The Project Gutenberg eBook of A Alma Nova This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Alma Nova Author: Guilherme Avelino Chave de Azevedo Release date: January 30, 2006 [eBook #17639] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A ALMA NOVA *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) GUILHERME D'AZEVEDO A ALMA NOVA LISBOA TYPOGRAPHIA SOUSA & FILHO Rua do Norte, 145 1874 A ANTHERO DE QUENTAL A ANTHERO DE QUENTAL _Meu amigo. Este livro parece-me um pouco do nosso tempo. Sorrindo ou combatendo, fala da Humanidade e da Justiça, inspirando-se no mundo que nos rodeia. E porque julgo que elle segue na direcção nova dos espiritos, offereço-o a um obreiro honesto do pensamento: a uma alma lucida, moderna e generosa_. Dezembro de 1873. Guilherme d'Azevedo. I Eu poucas vezes canto os casos melancolicos, Os lethargos gentis, os extasis bucolicos E as desditas crueis do proprio coração; Mas não celebro o vicio e odeio o desalinho Da muza sem pudor que mostra no caminho A liga á multidão. A sagrada poesia, a peregrina eterna, Ouvi dizer que soffre uma affecção moderna, Uns fastios sem nome, uns tedios ideaes; Que ensaia, presumida, o gesto romanesco E, vaidosa de si, no collo eburneo e fresco, Põe crémes triviaes! Oh, pensam mal de ti, da tua castidade! Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade, Os falsos ouropeis das cortezãs gentis, E julgam já tocar-te as roçagantes vestes Ó deusa virginal das coleras celestes, Das graças juvenis! Retine a cançoneta alegre das bachantes, Saudadas nos wagons, nos caes, nos restaurantes, Visões d'olhar travesso e provocantes pés, E julgam já escutar a voz do paraiso, Amando o que ha de falso e torpe no sorriso Das musas dos cafés! Oh, tu não és, de certo, a virgem quebradiça Estiolada e gentil, que vem depois da missa Mostrar pela cidade o seu fino desdem, Nem a fada que sente um vaporoso tedio Emquanto vae sonhando um noivo rico e nédio Que a possa pagar bem! Nem posso mesmo crêr, archanjo, que tu sejas A menina gentil que ás portas das egrejas Emquanto a multidão galante adora a cruz, A bem do pobre enfermo á turba pede esmola Nas pompas ideaes da moda, que a consola Das magoas do Jesus! E nas horas de luta emquanto os povos choram E a guerra tudo mata e os reis tudo devoram, Não posso dizer bem se acaso tu serás A senhora que espalha os languidos fastios Nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios Á viva luz do gaz! Tu és a apparição gentil, meia selvagem, D'olhar profundo e bom, de candida roupagem, De fronte immaculada e seios virginaes, Que desenha no espaço o limpido contorno E cinge na cabeça o virginal adorno De folhas naturaes. Tens a linha ideal das candidas figuras; As curvas divinaes; as tintas sãs e puras Da austera virgindade; as bellas correcções; E segues magestosa em teu longo caminho Deixando fluctuar a tunica de linho Ás frescas virações! Quando trava batalha a tua irmã Justiça Acodes ao combate e apontas sobre a liça Uma espada de luz ao Mal dominador: E pensas na belleza harmonica das cousas Sentindo que se move um mundo sob as louzas No germen d'uma flôr! N'um sorriso cruel, pungente d'ironia, Tambem sabes vibrar, serena, altiva e fria, O latego febril das grandes punições; E vendo-te sorrir, a geração doente, Sentir cuida, talvez, a nota decadente, Das morbidas canções! Oh, vôa sem cessar traçando nos teus hombros O manto constellado, ó deusa dos assombros, Até chegar um dia ás regiões de luz, Aonde, na poeira aurifera dos astros, Contricto, Satanaz enxugará de rastos, As chagas de Jesus! Logar á minha fada ó languidas senhoras! E vós que amaes do circo as noites tentadoras, Os fluctuantes véos, os gestos divinaes, Podeis vel-a passar n'um turbilhão fantastico, Voando no corcel febril, nervoso, elastico, Dos novos ideaes! II Eu vi passar, além, vogando sobre os mares O cadaver d'Ophelia: a espuma da voragem E as algas naturaes, serviam de roupagem Á triste apparição das noites seculares! Seguia tristemente ás regiões polares Nos limos das marés; e a rija cartilagem Sustinha-lhe tremendo aos halitos da aragem, No peito carcomido, uns grandes nenuphares! Oh! lembro-me que tu, minha alma, em certos dias Sorriste já, tambem, nas vagas harmonias Das cousas ideaes! mas hoje á luz mortiça Dos astros, caminhando; apenas as ruinas Das tuas creações fantasticas, divinas, De pasto vão servindo aos lyrios da justiça! III VELHA FARÇA Rufa ao longe um tambor. Dir-se-ia ser o arranco D'um mundo que desaba; ahi vae tudo em tropel! Vão ver passar na rua um velho saltimbanco E uma féra que dansa atada a um cordel. Ó funambulos vis, comediantes rotos, O vosso riso alvar agrada á multidão! E quando vós passaes o archanjo dos esgotos Atira-vos a flôr que mais encontra á mão! Lá vae tudo a correr: são as grotescas dansas D'uns velhos animaes que já foram crueis E agora vão soffrendo os risos das creanças E os apupos da turba a troco de dez réis. Conta um velho histrião, descabellado e pallido, Da féra sanguinaria o instincto vil e mau, E vae chicoteando um urso meio invalido Que lambe as mãos ao povo e faz jogo de páu. Depois inclina a face e obriga a que lh'a beije A fera legendaria olhada com pavor: E uma deosa gentil, vestida de bareje, Annuncia o prodigio a rufo de tambor! E as mães erguem ao collo uns filhos enfezados Que nunca tinham visto a luz dos ouropeis: E accresce á multidão a turba dos soldados, --Ao ilota da cidade o escravo dos quarteis. E o funambulo grita; impõe qual evangelho Á turba extasiada a grande narração. E sobre um cão enfermo um ourangotango velho Passeia nobremente os gestos de truão. Correi de toda a parte, aligeirae o passo, Deixae a grande lida e vinde á rua vêr As prendas d'uma fera, as galas d'um palhaço, E um archanjo que sua e pede de beber! A tua imagem tens ó povo legendario No comico festim que mal podes pagar, Pois tu ainda és no mundo o velho dromedario Que a vara do histrião nas praças faz dansar. IV GRAÇA POSTHUMA Depois da tua morte eu heide ver se arranco, N'uma noite serena, ao teu berço final, Um producto mimoso;--um grande lyrio branco Da alvura do teu collo eburneo e divinal! Aquella flôr suave, ó minha visão estherica, Debruçada gentil, na taça em que a puzer, Fazer-me-ha lembrar a graça cadaverica Do teu corpo franzino e ethereo de mulher! E mesmo conterá, de certo, alguma cousa Do que me traz submisso e prezo ao teu olhar: --Teu corpo a pouco e pouco irá fugindo á louza Depois tornado em lyrio á terra hade voltar!-- E em longas noites, n'elle, eu beberei sosinho, Sonhando as convulsões d'uns lindos braços nús, A fragrancia que exhala a candidez do linho Em que hoje ondeias leve e onde os meus labios puz, --Saudando a boa mãe que faz com que eu te gose Depois do verme vil teu seio polluir, Mais pura no frescor de tal metamorphose Do que eras a scismar, do que eras a sorrir! Ó minha doce Ophelia! Os rapidos momentos Da vida, são crueis mas passam como um som! Um dia quando em fim dos velhos sedimentos Teu corpo renascer n'um lyrio immenso e bom, Talvez que eu durma já tambem sob os matizes Das flôres, ao sorrir das mil germinações, Dando um pasto fecundo ás tuas sãas raizes Depois de te sagrar as ultimas canções! V HISTORIA SIMPLES Havia um rapaz são, robusto, bom, valente, De espadua larga e rija; um ceifador gentil. Cavava todo o dia, andou sempre contente E a feria dava á mãe sem falta d'um ceitil. Elle amava a campina e os ceus largos, serenos. Aos domingos a mãe deixava-lhe uns dez reis. Deitava-se ao luar, dormindo sobre os fênos, Na fragrancia do trêvo, ao pé dos cães fieis. A mãe tinha de seu duas vaquitas mansas: N'um cerro agreste e vil alguns palmos de chão. E tinha ainda mais não sei quantas creanças Que andavam nuas sempre e sempre a pedir pão. O pae mal se sustinha ás vezes sobre as pernas: Era bebado e mau, batia na mulher; E á noite, ao scintillar dos vinhos nas tavernas, Cantava canções vis de a gente ensurdecer. Um dia uma senhora honesta da cidade, Esplendida, gentil, sabendo-se sorrir, Reparou no rapaz; achou-lhe propria a idade E fez-lhe um certo gesto:--o moço não quiz ir. Teve um assomo de raiva, então, sua excellencia. Ordenou-lhe que fosse: o moço disse,--irei! Despediu-se dos seus: devia obediencia Á senhora gentil que se chamava... a Lei! Pegou no velho alforge e no bordão nodozo E metteu-se a caminho. Os pobres dos irmãos Choravam á partida:--um quadro doloroso! A mãe louca de dôr torcia as magras mãos! Chegando no outro dia ao ponto onde o chamaram Primeiro foi medido e todos a final, Depois de bem revisto, á uma, concordaram Que ao serviço do rei convinha este animal! Aquell'outra senhora, astuta, grave, terna, --A ordem--jubilava em doces pulsações! Contava mais um servo, um filho, na cazerna, Gastando pouco mais:--uns cobres e uns feijões!... Agora quando passa o batalhão luzente Na rua, podeis ver o pobre cavador Com modos imbecis, marchar pesadamente --Heroe por conta alheia--ao rufo do tambor! Não sabe onde caminha entre as guerreiras hostes! Perguntem-lhe o que é patria e liberdade e lei! Caminha simplesmente ás ordens dos prebostes Que trazem no chicote a salvação do rei. E na pobre cabana ainda se conserva O mesmo quadro triste:--a lacrimosa mãe; Alguns pequenos nús rolando sobre a herva, E um ebrio que pragueja e não pensa em ninguem!-- Mulher não chores mais: a quadra é pura e bella: Emquanto na campina alouram os trigaes, Teu filho guarda o mundo e a Deus faz sentinella: Receiam que Deus faça andar o mundo mais. Em breve elle virá de jubilo e d'assombro Encher tua alma, em fim, quando ámanhã voltar Com seu velho canudo, a trouxa posta ao hombro, Trazendo novamente a luz ao pobre lar. E tu perguntarás: o que é meu filho, é ouro!! A quantas guerras foste? ó ceus, como tu vens! --Mãe tome essa lata! esconda o meu thesouro E deixe-me ir dormir no fêno ao pé dos cães! VI Á meza do festim, cercada de formosas, O canto dos cristaes e o scintillar dos vinhos Saudavam juntamente os bellos desalinhos Das galantes vizões das ceias luminozas! Molhavam-se em champagne as pétalas das rozas! E em baixo, a nossos pés, em leves murmurinhos A gaze sobreposta á candidez dos linhos Erguia-se n'um mar de vagas caprichosas! Ali tudo era paz! Nem odios vis nem zelos! Os labios pois limpando ás rendas e aos cabellos Da menos trivial das fadas tentadoras, Eu brindo aos mortos!