A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR DA VOZ DO PROPHETA.
LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
Rua direita do Arsenal--n.o 55.
A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR
DA
VOZ DO PROPHETA.
PRIMEIRA SERIE.
LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
Rua direita do Arsenal--n.o 55.
A Semana Sancta.
A S. Ex.a O MARQUEZ DE RESENDE.
Em testemunho de amisade e veneração
Offerece o Auctor.
Pág. 7
A Semana Sancta.
Der Gedanke Gott weckt einen
furchterlichem Nachbar auf,
sein Name heisst Richter.
Schiller.
I.
Tibio o sol entre as nuvens do occidente
Já lá se inclina ao mar. Grave e solemne
Vai a hora da tarde!--O oeste passa
Mudo nos troncos da lameda antiga,
Que já borbulha á voz da primavera:
O oeste passa mudo, e cruza a porta
Ponteaguda do templo, edificado
Por mãos rudes de avós, em monumento
De uma herança de fé, que nos legaram,
A nós seus netos, homens de alto esforço,
Que nos rimos da herança, e que insultamos
A cruz e o templo e a crença de outras eras:
Nós, homens fortes, servos de tyrannos,
Que sabemos tão bem rojar seus ferros
Pág. 8Sem nos queixar, menospresando a Patria
E a liberdade, e o combater por ella.
Eu não!--eu rujo escravo; eu creio e espero
No Deus das almas generosas, puras,
E os despotas maldigo.--Entendimento
Bronco, lançado em seculo fundido
Na servidão de goso ataviada,
Creio que Deus é Deus, e os homens livres!
II.
Oh sim!--rude amador de antigos sonhos,
Irei pedir aos tumulos dos velhos
Religioso enthusiasmo, e canto novo
Hei-de tecer, que os homens do futuro
Entenderão:--um canto escarnecido
Pelos filhos dest' épocha mesquinha,
Em que vim peregrino a vêr o mundo,
E chegar a meu termo, e repousar-me
Depois á sombra de um cypreste amigo.
III.
Passa o vento os do portico da Igreja
Esculpidos umbraes: correndo as naves
Sussurrou, sussurrou entre as columnas
De gothico lavor: no orgam do coro
Pág. 9Veio em fim murmurar e esvaecer-se.
Mas porque sôa o vento?--Está deserto,
Silencioso ainda o sacro templo:
Nenhuma voz humana ainda recorda
Os hymnos do Senhor. A natureza
Foi a primeira em celebrar seu nome
Neste dia de lucto e de saudade!
Trévas da quarta feira eu vos saudo!
Negras paredes, velhas testemunhas
De todas essas orações de mágoa,
Ou esperança, ou gratidão, ou sustos,
Depositados ante vós nos dias
De uma crença fervente, hoje enlutadas
De mais escuro dó, eu vos saudo!
A loucura da cruz não morreu toda
Apoz dezoito seculos!--Quem chore
Do sofrimento o Heróe existe ainda.
Eu chorarei--que as lagrymas são do homem--
Pelo Amigo do povo, assassinado
Por tyrannos, e hypocritas, e turbas
Envilecidas, barbaras, e servas.
IV.
Tu, Anjo do Senhor, que accendes o estro;
Que no espaço entre o abysmo e os ceus vagueas,
D'onde mergulhas no oceano a vista;
Pág. 10Tu que do trovador na mente arrojas
Quanto ha nos ceus esperançoso e bello,
Quanto ha no inferno tenebroso e triste,
Quanto ha nos mares magestoso e vago,
Hoje te invoco!--oh vem!--lança em minha alma
A harmonia celeste e o fogo e o genio,
Que dêm vida e vigor a um carme pio.
V.
A noite escura desce: o sol de todo
Nos mares se afogou: a luz dos mortos,
Dos brandões o clarão fulgura ao longe,
No cruzeiro somente e em volta da ara:
E pelas naves começou ruído
De compassado andar. Fiéis acodem
A visitar o Eterno, e ouvir queixumes
Do vate de Sion. Em breve os monges
Lamentosas canções aos ceus erguendo,
Sua voz unirão á voz desse orgam,
E os sons e os écchos reboaráõ no templo.
Mudo o côro depois, neste recinto
Dentro em bem pouco reinará silencio,
O silencio dos tumulos, e as trevas
Cubrirão por esta área a luz escassa
Despedida das lampadas, que pendem
Ante os altares, bruxuleando frouxas.
Imagem da existencia!--Em quanto passam
Pág. 11Os dias infantís, as paixões tuas,
Homem, qual então és, são debeis todas:
Cresceste:--ei-las torrente, em cujo dorso
Sobrenadam a dor, e o pranto, e o longo
Gemido do remorso, a qual lançar-se
Vai, com rouco estridor, no antro da morte,
Lá onde é tudo horror, silencio, noite.
Da vida tua instantes florescentes
Foram dous, e não mais: as cãas e rugas,
Breve, rebate de teu fim te deram.
Tu foste apenas som, que o ar ferindo
Se esvaíu pelo espaço immensuravel.
E a casa do Senhor ergueu-se!--o ferro
Cortou a penedia; e o canto enorme.
Polido alveja alli no espesso panno
Do muro collossal, que ha visto as eras
Velhas chegar, e adormecer-lhe ao lado:
A faia e o sobro no caír rangeram
Sob o machado: a trave affeiçoou-se;
Lá na cimo pousou: restruge ao longe
De martellos fragor, e eis ergue o templo,
Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas.
Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento,
Se esváe, como da cerva a leve pista
No pó se apaga ao respirar da tarde,
Do seio dessa terra em que és estranho
Pág. 12Saír fazes as moles seculares,
Que por ti, morto, fallem: dás na idéa
Eterna duração ás obras tuas!
Tua alma é immortal, e a prova a déste!
VI.
Anoiteceu:--nos claustros resoando
As pisadas dos monges ouço: eis entram;
Eis se curvaram para o chão beijando
O pavimento, a pedra: oh sim, beijai-a!
Igual vos cubrirá a cinza um dia,
Talvez em breve--e a mim. Consolo ao morto
É a pedra do tumulo. Se-lo-ia
Mais se do justo só a herança fora;
Mas tambem ao malvado é dada a campa.
E o criminoso dormirá quieto
Entre os bons sotterrado!--Oh não! em quanto
No templo ondeam silenciosas turbas,
Exultarão do abysmo os moradores,
Vendo o hypocrita vil, mais ímpio que elles,
Que escarnece do Eterno, e a si se engana;
Vendo o que julga que orações apagam
Vicios e crimes, e o motejo e o riso
Dado em resposta ás lagrymas do pobre;
Vendo os que nunca ao infeliz soltaram
De consolo palavra, ou de esperança:
Pág. 13Sim:--malvados tambem hão-de pisar-lhes
Os frios restos que separa a terra,
Um punhado de terra, a qual os ossos
Destes ha-de cubrir em tempo breve,
Como cubriu os seus, qual vai sumindo
Nos mysterios da campa a humanidade.
Porém a turba esvae-se: ermam bem poucos
Do templo na amplidão: só lá no fundo
De affumada capella, o justo as preces
Ergue pio ao Senhor, as preces puras
De um coração que espera, e não mentidas
De labios de impostor, que engana as turbas
Com seu meneio hypocrita, calcando
Na alma lodosa da blasphemia o grito.
Então exultarão os bons, e o ímpio,
Que passou, tremerá. Em fim, de vivos,
Da voz, do respirar o som confuso
Vem-se verter no sussurrar das praças,
E pela galilé só ruge o vento.
Em trevas não ficou silenciosas
O sagrado recinto: os candieiros,
No gelado ambiente ardendo a custo,
Espalham debeis raios que reflectem
Das pedras pela alvura; o negro mocho,
Companheiro do morto, horrido pio
Solta lá da cornija; pelas fendas
Dos sepulchros deslisa um fumo espesso,
Pág. 14Ondêa pela nave--esvái-se: um longo
Suspiro não se ouviu!--Olhai! lá se erguem
De umas espectros palidos, medonhos,
A quem baço clarão da luz dos mortos
Ainda custa a soffrer:--eis de outras surgem
Radiosos espiritos que o premio
Da virtude, nos ceus, hão recebido:
Alli treme ante o pobre o rico, e o forte
Ante o humilde, que nelle os olhos fita
Severo:--oh que tormento! infernaes dores
São doces para o máu, a par do aspecto
Do bom, que mudo lhe recorda os crimes.
Ai!--nem paz cabe nos mortos! Entre as campas
Ainda habita o remorso. Embalde, espectro,
Te curvas ante as aras que insultaste:
Debalde imploras o perdão celeste.
Expiraste: o perdão morreu comtigo.
Infeliz para sempre, a mão levanta
A essa fronte gelada; entre teus olhos
De azulado fulgor ampla rajada
Toca--eterno signal que no perverso
Do cherubim da morte a dextra estampa:
Toca-a... Deus reprovou-te; a herança tua
Volveu-se em maldicção: luz de esperança
Para ti apagou-se: o abysmo evoca
O filho seu; despenha-te no abysmo!
Pág. 15
VII.
Vaga meditação onde arrojaste
Minha imaginação!--ás horas mortas
De alta noite, no templo solitario,
E em congresso de mortos, quando o espanto
Os resguarda co'as azas acurvadas
Da vista do que vive!--Alli corria
Minha mente, qual vaga a mente do homem,
Que em febre ardente desvairou por sonhos,
Onde se ajunctam troços de existencias,
Em nebuloso quadro; ou como ondea,
Entre a esperança e o susto, o moribundo,
A quem do passamento o véu já cinge
A amarellada fronte, e a quem já pesam
Sobre os olhos as palpebras, que affrouxa
Do anjo da morte o resonante grito.
VIII.
Mas troa a voz do monge, e no meu seio
O coração bateu. Eia, retumbem
Pela abobada aguda os sons dos psalmos,
Que em dia de afflicção
ignoto vate
Teceu, banhado em dôr: talvez foi elle
O primeiro cantor que em varias cordas,
Á sombra das palmeiras da Idumea,
Soube entoar melodioso um hymno.
Pág. 16Deus inspirava então os trovadores
Do seu povo querido, e a Palestina,
Rica dos meigos dons da natureza,
Tinha o sceptro tambem do enthusiasmo.
Virgem o genio ainda, o estro puro
Louvava Deus somente, á luz da aurora,
E ao esconder-se o sol entre as montanhas
De Bethoron:--agora o genio é morto
Para o Senhor, e os cantos dissolutos
Do lodoso folguedo os ares rompem,
Ou sussurram por paços de tyrannos,
Assellados de putrida lisonja,
Por preço vil, como o cantor que os tece.
IX.
O Psalmo.
Quanto é grande o meu Deus!... Té onde chega
O seu poder immenso!
Elle abaixou os ceus, desceu, calcando
Um nevoeiro denso.
Dos cherubins nas azas radiosas
Sentado elle voou:
E sobre turbilhões de rijo vento
O mundo rodeou.
Se lança á terra o olhar, a terra treme,
E os mares assustados
Pág. 17Bramem ao longe, e os montes lançam fumo,
Da sua mão tocados.
