Title: A Alma Nova
Author: Guilherme Avelino Chave de Azevedo
Release date: January 30, 2006 [eBook #17639]
Language: Portuguese
Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
TYPOGRAPHIA SOUSA & FILHO
Rua do Norte, 145
1874
_Meu amigo.
Este livro parece-me um pouco do nosso tempo. Sorrindo ou combatendo, fala da Humanidade e da Justiça, inspirando-se no mundo que nos rodeia.
E porque julgo que elle segue na direcção nova dos espiritos, offereço-o a um obreiro honesto do pensamento: a uma alma lucida, moderna e generosa_.
Dezembro de 1873.
Guilherme d'Azevedo.
Eu poucas vezes canto os casos melancolicos,
Os lethargos gentis, os extasis bucolicos
E as desditas crueis do proprio coração;
Mas não celebro o vicio e odeio o desalinho
Da muza sem pudor que mostra no caminho
A liga á multidão.
A sagrada poesia, a peregrina eterna,
Ouvi dizer que soffre uma affecção moderna,
Uns fastios sem nome, uns tedios ideaes;
Que ensaia, presumida, o gesto romanesco
E, vaidosa de si, no collo eburneo e fresco,
Põe crémes triviaes!
Oh, pensam mal de ti, da tua castidade!
Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade,
Os falsos ouropeis das cortezãs gentis,
E julgam já tocar-te as roçagantes vestes
Ó deusa virginal das coleras celestes,
Das graças juvenis!
Retine a cançoneta alegre das bachantes,
Saudadas nos wagons, nos caes, nos restaurantes,
Visões d'olhar travesso e provocantes pés,
E julgam já escutar a voz do paraiso,
Amando o que ha de falso e torpe no sorriso
Das musas dos cafés!
Oh, tu não és, de certo, a virgem quebradiça
Estiolada e gentil, que vem depois da missa
Mostrar pela cidade o seu fino desdem,
Nem a fada que sente um vaporoso tedio
Emquanto vae sonhando um noivo rico e nédio
Que a possa pagar bem!
Nem posso mesmo crêr, archanjo, que tu sejas
A menina gentil que ás portas das egrejas
Emquanto a multidão galante adora a cruz,
A bem do pobre enfermo á turba pede esmola
Nas pompas ideaes da moda, que a consola
Das magoas do Jesus!
E nas horas de luta emquanto os povos choram
E a guerra tudo mata e os reis tudo devoram,
Não posso dizer bem se acaso tu serás
A senhora que espalha os languidos fastios
Nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios
Á viva luz do gaz!
Tu és a apparição gentil, meia selvagem,
D'olhar profundo e bom, de candida roupagem,
De fronte immaculada e seios virginaes,
Que desenha no espaço o limpido contorno
E cinge na cabeça o virginal adorno
De folhas naturaes.
Tens a linha ideal das candidas figuras;
As curvas divinaes; as tintas sãs e puras
Da austera virgindade; as bellas correcções;
E segues magestosa em teu longo caminho
Deixando fluctuar a tunica de linho
Ás frescas virações!
Quando trava batalha a tua irmã Justiça
Acodes ao combate e apontas sobre a liça
Uma espada de luz ao Mal dominador:
E pensas na belleza harmonica das cousas
Sentindo que se move um mundo sob as louzas
No germen d'uma flôr!
N'um sorriso cruel, pungente d'ironia,
Tambem sabes vibrar, serena, altiva e fria,
O latego febril das grandes punições;
E vendo-te sorrir, a geração doente,
Sentir cuida, talvez, a nota decadente,
Das morbidas canções!
Oh, vôa sem cessar traçando nos teus hombros
O manto constellado, ó deusa dos assombros,
Até chegar um dia ás regiões de luz,
Aonde, na poeira aurifera dos astros,
Contricto, Satanaz enxugará de rastos,
As chagas de Jesus!
Logar á minha fada ó languidas senhoras!
E vós que amaes do circo as noites tentadoras,
Os fluctuantes véos, os gestos divinaes,
Podeis vel-a passar n'um turbilhão fantastico,
Voando no corcel febril, nervoso, elastico,
Dos novos ideaes!
Eu vi passar, além, vogando sobre os mares
O cadaver d'Ophelia: a espuma da voragem
E as algas naturaes, serviam de roupagem
Á triste apparição das noites seculares!
Seguia tristemente ás regiões polares
Nos limos das marés; e a rija cartilagem
Sustinha-lhe tremendo aos halitos da aragem,
No peito carcomido, uns grandes nenuphares!
Oh! lembro-me que tu, minha alma, em certos dias
Sorriste já, tambem, nas vagas harmonias
Das cousas ideaes! mas hoje á luz mortiça
Dos astros, caminhando; apenas as ruinas
Das tuas creações fantasticas, divinas,
De pasto vão servindo aos lyrios da justiça!
Rufa ao longe um tambor. Dir-se-ia ser o arranco
D'um mundo que desaba; ahi vae tudo em tropel!
Vão ver passar na rua um velho saltimbanco
E uma féra que dansa atada a um cordel.
Ó funambulos vis, comediantes rotos,
O vosso riso alvar agrada á multidão!
E quando vós passaes o archanjo dos esgotos
Atira-vos a flôr que mais encontra á mão!
Lá vae tudo a correr: são as grotescas dansas
D'uns velhos animaes que já foram crueis
E agora vão soffrendo os risos das creanças
E os apupos da turba a troco de dez réis.
Conta um velho histrião, descabellado e pallido,
Da féra sanguinaria o instincto vil e mau,
E vae chicoteando um urso meio invalido
Que lambe as mãos ao povo e faz jogo de páu.
Depois inclina a face e obriga a que lh'a beije
A fera legendaria olhada com pavor:
E uma deosa gentil, vestida de bareje,
Annuncia o prodigio a rufo de tambor!
E as mães erguem ao collo uns filhos enfezados
Que nunca tinham visto a luz dos ouropeis:
E accresce á multidão a turba dos soldados,
—Ao ilota da cidade o escravo dos quarteis.
E o funambulo grita; impõe qual evangelho
Á turba extasiada a grande narração.
E sobre um cão enfermo um ourangotango velho
Passeia nobremente os gestos de truão.
Correi de toda a parte, aligeirae o passo,
Deixae a grande lida e vinde á rua vêr
As prendas d'uma fera, as galas d'um palhaço,
E um archanjo que sua e pede de beber!
A tua imagem tens ó povo legendario
No comico festim que mal podes pagar,
Pois tu ainda és no mundo o velho dromedario
Que a vara do histrião nas praças faz dansar.
Depois da tua morte eu heide ver se arranco,
N'uma noite serena, ao teu berço final,
Um producto mimoso;—um grande lyrio branco
Da alvura do teu collo eburneo e divinal!
Aquella flôr suave, ó minha visão estherica,
Debruçada gentil, na taça em que a puzer,
Fazer-me-ha lembrar a graça cadaverica
Do teu corpo franzino e ethereo de mulher!
E mesmo conterá, de certo, alguma cousa
Do que me traz submisso e prezo ao teu olhar:
—Teu corpo a pouco e pouco irá fugindo á louza
Depois tornado em lyrio á terra hade voltar!—
E em longas noites, n'elle, eu beberei sosinho,
Sonhando as convulsões d'uns lindos braços nús,
A fragrancia que exhala a candidez do linho
Em que hoje ondeias leve e onde os meus labios puz,
—Saudando a boa mãe que faz com que eu te gose
Depois do verme vil teu seio polluir,
Mais pura no frescor de tal metamorphose
Do que eras a scismar, do que eras a sorrir!
Ó minha doce Ophelia! Os rapidos momentos
Da vida, são crueis mas passam como um som!
Um dia quando em fim dos velhos sedimentos
Teu corpo renascer n'um lyrio immenso e bom,
Talvez que eu durma já tambem sob os matizes
Das flôres, ao sorrir das mil germinações,
Dando um pasto fecundo ás tuas sãas raizes
Depois de te sagrar as ultimas canções!
Havia um rapaz são, robusto, bom, valente,
De espadua larga e rija; um ceifador gentil.
Cavava todo o dia, andou sempre contente
E a feria dava á mãe sem falta d'um ceitil.
Elle amava a campina e os ceus largos, serenos.
Aos domingos a mãe deixava-lhe uns dez reis.
Deitava-se ao luar, dormindo sobre os fênos,
Na fragrancia do trêvo, ao pé dos cães fieis.
A mãe tinha de seu duas vaquitas mansas:
N'um cerro agreste e vil alguns palmos de chão.
E tinha ainda mais não sei quantas creanças
Que andavam nuas sempre e sempre a pedir pão.
O pae mal se sustinha ás vezes sobre as pernas:
Era bebado e mau, batia na mulher;
E á noite, ao scintillar dos vinhos nas tavernas,
Cantava canções vis de a gente ensurdecer.
Um dia uma senhora honesta da cidade,
Esplendida, gentil, sabendo-se sorrir,
Reparou no rapaz; achou-lhe propria a idade
E fez-lhe um certo gesto:—o moço não quiz ir.
Teve um assomo de raiva, então, sua excellencia.
Ordenou-lhe que fosse: o moço disse,—irei!
Despediu-se dos seus: devia obediencia
Á senhora gentil que se chamava… a Lei!
Pegou no velho alforge e no bordão nodozo
E metteu-se a caminho. Os pobres dos irmãos
Choravam á partida:—um quadro doloroso!
A mãe louca de dôr torcia as magras mãos!
Chegando no outro dia ao ponto onde o chamaram
Primeiro foi medido e todos a final,
Depois de bem revisto, á uma, concordaram
Que ao serviço do rei convinha este animal!
Aquell'outra senhora, astuta, grave, terna,
—A ordem—jubilava em doces pulsações!
Contava mais um servo, um filho, na cazerna,
Gastando pouco mais:—uns cobres e uns feijões!…
Agora quando passa o batalhão luzente
Na rua, podeis ver o pobre cavador
Com modos imbecis, marchar pesadamente
—Heroe por conta alheia—ao rufo do tambor!
Não sabe onde caminha entre as guerreiras hostes!
Perguntem-lhe o que é patria e liberdade e lei!
Caminha simplesmente ás ordens dos prebostes
Que trazem no chicote a salvação do rei.
E na pobre cabana ainda se conserva
O mesmo quadro triste:—a lacrimosa mãe;
Alguns pequenos nús rolando sobre a herva,
E um ebrio que pragueja e não pensa em ninguem!—
Mulher não chores mais: a quadra é pura e bella:
Emquanto na campina alouram os trigaes,
Teu filho guarda o mundo e a Deus faz sentinella:
Receiam que Deus faça andar o mundo mais.
Em breve elle virá de jubilo e d'assombro
Encher tua alma, em fim, quando ámanhã voltar
Com seu velho canudo, a trouxa posta ao hombro,
Trazendo novamente a luz ao pobre lar.
E tu perguntarás: o que é meu filho, é ouro!!
A quantas guerras foste? ó ceus, como tu vens!
—Mãe tome essa lata! esconda o meu thesouro
E deixe-me ir dormir no fêno ao pé dos cães!
