Nota de editor:
Devido à
quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Out. 2008)
A PHILOSOPHIA DA NATUREZA
NATURALISTAS
1894
HOMENAGEM POSTHUMA
A
ANTHERO DE QUENTAL
(MICHAELENSE)
Anthero de Quental
A PHILOSOPHIA DA NATUREZA
DOS
NATURALISTAS
1894
Typ. Editora do CAMPEÃO
POPULAR
S. Miguel--PONTA
DELGADA--Açores
EXPLICAÇÃO PREVIA
Digam o que disserem, Anthero de Quental
foi indubitavelmente, um dos mais fecundos escriptores
do seu paiz e da sua epocha.
Raros, muito raros, foram as theorias ou problemas
da actualidade, ventilados com interesse
nos dominios da Sciencia, da Politica ou da Arte
que deixassem d'exercitar a penna sempre prestigiosa
e sempre elegante do grande Mestre.
Na sua obra em prosa cabe, porem, um logar
proeminente aos copiosos artigos de critica ou
de polemica, que, durante quasi trinta annos, appareceram
estampados em diversos orgãos da imprensa
periodica portugueza, tanto da capital como
da provincia, e nos quaes, á semelhança de
Littré e de Taine, elle connotou, como n'um diario
[VI]
intimo, não sómente as suas opiniões
pessoaes sobre
os homens e os successos contemporaneos,
mas ainda as correntes de influencias estranhas
que actuaram no seu espirito e as impressões que
d'ahi resultaram.
Como critico e polemista, Anthero de Quental
não teve em Portugal competidor; foi unico
na energia fogosa da polemica e nos processos
technicos da analyse critica.
Os seus escriptos de critica bibliographica
são exemplares de methodo e de bom senso, de finura
e de erudição, de escrupulosa imparcialidade
e d'aquella serena comprehensão dos multiplices
aspectos das cousas e dos homens que dá ao critico
a maxima authoridade e valor.
N'este particular, pertence-lhe a gloria de ter
sido entre nós o verdadeiro creador d'um genero
litterario descurado, para não dizermos falseado,
na sua applicação.
Até elle a critica, aberrando diametralmente
do seu papel objectivo, fazia-se pela antipathia ou
sympathia do critico para com o nome do author;
o louvor ou a censura previam-se justamente, dadas
as relações de sentimento d'um para com outro.
Foi Anthero quem iniciou a critica impessoal,
a critica objectiva, desapaixonada, fria, inspirada
[VII]
por um sentimento de equidade e de justiça--critica,
em summa, que é uma lição; porque
ensina, e
que pode fazer do criticado um adversario, mas
nunca um inimigo--e do critico um juiz, mas nunca
um louvaminheiro nem um delator.
Os artigos criticos do grande Mestre teem todos
estes caracteres acentuadamente impressos:
não são exclusivamente laudatorios nem
exclusivamente
aggressivos; são justos e por isso mesmo
verdadeiros. Teem authoridade; porque fallam sinceramente
uma linguagem que não é a do odio
nem a dos affectos; mas que é a voz d'uma consciencia
honrada para a qual os Homens são o menos
e a Verdade o mais.
Se alguns d'esses trabalhos perderam já aquelle
cunho de novidade que os fez circular vertiginosamente
d'um a outro canto do nosso paiz, e
se por isso não movem ao interesse e enthusiasmo
que suscitaram aos primitivos leitores, é certo,
que ainda assim, constituem documentos de
summa valia, quer sob o ponto de vista meramente
litterario, quer como subsidio para quem
no futuro pretenda historiar as differentes phases
do movimento das idéas em Portugal, na ultima
metade do seculo XIX.
Taes elementos são, portanto, indispensaveis
para o estudo de Anthero e da sua epocha. Sem
[VIII]
elles mal se poderá comprehender a obra do grande
Mestre na sua extensão, valor, influencia, e
mal se poderá explicar tambem a
filiação ou dependencia
das diversas partes d'essa obra complexa
e vastissima.
Vê-se, pois, que quem quizer formar uma
idéa cabal do irrivalisavel escriptor e da sua actividade
productora, ou procurar comprehender a
acção exercida sobre os seus contemporaneos, ha
de necessariamente recorrer ás
collecções das Revistas
e Gazetas, que o contaram entre os seus
collaboradores, onde elle deixou archivado pelo
seu proprio punho aquillo que bem pode chamar-se
a sua
autobiographia mental.
Infelizmente, porém, são numerosos e pouco
accessiveis esses repositorios, muitos dos quaes
teem desapparecido (como succede á maior parte
das revistas academicas, publicadas em Coimbra)
e outros tornam-se cada dia mais raros, dada a
procura dos collecionadores.
N'estas condições, dentro em breve, poucos
serão os estudiosos que tenham a dita de ler e
consultar os escriptos jornalisticos d'Anthero.
Esperar-se-ha que um editor tome sobre si o
encargo de recolher essas numerosas especies dispersas?
E não será isso, por assim dizer, sacrificar a
[IX]
obra do grande Mestre, deixando de recolher muitos
dos escriptos da maior raridade?
A edição definitiva das obras completas d'Anthero
só poderá levar-se a cabo, quando primeiro
se publiquem as reproducções d'esses escriptos
avulsos.
Aos amigos e discipulos do immortal escriptor
impende, pois, um grande dever de gratidão:--é
o dever de cada um de per si ou associados,
salvar do olvidio e da destruição os trabalhos do
Mestre, colligindo-os systematicamente e por ordem
chronologica, á semelhança do que fez o sr.
Oliveira Martins para os Sonetos e restantes
composições
poeticas.
É urgente começar. Talvez mais tarde
não
seja possivel reconstituir a serie d'aquelles trabalhos
ou por terem desapparecido os jornaes em
que foram originalmente publicados, ou por muitos
d'elles serem anonymos e terem tambem desapparecido
as pessoas que poderiam reconhecer
a sua paternidade.
[X]
II
No diario portuense--
A
Provincia--inseriu Anthero
de Quental, em 1886, uma serie de cinco
artigos, a proposito da obra de Vianna de Lima,
intitulada--
Exposição summaria
das theorias
transformistas.
A questão versada era e é ainda das mais
importantes e das mais disputadas, tanto no terreno
propriamente especulativo, como no terreno
das sciencias naturaes.
Anthero de Quental,
metaphysico
de profissão,
não podia entrar no debate como naturalista,
embora os seus estudos tivessem fundos alicerces
nas Sciencias da natureza. Discutiu e argumentou
como philosopho;--philosophou; porque
na materia tinha opiniões originaes definidas e
razões peculiarmente suas.
D'ahi a importancia e renome dos artigos que
o publico illustrado victoriou, como modelos acabados
de analyse critica, collocando-os do mesmo
passo a par das melhores paginas de prosa portugueza.
Tinha razão.
São com effeito obras primas no seu genero e
[XI]
em que não se sabe qual mais admirar, se a belleza
incomparavel de forma, se a genial pujança
e superioridade do pensamento que anima aquella
solida construcção especulativa, communicando-lhe
a maxima potencia de suggestão e de interesse.
Mostremo-lo, embora de relance.
Anthero de Quental, partindo do principio de
que a
sciencia não póde ser para
a philosophia
mais que uma materia prima, impugna a
pretensão
de fundar uma philosophia da natureza com a
a simples generalisação dos dados d'um grupo de
sciencias, e sem ter em conta o indispensavel criterio
das ideias. É este o thema principal que elle
se esforça para estabelecer fundamentalmente.