Se pensou no Universo, ei-lo patente
Todo perante o Eterno:
Se o quiz, o firmamento os seios abre,
Abre os seios o inferno.
Dos olhos do Senhor, homem, se podes,
Esconde-te um momento:
Vê onde encontrarás logar que fique
Da sua vista isento:
Sobe aos ceus, transpõe mares, busca o abysmo,
Lá teu Deus has-de achar;
Elle te guiará, e a dextra sua
Lá te ha-de sustentar:
Desce á sombra da noite, e no seu manto
Involver-te procura;
Mas as trévas para elle não são trévas;
Nem é a noite escura.
No dia do furor, em vão buscáras
Fugir ante o Deus forte,
Quando do arco tremendo, irado, impelle
Setta em que pousa a morte.
Mas o que o teme dormirá tranquillo
No dia extremo seu,
Quando na campa se rasgar da vida
Das illusões o véu.
Pág. 18
X.
Callou-se o monge: sepulchral silencio
Á sua voz seguiu-se:
e um som soturno
De orgam partiu-o; som que assemelhava
O suspiro saudoso, e os ais de filha,
Que chora solitaria o páe, que dorme
Seu ultimo, profundo e eterno somno.
Harmonias depois soltou mais doces
O instrumento suave; e ergueu-se o canto,
O lamentoso canto do propheta,
Da patria sobre o fado. Elle, que o víra,
Sentado entre ruinas, contemplando
Seu avíto esplendor, seu mal presente,
A quéda lhe chorou: lá na alta noite,
Modulando o Nebel, via-se o vate
Nos derrubados porticos, abrigo
Do immundo stellio e gemedora poupa,
Extasiado--e a lua scintillando
Na sua calva fronte, onde pesavam
Annos e annos de dor: ao venerando
Nas encovadas faces fundos regos
Tinham aberto as lagrymas: ao longe,
Nas margens do Kedron, a rãa grasnando
Quebrava a paz dos tumulos. Que tumulo
Era Sion!--o vasto cemiterio
Dos fortes de Israel. Mais venturosos
Que seus irmãos, morreram pela patria;
Pág. 19A patria os sepultou dentro em seu seio:
Elles, em Babylonia, as mãos em ferros,
Passam de escravos miseranda vida,
Que Deus pesou seus crimes, e, ao pesá-los,
A dextra lhe vergou. Não mais no templo
A nuvem repousára, e os ceus de bronze
Dos prophetas aos rogos se amostravam,
O vate de Anathoth a voz soltára
Entre o povo infiel, de Eloha em nome:
Ameaças, promessas, tudo inutil;
De ferro os corações não se dobraram.
Vibrou-se a maldicção: bem como um sonho
Jerusalem passou: sua grandesa
Somente existe em derrocadas pedras.
O vate de Anathoth, sobre seus restos,
Com tal lamento se doeu da patria:
Canto de morte alçou: da noite as larvas
O som lhe ouviram: squallido esqueleto,
Rangendo os ossos, d'entre a hera e musgos
Do portico do templo erguia um pouco,
Alvejando, a caveira:--era-lhe alivio
Do sagrado cantor a voz suave
Desferida ao luar, triste, no meio
Da vasta solidão que o circumdava:
O propheta gemeu: não era o estro,
Ou o vivido júbilo que outrora
Inspirára Moysés: o sentimento
Fui sim pungente do silencio e morte,
Pág. 20Que da patria lhe fez sobre o cadaver
A elegia da noite erguer, e o pranto
Derramar da esperança e da saudade.
XI.
A Lamentação.
Como assim jaz e solitaria e quêda
Esta cidade outrora populosa!
Qual viuva ficou e tributaria
A senhora das gentes.
Chorou durante a noite: em pranto as faces
Sosinha, entregue á dôr, nas penas suas
Ninguem a consolou: os mais queridos
Contrarios se volveram.
As amplas ruas de Sion são ermas,
E cubertas de relva: os sacerdotes
Gemem: as virgens pallidas suspiram
Involtas na amargura.
Dos filhos de Israel nas cavas faces
Está pintada a macilenta fome;
Mendigos vão pedir, pedir a estranhos,
Um pão de infamia eivado.
O tremulo ancião, de longe, os olhos
Volta a Jerusalem, della fugindo;
Vê-a, suspira, cáe, e em breve expira
Com seu nome nos labios.
Pág. 21Que horror!--as proprias mães os seus filhinhos
Despedaçaram: barbaras quaes tygres,
Os sanguinosos membros palpitantes
No ventre sepultaram.
Grande Deus, nosso opprobrio olha piedoso!
Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos,
Servos de servos em paiz estranho;
Adoça nossos males!
Acaso serás Tu sempre inflexivel?
Esquecèste de todo a nação tua?
O pranto dos hebreus não Te commove?
És surdo a seus lamentos?
XII.
Doce era a voz do velho: o som do Nablo
Sonoro: o ceu sereno: clara a terra
Pelo brando fulgor do astro da noite:
E o propheta parou: erguidos tinha
Os olhos para o ceu, onde buscava
Um raio de esperança e de conforto:
E elle calára já, e ainda os ecchos,
Entre as minas sussurrando, ao longe
Iam os sons levar de seus queixumes.
XIII.
Chôro piedoso, o chôro consagrado
Pág. 22Ás desditas dos seus. Honra ao propheta!
Oh margens do Jordão, paiz tão lindo,
Que fostes e não sois, tambem suspiro
Doído vos consagro!--Assim fenecem
Imperios, reinos, solidões tornados!...
Não:--nenhum deste modo: o peregrino
Pára em Palmyra e pensa: o braço do homem
A sacudiu á terra, o fez dormissem
O seu ultimo somno os filhos della--
E elle o veio dormir pouco mais longe:
Mas se chega a Sion treme, enxergando
Seus lacerados restos. Pelas pedras,
Aqui e alli dispersas, ainda escripta
Parece vêr-se uma inscripção de agouros,
Bem como aquella que aterrou um ímpio
Quando, no meio de ruidosa festa,
Blasphemava dos ceus, e mão ignota
O dia extremo lhe apontou de crimes.
A maldicção do Eterno está vibrada
Sobre Jerusalem!--Quanto é terrivel
A vingança de Deus! O Israelita,
Sem patria, e sem abrigo, vagabundo,
Odio dos homens, neste mundo arrasta
Uma existencia mais cruel que a morte,
E que vem terminar a morte e inferno.
Desgraçada nação!--aquelle solo
Onde manava o mel, onde o carvalho,
O cedro e a palma o verde, ou claro ou torvo,
Pág. 23Tão grato á vista, em bosques misturavam:
Onde o lyrio e a cecem nos prados tinham
Crescimento espontaneo entre as roseiras,
Hoje, campo de lagrymas, só cria
Humilde musgo de escalvados cerros.
XIV.
Ide vós a Mambré:--lá, bem no meio
De um valle, outrora de verdura ameno,
Erguia-se um carvalho magestoso:
Debaixo de seus ramos, largos dias
Abrahão repousou:
na primavera
Vinham os moços adornar-lhe o tronco
De capellas cheirosas de boninas,
E corêas gentis traçar-lhe em roda.
Nasceu com o orbe a planta veneravel,
Viu passar gerações, julgou seu dia
Final fosse o do mundo, e quando airosa
Por entre as densas nuvens se elevava,
Mandou o Nume aos aquilões rugíssem.
Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco,
Murcharam-se caíndo, e o rei dos bosques
Servio do pasto aos tragadores vermes:
Deus estendeu a mão:--no mesmo instante
A vinha se mirrou: juncto aos ribeiros
Da Palestina os platanos frondosos
Não mais cresceram, como d'antes, bellos:
Pág. 24O armento, em vez de relva, achou nos prados
Somente ingratas, espinhosas urzes.
No Golgotha plantada, a Cruz clamára
Justiça: a seu clamor horrido espectro
No Moriah sentou-se; era seu nome
Assolação--e despregando um grito,
Caíu com longo som de um povo a campa.
Assim a herança de Judah, outrora
Grata ao Senhor, existe só nos ecchos
Do tempo que já foi, e que ha passado
Como hora de prazer entre desditas.
Minha Patria onde existe?
É lá somente!
Oh lembrança da Patria acabrunhada
Um suspiro tambem tu me has pedido:
Um suspiro arrancado aos seios d'alma
Pela offuscada gloria, e pelos crimes
Dos homens que ora são, e pelo opprobrio
Da mais illustre das nações da terra!
A minha triste Patria era tão bella,
E forte, e virtuosa! e ora o guerreiro
E o sabio e o homem bom acolá dormem,
Acolá, nos sepulchros esquecidos,
Que a seus netos infames nada contam
Da antiga honra e pudor e eternos feitos.
Pág. 25
O escravo portuguez agrilhoado
Carcomir-se-lhes deixa juncto ás lousas
Os decepados troncos desse arbusto,
Por mãos delles plantado á liberdade,
E por tyrannos derrubado em breve,
Quando patrias virtudes se acabaram,
Como um sonho da infancia.
O vil escravo
Immerso em vicios, em bruteza e infamia
Não erguerá os macerados olhos
Para esses troncos, que destroem vermes
Sobre as cinzas de heróes, e, acceso em pejo,
Não surgirá jámais?--Não ha na terra
Coração portuguez, que mande um brado
De maldicção atroz, que vá cravar-se
Na vigilia e no somno dos tyrannos,
E envenenar-lhes o prazer nos braços
Das prostitutas vís, e em seus banquetes
De embriaguez, lançar fel e amarguras?
Não!--Bem como um cadaver já corrupto,
A nação se dissolve: e em seu lethargo
O povo, involto na miseria, dorme.
XV.
Oh, talvez, como o vate, ainda algum dia
Terei de erguer á Patria hymno de morte,
Pág. 26Sobre seus mudos restos vagueando!
Sobre seus restos?--Nunca! Eterno, escuta
Minhas preces e lagrymas:--se em breve,
Qual jaz Sion, jazer deve Ulissea:
Se o anjo do exterminio ha-de riscá-la
Do meio das nações, que d'entre os vivos
Risque tambem meu nome, e não me deixe
Na terra vaguear, orpham de Patria.
XVI.
Cessou da noite a grão solemnidade
Consagrada á tristeza, e a memorandas
Recordações:--os monges se prostraram
A face unida á pedra: a mim, a todos
Correm dos olhos lagrymas suaves
De compuncção. Atheu, entra no templo;
Não temas esse Deus, que os labios negam,
E o coração confessa: a corda do arco
Da vingança, em que a morte se debruça
Frouxa está; Deus é bom; entra no templo.
Tu para quem a morte ou vida é fórma,
Fórma sómente de mais puro barro,
Que nada crês, mas nada esperas, olha,
Olha o conforto do christão: se o calis
Da amargura a provar os ceus lhe deram,
Elle se consolou: balsamo sancto
Dentro no coração a fé lhe entorna
Pág. 27"Deus piedade terá!"--Eis seu gemido:
Porque a esperança lhe sussurra emtorno:
"Aqui--ou lá--a Providencia é justa."
Atheu, a quem o mal fizera escravo,
Teu futuro qual é? Quaes são teus sonhos?
