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Rita
Farinha (Jun. 2009)
BIBLIOTHECA ESCOLHIDA
XXIII
ROMANCE
III
A MORGADINHA DOS CANNAVIAES
Vol. I
CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL
LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28
TELEPHONE 2337
JULIO
DINIZ
A MORGADINHA
DOS
CANNAVIAES
(CHRONICA DA ALDEIA)
DECIMA-SETIMA EDIÇÃO
LISBOA
J. RODRIGUES & C.a, EDITORES
186―Rua Aurea―188
1920
OBRAS DE JULIO DINIZ
A Morgadinha dos Cannaviaes
Os Fidalgos da Casa Mourisca
As Pupillas do Senhor Reitor
Uma Familia Ingleza
Ineditos e Esparsos
Poesias
Serões da Provincia
Agenda Julio Diniz (registo de anniversarios e lembranças)
Todos os
direitos d'esta
publicação
estão reservados em conformidade com a lei
em Portugal e Brasil
J.
Rodrigues &
C.a
A MORGADINHA DOS CANNAVIAES
I
Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e
genuino dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e
sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam
dois viandantes a encosta de um monte por a estreita
e sinuosa vereda, que pretenciosamente gosava
das honras de estrada, á falta de competidora,
em que melhor coubessem.
Era nos extremos do Minho e onde esta risonha
e feracissima provincia começa já a resentir-se,
senão ainda nos valles e planuras, nos visos dos
outeiros pelo menos, da vizinhança de sua irmã, a
alpestre e severa Traz-os-Montes.
O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario,
melancolico, e, n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a
qualquer povoação importante, e com nome em
carta corographica, estendiam-se milhas de pouco
transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana
raro se encontravam. Só de longe em longe,
a choça do pegureiro ou a cabana do rachador,
mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam
do que a absoluta solidão.
Não se moviam em perfeita igualdade de
condições
os dois viandantes, que dissemos.
Um, o mais moço e pela apparencia o de mais
grada posição social, era transportado n'um pouco
[6]
esculptural, mas possante muar, de inquietas orelhas,
musculos de marmore e articulações fieis; o
outro seguia a pé, ao lado d'elle, competindo, nas
grandes passadas que devoravam o caminho, com
a quadrupedante alimaria, cujos brios, além d'isso,
excitava por estimulos menos brandos do que os
da simples e nobre emulação.
Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual
processo de transporte, dos dois o menos extenuado
e impaciente com as longuras e fadigas da
jornada não se pode dizer que fôsse o cavalleiro.
A postura de abatimento que lhe tomára o corpo,
o olhar melancolico, fito nas orelhas do macho, a
indifferença, a taciturnidade ou o manifesto mau
humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem
natural conseguiam já desvanecer, o obstinado
silencio que apenas de quando em quando interrompia
com uma phrase curta mas energica, com
uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada,
contrastavam com a viveza de gestos e desempenado
jôgo de membros do pedestre, com a
sua torrencial verbosidade, a que não oppunha diques,
e com as joviaes cantigas e minuciosas
informações
a respeito de tudo, por meio das quaes se
encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir
o seu sorumbatico companheiro.
Explica-se bem esta differença, dizendo que o
cavalleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que
fazia então a sua primeira jornada, e o outro um
almocreve de profissão.
O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma
vez; sabe portanto que o grato e quasi voluptuoso
alvoroço, com que se concebe e planisa
qualquer projecto de viagem, assim como a suave
recordação que d'ella guardamos depois,
são coisas
de incomparavelmente muito maiores delicias, do
que as impressões experimentadas no proprio momento
de nos vermos errantes em plena estrada
ou pernoitando nas estalagens, e mórmente nas
[7]
classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas
impertinencias, em que se não pensa antes,
que se esquecem depois, ou que a saudade consegue
até dourar e poetisar a seu modo; esses microscopicos
martyrios, que de longe não avultam,
actuam-nos, na occasião, a ponto de nos inhabilitar
para o gôso do que é realmente bello. A dureza do
colchão, em que se dorme, do albardão ou selim
sobre que se monta, o tempêro ou destempêro do
heteróclito cozinhado com que se enche o estomago,
a lama que nos encrusta até os cabellos, o pó
que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos
inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o
cerebro, tudo então nos desafina o espirito, que
traziamos na tensão necessaria para vibrar perante
as maravilhas da natureza ou da arte.
Só pelo preço de muitas jornadas se compra o
habito de ficar impassivel no meio dos episodios
d'estas pequenas odyssêas, que atormentam e exhaurem
o animo dos Ulysses novatos; mas ai,
quando se adquire esse habito, tambem nos achamos
já com a sensibilidade mais embotada para as
commoções do bello.
Examina-se com mais minuciosidade, mas com
menos enthusiasmo; analysa-se mais e melhor; porém
a propria analyse é a prova de que se sente
menos. Onde domina o sentimento e a imaginação,
mal teem cabida a paciencia e phleúgma, necessarias
aos processos analyticos. O homem positivo e
frio recolhe de qualquer excursão á patria com a
carteira cheia de apontamentos; o enthusiasta e
poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu
mais.
Mas Henrique de Souzellas―que era este o
nome do cavalleiro―fôra educado e passado da
infancia á plena juventude, em Lisboa, levantando-se
por avançada manhã, frequentando o theatro, o
Gremio,
as camaras, parolando no Chiado ou no Rocio,
e indo alguns dias no anno a Cintra, ou qualquer
[8]
praia de banhos, desenfadar-se da monotonia
da capital.
Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão,
fôra esta jornada, em que o encontramos, a
primeira levada a effeito, e logo sob tão maus auspicios,
que era para suffocar-lhe á nascença os
instinctos
de
touriste, se porventura quizessem
despertar
n'elle.
Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante,
unico vehiculo accommodado aos caminhos por
que passára. E então que dois dias! D'aquelles,
durante
os quaes o céo, uniformemente pardo, parece
desfazer-se em agua, e a chuva cae sem
interrupção
e com uma teimosia e constancia impacientadoras;
d'aquelles em que a terra saciada rejeita já a agua
que recebe, a qual escorre nos declives, transborda
dos algares, e encharca-se nos terrenos baixos,
transformando em brejos as lezirias; em que as lufadas
do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente
despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam
aos pinheiraes a voz dos mares; em que
os campos se mostram desertos, a noite se anticipa,
e tão densas nuvens cobrem o firmamento,
que parece tomar-nos a persuasão de que nunca
mais o veremos com as suas formosas vestes de
azul.
Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz
podia deixar de ir cabisbaixo, triste e dando ao
diabo a viagem que commettera.
E para quê e por quê a commettera elle assim?
Em poucas palavras procuraremos satisfazer a
natural interrogação, que é de
suppôr nos dirigissem
os leitores, se podessem fazel-o.
Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos
vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella
enlanguescedora vida da capital, e dividindo as
attenções
do espiri
Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos
vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella
enlanguescedora vida da capital, e dividindo as
attenções
do espirito pela politica, pela litteratura e pelos
destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava
[9]
habilitado a fazer circumstanciada chronica, que
abrangesse os ultimos dez annos.
Não concebia vida fóra d'aquillo.
O mundo para elle era Lisboa. Não sentia desejos,
nem imaginava possibilidade de visitar a Europa,
quanto mais a provincia; o que seria maior
façanha.
Não que lhe faltassem recursos para realisar
qualquer projecto d'esta natureza.
Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes,
dos quaes vivia folgadamente e sem precisar
de sacrificar nos altares da economia.
Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A
poucos ia tão direita a apostrophe de Garrett aos
seus «queridos alfacinhas», a qual se pode ler no
livro setimo das
Viagens.
De certo tempo em deante começou, porém, a
incommodal-o uma especie de vácuo interior, um
mal-estar, doença infallivel nos celibatarios sem familia,
quando chegam á idade a que chegou Henrique,
e passam a vida como elle.
Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos,
bocejava nas camaras, bocejava no Gremio, bocejava
no Suisso, no Chiado e nos circulos dos seus
amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o
insupportavel de insipidez; porque poucas coisas
ha que mais perturbem o espirito, do que o espectaculo
d'um homem que boceja ou dorme, onde e
quando os outros forcejam por divertir-se.
O demonio da hypocondria, esse demonio negro
e lugubre, implacavel verdugo dos ociosos e egoistas,
o qual havia muito o espiava, apoderou-se d'elle
em corpo e alma.
Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito
preoccupado com a sua pessoa, imaginando-se victima
de mil e uma molestias, as mais disparatadas
e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente
predestinado para a apoplexia e para a phtisica, para
o cancro e para a alienação, para a cegueira e
para
[10]
as aneurismas, tremendo á leitura do obituario da
semana, folheando livros de medicina, construindo
theorias physiologicas, consultando todos os medicos
da capital, experimentando todo o arsenal pharmaceutico
e todos os annuncios, em parangona, da
quarta pagina dos periodicos, e elevando as crenças
do seu espirito amedrontado até ás mysteriosas
e nevoentas alturas do credo homoepathico! Ao
mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva
degeneração de gôsto; não
podia ler uma pagina
dos livros que lhe eram predilectos; desfazia-se
sem desgôsto de quadros, móveis, estatuas e
objectos
curiosos que colleccionára com paixão; detestava
a musica, o theatro, n'uma palavra, tornára-se
um dos maiores flagellos, que podem pesar sobre
a humanidade e que muito em especial causam o
supplicio dos medicos que os aturam.
Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte
com o desculpavel intuito de sacudirem de si tal
pesadelo, lhe deram um dia de conselho, que fôsse
viajar.
Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia
n'esta palavra: viajar.
Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias
apopleticas? E as suas disposições para
tantas outras enfermidades? Pois um homem pode
lá viajar com esta bagagem pathologica?
E se lhe désse alguma coisa pelo caminho? Recusou
com mau humor a receita, e ficou na capital.
Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as
consultas, e os medicos, como se para isso apostados,
a insistirem em que saisse de Lisboa.
―O senhor não tem nada―diziam alguns.
Henrique perdia a cabeça, ao ouvir isto.
Prolongou-se este estado de coisas, até que um
dia o hypocondriaco rapaz persuadiu-se muito sériamente
de que estava chegada a sua hora extrema.
Um medico velho e grave, que por essa occasião
[11]
o escutou, em vez de se rir d'elle, disse-lhe, muito
sisudo:
―Homem! O senhor está realmente mal. Esse
estado de imaginação não pode
prolongar-se mais
tempo, sem romper por ahi em alguma doença que
o sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto
é tempo. Quebre por todos os habitos, e escolha
entre as fortes impressões de uma grande
capital, como Paris ou Londres, ou as mornas
sensações
de um completo viver de aldeia. Os revulsivos
e os emollientes curam por meios oppostos
ás vezes as mesmas molestias.
Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse
Henrique um presente de fructa de uma sua tia,
santa creatura que elle, desde creança, não
tornára
a vêr.
Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho
onde na idade de cinco annos Henrique passára
alguns mezes na companhia de sua mãe.
Aquelle presente frugal recordára-lhe esse tempo,
já meio apagado na memoria, e conseguira fazer-lhe
saudades. D'ahi uns vagos desejos de voltar
a vêr aquelles sitios.
Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique
nomeou-lhe a aldeia, em que esta sua parenta vivia.
O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para
que fôsse abraçada.
O sobrinho escreveu então á tia, e, passados
dias,
punha-se a caminho.
Mil vezes se arrependeu, depois da resolução
tomada;
mil vezes mandou ao diabo o conselho do
medico e phantasiou horriveis exacerbações em
todos
os seus males. Os inconvenientes de uma jornada,
feita ainda segundo os velhos processos, com
malas, coldres e pistolas, botas de montar e almocreve,
ampliava-lh'os a proporções estupendas, o
prisma da hypocondria.
No momento em que nos associámos ao cavalleiro,
caira elle n'um desalento profundo, n'um quasi
[12]
convencimento de proxima anniquilação, do qual
nem a loquacidade do almocreve, condimentada,
como era, de pragas eloquentes e de cantigas pouco
edificantes, o conseguia arrancar.
Havia mais de uma hora que estavam luctando
com as difficuldades da ascensão do ingreme e escabroso
caminho, que torneava o monte como as
voltas de uma helice.
Era este monte uma como irregular pyramide,
levantada no meio da amplissima bacia, onde tinha
assento a aldeia que Henrique demandava; por isso
o estafado rapaz não podia atinar a razão de
conveniencia
pela qual, tendo de procurar o valle, assim
porfiavam em descrever as fastidiosas curvas da
quasi interminavel espiral, que os approximava do
vertice.
Não se concebe uma estrada menos logica do
que aquella.
No nosso paiz são porém frequentes estas faltas
de logica nas estradas.
O almocreve havia-se separado por momentos de
Henrique com o fim de encurtar distancias, seguindo
por um atalho só franqueavel a gente
de pé.
Henrique nem desviára os olhos para o fundo
valle, que se abria á esquerda, velado pela densa
nevoa d'aquella atmosphera saturada de humidade,
nem prestava attenção á agreste e
selvatica paizagem,
do lado direito, toda encrespada de pinheiraes
nascentes e de espinhosas tojeiras.
Os olhos procuravam, em anciosa interrogação, o
mais alto da flexuosa ladeira que subia, no sitio em
que ella, formando um cotovello, furtava á vista o
seguimento ulterior.
N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe
ao viajante, cançado e aborrecido, que pela primeira
vez as trilha, uma promettedora esperança.
―D'alli verei talvez o termo do caminho―pensa
elle.
[13]
Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperança
lhe foge!
Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar á
almejada inflexão e quando esperava principiar emfim
a descer para o valle e approximar-se da aldeia,
viu que o macho, pratico no caminho, e á
disposição
de cujo instincto elle collocára a razão, dobrava
ainda para a direita e continuava a contornar
e a subir o monte. A espiral não terminára ainda.
Henrique olhou em torno de si, profundou a vista
nas sombras do valle, nada pôde descobrir, que lhe
promettesse a aldeia procurada. Muita arvore,
povoação
nenhuma!
Teve um paroxismo de impaciencia!
―Isto não é estrada!―exclamou elle,
exasperado.―São
os nove circulos do Inferno de Dante
virados para fóra.
E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva
a augmentar, a calar através do grosso gabão de
jornada que Henrique vestia! O desgraçado vergava
sob o pêso da sua consternação.
Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando
com fleugma desesperadora.
―Com um milhão de demonios!―bradou-lhe
Henrique, não podendo conter-se.―Essa maldicta
terra foge deante de nós, homem!
―Estamos quasi lá, meu patrão. É alli
logo
adeante―respondeu o almocreve, sem se alterar.
Vê aquella capellinha branca em cima d'aquelle
monte? pois fica já para além da
povoação. É a
ermida da Senhora da Saude. É um instante.
―Desde as duas horas da tarde que me dizes
que é um instante, e eu estou acreditando que cada
vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica alli
em baixo, para que diabo subimos nós? Ás voltas
que temos dado, estou persuadido de que vamos
tão adeantados como quando principiámos a subir.
―Pois olha que dúvida! Se se fôsse a direito
lá
por baixo, era mais perto, mas...
[14]
―Mas foi então pelo prazer de trepar, que me
trouxeste por aqui?
―Não é isso, patrão; mas bem
vê v. s.
a que o caminho
lá por baixo é todo cortado por quintas e campos,
e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais
longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá
ideia de que o caminho
lá por baixo é todo cortado por quintas e campos,
e é preciso dar taes voltas, que a final fica mais
longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá
ideia de como estão os riachos por lá!
Só o esteiro
do almargeal é para uma pessoa se afogar. Mas tenha
o patrão paciencia, que pouco falta agora. Vê
v. s.
a aquelle tronco de sobreiro que parece,
visto
d'aqui, um frade de capuz?
―É alli?
―Não, senhor―disse o homem, rindo;―mas
vêem-se d'aquelle sitio as primeiras casas da aldeia.
―As primeiras!―murmurou Henrique em tom
lastimoso; e penderam-lhe os braços com mais
desalento e augmentou-se-lhe a flexão da columna
vertebral.
O almocreve proseguiu, para o distrair:
―Tenho passado por estes sitios muita vez com
neve de se cortar á faca e de noite. E olhe que
nunca tive mêdo. Qual historia! Mêdo? Isso sim!
E vamos lá! o sitio não é dos mais
seguros. Vê o
senhor essa cruz preta, ahi á sua mão direita,
pregada
no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo
mataram um homem, que vinha com uns centos de
mil réis da feira franca de Vizeu, fez pelo S. Miguel
um anno. E ainda hoje se está para saber quem foi.
N'um ermo d'estes só os santos podem valer a uma
creatura.
Henrique sentiu-se pouco á vontade com as
elucidações
do cicerone; olhou para elle com desconfiança
e quasi julgou vêr moverem-se sombras suspeitas
por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou
nos coldres os cabos das pistolas, e approximou as
esporas dos ilhaes da cavalgadura.
Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de
sobreiro, de junto do qual deviam avistar a aldeia.
Henrique olhou; viu lá no fundo do valle muitas
[15]
arvores, mas continuou a não enxergar vestigios
de casas.
―Onde está a aldeia que dizias, homem?
―D'ahi já se vê―disse o almocreve, correndo
para alcançar o cavalleiro.―Não vê v.
s.
a, além,
além, aquelles pinheiraes mansos?
―Vejo, sim.
―Pois já são da freguezia. Se fôsse
mais claro
havia de avistar a casa do guarda. É a tapada dos
Bajuncos, que pertence á morgadinha dos Cannaviaes.
Henrique não respondeu. A distancia a que ficava
ainda a tal tapada fel-o suspirar.
Emfim, passados minutos, principiaram a descer
para o valle, costeando sempre obliquamente o
monte.
Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar
um pequeno ponto branco, que se divisava ao longe
por entre a rama do arvoredo, mas já indistinctamente,
em virtude do adeantado da hora e da intensidade
da neblina.
―Lá está a capella da freguezia―dizia o homem.
―Alli? É um seculo para lá chegar!
―Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, russo!
E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas
do macho, que accelerou o passo.
