The Project Gutenberg eBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 08

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 08

Author: Alexandre Herculano

Release date: June 5, 2007 [eBook #21684]

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão--Editores 5, Largo de Camões, 6 Typ. a vapor da Empreza Litteraria e Typographica 178, rua de D. Pedro, 184--Porto, 1901

Credits: Produced by Diogo Mena Reis and Rita Farinha (This file was
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OPUSCULOS

*OPUSCULOS*

POR
A. HERCULANO
SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA-YORK, ETC.

TOMO VIII

QUESTÕES PUBLICAS

TOMO V

1.^a EDIÇÃO

LISBOA

TAVARES CARDOSO & IRMÃO—EDITORES 5, Largo de Camões, 6

MCMI

Typ. a vapor da Empreza Litteraria e Typographica 178, rua de D. Pedro, 184—Porto

ADVERTENCIA

ADVERTENCIA

Formosos eram os tempos em que pelejavamos pela liberdade do povo; tão formosos, quão negros estes em que a plebe peleja pela licença.—A. Herculano—Voz do Propheta—1836.

Os breves artigos com que abre o presente tomo sob as epigraphes—Da pena de morte—e—A Imprensa,—foram escolhidos entre varios outros de propaganda social publicados por A. Herculano nos numeros de janeiro a maio do Diario do Governo de 1838. Entendemos que deviamos recolhê-los nesta collecção por conterem a opinião do Auctor em assumptos de elevado alcance, embora resumidamente exposta. Convem notar que o Diario do Governo era então propriedade dos officiaes das secretarias do estado: dos officiaes maiores, seus amigos e dirigentes da empresa, acceitara o publicista o encargo de redactor com o intento que naquelles artigos evidenciou de encaminhar o espirito público, tão conturbado a esse tempo por paixões politicas, para a boa práctica e comprehensão do regimen representativo e outros ideaes conducentes á prosperidade moral e material do país. Dahi proveiu a desusada feição que a folha official apresentou durante aquelles meses, sendo para registar, como nota caracteristica daquella epocha, que os setembristas exaltados, a quem a catechese do escriptor era principalmente destinada e não raras vezes irritava, por desforço o increpassem nas suas folhas de protector de malfeitores, por elle ser contrário á pena capital; como se a existencia do algoz fosse postulado do credo democratico que ostentosamente apregoavam. Ao acaso alguns publicistas teem propalado que fôra em 1837 e não em 1838 que A. Herculano escrevera no Diario do Governo, tendo então de contradizer as suas anteriores crenças politicas; mas o que acabamos de dizer e os leitores podem verificar demonstra a inexactidão de taes asserções.

Seguem-se no tomo dous escriptos ácerca de instrucção pública, de instrucção popular principalmente, com os quaes se liga como complemento de uma nota a um delles um artigo bibliographico que trouxémos do vol. II da 2.^a série do Panorama. Os dous escriptos foram ambos publicados em 1841, sendo o Auctor deputado ás côrtes pela cidade do Porto, e pelas referencias que encerram a factos parlamentares nos offerecem ensejo de expôr alguns esclarecimentos que, além de facilitarem a sua melhor apreciação, interessam sob um ponto de vista geral aos demais trabalhos contidos no tomo. Junctos aos acima esboçados completam estes esclarecimentos uma parte pouco conhecida e que por isso tem sido em mais de um ponto adulterada, da biographia de A. Herculano, no período a que respeitam.

A camara a que o publicista pertenceu foi a que reuniu em maio de 1840 em substituição da que fôra dissolvida em fevereiro do mesmo anno. Representava ella na sua grande maioria assignalado triumpho que ao cabo de ardentes e prolongadas luctas o partido cartista obtinha na opinião pública contra o setembrista, triumpho que muitos factos faziam prever e que apenas secundariamente, porventura na escolha de alguns nomes, dependera da influencia do governo no acto eleitoral. O ministerio existente era pela conjunctura em que subira ao poder e pelos homens que o constituiam um ministerio de transição, não sendo todos os seus membros cartistas tradicionaes, nem contando elle entre estes numero sufficiente dos mais notaveis. Era o falado gabinete de 26 de novembro de 1839. Mas como quer que a maioria da camara comprehendesse a sua missão, o certo é que ella se submetteu á politica ministerial, mantendo-se o pacto sem quebra formal, e sem embargo do que para alguns dos membros da maioria tivera de irritante uma parcial recomposição do gabinete occorrida em 1841, até que, ao abrir-se em janeiro de 1842 a última sessão da camara, que acto contínuo foi adiada, veiu a revolução militar iniciada na cidade do Porto e consumada em Lisboa nesse interregno parlamentar, derrubar a constituição vigente e proclamar a restauração da carta.

Importa recordar que ás primeiras demonstrações do movimento revolucionario logo se organisou em Lisboa a famosa colligação liberal em que as maiorias de ambas as camaras notoriamente se representaram e que pública e solemnemente protestou contra elle. A esta colligação se associaram por actos officiaes a corôa, o ministerio exceptuando um dos seus membros que tomou o partido dos revoltosos, e outro gabinete que ainda subiu ao poder e chegou a planear medidas enérgicas para restabelecer a ordem. Sem embargo a revolução conseguiu triumphar e não só ou não tanto pelo império da força, mas porque o estado de cousas a que o procedimento dos poderes constituidos até então conduzira, lhe abrira caminho e facilitara o triumpho. Ao passo que decorridas duas sessões parlamentares ainda estava por definir em pontos primordiaes o definitivo plano politico que o partido cartista houvesse de adoptar, quer ao sabor de exaltados quer ao de moderados, visto que fabianamente se fugira das questões constitucionaes que podiam aclará-lo, como era a da reorganisação da segunda camara, tinham-se restringido todas as liberdades populares e nas mãos do executivo se haviam concentrado por esse e outros processos habituaes, meios de acção politica e administrativa tão pronunciados que, por apenas o acautelarem contra as turbulencias do setembrismo, deixando-o todavia exposto a surpresas da parte dos seus correligionarios, tanto podiam demonstrar o sincero propósito de manter a todo o transe a ordem pública, como o reservado intuito de acabar radicalmente com a politica transitoria, recorrendo sem temor de resistencias a processos mais ou menos summarios. De modo que o procedimento do cartismo militar se reduziu a empolgar por favoravel ás suas conhecidas paixões uma situação que lhe tinham creado e que de improviso não seria possivel mudar. As memorias de que vamos extrahindo esta perfunctoria noticia nos dão como principaes planeadores daquella politica como que preparatoria, além do ministro que ousadamente desertou do governo para os revolucionarios, um outro bem notavel pela sagacidade que sempre lhe foi attribuida, o que na imperfeita e tardia reconstituição ministerial de 1841, passara da pasta do reino á dos estrangeiros e que, ao ver que o primeiro lhe disputava a preeminencia politica nos acontecimentos que íam decorrendo, e que o plano em que collaborara se complicava gravemente, por último resolveu acompanhar com os seus demais collegas a corôa senão encaminhá-la para o lado da colligação. Assim esta, embora vencida, adquiriu proporções de facto não menos assignalado que a revolução, cobrindo até onde possivel responsabilidades contrahidas por muitos dos colligados e estremando novos arraiaes para as campanhas politicas que depois agitaram o país.

Houvera, porém, alguns deputados cartistas que não tinham acompanhado a maioria na sua submissão ao ministerio, nem esperado pela revolta militar para pugnar pelos bons dictames do cartismo doutrinario. A tempo haviam elles combatido os excessos de auctoridade e propostas do governo absorventes das prerogativas parlamentares ou contrárias ás normas constitucionaes, e pela formação de um ministerio genuinamente cartista que em vez de sobrexcitar as paixões lhes impusesse respeito, mantendo o seu partido dentro daquellas normas e honrando-o com uma politica leal e patriotica. Taes eram os deputados do grupo chamado da opposição cartista, que teve por orgãos na imprensa—O Director—em 1840 e—O Constitucional—em 1841 e foi da opposição parlamentar seguramente o mais notavel e o mais temido pelo ministerio. A este grupo, como o leitor terá previsto, pertenceu A. Herculano, guardada a independencia das suas opiniões em assumptos especiaes, resultando-lhe de tal filiação ser alvo de aggravos na camara e na imprensa ministerial, onde elle e os seus amigos eram accusados de tránsfugas aos quaes cegava a cubiça de ascender ao poder. Alguns ministros chegaram ao excesso de tentar comprometter A. Herculano com el-rei D. Fernando cujo bibliothecario era, não vingando a intriga, graças á gentileza do príncipe e á energia nunca desmentida do escriptor; e tão vivas eram as animadversões contra a opposição cartista, que ainda depois da revolução consumada, e como se esta tivesse triumphado com geral acolhimento, continuaram os seus apologistas a julgar segundo as proprias paixões os homens daquelle grupo, especialmente A. Herculano, quer em publicações quer em conversações particulares. Emfim, succede que ainda em recentes escriptos appareçam reflexos desses juizos que o facciosismo daquella épocha havia inspirado. Mas a noticia que deixamos exposta é bastante circumstanciada para que se possa concluir que elles são hoje e foram na sua origem tão infundados quanto os que já rebatemos a respeito da redacção do Diario do Governo em 1838. A verdade é que A. Herculano manteve na camara os mesmos principios em que toda a colligação liberal e os poderes constituidos estribaram depois os seus protestos contra a nova solução de continuidade do systema representativo. A verdade é que, sem quebra allegavel de rigor partidario, elle os havia ininterruptamente sustentado desde que viera a público com o seu ardente opusculo A Voz do Propheta. Foram tambem esses principios que lhe serviram de base no transumpto historico que se lê no tomo I desta collecção, ácerca dos nossos acontecimentos politicos, desde a revolução de setembro até a de 1842. Assim as increpações de incoherencia politica lançadas naquella épocha contra o nosso escriptor, e mais tarde reproduzidas sem exame, reduzem-se a estranhar que elle não tivesse tido duas consciencias, uma para condemnar os actos desordenados do setembrismo e outra para se conformar com os analogos dos seus correligionarios.

Assente este ponto fundamental dos esclarecimentos em que vamos proseguindo, podemos agora cingir-nos aos que mais de perto se ligam ao conteúdo do tomo. Como ao constituir-se aquella camara não estivesse patenteada nenhuma das divisões possiveis do cartismo parlamentar, foram eleitos membros da commissão d'instrucção pública A. Herculano e mais dous deputados do seu grupo. Occorreu então ao incansavel e patriotico publicista o pensamento de estudar e redigir com o auxilio de um destes deputados, o lente da Universidade e seu particular amigo V.F. Netto de Paiva, um projecto de organisação de instrucção popular. Não lhe viera de salto esse pensamento. Já na folha—O Repositorio Litterario—publicada de 1834 a 1835 na cidade do Porto, elle começara a manifestar o seu interesse pela instrucção do povo, descrevendo ahi as escholas d'instrucção elementar da Prussia e encarecendo-as como modêlos no genero. Evidentemente pretendera então impressionar o público pondo em confronto o estado intellectual deste país com o do nosso, isto é, fazendo destacar os dous extremos. Em 1838 voltava ao momentoso assumpto, por incidente em luminosa passagem do artigo sobre monumentos patrios publicado no Panorama, e no Diario do Governo em uma série de artigos que não incluimos neste tomo por dispormos de mais completos trabalhos do Auctor sobre a materia. Aquelle projecto não seria, pois, mais que nova phase de uma propaganda que o Auctor fôra desinvolvendo par a par com a relativa ao regimen politico recentemente implantado entre nós, e que elle reputava tão fundamente correlacionada com esta quanto pelas suas eloquentes palavras os leitores poderão em breve apreciar.

Fundada esperança de bom exito tinha A. Herculano nesta tentativa porque contava com a boa vontade de todos ou quasi todos os seus collegas da commissão e com a acquiescencia do ministro do reino, a quem o prendiam relações de amizade. Foi de certo a partir dessa épocha que essas relações começaram a esfriar, degenerando mais tarde em animosidades que concorreram para perturbar gravemente a carreira litteraria do escriptor; mas até ahi e desde o cèrco do Porto haviam sido cordealissirnas e firmadas em repetidas provas de mútua confiança. Desta vez, não tractava, pois, o insigne patriota apenas de ajunctar mais um brado em prol da grande causa a que se dedicava, mas de um acto decisivo e que, por bem concebido e delineado teria resultados seguros. Porém, a poucos passos as divergencias politicas que já descrevemos deram por terra com estas illusões. Mesmo no decorrer da sessão de 1840 apresentava o ministro do reino á camara um projecto seu que não teve seguimento mas que sem dúvida impedia a premeditada combinação; e aberta a sessão de 1841, logo A. Herculano e os seus amigos foram acintosamente excluidos da commissão de instrucção pública, sem que a maioria desta se resentisse do facto. Depois, quando no progresso da sessão o ministro mudava de pasta e desta mudança e do subsequente caminhar dos negocios, se podia deduzir que o assumpto não viria a ser ventilado na camara, resolveu o escriptor levá-lo para a imprensa, expondo em successivos artigos publicados de setembro a novembro na folha—O Constitucional, as theses que sobre elle havia apurado e examinando á luz dellas o projecto ministerial. São esses artigos que constituem um dos estudos sobre instrucção insertos neste tomo e no qual, por emenda deixada pelo Auctor, substituimos a epigraphe primitiva de—Instrucção Nacional pela de—Instrucção Pùblica.

Ainda na sessão de 1840 um deputado da maioria apresentara á camara um projecto de restabelecimento de anachronicos institutos de ensino público mortos pela ditadura setembrista e de extincção de outros que ella creara para os substituir. O principal objectivo do proponente era a quéda da eschola polytechnica e a restauração do collegio dos nobres, e contra essa idéa tão retrógrada deu parecer a commissão de instrucção pública, sendo relator A. Herculano; mas como a questão ficasse reservada, succedeu que alguem interessado nella mandou distribuir aos deputados na sessão de 1841, antes do adiamento da camara decretado em março, uma analyse impressa refutando aquelle parecer. Reaberta a camara respondeu A. Herculano com o seu opusculo—Da Eschola Polytechnica e do Collegio dos Nobres,—que é o outro dos dous referidos estudos, o que contém mais vivas allusões ás occorrencias parlamentares e o primeiro na inserção em obediencia á ordem chronologica. Posto que nesta noticia deixemos para o leitor a detida apreciação dos trabalhos que vamos apontando e dos profundos pensamentos philosophicos que os abrilhantam e ligam como élos da mesma cadeia, convem notar que A. Herculano defendia neste opusculo a ameaçada eschola pelo que ella podia concorrer, independentemente de outras funcções, para a instituição das escholas destinadas a derramar o ensino geral superior, definido nos artigos do Constitucional, e por isso mesmo dissémos a princípio que o assumpto dominante destes estudos era a instrucção popular, admittida a amplitude que o escriptor lhe attribuia.

A escola polytechnica ainda foi objecto de novas solicitudes de A. Herculano dous annos depois delle a defender na camara. Parecendo que tambem as cousas além das pessoas se conspiravam contra ella, um incendio viera destruir-lhe o edificio e o material de ensino, contrariedade sobre modo grave, attenta a míngua dos recursos pecuniarios do estado. Succedia, porém, andar a esse tempo em projecto erigir-se por meio de subscripção pública uma estátua a D. Pedro IV, circumstancia que o nosso escriptor aproveitou para advogar calorosamente em uma série de notaveis artigos publicados na Revista Universal Lisbonense, a idéa de que, emvez de estátua, fórma monumental herdada de eras pagans, o monumento ao glorioso caudilho das nossas líberdades fosse aquella eschola restaurada. Verdadeiros modêlos de erudição e dialectica servem estes artigos de fecho ao presente tomo, onde pelo assumpto de que tractam tinham o seu logar marcado. O monumento-estátua triumphou, mas A. Herculano tornara moralmente impossivel que a eschola fosse lançada ao olvido, a tal ponto que ella foi restaurada antes daquelle ser erguido, vindo a justificar pela brilhante situação que depois conquistou, as campanhas era que o eminente publicista tanto se empenhara para encarecê-la no espirito público.

O exame das sessões parlamentares de 1840 a 1841, ainda abstrahindo das restricções de liberdade que limitaram a vida constitucional do país, acubertando-se com aspirações ordeiras, e das investidas contra o progresso de instituições de ensino, offerece-nos seguras provas de que no governo e na maioria da camara havia não poucos espiritos mais hostis que favoraveis ás melhores conquistas da revolução liberal, affrontando até o credo politico de que ambas as entidades se apregoavam sustentáculos, como se patenteia nas tentativas a que nos vamos referir, embora estas não alcançassem immediato triumpho. Com effeito, alguns deputados da maioria firmavam com os seus nomes uma proposta tributária em cujo preambulo se dizia que um dos grandes erros da primeira dictadura fôra acabar com os tributos que os povos desde séculos pagavam sem reluctancia. Os proponentes reputavam, pois, acervo de grandes erros as leis daquella dictadura, e proferiam esta sentença condemnatoria como se ella houvesse passado em julgado, como se exprimisse uma verdade que já ninguem ousasse contestar. Por sua parte o ministerio parecia abundar nas mesmas idéas, porquanto apresentara á camara um projecto nada menos que tendente a annullar o memoravel decreto de 13 d'agosto de 1832 sobre foraes. E assim se ameaçavam em pleno parlamento e á sombra da bandeira cartista as tradições com que mais deviam gloriar-se os que ostentavam de leaes servidores dessa bandeira.

Contra taes tendencias que pareciam inspiradas pelo absolutismo, se lê no opusculo ácerca da eschola polytechnica uma vehemente apóstrophe de A. Herculano, havendo este já exaltado anteriormente a excellencia das leis de D. Pedro em artigos publicados na primeira folha da opposição cartista. Mas o leitor tem no presente tomo um trabalho especial que lança grande luz sobre o assumpto e cujo manuscripto achámos nos papeis do Auctor com a data de 1842. É a analyse de um acórdão da Relação de Lisboa em litígio sujeito ao decreto que acabamos de citar, na qual o Auctor demonstra a iniquidade do acórdão e exproba ao poder judicial o propósito de associar-se áquelle perigoso movimento reaccionario. O manuscripto tem a designação de—communicado—, mas ignoramos se elle viu ou não a luz pública. Sabemos, porém, que pelo menos uma cópia delle senão a impressão teria sido offerecida ao jurisconsulto A.C.C. de Faria, o qual em carta que temos á vista agradece ou uma ou outra cousa, chamando-lhe artigo talvez por conter aquella designação. Á defesa e apotheose assim iniciadas das grandes concepções legislativas de Mousinho da Silveira, deu A. Herculano mais tarde largas proporções como consta dos tomos II, IV e VII desta colleccão. É que no convulsionado período que se seguiu á revolução militar de 1842, havia o cartismo espurio que o calumniara de transfuga, conseguido realisar em parte as aspirações que manifestara na camara contra as leis de D. Pedro, não sendo para estranhar que tentasse proseguir nesse caminho. Mas as particularidades, que não viriam aqui a ponto, da segunda phase desta importante propaganda de A. Herculano, tem-nas o leitor naquelles tomos, não esquecendo as que apontámos na Advertencia do último.

Quiseramos incluir neste livro alguns dos discursos parlamentares do nosso escriptor, e o pequeno opusculo—O Clero português—publicado em 1841 sobre um assumpto então submettido á camara dos deputados. Deste modo e contando com outros artigos avulsos já insertos em tomos anteriores, bem pouco faltaria para que ficasse constando da collecção toda a obra de A. Herculano relativa a questões públicas, no período de que nos ocupamos. Mas aquelles discursos, de breve extensão em sua maioria, só em memoria especial teriam cabimento, acompanhados de um summario das controversias a que se ligaram, á similhança do que fizémos em anotações a este tomo, nas quaes apresentamos os transumptos de dous delles. Quanto ao opusculo o facto de ter sido pelo Auctor retirado da publicidade pouco depois de vir a lume tornaria inadmissivel a sua inclusão, mas está dentro dos limites desta noticia darmos idéa da substancia delle e conjecturar sobre os motivos que levaram o Auctor a supprimi-lo.

Inspirando-se nos mesmos sentimentos que no anno seguinte, como se lê no tomo I, o moveram a expor á condolencia pública a miseria a que estavam reduzidos os velhos egressos, víctimas de excessos revolucionarios ainda não remediados, e mais tarde a proceder do mesmo modo em favor das freiras de Lorvão, naquelle seu opusculo começara A. Herculano por condoer-se da sorte do clero parochial, a quem a revolução em seu dizer tambem deixara a viver de esmolas. Em commovente quadro ahi descrevia elle os longos serviços sociaes da democracia do clero, e recorrendo a considerações historicas que os leitores poderão ver muito ampliadas nos notaveis artigos—O País e A Nação, tomo VII, argumentava que ella não devera ser attingida pela onda revolucionária, porque não tinha a responsabilidade dos abusos e extorsões de que haviam desfructado durante séculos as altas classes ecclesiasticas. Mas se nesta parte o opusculo não era mais que o inicio de uma propaganda de piedade destinada a moderar ódios ainda subsistentes entre vencidos e vencedores, nelle aproveitava o Autor o ensejo para de certo modo deprimir em transparente allusão, o ministro que referendara o decreto de 1834 sobre corporações religiosas, notando que o pensamento deste decreto, no que tivera de alcance na operada transformação social, não era invento de alguem que isoladamente pretendesse jactar-se da sua concepção, mas subordinado aos anteriores decretos da dictadura e desde muito tempo definido e amadurecido em todos os espiritos liberaes. Sobrecarregando o ministro com a responsabilidade das imperfeições sem todavia lhe conceder qualquer partilha de gloria na promulgação do famoso diploma, dir-se-hia que o escriptor se deixara momentaneamente vencer por algum sentimento de represalia contra elle; e assim é provavel que fosse, porque o homem público cuja conhecida altivez acaso pretendia abater com as suas palavras, o mesmo que na recomposição ministerial de 1841 assumiu a presidencia do gabinete reconstituido, pelo seu caracter aggressivo menos dignamente o provocara a um jogo de increpacões irritantes na sessão parlamentar do anno anterior.

De nenhum outro assumpto tractava o opusculo e não é difficil presumirmos quaes fossem as causas da sua suppressão. Para esta poderiam ter concorrido algumas discordancias entre as generalidades nelle resumidas e certas doutrinas de historia patria que o Auctor a esse tempo andava apurando e não tardou a trazer á luz pública em cartas que publicou logo em começo de 1842. Mas em relação á materia do opusculo essas discordancias eram apenas como que de linguagem, não affectando as conclusões tiradas e podendo até ser attribuidas á necessidade de evitar explanações. Por isso nos parece que para o facto tambem concorresse o ter pesado na austera consciencia do escriptor a animosidade que revelara na allusão que acabamos de apontar. Sendo A. Herculano como era o mais enthusiasta e o mais sciente defensor dos grandes decretos de D. Pedro, guardava sempre para segundo exame os pontos em que cumpria corrigi-los e desenvolvê-los, seguindo as mesmas normas no julgamento dos ministros que os tinham referendado. Não admiraria, pois, que elle tivesse retirado o opusculo da publicidade principalmente como nota destoante destas normas, quanto ao valor de um desses ministros.

Taes são os esclarecimentos biographicos que nos propusemos expor. De outros necessitamos agora tractar. Havia A. Herculano começado a rever os seus dous estudos sobre instrucção pública, fazendo leves correcções em toda a extensão de ambos e a revisão definitiva de algumas páginas do publicado em artigos. Tal como o apresentamos ficara este último por concluir e fòra destinado a um opusculo, como no-lo indicam antigas provas paginadas que ao auctor serviram para a revisão. Notemos, porém, que o não prejudica em pontos essenciaes a falta de remate, e se acaso elle tivesse vindo completo á lus pública, cousa de que até hoje não tivemos noticia nem esperamos têr, fácil seria de futuro remediar o erro. O que provavelmente succedeu foi ir-se paginando em separado ao passo que a publicação seguia no jornal, suspendendo-se uma e outra cousa por ter cessado a remessa do manuscripto. Quanto ao outro trabalho, já depois de o percorrer e corrigir quasi todo retrocedeu o Auctor com o provavel intuito de o limitar em certas explanações e vehemencias de linguagem onde a materia controvertida não soffresse com isso. Assim o fazem crêr traços em cheio passados sobre logares seguidos que rematam o capitulo I, indicando que esses logares seriam supprimidos ou modificados e o capitulo arredondado por outra fórma. Mas estes novos preparativos não tiveram seguimento, e por isso nos limitámos a introduzir em ambos os estudos as emendas explicitamente marcadas pelo Auctor, apontando em notas paginaes até onde chegou a revisão completa de um delles e do outro os logares marcados para córte ou remodelação. Razões plausiveis nos levaram, porém, a resumir em nota, que opportunamente será indicada, dous documentos—o projecto de restauração do collegio dos nobres e o respectivo parecer da commissão de instrucção pública, que o Auctor ajunctara ao seu opusculo como provas. Por meio della se fará clara idéa do theor e argumentos de taes provas em tudo que possam aproveitar ao assumpto de que tractam, ao passo que evitamos que, num livro destinado como todos os do Auctor, a perduravel existencia, se notem repetições a que a reproducção completa dos dous documentos teria de conduzir. A consciencia nos diz que o Auctor procederia de modo análogo, salva a perfeição com que o fizesse.

Se o desejo de recordar um período menos conhecido da vida de A. Henulano nos levou a alongar esta advertencia, um dever imperioso que não pudémos cumprir no tomo anterior, nos obriga a annexar-lhe mais algumas páginas. Estavam já impressas as primeiras folhas desse tomo quando em 31 de janeiro de 1898, falleceu o illustre academico e antigo official maior do archivo da Torre do Tombo João Pedro da Costa Basto, dirigente desta publicação por morte do Auctor. Interpretando disposições de última vontade de A. Herculano, haviam tractado os seus dous testamenteiros, legatarios de seus manuscriptos e artigos avulsos, de colligir uns e outros destes elementos para serem incorporados em livros, como se advertiu no tomo IV e o testamento auctorisava. Entre ambos se dividiram os diversos trabalhos a emprehender, cabendo ao fallecido, como era proprio das suas luzes, além dos repartidos em commum, os de maior ponderação, incluindo a superintendencia na organisação de novos livros, tomos de opusculos na sua maioria e a revisão de provas. Igualmente tomou elle sobre si rever as reimpressões de todas as demais obras de A. Herculano, reimpressões que de anno para anno foram progressivamente augmentando como até agora tem succedido, e lhe absorviam largas horas de escrupulosa attenção. E tão singular desvelo punha nestes trabalhos que, não raro, folheava importantes obras ou recorria aos pergaminhos para verificar nos livros de historia citações e datas que acaso pudessem ter sido alteradas em anteriores edições. Com grande mágua sua deixou apenas de rever a 5.^a edição, impressa em 1888, do tomo II da Historia de Portugal, cujas provas não lhe foram enviadas e o typo foi alterado, porque o então proprietario da primitiva casa editora, ignorava os compromissos que a tal respeito existiam.

Cumpria-nos, pois, registar nestas páginas a data em que cessaram para a memoria do illustre academico as responsabilidades inherentes a estes encargos, e desde a qual toda a benevolencia pública se tornou imprescindivel em favor de quem, por dever, tem de proseguir nelles como quer que lhe seja possivel. Cumpria-nos tambem dar aqui testemunho como singelamente damos, da devoção, e da competencia até onde por intuição natural pudémos apreciá-la, com que o fallecido zelava as glorias do que fòra seu grande mestre e amigo. E neste ponto ajunctaremos mais um facto que harmonisa com os expostos realçando-lhes o valor.

Por motivos de dignidade pessoal se despedira A. Herculano em 1873 de director da importante publicação academica—Portugaliae Monumenta Historica. Conversando então particularmente ácerca do futuro desta publicação dizia elle que João Pedro da Costa Basto poderia continuá-la ao menos até determinado fascículo. Alguns annos depois da morte de A. Herculano tambem a Academia Real das Sciencias ajuizava do mesmo modo, convidando o illustre discípulo do historiador para aquella espinhosa empresa e não tardando a elevá-lo de socio correspondente que era a socio effectivo. A idade já avançada e sobretudo o melindroso estado de saúde do official-maior da Torre do Tombo, difficultavam-lhe sobraçar encargo de tamanha responsabilidade. Posto não haver que meditar sobre o já definido plano da publicação e em grande parte executado, a escolha, interpretação e cópia dos diplomas que tinham de ser agrupados, exigiam além de consumada competencia na materia, aturado labor pbysico e mental. Mas João Basto não ignorava as expressivas palavras de A. Herculano a seu respeito, bem que as recatasse na consciencia, e fôra uma das testemunhas do entranhado affecto com que elle se entregara durante annos a trabalhosas investigações, para colligir e apurar os preciosos monumentos da historia patria e trazê-los á luz pública. Por ventura aquellas palavras exprimiam um desejo de A. Herculano, uma esperança de que a publicação ainda houvesse de proseguir. Por isso o honroso convite que em melhores dias e em vida do historiador teria declinado sem hesitação, agora lhe parecia moralmente irrecusavel. Acceitou-o, pois, esquecendo-se do seu estado valetudinario; acceitou-o menos para ampliar os seus foros de erudito professor de diplomatica, que para honrar a palavra do mestre e fazer resurgir do estacionamento em que jazia a obra patriotica em que elle tanto se empenhara. Na coordenação de volumosos fasciculos que proficientemente chegou a concluir dessa obra e ajunctou aos anteriormente publicados, e nas outras devoções já descriptas, consumiu, emfim, o fallecido academico os derradeiros dias da sua oppressa existencia, e só abandonou a cella da Torre do Tombo onde esses labores o attrahiam, quando uma completa extincção de forças d'alli o afastou para sempre.

Não caberia neste logar o elogio em que houvessem de ser commemorados todos os relevantes serviços e accentuadas virtudes de João Pedro da Costa Basto, nem sob ponto de vista algum seriamos competentes para o tecer. Por ambas as razões o intuito que nos guiou nas palavras que ficam expostas, foi apenas como que o de lavrar uma inscripção que recordasse a memoria do devotado amigo de A. Herculano, e ainda isto em desempenho de um dever porque de um dever se tractava, embora gratissimo. Todavia, por mais singela que seja esta inscripção, o livro a que vai juncta não a deixará cair no esquecimento.

O segundo legatario.

DA PENA DE MORTE

1838

DA PENA DE MORTE

I

Bastaria attender aos verdadeiros principios em que assenta a ordem social, para conhecer que a pena de morte é um absurdo. Tudo aquillo em que a sociedade limita a nossa liberdade, offende os nossos interesses particulares, nos causa pena ou dôr, são direitos cedidos pelo indivíduo que se resolve a dá-los em troca de outros bens que a sociedade lhe offerece. Nesta cessão nunca poderá entrar o direito sobre a própria vida, porque ninguem o tem para lhe pôr termo; portanto no pacto tácito do indivíduo com a totalidade nunca poderá entrar a transmissão de um direito que não existe. Se quereis legitimar a pena de morte, legitimai primeiro o suicidio.

Supponhamos os crimes mais horrorosos commettidos por qualquer: venha entre nós o parricida, o sacrílego, o assassino culpado de muitas mortes: ponhamos diante delles o cadáver paterno e a historia do cordeiro pisado aos pés, e os infelizes salteados na via pública e cosidos de punhaladas: sentemo-nos como juizes, e interroguemos a voz sincera da nossa consciencia. Alli estão os criminosos maniatados, cubertos das maldições e affrontas das turbas que os rodeiam: alli estão as victimas transmudadas, envoltas em sangue; alli o monumento do insulto commettido contra Deus. O livro da lei está aberto, e nelle a condemnação escripta; ao longe ergue-se o patibulo, e atrás delle se estendem as trévas da eternidade, precedidas pelo espectro da perpétua ignominia. E os remordimentos estampados nas faces dos culpados, e o clamor que se alevanta do sangue ou do fundo do sanctuario, e a letra da lei, os gritos do povo, tudo nos incita a pronunciar o voto fatal; o coração deve estar seguro, a mão firme, os olhos enxutos. Porém não! Embora tudo ao redor de nós vozeie morte! Embora a indignação, a lei, a vingança a aconselhe; a confissão do criminoso a admitta; a alma recua espavorida, e a consciencia nos grita mais alto e nos diz: olha que vais ser um assassino. O juiz, habituado a subjugar a voz da consciencia, a vêr na lei a razão suprema, usado ao tracto e aspecto hediondo da culpa, familiarisado com a imagem do patíbulo escreverá, sem tremer, a sentença da condemnação. Mas, ao dá-la, a penna cairá das mãos daquelle que pela primeira vez se assentar na cadeira do magistrado, para exercer o mais terrivel dos seus deveres, o assignar uma sentença de morte.

No campo de batalha terminam-se muitas vezes mais existencias em um só dia, do que nos cadafalsos em um século. O soldado cuberto de sangue dos inimigos, dorme tranquillo juncto dos seus cadáveres, seja veterano ou bisonho: porque não seriam, pois, tranquillas as nossas noites depois de condemnar um criminoso ao último supplício, embora fosse pela primeira vez da nossa vida, que déssemos trabalho de sangue ás mãos maldictas do algoz?

Aproveitai todas as subtilezas da ideologia para dar a razão destas differenças. Debalde as aproveitareis, se não quiserdes confessar que ao juiz clama a consciencia que o acto por elle praticado foi um absurdo cruel, em quanto diz ao soldado, que, levado ao combate ou pela salvação da patria ou por força irresistivel de tyrannos, a defesa da propria vida lhe deu o direito de pôr termo á do contrário.

Os defensores da pena de morte ainda teem uma última cêrca donde procuram repellir os tiros dos que os accomettem. Lá os iremos buscar. Dizem que a faculdade que tem a sociedade de impor a pena última é o direito da defesa natural transmittida pelo indivíduo á república. Parece-nos isto fugir de um absurdo para outro. Essa transmissão acaba, esse direito cessa, logo que o indivíduo cessa de existir: o morto precisa acaso de defesa natural? Por outra: o indivíduo assassinado, enterrado e talvez já corrupto, quando o seu matador é condemnado, ainda é salvo da morte com a condemnação deste?—Onde está, pois, o direito da propria defesa; onde está a legitimação do supplício?

Se as considerações abstractas estão contra a pena de morte, vejamos se a necessidade, a inexoravel necessidade, que é a suprema lei das nações, bem como dos individuos, nos obriga a conservar nos códigos esta punição atroz. Para outro artigo guardamos a investigação deste ponto importantissimo.

II

Considerámos já em si a pena de morte: vimos que nenhuma sancção tinha nos principios constitutivos da sociedade; antes era, em respeito a elles, um absurdo contradictorio. Falta examinar a questão pelo lado da necessidade: vêr, se como quer De Maistre, todo o poder, grandeza e subordinação repousam no algoz; e se a espada da justiça deve estar sempre desembaínhada para ameaçar e ferir de morte. Tirai, diz aquelle fautor e apologista do despotismo, tirai do mundo o carrasco, esse agente incomprehensivel, e no mesmo instante a ordem se trocará em cháos, os ermos soverter-se-hão, a sociedade desapparecerá.

É esta a linguagem de um dos mais habeis propugnadores do absolutismo na Europa. Foi este o resultado rigorosamente logico que elle deduziu dos seus principios politicos. Qual será a deducção de principios contrarios, de principios liberaes? Parece que a opposta. E com effeito foi a que delles deduzimos no antecedente artigo: vejamos agora qual a necessidade e a utilidade social da pena de morte.

E um facto ahi está—um facto perenne e innegavel—a historia criminal dos povos modernos, comparada com a frequencia dos supplicios. Não falaremos de épochas de convulsões politicas; porque a exaltação das paixões converte então o homem em anjo de heroismo e resignação, ou em demonio de barbaria e vileza: mas consideremos os tempos ordinarios de cada sociedade, seja qual fôr a sua fórma politica de existir; vejamos se o cadafalso serve, em verdade, para reprimir crimes, porque, na falta de outros meios para alcançar aquelle fim, elle seria uma necessidade pública.

Como não é possível chamar a juizo a historia de todas as nações da Europa, até porque escaceiam os apontamentos estatisticos desta especie na maior parte dellas, olhemos só para a França e Inglaterra.

Na França é indubitavel que ha uma repugnancia visivel á comminação da pena de morte: a guilhotina, tão rica de victimas durante a revolução, quasi que se vê hoje abandonada; e se muitas vezes a brandura e a philosophia faltam nas leis, estão no caràcter do povo, e na consciencia dos juizes.

A Inglaterra foi no século XVIII, e ainda nos segundos dez annos do reinado de Jorge III, o país classico da fôrca, e a pena capital, segundo Mr. Phillips, dava a Londres umas parecenças de açougue; hoje a Inglaterra está longe desta crueldade, mas ainda excede muito a França no numero das execuções annuaes.

Em França, segundo um relatorio do ministro da justiça, de 1829, vê-se que num anno, de 4475 criminosos julgados, tinham sido condemnados á morte só 89. No anno de 1833 aquelle país, tendo crescido em população tinha diminuido em criminosos, pois só houve 4418, dos quaes apenas 74 foram condemnados á pena última.

Todos sabem que a população da Inglaterra é bastante inferior á da França. A somma dos criminosos convencidos na Grã-Bretanha era de pouco mais de 10:000 em 1829, sendo destes condemnados á pena última 1:311. Em 1832 houve 14:947 sentenças; não sabemos quantas de morte: mas basta-nos saber que a pena última imposta á nona parte dos criminosos em Inglaterra, em 1829, sendo em França, no mesmo anno, imposta á quinquagesima parte delles, não embaraçou que naquelle país a criminalidade fosse em progresso, emquanto neste foi em diminuição.

Que prova isto? Que o supplício nada influe nas acções dos homens: que se devem buscar as causas que os levam a perpetrar delictos, para as remover, emvez de erguer cadafalsos, que destroem o criminoso, mas não impediram que elle o fosse. Um homem honrado ultrajado, não dista um passo de ser um assassino: não espereis que elle o seja, para depois o enforcardes: dai-lhe leis que tomem a seu cargo desaffrontá-lo. Um desgraçado, rodeado de filhos, sem ter um bocado de pão que lhes dê, vai converter-se num salteador da via pública; não espereis que elle o seja para depois o enforcardes: abri ao povo o caminho de ganhar a vida na lavoura, no commercio ou na industria, e os salteadores desapparecerão. Uma creança de tenra idade mostra índole perversa, annuncia para a idade viril um malvado: moderai-lhe e torcei-lhe essa índole na infancia, creando uma educação pública, que não existe; não espereis que ella seja homem e criminoso, para depois a enforcades: guiai bem a mocidade e os crimes rarearão.

Virá alguem com dizer que no estado actual da sociedade, existindo essas causas de crimes que apontámos, não é possivel apagar dos códigos criminaes as leis escriptas com sangue? Pôr esta objecção será daqui a cincoenta annos uma vergonha: ha tambem cincoenta annos que se julgava impossivel sustentar colonias sem o tráfico dos negros: quem, sem córar, se atreverá a dizê-lo hoje? Ainda ha pouquissimos séculos, os tractos e as fogueiras eram no entender de muitos politicos instrumentos necessarios da existencia social. No tempo dos hebreus era considerado o exterminio de raças inteiras como outro elemento da sociedade. Se conhecessemos a historia primitiva do género-humano, talvez lá achássemos ainda mais horriveis necessidades sociaes.

Felizmente o progresso intellectual e moral não pára: a última preocupação das épochas de barbaridade passará: a palavra algoz chegará a ser um archaismo: e os cadafalsos apodrecidos e roídos dos vermes serão algum dia, um monumento dos delirios e erros do passado.

A IMPRENSA

1838

A IMPRENSA

Se a arte do escrever foi o mais admiravel invento do homem, o mais poderoso e fecundo foi certamente a imprensa. Não é ella mesma uma força, mas uma insensivel mola do mundo moral, inlellectual e physico, cujos registos motores estão em toda a parte e ao alcance de todas as mãos, ainda que mão nenhuma, embora o presuma, baste só por si para a fazer jogar. Imaginavam os antigos uma urna de destinos, a que os tempos e os homens corriam sujeitos: é a imprensa a urna dos destinos trasladada para a terra; potencia maravilhosa, formando as opiniões sem ter uma opinião, creando as vontades sem ter uma vontade, condensando ou dissipando forças sem ter força, arrastando aquelles mesmos que julgam dirigi-la, paralisando e quebrando o braço sacrílego que se lhe atreve, medrando com a prosperidade, medrando ainda mais com a perseguição; sol novo que o homem accendeu e não poderia apagar, sol que alumia ou aquece, deslumbra ou abrasa, desinvolve flores e fructos, venenos e serpentes! É a imprensa o maior facto da sociedade moderna, o que marcou a maior épocha da historia universal, fazendo surgir a revolução mãe, a revolução das revoluções, a revolução por excellencia. Se a civilisação progride com tanta rapidez, a este seu invento o deve, que se tornou o seu carro triumphal, que movido por vapor ou por electricidade, arremette com todos os caminhos ferrados ou pedregosos, devora com igual facilidade os plainos e os alcantis, passa por cima de todos os obstaculos e inimigos, e lá vai para o horizonte incógnito que Deus lhe tem apontado.

Quantos milhares de cabeças na hora em que isto escrevemos se estão em toda a superficie do globo repassando da palavra imprensa! Em quantos infantes ou adolescentes se está formando o homem futuro, e quanta virilidade apparelhando para grandes cousas! Quantos centenares e milhares de pennas estão neste momento lançando para dentro deste vaso, sempre em fervura, os mistos mais estranhos; a verdade, o sophisma, a mentira; a impiedade ou a fé, o fel da calumnia ou o incenso da lisonja, a caridade ou o ódio, a innocencia ou a corrupção, a honra ou o desafôro, a animação ou o desalento, as sementes da paz ou as da guerra! Quando se imagina esta immensa e afogueada lida do incansavel e contradictorio espirito humano, cuida-se estar vendo aquella temerosa magica Medéa, como no-la pinta Ovidio, cozinhando todo o genero de drogas, para apurar o líquido milagroso que havia de restituir a mocidade a um velho decrépito. O pau secco de oliveira com que ella mexia o misto em cachão, reverdeceu, brotou folhas e azeitonas, nos diz o poeta; a terra, embebendo as espumas que do vaso transbordavam, relvou e floriu, e o caduco Eson, injectado que lhe foi o remédio, reappareceu menino, fresco e viçoso. Sim, por arte tal concertou Deus o mundo, que houvessem os bens de nascer da mistura de bens e males, para que nada houvesse que fosse estreme e absoluto mal, e nada tambem que fosse o bem perfeito antes da outra vida.

Ao som de bençãos e maldicções vai portanto a imprensa preparando e operando a metamorphose e renovação do orbe. A bons fins a guie Deus, que só Deus já agora lhe é superior.