Analysando as duas noções que formam a base
da doutrina Haeckeliana--
o monismo
e a
evolução--mostra
que a primeira é insufficiente, e á
segunda falta a generalidade scientifica; visto como
não intervem, senão
onde o
elemento historico
representa um papel proeminente.
Por outro lado demonstra que ha contradicção
flagrante entre a idéa da espontaneidade da
materia, como a admitte a escola monista, e a
theoria da conservação do movimento, que domina
nas sciencias physicas e em grande parte nas
[XII]
sciencias da organisação.
E sobre estas premissas logicas, conclue que
a doutrina da evolução, formulada por Haeckel,
longe de ser, como se pretende, uma doutrina positiva,
baseada nas sciencias e fluindo d'ellas como
sua consequencia natural, implica, pelo contrario
uma
extensão abusiva da
inducção scientifica
e a illegitima generalisação d'uma hypothese,
que, se é perfeitamente fundada no terreno de determinadas
sciencias, só ahi e só n'esse ponto de
vista tem authoridade scientifica.
A
idéa da finalidade,
combatida pela escola
monista, é sustentada por Anthero d'um modo
superior e original.
A evolução,
diz elle,
implicando a idéa d'um
typo, que as formas evolvendo, tendem a realisar,
implica por isso mesmo uma finalidade. Quem diz
evolução, diz progresso. Ora progresso que
não
tende para cousa alguma que não tem um typo e
um fim, não se comprehende.
Não é preciso mais para se ver a importancia
e o valor do trabalho que se segue.
Poderiamos fazer aqui algumas approximações
entre as doutrinas d'Anthero e as doutrinas
de Hartmann, Lang e Stallo--seus authores predilectos
e mais compulsados.
[XIII]
Poderiamos tambem mostrar que os bellos artigos
sobre as tendencias da moderna philosophia,
dados a lume na
Revista de Portugal,
são o desenvolvimento
logico do pensamento dominante nas
paginas adiante reproduzidas.
Mas fallece-nos a authoridade e competencia
para tanto, e demais, o trabalho d'Anthero não
carece nem de criticas, nem de commentarios
elucidativos:--impõe-se
por si e tem em si a necessaria
lucidez para convencer a uma simples leitura.
Reproduzindo-o hoje temos apenas em vista
render, no anniversario do seu passamento, uma
derradeira homenagem de respeito e estima ao filho
d'esta ilha que é uma das maiores glorias das letras
patrias, e ao mesmo tempo facilitar aos estudiosos
a leitura d'um dos trabalhos philosophicos
d'elle em que mais claramente se patenteiam o
seu subtil engenho dialectico, a originalidade das
suas concepções especulativas e as maravilhosas
qualidades didacticas da sua prosa expositiva e
analytica.
E d'est'arte fica explicada a presente
publicação.
Ponta Delgada,
11 Setembro de 1893.
Eugenio Vaz Pacheco do
Canto e
Castro
PRIMEIRO ARTIGO[A]
Um livro sobre as modernas theorias
transformistas, publicado em Paris e em
francez, e firmado por um nome portuguez,
é facto tão extraordinario, que por si
só
bastaria para attrahir as attenções. Mas no livro
do snr. Vianna de Lima, não é só a
extranheza
do facto que deve chamar a nossa attenção:
é
ainda o seu valor intrinseco. Esta
Exposição
summaria das theorias transformistas é,
como o
[2]
titulo indica, uma especie de
summa
das doutrinas
professadas sobre a philosophia da natureza
por uma escola consideravel, cuja cabeça, E.
Haeckel, é um dos nomes mais illustres, e justamente
illustres, da Allemanha intellectual, na segunda
metade do nosso seculo: e a obra do adepto
não é indigna, nem pela intelligencia nem pelo
saber, da escola nem do mestre.
Não sou naturalista e, tendo a consciencia da
minha incompetencia, não me atreveria a escrever
sobre a obra do sr. Vianna de Lima, se o seu livro
fosse propriamente um livro de sciencias naturaes,
e se os quatro estudos, de que se compõe,
se conservassem escrupulosamente nos limites rigorosos
do campo scientifico. O livro, porem, do
snr. Vianna de Lima, apezar da modestia do titulo,
aspira de facto a ser um livro de philosophia
da natureza, e, n'esse terreno, creio poder,
sem temeridade, emittir algumas opiniões fundamentadas.
Prestarei, assim uma homenagem ao
moço portuguez (portuguez pelo nome e pelo sangue:
ouço que é brazileiro) que tão
galhardamente
nos representa no grande mundo da intelligencia,
aproveitando ao mesmo tempo o ensejo para
dizer alguma cousa sobre uma escola philosophica,
cujos chefes respeito e cuja importancia não
desconheço; mas cujas tendencias estão muito
longe, em meu entender, de serem satisfactorias.
Alexandre de Humboldt, o naturalista encyclopedico
e quasi legendario do primeiro quartel
[3]
d'este seculo, costumava dizer causticamente, referindo-se
á philosophia da natureza puramente
especulativa, que então deslumbrava com os
clarões
do genio de Schelling e Hegel, não só a Allemanha
pensadora, mas ainda a Allemanha scientifica,
que achava singularissimos aquelles naturalistas
que pretendiam fazer chimica sem molhar a
ponta dos dedos.
Tinha razão.
Hoje, nós outros metaphysicos, podemos com
igual razão dizer que são singulares estes
philosophos,
que, com os dedos mais que ensopados em
chimica, pretendem fazer philosophia sem nunca
se terem dado ao trabalho de reflectir.
Com effeito, a philosophia é, de sua natureza,
especulativa, e a sciencia não póde ser para ella
mais que uma materia prima.
Um homem de sciencia, por encyclopedico
que seja, se não tiver ao mesmo tempo reflectido
muito e profundamente sobre as questões puramente
racionaes, que a sciencia suscita e não póde
por si resolver, reflectido sobre as ideas abstractas,
que são, umas, postulados para as differentes
sciencias, outras, principios ordenadores
d'uma explicação geral das cousas, um tal homem
de sciencia, apesar do seu encyclopedismo, não
poderá nunca aspirar ao titulo de philosopho. Pode
dizer que
sabe, mas não
que
entende, porque o
problema do universo, como problema total e
concreto, será para a sua intelligencia, aliás
opulenta
[4]
de factos, tão obscuro, como é para a
intelligencia
d'um simples e ignorante. A philosophia
não é o mero ajuntamento ou ainda o quadro
empiricamente
ordenado dos factos do universo: é a
comprehensão e explicação racional e
total d'esse
grande quadro. Ora, uma tal explicação
só é possivel
no ponto de vista das ideias ultimas e fundamentaes
da rasão (
substancia,
causa,
fim) e essas
ideias teem por isso de ser tomadas em si,
pesadas e analysadas. Não faz outra cousa a metaphysica,
e sem metaphysica não ha philosophia,
porque não ha verdadeira comprehensão
racional, nem verdadeira e total explicação.
Metaphysica
(ou especulação) e sciencia (ou
observação)
são duas series convergentes, que partem
de pontos oppostos e com leis de desenvolvimento
diversas; mas, como são convergentes, encontram-se:
o ponto onde se encontram e, sem se
fundirem, reciprocamente se penetram, é que é a
philosophia. A philosophia tem pois por materia
a sciencia, por forma a metaphysica; ou ainda, a
philosophia é a observação (quero
dizer, os seus
resultados) considerada no ponto de vista absoluta
da rasão.
