Title: Os Sinos
Author: Raul Sangreman Proença
Release date: September 22, 2007 [eBook #22723]
Most recently updated: November 11, 2007
Language: Portuguese
Original publication: Alcobaça: Typographia e Papelaria de Antonio M. d'Oliveira Rua de Santo Antonio, 14, 16 e 18, 1908
Credits: Produced by Vasco Salgado
Produced by Vasco Salgado
Raul Proença
(Poesia narrativa)
ALCOBAÇA
Typographia e Papelaria de Antonio M. d'Oliveira
—Rua de Santo Antonio, 14, 16 e 18
1908.
A João Carlos de Pina, artista talentoso e honesto
A ti dedico esta poesia, meu caro amigo, para que assim fique memorada a nossa convivencia intelectual, as longas palestras em que estabelecemos a communhão dos mesmos Sonhos.
É a primeira poesia narrativa que escrevo, tendo ficado sempre no dominio da poesia subjectiva, quer combativa, quer meramente psichologica. D'aqui e do meu fraco valor, a imperfeição que lhe has de achar.
Imperfeita, comtudo, t'a dedico e offereço.
20—dezembro—1907.
Raul Proença.
Nosso amor começou a quando o Outono,
Quando as arv'res se despem da folhagem,
Numa tristeza amarga que faz sôno,
E mais fria e mais muda é a paisagem.
Começou quando avança a Sombra triste,
E foi a brisa arripiante e agreste
Que trouxe essas palavras que proferiste
E o primeiro sorriso que me déste.
Que admira pois que o nosso amor tão largo
Seja mais infeliz que um rei sem throno,
Se o trouxe o Inverno no inicial lethargo?!
E temendo-o… eu desejo-o e ambiciôno-o,
Como te quero, ó lindo sonho amargo!
Como te amo, meu pobre amor do outono!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Por isso toma estas florinhas bravas,
Esta simples poesia humilde e agreste,
Como os versos d'amor que me inspiravas!
E se quizeres saber quem é Leonor,
O perfil que tracei com singeleza,
Mas com um grande, co'um profundo amor,
Não me perguntes, não, Mulher celeste;
Vae perguntá-lo á voz com que falavas,
Vae perguntá-lo aos beijos que me déste.
Ás almas simples, singélas,
Que teem o Amor por norma,
E amam a luz das estrêlas
E têm a paixão da Fórma;
Ás almas suaves, mimosas,
Docemente espirituaes,
Como as grinaldas de rosas,
E as floras tropicaes;
Áquêles que têm amado,
Em longas noites serenas,
Um olhar aveludado
E umas brancas mãos pequenas;
Ás que indo de fronte calma
No caminho da Illusão,
Construem ninhos na alma
E poemas no coração;
A vós a historia, ó Formosas,
D'um grande amor infeliz,
A vós, camelias mimosas,
A vós, violetas gentis!
Na epocha presente,
Quando a doce poesia já não móra
Nos nossos corações,
A ternura divina foi-se embora,
Já tem menos fulgor a luz da aurora
E as damas não suspiram com paixões—
Na epocha presente
O labio já não prende os corações
E a alma já não sente…
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
É raro o amor, são raras as canções
Na epocha presente.
D'antes os cavaleiros medievaes
Que abrigavam paixões no coração
E que iam nos ginetes sensuaes
Combater por uns olhos desleaes
Debaixo d'um balcão,
Cheios de gloria e de fortuna e fama
Batalhavam em duélos singulares
Pela formosa e sonhadora dama
De face de veludo
E tepidos olhares…
Mas como tudo muda eternamente
—E os combates de amor são só no Entrudo,—
Já não é assim, comtudo,
Na epocha presente.
Debaixo da janella, era noite alta
Inda se via o pálido poeta
E desde Londres até Roma e Malta,
Como um suspiro que de cordas salta
Melodiosamente,
Ouvia-se a guitarra, a viola, a flauta;
Hoje… só se ama á luz d'uma ribalta
Na epocha presente.
Iam os cavaleiros valorosos
Defender a Mulher com perigo ingente,
Dar a vida por uns olhos veludosos
Por um riso feiticeiro,
Por uma voz angelica e gemente…
Hoje o Deus da Paixão é o Deus-Dinheiro…
O amor é um banqueiro
Na epocha presente.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Se não amam na epocha presente
O Rei nem o Mendigo,
Se tudo é frio, e desolado e doente,
E não palpitam almas docemente
Sob esse terno sentimento antigo,
Ó mulheres lindas de formoso olhar,
Vinde aprender commigo,
Que eu vos ensino a amar!
