The Project Gutenberg eBook of Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I) This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Chronica de El-Rei D. Affonso V (Vol. I) Author: Rui de Pina Editor: Gabriel Pereira Release date: July 6, 2008 [eBook #25987] Most recently updated: January 20, 2021 Language: Portuguese Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI D. AFFONSO V (VOL. I) *** BIBLIOTHECA DE CLASSICOS PORTUGUEZES PROPRIETARIO E FUNDADOR _MELLO D'AZEVEDO_ Bibliotheca de Classicos Portuguezes Proprietario e fundador--Mello d'Azevedo CHRONICA DE EL-REI D. AFFONSO V POR _Ruy de Pina_ VOL. I _ESCRIPTORIO_ 147--Rua dos Retrozeiros--147 LISBOA 1901 Duas palavras de introducÁ„o El-rei D. Manuel _encomendou com grande efficacia_ a Ruy de Pina a chronica de D. Affonso V. E elle escreveu baseado em informaÁıes e nos documentos que poude alcanÁar, com uma sinceridade notavel em chronista de palacio occupando cargos de confianÁa regia. Parcial todavia, pouco inclinado a cousas de Hespanha e da nobreza, conta-nos a historia d'esse periodo de fÛrma que parece preparar o espirito do leitor para as grandes luctas do reinado seguinte. A historia da Èpocha de D. Affonso V importa ao estudo da nacionalidade portugueza em qualquer ponto de vista. Affirma-se a auctoridade real, apezar das prodigalidades do rei, a independencia da naÁ„o em combates rijos, a expans„o ultramarina define-se com o arrojo dos navegantes e dos homens de guerra, a cultura dos espiritos sÛbe, os costumes policiam-se, attende-se a melhoramentos materiaes nas povoaÁıes. A propria figura do rei desperta vivamente a attenÁ„o; os seus primeiros annos passaram num meio agitado, difficil, triste talvez, pelas luctas palacianas, mas util para a formaÁ„o de espirito culto pela frequencia, provavel, de homens superiores como os infantes D. Pedro e D. Henrique. Pelo que nos conta Ruy de Pina foi lastima que Affonso V fosse rei, porque era bom de mais, com sua parte de phantasia mansa. Era um sereno, de _piadosa condiÁ„o_, _familiar_, grande amador de musica e de livros, e tambem de emprezas arriscadas. Quando a Excellente Senhora professou, grassava em algumas cidades do paiz o contagio com grande intensidade, elle desconsolado quiz deixar a governanÁa, queria ser leigo no seu mosteiro do Varatojo. Como era generoso e pouco calculista, sem sentir, pouco a pouco, foi accumulando de mercÍs certos fidalgos insaciaveis, o que originou depois a grande lucta dos primeiros annos de Jo„o II. N'esses quadros agitados destacam-se figuras principaes como o infante D. Pedro, o das sete partidas, e D. Henrique o navegador, sempre com a sua idÈa fixa de descobrir terras, os condes de Viana, e de Avranches, grandes senhores, e aquelle singular bispo D. Garcia de Menezes t„o brilhante orador e guerreiro que tristemente encerrou a sua vida. Outros vultos de raro perfil movimentam ainda a Èpocha, D. Pedro o rei intruso de Arag„o, filho do infante D. Pedro, erudito, collecionador de livros e medalhas, o duque de Borgonha, a Excellente Senhora. No meio das luctas e intrigas estrondea o casamento de D. Leonor. Depois das gloriosas jornadas de Alcacer, Tanger, AnafÈ e Arzilla, a ida para FranÁa. O chronista n„o esquece os movimentos populares, as luctas na cidade de Lisboa, as uniıes e alvoroÁos; nem a lucta contra o Turco que em 1480 quasi se assenhoreou do Mediterraneo. Hoje conhecemos outros documentos, os antecedentes da Alfarrobeira est„o mais esclarecidos, papeis de aleivosia como o testemunho do escudeiro Jo„o Rodrigues correm impressos. Ha documentos tambem para o modo de viver da Èpocha que em geral n„o mereceram attenÁ„o aos chronistas, os que dizem respeito a costumes, a questıes economicas, ao direito. A publicaÁ„o das OrdenaÁıes, comeÁadas em tempo de Jo„o I.^o È facto capital. Em chronicas francezas encontram-se noticias de valor, ainda n„o approveitadas. Finalmente ser· preciso estudar noutra parte, e hoje ha muitos elementos publicados, o admiravel esforÁo do infante de Sagres, e da sua gente, n'este periodo, nos gloriosos descobrimentos dos novos caminhos maritimos, dos archipelagos do Atlantico revelados successivamente, G. Pereira. PROLOGO DA Chronica do Mui Alto e Mui Poderoso Principe EL-REI D. AFFONSO D'ESTE NOME O QUINTO _E dos Reis de Portugal o duodecimo, dirigido ao muito alto e muito excellente Principe, El-Rei D. Manuel, seu sobrinho, nosso Senhor, por cujo mandado Ruy de Pina, Cavalleiro de sua casa e seu Chronista MÛr e Guarda MÛr da Torre do Tombo, nova e primeiramente a compoz_ O mais singular e mais proveitoso conselho, Serenissimo Rei, que Demetrio Phalereo, philosofo mui sabedor, deu ao grande Tholomeu, Rei do Egypto, para sobre todolos Reis de seu tempo poder ser mais excellente, foi que procurasse de vÍr, e ter por mui familiares os livros, principalmente aquelles, em que os virtuosos costumes e claros feitos dos illustres Reis e Principes passados fossem verdadeiramente escriptos: amoestando-o que com vivo cuidado os lesse e ouvisse: nem era sem causa; porque, como mui prudente, sabia que os livros, posto que sejam conselheiros mortos, sempre porÈm ensinam e d„o verdadeiros e s„os conselhos, mui livres e isentos das paixıes dos conselheiros vivos, dos quaes muitas vezes por n„o saberem, e outras por n„o quererem, e muitas mais por n„o ousarem, se nega e esconde a clara verdade, que a seus maiores e Senhores pospıem ·s proprias inclinaÁıes e paixıes d'affeiÁ„o, odio, lisonjaria, interesse ou temor, que s„o causa da mais certa queda, e principal destruiÁ„o de reinos e senhorios. E por tanto, muito poderoso senhor, no conhecimento dos bons exemplos e das cousas passadas, de que a Historia È um vivo espelho, e os livros s„o fieis thesoureiros, se recebe, para n„o errar, conselho sem paix„o, e doutrina sem receio, de que · Humanidade e ao Estado Real principalmente se segue um mui seguro proveito, e por isso a Deus grande e mui assignado serviÁo. E posto que das Chronicas e lembranÁas escriptas das perfeitas bondades e memorandas faÁanhas dos claros barıes n„o naturaes e estrangeiros, quando as lemos e ouvimos, logo nos movem para aborrecer os vicios, e com uma virtuosa inveja de seus gloriosos exemplos, nos espertam e guiam para o caminho de suas louvadas virtudes e fama; porÈm, outra differenÁa de vergonha, outra viveza de gloria, outro acendimento d'esforÁo sentimos logo em nossos coraÁıes, quando lendo topamos, e com tento esguardamos nas excellentes virtudes e prosperas empresas de nossos proprios naturaes, e maiormente d'aquelles de que descendemos; porque tanto mais nos acendem e obrigam para os semelharmos e seguirmos, quanto a certa verdade de suas virtuosas obras e grandes feitos È de maior contententamento e mais chegada a nosso fresco conhecimento, com que a n„o duvidamos. E por esta t„o urgente causa e bem t„o universal, e principalmente por honra e gloria de vossos reinos de Portugal, Vossa Mui Real Senhoria, como virtuoso Rei mui piedoso e verdadeiro successor d'elles que È, sabendo que a memoria das reaes virtudes e feitos imperiaes do mui glorioso Rei D. Affonso o quinto, vosso tio e predecessor, cujo irm„o legitimo era o mui illustre Infante D. Fernando vosso padre, por negligencia sua ou mingoa d'escriptores n„o eram j· do escuro esquecimento menos gastadas, que sua carne e seu corpo que a terra comia: por mais illustrardes vossa legitima descendencia, e vossa corÙa real n„o ficar sem uma guarniÁ„o de pedraria t„o preciosa, como È sua clara e louvada memoria: e assi por Vossa Alteza mostrar um santo ensino e maravilhoso exemplo de Rei, encommendou com grande efficacia a mim Ruy de Pina, Cavaleiro de vossa casa, Chronista MÛr de vossos reinos e Guarda MÛr da Torre do Tombo d'elles, que, quanto · minha deligencia e entendimento fosse possivel, trabalhasse de haver as cousas notaveis de seu tempo, e para sua Chronica mais necessarias, e a compozesse. E como quer, muito poderoso Rei, que a carrega e peso d'esta Obra, por ser t„o digna e t„o necessaria, e com desejo e cuidado t„o virtuoso, como È este vosso, j· foi outras vezes posta e encommendada sobre os hombros e forÁas d'outros chronistas d'estes reinos, que ante mim foram pessoas de singular doutrina e mui sufficientes: e por suas grandes e desesperadas difficuldades e peso incomportavel, elles nem sÛmente a moveram; porÈm eu que para vencer e passar com ella caminhos j· t„o cerrados e de tanta aspereza e escurid„o, convertidas j· em uma manifesta impossibilidade, por vir ao fim de vosso desejo e esperanÁa, tomei por guia e salvo conduto de tantos temores vosso mandado e o vivo desejo que sobre todos em mim sinto de sempre bem e lealmente servir Vossa Real Senhoria, e inteiramente lhe obedecer: confiando que ao menos, pelo merecimento de minha obediencia, algum tanto serei relevado do erro da ignorancia e temeraria ousadia com que emprendi e acabei esta real e mui verdadeira chronica, cuja sequencia È n'esta maneira. CHRONICA DO SENHOR REI D. AFFONSO V CAPITULO I _NarraÁ„o_ O muito alto e muito excellente Rei D. Duarte, d'este nome o primeiro, e onzeno dos Reis de Portugal, acabou sua desejada e necessaria vida com claros signaes de grande contriÁ„o, e com certo testemunho de salvaÁ„o de sua alma, em a Villa de Thomar, quinta feira IX dias de Setembro, anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e quatrocentos e XXXVIII: no qual dia por espaÁo de duas horas o sol em grande cantidade foi cris, assi como tambem o foi na hora do fallecimento d'El-Rei D. Jo„o seu padre, e da Rainha D. Filippa sua madre. E as cousas que de sua antecipada morte se conjeituram, e aos autos de prantos e tristezas que se n'ella n„o podiam escusar, e como foi levado ao mosteiro da Batalha, onde jaz sepultado, em sua Chronica, onde propriamente pertence, com maior declaraÁ„o est„o apontadas. E por seu fallecimento ficaram legitimos dois filhos e quatro filhas: I o Principe D. Affonso filho seu maior, primogenito herdeiro, que logo foi alevantado por Rei, que de sua edade havia seis annos e entrava em sete: e o Infante D. Fernando, padre d'El-Rei D. Manuel nosso Senhor: e a Infante D. Filippa, que no anno que o dito Rei falleceu se finou em Lisboa de onze annos: e a Infante D. Lyanor, que foi imperatriz d'Allemanha: e a Infante D. Catherina que sem casar falleceu e jaz em Santo Eloy de Lisboa: e a Infante D. Joanna, de que a Rainha D. Lyanor ficou prenhe, e foi Rainha de Castella, casada com El-Rei D. Anrique, o quarto d'este nome. E ficaram outrosi vivos estes irm„os d'El-Rei D. Duarte, filhos d'El Rei D. Jo„o I; o Infante D. Pedro, que era duque de Coimbra: e o Infante D. Anrique, que era duque de Vizeu e tinha o Mestrado de Christus: e o Infante D. Jo„o, que era Condestabre do Reino e tinha o Mestrado de Santiago: e o Infante D. Fernando, que ent„o era captivo em Fez e tinha o Mestrado d'Aviz: e a Infante D. Izabel, legitima duqueza de Borgonha, casada com o duque Filippe: e D. Affonso conde de Barcelos, que depois foi duque de BraganÁa, que era filho natural d'El-Rei D. Jo„o. Ao tempo que o dito Rei falleceu n„o eram em Thomar outras pessoas principaes, depois do Principe D. Affonso e seu irm„o, salvo a Rainha D. Lyanor sua mulher, filha d'El-Rei D. Fernando d'Arag„o, e o Infante D. Pedro, irm„o primeiro legitimo d'El-Rei: o qual, por dar ordem ao alevantamento d'El-Rei D. Affonso seu sobrinho, e ·s outras cousas que pertenciam para bem do reino, ficou na dita villa e n„o foi com o corpo de seu irm„o, a que n„o falleceu outra muita e honrada companhia. CAPITULO II _Alevantamento d'El-Rei_ Era quinta feira logo seguinte, dez dias do dito mez: o Infante D. Pedro, como Principe a que das cerimonias reaes e das outras cousas em que cabia descriÁ„o e virtude nada s'escondeu, fez fazer antre o convento e os paÁos do castello da dita villa um assentamento assi real e ricamente guarnecido, como para o auto cumpria. E · bespora do dito dia, o Infante com todolos fidalgos e nobre gente da cÙrte foram aos paÁos d'El-Rei, que eram dentro no convento, vestidos por ent„o os corpos dos panos mais ricos, mas as almas e caras de clara tristeza, que em todos n„o era fingida, mas verdadeira e justa, assi pela privaÁ„o d'El-Rei, que era muito virtuoso e para todos de grande humanidade e boa condiÁ„o, como por lhes os coraÁıes revelarem as grandes divisıes e muitos trabalhos, em que pela soccess„o de t„o novo Rei se haviam de vÍr, como viram. O Principe D. Affonso posto em vestiduras reaes, e bem acompanhado de todos, sahiu fÛra ao assentamento, onde pelo Infante D. Pedro com grande reverenÁa, e muito acatamento foi posto na cadeira real. E emquanto um Mestre Guedelha, singular fysico e astrologo, por mandado do Infante regulava, segundo as influencias e cursos dos planetas, a melhor hora e ponto em que se poderia dar aquella obediencia: o Infante volveu a contenenÁa ao povo, e com gr„o seguranÁa e palavras mansas disse: ´Como quer que, o dia d'hoje com muitos dos que vir„o, teriamos justa causa dar lugar a nossos olhos, que com muitas lagrimas testemunhassem a dÙr e perda que recebemos na morte de um Principe t„o catholico e t„o virtuoso, e t„o necessario a nÛs todos como foi El-Rei meu Senhor e irm„o, cuja alma Deus haja: devemos, porÈm, consirar como catholicos e de raz„o, que, pois em escusar sua morte n„o ha remedio, que duas cousas sÛmente nos ficam, para que a Deus e ao mundo certefiquemos o amor e boa vontade que lhe tinhamos. A primeira, em nossas oraÁıes, jejuns e obras meritorias havermos sua alma em memoria para a encommendarmos a Deus. A segunda, este ramo em todolos signaes de virtudes t„o florecido, que de seu real Tronco naceo, que È o mui excellente Princepe D. Affonso seu filho nosso Senhor, que temos presente, havermo-lo de reconhecer, servir e amar por nosso sÛ natural e verdadeiro Rei e Senhor, como o requere nossa mui antiga e costumada lealdade, e o Direito nos obriga. E, porÈm, vo-lo apresento aqui para o assi em todo o reconhecerdes, e vos encommendo da sua parte, que para o assi fazerdes n„o hajaes respeito · sua nova idade, mas ·s velhas obrigaÁıes em que para isso lhe soes e sua Real Senhoria nos d· j· uma mui certa esperanÁa d'acharmos n'elle honra, mercÍ, favor e justiÁa, como cada um o merecer e lh'o requerer.ª E em dizendo Mestre Guedelha, que era boa hora para fazer sua obediencia, o Infante com os giolhos em terra tomou as m„os ao Principe, e em lh'as beijando disse: ´Muito alto e muito excellente Senhor, assi como vos eu hoje ponho n'esta seda, em que vÛs por graÁa de Deus legitimente recebeis o real Septro e senhorio d'estes vossos reinos, assi espero com sua ajuda e minha grande lealdade de vo-los ajudar a manter e deffender com todas as minhas forÁas e poder, e saber, quando me vossa MercÍ mandar, ou eu sentir que cumpre a vosso estado e serviÁo.ª E com estas palavras acabando se alevantou. E logo D. Duarte de Meneses, alferes mÛr, filho do conde D. Pedro de Meneses, primeiro capit„o de Ceuta, com a bandeira real levantada, e os reis d'armas e arautos com elle comeÁaram alli sua grita, e depois com ella foram pela villa, repetindo-a tres vezes, segundo custume, com toda aquella cerimonia e solemnidade que a tal auto real pertencia; porque o Infante D. Pedro, por cuja ordenanÁa e mandado se fazia, era Principe n'aquellas cousas mui ensinado, e quiz n'aquelle auto que n„o ficasse cousa dina por fazer: assi porque assi o requeria sua grande bondade e a muita lealdade em que nascÍra: como por mostrar a muitos de damnadas maginaÁıes, e · Rainha D. Lyanor principalmente, que aquella fÙra sempre, e era sua leal e verdadeira tenÁ„o d'obedecer, e n„o a outra falsa de querer por forÁa reinar, como lhe faziam crÍr que elle desejava. Porque a Rainha, como quer que sempre foi muito honesta, virtuosa, prudente, devota e muito amiga da vida e honra d'El-Rei seu marido: porÈm sempre em sua vida mostrou ao Infante D. Pedro que n„o lhe tinha boa vontade: e as causas porque assim fosse eram occultas para culpar o Infante, salvo se procedessem de induzimentos alheios, que em sua feminil fraqueza de ligeiro fariam impress„o, ou por ventura procederia das imisades que foram entre El-Rei D. Fernando d'Arag„o, pae da rainha, e o conde d'Urgel, pae da Infante D. Izabel, mulher do dito Infante D. Pedro, que pertendeu por direito na success„o d'Arag„o, e foi d'El-Rei n'ella vencido. CAPITULO III _De como comeÁaram de entender nas cousas do reino, e se viu o testamento d'El-Rei_ Tanto que a Rainha viu seu filho alevantado por Rei, logo fez chamar · sua casa o Infante D. Pedro, e o Arcebispo de Lisboa, D. Pedro de Noronha, primo com irm„o de seu pae d'ella, e as outras principaes pessoas que hi eram. Perante as quaes, em presenÁa de notairos publicos, fez abrir e lÍr o testamento d'El-Rei seu marido, em que foi achado ella, sem ajuda d'outra pessoa, ficar in solido testamenteira de sua alma, e titor e curador de seus filhos, e regedor do reino, e herdeira de todo o movel. E encommendou n'elle muito que, por dinheiro, ou captivos, ou por outra qualquer maneira tirassem de poder dos mouros o Infante D. Fernando seu irm„o; e quando por semelhantes meios n„o fosse possivel, que ent„o Ceuta sem escusa se desse por elle; da qual publicaÁ„o a Rainha por sua guarda mandou tomar estromentos, e comeÁou logo a usar do regimento inteiramente sem alguma publica contradicÁ„o: como quer que alguns seus servidores avisados e virtuosos, e que de verdade amavam sua vida, honra e descanso, logo s„ e secretamente lhe disseram em conselho n'esta maneira: _Conselho que se deu · Rainha_ ´Senhora, o peso d'este cargo de reger, que assi soltamente tomaes, È mui grande e tal, que muitos barıes abastados de fortaleza de coraÁ„o e de prudencia o rece·ram. E por serdes mulher e ainda estrangeira, como quer que para isso haja em vÛs s„ consciencia e conhecidas virtudes com mui santo desejo, em caso que n„o houvesseis n'elle alguma contradicÁ„o, certo duvidamos que o possaes soffrer; porque Vossa Senhoria ha-de consirar que s„o n'este reino tres Infantes, grandes Principes, e de muita autoridade, e naturaes da terra, que h„o d'estimar por quebra e abatimento de seus estados serem regidos por mulher, especialmente n„o natural nem herdeira, como vÛs sois, e que o por suas bondades e assessego de todos quizessem consentir, n„o falleceriam outros amigos de novidades, que lh'o fariam sentir e obrar por outra maneira: de que se n„o podem escusar odios, escandalos e outros muitos males, em especial claros impedimentos para vÛs, nem elles estes reinos poderdes reger, como a serviÁo de Deus e d'El-Rei, e bem d'elles cumpre: de que vos muito deve pesar. E n„o vos fieis nos offerecimentos e muita parte que vos muitos de si agora prometem, para crerdes que o esforÁo d'estes enfraquent·ra o dos outros; porque em fim todos, ou a mÛr parte h„o de seguir a vontade dos Infantes, qualquer que fÙr, quanto mais que j· agora pelas praÁas se solta, que El-Rei nosso Senhor, vosso marido, que santa gloria haja, vos n„o podia leixar este cargo de reger: c· este poder demleger regedor do reino era sÛmente ao reino e aos tres estados d'elle reservado; e d'onde isto agora sae de presumir È que mais jaz. Pelo qual nosso conselho seria, que agora com prazer e assessego vosso, e do reino, consirados todos estes inconvenientes, leixasseis assi de vossa vontade este regimento, antes que depois o leixardes forÁada, ou impedida de vossa natural fraqueza, ou de outras forÁas maiores: o que deve ser com pouca honra e contentamento vosso. E a vÛs, Senhora, bem abastara terdes cuidado da criaÁ„o de vossos filhos, e do descargo d'alma d'El-Rei vosso marido, que s„o cousas ass·s grandes, honradas e honestas.ª A Rainha, como era senhora de bom entender e de tenÁ„o s„, e conforme em todo ao serviÁo de Deus, pareceu-lhe bem este conselho, e quizera-o seguir; mas n„o falleceram logo outros, que com outras razıes cÛradas ao revÈs d'estas, a mudaram d'este proposito, e fizeram tomar determinaÁ„o de todavia reger sÛ: dando-lhe estes, por principal causa, a seguranÁa da vida e estado de seus filhos, que em poder do Infante D. Pedro lhe faziam crÍr que n„o seriam muito seguros, por ser principe poderoso, amado do povo, e tinha filhos, e podia n'elle entrar o desejo de reinar, que vence todolos outros; e assi venceria n'elle a divida lealdade para o executar. CAPITULO IV _Da vinda do Infante D. Anrique ‡ cÙrte, e das cousas que se logo acordaram_ O Infante D. Anrique, depois da vinda do cerco de Tangere, que veiu fallar a El-Rei seu irm„o a Portel, como anojado do captiveiro do Infante D. Fernando, seu irm„o: e por o feito se n„o seguir, como desejava, se tornou logo ao reino do Algarve, sem mais tornar a este; e como l· foi avisado da doenÁa d'El-Rei, pelo grande amor e muita lealdade que lhe tinha, partiu logo: e assi trigou suas jornadas, que em mui poucos dias chegou a Thomar, onde j· achou El-Rei fallecido. Mas a Rainha, e o Infante D. Pedro, e toda a cÙrte, vendo-o com sua triste livrÈ, renovaram com sua vista outros prantos maiores, nem era sem raz„o; porque n'elle pareciam signaes de tanta tristeza, e dizia palavras de tanto sentimento, que aos dormentes na dÙr espertava para chorar, e ser tristes. A Rainha depois d'esto enviou chamar o Infante D. Pedro, e lhe disse: ´Senhor Irm„o, porque sinto que È necessario dar-se ordem e remedio ·s cousas do reino, que est„o ora suspensas, eu vos rogo muito que tomeis cuidado de ter em vossa casa conselho: e VÛs, e o Infante vosso irm„o, com os principaes que aqui s„o, apontae o que em taes tempos e casos convem que se faÁa: e trazei-m'o para o vÍr, e me acordar comvosco e se fazer o que fÙr serviÁo de Deus, e d'El-Rei meu filho, Senhor, e bem de seus reinosª. A qual cousa se poz logo em execuÁ„o, e se teve conselho, em que foi acordado que aos embaixadores de Castella, que hi eram por despachar, fosse por ent„o respondido, que esperassem a vinda dos grandes do reino, com que El-Rei ordenava de fazer cÙrtes e ter conselho: e que logo haveriam resposta. E estes embaixadores vinham a El-Rei D. Duarte, e chegaram ao tempo de seu fallecimento; e as pessoas que eram, e o que requeriam, e com que fundamento, ao diante se dir·. Acordaram outrosi, por quanto em Castella comeÁava d'haver movimentos, que pareciam principios de guerra, que os alcaides das fortalezas dos estremos fossem avisados sobre bÙa guarda e defens„o d'ellas: e assi que se fizesse o geral acostumado chamamento, para o saimento que se havia de fazer na Batalha, e cÙrtes em Torres Novas. E as cartas, que sobre isto haviam de ir, acordou o Infante D. Anrique com os do conselho, que fossem assignadas pelo Infante D. Pedro; mas elle com mostranÁa de muita honestidade se escusou: e a Rainha assignou aquellas, e todalas outras atÈ ·s cÙrtes; porque n'ellas se acordou outra ordem de Regimento, como se dir·. E assi tomou cuidado a Rainha de cumprir aquellas cousas do testamento d'El-Rei, que logo cumpriam de se acabar. E de todo o movel que lhe foi leixado tomou para si a capella e reposte, e repartiu as cousas de guarda-roupa e estrebaria por essas pessoas a que lhe parecia raz„o, e a que mais afeiÁoada era: n„o se esquecendo prover com vestimentas, das roupas e pannos de seda que fic·ram, a algumas egrejas e mosteiros, em que sentiu que podia d'isso haver necessidade. CAPITULO V _Como o Infante D. Fernando foi jurado por Princepe, se El-Rei n„o houvesse filho legitimo_ Estando assi estes Senhores em Thomar, esperando o tempo do saimento e cÙrtes, foram alli juntas quasi todolas pessoas principaes do reino, com esperanÁa e certid„o de futuras mudanÁas, salvo o Infante D. Jo„o, que era doente em Alcacere do Sal, a que por grande resguardo da Infante sua mulher, a morte d'El Rei seu irm„o n„o foi descoberta se n„o depois que foi retornado em sua saude, a que n„o fossem contrairas novas para elle t„o tristes. E sendo presentes em conselho os Infantes e o conde de Barcellos seu irm„o, e o Infante D. Pedro propoz logo primeiro dizendo: ´Senhor irm„o, e honrados senhores fidalgos que aqui estaes, bem vÍdes que a nova idade d'El Rei nosso Senhor assi n'elle, como nos outros meninos, È sojeita a muitos casos e desastres, de que Deus nosso Senhor o guarde e defenda. E porque d'aqui atÈ que sua MercÍ tenha idade e desposiÁ„o para casar e haver filhos, se passar· bom espaÁo de tempo: meu voto È, por sermos fÛra d'algumas duvidas que por sua morte em tal tempo podiam sobrevir, que o Senhor Infante D. Fernando seu irm„o, seja logo aqui intitulado e jurado por Principe e seu herdeiro, atÈ que a Deus praza de dar a El-Rei nosso Senhor filho que de tal nome se possa intitular, e o sobceda: e n'isto n„o sÛmente faremos o que È necessario, mas ainda pagaremos o que devemos a nossa lealdade, e ao grande amor que tinhamos a El-Rei meu Senhor e irm„o, e ao que somos certos que nos elle tinha. E este tempo È tal, em que estas obrigaÁıes se devem a seus filhos pagar, em todo o que redunda em suas honras, estado e serviÁoª. Acabou o Infante sua proposiÁ„o, em que n„o foram necessarias mais razıes para suas sinas, para se louvar, e haver por justa e bÙa sua tenÁ„o. Pelo qual os Infantes e o Conde de Barcellos, e os outros senhores que eram presentes, por si e por todolos do reino logo fizeram d'isto um auto solemnisado por juramento, perante notairos publicos, em cumprimento do qual o Infante D. Fernando se chamou e intitulou por Princepe, atÈ que El-Rei houve filho. CAPITULO VI _Primeiro consentimento da Rainha para El-Rei seu filho casar com a filha do Infante D. Pedro_ A Rainha por este accordo e determinaÁ„o de que foi certificada, recebeu em sua tristeza muita consolaÁ„o, e em seus cuidados descanÁo, e em seus receios grande seguranÁa: especialmente por ser d'ella inventor e principal movedor o Infante D. Pedro, em quem, pelas causas que j· toquei, lhe faziam sem causa ter suspeitas, a seus filhos perigosas, e a ella desleaes; como quer que por elle nunca foram cuidadas, nem por alguma obra, nem congeitura fossem sentidas. Pelo qual, como Senhora virtuosa e agardecida a boa vontade e obras que o Infante D. Pedro comeÁ·ra de mostrar, mandou logo a elle o doutor Ruy Fernandes com esta mesagem: ´Senhor, diz a Rainha nossa Senhora, que por saber bem o grande amor que vos El-Rei seu Senhor tinha, e o desejo que sempre teve para vossa honra e acrecentamento: e como, em cumprimento de sua tenÁ„o leixou dito a Frei Gil de Tavulla, seu confessor, que sua derradeira vontade era, que o Principe seu filho casasse com D. Isabel vossa filha; que assi por cumprir principalmente a vontade d'El-Rei seu Senhor, como por vos mostrar com obras de vossa honra e contentamento, o contrairo do que por ventura vos fazem d'ella crÍr: e des-hi, porque vÍ que È este um dos melhores casamentos do mundo que a El-Rei seu filho, Senhor, agora melhor pode vir, lhe apraz que este casamento logo entre ambos se faÁa; e que para isso vos envia por mim seu consentimento, que por ventura atÈgora haverieis por duvidoso, e n„o t„o certo.ª CAPITULO VII _Resposta do Infante D. Pedro · Rainha_ O Infante, como ouviu este recado, em que viu o cabo de sua bemaventuranÁa, com o coraÁ„o cheio de alegria, e os olhos por isso n„o vasios de lagrimas, disse: ´Doutor amigo, dizei · Rainha, minha Senhora, que lhe beijo as m„os por tamanhas duas mercËs, como em sua embaixada me mandou offerecer: c· uma, de sua Senhoria haver por bem que este casamento se faÁa, È a maior que para mim pode ser. E a outra n„o na estimo em menos; pois se lembrou de m'a fazer sem meu requerimento. E que ·lem da paga principal que n'isso recebe de suas muitas virtudes, prazer· a Deus que eu a servirei por maneira que se n„o arrependa d'este seu proposito: mas que por agora me n„o parece tempo conveniente para isso, assi por a pouca idade d'El-Rei meu Senhor, em que se n„o perde tempo, como pela tristeza geral, em que com tanta raz„o todos seus vassallos estamos; e que sua Senhoria haja por bem que isto se alargue mais alguns dias, nos quaes se procurar· a dispensaÁ„o que se requer, e o povo perder· parte d'este sentimento, e se poder· fazer ent„o melhor e com mais honestidade, e com aquellas cerimonias e festas que se a taes pessoas deve.