Title: A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)
Author: Francisco Jorge de Abreu
Release date: October 4, 2008 [eBook #26777]
Most recently updated: January 4, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net
BIBLIOTHECA HISTORICA
(POPULAR E ILLUSTRADA)
IV
A Revolução
Portugueza
O 5 DE OUTUBRO
(Lisboa 1910)
POR
JORGE D'ABREU
1912
EDIÇÃO DA CASA ALFREDO DAVID
ENCADERNADOR
30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36
LISBOA
VOLUMES PUBLICADOS
I—HISTORIA DA REVOLUÇÃO FRANCEZA, por F. Mignet, 1.º volume.
II—HISTORIA DA REVOLUÇÃO FRANCEZA, 2.º volume.
III—A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA—O 31 DE JANEIRO (PORTO 1891), por Jorge d'Abreu.
IV—A REVOLUÇÃO PORTUGUEZA—O 5 DE OUTUBRO (LISBOA 1910), por Jorge d'Abreu.
V—A REVOLUÇÃO E A REPUBLICA HESPANHOLA (1868 A 1874), por Victor Ribeiro.
NO PRÉLO
VI—A REVOLUÇÃO NIHILISTA NA RUSSIA, por Stepniak.
BIBLIOTHECA HISTORICA
(POPULAR E ILLUSTRADA)
IV
A Revolução
Portugueza
O 5 DE OUTUBRO
(Lisboa 1910)
POR
JORGE D'ABREU
1912
EDIÇÃO DA CASA ALFREDO DAVID
ENCADERNADOR
30-32, Rua Serpa Pinto, 34-36
LISBOA
De todos os relatos que vieram á tona da imprensa portugueza sobre episodios do movimento que implantou a Republica no nosso paiz, conclue-se nitidamente esta coisa curiosa: raros foram os pontos do programma revolucionario que se cumpriram á risca. No emtanto, o movimento triumphou. As longas horas de espectativa dolorosa, que uns passaram a desafiar a morte e outros a contas com a torturante ignorancia da verdade, desfecharam na manhã de 5 de outubro em delirante estralejar da victoria—alcançada simultaneamente pelo esforço heroico de meia duzia de patriotas e a inacção de centenares de descrentes. O movimento triumphou apesar de tudo: da ausencia, no momento supremo, de elementos de coordenação revolucionaria, do desanimo que bem cedo invadiu quasi a totalidade dos dirigentes da campanha, da falta sensivel de armamento destinado aos carbonários e outros civis.
Na madrugada de 4 de outubro, á hora em que um troço de populares e de soldados arrastava pela Rotunda o enthusiasmo dos primeiros momentos de combate bem succedido, ainda n'uma casa dos lados da Sé duas creaturas devotadissimas fabricavam bombas que um emissario da Revolução d'ahi a pouco devia ir buscar. Mas o emissario não appareceu e um dos «fabricantes» sahiu á rua a inteirar-se da situação. Cahiu logo nas garras da policia... E como este, muitos outros incidentes occorreram na madrugada celebre, mais proprios, sem duvida, a embaraçar a eclosão do triumpho do que a facilital-a.
É que se do lado dos revolucionarios havia quem supportasse, com fé inquebrantavel, todos os obstaculos—e não poucos—que surgiram ante o seu designio, do lado do inimigo a convicção da perda irreparavel da monarchia enraizara-se profundamente, abalando, com diminutas excepções, as consciencias as mais empedernidas. Parece que, mal soaram no silencio tragico da noite os primeiros tiros de canhão, a maioria das creaturas, ás quaes incumbia a missão de luctar pelo regimen extincto, teve a visão clara da inutilidade do seu esforço1.
A influencia moral desprendida do acto revolucionario, já em precipitado desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no campo revoltoso, a immediata adhesão do «Adamastor» e do «S. Rafael» ao movimento, o bombardeamento do paço, a fuga do rei e a derrota das baterias de Queluz contribuiram innegavelmente, e em larga escala, para assegurar a victoria da Republica; mas, a par d'esses factores, não é licito esquecer a molleza, a inercia dos que constituiam o inimigo, uma e outra derivadas d'um scepticismo que a monarchia, sem dar por isso, inspirava desde muito aos proprios que a serviam.
É cedo, porém, para entrarmos na enumeração e apreciação d'esses factores. O nosso proposito, narrando o que vae lêr-se, é fixar, com o melhor methodo possivel, os pormenores da sacudidela feliz que destruiu a monarchia portugueza, as «étapes» do verdadeiro sonho durante o qual se desmoronou a dynastia dos Braganças. É um pouco a historia da organisação revolucionaria seguida logicamente do relatorio da batalha de 4 e 5 de outubro. Aqui e ali resaltarão diversas notas confiadas por authenticos conspiradores ao signatario d'estas linhas e que, se não modificam a impressão geral do quadro da revolta que os leitores conhecem, emprestam-lhe, comtudo, «nuances» absolutamente ineditas que é justo e necessario pôr em lettra redonda.
A historia da organisação revolucionaria—sabemol-o perfeitamente—escreveram-na tres homens durante o periodo febril da sua preparação. Um d'elles, Miguel Bombarda, destruiu, pouco antes de morrer, o capitulo mais interessante, o que delineava, em traços symbolicos, todo o plano de ataque ás instituições monarchicas. Liam-se n'esse capitulo a força imponente dos elementos revolucionarios e a sua distribuição pelos pontos vulneraveis; era o balanço, lucidissimo para os iniciados e inintelligivel para os profanos, do grande exercito democratico que se aprestara a investir contra a realeza. Miguel Bombarda destruiu-o receioso de que viesse a cahir, apoz a sua morte, em poder do inimigo.
O outro capitulo escreveu-o João Chagas ao sabor da opportunidade, em minusculos pedaços de papel, nas margens livres de cartas e telegramas e até em bilhetes de visita. Era o resumo fidelissimo das assembleias revolucionarias que antecederam o movimento, as «actas» das reuniões secretas de militares, o registo palpitante das adhesões que dia a dia faziam engrossar a legião republicana. Esse capitulo não foi destruido. Atravessou o periodo mais acceso da lucta escondido n'um chapéu feminino—o chapeu da esposa do illustre pamphletario—e só reviu a luz do dia quando o governo provisorio já tinha iniciado a sua obra de reorganisação politica.
Ainda outro capitulo—o da implantação da Republica, lista dos actos, das determinações que deviam succeder immediatamente á consagração solemne do triumpho. Esse esteve, por instantes, condemnado a desapparecer nas profundezas d'um syphão, transitou depois de algibeira para algibeira e por fim encontrou refugio seguro na redacção d'um jornal, a «Lucta»... a dois passos da policia.
Qualquer d'esses capitulos, publicado isoladamente despertaria um real interesse e daria margem não só a variadissimos commentarios como a uma legitima exclamação de não menos legitimo espanto. Mas a nossa pretensão é mais modesta. Na leitura do que vae seguir-se, encontrar-se-hão simplesmente os elementos aproveitaveis á formação d'um quarto capitulo, meramente subsidiario, não traçado por espirito de revolucionario—que o não fomos—mas annotado por quem, durante o periodo de incerteza, limitou a sua acção pessoal a tomar apontamentos, a ouvir informações, a apreciar incidentes, a defrontar muita decisão, muita coragem, e, sobretudo muito medo, muito pavor. De mistura com isto, repetimos, apparecerão os depoimentos dos revolucionarios authenticos, dos que jogaram a vida n'uma cartada de exito.
A policia, que o defunto juizo de instrucção criminal empregava especialmente na espionagem dos chamados agitadores da opinião, recebeu um bello dia do final do reinado de D. Carlos o encargo de averiguar o que projectava de sensacional o partido republicano, que uma denuncia affirmava mover-se activamente n'uma conspiração surda, mas tremenda. Os bufos puzeram-se immediatamente em campo e, dentro de curto prazo, davam ao chefe conta pormenorisada da sua missão. O relatorio d'essa espionagem, que pretendia, se não estamos em erro, elucidar policialmente o trama revolucionario do 28 de janeiro, é a documentação mais perfeita sobre a incapacidade dos que essa mesma espionagem exerceram. Um dos bufos diz pouco mais ou menos isto:
Na noite de... ás... horas, vi entrar na casa n.º... da rua de... um individuo magro, trigueiro, nariz comprido e de oculos, que se me constou ser empregado d'um judeu lá para os lados de... Sahiu da mesma casa ás... horas e tambem se me constou que assistiu com mais vinte e tantos individuos a uma reunião secreta.
Evidentemente, no relatorio do espião, faltam os dados essenciaes. É uma cousa vaga, que nenhum chefe de policia podia acceitar de boa fé para d'ella concluir que o revolucionario assim visado era um dos mais solicitos republicanos de Alcantara. Mas servia ao momento para justificar a verba ministerial applicada a esta e outras diligencias e tudo conjugado, tudo espremido em volta d'outra informação policial que descrevia um passeio de propaganda nocturna dado pelo sr. dr. Antonio José de Almeida ás proximidades d'um cemiterio—onde conferenciara com soldados e marinheiros—deu em resultado o supremo dirigente da espionagem enveredar pelo caminho da phantasia, já que a verdade lhe não era nitidamente facultada pelos vãos esforços dos seus subordinados.
Houve um momento em que a Parreirinha—ou a Bastilha, como quizerem—suou em bica para achar o fio do complot. Pensou-se mesmo em peitar uma creatura que se adivinhava intimamente ligada ao movimento revolucionario e obter d'ella, com a promessa deslumbrante de farta recompensa, as informações que os bufos não conseguiam arranjar. Apertou-se a rede da espionagem, principalmente sobre o rasto e os menores gestos dos drs. Antonio José de Almeida e Affonso Costa e João Chagas. Certa noite, o ex-ministro do interior, dirigindo-se para um ponto da estrada da circumvalação onde projectava encontrar-se com elementos republicanos, foi seguido por um bufo que tinha jurado aos seus deuses obter, custasse o que custasse, a revelação completa d'essa conferencia secreta. Trabalho inutil. A meio da viagem, o bufo perdeu a pista do illustre caudilho da democracia e só logrou reavistal-o quando elle já regressava, tranquilo e risonho, ao seu consultorio medico. Pouco bastou para a Bastilha mandar enforcar o espião inhabil...
Em meio do seu desespero e da sua ignorancia, a policia teve um sobresalto pavoroso. Outra denuncia, d'esta vez bem recheiada de pormenores, assignalava ao juizo de instrucção criminal a organisação d'um complot, cujo objectivo era não só a eliminação do dictador João Franco, que se propunha á viva força consolidar e engrandecer o poder real, mas o de derruir, n'um golpe de audacia, as instituições monarchicas. Dizia-se que n'esta altura da conspiração os republicanos não contavam simplesmente com o apoio e a collaboração dos dissidentes, que, tendo começado por lançar a semente da revolta politica no cavaco animado d'uma pastelaria da Avenida, já tratavam a serio d'uma mudança de regimen. Dizia-se tambem que os chefes em evidencia, os organisadores do movimento revolucionario—Antonio José de Almeida, Affonso Costa e João Chagas—tinham procurado o auxilio d'uma parte dos libertarios, homens de acção energica, dispondo de meios de combate essenciaes á dispersão, no momento propicio, das forças defensoras da monarchia e que essa fracção do partido anarchista portuguez promettera aos republicanos uma parcella consideravel do seu esforço.
A bomba, o engenho destruidor, que é o pezadelo do que se convencionou denominar uma sociedade regularmente constituida, passou então a ser a sombra espectral das regiões policiaes. Descobrir a fabrica do explosivo, desvendar o recanto solitario onde, dia a dia, homens sem medo, sem hesitações, debruçados carinhosamente sobre pedaços de metal, apparentemente insignificantes, jogavam a vida com um desprezo titanico, era o sonho dourado do Cyro—o Cyro, que se gabava de conhecer todos os anarchistas militantes—e d'uma longa theoria de famintos, que espionavam para terem que comer.
Dois accidentes de trabalho, occorridos com pequeno intervallo um do outro, ergueram aos olhos coruscantes da policia uma pontinha do veu. O primeiro deu-se n'uma casa da rua de Santo Antonio á Estrella. Um operario do Arsenal de Marinha e o professor de ensino livre Bettencourt foram as victimas da explosão d'uma bomba—explosão provocada pela imprudencia do operario ao tentar soldar o apparelho ao fogo d'uma lampada. O segundo accidente alarmou a cidade na tarde d'um domingo sombrio. As campainhas dos telephones vibraram apressadamente communicando ás redacções dos jornaes a noticia do facto. Emquanto, a poucos passos, na Avenida, uma banda regimental deliciava centenares de pessoas descuidosas e a garridice feminina animava o quadro d'uns tons voluptuosos, alguns revolucionarios, encafuados n'um modesto quarto de estudante, na rua do Carrião, preparavam tranquillamente o exterminio da guarda pretoriana. De repente, um estrondo formidavel sobresaltou a visinhança. Viu-se sahir da janella d'esse compartimento acanhado e inexpressivo uma lingua de fogo e d'ahi a momentos uns transeuntes mais corajosos, um bombeiro voluntario e um policia defrontavam o espectaculo commovedor de dois cadaveres mutilados em meio d'um armazem de bombas.
O Cyro, prevenido do facto, não tardou a apparecer no local, esbofando-se por apprehender o alcance de tamanha revelação. Os nomes dos dois mortos não figuravam na sua lista de anarchistas; o do preso (Aquilino Ribeiro) que a judiciaria já fizera conduzir á esquadra proxima e que evitara, n'um gesto de gavroche, o ser apanhado pela machina photographica d'um reporter, tambem lhe não soava familiarmente ao ouvido. O caso era de embatucar... Os outros chefes ao serviço do juizo de instrucção perdiam-se egualmente em conjecturas. Adivinhavam no desastre qualquer coisa de muito tragico e de muito ameaçador para a segurança do regimen vigente, mas não ligavam a occorrencia a outros incidentes de menor importancia, que, todos arrumados methodicamente, poderiam talvez fornecer uma indicação preciosa.
Ao cahir da noite, quando a noticia do facto se divulgou pela Baixa e pelos centros de palestra, o espanto e o terror invadiram e fizeram emmudecer muita gente. A policia ainda tentou, com um truc velho, projectar alguma luz no inesperado acontecimento. Sem perda de tempo, levou á Morgue o estudante preso no local da explosão e, collocando-o em face dos corpos esphacelados dos seus dois camaradas, forcejou por arrancar-lhe uma confissão plena. O sobrevivente do desastre sensibilisou-se, é certo, á vista dos cadaveres, mas as lagrimas que no momento derramou não lhe despegaram dos labios a denuncia apetecida. O truc não surtiu effeito.
Restava applicar á imprensa a mordaça do estylo. O dictador João Franco fel-o sem rebuço, auxiliado por alguns jornaes que, longe de reagirem contra esse costume intoleravel de consentir que o chefe do governo ditasse pelo telephone as poucas phrases em que a noticia de qualquer facto podia ser transmittida ao publico, se apressaram a recordar-lhe a existencia d'uma lei, que era feroz armadilha para insubmissos. Quer dizer: esses jornaes mettiam complacentemente, e até com certo jubilo, o pescoço na canga da oppressão. Ainda não esquecemos o dialogo telephonico travado na noite d'esse domingo melancholico entre o presidente do conselho e a redacção d'um diario de Lisboa:
—V. ex.ª consente pormenores da explosão? perguntava o jornal.
—Não tenho nada com isso, respondia o primeiro ministro de D. Carlos... os senhores bem sabem o que lhes compete fazer.
—Mas a lei de 13 de fevereiro?...
—Ah! sim, está em vigor...
—E... v. ex.ª applica-a?
—Naturalmente.
—Mas o publico precisa ser informado...
—Bem sei... mas eu nada tenho com isso... mandem ao governo civil. Vou recommendar para ali que forneçam a todos os jornaes uma nota resumida do caso.
E assim succedeu. Uma hora depois, os reporters que tinham ido ao bebedouro commum da informação officiosa regressavam com cinco linhas—cinco linhas apenas, não exageramos—em que se registava, n'uma linguagem quasi sybillina, a descoberta, por meio do desastre, do fabrico de explosivos para fins manifestamente criminosos. Uns jornaes publicaram essa nota na integra, sem resalvarem a proveniencia; outros, mais escrupulosos, precederam-na d'outras linhas que a reduziam ao seu justo valor; um unico teve a coragem de transgredir as ordens do dictador, noticiando ao mesmo passo o nome d'uma das victimas da explosão!...
O relato pormenorisado do acontecimento com as competentes gravuras (photographias dos cadaveres na Morgue, croquis do interior do quarto de estudante e a reconstituição graphica da scena commovente) foi no dia immediato exportado para o Brazil e inserto n'uma folha do Rio, afim de que se não perdesse totalmente o trabalho do noticiarista, a presteza do photographo e a habilidade do desenhador.
O proprio Aquilino Ribeiro—que, diga-se de passagem, é um intellectual—descreveu mais tarde ao signatario d'estas narrativas como occorrera o desastre da rua do Carrião.
—Aquillo foi assim—contou elle. Eu nunca tinha feito bombas, apesar das minhas convicções já me terem enfileirado n'um grupo libertario. Sabia que n'essa occasião, e mercê da preparação do movimento revolucionario do 28 de janeiro, esse fabrico se alargara a diversos pontos de Lisboa e mesmo fóra de Lisboa e dava-me intimamente com diversos militantes e propagandistas da acção directa. Tinha até cooperado na organisação do ataque aos quarteis e ás forças da municipal, indo com Alfredo Costa e outros alugar quartos em varios pontos estrategicos, d'onde projectavamos dynamitar essa legião fiel ao regimen monarchico. Um bello dia o dr. Gonçalves Lopes pediu-me para levar ao meu quarto dois caixotes com bombas. Hesitei, observando-lhe que a dona da casa podia attentar no facto, mas elle desvaneceu-me todos os receios, explicando-me que necessitava absolutamente transformar o meu aposento n'um deposito eventual de explosivos.
«Combinou-se o transporte dos caixotes do consultorio do dr. Gonçalves Lopes, na rua do Ouro, para ali, mas, ou porque elle não me pormenorisasse bem como a coisa devia ser feita, ou por outro motivo de que me não recordo, o moço incumbido de os levar á rua do Carrião teve de arripiar caminho e voltou com os caixotes para o consultorio. Grande pasmo do dr. Gonçalves Lopes e, no dia seguinte, após uma breve explicação que eu e elle tivemos no Suisso, os caixotes (cada um pesando approximadamente sessenta kilos) tornaram a emprehender a viagem para o meu quarto. Desde então, passei tambem a collaborar regularmente no fabrico de explosivos.
«Vendo o dr. Gonçalves Lopes e o commerciante Belmonte, seu companheiro na manipulação dos engenhos, carregarem umas tantas bombas, aprendi facilmente a operação e no domingo do desastre em que nos reuniramos para a continuar já me comportava ao lado de ambos como um fabricante experimentado. Tinhamos carregado umas sessenta ou oitenta e faltava ultimar muitas mais. O dr. Gonçalves Lopes parou a descançar e disse-me:
«—Você agora podia incumbir-se do resto...
«Eu não respondi de prompto e, ficando assente que á noite recomeçariamos a operação, dispuzemo-nos, no emtanto, a carregar mais tres para dar por finda a tarefa da tarde. Cada um de nós pegou n'uma bomba vasia. Na minha frente estava o dr. Gonçalves Lopes e mais adeante o seu companheiro. O dr. Gonçalves Lopes, descuidando-se um pouco nas precauções que era de uso tomar em taes circumstancias, principiou a martellar com força no engenho que tinha na mão. Ainda lhe recommendei prudencia; mas elle sorriu-se, incredulo, do meu receio, e continuou o trabalho. De repente, um grande estrondo atordoou-me sensivelmente. A bomba do dr. Gonçalves Lopes explodira. Vi-o cahir esphacelado, salpicando-me de sangue e vi o commerciante Belmonte avançar para mim, soltando um grito como o d'um animal ferido de morte. Acolhi-o nos braços, mas tive que o largar logo a seguir porque já agonisava.
«Foi um instante de dolorosissima atrapalhação. Dirigi-me a outro quarto a lavar-me, porque estava negro como um carvoeiro e quando voltei ao meu aposento pensei em fugir. Mas, como? O meu chapeu parecia um crivo, o vestuario não inspirava confiança, as mãos e a cara denunciavam-me, trahiam-me... Passeei uns segundos pelo quarto sem saber o que fazer e quando percebi que gente estranha subia a escada, a inquirir do estrondo, fui estupidamente esconder-me debaixo da cama. Os primeiros minutos passei-os quieto e calado n'esse refugio d'occasião. Mas, logo que ouvi a curta distancia os commentarios da policia e as interrogações dos reporters, longe de procurar misturar-me com o meu amigo e os nossos collegas—Aquilino Ribeiro era n'esse tempo collaborador da Vanguarda—comecei a agitar-me e despertei a attenção do chefe Ferreira. Estava apanhado.
—Levaram-me para o governo civil e depois á Morgue. Assediaram-me de interrogatorios. Pouco antes, com a explosão da rua de Santo Antonio, á Estrella, tinham sido presas, por suspeitas, umas cem pessoas. Com a da rua do Carrião, apesar da extensão enorme do fabrico das bombas em Lisboa, restringi tanto o cerco da curiosidade policial, que o chefe Ferreira apenas conseguiu incommodar um pobre homem em casa de quem foi encontrado um cartão de visita com o meu nome. Depois; estive dois mezes incommunicavel, durante os quaes só me queixei d'uma coisa: da má qualidade da comida fornecida aos presos.
«Durante o periodo da incommunicabilidade procurei, naturalmente, libertar-me da prisão. Fiz para isso, com a maior paciencia, variados preparativos. Aproveitei o azeite que condimentava as minhas rações de bacalhau para amaciar os gonzos e os ferrolhos do carcere. Com o miolo de pão fiz prodigios de habilidade e de disfarce. Em summa, quando me levantaram a incommunicabilidade já tinha quasi tudo organisado para a evasão.
«Uns amigos prometteram-me auxilio. Era necessario arranjar um automovel para me receber á sahida da esquadra do Caminho Novo e transportar-me a logar seguro. Creio, porém, que os donos de dois d'esses vehiculos, aos quaes os meus amigos se dirigiram, os não puderam dispensar e uma bella noite, quando consegui fugir do carcere, encontrei-me na rua, só, exposto a uma chuva torrencial que me transformava n'um pintainho. Uma vez transposto o muro do Posto de Desinfecção, contiguo á esquadra e tendo-me deixado escorregar por uma guarita onde uns operarios guardavam a ferramenta, atrevi-me a passar deante da sentinella da esquadra, como se fôra um simples transeunte que recolhia a casa a deshoras.
«Fui á Estephania á procura d'um conhecido. Bati. Ninguem me respondeu. Ou melhor, ninguem me abriu a porta. No trajecto, até lá, sempre debaixo de agua, encontrei uma carruagem particular, vazia, mas o cocheiro, quando lhe fallei em transportar-me, olhou-me de soslaio e respondeu com uma evasiva. Que admira! A barba hirsuta dava-me certamente um aspecto horrivel. Tinha sobre o casaco uma blusa com bolsos collados a miolo de pão... As botas e as calças destilavam immensa lama... Da Estephania dirigi-me á Praça da Figueira. Deram as oito da manhã e calculei que a essa hora a policia, sabendo da minha fuga, já andasse pressurosa no encalço do evadido. Na Praça comprei um molho de hortaliça e tratei de occultar o rosto o mais possivel. Fui a casa do Alfredo Costa, á rua dos Retrozeiros. Dormia ainda. Fui a outra casa. A pessoa que a habitava aconselhou-me o esconderijo n'outro ponto. Não acceitei o conselho e encafuei-me na taberna do João do Grão, na travessa da Palha.
«Ahi reparei as forças perdidas com essa noitada de anciedade, de cançaço e de chuva, comendo meia desfeita e tomando um litro de vinho. Momentos depois, apparecia-me então o Alfredo Costa e eu entrava para uma casa da maior confiança, conservando-me em Lisboa, escondido da policia, durante dois mezes...»
Preso um dos fabricantes de bombas, a policia volveu os olhos para todos os amigos de Aquilino Ribeiro, calculando ser-lhe relativamente facil capturar, acto continuo, o que ella appelidava os cumplices das vitimas. Um dos alvejados pela perseguição da Bastilha, o dr. Alberto Costa, tendo-se injustamente convencido de que o preso falára, abalou para Hespanha. Deu-se a fuga de outros revolucionarios, as diligencias policiaes arrastaram-se mollemente e com evidente desorientação e, apezar de que o desasocego dos conspiradores era de molde a infundir suspeitas aos menos precavidos, ainda d'esta vez a espionagem do juizo de instrucção não logrou desenrolar o fio da meada. E que admira, se no periodo de descuidosa imprevidencia em que o dr. Alberto Costa passeiava nas ruas de Lisboa com uma maleta cheia de bombas e se divertia a bailar, sobre uma cama que occultava uma caixa d'esses engenhos, os Argus da Parreirinha nem por palpite o encaravam com desconfiança!...
O fabrico de explosivos não occupava simplesmente meia duzia de pessoas. Absorvia os cuidados de diversos grupos. Generalisara-se por uma fórma assombrosa e, dentro e fóra de Lisboa, trabalhava-se afincadamente em centenas de apparelhos destruidores. Cada dia que passava sobre as arranhadelas da dictadura via surgir para a lucta novos combatentes e novas dedicações. Então, não era só o partido republicano que protestava contra o existente; os seus clamores de revolta echoavam na consciencia de muitos monarchicos; a legião dos que, na primeira hora de enganadora miragem, tinham acolhído o governo João Franco como o advento de um Messias, esboroava-se a olhos vistos. A atmosphera em volta do throno carregava-se progressivamente de indignação, de odio, de intranquillidade e, a não ser D. Carlos, que nunca se sensibilisára com a agitação da massa popular, e o ministerio franquista, que suppunha governar a contento do paiz, todos os outros elementos argamassados pelos favores do regimen sentiam, palpavam, futuravam, com maior ou menor largueza de vistas, a derrocada imminente.
A preparação do 28 de Janeiro proseguia com alma, com actividade febril. A compra de armamento e a sua introdução em Lisboa, atravez das barreiras fiscaes, haviam tomado tal incremento que os proprios organisadores do movimento se admiravam da cegueira da policia. As reuniões secretas succediam-se vertiginosamente. Havia como que a ancia de chegar ao fim da jornada revolucionaria, fazendo d'um só folego a corrida heroica para o triumpho ou para a derrota.
Quem, a dentro do partido democratico, teve a iniciativa da projectada revolta? Não é facil responder, porque ella estava desde muito no animo dos mais fogosos caudilhos d'esse partido. Entretanto, podemos conjecturar que, sabendo João Chagas dos trabalhos revolucionarios que alguns dos seus companheiros de lucta já tinham annos antes encetado, procurasse aproveital-os, realisando ao mesmo tempo a approximação dos republicanos e dos dissidentes, que a dictadura franquista hostilmente arredara do contacto do rei Carlos. Os primeiros passos para o movimento foram dados em casa do visconde da Ribeira Brava, de todos os amigos do sr. Alpoim o que então se mostrava mais inclinado a abandonar a monarchia. Conta elle o seguinte:
«Quando se tinham malogrado todos os esforços dos partidos para subjugar o despotismo do rei e de João Franco fui procurado pelo infeliz Alberto Costa, que me propoz tomar eu a iniciativa da revolta. Hesitei, objectando que para isso me faltavam os elementos populares, que estavam todos no partido republicano, e que sósinho nada poderia fazer.
«—E se você se entendesse com o João Chagas?—retorquiu Alberto Costa.
«—N'esse caso estou certo de que fariamos alguma coisa de importante.
«Ficou logo aprazado um encontro com João Chagas, que se efetuou n'esse mesmo dia, a dez de julho (1907) se não me engano, á meia noite, junto do coreto da Avenida. Ahi assentámos nas linhas geraes do movimento revolucionario, resolvendo-se nomear um comité organisador. A primeira reunião effectuou-se no dia seguinte, em minha casa, comparecendo a ella Affonso Costa, Alexandre Braga, Egas Moniz, França Borges, Mascarenhas Inglez, Marinha de Campos e Alpoim, tendo-se depois d'isso realisado ainda uma entrevista entre José d'Alpoim e Antonio José d'Almeida.»
Na mesma reunião e em posteriores conferencias escolheram-se, para a execução do plano revolucionario, dois comités: o civil composto pelos srs. Bernardino Machado e Antonio José de Almeida, membros do Directorio, e mais João Chagas, Affonso Costa e Augusto José da Cunha; o militar formado por Candido dos Reis, José de Freitas Ribeiro, José Carlos da Maia, Xavier Barreto, Sá Cardoso e Alvaro Pope. O primeiro cuidado d'estes comités foi o de aggregar os elementos que andavam dispersos mas que se conservavam fieis á causa da democracia os que restavam da mallograda revolta de 31 de Janeiro e se tinham preparado para o movimento de 1896, que mal chegara a esboçar-se.
Houve divergencia entre os mais evidentes dos revolucionarios por causa do plano a executar. Uma minoria, radicalissima na maneira de proceder, não contrariava o projecto, delineado ao de leve, de se atacar o paço das Necessidades e forçar o rei Carlos a um embarque consecutivo para o estrangeiro. Os restantes queriam simplesmente limitar a revolta á eliminação da monarchia com o menor dispendio de violencia. Por fim, triumphou a parte moderada dos organisadores do movimento e deliberou-se, em ultima analyse, fazer explodir a Revolução durante a ausencia do monarcha em Cascaes, mesmo para que a sua estada em Lisboa não influisse de qualquer modo na attitude que muitos dos officiaes, de politica indefinida, por certo, adoptariam. Por outro lado, alguns dos revolucionarios receiavam que um acto violento dirigido contra D. Carlos creasse, no extrangeiro, difficuldades á futura Republica. Assentou-se, portanto, em definitivo, que o movimento rebentaria quando o rei estivesse fóra da capital. A Revolução, uma vez triumphante, prenderia em Cascaes o soberano e a familia, e obrigal-os-hia a sahirem do paiz.
Mas, os trabalhos dos conspiradores alongaram-se mais do que seria licito calcular, e, como a familia real regressasse, no entanto, a Lisboa, houve precisão de concertar outro plano, que comprehendia, novamente o assalto ao palacio das Necessidades. N'esta altura do complot, um dos officiaes que os revolucionarios suppunham inteiramente do seu lado commetteu uma traição e o plano soffreu grandes modificações, recomeçando-se, n'outras bases, os trabalhos indispensaveis á sua realisação pratica. Appareceram ainda difficuldades de diversa natureza, contrariando fortemente a propaganda nos quarteis e o aliciamento de elementos civis, e a situação só melhorou quando a familia real partiu para Villa Viçosa, «simplificando bastante o programma pela suppressão d'um dos seus numeros mais difficeis e delicados...»
O plano da campanha, urdido por um official do estado-maior, passou então a ser cuidadosamente preparado. A cidade foi dividida em diversos sectores, comprehendendo cada um d'elles os pontos a atacar, isto é, os pontos d'onde se calculava que surgiria, no momento supremo, a defesa do regimen combalido. Cada quartel da municipal e de cavallaria era cercado de uma verdadeira rede de dynamitistas que, conjugando a sua acção com outros grupos de populares armados, procurariam impedir a sahida, para a lucta, das forças declaradamente monarchicas. As esquadras de policia tambem deviam soffrer o ataque dos populares; os officiaes de marinha e outros elementos revolucionarios tomariam conta do D. Carlos e do quartel de Alcantara; a carreira de tiro em Pedrouços e todos os pontos onde era relativamente facil encontrar armamento seriam egualmente visados pela acção dos revoltosos.
Para o assalto aos quarteis das forças que constituiam propriamente a guarnição de Lisboa, João Chagas organisára vários grupos de 30 a 60 homens de todas as classes—medicos, agronomos, engenheiros, advogados, empregados do commercio, etc.—grupos que se distinguiam uns dos outros por um emblema representando uma flor:—uma rodela de cartão aguarelado que o revolucionario pendurava no forro do casaco e que só seria visivel quando elle o abrisse perante um companheiro ou um chefe. Temos deante de nós varias d'essas rodelas e uma nota escripta a lapis pelo punho de João Chagas, que descrimina assim a formação das forças:
Malmequer, 60 homens.
Rosa, 30.
Violeta, 40.
Cravo, 60.
Saudade, 20.
Crysanthemo, 40.
Papoula, 30.
Total, 280 assaltantes para os quarteis das forças da guarnição. Cada grupo tinha previamente conhecimento do regimento onde, no momento opportuno, devia operar: isto com o fim de conhecer, tambem antecipadamente, o quartel onde prestaria a sua coadjuvação. Os melhores d'esses grupos eram os dirigidos pelo dr. Carlos Amaro, Sá Pereira, Saul Simões Serio e Paulino de Freitas. Estavam armados de revolvers e pistolas automaticas com cincoenta cargas cada.
Note-se incidentalmente que, n'essa época de preparação revolucionaria, a propaganda entre militares conquistara talvez mais adeptos do que annos depois, para o movimento que implantou a Republica. O numero de officiaes adherentes era, sem duvida, maior. A dictadura franquista despertára mais odios e sêde de liberdade do que a inacção, quasi absoluta, do gabinete Teixeira de Sousa. A teia revolucionaria era, innegavelmente, mais complicada. Comtudo, apesar das precauções tomadas e da adhesão de elementos prestigiosos, a opinião auctorisada não agourava bem do emprehendimento, exactamente por lhe parecer que havia demasiada somma de creaturas na posse do grande segredo. É certo que na constituição dos grupos de populares houvera o cuidado de erguer como que uns compartimentos estanques, para impedir que, uma vez um d'elles invadido pela onda da traição, os restantes se afundassem no mesmo pelago. Mas não o é menos que a distribuição de armamento de toda a especie fôra feita com excessiva antecipação—o que já não succedeu para o movimento de 5 de outubro—e o corpo dirigente da organisação revolucionaria admittia, pelas suas variadissimas ligações, uma maior interferencia de indicações e de alvitres, nem sempre proprios a favorecer o triumpho.
A acção dos dissidentes na preparação do 28 de janeiro não ha duvida que foi larga e abundante em peripecias. Os dissidentes e aquelles dos seus amigos que entraram na revolta deram-lhe um apoio material efficaz. O sr. Alpoim, quer em sua casa, ou na famosa pastelaria da Avenida—conhecida como um baluarte dos monarchicos revoltados—ou ainda na casa do visconde da Ribeira Brava, prodigalisava-se em insistente propaganda contra o regimen, a dictadura Franco e até contra a existencia do monarcha dos adeantamentos. Para o sr. Alpoim, como de resto para toda a gente que ousava falar com franqueza, a franqueza permittida pelo dictador, a suppressão de D. Carlos seria o golpe decisivo n'uma situação como, então, se supportava, de intoleravel arbitrio, de rancor, perseguição e delação ignobil. Não quer isto dizer que o chefe da dissidencia progressísta aconselhasse a morte do rei como um dos principaes numeros do programma dos revoltosos... Mas, encarando-a como a solução do problema a liquidar, traduzia as aspirações de muitos patriotas.
O sr. Alpoim, tendo palpitado o monarcha, convencera-se de que elle ligara indissoluvelmente o seu destino ao destino politico do dictador. O governo João Franco deslumbrara o espirito do rei Carlos, mostrando-se-lhe como o unico capaz de confeccionar, para o livro do seu reinado, uma pagina de certo relevo historico. O dictador era o ideal para um soberano que, vivendo até então pouco menos que alheiado da politica interna, resolvera d'um momento para o outro, assim como quem acorda d'um sonho, interessar-se assiduamente pela mesma politica. Eliminado o dictador, D. Carlos, se quizesse proseguir no seu proposito de modificar o regimen da successão ministerial, teria fatalmente que chamar ao poder o estadista ou estadistas que combatiam fortemente o rotativismo.
Não é desasisado suppôr que só com esta esperança é que o sr. Alpoim não adheriu desde logo á Republica. Veiu para a Revolução para trabalhar e trabalhou. Mas, no fundo do seu pensar, talvez se convencesse de que o movimento daria apenas em resultado o apeiar o governo João Franco do pedestal que o monarcha lhe erguera nas columnas do Temps. De resto, o sr. Alpoim confessou isso mesmo mais tarde n'estas linhas que recortamos do seu antigo órgão na imprensa:
«O chefe dissidente, e outros seus correligionarios—não a dissidencia progressista como partido—resolveram então collaborar com os republicanos no intuito de aniquilar o regimen dictatorial que assoberbava o paiz. Vinha a Republica? Tudo era preferivel, tudo, fosse o que fosse, á continuação d'este estado de coisas que era um opprobrio nacional.»
Decidido a trabalhar, tomou contacto com os chefes republicanos e avistou-se com os elementos sem rotulo partidario que apoiavam o movimento. Contribuiu immenso, e mais os seus amigos, para a compra de armamento—e d'ahi o espalhar-se um boato insubsistente a que em breve nos referiremos. A sua interferencia na collecta de fundos para o cofre revolucionario exerceu-se com devotamento digno de registo. Os seus amigos auxiliaram bastante a introducção do armamento em Lisboa e a larga distribuição que d'elle se fez por diversos pontos estrategicos. E se no dia primitivamente marcado para a explosão da revolta não a iniciou com um arranco heroico sobre o ninho da realeza, é porque lhe ponderaram a conveniencia de collaborar antes n'outro episodio não menos importante. Por si, satisfazendo apenas o seu desejo ardente, o sr. Alpoim teria defrontado, com as armas na mão, o monarcha provocador.
Dias antes do 28 de janeiro, Affonso Costa e João Chagas tentaram filial-o no partido republicano. N'uma reunião em casa do visconde da Ribeira Brava, a que tambem assistiu o dissidente Egas Moniz, fizeram-lhe vêr que a hostilidade do paço contra o grupo politico da sua chefia era invencivel e que, marchando elle para a Revolução, de mãos dadas com os republicanos, forçoso se lhe tornava ingressar abertamente na democracia. O sr. Alpoim, ás repetidas e persuasivas instancias que lhe dirigiram n'esse sentido, respondeu:
«Que, sendo chefe d'um grupo politico, que tão dedicada e lealmente o havia acompanhado sempre e onde havia um grande numero de individuos com idéas adversas á Republica, não podia, sem praticar uma deslealdade, abandonar esses amigos; que á causa da Revolução dava a sua pessoa; o seu filho e o seu dinheiro. Estava prompto no momento da lucta a occupar o ponto mais perigoso que lhe fosse distribuido; que nada queria, nem pedia, como recompensa, á Republica, mas que não alterava a sua situação politica.»
A seguir, perguntou ao visconde da Ribeira Brava o que tencionava fazer.
—Eu, meu caro Alpoim—retorquiu-lhe o visconde—já não volto para traz.
O inicio dos preparativos para o 28 de janeiro data de julho de 1907. Um mez depois, Machado dos Santos, que collaborava com os officiaes de marinha Serejo Junior e Soares Andréa n'um acanhado projecto de acção anti-monarchica, foi abordado por Marinha de Campos e Mascarenhas Inglez, que o convidaram a tomar parte no grande movimento organisado pelos republicanos e os dissidentes. A principio desconfiado, Machado dos Santos não tardou a acceder e em setembro, n'uma reunião effectuada no escriptorio de Alexandre Braga, foi apresentado a João Chagas e Candido dos Reis, que com aquelle illustre causidico, Serejo Junior, Marinha de Campos e Alberto Costa, discutiam então a necessidade de chamar o exército em auxilio da conjura. No relatorio que o triumphador da Rotunda publicou em 1911 encontram-se estas passagens que pormenorisam essa reunião:
«Pad-Zé queria ir com 50 homens atacar a cidadela de Cascaes; Marinha de Campos desejava sósinho agarrar a monarchia pelo pescoço e apertar-lhe os gorgomilos. Candido dos Reis com a sua evangelica paciencia deitava agua na fervura, aconselhava paternalmente a moderação e João Chagas, contando os insuccessos de anteriores tentativas revolucionarias, de que havia sido alma, dizia, com a auctoridade da sua experiencia, que sem o exercito nada se devia tentar. «Mas o exercito é nosso!» disse eu ingenuamente á illustre assembleia. Os sorrisos que obtive em resposta convenceram-me do contrario.
«Chagas, o eterno sacrificado das revoluções frustradas, Chagas que, melhor do que eu, melhor do que Candido dos Reis, conhecia os nossos navios de guerra, por n'elles ter sido hospedado pela monarchia, Chagas disse-me que não tivesse illusões, que era necessario trabalhar e trabalhar muito para que alguma coisa se fizesse, e alvitrou uma immediata convocação dos officiaes do exercito, para se saber se estavam dispostos a sahir comnosco para a rua. Candido dos Reis encarregou-se de os reunir e essa reunião ficou assente que se effectuaria tres dias depois, para se conseguir que ella fosse bastante concorrida afim de lhes dar uma impressão de força, que, reunidos em pequeno numero, os officiaes não podiam ter.
«Chamando de parte o almirante, perguntei-lhe se os officiaes da marinha com que contava estavam em commissão de embarque ou no quartel; respondeu-me que poucos, muito poucos, estavam n'essa situação e que d'um momento para o outro podiam ser transferidos e postos na condição de nada nos poderem valer. Perguntei-lhe então se concordava na organisação de fortes nucleos de marinheiros nas differentes unidades, afim de podermos empregar os nossos officiaes no caso do governo os deslocar das situações que tinham.
«Respondeu-me que isso seria optimo, mas que não via quem se quizesse encarregar d'essa organisação, que achava perigosa para a pessoa que a tentasse e que podia expôr o movimento a ser delatado pelo primeiro tagarella de camisola de alcaxa que aparecesse. Disse-me egualmente que via inconvenientes pelo lado da disciplina, porque se o movimento não lograsse exito havia de ser difficil mantêl-a a bordo e para a conseguir muitos teriam que soffrer; comtudo concordava em que sem os fortes nucleos de marinheiros nos diversos navios nunca a Revolução se poderia levar a cabo.
«Ficou assente entre os dois que eu me incumbiria d'isso, declarando ao almirante que me parecia que nenhum movimento os marinheiros deveriam fazer sem a presença d'um official, limitando-se elles a passarem a receber as ordens do official ou officiaes que fossem a bordo ou ao quartel a uma hora combinada...»
D'ahi a dias, Machado dos Santos encetou a tarefa de alliciamento e, dedicando-se especialmente aos frequentadores do bairro de Alcantara, conseguiu juntar oitenta marinheiros, devotadissimos, que, por seu turno se abalançaram, á conquista de novos camaradas, attrahindo-os cuidadosamente á conjura.