O homem continuou:
―Até se fôsse mais dia podia-se vêr
d'aqui a
pedra, que está no cemiterio novo, e que é da
familia
da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a mãe
d'ella a primeira pessoa que lá se enterrou, e
até
hoje mais ninguem. O povo, como o outro que diz,
tem sua aquella em se enterrar fóra da egreja. Elle,
a falar a verdade... Eu bem sei que tudo vae do
costume... mas emfim a gente foi creada n'isto...
Mas a pedra é coisa asseada. É como as que
estão
na cidade.
Henrique, transido de frio, quebrado de desalento,
já nem attendia ao que o homem ia dizendo.
[16]
Cerrára-se a noite de todo, quando attingiram emfim
o valle. O terreno mudava agora de aspecto.
Appareciam já, aqui e alli, alguns indicios de cultura,
annunciando a proximidade de um povoado. Os
caminhos estreitavam, internando-se no valle, e seguiam
tortuosamente por entre muros tôscos de
pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva,
que não cessára de cair, transformára
estes caminhos,
onde o declive não dava escoamento ás aguas,
em charcos e tremedaes.
Novos indicios da vizinhança da aldeia iam successivamente
apparecendo.
Aqui era uma manada de bois soltos, em direcção
do curral, guiados por uma creança de palhoça e
pernas nuas, os quaes paravam a olhar com aquella
expressão de composta curiosidade, que lhes é
peculiar,
para o recem-chegado visitante da aldeia.
Não faltou receio a Henrique, que suppôz a estes
bonacheirões quadrupedes a indole travêssa e
bravia
dos touros, a cuja chegada tantas vezes fôra
assistir em Lisboa.
Mais adeante passava por elles uma fileira de
carros a vergarem sob o pêso do matto e atroando
os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o
eixo, incómmodo para os ouvidos cidadãos de
Henrique,
cujos nervos se irritavam com elle, mas apparentemente
agradabilissimo para os conductores
aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquelle
acompanhamento.
N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe já algumas
casas de tectos de colmo, de cujas innumeras
fendas saía um fumo espêsso, que a atmosphera
humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado
de Henrique de Souzellas o cheiro resinoso
e activo das pinhas e das agulhas sêccas dos
pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações
muito longe de serem agradaveis.
Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia
que já lhe tomára o animo.
[17]
―Tantas fadigas para este resultado!―pensava
elle.―Sair de Lisboa para me enterrar n'esta aldeia
escura e suja! Enganou-se o parvo do doutor.
Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro
por certo aqui. Deus lhe perdôe o homicidio.
Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual
mais tortuoso e incómmodo de trilhar; as curvas
complicavam-se como as ruas de um labyrintho.
Aqui subiam; desciam mais além, para subir outra
vez. Umas vezes caminhavam em terreno descoberto,
outras penetravam em tão estreitas quelhas,
apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas
de ramos entrelaçados, que só o instincto do
animal podia evitar-lhes os perigos. Ora soavam as
patas do macho como em chão lageado, ora amortecia-lhes
o som um terreno, que a chuva encharcava,
e a agua lamacenta vinha salpicar o rosto do
cavalleiro.
As casas eram já frequentes, e algumas de menos
humilde apparencia.
Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser
gigantes, ladravam raivosos por dentro dos portões
ou de sobre os muros das quintas, ao ouvirem os
passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que
falava ou cantava sempre.
Outras vezes era um inharmonico grunhir suino
que accusava a vizinhança das córtes ou, partindo
de um casebre rustico, o chorar de creanças, entremeado
com os ralhos das mães e com as pragas
dos chefes de familia.
O almocreve não desistira das suas
funcções
de cicerone, que sómente interrompia para saudar
alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.
―Estes campos e lameiros―ia dizendo―são
da morgadinha dos Cannaviaes; andam arrendados
a um compadre meu.
E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente
allumiada por uma candeia:
[18]
―Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada?
―Ai, é vossemecê, sr. José?
Então não entra?―respondia-lhe
uma voz feminina.
―Agora, não, ámanhã.
E proseguiu para Henrique:
―É uma santa creatura. A morgadinha...
Henrique interrompeu-o:
―Onde fica a final, a quinta de Alvapenha?
onde mora minha tia? Não me dirás?
―É logo ahi adeante, meu patrão. Em
nós passando
umas casas amarellas que ha ahi... é logo
ao pé. Essas casas que digo são tambem da
morgadinha,
mas ha uma demanda pelos modos.
O almocreve falava pela decima ou undecima vez
na morgadinha. Até esta periodica
referencia a uma
personagem que elle não conhecia, impacientava
Henrique de Souzellas.
E continuavam a succeder-se em enredado dedalo
as quelhas e azinhagas, a ponto de fazer perder
toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruido
das levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado;
adeante, transpunham uma ponte rustica, escutando
das profundezas do despenhadeiro, que ella
atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o
ranger das rodas dos moinhos.
Henrique a cada momento imaginava cair n'um
abysmo.
―São os açudes do Casal―dizia o
almocreve
berrando para se fazer ouvir através do estrondo
da torrente.―Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.
Henrique nem alento já tinha para falar.
Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia
tão cerrada lhe envolveu o coração a
nuvem de melancolia,
que cedeu sem resistencia ao crescente
torpor que o invadia, como o que desespera da vida
e da salvação.
Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenções uma
[19]
toada plangente, melancolica, monotona, que exacerbou
estes effeitos.
―É uma fiada em casa do Tapadas―disse o
almocreve.―É um dos maiores amigos do pae da
morgadinha. Vê aquelle muro acolá?
―Eu não vejo nada. Deixa-me!
―Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que
a morgadinha...
―Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha―exclamou
Henrique.
Era evidente emfim que estavam em pleno coração
do povoado. As casas appareciam mais juntas.
De algumas saía um surdo rumor de vozes que tinha
o que quer que era de lugubre. Era a corôa
rezada em familia a Nossa Senhora. A voz grave
do lavrador casava-se com a voz quebrada e trémula
do avô, com a voz sonora e fresca da mãe, e
a juvenil das raparigas e creanças n'aquelle piedoso
côro, produzindo um effeito que acabou por levar
ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.
―Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha,
que não a acabamos de attingir?
O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu
uma chicotada sibilante junto ás orelhas do muar,
o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira
orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do
almocreve,
estacou em frente de um portão de quinta
resguardado por um telheiro rustico.
―É aqui―disse o guia.
―Até que emfim!―exclamou Henrique, suspirando.
Suspiro de conforto e de tristeza ao mesmo
tempo, como o do homem cançado da vida, quando
antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima
a convicção de que a quinta de Alvapenha lhe
havia de servir de cemiterio.
[20]
II
O almocreve assentou duas vigorosas pancadas
no solido portão de castanho, deante do qual tinham
parado.
As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as
de dois cães, que acudiram de longe ao signal e
vieram ladrar á porta com furia, que fez agourar
mal a Henrique da cordialidade da recepção que o
esperava. De facto as intenções dos quadrupedes
não pareciam demasiado hospitaleiras. O almocreve
divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de
vime, apesar de quantas recommendações de
prudencia
lhe fazia Henrique, não em demasia socegado.
A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando
os cães á ordem, se é licito, sem
irreverencia,
empregar n'este caso a phrase consagrada para
outro genero de algazarra.
Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos,
levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e emfim
um homem de lavoura alto e magro, trazendo em
punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes
á porta e saudou-os com a fórmula do estylo:
―Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.
E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique,
poz-se a miral-o com a menos ceremoniosa curiosidade.
―É o sobrinho cá da senhora, não
é verdade?
―Sou eu mesmo.
―Está um tempo muito azêdo. Eu já
julgava que
não vinham. Entre.
Henrique não se resolvia a acceitar o convite,
porque lhe continuavam a impôr respeito os olhares
ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos
[21]
quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.
―Entre, entre―insistia o homem.
―Mas esses animalejos?...
―Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo:
passa, Tyranno!
Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem
que não faziam mal!
―C'os diabos! ti'Manuel―disse o almocreve―em
occasião de se esperarem hospedes, não se soltam
assim os cães. Os diabos não são
nenhuns
cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das
Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes
as barrigas das pernas.
―Forte perca!―resmoneou o outro.―Não trouxesse
cá os d'elle. Não tem dúvida; entre o
senhor,
que elles não lhe fazem mal.
―Não entro; assim é que não
entro―teimou
Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram
de fortificar na sua resolução.
O homem em vista d'isto encolheu os hombros e
bradou:
―Ó Luiz!
Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu
ao chamamento.
―Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor
tem mêdo.
A creança, á palavra mêdo, fitou
Henrique com
uns olhos espantados, e tomando do chão um tronco
de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras,
que, com todos os signaes de respeito, de orelha
baixa e cauda abatida, fugiram deante d'ella.
O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um
tanto maltratado com o desfecho da scena; mas a
prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára ajuizadamente.
―Agora vossemecê―disse o camponez para o
almocreve―arranje-se
como puder e mais a bêsta ahi
pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao senhor.
[22]
―Vão, vão com Nossa Senhora, que eu
cá me
arranjarei. Muito boas noites, sr. Henriquinho.
―Adeus, José―disse Henrique, passando para
a mão do guia a esportula da gorgeta, e após
seguiu,
com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem
do lampeão.
Não era para dissipar a impressão penosa, que
subjugava o espirito de Henrique, o aspecto que lhe
offerecia, áquella hora da noite, a parte da quinta,
por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.
Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro
ou eido, estradado de altas camadas de matto
e embebido de chuva, d'onde se exhalava um cheiro
de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado
a estes aromas campezinos. A luz do lampeão
a custo conseguiu evitar a Henrique o tropeçar
n'um carro desapparelhado, n'uma dorna, n'uma pia
para gallinhas, e em outros objectos que atrancavam
o quinteiro. Transpondo a cancella que terminava
este, seguiram por uma rua de folhas; atravessaram
diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia;
ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados
mais alguns rodeios, acharam-se finalmente junto
da escadaria de pedra, por onde se subia para uma
especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia
de um modesto portico á casa de Alvapenha.
A propriedade da tia de Henrique era um genuino
typo de casa rustica, á moda do Minho.
Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar
os objectos á escassa luz que os allumiava, recebeu
Henrique a primeira impressão agradavel de
toda aquella mal estreada excursão.
Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre
avivaram n'elle memorias, quasi apagadas.
Lembrava-se agora vagamente de ter brincado alli,
a cavallo n'esse mesmo parapeito, então, como agora,
enfeitado de uma formidavel cohorte de aboboras meninas,
victimas votadas ás festas do proximo Natal.
A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um
[23]
grande vaso de louça, que elle, havia vinte e tantos
annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia vaga de
haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de
se certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a
aza, sendo este o unico estrago que após tanto
tempo o velho utensilio soffrêra.
―É admiravel!―não pôde deixar de
exclamar
Henrique ao fazer a descoberta, vendo que em oito
dias operava maior reforma nos seus aposentos em
Lisboa, do que n'um quarto de seculo se realisava
em Alvapenha.
O hortelão bateu á porta e disse para dentro que
era o sobrinho da senhora que chegava.
Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de
vozes, um arrastar de passos; moveu-se a chave na
fechadura; abriram-se as portas e no limiar appareceu
de braços abertos a tia Dorothéa, e por traz
d'ella, elevando a luz acima do hombro da ama, a
criada Maria de Jesus, a que, havia trinta annos,
lhe era companheira e interessada em lagrimas e
pesares. Já Henrique lhe andára ao collo no tempo
em que estivera creança na quinta.
Deante da figura esbelta, do typo varonil e do
comprido bigode de Henrique, a sr.
a
Dorothéa reprimiu
as suas expansões e quasi recuou.
Nunca mais vira Henrique desde que este, aos
cinco annos, deixára Alvapenha, e dir-se-hia que
esperava ainda encontrar os mesmos cabellos louros
e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa
creança de outros tempos, em vez do homem
feito, em que os vinte e tantos annos volvidos o
tinham transformado.
Ha d'estas illusões na gente.
A mais segura razão não está precavida
contra
ellas; a infundada surpreza invade-nos de subito, e
os labios não podem prender a
exclamação que a
denuncia.
―Pois na verdade tu és o Henriquinho?!―disse
espantada a boa senhora.
[24]
―Eu julgo que sim, tia Dorothéa.
―Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de
Jesus, você não quer vêr isto!?
―Parece mesmo um soldado!―disse a criada,
igualmente estupefacta.
―Credo, mulher! Santissima Trindade! Você que
está a dizer? Nossa Senhora nos livre de tal!―exclamou
a ama, em cujo conceito o soldado estabelecia
a transição do homem para o diabo.
No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a
tia, que havia tanto tempo que não vira, e ella
correspondia-lhe,
beijando-o com todo o carinho e chorando.
Chorando por quê? Por quê? Pela muita bondade
que tinha n'aquella alma. A bondade é um rico manancial,
que brota lagrimas ao toque da menor
commoção.
Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se
dos roxeados amplexos e mais provas de
affecto de sua tia, quando se sentiu prêso em novos
laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava tambem
e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados,
como aquelles que veem a ferver do coração, e
isto
acompanhado de um―Ai o meu rico filho!―tão
eloquente como os beijos.
Henrique, habituado ás etiquetas da
civilisação
urbana, que estabelece entre amos e criados distancias
desconhecidas na aldeia, extranhou um pouco
a familiaridade, mas sujeitou-se a ella sem reflexões.
Maria de Jesus dizia, ainda admirada:
―Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois
é
este o menino que vinha á cozinha limpar o tacho,
em que se fazia a marmelada!
―É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!
―Lambareiro!―disse a tia, sorrindo.―Se eu
soubesse que eras assim, não tinha mandado lavar
o tacho do dôce, que ainda hoje serviu.
―Sim? Então ainda se faz dôce cá em
casa, como
d'antes?―perguntou Henrique.
[25]
―Pois então? todos os annos. Mas valha-me
Deus! E não querem vêr nós aqui postas
á palestra!
Entra, menino, entra cá para dentro, que está
frio
e tu deves vir cançado.
―Um pouco, um pouco, tia Dorothéa.
E Henrique entrou para a sala.
Demoremo-nos no limiar para informar o leitor
sobre as pessoas, em cuja casa se vae alojar com
Henrique de Souzellas.
Não se imagina a santa paz de espirito, a placidez
de paraiso, que estas duas mulheres―D. Dorothéa
e Maria de Jesus, ama e criada―gosavam na quinta
de Alvapenha, onde Henrique de Souzellas ia procurar
allivio aos seus muitos e variados males.
Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas
aos seus habitos, ambas muito tementes a Deus e
amigas do proximo, as duas celibatarias passavam
alli uma vida, rescendente a um suave perfume de
santidade, como o da alfazema e do rosmaninho,
que lhes aromatizava as gavetas e de que se repassava
toda a roupa branca, objecto muito dos seus
cuidados.
A inalteravel harmonia, mantida havia tantos annos
entre as duas, poderia ser exemplo á maior
parte das familias d'este mundo. Entre velhas, que
nunca tiveram filhos, circumstancia que em geral
faz o humor mais acre e desabrido, era tanto mais
para admirar o caso.
Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem
mutuas concessões; cada uma fechava os
olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria
bem. Nunca a dentro d'aquellas paredes se ouviu
uma só palavra, que, por mais alto pronunciada
ou por menos expressiva de paciencia, destoasse
da invariavel monotonia dos seus habituaes
dialogos.
Eram um exemplo edificante para os vizinhos,
que, pela maior parte, devorados por demandas entre
primos e irmãos, paes e filhos, marido e mulher,
[26]
mostravam infelizmente ser esta abençoada semente
caída em improductivo terreno.
As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento
affligiam as duas sexagenarias e augmentavam
o numero de Padre-Nossos com que todas
as noites se faziam lembrar dos santos, de quem
eram validas, pedindo-lhes a felicidade dos outros
tanto ou mais do que a sua propria.
Ouvir rezar as duas santas velhas―e era essa a
occupação dos seus curtos
serões―equivalia a escutar
uma resenha das differentes calamidades, que
perseguem e apoquentam o genero humano, e que
ellas, d'esta maneira, pretendiam evitar.
―Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal,
para que nos livre do fogo―dizia D. Dorothéa,
e seguia-se o Padre-Nosso.―Outro a Santa Luzia
milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma
e no corpo; outro a S. Braz, para que nos proteja
da garganta; outro a S. Vicente, por causa das bexigas,
etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os
que andam sobre as aguas do mar; outro por os
pobres sem abrigo nem alimento; outro por os orphãos;
outro pelos doentes; um pelos vivos; outro
pelos mortos; um pelos justos; outro pelas almas
do purgatorio, não hesitando até a sua caridade
em
transpôr as portas do inferno e pedir tambem a
remissão dos condemnados. E ainda depois d'esta
minuciosa e longa enumeração, um ultimo
Padre-Nosso
fechava a primeira serie, comprehendendo
todos os não contemplados por esquecidos, ou por
não terem logar na classificação.
Compunha a segunda serie a menção especial de
cada uma das pessoas fallecidas das suas
relações:
parentes, amigos e conhecidos, por cujo «eterno
descanço entre os resplendores da luz perpetua»
oravam com verdadeira compunção. N'esta phalange
ia tambem D. João VI, por quem, havia quarenta
annos, se costumára a rezar D. Dorothéa, e
não era
ella mulher que rompesse com habitos semi-seculares.
[27]
Era esse talvez o unico Padre-Nosso que a alma
do monarcha recebia no Céo, com procedencia do
seu antigo reino.
Quanto ás qualidades physicas, a
imaginação dos
leitores pintar-lh'as-ha melhor do que a minha
descripção.
Forçosamente conheceram uma d'estas boas
velhas, para quem nos sentimos attrahidos; a quem
se estima e com quem se brinca ao mesmo tempo;
que nos podem inspirar sacrificios e simultaneamente
nos tentam a travessura; a quem mystificamos
agora e logo beijamos respeitosamente a mão;
contra quem não reprimimos impaciencias, escutando
depois submissos os seus nunca terminados
sermões.