ª CAPITULO VIII _ContradicÁ„o que houve em algumas pessoas no consentimento do casamento d'El-Rei com a filha do Infante D. Pedro_ O consentimento e prazer da Rainha ·cerca d'este casamento, n„o foi egualmente recebido nos coraÁıes de todos os que alli eram: c· uns o aprovavam com prazer e sem paix„o, e outros com tristeza, odio, inveja e cobiÁa, o n„o podiam padecer. E entre alguns d'estes que hi havia, o principal, diziam, que era o conde de Barcellos, a quem parecia que da conclus„o e outorga d'este casamento pesava muito. E, como quer que em publico o n„o contradissesse, procurava porÈm secretamente, por meio do Arcebispo D. Pedro, de Lisboa, a quem a Rainha dava muita fÈ, e n„o tinha boa vontade ao Infante D. Pedro, como do que ·cerca d'este casamento lhe tinha prometido, ella se desdissesse, com fundamento de trabalhar com toda sua possibillidade que El-Rei casasse com sua neta, D. Isabel, filha maior do Infante D. Jo„o; porque o conde de Barcellos, como j· disse, foi filho natural d'El-Rei D. Jo„o, e teve tres filhos legitimos da filha do Condestabre D. Nuno Alvares Pereira, com quem primeiro casou: saber D. Affonso, conde d'Ourem; e D. Fernando, conde d'Arrayolos: e a Infante D. Isabel, mulher do Infante D. Jo„o; e por falecimento da filha do Condestabre casou com D. CostanÁa de Noronha, filha do conde de Gyam e irm„ d'este Arcebispo, que elle com raz„o amava muito; porque n'ella havia assaz de virtudes e fremosura e outras bondades, porque o bem merecia: e d'ella n„o houve filho nem filha, e por seu respeito o conde de Barcelos amava muito todas suas cousas d'ella, e em especial seus irm„os, entre os quaes o principal era o Arcebispo, asi por sua idade maior, como por sua denidade; e por isso o conde fiava d'elle, e lhe encarregava a estorva d'este casamento d'El Rei com a filha do Infante D. Pedro: e n„o falleciam outros que o n'isso assaz ajudavam. Da qual cousa o Infante por seus meios foi logo avisado: e como era prudente e discreto, n„o lhe esqueceu o que geralmente se crÍ e afirma da inconstancia e pouca firmeza que muitas mulheres por sua natural condiÁ„o tem, qu„o ligeiramente se movem. Pelo qual, por segurar o passado, foi logo fallar · rainha, pedindo-lhe com palavras em que havia muita raz„o e honestidade, que da mercÍ e consentimento que lhe tinha prometido ·cerca do casamento d'El-Rei com sua filha, lhe desse uma certid„o e seguranÁa assignada por ella; do que a Rainha muito aprouve, e encommendou ao Infante que a fizesse, como fez, em um Alvar·, na fÛrma que cumpria: e Ella o assignou e lh'o deu, que o tivesse. CAPITULO IX _De como se fez o saimento d'El-Rei no mosteiro da Batalha_ El-Rei e o Principe seu irm„o, e a Rainha e Infantes, e outros muitos prelados e condes, e senhores do reino, partiram de Thomar para o mosteiro da Batalha no fim do mez d'Outubro, que era o termo, a que as gentes, para o saimento d'El-Rei, se haviam n'elle de ajuntar, e des-hi para as cÙrtes em Torres Novas, e por estas ceremonias de saimentos, que aos Reis e Princepes, depois de suas mortes, em suas reaes sepulturas se fazem, serem t„o geraes e t„o costumadas em Espanha e assim n'estes reinos de Portugal, que pela mÛr parte todos h„o d'ellas noticias e informaÁ„o: por fugir o vicio e avorrecimento da proloxidade, a mim pareceu escusado descreve-lo aqui particularmente, e sÛmente abaste brevemente saber que na pompa e cerimonias de suas exequias se guardou e cumpriu todo o que ao estado de um t„o alto Principe em tal auto cumpria; e nos bureis e lutos dos corpos de todos, e nas lagrimas geraes de todolos olhos, e na commum tristeza de todolos rostos, em todo o reino claramente parecia quanto em sua vida era de todos amado, e a grande perda e desamparo que, por sua morte e pelo perder, todos recebiam. CAPITULO X _Como ante de se fazerem as primeiras cÙrtes em Torres Novas, se fez uma conjuraÁ„o contra o Infante D. Pedro_ Acabado o saimento, assi como alli eram juntos, assim se foram todos a Torres Novas, onde por dar logar que alguns alcaides e outras pessoas acabassem de vir, para fazer as menagens e dar a obediencia a El-Rei, sem se comeÁarem as cÙrtes se passaram alguns poucos dias: nos quaes por meio principalmente de Vasco Fernandes Coutinho, marechal, que depois foi primeiro conde de Marialva, foram liados por juramento contra o Infante D. Pedro casi todolos fidalgos do reino, em que entravam, por mais principaes, o Arcebispo D. Pedro, e D. Sancho seu irm„o, e o priol do Crato D. Frei Nuno de Goes; os quaes juntos secretamente em uma egreja, o marechal, como quer que outros hi estivessem de mÛr valor e auctoridade, elle para os mais commover a seu proposito, porque tinha para isso audacia, lhe fez uma falla com largas razıes, cuja sustancia foi: ´Que o regimento do reino e criaÁ„o d'El-Rei e seus irm„os por disposiÁ„o do testamento d'El-Rei fic·ra, como sabiam, que n„o saisse do poder da Rainha; o que elles deviam requerer e procurar que se cumprisse; assi por ser raz„o, como por a Rainha ser mulher estrangeira, da qual por se mostrarem em favor de seu serviÁo e tenÁ„o sempre receberiam honra, favor, mercÍ e acrecentamento; e por isso deviam trabalhar que n„o viesse em maneira alguma ao Infante D. Pedro, de cujos rigores e mostranÁas suas falsas, que fazia ao povo, de justo e s„ conciencia, n„o podiam receber se n„o o contrairo; e que isto lhes seria facil de fazer; porque por parte do Infante D. Pedro, quando muito podesse ser, seria povo e gente meuda, que sem cabeceiras n„o teriam forÁas nem dariam ajuda, e que por a sua d'elles eram os que estavam presentes com outros muitos que logo seriam com elles; e mais cria do Infante D. Anrique, e sabia do conde de Barcellos, que seriam em sua ajuda, pedindo-lhe em conclus„o, que o houvessem todos assi por bem, e o affirmassem, e segurassem com juramento.ª Do que a todos aprouve, e o poseram em escripto, que logo juraram. Mas, como quer que n'isto entrassem grandes homens, e de muita auctoridade, porÈm seus signaes e juramentos tiveram d'hi a pouco pouca firmeza; todos os mais se desdisseram e acostaram · banda do Infante D. Pedro e dos outros Infantes que foram com elle; porque n'aquelle tempo todo o reino finalmente estava · vontade e disposiÁ„o dos filhos e netos d'El Rei D. Jo„o. E d'este ajuntamento assi jurado, que · rainha logo foi notificado, porque confiou n'elle muito mais do que devera, se lhe seguiu todo seu damno, perda, desassocego, e emfim a morte, n„o como a seu estado cumpria; porque crendo, que n'estes para seus feitos haveria a firmeza que juraram e lhe prometteram, n„o se contentou no principio d'estes movimentos d'alguns meios bons e honestos, que lhe foram apontados; do que a ella pelos n„o acceitar se seguiu muito mal, e ao reino, e a muitos d'elles pouco bem, como se dir·. CAPITULO XI _Como se deu a obediencia e fizeram as menagens a El-Rei e se praticou sobre quem regeria_ Assignado o dia da proposiÁ„o das cÙrtes, El-Rei teve seu estrado e Real Estado em uma pequena praÁa, que se faz ante a egreja de Santiago d'aquella villa, onde todolos senhores e officiaes e procuradores dos povos postos em sua costumada e antiga ordenanÁa, comeÁou e fez arenga, que para tal auto se requere e costuma, o doutor Vasco Fernandes de Lucena, mui elegante e cheia de mui dÙces palavras e graves sentenÁas para aquelle caso da obediencia; e com necessarias e vivas razıes exortou todolos que eram presentes para a fazerem; como a arenga foi acabada os Infantes primeiro, e des-hi os condes e os outros senhores deram logo suas menagens e obediencias a El-Rei, segundo sua boa e devida lealdade; e comeÁaram logo de mover sobre quem teria o regimento do reino, que das cÙrtes era o ponto mais sustancial, no que houve entre todos grandes desvairos; porque os mais se mostravam segundo opini„o das parcialidades que tinham, justificando cada uns suas tenÁıes, e aos menos, que haviam respeito ao bem commum e assessego do reino, n„o eram recebidos nem ouvidos seus meios. CAPITULO XII _Concordia feita entre a Rainha e o Infante D. Pedro acerca do regimento_ E porque a competencia e deferenÁa do regimento n„o era principalmente salvo entre a Rainha e o Infante D. Pedro, a Rainha, como senhora, que de sua virtuosa condiÁ„o desejava todo o bem e assessego, sentindo os malles e damnos que d'estas diversıes se podiam seguir, pelos atalhar com alguma justa concordia, enviou rogar ao Infante D. Pedro por meio do Infante D. Anrique, que lhe fosse falar: do que o Infante foi muito alegre; e, escolhendo para isso tempo conveniente, satisfez logo a seu requerimento: e, sendo ambos sÛs apartados, a Rainha lhe disse muitas rasıes sobre o desvairo do regimento, em que bem pareceu que havia n'ella muita virtude, s„ conciencia e grande discriÁ„o e justo juizo, concluindo que lhe rogava que ambos sem outro meio se quizessem sobre isso concordar. O Infante D. Pedro, como era Principe justo, bom, e temente a Deus, foi de suas palavras assaz contente; e com outras de grande reverencia e acatamento lh'as teve muito em mercÍ; e depois d'alguns meios, sobre que entre si debateram, finalmente foram acordados d'esto: ´Que com a Rainha ficasse o cargo da criaÁ„o de seus filhos, e com a governanÁa e ministraÁ„o de toda a fazenda; e ao Infante ficasse o regimento da justiÁa e o titulo de defensor dos reinos por El-Rei.ª O qual meio, por muitas rasıes, que entre si praticaram, houveram por justo e razoado; e mostraram ambos ser d'elle muito contentes. CAPITULO XIII _Da contradiÁ„o e mudanÁa que houve n'este acordo_ Fez-se este acordo entre estes senhores pela manh„, no qual dia os que eram ajuramentados, em especial o Arcebispo de Lisboa, por meio de seus meios, que dentro trazia, souberam logo da falla que a Rainha e o Infante houveram; e, como ficaram ambos d'acordo, do que lhes muito pesou, e em especial se disse, que desprouvera muito ao conde de Barcellos, que desejava e procurava entre elles haver desacordo, por se n„o aceitar o casamento de El-Rei com a filha do Infante, esperando com a vinda do Infante D. Jo„o · cÙrte, que El-Rei casasse com sua filha, como atraz se tocou. E ao outro dia, sendo ante a Rainha juntos alguns d'estes Principaes seus servidores, lhe pergunt·ram em que maneira se concord·ra com o Infante. E a rainha lhes disse que era bem concordada; e que por assi ser dava graÁas a Deus, dizendo-lhe logo a concordia em que ficaram, e as causas e razıes porque ella devia ser, e era d'isso contente. A qual cousa lhe logo todos desdisseram; e que fÙra n'isso muito enganada, e seu estado muito abatido; e que ainda err·ra fazer nada em cousa semelhante sem primeiro lh'o fazer saber, ao menos para a aconselharem, afeando tal concerto com razıes e inconvenientes assi cÛrados, e t„o aparentes, que a Rainha, vencida d'elles, creu que em fazer tal acordo n„o podera fazer cousa em todo mais errada. Pelo qual logo alli lhe fizeram tomar outra determinaÁ„o contraira · em que fic·ra com o Infante; e que todavia se afirmasse ella sÛ reger sem outra ajuda; e, quando n„o podesse com alguma parte do regimento, que de sua m„o a dÈsse e encarregasse a quem sentisse que havia de servir e fazer sua vontade. O que n„o ficou logo por saber ao Infante D. Pedro. CAPITULO XIV _Apontamentos que publicamente se fizeram contra o testamento d'El-Rei para a Rainha n„o dever reger_ Com esta volta que a Rainha fez do proposito e acordo em que fic·ra com o Infante, comeÁaram outra vez as differenÁas e debates entre os grandes e povo sobre o regimento. A Rainha com os de sua parte requeriam para ella toda a governanÁa em solido, assi como no testamento d'El-Rei fic·ra determinado: os povos geralmente com outros da parte do Infante D. Pedro requeriam o regimento para elle sÛ sem outra ajuda nem companhia, allegando que a Rainha por muitas razıes n„o devia reger; e d'este voto foram Pedro de Serpa, e Vicente Egas, cidad„os e procuradores de Lisboa, homens honrados, bem entendidos, e de grande autoridade. Os quaes altercando sobre estes debates perante El Rei, como quer que era menino, quando um e quando o outro lhe disseram: ´Muito alto e poderoso Principe, Rei nosso Senhor, porque nos parece que acerca de se regerem estes reinos por vÛs, sois requerido que cumprindo o testamento d'El-Rei vosso padre, que Deus haja, deis inteiramente o regimento · Rainha nossa Senhora vossa madre, nÛs, como procuradores da vossa cidade de Lisboa, e assi em nome dos outros procuradores que aqui s„o, nossos irm„os, dizemos que sob reverencia de vossa real pessoa, El-Rei vosso padre n„o podia fazer tal testamento; nem em tal caso leixar Regedor do reino · sua disposiÁ„o; porque a nÛs vosso povo pertence por direito enleger quem por defeito de vossa madura edade nos haja por VÛs de defender com as armas e reger por leis com justiÁa. E isto n„o aggrava vossa legitima sobcess„o; nem ming˙a em vossas lealdades; c· por serdes seu filho maior legitimo, e bar„o, nÛs alegremente vos reconhecemos e recebemos por nosso verdadeiro Rei e Senhor; e com ajuda de Deus vos guardaremos aquella lealdade, fÈ, e amor, que bons, leaes vassalos devem a Senhor; mas quanto a enleger Regedor, atÈ que VÛs sejaes em edade para nos por vÛs regerdes, nÛs buscaremos e enlegeremos quem em vosso nome nos haja de reger e governar; porque asi como a nÛs sÛmente pertence enleger Rei, se a real e legitima sobcess„o dos Reis d'estes reinos por algum caso, o que Deus n„o queira, se destinguisse, e se n„o guardaria em tal caso o testamento, nem disposiÁ„o do Rei postumeiro; assi pertence a nÛs enleger agora Regedor por VÛs; e para serdes servido abasta que nÛs o enlejamos tal, que seja natural, e do vosso real sangue, e n„o estrangeiro, e em que haja virtudes, saber, e conciencia, e sobre tudo lealdade, a que se n„o deva poer suspeita. E vossa mui Real Senhoria, guarde-nos nossa justiÁa e liberdade, como esperamos, no que recebereis muito serviÁo: e nÛs vossos vassalos com vossos reinos receberemos mercÍ, proveito e assessego, que deveis desejar: e assi o pedimos a vÛs, mui illustres Infantes e magnificos condes; e requeremos a vÛs, honrados senhores, e leal povo de Portugal, que aqui sois juntos para celebrar estas reaes cÙrtes, que assi juntamente o peÁaes e requeraes que se faÁa. No cabo d'esta falla, assi como os coraÁıes dos que a ouviram eram desvairados, assi n„o houve rostos nem consentimentos eguaes; e por isso n„o cess·ram os primeiros debates do Regimento, os quaes, como sÛmente eram entre a Rainha e o Infante, como disse, alguns por assessego apontavam que ambos fossem exclusos de reger, e enlegessem outros; outros diziam, mas que ambos regessem juntamente n'aquella parte que a cada um bem coubesse; outros tinham que a Rainha sÛmente tivesse o Regimento; e outros o davam inteiramente ao Infante: e a esta parte se inclinavam mais os povos; e a cada uns para execuÁ„o de seus votos n„o falleciam autorizadas razıes. CAPITULO XV _Do meio que o Infante D. Anrique tomou entre a Rainha e o Infante D. Pedro ·cerca do Regimento_ O Infante D. Anrique era a estas differenÁas presente, e como virtuoso meio trabalhou de as poer em alguma temperanÁa: e posto que alguns tiveram que elle fÙra sempre mais inclinado · parte da Rainha que · do Infante; porÈm, passados quinze dias d'apontamentos e conselhos, foi feita por acordo do Infante D. Anrique, e dos outros do conselho e procuradores do povo uma determinaÁ„o por maneira de Regimento, que se denunciou em publico ajuntamento por Nuno Martins da Silveira, escriv„o da puridade, cuja sustancia foi: ´Que a Rainha ficasse por tetor e curador d'El-Rei seu filho com a ministraÁ„o das rendas e officios; e o Infante D. Pedro tivesse cargo da defens„o do reino com titulo de defensor, e o conde d'Arrayollos, filho do conde de Barcellos tivesse cargo da justiÁa; e que na cÙrte, onde El-Rei estivesse, andassem sempre seis do conselho repartidos a tempos, e mais um prelado e um fidalgo, e um cidad„o; e na cÙrte outros alguns sem especial necessidade n„o podessem andar: e que com estes seis do conselho e tres dos estados se determinassem todas as cousas que sobreviessem com autoridade da Rainha e acordo do Infante D. Pedro, estando sempre pelas mais vozes. E sendo caso que seus votos fossem em desvairo por egual, que o notificassem ent„o aos Infantes e condes; e que segundo as mais vozes fosse o negocio da duvida determinadoª. E as repartiÁıes d'estas cousas, em que estes senhores haviam de ter cargo, eram assi limitadas, que muito poucas, e de pequena sustancia podia cada um em seu cargo, por sÛ determinar. Foi mais ordenado ´que em cada um anno se fizessem cÙrtes, ·s quaes n„o viessem mais que dois prelados e cinco fidalgos, e oito cidad„os, e n'ellas se determinassem as duvidas que os do conselho por si n„o podessem concludir, ou algumas outras em sustancia assi especiaes, que para aquelle tempo devessem ou podessem ser reservadas, assi como mortes de grandes homens e privaÁ„o d'officios grandes, e perdimentos de terras, e corregimento ou fazimento de leis e ordenaÁıes; e que nas cÙrtes vindoiras sempre se podesse correger e emmendar qualquer defeito ou erro que houvesse nas passadas.ª Com outras particularidades, cuja mais express„o n„o È necessaria. E n'este accordo cuidou o Infante D. Anrique que, se o Infante D. Pedro o assignasse e consentisse, que levemente acabaria com a Rainha que tambem assi o fizesse; mas ella, a que o dito acordo foi primeiro mostrado, por induzimentos de n„o verdadeiros e s„os conselheiros o denegou fazer, querendo que o Regimento lhe fosse dado inteiramente, e que ella de sua m„o daria d'elle a parte que quizesse a quem lhe bem parecesse. E o Infante D. Pedro, como quer que mostrasse do dito acordo sentimento, por lhe ser n'elle mui limitada e adelgaÁada a parte do reino que havia de reger, porÈm por assessego disse: ´que faria o que o Infante seu irm„o quizesseª. Mas o Infante D. Anrique, vendo t„o forte o proposito da Rainha, houve o feito por descordado de todo. De que o povo foi logo sabedor, e posto em grande alvoroÁo contra a tenÁ„o da Rainha, e de seguirem a do Infante D. Pedro, qualquer que fosse. Ao qual os povos por Lopo Antonio, que depois foi escriv„o da puridade, fizeram saber ´que estavam para seguir o que elle ordenasse, affirmando que elle sÛ sem outrem havia de reger.ª A Rainha por os de sua parcialidade, que d'este alvoroÁo foram logo sabedores, foi conselhada que para o atalhar, como cumpria a seu serviÁo e honra, e bem do reino, convinha que logo assignasse o accordo, e n„o parecesse que por sua parte ficava; · Rainha prouve fazel-o, e mandou logo chamar o Infante D. Anrique, em cujo poder era o Regimento, e o assignou, e ordenou que os Infantes e os outros prelados e condes, e procuradores, o assignassem e jurassem juntamente, o que todos fizeram em um altar, perante notairos publicos, salvo o arcebispo D. Pedro, que n„o quiz por n„o ficar o Regimento _in solido_ · Rainha. Mas cada um que assignou e jurou, fez assi seu juramento, e sÛ escreveu seu signal com taes cautellas e palavras, que bem parecia querer leixar a sua disposiÁ„o fazer sempre depois o que quizesse, sem parecer que o quebrantava. CAPITULO XVI _Como a Rainha por meio do conde de Barcellos enviou pedir ao Infante D. Pedro o alvar· que lhe tinha dado sobre o casamento d'El-Rei_ O conde de Barcellos, como quer que assignou este Regimento, n„o foi porÈm d'elle satisfeito, por lhe n„o ficar n'elle alguma parte; e como homem que para acrecentar por qualquer maneira seu nome e proveito, teve sempre grande cuidado, desejando que todavia o casamento d'El-Rei com sua neta se fizesse, vendo que o alvar· que a Rainha tinha dado ao Infante D. Pedro lhe era para isso grande embargo, ordenou por si e por outros de sua tenÁ„o que a Rainha com razıes obrigatorias com que a moveram, mandasse pedir o alvar· ao Infante D. Pedro. A qual como quer que, como virtuosa o refusasse, por n„o quebrar sua verdade, e mais a determinaÁ„o d'El Rei D. Duarte seu marido; porÈm como importunada e induzida lh'o fizeram consentir. E, porque algum dos outros que eram n'este acordo, n„o ousou de ir em nome da Rainha ao Infante pedir-lhe o alvar·, o conde de Barcellos acceitou o cargo, e foi ao Infante, e lhe disse: ´Senhor, a Senhora Rainha vos manda dizer que sabeis, que vos tem dado um alvar· sobre o casamento d'El-Rei nosso Senhor, seu filho com vossa filha; e por quanto este caso È de tamanho peso e importancia, que o n„o devera passar sem accordo e conselho dos principaes do reino, a que tambem toca; e agora por estes movimentos n„o È, nem pÛde n'isso entender, vos roga que lhe mandeis o alvar·, e que sobre isso ter· a maneira que vir que cumpre, fallando primeiro com nÛs outros, de quem sabeis que n„o ha de sahir, salvo cousa que seja vossa honra e acrecentamento.ª O Infante lastimado da embaixada e avisado de sua destruiÁ„o, d'onde nacia, a que fim vinha, disse: ´O alvar· que dizeis, È em meu poder; e eu, se quizesse, justa e honestamente podia denegar · Senhora Rainha a entrega d'elle; porque n„o sei como o que por El-Rei meu Senhor e irm„o me foi outorgado, e por ella depois a mim lembrado, requerido e outorgado, se me pÛde revogar sem causa; bem creio que em suas virtudes haveria firmeza de cumprir o que promette, e mais em cousa t„o justa e t„o honesta, se a n„o movessem d'ella conselheiros pouco fieis, no que lhe fazem pouco serviÁo; porÈm, porque n„o pareÁa que eu por forÁa quero, nem tomo, o que com raz„o me devia ser requerido e dado, dae a sua Senhoria seu alvar·, e ir· roto, e n„o s„o a seu poder, em testemunho da quebra de sua verdade, que me quebrou.ª E logo o tirou de um cofre, e o rompeu, e roto o entregou ao conde. CAPITULO XVII _Como El-Rei se foi a Lisboa, onde o Infante D. Jo„o veiu a primeira vez_ Um mez e alguns dias mais duraram as cÙrtes em Torres Novas, em fim das quaes, por ser o anno de mantimentos mui esteril, e aquella comarca mui cara, acordou a Rainha e os Infantes de se irem, como foram, com El-Rei para Lisboa, onde, por via do mar com industria e aviamento de bons regedores, se buscou razoado provimento, que deu causa serem hi os mantimentos em menos careza, que em alguma outra parte do reino. O Infante D. Jo„o, depois de convalescido da doenÁa de que j· se disse, soube do fallecimento d'El-Rei seu irm„o, de que sobre todos seus irm„os mostrou ser mais anojado e n„o era sem raz„o; porque por fallecimento da Rainha D. Filippa, sua madre, o Infante D. Jo„o e Infante D. Fernando ficaram pequenos; e El-Rei D. Jo„o recolheu para si o Infante D. Fernando, que era mais moÁo; e deu o Infante D. Jo„o a El-Rei Duarte que o criou e amou sempre, como proprio filho: e por esta criaÁ„o, que com elle teve, ·lem da geral e natural divida d'El-Rei e irm„o lhe devia o Infante D. Jo„o, sentiu sobre todos sua morte; porque vindo ante a presenÁa d'El-Rei e da Rainha, depois da obediencia e reverenÁa devida, suas continuas lagrimas e dorosas palavras davam claro testemunho do sentimento de seu coraÁ„o pela morte d'El-Rei. E ali em publico fez logo uma falla · Rainha de grandes offerecimentos, de a servir e amar mais que nunca, com palavras de muita discriÁ„o e amor, e acatamento, em que tambem com razıes evidentes lhe tocou, que lhe parecia que se n„o devia antremeter no regimento do reino; e que assi como esta havia de ser sua tenÁ„o, assi seria tambem que em todo o mais sua honra, estado, acatamento e serviÁo se guardasse por todos o mais inteiramente, do que se nunca guard·ra a outra Rainha; do que ella n„o foi contente, e muito menos os da sua tenÁ„o, que eram presentes: e porque isto foi dito de praÁa, logo o rumor d'isso sahiu pela cidade, com que os povos e a gente d'ella principalmente comeÁaram de se alvoroÁar e praticar entre si secretamente, como tirariam o Regimento · Rainha. CAPITULO XVIII _Do despacho que se deu aos embaixadores de Castella_ Os embaixadores de Castella, que eram na cÙrte, como se atr·s disse, pelos desvairos que sobre o Regimento houve em Torres Novas n„o foram ouvidos, nem despachados atÈ Lisboa, onde juntos · Rainha e Infantes com os deputados do conselho deram sua embaixada, a qual, por ser desgosto d'este reino, se crÍ que tardou tanto em se ouvir; porque j· a sustancia d'ella seria revelada. Requereram em nome d'El-Rei D. Jo„o o segundo, que ent„o reinava em Castella, que as egrejas que pela Cisma ent„o foram tiradas aos bispados de Tuy e Badalhouce, e eram regidas por administradores, se tornassem a seus proprios prelados. Outrosi que os mestrados d'Aviz, e Santiago d'estes reinos tornassem um · Ordem e obediencia de Calatrava, e o outro · de Santiago de Castella, cujos membros foram, e que os titulos ficassem, como eram, e as enliÁıes se fizessem c·; mas as confirmaÁıes d'elles se houvessem pelos superiores de Castella. Requereram outrosi que alguns bispados d'estes reinos reconhecessem superioridade ao arcebispo de Sevilha, como Metropolitana sua, que sempre fÙra. E assim apontaram sobre tomadias de navios, que se fizeram, requerendo restituiÁ„o, apontando e allegando sobre cada uma d'estas cousas muitas razıes e fundamentos de direito: porque entre elles era um grande doutor de direitos. Ouvida esta embaixada, em que tambem os embaixadores tocaram aggravos de sua tardanÁa, houve sobre o despacho d'elles grandes divisıes, segundo os votos de cada um; porque a uns parecia bem responder-lhe manso, poendo a defesa d'esto em razıes de direito; e a outros parecia que no esforÁo e confianÁa d'armas e valentes coraÁıes; e finalmente foi havido ent„o por melhor acordo envia-los, como enviaram, sem alguma certa resposta, escurando-se com os movimentos, torvaÁıes e pouco assessego que pela morte d'El-Rei ainda no reino havia; e que El-Rei, depois d'haver em todo seu conselho, enviaria logo a El-Rei de Castella a resposta com sua embaixada. E o que d'estes requerimentos se pÙde logo saber, foi que n„o nasceram da propria vontade d'El-Rei, em cujo nome vinham; mas dos Infantes d'Arag„o, seus cunhados, que ent„o picavam com elle, e governavam o reino, com fundamento de meter este reino em necessidade, e elles por seus meios e com sua privanÁa o remedearem, e esperando que por isso carregariam maior obrigaÁ„o a El-Rei de Portugal e a seus reinos e vassalos, para as necessidades suas, em que esperavam de se vÍr, como viram: por quanto fizeram ent„o lanÁar fÛra d'El-Rei de Castella e de sua cÙrte o condestabre D. Alvaro de Luna, grande poderoso, e muito seu imigo. CAPITULO XIX _Como a Rainha comeÁou de reger e ser em seu regimento prasmada_ A Rainha regia o reino, e tinha El-Rei em seu poder, e por seu aio Nuno Martins da Silveira: e como ella era de boa e virtuosa tenÁ„o tomava o encarrego do Regimento com mais trabalho e continuaÁ„o do que tivera em costume, nem requeria sua fraca desposiÁ„o; e des-hi os requerimentos assi pela boa ordem que se logo deu ao ouvir d'elles, como por haver j· dias que se n„o despachavam, cresciam cada vez mais; o que cada dia, alÈm de ser prenhe, lhe causava dÙres e enfermidades, que contrariavam seu bom e verdadeiro proposito; e, sendo com raz„o aconselhada que temperasse seu grande trabalho, e entrepozesse nos negocios alguns dias para seu repouso e descanso, ella constrangida j· de suas proprias necessidades o comeÁou de fazer, n„o sem reprensıes do povo, com que indevidamente logo comeÁaram a acusar sua innocente fraqueza, e queriam asolver seus muitos e desordenados requerimentos, e incomportaveis importunaÁıes. Pelo qual alguns se atreviam j· havendo por serviÁo de Deus e d'El-Rei e bem do reino de cometer ao Infante secretamente que tomasse o Regimento de todo; mas elle, ou por sua dissimulaÁ„o, ou por ser assi sua vontade, a todos tirava de tal esperanÁa; antes em taes cousas assi se fazerem, posto que melhor se podessem e devessem fazer, sempre escusava as fraquezas e innocencia da Rainha com quanto podia. CAPITULO XX _Fallecimento da Infante D. Filippa_ N'este anno de mil e quatrocentos e trinta e nove, no mez de MarÁo, porque comeÁaram de morrer em Lisboa, e se finou de pestenenÁa a Infante D. Filippa, de onze annos, filha d'El-Rei D. Duarte e da Rainha sua mulher, El-Rei e o Principe se foram a Almada; e a Rainha se foi a uma quinta junto com Santo Ant„o, que se chama Monte Olivete. CAPITULO XXI _Nascimento da Infante D. Joana_ E alli pariu a Infante D. Joana, que depois foi Rainha de Castela, e lhe vieram novas como o Infante D. Pedro, seu irm„o mais moÁo, fÙra morto em Italia de uma bombardada, estando com El-Rei D. Affonso seu irm„o, em cerco sobre a cidade de Napoles. E assi veiu · Rainha n'este anno uma carta consolatoria do Papa Eugenio, confortando-a sobre a morte d'El-Rei seu marido, e amoestando-a que por alguma maneira se n„o desse a cidade de Ceuta por a soltura do Infante D. Fernando, allegando-lhe para tudo razıes santas e catholicas quanto a Deus, e de muita honra e louvor para este reino. CAPITULO XXI _Praticas que o Infante D. Pedro teve sobre descontentamentos que tinha da Rainha ·cerca do Regimento_ No mez d'Agosto d'este anno de mil e quatrocentos e trinta e nove, a Rainha se foi da quinta de Santo Ant„o para Sacavem: e o Infante D. Pedro ficou com El-Rei em Lisboa, onde fallando com D. Alvaro Vaz d'Almada, capit„o mÛr do mar, e com outros de que se fiava, disse: ´Que por quanto n'esta parte do Regimento que aceit·ra, segundo era pequena, e a Rainha se havia soltamente em todo, e defamava a elle e todas suas cousas, elle recebia grande abatimento: sua vontade era, por muitas razıes que apontou, leixar aquelle pequeno cargo que lhe fÙra dado, e ir-se para suas terras: e que porÈm queria saber que lhes pareciaª. No que por seus conselheiros houve votos desvairados, c· uns tinham que emprendesse e tomasse o Regimento de todo: e outros que se contentasse com a parte que tinha, e se s„o fosse: outros que leixasse tudo e se fosse: e a cada um n„o falleciam razıes assaz aparentes para justificar seu parecer. E finalmente foi acordado que d'estas seguisse a parte que ao Infante D. Jo„o melhor parecesse; porque era de crÍr que · sua seria o Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e assi seus filhos os condes d'Ourem e d'Arrayollos. CAPITULO XXII _Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Jo„o ambos se viram e fallaram sobre o Regimento_ Pelo qual o Infante D. Pedro enviou pedir ao Infante D. Jo„o, que era em Alcohete, que se vissem, como viram logo ambos, no Oratorio de Santa Maria do Paraiso, em que se depois fundou e mudou o mosteiro de Santos da Ordem de Santiago. E porÈm ante da ida do Infante D. Jo„o, elle primeiro foi avisado do capit„o Alvaro Vaz, como de si mesmo, da tenÁ„o porque o Infante D. Pedro se queria com elle vÍr. Alli os Infantes se apart·ram sÛs, onde o Infante D. Pedro com largo recontamento propoz a tenÁ„o em que era de leixar a parte do Regimento que tinha: como era aconselhado pelo contrairo, apontando as causas e razıes em que uns e outros se fundavam: e que porÈm lhe pedia que n'isso o aconselhasse; por que na confianÁa que tinha de seu saber e certid„o de amor, que entre elles havia, sua vontade era seguir o que a elle melhor parecesse. O Infante D. Jo„o lhe respondeu: ´Senhor irm„o, ante d'isto eu tinha j· n'este caso ass·s consirado; e, porque mui em breve vos responda, sabei que se chamais erro acceitardes o Regimento, como sois aconselhado, n„o sei cousa que possaes acertar, c· se vÛs nascereis primeiro e vos n„o fizera Deus t„o bom e t„o prudente como soes, e assi ao Infante D. Anrique nosso irm„o, crÍde que eu requerÍra o Regimento para mim; e se m'o n„o quÏzerem dar, eu o tom·ra ou morrÍra sobre isso; porque com quanto a Rainha È mui virtuosa e mui discreta e amiga de Deus, nunca vi mÛr vergonha e abatimento nosso, que sermos regidos por ella; pois È mulher, e mais estrangeiraª. O Infante D. Pedro lhe respondeu: ´Senhor irm„o, bem vejo o que dizeis ter fundamento de muita raz„o, se por todos se quizesse assi consirar com juizos livres de paix„o; mas como n'este caso haja propositos e tenÁıes desvairadas, tenho receio nascer d'ellas alguma divis„o, que a qualquer reino grande faria perder, quanto mais a este de Portugal t„o pequeno, que sem sua destruiÁ„o n„o padece algum desacordo; e por elle ser a herdade em que nascemos e que nos criou, e porque nosso padre tanto sangue espargeu, e tanto trabalhou pela conservar e manter, eu sentiria em egual de morte para mim ser eu causa de sua perdiÁ„o: verdade È que, se com prazer de todos e sem alguma divis„o se podesse fazer, logo por serviÁo de Deus e d'El-Rei meu Senhor, e bem de seus reinos e minha honra, folgaria aceitar este cargo.