A liberdade de imprensa é um dogma, o primeiro da religião politica moderna, e para muitos até um axioma de philosophia: uma potencia essencialmente superior a todas forçosamente é livre. Fique portanto dogma e axioma, porém entenda-se qual é o sentido que neste caso cabe á palavra liberdade. Nisto variam os auctores. Em geral os mais sisudos e moraes circumscrevem-lhe os limites onde a nossa natureza marcou os do justo; outros menos generosos e mais interesseiros, estendem-na até aos confins do util, palavra eternamente vaga pelo perpétuo conflicto das utilidades maiores com as menores, das maiores ou das menores entre si, das da humanidade com as da patria, das da patria com as da cidade, das da cidade com as da familia, das da familia com as do sujeito, das utilidades dos contemporaneos com as dos vindouros, das materiaes com as espirituaes, das politicas com as religiosas: outros em fim não lhe querem raias algumas, e esses são os homens das theorias, que ainda nem sequer sondaram o vestíbulo da eschola do mundo real; são corações magnanimos que vêem o mundo de formosas côres, porque o olham pelo seu prisma interior, ou corações perversos, a quem não importa o sacrificio das famas porque não teem um nome, nem o dos bens porque não teem que perder, nem o da paz porque só após a guerra vem o saque, nem o da verdade porque não a conhecem, nem o da virtude porque nunca lhe saborearam as delícias. A opinião desses é monstruosa porque é extrema e não menos absurda que a da abolição da imprensa, que é o outro extremo opposto. Não imprimir nada ou imprimir tudo, são em muitos sentidos uma só e a mesma cousa: mas não falamos aqui senão em relação á moral e á politica.

A imprensa moderada produz a verdade e a animação para o bem: o silencio da imprensa ou o delirio frenético da imprensa, ennublam a verdade, tiram a energia e o gosto do bem, fazem que a opinião tornada fallivel, nem seja prémio a bons nem castigo a maus, porque maus e bons a desprezam, como ella merece: quando se pode chamar e se chama ladrão a todos, o que o é consola-se com a honrada companhia em que o metteram; o que o não era, talvez, e até por despeito, se decide a aproveitar os prós do officio, de que já lhe fizeram soffrer os precalços. A applicação copiosa e injusta da pena, quebrou-lhe o que ella tinba de doloroso, creou uma especie de impunidade, equivalente a uma mudez profunda da opinião. É uma faculdade natural a palavra, nos dizem: quem o nega? Tambem o usar das mãos e forcas physicas é uma faculdade natural, e comtudo não se segue dahi que o filho possa enforcar o pae, o pae esfolar os filhos, o vizinho apedrejar os vizinhos, nem o passageiro lançar fogo á minha propriedade. Tem a sociedade direito á sua felicidade e bom regimento, e cada um dos membros della a tudo o que não prejudica os outros, a todos os seus commodos possiveis, e principalmente, note-se bem isto, principalmente ao seu crédito, porque o crédito é mais bem e mais nosso, mais digno de se velar com ciumes do que os bens exteriores e passageiros da fortuna. Todo aquelle, portanto, que violar este patrimonio dos individuos ou das sociedades, transgrediu os limites da justa liberdade, e se a sociedade o não punisse, deixaria talvez em boa philosophia, o direito, e em alguns casos ao ofendido a obrigação de o punir.

Outra prova de quanto é verdadeira a theoria dos extremos, é que a liberdade sobeja nos escrevedores se converte numa verdadeira escravidão para os outros. Quando um homem se arvorou a si mesmo em censor público, quando de dia e de noute elle e seus cúmplices andam devassando para pôr ao olho do sol os segredos das familias, as acções irresponsaveis dos particulares, quando condemna e infama por apparencias, quando torce e adultera factos, quando de possibilidades faz probabilidades e das probabilidades certezas, quando lança ao público tudo quanto sonhou depois de farto e embriagado com o preço das lagrymas alheias, ou tudo quanto ouviu da boca de outros calumniadores, que de propósito e para fins particulares, semeiam o escandalo; quando em fim um tal homem mais infame do que o carrasco, porque assassina sem processo, porque assassina culpados e innocentes, porque assassina na alma e não no corpo, porque assassina por dinheiro e sem que ninguem o obrigue a assassinar; quando um tal homem, digo, chama todos os dias o povo a applaudir o espectaculo mais immoral que ao povo se pode apresentar, e para o embrutecer de todo lhe tem perennemente aberto um circo como o dos antigos romanos, em que elle e outras féras devoram os justos, e consumam, entre risos, verdadeiros martyrios, onde está já ahi a liberdade dos cidadãos? As cousas que a lei lhes não prohibe, tambem lh'as não prohibiu mas pune-lh'as este executor da baixa injustiça. Se foi visto conversar com o seu amigo ou com o seu conhecido, são dous conspiradores que tramam uma revolução. A casa que frequenta é por força um club tenebroso. Se escreve o que a sua consciencia lhe dicta, vendeu-se. Se é magistrado e teve a desgraça de condemnar um criminoso compadre desse déspota obscuro, provocam-se contra elle os punhaes. Se pugna pela ordem, é um inimigo do progresso que deve ser exterminado. Se préga o respeito ás leis e á auctoridade, denuncia-se ás virtuosas massas como traidor. Se aspira a um logar onde sirva a sua patria, e donde lucre uma fatia de pão para a sua mulher e filhos, é um ambicioso: se o obteve e o exercita, ainda que sua mulher, seus filhos e elle continuem a morrer á fome, é um devorador da substancia pública. Que digo! Se tivestes a desventura de nascer com uma perna torta, se uma enfermidade vos desfigurou o rosto, se uma bala vos mutilou, se a idade vos despiu a cabeça de cans, tudo isso são crimes que lá virão a terreiro, quando as verdades ou as calumnias não bastarem para encher a folha do dia seguinte, e por já ter soado a meia noute, fôr necessario mandar alguma cousa para a imprensa, para que no outro dia, logo pela manhan, não falte ao povo, ás horas do almoço, o picado de carne humana.

Desta maneira é evidente que a liberdade que sobeja sob a penna desse minotauro, fica faltando em igual proporção no resto do público, que tem nelle um tyranno absoluto; e centenares de pessoas honestas deixarão de fazer o que todas as leis divinas e humanas lhes permitiram, deixarão até de sair de suas casas, só para se não exporem a ser avistadas pelos collaboradores, que por ahi andam derramados à caça de artigos, não só como espiões mas como verdadeiro bando de assassinos.

A liberdade de imprensa, como as demais liberdades, deve, portanto ter sua medida e esta medida não pode ser outra senão a que naturalmente limita todas essas liberdades para que possam coexistir em proveito de todos os cidadãos. E assim, até onde chegar a esphera de acção do corpo social, não se deve por modo algum permittir que aquella liberdade degenere em licença para infamar; aliás um vergonhoso absurdo se apresentaria qual o da penna de um quidam podendo mais que o sceptro e que a vara da justiça, qual o de um particular alevantando-se por cima das leis e da ordem pública. Tal espectaculo é injusto e iniquo, é immoralissimo e summamente perigoso, porque abre porta ás vinganças, que os offendidos tomarão por direito natural quando as leis não os protejam e elles o puderem fazer impunemente; emfim é bárbaro e vergonhoso numa sociedade civilisada. Lemos nós com espanto o que os viajantes nos referem de países de anthropóphagos onde ha açougues de carne humana: não se espantariam esses selvagens, se lhes fossem dizer, que em nossa Europa ha lojas onde se vende todos os dias por preço módico o pudor dos cidadãos pequenos e grandes, reis, ministros, magistrados, plebeus, homens e mulheres, bons e maus, de todos emfim, excepto dos que fazem esse tráfico, pela unica razão de que não teem esses, nem terão nunca vergonha que vender? Contradictorio e incrivel é emfim esse espectaculo nas sociedades onde o que rouba, ainda que seja um lenço, o que fere, ainda que lévemente, o que na rua injuria pela palavra ainda que com razão, são presos e punidos segundo as leis. A liberdade de censurar deve portanto, nós o repetimos, começar onde a liberdade social de intervir tiver parado; e ainda então os que se investirem na terrivel magistratura de censores públicos, devem tremer da immensa responsabilidade que lhes impende. Sabe um desses homens deshumanos todas as consequencias que pode ter a setta envenenada, que do fundo do seu gabinete dispara contra um homem que lá anda pelo meio do povo, que terá filhos a quem legar um nome e subsistencia? Não, elles não o sabem, e nem a maior parte das vezes esses sicarios teem nome, nem filhos, nem futuro. Não são homens porque abjuraram a humanidade; nem cidadãos porque turbam a cidade; nem liberaes porque desacatam as leis e os poderes constituidos; nem virtuosos inexoraveis porque a virtude é benévola: nem do povo, ainda que delle se digam, porque a canalha não é o povo; nem sequer escriptores porque toda a especie de talento e de instrucção lhes falta.

Ha, nem podia deixar de haver em todos os paises livres, uma lei de restricções para a imprensa. Não examinaremos a nossa; o que se escreveu escreveu-se; é lei, respeitemo-la, e como lei desejaremos vê-la rigorosamente observada. Não denunciamos ninguem, mas lembramos ás auctoridades encarregadas dessa parte da ordem pública, magistrados verdadeiramente liberaes e sabios, que sejam neste particular vigilantes, inexoraveis e fortissimos; não deixem correr impunemente archotes nas mãos de furiosos, por cima de uma mina atacada de polvora e fendida por todas as partes.[1]

1 Estas ultimas expressões e algumas outras vehemencias de linguagem do artigo, bem denunciam a guerra aberta do auctor contra os setembristas mais exaltados, que nas suas folhas o atacavam desbragadamente e para os quaes parecia não existir outro ideal que não fosse a revolução chronica das ruas. Quanto á doutrina do artigo é a mesma quo o auctor applicou sempre a todas as liberdades individuaes, convindo, todavia, para sua completa intelligencia, que exponhamos aqui o transumpto de uma breve oração que sobre a materia elle proferiu na sessão de 1840, da camara dos deputados. Estava em discussão uma proposta governamental de lei de imprensa exigindo habilitações dispendiosas para a publicação de jornaes politicos, e A. Herculano impugnou-a.—Classificando os abusos de imprensa em abusos contra a segurança do estado, a religião, a moral pública e a honra dos cidadãos, declarava que nenhuma dúvida teria de aprovar uma lei que definisse com clareza esses delictos e lhes applicasse penas severas, provendo tambem á organisação de tribunaes adequados ao seu julgamento. Porém o governo não vinha regular mas restringir a liberdade de imprensa, querendo que ella fosse privilegio do quem dispusesse de largos recursos pecuniarios para se habilitar, e elle orador votava contra esta e similhantes disposições de caracter preventivo; porquanto, regular um direito de todos, tão importante como o de que se tractava, não era privar delle a maioria dos cidadãos. Reputava, pois, a proposta do governo inconstitucional e contrária aos principios liberaes.

DA ESCHOLA POLYTECHNICA E DO COLLEGIO DOS NOBRES

1841

Em um dos últimos dias que precederam o adiamento da camara dos deputados na presente sessão de 1841, distribuiu-se alli, conjunctamente com o Diario do Governo, um papel impresso, cujo título era: Analyse ao Parecer da Commissão d'Instrucção Publica da Camara dos Senhores Deputados sobre o Projecto de Lei n.^o 58—A.

Tendo pertencido no anno antecedente áquella commissão e havendo sido encarregado por ella de redigir, á vista das opiniões dos seus membros, o parecer analysado, li attentamente o papel que me fôra distribuido. Era materia delle a defensão do projecto de lei do deputado por Lamego, sr. José Manuel Botelho, para a extincção da eschola polytechnica e restabelecimento do collegio dos nobres, e a impugnação do parecer da commissão d'instrucção pública, no qual se propunha á camara a rejeição do referido projecto.

Apesar da nenhuma importancia da anályse, onde nem uma só reflexão de monta, nem um só raciocinio concludente, e porventura nem um só facto, que não fosse ou inexacto ou torcido, se encontrava, todavia persuadi-me de que algum dos membros da actual commissão, os quaes na sua maioria tinham pertencido á anterior, tomaria a seu cargo responder a esse papel, não tanto pela substancia delle, que bem enfezado e desconjunctado veiu o misero á luz deste mundo, mas porque, trazida assim a questão para o campo da imprensa, cumpria que tambem ahi se pleiteasse o negocio, afim de se não perverter a opinião geral ácerca da capacidade da commissão d'instrucção pública, na qual dos seus primitivos membros só faltamos eu e os meus amigos os senhores Ferrer e Nazareth, que a maioria da camara prudentemente alliviou desse encargo como menos aptos para elle.

Não succedeu, porém, o que eu esperava: a commissão deixou sem resposta a anályse, talvez porque attendendo só á valia intrinseca e absoluta della, não ponderou que alguem faria crêr aos incautos e inscientes, que o parecer tinha sido pulverisado, e que a pobre commissão fôra constrangida ao silencio. Com effeito assim se verificou. Afastado dos negocios politicos; longe das ambições mesquinhas e torpes, que não hesitam em sacrificar as conveniencias públicas aos interesses particulares, cá me soou no meu retiro que a boa da anályse andava senhoril e donosa por gabinetes e praças, levada em triumpho tal, que não bastaria a descrevê-lo a penna de Amador Arraes; que por ella se jurava a morte da eschola polytechnica e o exalçamento glorioso do collegio dos nobres, com as opas, sotainas, fitas e medalhas, gregos, latins, rhetoricas, esgrimas, danças e mais petrechos, a que, com muitissima graça, se chama, creio eu, elementos de uma educação liberal; que já as paredes dessa famosa cozinha, perfumada durante mais de meio século pelos vapores suavissimos de saborosos guisados, hoje barbaramente convertida em laboratorio chimico e empestada por moxinifadas que o proprio satanás revelou a Lavoisier para perder o genero humano; que essas paredes, digo, como que já sorriam á esperança de um melhor futuro, e que os echos das abobadas do venerando edificio, obrigados a repetir hoje o latim arrevesado, os grecismos endiabrados dos naturalistas, phýsicos, chimicos e mathematicos, se aprimoravam e puliam para repercutir a melodiosa declinação de hora horae, os sonoros aoristos do verbo tio e os compassados galopes da contradança e da equitação; que, emfim, os nomes dos membros da commissão d'instrucção pública, assignalados com o ferrete da ignorancia, pregados no pelourinho daquella anályse, seriam talvez legados á posteridade, como a estátua de Leclerc, para todos os que passassem lhes cuspirem affrontas, até a consummação dos séculos.

É necessario confessar que este fado fôra atroz! E eu, pobre verme, que passo na terra para morrer e esquecer, affligi-me por mim, com essa sentença que ía ferir nomes illustres e que me pareceu absurda e injusta. Então, na falta de melhor defensor, escrevi tambem um papel, levado não só das considerações de legitimo amor proprio, mas porque é notorio haver uma conspiração de interesses apoucados e nojentos para destruir a eschola polytechnica, o que na minha humilde opinião é uma calamidade para a já tão desprezada, mal organisada e cachetica instrucção pública do nosso país.

I

Em três pontos se divide a questão alevantada pelo projecto de lei do sr. deputado por Lamego, ácerca do restabelecimento do collegio dos nobres e destruição da eschola polytechnica:—questão sobre a origem da dotação em bens da fazenda, que passou daquelle para este instituto;—questão da importancia litteraria relativa entre ambos:—questão d'economia, quanto á despesa que faziam os estabelecimentos supprimidos pela creação da eschola, comparada com a que esta faz actualmente á nação.

Principal e importantissima chama o Auctor da anályse á primeira: aqui descobre elle o seu íntimo pensamento com uma singeleza e verdade evangelicas: nisto se resume, com effeito, toda a grita e matinada erguida contra a eschola poliytechnica. Reconheço que é duro ver resolver em fumo á roda de nós cómmodos, regalos, prós e precalços: dahi nascem em grande parte os pleitos civis. Quem gozava os proventos de propriedade mal possuida, não deixa de lamentar-se, estorcer-se e raivar, quando chega o dia da justiça. Na mesma camara onde appareceu o engraçadissimo projecto de foraes, em que se dizia que a extincção delles era um roubo, devia ser apresentado outro em que se dissesse que a extincção do collegio dos nobres era um sacrilegio. Com o restabelecimento das ordenanças, o cyclo dos poemas heroe-comicos dos donatarios da corôa ficava completo: berço de púrpura e ouro para a infancia; bailes, esgrima e equitação para a juventude; bastão de alcaide ou capitão-mór para a idade grave, eis uma vida de invejar e ao mesmo tempo de honra e gloria para a patria. Como na Tempestade de Shakespeare os espiritos dançando á roda da mesa do banquete dão mutuamente as mãos, assim entre estes projectos ha uma cadeia invisivel, um pensamento único. Receio porém (e receio sinceramente) que tambem, como no velho drama inglês, algum Ariel convertido em harpia venha e arrebate tudo, rasgando até os mantens.

Mas, deixando estas reflexões tristes, que não produzem senão calumnias covardes e insultos insolentes para o triste que ousa fazê-las na sinceridade do seu coração, venhamos ao primeiro ponto da questão, principal e importantissimo segundo o Auctor da anályse.

No projecto de lei do Sr. deputado por Lamego, e no parecer da commissão d'instrucção pública, que no fim se acharão como provas[1], está em resumo a historia da testamentaria do almirante de Castella, que formou parte da dotação do collegio, e da qual suppomos que já não existe o documento original, o testamento, mas apenas uma cópia delle, sem fé pública, lançada em um livro do cartorio do dicto collegio. Quando o parecer da commissão foi exarado, faltavam aos membros desta, occupados com as obrigações de deputados, o tempo e os meios para apurar a historia dessa testamentaria; por isso se contentaram nessa parte com os factos apontados no relatorio do projecto de lei, e foi desses mesmos factos e da letra do testamento, que deduziram os argumentos para provar que o governo estava auctorisado a extinguir o collegio, e dar aos seus bens uma applicação diversa. Cumpre, porém, hoje pôr esta materia á sua verdadeira luz.

Tanto no relatorio que precede o projecto de lei, como na anályse se inculca um facto inteiramente falso, isto é, que os jesuitas, acceitando a testamentaria do almirante, passaram a comprar o terreno em que está construido o edificio da eschola polytechnica: alevantaram este, estabeleceram na igreja delle as capellas instituidas pelo testador, denominaram o novo noviciado—da Senhora da Conceição,—e começaram a educar ahi missionarios para irem prégar o evangelho aos infiéis. Nada disto assim succedeu.

O actual edificio da eschola polytechnica foi fundado em 1603, sendo o terreno delle dado á companhia por Fernão Telles de Menezes, governador da India em tempo de Philippe II; os bens que o fundador doou para este objecto áquella congregação montavam ao valor de vinte mil cruzados, somma avultada ainda naquella épocha. O título da nova casa foi—de Nossa Senhora da Assumpção, e em 1619 estavam acabados os lanços que olham para o poente, nascente e sul e a igreja como actualmente existe, porque um negociante flamengo, que entrou na companhia, applicou a essa obra todos os grossos cabedaes que possuia. Então o noviciado, que até ahi estivera na quinta de Campolide, uma das que deixara Fernão Telles de Menezes, se mudou para a nova residencia, onde subsistiu até a expulsão daquella ordem. O P. Franco na obra intitulada—Imagem da virtude em Lisboa, nos capitulos 2.^o e 3.^o do livro 1.^o, narra miudamente este negócio, e provavelmente elle sabia melhor a historia da sua congregação que o senhor deputado por Lamego, ou o Auctor da anályse, que dizem o contrário disto.

Até a extinção dos jesuitas este noviciado conservou o titulo—da Senhora d'Assumpção. Em 1758 lhe dava essa denominação o P. João Baptista de Castro (Mappa de Port. tomo 5. pag. 483-4.) accrescentando: «experimentou este templo seu destroço (com o terremoto) mas já se acha restabelecido

O citado P. Franco, individuando todos os que contribuiram, ainda com
legados mínimos, para a feitura daquella casa, conta por último o P.
Miguel Dias, que nella vivia em 1717, épocha da impressão da Imagem da
Virtude em Lisboa
, e nem a mais remota allusão faz ao almirante de
Castella, cuja herança tão avultada era.

Donde, pois, nascerá o querer-se inculcar a idéa de que tudo quanto constituia a dotação do collegio provinha da testamentaria de D. João Thomaz Henriques, cujo testamento tem a data de 1705? Será da má fé, ou da ignorancia? Farei o favor de suppôr que os Auctores do projecto e da anályse ignoram que o anno de 1603 passou muito antes do de 1705, e que o de 1717 é posterior a este.

Em seis ou sete logares do testamento do almirante se fala do noviciado que se havia de fundar, como de uma cousa futura; nem de outro modo podia ser, visto que a execução desse testamento dependia do resultado da guerra da successão, facto que foi resolvido em 1713 pelo tractado d'Utrecht. Era então que os jesuitas podiam saber se o logar dessa fundação era Lisboa ou Madrid. Mas aquelles sanctos varões parece que nunca reconheceram Philippe V, e talvez estribados em alguma distincção theologica, foram devorando os rendimentos da testamentaria sem curarem do nuevo noviciado titulo de Nuestra Señora de la Concepcion, que o bom almirante tinha tanto a peito fosse edificado.

De duas cousas uma: ou os jesuitas adjudicaram a testamentaria ao noviciado da Senhora d'Assumpção, ou não o fizeram, e conservaram em seu poder essa herança desde 1713 até a sua expulsão, sem cumprirem a vontade do testador, visto que este ordenava se edificasse o nuevo noviciado em Lisboa, logo que se decidisse contra o archiduque Carlos a questão de Hespanha, completamente perdida para este desde a paz d'Utrecht.

Se o Auctor da anályse acceitar a primeira hypothese, que apesar de falsa lhe é mais favoravel, fica provado que a vontade do testador foi offendida, pois o noviciado nem era nuevo nem de Nuestra Señora de la Concepcíon, caso grave no entender do Auctor da anályse; e se os parentes do almirante não vieram então revindicar essa herança das mãos dos jesuitas, de certo o não farão agora que teem decorrido 130 annos bem medidos por cima dos ossos do honrado castelhano: se preferir a segunda hypothese, que suppomos ser a verdadeira, dobrada razão havia para já ter sido feita ha um século essa revindicação, porque em tal caso mais flagrante fôra o não cumprimento da última vontade do testador.

Se eu me persuadisse de que os jesuitas tinham sabido arranjar o negocio de modo que essa casa da Cotovia ficasse sendo, relativamente aos bens doados por Fernão Telles, o noviciado da Senhora da Assumpção fundado em 1603, e relativamente aos bens legados pelo almirante o noviciado da Senhora da Conceição fundado em (?), não só creria quantas calumnias o marquez de Pombal disse da companhia no livro que pôs ás costas de José de Seabra, chamado Deducção Chronologica, mas até creria qua os jesuitas eram capazes de realisar impossiveis, isto é, fazer que duas cousas diversas fossem uma só, ou que uma só fosse duas.

Desejaria eu que o auctor da anályse me dissesse o mês, o anno e o logar em que se lançou a primeira pedra do novo noviciado da companhia debaixo do título da Senhora da Conceição, em cumprimento da mui explicita e terminante disposição do testamento de D. João Thomaz Henriques. Era este um ponto de archeologia monumental que muito me importava não ignorar.

O que tudo isto vem a ser é uma deploravel miseria.

Tinha a commissão ponderado, e no meu entender com justo fundamento, que se pela falta do título da Senhora da Conceição e das opas, garnachas ou balandraus dos collegiaes, que, no entender do Auctor da anályse, parece que substituiam piamente as sotainas jesuiticas, corria a fazenda pública o risco de uma acção de revindicação, por maioria de razão a devia receiar por legados pios, impostos nos bens dos conventos e mosteiros e não cumpridos pela maior parte, desde a incorporação delles nos proprios da nação.

O Auctor da anályse destroe este raciocinio com duas palavras. Diz que—«os bens dos mosteiros e conventos são absolutamente casos differentes; porque eram doações regias de bens proprios do Estado, para usofructo das ordens, que só eram administradoras, e não podiam alienar, e por consequencia o governo doava do que então era seu e podia doar; e já se vê que, não existindo os usofructuarios, que o mesmo governo tinha o poder e direito d'extinguir, os bens reverteram á sua origem pelos mesmos titulos, e porque não eram proprios, nem podiam ser, e ainda que o fossem havia herdeiros a elles, pois é sabido que os frades não podiam possuir bens alguns, e portanto tambem não podiam, nem tinham que testar

Fiquei extasiado quando li este período! Confesso com a mão na consciencia, que nunca vi algaravia similhante, apesar de ter visto bastante typo e papel estragados. Um fardo apertado em prensa hydraulica difficultosamente será tão macisso, como o feixe de disparates que encerram essas poucas linhas. Pois os bens dos mosteiros, que eram casos e eram doações (faltou chamar-lhes distinções para termos nelles um curso de grammatica, direito e theologia) eram todos originariamente bens da corôa? Que o Auctor da anályse se approxime do primeiro cartorio monastico que lhe ficar a geito, abra o primeiro masso de doações ou cartas de testamento que lhe cair nas mãos, leia, se poder entrar com elle, o primeiro pergaminho que achar, e terá nove probabilidades contra uma de encontrar nelle alguma doação particular. É preciso ter trazido toda a vida, não digo já os olhos e ouvidos cerrados para nunca saber os mais superficiaes rudimentos da historia economica do nosso país, mas até os poros betumados de modo que nem deixem transudar no espirito esses rudimentos, para affirmar similhante despropósito, que em verdade não merece resposta. Agora por outra parte, se o Auctor quere saber se porventura as ordens monasticas podiam alienar seus bens, pergunte a qualquer jurisconsulto o que determinavam as leis d'amortisação, estabelecidas entre nós desde o começo da monarchia, e postas tantas vezes em novo vigor, quantas o abuso as tinha feito esquecer. Mas para que gastar tempo em esmiuçar uma enfiada de cousas, que constituem aquillo que os ingleses chamam um perfeitissimo nonsense?

Diz o Auctor da famosa anályse, que é bem singular a comparação do noviciado dos jesuitas com o collegio dos nobres, feita pela commissão. Pouco importa saber se tal comparação é singular: o que importava era averiguar se ella vinha a ponto, e servia para o intento de provar que era um descommunal destempero pretender que o collegio dos nobres fosse apenas uma leve transformação ou antes continuação do noviciado jesuítico. Para refutar tão ridículo sophisma foi que a triste commissão d'instrucção pública da camara dos deputados, comparou o instituto e fins do noviciado com o instituto e fins do collegio, e dahi concluiu que nenhuma paridade havia entre as duas cousas; e eu torno a repetir que ha tanta analogia entre ellas como entre o preto e o branco, entre o mar e a terra, entre o Auctor da anályse e um homem que saiba grammatica, logica e historia. O que, porém, iguala, senão vence, qualquer das melhores scenas de Molière é vêr, tanto no relatorio do projecto como na anályse, os Auctores destes dous papéis immortaes, cheios de sancto respeito pela memoria do marquez de Pombal, como Cesar perante a imagem da patria na passagem do Rubicon, desbarretarem-se e curvarem-se ante o nome do grande ministro, senão em cada linha, ao menos em cada parágrapho, mas no tocante á natureza, índole, e objecto do collegio dos nobres, dizerem-lhe sem ceremonia: «mentes, oh grande ministro!» Com effeito, o marquez de Pombal assevera no preámbulo do regulamento deste instituto que o seu intuito era fazer resurgir nesta nova creação os antigos collegios de S. Miguel e de Todos os Sanctos, estragados e successivamente aniquilados pelos jesuitas, a quem o marquez attribue a decadencia litteraria de Portugal como lhes costumava attribuir, creio eu, até o demasiado frio, ou o excessivo calor. Já se vê, portanto, que bem longe de instituir no novo collegio uma reminiscencia jesuítica, era o apagá-las todas que elle tinha em mira; e de certo que Sebastião José de Carvalho entendia, como a commissão d'instrucção pública, que o collegio não só nada tinha com um noviciado da companhia, mas até lhe era diametralmente opposto em índole e fins; aliás o largo preámbulo daquelles estatutos seria um absurdo, uma especie de projecto de lei n.^o 58-A, ou uma casta d'anályse como a que serve de contraforte a essa magnifica peça d'architectura legislativa.

Neste ponto me vejo eu constrangido a mudar de tom e a tractar séria e severamente o que na verdade o não merecera, se a dobrez e má fé pudessem jamais ser apenas ridiculas, ainda quando afogadas em um tremedal d'inépcias. Tinha dito o sr. deputado redactor do projecto de lei n.^o 58, no seu relatorio—«Pela extincção dos Jesuitas conhecendo o governo que aquelles bens não eram delles instituiu o denominado Collegio dos Nobres com os mesmos onus etc.»—Diz o Auctor da anályse—«a eschola não se intitula Collegio de N.S. da Conceição, como determina o testamento que posto este objecto seja pela Commissão tractado bem levemente, comtudo é vontade expressa do testador (pobre grammatica!) e tanta consideração mereceu esta circumstancia ao Senhor D. José 1.^o, que não só deu igual denominação ao Collegio Real dos Nobres, porém, etc.»—Deixando de parte a trapaça de confundir noviciado e collegio, com o dizer que o testamenteiro determina, que o novo instituto se intitule collegio de Nossa Senhora da Conceição, quando o que nesse papel se dispõe é a instituição de um noviciado; deixando de parte, digo, esta esperteza aldean, [2] farei só uma observação sobre o que se contém nas duas passagens citadas, e conhecer-se-ha a boa fé dos pios restauradores do collegio dos nobres. Esta observação é simplicissima:—a data da carta de lei da instituição do collegio é de 7 de março de 1761, e a da carta de doação da testamentaria do almirante de Castella e dos bens do noviciado da Cotovia, feita ao mesmo collegio, é de 12 d'outubro de 1765: de modo que veiu a causa quasi cinco annos depois do effeito!—O nome que isto merece não serei eu quem o lance sobre o papel, a consciencia dirá a alguem qual elle seja.

É reprehendida a commissão pelo A. da anályse de ter tractado levemente a questão do título de Nossa Senhora da Conceicão, conservado pelo collegio, e não pela eschola polytechnica, o que constitue, segundo o A. da anályse, um dos ponderosos motivos para a extincção della. A commissão tractou este objecto como todo e qualquer homem sensato o tractaria, e persuadiu-se de que ninguem veria nisso o menoscabo da religião, que de certo modo se lhe pretende attribuir. Membros tinha essa commissão, cujas opiniões em materia de crença são assás conhecidas, para que se não pudesse duvidar um momento do seu respeito á divina philosophia do Calvario. Mas cumpre que eu diga ao A. da anályse, que o christianismo não consiste em apoiar no céu interesses mesquinhos da terra; que sómente aquelles que não teem a seu favor razões ou factos, são os que costumam invocar o nome de Deus ou dos sanctos, para resolverem questões materiaes e positivas; e que Jesu-Christo, o qual, em cousas de religião, sabia ao menos tanto como o mui ascetíco A. da anályse, preferia os publicanos e gentios aos escribas e phariseus, porque para elle, entre todos os vicios e crimes que se aninham no coração humano, o mais atroz e detestavel era a hypocrisia. Com effeito, que significa no século actual occupar uma camara legislativa com questões de beatas? Que tem o sublime evangelho do Crucificado com o denominar-se tal ou tal edificio da Senhora da Conceição, da Assumpção, das Dores, da Piedade ou d'outra qualquer invocação? Que teem com isso a moral pública ou as virtudes privadas? O que é verdade é que se o collegio dos nobres conservou algum vestígio do noviciado da Cotovia, foi a força d'inspirar as artimanhas jesuíticas que fizeram apparecer no anno de 1840 um parágrapho inédito e de materia nova, para addicionar ao capitulo das unhas bentas, que se lê em certo livro attribuido a um dos mais célebres membros da companhia de Jesus.

Se eu quisesse tocar em todos os erros, inexactidões e miserias, que, tanto no relatorio do projecto de lei como na anályse, se encontram ácerca da origem, natureza e circumstancias desses bens que hoje constituem a dotação da escola polytechnica, faria um livro bem extenso e bem impertinente, porque a substancia do commentario havia forçosamente de ser da mesma especie da do texto; mas não posso deixar de notar a insistencia verdadeiramente cómica com que se repete que não foram os jesuitas os herdeiros do almirante, mas sim Nossa Senhora da Conceição. Como o A. da anályse foi membro da junta da fazenda do collegio, desejaria eu que elle publicasse as contas correntes do noviciado da Cotovia, para se ver a importancia das remessas dos rendimentos que os jesuitas mandavam para o céu, e como elles faziam a divisão desses rendimentos,—os da testamentaria do almirante para a Senhora da Conceição e os da herança de Fernão Telles para a Senhora da Assumpção, sua sanctissima irman. Nem seria de menos curiosidade o saber o nome do honrado mercador que lhes dava as letras de cambio sacadas sobre algum dos banqueiros celestiaes, porque era esse um nome digno de preencher a lacuna deixada no catálogo dos sanctos, pela suppressão do de Bento José Labre, que a Rota-Romana pôs fóra do Santoral, por ter sido o que muita gente é neste valle de lagrimas, embusteiro e hypocrita.

Deixemos já esta principal e importantissima questão dos bens do collegio; questão de sandices historicas, jurídicas e canonicas; questão de opas e bentinhos, balandraus e garnachas; questão entre productos chimicos e productos culinarios; questão fétida de cubiça e egoísmo, a qual era na verdade mais digna d'escarneo que de grave discussão; porque ha neste mundo cousas tão ridículas, que tractadas sériamente communicam a quem cai nesse erro uma boa porção da qualidade caracteristica da sua natureza.

II

Quando o genero humano, no seu caminhar contínuo para a perfectibilidade de que ainda está tão remoto, e a que nunca chegará porventura, é agitado por uma idéa profundamente progressiva; quando as nações peregrinas na estrada infinita da civilisação se lançam rapidamente para o futuro, forçoso é que essa idéa se incarne em todos os modos d'existir das sociedades, e que cada um delles sirva para a fazer triumphar: se em uma ou outra das fórmas sociaes da actualidade ha harmonia com a idéa que representa o futuro, esta a pule, melhora e completa: se pelo contrário entre o que existe e o que deve existir ha desharmonia, o pensamento que representa os factos que hão-de ser, ou transforma ou destroe os factos que são, porque o resultado da lucta entre o passado e o porvir nunca é duvidoso, ainda quando a favor daquelle e contra este esteja casualmente a força material e ainda a moral, os interesses, os hábitos e a inércia natural do homem. Clara é a razão disso: os dias das nações são os annos, em quanto os annos para os individuos são a vida: o sepulchro rareia de hora a hora as fileiras dos defensores das instituições decrépitas; de hora a hora engrossa o berço as alas dos que pelejam sob o estandarte da esperança. Assim o progresso social, lento e imperceptivel muitas vezes para os individuos, é rápido para as nações. A todos os momentos, no vasto cemiterio dos séculos chamado historia, se grava sobre as campas das leis e dos factos, dos costumes e das gerações, das opiniões e dos homens um memento para a curiosidade, para a experiencia e muitas vezes para o escarneo. Nisto me parece resumirem-se os annaes de todos os povos: isto é a substancia do que se tem passado entre nós desde o anno de 1833.

Com effeito, quem póde duvidar de que a sociedade portuguesa, revolta sobre os seus antigos fundamentos, transformou a propria existencia? Quem póde duvidar de que a classe média ensaiando as forças adquiridas lentamente, invade todo o genero de dominio, e estendendo uma das mãos para as torres de menagem e a outra para as choupanas colmadas, diz ao nobre que desça e ao humilde que se alevante? Quem lhe disputa hoje a palma da intelligencia, da propriedade e da industria? A idéa de liberdade civil e politica, idéa progressiva e de transformação é representada por essa classe que, por isso, é forte e dominadora e para ella e por ella se traçam e aperfeiçoam instituições e leis. Como, com razão, diziam ha um seculo Luiz XIV e D. João v—l'etat c'est moi—com razão diz hoje o mesmo de si a classe média. Virá um dia em que o predominio desta classe se converta em violencia e oppressão, soando para ella a sua hora de morrer, quando a idéa geradora do progresso presente se corrompa e envelheça nas suas mãos. Que grande pensamento social surgirá então? Não o sei; nem m'importa porque já não estarei neste mundo: mas embora o sangue vertido pelos sectarios da liberdade, quaes martyres do evangelho, não seja infecundo e a liberdade e o christianismo, ora vencidos ora vencedores, venham, emfim, a conquistar para si o imperio do género humano; sei que, bem como houve já tyrannias aristocraticas e tyrannias monarchicas, haverá tyrannias burguesas, tyrannias do balcão, da officina, da granja, da fabrica e até porventura da imprensa, que ora ruge e agita o mundo em nome da igualdade civil dos homens.

Actualmente, porém, ainda a religião da liberdade moderada é bella e pura, ainda impulsiva do progresso, porque está ainda longe das terriveis provas por que terá de passar. Esta crença que similhante a todas as crenças, é uma idéa unica, repetida de muitos modos, trasladada em muitos factos, se reproduz entre nós em diversas ou antes em quasi todas as faces desse grande vulto de um povo chamado estado social. A terra agricultada liberta-se, o privilégio annulla-se, o ócio condemna-se, a economia proclama-se, a indústria nobilita-se, o engenho tem emfim seu preço e valia. Visivelmente a nação faz-se burguesa. Ha todavia ahi uma modalidade, uma face da sociedade importantissima, direi antes capital, que esqueceu nas mãos do tempo que passou, e que este guarda como um thesouro que não abandonará ao futuro sem combate, porque é a sua última, mas bem fundada esperança. Esta modalidade, esta formula é a instrucção pública. A instrucção pública em Portugal, tomada na sua generalidade, nas suas feições caracteristicas e desprezadas as excepções, nem pertence a este século, nem é progressiva, e por consequencia nem realmente útil.

Quando a aristocracia resumia a sociedade, nos séculos médios, os nobres edificavam castellos roqueiros, agglomeravam as multidões servas à roda delles, e fechados no seu alcácer não conheciam outra occupação que não fosse a caça ou a guerra; outro passatempo que não fosse, para os melhores os jogos guerreiros e os deleites da mesa; para os peiores o roubo, as violencias e as tyrannias. Para taes homens a cultura do ânimo, as letras e a sciencia soavam como palavras sem significado: a força physica ajudada da destreza era quem por assim dizer graduava as hierarchias: os dotes do entendimento eram como officios fabris; e ainda o alfageme que temperava uma boa espada se tinha por homem de maior conta que o clérigo a cujo cargo estava o notar ou escrever os contractos, as missivas ou as memorias dos reis ou das familias. Quem vê um velho códice do século XIII ou XIV até nelle acha um emblema daquellas épochas: as bíblias, as decretaes ou as obras dos sanctos padres, que quasi exclusivamente constituíam a sciencia d'então, tinham certo aspecto guerreiro e de força physica: as pranchas de carvalho ou castanho que lhes serviam de guardas; os bronzes ou ferragens que os adornavam, e o seu volume e peso enorme os tornavam, em caso de apertado cêrco, bons tiros para trons ou engenhos. A guerra era a idéa que representava a meia idade: ella gerou as cruzadas; as cruzadas geraram a navegação, e a navegação produziu os descobrimentos e conquistas, donde nasceram o commercio e a industria da moderna Europa. Idéa progressiva era pois essa; e o nobre que se envergonhava de saber ler e escrever tinha nisso tanta razão relativamente á sua épocha, quanta hoje tem o mais obscuro cidadão em exigir da sociedade que dê gratuitamente a seus filhos a instrucção primaria, chave com que elles poderão abrir o vasto repositorio do sustento do espirito.

No princípio do século xv a monarchia que crescera à sombra da fidalguia, herdeira das forças que diariamente lhe roubava, veiu emfim pôr-lhe um pé de ferro sobre o gorjal estalado: debalde ella se revolveu e escumou trabalhando por erguer-se para combater: no fim desse mesmo século já a lucta era impossivel: D. João II provou-o irrecusavelmente a D. Fernando de Bragança e ao duque de Viseu, nas theses d'Evora e Setubal, theses de cutello e punhal.

Em quanto, similhantes a duas rodas movidas em direcção contrária por um plano inclinado, a monarchia subia e a aristocracia descia, subia e descia com ellas a litteratura daquella e a ignorancia desta. D. João I, que assentara verdadeiramente a pedra angular do absolutismo na lei mental, foi tambem quem começou a dar ao seu país um impulso litterario, e D. João II que em politica pôs o remate ao edificio começado por seu bisavô, e levou igualmente as letras ao grau de esplendor a que as vemos chegadas nos começos do reinado de D. Manuel, grau d'esplendor concentrado como era um foco no célebre livro publicado por Garcia de Resende, intitulado o Cancioneiro, o qual resume e representa a litteratura do século decimo quinto.

Mas o que foi a litteratura portuguesa da época Joanina e da Manuelina que veiu após ella? Qual era o carácter predominante da instrucção nacional nessa épocha? Era o especulativo puro, o metaphysico, no rigor da significação grega desta palavra. Os reinados de D. Duarte, D. Affonso V e D. João II resplandeceram de moralistas, de historiadores, de poetas, de mysticos e ainda de oradores; tudo quanto representa o mundo das idéas. Porém a sciencia do mundo material, onde apparece ella durante esse largo período? Apenas na eschola de Sagres. Todavia que livro ou que homem produziu essa eschola? Nenhum. Os nomes que figuram por aquelles tempos pertencem unicamente á mathematica, e na mathematica especialmente á astronomia. Ainda assim os sabedores conspícuos neste ramo de uma vasta sciencia eram quasi todos judeus e raros estrangeiros, devendo-se o incremento que ella teve, por um lado á superstição, porque se cria na astrologia; por outro lado á ambição porque, já muito havia, as mentes dos principes volviam idéas de descobrimento e conquista. Não era, pois, entre nós a mathematica mais que uma enxertia, uma excepção ou antes uma aberração das tendencias litterarias do país, devida a causas estranhas ao carácter da organisação social deste, e por isso de modo nenhum contrária á verdade do princípio estabelecido.