--disse: á legião sagrada Que foi á solidão, á eternidade, ao nada! --Ás almas e ao pudor d'estas gentis senhoras. VII OS SONHOS MORTOS Embora triste a noite, a vagabunda lua Mais branca do que nunca erguia-se nos ceus, Igual a uma donzella ingenua e toda nua No leito ajoelhada erguendo a fronte a Deus! O mar tinha talvez scintillações funestas. A praia estava fria, as vagas davam ais; Semelhavam, ao longe, as extensas florestas Fantasmas ao galope em monstros colossaes. E eu vi n'um campo immenso, agreste e desolado, Immerso no fulgor diaphano da luz, Juncando tristemente o solo ensanguentado Sinistra multidão de corpos semi-nus! Tinha a morte cruel, em sua orgia louca, Deposto em cada fronte um osculo brutal; E um ironico rizo ainda em muita boca Se abria, como a flôr fantastica do mal! E eu vi corpos gentis de virgens delicadas Beijando a fria terra, as mãos hirtas no ar, Em sagrada nudez!... Cabeças decepadas!... Em muito peito ainda o sangue a borbulhar!... E sobre a corrupção das brancas epidermes Luzentes de luar e d'esplendor dos ceus, Orgulhosos passando os triumphantes vermes, Da santa formosura os ultimos Romeus! Se tu minha alma livre ainda hoje conservas Memoria das vizões que amaste com fervor Ahi as tens agora alimentando as ervas De novo dando á terra o que ella deu á flôr! São ellas! as vizões dos meus dias felizes, Meus sonhos virginaes, as minhas illusões, Que a seiva dão agora aos vermes e ás raizes, Que em pasto dão seu corpo a novos corações! São as sombras que amei, divinas, castas, bellas; As chymeras gentis, os vagos ideaes, Que de rozas cingi, que illuminei d'estrellas, E que não podem já da terra erguer-se mais! VIII FALA A ORDEM Pequeno, d'onde vens cantando a Marselhesa; Da barricada infame, ou d'outra vil torpeza? Que esplendido porvir! Do nada apenas sahes Começas a morder as purpuras reaes Ó filho trivial da livida canalha!... E, vamos, deixa ver, guardaste uma navalha,?! Não tremas que eu bem vi! que trazes tu na mão? Intentas já limar as grades da prizão, Fazendo scintillar um ferro contra o solio Archanjo que adejaes nos fumos do petroleo?!... Mas, vamos abre a mão: não queiras que eu te dê. Bandido eu bem dizia!--a carta do A B C!... IX Ó lirios da cidade, ó corações doentes Das vagas affecções modernas e galantes; Eu sei que vós morreis aos sons agonisantes Das orchestras febris,--nos sonhos dissolventes! Sois os fructos gentis que balançaes pendentes Nas arvores da vida; e os pobres viajantes Famintos d'ideal, sorriem triumphantes Julgando-vos colher nas seivas innocentes! E tragam com fervor o pomo apetecido Que deve ter um mel oculto no tecido, --Um raio bom do sol que nos sorri tão alto; Mas vós que sois da moda um luminozo aborto, Como os fructos crueis das margens do mar morto Apenas conteis dentro uma porção d'asphalto! X MISERIA SANTA Entrando esta manhã n'um templo da cidade Aberto á multidão mas triste e quasi só, O ver ao desamparo a velha magestade N'um throno a desabar, meteu-me certo dó. Restavam tão somente alguns dourados velhos Do passado esplendor, e foi-me facil ver Que uma nuvem de pó cobria os evangelhos Como cousa esquecida e impropria de se ler! A virgem, sobretudo; a mãe predestinada Que o Golgotha lavou nas lagrimas de fel Que sempre hade chorar toda a mulher amada, Ou seja a mãe de Christo, ou seja a de Rossel; Achei-a desolada e triste lá n'um canto, Sem pompas e sem luz, coberta d'ouropeis Tão velhos como o roto e desbotado manto Que ha muito, já, deveu á crença dos fieis! Dizer-me póde alguem d'affectos bons e puros Que eu posso ainda encontrar as bellas cathedraes Aonde o simples Christo e os martyres obscuros Campeiam no fulgor de pompas theatraes. Bem sei; mas como disse, o acaso ou o quer que fosse Levou-me a um templo pobre e foi n'elle que vi Que ha mendigos do céo, d'olhar sereno e doce, Proletarios do altar a quem ninguem sorri! E ao ver esta humildade,--eu tenho d'isto ás vezes,-- Pensei, não sei porque, nas morbidas vizões Que não passam de ser as filhas dos burguezes Mas de rendas de França enfeitam seus roupões! XI ASTRO DA RUA Fazia hontem já tarde um nevoeiro espesso. --Que insonia em mim produz este humido vapor!-- Eu vinha enfastiado, ou turvo, emfim confesso, Dos fumos do café, da luz e do rumor. Um fantastico véo cobria as longas praças; E o gaz ria atravez da grande cerração Que em lagrimas descia ao longo das vidraças E em flocos d'alva neve humedecia o chão. Eu mesmo achava em tudo um tom maravilhoso. Dispuz-me a crer no ceu a amar este ideal: Do subito eis que passa um astro radioso Luzindo-me atravez do magico cendal! Que vaga exhalaçao ó cousas vis que adoro! Que bello olhar de Deus, deixae-me assim dizer! Pelo sulco de luz julguei um meteóro, Pelo aroma subtil sonhei uma mulher! Passou porém, fugiu: no fim eis em resumo A sua breve historia! o sonho é sempre assim! Ha cousas que ao passar ainda deixam fumo: Aquella só deixava um vacuo dentro em mim. Archanjos caminhae, que eu espero o grande dia Da nossa atroz vingança, ó despotas do ceu! Nossa alma anda algemada á vossa tirannia Mas hade erguer-se a escrava...--Assim dizia eu E a mesma aparição de novo a deslumbrar-me! De novo a mesma aurora o espaço a illuminar! Agora pude vêl-a e posso recordar-me Dos abysmos de luz que havia em seu olhar. O astro vinha envolto em nuvens d'escumilha: De resto era uma fada, eu mais não sei dizer. Deixava atraz de si um aroma de baunilha D'um louco se abysmar d'um pobre enlouquecer! Quem quer que sejas tu, que sejam sempre bellos Teus ceus sem vendaval, teus dias sem revez! Feliz de quem poder beijar os teus cabellos E aos labios aquentar os teus pequenos pés! --Dizendo caminheí. Porém novo prodigio! Ainda a perseguir-me a mesma aparição E eu ainda sentia o lucido vestigio Que ha pouco em mim deixára a outra exhalação! Mas agora reparo, attento em sua chama! Que olhar tão insolente, o ceu não luz assim! Na gaze que ella arrasta ha um debrum de lama, Na face macerada uns traços de carmim! Oh! astro! emfim conheço a orbita que traça O teu curso veloz! bem sei onde tu vaes! Prosegue no teu giro em volta d'essa praça E Deus te dê mais luz e menos lamaçaes. XII Quando Martha morrer, depois do extremo arranco, Não tratem d'orações; Desprendam-lhe o cabello o vistam-a de branco Á moda das visões. Desejo vel-a então passar d'esta maneira Depois de tal revêz, Por entre a chama azul e tenue da poncheira No fumo dos cafés. Áquelle bom paiz das pallidas chymeras, Monotonia azul; Não temam que ella vá no fogo das espheras Queimar o véu de tulle. Assusta-a muito o frio, a chuva, o sol dos tropicos A nuvem triste e vã, E pódem-lhe prender os pés tão microscopicos As nevoas da manhãa! De noite ella virá com seus trajes singellos, Archanjo d'outros ceus, Nos suspiros febris dos meigos violoncellos Dizer-nos mal de Deus. Contar-nos por que foge á doce transparencia Que o ceu formoso tem, Meiga filha gentil da mesma decadencia Que é nossa boa mãe. Se as lagrimas de luz que chora o firmamento Em noites de luar, Ao seu pescoço nú podessem, n'um momento, Cingir-se n'um collar; De certo ella daria ao pallido comêta E á estrella trivial, A mesma adoração que dava á cançoneta Que amou até final! E á saida do circo, ao astro romanesco, Á noite iria, então, Contar, ainda a sorrir, o ardor funambulesco Do livido truão! Assim, não quer ouvir aos córos invisiveis Um hymno d'enfadar, Cantado por milhões d'archanjos insensiveis Sem um que a possa amar! E não lhe esquecem nunca os rapidos instantes Do que ella amava mais: --A vida illuminada á luz dos restaurantes N'um sonho de cristaes! XIII AS VICTIMAS Eu vejo muita vez e raro já me assombro --Minha alma tanto afiz ás tristes commoções!-- Na rua, junto a mim, passar hombro com hombro No transito penozo as longas procissões, De victimas da sorte e victimas do mundo! Umas boas, gentis, outras feias, crueis, Envoltas n'um sudario ou n'um burel immundo; Nas pompas theatraes, nas galas dos bordeis, Não são filhas do sonho ou creaçoes chymericas Da mente allucinada, ou vagos ideaes; São magros peitos nús, são faces cadavericas, São as tristes, as vís desolações carnaes. São pequenos sem pão que vão pedindo esmola Nas lamas encharcando os regelados pés: Que dormem nos portaes, que nunca vão á escóla --Flôres que enfeitarão a noite das galés! São aquellas gentis e pobres costureiras De peito comprimido; anemica expressão; Que passam a tossir, cansadas, com olheiras, Ganhando em todo o dia apenas um tostão, Curvadas a cozer o languido velludo, O irritante setim dos grandes enxovaes, Das princezas do Banco, herdeiras d'isto tudo; Depois indo morrer nos tristes hospitaes! São os pobres heroes que os seus irmãos combatem; Que morrem sob o pezo enorme dos canhões, E o cortejo de mães pedindo aos reis que as matem E os reis fazendo rir das suas maldições! São da lugubre noite umas flôres sem nome Batidas muito já dos grandes vendavaes, Que, por que sentem frio ou por que sentem fome, Derramam pelo seio aromas triviaes E fingem depois ser apparições divinas, Erguendo um pouco a saia, a fimbria sensual, Abrindo um vil leilão de beijos, nas esquinas, Aos apetites vís da multidão brutal! São mineiros sem luz; são velhos britadores, Que o contacto da pedra um dia endureceu, Queimados pelo sol, gelados nos horrores Do tumulo cruel que em vida os recebeu! São aquelles heroes, em fim, dos grandes sonhos, Que sentiram na terra as vastas corrupções E ás turbas apontando uns mundos mais risonhos Tentaram espedaçar os ultimos grilhões E que passam tambem um tanto contristados, Talvez cheios de tedio, ao verem que hoje, nós, Os deixamos seguir ainda apedrejados Não raro desprezando a sua augusta voz! E a grande multidão de martyres sublimes, De tristes semi-nús, constante a caminhar, Aos ceus erguendo as mãos, queixando-se dos crimes Dos despotas que aos pés não cessam de os calcar! A fila tenebroza, a procissão de victimas, Augmenta mais e mais; não deixa de crescer! E do estygma cruel das penas mais legitimas Em muita fronte bella um traço podeis ver! Caminhe muito embora: a sorte é sempre varia E a turba soffredora, ó grandes bem sabeis, Podia dividir a tunica cezarea Lançando aos que estão nús a purpura dos reis! XIV EVOCAÇÃO Levanta-te Romeu do tumulo em que dormes E vem sorrir de novo á boa, á eterna luz! De noite, ouço dizer que ha sombras desconformes E as noites do passado, oh, devem ser enormes Na atonia fatal das larvas e da cruz! Conchega gentilmente ao peito carcomido Os restos do teu manto:--assim, que bem que estás! Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido Que busca desdenhoso o centro do ruido Nas horas vis do tedio e das insonias más. O mundo transformou-se; aquelle fundo abysmo Do antigo amor fatal, fechou-se d'uma vez, E tu filho gentil do velho romantismo, Tu vens achar dormindo o rude prozaismo No berço onde sonhava a doce candidez! No entanto pódes crer; faz muito menos frio Á luz do novo sol; do gaz provocador; E o seculo apezar de gasto e doentio, Não pode já escutar o cantico sombrio Que fala de edeaes e cousas sem valor! Em paz deixa dormir a terna Julieta Que aos ceos ainda por ti levanta as brancas mãos; E em quanto por mim corre a tetrica ampulheta, Da muza alegre e vil da torpe cançoneta Saudemos a nudez a par dos bons pagãos! Nas praças, tu bem vês; a turba prazenteira Innunda-se na luz de mil constellacões! E os archanjos da rua assomam na poeira Que exhala o macadam, trazendo em cada olheira O astro creador das grandes sensações! E quando a cotovia á estrella matutina Mandar a saudação, lá fora, em pleno céo, Romeu tu beijarás, que é tua eterna sina, A trança da belleza anemica e franzina Que entre os fumos da festa, a amar, adormeceu! XV Boas noites coveiro: a tua enxada Não cessa ha tanto tempo de cavar?! Cavalleiro da morte, ó fronte desolada Não sentes a mão tremula e cançada De tanto trabalhar! Tu esperas hoje as legiões sombrias De mortos, que eu supponho ao longe ver? Os felizes caídos nas orgias E os tristes que além todos os dias O gelo vem colher?! Que immensa valla aberta! são medonhos Os risos d'essa boca infame, alvar!... Descansa dos teus dias enfadonhos! --Eu cavo a sepultura dos teus sonhos Não posso descançar! XVI FLOR DA MODA Alice, o turbilhão das salas elegantes, Começa a entristecer; ninguem sabe por quê! Aquella flôr doente amava muito d'antes As festas, o ruido, as cousas deslumbrantes, Agora é desolada e penso que descrê. Que tedio se abrigou na vaga transparencia D'um todo tão subtil, aerio, divinal. --Moderna creação da santa decadencia, Que alia gentilmente ás pompas da regencia Os indecisos tons d'um ar sentimental?! Archanjo por quem és! desvenda esse mysterio Das vagas oppressões da tua insomnia má, E diz-me o teu sonhar visão do baixo imperio, Vestal que amas o gaz e tens o fogo ethereo Na conta d'uma cousa um tanto usada já! No idylio pastoril das noites venturosas Não sonhas tu de certo, e raro o hão de sonhar N'um mundo todo nosso, as bellas desditosas Que em trinta annos de fogo as suas velhas rozas Nos grandes vendavaes sentiram desbotar! E quando a augusta voz do mar ou das florestas Abala o coração dos justos e dos bons, Bem sei que tu não vaes, fugindo ás grandes festas, No amor das castelãs scismar entre as giestas Com medo que te acorde a bulha dos wagons! Eu sei talvez teu mal! A febre que hoje sentes Abraza a geração de lyrios ideaes Que passam, como tu, galantes e doentes, D'um amor desordenado ás cousas dissolventes, Ás vozes da guitarra e aos cantos sensuaes!... E tem de os consumir a grande nostalgia D'um mundo mais á moda e menos trivial, Onde haja um grande caso, ao menos, cada dia E se possa esquecer a vil monotonia De tudo que nos cerca:--Alice eis o teu mal mal! No entanto eu sei que és boa: apenas das insomnias A febre, mãe cruel d'estranhas sensações, Na fria placidez do gaz e das bigonias Construe na tua mente as grandes babylonias D'um mundo extraordinario e monstro de visões! Tocou-te um mal galante: és tenue e caprichosa: És boa e fazes gala em que te julguem má. E sentes sobre tudo uns tedios côr de rosa E os extasis crueis d'uma mulher nervosa: --Se existe a mulher-flôr, tu és a flôr de chá! E chame-te o bom Deus ao foco aonde brilha Aquella eterna luz, amor dos immortaes, Que tu amortalhada em rendas e escumilha Achar deves, talvez, da moda, ó terna filha, O céo modesto um pouco e os anjos triviaes! XII Ó machinas febris! eu sinto a cada passo, Nos silvos que soltaes, aquelle canto immenso, Que a nova geração nos labios traz suspenso Como a estancia viril d'uma epopea d'aço! Emquanto o velho mundo arfando de cansaço Prostrado cae na luta; em fumo negro e denso Levanta-se a espiral d'esse moderno incenso Que offusca os deuses vãos, anuviando o espaço! Vós sois as creações fulgentes, fabulosas, Que, vibrantes, crueis, de lavas sequiosas, Mordeis o pedestal da velha Magestade! E as grandes combustões que sempre vos consomem Começam, n'um cadinho, a refundir o homem Fazendo resurgir mais larga a Humanidade! XVIII A CHRISTO Precisamos Jesus, se não te sentes velho, Que cinjas novamente o resplendor de luz E venhas explicar a letra do evangelho A muitos que hoje vês prostrados ante a cruz! Ainda não cessou, de todo, essa contenda Que um dia, ha muito já, tentaste debellar: E aquelles que são bons e adoram tua lenda Desejavam tambem ouvir-te hoje falar. Apenas resoasse o teu verbo indignado, O latego febril das grandes corrupções, Iria atraz de ti um mundo revoltado Que sente na consciencia a luz das redempções. E embora não houvesse, aqui, outra alma gemea Da tua, e tão ungida em balsamos dos céos, Havias d'encontrar essa alma de bohemia Que sonha uma justiça e sente em si um Deus! Mas não, não voltes cá: teu corpo combalido Não póde supportar os gelos da manhã. Precisavas de pão, d'abrigo e de vestido E a vida aqui é cara e longo o macadam! Terias d'encontrar, de certo, mil estorvos No mundo revolvido, e escuta-me Jesus: Se não fosses, em fim, comido pelos corvos Talvez te fuzilasse um cura Santa-Cruz! Serias apontado a dêdo, muitas vezes, Como um simples bandido, um agitador feroz, E haviam de esconder seus ouros os burguezes Apenas resoasse, ao longe, a tua voz! Depois vinhas achar a par do proletario, Ao pé do que se innunda em bagas de suor, Aquelle velho Pedro, agora millionario, E triste por pensar que já esteve melhor! E perto do ocio vil á sombra do qual medra O egoismo feroz que extingue o coração, Lutando todo o dia o britador de pedra A quem á noite espera, em casa, um negro pão; E uns pequenos sem côr; talvez cheios de fome, Com pouca luz no olhar; atrophiados, nús; Abrindo os olhos muito á codea que elle come E indo-se deitar sem roupas e sem luz! Assim deixa-te estar. O teu cadaver triste Recende uma fragrancia etherea e divinal, Emquanto o mundo segue e vae de lança em riste Sem treguas combatendo as legiões do Mal! Tu foste o paladino, o trovador sagrado, Que falaste do amor, da paz e do perdão, E o ferro que varou teu corpo lado a lado Comtudo inda reluz altivo em muita mão! Nós, hoje, quando em luta erguemos sobre a liça O gladio vingador das oppressões crueis, Soltamos, n'um sorriso, o nome da Justiça, E ha quem saiba morrer sem bençãos nem laureis! Descansa pois Jesus! Bem basta que tu sintas, N'esse velho sepulchro, o immenso vozear Dos mineiros sem luz, das legiões famintas, Que nunca, um dia só, deixaram de lutar, Mas que hão de em fim vencer, porque a suprema essencia A jorros cae do céo nas mãos dos Prometheus, E tanto vae subindo a vaga da consciencia Que um dia ha de abismar-se em nós o proprio Deus XIX Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizel-o. Era em praia dezerta, em frente a um longo mar: Nos céos havia a nevoa, a mãe do Pezadêlo, E o vago, o incerto, o informe em tudo a oscillar! De subito surgiu, na praia, uma criança D'olhar profundo e bom, d'angelica expressão, E o mar contemplou com tanta confiança Que nem que visse n'elle o berço d'um irmão! Mas a vaga subindo, em cada extremo arranco Levando ia comsigo aquella flôr dos céos! E em breve só boiava um tenue vulto branco No mar onde fluctua o espirito de Deus! Mais tarde á beira-mar chegava a pura imagem Da mais casta mulher que em vida pude ver. Detinha-se distante:--a espuma da voragem Só meia extenuada aos pés lhe ia morrer!-- O immenso mar, porém, crescia a cada instante Mais turvo e mais veloz! depois... Não quiz vêr mais. Ergui-me e caminhei de val em val errante Pensando tristemente em coisas ideaes!-- Ao longe, muito além, na serra desviada De subito encontrei--ó estranha apparição--! Uma pobre velhita enferma e desolada Trazendo já no olhar a grande cerração! Que idéa me assaltou não sei dizel-o agora. Aonde iria o espectro, aquella sombra vãa? Iria aonde vae o que hontem foi aurora E aonde irão tambem as rosas d'ámanhãa?... Dos meus instantes bons, ó lucida chimera, Bem vês que os sonhos maus são faceis d'esquecer! Que importa a grande noite em plena primavera, Que importa o que tu foste, o que és, e o que has de ser!! XX O GRANDE TEMPLO Eu não trajo o burel do magro cenobita Nem me posso infligir crueis macerações; Mas não rio d'alguem que busca a paz bemdita No seio casto e bom das grandes solidões. Bem sei que ha na montanha aromas penetrantes E certas vibrações que podem fazer mal; Mas se é preciso Deus, direi que é melhor antes Amal-o com fervor no templo universal! Em quanto sobre o altar das serras azuladas Mil lampadas do céo derramam toda a luz, Nas velhas cathedraes, já meio arruinadas, O Tempo,--o grande verme!