ª O Infante D. Jo„o lhe disse: ´A divis„o e desacordo do reino que temeis, n„o querendo vÛs usar do Regimento, n„o se escusa se a Rainha com estes que agora esforÁam sua tenÁ„o o reger; porque elles n'esta contrariedade que seguem n„o h„o respeito a algum amor que tenham · Rainha, nem menos ao reino em que vivem, mas sÛmente por segurarem e escaparem os castigos de seus erros passados, e d'outros, se os fizerem; e para com achaque de necessidades fingidas tomarem causas de pedirem e encurtarem o patrimonio real e acrecentarem o seu; e por esta conta, que È verdadeira, a justiÁa e a fazenda do reino, em que consiste toda sua sustancia, cairiam com elle de necessidade na perdiÁ„o que temeis: e alÈm de o cuidado e trabalho de reger ser incomportavel ·s forÁas da Rainha, hei ainda mais por principal inconveniente o Regimento d'este reino ficar sÛ · sua disposiÁ„o esta vinda dos Infantes de Arag„o, seus irm„os, a Castella; porque, como s„o homens amigos de novidades, e tem no mesmo reino grandes competencias, certo È que se h„o de favorecer com este, e poer muitas vezes as gentes d'elle em perigo; e as rendas em despesa por sua ajuda e favor: assi que por estas razıes e inconvenientes, que em vÛs regendo todos cessam, meu conselho È que vÛs todavia rejaes: e quando o vÛs n„o quizerdes ou n„o poderdes fazer, que o faÁa o Infante D. Anrique nosso irm„o; e des-hi eu, se o caso a isso chegar, e da divis„o que tocaes, n„o tenhaes receio; porque o Infante D. Anrique e o conde de Barcellos, e seus filhos, os condes d'Ourem e d'Arrayllos, que s„o as pessoas principaes do reino, seguiriam em tudo nossa tenÁ„o, quanto mais esta, em que ha tanta necessidade, justiÁa e honestidade: e se d'alguma parte devem de esperar honra e interesse, em vÛs a ter„o mais certa: e por tanto eu me affirmo que todavia deveis reger; e que logo o declareis; e nas cÙrtes que se ora h„o de fazer ·cerca d'isso, eu darei e susterei a voz por vÛs: e n„o sinto alguem t„o ousado, que m'a ouse contrariar.ª O Infante D. Pedro finalmente disse: ´Que seu parecer era, que por ent„o n„o devia ·cerca d'isto fazer altercaÁ„o nem mudanÁa alguma; porquanto atÈ ·s cÙrtes havia ainda bom espaÁo de tempo, no qual poderia ser que a Rainha mesma cansaria n'este cargo, e n„o se sentiria desposta para elle, e seria contente d'algum tal meio, porque cessassem odios e escandalos entre elles, e o reino seria regido em outro bom assessego, como desejava.ª E n'este acordo ficaram; e o Infante D. Jo„o se tornou a Alcochete; e o Infante D. Pedro se foi a Camarate, junto com Sacavem. CAPITULO XXIII _Como a Rainha lanÁou fÛra de sua casa certas donzellas, por suspeitas a ella, e affeiÁoadas ao Infante D. Pedro_ A Rainha estava em Sacavem com El-Rei e seus filhos, onde seu coraÁ„o n„o tinha repouso com novas de mudanÁas e alvoroÁos, que se em Lisboa cada dia moviam, de que logo era avisada por pessoas que por isso esperavam haver com ella mais graÁa, e pelas cousas que lhe faziam crÍr, ella comeÁou d'haver e declarar por suspeitas e contrairas a si mesma todas cousas do Infante D. Pedro; pelo qual com palavras irosas, e que n„o cabiam em sua prudencia, mansid„o e virtudes, lanÁou fÛra de sua casa duas donzellas, filhas de Izabel Gomes da Silva, mulher de Pero GonÁalves, vedor da fazenda, e filha de Jo„o Gomes da Silva, e irm„ d'Aires Gomes da Silva; e assi n„o consentiu em sua casa outra donzella, filha de Jo„o Vaz d'Almada, sobrinha do capit„o, por serem pessoas do Infante D. Pedro: o que a Rainha fez por induzimentos alheios sem aquelle resguardo e bom conselho, que a seu estado e serviÁo cumpria; porque o lanÁar d'estas donzellas fez contra ella grande escandalo na cidade de Lisboa, por serem dos naturaes e principaes d'ella, e assi por se declarar imiga do Infante D. Pedro, que do povo era mui amado; porque atÈ li sua desavenÁa d'ambos podia jazer em suas vontades; mas sua rotura n„o se dizia nem mostrava t„o depressa como se por isto mostrou. CAPITULO XXIV _Do alvoroÁo que se seguiu contra a Rainha pela execuÁ„o dos varejos de Lisboa_ Acrecentou mais este escandalo contra a Rainha, e para a maior parte do povo soltamente contrariar seu Regimento, passar uma carta em nome d'El-Rei, porque fazia mercÍ a Nuno Martins da Silveira, seu aio, dos varejos a que os mercadores de Lisboa eram obrÌgados de sete annos, cuja publicaÁ„o e esperanÁa de execuÁ„o aos ditos mercadores causou tanta tristeza e sentimento, que certificados de suas perdiÁıes, se se executassem, se soccorreram · camara da cidade, e com palavras em que moviam todos a piedade para si mesmos, e com muitas razıes que pareciam de serviÁo d'El-Rei e bem do reino, lhe pediram que com a Rainha e com o conselho, ou por outra qualquer maneira a tal mercÍ impedissem. A cidade fez sobre isso seu ajuntamento, em que por forÁa entraram mais dos ordenados; e a elle vieram um Bertolameu Gomes, contador, e outro Alvaro Affonso, escriv„o da sisa dos pannos, criado de Nuno Martins, em cujo poder era a carta, por serem os solicitadores d'ella; e, sendo lida em publico, foi tanta a defens„o e alvoroÁo em todo o povo, por ser passada por sÛ auctoridade da Rainha sem accordo do Infante D. Pedro, que Alvaro Affonso, com fundamento de lhe fazerem padecer morte mais crua, o fizeram saltar por uma janella, mas, por cair primeiro em um telhado, n„o morreu; e a Bertolameu Gomes alguns cidad„os seus amigos com grande difficuldade defenderam a vida: c· n'estes, por serem mui ensinados no que pertencia ·s rendas d'El-Rei, havia suspeita, que deram azo e conselho, como esta mercÍ se pedisse. Os que fizeram este insulto e alvoroÁo em desacatamento da Rainha, eram quasi todolos do povo com alguns principaes da cidade, e com temor que tinham de a Rainha com rigor de justiÁa os mandar castigar como porventura mereciam, procuravam e ordenavam assi em secreto, como j· em publico, que o Regimento lhe fosse de todo tirado, sobre o qual tinham suas praticas, que enviavam logo ao Infante D. Pedro, dando-lhe muitas razıes e esforÁo para sÛ tomar o carrego de reger. O qual, como quer que atÈ li sempre mostrasse estranhar com palavras de honestidade aos que lhe em tal caso fallavam, porÈm a este tempo por ter sabido e visto como a Rainha se declarava ter-lhe desamor e m· vontade, d'hi em diante, aos que n'isso o comettiam, j· recebia e ouvia mais com rostro de lhe agradecer que o fizessem para vir a effeito, que de lhe pesar. E porque na cidade havia n'este caso propositos e vontades contrairas, assi naciam d'ellas bandos e rumores que mostravam signaes de rompimentos perigosos, aos quaes nem por provimentos e penas dos officiaes de justiÁa, nem por pregaÁıes que se de industria de bons religiosos para ello fizeram, nunca se pÙde atalhar, antes crecia cada vez mais. CAPITULO XXV _Ida do conde d'Arrayollos a Lisboa sobre assessego d'ella, e como n„o aproveitou_ Era a este tempo na cidade Pedro Anes Lobato, homem de grande auctoridade e bom cavalleiro, ao qual, como quer que de grande condiÁ„o de sangue n„o fosse, El-Rei D. Jo„o por conhecer d'elle ser bom e discreto, e em armas homem esforÁado, deu a governanÁa da justiÁa da casa do civel, e a tinha; e por vÍr a uni„o e desacordo na cidade tamanho, a que com sua vara e forÁas n„o podia resistir, avisou de todo a Rainha, e por muitas causas lhe enviou pedir trigoso remedio. A qual com esses que com ella eram presentes, teve sobr'isso conselho, onde foi acordado que o conde d'Arrayollos, que estava em uma quinta junto com Loures, por ter cargo da justiÁa do reino e ser pessoa de valor e autoridade, fosse poer assessego nas cousas da cidade, para o qual foi logo chamado, e fallou com a Rainha o que n'aquelle caso cumpria: e d'ella por ser de boa tenÁ„o e s„ conciencia, e tambem de si mesmo por ser virtuoso e justo, foi avisado segundo o feito estava, de o tratar e assessegar mui mansa e temperadamente. Partiu-se logo o conde para Lisboa com a triganÁa que se requeria, onde chegou · tarde, e para haver melhor informaÁ„o das cousas, e ter conselho sobre o remedio d'ellas, quizera repousar algum pequeno espaÁo de tempo sem n'ellas intender; mas ao outro dia por sua ida foi tanto o alvoroÁo e desacordo na cidade, e com tanta soltura de palavras deshonestas e mostranÁas de desobediencia, que o conde n„o sabia que caminho de remedio tomasse; porque os da parte da Rainha favoreceram-se com sua ida, affirmando em seu favor que era para fazer justiÁa dos alevantadores da uni„o sobre o caso dos varejos, e que contrariavam o Regimento da rainha: e os da parte do Infante D. Pedro e Infante D. Jo„o com muitos da cidade, que eram d'outro acordo, tomaram receio de ser por ventura verdade; especialmente porque um Luiz GonÁalves, official na relaÁ„o, criado de Pedro Anes Lobato, e que ·s cousas da Rainha havia grande affeiÁ„o, affirmou de praÁa que por a ida do conde · cidade cedo veriam por justiÁa as gigas da ribeira cheias de pÈs e m„os de muitos, como de pescado, o que logo se soltou publicamente: e por ser homem d'algum credito e ter officio na casa da justiÁa, fizeram para isso suas palavras alguma impress„o e crenÁa; e pareceu que as n„o diria sem ter alguma cousa d'isso sentido. Pelo qual alguns principaes cidad„os com verdadeiro temor e occupaÁıes fingidas de proverem suas fazendas, se ausentaram da cidade, temendo que em tanto alvoroÁo n„o houvesse justo juizo, e que por ventura poderiam receber pena sem culpa. Mas os do povo posposto todo o medo assi continuavam, e acrecentavam a cada vez mais sua uni„o, e com tanto rumor d'algum fim perigoso, que o conde desesperado de com suas forÁas, nem da justiÁa poder assessegar o feito como desejava, havido primeiro sobre isso conselho, tentou de o remedear com prÈgaÁıes, palavras brandas, e de conciencia, que por algum bom e entendido religioso em ajuntamentos publicos se dissessem. E havido este por melhor e derradeiro remedio, o conde fez chamar um Frei Vasco da Allagoa, da Ordem de S. Domingos, ao qual por ser padre d'auctoridade e de letras, e ter boa audacia para dizer, encommendou que sobre o caso das uniıes e desaccordos da cidade, o domingo seguinte prÈgasse no seu mosteiro, avisando-o primeiro que todo seu fundamento fosse commover o povo a paz e assessego. E sendo n'aquelle dia por aviamento e rogo do conde juntos no mosteiro quasi todolos da cidade, Frei Vasco comeÁou seu serm„o, e por ser servidor da Rainha e ·s cousas de seu serviÁo mais inclinado, esquecido do aviso que lhe fÙra dado d'amansar o povo com esperanÁa de bem, tocou o caso e revoltas da cidade com tanta reprens„o dos cidad„os e povo d'ella, que com altas exclamaÁıes os chamava ingratos e desleaes, trazendo-lhes ·s memorias entre outros exemplos, a pena que os cidad„os de Bruges mereceram e houveram pela desobediencia e traiÁ„o que cometteram contra o duque Filippe. E estando j· todo o povo mui descontente e escandalisado das palavras de Frei Vasco, um barbeiro em meia voz, e com rostro iroso disse contra os que junto com elle estavam: ´E como egual È o nosso caso dos framengos, que quizeram matar seu principe e Senhor?--NÛs n„o somos tredores mas mui leaes, e n„o havemos de matar nosso Rei e Senhor; mas porque o amamos havemos todos de morrer por elle, quando lhe cumprir: mas certo este frade alguma cousa tem sentida: porque nos pıe esta raiva.ª E estas palavras com algum rumor comeÁaram ir de puridade em puridade pelas orelhas de muitos do povo, os quaes assi como as ouviam assi volviam logo os olhos de sanha contra o frade, e com mostranÁas de tanta indinaÁ„o, que elle sentindo seu alvoroÁo, por se n„o vÍr em perigo, desamparou sem conclus„o o pulpito, e se acolheu ao mosteiro. O conde d'Arrayollos foi mui descontente do prÈgador, por errar em todo a sustancia de seu proposito, e do que era para o tempo necessario. E vendo que para amansar o povo j· lhe n„o ficava remedio para o fazer, e que sua estada d'hi em deante lhe faria abatimento, se partiu da cidade, e foi · Rainha dar-lhe de tudo conta. E o povo depois de comer n„o esquecido do escandalo do serm„o foram ao mosteiro e disseram ao priol que logo lanÁasse Frei Vasco fÛra d'elle, se n„o que o derribariam e queimariam. E o priol aconselhado da necessidade do tempo assi o fez; e o prÈgador se salvou secretamente. CAPITULO XXVI _Como o Infante D. Pedro foi a Lisboa reprender e assessegar as uniıes da cidade_ O Infante D. Pedro estava em Camarate como j· disse, e sabendo que a ida do conde seu sobrinho · cidade nas revoltas d'ella n„o aproveitara, desejando poelas em assessego se foi l·; e no mosteiro do Carmo onde pousou fez logo ajuntar os principaes da cidade com os officiaes da Camara, e com a cara grave e palavras de grande autoridade sustancialmente os reprendeu de suas uniıes e alevantamentos, com que faziam doÈsta · Rainha e a elle e a todolos que tinham cargo de reger por El-Rei o reino; e que por isso tinham merecido aspero castigo, e o mereciam maior se o n„o atalhassem; e que, se sobre aggravos que tivessem recebidos queriam requerer suas liberdades e direito, que o fizessem por outra maneira como subditos, e que seriam bem ouvidos; e n„o com presumpÁ„o de superiores, de poer e despoer Regedor · sua vontade, como diziam, tocando-lhe sobr'isto muitas e notaveis razıes conformes a este proposito, as quaes alguns tomaram que n„o sahiram verdadeiramente de sua vontade; porque tinham concebido que lhe n„o pesava de semelhantes movimentos por serem contra o Regimento da Rainha e com fundamento de elle o ter; mas a determinaÁ„o d'este juizo fique sÛmente a Deus que o soube. Os cidad„os, depois de ouvido o Infante, lhe responderam mui mansamente, tendo-lhe em mercÍ aconselha-los bem; e d'es-hi asolvendo-se como melhor podÈram dos alevantamentos passados, especialmente no caso dos varejos, em que houveram respeito a n„o serem os mercadores da cidade pela execuÁ„o d'elles destruidos, e assi em quererem ·quelle escriv„o, que persumiram ser inventor, dar tal castigo, que outros por seu exemplo semelhantes cousas n„o inventassem, pedindo ao Infante que em seus trabalhos e aggravos os quizesse ajudar e favorecer, obrigando-o para isso com razıes assaz honestas e boas. Onde logo por um dos procuradores dos mestres foi apontado que as divisıes e escandalos n„o nasciam no reino, salvo por o Regimento d'elle ser repartido por muitos, e que para bem ser, ou havia de ficar sÛmente · Rainha ou a elle, allegando do contrairo muitos inconvenientes n„o sem fundamentos de raz„o, como cousa em que j· muitas vezes tinham praticado. E o Infante depois de sobretudo haver largas repricas e praticas, lhe encommendou muito o assessego da cidade, e que para as cÙrtes que se chegavam, podiam livremente requerer e apontar o que lhes bem parecesse, e que elle no que fosse direito e justiÁa os ajudaria: e com isto se despediu d'elles, e se tornou a Camarate. CAPITULO XXVII _Como a Rainha mandou secretamente preceber os de sua valia que viessem ·s cÙrtes armados_ A Rainha sendo d'estas cousas informada, sentindo que os alvoroÁos da cidade n„o cessavam, antes creciam com fundamento de o Regimento lhe ser tirado, o notificou logo pelo reino a todolos fidalgos, e pessoas d'estima, que entendeu serem por ella, encommendando-lhes que para as cÙrtes logo vindoiras viessem d'armas e gentes assi percebidos, que com sua seguranÁa podessem resistir a qualquer contrariedade que os povos em seu dessserviÁo quizessem ordenar e fazer: e para ser mais em segredo, n„o o escreveu a todos particularmente, mas ordenou regimentos para cada comarca, e escudeiros de que fiava; e com suas cartas de crenÁa os andassem secretamente mostrando ·quellas pessoas que ella queria. A qual cousa com quanto pareceu ser incoberta, foi logo ao Infante D. Pedro revelada, e ainda mostrado por mÛr certeza um dos proprios regimentos: e maravilhado d'isso o descobriu e mostrou logo ao conde d'Arrayollos, que com grande triganÁa veiu sobr'isso fallar · Rainha, espantando-se muito de tal movimento, e reprendendo quem lh'o conselh·ra, pedindo-lhe afincadamente com respeitos de serviÁo de Deus e d'El-Rei, e d'ella, e bem do reino, que o atalhasse, e escrevesse ·quelles que cessassem do que lhes tinha escripto. E como quer que ella por sua virtuoza tenÁ„o lhe pareceu assi bem e prometesse ao conde de o assi fazer, n„o se achou porÈm quem depois o fizesse; antes se soube que logo veiu a ella Pedro Annes Lobato certificar-lhe que os percebimentos e alvoroÁos d'alguns creciam cada vez mais por seu respeito, e que a fama era que ella os ordenava assi para morte d'alguns principaes por sua vinganÁa, o que como quer que elle sabia o contrairo e o desdissesse, que o n„o criam como suspeito a suas cousas; e assi tambem lhe pediu que com assessego o remedeasse. E a Rainha crendo que aproveitaria sua desculpa, escreveu logo sobre aquelle caso mui graciosamente · cidade, certificando-lhe o contrairo do que tinham concebido; e encommendando-lhes sua paz e assessego com grande instancia, e com sua crenÁa a Pedro Annes, o qual com quanto em camara dissesse alÈm da carta da Rainha muitas razıes e causas para desfazerem suas maginaÁıes e cessarem de seus alevantamentos, n„o aproveitou nada: e com tudo responderam · Rainha ´que a causa dos receios e alvoroÁos que tinham, os seus principalmente os faziam, affirmando e divulgando cousas para assi ser; que os mandasse castigar, e tudo cessariaª. E como quer que a Rainha para satisfaÁ„o d'elles mandasse sobr'isso fazer exame e deligencias para ser asperamente punido quem taes movimentos fizesse: finalmente n„o se achou certo autor, nem cousa a que em especial fosse raz„o dar-se fÈ nem autoridade, e com tudo a furia do povo n„o amansava. CAPITULO XXVIII _Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Jo„o sobre estas cousas se torn·ram a vÍr, e o que acord·ram_ O Infante D. Jo„o a este tempo era doente em Alcochete; e enviou ao Infante D. Pedro que fosse, como foi, ve-lo, e sendo ambos juntos, o Infante D. Jo„o lhe disse: ´Senhor irm„o, por n„o estar em disposiÁ„o de poder ir onde estaveis, vos enviei pedir que chegasseis aqui; assi porque folgo muito de vos vÍr, como principalmente por saber parte de vÛs, e de vossos feitos com a Senhora Rainha, os quaes n„o devem estar bem nem como · vossa honra cumpre, segundo a soltura e atrevimento que todolos fidalgos tem de fallar contra vÛs, tirando os de minha casa, e para se isto remedear convem que faÁaes o que n„o fizestes, que È nomearde-vos logo por Regedor do reino in solido. E para sosterdes vossa empresa tendes em vossa ajuda mui certos a mim e ao conde d'Ourem que aqui est· comigo; e assi a cidade de Lisboa que vo-lo requere; e comvosco ser„o outros muitos que nos ajudar„o n'esta contenda; e ent„o venham os do juramento armados contra vÛs; e os Infantes d'Arag„o entrem a favorecer o partido de sua irm„ª. O Infante D. Pedro lhe disse: ´Leixando o mais que me dizeis, a esta derradeira condiÁ„o por mais sustancial vos responderei primeiro; e digo que j· vos disse outras vezes, qu„o pouco contente sou da Rainha e de seus m·os conselheiros, e da dureza de sua condiÁ„o, com que nunca quiz perder esta seita contra mim; e Deus sabe que c· lhe n„o fui nunca nem sou em culpa para assi ser; antes lhe tive sempre merecimento, por desejar de a servir como era raz„o: e o galard„o que d'ella houve foi sempre odio e m· vontade para mim e minhas cousas; e mais agora, onde na esperanÁa de suas honras e mercÍs j· os fidalgos como dizeis me n„o olham sen„o por desprezo, crendo que o que mais fizer contra mim maior parte haver· d'ellas. E por isto e principalmente por minha seguranÁa, certo prazer-me-ha muito ter corregimento; mas porque a esta saz„o e tempo, segundo as divisıes est„o, eu o n„o poderia fazer sem esperanÁa de muito damno e grande perda d'este reino, o que eu n„o queria, a mim parece como vos j· disse, leixarmos vir o tempo das cÙrtes; e se n'ellas se acordar que tenha o Regimento, ent„o serei contente de o tomar; e d'outra maneira n„oª. O Infante D. Jo„o disse: ´Certo bem me parece vossa conclus„o; mas tenho receio a estes de Lisboa com esta vossa dilaÁ„o perderem por ventura este fervor que tem para vossa ajuda, e serem depois m·os de tomar a nosso prepositoª. ´N„o cureis (respondeu o Infante D. Pedro) c· se Deus vir que È seu serviÁo, Elle por sua bondade ordenar· como se faÁa; e por isso sede certo, que por nenhuma cousa n„o emprenderei encargo que seja sem cÙrtes; mas que sei que a Rainha escreve aos fidalgos que s„o de sua parte, que venham a ellas poderosos, eu como defensor o quero fazer saber ·s cidades e villas do reino; e que sejam prestes para qualquer movimento e novidade que se seguir.ª E com esta tenÁ„o que seu irm„o aprovou, se despediu d'elle. CAPITULO XXIX _Como o Infante D. Pedro avisou e percebeu o reino sobre os alvoroÁos que se ordenavam_ E Tanto que o Infante D. Pedro foi em Camarate, que era no comeÁo de Setembro do anno de mil e quatrocentos e XXXIX, logo escreveu a todolos logares do reino notificando-lhe os movimentos que se esperavam, de que era certificado, e as causas de quem procediam, encommendando-lhe que logo se fizessem e estivessem prestes para quando vissem seu recado; por quanto de semelhantes uniıes n„o se podia seguir, salvo desserviÁo de Deus e d'El-Rei e grande mal e damno de seus reinos e naturaes, e assi foram avisados do Infante os messageiros que levaram as cartas, que todas em todo o reino a um dia certo e logo assignado por elle, fossem dadas. E tanto que assi escreveu, se partiu para Coimbra e suas terras. A carta para Lisboa foi dada na Camara da Feitura a XV dias, sendo j· o Infante partido, e depois de vista foi posta nas portas principaes da SÈ, onde esteve alguns dias sem haver logar de se poder acabar de lÍr, e de noite com candeias a vinham trelladar; e sobre as cousas d'ella as praticas e alvoroÁos eram tamanhos, que em publico e em secreto n„o se fallava em outra cousa. Os da cidade depois de haverem seu conselho acordaram responder ao Infante, em que remercearam sua notificaÁ„o, e se offereceram para todalas cousas que fossem de sua honra e serviÁo, e elle dispozesse e mandasse. As outras cidades e villas do reino responderam todas conforme a isto em sustancia; sÛmente a cidade do Porto emadeo mais, que queria que o Infante D. Pedro sÛ, sem outra ajuda nem companhia fosse Regedor: e com estas cartas houve no reino grande alvoroÁo, com alguma indinaÁ„o contra a Rainha, por n'ellas se tocar entrada de gentes extrangeiras n'este reino em seu favor e ajuda. Mas se o Infante isto escreveu por ter d'isso a esse tempo alguma certid„o, ou o fez de industria por alvoroÁar as gentes contra a Rainha e contra os que seguiam sua tenÁ„o, isto fique a Deus e em sua conciencia, sÛmente È de crÍr que o Infante o n„o faria sem causa; especialmente porque a esse tempo os Infantes d'Arag„o irm„os das Rainhas de Portugal e de Castela prosperavam n'aquelle reino; e era de presumir que nos aggravos de que se ella queixava, se socorreria a elles, que a deviam e podiam bem ajudar, e elles lh'o n„o denegariam por seu sangue e grandeza. CAPITULO XXX _Como se o Infante D. Pedro despediu da Rainha, e da falla que como descontente lhe fez_ Ante que o Infante D. Pedro partisse de Camarate para suas terras, foi a Sacavem fallar a El-Rei; e depois de se despedir d'elle e lhe beijar a m„o entrou onde a Rainha estava, e com a presenÁa carregada lhe disse em pÈ e de praÁa algumas palavras, cuja sustancia foi recontar-lhe serviÁos que lhe tinha feitos com desejo de fazer outros maiores, de que finalmente atÈ ent„o n„o houvera d'ella outro galard„o, salvo odio e m· vontade com que sempre procur·ra em todo sua deshonra e abatimento; e assi lhe tocou nas differenÁas em que andavam, e nos percebimentos que mand·ra fazer, e em outras cousas d'esta calidade, com razıes assaz graves e honestas, e em fim declarou ´que atÈ li a Rainha o tivera como ella queria, e que d'hi em deante o tomaria como o achasseª. E n'esta conclus„o que pareceu de rompimento, se despediu d'ella sem lhe beijar a m„o, nem cometer de o fazer. O que a Rainha ouviu com grande seguranÁa e assessego, e n„o lhe respondeu cousa alguma; porque o Infante com sua trigosa partida n„o deu a isso lugar, e porÈm sentiu muito partir-se assi d'ella o Infante com mostranÁa de tamanho desacatamento; o que por assi passar de praÁa foi logo divulgado, que a uma parte e a outra acrecentou mais materia d'alvoroÁos e uniıes. CAPITULO XXXI _Como a Rainha com El-Rei e seus filhos se foi a Alanquer, e do que se seguiu em Lisboa_ A Rainha se partiu com El-Rei e seus filhos e sua casa para Alanquer, muito revosa dos movimentos e alvoroÁos de Lisboa, e pouco segura em Sacavem onde estava, por ser aldÍa fraca e t„o perto da cidade, como quer que d'alguns seus fosse aconselhada que o n„o fizesse, antes que se fosse dentro · cidade; porque era de crÍr que sua presenÁa daria ao povo menos ousadia para contra ella seguirem e acabarem o que tinham comeÁado; e que sua ausencia com mostranÁa de temor causaria o contrairo. Os officiaes de Lisboa vendo esta mudanÁa da Rainha fizeram logo seu ajuntamento, onde Vicente Egas, homem cidad„o velho, entendido e de grave representaÁ„o fez uma falla com largo recontamento, cuja sustancia foi avisar a cidade dos males e perigos que por as mudanÁas presentes se lhe aparelhavam; e como para terem por cabeÁa alguma pessoa que por ella os resistisse, lhe era necessario enlegerem e tomarem alferes, apontando logo o capit„o Alvaro Vaz d'Almada, que da cidade fÙra o derradeiro alferes, como por outros muitos e mui dinos merecimentos e louvores que d'elle com verdade recontou; no que todos consentiram, e por dois cidad„os o enviaram logo chamar,por quanto era fÛra da cidade; e em chegando · ribeira, sendo j· sabido a determinaÁ„o sobre que vinha, se ajuntou com elle a mÛr parte da cidade, e assi acompanhado com grande honra foi levado · Camara, onde por os vereadores com certas cerimonias e largas palavras de grande seu louvor e muita confianÁa, lhe foi entregue a bandeira da cidade com suas condiÁıes; e elle a recebeu com palavras cortezes e discretas, e de grande esforÁo; porque era cavalleiro que n'este reino e fÛra d'elle por esperiencias mostrou que isto e muito mais de louvar havia n'elle, c· em FranÁa por sua ardideza e bondades foi feito conde d'Abranxes, e em Inglaterra por sua valentia foi recebido por companheiro da Ordem da Garrotea, de que principes christ„os e pessoas de grande merecimento s„o confrades; e em Portugal por todas estas, e mais por sua linguagem e fidalguia mereceu ser como foi capit„o mÛr do mar. CAPITULO XXXII _Accordo que o povo de Lisboa fez ·cerca do Regimento_ Estando o Regimento do reino n'este balanÁo, mais com mostranÁas de guerra que de paz, e com signaes mais de perigo que de seguranÁa, os officiaes macanicos de Lisboa com outra gente popular se ajuntaram em S. Domingos da Cidade, onde fizeram escrever e assignaram um acordo, em que por algumas razıes que apontaram, e em especial por o perigo e n„o bom Regimento do reino, declaravam e se affirmavam, ´que o Infante D. Pedro fosse seu Regedor e defensor sÛmente; e que assi promettiam de o requerer nas cÙrtes; e que o contrairo n„o consentiriam ou morreriam sobr'isso, se o caso assi requeresse.ª A qual cousa sendo logo sabida, como quer que a alguns parecesse determinaÁ„o de pouco peso e auctoridade, o contrairo pareceu a Pedro Annes Lobato, que por ser muito servidor da Rainha, se foi logo a Alanquer onde estava, e lhe notificou com tristeza aquelle acordo, havendo-o por principio mui contrairo a seu serviÁo, affirmando que n„o podia ser sem favor e consentimento dos principaes, e com aquelle acatamento que devia a reprendeu muito da seguranÁa que n'estes feitos sempre tivera, e o pouco cuidado de os remediar nos comeÁos ante d'alguma execuÁ„o, especialmente estando t„o ·cerca e t„o avisada cada dia dos movimentos que se faziam. E perguntado pela Rainha e pelos do conselho que hi eram, que se faria ou que remedio se daria para o povo cessar de seu alvoroÁo, Pedro Annes respondeu ´que j· n„o sabia, salvo pedi-lo a Deus.