Ora estas velhas assim teem quasi sempre um
typo uniforme, que é o reflexo exterior da bondade
do coração; esse era o typo da tia
Dorothéa com o
seu vestido rôxo, o seu lenço castamente cruzado
no peito, a sua touca de folhos alvissimos e de fitas
escuras, o mólho de chaves á cinta, o livro de
orações
na algibeira e os oculos a marcarem no livro
a reza habitual.
Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma
edição popular da mesma alma. Succedêra
de mais
com ellas o que é sempre de esperar de uma longa
e intima convivencia; haviam reciprocamente adoptado
maneiras e modos de pensar e de vêr e de
dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer
d'ellas ser como que uma premissa d'onde a modo
de conclusão, se deduzia a outra facilmente.
Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao
primeiro exame que fez das duas santas mulheres.
Entremos agora com elle para dentro da sala.
Quem, vinte annos antes, tivesse visitado a casa
de Alvapenha e ahi voltasse de novo com Henrique
julgaria, á vista da uniforme
disposição de coisas
mantida alli dentro em tão distantes épocas, que
todo esse tempo não fôra mais do que um sonho
de momentos.
[28]
Encontraria os mesmos móveis, na mesma
collocação;
as mesmas cobertas nos leitos, apenas mais
desbotadas; as mesmas ou iguaes cortinas nas janellas;
o mesmo cheiro de feno e alfazema na
atmosphera dos quartos, os mesmos quadros na
parede, as mesmas jarras nas cómmodas.
A memoria de Henrique, aquella inconstante e leviana
memoria de rapaz estouvado, sentia-se acordar,
á vista d'aquillo tudo.
A sala tinha uma physionomia caracteristica.
Supponha-se uma não muito ampla quadra de
pouca altura, toda pintada a óca, e alumiada por
duas mal rasgadas janellas de peitoril, com os seus
competentes assentos de pedra, um defronte do outro,
com meias cortinas de cambraia sempre corridas―pleonasmo
de discrição que se não justificava,
visto que as janelas, abrindo para a quinta,
não tinham vizinhança de cujos olhares
precisassem
de recatar-se. O tecto era de almofadas de castanho,
em tempos pintado de azul, agora de uma côr duvidosa.
Havia quinze annos que D. Dorothéa falava
em o mandar retocar, mas o projecto, momentoso
como era, ia sendo adiado de primavera para primavera.
Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija
saliente, onde coroadas maçãs de inverno
aguardavam,
em vistosa fileira, a completa maturação, e
derramavam no aposento o mais agradavel aroma.
O pavimento, apesar de muito picado de caruncho,
andava limpo e
escafunado―termo do
vocabulario
de casa―que mettia gôsto vêl-o. Cada parede era
um museu de estampas de devoção. Poucos santos
e santas da côrte celestial não estavam alli
representados
e com um colorido, que era o maior peccado,
a que estes bemaventurados haviam dado logar
cá no mundo.
Cá se via Santa Quiteria e as suas sete companheiras;
Santa Anna ensinando Nossa Senhora a
ler; o Senhor dos Passos, venerado em S. João Novo,
no Porto; o Bom Jesus de Bouças,
representação
[29]
da imagem, que, segundo reza a respectiva
chronica, é obra das mãos de José de
Nicodemus;
os Santos Martyres de Marrocos, da igreja de
S. Francisco, etc., etc. Sobre a cómmoda de pau
preto era devotamente venerado o mais rubicundo,
menineiro e bem disposto Santo Antonio, que ainda
modelaram as mãos de santeiro afamado. E seja
dito de passagem que não sei por que a
tradição
popular dá a este austero franciscano o aspecto
chorudo de um moderno reitor de farta abbadia de
aldeia.
No interior da redoma onde se abrigava o santo
estava estabelecido o museu de raridades da tia Dorothéa.
Eram flores artificiaes, concharinhas e caramujos,
um rosario de caroços de azeitonas, uns
poucos de vintens de prata, enfiados e pendentes
do braço do menino Jesus, que o santo sustentava
ao collo, veronicas, escapularios, uma campainha
benta, uma medida do braço do Senhor de Mattosinhos,
um pão do sacco de Santa Isabel, que vae
na procissão de Cinza, no Porto, e outros objectos
curiosos.
A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha,
que gemiam quando entravam em serviço,
como militar, cujas articulações o rheumatismo
invadiu;
mesas cobertas com colchas de chita; bahús
cravados de pregaria amarella, disposta em lettras
e arabescos; uma papeleira de pau santo, e uma
gaiola com um canario decrepito, objecto, havia
muitos annos, das tentações de um gato, mais
decrepito
do que elle e pertencente ás classes inactivas.
Henrique, adivinhando por todo aquelle cheiro de
beatitude e de antiguidade que alli se respirava, os
habitos da casa, sentia já certo desconfôrto, como
de quem é arrancado de subito ao ambiente, em
que se educou e vive, e engolfado n'um ambiente
extranho; especie de asphyxia moral, não menos
angustiosa do que a do peixe fóra da agua.
[30]
A saudade que ao principio sentira, dissipára-se
já. O perfume da saudade é como o de certas
flores,
que só se percebe quando de longe o recebemos.
Se, illudidos, as tentamos aspirar de perto,
dissipa-se.
Acontecera isto com Henrique.
Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a
crença de que não seria por muito tempo que se
demoraria alli.
―Os emollientes do doutor―pensava elle, emquanto
sua tia falava―serão efficazes para quem
os pudér soffrer sem enjôo, mas para mim...
No entretanto sentou-se.
―Ora o Henriquinho!―dizia ainda D. Dorothéa,
pondo-se de braços cruzados em
contemplação defronte
d'elle.―Ó menino, onde foste tu arranjar
esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?
Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.
―Quem quer usar, usa, tia. Não é
obrigação―respondeu
elle, com leve mau humor.
―Em nome do Padre e do Filho!―dizia Maria
de Jesus, benzendo-se e tomando logar ao lado da
ama.―Até nem sei que parece, lembrar-se a gente
que trouxe este marmanjão ao collo!
O termo «marmanjão» não soou
bem a Henrique.
Principiava tambem a impaciental-o o vêr as duas
embasbacadas deante d'elle; um homem sujeito a
uma exposição d'estas, por mais que
faça, não atina
com o modo de arrostar com ella, que não seja ridiculo.
Ora Henrique, como todo o homem da sociedade,
o que mais que tudo temia n'este mundo
era o ridiculo.
Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da
tia Dorothéa, que fez perceber á criada a
conveniencia
de ir preparando a ceia de Henrique, que
havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não
costumar cear, acceitou a ideia, porque o frio, as fadigas
e a má alimentação dos ultimos dias,
haviam-lhe
[31]
desafiado o appetite. Demais, o espanto de
D. Dorothéa, quando lhe ouviu dizer que as ceias
não entravam nos seus habitos, foi tal que lhe tirou
o animo de rejeitar.
―Não ceias! Ó menino, que me dizes?
então
vaes-te deitar sem ceia? Ora essa! Por isso vocês
são uns pelens. Vejam lá que arranjo este! ficar
toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento
ao estomago, que aconchegue. Nada, nada; a
ceinha em todo o caso. E tu has de tambem querer
mudar de fato?
―Eu venho bastante molhado.
―Ai, então depressa, menino, que não ha nada
peor do que a roupa molhada no corpo. Ó Maria...
ou deixe estar, eu vou... Anda, Henriquinho,
anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te
arranjares.
Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado
e commodamente vestido, saboreava uma gorda gallinha
de canja, sobre uma mesa coberta de toalha
lavada, e na melhor louça da copeira.
Elle que tinha sempre severidades de critica contra
os mais afamados cozinheiros de Lisboa, estava
achando deliciosa aquella comida primitiva, com
que o regalava a tia.
Esta sentou-se a vêl-o comer, e com a mesma
familiaridade, que Henrique já anteriormente
extranhára,
Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.
Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao
cerrar da noite.
Emquanto Henrique comia, ellas, sem deixarem
de o observar com a natural curiosidade de quem
havia tanto tempo não tivera um hospede, faziam-lhe
perguntas, ás quaes elle ia respondendo conforme
lhe era possivel.
―Tu dizias-me na tua carta que estavas doente;
pois olha que na cara não o parece.
―Não―concordou a criada―tem boas côres,
e, vamos, a magreza inda não é lá
essas coisas.
[32]
Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu
logo ao reclamo.
―Não me digam isso! Então não
vêem como
estou? Pois isto é lá côr de saude? de
febre, será.
Gordo? pois acham-me gordo?!
―Gordo, não digo, mas assim, assim... E depois
como vieste de jornada... Mas a final que molestia
é a tua, menino?
―Eu sei lá, tia Dorothéa? Nem os medicos a
conhecem
bem. É, entre outras coisas, uma tristeza,
uma melancolia, que me não deixa, que me persegue
por toda a parte. Ás vezes parece-me que sinto
apertar-se-me dolorosamente o coração; outras,
são
palpitações, ancias... Tenho quasi vontade de
chorar,
irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem,
nada quero vêr, nada quero ouvir; não leio,
não durmo, não como. Finalmente todo eu sou
doença e tristeza.
A boa tia Dorothéa olhava com sisudez e
attenção
para o sobrinho, emquanto elle falava, e na
physionomia iam-se-lhe desenhando, ao ouvil-o, os
mais expressivos signaes de espanto e
consternação.
Assim que Henrique terminou a exposição, ella
disse-lhe com uma adoravel candura:
―Então é assim uma especie de mania!
Á palavra «mania» Henrique
sobresaltou-se. Seria
a consciencia que se sentiu ferida?
―Mania? Ó tia Dorothéa! Mania! Veja bem,
olhe que o termo é forte? Mania!
―Sim, menino―insistiu ingenuamente a boa senhora―pois
olha que não é outra coisa. Pois isto
de estar triste sem ter de quê... sim... porque
não te morrendo ninguem, nem te doendo nada...
Ó poetas devaneiadores, ó almas melancolicas,
que percebeis no sussurrar das brisas, no ciciar das
folhas, no murmurar dos arroios, queixas occultas
de dryades e de nayades, sentidas vibrações das
harpas de fadas aereas, que vivem em palacios de
[33]
nuvens; ó corações inoculados de
poesia, que vos
confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar
do dia, ao desfolhar das arvores no outomno;
poetas, que escutaes, com Victor Hugo, as vozes
interiores, os cantos do crepusculo, e com elle
adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras,
perdoae a involuntaria blasphemia da tia Dorothéa,
que não contem o menor fermento de malicia; perdoae-lhe
a dura expressão de que ella se serviu para
caracterisar os vossos arroubamentos, as vossas
tristezas vagas, os vossos devaneios, e crêde que,
apesar da phrase, terieis n'ella uma alma mais afinada
para sympathisar comvosco, do que tantas
que por ahi fazem gala de vos comprehender melhor.
Henrique não podia porém digerir a
expressão,
de que se servira a tia, para diagnosticar o seu
mal.
―Mania!―repetia elle―essa agora! Sempre é
forte de mais. Mania, não, tia Dorothéa,
lá isso não.
Mania!
―Eu lhe digo―acudiu a criada.―Não vá sem
resposta; que está quasi como o cunhado da Rosa
do Bacello. A senhora não se lembra? Andou aquella
alminha por ahi sempre triste, sempre a falar só,
até que a final lá foi parar...
―Aonde?―perguntou Henrique, erguendo os
olhos interrogadoramente para a criada.
―Lá foi parar a Rilhafolles―concluiu esta, espevitando
a véla o mais naturalmente d'este mundo.
Henrique de Souzellas pulou com a sinceridade.
Nem acabou de sorver a ultima colhér de caldo
de arroz, que lhe estava sabendo como nunca manjar
lhe soubera.
―Então não comes mais?―perguntou a tia.
―Muito agradecido; eu o mais que tenho é
somno.
―Pois sim, mas é preciso fazer por comer―insistiu
ella.
[34]
―Ora vá mais este côxão―disse a
criada.
―Não é possivel―teimou Henrique, e insistiu
para se recolher ao quarto.
―Tens razão, tens―concordou a tia
Dorothéa―deves
estar fatigado. Vae com Nossa Senhora,
menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que
isso não é bom. É fazer por
espairecer. Come, bebe,
passeia, que é o que dá saude. Nada de malucar.
―Sim―accrescentou a criada―e não queira
estar doente, que não tem graça nenhuma.
―E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem
te podes distrahir. O brazileiro Seabra, que tem uma
casa como um palacio; o Augustito do doutor, que é
um bom mocinho. E depois vae dar um passeio
por ahi, um dia até os moinhos outro dia até
á ermida
da Senhora da Saude. Agora me lembra: a
Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado
o hospede―disse D. Dorothéa.
―Não foi só a morgadinha...
―Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.
―Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas
as outras senhoras mandaram tambem o Torquato
saber do sr. Henrique. A sr.
a D. Victoria e a
Christininha.
―Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender
com aquella gente. É uma gente muito dada
e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha,
ámanhã podes
ir visital-as. É um passeio bonito.
Henrique, que tinha estado distrahido durante a
conversa das duas, nem se dava ao trabalho de intervir
no dialogo em que ellas dispunham já do seu
tempo e traçavam-lhe planos de vida.
―Mas vae descançar, menino, vae e faze por
dormir. Olha lá, tu costumas dormir com luz?
―Não, tia, não costumo.
―É porque n'esse caso... Ó Maria, onde
está
aquella lamparina, que me serviu quando eu estive
doente, ha seis annos?
[35]
―Está lá dentro, senhora; se a senhora quer
eu...
―Vê lá, menino...
―Não tia, não quero.
―Ha pessoas que não podem dormir ás
escuras―dizia
a criada.―Eu, graças a Deus, durmo bem
de qualquer fórma.
―Pois sim, mas nem todos são como você. Olha,
ó Henriquinho, has de vêr se queres o travesseiro
mais alto ou...
―Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar
bom―disse Henrique, procurando fugir ás
muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que
as duas o iam perseguindo até o quarto.
―Olha, ó menino, tu bebes agua de noite?
―Ás vezes.
―Você poz-lhe agua no quarto, Maria?
―Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha
mãezinha dizia, que antes sem luz do que sem
agua.
―Bem, então está bom. Então muito boa
noite,
menino.
―Boa noite, tia.
―Ai, é verdade. Has de vêr se queres mais roupa
na cama.
―Não hei de querer, não, tia.
―Olha que está muito frio. Você quantos
cobertores
lhe deitou, ó Maria?
―Cinco, senhora.
―Cinco!―exclamou Henrique, quasi horrorisado.―Cinco
cobertores!
―É pouco?
―Pouco?―É de morrer esmagado debaixo
d'elles.
―Ai, quer não! Olha que está muito frio.
―Bem, bem; eu cá me arranjarei.
―Então, muito boa noite.
―Muito boa noite, tia.
E Henrique ia a fechar a porta.
[36]
―Olha...―disse ainda a tia.
Henrique parou.
―Não sei o que é que me esquece...
―Não ha de ser nada, tia; boa noite.
―Não esquecerá?... Eu sei?... Emfim... boa
noite. Ai, é verdade... Sempre é bom ficar com
lumes promptos.
―Ai, sim; lá isso sempre é bom.
―Vês? não que bem me parecia.
―Já lá estão, senhora―disse a criada
de longe.
―Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso
Senhor, menino.
―Muito boa noite, tia.
E Henrique conseguiu fechar a porta.
Estava finalmente só.
―Que desastrada lembrança a minha!―disse o
pobre rapaz, ao fechar a porta sobre si.―Como
posso eu viver com esta santa e virtuosa gente, que
chama manias aos meus padecimentos? Que futuro
de impertinencias me espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e
pensar eu que só posso voltar para ti á custa de
outra jornada!
O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade.
Um alto leito de almofadas na cabeceira e
rodapé de chita, tão alto que se não
dispensava o
auxilio de cadeira para trepar acima d'elle, uma
commoda com um pequeno espelho, um bahú, um
lavatorio e duas cadeiras mais, constituiam a mobilia
toda.
Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos
objectos de toucador, a que estava habituado.
Aquelle estrictamente necessario não lhe promettia
grandes confortos.
Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo
e respirava um asseio e frescura convidativos:
os travesseiros, de largos folhos engommados, possuiam
uma molleza agradavel ás faces; o colchão
de pennas abatia-se suavemente sob o peso do corpo
fatigado.
[37]
Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador,
pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo
um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a ler, para
obedecer a um habito adquirido.
Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando
ouviu a voz da tia Dorothéa, que lhe dizia de
fóra
da porta:
―Ó menino, tu já te deitaste?
―Já, sim, tia Dorothéa.
―Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um
mêdo de fogos!
―Esteja descançada, tia. Eu apago já.
―Então será melhor. S. Marçal nos
acuda.
E afastou-se, rezando ao santo.
Henrique continuou a ler.
D'ahi a pouco a mesma voz:
―Tu já dormes, Henriquinho?
―Não, tia, ainda não durmo.
―Olha que não vás adormecer sem apagar a
luz. Eu tenho um mêdo de fogos! Não
descanço,
emquanto não vejo tudo apagado em casa.
Henrique perdeu a paciencia.
―Pois pode socegar, olhe.
E apagou a véla, meio zangado.
―Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e
é
melhor fazer por dormir. Então, muito boas noites.
―Muito boas noites―respondeu Henrique quasi
amuado; e ageitando-se na cama, dizia comsigo:―E
esta! Já vejo que nem ler me é permittido aqui.
Olhem que vida me espera! É isto o que me devia
curar? Que fatalidade!
Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de
papa, unicos que conservava dos cinco primitivos,
começaram a fazer o seu effeito, insinuando nos
membros cançados da jornada um agradavel calor.
Convidavam ao somno o som da agua n'um tanque
que ficava por debaixo das janellas do quarto e as
gottas da chuva, que dos beiraes do telhado caíam
compassadas na taboa do peitoril.
[38]
A noite socegára. De quando em quando apenas
algumas lufadas de vento, já menos impetuosas, faziam
bater as vidraças.
Eram como estes estados, que succedem a um
choro aberto. Correm ainda algumas lagrimas nas
faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem
ainda do peito os soluços, porém mais
espaçados;
dentro em pouco será completa a serenidade.