Á meza do festim, cercada de formosas,
O canto dos cristaes e o scintillar dos vinhos
Saudavam juntamente os bellos desalinhos
Das galantes vizões das ceias luminozas!
Molhavam-se em champagne as pétalas das rozas!
E em baixo, a nossos pés, em leves murmurinhos
A gaze sobreposta á candidez dos linhos
Erguia-se n'um mar de vagas caprichosas!
Ali tudo era paz! Nem odios vis nem zelos!
Os labios pois limpando ás rendas e aos cabellos
Da menos trivial das fadas tentadoras,
Eu brindo aos mortos!—disse: á legião sagrada
Que foi á solidão, á eternidade, ao nada!
—Ás almas e ao pudor d'estas gentis senhoras.
Embora triste a noite, a vagabunda lua
Mais branca do que nunca erguia-se nos ceus,
Igual a uma donzella ingenua e toda nua
No leito ajoelhada erguendo a fronte a Deus!
O mar tinha talvez scintillações funestas.
A praia estava fria, as vagas davam ais;
Semelhavam, ao longe, as extensas florestas
Fantasmas ao galope em monstros colossaes.
E eu vi n'um campo immenso, agreste e desolado,
Immerso no fulgor diaphano da luz,
Juncando tristemente o solo ensanguentado
Sinistra multidão de corpos semi-nus!
Tinha a morte cruel, em sua orgia louca,
Deposto em cada fronte um osculo brutal;
E um ironico rizo ainda em muita boca
Se abria, como a flôr fantastica do mal!
E eu vi corpos gentis de virgens delicadas
Beijando a fria terra, as mãos hirtas no ar,
Em sagrada nudez!… Cabeças decepadas!…
Em muito peito ainda o sangue a borbulhar!…
E sobre a corrupção das brancas epidermes
Luzentes de luar e d'esplendor dos ceus,
Orgulhosos passando os triumphantes vermes,
Da santa formosura os ultimos Romeus!
Se tu minha alma livre ainda hoje conservas
Memoria das vizões que amaste com fervor
Ahi as tens agora alimentando as ervas
De novo dando á terra o que ella deu á flôr!
São ellas! as vizões dos meus dias felizes,
Meus sonhos virginaes, as minhas illusões,
Que a seiva dão agora aos vermes e ás raizes,
Que em pasto dão seu corpo a novos corações!
São as sombras que amei, divinas, castas, bellas;
As chymeras gentis, os vagos ideaes,
Que de rozas cingi, que illuminei d'estrellas,
E que não podem já da terra erguer-se mais!
Pequeno, d'onde vens cantando a Marselhesa;
Da barricada infame, ou d'outra vil torpeza?
Que esplendido porvir! Do nada apenas sahes
Começas a morder as purpuras reaes
Ó filho trivial da livida canalha!…
E, vamos, deixa ver, guardaste uma navalha,?!
Não tremas que eu bem vi! que trazes tu na mão?
Intentas já limar as grades da prizão,
Fazendo scintillar um ferro contra o solio
Archanjo que adejaes nos fumos do petroleo?!…
Mas, vamos abre a mão: não queiras que eu te dê.
Bandido eu bem dizia!—a carta do A B C!…
Ó lirios da cidade, ó corações doentes
Das vagas affecções modernas e galantes;
Eu sei que vós morreis aos sons agonisantes
Das orchestras febris,—nos sonhos dissolventes!
Sois os fructos gentis que balançaes pendentes
Nas arvores da vida; e os pobres viajantes
Famintos d'ideal, sorriem triumphantes
Julgando-vos colher nas seivas innocentes!
E tragam com fervor o pomo apetecido
Que deve ter um mel oculto no tecido,
—Um raio bom do sol que nos sorri tão alto;
Mas vós que sois da moda um luminozo aborto,
Como os fructos crueis das margens do mar morto
Apenas conteis dentro uma porção d'asphalto!
Entrando esta manhã n'um templo da cidade
Aberto á multidão mas triste e quasi só,
O ver ao desamparo a velha magestade
N'um throno a desabar, meteu-me certo dó.
Restavam tão somente alguns dourados velhos
Do passado esplendor, e foi-me facil ver
Que uma nuvem de pó cobria os evangelhos
Como cousa esquecida e impropria de se ler!
A virgem, sobretudo; a mãe predestinada
Que o Golgotha lavou nas lagrimas de fel
Que sempre hade chorar toda a mulher amada,
Ou seja a mãe de Christo, ou seja a de Rossel;
Achei-a desolada e triste lá n'um canto,
Sem pompas e sem luz, coberta d'ouropeis
Tão velhos como o roto e desbotado manto
Que ha muito, já, deveu á crença dos fieis!
Dizer-me póde alguem d'affectos bons e puros
Que eu posso ainda encontrar as bellas cathedraes
Aonde o simples Christo e os martyres obscuros
Campeiam no fulgor de pompas theatraes.
Bem sei; mas como disse, o acaso ou o quer que fosse
Levou-me a um templo pobre e foi n'elle que vi
Que ha mendigos do céo, d'olhar sereno e doce,
Proletarios do altar a quem ninguem sorri!
E ao ver esta humildade,—eu tenho d'isto ás vezes,—
Pensei, não sei porque, nas morbidas vizões
Que não passam de ser as filhas dos burguezes
Mas de rendas de França enfeitam seus roupões!
Fazia hontem já tarde um nevoeiro espesso.
—Que insonia em mim produz este humido vapor!—
Eu vinha enfastiado, ou turvo, emfim confesso,
Dos fumos do café, da luz e do rumor.
Um fantastico véo cobria as longas praças;
E o gaz ria atravez da grande cerração
Que em lagrimas descia ao longo das vidraças
E em flocos d'alva neve humedecia o chão.
Eu mesmo achava em tudo um tom maravilhoso.
Dispuz-me a crer no ceu a amar este ideal:
Do subito eis que passa um astro radioso
Luzindo-me atravez do magico cendal!
Que vaga exhalaçao ó cousas vis que adoro!
Que bello olhar de Deus, deixae-me assim dizer!
Pelo sulco de luz julguei um meteóro,
Pelo aroma subtil sonhei uma mulher!
Passou porém, fugiu: no fim eis em resumo
A sua breve historia! o sonho é sempre assim!
Ha cousas que ao passar ainda deixam fumo:
Aquella só deixava um vacuo dentro em mim.
Archanjos caminhae, que eu espero o grande dia
Da nossa atroz vingança, ó despotas do ceu!
Nossa alma anda algemada á vossa tirannia
Mas hade erguer-se a escrava…—Assim dizia eu
E a mesma aparição de novo a deslumbrar-me!
De novo a mesma aurora o espaço a illuminar!
Agora pude vêl-a e posso recordar-me
Dos abysmos de luz que havia em seu olhar.
O astro vinha envolto em nuvens d'escumilha:
De resto era uma fada, eu mais não sei dizer.
Deixava atraz de si um aroma de baunilha
D'um louco se abysmar d'um pobre enlouquecer!
Quem quer que sejas tu, que sejam sempre bellos
Teus ceus sem vendaval, teus dias sem revez!
Feliz de quem poder beijar os teus cabellos
E aos labios aquentar os teus pequenos pés!
—Dizendo caminheí. Porém novo prodigio!
Ainda a perseguir-me a mesma aparição
E eu ainda sentia o lucido vestigio
Que ha pouco em mim deixára a outra exhalação!
Mas agora reparo, attento em sua chama!
Que olhar tão insolente, o ceu não luz assim!
Na gaze que ella arrasta ha um debrum de lama,
Na face macerada uns traços de carmim!
Oh! astro! emfim conheço a orbita que traça
O teu curso veloz! bem sei onde tu vaes!
Prosegue no teu giro em volta d'essa praça
E Deus te dê mais luz e menos lamaçaes.
Quando Martha morrer, depois do extremo arranco,
Não tratem d'orações;
Desprendam-lhe o cabello o vistam-a de branco
Á moda das visões.
Desejo vel-a então passar d'esta maneira
Depois de tal revêz,
Por entre a chama azul e tenue da poncheira
No fumo dos cafés.
Áquelle bom paiz das pallidas chymeras,
Monotonia azul;
Não temam que ella vá no fogo das espheras
Queimar o véu de tulle.
Assusta-a muito o frio, a chuva, o sol dos tropicos
A nuvem triste e vã,
E pódem-lhe prender os pés tão microscopicos
As nevoas da manhãa!
De noite ella virá com seus trajes singellos,
Archanjo d'outros ceus,
Nos suspiros febris dos meigos violoncellos
Dizer-nos mal de Deus.
Contar-nos por que foge á doce transparencia
Que o ceu formoso tem,
Meiga filha gentil da mesma decadencia
Que é nossa boa mãe.
Se as lagrimas de luz que chora o firmamento
Em noites de luar,
Ao seu pescoço nú podessem, n'um momento,
Cingir-se n'um collar;
De certo ella daria ao pallido comêta
E á estrella trivial,
A mesma adoração que dava á cançoneta
Que amou até final!
E á saida do circo, ao astro romanesco,
Á noite iria, então,
Contar, ainda a sorrir, o ardor funambulesco
Do livido truão!
Assim, não quer ouvir aos córos invisiveis
Um hymno d'enfadar,
Cantado por milhões d'archanjos insensiveis
Sem um que a possa amar!
E não lhe esquecem nunca os rapidos instantes
Do que ella amava mais:
—A vida illuminada á luz dos restaurantes
N'um sonho de cristaes!
Eu vejo muita vez e raro já me assombro
—Minha alma tanto afiz ás tristes commoções!—
Na rua, junto a mim, passar hombro com hombro
No transito penozo as longas procissões,
De victimas da sorte e victimas do mundo!
Umas boas, gentis, outras feias, crueis,
Envoltas n'um sudario ou n'um burel immundo;
Nas pompas theatraes, nas galas dos bordeis,
Não são filhas do sonho ou creaçoes chymericas
Da mente allucinada, ou vagos ideaes;
São magros peitos nús, são faces cadavericas,
São as tristes, as vís desolações carnaes.
São pequenos sem pão que vão pedindo esmola
Nas lamas encharcando os regelados pés:
Que dormem nos portaes, que nunca vão á escóla
—Flôres que enfeitarão a noite das galés!
São aquellas gentis e pobres costureiras
De peito comprimido; anemica expressão;
Que passam a tossir, cansadas, com olheiras,
Ganhando em todo o dia apenas um tostão,
Curvadas a cozer o languido velludo,
O irritante setim dos grandes enxovaes,
Das princezas do Banco, herdeiras d'isto tudo;
Depois indo morrer nos tristes hospitaes!
São os pobres heroes que os seus irmãos combatem;
Que morrem sob o pezo enorme dos canhões,
E o cortejo de mães pedindo aos reis que as matem
E os reis fazendo rir das suas maldições!
São da lugubre noite umas flôres sem nome
Batidas muito já dos grandes vendavaes,
Que, por que sentem frio ou por que sentem fome,
Derramam pelo seio aromas triviaes
E fingem depois ser apparições divinas,
Erguendo um pouco a saia, a fimbria sensual,
Abrindo um vil leilão de beijos, nas esquinas,
Aos apetites vís da multidão brutal!