Esta verdade demonstra-se á priori e á posteriori; pelos raciocínios e pelos factos. Com effeito, a monarchia absoluta nascera da especulação; era filha da jurisprudencia romana e do direito canónico; além disso os principes, substituindo successivamente o temor ao amor, precisavam de rodear o throno das pompas religiosas e civis: cumpria que a côrte por piedade e devoção fosse mais vizinha de Deus que dos homens, que nella o altar fosse cosido em ouro, o fumo do incenso suavissimo e denso, a oração fervente e nobre; que os affectos nas canções dos poetas cortesãos fossem incomparavelmente mais ideaes que nas rudes trovas do romeiro ou do jogral popular; que a prégação do orador sagrado fosse mais eloquente e polida que a do missionario rude; que os paços dos reis fizessem, em fim, um contraste espantoso com as estúpidas alcáçovas dos grandes, para que estes acceitassem a servidão dourada que elles lhes offereciam, e que ao mesmo tempo o vulgo sentisse pesar sobre si, ignorante e grosseiro, intelligencias puras e formosas de quanta formosura ha no mundo moral; e bemdissesse o predominio dellas, porque a grande logica popular lhe dizia que effectivamente ellas deviam predominar. É por isso que a monarchia absoluta em toda a parte e em todo o tempo, em que se não converteu em tyrannia bruta e feroz, foi sempre intellectual, mas de uma intellectualidade perfumada, macia e brilhante, de uma intellectualidade estéril, porque applicada exclusivamente ao especulativo; intellectualidade de sala, de theatro, de galeria, de púlpito, de foro; intellectualidade boa e moral, que derrama lagrymas e esmolas sobre os miseráveis, mas que lhes recusa o baptismo da instrucção material, que não os obriga a trabalhar, nem os pune quando elles o recusam, nem promove o aperfeiçoamento industrial do país, contentando-se de uma caridade impotente, porque em vez de tomar o povo por alvo, toma o indivíduo, similhante áquelle que em cidade devorada de sêde, em vez de conduzir para lá por aqueducto perenne as águas caudaes de fonte vizinha, andasse offerecendo de porta em porta sorvetes e limonadas de cheiro e sabor delicados; intellectualidade, emfim, de privilégio, que põe no logar da instrucção necessaria ao commum dos homens, a que serve só aos homens excepcionaes, e chama-lhe com simpleza comicamente infantil, instrucção pública, sem que ella sirva de nada ao público, que se compõe do grande número das massas populares, dos homens activos; dos agricultores e dos industriaes, dos fabricantes e dos mercadores, e não dessas classes diminutas em número, a que os economistas não consentem que eu chame improductivas, mas que pelo menos chamarei semi-productivas.

Devia ser, portanto, o carácter da instrucção pública em Portugal até os nossos dias, o que fora desde o reinado de D. Duarte, porque até os nossos dias durou a monarchia absoluta, mansa e bondosa quasi sempre, posto que quasi sempre desalinhada, gastadora e descuidada. É por isso que, considerando attentamente a historia da instrucção pública entre nós, vemos nella as tendencias exclusivamente litterarias, no sentido restricto desta palavra. Na reforma dos estudos de D. João III, de D. João IV, do marquez de Pombal sempre a mesma côr, o mesmo espirito, a mesma expressão. Era que a monarchia absoluta creava e reformava para si; para o seu tempo, para a sua índole. A monarchia absoluta tinha o instincto da vida e em segui-lo tambem tinha evidentemente razão.

Mas hoje que a sociedade foi revolvida e se assentou sobre bases todas inteiramente diversas das antigas, e muitas vezes oppostas a ellas, poderá esta fórmula social, este baptismo da civilisação, chamado instrucção pública, seguir um rito condemnado e por isso herético, expressão e parte de instituições cadavéricas, e por isso como ellas cadáver? Absurdo.

O pensamento da reforma já penetrou em muitos espiritos: o Instituto creado em 1835 pelo Sr. R. da Fonseca Magalhães foi a primeira expressão delle, e ninguem pode roubar a este ministro a honra que disso lhe ha-de resultar na posteridade, porque elle foi então martyr desse pensamento. Quanta ignorancia, quanto pedantismo, quanto medo da civilisação havia por almas curtas e rasteiras; quanta preguiça, quanta incapacidade havia por nossa terra, tudo gemeu, gritou e grasnou insultos, ponderações, reflexões eruditas, argumentadas, soporíferas. Foi um rebate geral em nome do digesto e dos supinos, dos canones e da syntaxe figurada, da exegese e dos affectos oratorios, da graça efficaz e do Humano capiti cervicem pictor equinam, do código theodosiano e das sorites de Genovesi. Não houve remédio; a campa caíu sobre a physica, a chimica, a botanica, a mathematica, a astronomia, e em cima della assentaram-se remoçados, alindados, triumphantes, o digesto, os supinos, os canones, a syntaxe, a exegese, os affectos, a graça, o humano capiti, o código, e as sorites. Então as cinzas de João Pastrana, do padre Alvares, do licenceado Martim Alho, do doutor João Façanha, de Cataldo Siculo, de Jeronimo Caiado agitaram-se como querendo renascer á vida, e do fundo de seus sepulchros soou uma voz sumida que dizia—Io triumphe!io triumphe![3]

Era um ridiculo espectáculo! Mágua foi que ura homem de sciencia renegasse della, para servir miras apoucadas ou torpes!

Depois veiu a revolução de setembro! eu inimigo della, que condemnei essa loucura, que ainda a condemno, não serei tão cobardemente parcial que negue ter-se entendido melhor então, no meio das exaggerações liberaes dessa épocha, a questão nacional da instrucção pública. No instituto houvera um defeito: aquella fonte de sciencia verdadeira, que se abria caudal e perenne, caía de mui alto, e a custo podia satisfazer as necessidades da instrucção popular: e a organisação da escola polytechnica com os cursos theoricos e applicados satisfaz melhor os fins d'utilidade geral, que deve ter toda e qualquer instituição scientifica sustentada a expensas da nação. Por outra parte na lei de 17 de novembro evidentemente se dá o primeiro golpe no velho systema da instrucção secundaria, e se nesta lei não se revela todo o esforço necessario para derrubar um collosso que se apoia em preocupações insensatas, a circumstancia de ser primeira tentativa absolve completamente seu auctor. Assim mesmo ella foi sophismada e inutilisada: os lyceus nunca se organisaram, e o latim e a rhetorica encantoados por toda a parte como dantes, riem-se da lei que os aposentava nas capitaes dos districtos: diariamente se pedem á camara dos deputados cadeiras de latim: parece que os agricultores de Portugal, como o Triptolemo d'Walter Scott, pretendem arar e cavar pelo systema de Virgilio, Columella e Varrão; que as tigna bina sesquiquipedalia de Cesar são os modêlos das nossas construcções; que nas tusculanas de Cicero se acham as receitas necessarias para estampar chitas ou tecer burel e saragoça; que na historia natural de Plinio se encontram todos os apontamentos precisos para conhecer os usos domesticos e as virtudes medicinaes das plantas do nosso país; e que, emfim, na Ars amandi d'Ovidio, nas poesias de Catullo ou no Satyricon de Petronio Arbitro está a flôr e nata da crença no nosso Deus, dos principios da nossa moral, dos incentivos do nosso amor da liberdade e da patria!

Não passarei avante sem fazer menção de mais um passo, de mais uma expressão do verdadeiro pensamento progressivo em instrucção pública, expressão positiva que soou na camara dos deputados em 1839. Falo do projecto de reforma do ensino primario pelo Sr. Tavares de Macedo. Comquanto as minhas idéas no desinvolvimento de um systema legal sobre este importante ou antes principal ramo d'administração, diversifiquem das do illustre Auctor daquelle projecto, todavia não posso deixar de considerar esse trabalho, nas suas disposições fundamentaes, como a cousa incomparavelmente melhor que ácerca de tal objecto appareceu entre nós. Se não se attender senão á generalidade delle, pode-se dizer que é o complemento da lei de 15 de novembro; o meio de reforma directo após o indirecto. Mas este papel, nem avaliado nem comprehendido, lá jaz sepultado na commissão d'instrucção pública donde tem resurgido muito latim e rhetorica, mas donde talvez só bem tarde surja uma lei que represente o verdadeiro progresso do ensino público.

No anno de 1840, eu e o meu amigo o sr. Ferrer, cujas opiniões em similhante materia concordam na maior parte com as minhas, tinhamos resolvido apresentar á commissão um projecto de lei sobre a instrucção primaria ou antes geral, que devia abranger as escholas elementares e as primarias superiores, deixando para depois, ou para entendimentos mais robustos, o trabalhar na lei ou leis das escholas especiaes. Tinhamos nós entendido que a actual divisão d'ensino primario, secundario e superior, é arbitrária, e não tem fundamento nem na organisação presente da sociedade, nem na natureza do que se chama saber humano. A hierarchia na instrucção pública é um anachronismo absurdo. Ha instrucção que todos ou pelo menos o maximo número de cidadãos deve possuir: ha outra que só pertence a classes e a individuos. Esta é a única divisão legítima, real e logica do ensino público: com este intuito deviam ser redigidas as leis sobre estudos cujo corpo havia de constituir o código d'instrucção pública.

No presente anno, expulsos ambos da commissão a que pertenciamos, fomos dispensados de cogitar mais em tal materia: guardámos por isso os nossos trabalhos, que relativamente ao ensino geral se achavam quasi promptos, esperando tempo mais favoravel a pensamentos de verdadeiro e judicioso progresso. Quando os mares cruzados e os ventos ponteiros desalentam a companha, o capitão prudente colhe as velas, e espera que o oceano se aquiete para proseguir a viagem.

De tudo quanto se tem, pois, tentado a favor de uma reforma radical e completa no desgraçado ramo da instrucção pública, sobrenada apenas a escola polytechnica, contra a qual apparece um projecto, que noutras circumstancias fôra apenas louco e ridiculo, mas que apresentado na occasião em que os foraes ousam vir perante uma camara legislativa, (como o jumento trajando a pelle do leão, cubertos com o manto da justiça,) tem um caracter sinistro e significativo, porque é irmão gémeo dos foraes, a que se prende e enlaça, senão pela importancia das consequencias immediatas, ao menos pela unidade de espirito e pelas consequencias remotas.

A questão da eschola polytechnica e do collegio dos nobres resume e representa a questão immensa do systema d'instrucção nacional que hade ser e da instrucção excepcional que foi e é; questão entre a educação e melhoramento dos agricultores, dos artifices, dos fabricantes e a propagação dos causídicos, dos casuistas, dos pedantes; questão entre o trabalho e o ócio; questão entre a granja e o côro da sé; entre a palheta do estampador e a metáphora do sermão; entre a machina de vapor e o provará do rábula. Por isso ella é uma grave e importante questão.

Para ter ácerca deste negócio uma opinião segura cumpre ter bem presentes os caracteres da intellectualidade nacional nos differentes períodos da nossa civilisação; importa não esquecer que cada principio politico que domina em um país requer um systema particular d'ensino público; que uma monarchia absoluta (como por exemplo a Prussia) cujas leis sobre instrucção nacional são admiravelmente adaptadas ao governo representativo, tê-lo-ha forçosamente para as gerações futuras, mas sem convulsões nem ruido, e que uma monarchia mista como a nossa, que conservar o systema de ensino público creado pelo absolutismo, e só para o absolutismo conveniente, terá necessariamente este, ou uma democracia insensata e feroz, precursora da tyrannia. Similhante objecto, portanto, para o qual governantes e governados olham com vergonhoso desprezo, involve nada menos que os destinos sociaes da geração que virá após nós; encerra nada menos que as causas da futura servidão ou da futura liberdade.

Depois, que significa num país constitucional a desigualdade completa das classes, relativamente ao ensino público? Com que razão ou justiça haverá a cargo do thesouro estudos custosos para os legistas, para os theólogos, para os militares, para os médicos, para os cirurgiões, e não ha-de haver uma granja-modêlo para se tornarem consumados na sciencia de agricultar os possuidores de grandes propriedades ruraes; escholas industriaes para se fazerem insignes em suas profissões os donos ou directores dos grandes estabelecimentos d'indústria; conservatorios d'artes e officios para o aperfeiçoamento dos individuos que se dão ás artes fabris? São porventura ilotas os homens d'acção e espartanos só os homens d'especulação? São porventura aquelles membros inúteis do corpo social, e estes os que os sustentam? Sobre cujos hombros pesa o maior vulto dos impostos d'ouro, de trabalho e de sangue? E que obrigação tem a grande maioria dos contribuintes de suarem e tressuarem para que se hajam de conservar os grandes estabelecimentos da chamada instrucção superior, e no fim terem um juiz a quem pagam pelas contribuições geraes do estado, um advogado a quem remuneram da sua algibeira quando delle precisam, um médico que os sára ou mata quando lhe dão dinheiro? É, responder-se-ha, porque a sociedade carece da existencia destas classes. Convenho: mas não carecerá a sociedade de lavradores, de fabricantes, d'artifices? Eis o verdadeiro ponto da questão, que é representada, de um lado pelo systema antigo, de outro pelo moderno: de um lado pelo collegio dos nobres, do outro pela eschola polytechnica.

Livre seja para os individuos o cultivarem as letras; nobre e honroso é tudo quanto nos alevanta da terra: mas o governo de um país não é uma academia de poetas e d'eruditos: o governar um país é o feitorisar uma grande casa: deve por isso o feitor ser positivo, economico e severo calculador. A instrucção pública é um arroteamento, e embora na terra cultivada de novo haja um cantinho para flores, é certo que as searas, as pastagens, as mattas e os pomares são o principal objecto dos cuidados de um bom administrador: de tudo o que nas sciencias e nas letras é puramente intellectual se compõe o jardim da república; mas a renda della, os fructos de que se sustenta, só os produzem as sciencias applicáveis e applicadas. Tudo o que não fôr organisar o ensino nacional sob a influencia deslo pensamento, é não entender nem a sociedade, nem a nossa épocha, nem as circumstancias peculiares de Portugal.

Digo circumstancias peculiares de Portugal, porque além das considerações geraes já tocadas, ha uma especialissima e de grande monta que nos diz particularmente respeito. Vem esta a ser a de que estamos excessivamente pobres; triste verdade, da qual abraçados com a sombra van do que fomos, não ha ahi voz que valha a persuadir-nos. Necessario é ao pobre o ser activo e industrioso, e não será de certo com o antigo systema d'instrucção que o povo português progredirá na indústria. Quando os diamantes e o ouro do Brasil vinha inundar Portugal de riquezas; quando D. João V comprava a Roma, a venal, as pompas pontificaes para alegrar seus ócios; quando este principe, émulo de Luiz XIV, incumbia ás artes bastardas e corruptas do seu tempo que lhe erguessem a magnífica ninharia de Mafra, então era preciso entulhar de frades, de capellães, de cónegos, de monsenhores, de principaes, d'escribas, de desembargadores, de caturras, de rimadores d'epithalamios e de elegias, d'oradores academicamente impertinentes, o insondavel sorvedouro das inutilidades públicas. Como doutro modo devorar as entranhas da America? Esta era a grande indústria portuguesa d'então; para ella se deviam affeiçoar os estudos. O thesouro do estado substituia a acção dos homens. Com agentes espertos para vender diamantes na Hollanda e obreiros habeis para cunhar ouro nos paços da moeda, estavam suppridos trabalhos, instrucção popular, actividade, tudo. Era aquella uma épocha brilhante; mas passou. De quanto possuiam nossos avós só nos resta uma tradição saudosa, o arrasamento industrial, e a triste realidade da miseria pública.

Cumpre-nos acceitar esta com hombridade, isto é, resignados e resolvidos a recuperar com o trabalho o que perdemos com o ócio. As conquistas não voltarão mais, porque já não ha novos mundos para devastar, e as nossas esperanças devem dirigir-se para um solo fértil, visitado pela benção de Deus; para a intelligencia nacional, de que a providencia não foi escaça comnosco. Para converter aquella em manancial de riqueza, e esta em instrumento de prosperidade é mister accommodar ás necessidades presentes o systema d'instrucção pública; e do que fica dicto me parece deduzir-se com evidencia que o actual, nos seus caracteres essenciaes, é inteiramente contrário a essas necessidades.

Além disso, quão cruel decepção é o facilitar desordenadamente a chamada instrucção secundária, quando apenas ella se pode considerar como o primeiro passo na carreira universitaria, e quando em um país pequeno como o nosso, o número dos que seguem essa carreira deve ser tão limitado? Vemo-nos afogados em um mar de doutores, e não temos talvez dez individuos capazes de construir as mais simplices máchinas modernas d'agricultura ou d'indústria: direi mais, não temos talvez cinco que saibam da existencia dellas. A consequencia deste estado de cultura intellectual, falsa, inapplicavel e violenta, é que as muitas esperanças mentidas, as muitas ambições recalcadas, todos os annos arremessam para a arena dos bandos civis centenares de corações generosos, que insoffridos ante um prospecto de miseria, se arrojam ás lides politicas, para perecerem ou prearem no cadaver defecado do património da república. E ainda o mal seria menor se ao lado desta decepção houvesse alguma grande verdade: se uma eschola d'applicação material estivesse patente á juventude entre cada dez daquellas em que se ensinam disciplinas puramente litterarias. Ao menos havia para ella a escolha! Mas não acontece assim. Para os mancebos de medíocre engenho, desprovidos de protecção e inhábeis em enredos politicos, sobre o ádito da instrucção pública em Portugal está escripto um dístico, invisivel aos olhos dos desgraçados, mas fatal, immutavel e terrivel, o dístico que o cantor ghibelino de Florença escreveu com a sua penna de bronze sobre a porta do inferno:

Per me si va tra la perduta gente: Lasciate ogni speranza voi ch'intrate!

A nossa legislação sobre ensino público é pela maior parte moralmente assassina, e os seus assassinios vão medidos pelos sonhos de Nero e revestidos do carácter de Judas; porque tomando a mocidade inteira como um individuo, ella saúda e beija as víctimas, para as apunhalar em massa nos seus futuros destinos.

Era, pois, preciso quanto á instrucção especial restringir o número das escholas puramente litterarias; crear e generalisar os instituitos destinados ao aperfeiçoamento particular das classes verdadeiramente productivas e industriaes. O que se chama instrucção secundária não é nem pode ser senão uma dependencia universitaria, e posto que espalhada pelo país, devia reduzir-se e conter-se de certo modo no gremio da universidade, moldar-se pelo espirito della, e suppri-la unicamente dos alumnos de que ella, ou, para melhor dizer, a nação carecesse. Nisto consistiria uma parte essencial da verdadeira reforma.

Mas ha ahi uma classe mista e numerosa, classe condemnada a viver do trabalho diario, e sem a qual de nada serviria a cultura industrial dos fabricantes, dos mestres d'officinas, dos proprietarios ou rendeiros ruraes. E esta a dos operarios, no sentido mais vasto e completo da palavra. Para a instrucção de similhante classe é que não existe o menor vestigio d'ensino público, e todavia a ella pertence o maior número de cidadãos revestidos de direitos politicos e sujeitos aos encargos sociaes.

Dir-se-ha que principalmente para estes estão espalhadas pelo reino mais de mil escholas primarias, onde podem receber uma instrucção limitada e humilde como os seus destinos. Erro lamentavel! Ainda suppondo que em escholas elementares, sem methodo, sem superintendencia, sem regularidade, sem mestres, não digo habeis mas soffriveis, se possa ensinar alguma cousa, que são as vossas escholas primarias? Apenas um repositorio d'instrumentos para aprender, depois de os saber menear. Ler ou escrever não é instrucção definitiva, é meio de a alcançar: ella começa além destes rudimentos, e além destes rudimentos qual é o ensino que vós offereceis ao homem do povo? Que fonte de vida intellectual e moral pusestes vós na estrada da sua laboriosa peregrinação na terra? Um Eutropio e um Quintiliano. E que lhe importa a elle o vosso Eutropio e o vosso Quintiliano? O que elle vos agradecera fôra que o habilitasseis com os elementos das sciencias naturaes, accommodados tanto á sua capacidade como aos seus destinos: que lhe revelasseis os conhecimentos applicaveis á vida material: que lhe ensinasseis o desenho linear, a geometria práctica, os rudimentos e factos importantes da physica, da chimica, da botanica, e as regras geraes d'hygiene popular; que o instruisseis na doutrina clara e simples do evangelho, para não ser um idólatra ou um malvado. Eis o que elle vos tivera em mercê, depois de lhe haver sentido a utilidade, e não os latins, os gregos, as rhetoricas e as ontologias, que nenhuma applicação teem ao melhoramento da sua existencia de trabalho e de privações, para a qual não ha outra consolação, outro refúgio, outra esperança, senão ou a bruteza da taberna, ou o prospecto do repousar na valla plebea e sem nome de um cemiterio, e depois della as promessas de Deus ao que chora e será consolado.

A creação das escholas primarias superiores é uma necessidade do século, do país em que vivemos, da missão civilisadora do governo representativo, da caridade religiosa e até resultado de um direito dos cidadãos. Ellas constituem a educação do povo, porque o ensino primario elementar é um dever e ao mesmo tempo uma propriedade de todos; do nobre e do humilde; do abastado e do pobre; e o ensino especial é a educação de classes excepcionaes, limitadas, diminutas. Urge que essas escholas se instituam, e se não temos meios para as accumular ás escholas preparatorias de duas ou três especialidades, cerceem-se estas, e dê-se ás multidões a instrucção que ellas exigiriam talvez á força, se não ignorassem a importancia della para a futura felicidade de seus filhos.

A eschola polytecnica é essencialmente a eschola normal, ou, para melhor dizer, profissional, donde podem sair homens habeis para mestres d'escholas primarias superiores, verdadeiramente populares e úteis. Tudo o que estes devem ser obrigados a ensinar, e que se não inclue nas disciplinas professadas na eschola polytechnica, facil lhes é de adquirir sem mestres, ou noutra parte. É por isso; é porque creio e espero na regeneração intellectual e moral do povo português, por meio dum novo systema d'instrucção pública, ao qual pertence e de que hoje é única representante a eschola polytechnica, que eu respeito esta, e a defendi e defendo quanto me permitte a pobreza do meu cabedal d'engenho. Sem outros motivos de ódio ou affeição por ella, sem damno ou proveito pessoal na sua existencia, posso dizer desse instituto e dos seus adversarios o que Tacito dizia dos imperadores romanos: Mihi Galba, Otho, Vitellius nec injuria nec beneficio cogniti.

Mas alguem notará que eu tenha a eschola polytechnica na conta de eschola normal d'ensino primario superior, quando o seu nome e os seus fins apparentes suscitam a idéa duma eschola exclusiva de preparatorios para estudos militares. A verdade é que a sua organisação e a natureza das materias nella ensinadas a constituem principalmente uma eschola central. Que importa a denominação das cousas quando se tracta da substancia dellas? Chamem-lhe noviciado da Cotovia para satisfazer os pseudo-devotos, que eu contento-me com isso e continuarei a considerá-la como o que realmente é.

Agora por esta derradeira idéa me recordo de que fazia um papel em resposta ao A. da Analyse do Parecer da Commissão d'Instrucção Publica. Tinha-me completamente esquecido disso, aliás não escrevera o que fica escripto. Fôra contradicção flagrante com minhas opiniões falar grego a quem não o entende, nem pode enlendê-lo. Voltemos ao bom do Analysta, que o até aqui ponderado de certo não é para elle.

Este homem, se foi delicioso em direito, em historia e em theologia mystica, é sublime em questões d'instrucção. Quanto a elle a eschola polytechnica é um objecto de luxo e o extincto collegio uma necessidade. Para ventres insaciaveis, para gastrónomos, sem dúvida: para a verdadeira instrucção, para a instrucção de que o povo português carece, é tal proposição um desmarcado absurdo. O porque, escuso dizê-lo de novo: o leitor o terá percebido já pelas ponderações que fiz.

Torceu o Auctor da anályse as palavras do parecer para pôr a commissão em contradicção comsigo mesma. Recurso de quem não tem outro! Tinha ella dicto que a applicação dos bens do noviciado da Cotovia á dotação do collegio fôra um bom e judicioso pensamento, e deu a razão: porque assim ao menos não se estragaram e perderam esses bens. Daqui se vê que a mente da commissão não era nem louvar nem deprimir a parte litteraria do collegio; mas nestas palavras e no approvar a extincção delle é que o bom do analysador acha a contradicção.

É das que não teem resposta.

Poderiamos ter accrescentado que ainda por outra razão era bem instituido o collegio: porque os fins da sua creação se adaptavam á monarchia absoluta: mas este argumento seria mais um motivo para revalidarmos a sua extincção.

Todavia não se creia que ao menos elle satisfez as miras do grande homem e grande déspota que o instituira. Existem provas irrefragaveis de que esse instituto, cujo cadaver se quere revestir de um sudario de matizes e ouropel, foi desde o seu princípio o que lhe chamou a commissão, uma excrescencia litteraria, uma enxertia aleijada, um membro monstruoso no corpo da instrucção secundária, da propria instrucção secundária dos tempos que já lá vão; que foi, além disso, o que lhe não chamou a commissão e eu lhe chamo aqui, uma sentina de corrupção, d'ócio e de luxo, uma sanguesuga inútil da substancia que devia ser applicada ao ensino público geral.

Costume é meu provar o que digo; por isso chamarei a juizo duas testemunhas irrecusaveis.

A primeira é o proprio marquez de Pombal. Em 1772 viu-se elle obrigado a reformar os estatutos daquella casa, por consulta da Mesa Censoria, de agosto de 1771, e tanto no preámbulo do alvará sobre isto passado, como nas disposições delle se revela que ahi reinava a desordem e o escándalo em tudo; na fazenda, nas letras, na disciplina e nos costumes, suppondo até uma dessas disposições (a 8.^a) a práctica de vicios infames, isto quando o collegío tinha apenas 11 annos d'existencia. A segunda testemunha é o célebre professor de philosophia, Bento José de Sousa Farinha, o qual em uma memoria que sobre este estabelecimento dirigiu a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, faz reflexões mui judiciosas ácerca delle, suppostas as idéas daquelle tempo, e pinta com vehemencia as desordens, o luxo espantoso e a falta de educação litteraria, que ahi reinavam: lamenta as sommas enormes que se despendiam com este collegio, cujo meneio custava perto de 800:000 cruzados cada dez annos, uma boa porção dos quaes saía do subsidio litterario, por onde os professores eram pagos, e propõe várias reformas que nunca se executaram. É notavel essa memoria, e sinto não poder transcrevê-la neste papel. Pela reforma do marquez de Pombal vê-se o que era o collegio dez annos depois de creado; pela memoria ver-se-hia o que elle era depois de meio século de existencia.

Tudo o mais que sobre a questão litteraria se encontra na anályse, refutava-se plenamente de um modo: transcrevendo-a. Mas como isso fôra uma inutilidade, visto estar ella impressa, que os homens entendidos na materia leiam essa farragem, se puderem navegar por entre aquelle mar aparcelado de confusão de idéas e de solecismos atrozes: não quero maior castigo a seu Auctor.

Como não tenho por agora tenção de tornar a tractar este objecto, salvo se a isso me violentarem fortemente, não deixarei de examinar, antes de pôr termo a este papel, o terceiro ponto do negócio, a questão economica entre os dous institutos.

III

Os piedosos restauradores das opas e balandraus, para em tudo serem infelizes até desarrazoam com a cousa mais certa, constante e corrente deste mundo, os algarismos. Em bulindo nelles sai desvario inevitavel. Para prova disto bastava uma passagem do relatorio do projecto de lei n.^o 58 A. Diz-se ahi que a herança do almirante constava de 80 contos em padrões de juro, e de muitos outros bens. Supponhamos que estes valiam quasi outro tanto, isto é, 60 a 70 contos; teríamos de capital 150, somma exaggerada, mas que admitto para o cálculo. No mesmo relatorio se accrescentam estas notaveis palavras:—«aquella tão quantiosa herança da qual somente em obras do collegio, suas officinas e cêrca se gastaram desde o anno de 1761 até o do 1767 a enorme quantia (o que os homens das medalhas e garnachas não gastam é grammatica) de tresentos e cincoenta contos de reis.»—Agora pergunto eu, ha ahi paciencia humana que comporte um disparate similhante? O juro dos padrões era de cinco ou seis por cento: concedamos que o resto do capital, em fazenda, todo fosse productivo e désse igual renda: seis por cento de 150 contos montam a 9 contos que, multiplicados por, 7 annos, dão 63: como se gastaram, pois, em 7 annos, 350 contos desses bens, a não os vender todos pelo dobro do seu valor, sem escapar sequer a cabelleira mais doméstica do almirante? Comparados com estes calculadores, Newlon e Euler foram apenas uns pobres sandeus!

Não se creia, porém, que a anályse ficasse devendo nada ao relatorio. Estas duas miríficas producções são como os pastores de Virgilio: et cantare ambo et responder e parati: entresachadas uma na outra, armava-se com ellas uma écloga digna da Fenix Renascida. Vamos a vêr os calculos da anályse.

Diz-se nesta que da creação da eschola polytechnica e extincção do collegio dos nobres resultara para o estado um augmento annual de despesa de 13:338:430. A commissão tinha affirmado que houvera uma economia de mais de oito contos de reis. Quem erraria a computação? Examinemo-lo.

A despesa do pessoal da eschola polytechnica e a importancia dos premios que se conferem aos alumnos, importam, segundo a lei do orçamento de 31 de julho de 1839, em 16:826:453. Nesta somma não se comprehendem os soldos dos officiaes militares, porque este vencimento não é em verdade despesa feita com a eschola. Suppondo que a esta quantia se haja de junctar não só a de 2:000:000, que, segundo a opinião da commissão de instrucção pública, a eschola pode gastar com os seus estabelecimentos, mas tambem a de 4 contos que o Auctor da anályse destina para estes e outros misteres, será o total das despesas da eschola polytechnica 22:826:453.

Passemos agora a examinar as despesas que o estado deixou de fazer com os estabelecimentos a que se refere o sr. deputado por Lamego, e que foram extinctos na mesma épocha em que se creou a eschola polytechnica; examinemos igualmente qual economia resultou das suppressões e modificações que em consequencia de se haver instituido essa eschola se fizeram. O collegio, (acceitos os proprios fundamentos em que o Auctor da anályse quere estribar-se) custava na occasião em que foi extincto 16:246:170; a academia de marinha gastava com o seu pessoal e com os premios 6:516:000; as cadeiras supprimidas no collegio militar importavam em réis 2:400:000, e a despesa que se fazia com o jardim botanico montava a 2:532:000: tudo isto somma 27:694:170. Já se vê, pois, que na realidade, ainda deduzindo o cálculo das premissas estabelecidas na anályse, houve pelo menos uma economia de 4:867:717 réis.

Cabe aqui notar uma feia ingratidão do Auctor da anályse para com o Snr. deputado por Lamego. Não contente com vê-lo pendente daquella nodosa e áspera cruz do relatorio, em que, víctima expiatoria de alheias cubiças, mãos cruéis o pregaram, ainda, novo Longuinhos, o vai lacerar com a lança açacalada de um atroz epigramma! Affirmar que o Snr. deputado comparara só a despesa do collegio dos nobres com a da eschola polytechnica, é dizer por boas palavras que o Snr. deputado coxeia da faculdade de julgar, o que parece um escarneo não merecido. Pois o Snr. deputado propunha que fosse a eschola substituida não só pelo collegio, mas pela antiga academia de marinha, aula de physica e chimica, etc.; comparava litterariamente aquelle com estes institutos e economicamente havia de compará-lo com um só dos que offerecia para substituição? Se o Auctor da anályse não respeitou os membros da commissão d'instrucção pública, taxando-os de mentirosos, levianos e exaggerados, respeite ao menos o Snr. deputado, que na camara expôs á piedade dos legisladores as opas rasgadas, as fitas partidas, as medalhas embaciadas e a cozinha empeçonhentada do collegio dos nobres, como Marco Antonio a túnica ensanguentada de Cesar á vindicta da gente romana.

O Snr. deputado não comparou, nem devia, por certo, comparar a despesa da eschola unicamente com a do Collegio, porque o fazê-lo seria um desmarcado absurdo. Esta gíria com que o Auctor da anályse pretende esquivar o invencivel argumento dos algarismos, é por si só prova plenissima de que até elle entende que 27:694:170 réis são mais que 22:826:453.

Mas não pára aqui o negócio: as primeiras quantias que se devem addicionar á de 4:867:717 réis que fica mencionada, são: 800:000 que o Auctor destina para concerto dos edificios, como se practicava no orçamento do collegio, e 595:000 réis para rebate de papel: a primeira é porque a importancia de similhantes concertos já vai incluida na somma de que adiante falarei, destinada para as despesas do material da eschola; a segunda porque a mesma eschola só uma vez trocou papel, logo no princípio da sua administração, segundo me informam, o que está bem longe de poder constituir um encargo annual e permanente como se inculca na anályse.

É opinião do Auctor desta que além da somma de 18:276:000 réis designada pela commissão para a despesa total da eschola polytechnica, precisa esta de gastar 4:000:000 réis em obras, conservação das aulas, etc.; isto é, pretende que além dos 2:000:000 arbitrados pela commissão para os estabelecimentos da eschola, seja necessaria para as despesas que elle designa a quantia já mencionada de 4:000:000 réis. Examinemos esta asserção. Em primeiro logar supponho com a commissão que depois que a eschola tenha chegado a conseguir o seu andamento regular, sejam sufficientes 2:000:000 para os estabelecimentos que verdadeiramente lhe pertencem. A esta somma se hade accrescentar a de 1:600:000 para despesas do jardim botanico e para algumas reparações nos edificios respectivos; e como nos orçamentos do collegio dos nobres entravam quantias destinadas para os reparos do edificio, serviço da igreja e encargos pios de alguns bens que administrava e hoje são administrados pela eschola, justo é que similhantes despesas, a que a eschola está igualmente obrigada, sejam tambem tomadas em conta na avaliação do que pode custar este instituto. Ao primeiro destes objectos pode-se destinar a quantia de 900:000; com o segundo gasta-se a de 727:600, vindo tudo a sommar 5:227:600.

Note-se, porém, que uma parte mui avultada desta quantia é destinada para as despesas das aulas de physica, chimica, mineralogia e outras disciplinas que actualmente se professam na eschola, e que, se ainda se ensinassem nas aulas cujo restabelecimento se propõe, não deixariam de trazer o mesmo dispendio, o que é obvio para todos os que não ignoram qual seja o objecto destas sciencias, e o modo de as ensinar. É necessario, pois, abater na somma arbitrada uma quantia, que ainda suppondo-a mui módica, não poderia ser menor que um conto de réis, o qual ou se havia de accrescentar no custo dos estabelecimentos extinctos, ou se ha-de diminuir no da eschola. Fazendo esta substracção dos 5:227:600, teremos em vez de 6:000:000 réis, 4:227:600 réis para o gasto da parte material do instituto, deduzidos dos rendimentos que se lhe applicaram.

É portanto o total do que se poupa, em resultado da creação da eschola polytechnica e extincção do collegio dos nobres e dos outros estabelecimentos e cadeiras, 8:035:117: quantia que de certo ainda está áquem do que realmente se ha de poupar, quando a eschola estiver em seu andamento regular, que, deve ser o considerado numa questão de despesas ordinarias, que de modo nenhum se devem calcular pelas do estado transitorio.

É facil, pois, de conhecer agora quem se enganou, se a commissão, se o
Auctor da anályse. Mas não ficam aqui os erros deste afamado calculador.

Do modo porque elle se expressa sobre uma diminuição que o governo propusera, por via do orçamento, nos ordenados dos lentes da eschola, pareceria que a commissão tinha contado com similhante diminuição para achar a somma de 18:276:000 réis em que calcula o total das despesas da mesma eschola, e que, a seguir-se a opinião da commissão de guerra, que propôs a conservação dos ordenados, haveria um augmento de 3:000:000 além desta quantia, que de tanto é a differença dos ordenados segundo a reducção proposta pelo ministro da guerra.

Enganou-se porém: a quantia de 16:826:453 que a commissão apontou para despesas do pessoal da eschola e dos premios, abrange os ordenados da lei, e de modo nenhum poderá haver o tal augmento de 3:000:000, que muito folgaria provavelmente o analysador de poder incluir nos seus profundissimos calculos.

Continua elle falando de uma verba de 3:098:600 a que diz montarem os ordenados dos empregados do collegio a qual, na sua opinião, bem como a de 4:210:000 dos ordenados dos professores do estabelecimento extincto, é devida á creação da eschola polytechnica. Alguém poderia crêr á vista do modo porque se exprime o A. da anályse ácerca da primeira verba, que os empregados que foram do collegio estão recebendo seus vencimentos sem proveito do serviço público: não é porém isto assim. A esses empregados, com raras excepções, se deu destino para differentes repartições do estado onde o seu serviço se podia aproveitar, e só os poucos exceptuados continuaram a gozar vencimentos esperando collocação, como succede em geral aos de qualquer repartição pública que se extingue e aos quaes cumpre respeitar os direitos adquiridos.

Quanto á verba de 4:210:000, dos ordenados dos professores, que o Auctor da anályse faz figurar com a antecedente na differença que apresenta, ainda mais arrastada veiu a pobrezinha para os seus calculos. O governo extinguiu o collegio depois de fazer a reforma da instrucção secundária: não podia portanto deixar de ser, (em relação a esta reforma, e até como parte della) extincto o collegio dos nobres: neste caso os seus professores deviam ter entrado nos lyceus; se alguns não estão empregados, se os seus ordenados se despendem inutilmente, não é por certo á eschola polytechnica que cabe o odioso que porventura dahi possa resultar.

O Auctor para introduzir no seu cálculo este e o antecedente elementos, serviu-se de uma hypothese falsa e absurda, qual é a de haver o collegio sido extincto para se poder crear a eschola polytechnica, e de ter havido um contracto positivo e bilateral inserido no decreto de 4 de janeiro de 1837, sobre a extincção do collegio, o qual se acha referendado pelos ministros da guerra e do reino. O decreto mencionado não encerrava de modo nenhum a idéa da creação de um estabelecimento militar de instrucção; mas nelle se determinava que os collegiaes fossem ultimar os seus estudos ao collegio militar que, como se sabe, é um estabelecimento litterariamente análogo ao extincto collegio dos nobres. Era pois indispensavel que tal decreto fosse referendado pelo ministro da guerra: mas este decreto sendo de 4 de janeiro, como fica dicto, não podia involver obrigação alguma para o ministerio da guerra ácerca da escola polytechnica, que então não existia. Neste decreto não ha realmente cousa alguma que se pareça com uma convenção em que se estipulasse que a eschola havia de utilisar-se dos rendimentos do collegio, e ficar sobrecarregada com quantos encargos tinha aquelle estabelecimento, que era de uma natureza inteiramente diversa. O decreto de 12 do mesmo mês, que destinou para as despesas da eschola polytechnica os mencionados rendimentos, foi referendado por aquelles mesmos ministros, porque a um delles tocava o entregar a dicta fazenda, e ao outro o dar a esta a nova applicação determinada. Onde está, porém, aqui isso a que o Auctor da anályse chama uma condição bilateral, a respeito do pagamento dos empregados do collegio pelos bens que foram delle?

É pois verdade á vista do que fica ponderado, que nem o collegio dos nobres foi extincto para dar logar á creação da escola polytechnica, nem o ministerio da guerra contrahiu obrigação alguma a respeito dos ordenados dos empregados do collegio, nem a verba que representava taes ordenados podia de modo nenhum figurar em qualquer excesso de despesa, se porventura o houvera, pelo facto da instituição da eschola. Não existe portanto o augmento de despesa que o Auctor apresenta, e bem pelo contrário ha uma economia que pelo menos sobe a 8:035:117 réis.

Resta-me dizer alguma cousa sobre o final da anályse que consiste em uma estatistica dos antigos estabelecimentos, comparada com a da eschola, e tão ridicula como todo o resto da anályse. Contentar-me-hei com fazer as seguintes observações.

As aulas da casa da moeda ha muitos annos que tinham deixado de fazer parte do nosso systema d'instrucção pública, como é notorio: os cursos de physica e de chimica estiveram abertos naquelle estabelecimento por muito pouco tempo: os taes 300 alumnos de todas as condições e idades, de que fala o Auctor da anályse, são portanto imaginarios. Quanto aos alumnos que houvessem de frequentar o collegio dos nobres, esses devem achar os mesmos estudos nos lycêus ou nas outras aulas análogas. Mas quando existisse essa differença para menos no número d'alumnos da eschola, nunca dahi se poderia concluir a conveniencia da extincção desta. Deixei ponderado no capítulo II qual era a verdadeira natureza deste instituto, isto é, a d'eschola central. Logo que em nossa terra se attenda ao mais essencial da instrucção pública, a creação das escholas primarias superiores, o número de alumnos da eschola polytechnica dobrará ou triplicará, porque ella deve ser o instituto onde se formem os professores para essas escholas, e foi de certo com taes miras, que a commissão de instrucção chamou á escola polytechnica roda indispensavel na máchina do ensino público. Além disso, considerando-a á luz de uma eschola especial, que quer dizer o avaliar a sua importancia ou utilidade pelo número dos alumnos que a frequentaram, e ainda mais comparar este número com o dos alumnos de uns poucos d'estabelecimentos, alguns dos quaes eram de natureza diversa? É porventura isto mais que um mesquinho sophisma? É isto mais que ter baralhadas todas as idéas ácerea d'instrucção pública? Comparar uma eschola especial por este lado com aulas de ensino secundario, que, segundo o triste e miseravel systema actual do nosso pais pertence á instrucção geral, é o mesmo que se comparassemos o número de alumnos da Universidade com o dos que frequentam as escholas de lêr e escrever, e dahi concluissemos a conveniencia da extincção della.

Cerro aqui o discurso, nem voltarei a tractar de similhante negócio, salvo se me constrangerem a ser mais explícito do que eu quisera.

Lisboa 15 de junho de 1841.

NOTA

NOTA

Os documentos a que o Auctor se refere e cujo transumpto apresentamos nesta nota, em conformidade do que dissémos na Advertencia, teem as datas de 6 de agosto e 17 de setembro de 1840. Das allegações de ordem economica de lado a lado apresentadas sobre o já conhecido assumpto de que tractam, nada diremos aqui, porque todas se acham reproduzidas e ampliadas no capitulo III do opusculo. Limitar-nos-hemos, pois, a extractar as concernentes ás questões de direito e litteraria nelles controvertidas.

Pelo que toca ao primeiro ponto e para seu resumo e clareza, comecemos por completar o que se diz no opusculo ácerca do almirante de Casella e do seu testamento, guiando-nos pelo parecer da commissão de instrucção publica, ao qual nesta parte serviu de base uma cópia daquelle testamento existente no collegio.

Durante a guerra da successão ao throno de Hespanha, entre o archiduque d'Austria D. Carlos e Philippe d'Anjou, o duque almirante de Castella D. João Thomaz Henriques de Cabrera, que era partidario do archiduque, ausentara-se para Portugal onde falleceu testando os bens que possuia neste reino á companhia de Jesus, para que ella fundasse um noviciado onde fossem recebidas—«as pessoas da companhia que quisessem sacrificar a sua vida na conversão dos infiéis das Indias orientaes e da China»—.

O noviciado chamar-se-hia de Nossa Senhora da Conceição e na sua igreja se diriam missas por alma do testador e sua mulher, havendo seis capellas para o desempenho do culto e marcando o testamento as cóngruas destinadas aos respectivos capellães. Elle seria fundado em Madrid se o archiduque Carlos vencesse naquella guerra e em Lisboa no caso contrário, que foi o succedido.