--até devora a cruz! Depois é facil vêr, por entre os arabescos Que a arte sensual traçou com tanto amor, Ás vezes, o sorrir dos Satyros grotescos Pungindo cruelmente a face do Senhor. Ou mais; podemos nós voar todos captivos Do sereno ideal, d'aquelle summo bem, Ao vermos tanta vez os Faunos mais lascivos Olhando de revez a virgem nossa mãe?! E ainda mil traições: as musicas, as flôres Os lindos seraphins voando todos nús; Da sêda que se arrasta os languidos rumores Do incenso as espiraes; os turbilhões de luz! Oh! visto haver de tudo; aromas e decotes, O vinho scintillante, a viva luz do gaz; Que a vossa rouca voz, pomposos sacerdotes, Não cante apenas Deus; que solte alguns _hurrahs_! O fumo d'essa festa, a mim, pouco me assusta. Se eu quero alguma vez fugir do pó, voar, Eu tenho o val profundo ou a floresta augusta, As montanhas, os céos, e o bello, o vasto mar! Da casta natureza ó templo gigantesco, Tu és mais amplo, sim; mais livre, muito mais! O meigo e doce olhar do Christo romanesco A multidão gentil não chama aos teus umbraes. XXI A UM CERTO HOMEM Agora és todo nosso: a rude voz da historia Já póde hoje falar E dar-te um balancete ás nodoas e á gloria Rei-sol de _boulevard_. Que dias d'esplendor! Porém como começa A noite e a podridão! Foi Deus que te mandou tambem para a Lambessa Da eterna punição! Enfarda a tua gloria e leva-a que é vergonha Que vejam ámanhã, Que até lhe depennou as aguias de Bolonha O abutre de Sedan! E visto que em redor nenhuma estrella brilha E a noite é longa e má, No caminho do opprobrio acende a cigarrilha E, cezar, ouve lá: Que altiva e bella a França! aquella Gallia ardente Que de Valmy levou, Descalça, quasi núa; a Marselheza em frente; Nossa alma até Moscow! Seus filhos teem a fouce: envergam rudes clamydes Depois, caminham sós; E em quanto ceifam reis acordam nas Pyramides A alma dos Pharaós! E vão cheios de fé, bandeira solta ao vento, Na gleba das nações, Convictos semeando o novo pensamento No sulco dos canhões! Mas tu chegas um dia: afogas-lhe a grandeza E quando a tens aos pés, Celebras a victoria aos hymnos de Thereza, A musa dos cafés! Banquetes dás ao crime; e os teus heroes d'esquína Ainda a afrontam mais, Tornando a _Marselheza_ em torpe Messalina D'um circo de chacaes! E sobre alguns montões de mortos ainda quentes, Emfim campeias, tu, Que déste á sagração das cousas dissolventes Um Petroneo-Sardou! Porém, quando ao colher ainda um beijo á Fama Um dia avanças mais, Teu carro triumphal trambolha-te na lama E então como tu saes!... Revolves-te no horror das vis, infectas ondas De lodo e podridão, E vaes de manto roto e vestes hediondas Buscar a escuridão! Em vez de reclinar a fronte ao sol ardente Da luta que sorri, Do fumo dos canhões fugiste, e de repente... Matou-te um bistori!... Que entrada a tua, então, na funebre morada, Pizando, incerto, o pó, Á luz d'uma _lanterna_, ao vir da encruzilhada, Sinistro, sujo e só! Das cinzas levantou-se um brado entre os jazigos Dos bons e dos leaes, Apenas descobriste a marca dos _castigos_ Nas faces triviaes! E quando te assustava o olhar altivo d'Hoche E o gesto de Danton, Sorria-te na sombra o amor da Rigolboche Meu cezar-Benoiton! 73--Janeiro. XXII Á HORA DO SILENCIO Eu quiz hontem sonhar, sentir como um romantico A doce embriaguez do pallido luar, Ouvindo em pleno azul passar o immenso cantico Dos astros no seu giro e em sua luta o mar! A cidade dormia o somno dos devassos; Aquelle somno turvo, infecto e sensual: E a lua, antiga fada, erguia nos espaços Tranquilla e sempre ingenua a fronte de vestal! E sobre a quietação das coisas vis e exoticas Sentiam-se as febrís, crueis respirações, Dos tristes hospitaes e das virgens clorothicas, Dos amantes fataes da febre e das paixões! A noite era em silencio, a athmosphera doce E ria a natureza aos beijos d'um bom Deus. De subito escutei, ao longe, o quer que fosse D'um canto que suppuz então baixar dos céos! Attento ao vago som, porém, a pouco e pouco Senti que era uma voz disforme e sensual, Soltando uma canção n'aquelle accento rouco Da triste inspiração alcoolica e brutal!... Ó terna vagabunda, enamorada lua! Emquanto ias assim, diaphana e sem véo, Uma triste mulher passava, então, na rua Cuspindo uma porção d'infamias para o céo! XXIII Eu quizera depois das lutas acabadas, Na paz dos vegetaes adormecer um dia E nunca mais volver da santa lethargia, Meu corpo dando em pasto ás plantas delicadas! Seria bello ouvir nas moutas perfumadas, Emquanto a mesma seiva em mim tambem corria, As sãas vegetações, em intima harmonia, Aos troncos enlaçando as lividas ossadas! Ó belleza fatal que ha tanto tempo gabo: Se eu volvesse depois feito em jasmins do Cabo, --Gentil metamorphose em que n'esta hora penso;-- Tu, felina mulher com garras de veludo Havias de trazer meu espirito, comtudo, Envolto muita vez nas dobras do teu lenço! XXIV O VELHO CÃO Soltava hontem já tarde um velho cão felpudo Uns doloridos ais, Em frente d'um palacio altivo, bello e mudo, Cerrado aos vendavaes. Fazia pena ouvil-o, o misero mollosso Em seu triste chorar! Era quasi uma sombra: apenas pelle e osso E um vago, um doce olhar!... Eis a sorte cruel do pobre que não come, Dos miseros sem pão! Em paga ainda em cima os vae tragando a Fome, A negra apparição! Latia o cão faminto. O frio era mordente, Feroz, quasi voraz! E o pobre não sabia, em fim, que ha muita gente Que adora a santa paz. Ora perto vivia uma galante rosa, Etherea, virginal, Que tinha um lindo collo, amava, era nervosa E a quem fazia mal, Aquelle uivar sinistro; a ponto de em desmaios Pender a fronte ao chão! Saíram pois á rua impavidos lacaios E foram dar no cão. --Ha no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado, --O povo soffredor, Que ás vezes vae ganir, com fome, o seu bocado Ás portas d'um senhor. O resto é velha historia: ocioso é já dizer-vos O fim que ella ha de ter. A Ordem, só d'ouvil-o, alteram-se-lhe os nervos E manda-lhe bater! XXV AS VELHITAS Eu não professo muito o culto das ruinas. Prefiro uma officina ás velhas barbacãs; Das velhinhas, porém, mirradas, pequeninas, No entanto nunca insulto as prateadas cãns. Deixal-as caminhar, curvadas, vagarosas, Com seu bento rozario, os seus fofos beitões, A rirem-se de nós, crueis, maliciosas, Sagazes comentando as nossas illusões! Ah, velhitas sem côr! cabeças regeladas, Vulcões de que só resta a cinza e nada mais: Já fostes as visões; talvez as brancas fadas; Prendestes vossos pés nos humidos rosaes; Tivestes já no olhar os bons reflexos magicos Dos lagos ideaes cubertos de luar; As curvas sensuaes, os bellos dedos tragicos; As rosas más do inferno, os lyrios bons do altar! Pendestes já scismando as frontes melancolicas Nas varandas á noite, amantes dos Titães Do bello amor antigo! ó Marcias das bucolicas! E agora apenas sois as mães de nossas mães! Segui vosso caminho: as graciosas fadas, As bellas da cidade, anémicas, gentis, Sorriem-se, talvez, das fitas desbotadas, Dos provectos chapéos, das gallas que vestis! Oh! mostrando os trophéos das vossas velhas rosas, Dizei-lhes, a sorrir das futeis illusões, Que fostes já, tambem, galantes e nervosas Mas destes isso tudo a varios corações! Agora tendes pouco: apenas uns lamentos Sentidos contra nós; queixumes sem valor E ao mundo importam muito os vossos testamentos E importa muito pouco a vossa immensa dôr! Batei á grande porta: os bellos dias vossos Velhitas, bem sabeis, não podem voltar mais! Á terra ide levar, em fim, n'uns tristes ossos O residuo fatal das cousas virginaes! XXVI ÁS VISÕES Pois que visões! não cessa a rapida corrida E seja noite ou dia, Volteadoras crueis! vós sempre a toda a brida Na minha phantasia! Parti chymeras vãs! archanjos ou _madonnas_, Parti, que o mando eu, Como um bando fatal de velhas amasonas Que o circo aborreceu! Levae tudo comvosco: as settas mais a aljava; O angelico sorriso; E as azas d'escumilha em que eu voava Á noite, ao paraiso! Eu quero, em fim, dormir; passar as noites gratas Sentindo-me feliz, No somno machinal dos velhos acrobatas Depois das farças vis! Mais tarde hei de sorrir, ou escarnecer-me quasi, Lembrando-me--ó verdade!