São mineiros sem luz; são velhos britadores,
Que o contacto da pedra um dia endureceu,
Queimados pelo sol, gelados nos horrores
Do tumulo cruel que em vida os recebeu!
São aquelles heroes, em fim, dos grandes sonhos,
Que sentiram na terra as vastas corrupções
E ás turbas apontando uns mundos mais risonhos
Tentaram espedaçar os ultimos grilhões
E que passam tambem um tanto contristados,
Talvez cheios de tedio, ao verem que hoje, nós,
Os deixamos seguir ainda apedrejados
Não raro desprezando a sua augusta voz!
E a grande multidão de martyres sublimes,
De tristes semi-nús, constante a caminhar,
Aos ceus erguendo as mãos, queixando-se dos crimes
Dos despotas que aos pés não cessam de os calcar!
A fila tenebroza, a procissão de victimas,
Augmenta mais e mais; não deixa de crescer!
E do estygma cruel das penas mais legitimas
Em muita fronte bella um traço podeis ver!
Caminhe muito embora: a sorte é sempre varia
E a turba soffredora, ó grandes bem sabeis,
Podia dividir a tunica cezarea
Lançando aos que estão nús a purpura dos reis!
Levanta-te Romeu do tumulo em que dormes
E vem sorrir de novo á boa, á eterna luz!
De noite, ouço dizer que ha sombras desconformes
E as noites do passado, oh, devem ser enormes
Na atonia fatal das larvas e da cruz!
Conchega gentilmente ao peito carcomido
Os restos do teu manto:—assim, que bem que estás!
Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido
Que busca desdenhoso o centro do ruido
Nas horas vis do tedio e das insonias más.
O mundo transformou-se; aquelle fundo abysmo
Do antigo amor fatal, fechou-se d'uma vez,
E tu filho gentil do velho romantismo,
Tu vens achar dormindo o rude prozaismo
No berço onde sonhava a doce candidez!
No entanto pódes crer; faz muito menos frio
Á luz do novo sol; do gaz provocador;
E o seculo apezar de gasto e doentio,
Não pode já escutar o cantico sombrio
Que fala de edeaes e cousas sem valor!
Em paz deixa dormir a terna Julieta
Que aos ceos ainda por ti levanta as brancas mãos;
E em quanto por mim corre a tetrica ampulheta,
Da muza alegre e vil da torpe cançoneta
Saudemos a nudez a par dos bons pagãos!
Nas praças, tu bem vês; a turba prazenteira
Innunda-se na luz de mil constellacões!
E os archanjos da rua assomam na poeira
Que exhala o macadam, trazendo em cada olheira
O astro creador das grandes sensações!
E quando a cotovia á estrella matutina
Mandar a saudação, lá fora, em pleno céo,
Romeu tu beijarás, que é tua eterna sina,
A trança da belleza anemica e franzina
Que entre os fumos da festa, a amar, adormeceu!
Boas noites coveiro: a tua enxada
Não cessa ha tanto tempo de cavar?!
Cavalleiro da morte, ó fronte desolada
Não sentes a mão tremula e cançada
De tanto trabalhar!
Tu esperas hoje as legiões sombrias
De mortos, que eu supponho ao longe ver?
Os felizes caídos nas orgias
E os tristes que além todos os dias
O gelo vem colher?!
Que immensa valla aberta! são medonhos
Os risos d'essa boca infame, alvar!…
Descansa dos teus dias enfadonhos!
—Eu cavo a sepultura dos teus sonhos
Não posso descançar!
Alice, o turbilhão das salas elegantes,
Começa a entristecer; ninguem sabe por quê!
Aquella flôr doente amava muito d'antes
As festas, o ruido, as cousas deslumbrantes,
Agora é desolada e penso que descrê.
Que tedio se abrigou na vaga transparencia
D'um todo tão subtil, aerio, divinal.
—Moderna creação da santa decadencia,
Que alia gentilmente ás pompas da regencia
Os indecisos tons d'um ar sentimental?!
Archanjo por quem és! desvenda esse mysterio
Das vagas oppressões da tua insomnia má,
E diz-me o teu sonhar visão do baixo imperio,
Vestal que amas o gaz e tens o fogo ethereo
Na conta d'uma cousa um tanto usada já!
No idylio pastoril das noites venturosas
Não sonhas tu de certo, e raro o hão de sonhar
N'um mundo todo nosso, as bellas desditosas
Que em trinta annos de fogo as suas velhas rozas
Nos grandes vendavaes sentiram desbotar!
E quando a augusta voz do mar ou das florestas
Abala o coração dos justos e dos bons,
Bem sei que tu não vaes, fugindo ás grandes festas,
No amor das castelãs scismar entre as giestas
Com medo que te acorde a bulha dos wagons!
Eu sei talvez teu mal! A febre que hoje sentes
Abraza a geração de lyrios ideaes
Que passam, como tu, galantes e doentes,
D'um amor desordenado ás cousas dissolventes,
Ás vozes da guitarra e aos cantos sensuaes!…
E tem de os consumir a grande nostalgia
D'um mundo mais á moda e menos trivial,
Onde haja um grande caso, ao menos, cada dia
E se possa esquecer a vil monotonia
De tudo que nos cerca:—Alice eis o teu mal mal!
No entanto eu sei que és boa: apenas das insomnias
A febre, mãe cruel d'estranhas sensações,
Na fria placidez do gaz e das bigonias
Construe na tua mente as grandes babylonias
D'um mundo extraordinario e monstro de visões!
Tocou-te um mal galante: és tenue e caprichosa:
És boa e fazes gala em que te julguem má.
E sentes sobre tudo uns tedios côr de rosa
E os extasis crueis d'uma mulher nervosa:
—Se existe a mulher-flôr, tu és a flôr de chá!
E chame-te o bom Deus ao foco aonde brilha
Aquella eterna luz, amor dos immortaes,
Que tu amortalhada em rendas e escumilha
Achar deves, talvez, da moda, ó terna filha,
O céo modesto um pouco e os anjos triviaes!
Ó machinas febris! eu sinto a cada passo,
Nos silvos que soltaes, aquelle canto immenso,
Que a nova geração nos labios traz suspenso
Como a estancia viril d'uma epopea d'aço!
Emquanto o velho mundo arfando de cansaço
Prostrado cae na luta; em fumo negro e denso
Levanta-se a espiral d'esse moderno incenso
Que offusca os deuses vãos, anuviando o espaço!
Vós sois as creações fulgentes, fabulosas,
Que, vibrantes, crueis, de lavas sequiosas,
Mordeis o pedestal da velha Magestade!
E as grandes combustões que sempre vos consomem
Começam, n'um cadinho, a refundir o homem
Fazendo resurgir mais larga a Humanidade!
Precisamos Jesus, se não te sentes velho,
Que cinjas novamente o resplendor de luz
E venhas explicar a letra do evangelho
A muitos que hoje vês prostrados ante a cruz!
Ainda não cessou, de todo, essa contenda
Que um dia, ha muito já, tentaste debellar:
E aquelles que são bons e adoram tua lenda
Desejavam tambem ouvir-te hoje falar.
Apenas resoasse o teu verbo indignado,
O latego febril das grandes corrupções,
Iria atraz de ti um mundo revoltado
Que sente na consciencia a luz das redempções.
E embora não houvesse, aqui, outra alma gemea
Da tua, e tão ungida em balsamos dos céos,
Havias d'encontrar essa alma de bohemia
Que sonha uma justiça e sente em si um Deus!
Mas não, não voltes cá: teu corpo combalido
Não póde supportar os gelos da manhã.
Precisavas de pão, d'abrigo e de vestido
E a vida aqui é cara e longo o macadam!
Terias d'encontrar, de certo, mil estorvos
No mundo revolvido, e escuta-me Jesus:
Se não fosses, em fim, comido pelos corvos
Talvez te fuzilasse um cura Santa-Cruz!
Serias apontado a dêdo, muitas vezes,
Como um simples bandido, um agitador feroz,
E haviam de esconder seus ouros os burguezes
Apenas resoasse, ao longe, a tua voz!
Depois vinhas achar a par do proletario,
Ao pé do que se innunda em bagas de suor,
Aquelle velho Pedro, agora millionario,
E triste por pensar que já esteve melhor!
E perto do ocio vil á sombra do qual medra
O egoismo feroz que extingue o coração,
Lutando todo o dia o britador de pedra
A quem á noite espera, em casa, um negro pão;
E uns pequenos sem côr; talvez cheios de fome,
Com pouca luz no olhar; atrophiados, nús;
Abrindo os olhos muito á codea que elle come
E indo-se deitar sem roupas e sem luz!
Assim deixa-te estar. O teu cadaver triste
Recende uma fragrancia etherea e divinal,
Emquanto o mundo segue e vae de lança em riste
Sem treguas combatendo as legiões do Mal!
Tu foste o paladino, o trovador sagrado,
Que falaste do amor, da paz e do perdão,
E o ferro que varou teu corpo lado a lado
Comtudo inda reluz altivo em muita mão!
Nós, hoje, quando em luta erguemos sobre a liça
O gladio vingador das oppressões crueis,
Soltamos, n'um sorriso, o nome da Justiça,
E ha quem saiba morrer sem bençãos nem laureis!
Descansa pois Jesus! Bem basta que tu sintas,
N'esse velho sepulchro, o immenso vozear
Dos mineiros sem luz, das legiões famintas,
Que nunca, um dia só, deixaram de lutar,
Mas que hão de em fim vencer, porque a suprema essencia
A jorros cae do céo nas mãos dos Prometheus,
E tanto vae subindo a vaga da consciencia
Que um dia ha de abismar-se em nós o proprio Deus
Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizel-o.
Era em praia dezerta, em frente a um longo mar:
Nos céos havia a nevoa, a mãe do Pezadêlo,
E o vago, o incerto, o informe em tudo a oscillar!
De subito surgiu, na praia, uma criança
D'olhar profundo e bom, d'angelica expressão,
E o mar contemplou com tanta confiança
Que nem que visse n'elle o berço d'um irmão!
Mas a vaga subindo, em cada extremo arranco
Levando ia comsigo aquella flôr dos céos!
E em breve só boiava um tenue vulto branco
No mar onde fluctua o espirito de Deus!
Mais tarde á beira-mar chegava a pura imagem
Da mais casta mulher que em vida pude ver.
Detinha-se distante:—a espuma da voragem
Só meia extenuada aos pés lhe ia morrer!—
O immenso mar, porém, crescia a cada instante
Mais turvo e mais veloz! depois… Não quiz vêr mais.
Ergui-me e caminhei de val em val errante
Pensando tristemente em coisas ideaes!—
Ao longe, muito além, na serra desviada
De subito encontrei—ó estranha apparição—!
Uma pobre velhita enferma e desolada
Trazendo já no olhar a grande cerração!
Que idéa me assaltou não sei dizel-o agora.
Aonde iria o espectro, aquella sombra vãa?