E estas folhas abri com mão suave,
Lêde esta narração d'um grande amor,
Ó mãos macias como penas d'ave,
Ó bôcas lindas como rubra flôr!
Lêde este simples conto, que vos dá
Muito singelamente,
A historia de uns amores como não ha
Na epocha presente.
Era um vasto mosteiro o d'essa terra linda
Onde vivia a flôr dos beijos sensuaes,
E respirava um ar da Idade Media, ainda,
A imponente altivez das graves cathedraes.
Tinha uns sinos de bronze, uns sinos clangorosos,
Que em metalicos sons deitavam para os céus
Ora o encanto febril dos beijos voluptuosos,
Ora a amarga afflicção do derradeiro adeus.
E em sua solidão sob'rana, ingente, estoica,
Levantando-se ao céu e dominando o val',
Os sinos tinham sons d'uma doçura heroica,
Com soluços de bronze e risos de cristal.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E mesmo em frente d'elle, do lado d'onde nasce
O Sol, na sua diurna e rapida carreira,
Habitava Leonor, flôr misteriosa e rara,
—Das bellas a primeira.—
P'ra poder descrever o oval da sua face,
O jaspe setinoso e macio da cara,
O brilho d'esse olhar, p'ra poder defini-lo,
Seria necessario o maior genio humano
—A luz que coloriu as Venus de Ticiano,
O pincel que pintou as virgens de Murillo.
Para poder pintar o seu cabêlo farto,
Seria necessaria a arte soberana,
A divina expressão artistica d'el Sarto
E a magia de côr da escola veneziana.
A bôca era vermelha, ardente, sensual,
O beijo desafiando ao minimo trejeito.
Quanta paixão não fez o seu olhar leal!
Quanto amor não bateu, sem resposta, ao seu peito!
Tinha um olhar azul, envolvente, magnetico,
Cheio de embriaguez, de electricas caricias;
Olhá-lo—era ficar para sempre apoplectico,
Absorvido p'ra sempre em dois mares de delicias.
Causava uma magia o seu azul olhar,
Parecia do haschich o sonho voluptuoso.
Era feito da renda ethérea do luar…
Que renda transparente a d'esse olhar formoso!
Deviam ser assim os olhos de Julieta,
Quebrado o doce olhar em morna languidez,
Quando vinha ao balcão falar ao meigo poeta,
Ao classico Romeu do grande poeta inglês.
E os seus olhos azues, dois sonhos sideraes,
Eram na bella face alabastrina, as puras
Emanações da luz astral dos Ideaes,
Eram dois mares vaporosos de tonturas.
O sorrir provocava um languido desmaio,
Era o sorriso bom de Glycéra ou de Leda,
Tinha o calor fecundo e são do sol de maio
E a doce suavidade tépida da seda.
Tinha a regia altivez, um porte de rainha
E a graça virginal d'uma criança pura,
E sentia-se o mimo alado da andorinha
Na graça flexuosa e leve da cintura.
E que direi então da voz harmoniosa,
D'essa voz penetrante, angelica e maguada?!
Ouvi-la, era sentir uma pét'la de rosa
A roçar o ouvido, em voz cristalizada.
E tudo era um contraste excentrico, distinto,
Tinha o poder do Inferno e o enlevo dos archanjos,
Olhá-la—era sentir a embriaguez do absintho,
Ouvi-la—era escutar a propria voz dos anjos.
E em frente da janella o mosteiro vetusto
Vibrava de onde em onde os seus toques divinos.
Então vinha á janella, e o delicado busto
Mergulhava na onda electrica dos sinos.
* * * * *
Passava a Mocidade altiva para vê-la,
Da terra a fina flôr lhe vinha confessar
O seu ardente amor, debaixo da janella,
Á luz inebriante e meiga do luar.
A guitarra gemia. As damas hespanholas
Não tinham mais cantar's debaixo do balcão.
Ouvia-se o lamento estranho das violas…
O riso do prazer e o chôro da Paixão.
Serenatas gentis passavam, quasi a medo,
Com a ternura ideal dos fados portuguêses,
E dizia-se até, em voz baixa, em segredo,
Que ali, mortos d'amor, vinham também marquêses.
Ouviam-se nascer suspiros maviosos
Das cordas musicaes, ternas, inebriantes,
Brotavam do luar afagos silenciosos,
Dimanavam do céu ondas de diamantes.