-- Que onde eu suppunha aurora havia apenas gaze E uns traços d'alvaiade. Perdão se vos insulto! oh, não, vós sois do empyreo, D'aquelle meigo azul, Que a todos tem sorrido: a Christo no martyrio, Na dôr, ao rei de Thule; E quando vos apraz, nas azas transparentes, Mais alto ides por certo, Do que as deusas gentis, aerias, insolentes, Que vemos voar tão perto! No entanto podeis crer ó lucidos fantasmas Que o seculo, afinal, Occulta no esplendor não sei que vis miasmas Que fazem muito mal! E quando vós passaes, nas horas do mysterio D'estrellas revestidas, Bebemos nós, talvez, o aroma deleterio Das rosas corrompidas! Oh sim! parti depressa; erguei-vos d'este abysmo Archanjos ideaes, Deixando-nos colher a flôr do realismo Nas coisas triviaes! XXVII Melancolias do outono! Eu quando além descubro, Nas tristezas do campo, as filas mugidoras Dos vagarosos bois que voltam das lavouras, Compungem-me as crueis desolações d'outubro! Das orlas do poente, afogueado, rubro, Ó moribundo sol! com que poesia douras, As formas triviaes das cabecitas louras, Que, ás portas dos casaes, de bençãos tambem cubro!... Solta o canto final a orchestra da folhagem: São horas de partir; apresta-se a viagem, E as noites dos saraus hão de voltar mais bellas! Mas as vistas lançando ás regiões saudosas, Nos esforços crueis das tosses dolorosas, Em bandos vão partindo as tisicas donzellas! XXVIII O VELHO MUNDO Eu vejo em toda a terra um vasto cemiterio, A necrópole immensa, a campa dos colossos, Aonde em paz descansa o velho megatherio, Por entre a fauna morta, os carcomidos ossos! E os grandes leviathaãs dos primitivos mares; Os tremendos reptis, crueis, descommunaes, Celebram no silencio as nupcias singulares Dos seus residuos vis, com ricos mineraes! E os esqueletos nús dos lividos gigantes Abraçam-se melhor; conchegam-se na cova, Deixando um logar vago aos velhos elephantes Que vão fugindo á luz da natureza nova! Tambem no mundo interno as almas vão seguindo. Na corrente da vida, em mil circulações; E da consciencia humana o largo abysmo infindo Occulta, ha muito já, disformes creações! Ellas dormem na sombra immensa do passado Aonde em breve hão de ir nos trances doloridos, A velha Realeza e o trémulo Papado Sem forças descançar os corpos corrompidos. Depois virão mais tarde as gerações futuras E os dois espectros vãos da sombra hão de evocar, Bem como a nossa voz, as grandes creaturas Do mundo primitivo, obriga a despertar. E as crianças terão seus nomes de memoria, Como exemplo, na vida, a todos os momentos; E vel-os-eis de pé, nas paginas da historia, Grotescos, machinaes, pezados, somnolentos; Fazendo-nos pensar; d'espanto enchendo tudo; Soffrendo o riso alvar do ingenuo e do plebeu, Eguaes ao masthodonte armado para estudo E exposto ás irrisões nas salas d'um museu! XXIX Eis a velha cidade! a cortesã devassa, A velha imperatriz da inercia e da cubiça, Que da torpeza acorda e á pressa corre á missa! Baixando o olhar incerto em frente de quem passa! Ella estreita no seio a velha populaça, Nas vis dissoluções da lama e da preguiça, E nunca o santo impulso, o grito da Justiça, Lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa! E póde receber o beijo e a bofetada Sem que sinta o rubor da colera sagrada Acender-lhe na face as duas rosas bellas! Sómente d'um sorriso alvar e deshonesto, Ás vezes, acompanha o provocante gesto Quando sôa a guitarra, á noite, nas viellas! XXX Á NOITE Eu gosto de velar a percorrer os mundos Ó noite dos bons canticos, Aos lividos clarões dos astros vagabundos Nos extasis romanticos, Emquanto a vil cidade, a cortesã devassa Dos falsos ouropeis, Com seus famintos cães, a sua lua baça E os seus negros bordeis, Resona torpemente aos beijos deleterios D'alguns velhos amantes; --Os longos hospitaes e os tristes cemiterios Que a afagam delirantes! Comtudo eu tambem sei que existe muito instante De gelos, em que tu, Feroz, cravas o dente agudo e penetrante No pobre seio nú! Que ha horas em que vens, nas humidas cidades, Nas choças, nos esgotos, Cuspir cynicamente as frias tempestades No seio vil dos rotos, Sem ter pena, sequer, da pobre mãe que passa Um dia sem ter pão, Nem d'essa esfarrapada e velha populaça Que rosna como um cão!... Mas em breve deixando as tenebrosas vestes, O manto dos horrores, E o gladio vingador das coleras celestes Ó noite dos amores, Retomas o tom puro e santo do mysterio Da pallida mulher Que vae colher, scismando, um lyrio ao cemiterio E ao campo um malmequer! Em horas de tormenta és a mulher colerica! Até cospes na cruz! E formam-te espiraes na coma athmospherica As viboras de luz! Porém no teu regaço, altivo, casto, enorme, Em doce e plena paz, É que a virtude sonha e que a desgraça dorme Depois das horas más, E em lucidos cristaes, ha scintillantes vinhos; Os casos mais galantes; As languidas canções; os bellos desalinhos E os gestos provocantes!... Ó filha do silencio! Aos puros alabastros Dos hombros ideaes, Se Deus arremessasse a quantidade d'astros Que em ti brilham a mais, As pallidas visões que passam doloridas, E um tanto contristadas, Haviam de surgir d'estrellas revestidas Em trajos d'alvoradas! Em ti cuida escutar uns sons inexprimiveis De languidas canções, O pobre sonhador de coisas impossiveis Que adora as solidões! E quando o resplendor de mundos luminosos Na tua fronte cinges, Os gatos sensuaes, electricos, nervosos Repouzam como esphinges; Emquanto as combustões dos lividos comêtas, Errantes e fataes, Comsomem lentamente as grandes borboletas Dos nossos ideaes! XXXI A VALLA Trazei mortos á valla; a hydra está com fome E deve ser-lhe longa a hora em que não come! Olhae como ella mostra aquelles que a vão ver, Inerte, sem pudor, de fauce escancarada, A amargura cruel da bocca desdentada Que pede de comer! Lançae ao monstro informe algum repasto novo! Trazei-lhe carne humana; arremeçae-lhe o povo. Tranzido pelo frio ou morto pelo sol! E visto haver na fera abysmos insondaveis Mandae-lhe as legiões dos grandes miseraveis Que morrem sem lençol! Eu quero vel-a farta, a lugubre panthera, Que, na sombra agachada, olhando em roda, espera A preza que lhe inveja a gula dos chacaes. Começa a ouvir-se ao longe a marcha vagarosa Da triste procissão cruel e dolorosa Que vem dos hospitaes. Um velho esquife chega: em duas taboas toscas Um pobre semi-nú coberto já de moscas, N'um riso deixa ver não sei que tons crueis! Emquanto nos sorria a luz das noites bellas, Talvez que elle varresse a lama das viellas E o lixo dos bordeis!... E poude, em fim, dormir no seio bom da morte! Apoz, como se fôra a livida consorte D'aquelle vil despojo, ás mesmas horas vem, Trazendo por sudario os seus vestidos rotos, Uma triste mulher caída nos esgotos Sem bençãos de ninguem! Devora-os ambos fera! Engole-os juntamente: Reune-os em consorcio e dá-os de presente Á larva que partilha as ancias do teu ser! Aguça o teu desejo!--A garra infecta lança Ao corpo tenro e nú d'uma gentil criança Que a mãe te vem trazer! Redobra d'appetite! Alonga-se a teu lado A fila tenebrosa! O espectro do soldado A par do que vergou cançado de cavar: E o mineiro sem luz, o martyr legendario; E amparando-se a custo ao velho proletario A flôr do lupanar! Mastiga a turba vil e alonga essa guela! Bem vês que vem chegando um corpo de donzella Que pela candidez recorda uma vestal! Voou-lhe, n'um sorriso, o derradeiro arranco E traz viçoso ainda um grande lyrio branco No seio virginal! Ó monstro sensual na sombra tripudia! Celebra no silencio a tenebrosa orgia, Que as Deusas vem chegando ao lubrico festim! N'um beijo os labios colla á frigida epiderme E o D. Juan da morte, o cavalheiro Verme, Que viva e gose emfim! Eu quero ver-te farta, em halitos profundos, Dormindo o somno vil dos animaes imundos, De ventre para o ar; serpente infecta e má! E ámanhã, na estação dos candidos amores, Veremos rebentar n'um tapete de flôres O lixo que em ti ha! E a santa mocidade; as languidas mulheres; Virão depois colher os gratos malmequeres, Pizando-te sem medo e cheias de desdem, Em danças sensuaes; o fato em desalinho; Compondo-te canções; regando-te de vinho; Sem pena de ninguem! E tu que és monstruosa, infame, vil, medonha; Que não mostras pudor; que não sentes vergonha; Que és a campa-monturo e não pódes ser mais; Cingida em fim, tambem, de rosas orvalhadas, Terás dado um perfume ás almas namoradas, E pasto aos animaes! XXXII Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos, Que ás vezes revoaes nas salas deslumbrantes, N'um grande mar de tulle, ethereas, fluctuantes. Aos suspiros fataes dos meigos violoncellos; Que bom que era sonhar nos pallidos castellos, Á noite, á beira mar, nas solidões distantes, Nos tempos em que a flôr dos timidos amantes Á lua confiava os intimos anhelos!... Agora sois gentis, despepticas, vistosas; Pagaes por alto preço as exquisitas rosas; Nos rapidos wagons correis o mundo em roda; Mas prostradas do baile, amarrotando a luva, Emquanto cae na rua a somnolenta chuva, Scismaes no Deus-Milhão,--no Creador da moda! XXXIII Eu vejo em tua bocca as pétalas vermelhas D'uma rosa de fogo aonde vão libar, O mel das illusões, quaes timidas abelhas, Uns velhos ideaes que em vão tento expulsar. Dizer-me pódes tu de que ovulo espontaneo, Tocado pelo sol, em mim poude nascer Este bando cruel que dentro do meu craneo Não faz ha muito já senão roer, roer?! Ás vezes vôa ao largo; ás serras, ás campinas; Remonta aos astros bons; torna a descer dos céos; E volta a demolir as trémulas ruinas Do templo onde crepita a luz dos dias meus! Ó grande flôr suave! e n'isto se resume A constante batalha, o sempiterno afan! Aspira a minha essencia ao teu grato perfume; Sossobra o dia d'hoje ao dia d'ámanhã! Oh, volvamos á terra; aos placidos logares, Aonde os hymeneus fecundos e reaes, Produzem, dia a dia, os fetos singulares E as sãs vegetações dos candidos rozaes! E o que ha d'ethereo em nós, que siga as breves phases D'um fluido transitorio, erguendo-se nos céos, Nas grandes expansões dos fugitivos gazes Onde em linguas de fogo ás vezes fala Deus. Forçoso é separar os dois rivaes antigos, Na batalha cruel que em nós se reproduz. Sorria o que é da terra aos vegetaes amigos; Rebrilhe o que é do céo nas refracções da luz! XXXIV NOS CAMPOS A fragrancia do trevo o das flôres selvagens Da noite embalsamava as tepidas bafagens: Ao longe os astros bons olhavam-nos dos céos. O mundo era um altar; as serras grandes aras; E os canticos da paz corriam nas searas Em honra do bom Deus. No solemne silencio immersa ia minha alma Em tranquilla mudez; n'aquella doce calma Que sente germinar os frescos vegetaes. De subito uma voz deixou-me um pouco extatico: Detive-me um momento; olhei:--era o viatico! De noite a horas taes, Que andava Deus fazendo, assim, pela campina, Trazido pela mão d'um padre sem batina Roubado ás sensações d'um longo resonar? Fui seguindo o cortejo até que n'uma choça O Rei dos reis entrava: o padre, com voz grossa, Movia-se a rezar. Nos restos d'uma enxerga, ali, no vil cazebre, Um pobre cavador, mordido pela febre, Torcia as grossas mãos nas ancias do estertor; E os filhos semi-nus sentindo a pena ignota Tentavam-se esconder na velha saia rota Da mãe louca de dôr! A voz do sacerdote a custo resoava. A palavra d'amor