Expondo a seu modo estes factos (em ambos os documentos desacompanhados de datas) accrescentava-lhes o deputado por Lamego no relatorio da sua proposta as allegações que se séguem:—Que tendo os jesuitas portugueses acceitado a herança do almirante, logo com uma parte della compraram terras na Cotovia e mandaram ahi levantar a casa destinada ao noviciado, ficando a parte restante, que era a mais quantiosa, para os encargos permanentes. Que, extincta a companhia de Jesus em Portugal, o governo de D. José I tomara posse dos bens constantes dessa herança e com elles dotara e estabelecera no edificio já levantado o real collegio dos nobres, sujeitando este aos mesmos onus e impondo aos seus capellães e familiares as mesmas obrigações recommendadas pelo almirante. Deste modo, concluia o proponente, a existencia do collegio achava-se ligada a condições de última vontade, não havendo da parte dos herdadeiros naturaes do testador direito para reclamações. Porém, substituido o collegio pela eschola polytechnica mudava a situação de face, correndo o governo perigo de ser demandado visto que aquellas condições haviam sido menosprezadas; perigo para o qual o auctor do projecto diligenciava attrahir a attenção da camara, exaggerando com infundadas citações o valor dos bens de que se tractava.

No opusculo se desfaz este exaggero e se impugnam outras inexactidões do relatorio do projecto acima resumido. A commissão cingira-se, porém, na sua réplica, ao que era essencial para a decisão da camara. Das textuaes palavras do almirante deduzira ella que o noviciado que elle quisera se fundasse era de carácter religioso e em perfeita harmonia com a missão originária da companhia de Jesus, a de propagar a fé christan nas regiões do oriente e em toda a parte. Que o pensamento do almirante fôra evidentemente, ao menos no que respeitasse ao noviciado que instituia, obrigar a companhia a abandonar o caminho errado em que desde muito tempo se embrenhara e que veiu a perdê-la, voltando á rigorosa observancia do seu estatuto. Posto o que, mal se podia comprehender que o collegio dos nobres correspondesse á última vontade do testador. «Que similhança havia entre o noviciado de um varão apostolico, o mister do qual era o ir denunciar o evangelho aos infiéis do oriente, atravessando mares procellosos, rasgando os pés pelas urzes das brenhas intractaveis dos sertões da Asia, desbaratando a saúde e arriscando a vida no meio de bárbaros atraiçoados e desconversaveis, e a educação de um nobre, rodeado de mimos, e cujo destino era o viver vida cortesan nas occupações e tracto mundanos? Que relação havia entre a bíblia e a esgrima, entre a theologia e a dança, entre a humildade da cruz e o orgulho dos brasões e armarias, entre as sandalias do missionario e as regras da equitação?»

Era verdade que D. José I ordenara na carta de doação de 12 de outubro de 1765, que se cumprissem os legados pios inherentes á herança do almirante de Castella, quanto ás capellas, cappellães e missas, ficando aquellas annexas ao collegio. Tambem a mesma carta de doação determinara que esses capellães e quatro dos seus familiares fossem admittidos com a cláusula de irem missionar nas Indias e na China, quando o monarcha assim lhes determinasse. Mas dahi não derivara para o collegio o carácter de instituto religioso. Por outro lado, as referidas capellas continuaram a existir e a funccionar depois de creada a eschola polytechnica, nas mesmas condições em que anteriormente tinham existido, facto de que a commissão se informara com o devido rigor para esclarecer a camara. Até os capellães eram ainda os mesmos, não podendo por isso negar-se ao exercicio das missões a que estavam obrigados. A eschola não trouxera, pois, nenhum perigo de demandas, como se inculcava no relatorio do projecto. Milhares de baseadas reclamações seriam para recear por falta de cumprimento de legados pios impendentes sobre os bens das extinctas ordens religiosas, mas não as dos herdeiros do almirante, pois que a vontade deste continuava a ser piedosamente respeitada até onde as leis permittiam e tanto quanto o fôra durante a existencia do collegio. O collegio dos nobres havia sido uma instituição civil como era a eschola polytechnica, e tão bom direito houvera para applicar parte do espólio dos jesuitas ao estabelecimento desta como ao daquelle. Sem dúvida fôra bom o pensamento do monarcha que creara o collegio, porque ao menos impedira que os bens applicados á dotação deste se extraviassem e arruinassem como tantos outros da extincta companhia, aos quaes succedera o mesmo que em seus dias a commissão vira acontecer a boa parte dos das ordens monasticas. Mas da então judiciosa applicação daquelles fundos,—«de nenhum modo se havia de concluir que ella era immutavel, e que o governo e os representantes da nação não tinham o direito de lhes dar outra, principalmente sendo esta mais adequada ao estado actual da sociedade e ao espirito e tendencias do nosso século, como ao diante seria ponderado.»

Quanto á controversia sob o ponto de vista litterario eis o que se apura dos dous documentos. Como já sabemos, no projecto do deputado por Lamego se propunha não só o restabelecimento do collegio dos nobres, mas tambem o de outros institutos d'instrucção. No seu relatorio explicava o proponente como todos esses institutos, haviam constituido no seu conjuncto um systema que dispensava a eschola polytechnica, sem prejuizo do ensino público e com vantagens economicas para o estado. Accrescentava que o collegio não devera ser extincto visto que a sua frequencia fôra por D. Pedro IV facultada a todas as classes sociaes, mas era odiado «talvez por ter o nome de real».

Responde a commissão que o collegio fôra extincto por haverem então sido creados lyceus de instrucção secundária e estar em desharmonia com estes pelas disciplinas que nelle se ensinavam, taes como esgrima, música, dança e equitação. Rebatendo o argumento ad odium, que, em seu dizer, fugira da penna ao illustre Auctor do projecto, pondera que a importancia de um instituto de ensino não podia vir na épocha presente senão da sua utilidade social. Que era livre para os individuos e associações particulares o sustentarem o luxo scientifico ou litterario, mas o ensino por parte do estado devia restringir-se ao que essencialmente conviesse ao público em geral. Com respeito á eschola entendia a commissão que longe de ser extincta ella devera ser creada se não existisse já. Não era objecto que se pusesse em dúvida a necessidade de uma eschola de sciencias applicadas na capital do reino, eschola destinada a encaminhar para o estudo das profissões úteis, officiaes ou particulares, incluindo a agricultura e a indústria. E nesta parte ajunctava a commissão as considerações seguintes, que acabam do esclarecer o leitor sobre o projecto do deputado por Lamego, e com as quaes damos tambem por concluida a materia da presente nota:

«Que pretende, pois, o nobre deputado Auctor do projecto? Quebrar uma grande e indispensavel roda na máchina da instrucção pública, para a substituir por uma excrescencia litteraria, pela enxertia de um membro de mais e aleijado, no corpo da instrucção secundária.

«Isto é administrativamente impossivel. Porém (dir-se-ha) neste projecto propõe-se o restabelecimento da Academia de Marinha, da Academia de Fortificação da mesma forma, e no mesmo estado em que se achavam antes da sua extincção; assim como o da Aula de Physica e Chimica da casa da moeda. (Artigo 3.^o).

«Neste artigo do projecto ha erros gravissimos de facto e de doutrina. Erro de facto é suppôr extincta a eschola de fortificação, á qual apenas se mudou o nome, melhorando-se no methodo de ensino. Erro de doutrina é pretender, que voltem ao mesmo estado e á mesma fórma antiga as duas academias. Suppõe porventura o nobre deputado, que as sciencias parassem nos seus rápidos progressos, desde que essas academias foram instituidas, ou antes que tenham retrogradado, porque só assim se poderia preferir a fórma e estado antigos? Entenderá acaso o nobre deputado que a eschola polytechnica e a eschola do exercito não estão ao nivel do estado actual da sciencia, e que as antigas academias o estavam? Se este é o presupposto do nobre deputado, que elle tenha a bondade de o explicar e demonstrar: a vossa commissão acceitará gostosa as considerações do nobre deputado, e não duvidará de propôr-vos á vista dellas uma nova reforma para aquelles estabelecimentos.

Em todo o caso, para que dividir e deslocar estudos, ligados naturalmente entre si, e que no seu complexo total constituem cursos completos para diversas classes de profissões especiaes? Que vantagem resulta ao estado de que as cadeiras de disciplinas análogas, e relativas entre si, sejam soltas e derramadas, em vez de estarem harmonisadas e unidas, formando um só corpo, e debaixo de uma só direcção? O engenho dos membros da vossa commissão não é bastante perspicaz para poder comprehender neste ponto as idéas do nobre deputado.

A verdade é que já em 1800 o doutor Ciera propunha uma reforma destes estudos, e que pouco depois os célebres Brotero e abbade Corrêa da Serra foram encarregados de organisar um plano para a creação de um estabelecimento de sciencias physicas em Lisboa, e que feito o plano, e até nomeados os professores e designado o local, não veiu a lume a obra, por causa da invasão dos franceses, e da partida do principe regente para o Brasil. Já, pois, desde essa épocha se via a necessidade de dar unidade ao estudo das sciencias physicas.»

Emfim, eis os nomes dos signatarios do parecer, pela ordem em que neste
se lêem, nomes que por certo não serão lidos com indifferença—Agostinho
Albano da Silveira Pinto (com declaração)—Antonio Ribeiro de Liz
Teixeira—F.M. Tavares de Carvalho—A. Herculano—F.J.D.
Nazareth—Almeida Garrett—V. Ferrer Netto de Paiva.

INSTRUCÇÃO PUBLICA

1841

INSTRUCÇÃO PUBLICA

I

Entre os graves negocios que nas monarchias constitucionaes devem occupar a attenção das camaras legislativas, do poder executivo e de todos os cidadãos que desejam a prosperidade do seu pais, ha um, importante mais que muitos, difficilimo pelas considerações a que, no tractá-lo, é preciso remontar, perigoso pelas custosas e ás vezes baldadas experiencias que para o resolver ainda hoje se fazem no meio dos povos mais cogitadores e alumiados da Europa,—escuro, emfim, até porque na mente dos legisladores, dos homens que governam e ainda dos mais entendidos cidadãos, estão porventura vivas preoccupações da mocidade e de educação, contra o verdadeiro modo de contemplá-lo, quando se tracta de o converter por via de leis em facto social. Este negócio importante, difficultoso, arriscado e escuro, é o systema de organisação da instrucção geral ou nacional que, nos países livres, não pode deixar de ser tida em conta de garantia pública e ao mesmo tempo individual, e que, por isso, deve ser regulada de maneira tal que, servindo á prosperidade e civilisação communs, abranja nos seus beneficios a todos e a cada um dos cidadãos.

A revolução francesa do fim do século passado, no meio dos seus crimes, das suas vertigens, dos seus disparates, proclamou grandes verdades; e sobre a terra ensanguentada por ella, lançou as sementes dos mais profundos principios sociaes. Foi eila que primeiro considerou a instrucção á luz da nacionalidade; que primeiro a saudou como uma garantia individual; como uma dívida do estado para com os seus membros: foi ella que primeiro disse—a república deve dar aos cidadãos uma instrucção geral.

Este pensamento, assim enunciado, era incompleto e informe; mas era grande e generoso. Desde então elle cresceu, vigorou, e radicou-se na opinião da gente illustrada. Mais ou menos completo, mais on menos regular, modificado pelo progresso das idéas ou pelo espirito dos legisladores, este principio reproduziu-se em alguns dos códigos legislados no meio das mudanças politicas que, desde essa revolução até hoje, tem agitado a Europa. Entre nós elle foi consagrado na Carta e na Constituição actual.

Mas o seu enunciado na Constituição vigente não foi modificado como, em nossa opinião, devia ser. A confusão das diversas especies de garantias em que ella constantemente labora estende-se á da instrucção geral. Esta é apenas ahi considerada como garantia individual; donde nascem duas consequencias damnosas; uma, que se contem no artigo constitucional relativo a este objecto; outra, que deve forçosamente influir no espirito dos legisladores na feitura de uma lei sobre instrucção pública, principalmente na que se pode chamar lei d'instrucção geral, nacional ou primaria.

Esta instrucção é indubitavelmente uma garantia mixta, geral e individual. Só ella pode assegurar a espontaneidade e independencia do elemento capital dos governos representativos—a eleição; porque só a illustração pode fazer conhecer aos eleitores que a votação neste ou naquelle indivíduo para seu representante é o acto mais solemne e grave da vida pública, e que, se disso fizer jogo ou favor, faz um favor e jogo da sua felicidade futura e da de seus filhos. Só esta garantia social pode assegurar a conservação de um poder municipal forte e activo, que resista ás ingerencias da centralisação ainda exaggerada entre nós e que, se algum dia for restringida, ha-de sempre tender a exaggerar-se; ao passo que essa mesma illustração fará com que o poder municipal não ouse transpor os confins do poder central, cuja acção demasiada é a morte da liberdade, mas cuja auctoridade legitima menoscabada ou roubada é a morte da ordem pública. Só esta garantia social pode ajudar a religião a moralisar o país, e por consequencia, a diminuir a necessidade de leis violentas, excepcionaes, e portanto más. Só ella pode, emfim, desinvolvendo as faculdades dos cidadãos, habilitá-los para conhecerem os seus verdadeiros interesses, para desempenharem os seus deveres publicos e domesticos, e, favorecendo o accrescimo da indústria, para augmentar a riqueza e promover o engrandecimento da nação.

Considerada como garantia individual, a instrucção primaria realisa o direito, que tem qualquer cidadão, de aperfeiçoar o seu entendimento, não só para se ajudar desse aperfeiçoamento no genero d'indústria a que se dedica e pelo qual obtem o pão quotidiano, mas tambem para poder avaliar o estado das cousas públicas, os actos e as opiniões dos que governam e legislam, erguendo-se assim de feito á dignidade de homem livre.

É destes dous fins a que se destina a instrucção pública que lhe provém a sua natureza de duplicada garantia: dever da sociedade e direito do indivíduo: dever do indivíduo e direito da sociedade. Da falsa idéa de que a instrucção pública é exclusivamente direito do cidadão, derivou o preceito inserido em mais de uma lei politica, de que o estado subministrará gratuitamente a instrucção primaria a todos os cidadãos; disposição na essencia pueril, porque não ha nenhum meio de ser gratuito para os cidadãos qualquer serviço público, senão o de obrigar os funccionarios a servirem de graça: derivou tambem tornar-se absurda a compulsão ao ensino, porque é absurdo constranger-me a usar de um direito ou vantagem que eu espontaneamente rejeito. Considerada, porém, a instrucção geral como garantia mixta, embora incumba aos poderes públicos assegurar a existencia da eschola por toda a parte, levar a instrucção primaria até o mais solitario casal, porque sem isso a compulsão ao ensino não é sómente absurdo mas tyrannia, o legislador pode, comtudo, escolher livremente os meios de realisar um facto em que o direito e o dever da sociedade e do indivíduo se confundem de modo inseparavel: pode então legitimamente estabelecer o ensino obrigatorio com a sancção do castigo, sem o que será sempre uma disposição irrisoria impor aos cidadãos o dever de instruirem seus filhos.

Se ha documento claro para provar a importancia de assentar leis sobre solidas theorias, sê-lo-ha o que deixamos ponderado sobre a instrucção pública, vista á luz politica. Esses homens que se ufanam de ser positivos e prácticos, de não se cansarem com as applicações de principios especulativos, estão sujeitos muitas vezes a não serem logicos, ou a transtornarem nas leis regulamentares o espirito e a letra das leis fundamentaes, ou finalmente a infelicitarem a nação que lhes caíu nas mãos, com leis incompletas e inapplicaveis, contrárias ao bom regimen do estado e á felicidade do povo.

Eis donde nasce a necessidade de boas doutrinas politicas. Virá um dia em que nos codigos politicos se attendam os sãos principios e se escreva: «A constituição considera o ensino geral como garantia da sociedade e do indivíduo: o estado é obrigado a assegurá-lo e mantê-lo em todo o seu complexo; os cidadãos a acceitá-lo no que elle representar de garantia social». Por estas ou por outras palavras será esse o seu espirito. Esperamo-lo porque cremos na força irresistivel da verdade e no progresso do genero humano.

Como ligada a estas considerações cabe aqui esclarecer uma questão que tambem se deve reputar de certo modo preliminar de tudo quanto tenhamos de expor sobre o assumpto de que tractamos. Admittido que a educação intellectual da mocidade possa constituir uma indústria particular, e não vemos razão solida que a isso se opponha, será justo que a lei attribua ao governo uma intervenção maior ou menor no exercicio dessa indústria, licita e livre como as demais indústrias? Será absoluta ou restricta a liberdade de ensino?

São os principios que hão-de resolver o problema.

Se a instrucção primaria não fosse uma garantia social, affirmariamos sem hesitar que a lei não podia attribuir acção alguma ao governo no exercicio do magisterio privado; porque privado era o contracto entre o mestre e o discípulo ou seus paes ou tutores. Embora esse ensino fosse uma decepção, ninguem teria direito a prevenir o engano e só ao poder judicial tocaria reparar o damno, quando houvesse queixoso. Ao governo incumbiria apenas, proporcionar a eschola primaria a todos aquelles que se quisessem aproveitar della, e quando alguem preferisse obter por diverso modo o beneficio da educação intellectual para os seus, a lei que estatuisse a intervenção da auctoridade seria uma lei abusiva.

Mas, desde que o ensino primario se considere como satisfação de uma necessidade pública, como um factor indispensavel na manutenção da sociedade, a lei não pode deixar de attribuir á auctoridade administrativa larga intervenção em um assumpto que, embora importe ao individuo, importa porventura ainda mais ao bem commum. Ora, se a eschola privada pudesse livremente substituir-se á eschola pública; e se assim o ensino pudesse tornar-se numa decepção, a sociedade ficaria sem garantia ácerca de uma das mais importantes condições da sua existencia.

Destas considerações devem derivar principalmente duas disposições da lei, uma que exija do mestre um título de capacidade e outra que crie um systema severo de inspecção, de modo que a vigilancia do governo não ache obstaculos para evitar quaesquer males que hajam de resultar da indústria do ensino privado. Que a lei previna os abusos do poder em relação a essa indústria, mas que as restricções vão até onde puderem ir sem offensa ao direito individual. A segurança pública em relação á cultura intellectual do povo, até onde esta é indispensavel para a sociedade, exige uma magistratura mais forte e uma acção mais enérgica do que a segurança material dos cidadãos. Importa esta ao presente; aquella ao presente e ao futuro[4].

II

Estabelecidos os verdadeiros princípios politicos, relativos á instrucção nacional, e comparados com os que a doutrina da Constituição representa, segue-se naturalmente o afferir o estado actual dessa instrucção no nosso país com uns e outros princípios. Se as leis, ou as providencias governativas sobre este assumpto estiverem ao menos em harmonia com o preceito constitucional, se ao menos tenderem a converter num facto o seu pensamento, a nação, e principalmente os homens que olham para a educação intellectual do povo com a circumspecção que tão grave e importante materia exige, não terão grandes motivos de queixa contra os legisladores ou contra o governo; terão sim de lamentar que o pacto social não os compellisse a irem mais longe, não constrangesse aquelles, a redigirem uma lei que tivesse por alvo o fazer com que todos os cidadãos possuissem um maior ou menor grau de illustração, este, a empregar toda a acção administrativa em tornar effectivas as disposições dessa lei. Mas, se nem as leis, nem os actos do executivo tiverem ainda tornado verdadeira e effectiva a sentença da Constituição, com quanto incompleta, então a sociedade tem direito d'exigir dos seus representantes uma legislação que não deixe illusoria aquella sentença, e do governo providencias que convertam em realidade essa legislação.

Desgraçadamente é este o caso em que nos achamos. Abstrahindo da instrucção superior e limitando-nos á chamada primaria, áquella que o artigo constitucional teve em mira, é forçoso confessar que a lei de 15 de novembro de 1836, lei feita no meio do estrondo de uma revolução, e que ficou servindo como lei de desinvolvimento de um artigo da Constituição decretada dous annos depois, não preenche os fins que, por esta última, circumstancia, tinha de preencher, apesar dos escassos additamentos que de então para cá se lhe tem feito. Quanto ás providencias sobre instrucção primaria tomadas pelos differentes ministerios que tem havido depois que a Constituição foi promulgada, pode-se dizer o mesmo: nem nós os culpamos muito por isso, visto que o mal provém, na maior parte, da lei: culpamo-los, sim, de não terem tomado a iniciativa de alguma proposta sobre tão sério negócio em que, mais que em nenhum, a iniciativa deve ser do governo.

Com effeito só o ministerio, que, num país onde a sciencia da estatistica é quasi desconhecida, talvez seja, quem unicamente possua os poucos factos estatisticos, que ahi se colligem, pode com algum fundamento redigir uma lei sobre similhante objecto, o qual, mais que nenhum, precisa de ser moldado pelos princípios dessa sciencia. Além disso, um projecto de lei sobre instrucção primaria, feito por um simples deputado, ou hade ser minutissimo e descer a um sem numero de providencias regulamentares, ou hade ser deficiente e por consequencia quasi inútil. Não succede porém a um ministro o que aconteceria a um membro do corpo legislativo. Quando o ministro leva ao parlamento, formulado em projecto de lei, um pensamento politico, uma grande idéa sobre a organisação de qualquer ramo de serviço público, elle deve ter deixado na sua secretaria as providencias regulamentares, que só tornam exequiveis a maior parte das leis. Eutão, se o projecto é redigido com tino, limita-se áquelles pontos que carecem de sancção legal, e o ministro reserva para si o que lhe pertence, o formular os meios da execução. Foi assim que Mr. Guizot entendeu a questão d'instrucção primaria na célebre lei de 1833; que, seja dicto de caminho, não seria applicavel ao nosso país. O que foi votado pelas camaras francesas era bem pouco, mas o espirito robusto que propusera a lei, lá estava para a executar; e abstrahindo das imperfeições dessa lei, imperfeições que homens habilissimos antes de nós lhe teem notado, ella produziu brevemente vantajosos resultados. Isto de certo não acontecera, se algum simples membro das camaras legislativas fosse o que tivesse proposto aquella, á primeira vista, mui deficiente lei.

Nós temos uma lei d'instrucção primaria ainda mais resumida, no que é essencial, do que a lei francesa de 1833, e a pessoa que a concebeu, não teve de a executar: as poucas providencias regulamentares sobre este objecto, de que temos noticia, não foram na maior parte homólogas, porque não foram concebidas pelo auctor da lei; e a imperfeição desta, em que hoje talvez elle proprio conviria, ainda se tornou maior pela imperfeição dos meios. O resultado devia ser forçosamente qual foi. Apesar das esperanças, dos logares animadores que ácerca deste assumpto se lêem em relatorios de diversos ministerios, durante os últimos três annos, a iristrucção primaria se não tem peiorado por certo não é melhor, nem está mais espalhada do que era e estava até ahi.

É innegavel que o número das cadeiras primarias foi augmentado com mais cem; e que algumas destas teem sido postas em exercicio. Mas cumpria antes de affirmar que isto produzira um augmento d'instrucção, um maior derramamento d'ensino, examinar quantas das antigas escholas teem deixado de ser providas; se o número dos alumnos augmentou em realidade e, dado esse caso, se augmentou na proporção das novas cadeiras em exercicio; se os mestres são mais habeis, que d'antes; se os methodos d'ensino teem sido melhorados; se a assiduidade dos que ensinam, principalmente nos districtos ruraes, é maior; ou se pelo contrário a prolongação da frequencia dos alumnos, em consequencia do desleixo dos mestres, não encobre a diminuição das matrículas annuaes. Era com o conhecimento de todas estas circumstancias, que se poderia assentar um juizo seguro sobre tal materia, e se as informações particulares que por nossas diligencias temos podido obter não são falsas, o exame de taes circumstancias nos destruiria essas esperanças enganosas, essas prosperidades mentidas.

Os inconvenientes de que é cercada a laboriosa vida do magisterio elementar, vida de abnegação e estreiteza, especie de sacerdocio que, similhante ao das primeiras eras do christianismo, requer a mais heroica resignação em uma existencia de tédio, de obscuridade e de pobreza, teem augmentado com o prospecto de miseria que hoje apresenta essa humilde carreira. O, já tão diminuto, ordenado dos professores, ainda mais mesquinho se torna pela falta dos pagamentos, e nas escholas ruraes converte-se em completa decepção, porque não ha ahi quem rebata os ténues vencimentos de um mestre de primeiras letras. A providéncia legislativa, que obrigou os municipios a contribuirem com vinte mil réis annuaes para as escholas dos concelhos, foi quasi por toda a parte van e illusoria; porque, não levando essa lei comsigo os meios de constrangimento, as municipalidades quasi por toda a parte reluctaram; e os desgraçados professores viram-se na alternativa de cederem do seu direito, ou de intentarem demandas ruinosas em que gastassem três ou quatro vezes a somma demandada; porque todos sabem que o genus insatiabile dos escribas e alguazis não costuma largar os martyres que lhe cáem nas mãos, sem os deixar escorchados, e que em Portugal obter justiça de graça seria inaudito, monstruoso e attentatorio dos nossos bons e antigos costumes. Assim só a extrema miseria, a desesperação da fome pode arrastar um indivíduo, que saiba ler e escrever, a sepultar-se numa aldeia remota e pobrissima, para ahi morrer lentamente á míngua. Muitas vezes acontece estar aberto o concurso para uma cadeira primaria durante meses e só no fim apparece algum raro concorrente, na maior parte dos casos completamente inhahil, mas que é provido quasi sempre, porque as auctoridades propostas a esse negócio entendem, e bem, que mais vale que o povo aprenda a ler pouco e mal, que absolutamente nada. Então a desgraçado homem, desgraçado intellectual e materialmente, lá se encaminha para a eschola rústica, onde não tarda a experimentar a um tempo a difficuldade de ensinar e a de subsistir. Obrigado a ganhar o pão por outro modo, abandona os seus alumnos ou affugenta-os; e como ninguem se interessa em que a eschola floresça, porque o nosso povo ainda não crê nem levemente nos beneficios da instrucção, o governo fica enganado suppondo que existe uma eschola onde apenas ha um individuo que goza o titula honorifico de mestre. Nós sabemos de certa povoação onde o professor se converteu em ferreiro; e o mais é que andou avisado, porque, assim, esquiva-se a morrer á fome.

A chamada instrucção primaria é em Portugal mais uma palavra e uma verba d'orçamento que outra cousa. No relatorio apresentado pelo governo á camara dos deputados em janeiro do anno passado, asseverava-se «que as escholas primarias eram frequentadas por perto de trinta mil alumnos» o que seria já um estado florente d'instrucção; porque, segundo os calculos que para isto temos feito, o número das creancas do sexo masculino nas condições de frequentarem as escholas primarias, não pode exceder, em relação á actual população do país, o de 66:660, não descontando as que aprendem nos proprios domicilios, nem as inhabilitadas physica e intellectualmente. Seguir-se-hia, pois, que já o ensino primario abrangia metade da infancia do sexo masculino, o que em países mais adiantados que nós, ainda não acontece. Mas a verdade não pode ser essa, e o proprio governo o deixa ver nesse relatorio, como é facil de mostrar.

Primeiro que tudo, delle mesmo se conhece, que as informações sobre o número d'alumnos são dadas pelos professores; e não se creia que, por exemplo, ao nosso ferreiro custasse muito pôr de parte o malho para escrever num papel, vinte, trinta ou quarenta nomes, se tanto delle se exigiu, a troco de fazer jus ao benesse dos 110$000 réis. Que valor podem ter, portanto, similhantes informações? Que calculos se podem fazer sobre ellas? Nenhuns: absolutamente nenhuns.

Façamos, porém, justiça ao ministro, que cria tanto como nós na exacção desse algarismo. Mui habil era elle nestas materias d'instrucção para ignorar o facto que acima apontamos, do número possivel d'alumnos que o país offerece, calculado segundo as regras da sciencia; e para não ver que era impossivel ser exacto esse número que dava por effectivo. Assim, ao passo que apresentava em tão próspero estado as escholas, concluia o seu relatorio por estas notaveis palavras: «Serão, porém, baldadas todas estas providéncias se as escholas estiverem desertas d'alumnos, ou se fôr entregue o ensino da mocidade a pessoas ignorantes e indignas, como sempre hade acontecer, emquanto se não prover, etc.». Esta era a expressão sincera e exacta, do que o espirito agudo do ministro entendia: o cálculo, isso era trabalho de secretaria…

Para levar á última evidéncia o imaginario dos taes trinta mil alumnos, accrescentaremos mais uma breve observação. O número d'escholas necessarias para derramar por toda a superficie do país a instrucção primaria não pode ser inferior, segundo nossas averiguações, a 1:400 ou 1:500. O número legal das que então existiam e ainda existem, não sobe a 1:100: destas, segundo o mesmo relatorio, pouco mais de 800 estavam providas, isto é, pouco mais de metade das necessarias havia para satisfazer as precisões do pais, ficando por consequencia a outra metade deste sem instrucção primaria. Devia-se, pois, concluir daquelle número indicado e deste facto, que nos districtos em que essas escholas estão estabelecidas, já nenhuma creança deixava de aprender a ler e escrever; o que nos fazia exceder muito a França e a Inglaterra e hombrear com a Prussia. Pobres calculadores!

O fecho do relatorio ácerca da instrucção primaria é que desgraçadamente é exacto! Com honrosas e quasi raras excepções, os mestres de primeiras letras não desempenham nem podem desempenhar seu mister: por outra parte, os paes e tutores da infancia recusam-lhe a educação litteraria, por motivos que noutro logar exporemos. Sem professores e sem discipulos, como haverá instrucção? Ella não pode existir. Quantas informações, quantos algarismos o governo apresentar a este respeito, serão falsos, serão um engano feito ás camaras, uma decepção para o país.

Em maio de 1840 apresentou-se por parte do ministerio um projecto de enxertia á lei de 15 de novembro. Fará esta vergóntea fructificar a árvore que a experiencia mostrou bravia? A commissão d'instrucção pública da camara dos deputados ainda não emittiu opinião sobre elle: na falta desta opinião, que por certo será a mais acertada, attenta a extraordinaria capacidade da maior parte dos membros daquella commissão, seja-nos lícito, a nós humildes jornalistas, fazer ácerca desse projecto algumas ponderações.

III

O governo, como notámos, tinha no seu relatorio de janeiro deste anno indicado o triste estado em que se achava a instrucção primaria; ao concluir a parte delle relativa a esse ponto, desmentindo os algarismos que pouco acima apresentara, pusera a mão sobre a funda chaga que corroía e corroe a educação intellectual do povo. Ahi se affirmara em nome do executivo aquillo que todos viam, a solidão das escholas e a inhabilidade da maior parte dos professores primarios. Abstendo-se de enumerar todas as causas deste phenomeno, o governo apontara só um dos motivos da raridade de mestres habeis, a falta de uma segura e decente sustentação, mas não dissera á camara porque razão estavam desertas as escholas; sendo evidente que a inhabilidade dos mestres não podia ser o unico motivo de similhante facto.

Fosse, porém, o que fosse, o relatorio ministerial punha o governo na necessidade de propôr ao corpo legislativo providencias que remediassem o mal. Com effeito no mès de julho appareceu uma proposta para a reforma da lei d'instrucção primaria.

Esta proposta devia ter por alvo o remover todas as causas dos dous grandes inconvenientes que o ministerio apontara no seu relatorio, a falta de alumnos e a inhabilidade dos professores. Deste modo ella seria logica, seria a consequencia do relatorio e revelaria no ministerio a unidade de pensamento governativo. Examinemos se esse é o carácter della.

Encerra essa proposta 18 artigos: os primeiros são relativos ás escholas d'ensino mútuo, considerado como methodo normal na lei de 15 de novembro de 1836. Em boa parte estes artigos conteem materia que nos parece mais regulamentar que legislativa. Aquella lei tinha omittido judiciosamente a designação dos locaes das escolas normaes; porque sendo estas instituições públicas, e de nenhum modo particulares ou municipaes, era evidente que para o seu estabelecimento deviam ser destinados edificios públicos: o § que ordena «seja entregue ao professor a casa e adereços da eschola por via de um auto, que o torne responsavel por elles» parece-nos pueril numa lei. Quando muito seria isto materia d'instrucções do governo aos seus subalternos. No artigo 4.^o repete-se a doutrina do § 1.^o do artigo 15.^o da lei, em que se concedem trinta mil réis de gratificação aos professores d'ensino simultaneo, que o substituirem pelo ensino mútuo. Na proposta supprimem-se as palavras—verificando-se isto pela auctoridade competente, intervindo consulta desta, e decreto do governo—para depois se diluirem em um extenso paragrapho.

O artigo immediato (5.^o) versa sobre um dos pontos mais importantes de qualquer lei, que se possa fazer ácerca d'instrucção primaria. Estabelecido o princípio de uma contribuição imposta aos municipios para ajuda do custeamento das escholas, era preciso regulá-lo na sua applicação. A lei de 15 de novembro era deficiente nesta parte. A experiencia tem provado exuberantemente, que a disposição que manda contribuir as municipalidades com vinte mil réis annuaes para o ordenado dos professores primarios dos concelhos, não só é inconveniente mas tem sido van, por não trazer comsigo os meios de a tornar effectiva. O pensamento do governo é porém exacto e luminoso: esta contribuição deve ser proporcional ao número de discipulos que frequentarem as escholas: assim esse onus que, como já ponderámos, se pode suppôr, talvez, contrário ao espirito da Constituição, considerado á luz da razão e dos verdadeiros principios politicos se justifica plenamente. O concelho despende em proporção do benefício que recebe: ajuda a nação a pagar a divida da geração actual para com a futura; mas este adjutorio é assim justo e moral.

O pensamento do governo foi, todavia, completamente estragado por quem quer que redigiu a proposta, estabelecendo «que nas cidades principaes as camaras paguem cinco mil réis annuaes por cada dez discipulos acima de 60, que frequentarem a eschola; nas outras cidades e villas pelos que excederem a 40; nas aldeias por cada década acima de 25.»

Já dissemos, e prova-lo-hemos em logar competente, que no estado actual da população do país, o número total das creanças do sexo masculino, que devem frequentar ao mesmo tempo as escholas primarias, é de sessenta e tantos mil: provaremos tambem que, attendendo á extensão da superficie do nosso territorio, ao derramamento das povoações, ao numero dos habitantes, á natureza irregular do solo, á falta de estradas e caminhos transversaes, ás difficuldades de tránsito, que offerece um país mal arroteado, cheio de torrentes e brejos invadiaveis no inverno, o número d'escholas precisas para levar a instrucção primaria a toda a parte, não deve ser menor que 1:400 a 1:500. Dividido o número total dos allumnos possiveis pelo das escholas indispensaveis, temos 45 para cada eschola; do qual algarismo, deduzindo, em relação ás aldeias, pelo menos 5 alumnos, em consequencia de devermos suppôr uma proporção mais avultada nas cidades, onde a população está agglomerada, seguir-se-hia, que frequentando as escholas ruraes todas as creanças que as devem frequentar, o ordenado municipal do professor nunca excederia quinze mil reis annuaes; ficando assim este ainda em peiores circumstancias do que actualmente se acha. Mas se attendermos a que a hypothese de uma frequencia completa, só talvez daqui a um século se poderá verificar; se attendermos, além disso, ao grande número de familias abastadas, que fazem ensinar seus filhos ou tutelados por mestres particulares, por felizes nos dariamos se uma boa lei de instrucção fizesse com que dous terços da infancia frequentassem as escholas públicas. Nesta hypothese, já excessivamente favoravel, ainda o ordenado municipal do professor rural, a seguir-se o dictamen do governo, seria quasi ou absolutamente—nada!

Nem se diga, que a proposta attendeu ao número d'escholas actualmente existentes e não ao das que deviam existir. As escholas não são cousa volante que se transporte de uma para outra parte. Os habitantes das povoações, onde não as ha, não mandam seus filhos buscar o ensino primario a distáncia de duas ou três léguas. Deixam-nos vegetar na ignorancia, como elles vegetam, como vegetaram seus paes e avós. E ainda quando se persuadissem que isto é um mal e desejassem remediá-lo, as circumstancias proprias e as materiaes do país lhes tornariam inúteis essas intenções louvaveis.

Suppondo, porém, que este maximum estabelecido na proposta, além do qual devia começar o vencimento municipal dos professores, assentava sobre fundamentos estatisticos, ainda assim, o defeito da inutilidade, que se notava no artigo correspondente da lei de 15 de novembro, ficava subsistindo na proposta de 16 de julho. Bastaria porventura dizer: esta gratificação será paga peremptoriamente? Terá este adverbio a força necessaria para se fazer obedecer pelas municipalidades, que, quasi por toda a parte, recusam pagar os vinte mil réis estabelecidos expressa e terminantemente na lei de 1836? Se ellas disserem «não temos, ou não queremos», far-lhe-ha penhora nos bens do concelho o vosso peremptoriamente? Peremptoriamente é acaso alguma força physica ou moral, que lucte com a cousa mais robusta deste mundo, a teima municipal?

O justo pensamento de substituir a gratificação fixa pela gratificação fluctante foi, portanto, um pensamento completamente inutilisado.

Deixaremos de parte as disposições da proposta, relativas ás aposentações, jubilações, substituições, como providencias mui secundarias, quando se tracta da propria existencia do ensino primario; contentando-nos de ter apontado a leveza com que foi redigido o artigo relativo ás gratificações municipaes; ao passo que se desceu ao ridículo de marcar a épocha e os dias das férias nas escholas, quando era necessario resolver os mais graves problemas da organisação do ensino popular.

Dous artigos se encontram ainda nesta proposta, dedicados a dar solução a outros tantos desses problemas capitaes. Num delles o pensamento nos parece excellente, péssima a sua fórmula: no outro péssimos o pensamento e a fórmula.

É o primeiro (art. 13.^o) obrigar por via de mulctas os paes ou tutores a enviarem seus filhos ou tutelados á eschola pública. Esta providéncia em um país tão atrasado como o nosso, onde ainda bem longe de se ter amor á instrucção, se lhe tem uma especie de horror, é absolutamente necessaria: mas o que vem a ser altamente absurdo é o modo porque se pretende tornar effectiva essa penalidade. Diz o art. 13.^o—«as camaras municipaes poderão impôr mulctas annualmente, até a quantia de 800 réis, aos paes omissos, que, tendo filhos varões de 8 a 12 annos de idade, os não mandarem instruir nas escholas de ensino gratuito, havendo-as nas suas respectivas paróchias.»—Poderão?! Quaes seriam as camaras legislativas, que sanccionassem assim o arbitrio municipal de uma pena pecuniaria? Pela doutrina do artigo, as municipalidades poderiam impôr ou deixar de impôr a mulcta, segundo se lhes antojasse: os proprios vereadores, se lhes aprouvesse, deixariam seus filhos sem instrucção primaria, e obrigariam os alheios a recebê-la: se lhes aprouvesse estabeleceriam nos concelhos um privilégio de ignorancia. Doutrina monstruosa fôra esta, que não serviria senão de converter a instrucção popular em instrumento de discordias e iniquidades.

O decreto de 15 de novembro de 1836 tinha creado commissões inspectoras nos concelhos, para vigiarem pela execução das leis e regulamentos relativos á instrucção primaria. Estas commissões gratuitas, sem sancção penal para os que mal servissem nellas, e sem incentivo de prémios para aquelles de seus membros que bem desempenhassem as obrigações que lhes eram impostas, difficultosamente poderiam preencher os fins de sua instituição. Além disso, sendo secretario e vogal de cada uma dellas um professor, nos concelhos onde houvesse uma só eschola, este seria ao mesmo tempo vigia e vigiado. Pelo contrário nos concelhos onde houvesse muitas escholas, a inspecção forçosamente havia de desprezar as mais remotas, não sendo provavel que ninguem quisesse gratuitamente sujeitar-se a andar numa especie de correição contínua, percorrendo as diversas parochias do concelho, unicamente por amor da educação intellectual do povo. Assim, nunca se tractou sériamente, ou nunca se alcançou o instaurar taes commissões; e o ensino primario tem hoje por garantia única do seu desempenho a consciencia dos mestres, que no exercicio do seu ministerio costuma ser geralmente larga.

A necessidade, pois, de reformar a lei nesta parte era evidente, e o governo transferiu, na sua proposta, a inspecção das escholas para as camaras municipaes. Com a lei de novembro esta mudança teria graves inconvenientes; com as novas disposições da proposta tinha mais alguma cousa: era um disparate solemne.

A experiencia de quatro annos tem-nos provado, que de todas as despesas geraes que as leis attribuem aos municipios, a que estes com mais avesso animo acceitam é a das escholas primarias. Calçar a testeira da morada de um vereador, é negocio para este mil vezes mais sério (falamos em geral) que a conservação de todas as escholas do mundo. Para elle seria antecipar a bemaventurança celestial, o poder trocar em preço de picaretas que arrasassem os monumentos da arte e da historia, ou ao menos em boiões de cal que os estragassem, os vinte mil réis, tão chorados, que a lei vai buscar ao cofre do concelho para o pobre mestre eschola. Substituida esta gratificação fixa pela gratificação fluctuante da proposta, e encarregada a camara da inspecção das escholas, a victória das picaretas e da cal delida era irremediavel, e a gratificação passava da bolsa do professor para a do ferreiro da aldeia; porque os vereadores tinham nas suas mãos o impedir que o número dos alumnos excedesse os maximos estabelecidos no artigo 5.^o da proposta; não só como inspectores, mas como auctorisados a impôr ou perdoar, ad libitum, as mulctas aos paes e tutores omissos.

Por estas rápidas observações se conhece que a proposta de 16 de julho, onde inquestionavelmente transluzem pensamentos de verdadeira refórma, pelo errado desinvolvimento destes, seria, se a convertessem em lei, mais uma calamidade, não só para os professores, mas para a propria instrucção. Felizmente para o país, ella repousa em paz na commissão d'instrucção pública da camara dos deputados, onde nada remedeia, mas onde tambem não faz mal.

Chegará um dia, em que haja quem olhe com sisudeza para os destinos da geração que vem após nós? Esperamo-lo; porque como diz Ugo Foscolo, a esperança é a última divindade do homem. Entretanto exporemos as nossas idéas ácerca do que nos parece neccessario fazer nesta materia, para o solido estabelecimento e generalisação do ensino primario no nosso país.