ª E finalmente depois de sobre isso praticarem, acordaram que a Rainha escrevesse, como logo escreveu · cidade, e alÈm das razıes santas e virtuosas na sua carta logo declaradas, por que deveram ser bem seguros dos receios com que se alteravam, Pedro Annes que era o messegeiro, lhes disse outras muitas mais, a ellas conformes, em que n„o fallecia siso e prudencia; mas d'isto em fim se fez pouca estima, e responderam a tudo como j· endurecidos em sua maginaÁ„o e porfia. CAPITULO XXXIII _Como a cidade de Lisboa entendeu contra o Arcebispo D. Pedro pelos cubelos da alcaÁova que tomou_ N„o È de duvidar que a Rainha para toda paz, bem, e assessego do reino tivesse sempre mui virtuoso desejo; mas muitas vezes por ventura, por estar assi determinado na providencia divina, os seus sem vontade d'ella damnavam e faziam duvidoso seu proposito; porque estando a cidade de Lisboa em alguma consiraÁ„o de repouso por o que a Rainha lhe tinha escripto e enviado dizer, o Arcebispo D. Pedro seu primo, que em todo seguiu sua tenÁ„o, pousava nos seus paÁos d'AlcaÁova pegados com Sancta Cruz, e porque entre elles e o castello vae um lanÁo de muro em que est· a porta, que se chama de Martim Moniz com alguns cubellos altos, mandou cobrir e abrir para elles uma porta porque se corriam por cima do muro, ficando a porta da cidade que sahia para fÛra sujeita a sua disposiÁ„o, e da outra parte dos paÁos contra o bairro dos escolares, tinha dias havia feita uma torre mui alta, forte e fremosa em que se acolhia; e sendo as cousas da Rainha havidas na opini„o do povo por t„o suspeitas, o Arcebispo alÈm da obra e refazimento que nos cubellos mandara fazer, dizia soltamente palavras ques pareciam ameaÁas com esforÁo alheio. E deu aos seus armas alÈm das custumadas, e dizia-lhes de praÁa taes razıes, que os mettia em alvoroÁo; e elles fallando ousadamente pela cidade, mettiam a outros muitos em outro maior: e com isto n„o apagavam, mas acendiam mais a suspeita e receios que o povo tinha: a qual cousa sentida pelos officiaes, fizeram sobre isso vereaÁ„o e acordo; e por dois deputados para isso mandaram requerer em sustancia ao Arcebispo que logo despachasse e leixasse o muro e cubellos, que eram proprios da cidade, de que a tinha forÁada. O qual anojando-se de tal recado, como era de aspera condiÁ„o, e n„o muito sobjecto a deliberado conselho, respondeu aos messegeiros de maneira que foram d'elle mui descontentes; sobre o qual se tornaram outra vez a juntar em camara, e se alguns com difficuldade o n„o temperaram, o primeiro acordo era de mÛr rigor e damno; mas em fim acordaram que os cubellos fossem logo despachados, e fechada a porta que o Arcebispo mand·ra abrir; do que elle mui anojado, sendo constrangido para o cumprir, se sahiu logo da cidade, e depois para Castella, como ao diante se dir·. CAPITULO XXXIV _Vinda do Infante D. Jo„o · cidade_ A cidade de Lisboa, pela confus„o e receios em que estava, acordou de enviar o capit„o Alvaro Vaz ao Infante D. Jo„o, notificar-lhe os feitos como estavam e pedir-lhe por mercÍ, que para ser sua cabeceira quizesse estar na cidade, porque sua presenÁa lhes era mui necessaria, atÈ que nos feitos se tomasse alguma boa conclus„o. Ao Infante prouve muito de o fazer; e se veiu logo a ella e pousou nas casas da Moeda, onde entendida a sustancia do caso, conhecendo que a maior parte da inclinaÁ„o e vontade do povo e cidad„os, era o Infante D. Pedro reger, louvou muito seu proposito, e os esforÁou n'elle. CAPITULO XXXV _Como a Rainha escreveu a Lisboa e todo o reino sobre o assessego d'elle_ A Rainha como foi em Alanquer, logo escreveu a Lisboa, e alli geralmente a todas as cidades, villas e povos do reino, notificando-lhe alguns beneficios e boas obras que j· lhes procurara para os obrigar; e assim as causas dos aggravos e sem razıes que ·cerca do Regimento recebia, para os mover a piedade, descarregando-os com razıas boas, honestas e de raz„o, dos temores que d'ella tinham ·cerca do meter das gentes estrangeiras n'estes reinos, e segurando-os da vinganÁa que lhes faziam crÍr que ella d'alguns cruamenta queria tomar; encommendando-lhes e requerendo finalmente, que para as cÙrtes que se chegavam, cessassem de requerer novidades acerca do Regimento, e quizessem approvar o que El-Rei D. Duarte seu marido leixara, ou ao menos o que nas cÙrtes de Torres Novas fÙra acordado, com alguns protestos fundados em sua boa e virtuosa tenÁ„o, mandando que por seu descargo se d'ello se seguissem alguns males e inconvenientes, que suas cartas se registassem nos livros das camaras, e puzessem nos cartorios das religiıes: o que se n„o fez assim; porque na maior parte do reino era o alvoroÁo tamanho contra a Rainha, que ·lem de n„o quererem vÍr suas cartas, ainda tratavam os messegeiros d'ellas asperamente, e n„o como deviam. E porque Gomes Borges que era escriv„o da chancelaria d'El-Rei, poz nas portas da SÈ a carta que a Rainha enviou a Lisboa, foram os povos sobre elle, e t„o indinados, que com difficuldade escapou da morte. CAPITULO XXXVI _DeclaraÁ„o que Lisboa fez de o Infante D. Pedro sÛ reger o Reino_ Estando assi as cousas n'esta confus„o, o doutor Diogo Affonso Mangancha em que havia letras e ardideza com pouco repouso, e um Lopo Fernandes, tanoeiro de Lisboa, homem velho afazendado, e de que o povo fazia grande cabeceira, estes ou por serem afeiÁoados · parte do Infante D. Pedro, ou por lhes parecer raz„o elle sÛ reger e n„o a Rainha, ordenaram e praticaram entre si que o doutor fizesse na camara uma publica falla sobre isso, affirmando que todavia era bom, antes das cÙrtes se fosse possivel, assi se declarar e requerer; e que ao menos no cabo da falla conheceriam nos rostos dos mais suas vontades para seu aviso: e era opini„o que d'esto n„o desprazia ao Infante D. Jo„o, pelo favor que dava e gasalhado que fazia a este tanoeiro. E junta a mÛr parte da cidade na camara, sem geralmente se saber a que fim, o doutor Diogo Affonso propoz sua falla, em que logo com muitas e vivas rasıes tocou os erros que havia em o Regimento do reino ser repartido, como fÙra em Torres Novas; e assi com determinaÁıes do Direito Canonico e Civil, e com auctoridades do Testamento Novo e Velho, e com exemplos d'historias antigas reprovou Regimento publico ser dado a mulher, porque excludio a Rainha; e com outras de n„o menos ras„o e auctoridade provou que devia ser dado a homem bar„o, em que houvesse as virtudes e calidades que todas achou com verdade no Infante D. Pedro, para o qual concludio que devia ser requerido e forÁado para isso, quando por sua vontade o n„o quizesse acceitar. Acabando o doutor sua falla, foi-lhe por um vereador dadas graÁas por ella em nome de todos, os quaes encommendaram logo ao capit„o que desse sobre o caso sua voz, que a deu com cautellas e fundamentos de homem prudente e mui avisado, em que concludiu mais alÈm, que era grande perigo e aleij„o, El-Rei ser mais criado em poder de mulheres; e n„o menos erro reger a Rainha, n„o sem muitos merecimentos e grandes louvores d'ella, que tambem apontou para ser sempre servida e acatada; e que o Infante D. Pedro devia reger. Era alli Martim Alho, cidad„o honrado, e por ser muito servidor da Rainha quizera dilatar esta conclus„o para outro ajuntamento e mais pessoas, parecendo-lhe que se apertava muito em seu d'esserviÁo; mas Ruy Gomes da Gr„, outro si cidad„o, e de boa e antiga linhagem, que era presente, com palavras de grande auctoridade e ras„o contradisse muito a dilaÁ„o n'este caso, e louvou a breve conclus„o; e depois de muitas praticas e largos apontamentos, elle com os mais approvaram e pozeram em escripto este accordo que se segue. CAPITULO XXXVII _FÛrma do acordo sobre o Regimento_ Em nome de Deus nosso Remidor e Salvador Jesus Christo, e de sua Santissima Madre a Virgem Maria nossa Senhora. Acord‚mos em uma voz e acordo, todolos fidalgos, cidad„os, e homens bons da cidade de Lisboa, consirando o trabalho e grande destruiÁ„o que em todo o reino ha por causa de ter diversos Regedores, entre os quaes sempre era divis„o, em grande damno e perda de todo o reino, querendo a cidade remediar a serviÁo de Deus e d'El-Rei nosso Senhor, como aquella que sobre todas as cousas d'este mundo mui leal e verdadeiramente o ama, todos em uma voz acordamos, e determinamos que n'estas cÙrtes que ora prazendo a Deus ser„o feitas, conhecendo nÛs a grande lealdade e muita prudencia do muito alto e muito excellente Principe e Senhor o Infante D. Pedro, e como È filho legitimo do muito poderoso e virtuoso Rei D. Jo„o nosso Senhor, cuja alma Deus haja, e o mais anci„o sangue chegado · mui alta e real corÙa do muito excellente e poderoso Principe El-Rei D. Affonso nosso Senhor, que elle dito Senhor Infante D. Pedro seja Regedor livremente e in solido n'estes reinos, e atÈ que prazendo a Deus, El-Rei nosso Senhor, que sobre todos mais lealmente amamos, seja em edade para os por si poder reger e deffensar, ao qual tempo o dito Senhor Infante D. Pedro seu leal sangue e vassalo leixar· livremente a possess„o de seus reinos e senhorio; e lhe entregar· a ministraÁ„o e Regimento d'elles pacificamente, para El-Rei nosso Senhor os governar e reger, como fizeram os mui virtuosos Reis d'onde elle descende; e vindo tal caso, que o Senhor Infante D. Pedro n„o possa ter o Regimento e governanÁa dos ditos reinos, que por esta fÛrma e maneira seja dada e a haja o mui leal Principe e Senhor Infante D. Anrique seu irm„o; e fallecendo elle, seja por o semelhante dada ao Senhor Infante D. Jo„o; e por esta guisa ao Senhor Infante D. Fernando, que Deus de terras de mouros traga com bem e liberdade a estes reinos; e fallecendo todos ante que El-Rei D. Affonso nosso Senhor seja em edade para reger, que ent„o por esta fÛrma venha o dito Regimento ao conde de Barcellos, e aos condes d'Ourem e d'Arrayollos seus filhos, com todas as clausulas e condiÁıes suso escriptas. E assi acordamos e determinamos que a muito alta e muito excellente e muito prezada a Rainha D. Lianor nossa Senhora seja sempre em sua vida honrada e manteuda, acatada e servida em seu alto e real estado; e por esta mui nobre e leal cidade de Lisboa e povo d'ella lhe seja sempre feito tanto serviÁo, prazer, e mandado, assi como somos teudos e obrigados por bons e leaes vassallos, e por ser madre d'El-Rei nosso Senhor, assi e pela guisa que lh'o sempre fizemos em vida d'El-Rei D. Duarte, seu marido nosso Senhor, cuja alma Deus haja; e muito mais podendo-se fazer. Alguns houve alli e poucos, a que d'este acordo n„o prouve; em especial a Martim Alho, que sobre algumas palavras que acerca d'esso disse, n„o lhe conveiu mais esperar; e se foi com sua vida e honra, a que o rumor do povo comeÁava j· de ser contrairo. CAPITULO XXXVIII _NotificaÁ„o d'este accordo ao Infante D. Jo„o, que o approvou_ Feito e assignado este accordo, enviaram logo chamar Vasco Gil, confessor do Infante D. Jo„o, ao qual deram o accordo e lhe encommendaram que o mostrasse ao Infante, a cuja prudencia, correiÁ„o e prazer o sometiam. E mui em breve tornou Vasco Gil com a resposta em que o Infante approvava e louvava seu accordo, n„o como cousa feita por homens, mas como inspirada n'elles por Deus. E que porÈm ao outro dia quinta feira fossem ouvir missa com elle a Sancto Spiritu, e que alli lhes responderia. Ao qual dia juntos todos e ouvida a missa, que se disse muito solemne com seus capell„es e cantores, o Infante apartou os da cidade sÛmente e alli resumiu o accordo que fizeram e lhe enviaram mostrar. Onde com palavras de grande equidade lhes aguardeceu a notificaÁ„o d'elle. E com razıes de muita auctoridade o approvou, offerecendo-se a elles. E pois aquella era a verdade, que pospostos os espantos, ameaÁas e receios que se logo apontaram, promettia de lh'a ajudar a manter e cumprir: pelo qual a cidade assi favorecida em seu proposito fez no outro dia ajuntar no refeitorio de S. Domingos todo o povo, aquelle que pÙde caber, onde em pulpito Pedro Anes Sarrabodes notificou em alta voz o accordo passado e a maneira que se n'isso tivera, requerendo a todos que dissessem o que d'elle lhes parecia. Onde logo sem bem se acabar a pregunta um Diogo Pirez, alfayate, bradando respondeu: ´que accordo nem parecer ha de ser o nosso, salvo assignarmos todos esse, e fazermos logo vir o Infante D. Pedro, e comece de reger!ª Com aquella voz seguiram tantas vozes, que alguma se n„o ouvia; e com os assignados dos que tinham assignado foram logo outros tantos postos, que n„o cabiam em um grande quaderno; porque assi trabalhava cada macanico official de poer alli seu nome como se na postura d'elle acrecentasse sua honra e fazenda, e remedeasse de todo a necessidade do reino. CAPITULO XXXIX _NotificaÁ„o do dito accordo · Rainha, que o contrariou, e assi aos Infantes e ao reino_ Concordado e assignado este accordo, a cidade o notificou logo · Rainha com fundamentos e causas justas e honestas, e com palavras do mÛr acatamento seu, que no caso cabiam. A qual lhes respondeu com uma notavel justificaÁ„o, desfazendo e anichilando particularmente todalas cousas do acordo, denegando-lhe em todo a auctoridade para tal poderem fazer, sem ajuntamento e concordia dos tres Estados do Reino, encomendando-lhes a revogaÁ„o do accordo com algumas protestaÁıes e cautellas dos damnos, se sobr'isso viessem. N„o sÛmente a cidade de Lisboa notificou este accordo · Rainha, mas logo aos Infantes D. Pedro e D. Anrique, e condes; e assi ·s cidades e villas do reino. E o Infante D. Pedro lhes respondeu agardecendo-lhes com palavras mui graciosas seu proposito, e offerecendo-se com outras de muito peso e discriÁ„o, aceitar o Regimento e seguir jurar e manter as condiÁıes do acordo. No qual isso mesmo as cidades e villas do reino sustancialmente consentiram. E principalmente a cidade do Porto por ter aquello mesmo dias havia determinado. Mas o Infante D. Anrique na resposta que sobr'isso enviou, n„o mostrou ser do accordo contente, n„o por erro da sustancia d'elle, mas no modo que tiveram, por tomarem em tal caso a autoridade e poder que aos tres Estados do Reino em cÙrtes era sÛmente reservado, conforme ao que a Rainha apont·ra, concludindo em remeter seu acordo e tenÁ„o para as cÙrtes que se logo esperavam, onde tudo bem visto e consirado se faria o que fosse mais serviÁo de Deus e d'El-Rei, e bem de seus reinos, amoestando-os finalmente para paz e assessego, poendo-lhes os inconvenientes da divis„o. E mais de si mesmo justificando tudo com palavras e razıes de tanta autoridade, que bem pareciam dinas de tal Principe. E que sobretudo iria a Coimbra fallar ao Infante D. Pedro, e ao conde de Barcellos seus irm„os, e a conclus„o que tomassem lhes faria logo saber. D'esta resposta do Infante D. Anrique n„o foram os da cidade contentes; e muito menos o Infante D. Jo„o que n'ella era presente, o qual tomou cargo de responder, como respondeu por ella a seu irm„o, em que lhe afirmou o acordo se fazer e divulgar com sua autoridade, justificando com vivas razıes todolos passos d'elle, tocando mui verdadeiramente para assi ser as necessidades em que o reino estava e danos que recebia por a multid„o e divis„o dos Regedores; e quanto um era mais necessario e proveitoso, o qual n„o podia nem devia ser, salvo o Infante D. Pedro seu irm„o, por as calidades que n'elle para isso havia, que logo apontou dinas d'outro Regimento maior. Pedindo emfim, que com elle quizesse dizer:--_Confirmat hoc Deus, quod operatus est in nobis._-- D'este acordo de Lisboa pesou muito ao conde de Barcellos; e comquanto era assaz discreto e avisado, em recebendo a acta da cidade, n„o pÙde dessimullar o desprazer e sentimento que por isso recebia. E n„o era por singular affeiÁ„o que tivesse · Rainha, nem por sentir que em ser o Infante D. Pedro Regedor era perda ou damno do reino; mas sÛmente segundo juizo commum e especiaes, que se depois seguiram, era com respeitos de seu interesse particular; de que porventura lhe dava mais esperanÁa a brandura da Rainha governando, que o rigor e justiÁa do Infante regendo. CAPITULO XL _Partida do Arcebispo D. Pedro fÛra do reino_ D. Pedro, Arcebispo de Lisboa, era na Alhandra anojado pela privaÁ„o dos cubellos da cidade, como j· disse; onde fallando com um Affonso Martins, ourives, que da cidade sobre cousas de suas rendas fÙra com elle negociar, tocou os accordos e movimentos da cidade com palavras de doesto dos cidad„os e povos d'ella; ameaÁando-os com cerco poderoso de gentes estrangeiras, e com outros muitos males e deshonras, de que os em pessoa d'aquello logo certificava, e que n„o tardariam muito, congeiturando de sua confianÁa e favorecendo sua ameaÁa em alguns do reino e em outros muitos de fÛra d'elle, que eram os infantes d'Arag„o e sua valÌa. A qual cousa o ourives respondeu bem e avisadamente, esforÁando se em lhe n„o parecer direito de sua verdadeira vontade; porque d'elle n„o era de crÍr cousa que tanto contrariava a seu sangue e habito, e na bemfeitoria e mercÍ que d'El-Rei D. Jo„o e de seus reinos tinha recebido. Com o sentimento e juizo que o ourives tomou da tenÁ„o do Arcebispo, se tornou · cidade, onde o logo fez saber na camara d'ella. E por isso, e por se provar em uma inquiriÁ„o que se contra o Arcebispo tirou, que brasfemara do Senhor que o fizera, a cidade com sua cleresia appellaram d'elle e o suspenderam de suas rendas e dinidade; e se enviaram queixar d'elle · SÈ Apostolica por um Jo„o LourenÁo Farinha, cidad„o e pessoa de saber e auctoridade, com supplicatorias em nome d'El-Rei e dos Infantes. Pelo qual o Arcebispo se quizera colher a Obidos, e os da villa com sua suspeita o n„o quizeram n'ella receber. E elle vendo que os feitos se inclinavam j· contrairos de seu proposito e desejo, se partiu para Castella, d'onde depois foi retornado como se dir·. A Rainha sendo j· certificada da determinaÁ„o em que o povo estava de lhe tirar o Regimento e da-lo ao Infante, sendo assi aconselhada por aquelles que a serviam, escreveu aos fidalgos que sostinham sua parte que n„o viessem ·s cÙrtes, e se escusassem como melhor vissem; e enviassem a ella procuraÁıes abastantes com suas protestaÁıes de n„o outorgarem nem obedecerem em cousa que se n'ellas accordasse. E elles assi o fizeram, os quaes eram o Arcebispo de Braga, o Priol do Crato, o marechal D. Duarte, senhor de BraganÁa, D. Duarte de Menezes, Fern„o Coutinho, GonÁallo Pereira de Riba-Vizella, Alvaro Pirez de Tavora, Diogo Soarez d'Albergaria, Fern„o Soarez, Ruy Vaz Pereira, Luiz Alvares de Sousa, Pero Gomes d'Abreu, Lyonel de Lima, Gomes Freire, Lopo Vaz de Castel-Branco, Martim Affonso de Mello, Diogo Lopes Lobo, Fern„o de S·, Jo„o de GouvÍa, D. Sancho de Noronha, e alguns filhos d'estes, e outras algumas pessoas d'outra condiÁ„o. Mas como quer que estes n„o viessem ·s cÙrtes, posto que fossem t„o grandes pessoas, ellas n„o se leixaram de fazer, nem elles recusaram obedecer inteiramente ·s determinaÁıes d'ellas. Que por aquelle tempo, ainda que os fidalgos muito valessem, n„o era seu valor para contrariar a vontade dos filhos e netos d'El-Rei D. Jo„o, com que o reino e todalas cousas d'elle, por amor e raz„o logo pendiam. CAPITULO XLI _Como o castello de Lisboa foi pela cidade tomado e dado ao Infante D. Jo„o, e o que se n'isso seguiu_ D. Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando seu filho sostinham a parte da Rainha; e porque D. Affonso era alcaide mÛr de Lisboa, tanto que sentiram as voltas da cidade contrairas a sua tenÁ„o se meteram no castello, e com elles alguns fidalgos seus amigos e outra gente de sua criaÁ„o: e comeÁaram logo de poer n'elle grandes avisos de guardas de dia, e vellas e roldas publicas de noite. E os da cidade vendo tal novidade, e sendo certificados de muitas ameaÁas e palavras deshonestas que as vellas contra elles diziam, como sentidos d'isso acordaram de ir combater o castello. Mas o Infante D. Jo„o por evitar escandalos e damnos que se podiam d'isso seguir, por ent„o os impediu; e tomou o cargo de assessegar se podesse esta alteraÁ„o, por meio de D. Maria de Vasconcellos, mulher de D. Affonso, a qual por consentimento, e com seguridade do povo lhe veiu fallar ·s casas da Moeda. Onde o Infante com palavras mui honestas e virtuosas lhe apontou, que por assessego de tantos alvoroÁos e uniıes, quantos na cidade via contra seu marido e filho, fizesse com elles que lhe entregassem o castello, ou consentissem por sua seguranÁa, que o Infante pousasse dentro, e elles tivessem suas forÁas e menagem. D. Maria com este recado se veiu ao castello, e depois de sobre tudo haverem suas praticas e conselhos, ella tornou ao Infante com resposta e determinaÁ„o de seu regimento. A qual brevemente foi elles n„o entregarem o castello, nem receberem outrem n'elle, nem se sahirem d'elle. Verdade È que o pae logo consentira em alguns dos meios apontados; mas o filho por ser mancebo, em que o sangue e pontos de honra ferviam, o houve por abatimento e o estorvou, especialmente porque havia o partido da Rainha que seguiam, por mais esforÁado que o do Infante D. Pedro que contrariavam; e juntamente com isto D. Maria disse ao Infante D. Jo„o: ´Senhor, se vossa mercÍ tanto desejo tem d'haver este castello, n„o sei porque o n„o tem d'haver tambem quantos outros ha no reino; pois est· em vossa m„o, e o podeis fazer, e para certid„o d'isto a Rainha minha Senhora vos envia por mim dizer, que ella È t„o magoada das sem razıes que o Infante D. Pedro contra ella tem feitas, e cada dia ordena, que antes se despoeria a todolos trabalhos e perigos do mundo, que consentir ser elle Regedor d'estes reinos. E que para verdes que o n„o faz por ella desejar para si o regimento, È mui contente que o hajaes vÛs. E para isso renunciar· o direito que n'elle tem; pois sabeis que È todo o que de raz„o e justiÁa se requere. E mais lhe praz que El-Rei nosso Senhor seu filho case com D. Isabel vossa filha: e que d'aqui em diante vos ter· em lugar de padre, para por este respeito e assi por ser j· mulher d'El-Rei vosso irm„o, que vos tanto amou, olhardes por ella e por suas cousasª. O Infante sorrindo-se das derradeiras palavras de D. Maria lhe disse: ´D. Maria, porque vos responda segundo logo comeÁastes, a mim pesa de vosso marido e filho n„o consentirem em alguma das cousas que lhe por vÛs enviei apontar; Deus sabe que eu o fazia por seu bem; se lhes d'isso sobrevier algum mal pesar-me-ha; mas eu sem cargo. E quanto das outras cousas que da parte da Senhora Rainha me dissestes, dizei a sua Senhoria que nunca Deus queira nem querer· que entre os filhos d'El-Rei D. Jo„o, que nas mocidades em tanto amor e concordia se criaram, seja agora semeada tal cizania, porque se desamem e desconcertem; eu haveria temor de Deus e vergonha do mundo, n„o digo acceitar, mas sÛmente lembrar-me d'acceitar o Regimento do reino, em que tivesse dois irm„os mais velhos, e taes para isso, como s„o o Infante D. Pedro, e o Infante D. Anrique. E quanto ao casamento d'El-Rei meu Senhor com minha filha n„o sendo o caso como È, certo seria a maior honra e o mÛr acrecentamento que eu poderia desejar. De uma cousa sede bem certa, que com melhor vontade e menos sentimento meu soffreria ve-la no mundo em uma publica dissoluÁ„o, que Deus n„o queira, que casa-la por tal maneira, contra a honra e vontade do Infante meu irm„o, que me tem e eu lhe tenho mui verdadeiro amor. C· n„o sÛmente erraria a elle, por ter j· n'isso entendido e ser cousa mui razoada, mas ainda desobedeceria · alma e mandado d'El-Rei meu Senhor e irm„o que Deus haja. Cuja vontade, assi na vida como na morte, sabeis que foi este casamento d'El-Rei nosso Senhor seu filho, com a filha do Infante meu irm„o se fazer em toda maneira. E por isso esta È a raz„o que se faÁa, e n„o se deve contrariar. Mas vÛs dizei · Senhora Rainha, que sem isto que me por vÛs manda cometer, me tem sua mercÍ por fiel e certo seu servidor, e lhe peÁo por mercÍ que queira viver como È raz„o, e n„o curar de cousas que a ella nem ao reino n„o cumprem. E vÛs por seu bem e assessego, e com vossa discriÁ„o assi lh'o deveis d'aconselharª. E com isto a despediu. Os da cidade vendo a contumacia e ousadia de D. Affonso, receosos de poder ser com algum fundamento que a elles podesse ao diante trazer damno e perigo, por accordo geral que sobr'isso houveram, foram cercar o castello e o vallaram d'arredor, e lhe pozeram estancias e guardas para que de noite nem de dia n„o entrasse nem sahisse d'elle alguma pessoa, nem os de dentro podessem receber soccorro, aviso, nem mantimentos. E porque D. Affonso e seu filho com sua gente entr·ram no castello de subito, sem percebimento de mantimentos, vendo se apertados da necessidade e perigo, e frouxos de esperanÁa de remedio, leixou o castello ao Infante D. Jo„o com algumas seguranÁas que requereu, e se foi para a Rainha. CAPITULO XLII _Mandou a Rainha velar e afortalezar Alanquer, onde tinha El-Rei_ A Rainha estava em Alanquer, onde tinha El-Rei e seus filhos, como j· disse. E por lhe ser dito que depois do accordo de Lisboa, o Infante D. Pedro se percebia em Coimbra de gentes e armas, e que a fama e rumor era, ainda que falso fosse, para a vir cercar e a levar d'alli e El-Rei ·s cÙrtes de Lisboa; tendo sobr'isso conselho, e n„o tomando o que mais devia, mandou velar, afortalezar e repairar a villa de muros, gentes, armas e mantimentos, e se poz em som de defeza, se tal caso sobreviesse. Com que ·cerca do povo n„o aproveitou, mas damnou muito suas cousas; porque acrecentou e confirmou a muitos a suspeita que se d'ella havia, em esperar para seu socorro e ajuda gentes de fÛra do reino. CAPITULO XLIII _Dissens„o que a Rainha procurou d'haver entre o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique_ Sentindo a Rainha que o Infante D. Anrique, com quanto se mostr·ra sempre a seu serviÁo, seguia acerca do Regimento a parte do Infante D. Pedro. Por causar entre elles suspeita e differenÁa em sua conformidade. Ou por ventura e mais certo, por lh'o fazerem assi crÍr. Escreveu secretamente de sua m„o ao Infante D. Anrique que se n„o fiasse do Infante D. Pedro. Porque elle para haver com menos impedimento o Regimento que procurava, e mais soltamente usar d'elle, como era sua vontade, sabendo que n„o havia no reino de quem esperasse contradiÁ„o, salvo d'elle, soubesse certo que o queria prender, de que sua vida n„o estaria muito segura. E ante que a carta d'este aviso fosse dada ao Infante D. Anrique, que estava em Soure, o Infante D. Pedro, que era em MontemÛr-o-Velho, por meios secretos que trazia, foi d'ella primeiro sabedor. E para preservar a vontade do irm„o, que com tamanha falsidade contra elle em alguma maneira se n„o damnasse, partiu a gram pressa e mui aforrado, e lhe foi fallar, n„o lhe revelando cousa alguma da carta que lhe havia de vir; mas acceitando geralmente seu coraÁ„o, com a firmeza de seu amor e amizade, para os movimentos e desaccordos que se lhe aparelhavam. Pedindo-lhe, que se contra elle viessem a suas orelhas algumas cousas, que a isto contrariassem, que as n„o recebesse em seu juizo, e d'elle cresse que o amava como a si mesmo. O Infante D. Anrique n„o se saltou muito com aquella vinda; porque lhe parecia que os tempos e as mudanÁas d'elles o causavam e requeriam. E porÈm com palavras que em siso e prudencia, e confianÁa n„o desacordaram das do Infante seu irm„o, lhe respondeu e o despediu. A dois dias que o Infante D. Pedro se partiu, chegou Martim de Tavora ao Infante D. Anrique com a carta da Rainha que disse. E como a viu, maravilhado da sustancia d'ella, se foi logo a Coimbra sÛ, onde j· era o Infante D. Pedro. Ao qual mostrando-lhe a carta disse: ´VÍde senhor irm„o o que me escreve a Rainha; mas porque vejaes bem o temor que tenho de vÛs, venho assi percebido e seguro a vossa casa.ª E o Infante D. Pedro rindo-se, e com mostranÁa de grande amor, o abraÁou e lhe disse: ´Senhor irm„o, n„o me espanto taes tempos e taes vontades criarem fruita t„o nova. E porque sabia j· que vos haviam de convidar com ella, sem vo-lo dizer vos fui falar. C· n„o eram a outro fim as cautellas da seguranÁa que vos de mim fui dar; porque ainda que sobre tanta raz„o e firmeza pareciam ent„o escusadas. Sabei que o receio d'este damnamento as n„o escusou. E porÈm a pris„o que vÛs aqui recebereis ser· a honra e amor que de mi sempre recebestes, e me vÛs mui bem mereceis. CAPITULO XLIV _Embaixada dos Infantes · Rainha_ Alli estiveram os Infantes alguns dias, e com elles o conde de Barcellos seu irm„o. E para com mais repouso e menos torvaÁ„o proverem as cousas do reino, se foram ao logar da Pereira, onde accordaram que o conde de Barcellos fosse · Rainha requerer-lhe com razıes ass·s justas e necessarias, que fosse ·s cÙrtes de Lisboa que haviam de ser o derradeiro dia de Novembro. E que se para sua ida e dos seus quizesse alguma seguranÁa, ainda que n„o fosse necessaria, lh'a dariam na fÛrma que apontasse. Partiu o conde de Barcellos para Alanquer, e por seu aviso, no dia que chegou foi ahi com elle seu filho o conde d'Arrayollos, que estando comendo se ajuntaram em sua casa por modo de visitaÁ„o as pessoas principaes que hi eram. O conde lhes estranhou logo com palavras honestas e razıes mui efficazes, os alvoroÁos que na villa faziam de vellas e roldas, e tomamento d'armas aos vassallos, que pareciam comeÁos de guerra, e como cousa feita por errado conselho a fez amansar, e tornar todo a estado pacifico. Foi logo o conde fallar · Rainha, e lhe disse: ´Senhora, os Senhores Infantes meus irm„os e eu, acordamos de eu vir a vÛs para sustancialmente saberdes que para concordia e bom assento dos grandes movimentos e negocios, que ora s„o n'estes reinos, assi do Regimento d'elles, como da cisma dos Papas e livramento do Infante D. Fernando, È mui necessario fazer-se cÙrtes geraes ante do saimento, ·s quaes È bem que El-Rei nosso Senhor e vÛs vades. E elles e eu assi vo-lo pedimos que o queiraes fazer. ´A mim prazera, respondeu a Rainha ir ·s cÙrtes como requereis, se ante d'ellas as cidades e villas do reino revogarem a enleiÁ„o do Regimento que tem feita ao Infante D. Pedro, e elle a renunciar. E mais por quanto alguns fidalgos e outras pessoas por juramento s„o obrigados, assi a mim como a elle, de sosterem a parte que seguirmos, È bem que tudo isto se revogue, para uns e outros poderem livremente dizer e conselhar o que lhes parecer serviÁo de Deus e d'El-Eei meu filho Senhor, e bem de seus reinos. E se isto primeiro assi se n„o faz, eu por alguma maneira n„o irei ·s cÙrtes.