que ali se precisava, Não posso dizer bem se acaso elle a soltou. Falava o Deus severo e forte dos castigos, Ou esse bom Jesus que aos pés d'alguns mendigos Um dia ajoelhou? Do padre tinham medo os tremulos pequenos. Os magros cães fieis erguendo-se dos fênos Latiam tristemente em volta do cazal: E o levita lançava áquella noite escura A benção derradeira, erguendo a mão segura, N'um gesto machinal! Depois transpondo, á pressa, a porta da cabana, Sahia sem deixar da sãa verdade humana O balsamo suave, o dom consolador! Oh, de certo o Jesus de que nos fallam tanto Não era o que deixava ali, n'aquelle canto Sósinha a mesma dôr! Sorria Deus, no entanto, em toda a natureza! Nas florestas, no val, nas serras, na deveza, Nas moitas dos rozaes, no movediço mar! O constellado azul dir-se-ía um sanctuario! Havia aquelle albergue apenas solitario, E frio o pobre lar! E o rude agonisante, o triste moribundo Que em breve ía partir; abandonar o mundo; Os seus deixando sós, na terra, sem ninguem, Talvez ao presentir o fim da insana lida Soltasse maldicções, ainda, contra a vida E contra nós tambem! E eu lembrei-me então d'aquelles bons valentes Que lutam todo o dia e vão morrer contentes Á noite, ao pé dos seus, depondo os vãos laureis; E d'aquelles, tambem, de frontes requeimadas Que pela causa santa, em pé, nas barricadas, Se batem contra os reis! Lembraram-me os heroes, serenos, bons, austeros, Que sagram toda a vida aos ideaes severos Da justiça e do bem; caíndo com valor, Sem que a dextra cruel dos despotas os dome Nas batalhas da idéa; oppressos pela fome, Varados pela dor! Ó pobres multidões! as grandes noites frias Não cessam de morder, famintas e sombrias, N'um banquete nefando os vossos corpos nus! E o lyrio da justiça; a grande flôr sagrada, Nem sempre mostra, em vós, aberta e desdobrada, As petalas de luz! Eu quando porem lanço as vistas ao futuro E vejo dia a dia a despontar mais puro O grande sol da idéa, em rubidos clarões, Recordo-me que sois a productiva leiva Aonde já circula uma opulenta seiva, De grandes creações! XXXV O ULTIMO D. JUAN D'aquelle de quem falo, as socegadas lousas Podiam-vos contar as violações brutaes! A gula com que morde as mais sagradas cousas D'horror faz recuar os trémulos chacaes. Não descanta á viola, á noite, os seus enleios: Elle vive na sombra e eu sei também que vós, Gentis bellezas d'hoje, ó astros dos Passeios, Lhe não lançaes, a furto, a escada de retroz. Mas sede muito embora as virgens sem desejos, As monjas virginaes, uns pudicos dragões; Fechae o niveo collo aos vendavaes dos beijos, E ás noites de luar os vossos corações; Um dia hade chegar em que elle, informe, tosco, Sem garbo, sem pudor, grotesco, infame, vil; Nas grandes solidões irá dormir comvosco, Mordendo em cada seio o lyrio mais gentil! E o que elle adora muito ó virgens romanescas Não é o que abrigaes d'ethereo e virginal: Adora os corpos nus; as bellas carnes frescas; Deixando o resto a vós damnados do ideal! Não vive como nós de candidas mentiras: Não communga do amor esse illuzorio pão: Devora com fervor as pallidas Elviras E em muitos seios bons dá pasto ao coração! Tem palacios na sombra e fazem-lhe um thesouro Maior do que o dos reis; adora as solidões: Não uza d'espadim; não traz esporas d'ouro; Mas vive como os reis das grandes corrupções! Flôres sentimentaes! tremei do paladino, Do velho D. Juan, feroz conquistador, A quem da vossa bocca um halito divino, Em vida, faz fugir talvez cheio d'horror; Mas que um dia virá, na candida epiderme, Na sagrada nudez dos collos virginaes, Em hymnos de triumpho--o grande Cezar-Verme!-- Colher o que ficou de tantos ideaes! XXXVI Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas A aérea multidão de fadas quebradiças, Gentis apparições dos bailes e das missas, Desliza no fulgor das pompas seductoras. No arfar da cazimira ha frases tentadoras E maciezas taes nas languidas pelliças, Que as tristes commoções, decrepitas, mortiças, Resurgem do lethargo ó pallidas senhoras! E muitos hão de ter uns extasis divinos Ouvindo soluçar, á noite, aos violinos, A vaga introducção d'uma balada aerea; Em quanto, do futuro, ao toque da alvorada, Se escuta, a martellar na sua barricada, Sinistra rota e fria, a livida Miseria. XXXVII ANTIGO THEMA Passae larvas gentis na rua da cidade Aonde se atropella a turba folgazã; A noite é um tanto agreste e cheia d'humidade Mas o tedio mortal precisa a claridade Que em vosso olhar trazeis, vizões do macadam! Estatuas sem calor! vós sois das grandes vazas D'um corrompido mar as Deusas menos vis! Se á noite abandonaes, voando, as pobres casas, E vindes pela rua enlamear as azas, Quem sabe a fome occulta, as sedes que sentis! A pallida Miseria em seu triste cortejo Precisa as contracções de muitos hombros nús: E vós ides sorrindo ao lubrico desejo, Do carro da desgraça arremessando um beijo Que apenas é de lama em vez de ser de luz! Embora! caminhae deixando um grande rasto D'estranhas emoções, d'aromas sensuaes: E ao pobre que mendiga a pallidez d'um astro; Ao que sonha vizões e archanjos d'alabastro Fazei por despenhar nos longos tremedaes! Do velho idyllio, a muza, ha muito já que dorme, E o arroio em vão suspira e chora a nossos pés! A grande multidão,--a vaga, a onda enorme, Que oscilla sem cessar, e gira multiforme Ás corridas, ao circo, ao templo e aos cafés, Talvez ao presentir que tudo, emfim, declina, Adore a immensa luz, em vós, constellações, Que não baixaes do céo; que vindes d'uma esquina, Vagando no rumor da aérea musselina, Em plena bacchanal fingindo de vizões? Oh, sois do nosso tempo! A languida existencia De tedios se consome e sente febres más! Aspira ao que é bizarro: a uma exquisita essencia Que exhala aquella flôr que vem na decadencia E quando a toda a luz succede a luz do gaz! Do seculo a voz rude apenas diz--trabalha!-- Ao poste vil amarra o lubrico ideal Que expira, emfim, talhando a funebre mortalha Na vossa trança gasta, ó muzas da canalha Que apenas revoaes do olimpo ao hospital! XXXVIII A MÃE Eu canto-vos, mulher, por que vos tenho visto Na palpebra vermelha a lagrima d'amôr, Que vem d'Eva a Maria--a doce mãe de Christo-- Formando a stalactite immensa d'uma dôr! Oh, quantas vezes já n'aldeia miseravel Nas tristezas do campo, ás portas dos casaes, Vos tenho surprehendido, em extasi adoravel, Em quanto os filhos nús ao peito conchegaes! A fria noite chega. Os maus, de bocca cheia, Rebolam-se na terra: ainda pedem pão! Com elles repartis a vossa parca ceia; E vendo-os a dormir podeis sorrir então. D'inverno quasi sempre as noites são mordentes. Uivam lobos na serra: o vento uiva tambem: Mas elles vão dormindo os longos somnos quentes, Em quanto a vil insomnia opprime a pobre mãe! Tendes sustos crueis. Temendo que lhes caia A roupa que os abafa, aos pobres acudis; E aninhando-os melhor nas vossas velhas saias Podeis então dormir um tanto mais feliz. Mulher quanto é suave e longo esse poema Quanto é preciso ó mãe, no transito cruel, Que vossa alma estremeça e o vosso peito gema A fim de que em vós brilhe o mais alto laurel! Quem é que nunca viu, na rua, a cada passo, A pallida mulher que rompe a multidão, Trazendo agasalhado, um filho no regaço, E aos tombos, muita vez, um outro pela mão?! Nos frios do lagedo, ás vezes, pede esmola Ás portas dos cafés: ninguem a quer ouvir: E a ella qualquer codea a farta e a consola Comtanto que sem fome os filhos vão dormir! E em quanto á luz do gaz a turba prazenteira No fumo dos festins revoa em turbilhão, Quantos dramas crueis nas humidas trapeiras; Nos campos quantas mães sem roupas e sem pão?! E sempre a mesma lenda, a mesma historia antiga: Do palacio á cabana o vosso doce olhar, Nas insomnias crueis, na fome ou na fadiga, D'um raio creador o berço a illuminar! No entanto á doce mãe, se aquelle amor sem termo, Da moda traja agora os novos ouropeis, E o vosso coração já gasto e um pouco enfermo, Soffrendo se dilue nos ideaes crueis; Nas vagas pulsações d'umas recentes ancias, Se aquella santa flôr das grandes commoções, Apenas tem logar nas vossas elegancias. Como um enfeite de mimo amado nos salões; Na corrente fatal que ao longe arrasta os povos, Se o vosso grande affecto intenta erguer-se mais, Sonhando a sagração dos heroismos novos, Resplendente de luz; vistosa de metaes: Aos reflexos do gaz, ó mãe, abri passagem Por entre a saudação das alas cortezãs, Levando as seducções da vossa doce imagem Aos delirios da noite, ás ceias das manhãs! Surgi do canto obscuro aonde o casto seio Palpita ingenuo e bom na paz da solidão, E o vosso amor levae á opera e ao passeio A fim de que elle arranque um bravo á multidão! E eu heide rir ao ver que o peito onde um thesouro Maior do que nenhum podemos encontrar, Intenta seduzir pela medalha d'ouro Que aos pequenos heroes os reis costumam dar! XXXIX Archanjo vae-te embora: é tarde: em nossas casas Talvez alguem se afflija; é tão deserta a rua!... Tu deves sentir frio! Embuça-te nas asas; Dá saudades á lua. Um beijo em cada estrella!... Espera que eu sou louco! Sonhei devo pagar: perdão anjo dos céos! Agora tem cuidado; o céo escorrega um pouco: Boas noites adeus! XL SANTA SIMPLICIDADE Na serena missão de paz que tu cumpriste Ó suave Jesus, ó doce galileu, Que santa singeleza e que perfume triste Do teu casto perfil no mundo rescendeu! Havia no teu verbo aquella unção divina Que a velha harpa de Job soltou nas solidões, E o bello, o puro sol da antiga Palestina Suave contornou, de luz, tuas feições! Compunham-te o cortejo uns pobres pescadores Almas rectas e sãs; marchavas por teu pé, E sorrias falando aos rudes e aos pastores, Sentado nos portaes da pobre Nazareth. Da tua Galiléa os valles percorrias Levando um bom quinhão d'affecto a cada lar, E o grande olhar suave e terno das judias Turbaste muita vez, de certo, sem pensar! E mais simples na morte, apenas a tua