Iria aonde vae o que hontem foi aurora
E aonde irão tambem as rosas d'ámanhãa?…
Dos meus instantes bons, ó lucida chimera,
Bem vês que os sonhos maus são faceis d'esquecer!
Que importa a grande noite em plena primavera,
Que importa o que tu foste, o que és, e o que has de ser!!
Eu não trajo o burel do magro cenobita
Nem me posso infligir crueis macerações;
Mas não rio d'alguem que busca a paz bemdita
No seio casto e bom das grandes solidões.
Bem sei que ha na montanha aromas penetrantes
E certas vibrações que podem fazer mal;
Mas se é preciso Deus, direi que é melhor antes
Amal-o com fervor no templo universal!
Em quanto sobre o altar das serras azuladas
Mil lampadas do céo derramam toda a luz,
Nas velhas cathedraes, já meio arruinadas,
O Tempo,—o grande verme!—até devora a cruz!
Depois é facil vêr, por entre os arabescos
Que a arte sensual traçou com tanto amor,
Ás vezes, o sorrir dos Satyros grotescos
Pungindo cruelmente a face do Senhor.
Ou mais; podemos nós voar todos captivos
Do sereno ideal, d'aquelle summo bem,
Ao vermos tanta vez os Faunos mais lascivos
Olhando de revez a virgem nossa mãe?!
E ainda mil traições: as musicas, as flôres
Os lindos seraphins voando todos nús;
Da sêda que se arrasta os languidos rumores
Do incenso as espiraes; os turbilhões de luz!
Oh! visto haver de tudo; aromas e decotes,
O vinho scintillante, a viva luz do gaz;
Que a vossa rouca voz, pomposos sacerdotes,
Não cante apenas Deus; que solte alguns hurrahs!
O fumo d'essa festa, a mim, pouco me assusta.
Se eu quero alguma vez fugir do pó, voar,
Eu tenho o val profundo ou a floresta augusta,
As montanhas, os céos, e o bello, o vasto mar!
Da casta natureza ó templo gigantesco,
Tu és mais amplo, sim; mais livre, muito mais!
O meigo e doce olhar do Christo romanesco
A multidão gentil não chama aos teus umbraes.
Agora és todo nosso: a rude voz da historia
Já póde hoje falar
E dar-te um balancete ás nodoas e á gloria
Rei-sol de boulevard.
Que dias d'esplendor! Porém como começa
A noite e a podridão!
Foi Deus que te mandou tambem para a Lambessa
Da eterna punição!
Enfarda a tua gloria e leva-a que é vergonha
Que vejam ámanhã,
Que até lhe depennou as aguias de Bolonha
O abutre de Sedan!
E visto que em redor nenhuma estrella brilha
E a noite é longa e má,
No caminho do opprobrio acende a cigarrilha
E, cezar, ouve lá:
Que altiva e bella a França! aquella Gallia ardente
Que de Valmy levou,
Descalça, quasi núa; a Marselheza em frente;
Nossa alma até Moscow!
Seus filhos teem a fouce: envergam rudes clamydes
Depois, caminham sós;
E em quanto ceifam reis acordam nas Pyramides
A alma dos Pharaós!
E vão cheios de fé, bandeira solta ao vento,
Na gleba das nações,
Convictos semeando o novo pensamento
No sulco dos canhões!
Mas tu chegas um dia: afogas-lhe a grandeza
E quando a tens aos pés,
Celebras a victoria aos hymnos de Thereza,
A musa dos cafés!
Banquetes dás ao crime; e os teus heroes d'esquína
Ainda a afrontam mais,
Tornando a Marselheza em torpe Messalina
D'um circo de chacaes!
E sobre alguns montões de mortos ainda quentes,
Emfim campeias, tu,
Que déste á sagração das cousas dissolventes
Um Petroneo-Sardou!
Porém, quando ao colher ainda um beijo á Fama
Um dia avanças mais,
Teu carro triumphal trambolha-te na lama
E então como tu saes!…
Revolves-te no horror das vis, infectas ondas
De lodo e podridão,
E vaes de manto roto e vestes hediondas
Buscar a escuridão!
Em vez de reclinar a fronte ao sol ardente
Da luta que sorri,
Do fumo dos canhões fugiste, e de repente…
Matou-te um bistori!…
Que entrada a tua, então, na funebre morada,
Pizando, incerto, o pó,
Á luz d'uma lanterna, ao vir da encruzilhada,
Sinistro, sujo e só!
Das cinzas levantou-se um brado entre os jazigos
Dos bons e dos leaes,
Apenas descobriste a marca dos castigos
Nas faces triviaes!
E quando te assustava o olhar altivo d'Hoche
E o gesto de Danton,
Sorria-te na sombra o amor da Rigolboche
Meu cezar-Benoiton!
73—Janeiro.
Eu quiz hontem sonhar, sentir como um romantico
A doce embriaguez do pallido luar,
Ouvindo em pleno azul passar o immenso cantico
Dos astros no seu giro e em sua luta o mar!
A cidade dormia o somno dos devassos;
Aquelle somno turvo, infecto e sensual:
E a lua, antiga fada, erguia nos espaços
Tranquilla e sempre ingenua a fronte de vestal!
E sobre a quietação das coisas vis e exoticas
Sentiam-se as febrís, crueis respirações,
Dos tristes hospitaes e das virgens clorothicas,
Dos amantes fataes da febre e das paixões!
A noite era em silencio, a athmosphera doce
E ria a natureza aos beijos d'um bom Deus.
De subito escutei, ao longe, o quer que fosse
D'um canto que suppuz então baixar dos céos!
Attento ao vago som, porém, a pouco e pouco
Senti que era uma voz disforme e sensual,
Soltando uma canção n'aquelle accento rouco
Da triste inspiração alcoolica e brutal!…
Ó terna vagabunda, enamorada lua!
Emquanto ias assim, diaphana e sem véo,
Uma triste mulher passava, então, na rua
Cuspindo uma porção d'infamias para o céo!
Eu quizera depois das lutas acabadas,
Na paz dos vegetaes adormecer um dia
E nunca mais volver da santa lethargia,
Meu corpo dando em pasto ás plantas delicadas!
Seria bello ouvir nas moutas perfumadas,
Emquanto a mesma seiva em mim tambem corria,
As sãas vegetações, em intima harmonia,
Aos troncos enlaçando as lividas ossadas!
Ó belleza fatal que ha tanto tempo gabo:
Se eu volvesse depois feito em jasmins do Cabo,
—Gentil metamorphose em que n'esta hora penso;—
Tu, felina mulher com garras de veludo
Havias de trazer meu espirito, comtudo,
Envolto muita vez nas dobras do teu lenço!
Soltava hontem já tarde um velho cão felpudo
Uns doloridos ais,
Em frente d'um palacio altivo, bello e mudo,
Cerrado aos vendavaes.
Fazia pena ouvil-o, o misero mollosso
Em seu triste chorar!
Era quasi uma sombra: apenas pelle e osso
E um vago, um doce olhar!…
Eis a sorte cruel do pobre que não come,
Dos miseros sem pão!
Em paga ainda em cima os vae tragando a Fome,
A negra apparição!
Latia o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz, quasi voraz!
E o pobre não sabia, em fim, que ha muita gente
Que adora a santa paz.
Ora perto vivia uma galante rosa,
Etherea, virginal,
Que tinha um lindo collo, amava, era nervosa
E a quem fazia mal,
Aquelle uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a fronte ao chão!
Saíram pois á rua impavidos lacaios
E foram dar no cão.
—Ha no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
—O povo soffredor,
Que ás vezes vae ganir, com fome, o seu bocado
Ás portas d'um senhor.
O resto é velha historia: ocioso é já dizer-vos
O fim que ella ha de ter.
A Ordem, só d'ouvil-o, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!
Eu não professo muito o culto das ruinas.
Prefiro uma officina ás velhas barbacãs;
Das velhinhas, porém, mirradas, pequeninas,
No entanto nunca insulto as prateadas cãns.
Deixal-as caminhar, curvadas, vagarosas,
Com seu bento rozario, os seus fofos beitões,
A rirem-se de nós, crueis, maliciosas,
Sagazes comentando as nossas illusões!
Ah, velhitas sem côr! cabeças regeladas,
Vulcões de que só resta a cinza e nada mais:
Já fostes as visões; talvez as brancas fadas;
Prendestes vossos pés nos humidos rosaes;
Tivestes já no olhar os bons reflexos magicos
Dos lagos ideaes cubertos de luar;
As curvas sensuaes, os bellos dedos tragicos;
As rosas más do inferno, os lyrios bons do altar!
Pendestes já scismando as frontes melancolicas
Nas varandas á noite, amantes dos Titães
Do bello amor antigo! ó Marcias das bucolicas!
E agora apenas sois as mães de nossas mães!
Segui vosso caminho: as graciosas fadas,
As bellas da cidade, anémicas, gentis,
Sorriem-se, talvez, das fitas desbotadas,
Dos provectos chapéos, das gallas que vestis!
Oh! mostrando os trophéos das vossas velhas rosas,
Dizei-lhes, a sorrir das futeis illusões,
Que fostes já, tambem, galantes e nervosas
Mas destes isso tudo a varios corações!
Agora tendes pouco: apenas uns lamentos
Sentidos contra nós; queixumes sem valor
E ao mundo importam muito os vossos testamentos
E importa muito pouco a vossa immensa dôr!
Batei á grande porta: os bellos dias vossos
Velhitas, bem sabeis, não podem voltar mais!
Á terra ide levar, em fim, n'uns tristes ossos
O residuo fatal das cousas virginaes!
Pois que visões! não cessa a rapida corrida
E seja noite ou dia,
Volteadoras crueis! vós sempre a toda a brida
Na minha phantasia!
Parti chymeras vãs! archanjos ou madonnas,
Parti, que o mando eu,
Como um bando fatal de velhas amasonas
Que o circo aborreceu!
Levae tudo comvosco: as settas mais a aljava;
O angelico sorriso;
E as azas d'escumilha em que eu voava
Á noite, ao paraiso!
Eu quero, em fim, dormir; passar as noites gratas
Sentindo-me feliz,
No somno machinal dos velhos acrobatas
Depois das farças vis!
Mais tarde hei de sorrir, ou escarnecer-me quasi,
Lembrando-me—ó verdade!—
Que onde eu suppunha aurora havia apenas gaze
E uns traços d'alvaiade.
Perdão se vos insulto! oh, não, vós sois do empyreo,
D'aquelle meigo azul,
Que a todos tem sorrido: a Christo no martyrio,
Na dôr, ao rei de Thule;
E quando vos apraz, nas azas transparentes,
Mais alto ides por certo,
Do que as deusas gentis, aerias, insolentes,
Que vemos voar tão perto!
No entanto podeis crer ó lucidos fantasmas
Que o seculo, afinal,
Occulta no esplendor não sei que vis miasmas
Que fazem muito mal!
E quando vós passaes, nas horas do mysterio
D'estrellas revestidas,
Bebemos nós, talvez, o aroma deleterio
Das rosas corrompidas!
Oh sim! parti depressa; erguei-vos d'este abysmo
Archanjos ideaes,
Deixando-nos colher a flôr do realismo
Nas coisas triviaes!