ª Com esta resposta assignada pela Rainha se partiu o conde para Coimbra, onde achou sÛmente o Infante D. Pedro. O qual depois de a vÍr, disse: ´A inclinaÁ„o que os povos sem mim e meu requerimento acordaram, elles pois tem o poder se o assi houverem por bem a revoguem. E para isso È mais raz„o e mÛr necessidade que a Rainha v· ·s cÙrtes, onde por ella e por aquelles que seguem sua vontade se poder· acerca d'isso requerer o que lhes parecer direito e justiÁa, e eu o n„o contradirei. C· em caso que quizesse, hi haver· taes pessoas para sostimento de tamanha justiÁa e honestidade, que minha resistencia aproveitaria pouco. E quanto ao juramento de que aponta que releve os que seguem minha parte, seja certa que com verdade nunca se achar· um sÛ, que para tal obrigaÁ„o me seja obrigado, e se alguns o s„o, n„o È por semelhante forÁa, nem contra suas vontades, mas sÛmente por criaÁ„o ou bemfeitoria que de mim tem recebido.ª O conde de Barcellos se foi logo a Guimar„es, onde fez ajuntar D. Sancho, e o Arcebispo de Braga, e Vasco Fernandes, e Martim Vaz da Cunha, e Pero Gomez d'Abreu, e Lionel de Lima, e Alvaro Pirez de Tavora, e Luiz Alvarez de Souza, que segundo geral opini„o seguiam todos a parte da Rainha, e com elles concertou que escusassem sua ida ·s cÙrtes, posto que elle fosse, e que em qualquer forma que a qualquer parte ficasse o Regimento, sempre seria com seguranÁa de suas honras, e esperanÁa de mais seu acrecentamento. CAPITULO XLV _Recado da Rainha ao Infante D. Pedro quando de Coimbra vinha para Lisboa ·s cÙrtes_ O Infante D. Pedro partiu de Coimbra para Lisboa, e com elle ·lem dos de sua casa, Jo„o Gomez da Silva, e D. Fernando de Menezes, e Alvaro GonÁalves de Tayde, e D. Fadrique de Castro, e Fern„o Coutinho, irm„o do marechal, e GonÁalo Vaz Coutinho, meirinho mÛr, e Pero de Lemos, e Jo„o de Tayde, senhor de Pena Cova, e a gente do Bispo de Coimbra, que faziam numero de mil e oitocentos homens de cavallo, e dois mil e seiscentos de pÈ, da qual cousa a Rainha foi avisada, e sendo certificada que o Infante havia de Torres Vedras ir a Alanquer para comsigo segundo diziam levar logo El-Rei ·s cÙrtes, e receosa de assi ser, pelo desviar de tal proposito enviou a elle Anrique Pereira, que o topou em Alfazeir„o, pedindo-lhe ´que na maneira em que ia escusasse sua ida onde El-Rei e ella e seus filhos estavam, assi porque pareceria desacatamento, estando elles t„o sÛs, como por a villa n„o ser capaz de seu aposentamento, e menos bastante para os manter. E que se sua ida assi era necessaria, que se n„o podia escusar, que quizesse ir muito aforrado.ª Como o Infante isto ouviu disse: ´Anrique Pereira, vossa vinda sobre tal caso fÙra bem escusada, e verdadeiramente assi me salteam estes accidentes, que n„o sei que vos responda, sÛmente dizei · Senhora Rainha, que me doem muito estas sospeitas, e porÈm saiba que dos que se mais mostram a seu serviÁo, se deve mais guardar, pois t„o erradamente a aconselham, e mais contra mim que desejo mais de a servir que a nojar. E que n„o fallo no que cumpre ao estado e serviÁo d'El-Rei meu Senhor; porque em desejar de o lealmente servir e amar, n„o darei avantagem a nenhum do mundo. E com este recado se tornou Anrique Pereira · Rainha. Seguiu o Infante sua viagem atÈ o Lumiar, onde a petitorio dos da cidade de Lisboa, que ante de sua entrada quizeram fallar primeiro com elle, sobre-esteve alguns dias. Aos quaes com palavras de grande aguardecimento e mercÍs, tendo respondido, despediu a gente que com elle viera, leixando sÛmente os seus continos e alguns que para as cÙrtes vinham ordenados. Lisboa porque seus accordos eram mui difficeis, e para os particulares n„o havia perfeita auctoridade, deputou doze cidad„os, a que por consentimento de todos o conselho e deliberaÁ„o de todalas cousas de peso, que ent„o occorriam foi comettido. Os quaes juntos sustancialmente accordaram que o Infante fosse logo declarado por Regedor in solido, sem outra ajuda nem companhia, atÈ El-Rei ser em idade de per si o poder reger. E este accordo foi publicado a todo o povo no refeitorio de S. Domingos, onde logo com vozes e signaes de todos foi sem contradiÁ„o approvado e consentido. E os cidad„os enviaram logo ao Infante Pero de Serpa, e Martim «apata, e Ruy Gomez da Gr„, e Jo„o Carreiro a notificar-lhe o accordo passado, e pedir-lhe que ao outro dia quizesse entrar e ser seu hospede, com fundamento, que primeiro havia de prometter e jurar que logo sÛ sem outra companhia nem ajuda comeÁasse uzar do Regimento inteiramente. O Infante depois de lhes aguardecer sua ida e tenÁ„o, lhes disse: ´Amigos, sabei que n'este caso acordastes mais o que quizestes, que o que devieis; porque eu n'elle para o que a mim cumpre tambem n„o posso fazer se n„o o que devo, que È d'este cargo n„o me antremeter assi absolutamente, sem meus irm„os e sobrinhos, e sem os procuradores dos tres Estados que para isso s„o chamados. Porque do contrairo, a uns ser· desacatamento, e a outros causaria escandalo. Pelo qual me parece que a triganÁa para isso n„o È agora necessaria; mas que deveis sobre-ser atÈ as cÙrtes que ser„o logo. E o que n'ellas se accordar e determinar, isso ser· o que se ent„o deve fazer e cumprirª. ´Senhor, disseram elles, essas justificaÁıes de que vossa honestidade se acautella, bem era que cessem assi; mas ellas para este caso j· s„o feitas; porque das cidades e villas, que n'elle h„o de dar voz, aqui temos por suas cartas seus consentimentos. E para o cumprimento de vossos irm„os, aqui tendes vosso irm„o o Infante D. Jo„o que o requere assi e ha por bem. E com os outros j· fallastes, que o n„o contradizem. E por tanto Senhor, vos pedimos que n„o alongueis o que vos t„o justa e devidamente offerecemos. Nem deis causa que de vossa escusa se sigam alvoroÁos e desconcertos de povo, que ser„o depois impossiveis, ou mui trabalhosos de concertar.ª CAPITULO XLVI _Entrada do Infante D. Pedro em Lisboa, e como ante as cÙrtes acceitou o Regimento_ E como quer que da vontade do Infante fosse todavia leixar tudo para determinaÁ„o das cÙrtes. PorÈm vendo-se constrangido dos cidad„os, teve conselho com esses principaes que trazia, dos quaes todos foi aconselhado, que ao outro dia entrasse na cidade e fizesse o que ella lhes requeria, pois o contrairo pelas cousas que eram j· n'isso passadas, n„o contradizia a honestidade nem raz„o. Pelo qual o Infante consentiu no entrar ao outro dia. E defendeu a solemne prociss„o e outros grandes estrondos e cerimonias com que ordenavam de o receber. Mas que seu recebimento fosse sÛmente ao costumado que lhe sohiam fazer sem outra ennovaÁ„o. Ao outro dia entrou o Infante, sendo no caminho recebido do Infante D. Jo„o e de todolos fidalgos e pessoas de conta da cidade com gram prazer e alegria. E assi foi levado ·s casas do Mestre d'Aviz, que est„o junto com a SÈ, onde pousou. E ao outro dia, dia de Todolos Santos, foi ouvir missa · SÈ, onde lhe foi requerido que o juramento que a cidade tinha acordado, elle o fizesse, como logo fez, nas m„os de D. Alvaro d'Abreu, Bispo d'Evora, onde publicamente jurou e prometeu com as m„os postas sobre os Evangelhos e Cruz, de bem e lealmente reger e defender estes reinos em nome d'El-Rei D. Affonso seu Senhor, atÈ ser em disposiÁ„o de os per si poder reger e defender, e que ent„o lh'os entregaria livremente e sem contradiÁ„o nem cautella, e o serviria sempre com amor e lealdade, como bom e leal vassallo. Tardou o ajuntamento das cÙrtes atÈ os dez dias de Dezembro, onde os Infantes com todolos procuradores sendo juntos nos PaÁos d'AlcaÁova, o Infante D. Jo„o se levantou em pÈ e disse que algumas cousas que a todos ali queria propoer por serviÁo de Deus e d'El-Rei, e bem do reino, por n„o estar por ent„o em disposiÁ„o de per si as poder dizer, encomendou ao doutor Diogo Affonso Mangancha que por elle as dissesse, pedindo-lhes que logo o ouvissem. O doutor que era presente, cessando todo o rumor, propoz uma arenga grande e bem dita, cuja sustancia foi aprovar em nome do Infante D. Jo„o, que fÙra bem feito enleger o Infante D. Pedro por sÛ Regedor, contradizendo o accordo e determinaÁ„o das cÙrtes de Torres Novas, em que o Infante n„o fÙra, e de si mostrou com claras razıes, aprovadas por Direito Divino e Humano, e autorizadas por claros exemplos, que mulher n„o devia ter Regimento. Nem que dois em companhia n„o deviam reger; mas um sÛ, e para ser um sÛ devia ser o Infante D. Pedro, e que a Rainha servissem e acatassem todos como era raz„o e o requeria ser mulher e madre de taes dois reis, sangue e virtudes que tinha. Foi por todos geralmente consentido na proposiÁ„o do doutor, e aprovaram sem contradiÁ„o o Infante D. Pedro haver sÛ de reger, de que se fez um accordo que testemunharam quatro notairos que a todo eram presentes, Lopo Affonso e Ruy Galv„o, e Martim Gil, e GonÁallo Botelho, officiaes da camara e fazenda de El-Rei. O qual accordo foi logo por todos alli assignado, salvo pelo conde d'Arrayollos, que se escusou de o assignar, nem chamou depois ao Infante Regente, mas seu nome; como quer que obedecesse a seus mandados inteiramente, e melhor que alguns que o enlegeram e assignaram. Foi isso mesmo acordado que o Infante fizesse como fez, juramento na fÛrma do passado, de reger bem o reino e o entregar livremente a El-Rei, como fosse em edade e disposiÁ„o de o por si reger e deffender. E certo o Infante D. Pedro o fez assi sempre bem, e como devia, que para ser louvado sobre todolos Principes de seu tempo, n„o lhe falleceu se n„o ser Rei; porque em Regedor n„o dava assi as cousas · inteira execuÁ„o que se requeria. E tudo por temperanÁa e assessego do reino, e por evitar escandalos, odios, invejas a que n„o pÙde fugir, c· em fim o encalÁaram com a morte, e com quebra de seu estado, como adiante se dir·. CAPITULO XLVII _NotificaÁ„o do acordo passado · Rainha, que o n„o consentiu_ O Infante D. Pedro por si sÛ, e des-hi os outros infantes, condes e fidalgos e procuradores das cidades e villas que foram presentes, por suas cartas notificaram logo · Rainha que estava em Alanquer, todo o passado, com razıes e fundamentos de serviÁo de Deus e d'El-Rei, e grande descanÁo d'ella. Pedindo-lhe todos com muito acatamento que o houvesse assi por bem e quizesse trazer El-Rei · cidade para lhe ser feita a reverenÁa que lhe todos deviam e desejavam fazer. E para em sua presenÁa se tratarem algumas cousas, que a seu estado e serviÁo, e bem de seus reinos convinham. Com este recado o Infante enviou · Rainha Alvaro GonÁalvez de Tayde, governador de sua casa, homem prudente e bem razoado, e de que muito fiava. A Rainha recebeu a messagem com signaes de grande tristeza, e por conselho dos que com ella eram, sustancialmente respondeu _que se os Senhores Infantes, condes e povo, revogassem a enleiÁ„o do Regimento, que era feito ao Infante, e o dessem a ella como eram obrigados, seria contente levar El-Rei · cidade. E d'outra maneira que o n„o faria_. E ao dar da resposta tomou d'isto estromentos por seu resguardo. Tornou-se Alvaro GonÁalez aos Infantes com esta resposta, e vendo-a contraira a sua determinaÁ„o, acordaram de enviar a ella com a mesma sustancia Affonso Nogueira, que depois foi Arcebispo de Lisboa, e o ministro de S. Francisco, confessor d'El-Rei, como pessoas esprituaes, e de boas conciencias, os quaes como quer que para a commoverem a consentir no passado lhe dissessem causas e razıes para Deus e para o mundo assaz evidentes, ella forÁada por ventura de sua fraca humanidade, ou dos errados conselheiros, que em contrairo tinha ouvido, acusou com palavras mui honestas a si mesma, e a dureza de sua conciencia por o n„o poder fazer. E em fim nem consentiu em o Regimento lhe ser tirado, nem de levar El-Rei, nem dar lugar que fosse por outrem levado a Lisboa, com quanto lhe fossem feitas grandes seguranÁas de logo El-Rei lhe ser tornado, como na cidade estivesse alguns dias. CAPITULO XLVIII _Ida do Infante D. Anrique · Rainha para leixar vir El-Rei ·s cÙrtes, e lh'o tornarem_ Com este recado foram os Infantes mui descontentes, e o povo mui alvoraÁado, e leixadas muitas praticas e tenÁıes que se moveram, finalmente foi acordado que o Infante D. Anrique por derradeiro e principal cumprimento fosse sobre o mesmo caso a ella, como foi. E apartados ambos, o Infante lhe fez uma falla, em que obrou tanto sua virtuosa tenÁ„o e bom proposito com que ia, que demoveu a Rainha ao que desejava. D'onde foi de crÍr, segundo era virtuosa e amiga de Deus, que se conselheiros apassionados a n„o torvaram, ella e sua vida e estado conseguiram outro fim de mais sua honra e descanso. Ao outro dia partiu d'Alanquer o Infante D. Anrique com El-Rei e com a Rainha e Principe, para Santo Antonio, camara do Arcebispado de Lisboa, e o Infante D. Pedro, sabendo que a Rainha n„o resistiria ao Infante D. Anrique, e viria ao que elle quizesse e levava ordenado lhe requerer, se foi de Lisboa a Alverca, d'onde sahiu ao caminho, e com grande acatamento beijou as m„os a El-Rei e · Rainha, como quer que ella se quizera d'isso muito escusar, e assi cheg·ram a Santo Antonio bespora de Natal, onde foi acordado que El-Rei e a Rainha tivessem a festa. A qual passada, os Infantes todos tres foram por El-Rei e por o Principe seu irm„o. Dando primeiro · Rainha seguranÁa por seus assignados, de logo lhe tornarem El-Rei a seu poder, criaÁ„o e governaÁa. CAPITULO XLIX _Entrada d'El-Rei em Lisboa para as cÙrtes_ Veiu El-Rei por agua atÈ Lisboa e foi recebido · Porta d'Oura, e d'alli levado · SÈ e aos PaÁos d'AlcaÁova. Indo El-Rei e seu irm„o e os Infantes sÛmente a cavallo, e os condes e outros senhores foram todos ante elles, e esse recebimento foi com tantas cerimonias d'acatamento, obediencia e alegrias assi celebrado, que em qualquer parte do mundo onde mui altamente recebimentos se costumassem fazer, este fÙra mui muito louvado, e o Infante D. Pedro foi sÛ o que poz El-Rei a cavallo e o deceu. O que n„o sÛmente fez aquelle dia, com assignado acatamento e leal obediencia e grande reverencia, mas sempre depois o continuou e acrecentou, em dez annos que por elle regeu seus Reinos. C· por si o serviu e fez aos outros servir com tamanho cumprimento de seu estado e serviÁo que se n„o pÛde dizer que outro algum Principe fosse melhor criado no mundo, nem ensinado. Mandou logo o Infante D. Pedro a Ruy GonÁalves de Castel-Branco, vÈdor que fÙra d'El-Rei D. Duarte, que fizesse nos paÁos correger em grande perfeiÁ„o a salla em que El-Rei havia d'estar nas cÙrtes. E concordado o dia, que foi aos dez dias de Dezembro de quatro centos e XXXIX, e assentado El-Rei em sua cadeira, e acompanhado de senhores e officiaes, como para auto t„o real convinha e se acostumava, o doutor Diogo Affonso Mangancha propoz a arenga em nome d'El-Rei ao povo, cuja principal sustancia foi: ´aprovar e confirmar a enleiÁ„o por elles feita de o Infante D. Pedro para por elle reger, e agardecer-lhes e prometer-lhes mercÍs, honras e liberdades pela assi fazerem, e assi encommendar ao Infante que o fizesse assi bem e direitamente, como d'elle confiava, e mandar a todos que lh'obedecessem, como · sua propria pessÙaª. E em acabando o doutor, o Infante D. Pedro com os giolhos em terra beijou a m„o a El-Rei, e sua Senhoria lhe entregou logo um p·o em que estava atado o sello secreto, em signal e nome de poderio. E como se deu fim a estas cousas, foi logo El-Rei tornado · Rainha sua madre, segando pelos Infantes lhe fÙra prometido. O Infante D. Pedro na casa das cÙrtes fez logo ajuntar os do povo e alguns do conselho, e sendo entre elles em pÈ, lhes disse com muita gravidade:--´que pelo grande cargo do Regimento que lhe fÙra encommendado, era necessario elle fazer de si outro homemª.--Pelo qual lhe fez alguns avisados amoestamentos, em signal de sua grande bondade e muita prudencia, para os que bem e direitamente vivessem esperassem d'elle em nome d'El-Rei seu Senhor, bem e mercÍ, e assi pena e castigo aos que o contrairo fizessem, encommendando-lhes outrosi que o amassem e lhe obedecessem, e quizessem ajuda-lo e deffende-lo com seus corpos e fazendas, assi como elle faria a elles mesmos quando lhes cumprisse. E principalmente que confiassem d'elle que todo o que fizesse seria afim de bem e justiÁa, em caso que lhes parecesse o contrairo. ¡s quaes cousas lhe foi por um deputado respondido, conforme a sua tenÁ„o e petitorio, e o Infante descobrindo sua cabeÁa lh'o agardeceu. O conde de Barcellos mostrava d'este feito n„o ser contente, e desejoso de haver para si alguma parte do Regimento, e por enfraquecer ao Infante seu poder fez e ordenou certos capitulos em fÛrma de Regimento, que o Infante havia de ter em sua governanÁa. Pelos quaes todolos feitos principaes tirava de seu juizo e os remetia ·s cÙrtes, que cada anno apontava que se fizessem. O qual Regimento mostrado aos procuradores dos povos, houveram por escusado ennovar-se mais do que tinham acordado, e El-Rei aprovado. De que o conde mostrou ser ass·z descontente, e comeÁou logo de requerer a restituiÁ„o da posse do Arcebispado ao Arcebispo D. Pedro seu cunhado; e porque n„o podia ser sem prazer e consentimento dos cidad„os, que d'elle tinham apellado para Roma, o Infante D. Pedro por contentar e assessegar vontades contrairas, e tirar inconvenientes e torvaÁıas a seu regimento, e assi tambem o Infante D. Jo„o, entenderam e trabalharam n'isto muito com diligencias, que pareciam verdadeiras e n„o fingidas. E em fim a cidade por Pero de Serpa seu cidad„o, se escusou de o consentir com muitas razıes, em que pareceu que n„o fallecia serviÁo de Deus, honestidade e muita justiÁa. Afirmando, que todavia haviam de seguir sua appellaÁ„o, durando a qual seria o Arcebispo suspenso, e trabalhariam porque fosse privado, e por esta dureza que os infantes acharam nos cidad„os, pela mais n„o agravar, houveram por bem leixar por ent„o este requerimento, esperando que depois se faria melhor, como fez. De que o conde de Barcellos n„o sÛmente contra os cidad„os, mas contra o Infante principalmente, mostrou grande sentimento, parecendo-lhe que por sua conjuntura e prazer a cidade tinha aquelle esforÁo de resistir. A estas cÙrtes entre as outras graÁas e liberdades que o Infante D. Pedro em nome d'El Rei outorgou ao povo, foi que n„o houvesse aposentadoria em Lisboa, fazendo estados e casas, em que se El-Rei e sua cÙrte podessem alojar; e depois se deu assi a Evora e Santarem. CAPITULO L _De como se apontou e aprovou n„o ser bem El-Rei se criar em poder da Rainha_ Estando j· as cÙrtes e despachos d'ellas em conclus„o para os procuradores se poderem ir, um Jo„o GonÁalvez, procurador da cidade do Porto, com outro seu parceiro se foram · camara de Lisboa, sendo os officiaes d'ella em vereaÁ„o. E cuidando os da cidade que iam despedir-se d'elles, como era de cortesia e custume, Jo„o GonÁalves disse: ´Senhores, a mim e a meu parceiro parece, que vÛs e todolos outros nossos irm„os e parceiros, que em nome do reino a estas cortes viemos, as daes j· por acabadas. E certo muitas cousas, mercÍs a Deus, se concludiram n'ellas; porque El-Rei nosso Senhor È mui servido, e nÛs contentes. PorÈm a principal ficou por requerer e fazer. Sem a qual, todo o que se fez a nosso parecer È nada ou aproveita muito poucoª. Os cidad„os enleados de sua proposiÁ„o, sabendo que era homem d'autoridade, cessaram de suas praticas em que estavam, e seguraram os rostos e as vontades para o ouvir. O qual proseguindo disse: ´Porque concludindo brevemente meu proposito, digo-vos que por se escusarem muitos danos e grandes inconvenientes que se n„o escusam, El-Rei n„o deve ficar em poder da Rainha como est·, e alguns apontarei e os outros mais vÛs por vossa discriÁ„o e saber os entendei. Primeiramente a criaÁ„o d'El-Rei por ser em poder de mulher, È a elle mui danosa, e sempre por isso ficar· fraco e feminado. Que para qualquer homem privado È aleij„o sobre todos, quanto mais para Rei. E se as comparaÁıes n„o fossem odiosas, e isto n„o fosse t„o claro, por exemplos bem vo-lo poderia provar. Outrosi de sua creaÁ„o, por tal maneira est· mui evidente o perigo do Infante D. Pedro Regente, e tambem nosso; porque segundo a Senhora Rainha, isto que acordamos sente por sua deshonra e grande quebra de seu estado, como em suas cartas e protestaÁıes parece claro, n„o È duvidar que criaria El-Rei em odio contra o Regente e contra nÛs, de que ao diante poderia por isso commeter uma grande crueldade, em que n„o haveria remedio. Porque como naturalmente aquellas cousas que os moÁos recebem na tenra edade se lhe emprantam no coraÁ„o e em sua memoria para sempre, esta principalmente se lhe emprantaria muito mais, por lhe ser dita t„o a meude, e com tantas lagrimas. Outro dano È a que se deve atalhar o crecimento de despezas desordenadas, a que as rendas do reino n„o bast·ram. C· umas s„o necessarias ao Regente para manter seu estado e do reino, e outras cumprem de necessidade a El-Rei e a seu irm„o, e outras · Rainha e suas filhas. Com outros inconvenientes que agora s„o escusados apontarem-seª. Aos cidad„os pareceu bem o motivo de Jo„o GonÁalves, e fizeram logo avisar os outros procuradores, que logo · tarde foram hi juntos, onde depois de havidas algumas praticas e altercaÁıes sobre o caso, accordaram que El-Rei e seu irm„o deviam todavia ficar em poder do Infante D. Pedro. Ao qual d'este accordo logo avisaram, pedindo-lhe que o quizesse assi consultar com os Infantes seus irm„os, com os quaes ordenasse que se cumprisse. O Regente depois de ouvir dois cidad„os que a elle sobr'isso foram, lhes respondeu: ´Dizei aos cidad„os e procuradores, que lhes rogo muito que cessem d'este movimento, e n„o me daria persumir-se que eu n'elle cabia por principal, se fÙsse devido e necessario; mas eu o digo assi, porque na verdade ei por muito melhor ficar El-Rei meu Senhor e seu irm„o em poder de sua madre, que no meu. Assi por satisfazer a sua consolaÁ„o e contentamento como È raz„o e est· concordado, como tambem por mais minha seguranÁa e descargo, e sua Senhoria moÁo È, e sujeito como todos a enfermidades e casos mortaes, de que fallecendo, o que nosso Senhor n„o queira e o defenda, È certo que seria com grande minha tristeza e muita pena, e a mim poderiam dar a culpa de sua morte, e d'hi ·vante eu com este cargo tenho tantas cousas em que entender, que a essa n„o poderia satisfazer como a ella requere e È raz„o; e que podesse, sabei que queria fugir aos odios dos aios, que eu com tal cargo n„o posso escusar, especialmente refreando El-Rei e seu irm„o em cousas a que sua mocidade os inclinar·, em que por ventura mereceram mais emmenda e reprens„o que louvor.ª Os cidad„os lhe replicaram: ´Senhor, quem vos bem conhece e vosso justo juizo e grande saber, sem errar vos pÛde dizer que d'outra maneira o entendeis, do que o fallaes. E por tanto isto que vos propozemos È assi em nÛs todos t„o determinado para se cumprir, como o mais que fizemos. C· se o passado foi proveitoso, n'isto ha proveito e necessidade; porque n„o È raz„o, nem queira Deus que um t„o alto Principe como È El-Rei nosso Senhor, e que em t„o pequenos dias nos d· de si tantas esperanÁas de bem entendido e virtuoso, seja assi creado em tanto aleij„o, como È a criaÁ„o em poder de mulheres. Antes pois em vÛs para isso ha tantas razıes, È raz„o que o crieis e faÁaes ensinar em letras e reaes costumes, e o leveis ao monte e · caÁa, e lhe mostreis por vÛs o exercicio das armas, e por exemplos e doutrina, e merecimentos da cavallaria. E assi as outras cerimonias, manhas, e cousas que ao estado de um tal Principe convÈm, assi para os tempos publicos, como secretos, e com isto elle È de t„o s„o e perfeito entender, que conhecer· que o servis bem e lealmente. E por isso vos amar· e far· aquelle acrecentamento e mercÍ, que lhe prazendo a Deus merecereis.ª O Regente acalÁado n'este caso da necessidade e raz„o de que se n„o sabia escusar, disse: ´que se fallasse aos Infantes seus irm„os, e o que elles accordassem por melhor, elle o seguiria.ª Aos quaes por os procuradores foi logo fallado, e assi aos condes e ·s outras pessoas d'estima que eram na cÙrte. E por todos finalmente foi accordado: ´que pospostas todalas cousas e assento passado, El-Rei ficasse em poder do Regenteª. O que em pessoa lhe foi logo assi notificado. O qual disse: ´Certo n„o por resistir a vosso conselho e determinaÁ„o, a que folgarei sempre de obedecer. Mas a mim parece que n'este caso o melhor ser· que a Senhora Rainha e eu andemos pelo reino juntamente, de que se seguir· que sua Senhoria criar· El-Rei meu Senhor seu filho, e eu vÍ-lo-hei e servirei nas cousas que apontaes, quando fÙr necessario. E prazendo a Deus, eu o farei por maneira, e com tanto prazer e contentamento d'ella, que sua Senhoria ter· raz„o de conhecer de mim a verdade de que sempre duvidou, e perder· com isso alguns queixumes e escandalos que sem causa lhe fizeram ter contra mim.ª E louvando todos aquelle parecer, se foram com elle · Rainha, que ainda era em Santo Antonio, · qual pelo Infante D. Pedro e por os outros Infantes foram mui verdadeiramente ditas todalas cousas e razıes que no caso havia para o haver de seguir. Mas ella finalmente n„o quiz, salvo que lhe ficasse a governanÁa da fazenda juntamente com a criaÁ„o de seus filhos, referindo-se ao accordo das primeiras cÙrtes. E que se das rendas para serviÁo d'El-Rei se houvesse alguma cousa despender, que fosse por sua autoridade e mandado. E como quer que pelos Infantes lhe fossem apontados muitos pejos e inconvenientes para assi n„o poder ser, e lhe pedissem que quizesse haver por bem o que accord·ram, a ella n„o prouve. E os Infantes vendo sua determinaÁ„o, se despediram d'ella para ainda consultarem se se acharia algum bom meio com que ella ficasse contente. CAPITULO LI _Como a Rainha teve pratica com os seus principaes sobre a ida dos Infantes a ella e como se foi a Cintra e leixou El-Rei e seu irm„o_ Partidos os Infantes, a Rainha a esses principaes que com ella eram notificou logo os apontamentos de sua vinda. E assi a conclus„o com que ficara, e quiz d'elles saber o que lhes parecia, dizendo: ´N„o pode ser mÛr angustia da que meu coraÁ„o tem n'este caso. C· de uma parte o sentimento e nojo que tenho do Infante D. Pedro me faz desejar n„o haver cousa no mundo para o poder vÍr, e d'outra segundo o que sinto, isto È j· quasi privarem-me de meus filhos. Cuja natural piedade e grande amor que lhes tenho, me constrange n„o os leixar. Especialmente me obriga muito parecer-me que segurarei com a graÁa de Deus suas pessoas, de que teria mÛr esperanÁa, e com menos receios, que de andarem sem mim em poder do Infante D. Pedro. O qual segundo j· descobre sua grande cubica para reinar, quem duvidaria que para o fazer mais livremente, n„o lhes encurtara mais cedo as vidas. E n'elle ha muitas dessimulaÁıes e hipocresias com que tudo saber· mui bem encobrir. Assi que n'estes dois tamanhos extremos n„o sei qual meio tome, ou ter meus filhos e andar com elles por sua seguranÁa, e ir com o Infante · melhor parte sem outro encarrego, ou leixa-los de todo · disposiÁ„o de Deus que os guarde, e da fortuna boa ou m· que lhes pode vir. O primeiro d'estes bem sinto que È um bom desejo da alma, a que por ventura consirando tudo sem paix„o eu devia ser mais conforme. O segundo È apetito do corpo e da honra, em que sinto tamanhas forÁas, que me inclinam a elle de todo, e n'esta tamanha diferenÁa e torvaÁ„o a que meu juizo n„o abasta, quero saber de vÛs o que vos parece.ª. Os quaes responderam, dizendo: ´Senhora, esta derradeira È a melhor determinaÁ„o que podeis ter, e o vosso coraÁ„o para qu„o real È, n„o deve soffrer andar sobjeita em poder de um homem vosso imigo, e que segundo o desamor que vos tem, vos far· cada dia mil nojos e abatimentos, e a nÛs outros que vos servimos, como desesperados d'elle em todo bem e mercÍ, ser· raz„o que nÛs vamos ·s judarias ou fÛra do reino, pois havemos ser d'elle pior tratados que judeus. O que n„o deveis haver por pequena dÙr e vituperio vosso, e com isto bem sabeis que ha n'elle praticas e cautellas, para com todo mostrar ao povo que o faz muito pelo contrairo; porque elle n„o ha mais mester que favor de vill„os que o tem por idolo. Pelo qual nosso conselho È, o com que despedistes os Infantes, n„o aceitardes a criaÁ„o de vossos filhos sem governardes toda a fazenda, e que pois haveis de ser agravada, que o sejaes de todo, principalmente pois sabeis que a emmenda d'isto se apressa, e n„o pode j· tardar muito. E pelo que ora vossos irm„os vos escrevem de Castella, e assi de Portugal o Priol do Crato e o Marechal, e os outros fidalgos que defendem vossa querella, o podeis mais claramente vÍr e afirmar, e para seguranÁa de vossos filhos, sob reverenÁa de vosso juizo, È muito pelo contrairo. C· para o Infante D. Pedro cumprir seu m·o proposito, se o tem de acabar vossos filhos, sabei que vossa presenÁa È mais azo, e a melhor encuberta que para isso pode ter. E por ventura o far· mais levemente, e com menos temor em vosso poder que no seu. E nas enculcas e espias que j· agora traz comvosco, de que sabe aqui n„o sÛmente o que fallaes, mas o que cuidaes, podereis conjecturar se para tal caso achar· ministros. Assi que leixai-lhe todo o Regimento, e os filhos juntamente atÈ que Deus queiraª. N'este conselho contrariou com razıes mui vivas Pero LourenÁo d'Almeida, AlmotacÈ MÛr do reino, que era presente, desfazendo · Rainha e aos outros conselheiros com fundamentos mui claros as esperanÁas que tinham de seus irm„os em Castella, e assim dos fidalgos de Portugal. Pedindo-lhe que quizesse acceitar o meio que os Infantes lhe tinham apontado, que segundo a disposiÁ„o do tempo houve por bom. Mas como a vontade da Rainha, e assi a dos outros estavam para o contrairo determinadas, n„o aprovaram o conselho de Pero LourenÁo, reputando-lhe n„o a siso mas a fraqueza por se n„o sahir de sua casa e boa fazenda que tinha em Lisboa. Pelo qual a Rainha determinou partir-se e leixar seus filhos, e levar sÛmente as filhas comsigo. Isto se passou em Santo Antonio a um sabbado, e logo ao domingo a Rainha mandou chamar secretamente alguns seus de Lisboa, que vieram hi dormir. E passada a meia noite ouviu missa, e fez alevantar os filhos da cama, e tomou El-Rei nos braÁos, e com muitas lagrimas lhe disse: ´Filho e Senhor, praza a Deus por sua piedade que vos guarde e vos dÍ vida, e a mim n„o leixe viva e desamparada de vÛs, como o sou d'El-Rei meu Senhor vosso padre.