alma Transpunha as regiões purissimas do sol, Tu que havias colhido a immorredoura palma Não tinhas para o corpo as gallas d'um lençol! Consola-te ó Jesus! Tu deves já ter visto Que sobre a terra, agora, ao teu nome fieis, Os que se dizem ser apostolos de Christo Não precisam trajar os infimos bureis. Não maceram seus pés! não vão pobres e rotos Envoltos na estamenha, apedrejados, sós, Nos desertos viver de mel e gafanhotos, Convertendo o gentio ao som da sua voz. Ante elles, ao contrario, alargam-se os batentes Dos palacios reaes, nas grandes recepções, E formam-lhes cortejo os coches reluzentes Atraz dos quaes se bate um trote d'esquadrões! Cobrindo-lhes, depois, d'insignias as roupetas, Afim d'honrar melhor a primitiva fé, Redobram-se ainda mais as velhas etiquetas; Polvilham-se melhor os homens da libré! E dão-se-lhes festins onde ha grandes baixellas, Fataes scintillações de vinhos e rubins, Gargantas ideaes, grandes espaduas bellas, Lampejos de cristaes, insidias de setins! Oh! temo bem Jesus que tantas pedrarias Façam peso de mais na barca do Senhor, Quando é certo que as mãos de Pedro um pouco frias Mal podem segurar o leme salvador! Por isso quando avisto o espaço que negreja E o mar que se encapella, eu temo que ámanhã Do fendido baixel da tua velha Egreja Apenas reste, á prôa, uma ficção pagã! XLI O velho Olimpo dorme o bom somno comprido Que prostra o lutador no fim d'uma batalha, E os Deuses d'outro tempo, em livida mortalha, Descançam no torpor d'um mundo corrompido. No puro céo christão, de estrellas revestido, No entanto ha muito já que chora e que trabalha, Por nós, o Christo bom sem que seu Pae lhe valha, A fim de ver, de todo, o mundo redimido! Justiça, traça o manto alvissimo e estrellado E senta-te, mulher, no throno abandonado Pelos vultos gentis de tantos Deuses velhos! Depois inda maior, mais pura e mais serena, No sangue de Jesus molhando a tua penna Explica a nova lei no fim dos evangelhos! XLII OS PALHAÇOS Heroes da gargalhada, ó nobres saltimbancos, Eu gosto do vossês, Por que amo as expansões dos grandes rizos francos E os gestos d'entremez, E prezo, sobretudo, as grandes ironias Das farças joviaes, Que em visagens crueis, imperturbaveis, frias, Á turba arremeçaes! Alegres histriões dos circos e das praças, Oh, sim, gosto de os ver Nas grandes contorsões, a rir, a dizer graças Do povo enlouquecer, Ungidos para a luta heroica, descambada, De giz e de carmim, Nas mimicas sem par, heroes da bofetada, Titães do trampolim! Correi, subi, voae n'um turbilhão fantastico Por entre as saudações Da turba que festeja o semi-deos elastico Nas grandes ascenções, E no curso veloz, vertiginoso, aerio, Fazei por disparar Na face trivial do mundo egoista e serio A gargalhada alvar! Depois mais perto ainda, a voltear no espaço, Pregae-lhe, se podeis, Um pontapé furtivo, ó lividos palhaços Lusentes como reis! Eu rio sempre ao ver aquella magestade, Os tragicos desdens, Com que nos divertis, cobertos d'alvaiade, A troco d'uns vintens! Mas rio ainda mais dos histriões burguezes Cobertos d'ouropeis Que tomam, n'este mundo, em longos entremezes, A serio os seus papeis. São elles, almas vãs, consciencias rebocadas, Que, em fim, merecem mais O comentario atroz das rijas gargalhadas Que ás vezes disparaes! Portanto é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos, Nas comicas funcções, Até fazer morrer, em desmanchados gestos, De riso as multidões! E eu que amo as expansões dos grandes risos francos E os gestos d'entremez, Deixae-me dizer isto ó nobres saltimbancos, Eu gosto de vossês! XLIII A HYDRA Ha muito que desceu das orientaes montanhas A hydra singular que espalha nas ardencias D'uma luta febril scintillações estranhas! Ella galga, rugindo, ás grandes eminencias, E emquanto vae soltando o silvo pelo espaço Engrossa á luz do sol na seiva das consciencias. Tem rijezas sem par, como de roscas d'aço E corre descrevendo em giros caprichosos Na leiva popular um indefinido traço. Prefere aos antros vis os focos luminosos E em mil voltas crueis aperta dia a dia, N'uma longa espiral, os thronos carunchosos. Passou pelo paiz da candida Utopia: Nos mythicos rosaes viveu d'um vago aroma Ao pallido fulgor da aurora que rompia. Mas hoje com valor em toda a parte assoma, E sem temer sequer a lugubre vizeira Ha muito que transpoz os porticos de Roma. E os Papas mais os Reis sentindo-a na carreira Do seu longo triumpho, um tanto apavorados, Trataram d'acender a livida fogueira. E ao galope lançando os esquadrões cerrados Começaram depois, na terra, a perseguil-a, A cumplice fatal dos lividos Pecados! Mas ella sem temor, nos cerberos tranquilla, Derrama cada vez mais bellos e fecundos Os intensos clarões da lucida pupilla, E emquanto a imprecação de tantos moribundos, Os despotas crueis, acolhem com desdem, A hydra immensa--a Idéa--a farejar nos mundos Ainda a garra adunca afia contra alguem! XLIV OS NOVOS LEVIATHÃS Dos antigos Titães, o mar,--fera indomavel, Agora verga o dorso ao peso colossal Dos novos leviathãs que em bando formidavel, Nas grandes explosões da colera insondavel, Já levam de vencida o abysmo e o vendaval! Elles seguem no mar, altivos no seu rumo, Em halitos de fogo, á nossa voz fieis, E como o combatente erguendo a lança a prumo, Era turbilhões rompendo, as flamulas de fumo Ostentam sem cessar correndo entre os parceis! Que sopro creador, que força omnipotente Os fez surgir do nada, os monstros colossaes? Ó novos leviathãs provindes tão somente Do fecundo hymeneu, d'este connubio ardente Do Genio e do Trabalho, amantes immortaes! Correis de mar em mar, altivos, triumphantes, Levando a toda a parte a vida, a nova luz, E as sereias gentis não fazem como d'antes, Ao som da sua voz, perder os navegantes; O dorso dos delfins, no mar, já não reluz! Ó alma antiga dorme inerte no regaço Dos velhos Deuses vãos, que o homem creador Agora ri de ti, prostrada de cansaço, Emquanto vae soprando em mil gigantes d'aço Outra alma inda mais larga,--o novo Deus-Vapor! XLV Sua alteza real o pequenino infante Matou, d'um tiro só, dois gamos na carreira: Um hymno mais ao céo, pois era a vez primeira Que sua alteza vinha á diversão galante! Ó vergontea gentil! quando um tropel distante De subito acordar os echos da clareira E uma preza cansada, em rolos de poeira, Varada, a vossos pés, caír agonisante, Acercai-vos então da pobre fera exangue Que estrebuxa de dôr n'um mar de lama e sangue Sem que um grito de dó nos corações acorde! No entanto não fiqueis na doce gloria absorto: O velho javali parece ás vezes morto Mas surge da agonia e os seus algozes morde! XLVI VERSOS A * Eu sou, mulher suave, aquelle antigo louco, O triste sonhador que o teu olhar cantou, E que hoje vae sentindo, o sonho, a pouco e pouco, Fugir como o luar d'um astro que expirou! Que morra, porque, emfim, bem longo elle tem sido E tempo é já, talvez, da Morte desposar O sonho que em minha alma entrou como um bandido E só da vida sae depois de me roubar! Eu devera amarral-o á braga do forçado, Como a Justiça faz aos despreziveis réos, E lançal-o depois á valla do passado Aonde o fulminasse a colera dos céos. Mas não; quero embalar-lhe os ultimos momentos Ao som d'uma canção das quadras juvenis, E amortalhar depois--em doces pensamentos-- No manto da saudade, os seus restos gentis. E quando elle seguir ás regiões saudosas, Aonde todos nós iremos repousar, Ao esquife hei de atirar-lhe as derradeiras rosas Que dentro de minha alma houver por desfolhar! Ninguem profanará seus restos adorados, Que em paz irão dormir n'um fundo mausoleo; E quando alguma vez já hirtos, regelados, Acordem, por ventura, á luz que vem do céo; Em vão tu baterás, ó sonho, á fria porta Que em breve has de sentir fechada sobre ti, Porque a tua Memoria, emfim, já estará morta, E não te escutarei... porque também morri! XLVII Ó pobres versos meus, lançae-vos pela estrada Agreste e pedregosa, aonde os companheiros Da luta, encontrareis, meus infimos guerreiros, Formando os batalhões da bellica avançada! E o trajo em desalinho, a face illuminada, Transponde, sem demora, os fossos derradeiros Que separam de nós os braços justiceiros Da serena Verdade, a Deusa idolatrada. Vencidos no combate, ou pouco ou nada importa. Ao chão vergae sem pena a faço semi-morta, Mordendo, inda a lutar, o pó da enorme liça: E tudo, emfim, esquecendo; os odios e os desprezos; Que d'entre vós alguns, ao menos, fiquem prezos Como fios de luz, ao manto da Justiça! FIM. APPENDICE Nas paginas que em seguida se leem acha-se tão bem determinada, com tanta eloquencia e tão profunda observação, a missão da poesia contemporanea, que não podemos resistir ao desejo de as trazer das folhas passageiras do jornal, aonde pela primeira vez viram a luz, para as paginas d'este livro, por ventura um pouco menos ephemeras. O autor das _Radiações da Noite_, intenta sobretudo mostrar que o seu espirito, correspondendo ás indicações da critica, procura inspirar-se, tanto quanto lhe é possivel, no mundo que o cerca, nos factos e nas acções do nosso tempo. Das _Radiações da Noite_ á _Alma Nova_ poder-se-ha talvez notar um certo caminho andado na direcção em que vae seguindo a arte contemporanea. Do escripto como primitivamente foi publicado, entendemos, como o leitor tambem de certo comprehenderá, suprimir, hoje, a parte final em que o talentoso critico se referia, d'um modo demasiadamente lisongeiro, á individualidade litteraria do autor das _Radiações_. Guilherme d'Azevedo TENDENCIAS NOVAS DA POESIA CONTEMPORANEA a preposito das RADIAÇÕES DA NOITE do sr. Guilherme d'Azevedo O seculo XIX, cujos primeiros annos enflorou uma corôa poetica de esplendor incomparavel, tem mentido cruelmente ás esperanças da sua aurora. Envelhecendo, perdeu o dom do canto, ou, pelo menos, o sentimento que faz os cantores verdadeiros. Os Goethe, os Byron, os Lamartine, os