Melancolias do outono! Eu quando além descubro,
Nas tristezas do campo, as filas mugidoras
Dos vagarosos bois que voltam das lavouras,
Compungem-me as crueis desolações d'outubro!
Das orlas do poente, afogueado, rubro,
Ó moribundo sol! com que poesia douras,
As formas triviaes das cabecitas louras,
Que, ás portas dos casaes, de bençãos tambem cubro!…
Solta o canto final a orchestra da folhagem:
São horas de partir; apresta-se a viagem,
E as noites dos saraus hão de voltar mais bellas!
Mas as vistas lançando ás regiões saudosas,
Nos esforços crueis das tosses dolorosas,
Em bandos vão partindo as tisicas donzellas!
Eu vejo em toda a terra um vasto cemiterio,
A necrópole immensa, a campa dos colossos,
Aonde em paz descansa o velho megatherio,
Por entre a fauna morta, os carcomidos ossos!
E os grandes leviathaãs dos primitivos mares;
Os tremendos reptis, crueis, descommunaes,
Celebram no silencio as nupcias singulares
Dos seus residuos vis, com ricos mineraes!
E os esqueletos nús dos lividos gigantes
Abraçam-se melhor; conchegam-se na cova,
Deixando um logar vago aos velhos elephantes
Que vão fugindo á luz da natureza nova!
Tambem no mundo interno as almas vão seguindo.
Na corrente da vida, em mil circulações;
E da consciencia humana o largo abysmo infindo
Occulta, ha muito já, disformes creações!
Ellas dormem na sombra immensa do passado
Aonde em breve hão de ir nos trances doloridos,
A velha Realeza e o trémulo Papado
Sem forças descançar os corpos corrompidos.
Depois virão mais tarde as gerações futuras
E os dois espectros vãos da sombra hão de evocar,
Bem como a nossa voz, as grandes creaturas
Do mundo primitivo, obriga a despertar.
E as crianças terão seus nomes de memoria,
Como exemplo, na vida, a todos os momentos;
E vel-os-eis de pé, nas paginas da historia,
Grotescos, machinaes, pezados, somnolentos;
Fazendo-nos pensar; d'espanto enchendo tudo;
Soffrendo o riso alvar do ingenuo e do plebeu,
Eguaes ao masthodonte armado para estudo
E exposto ás irrisões nas salas d'um museu!
Eis a velha cidade! a cortesã devassa,
A velha imperatriz da inercia e da cubiça,
Que da torpeza acorda e á pressa corre á missa!
Baixando o olhar incerto em frente de quem passa!
Ella estreita no seio a velha populaça,
Nas vis dissoluções da lama e da preguiça,
E nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
Lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa!
E póde receber o beijo e a bofetada
Sem que sinta o rubor da colera sagrada
Acender-lhe na face as duas rosas bellas!
Sómente d'um sorriso alvar e deshonesto,
Ás vezes, acompanha o provocante gesto
Quando sôa a guitarra, á noite, nas viellas!
Eu gosto de velar a percorrer os mundos
Ó noite dos bons canticos,
Aos lividos clarões dos astros vagabundos
Nos extasis romanticos,
Emquanto a vil cidade, a cortesã devassa
Dos falsos ouropeis,
Com seus famintos cães, a sua lua baça
E os seus negros bordeis,
Resona torpemente aos beijos deleterios
D'alguns velhos amantes;
—Os longos hospitaes e os tristes cemiterios
Que a afagam delirantes!
Comtudo eu tambem sei que existe muito instante
De gelos, em que tu,
Feroz, cravas o dente agudo e penetrante
No pobre seio nú!
Que ha horas em que vens, nas humidas cidades,
Nas choças, nos esgotos,
Cuspir cynicamente as frias tempestades
No seio vil dos rotos,
Sem ter pena, sequer, da pobre mãe que passa
Um dia sem ter pão,
Nem d'essa esfarrapada e velha populaça
Que rosna como um cão!…
Mas em breve deixando as tenebrosas vestes,
O manto dos horrores,
E o gladio vingador das coleras celestes
Ó noite dos amores,
Retomas o tom puro e santo do mysterio
Da pallida mulher
Que vae colher, scismando, um lyrio ao cemiterio
E ao campo um malmequer!
Em horas de tormenta és a mulher colerica!
Até cospes na cruz!
E formam-te espiraes na coma athmospherica
As viboras de luz!
Porém no teu regaço, altivo, casto, enorme,
Em doce e plena paz,
É que a virtude sonha e que a desgraça dorme
Depois das horas más,
E em lucidos cristaes, ha scintillantes vinhos;
Os casos mais galantes;
As languidas canções; os bellos desalinhos
E os gestos provocantes!…
Ó filha do silencio! Aos puros alabastros
Dos hombros ideaes,
Se Deus arremessasse a quantidade d'astros
Que em ti brilham a mais,
As pallidas visões que passam doloridas,
E um tanto contristadas,
Haviam de surgir d'estrellas revestidas
Em trajos d'alvoradas!
Em ti cuida escutar uns sons inexprimiveis
De languidas canções,
O pobre sonhador de coisas impossiveis
Que adora as solidões!
E quando o resplendor de mundos luminosos
Na tua fronte cinges,
Os gatos sensuaes, electricos, nervosos
Repouzam como esphinges;
Emquanto as combustões dos lividos comêtas,
Errantes e fataes,
Comsomem lentamente as grandes borboletas
Dos nossos ideaes!
Trazei mortos á valla; a hydra está com fome
E deve ser-lhe longa a hora em que não come!
Olhae como ella mostra aquelles que a vão ver,
Inerte, sem pudor, de fauce escancarada,
A amargura cruel da bocca desdentada
Que pede de comer!
Lançae ao monstro informe algum repasto novo!
Trazei-lhe carne humana; arremeçae-lhe o povo.
Tranzido pelo frio ou morto pelo sol!
E visto haver na fera abysmos insondaveis
Mandae-lhe as legiões dos grandes miseraveis
Que morrem sem lençol!
Eu quero vel-a farta, a lugubre panthera,
Que, na sombra agachada, olhando em roda, espera
A preza que lhe inveja a gula dos chacaes.
Começa a ouvir-se ao longe a marcha vagarosa
Da triste procissão cruel e dolorosa
Que vem dos hospitaes.
Um velho esquife chega: em duas taboas toscas
Um pobre semi-nú coberto já de moscas,
N'um riso deixa ver não sei que tons crueis!
Emquanto nos sorria a luz das noites bellas,
Talvez que elle varresse a lama das viellas
E o lixo dos bordeis!…
E poude, em fim, dormir no seio bom da morte!
Apoz, como se fôra a livida consorte
D'aquelle vil despojo, ás mesmas horas vem,
Trazendo por sudario os seus vestidos rotos,
Uma triste mulher caída nos esgotos
Sem bençãos de ninguem!
Devora-os ambos fera! Engole-os juntamente:
Reune-os em consorcio e dá-os de presente
Á larva que partilha as ancias do teu ser!
Aguça o teu desejo!—A garra infecta lança
Ao corpo tenro e nú d'uma gentil criança
Que a mãe te vem trazer!
Redobra d'appetite! Alonga-se a teu lado
A fila tenebrosa! O espectro do soldado
A par do que vergou cançado de cavar:
E o mineiro sem luz, o martyr legendario;
E amparando-se a custo ao velho proletario
A flôr do lupanar!
Mastiga a turba vil e alonga essa guela!
Bem vês que vem chegando um corpo de donzella
Que pela candidez recorda uma vestal!
Voou-lhe, n'um sorriso, o derradeiro arranco
E traz viçoso ainda um grande lyrio branco
No seio virginal!
Ó monstro sensual na sombra tripudia!
Celebra no silencio a tenebrosa orgia,
Que as Deusas vem chegando ao lubrico festim!
N'um beijo os labios colla á frigida epiderme
E o D. Juan da morte, o cavalheiro Verme,
Que viva e gose emfim!
Eu quero ver-te farta, em halitos profundos,
Dormindo o somno vil dos animaes imundos,
De ventre para o ar; serpente infecta e má!
E ámanhã, na estação dos candidos amores,
Veremos rebentar n'um tapete de flôres
O lixo que em ti ha!
E a santa mocidade; as languidas mulheres;
Virão depois colher os gratos malmequeres,
Pizando-te sem medo e cheias de desdem,
Em danças sensuaes; o fato em desalinho;
Compondo-te canções; regando-te de vinho;
Sem pena de ninguem!
E tu que és monstruosa, infame, vil, medonha;
Que não mostras pudor; que não sentes vergonha;
Que és a campa-monturo e não pódes ser mais;
Cingida em fim, tambem, de rosas orvalhadas,
Terás dado um perfume ás almas namoradas,
E pasto aos animaes!
Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos,
Que ás vezes revoaes nas salas deslumbrantes,
N'um grande mar de tulle, ethereas, fluctuantes.
Aos suspiros fataes dos meigos violoncellos;
Que bom que era sonhar nos pallidos castellos,
Á noite, á beira mar, nas solidões distantes,
Nos tempos em que a flôr dos timidos amantes
Á lua confiava os intimos anhelos!…
Agora sois gentis, despepticas, vistosas;
Pagaes por alto preço as exquisitas rosas;
Nos rapidos wagons correis o mundo em roda;
Mas prostradas do baile, amarrotando a luva,
Emquanto cae na rua a somnolenta chuva,
Scismaes no Deus-Milhão,—no Creador da moda!
Eu vejo em tua bocca as pétalas vermelhas
D'uma rosa de fogo aonde vão libar,
O mel das illusões, quaes timidas abelhas,
Uns velhos ideaes que em vão tento expulsar.
Dizer-me pódes tu de que ovulo espontaneo,
Tocado pelo sol, em mim poude nascer
Este bando cruel que dentro do meu craneo
Não faz ha muito já senão roer, roer?!
Ás vezes vôa ao largo; ás serras, ás campinas;
Remonta aos astros bons; torna a descer dos céos;
E volta a demolir as trémulas ruinas
Do templo onde crepita a luz dos dias meus!
Ó grande flôr suave! e n'isto se resume
A constante batalha, o sempiterno afan!
Aspira a minha essencia ao teu grato perfume;
Sossobra o dia d'hoje ao dia d'ámanhã!
Oh, volvamos á terra; aos placidos logares,
Aonde os hymeneus fecundos e reaes,
Produzem, dia a dia, os fetos singulares
E as sãs vegetações dos candidos rozaes!
E o que ha d'ethereo em nós, que siga as breves phases
D'um fluido transitorio, erguendo-se nos céos,
Nas grandes expansões dos fugitivos gazes
Onde em linguas de fogo ás vezes fala Deus.
Forçoso é separar os dois rivaes antigos,
Na batalha cruel que em nós se reproduz.
Sorria o que é da terra aos vegetaes amigos;
Rebrilhe o que é do céo nas refracções da luz!
A fragrancia do trevo o das flôres selvagens
Da noite embalsamava as tepidas bafagens:
Ao longe os astros bons olhavam-nos dos céos.