Henrique começou a experimentar uma languidez,
um delicioso bem-estar n'aquelle confortavel
leito e no meio d'aquelle socego; fecharam-se-lhe
enfraquecidos os olhos, e deslisou suave, insensivelmente,
no mais profundo, tranquillo e restaurador
somno, que, havia muito tempo, tinha dormido.
III
Ao romper da manhã, quando a consciencia
principia, pouco a pouco, a acudir aos sentidos,
até então tomados pelo torpôr de um
somno profundo,
Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente
sentado em uma cadeira de S. Carlos,
disposto a assistir ao desempenho de uma opera
favorita.
Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncellos
e contrabassos; sopravam, a plena bôca,
os tocadores dos instrumentos de vento; agitavam
descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros;
dedos amestrados faziam vibrar as cordas da
harpa; a batuta do mestre fendia airosamente os
ares, e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique,
de toda esta riqueza de instrumentação, mais
do que uma nota unica, arrastada, continua, plangente,
baixando e subindo na escala dos tons, e sem
formar uma só phrase musical.
[39]
Era de desesperar um
dilettante como
elle; torcia-se
na cadeira, inclinava convenientemente a cabeça,
fazia das mãos cornetas acusticas, e sempre
o mesmo resultado!
Este violento estado de attenção, este
esforço do
sensorio, principiou n'elle a obra de despertar; principiou
pois pelos ouvidos, mas cêdo se transmittiu
a todos os outros orgãos.
Antes de dar a si proprio conta do que era
aquelle som, e quasi esquecido ainda do logar em
que estava, Henrique abriu os olhos.
A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas
das janellas e espalhava no aposento uma tenue
claridade.
Veio então a Henrique a consciencia do logar
em que estava, e uma alegria profunda lhe dilatou
o coração.
O leitor se ainda não padeceu de insomnias, de
pesadêlos, ou de somnos febris, não avalia por
certo
o contentamento intimo, que se apossa das desgraçadas
victimas d'esses demonios nocturnos, quando
por excepção elles as deixam em paz, e lhes
respeitam
o somno de uma noite completa. Acordar
só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis
prazeres, a que elles aspiram na vida.
Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor;
a arca do peito expande-se-lhes mais livre e
as sombras do espirito dissipam-se-lhes com aquelle
clarão matinal.
Foi o que succedeu a Henrique. Pela primeira
vez depois de muitos mezes, dormira de um somno
a noite inteira.
Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso,
tão
contente que teve vontade de cantar.
Mas o som, que o acordára, aquella nota unica,
em que se confundiam todas as notas da sonhada
orchestra, ainda lhe soava aos ouvidos.
Prestando-lhe a attenção de acordado, conheceu
que era o chiar dos carros―o mesmo som, que
[40]
na vespera o irritára, agora assim a distancia, estava-lhe
agradando, como nota extrahida por mão
habil das cordas de um violino.
Não resistiu mais tempo ao impulso que n'aquella
manhã o incitava ao exercicio, rara
disposição no
indolente filho da capital, que tinha por habito ouvir
o meio dia na cama.
Ergueu-se e abriu as janellas.
Não é licita a comparação
entre a mais surprehendente
transmutação de uma d'essas apparatosas
magicas, que tanto extasiam as multidões embasbacadas
nas plateias e camarotes de um theatro, e
as que de instante para instante, realisa a natureza.
Descerrando o véo de nuvens que encobre o fulgor
do sol, elevando, acima do horizonte, esse magestoso
lampadario do mundo, ou o brilhante reflectidor
que illumina as noites desanuviadas, a natureza
opéra, a cada momento, as mais admiraveis e completas
metamorphoses.
Durante o somno de Henrique realisára-se um
d'esses effeitos magicos.
Abrandára gradualmente a violencia do sul; o
vento, mudando, voltou em sentido opposto a
grimpa do campanario; dispersaram-se as nuvens;
luziram trémulas por momentos as estrellas, empallideceram
perante o alvor do dia, e quando o sol
assomou por sobre a crista das serras, estendia-se-lhe
deante um vasto manto azul, tapetando a estrada,
que tinha a percorrer. Só, muito para o occidente,
ainda algumas nuvens amontoadas formavam
uma como franja, que o astro nascente em breve
tingiu de carmim e de ouro.
Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa,
cheia de aromas, que vem dos campos nas alvoradas
serenas que penetraram no quarto de Henrique,
quando elle abriu as janellas.
A inesperada surpreza quasi lhe soltava do peito
uma exclamação de prazer!
A aldeia, aquella mesma aldeia, escura e triste
[41]
que, com o coração apertado,
atravessára na vespera,
parecia outra.
O sol da manhã baixára sobre ella,
dissipára-lhe
as sombras, colorira-lhe as verduras, reflectira-se-lhe
nas presas, dispersára-se em iris cambiantes na
espuma das torrentes e cascatas naturaes, perfumára-a
de aromas, animára-a de cantos, transformára-a
emfim na mais risonha paizagem, em que
os olhos de Henrique, pouco habituados ás esplendidas
galas do Minho, tinham nunca repousado.
O inverno despojára parte d'essas galas; embora!
Até da propria nudez de algumas arvores resultavam
encantos. As folhas crestadas, os ramos despidos,
as moitas sem flores infundem tristeza; mas
não tem a tristeza poesia tambem? Pode haver
completa paizagem onde não haja uns tons escuros
de melancolia?
Henrique de Souzellas, debruçado na varanda de
pedra do quarto, não se cançava de admirar
aquella
scena.
Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas,
que, n'um momento, elevam, nos ermos, jardins
e paços, como os de Armida e Alcina.
Pois era esta a mesma aldeia, através da qual
elle cavalgára de noite?
Os accidentes do terreno, aquelles accidentes, que
tão do fundo da alma amaldiçoára na
vespera, produziam,
vistos então d'alli, os mais pittorescos effeitos.
Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo
valle, opulento em vegetação, e que a certa
distancia
se continuava insensivel e gradualmente com
uma amenissima collina.
Além, um bello bosque de carvalhos seculares,
que o inverno, privando-os de folhas, tingira quasi
da côr da violeta, contrastava com a fronde sempre
verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde
por entre a qual se divisavam abundantes os dourados
fructos, poupados pela mão do lavrador. As
copas, como umbelladas dos pinheiros mansos,
[42]
desenhavam nas encostas e eminencias fronteiras
as mais suaves ondulações. Dispersos aqui e alli,
e entremeiados com a verdura, grupos de casas
campestres, alvejantes á luz do sol, moinhos e azenhas,
noras toldadas de ramadas conicas, eiras,
pontes rusticas, as mesmas talvez que com mau
humor trilhára na vespera, tão sinistras
então, como
graciosas agora; extensas e virentes campinas e
lameiros, onde pastavam numerosas manadas de
gado. Mais longe a igreja com a sua alameda á
entrada e o cemiterio, onde um só mausoléo
avultava
ainda; uma ou outra casa apalaçada, ennegrecida
pelo tempo; algumas ruinas, consolidadas pelas
heras, revestidas de musgos, douradas de lichens;
finalmente, tudo o que tenta os paizagistas,
tudo o que exalça os poetas, tudo quanto suspende
os passos ao viajante; e, encobrindo todo o quadro,
um tenuissimo sendal de vapores azulados, dando-lhe
a apparencia de uma das mimosas composições
a pastel da mão de Pillement.
A mudança de aspecto da scena operou não menor
mudança nos sentimentos e disposição
do
enlevado espectador que das varandas de Alvapenha
a estava observando.
―É preciso sair! é preciso sair!―disse Henrique
comsigo.―Quero vêr isto de perto; quero
entranhar-me n'estes bosques, quero trepar por
aquelles montes, debruçar-me d'aquellas ribanceiras.
E vestindo-se á pressa, e sem sentir a necessidade
de uma escrupulosa
toilette, saiu do
quarto.
Encontrou nos corredores a tia Dorothéa, que o
saudou amavelmente.
―Muito bons dias, menino, então como passaste
tu a noite?
―Deliciosamente minha querida
tia―respondeu
elle, abraçando-a com maior affecto e bom
humor do que na vespera.
O que é sentir-se a gente bem!
[43]
―Então não estranhaste?
―Estranhei immenso!
―Sim?!―disse a tia, mortificada.
―Dormi a noite de um somno, e acordei bem
disposto; o que para mim é a mais estranha das
occorrencias.
A tia sorriu satisfeita.
―Pois antes assim. E agora...
―E agora quero sair, quero vêr esta terra, que
me está parecendo um paraiso terreal.
―Espera, menino. Não vás sem almoçar.
―Almoçar! Pois que horas são?
―Não é cêdo; são
já sete horas.
―Já sete horas!
E Henrique insensivelmente desviou os olhos
para a janella, para vêr como era a natureza, a uma
hora a que raras vezes a examinava.
―E então acha que se pode almoçar ás
sete
horas?
―Por que não? Se está já prompto.
―Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse
os habitos da aldeia. Principiemos por este.
Entrando para a sala do jantar, Henrique viu
deante de si uma taça de leite espumante, tépido,
odorifero, extrahido de pouco tempo.
Foi por elle que principiou o almoço.
Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido
o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a
analyse dos chimicos, de que os physiologistas exaltam
as qualidades nutritivas, de que os poetas das
georgicas cantam as delicias e virtudes; só agora
os comprehendeu elle, que bem differente d'aquillo
era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a
que estava habituado na cidade.
D. Dorothéa, almoçando, e Maria de Jesus,
servindo,
falaram, segundo o costume, continuadamente.
Henrique, d'esta vez, falou tanto como ellas.
Ouvia-as já com mais attenção e
respondia-lhes com mais vontade e paciencia.
[44]
Falaram em muitas coisas.
A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas
da vizinhança, sabendo-o chegado, lhe tinham
mandado presentes de gallinhas, offerecendo-se, ao
mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da
terra; disse mais que as senhoras da quinta do
Mosteiro tambem tinham já mandado saber d'elle,
Henrique, e lembrou que seria delicado ir visital-as
aquella manhã.
Henrique concordou em tudo, quasi sem reparar
em quê, e terminando o almoço apressou-se a sair
para o campo.
―E se te perdes, menino?―lembrou a tia.
―Se me perder, farei por achar-me.
Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir.
Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta,
que tambem então lhe parecia graciosa, de uma
graça bucolica, a que não estava habituado. O
aspecto
melancolico da vespera desvanecera-se. Até
para ser completa a mudança, estavam encadeados
nas casotas o Lobo e o Tyranno, cujas boas graças
comtudo procurou conquistar, atirando-lhes biscoutos.
Foi um passeio delicioso o que elle deu. Tudo
quanto via lhe era novidade, tudo lhe captivava a
attenção e o distrahia dos seus lugubres
pensamentos.
Depois de muito andar, de subir collinas, de descer
valles e costear ribeiros, foi sair a um pequeno
largo, ao fim do qual havia uma casa terrea, caiada
de branco, com portas verdes e janellas envidraçadas,
sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos
por papel. Á porta d'esta casa estava muita
gente parada; mulheres, velhos, moços,
creanças,
uns sentados, outros deitados, outros a pé e encostados
á umbreira, e todos apparentemente aguardando
alguma coisa ou alguem do lado de uma das
ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se
dirigiam todos os olhares.
[45]
Henrique approximou-se d'esta casa com alguma
curiosidade, que cêdo satisfez, vendo em uma taboleta,
suspensa no alto da janella, a seguinte pomposa
inscripção:
«Repartição do correio», e,
como
a confirmar o distico, um córte feito na porta para
a recepção das cartas.
Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado
do correio para lhe serem remettidas a Alvapenha
as cartas que lhe viessem de Lisboa, Henrique
entrou na repartição.
Consistia esta n'uma loja apenas, mobilada com
um banco de pinho e dividida por um mostrador,
para dentro do qual se alojava todo o pessoal do
serviço, isto é, um homem por junto; e era este o
sr. Bento Pertunhas, personagem importante na
terra, e a cuja intelligencia e solicitude estavam confiadas
mais do que uma funcção. Além de
servir,
em interinidade permanente, como muitas vezes são
as interinidades do nosso paiz, este cargo, dito por
elle, de «director do correio», estava de posse s.
s.
a de uma das cadeiras de latim e de
latinidade, com
que se procura em Portugal fomentar nos concelhos
ruraes o gôsto pelas lettras antigas; era ainda
regente e director da philarmonica da terra, armador
de igreja em dias festivos, ensaiador de autos
e entremezes populares, e, quando Deus queria, auctor
de alguns tambem.
Vendo entrar Henrique nos seus dominios, o illustre
funccionario tirou cortezmente o seu bonnet
de pelle de lontra e ergueu-se da banca para cumprimentar
tão honrosa visita. Nos cumprimentos
que formulou disse o nome de Henrique.
Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou
o latinista e, achando-o muito informado de
tudo quanto lhe dizia respeito, convenceu-se de que
estava na presença de um esmerilhador de vidas
alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar.
Com o fim de cortar a divagação, em que o homem
[46]
entrára a respeito de certa viagem que fizera
a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio não
chegára ainda.
―Saiba v. s.
a que ainda
não―respondeu o
sr. Bento Pertunhas―mas não deve
tardar; o
homem que d'aqui vae buscar as malas á villa, se
bem andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro
de gente, que v. s.
a ahi vê
á porta,
está á espera
d'elle. Hoje então, que chegam as cartas do Brazil,
ninguem pára com este povo. Dão-me cabo da
paciencia.
Isto é um inferno! Eu sirvo este logar interinamente,
emquanto o empregado está paralytico;
porque eu tenho outro cargo publico; sou professor
de latinidade.
―Ah!...
―É verdade, mas a minha vocação era
para as
artes. Meu pae queria que eu fôsse padre e mandou-me
ensinar latim; mas já então a minha
paixão
era a musica. Eu ainda queria que v. s.
a me
ouvisse tocar trompa, que é o instrumento que mais
tenho estudado... Se v. s.
a se demorar
ha de fazer-me
o favor...
―Com muito gôsto.
―Não poder um homem seguir no mundo a sua
vocação!
―Ainda assim não se pode queixar muito. O
cultivo das lettras latinas deve-lhe proporcionar gosos;
porque emfim para quem possue instinctos
de arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo
contra
as agruras da vida.
O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos
muito abertos.
―Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa!
Então parece-lhe que pode achar-se gôsto em
lêl-os? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe
uma vontade!... O latim!... a mais destemperada
e desesperadora lingua que se tem falado
no mundo! Se é que se falou―accrescentou em
voz baixa.
[47]
―Então duvida que se falasse latim?―perguntou
Henrique, sorrindo.
―Eu duvido. Não sei como os homens se podessem
entender com aquella endiabrada contradança
de palavras, com aquella desafinação que faz
dar volta ao juizo de uma pessoa. Sabe o senhor o
que é uma casa desarranjada, onde ninguem se
lembra onde tem as suas coisas quando precisa
d'ellas e passa o tempo todo a procural-as? Pois é
o que é o latim. Abre a gente um livro e põe-se a
traduzir e vae dizendo: «As armas, o homem e eu,
canto, de Troia, e primeiro, das praias.» Quem percebe
isto! Ora agora peguem n'estas palavras e em
outras, que elles punham ás vezes em casa do diabo,
e façam uma coisa que se entenda! É quasi
uma adivinha. Ora adeus! E depois―continuou
elle, enthusiasmado com o riso de Henrique, suppondo-o
de approvação―e depois as differentes
maneiras de chamar a um objecto? Isso tambem
tem graça. Nós cá dizemos por exemplo:
«reino e
reinos» e está acabado; lá
não senhor; diz-se
regnum
e
regna e
regni e
regno e
regnis e até
regnorum. Ora venham-me
cá elogiar a tal lingua!
Henrique estava achando delicioso o odio entranhado
de mestre Bento Pertunhas á latinidade que
ensinava com a proficiencia, que o leitor pode imaginar,
depois do que ouviu.
―Ai, meu caro senhor―continuou o atribulado
magister―eu se me vejo um dia livre
d'este amaldiçoado
latim, faço uma fogueira, na qual me hei de
regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos
tres.
É de advertir que mestre Bento falava sempre
no plural, ao referir-se a Virgilio.
Quer-me parecer que para este interprete da litteratura
latina tinham de facto existido tres Virgilios,
provavelmente irmãos, e cada um auctor de
cada um dos tres volumes da edição, que lhe
servia
de texto. Dizia Virgilio 1.º, 2.º e 3.º,
como quem
[48]
se refere aos monarchas homonymos, que succederam
n'um mesmo reino.
―Não me salvo se morro mestre de latim―proseguia
elle.―Afunda-me no inferno o trambolho da syntaxe.
Ia continuar, quando toda a gente, que Henrique
viu fóra da porta, principiou em desordenada azafama
a entrar para a loja, que em breve não comportava
mais ninguem.
―Ahi vem o homem, sr. Pertunhas; ahi vem.
Graças a Deus, que ahi vem!―diziam todos
á
uma.
O funccionario principiou a impacientar-se.
―Então! então! Por onde ha de elle entrar, fazem
favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então
não fazem caso das minhas ordens?
Dêem
logar. Não vêem que estão molestando
este senhor?
Cada um dos reprehendidos n'estes termos indignava-se,
ao vêr que os outros não obedeciam ás
ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo,
como se lhe valesse algum especial privilegio.
―Saia você, mulher―dizia um.
―E você por que não sae? Olha agora!
―A todos ha de chegar a vez. Descance. Se tiver
carta lh'a darão. Lá por estar aqui
não é que...
―Pois então saia tambem. Ora essa!
―Ó santinha, não empurre.
―Ó filho, quem é que lhe faz mal?
―Por onde é que se quer metter, homem de
Deus?
―Eu não sou menos que os outros.
―Que quereis vós d'aqui, canalhada?
―Não bata, que ninguem lhe tocou, seu velhote.
―Espera que eu te falo.
Estas e analogas vozes abafavam n'um rumor
tumultuoso as agudas declamações do
«director do
correio», o qual obrigou Henrique a passar para
dentro da teia, para se salvar das ondas populares.