ª E com isto se despediu com tamanho pranto seu e de todos, como se os leixaram soterrados para os nunca mais vÍr. El-Rei salteou-se com tamanha novidade, e posto que para isso n„o teve edade de que se esperasse tamanho accordo, n„o lhe falleceu natural prudencia e discriÁ„o com que n'aquella hora, com grande repouso e seguranÁa, e por palavras doces e avisadas, soube confortar a Rainha sua madre, que se partiu para Cintra, de que o aviso foi logo a Lisboa, e o Infante D. Anrique como o soube se partiu a gram pressa pela alcanÁar no caminho, e j· n„o pÙde sen„o no logar d'onde a n„o pÙde mover de seu proposito, e o Infante D. Pedro e o Infante D. Jo„o foram logo a Santo Antonio e trouxeram El-Rei e o Principe seu irm„o a Lisboa, onde a cada um deram casa com seus officiaes apartados, porque atÈ alli se serviam ambos juntamente, e n'estes movimentos foi tanta a prudencia e resguardo d'El-Rei, que sendo de t„o pequena edade, e tendo tanto amor e affeiÁ„o · Rainha sua madre, como era raz„o, nunca por se vÍr d'ella apartado foi ninguem que n'elle contra o Infante podesse conhecer algum signal de m· vontade. Nem que reprendesse ou louvasse os feitos de um nem do outro, nem com seu escandalo. CAPITULO LII _Como Lisboa commetteu de querer fazer uma estatua ao Infante D. Pedro pelo beneficio do relevamento das aposentadorias, e do que lhe respondeu_ Os procuradores do reino com isto acabado se foram, e os cidad„os de Lisboa por memoria da mercÍ e liberdade que lhes o Infante em nome d'El-Rei fizera, quando lhes tirou as aposentadorias, como j· disse, lhe quizeram com seu consentimento ordenar uma estatua de pedra sobre a porta dos Est·os, que o Infante novamente mandou fazer, e perguntando-lhe em que fÛrma a haveria por melhor que estivesse, o Infante com o rostro carregado de tristeza e pensamento, o desviou e defendeu, dizendo-lhes, como por verdadeira prophecia de sua fim: ´Se a minha imagem alli estivesse esculpida, ainda vir„o dias que em galard„o d'essa mercÍ que vos fiz e d'outras muitas que com a graÁa de Deus espero de vos fazer, vossos filhos a derribariam, e com as pedras lhe quebrariam os olhos. E por tanto Deus por isso me dÍ bom galard„o, c· de vÛs em fim n„o espero outro se n„o este que digo, e por ventura outro pior.ª Das quaes palavras foram ent„o os cidad„os t„o maravilhados, como foram depois certificados que dizia verdade, quando assi o viram cumprir. E seguiu-se mais depois, para se presumir que o Infante alguma revelaÁ„o tinha de sua morte, que em Coimbra indo elle quando regia, e o Infante D. Anrique para a porta de S. Bento, que sae · ponte onde est„o as armas da cidade, que s„o uma mulher posta sobre um calez, com uma corÙa na cabeÁa, e a uma teta um le„o, e a outra uma serpe, o Infante D. Anrique olhando-as, disse pelo contentar: ´Bem se pÛde Senhor Irm„o comparar a vÛs esta figura, pois tambem de uma parte daes mantimento ao le„o, que È Castella, e da outra a Portugal, que È a serpe do nosso timbre.ª ´Verdade È, disse o Infante D. Pedro; mas vÍde-a melhor, e consirae que est· sobre calez, que significa sangue, em que mais claro parece, que de meus trabalhos, serviÁos e beneficios, esse ha de ser meu galard„o.ª E certo, com quanto este Principe era mui catholico, devoto e justo, e em que havia muitas outras virtudes, assi se seguiu como ao diante se dir·. CAPITULO LIII _Como a Rainha sobre suas cousas se querellou aos Infantes d'Arag„o seus irm„os, e da embaixada que enviaram_ A Rainha como dos effeitos da esperanÁa que tinha, e lhe davam para reger, comeÁou de se vÍr no reino enganada, dobrou-se n'ella o desejo de seu proposito. E por um modo j· de victoria e vinganÁa, assi no reino como fÛra d'elle, para cobrar o Regimento dobrou suas forÁas e deligencias, para o qual enviou notificar e se queixar aos Infantes d'Arag„o e · Rainha de Castella seus irm„os, como por forÁa lhe tiravam o Regimento, e a titoria de seus filhos. E assi o aggravo e abatimento que n'isso recebia, fazendo-os participantes na injuria do caso pelos mais obrigar e acender para o que desejava, crendo ella que por serem j· retornados em Castella, logo teriam o poder onde tivessem a vontade, e que com seu receio em Portugal se n„o faria a cousa em que elles recebessem descontentamento. Mas os Infantes seus irm„os sabendo a pouca firmeza e seguranÁa que tinham em Castella, e que lhe n„o cumpria fazer por ent„o novas alteraÁıes contra si, tomaram a parte mais branda, e enviaram aos Infantes d'estes reinos com sua embaixada um D. Affonso Anrique, bisneto d'El-Rei D. Anrique, que da sua parte com palavras honestas lhes rogou em sustancia ´que sobre a determinaÁ„o das primeiras cÙrtes n„o fizessem com a Rainha sua irm„ alguma outra enovaÁ„o.ª Ao qual os Infantes responderam ´que · Rainha n„o era feita injuria nem desserviÁo, nem lhe tiravam sen„o cuidados e trabalhos, a que suas forÁas por ser mulher n„o abastavam, e cargos de conciencia, o que ella devia querer; porque o Regimento do reino a ella de raz„o e direito n„o pertencia. E a quem direitamente convinha e o saberia e poderia fazer o tinham dado.ª Com esta resposta se houve D. Affonso por despachado, e se foi a Cintra por vÍr a Rainha. E posto que fosse homem de grande linhagem, n„o havia porÈm n'elle aquelle tento, discriÁ„o e prudencia, que a pessoa de tal cargo pertencia. Porque em lugar de poer a vontade da Rainha em bom assessego e temperar suas paixıes, acendeu-lh'as muito mais com esperanÁas v„s, que lhe deu de ser por forÁa, e com ajuda de seus irm„os restetuida e vingada. Offerecendo-se para o caso com gentes de cavallo e de pÈ, como principal capit„o do reino, e para logo a vir servir n„o tomou largo prazo. E com estes enganos em que a Rainha levava gloria, tirou d'ella prata dinheiro, e tornou-se para Castella onde deu resposta aos Infantes. Os quaes, porque suas cousas n„o estavam em desejada seguranÁa para fazer movimentos, ao menos por n„o parecer que desamparavam de todo os feitos da Rainha sua irm„, tornaram a enviar ao Infante D. Pedro e aos Infantes seus irm„os um Dai„o de Segovia, pedindo-lhe com palavras mansas e honestas que guardasem · Rainha o acatamento e reverencia que ella merecia, e lhe tivessem aquelle amor que deviam. De que os Infantes foram mui contentes depois em todo ao cumprir, para o qual encommendaram ao Dai„o que fosse fallar com ella para que quizesse repousar a vontade, e n„o dar causa a boliÁos, de que tanto mal se podia seguir; porque com isso ella seria servida e acatada, como se El-Rei seu marido fosse vivo. O Dai„o lhe foi fallar e a aconselhou, dizendo-lhe ´que por quanto os feitos de seus irm„os n„o estavam em Castella n'aquelle assessego que convinha para n'elles de certo remedio ter firme esperanÁa, que em tanto temperasse e dessimulasse c· a seus negocios o melhor que podesse; porque concertados os dos Infantes em Castella, em Portugal se faria dos seus o que ella desejava.ª CAPITULO LIV _De como se entendeu na redempÁ„o do Infante D. Fernando, e do que se seguiu_ E porque n„o pareÁa que a redempÁ„o e soltura do Infante D. Fernando, depois da morte d'El-Rei seu irm„o se esqueceu, È de saber, que com todalas mudanÁas e divisıes passadas entre a Rainha e o Infante D. Pedro, sempre d'elles foi muito lembrada e negociada, cuja deliberaÁ„o foi muitas vezes aos mouros cometida por grande somma de dinheiro ou de captivos, e por outras maneiras. Nas quaes elles n„o quizeram nunca entender, e se mostravam que entendiam, logo se mudavam em outras sentenÁas, afirmando-se finalmente que lhes dessem Ceuta segundo fÛrma do contrato que o Infante D. Anrique e os outros capit„es do palanque de Tangere com elles fizeram. Pelo qual a Rainha e o Infante D. Pedro ante de seus desvairos, por se satisfazer ao Infante D. Fernando e cumprir a vontade d'ElRei D. Duarte, que em seu testamento o leixara muito encommendado, determinaram com os do conselho, e houveram por bem, que pospostas amoestaÁıes do Papa e conselhos de muitos Principes christ„os que o contrariavam, que Ceuta todavia se desse por elle, e sobre isso passaram em nome d'El-Rei as cartas e procuraÁıes necessarias, assignadas por ambos, com as quaes foram por embaixadores Martim de Tavora, reposteiro mÛr d'El-Rei, e o licenceado Gomes Eanes, desembargador na casa do civel. E em chegando a Arzilla acertou-se que morreu «alabenÁala, que fÙra senhor de Ceuta ao tempo que se tomou, e a este tempo era alcaide de Tangere e Arzilla, com o qual os ditos embaixadores haviam de tratar. Depois de sua morte ficou seu irm„o Muley Buquer portector do filho maior do dito «alabenÁala, o qual seu filho tambem por dependencia do mesmo caso do cerco de Tangere era captivo, e fÙra dado por arrefens em Portugal. E querendo os embaixadores entender com elle no negocio, certificando-o da abastanÁa do poder d'El-Rei que para o caso levavam, elle se escusou dizendo: ´Christ„os, sabei que Ceuta È tamanha cousa, que em quanto D. Fernando conde de Villa Real, capit„o d'ella fÙr terceiro para a entregar, nunca crerei que vÛs trazeis desejo d'alguma certo conclus„o, c· por elle n„o perder tal senhorio com tanta honra como agora em Ceuta tem, bem sei que mostrando que n„o desobedece a vosso Rei e seus governadores, sempre buscar· corados achaques e cautellas para a nunca entregarª. E depois de os embaixadores lhe desfazerem com razıes sua opini„o e haverem entre si sobre o caso muitas altercaÁıes, finalmente se concordaram ´que Muley Buquer notificasse a vinda dos embaixadores a Muley Buzaceri, Rei de Fez, em cujo poder o Infante estava, e que se n'este feito desejava boa conclus„o, que tornasse o Infante a Arzilla, e como alli fosse, se o conde D. Fernando logo por elle n„o entregasse Ceuta como era concordado, que ent„o se teriam outros meios com que sem escusa se fizesseª. D'esta conclus„o foi o mouro contente; sÛmente disse ´que emquanto elle n'isto entendia, elles se viessem a este reino e com El-Rei procurassem que da sua tornada em Africa viesse logo com elles outra pessoa, e com taes provisıes a que Ceuta logo se entregasse e tirasse do poder o condeª. Com este apontamento se tornaram os embaixadores, e por acharem a Rainha e o Infante D. Pedro no meio dos mÛres desvairos sobre o Regimento, sobre-esteve o negocio atÈ sem contenda se dar inteiramente ao Infante como j· disse, o qual ouviu logo os ditos embaixadores em conselho, onde foi determinado por algumas causas em que se fundaram, mais de piedade do dito Infante que de honra do reino, que Ceuta sem mais debate se desse por elle. E por quanto a duvida de Muley Buquer, quando lhe pareceu que o conde D. Fernando, por n„o perder tal governanÁa retardaria a entrega de Ceuta se houve por razoada, acordaram que a D. Fernando de Castro, Governador da casa do Infante D. Anrique, e a D. Alvaro seu filho, a ambos e a cada um fosse entregue a cidade, e n'ella estivessem para a darem, e receberem por ella o dito Infante, e que a este reino se viesse o conde D. Fernando, a quem se daria por a capitania e governanÁa d'ella sua dina satisfaÁ„o, e que Martim de Tavora e o licenceado estivessem por negoceadores em Arzilla. D. Fernando de Castro era homem de nobre sangue, prudente, e de grande conselho, e tinha boa fazenda; e porque houve este encargo por de muita honra para si e sua linhagem, ordenou sua ida para o mar e para a terra, o mais perfeita e honradamente que pÙde. Especialmente o moveu a isso com maior cuidado e diligencia levar esperanÁa que o Infante D. Fernando havia de casar com uma de suas filhas, de que estando em Fez lhe enviara sua certid„o, consirando que seu conselho e auctoridade lhe podia por isso em sua deliberaÁ„o muito aproveitar, e D. Fernando para o mais obrigar havendo sua soltura por certa, lhe levava feitos · sua custa todolos corregimentos que para a pessÙa, cama e mesa de um tal Princepe eram pertencentes. E assi levava navios sobresalentes para o Infante e o conde, e os moradores de Ceuta n'elles se virem, alÈm d'outros em que para sua seguranÁa levava mil e duzentos homens, entre os quaes iam muitos fidalgos e gentis homens da casa d'El-Rei e dos Infantes, e com tudo prestes, partiu D. Fernando de Lisboa no mez d'Abril de mil e quatrocentos e quarenta e um, com vento de boa viagem. E indo os navios de sua companhia espalhados pelo mar: alÈm do Cabo de S„o Vicente, acertou-se que uma carraca de Genoa, que andava d'armada, veiu demandar e afferrar o navio em que o dito D. Fernando ia, o qual como quer que logo por razıes d'amizade e depois com armas e grande esforÁo quanto foi possivel se defendesse, finalmente o navio com a mais forÁa da carraca foi entrado e roubado, e D. Fernando acabou n'elle sua vida de uma bombarda, e os genoeses achando-se com tal rica presa, receiosos da emmenda, porque a outra frota j· vinha sobr'elles, meteram suas vellas e tomaram o mar por sua salvaÁ„o. E quando os outros navios da conserva acudiram sobre o navio do capit„o e o acharam morto, vendo que a vinganÁa de sua morte j· n„o estava em seu poder, tornaram-se a Tavila, onde em S„o Francisco enterraram seu corpo, com assaz honra e lagrimas. D. Alvaro seu filho a que a capitania e negocio do Infante ficava encommendada, sem alguma mais detenÁa se foi d'hi a Ceuta, d'onde escreveu ao Regente o triste caso passado, pedindo-lhe ordenanÁa e provis„o para o futuro. E posto que ent„o fosse mancebo, por haver n'elle muita discriÁ„o, foi-lhe respondido com abastante commiss„o para o acabar como D. Fernando seu pae: mas Lazaraque-Martin governador d'El-Rei de Fez, n„o sÛmente n„o deu logar que o Infante fosse tirado de Fez para Arzilla, ou para algum outro poder, como por Muley Buquer lhe fÙra j· requerido, mas ainda quando depois soube que a vontade d'El-Rei e do Regente era que todavia Ceuta se desse, e que o conde D. Fernando se fosse, para que D. Alvaro de Castro com poderes abastantes era vindo, disse ´que era contente se lh'a entregassem primeiro, e que para seguranÁa dos christ„os, elle por Mafamede e por sua Lei faria juramento, em que como d'ella fosse apoderado, logo entregaria o Infante D. Fernando, e que esta era seguranÁa assi abastante e segura para os christ„os, que com ella n„o deviam ter d'elle receio nem sospeita algumaª! Mas porque sua fianÁa por suas maldades, pouca verdade e tirania, se houve por duvidosa, n„o foi raz„o acceitar-se seu meio. E como quer que outros muitos seguros meios e mui razoados lhe fossem apontados, nunca em algum d'elles quiz condescender. E o que de sua contrariedade e contumacia se pÙde n'este caso verdadeiramente entender, foi que claramente lhe pesava entregar-se Ceuta aos mouros, e nos modos que sempre teve para se n„o acabar pareceu mui claro que a causa d'isto era, porque com a necessidade da guerra de Ceuta ocupava assi os sentidos do povo infiel, que lhe n„o dava lugar acabarem de poder entender e remediar os grandes males de sua tirania. Da qual cousa sendo o Regente certificado, havendo a negociaÁ„o por escusada, mandou a D. Alvaro e aos embaixadores que se viessem ao reino, como vieram, com fundamento de se consultar algum outro remedio para a deliberaÁ„o do Infante. A qual como quer que o Infante D. Pedro, segundo suas mostranÁas e continuas diligencias, pareceu que sobre todalas cousas desejava, nunca porÈm sobre ella se apontou e requereu meio por evidente que fosse, que podesse vir a effeito. CAPITULO LV _Como a Rainha D. Lianor se partiu de Cintra para Almeirim contra vontade d'El-Rei e dos Infantes, e como se El-Rei foi a Santarem, e do que se seguiu_ A Rainha D. Lianor era em Cintra, e por lhe parecer que o Infante D. Pedro tinha alli taes guardas e avisos em sua casa, que para seus negocios era quasi privada de sua liberdade, sendo para isto induzida dos que seguiam sua vontade, e principalmente do Priol do Crato D. Frei Nuno de Goes; determinou para com mais licenÁa e mÛr seguranÁa enviar e receber recados, assi de Portugal como de Castella, de se ir como foi para Almeirim, junto com Santarem. Do que aos Infantes muito desaprouve; porque sentiam que taes mudanÁas n„o eram por serviÁo d'El-Rei nem bem e assessego do reino, e para haver alguma mais causa e raz„o de as temperar, accordaram que El-Rei se fosse como foi logo a Santarem; porque estando t„o acerca da cÙrte haveria menos disposiÁ„o e mais receio de tratarem com ella e a moverem a mais alvoroÁos. E d'alli enviou logo o Infante D. Pedro · Rainha o doutor Vasco Fernandes, pedindo-lhe por mercÍ que assessegasse o corpo e o coraÁ„o no reino, em que seria servida e acatada como era raz„o, e n„o ouvisse m·os conselheiros que a moviam para cousas que eram muito dano de sua alma, e grande quebra de seu estado, e assi o Infante em nome d'El-Rei mandou publicamente deffender a alguns fidalgos e outras pessoas que se logo juntaram com a Rainha, que sob graves penas a n„o conselhassem nem induzissem para o contrairo do que cumpria ao bem, paz e assessego de seus reinos, de que os mais por serem confiados em suas esperanÁas v„s, faziam pouca estima. O Infante D. Pedro com quanto sabia que no reino havia pessoas principaes a elle contrairas, e que sostinham e favoreciam a parte da Rainha; porÈm todo seu receio causavam os Infantes irm„os da Rainha, que a este tempo eram retornados em Castella, e a governavam juntamente com a pessoa d'El-Rei, especialmente porque depois de a Rainha ser em Almeirim, foram suas cartas tomadas em Punhete e trazidas ao Infante, em que pareceu que apertava muito com seus irm„os que fizessem a estes reinos mostranÁa de guerra, e n„o geralmente a todos; mas sÛmente ao Infante, e a aquelles que contradiziam seu Regimento; porque com o temor d'isso, o povo por ventura revogaria o Regimento ao Infante, e o dariam a ella; mas o Infante crendo que assi fosse, e para lhes em alguma maneira melhor resistir e impedir seu poder, trabalhou de se liar com o Condestabre D. Alvaro de Luna, e com o Mestre d'Alcantara D. Goterre, que eram ambos liados contrairos aos Infantes, e tinham o favor d'El-Rei e muito poder em Castella. CAPITULO LVI _LianÁa do Infante D. Pedro com o Condestabre e Mestre d'Alcantara de Castella, contra os Infantes d'Arag„o, e das ajudas que lhe deu_ E para melhor entendimento d'este passo È de saber, que no tempo que El-Rei D. Jo„o o segundo reinava em Castella, era Condestabre este D. Alvaro de Luna, homem abastado de saber e malicia, com pouco temor de Deus. O qual se soube assi haver, que em todalas cousas ora redundassem em seu acrecentamento, ora em destruiÁ„o e dano d'outros, El-Rei satisfazia sempre a sua vontade. E porque os Infantes filhos d'El-Rei D. Fernando d'Arag„o, que ent„o prosperavam em Castella por sua autoridade e valor, contrariavam as execuÁıes de seu desordenado e m·o desejo, por elle ter mais soltura para obrar o que queria, assi trabalhou com El-Rei que os desamou grandemente e lanÁou fÛra do reino. E porque o Condestabre depois fez fazer individamente algumas cruezas e desterros contra muitos grandes do reino, e parecia que El-Rei vivia em sua sobjeiÁ„o, era de todos mui desamado, pelo qual alguns grandes ordenaram e trataram que os Infantes retornassem outra vez como tornaram em Castella, e que o estado e pessoa d'El-Rei se governasse por elles, e o Condestabre fosse como foi fÛra da cÙrte. Outrosi porque o Mestre d'Alcantara D. Goterre por engano tomara a villa d'Alcantara, e por forÁa o Mestrado a D. Jo„o Souto Maior seu tio, que era Mestre e feitura dos Infantes, e prendeu n'ella o Infante D. Pedro, irm„o dos Infantes. Era pÙr isto em grande odio a elles, que com suas forÁas procuravam em todo sua destruiÁ„o, os quaes Condestabre e Mestre d'Alcantara, por ambos serem tocados de uma necessidade e temor, ambos entre si e suas terras e gentes tomaram uma lianÁa e remedio para o resistir como o fazÌam, e sentindo assi isto o Infante D. Pedro, por enfraquentar o poder dos Infantes, enviou por seus messegeiros secretos offerecer contra elles o favor e ajudas d'estes reinos ao Condestabre e Mestre. O que elles mui alegremente receberam; porque conheceram que o Infante n„o tanto por aproveitar a elles, como por a mesma sua necessidade se movia a isso. Pelo qual muitas vezes lhe requereram depois ajudas e soccorros contra os Infantes, e elle por accordo e conselho dos principaes d'estes reinos lh'o deu algumas vezes assaz poderosamente, havendo primeiro consentimento e autoridade d'El-Rei de Castella, para sem quebrantamento das pazes que tinham o poder direitamente fazer. Porque com quanto El-Rei era em poder e governanÁa dos Infantes d'Arag„o, o Condestabre por suas astucias e maneiras, sempre trazia em sua cÙrte e camara taes pessoas, que secretamente requeriam a El-Rei todo o que compria por seu favor e amparo. Ao que El-Rei pela grande affeiÁ„o que lhe tinha, folgava muito de satisfazer, e enviou para isso ao Infante D. Pedro mui autenticas aquellas provisıes que sentiu ser necessarias, por cuja virtude o Infante em favor do Mestre d'Alcantara, e contra a tenÁ„o do Infante D. Anrique Mestre de Santiago, enviou a Castella por vezes e tempos, muita gente abastecer Magazella e BemquerenÁa, fortalezas do Mestrado d'Alcantara, e assi tomar a villa de Salanqua, que estava pelo Infante D. Anrique, e por outra vez enviou outrosi muita gente d'estes reinos a Andaluzia, em ajuda e soccorro do Condestabre, e em desfavor e dano do mesmo Infante D. Anrique, e lhe tomaram Carmona com seu grande destroÁo. E outra vez a requerimento d'El-Rei D. Jo„o, quando cercou os Infantes em Olmedo, lhe enviou o Infante D. Pedro em sua ajuda muita e mui nobre gente d'estes reinos, e por capit„o principal seu filho primogenito o Senhor D. Pedro, que depois foi e morreu intitulado Rei d'Arag„o. E segundo a universal opini„o dos que n'este caso s„mente entenderam, se creu que segundo os Infantes eram amados em Castella, se n„o tomaram assi claramente o Infante D. Pedro por contrairo, e n„o se pozeram em mostranÁas de o guerrear e destruir, como mostraram, e o Infante n„o impedira seu poder, que seu valor e prosperidade d'elles n„o descahira em Castella como descahiu, nem a Rainha D. Lianor sua irm„, enganada de suas promessas e esperanÁas impossiveis, n„o acabara sua vida em desterro com tanta necessidade e tristeza, e t„o individa a suas bondades e estado, como ao diante se dir·. CAPITULO LVII _Conselhos que o Infante D. Pedro teve sobre o assessego e seguranÁa d'esta cousas, e como a Rainha fingidamente se concordou com elle_ Mas o Infante D. Pedro sentindo com estas mudanÁas o reino diviso, teve sobr'isso conselho, no qual se accordou para atalhar ·s praticas que a Rainha e os outros fidalgos poderiam ter com o conde de Barcellos, que da divis„o era cabeÁa principal, e para qualquer outra seguranÁa, que o Infante D. Anrique se fosse, como foi · cidade de Vizeu; porque com seu receio os recados n„o passassem, e que para o dano que a estes reinos poderia vir de Castella por meio dos Infantes, enviassem como enviaram uma pessoa secreta a El-Rei, que o n„o consentisse, o que muito aproveitou. E o cargo da guarda e assessego da Rainha ficou ao Infante D. Pedro, que pelas estreitezas que n'isso poz, os que eram com ella em Almeirim, que com novo alvoroÁo a vieram servir, se acharam para suas honras e fazendas de todo atalhados, e mui enganados nas esperanÁas de supetos acrecentamentos, que cada um logo para si maginava. Pelo qual com necessidade e razıes assaz evidentes pediam · Rainha que emquanto as cousas n„o se despunham como para seu recurso cumpria, tratasse com o Infante D. Pedro alguma amizade e fosse fingida, com que em tanto ella e elles se remedeassem e provessem a suas vidas e fazendas, e a podessem melhor ao diante servir. A Rainha aprovou este conselho, e para o cumprir mandou por o ministro da Ordem de S. Francisco, e por Ruy Galv„o, secretario, tratar amizade com o Infante, mostrando fingidamente que seu desejo era j· poer em assessego sua alma, e esquecer-se de todo o passado. O Infante d'este recado crendo ser verdadeiro, foi mui alegre, e o acceitou com palavras de grande cortesia e contentamento, e deu por isso muitas graÁas a Deus. E da concordia que entre si por ent„o tomaram pass·ram seus assignados, que o Infante logo mandou divulgar pelo reino, que pelo haverem por bem e geral assessego, faziam por isso geralmente a Deus muitos signaes de devoÁ„o, e ao mundo de grande alegria, e assi o notificou a Castella. E confiando n'esta concordia, que havia por certa e n„o fingida, mandou tirar as guardas dos portos para que livremente podessem · Rainha ir e vir messegeiros e servidores d'onde quizessem sem pena nem receio. CAPITULO LVIII _Como o conde de Barcellos desdisse muito · Rainha esta concordia com o Infante, em caso que n„o fosse verdadeira_ Foi o conde de Barcellos d'esta concordia por via geral certificado, mas n„o se alvoroÁou nada; porque da secreta dessimulaÁ„o com que se fizera, foi logo pela Rainha avisado: porÈm elle temendo-se da prudencia e saber do Infante D. Pedro, e n„o segurando n'isso da constancia da Rainha, accordou com os fidalgos da sua parte de lhe notificarem o erro e desfavor que para seus feitos em tal concordia fizera, em caso que fosse fingida, de que se seguira os que desejavam seu serviÁo, vendo-a em poder do Regente, n„o ousarem de a servir, e que para isso, porque mais em breve se executasse o que desejava, ella mui secretamente se devia vir ao Crato, onde tinha mui certo o Priol com suas fortalezas a seu serviÁo. E que d'alli poderia seguramente passar o Tejo e entrar na Beira, onde o Marechal por ser comarc„o, com outros fidalgos e gentes se iriam para ella, e que o conde com todolos outros fidalgos outrosi lhe acudiriam e a recolheriam em suas terras, que logo comeÁaria de reger, e que da execuÁ„o e obra d'esta empresa os Infantes seus irm„os, e assi todolos outros seus servidores tomariam mais esforÁo e desejo de a proseguir. Este recado foi assi secretamente trazido · Rainha, que o Regente n„o houve d'elle algum sentimento, e ella com os de seu conselho a quem o mostrou e louvou, e houve por bom, o fez logo saber ao Priol do Crato. O qual como era homem de muitos dias e grande experiencia e siso, houve o feito por sem fundamento e muito duvidoso. E assi lhe respondeu em muitas e boas palavras, e em fim que se de todo em todo sua vontade quizesse forÁar as armadas de t„o vivas razıes, como lhe mandou para o ella n„o cometer, que elle estava prestes de a receber onde ella quizesse, e para isso lhe offerecia a perdiÁ„o de sua vida, honra, e fazenda, que elle n„o podia escusar. CAPITULO LIX _Como o Priol do Crato consentiu em receber a Rainha em suas fortalezas_ Esta resposta do Priol a que a Rainha com raz„o dava grande credito, suspendeu e amansou muito seu alvoroÁo; e porÈm de todo avisou logo ao conde de Barcellos, o qual por meio d'Aires GonÁalves seu secretario, acabou com o Priol que pospostos seus pejos todavia recebesse a Rainha. Desfazendo-lhe os inconvenientes que apontara, com promessas e esperanÁas, e seguranÁas falsas com que lhe cegaram o verdadeiro juizo, para o que ajudaram muito dois filhos do Priol, homens mancebos, que sostinham a parte e tenÁ„o do conde, que lhes mostrava abrirem-se caminhos de suas honras, e grandes acrecentamentos. O Priol do Crato assi como determinou de receber a Rainha em suas terras, assi ordenou logo d'abastecer, o mais encobertamente que pÙde suas fortalezas, e a Rainha mandou a todoslos seus, e assi a outros d'El-Rei em que tinha confianÁa, que se percebessem de cavallos e d'outras cousas necessarias para caminho, e a verdade d'este fundamento era para esta sua partida; como quer que ella fingidamente dava a entender que os percebia para a acompanharem atÈ o mosteiro da Batalha, onde queria fazer o saimento a El-Rei seu marido, para que dessimuladamente mandou l· fazer algum percebimento. D'estas mudanÁas foi o Regente algum tanto sabedor; mas confiando na concordia que entre elles era feita, e por n„o mostrar que com achaques a rompia, n„o quiz sobre uma cousa nem outra fazer novas alteraÁıes; e porÈm elle n„o era em certo sabedor que a Rainha se queria partir para o Crato. CAPITULO LX _Como o conde de Barcellos fez lianÁa com os Infantes d'Arag„o, e como foi por isso muito prasmado_ E o conde de Barcellos sentindo como as cousas se chegavam a rompimento, sendo duvidoso da fim que haveria, acordou de se liar como liou com El-Rei de Navarra e Infante D. Anrique, irm„os da Rainha, concordando entre si suas capitulaÁıes de serem amigos d'amigos, e imigos de imigos, e com ajuda certa de gentes d'armas, que cada uns dariam aos outros, quando