Emquanto a preparação do combate proseguia sem desfallecimentos por parte dos republicanos, dos dissidentes e d'uma fracção dos libertarios, a policia, reforçada com uma nova remonta de espiões, espreitava anciosa a agitação que percebia na sombra. De vez em quando, julgava apanhar uma nesga de luz e ficava amarrada por instantes a um rasto sem valor. Para não perder de todo o tempo e o feitio, vigiava impertinentemente as creaturas em evidencia no partido republicano, sem seleccionar de entre ellas as que conservavam realmente n'essa occasião estreitas ligações com os revolucionarios. Marchava ás apalpadelas. Embasbacava ante o menor grupo de transeuntes pacificos. Percorria os cafés, disfarçada em padres, mestras, mendigos e moços de esquina, escutava ás portas, farejava o ambiente e esquecia-se exactamente de topar com um dos muitos caixotes de bombas que, em pleno dia, e ás costas de gallegos, se entrecruzavam nas ruas de Lisboa.
Alcantara, os Loyos e até o Chiado, estavam minados de explosivos. No Bairro Alto havia depositos d'armas que despertariam a inveja d'um arsenal. Conspirava-se por todos os cantos, segredavam-se instrucções, as reuniões secretas de officiaes tornavam-se mais frequentes, as lojas dos armeiros esvasiavam-se como por encanto. Nada faltava para o bom exito. De tudo se cuidara, até dos serviços de ambulancia e manutenção. As offertas affluiam de todos os lados. (Um benemerito poz á disposição dos conspiradores uma carroça cheia de chouriços).
A febre revolucionaria não diminuia. Approximava-se a data solemne. Alguns dias mais e sobre Lisboa cahiria durante horas uma verdadeira chuva de fogo...
É n'esse momento critico da organisação da revolta que a policia tem um alegrão. Apanha, quasi sem dar por isso, um rasto de certa importancia e desata a exploral-o com uma furia indescriptivel. Effectuam-se as primeiras prisões de elementos revolucionarios conhecidos, tentando-se assim fazer abortar, pela clausura dos chefes, o movimento projectado. Contemos pormenorisadamente como isso se deu.
Alfredo Leal fôra incumbido de adquirir armamento para os 280 assaltantes dos quarteis, missão de que se desempenhou rebuscando as casas de penhores, armeiros, etc. Como as ordens da policia eram apertadas, fez essas compras pretextando umas encommendas da provincia para confecção de panoplias e, ainda com o intuito de não despertar desconfianças, munia-se sempre de dois recibos, um com desconto e outro sem desconto, que era o destinado ao freguez. O dinheiro para esse armamento forneceram-no, além do Directorio, José Relvas, que contribuiu com uma importante quantia, o africanista João Baptista de Macedo e outros individuos dedicados á boa causa.
Não tardou, portanto, que os armazens Leal, da Rua de Santo Antão, ficassem transformados em arsenal, onde Alvaro Pope, João Chagas e José Freitas Ribeiro analysaram detidamente o material destinado á revolta. Esses armazens já tinham ao tempo uma fama revolucionaria, porque desde muito eram o rendez-vous dos insubmissos. Os conspiradores conheciam as suas salas pelas salas dos passos perdidos... Para o movimento de 28 de Janeiro tambem serviram quasi diariamente ás reuniões de officiaes do exercito de mar; para lá enviou o dr. Alberto Costa duas caixas de bombas que mais tarde sahiram, a pau e corda, dos armazens para o consultorio do dr. Gonçalves Lopes; ali se reuniram diversos cabos e praças da guarda municipal aquartelada proximo das Necessidades, que faziam então causa commum com os revoltosos, e os sete grupos de 40, 60 e 30 homens destinados ao assalto aos quarteis. A essas reuniões assistiam sempre João Chagas, Alvaro Pope e Alfredo Leal. O proprietario dos armazens chegou a mandar fazer caixas de embarque e n'esse estabelecimento se encaixotaram as armas dos grupos populares, que sahiram para o seu destino levando esta marca: Telmo Bandeira, S. Thomé. E a policia, sempre ás aranhas...
Como descobriu ella, afinal, o tal fio da conspiração a que atraz alludimos? D'este modo: ao chefe d'um dos grupos populares, Victor de Sousa, aggregou-se mais um combatente, um policia, seu compadre e amigo, de serviço, ao que parece, á porta do dictador. Iniciou-o no mysterio, indicando, ao mostrar-lhe as armas já em sua casa na rua Luz Soriano, que João Chagas e Alfredo Leal eram os incumbidos especialmente d'essa distribuição de alta responsabilidade. Na madrugada seguinte era preso Victor de Sousa. Alfredo Leal tinha ainda nos armazens grande quantidade de armamento por entregar. Apesar do segredo em que a policia envolveu aquella captura, Affonso Costa e João Chagas souberam-na a tempo e pelo telephone avisaram o proprietario dos armazens para que puzesse a salvo as armas restantes. Após o aviso, o visconde da Ribeira Brava correu á rua de Santo Antão. Os armazens estavam cercados pela policia. Era urgente proceder com habilidade e frustrar os designios do juizo de instrucção.
Os armazens teem uma portinha que deita para as escadinhas de S. Luiz em frente da entrada do Coliseu dos Recreios. A sahida das armas devia ser feita por essa portinha, caso a policia não houvesse dado por ella... como não deu. As armas foram enroladas, em tapetes e, constituindo tres fardos, Alfredo Leal, seu filho José Saragga Leal e um criado de confiança, transportaram-nas á calçada de Sant'Anna, onde o visconde da Ribeira Brava as esperava mettido n'um coupé, para as ir occultar provisoriamente na sua casa, em plena Avenida da Liberdade. O material da revolta salvou-se, mas na madrugada seguinte Alfredo Leal era preso no Dafundo. João Chagas, que na vespera jantara com elle na Charcuterie Française, cahira em poder da policia ao sahir d'esse estabelecimento da rua Nova do Carmo. Escusado será dizer que as buscas emprehendidas nos armazens da rua de Santo Antão não deram o mais insignificante resultado. No emtanto, o dictador fazia espalhar pouco depois que a policia tinha ali encontrado armas e bombas em abundancia...
N'esta altura da narrativa cabe referir que muitos dos individuos, tanto da classe civil como da classe militar, implicados na conspiração, só foram sobejamente conhecidos do publico quando, insistindo na conjura, se misturaram á organisação da revolta de 4 e 5 de outubro. Outros houve, em compensação, que, vendo mallogrados os esforços applicados ao 28 de janeiro, abandonaram definitivamente os trabalhos revolucionarios e foram surprehendidos pela proclamação da Republica n'um alheiamento completo da agitação politica.
O almirante Candido dos Reis, cuja acção no complot de 4 e 5 de outubro teve uma evidencia excepcional, garantindo, além de tudo o mais, pela sua figura de destaque, a adhesão de diversos officiaes do exercito de mar e terra, no 28 de janeiro sobresahiu por uma forma inolvidavel. Sob as suas ordens é que devia dar-se então o assalto ao S. Gabriel e ao quartel dos marinheiros; com elle conferenciaram muitas vezes o sr. Alpoim e outros elementos da revolta; para elle estava naturalmente destinado um papel preponderante, muito embora da sua acção individual não dependesse, como de facto não dependia, pôr em andamento, com determinado signal e no momento dado, o complicado mechanismo da revolução; com elle estavam promptos a exercer acção decisiva alguns officiaes dos quaes ninguem suspeitava e que á quasi totalidade dos monarchicos pareciam indifferentes ou pelo menos indecisos.
Assim, a policia, prendendo alguns dos vultos do partido republicano que, a bem dizer, não occultavam as suas démarches revolucionarias, deixava exactamente fóra da rêde de perseguições uma boa somma de executores d'esse plano maduramente combinado e que, uma vez resolvido o ataque formal ás instituições monarchicas, eram capazes de, readquirindo certa autonomia, lançar fogo ao rastilho previamente preparado. É voz corrente que o movimento do 28 de janeiro esteve para explodir antes d'essa data e que n'aquelle mesmo dia soffreu de hora para hora diversos adiamentos. Pois não andará longe da verdade quem affirmar tambem que, se as prisões effectuadas na segunda quinzena de janeiro embaraçaram fortemente a eclosão do movimento, só uma intervenção muito especial é que impediu que, apesar de tamanho contratempo, a tentativa de revolta se esboçasse com uma nitidez assombrosa.
Por mais do que uma vez, quando nos dirigentes da conspiração lavrava, não diremos desanimo, mas comprehensivel reluctancia em impellir para o campo de batalha a grande massa organisada dos revoltosos, houve necessidade de refreiar com energia os impetos generosos de creaturas ardentes, illuminadas, que não consentiam um minuto de reflexão sobre a opportunidade da explosão revolucionaria. Essas creaturas tudo sacrificavam ao desejo irreprimivel de combater a monarchia. E uma d'ellas, ponderando-se-lhe um dia que, estando presos em quarteis da municipal elementos de valor não só no partido republicano como na organização do movimento, a menor agitação extemporanea, a menor revolta imprudente, provocariam, sem duvida, a sua condemnação á morte, uma d'ellas, repetimos, depois de pesar o argumento, replicou sem commover-se:
—Que importa!... São mais tres ou quatro cadaveres!...
Mas, retomemos o fio da narrativa. Presos e incommunicaveis dois dos chefes da revolta, acompanhados d'outros individuos de menores responsabilidades na empresa, não occorreu, como seria logico, uma paragem na sua organisação. A idéa predominante, n'essa occasião, não foi a de sustar os preparativos revolucionarios. Foi exactamente a opposta: foi a de se dar pressa ao rebentar da bomba, porque todos ou quasi todos se convenciam de que o dictador não perdoava aos inimigos das instituições monarchicas. Para mais, n'essa altura do complot, o governo João Franco, ainda que não possuisse na sua mão todos os fios do trama revolucionario, sabia muito bem, por informações d'uma relativa precisão de pormenores, que o movimento não era limitado a uma simples insurreição de quartel nem a uma manifestação armada de meia duzia de visionarios.
O governo João Franco sabia perfeitamente que na conjura entravam tropa e a classe civil, que, se a primeira estava armada, a segunda não sahiria á rua desprevenida e que a monarchia vivia sobre a ameaça constante da fornalha republicana, para a qual a dictadura deitara o melhor do seu combustivel.
Mas se o governo João Franco sabia tudo isto que o levava a acautelar-se o melhor possivel contra a probabilidade de gravissimos acontecimentos, ignorava, por outro lado, a fé que dominava o povo alliciado para a revolta. O governo João Franco não fazia caso nenhum d'esse povo, calculando erradamente que a massa soberana e anonyma só se moveria tendo á frente os seus grandes idolos partidarios. Ignorava absolutamente a importancia e a valentia d'essa massa e de quanto ella é capaz, lançada decididamente no caminho da reacção ao despotismo. O povo sem Antonio José, João Chagas, etc.—pensava o dictador—não se atreve a protestar com as armas na mão. Uma vez presos esses homens, os revolucionarios civis absteem-se da lucta e ficam só em campo os militares, que uma serie de medidas urgentes e rigorosas recolhe egualmente á inacção e ao silencio. Assim pensava o governo João Franco alguns dias antes do 28 de janeiro e assim tinha pensado o juiz de instrucção criminal, na parte referente a fabricantes de bombas, quando a explosão da rua do Carrião lhe entrou pela porta dentro e desauctorisou, por completo, a famosa lista negra do Cyro. Um e outro viviam redondamente enganados.
A prisão do dr. Antonio José de Almeida contribuiu bastante para que a febre revolucionaria augmentasse de modo consideravel. O dr. Affonso Costa, que, absorvido pelo processo Djalme, andava um tanto afastado da preparação da conjura, voltou a ella ainda com mais ardor. Os conspiradores passaram a reunir-se n'uma casa da rua do Desterro, pertencente ao sr. Luiz Grandella, fez-se nova acquisição de armamento (parte d'elle fornecida pelos dissidentes) ultimaram-se as disposições de ataque e de conquista e a data de 28 passou a ser mais anciosamente esperada do que as que a tinham precedido na agenda dos revoltosos. O comité dirigente dos trabalhos era então composto de Affonso Costa, visconde da Ribeira Brava, Alvaro Pope, Marinha de Campos, Ernesto Pope e Arthur Cohen. Á casa da rua do Desterro foram dezenas e dezenas de pessoas receber armamento, instrucções, etc. A senha de entrada era Jasmim.
Não é facil, por variadas razões, reproduzir, na actualidade e na integra, o plano do movimento. Já decorreram sobre elle alguns annos e estamos certos de que n'esse projecto muita coisa havia que, a ser cumprida rigorosamente, resultaria em fraco beneficio para o exito do complot. Na revolta de 4 e 5 de outubro cremos mesmo que se emendou a mão em varios pontos considerados essenciaes no plano do 28 de janeiro. A experiencia ainda é, afinal, a grande mestra da vida.
Mas se não podemos dar muitos pormenores sobre o projecto da revolta, da qual derivou logicamente o regicídio, é-nos licito, no emtanto, fixar aquellas das suas bases que são do conhecimento da maioria dos implicados na conspiração. Em primeiro logar, o exercito de terra e mar só se sublevaria depois de vêr feitos certos signaes que lhe communicariam a prisão do dictador João Franco. Quer dizer: a grande orchestra do complot não devia principiar o concerto sem que a batuta do regente se movesse a romper a marcha...
A prisão do dictador devia ser levada a effeito por um grupo civil entre as 4 e as 6 da tarde, quando elle, sahindo de casa, no alto da Avenida, se dirigisse para o Terreiro do Paço. Preso, conduzil-o-hiam para bordo d'um vapor de pesca, o Dinorah, d'onde o transportariam depois para qualquer navio de guerra revoltado. Entretanto, Machado dos Santos e Serejo Junior assaltariam o corpo de marinheiros; Soares Andréa tomaría o Arsenal de Marinha, auxiliado pela respectiva guarda e um grupo civil; Candido dos Reis iria a bordo do S. Gabriel, onde o 1.º tenente Branco Martins teria á sua disposição grande parte da guarnição do navio e muitos milhares de cartuchos; o visconde da Ribeira Brava, com um grupo civil bem municiado, occuparia o Arco da Rua Augusta e todas as platibandas dos ministerios que dominam as ruas da Prata, Augusta e Ouro e embocaduras das ruas da Alfandega e Arsenal.
No ataque aos navios de guerra entraria, por conveniencia dos marinheiros revolucionarios, o 2.º tenente de marinha Bernardo Alpoim, que fizera n'alguns d'elles activa propaganda contra a dictadura franquista. A sahida das forças da municipal aquarteladas no Carmo estava cortada por uma rede de dynamitistas installados no Sacramento (no Club dos Caçadores), na calçada do Duque, etc. A propria egreja do Sacramento, onde os revolucionarios entrariam usando d'uma chave falsa, serviria tambem a impedir que os janizaros do antigo regimen viessem cá para fóra espingardear o povo. Proximo dos outros quarteis da municipal e das esquadras de policia havia analogas disposições de ataque.
Os dissidentes tinham um logar marcado em especial: o elevador da Bibliotheca. Aqui reunidos desde o começo da tarde, logo que pelo largo do Pelourinho passasse um automovel conduzindo o dr. Affonso Costa, deviam correr, armados, para a camara municipal, apossar-se d'ella juntamente com aquelle estadista e outros individuos que o acompanhariam e uma vez no edificio, proclamariam um governo provisorio. Essa passagem do automovel conjugava-se com um signal dado no Tejo, que indicaria a execução immediata d'outras manobras revolucionarias. Outro grupo apossar-se-hia dos telegraphos e da rede telephonica. Em summa, mal que fosse dada ordem para o rebentar do movimento, Lisboa vêr-se-hia litteralmente enleiada n'um combate renhido, a menos que os defensores da monarchia resolvessem momentaneamente não resistir aos revoltosos.
A prisão do dictador obstaria a que elle, sahindo da sua casa de residencia, conseguisse communicar com os elementos militares de que dispunha ou com qualquer dos seus collegas no gabinete. João Franco, para que a sua acção não entorpecesse o que fôra planeado, devia soffrer, acto continuo ao inicio da revolta, uma immobilisação rigorosa. Não é facil asseverar até onde iria essa immobilisação, caso ella se tivesse produzido; mas a verdade é que no espirito de todos havia a noção clara de que o menor passo dado pelo dictador fóra das vistas dos revolucionarios transtornaria, sem duvida, o exito da causa.
Na noite de 26 de janeiro era enorme a affluencia de conspiradores á casa da rua do Desterro. De repente chega um aviso de que o edificio estava cercado pela policia. Fecham-se todas as portas e Affonso Costa, tomando a direcção da defeza, resolve resistir aos assaltantes, exclamando no auge do enthusiasmo:
—Vamos a isto!... Será o inicio da Revolução!
Dentro de breves instantes verificou-se que o aviso não tinha fundamento. Mas tornava-se necessario proceder com cautela e marcar definitivamente a hora para o rebentar da revolta no dia 28. Escolheu-se as 4 da tarde por ter a vantagem de coincidir com o maior transito das ruas de Lisboa e a menor vigilancia nos quarteis da guarnição.
Na noite de 27, os conspiradores receberam na casa da rua do Desterro uma carta anonyma, prevenindo-os de que se não abandonassem immediatamente o edificio seriam denunciados á policia. A carta era, evidentemente, d'um visinho medroso... Affonso Costa manda alugar outra casa na rua de S. Julião, n.º 32 e, vestindo a farda de Marinha de Campos, percorre varias ruas da cidade e entra em diversos portaes, sem que a policia dê por tal...
«Essa noite (a de 27)—revelou-o mais tarde o visconde da Ribeira Brava—foi tremenda de sensações! Alvaro e Ernesto Pope e Arthur Cohen desenvolveram uma actividade inexcedivel. Os automoveis giravam constantemente, percorrendo os postos, levando ordens e dando a ultima demão nos preparativos do movimento. Essa noite, eu e Affonso Costa passamol-a sem dormir, sentados os dois a uma meza, escrevendo em pedaços de papel determinações que eram enviadas a todos os que dirigiam grupos de combate, e ao mesmo tempo dando indicações para o fornecimento de armas, que se encontravam-no deposito principal. Sobre a madrugada estavamos gelados. Entre essas ordens ha uma interessante para a historia da Revolução. É a que enviámos a José d'Alpoim, concebida nos seguintes termos:
«O sr. José d'Alpoim, com os seus amigos, irá postar-se no elevador da Bibliotheca, para d'ali, na companhia de Affonso Costa e do povo assaltarem a Camara Municipal e ahi proclamarem a Republica. Pelo «comité» revolucionario, Affonso Costa e Ribeira Brava».
Approximava-se o momento decisivo.
Todo o dia 28, desde as primeiras horas da manhã, foi passado n'uma anciedade enorme indescriptivel. Os republicanos e os dissidentes, ainda então á solta, sabiam perfeitamente que a policia os não desfitava e que era uma questão de minutos, talvez, a perda da sua liberdade.
Proximo das 11 horas da manhã, o sr. Alpoim, que estava no centro da dissidencia progressista, recebeu a ordem revolucionaria n'outro logar transcripta, e ás 2 da tarde foi para o elevador da Bibliotheca com os srs. João Pinto dos Santos, Egas Moniz, Cassiano Neves, Batalha de Freitas e outros mais. Encafuaram-se todos n'um cubiculo, tendo á porta uma vedeta que se revesava regularmente. Das 2 ás 4, nada occorreu ali de anormal. Ás 4, os dissidentes, já então acrescidos de Marinha de Campos e Alvaro Pope, esperaram que o chefe da grande orchestra movesse a batuta. N'outros pontos de Lisboa, a scena era quasi identica. Estava tudo a postos. Faltava apenas o signal combinado...
Ao cahir da tarde, como se espalhasse o boato de que o movimento tinha de soffrer novo adiamento de horas, Marinha de Campos, Alvaro Pope e o visconde de Pedralva foram de automovel percorrer os quarteis, transportando ao mesmo tempo armas e munições. Pouco depois, entrou no elevador o tenente-coronel Amancio de Alpoim e communicou aos conjurados que a revolta gorara e que era conveniente que abandonassem o edificio, pois a policia já lhes andava no encalço.
Debandaram. Mas d'ahi a uma hora voltaram novamente a reunir-se na casa do tenente Furtado, contigua ao elevador. Isso de nada serviu, porque Alvaro Pope, que ali appareceu já noite fechada, tinha informações identicas ás do tenente coronel Amancio de Alpoim. O movimento fôra mal succedido, as tropas tinham sido postas de prevenção, as guardas dos edificios publicos haviam sido reforçadas e o comité revolucionario ordenara definitivamente a retirada das forças mobilisadas. O dr. Egas Moniz, sabendo que o sr. Affonso Costa e o visconde da Ribeira Brava tinham entrado no elevador, foi ao seu encontro. N'esse mesmo instante, a policia principiava a cercar a casa do tenente Furtado. Era evidente que se preparava para capturar o sr. Alpoim e os seus amigos, como d'ahi a pouco capturou os srs. Affonso Costa, dr. Egas Moniz e visconde da Ribeira Brava. Impunha-se a fuga.
O porteiro do edificio, informado do caso, communicou ao sr. Alpoim a existencia d'uma sahida pelo lado da calçada de S. Francisco. Os dissidentes aproveitaram-na, mas com dificuldade. A portinha era estreita e o corredor que ali conduzia era lobrego e cheio de teias de aranha. Os dissidentes desceram-no, cautelosamente, quasi roçando pelos policias, que começavam então a invadir as escadas. Em baixo, novas difficuldades e sobresaltos. A fechadura não servia desde annos e foi um trabalhão para fazer girar a chave. Na calçada de S. Francisco não havia um unico policia... O sr. Alpoim e alguns dos seus amigos foram ao centro dissidente, no largo das Duas Egrejas. Ali souberam das prisões effectuadas dentro do elevador da Bibliotheca. O visconde do Ameal encaminhou-se logo para a estação do Rocio, d'onde fugiu para Villa Franca e depois para Hespanha; o visconde de Pedralva imitou-o, e o sr. Alpoim, mettendo-se n'um trem, foi para casa. Mas, calculando que ia egualmente ser preso, passou, momentos antes da policia o procurar, para a residencia do sr. Teixeira de Souza e no dia seguinte, á noite, abrigou-se no palacete do sr. Henrique de Mendonça, d'onde se escapuliu, em automovel, para o paiz visinho.
Quasi á mesma hora em que os dissidentes abandonavam a casa do tenente Furtado, o dr. José d'Abreu corria ao Club dos Caçadores a convencer os revolucionarios que ali se encontravam da inutilidade do seu esforço, visto que o dr. Affonso Costa já tinha cahido nas garras da policia. Egual prevenção era feita aos grupos capitaneados pelo engenheiro Antonio Maria da Silva, professor Ferrão e tantos outros, que só esperavam o signal combinado para luctarem com energia, coragem e decisão em prol da liberdade politica. Depois, seguiram-se: o esboço de ataque á esquadra do Rato, onde morreu um policia, a fusilaria na rua da Escola Polytechnica e na rua Alexandre Herculano, a tentativa de ataque á esquadra do Campo de Sant'Anna, os incidentes de Alcantara, etc., emfim varios episodios que mostraram claramente aos profanos boquiabertos a extensão do movimento projectado.
Porque falhara? Já o dissemos: porque, dependendo em absoluto da prisão do dictador e não tendo o grupo civil a isso compromettido levado a cabo a sua missão, todos os elementos a postos se conservavam inactivos ou procuraram escapar com presteza á desforra do governo franquista. Todos... não dizemos bem. Affonso Costa, dentro do elevador da Bibliotheca e cercado pela policia, puxou d'um revolver para resistir até á ultima. O visconde da Ribeira Brava impediu-o de o desfechar. Machado dos Santos, Serejo Junior e Helder Ribeiro pensaram, como ultimo recurso, sublevar caçadores 2 e com esse regimento e o corpo de marinheiros tentar a libertação dos chefes revolucionarios encarcerados pela dictadura. Marinha de Campos alvitrou a sublevação da fragata D. Fernando e declarou-se prompto a fazel-o sem outro auxilio de militares. Machado dos Santos tentou tambem approximar-se das baterias de Queluz, onde os revolucionarios contavam um apoio fortissimo.
E descreve elle no seu relatorio de 1912:
«N'essa tragica noite tudo fugiu! O commandante audacioso d'um regimento teria salvo o seu paiz. As portas do quartel de marinheiros estavam completamente fechadas. Só o 2 de caçadores, que fôra reforçar a guarda do paço (onde estavam officiaes nossos) o poderia ter feito. O terror era grande na cidade. Encontro-me no Rocio com Candido dos Reis, Moura Braz e Tito de Moraes, se não estou em erro; dirigimo-nos ao Club Militar; o almirante Botto e um outro cujo nome me não occorre ouviram Candido dos Reis tentar leval-os para o nosso lado. João de Freitas Ribeiro gritava que uma dictadura nos não devia impôr um rei; os almirantes e um capitão de mar e guerra que lá estava (cujo nome tambem ignoro) ficaram mudos e quedos e nós retiramo-nos, ouvindo eu dizer a um dos tenentes que comnosco se encontravam:
«—Almirantes de borra, que nem para um acto de dignidade servem!...
«Candido dos Reis (ainda não era almirante) dirigiu-se a casa do dr. Bernardino Machado, levando-me em sua companhia; lá, falsas noticias nos chegam, e, entre ellas, duas de calibre superior; infantaria 5 tinha-se revoltado e tomado o Cabeço de Bolla e o 16 tinha-se batido contra a guarda e vindo para a rua. Candido dos Reis ordena-me que vá averiguar da verdade e, n'esse momento, chorando de raiva, lembro-me de ter sido menos correcto com o dr. Bernardino Machado, o qual muito paternalmente se não melindrou com isso, dizendo talvez no seu fôro intimo que eu era um visionario e que, como tal, era muito desculpavel o meu estado de exaspero. Ambos tinhamos razão; cada um via as coisas pelo seu prisma. Elle estava informado do retrahimento dos officiaes e eu imaginava que todos, até final, tinham obrigação de honrar os seus compromissos.»
Cumprindo a ordem de Candido dos Reis, Machado dos Santos encaminhou-se para Campo de Ourique. Em volta do quartel de infantaria 16, agglomeraram se muitos populares que affirmavam que o regimento tinha sahido, levando tudo adeante de si. Machado dos Santos, incredulo, approximou-se do edificio e perguntou á sentinella quem ia a commandal-o.
—Vá para o largo—foi a resposta que obteve.
E, quasi ao mesmo tempo, a guarda do quartel fez uma descarga de fusilaría, seguida de alguns tiros espaçados que obrigaram o triumphador da Rotunda a fugir até o largo da Estrella e depois até o Rato. Aqui formava pacatamente o 16, commandado pelo respectivo coronel. Mais adeante, em frente da casa do dictador, uma companhia d'aquelle regimento fraternisava com um esquadrão da guarda municipal. Não havia que duvidar; o 16 sahira do quartel, mas para defender a monarchia.
Em resumo; apesar do insuccesso palpavel da insurreição, é justo consignar que, na noite de 28 de janeiro, muitas das creaturas n'ella implicadas quizeram desobedecer á ordem do comité revolucionario e lançar-se corajosamente na revolta. Houve momentos de amargura, em que esses homens attribuiram a responsabilidade do adiamento, sine die, da insurreição, ás hesitações d'uns companheiros. Um grupo de sargentos de artilharia chegou mesmo a propor a sedição do regimento 1 como inicio immediato do movimento. Foi necessario que a vontade persuasiva de alguns se impusesse fortemente para evitar um copioso derramamento de sangue. O desejo de combater, a raiva que a contra ordem de revolução provocara n'um grande numero de conjurados eram tamanhos que só por milagre Lisboa não acordou a 29 de janeiro de 1908 mergulhada em horrorosa chacina.
Felizmente, não succedeu assim. O dictador, tendo-se-lhe desenrolado ante a vista turva uma boa parte da machinação revolucionaria, embrenhou-se, naturalmente, n'um amontoado de providencias de occasião. Primeiro que tudo, collocou a mordaça do estylo na bocca da imprensa; ordenou uma sahida de tropas que equivalia á declaração do estado de sitio, visto que ellas é que fizeram na madrugada de 29 a policia da cidade; ordenou rusgas; remetteu para os fortes grandes levas de presos; exhibiu a cavallaria da municipal em diversos locaes para aterrar, para suffocar o menor impulso de reacção; e no dia 29 preparou-se para completar a sua obra de repressão com o famoso decreto que o ministro Teixeira de Abreu levou a Villa Viçosa á assignatura do rei Carlos.
O governo franquista, não satisfeito com o ter lançado á tôa para diversas prisões todas as creaturas que a policia encontrou nas ruas da cidade, momentos depois do ataque á esquadra do Rato, aprestava-se a expellir pela barra de Lisboa todos os politicos, todos os cidadãos que, n'uma hora de legitima revolta contra um regimen de perfeita tyrannia, tinham ousado preparar a queda logica, indispensavel, do throno dos Braganças. Á atmosphera de pavôr immenso, que creara com essas perseguições arbitrarias—o governo civil de 28 para 29 encheu-se rapidamente de populares—queria sobrepôr uma verdadeira mortalha, embrulhando no famoso decreto todas as individualidades que elle suppunha, com bom ou mau fundamento, implicadas na conspiração.
Não o conseguiu, porém. E não o conseguiu, porque, mal o decreto foi publicado no Diario do Governo e antes que o dictador iniciasse a sua applicação feroz, outra força, e extraordinaria força, com que elle nunca sonhara, impediu a consecução dos seus designios. O regicidio travou a corrida vertiginosa para a selvajaria que o gabinete João Franco desfechara, pretendendo convencer o paiz de que assim cumpria uma missão patriotica. O regicidio... sim, foi o regicidio que evitou um authentico attentado brutal, anti-politico, libertou dos ferros da prisão alguns dos organisadores da revolta de 4 e 5 de outubro e impediu que muitos dos que implantaram a Republica em Portugal gemessem até essa data gloriosa no desterro abrasador...
Chegámos ao ponto menos esclarecido d'este periodo historico. Desde a tarde de 1 de fevereiro de 1908, em que o rei Carlos e seu filho Luiz Filippe baquearam no Terreiro do Paço sob as balas desferidas por um reduzido numero de conjurados, tem-se dito tanta coisa sobre esse acontecimento que e licito suppôr que a verdade ainda permaneça envolta em denso veu. Não temos a pretenção de proferir a ultima palavra a tal respeito; mas ouvimos mais do que uma vez a pessoas bem informadas referencias ao caso, e essas referencias auctorisam-nos a considerar o regicidio sob um aspecto muito diverso do que aquelle por que é vulgarmente conhecido.
A propria policia, apesar de haver conseguido em dado momento obter um ou dois depoimentos razoaveis, nunca tirou a limpo a veridica historia do caso. E porque? Pela razão muito simples de que, tendo orientado as suas diligencias n'um determinado sentido, d'essa orientação nunca se desviou, apezar de errada. Teimou em ver no regicidio o acto de muitos conspiradores, longamente deliberado, e d'ahi não se afastou, embora o seguimento da instrucção do processo por mais de uma vez lhe indicasse o contrario. Persistiu em ver sobre as cabeças dos regicidas uma influencia especial, uma sugestão de politicos burguezes, sem coragem para perpetrarem o acto e confiando esse encargo a creaturas exaltadas, a libertarios decididos e energicos, e afinal, por aquillo que ouvimos ás pessoas as quaes já alludimos, nada d'isso existiu senão para ser utilisado no momento opportuno como uma arma de combate nas mãos dos reaccionarios.
Comprehende-se perfeitamente que, após o insuccesso do 28 de janeiro e o conhecimento das medidas ferozes preparadas pelo dictador, a opinião soffresse immediatamente um accrescimo de odio contra esse governo que não hesitava em immolar no altar da sua vingança diversos patriotas, cujo unico crime era o de se terem eximido, ou procurado eximir-se, ás suas prepotencias. Essa exaltação da opinião devia ter-se reflectido mais fundamente nos elementos revolucionarios que para o movimento de 28 de janeiro haviam prometido o concurso d'uma acção efficaz sobre os tyrannos do paiz. Quantos d'esses revolucionarios na madrugada de 31 e no periodo de horas que decorreu até ao desembarque da familia real no Terreiro do Paço, não pensaram n'outra coisa que aliás dominava o espirito até dos mais conservadores: a necessidade de se eliminar o dictador? Quantos? Essa eliminação estendiam-na naturalmente, sem hesitações, ao monarcha dos adiantamentos, porque a verdade é que para um revolucionario que pretendia supprimir uma situação de absolutismo não bastava, de certo, fazer desapparecer o braço executor do regimen de oppressão. Tornava-se imprescindivel liquidar a personificação individual d'esse mesmo regimen. Esta é a verdade e já explica, de certo, muitos dos episodios que caracterisaram a tragedia do Terreiro do Paço.
Quem passasse n'aquelle ponto da cidade na tarde de 1 de fevereiro, momentos antes do desembarque da familia real, ainda que totalmente alheio ao que d'ahi a pouco se ia desenrolar, teria a impressão de que a atmosphera, excessivamente carregada, por força desabaria em medonha tempestade. No Terreiro do Paço havia relativamente poucos curiosos a aguardarem aquelle desembarque. Em compensação, a policia, fardada e á paisana, mobilisara-se á valentona, circulando desconfiadissima por entre a assistencia.
O momento era solemne. As creaturas que palpitavam com frequencia a opinião desde o insuccesso do 28 de janeiro, calculavam com fundamento que alguma coisa se produziria, quanto mais não fosse uma manifestação platonica de desagrado ao monarcha e ao seu primeiro ministro. Outras, pelo contrario, não acreditavam n'uma explosão do odio popular e sorriam desdenhosamente perante as menores apprehensões. Acreditavam demasiado na indolencia do povo escravisado e no falso prestigio do soberano.
A policia, repetimos, a propria policia, que conhecia sufficientemente a extensão do trama revolucionario, que afinal se não desfizera ao mallogro da projectada revolução, tambem não tinha a noção do perigo que ameaçava o throno. Esse perigo, voltamos a insistir, não derivava simplesmente de uma combinação prévia feita entre meia duzia de homens desejosos de reintegrar o paiz na normalidade. Nascera e progredira na consciencia da maioria dos revolucionarios e até dos que não commungavam nos segredos da revolta. Era uma coisa acceite em principio e se toda a grande massa de povo soffredor possuisse a energia, a decisão prompta dos poucos homens que collaboraram no regicidio, este acontecimento teria sido da responsabilidade directa, não de cinco, como se affirma, mas de cincoenta, de quinhentos, de cinco mil...
Ha um relatorio policial, elaborado tempos depois da morte de D. Carlos e de seu filho, que pretende filial-a n'uma conjura mais radical nos seus meios de acção do que a que preparou o 28 de janeiro. Fala-se ahi de varios individuos, amigos do professor Buiça e de Alfredo Costa, como implicados n'essa conjura e até quasi se assegura que o grupo decidido a executar o monarcha e o principe comprehendia duas ou tres duzias de homens, escalonados desde o Terreiro do Paço ás Necessidades para a execução d'essa sentença lavrada em conciliabulo tenebroso.
Na realidade, para a nossa phantasia de meridionaes, não se percebia que um acto de tanta repercussão mundial fosse praticado sem o apparato scenico de muitas reuniões secretas, com as indispensaveis capas de embuçados e o juramento terrivel prestado em meio d'um silencio aterrador. E a policia influenciou-se d'essa phantasia, apesar de uma das suas averiguações consignar claramente um facto que reputou verdadeiro e de grande importancia para o esclarecimento do regicidio: o cavaco animado travado entre cinco homens na madrugada de 1 de fevereiro á esquina do Café Suisso. N'esses cinco homens contavam-se o professor Buiça e Alfredo Costa. Os restantes, quem eram? Vivem ainda? A policia chegou a conhecel-os? E que projectavam n'essa madrugada celebre? Decidiam ali, em plena rua, o plano do regicidio, ou apromptavam-se para um acto bem diverso?
O sr. José de Alpoim, que se occupou do assumpto pouco depois de implantada a Republica Portugueza, procurando expurgal-o das falsidades e das invenções dos reaccionarios, que durante dois annos o exploraram sem pudor pela verdade, parece inclinar-se para esta hypothese, embora o não diga claramente:
Os cinco revolucionarios que na madrugada de 1 de fevereiro um espião policial surprehendeu em conciliabulo á esquina do Café Suisso (ou outros cinco, mas comprehendendo tambem o Buiça e o Costa) projectavam simplesmente eliminar o dictador. Subiram a Avenida com esse intuito, esperando poder executal-o á sahida da casa onde elle morava. Por qualquer circumstancia que não vale a pena mencionar, esse designio falhou. Os cinco revolucionarios desceram novamente a Avenida, dispersaram-se durante um pequeno espaço de tempo e voltaram a reunir-se no Terreiro do Paço, ainda com a intenção de desfecharem as armas de que estavam munidos sobre o primeiro ministro de D. Carlos. Essa tentativa foi, como a antecedente, mal succedida; e elles então, não vendo o dictador mas vendo chegar o rei, resolveram n'um lance impulsivo descarregar sobre a carruagem do monarcha.
Por outro lado, Alfredo Costa, vinte e quatro horas antes de consumado o regicidio, dissera a alguem que no dia immediato se abalançaria a ir para a cabeça do touro. Que quereria elle dizer com essa phrase pittoresca? Referir se-hia já n'essa altura á probabilidade do rei Carlos ser attingido pela sua Browning, ou pensava apenas no primeiro ministro que submettera á assignatura do rei o famoso decreto da morte civil de dissidentes revolucionarios e republicanos? No emtanto, ha uma coisa que o sr. Alpoim registou no artigo a que n'outro logar alludimos e que é digno de relevo n'uma narrativa em que se fale do regicidio: o acto não foi combinado antes do 28 de janeiro, pelo motivo bem simples de que a revolta devia rebentar estando a familia real em Villa Viçosa; a carabina utilisada pelo professor Buiça, comprada em casa do armeiro Heitor Ferreira por um rapaz que não era o professor, só entrou na posse d'aquelle revolucionario depois de reconhecido o mallogro do movimento em que entravam republicanos e dissidentes.
Por ultimo, se é certo que o professor Buiça se dispoz antecipadamente a morrer em prol da liberdade—prova-o o seu testamento, que a imprensa publicou—se é geralmente sabido que no seu espirito fulgurou mais do que uma vez a ideia de se exterminar o rei dos adeantamentos, idea acceite não só por Alfredo Costa mas por outros tres homens fundamente exaltados contra o regimen de absolutismo, não é menos certo que até o momento do desembarque da familia real no Terreiro do Paço esse grupo de destemidos tinha em mira liquidar o chefe do governo e, se este escapou da chacina, a um quasi milagre o deve. Com um pouco menos de sorte, o dictador teria perecido sob a fusilaria do grupo, a policia teria despertado da molleza com que vigiava a integridade do monarcha, e a tarde de 1 de fevereiro, longe de marcar uma étape formidavel de revolução, ficaria limitada á queda do gabinete João Franco, pela queda mortal da sua cabeça dirigente.
Vejamos agora outro ponto do regicidio muito discutido até pelas proprias testemunhas do acto: quem atirou primeiro sobre a carruagem real? Foi Alfredo Costa ou o professor Buiça? Tentemos esmiuçal-o.
Assim que a familia real, vinda de Villa Viçosa, desembarcou na ponte dos vapores do Sul e Sueste, o rei Carlos approximou-se do tenente-coronel Dias, que dirigia no local o serviço da policia fardada, e perguntou-lhe á queima roupa:
—Isto... como vae?
(Isto era a situação da população lisbonense, o estado da opinião publica após o famoso decreto de morte civil).
O tenente-coronel Dias hesitou um momento antes de responder, mas, quando se decidiu a fazel-o, disse peremptoriamente ao monarcha:
—Meu senhor, isto vae muito mal!...
D. Carlos encolheu os hombros n'um significativo desdem e foi falar ao primeiro ministro que, dir-se-hia, esfregava as mãos de contente pelo que a publicação do tal decreto representava de força do ministerio e de provocação altiva, ironica, de desafio insolente á ralé insubordinada. Não sabemos o teor d'essa conversa; mas é de crer que o monarcha houvesse interrogado o dictador de modo identico ao do tenente-coronel Dias, e que o dictador, emphatico, lhe tivesse respondido de modo differente do do mesmo tenente-coronel. O primeiro ministro, n'essa altura, ainda desprezava a agitação da escumalha, considerando-a incapaz de ferir o poder real, que elle procurava engrandecer.
D'ahi a instantes, a familia real sahiu da estação do Sul e Sueste e tomou logar n'uma carruagem descoberta. A multidão formava alas pouco compactas para a ver passar. Em frente das arcadas do ministerio da fazenda, um homem que até então se conservara immovel e sereno do lado da Praça do Commercio, olhou para um outro que se especára mais aquem e transmittiu-lhe um imperceptivel signal de cabeça. O segundo fez um gesto affirmativo e o primeiro, saltando para o meio da rua, desembaraçou-se do varino que tinha dependurado dos hombros e, apontando uma carabina á capota da carruagem real, desfechou-a. Esse homem, o professor Buiça, fizera tudo isso n'um relampago. O rei Carlos agonisou... Quasi ao mesmo tempo, a carruagem real era atacada de flanco pelo outro homem empunhando uma pistola Browning. Alfredo Costa, correndo por diante d'um antigo kiosque da Praça do Commercio, conseguira alcançal-a na volta para a rua do Arsenal. O principe Luiz Filippe ergueu meio corpo no vehiculo e, tambem de pistola em punho, tentou attingir o regicida. Mas feriram-n'o de morte como ao rei Carlos. A rainha Amelia, vendo a curta distancia da carruagem um terceiro individuo em attitude hostil, quiz sacudil-o, ameaçando-o com o ramo de flores que tinha na mão, mas n'esse momento o panico já era enorme e, dentro de segundos, o Terreiro do Paço transformava-se em verdadeiro campo de batalha, onde os defensores do regimen disparavam á tôa e a maioria dos populares fugia em diversas direcções, confusos, medrosos, sem atinar com a importancia do facto que acabavam de presenciar.
O resto é sabido. A carruagem real, depois de ter parado uns momentos, hesitante, seguiu apressadamente para o Arsenal, emquanto a policia e uns officiaes do exercito, n'uma furia extranha de exterminar revolucionarios, espadeiravam, disparavam tiros e cevavam um odio inconcebivel não só sobre os dois homens que realmente tinham atacado a carruagem real, como sobre creaturas inoffensivas, que, por curiosidade, haviam comparecido ao desembarque do rei e da sua familia. N'esse lapso de tempo decorrido entre a morte do monarcha e a installação dos dois corpos, o d'elle e o do filho, no Arsenal da Marinha, a policia commetteu brutalidades sem nome. D'uma d'ellas resultou a morte de Alfredo Costa e d'um modesto empregado de ourives, João Sabino da Costa. Alfredo Costa vivia ainda quando o transportaram para a esquadra da Camara Municipal. Dentro d'essa mesma esquadra, a piedade de um guarda impediu que uma duzia de selvagens massacrasse varios populares capturados no momento do regicidio e que, repetimos, não tinham responsabilidades effectivas na execução do monarcha dos adeantamentos.