Henrique estava achando igualmente curiosa a
[49]
indignação do homem e a alvoroçada
anciedade do
povo.
Ha de facto poucas scenas tão animadas, como
a da chegada do correio e da distribuição das
cartas
em uma terra pequena. Durante a leitura dos
sobrescriptos, feita em voz alta pelo empregado respectivo,
um observador, que estude attento as impressões
que essa leitura opéra nos semblantes dos
que ávidos a escutam, como que vê levantar-se
uma ponta de cortina, corrida a occultar-nos as
scenas da comedia ou da tragedia da vida de
cada um.
Que hora de commoções aquella, em que se
abrem as malas, onde veem encerrados porventura
os destinos de tantas pobres familias! Quantas
vezes verdadeira boceta de Pandora, d'onde se espalham
as desgraças e os pezares!
Nas grandes cidades dispersam-se estas commoções;
passam-se no recato dos gabinetes de cada
um. Lembrem-se porém das vezes, em que teem
segurado com mão trémula na correspondencia,
que o correio lhes traz; no anciar do coração com
que lhe rasgam o sêllo; nas lagrimas ou sorrisos
com que lhe interrompem a leitura; no irresistivel
movimento de desespero com que a amarrotam depois,
ou nas expansões apaixonadas com que beijaram
o nome que a subscreve; lembrem-se d'isso,
multipliquem depois esses affectos todos, despojem-os
das reservas que a etiqueta impõe ás classes
mais civilisadas, façam-os manifestarem-se n'um
mesmo momento e n'um mesmo logar, e digam se
concebem muitas outras scenas, em que mais sentimentos
e paixões se agitem em lucta travada.
Chegou emfim o homem das cartas, e a custo
conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou
a mala. O «director», depois de tossir, de
assoar-se,
de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas,
que formavam com a anciedade do povo um
contraste desesperador, abriu fleugmaticamente o
[50]
sacco, extrahiu um não muito volumoso masso de
cartas, que despejou n'um cesto de vime, e tomou
apontamentos.
Era digno do pincel de um artista aquelle grupo
de physionomias, que seguiam ávidas todos os movimentos
de mestre Bento. Olhos e bôcas abertas,
mãos juntas, pescoços estendidos, a
cabeça inclinada
para receber o menor som, tudo caracterisava
profundamente a anciedade que lhes dominava os animos.
Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada
para dizer a Henrique:
―Pois, senhor, eu nasci para artista. Quasi sem
mestre aprendi a tocar trompa e, não é por me
gabar,
mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão.
Henrique volveu o olhar para o auditorio; apiedou-o
a consternação d'aquellas physionomias. Resolveu
valer-lhe.
―Tem a bondade de vêr se ha alguma carta
para mim?
―Ah! pois já as espera hoje?
―Não é provavel; porém...
Mestre Bento Pertunhas, em vista d'isto, começou
em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescriptos.
Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo.
A cada nome proferido, erguia-se quasi sempre
uma voz, ás vezes um grito; estendia-se por cima
das cabeças um braço, e, podemos accrescentar
ainda que se não visse, alvorotava-se um
coração.
Outros, os não nomeados ainda, olhavam com
anciedade para o masso, que diminuia, e cada vez
mais se lhes assombrava o semblante.
―Luiza Escolastica, do logar dos Cójos―lia
mestre Pertunhas.
―Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem!―exclamou
uma mulher joven, apoderando-se ávidamente da carta.
[51]
―Joanna Pedrosa, de Serzedo―continuava elle.
―Aqui estou; será do meu Antonio, senhor?―disse
uma velha, pobremente vestida.
―Será do seu Antonio, será―respondeu o
insensivel
funccionario;―o que lhe posso dizer é
que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a
cair, ouvindo aquellas sinistras palavras.
Apanharam-lh'a; e ella, tomando-a, saiu da loja, a
chorar lastimosamente.
―Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que
ha de ser d'ella―disse um dos circumstantes.
―Coisas do mundo!―respondeu outro.
Estes commentarios foram interrompidos pela
continuação da leitura.
―João Carrasqueiro.
―Prompto, senhor―bradou um velho.
―A mezada, hein?―disse Bento Pertunhas,
fitando-o por cima dos oculos.―O rapaz não se
esquece.
―Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom
filho tem saido.
―D. Magdalena Adelaide de...
―É a morgadinha, é a morgadinha―disseram
a um tempo muitas vozes.
―Agradecido pela novidade; era cá muito precisa
a explicação―disse o Pertunhas: e passando
a carta para uma mulher, que era a encarregada de
fazer a distribuição a quem a podia gratificar,
accrescentou:
―Leve-lh'a a casa.
E proseguiu:
―Augusto Gabriel...
―É o mestre-escola...
―Ora fazem o favor de estar calados! Esta...
como elle vem por aqui... pode ficar... ainda
que... será melhor levar-lh'a a casa, leve, leve
tambem...
―João Cancella.
[52]
―É o João Herodes.
―Esse foi a Lisboa.
―Então, quando vier, que appareça.
―O tio Zé P'reira ficou de receber as cartas. É
compadre d'elle.
―Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé
P'reira que se occupe com o seu zabumba e deixe lá
os outros.
A leitura mais ou menos acompanhada d'estes
dialogos proseguiu, redobrando de momento para
momento a anciedade dos que iam ficando. Um
fundo suspiro, unisono, melancolico, expressivo de
desalento, seguiu-se á leitura do ultimo nome e
ás
poucas palavras, com que o funccionario fechou a
tarefa.
―E acabou-se.
Os que ainda estavam na loja sairam cabisbaixos,
morosos e com tão má vontade, como se
ainda tivessem esperança de commover a inexoravel
sorte.
Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve
de lhe escutar ainda, por muito tempo, a narração
dos seus passados triumphos artisticos, das suas
amarguras presentes no magisterio, e das suas esperanças
em melhoramentos futuros. Entre as ambições
mais inquietas do mestre, a de obter o logar
de recebedor de comarca, proximo a vagar por a
morte imminente do respectivo empregado, figurava
em primeira linha.
Depois de varias tentativas, Henrique conseguiu
deixar o seu interlocutor, e continuou o passeio
que este episodio interrompera, tão satisfeito e distrahido,
que nem apprehensões lhe causava a ideia
de trazer as botas humedecidas pelas hervas do caminho,
ideia que, em outra occasião, bastaria para
o fazer doente.
Ladeava elle um campo, cingido de altas silvas, a
procurar saida para a deveza, da qual um fundo
vallado o separava, quando lhe pareceu ouvir um
[53]
rumor de vozes, como de alguem, que conversasse
perto d'alli.
Parou a certificar-se.
Não se enganára. Era do outro lado da sebe, e
na deveza, para onde tentava passar, que se estava
falando.
Espreitou por entre as folhas do silvado que o
encobria, e viu uma scena, que lhe moveu a curiosidade.
Um grupo de creanças e de mulheres do povo
escutavam em pleno ar e com religiosa attenção, a
leitura que uma senhora joven e elegante lhes fazia
das cartas, que ellas para esse fim lhe davam. A
senhora estava montada, não como romantica amazona,
em hacanêa fogosa, mas modesta e simplesmente
n'um digno exemplar d'aquelles pacificos
animaes, a que Sterne não duvidou dedicar algumas
palavras de sympathia nas suas paginas mais humoristicas,
e que Pelletan incluiu entre os collaboradores
da humanidade na grande obra do progresso,
ou, deixando a periphrase, em uma possante e bem
apparelhada jumenta.
Á roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade
ás ancas e ao pescoço do immovel quadrupede.
A leitora segurava no collo a mais pequena e a
mais nua das creanças do rancho.
Lia com voz agradavel e sonora; e, graças á
serenidade da manhã e ao socego do logar, ouviam-se
distinctas, á distancia que ficava Henrique, as
palavras, que ella pronunciava lentamente, como
para as deixar penetrar bem na intelligencia do auditorio.
Henrique reconheceu muita d'esta pobre gente,
por a mesma que, momentos antes, vira na casa do
correio.
Mas as suas attenções voltaram-se com
especialidade
para a leitora.
Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa
[54]
figura de mulher, suave, elegante, distincta, um
d'esses typos que insensivelmente desenha uma
mão de artista, quando movida ao grado da livre
phantasia; a côr, essa côr inimitavel, onde
nunca
dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado
das pallidas, encarnação surprehendente, a que
ainda
não ouvi dar nome apropriado.
Os cabellos em fartas tranças, em ondas naturaes,
não de todo pretos, porém, mais distinctos
ainda dos louros; a estatura esbelta, sem ser alta,
o corpo flexivel, sem ser languido; um vulto de fada,
emfim, com a magestade, com a graça que deviam
ter estas creações da poesia popular, se
fôsse
certo tomarem a fórma de virgens, para matar de
amores.
Não se concebe attenção tão
distrahida, que esta
mulher não fixasse; olhos, que se não voltassem
para seguil-a, depois de a vêr passar;
coração, que
não se perturbasse na sua presença.
Trajava um singelo vestido de xadrez branco e
preto, adornado no collo e punhos apenas por collarinhos
lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente
dos hombros um chale de casimira escura, sem lhe
occultar as bellezas da airosa conformação; o
chapéo
de palha de largas abas, cobrindo-lhe a cabeça,
espalhava pelo rosto as meias tintas, tão favoraveis
ás bellezas delicadas.
Henrique comprehendeu logo a significação da
scena, a que, tão inesperadamente, viera assistir.
Aquella mulher parára alli, para ler a essa gente
pobre e ignorante, as cartas que haviam recebido
do correio.
Tambem era caridade a acção, muito mais cumprida
com o bom modo e com o carinho com que
ella o fazia.
Henrique applicou a attenção.
―...«E por isso, minha mãe»―lia
ella―«se
Deus me ajudar, espero dentro em pouco ir a essa
terra e darei remedio a tudo. E não me fale
vossemecê
[55]
mais em vender o cordão e as arrecadas.
Diga ao senhorio que tenha paciencia, que eu satisfarei
a tudo.»
Aqui a leitora parou para perguntar:
―Então que historia é esta das arrecadas, Anna?
―É, senhora, que o aluguer estava vencido...
―E não podia falar-me antes de se lembrar do
seu filho?
―Ora, senhora, bem basta o que...
―Fez mal. Estar a affligil-o com estas coisas!
Elle que precisa de toda a coragem!
E continuou a ler a carta, no meio das lagrimas
e das expansões de alegria da ouvinte, mais interessada
n'ella.
Acabando, deu um beijo na creança, que tinha ao
collo, e estendeu a mão a receber a carta, que outra
mulher do grupo lhe passou. Esta era menos de
consolar. Não se falava alli senão de
contratempos,
de revezes e desesperanças. Mais do que uma vez
teve de suspender a leitura, para mitigar a dôr e
enxugar as lagrimas, que ella estava produzindo na
pobre mulher, a quem era dirigida.
Após esta, ainda outra e outra; uma do marido
para mulher; outra de filho para mãe; outra de
noivo para noiva.
Foi com o riso nos labios e inoffensiva malicia
nas inflexões da voz e no olhar, que ella decifrou
os mal legiveis caracteres, com que em papel bordado,
pintado e recortado, vinham expressos os
mais arrebicados conceitos amorosos, que ainda dictou
uma paixão.
A noiva córava, sorria; mas, no meio da sua modesta
turbação, era evidente que estava exultando
de jubilo.
Com esta terminou a leitura.
Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o
gracioso grupo na carteira, que trazia comsigo. Não
pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade
média, substituindo a jumenta por um palafrem de
[56]
pura raça e dando á donzella, pelos trajes com
que
a desenhou, os ares de uma castellã rodeada dos
seus vassallos.
Não lhe bastou o natural do quadro, quiz revestil-o
de um figurino de convenção. Perdôe-lhe
a arte,
que julgou servir.
Depois de distribuir mais alguns beijos pelas
creanças, a gentil rapariga passou a que tinha no
collo para os braços da mãe e partiu rodeada de
agradecimentos e bençãos, perdendo-a Henrique de
vista, por entre as arvores do caminho.
Aquelle typo delicado de mulher, aquella singeleza
do apurado gôsto, em que não podiam enganar-se
olhos conhecedores, como os d'elle, aquella
preciosa perola alli na aldeia! em uma terra para
chegar á qual era necessario fazer uma comprida e
laboriosa jornada! D'onde viera ella e como? que
nuvem a trouxera? que viração a
transportára?
Em tudo isto ficou a pensar Henrique, e quando
se lembrou de que podia, para esclarecer-se, interrogar
alguem do grupo, já não ia a tempo; tinham
dispersado.
Conseguiu finalmente passar para a deveza, e foi
sentar-se no logar, em que lhe apparecera a visão e
ahi se demorou algum tempo; mas lembrando-se de
que eram quasi onze horas, levantou-se para não faltar
ás promessas feitas á tia Dorothéa, e
que eram:
a de visitar as senhoras do Mosteiro e a de estar
em casa pouco depois do meio dia, para não transtornar
a regularidade dos habitos domesticos em
Alvapenha.
Pediu pois a uma creancinha que passava, que o
guiasse á quinta do Mosteiro, e ahi chegou depois
de um quarto de hora de caminho.
[57]
IV
A casa do Mosteiro, com a quinta annexa á casa,
como o dava a entender o nome, pelo qual o povo
a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem
monastica.
Era um d'estes conventos campestres, que hoje
ou se encontram em ruinas ou transformados em
solar de alguma
notabilidade
provinciana. Ao de que
falamos coubera o ultimo destino.
Incluido, depois do acto dictatorial de 1834, na
lista dos bens nacionaes, fôra, por insignificante
preço, vendido a um modesto proprietario das
immediações,
mais arrojado do que os vizinhos, ou
mais convencido da estabilidade da nova ordem de
coisas politicas, que se inaugurava no paiz.
E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquella
inspiração,
que, em pouco tempo, lhe restituia a quinta
o capital empregado, regalando-o todos os annos
com não calculados juros, e elle, sem intermittencias,
cresceu d'ahi por deante em prosperidade a
ponto de deixar, ao morrer, a familia no numero
das mais abastadas d'aquella terra.
A propriedade do Mosteiro, apesar de varios melhoramentos
e reformas effectuados n'ella, offerecia,
ainda claros, muitos vestigios de seus primitivos
usos. Não era raro encontrar-se, aqui e alli, em
pé
uma cruz de pedra marcando antigos logares de
devoção; no alto de algumas portas conservava-se
visivel o emblema e divisa da ordem, ou restos de
inscripções latinas; nas paredes da arcaria, em
que
se apoiava a face posterior do edificio, mantinha-se
ainda um azulejo contemporaneo dos frades; finalmente
resistira a successivas reformações certo
colorido
[58]
monastico, que só após muitos annos se
dissiparia
de todo.
Entrava-se para a propriedade por uma larga,
comprida e magestosa álea de sobreiros seculares,
alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados, por
pouco trilhada, crescia espêssa e verdejante. Abria-se,
ao fim d'esta rua, o alto portão do pateo.
Henrique, deixado só pelo guia ao chegar alli, foi
caminhando vagarosamente por esta avenida, dominado
por a intima commoção e sentimento quasi de
temor, que se apodera de nós, em todos os logares
a que se ligam memorias do passado.
A phantasia estava-o transportando a tempos, a
que não chegavam já as suas
recordações, ás épocas,
em que, por entre estas arvores gigantes, se via
passar, como um phantasma, o habito escuro do
monge, cuja sombra o sol, ao declinar no horizonte,
tantas vezes projectou, esguia e estirada, ao longo
d'aquella mesma avenida.
Impressionado por esta ordem de pensamentos,
chegou Henrique ao portão, transpondo o qual se
introduziu no pateo. Era um largo terreiro de perfeita
fórma rectangular, limitado ao fundo pela fachada
da casa, e lateralmente por elevadas paredes,
armadas á maneira de pannos de Arrás, com
tapeçarias
de vigorosas heras. A cada uma das paredes
encostavam-se dois tanques de vasta capacidade.
No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as
feias e enormes carrancas de todos estes quatro
tanques grossos jorros de fresca e purissima agua;
porém as medidas economicas do ultimo proprietario
e as exigencias dos seus projectos agricolas haviam
derivado para outros fins, parte d'esta abundante
veia, de maneira que tres d'aquellas bacias
estavam agora completamente a sêcco.
Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietarias,
os funchos odoriferos, havia muito que tinham
invadido a bôca dos encanamentos inuteis onde
encontravam asylo imperturbado lagartos, aranhas
[59]
e myriapodes, e se estabeleciam pacificas colonias
de caracoes.
A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notavel
pelo lado architectonico. A arte não tivera fadigas,
ao concebel-a; o cinzel pouco se embotára a executal-a;
nem uma columna singela, nem um florão,
nem um tympano lhe davam a menos pretenciosa
apparencia monumental. Imagine-se uma vasta casaria
de um andar além do terreo, com muitas janellas
de peitoril e uma só varanda de pedra sobranceira
á porta principal; acima do telhado, uma
especie de agua furtada, de construcção
evidentemente
posterior e aconselhada aos proprietarios
modernos por conveniencias de accommodação
domestica;
e ter-se-ha concebido o edificio.
Emquanto Henrique se occupava a examinar estas
particularidades, um velhito, que, sentado em
um banco de pedra, que havia á porta de casa, se
estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro
do recem-chegado, tossindo e arrastando os
passos.
Junto de Henrique, o velho, de apparencia meia
rustica, meia urbana, depois de o saudar com grave
cortezia, que deixou a descoberto o
solideo fradesco
com que resguardava a fronte calva, perguntou se
havia alguma coisa, em que o pudesse servir.
Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique,
que disse procurar as senhoras, com nova cortezia
lhe fez signal para que o acompanhasse, e ambos
atravessaram o pateo em direcção da casa.
No portal o velho afastou-se de lado com toda a
deferencia para deixar passar Henrique; em seguida
abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e, voltando-se,
pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de
annunciar. Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete
de visita, cuja significação teve de explicar,
porque o velho não a comprehendia bem.
A final porém retirou-se por outra porta, levando
o bilhete.