No dia da afflicçâo emmudeceste
Ante o espectro do mal. E a quem alçaras
O gemente clamor?--Ao mar, que as ondas
Não altera por ti?--Ao ar, que some
Pela sua amplidão as queixas tuas?
Aos rochedos alpestres, que não sentem,
Nem sentir podem teu gemido inutil?
Tua dôr, teu prazer existem, passam,
Sem porvir, sem passado, e sem sentido.
Nas angustias da vida, o teu consolo
O suicidio é só, que te promette
Rica messe de goso, a paz do nada!--
E ai de ti, se buscaste, em fim, repouso,
No limiar da morte indo assentar-te!
Alli grita uma voz no ultimo instante
Do passamento: a voz atterradora
Da Consciencia é ella: e has-de escutá-la
Mau grado teu: e tremerás em sustos,
Desesperado aos ceus erguendo os olhos
Irados, de travez, amortecidos--
Aos ceus, cujo caminho a Eternidade
Co'a vagarosa mão te vai cerrando,
Pág. 28Para guiar-te á solidão das dores,
Onde maldigas teu primeiro alento,
Onde maldigas teu extremo arranco,
Onde maldigas a existencia e a morte.
XVII.
Calou tudo no templo: o ceu é puro:
A tempestade ameaçadora dorme.
No espaço immenso os astros scintillantes
O Rei da creação louvam com hymnos,
Não ouvidos por nós, nas profundezas
Do nosso abysmo. E aos cantos do Universo,
Ante milhões de estrellas, que recamam
O firmamento, ajunctará seu canto
Mesquinho trovador?--Que vale uma harpa
Mortal, no meio da harmonia etherea,
No concerto da noite? Oh, no silencio,
Eu pequenino verme irei sentar-me
Aos pés da Cruz, nas trévas do meu nada.
Assim se apaga a lampada nocturna
Ao despontar do sol o alvor primeiro:
Por entre a escuridão deu claridade,
Mas do dia ao nascer, que já rutila,
As torrentes de luz vertendo ao longe,
Da lampada o clarão sumiu-se inutil
Nesse fulgido mar, que inunda a terra.
Lisboa--1829.
Pág. 29
NOTAS.
Pág. 31
NOTAS.
Eis o poema da minha mocidade: são os unicos versos
que conservo desse tempo, em que nada neste mundo
deixava para mim de respirar poesia. Se hoje me dissessem:
faze um poema de quinhentos versos ácerca da Semana
Sancta, eu olharia ao primeiro aspecto esta proposição
como um absurdo: entretanto eu mesmo ha nove
annos realizei esse absurdo. Não é esta a primeira das minhas
contradiccções, e espero em Deus, e na minha
sincera consciencia, que não seja a ultima.
Quando compuz estes versos, ainda eu possuia toda
a vigorosa ignorancia da juventude; ainda eu cria conceber
toda a magnificencia do grande drama do christianismo,
e que a minha harpa estava affinada para cantar
um tal objecto. Enganava-me; a Semana Sancta do poeta
não saíu semelhante á Semana Sancta da Religião.
O que é esta, de feito?--Um poema representado, um
drama, cuja essencia é um facto universal, o maior de
todos; o que veio mudar idéas, civilisação, e destinos
do genero humano inteiro. Tinha eu forças para o tractar?
Não por certo; porque até hoje só houve um Klopstock;
talvez só um haverá até a consummação dos seculos.
Assim, eu corri as memorias do passado, e as esperanças
Pág. 032
do fucturo; chorei sobre Jerusalem, e sobre a minha
patria; subi aos ceus, e desci aos infernos; saudei o
sol, e as trévas da noite; em tudo, e em toda a parte
busquei inspirações, menos onde as devia buscar; por
que acima da minha comprehensão estava o meu objecto--a redempção,
e as suas consequencias. Foi disto justamente
que eu não tractei; e era disto que eu devia tractar,
se o podesse ou soubesse fazer.
Porque, pois, não acompanharam estes versos os
outros da primeira mocidade no caminho da fogueira!
Porque publíco um poema falho na mesmissima essencia
da sua concepção!
Porque tenho a consciencia de que ha ahi poesia; e
porque não ha poeta, que, tendo essa consciencia, consinta
de bom grado em deixar nas trévas o fructo das suas
vigilias.
A loucura da Cruz não morreu toda
"Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est".
Paul. Ad Corinth. 1.--1.
ignoto vate
Teceu
Ainda que os Psalmos se attribuam geralmente a David, ha ácerca disso muita incertesa, e o que, ao menos,
parece indubitavel é que alguns lhe não pertencem,
por fallarem no captiveiro de Babylonia, e trazerem allusões
a épochas mais recentes. Verdade é que se chegou
Pág. 33
a crer heretica semelhante opinião; mas os Padres gregos,
e com elles Sancto Hilario, e S. Jeronymo, julgam
absurdo attribui-los todos a David. Esdras voltando do
captiveiro foi quem reuniu estes hymnos, e nessa collecção
é provavel fizesse entrar todas os poesias hebraicas
deste genero lyrico e religioso.
E ao esconder-se o sol entre as montanhas
De Bethoron
Bethoron inferior, cidade situada perto de Gadara
ou Gazara e de Bethel, e todas ellas em uma serie de
montanhas no extremo da Tribu de Ephraim, ao occidente
de Jerusalem. Cumpre não a confundir com a outra
Bethoron ou Bethra, a quatro milhas de Jerusalem
para o norte, no caminho de Sichem ou Naplusa.
O Psalmo.
Commota est, et contremuit terra: fundamenta
montium conturbata sunt, et commota sunt, quoniam
iratus est eis.
Ascendit fumus in ira ejus: et ignis à facie ejus exarsit:
carbones succensi sunt ab eo.
Inclinavit coelos et descendit: et caligo sub pedibus
ejus.
Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit super
pennas ventorum.
Psalm. 17--v. 8--9--10--11.
Pág. 34
Quò ibo a spiritu tuo? et quò à facie tua figiam?--
Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in
infernum, ades.
Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in
extremis maris:
Etenim illuc manus tua deducet me: et tenebit me
dextera tua.
Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox
illuminatio mea in deliciis meis.
Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox sicut
dies illuminabitur: sicut tenebrae ejus, sicut et lumen ejus.
Psalm. 138--v. 7--8--9--10--11--12.
------- arcum suum tetendit et paravit illum.
Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus
effecit.
Psalm. 7--v. 13--14.
------ e um som soturno
Do orgam partiu-o:
O orgam é um instrumento propriissimo para
acompanhar os hymnos religiosos. Os protestantes, apartando-se
da communhão romana, e fazendo voltar o culto quasi
á simplicidade primitiva, conservaram nos seus templos
este instrumento, cujos sons melodiosos, e ao mesmo tempo
severos, se adaptam tão bem ás idéas que suscitam os
cantos da Igreja. O primeiro orgam, que se viu no occidente
da Europa, foi o que mandou, em 758, Constantino
Copronymo, imperador de Constantinopola, a Pepino,
pae de Carlos-Magno. Depois o seu uso se tomou
quasi exclusivo nos templos.
Pág. 35
Modulando o Nebel
O Nebel, que os gregos traduzem por Psalterion ou
Nablon, era entre os hebreus um instrumento proprio da
musica religiosa, como entre os christãos o orgam. A sua
fórma triangular, e o ser instrumento de cordas, fez com
que na Vulgata se vertesse a palavra hebraica Nebel, umas
vezes por lyra, outras por cythara, sem ser nenhuma
das duas cousas. Veja-se a Dissertação de Calmet ácerca
da musica dos hebreus.
Do immundo Stellio
O Stellio é o lagarto da 1.a especie, ou a salamandra
de Lacepede. Stellio manibus nititur et moratur in aedibus
regis. Prov. 30 v. 28--Migale, et chamaeleon, et
stellio, et lacerta, et talpa. Levit. 11--v. 30.
Nas margens do Kedron a rãa grasnando
A torrente de Kedron, que passa entre Jerusalem e
o monte Olivete, ao oriente da cidade, sécca inteiramente
no estio, e no hynverno as suas aguas são torvas e
avermelhadas. D'ahi o seu nome, que sôa como--torrente
da tristeza--. Alguem lhe chamou--torrente dos cedros,
tomando a palavra hebraica Kedron pelo plural grego
Kedron.
Pág. 36
O vate de Anathoth
Jeremias era natural de Anathoth cidade sacerdotal
na Tribu de Benjamim.--Verba Jeremiae filii Helciae,
de sacerdotibus qui fuerunt in Anathoth, in terra Benjamim.
Jer. 1--1.
Entre o povo infiel, de Eloha em nome
Eloha ou Elah--Nome de Deus em hebraico, ou antes
chaldaico, e palavra assás commum na Biblia. O auctor
do Genesis usa do plural Elohim ou Elahim para significar,
ora o Deus uno, ora os deuses dos pagãos. Consulte-se
Volney, Recherches sur l'histoire ancienne. Cap.
17.
Inspirára Moysés
Allusão ao cantico depois da passagem do mar roxo.
A Lamentação.
Quomodo sedet sola civitas plena populo!--Facta est
quasi vidua Domina Gentium: princeps provinciarum
facta est sub tributo.
Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis
ejus: non est qui consoletur eam ex omnibus caris
ejus: omnes amici ejus spreverunt eam, et facti sunt ei
inimii.
Pág. 37
Viae Sion lugent, eò quod non sint, qui veniant ad
solemnitatem: omnes portae ejus destructae: sacerdotes
ejus gementes: virgines ejus squallidae, et ipsa oppressa
amaritudine.
Threni c. 1--v. 1--2--4.
Omnis populus ejus gemens, et quaerens panem:
dederunt pretiosa quaeque piro cibo ad refocilandum animam.
C. 1--v. 11.
A Egypto dedimus manum, et Assyriis ut saturaremur pane.
Oratio Jerem. 6.
Jacuerunt in terra foris puer, et senex.
Threni c.--v. 21.
Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos:
facti sunt cibus earum in contritione filiae populi mei.
Thren. 4.--v. 10.
Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et
respice opprobrium nostrum.
Haereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae
ad extraneos.
Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret
de manu eorum.
Quare in perpetuum oblivisceris noatri? derelinques
nos in longitudine dierum?
Orat. Jer. v. 1--2--8--10.
Bem como aquella que atterrou um ímpio.
Baltasar rex facit grande convivium optimatibus suis
mille; et unusquisque secundùm suam bibebat aetatem.
Pág. 38
Praecepit ergo jam temulentus ut afferrentur vasa aurea
et argentea, quae asportaverat Nabuchodonosor pater ejus
de templo, quod fuit in Jerusalem, ut biberent in eis rex
et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae. Tunc
allata sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de
templo, quod fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex,
et optimates ejus, uxores et concubinae illius. Bibebant
vinum el laudabant deos suos aureos, et argenteos,
aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In eadem hora
aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra
candelabrum in superficie parietis aulae regiae: et rex
aspiciebat articulos manus scribentis. Tunc facies regis
commutata est, et cogitationes ejus conturbabant eum;
et compages renum ejus solvebantur, et genua ejus ad
se invicem collidebantur. Haec est autem scriptura, quae
digesta est: Mane, Thecel, Phares. Et haec est interpretatio
sermonis: Mane: numeravit Deus regnum tuum et
complevit illud. Thecel: appensus es in statera, et inventus
es minus habens. Phares: divisum est regnum tuum,
et datum est Medis, et Persis.