a suas necessidades e afrontas cumprisse. D'estas lianÁas foi logo o reino todo sabedor e mui espantado, especialmente mostraram d'isso grande sentimento o Infante D. Jo„o seu genro, e o Infante D. Anrique ambos seus irm„os. E o Infante D. Jo„o lh'o enviou muito estranhar por Vasco Gil seu confessor, que depois foi Bispo d'Evora, e o Infante D. Anrique por Fern„o Lopez d'Azevedo, Commendador MÛr de Christo. Aos quaes o conde respondeu, que n„o desistiria do que tinha feito, e que sabia bem o que lhe cumpria. E assi o disse ao conde d'Arrayollos seu filho, que a elle sobr'isso foi em pessoa. Mas o conde d'Ourem tambem seu filho, que a este tempo era mui · banda do Infante D. Pedro, n„o quiz n'este caso entender, n„o leixando de o haver por feio, e mostrando que se os feitos viessem a rompimento, que elle seria por serviÁo do Regente contra seu padre; mas o que das maneiras d'ambos, pae e filho poderam os prudentes conjeiturar e entender, sempre pareceu que no comeÁo dos movimentos, entre elles se concordara o pae ficar · parte da Rainha, e o filho · do Infante D. Pedro; porque a qualquer d'estas parcealidades a que a fortuna boa se inclinasse, cada um ter n'ella um principal que remedeasse o outro, e que em tanto cada um tirasse da banda que servisse todo o que para sua honra e proveito podesse; porque em fim, toda havia de ficar em uma sÛ heranÁa. Nem se creu que o conde de Barcellos inventara estas lianÁas e pendores, salvo por meter o reino em necessidade de sua pessoa e casa, e lh'a haverem de compoer com villas e terras como fizeram; porque da Rainha n„o havia t„o urgentes razıes que o a isso obrigassem, e dos Infantes d'Arag„o muito menos. A Rainha ante que de sua pessoa fizesse alguma mudanÁa, mandou a Castella secretamente, por Mossem Gabriel de LourenÁo, seu capell„o mÛr, todalas joias d'ouro, prata e pedraria que tinha, que eram assaz muitas e boas; porque ·lem das que trouxe d'Arag„o, houve com o movel d'El-Rei seu marido todas as que ficaram por seu fallecimento, e foram postas no Castello d'Albuquerque, que era Villa do Infante D. Anrique de Castella. D'onde lhe vieram muitas a Almeirim, que ella secretamente mandou pedir para sua partida. CAPITULO LXI _Como o Infante D. Anrique se viu com o conde de Barcellos seu irm„o para o concordar com o Infante D. Pedro_ O Infante D. Anrique de Portugal para atalhar os azos de mais desaccordos e uniıes, se foi a Vizeu como disse; e porque sentiu que no assessego do conde de Barcellos, segurava o assessego do reino e da Rainha, viu-se com elle e com os de sua valia no mosteiro de S. Jo„o de Tarouca, junto com Lamego, onde sobre muitas praticas e altercaÁıes que todos entre si houveram, nunca o Infante pÙde acabar que o conde se decesse de sua opini„o, nem pÙde nunca por elle saber algum evidente fundamento d'agravo, ou contentamento descuberto que para isso tivesse; porque todalas que dava eram razıes t„o fracas, que por si mesmas se desfaziam, e em fim o Infante se despediu d'elle com algum temporizamento, atÈ se vÍr com os Infantes seus irm„os. Mas por mais enfraquentar seu partido, tirou logo de sua lianÁa o marechal, e Martin Vaz da Cunha, e Jo„o de GouvÍa, que eram fidalgos da Beira, e os levou comsigo. CAPITULO LXII _De como veiu a El-Rei embaixada de Castella, e como foi recebida_ Ao mez d'Outubro d'este anno de mil e quatro centos e quarenta, estando ainda El-Rei em Santarem e a Rainha em Almeirim, lhe veiu d'El-Rei de Castella uma grande embaixada, em que vieram por pessoas principaes D. Affonso, filho bastardo d'El-Rei de Navarra, que depois morreu duque de Villa Formosa, e um Bispo de Coria, pessoa de muita autoridade, e outros letrados, e por esta embaixada ser a primeira que veiu a El-Rei, foi da cÙrte muito bem recebida, e d'El-Rei e dos Infantes com muitas grandezas cerimoniada, e a sustancia do que a El-Rei e ao Regente, e assi aos Infantes e conselho propozeram, se fundou em duas cousas. Uma em se queixarem de danos e tomadias que os portuguezes fizeram por mar e por terra aos naturaes de Castella, e a outra mais principal acerca das cousas da Rainha e restituiÁ„o do Regimento em que sobre todo mais insistiram, e tambem pediam a El-Rei em nome da Rainha D. Lianor, com que j· tinha fallado, que a leixasse ir para Castella, mostrando que n„o queria estar no reino para que tantos males se aparelhavam; porque ao tempo que esta embaixada sahiu da cÙrte de Castella, os Infantes d'Arag„o ainda regiam e governavam a pessoa d'El-Rei; e por isso se fez l·, e propoz c· com as gravezas, protestaÁıes e cautellas, que elles em nome d'El-Rei ordenaram. Affigurando que por ventura o povo de Portugal, com receio de futuras guerras que elles tocavam, desistiria da parte do Infante ·cÍrca do Regimento, e seguiria a da Rainha. E para os embaixadores fazerem mais geral esta impress„o, pediram ao Regente logar e licenÁa para esta mesma embaixada irem dar pelas cidades e villas, e assi aos principaes do reino; mas o Regente por ser cousa nova e ent„o desacostumada o n„o outorgou nem consentiu, e se escusou com a semraz„o d'elles, e com outras razıes assaz justas e honestas; e emfim o Regente para lhe responder, tomou alguns dias d'espaÁo, dentro dos quaes a todalas pessoas principaes do reino que n„o eram presentes, enviou pedir conselho por escripto, com o trellado da embaixada. E esta ordenanÁa guardou sempre o Infante emquanto regeu, de nunca em cousas sustanciaes tomar conclus„o sem conselho escripto dos presentes e ausentes, e depois que houve a resposta de todos, e se conformou com o que melhor pareceu, respondeu aos embaixadores: ´Quanto ·s tomadias, que para justificaÁ„o d'ellas se pozessem juizes de uma parte e da outra nos estremos danificados. E quanto ·s cousas que tocavam · Rainha, que El-Rei enviaria seus embaixadores a El-Rei de Castella com tal resposta com que devesse ser satisfeito.ª E sobr'isso foi enviado Lopo Affonso Secretario, com fundamento de dilatar e temporisar o negocio; porque o Regente soube secretamente por o Bispo de Coria, embaixador, que esta embaixada em que elle vinha era de cumprimento para a Rainha e para os Infantes d'Arag„o, mas n„o da vontade d'El-Rei de Castella, a quem parecia bem a maneira que no Regimento do reino se tivera, e assi n„o leixarem · disposiÁ„o da Rainha a criaÁ„o d'El-Rei, pois era mulher; porque elle mesmo Rei sentia em si quanto mal recebera por em semelhante caso ser criado em poder da Rainha D. Caterina sua madre, e que o contrairo n„o se esperava de taes Principes como eram os filhos d'El-Rei D. Jo„o. E · Rainha enviou o Regente em nome d'El-Rei pedir com palavras de muito acatamento, e com razıes que faziam assaz por sua honra, honestidade e proveito, que houvesse por bem n„o consentir que de seus reinos se fosse para os estranhos. Mas isto n„o lhe assessegou a vontade que tinha para se ir; porque assi pela determinaÁ„o passada da partida, como pelo novo alvoroÁo que d'alguns dos embaixadores para isso recebeu, determinou muito mais em si de o fazer. Os embaixadores n„o se houveram d'esta resposta do Regente por satisfeitos nem despedidos, antes disseram que traziam em mandado de seu Rei que sem determinada resposta de todalas cousas, sem outro seu especial mandado n„o se partissem, e a carta em que isto se continha d'hi a dois dias a mandaram mostrar ao Regente, o qual como prudente consirou que taes cartas e instrucÁıes, t„o sem raz„o e vindas t„o brevemente se compilavam em Almeirim, c· poderiam trazer de Castella signaes d'El-Rei em branco e sÍllos de fÛra, sobre que poeriam o que quizessem, como fizeram. E para d'isto ser certificado, avisou d'isso a gram pressa o Condestabre D. Alvaro de Luna, o qual era fÛra da cÙrte; e porÈm por seus meios secretos, que com El-Rei trazia, soube logo d'elle que nunca tal mand·ra, de que logo certificou o Regente por carta da propria m„o d'El-Rei: pelo qual o Regente n'esta confianÁa determinou com alguma mais graveza despedir como despediu os embaixadores, e lhes mandou ´que pois eram respondidos, que se fossem embora dos reinos e cÙrte d'El-Rei seu Senhor.ª Mas elles n„o se despacharam assi brevemente, que ainda n„o estivessem em Santarem, ao tempo que a Rainha se partiu para o Crato, como ao diante se dir·. CAPITULO LXIII _Como o Infante D. Anrique procurou de trazer o Priol do Crato a serviÁo e prazer do Infante D. Pedro, e do que n'isso passou_ O Infante D. Anrique de Portugal, sentindo que um dos principaes esforÁos que a Rainha tomava para seu movimento, era o Priol do Crato, por atalhar a isso virtuosamente como em todo era seu costume, por seu messegeiro o enviou muito reprender d'isso, e da opini„o que tomara contra o Infante D. Pedro, e lhe mandou que logo em pessoa se viesse desculpar ao Regente, e d'hi em diante o servisse lealmente como a elle mesmo. O Priol foi d'este recado mui triste por duas causas a elle mui contrairas, uma por viver com o Infante D. Anrique, a quem havia por grande caso e perigo n„o obedecer inteiramente. E a outra fallecer · Rainha e ao conde de Barcellos, a quem se offerecera j· com suas fortalezas; e finalmente deliberou de n„o ir ao Infante D. Pedro por si, escusando-se por velhice e doenÁa, e de se mandar desculpar fingidamente por seu filho Fern„o de Goes, e todavia de cumprir com a Rainha o que lhe tinha promettido. Veiu Fern„o de Goes a Santarem, e offereceu a embaixada falsa de seu pae por sua crenÁa ao Regente, mostrando quere-lo desculpar do passado, offerecendo-se em todo o que estava por vir ao que elle mandasse, e pediu logo ao Regente licenÁa para ir fallar · Rainha; porque lhe queria dizer o em que ficava com elle, e assi lhe pedir que d'hi em diante nas cousas que fossem contra vontade e serviÁo do Infante, ella n„o se quizesse servir do Priol seu pae, nem d'elles seus filhos, salvo nas cousas em que os Infantes a servissem. Mas isto em seu coraÁ„o e proposito era muito em contrairo; porque como foi ante a Rainha, concertou com ella sem differenÁa o dia e hora de sua partida, que havia de ser logo em bespora de todolos Santos · noite. E que elle e seu irm„o Pedro de Goes viriam por ella, com maior resguardo e com a mais gente que podessem. E com isto se partiu, e o notificou ao Priol, que com muita diligencia e maior dissimulaÁ„o fez logo prestes a mais gente que pÙde. Dando publicamente a entender por n„o fazer na terra suspeita nem alvoroÁo, que j· eram concertados com o Regente, e que para o mais obrigarem o queriam ir honradamente servir, de que toda a terra mostrou ser mui alegre. CAPITULO LXIV _De como se a Rainha aconselhou sobre a ida para o Crato, e como emfim posposto o conselho se partiu_ E com quanto a Rainha no cuidado d'estes cuidados temporaes, tinha para este mundo ass·s que entender; porÈm porque era Senhora muito devota e de mui religiosa vida, n„o se partiam de sua alma para o outro outros espirituaes, que a fizeram mandar ao mosteiro de Bemfica da Ordem de S. Domingos, por um Frei Jo„o de Moura, seu confessor, padre de grandes dias e doutrina, e assi de mui santa vida, para com elle em confiss„o consultar esta secreta mudanÁa. E depois d'ella lhe dizer com largas palavras sua determinaÁ„o, elle lh'a contrariou com outras mais de tanta verdade e prudencia, que pareceu dizer-lh'as como por espirito divino. E certo assi foi, porque ella em seu desterro, desamparo e desaventuras, que pelo n„o crÍr depois padeceu, sentiu bem que o padre a aconselhava mais que homem, e como de mandado de Deus, e d'isso ella ao diante se acusava muitas vezes. E como quer que Frei Jo„o n„o pÙde em sua presenÁa afrouxar a tenÁ„o da Rainha, porÈm porque ella era de bom siso e mui s„o proposito, fizeram depois suas palavras no coraÁ„o d'ella tamanha casa, que assentava j· em sua vontade n„o se partir, pesando-lhe muito da palavra que dera aos filhos do Priol. Os quaes a noite de bespora de todolos Santos que tinham posto, foram com suas gentes acerca de Almeirim, e por n„o serem sentidos leixaram toda a gente ao Paul da Atella, e elles ambos, cada um com seu escudeiro e seu page, chegaram aos paÁos j· de noite, com cuja chegada e vista a Rainha recebeu muita e descuberta tristeza, e lh'a confessou logo. Do que elles ficaram mui torvados, porque a conheceram j· mudada de todo, e sobre isso houveram entre si muitos debates, em que a Rainha finalmente foi dos agravos d'elles vencida, e quiz contra sua vontade satisfazer ao que tinha prometido. E d'este segredo era em sua casa sÛmente sabedor Diogo GonÁalves Lobo, seu vedor, que com muita triganÁa deu aviamento a todo o que cumpria para sua partida. A Rainha depois de concertar com elles o feito como seria, ·s nove horas da noite se tornou com grande assessego e dessimulaÁ„o a seu estrado, e hi deu boas noites sem algum alvoroÁo, e ·s dez horas se sahiu por uma porta secreta contra a coutada, e com ella a Infante D. Joanna, de mama, e sua ama que a criava, e Diogo GonÁalves, e Jo„o Vaz Marreca, seu escriv„o da puridade, e Maria Dias sua covilheira, e Briatyz Corelho, donzela Aragoesa. E estas pessoas a acompanharam atÈ o Paul, onde ficara a gente, com que logo seguiram seu caminho, e n„o muito depressa por lhes n„o aturarem as bestas em que iam, e ao outro dia ·s dez horas chegaram sem decer · Ponte do Sor. E hi comeram e repousaram um pouco. E em anoitecendo foram no Crato, onde o Priol j· a estava esperando, e a recebeu com grande alegria, dando-lhe as chaves de todas as fortalezas, com razıes de grande humildade e muita obediencia. E ella o agasalhou com palavras e mostranÁas de grande aguardecimento, e bem conformes a sua necessidade. CAPITULO LXV _Do que fizeram os da Rainha, depois que souberam de sua partida_ A gente da Rainha que ficou em Almeirim, como passou meia noite sentiram grande rumor pelo lugar, e ainda com claras vozes dobradas sem certo autor, que diziam. ´Fugir, fugir do Infante D. Pedro, que vos vem prenderª. De que cada um n„o guardando a certa ordem em suas vestiduras, com grande pressa se soccorriam · Rainha como a casa da vida. E como o pranto de suas criadas e creados lhes davam certid„o de sua partida e ausencia, assi cada um desamparado de siso e d'accordo, se iam chorando e mal dizendo a suas vidas por essas charnecas. E como foi de dia, os que foram certos do caminho que a Rainha levava e poderam, a seguiram. E entre os mais principaes foram D. Affonso, senhor de Cascaes, j· velho, e sua mulher D. Maria de Vasconcellos, e D. Fernando seu filho. Como quer que D. Affonso forÁado da mulher e do filho se partiu; porque abraÁando-se com a terra, e com muitas lagrimas dizia: ´Leixai-me comer a esta terra que me criou, e a que n„o fui nem sou tredor. N„o me desterreis este corpo sem culpa, nem lhe deis sepultura em terras alheiasª. Mas em fim o levaram. CAPITULO LXVI _De como o Regente foi avisado da secreta partida da Rainha, e do que logo sobr'isso se fez_ E o Regente pouco mais de meia noite foi avisado da partida da Rainha sumariamente, por Gil Pirez de Resende, contador de Santarem, sem lhe saber dizer o caminho que fizera, nem se levara consigo as Infantes, e a poucas horas tornou o Infante a ser certificado do caminho da Rainha, e como levava consigo a Infante D. Joana, e leixava doente a Infante D. Lianor, que depois foi Imperatriz, e d'esta mudanÁa mostrou o Regente grande tristeza e sentimento, ainda que alguns diziam que era fingida; e porÈm mandou logo a Martim Affonso de Miranda com notairos, a escrever e segurar todo o que se achasse em Almeirim. E o que se conhecesse por da Rainha, que era j· sÛmente roupa de camas e pannos, mandou entregar aos officiaes d'El-Rei, e as outras cousas dos seus se entregaram por recadaÁ„o a um Martim d'Almeida, cavalleiro de Santarem. E foi logo a Almeirim pela Infante D. Lianor, que entregou a D. Guiomar de Castro, que foi sua aia atÈ o tempo que d'estes reinos partiu para Allemanha. E assi mandou logo o Regente em nome d'El-Rei caminho do Crato Diogo Fernandes d'Almeida, que era vÈdor da fazenda, pedindo · Rainha, sua madre com mui brandas razıes e mui fortes seguranÁas que se tornasse, e que elle e os Infantes iriam por ella, e se o n„o quizesse fazer que ao menos entregasse a Infante D. Joana. E que se isto tudo denegasse, que presentes notairos que consigo levava lhe fizesse em nome d'El-Rei protestaÁıes a n„o ser obrigado elle, nem o reino dar-lhe dote nem arras, nem outra cousa alguma. Diogo Fernandes aceitou a embaixada; mas segundo o que d'elle se suspeitou, elle a n„o cumpriu como devera; porque chegou sÛmente a Alter do Ch„o, uma lÈgua do Crato, e d'alli se tornou para Santarem, sem obrar nada do que lhe mand·ram; dando por raz„o que alli fÙra por maneira informado da tenÁ„o da Rainha para n„o fazer nada do que lhe ia requerer, que houvera por escusado ir mais adiante; mas a geral opini„o foi que por ser casado com uma filha do Priol do Crato, elle era sabedor de todolos movimento passados, e que folgou de n„o fazer por si cousa em que a Rainha recebesse nojo nem desserviÁo contra seu sogro. O Regente avisou logo d'este caso os Infantes seus irm„os, e assi os grandes, e cidades e villas principaes do reino, requerendo-os e percebendo-os com seus corpos e armas, para serviÁo d'El-Rei e defens„o do reino, crendo que a Rainha n„o faria de si tal movimento sem muito esforÁo e atrevimento de Portugal e de Castella. E no provimento d'estas cartas e avisos, poz o Regente tanta diligencia, que em dia de todolos Santos ante das missas foram todas feitas e enviadas, e assi uma sua e de sua m„o · Rainha, que n„o aproveitou, em que lhe pediu muito por mercÍ que se tornasse, prometendo-lhe que com sua tornada elle faria quanto ella mandasse. Os embaixadores de Castella eram ainda a este tempo em Santarem como disse; de que o Regente por seu descargo e limpeza houve prazer; porque sabia que a elles era mui claro quanto elle procurava por seu assessego d'ella, e os mandou logo chamar, e em saindo para a missa lhes fez com muita autoridade uma falla de sua desculpa acerca da partida da Rainha, rogando-lhes que pois se fÙra t„o sem conselho e tanto contra o que cumpria a seu estado, e sem licenÁa d'El-Rei seu filho, fizessem com ella que ante de sair do reino se tornasse · cÙrte, com grandes prometimentos de elle em seus feitos fazer tudo o em que ella recebesse contentamento, prazer e serviÁo: e d'isto para seu resguardo pediu estromentos. N'este dia e nos outros logo seguintes, trouxeram ao Regente presos muitos dos que d'Almeirim se iam para a Rainha, e os que achava serem seus moradores, logo os mandava todos soltar com liberdade e licenÁa segura de a irem servir se quizessem, salvo um Jo„o Paez Cantor, e Diogo de Pedrosa, que eram casados com criadas da Rainha, aos quaes por haver n'elles alguma sospeita, que estando o Regente nos paÁos de Santarem tratavam de o matarem · bÈsta, foi dado tormento d'aÁoutes nos pÈs, e por n„o confessarem culpa que os obrigasse a outra maior pena, os mandou soltar. O Regente por segurar as comarcas do reino em que tinha alguma suspeita, encomendou a da Beira ao Infante D. Anrique, e a d'entre Tejo e Odiana ao Infante D. Jo„o. E mandou · cidade do Porto Ayres Gomez da Silva, para com a cidade fazer defensa e resistencia a quaesquer rebates que n'aquella comarca sobreviessem. E assim mandou que aos do Crato n„o fosse em todo o reino dado mantimento, mais do que cumprisse · Rainha, e a vinte pessoas que a servissem, de que se ella muito aggravou. CAPITULO LXVII _Do que a Rainha fez depois de ser no Crato_ A Rainha como foi no Crato, logo d'hi enviou por todo o reino cartas, que j· d'Almeirim levava feitas, em que sustancialmente se escusava de sua mudanÁa, e acusava por ella o Regente e suas asperezas, encomendando e requerendo a todos com sombras d'ameaÁas de guerras e males do reino, que lhe tornassem o Regimento e o tirassem ao Infante, contra quem apontava cousas em que parecia n„o reger como devia. E porque o reino todo, especialmente o povo, eram inclinados · parte do Infante, foram os que receberam suas cartas t„o indinados contra a Rainha, e tratavam t„o mal os primeiros messegeiros d'ellas, que os segundos temendo taes escarmentos, haviam por melhor escondel-as e n„o apresental-as. E o Infante D. Pedro d'estas cartas da Rainha que viu, houve muito nojo, e mostrou grande sentimento; porque infamavam em alguns passos sua conciencia e autoridade, e por modo de desculpa e limpeza sua, escreveu a Lisboa como a cabeÁa do reino, as forÁas de suas culpas que se n'ellas continham. Escusando-se de cada uma particularmente, com a verdade de sua innocencia. CAPITULO LXVIII _Como falleciam os mantimentos · Rainha e ao Priol do Crato_ E o Priol do Crato n„o se proveu de tantos mantimentos como lhe eram para tal caso necessarios, enganado nas esperanÁas do conde de Barcellos, e dos outros fidalgos da Beira, que prometeram tanto que a Rainha fosse em suas terras, que elles em pessoa com gentes e provimentos em abastanÁa, seriam logo com ella, ao que nenhum d'elles quiz nem pÙde satisfazer, como quer que para isso fossem da Rainha e do Priol mui afincadamente requeridos, e por este caso os mantimentos recolhidos lhes comeÁaram de fallecer, especialmente carnes e pescados, e para os haver, pela estreita guarda e defesa que para isso havia n„o tinha j· esperanÁa nem remedio. Pelo qual conveiu · Rainha com palavras assaz piedozas pedir ao Infante D. Jo„o, que estava em Extremoz, que alevantasse a defesa e lhe leixasse ir mantimentos dos logares de redor. Mas o Infante escusando-se de o fazer lhe respondeu acusando com muita graveza e temperanÁa seu movimento. Em especial de poer sua honra, seu estado, e sua honestidade em poder do Priol e de seus filhos, que n„o tinham no reino fama de muito honestos, pedindo-lhe em fim que para escusar semelhantes necessidades e outras maiores, se quizesse tornar, do que ella n„o curou. CAPITULO LXIX _De uma embaixada d'El-Rei d'Arag„o e de Napoles que veiu ao Infante D. Pedro sobre os feitos da Rainha_ Estando a Rainha no Crato, chegou a Santarem ao Infante D. Pedro com embaixada d'El-Rei D. Affonso, Rei d'Arag„o e de Napoles, sobre cousas da Rainha sua irm„, um Bispo de Segorve, pessoa em que havia muita doutrina e grande auctoridade. E apontou alguns meios de concordia entre ambos, o que o Regente por conselho que sobre isso teve, respondeu: ´Que para se tomar n'elles conclus„o boa e honesta, como esperava em Deus que tomaria, era necessario a Rainha ser presente, ou ao menos em algum logar de suas terras, com tal repouso e assessego que n„o parecesse fugida. E para isso que elle antes de tudo se fosse · Rainha, e como com ella em cada uma d'estas maneiras acabasse sua tornada, se tornasse a elle. E que sobre isso se ajuntariam com elle os Infantes seus irm„os, e os do conselho d'El-Rei nosso Senhor. E praticariam ·cÍrca dos meios apontados, e se concordariam por seu meio no que mais honesto e de raz„o parecesse. E que se a Rainha n„o quizesse tornar, que elle d'hi seguisse embora sua viagem e escusasse sua vinda mais a elle.ª Ao Bispo pareceu bem o motivo do Regente, e com isso se foi · Rainha; a qual porque n„o approvou nenhuma das cousas que lhe aconselhava, se despediu d'ella e se partiu para seu Rei sem conclus„o certa do porque viera. CAPITULO LXX _De como o Regente determinou pÙr cÍrco ao Crato e ·s outras fortalezas do Priol, e a que pessoas os cÍrcos foram encommendados_ O Infante D. Pedro por recados e cartas da Rainha e do Priol que foram tomados e trazidos a elle dos portos que se guardavam, foi certificado como procuravam metter gentes d'armas de Castella em Portugal, e bastecer as fortalezas que sustinham sua voz com armas e mantimentos de fÛra, e assi se fazerem alguns alevantamentos no reino contrairos a seu Regimento, para que soube certo que em uma parte e na outra se faziam trigosos percebimentos, e consirando camanho dano se seguiria a dar-se logar a isso, e n„o se atalhar, determinou com accÙrdo dos Infantes, com quanto era entrada de inverno, de logo se poer cÍrco ao Crato e ·s outras fortalezas do Priol, e cobra-las por forÁa ou partido, como mais fÙsse possivel. Para que logo mandou perceber o reino, que a isso n„o foi negligente. E encommendou-se o cerco e tomada do castelo de Beluer a Lopo d'Almeida, que depois foi por El-Rei feito primeiro conde d'Abrantes, e assi que tomasse e segurasse os celleiros das terras ch„s do Priol. E assi se encommendou o cerco da Amieira ao capit„o Alvaro Vaz d'Almada, conde d'Abranches, ordenando a cada um as gentes e apparelhos que cumpriam. E foi accordado que o Regente e o Infante D. Jo„o, e condes d'Ourem e d'Arrayollos fossem sobre o Crato. Mandou o Regente outrosi em nome d'El-Rei fazer e pÙr editos publicos, com pena de morte e perdimento de bens, a todos aquelles que estivessem no Crato e nas fortalezas do Priol, se dentro de dez dias n„o se sahissem, salvo as vinte pessoas · Rainha ordenadas, e assi com promessa de perd„o de todos os casos aos que a El-Rei logo se viessem. Exceptuando alguns poucos a que expressamente o tal perd„o n„o se estendia, em que entrava o Priol e seus filhos. Tomou Lopo d'Almeida com tal cuidado o cerco e tomada de Beluer, que por seus engenhos, forÁas e combates poz o castello e gente d'elle em tanta necessidade e affronta, que conveiu ao alcaide, que se chamava Jo„o Lopez de Nobrega, bom homem e esforÁado cavalleiro, depois de fazer muita resistencia, com grande dano dos cercadores, concertar-se e entregar o castello com seguranÁa sua e dos cercados, tomando primeiro certos dias de tregoa, em que como bom servidor pediu socorro ao Priol, e por lh'o n„o poder dar, entregou por seu mandado o castello a XVII dias de Dezembro de mil quatro centos e quarenta. O capit„o Alvaro Vaz a que o cerco da Amieira, como disse, era encarregado, partiu de Lisboa por terra com sua gente d'armas e de pÈ, que era muita e mui bem concertada, e assim com as artilherias e provisıes que para o cerco convinham, e todo posto em mui segura e singular ordenanÁa, fazendo-o assi como homem que o vira e passara em outros reinos j· muitas vezes. E tambem folgou de o ordenar, assi por dar a entender n'este pequeno cerco o que faria em outros maiores se lh'os encomendassem. CAPITULO LXXI _Como El-Rei quiz vÍr e viu o capit„o na ordenanÁa de guerra em que vinha_ Viera-se El-Rei a Alemquer, porque Santarem onde estava, comeÁou de poerse mal de pestenensa; e posto que fosse de t„o pequena edade, porÈm bem inclinado de sua propria natureza, que o provera de mui nobre e mui grande coraÁ„o, desejou muito de vÍr o capit„o e sua gente na ordenanÁa de guerra em que vinham, e sentindo-lhe Alvaro GonÁalvez d'Arayde, seu aio, este vivo argulho e desejo, louvou-lh'o muito. E disse que era bem que cumprisse; mas por n„o errar em seu serviÁo e estado, indo de proposito vÍr uma sua cousa t„o pequena, seria bem que como d'acerto fosse · caÁa, ao campo d'entre a Castanheira e Villa-Nova, e que alli como de recontro veria o capit„o e a gente que ent„o havia de passar. E a outro dia andando alli El-Rei com seus galgos e gavi„es, assomou o capit„o, e sabendo j· que El-Rei o queria vÍr, apurou ainda muito mais sua ordenanÁa, e de sua pessoa com seus pages armados se concertou em grande perfeiÁ„o. Porque n'aquelle auto d'armas, por seu braÁo e por esperimentadas ardidezas passadas, a elle n'este reino se dava muito louvor; e tanto que foi atravez d'onde o El-Rei olhava, se apartou sÛ da gente, armado sobre uma facanea, e com grande alegria e desenvoltura se lanÁou fÛra d'ella, e a pÈ foi beijar as m„os a El-Rei, e lhe disse: ´Senhor, assi como eu sou o primeiro que vossa Senhoria vÍ n'estes habitos, assi prazendo a Deus n„o serei eu n'elles o segundo, em todo o que cumprir por vosso serviÁo e por defens„o de vossos reinos.