr. Whitestone—não ha muitos dias, que pela sua bôca ouvi qualificada como infamia uma acção minha; venho pedir-lhe agora que me deixe usar do unico meio, que tenho, para evitar que a arguição seja, até certo ponto, merecida.

—Qual é?—perguntou concisamente Mr. Richard.

—Procurar Manoel Quentino e pedir-lhe para offerecer o meu nome, honrado por meu pae com uma vida inteira de probidade, a essa menina, que as minhas imprudencias, e nunca as minhas intenções, iam sacrificando. Salvou-a uma vez a generosidade de minha irmã; outra, a sua, senhor. Deixe-me pois seguir o exemplo tão nobre que me apontaram e com elle o que, ao mesmo tempo, me aconselha o coração.

—E já pensaste bem, Carlos;—disse Mr. Richard, que tinha já perdido toda a sua rispidez—já pensaste bem no que vaes fazer? Não temes que venhas ainda a arrepender-te d'esse passo pouco reflectido? Não receias tornar-te o instrumento da infelicidade d'essa menina? Estás preparado para as obrigações, que, como chefe de familia, vaes chamar sobre ti?

—Eu sei que o passado poucas garantias me póde conceder; mais tenho fé em que o futuro me justificará…

—Fé?—disse Mr. Richard, rindo—É o unico fiador que tens por ti?

Jenny pousou a mão no hombro do pae, dizendo com suavidade:

—E eu.

Mr. Richard voltou-se.

—Tu? Tu afianças Carlos?

—Afianço.

—É arrojo!

—Não é a primeira vez. E o pae sabe qual de nós tem tido razão de se arrepender. Se eu, da minha confiança; se o pae, das suas suspeitas.

—Á falta de melhor, aceito a garantia.

E voltando-se para o filho:

—Parta então, Carlos; e lembre-se de que, depois do passo que vae dar, é… deve ser outro homem.

E Mr. Richard Whitestone estendeu a mão para o filho, que a beijou, antes de partir.

—Não sei se fizeste bem, Jenny—dizia o pae, vendo-o saír do quarto.

—Consultei a memoria de minha mãe, tendo os olhos no retrato d'ella.
Tenho fé nas resoluções que me veem assim.

Mr. Richard olhou algum tempo para a filha com amor, e depois, apertando-a ao peito, disse:

—Deus te ouça!… E ha de ouvir, que bem lh'o mereces.

—E nós, senhor, ficamos aqui?—perguntou Jenny.

—Pois que mais queres tu ainda?

—É natural que seja Charles o primeiro a tratar este negocio em casa de
Manoel Quentino; mas será delicado que seja o unico?

Mr. Richard tocou a campainha.

—Que apromptem o carro para já—disse ao criado que acudiu ao signal.

—E agora que mais queres?

—Agradecer-lhe.

E depois de abraçar o pae, saiu a correr da sala.

Esta scena teve em casa de Manoel Quentino os seguintes resultados:

Estava o pae de Cecilia preparando-se para sair, quando viu entrar
Antonia no quarto com inquietação e sobresalto.

—Que é, Antonia? Que temos nós?—disse Manoel Quentino, surprendido com o aspecto da criada.

—Está alli alguem a procural-o, snr. Manoel Quentino.

—Ainda algum importuno a dar-me parabens. Emquanto eu fui guarda-livros, ninguem me procurava… agora…

E preparou-se para ir ver quem era.

Cecilia, ao ouvir a criada, córada de maneira particular e sob não sei que pretexto, recolheu-se ao quarto.

É que se lembrou, n'aquelle momento, de um bilhete, que na vespera recebera de Jenny, com estas sós palavras:

«Desejo-te e agouro-te muito risonhas madrugadas.»

Assignada—«Tua irmã, Jenny

Logo que Cecilia saiu, Antonia chegou-se ao pé de Manoel Quentino e disse-lhe em ar de mysterio:

—É elle outra vez!

—Elle quem?

—O filho do inglez.

—Carlos?!

Foi com alvoroço que Manoel Quentino desceu as escadas e chegou á presença do irmão de Jenny.