Danielis Proph. c. 5--v. 1 a 6--25 a 28.
Hoje, campo de lagrymas, só cria
Humilde musgo de escalvados cerros.
Varios passos, cem vezes citados, de Tacito e de outros
escriptores gravissimos da antiguidade, nos provam
que a Judea foi um paiz feracissimo. Os viajantes modernos
no-la descrevem como uma região arida e inculta.
O despotismo, que ha seculos tem opprimido a Syria, e a
rapacidade dos arabes; são em grande parte causa da aniquilação
Pág. 39
da agricultura na Palestina; porém a sua esterilidade
não se póde attribuir, por certo, a uma causa politica.
Os sectarios do Crucificado não podem deixar de
vêr neste phenomeno os effeitos da maldicção de Deus sobre
a terra que bebeu o sangue do Filho do Homem.
Ide vós a Mambré:
O valle de Mambré estava situado juncto de Kariath-Arbé
[Hebron] na tribu de Judah, e ao Meio-dia de Jerusalem.
O carvalho ou terebintho de Abrahão, que, segundo
o testemunho de S. Jeronymo, ainda existia no
tempo de Constantino, o tornava notavel. Ácerca desta
arvore célebre existem muitas tradições entre os Judeus;
e até para os christãos dos primeiros seculos era o valle
de Mambré um logar de devoção e romagem. Sozomeno
nos descreve o Valle de Terebintho como um sitio de festivas
reuniões, e foi a sua narração quem suscitou este
pedaço de Poema.
na primavera
Vinham os moços adornar-lhe o tronco
Aqui [em Mambré] ha um logar que hoje chamam
Terebintho, distante de Chebron, que lhe fica ao meio-dia,
15 stadios, e de Jerusalém quasi 250.--Os habitantes
deste sitio, no tempo do estio, fazem uma feira a
que concorrem os vizinhos do valle, e ainda povos mais
remotos, como os Palestinos, os Arabes, e os Phenicios.
Sozom. Histor. Eccles.
Pág. 40
No Golgotha plantada a cruz clamára
O monte Golgotha ou Calvario foi o logar onde crucificaram
J. C.--Esta palavra significa: Logar onde
repousam os craneos dos mortos.
No Moriah sentou-se:
O monte Moriah, onde estava o templo de Salomão,
levantava-se no meio de Jerusalem, e ficava-lhe ao norte
o monte Sion. Diz-se que neste logar estivera Abrahão
para sacrificar seu filho.--Calmet Diction.
A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR
DA
VOZ DO PROPHETA.
SEGUNDA SERIE.
LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
Rua direita do Arsenal--n.o 55.
Pág. 41
A Arrabida.
Pág. 43
A RODRIGO DA FONSECA MAGALHÃES,
ORNAMENTO DA TRIBUNA PORTUGUEZA,
Em testemunho da sincera amizade,
Offerece o Auctor.
Pág. 45
A Arrabida.
[1830.]
I.
Salve, oh valle do sul, saudoso e bello!
Salve, oh terra de paz, deserto sancto,
Onde não chega o sussurrar das turbas!
Sólo sagrado a Deus, podesse o bardo
Ser um dos teus, e não voltar ao mundo!
II.
Suspira o vento no alamo frondoso;
As aves soltam matutino canto;
Late o lebreu na encosta, e o mar sussurra
Nos rochedos da concava bahia:
Eis o ruido de ermo!--Ao longe o negro,
Insondado oceano, e o ceu ceruleo
Se abraçam no horizonte: immensa imagem
Da eternidade e do infinito, salve!
Pág. 46
III.
Oh, como surge magestosa e bella,
Com viço da creação, a naturesa,
No solitario valle!--E o leve insecto,
E a relva, e os matos, e a fragrancia pura
Das boninas da encosta estão contando
Mil saudades de Deus, que os ha lançado,
Com mão profusa, no regaço ameno
Da solidão, onde se esconda o justo.
E lá campeam no alto das montanhas
Os escalvados pincaros, severos,
Quaes guardadores de um logar que é sancto:
Atalaias que ao longe o mundo observam,
Cerrando até o mar o ultimo abrigo
Da crença viva, da oração piedosa,
Que se ergue a Deus de labios innocentes.
Sobre esta scena o sol verte em torrentes
Da manhan o clarão; a brisa esvae-se
Por esses matos de alecrim florído,
Embalsamando o ar de brando aroma:
O rocío da noite á rosa agreste
No seio derramou frescor suave,
E 'inda existencia lhe dará um dia!
Formoso ermo do sul, outra vez, salve!
Pág. 47
IV.
Negro, esteril rochedo, que contrastas,
Na mudez tua, o placido sussurro
Das arvores do valle, que verdecem,
Ricas d'encantos, co'a estação propicia;
Suavissimo aroma, que manando
Das variegadas flores, derramadas
Na sinuosa encosta da montanha,
Do altar da solidão subindo aos ares,
És digno incenso ao Creador erguido;
Livres aves, vós filhas da espessura,
Que só teceis da natureza os hymnos;
O que crê, o cantor, que foi lançado,
Estranho ao mundo, no bulicio delle,
Vem saudar-vos, sentir um goso puro,
Dos homens esquecer paixões e opprobrio,
E vêr, sem ver-lhe a luz prestar a crimes,
O sol, e uma só vez pura saudar-lha.
Comvosco eu sou maior: mais longe a mente
Pelos seios dos céus se immerge livre,
E se desprende de mortaes memorias
Na solidão solemne, onde, incessante,
Em cada pedra, em cada flor se escuta
Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa
A dextra sua em multiforme quadro.
Pág. 48
V.
Escalvado penedo, que repousas
Lá no cimo do monte, ameaçando
Ruina ás matas de alecrim e murta,
Que nesta encosta ondeam, meneadas
Pelo vento do sul, foste já lindo,
Já te cubriram cespedes virentes;
Mas o tempo voou, e nelle involta
A tua formosura: as grossas chuvas,
Despedidas das nuvens, se arrojaram
Sobre ti, oh rochedo, arrebatando
A terra e o viço, que te ornava o cimo.
Eis-te nú esqueleto!--o sol queimou-te:
Tua alvura passou: tão negro és hoje,
Quanto de mar erguido escuras vagas.
Cáveira da montanha, ossada immensa,
É tua campa o ceu: sepulchro o valle
Um dia te será. Quando sentires
Rugir com som medonho a terra ao longe,
Na expansão dos volcões, e o mar bramindo,
Lançar á praia vagalhões cruzados;
Tremer-te a larga base, e sacudir-te
Do vasto dorso, o fundo deste valle
Te váe servir de tumulo: e os carvalhos
Do mundo primogenitos, e os freixos,
Arrastados por ti lá da collina,
Pág. 49Comtigo hão-de jazer.--De novo a terra
Te cubrirá o dorso sinuoso:
Outra vez sobre ti nascendo os lyrios,
Do seu puro candor hão-de adornar-te:
E tu, ora medonho, e nú, e triste,
Ainda bello serás, vestido e alegre.
Mais que o homem feliz!--Quando eu no valle
Dos tumulos cair; quando uma pedra
Os ossos me esmagar, se me fôr dada,
Não mais reviverei: não mais meus olhos
Verão o pôr do sol, em dia estivo,
Se em turbilhões de purpura, que ondeam
Pelo extremo dos céus sobre o occidente,
Váe provar que um Deus ha a estranhos povos,
E alem das ondas tremulo sumir-se;
Nem, quando, lá do cimo das montanhas,
Com torrentes de luz inunda as veigas:
Nem mais verei o refulgir da lua
No irrequieto mar, na paz da noite,
Por horas em que véla o criminoso,
A quem íntima voz rouba o socego,
E em que o justo descança, ou, solitario,
Ergue ao Senhor um hiymno harmonioso.
VI.
Hontem, sentado n'um penhasco, e perto
Pág. 50Das aguas, então quêdas, do oceano,
Eu tambem o louvei, sem ser um justo:
E meditei--e a mente extasiada
Deixei correr pela amplidão das ondas.
Como abraço materno, era suave
A aragem fresca do caír das trévas,
Em quanto, involta em gloria, a clara lua
Sumia em seu fulgor milhões d'estrellas.
Tudo calado estava: o mar somente
As harmonias da creação soltava,
Em seu rugido; e o freixo do deserto
Se agitava, gemendo e murmurando,
Ante o sopro de oeste:--alli dos olhos
O pranto me correu, sem que o sentisse,
E aos pés de Deus se derramou minha alma.
VII.
Oh, que viesse o que não crê, comigo,
Á vecejante Arrabida, de noite,
E se assentasse aqui sobre estas fragas,
Escutando o sussurro incerto e triste
Das movediças ramas, que povoa
De saudade e de amor nocturna brisa;
Que visse a lua, o espaço oppresso de astros,
E ouvisse o mar soando:--elle chorára,
Qual eu chorei, as lagrymas do goso,
Pág. 51E adorando o Senhor detestaria
De uma sciencia van seu vão orgulho.
VIII.
É aqui neste valle, ao qual não chega
Humana voz e o tumultuar das turbas,
Onde o nada da vida sonda livre
O coração, que busca ir abrigar-se
No futuro, e debaixo do amplo manto
Da piedade de Deus: aqui serena
Vem a imagem da campa, como a imagem
Da patria ao desterrado: aqui, solemne,
Brada a montanha, memorando a morte.
Essas penhas, que, lá no alto da encosta,
Negras, despidas, dormem solitarias,
Parecem imitar da sepultura
O aspecto melancholico, e o repouso
Tão desejado do que em Deus confia.
Bem semelhante á paz, que se ha sentado
Por seculos, alli, nas serranias,
É o silencio do adro, onde reunem
Os cyprestes e a cruz o céu e a terra.
Como tu vens cercado de esperança,
Para o innocente, oh placido sepulchro!
Juncto das tuas bordas pavorosas
Pág. 52O perverso recúa horrorisado:
Após si volve os olhos; na existencia
Deserto árido só descobre ao longe,
Onde a virtude não deixou um trilho.
Mas o justo chegando á meta extrema,
Que separa de nós a eternidade,
Transpoem-a sem temor, e em Deus exulta.
O infeliz e o feliz lá dormem ambos,
Tranquillamente: e o trovador mesquinho,
Que peregrino vagueou na terra,
Sem encontrar um coração de fogo,
Que o entendesse, a patria de seus sonhos,
Ignota, por lá busca; e quando as eras
Vierem juncto ás cinzas collocar-lhe
Tardios louros, que escondêra a inveja,
Elle não erguerá a mão mirrada,
Para os cingir na regelada fronte.