[60]
A sala, em que Henrique ficou esperando, era
toda mobilada com pesadas cadeiras de couro lavrado
e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e
pelas paredes alguns ennegrecidos retratos de frades,
pertencentes provavelmente aos antigos proprietarios
do mosteiro.
No momento em que o velho servo, que era uma
especie de feitor honorario da casa, abriu outra porta
da sala, para ir annunciar á familia a visita de
Henrique, chegaram aos ouvidos d'este, de mistura
com um tinir de louças e de crystaes, as vozes e
risos de creanças, que falavam ao mesmo tempo.
Com a entrada do velho produziu-se um certo silencio,
e após uma voz de mulher, de timbre fresco e
agradavel, disse audivelmente e como em resposta
ás palavras do criado:
―Ora as etiquetas com que esteve, Torquato!
Mande entrar para aqui.
O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a
que ainda a mesma voz redarguiu:
―O que não é bonito é fazel-o
esperar. Ande, vá.
Torquato―chamemos-lhe assim, visto que assim
lhe chamaram―appareceu outra vez e fez signal
a Henrique, de que o esperavam na sala immediata.
Henrique que presentiu ir achar-se na presença
de uma mulher nova e porventura bonita, correu,
com instincto de perfeito homem de côrte, os dedos
pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente
o laço da gravata e entrou.
Era completo o contraste d'este aposento com o
primeiro; transpondo aquella porta dissipava-se
todo o perfume antigo, todo o caracter de vetustez,
que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque
do tecto, modernissimo o papel que forrava as
paredes, e a mobilia toda de um cunho de actualidade,
visivel aos olhos menos pesquizadores. Como
para tornar mais frizante o contraste, a presença
do velho feitor estava aqui substituida por a de
[61]
duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria
dos seis annos.
O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como
que uma cortina corrida sobre o passado. A
porta, que elle transpuzera, a barreira que separava
dois seculos.
Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar,
coberta de louça fina ingleza, estavam as duas
creanças que dissemos, com os seus babeiros brancos
e tendo cada qual defronte de si um prato de
odorifera sôpa. Em pé, á cabeceira,
presidia ao
lunch infantil uma mulher, de quem
Henrique só
pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo
e não as particularidades das feições,
porque,
ficando voltada de costas á luz das janellas, velavam-lhe
o rosto umas meias sombras, que não favoreciam
o exame.
Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:
―Na aldeia a sala de recepções é
aquella em
que a gente se acha, quando lhe annunciam uma
visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o
viver do campo.
―E é assim que eu o aprecio, minha senhora―respondeu
Henrique, approximando-se da mesa.
As creanças, interrompendo a refeição,
fitavam o
recem-chegado com aquelles olhos espantados e
penetrantes, com que ellas, promptamente, e quasi
sempre com a certeza de um verdadeiro instincto,
decidem para si das sympathias ou antipathias de
que lhes é merecedor um estranho, a quem vêem
pela primeira vez.
A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu
com a entrada de Henrique a occupação domestica,
na qual estava empenhada. Mostrava receber-lhe
a visita com um perfeito «á vontade»,
que nada
tinha porém de affectado.
―Não sei se v. ex.
a sabe...―ia
dizendo Henrique,
quando, ao chegar perto d'ella, parou subitamente
em meio da phrase.
[62]
Na mulher, que estava deante de si, reconheceu
a leitora da deveza, a interessante rapariga, que
tanto o preoccupára.
Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a
mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque
nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso
modelo, e os cabellos penteados com tanta
graça como singeleza. Em vez do longo chale de
casimira, trazia agora uma especie de jaqueta, curta
e larga, apertada por alamares, de fórma pouco
mais ou menos similhante á que, na nomenclatura
das modistas, nomenclatura quasi sempre absurda,
e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada
denominação de
zuavo!
A surpreza de Henrique não passou despercebida
a quem era causa d'ella e que lhe correspondeu
com um gesto de curiosa interrogação.
―Perdão, minha senhora―disse Henrique, comprehendendo
aquelle gesto―mas ignorava que vinha
encontrar aqui uma pessoa, que já me não era
estranha.
―E sou eu essa pessoa?
―É v. ex.
a effectivamente.
―Pois já nos vimos?
―Já... quero dizer, eu já vi v. ex.
a
―Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que
me não lembra de o ter visto nunca. Apesar d'isso
sei que é o sr. Henrique de Souzellas,
sobrinho
d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa;
não é verdade?
―Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.
a
não é antigo tambem; data de algumas horas
apenas.
A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu
levemente as sobrancelhas bem desenhadas,
fez um movimento de labios e deu á cabeça uma
ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde
resultou
para aquella gentil physionomia a mais adoravel
expressão de estranheza, que pode animar um semblante
de mulher.
[63]
―Esta manhã―proseguiu Henrique, a quem os
encantos d'aquelle gesto não tinham passado
despercebidos―assisti
a uma scena commovente. O
logar era uma deveza; uma joven senhora... joven
e... e com outras qualidades, além d'esta,
para excitar attenções, lia, em voz alta, as
cartas
que algumas pobres mulheres do povo acabavam de
receber pelo correio...
Ella não o deixou continuar.
―Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por
fóra? Não o suppunha assim madrugador. Mas onde
estava tão escondido? Vejo que é indiscreto...
Não admira, habitos da cidade. É verdade,
é. Aquella
gente encontrou-me no caminho quando eu voltava
de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou
sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração
que a affligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me,
já pensou no supplicio que deve ser olhar
a gente para uma folha de papel escripta, na qual
sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não
ter poder para decifrar aquelle enygma? Que martyrio!
Eu por mim, confesso que me falta o animo
para recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria
para negar uma gotta d'agua ao desgraçado que
visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi
igual. Não lhe parece?
Henrique formulou um galanteio, que ella porém
não ouviu, entretida já a escutar o que uma das
creanças lhe dizia.
―Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa
d'ella no meu prato.
―Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro
a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!
―Então―disse Magdalena, que a este nome
correspondia a contracção familiar, de que se
serviam
as creanças.―Olhem agora se teem juizo.
Vejam se querem que eu vá dizer á mamã
que venha
para aqui.
[64]
―Não é ella a mãe, visto isso―pensou
Henrique,
como quem modificava uma opinião que concebera
antes e folgava com a
modificação.―Será
irmã? Talvez... Ou mestra... É mais provavel
que seja mestra. Esta mulher foi de certo educada
na cidade. Tem uns ares distinctos...
E elevando a voz:
―v. ex.
a está-me recordando uma
scena de um
precioso livro, que nunca me canço de ler.
―Qual é?
―Werther.
―Ah!
―Conhece?
―Conheço... quero dizer, li-o, por acaso, ha
pouco tempo. Compara-me a Carlota? É por estar
a distribuir as rações d'estas
creanças? Que mulher
ha que não seja Carlota, n'essa parte? Em todas as
casas se passa uma scena assim. Bem se vê que
não tem familia.
―Por quê?
―Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo
d'esta.
―É certo―respondeu Henrique com melancolia.―Deve
ser essa uma das causas; mas não a
unica―accrescentou galanteadoramente.
E, de si para si, estava encantado de saber que
a sua interlocutora tinha lido Werther.
Magdalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe:
―Então que lhe parece esta nossa aldeia?
―Um jardim. Hontem, ao chegar, confesso que
me foi desagradavel a impressão recebida. Nem
admira; a noite, o frio, a chuva, o cansaço. Esta
manhã, porém, a
transformação foi completa. Estou
encantado, fascinado! N'uma palavra, minha senhora,
eu, cidadão em corpo e alma, reconciliei-me em
poucas horas com a vida do campo.
―Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados,
qualidades ou defeitos de educação não
se
[65]
perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará
por Lisboa outra vez.
―Talvez não. Hoje estou até em acreditar que
tinha razão o doutor, que me prometteu a cura das
minhas doenças, se me costumasse devéras a estes
habitos campestres.
―Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?
―Por que não? Hoje já almocei ás sete
horas,
já andei mais do que uma semana inteira ando em
Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da terra.
―As raridades?! E que raridades são essas que
inda tem para vêr? A nossa pobre aldeia não lhe
merece essa ironia.
―Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do
quasi nada que d'ella observei esta manhã, parece-me
até...
―Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada
passo se encontra um ponto de vista, que nos obriga
a uma exclamação. Mas ha por ahi certos
cicerones,
que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas
da arte. Peça a Deus que o livre d'esse flagello.
―v. ex.
a assusta-me. Embora; se lhes cair nas
mãos, farei por achar curioso o que elles acharem.
Vae ser esse o meu systema de cura. Interessar-me
por tudo o que a um homem da aldeia interessa.
Foi o regimen que me prescreveu o medico, quando
me receitou o campo, a titulo de emolliente; se o
seguir, salvo-me.
―E não o diga a rir. Se quizer prender-se á
aldeia,
abjurar os attractivos da cidade, deve rustificar-se
em tudo; principiar por cultivar o interesse
por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo,
declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia
ou pela junta de parochia contra o abbade; ralhar
do regedor na questão com os taberneiros ou defendel-o.
Emquanto não chegar a isso, desconfie da
sua acclimação.
[66]
―Farei por conseguil-o o mais depressa possivel.
Outra coisa necessaria é deixar-me convencer
ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito das
notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em
perpetua admiração deante de uns certos nomes
famosos
que ha sempre em todas as terras pequenas,
e que nos atiram á cabeça a cada momento.
Por exemplo, aqui já sei de um, com que encherei
a bôca a proposito de tudo; é o de uma celebre
morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço
falar, desde que puz os pés, ou por mim a alimaria
que me trouxe, n'este productivo torrão.
Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo
isto.
―Então com que, tem ouvido falar muito n'essa
morgadinha?
―Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora.
Não ha pinhal, quinta, azenha, choça
ou lameiro que não pertença a essa entidade, para
mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos,
como um estribilho de cantiga popular; na
estrada, nos campos, em casa de minha tia, na loja
do correio, em toda a parte o ouço pronunciar. Parece
que voga nos ares.
―Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer
a pessoa.
―Qual! tem-me impacientado a ponto de nem
perguntar por ella. E demais parece-me que a estou
a vêr.
―Ora diga. Então como a imagina? Annica, não
tens ahi um guardanapo?
―Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e
está dicto tudo; uma senhora nutrida, a rever saude
por todos os póros, encarnada como uma romã,
sobre quem os vestidos á moda assentam como
pendurados de um cabide, as mãos cheias de anneis,
meias luvas de retroz, um chapéo com uma
cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça...
v. ex.
a ri-se? Acertei?
[67]
―Parece-me que sim; mas julgue-o por si já
que tem á vista o original.
―Como?!
―A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.
―Vossa Excellencia!...
Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do
mundo, esteve por muito tempo sem saber como
sair da situação em que se puzera.
Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos
riam, por contagio, sem saberem de quê. Tudo augmentava
pois a confusão de Henrique.
―Ora confesse―insistia cruelmente Magdalena―confesse
que o está lisonjeando a exactidão das
suas conjecturas.
Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do
bolso a carteira, em que, horas antes, esboçára
rapidamente
a figura esbelta da morgadinha, rodeada
das mulheres do povo, e mostrando-lh'a, disse:
―Veja v. ex.
a se esse esboço, apesar
da sua
imperfeição,
está de accordo com a estupida
concepção,
que eu formára.
Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.
―Ah! desenha?
―Quando os modelos tentam, tenho d'essas ousadias.
Os resultados são lastimosos, como estes.
Perdôe-me o original, que julguei possivel copiar, o
desacato, mas...
Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.
―Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo
advertil-o de uma coisa, sr. Henrique de Souzellas.
Não ha nada tão mal empregado como uma fineza
no campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez
o achasse pouco delicado... ou pelo menos
pouco amavel, se me não dirigisse d'essas phrases
conceituosas e bonitas. Vive-se d'isso lá. Aqui acho-as
affectadas e inuteis... Que quer? Influencias da
scena. Ha tanta semceremonia no campo! Aqui todos
[68]
nos tratamos como parentes: ha de vêr. Não
repara como eu o recebo n'uma sala de jantar, sem
nem sequer tirar os babeiros a estas creanças?
Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa...
―Então v. ex.
a já
lá esteve?
―Eu nasci lá e lá me eduquei.
―Ah! bem se vê.
―Ah? Ahi está um
ah, que
eu desejaria muito
que me explicasse.
―Não me será difficil fazel-o. É que
antes já de
ouvir falar v. ex.
a, só ao
vêr certa
distincção, certa
elegancia de maneiras, conjecturei...
―Basta. É um
ah
portanto, que tem umas poucas
de más qualidades.
―Devéras? Uma interjeição
tão innocente!
―Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante
da nossa lingua; tudo exprime, a hypocrita.
O seu
ah é vaidoso,
adulador e iniquo pelo menos.
Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia
que ainda se abrigue no seu coração lisbonense; a
adulação competia-me castigal-a, mas
perdôo-lh'a
porque quero ainda suppôr que é um symptoma da
doença das cidades, a meu vêr, a principal
doença,
que o obrigou a procurar a aldeia; da iniquidade,
da injustiça, que faz á
educação que se pode dar na
provincia, ha de convencer-se dentro em pouco,
quando eu lhe apresentar minha prima Christina,
uma rapariga, que tem vivido aqui sempre e que
protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto
pode dar de bom a educação das cidades, e, o que
mais vale, aquillo que lá é tão facil
perder-se depressa,
uma candura adoravel. É a irmã mais velha
d'estas creanças―accrescentou, pousando a
mão na cabeça dos pequenos, que comiam e
conversavam
um com o outro.
―Mas v. ex.
a...
―Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no
caminho das admoestações, permitta-me mais uma,
antes de perder o ar grave, que hei de por força
[69]
ter. Não me sôa bem o impertinente tratamento de
excellencia, que me dá. Essa excellencia está a
pedir-me
uma senhoria, pelo menos, e, confesso-lhe ingenuamente
que me custaria a voltar na lingua uma
palavra tão comprida.
―Como quer então que a trate?
―Eu sei?... Olhe, uma ideia! Ha pouco não me
comparou á Carlota de Goethe? Deixe-me pois adoptar
uma lembrança d'ella. Está certo de que tratou
o Werther por primo, a primeira vez que lhe
falou? É um tratamento como outro qualquer; e
entre nós mais justificado, porque sendo o sr. Henrique
sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando
minha tia Victoria, a mãe d'estes pequenos e de
Christina, que D. Dorothéa é ainda uma especie de
nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a final
de contas vimos a ser uma especie de primos
tambem. Pelo menos assim o sustentou e decidiu
hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como por
primo o tratará! É um tratamento menos
incómmodo;
eu chamar-lhe-hei primo Henrique; chamar-me-ha,
se quizer, prima Magdalena, e desterraremos
para sempre a antipathica senhoria e excellencia;
concorda?
―Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos
o principio falso, admittido pela fidalguia em
Portugal, de que «os primos dos nossos primos,
nossos primos são.»
―Fica pois ajustado?
―Fica ajustado.
―Bem. Mas que ia dizer ha pouco?
―Nem eu já sei... Ah!... Perguntava se tinha
estado muito tempo em Lisboa e o que a obrigou
a vir viver para aqui.
―Isso é nem mais nem menos do que pedir-me
a historia da minha vida. Seja; é um sacrificio inevitavel
a quem se vê pela primeira vez. Deixe-me
primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.
[70]
E, depois de partir a cada creança uma fatia de
queijo, a morgadinha principiou:
―A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se.
Eu sou filha de Manuel Bernardo de Mesquita
e...
Este nome era o de um dos principaes vultos
politicos da época, e que então militava no campo
opposicionista, sendo indigitado para ministro na
primeira reforma ministerial, homem influente, de
grande capacidade politica, tendo sempre advogado
no parlamento as ideias mais liberaes, e militado no
partido progressista.
Henrique de Souzellas, que conhecia todas as
personagens de importancia no paiz, fitou Magdalena
com olhar estupefacto: tão longe estava de encontrar
alli a filha de um futuro ministro.
―Filha do conselheiro Manuel Bernardo! v. ex.
a?
―Excellencia! Esquece-se da nossa convenção?
Repare! É verdade. Não sabia que meu pae era
d'aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda actualmente
n'um collegio em Lisboa, somos os unicos
filhos de meu pae. Nasci, como disse, em Lisboa,
mas as continuas enfermidades de minha mãe fizeram-nos
vir para aqui viver na companhia d'ella;
aqui mesmo morreu, e aqui está sepultada. O Angelo
nasceu já n'esta casa. A morte de minha mãe
deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a
educação que ella principiára a dar-me
e para a
qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui pois obrigada
a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha
educação. Mas, ao chegar á idade dos
quinze
annos, receiando meu pae que os ares da cidade
desenvolvessem em mim germens de molestia, que
porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez
para aqui, onde sempre passava alguns mezes no
anno, e para onde me chamavam tambem habitos
adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para
aqui vim pois. A morte de meu tio, passado pouco
tempo, impressionou profundamente a minha tia
[71]
Victoria, que ficou desde então um pouco... um
pouco... com pouca paciencia para olhar por as
coisas domesticas. Isto creou-me novos deveres;
havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que
estão lá dentro, e Christina, que era
então creança
tambem; occupei-me a ajudar minha tia.
―E tão admiravelmente, que a mais carinhosa
mãe o não faria melhor.
―Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu
pae devo, em parte, o ter aprendido cedo esta sciencia.
Porque é uma sciencia tambem.
―Então como procedeu o conselheiro para a ensinar?