É natural que o leitor d'estas narrativas, chegado a este ponto da chacina de 1 de fevereiro, deseje saber os nomes dos tres companheiros de Buiça e Costa. O mysterio tem attractivos poderosissimos e não é facil contentar em absoluto o publico apenas com a promessa vaga de que o futuro desvendará o que o presente não permitte conhecer em todos os seus pormenores.
N'este caso especial, porém, o mysterio não pode ser, não deve ser profundado. De resto, mesmo que o quizessemos fazer por um impulso de furiosa reportage, esbarravamos com esta muralha impenetravel: o segredo dos conspiradores. A quem não andou implicado em qualquer movimento revolucionario é difficil affirmar que as cousas se passaram de tal ou tal modo. Ha naturalmente quem possua informações precisas sobre o regicidio; entre o muito de phantastico e de tendencioso que a esse respeito se disse na imprensa, ha, evidentemente, uma nesga da verdade; mas d'ahi a garantir a narrativa completa do facto vae uma distancia consideravel, que poucos ousariam transpôr.
Durante muito tempo disse-se que o individuo que a rainha Amelia, no instante da tragedia, sacudira com um ramo de flôres era um dos filhos do visconde da Ribeira Brava. Lembra-nos perfeitamente que, tendo recebido n'essa tarde ordem de ir ao Terreiro do Paço e ao Arsenal verificar a exactidão das noticias alarmantes que o telephone transmittira á redacção do Seculo (onde trabalhavamos), o primeiro pormenor que alcançámos, repetido por meia duzia de pessoas, foi o de que um dos regicidas era o sr. Francisco Heredia. Um popular asseverava até que esse sportsman é que disparara primeiro que qualquer outro uma carabina sobre a carruagem real. Mais tarde, julgando-se insubsistente esse boato malevolo, engendrou-se um outro: o de que o sr. Francisco Heredia emprestara um varino ao professor Buiça e lhe offerecera a famosa arma, instrumento da execução. A propria policia, orientada no mesmo sentido, fez varias tentativas para enredar no regicidio aquelle nome tão citado pelos reaccionarios á bocca pequena. E mais do que uma vez pelas redacções dos jornaes se affirmou discretamente que o juiz de instrucção criminal passara um mandato de captura contra o pretendido regicida. O sr. Alpoim, referindo-se ao caso, commenta-o deste modo:
«Nenhum dos tres filhos do sr. visconde da Ribeira Brava, nenhum, tomára parte no movimento; nenhum se inscrevera; seu pae não os implicara em qualquer facto revolucionario; sobre nenhum d'elles incidia qualquer responsabilidade, como incidia sobre o tenente Bernardo d'Alpoim que, de combinação com seu pae, collaboraria n'um dos factos mais graves da Revolução. Valentissimos, lealissimos, mas casados e com filhos, seu pae sequestrara-os a todas as responsabilidades. Pois foi um d'esses bons, admiraveis rapazes, que a gente do Paço e a escoria clerical escolheram para alvo dos seus odios e accusações! Chegou-se a comprar policias para falarem no seu nome; e o sr. visconde da Ribeira Brava procurou o ultimo juiz de Instrucção Criminal para lhe communicar factos gravissimos a tal respeito!
«Aconteceu que o sr. D. Francisco Heredia, á hora em que o attentado se commettia, estava com pessoas respeitabilissimas que depozeram. E—o que ninguem sabe!—a pessoa mais indignada foi a rainha sr.ª D. Amelia, que recebeu sempre no Paço, com todo o affecto, o sr. D. Francisco e sua esposa. Ao chefe dissidente contou aquella senhora que era uma infamia semelhante accusação e que ella propria dissera ao juiz de Instrucção Criminal que, conhecendo muito bem o sr. D. Francisco Heredia, estava prompta a affirmar que não se achara entre os que assaltaram o coche real e sobre elle dispararam. Garantimos esta affirmação, estas palavras da rainha; e, comtudo, ellas não desarmaram gente da côrte e politicos que tinham todo o empenho em envolver o nome d'um dissidente, ou de pessoa que lhe fosse proxima, no tragico acontecimento do Terreiro do Paço!»
Mas não foi só o sr. Francisco Heredia que a opinião desvairada apontou como tendo tomado parte no regicidio. Na tarde de 1 de fevereiro de 1908, a policia prendeu, como suspeitos, varios individuos, entre elles um de nacionalidade hespanhola. Durante oito dias, approximadamente, teve-os incommunicaveis no governo civil e findo esse periodo de clausura libertou-os. O hespanhol sahiu logo de Lisboa e foi para San Sebastian. Passados mezes, quando a policia voltou a proceder a investigações minuciosas sobre a morte do rei Carlos e do principe Luiz Filippe, teve denuncia de que o hespanhol realmente atirára sobre um e outro, e um dos agentes do juiz de instrucção encaminhou-se para o paiz visinho na peugada do supposto companheiro do professor Buiça. Baldado empenho: o hespanhol já não vivia em San Sebastian e o seu rasto perdera-se completamente. Seria, com effeito, esse homem o tal que a rainha Amelia viu atirar sobre o marido e o filho e de quem, d'ahi a semanas, fez um croquis, fixando-o bem nos seus traços physionomicos? Não é possivel dizel-o com segurança. Pessoas que se nos affiguram bem informadas desmentem redondamente esse boato, como antes já tinham egualmente desmentido o que incidia sobre o sr. Francisco Heredia. E uma d'ellas declarou-nos terminantemente, assim que o juiz Silva Monteiro recomeçou a respectiva indagação policial:
—O X... que o juiz procura não é nem o filho do Visconde da Ribeira Brava nem o hespanhol de S. Carlos (o individuo suspeito fôra musico no nosso theatro lyrico). Tambem não é, como para ahi se disse, o estudante preso por causa da explosão na rua do Carrião, que ao tempo se achava escondido em Lisboa (Aquilino Ribeiro). Pelo pouco que sei do regicidio creio que o X... é outro rapaz bem differente d'esses tres, pouco conhecido como revolucionario, mas dispondo d'uma energia capaz de um acto semelhante á execução do monarcha dos adeantamentos.
«Cousa curiosa... Ia jurar que a policia teve em seu poder durante alguns mezes o X... do regicidio. Não por esse facto... Capturou-o, conservou-o por semanas incommunicavel, mas sem suspeitar sequer ao de leve que aferrolhava nos seus calabouços um authentico companheiro do Buiça e do Costa, o tal regicida de quem a rainha Amelia fez um croquis elucidativo. Eram cinco os do complot... Alfredo Costa, o professor Buiça, o X..., o Y... e o Z. Os dois primeiros morreram na tragedia; os restantes escaparam...»
Vamos concluir este capitulo da historia contemporanea, mas antes faremos referencia a uma conversa trocada entre o professor Buiça e Alfredo Costa á 1 e 30 da tarde de 1 de fevereiro de 1908. Foi no Café do Gelo, a conhecida cervejaria que desde tempos immemoraveis tem servido a rendez-vous de estudantes e... estudantes de idéas avançadas.
Na vespera do regicidio, o professor Buiça, que tinha no café do Gelo o seu quartel-general de propaganda libertaria, apareceu ali, acompanhado de Alfredo Costa e d'um outro rapaz, e abancou a uma das mezas. Os tres conversaram demoradamente e ha todas as razões para crêr que só se separaram na manhã de 1. Á 1 e 30 da tarde d'esse dia, o professor Buiça e Alfredo Costa voltaram ao Gelo e tomaram logar n'uma das mezas da sala que deita para a rua do Principe. O professor Buiça bebeu uma cerveja e Alfredo Costa serviu-se d'uma omolette. Na mesma sala, alem dos dois revolucionarios, encontravam-se apenas o dr. Maximo Brou e um cadete da Escola do Exercito. O professor Buiça desenvolveu um plano qualquer ao seu companheiro e fel-o sem reservas, alto e bom som, completando a palavra com gestos expressivos:
—A carruagem avança, disse elle, a carroça apparece, esbarra e eu intervenho...
E ao affirmar a sua intervenção, o professor Buiça moveu os dois braços de modo significativo, como se mettesse uma espingarda á cara.
—E nós? perguntou-lhe Alfredo Costa... O que fazemos?
—Vocês... procederão como a opportunidade indicar.
O outro calou-se e continuou a comer a omolette. O professor Buiça piscou um olho ao dr. Maximo Brou e disse lentamente e ironico:
—Estamos aqui, estamos em Timor...
O dr. Maximo Brou procurou desfazer essa apprehensão, argumentando risonho com a belleza do dia—á 1 e 30 da tarde o sol inundava a cidade de luz faiscante—mas o professor Buiça insistiu na previsão e d'ahi a pouco um silencio melancholico amortalhou o ambiente. Ás 5 e tal, quando o dr. Maximo Brou soube no Martinho que o rei Carlos fôra alvejado no Terreiro do Paço, não poude conter-se, e recordando o que ouvira no Gelo, exclamou para uns amigos:
—O Buiça não errou a pontaria!...
E não errara, com effeito. Até ha pouco, ainda se asseverava convictamente que o primeiro regicida a atacar a carruagem real fôra o Alfredo Costa e que o Buiça se limitara a secundar-lhe o gesto. Não succedeu assim. O professor é que atirou primeiro, collocando-se no meio da rua e visando serenamente o pescoço do rei Carlos que emergia da capota do vehiculo. Depois, a policia postada do lado das arcadas do ministerio da fazenda disparou sobre elle varios tiros de revolver, emquanto mais adiante Alfredo Costa investia contra o lado direito da carruagem.
Não admira, por isso, que o Buiça ficasse na chronica da execução como o principal dos regicidas e que a opinião extrangeira o houvesse immediatamente collocado em plano superior ao dos seus companheiros. De resto, o nome do professor soou logo no dia 2 de fevereiro de modo bastante suggestivo para o grande publico. Por outro lado, a circumstancia de ter empunhado e desfechado uma carabina—arma que exige, na sua utilisação, sangue-frio extraordinario; e a aureola que um jornalista extrangeiro lhe teceu, evocando deante do seu cadaver na Morgue uma vida de apostolado e de martyrio, o sacrificio da familia, dos filhos votados á orphandade por amor da libertação do paiz; uma e outra coisa concorreram egualmente para que elle alcançasse uma supremacia de heroicidade que a historia futura indubitavelmente conservará.
Mas, pergunta-se agora: os cinco homens que na tarde de 1 de fevereiro se abalançaram ao regicidio tinham unicamente em mira supprimir um dos seus semelhantes—o rei ou o dictador? O que previam afinal sobre as consequencias do seu acto? Admittindo a hypothese de que pensavam apenas em matar o dictador (e essa hypothese, repetimos, é a mais verosimil) diremos que obedeciam naturalmente ao seguinte raciocinio:
Attingido o primeiro ministro do rei Carlos, a policia, se os apanhasse em flagrante, procuraria logicamente poupar-lhes as existencias, esperançada em que qualquer d'elles, succumbindo cedo ou tarde ante o juiz investigador, revelaria todos os pormenores do complot. Apoz a suppressão de João Franco, rebentaria irremissivelmente a revolta e a Republica, uma vez triumphante, veria com olhos differentes dos dos monarchicos o arrojo e decisão de quem lhe facilitara a proclamação por uma maneira tão notavel. O proprio Buiça, como n'outro logar registamos, contava em que o degredo de Timor seria o mais provavel dos castigos que sobre elle incidiria no momento opportuno.
Falemos da carbonaria, a grande organisação secreta que representou um papel importante na revolta de 4 e 5 de outubro. Tão importante, que d'ella sahiram todos os grupos de populares armados que auxiliaram o triumpho e um dos seus membros, da mais elevada cathegoria dentro da associação vinculou indelevelmente o nome e os feitos á implantação da Republica Portugueza.
A Carbonaria vinha de longe. Ha quem supponha, talvez, que ella nasceu propositadamente para a preparação do 28 de janeiro. Não é exacto. Em 1893 já se falava vagamente na existencia d'essa organisação e em 1894 um bom nucleo de estudantes conimbricenses realisava nas margens do Mondego, pela calada da noite, reuniões secretas com todo o cerimonial mysterioso das chamadas lojas revolucionarias, independentes da maçonaria regular.
A gréve do grelo, occorrida em Coimbra ahi por alturas de 1905-1906, revelou pela primeira vez ao publico o funccionamento da Carbonaria n'aquella cidade. Um jornal de Lisboa teve a idéa de entrevistar um dos estudantes mandados sahir de Coimbra por essa occasião e elle, com uma franqueza digna de nota, pôz a questão tal qual se lhe affigurava veridica e irrefutavel. Explicou a interferencia que a Carbonaria certamente poderia ter tido na agitação da população conimbricense, a frequencia das reuniões no Choupal, estrada da Beira e para os lados de Santa Clara, em recantos ignorados da policia e dos espiões monarchicos e explicou... outras coisas mais. No dia seguinte, um grupo de estudantes, alheio a essa organisação de insubmissos, apressou-se a desmentir na imprensa as affirmações d'esse seu collega. A Carbonaria sorriu, encolheu os hombros e o incidente não tardou a esquecer. E foi bom que assim succedesse, para não reavivar as diligencias policiaes effectuadas a proposito do apedrejamento proximo de Coimbra, do comboio que transportava a Lisboa o negociador d'um famigerado convenio financeiro.
Mais tarde, Lisboa vê despontar officialmente a Carbonaria para as luctas politicas, embalada pela fé ardente, a tenaz propaganda de Luz d'Almeida. É o momento em que a idéa inicial d'um nucleo forte, aguerrido, de acção immediata e directa contra as instituições monarchicas, apparece tomando corpo, adquirindo um relevo fóra do commum. Da maçonaria regular, a que Luz d'Almeida já dava, n'essa época, o melhor do seu esforço intelligente, sahe como que um filamento, que é o rastilho a applicar a uma bomba monumental. Esse filamento avulta, insinua-se vagarosamente na camada popular, contorce-se em evoluções cautelosas e discretas e a Associação Carbonaria Portugueza, até então uma sombra de resistencia nacional ao despotismo, á tyrannia do throno e dos governantes deshonestos, começa a illuminar o futuro, projectando sobre a treva que o envolve uma luz viva e inapagavel. A nova aggremiação secreta não tem ainda aquelle nome. Tem outro bem differente e não tarda a ser apadrinhada por um dos mais populares caudilhos republicanos.
Luz d'Almeida multiplica-se na conquista de elementos revolucionarios. E é curioso observar como esse homem calmo, d'uma calma que se confunde com a indolencia, desenvolve uma energia rara, uma actividade incomparavel. Conhecemol-o ha quinze annos, quando, ao lado d'um companheiro inseparavel, Ferreira Manso, elle se demorava todas as noites pelo Gelo em propaganda discreta, mas infatigavel. Sempre sereno, sempre conciso, vagaroso no andar, conservando no rosto uma impassibilidade caracteristica, o olhar incidindo certeiramente sobre o pensamento de qualquer dos seus interlocutores, Luz d'Almeida é o typo por excellencia do homem de acção que, uma vez lançado n'uma idéa de combate, vae direito ao fim sem hesitações, sem pressas inuteis, sem medo, sem precipitação. O gesto é sobrio e o vestuario tambem. Não faz alarde da sua decisão nem da sua palavra persuasiva. É methodico, correcto e cauteloso e, dentro d'essa couraça de apparente indifferença, esboça os planos mais audaciosos, resolve as situações as mais difficeis.
Na primeira phase da Carbonaria é com o dr. Antonio José d'Almeida que elle collabora assiduamente. A Floresta—o nome por que é então conhecida a poderosa aggremiação secreta—conta a breve trecho milhares de adeptos. Luz d'Almeida inicia-os dia a dia n'uma progressão assombrosa. De sorte que, antes do 28 de janeiro, elle e o dr. Antonio José d'Almeida adquirem a certeza absoluta de que é justificado confiar ao elemento popular uma boa parte da execução da revolta. E se é certo que na preparação d'aquelle movimento os grupos organisados de civis não apparecem ainda, como na preparação do 4 e 5 d'outubro, totalmente filiados na Carbonaria, não o é menos que a expansão da associação secreta já é tão vasta e tende tão nitidamente a augmentar que Luz d'Almeida, tres dias após o regicidio, inicia d'uma assentada cerca de cincoenta conjurados.
Por essa altura, ao lado do vigoroso e tenaz propagandista, figuram tambem dois revolucionarios de temperamento bem diverso, mas devotadissimos ambos á causa da liberdade: Machado dos Santos e o engenheiro Antonio Maria da Silva. As suas primeiras entrevistas realisam-se no jardim de S. Pedro d'Alcantara. É ahi que esses tres homens combinam de começo a forma de dar uma orientação absolutamente pratica á Carbonaria, formando entre si o Comité Alta Venda ou, melhor, a cabeça dirigente da organisação secreta. Depois passam a reunir em casa de Machado dos Santos, na rua José Estevão, casa que a policia assalta uma bella noite, disfarçando esse assalto com uma proeza de gatunos, e decidem levar aos quarteis a semente revolucionaria. É, repetimos, no periodo de maior agitação popular provocada pela politica nefasta do regimen monarchico. Rara é a noite em que se não inicia na Carbonaria uma duzia de adeptos pelo menos.
As iniciações divergem no cerimonial. Ha iniciações rigorosas, com todos os pormenores que constituem a bem dizer uma apertada fieira e tambem as ha pró forma, quando o adepto é sobejamente conhecido e inspira absuluta confiança. Em qualquer dos casos, porém, o iniciado é sujeito a um interrogatorio sobre as suas ideias politicas e aquillo de que se julga capaz de executar no momento propicio. Muitos d'elles affirmam desde logo as suas disposições para uma acção directa e individual; outros limitam-se a prometter concurso efficaz n'uma acção collectiva. A Carbonaria não repelle os que se declaram francamente incapazes d'um acto isolado, mas que juram—o juramento é obrigatorio para todos—auxiliar a communidade uma vez chegado o ensejo de luctar contra a monarchia ou a tyrannia.
Em dado momento surge uma contrariedade. Machado dos Santos, tendo escripto um artigo violento no Radical—jornal fundado e dirigido por Marinha de Campos—é, dado o seu posto de commissario naval, levado a conselho de guerra. Os juizes absolvem-no, mas como os inimigos dos revolucionarios não descansam, conseguem em breve afastal-o de Lisboa, desterrando-o para o ultramar. Esta contrariedade, porém, não impede que a Carbonaria progrida a olhos vistos. O comité Alta Venda decide abrir a primeira choça em Alcantara, bairro que sempre se evidenciou pelo grande amor á causa, bairro revolucionario por excellencia.
O comité recebe adhesões valiosas e a propaganda fructifica. Marinheiros, contra-mestres, cabos, sargentos, artifices, operarios, tudo acode á iniciação. Na conquista d'esses adeptos distinguem-se dois homens: o cabo Antonio (aliás sargento) e o artifice Carlos Freitas, que um zelo excepcional caracterisa. Este revolucionario toma sobre os hombros a ardua tarefa de desdobrar a choça de Alcantara e funda outra em Valle do Zebro, fornecendo ao comité um plano da escola de torpedos e varia documentação topographica.
Na choça d'Alcantara, a direcção superior da Carbonaria possue egualmente elementos civis de modelar actividade: entre muitos, Augusto Rodrigues, chefe de barraca, e José Madeira. Da choça de marinha sahem elementos de propaganda para junto dos quarteis de infantaria 2 e caçadores 2. É curiosa a forma por que esses elementos entram nos quarteis:
«A principio—reportamo-nos a uma informação do engenheiro Antonio Maria da Silva—cada carbonario tinha um primo no quartel; depois, conforme a necessidade de repetir as entradas, assim ia augmentando o numero de primos. Carbonario houve que, em pouco tempo, se tornou primo de toda a soldadesca. Naturalmente surgiram desconfianças por parte dos officiaes, e estas avolumaram-se com a coincidencia do apparecimento d'um folheto de Luz d'Almeida, intitulado «Dialogo entre um medico militar e um «magala», que foi largamente distribuido pelos elementos militares.»
Principiam então as buscas nos quarteis, buscas rigorosas que lançam o sobresalto no comité Alta Venda por causa da dureza do castigo que os iniciados certamente soffrem quando descobertos. Mas a dedicação dos carbonarios é tão grande que os maiores escolhos são transpostos com exito. Um exemplo: d'uma vez, o official de certo regimento revista a caixa d'um magala e o clarim que o acompanha na busca descobre o interessante folheto de Luz d'Almeida. Não hesita; disfarça como pode a comprometedora descoberta, apanha o folheto e occulta-o no instrumento... O clarim tambem era carbonario. E assim se consegue que esse Dialogo, d'uma propaganda utilissima, continue a espalhar pelas forças militares a ideia da revolta, apesar da campanha que os jornaes reaccionarios lhe movem sem treguas, apontando-o dia a dia ás attenções e á revindicta do governo monarchico.
Tratando-se da Carbonaria e da sua acção nos movimentos revolucionarios que caracterisam o ultimo periodo da vida monarchica portugueza, é necessario, antes de proseguirmos na narrativa que vimos fazendo, abrir um parenthesis que fixa um ponto de historia. Já dissemos que Coimbra antecedeu Lisboa na organisação d'essa força mysteriosa, que devia no 4 e 5 de outubro representar um papel importante. Podemos talvez falar do assumpto ainda com maior precisão. A Carbonaria de Coimbra teve o seu periodo aureo—digamos assim—de 1892 a 1894; a de Lisboa soltou os primeiros vagidos em 1897, fundada por Heliodoro Salgado, Benjamim José Rebello, Julio Dias, Sebastião Eugenio, José do Valle e varios democratas de Alcantara, que constituiam o nucleo de resistencia da chamada Aliança Revolucionaria. Pouco depois, a Alliança cedia o passo á loja irregular Obreiros do Futuro, installada na Rocha do Conde d'Obidos n'uma casa pertencente ao Credito Predial e que foi alugada a um dos carbonarios—a José do Valle se não estamos em erro—pelo sr. José Bello, ao tempo administrador das propriedades d'aquella companhia.
Essa loja irregular congregou durante largo tempo tudo o que Lisboa possuia n'essa occasião de elementos avançados, radicalissimos. A ella pertenceram os homens que mais tarde o juiz de instrucção criminal devia encarcerar como implicados em incidentes da politica interna (que o grande publico conheceu vagamente sob a designação de attentados anarchistas) e d'ella sahiram resoluções vigorosas cuja descoberta o ex-irmão Hoche d'essa epoca pagaria por bom preço. Facto digno de nota e que nos não cançaremos de repetir: a policia teve por vezes nas mãos, fechados a sete chaves, os meios de esclarecer certos mysterios, de pôr a nu intrincadas meadas revolucionarias. E não o fez porque? Porque, para alcançar exito completo, bastava-lhe concatenar habilmente certas informações. Tinha as informações, recebia denuncias que borboleteavam em volta da verdade, mas como não dispunha de sangue-frio e de esperteza sufficientes para as reunir, para as methodisar, disparatava horrivelmente e, disparatando no começo, ia até final, cega, estupida, laborando sempre no erro.
Occorre-nos n'este momento um incidente curioso a que é interessante fazer referencia. A policia um dia—e quem diz policia diz juiz de instrucção porque de certa altura por diante, desde que o Cyro e os seus superiores hierarchicos se convenceram de que a engrenagem revolucionaria não andava resumida aos tantos anarchistas que enfileiravam na famosa lista negra, as diligencias importantes passaram a ser encaminhadas com o auxilio de personagens de cathegoria—a policia um dia, insistimos, ouviu falar em que um homem de determinado appellido tomara parte saliente n'um facto que alarmou Lisboa. Não quiz saber de mais nada. Lançou-se na pista d'um rapaz, então ausente de Portugal, que usava do mesmo appellido, e forcejou imbecilmente por trazel-o ás mãos, sem procurar obter a confirmação absoluta da vaga denuncia. E tão cega, tão absorvida n'essa orientação errada, que ainda pouco antes de ser implantada a Republica tentava arrancar d'um prisioneiro politico a confissão de que esse tal rapaz realmente preponderara na execução do facto alludido... O appellido denunciado á policia era, effectivamente, o de um revolucionario ligado intimamente a esse facto; o rapaz que a policia perseguia, embora de appellido identico e amigo d'um outro que planeara o complot de exito indiscutivel, não entrara n'esse complot e só d'elle tivera conhecimento apoz a consumação do facto! É um pouco sybillino, mas é a verdade...
Outro caso pittoresco revelador da argucia policial: Certo dia os espiões da Bastilha descobriram a existencia d'um deposito de bombas n'uma casa da Baixa. Prisões, buscas, etc., o juiz de instrucção poz em scena todo o reportorio do costume. D'ahi a quarenta e oito horas, o mesmo juiz, por effeito d'uma denuncia, mandou capturar um operario extrangeiro, que se suspeitava ter no predio onde morava alguns explosivos devidamente aprestados para uma acção decisiva. A noticia d'essa captura lançou o alarme nos carbonarios que ainda andavam á solta. A denuncia era fundada e d'esta vez a policia ia, indubitavelmente, realisar uma diligencia de absoluto successo. Tornava-se necessario afastar do predio suspeito as bombas comprometedoras. Um grupo de homens decididos tomou sobre os hombros tal encargo e, meia hora antes da policia passar a busca do estylo á casa do operario, as bombas em questão eram transportadas para logar mais seguro, atravessando impunemente diversas ruas de Lisboa.
No dia seguinte, o ex-irmão Hoche chamou á sua presença o prisioneiro e quasi lhe pediu desculpa de o ter incommodado sem motivo.
—Eu sempre me quiz parecer—disse o juiz ao operario anarchista—que o senhor nada tinha com este caso das bombas... Vá descançado e trate de não se misturar com os incidentes da nossa politica interna. A minha opinião a seu respeito está formada.
O operario cumprimentou amavelmente o juiz e o juiz esfregou as mãos de contente, murmurando para o Sota da praça:
—Eu bem dizia... este rapaz nada tem com o caso das bombas...
A explosão da rua de Santo Antonio á Estrella fez desapparecer a loja Obreiros do Futuro, porque quasi todos os elementos que a compunham deram entrada nos calabouços policiaes. Mas assim que a justiça libertou esses carbonarios, a aggremiação secreta reviveu mais forte do que nunca e ao lado da Associação Carbonaria Portugueza surgiu uma outra associação retintamente anarchista, tendendo é certo para o mesmo fim revolucionario, mas divergindo um pouco nos meios de acção e na preparação e iniciação dos seus adeptos.
A carbonaria anarchista deu um contingente precioso para a revolução de 4 e 5 de outubro. E justo é dizel-o: trabalhava quasi ás claras. Alguns dos seus adeptos falavam de bombas e de dynamite como quem se referia a objectos de uso corrente, a artigos de primeira necessidade. A policia, entretanto, não ouvia nenhuma d'essas conversas e roçava pelo perigo com uma inconsciencia extraordinaria. Uma noite, á meza de determinado café de Lisboa que a tradicção popular apontava como rendez vous infallivel de exaltados, um anarchista conhecido propoz-se zombar da espionagem da Bastilha. Sacou do bolso do casaco um rolo côr de chocolate, mostrou-o aos convivas com o ar mais natural d'este mundo e disse em voz alta, de modo a ser ouvido por um bufo que abancára proximo:
—Sabem o que isto é? É massa para um foguinho de sala.
Um dos assistentes duvidou e elle, então, exclamou a sorrir:
—Ah! sim, pois agora vou dizer a verdade... Isto é dynamite!...
Os convivas entreolharam-se receiosos, o bufo espertou as orelhas e durante alguns segundos fez-se o silencio das grandes occasiões. O anarchista voltou á carga:
—Querem experimentar?...
O panico augmentou. Os assistentes, como movidos por uma unica mola, recuaram os bancos d'um metro... O bufo procurou abrigo n'uma outra meza. O silencio e a anciedade eram de esmagar o mais animoso. Percebia-se claramente que toda a freguezia do café queria pôr-se a salvo, mas que toda ella tambem não queria passar por medrosa. O bufo, esse, pingava suor por todos os póros.
O anarchista, sempre risonho e zombeteiro, pegou cautelosamente no rolo de chocolate, raspou-o com a unha e destacando uma particula insignificante collocou-a na pedra da meza. Depois accendeu um phosphoro e approximou a chamma d'essa minuscula substancia ameaçadora. Houve uma ligeira crepitação, a chamma lambeu por completo o ingrediente e em seu logar ficou apenas um pó amarellado que o anarchista sacudiu com um guardanapo. Nada mais... nem ruido, nem fumo, nem cheiro que se percebesse sequer ao de leve.
A assistencia readquiriu a tranquilidade, o bufo permitiu se um sorriso de troça pelo medo que antes experimentára e toda a gente se convenceu de que o anarchista mystificára o publico do café, impingindo-lhe qualquer coisa inoffensiva por um dos mais terriveis explosivos da actualidade. Toda a gente, sem exceptuar o bufo... E, no emtanto, presados leitores, o rolo côr de chocolate era mais do que sufficiente, quando applicado em circumstancias especiaes, para fazer voar, feito em migalhas, um quarteirão da rua do Ouro!
Mas... prosigamos na narrativa da propaganda exercida pela Associação Carbonaria Portugueza. O comité Alta Venda, uma vez bem minado o bairro de Alcantara, passa a Belem e delega no pharmaceutico Abrantes o encargo de reunir proselytos em infantaria 1, lanceiros 2 e cavallaria 4. As iniciações são ás dezenas entre soldados, cabos e sargentos. Os officiaes, mais difficeis de conquistar, representam-se na Carbonaria em reduzido numero. Os de cavallaria, então, possuem tal fama de thalassas que, durante um largo periodo, ninguem se atreve a palpital-os. Em lanceiros 2 a organisação revolucionaria conta apenas com um; em cavallaria 4 com dois e um d'elles em commissão fóra do regimento. O resto permanece fiel á monarchia e ao monarcha.
Após Belem, funda-se uma barraca exclusivamente destinada aos alumnos militares—cadetes e aspirantes. É uma força disciplinada, consciente, conhecendo bem o manejo das armas e que tem o merecimento especial de ser o processo mais facil e seguro de alliciar futuros officiaes. Muitos dos officiaes novos que mais tarde apparecem implicados na revolta de 4 e 5 de outubro procedem d'essa barraca para onde haviam entrado quando alumnos da Escola do Exercito. As entrevistas d'esses carbonarios com os chefes do movimento realisam-se em regra no jardim do Campo de Sant'Anna ou no jardim do Matadouro. Os alumnos da Escola do Exercito entendem-se directamente com o ajudante de instructor, tenente de cavallaria José Ricardo Cabral, e devem constituir, no momento opportuno, um batalhão de élite armado com as Mausers-Vergueiro existentes na Escola em numero de quatrocentas. Os da Polytechnica entendem-se com um cadete que, por seu turno, se relaciona intimamente com o tenente David Ferreira. Este official distingue os conjurados pela maneira especial como elles lhe fazem a continencia.
Um episodio curioso: o maior numero de iniciações de estudantes militares é feito n'uma casa da rua Paschoal de Mello, residencia d'um guarda fiscal, dedicadissimo á ideia. N'esse predio a policia captura tres paisanos filiados na Carbonaria e o irmão do dono da casa; mas não fareja convenientemente essa pepinière de revolucionarios e os briosos estudantes que ali se reunem para conspirar conseguem escapar ao rigor da Bastilha.
O plano de acção esboçado para essa legião ardente e generosa é simples, mas arriscado. Ás tantas da noite marcada para o inicio do movimento, um automovel deve levar á Escola do Exercito as munições de que os estudantes necessitam; a chegada do vehiculo corresponderá para os revolucionarios ao signal da insubordinação. Os audaciosos rapazes teem que arrombar a casa das armas e conter quietos e calados os officiaes de serviço e alguns estudantes reaccionarios; teem que proceder com cautela para não despertar antes de tempo a atenção da guarda municipal aquartelada em Cabeço de Bola; os estudantes da Polytechnica e do Instituto Industrial aguardarão nas immediações da Escola do Exercito o momento de se juntarem aos seus collegas...
Na tarde de 15 de julho de 1910—em que se suppõe azado o ensejo de fazer rebentar a bomba—um grande nucleo de estudantes militares organisa uma reunião no Jardim Botanico. Um d'elles, delegado pelos restantes, recebe a incumbencia de ir falar ao almirante Candido dos Reis e declarar-lhe que estão todos promptos a iniciar o movimento, sahindo á rua ainda que isolados. Á primeira vista, talvez esta declaração pareça uma fanfarronada. Mas não é. Os estudantes revolucionarios teem parentes, paes, irmãos, etc., em todos os corpos da guarnição de Lisboa e não julgam crivel que a dedicação a um principio absurdo conduza ao sacrificio dos entes mais queridos... O delegado dos estudantes ao falar a Candido dos Reis nota que o almirante o escuta com as lagrimas nos olhos. Candido dos Reis ouve a declaração peremptoria e energica do delegado e depois exclama commovido:
—E assim se perde este povo! O que o senhor me diz agora, já m'o repetiram hoje dezenas de creaturas!...
É que o almirante não supporta em 15 de julho de 1910 o adiamento da revolta, como de resto o já não tinha supportado em 28 de janeiro de 1908. Convencido em absoluto de que a Revolução conta suficientes elementos para triumphar, não comprehende como, possuindo-se esses elementos, alguem hesite em lançar fogo ao rastilho da bomba...
Para a barraca organisada com estudantes militares, o revolucionario de elite que é Pinto de Lima contribue com uma grande parcella do seu esforço individual. Esse rapaz modesto, em cujo olhar scintilla a fé viva do propagandista incançavel, apparece-nos pela primeira vez collocado no plano que justamente lhe compete, por effeito de uma phrase elogiosa de João Chagas. O eminente publicista acaba de nos resumir por uma fórma brilhante, clara e suggestiva, o prologo do movimento de 4 e 5 de outubro, quando o seu olhar, fixando-se em Pinto de Lima, que ao nosso lado o escuta, toma uma expressão inilludivel. «É preciso salientar o papel que elle assumiu na revolução», diz-nos João Chagas, «trabalhou como poucos e a Republica deve-lhe muito».
Estas palavras na bocca d'um homem que, como João Chagas, as não prodigalisa sem sinceridade, são o melhor diploma a qualificar a actividade e a energia do valente rapaz. De resto, Pinto de Lima não exerceu apenas a sua acção junto dos estudantes militares. Conquistou para a boa causa dezenas de soldados, cabos e sargentos, entrou nos quarteis a arranjar proselytos e ainda na madrugada de 5 de outubro, quando entre as forças acampadas no Rocio lavrava a mais perigosa incerteza, elle por lá andou animando, encorajando e preparando o terreno para um desenlace victorioso.
Com o regresso de Machado Santos do ultramar, o aspecto e a fórma da propaganda da Carbonaria mudam por completo. Machado Santos substitue o engenheiro Antonio Maria da Silva nos trabalhos de Alcantara, disciplinando fortemente esses elementos, imprimindo-lhes toda a força da sua fé e da sua coragem. O numero de adhesões cresce de maneira assombrosa. Machado Santos faz prodigios; não descança, não trepida, não hesita. Chega a expôr-se... Auxiliam-no Augusto Rodrigues e Franklin Lamas. Após esse grandioso trabalho de Alcantara, examinados os relatorios, o comité Alta Venda conclue que esse bairro constitue um baluarte inexpugnavel. É tempo de lançar as vistas para outros pontos. Cabe a honra á infantaria 16. Machado Santos toma a seu cargo a tarefa, auxiliado por Antonio Meyrelles e o soldado José, hoje sargento por distincção, e faz comicios, verdadeiros comicios aos soldados, na Serra de Monsanto, a que assistem dezenas de homens de artilharia 1 e d'aquelle regimento. Em artilharia 1 é auxiliado por Armando Porphirio Rodrigues, enfermeiro do hospital inglez, onde o engenheiro Antonio Maria da Silva inicia o 2.º tenente José Carlos da Maia e varios outros. Em engenharia, a propaganda é feita pelo alfaiate Antonio dos Santos e pelo Oliveira dos bonnets. Em infantaria 5 é o cabo Benevides; na guarda-fiscal o soldado Domingues e, em todos os regimentos, a Carbonaria conta dentro em pouco com elementos de superior valia. O numero é assombroso e a qualidade é fina, excepcionalmente corajosa e dedicada.
Fóra de Lisboa a propaganda da Carbonaria tambem é intensissima. Malva do Valle, Carlos Amaro, Carlos Olavo, Pires de Carvalho, Manuel Alegre, Mario Malheiros e outros formam a Junta Carbonaria da Região Central que abrange Aveiro, Coimbra e Vizeu. Por esse tempo tambem já existem nucleos poderosos em Vianna do Castello, Braga e Villa Real de Traz-os-Montes, distinguindo-se n'este ultimo os revolucionarios Adelino Samardan e Antonio Granjo. Ao sul forma-se o nucleo de Evora, mercê dos esforços de Estevão Pimentel que não tarda a trocar o conforto da sua casa abastada pelas sensações e perigos do proselytismo; auxiliam-no n'esse trabalho insano de todas as horas o dr. Feliciano Caeiro e o sargento Andrade, um bravo do Cuamato. Em Beja, distingue-se na propaganda revolucionaria o dr. Pereira Coelho; no Algarve, em Faro, o tenente Stockler, o tenente Cerqueira e o dr. Gil. Mas, soccorramo-nos mais uma vez das informações do engenheiro Antonio Maria da Silva:
«Ainda no Norte é o caixeiro viajante Alvaro Mendes que estabelece 20 choças carbonarias, entre as quaes se destaca a do Entroncamento, por causa dos elementos da Escola Pratica de cavallaria que inicia. Em Santarem é o capitão de artilharia 3, Figueiredo, o agronomo Veiga e o dr. Queiroz, secretario geral do governo civil. É Malva do Valle quem impulsiona fortemente a Carbonaria Central. Em Estremoz é tambem Estevão Pimentel que inicia varios sargentos de cavallaria 3 que foram denunciados por um camarada, sendo transferidos. Em Lisboa organisa-se o comité dos correios e telegraphos, sendo meu auxiliar Amandio Junqueiro. Distingue-se o carbonario Lameiras, telegraphista, auxiliado por Balduino da Matta, Jacintho Henriques, Moysés Teixeira, Lorena Queiroz e Gualberto Pires. Merece tambem especial menção a barraca Garibaldi, onde trabalham Antonio Francisco dos Santos e o publicista Ribeiro de Carvalho, iniciando um numero consideravel de empregados dos electricos.»
Surge a difficultar a marcha do proselytismo o famoso caso de Cascaes. É esse caso que põe inesperadamente o juiz de instrucção criminal na pista dos trabalhos da Associação Carbonaria Portugueza; é elle egualmente que contribue para que na imprensa appareçam pela primeira vez vagas indicações sobre a constituição organica das associações secretas. Vem a proposito pormenorisal-o.
O caso de Cascaes veiu a publico em meiados de outubro de 1909. Um incidente sem importancia fez descobrir o cadaver de Nunes Pedro sobre uns rochedos da Bocca do Inferno. Ao principio suppôz-se que esse homem se suicidara, atirando-se de grande altura; mas a breve trecho percebeu-se que o cadaver apresentava signaes d'uma aggressão violenta e as auctoridades locaes apressaram-se a communicar a descoberta ao juizo de instrucção criminal. Por outro lado, o então administrador do concelho de Cascaes, sr. Fernando Castello Branco, tendo encontrado no fato do morto uns papeis que alludiam ás relações da victima com varios carbonarios, metteu-se logo no comboio e veiu a Lisboa conferenciar com a policia. Horas depois, a policia ia de Lisboa a Cascaes investigar o caso e iniciava uma serie de prisões, tendentes a demonstrar que a morte do Nunes Pedro fôra planeada e executada por uma terrivel associação secreta inexoravel para todos os que a atraiçoavam.
A primeira d'essas prisões, a do empregado do commercio Domingos Guimarães, foi effectuada em Villar Formoso por um agente da policia repressiva da emigração clandestina. Uma vez realisada, espalhou-se: 1.º que o Nunes Pedro estava implicado no desapparecimento de cartuchame armazenado na Alfandega de Lisboa; 2.º que esse desapparecimento fôra provocado por uma indicação de varios republicanos, que assim se preparavam e armavam para um proximo movimento revolucionario; 3.º que, apenas descoberta a falta de cartuchame, esses republicanos, tinham compellido o Nunes Pedro a fugir para Badajoz, e que elle dias depois de se ter acoitado n'essa cidade hespanhola escrevera duas cartas uma a Domingos Guimarães e outra ao armeiro Heitor Ferreira, pedindo-lhes dinheiro e ameaçando-os de denunciar á policia portugueza a falta do cartuchame; 4.º que, em face d'essa ameaça, o Domingos Guimarães partira para Badajoz a socegar o Nunes Pedro, que o trouxera a Lisboa disposto a fazel-o embarcar para a Africa, mas que depois de se encontrarem os dois na capital, o Nunes Pedro renovara a ameaça, decidindo então os carbonarios supprimil-o.
Isto, repetimos, foi o que se espalhou ou melhor foi o que a policia espalhou, mal teve nas mãos o empregado do commercio amigo da victima e denunciado como um dos principaes fautores do famoso caso. Após Domingos Guimarães, o juizo de instrucção criminal capturou outro empregado do commercio chamado Manuel Martins Pereira Ribeiro, accusando-o de ter acompanhado o Guimarães e o Nunes Pedro a Cascaes e de ter cumplicidade na morte do segundo. Affirmou-se até n'essa occasião que o Nunes Pedro fôra violentamente aggredido com uma bengala pertencente ao Ribeiro e que este e o Guimarães haviam declarado á policia:
... terem deliberado fazer desapparecer o Manuel Nunes Pedro, visto este ser prejudicial, pois podia revelar o segredo das associações revolucionarias segundo as ameaças de denuncia que já tinha feito...
Outra informação policial entregue á imprensa periodica disse tambem que o Pereira Ribeiro reconhecera como sua a bengala acima referida, que o Nunes Pedro soffrera primeiro a aggressão dos seus companheiros de passeio a Cascaes e a seguir é que fora precipitado sobre os rochedos da Bocca do Inferno. Calculavam os aggressores que o mar, lambendo os rochedos, afastaria o cadaver para bem longe, mas o plano falhara e o cadaver lá tinha ficado no local, a compromettel-os e a comprometter a vasta organisação secreta a que elles pertenciam... Isto, tornamos a insistir, dizia a policia com o ar sorridente e orgulhoso de quem descobre uma boa pista e se dispõe a esclarecer um mysterio de alto cothurno.