Justiça, gloria, amor, saudade, tudo,
Ao pé da sepultura, é som perdido
De harpa eolia esquecida em brenha ou selva:
O despertar um pae, que saborea,
Entre os braços, da morte o extremo somno,
Já não é dado ao filial suspiro:
Em vão o amante, alli, da amada sua
De rosas sobre a c'roa debruçado,
Rega de amargo pranto as murchas flores
E a fria pedra: a pedra é sempre fria,
E para sempre as flores se murcharam,
Pág. 53
IX.
Bello ermo! eu hei-de amar-te, em quanto est'alma,
Aspirando o futuro além da vida,
E um halito dos ceus, gemer, atada
Á columna do exilio, a que se chama,
Em lingua vil e mentirosa, o mundo.
Eu hei-de amar-te, oh valle, como um filho
Dos sonhos meus. A imagem do deserto
Guarda-la-hei no coração, bem juncto
Com minha fé, meu unico thesouro.
Qual pomposo jardim de verme illustre,
Chamado rei ou nobre, ha-de comtigo
Comparar-se, oh deserto?--Aqui não cresce
Em vaso de alabastro a flor captiva,
Ou arvore educada, por mão do homem,
Que lhe diga: és escrava: e erga um ferro,
E lhe decepe os troncos. Como é livre
A vaga do oceano, é livre no ermo
A bonina rasteira, e o freixo altivo:
Não lhes diz: nasce aqui, ou lá não cresças:
Humana voz. Se baqueou o freixo,
Deus o mandou; se a flor pendida murcha,
É que o rocio não desceu de noite,
E da vida o Senhor lhe nega a vida.
Ceu livre, terra livre, e livre a mente,
Pág. 54Paz íntima, e saudade, mas saudade
Que não doe, que não mirra, e que consola
São as riquezas do ermo, onde sorriem
Das procellas do mundo os que o deixaram.
Ahi, na branda encosta, hontem de noite,
Alvejava por entre as azinheiras
Do solitario a habitação tranquilla:
E eu vagueei por lá: patente estava
O pobre alvergue do eremita humilde,
Onde jazia o filho da esperança,
Sob as azas de Deus, á luz dos astros,
Em leito, duro sim, não de remorsos,
Oh, com quanto socego o bom do velho
Dormia!--A leve aragem lhe ondeava
As raras cãas na fronte, onde se lia
A bella historia de passados annos.
De alto choupo atravez passava um raio
Da lua--astro de paz, astro que chama
Os olhos para o ceu, e a Deus a mente--
E em luz pallida as faces lhe banhava:
E talvez neste raio o Pae celeste
Da patria eterna lhe enviava a imagem,
Que o sorriso dos labios lhe fugia,
Como se um sonho de ventura e gloria
Na terra de antemão o consolasse.
E eu comparei o solitario obscuro
Ao inquieto filho das cidades;
Pág. 55
Comparei o deserto silencioso
Ao perpétuo ruido que sussurra
Pelos palacios do abastado e nobre,
Pelos paços dos reis; e condoí-me
Do cortesão suberbo, que só cura
De honras, haveres, gloria, que se compram
Com maldicções e perennal remorso.
Gloria!--A sua qual é?--Pelas campinas,
Cubertas de cadaveres, regadas
De negro sangue, elle segou seus louros;
Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva,
Ao som do choro da viuva, e do orpham;
Ou, dos sustos senhor, em seu delirio,
Os homens--seus irmãos--flagella e opprime.
Lá o filho do pó se julga um nume,
Porque a terra o adorou: o desgraçado
Pensa, talvez, que o verme dos sepulchros
Nunca se ha-de chegar, para traga-lo,
Ao banquete da morte, imaginando
Que uma lagem de marmore, que esconde
O cadaver do grande, é mais duravel
Do que esse chão sem inscripção, sem nome,
Por onde o oppresso, o misero, procura
O repouso, e se atira aos pés do throno
Do Omnipotente, a demandar justiça
Contra os fortes do mundo--os seus tyrannos.
Pág. 56
X.
Oh cidade, cidade, que trasbordas
De vicios, de paixões, e de amarguras!
Tu lá estás, na tua pompa involta,
Suberba prostituta, alardeando
Os theatros, e os paços, e o ruido
Das carroças dos nobres, recamadas
De ouro e prata, e os praseres de uma vida
Tempestuosa, e o tropear contínuo
Dos férvidos ginetes, que alevantam
O pó e o lodo cortesão das praças;
E as gerações corruptas de teus filhos
Lá se revolvem, qual montão de vermes
Sobre um cadaver putrido!--Cidade,
Branqueado sepulchro, que misturas
A opulencia, a miseria, a dôr e o goso,
Honra, infamia, pudor, e impudicicia,
Ceu e inferno, que és tu?--Escarneo ou gloria
Da humanidade?--O que o souber que o diga!
Bem negra avulta aqui, na paz do valle,
A imagem desse povo, que reflue
Das moradas á rua, á praça, ao templo,
Que a noite sorve, e que vomita o dia,
Que ri, e chora, e folga, e geme, e morre,
Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme;
Absurdo mixto de baixesa extrema
Pág. 57E de extrema ousadia; vulto enorme,
Ora aos pés de um vil despota estendido,
Ora surgindo, e arremessando ao nada
As memorias dos seculos que foram;
E depois sobre o nada adormecendo.
Vê-lo, rico de opprobrio, ir assentar-se
Em joelhos, nos atrios dos tyrannos,
Onde, entre o lampejar de armas de servos,
O servo popular adora um tigre?
Esse tigre é o idolo do povo!
Saudae-o; que elle o manda: abençoae-lhe
O ferreo sceptro: ide folgar em roda
De cadafalsos, povoados sempre
De victimas illustres, cujo arranco
Seja como harmonia, que adormente,
Em seus terrores, o senhor das turbas.
Passae depois. Se a mão da Providencia
Esmigalhou a fronte á tyrannia;
Se o déspota caíu, e está deitado
No lodaçal da sua infamia, a turba
Lá vai buscar o sceptro dos terrores,
E diz--é meu--; e assenta-se na praça;
E involta em roto manto, e julga e reina.
Se um ímpio, então, na affogueada boca
De volcão popular sacode um facho,
Eis o incendio que muge, e a lava sobe,
E referve, e trasborda, e se derrama
Pág. 58Pelas ruas além: clamor retumba
De anarchia impudente, e o brilho de armas
Pelo escuro transluz, como um presagio
De assolação; e se amontoam vagas
Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo;
Desse vulgo, que ao som de infernaes hymnos,
Cava fundo da Patria a sepultura,
Onde, abraçando a gloria do passado
E do futuro a ultima esperança,
As esmaga comsigo, e ri morrendo.
Tal és cidade, licenciosa ou serva!
Outros louvem teus paços sumptuosos,
Teu ouro, teu poder:--sentina impura
Da corrupção, eu não serei teu bardo!
XI.
Cantor da solidão, eu me hei sentado
Juncto do verde cespede do valle;
E a paz de Deus do mundo me consola.
Avulta aqui, e alveja, entre o arvoredo,
Um pobre conventinho. Homem piedoso
O alevantou ha seculos, passando,
Como orvalho do ceu, por este sitio,
De virtudes depois tão rico e fertil.
Como um pae de seus filhos rodeado,
Pág. 59Pelos matos do outeiro o vão cercando
Os tugurios de humildes eremitas,
Onde o cilicio e a compuncção apagam
Da lembrança de Deus passados erros
Do peccador, que reclinou a fronte
Penitente no pó. O sacerdote
Dos remorsos lhe ouviu as amarguras;
E perdoou-lhe, e consolou-o em nome
Do que espirando perdoava, o Justo
Que entre os humanos não achou piedade.
Religião! do misero conforto,
Abrigo extremo de alma, que ha mirrado
O longo agonisar de uma saudade,
Da deshonra, do exilio, ou da injustiça,
Tu consolas aquelle, que ouve o verbo,
Que renovou o corrompido mundo,
E que mil povos pouco a pouco ouviram.
Nobre, plebeu, dominador, ou servo,
O rico, o pobre, o valoroso, o fraco,
Da desgraça no dia ajoelharam
No limiar do solitario templo.
Ao pé desse portal, que veste o musgo,
Encontrou-os chorando o sacerdote,
Que da serra descia á meia-noite,
Pelo sino das preces convocado:
Ahi os viu ao despontar do dia,
Sob os raios do sol, ainda chorando.
Pág. 60Passados mezes, o burel grosseiro,
O leito de cortiça, e a fervorosa
E contínua oração foram cerrando
Nos corações dos miseros as chagas,
Que o mundo sabe abrir, mas que não cura.
Aqui, depois, qual halito suave
Da primavera, lhes correu a vida,
Até sumir-se no adro do convento,
Debaixo de uma lagem tosca e humilde,
Sem nome, nem palavra, que recorde
O que a terra abrigou no somno extremo.
Eremiterio antigo, oh se podesses
Dos annos que lá vão contar a historia;
Se ora, á voz do cantor, possivel fosse
Transsudar desse chão, gelado e mudo,
O mudo pranto, em noites dolorosas,
Por naufragos do mundo derramado
Sobre elle, e aos pés da cruz!... se vós podesseis,
Broncas pedras, fallar, o que dirieis!
Quantos nomes mimosos da ventura,
Convertidos em fabula das gentes,
Despertariam o eccho das montanhas,
Se aos negros troncos do sobreiro antigo
Mandasse o Eterno sussurrar a historia
Dos que vieram desnudar-lhe o cepo,
Para um leito formar, onde velassem
Pág. 61Da magoa, ou do remorso as longas noites!
Aqui veio talvez buscar asylo
Um poderoso, outr'ora anjo da terra,
Despenhado nas trévas do infortunio:
Aqui, talvez, gemeu o amor trahido,
Ou pela morte convertido em cancro
De infernal desespero: aqui soaram
Do arrependido os ultimos gemidos,
Depois da vida derramada em gosos,
Depois do goso convertido em tedio.
Mas quem foram?--Na terra, onde deixaram
Suas vestes mortaes, nenhum vestigio
Resta dos nomes seus.--E isso que importa,
Se Deus os viu; se as lagrymas dos tristes
Elle contou, para as pagar com gloria?
Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda,
Que dos montes além conduz ao valle,
Sobre o marco de pedra a cruz se eleva,
Como um pharol de vida, em mar de escolhos:
Ao christão infeliz acolhe no ermo,
E consolando-o, diz-lhe: a patria tua
É lá no ceu:--abraça-te comigo:
Juncto della esses homens, que passaram
Acurvados na dôr, as mãos ergueram
Para o Deus, que perdoa, e que é conforto
Dos que aos pés deste symbolo da esp'rança
Vem derramar seu coração afflicto:
Pág. 62É do deserto a historia a cruz e a campa;
E sobre tudo o mais pousa o silencio.
XII.
Feliz da terra, os monges não maldigas;
Do que em Deus confiou não escarneças!--
Folgando segue a trilha, que ha juncado,
Para teus pés, de flores a fortuna,
E sobre a morta crença, em paz descança.
Que mal te faz, que goso vae roubar-te
O que ensanguenta os pés nas bravas urzes,
E sobre a fria pedra encosta a fronte?
Que mal te faz uma oração erguida,
Nas solidões, por voz sumida e frouxa,
E que, subindo aos céus, só Deus escuta?