IV

Incompleto, desassisado, redigido com incrivel leveza, o projecto do governo sobre as escholas da infancia, de nenhum modo poderá tirar o ensino primario da sua situação deploravel. Examinando-o concisamente, e com a maior imparcialidade que pudémos, nas suas disposições capitaes, cremos ter dado demonstração sobeja dessa triste verdade: triste, dizemos, porque é nossa convicção profunda, que só o governo está habilitado para offerecer ao corpo legislativo uma proposta de lei sobre este assumpto, que seja adaptada ao estado do país; pois que só elle pode ajuntar as theorias a uma segura experiencia. Todavia como é possivel dizerem-nos que é mais fácil criticar que substituir, por isso trazemos á luz as nossas opiniões; não com a certeza de serem as melhores, mas seguros de que não as atiramos ao papel irreflectidamente e sem consciencia.

Além de estabelecer várias provisões, por assim dizer avulsas, tendentes a torná-la effectiva, qualquer lei sobre instrucção primaria deve attender a seis pontos principaes: 1.^o, materia da instrucção: 2.^o, organisação das escholas; 3.^o, methodo do ensino; 4.^o, assegurar a concorrencia, a capacidade e ao mesmo tempo a sustentação dos professores; 5.^o, direcção das escholas; 6.^o, frequencia dos discipulos. Cada um destes pontos requer certo numero de disposições ou legaes ou regulamentares, em que se prevejam as diversas circumstáncias que nelles se dão ou devem dar, e em que conjunctamente se faça que de tão variadas providéncias resulte a harmonia, e por consequencia a facilidade da execução dellas.

Fácil é de ver por esta enumeração, que muitos artigos de uma boa lei de instrucção primaria assentam sobre theorias; mas que outros, para preencherem o seu fim, dependem principalmente de conhecimentos especiaes do estado material, politico, economico e moral do país. As modificações que esse conhecimento deve produzir, ao querermos transplantar para a nossa terra as instituições análogas das outras nações, são importantissimas; e, se a ellas se não attender devidamente, o resultado será o mesmo que teem produzido as instituições politicas ou civis de outros povos; que imitadas por nós, sem attenção á diversidade do nosso estado social, se teem desacreditado, sendo em si excellentes e até susceptiveis de aclimação, uma vez que se accommodassem ao modo de ser nacional.

As melhores providéncias sobre a organisação do ensino primario, tem-se em grande parte successivamente formulado sobre a larga e solida base de uma diuturna experiencia. É por isso que em cada um dos países onde a illustração se acha mais derramada entre o povo, essas providéncias variam segundo as circumstancias peculiares delles. A organisação do ensino na Prussia e na Austria, primeiros modélos de que não é possivel afastar os olhos quando se querem estudar as questões d'instrucção pública, differe essencialmente da organisação das escholas de Inglaterra e ainda muito do systema francês. A nação dinamarquesa, cujos progressos nesta parte são admiraveis, tem chegado a esse resultado por meios bem diversos dos que emprega a Suissa, talvez nada inferior a ella na generalisação do ensino primario. Cada um dos povos mais adiantados tem obtido os mesmos fins por diversos caminhos. Isto succede, porque cada um delles seguiu o caminho que mais convinha ao seu modo d'existir, sem se adstringir á imitação de systema alheio, que pode ser excellente em uma localidade mas inapplicavel a outra.

Se ha país, onde seja necessario attender constantemente ás circumstancias particulares do seu estado material, é este em que vivemos. O carácter industrial da nação é principalmente o da industria agrícola: a povoação não é proporcional á extensão do territorio: os accidentes do nosso solo são variadissimos, pode-se dizer que Portugal é um país de montanhas: carecemos absolutamente de meios de communicação interna: eis as grandes difficuldades materiaes com que uma lei de instrucção geral tem de luctar. As difficuldades moraes não são menores, e porventura que a maior parte dellas nasce da inercia da ignorancia que ella tem de combater. Tudo o mais é comparativamente fácil de obviar: mas pelo que toca a estes embaraços, a lei não pode fazer mais que acceitá-los, provendo em que as suas fataes consequéncias produzam o menor damno possivel; e mais pode ainda fazer nesta parte a acção administrativa, que as melhores providencias legaes. É por isso que se torna de absoluta necessidade deixar ao arbítrio das auctoridades, encarregadas da direcção das escholas, o resolverem muitas cousas que pertenceriam á lei, se não fosse impossivel uniformar completamente o systema d'ensino num país onde acontece o serem os costumes, a indústria e o carácter dos habitantes duma provincia, tão diversos do género de vida, índole e hábitos dos d'outra, quanto talvez o aspecto e natureza do solo de cada uma dellas são differentes e talvez oppostos entre si. A exequibilidade é a primeira virtude de qualquer instituição, e a exequibilidade em uma lei d'instrucção nacional só pode resultar de nunca o legislador esquecer esse pensamento fundamental da variedade na unidade, que deve presidir á feitura da mesma lei.

V

A primeira questão que naturalmente se deve suscitar, quando se tracta do grave objecto da instrucção do povo, é o saber em que ella haja de consistir; porque este é o ponto culminante á roda do qual se collocam, como subordinadas a elle, todas as outras questões.

A instrucção pública, repetimo-lo, tem por alvo o indivíduo e a sociedade, o beneficio do cidadão e a utilidade da república. A illustração deve facilitar ao homem o adquirir a subsistencia e uma porção maior ou menor dos cómmodos da vida; e ao mesmo tempo torná-lo mais digno membro da grande familia chamada nação. Cumpre, pois, que essa educação intellectual realise estes dous fins e que por isso seja considerada a duas luzes diversas.

Do duplicado destino do homem a parte mais importante é incontestavelmente o seu destino social: o individuo, por nos servirmos de uma imagem, como que fica sumido na sombra do grande vulto da patria. Que o egoísmo combata este grande princípio; embora! Proclama-o quanto ha nobre e generoso no coração humano, e accorde com os corações grandes; ensina-o a mais pura e formosa de todas as philosophias, a velha religião do Christo. A abnegação individual ante o interesse da patria é uma sublime humildade. Tirai-a e a sociedade perecerá: o sacrificio do que morre por defender a vida e a fazenda dos seus concidadãos, por conservar livre e honrada a terra em que repousam os ossos de seus avós, será um suicídio, se voluntario, um assassinio, se exigido: o que abandona o trabalho de que vive para ir assentar-se juiz no tribunal de seus pares, será um louco; louco o que pagar tributos ou acceitar cargos públicos e gratuitos. A existencia do soldado, do guarda nacional, do jurado, do vereador, do contribuinte será um absurdo. Mas a verdade é que o interesse do indivíduo desapparece em todos estes casos diante do interesse público, e a abnegação necessaria para isso é mais ou menos completa em cada país, na proporção do progresso ou atrasamento da educação intellectual do povo que nelle habita.

Este princípio, pois, deve dominar na organisação do ensino geral: o homem que entra na vida, pertence primeiro á república do que a si proprio. Mas ninguem diga que haja por esse motivo de se exigir delle, que desminta a voz íntima e imperiosa que nos ensina constantemente a buscar a propria conservação e a propria ventura. Bem longe disso, a sociedade a cujo proveito elle põe vida, trabalho e fazenda, deve escutar com amor de mãe essa voz que a natureza faz soar nos corações de seus filhos. Em quanto estes dissimulam o grito da consciencia a impulsos de amor da patria, é necessario que esta corresponda com igual carinho em retribuir aos seus sacrificios. Onde e quando esta lucta de generosidade e virtude fôr sincera e completa, o género-humano terá tocado as raias da perfectibilidade: então a crença do evangelho, estrada que conduz da morada do homem á morada de Deus, terá unido a terra ao Céu, e a Cruz terá concluido a sua missão dos séculos.

Oh, quão apartados vamos nós ainda dessa ventura! Mas confiemos e esperemos. Porque se havia a Providencia de esquecer de nós?

A lei de instrucção do povo tem, pois, que resolver um grande problema politico: crear dous graus de ensino, um para o homem como cidadão, outro para o homem como indivíduo, fazendo predominar em cada uma dessas divisões os dous príncipios do eu e não eu social, que parecem oppostos, mas que a philosophia sabe reunir e harmonisar.

Instrucção geral elementar; instrucção geral superior: eis os fundamentos da futura felicidade do país, da felicidade do estado e dos individuos. A primeira representará o direito da republica, a segunda o de cada um dos seus membros: aquella deverá ser ministrada a todos e a todos constranger, porque é obrigação commum e universal: esta facultada a todos porque é direito commum e universal. Ainda nenhuma lei attendeu entre nós a estes distinctos caracteres do ensino geral: por isso a nossa legislação tem variado nas suas disposições a este respeito e o executivo fluctuado indeciso na sua applicação. Acceitai, porém, os bons principios, estabelecei, propagai, melhorai este systema de educação complexa, e as gerações vindouras vos abençoarão.

VI

Dividido o ensino geral em duas partes distinctas, caracterisadas, a primeira pelos seus fins principalmente sociaes, a segunda pelos seus fins principalmente individuaes, a materia desse ensino duplicado vem naturalmente collocar-se nas respectivas divisões; mas a extensão delle deverá ser modificada pelas condições e estado da sociedade, onde se tracta de estabelecer sobre novos e solidos fundamentos a instrucção nacional. As considerações que dahi resultam, não fazendo mudar na essencia a materia do ensino, estreitam ou alargam todavia os seus limites, em proporção dos meios ou difficuldades, progresso ou atrasamento em que se acha o país.

Segundo a lei francesa de 28 de Junho de 1833, o primeiro grau d'instrucção geral comprehende o ensino moral e religiosoa leituraa escriptao systema legal de pesos e medidasos elementos do cálculoe os elementos da linguagem. O segundo grau comprehende, além disso, os elementos da geometria e as suas applicações usuaes, especialmente o desenho linear e a agrimensura—os rudimentos das scienciaes physicas e da historia natural applicaveis aos usos da vida—a musica—os elementos de historia e de geographia, especialmente os da historia e geographia da França.

Na Prussia (modêlo que a França seguiu) existe a mesma divisão d'escholas elementares e superiores. Tanto as elementares (elementars-chulen) como as superiores ou burguesas (burgerschulen) comprehendem as mesmas materias, mas numa escala mais vasta[5]. As primeiras teem por alvo o desinvolvimento regular das faculdades do homem pelo ensino mais ou menos extenso dos conhecimentos usuaes, indispensaveis ás classes inferiores nas povoações e nos campos. As segundas guiam a mocidade até o ponto em que possam manifestar-se nella disposições para tal ou tal profissão, ou ainda para os estudos superiores.

O projecto de lei apresentado ao parlamento belga em agosto de 1831 pela commissão especial encarregada de o elaborar, e que não sabemos se foi já convertido em lei tal qual ou com alterações, tinha o defeito de não dividir os dous graus d'instrucção geral, e de separar della o ensino religioso. Porém, ainda que d'um modo incompleto, a commissão attendera ao duplicado fim do ensino, e nas escholas únicas estabelecia ao menos vagamente o ensino dos elementos e das sciencias applicaveis. O projecto de Ducpétiaux publicado em 1838 remediava, talvez com alguma exaggeração em contrário sentido, estes defeitos. Não sabemos o modo porque a representação nacional da Belgica resolveu a questão ou se já a resolveu: o que sabemos é que naquelle país a instrucção do povo vai prosperando grandemente.

Na lei do cantão de Vaud na Suissa, onde a instrucção nacional se acha num estado florentissimo, tambem a divisão das escholas não existe: mas em cada uma dellas o ensino abrange completamente ambos os graus, isto é, o elementar e o superior, com levissimas differenças dos systemas francês e prussiano.

Na Austria, na Lombardia, na Bohemia e na Dinamarca, a divisão do ensino acha-se estabelecida com maior ou menor largueza em cada uma das suas partes, mas sempre subordinada á idéa fundamental de dar a instrucção necessaria ao total dos cidadãos em utilidade commum, e a instrucção applicavel em proveito individual ao maximo número delles.

Vemos, pois, que no maior número de países onde as questões d'instrucção nacional teem sido meditadas e acertadamente resolvidas, onde a illustração tem produzido ao mesmo tempo o augmento da moralidade pública e o da indústria e riqueza, a auctoridade não se tem limitado a propagar o ensino de ler e escrever, porque por si só não resolvia o problema. A necessidade de o completar sente-se por toda a parte, e o seu complemento está nas escholas superiores de ensino geral.

Concordes a razão e auctoridade das nações, que em materia d'ensino devemos tomar por modêlos, nós proporíamos o estabelecimento simultaneo das escholas elementares e superiores na proporção que posteriormente indicaremos, limitando-nos por agora á materia do ensino tanto em umas como em outras, accommodada ás circumstancias peculiares do nosso país.

O ensino geral elementar deve abranger:

1.^o A leitura d'impressos e manuscriptos

2.^o A escripta

3.^o Os principios de arithmetica até á regra de três inclusive

4.^o O cathecismo religioso

O ensino geral superior deve abranger:

1.^o A grammatica portuguêsa e exercicios de ler e escrever correctamente, servindo de texto para a leitura e themas o Novo testamento

2.^o Os elementos de historia patria e de geographia

3.^o A arithmetica completa, os elementos de geometria e as suas applicações usuaes, especialmente o desenho liniar e as noções mais necessarias de agrimensura

4.^o Os rudimentos de physica e com especialidade os de mechanica, os principios de chimica applicada ás artes, os elementos de botanica applicada á agricultura, e idéas geraes sobre hygiene popular.

Este quadro é na verdade mais limitado que o das instituições analogas da Prussia e da França. Mr. de Girardin, o homem que neste último país talvez tenha meditado mais sobre similhante materia, pensa comtudo não ser sufficientemente extenso o quadro estabelecido na lei de julho de 1833[6]. Em Portugal elle seria demasiado e muito mais por consequencia o da Prussia.

Consideremos cada uma dessas materias em separado e comparadamente: parece-nos este o methodo mais claro e simples que podemos seguir.

Leitura e escripta

Base da instrucção, o ler e escrever é em toda a parte objecto de ensino elementar: a questão única possivel neste ponto versa sobre preferencia de methodos: esta questão tractá-la-hemos em seu devido logar.

Principios de arithmetica até á regra de três inclusive

Mais ou menos resumidamente estes principios, conhecidos pela denominação de contar, ensinaram-se sempre nas nossas escholas de primeiras letras. Entendemos que é necessario dar-lhes a extensão que propomos. Até ás simples proporções a arithmetica é necessaria a todos os individuos nos mais triviaes usos da vida; necessaria muitas vezes no exercicio dos deveres públicos; razão principal de ser considerada como indispensavel nas escholas elementares. As expressões cálculo e arithmetica prática, cálculo, elementos de cálculo que se empregam na lei prussiana e francesa e nos projectos dos srs. Girardin e Ducpétiaux, pareceram-nos vagas, deixando de algum modo ao arbitrio dos mestres a extensão deste ensino. Determinámos por isso o termo onde julgamos ser mais conveniente que elle chegasse.

Cathecismo religioso

Na lei prussiana é este o único ensino moral que se estabelece para as escholas elementares, emquanto na lei e projectos franceses e belgas se diz: instrucção moral e religiosa. Esta differença, que parece de pouco momento, é caracteristica, por um lado do profundo pensar allemão, pelo outro das idéas anti-religiosas que dominavam ha meio século na França, e que ainda não foram completamente extirpadas até nos espiritos mais illustrados. A educação moral da infancia, quasi que diríamos da generalidade dos homens feitos, não deve nem póde ser senão a que nos offerece a religião. No cathecismo religioso está para ella toda a moralidade possivel, e só a moral que se liga aos affectos mais sanctos do coração, ás nossas relações com o céu e ás nossas esperanças além da morte, é intelligivel, porque só ella sabe dar razão da sua existencia. A moral da philosophia é suave e pura como uma destas estátuas de mulher que se encontram sobre as campas dos antigos sepulchros: é formosa, mas é gélida e insensivel: vemo-la, passamos e esquecemo-la. A moral filha da fé assimilha-se á virgem cheia de mocidade e viço: vemo-la e não a esquecemos. Ella nos acompanha na peregrinação da vida, porque as promessas e as ameaças de Deus nos fazem voltar os olhos de contínuo para a sua imagem. Guardai as vossas doutrinas de sabios para o orgulho da sciencia: para os pequenos e ignorantes, basta o cathecismo. O evangelho é mais claro e preciso que os volumosos escriptos de todos os moralistas philosophos desde Platão até Kant: a moral que não desce do céu nunca fertilisará a terra.

É nossa opinião que nesta parte do ensino geral, tanto elementar como superior, se não admitta mais do que um bom cathecismo e a Biblia, para que logo na infancia se não incuta aos homens a errada idéa de que é possivel separar duas cousas que realmente são uma só - religião e bons costumes.

Na Prussia o ensino elementar abrange muitas mais disciplinas; mais ainda do que as por nós propostas para o ensino das escholas superiores; mas a Prussia é decerto o país mais intellectual da Europa e porventura o mais adiantado em tudo; e nós, bem doloroso é dizê-lo, somos nascidos de pouco para a verdadeira civilisação. Seria absolutamente impossivel achar em Portugal cem mestres para regerem escholas elementares como as prussianas, e todavia a natureza do ensino elementar traz comsigo a condição indispensavel de ser rapidamente levado a todos os ángulos do reino.

Na lei francesa as escholas elementares abrangem, além da leitura, escripta, arithmetica (cálculo) e cathecismo (instrucção moral e religiosa) o systema legal de pesos e medidas e elementos da grammatica vulgar. O projecto de Mr. de Girardin accrescenta a musica vocal (canto) seguida e estabelecida nas escholas elementares prussianas.

As razões porque omittimos o systema legal de pesos e medidas e a musica vocal, são obvias. Portugal ainda não tem um systema regular de pesos e medidas; mas logo que elle exista, de necessidade deve fazer parte do ensino elementar. Um trabalho preciosissimo do sabio academico o sr. Franzini sobre este assumpto foi apresentado ao senado; mas provavelmente terá por fado o esquecimento, como por via de regra o tem em Portugal tudo o que é verdadeiramente útil. Quanto á musica vocal, a falta de mestres habilitados para a ensinarem, a torna impossivel nas escholas; mas quando assim não fosse parece-nos que ainda é cedo e mui cedo para curarmos destes apices de civilisação: talvez pudessemos dizer o mesmo da França, e das idéas de Mr. de Girardin nesta parte, como em outras do seu aliás excellente livro.

Pelo que respeita ao ensino dos elementos da grammatica da lingua, apesar de se attribuirem geralmente ás escholas elementares, nós inclinamo-nos a crêr que o tempo applicado a este ensino seria de maior proveito á infancia, em lhe radicar melhor no espirito as noções de arithmetica e os principios religiosos. Na idade para que são destinadas as escholas elementares, os leves principios de grammatica em que as creancas podem ser instruidas, serão facilmente esquecidos por estas: as locuções viciosas do povo só podem ser emendadas pelo habito diuturno de boas leituras, e ainda pelo exemplo e tracto daquelles que frequentarem as escholas geraes superiores, onde nós queremos que se ensine a grammatica da lingua com alguma extensão. Além disso, em quanto as trévas da ignorancia popular são tão espessas, a maior ou menor correcção da linguagem do vulgo não pode ter a importancia que se lhe dá em países mais civilisados que o nosso. Quando as precisões materiaes do ensino estiverem satisfeitas, então curaremos dos aperfeiçoamentos puramente intellectuaes. Não receiemos que entretanto os homens do povo deixem de se entender perfeitamente uns aos outros.

A existencia das escholas elementares quasi que só satisfaz um dos postulados da instrucção geral: habilitar os individuos para desempenharem as obrigações que lhes ha-de impôr a sociedade, como cidadãos de um país livre. Com effeito, o ensino de ler, escrever e contar e da moral religiosa, de muito maior proveito servirá á república do que aos seus membros individualmente, se aqui parar a educação intellectual do povo. Bem pouco destas doutrinas tem por si uma applicação immediata ao bem estar material daquelle que as recebeu, quando pelo contrário o preparam para servir os cargos gratuitos do municipio ou da paróchia, para jurado e, emfim, para mil cousas que se podem considerar como gravames ou impostos onerosos. Limitada assim a instrucção, a lei que a propagar e tornar obrigatoria será da parte da sociedade uma lei egoísta, uma lei de sacrificio sem compensação; e não admira que o espirito público reaja contra o que ella contém de tyrannia.

É o que de algum modo tem acontecido em Portugal desde 1834. Uma das causas da solidão dessas escholas que ainda subsistem no pais, é devida em grande parte a este defeito essencial da instrucção primaria. O jurado, essa preciosa garantia da vida, honra e fazenda dos cidadãos; essa instituição tão vantajosa, tão portuguesa, que nós não fomos realmente pedir a estrangeiros porque ella coexistiu com a infancia da monarchia, e já então foi um penhor de justiça e um elemento de ordem; essa instituição benefica e liberal tem sido entre nós um flagello para a instrucção. Os paes, a quem as sessões de jurados roubam muitos dias do trabalho de que se manteem, consideram a instrucção elementar que receberam como um malaventurado presente e olham como um beneficio feito a seus filhos o recusar-lhes o ensino elementar. Temo-lo ouvido a muitos e esta idéa propaga-se por toda a parte, enraíza-se nos animos, e, se as cousas continuarem no estado em que se acham, renovar-se-ha neste século a ignorancia do duodecimo, em que de dez mil individuos apenas um conheceria os caracteres do alphabeto.

Todavia o raciocinio do povo é exacto; as premissas é que são falsas; mas não foi elle que as pôs: foi a sociedade e a lei. Na falta de instrucção elementar em que se achava o país quando as novas instituições actuaes substituiram as antigas, o jury devia forçosamente ser um onus pesadissimo para aquelles que estavam habilitados para membros delle. Era um mal inevitavel; uma geração qualquer devia passar por elle. O ponto estava em empregar todos os meios para o remediar, e o principal era por muitos motivos o generalisar a instrucção popular.

Faz lástima ouvir os nossos grandes homenzinhos concluirem das resistencias que entre nós tem encontrado a instituição dos jurados, e sobretudo dessa força de inercia que o povo lhe oppõe, que ella não convem ao país e está em opposição com os habitos dos portugueses. O que não convem ao país é que este gravoso imposto de tracusar-lhes o ensino elementar. Temo-lo ouvido a muitos e esta idéa propaga-se por toda a parte, enraíza-se nos animos, e, se as cousas continuarem no estado em que se acham, renovar-se-ha neste século a ignorancia do duodecimo, em que de dez mil individuos apenas um conheceria os caracteres do alphabeto.

Todavia o raciocinio do povo é exacto; as premissas é que são falsas; mas não foi elle que as pôs: foi a sociedade e a lei. Na falta de instrucção elementar em que se achava o país quando as novas instituições actuaes substituiram as antigas, o jury devia forçosamente ser um onus pesadissimo para aquelles que estavam habilitados para membros delle. Era um mal inevitavel; uma geração qualquer devia passar por elle. O ponto estava em empregar todos os meios para o remediar, e o principal era por muitos motivos o generalisar a instrucção popular.

Faz lástima ouvir os nossos grandes homenzinhos concluirem das resistencias que entre nós tem encontrado a instituição dos jurados, e sobretudo dessa força de inercia que o povo lhe oppõe, que ella não convem ao país e está em opposição com os habitos dos portugueses. O que não convem ao país é que este gravoso imposto de trabalho pese apenas sobre um cidadão, quando devia ser repartido por cem ou mil, tornando-se assim não só supportavel mas leve; o que não convem ao país é que o povo ignore a importancia dessa garantia, importancia positiva e material para a sua vida, honra e fazenda; o que não convem ao país é o abandono em que vós tendes deixado o ensino geral; o que não convem ao país é que, ainda quando se propaguem as escholas elementares e todos sejam obrigados a frequentá-las, se limite a instrucção intellectual do povo áquillo que de futuro só lhe pode produzir encargos sem proveito material. Eis o que não convem. Os que pensam que o jury deve abolir-se pelos seus maus resultados, apsimilham-se a um homem ébrio, que tendo caido por uma escada abaixo, concluisse dahi que não devia haver escadas, em vez de procurar o remedio de similhantes accidentes na emenda da embriaguez.

São duas verdades dictas e redictas, mas que nem por isso ficam sendo menos exactas, que as instituições liberaes caminham a par e concatenadas, e que a illustração é o laço que as une e as torna fortes e prolificas de utilidade pública. Para este fundamento de toda a liberdade poder fructificar é preciso que o povo o conheça e saiba que delle depende a sua felicidade. E como perceberá o povo que a illustração é a fonte caudal de todo o bem, se os fructos immediatos que della colhe são só de trabalho e oppressão? Os syllogismos do vulgo raras vezes são falsos em si, mas o que o vulgo não sabe é juntar uma série delles para chegar á verdade. Por isso debalde lhe bradareis que emquanto se não instruir será desgraçado e oppresso. Partindo dos factos que vê e experimenta, responder-vos-ha que mentis, e esses factos isolados põem evidentemente da sua parte a razão.

Daqui a necessidade de compensar com o ensino de utilidade individual e immediata, o ensino cujo alvo principal é o habilitar os homens para o desempenho dos deveres públicos. O que temos dicto a este respeito prova que tal compensação é não só dever, mas tambem um bom cálculo politico.

A instituição das escholas populares superiores é o único meio de obter esse fim. O carácter essencial ou pelo menos predominante dellas é ministrar aquelle ensino cuja applicação é material e immediata para os usos e proveitos da vida: o seu alvo é quasi exclusivamente o indivíduo, e por isso como que contrabalançam as escholas elementares, cujos fins são tambem quasi exclusivamente sociaes.

Sendo, esta a natureza das escholas superiores d'instrucção geral, facil é de ver que as materias d'ensino, que para ellas propomos, são as mais accommodadas a seus fins. Todavia considera-las-hemos de per sí, como fizémos ás que devem constituir o ensino elementar[7].

UMA SENTENÇA SOBRE BENS REGUENGOS

1842

UMA SENTENÇA SOBRE BENS REGUENGOS

O decreto de 13 d'agosto de 1832 foi o facto capital, a consequencia mais transcendente da única revolução social por que o nosso país tem passado desde o fim do século XV. Este decreto libertou a terra; lançou o machado á arvore podre das tradições quasi feudaes; acabou com a oppressão da classe mais importante da familia portuguesa—a dos agricultores. O homem que concebeu tal medida era uma intelligencia robusta, e a posteridade ha-de fazer-lhe justiça. Elle comprehendeu qual era a grande necessidade do povo, e, embora nas particularidades dessa lei das leis se possam notar defeitos, o seu pensamento íntimo é a mais bella concepção legislativa dos tempos modernos.

Infelizmente a sentença do decreto de 13 d'agosto versava sobre graves questões de propriedade, feria interesses aristocraticos: a extincção dos dízimos fôra a sepultura de uma fidalguia que da herança de seus illustres avós apenas conservava o nome e o ventre para devorar os fructos da escravidão da terra: a lei dos foraes foi a campa que a fechou. Era preciso que a nobreza resurgisse conquistando com a virtude, com a intelligencia, com o trabalho e com os serviços á patria uma grandeza solida, em vez da grandeza mentida que ella na sua degeneração profunda estribava só nas extorsões legaes, e sustentava á custa do suor dos homens laboriosos e úteis. Era preciso que a nobreza se regenerasse, e renascesse pura do túmulo em que a tinham lançado as leis populares e justissimas da dictadura do Duque de Bragança.

Isto era difficultoso. Antigamente na França os nobres da Bretanha, quando se viam reduzidos á pobreza, depunham a espada num logar público perante as auctoridades e íam buscar na indústria ou no commércio os meios de sustentar com dignidade o nome paterno, e ou morriam no empenho ou saíam com seu intento. Neste caso revindicavam seus fóros e sua espada, e o povo os respeitava mais, porque tinham vindo reconhecer no meio delle que o trabalho honra o homem.

A nossa aristocracia entendeu que era mais cómmodo clamar contra estas leis que a annullavam, accusar de salteadores aquelles que as tinham redigido e promulgado, falar no sagrado direito de propriedade e nos feitos heroicos de seus antepassados. Escutai um desses que viviam de instituições abusivas: crereis que é uma víctima da mais atroz injustiça: causar-vos-ha compaixão, e amaldiçoareis talvez os homens a quem a liberdade deve tudo, os homens que procuraram tornar impossivel o absolutismo nesta boa terra de Portugal.

Mas os populares, que teem lido a historia do passado escripta com as lagrymas e com o sangue de seus obscuros maiores, não se dignaram responder-lhes. Todavia nada mais fácil fôra que alevantar-se do meio delles quem reduzisse ao silencio esses ridículos declamadores, traçando em resumo a horrivel chronica dos donatarios da corôa. O corollario desse espantoso escripto seria que se o século XIX consentisse vinganças de classes contra classes; se comprehendesse a atrozmente fidalga instituição da revindicta, condemnaria os donatarios a passarem o resto de seus dias a trabalhar com ferros aos pés por conta dos agricultores, para lhes pagarem a millesima parte da dívida de extorsões e de oppressão contrahida pelos nobres avós dos senhores com os vis e refeces avós dos peões.

O clamor da gente de sangue illustre creou, porém, uma opinião, um bando, bando na verdade covarde que se revela só nos factos e que não ousa dizer, eis o meu credo, diante da luz do céu, mas que tem adeptos e sectarios por toda a parte, nos corpos legislativos, ás vezes no poder executivo, e sempre na magistratura: opinião que não ousa condemnar a lei, mas que a sophisma e inutilisa; opinião que até tem feito torcer do caminho da justiça homens honestos, mas ignorantes do passado e incapazes de perceber que uma grande questão social não se resolve com mesquinhas argúcias, com as tradições carunchosas, com as fórmulas e finuras inventadas pelos pedantes organisadores da tyrannia dos cesares.

Não receiamos que hoje uma camara ou um governo obtenha a restauração do maior abuso dos abusos de outro tempo. Quem tentasse escravisar de novo a terra iria antes de o alcançar dormir para sempre debaixo della. Tememo-nos, porém, dos tribunaes; tememo-nos da magistratura; não porque a julguemos na sua maior parte venal ou menos bem intencionada, mas porque a cremos illudida por um demasiado receio de offender o direito de propriedade, e falta geralmente das luzes historicas necessarias para se poderem resolver com justiça as questões que diariamente se alevantam entre os homens laboriosos e os membros inúteis da república, sobre materia de foraes e de bens da corôa.

Com effeito a tendencia dos magistrados é visivelmente a de proteger as pretensões dos donatarios: isto é por todos sabido. A fórma que se dá aos processos, as provas exigidas dos foreiros, e as sentenças dos tribunaes dão um triste documento desta verdade. Ha uma especie de conspiração geral contra o decreto de 13 d'agosto. A ella se associam alguns por maldade, muitos pelas relações e respeitos humanos, muitissimos por não terem estudado sufficientemente o grave negócio dos foraes e bens de corôa, e os fundamentos incontrastaveis da justiça e conveniencia da sua extincção.

A esta última classe cremos nós pertencerem três juizes da Relação de Lisboa, que julgaram a questão de um prazo sito no logar de Cazellas no reguengo d'Algés, questão suscitada entre uma viuva foreira e o administrador de uma capella a que o dicto prazo pertencia. Apraz-nos confessar que esses juizes são homens a quem se não pode negar probidade e rectidão, mas que nos é licito julgar menos entendidos na materia, á vista da tenção do Juiz Relator, a qual serviu de base á sentença.

A Ré tinha-se recusado a pagar o fôro, allegando que, sendo o dicto casal situado dentro do reguengo d'Algés e por consequencia originariamente da corôa, lhe era applicavel o beneficio dos artigos 3, 6 e 9 do decreto de 13 d'agosto; que havendo sido extincto aquelle fôro á vista desses artigos, tinha cessado para ella a obrigação de o solver. Isto parecia evidente: comtudo a Ré foi condemnada, e a sua propriedade, livre pela lei, continuará a ficar serva.

O fundamento principal da condemnação ei-lo aqui: julgue-o a opinião pública á vista das reflexões que vamos fazer:

«Os bens reguengos não eram bens da corôa, e esta é a opinião de todos os nossos jurisconsultos sem excepção; porque não estavam sujeitos á lei mental, e os seus possuidores dispunham delles como verdadeiros senhores, de modo que se podiam vender, alienar e partir sem licença régia, o que tudo se oppunha á natureza dos bens chamados da corôa.» Tenção a fol. 148 dos autos.

Esta proposição seria verdadeira até certo ponto em algumas hypotheses, mas assim geral e absolutamente enunciada é falsa e contrária á historia economica e legal do nosso país, e sobre tudo falsissima applicada ao reguengo de Algés.

Bastaria que o illustre relator se lembrasse do que diz Mello Freire (Inst. Jur. Civ., L. 1, T. 4, §. 2—Nota) para ver que os reguengos se não podiam sujeitar a uma regra geral, e que nem todos tomaram a natureza allodial ou patrimonial, havendo muitos de que só o rei era senhor, e o possuidor simples colono ou usufructuario. Mas seja-nos permitido provar que os havia pertencentes á corôa, e que ainda Mello Freire não estava perfeitamente instruido sobre a natureza dos reguengos.

Cumpre não esquecer o que foram originariamente os reguengos. No tempo da fundação da monarchia os reis tomavam para seus bens patrimoniaes uma porção de terras, outra para a corôa com o fim de tirar dellas o rendimento necessario para as despesas do estado, porque nessa épocha era perfeitamente desconhecido o systema das contribuições geraes. Até o reinado de D. Pedro I esta distincção das duas especies de bens e a sua applicação foram regulares, quanto o podiam ser em tempos bárbaros. Os reguengos como bens patrimoniaes do rei foram, por via de regra, aforados a quarto como o poderiam ser outras quaesquer propriedades particulares. Desde esta épocha, porém, os bens da corôa confundiram-se com os reguengos que ainda se conservavam em poder do monarcha; porque a pessoa do rei começou a tomar o logar do estado. Na casa real gastaram-se indistinctamente os rendimentos da corôa e os dos bens realengos, como indistinctamente se gastaram uns e outros nas despesas do serviço público, e indistinctamente os pródigos D. Fernando e D. Affonso V doaram uns e outros aos grandes. Disto nos dão provas exuberantes as chancellarias dos nossos reis desde D. Pedro I até D. João II e ainda as posteriores. Assim gradualmente se considerou o allódio real como incorporado no patrimonio da república, porque, repetimo-lo, o rei se foi gradualmente substituindo a esta, até que o absolutismo se formulou por completo no reinado de D. João II.

Mas, dirá alguem, porque se conservou sempre a distincção nominal de reguengos e bens de corôa? A razão é evidente: essa distincção ficou subsistindo não em relação ás cousas, mas em relação ás pessoas. Os reguengueiros tinham obrigações e ainda mais privilegios especiaes, e esses privilegios tornavam necessaria a differença. Foi esta a razão que os povos deram a D. Pedro I nas côrtes de 1361 (Artigo 77) para lhe pedirem que os bens vindos ao fisco por dívidas ao rei não fossem feitos reguengos, o que elle concedeu em beneficio dos concelhos: é este o pensamento que se revela em todas as disposições ácerca de reguengos, que se encontram na Ordenação do reino.

Podem-se apresentar dezenas de documentos irrecusaveis desde o século XIV, de que os reguengos se achavam confundidos com os bens da corôa, bem como os censos impostos nos que se haviam aforado antes dessa épocha, sem que uma cousa se confundisse com a outra, porque esses censos caíam debaixo da denominação geral de fóros, ou direitos reaes, e os territorios conservados no dominio do rei debaixo da de reguengos. Foi isto o que obrigou um dos inimigos mais violentos do decreto de 13 d'agosto, e ao mesmo tempo um dos homens mais sabios nestas materias, a confessar que os reguengos se tinham confundido com os bens da corôa na extincção da primeira dynastia (J. P. Ribeiro, Reflexões hist., P. 1, pag. 115), e a affirmar positivamente que a palavra reguengueiros (bens) geralmente significa bens da corôa, e, em especie, certa qualidade delles (Id., Analyse do Parecer da Com. de For., pag. 12).

E com effeito que outra cousa podia dizer um magistrado que tinha consumido uma vida de oitenta annos em estudar as nossas antigas instituições e leis, porque sabia que se a nação lhe pagava era para que exercesse dignamente os cargos que occupou de professor e de juiz? Que outra cousa podia asseverar quem tinha lido, além de muitos outros documentos, os seguintes capitulos das nossas antigas côrtes:

«Senhor: o vosso povo sente muito a desordenança da vossa mui desarrazoada despesa, que saberees que os Rex antiguos sopportavam grandemente seus estados e defensavam a terra per os direitos reaes que em estes regnos som confiscaes da coroa do regno… E quando o Iffante D. Pedro em vosso nome entrou no regimento foy-lhe requerido que desencarregando as almas de seu padre e do vosso, e por não obrigar a vossa as leixasse (as sizas): e sua resposta foi que em elle nom era tal poder até vós serdes em idade que o a vós requeressemos, e ora, senhor, vemos que todalas terras. Reguengos, Lezirias, e Direytos reaes, assim por vosso avô e padre como por vós, som dadas aos fidalgos que não vos ficou salvo estas sizas que levaes contra vontade de vossos povos» Cortes de 1459 c. 3 (Mac. 2 do Supplem. de Côrtes, n.^o 14 fol. 22 em diante e n.^o 15 fol. 22 verso, no Arch. Nac.)… Vemos que vos não abastou dardes terras chans com mero e mixto imperio e toda outra jurdiçam, reguengos, portagens, foros, e todos outros dereytos e dereituras que de vossa coroa real sam, e a ella pertencem… Taes mercês, doações, e emalheações que assy tendes feytas, senhor, sam todas por dereyto nenhumas, e as podees, mas dezemos que devees, revoguar e reduzir dellas, e tornallas á vossa coroa real… esto mostraram vossos povos por dereito se comprirCortes de 1472, 3 capit. do Povo—Cap. da Justiça 3.^o (Maç. 2.^o do Supplem. de Cortes n.^o 14, no Arch. Nac.)

«Item, senhor, azo som os reguengos e dereitos reaes de nunqua tornarem a vossa coroa como som huã vez della desmembrados: seja vossa mercêe de os recolherdes e averdes pera vós, e aos que os teem nom farees agravo, antes lhes farees mercêe em suas vidas lhes dardes em vossos livros outro tanto dinheiro quanto ora rendem os reguengos e dereitos reaes, que assy teem da coroa… porque os taes reguengos e dereitos reaes som os propios thezouros do rey, que som hordenados para seu real estado, e o dinheiro é para fazer com elle mercêe aos que vos servirem.» Cortes d'Evora de 1482, cap. Que se tirem os reguengos e Direitos Reaes (Arm. 11 da Corôa, Maç. 3 n.^o 5, no Arch. Nac.)

Provavelmente os procuradores de Côrtes no século XV sabiam melhor que os jurisconsultos de hoje o que eram reguengos. E note-se que na resposta d'el-rei se não contesta aquella doutrina, como poderá verificar quem quiser consultar o documento original na Torre do Tombo.

Fariamos um livro se quisessemos estractar todos os documentos do século XV por nós conhecidos, que corroboram a nossa doutrina ácerca da natureza de bens de corôa que depois de D. Pedro I tomaram os reguengos, não alienados até essa épocha. Contentar-nos-hemos com três monumentos de legislação dos séculos XVI e XVII, que constituem com os mais antigos uma unidade de doutrina na successão dos tempos.

Seja o primeiro o foral de Montemór-o-Novo, dado por D. Manuel em 1503. Ahi se mencionam dous reguengos e se declara expressamente a sua natureza de bens da corôa. Eis o extracto desse foral no que vem ao nosso intento. Citamos este por se achar impresso; mas podiamos adduzir passagens análogas de centenares delles.

«Primeiramente he da coroa real o Reguengo nosso no termo da dita villa, que chamão ho azinal, em que ha quinze arados, que estão aforados e darrendamentos»…

«E tem mais a coroa real em ha dita villa outro Reguengo…. e a valia e renda delle, e assy doutro de cima do azinhal, ouvemos por escusada decrarar aquy, porque nam pagam foro certo, antes se mudam muitas vezes. (Foral de Mont.—Livro de Foraes Novos do Alemtéjo, fol. 74 no Arch. Nac.).

Se elrei D. Manuel, que mandou passar o foral de Montemór, e Fernão de Pina que o exarou não estavam doudos no anno da Redempção de 1503, permitta-se-nos acreditarmos que no princípio do século XVI os reguengos, aforados ou d'arrendamento, podiam ser bens da corôa.

Seja o segundo a carta régia de 1638 sobre confirmações. Nella se diz que aos donatarios se havia mandado entregassem ao escrivão das Confirmações as «doações, cartas, e provisões, que tiverem, e lhes foram outorgadas de alcaidarias mores, reguengos, foros, direitos, padroados, privilegios, graças, liberdades, tenças, officios, assy de justiça como de minha fazenda, e outras cousas da coroa (Liv. 4 de Leis f. 3 v. no A. N.).

O terceiro monumento de que falamos é o titulo 9 Liv. 1.^o da Ord. Philip, (que é o 7.^o do Liv. 1.^o da de D. Manuel), o qual manda sejam julgados pelos juizes dos feitos da corôa, «os feitos e demandas que pertencem á coroa dos nossos reinos, assim por razão dos reguengos, como das jugadas e de todos os outros bens, que a nós pertencem… salvo nos feitos das sizas e das rendas, foros e tributos, que se para nós arrendam, porque nestes casos, quando se não tratar sobre a propriedade delles (dos bens) mas somente sobre as rendas, conhecerão os juizes dos nossos feitos da fazenda.»

Nesta passagem se conhece evidentemente a intelligencia legal que se dava á palavra reguengo, não do quarto que pagavam os reguengos aforados antes de D. Pedro I, porque esse quarto era um censo imposto nos bens, era renda ou foro, não a propriedade delles. Aqui, pois, a palavra reguengo significa evidentemente a terra, destroe a proposição ennunciada na tenção do illustre Juiz.

E tanto mais evidente se tornará o que affirmamos se nos lembrarmos do § 4 do alvará de 15 de julho de 1779. Ahi se chama a esses quartos direitos reaes e foros que pagam as terras dos reguengos e originariamente da corôa, não esquecendo de caminho notar estas últimas palavras, que definem a natureza dos reguengos.

Esta mesma distincção consignou nos seus escriptos um jurisconsulto moderno que especialmente estudou e tractou a materia de Bens da Corôa. Foi este o desembargador Alberto Carlos de Menezes, a quem se não podem negar conhecimentos mui superiores aos vulgares sobre questões desta espécie.

No seu Plano de Reforma de Foraes (P. 1 § 3) aquelle habil magistrado apresentou uma tabella do patrimonio da corôa dividindo os bens della em corporaes e direitos reaes. Foi nos primeiros que incluiu os reguengos e não os direitos reaes, tanto elle entendia que havia reguengos em que a corôa tinha o dominio da terra, e que não entravam na classe de bens patrimoniaes.