O desconhecimento d'estas verdades e o desdem
pela metaphysica, filho em grande parte da
reacção, aliás justissima, provocada
pelos excessos
e intoleravel dogmatismo da especulação, na
Allemanha, e pela sua insignificancia e convencionalismo,
em França; e, por cima d'isso ainda,
[5]
o maravilhoso desenvolvimento das sciencias naturaes,
durante os ultimos 40 annos, deram de si
o apparecimento d'uma pseudo-philosophia da
natureza que se pretende positiva e puramente filha
das sciencias e que julga ingenuamente poder resolver
os intrincados problemas das idéas, sem
ter o incommodo de reflectir e só com grande
somma de physica, chimica e physiologia.
D'estes naturalistas philosophos o mais eminente,
tanto pelo saber como pelo genio, é o apostolo
de Darwin na Allemanha, o illustre autor da
Historia natural da
Criação, Ernesto Haeckel.
É entre os discipulos de Haeckel que vem tomar
logar, com o seu livro, o snr. V. de Lima.
Profano, não me é dado conhecer e dizer
até que ponto a rigorosa verdade e o rigoroso
methodo scientificos tem sido violentados pelo
sabio e engenhoso, mas não menos phantasioso e
temerario professor de Munich
[B],
para se dobrarem
e acommodarem ás suas doutrinas geraes.
Sei só que outros mestres eminentes, como Virchow,
Helmholtz, Huxley e Du Bois-Reymond estão
longe de se darem por inteiramente satisfeitos
com a orthodoxia scientifica de muitas das
affirmações
do padrinho do
monero batybio. A mim
só me
é permittido occupar-me com as ideias e tendencias
propriamente philosophicas da escola monista-evolucionista,
cuja cabeça é Haeckel; e o livro do discipulo,
que se propoz resumir a doutrina, ser-me-ha
[6]
occasião para fazer sobresahir (embora só em
dois pontos, mas capitaes ambos) a confusão e deficiencia
na analyse das ideias, que impedem, a
meu juizo, que a pretendida philosophia da natureza
monista-evolucionista, apezar da imponente
massa de sciencia sobre que assenta, attinja a verdadeira
altura d'uma philosophia da natureza.
Monismo e evolução são as duas
noções que
formam a base da doutrina Haekeliana. Comecemos
por indagar que ideia precisa envolve esta
palavra--
monismo. Parece-me que a
palavra é que
é nova, não a ideia. Tanto valeria dizer
pantheismo,
ou ainda materialismo, pois não encontro no
fundo d'aquella expressão nada mais do que n'estas
duas outras; a saber: uma concepção unitaria
da substancia.
Esta concepção, porem, (na sua simplicidade
e em quanto não fôr definida d'uma maneira
particular)
é propriedade commum de muitas escolas
antigas e modernas e precisa sahir d'essa generalidade
e indeterminação para poder caracterisar
uma maneira especial de comprehender as cousas:
assim o atomismo, assim o pantheismo de
Spinoza, assim o idealismo realista de Hegel etc.
Ora, é justamente essa falta de
definição precisa,
essa
vaga generalidade e
indeterminação, que
eu noto no
monismo de Haeckel.
Monismo parece-me
apenas uma palavra nova (e muito dispensavel)
e
não mais.
Com effeito, affirmar abstractamente a unidade
[7]
de substancia é, no terreno da philosophia
da natureza, pouca cousa: o que importa é definil-a.
Definil-a é apresental-a nas suas
relações com a realidade,
é caracterisal-a na sua maneira de ser positiva,
é mostrar, não como a concebemos
em si
(pertence isso á metaphysica), mas como a concebemos
realisavel.
Uma materia abstracta, una e simples, apenas
vagamente susceptivel de se manifestar por
omnimodas modalidades, é uma base insufficiente
para a philosophia da natureza; porque é uma base
insufficiente para a sciencia. O que a sciencia
exige e o que é preciso á philosophia da natureza
é determinar n'essa infinidade de moralidades,
qual é a fundamental ou elementar, aquella a que
se reduzem todas as outras. Ora é isso justamente
o que as sciencias da natureza teem feito, reduzindo
todas as modalidades da materia ao elemento
primordial
movimento. Os monistas,
sempre
que fallam como homens de sciencia, adoptam
(e não podiam deixar d'adoptar) esta
concepção.
Mas, como philosophos, em vez de receberem
das mãos da sciencia este resultado, para o
elaborarem e desenvolverem, caem no vago e em
inextrincaveis confusões.
É assim que o nosso auctor começa por se
declarar anti-materialista e pretende repellir o atomismo.
affirmando que a materia não póde ser
definida per esta ou aquella propriedade, mas que
«para o monismo, a materia é o que é
in situ....
[8]
é aquillo que se manifesta aos nossos sentidos e
ao nosso entendimento por modos diversissimos,
sob forma de phenomenos infinitamente variados....
pretender isolar (d'este conjuncto) certas
propriedades, abstrahir certas qualidades, é grande
erro.... para elle (o monista) qualidades, propriedades
especificas ou funccionaes, funcções, etc.
são inherentes á materia em que se manifestam
e formam com ella um todo indissoluvel». Entretanto,
meia pagina abaixo, dá a entender que todas
as propriedades da materia são fórmas do
movimento e se reduzem a movimentos elementares:
«a força é a propriedade ou a maneira
de
ser mais geral da materia.... todas as forças são
reductiveis a movimentos.... uma força não
é
mais do que materia em movimento». Mas, se isto
é assim, a materia não é já
«tudo o que é
in
situ» as suas propriedades não
são já «inisolaveis
e indissoluveis», nem é «grande erro
abstrahir do
conjuncto d'ellas certas propriedades», visto que,
de facto, a materia é caracterisada por uma propriedade
fundamental, o movimento, da qual todas
as outras não são mais do que modalidades,
ou, mais terminantemente, grupos e combinações
de movimentos simples elementares. Seriamos assim
levados ao dynamismo, concepção já
mais
precisa e mais pratica do que o vago e indeterminado
monismo, e que, depois de Leibnitz, cada
vez mais tem ido penetrando, ou antes, impondo-se
á philosop» as suas propriedades não
são já «inisolaveis
e indissoluveis», nem é «grande erro
abstrahir do
conjuncto d'ellas certas propriedades», visto que,
de facto, a materia é caracterisada por uma propriedade
fundamental, o movimento, da qual todas
as outras não são mais do que modalidades,
ou, mais terminantemente, grupos e combinações
de movimentos simples elementares. Seriamos assim
levados ao dynamismo, concepção já
mais
precisa e mais pratica do que o vago e indeterminado
monismo, e que, depois de Leibnitz, cada
vez mais tem ido penetrando, ou antes, impondo-se
á philosophia das sciencias.
[9]
Já por aqui começamos a ver quanto a
concepção
monista da materia é confusa e mal definida
e, por conseguinte, pouco philosophica. Mas
não o é só por isto. A
confusão primeira faz-se
sentir em todos os aspectos da ideia de materia.
É impossivel, com effeito, passar-se naturalmente
da noção d'uma substancia una, simples e apenas
virtualmente susceptivel d'omnimodas modalidades,
para a rica e quasi infinita variedade dos
seres e qualidades de que se compõe a universal
realidade. Que importa que essa doutrina sibyllina
nos diga que a sua substancia una e simples é
virtualmente susceptivel de toda a variedade de
formas e qualidades? A questão está justamente
em se saber como é que, sendo una e simples,
tal substancia póde effectivamente dar de si o movimento
e a variedade.
Sobre isto (e isto é justamente o nó vital da
questão) é muda a doutrina.
Como é que essa substancia una e simples
se determina? como é que, sendo una e simples,
se póde dar n'ella opposição,
diversidade, movimento?