Oh, não insultes lagryimas alheias,
E deixa a fé ao que não tem mais nada!...
E se estes versos te contristam--rasga-os.
Teus menestreis te venderão seus hymnos,
Nos banquetes opiparos, em quanto
O negro pão repartirá comigo,
Seu trovador, o pobre anachoreta,
Que não te inveja as ditas, como aos bardos
Do prazer dissoluto eu não invejo
Essas crôas, que ás vezes cingem frontes,
Onde, por baixo, se escreveu--Infamia!--
Pág. 63
A Voz.
Pág. 65
A Voz.
É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a lua
Das ondas a ardentia;
Se em alcantís marinhos
Nas rochas assentado,
O trovador medita,
Em sonhos enleiado!
O mar azul se encrespa
Co' a vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala,
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso,
Quebrando em furna algosa.
Pág. 66
Alli folga o poeta
Nos desvarios seus;
E nessa paz que o cerca
Bemdiz a mão de Deus.
Mas despregou seu grito
A alcyone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no occidente;
E sóbe, e cresce, e immensa,
Nos ceus negra fluctua,
E o vento das procellas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano,
Com horrido clamor:
Do vagalhão nas ribas
Expira o vão furor.
E do poeta a fronte
Cubriu véu de tristesa:
Partiu-se á luz do raio
Seu hymno á naturesa.
Feia alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcyone ao gemido,
Ao sibillar do vento.
Pág. 67
Era blasphema idéa,
Que triumphava em fim:
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:
"Cantor, esse queixume
Da nuncia das procellas,
E as nuvens, que te roubam
Myriadas de estrellas;
E o fremito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga;
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Em quanto do ether puro
Descia o sol radioso,
Typo da vida do homem,
É do universo a vida;
Depois do afan repouso,
Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hymno
Em dia de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Pág. 68
Seu nome não maldigas,
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pae, confia,
Do raio ao scintilar.
Elle o mandou:--a causa
Disso o universo ignora--
E mudo está:--seu nume,
Como o universo, adora!"
Oh sim: torva blasphemia
Não manchará seu canto!
Brama procella embora;
Pese sobre elle o espanto;
Que de su' harpa os hymnos
Derramará o bardo,
Aos pés de Deus, qual oleo
De recendente nardo.
Leça da Palmeira 1835
Pág. 69
A Victoria e a Piedade.
Pág. 71
A Victoria e a Piedade.
Eu nunca fiz soar meu canto humilde
Nos paços dos senhores:
Eu jámais consagrei hymno mentido
Da terra aos oppressores.
Mal haja o trovador que vae sentar-se
Á porta do abastado,
O qual com ouro paga a alhêa infamia,
O cantico aviltado.
O filho das canções, da gloria o bardo
Não manchou o alaude;
O ingenho seu ha consagrado á Patria;
Seu canto é da virtude.
Ingenho!--dom dos ceus, consolo ao triste
Nos dias de afflicção,
Qual solto vento em areal deserto,
Livres teus cantos são.
Pág. 72No despontar da vida, do infortunio
Murchou-me o sopro ardente:
Pela terra natal, na flor dos dias,
Eu suspirei ausente.
O solo do desterro, ah, quanto ingrato
É para o foragido;
Ennevoado o ceu; arido o prado;
O rio adormecido!
Eu lá chorei, na idade da esperança,
Da patria a dura sorte:
Esta alma encaneceu;--e antes de tempo
Ergueu hymnos á morte.
E que infeliz ha hi, a quem não ria
Da sepultura a imagem?
Alli é que se afferra o porto amigo,
Depois de ardua viagem.
Mas, quando o pranto me queimava as faces,
O pranto da saudade,
Deus escutou dos profugos as preces,
Teve de nós piedade.
Armas!--bradaram do desterro os filhos:
Bem-disse-os o Senhor:
E vencer ou morrer juncto com elles
Jurou o trovador.
Pelas vagas do mar correndo affoutos,
Á gloria nos votámos;
Pág. 73E, nos campos nataes, pendão invicto
Os livres, nós, plantámos.
Fanatismo, ignorancia, odio fraterno;
De fogo céus toldados;
A fome, a peste, o mar avaro, as hostes
De innumeros soldados;
Um futuro sem raio de esperança;
Ouvir o vão lamento
De infante, a vida incerta conduzido
Por mão do soffrimento;
Comprar com sangue o pão, com sangue o fogo
Em regelado inverno;
Eis contra o que, por mezes de amargura,
Nos fez luctar o inferno.
Mas constancia e valor tudo ha vencido:
Ganhou-se eterna gloria;
E dos tyrannos apesar, colhemos
Os louros da victoria.
Teça-se, pois, o cantico subido
Aos fortes vencedores.
Livres somos!--Sumiram-se qual fumo
Da Patria os oppressores.
Sobre essa encosta, sobranceira aos campos,
De sangue ainda impuros,
Onde o canhão troou, por mais de um anno,
Contra invenciveis muros,
Pág. 74Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me;
Pedir inspirações
A amiga noite, o genio que me ensina
Suavissimas canções.
Reina em silencio a lua, o mar não brame,
Os ventos nem bafejam.....
Mas que ossadas são estas, que na encosta,
Aqui e alli, alvejam?
Esses?--São ossos vís, que não resguarda
O sussurrar da gloria;
Herdeiros só das maldicções das gentes,
Das maldicções da historia:
São os restos dos homens, que luctaram,
Valentes no seu crime,
Contra nós, contra a mão da Providencia,
Que os maus derruba e opprime.
Mas quem porá padrão que aos evos conte,
Seus feitos derradeiros!
Quem dirá--aqui dormem portuguezes;
Aqui dormem guerreiros--?
Quem virá na alta noite erguer por elles
Resas de salvação?
Quem ousará pedir para o vencido
Um ai de compaixão?
Virão, acaso, alevantar seus filhos
O pranto solitario,
Pág. 75Pelo que lhes legou de avós o nome
Involto em vil sudario?
Será a esposa, que lhes cubra as cinzas
Com oração piedosa?
Não!--nenhuma ousará dizer, chorando,
Eu fui do escravo esposa.
Será a amante?--Em tremedaes a pura
Rosa nascer não sabe:
A mais bella paixão não é de servos;
Vil goso só lhes cabe.
De mãe o amor tentára, unicamente,
Sobre os corpos gelados,
Vir chorar a esperança, em flor colhida,
De seus annos cansados:
Mas o espanto lh'o veda, e o rouco grito
Do rude velador;
Da noite os medos; de armas, já sem donos,
Nas trévas o esplendor.
Quem, pois, consolará gementes sombras,
Que ondeam juncto a mim?
Quem seu perdão da Patria implorar ousa,
Seu perdão de Elohim?
Eu:--o christão:--o trovador do exilio,
Contrario em guerra crua,
Mas que não sei cuspir o fel da affronta
Sobre uma ossada nua.
Pág. 76O misero pastor desceu dos montes,
Abandonando o gado,
Para as armas vestir, dos céus em nome,
Por phariseus chamado.
De um Deus de paz hypocritas ministros
Os tristes enganaram:
Foram elles, não nós, que estas caveiras
Aos vermes consagraram.
Maldicto sejas tu, monstro do inferno,
Que do Senhor no templo,
A virtude insultando, ao crime incitas,
Dás do furor o exemplo!
Sobre os restos da Patria, tu bem creste
Folgar de nosso mal,
E, sobre as cinzas de cidade illustre,
Soltar riso infernal.
Tu, no teu coração insipiente,
Disseste--Deus não ha!--
Elle existe, malvado!--e nós vencemos:
Treme.... que tempo é já.
Mas esses, cujos ossos espalhados
No campo da peleja
Jazem, exoram a piedade nossa;
Piedoso o livre seja!
Eu pedirei a paz dos inimigos,
Mortos como valentes,
Ao Deus nosso juiz, ao que distingue
Culpados de innocentes.
Pág. 77Perdoou, expirando, o Filho do Homem
Aos seus perseguidores:
Perdão, tambem, ás cinzas de infelizes!
Perdão--oh vencedores!
Não insulteis o morto. Elle ha comprado
Bem caro o esquecimento,
Vencido adormecendo em morte ignobil,
Sem dobre ou monumento.
Que resta aos desditosos?--Somno eterno,
Da Patria a maldicção,
A justiça de Deus, tremenda, ignota,
E a humana execração.
Mas nós, saibamos esquecer os odios
De guerra lamentavel;
É generoso o forte, e deixa ao fraco
O ser inexoravel.
Oh, perdão para aquelle, a quem a morte
No seio agasalhou!
Elle é mudo:--pedi-lo já não póde;
O da-lo a nós deixou.
Da lei a espada puna o criminoso,
Que vê a luz dos céus:
O que legou á terra o pó da terra,
Julga-lo cabe a Deus.
E vós, meus companheiros, que não vistes
Nossa inteira victoria,
Não precisaes do trovador o canto;
Vosso nome é da historia.
Pág. 78Eu do vencido consolei a sombra;
Eu perdoei por vós.
Filhos da infamia os desgraçados eram;
Ricos de gloria nós.
Porto--Agosto de 1833
Pág. 79
NOTA.
Este fragmento, que segue, e que servirá para intelligencia
dos precedentes versos, pertence a um livro já
todo escripto no entendimento, mas de que só alguns
capitulos estão trasladados ao papel. A guerra da restauração
de 1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso
e mais poetico deste Seculo. Entre os soldados de
D. Pedro havia poetas: militava comnosco o Auctor de
D. Branca, do Camões, de João Minimo; o Sr. Lopes
de Lima, e outros: mas a politica engodou todos os ingenhos,
e levou-os comsigo. Os homens de bronze, os
sete mil de Mindello não tiveram um cantor; e apenas
eu, o mais obscuro de todos, salvei em minha humilde
prosa, uma diminuta porção de tanta riquesa poetica.
Oxalá que esse mesmo trabalho, ainda que de pouca
valia, não fique esmagado e sumido debaixo do Leviathan
da politica. Todos nós temos vendido a nossa
alma ao espirito immundo do Jornalismo. E o mais é
que poucos conhecem uma cousa: que polilica de poetas
vale, por via de regra, tanto como poesia de politicos.
Fragmento.
O combate da antevespera estava ainda vivo na minha
imaginação: eu cria vêr ainda os cadaveres dos
Pág. 80
meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do fatal
reducto, em que estava assentado: ainda me soavam
nos ouvidos o seu clamor de enthusiasmo ao accommette-lo,
o sibillar das ballas, o grito dos feridos, o som
das armas caindo-lhes das mãos, o gemido doloroso e
longo da sua agonia, o estertor de moribundos, e o
arranco final do morrer. Os dentes me rangeram de cólera,
e a lagryma envergonhada de soldado me escorregou
pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos
valentes cairam nesse dia! Eu ia amaldiçoar os cadaveres
dos vencidos, que ainda por ahi jaziam; porém
pareceu-me que elles se alevantavam e me diziam:--Lembra-te
de que tambem fomos soldados: lembra-te
de que fomos vencidos!--E eu bem sabia que inferno
lhes devia ter sido, no momento de expirarem, as idéas
de soldado e de vencimento, conglobadas n'uma só, como
tremenda e indelevel ignominia, estampada na fronte
do que ia transpor os umbraes do outro mundo. Então
oreí a Deus por elles: antes de irmão de armas
eu tinha sido christão; e Jesu-Christo perdoára, entre as
affrontas da Cruz, aos seus assassinos. A idéa de perdão
parecia me consolava da perda de tantos e tão valentes
amigos. Havia nessa idéa torrentes de poesia; e eu te
devi então, oh crença do Evangelho, talvez a melhor
das minhas pobres canções.