E ante taes expressões e cantos peregrinos,
A linda dama então, sem ouvir nem olhar,
Absorvia-se mais no cantico dos sinos,
E deixava a viola, a cantar e a chorar…
—*—
Mas uma vez… A noite era electrica, etherea,
Luminosa, explendente,
Adquirira voz e sonhos a Materia…
O aroma era mais suave… o luar era mais quente…
Sentiam-se sonhar embriagadoramente
Lirios, como D. Juans, rosas, como as Ofélias,
E até o proprio ar tinha uma voz gemente
Ao beijar, soluçante, as rosas e as camelias.
Sob a janella um Poeta altivo e orgulhoso
Acertou de passar, cantando meiga trova…
E então Leonor sentiu o fremito do gozo,
A estranha sensação d'uma volupia nova.
Naquêle ardente olhar tinha ella conhecido
O philtro da Paixão, enervante e sereno…
Quantas de vós, tambem, não tendes já bebido
No vosso negro olhar esse fatal veneno!
O amor, elle que iguala as raças e as nobrezas
E que possue as forças das paixões damninhas
Que faz curvar os réis ao pé das camponezas
E faz deitar plebeus nos leitos das rainhas;
O amor, elle que faz dormir as violetas
Junto aos cravos gentis, junto aos lirios suaves,
Transpusera a cantar suas pupilas pretas,
Como ninhos de sonho onde adormecem aves.
A viola gemia…
E p'la primeira vez
Leonor se pôs a ouvir a languida harmonia,
Em louca embriaguez.
E ao deitar-se… sentindo a voz eclesiastica
Do sino do convento, o sino feiticeiro,
Julgou ser a viola, inefavel, fantastica,
Que estivesse a vibrar na torre do mosteiro.
—*—
Foi uma paixão louca, ardente, doentia,
E o nosso triste poeta, a sorrir e a cantar,
A cantar e a sorrir, todas as noites ia
Envolver Leonor num manto de luar.
Quantos beijos d'amor, humidos, vagarosos,
Pondo ás vezes no labio um lenço de Bretagne!
Eram beijos sensuaes, vermelhos, capitosos,
Como o estrepido audaz do vinho de Champagne!
Fundiam-se em abraços, tremulos, nervosos,
Com tepidas caricias,
Mudas contemplações, extasis silenciosos,
Profundos, vagarosos,
Em extranhas sensações de celestiaes delicias.
Depois aconteceu o que com taes assumptos
Costuma acontecer, de Londres a Stambul;
Os nossos dois amores adormeceram juntos
Sob a cup'la do céu profundamente azul.
Fugi das noites calmas, mornas luarisadas,
Em que o encanto nos vence e o espasmo em nós actua!
Loucas de muito amor, fugi ás guitarradas,
Escravas da Paixão, tende medo da Lua!
De manhã, quando o Sol clareava o horizonte
E o rouxinol findava a amena cavatina,
Despediam-se então com um beijo na fronte,
S'tenuados d'amor d'essa noite divina.
Mas Leonor ficava ainda por instantes,
Espalhados ao vento os seus cabêlos finos,
E mergulhava a alma em sonhos delirantes,
Na doce vibração harmonica dos sinos.
—*—
Durou pouco o Amor, porém, assim feliz!
O Amor, o eterno Amor! que inconsistente liga!
Ninguem como ella o quiz! ninguem como elle a quiz!
Separou-os, porém, o cru punhal da Intriga.
A Intriga é essa mulher que ao cisne que descreve
Um sulco encantador
No lago, branco e leve,
Tenta com mancha escura enodoar-lhe a côr,
E transformada em neve
É a geada que queima a delicada flôr.
Leonor endoideceu, então, cheia de magua,
Na janella, a sonhar… a cantar… a chorar…
E vinham-lhe ao olhar per'las de sangue e d'agua
Quando ouvia na torre os sinos a tocar.
E empalidecia a incomparavel face,
Essa ideal belleza,
Como uma ave azul que se afogasse
Em ondas de loucura e de tristeza.
Dizia então:
«Lá vão nos coches os casados,
Cheios de luz na fronte e resplendente o olhar…
Vejo-os… Vejo-os unir os labios orvalhados,
Como lindos rubis, mimosas per'las
Num unico colar!
Virgem, tu que sofreste a tragica Paixão,
Com os peitos golpeados,
Tirae-me o coração,
Arrancai-m'o aos bocados!
Viste o heroico Jesus, o Propheta incançavel
Nos braços d'uma Cruz, Olimpica Rainha,
E apesar d'essa dôr enorme e incomparavel
Não sei qual foi maior, se a tua dôr, se a minha!
Perdi o noivo! e eu quiz que nunca mais bradasses
Na tua bronzea voz! ó Sino, que irrisão!