Uma nova prisão veiu complicar ainda mais o romance da Bastilha: a d'um outro empregado do commercio, Adelino Luiz Fernandes, primo em segundo grau de Manuel Nunes Pedro. A policia teve-o enclausurado, incommunicavel, durante 92 dias, interrogou-o altas horas da noite, exerceu sobre elle varias violencias e, no entanto, as suas declarações em nada depuzeram contra os revolucionarios que o juizo de instrução apontava teimosamente como os eliminadores d'aquelle seu parente. Adelino Luiz Fernandes confirmava o facto do Nunes Pedro ter fugido para Badajoz a fim de se eximir a qualquer responsabilidade no desapparecimento do cartuchame; confirmava o ter elle escripto de Badajoz ao Domingos Guimarães e ao armeiro Heitor Ferreira, pedindo-lhes dinheiro e envolvendo esse pedido n'uma ameaça clara; dizia mais—que Nunes Pedro regressara de Badajoz a Lisboa em 16 de outubro de 1909, indo para um armazem do Poço do Bispo, onde se conservara dois dias; que sabendo que o primo era socio do Centro Antonio José d'Almeida, falara ao presidente do Centro, o professor Camello Neves expondo-lhe as difficeis circumstancias em que se encontrava a viuva do Nunes Pedro e que o professor, condoido da sorte da infeliz, lhe dera uma pequena quantia, uns cinco mil réis. Mas se o Adelino Luiz Fernandes affirmava tudo isto, dizia egualmente que nunca percebera nos accusados a intenção de eliminarem o primo, nunca relacionara a sua morte com a ameaça que elle enviara de Badajoz e que o Nunes Pedro, por mais do que uma vez, lhe significara o desejo ardente de sahir de Lisboa com destino á Africa Portugueza.
A policia, porém, enlevada na descoberta d'um fio tenuissimo que a collocara na pista da Carbonaria, torceu a seu talante essas declarações e desatou a prender mais gente: o commerciante Jorge Francisco de Carvalho, que sabia da estada do Nunes Pedro no armazem do Poço do Bispo; o commerciante Joaquim Francisco e o vendedor de leite Joaquim Adrião Alves, compadre do Domingos Guimarães. Este ultimo declarou no juizo de instrucção que o compadre, sendo seu hospede desde o começo de outubro de 1909, sahira de Lisboa no dia 13, que regressara no dia 16, que passara fóra de casa a noite de 18 (a noite do celebre caso), que no dia 19 fôra procurado por tres individuos e que no dia 21 fôra preso em Villar Formoso.
Ainda outra prisão: a do professor do Instituto Brigantino Artur Alvaro Pereira de Sousa. A policia implicou com elle e tentou ligal-o á morte do Nunes Pedro apenas pelo seguinte:
O professor estava a ler os jornaes que relatavam o caso e ao ver que os suppostos criminosos, no dizer dos mesmos jornaes, tinham deixado no fato do morto uns papeis compromettedores, exclamou: «Deram bota!». Foi o sufficiente. D'ahi a pouco era preso e fortemente assediado pelo juiz de instrucção.
Por ultimo, a policia ainda enclausurou um antigo cobrador do Centro Antonio José d'Almeida, Manuel José do Espirito Santo Amaro. Com este accusado succedeu um episodio interessante. O juiz, prevenindo-o de que o ia confrontar com o professor Camello Neves, insinuou-lhe:
—Quando eu o acarear com esse homem, affirme que elle o encarregou de comprar pistolas automaticas e de guardar alguns cartuchos de dynamite.
Mas o antigo cobrador, chegado o momento da confrontação, não representou o papel que o juiz lhe distribuira e a policia, indignada, perdendo a cabeça, expulsou o Amaro do gabinete do ex-irmão Hoche.
De toda esta trapalhada de averiguações, de capturas a esmo, de clausura rigorosa, de incommunicabilidade por largos periodos ao sabor da Bastilha, resultou serem enviados ao tribunal como intromettidos no caso de Cascaes apenas estes individuos: Domingos Guimarães, Manuel Martins Pereira Ribeiro, o professor Camello Neves, o commerciante Pereira de Sousa, o vidraceiro Agapito Vieira e Silva, o alfaiate Eduardo Filippe Amores e o commerciante Manuel Mendes. Todos esses homens foram julgados dias depois de proclamada a Republica e todos elles foram absolvidos. E apesar de que, n'esse julgamento, o delegado se esforçou por demonstrar que o Domingos Guimarães é que assassinara o Nunes Pedro e que os outros accusados tinham sido seus cumplices, a defeza, apreciando o caso á luz d'um criterio desapaixonado, evidenciou sem hesitação que o processo fôra simplesmente um vomito negro do antigo juiz de instrucção e que n'elle não se devia tocar pelo receio do contagio. O processo, accrescentou a defeza, não podia merecer a menor confiança; forjado na Bastilha, que a Republica destruiu, n'elle figuravam como testemunhas individuos que tinham estado presos durante largos dias de regimen inquisitorial e n'elle existiam declarações arrancadas aos accusados por meio de torturas que um moderno Scarpia puzera em pratica a altas horas da noite. A um d'esses accusados o juiz de instrucção dissera até uma vez, insurgindo-se contra a negativa formal que elle oppunha a certas affirmações de accusação:
—Ah! você não confessa!... Pois emquanto não confessar não lhe dou cama nem comida, nem consinto que sua mulher o visite!...
Mas se o caso de Cascaes, espremido até ao maximo pelo juiz de instrucção, deu simplesmente a embrulhada, que já assignalámos e que o julgamento em fins de 1910 liquidou n'um sopro, serviu, no emtanto, á policia para arrancar com furia extranha sobre a Associação Carbonaria Portugueza. As chamadas diligencias sobre aggremiações secretas constituem um documento interessante e bem elucidativo da argucia do ex-irmão Hoche e dos seus sequazes. Cada primo que entrava nos calabouços da Bastilha soffria um interrogatorio cerrado, que degenerava a breve trecho n'umas insinuações capciosas, n'umas falinhas mansas destinadas a seduzir a victima.
—Ora vamos lá, dizia o juiz pondo nos labios o seu melhor sorriso... confesse, diga tudo o que sabe. É melhor para si porque beneficia d'uma esplendida attenuante quando chegar ao tribunal e é melhor para mim, porque termino mais rapidamente as minhas indagações. Confesse... porque, se o fizer, levanto-lhe a incommunicabilidade...
A sereia policial envolvia assim o carbonario n'uma rede de encantos, de miragens deliciosas, babujava-o d'uma peçonha que o Sota da Praça tambem distillava ao tocar-lhe a vez de palpar o paciente. Em regra, o carbonario resistia. E então os dois, reassumindo toda a ferocidade que os caracterisava, soccorriam-se das ameaças, das violencias, para obter a tal confissão que, no seu acanhado entender, simplificava tudo. Um dia, o presidente do conselho de ministros, espicaçado certamente pelas referencias dos jornaes que qualificavam de inutil o supremo esforço do ex-irmão Hoche, e se insurgiam contra o largo periodo de clausura rigorosa em que elle encerrava os presos das associações secretas, chamou o juiz ao seu gabinete e inquiriu d'elle o estado do famoso processo e quaes os resultados alcançados pela averiguação da Bastilha. O ex-irmão Hoche, suppondo ingenuamente que o trabalho já feito era merecedor d'um elogio dispensado pelo chefe do governo, desentranhou-se logo em pormenores do que sabia sobre a organisação da Carbonaria.
O ministro ouviu-o attento, fel-o repetir a affirmação de que a vastissima organisação revolucionaria comprehendia muitos milhares de homens e, assim que elle acabou, perguntou-lhe quantos dos filiados nas associações secretas conseguira prender em trez mezes de diligencia policial. O ex-irmão Hoche citou um numero: duas ou tres duzias de carbonarios... O ministro deu um pulo na cadeira:
—O que? Pois o senhor tem a pretensão de capturar toda a gente que pertence a essas associações?... Convence-se que pode metter na cadeia muitos milhares de homens?... Pare lá com isso!... Mande para o tribunal os que já conseguiu enclausurar e dê por concluida a investigação!...
O juiz assim fez. Não evitou o fiasco, mas livrou-se de ser surprehendido pela implantação da Republica, ainda a prender e a interrogar os revolucionarios da Associação Carbonaria Portugueza. Para mais, n'essa altura das suas diligencias, já um bom nucleo de aggremiados sob a direcção do comité Alta Venda tinha esboçado uma diversão aos cuidados e ás attenções da Bastilha com a explosão de um petardo na egreja de S. Luiz e promettia continuar a série até que o ex-irmão Hoche se capacitasse da improficuidade das suas tentativas.
Disse-se por mais do que uma vez que muitos dos individuos capturados por causa dos trabalhos da Carbonaria, apenas chegados ás mãos do juiz, se descosiam sem a menor hesitação e procuravam com uma denuncia completa readquirir a liberdade sob fiança. O engenheiro Antonio Maria da Silva, interrogado a tal respeito dias depois da Revolução, oppoz um desmentido formal a esses boatos:
«Effectuadas as primeiras prisões, vimos logo que os chefes das choças e cabanas eram poupados—systematicamente poupados. Isto significava que se os presos não tinham fórma de resistir á pressão inquisitorial do Scarpia azul e branco e se viam arrastados, como unica solução, até á denuncia, escolhiam de preferencia os camaradas de menor responsabilidade. De resto, já tinhamos previsto que esse meio era o unico para forçar a sahida do cul de sac asphyxiante constituido pela instrucção criminal. Esses homens não foram delatores: foram martyres. E quizera poder, n'esta hora de resgate, abraçal-os como bons camaradas que sempre foram e que tiveram a honra de occupar a vanguarda do sacrificio.»
Encarando essas prisões sobre outro aspecto: o juiz, effectuando-as, tinha a impressão de que dava assim um golpe bem fundo na organisação revolucionaria. Pois succedia exactamente o contrario. A Carbonaria fortaleceu-se de maneira consideravel logo que o ex-irmão Hoche desatou a perseguir os seus filiados. A cada noticia de tortura inflingida aos carbonarios encerrados na Bastilha correspondia, por parte da vastissima aggremiação, um impeto irreprimivel de solidariedade. E assim se explica como, decorridos tres mezes de sobresaltos, de anciedade, provocados pelas démarches da policia e apezar do exilio necessario de Luz d'Almeida e de alguns dos seus mais valiosos collaboradores, a Carbonaria, longe de vêr diminuida a sua expansão, tinha alargado tanto a sua rêde de iniciações que os dirigentes suppunham attingido o maximo grau de propaganda util e efficaz e julgavam desnecessario proseguir na conquista de novos adeptos.
Passemos a outro capitulo da historia revolucionaria: a prisão de João Borges no armazem de bombas da rua dos Correeiros, prisão que patenteou á policia o auxilio que os dynamitistas deviam prestar aos republicanos revolucionarios. Passadas algumas horas sobre ella, que na tarde d'um domingo morto, fez despertar, curiosa e receiosa, uma boa parte da população lisboeta, recebeu-se na redacção d'um jornal republicano esta missiva, que é opportuno recordar e transcrever:
Sr. redactor.—Como v. naturalmente sabe, o caso das bombas é mais uma fantochada preparada «ad hoc», para inglez ver e surtir um effeito, que ainda ninguem attingiu, mas que innegavelmente dá tolice. Para mim é ponto assente que o João Borges e o juiz de instrucção vão feitos na manigancia; nem d'outra fórma se explica o sangue frio e a confiança de que está investido o tal Borges. Se não vae feito com o juiz, um valente que pega assim em bombas á mão como se mexesse em batatas, então vae feito com elementos reaccionarios para fins que ninguem percebe.
O facto do juiz de instrucção criminal pegar assim em bombas á unha, dá a nota de que sabia muito bem o quanto ellas tinham de inoffensivas.
Se v., sr. redactor, fosse juiz d'instrucção, se fosse um Cyro, um Sota da Praça, ou outro qualquer Sherlock Holmes de fancaria, já teria perguntado ao tal Borges quem é que lhe offereceu 6 contos para desempenhar aquelle papel e quem é que lhe dava 1$500 réis por dia a elle e a algum outro dos que elle andou a convidar para a tal farçada.
Em quanto o governo consentir um juiz d'aquella força e os reaccionarios dentro do paiz, ha de haver destas scenas. Quem é que come que na travessa da Palha, n'uma casa de meretrizes, se fabricavam bombas? Aquella só do ex-irmão Hoche...
Se fossem bombas verdadeiras, aonde estava elle já?
Que paiz este!... Quando veremos nós isto ás direitas?—De v. etc—X.
Commentemos esta carta, porque ella dá ensejo a desfazer umas teias de aranha que ainda velam o olhar indeciso de muito patriota.
Em primeiro logar, rememoremos os factos... Foi, como já dissémos, na tarde d'um domingo morto que a policia commandada pelo juiz de instrucção pôz em alvoroço a rua dos Correeiros, investindo contra o deposito de explosivos que João Borges ali estabelecera. O juiz tinha ido ao cemiterio acompanhar um enterro. Em meio da cerimonia funebre, appareceu-lhe um guarda da judiciaria, enviado pelo chefe Ferreira, e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O juiz surpreendido, chamou o Cyro, que andava proximo, e, largando o enterro, veiu até á travessa da Palha com o ar preoccupado de quem trazia um mysterio na consciencia.
No local do crime, procedeu com o mais completo alheiamento da gravidade das circumstancias. Subiu a escada do predio suspeito e teria ido até ao quarto de João Borges sem dar por coisa alguma, quando o Cyro lhe indicou o criminoso, que tambem caminhava em direcção ao aposento, placido, sorridente, com aquelle ar de desimportado que tão nitidamente o caracterisa. O juiz mandou-o prender e, assim que se encontrou dentro do deposito, olhou em volta e teve um gesto de receio. As bombas accumulavam-se em grande quantidade—eram ás duzias. Mas o João Borges, que lhe seguia ironico os movimentos, apressou-se a socegal-o:
—Não tenha medo... estão descarregadas.
O mais modesto dos policias teria desconfiado n'esta altura que o deposito dos explosivos tentava liquidal-o, deixando que elle proprio provocasse a acção destruidora d'um d'esses engenhos. Mas o juiz não pensou em tal. Para provar que era homem sem medo, sorriu-se como o João Borges e, pegando n'uma bomba, revirou-a cuidadosamente nos dedos. Depois ainda fez umas considerações de caracter philosophico sobre a propaganda libertaria que o Cyro, valha a verdade, não percebeu, e sahiu da rua dos Correeiros para se internar no seu gabinete da Bastilha, a reflectir maduramente na descoberta, que, segundo confessou logo no dia seguinte, lhe fôra indicada pelo presidente do conselho, pelo chefe do governo.
A noticia da diligencia espalhou-se ao começo da noite por uma fórma extraordinaria. A seguir á prisão de João Borges, a policia fez outras capturas, quasi todas no mesmo local da primeira, e a Bastilha principiou a trabalhar, avida e tenazmente, na descoberta dos cumplices do proprietario de tanto cylindro metallico destruidor. Para os que estavam no segredo do caso, a prisão de João Borges era uma consequencia natural da sua insouciance. Desimportado como sempre fôra, admirava até que ha mais tempo a policia o não tivesse incommodado e chamado a capitulo. Mas, para a maioria, a diligencia policial envolvia um ponto de interrogação que a carta n'outro logar reproduzida assignala por maneira inilludivel.
No domingo á noite, nos centros de cavaco, o caso foi discutidissimo. E como o juiz, n'uma nota para a imprensa, affirmasse que João Borges lhe confessara ter fabricado explosivos para os utilisar logo que ao governo Teixeira de Sousa succedesse um governo reaccionario, estabeleceu-se immediatamente uma corrente de opinião que um dos commentadores eventuaes do caso resumia d'este modo:
—A scena passou-se assim... O Teixeira de Sousa, por intermedio do Alpoim e este por intermedio de um dos seus antigos companheiros de lucta no 28 de janeiro, conseguiu que o João Borges, de boa fé, arranjasse as bombas. Logo que soube que ellas estavam prestes a servir, denunciou o fabricante ao juiz de instrução e com a declaração attribuida ao João Borges de que as bombas só rebentariam sob as patas de um ministerio reaccionario, faz o seu jogo no paço e consegue facilmente convencer o rei D. Manuel de que, emquanto elle estiver no poder, nada tem a receiar por parte dos elementos mais avançados;
Outra versão dava o João Borges identificado com a policia para armar uma pavorosa e d'essa, por influencia de diversos libertarios, se fez echo a maioria dos jornaes. Mas em todas ellas surgia sempre esta pergunta maliciosa que, no simples enunciado, lançava immenso veneno nas intenções do revolucionario preso:
—Quem lhe deu o dinheiro para o fabrico das bombas? Aquillo custa caro... O João Borges não tem cheta...
Por outro lado, a maneira serena e até chocarreira como o preso encarava a sua prisão, a attitude quasi de desafio que elle, ironico e desdenhoso, lançava á policia, quando esta, atormentada e preoccupada, o arrancava á esquadra do Caminho Novo para os interrogatorios no juizo de instrucção, tudo isso chocava a opinião seria e pacata, predispunha-a pessimamente contra a victima da Bastilha. Se João Borges, ao atravessar as ruas de Lisboa n'essa peregrinação estopante, longe de se sorrir para os amigos e conhecidos, bem disposto, com o ar de quem não teme as garras da auctoridade, evidenciasse uma gravidade de compostura equivalente á gravidade da sua situação, então, sim, então é que a opinião seria e pacata o olharia como um martyr da Ideia e o lastimaria por não haver chegado ao fim da sua obra demolidora.
Ninguem ou quasi ninguem se recordava de que João Borges evidenciara desde a sua apparição nos centros revolucionarios essa insouciance do perigo a que já nos referimos; ninguem ou quasi ninguem fazia reviver na memoria esse traço nitido da sua individualidade e que João Borges, para explicar ao primeiro curioso que o defrontasse o funccionamento de uma bomba, raras vezes olhava primeiro em volta a verificar se algum bufo o espreitava. E como não era natural que a pessoa ou pessoas que o tinham auxiliado monetariamente no fabrico das bombas viessem n'essa altura proclamar em publico e raso a verdadeira proveniencia do dinheiro que a opinião seria e pacata via constantemente ao lado do tal ponto de interrogação, as entrelinhas sobre João Borges, as phrases reservadas a respeito do seu procedimento esvoaçavam de grupo em grupo, creando-lhe uma atmosphera antipathica.
Ia longe o tempo em que a descoberta d'um deposito de bombas correspondia ao silencio receioso da grande maioria e revestia um tal caracter de coisa sensacional que poucos, muito poucos mesmo, se atreviam a referir-se-lhe sem palavras de condemnação. Mas se esse tempo já ia distante, o certo é que só uma infima parcella de revoltados encarava desassombradamente a prisão de João Borges. O resto encolhia-se n'uma prudente apreciação, vaga e indefinida... não fosse a historia futura revelar que o dinheiro utilisado na compra dos materiaes indispensaveis á confecção dos engenhos sahira do cofre da Bastilha, da burra do sr. Antonio Centeno ou da caixa do Quelhas...
Dois ou tres jornaes acabaram por dissipar taes receios e desconfianças. Dois ou tres artigos, um d'elles escripto por José Barbosa—um dos membros do Directorio do Partido Republicano—rehabilitaram na grande massa o fabrico dos explosivos e salientaram a coragem dos fabricantes. E era justo que isso se fizesse. Não se comprehendia que, uma vez lançados no caminho da actividade revolucionaria todos os homens que se dicidiam em dado momento a auxiliar a implantação da Republica, os que promoviam essa implantação na cupula d'uma chefia organisadora os abandonassem á ferocidade da Bastilha e os não soccorressem com o incentivo de um elogio, que, até certo ponto, lhes podia dulcificar as agruras do carcere. Se n'outras epocas de preparação da Revolta, os acontecimentos se não desenrolaram com a mesma logica e os dirigentes d'essa preparação procuraram, antes de se solidarisarem com graves responsabilidades, afastar do seu campo de acção o menor indicio de convivencia com libertarios, no caso de João Borges—justo é consignal-o—a honestidade de consciencia sacrificou quaesquer pensamentos de cobardia e os bombistas tiveram a seu lado alguns dos homens que lhes haviam solicitado a necessaria collaboração. E um d'esses homens, assim que teve ensejo de transpôr triumphante os humbraes da Bastilha, a sua primeira démarche consistiu exactamente em libertar as victimas do juiz de instrucção, os revolucionarios que elle enclausurara por effeito do fabrico de explosivos. Tinha essa divida a saldar e saldou-a primeiro que a qualquer outra.
Afinal, quem forneceu dinheiro ao João Borges para o fabrico das bombas?... A Joven Portugal (fracção da Carbonaria) por intermedio de Manuel Bravo. As bombas, importadas do estrangeiro, durante a organisação do 28, tinham provado mal—eram verdadeiras bombas de fancaria—e necessitava-se, para o novo movimento, de explosivos que cumprissem. Recorrera-se então á industria nacional, em que se occupavam não só aquelle revolucionario como outro de grande relevo em toda a agitação politica comprehendida no periodo de 1907 a 1910—o operario José Nunes. Falemos d'elle com alguma minucia, porque o merece.
Obrigado em 1908 a exilar-se em Africa para não cahir nas garras da policia, por lá andou algum tempo, luctando desesperadamente contra o clima, mas sem perder a confiança cega que possuia n'um proximo advento da Republica. Assim, logo que poude regressar a Lisboa e foi readmittido na Imprensa Nacional, continuou a trabalhar dedicadamente no fabrico de explosivos, aperfeiçoando-se n'uma arte que, para elle, já não tinha segredos.
Um dia o actor Vieira Marques procurou-o e convidou-o a fazer parte d'um grupo que se destinava a auxiliar praticamente a Junta Liberal na sua campanha de exterminio das ordens religiosas. Esse grupo, porém, não tinha a menor ligação com a Junta, que ignorava, em absoluto, a sua existencia. A Junta fazia a propaganda pela palavra e pela escripta; o grupo em questão propunha-se fazel-a pelo facto. José Nunes, que aliás não pertencia a nenhuma das divisões da Carbonaria, acceitou o convite e assim nasceram os Mineiros (seis individuos) dirigidos pelo photographo Virgilio de Sá.
As attenções do grupo fixaram-se principalmente em dois dos focos occupados pela reacção: o convento do Quelhas e a capella da travessa das Mercês. Tornava-se urgente destruil-os a ambos. José Nunes recebeu a incumbencia de preparar os apparelhos indispensaveis a essa destruição. O engenheiro dos Mineiros fabricou uma bomba enorme que mais tarde esteve exposta no Museu da Revolução—bomba que, sendo destinada ao Quelhas, devia, apoz a explosão, espalhar no ambiente grande quantidade de gazes deleterios. O actor Vieira Marques, tres noites consecutivas, aventurou-se a entrar na cerca do famoso convento, afim de escolher o local mais apropriado á collocação do engenho destruidor—visto que os Mineiros queriam poupar á tragica sentença as numerosas creanças ali internadas.
Para o ataque á capella da travessa das Mercês, José Nunes tambem principiou a confeccionar outro apparelho de identico poder combativo. E foi elle proprio que uma noite de novena entrou no templo, onde os frades da Aldeia da Ponte haviam estabelecido o seu quartel-general, e reconheceu o terreno. Mas nenhum dos dois projectos foi por deante, porque n'esta altura do periodo revolucionario, o engenheiro dos Mineiros recebeu convite do grupo Vedeta (filiado na Carbonaria) para lhe fabricar uma certa porção de bombas. O grupo Vedeta era dirigido por Carlos Kopke e Roque de Miranda. José Nunes devotou-se com enthusiasmo á satisfação da encommenda e a Revolução triumphante surprehendeu-o em meio do seu perigoso trabalho.
Entramos agora no periodo preparatorio do movimento que implantou a Republica. Esse periodo começa precisamente com o congresso republicano reunido em 1908 em Setubal. No intervallo entre essa reunião e o regicidio, o ministerio Ferreira do Amaral procurara consolidar as instituições monarchicas conservando a politica interna n'uma inercia caracteristica. O Directorio, calculando que a liquidação do dia 1 de fevereiro actuara desfavoravelmente no espirito de muita gente e suppondo que o momento não era azado para se iniciar um movimento serio em favor da Ideia, aconselhava uma phase de tranquilidade e de treguas que não podia servir de estimulo aos verdadeiros revolucionarios.
No Congresso de Setubal, a eleição do Directorio constituiu, como outras deliberações da assembléa, uma grande surpreza para o publico. Na lista vencedora incluiam-se nomes que poucos esperavam vêr proclamados. O comité Alta Venda, tendo effectuado antes do congresso uma reunião preliminar, decidira influir no acto eleitoral de modo que no Directorio entrassem elementos de acção nitidamente revolucionaria e assim succedeu. Como effectivos, a Carbonaria conseguiu vêr eleitos Bazilio Telles e Euzebio Leão e como substitutos Malva do Valle, Leão Azedo, Innocencio Camacho e José Barboza. Feita a eleição, João Chagas propoz e o congresso approvou a nomeação d'um organismo incumbido de, junto do Directorio, proceder aos trabalhos de preparação revolucionaria. Findo o congresso, Innocencio Camacho e José Barboza entraram logo, por circumstancias occasionaes, na effectividade dos cargos, e o organismo acima referido ficou constituido por João Chagas, Antonio José d'Almeida e Affonso Costa.
Antonio José d'Almeida, então ligado á Carbonaria, vasta rede de bons elementos a que—como já tivemos ensejo de alludir—Luz d'Almeida dedicara um esforço de gigante, assumiu a direcção dos trabalhos revolucionarios entre a classe civil, trabalhos que não eram mais do que a sequencia natural d'outros anteriormente effectuados, e, dentro em pouco, começou a funccionar um comité especial que aliás teve curta existencia, porque Antonio José de Almeida, doente, foi forçado a partir para Carlsbad e Luz d'Almeida, perseguido por causa das associações secretas, expatriou-se. Da acção exercida pelo comité executivo de Lisboa—o comité nomeado em virtude da resolução do congresso de Setubal—fala João Chagas n'estes termos:
«Uma vez constituido, o comité procurou dar aos seus trabalhos um caracter absolutamente pratico e passar em revista, digamos assim, os elementos com que era possivel contar para o momento opportuno.
«No primeiro semestre de 1908 fizemos um inquerito minucioso ás forças militares, para avaliar do estado da ideia republicana dentro dos quarteis e dos navios de guerra. Necessitavamos ter uma noção nitida e clara da situação, para proseguir com confiança na propaganda da revolta. Esse inquerito resumi-o n'um relatorio que apresentámos ao Directorio do partido e cujos topicos é interessante registar. Antes de mais nada devo dizer que se notava por essa occasião no exercito uma certa acalmia, uma tal ou qual espectativa, que embaraçava o proseguimento dos nossos trabalhos. O ministerio Ferreira do Amaral lançara no espirito de muitos officiaes a ideia de que a monarchia ia variar de processos e que era provavel ou possivel a entrada do regimen n'um caminho de regeneração patriotica. Esperava-se, esperavam elles, os espiritos hesitantes, que um governo honrado puzesse termo á serie de crimes commettidos desde longa data e não houvesse necessidade de mudar de instituições para obter, para a vida nacional, a paz e a felicidade que todos ambicionavam.
«No emtanto, a ideia republicana contava adeptos em todos os corpos da capital e em muitos das provincias. Até no grupo de Queluz, que a monarchia suppunha ser um dos seus fortes esteios, havia officiaes decididos á revolta. Caçadores 5 e caçadores 2 estavam bem minados pela ideia republicana. Artilharia e o estado maior, em summa o campo entrincheirado, apresentavam muitos officiaes francamente democratas, que só aguardavam o ensejo propicio de se manifestarem. E se nos officiaes a semente fructificara lindamente, nos sargentos, nos cabos e nos soldados a expansão do ideal assumira proporções extraordinarias. Apenas os corpos de cavallaria se mostravam refractarios á boa doutrina, conservando um respeito idolatra pela reacção, que só difficilmente se podia remover. Mas repito: ainda n'esses tinhamos elementos de confiança.
«Na armada escuso dizer que, mais do que no exercito de terra, encontravamos dedicações sincerissimas, verdadeiros heroes dispostos a tudo para a victoria da Republica. Acode-me o nome d'um official, o tenente Carlos da Maia, que, sendo immediato da Limpopo, empregada no serviço da fiscalisação de pesca nas costas de Portugal, combinara comigo telegraphar-me de todos os pontos onde o navio ia tocando, para eu o poder prevenir a tempo do dia marcado para a revolução. E outros...»
Afastados de Lisboa Antonio José d'Almeida e Luz d'Almeida, encontrando-se Eusebio Leão e Cupertino Ribeiro no estrangeiro, Theophilo Braga e Basilio Telles no norte e José Relvas em Alpiarça entregue aos trabalhos agricolas nas suas propriedades, o Directorio apparece reduzido a José Barbosa e Innocencio Camacho e o Comité executivo de Lisboa a João Chagas e Candido Reis, visto que Affonso Costa tambem sahira da capital por motivo de doença. Mas isso não impede que a propaganda revolucionaria prosiga activamente. Sobe ao poder o ministerio Teixeira de Sousa e esse facto, longe de provocar nos organisadores da revolta pensamentos de tregua, intensifica-lhes a acção.
O pseudo liberalismo do ministerio regenerador, do ultimo ministerio da monarchia, longe de contrariar a propaganda revolucionaria, favorece-a. O sr. Teixeira de Sousa, por mais anodyno que se mostre á população republicana, é sempre um inimigo, porque é sempre um defensor do throno, um serventuario do velho regimen. Ninguem o julga capaz d'um gesto formidavel, que obrigue o monarcha reinante a desprender-se dos braços setinosos da reacção, a libertar-se d'essa influencia perniciosa que o sr. Ferreira do Amaral mezes antes assignalara como emmaranhando a côrte portugueza n'uma teia de fanatismo e despotismo. O sr. Teixeira de Sousa, muito embora reconheça a necessidade de modificar o existente, não é estadista para fazer a Republica. Tem de cuidar, antes de tudo, da sustentação d'uma clientella partidaria, tem de procurar, n'um embate de politica mesquinha, a liquidação absoluta dos seus adversarios monarchicos e não é certamente com o cultivo sincero da massa popular que elle se disporá a investir contra o clericalismo triumphante, a satisfazer as justas aspirações dos liberaes.
Antes de 15 de setembro de 1909, produz-se um facto que determina uma nova poussée do movimento organisador da revolta. Em certa noite, apparecem no Centro de S. Carlos onze tripulantes d'um navio de guerra portuguez, manifestando desejos de falar a qualquer dos membros do Directorio. São recebidos pelos srs. Guilherme de Sousa, vice-presidente do Centro e Cordeiro Junior e Julio Maria de Sousa, da commissão municipal republicana. Um d'esses homens fala sem rebuço: elle e os seus camaradas tencionam insubordinar-se a bordo do D. Carlos, já estudaram e adoptaram um plano de revolta e querem saber se o Directorio lhes sancciona e apoia a tentativa. O sr. Guilherme de Sousa convida-os a voltarem ao Centro no dia immediato e apressa-se a communicar o facto aos dois membros do Directorio que n'essa altura servem assiduamente a Revolução: José Barbosa e Innocencio Camacho.
A principio, um e outro d'esses republicanos receiam que a démarche dos onze marinheiros constitua uma cilada. Mas como não seria de boa pratica abandonal-os inteiramente á execução de qualquer projecto sedicioso e o almirante Candido dos Reis já tinha posto Machado Santos em contacto com os dois membros do Directorio, José Barbosa e Innocencio Camacho resolvem: 1.º attender os marinheiros que expontaneamente veem ao encontro dos seus planos revolucionarios; 2.º pedir a Machado Santos que os assista no contacto com esses patriotas para lhes reconhecer a identidade.
Tomam, para isso, certas medidas de precaução e combinam com o almirante Candido dos Reis o avistarem-se com Machado Santos em determinada noite na praça Luiz de Camões. D'ahi seguirão depois a estabelecer contacto com os marinheiros. Mas para que ninguem suspeite da gravidade da démarche, esse encontro com Machado Santos é feito com o ar desembaraçado de velhos conhecimentos. Machado Santos é acompanhado até o local por Luz d'Almeida para que tanto Innocencio Camacho como José Barbosa reconheçam n'elle o enviado de Candido dos Reis. Os marinheiros que surgem n'essa occasião a insistir n'uma tentativa de revolta já não são apenas os representantes da guarnição do D. Carlos; teem, sim, a delegação das guarnições de todos os navios surtos no Tejo. Da praça Luiz de Camões, Machado Santos, José Barbosa e Innocencio Camacho e os marinheiros seguem para casa d'um d'estes, no Conde Barão. Durante o trajecto, Machado Santos, para obter a certeza de que elle e os dois membros do Directorio não serão victimas d'um guet-apens, interroga habilmente os marinheiros sobre os navios a que pertencem, o armamento de que dispõe cada um dos barcos, etc., e pelas informações colhidas convence-se e convence José Barbosa e Innocencio Camacho de que não ha duvida em tratar lealmente com esses commissionados das forças navaes.
Uma vez entrados na tal casa do Conde Barão e prevenida a hypothese d'uma surpreza policial, os marinheiros expõem o seu plano, accrescentando que o tencionam pôr em execução d'ahi a poucas horas. Contam poder sublevar 1.000 dos seus camaradas: 500 d'elles desembarcarão a um signal dado e apoderar-se-hão do Arsenal do Exercito para terem immediatamente á sua disposição armas e munições. (Diga-se entre parenthesis: ao contrario do que o governo monarchico espalha com insistencia, o comité da Revolução tem a certeza, por informações seguras de officiaes republicanos, de que as armas em deposito no Arsenal não estão provisoriamente inutilisadas, mas possuem os percutores e servem admiravelmente na primeira opportunidade). Os marinheiros contam tambem, para os auxiliar na sua tentativa, com o nucleo de civis formado pela Carbonaria e que comprehende 6.000 homens, antigos soldados e marinheiros, aptos a manejar com acerto uma arma de fogo.
Feito o ataque ao Arsenal, occuparão o palacio das Necessidades e, tomando o rei e a familia como refens, obrigam d'esse modo as forças fieis a conservar-se inactivas. É este o plano dos audaciosos patriotas, que elles desenvolvem perante Machado Santos e os representantes do Directorio com a mesma serena tranquillidade com que outros dos seus camaradas propõem mais tarde a um dos dirigentes republicanos aprisionar o sr. D. Manuel n'uma annunciada visita do soberano ao quartel d'Alcantara. A tentativa, porém, é arriscada e torna-se necessario, para que se não repita uma scena identica á da insubordinação de 1906, evitar que os marinheiros a ponham em pratica, como elles dizem, no curto prazo de vinte e quatro horas. José Barbosa e Innocencio Camacho falam, n'esse sentido, aos briosos rapazes. Machado Santos impõe-se-lhes energicamente e ao cabo de longa discussão os tres obteem a promessa de que o projecto revolucionario será addiado para melhor ensejo, isto é para quando estiverem concluidos os trabalhos encetados sob a égide do Directorio. Mas tomam o compromisso formal de lhes preparar rapidamente o advento da Republica, para que não supportem por muito tempo ainda o regimen de suspeição e de incerteza de que se queixam amargamente. De caminho, allude-se á sabotage como um meio de modificar a situação em que os marinheiros se encontram a bordo e por duas ou tres vezes o Directorio recebe a noticia de que elles a praticam com exito.
Decorrem alguns dias e, tendo regressado a Lisboa os membros ausentes d'aquelle organismo republicano e do comité executivo de Lisboa, José Barbosa e Innocencio Camacho narram-lhes o succedido e todos concordam na urgencia da preparação decisiva do movimento. Entra-se a fundo na materia. A propaganda do lado do elemento militar toma aspecto differente n'um impulso energico e resoluto; a Associação Carbonaria Portugueza alarga a esphera da sua intervenção junto dos grupos revolucionarios civis.
Em 14 de junho de 1909 a Maçonaria effectua uma sessão magna, «convocada expressamente para se deliberar sobre a opportunidade d'uma obra, que se esboça vagamente ser a Republica, mas que não é revelada nos seus traços intimos á quasi totalidade dos irmãos». N'essa reunião, fala o grão-mestre, o sr. dr. José de Castro, para propôr a nomeação d'um comité incumbido de executar ou, melhor, de preparar a execução da obra citada. A assembléa toma conhecimento da proposta e o grão-mestre reserva-se o direito de nomear elle proprio o comité cuja formação deve até ao ultimo momento constituir assumpto da maior reserva. Impõe-se o segredo rigoroso, porque, a dentro da Maçonaria, existem elementos de pouca confiança n'um tão grave emprehendimento.
O comité, que toma o nome de Commissão de Resistencia, fica composto, além do dr. José de Castro, por Simões Raposo, Machado Santos, Miguel Bombarda, Francisco Grandella e Cordeiro Junior. O seu primeiro cuidado é o de approximar-se do Directorio do partido republicano, o de estabelecer contacto com esse organismo para conjugar com elle os esforços tendentes ao derrubar da monarchia. O Directorio acceita sem restricções a intervenção do Grande Oriente, e, prévio accordo, o comité maçonico trata de agrupar, de disciplinar, de aproveitar os organismos revolucionarios já então creados e que trabalham n'um isolamento de pouca ou nenhuma proficuidade. Essa aggregação é feita com extrema cautela. O comité chama ao seu ambiente os elementos de que o proprio Directorio dispõe, os da Carbonaria, representada pelo engenheiro Antonio Maria da Silva, os do grupo Accacia, representado por Martins Cardoso e os da Joven Portugal, a que pertence, entre outros, o dr. Carlos Amaro. E uma vez combinada a acção commum, diligenciam passar á fieira todos os individuos que se lhes affiguram capazes d'um esforço em prol da Republica.
Ventila-se depois a questão do dinheiro. Uma revolução, nos tempos modernos, não se faz sem essa móla imprescindivel. Ha necessidade de comprar armamento e de subvencionar outras despezas e o cofre do Directorio republicano não tem o sufficiente para tal empreza. Logo que se pensa a sério na realisação do movimento, constitue-se uma commissão financeira, inteiramente separada da commissão administrativa do partido e formada por Antonio José d'Almeida, Bernardino Machado, Magalhães Basto e José Barbosa. Constituida a commisssão, trata-se de calcular o que custará o movimento.
Quinhentos contos? Quatrocentos contos? Trezentos?...
As opiniões variam e um dia em que isso se discute com um certo calor, Affonso Costa apresenta uma base orçamental um pouco mais modesta: setenta contos. Faz um calculo identico ou approximado aos de João Chagas e almirante Candido dos Reis. Setenta contos, na opinião de qualquer d'elles, deve chegar para as despezas da Revolução. Falta fixar o modo de obter essa quantia. Como? Sacando antecipadamente sobre a Republica? É processo que não encontra quem o defenda. Um emprestimo? De todos os alvitres estudados é este, afinal, o que concita um maior numero de adhesões. Mas, ainda assim, a idéa não tarda a ser posta de parte e a commissão financeira assenta que será relativamente facil reunir cem contos por intermedio de 25 correligionarios dedicados, cada um d'elles procurando obter quatro contos entre os seus amigos pessoais.
A commissão financeira, porém, nunca funcciona regularmente e, após diversas hesitações, Eusebio Leão, José Relvas, José Barbosa e Innocencio Camacho deliberam formar o cofre revolucionario apenas com os donativos secretos. Essa deliberação obedece talvez á velha idéa de que dinheiro não falta. E como dinheiro não falta, José Barbosa, Innocencio Camacho, Machado Santos e o engenheiro Antonio Maria da Silva, reunindo-se frequentemente no escriptorio do Estado de S. Paulo, occupam-se dedicadamente da acquisição de espingardas, pistolas e revolvers. Machado Santos e o engenheiro Antonio Maria da Silva descobrem a breve trecho o que elles chamam a solução do problema. Encontra-se á venda um lote de 33:000 espingardas de bom modelo que a Suissa acaba de substituir no armamento do seu exercito. Cada uma sahe pelo preço de 3$000 réis. É de graça... Pelos calculos feitos a Revolução Portugueza necessita de 5:000 armas, o que equivale a uma somma approximada de dezeseis contos de réis. Toca a comprar. Dinheiro não falta... Innocencio Camacho e José Barbosa escrevem a Antonio José d'Almeida, solicitando-lhe a incumbencia de effectuar a transacção. Antonio José d'Almeida accede de bom grado e aguarda n'uma capital europeia que em Lisboa se reuna o dinheiro indispensavel.
Mas os dias passam, o dinheiro não apparece e a transacção não se effectua. Uma parte do lote suisso vae para o Paraguay, onde d'ahi a mezes serve n'uma revolta de caracter partidarista, e Antonio José d'Almeida regressa a Lisboa sem ter conseguido remediar de qualquer modo o fiasco. Isto, comtudo, não entrava seriamente a organisação do movimento. Mantendo-se a ideia de alimentar o cofre revolucionario com os donativos secretos, os organisadores tratam de, com a maior reserva, expedir umas cartas aos elementos republicanos de reconhecida abnegação e, dentro de semanas, de dias até, começam a affluir diversas quantias que Eusebio Leão, como thesoureiro, escriptura de maneira symbolica. O cofre-forte da Revolta é uma mala de viagem que Eusebio Lião, cauteloso e meticuloso, faz guardar todos os dias no estabelecimento de modas de seu irmão Ramiro e sem que este o saiba... Á medida que o dinheiro afflue, vae-se realisando a compra de armamento, por pequenas porções, ficando depositario do material o negociante Martins Cardoso.
Esta colheita secreta de dinheiro dá origem a varios incidentes curiosos. José Barbosa narra d'este modo um d'esses incidentes:
«Um dia Manuel Bravo foi ao meu escriptorio confiar-me para a Revolução 200$000 réis do negociante Alves de Mattos. No dia immediato procurou-me o socio d'esse negociante, Alexandre Paes, e, falando com animação desusada, queixou-se de que Alves de Mattos desdenhara do proposito em que estava de contribuir para o cofre revolucionario e que, para provar ao socio que tambem possuia bens de fortuna, subscreveria para o mesmo cofre com 1:000$000 de réis. Mas, na realidade, só me confiou, deante do socio, a decima parte d'essa quantia e sahiu do meu escriptorio agitadissimo e monologando cousas phantasticas. Á noite tive noticia de que enlouquecera. Dias depois succedeu-me ir ás 10 e 50 á estação do Rocio aguardar, na companhia de João Chagas, a chegada d'um correligionario que vinha do Porto. Mal o comboio parou, vejo o Paes sahir alvoroçado d'uma das carruagens e, defrontando-me, desatou a alludir, em altos gritos, ao supposto donativo de 1:000$000 réis que queria fazer ao cofre revolucionario. Perto andava um cabo de policia e, segundo me contaram depois, o infeliz já dentro do comboio havia affirmado em alto e bom som essa contribuição generosa. A imprudencia do louco podia custar-nos cara.»
A provincia tambem se desentranha em dedicações extraordinarias para alimentar o cofre revolucionario. Estevão Pimentel, Manuel Alegre, Malva do Valle, Ricardo Paes e os republicanos de Alhandra, Villa Franca, Portalegre, Porto e do Algarve tambem fornecem muitas armas. Independentemente da actividade de todos esses correligionarios, muitos outros se armam á sua custa e armam os amigos, comprando revolvers e pistolas em Hespanha, passando-as para Portugal dentro de malas de mão, arriscando descuidosamente a liberdade. Do Brazil os organisadores do movimento recebem, por egual, valioso auxilio monetario e ainda já depois de proclamada a Republica vem a caminho de Lisboa determinada quantia ali angariada por intimos de José Barbosa.