(Da Minha Mocidade--Poesia e Meditação Cap....)
A HARPA DO CRENTE.
TENTATIVAS POETICAS
PELO
AUCTOR
DA
VOZ DO PROPHETA.
TERCEIRA SERIE.
LISBOA--1838
NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS.
Rua direita do Arsenal--n.o 55.
Pág. 81
Deus.
Pág. 83
Deus.
Nas horas do silencio--á meia-noite--
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a terra, e os mares rugidores,
E os abysmos do inferno.
Pela amplidão dos céus meus cantos soem,
E a lua prateada
Pare no gyro seu, em quanto pulso
Esta harpa, a Deus sagrada.
Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vacuo as solidões enchia
De Deus a immensidade,
Elle existiu--em sua essencia involto;
E, fóra delle, o nada:
Pág. 84No seio do Creador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
Do Omnipotente, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.
Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos sáe do Senhor:
Surge o sol, banha a terra, e desabrocha
Uma primeira flor:
Sobre o invisivel eixo range o globo:
O vento o bosque ondêa:
Retumba ao longe o mar: da vida a força
A naturesa ancêa!
Quem, dignamente, oh Deus, ha-de louvar-te,
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de Teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da creação; quando os thesouros
Da neve amontoaste;
Quando da terra nos mais fundos valles
As aguas encerraste?!
E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com dextra poderosa,
Fez, por lei immutavel, se librassem
Pág. 85 Na mole ponderosa?
Onde existia então? No typo immenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Elle
Na terra e nas alturas!
Oh, quanto é grande o Rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em secco estio,
Da tarde a viração!
Por sua Providencia nunca, embalde,
Zumbiu minimo insecto;
Nem volveu o elephante, em campo esteril,
Os olhos, inquieto.
Não deu Elle á avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o sol da primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Elle á gazella amplos desertos,
Ao cervo o bosque ameno,
Ao flamingo os paues, ao tigre um antro,
No prado ao touro o feno!
Não mandou Elle ao mundo, em lucto e trévas,
Consolação e luz?
Acaso, em vão, algum desventurado
Curvou-se aos pés da cruz?
A quem não ouve Deus? Sómente ao ímpio,
No dia da afflicção,
Pág. 86Quando pesa sobre elle, por seus crimes,
Do crime a punição.
Homem, ente immortal, que és tu perante
A face do Senhor?
És a junça do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o negro pinheiro, campeando
Dos Alpes entre a neve:
Quem arranca-lo de seu throno ousára,
Quem destruir-lhe a seve?
Ninguem! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raizes
Aos ares lhe assoprou.
Suberbo, sem temor, saíu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao sol voltando,
Medonho crocodilo.
De seus dentes em roda o susto móra:
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
A boca affogueada.
Qual duro arnez de intrepido guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os ultimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado:--
Pág. 87 Porém, se Deus mandou,
Qual do norte impellida a nuvem passa,
Assim elle passou!
Teu nome ousei cantar!--Perdoa, oh Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos cantos;
Mas são cantos de amor.
Embora vís hypocritas te pintem
Qual barbaro tyranno;
Mentem, por dominar, com ferreo sceptro,
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio!--Arrecear-te
É maldizer-te, oh Deus:
É o throno dos despotas da terra
Ir collocar nos céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existencia
Tranquillo, e sem terror, á sombra posto
Da tua Providencia.
Plymouth--Setembro de 1831.
Pág. 89
A Tempestade.
Pág. 91
A ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO.
Alma affinada pelas harpas de anjos;
Rei das canções--entenderás meu hymno!
O Auctor.
Pág. 93
A Tempestade.
Sibilla o vento:--os torreões de nuvens
Pesam nos densos ares:
Ruge ao largo a procella, e encurva as ondas
Pela extensão dos mares:
A immensa vaga ao longe vem correndo,
Em seu terror involta;
E, d'entre as sombras, rapidas centelhas
A tompestade sólta.
Do sol, no occaso, um raio derradeiro,
Que, apenas fulge, morre,
Escapa á nuvem, que, appressada e espessa,
Para apaga-lo corre.
Tal nos affaga em sonhos a esperança,
Ao despontar do dia,
Mas, no acordar, lá vem a consciencia
Dizer que ella mentia.
As ondas negro-azues se conglobaram;
Serras tornadas são,
Pág. 94Contra as quaes outras serras, que se arqueam,
Bater, partir-se vão.
Oh tempestade!--eu te saudo! oh nume,
Da naturesa açoite!
Tu guias os bulcões, do mar princesa;
E é teu vestido a noite!
Quando no pinheiral, entre o granizo,
Ao sussurrar das ramas,
Vibrando sustos, pavorosa ruges,
E assolação derramas,
Quem porfiar comtigo, então, ousara
Da gloria e poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?
Quem me dera ser tu, por balouçar-me
Das nuvens nos castellos,
E vêr dos ferros meus, em fim, quebrados
Os rebatidos élos!
Eu rodeára, então, o globo inteiro:
Eu sublevára as aguas:
Eu dos volcões, com raios accendêra
Amortecidas fráguas:
Do robusto carvalho e sobro antigo
Accurvaria as frontes;
Com furacões, os areaes da Lybia
Converteria em montes:
Pág. 95Pelo fulgor da lua, lá do norte
No polo me assentára,
E víra prolongar-se o gelo eterno,
Que o tempo amontoára.
Alli eu solitario, eu rei da morte,
Erguêra meu clamor,
E dissera: sou livre, e tenho imperio:
Aqui, sou eu senhor!
Quem se poderá erguer, como estas vagas,
Em turbilhões incertos;
E correr, e correr--troando ao longe--
Nos liquidos desertos!
Mas entre membros de lodoso barro
A mente presa está!....
Ergue-se em vão aos céus:--precipitada,
Rapido, em baixo dá.
Oh morte!--amiga morte!--é sobre as vagas,
Entre escarceus erguidos,
Que eu te invoco, pedindo-te feneçam
Meus dias aborridos:
Quebra duras prisões, que a naturesa
Lançou a esta alma ardente;
Que ella possa voar, por entre os orbes,
Aos pés do Omnipotente:
Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem
Desça, e estourando a esmague;
Pág. 96E a grossa proa, dos tufões ludibrio,
Solta, sem rumo vague!
Porém, não!--Dormir deixa os que me cercam
O somno do existir:
Deixa-os; vãos sonhadores de esperanças
Nas trévas do porvir.
Dôce mãe do repouso--extremo abrigo
De um coração oppresso--
Que ao ligeiro prazer, á dor cançada
Negas no seio accesso,
Não despertes--oh não--os que abominam
Teu amoroso aspeito;
Febricitantes, que se abraçam, loucos,
Com seu dorido leito!
Tu, que ao misero ris com rir tão meigo,
Calumniada morte;
Tu, que entre os braços teus lhe dás azilo
Contra o furor da sorte;
Tu que esperas ás portas dos senhores;
Do servo ao limiar;
E eterna corres, peregrina, a terra,
E as solidões do mar,
Deixa, deixa sonhar ventura os homens;
Já filhos teus nasceram:
Um dia acordarão desses delirios,
Que tão gratos lhes eram.
Pág. 97E eu, que vélo na vida,--e já não sonho,
Nem gloria, nem ventura;
Eu, que esgotei tão cedo, até as fezes,
O calis da amargura;
Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado
De quanto ha vil no mundo,
Morrer sentindo inspirações de bardo,
Do coração no fundo;
Sem achar sobre a terra uma harmonia
De alma, que a minha entenda;
Porque seguir, curvado ante a desgraça,
Esta espinhosa senda?
Torvo o oceano vae!--Qual dobre soa
Fragor da tempestade;
Psalmo de mortos, que retumba ao longe;
Grito da eternidade!....
Pensamento infernal!--Fugir cobarde
Ante o destino iroso?
Lançar-me, involto em maldicções celestes,
No abysmo tormentoso?
Nunca!--Deus poz-me aqui para apurar-me
Nas lagrymas da terra;
Guardarei minha estancia attribulada,
Com meu desejo em guerra.
O fiel guardador terá seu premio,
O seu repouso, em fim;
Pág. 98E atalaiar o sol de um dia extremo
Virá outro apoz mim.
Herdarei o morrer!--Como é suave
Benção de pae querido,
Será o despertar; vêr meu cadaver,
Vêr o grilhão partido.
Um consolo, entretanto, resta ainda
Ao pobre velador:
Deus lhe deixou, nas trévas da existencia,
Doce amisade e amor.
Tudo o mais é Sepulchro, branqueado
Por embusteira mão;
Tudo o mais vãos prazeres, que só trazem
Remorso ao coração.
Passarei minha noite a luz tão meiga,
Até o amanhecer;
Até que suba á patria do repouso,
Onde não ha morrer.
A bordo da Juno, na Bahia da Biscaya--Março de 1853.
Pág. 99
O Soldado.
Pág. 101
O Soldado.
I.
Veia tranquilla e pura
Do meu paterno rio:
Dos campos, que elle rega,
Mansissimo armentio:
Rocío matutino:
Prados tao deleitosos:
Valles, que assombram selvas
De sinceiraes frondosos:
Terra da minha infancia:
Tecto de meus maiores:
Meu breve jardimzinho:
Minhas pendidas flores:
Harmonioso e sancto
Sino do presbyterio:
Cruzeiro venerando
Do humilde cemiterio,
Pág. 102
Onde os avós dormiram,
E dormirão os paes;
Onde eu talvez não durma,
Nem rese, talvez, mais:
Eu vos saúdo!--E o longo
Suspiro amargurado
Vos mando.--É quanto póde
Mandar pobre soldado.
Sobre as cavadas ondas
Dos mares procellosos,
Por vós já fiz soar
Meus cantos dolorosos.
Na proa resonante
Eu me assentava mudo,
E aspirava ancioso
O vento frio e agudo;
Porque em meu sangue ardia
A febre da saudade,
Febre que só minora
Sopro de tempestade;
Mas que se irrita, e cresce,
Quando é tranquillo o mar;
Quando da Patria o céu
Céu puro vem lembrar,
Pág. 103
Quando, lá no occidente,
A nuvem vaporosa
A frouxa luz da tarde
Tinge de côr de rosa;
Quando, qual globo em brasa,
O sol vermelho crece,
E paira sobre as aguas,
E em fim desapparece;
Quando no mar se estende
Manto de negro dó;
Quando ao quebrar do vento,
Noite e silencio é só;
Quando sussurram meigas
Ondas que a nau separa,
E a rapida ardentia
Em torno a sombra aclara.
II.