―Eu lhe digo. Meu pae tem em certas coisas
umas ideias muito singulares. Excellentes as acho
eu. Oh! não imagina que boa e excellente alma é a
de meu pae! Era eu uma
creança, tinha onze
annos, talvez, quando elle, um dia, vindo de Lisboa
passar aqui algum tempo comnosco, me trouxe
uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de
Nuremberg. Nos primeiros dias não me fartava de
a vêr, de a beijar, até commigo a deitava. Oito
dias
depois succedia o que era de esperar, já nem d'ella
sabia. Meu pae notou-o.―Então, Lena―aqui todos
me chamam assim―já não gostas da tua
boneca?―Disse-lhe
eu: Gosto, mas...―Bem sei, já
fizeste tudo o que tinhas a fazer por ella, e como,
pela sua parte ella nada faz por ti, enfastias-te, canças-te
de conceber, a cada momento, brinquedos
novos. Tens razão; onze annos já não
é idade em
que o interesse se sustente com tão pouco, é
necessario
mais. Ora dize-me, Lena,―continuou elle―se
eu te mandasse vir uma boneca que movesse
os braços e os olhos, que te sorrisse, que chorasse
tambem, que te beijasse até...―Pois ha bonecas
assim?―perguntei eu, admirada.―E desejaval-a?―Oh!
se a houvesse!...―Trago-t'a ámanhã.
Não
dormi aquella noite a pensar na boneca. No dia seguinte
apresentou-me meu pae uma creança de um
[72]
anno, orphã de uma pobre familia, que uma epidemia
extinguira, e disse-me:―Ahi tens a boneca
que te prometti, Lena; vou confial-a aos teus onze
annos. Veremos se tens juizo para brincares com
ella. É assim que eu quero que aprendas os deveres
de mãe, que é a verdadeira sciencia apropriada
a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o
desgosto dos primeiros momentos, porque o tive,
confesso, costumei-me a querer áquella pobre
creança,
fui avara nas suas caricias, troquei por ella todos
os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a
morte, quando, um anno depois, ella me expirou
nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia educada
para amar creanças.
Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem
a menor affectação, sem deixar até de
attender aos
primos, o que augmentava o interesse com que a
escutava Henrique.
―E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos
Cannaviaes―concluiu ella, desatando o babeiro das
creanças, que tinham terminado o
lunch.
―É verdade, mas d'onde lhe vem este titulo singular,
prima Magdalena?―perguntou Henrique, tomando
ao collo uma das creanças, que a morgadinha
pousou no chão.
―É que eu sou realmente a morgadinha dos
Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na
quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui
perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito
caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes.
Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse,
me havia de levar comsigo; d'ahi começaram
a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando
ella morreu deixou-me tudo quanto possuia;
n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de
que sou proprietaria ainda. Foi uma como
confi
―É que eu sou realmente a morgadinha dos
Cannaviaes. Quero dizer, minha madrinha vivia na
quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui
perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito
caprichosa; chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes.
Tomou-me ella affeição, e, sempre que passeiasse,
me havia de levar comsigo; d'ahi começaram
a chamar-me de pequena a morgadinha. Quando
ella morreu deixou-me tudo quanto possuia;
n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de
que sou proprietaria ainda. Foi uma como
confirmação
do titulo, que já desde creança me tinham
dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo
na verdade pouco elegante e que tão mau conceito
[73]
fez conceber ao primo Henrique da possuidora
d'elle.
―Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei
a pessoa a quem elle pertence, parece-me outro.
Acho-o bonito, gracioso...
―Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é
dos mais romanticos e que, de boa vontade, escreveria
outro nome debaixo do desenho de phantasia
que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde
e fiel jumenta, que eu montava ha pouco, a
conformação
e orelhas elegantes de um palafrem, e quasi
me transformou em uma amazona ingleza.
Henrique respondeu, sorrindo:
―Na impossibilidade de reproduzir as graças
naturaes, soccorri-me ao expediente das bellezas de
convenção. Confesso o meu deploravel erro.
―Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique.
Repare para essas arvores e refreie o sestro
galanteador, com que está.
―Por quem é! Não leve o rigor a tal extremo.
Tão injusta é comsigo, que se recuse a acceitar,
como naturaes e sinceras, as phrases que a sua
presença inspira?
―Ai, meu Deus, como refina! Veja como essa
creança, que tem no collo, o está encarando com
os olhos espantados. Se ella nunca ouviu falar assim
aqui!
Henrique beijou as faces da creança, movimento
em que não ia uma intenção menos
lisonjeira do
que nas phrases que dissera, porque elle percebia
que Magdalena era extremosa pelos seus pequenos
primos.
Abriu-se, n'este meio tempo, a porta da sala, e
entrou, saltando, outra creança mais crescida, mas
ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma folha
de papel.
―Lena―dizia ella em alta voz.―Olha; queres
vêr o que o sr. Augusto só me emendou hoje no
thema francez?
[74]
Chegando ao meio da sala, parou a olhar com estranheza
para Henrique.
―É o sr. Henrique de Souzellas―disse Magdalena.―O
hospede da tia Dorothéa. Esta é Marianna,
outra de minhas primas―accrescentou, voltando-se
para Henrique.―Já vê que não faltam
creanças
n'esta casa; e ainda ha mais. É o que lhe dá o
ar alegre que tem.
Marianna cumprimentou Henrique e não se constrangeu
por mais tempo; mostrando á prima a
composição
que o mestre lhe emendára, disse:
―Ora vê que não tive muitos erros.
Magdalena sorria, examinando o thema.
Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Marianna,
quando á mesma porta, por onde ella entrára,
appareceu o mestre, de quem se falava.
Augusto, que assim se chamava o recem-chegado,
era um rapaz de pouco mais de vinte annos de
idade; de rosto pallido e physionomia intelligente.
Ninguem adivinharia n'aquelle typo um mestre-escola
de aldeia.
Trajava com simplicidade, porém com asseio e
gôsto, e havia em toda a sua figura certo ar de
distincção,
que feria quem pela primeira vez o visse.
N'um leve pendor de cabeça, no olhar penetrante
e fixo, e nos labios, como habituados a fecharem-se
á saida dos pensamentos intimos, lia-se o caracter
pouco expansivo d'aquelle adolescente.
Magdalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta
deferencia.
―Como vão os seus discipulos, sr. Augusto?
―Optimamente, minha senhora―respondeu o
interrogado.
―O sr. Augusto―disse Magdalena, apresentando-o
a Henrique―o primeiro mestre de meu irmão
Angelo e hoje mestre de Marianna e Eduardo.
―Esquece-se, minha senhora,―accrescentou
Augusto―que de Angelo sou discipulo tambem, e
mais discipulo do que fui mestre.
[75]
―Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não
devia, foi de que de Angelo é effectivamente mais
do que mestre, é amigo; assim como de todos nós.
Este senhor―continuou ella, concluindo a
apresentação―é
o senhor Henrique de Souzellas, que se
esperava em Alvapenha; é ainda nosso primo.
Os dois cortejaram-se com affavel delicadeza.
―Teve carta de Angelo?―perguntou em seguida
a morgadinha.
―Não recebi ainda o correio de hoje.
―Nem nós; e é de estranhar que meu pae pelo
menos não me escrevesse! Angelo não
virá passar
a festa comnosco? Pobre rapaz! Parece que renasce
quando se vê aqui. É uma perfeita
creança
então.
Eduardo, outro primo de Magdalena, que Henrique
ainda não vira, entrou n'este momento na sala,
trazendo um masso de cartas na mão. Depois de
cumprimentar Henrique, a quem Magdalena o apresentou,
disse para Augusto:
―A mamã deu-me essas cartas para o sr. Augusto
escolher d'ahi aquellas que eu pudesse ler.
―Eu verei devagar―disse Augusto, guardando-as
n'uma pasta que trazia.
―Ah! já temos o Eduardo a ler cartas!―disse
a morgadinha, afagando o primo.
―Pelo que vejo―disse Henrique de Souzellas,
vendo Augusto em disposições de partir―tem uma
vida muito occupada?
―E tanto que sou obrigado a pedir licença para
me retirar. Tenho de ir esta tarde a casa do Seabra...
―Ai, lecciona ainda as pequenas do brazileiro?―perguntou
Magdalena.
―Ainda, sim, minha senhora.
―E como vão essas mulatinhas?
Augusto encolheu os hombros, sorrindo; gesto
que não devia lisonjear a vaidade do sobredicto
brazileiro, se tomasse a peito os dotes intellectuaes
das referidas mulatinhas.
[76]
Passados segundos,
Augusto retirou-se, apertando
a mão a Magdalena que familiarmente lh'a estendeu,
e a Henrique, que a imitou.
―Ia apostar que vae alli uma intelligencia―disse
Henrique ao vêl-o sair―algum d'esses grandes
espiritos, que vivem e morrem ignorados e
improductivos, porque os não aquece o sol do favor
publico, nem os bafeja a aura da moda caprichosa.
É terra de maravilhas esta, ao que estou
vendo.
―É um rapaz intelligente, é―disse a
morgadinha―e
uma alma generosa. Desde tenra idade
costumou-se a trabalhar. Não tem familia. O pae
foi um pobre e honrado advogado de um logar perto
d'aqui, que morreu quasi na miseria, deixando-o
por educar. A mãe, que era d'estes sitios, para ahi
veio, depois que viuvou. Elle tem sido, pode dizer-se,
mestre de si mesmo. Dirigiu os primeiros estudos
de Angelo e hoje é o seu melhor amigo. A morgada,
minha madrinha, legou-lhe um patrimonio
para elle se ordenar: não quiz, e preferiu ser
mestre-escola.
Meu pae, que lhe reconhecia intelligencia
para mais, tentou dissuadil-o d'isso, mas nada
conseguiu. Não ha quem o arranque d'estes sitios.
―Prende-o talvez alguma paixão?
―Não sei. É certo que é um professor
modelo.
O seu primeiro despacho foi temporario; agora,
porém, espera meu pae fazel-o effectivo; para o que
já elle fez novo concurso. Já vê que
ambições são
as d'este rapaz.
―Na verdade! com muito menos fundamentos
ha quem aspire a ser ministro. Mas com certeza o
coração entra como elemento no problema d'esse
caracter.
―Mas ainda agora reparo!―exclamou a morgadinha―eu
esquecida a conversar, e sem avisar
a minha tia e Christina da sua chegada! Não o fiz
logo, porque as sabia occupadas em umas longas
novenas, em que andam; mas agora é tempo. Vae,
[77]
Marianna, e tu, Eduardo; ide ambos dizer-lhes que
está aqui o... o primo Henrique de Souzellas.
Marianna e o irmão sairam a correr.
―Vae conhecer duas boas almas―disse Magdalena,
voltando-se para Henrique―minha tia é uma
santa senhora, cujo peor defeito é suppôr-se
victima
dos criados; e Christina... Christina é um anjo.
V
Henrique de Souzellas sentia-se cada vez mais
penetrado da sympathia, que logo á primeira vista,
aquella mulher lhe despertára.
Havia na morgadinha um mixto de candura e de
ironia, certa delicada reserva fluctuando, como uma
sombra diaphana, na conversa familiar, a que tão
espontaneamente se dava; um visivel conhecimento
dos usos e etiquetas sociaes, e ao mesmo tempo
uma coragem para cortar por elles, como quem se
sentia sobranceira a toda a ousadia, inaccessivel ás
suspeitas dos mais atrevidos: havia tantos enygmas
n'aquella sympathica indole feminina, que poucos
seriam impassiveis deante d'ella.
A pensar n'isto se ficou Henrique de Souzellas,
calado, immovel, absorto, seguindo com os olhos
os movimentos de Magdalena, que, sem o menor
constrangimento, proseguia nas suas occupações
domesticas.
Ouviram-se finalmente passos e vozes de differentes
timbres na sala immediata.
―Ellas ahi veem―disse a morgadinha.
De feito, precedidas por Marianna e Eduardo, entraram
na sala D. Victoria e Christina.
A mãe vinha dizendo:
―É o que eu digo... Não que vocês
não querem
[78]
crer! Ora vejam se isto se atura... se isto não
é para metter uma pessoa no inferno!... Não tem
que vêr!... Não ha ninguem que mais dinheiro
gaste com criados e que seja tão mal servida como
eu!... Eu só queria saber o que fazem os criados
d'esta casa? Sim, só queria que me dissessem o
que elles fazem, esse bando de mandriões!... Elle
é o Torquato, elle é o Luiz, elle é o
Damião, elle é
a Ermelinda, elle é a Rosa, elle é a Violante...
e
não havia um só que me viesse dizer que tinha
chegado
o primo! É forte coisa!... Compromettem
uma pessoa! Então como está?―accrescentou ella,
mudando de tom para cumprimentar Henrique, a
quem estendeu a mão.
Magdalena, ao ouvil-a, tinha já trocado com este
um olhar malicioso.
Henrique correspondeu delicadamente á
saudação
das senhoras e procurou justificar os criados.
―Não m'os desculpe,―atalhou D. Victoria, elevando
outra vez o tom de voz―aquillo é de proposito
para fazerem ficar mal uma pessoa; ninguem
me tira isto da cabeça... Aquillo é de proposito!
―Mas a mamã não vê que as criadas
estavam
comnosco á novena?―lembrou timidamente Christina.
―Pois que não estivessem. Quem tem serviço a
fazer não pode ouvir novenas.
―Mas se a mamã é que as mandou!
―Pois sim... pois sim... mas... mas ellas é
que me deviam dizer que tinham que fazer. Então
eu é que lhes hei de estar a lembrar as suas
obrigações?
Não me faltava mais nada! Ora tens coisas,
menina! Mas então vamos a saber, primo Henrique,
fez bem a sua jornada?
Henrique principiou a falar para desvanecer a
irritação
de D. Victoria.
Como nós já sabemos dos pormenores da tal
jornada,
aproveitaremos a occasião para dizer duas palavras
[79]
a respeito das novas personagens, que estão
em scena.
D. Victoria, havendo attingido já a idade respeitavel
dos quarenta e tantos annos, dispensa-nos
grandes longuras e esmeros de descripção. Basta
que o leitor saiba que era uma senhora nutrida,
bondosa no fundo, e que sabia muito bem trazer os
vestidos escuros da sua viuvez. Impertinente com
os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito
sujeita a esquecimentos, e confundindo-se facilmente
sempre que tentava forçar o espirito a abraçar
alguma
ideia mais complexa; mãos rotas com a pobreza;
intolerante, em theoria, com os ladrões e
malfeitores, porém felizes d'elles se d'aquellas
mãos
lhes dependesse a condemnação; eis o que era
D. Victoria. Christina, porém, tinha dezenove annos;
e esta idade gosa de privilegios, que eu não
posso infringir. O leitor não me perdoaria se me
visse passar estouvadamente por deante da prima
de Magdalena, sem um olhar de homenagem á sua
juventude e ao seu typo feminino. Reparemos pois.
Christina era mais bonita do que bella. Não havia
n'aquelle rosto uma só feição, que
não fôsse
correcta e delicada. Tez alva e finissima; olhos meigos
e quebrando-se com suavidade infantil; bôca,
d'onde parecia sempre prestes a sair um afago ou
uma consolação; voz, que da muita piedade
d'aquelle
bom coração, tirava ás vezes
modulações commoventes;
n'uma palavra, uma figura de cherubim,
como as sonharam os mais inspirados artistas, cuja
mão representou na téla os augustos mysterios do
christianismo, tal era a primogenita de D. Victoria.
Mas não procurassem n'ella alguns d'aquelles attractivos,
que fixam de repente e como por magnifico
influxo, a attenção dos olhos, uma d'essas
particularidades
physionomicas, pelas quaes a natureza,
destruindo com arrojo feliz a geral harmonia de um
semblante, consegue tornal-o mais fascinador; temperavam-se
alli tão completamente todas as
feições,
[80]
que a attenção não se sentia obrigada
a passar do
conjuncto d'ellas, o que lhes diminuia muito a intensidade.
É o grande senão dos rostos harmonicamente
perfeitos.
Concordava-se em que Christina era galante, ninguem
lhe negaria sympathias; mas o pensamento
na ausencia d'ella, não se sentia dominado por a
sua imagem: perdia-a até n'um vago, quando pretendia
fixal-a: eram suaves de mais as inflexões
d'aquelles contornos, brandas as tintas que lhes davam
relevo, para que a memoria conseguisse reproduzir
facilmente o typo angelico, de que lhe ficára
uma agradavel, mas vaga impressão.
Por um homem, em quem predominasse a razão,
Christina poderia vir a ser adorada; mas nas
imaginações
ardentes, nos corações inflammaveis, difficil
lhe seria produzir alguma impressão duradoura.
Para bem se comprehender a belleza de Christina,
era preciso sondar-lhe primeiro o coração,
apreciar
todo o thesouro de sentimentos que alli se continha;
então descobrir-se-lhe-hia nas feições
certa belleza
ideal, reflexo de bondade e candura, uma d'essas
claridades que as almas puras e generosas vertem
nas physionomias. Se não fôsse receiar-me de
linguagem
que saiba a philosophia, diria que a belleza,
que possuem umas mulheres assim, é uma
belleza subjectiva.
De tudo isto é natural concluir que Henrique de
Souzellas podia sympathisar com a candida figura
de Christina, a qual baixava timidamente os olhos
deante d'elle, córando cheia de enleio e
confusão,
mas que qualquer sentimento que ella lhe inspirasse,
não conseguiria por muito tempo desviar-lhe o
sentido dos encantos mais attrahentes da morgadinha―que
a muitos respeitos, menos na bondade de coração,
formava contraste completo com sua
prima.
Travára-se animada conversação entre
as pessoas
presentes, e principalmente entre Henrique, D. Victoria
e Magdalena.
[81]
D. Victoria quiz ser informada da doença de Henrique.
Este passou a fazer-lhe uma exposição igual,
com pequenas variantes, á que fizera á tia.
Mencionou, como a ella, aquelles vagos symptomas,
aquellas tristezas, impaciencias e desalentos,
que tão ingenuamente a boa senhora classificára
como mania.
Emquanto Henrique falava, Magdalena poz-se a rir.
Henrique tornou para ella os olhos.
―Ó menina, de que ris tu?―perguntou D. Victoria,
com certo tom de severidade.
―Rio-me d'aquella doença, tia. Pois já viu
alguem
padecer d'aquillo? Ora diga?
―Eu?... mas...
―Pode dizer que não. E comtudo o primo Henrique
não mente. Ha d'aquellas doenças na cidade,
ha; mas na aldeia são tão raras, que eu mesma as
estranho já, eu que as vi em outro tempo...
―Então não crê na realidade d'ellas.