No seu tractado dos Tombos diz o mesmo jurisconsulto: «Os bens e direitos reaes que os reis costumam doar,… aquelles que costumam vender, como jugadas, foros, reguengos e outros bens, se elles se acham possuidos com uma posse immemorial, ignorada a origem desta posse, não se prescreve o seu dominio contra a corôa, sendo bens da corôa… porém sendo elles possuidos com aquella posse é reputado donatario o possuidor T. 2 p. 114). Isto não é mais que a doutrina das nossas leis.

Compare-se essa doutrina com a tenção que serve de base á sentença e avaliem-se os fundamentos della.

Eis como todos os jurisconsultos sem excepção julgam os reguengos bens patrimoniaes; eis como os monumentos legaes os julgam não bens da corôa. Ainda nos ficam todavia muitas leis, muitas opiniões, e muitos monumentos que poderiamos citar em nosso abono, mas receiamos ser demasiadamente prolixos. Cremos sufficiente o até aqui ponderado.

Resumindo: os reguengos que existiam em poder do rei no fim da primeira dynastia foram successivamente confundidos como bens de corôa, do mesmo modo que os censos impostos nos já alienados; e portanto desde o tempo de D. João I[8] foram regulados pela lei mental. A elles são applicaveis todas as resoluções relativas a bens de corôa.

Demonstrada, como parece fica, a distincção neccessaria entre a espécie de direitos reaes chamados quartos, que constituem o canon imposto nos allodios reaes alienados por aforamento, e os bens corporaes desse mesmo patrimonio do rei, confundido com os proprios da corôa no decurso dos séculos: demonstrada, dizemos, a necessidade desta distincção, desapparece o fundamento capital da sentença, fundamento cuja força está só na universalidade da proposição nelle contida, e por isso poderiamos ficar aqui, deixando ao supremo tribunal da opinião pública o avaliar ou a justiça ou a sciencia dos julgadores que proferiram a sentença.

Mas iremos mais longe e desceremos á questão especial de que se tracta; porque esta questão é gravissima. Importa a milhares de familias que ainda crêem que o decreto de 13 d'agosto é lei do pais; que ainda crêem na liberdade da terra, e que se as cousas continuarem deste modo terão de ir receber nos tribunaes o desengano de que as suas esperanças foram uma decepção cruel.

Estabeleçamos alguns factos.

Primeiro.—As terras reguengueiras não alienadas até á resolução de côrtes de 1361, passaram nessa épocha a ter a natureza de bens de corôa. A distincção que ficou subsistindo era quanto a pessoas e não quanto a cousas.

Segundo.—O reguengo d'Algés estava nessa épocha no dominio do rei pela maior parte.

Terceiro.—É portanto de presumir que o casal de que se tracta pertenceu á corôa, e ao Auctor cumpre provar o contrário.

Quarto.—Mas a Ré prova pelo documento de folhas 144 que o casal sobre que versa o pleito fôra doado com outros ao capilão-mór do mar Gonçalo Tenreiro em 1373 (era 1411).

Quinto.—Donde se conclue que neste tempo elle pertencia á corôa, segundo a intelligencia dada á palavra reguengo por três assembleas nacionaes successivas.

Sexto.—O decreto de 13 d'agosto diz no artigo 6.^o: «Ficam extinctos todos os fóros, pensões, , etc… impostos nos bens ennumerados no artigo 3 (bens da corôa) ou pelos reis, ou pelos donatarios, ou por contractos de emprazamento ou subemprazamento, ou de censo fundados em doações régias, ou em foraes, ou em sentenças, ou em posses, ainda que sejam immemoriaes, ou por outro qualquer titulo, posto que não especificado.»

O primeiro destes seis factos ficou provado. Os terceiro, quinto e sexto não carecem de prova. Resta o segundo e o quarto. O documento de fol. 144 só por si, quando faltassem outros, bastaria para os comprovar.

O illustre Juiz Relator na sua tenção diz que segundo se deprehende das expressões da doação a Gonçalo Tenreiro, não foram por ella doadas as proprias terras, mas somente os fructos que pagavam á corôa, e aquelles direitos reaes que era costume doar. Nisto é que cremos ir todo o erro.

Suppondo, caso negado, que os casaes de Cazellas estivessem alheados com o canon do quarto, antes de D. Pedro I, o que seriam os fructos que elles pagavam?—Direitos reaes. Todo encargo assi real como pessoal ou mysto, que seja imposto por lei ou por costume longamente approvado é direito real. Veja-se a Ord. Liv. 2 Tit. 26 §. 23.

Que diz a doação? «Que lhe dôa Algés com sua ribeira e Oucorella e Neiçom-a-velha, e Cazellas com seus termos e com suas entradas e saidas, com todas suas jurdições e direitos e rendas e pertenças

Aqui ha a distincção perfeita de terras e direitos, e a doação faz expressa menção dumas e doutras. Esses logares podiam estar habitados e cultivados por arrendamentos, ou por qualquer outro modo ou genero de contracto, até por aforamentos de mui diversa natureza dos quartos (como vimos nos reguengos de Montemór), em que o rei conservasse o dominio directo, similhantes áquelles de que se encontram milhares de documentos nas chancellarias dos nossos reis, principalmente de D. Dinis, feitos tanto nos bens lançados nos quatro livros de Recabedo Regni, como nos descriptos nos dous livros De Meo Repositorio. Quando se doavam quartos, a fórmula geral era declarar que se doava o direito do quarto no casal de tal ou tal reguengo, como se vê (para não multiplicar exemplos nem os ir buscar longe) duma doação deste mesmo rei e do anno antecedente de 1372 no reguengo de Oeiras límitrophe ao d'Algés, em que se diz que el-rei faz mercê a Alvaro Pires do direito do quarto de um casal do reguengo d'Oeiras (chancell. de D. Fernando., L. 1 fol. 98, no Arch. N.). Desejariamos com effeito que se nos apontasse uma doação feita exclusivamente dos censos de algum reguengo alienado antes de 1361, cuja fórmula fosse análoga ao documento exhibído pela Ré.

Mas o que destroe completamente a supposição do illustre Juiz Relator é o absurdo que resulta da concessão de jurisdicção naquella doação, se admittirmos que a mercê de D. Fernando a Tenreiro era unicamente dos censos impostos em bens que se tinham tornado patrimoniaes, o que não estabelecia entre o donatario e os bens reguengeiros senão um ponto de contacto—a recepção e solução annual do canon. Para que eram as jurisdicções? Damos vinte annos para se nos mostrar uma doação, incontestavelmente exclusiva, de quartos de terras patrimoniaes reguengueiras, a que se ajunctasse a mercê da jurisdicção.

Havia, é verdade, as alcaidarias-mores das villas e cidades, acastelladas, nas doações das quaes quasi sempre se fazia tambem mercê de direitos reaes e jurisdicções, sem que a essas alcaidarias andassem annexas terras da corôa. Mas o que era o alcaide-mór da nossa idade média? Éra uma transformação do conde visigodo e do al-kaid árabe: era uma auctoridade pública análoga ao municeps dos séculos XI e XII que cumulava funcções militares, judiciaes e administrativas; era uma entidade politica successivamente modificada e afeiçoada pela unidade monarchica trabalhando através dos séculos para se constituir absoluta; trabalhando para se completar. O facto de algumas alcaidarias sem jurisdicção era por isso excepcional; era a lenta revolução da monarchia que passava por lá e apagava com a sua mão robusta uma tradição do passado. É assim que nós achamos na célebre lei das jurisdicções promulgada nas côrtes d'Attouguia de 1375, a ennumeracão das doações a que ellas se annexavam. Eram estas as de vilas, terras e logares unicamente. Porque, nessa lei tão particularisada e previdente sobre a questão jurisdiccional; se não particularisou nem previu a hypothese de um donatario de simples rendas da corôa, que conjuntamente o fosse da jurisdicção? Foi inquestionavelmente porque tal donatario não existia. Veja-se aquella lei transcripta no Livro 2.^o Tit. 63 da Ord. Affonsina.

Do theor da doação a Tenreiro sem dúvida se deprehende que se lhe fez mercê de largos tractos de terra, além dos direitos reaes. Mas que importa isso, ou que difficuldade ha em que existisse ainda na corôa, nos fins do século XIV, o dominio desses largos tractos em um reguengo que se estendia desde as margens do Alcántara até entestar com o de Oeiras por mais de uma légua de nascente a poente, e quasi outro tanto de norte a sul? Não estavam ahi para os cultivarem nossos avós (de nós os plebeus) tanto peões como mouros? Não é sabido por qualquer medíocre sabedor da historia patria que a população meia egypcia meia árabe de Lisboa, foi derramada pelos campos vizinhos na occasião da conquista?

Temos, se não nos enganamos, feito ver o nenhum fundamento da intelligencia que o digno Juiz Relator deu aos termos da doação a Tenreiro: resta tractar o segundo facto que ennunciámos; isto é, que naquella épocha a maior parte do reguengo d'Algés estava ainda na corôa. O documento exhibido pela Ré serve de demonstração e por isso procurámos primeiramente pô-lo á sua verdadeira luz. Mas outros factos vem corroborá-lo. Peguemos nas Listas de Bens Nacionaes postos em praça N.^o 153, etc.—e N.^o…, e veremos quantos bens deste reguengo existiam ainda em nossos dias no dominio da coroa. Junctem-se a estes os que actualmente possuem como donatarios em vida José Ribeiro de Carvalho, D. Maria Violante da Cunha e outros, e diga-se-nos se não é probabilissimo que ha quatro para cinco séculos fosse muito maior? Mais: do mesmo rei D. Fernando existem doações d'herdades e casaes no reguengo d'Algés. Tal é a doação do casal do Rolão juncto á ponte d'Alcántara feita a Affonso Ribeiro em 1380 (chanc. de D. Fernando, Liv. 2 fol. 75, no Arch. N.) e outros que seria longo ennumerar.

Demonstrados os factos que estabelecemos, que se deduz delles? Nenhuma outra consequencia poderá tirar ainda o espirito mais agudo e sophismador, senão que o fôro do casal da viuva Simões de Cazellas, está inquestionavelmente extincto.

Diz o illustre Juiz Relator em sua tenção que a doação a Gonçalo Tenreiro não mostra a identidade dos bens aforados á Ré. Pois nesta doação faz el-rei mercê do logar de Cazellas e seus termos, e um cazal que vem entrar dentro daquella aldeola não está necessariamente incluido nos terrenos mencionados nesse antigo diploma?!! Que ninguem imagine Cazellas como uma cidade similhante a Paris ou Londres estendendo-se por muitas léguas de terra, e onde seja difficilimo averiguar antigas divisões territoriaes. Cazellas é um aggregado de dúzia e meia de tugúrios, com duas ou três casas de lavradores mais abastados. É o que seria pouco mais ou menos no tempo del-rei D. Fernando ou D. João I.

O digno Juiz allude ao relatorio do decreto de 13 d'agosto; allude, por assim dizer, ao espirito geral daquella lei, que é respeitar o direito de propriedade. Seja-nos por isso lícito alludir tambem a esse espirito, sem que em nossas palavras se entenda haver o menor sentimento de má vontade ou d'injuria contra o Auctor desta causa, que não conhecemos, e que, como é nosso dever, suppomos um leal e honrado cavalheiro. O espirito dessa grande lei é na verdade respeitar o direito de propriedade, mas tambem o seu pensamento capital é o alliviar o homem que trabalha do encargo de sustentar quem não trabalha. E qual é o resultado desta senlença? É aquelle ficar com o ónus que tinha, e este livre de desembolsar a parte que a coroa tomava para si na divisão da presa. Se nos é permittida uma metaphora, diremos que até aqui o tigre e o lobo devoravam junctos a rês, agora o lobo cevar-se-ha sózinho nella.

Brilhante consequencia do decreto de 13 de agosto!

Paramos aqui porque não julgamos preciso dizer mais. Mas não pense alguem que neste negocio dos reguengos nada mais ha. Ha muito! Se cumprisse, nós provariamos que em rigor as mesmas terras aforadas a quarto antes de D. Pedro I, não constituiam, propriamente bens patrimoniaes; que não havia por esses contractos verdadeira transmissão de dominio directo e útil; que o quarto não era um censo, no sentido que hoje se dá a esta palavra; que todas essas distincções das rendas e tributos não eram conhecidas entre nós nos primeiros tempos da monarchia, porque o direito romano, especie de theologia escholastica, ainda não tinha vindo converter em meada inextricavel a nossa jurisprudencia; que foram leis posteriores a esses contractos primitivos que lhes deram novos caracteres; que os reis não podiam alhear os bens do allodio real, porque isso se oppunha directamente ás instituições economicas do país fundadas nas instituições politicas, superiores a todas as leis civis que depois se fizeram; que estas as despedaçaram e annullaram de facto, mas que não as podiam annullar de direito. Tudo isto provariamos nós até a evidencia; mas não é necessario aqui; e estamos certos que algum dia se demonstrará onde a demonstração possa ser útil—no parlamento,—quando a Providencia nos conceder uma camara de deputados que representem verdadeiramente as classes úteis e laboriosas, e não os interesses do privilégio e dos abusos, camara que nós não sabemos se já existiu ou não neste malfadado país.

A ESCHOLA POLYTECHNICA E O MONUMENTO

1843

A ESCHOLA POLYTECHNICA E O MONUMENTO

    The are more things in heaven and earth, Horatio,
    Than are dreamt of in your philosophy
.

    Shakspeare-Hamlet (impresso em Inglaterra)
    Act. 1, sc. 5.

I

O incendio da eschola polytechnica, acontecimento triste em si, mais triste pelas suas consequencias em relação ao ensino público, tristissimo pelas difficuldades que a pobreza do erario oppõe á restauração desse estabelecimento, foi uma verdadeira calamidade para a instrucção nacional. No estado de má organisação e de abandono em que esta se acha, a eschola polytechnica era uma brilhante excepção. Naquella fonte de conhecimentos úteis: naquelle foco de luz intellectual se haviam de encontrar algum dia os elementos mais essenciaes para a creação do ensino geral, quando os homens que presidissem aos destinos da nossa terra comprehendessem as verdadeiras condições de uma lei d'instrucção pública. Como a eschola polytechnica seria a principal alavanca para esta regeneração não o direi aqui, porque nem esse é o meu intento, nem o tempo presente me parece proprio para tractar similhantes materias.

Convertido o edificio da eschola num montão de ruinas, e perdidos no meio destas parte dos objectos preciosos para a sciencia que ahi se encerravam, o primeiro pensamento, que naturalmente occorreu, foi o de buscar um meio para reparar tão fatal damno. Em milhares de espiritos surgíu simultaneamente uma idéa grande e generosa, e com rapidez incrivel essa idéa se converteu em opinião geral. A razão pública, sempre mais illustrada e segura que a dos individuos, perfilhou o pensamento de applicar as sommas colligidas para a creação do monumento com estátua, á restauração da eschola polytechnica. A imprensa periodica, sem distincção de parcialidades, fez sentir as conveniencias, não da nova applicação que se propunha para aquellas sommas, mas da nova fórma da mesma applicação. A imprensa fez o que devia; este negócio pertencia-lhe essencialmente porque era uma questão de intellectualidade. O alvitre, que ninguem dera, por que todos o tinham dado, parecia não encerrar difficuldades. Era quasi um axioma de civilisação e patriotismo; era a expressão da doutrina de Jesus—o converter pedras em pão—o convertê-las em alimento da intelligencia, em vez de passatempo dos olhos. Era emfim uma raridade em Portugal, uma cousa pública feita com bom juizo.

Todavia a materia não era tanto de primeira intuição como geralmente parecera. Em muitos animos suscitaram-se dúvidas e escrupulos sobre a legitimidade da nova forma que se pretendia dar ao monumento de D. Pedro. Estas dúvidas a principio fracas, envergonhadas, incertas, tomaram vulto e acharam órgão na imprensa: o que parecera axioma converteu-se em these disputavel e disputada. Agora ahi anda na téla da discussão, e quem sabe qual será o seu destino? Quem sabe se os que podem promover a realisação do pensamento público se inclinarão para um ou para outro lado? Uma cousa sei eu; e é, que todos os homens de boa e sincera vontade, a quem Deus concedeu alguma porção de intendimento, devem descer á arena do combate; porque o resultado delle não só será grave e importante em si, mas servirá de padrão por onde estrangeiros affiram o grau da nossa civilisação.

Os que contrastam a opinião geral neste negócio não teem por certo nenhum pensamento reservado, nenhum destes motivos mesquinhos, que tantas vezes nas questões de interesse público transviam os melhores espiritos. Devo e quero crêr, que os seus receios nascem todos de uma delicadeza excessiva de consciencia, de um erro de raciocinio causado por um sentimento puro e nobre. Seria monstruoso e incrivel que as suas palavras nascessem de outra origem; porque nenhum português haveria ahi tão corrupto, que por capricho, por antipathia ou por qualquer outro motivo abjecto, guerreasse a educação da mocidade, e quisesse converter o monumento de um principe liberal e illustrado em monumento de uma façanha de vándalos, que nos deshonraria aos olhos da Europa inteira.

Quando se tracta de uma questão que involve a memoria de um homem como o Duque de Bragança, e da existencia do único instituto d'instrucção superior nascido á sombra da liberdade, nós, geração pobre de gloria; nós, que fortes em derribar as cousas dos tempos que foram, nos temos mostrado tardos e débeis em reconstruir para o futuro, devemos debatê-la sem chólera, e com animo desassombrado de paixões, como o requerem a memoria de um grande principe e a importancia desse instituto.

As objecções capitaes a que se reduz tudo o que se tem dicto, tudo o que se póde dizer por parte dos defensores da pedra contra o pão, são três: 1.^a, a falta de fé pública a respeito de uma somma destinada para certo e determinado fim pelos contribuintes, applicada para fins diversos, sejam elles quaes forem: 2.^a, que representando o monumento de D. Pedro uma ordem de idéas exclusivamente moraes, quanto se ponderar ácerca da utilidade de reconstruir a eschola polytechnica não vem ao intento, porque todas essas ponderações pertencem a uma ordem de idéas differentes: 3.^a, que essas duas ordens de considerações são como duas linhas indefinitas parallelas, que caminham ao lado uma da outra, sem que seja possivel encontrarem-se jamais.

Eis o que era substáncia se tem dicto, escripto e repetido por parte dos defensores do monumento da praça pública; tudo o mais são accessorios; são considerações que tendem a reforçar estes três argumentos principaes. Examinemos a sua força. Se na verdade são solidos, é necessario seguir a opinião quasi singular, e abandonar as ruinas da eschola polytechnica, para que esta seja reconstruida quando e como se podér. Se o não são, é preciso que o monumento de D. Pedro seja digno delle: é preciso respeitar a opinião do país.

Pela minha parte intendo que o primeiro argumento é incontrastavel. Sincera e lealmente o confesso. Quem contribuiu para qualquer obra determinada, tem direito de exigir que essa obra se execute. Fosse ella o maior dos absurdos, fosse a vergonha da arte e do senso commum, uma vez que não offendesse a moral e as leis, a vontade dos contribuintes devia ser respeitada. No caso presente havia um programma, bom ou mau, para a feitura do monumento do Imperador; estava até escolhido o logar onde se havia de erigir quando a subscripção se abriu. Os subscriptores acceitaram aquellas condições: fez-se um verdadeiro contracto. A todas as razões de conveniencia, que se façam, o menor dos contribuintes pode responder:—«Não vos importe se é uma imprudencia, uma loucura, uma brutalidade. As condições do meu contracto são estas: cumpri-as, e não cureis dos meus êrros.»

E teria razão. O transviar o dinheiro do monumento para o mais útil fim, sem consentimento daquelles que o deram, seria uma falta de fé pública; mais: um verdadeiro latrocinio.

Mas não haverá algum meio de resolver a difficuldade? Ha, e muito simples. Que as auctoridades propostas a este negócio declarem que é lícito a todo e qualquer subscriptor retirar a somma que offereceu, se intender que o monumento intellectual não satisfaz as condições da sua gratidão. Depois disto abra-se uma subscripção sem limite no quantum para os que não se offendem de ver a memoria de D. Pedro ligada a um estabelecimento litterario. Parece-me que posso com certeza affirmar que mais bolsas se hão-de descerrar para contribuir de novo, que para receber o já offerecido.

Sem esta medida prévia intendo que é moralmente impossivel mudar as condições capitaes da feitura do monumento, e por consequencia impossivel satisfazer as exigencias da opinião pública.

Consideremos agora os outros argumentos que pertencem á cousa em si, e em relação á moralidade, não de um contracto, mas de um pensamento nacional que reune e formula por certo modo três idéas distinctas—a de um grande homem, a de um povo e a da posteridade.

Tracta-se de um monumento. Por onde se devia começar? Por definir bem claramente aquillo de que se tractava. Fez-se isso? Não.

Sabemos o que significa essa palavra:—dir-se-ha. Pode ser; mas ahi se imprimiu já—«que um monumento é um ponto de contacto entre a gloria e a admiração.» - E porque se disse isto? Porque se tomou uma hypothese por uma these; partiu-se do singular para o universal, do condicional para o absoluto. A definição é falsa, e da sua falsidade nasceu talvez a multidão de paralogismos intoleraveis, que todos temos lido e ouvido.

Um monumento é um meio de transmittir ao futuro uma lembrança do passado. Essencialmente é só isto. Accidentalmente mil condições podem variar o seu modo de existir, mas a condição unicamente absoluta deste existir é o lembrar. Onde houver isto ha monumento: o livro e o templo, o obelisco e a estátua, o palacio e a campa; a arvore e até o chão defeso e condemnado a perpétua esterilidade podem ser monumentos. O objecto lembrado, repito, é a condição exclusivamente absoluta de um monumento.

A columna erguida em uma das praias do nosso Téjo em monumento do supplício de alguns regicidas, e o templo vizinho della, edificado no sítio em que se perpetrou o delicto, serão pontos de contacto entre a gloria e a admiração? Sê-lo-ha a cruz plantada no caminho deserto em memoria do assassino que ahi despojou da vida o seu similhante? Responda-se.

Posto isto, venhamos á hypothese.

Que pretendemos nós? Edificar um monumento a D. Pedro. E para quê? Para lembrar á posteridade o que lhe deve Portugal—nós e os vindouros.—O monumento é para elle; é para a sua memoria.

Quaes são os elementos deste pensamento? São a grandeza moral do individuo, transmittida ao futuro, e a gratidão especialmente nossa, se quiserem. Eis a sua expressão mais simples. São duas idéas. Dellas se deve partir para resolver a segunda e terceira objecções capitaes que os adversarios nos fazem.

Das duas idéas qual é a causa final do monumento, qual a sua condição absoluta? A primeira. Qual o accidente? A segunda.

Em transtornar estas duas idéas, em lhes trocar os valores é que está principalmente o êrro.

É á nossa gratidão que levantaes o monumento, ou á lembrança de D. Pedro? Se é á primeira, afastai da vossa obra a menor sombra de utilidade; porque proveito proprio e agradecimento annullam-se: este será destruido, e o que não existiu não pode ser lembrado: se é a D. Pedro, embora o monumento seja útil, utilissimo, a condição moral necessaria fica satisfeita; o que varia é o que pode variar e ser modificado, o accidente.

Engana o coração aquelles que vêem o egoismo na opinião geral sobre a judiciosa transformação do intentado monumento. Logo mostrarei quanto é vasia de sentido similhante accusação. Entretanto seja-me lícito lembrar-lhes que involuntariamente são elles os egoístas, além de egoístas orgulhosos. Não será mais egoísmo substituir como idéa principal a da propria gratidão á da memoria de D. Pedro? Levantando um monumento de que nenhum proveito resulta ao país, estes homens generosos crêem pagar ao Libertador a dívida nacional! Pagam com o seu dinheiro a liberdade que elle nos deu, e as esperanças de nossos filhos! Elles, homens obscuros como nós, saldam contas com o grande Principe, atirando alguns cruzados para se converterem em pedras que lhe sejam consagradas! Se essas pedras fossem úteis havia um saldo contra elles: era uma vergonha para esta geração, sim pobre, mas fidalga. Nós cremos outra cousa. Cremos que a nossa divida é insoluvel, insoluvel a dívida das gerações que vierem após nós: cremos que o monumento de D. Pedro não deve ser um só; que não é unicamente no fronstipicio da eschola polytechnica restaurada que se ha-de escrever o seu nome em lettras cubitaes de bronze. Multiplicai os institutos de civilisação e de progresso, e consagrai-lh'os; porque o primeiro élo da cadeia da nossa regeneração moral e material parte do meio das suas cinzas, está sumido na noute do seu ataúde. Que por toda a parte o nome de D. Pedro surja entre nós como o de Tell entre os suissos, sýmbolo de liberdade: que por toda a parte as gerações infantes tenham de perguntar ás gerações adultas a significação deste nome, e ellas lhes possam relatar as tradições de saudade que já ouviram recontar a seus paes. Se um beneficio, incalculavel, porque os seus resultados pertencem a um futuro indefinito e desconhecido, se retribue com meia duzia de pedras de Pero-Pinheiro, digo-vos que tendes lá riqueza com que comprar para a nação portuguesa não só a felicidade terrena, mas as proprias chaves do paraiso.

Pelo amor de Deus não pagueis a D. Pedro! Despi a vossa vaidade de pigmeus diante da sua memoria. O vulto do grande Principe é um vulto gigante. Por muito que façais podeis estar certos de que a posteridade não vos enxergará sequer, na penumbra immensa desse vulto, que se alevanta sobranceiro no meio das nossas miserias como o cedro no meio das çarças rasteiras.

Sede gratos, porque cumpris um dever: mas não queiraes associar a vossa gratidão como idéa principal ao monumento do homem illustre, porque isto é um orgulho ridiculo. Que importa ao futuro o vosso nome, ou, o que ainda é menos, um de vossos affectos? Não mancheis o que é sublime e sancto com o que seria trivial e burlesco—uma pequenina vaidade.

Vaidade—não cessarei de o repetir—só vaidade anda nesta guerra que se faz ao pensamento público: é ella quem offusca o intendimento dos que o combatem. A prova ahi está: deu-se como razão suprema—que ninguem acreditaria que a erecção dum monumento fôsse um signal do nosso respeito a D. Pedro, se aquella opinião se realisasse. O monumento é pois consagrado, não a D. Pedro, mas a um sentimento nosso, a nós. Se elle lembrar só o Imperador nada lembra; perde a sua significação de monumento, porque ninguem acreditará que tivemos tal ou tal affecto. Os nossos nomes, as nossas virtudes não chegarão á posteridade com gravissimo detrimento dos vindouros! Oh miseria das miserias humanas!

Talvez eu não intenda bem a questão. Digam-me se é um recibo de pedra, que pretendemos fazer passar authenticamente, e em público, de que pagámos cm admiração até o último ceitil do que deviamos a D. Pedro. Se é isso, tendes razão. Concluido este negócio estamos quites e livres. Depois elle, se podér, que guarde do sepulchro o cabedal que lhe entregámos. Podemos esquecer-nos delle. Se as revoluções da natureza ou dos homens destruirem o monumento, nada temos com isso. Que a sombra de D. Pedro conservasse melhor a sua propriedade.

De que lado estará o egoísmo, o cálculo mesquinho, a ingratidão até? Parece-me que não é do lado da opinião do país. As vossas doutrinas conduzir-vos-hão ao absurdo e á blasphemia moral: basta que tenhaes logica.

Vós dizeis que um monumento forçosamente ha-de ser inútil. Esta condição absoluta tinheis obrigação de demonstrá-la. Havia de levar-vos algum tempo. Devieis começar por destruir metade dos monumentos do passado, que vos desmentem. Achastes mais facil attribuir aos adversarios a proposição diametralmente opposta, de que todo o monumento deve necessariamente ser útil. Crestes que a defensão de um absurdo estava em combater outro absurdo. Enganaste-vos. Nenhuma das duas proposições é verdadeira, porque as idéas que representam não se conteem na de monumento: nenhuma por isso destroe a outra. Pode haver considerações que movam a erigir um monumento útil ou inútil; mas essas considerações são alheias á essencia do objecto. Se todavia a vossa doutrina é que só a inutilidade pode ser monumental, limitai-vos a prová-lo. Epigrammas, que ferem em vão, convertem-se em semsaborias.

Parece-me ficar demonstrado que em relação á idéa de monumento e em relação a perpetuar a memoria do Duque de Bragança a questão da utilidade ou inutilidade de qualquer edificação, que se haja de fazer com o intuito monumental, é uma questão ociosa. Vejamos agora o negócio sob outro aspecto: vejamo-lo em relação a nós.

Quando surge um pensamento público; quando uma nação se congrega em volta de uma idéa para a reduzir a um facto, ella deve considerar bem attentamente o seu desenho antes de o executar. Uma nação é responsavel perante as outras nações, como o indivíduo perante a sociedade a que pertence. Esta responsabilidade, postoque exclusivamente moral, tem na Europa um juizo inexhoravel onde será julgada; a sentença formula-a a imprensa: a opinião é o tribunal que ha-de confirmar esta, e a historia o registo onde para a perpetuidade se lançará o julgamento. Graves e meditadas devem por isso ser as acções que pertencem ao corpo social; é preciso que levem o cunho da moralidade, da decencia, da sabedoria. Sem isto a condemnação é certa. Poderiamos na verdade affrontá-la, se as gerações não fossem solidarias; se uma sociedade não fosse um indivíduo cuja vida se prolonga através dos seculos, e que em cada um delles tem direito a gloriar-se das suas boas acções passadas, como os outros povos teem direito a lançar-lhe em rosto os êrros ou crimes que commetteu em anteriores épochas da sua existencia. Uma geração não pertence unicamente a si, pertence ao preterito cuja herdeira é, ao futuro, cuja testadora será.

Esta doutrina nunca devera esquecer ás nações: nunca devera ser desprezada pelos que as dirigem. Muitos arrependimentos tardios se haveriam poupado: muitas maldicções teriam deixado de cair sobre as cinzas de homens eminentes; muitas mais memorias virtuosas achariam os povos no thesouro das suas recordações, e muito menos bétas negras sulcariam as paginas dos annaes do género-humano.

Se considerado na sua essencia o monumento pode indifferentemente ser uma columna ou uma eschola, um túmulo ou um hospital, uma pyramide ou um sarcóphago: se o seu destino lhe não determina os accidentes como por uma deploravel confusão d'idéas se tem pretendido, cumpre examinar quaes condições lhe possa impôr a circumstancia de ser não só um monumento, mas um monumento nacional; de ser uma edificação pública levantada á memoria de um homem illustre. Aqui uma nova ordem de considerações se apresenta: são umas de conveniencia, outras de decencia, outras emfim de moralidade, e até de poesia, porque se ha-de attender a sentimentos, tradições e affectos; porque uma nação que se esquece de tudo isto não é só corrompida, é uma nação gangrenada.

A esta luz, em relação a nós, como povo livre, aos motivos que tornaram illustre a memoria do Duque de Bragança, ás tradições humanas, e sobretudo ás tradições domésticas, parece-me não só estar resolvida a questão a favor da opinião pública sobre esta materia, mas até provar-se que é moral e poeticamente impossivel o consagrar ás recordações de D. Pedro o já proverbial Monumento com estatua, o mote architectonico de classico abbadessado.

Pelo lado da conveniencia quasi é escusado dizer uma palavra entre a pedra e o livro; entre o luxo de uma praça pública, e o alimento intellectual da juventude; entre o obelisco que desaba ao rugir do volcão subterraneo, ou do volcão popular ainda mais estupidamente assolador, e o monumento prolífico da sciencia, que, uma vez derramada, não destroem nem as revoluções dos homens nem as da natureza: não é possivel discutir preferencias, tanto porque a discussão fôra ridicula, como porque responsaveis para com o futuro, elle teria direito de condemnar-nos por lhe havermos legado em logar de um instrumento de civilisação para todo o país, uma pública-fórma de um velho dixe romano, para adornar ou obstruir uma praça da capital.

E aqui vem a ponto repellir a infundada accusação de egoísmo que se nos faz, porque preferimos o monumento-eschola ao monumento-columna. O que é o egoísmo? É o amor exclusivo de si, o curar unicamente dos proprios interesses sem considerar os de mais ninguem. O egoísmo é essencialmente individual. Mas para quem pode a eschola polytechnica produzir fructos de bençam? Para nós os homens feitos, para nós os que pretendemos que ella seja o monumento de D. Pedro? Certo que não. Rudes ou cultivados, ignorantes ou sabios, já não vamos assentar-nos a esse banquete d'illustração. É a mocidade que lá tem seu logar, é o futuro que ha-de saciar-se nessa fonte caudal de civilisação e de verdadeiro progresso. Onde está pois o egoismo?—Se alguma cousa do coração entra nisto, é exactamente o contrário; é a abnegação.

Attribuirmos aos adversarios motivos maus numa questão de similhante natureza, para tornarmos odiosa a opinião que impugnamos, é confessar indirectamente que sentimos a fraqueza das nossas doutrinas. Estas armas são faceis de menear, e não faltaria bastimento dellas aos que pelejando com raciocinios são accommettidos no sanctuario da sua consciencia. Não as empregarei eu, porque nada provaria esse esgrimir insensato. Deixando o egoísmo, os interesses mesquinhos, as causas occultas a quem de direito pertencerem, tractarei de considerações mais graves.

Um monumento não é uma invenção moderna: desde a origem das sociedades a arvore solitaria se plantou para a recordação dos homens, para as recordações se amontoaram as pedras á borda das torrentes ou sobre os visos dos outeiros. Todos os tempos e todas as gentes deixaram mais ou menos subtilmente escriptas, mais ou menos completas estas memorias de si. Os monumentos teem portanto uma historia, e logo uma philosophia. Vós os que vos alcunhaes de grandes philosophos, e nos olhaes com sobrecenho de superioridade, indagastes acaso os resultados dessa historia buscando por tal modo alguma luz para das normas geraes deduzir as condições da hypothese? Não!—É que isto era apenas consultar a razão do genero humano, cousa bem escusada tendo vós a vossa razão tão logica, tão fina, tão profunda como fica provado.

Que nos diz em resumo a historia dos monumentos? O que nos dizem todas as cousas; todos os aspectos do passado:—que a idéa caracteristica de qualquer épocha, o facto capital e íntimo de qualquer sociedade se reproduz em todos os seus modos d'existir. Entre os monumentos de um país e cada uma das suas épochas ha sempre uma harmonia, harmonia a que por via de regra se ajuncta a do aspecto moral do indivíduo eminente cuja memoria se quis transmittir á posteridade, ou, tractando-se de um sucesso, a da natureza deste. De similhante verdade, sentida, mas ainda não raciocinada e talvez unicamente della, nasceu a applicação da alegoria ás edificações monumentaes.

Seria longo, daria um livro, o voltar desta synthese á anályse miuda dos factos que a comprovam em todos os logares, em todos os tempos e nos monumentos cuja data é conhecida, e conhecida a historia da geração que os alevantou. Não cabe aqui esse vastissimo trabalho: contentar-me-hei com algumas observações mais notaveis e de mais immediata applicação ao negócio que hoje se ventila entre a opinião pública, e esses espiritos que se crêem mais illustrados do que ella.

Muitos monumentos como o que se pretende dedicar a D. Pedro, muitas columnas com estátuas e sem ellas alevantaram os romanos aos seus homens eminentes: duas apenas se conhecem que precedessem o estabelecimento do imperio, a de Menio e a de Decillio, monumentos obscuros de que só faz menção Plinio. Com o progresso do decair romano multiplicou-se esta especie de padrões, que marcam, ou a servidão dos romanos como os que profusamente espalharam os primeiros césares, ou tristes victorias que ao desmoronar-se aquelle colosso da civilisação antiga, unicamente serviam para tornar mais tormentosa a sua lenta agonia.

Alguns dos principes a quem essas memorias foram consagradas, como os Antoninos tiveram uma triste illustração: foram nobres e virtuosos no meio da corrupção e vileza do seu povo de escravos. Outros a tiveram ainda mais triste, porque deshonrosa aos olhos da philosophia; porque foram apenas ambiciosos de gloria militar, que cubriram a terra de estragos e sangue, como de Trajano com tanta razão observa Gibbon. Outros finalmente as tiveram no meio dos ultimos transes do imperio, como Phocas, tyranno estúpido e feroz, a quem o exarcha Smaragdo pôs tambem uma columna com estátua não sei em que praça da velha Roma, que baqueava já, e se desfazia em pó entre as mãos robustas dos barbaros.

Taes monumentos eram na verdade um sýmbolo da épocha e da sociedade que os erigia: sýmbolo morto de um povo que se dissolvia; existencia infecunda para o bem moral ou material dos homens, e por isso em harmonia com a velhice horrenda de um imperio que se aniquilava: memoria, emfim, de individuos que não faziam outra cousa senão presidir mais ou menos vergonhosamente ao desfazer de uma grande ruina.

Mas que foi D. Pedro? Foi o homem da liberdade; foi o homem da regeneração; foi o homem do pensamento vivificador; foi o homem que nos acordou do lethargo da servidão e do opprobrio para nos pôr no caminho da vida social e da esperança. Que somos nós? Uma nação que renasce, que espera, que tem futuro, se não esquecermos os exemplos e as doutrinas que o Duque de Bragança nos herdou. Se D. Pedro não foi um conquistador como Trajano, que chorava por não poder imitar o grande mentecapto chamado Alexandre o grande; se o ingenho de D. Pedro era energico, activo, creador, bem differente do de Antonino, o Pio, cuja vida se escoou no repouso da sua villa Lanuvia; se fôra atrocidade infame comparar D. Pedro com o brutal e hediondo Phocas, porque insistis em macaquear para seu monumento a columna de Trajano, de Antonino ou de Phocas? Porque subis ao vosso balcão, e continuaes a deitar o mote monumento com estatua, como o exarcha Smaragdo o deitava a um povo agonisante do balcão do senado de Roma? Se crêdes, e esperaes da patria, porque quereis que nossas mãos de homens livres vão desenterrar ao grande cemiterio romano—A Antiguidade Explicada de Montfaucon—um dixe de antigos déspotas pagãos, para o dedicar por cópia a um rei liberal e christão? Se tendes a furia das imitações, ao menos não exijaes que imitemos a obra de uma nação serva e moribunda.

Venhamos já aos tempos modernos. São as tradições humanas mais proximas de nós; são principalmente os exemplos domesticos que condemnam a vossa pretensão de consagrar ao Duque de Bragança um monumento improprio do indivíduo a quem é dedicado e da sociedade que lh'o dedica.

No berço, na infancia e na juventude das nações modernas a idéa predominante e caracteristica da vida social foi o pensamento religioso. E com razão. O christianismo era para essas épochas a civilisação, pelas doutrinas moraes; a força, pelo enthusiasmo da fé. Assim a religião determinou o accidental dos monumentos. Os templos foram os padrões postos á memoria dos individuos eminentes e dos successos gloriosos. O egoísmo tinha sido o sentimento que absorvera todos os sentimentos e idéas da vida decadente, ou antes do lento morrer do imperio, e por consequencia os seus monumentos haviam sido tambem essencialmente egoístas, isto é, essencialmente inúteis. Modificados pela idéa capital da sociedade os da idade média foram prolíficos e civilisadores: a cathedral e o mosteiro correspondiam como sýmbolo e como realidade á eschola moderna; como sýmbolo, porque a religião foi nessas eras quasi o único instrumento do progresso moral; como realidade, porque no mosteiro e na cathedral progrediu a intelligencia humana até que appareceu a imprensa. A utilidade social aggregou-se por esse modo á execução dos monumentos. É isto o que nos diz a historia da Europa nesse período, e em especial a historia do nosso país.

Depois as nações envelheceram, e á lucta do povo e dos nobres, do clero e dos reis, que era vida, crescimento e liberdade, seguiu-se o pacífico triumphar da monarchia, a somnolencia do repouso doméstico, que era decadencia. Então começaram a surgir de novo os motes do exarcha, os monumentos com estátua. Luiz XIV que completou o absolutismo em França teve a sua glosa áquelle mote: teve-a D. José I, que completou o absolutismo em Portugal.

Após isto veiu a renovação. A Providéncia, que transformara o mundo antigo pelas invasões do septemtrião, vai transformando as nações modernas pelas agitações intestinas. Lá empregou o ferro e as trévas: cá as revoluções e a discussão. A lei providencial é a mesma; só a fórma da applicação é diversa.

A analogia entre a nossa épocha e a meia-idade é maravilhosa e completa sob o aspecto da transformação social. Para ver isto é preciso saber achar a philosophia da historia. Os elementos mudaram, mas a sua acção é identica.

A eschola tem hoje a preencher a missão que o templo desempenhava ha quatro para cinco séculos. O ferro e a barbaria que mataram a dissolução, e amputaram a gangrena romana, abriram fundas feridas no seio da civilisação: o bálsamo do evangelho veiu curá-las. As revoluções e as doutrinas que vão dissolvendo organisações sociaes carunchosas e impossiveis na actualidade, deixam ahi avultado fermento de desordem e de licença: quem ha-de annullar este fermento é a illustração. Para isso a eschola tem de substituir o templo.

Qual é o maximo vulto da idade media portuguesa?—É D. João I. O seu monumento é a Batalha. Qual é o gigante da nossa regeneração social? D. Pedro.

Não serei eu: sejam todos os corações que comprehendem a gravidade dos nossos novos destinos de povo livre; todos os que crêem e esperam, todos os que sabem quanta poesia pode haver nos testemunhos de gratidão popular: todos os que respeitam as tradições nacionaes; todos os que buscam na historia do passado doutrina para o presente; todos os que intendem que a memoria de D. Pedro é uma cousa pura, sancta e sublime;—sejam elles que digam se o monumento do Libertador deve ser a eschola polytechnica ou o mote sediço do Sátrapa de Phocas; ser um sýmbolo de progresso e de vida, ou um sýmbolo de decadencia e de morte.

II

Quando publiquei no n.^o 38 da Revista um artigo sobre a questão indicada na epígraphe acima, disse eu, que a transformação do monumento de pedra em monumento eschola se tinha convertido em these disputavel. Disse o que me parecia ser a crença daquelles que se afastavam nesla materia da opinião geral. Hoje vejo que me enganei, e que nem para esses mesmos o negócio é realmente disputavel.

A única impugnação que, até o momento em que escrevo estas linhas, appareceu contra as reflexões que fiz, foi o artigo lançado nas columnas do Espectador de 13 deste mês, que hoje (18) me veiu casualmente ás mãos. Esse escripto provou-me que os fautores da pedra polida ainda estão talvez mais persuadidos que nós de que defendem uma péssima causa.

Se assim não fosse, como haveria a menos boa-fé de transtornar completamente as idéas contidas no meu artigo, para as combater depois? Como se dariam asserções gratuitas por argumentos? Como se amontoariam desbragadamente tantas contradicções flagrantes? Um homem a ponto de afogar-se não faria mais meneios descompostos, mais tentativas inúteis, mais movimentos para ir em menos tempo ao fundo. Os homens que pretendem converter a columna de Phocas em um palimpsesto onde sacrilegamente escrevam o nome de D. Pedro, afogam-se evidentemente. Que a misericordia de Deus os tenha de sua mão!