Miczkawicz, os Hugo, os OEhlenschlaeger, não deixaram descendencia digna d'aquella poderosa geração. O romantismo foi um meteoro. O grande canto do seculo esvaeceu-se gradualmente n'um murmurio. A poesia contemporanea não tem unidade, e não tem sobre tudo o largo folego de inspiração, que caracterisa as verdadeiras épocas poeticas. O interesse do tempo dirige-se evidentemente para outro lado. No meio das preoccupações da actualidade, a poesia é como a canção de um conviva distraído que se affasta da sala do festim, e cuja voz se perde pouco a pouco no silencio da distancia e da noute. Depois do apparecimento do romantismo, a sua queda é o maior facto litterario, do seculo. Porém essa queda, que como facto todos reconhecem, mas cuja phenomenalidade poucos tentam explicar, será uma justa sentença lavrada pela razão publica, ou será uma condemnaçao arbitraria que deshonra o tribunal que a firma? Indicará para o espirito do nosso tempo um progresso ou uma decadencia? uma gloria ou um deslustre aos olhos da historia? Não hesito em responder. O romantismo foi justamente condemnado. O seculo, com um sentimento lucido da sua verdadeira missão, affastou-se d'aquelles que lhe fallavam uma linguagem, cujo brilho, cuja eloquencia, cuja sinceridade, por maiores que fossem, não podiam encobrir o falso do principio, que a inspirava. Essa missão é essencialmente positiva, social e racional, e o romantismo era essencialmente apaixonado, individual e subjectivo. Por mais que se virasse para o futuro, a sua alma pertencia ao passado; emquanto que o seculo, ainda nos momentos em que parece invocar o passado, é sempre para o futuro que caminha. No fundo, uma sociedade saída da revolução, e uma poesia que se inspirava das tradições da edade-media, contradiziam-se, negavam-se radicalmente. Um equivoco historico pôde por um momento estabelecer aquelle infundado accordo: no dia, porém, em que se conheceram, separaram-se. Ainda ha muita gente que _sente_, _chora_, _crê_, e _aspira_, á maneira dos grandes, melancolicos e apaixonados de 1820. Mas já nos não commovem como então, já não influem poderosamente no mundo que os rodeia. São vozes sem ecco. É quanto basta para que nada signifiquem, historicamente: tanto mais que aquellas vozes frouxas não teem já o timbre ardente de indomavel paixão, que nas outras nos commovia. A paixão d'estas é mais estudada na escola, do que saída do coração. Não é já como então, um convencimento violento dos direitos da propria loucura, que os inspira: são apenas os livros dos mestres: ora, não é nos bancos apertados da escola, mas no seio da livre natureza, que se criam os verdadeiros poetas. Os poetas da geração actual vêem-se pois, rasgado aquelle veo phantastico da _sentimentalidade_ d'outr'ora, em face d'uma sociedade, que elles não comprehendem, porque ella mesma a si se não comprehende bem, mas que os não quer escutar senão com a condição de lhe falarem d'aquillo que a interessa e a preoccupa, de se inspirarem da sua vida real e das suas verdadeiras aspirações. É d'esta situação anormal que resulta a incerteza, a anarchia, a fraqueza da poesia contemporanea. A idéa poetica acha-se confusa, embaraçada no meio de factos sociaes, que se não definem claramente: as fontes da inspiração correm escassas ou turvas. A antiga nascente, tão querida e conhecida, está quasi secca: a nova, já por ser nova, e depois por que só deixa rebentar, em cachões, uma agua turbida, cheia de elementos estranhos, assusta os que a ella se chegam pela primeira vez; os mais ousados inclinam-se um momento, tomam a medo um golle da bebida suspeita, e retiram-se furtivamente como se acabassem de fazer uma acção má. E todavia, é alli que é necessario beber, porque é alli, n'aquellas aguas rumorosas e confusas, que se conteem os elementos da inspiração real, os principios vitaes de que se nutre a sociedade, e de que tem por conseguinte de se alimentar tambem a poesia, sob pena de se tornar uma abstracção, um phantasma, uma puerilidade. O problema da evolução poetica na actualidade encerra-se todo n'isto. Mas aqui apresenta-se uma questão, que nos detem. Terá a sociedade contemporanea (essa sociedade, ao que dizem, positiva até ao mais desolador utilitarismo) na sua atmosphera suffocadora de industria, de lutas sociaes e de sciencia friamente analytica, condições de vida e desenvolvimento normal para a constituição delicada das castas musas, das musas melindrosas e scismativas? Não será uma sociedade essencialmente anti-poetica, esta nossa, um mundo rebelde a toda a idealidade? Por outras palavras; poderá haver poesia racional, positiva e social? Será um ser _poetico_ o homem do nosso tempo? Intendo que póde haver tal poesia; que a alma moderna, na sua titanica aspiração de verdade e justiça, é poetica, poetica essencialmente, d'aquella poesia forte e audaciosa dos mythos de Prometeu e Ajax; que ha uma fonte abundante de inspiração n'esta luta historica de nações, de classes e de idéas, que é a epopea e a tragedia viva do nosso seculo; que, finalmente, á maneira que os factos confusos da nossa epoca se forem desembrulhando, mais lucida e evidente se irá mostrando a idealidade sublime que n'esse chaos apparente se contém. E a idéa d'essa poesia nova não só existe, mas deve ser superior á idéa poetica das eras anteriores, porque corresponde a um periodo mais adiantado da consciencia humana, penetra com maior intensidade a natureza e o espirito, extrae o bello da propria realidade universal, não das visões de um subjectivismo inexperiente, e dá por base ao sentimento, em vez de sonhos e intuições quasi instinctivas, os factos luminosos da rasão. Os caracteres essenciaes d'essa poesia já hoje se podem indicar, e todos elles se consubstanciam n'uma palavra, que resume tambem as tendencias da nossa civilisação: o Humanismo. A inspiração social e naturalista vem substituir a sentimentalidade toda subjectiva e pessoal, ou o transcendentalismo contemplativo de outras idades poeticas. A poesia deixa de duvidar e scismar, para affirmar e combater; mostra-nos o interesse profundo e o valor ideal dos factos de cada dia; dá ás acções, que parecem triviaes, da vida ordinaria, um caracter, e significação universaes; e surrindo maternalmente para as creanças, as mulheres, os simples, caminha todavia armada no meio das lutas dos homens. Uma tal missão ninguem dirá que é mesquinha ou vulgar: ha n'isto com que tentar os mais altos engenhos, captivar os corações mais generosos. E, sobretudo, deve seduzir os espiritos verdadeiramente poeticos acharem-se em communicação directa e constante com o seu tempo, com as aspirações, os interesses, as crenças da sociedade que os rodêa, e de cuja vida vivem, como meio historico a que fatalmente pertencem. Certamente que essa evolução nova da poesia tem de ser lenta, como lenta é a evolução do edeal social, que a deve inspirar. Ha um certo receio, e uma certa incerteza. O novo assusta: o indistincto faz hesitar, mas insensivelmente, e fatalmente tambem, caminha-se n'aquella direcção. Os symptomas d'este movimento tornam-se cada dia mais accentuados. Em França e Allemanha, sobre tudo, paizes aonde as idéas e tendencias novas se pronunciam n'uma agitação crescente, podem já indicar-se exemplos bem significativos; em Allemanha ainda mais do que em França. Alli a poesia inspira-se resolutamente das lutas sociaes e religiosas do tempo, e abalança-se já, ainda que com incerta fortuna, ás grandes composições epicas, aonde se desenha uma sociedade, consubstanciada nos seus typos e paixões mais caracteristicas. Entre nós, ha apenas indicios tenues e raros, mas que, porisso mesmo, devemos recolher tanto mais cuidadosamente, quanto parecem provar que nem tudo está inteiramente morto no espirito portuguez, e nos animam a esperar com alguma confiança n'um melhor futuro. Anthero de Quental. NOTA Na revisão d'este livro escapou uma ou outra incorrecção que não mencionamos, e de que o leitor benevolo nos absolverá. A paginas 63, devemos porém notar, em especial, o 3.^o verso, que insidiosamente apparece mascarado em alexandrino puro, feição que de certo lhe não compete. Aos entendidos concedemos plena autorisacão para demolir o verso referido, reconstruindo-o depois como julgarem mais proprio. INDICE INDICE I--Eu poucas vezes canto os casos melancolicos II--Eu vi passar além vogando sobre os mares III--Velha farça IV--Graça posthuma V--Historia simples VI--A meza do festim cercada de formosas VII--Os sonhos mortos VIII--Falta a ordem IX--Ó lyrios da cidade, ó corações doentes X--Miseria santa XI--Astro da rua XII--Quando Martha morrer, depois do extremo arranco XIII--As victimas XIV--Evocacas XV--Boas noites, coveiro, a tua enxada XVI--Flor da moda XVII--Ó machinas febris, eu sinto a cada passo XVIII--A Christo XIX--Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizel-o XX--O grande templo XXI--A um certo homem XXII--Á hora do silencio XXIII--Eu quizera depois das lutas acabadas XXIV--O velho cão XXV--As velhitas XXVI--As vizões XXVII--Melancolias d'outono! eu quando além descubro XXVIII--O velho mundo XXIX--Eis a velha cidade, a cortezã devassa XXX--Á noite XXXI--A valla XXXII--Ó vultos ideaes, fantasticos e bellos XXXIII--Eu vejo em tua boca as petalas vermelhas XXXIV--Nos campos XXXV--O ultimo D. Juan XXXVI--Formosuras do inverno! Ao sol das duas horas XXXVII--Antigo thema XXXVIII--A mãe XXXIX--Arcanjo vae-te embora, é tarde em nossas casas XL--Santa simplicidade XLI--O velho Olimpo dorme o bom somno profundo XLII--Os palhaços XLIII--A hydra XLIV--Os novos leviathãs XLV--Sua alteza real o pequenino infante XLVI--Versos a * XLVII--O pobres versos meus, lançae-vos pela estrada Appendice *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A ALMA NOVA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. 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