N'um determinado momento, o almirante Candido dos Reis foi percorrer a provincia para avaliar com segurança da situação creada pela organisação revolucionaria Acompanhou-o n'essa missão o official de caçadores sr. Pires Pereira. No regresso, a impressão do illustre marinheiro era tão favoravel ao desenlace feliz do movimento que foi decidido desde logo apressal-o e sahir á rua dentro de breve espaço de tempo. Ninguem duvidava do exito. Tudo corria ás mil maravilhas. Os elementos revolucionarios manifestavam um ardor que era impossivel conter.
O comité de resistencia formado pela Maçonaria reunia, no emtanto, em casa e no escriptorio do dr. José de Castro, nos Makavencos, no Gremio Lusitano, no Centro de S. Carlos, em casa do sr. Francisco Grandella, etc. Dos trabalhos d'esse comité, conta-nos o sr. Simões Raposo o seguinte:
«A partir de determinado momento, as reuniões do comité de resistencia e seus adherentes passaram a effectuar-se diariamente no centro de S. Carlos, presididas pelo dr. Miguel Bombarda que, diga-se desde já, foi sempre d'uma assiduidade notavel, d'uma dedicação sem limites.
«Ao cabo d'algum tempo de preparação o comité principiou a organisar as suas forças de combate, distribuindo-as segundo um plano cuidadosamente traçado e marcando bem nitidamente o papel que cada um dos grupos de revoltosos devia desempenhar no momento propicio. No emtanto, as adhesões chegavam-nos, sempre no meio de caloroso enthusiasmo, e todas as noites, n'um gabinete do Centro de S. Carlos, soldados, cabos e sargentos, populares á mistura, affirmavam peremptoriamente a necessidade da Revolução, dispostos até a verdadeiros actos de loucura. Candido dos Reis não assistia a essas vibrações da alma revolucionaria mas palpitava-as atravez d'uma porta que separava duas salas do centro e assim andava perfeitamente orientado sobre a marcha crescente da nossa propaganda».
N'essa altura já estava constituido o sub-comité militar formado por Candido dos Reis, Fontes Pereira de Mello, coronel Ramos da Costa e capitão Palla. Fixou-se uma data para a Revolução: a de 15 de julho de 1910. Mas, chegado o momento soube-se com alvoroço que o segredo dos conspiradores fôra descoberto e que as auctoridades militares iam tomar providencias para impedir que a revolta estalasse. O movimento foi adiado.
«O adiamento—refere-nos o sr. José Barbosa—impressionou desagradavelmente os officiaes que estavam no segredo do complot. No dia immediato, vi alguns d'elles arrepelarem-se com sinceridade, verterem até lagrimas de raiva por se ter contra-mandado a revolta. Carlos da Maia, official de rara valentia, entrou no meu escriptorio agitadissimo e colerico, disposto, apesar de tudo, a tentar uma sublevação de marinheiros. Estes, por seu lado, tambem não cessavam de solicitar, de pedir que apressassemos o inicio do movimento, do contrario suicidar-se-hiam n'uma tentativa de exito improvavel, sahindo á rua contra todas as indicações dos organisadores da Revolução. A propaganda de alguns mezes aquecera-os ao rubro».
Depois de 15 de julho, multiplicaram-se as reuniões de officiaes em diversos pontos da cidade—na redacção das Cartas Politicas no Arco do Bandeira juntaram-se por vezes vinte e mais representantes da guarnição de Lisboa—fez-se outra compra de armamento e, aproveitando-se a energia do nucleo de militares que desde o começo haviam mantido a mais completa adhesão á Republica, produziu-se um trabalho galopante que fatalmente devia aluir com rapidez as instituições monarchicas.
«A primeira quinzena de agosto—affirma João Chagas—foi empregada n'essa corrida veloz para a revolução. E tão bem e tão utilmente ou proficuamente se trabalhou que tornámos a fixar data para o desenrolar do movimento: a noite de 19 para 20 d'esse mez. E fixámol-a, porque, segundo a opinião dos officiaes de marinha que nos acompanhavam, era a noite em que a bordo do D. Carlos se dava um conjuncto de circumstancias absolutamente vantajoso para a revolta. N'essa noite tudo concorreria para que a victoria fosse alcançada sem grandes difficuldades.
«Comtudo, á ultima hora, alguem denunciou o movimento ao chefe do gabinete regenerador. E succedeu o que todos sabem: ordem aos navios de guerra para sahirem a barra, prevenções nos quarteis, a policia vigiando rigorosamente a cidade, etc. O Teixeira de Sousa teve perfeito e minucioso conhecimento do complot e informaram-no com verdade do caracter que o revestia. Mas, para não desmentir os boatos postos em circulação de que o governo contava n'esse momento com um falso apoio dos republicanos, calou-se e habilmente attribuiu as medidas de rigor que tomára á necessidade de suffocar uma intentona reaccionaria».
Este segundo adiamento, longe de fazer esmorecer os organisadores da revolta, produziu effeito diametralmente opposto. N'uma reunião especial no Centro de S. Carlos, levada a effeito no domingo 25 de setembro, a que assistiram, entre outros, Candido dos Reis, o capitão Sá Cardoso e o tenente Helder Ribeiro, o comité de resistencia submetteu á apreciação dos representantes do comité militar um resumo das suas forças disponiveis, com as indicações dos locaes em que deviam operar e da funcção attribuída a cada grupo de revoltosos, e esses representantes estudaram minuciosamente o trabalho da organisação civil que, diga-se em abono da verdade, embora não tivesse sido reproduzido em cifra no papel, era absolutamente incomprehensivel para os profanos. N'outra reunião effectuada no consultorio do dr. Eusebio Leão, Candido dos Reis affirmou aos membros do Directorio que havia elementos em quantidade sufficiente para tentar a queda da monarchia e em successivas conferencias os officiaes que a ellas compareceram affirmaram a mesma coisa, dando a certeza de que a Republica em breve seria proclamada.
Precisamos voltar atraz para registar um pormenor de organisação, que José Barbosa descreve n'estes termos:
«Em outubro de 1909 a propaganda tomou maior incremento. Na primeira reunião do Directorio e da Junta Consultiva, realisada n'esse mez, como os marinheiros continuassem a affirmar que se sublevariam a breve trecho e fosse necessario entrar a fundo nos trabalhos de preparação da revolta, puz a questão com toda a franqueza: o partido republicano, no caso d'uma insurreição naval, não abandonaria os insurrectos e antes lhes daria a sua solidariedade moral e material. O assumpto foi debatido. Affonso Costa apoiou-me energicamente e todos concordámos em que era indispensavel atacar o regimen monarchico n'um golpe decisivo. A Junta Consultiva tambem se pronunciou pela acção immediata e d'ahi a dias tomámos conhecimento do inquerito feito pelo comité executivo aos officiaes republicanos, iniciando-se logo após esse inquerito as ligações entre os elementos que se suppunham isolados. João Chagas e Candido dos Reis trabalharam n'essa altura com uma febre indescriptivel. Dia a dia, João Chagas reunia nas Cartas Politicas tres e mais officiaes de marinha e do exercito de terra que, ao entrarem em contacto, se surprehendiam immenso de ver ao lado da Republica camaradas do mesmo regimento ou do mesmo navio que consideravam monarchicos retintos ou pelo menos indifferentes.
«Essa operação aggregadora representa um esforço extraordinario. Coincidiu com uma phase activissima da Carbonaria, que contava no seu seio, por interferencia propagandista do engenheiro Silva, soldados, cabos e sargentos de toda a guarnição da capital. Precisavamos em cada regimento, ou em cada navio, relacionar os officiaes republicanos com as praças adherentes. Procedeu-se cautelosamente a essa ligação, pondo primeiro em contacto um official com um sargento e depois o sargento com um determinado numero de cabos e soldados.»
O engenheiro Antonio Maria da Silva completa assim o relato de José Barbosa:
«Os officiaes passam depois a entender-se directamente com os seus subalternos e estão permanentemente em contacto com carbonarios, a quem dão indicações e de quem colhem informações rigorosas para se confeccionar o plano da revolta.
«Indigitam-se para o elaborar os officiaes: Sá Cardoso, Helder Ribeiro e Aragão e Mello. É preciso, todavia, dar aos officiaes a certeza material das forças de que dispomos, e eu fico encarregado de os pôr em contacto com essas forças. Organisam-se, por isso, verdadeiras revistas militares. Aos soldados são dadas as respectivas senhas. Uma d'ellas é: pontapé na bola. A bola, já se vê, é a monarchia com o seu farto recheio de escandalos: muito bojuda, brigantinamente bojuda. De uma vez, Aragão e Mello e o carbonario Alberto Meyrelles assistem no jardim da parada de Campo d'Ourique ao desfile de 150 homens de infantaria 16, dizendo cada um d'elles ao passar: pontapé na bola... Alguns até cantarolavam disfarçadamente a senha. Helder Ribeiro fica encantado com os resultados colhidos. O tenente José Ricardo Cabral e o soldado Domingos passam revista aos postos fiscaes; Helder Ribeiro e o pharmaceutico Abrantes revistam infantaria 1, lanceiros e cavallaria 4, o tenente Ochôa infantaria 2 e Americo Olavo, caçadores 5.
«No Rocio realisa-se uma revista em noite de musica. Um verdadeiro escandalo nas barbas da policia. N'essa noite vão para o largo do Caldas conferenciar diversos elementos revolucionarios. Aragão e Mello passa ainda em revista engenharia. D'estas experiencias resulta, como não podia deixar de ser, adquirirem os officiaes a certeza de que, com os elementos de que dispõem, a revolução tem todas as probabilidades de triumpho.»
Entretanto, os elementos da classe civil prodigalisavam-se em reuniões, em conciliabulos secretos, onde a palavra Revolução animava, todos os assistentes, impellindo-os até ao sacrificio da propria vida. A atmosphera carregava-se dia a dia e de maneira que já ninguem pensava em adiar o movimento nem em demorar-lhe a marcha fulgurante. Era absolutamente necessario abrir a valvula, porque, de contrario, a explosão inevitavel redundaria em prejuizo dos que, com tanto amor e tanta coragem, haviam projectado a emancipação da nacionalidade. Candido dos Reis e Miguel Bombarda sustentavam-se corajosamente na brecha. Das provincias vinham noticias calorosas, que demonstravam a anciedade dos republicanos pelo rebentar da revolta. Era necessario fixar uma data, apressar, custasse o que custasse, o advento do novo regimen. O balanço dado pelo comité executivo de Lisboa ás forças de que o partido dispunha garantia a certeza da victoria.
Essa impressão de anciedade era facilmente apprehendida por todos os organisadores do movimento. Até mesmo os temperamentos mais calmos, os homens cujo sangue-frio repellia imprudencias perigosas, sentiam bem de perto a necessidade urgente de se fazer qualquer coisa, que puzesse breve termo a uma tal situação.
No dia 25 de setembro, pela 1 hora da tarde, José Barbosa e Innocencio Camacho encontraram-se no campo de Sant'Anna com o general Encarnação Ribeiro. Á primeira pergunta que os dois lhe dirigiram—o movimento é viavel?—o denodado militar respondeu-lhes com uma affirmação cathegorica. Restava organisar o plano de combate.
—E em quantos dias se arranja esse plano? inquiriram José Barbosa e Innocencio Camacho.
—O maximo, oito.
Em face d'esta asseveração nitida, os organisadores do movimento resolveram incumbir immediatamente a elaboração do plano ao general Encarnação Ribeiro, capitão Sá Cardoso, official de marinha Aragão e Mello e tenente Helder Ribeiro. Para a acção civil dividiu-se a cidade de Lisboa em varios sectores, correspondendo essa divisão á importancia dos diversos nucleos da Carbonaria. O papel d'esses elementos consistia essencialmente em facilitar a revolta nos quarteis e evitar a agglomeração da guarda municipal—o tradicional papão dos revoltosos. Os chefes de grupo eram os srs. Rodrigues Simões, intransigente republicano de velha data; Antonio Francisco Santos, dr. Carlos Amaro, com larga folha de serviços á causa; professor Antonio Ferrão, um conjurado impenitente; Alberto Meyrelles e um empregado da Companhia das Aguas de nome Sousa. Todos os chefes eram acompanhados d'um certo numero de revolucionarios, armados de pistolas, revolvers ou bombas de dynamite e embora a sua acção parecesse á primeira vista apenas limitada ao incendiar do rastilho, a verdade é que do seu exito dependia o exito da insurreição e a grande massa de conspiradores assim disseminada pela cidade arriscava-se, mais facilmente do que qualquer outra, a soffrer as consequencias funestas de um primeiro embate com as forças fieis á monarchia.
Ainda havia, segundo o plano elaborado pelos officiaes citados—plano que se concertava admiravelmente com as indicações da organisação civil do movimento—um certo numero de revolucionarios que se entenderiam, na madrugada propria e nos diversos quarteis, com os elementos reconhecidamente republicanos ali existentes. Eram elles o tenente Pires Pereira, o barbeiro Andrade, José Madeira, o empreiteiro Oliveira, o ex-sargento Carvalho, os srs. Godinho e Abrantes e os irmãos Lamas, de Alcantara. Infantaria 5 devia atacar a força da guarda municipal aquartelada no Carmo, recebendo de caçadores 5 metralhadoras e de artilharia 1 as peças indispensaveis a um resultado seguro. O ataque seria feito pelo largo de S. Roque, rua da Trindade e largo da Abegoaria. Com infantaria 5 cooperaria o regimento de engenharia, que se esperava sahisse do quartel sob o commando do tenente Alvaro Pope. O quartel de marinheiros seria invadido pelo 1.º tenente Parreira, acompanhado de alguns officiaes de marinha e d'um grupo de revolucionarios de Alcantara. O almirante Candido dos Reis iria com outros officiaes a bordo do D. Carlos e dos outros navios de guerra para, com a sua presença, a sua coragem e o prestigio do seu nome, dissipar quaesquer hesitações de momento.
Os barcos que tinham sahido de Lisboa, ao falhar a tentativa revolucionaria dos meiados de agosto—por effeito da denuncia que o chefe do gabinete regenerador recebera de determinado governador civil fundadamente alarmado com os preparativos de insurreição que surprehendera na capital do seu districto—voltaram ao fundeadouro no Tejo em meiados de setembro. Pouco depois, a marinhagem enviava ao Directorio e ao comité executivo de Lisboa delegados especiaes e declarava peremptoriamente que não tornava a sair a barra emquanto não fôsse proclamada a Republica ou se procurasse, pelo menos, tentar abalar o regimen monarchico. Essa resolução era inadiavel. O cabo Antonio, um marinheiro decidido e leal, chegou a dizer no Directorio a José Barbosa e Innocencio Camacho:
—Temos que sahir para a revolta custe o que custar. Perseguem-nos a bordo mais do que nunca e eu e os meus camaradas estamos resolvidos ao ultimo sacrificio, mesmo a um fuzilamento provavel. Não é possivel prolongar a situação...
Dias depois, começou a correr a noticia de que os navios de guerra iriam para Cascaes no começo de outubro e o almirante Candido dos Reis, conferenciando de novo com o Directorio e o comité militar, ponderou-lhes a urgencia na fixação d'uma data para a revolta. Por outro lado, o comité de resistencia, conferenciando egualmente com o Directorio, expôz-lhe claramente a situação e a impreterivel necessidade de a liquidar. O Directorio pensou, e muito bem, que, embora estivesse prompto a sanccionar a tentativa revolucionaria, precisava obter a garantia de que o movimento, a realisar-se, não se desenrolaria anarchicamente, mas sim com uma disciplina e uma ordem honrosas para a collectividade democratica. Combinou-se então confiar essa affirmação decisiva a um arbitro e o Directorio acceitou Candido dos Reis n'esse posto de enorme responsabilidade moral. É justo accentuar que tal exigencia do Directorio não representava desconfiança nos trabalhos do comité de resistencia. Em cada um dos membros d'essa organisação republicana, como em cada um dos membros do comité, havia a convicção inabalavel de que o movimento se iniciaria apesar de tudo e com probabilidades de exito. A mais rudimentar prudencia, porém, aconselhava que se averiguasse bem fundamente do estado dos elementos revolucionarios dispostos ao combate e que n'um balanço seguro de forças se baseasse a resolução definitiva do assumpto. N'outra reunião effectuada no Centro de S. Carlos, Candido dos Reis proferiu perante o Directorio a sua sentença arbitral.
—Individualmente, disse elle, eu, Candido dos Reis, simples soldado da Revolução, entendo que mesmo anarchicamente ella deve fazer-se dentro d'um curto praso. Não podemos admittir que a monarchia continue a achincalhar-nos. Como arbitro, affirmo que, embora o movimento seja mal succedido, não envergonhará, na derrota, o partido republicano.
Perante esta opinião, expressa energica e categoricamente, o Directorio decidiu sanccionar a tentativa, dar-lhe, digamos assim, um caracter official.
É interessante recordar que n'essa occasião em que o almirante Candido dos Reis manifestava a sua opinião technica ao Directorio do partido republicano, um dos organisadores do movimento fez-lhe ligeira observação sobre as probabilidades de triumpho. O almirante endireitou o busto e n'um tom de voz que não admitia replica exclamou:
—Se me julgasse incapaz de assumir o commando das forças de marinha e de as conduzir á victoria, dava um tiro na cabeça!...
Isto explica até certo ponto o mysterio da sua morte, na madrugada de 4 de outubro, á hora exactamente em que principiava a ferir-se o primeiro combate serio entre as forças revoltadas e os elementos militares de que a monarchia até então ainda dispunha. Mas, não antecipemos considerações sobre o fim tragico do almirante, visto que a elle teremos de fazer referencia áparte.
A 30 de setembro, estando já resolvida a tentativa de revolta, um dos membros do Directorio perguntou a Candido dos Reis qual a data que se devia escolher para o estalar da bomba. Resposta do almirante:
—Os acontecimentos é que hão de fixal-a.
Essa data, no emtanto, não podia ser outra senão a de 4 de outubro, pois que n'esse dia de manhã os barcos de guerra tinham ordem de mudar de fundeadouro. A madrugada de 4, isto é, momentos depois de terminado o banquete no paço de Belem, offerecido ao marechal Hermes da Fonseca, estava naturalmente indicada para o começo da insurreição. De resto, muito embora Candido dos Reis em 30 de setembro houvesse falado do caso pela fórma vaga que acima registamos, verdade é que, dois dias antes, no espirito do almirante já tinha perpassado a data de 4, apontando-a até n'uma reunião a que presidira no dia 28 d'aquelle mez. Essa reunião fôra convocada especialmente para o comité de resistencia ouvir do comité militar as indicações que, sobre a revolta, se lhe offerecesse apresentar.
No dia 1 de outubro, o engenheiro Antonio Maria da Silva e Machado Santos reuniram-se no café Martinho e o primeiro, depois de communicar a opinião de Candido dos Reis, de que o movimento se devia iniciar quanto antes, ficou incumbido de prevenir os officiaes de marinha revolucionarios para uma nova reunião de elementos militares no dia seguinte, ás 4 da tarde, em pleno Chiado, no consultorio do dr. Eusebio Leão. Era o dia 2, o dia marcado para a grandiosa manifestação que, diga-se de passagem, não serviu apenas ao presidente dos Estados Unidos do Brazil para avaliar com nitidez da expansão da idéa democratica entre nós e para desfazer a má impressão provocada, á sua chegada á capital, pelo rapto imaginado e posto em execução pelo governo regenerador, mas tambem para esclarecer os mais scepticos dos conspiradores sobre o estado d'alma do elemento civil. Os milhares de manifestantes que na tarde do dia 2 de outubro se agglomeraram em frente do paço de Belem e nas arterias proximas mostraram bem claramente aos organisadores do movimento que a Republica Portugueza era um facto e que a monarchia se equilibrava a custo n'uma base tradicional, roída pela propaganda da liberdade e pelos vicios inherentes ao antigo regimen.
Á reunião do Chiado compareceram uns quarenta officiaes. Entraram á formiga no consultorio do dr. Eusebio Leão, emquanto, cá fora, na rua, Innocencio Camacho, José Barbosa, Simões Raposo e outros revolucionarios civis vigiavam attentamente pela segurança dos conspiradores militares. Na reunião, os quarenta officiaes tomaram o compromisso solemne de se insurreccionar, estabeleceram a senha e o signal de reconhecimento, cuja transmissão aos chefes de grupos populares seria feita por Miguel Bombarda e depois de terem fixado definitivamente a madrugada de 4 de outubro para o começo da Revolução, assentaram tambem decisivamente no plano de combate, modificando n'alguns pontos o plano anterior, porque os militares não queriam fornecer armas aos civis, receando desmandos e vinganças pessoaes. Ficou por isso entendido o seguinte:
Engenharia, infantaria 5 e caçadores 5, sahindo dos seus quarteis, dirigir-se-hiam para o Rocio, mandando-se depois a infantaria atacar o quartel do Carmo, para obstar á sahida da municipal. Parte da marinha desembarcava no Terreiro do Paço, apoderando-se do telegrapho e apoiando as forças que deveriam estacionar no Rocio. Infantaria 2, caçadores 2 e marinheiros do quartel d'Alcantara e parte da marinha dos navios cercava o palacio das Necessidade para prender o rei. A artilharia dividia as suas forças em duas fracções. Uma ia reunir-se a caçadores 2, ao palacio das Necessidades e outra seguia para o largo de S. Roque, apoiando as forças do Rocio e impedindo a communicação da guarda municipal pela rua do Alecrim e praça Luiz de Camões. Os grupos civis, por sua vez, com bombas e granadas de mão impediam em diversas ruas da cidade que as forças da municipal evolucionassem para o ataque ás forças revoltadas.
A senha e o signal de reconhecimento eram Mandou-me procurar?... Passe, cidadão. Candido dos Reis insistiu muito em que se adoptasse Mandou-me procurar? em vez de Mandou-me chamar? por ser menos crivel que um profano empregasse a primeira phrase de preferencia á segunda.
Ás 5 da tarde, Innocencio Camacho foi ao consultorio do dr. Eusebio Leão e, logo que a reunião terminou, cêrca das 6, fechou a porta do consultorio e seguiu para o Rocio a encontrar-se com José Barbosa afim de lhe dar conta do que os quarenta officiaes, em ultima analyse, haviam resolvido. Esqueceu-nos dizer que na mesma reunião se decidira que o quartel general do comité executivo de Lisboa e dos membros do Directorio seria installado no estabelecimento de banhos de S. Paulo.
O dia 3 de outubro, uma segunda feira, amanhece prodigamente beijado pelo sol. Todos os jornaes salientam a imponencia da manifestação da vespera e o povo republicano prepara-se para repetil-a d'ahi a vinte e quatro horas, quando o marechal Hermes da Fonseca, encaminhando-se para bordo do S. Paulo, fizer na Camara Municipal as suas despedidas á cidade de Lisboa. Projecta-se assim uma segunda parada das forças democraticas, tão brilhante como a do dia 2, tão enthusiastica, tão vibrante de commoção, tão anciosa de liberdade.
Antes do almoço, o marechal Hermes da Fonseca visita a Sociedade de Geographia. É no regresso do illustre brazileiro ao paço de Belem que a noticia tragica, a noticia sensacional, começa a circular primeiro nas redacções dos diarios vespertinos e depois nos cafés, nos ajuntamentos das ruas. «Um attentado contra o dr. Bombarda ... um louco desfechou sobre elle tres tiros de pistola....» E a opinião alarma-se, a opinião agita-se, um fremito de espanto e de pavor convulsiona d'um extremo ao outro a capital, os jornaes são positivamente assaltados por creaturas desejosas de saber pormenores, e em frente dos placards agglomera-se uma massa rumorejante, que ao dispersar lamenta sincera e doridamente o succedido.
A caminho do hospital de S. José, para onde o ferido se fizera elle proprio transportar, vae longa fila de intimos e de correligionarios. Os primeiros que ouvem do dr. Bombarda a narração do attentado são, depois dos seus collegas no corpo docente da Escola Medica, os srs. drs. Brito Camacho e João de Menezes. O mallogrado professor fala-lhes sereno e tranquillo e descreve sem a menor difficuldade como o caso se deu. Estava no gabinete de consultas de Rilhafolles e o creado annunciou-lhe a visita d'um antigo pensionista do hospital, o tenente de estado maior Apparicio Rebello. Mandou-o entrar e assim que o teve em frente da sua secretaria, manifestou-lhe, n'uma phrase amavel, a sua surpreza por vêl-o restabelecido. O tenente não disse palavra. Tirou do bolso do casaco uma Browning—este systema de pistolas vulgarisou-se em Portugal com o 28 de janeiro e o regicidio—e alvejou o dr. Bombarda primeiro no peito e a seguir no ventre. O eminente psychiatra ergueu-se corajosamente da cadeira e ainda conseguiu deitar as mãos ao aggressor. Mas este continuou a desfechar e só quando um dos guardas de Rilhafolles o subjugou é que o dr. Bombarda poude dirigir-se á porta do hospital e metter-se no mesmo trem que ali conduzira o tenente, ordenando ao cocheiro que o levasse sem demora ao banco de S. José.
Examinado por tres dos seus collegas, resolve-se a soffrer uma operação dolorosa. É o ultimo recurso á sciencia, recurso, aliás, de successo problematico. Mas, antes, o dr. Bombarda tira do bolso uns papeis e queima cuidadosamente um d'elles. É a lista da organisação civil da revolta que não tarda a estalar, o registo das forças populares que dentro em pouco serão chamadas a collaborar na implantação da Republica. Ainda na vespera, ao concluir uma reunião de conspiradores, o grande propagandista liberal pedira esse papel ao sr. Simões Raposo, justificando o pedido d'este modo:
—Eu guardo-o, porque estou menos arriscado que você a ser preso. Mesmo no caso d'uma busca policial a Rilhafolles, escondo-o facilmente nas folhas d'um livro da minha bibliotheca.
E o sr. Simões Raposo concordara com o alvitre porque, tendo secretariado desde o começo dos trabalhos o comité de resistencia, conservara de memoria tudo o que o papel dizia e de um instante para o outro recompol-o-hia sem grande difficuldade. Mas, prosigamos na narrativa dos tragicos incidentes de 3...
Feito o singelo auto de fé, o sabio professor volta-se para os operadores e colloca-se á sua inteira disposição. O trabalho dos cirurgiões é demorado e extenuante. Dura longos minutos, porque os projecteis da Browning perfuraram violentamente os intestinos e ha o justo receio de uma peritonite fatal. Cá fóra, nas immediações do hospital e da Escola Medica, a multidão de curiosos engrossa a olhos vistos. Os placards augmentam de momento a momento a anciedade do publico com as informações sobre o estado do enfermo.
Ao cahir da tarde, não ha esperanças de o salvar. A opinião corrente é de que o criminoso foi suggestionado pelo clericalismo. O dr. Bombarda combatera desde annos distantes a reacção e o fanatismo e aventa-se a hypothese de que elle succumbe a um manejo cruel d'esses seus dois inimigos. A excitação popular é tão intensa que um padre, no Rocio, passa um mau bocado, só porque alguem lhe ouviu dizer a respeito do attentado:
—Foi bem feito!... Não se perde nada.
No Chiado e na Avenida da Liberdade ha correrias da policia, tentando inutilmente abafar essa colera surda que estremece em ondas ameaçadoras. De grupo para grupo, faiscam exclamações de desespero. Pensa-se abertamente n'uma desforra retumbante. O povo liberal, que a essa hora ainda não sabe que um grupo de homens decididos resolveu fazer dentro de pouco a Revolução, prepara-se expontaneamente para qualquer coisa que o attentado decerto provocará. Os mais impulsivos gritam ás escancaras:
—Ah! os clericaes querem guerra!... Pois tel-a-hão!
Ninguem duvida. O assassinio do dr. Bombarda vae ser o ponto de partida para uma lucta sem treguas entre liberaes e reaccionarios, tanto mais accesa quanto é certo que o governo regenerador anda a burlar a opinião, fingindo satisfazer-lhe as reclamações no tocante á expulsão dos congreganistas de Aldeia da Ponte e do Barro.
Ás seis e minutos, o eminente democrata exhala o ultimo suspiro. Mas, facto extranho: n'esse momento de verdadeira crise, quando se suppõe que a agitação popular vae assumir um caracter gravissimo, aquecida ao rubro pela noticia da morte, na atmosphera da cidade como que perpassa uma voz mysteriosa mas incisiva, recommendando socego e prudencia. Alguns jornaes republicanos recebem mesmo indicações n'esse sentido. Nada de placards que enfureçam o povo: nada de titulos berrantes que augmentem o alarme e a indignação. Calma, muita calma... energia, sim, mas sem furia. A Revolução está á porta. E, se o governo monarchico se assusta com a attitude hostil do povo... toma as suas medidas de precaução e embaraça, ainda que inconscientemente, a eclosão do movimento.
Entretanto, os organisadores da revolta escoam-se silenciosamente por entre a multidão, dando a ultima demão aos preparativos. Previnem-se amigos e companheiros do ideal, chamam-se urgentemente a Lisboa os conspiradores que dias antes se tinham ausentado da cidade, ha conciliabulos rapidos em diversos pontos, os chefes de grupo são convocados para o Centro de S. Carlos a receberem armas e instrucções. A esta reunião devia presidir o dr. Bombarda... O dr. Bombarda, estendido n'um leito de morte, é substituido pelo sr. Simões Raposo. O material revolucionario, que até então estivera quasi todo abrigado sob as vistas cautelosas do sr. Martins Cardoso, é canalisado para aquella aggremiação, a dois passos da policia e sem que a policia dê por isso. Os massos com revolveres entram, sem recato, sem precauções, no edificio... Nas salas do Centro allude-se ao movimento em tom tão claro e expressivo que um dos revolucionarios que estaciona no largo, em frente do theatro lyrico, galga apressadamente as escadas, a recommendar maior discreção:
A ultima reunião dos organisadores do movimento realisou-se na noite de 3 no terceiro andar do predio 106 da rua da Esperança, residencia da mãe de Innocencio Camacho, que elle, nas vesperas, transferira para Cintra, receioso de que os acontecimentos a envolvessem nas suas graves consequencias.
Na tarde d'esse mesmo dia Innocencio Camacho e José Barbosa tinham ido ao escriptorio do dr. Affonso Costa avisal-o, por incumbencia do almirante Candido dos Reis, da data fixada para a revolta. O dr. Affonso Costa ouviu attentamente a communicação ensaiando algumas vezes o santo e a senha e depois limitou-se a puxar d'um carnet e a escrever ali o numero do predio da rua da Esperança. Sabia perfeitamente o que se tramava, mas não calculava que o movimento rebentasse d'ahi a horas. Marinha de Campos, que José Barbosa tambem prevenira do facto, cumprindo egualmente uma determinação do almirante, metteu-se n'um automovel com Alfredo Leal e foi a Cintra chamar o dr. Eusebio Leão, que adoecera na vespera.
Ás 7 da tarde, emquanto o engenheiro Antonio Maria da Silva ia tratar de arranjar uns doze automoveis que eram indispensaveis para o serviço de communicações, João Chagas e José Barbosa foram jantar a um restaurante da Baixa, pretendendo dar uma tregua á agitação que os dominava. O que foi esse jantar não se descreve com facilidade. Decorreu tristemente, quasi silencioso, pois que até João Chagas parecia n'esse momento avaro da viveza e do espirito de brilhante causeur que o caracterisam. «Mal comemos, contou-nos mais tarde José Barbosa; e o pouco que ingerimos não tinha o menor sabor».
Ás 8 os conjurados principiaram a affluir á rua da Esperança. Innocencio Camacho appareceu mais cedo para abrir as portas e fazer as honras da casa. Os outros eram, além dos revolucionarios representantes da armada e de todos os corpos da guarnição da capital, Candido dos Reis, Affonso Costa, José Relvas, José Barbosa, João Chagas e Antonio José d'Almeida. Eusebio Leão, que viera de Cintra apesar da doença que o affligia, fôra deitado n'um sophá e ardia em febre. A sala, onde só cabiam á vontade dez pessoas, tinha apenas uma meza e sobre ella um candieiro de petroleo. Em volta da meza perambulavam cerca de cincoenta conjurados. A atmosphera era irrespiravel. Asphyxiava-se lá dentro.
Na reunião, Candido dos Reis falou com rara energia, accentuando nitidamente que se não fosse capaz de collocar-se á frente dos marinheiros e de os conduzir á victoria não tinha o direito de viver. Examinou-se a situação. Os revolucionarios contavam em absoluto com elementos de lanceiros 2, cavallaria 4, caçadores 2, infantaria 5 e caçadores 5. De infantaria 16 comparecera á reunião apenas um alferes e havia duvidas sobre se o regimento podia entrar desde logo na revolta. Infantaria 1 não adheria, mas tambem não contrariava a acção conjuncta dos militares e do povo. Dentro da sala, repetimos, abafava-se... Isso não impedia, entretanto, que todos os conjurados se mantivessem n'um estado de espirito que removia mentalmente quaesquer obstaculos que surgissem ante o projecto de insurreição.
A reunião acabou ás 10 e 30, dando-se alguns dos officiaes presentes rendez-vous na rua do Livramento, depois de se fardarem convenientemente. O movimento seria iniciado á 1 hora da madrugada com uma salva de 31 tiros dada pelos navios de guerra fundeados no Tejo, salva que teria o seu echo no quartel de artilharia 1. O Directorio e os outros elementos de organisação installar-se-hiam, como já dissémos, no balneario de S. Paulo, d'onde, uma vez iniciada a revolta, sahiriam para Alcantara e ao encontro do monarcha João Chagas, José Relvas e Affonso Costa. Tencionavam, n'essa altura, pegar em D. Manuel e mettel-o a bordo d'um navio.
Dissolvida a reunião, José Barbosa foi ao Centro de S. Carlos, encontrando ali tres officiaes de marinha que pediam armas. Como lhes fosse respondido que no momento as não havia, retorquiram immediatamente:
—Não ha duvida. Voltaremos, fardados, a buscal-as!...
E voltaram. No Centro tambem estava o engenheiro Oliveira, que em companhia de Alvaro Pope devia iniciar o ataque ao quartel de engenharia. De tarde, falaram na necessidade de arranjar um pé de cabra para arrombar a porta d'um edificio militar. O empreiteiro Oliveira, embora lhe repugnasse usar tal instrumento, tanto forcejou que o obteve e á noite lá estava no Centro com o pé de cabra, tranquilisando d'este modo a sua consciencia:
—Como é para servir a boa causa...
Candido dos Reis appareceu no Centro de S. Carlos ás 11 e 50. Combinou com Simões Raposo que este iria a Belem aguardar o inicio da revolta, a Belem, onde o pharmaceutico Abrantes, como já tivemos ensejo de registar, organisára um nucleo fortemente combativo e que depois falaria com elle na Rocha do Conde d'Obidos, dando-lhe Simões Raposo n'essa occasião conta do que se passasse n'aquelle ponto da cidade. Candido dos Reis ainda alludiu á morte do dr. Miguel Bombarda e elle e Simões Raposo assentaram em que esse facto doloroso não influira de modo algum no projecto da revolta, quer para a adiar, quer apenas para a modificar em determinado sentido.
Proximo da meia noite, juntaram se no estabelecimento de banhos de S. Paulo: Affonso Costa, José Relvas, Eusebio Leão, Innocencio Camacho, José Barbosa, Antonio José d'Almeida, João Chagas, Joaquim Pessoa, Celestino Steffanina, Ricardo Durão, Manuel Duarte, engenheiro Antonio Maria da Silva, Malva do Valle, Marinha de Campos, Alfredo Leal, Simões Raposo e Soares Guedes. Este revolucionario e Joaquim Pessoa tinham-se incumbido de arranjar os barcos necessarios para o embarque de officiaes e forças de marinha nos caes do Gaz e da Viscondessa. Não se faz ideia da agitação moral que a todos dominou durante a longa hora em que esse grupo de conjurados esperou que os navios ancorados no Tejo dessem o signal para o começo da revolta. Ao soar a 1 hora da madrugada, nada se percebendo, vindo do exterior, que lhes indicasse o cumprimento do que momentos antes fôra decidido, a anciedade recrudesceu. Vinte minutos depois, ouviam-se apenas tres tiros de peça; a seguir alguns tiros isolados que muito pouco podiam significar para a satisfação do seu espirito... Nada ou quasi nada do que fôra combinado se produzia. Os factos succediam-se por modo a fazer desesperar os mais optimistas. Até o primeiro regimento a sahir á rua era exactamente aquelle com que os organisadores do movimento menos contavam: infantaria 16.
Não constitue segredo para ninguem que os organisadores do movimento revolucionario tiveram um momento de desanimo, um momento em que suppozeram tudo perdido. Foi durante o espaço de tempo que decorreu entre a hora anteriormente marcada para o inicio da revolta e o alvorecer do dia 4, quando um nucleo de republicanos se defrontava já com uma fracção das forças fieis á monarchia. Esse momento, em que as melhores energias sentiram um desfallecimento semelhante ao do 28 de janeiro, marca uma étape curiosissima da Revolução.
No estabelecimento de banhos de S. Paulo—já o dissemos concentrara-se proximo da meia noite uma duzia de homens decididos e resolutos, tendo cada um d'elles uma missão definida a cumprir. D'ahi, d'esse quartel general, os revolucionarios partiriam ao signal combinado para diversos pontos da cidade a executar o plano fixado. Aguardavam, portanto, esse signal com a anciedade precursora dos grandes acontecimentos decisivos. Mergulhados quasi na treva, dir-se-hia que continham a respiração para evitar que do exterior surprehendessem o menor symptoma agitador. Um relogio proximo bateu a uma da madrugada e todos os ouvidos se apuraram. A incerteza, dominava-os. Escoaram-se alguns minutos que pareceram seculos. Do grupo destacaram-se então tres ou quatro que foram percorrer as immediações do balneario. Nada se percebia que denotasse o começo da refrega e o desalento—uma interrogação insatisfeita—pairava no ambiente.
Á uma e vinte, os tiros de peça que soaram no Tejo deram o alarme. Contaram-nos um a um. Não correspondiam ao que fôra planeado. Que se passaria a bordo n'esse instante supremo? Que significava esse troar d'artilharia que não tranquilisava os espiritos? Alguem aventou a ideia de que os tiros constituiam um signal pedindo soccorro. Mas soccorro para qual dos barcos de guerra? Evidentemente, um d'elles fôra atacado pelos outros e solicitava para terra urgente auxilio.
A situação complicava-se. Para mais, logo a seguir a esse alarme tudo recahira no silencio. A cidade dormia em plena paz. A curta distancia do balneario vigiavam mollemente tres policias. Affonso Costa, Alfredo Leal e Malva do Valle tomaram uma resolução: ir a Alcantara vêr o que se passava. Sahiram de S. Paulo n'um automovel e recommendaram aos que ficavam:
—Se dentro de vinte minutos não voltarmos, siga para o quartel de marinheiros outro grupo...
Foi o que succedeu. Affonso Costa, Alfredo Leal e Malva do Valle não regressaram ao balneario dentro do praso marcado e João Chagas e Antonio José d'Almeida, enfiando n'outro automovel, abalaram pelo Aterro adeante.
O silencio da madrugada ainda se não rompera com os echos do tiroteio. A meio do Aterro, João Chagas e Antonio José d'Almeida encontraram um official de marinha, que assistira, no 3.º andar da rua da Esperança, á ultima reunião dos conjurados. Andava agitadissimo d'um lado para o outro, como a procurar um ponto de embarque ou quaesquer amigos que já se lhe deviam ter reunido. Falaram-lhe e elle não occultou a sua decepção. Falhara tudo... O movimento liquidara n'um pessimo esboço de insurreição.
O automovel andou mais uns metros e estacou em frente do quartel dos marinheiros, do lado em que o edificio olha para o Tejo. As janellas do quartel estavam illuminadas. Um grupo de populares avançou ao encontro de João Chagas.
—Que ha?—perguntou-lhes o grande publicista.
—Nada... Absolutamente nada.
E um dos revolucionarios, apontando para o quartel, accrescentou:
—Ali parece ter havido qualquer coisa, mas agora está tudo em socego.
O automovel poz-se de novo em andamento e foi direito ao largo do Calvario. O regimento de infantaria 1 avançava sobre Alcantara dividido em duas porções. «Os soldados,—disse-nos João Chagas recordando os episodios d'essa madrugada de perfeita desillusão—davam mostras d'um cançaço extremo. Vinham derreados, sem ordem na marcha, moviam-se somnolentamente como se a noticia da revolta lhes tolhesse a vontade. Tinham o aspecto d'um corpo já derrotado, desfeito, por longos minutos de ataque renhido».
Do largo do Calvario, o automovel foi á Praça d'Armas. «Suppunha—é ainda João Chagas que o diz—ir encontrar n'essa altura a reproducção d'uma d'essas revoluções francezas em que um bairro inteiro, iniciando o movimento, dava abrigo aos elementos insurreccionados. Calculava que n'esse reducto nos defenderiamos então até a ultima, depois de bem barricados contra os ataques do inimigo monarchico. Mas não... Alcantara, o bairro que eu sonhara para esse papel historico, parecia dormir serenamente, confiadamente, como se não suspeitasse da imminencia d'uma grave agitação».
Na Praça d'Armas, estacionava outro grupo de populares. João Chagas formulou a eterna pergunta:
—Que ha?
A resposta foi desanimadora:
—Nada... absolutamente nada. No quartel dos marinheiros houve qualquer coisa, mas agora está tudo em socego...
Era de desesperar. O socego do quartel dos marinheiros, após qualquer coisa de anormal, significava claramente que a revolta no edificio fôra promptamente suffocada. Não havia que insistir. O movimento falhara e quasi sem resistencia, sem um impulso de heroismo que o dignificasse na agonia. O silencio no local dizia-o melhor que quaesquer outros depoimentos. A menor tentativa de reacção, a produzir-se, teria sido assignalada no momento pelo estalar de uma bomba, pela percursão d'um gatilho, por um grito de triumpho ou de raiva...
O automovel rodou para o balneario de S. Paulo, a confirmar o insucesso do complot.
João Chagas mandou parar o vehiculo a certa distancia do edificio para não despertar suspeitas, mas, antes de entrar, foi abordado por um amigo que o aconselhou a retirar-se, affirmando que a policia cercava o balneario.
—E os outros?—inquiriu João Chagas, alludindo aos restantes revolucionarios que tinham ficado no quartel general.
—Os outros sahiram por uma porta das trazeiras... A policia não os apanhou.
Perfeita debacle. O quartel general dissolvia-se inoportunamente, desaggregando-se de modo a difficultar qualquer acção de conjuncto. D'ahi por deante não se podia pensar rasoavelmente em estabelecer communicações entre os diversos agrupamentos compromettidos na revolta. A acção individual teria que substituir-se á acção collectiva dos organisadores do movimento.