A concepção
monista
implica continuidade--e
tudo no universo é descontinuo; implica simplicidade--e
tudo no universo é complexo: implica
inalterabilidade e indistincção--e tudo no
universo
é perpetua mudança,
differenciação e instabilidade.
[10]
O nosso auctor levanta se desdenhosamente
contra o atomismo. Entretanto o seu monismo, ou
é cousa nenhuma, ou tem de se resolver na ideia
de atomo. Pois o que está no fundo da
concepção
atomista? A ideia da descontinuidade da materia.
E tal ideia impõe-se: impõe-se como um facto
á
sensação; impõe-se como um postulado
á sciencia,
que, sem presuppor a descontinuidade, é incapaz
d'avaliar e exprimir por numeros (e é esse o typo
e a forma perfeita do conhecimento scientifico)
seja o que fôr na successão dos phenomenos;
impõe-se finalmente á
especulação, que não póde
conceber movimento onde não ha
distincção, opposição
e successão, e não póde pensar a
distincção
sem pensar
ipso facto a
descontinuidade.
Foi precisamente esta objecção que encontrou
deante de si e contra a qual veio desmanchar-se
a physica cartesiana com a sua ideia da
materia-extensão.
Como se concebe o movimento numa tal materia?
perguntava-lhe o atomista Gassendi. E Boileau,
com o seu solido bom senso, resumia a questão
nos dois versos celebres:
C'est en vain que Rohault
sèche pour concevoir
Comment, tout étant plein, tout a pu se mouvoir
O snr. V. de Lima, levantando-se, com os
seus mestres, contra o atomismo, e acceitando ao
[11]
mesmo tempo, com as sciencias physicas, a
reducção
da ideia de materia á de movimento, mostra
mais uma vez a inconsistencia do monismo no
terreno das ideias geraes da natureza e a falta de
analyse segura que patenteia a concepção
fundamental
sobre que assenta.
Declamar contra o atomismo é facil: evitar
com uma palavra vaga e ao mesmo tempo pomposa
as difficuldades que envolve a concepção da
materia, é mais facil ainda: mas não é
isso o que
se espera de verdadeiros philosophos; e uma tentativa
de philosophia da natureza, só merecerá
este nome, quando sobre a analyse das ideias de
substancia, força e movimento se assente uma
doutrina da materia que satisfaça ao mesmo tempo
ás exigencias puramente racionaes da
especulação
e as mais praticas da indagação scientifica.
Nada d'isto encontro no monismo de Haeckel e
seus discipulos: o terreno sobre que pretendem
construir está, quanto a mim, muito longe de ser
solido.
SEGUNDO ARTIGO[C]
Falta-me ainda encarar, n'esta esphera
da ideia de materia, a concepção
monista, sob um outro ponto de vista.
É o da espontaneidade da materia.
O snr. Vianna de Lima affirma, por assim
dizer, dogmaticamente, nas suas
Observações
preliminares, essa espontaneidade e protesta
contra a physica da inercia: entretanto, todo o
seu livro, toda a sua maneira de comprehender a
evolução presupõe a inercia da
materia. É que
d'uma affirmação a uma theoria vae uma certa
distancia, e não me consta que algum dos mestres
do monismo tentasse ainda formular essa
[14]
theoria. O assumpto envolve com effeito uma difficuldade,
que me parece exceder a capacidade
especulativa dos doutores monistas.
A ideia da espontaneidade da materia (ideia
puramente especulativa, em que peze ás pretensões
do positivismo dos nossos naturalistas philosophos)
parece estar em contradicção com a theoria da
conservação
do movimento, que domina nas sciencias
physicas e já em grande parte nas sciencias
da organisação.
Não vejo que a doutrina monista resolva, como
ella póde ser resolvida, n'uma esphera superior,
esta contradicção. Pelo contrario, no livro
do sr. V. de Lima, pela maneira por que o principio
da conservação do movimento é
applicado,
sem a menor reserva ou explicação, desde a
physica até á psychologia, e a
evolução apresentada
como o exclusivo resultado do puro mechanismo,
a espontaneidade da materia, praticamente
e apesar das affirmações preliminares,
é
constantemente desconhecida, ou antes, é negada
implicitamente a cada instante. De facto, é
como se o livro todo não tivesse outro fim senão
destruir a these estabelecida nos prolegomenos--these
que todavia é, philosophicamente,
o seu fundamento. Com effeito, se havemos de
entender que todo o movimento, seja de que
ordem fôr, é não só
condicionado por um movimento
anterior, mas realmente e exclusivamente
[15]
uma transformação d'esse movimento anterior,
é
claro que tal concepção do movimento exclue
in
limine a ideia de espontaneidade. A
condição passa
a ser causa: o effeito, mera prolação da causa,
é uma apparencia sem ser proprio, sem autonomia.
Consideremos mais de perto a contradicção
que d'aqui resulta. Se, por um lado, a materia
em geral é dotada d'espontaneidade, isto é, se o
movimento lhe é inherente; mas se, por outro lado,
qualquer movimento particular e todo e qualquer
movimento se reduz no fundo, a uma simples
transformação das acções
anteriores que o
condicionam; pergunta-se: como se consegue então
a espontaneidade geral e theorica da materia?
Se o movimento
A se reduz a uma
simples transformação
do movimento
B, que o condiciona e
não
é por isso
espontaneo, o movimento
B está
para com o movimento
C, que por seu turno o
condiciona, exactamente na mesma relação, assim
como o movimento
C para com o movimento D,
o movimento
D para com o movimento
E
e assim
indefinidamente--de sorte que em parte alguma
se encontra movimento espontaneo. O que significa,
pois, a espontaneidade attribuida theoricamente
á materia? E, sobre tudo, como se explica
o proprio facto do movimento, que d'este modo
está em toda a parte sem estar em parte alguma?
que é por toda a parte effeito, sem ter causa em
[16]
parte alguma? como se concebe esse modo de
ser, que, não tendo autonomia em nenhum dos
pontos onde se realisa e realisando-se universalmente,
parece ser e não ser ao mesmo tempo?
Ainda por este lado, se me não engano, a
ideia da materia, segundo os monistas, está muito
longe de apresentar a definição e consistencia
necessarias. Ora essa idéa tem de ser a pedra
mestra de toda a construcção philosophica na
esphera
da natureza. A final de contas bem apertada
e espremida, a doutrina da materia, segundo
a philosophia monista, reduz-se, como creio ter
mostrado, ás noções correntes, nas
sciencias physicas,
de atomo e força. Não só
não ha n'ella
originalidade alguma, mas o que é peior,
apresentam-se nos aquellas
noções envolvidas nevoentamente
n'uma concepção vaga, d'onde é
necessario
extrahil as e, no fim de tudo, em vez de esclarecidas
e aprofundadas, obscurecidas por forma
tal que nada ha de lucido e fecundo a tirar
d'ellas para uma comprehensão superior e verdadeiramente
philosophica dos phenomenos da natureza.
Com as observações que acabo de fazer
não
pretendo de modo algum contestar o valor e a
legitimidade, na esphera das sciencias physicas,
das noções de materia, atomo, força e
movimento,
nos limites em que a sciencia emprega estas
noções: ellas não são, com
effeito, para a sciencia
[17]
mais de que hypotheses, restrictas a um determinado
campo e não tendo por fim senão a
coordenação
racional d'uma determinada ordem de
phenomenos, d'um determinado aspecto da phenomenalidade.