Na introducção do artigo fui eu a materia sujeita das considerações do jornalista. Aos elogios e censuras ahi lançados só direi uma cousa: recuso o julgamento: recuso-o no bem e no mal, emquanto o juiz não provar pelos seus títulos litterarios a competencia do tribunal. Para as sentenças valerem costuma o julgador firmá-las com o seu nome. Sem isso um fiel de feitos poderia em vez de os levar de porta em porta; intrometter-se a sentenceá-los.

«Começa o incógnito por dizer que escrevo sem referencia ao artigo da Revista, nem ás minhas idéas, e não ha um parágrapho em todo aquelle papel, que se não refira a ellas, truncadas, transtornadas, postas a uma falsa luz, é verdade, mas sempre a ellas.»

É para dar logo, na concepção geral do escripto, a prova da sua competencia para avaliar a minha pouca logica.

Eu fiz a distincção que era necessario fazer entre a idéa absoluta de qualquer monumento e as condições variaveis delle: provei que a idéa não importava senão o lembrar; que a fórma, as circumstancias, os motivos que o faziam erguer eram accidentaes em relação a elle: falei da these antes de falar da hypothese. O bom do incógnito confunde tudo isto, e diz que eu faço da gratidão um accidente. Com esta trapaça, duas ou três exclamações e alguns pontos de admiração, crê o pobre homem ter respondido a uma ordem severa de raciocinios.

O que é uma hypothese? É a modificação de uma these por circumstancias variaveis e accidentaes. Se a gratidão é condição absoluta da idéa, monumento, um padrão posto para recordar a cheia de um rio significa um testemunho de gratidão á cheia: a memoria destinada a perpetuar a lembrança de um grande crime, é uma prova de gratidão ao criminoso. Eis ao que se devia responder, e não se respondeu, nem se responderá nunca.

Onde disse eu que a gratidão era um accidente em relação a nós? O que disse foi exactamente o contrário: foi que ella era um dever nosso. O que eu acho soberanamente estúpido e ridículo é o querermos lembrar á posteridade as nossas importantissimas personagens porque desempenhamos uma obrigação moral. Se não a desempenhassemos era então que deviamos ter um monumento, mas monumento de condemnação e infamia.

A gratidão é uma idéa necessaria em relação a nós: condicional em relação ao monumento. Provai que esta doutrina do artigo é falsa, e depois fareis exclamações e admirações, que por si sós apenas são boas para ventilar questões de pontualidades amorosas em grade de freiras.

No artigo impugnado asseverou-se um facto: isto é, que a opinião pública preferia o monumento eschola polytechnica ao monumento palimpsesto de Phocas. Diz-se que não o provei. Como e para quê? Escrevia para o público, e o público tinha a consciencia de que eu falava verdade. Agora porém o adversario colloca-me ainda em melhor terreno: teve boa-fé uma vez.—Foi engano, por isso não lh'o agradeço.

Confessa ter existido o facto asseverado por mim. Concordamos pois todos nesse ponto. Logo a sua existencia é incontestavel. Pretende que a opinião pública mudou: isto é, affirma que um novo facto veiu substituir o primeiro. Sou eu que devo provar este, ou elle que deve provar essoutro? A resposta está no Genuense.

Para contrabalançar o voto da razão pública cita-se a opinião de uma alta personagem. Não sei quem é, nem o desejo. O que, porém, sei é que, seja qual fôr a altura dessa personagem, nestas questões de doutrina, o seu voto não significa mais do que uma unidade.

Diz o Espectador que os seus adversarios se escoram na base falsissima, de que não se poderá edificar a eschola sem que se deixe de alevantar o monumento a D. Pedro. Pondo de parte a gíria tacanha com que se dá por provado o absurdo de que o monumento de D. Pedro significa forçosamente a pública-fórma do mote do exarcha Smaragdo, e que uma eschola, um templo, ou outra qualquer cousa não pode ser monumento; pondo de parte essa gíria, porque é vergonhosa e parva, direi só, que não foi isso que eu tractei de provar. O que provei foi que em relação ao Imperador, ao século em que vivemos, á philosophia da historia, aos caracteres politicos da sociedade portuguesa actual, a hypothese de que se tracta, o monumento que se pretende erguer, deve ser uma eschola e não uma cópia mesquinha de um triste monumento de decadencia de outra nação. Se a eschola polytechnica existisse ainda intacta, o monumento com estátua não seria por isso menos absurdo, e moralmente impossivel.

Taxa o Espectador de pueril e não sei de qne mais o alvitre que dei, de se chamarem os contribuintes a levantarem as suas quotas no caso de não approvarem o monumento-eschola. Este modo liberal, decente, moralissimo, de consultar a opinião daquelles que teem direito a serem consultados na materia; de respeitar a propriedade e a vontade particular naquillo em que deve ser respeitada, merece o profundo desprezo do auctor do artigo. Estou bem longe de suppor que as suas acções como homem e como cidadão sejam conformes com as suas doutrinas moraes; mas estas pelo que se vê aqui são tão exactas e sans, como as idéas que tem ácerca de monumentos.

O resto do artigo é todo do mesmo gosto. Versa sobre o presupposto miseravel e ridiculo, que fora do mote monumento com estatua, não ha salvação monumental possivel. Se eu me occupasse um minuto em responder á máchina de sensaborias que sobre este fundamento de palha se alevantou, merecia bem meia duzia de palmatoadas. Era uma creancice intoleravel.

Querem um ex digito Gigas? Ahi vai:

«… em todos os seus periodos (os do meu artigo) achamos reproduzidos um ou outro dos dois sofismas, se não paralogismos, de sobre que assenta a machina engenhosa, mas só engenhosa, que nos propusémos derribar.»

Isto traduz-se assim:—…achamos reproduzidos um ou outro dos dous argumentos falsos por má fé de quem os emprega, se não são cousa muito mais condemnavel, se não são argumentos falsos, por êrro no raciocinio e não por má fé.

Aqui teem o meu mestre de logica.

Quando os admiradores do mote do Rocio pretenderem defendê-lo, façam cousa tangivel. Emquanto assim não o fizerem estejam certos de que os deixarei barafustar calado. Não tenho tempo nem paciencia para refutar o que está refutado por si.

III

Um artigo destinado a refutar o que ácêrca desta importante questão eu escrevera no n.^o 38 da Revista começou a apparecer no jornal o Correio. Pela forma em que está escripto merece attenção e resposta. Tê-la-ha, e plenissima: plenissima se não me engana a persuasão, em que estou de que essa causa que defendo é a da philosophia, da civilisação, do christianismo, disso a que Guisot chama o aspecto poetico da historia, e finalmente a causa do senso commum.

Nunca esperei, receber na minha vida uma tão longa lição de exegese. Se a valia não é grande pela substancia, é-o pela extensão e pelo stylo. Não sei se o auctor foi levado a fazer um tão largo commentario pelo temor de que eu, novo Juliano Apostata, tentasse dar em terra com o magestoso edificio da religião. Se foi, peço-lhe que se tranquilise. Hão-de passar muitos séculos por cima dos meus ossos e a cruz ainda ha-de hastear-se triumphante sobre a terra. Não a teem derribado as tempestades: não tema tambem que um verme, que nasceu para logo morrer, pudesse fazê-la tombar do seu pedestal eterno.

A verdade é, ao menos assim me parece, que o digno auctor do artigo acreditou, que eu me tinha collocado em uma situação falsa: que estava em contradicção com o evangelho, e que por isso devia aproveitar uma cousa que na questão era um incidente, e convertê-la em parte integrante della, para dahi tirar alguns epigrammas e diversas amplificações, que o são quasí todos os períodos do meu respeitavel adversario, ainda que elle o não queira.

E donde nasceu esta persuasão que o induziu a começar tão infelizmente um artigo, que talvez seja uma obra admiravel? Nasceu, perdoe-me elle, do errado presupposto de que o evangelho se pode estudar em qualquer fragmento de citação, posta á frente de livrinho francês de estreias annuaes, ou dalgum folhetim de Julio Janin. Estas fontes podem-se aproveitar, por exemplo, quando queremos citar versos de um poeta que nunca lemos, e cuja lingua não intendemos. Ás vezes a compra sai avariada, mas é mais barata, passamos por eruditos, e a cousa não tem consequencias. O espírito do christianismo, esse é que não se colhe de relance no tôpo de um capítulo de romance; estuda-se na Bíblia, que é volume mais grosso e pesado que os lindos nadas da crítica de folhetim; estuda-se nas obras dos Padres, e nas tradições da igreja. Sinto dizê-lo, para apóstolo tão fervoroso o meu adversario está, se não analphabeto do cathecismo christão, ao menos muito esquecido do que elle ensina.

Que disse eu? Que a doutrina de Jesus era converter a pedra em pão; em pão do corpo, e em pão do espirito. Será isto verdadeiro ou falso? Em que se resume toda a doutrina moral do christianismo? No sermão da montanha, o qual tambem vem resumir-se na idéa fundamental da crença do Calvario:—a caridade. A caridade, porém, em que consiste? Em fazer por Deus todo o bem aos homens, tudo o que lhes pode ser util; corporal, intellectual e moralmente. E quem seguirá a doutrina do mestre:—aquelles que applicarem os seus haveres, as suas forças, ou a sua intelligencia á esmola, e esmola é tambem a educação que melhora os costumes, ou aquelles que desbaratam tudo isso para fazer triumphar uma idéa absurda, sem proveito humano, pagan, mesquinha e insensata? Quem intende o espirito do evangelho: aquelle que á obra humana pretende associar um pensamento de civilisação e de beneficencía, ou aquelle que a pretende exclusivamente dedicada não tanto á gloria alheia como á propria vangloria? No meu christianismo, que me parece ser o dos apóstolos, e das tradições christans, é incontestavelmente o primeiro.

As reminiscencias do meu adversario armaram-lhe um laço cruel. Lembrou-se de duas passagens do evangelho de que eu não falara, e esqueceu-se completamente daquillo a que eu alludira, a doutrina de Jesus. Pois esta doutrina está em duas passagens singulares relativas a duas circumstancias especiaes em que o Salvador se achou, ou no complexo dos seus preceitos, das suas sentenças claras e positivas, dirigidas ao género-humano? Que se diria daquelle que valendo-se das palavras de Jesus: Não vim trazer a paz, mas a espada, concluisse dahi que o espirito do christianismo era o promover os grandes assassinios collectivos entre as nações, chamados guerra? Não quero dizer eu do auctor do artigo o que se diria desse homem, isto é que nunca tinha lido o evangelho.

Serviu-se o diabo na tentação do deserto das palavras pão e pedra no sentido natural: servi-me eu dellas casualmente no sentido figurado. Daqui concluiu o meu adversario, que eu attribuia a Jesus doutrinas oppostas ás suas. Confesso que não sei responder a isto: tanto como o meu impugnador desceria a responder-me, se, argumentando das phrases francesas do seu artigo, de que se poderia servir por seiscentos motivos diversos, concluisse dahi que elle era francês e não português.

Mas já que foi buscar duas passagens do evangelho para me provar que eu não tinha razão em querer um monumento-eschola, não serei tão descortês que lh'as regeite. Venham esses passos, que servem maravilhosamente ao intento. Muito velho era o diabo quando Jesus veiu ao mundo. Era velho e manhoso, e disso não faltam provas. Diabo parvo ainda ninguem imaginou. Logica devia sabê-la: um rapaz aprende-a bem num anno: melhor a devia ter aprendido Satanás em tantos séculos. Sabia tambem que esse a quem tentava era um Deus. Posto isto, que fez elle? Fez-lhe um argumento per te, que se póde exprimir assim syllogisticamente:

O Filho de Deus converte as pedras em pão:
    Tu dizes que és Filho de Deus:
    Logo converte as pedras em pão.

Que respondeu Jesus? Que o homem não vive só de pão, mas tambem da palavra de Deus. Distinguiu; não contestou a maior nem a menor; e disse sublimemente o que eu homem rude repeti grosseiramente. O pão que elle dava aos homens era o do corpo e do espirito; eram tambem os corações de pedra, as intelligencias broncas ou pervertidas que alimentava com a luz, com o verbo de Deus. E de feito foi este proceder que o divino Mestre deixou como doutrina aos que pretendessem seguir o caminho da cruz. Agora: quem intenderá o pensamento do Crucificado, aquelles que pugnam pela eschola que alumia e moralisa, ou os mantenedores da pedra bruta que não é alimento nem do corpo nem do espirito? Responda quem quiser.

Se o meu illustre impugnador foi infeliz em se valer da historia da tentação no deserto, não o foi menos no texto que buscou para epígraphe. Judas era um hypócrita que pretendia enganar Jesus. Invocando a utilidade dos homens contra a acção de Maria que derramava o bálsamo sobre os pés de Christo, seriam as doutrinas dos Phariseus, dos Sadduceus ou dos Essénios, que invocava, ou a do Redemptor? A não o termos por um mentecapto só esta podia ser; e que só esta era se torna evidente da resposta de Jesus. Nas vésperas do dia em que o Filho do Homem devia ser crucificado, acceitava de bom animo o testemunho de affeição que lhe dava Maria. De que modo desculpou elle a irman de Lazaro? Negou a doutrina que Judas invocava? Não, por certo; não podia fazê-lo. Teria condemnado a sua vida passada, teria desmentido o verbo do Pae. O que fez foi confundir o hypócrita recordando-lhe que elle Jesus era um Deus, que os ía deixar, e que neste momento solemne aquelle signal de affecto fôra uma boa obra; porque fôra a caridade no seu mais alto sentido; fôra o amor de Deus.

Era com a caridade na sua expressão ideal que Jesus confundia o hypócrita, como confundira o demonio, que pensava o podia levar pela soberba a fazer um milagre escusado, com a expressão mais pura do beneficio, lembrando-lhe que o homem não precisa só do alimento do corpo, mas tambem do alimento do espirito.

Que fazem, pois, os que abusam das palavras de Christo em circumstancias especiaes para condemnarem a sua doutrina? Fazem o que faziam Satanás e o hypócrita, que abusavam dessa doutrina, um para o tentar pela soberba, outro para blasphemar da caridade para com Deus á sombra da caridade para com os homens.

Os que condemnam a obra da illustracão para defender a obra bruta, condemnam as palavras com que o Messias repelliu o tentador. A eschola, que instrue e civilisa, é tambem um instrumento religioso, porque a civilisação nasceu do christianismo, e trabalha para elle afugentando as miserias e vicios humanos, que na maxima parte não são mais que habitos ou tradições da barbaria. A eschola, que revela as grandezas de Deus nas condições do universo, e que ensina os meios de ser laborioso e útil aos homens, tambem é um verbo de cima. Aquelle que intender as harmonias dos mundos ha-de forçosamente crêr em Deus; aquelle que pela sciencia obtiver os meios de ser laborioso com utilidade, sê-lo-ha e será virtuoso, porque a virtude é por via de regra a companheira do trabalho.

Quem é o alliado do Iscariotes e de Satanás:—eu ou o meu antagonista?

Aconselho-o sinceramente a que se deixe de considerar o negócio da sua pública-fórma do mote do exarcha romano pelo lado religioso. O estudo do christianismo não é o seu forte. Não me cite o evangelho que eu conheço um pouco melhor do que elle. Cite-me antes Shakspeare.

Ficarei na questão incidente. Publique-se o resto do artigo e então verei se na questão principal posso luctar com tão duro athleta. Nessa occasião tractarei do que neste comêço publicado se encontra relativo já á folha avulsa do livro de Montfaucon, que se pretende transmutar em pedra e transferir da Bibliotheca para o Rocio.

P. S. Neste momento acaba de me chegar á mão o resto do artigo do Correio. Para não occupar demasiadamente as columnas da Revista com este objecto, fique esse resto para outra vez. A mina é riquissima. Evangeliso vobis gaudium magnum, quod erit omni pupulo.

Ajuda, 23 de junho.

IV

Arrogantiam et superbiam et os bilingue detestor.

Proverb. cap. 8.

Vae vobis… qui ornatis … monumenta justorum.

Ev. Mathoeis cap. 23.

Cria eu que todas as vezes que em negócio importante para uma nação, para uma sociedade inteira, esta concordasse geralmente em resolvê-lo de certo modo, esse modo seria sempre o mais conveniente e judicioso. Quando, não todos os individuos, mas a maioria dos individuos de todas as classes e condições, concordassem sobre a fórma de reduzir a facto um pensamento, que significaria tal accordo senão a cousa mais d'estimar e respeitar e que mais rara é de encontrar neste mundo, a opinião do senso commum? Quando uma tal opinião se apresentasse incontestavel, cria eu que as resistencias seriam impossiveis por absurdas: cria que ante a razão da sociedade a razão (?) individual seria pelo menos modesta. A questão do monumento do Duque de Bragança veiu, porém, desenganar-me do meu êrro. Numa effusão de sinceridade um dos defensores da pedra contra o Verbo confessou a existencia dessa conformidade de opiniões; mas porque algumas mudaram, combatem-se furiosamente as daquelles, que intenderam não haver fundamento para abandonar o voto do senso commum.

Á vista disto teremos talvez de confessar que o criterio da verdade nem sequer na razão pública se encontra. Assim cada dia da vida nos destroe uma crença e gera em nossa alma uma dúvida. O scepticismo completo será acaso o termo final do cogitar humano?

Esta idéa é repugnante: esse abysmo de incertezas aberto nas fronteiras da morte é horrendo. Atterra-me pelo menos a mim, e por isso combato. É guerrear por medo. Quando se entenebrecer a estrella polar da razão humana, que facho nos alumiará neste mundo, que, como diz o Ecclesiastes, Deus entregou aos disputadores? O que valha a razão individual, ainda cultivada e erudita, provam-n'o os artigos do Correio ácerca do monumento a D. Pedro.

O que eu disse foi condemnado em pêso pelo meu antagonista como um montão de sophismas. Não me fez espanto. Já uma alta personagem (alta personagem não é synonimo d'alta intelligencia) pertencente a isso que por ahi governa, ou legisla, ou administra, ou anda em carruagem, ou dá banquetes, observou profundamente que os meus sophismas não mereciam respostas. A quem escreve e discute, responderei discutindo como Deus me ajudar: a quem rosna com sufficiencia estúpida; a quem crê que ao vestir a farda bordada se despe a animalidade pura que deu a berço, que hei-de eu responder? Duas palavras só, e serão resposta cabal a essas excellencias ridículas:

«Estão verdes, excellentissimo!»

A questão de doutrina evangélica suscitada pelo meu illustre adversario tractei-a num artigo anterior. Era necessario separar esse incidente da materia principal. Os muitos parágraphos gastos por elle a proposito de uma phrase minha, fazem suspeitar que lhe custava o vir ao ponto substancial da discussão. Havia além disso naquelle incidente uma accusação contra mim de anti-christianismo. Os homens que intendem alguma cousa da religião de Jesus sorriram por certo de tal accusação; mas desgraçadamente não falta quem a ignore. O adversario despedaçara a base única da doutrina moral do christianismo, a caridade, essa norma posta por Deus para aferirmos por ella todas as nossas obras: interpretara erradamente, ía a dizer blasphemamente, duas passagens do evangelho; e assentara a éthica religiosa… em quê? Nem eu o sei! Em nada fazer util á humanidade. Nada, digo, porque eu tinha affirmado que a doutrina de Christo era a beneficencia corporal e espiritual, dar aos homens o pão do corpo e o pão do espirito. Segundo elle isto não passa de uma theoria de Satanás e de Judas. Era injúria que escapara aos encyclopedistas. Cumpria refutá-la: assim o fiz, e creio que o meu antagonista ficaria plenamente satisfeito.

Agora segui-lo-hei passo a passo pelo que pertence á questão principal, naquellas partes do seu discurso, que a minha rudeza me consentir intender. Humildemente confesso que ha algumas tão sublimes que não pude atinar com o que provavam, não digo contra a minha opinião, mas contra ou a favor de qualquer opinião deste mundo! Queira Deus que não seja assim!

A primeira cousa que elle me recusa é o direito de definir um monumento em these, porque Guisot diz que «um objecto se contém quasi sempre mais complelamente na idéa que delle temos, que na idéa que delle se .» Primeiro que tudo, bastava que Guizot deixasse excepções á sua proposição para se não oppôr esta á proposição que o auctor do artigo julgou contrária, e que não é de Locke, mas de todos os homens que teem sabido dialéctica desde Aristoteles até Schelling. Não podia o objecto—monumento—pertencer á excepção indicada por Guisot nas palavras quasi sempre? Depois, tem acaso grande valor em ideologia estas proposições, vagas por serem excepcionaes, sem excepções definidas e determinadas? Parece-me que não.

Porém não é só isso. O que diz Guisot nada tem que vêr com definições de theses ou de hypotheses: a doutrina contida nas suas palavras é evidente e litteralmente que—«a idéa na sua existencia subjectiva é mais perfeita e completa que na fórmula objectiva da linguagem com que a exprimimos.»—O grande mestre de Historia nos tempos modernos não fez mais do que dizer elegantemente uma verdade trivial, isto é, que as línguas são incompletas e imperfeitas, e que nem sempre podemos ou sabemos representar com palavras as concepções da intelligencia. Por isso creio que ainda desta vez a Tentativa sobre o Intendimento Humano do tontarrão de Locke não irá á fogueira da ama de D. Quixote.

Tinha eu dicto que no artigo do Correio a que alludia, se definira a idéa de monumento por uma hypothese, o que era errado modo de definir: porque era applicar as condições do contingente e variavel ao absoluto e necessario. Replica o meu antagonista que fizera muito bem porque ao monumento de que se tracta cabia esta definição. Isto merece examinar-se por miúdo porque é exactamente aqui onde está o élo de todas as equivocações do meu adversario.

Qual é o pensamento predominante em tudo o que elle tem escripto ácerca desta materia? Qual é o seu alvo? Provar que o monumento de D. Pedro não pode ser senão a columna do Rocio. Qual era o meu intuito? Provar exactamente o contrário: que o monumento não só podia, mas devia ser outro. Como me cumpria proceder na discussão? Vejamos.

Eu tinha a estabelecer uma série de raciocinios, e tinha para isso a attender a três idéas ou cousas, o monumento, a pessoa a quem era dedicado e as que o dedicavam. Estes três elementos devia examiná-los um por um, buscar as condições de cada um delles, e vêr como estas entravam e actuavam na idéa complexa. Para seguir a ordem natural comecei pela idéa—monumento—sem a confundir com as outras. É nisto que fiz mal, segundo o meu antagonista! Paciencia!

Que tinha elle escripto? Que um monumento é um ponto de contacto entre a admiração e a glória. Quero-lhe conceder por momentos que esta definição seja exacta para a hypothese, como agora diz; que não é uma especie de trocadilho da Phenix-renascida; que se poderia reduzir á linguagem chan e severa da philosophia. Mas foi o seu monumento, a sua hypothese que elle definiu naquellas palavras, ou a idéa abstracta de monumento? Foi esta incontestavelmente: ninguem que saiba lêr achará outra cousa naquelle período. Assim a minha accusação de que se confundira a these com a hypothese é verdadeira, como é verdadeira a definição que lhe substitui.

O mais antigo escriptor por mim conhecido que definisse a palavra monumento, é o romano Festo[9]. Monumento—diz elle—é qualquer cousa que se fez por memoria de alguem ou de alguma cousa. Disse eu: Um monumento é um meio de transmittir ao futuro uma lembrança do passado. Entre estas duas definições tão irmans na substancia quanto distantes na ordem dos tempos, não ha um escriptor que désse outra. Engano-me! Houve o meu adversario.

E porque o fez elle? Porque confundindo a hypothese com a these, e attribuindo a esta as condições que julgava absolutas naquella, deduzia dahi a seu modo a necessidade de ser o monumento como o desejava; entendia fazer luctar a idéa abstracta de monumento com a utilidade, e excluir esta por aquella.

O laço, postoque involuntario, era demasiado grosseiro para que eu caísse nelle; para que entrasse em uma discussão sem convirmos em termos.

O adversario tinha feito o mesmo que faria, se pretendendo definir o homem, tomasse a hypothesse de um mentecapto, e dissesse: um homem é um animal, que dá com a cabeça pelas paredes, concluindo dahi que onde não houvesse cabeçada em muro, não se poderia dar a entidade homem.

Quando demonstrei a impossibilidade de applicar á these a definição da hypothese, não avaliei esta em si: rejeitei-a como impropria para tractar a questão com methodo; como trasladada absurdamente do concreto para o abstracto. Agora, porém, vou mostrar como essa definição do meu antagonista é falsa ainda em hypothese, não em uma ou outra, mas em todas ellas.

Monumento—ponto de contacto entre a gloria e a admiração.

Temos três cousas nestas palavras, a glória, a admiração, e uma terceira que as liga, o monumento. Mais nada. Venhamos á applicação.

Supponhamos que tiraes a vossa pública fórma romana e a lançaes no meio do Rocio. Passa um século ou dous: um estranho ou um homem do povo, que não saiba a nossa historia, chega ao pé do monumento, lê ahi o nome de D. Pedro, vê emblemas allegoricos que não intende, vê baixos-relevos de batalhas, cujos motivos e resultados ignora. Adivinhará elle o valor, a significação real de tudo isso? Servirá a columna do exarcha de conductor á electricidade que deve produzir a faísca? Á glória que deve produzir admiração? Não ha elementos nenhuns intermédios, além do obelisco, necessarios para que o homem que ignora, admire o homem delle ignorado apesar do monumento? Se, como eu creio, dentro de um ou dous séculos, aos olhos de gerações mais civilisadas que nós, os conquistadores que assolaram a terra para satisfazerem as suas desregradas paixões de ambição e cubiça, os homens que cubriram as familias de lucto no seu proprio pais para irem derramar todo o género de orphandade em terras estranhas; que abusando da força se assentaram sobre as ruinas da liberdade para legislarem, não importa se bem se mal, sem consultarem o voto da sociedade; se taes homens forem tidos pelo que realmente são, por flagellos do género-humano, como servirá a vossa columna de ponto de contacto entre a gloria e a admiração! Com a sua estátua de bronze, com os seus baixos-relevos, com os seus emblemas, com as suas datas de batalhas, com tudo o que quiserdes, não poderia ella mudados os nomes e algarismos servir a qualquer dos grandes e furiosissimos assassinos por grosso, que teem assolado o mundo e convertido os homens em servos? A Alexandre, a Cesar, a Attila, ou a Napoleão? Para saber as causas das batalhas de D. Pedro, e os resultados dellas, a origem e os fins das suas leis, bastará o monumento palimpsesto ou outro qualquer monumento? Não. É preciso a historia, e uma historia onde a philosophia tenha discriminado os factos e caracteres, e a sua valia e moralidade. É ella que pode estabelecer o contacto da gloria e da admiração. Um monumento, imaginai-o como vos approuver, nunca substituirá a historia; porque esta lembra, caracterisa e julga, e os monumentos lembram sómente. Por isso elles a precederam; foram a historia primitiva, a chronica árida e apenas balbuciada do género-humano infante e bárbaro. A vossa definição é falsa: falsa ainda na hypothese. Em these é mais que falsa; é ridicula.

Considerai um por um todos os monumentos desde o imperio dos Pharaós até as monarchias modernas. Qual delles vos habilita por si só para julgar os factos ou indivíduos a que foram consagrados? Nenhum. Como podeis pois admirar sem julgar? Como pode um monumento servir de ponto de contacto entre a glória e a admiração?

A nossa definição que é a única dada por todos desde o grammatico Festo até o diccionarista Moraes, determina nos monumentos um valor constante, sempre possivel, sempre verdadeiro, o meio de transmittir uma lembrança aos vindouros. Apesar dos seus caracteres de exacção e de universalidade; apesar das suas cans de tantos séculos o meu antagonista rejeita-a. O motivo da rejeição é, segundo diz, o não definir ella nada; porque, accrescenta, monumentos podem ser até utensilios de cozinha… os achados em Pompeia e Herculanum são meios porque se transmittiram ao futuro lembranças do passado.

Se o auctor dos artigos do Correio, a quem devo um conceito que estou longe de merecer, não tivesse gasto todas as admirações possiveis sobre a minha irreflexão, enfermidade mental a que, na sua opinião, não costumo ser sujeito, eu faria aqui ácerca de similhante período todos os encarecimentos da admiração. Perguntar-lhe-hei todavia, qual é a significação das palavras transmittirmeio? Transmittir, se não mente a etymologia, significa mandar além—e meio neste logar só pode significar instrumento. Posto isto, perguntarei mais: quando uma cousa serve de instrumento é ella que actua, ou quem a emprega? O meio de mandar além qualquer objecto é que manda, ou a intenção que se serve delle? A que vem, pois, os restos desenterrados em Pompeia? Quem foi que os pôs lá para nos lembrarem o passado? Perdoe-me o adversario uma expressão grosseira, mas exacta: no que disse substituiu á ideologia humana a ideologia dos cães. O cão, quando lhe atiram uma pedrada, morde a pedra, em vez de morder a mão que a despediu. O pobre animal confunde a vontade que actua com o instrumento passivo. Eis porque eu analysei as idéas simples que compõem a idéa complexa de monumento: foi para não cair nestas ideologias caninas.

Cá apparece um parágrapho que me faz tremer! Assevera o meu adversario que armei um—sophisma tão graúdo que se não estivesse em lettra redonda não o acreditaria. Virgem sanctissima! Grossa parvoíce disse eu! Que foi? Vejamos:

«Segundo elle (este elle sou eu) o testemunho de agradecimento por um serviço era a annullação desse serviço; um meio de perpetuar a sua lembrança, era um recurso contra a sua importancia. Segundo esta doutrina quem escrever o panegyrico de um homem que admira, depois delle escripto pode deixar-se da admiração, porque o louvor igualou o merecimento. Um arco de triumpho fica sendo um meio de esquecimento, e até uma illuminação será bastante para tirar aos que a fazem toda a razão de admirarem aquelles a favor de quem é feita.»

«Não, os serviços de D. Pedro não se pagam com umas pedras medidas e cinzeladas, mas não é tambem para lhe pagar os seus serviços que nós nos lembramos de um monumento, é para satisfazer a necessidade da manifestação do nosso reconhecimento para com elle—só para isso

Agora ahi vai para o meu processo de archisophista mais uma peça importante: é a passagem do artigo do Correio a que eu alludia na inacreditavel parvoíce que escrevi, condemnando o orgulho insensato dos que pretendiam pagar em admiração (fraca moeda!) o que devemos a D. Pedro. Para repellir toda a idéa da utilidade no monumento do Imperador; para desacreditar o alvitre de lhe dedicar uma eschola em vez de um penedo lavrado á romana, dizia o Correio:

«Se quiserem podem affirmar que é um último beneficio que delle recebemos, mas que seja a paga em admiração do que lhe devemos em serviços, isso é que não; isso é que não se demonstra nem em três nem em mil artigos.»

Isto não carece de commentarios. Nada é, pois, segundo a mim de todos esses segundo elle, amontoados por amplificação rhetorica. Segundo a mim é o que lá está no meu artigo; que a nossa dívida é insoluvel, insoluvel a dívida das gerações que vierem após nós; eis o que eu creio, e o que disse.

Confesso que chego a ter lástima do meu illustre antagonista!

Fuerza de consonante a cuanto obligas, Que haces que sean blancas las hormigas!

Fique por aqui hoje: o resto será para outro ou outros dias.

V

Sed ego quae monumenti ratio sit nomine ipso moneor, ad memoriam magis spectare debet posteritatis, quam ad praesentis temporis gratiam.

Cicero.

Crença idolatrada do seu coração chama o meu adversario á pública-fórma em pedra do mote do exarcha, em que se pretende escrever por entrelinha ou rasura o nome de D. Pedro: crença idólatra, chamarei eu antes a essa adoração cega das pedras de Pero-pinheiro: cega como a dos primeiros discipulos do propheta de Yatrib, que se atiravam ao ferro inimigo para morrer nelle, pensando ganhar o céu e sujeitar a terra inteira aos destemperas do Koran. E a idolatria um grande peccado: Deus allumie o auctor dos artigos do Correio para que a abandone, e se volte ao evangelho, que já provou exuberantemente haver de todo esquecido.

Os commettimentos, que elle me faz, são todos de quem combate com os olhos fechados como os Musslims primitivos, que muitas vezes achavam a morte onde esperavam encontrar a victória. Ahi vai mais uma lamentavel prova dos perigos das crenças idólatras.

No segundo parágrapho do primeiro artigo publicado no Correio ácerca da questão ventilada, e ainda neste mesmo artigo dirigido contra a Revista, são taxados de egoísmo os que querem a eschola emvez da columna. Repelli eu aquella accusação definindo o que era egoísmo, e mostrando que na feitura da eschola, nenhum interesse existia para nós indivíduos. Como ao que eu disse não havia resposta, o meu antagonista achou mais facil suppor condições do egoísmo o amor da familia, dos amigos, da patria, dos vindouros! Isto é incrivel, mas lá está escripto. Os que defendemos a eschola temos esse egoísmo; nem o abandonaremos, se para adorar, não o bezerro de ouro, mas os penedos de Pero-pinheiro, nos é necessario renegar os affectos mais bellos e puros do coração humano.

Lembro de passagem ao Correio que ego em latim significa eu em português; que Kant, com quem logo no seu primeiro artigo nos quis metter medo (abrenuntio!) fecha todo o universo no eu, e não eu; e finalmente que egoísta é o que concentra todos os seus affectos no eu e abstrai completamente do não eu.

Tenho pena de que os limites de um artigo de periódico me não consintam examinar os deliciosos parágraphos sobre a unidade de pensamento nas obras artisticas, para vermos cuja era a intelligencia de quem todos se haviam de rir. É na verdade admiravel a innocencia com que ahi se rejeita a condição do bom no bello; com que se condemna a estethica de Kant, do mesmissimo Kant, que o meu adversario mettera na sua phalange e com quem, por um triz, nos não mata logo a princípio! Permitta Deus que neste negocio de Kant, não ande alguma emburilhada como a de Shakspeare!

Umas perguntinhas porém irão aqui por amostra. Entre outras cousas a que se nega a possibilidade de ser útil é a um livro sublime, sob pena de universal risada. A Biblia é ou não ao mesmo tempo sublime e útil? É. Quem a dictou? Deus. Não parece ao meu antagonista um pouco grosseiro rir da intelligencia de Deus?

Sobre o resto da primeira parte do artigo, só sei exclamar como Hamlet—palavras!—palavras!—palavras! A que veem ahi todas as especies de monumentos onde a idéa moral de utilidade para os vindouros se poderia associar a est'outra idéa moral, a de lhes recordar o Libertador? Como se prova que para haver coherencia é necessario que o monumento tenha por condição todo o género de utilidades? Onde disse eu que na idéa absoluta do objecto se encerrava forçosamente como qualidade primeira a idéa de uma utilidade, quanto mais de todas as utilidades? Não foi exactamente isso que eu declarei um absurdo creado pelos sectarios da opinião contrária para o combaterem com o outro absurdo, de que é condição absoluta de todo e qualquer monumento o ser inútil? De que modo conclue o meu antagonista do princípio que estabeleci, de que um monumento não tem por condição essencial senão o lembrar, que para ser logico hei-de querer que elle seja sem remissão útil de seiscentos modos? Que logica é esta? Ou eu estou doido, ou o meu adversario cego na adoração extatica dos seus penedos idolatrados.

Eu fiz nascer a conveniencia e propriedade de ser o monumento de D. Pedro uma eschola em vez do obelisco de Trajano ou de Phocas, não da natureza da cousa em si, mas de uma ordem de considerações relativas ao Imperador e a nós, as quaes deviam determinar as circumstancias accidentaes do monumento. Combater essas considerações: mostrar que ellas não são determinantes, isso intendo eu: mas confundir tudo; tanto o que é relativo ao lembrado, como á cousa que lembra, como aos que querem fazer lembrado; tirar de uma ordem de raciocinios argumentos contra uma ordem de raciocinios diversos, é pôr o cháos e as trevas no logar da harmonia e da luz: é mostrar que se não sabe ou não se quere avaliar idéas complexas, que se não concebe ou se não quere conceber o que seja a anályse. Eis porque se repugna á definição rigorosa da idéa generica monumento. A clareza, o methodo, as deducções logicas e precisas matam os defensores da pedra.

Quere o meu adversario refutar-me? Prove que um monumento não é um meio de lembrar, que é alguma cousa mais ou menos ou diversa: prove que a natureza da idéa monumento repugna sempre e em todos os casos á natureza da idéa utilidade. Se fizer isto a questão está acabada. Se o não podér fazer, demonstre ao menos que na hypothese actual as considerações que me fazem crêr, que uma eschola é o monumento mais proprio de D. Pedro, não são verdadeiras; que outras considerações mais exactas determinam que o accidental do monumento seja um obelisco ou uma columna; mas que essas considerações se apresentem sólidas, leaes, contrárias verdadeiramente ás minhas, e não traga argumentos como aquelle por onde termina a primeira parte do seu artigo, no qual querendo sustentar a these de que um monumento é um ponto de contacto entre a admiração e a gloria, diz que os dous monumentos do regicidio de D. José I, postos no logar do crime e do supplício provam contra mim, porque a columna e o templo podiam reunir-se num só monumento, e a casa de Deus expressar duas idéas, a recordação dolorosa do delicto e o agradecimento á providencia, isto segundo a minha opinião. A minha opinião é que um monumento deve lembrar: que a fórma da lembrança, as circumstancias que a acompanham podem ser diversas. Em que prova pois o templo ou a columna contra mim? Confesso que não intendo, e a muita mais gente ha-de succeder isso. Emvez desta affirmativa inexplicavel, eu peço ao meu adversario que mostre qual gloria fazem admirar aquelles dous monumentos, que eu citei, como poderia citar milhares de outros, para lhe demonstrar que era falsa a sua definição generica do objecto monumento.

Pedi acima considerações leaes: o meu adversario auctorisou-me a pedi-las com o modo porque começa o seu segundo artigo. Aproveitou uma virgula trocada na imprensa para affirmar que eu concedo licença de sermos gratos a D. Pedro: porque disse que no monumento o lembrar era o essencial e a gratidão, nossa e dos vindouros, ou especialmente nossa se quiserem, era o secundario, o accidental. Quem lêr o que escrevi verá, junctando os dous parágraphos, em que exprimi essa idéa, que o se quiserem se refere ao especialmente nossa, e não a gratidão. Suppõe-me o auctor do artigo tão insensato, que declarando ser a nossa dívida a D. Pedro insoluvel e a gratidão um dever, concedesse no mesmo artigo, na mesma página, como um favor a liberdade de sermos gratos? Não; elle não o suppõe; mas como um homem que se affoga segura-se a um palito, ao ar, e até ás proprias ondas, assim elle lançou mão de uma vírgula trocada, para salvar uma causa perdida. Por quem é lhe peço que não imite Camões nas águas do Mecon: deixe ir ao fundo a columna romana: olhe que não vale os Lusiadas. Lembro-lhe até que não busque outras razões para sustentar uma opinião insustentavel, se quere que ella prevaleça. Levado á evidéncia que o mote do exarcha é uma cousa anachronica, estúpida, insolente para com a memoria de D. Pedro, sem poesia, sem verdade, sem senso commum, e que uma eschóla deveria ser o monumento do homem da civilisação, esteja certo de que será mais facil arrasar todas as escholas de Portugal do que deixar de se erguer a tal tranca de pedra; esteja certo de que os nossos Angelos Mai de obra grossa com tanto mais afferro se agarrarão ao seu palimpsesto, quanto mais absurdo elle fôr. A historia desta bemdicta nação no presente século lhe é fiadora sobeja disso, em todos os seus aspectos.

Disse eu, e repito, que o essencial no monumento é o transmittir á posteridade a grandeza moral do individuo, e o accidental nelle a gratidão. «Proclama-se, portanto, (observa o meu antagonista) que a inutilidade irrisoria é o essencial, e que a virtude indispensavel é o accessorio.» Onde affirmei eu que o lembrar D. Pedro era inutilidade irrisoria? Pois o homem que quisera ver derramadas por todos os angulos da monarchia recordações de D. Pedro intende que seja irrisorio o recordá-lo? É por certo involuntario, mas é um falso testemunho que o adversario me levanta. O que escrevi corre impresso; julgue-o o meu mais cruel inimigo e diga se ha ahi uma phrase ou uma palavra que o auctorise a attribuir-me similhante pensamento. Portanto!! Portanto, o quê? Bastava ter visto de longe uma eschola de logica para nenhum ente racional tirar similhante illação das premissas que o Correio foi buscar ao meu artigo.

Havendo estabelecido que a condição unicamente essencial do monumento é o lembrar, concluí dahi que a fórma, os motivos, ou outra qualquer circumstancia da sua erecção eram accidentes, eram qualidades segundas, e que o ser ou não util em nada lhe mudava a essencia. Resulta desta doutrina inexpugnavel, que todas as vezes que se fala em útil ou inútil, se ha-de suppor salva a idéa moral e poetica de recordar, porque tal idéa involve a existencia do monumento, e se eu intendesse que este era absolutamente inútil, não seria tão parvo que dissesse—faça-se uma eschola em vez de uma columna; diria—não se faça nem uma cousa nem outra, porque o recordar D. Pedro é escusado. Quando falei de utilidade falei da conveniencia de erguer um monumento, que fosse tambem prolífico, um monumento que associasse ao pensamento do bello, que é a sua essencia, o pensamento do bom, que é uma condição esthética. Dar estas explicações no meu artigo tive vergonha de o fazer; tive vergonha de tractar os leitores como creanças de babadouro e andadeiras.

A bulha que o meu adversario faz com eu dizer que a gratidão ou outro qualquer affecto ou razão determinante do monumento é accidental e por isso accessoria, é uma miseria que o faria crêr estudantinho imberbe, e ainda nem sequer chegado ao Genuense, se outras circumstancias dos seus artigos não revelassem nelle o homem habituado ás lides intellectuaes da imprensa periódica, a sustentar o pró e o contra. O ser accidental não é o contrário de ser importante, grave, bello ou moral; é o contrário de ser necessario. Não poderia alevantar o monumento a D. Pedro a saudade filial ou a de um amigo que nada lhe devesse; o orgulho de um ricaço, o enthusiasmo militar que só visse no Imperador o grande capitão? Deixaria de ser monumento se estes ou outros quaesquer fossem os motivos determinantes? Ninguém o dirá. Logo o essencial é o lembrar, e a gratidão o accidente. Dou dez annos ao meu adversario para que ache uma resposta a isto, que tenha o senso commum.