Carlos não estava menos agitado. Nos seus gestos e palavras havia uma gravidade, que Manoel Quenlino lhe estranhou.

Não se sentiam á vontade um na presença do outro, o que não é para admirar depois das scenas occorridas entre ambos.

Carlos rompeu primeiro o silencio.

—Manoel Quentino, eu venho aqui para um fim muito serio e de maxima importancia para nós ambos.

Depois de curto intervallo de pausa, acrescentou:

—Venho aqui pedir-lhe a mão de sua filha.

Manoel Quentino deu um salto na cadeira, em que estava sentado.

—Pedir a…?

—A mão de Cecilia—repetiu Carlos, com firmeza.

Uma nuvem toldou por momentos o espirito de Manoel Quentino. As suspeitas, mal acalmadas, agitaram-se de novo áquellas palavras.

Carlos, notando-o, acrescentou:

—Não lhe occulto agora que ha muito sinto por sua filha uma affeicão, que em vão procurei combater. Curvei a cabeça ante as suas accusações, Manoel Quentino, não porque me exprobrasse a consciencia alguma tenção infame, mas porque pelas minhas imprudencias podia de facto ter arriscado a boa fama da pessoa, que eu quereria defender por todo o preço, á custa de todos os sacrificios, e tinha remorsos d'isso. Não é reparação, que venho aqui oferecer; Cecilia não carece d'ella; venho pedir-lhe a minha felicidade.

Manoel Quentino permanecia como estupefacto.

—De meu pae tenho já o consentimento; tenho tambem a approvacão de
Jenny; falta-me apenas…

—E Cecilia?…

—Interrogue-a.

Manoel Quentino, quasi sem saber o que fazia, dirigiu-se á porta para chamar a filha. Esta não estava longe, como é de prever.

Ao entrar na sala, o rosto tinha-lhe dito mais, do que se podia esperar das palavras.

Manoel Quentino não era para mais hesitações e reservas. Atirou-se ao pescoço de Carlos; abraçou-o, beijou-o, chamando-lhe seu querido filho.

—Cecilia—dizia Carlos d'ahi a pouco, aproximando-se d'ella—se, para avaliar os seus sentimentos, esperasse que m'os revelasse, duvidaria ainda, sabe?

—Mas não duvída?

—Não, porque… os adivinho; julgo eu que os adivinho.

—E que mais quer? Infelizes dos que não sabem adivinhar assim. Esses… não amam devéras. Não lhe parece?

—E adivinha tambem?

—Espero que sim.

—Mas ainda ha tão pouco tempo que duvidava!

—Ou queria obrigar-me a duvidar.

—E não o conseguiu?

—Bem vê que creio, antes de ouvir a justificação.

—Prometto-lhe que não abusarei d'essa generosa confiança—respondeu
Carlos, beijando-lhe a mão, que ella lhe estendia.

Ora succedeu que a snr.ª Antonia surprendesse esta scena. Rica de tal descoberta, correu a dar parte d'ella ao amo, que cantarolava na sala contigua.

Mas qual não foi o seu espanto, ao ver Manoel Quentino receber ás risadas a communicacão do delicto!

Um raio de luz atravessou o entendimento d'aquella prudente senhora.

Tinha ella bastante tino politico para deixar de imitar os deputados que, aos primeiros indicios de mudança ministerial, teem a cautela de se passarem, com armas e bagagem, para a opposicão, com o fim de no dia seguinte amanhecerem do lado do poder.

Teve cêdo a snr.ª Antonia occasião de manifestar este tacto politico. Ouviu-se tocar a campainha do portal, e Antonia, que veio abrir a cancella, achou-se na presença do snr. José Fortunato, o qual a vinha prevenir de que vira passar Carlos na rua.

—Olhem o milagre! Se elle está cá em cima!—disse Antonia, encolhendo os hombros.

—Lá em cima!—exclamou o outro.

—Temos grande novidade. A cousa agora é a valer.

—O quê? o que é a valer, snr.ª Antonia, o que é a valer?

—Desconfio que ha casamento tratado.

O snr. José Fortunato fez uma careta.

—Que me diz?!