A sciencia, usando d'estas noções,
não pretende impol-as fóra da sua esphera, nem
dal-as em absoluto, como explicação ultima e
irreductivel
das cousas. A conservação do movimento,
scientificamente, é um facto: um facto,
que pela sua generalidade, envolvendo a
explicação
de innumeros outros factos, tem o valor d'uma
theoria, mas d'uma theoria puramente scientifica.
Se a conservação do movimento implica o
determinismo,
implica-o só nos limites e no ponto de
vista do puro mechanismo, no ponto de vista da
realidade como systema de movimentos--sem
que a sciencia possa ou pretenda concluir d'ahi para
um outro ponto de vista, que não é o seu, e
em que o mechanismo já não apparece como o limite
e termo ultimo do conhecimento.
Sciencia e especulação (volto a repetil-o)
são
cousas muito diversas, embora dependentes uma
da outra, e o que basta á sciencia não
é sufficiente
para a especulação. Ideias, que no terreno
scientifico bastam e são por isso, n'esse terreno,
muito legitimamente consideradas irreductiveis,
não bastam já nas regiões da
especulação, onde
com effeito são reductiveis a categorias mais
transcendentes.
Se o conjunto das sciencias não póde,
[18]
como todos os verdadeiros pensadores reconhecem,
supprir a philosophia ou substituir-se a ella,
é justamente porque o conjuncto das ideias geraes
das sciencias, não inclue em si a totalidade
dos elementos racionaes da comprehensão do universo,
mas apenas o conjuncto d'esses elementos
no ponto de vista da phenomenalidade. Ora
o monismo, attribuindo ao ponto de vista das
sciencias physicas um caracter absoluto, arvorando
as ideias geraes d'um grupo de sciencias em
ideias ultimas e irreductiveis, exorbitou da sciencia
sem ao mesmo tempo fazer acto de philosophia.
É o que talvez consiga mostrar ainda mais claramente,
fazendo a critica da ideia de evolução
segundo os monistas.
TERCEIRO ARTIGO[D]
A theoria geral da evolução, diz o snr.
Vianna de Lima (e são estas as primeiras
palavras do seu livro) não é
um
systema;
é a synthese comparativa, a conclusão que
sae do conjuncto de todos os factos positivos que
o espirito humano tem podido até agora
abraçar....
é a unica concepção racional e
verdadeiramente
scientifica do mundo».
É necessario fazer aqui uma distincção
importante.
A evolução não é, com
effeito, um systema
no dominio circumscripto de cada uma d'aquellas
sciencias onde esta ideia, por assim dizer,
se impõe, onde mil factos a confirmam e onde fóra
[20]
d'ella seria
impossivel encontrar-se um principio
geral de coordenação. Ahi, sem duvida, a
evolução
não é um systema, mas propriamente uma
theoria scientifica.
Mas estarão n'este caso todas as sciencias?
De modo algum.
A ideia de evolução não intervem
senão onde
o elemento historico representa um papel
proeminente, isto é, acima de tudo, nas sciencias
da organisação (incluindo n'este grupo a
anthropologia
e fazendo participar d'elle as sciencias sociaes,
nos limites em que estas teem um caracter
biologico) e depois ainda, mas d'uma maneira menos
necessaria e menos definida, na astronomia,
ou propriamente, astrogenia. É só ahi que a
divisão
do trabalho se exerce, differenciando gradualmente
e como que analyticamente as formas
contidas virtualmente e, por assim dizer, envolvidas
n'um germen ou facto primeiro, que é o ponto
da partida de toda a serie. A physica e a chimica,
porem, estão completamente fóra dos dominios
da ideia de evolução. A chimica parece reduzir-se
toda á atomicidade, e a maior ou menor
complexidade de composição não foi
nunca considerada
como um desenvolvimento, assim como a
irredectubilidade dos corpos chamados simples,
se não é um dogma, é certamente um
facto que
se impõe á sciencia e que, emquanto assim se
impozer, obstará a toda a theoria geral evolucionista
[21]
dos phenomenos chimicos. Por outro lado,
entre as forças physicas, não ha hierarchia, mas
parallelismo, e a reductibilidade d'umas ás outras
implica unidade, mas não evolução,
cousas bem
distinctas.
Onde está, pois, a generalidade scientifica da
ideia de evolução? A verdade é que uma
theoria
positiva da evolução, como o sonham os monistas,
essa synthese comparativa que sae do conjuncto
de todos os factos positivos só seria
possivel se
se dessem duas condições capitaes: 1.º
que a
ideia
de evolução se impozesse a toda a ordem de
phenomenos,
ou (o que para nós vale o mesmo) presidisse
superiormente a todas as sciencias: 2.º
que alem de explicar, dentro do districto de cada
sciencia, os factos n'elle comprehendidos, explica-se
tambem a passagem evolutiva de cada uma
d'essas ordens para a sua immediata, sem ter
de recorrer a nenhuma ideia nova e superior.
Ora, nenhuma d'estas condições se realisa.
A ideia d'evolução (como já indiquei,
e por
isso não insisto n'este ponto) só impera em
certas
sciencias e, por conseguinte, n'uma esphera limitada
da phenomenalidade.
Em segundo logar, a passagem d'uma determinada
ordem de phenomenos para outra não se
póde explicar evolutivamente, no terreno rigorosamente
scientifico, porque, n'esse terreno, o elemento
commum d'essas varias ordens é só um elemento
[22]
abstracto, o movimento, que pela sua
mesma abstracção, não é
capaz de dar razão do
que ha de especial em cada uma d'ellas e a caracterisa,
isto é, a forma ou funcção especial
que
representa. É assim, por exemplo, que embora
os phenomenos vitaes se reduzam, em ultima analyse,
ao movimento, isto é, a grupos e
combinações
complexas de movimentos elementares, nem
por isso a vida pode ser satisfactoriamente definida
como um modo de ser do movimento; porque
uma tal definição, pela sua mesma
abstracção,
nada define; nem o quadro de todos esses movimentos
póde ser dado como equivalente á ideia
synthetica da vida; nem,
finalmente, a
concepção
mechanica da vida representará outra cousa mais
do que um aspecto da phenomenalidade da vida
e nunca a concepção mesma da vida.
Parece-me claro, em vista d'isto, que a doutrina
de evolução formulada por
Haeckel
e seus
discipulos não é de modo algum, como se pretende,
uma doutrina positiva, fundada nas sciencias
e sahindo d'ellas como a sua natural consequencia.
Creio ter mostrado que essa doutrina implica
uma extensão abusiva da inducção
scientifica e
a illegitima generalisação d'uma hypothese, que
se
é perfeitamente fundada no terreno de determinadas
sciencias, só ahi e
só
n'esse ponto de vista
tem authoridade scientifica.
A doutrina monista tem, pois, em despeito
[23]
das suas pretensões de positividade, um caracter
especulativo e é propriamente
um
systema, uma
construcção philosophica em que o
a priori representa
um papel preeminente: n'uma palavra, apezar
dos elementos scientificos que contem, não é
uma doutrina scientifica, mas uma hypothese philosophica.
Resta agora ver se, como hypothese philosophica,
a ideia d'evolução, tal como a concebem os
monistas, apresenta aquella definição e
consistencia
sem as quaes a mais ampla e brilhante hypothese
é muito mais um producto da
imaginação,
do que da razão.
Creio que não apresenta.
Especulativos inconscientes, os monistas especulam
mal. Tal como a concebem, a evolução,
destituida de todos aquelles elementos de analyse
racional, que só lhe poderiam dar um verdadeiro
cunho philosophico, não é um principio: seria
apenas
(se as suas pretensões de positividade fossem
fundadas) um facto; facto culminante e universal,
mas simples facto e não principio.