Afinal, o desanimo, essa dispersão dos elementos dirigentes da revolta, não tinham verdadeiramente rasão de existir. Á mesma hora em que o Directorio do partido republicano, o comité executivo de Lisboa e outros companheiros de lucta andavam perfeitamente ás cegas pelas ruas da cidade, pousando aqui e ali, indagando anciosamente o que havia, conjecturando para d'ahi a pouco uma terrivel repressão monarchica—um nucleo de populares, fardados e não fardados, arvorava destemidamente a bandeira vermelha e verde e caminhava para o triumpho n'uma marcha desordenada, é certo, mas com a mais intensa fé, a fé que só por si basta na maioria dos casos a garantir o exito e a victoria. Á mesma hora tambem Alcantara, o bairro de gloriosas tradições revolucionarias que a João Chagas parecera momentos antes alheiado do movimento, inerme ou somnolento, derrotava um regimento inteiro de cavallaria e continha em respeito um outro de infantaria; e d'uma loja da rua do Livramento sahia, disciplinado e forte, um grupo de officiaes de marinha e de carbonarios, a iniciar sem hesitações nem precipitações um dos feitos mais brilhantes do ataque á monarchia.
Já dissemos que o primeiro regimento a insurrecionar-se na madrugada de 4 de outubro foi o de infantaria 16, exactamente aquelle que menos confiança inspirava aos organisadores da revolta. Esse episodio inicial do movimento merece que o pormenorisemos.
Ás 9 horas da noite, logo que no quartel de Campo d'Ourique soou o toque do silencio, os soldados que sabiam do complot metteram-se na cama vestidos e equipados, fingindo que dormiam a somno solto para não despertar a attenção dos camaradas. Entretanto o cabo Correia e um soldado mais animoso invadiam as arrecadações das companhias, tiravam d'ali todo o armamento a que poderam lançar mão e conduziam-no para as casernas—levando a cabo essa tarefa com grandes precauções e riscos quasi irremoviveis.
Em certa altura, quando o cabo Correia estava fechado n'uma d'essas arrecadações, ouviu bater á porta. Sentiu-se perdido... Quem seria? Um official? Um amigo? Foi abrir, resolvido a tudo. Era o telegraphista do regimento que, segundo uma combinação previa, lhe ia mostrar um telegramma do quartel general recebido n'aquelle mesmo instante e em que se mandava que infantaria 16 estivesse de prevenção. Passava das 9 horas. A ordem chegava, pois, demasiado tarde. O telegramma, seguiu, por esse motivo, para as mãos do official de inspecção e a escolha das armas e munições continuou, sem interrupção, até final, ao mesmo tempo que o soldado 1.008, fingindo que estava de guarda, percorria, armado, todas as casernas, despertando todos os adeptos e avisando os soldados do serviço de policia, tambem no segredo do complot, de que não fizessem fogo contra quem pretendesse entrar no quartel.
Ás 12 e 45 da madrugada estava tudo a postos, tudo combinado e preparado. O cabo Correia soltou da sua caserna, que era a mais afastada da secretaria, um assobio forte e prolongado—o signal da rebellião—e os soldados revolucionarios juntaram-se immediatamente na parada, onde, em dado momento, ergueram um côro triumphal de vivas á Republica. Da parada foram depois á secretaria. Tornava-se indispensavel prender quanto antes os officiaes não adherentes e abrir as portas do quartel ao elemento civil—setenta homens armados que, momentos antes, tinham sahido do Centro de Santa Izabel. N'esse instante, o commandante de infantaria 16, tendo dado pela revolta, descera á parada e obrigara um soldado a bradar ás armas, ameaçando-o de revolver em punho. O soldado obedeceu, mas em seguida fugiu, indo juntar-se aos camaradas sublevados. O coronel encaminhou-se para a caserna da 3.ª companhia do 3.º batalhão e estacou á porta. A fusilaria crepitou pela primeira vez. Uma bala attingiu o commandante, matando-o instantaneamente. O capitão Barros, que se postara á entrada da arrecadação da sua companhia, oppondo-se a que os soldados se armassem, teve sorte egual...
Os outros officiaes, desvairados ou desorientados, fugiram com medo que lhes succedesse o mesmo que ao commandante e ao capitão Barros. As chaves dos portões ficavam dentro d'uma barretina e, como não fosse possivel encontral-as nos primeiros momentos, Machado Santos, que tambem avançara sobre infantaria 16 á frente d'um grupo de homens armados, teve que esperar alguns momentos na rua sem poder entrar. Entretanto, apparecia um cabo que, estando de guarda em Valle de Pereiro, abandonara o serviço. Foi elle que abriu caminho a Machado Santos pela porta da arrecadação regimental, e sem difficuldade, porque a respectiva sentinella não resistiu. Os sediciosos encaminharam-se então, já senhores do quartel, para a sala dos officiaes, onde encontraram o major Dias, que não quiz adherir, e as chaves dos portões dentro da tal barretina. O quartel não tardou a ser completamente franqueado aos revoltosos civis.
Era preciso, no emtanto, ir a artilharia 1, porque demais a mais já correra uma noticia aterradora, a de que alguns officiaes do 16 tinham ido á rua da Estrella chamar a guarda municipal. Essa sahida de infantaria 16 não se fez, porem, sem grande confusão. Machado Santos gritava, os outros barafustavam e por fim lá se conseguiu iniciar a marcha para Entre-Muros, indo á frente o heroico commissario naval. Por todo o trajecto, feito a galope, soltaram-se vivas enthusiasticos á Revolução e á Republica. Á porta do quartel de artilharia 1 estava o capitão Sá Cardoso. Ouvira repetidos toques de reunir em accelerado e sahira a esperar as forças revolucionarias de infantaria. Logo que defrontou Machado Santos, desembainhou a espada e collocou-se a seu lado. Segundos depois, a porta do quartel de Entre-Muros tambem era arrombada.
Como ahi o official de inspecção e o major do regimento não quizessem adherir, o capitão Sá Cardoso convidou-os a afastarem-se do local e os dois officiaes promptamente obedeceram. Na parada já andava o capitão Palla na faina de preparar as baterias revolucionarias, coadjuvado pelo alferes Brandão, que adherira espontaneamente. O capitão Sá Cardoso montou a cavallo e, antes de sahir do quartel de Entre-Muros, recebeu a adhesão do tenente Quaresma de infantaria 16, tenente Garcia, que estava afastado d'esse regimento, como aliás de todos os outros, por causa do 28 de janeiro e dos tenentes Santos e Paes, que tinham vindo expressamente de infantaria 3 para tomar parte no movimento. Infantaria 16—diga-se de passagem—não tinha sargentos; assim os respectivos logares foram occupados por cabos.
Prompta uma bateria, o capitão Sá Cardoso tomou o commando, coadjuvado pelo alferes Brandão, indo a escoltar a artilharia uma parte de infantaria 16 commandada pelo tenente Garcia. Essa bateria sahiu do quartel de artilharia 1 a caminho das Necessidades, mas a meio da rua Ferreira Borges foi surprehendida pela companhia da guarda municipal, aquartelada na Estrella, que fez fogo sobre os revolucionarios. Houve da parte d'estes uma breve hesitação, propria de quem nunca tinha entrado em fogo; mas a resposta á aggressão não se fez esperar e tres tiros de peça destroçaram os municipaes. Como alguns populares avisassem o capitão Sá Cardoso de que as forças fieis á monarchia se haviam postado nas embocaduras das ruas, promptas a fusilal-o e aos seus soldados, aquelle official resolveu voltar atraz, a juntar-se ao grosso da columna insurreccionada, que encontrou na rua de S. João dos Bemcasados.
Ahi, os officiaes conferenciaram e decidiram, após breve discussão, que a columna marchasse para a Avenida. O capitão Sá Cardoso, na qualidade de official mais antigo, tomou o commando superior e Machado Santos passou a dirigir a guarda avançada de infantaria 16 e grupos civis. Na altura das Amoreiras, a cauda da columna foi atacada d'uns quintaes ou coisa parecida e respondeu com uma descarga de infantaria. No largo do Rato houve novo alarme, mas da policia, que rapidamente foi desarmada por Machado Santos. Na rua Alexandre Herculano, deu-se uma scena que nos primeiros momentos não foi facil explicar: os revolucionarios foram ali recebidos com enorme tiroteio e a columna, desmantelando-se, marchou em debandada até á rua Castilho. N'esta rua, os capitães Sá Cardoso e Palla e Machado Santos lá conseguiram juntar de novo os elementos dispersos e as forças revolucionarias, ainda que no meio de grande confusão, conseguiram chegar á Rotunda.
Uma vez no famoso acampamento, o capitão Palla arranjou definitivamente a artilharia e Machado Santos e outros officiaes a infantaria; á esquerda d'esta formou um pelotão de 40 atiradores civis. O capitão Sá Cardoso fez uma fala aos soldados e populares que estavam ali reunidos, mostrando bem a responsabilidade que pesava sobre todos. Entretanto, a força de policia que estava na feira de Agosto, commandada pelo chefe Antunes, tinha retirado prudentemente do local; ao acampamento iam chegando mais populares e entre elles dois guardas municipaes; todos os individuos que passavam na Rotunda eram obrigados a pegar em armas. Ás 4 da manhã, a cavallaria da guarda municipal tentou um ataque pela frente do acampamento. Não fôra completamente destroçada na Avenida pelo grupo civil incumbido de o fazer, muito embora Silva Passos e outros conjurados arriscassem a vida n'essa denodada investida—e assim conseguira chegar a cincoenta metros das forças sublevadas. Mas estas responderam logo com fusilaria e tres granadas e os cavalleiros fieis ao antigo regimen tiveram que retroceder com algumas perdas.
Passemos agora da Rotunda a Alcantara e vejamos o que succedia n'esse bairro de verdadeiras tradições revolucionarias. O quartel general dos elementos que estavam no segredo do complot era a typographia da rua do Livramento, pertencente ao industrial sr. Franklin Lamas. Ninguem dirá ao vêr esse modesto artifice da revolta que a sua pallida e rachitica figura de anemico disfarça, além d'uma vontade de ferro, uma tenacidade organisadora fóra do commum. E, no emtanto, Alcantara deve-lhe assignalados serviços de acção republicana, em que a ousadia e a fé inquebrantavel venceram multiplos obstaculos á propaganda do Ideal.
Na noite de 3 de outubro, logo que ao bairro chegou a noticia de que o movimento seria iniciado d'ahi a poucas horas, os elementos revolucionarios correram a reunir-se no estabelecimento do sr. Franklin Lamas, ao tempo em que os centros republicanos da freguezia eram invadidos por populares que disputavam entre si as poucas armas até então ali armazenadas. Á 1 e 8 da madrugada de 4, reportamo-nos á precisão mathematica do relatório do 1.º tenente Parreira—sahiram da typographia, além d'esse denodado official de marinha, os 2.os tenentes Sousa Dias e Carlos da Maia, commissarios navaes Costa Gomes e Guilherme Rodrigues, 1.º sargento Gonçalves dos Santos, 2.os contra-mestres Armando Barata e Correia da Silva, 2.º sargento José Rodrigues, Franklin Lamas, seu irmão Francisco Lamas, Joaquim Alves, Joaquim Vaz e outros civis. Este disciplinado nucleo revolucionario encaminhou-se para o quartel de marinheiros, onde entrou pela chamada porta do jardim.
Lá dentro, depois de desarmada a sentinella, o grupo arrombou a arrecadação do armamento, que foi distribuido pelos populares que ainda o não tinham, preparando-se tudo para a prisão dos officiaes que estavam no edificio. Ainda no jardim do quartel e a caminho da parada de cima, o grupo defrontou quatro d'esses officiaes que faziam uma ronda. O 1.º tenente Parreira não hesitou. Dirigiu-se-lhes energicamente, intimando-lhes a rendição e os quatro officiaes entregaram as armas, dando pouco depois entrada n'um dos calabouços. A seguir o grupo revolucionario subiu ás casernas, o 1.º tenente Parreira mandou levantar e armar todas as praças e como o sargento da guarda se mostrasse hesitante, o illustre official obrigou-o a entrar na formatura e mais tarde mandou-o prender, por não lhe merecer confiança. Faltava aprisionar os dois commandantes do corpo de marinheiros para se effectivar a posse completa do quartel.
Formou-se então um nucleo incumbido de defender as sahidas do edificio e os restantes revolucionarios procederam a varias buscas. «O primeiro a descer—conta o 1.º tenente Parreira no seu relatorio—foi o 1.º commandante que vinha só e armado e ficou entre portas á entrada do corredor da porta principal». O heroico commandante dos revoltosos intimou-o a render-se. Elle resistiu, primeiro agitando a espada e depois disparando tiros de pistola, e um grupo desfechou, attingindo-o e prostrando-o ferido. Acudiram os criados que o transportaram para os seus aposentos particulares e os contingentes das differentes casernas principiaram a juntar-se na parada, onde já então se encontrava o 2.º tenente Tito de Moraes, que tomou logo a iniciativa de activar a formatura das praças.
D'ahi a momentos os civis empregados nas buscas correram sobre o 2.º commandante do corpo, obrigando-o a fugir até á parada de cima, onde o 1.º tenente Parreira o aprisionou, mettendo-o no calabouço com os outros officiaes suspeitos. Arrombou-se depois o paiol da polvora, os cunhetes foram trazidos para a parada e, assim que se municiaram cerca de 50 praças, esta força installou-se nas janellas da frente do quartel sob o commando do commissario Costa Gomes, recebendo incumbencia de impedir a sahida do esquadrão de cavallaria da municipal e defender essa face do edificio.
Ás 2 e meia da madrugada, concluido o municiamento das praças, os revolucionarios arrombaram a porta sul do quartel e sahiram para a rua 24 de Julho, onde pouco antes tinham formado outras forças e grupos civis. O nucleo organisado no quartel dos marinheiros, depois de leve contacto com uma diminuta força de cavalaria em reconhecimento, que retrocedeu logo que ouviu dar vivas á Republica, marchou em direcção á rua da Costa, pretendendo assim cumprir uma parte do plano estabelecido e que consistia em cercar o palacio das Necessidades, conjugando a sua acção com a da columna de infantaria 16 e artilharia 1 do commando do capitão Sá Cardoso. Já dissemos que essa columna se viu impossibilitada de exercer tal missão, por ter sido atacada pela municipal na rua Borges Carneiro. O nucleo do quartel dos marinheiros tambem não poude chegar até junto do palacio, porque, tendo a sua guarda avançada avistado na passagem da linha ferrea forças de cavallaria 4 e infantaria 1, o 1.º tenente Parreira mandou fazer alto, encarregando entretanto alguns civis de explorarem a rua Vieira da Silva.
N'esse mesmo instante, appareceu um capitão que as forças fieis ao antigo regimen haviam destacado como parlamentario. Sahiu a reconhecel-o uma vedeta revolucionaria commandada pelo 2.º tenente Carlos da Maia.
—Que defende? perguntou-lhe esse official de marinha.
Resposta do capitão:
—Tenho muita pena, mas sou obrigado a vir aqui...
—Mas que principio defende? insistiu o commandante da vedeta.
—As instituições.
—Mas que instituições? Republica ou monarchia?
—A monarchia.
E logo a seguir, o capitão accrescentou, visivelmente embaraçado:
—Mas eu vou contar tudo ao meu tenente coronel...
D'ahi a pouco surgiu na frente dos revolucionarios um tenente de infantaria. Logo que chegou á fala, declarou que tambem ia pedir instrucções ao tenente-coronel; e como as vedetas espalhadas pela rua Vieira da Silva affirmassem que as forças contrarias estavam egualmente desenvolvidas para esse lado e a cavallaria e a infantaria fieis á monarchia tomassem posições de combate, o 1.º tenente Parreira desistiu de avançar sobre o palacio das Necessidades e decidiu preparar as coisas para um inevitavel recontro sangrento. Mandou arrombar parte do tapume proximo á passagem de nivel do caminho de ferro de cintura e dividiu as forças de marinha em dois pelotões. Um, sob o commando do tenente Carlos da Maia, desenvolveu-se em angulo recto, parte com as costas no tapume e com as armas dirigidas para a passagem de nivel, e outra parte dentro da cêrca e com a frente para oeste. O outro pelotão dividiu-se em duas fracções commandadas respectivamente pelos tenentes Sousa Dias e Tito de Moraes e formou com as costas para a parede norte da rua 24 de Julho, dirigindo as armas obliquamente para a passagem de nivel, cruzando, por conseguinte, os fogos com as forças que lhe ficavam fronteiras.
O 1.º tenente Parreira, tomadas estas disposições, ainda esperou um pouco antes de abrir as hostilidades. Mas, continuando a notar movimentos na cavallaria e infantaria adversas, resolveu tomar a offensiva e deu a voz de fogo. A fusilaria crepitou com energia e violencia durante minutos. Do lado opposto, responderam ao ataque com umas descargas que causaram algumas baixas nas forças revolucionarias. A seguir, como a cavallaria inimiga, desembocando na rua Fradesso da Silveira, desobedecesse á intimativa do 1.º tenente Parreira para fazer alto, os revolucionarios e os populares atacaram-na rudemente, secundados pela artilharia civil e a cavallaria, dispersando-se, bateu em retirada, com cêrca de 50 baixas entre mortos e feridos. Não se calcula o effeito desmoralisador que n'esse regimento fiel á monarchia produziu a explosão de varias bombas. Os soldados precipitaram-se immediatamente das montadas, originando uma confusão enorme, e emquanto uns se refugiavam aqui e ali buscando abrigo contra aquella arma poderosa que lhes parecia ser lançada do inferno, outros corriam para junto dos populares revoltosos, pedindo que os poupassem e declarando abandonar d'uma vez para sempre o serviço do antigo regimen.
Terminado o primeiro combate serio entre republicanos e monarchicos e em que os revolucionarios de Alcantara déram sobejas provas da sua grande coragem, o 1.º tenente Parreira dividiu a columna em dois pelotões, recolhendo o primeiro ao quartel de marinheiros, pela rua Baluarte para o guarnecer e defender, ficando ainda o tenente Carlos da Maia com o segundo pelotão até final da debandada do inimigo. Esta força recolheu mais tarde ao quartel pela porta sul, ao tempo em que um automovel que apparecera no local conduzindo os srs. Antonio José de Almeida e Pires de Carvalho se incumbia de levar ao hospital alguns revolucionarios feridos e um morto.
Uma vez no quartel, o 1.º tenente Parreira mandou reforçar a defeza da face do edificio que olhava para a guarda municipal de Alcantara, defeza que continuou a ser dirigida pelo commissario Costa Gomes, e guarneceu a parada do sul, de modo a impedir a vinda do inimigo pela rua 24 de Julho. D'esta fórma, o quartel ficou constituido em verdadeiro baluarte, defendido não só pelas forças de marinha, mas por grande numero de populares, que n'essa occasião se lhes aggregaram e foram logo armados e municiados.
Voltemos á Rotunda. Logo de manhã, Machado Santos, que então commandava uma força destinada a proteger o acampamento de qualquer assalto dos monarchicos pelas avenidas Fontes Pereira de Mello e Duque de Loulé, prendeu o 1.º tenente Victor Sepulveda, palaciano de fresca data, e que pouco antes sahira de casa attrahido pelo estrondear dos canhões. Machado Santos, que o conhecia dos tempos em que elle, Sepulveda, tambem conspirava contra a monarchia e se affirmava, pelo menos apparentemente, d'um radicalismo feroz, perguntou-lhe que fazia ali n'aquelle ponto da cidade. O 1.º tenente Sepulveda illudiu a pergunta e inquiriu por sua vez:
—Ah! és tu?... A marinha está aqui?...
Resposta de Machado Santos:
—Não: aqui estão artilharia 1 e infantaria 16. E tu, para onde vaes?
—Ora essa! Vou apresentar-me ao major general da armada. Dizem que ha barulho...
—Barulho?...
E Machado Santos, desferindo uma gargalhada, accrescentou:
—É a Revolução que está na rua. E tu, com muita pena minha, és meu prisioneiro.
O 1.º tenente Sepulveda esboçou um gesto de resistencia e ameaçou:
—Vê o que fazes! Eu...
—Dois civis armados para levarem este senhor ao commandante da columna! ordenou Machado Santos.
—Então, eu...
—Conduzam este senhor ao capitão Sá Cardoso, repetiu Machado Santos, e digam-lhe que é official de marinha e que acho conveniente conserval-o preso.
Os dois civis acquiesceram e emquanto o 1.º tenente Sepulveda, formulando nova ameaça, se dispunha a acompanhal-os, Machado Santos, pondo-lhe a mão no hombro, disse, a sorrir de ironia:
—Adeus, meu irmão da Montanha!...
O palaciano de fresca data estremeceu como se fôra tocado por um ferro em braza. A allusão de Machado Santos era mordente e devia ter-lhe evocado n'esse momento de lucta sangrenta os seus trabalhos de conspirador, a sua propaganda d'outros tempos contra o soberano e o antigo regimen...
Pouco depois, o capitão Sá Cardoso mandava-o pôr em liberdade.
Referido este episodio, que não merecia relevo especial se o 1.º tenente Sepulveda não tivesse, á ultima hora, assumido uma attitude de strenuo paladino da monarchia e o seu nome não houvesse sido citado a proposito da morte do almirante Candido dos Reis, prosigamos na narrativa do que occorreu na Rotunda, ao alvorecer do dia 4.
Assim que rompeu a manhã, Machado Santos, muito embora as noticias recebidas no acampamento fossem em extremo desanimadoras, desenvolveu uma energia sem limites, vigiando tudo, tratando de tudo, sempre incançavel e inattingivel pelo desalento. Ao contrario do heroico official, os outros militares agaloados sentiam-se a pouco e pouco invadidos pelo receio contagioso de que o movimento liquidasse n'um 31 de janeiro de peores e mais funestas consequencias.
Um alviçareiro dos muitos que irrompem no acampamento, anonymos alguns, sobejamente conhecidos outros, affirma sem hesitações que está tudo perdido. Lanceiros 2, infantaria 1 e a guarda municipal, que segundo o plano revolucionario, não deviam ter sahido dos quarteis sem soffrerem um ataque rude dos grupos de populares armados, andam pelas ruas de Lisboa sem que ninguem os incommode e preparam-se, de certo, para investir com os revoltosos acampados na Rotunda. A marinha não desembarcou nem tomou conta dos telegraphos; e ha quem diga que acabou de pôr um ultimatum: ou as forças de terra se rendem, ou ella bombardeia a cidade e mette os navios no fundo. Outro alviçareiro, que parece dar um recado de encommenda, confirma tudo isso e aconselha os officiaes a não prolongarem a resistencia; de contrario, accrescenta, a repressão será terrivel. Por ultimo, até a figura prestigiosa d'um antigo combatente pelo ideal republicano manifesta opinião identica e abandona o acampamento, onde momentos antes se mostrara corajoso e enthusiasta.
O medo é contagioso, dizemos acima, e não ha duvida: esse contagio ganha progressivamente os mais animosos e d'ahi a alguns minutos o capitão Sá Cardoso convoca o conselho de officiaes e expõe-lhe a situação, tal como elle a julga apprehender:
—Contra nós, cêrca de 3:000 homens, com as baterias a cavallo; a nossa posição da Rotunda dominada pelas alturas como o Thorel, Graça, Penha, S. Pedro d'Alcantara, etc. O inimigo tem quinze metralhadoras. Estamos na imminencia d'um ataque simultaneo por todas as ruas e por todas as alturas.
Todo o conselho—é o proprio capitão Sá Cardoso que o affirma—a começar pelo official mais moderno, manifesta o parecer de que a situação é desesperada e que a lucta provocará uma carnificina horrorosa. Todos os officiaes estão desanimados. O capitão Sá Cardoso, terminada a reunião, chama alguns sargentos de artilharia, diz-lhes nitidamente que o movimento foi mal succedido e aconselha-os a voltar com as forças a quarteis. As suas responsabilidades, accrescenta, são bem menores do que as dos officiaes e estes teem que sahir do acampamento por outra fórma. Um dos sargentos ainda lhe pergunta com as lagrimas nos olhos:
—Então, está tudo perdido?
—Está, responde o capitão Sá Cardoso.
E afasta-se, dominado pela mesma commoção. N'esse instante supremo, em que o desanimo dos officiaes combatentes podia ter conduzido irremediavelmente ao insuccesso da tentativa revolucionaria, os civis dão mostras de persistencia e fé inquebrantavel. Um dos populares approxima-se d'um dos militares, que mais desalentado se mostra e diz-lhe brutal, mas justamente:
—Quem quer chorar, vae para casa!... Mas não esteja aqui a enfraquecer a coragem dos outros.
O capitão Sá Cardoso e o tenente José Ricardo Cabral vestem-se á paisana e mettem-se n'um automovel. «Então, conta o primeiro d'esses officiaes, Machado Santos acerca-se de nós, a querer convencer-nos a que fiquemos, emquanto nós tentamos convencel-o a que nos acompanhe, para evitar uma chacina. Elle, cheio de enthusiasmo, de bemdita loucura, teima em ficar e nós partimos tristemente, convencidos de que, dentro em pouco, a Rotunda será um horroroso mar de sangue».
A cidade, no emtanto, apesar de ter acordado na manhã do dia 4 de outubro com a Revolução em plena actividade, conserva um aspecto relativamente calmo, que é digno de registo. O tiroteio, que desde as duas da madrugada se faz sentir aqui e ali, produz naturalmente uma certa commoção e contribue para augmentar a anciedade do momento. Mas a maioria dos habitantes continua a fazer a vida do costume, apenas entrecortada pelos muitos boatos que circulam, pelas noticias, umas falsas, outras verdadeiras, que lançam a confusão no ambiente. Ás 9 da manhã, excepção feita das casas em cujas proximidades a lucta é accesa, nas outras o ecco do movimento é fraco. Apparecem á hora habitual o padeiro, o leiteiro, o homem do talho; a carroça do lixo arrasta-se vagarosamente e recolhe os caixotes collocados ás portas; pelas janellas ha cabeças curiosas que interrogam, surprehendidas, o azul do ceu.
Os grupos de revolucionarios, que horas antes não conseguiram executar o programma da insurreição e se dissolveram mal a luz do sol illuminou o quadro, tendem a reconstituir-se, cautelosa e prudentemente. Ha uma falta sensivel de armamento; e, sobretudo, nota-se extraordinaria difficuldade de communicações. A Rotunda fica no coração da cidade. O quartel de marinheiros tambem não é muito distante. E no emtanto, pouca gente sabe de verdade o que se passa n'uma e n'outro e sobre esses dois fócos de rebeldia correm as mais desencontradas versões. Assim, affirma-se que na Rotunda o capitão Palla commanda a artilharia e elogia-se a precisão da sua pontaria. No quartel dos marinheiros, accrescenta-se, está o almirante Candido dos Reis, e é elle quem dirige, em chefe supremo da marinha revoltada, o ataque ás forças monarchicas que rodeiam o palacio das Necessidades. Puro engano... Á hora a que circulam taes boatos já Candido dos Reis cahiu morto na Azinhaga das Freiras e o capitão Palla abandonou o acampamento da Avenida.
Entretanto, Machado Santos, apoz o abandono da Rotunda pelos outros officiaes, convoca um conselho de sargentos de artilharia 1 e pergunta-lhes se acceitam o seu commando.
—Estou decidido, diz elle, a não abandonar esta posição, custe o que custar!...
Os sargentos respondem-lhe que morrerão combatendo até o ultimo momento pela Republica. Machado Santos pede então um cavallo, monta e desde esse instante é elle o unico dirigente dos revolucionarios concentrados no alto da Avenida.
O sol doura o rio, onde se vêem passar, como a medo, pequenos barcos. Para os lados do Rocio sente-se um movimento de tropas: fileiras de soldados guarnecem a entrada da praça dos Restauradores. Machado Santos dispõe as peças de artilharia, tomando as embocaduras do Rato, avenida Fontes Pereira de Mello e avenida da Liberdade e colloca-as tambem no parque Eduardo VII para defender o acampamento pelo lado norte. Ao meio dia, n'um momento de treguas, os populares arranjam os entrincheiramentos, que Machado Santos, elle proprio, considera platonicos, mas que dão ás forças revoltosas a illusão perfeita d'um forte abrigo contra as investidas dos monarchicos.
Na Rotunda já estão a essa hora uns quatrocentos homens, exhibindo variado armamento. Estabelecem-se vedetas. A guarda das côrtes, commandada por um sargento de infantaria 16, vem juntar-se aos revoltosos. Apparecem outros destacamentos e praças isoladas que fugiram dos respectivos corpos. Os viveres acodem em abundancia. Grupos de civis vão de vez em quando ao Matadouro apprehender a carne ali abatida... para que se não diga que a camara municipal a fornece de bom grado aos revoltosos e é... seu cumplice.
A dispersão do quartel general revolucionario que, na madrugada de 4, se installara no estabelecimento de banhos de S. Paulo, effectuara-se, entretanto, por uma forma desanimadora. João Chagas e outros elementos de organisação tinham abalado para os lados do Rocio e até que a manhã clara lhes desse um vago indicio da situação, foram pousando aqui e ali, hesitantes, indecisos, repugnando-lhes acreditar na derrota completa, mas desalentados ao mesmo passo pela falta de noticias seguras, com a ausencia de factos dos quaes dependia uma tal ou qual esperança de victoria.
Primeiro estiveram n'uma casa da rua dos Correeiros, deposito d'aguas mineraes; depois voltaram ao terceiro andar da rua da Esperança, residencia da mãe de Innocencio Camacho e durante uma boa parte do dia 4 tentaram inutilmente approximar-se do acampamento da Rotunda. Ao cahir da tarde, porém, João Chagas conseguiu passar do Rocio para a avenida Fontes Pereira de Mello, ir a casa e a seguir áquelle fóco de intensissima rebeldia. Mas o trajecto fel-o dominado pela ideia de que, se os serventuarios da monarchia o reconhecessem, o victimariam sem complacencia. Uma vez nas garras da municipal ou da policia, João Chagas pagaria com a vida a sua temeridade. Tinha bem presente no espirito a intranquilidade do sr. Malaquias de Lemos quando antes do 28 de janeiro o trouxera encerrado no quartel dos Paulistas, e futurava logicamente que, se o prendessem durante a revolta, lhe dariam destino egual ao de tres desgraçados que no dia 5 appareceram fusilados n'outro quartel da guarda pretoriana. Antes morrer do estilhaço d'uma granada que succumbir a dentro d'umas grades de ferro, sem lucta, inerme, manietado por algozes...
Outros dos dirigentes revolucionarios percorreram na madrugada de 4 as redacções dos jornaes, procurando anciosamente informar-se dos acontecimentos. Outros ainda, como José Barbosa, Celestino Steffanina e o engenheiro Antonio Maria da Silva, installaram-se no escriptorio do primeiro á hora em que já havia correrias da municipal pelo Calhariz e o Loreto e os soldados disparavam tiros para o ar, não tardando a occupar as embocaduras das ruas, porque os grupos de civis os ameaçavam com bombas. José Barbosa conta d'este modo essas horas de tragica anciedade:
«A madrugada ia rompendo e continuavamos sem saber positivamente o que estava succedendo na cidade. Eu conservava em meu poder os papeis com os nomes das pessoas que deviam constituir o governo provisorio e varias indicações a cumprir logo que a Republica fosse proclamada. Relemol-os até os fixarmos na memoria e preparámo-nos para os inutilisar logo que a policia invadisse a casa. A anciedade era enorme. De positivo sabiamos apenas que a guarda municipal cercara o telegrapho e não a marinha, como fôra deliberado ao adoptar-se o plano revolucionario. Na estação do Terreiro do Paço, todos os empregados que faziam serviço na madrugada de 4 eram republicanos e deviam retardar a transmissão dos telegrammas officiaes. O engenheiro Silva conseguira, por meio d'umas trocas, afastar n'esse momento os empregados que não tinham adherido ao complot.
«De manhã, cedo, sahimos á rua a colher noticias. Na rua das Gaveas encontrámos José da Costa Carneiro, que nos deu informações animadoras. Mas surgiram outras, contradictorias, e a indecisão era manifesta. Entrámos depois na pharmacia Durão, onde estacionavam alguns revolucionarios. Necessitava-se antes de mais nada dar certas ordens, restabelecer as communicações com os navios e o alto da Avenida, reorganisar o quartel general. No Hotel Europe estavam José Relvas e Eusebio Leão. Ambos haviam passado a noite entre os jornaes republicanos e o consultorio do segundo. Fui ter com elles ao hotel e, depois de almoçarmos, Relvas e eu fomos para a rua e mais tarde, na Lucta, começámos a tomar as providencias que os factos impunham. Brito Camacho procurava instantemente canalisar os elementos dispersos, impedir a derrota e com uma calma que pouca gente, de certo, lhe conhece, com uma coragem serena, imperturbavel, resolvia os problemas que de momento se nos apresentavam.
«Em certa altura, discutimos o caso da morte de Candido dos Reis e accordámos em mentir, affirmando que o vice-almirante vivia, para evitar que o desanimo invadisse os elementos revolucionarios. Tratou-se da interrupção das linhas ferreas e telegraphicas e de prevenir a hypothese do governo monarchico receber qualquer auxilio da provincia, onde, diga-se de passagem, a Carbonaria contava uma vasta rêde de ligações. Silvestre Coelho, por indicação nossa, foi a Sacavem assegurar-se de que a artilharia do forte estava disposta a obstar a qualquer avanço sobre Lisboa de elementos fieis ao antigo regimen. E como em artilharia 3 os revolucionarios tinham um camarada dedicado na pessoa do capitão Figueiredo, em caçadores 6 havia dois ou tres officiaes declaradamente republicanos e infantaria 15 estava por nosso lado, socegámos os mais receiosos de um ataque vindo de fóra, explicando que as forças da Revolução o não podiam temer e que tudo marchava para um triumpho redemptor.
«Mas não limitámos a nossa acção a estas providencias. No Beato, no Centro João Chagas, tinham-se concentrado 300 homens armados de espingardas caçadeiras e praças da guarda fiscal. Indicámos-lhes a conveniencia de descerem até ao Rocio, por um itinerario cuidadosamente escolhido e se não se realisou esse avanço sobre as forças acampadas n'aquella praça foi porque se reparou em dado momento que talvez esse contingente de revolucionarios tivesse de desempenhar outra missão importante no local da sua concentração. Emfim, ás quatro da tarde de 4, a impressão era de que os acontecimentos se desenrolavam muito mais favoravelmente para a Republica. Continuámos, no emtanto, a providenciar no sentido de não se perder, com uma imprudencia ou um gesto de desalento, o que até então fora feito á custa de muita dedicação. Jayme Teixeira incumbiu-se de levar ao quartel de marinheiros uma communicação tranquilisadora e outra communicação analoga foi enviada a Machado Santos. N'uma e n'outra repetiamos que os revolucionarios estivessem socegados porque não viria de fóra de Lisboa auxilio á monarchia. A Machado Santos tambem o preveniamos da imminencia do ataque effectuado pelas baterias de Queluz.»
No emtanto, Innocencio Camacho fôra a bordo dos navios insurreccionados dar-lhes indicações seguras sobre o que se estava passando em terra. Affonso Costa e Antonio José d'Almeida, depois de terem errado pelo Hotel Central, a casa do dr. Augusto de Vasconcellos e outro ponto da cidade, tinham ido parar a Algés, onde, a bem dizer, mal chegavam os echos do tiroteio.
Tem-se dito por vezes, embora com todas as cautelas possiveis, que o elemento popular falhou na Revolução de 4 e 5 de outubro. E cita-se, em abono d'esta asserção: 1.º o facto de não terem comparecido, na madrugada de 5, no local previamente designado, os civis que deviam acompanhar o almirante Candido dos Reis e outros officiaes a bordo dos navios de guerra; 2.º a circumstancia da guarda municipal ter conseguido sahir dos quarteis, pouco depois de iniciado o movimento, quando, pelo plano estabelecido, os grupos de paisanos deviam impedir essa sahida ou, pelo menos, retardal-a e tirar-lhe, por assim dizer, a utilidade do momento.
A asserção não é fundada. O elemento popular não falhou. A Revolução, se tinha de ser feita com o povo e com a tropa—o povo abrindo o caminho á tropa—triumphou exactamente porque as melhores energias populares não trepidaram no instante supremo. Os civis não compareceram, é certo, no ponto marcado pelo almirante Candido dos Reis; mas não compareceram, e isso já é do dominio publico, porque receberam na noite de 3 ordens em contrario. De resto, a sua acção fez-se sentir efficazmente n'outro ponto de Lisboa e o assalto aos navios de guerra não dependia absolutamente da sua presença ao lado do almirante. Para obstar á sahida da guarda municipal, havia escalonados diversos grupos, constituidos cada um d'elles por uma duzia de homens, uns armados e outros não. Esses grupos tinham recebido o encargo mais perigoso na distribuição dos papeis revolucionarios: o de defrontar em primeira mão a furia do inimigo. Eram verdadeira chair á canon e deviam iniciar o combate á hora em que ninguem sabia ainda com precisão quaes os regimentos fieis á monarchia e quaes os que adheriam á Republica.
Esses homens cumpriram o seu dever. Não obstaram completamente á sahida da municipal, porque receberam na hora propria armamento insufficiente e o itinerario do inimigo soffreu modificações, mas conservaram-se firmes no seu posto durante longas horas de espectativa angustiosa, correndo a todo o instante o risco de se lançarem na lucta antes d'um signal de esperança e sem saberem se seriam ou não secundados. E uma vez dispersos, muitos d'elles foram procurar outros sitios de combate, onde se portaram com inexcedivel coragem e bravura. Falando d'alguns d'esses homens que foram seus companheiros na primeira noite da revolta, dizia dias depois do triumpho o dr. Carlos Amaro:
—Deve-se-lhes, principalmente, a força de fé indomavel que foi o segredo da victoria e não ficar sendo a Revolução uma obra exclusiva do heroismo militar.
E com effeito. Os civis estiveram na Rotunda ao lado de Machado Santos, dando-lhe uma parcella de auxilio que o heroico revolucionario certamente não desconhece; estiveram em Alcantara investindo contra as forças organisadas da monarchia; entrincheiraram-se no quartel de marinheiros e arrostaram o ataque da guarnição do paço das Necessidades; foi um grupo de paisanos que denodadamente acompanhou um arrojado official de marinha, o 2.º tenente Tito de Moraes, a tomar conta d'um dos navios de guerra; os civis é que assaltaram o D. Carlos; na madrugada de 5, foram ainda os grupos de populares que incommodaram as forças militares acampadas no Rocio; e por ultimo, os paisanos distinguiram-se no arriscado serviço de communicações durante esse periodo de cruel incerteza em que cada passo dado na area da insurreição correspondia ao sacrificio de tudo, desde o amor da vida ao amor da familia.
Contou-nos José Barbosa, assim que se dissiparam os fumos do combate: na madrugada de 4, apoz a dispersão do quartel general revolucionario, quando elle, desalentado, entrava para o seu escriptorio da rua do Loreto, viu um grupo de homens agitar-se com as armas na mão, em frente da guarda municipal que guarnecia a Caixa Geral dos Depositos. Esse grupo de homens não ignorava, decerto, que o seu acto era requerimento para uma execução summaria. E comtudo, realisava-o ardorosamente, enthusiasticamente, desprendendo-se da existencia com um desapego notavel.
Outro caso: Machado Santos estava na Rotunda sem saber o que occorria nos diversos pontos da cidade. Pensava já em mandar um emissario dedicadissimo á busca de noticias e não occultava o seu aborrecimento, provocado pela falta de informações. De repente, apparecem no acampamento dois rapazes e elucidam os revoltosos sobre a situação. Esses dois rapazes tinham ido a pé do Dafundo ao Alto da Avenida, e ali se conservaram, até á proclamação da Republica.
E outros, muitos outros casos poderiamos citar, evidenciando a energia de que o elemento popular deu provas nos dias 4 e 5 de outubro, expondo-se ás balas com uma coragem que por vezes roçou a mais extraordinaria loucura. Na tropa revoltada houve legitimos heroes; mas os civis não falharam como se apregoa insistentemente. Foram os obreiros humildes do movimento e só lhes resta, como premio de tanto esforço e sacrificio, a orgulhosa consolação de terem sido os primeiros a correr todos os riscos da aventura.
Folheemos agora uma pagina da Revolução, que, por muito discutida, nem por isso deixa de merecer n'estas narrativas um registo especial. Referimo-nos á acção do almirante Candido dos Reis nas primeiras horas do movimento, ao desanimo que o invadiu e á sua morte.
O valente official devia embarcar no Caes do Gaz acompanhado por uns dez militares agaloados e um grupo de civis. Estes não compareceram no local. Dos militares compareceram oito: o capitão de fragata Fontes Pereira de Mello, o tenente de caçadores Helder Ribeiro e os tenentes de marinha Silva Araujo, Carvalho Araujo, Aragão e Mello, Monteiro Guimarães, Sousa Junior e Assis Ferreira. O primeiro a chegar foi o tenente Carvalho Araujo; Candido dos Reis, que, após a reunião da rua da Esperança, fôra ao Centro de S. Carlos e de lá a casa d'umas pessoas de familia residentes n'uma rua da Estephania, encontrou-se á meia noite n'essa casa com o tenente Helder Ribeiro. Depois de breves palavras sobre o movimento projectado, um e outro trataram de carregar as armas, dois revolvers, de que estavam munidos.
Falou-se mais tarde, a proposito da morte do almirante, que o ferimento encontrado na autopsia e a bala alojada dentro do craneo denotavam que Candido dos Reis se servira para o provavel suicidio d'uma pistola automatica. O tenente Helder Ribeiro é de opinião que elle não possuia tal arma. «E—diz o arrojado official—a rasão é simples: quando quiz carregar o meu revolver pedi-lhe algumas cargas do revolver que elle tinha na mão. Cedeu-m'as, mas, como não servissem, trocámos ligeiras impressões sobre a precipitação com que o armamento fôra distribuido aos revolucionarios. Era natural, portanto, que, se elle tivesse na occasião outra arma que não esse revolver vulgar, m'a emprestasse para eu não sahir á rua, como sahi, quasi desarmado».
Pouco depois da meia noite, o almirante Candido dos Reis e o tenente Helder Ribeiro sahiram da casa da rua da Estephania e encaminharam-se para o Aterro. Um vapor de pesca devia conduzir os officiaes revolucionarios a bordo dos navios de guerra. Qual era? Dil-o o 1.º tenente Carvalho Araujo n'uma entrevista que concedeu a um jornal da manhã:
«Esse vapor era o Chire, que eu procurei ao longo da muralha, apenas ali cheguei. N'esta rapida busca encontrei-me quasi de cara com uns individuos, gente caracterisadamente de bordo, e eu, julgando tratar-se de tripulantes do Chire, dirigi-lhes a senha: Mandou-me procurar? Elles, porém, não me responderam o Passe, cidadão! que os devia denunciar como gente nossa... Aquelle mutismo fez-me recolher prudentemente, e assim me conservei até que chegaram os meus collegas, a quem o almirante, em breve, mandou embarcar no Chire.