—Sim; então que ha ahi de maior? Talhados são elles um para o outro. Da mesma idade e…

Não pôde continuar; o carro de Mr. Richard parava junto do portal, e o velho inglez saltou lepidamente d'elle e ajudou Jenny a saír.

—Santa Virgem, que ahi vem tudo!—exclamou Antonia, correndo pelas escadas acima a annunciar os recem-chegados.

A curiosidade do snr. José Fortunato venceu o despeito e fel-o entrar tambem para ver.

Viu um singular espectaculo!

Jenny abraçava Cecilia com effusão; Manoel Quentino era gravemente abraçado por Mr. Richard; depois era Carlos, que apresentava Cecilia a Mr. Richard, dizendo:

—Trago-lhe mais uma filha, senhor.

E Mr. Richard, que respondia, abraçando-a:

—Agradecido, Carlos. É um verdadeiro thesouro, que me dás.

Cecilia beijava commovida a mão do inglez. Manoel Quentino, soltando phrases desordenadas, abraçava toda a gente. Antonia dava parabens a todos e de ninguem era attendida.

O snr. José Fortunato viu e voltou as costas ao que vira. Desceu as escadas, despercebido de todos, sacudiu na soleira da porta o pó dos seus sapatos, e, resmoneando palavras inintelligiveis, saiu para não voltar.

CONCLUSÃO

Vencidas as difficuldades, que as differentes religiões de Carlos e de Cecilia traziam comsigo, o casamento fez-se. Não exponho agora aqui as condições do contracto, por me parecerem de pouco interesse para o leitor.

Manoel Quentino não desceu no conceito publíco. Pelo contrario, passou a ser um d'estes homens, que em certas épocas o Porto julga indispensaveis e cujos nomes passam a figurar em quantos cargos, sociedades e commissões se organisam n'esta emprehendedora cidade.

Tem sido successivamente director de um banco, mordomo da Santa Casa e camarista.

Mr. Richard continúa com os seus habitos de vida ingleza e com as leituras do Sterne.

Os seus compatriotas Brains e Morlays são ainda o que sempre foram; um, o inglez que chora; outro, o inglez que ri.

Preciso de acrescentar que Cecilia e Carlos vivem felizes?

Nem eu sei se teria coragem de lhes escrever a historia dos amores se esse não fora o resultado.

E Jenny?

Jenny é sempre o anjo bom da familia.

Nunca Mr. Richard teve de pedir-lhe contas da fiança que dera por
Carlos. Este não lhe tem offerecido ensejo para isso.

FIM.

[1] Paul Feval.

INDICE

I—Especie de prologo, em que se faz uma apresentação ao leitor

II—Mais duas apresentações, e acaba o prologo

III—Na Aguia d'Ouro

IV—Um anjo familiar

V—Uma manhã de Mr. Richard

VI—Ao despertar de Carlos

VII—Revista da noite

VIII—Na Praça

IX—No escriptorio

X—Jenny

XI—Cecilia

XII—Outro depoimento

XIII—Vida portuense

XIV—Imminencia de crise

XV—Vida ingleza

XVI—No theatro

XVII—Contas de Carlos com a consciencia

XVIII—Contas de Jenny com a consciencia de Carlos

XIX—Aggravam-se os symptomas

XX—Manoel Quentino procura distracções

XXI—O que vale uma resolução

XXII—Educação commercial

XXIII—Diplomacia do coração

XXIV—Em que a senhora Antonia procura encher-se de razão

XXV—Tempestade domestica

XXVI—Inefficaz mediação de Jenny

XXVII—O motivo mais forte

XXVIII—Fórma-se a tempestade em outro ponto

XXIX—Os amigos de Carlos

XXX—Peso que póde ter uma leviandade

XXXI—O que se passa em casa de Manoel Quentino

XXXII—Os convivas de Mr. Richard

XXXIII—Em honra de Jenny

XXXIV—Manoel Quentino allucinado

XXXV—A sentença do pae

XXXVI—A defeza da irmã

XXXVII—Como se educa a opinião publica

XXXVIII—Justificação de Carlos

XXXIX—Corôa-se a obra