O mundo era um altar; as serras grandes aras;
E os canticos da paz corriam nas searas
Em honra do bom Deus.
No solemne silencio immersa ia minha alma
Em tranquilla mudez; n'aquella doce calma
Que sente germinar os frescos vegetaes.
De subito uma voz deixou-me um pouco extatico:
Detive-me um momento; olhei:—era o viatico!
De noite a horas taes,
Que andava Deus fazendo, assim, pela campina,
Trazido pela mão d'um padre sem batina
Roubado ás sensações d'um longo resonar?
Fui seguindo o cortejo até que n'uma choça
O Rei dos reis entrava: o padre, com voz grossa,
Movia-se a rezar.
Nos restos d'uma enxerga, ali, no vil cazebre,
Um pobre cavador, mordido pela febre,
Torcia as grossas mãos nas ancias do estertor;
E os filhos semi-nus sentindo a pena ignota
Tentavam-se esconder na velha saia rota
Da mãe louca de dôr!
A voz do sacerdote a custo resoava.
A palavra d'amor que ali se precisava,
Não posso dizer bem se acaso elle a soltou.
Falava o Deus severo e forte dos castigos,
Ou esse bom Jesus que aos pés d'alguns mendigos
Um dia ajoelhou?
Do padre tinham medo os tremulos pequenos.
Os magros cães fieis erguendo-se dos fênos
Latiam tristemente em volta do cazal:
E o levita lançava áquella noite escura
A benção derradeira, erguendo a mão segura,
N'um gesto machinal!
Depois transpondo, á pressa, a porta da cabana,
Sahia sem deixar da sãa verdade humana
O balsamo suave, o dom consolador!
Oh, de certo o Jesus de que nos fallam tanto
Não era o que deixava ali, n'aquelle canto
Sósinha a mesma dôr!
Sorria Deus, no entanto, em toda a natureza!
Nas florestas, no val, nas serras, na deveza,
Nas moitas dos rozaes, no movediço mar!
O constellado azul dir-se-ía um sanctuario!
Havia aquelle albergue apenas solitario,
E frio o pobre lar!
E o rude agonisante, o triste moribundo
Que em breve ía partir; abandonar o mundo;
Os seus deixando sós, na terra, sem ninguem,
Talvez ao presentir o fim da insana lida
Soltasse maldicções, ainda, contra a vida
E contra nós tambem!
E eu lembrei-me então d'aquelles bons valentes
Que lutam todo o dia e vão morrer contentes
Á noite, ao pé dos seus, depondo os vãos laureis;
E d'aquelles, tambem, de frontes requeimadas
Que pela causa santa, em pé, nas barricadas,
Se batem contra os reis!
Lembraram-me os heroes, serenos, bons, austeros,
Que sagram toda a vida aos ideaes severos
Da justiça e do bem; caíndo com valor,
Sem que a dextra cruel dos despotas os dome
Nas batalhas da idéa; oppressos pela fome,
Varados pela dor!
Ó pobres multidões! as grandes noites frias
Não cessam de morder, famintas e sombrias,
N'um banquete nefando os vossos corpos nus!
E o lyrio da justiça; a grande flôr sagrada,
Nem sempre mostra, em vós, aberta e desdobrada,
As petalas de luz!
Eu quando porem lanço as vistas ao futuro
E vejo dia a dia a despontar mais puro
O grande sol da idéa, em rubidos clarões,
Recordo-me que sois a productiva leiva
Aonde já circula uma opulenta seiva,
De grandes creações!
D'aquelle de quem falo, as socegadas lousas
Podiam-vos contar as violações brutaes!
A gula com que morde as mais sagradas cousas
D'horror faz recuar os trémulos chacaes.
Não descanta á viola, á noite, os seus enleios:
Elle vive na sombra e eu sei também que vós,
Gentis bellezas d'hoje, ó astros dos Passeios,
Lhe não lançaes, a furto, a escada de retroz.
Mas sede muito embora as virgens sem desejos,
As monjas virginaes, uns pudicos dragões;
Fechae o niveo collo aos vendavaes dos beijos,
E ás noites de luar os vossos corações;
Um dia hade chegar em que elle, informe, tosco,
Sem garbo, sem pudor, grotesco, infame, vil;
Nas grandes solidões irá dormir comvosco,
Mordendo em cada seio o lyrio mais gentil!
E o que elle adora muito ó virgens romanescas
Não é o que abrigaes d'ethereo e virginal:
Adora os corpos nus; as bellas carnes frescas;
Deixando o resto a vós damnados do ideal!
Não vive como nós de candidas mentiras:
Não communga do amor esse illuzorio pão:
Devora com fervor as pallidas Elviras
E em muitos seios bons dá pasto ao coração!
Tem palacios na sombra e fazem-lhe um thesouro
Maior do que o dos reis; adora as solidões:
Não uza d'espadim; não traz esporas d'ouro;
Mas vive como os reis das grandes corrupções!
Flôres sentimentaes! tremei do paladino,
Do velho D. Juan, feroz conquistador,
A quem da vossa bocca um halito divino,
Em vida, faz fugir talvez cheio d'horror;
Mas que um dia virá, na candida epiderme,
Na sagrada nudez dos collos virginaes,
Em hymnos de triumpho—o grande Cezar-Verme!—
Colher o que ficou de tantos ideaes!
Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas
A aérea multidão de fadas quebradiças,
Gentis apparições dos bailes e das missas,
Desliza no fulgor das pompas seductoras.
No arfar da cazimira ha frases tentadoras
E maciezas taes nas languidas pelliças,
Que as tristes commoções, decrepitas, mortiças,
Resurgem do lethargo ó pallidas senhoras!
E muitos hão de ter uns extasis divinos
Ouvindo soluçar, á noite, aos violinos,
A vaga introducção d'uma balada aerea;
Em quanto, do futuro, ao toque da alvorada,
Se escuta, a martellar na sua barricada,
Sinistra rota e fria, a livida Miseria.
Passae larvas gentis na rua da cidade
Aonde se atropella a turba folgazã;
A noite é um tanto agreste e cheia d'humidade
Mas o tedio mortal precisa a claridade
Que em vosso olhar trazeis, vizões do macadam!
Estatuas sem calor! vós sois das grandes vazas
D'um corrompido mar as Deusas menos vis!
Se á noite abandonaes, voando, as pobres casas,
E vindes pela rua enlamear as azas,
Quem sabe a fome occulta, as sedes que sentis!
A pallida Miseria em seu triste cortejo
Precisa as contracções de muitos hombros nús:
E vós ides sorrindo ao lubrico desejo,
Do carro da desgraça arremessando um beijo
Que apenas é de lama em vez de ser de luz!
Embora! caminhae deixando um grande rasto
D'estranhas emoções, d'aromas sensuaes:
E ao pobre que mendiga a pallidez d'um astro;
Ao que sonha vizões e archanjos d'alabastro
Fazei por despenhar nos longos tremedaes!
Do velho idyllio, a muza, ha muito já que dorme,
E o arroio em vão suspira e chora a nossos pés!
A grande multidão,—a vaga, a onda enorme,
Que oscilla sem cessar, e gira multiforme
Ás corridas, ao circo, ao templo e aos cafés,
Talvez ao presentir que tudo, emfim, declina,
Adore a immensa luz, em vós, constellações,
Que não baixaes do céo; que vindes d'uma esquina,
Vagando no rumor da aérea musselina,
Em plena bacchanal fingindo de vizões?
Oh, sois do nosso tempo! A languida existencia
De tedios se consome e sente febres más!
Aspira ao que é bizarro: a uma exquisita essencia
Que exhala aquella flôr que vem na decadencia
E quando a toda a luz succede a luz do gaz!
Do seculo a voz rude apenas diz—trabalha!—
Ao poste vil amarra o lubrico ideal
Que expira, emfim, talhando a funebre mortalha
Na vossa trança gasta, ó muzas da canalha
Que apenas revoaes do olimpo ao hospital!
Eu canto-vos, mulher, por que vos tenho visto
Na palpebra vermelha a lagrima d'amôr,
Que vem d'Eva a Maria—a doce mãe de Christo—
Formando a stalactite immensa d'uma dôr!
Oh, quantas vezes já n'aldeia miseravel
Nas tristezas do campo, ás portas dos casaes,
Vos tenho surprehendido, em extasi adoravel,
Em quanto os filhos nús ao peito conchegaes!
A fria noite chega. Os maus, de bocca cheia,
Rebolam-se na terra: ainda pedem pão!
Com elles repartis a vossa parca ceia;
E vendo-os a dormir podeis sorrir então.
D'inverno quasi sempre as noites são mordentes.
Uivam lobos na serra: o vento uiva tambem:
Mas elles vão dormindo os longos somnos quentes,
Em quanto a vil insomnia opprime a pobre mãe!
Tendes sustos crueis. Temendo que lhes caia
A roupa que os abafa, aos pobres acudis;
E aninhando-os melhor nas vossas velhas saias
Podeis então dormir um tanto mais feliz.
Mulher quanto é suave e longo esse poema
Quanto é preciso ó mãe, no transito cruel,
Que vossa alma estremeça e o vosso peito gema
A fim de que em vós brilhe o mais alto laurel!
Quem é que nunca viu, na rua, a cada passo,
A pallida mulher que rompe a multidão,
Trazendo agasalhado, um filho no regaço,
E aos tombos, muita vez, um outro pela mão?!
Nos frios do lagedo, ás vezes, pede esmola
Ás portas dos cafés: ninguem a quer ouvir:
E a ella qualquer codea a farta e a consola
Comtanto que sem fome os filhos vão dormir!
E em quanto á luz do gaz a turba prazenteira
No fumo dos festins revoa em turbilhão,
Quantos dramas crueis nas humidas trapeiras;
Nos campos quantas mães sem roupas e sem pão?!
E sempre a mesma lenda, a mesma historia antiga:
Do palacio á cabana o vosso doce olhar,
Nas insomnias crueis, na fome ou na fadiga,
D'um raio creador o berço a illuminar!
No entanto á doce mãe, se aquelle amor sem termo,
Da moda traja agora os novos ouropeis,
E o vosso coração já gasto e um pouco enfermo,
Soffrendo se dilue nos ideaes crueis;
Nas vagas pulsações d'umas recentes ancias,
Se aquella santa flôr das grandes commoções,
Apenas tem logar nas vossas elegancias.
Como um enfeite de mimo amado nos salões;
Na corrente fatal que ao longe arrasta os povos,
Se o vosso grande affecto intenta erguer-se mais,
Sonhando a sagração dos heroismos novos,
Resplendente de luz; vistosa de metaes:
Aos reflexos do gaz, ó mãe, abri passagem
Por entre a saudação das alas cortezãs,
Levando as seducções da vossa doce imagem
Aos delirios da noite, ás ceias das manhãs!
Surgi do canto obscuro aonde o casto seio
Palpita ingenuo e bom na paz da solidão,
E o vosso amor levae á opera e ao passeio
A fim de que elle arranque um bravo á multidão!
E eu heide rir ao ver que o peito onde um thesouro
Maior do que nenhum podemos encontrar,
Intenta seduzir pela medalha d'ouro
Que aos pequenos heroes os reis costumam dar!