«N'esse vapor chegaram a entrar alguns d'esses officiaes; lembro-me muito bem: foram o Silva Araujo e o Sousa Junior, que por signal d'ahi a pouco voltaram, com esta estranha noticia: o Chire tinha as caldeiras apagadas... Houve um momento de quasi indignação e,—porque não dizêl-o?—de desanimo... Mas em breve nos refizemos, e, por um excesso de boa vontade, accordámos em que nos tinhamos enganado no nome do vapor—e n'este numero estava Candido dos Reis, que no emtanto se mostrou visivelmente contrariado... Embora! Nem assim se esmoreceu. E, um pouco ao acaso, fomos caminhando para o Dinorah, na esperança de que fosse aquelle o vapor que nos esperava. Recordo-me de que quem entrou ali foram Candido dos Reis, Monteiro Guimarães e eu...
«—Um momento—interrompeu o jornalista entrevistador—Isso realisou-se, é claro, depois do assalto?...
«—Do assalto? Mas se não houve assalto nenhum...
«—Parece-me, no emtanto, que me falou n'um assalto, quando ha pouco fazia a descripção geral d'essa jornada...
«—Sim, falei n'um assalto, mas para negar que tal se desse, em contrario do que parece deprehender-se de varios depoimentos. Nós entrámos no Dinorah sem que ninguem, fosse quem fosse, nos impedisse o passo...
«—E uma vez lá dentro...
«—Mal punhamos pé no navio, um homem da tripulação veiu ter comnosco e, sem mais preambulos, com uma grande tranquillidade, que bem se via não ser a de um iniciado, diz-nos: saberão vv. ss.as que o vapor não está navegavel...» O almirante estacou n'um pasmo e depois disse ao Monteiro que descesse á casa das caldeiras a certificar-se...
«—E era certo?
«—Um pouco. O Monteiro trouxe debaixo a noticia de que na verdade o Dinorah não tinha ainda pressão, mas poderia abalar dentro de meia hora... N'estas circumstancias os officiaes resolveram esperar. E como os outros collegas tinham ficado no caes, o almirante mandou-me que os avisasse de que o vapor era o Dinorah. Desembarquei, indo pela muralha adeante, em procura dos officiaes. Não estavam já no mesmo ponto onde pouco antes os deixara. Tinham achado prudente desviar-se um pouco, porque ali começava a concentrar-se a guarda fiscal, e tinha os seus perigos uma tal visinhança... Estavam junto da cancela da linha ferrea, e, para provar que me não escapou o mais pequeno pormenor d'essa noite, direi que já lá encontrei o Monteiro Guimarães, a quem o almirante mandara com uma ordem identica e que chegou antes de mim, por eu ter perdido alguns minutos procurando os officiaes na muralha. No momento em que transmittia a ordem do almirante ouviram-se no rio os primeiros tiros de peça... Em terra já tinhamos tambem percebido o ruido da fusilaria.
«Quasi ao mesmo tempo ouvia-se, em artilharia 1, nove tiros... Contámol-os, offegantes, e, n'um grande alvoroço, ficámo-nos depois á escuta, esperando o resto.... Mas nada mais se ouviu, o que levou um dos officiaes a exclamar: «Dir-se-ia o signal das forças fieis...» (Correra entre os officiaes que o signal das forças monarchicas eram nove tiros de artilharia...) Mas estava escripto que aquella noite seria para nós de dolorosas surprezas... No mesmo instante appareceu-nos, vindo de fóra, das ruas, um collega que nos deu noticias vagas, mas muito desanimadoras...
«—Quem era esse official?—perguntou-lhe o jornalista.
«—O tenente Aragão e Mello, homem que foi a alma revolucionaria dos navios, no periodo da organisação. Porque, creia isto: no trabalho de preparação dos espiritos houve muita heroicidade, muita valentia que mereciam historia. O perigo não existiu apenas dentro das horas de combate; existiu tambem, e permanentemente, durante a obra de aliciação, que se fez, dentro dos navios e dos quarteis, á custa de sacrificios tremendos. O Aragão, destacadamente, arriscou tudo, expondo-se temerariamente, n'uma quasi loucura! Era vigiado, olhado com desconfiança, e para isso concorria a clara falta de disciplina com que as praças se lhe dirigiam, n'um quasi «tu cá, tu lá» nascido das reuniões... O Aragão foi-se do caes, e, incançavel, expondo-se sempre, andou pelas ruas, entrou nos quarteis, a sondar os acontecimentos; soube depois que voltou lá abaixo, porém em occasião em que já lá não estava nenhum official.
«—Essa ultima affirmação vae contra outras, que dão o tenente Aragão falando da muralha para Candido dos Reis, e dizendo-lhe: «Meu almirante, basta de sacrificios! Infantaria 16 está fuzilando o povo!»
«—O Aragão não pode ter communicado com o almirante. Pelo menos não o fez emquanto lá estivemos. Quem lhe falou foi o Helder que, a nosso pedido, se dirigiu ao Dinorah a levar as ultimas noticias, e as resoluções d'um pequeno conselho de officiaes que reunimos n'essa occasião para apreciar immediatamente os acontecimentos.»
Esse conselho decidira adiar o embarque por mais algum tempo até os officiaes alcançarem noticias exactas sobre o que se estava passando n'outros pontos de Lisboa. As suas resoluções, claro é, ficaram, no emtanto, dependentes do arbitrio do almirante. O tenente Helder, depois de conferenciar sobre o assumpto com Candido dos Reis, voltou para junto dos seus camaradas da marinha e communicou-lhes que o almirante desistia do embarque. É o proprio tenente Helder quem nos refere esse incidente da revolta:
«—Carlos Candido dos Reis desanimara e no meio d'esse desanimo ouvi-o proferir estas palavras:
«—Está tudo perdido... Não podemos effectuar o desembarque da marinha, porque os dois vapores não vão junto dos navios de guerra; infantaria 16 conserva-se fiel á monarchia; artilharia 1 não adheriu; dos outros regimentos não ha signal de cooperarem na revolta. Falhou a tentativa... O melhor agora é todos nós voltarmos cada um para sua casa, mas de modo que a policia não nos surprehenda.
«E voltando-se para mim e outros officiaes:
«—Os senhores podem desembarcar já. Eu ainda me demoro no vapor alguns minutos...
«Insistimos com elle para que saltasse immediatamente em terra, mas o almirante teimou em conservar-se a bordo do rebocador, e só sahiu de lá quando dispersámos no Aterro...»
Momentos depois, Candido dos Reis, sempre inquieto e desanimado, estava á porta da casa de banhos em S. Paulo. Sahindo do Dinorah, com a obcessão,—chamemos-lhe assim—de que o movimento abortára, fôra até ali, não esperançado em obter noticias que o reconfortassem, mas para ouvir os outros revolucionarios e combinar com elles o partido a tomar em taes circumstancias. Talvez se extranhe que o valoroso almirante houvesse succumbido logo após a primeira contrariedade—elle, tão energico, tão cheio de fé, tão dedicado á propaganda republicana, em summa, tão devotado á organisação revolucionaria. Mas, Candido dos Reis soffrera com o 28 de janeiro uma desillusão profunda e ao perceber que falhara o assalto aos navios de guerra—esse assalto que elle julgava indispensavel ao bom exito da revolta—não se conteve e exclamou, fóra de si, n'um arranco de patriotica indignação:
—Já não ha portuguezes!...
Em S. Paulo, Alfredo Leal encontrou-o á porta do balneario, ao lado de Soares Guedes, com os braços cruzados e em attitude pensativa. D'ahi a pouco, appareceu no local o dr. Affonso Costa, que extranhou vêl-o ali, á hora em que o programma revolucionario o mandava ir a caminho dos navios de guerra. Candido dos Reis respondeu-lhe contristado:
É verdade, estou aqui porque perdi a esperança no movimento e não sei o que devo fazer. O meu logar era no caes, ao pé da Companhia do Gaz, onde devia encontrar-me com os officiaes. Mas em vez de preparativos da revolta eu apenas observei as evoluções da policia e da municipal, e tenho o presentimento de que está tudo perdido.
Todos trataram de o serenar a tal respeito, e o dr. Affonso Costa aconselhou-o a metter-se no automovel com Alfredo Leal, a fim de verificarem o que se passava nos principaes pontos revolucionarios. Foram e nada notaram de animador. Logo adeante de S. Paulo encontraram dois policias fardados, que pareceram desconfiar do automovel. Proximo do quartel de marinheiros apenas havia grupos de seis ou sete populares. No caminho da Estephania e de Arroyos esbarraram com piquetes de policia e guarda municipal que investigaram o auto com olhares prescrutadores. N'essa altura, Candido dos Reis voltou a mostrar-se desanimado, expressando-se, pouco mais ou menos, n'estes termos:
—Extranho isto. Em vez de agitação revolucionaria, só se vê a policia e tropas de prevenção. Presinto que vamos ser assaltados e que terei de dar um tiro nos miolos. Você, Leal, não acha ridiculo que eu vá acabar n'uma esquadra de policia? Isso de forma alguma. Sahi para me bater, e ou hei de morrer na revolução ou hei de liquidar a vida pelas minhas proprias mãos.
Alfredo Leal tratou novamente de tranquilisal-o, mas Candido dos Reis insistiu na ideia do suicidio:
—Para uma esquadra, nunca... antes a morte!...
Como era arriscado andar na rua áquella hora, Alfredo Leal aconselhou o almirante a recolher a casa e esperar ahi noticias do movimento. O almirante concordou e n'esse sentido dirigiu-se o automovel para a rua D. Estephania, dizendo Candido dos Reis ao seu companheiro:
—Bem. Eu vou para casa de minha irmã, n'esta mesma rua, n.º 153. Você vae saber o que ha de novo, e, se a revolução estiver em bom caminho, mande-me prevenir.
Quando o automovel ia a parar á porta do n.º 155, a attenção do almirante foi despertada por um facto extranho. A porta da rua estava aberta e um vulto desapparecia, n'esse momento, no limiar. Tanto Candido dos Reis como Alfredo Leal viram distinctamente esse vulto e ficaram hesitantes durante algum tempo, conjecturando sobre o que seria. Por fim, Candido dos Reis, tranquilisando-se, a si proprio, resolveu entrar em casa. Alfredo Leal ainda esperou que o almirante fechasse a porta atraz de si e depois metteu-se de novo no automovel, scismando apprehensivo no vulto que pouco antes vira. Seria um espião da policia?... Alfredo Leal ficou com a impressão de que se tratava realmente d'uma creatura assoldadada para vigiar o almirante. O que succedeu depois, conta-o elle d'este modo:
«Como achasse imprudente voltar no automovel á casa de banhos, resolvi dirigir-me a casa de meu irmão, em Santos, e ali ordenei ao chauffeur que seguisse para o local onde se combinára estacionar. Mal ouvi a fuzilaria, parti, a pé, para uma casa da travessa da Palha em que se reuniam alguns revolucionarios. No caminho, tive a felicidade de encontrar o automovel do irmão de Innocencio Camacho, que ia para o mesmo destino, e tomei logar ao lado d'elle. Apenas chegado, contei a João Chagas e outros o que se tinha passado, e como n'essa altura já o tiroteio fôsse violento em toda a cidade, consultei os outros sobre a maneira de prevenir Candido dos Reis. Assentou-se em mandar um popular de confiança, porque, sendo eu conhecido da policia, podia esta deter-me no caminho e impedir que o recado chegasse ao seu destino. Com effeito fui procurar um republicano de confiança e encarreguei-o de levar o recado a Candido dos Reis. Deviam ser, n'essa altura, 3 horas ou 3 e meia da manhã.
«Pode calcular-se a anciedade com que ficámos esperando o regresso do emissario. Mais de duas horas passaram e o homem não chegava. Por fim, já muito inquieto, resolvi descer á rua e tive a felicidade de esbarrar com o emissario, que regressava todo afflicto. Não tive tempo de lhe perguntar o motivo da sua enorme demora. O homem desfechou-me bruscamente a noticia da morte de Candido dos Reis, descrevendo assim como se desempenhára da sua missão:
«—Quando cheguei á rua de D. Estephania, disseram-me ali que o almirante tinha sahido ás 5 horas da manhã. Tratei então de saber onde era a sua residencia, por calcular que elle tivesse seguido para lá. Passado pouco tempo avistava-me effectivamente com a familia, a quem fui encontrar no mais completo desolamento. Já lá tinha chegado a noticia de que Candido dos Reis apparecera morto e de que o seu cadaver fôra removido para a Morgue».
O que se tinha passado durante esse periodo de tempo que medeiou entre a entrada do almirante no n.º 153 da rua de D. Estephania e a apparição do seu cadaver na Azinhaga das Freiras, em Arroyos? O cadaver de Candido dos Reis, quando uns populares o ergueram do solo, estava estendido ao comprido e com os pés na direcção da estrada de Sacavem. Tinha o braço direito afastado do corpo e proximo do antebraço uma pistola automatica. No fato: uma bolsa de cabedal com 500 réis em prata, quatro nikeis de 100 réis e uma moeda de cinco réis nova em folha, e uma carteira com uma nota de 5$000 réis e varios papeis...
A primeira pessoa que topou na Azinhaga das Freiras com o cadaver do almirante foi o trabalhador João Augusto da Silva. Empregava-se ao tempo na reconstrucção d'um muro proximo e passou no local ás 6 e um quarto da manhã. A essa hora, a azinhaga estava deserta. Foi á arrecadação do material, distante uns quarenta metros, pegou n'uma pá e voltou para o amassadouro da cal, que era mesmo á esquerda. Candido dos Reis já estava estendido no chão e agonizava. O trabalhador João Augusto da Silva chamou então outros operarios, um servente requisitou a comparencia de dois policias da esquadra de Arroyos e, depois de se verificar que o almirante succumbira ao ferimento recebido na cabeça, transportaram o cadaver para a Morgue. Os dois policias tomaram conta da pistola automatica, da carteira e da bolsa a que atraz nos referimos.
Coisa curiosa: esse trabalhador, quando interrogado por um reporter sobre os pormenores que acabamos de registar, affirmou peremptoriamente: 1.º que ás 6 horas e um quarto da manhã a Azinhaga das Freiras estava deserta; 2.º que não ouvira nenhuma detonação durante o espaço de tempo que medeiou entre a sua passagem á primeira vez no local e o encontro do cadaver. Em contrario d'esta affirmação depôz a esposa d'um enfermeiro residente na rua de Arroyos, que disse o seguinte:
—No dia 4 de outubro, cheguei á janella ás 6 da manhã, esperando a leiteira. Vi que no passeio, em baixo, passeiava d'um lado para o outro, n'uma extensão de dez metros, um individuo vestido todo de negro, que, de quando em quando, me fitava, o que me obrigou a retirar para o interior da casa. Passados dez minutos, quando novamente á janella, vi esse individuo sentado n'um marco de pedra. Voltei dentro a buscar vasilha para o leite, e quando assomei á porta senti um estalido secco, a que não liguei importancia, tanto mais que só vi fugir alvoroçadas algumas gallinhas. Instantes depois, percebi certo borborinho. Cheguei novamente á janella, e o sr. Leitão, fiscal do hospital d'Arroyos, disse-me:
«—Está ali um homem morto. Parece-me que é tio d'uma empregada. Vou chamal-a.
«No emtanto, emquanto o fiscal se dirigia ao interior do hospital, desci á rua, e, ao vêr o corpo estendido no chão, exclamei:
«—É o homem que ainda ha pouco ali passeava defronte...»
Mas ou seja o que contou o trabalhador João Augusto da Silva, que o almirante surgiu na Azinhaga das Freiras ás 6 e 30 da manhã e, mal ali surgiu, cahiu moribundo, ou como contou a esposa do enfermeiro, isto é, que Candido dos Reis passeara algum tempo na azinhaga antes de morrer, a verdade é que parece nitidamente averiguado que n'esse momento de tragico desespero, no local do doloroso acontecimento, só estava o almirante. Mais ninguem. E sendo assim, é forçoso arredar da narrativa do caso a hypothese d'um crime. Fica, apenas, de pé, a do suicidio. E será admissivel essa hypothese? É. O almirante, depois de ter entrado na casa da rua D. Estephania, onde imprudentemente o deixou Alfredo Leal, recolheu ao quarto de dormir, mas não enfiou logo na cama. Esteve um pedaço a reflectir na situação, a ponderar no insuccesso do movimento—que elle suppunha absolutamente perdido. Depois deitou-se. Mas a idéa de que tudo liquidára n'uma desastrada aventura não o deixava pregar olho. Ás quatro da manhã, ouvindo o estrondear do canhão, ergueu-se e vestiu-se. E é natural que, n'esse instante, tendo recebido a impressão de que n'um determinado ponto de Lisboa os revolucionarios combatiam corajosamente contra o inimigo monarchico, ao seu espirito acudiu tambem a idéa de que os bravos assim lançados em declarada rebellião já o tinham talvez considerado, por o não verem a seu lado, um medroso, um covarde.
E então, Candido dos Reis, que trabalhara com alma e decisão n'uma longa preparação revolucionaria, como trabalharam Sá Cardoso, o capitão Palla, Machado Santos e outros, sacudido por essa idéa, magoado porque o pudessem suppôr o que elle nunca tinha sido, achando, certamente, que já era tarde para enfileirar condignamente com os que luctavam desde a 1 e 30 da madrugada, elle, que estivera inactivo até esse momento, julgou que desmerecera por completo no conceito dos seus amigos, dos seus camaradas, dos seus correligionarios e... suicidou-se. Repetimos: isto é uma hypothese que formulamos. Para nós, como para muita gente que seguiu de perto a discussão jornalistica que apoz a revolução se estabeleceu sobre o assumpto, a hypothese do suicidio é perfeitamente acceitavel. Para outros não: para outros Candido dos Reis foi victima d'uma cilada preparada pelos inimigos da Republica e argumentam que seria coincidencia muito extraordinaria que, a dois passos da victoria, desapparecessem exactamente duas grandes figuras da preparação revolucionaria,—uma, Miguel Bombarda, attingido por um doido, a outra, o valoroso almirante, esmagado pelo desespero.
Deixámos os revolucionarios de posse do quartel de marinheiros na altura em que, tendo destroçado as forças monarchicas em Alcantara, haviam recolhido ao edificio e ali organisado uma defeza. Pouco depois, amanheceu. «E então, relata o 1.º tenente Parreira, verificou-se que pelo lado sul infantaria 1 estava occulta com as casas do caminho de ferro e tapumes, desenvolvendo-se até á rua da Costa, acompanhada tambem da guarda fiscal e d'alguma cavallaria 4. Ás 6 horas os navios, ainda a leste, deram algumas salvas, içando nós no mastro da parada a bandeira encarnada, para poder ser vista pelos navios. Ao mesmo tempo na rua estabeleciam-se vedetas, que fizeram a apprehensão de varios artigos, taes como uma carroça de pão da padaria militar e outra de carne que foi levada para as cozinhas do quartel, bem como uma carroça de refrescos que passava na occasião.
«Pelas 7 horas da manhã veiu um dos chefes de um dos grupos civis informar que o S. Raphael e Adamastor tinham bandeira revolucionaria içada, mas que a bordo do Adamastor lhe haviam dito ser preciso um official para commandar o S. Raphael, visto lá não haver official algum, e o Adamastor estar apenas commandado pelo tenente Cabeçadas esperando ordens. Esta informação levou o tenente Parreira a ordenar ao tenente Tito de Moraes que fosse tomar o commando do S. Raphael e indagasse o que succedera, o que elle fez, seguindo com 4 civis para o Aterro, na intenção de tomar qualquer embarcação que lhe apparecesse ou mesmo utilisar-se d'uma falua do Arsenal que ali estava ao serviço do carvão e cujo encarregado se pôz á disposição dos revoltosos.
«Proximo das 9 horas veiu um sargento, que recolhia de licença, communicar que tinha recebido ordem do commandante das forças fieis ao regimen monarchico e que defendiam as Necessidades para da sua parte intimar o commandante das forças de marinha a render-se no praso de 15 minutos, sob pena de mandar metralhar o corpo de marinheiros, ao que o tenente Parreira respondeu, mandando armar o sargento e fazendo-o entrar na linha de fogo.
«Algum tempo depois vimos o S. Raphael seguir rio abaixo vindo fundear em Alcantara em frente do quartel de marinheiros, e desembarcar uma força com uma metralhadora e as munições precisas para guarnecer a gente do quartel, e tambem os officiaes que faziam parte da guarnição do navio, e que vieram presos para terra, sendo mettidos nos calabouços do quartel.»
Mas, não prosigamos no desenrolar d'esta documentação sem uma referencia demorada ás peripecias que precederam o desembarque dos marinheiros no quartel de Alcantara e o bombardeamento do Paço das Necessidades. Como já dissémos, ás 7 horas da manhã do dia 4, o tenente Parreira recebeu as primeiras informações do que occorria a bordo dos navios revoltados: o Adamastor e o S. Raphael. Essas informações foram-lhe prestadas, além de outros civis, por Estevão Pimentel, que já tinha estado a bordo do Adamastor e falara com o tenente Cabeçadas. Era forçoso ir tomar o S. Raphael, não só porque o comando do barco devia ser exercido por um official, mas porque os officiaes prisioneiros dos revoltosos se esforçavam por convencer os seus aprisionadores a desistirem da insurreição.
O tenente Parreira consultou os officiaes que o acompanhavam. O tenente Tito de Moraes offereceu-se logo para ir desempenhar essa missão de confiança e foi ao Adamastor, d'onde seguiu mais tarde para o S. Raphael. Tomou conta do barco e quando os seus camaradas monarchicos lhe manifestaram o receio de qualquer complicação, se o movimento, porventura, não triumphasse, o distincto official pegou n'um papel e n'uma penna e redigiu uma declaração honrada e firme que concentrava na sua pessoa toda a responsabilidade do que de futuro succedesse.
Depois, ordenou aos officiaes do S. Raphael—que os marinheiros revoltados tinham aprisionado—que se conservassem detidos até o momento de irem para terra, e, assumindo o commando do cruzador, trouxe-o para Alcantara. O Adamastor preparava-se, no emtanto, para largar da boia e ir occupar uma posição identica ao lado do S. Raphael. Á passagem do S. Raphael junto do D. Carlos, que ainda ostentava a bandeira azul e branca, as poucas praças então a bordo do segundo d'esses cruzadores proromperam em vivas á Republica. Um popular ainda lembrou ao tenente Tito de Moraes:
—E se nós fossemos agora tomar o D. Carlos?
O denodado official hesitou uns segundos, mas depois replicou:
—Logo... fica para logo... Agora temos outro serviço a fazer.
Em Alcantara, no momento em que o tenente Tito de Moraes fazia desembarcar do S. Raphael os officiaes presos, cincoenta marinheiros revoltados, uma metralhadora e alguns cunhetes de polvora, appareceu-lhe n'um bote, em mangas de camisa, o commissario naval Marianno Martins, que, sendo conspirador e não tendo recebido a tempo o aviso de comparencia, resolvera no dia 4 de manhã dirigir-se a bordo d'aquelle vaso de guerra, despindo a sobrecasaca do uniforme para que da majoria general o não reconhecessem.
—Ás suas ordens, meu commandante!—disse Marianno Martins ao tenente Tito de Moraes. Este agradeceu-lhe a collaboração n'um aperto de mão cordealissimo e confiou-lhe, entretanto, o comando do cruzador. Marianno Martins subiu a escada e quando se dispunha a entrar no barco olhou para a fragata que transportava os seus camaradas prisioneiros e perguntou-lhes, sem perceber no momento a situação em que todos elles se encontravam:
—Então... vocês não ficam?
Um silencio doloroso acolheu a pergunta. Cortou-o um viva enthusiastico á Republica soltado por um revolucionario e a fragata largou immediatamente do S. Rafael.
No quartel dos marinheiros, porém, não havia a menor informação do que se passara durante todo esse tempo na Rotunda ou em qualquer outra parte da cidade. Só proximo do meio dia é que ali chegaram um dos membros do Directorio, o sr. Malva do Valle, e Celestino Steffanina, expondo a verdadeira situação das forças revolucionarias, que conheciam pormenorizadamente por terem estado pouco antes no Alto da Avenida.
«Logo—conta o tenente Parreira—se impoz a juncção com as forças da Rotunda, e julgando-se necessario inutilisar ou pelo menos enfraquecer, desmoralisando-a, a brigada que defendia as Necessidades, foi ordenado o bombardeamento do paço, que demorou algum tempo, e depois do corpo de marinheiros estar debaixo de um intenso fogo das metralhadoras de caçadores 2 e das restantes forças fieis á monarchia.
«O effeito d'este bombardeamento foi surprehendente, porque, levantando o moral das nossas forças, provocou grande desanimo nas forças contrarias. Ainda debaixo do fogo das metralhadoras tivemos a alegria de ver entrar no quartel o medico Vasconcellos e Sá, cujo papel distribuido não era ir para o corpo de marinheiros á 1 hora da noite, mas sim esperar com automoveis o desembarque da gente dos navios na Rocha do Conde de Obidos, ás 2 horas da manhã, desembarque que não se fez. Este official, a quem não mandaram automoveis ao hospital da Marinha e que já tinha feito seguir antes da 1 hora da noite os 4 enfermeiros com ambulancias portateis para o Aterro e que se apresentaram depois no corpo—apenas ouviu, no hospital, os tiros de peça, tentou seguir por sua vez com um enfermeiro, deixando as ambulancias no Hospital da Marinha e enfermeiros com ordem de as levarem para onde fosse preciso, caso ainda apparecessem os automoveis promettidos. Não conseguindo passar, em virtude de descargas das forças que a essa hora guarneciam o Museu de Artilharia, voltou ao Hospital da Marinha, onde começou a fazer operações e os curativos precisos nos feridos que vinham chegando, até que finalmente, já cheio de impaciencia, conseguiu arranjar um automovel que conduziu ambulancias, 4 enfermeiros e elle, medico, e, seguindo pelo Aterro, atravessou as forças da municipal que estavam no Terreiro do Paço, e, chegando ao quartel de marinheiros, entrou logo no exercicio das suas funcções.
«Entretanto, ainda vieram emissarios de Machado Santos insistindo pela juncção e informando que a passagem por terra para as bandas de Leste seria de pouca segurança, pois as ruas a atravessar estavam guarnecidas pela municipal e interceptavam a passagem. Ficou então assente em principio que seguiriamos por mar, embarcando nos cruzadores, varrendo as ruas da baixa com bombardeamento do mar e procurando desembarcar a leste do Terreiro do Paço, no caso que fosse mais accessivel.»
O primeiro projectil dos navios revoltados que cahiu no paço das Necessidades lançou um panico medonho nas creaturas que então velavam pela integridade do sr. D. Manuel. O paço estava guarnecido de tropas que se suppunha fieis ao antigo regimen. O quartel general entendera que, antes de mais nada, devia proteger a residencia do soberano e accumulara ali todos os elementos militares que não tinham tido cabimento no Rocio. Estes defendiam o quartel general; o restante guardava o palacio do rei. E durante horas esta situação de pura defensiva manteve-se inalteravel, apenas fracamente entrecortada por um esboço de ataque ao quartel dos marinheiros delineado como que a medo pelas tropas acantonadas nas Necessidades.
O panico que o bombardeamento produziu no paço foi enorme. O rei correu ao oratorio a implorar a intervenção divina, e emquanto uma meia duzia de servidores—dedicados não ha duvida—se conservava álerta, disposta a acompanhar o monarcha nas suas glorias ou nas suas vicissitudes, os outros servos—a grande maioria—abandonavam precipitadamente o edificio, possuidos do mais extraordinario pavor. Até as cozinhas do paço se resentiram da fuga... Como os tiros da artilharia naval continuassem a incidir sobre as paredes que ainda abrigavam essa côrte em perfeita dissolução, o rei teve um impulso de decisão. Chamou o official da guarda e disse-lhe:
—Telephona ao presidente do conselho...
Mas o apparelho não funccionava convenientemente e o sr. D. Manuel, decerto obcecado pelo que alguns aulicos lhe tinham dito em tempos sobre um provavel apoio da Gran-Bretanha á dynastia de Bragança, exclamou para um cortezão:
—Se estiver no Tejo algum destroyer inglez, que metta no fundo os navios revoltados!...
D'ahi a pouco, os dedicados servidores do palacio tomavam resoluções importantes sobre a situação. Convidaram o soberano a sahir do edificio, onde já corria grave risco, e acompanharam-no ao extremo da Tapada. Ahi deviam tomar logar em dois automoveis e partir para Mafra—o unico ponto de confiança para o antigo regimen e que podia proporcionar-lhe um reducto de certa consistencia.
Assim se fez. O rei enfiou para o automovel d'uma garage particular, que haviam chamado á pressa, e no mesmo vehiculo metteram-se tambem os srs. conde de Sabugosa e marquez do Fayal, o primeiro vestindo ainda a casaca com que na vespera assistira ao banquete offerecido no paço de Belem ao marechal Hermes da Fonseca. No outro automovel seguiram os dois unicos creados que não tinham fugido do paço com os primeiros effeitos do bombardeamento. Até certa altura, os dois vehiculos foram escoltados por uma força de cavallaria da municipal. Contou mais tarde o commandante d'essa força que por um triz uma granada da artilharia naval não desfez o automovel que conduzia o sr. D. Manuel. Foi n'um momento em que esse vehiculo soffreu uma panne. Instantes depois da avaria ser remediada e do automovel ter proseguido de novo a sua marcha, a explosão do projectil juncou de estilhaços mortiferos precisamente o ponto onde o rei aguardara, triste e silencioso, o concerto do carro.
As duas rainhas, entretanto, esperavam anciosamente noticias de Lisboa: a sr.ª D. Amelia no Castello da Pena e a sr.ª D. Maria Pia no palacio da villa de Cintra. No dia 4, ás duas horas da madrugada, o telephone havia annunciado á criadagem da mãe do monarcha que a Revolução estalara em Lisboa. Como ella dormia, ninguem a quiz despertar para tão sensacional noticia. Só ás oito da manhã é que lhe disseram francamente a verdade. A sr.ª D. Amelia mandou ligar para o paço da villa e a sr.ª D. Maria Pia decidiu logo ir á Pena com a s.ª marqueza de Unhão e o sr. conde de Mesquitella. Junto da nóra, a viuva do sr. D. Luiz procurou mostrar-se serena, resignada, possuida ainda d'uma energia fóra do commum. Mas a sr.ª D. Amelia não se conteve e como o telephone para o paço das Necessidades continuava a funccionar pessimamente, lançou-se n'um desespero indescriptivel. Deu ordens e contra-ordens, tentou communicar o mais rapidamente possivel com o chefe do governo e, ao cabo de inauditos esforços, lá conseguiu que de Lisboa lhe dissesem que o rei tinha sahido de casa, a caminho d'um refugio seguro.
No dia 5 de manhã, as duas rainhas partiam de Cintra para Mafra. O sr. D. Manuel esperava-as no convento, rodeado pelos servidores fieis: condes de Sabugosa e S. Lourenço, marquez do Fayal, tenente coronel Waddington, Vellez Caldeira e dr. Mello Breyner. Depois do almoço, que ainda foi servido em Mafra, uns emmissarios que surgiram offegantes vindos de Cascaes, noticiaram que a Republica já havia triumphado. Logo a seguir, outro emmissario notificou que o yacht Amelia se encontrava na Ericeira tendo a bordo o sr. D. Affonso e que a familia real devia embarcar sem perda de tempo, para evitar que os revoltosos ainda a surprehendessem em territorio portuguez. Como o yacht tinha poucos mantimentos, o monarcha, a mãe e a avó arranjaram farneis e puzeram-se a caminho d'aquella praia.
Antes da partida, a sr.ª D. Maria Pia mostrou alguma relutancia em abandonar o paiz sem ter sido primeiro intimada a fazel-o pelo governo republicano. Mas quando lhe mostraram a inconveniencia d'esse procedimento, ella mergulhou n'um silencio perturbador, que manteve até á entrada no yacht. No primeiro automovel seguiram para a Ericeira a sr.ª D. Amelia, a condessa de Figueiró, D. Maria de Menezes e Vasco Belmonte; no segundo a sr.ª D. Maria Pia, a marqueza de Unhão e o conde de Mesquitella; no terceiro, o sr. D. Manuel, os condes de Sabugosa e S. Lourenço, marquez do Fayal, Waddington e Mello Breyner. Atraz uma escolta de cavallaria. Na Ericeira juntaram-se aos fugitivos os srs. Serrão Franco e dr. Eduardo Burnay. O mar estava agitado e o embarque tornava-se difficil.
Ainda assim, com a promessa d'uma forte recompensa, o sr. Serrão Franco obteve que os tripulantes de dois barcos de pesca se decidissem a transportar a familia real para bordo do yacht. No primeiro embarcaram as duas rainhas; no segundo o monarcha. A bagagem da sr.a D. Amelia consistia apenas n'uma mala de folha com alguma roupa branca; a do sr. D. Manuel n'uma caixa com meia duzia de lenços. A mãe do monarcha, ao attentar na pobreza dos dois barcos de pesca que iam servir de galeotas á familia desthronada, ainda exclamou:
—Não esperava isto dos portuguezes!... C'est une infamie.
O rei, esse, contentou-se em affirmar a sua abnegação pelo povo que até aquelle momento suppozera governar e, chamando de parte o sr. Serrão Franco, pediu-lhe que entregasse ao presidente do conselho uma carta, em que asseverava não abdicar mas apenas eximir-se por algum tempo ao tumultuar da nação. Essa carta, diz-se, nunca chegou ao seu destino. No emtanto, os telegrammas de Gibraltar para os jornaes de Paris reproduziram dois dias depois o seu texto quasi na integra. É um documento sem valor politico e que demonstra simplesmente quanto o rei andava illudido sobre a situação da monarchia e... dos monarchicos.
Feito o embarque, o yacht poz-se logo em andamento, indo dar a volta ás Berlengas para tomar o rumo. Eram 4 da tarde do dia 5 de outubro de 1910.
Entretanto, na Rotunda, dava-se esta circumstancia feliz, que muito
contribuiu para o exito do movimento: o elemento popular, longe de desanimar
com a falta de noticias seguras sobre os episodios da Revolução occorridos
n'outros pontos de Lisboa, mostrava-se de instante para instante mais
corajoso, mais decidido a combater até á ultima pela causa republicana. Ás 7
da manhã do dia 4, Pinto de Lima, que estivera no quartel de marinheiros e
fôra testemunha do combate de Alcantara, entrou na Rotunda resolvido a dar
noticias d'essa acção triumphante dos revolucionarios commandados pelo
tenente Parreira.
No meio do acampamento, Sá Cardoso, que de madrugada repellira com energia o primeiro ataque da municipal, dava do alto do cavallo que montava umas instrucções aos outros officiaes que até ali o tinham acompanhado. Perto andava o capitão Palla. Mas como este vestia o uniforme de serviço interno e Sá Cardoso ostentava o dolman azul-ferrete com os galões do seu posto, todas as attenções derivavam naturalmente para o arrojado conspirador, que de resto, como já tivemos ensejo de o dizer, era, n'aquella occasião, o commandante em chefe da columna revoltada. Machado Santos dirigia n'outro ponto do acampamento uma força mixta de populares e soldados de infantaria 16. A confusão era enorme. Pairava no ambiente a duvida, a duvida terrivel de que a sahida dos dois quarteis, o d'aquelle regimento e o de artilharia 1, não fôra secundada. Pinto de Lima abeirou-se de Sá Cardoso e disse-lhe pormenorisadamente o que sabia do quartel dos marinheiros, solicitando-lhe ao mesmo tempo uma nota sobre a situação exacta das forças da Rotunda para a levar ao tenente Parreira. Sá Cardoso acquiesceu, pediu um lapis ao capitão Palla e escreveu n'um pedaço de papel:
Estou na Rotunda com os regimentos de infantaria 16 e artilharia 1, completos.
Sá Cardoso.
Pinto de Lima desceu a Avenida e lá foi a Alcantara communicar ao tenente Parreira essa informação. Pouco depois, Sá Cardoso, o capitão Palla e os outros officiaes que os tinham acompanhado á Rotunda, decidiam não prolongar a resistencia, considerando-a absolutamente inutil. Essa resolução, comprehende-se, tem sido apreciada de diverso modo. Uns vêem n'esse acto uma fraqueza moral, resultante da deficiencia de communicações entre o acampamento e os diversos focos revolucionarios. Outros, filiam-n'o no reconhecimento technico por parte d'esses officiaes de que a posição da Rotunda era insustentavel. Pelo que ouvimos a creaturas que seguiram bem de perto esses acontecimentos, o abandono do acampamento foi simplesmente provocado pela falta de cohesão, de unidade de todos os elementos compromettidos na Revolta. O programma previamente combinado não foi executado nos seus pontos essenciaes. Querem um exemplo? Ahi vae.
Tres grupos de revolucionarios civis deviam pouco antes de se iniciar a insurreição cortar em trez pontos differentes os fios telephonicos que punham em contacto o quartel general da 1.ª divisão e outros quarteis, nomeadamente os da guarda municipal. O primeiro grupo, que devia operar em determinado local da rua de Santo Antão não levou a cabo a sua missão perigosissima porque esbarrou com uma porta fechada... quando contava, afinal, vêl-a aberta a um signal de convenção. O segundo grupo, operando no Rocio proximo da rua do Amparo, tambem não poude cumprir o encargo que espontaneamente assumira, pela falta de meios de accesso a uma certa dependencia de certo edificio. Faltou-lhe uma chave, em summa. O terceiro, com posto marcado na rua Augusta, viu-se egualmente impossibilitado de executar o plano, por um incidente imprevisto, um d'esses incidentes que, parecendo insignificantes, ás vezes mudam por completo a face das coisas.
Resultado pratico de tudo isto: o quartel-general da 1.ª divisão que, pela previsão dos revolucionarios, não devia, no momento opportuno, poder communicar com os outros quarteis e nomeadamente com os da guarda municipal, teve tempo e tempo de sobejo para dar varias ordens e fazer sahir á rua os elementos indispensaveis a uma defeza efficaz das instituições monarchicas. E d'aqui já se deprehende o seguinte: Sá Cardoso, o capitão Palla e os outros officiaes que ás 9 horas da manhã do dia 4 abandonaram a Rotunda não cederam n'esse instante d'uma psychologia extremamente complicada ao receio de combater, de entrar em fogo. Quem, como o capitão Palla—sem contar o seu infatigavel trabalho de preparação revolucionaria—se resolve a um acto grave da vida arrastando para a revolta dezenas de homens confiados ao seu commando; quem, como Sá Cardoso se decide a montar a cavallo e sahir para a rua á frente d'uma massa indomita e sedenta de liberdade; quem faz isso apoz longos mezes de agitação mal reprimida, d'um balanço demorado aos prós e contras da aventura—não pode succumbir a um arrepio de medo, muito embora o medo seja uma impressão contagiosa que se propaga com rapidez e com rapidez se extingue.
Sá Cardoso, o capitão Palla e os outros officiaes abalaram na madrugada de 4 para a insurreição com a convicção profunda de que serviam uma causa justa. Do quartel de artilharia 1 até á Rotunda, essa abalada foi vertiginosa, febril, apenas entrecortada por tres escaramuças que os revolucionarios liquidaram n'um prompto, n'um elan de energia, de coragem, de decisão. Não lhes fez mossa a attitude de muitas mulhersinhas que, despertadas na tranquilidade domestica pelo fragor d'essa correria desenfreada, appareceram então ás janellas lamentando em ais doridos a sorte futura dos revoltosos... Foram para a Rotunda com a certeza do triumpho e que não tardariam a ser secundados pelos marinheiros ou pelas forças de outros regimentos affectos á Ideia. Ainda, mais: com a quasi certeza de que a municipal se veria impossibilitada nas primeiras horas do movimento de exercer a sua acção offensiva em favor da monarchia. Mas d'ahi a pouco essa certeza e quasi certeza eram chocadas pela realidade. A municipal manobrava á vontade pelas ruas de Lisboa, os marinheiros não tinham desembarcado e os outros regimentos, se se moviam, mostravam antes hostilidade aos republicanos do que auxilio á sua iniciativa. Alvorecia a manhã de 4 e com os primeiros raios do sol nascente arrefecia o enthusiasmo dos conspiradores. Estes, que tinham entrado na Rotunda sob o impulso de uma fé intensa, d'uma confiança cega na victoria, que ali tinham cahido como uma avalanche imponente, destruidora, começavam agora a encarar a situação com a frieza e a calma que se succedem a uma phase, mais ou menos curta, de excitação e de loucura patrioticas. O mar tempestuoso da revolta principiava a sentir os effeitos calmantes da reflexão technica, da apreciação profissional...
O resto d'esta historia é conhecidissimo do publico. Os officiaes, reunidos em conselho—e custou reunil-os, porque os incidentes que então occorriam na Rotunda attrahiam a attenção ora d'um ora d'outro—os officiaes, repetimos, foram unanimes em concordar que a aventura só por milagre deixaria de liquidar n'uma verdadeira hecatombe. Decidiram o abandono do acampamento. N'essa hora de desanimo nenhum d'elles se recordou que momentos antes praticára actos de bravura e que a logica lhes aconselhava manter até final a attitude delineada no começo da insurreição. Viram apenas isto: a responsabilidade que assumiam, contribuindo com a sua presença na Rotunda para que os homens, que até ali haviam arrastado, continuassem a sacrificar-se pelo ideal republicano. Pensaram que a sua sahida do acampamento corresponderia a um dispersar immediato do povo fardado e não fardado.
E afinal não succedeu assim. Apoz essa sahida, alguns dos elementos revolucionarios, que até então se tinham limitado a executar as ordens dos chefes, tomaram a iniciativa de preencher a vaga do commandante supremo da columna da Rotunda e manifestaram a Machado Santos o desejo de combater á outrance. Diziam elles: no acampamento encontram-se ainda sargentos de artilharia 1 que conhecem o manejo das peças, que são poderosos instrumentos de guerra; temos, portanto, o necessario para resistir com vantagem a um ataque serio do inimigo. Machado Santos concordou e, tendo entrado na Revolução com o proposito firme de lhe dedicar a pelle, decidiu queimar o ultimo cartucho na defeza da posição que o acaso lhe confiára.
D'ahi a pouco, algumas das peças de artilharia foram transportadas da Rotunda para o Parque Eduardo VII, em volta do acampamento levantaram-se uns modestos obstaculos a fingir de barricadas e os revoltosos dispozeram-se a morrer dentro d'esse fraco reducto com uma coragem e um desprendimento da vida dignos do maior elogio. Pode mesmo dizer-se que n'essa occasião poucos, muito poucos, dos elementos revolucionarios tinham a noção exacta do valor da posição onde combatiam e parallelamente do heroismo que a defeza d'essa posição representava.
Poucos, muito poucos, reflectiram que, se a artilharia de Queluz os atacasse a coberto de qualquer elevação de terreno, a Rotunda soffreria fatalmente uma razzia sangrenta, difficil de impedir.