Ora os factos são apenas a materia prima
da philosophia: são aquillo que se pretende explicar,
em quanto que só os principios fornecem o
criterio e o ponto de vista d'essa explicação; e
a
doutrina monista da evolução, que, como doutrina
positiva, como generalisação scientifica dos
factos da natureza, está muito longe de ser rigorosa
[24]
e fundada, pecca por outro lado gravemente,
como hypothese philosophica, como doutrina
especulativa, pela falta d'analyse das ideias sobre
que, para merecer o nome de philosophia da natureza,
se deveria apoiar.
Com effeito, se o universo evolve porque é
que evolve? Se a sciencia nada tem que vêr com
esta questão, a philosophia é que tem muito e
tudo--e já mostrei que é sómente como
tentativa
philosophica de explicação que o evolucionismo
monista deve ser considerado.
Uma theoria geral philosophica do desenvolvimento
das cousas implica, pois, uma theoria
da razão de ser d'esse desenvolvimento. Sobre
esta questão essencial o monismo é peior do que
mudo; é absurdamente negativo.
A ideia de evolução implica necessariamente
a de finalidade; esta contem a explicação
racional
d'aquella, que, só por si, é inintelligivel e
até
contradictoria. Se o movimento, acto essencial da
materia, é autonomo (e é esta a these monista
fundamental) tal movimento não póde ser concebido
senão como um impulso espontaneo, por
conseguinte, como uma verdadeira determinação
voluntaria: ora onde ha determinação voluntaria
sem mobil, sem fim? Pois não é precisamente o
fim que determina a vontade, e que explica o acto?
Um movimento autonomo, que não tende a um
fim, é perfeitamente inconcebivel: pois se não ha
[25]
fim porque e para que o movimento? A ideia de
finalidade é a pedra angular de toda a
construcção
philosophica no terreno da natureza.
Assim o comprehendeu Leibnitz na sua Monadologia,
assim o comprehenderam Schelling e
Hegel, os verdadeiros paes da moderna philosophia
da natureza.
O horror pueril á metaphysica e a pretensão
chimerica de fundar uma philosophia da natureza
positiva e exclusivamente architectada no terreno
da sciencia levou Haeckel (e muitos outros atraz
d'elle e com elle) a desconhecerem a importancia
capital da ideia de finalidade e a minarem aquillo
que justamente lhes deveria servir de primeiro
fundamento para o edificio que levantavam. É o
que espero deixar suficientemente provado no
meu proximo artigo.
QUARTO ARTIGO[E]
O Snr. Vianna de Lima consagra as ultimas
100 paginas do seu volume a combater
a ideia de finalidade nos dominios
da natureza e triumpha facilmente dos theologos
ou simili-theologos, que, despojando a materia das
suas propriedades espontaneas e da sua infinita
virtualidade, veem em tudo os effeitos d'uma
direcção
exterior e se extasiam diante das harmonias
intencionaes da Criação.
Era facil o triumpho. Sómente, o snr. Vianna
de Lima tomou a nuvem pela deusa, tomou a
concepção infantil e anthropomorphica da
finalidade
pela propria ideia metaphysica de finalidade.
[28]
Se o snr. Vianna de Lima se despojasse por
algum tempo dos seus habitos de pensamento de
puro naturalista e estudasse um pouco os tão abominaveis
metaphysicos, não só Leibnitz e Hegel,
mas ainda o representante nosso contemporaneo
da alta especulação, Hartmann (que é,
não
menos do que foram aquelles dois, profundamente
versado nas sciencias da natureza) veria que a
ideia de finalidade não se reduz, como lhe parece,
áquella concepção
anthropomorphica,
que com
tão facil felicidade refuta no seu livro. Veria que
a finalidade póde ainda ser concebida como immanente
á materia e como aquelle segundo elemento
que vem integrar, juntando-se ao movimento,
a noção da realidade; que, n'este caso,
longe de ser contradictoria com a espontaneidade
do movimento, é justamente a
explicação do movimento;
que o que parece effeito, no ponto de
vista do puro mechanismo, é causa no ponto de
vista da finalidade, sem que uma cousa repugne
á outra, porque são duas espheras do
conhecimento,
que ao mesmo tempo que se oppõem, reciprocamente
se completam.
Perceberia então uma cousa, e é que,
não só
o movimento em geral (o movimento em si, independentemente
de qualquer ideia de desenvolvimento)
é racionalmente inexplicavel e, por conseguinte,
inconcebivel sem a ideia de finalidade ou
de causa-final, mas que mais particularmente a
evolução,
[29]
isto é, o movimento como
hierarchia ou
desenvolvimento, implicando a ideia d'um typo,
que as formas evolvendo, tendem a realisar, implíca
por isso mesmo uma finalidade.
O typo é realisado na serie, não é um
producto
d'ella: pois, se fosse um producto, como se
explicaria a serie? Quem diz evolução diz
progresso.
Ora, progresso que não tende para cousa
alguma, que não tem um typo e um fim, não se
comprehende. Se não ha typo, não ha medida ou
termo de comparação na serie, não ha,
por conseguinte,
hierarchia: ha variedade de formas parallelas
e equivalentes; mas não desenvolvimento.
No meio d'essa multidão de formas inexpressivas,
tudo será igualmente perfeito ou imperfeito:
haverá ainda transformismo; mas não
haverá
evolução progressiva.
É assim que o ultimo capitulo do livro do
snr. Vianna de Lima deita por terra a doutrina
estabelecida laboriosamente nos que o precedem.
É assim que metade da doutrina de Haeckel deita
por terra a outra metade. É assim que uma
philosophia da natureza que pertende
não ser uma
philosophia especulativa, acaba por não ser
cousa alguma.
Que concluiremos de toda esta critica? Concluiremos
em primeiro logar, que os naturalistas,
quando não são ao mesmo tempo philosophos,
não podem construir uma philosophia da natureza
[30]
que se sustenha de pé. Concluiremos, em segundo
logar, que não póde haver, por muito que
se apregoe, philosophia da natureza positiva (puramente
scientifica), assim como em geral não póde
haver philosophia positiva. O erro commum
em que laboram os positivistas das differentes communhões
(são varias, e todas egualmente positivas)
é este: que o conhecimento scientifico é o typo
do
conhecimento, o conhecimento ultimo e perfeito; e
que, por conseguinte, esgotando o ponto de vista
scientifico a comprehensão da realidade, basta reunir
em quadro as conclusões de todas as sciencias,
ou generalisar as ideias fundamentaes communs a
todas ellas para se obter a mais alta comprehensão
das cousas, a que nos é dado aspirar. D'aqui a
chimera d'uma philosophia positiva.
Não seria chimera, se com effeito o conhecimento
scientifico representasse o conhecimento
supremo e definitivo, e não apenas uma determinada
esphera do conhecimento. Nesse caso a
generalisação
dos dados scientificos corresponderia a
uma verdadeira synthese e a abstracção suprema
dos elementos da realidade tomaria o logar das
ideias da razão. Infelizmente ou felizmente (que
isso importa pouco) a razão subsiste e com ella o
ponto de vista das ideias metaphysicas de
substancia,
causa e finalidade ás quaes tem
de ser referidas,
em ultima instancia, as conclusões da sciencia.
E porque? Porque essas conclusões, ainda
[31]
nas suas mais vastas e deslumbrantes
generalisações,
não se explicam a si mesmas e, representando
apenas as grandes linhas e como que a estructura
abstracta do mundo phenomenal, precisam
ellas mesmas de ser explicadas. Com o seu
caracter abstracto são ainda factos, e os factos
precisam do reflexo da razão para se tornarem
intelligiveis. O conhecimento scientifico constitue
apenas a região media do conhecimento, entre o
senso commum, d'um lado, e o conhecimento metaphysico,
do outro. É pois a rasão que tem, em
ultima instancia, de se pronunciar sobre o valor e
o logar, na comprehensão total do universo, dos
dados quer do senso commum quer da sciencia.