ª El-Rei folgou muito de o vÍr, e com palavras e contenenÁas lhe fez mais honra e mÛr acolhimento do que de sua pouca edade se esperava, e assi se despediu o capit„o e seguiu sua viagem atÈ · Amieira, que logo cercou e combateu atÈ que a tomou. E n'este cerco n„o aconteceram cousas assignadas para escrever; porÈm houve algumas cousas d'agoiro, que por sua novidade tocarei brevemente. Porque na hora que ali aconteceram, porque pareciam mui duvidosas, se tomaram d'ellas testemunhos publicos e mui autorizados. Uma foi que em se acabando d'assentar o cerco, desceu · vista de todos tres vezes uma aguia do cÈo sobre um ninho de cegonha, que sobre as casas do Priol estava, e das duas vezes levou dois cegonhos novos, e da terceira n„o ficou o pae, que para a perdiÁ„o do Priol e dos filhos foi triste prognostico. A outra foi que a pedra do primeiro tiro de polvora que com um quart„o se fez, deu por um escudo das armas do Priol que estava sobre a porta da villa, e sÛ sem outra quebradura o desapegou das m„os de dois anjos que o tinham e o levou ao ch„o em pedaÁos. A outra foi que o segundo tiro que se fez matou um homem, sobre cujo corpo estando j· na egreja para se soterrar, deu outra vez o terceiro tiro, e em um escano em que jazia o tornou a espedaÁar. CAPITULO LXXII _Como a Rainha meteu de Castella gente d'armas n'estes reinos para se bastecer, e do que fizeram_ Sendo a Rainha e o Priol atalhados para dos logares vizinhos nem do reino j· n„o haverem mantimentos, e assi sentindo j· o engano que de seus alliados em seu movimento receberam, n„o ficou aberta outra porta d'esperanÁa, de soccorro e provis„o sen„o a de Castella. Pelo qual a peso de suas joias e baixellas, mandaram para soldo vir ao Crato um D. Affonso Anriquez, que estava em Castella na villa d'Alconchel, com atÈ sessenta de cavallo e cento homens de pÈ, com os quaes, e com os do Crato antes de receberem mais impedimentos e affrontas, trabalharam de por forÁa se bastecer de trigo, cevada, e gados pelos logares d'arredor, entre os quaes foi CabeÁa da Vide, que D. Affonso foi barrejar e roubar com cento e LXXX de cavallo e duzentos de pÈ, e recolheu o despojo ao Crato, sem haver no logar nem no caminho outra resistencia, salvo a que os d'Alter do Ch„o lhe quizeram fazer, que por n„o serem cautelosos no auto da guerra foram tambem de D. Affonso desbaratados, e alguns de uma parte e da outra mortos e muitos feridos, com que todo o reino e principalmente os d'aquella comarca foram para os do Crato mui indinados, e da Rainha mui descontentes. O Infante D. Pedro constrangido e nojado d'estas entradas e correduras que pelo reino assi soltamente se faziam, apressou por isso mais sua partida. E acompanhado de muita gente que o veiu servir, partiu de Santarem caminho d'Aviz, onde com o Infante D. Jo„o e condes d'Ourem e d'Arrayollos tinha concertado seu ajuntamento, para hi terem conselho sobre o que fariam; porque o Infante D. Anrique era na Beira para a defender, como se disse. CAPITULO LXXIII _Da resposta que o Regente houve d'algumas cousas que com sua embaixada enviou a Roma requerer_ Em se o Regente alongando em uns casaes, que se dizem o Couto, entre Santarem e Aviz, chegaram a elle Ruy da Cunha, Priol de Santa Maria de Guimar„es, e o Provincial do Carmo D. Jo„o, Bispo que depois foi de Ceuta e da Guarda, que vinham de Roma, onde foram enviados por embaixadores ao Papa Eugenio; os quaes entre as outras cousas que requereram e trouxeram concedidas, foi _vivae vocis oraculo_ a despensaÁ„o para El-Rei poder casar com D. Isabel, filha maior do Infante D. Pedro. E n„o veiu em escripto; porque a Rainha D. Lianor sentindo que n„o podia fazer maior nojo, que em lhe estorvar este casamento, trabalhou com El-Rei e Rainha de Castella, e com El-Rei d'Arag„o e de Napoles, e com El-Rei de Navarra, todos seus irm„os, que por algumas razıes que sem muito fundamento allegaram, fizessem com o Papa que por alguma maneira n„o outorgasse a despensaÁ„o para o dito casamento necessaria. O que elles todos fizeram por seus embaixadores com muita instancia, e por tanto o Papa por n„o desprezar a tantos e taes Reis, houve ent„o por bom expediente n„o outorgar a despensaÁ„o em escripto por n„o ser publica, e a concedeu aos embaixadores em secreto, _vivae vocis oraculo_, como disse, para o casamento se poder logo fazer, e depois lh'a mandar por Bula patente, como mandou por Fern„o Lopez d'Azevedo, Commendador MÛr de Christo, que l· tornou por embaixador. E assi trouxeram mais por Bulla expedida, em como o Papa isentou para sempre as administraÁıes de Tuy e d'OlivenÁa dos Bispados de Tuy e de Badalhouce, a que eram em Castella d'antigamente sobgeitas, e assi houve o Mestrado d'Aviz d'estes reinos por isento do Mestrado de Calatrava, e o Mestrado de Santiago por isento da Ordem d'UcrÈs, que s„o em Castella, a cuja obediencia de primeiro fundamento eram obrigados. E poz aos Reis de Castella silencio perpetuo, com estreitas censuras e graves excommunhıes, se mais o contrairo requeressem, como atÈ ent„o sempre requereram. E certo esta graÁa estimou muito o Regente; porque sabia que em vida d'El-Rei D. Jo„o seu padre, e d'El-Rei D. Duarte seu irm„o, com quanto isto sempre desejaram e requereram com rasıes e causas mui evidentes e sustanciaes, nunca os Papas que n'aquelles tempos foram, em caso que lhes parecesse raz„o, com receios d'agravos e importunaÁıes dos Reis de Castella o ousaram outorgar, e depois atÈ agora sempre isso esteve e est· em pacifico effeito. CAPITULO LXXIV _Como em se accordando o cÍrco do Crato soube o Regente que a Rainha D. Lianor era partida do Crato para Castella, e como todavia seguiu, e do que se fez_ Chegou o Regente a Aviz, onde de muitas partes lhe accudiu muita gente, para a qual com quanto no reino havia grande careza de mantimentos, houve porÈm d'elles alli muita abastanÁa. E sendo certificado que o Infante D. Jo„o seria com elle bespora de Natal, lhe leixou a villa para seu aposentamento. E na ribeira de Seda se foi alojar no campo, onde os Infantes e conde d'Ourem e conde d'Arrayollos, com outros senhores e fidalgos do conselho se viram. E logo todos consultaram ·cÍrca do que fariam, em que depois de muitos debates, finalmente se accordaram com o Infante D. Jo„o, que disse: ´Que ante de tudo · Rainha por uma pessoa honrada fosse primeiro pedido e requerido que se tornasse para suas terras, ou para outro qualquer logar que ella quizesse n„o sendo sospeito, com todalas seguranÁas que ella pedisse, e que elles todos iriam por ella e a serviriam e acatariam como ella merecia, por ser mulher e madre de dois seus naturaes Reis e Senhores, e que se ella o quizesse fazer, todo seu trabalho o houvessem n'isso por bem empregado; porque com isso o menos ficaria por acabar, e que quando ella esto n„o houvesse por bem, que ent„o fossem cercar e combater o Crato atÈ o tomarem por forÁa, ou como melhor podessem, guardando sempre qualquer casa ou torre em que a Rainha e a Infante estivessem, por acatamento e reverenÁa de sua real pessoa e estado, c· era raz„o apagar-se logo aquella pequena brasa; porque d'ella se n„o seguisse ao reino outro incendio e dano maior.ª A Rainha como foi certificada que os Infantes determinavam ir cerca-la, vendo que o conde de Barcellos e os outros fidalgos se escusavam de ir por ella e a servir como ficaram, quizera-se logo partir do Crato para Castella; mas foi aconselhada que por agravar mais seu caso n„o o fizesse atÈ os Infantes serem j· em caminho contra ella; porque ent„o pareceria raz„o faze-lo; pois poderiam dizer que com temor de a n„o prenderem ou deshonrarem o fazia, pelo qual tanto que soube que elles moviam seu arraial da Ribeira de Seda contra o Crato, ella na noite em que amanheceu dia de S. Thom·s, que vem a XXIX de Dezembro, de mil e quatrocentos e quarenta e um, se partiu para Albuquerque, e foram principaes em sua companhia o Priol do Crato e D. Affonso Anriquez, e D. Affonso, senhor de Cascaes, e D. Fernando, seu filho, e alguns outros; porque a mais gente ficou no castello do Crato com GonÁalo da Silveira e Vasco da Silveira, filhos de Nuno Martins da Silveira, a que a guarda de todo ficou encomendada. E estes acabaram depois em serviÁo da Rainha suas vidas em Castella, e assi os ditos D. Affonso e D. Fernando, e o Priol do Crato, que no Agosto seguinte falleceram em «amora. Alguns moradores do Crato e principaes, comquanto alli estavam sobjeitos ao Priol, eram porÈm servidores secretos do Regente. E como sentiram a partida da Rainha, fizeram logo dois avisos, um ao Regente do caso como passara, e outro a Garcia Rodriguez de Siqueira, Comendador MÛr d'Aviz, que era capit„o em Alter, para que fosse logo como foi por meio e engenho d'elles cobrar a villa, e depois de se bem apoderar d'ella e a segurar com fortes palanques do dano que os do castello lhe poderiam fazer, o notificou logo aos Infantes, que acordaram enviar logo a GonÁalo da Silveira, e a Vasco da Silveira, Vasco Martins de Mello, por ser casado com uma sua irm„, filha tambem de Nuno Martinz da Silveira, para que os aconselhasse como o tempo e raz„o requeria e que sem mais resistencia entregassem o castello. Mas GonÁallo da Silveira, sobre quem a defens„o principalmente pendia, se escusou da entrega, como fidalgo em que pareceu que havia bondade, lealdade e discriÁ„o, e o coraÁ„o lhe n„o fallecia. Com este recado tornou Vasco Martinz aos Infantes, que n„o leixaram de seguir seu caminho atÈ serem sobre o logar; porque receiaram que a Rainha com gente e mantimentos de Castella bastecesse os logares, pois n'elles com essa esperanÁa leixava sua gente. O conde d'Ourem com a gente de Lisboa se aposentou dentro na villa, e os Infantes fÛra em torno do castello, onde em chegando fizeram publico alardo com toda a gente, em que se acharam doze mil homens de peleja com muita artilharia, que logo foi assentada em ordenanÁa de combate, de que os mais do castello tom·ram grande desmaio; e porÈm ante d'algum cometimento, o Regente mandou outra vez por o dito Vasco Martinz requerer GonÁallo da Silveira que entregasse o castello e se tornasse para El-Rei que lhe faria muita mercÍ, e serviria seu officio d'escriv„o da Puridade como o fÙra seu pae, e que seu irm„o seria acrecentado com outras abastanÁas e razıes, de que GonÁalo da Silveira algum tanto vencido com prazer dos Infantes, tomou assento que o n„o combatessem por X dias, dentro dos quaes se a Rainha depois de ser requerida por elle, lhe n„o desse soccorro e ajuda com que bem se podessem defender que elle entregaria a fortaleza, e que se lh'o desse, que elle aquelle trabalho e outro maior soffreria atÈ, morrer por seu serviÁo. Foi logo a Rainha de todo esto avisada por GonÁalo Annes, criado do Priol e alcaide do Crato, que como prudente messegeiro, lhe disse mui largamente as difficuldades que havia na defens„o do castello, por ser tamanho e contra tal e tanta gente, e enfraquentou muito com vivas razıes a esperanÁa que a Rainha lhe dava, e tinha em uns oitocentos homens d'armas que a Rainha de Castella sua irm„ lhe mandara para isso offerecer, dizendo-lhe ´que estes n„o eram pagos nem juntos, e estavam ainda em Castella por suas casas. E que por tantos favores de p„es, de que os Infantes seus irm„os enganosamente a basteciam, n„o abastavam para tal tempo e tamanha necessidade, e que em caso que esta gente e outra mais os quizesse soccorrer, que pois n„o podia ser pelo cÈo, menos seria pela terra em que por todalas partes havia tanta e t„o forte resistencia, que era impossivel ou assignada sandice fazer-se.ª E emfim a Rainha com o Priol visto todo, accordaram que o castello se entregasse, para que logo mandou Pero de Goes seu filho, que com seguranÁa dos castellos o leixou livre, e o Regente o entregou logo ao Infante D. Jo„o, e deu em nome d'El-Rei o Priorado do Crato a D. Anrique de Castro, filho de D. Fernando de Castro, e depois a D. Jo„o d'Atayde, por cuja morte o houve tambem D. Vasco d'Atayde seu irm„o. E depois de despedir com mercÍs e mui graciosas palavras aquellas pessoas que n'esta jornada o vieram servir, e que por ent„o n„o houve mester, se partiu caminho d'Abrantes, e com elle o conde d'Ourem. E o Infante D. Jo„o se tornou para a cidade d'Evora. CAPITULO LXXV _Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique se foram a Lamego para passarem entre Doiro e Minho. E como o conde de Barcellos se poz em defesa, e do que se n'isso passou_ E ante de seu apartamento tiveram conselho sobre o que ao diante deviam fazer, e accordaram que por quanto j· se comeÁara d'entender contra os que eram reveis e desobedientes a seu Regimento, que o Regente se fosse · Beira juntar-se com o Infante D. Anrique, para que ambos pela melhor maneira que o tempo lh'o offerecesse, assessegassem os desmandos e alvoroÁos em que os fidalgos d'aquella comarca andavam. E assi soubessem logo se o conde de Barcellos queria estar · sua obediencia e ordenanÁa como os outros, e se o contradissesse, que procedessem contra elle de feito e direito, como sua contumacia requeria, pois com ella dava causa a se fazer em muita parte do reino muito mal, e pouca justiÁa. Foi-se o Regente a Coimbra, e alli se refez da mais gente que pÙde, e posta em ordenanÁa e com esperanÁa de guerra se foi a Vizeu, e alli no Couto se viu com o Infante D. Anrique, que tambem para o caso estava de gente, armas e mantimentos mui bem percebido, os quaes por assi sentirem que cumpria se partiram logo para Lamego, onde chegaram com proposito de assi poderosos passarem o Douro, e o Regente usar inteiramente de seu officio nas comarcas d'Entre Doiro e Minho, e Tras os Montes. A Rainha por conselho do conde de Barcellos se partiu d'Albuquerque, com fundamento de ir ao longo do estremo atÈ atravÈs da comarca de Tras os Montes, para ir entrar em Portugal pelas terras d'Alvaro Pirez de Tavora, onde o conde de Barcellos e os de sua opini„o se offereceram de a irem receber e servir. E de Ledesma a que chegou, enviou seus messegeiros ao conde para saber sua determinaÁ„o e vontade, e para lh'a fazer maior e mais forte, lhe enviou novos esforÁos com esperanÁa de grande honra e acrecentamento seu; os quaes messegeiros foram a elle, que estava em Guimar„es ao tempo que os Infantes chegaram a Lamego, e sendo de sua chegada d'elles certificado, e da maneira e tenÁ„o com que iam, n„o pÙde dessimular a muita tristeza e grande cuidado que por isso recebeu, e respondeu · Rainha escusando-se com coisas necessarias, a n„o poder cumprir por ent„o seu requerimento, reprendendo com largas razıes o pouco cuidado que os Infantes d'Arag„o para sua restituiÁ„o mostravam. E por se mostrar forte aos que de sua parte j· sentia mui fracos, enviou dizer ao conde d'Ourem seu filho, que dissesse como disse da sua parte ao Regente, que escusasse passar o Douro, porque elle lh'o n„o havia de consentir, de que o Infante mostrou grande sentimento, e com palavras e contenenÁa n„o livres de sanha, respondeu ao conde por maneira, que sentindo elle como a honra e estado de seu pae se despunha a grande perigo, pediu ao Regente por mercÍ que sobre o caso n„o houvesse por mal que elle mandasse um cavalleiro por messegeiro a seu pae, de que ao Infante aprouve, e ainda com desejo de mais assessego o obrigava que para isso elle n„o devia mandar alguem, mas ir em pessoa. E porque Luiz Alvarez de Sousa, que ao conde foi sobr'isso enviado, n„o lhe abrandou em nada sua tenÁ„o tornou a elle em pessoa o conde d'Ourem seu filho, o qual como quer que com palavras de muito amor e razıes de grande efficacia lhe pedisse que se decesse de sua opini„o, pois o tempo e a raz„o assi o queriam, nunca o pÙde acabar, e assi assaz triste e anojado tornou para o Regente sem alguma conclus„o. O conde de Barcellos moveu de Guimar„es com mostranÁa de ao Infante defender por forÁa a passagem. E assentou-se com sua gente em auto de guerra em Meisanfrio, que È logar sobre o Douro duas leguas de Lamego. E mandou alagar e metter de sob a agua todalas barcas e bateis do rio, pelo qual o Infante aceso j· em desejo de vinganÁa para que os desprezos e porfia do conde o moviam, determinou logo de passar contra elle, e para isso ordenou que no Douro sobre toneis se fizesse uma ponte porque a gente e cavallos podessem em breve e mui seguramente passar, e assi se fez prestes do mais que para rompimento e peleja cumpria. As quaes cousas vendo o conde d'Ourem aparelhadas com tal triganÁa para destruiÁ„o de seu pae, ajuntou comsigo para sua ajuda alguns principaes, perante quem fallou ao Regente. E com palavras de grande prudencia e muita piedade, e com outras de n„o menos obrigaÁ„o, lhe pediu que sobrestivesse em sua passagem e lhe desse logar que volvesse a seu pae; porque esperava de o tornar · sua obediencia e serviÁo prouve d'isso ao Infante, e lhe louvou muito a dÙr e cuidado que para remedio de seu pae a todos mostrava. Porque entre as outras virtudes muitas que no Infante havia, esta era n'elle de grande perfeiÁ„o, ser para as execuÁıes de sua sanha mui temperado, e mui ligeiro de mover por rogos e intercessıes dos bons. O conde d'Ourem foi logo a seu pae, e t„o evidentes lhe mostrou os erros de sua dureza e os principios que se ordenavam para sua quÈda, que vencido do evidente perigo que via, mais que de sua propria vontade, lhe prouve vir como veiu a Lamego falar aos Infantes. Os quaes como souberam de sua vinda sahiram a recebe-lo fÛra da cidade acompanhados de muita e mui nobre gente. E posto que entre o conde e o Regente havia odios mui verdadeiros, porÈm n'aquella hora que se viram houve entre elles palavras fingidas de tanto amor e cortezia, e se abraÁavam a cada passo com tanta alegria, que pareceu que um n„o estimava nem desejava mais bem que a vista do outro, sem alguma lembranÁa de roturas passadas, e nas contenenÁas do povo que os assi viam, bem parecia que todos haviam d'isso grande prazer. Era hi presente o Arcebispo de Braga D. Fernando, que com vozes altas comeÁou de cantar o principio do salmo _Ecce quam bonum & quam jucundum habitare fratres in unum_; como a quem parecia que na concordia d'estes Senhores se segurava de todo a paz e descanÁo do Reino. Os quaes como foram na cidade fallaram entre si suas cousas, e assi nos desvairos passados, e o Regente recebeu com bem na cara as desculpas do conde, que ficou de todo · sua obediencia, approvando em todo o seu Regimento, e prometteu de mais n„o servir nem seguir a Rainha, salvo n'aquellas cousas em que os mesmos Infantes a servissem, e assi concludiram que o casamento d'El-Rei de necessidade se fizesse logo com a filha do Infante, ao menos com recebimento simples; porque ao tomar de sua casa, se fariam depois suas festas solenes e reaes, como a sua honra e estado cumpria. E assi prouve ao Regente a requerimento do conde que seu cunhado D. Pedro, o Arcebispo de Lisboa, que andava em Castella desterrado, fosse como foi · sua dinidade restituido, e lhe outorgou para si e para os seus outras muitas graÁas e mercÍs, a que depois seu agardecimento n„o respondeu com egual balanÁa. E concordado assi todo se despediram uns dos outros: o Regente e o conde d'Ourem para Lisboa, e o Infante D. Anrique para suas terras, e o conde de Barcellos tornou-se d'onde viera; e isto foi no fim de Fevereiro do anno de mil e quatrocentos e quarenta e um. CAPITULO LXXVI _Das cÙrtes que se fizeram sobre o casamento d'El-Rei com a Rainha D. Isabel, filha do Infante D. Pedro_ Como o Regente foi em Lisboa logo ordenou cÙrtes, que com solene ordenanÁa de cidades e villas, e pessoas principaes do reino se fizeram em Torres Vedras, onde alÈm d'outras muitas cousas, em que por bem da Republica se entendeu, o Infante D. Pedro com fundamentos passados da vontade d'El-Rei D. Duarte, e com a necessidade presente que disse, com muita autoridade e eficacia requereu aos do reino outorga e consentimento para El-Rei seu Senhor casar com sua filha, e o povo por conhecer ser verdade o que apontava, e que em christ„os n„o havia por ent„o mulher com que El-Rei t„o bem podesse casar como a seu estado e honra cumpria, e assi movidos da humanidade e resguardo com que o pediu, n„o sÛmente foram d'isso todos contentes, mas ainda para quando embora tomasse sua casa lh'offereceram um rico presente. Pelo qual o Infante se foi a Obidos, onde era El-Rei, e alli em dia da Ascens„o, · tarde, no anno de mil e quatrocentos e quarenta e um, · vista de todos se celebraram os esposoiros entre El-Rei e a Rainha, nas m„os de um Dai„o d'Evora que servia El-Rei de seu fisico, entrando El-Rei em edade de dez annos. E como os procuradores do povo acabaram de ser respondidos a seus capitulos e requerimentos, se despediram. CAPITULO LXXVII _Como o Regente por meio do conde de Barcellos procurou de se concordar com a Rainha D. Lianor, e das cousas por que ella n„o quiz_ O Infante D. Pedro de se assi concordar com o conde de Barcellos mostrou que recebia prazer e descanso, crendo que para tranquillidade do reino que procurava, tinha a mais aspera difficuldade passada. E para temperar e vencer a outra da Rainha que sobre tudo desejava, ante de partir de Lamego fallou com o conde seu irm„o, e lhe pediu que para ambos se concordarem, como sempre desejara, quizesse entre a Rainha e elle ser medeaneiro; porque elle tinha raz„o de n'isso a servir, e ella de o querer. Mostrou o conde que d'isso lhe prazia muito, e enviou logo a ella que era j· em Madagal, Alvaro Pirez de Tavora, de que muito fiava, encommendando-lhe muito com razıes e causas mui evidentes o concerto da Rainha com o Infante, e assi sua desculpa pela n„o servir na fÛrma que com ella tinha assentado. A Rainha n„o ouviu esta embaixada com boa vontade, nem a acceitou como se confiava. Assi por haver j· por suspeito o conde, pela concordia feita entre elle e o Regente, em que Alvaro Pirez tambem entrara; como porque lhe parecia, segundo os Infantes seus irm„os estavam ent„o apoderados de Castella e Arag„o e Navarra, que com as gentes e poder d'estes reinos apremariam e guerreariam o Regente por maneira que de necessidade lhe conviesse leixar a ella livremente o Regimento, como requeria e desejava. E este esforÁo e presunÁ„o tomava ella porque n'este tempo os Infantes seus irm„os e o Principe D. Anrique, com odio que tinham ao conde e Condestabre se concordaram e cercaram El-Rei em Medina del Campo, e o entraram por forÁa, e recolheram sua pessoa d'El-Rei a seu poder, e lanÁaram fÛra fugidos e destroÁados o Condestabre e o Mestre d'Alcantara, e outros que eram dentro em ajuda e defens„o d'El-Rei. E n'esta sombra de prosperidade em que a Rainha via seus irm„os em Castella, tomou tanta confianÁa para seu recurso, que n„o quiz haver por bom nenhum meio que de Portugal sem o Regimento e criaÁ„o d'El-Rei lhe fosse cometido. Antes para mais apressar sua destruiÁ„o e proveza, foi como n„o devia aconselhada, que para em seu caso obrigar mais seus irm„os, quando os fosse vÍr devia levar e dar-lhe para sua ajuda alguma gente d'armas, de que em suas revoltas tinham a necessidade que sabiam, o que · Rainha pareceu bem, e para prover aos seus e a outros que para isso tomou, de cavallo armas e soldo, vendeu e apenhou a mÛr parte de quanta prata e joias tinha. E camanho erro n'isso fez, ella em suas minguas sem longa tardanÁa o sentiu, porque finalmente o amparo e soccorro que em suas fadigas houve de seus irm„os, com quanto eram tamanhos Senhores, se tornou sÛmente em fortunas dobradas, e claros enganos em que a trouxeram, e com que acabaram de lhe levar todo o que para repairo seu e dos seus lhe ficava. CAPITULO LXXVIII _Como a Rainha D. Lianor se foi · cÙrte d'El-Rei de Castella, e das embaixadas que vieram a Portugal_ A Rainha n'esta enganosa confianÁa de sua certa restituiÁ„o se foi · cÙrte d'El-Rei de Castella, a que os Infantes d'Arag„o ent„o governavam de todo; dos quaes logo em sua chegada foi com muita honra e acatamento recebida e agasalhada. Onde depois de em pessoa recontar suas querellas e aggravos, com mais graveza por ventura do que foram em effeito, El-Rei por satisfazer a ella e cumprir a vontade dos Infantes, enviou ao Infante D. Pedro uma e muitas vezes mui continuas embaixadas, umas brandas e outras com aspereza, umas mostrando desejar paz, e outras mais desafiando guerra, apontando sempre taes meios em favor e contentamento da Rainha, que a sem raz„o e o desserviÁo d'El-Rei de Portugal e o dano do seu reino, que claramente comsigo traziam, conselhavam que se n„o acceitassem; especialmente porque em todos se requeria que a criaÁ„o d'El-Rei e do Principe seu irm„o e irm„s fosse · desposiÁ„o da Rainha, ou ao menos em poder de dois cavalleiros, quaes a ella prouvesse, que fossem de todo isentos da juridiÁ„o e mandado do Infante, o que o reino todo por causas mui evidentes e necessarias sempre contrariou, e muito mais o Regente, que mostrava haver por singular bem-aventuranÁa e grande repouso para si e para seus filhos o amor d'El-Rei, de que tinha certa esperanÁa, pois com tanto amor e perfeiÁ„o o criava, e de que seria desesperado se fÛra de seu poder, e com seu odio e de muitos outros o criassem. E porÈm sempre lhe prouve, e assi o respondia, que · Rainha tornando-se a estes reinos fossem inteiramente dadas todalas terras e renda que n'elles tinha, com a criaÁ„o de seus filhos livremente. Ainda que em umas cÙrtes que n'este anno de mil e quatrocentos e quarenta e dois em Evora se fizeram, foi por todolos tres estados requerido e concordado que a Rainha devia por direito ser de todo privada, e que principalmente n„o devia vir a estes Reinos, assi pela gente estrangeira que como imiga n'elles metera e os guerreara, como pelos grandes trabalhos e muitas despezas que com receio de guerra tinham por sua causa padecido, em especial se houve por mui perigoso inconveniente o odio e m· vontade que aos principaes do reino j· tinha, de que se esperava ella com El-Rei seu filho procurar sempre destruiÁıes e cruas vinganÁas, que a muita lealdade de seus vassallos lhe n„o mereciam. Os Infantes d'Arag„o confiados no mando da governanÁa de Castella que possuiam, havendo por seu abatimento n„o se fazerem os feitos da Rainha sua irm„ · sua vontade, enviaram ao Regente que era em Santarem outra embaixada, que elles fingiam ser j· derradeira, em que vieram por embaixadores um Gomez de Benavides, e outro Affonso Fernandes de Ledesma, doutor em leis, e pessoas de grande estima e auctoridade em Castella; estes em seus apontamentos seguiram os passados dos outros. Trazendo logo comsigo arautos e trombetas, como officiaes de desafio real, para que se ·s cousas tocantes · Rainha n„o respondessem conformes a seu requerimento, que solemnemente desafiassem logo a guerra de reino a reino. A qual publicavam mui soltamente, crendo que com medo d'ella este reino ·cerca do Regimento se mudara de seu primeiro proposito. E estando estes embaixadores ainda por responder, veiu com uma carta da m„o d'El-Rei para o Regente, um Custodio, da Ordem de S. Francisco de Castella, e com o trellado d'ella aos embaixadores, em que sustancialmente affirmava o que elles mesmos j· requereram. Apontando as cousas porque devia com ras„o favorecer e ajudar a Rainha. E que por ellas sem quebrantamento das pazes podia a estes reinos justamente fazer guerra. CAPITULO LXXIX _De como o Regente sobre a resposta que a estas embaixadas se daria, fez cÙrtes geraes_ Estes accidentes t„o apressados pozeram o Infante D. Pedro em muito cuidado; porque eram taes, que de necessidade ou teria guerra, ou por fraco perderia toda sua honra e estima; porque por isto foi certificado que ao povo de Castella em ajuntamento de cÙrtes prouve por industria dos Infantes que para restituiÁ„o da Rainha se fizesse guerra a estes reinos, e para isso se fizessem apuraÁıes e lanÁassem pedidos, que se logo lanÁaram. E porÈm o Infante disse aos embaixadores que os casos de seu requerimento eram de calidade, a que se n„o podia dar direita resposta sem accordo de todo o reino, e portanto lhes rogava que tivessem assi atÈ se fazerem cÙrtes, onde elles tornariam a ser ouvidos e respondidos, como a todos bem parecesse. Os embaixadores foram d'isto mui contentes; porque viram levemente o effeito do principal fundamento e desejo que traziam, que era por semearem temor divulgar-se sua embaixada por todo o reino. Assignou o Regente as cÙrtes na cidade d'Evora, onde por suas cartas mandou que os procuradores do povo se juntassem no Janeiro do anno que comeÁava, de mil e quatro centos e quarenta e dois. Notificando-lhe logo a sustancia e causa de sua vinda; e porque lhe parecia que a guerra se n„o poderia escusar, e n„o fossem com algum improviso dano salteados por negligencia, determinou que os Infantes a que tambem escreveu, fossem logo ·s frontarias de suas comarcas, e provessem todalas fortalezas da raia e as fizessem velar, armar, bastecer e repairar, como para tal necessidade cumpria se sobreviesse, e assim mandassem arredar os gados e provisıes dos estremos. E defender os mercadores que n„o entrassem em Castella; e assi se cumpriu e se poz em todo o reino tanto resguardo, como se a guerra fÙra claramente rota, e aos Infantes e grandes e pessoas principaes do conselho que n„o podiam vir a ser presentes, enviou a sustancia de toda a embaixada, e a cada um ·cerca do que responderia pediu seu conselho e parecer em escripto, como sempre costumou. Partiu-se o Regente para Evora, e assi os embaixadores, e ao dia que tinha posto foram juntos os procuradores, onde o Infante por si lhes propoz com largo recontamento a necessidade que o movera aos chamar, e assi lhes apresentou a embaixada presente, resumindo as outras passadas da mesma sustancia, cuja conclus„o era que El-Rei de Castella requeria que por bem e paz d'este reino, El-Rei e seus irm„os fossem entregues · Rainha, com inteira governanÁa do reino, se n„o com forÁa e por guerra de Castella se faria, rogando-lhe que sobre todo consirassem, e como bons portuguezes e leaes vassallos d'El-Rei lhe dissessem o que devia dizer e fazer; havendo sempre respeito ao que mais fosse serviÁo de Deus e honra d'El-Rei e bem de seus reinos. Apontando a necessidade que havia de dinheiro, para que sua ajuda cumpria. E leixando alguns rumores e alvoroÁos que em continente logo houve, e muitos dos que sem aquella consiraÁ„o e resguardo que deviam bradavam por guerra e a requeriam, finalmente os procuradores recolhidos em seu consistorio e praticando com muita madureza o caso, tornaram ao Regente seu parecer, que sustancialmente foi todo remetido a seu juizo, por todo confiarem de sua lealdade, siso, e esforÁo, e para as necessidades que occorriam outorgaram tres pedidos. E conformando-se o Regente com o parecer dos procuradores e assi com as respostas que em escripto houve dos ausentes, deu em nome de El-Rei resposta aos embaixadores, escusando-se por muitas causas a n„o dever cumprir, nem haver por bem o que requeriam, e que assi era dos do reino aconselhado, e que se por isso El-Rei de Castella quizesse mover guerra contra estes reinos, que lhe pesaria muito por ser entre christ„os t„o conjunctos em sangue e amigos. PorÈm quando t„o sem raz„o a movesse, e como imigo quizesse n'elles entrar, fosse certo que a contenda n„o duraria muito; porque no campo o havia de receber e n„o o esperar de tr·s das paredes. E que esperava em Deus pois era justo, que na victoria o faria t„o herdeiro, como fizera a El-Rei D. Jo„o, de cujos lombos sahira. Com esta resposta despediu os embaixadores de Castella, que com todas suas ameaÁas passadas n„o publicaram a guerra como mostravam. FIM DO I VOLUME *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CHRONICA DE EL-REI D. AFFONSO V (VOL. I) *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.