Archanjo vae-te embora: é tarde: em nossas casas
Talvez alguem se afflija; é tão deserta a rua!…
Tu deves sentir frio! Embuça-te nas asas;
Dá saudades á lua.
Um beijo em cada estrella!… Espera que eu sou louco!
Sonhei devo pagar: perdão anjo dos céos!
Agora tem cuidado; o céo escorrega um pouco:
Boas noites adeus!
Na serena missão de paz que tu cumpriste
Ó suave Jesus, ó doce galileu,
Que santa singeleza e que perfume triste
Do teu casto perfil no mundo rescendeu!
Havia no teu verbo aquella unção divina
Que a velha harpa de Job soltou nas solidões,
E o bello, o puro sol da antiga Palestina
Suave contornou, de luz, tuas feições!
Compunham-te o cortejo uns pobres pescadores
Almas rectas e sãs; marchavas por teu pé,
E sorrias falando aos rudes e aos pastores,
Sentado nos portaes da pobre Nazareth.
Da tua Galiléa os valles percorrias
Levando um bom quinhão d'affecto a cada lar,
E o grande olhar suave e terno das judias
Turbaste muita vez, de certo, sem pensar!
E mais simples na morte, apenas a tua alma
Transpunha as regiões purissimas do sol,
Tu que havias colhido a immorredoura palma
Não tinhas para o corpo as gallas d'um lençol!
Consola-te ó Jesus! Tu deves já ter visto
Que sobre a terra, agora, ao teu nome fieis,
Os que se dizem ser apostolos de Christo
Não precisam trajar os infimos bureis.
Não maceram seus pés! não vão pobres e rotos
Envoltos na estamenha, apedrejados, sós,
Nos desertos viver de mel e gafanhotos,
Convertendo o gentio ao som da sua voz.
Ante elles, ao contrario, alargam-se os batentes
Dos palacios reaes, nas grandes recepções,
E formam-lhes cortejo os coches reluzentes
Atraz dos quaes se bate um trote d'esquadrões!
Cobrindo-lhes, depois, d'insignias as roupetas,
Afim d'honrar melhor a primitiva fé,
Redobram-se ainda mais as velhas etiquetas;
Polvilham-se melhor os homens da libré!
E dão-se-lhes festins onde ha grandes baixellas,
Fataes scintillações de vinhos e rubins,
Gargantas ideaes, grandes espaduas bellas,
Lampejos de cristaes, insidias de setins!
Oh! temo bem Jesus que tantas pedrarias
Façam peso de mais na barca do Senhor,
Quando é certo que as mãos de Pedro um pouco frias
Mal podem segurar o leme salvador!
Por isso quando avisto o espaço que negreja
E o mar que se encapella, eu temo que ámanhã
Do fendido baixel da tua velha Egreja
Apenas reste, á prôa, uma ficção pagã!
O velho Olimpo dorme o bom somno comprido
Que prostra o lutador no fim d'uma batalha,
E os Deuses d'outro tempo, em livida mortalha,
Descançam no torpor d'um mundo corrompido.
No puro céo christão, de estrellas revestido,
No entanto ha muito já que chora e que trabalha,
Por nós, o Christo bom sem que seu Pae lhe valha,
A fim de ver, de todo, o mundo redimido!
Justiça, traça o manto alvissimo e estrellado
E senta-te, mulher, no throno abandonado
Pelos vultos gentis de tantos Deuses velhos!
Depois inda maior, mais pura e mais serena,
No sangue de Jesus molhando a tua penna
Explica a nova lei no fim dos evangelhos!
Heroes da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
Eu gosto do vossês,
Por que amo as expansões dos grandes rizos francos
E os gestos d'entremez,
E prezo, sobretudo, as grandes ironias
Das farças joviaes,
Que em visagens crueis, imperturbaveis, frias,
Á turba arremeçaes!
Alegres histriões dos circos e das praças,
Oh, sim, gosto de os ver
Nas grandes contorsões, a rir, a dizer graças
Do povo enlouquecer,
Ungidos para a luta heroica, descambada,
De giz e de carmim,
Nas mimicas sem par, heroes da bofetada,
Titães do trampolim!
Correi, subi, voae n'um turbilhão fantastico
Por entre as saudações
Da turba que festeja o semi-deos elastico
Nas grandes ascenções,
E no curso veloz, vertiginoso, aerio,
Fazei por disparar
Na face trivial do mundo egoista e serio
A gargalhada alvar!
Depois mais perto ainda, a voltear no espaço,
Pregae-lhe, se podeis,
Um pontapé furtivo, ó lividos palhaços
Lusentes como reis!
Eu rio sempre ao ver aquella magestade,
Os tragicos desdens,
Com que nos divertis, cobertos d'alvaiade,
A troco d'uns vintens!
Mas rio ainda mais dos histriões burguezes
Cobertos d'ouropeis
Que tomam, n'este mundo, em longos entremezes,
A serio os seus papeis.
São elles, almas vãs, consciencias rebocadas,
Que, em fim, merecem mais
O comentario atroz das rijas gargalhadas
Que ás vezes disparaes!
Portanto é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
Nas comicas funcções,
Até fazer morrer, em desmanchados gestos,
De riso as multidões!
E eu que amo as expansões dos grandes risos francos
E os gestos d'entremez,
Deixae-me dizer isto ó nobres saltimbancos,
Eu gosto de vossês!
Ha muito que desceu das orientaes montanhas
A hydra singular que espalha nas ardencias
D'uma luta febril scintillações estranhas!
Ella galga, rugindo, ás grandes eminencias,
E emquanto vae soltando o silvo pelo espaço
Engrossa á luz do sol na seiva das consciencias.
Tem rijezas sem par, como de roscas d'aço
E corre descrevendo em giros caprichosos
Na leiva popular um indefinido traço.
Prefere aos antros vis os focos luminosos
E em mil voltas crueis aperta dia a dia,
N'uma longa espiral, os thronos carunchosos.
Passou pelo paiz da candida Utopia:
Nos mythicos rosaes viveu d'um vago aroma
Ao pallido fulgor da aurora que rompia.
Mas hoje com valor em toda a parte assoma,
E sem temer sequer a lugubre vizeira
Ha muito que transpoz os porticos de Roma.
E os Papas mais os Reis sentindo-a na carreira
Do seu longo triumpho, um tanto apavorados,
Trataram d'acender a livida fogueira.
E ao galope lançando os esquadrões cerrados
Começaram depois, na terra, a perseguil-a,
A cumplice fatal dos lividos Pecados!
Mas ella sem temor, nos cerberos tranquilla,
Derrama cada vez mais bellos e fecundos
Os intensos clarões da lucida pupilla,
E emquanto a imprecação de tantos moribundos,
Os despotas crueis, acolhem com desdem,
A hydra immensa—a Idéa—a farejar nos mundos
Ainda a garra adunca afia contra alguem!
Dos antigos Titães, o mar,—fera indomavel,
Agora verga o dorso ao peso colossal
Dos novos leviathãs que em bando formidavel,
Nas grandes explosões da colera insondavel,
Já levam de vencida o abysmo e o vendaval!
Elles seguem no mar, altivos no seu rumo,
Em halitos de fogo, á nossa voz fieis,
E como o combatente erguendo a lança a prumo,
Era turbilhões rompendo, as flamulas de fumo
Ostentam sem cessar correndo entre os parceis!
Que sopro creador, que força omnipotente
Os fez surgir do nada, os monstros colossaes?
Ó novos leviathãs provindes tão somente
Do fecundo hymeneu, d'este connubio ardente
Do Genio e do Trabalho, amantes immortaes!
Correis de mar em mar, altivos, triumphantes,
Levando a toda a parte a vida, a nova luz,
E as sereias gentis não fazem como d'antes,
Ao som da sua voz, perder os navegantes;
O dorso dos delfins, no mar, já não reluz!
Ó alma antiga dorme inerte no regaço
Dos velhos Deuses vãos, que o homem creador
Agora ri de ti, prostrada de cansaço,
Emquanto vae soprando em mil gigantes d'aço
Outra alma inda mais larga,—o novo Deus-Vapor!
Sua alteza real o pequenino infante
Matou, d'um tiro só, dois gamos na carreira:
Um hymno mais ao céo, pois era a vez primeira
Que sua alteza vinha á diversão galante!
Ó vergontea gentil! quando um tropel distante
De subito acordar os echos da clareira
E uma preza cansada, em rolos de poeira,
Varada, a vossos pés, caír agonisante,
Acercai-vos então da pobre fera exangue
Que estrebuxa de dôr n'um mar de lama e sangue
Sem que um grito de dó nos corações acorde!
No entanto não fiqueis na doce gloria absorto:
O velho javali parece ás vezes morto
Mas surge da agonia e os seus algozes morde!
Eu sou, mulher suave, aquelle antigo louco,
O triste sonhador que o teu olhar cantou,
E que hoje vae sentindo, o sonho, a pouco e pouco,
Fugir como o luar d'um astro que expirou!
Que morra, porque, emfim, bem longo elle tem sido
E tempo é já, talvez, da Morte desposar
O sonho que em minha alma entrou como um bandido
E só da vida sae depois de me roubar!
Eu devera amarral-o á braga do forçado,
Como a Justiça faz aos despreziveis réos,
E lançal-o depois á valla do passado
Aonde o fulminasse a colera dos céos.
Mas não; quero embalar-lhe os ultimos momentos
Ao som d'uma canção das quadras juvenis,
E amortalhar depois—em doces pensamentos—
No manto da saudade, os seus restos gentis.
E quando elle seguir ás regiões saudosas,
Aonde todos nós iremos repousar,
Ao esquife hei de atirar-lhe as derradeiras rosas
Que dentro de minha alma houver por desfolhar!
Ninguem profanará seus restos adorados,
Que em paz irão dormir n'um fundo mausoleo;
E quando alguma vez já hirtos, regelados,
Acordem, por ventura, á luz que vem do céo;
Em vão tu baterás, ó sonho, á fria porta
Que em breve has de sentir fechada sobre ti,
Porque a tua Memoria, emfim, já estará morta,
E não te escutarei… porque também morri!
Ó pobres versos meus, lançae-vos pela estrada
Agreste e pedregosa, aonde os companheiros
Da luta, encontrareis, meus infimos guerreiros,
Formando os batalhões da bellica avançada!
E o trajo em desalinho, a face illuminada,
Transponde, sem demora, os fossos derradeiros
Que separam de nós os braços justiceiros
Da serena Verdade, a Deusa idolatrada.
Vencidos no combate, ou pouco ou nada importa.
Ao chão vergae sem pena a faço semi-morta,
Mordendo, inda a lutar, o pó da enorme liça:
E tudo, emfim, esquecendo; os odios e os desprezos;
Que d'entre vós alguns, ao menos, fiquem prezos
Como fios de luz, ao manto da Justiça!
Nas paginas que em seguida se leem acha-se tão bem determinada, com tanta eloquencia e tão profunda observação, a missão da poesia contemporanea, que não podemos resistir ao desejo de as trazer das folhas passageiras do jornal, aonde pela primeira vez viram a luz, para as paginas d'este livro, por ventura um pouco menos ephemeras.