Eu já ouvi, de noite,
No pinheiral fechado,
Um fremito soturno
Passando o vento irado:
Pág. 104
Assim o murmurio
Do mar, fervendo á prôa,
Com o gemer do afflicto,
Sumido, accorde soa:
E o scintillar das aguas
Gera amargura e dôr,
Qual lampada, que pende
No templo do Senhor,
Lá pela madrugada,
Se o oleo lhe escacêa,
E a espaços expirando,
Affrouxa e bruxulêa.
III.
Bem abundante messe
De pranto, e de saudade,
O foragido errante
Colhe na soledade!
Para o que a patria perde
É o universo mudo;
Nada lhe ri na vida;
Móra o fastio em tudo;
Pág. 105
No meio das procellas;
Na calma do oceano;
No sopro do galerno,
Que enfuna o largo panno;
E no entestar co'a terra
Por abrigado esteiro;
E no pousar á sombra
Do tecto do estrangeiro.
E essas memorias tristes
Minha alma laceraram;
E a senda da existencia
Bem agra me tornaram:
Porém nem sempre ferreo
Foi meu destino escuro;
Sulcou de luz um raio
As trévas do futuro:
Do meu paiz querido
A praia ainda beijei;
E o velho castanheiro
No valle ainda abracei!
Nesta alma regelada
Surgiu ainda o goso;
E um sonho lhe sorriu
Fugaz, mas amoroso.
Pág. 106
Oh, foi sonho da infancia
Desse momento o sonho!
Paz e esperança vinham
Ao coração tristonho.
Mas o sonhar que monta
Se passa, e não conforta?
Minh'alma deu em terra,
Como se fosse morta,
Foi a esperança nuvem,
Que o vento some á tarde.
Facho de guerra acceso
Em labaredas arde!
Do fratricidio a luva
Irmão a irmão lançára;
E o grito: ai do vencido!
Nos montes retumbára.
As armas se hão cruzado:
O pó mordeu o forte:
Caiu: dorme tranquillo:
Deu-lhe repouso a morte.
Ao menos, nestes campos
Sepulchro conquistou;
E o adro do estrangeiro
Seus ossos não tragou.
Pág. 107
Elle herdará, ao menos,
Aos seus honrado nome:
Paga de curta vida
Ser-lhe-ha largo renome.
IV.
E a balla sibillando,
E o trom da artilharia,
E a tuba clamorosa,
Que os peitos accendia;
E as ameaças torvas,
E os gritos de furor,
E desses, que expiravam,
Som cavo de estertor;
E as pragas do vencido,
Do vencedor o insulto,
E a palidez do morto,
Nu, sanguento, insepulto,
Eram um cháos de dores,
Em convulsão horrivel,
Sonho de accesa febre,
Scena tremenda e incrivel!
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E suspirei:--nos olhos
Me borbulhava o pranto;
E a dor, que trasbordava,
Pediu-me infernal canto.
Oh, sim!--maldisse o instante,
Em que buscar viera,
Por entre as tempestades,
A terra em que nascêra.
Que é, em fraternas lides,
Um canto de victoria?
É um prazer mesquinho;
É triumphar sem gloria.
Maldicto era o triumpho,
Que rodeava o horror,
Que me tingia tudo
De sanguinosa côr!
Então olhei saudoso
Para o sonoro mar;
Da nau do vagabundo
Meigo me riu o arfar.
De desespero um brado
Soltou, impio, o poeta.
Perdão!--chegára o misero
Da desventura á meta.
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V.
Terra infame!--de servos aprisco,
Mais chamar-me teu filho não sei:
Desterrado, mendigo serei;
De outra terra meus ossos serão!
Mas a escravo, que pugna por ferros,
Que herdará só maldicta memoria,
Renegando da terra sem gloria,
Nunca mais darei nome de irmão!
Largo o mundo ahi 'stá ante o livre;
Que este mundo é a patria do forte:
Sobre os plainos gelados do norte,
Luz do sol tambem mana do céu:
Tambem lá se erguem montes, e o prado
De boninas, em maio, se veste;
Tambem lá se menêa um cypreste
Sobre o corpo que á terra desceu!
Que me importa o carvalho da encosta?
Que me importa da fonte o ruido?
Que me importa o saudoso gemido
Da rollinha sedenta de amor?
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Que me importam outeiros cubertos
Da verdura da vinha, no estio?
Que me importa o remanso do rio,
E, na calma, da selva o frescor?
Que me importa o perfume dos campos,
Quando passa de tarde a bafagem,
Que se embebe, na sua passagem,
Na fragrancia da flor do alecrim?
Que me importa? Pergunta do inferno!
É meu berço!--A minh'alma está lá!
Que me importa?.... esta boca o dirá?!
Maldicção, maldicção sobre mim!
Combatamos!--O ferro se cruze,
Assobie o pelouro nos ares;
Estes campos convertam-se em mares,
Onde o sangue se possa beber!
Larga a valla!--que, apoz a peleja,
Nós e elles seremos unidos!
Lá, vingados, e do odio esquecidos,
Paz faremos.... depois do morrer!
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VI.
Assim, entre amarguras,
Me delirava a mente!--
E o sol ía fugindo
No termo do occidente.
E os fortes lá jaziam
Co'a face ao céu voltada;
Sorria a noite aos mortos,
Passando socegada.
Porém, a noite delles
Não era a que passava!
Na eternidade a sua
Corria, e não findava.
Contrarios ainda ha pouco,
Irmãos em fim lá eram!
O seu thesouro de odio,
Mordendo o pó, cederam.
No limiar da morte,
Assim tudo fenece!
Inimisades callam,
E até o amor esquece!
Pág. 112
Meus dias rodeados
Foram de amor outr'ora;
E nem um vão suspiro
Terei, morrendo, agora:
Nem o apertar da dextra
Ao desprender da vida:
Nem lagryma fraterna
Sobre a feral jazida.
Meu derradeiro alento
Não colherão os meus?
Por minha alma atterrada
Quem pedirá a Deus?
Ninguem!--Aos pés o servo
Meus restos calcará;
E o riso do despreso
Vaidoso soltará.
O sino luctuoso,
Não lembrará meu fim:
Preces, que o morto affagam,
Não se erguerão por mim!
O filho dos desertos,
O lobo carniceiro
Ha-de escutar alegre
Meu grito derradeiro!
Pág. 113
Oh morte!--o somno teu
Só é somno mais largo:
Porém, na juventude,
É o dormi-lo amargo.
Quando na vida nasce
Essa mimosa flor,
Como a cecem suave,
Delicioso amor:
Quando a mente accendida
Crê na ventura e gloria:
Quando o presente é tudo,
É inda nada a memoria;
Deixar a cara vida,
Então, é doloroso;
E o moribundo á terra
Lança um olhar saudoso.
A taça da existencia
No fundo fezes tem;
Mas os primeiros tragos
Doces--bem doces--vem.
E eu morrerei agora,
Sem abraçar os meus,
Sem jubiloso um hymno
Alevantar aos céus?
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Morrer!--E isso que importa?
Final suspiro, ouvi-lo
Ha-de a patria. Na terra
Eu dormirei tranquillo.
Dormir?--Só dorme o frio
Cadaver, que não sente;
A alma vôa, e se abriga
Aos pés do Omnipotente.
Tambem eu para o throno
Accorrerei do Eterno:
Crimes não são meu dote;
Erros não pune o inferno.
E vós entes queridos,
Entes que tanto amei,
Dando-vos liberdade
Contente acabarei.
Por mim livres chorar
Vós podereis um dia,
E ás cinzas do soldado
Erguer memoria pia.
Porto--Julho de 1832.
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D. Pedro.
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D. Pedro.
Pela encosta do Libano, rugindo,
O nóto furioso
Passou um dia, arremessando á terra
O cedro mais frondoso;
Assim te sacudiu da morte o sopro
Do carro da victoria,
Quando, ebrio de esperanças, tu sorrias,
Filho caro da gloria.
Se, depois de procella em mar de escolhos,
A combatida nave
Vê terra e o vento abranda, o porto aferra,
Com jubilo suave.
Tambem tu demandaste o céu sereno,
Depois de uma ardua lida:
Deus te chamou:--o premio recebeste
Dos meritos da vida.
Que é esta? Um ermo de espinhaes cortado,
D'onde foge o prazer:
Para o justo ella existe além da campa:
Teme o ímpio o morrer.
Plante-se a acacia, o symbolo do livre,
Juncto ás cinzas do forte:
Pág. 118Elle foi rei--e combateu tyrannos--
Chorae, chorae-lhe a morte!
Regada pelas lagrymas de um povo,
A planta crescerá;
E á sombra della a fronte do guerreiro
Placida pousará.
Essa fronte das ballas respeitada,
Agora a traga o pó:
Do valente, do bom, do nosso Amigo
Restam memorias só;
Mas estas, entre nós, com a saudade
Perennes viverão,
Em quanto, á voz de patria e liberdade,
Ancear um coração.
Nas orgias de Roma, a prostituta,
Folga, vil oppressor:
Folga com os hypocritas do Tibre;
Morreu teu vencedor.
Involto em maldicções, em susto, em crimes
Fugiste, desgraçado:
Elle, subindo ao céu, ouviu só queixas,
E um choro não comprado:
Encostado na borda do sepulchro,
O olhar atraz volveu,
As suas obras contemplou passadas,
E em paz adormeceu:
Os teus dias tambem serão contados,
Covarde foragido;
Pág. 119Mas será de remorso tardo e inutil
Teu ultimo gemido:
Do passamento o calis lhe adoçaram
Uma filha, uma esposa:
Quem, tigre cru, te cercará o leito,
N'essa hora pavorosa?
Deus, tu és bom:--e o virtuoso em breve
Chamas ao goso eterno,
E o ímpio deixas saciar de crimes,
Para o sumir no inferno?
Alma gentil, que assim nos has deixado,
Entregues á alta dôr,
Anjo das préces nos serás, perante
O throno do Senhor:
E quando, cá na terra, o poderoso
As Leis aos pés calcar,
Juncto do teu sepulchro irá o oppresso
Seus males deplorar;
Assim, no Oriente, de Alboquerque ás cinzas
O desvalido indiano
Mais de uma vez foi demandar vingança
De um despota inhumano.
Mas quem ousára á patria tua e nossa
Curvar nobre cerviz?
Quem roubará ao lusitano povo
Um povo ser feliz?
Pág. 120
Ninguem! Por tua gloria os teus soldados
Juram livres viver.
Ai do tyranno que primeiro ousasse
Do voto escarnecer!
N'esse abraço final, que nos legaste,
Legaste o genio teu:
Aqui--no coração--nós o guardámos;
Teu genio não morreu.
Jaz em paz: essa terra, que te esconde,
O monstro abominado
Só pisará ao baquear sobre ella
Teu ultimo soldado.
Eu tambem combati:--nas patrias lides
Tambem colhi um louro:
O prantear o Companheiro extincto
Não me será desdouro.
Para o Sol do Oriente outros se voltem,
Calor e luz buscando:
Que eu pelo bello Sol, que jaz no occaso,
Cá ficarei chorando.
Porto--Novembro de 1834.