Essa comprehensão total é que é a
philosophia: edificio
sempre em construcção, sempre renovado
nos seus materiaes (que o progresso dos conhecimentos
positivos lhe vae fornecendo dia a dia)
sempre instavel e ao mesmo tempo sempre de pé,
e que sendo sempre incompleto nunca se pode
dizer insufficiente, porque, tal como é, corresponde
ás mais altas faculdades do espirito humano,
abriga as mais sublimes aspirações, tormento
e gloria ao mesmo tempo, d'este mysterioso animal
racional chamado homem.
E eis ahi porque uma philosophia positiva é
uma chimera. Quem diz philosophia diz idealismo.
Só o systema das ideias contem inteira a
explicação
do systema das cousas. O movimento não esgota o
[32]
ser: o ser implica movimento e ideia. Os naturalistas,
desprezando ou ignorando as ideias, ignoram
metade das cousas e a sua philosophia é só
meia philosophia, ou antes, é só um arremedo da
philosophia.
Tudo quanto é, é
racional, disse Hegel.
Pretender amputar a razão é pretender amputar
a realidade.
É dentro da razão, não fóra
d'ella, que teem
de ser marcados os limites do conhecimento. Só
no ponto de vista total da razão se resolvem as
contradicções que a realidade apresenta, como
outras tantas esphinges á intelligencia
indagadôra.
Materia e espirito, determinismo e liberdade,
evolução e finalidade, não
são ideias contradictorias
senão na apparencia: de facto, são só
duas
espheras differentes da comprehensão, these e antithese,
cuja synthese é a razão.
Assim, uma philosophia da natureza, tal como
a concebo, uma philosophia da natureza á altura,
não só do grande seculo das sciencias naturaes,
mas do grande seculo de Kant e Hegel, não
tem que regeitar o determinismo universal e a
evolução
como uma forma mechanica d'esse determinismo:
mas o que não póde é ficar ahi.
Determinismo e evolução serão apenas o
seu
ponto de partida, a forma universal da phenomenalidade,
que a generalisação scientifica lhe fornece
[33]
e que ella, a philosophia, terá d'analysar e
interpretar á luz das ideias. Só assim
terá satisfeito
não só á rasão
especulativa, mas ás exigencias
não menos imperiosas da consciencia humana.
Digo da consciencia humana; e é este um outro
aspecto, e aspecto capital da questão que é
necessario por em evidencia. Muitos dirão:--que
tem que ver a philosophia com a consciencia humana?
Responder-lhes-hei:--tem tudo. Por uma singular
aberração, são justamente os que mais
falam
de positivismo e factos positivos os que parecem
esquecer ou ignorar que a consciencia humana
é um facto, que a sua actividade, expressa
e objectivada em milhares de manifestações, desde
os codigos até á poesia, e atravez de milhares
d'annos, constitue uma ordem de factos tão positivos
e tão irrecusaveis como os da physica ou da
astronomia. E estes factos não são só
positivos e
evidentes: são ainda culminantes, pois os phenomenos
sociaes e moraes, tendo atraz de si todas
as outras ordens de phenomenos e apoiando-se
n'ellas, constituem o ponto mais alto da serie evolutiva
das cousas.
Os factos da consciencia humana são, pois,
não só factos positivos, mas os factos positivos
culminantes.
Ora que diriamos d'uma philosophia, que não
podesse explicar, mais, que estivesse em
contradicção
[34]
com os factos da physica, por exemplo, ou
de chimica? Diriamos ser uma philosophia não só
incompleta, mas falsa. E que pensaremos então
d'uma philosophia, que não só consegue explicar,
mas está em flagrante contradicção com
factos
tão positivos como aquelles, e, alem de positivos,
superiores e culminantes?
A consciencia humana é, pois, verdadeiramente
um criterio philosophico, n'este sentido que uma
philosophia incapaz de explicar satisfactoriamente
os phenomenos da consciencia, ou em contradicção
com elles, é uma philosophia incompleta,
ou errada, por deixar de fóra, ou contradizer,
uma parte e justamente a parte mais importante
da realidade.
Este criterio bastaria só por si (alem de tudo
que atraz fica dito) para condemnar toda a philosophia
puramente materialista, sob qualquer forma
em que se apresente:--mecanismo atomico, determinismo
scientifico, monismo ou pantheismo
naturalista. Sob qualquer destas formas, o materealismo
envolve, o que é a sua essencia, a
reducção
de toda a ordem de phenomenos a forças
elementares, sujeitas a uma determinação cega,
mechanica e sem fim intelligivel: envolve a
negação
de todo o elemento racional nas cousas, reduzindo
ao mesmo tempo as affirmações da consciencia
a puras illusões subjectivas.
A critica do materialismo, n'este ultimo pono
[35]
de vista, tem sido mil vezes feita e não preciso
reproduzil-a aqui.
O que quero é fazer sentir quanto o monismo
evolucionista da escola de Haeckel (que não é
mais do que uma forma do materialismo) cuja
maior pretensão é ser uma philosophia positiva
da natureza, ainda por este lado não é positivo,
por não poder explicar uma ordem inteira e a
mais importante dos factos do universo.
Declarar que a liberdade e o sentimento moral
são meras illusões subjectivas, e que os mais
intimos e mais autonomos phenomenos da consciencia
resultam apenas d'acções mechanicas e
são a transformação d'essas
acções--é facil. Agora
o que não é facil, porque é
simplesmente impossivel,
é explicar e fazer comprehender (como
ha poucos annos ainda Du Bois-Reymond perguntava
a Haeckel) como é que o movimento, um
grupo de movimentos por mais complexo que o
supponhamos, pode produzir, não já os factos
superiores
da vida do pensamento, mas o mais elementar,
a simples sensação? Deante d'esta simples
pergunta desaba todo o edificio do monismo.
A vida moral não é cousa que se decomponha
em retortas, nem se descobrirá jámais o
equivalente
mechanico do genio ou da virtude:
There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt off in your philosophie
QUINTO ARTIGO[F]
Pretenderei eu accaso com esta critica,
contestar o valor dos trabalhos da
escola monista, ou ainda a sua importancia
philosophica?
De modo algum.
O que eu contesto é o valor do seu systema,
como systema, o que eu censuro é a pretensão
de fundar uma philosophia da natureza com a
simples generalisação dos dados d'um grupo de
sciencias, e sem ter em conta o indispensavel criterio
das ideias. Mas abstrahindo d'estas pretensões,
[38]
a tentativa de Haeckel, considerada em si,
tem um alto valor. Tem-no, sobre tudo, como
symptoma da tendencia, que cada vez mais se
manifesta na esphera da sciencia para uma unidade
de comprehensão, que assentando rigorosamente
no terreno scientifico, saia ao mesmo tempo
da analyse e abstracção inherententes
á sciencia,
procurando como formula, uma ideia de caracter
synthetico, isto é, uma ideia propriamente
philosophica.
Esta tendencia é sem duvida alguma, o facto
intellectual mais importante do seculo actual e um
d'aquelles em que mais se traduz d'um lado, a influencia
d'ora em deante cada vez mais predominante
do criticismo de Kant, e do outro, a feição
eminentemente positivista do espirito moderno.