O autor das Radiações da Noite, intenta sobretudo mostrar que o seu espirito, correspondendo ás indicações da critica, procura inspirar-se, tanto quanto lhe é possivel, no mundo que o cerca, nos factos e nas acções do nosso tempo. Das Radiações da Noite á Alma Nova poder-se-ha talvez notar um certo caminho andado na direcção em que vae seguindo a arte contemporanea.
Do escripto como primitivamente foi publicado, entendemos, como o leitor tambem de certo comprehenderá, suprimir, hoje, a parte final em que o talentoso critico se referia, d'um modo demasiadamente lisongeiro, á individualidade litteraria do autor das Radiações.
Guilherme d'Azevedo
a preposito das
do sr.
Guilherme d'Azevedo
O seculo XIX, cujos primeiros annos enflorou uma corôa poetica de esplendor incomparavel, tem mentido cruelmente ás esperanças da sua aurora. Envelhecendo, perdeu o dom do canto, ou, pelo menos, o sentimento que faz os cantores verdadeiros. Os Goethe, os Byron, os Lamartine, os Miczkawicz, os Hugo, os OEhlenschlaeger, não deixaram descendencia digna d'aquella poderosa geração. O romantismo foi um meteoro. O grande canto do seculo esvaeceu-se gradualmente n'um murmurio. A poesia contemporanea não tem unidade, e não tem sobre tudo o largo folego de inspiração, que caracterisa as verdadeiras épocas poeticas. O interesse do tempo dirige-se evidentemente para outro lado. No meio das preoccupações da actualidade, a poesia é como a canção de um conviva distraído que se affasta da sala do festim, e cuja voz se perde pouco a pouco no silencio da distancia e da noute.
Depois do apparecimento do romantismo, a sua queda é o maior facto litterario, do seculo. Porém essa queda, que como facto todos reconhecem, mas cuja phenomenalidade poucos tentam explicar, será uma justa sentença lavrada pela razão publica, ou será uma condemnaçao arbitraria que deshonra o tribunal que a firma? Indicará para o espirito do nosso tempo um progresso ou uma decadencia? uma gloria ou um deslustre aos olhos da historia?
Não hesito em responder. O romantismo foi justamente condemnado. O seculo, com um sentimento lucido da sua verdadeira missão, affastou-se d'aquelles que lhe fallavam uma linguagem, cujo brilho, cuja eloquencia, cuja sinceridade, por maiores que fossem, não podiam encobrir o falso do principio, que a inspirava. Essa missão é essencialmente positiva, social e racional, e o romantismo era essencialmente apaixonado, individual e subjectivo. Por mais que se virasse para o futuro, a sua alma pertencia ao passado; emquanto que o seculo, ainda nos momentos em que parece invocar o passado, é sempre para o futuro que caminha. No fundo, uma sociedade saída da revolução, e uma poesia que se inspirava das tradições da edade-media, contradiziam-se, negavam-se radicalmente. Um equivoco historico pôde por um momento estabelecer aquelle infundado accordo: no dia, porém, em que se conheceram, separaram-se.
Ainda ha muita gente que sente, chora, crê, e aspira, á maneira dos grandes, melancolicos e apaixonados de 1820. Mas já nos não commovem como então, já não influem poderosamente no mundo que os rodeia. São vozes sem ecco. É quanto basta para que nada signifiquem, historicamente: tanto mais que aquellas vozes frouxas não teem já o timbre ardente de indomavel paixão, que nas outras nos commovia. A paixão d'estas é mais estudada na escola, do que saída do coração. Não é já como então, um convencimento violento dos direitos da propria loucura, que os inspira: são apenas os livros dos mestres: ora, não é nos bancos apertados da escola, mas no seio da livre natureza, que se criam os verdadeiros poetas.
Os poetas da geração actual vêem-se pois, rasgado aquelle veo phantastico da sentimentalidade d'outr'ora, em face d'uma sociedade, que elles não comprehendem, porque ella mesma a si se não comprehende bem, mas que os não quer escutar senão com a condição de lhe falarem d'aquillo que a interessa e a preoccupa, de se inspirarem da sua vida real e das suas verdadeiras aspirações. É d'esta situação anormal que resulta a incerteza, a anarchia, a fraqueza da poesia contemporanea. A idéa poetica acha-se confusa, embaraçada no meio de factos sociaes, que se não definem claramente: as fontes da inspiração correm escassas ou turvas. A antiga nascente, tão querida e conhecida, está quasi secca: a nova, já por ser nova, e depois por que só deixa rebentar, em cachões, uma agua turbida, cheia de elementos estranhos, assusta os que a ella se chegam pela primeira vez; os mais ousados inclinam-se um momento, tomam a medo um golle da bebida suspeita, e retiram-se furtivamente como se acabassem de fazer uma acção má.
E todavia, é alli que é necessario beber, porque é alli, n'aquellas aguas rumorosas e confusas, que se conteem os elementos da inspiração real, os principios vitaes de que se nutre a sociedade, e de que tem por conseguinte de se alimentar tambem a poesia, sob pena de se tornar uma abstracção, um phantasma, uma puerilidade. O problema da evolução poetica na actualidade encerra-se todo n'isto.
Mas aqui apresenta-se uma questão, que nos detem. Terá a sociedade contemporanea (essa sociedade, ao que dizem, positiva até ao mais desolador utilitarismo) na sua atmosphera suffocadora de industria, de lutas sociaes e de sciencia friamente analytica, condições de vida e desenvolvimento normal para a constituição delicada das castas musas, das musas melindrosas e scismativas? Não será uma sociedade essencialmente anti-poetica, esta nossa, um mundo rebelde a toda a idealidade? Por outras palavras; poderá haver poesia racional, positiva e social? Será um ser poetico o homem do nosso tempo?
Intendo que póde haver tal poesia; que a alma moderna, na sua titanica aspiração de verdade e justiça, é poetica, poetica essencialmente, d'aquella poesia forte e audaciosa dos mythos de Prometeu e Ajax; que ha uma fonte abundante de inspiração n'esta luta historica de nações, de classes e de idéas, que é a epopea e a tragedia viva do nosso seculo; que, finalmente, á maneira que os factos confusos da nossa epoca se forem desembrulhando, mais lucida e evidente se irá mostrando a idealidade sublime que n'esse chaos apparente se contém.
E a idéa d'essa poesia nova não só existe, mas deve ser superior á idéa poetica das eras anteriores, porque corresponde a um periodo mais adiantado da consciencia humana, penetra com maior intensidade a natureza e o espirito, extrae o bello da propria realidade universal, não das visões de um subjectivismo inexperiente, e dá por base ao sentimento, em vez de sonhos e intuições quasi instinctivas, os factos luminosos da rasão.
Os caracteres essenciaes d'essa poesia já hoje se podem indicar, e todos elles se consubstanciam n'uma palavra, que resume tambem as tendencias da nossa civilisação: o Humanismo. A inspiração social e naturalista vem substituir a sentimentalidade toda subjectiva e pessoal, ou o transcendentalismo contemplativo de outras idades poeticas. A poesia deixa de duvidar e scismar, para affirmar e combater; mostra-nos o interesse profundo e o valor ideal dos factos de cada dia; dá ás acções, que parecem triviaes, da vida ordinaria, um caracter, e significação universaes; e surrindo maternalmente para as creanças, as mulheres, os simples, caminha todavia armada no meio das lutas dos homens.
Uma tal missão ninguem dirá que é mesquinha ou vulgar: ha n'isto com que tentar os mais altos engenhos, captivar os corações mais generosos. E, sobretudo, deve seduzir os espiritos verdadeiramente poeticos acharem-se em communicação directa e constante com o seu tempo, com as aspirações, os interesses, as crenças da sociedade que os rodêa, e de cuja vida vivem, como meio historico a que fatalmente pertencem.
Certamente que essa evolução nova da poesia tem de ser lenta, como lenta é a evolução do edeal social, que a deve inspirar. Ha um certo receio, e uma certa incerteza. O novo assusta: o indistincto faz hesitar, mas insensivelmente, e fatalmente tambem, caminha-se n'aquella direcção. Os symptomas d'este movimento tornam-se cada dia mais accentuados. Em França e Allemanha, sobre tudo, paizes aonde as idéas e tendencias novas se pronunciam n'uma agitação crescente, podem já indicar-se exemplos bem significativos; em Allemanha ainda mais do que em França. Alli a poesia inspira-se resolutamente das lutas sociaes e religiosas do tempo, e abalança-se já, ainda que com incerta fortuna, ás grandes composições epicas, aonde se desenha uma sociedade, consubstanciada nos seus typos e paixões mais caracteristicas. Entre nós, ha apenas indicios tenues e raros, mas que, porisso mesmo, devemos recolher tanto mais cuidadosamente, quanto parecem provar que nem tudo está inteiramente morto no espirito portuguez, e nos animam a esperar com alguma confiança n'um melhor futuro.
Anthero de Quental.
Na revisão d'este livro escapou uma ou outra incorrecção que não mencionamos, e de que o leitor benevolo nos absolverá. A paginas 63, devemos porém notar, em especial, o 3.^o verso, que insidiosamente apparece mascarado em alexandrino puro, feição que de certo lhe não compete. Aos entendidos concedemos plena autorisacão para demolir o verso referido, reconstruindo-o depois como julgarem mais proprio.
I—Eu poucas vezes canto os casos melancolicos
II—Eu vi passar além vogando sobre os mares
III—Velha farça
IV—Graça posthuma
V—Historia simples
VI—A meza do festim cercada de formosas
VII—Os sonhos mortos
VIII—Falta a ordem
IX—Ó lyrios da cidade, ó corações doentes
X—Miseria santa
XI—Astro da rua
XII—Quando Martha morrer, depois do extremo arranco
XIII—As victimas
XIV—Evocacas
XV—Boas noites, coveiro, a tua enxada
XVI—Flor da moda
XVII—Ó machinas febris, eu sinto a cada passo
XVIII—A Christo
XIX—Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizel-o
XX—O grande templo
XXI—A um certo homem
XXII—Á hora do silencio
XXIII—Eu quizera depois das lutas acabadas
XXIV—O velho cão
XXV—As velhitas
XXVI—As vizões
XXVII—Melancolias d'outono! eu quando além descubro
XXVIII—O velho mundo
XXIX—Eis a velha cidade, a cortezã devassa
XXX—Á noite
XXXI—A valla
XXXII—Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos
XXXIII—Eu vejo em tua boca as petalas vermelhas
XXXIV—Nos campos
XXXV—O ultimo D. Juan
XXXVI—Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas
XXXVII—Antigo thema
XXXVIII—A mãe
XXXIX—Arcanjo vae-te embora, é tarde em nossas casas
XL—Santa simplicidade
XLI—O velho Olimpo dorme o bom somno profundo
XLII—Os palhaços
XLIII—A hydra
XLIV—Os novos leviathãs
XLV—Sua alteza real o pequenino infante
XLVI—Versos a *
XLVII—O pobres versos meus, lançae-vos pela estrada
Appendice