Graças a Deus, que encontro emfim uma doutrina clara, precisa, opposta francamente á minha! A final o meu impugnador declara «que a posteridade não necessita que lhe lembremos D. Pedro; que não é preciso mandar fazer um pregoeiro de pedra e cal encarregado de estar lembrando aos vindouros uma idéa que nem pode fugir, nem desvanecer-se.» Bem! Isso agora intende-se. O monumento não é para memorar D. Pedro, porque isso seria uma tolice, uma calumnia á posteridade: logo é para lembrar a nossa gratidão: logo o monumento é destinado a recordar que nós homens que hoje vivemos cumprimos um dever trivial, o sermos agradecidos a quem nos fez beneficios. Já vejo que percebi o pensamento que vinha embrulhado no primeiro artigo de Correio, e que o exprimi com clareza e exacção no meu artigo. O monumento do Rocio é destinado a dizer:—Lembrae-vos vindouros de que nós os homens, que viviamos em 1843, não fomos ingratos.

Nesse caso, porém, requeiro desde já um monumento na praça do commercio que lembre aos vindouros, que não fomos ladrões (os que não o temos sido): outro no caes do Sodré, que recorde que não fomos assassinos; e assim por diante. Se todas as virtudes sociaes e communs devem ser memoradas por monumentos, cubram-se delles praças, ruas, vielas, bêcos; semêe-se por entre a cidade de casas outra cidade de agulhas e obeliscos. Se uma virtude trivial desta geração lhe deve grangear um monumento, haja equidade com todas as virtudes análogas.

E não vê o meu adversario, que rejeitando o monumento como meio de recordar D. Pedro, ou falando poeticamente, de eternisar seu nome, rejeita a biographia, o panegýrico, o poema que já pediu para elle? A biographia, o panegýrico, o poema, são obras individuaes: não podem por isso lembrar a gratidão collectiva, mas só a gratidão individual, e assim não representando o que se quere que represente o monumento, a nossa gratidão, não tem valor monumental, salvo se pretendem que o biógrapho, o panegyrista, o poeta, resuma toda a sociedade, seja um novo Christo que pague a dívida universal.

E agora por poema me lembra um peccado velho. Disse-se que o monumento substituia o poema, que nós não tinhamos sabido ou querido fazer. A gente da Revista não sabe fazer poemas épicos, nem tem vontade de o saber. Quanto as nossas forças o permittiam consagrámos ao Imperador, não incenses bolorentos porque a tardança os apodreceu, mas as linhas de gratidão e saudade que o coração nos inspirava quando a morte no-lo roubou. O óbulo de pobres que tributámos á sua memoria ahi anda nas mãos de todos. Digam outro tanto de si aquelles a quem o accesso poetico de tão melindrosa gratidão e saudade cbegou a furo só depois de oito annos, como um tumor frio que precisou de todo esse tempo para amadurecer. Conheci um advogado velho, que em ouvindo destas, exclamava logo: outro officio!

Mais; eu declaro por minha parte que se para chegar á posteridade a heroica virtude que tive de ser agradecido a D. Pedro, se ergue a columna do Rocio, recuso a minha parte de glória, porque tenho medo de que a posteridade se ria da fatuidade com que pretendemos occupar-lhe a attenção, porque não fomos ingratos ao Principe que nos deu liberdade e patria.

Vem o adversario com o argumento de que se a eschola polytechnica restaurada pode intitular-se de D. Pedro, tão bem ou melhor o pode a Universidade, que é a que representa completamente o pensamento da civilisação. O que representa a Universidade e a eschola polytechica em relação aos progressos sociaes do país, ou por outra, á sua civilisação, sabe-o tanto o adversario, e toda essa gente que não quere a eschola porque quere a columna, ou quere a columna porque não quere a eschola; como eu sei turco ou chim. Mas, pondo esta questão de parte, (e desde já lhe asseguro, que não é capaz de me fazer entrar actualmente nella) mui categoricamente lhe declaro, que não me opponho á idéa de que a memória de D. Pedro se una á universidade de Coimbra, ou a todos os institutos litterarios, e que assim perde o seu tempo em chamar inconsequente e tímido ao homem que disse: Multiplicai os institutos de civilisação e de progresso e consagrai-lh'os… que por toda a parte o nome de D. Pedro… surja, sýmbolo da liberdade. Pois quem diz isto recua diante das consequencias, e é tímido? Exceptuo a Universidade ou outro algum instituto similhante, de servir ao grande fim monumental? Chego às vezes a persuadir-me de que o meu adversario me refutou sem lêr o que eu escrevi.

Mais: se uma grande cidade se houvesse hoje de edificar no nosso país seria bello e liberal o dar-lhe o nome de D. Pedro. Foi assim que os Estados Unidos perpetuaram a memória de Washington. Que lhe parece isto ao meu adversario? Não são bem egoístas, sophistas e atheistas aquelles brutos dos americanos do norte em porem á cidade que creavam capital dos Estados, a uma das cousas mais úteis deste mundo, o nome de Washington? Oh lá se o são! Brutissimos.

Eu cito contra o meu adversario o exemplo de uma nação ainda virgem e todavia civilisada e livre, querendo alevantar um monumento ao seu libertador: entre estas circumstancias e as nossas ha paridade: dous libertadores, duas nações livres, dous monumentos. Que cita elle contra mim? Os tendeiros municipaes de França, os caiadores de ochre, os arrasadores de monumentos, qualificados já devidamente por Victor-Hugo, que vão alevantando uns bonecos aos homens notaveis nascidos na sua terra, homens todavia obscuros comparados com D. Pedro. Aqui, confesso que o meu adversario é melhor christão do que eu. É edificativa essa abnegação da consciencia e razão nacionaes ante os grandes philosophos e artistas vereadores das municipalidades de França. Só no céu elle poderá achar a recompensa de tão christan humildade.

Quanto a Napoleão, que me importa a mim que lhe levantem a columna de Smaragdo? Que tem Napoleão com D. Pedro? Bonaparte foi um Alexandre, um César, um Trajano, um Attila, um Gengis-kan, ou tudo isso juncto; mas o que elle não foi é Washington, ou D. Pedro. Escravisou e enluctou a França para através da Europa roubada e assolada chegar a Waterloo. Ergam-lhe a columna com estátua, que é justo. Mas, ao menos, como soldado que fui de D. Pedro, deixem-me protestar contra a associação bestial do seu nome com o nome do assassino do duque d'Enghien; do salteador que roubou e opprimiu a Peninsula, como roubara e opprimira a resto da Europa, até que chegou o dia em que começámos a adubar os nossos campos com os cadáveres de cem mil desses garotos armados com que nos regalara. D. Pedro foi tambem como elle soldado, mas honesto. Não foi salteador nem assassino!

E depois, que é a columna e a estátua de Napoleão? A columna de Vendome foi erguida em 1806 por elle proprio (os déspotas teem o cuidado de fazerem os seus monumentos, porque lá lhes sobejam razões para não esperarem que os outros lh'os façam): em 1814 tiraram a estátua de bronze que elle pusera a si proprio no cimo da columna, para fundirem o cavallo da estátua de Henrique IV: em 1833 a monarchia de julho fez uma revendida á monarchia de Luiz XVIII, e tornou a pôr o boneco. Se em França volvesse o sceptro á linha dos Bourbons pegavam provavelmente no novo boneco e faziam um sino, ou uma bombarda, ou um cavallo para Philippe Augusto, ou para Luiz XVIII. E é destas historias ridículas que se querem tirar condições determinantes para a edificação de um monumento em que não ha paridade alguma com as circumstancias da cousa citada? Miséria!

Para que vem o adversario citar-me a estátua de Guttemberg? Um ou mil exemplos de monumentos, exclusivamente destinados a lembrar, sem nenhuma idéa associada de proveito, nada provam contra mim, que estabeleci em princípio não ser a utilidade ou inutilidade condição essencial de um monumento, e que fiz depender de considerações alheias á natureza da cousa e relativas só ao objecto lembrado e á vontade que lembrava, a escolha das condições accidentaes da fórma. Os exemplos, que tenho citado, e que podia citar aos centenares, são esses que matam a sua proposição absoluta de que um monumento não póde ser útil, e já que me levou a Moguncia, ahi mesmo, e na mesma praça da estátua de Guttemberg, lhe darei mais um exemplo contra ella para fazer verdadeiro o proloquio: vir buscar lã e sair tosquiado. Aquella praça chama-se de Guttemberg; é dedicada ao célebre impressor, e todavia serve e é útil para tudo aquillo para que serve e é útil uma praça.

É preciso além disso que o meu adversario não se esqueça do que é o monumento e do que foi Guttemberg. O monumento de Moguncia é propriamente dedicado a um facto complexo, a invenção da imprensa, symbolisado no homem que não a inventou, mas que lhe fez dar o passo gigante de a converter de tabulária em móvel: antes e depois delle muitos outros trabalharam em aperfeiçoar e completar esse invento, que não é de um indivíduo, mas de uma nação, a allemã, e de um século, o XV. Accresce que em Guttemberg não houve intenção moral de progresso e civilisação: elle nem sonhou quaes eram as consequencias da arte de imprimir. Quando se lembrou de mobilisar os typos só curou de ganhar mais dinheiro que os copistas ordinarios, a quem não era possivel dar cópias tão baratas e em tanta abundancia. Restam provas disto. Nem pois entre elle e D. Pedro ha paridade alguma, nem supponha o meu adversario a Allemanha tão tonta que elevasse essa estátua mais do que como um sýmbolo. Neste monumento não ha gratidão, ha lembrança dum facto complexo que pertence a muitos homens.

Mas concedo-lhe que seja a estátua de Guttemberg o que elle quiser. Pode-se oppôr todavia um facto isolado do presente á doutrina que resulta do estudo de muitos séculos? Desprezar a historia desde as mais remotas éras até ao nosso tempo para dar valor a este ou áquelle fado, practicado hoje nesta ou naquella nação, e ahi mesmo contradicto logo por outro facto análogo, não é um abuso intoleravel do argumento de auctoridade?

Mas, acode o meu adversario, o que dizeis do carácter dos monumentos, e da harmonia das suas condições accidentaes com o estado politico e moral da épocha e do povo que os viu erguer, é falso. E porque é falso? Vejamos.

Já eu mostrei que os obeliscos ou columnas monumentaes não se alevantaram em Roma, senão desde que a tyrannia dos Cesares substituiu a liberdade antiga. Responde-me o adversario, que antes disso não se cultivava a architectura com aproveitamento e protecção, e pergunta-me no fim, muito ancho, se o que eu disse é licção de logica ou de historia.

Não era nada disso: era uma simples verdade: agora o que vai ler é que talvez seja uma e outra cousa.

Se a sociedade romana no tempo que era livre comprehendesse a creação desses obeliscos, que cresceram em volume e em número, não segundo o progresso da arte mas com a sua decadencia, até a completa corrupção, chamada byzantina; se ella cresse que os manes dos homens eminentes se affrontavam de que á memória do seu nome se associasse um pensamento de utilidade, como pareciam acreditar os tyrannos que depois a escravisaram, não podia tambem ter alevantado columnas e obeliscos? Tão rudes eram os antigos romanos, que não soubessem amontoar pedras sobre pedras para fazer uma pyramide, ou uma agulha? Pois não tinham a columna toscana, nascida na Italia antes da influéncia grega, para a collocar no meio de uma praça como a collocavam num templo? Os negros semibárbaros d'Axum puderam alevantar um obelisco: Thebas, a egypcia, pôde erguer tantos: os Pharaós souberam construir as pyramides: todo o despotismo, emfim, do oriente, estúpido e selvagem, deixou o sólo cuberto desses vestigios de um orgulho exclusivo e insensato, e os contemporaneos dos Scipiões, os vencedores da civilisada Carthago eram impotentes para edificar um monumento de similhante género? Porque o seriam? Porque não conheciam a arte grega, diz o meu antagonista. Ha paciencia que tal soffra? Visto isso onde não houver columna corinthia, dorica, ou jonica não ha columna, não ha obelisco exclusivamente monumental, não ha nada. Faltava mais esta desgraça ao género humano. O obelisco de Luxor, que os franceses dizem ter trazido do Egypto, o monolitho d'Heliopolis, que se crê trouxera para Roma Caligula e restaurara Xisto V, (que dous monumenteiros d'obeliscos!) tudo isso são contos da carochinha: os egypcios não conheciam as três ordens gregas; como haviam, portanto, de alevantar esses monumentos? Os franceses e os italianos enganam-nos descaradamente.

O que eu nunca vi foi tanta lástima juncta.

E a Grecia? Porque não falastes na Grecia?—clama triumphante o meu adversario. Pelas razões que lá estão no que escrevi: porque se falasse na Grecia e no oriente, nos povos antigos e nos povos modernos, faria um livro e não um artigo. Escolhi o romano entre uns, porque era o principal delles: escolhi o nosso entre os outros porque era aquelle cujos exemplos nos tocavam mais de perto. Como, porém, o meu antagonista requer Grecia, terá Grecia e será em poucas linhas.

Dou-lhe um anno para me apontar uma columna ou um obelisco grego, destinado a recordar a memória de um morto illustre, e erecto na épocha da liberdade grega, que se afaste das três fórmulas—edificio de serviço público—templo—sepulchro. Isto é categórico. Todas essas especies teem ao lado da idéa lembrar a idéa de utilidade: o templo porque servia tambem ao culto, o sepulchro porque tambem servia para resguardar os restos daquelles que ahi jaziam, porque era útil para a religião dos mortos.

Agora tudo o que se diz a respeito de deitar abaixo igrejas, arrasar sepulchros, e outras gentilezas que vem no cabo do artigo e numa curiosa nota appensa a elle, não lhe respondo, porque está abaixo até de uma resposta jocosa. É um destes espalhafatos de fecho d'acto, em drama ultra-romantico para o effeito de scena. Deixá-lo estar, que está muito bonito.

Tambem o meu artigo ficou em pé ainda desta: deixá-lo estar igualmente que está bem. Esperemos para a outra trovoada.

VI

ULTIMA VERBA

Talvez eu não devesse escrever mais uma única palavra a este respeito: talvez alguem me lance o fazê-lo em conta de cobardia. Depois do auctor dos artigos do Correio se ter retirado do campo da argumentação, para se declarar víctima da minha grossaria, falta de philosophia e boa fé, devia elle merecer generosidade. Para dizer isto, não era necessario deixar passar dez ou doze dias depois da publicação do meu artigo. Evidentemente este período gastou-se em procurar argumentos contra mim. Não appareceram. Saíu-se por esta porta. A invenção não é nova. Comprehendo o doloroso da situação, e respeito-a. Respeitá-la-hia com o silencio: deixaria aos que teem seguido esta discussão avaliar os fundamentos da queixa, se a queixa fosse unicamente contra a minha falta de educação e de philosophia: nisto não ha culpa: cada um tem a educação que lhe deram e a philosophia que a sua intelligencia comporta. Mas á queixa ajuncta-se a accusação; accusação de inconsistencia de doutrinas, de immoralidade litteraria e de má fé nas citações. Isto é grave: grave para mim. Não me importa que o adversario, tendo-lhe eu tambem feito a segunda parte da mesma accusação, e tendo provado o meu dicto, se julgasse absolvido de me responder. Eu não penso assim: talvez por demasiado respeito á opinião pública. São modos de ver. Esta última resposta é para mim mais uma necessidade moral, que uma necessidade litteraria. Peço aos leitores da Revista perdão de lhes roubar quatro ou cinco columnas deste jornal a objectos mais importantes. Os foros da intelligencia é lícito deixá-los calcar; os da consciencia nunca.

A pouca educação, com que tractei o adversario, é a primeira das minhas culpas: vem depois as provas: em todas ellas nada se allega senão as minhas affirmativas (provadas) de que o adversario ignorava os elementos do christianismo, não sabia definir, não raciocinava com logica, não escrevia em português, e fizera um pedaço de ideologia canina. Se (á excepção da última) em qualquer destas cousas ha incivilidade, qual é a discussão litteraria ou scientifica onde faltem accusações análogas, e que portanto deixe de ser incivil? Não a conheço. A comparação que fiz de um argumento que se me oppôs com o argumentar dos cães, é exacta mas grosseira. Eu mesmo o confessei; mas pedi perdão ao adversario de a empregar. Os leitores, que julguem, se o homem que faz isto pretende affrontar o seu contendor.

Quanto á falta de philosophia, como no Correio se não responde á minha argumentação, deixo tambem aos que nos lerem, avaliar quem nesta discussão mostrou ignorá-la; quem mostrou conhecê-la.

Quanto aos crimes moraes, elles ahi vão.

Trunquei numa epígraphe um verso do evangelho de S. Matheus fazendo uma mutilação sacrílega.

Resposta. Falta mostrar onde está o sacrilegio, e como é peccado citar só certas palavras de um verso do evangelho, uma vez que não mudem o sentido, e não o é citar um verso sem citar todo o evangelho. Cortei o que era relativo aos sepulchros, porque não vinha ao intento, não servia nem para mim nem contra mim: cortei o vocativo Scribae et Pharisaei hipocritae, porque o homem grosseiro não quis dar estes nomes injuriosos ao seu antagonista. Se porém faz muito gosto nelles, pode restituir a integridade do texto, que eu nada tenho com isso.

Diz o Correio, que eu substituí a palavra egoísmo á palavra interesse, para lhe demonstrar, que a accusação de egoistas que fizera aos que pretendiam a eschola-monumento era van.

Não fui eu que fiz a substituição de má fé: foi elle; e eu mereceria a denominação de orate, com que o meu delicado adversario me mimoseou no parágrapho último do seu artigo, se lhe acceitasse essas transformações de expressão, com que elle pretendia esquivar-se aos golpes da logica. No seu 1.^o artigo, § 2, linha 2.^a, tinha elle estabelecido formalmente o provará de egoísmo contra nós: foi isto que eu refutei: para me responder substituiu ao egoísmo interesse: defendendo o meu artigo devia eu acceitar esta mudança desleal da questão para um falso terreno, ou constrangê-lo a vir para o verdadeiro? Não quero que seja o publico: seja elle quem o decida.

Acha o auctor dos artigos do Correio, que muito bem cabia na discussão, em que lidávamos, o tractar a questão da unidade de pensamento nas obras de arte, e se esta unidade ficava destruida pela associação do bom ao bello, porque era mais uma idéa só. Chego a envergonhar-me, pelas letras portuguesas, de que se imprimam entre nós similhantes proposições, ainda que seja num jornal politico, que não tem obrigação de ser literario. O princípio mais grave e fecundo das modernas theorias da arte, para tractar o qual, em si, e muito mais no terreno em que o adversario o collocou, é preciso suscitar todas as questões alevantadas entre a antiga e a moderna eschola, jogar com as doutrinas mais abstrusas da esthética e da critica da razão práctica, não passa de uma idéa mais, que se poderia discutir, provavelmente á hora da sésta, fazendo o chylo, e como por debique! Repito, chego a envergonhar-me de que quem se atreve a pôr em letra redonda os seus escriplos, fale e insista sobre cousas, cujos rudimentos mostra desconhecer tão completamente, que julga poder-se contrahir a um parágrapho de artigo, o que só pode ser materia de longo e trabalhado livro. Não sei se offendo o meu adversario; mas não é esse o meu intento no que vou dizer. Fez-me lembrar com isto a quadra do nosso Tolentino:

    Pediu-me certa senhora,
    Pela qual ainda hoje peno;
    Que lhe fizesse um soneto
    Ainda que fosse pequeno.

Sou accusado de má fé por substituir a denominação de interesseiro, que elle dera ao monumento-eschola, pela de útil. É verdade que o fiz. Fi-lo, porque tomei a palavra interesseiro por lapso de penna, ou êrro de imprensa. Parecia-me impossivel que o adversario ignorasse tão completamente o valor das palavras da sua língua, que não soubesse que um homem pode ser interesseiro, mas uma cousa só pode ser útil ou interessante. Peco-lhe perdão de ter avaliado em mais do que devia o seu conhecimento do idioma patrio.

Muito agoniado está comigo o meu adversario! Não tem razão, que eu sou bom moço, e não lhe quero mal. Teve a crueldade de me accusar aos vereadores das communas francesas de eu os haver injuriado. Que lucra elle em me vêr pagar alguma multa municipal por acórdão daquelles sapientissimos e venerabilissimos varões? Nada.

Uma das causas porque o adversario me julga indigno de mais favores seus, é a irreverencia, com que tractei Napoleão, aquelle grande e generoso homem, de quem diz o ignorantissimo e insolentissimo conde de Toreno[10], que o seu procedimento na invasão e occupação de Portugal foi digno dos tyrannos brutaes da idade média, o generoso conquistador que subjugou a nossa resistencia, occupando o país em som de paz, e impondo-nos logo uma contribuição de cem milhões de resgate; que profanou os nossos campos, roubou os nossos vasos sagrados para que os seus generaes tivessem dinheiro com que se embriagar e frequentar os prostíbulos da Babilonia do Sena; daquelle grande homem, cujo nome sôa como um dobre por finado em quasi todas as familias dos nossos irmãos, porque os ossos das víctimas que elle nos fez ainda não apodreceram de todo debaixo da terra. Sou indigno de combater com o homem que quere associar o nome de D. Pedro a esse nome!… Sou! Confesso e acceito essa honrosa e portuguesa indignidade.

O meu adversario sentiu um ataque de nervos, porque leu o que eu disse ácerca de Napoleão, porque limitei a sua glória á de Cesar, á d'Attila, á de Gengis-Kan, e porque finalmente me honro de pertencer á minha épocha, e de olhar para esse género de glória com mais lástima que admiração, deixando aos grandes philosophos o extasiarem-se diante de um campo cuberto de cadáveres humanos; ou ao escutarem o som dos tambores e trombetas em revista de tropas, género de philosophia em que sempre lhes ha-de levar vantagem, no primeiro caso o algoz, no segundo o rapaz de oito ou dez annos. Estimo saber o effeito de nevralgia que isso produziu no meu adversario, para lhe dar um conselho sincero e de amigo, attendendo a que as nevralgias são um género de molestia mal conhecida ainda, e que o podem matar. Recommendo-lhe que não leia J. B. Say, que tem em mui pouco Bonaparte como administrador, chegando a ponto a sua estupidez de seguir a opinião contrária á do meu adversario, isto é, que elle em vez de ter feito bem á industria francesa, lhe fez mal[11]. Que não leia C. Comte, o célebre auctor do Tractado de Legislação, que teve a insolencia de dizer que em socialismo Bonaparte fez retrogradar a França para a barbaria[12]; que não leia Lamartine, aquelle grandissimo alarve de Lamartine, que commetteu a atrocidade de fazer peior do que eu, de comparar a épocha de Augusto Cesar, com a de Bonaparte, no que ellas tiveram de tyrannico, de abjecto, de anti-poético, de horroroso e de desprezivel[13]; que não leia o ignorantão e rombo Agostinho Thierry, que, falando das doutrinas de jurisprudencia, chama ao tempo do imperio um lodaçal[14]. Veja o adversario o caso que aquella alimaria faz das leis de Bonaparte, que tanto o enchem de admiração! Que não leia Byron, Walter Scott, Alfredo de Vigny, e emfim nenhum destes escriptores que a Europa estupidamente applaude como maximas intelligencias em poesia, em politica, em philosophia, porque se o fizer as nevralgias hão-de matá-lo. Só lhe peço, a elle innominado, que tenha dó de mim, que tive a desgraça de assim pensar, como todos esses tontos, a quem elle, cuberto de glória literaria, possuidor de um nome, que reboa nos quatro angulos do universo, não desceria a combater, sem que o nôjo lhe produzisse uma nevralgia fatal.

Tenho a infelicidade por via de regra quando quero estabelecer o methodo nos meus artigos, de andar a saltar ora aqui ora alli pelos parágraphos do adversario. Isto, é provável que proceda da minha estupidez e falta de ordem nas idéas. Não é provavel; é certo. Acabarei por onde elle principiou, e será de um modo sério e severo.

O meu adversario invocou contra mim os artigos, que appareceram sem nome em outro jornal, e que se me attribuem; invocou-os para achar contradicção entre o meu pensar de hoje e o meu pensar d'então. Este procedimento não o qualificarei. E quem sabe se eu poderia fazer uma terribilissima represália? Não o sei, nem o quero saber. Prefiro deixar talvez inintelligivel uma das minhas epígraphes, que ignoro se incommodou o meu adversario. Para dizermos de artigos de differentes jornaes não assignados, ou só em parte assignados, que são do mesmo escriptor, é ordinariamente necessario abusar de confidencias particulares. Este homem grosseiro e immoral nunca porém o faria, se a hypothese actualmente se désse. Seja o que for, isto apenas é uma digressão, provavelmente insensata: vamos ao que importa. Acceito plenamente por meus os artigos que se me attribuem. São meus: repito-o. Não ha sobre isso que duvidar.

E porque são elles meus? Porque nasceram das mesmas doutrinas, que hoje professo: da theoria sobre monumentos de que deduzi a necessidade de ser o de D. Pedro uma eschola e não um obelisco. Que tenho eu dicto e repetido talvez até a impertinencia? Que as condições accidentaes dos monumentos devem ser determinadas pelo espirito da épocha em que são edificados; que elles são uma chronica de pedra, um documento, que o vulgo não lê porque lhe ignora a paleographia, mas de que o homem da sciencia historica sabe aproveitar-se: que é necessario haver harmonia entre o seu modo de ser, e as circumstancias dos que o consagram. Eis a minha doutrina de que tudo quanto tenho escripto ácerca do monumento de D. Pedro, não é mais do que a applicação ou o commentario.

E a que pessoa habituada a generalisar e applicar principios, não ficará evidente que bem longe de repellirem esta doutrina, os artigos que escrevi no Panorama contra os homens do camartello, não são mais do que uma consequencia della? Que pedi eu ahi? Que não despedaçassem a chronica de pedra, que não rasgassem os documentos da historia; porque o mosteiro, a muralha, a cathedral, a torre, eram documentos historicos; porque nellas estava estampada a vida social e íntima das gerações que os haviam exarado. Peço hoje que se faça um monumento com as mesmas condições, e dizem-me que me contradigo! Se o valor e o crêr português dos séculos XIV e XV e ainda do principio do XVI, estivesse representado, não pela muralha de D. Fernando, pela Collegiada de Guimarães, pela Batalha, ou pelo mosteiro de Belem, mas por pyramides, obeliscos e columnas, e eu tivesse pedido que não os derribassem, não poderiam dizer que actualmente eu tinha opinião diversa da que seguira. Mas a idade média symbolisou-se a si propria nos monumentos dos seus homens illustres: fez o que todas as épochas e todos os povos fizeram; e porque depois de demonstrar essa verdade, digo aos meus compatricios—,não vos afasteis da grande logica do género-humano,—respondem-me—Rácca!? Como será possivel esquivarmo-nos a um sentimento de compaixão, quando vemos assim calcarem-se aos pés os dictames do senso commum?

Eu não condemnei nesses artigos só os que derribavam os monumentos: condemnei igualmente os que os pervertiam; os que lhes mudavam o aspecto, os que viciavam aquella especie de documentos. Em que se fundava a condemnação? Em que os monumentos assim transformados conservariam talvez o seu caracter essencial, o lembrarem o individuo, ou a cousa, mas perderiam as suas condições de historia social. Não dependia pois a justiça das minhas invectivas de partir dos mesmos principios que hoje invoquei a favor da eschola contra a columna? Se não partia dahi, qual podia-ser a idéa fundamental do que escrevi?

É exactamente estribando-se na doutrina que sigo, que se pode interpor um veto ás assolações do vandalismo. Se os monumentos servem tambem como diplomas que illustrem a verdadeira historia, a da sociedade, é preciso respeitá-los todos. Embora tendo de escolher forçosamente entre a ruína de um que lembrasse um homem eminente, e representasse uma épocha gloriosa e a doutro que fosse consagrado a um tyranno, e representasse um período de servidão e decadencia, devessemos preferir a salvação do primeiro; onde esta força maior não existir todos elles devem respeitar-se; o do máu para sua condemnação, o do bom para seu elogio; ambos para nos ajudarem a avaliar as épochas que representam por condição accessoria.

Mas depois disto; depois de provada a unidade das minhas doutrinas a este respeito, com que direito associa o auctor dos artigos do Correio as suas opiniões ao que escrevi contra os caiadores e destruidores dos monumentos? Quem lhe deu o direito de tambem se rir desses vándalos? Rir-se?!—Quando eu invectivava contra a camara de Lisboa por arrasar a muralha de D. Fernando, e a velha torre de Alvaro Paes: quando eu estampava o ferrete d'insensatos na fronte dos que deturpavam vergonhosamente o templo de Guimarães, não devia elle descer da altura da sua intelligencia até o rasteiro da minha, e dizer-me: «Calai-vos; porque aos monumentos não se pode associar idéa alguma de utilidade, o monumento é exclusivamente um ponto de contacto entre a admiração e a glória, e essas edificações de que falaes não são monumentos. O templo servia para o culto de Deus, e ao mesmo tempo era uma eschola onde se ensinava a limitada sciencia daquellas eras: a muralha e a torre serviam para defender Lisboa dos castelhanos. Que vos importa que os vereadores arrasem umas paredes velhas, e os cónegos caiem um templo gothico? Porque chamaes monumento ao que não o é? Embora D. Fernando mandasse esculpir na sua obra gigante uma inscripção que recordasse aos vindouros quem a tinha alevantado: embora D. João I testemunhasse por documentos irrefragaveis que elle queria em S. Maria da Oliveira deixar uma memoria de si á posteridade, D. Fernando e D. João I enganaram-se ou mentiram. As suas obras não podiam ser monumentos, porque elles lhes associaram a utilidade!

Eis o que o meu adversario para ser consistente em suas doutrinas devia ter feito emvez de se rir comigo. Isto era melhor do que pretender achar contradicções, que existem, nas opiniões d'alguem: não, por certo, nas minhas.

Emquanto me persuadi de que razões, exemplos, poesia, decencia, moralidade podiam impedir que se fizesse ao Duque de Bragança uma injúria de pedra, escrevi. Agora que o meu contendor (que eu tenho motivos para crêr bem informado) me assegura que não terá logar a emenda, e que o absurdo palimpsesto de Phocas se ha-de erguer no Rocio, deponho as armas, porque o combate é inútil. O protesto em nome da opinião do país, da razão, do respeito ás tradições humanas e á memoria de um principe illustre, ahi fica. O futuro não actuado pelas nossas paixões mesquinhas nos julgará. Isto importa-me um pouco mais que o juizo de certa gente.

UM LIVRO DE V. F. NETTO DE PAIVA

1843

UM LIVRO DE V. F. NETTO DE PAIVA

Centro e instituição principal do ensino superior no nosso país, a universidade de Coimbra offerece nas phases da sua existencia um dos meios mais seguros para podermos avaliar o progresso ou decadencia das sciencias e das letras em Portugal. Em todos os tempos, desde a sua fundação até hoje, é por ella que a historia se tem regulado para avaliar o estado de intellectualidade nacional. E, de feito, é daquelle fóco de luz que por cinco séculos se tem derramado a illustração para todos os angulos de Portugal, illustração boa e verdadeira porque em harmonia sempre com o estado e precisões da nossa sociedade.

Sejam quaes forem as mudanças que a nova organisação politica do país, as suas novas necessidades, e as doutrinas mais esclarecidas do século actual nos obriguem a fazer no systema do ensino público, é minha convicção profunda que a universidade, longe de se dever guerrear com o intuito de a aniquilar ou pelo menos de lhe diminuir a importancia, se ha de augmentar e completar, convertendo-se em verdadeiro sanctuario da sciencia no mais alto e puro sentido destas palavras. Quanto mal ella pode produzir—e é incontestavel que no estado actual da instrucção pública aquella academia pode gerar, e talvez gera já, graves damnos sociaes—tudo isso nasce não da essencia do instituto, mas da falta de philosophia politica que tem presidido a todas as reformas até agora feitas no ensino público. Quando a universidade representar tanto em extensão como em intensidade, o maximo grau de progresso scientifico; quando as condições litterarias exigidas para ser inscripto no livro dos alumnos forem taes que só intelligencias eminentes possam arrostar com os obstaculos postos á frequencia das faculdades, e ainda depois disso á acquisição dos graus; então o influxo daquelle instituto será de muitos modos benefico, e as unicas accusações attendiveis e sérias que se fazem contra elle cairão completamente por terra.

Posto pertença áquelles a quem incumbe organisar a instrucção pública, estabelecer por via da lei esta ordem de cousas de um modo fixo e positivo; todavia ao alcance dos professores está o ir aplanando o caminho para essa gravissima reforma. São elles, que podem trazer pela práctica a doutrina, pelo facto o preceito. Posta realmente a sciencia na universidade a par dos conhecimentos conquistados em toda a Europa, o mais é comparativamente facil, logo que haja um governo que entenda o verdadeiro systema d'ensino nacional, em relação aos interesses moraes e materiaes da nação.

Muitos dos novos professores da universidade teem concebido claramente estas doutrinas e avaliado a sua importancia. Os compendios sobre diversas materias que se tem publicado em Coimbra nestes últimos annos, são disso prova cabal. Elles destroem os preconceitos arreigados em muitos espíritos contra a universidade.

Estes preconceitos são de dous géneros, ambos ridículos, tacanhos e indignos de entendimentos alumiados. Segundo uns, com as cabelleiras do marquez de Pombal, com as abbatinas, e com os ademanes de uma gravidade estudada e de linguagem oracular, a sciencia desappareceu. Professores mancebos, cheios de energia, de vida intellectual, de amor de gloria, e vendo diante de si a imprensa, que hoje tem o direito de os julgar, são incapazes de conservar e augmentar o esplendor das letras, porque falam como os outros homens e com elles, porque trajam e vivem como toda a gente. Esta é a preoccupação dos filhos do século passado, preoccupação innocente, que a morte vai diariamente desfazendo até a aniquilar de todo. Segundo outros a universidade é velha porque é antiga, e por isso incapaz de progresso; logica de peralvilhos, logica bruta que em vez de melhorar o que é susceptivel de ser melhorado, o destroe, sem examinar se ahi havia alguma cousa util e respeitavel que aliás se não pode supprir; como se a nação não fosse ainda mais antiga que a universidade, e se para a elevar á grandeza e à civilisação do século, fosse preciso aniquilá-la e substitui-la por outra nação amassada de novo barro. Estes taes suppõem estabelecido na ponte do Mondego um embargo perpétuo para os livros, para os instrumentos scientificos, para as idéas, para tudo o que representa actualidade e progresso, por que fora de Lisboa não suppõem possivel salvação litteraria, e as barreiras da capital são os limites do seu orbe cathedratico. Similhante crença, não é innocente como a dos velhos, é absurda, mas perigosa. É della que nasce em boa parte a guerra lenta, mas tenaz que se vai alevantando, não contra o que a universidade tem de mau, que essa é justa e legitima, porém contra a sua existencia, o que é altamente insensato.

A grande resposta que a universidade tem dado, e me parece que hade continuar a dar, são as prelecções dos seus professores, os seus compendios e livros. Não creio cegar-me pela amizade se asseverar que nesta lucta grande e nobre um dos campeões mais distinctos é o sr. Vicente Ferrer, auctor dos Elementos de Direito das Gentes, e que este anno acaba de publicar o seu Curso de Direito Natural, segundo o estado actual da sciencia. Encarregado do ensino daquelles difficultosos ramos da sciencia que tocam por um lado na critica da razão prática ou philosophia moral, e por outro na jurisprudencia positiva, o sr. Ferrer, vencendo os embaraços que lhe offerecia a gravidade da materia, e ao mesmo tempo as distracções a que o tem constrangida a carreira politica era que por vezes o lançou já o voto dos seus concidadãos, elaborou e redigiu no meio desses embaraços e agitações dous compendios importantissimos, que não só falam pela universidade, mas honram o país, que pode gabar-se de possuir professores dignos do século em que vivem, e da grave missão do magisterio que lhes foi confiada.

Constrangido a seguir nas suas prelecções o compendio de Martini—Positionis de Lege Naturali—adoptado pelo conselho da faculdade de direito, o sr. Ferrer applicou-se principalmente a dous fins: a illustrar as obscuridades frequentes naquelle célebre escriptor, e a modificar as suas doutrinas pelas dos mais afamados auctores modernos e pelos proprios estudos e cogitações. Assim o curso do sr. Ferrer é uma especie de commentario perpétuo a Martini e ao mesmo tempo o resumo substancial das opiniões dominantes, principalmente na Allemanha, pais que por via de regra é o fóco de toda a sincera e verdadeira sciencia. Numa épocha em que a liberdade chama todos os cidadãos a avaliarem os proprios direitos e deveres, o livro do sr. Ferrer não é uma obra puramente universitaria. As obrigações e os direitos politicos e civis lá vão assentar na jurisprudencia natural. Importa conhecer esta para conhecer até onde se estendem tanto umas como outros.

FIM DO VOLUME VIII

INDICE

Advertencia
Da pena de morte (1838)
A imprensa (1838)
Da eschola polytechnica e do collegio dos nobres (1841)
Nota
Instrucção pública (1841)
Uma sentença sobre bens reguengos (1842)
A eschola polytechnica e o monumento (1843)
Um livro de V. F. Netto de Paiva (1843)

NOTAS

[1] Veja a nota que se segue ao capítulo final.

[2] Foi desde aqui até fim do capítulo que o Auctor passou os traços em cheio de que falamos na Advertencia.

[3] Não é meu intento renovar as desgraçadas contendas que em 1835 se alevantaram entre a Universidade e o Instituto, e que terminaram pela ruina deste: alludo ao que vi e ouvi por Lisboa, onde então casualmente residia. A Universidade tinha em parte razão; não só foi imprudente o annunciar a transferencia das faculdades de sciencias naturaes para a capital, mas a execução deste intento seria damnoso ao progresso dessas sciencias, considerado o negocio á luz puramente especulativa, e além disso estaria em contradicção com os principios do verdadeiro systema d'instrucção nacional, porque facilitaria o augmento de classes excepcionaes. Fora necessario ter reformado completamente as leis sobre estudos, para se poder, por exemplo, estabelecer a faculdade de medicina em Lisboa, e virem a ter peso as considerações que se costumam offerecer em abono dessa mudança. Em todo o caso é certo que a grande reforma da Universidade está, segundo meu entender, em alargar nella o ambito da sciencia, isto é, em completá-la quanto a materias d'ensino, e em diminui-la quanto ao número d'alumnos, para que não regorgitem de individuos as classes excepcionaes que ella alimenta. A Universidade deve ser o padrão por onde só affira tudo o que diz respeito á intelligencia: a sua missão é duplicada—d'eschola quando provê de novos sugeitos as classes excepcionaes; d'academia, quando os seus membros, vivendo pela sciencia e para a sciencia, teem na mão o facho que allumia as eschola d'applicação, o facho dos progressos puramente especulativos.

[4] A revisão mais accentuada pelo Auctor parou aqui. Nos capitulos seguintes, exceptuando o final do V, foi mais leve e nalguns pontos apenas indicativa de contornos de linguagem que não chegaram a ser effectuados.

[5] Para não sermos demasiado extensos enviamos os leitores ao que se disso sobre as escholas da Prussia no Repositorio Litterario, jornal publicado no Porto em 1833—e os que souberem francês ao Relatorio sobre a Instrucção Publica na Alemanha por Victor Cousin, e á excellente obra de Ducpétiaux sobre o estado da Instrucção primaria e popular na Belgica.

[6] De L'Instruction Publique en France (Paris 1840) pag. 38

[7] A publicação não continuou. Entre os pontos que ficavam por discutir na especialidade estavam indicados pelo Auctor os relativos á capacidade e remuneração dos professores. Nas attribuições da eschola polythecnica incluira elle, como sabemos, as de eschola normal de ensino geral superior, faltando-lhe tractar das escholas normaes de ensino elementar. Quanto ao systema de remuneração dos professores, importantes indicações teria porventura do acrescentar ás expostas no exame da proposta governamental, para o definir cabalmente. Todavia a nossa referencia a estes pontos não é para nos demorarmos em conjecturas, mas para offerecermos aos leitores o resumo de algumas considerações que se prendem com o último e que o Auctor expôs na camara dos deputados, na mesma sessão em que proferiu as que nos serviram para anotar o artigo sobre imprensa. Discutia-se na camara um projecto permittindo em princípio aos funccionarios públicos aposentados o desempenho de outras funcções depois da que tivessem exercido, accumulando vencimentos. Havia a commissão de instrucção pública proposto a applicação delle aos professores de primeiras letras e na camara se estranhou o exclusivismo da proposta, tendo-se por melhor que ella se tornasse extensiva aos officiaes militares, aos magistrados e a todos os professores. Alguem houve até que ponderasse a necessidade do parlamento ser cauteloso quanto áquelles professores, tendo em vista a quantiosa verba que se diapendia com elles.

Como relator da commissão, respondeu A. Herculano que não era da competencia desta tractar de todas as generalisações de que se falava. Que, sem afastar-se da sua esphera de iniciativa, ella se lembrara dos professores de ensino primario por motivos de justiça absoluta. Estes humildes funccionarios, além de servirem a sociedade no presente, lhe ministravam os germens de futuras prosperidades que ella ia accumulando successivamente, porque a educação e illustração do povo eram fontes illimitadas de progresso. Dahi nascia para elles o direito a uma retribuição tambem complexa. Nas suas mãos se transformavam em cidadãos os serranos, os serranos que muitas vezes não distavam tanto dos animaes como do homem civilisado. Que os militares, os magistrados e outros funccionarios públicos gozaram de honras e proventos quo conquistavam gradualmente até attingirem eminentes posições sociaes, emquanto para aquelles benemeritos obreiros da civilisação estava vedado o caminho para além da sua triste obscuridade. Por isso a commissão se lembrara delles, conformando-se, porém, com as razões de justiça e conveniencia públicas que aconselhassem a applicação do projecto a outras classes.

Acaso poderiamos concluir destes argumentos que A. Herculano, a proseguir nos seus artigos, pensasse em crear uma gerarchia na classe dos professores de ensino elementar, além de favorecer esta classe com outras concessões, como a quo estava em discussão e foi approvada? Parece provavel e por isso apontamos a idéa nesta nota.

[8] A lei mental não vigorou só desde a épocha da sua publicação. Effectivamente D. João I se tinha regulado por ella, do que se acham vestigios na sua chancellaria.

[9] 1 Monumentum est quidquid ob memoriam alicujus factum est.—Todos sabem que o genitivo alicujus significa dalguem ou dalguma cousa.

[10] Revol. España, T. 1, L. 1.

[11] Cours d'Econ. Pol. (1842) T. 1, p. 9, 23, 436, 611, 618 etc. T 2, pag. 283, 287. 353 etc.

[12] Traité de Legislat. Liv. 5, C. 21.

[13] Discuours de Recoption à l'Acad. Franç.

[14] Dix Ans d'Etudes Hist. C. 6.