Se uma philosophia positiva é e será sempre, como
já mostrei, uma chimera, a acção e
authoridade
directa da sciencia na philosophia será d'aqui
em deante (quero dizer depois da
Critica da
Rasão
pura) um facto que tem de se impor a todos
os pensadores.
Mas acção e auctoridade da sciencia na
philosophia
é uma cousa, e philosophia positiva, outra.
As ideias syntheticas da philosophia não saem
das sciencias, não são simples
generalisações scientificas:
são um producto da especulação e
quando
chegam a apparecer no terreno scientifico é infiltradas
para ali das regiões da especulação,
é porque
[39]
a especulação as forneceu, sob forma de
hypothese,
á sciencia. Não cabe em escrito d'estas
dimensões expor a theoria da hypothese. Bastará
mostrar como a theoria geral da evolução, hoje
com tanto vigor e brilho formulada por Haeckel
e seus concorrentes ou discipulos, longe de ser,
como vulgarmente se imagina, uma
descoberta das
sciencias naturaes e um resultado directo da analyse
scientifica, é, pelo contrario, uma verdadeira
hypothese philosophica, que, producto da
elaboração
especulativa de perto de trez seculos, acabou
por se manifestar no dominio das sciencias.
Com effeito são mais fundas as suas raizes,
mais longiqua a sua procedencia.
Essa ideia não saiu das sciencias naturaes,
mas penetrou n'ellas pela influencia (obscura, é
certo e indirecta, mas muito real) das noções
metaphysicas
lentamente elaboradas, a partir da renascença,
dentro da ideia fundamental de
natureza.
A maneira dynamica, autonomica, realista, de
conceber a natureza é o que mais radicalmente
distingue o pensamento moderno do antigo. A natureza
para o pensamento antigo, e ainda para o mais
genial dos seus intrepretes e o mais objectivo,
Aristoteles, era concebida como abstracta, inerte,
passiva: longe de parecer concreta e espontanea,
era considerada apenas como um reflexo,
acto ou emanação d'um ser ou seres transcendentes
e perfeitos: as
ideias de
Platão, a
intelligencia
[40]
de Anaxagores, o
motor immovel e as
formas substanciaes
de Aristoteles etc.) exteriores a ella e só
verdadeiramente autonomos. Esta maneira de conceber
manteve-se pela Escolastica e pela Theologia
christã, até á Renascença.
A partir dos ultimos
tempos da Edade-media, com a dissolução
da philosophia escolastica e as revoluções de
toda
a especie, intellectuaes, sociaes religiosas, que annunciam
a aurora dos tempos modernos, dá-se
nas regiões mais profundas da intelligencia humana
uma fermentação extraordinaria, que se exprime,
ainda com pouca consciencia do seu proprio
alcance, nas creações da astronomia e da physica
modernas (Kopernico, Keppler, Galileo, Torricelli)
e nas reformas philosophicas de Bacon e Descartes;
que se avigora com Leibnitz e Spinosa e com
os primeiros trabalhos de physiologia, botanica e
sciencias sociaes (Gesner, Harvey, Malpighi, Boerhaave,
Hobbes, Grocio, Vico, Lessing, etc.) para
acabar, plenamente consciente no seculo XIX,
por se affirmar, não já n'esta ou n'aquella ordem
de phenomenos, mas em todas as espheras da actividade
humana, nas sciencias, na philosophia, na
sociedade civil e politica e na propria arte e poesia
contemporaneas. O naturalismo é para os
tempos modernos o que foi o racionalismo para a
Antiguidade:--a formula mais geral da sua actividade.
A doutrina da evolução é apenas uma
das
[41]
determinações, a mais recente e porisso a mais
intensa, e intima, do naturalismo moderno.
E convirá notar que o seu apparecimento é
simultaneo na astronomia, na geologia, na biologia,
na linguistica e na historia: Lamarck, Laplace,
Werner, Goethe, Geoffroy Sainte-Hilaire, Herder,
Saint-Simon, Bopp, Adelung, são contemporaneos,
ou proximamente contemporaneos.
O evolucionismo dentro das sciencias da natureza
não é mais do que a
applicação a uma ordem
de factos do principio fundamental do pensamento
moderno, uma das suas determinações
particulares.
Mas esse principio é uma hypothese geral e,
como todas ideas syntheticas, um resultado da
especulação, não é um facto
positivo. Se apparece
no dominio das sciencias, é como hypothese
philosophica, não como lei
scientifica.
Se as sciencias
da natureza e da sociedade convergem hoje
no sentido da evolução, convergem movidas pelo
influxo intimo do estado mental-metaphysico que
as envolve, não pela força exclusiva e
independente
do seu desenvolvimento proprio. Não ha, como
se pretende, a eliminação do elemento metaphysico
pelo elemento scientifico: ha uma mutua
penetração;
penetração da especulação
na sciencia,
pela hypothese que a vem fecundar; penetração
da sciencia na especulação, pelo correctivo
imposto,
em nome da realidade, dos factos positivos,
[42]
ao á-priorismo inherente ao pensamento especulativo.
E é por isso que o concurso da sciencia e da
especulação é indispensavel para a
constituição
definitiva da philosophia moderna (da qual todos
os systemas, desde Bruno e Bacon até aos nossos
dias são apenas esboços e prenuncios), para a
organisação
systematica do pensamento moderno em
todas as suas determinações.
Creio com Haeckel, assim como com Schelling,
Hegel, Hartmann, Comte e Spencer, que é no
terreno da evolução que essa grande synthese tem
de ser construida, e que, depois do seculo XVIII
e depois de Kant, já não é possivel
uma philosophia
que não seja essencialmente uma theoria geral
do desenvolvimento, isto é, uma philosophia
da evolução. Mas creio tambem que a
organisação
da ideia d'evolução n'essa theoria geral do
desenvolvimento
é problema que excede muito a capacidade
especial das sciencias da natureza, quero
dizer, a esphera theorica d'essas sciencias, porque
excede os limites e alcance do puro espirito scientifico.
A metaphysica do seculo XIX apezar do
descredito em que momentaneamente parece ter
caido, não disse ainda a sua ultima palavra, nem
abdicou. Se a conclusão final das sciencias tem
de ser, como creio, o mechanismo universal, a conclusão
final do pensamento metaphysico tem por
[43]
seu lado de ser o universal idealismo. Mas já hoje
se começa a comprehender que entre estes dois
termos não ha contradicção essencial e
que esta
these e
antithese é reductivel a
uma
synthese, que
satisfaça plenamente tanto a sciencia como a
especulação.
Essa synthese em que o idealismo apparecerá
com complemento necessario do mechanismo
já hoje se deixa entrever; e creio que
nem
a
todos parecerá temeridade e paradoxo, concebel-a,
como eu a concebo, nem idealista nem materialista
no antigo e mais usual sentido das palavras,
mas num sentido novo e mais profundo, como
um
materíalismo
idealista.
FIM
Tiragem de 200
exemplares
numerados
TYPOGRAPHIA
DO
CAMPEÃO POPULAR
Rua da Graça n.º 15--Ponta Delgada
Estabelecimento fundado em 1889
Notas:
[A] A
Provincia--N.º 48,
II anno--Porto, 1 de março de
1886.
[B] Aliás
de Iena. (E. P.)
[C] A
Provincia--N.º
49--II anno--Porto, 2 de Março
de 1886.
[D] A
Provincia--N.º
50--II anno--Porto, 3 de março de
1886.
[E] A
Provincia--N.º
51--II anno--Porto, 4 de março de
1887.
[F] A
Provincia--N.º
52--II anno--Porto, 5 de março
de 1887.