P'ra que os Sinos ouvir, a annunciar enlaces,
Se para mim não tocam…
Nem nunca tocarão!»
Tinha acabado a doida de fallar,
Doida gentil de olhos azues e vagos,
Tendo na fixidez macia do olhar
A immobilidade terna e mistica dos lagos.
E os sinos do mosteiro, alem, fortes, vibrantes,
Espalhavam no ar notas bruscas, ligeiras,
Claras como cristaes, vivas como diamantes,
E como o desfraldar de sonoras bandeiras.
Tudo se agita em espanto e a villa inteira corre,
Os homens, as mulheres, os rôtos pequeninos
Ao sentirem cair, cristalina, da torre,
A chuva torrencial do repique dos sinos.
Leonor ouvia, ouvia, a chorar e a tremer,
Aquêles sons joviaes dos sinos a tocar.
Era a primeira vez que alegres os viu ser,
E era a primeira vez que os ouvia a chorar!
E emquanto o sino ria esses risos saudaveis
Das creanças gentis, dos anjos pequeninos,
A agua viu cair dos olhos adoraveis
Na alacridade vaga e mistica dos sinos.
—*—
De repente, saiu da igreja uma donzella,
Vestida a seda azul, numa expansão inteira,
E Leonor estendia o corpo na janella,
Ao ver-lhe no cabêlo a flôr de laranjeira.
E era uma mulher que deixava confusas
Todas as atenções, em muda admiração,
Tinha o cabêlo negro e a côr das andaluzas,
Tinha no olhar do Sonho a magica atracção.
Do seu corpo harmonioso, elastico, flexivel,
Emanava uma essencia etherea, imponderavel,
Como emana, em fragor penetrante, invencivel,
Um perfume subtil d'uma seda impalpavel:
Tinha a ardente magia
—Das sereias gentis da Andaluzia,—
Que têm gestos sublimes,
E meneios risonhos
Tinha a flexibilidade elastica dos vimes
E a estrutura diáfana dos sonhos.
Nos grandes olhos doces,
Lindos como dois céus, negros como dois crimes,
Relampejantes, humidos, quebrados,
Guadalquivires dormentes, socegados,
Vastos como horisontes,
Tinha da Andaluzia a Alhambra, os eirados,
Os famosos jardins embalsamados,
Onde amavam mulheres e murmuravam fontes.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Depois saiu o noivo, e ó Crueldade ignara,
Irradiára a razão nos olhos de Leonor,
E a grande flôr divina, a flôr mimosa e rara
Reconheceu no noivo o seu primeiro amor.
Caminhavam os dois, gloriosos, triunfaes,
Rodeados d'uma aureola etherea, luminosa,
Entre os alegres sons dos sinos festivaes,
Numa expansão d'amor profunda e victoriosa.
Pelo braço um do outro, altivos, orgulhosos,
Iam cheios de gloria e cheios de esplendores,
Inundava-os o sol em beijos luminosos
E as creanças, sorrindo, atiravam-lhes flôres.
E no tragico assombro, a triste doida então,
A pobre bella e Santa, a timida Leonor,
Sentiu despedaçar-se o terno coração
No convulso derruir titânico da Dôr.
No olhar lhe fusilou uma colera santa,
Recup'rára a Razão para perder a Vida,
Saiu-lhe uma blasfemia ardente da garganta,
Cambaleou afinal, como se fosse ferida,
Deu tres ou quatro passos,
Estendeu em convulsões galvânicas os braços,
E abrindo, sufocada, a baixa porta,
Sem um ai nem um beijo,
Veiu cair exanime, já morta,
No meio do cortejo.
—*—
Ouviram-se então sons plangentes e divinos
De dobres, de sinaes de luto e de viuvez.
Era a toada melancolica dos sinos
Por Leonor a tocar pela primeira vez.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quantas de vós tambem, lindas creanças,
Que architectaes angelicas esperanças
No vosso coração,
Não ides perfumar as sepulturas,
Co'as frontes virginaes, as fórmas puras,
No pequenino leito d'um caixão!
Pensai: quantas de vós ouvis os sinos
Em desejos divinos,
Em ilusões celestes,
Para num dia puro, luminoso,
Cingindo as alvas vestes,
Serdes levadas pelos sons dos sinos
Para os canteiros d'um jardim frondoso
De rosas e cyprestes!
E vós ides, extaticas, inermes,
Contrahir os funéreos esponsaes: …
Sugar-vos-hão o peito os frios vermes,
Terão comvosco amores os vegetaes.