Cêrca do meio dia, alguns populares, que, pelo seu armamento insignificante, diminuto auxilio podiam prestar aos defensores da Rotunda, desceram a Avenida, com o intuito de conquistar a adhesão das forças acampadas no Rocio. Machado Santos sabia perfeitamente que n'essas forças existiam elementos revolucionarios e pretendia attrahil-os ao seu acampamento. Os populares executaram a manobra ao abrigo das arvores das ruas lateraes, mas, uma vez chegados á praça dos Restauradores, as metralhadoras romperam fogo e obrigaram-nos a retroceder com perdas sensiveis. Desde então, nunca mais se fez reconhecimento tão arriscado das forças inimigas e todos os elementos de utilidade á causa revolucionaria julgaram mais prudente conservar-se dentro da Rotunda, aguardando um corps-á-corps que, se se produzisse, provocaria um desastre irreparavel.
Á 1 e 30 da tarde, um vigia empoleirado n'uma figueira do parque Eduardo VII surprehendeu dois officiaes que, de espada desembainhada, se escoavam proximo dos muros da Penitenciaria. O vigia desceu da arvore e communicou as suas suspeitas a um sargento de artilharia 1, commandante d'uma das peças. O sargento visou o local e dentro de poucos instantes a columna do commando do coronel Albuquerque, que comprehendia lanceiros 2, cavallaria 4, a bateria de Queluz e infantaria 2, soffria o primeiro revez.
Paiva Couceiro, que veraneava ao tempo em Cascaes, tinha apparecido em Sete Rios, onde estacionava a columna de ataque, pouco antes do meio dia. O coronel Albuquerque, logo que elle se lhe apresentou, explicou-lhe que o quartel general o incumbira de investir contra a Rotunda e o quartel de artilharia 1. Paiva Couceiro extranhou que, dispondo ainda o quartel general de cinco regimentos de infantaria, de toda a guarda municipal, da engenharia e da guarda fiscal, destinasse para o ataque aos revoltosos apenas uma fracção minima dos effectivos e constituida na sua maior parte com a cavallaria, isto é, com a tropa menos apropriada ao assalto de muros ou barricadas. Mas não expressou alto e bom som o seu reparo e limitou-se a dizer ao coronel Albuquerque:
—Bem, n'esse caso, temos de escolher primeiro a posição da artilharia.
Lembrou-lhe a Penitenciaria, mas, logo a seguir, outro official informou que d'uma propriedade á esquerda, entre a Penitenciaria e o chalet do sr. Henrique de Mendonça, se podia fazer fogo, com exito, sobre a Rotunda. Paiva Couceiro, acompanhado por um official de cavallaria, reconheceu a posição indicada e, achando-a excellente, para lá conduziu a bateria, apoiada n'uma columna de infantaria 2. Mas quando ia precisamente iniciar o ataque da artilharia contra o quartel de Entre-Muros, rebentaram sobre as tropas monarchicas tres granadas despedidas do Parque Eduardo VII, ficando logo feridos um capitão, um cabo e varios soldados. Cahiram mortas algumas muares, tresmalharam-se os cavallos e as parelhas dos armões que ainda não tinham descoberto abrigo e mais de metade da força de infantaria 2, com umas tantas praças da bateria, poz-se em fuga desordenada.
O duello de artilharia prolongou-se durante uns tres quartos de hora, findos os quaes, Paiva Couceiro, suppondo que os revoltosos haviam desamparado as peças collocadas nas immediações do quartel de Entre-Muros, mandou sahir uma força de infantaria que se estendeu em atiradores no terreiro livre do lado opposto. Não tardou, porém, que essa força experimentasse baixas sensiveis. Infantaria 2 já estava então reduzida a umas cincoenta praças, que Paiva Couceiro, cêrca das 3 da tarde, tentou novamente conduzir ao assalto de artilharia 1. Baldado empenho. O tiroteio dos revoltosos não abrandava e o commandante do grupo a cavallo, reconhecendo que com tão poucos soldados não lograva o seu objectivo, mandou pedir ao quartel general que lhe facultasse duas companhias de infantaria de linha e uma da municipal para produzir novo ataque á posição de Entre-muros. A resposta do quartel general, levada a Paiva Couceiro pelo capitão Martins de Lima e tenentes Wanzeller e Ramos, foi que a bateria cessasse immediatamente o fogo e descesse outra vez á estrada de Sete Rios. Paiva Couceiro obedeceu e mandou seguir as forças do seu commando pela azinhaga da Fonte, Luz, Campo Grande, Arroyos, rua Nova da Palma até o Rocio, onde chegou noite fechada. Depois, indo apresentar-se ao quartel general, Paiva Couceiro recebeu ordem de collocar duas peças na embocadura da rua Augusta e as outras duas na embocadura da rua do Ouro para obstar a um possivel ataque da marinha.
Ao cahir da tarde, resolveu-se que todos os insurrectos que se encontravam no quartel de Alcantara entrassem no Adamastor. Este barco de guerra, para o embarque se fazer mais rapidamente, atracou ao vapor Guiné, da Empreza Nacional, que estava encostado á muralha, utilisando-se tambem uma falua do Arsenal e o rebocador Cabinda. Apesar d'isso, a operação decorreu com alguma morosidade, pois a columna comprehendia cêrca de 1.500 homens e levava outra vez para bordo grande quantidade de munições e uma metralhadora. Emquanto se effectuava o embarque, a face da frente do quartel era defendida por umas tantas praças e civis sob o commando do commissario Costa Gomes; o lado sul era protegido pelas baterias de bordo.
Ás 5 horas, o S. Raphael largou pelo rio acima, ficando o Adamastor para defender qualquer invasão do quartel de Alcantara pelas forças contrarias, mas com ordem de seguir mais tarde para o Terreiro do Paço, depois de receber a bordo o resto dos combatentes que ainda se encontravam n'aquelle edificio. O S. Rafael navegou sem ser hostilisado e até com applauso dos barcos mercantes fundeados entre Alcantara e a Alfandega. Ao passar no quadro dos navios de guerra, viu que o D. Carlos e a fragata D. Fernando continuavam a ostentar a bandeira azul e branca. Os seus tripulantes deram vivas á Republica, esperando despertar assim a inacção dos tripulantes de aquelles dois navios, mas essas acclamações não encontraram echo. E descreve então o tenente Parreira:
«Sabendo-se que os correios e telegraphos estavam defendidos por forças da guarda municipal e que o Rocio e quartel general estavam occupados por um grande nucleo de forças de infantaria 5 e caçadores 5, pelo menos, e que seria necessario desfazer essa barreira para a nossa futura juncção ás forças da Rotunda, resolveu-se, embora já proximo da noite, desalojar primeiro as forças dos correios e telegraphos, o que se fez com os tiros de artilharia de pequeno calibre e metralhadoras, seguindo-se-lhe uns tiros sobre o Rocio pela rua do Ouro com pontarias baixas.
«Como já era noite, fundeámos em frente da Alfandega para continuarmos o
nosso intuito na manhã seguinte, ou n'essa noite, conforme as circumstancias
aconselhassem. Apenas fundeámos, foram a terra, no nosso escaler, um dos
chefes dos grupos civis acompanhado do commissario Marianno Martins, a fim de
colher informações seguras sobre o estado das forças contrarias, e enviar um
emissario ao acampamento da Rotunda, avisando da nossa posição e do
desembarque na madrugada seguinte. Tendo colhido algumas informações
favoraveis á ida do emissario para a Rotunda, voltaram para bordo n'um vapor
da alfandega, cuja guarnição se poz á nossa disposição, rebocador este que
foi d'um grande auxilio nas acções que se seguiram».
Pouco depois, o Adamastor, sahindo de Alcantara, ia fundear proximo do S. Rafael, isto é, em frente do Terreiro do Paço. N'esse vapor da Alfandega a que o tenente Parreira se refere, o commandante do Adamastor, tenente Cabeçadas, mandou para bordo do S. Rafael parte dos marinheiros e populares armados que o pejavam. Quasi a seguir, quinze tripulantes do D. Carlos, que tinham conseguido fugir d'esse barco n'um escaler, apresentaram-se ao commandante do Adamastor e pediram-lhe armas para luctar contra os officiaes que ainda se encontravam a bordo. O tenente Cabeçadas armou-os convenientemente e embarcou os no vapor da Alfandega, acompanhados d'um sargento, d'outras praças e paisanos, e aconselhou-os a irem no S. Rafael, antes de tentarem o assalto do D. Carlos. Assim se fez. O tenente Carlos da Maia tomou o commando superior de toda a força e, utilisando-se de novo o vapor da Alfandega, decidiu-se a entrada violenta no cruzador ainda não adherente. Como a guarnição do vapor mostrasse n'essa altura receio de collaborar no assalto, o tenente Maia substituiu-a por praças de marinha e, cêrca das 7 e 30 da noite, o barco largou do S. Rafael em direcção ao D. Carlos. Os projectores dos dois cruzadores revoltados evolucionavam, no emtanto, de modo a favorecer a arriscada tentativa.
«A atracação—diz o documento official que descreve o assalto—fez-se a primeira vez mal, e, repetindo-a, logo se avaliou da attitude como os officiaes receberiam os invasores, porquanto, tendo-se respondido que era um official que ia atracar, logo o commandante intimou a afastar-se sob pena de se desfechar, o que bem se notou ser seu proposito por virem muitos officiaes á borda do cruzador. É claro que se insistiu na abordagem, subindo tumultuariamente as escadas do portaló, e sendo logo recebidos a tiro, o que foi causa de tiroteio ainda de bordo do rebocador; e, uma vez a bordo, continuou este, de parte a parte, terminando rapidamente pela rendição dos officiaes e verificando-se em seguida que da guarnição do D. Carlos haviam ficado 4 officiaes feridos, e dos atacantes apenas 2, sendo um civil e uma praça de marinhagem. Immediatamente se mandaram desembarcar todos os officiaes, á excepção do tenente Silva Araujo, com quem havia entendimento para a revolução. Mandou-se tocar a postos de combate, preparando-se o navio para a vigilancia da noite, tanto mais necessaria quanto era a bordo do D. Carlos conhecida a ordem do ataque dos torpedeiros, e sahida do Berrio para o canal do Barreiro.
Uma vez tomado o D. Carlos, de bordo do Adamastor seguiram para ali mais praças e populares armados e os tres barcos de guerra insurrecionados não cessaram durante a noite de prescrutar as immediações com os seus projectores, sempre com o receio d'um ataque dos torpedeiros. (Falhara a arrojada tentativa do tenente Stockler para revolucionar os officiaes e praças destacadas em Valle do Zebro.)
Pouco falta para concluirmos estas narrativas. Após o ataque da artilharia de Queluz, as forças revolucionarias installadas na Rotunda ainda despejaram umas granadas sobre o Rocio, não tanto com o proposito de investir a valer com as tropas de infantaria que desde a madrugada de 4 ali haviam acampado, mas principalmente para as provocar, para as obrigar a definir attitudes n'um momento, como esse, de anciosa espectativa. Os commentarios da opinião teem incidido frequentemente sobre o procedimento d'essas forças. Sabia-se que entre ellas se encontravam officiaes dedicados á ideia republicana, como o tenente Valdez e o alferes Gomes da Silva. E esperava-se a cada instante que qualquer d'elles se decidisse a um acto corajoso de auxilio ou de estimulo ás forças da Rotunda.
Na manhã de 4, ainda o capitão Sá Cardoso tentou realisar a approximação dos dois nucleos militares escrevendo um bilhete ao tenente Valdez e dizendo-lhe que esperava infantaria 5 pelo lado oriental da Avenida. Mas aquelle official respondeu que para acceder ao pedido necessitava passar com o diminuto numero de homens do seu commando pela frente das metralhadoras de caçadores 5, d'um esquadrão da municipal e d'uma outra companhia do seu regimento e desistiu de effectuar essa marcha arriscada, aguardando que se produzisse um ataque dos revoltosos para então fazer com elles causa commum.
Durante o dia 4, tanto infantaria 5 como caçadores 5 evolucionaram dentro da area da defeza do quartel general. Ao começo da noite, caçadores estava assim distribuido: na rua Augusta, guarnecendo o primeiro quarteirão, um pelotão do commando do alferes Gomes da Silva, pertencente á companhia do capitão Aguiar; na rua do Arco do Bandeira, a companhia do capitão Penha Coutinho, hoje em serviço na policia civica; na rua do Ouro e na rua do Carmo, a companhia do capitão May; na rua da Betesga, a do capitão Reis com a guarda fiscal; na praça dos Restauradores, o alferes Empis com duas metralhadoras. Era o momento em que os grupos de populares, já reconstituidos convenientemente—passados os primeiros instantes de desanimo—tratavam de incommodar as forças monarchicas ou que suppunham como taes, atirando-lhes bombas, disparando tiros de pistola, etc. E conta a proposito o tenente Valdez:
«No principio da noite fomos atacados por bombas de dois lados. Estabeleceu-se uma enorme confusão. Em vista da desmoralisação que reinava entre os soldados, muitos fugiram. Alguns, obedecendo ao plano, metteram-se nas arcadas. Muitos, por panico, fizeram um tal tiroteio e tão disparatado que eu e os mais officiaes escapámos não sei como. Uma bala sibilou-me aos ouvidos e roçou-me pela face. O largo limpou-se e eu reconheci com alegria que facilmente qualquer força entraria no Rocio. Como julgassem as forças extenuadas, ordenaram que alternassemos com a guarda fiscal que então pairava na estação do Rocio. Foi assim que fomos descançar para as trazeiras da mesma estação. Ali encontrámos um empregado a quem contámos as nossas torturas e desejos e como lhe manifestassemos as nossas intenções de fugir para a Rotunda pelo tunel, d'isso nos dissuadiu por motivo da chegada de um comboio que vinha de Queluz, avisando-nos tambem de que ali estavamos mal, por ser possivel virem n'esse comboio revolucionarios que podiam atirar-nos bombas do pavimento superior. Lembrou-nos fugir pelas escadinhas do Duque, mas, interrogado por nós sobre a existencia de quaesquer forças no trajecto, respondeu-nos nada saber. Tambem logo a seguir passava um esquadrão para esses lados.
«Posta de parte essa ideia, resolvemos esperar os acontecimentos, convencidos de que era inevitavel uma colisão entre as nossas forças e as dos revoltosos. Como fosse manifesta a desmoralisação das nossas forças, eramos rendidos das dez para as onze da noite por um outro batalhão do regimento, e eu fui com a minha companhia occupar a travessa de S. Domingos, reparando que alguns soldados tinham desapparecido, tendo aproveitado naturalmente as varias confusões que se deram. Fingi não dar por isso. Na nova posição soube que a artilharia de Queluz tinha collocado uma peça na rua do Ouro, outra na rua Augusta e que estava dispondo outra no local que deixaramos. As informações que recebiamos sobre a marcha dos acontecimentos eram deficientes. Nada de seguro nos diziam. Falava-se que o rei fugira para Mafra. Affirmava-se que os revoltosos tinham sido batidos. Realmente, n'essa altura, o tiroteio da Rotunda parecia diminuido e o facto do ataque da marinha ainda se não ter dado preoccupava-me immenso.
«Nas nossas forças não havia ainda mortos e os feridos eram poucos. O moral das tropas, especialmente das companhias que tinham estado na Avenida, era mercê dos trabalhos feitos, o mais favoravel a qualquer ataque. Na minha nova posição tornava-se facil a communicação com os officiaes, o que até então me era impossivel, visto achar-me distante d'elles. Esperançado, como sempre estive, da realisação do meu ideal, principiei a palpál-os e durante toda a noite, emquanto o canhão ecoava com estrondo no largo de Camões, não os larguei, reparando que quasi todos desejavam ver terminada uma situação de incerteza, não encontrando em nenhum d'aquelles a quem falei essa tão decantada fé monarchica. O primeiro official a quem falei foi ao tenente Americo Cruz, o qual, depois das considerações que lhe fiz sobre a enormidade dos acontecimentos, fuga do rei, tibieza dos chefes e sobretudo do sacrificio que ali estavamos cumprindo por um que, a essas horas, estava são e salvo, me respondeu com igual criterio, accrescentando que tinha já achado o commandante abalado.»
Na Rotunda, Machado Santos passava verdadeiras torturas, porque via diminuir-se-lhe a provisão de munições e não sentia que de fóra o auxiliassem como elle realmente necessitava. Quem entrasse ás dez horas da noite no acampamento perceberia claramente que se tinha attingido a culminancia critica do movimento revolucionario. Havia lá dentro mais gente do que na madrugada de 4. Havia mais disciplina, mais silencio commovedor, mais solemnidade, em summa. De vez em quando a grave quietude do ambiente era interrompida por uma descarga de fusilaria, a explosão d'uma granada ou o crepitar enervante das metralhadoras.
Machado Santos tinha entregue ao tenente Pires Pereira o commando da bateria e das linhas de fogo do lado da Avenida e ficara a vigiar as posições do norte e leste. De repente um dos predios novos d'aquella arteria incendiou-se casualmente e o clarão da enorme fogueira illuminou por algum tempo o acampamento revolucionario, até então immerso na obscuridade.
E que fazia, entretanto, o governo monarchico? O ministro da guerra installara-se no Quartel General da 1.ª divisão e d'ahi seguia absorto todas as phases da contenda. O presidente do conselho, depois de ter conferenciado com o general Gorjão e o seu collega da guerra, fôra para casa e antes de entrar no edificio soffrera o ataque de um grupo revolucionario que o deixou mal ferido. Dos outros ministros podemos dizer que vagabundearam por diversas casas amigas até o momento solemne da proclamação da Republica.
Proximo da meia noite, o tiroteio entre os dois nucleos de forças militares, o do Rocio e o da Rotunda, augmentou de intensidade. A artilharia monarchica tentou fazer calar a do Alto da Avenida, mas sem resultado. Adivinhava-se n'essa occasião que a victoria não tardaria a pertencer aos revoltosos. De todos os lados surgiam novos elementos de combate. Os organisadores do movimento, que na primeira hora de desanimo tinham dispersado, principiavam a acercar-se do principal fóco da contenda, procurando assim conservar-se mais em contacto com os seus adeptos. O Hotel Europa foi um dos pontos escolhidos para essa concentração dos vultos em destaque na acção revolucionaria. Para ali foram, ao começo da noite de 4, José Relvas, José Barbosa e outros que até então haviam tentado, na redacção da Lucta, reatar as ligações entre os revoltosos—interrompidas pela debacle do balneario de S. Paulo.
«A rua do Carmo, contou-nos mais tarde José Barbosa, era, n'essa noite, um ponto visado pelas tropas fieis ao antigo regimen. Um grupo de doze populares devidamente equipados protegeu-me e a José Relvas mais do que uma vez, sempre que tentámos vir á rua orientarmo-nos sobre a marcha da Revolução. E essa protecção foi tanto mais efficaz quanto é certo que d'uma das vezes as balas silvaram sobre as nossas cabeças. Depois da meia noite, installámo-nos no ponto mais alto do hotel. D'ahi viamos distinctamente as operações dos navios de guerra e apercebiamos todas as phases do tiroteio renhido entre as forças do Alto da Avenida e as do Rocio. Houve um momento em que a batalha assumiu taes proporções, que hesitámos sobre de que lado ia surgir a victoria. A escuridão deixava-nos desnorteados. Chegou Celestino Steffanina e fomos os dois para o meu quarto. Era preciso descançar; mas era impossivel! Da rua do Ouro vinham até nós, de mistura, com o fuzilar da infantaria, gritos de desespero, de agonia, d'uma tortura infinita. A situação, ahi pela 1 e 30 da madrugada, não podia ser mais angustiosa. Celestino Steffanina sahiu do Hotel Europa a colher informações.
«Entretanto, no Rocio, o elemento popular não cessava de atacar as forças ali estacionadas. Cabe referir que entre os meios de que a Revolução dispunha para triumphar, se salientava notavelmente a chamada artilharia civil, isto é, as bombas explosivas. Utilisadas como verdadeiras granadas de mão, posso affirmar, porque é a expressão da verdade, que os revolucionarios não praticaram com ellas nenhum acto inutil, não damnificaram qualquer propriedade, não as empregaram para satisfazer rancores individuaes ou represalias censuraveis. As bombas explosivas serviam para atacar as forças fieis ao antigo regimen e todas as que foram lançadas com exito visaram, naturalmente, a que essas forças não incommodassem sériamente os soldados da Republica.»
Ás 2 da madrugada, Paiva Couceiro foi chamado ao quartel general e o chefe do estado maior ordenou-lhe que antes do romper da manhã collocasse algumas das suas peças em posição conveniente para incommodar as forças installadas na Rotunda, propondo para esse effeito o pateo do Thorel. Antes, a força disponivel de cavallaria 4 e um esquadrão da guarda municipal fizeram um reconhecimento de accesso pelas calçadas do Garcia e de San'Anna. Ás 3 horas, Paiva Couceiro, a pedido de dois officiaes da infantaria que guarnecia o norte do Rocio, collocou duas peças na entrada da Avenida, junto das metralhadoras que ali estavam e com as restantes seguiu para o pateo do Thorel, installando-se no jardim do palacete do sr. Manuel de Castro Guimarães.
Emquanto isto se fazia, Pinto de Lima, Innocencio Camacho e Simões Raposo iam a bordo do S. Rafael communicar ao tenente Parreira que Machado Santos instava pelo immediato desembarque dos marinheiros. O tenente Parreira, n'essa occasião, já havia ordenado o desembarque d'um grande nucleo de civis, que sob o commando do capitão Nascimento, da administração militar, devia impôr a rendição ás praças monarchicas que guarneciam o Museu de Artilharia. O S. Rafael suspendera para proteger esse desembarque e tencionava collocar-se em frente do Terreiro do Paço, bombardear o Rocio, enfiando os tiros pela rua do Ouro e rua Augusta e depois effectuar o desembarque d'uma forte companhia de guerra, constituida pelo maximo das forças disponiveis dos trez cruzadores revoltados, sob as ordens dos tenentes Parreira, Sousa Dias, Maia e do medico Vasconcellos e Sá, que se offerecera para commandar um pelotão.
A chegada a bordo de Pinto de Lima, Innocencio Camacho e Simões Raposo fez apressar os preparativos para o desembarque. O tenente Parreira mandou prevenir os grupos populares que estacionavam no Rocio, ruas Augusta e do Ouro, de que ia começar o bombardeamento, e o mesmo emissario, Pinto de Lima, recebeu a incumbencia de communicar na Rotunda a proxima juncção das forças revolucionarias. Pinto de Lima desempenhou-se da primeira parte do encargo, isto é, da prevenção do bombardeamento e ao passar no largo de S. Domingos, em direcção á Rotunda, teve ensejo de falar a um major que commandava, a pequena distancia do quartel general, um troço de tropas monarchicas e disse-lhe o que se ia em breve passar.
—O que? retorquiu afflicto o major... A marinha vae bombardear-nos? Diga isso ali ao coronel.
Pinto de Lima assim fez e o coronel mostrou não menos surpreza que o outro official:
—Mas eu já adheri!... Para bordo já foi um official de caçadores!...
E logo a seguir, como quem toma uma resolução energica:
—É preciso mandar outro official ao S. Raphael... O senhor acompanha-o n'essa missão?...
Pinto de Lima acceitou gostosamente o novo encargo e lá foi rua Augusta abaixo acompanhado do emissario do coronel, doido de contentamento, dando vivas á Republica. Era o momento em que já vinham de bordo o alferes Gomes da Silva e o commissario naval Marianno Martins. O que determinara a démarche d'esse official revolucionario junto do tenente Parreira? Descreve-o elle proprio do seguinte modo:
«Cêrca das 6 e 30 da manhã de 5, o tenente coronel Peixoto reuniu os officiaes para lhes participar que infantaria 5 se negava a fazer fogo e que em presença d'esta deliberação desejava ouvir os seus officiaes. Fez-se na corporação um silencio que foi roto quasi simultaneamente pelo capitão Penha Coutinho e por mim, que dissemos que era tambem a opinião dos nossos soldados. Ao ouvir as nossas palavras, respondeu o tenente-coronel Peixoto que n'este caso era melhor retirarmos.
«Ditas estas palavras enfiei pela rua Augusta e ao chegar ao Terreiro do Paço fui immediatamente cercado pelo povo, a quem communiquei o que se passava e dirigi-me a bordo do S. Raphael, aonde participei aos tenentes Parreira e Souza Dias que infantaria 5 e caçadores 5 se tinham negado a fazer fogo, e portanto achava asado e propicio o momento para desembarcar os marinheiros e tomarmos o quartel general. Não sem reparos pela estranheza que esta communicação lhes causava, apesar de ser conhecido de um d'elles como official implicado no movimento, exigiram-me a palavra de honra que as tropas do Rocio não fariam fogo sobre elles, mas era-me absolutamente impossivel acceitar tão grande responsabilidade, porque a resolução de ir a bordo havia sido tomada por mim por entender propicio o momento de obter a submissão do quartel general.
«Respondi-lhes, entretanto, que viesse um d'elles comigo ao quartel general, onde poriamos tudo a limpo. Foi acceite este meu alvitre e parti, acompanhado pelo commissario naval Marianno Martins, para o quartel general, onde vimos ainda arvorada a bandeira branca, tendo já retirado caçadores 5, restando apenas infantaria 5, que, comtudo, já estava cercada pelo povo, a quem o tenente Valdez havia dado entrada pela rua de S. Domingos...»
Approximava-se o momento da rendição. Não tardaria que a bandeira branca do quartel general fosse substituida pela da Revolução triumphante.
Pouco antes das 7 da manhã, o encarregado dos negocios da Allemanha procurou o general Gorjão e pediu-lhe o armisticio de uma hora. O general concedeu-lh'o e escreveu este papel, cujo original, pertencente ao denodado republicano sr. Rodrigues Simões, figurou no Museu Revolucionario:
Lisboa, 5 de outubro de 1910.
a) Manuel Rafael Gorjão.
Assim que o diplomata allemão sahiu do quartel general em direcção á Rotunda, escoltado por uma ordenança de cavallaria que desfraldava uma bandeira branca, o povo, que se amontoava nas immediações, julgando que se tratava da rendição das forças monarchicas, prorompeu em applausos enthusiasticos. Era no momento em que o alferes Gomes da Silva e o commissario naval Marianno Martins se faziam annunciar ao general Gorjão. Este recebeu-os e Marianno Martins explicou-lhe:
—O official que me acompanha foi a bordo do S. Rafael participar que infantaria 5 e caçadores 5 se negam a fazer fogo sobre os marinheiros. Desejo, portanto, saber em que condições v. ex.ª acceita a paz para eu as transmittir ao meu commandante.
O general Gorjão encolerisou-se e, voltando-se para o alferes Gomes da Silva, perguntou-lhe:
—Quem foi que lhe deu auctorisação para ir a bordo dizer tal coisa?
—Ninguem, explicou o official interpellado; fui a bordo, por minha livre vontade, transmittir a resolução dos soldados de infantaria 5 e caçadores 5.
O general tornou a vociferar furioso, exclamando que o alferes Gomes da Silva fizera uma salsada, uma burla, que o havia desgraçado, pois concedera apenas um armisticio para dar tempo a que os subditos allemães embarcassem, e concluiu d'este modo:
—Não me rendo!... Ainda disponho de muitos soldados!...
O alferes interveiu logo:
—V. ex.ª tem essa impressão... mas eu affianço-lhe que já não tem soldados!...
O general fitou-o demoradamente e depois, attentando no numero do bonet de Gomes da Silva, insistiu:
—Demais, caçadores 5 tem sido fiel, continuará a ser fiel e com soldados assim não me rendo!...
Nova replica do alferes, affirmando-lhe sob sua palavra de honra que n'aquelle batalhão o general não dispunha d'uma unica praça. Para terminar a discussão, Marianno Martins interveiu marcando o praso d'uma hora para a rendição do quartel general. Findo elle, o S. Rafael varreria as ruas Augusta e do Ouro com as suas peças.
—Façam o que entenderem, retorquiu o general, não me rendo... Ainda tenho muita gente.
Cá fóra, o povo, enthusiasmado, continuava a dar vivas delirantes á Republica e ao exercito, confraternisando com os soldados, que disparavam as armas para o ar, evidenciando uma alegria doida. Cessara o tiroteio entre os combatentes. O general, observando isto, reuniu o conselho de officiaes, chamando para essa reunião todos os commandantes de unidades, e falou-lhes n'estes termos:
—Tendo de tomar resoluções, convoquei os senhores. As circumstancias são as seguintes: ordenou hontem este Quartel General ás forças que guarneciam as Necessidades que se approximassem d'este local, e que, ou por S. Roque ou por onde entendessem conveniente, tentassem obstar á descida da artilharia revoltosa para S. Pedro de Alcantara, d'onde constava que ella procuraria bombardear o Rocio. Apezar de repetidas vezes transmittida, esta ordem não foi cumprida até agora. As baterias de artilharia 3 encontraram cortada a ponte de Sacavem e não podemos por conseguinte contar com ellas.
«O sr. general Sequeira informa-me que as munições de artilharia armazenadas em Beirolas não podem d'ahi obter-se, porque o impedem barricadas com fortes guarnições de paisanos armados. Não temos por isso possibilidade de remuniciar a bateria a cavallo de Queluz, á qual apenas resta um pequeno numero de tiros. Os srs. commandantes das forças de infantaria do Rocio fizeram-me constar a fadiga das suas praças; e mais tarde, sabendo-se que os marinheiros, senhores do Arsenal, procediam ao desembarque para investir o Rocio, os mesmos srs. commandantes informaram-me das más disposições dos seus soldados para fazerem fogo contra os ditos marinheiros.
«Finalmente, ha cêrca de meia hora, apresentou-se me um representante da Allemanha pedindo auctorisação para tratar com os revoltosos no sentido de obter um armisticio, afim de que os seus nacionaes pudessem sahir a salvo. Entendendo que não devia recusar, forneci para o effeito um parlamentario com bandeira branca. Mas mal a bandeira branca sahiu o portão d'este edificio, isso foi como que um signal de destroçar, sahindo todas as praças das fileiras e misturando-se com os magotes de povo que, a agitar bandeiras brancas, surgia pelas embocaduras das diversas ruas. N'estas circumstancias...»
N'esta altura, Paiva Couceiro, que tambem assistia ao conselho, levantou-se e interrompeu o general:
—N'estas circumstancias, disse elle, vista a exposição de V. Ex.ª, e visto o espectaculo da quebra dos laços de disciplina que por esta janella se avista concluo que V. Ex.ª já não tem soldados. Eu não o abandono; mas V. Ex.ª é que já não precisa de mim. Sigo, pois, o meu destino.
—Mas, observou o general Gorjão, ha de haver uma acta a assignar!...
—Acta?! exclamou Paiva Couceiro. Acta?! Isso é com V. Ex.ª. Comigo, não. Combati hontem. Combati hoje. Estou prompto a combater ainda. Com actas não tenho nada. E, com licença de V. Ex.ª, sigo, repito, o meu destino para o Norte.
E Paiva Couceiro, cumprimentando, sahiu da sala. Cá em baixo, esperava-o o tenente Rocha com a sua peça.
—Vamos para Queluz, disse-lhe Paiva Couceiro. E, com effeito, chamadas as outras peças dos postos que occupavam, a bateria pôz-se a caminho.
Ás 8 e 30 da manhã, Machado Santos, avisado da concessão do armisticio, recebia no acampamento da Rotunda o encarregado dos negocios da Allemanha. Ás primeiras palavras trocadas, Machado Santos recusou o pedido de treguas, allegando que a força estava do seu lado e que ao general da 1.ª divisão é que pertencia render-se. O diplomata replicou dizendo que nada tinha com as razões d'uma ou d'outra parte e insistindo pelo armisticio ameaçou fazer intervir o governo do seu paiz no caso de lh'o não concederem. Machado Santos limitou-se então a sorrir para o engenheiro Antonio Maria da Silva que tambem se encontrava n'essa occasião na Rotunda e disse-lhe:
—Ó Silva, faze de ministro dos estrangeiros da Avenida... Tomo absoluta responsabilidade.
O diplomata allemão pedia uma hora para poder embarcar os seus compatriotas. Foi-lhe concedida (das 8 e 45 ás 9 e 45 da manhã) mas com a condição de não poderem as tropas inimigas retomar posições de que tivessem sido desalojadas e não impedirem a adhesão das que quizessem entrar no acampamento da Rotunda. Dada a resposta ao encarregado de negocios, o engenheiro Silva convidou a ordenança de cavallaria que o acompanhava a ficar com os revolucionarios e substituiu-a por uma escolta da sua confiança.
A derrota da monarchia era um facto indestructivel. No Rocio e nos outros pontos, onde momentos antes se combatia ardorosamente, chorava-se de alegria. O espectaculo era de enternecer. O povo, longe de procurar n'esse instante de predominio absoluto desforçar-se no inimigo, perdoava-lhe generosamente as longas horas de angustia e de hostilidade e confundia n'um abraço de sincero enthusiasmo vencedores e vencidos. Poder-se-ha talvez suppôr que a circumstancia de apparecerem n'esse momento entre as forças que acabavam de render-se á Republica officiaes que se tinham compromettido a preparar-lhe o advento é indicação ou de defecção ou de traição. Não é tal: surprehendidos, horas antes de se iniciar o movimento, com umas medidas de prevenção com que não contavam, esses officiaes sahiram dos quarteis, acompanhando, é certo, os seus camaradas monarchicos, mas dispostos a evitar que as tropas do seu commando chacinassem os revolucionarios.
E foi o que succedeu. Durante a noite de 4 para 5, alguns d'elles, como o tenente Valdez, Gomes da Silva e Carvalhal Correia Henriques, apesar de expostos no Rocio a um ataque vivissimo dos populares, conservaram sempre uma attitude de disciplinada obediencia á Republica e impediram por todos os meios ao seu alcance que infantaria e caçadores massacrassem os elementos revolucionarios da classe civil. O general Encarnação Ribeiro, n'essa noite de tragedia, tomando contacto com diversos d'esses officiaes que elle conhecia das reuniões dos conspiradores, assegurara-se plenamente d'essa attitude. O mesmo fizera Pinto de Lima em especial junto dos elementos de infantaria 5, considerados, como antes da revolução, republicanos. A organisação revolucionaria não teve deserções. Os officiaes que não sahiram desde logo a combater contra o regimen mantiveram até final da lucta uma attitude que favorecia inteiramente a victoria da boa causa.
Dos outros, dos monarchicos, é egualmente justo consignar que á hora de abaterem bandeiras ante a Republica triumphante não foram avaros em reconhecer a magnanimidade do povo que com tanta rudeza haviam hostilisado. Um d'elles confessou lealmente, minutos depois da rendição:
—Não sou republicano, mas agradeço a forma como os senhores me trataram, permittindo-me que após a derrota eu regresse intacto para junto dos meus. São muito generosos para com os vencidos! Obrigado!...
Uma revoada de enthusiastico applauso apagou as ultimas syllabas d'esta declaração espontanea e honrada.
Machado Santos, entretanto, avistando do acampamento da Rotunda uma grande multidão que subia a Avenida, calculou que era tempo de avançar sobre o quartel general, deixando o entricheiramento sufficientemente guarnecido. Á frente d'um batalhão de populares armados desceu até ao Rocio e entrou no quartel general. Já lá estava José Barbosa que, em nome do Directorio, apoiou a entrega do commando da divisão ao general Carvalhal, antigo republicano, que Candido dos Reis indicara muitas vezes como o successor logico do sr. Raphael Gorjão. O resto que se seguiu é por demais conhecido para que nos detenhamos a narral-o.
Arvorou-se a bandeira republicana no quartel do Carmo; João Borges, Estevão Pimentel e Manoel Bravo occuparam o telegrapho; duzentos civis desembarcados dos navios de guerra tomaram o Museu d'Artilharia (que fôra defendido por forças de engenharia e guarda-fiscal) e o Arsenal de Exercito e marcharam depois para a Rotunda a juntar-se aos heroicos revolucionarios ali installados; e cêrca das 9 horas da manhã, da varanda da Camara Municipal soltavam-se aos quatro cantos do paiz a proclamação solemne da Republica e a constituição do governo provisorio.
No governo civil, de que Celestino Steffanina e José Barbosa se apossaram quasi sem esforço, não tardava a concentrar-se um nucleo de forças republicanas para occorrer aos casos mais urgentes. O edificio tinha até outro aspecto. Perdera n'esse momento o ar inquisitorial que caracterisava a antiga Parreirinha. Tanto assim que um combatente da Revolução, um sexagenario vigoroso, ao entrar d'ahi a horas no gabinete do dr. Eusebio Leão, não se conteve e exclamou fremente de enthusiasmo:
—Agora, sim... já se respira á vontade!
As sombras negras dos policias, essas sombras que durante annos os governos monarchicos tinham utilisado não para garantir a segurança do cidadão, para auxiliar, para o coadjuvar, mas para o amachucar, para o ferir nos dias de protesto ou de desespero, essas sombras execradas pelo povo haviam desapparecido, haviam-se sumido como por encanto, ao estridor do triumpho, ao soar o primeiro grito festivo consagrando a conquista da Liberdade. Voltaram mais tarde, é certo; mas voltaram com o accrescimo d'esses ornamentos vermelhos, que nos evocam a cada momento esses longos minutos de lucta, strenua e heroica em que o sangue de uma centena de sacrificados escreveu pelas ruas de Lisboa a pagina mais brilhante da historia democratica.
Ao findar estas narrativas cabe-nos o dever de registar que do lado dos elementos monarchicos houve a espaços, durante o periodo revolucionario, o fulgurar de actos nobres, dignos, reveladores de verdadeira energia. Não foram em quantidade sufficiente para que a balança pendesse decisivamente em favor do antigo regimen. Mas bastaram para accentuar que o sr. D. Manuel de Bragança, entre a enorme côrte que o servia e que quasi por completo o abandonou no momento da derrota, ainda contava uma boa meia duzia de dedicações sinceras. Um d'esses monarchicos liquidou, no cano de um revolver, a carreira que abraçara e a existencia que lhe sorria feliz; foi o tenente de marinha Frederico Pinheiro Chagas.
Ao lado, porém, d'esses homens que até á ultima deram provas de não ser injustificada a confiança que o antigo regimen n'elles depositava, surgem em destaque lamentável outras figuras, que, por medo, por pusillanimidade, ou se retractaram no periodo da Revolução ou se apressaram a bajular a Republica, logo que a Republica triumphou. D'um monarchico sabemos nós que, occupando na monarchia um cargo proeminente, cargo que lhe concitára as antipathias da população democratica, mal defrontou na manhã de 5 de outubro um dos vultos preponderantes do partido republicano, se apressou a affirmar que fôra sempre um apologista da Ideia e que os incidentes desgraçados em que o antigo regimen, para se defender, envolvera o seu nome, não tinham occorrido sem o seu vehemente protesto.
Outro, um magistrado retintamente monarchico, servidor incondicional do governo do sr. Teixeira de Sousa, perseguidor feroz dos republicanos, que, porventura, cahiam na sua alçada, encontrámol-o dias depois de proclamada a Republica na sala de visitas d'um venerando causidico democrata, o dr. Manuel de Arriaga, asseverando-lhe que nunca defendera outros principios que não fossem os do partido do povo. E accrescentava, n'uma voz meliflua, implorador:
—Você sabe... accusam-me de ter procurado, no exercicio da minha missão, aggravar intransigentemente a pleiade de homens honrados em que você enfileira... É falso! Não sou monarchico e desgostar-me-hia bastante o soffrer agora as consequencias d'uma accusação infundada.
O seu interlocutor sorriu ao ouvir estas palavras de subserviencia e n'esse sorriso lia-se claramente a bondade de um coração diamantino que se apiedava do terror cobarde do magistrado em questão...
E outros ainda, que ao perceberem que após trinta e seis horas de lucta o antigo regimen se afundara definitivamente, compozeram uma attitude de artificioso contentamento, exclamando ao mesmo passo:
—Até que emfim!... Ha quantos annos suspirava por este dia!...
Os mais apressados no reconhecimento da nova fórma de governo, esses, então, como o momento era azado para distinguir ao primeiro golpe de vista os adherentes dos não adherentes, não duvidaram pregar na lapella do casaco uns laçarotes vermelhos, para que a rajada revolucionaria—caso ella se manifestasse—os não subvertesse, os não liquidasse.
Nas horas do combate encolheram-se a tiritar, calculando que a Revolução os arrastaria pelos cabellos a uma chacina purificadora ou os penduraria n'um candieiro. E, afinal, a Revolução não fez nada d'isso. A Revolução, assim como teve um curto periodo de tiroteio sangrento, tambem se caracterisou por diminutos instantes de delirio enthusiastico, mas delirio inoffensivo, expansão de alegria desinteressada e generosa. Ninguem assassinou, ninguem saqueou. A propria artilharia civil, dispondo d'uma poderosa força destruidora, não commetteu excessos, não praticou represalias. Applicou-se exclusivamente a atacar as forças do antigo regimen, lançando as suas granadas de mão sobre os cavalleiros monarchicos, dispersando-os, derrotando-os mais pelo panico produzido pelo ruido da explosão do que pelos effeitos contundentes da metralha.
Um episodio succedido na tarde do dia 4 de outubro dá bem a medida do espirito de honestidade com que os revolucionarios sahiram então á rua a combater contra a monarchia:
N'uma das avenidas de Lisboa modernamente rasgadas, á hora em que a artilharia da Rotunda despejava sobre a de Queluz os seus tiros certeiros... Um leiteiro que enfiava transido de medo para o portal de uma casa rica é abordado por um popular armado que o intima a vender-lhe uma porção de leite. O aspecto do revolucionario é de metter pavor: na face ennegrecida lampeja uma decisão inquebrantavel; n'uma das mãos agita uma pistola de grandes dimensões. O leiteiro estaca a tremer, disposto já a abandonar toda a mercadoria, comtanto que lhe poupem a vida. O revolucionario manda encher uma medida de lata, mas, quando se dispõe a beber por ella o liquido que o ha de reconfortar, o leiteiro observa-lhe que a policia não consente tal coisa, que isso é... contra a postura.
—A policia... Mas onde está ella? replica o revolucionario n'uma gargalhada escarninha.
E d'um trago sorve o liquido. O outro, morto por se safar, assim que lhe restituem a medida de lata, prepara-se para uma correria desenfreada. É de agradecer ao Deus creador o libertar-se do transe afflictivo apenas com o dispendio d'uns decilitros de leite... Mas o revolucionario não o consente. E, empunhando de novo a pistola com gesto ameaçador, obriga-o a acceitar em pagamento umas moedas de cobre. Comprehende-se: esse homem não fazia a Revolução para perpetuar os crimes da monarchia.
Quantos dos servidores do antigo regimen não procederam de modo diverso? Quantos não beberam o leite, não o pagaram e até metteram na cadeia os respectivos vendedores só pelo facto de lhes exigirem o pagamento? Quantos?...
DO TEXTO
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VOLUMES PUBLICADOS
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Pedidos a
1Em 1891, por occasião da revolta do Porto, não succedeu assim. «Para o paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens officiaes»—dissemol-o no 31 de Janeiro.—«Todos á porfia accorriam á regia morada». Quasi vinte annos depois, no instante do perigo, fugiam d'ella...