―Não lhes estou a dizer que sim? Ouço
até que
já teem levado ao suicidio. Acredito-o. Os habitos
da civilisação affeiçoam a seu modo a
natureza humana
e criam molestias novas, que nem por isso
são menos naturaes. Mas que quer, primo? A minha
estranheza, ao vêr um d'esses doentes em plena
aldeia, não é modificada por todas essas
considerações.
É como um homem de casaca e gravata
branca; não ha nada mais sério e mais grave n'uma
sala de baile, mas colloque-m'o n'um monte, e diga
se o pode olhar a sério.
―Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob
pena de zombarem de mim.
―Tanto não digo; mas não o
entenderão; isso
não.
―Porém a minha doença não
é só d'essas, que
se não dão na aldeia, prima Magdalena; eu creio
que verdadeiras desordens organicas...
―Ah! tambem?―Com esse aspecto de robustez?!...
[82]
―Se eu sei o que tu estás ahi a dizer Lena!―disse
D. Victoria, que não tinha percebido bem o
dialogo.
―É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao
primo Henrique todos os maus habitos da cidade,
com que veio para aqui. Sem isso não pode curar-se.
―Sujeitar-me-hei da melhor vontade a tão agradavel
dominio.
―Principia mal, se principia com uma fineza. Já
o avisei ha pouco...
―Será necessario tornar-me grosseiro, para me
salvar? N'esse caso renuncio á cura.
―Grosseiro, não; basta que seja razoavel e sobretudo...
―Acabe.
―Acabo? eu sei? Eu ás vezes sou sincera de mais.
―Eu adoro as sinceridades.
―Já que o quer... É preciso que seja razoavel
e sobretudo... desaffectado.
Henrique de Souzellas mordeu ligeiramente os
labios, córando.
―Então acha?...
―Acho que está sempre a imaginar-se n'um salão;
faz uns gastos de galanteria, desnecessarios e
perdidos.
―Ó meninos, eu não vos entendo―repetia D.
Victoria.
Magdalena sorriu.
―Digo eu que...
Um criado entrando com as cartas do correio
não a deixou continuar.
―Sempre chegou o correio!―exclamou Magdalena
com vivacidade, recebendo as cartas.―Por que
veio tão tarde?
―A mulher contou-me lá umas historias de uma
quéda, e...
―Coitada! Aconteceu-lhe algum mal?
―Esteja descançada, minha senhora. Ella
partiu
já e era um gôsto vêl-a a correr.
[83]
Magdalena abriu com pressa a carta recebida.
―É de meu pae―disse ella, olhando-lhe para a
lettra e, depois de pedir licença, começou a ler
para si.
―Pois agora―dizia, n'este meio tempo, D. Victoria
a Henrique―o que deve é aproveitar estes
bonitos dias para dar alguns passeios. As pequenas
acompanham-n'o. Aonde me dizias tu no outro dia
que querias ir, Christina?
―Eu! disse Christina, córando.
―Tu, sim, menina. Inda hontem me falaste n'isso.
Ora onde era?...
―Á Senhora da Saude, mamã.
―Ai, é verdade, á Senhora da Saude. Ahi
está já
um passeio bonito. Vê? Saem d'aqui uma manhã
cêdo, levam alguma coisa para lá comer, porque o
ar do monte abre o appetite, e a cavallo estão lá
n'um instante...
―A cavallo, mamã! d'aqui á Senhora da Saude?
Ora! Vae-se muito bem a pé―notou Christina do
lado.
―Isso é por os açudes.
―Pois por onde haviamos de ir?
―Por a Granja, que é melhor.
―Por a Granja! É uma legua!
―Que tem? mas escusam de trepar como cabras
por o lado dos açudes, que é até
perigoso; e depois
para que hão de ir a pé, se para ahi
estão os cavallos
sem fazerem nada? É vontade de se cançarem.
―Mas appetece ainda mais n'este tempo. Só se...
só se alli o sr. Henrique...―disse Christina,
embaraçada
ao continuar.
―Eu o quê, minha senhora?
―Perdão―interrompeu D. Victoria.―Por que
não has de tu chamar primo ao primo Henrique?
pois não chamamos tia á tia Dorothéa?
―Por isso mesmo, mamã,―respondeu Christina―os
sobrinhos da tia Dorothéa não são...
[84]
―Não averiguemos d'esses parentescos, priminha,―acudiu
Henrique―eu acceito a proposta da
mamã, peço para ser considerado do numero de
seus primos.
Christina baixou os olhos, sorrindo.
Henrique proseguiu:
―Mas parece que receiava por mim, quando falou
em ir a pé á Senhora da Saude. Não sei
onde
é o logar, mas desde já me comprometto a
não
cançar.
―Não tem que saber―disse D. Victoria, caminhando
para uma janella.―Ella lá está. Olhe que
inda é necessario saber trepar.
―Tendo duas tão galantes companheiras de viagem―tornou
Henrique, depois de reparar no monte
escarpado que ficava a alguma distancia d'alli, o
mesmo que o almocreve lhe mostrou―parece-me
que daria a pé uma volta ao globo e que subiria a
correr o Pico de Tenerife.
―O que eu lhe digo, primo―accrescentou D. Victoria―é
que se acautele, porque se lhes vae a
fazer todas as vontades, tem que vêr.
―Inda que morresse em tão agradavel serviço,
teria de agradecer a Deus a morte.
―Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento―disse
Magdalena, que continuava a ler.―Logo ajustaremos
contas.
―É implacavel esta nossa prima, não
acha?―perguntou
Henrique, sorrindo, a Christina, que por
unica resposta só soube sorrir tambem.
―Pois então, é arranjarem, é
arranjarem isso e
quanto antes, que não ha que fiar no tempo. Eu se
pudesse tambem ia, mas já não são
passeios para
mim, e depois estes criados...
Henrique de Souzellas receiou nova divagação
sobre o assumpto predilecto de D. Victoria; mas
felizmente acudiu-lhe a morgadinha, que disse, terminando
a leitura da carta:
―Escreve-me o pae que tenciona vir passar comnosco
[85]
as ferias do Natal e trazer Angelo comsigo.
Promette demorar-se até o dia dos Reis.
As creanças saudaram a nova com gritos de alegria,
e saltos de causarem inveja a um clown de
circo.
D. Victoria zangou-se.
―Então que pouca vergonha é essa? Parecem-me
um bando de patetas! Ora vamos! Já quietos.
A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter
levado para a quinta. Ó Senhor, esta praga de criados,
que nunca ha de fazer a sua obrigação!
As creanças reprimiram um pouco mais as expansões
de seus jubilos, mas ainda ficaram cantando
a meia voz, em musica de composição d'ellas,
o seguinte:
―Vem o primo Angelo! Vem o primo Angelo!
Ora viva, viva! Ora viva, olé!
―Pschiu! Calae-vos!―bradou ainda D. Victoria;
e voltando-se para Magdalena:―Mas então como
se entende isso, Lena? Então o pae diz que vem...
―Nas vesperas do Natal.
―Sim, nas vesperas do Natal, e vae...
―Depois dos Reis.
―Sim; está bem; e... sim... e então o Angelo?...
―O Angelo vem com elle. Quer vêr a carta?
―Não, menina. Mas é preciso não fazer
confusão...
Então...
―Não ha nada menos confuso... É só
isto.
―Sim; pois agora, sim; agora está bem claro.
Calae-vos, diabretes! Ó meu Deus, que
consumição!
Mas então por que não entregou o criado ha
mais tempo essa carta? Eh! não que vocês dizem
que elles...
―Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das
cartas que se demorou, porque...
―Historias! Não me venham para cá com esses
contos. Vocês estão sempre promptos para
desculpal-os.
São elles...
[86]
―Ó Lena, Lena―diziam as creanças―o primo
Angelo não torna para Lisboa?
―Ha de tornar.
―Ora!
―Olha lá, ó Lena―disse D. Victoria―sabes tu
o que me lembra?... Mas eu nem sei... com estes
criados que tenho... Mas a mim lembra-me...
uma vez que teu pae vem com o pequeno... e...
está agora cá o primo Henrique... lembra-me a
mim... mas, já digo, era se eu pudesse contar com
os criados que temos... lembra-me, juntarmo-nos
todos para consoar... A prima Dorothéa tambem,
e aqui o primo; mas era se...
Uma perfeita ovação acolheu o projecto; as
creanças levaram as suas demonstrações
de enthusiasmo
até o delirio, penduraram-se ao pescoço,
á
cinta, ao avental da mãe, gritando todas a um
tempo:
―Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia
Dorothéa,
mande! E ha de ficar em casa, sim? Olhe
e... e arma-se o presepe... e... e... e havemos
de cantar as janeiras... Mande, mande, mamã, por
as alminhas; ora mande.
D. Victoria fingia arrenegar-se com aquella pequenada,
e erguia o braço, como para a fustigar
asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe
o riso dos labios.
―Saiam d'aqui!―exclamava ella, quando conseguiu
estar séria.―Saiam!... Não ouvem?...
Espera que eu vos falo... Ai, não fazem caso? Ora
esperem... Marianna, já devias ter mais juizo...
Então, Eduardo! Tu tambem? Não tem vergonha!
Um homem quasi! Saiam d'aqui, estafermos!
A ideia das consoadas em familia fôra uma ideia
que a ninguem deixára impassivel. Christina, a timida
Christina, não disfarçou um movimento de
jubilo; as mãos ajuntaram-se-lhe instinctivamente, e
raiou-lhe no olhar suave um fulgor pouco costumado.
[87]
A propria Magdalena não se mostrou superior
áquella tocante puerilidade.
Approximou-se com viveza da tia, e beijando-a
nas faces, disse-lhe affectuosamente:
―Ora ahi está o que é muito bem pensado.
―Pois sim, sim, mas o peor é... os criados―disse
D. Victoria.
―Quem fala n'isso? Na noite de Natal quem
mais trabalha somos nós. Demais, teremos, para
dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da tia
Dorothéa.
―Isso é que é a perola das criadas! Oh! aquella
prima Dorothéa, aquella sua tia, primo Henrique,
é
que teve felicidade! Mas dizes tu... Bem se importam
os de cá com a Maria.
―Não tem dúvida. N'aquella noite quanto mais
barulho e desordem, melhor―aventurou-se a dizer
Christina, com impeto revolucionario.
―Ahi temos outra! Não, filha; isso é que
não.
Para barulhos é que eu já não estou.
Então, não.
―Está resolvido―disse a morgadinha, para cortar
pelas divagações da tia.―Aqui o sr. de
Souzellas―accrescentou,
com maliciosa inflexão―fica
desde já encarregado de transmittir á tia
Dorothéa
o nosso plano e, ao mesmo tempo, officialmente
convidado.
―Acceito da melhor vontade.
―Não sei se o deverá dizer. É preciso
que o
avise de que n'aquella noite todos teem de trabalhar
na cozinha; a ninguem se dispensa, um minuto,
pelo menos, de collaboração nos guisados.
Por isso veja lá....
―Ó menina, tens coisas!―disse D. Victoria.―Deixe-a
falar, primo.
―Não é deixe-a falar. Eu não dispenso
ninguem.
―E eu prometto não me recusar. Promptifico-me
a tornar detestaveis os pratos em que puzer a mão.
Que mais querem?
Foi alegremente acolhida a promessa.
[88]
As creanças, familiarisadas já com Henrique, em
quem tinham adivinhado um humor jovial, o que é
sempre para ellas um motivo de attracção,
trepavam-lhe
já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre
perguntas, difficultando-lhe as respostas.
―Havemos de jogar o rapa, não havemos?
―Havemos de jogar, havemos―respondeu Henrique.
―E o par ou pernão?
―Tambem; tambem havemos de jogar o par ou
pernão.
―E?...
―Tudo, tudo; havemos de jogar tudo.
―Olhe: e sabe contar historias?
―Sei tambem contar historias.
―Então ha de contar-nos, que nós tambem lhe
contamos a da Gata borralheira, a da Maria de pau
e a da Menina com as tres estrellinhas na testa.
―Ora, o sr. Henrique já as sabe―disse, fazendo-se
sisuda, Marianna.
―Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse
que eu as sabia? hei de querer ouvir isso tudo.
―Ó meninos!―exclamou D. Victoria, que até
alli estivera distrahida a discutir com Magdalena.―Então
isso que é? Já para baixo. Ai, se lhes
dá
confiança, está arranjado, primo.
―Deixe-os estar, minha senhora, este contacto
de alegrias é salutar; pegam-se.
―E não o diga a brincar―disse Magdalena―que
tambem confio n'essas creanças para o curarem
dos seus males.
―Então devéras emprehendeu curar-me?
―Com toda a certeza.
―N'esse caso havemos de discutir devagar esse
ponto de pathologia.
―Não havemos, não, senhor. É mau
medico o
que soffre que o doente o interrogue sobre a molestia
e o tratamento. O medico deve ser obedecido
com fé, e cega.
[89]
Christina que, havia muito, defronte de Magdalena,
fazia esforços por lhe chamar a
attenção, resolveu-se
a falar-lhe.
―Lena―disse ella―que te parece a lembrança
que teve ha pouco a mamã?
―A das consoadas? Excellente.
―Não, menina, a do passeio á ermida.
―Ah! Excellente tambem. Marquemos já o dia.
―Quando queres?
―Depois de ámanhã, que é quinta
feira.
―Seja.
―Que diz, primo Henrique?
―Quando quizerem, primas; agora mesmo...
―Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada?
―Pois não viu hoje?
―Ai, pois não! Na aldeia não se chama isso
uma madrugada. É preciso que se levante ás horas,
a que se deitava na cidade.
―Que estás a dizer, Lena?―acudiu Christina.―Deixa-a
falar. Basta que saiamos d'aqui ás cinco
horas.
―Esta innocente Christina! Pois não é o mesmo
que eu digo? Pergunta ao primo Henrique se tinha
costume de se deitar mais cêdo em Lisboa.
―Engana-se, prima Magdalena; lembre-se de
que, ha perto de um anno, sou valetudinario.
―Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que
vejo é que ha por aqui muita indolencia.
―Quem a ouvir falar, ha de julgar que será ella
a mais madrugadora; ora havemos de vêr―disse
Christina.
Magdalena poz-se a rir.
E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou
que se convidasse Augusto, por ser conhecedor
do sitio e poder mostrar os mais bellos pontos
de vista.
Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro,
já retardado uma boa hora ao que promettera á tia
Dorothéa.
[90]
Um criado serviu-lhe de guia até Alvapenha.
Henrique de Souzellas, ao findar aquella manhã,
era inteiramente outro, do que viera para a aldeia.
Todas aquellas horas se haviam passado, sem que
o affligissem os males habituaes, sem que nem sequer
pensasse n'elles. O viver intimo a que assistira,
a troca reciproca de affectos entre os membros
de tão numerosa familia, a franqueza cordial
com que fôra recebido, produziram n'elle uma
impressão
profunda.
Costumado ao viver desconsolador e de gêlo de
rapaz solteiro e só; não passando, nas casas que
visitava, além da sala de visitas, esse palco artificioso
e reservado, onde as familias ante as familias
representavam a comedia social, Henrique estranhára,
mas agradavelmente, o espectaculo, quasi
novo, d'aquelle interior, d'aquelles modestos costumes,
d'aquellas alegrias, que não se envergonham
de apparecer sem reservas nem disfarces. Foi uma
revelação que recebeu. Sorriu-lhe a ideia de ter
um
dia uma familia assim; de viver entre creanças
que lhe trepassem aos joelhos, na companhia de
affectos, que alli via manifestarem-se, e até com alguem
que ralhasse com os criados, á maneira de
D. Victoria.
Escusado é dizer que a imagem da morgadinha
apparecia sempre n'estes quadros que lhe traçava
a phantasia: assim como, nos quadros dos grandes
mestres, apparecem quasi sempre reproduzidas as
feições queridas da mulher que elles traziam no
pensamento e a quem deram assim a immortalidade.
De manhã parecera-lhe a aldeia um paraiso terreal;
completára-o a figura de uma mulher; sem o
sorriso d'ella nem o primeiro homem seria feliz no
eden, onde a mão de Deus o collocára.
―Anda, vagaroso, anda―disse D. Dorothéa a
Henrique, assim que o viu chegar.―Se o jantar tiver
esturro, a culpa é tua.
[91]
―Perdôe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro...
―Ah! foste lá? E então gostaste d'aquella gente?
―É uma familia para o coração.
Passa-se o
tempo alli tão depressa! A morgadinha, sobretudo,
é adoravel!
―Ai, ai; como elle nos vem! Olha lá no que te
mettes, menino! A mina boa é, mas... filho, anda
alli encanto, que ainda ninguem descobriu.
Henrique fitou os olhos na tia Dorothéa, que dissera
isto com certa malicia.
―Que quer dizer, tia?
―Tu bem me percebes. Anda lá, anda. Se fizesses
tu o milagre, se quebrasses o encanto, grande
coisa seria; mas sempre te digo que não tomes a
coisa a peito, que podes aggravar o teu mal.
Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve
um pouco mais preoccupado e distrahido no
resto da tarde.
VI
O leitor, se alguma vez realisou uma viagem na
companhia de qualquer amigo, ha de ter observado
que, durante os primeiros tempos que passam juntos
n'uma terra para ambos desconhecida, tão
alheios ás coisas como ás pessoas, no meio das
quaes se vêem, nem por momentos se soffrem separados;
um segue sempre o outro em todos os
passos que dá, precisa d'elle para communicar-lhe
as primeiras impressões recebidas, e pedir-lhe em
troca as suas; á medida porém que, pouco a pouco,
se vão familiarisando mais com os logares e
com as personagens d'aquelle mundo novo, afrouxa
a constricção d'esses laços, e cada um
principia a
readquirir a independencia individual, que de motuproprio
havia abdicado.
[92]
Um facto similhante nos succede com Henrique
de Souzellas. Encontrámol-o na estrada; na companhia
d'elle entrámos em uma terra, onde tudo nos
era estranho; nada mais natural do que dar o braço
um ao outro, passar juntos a manhã, e fazer, em
commum, as nossas visitas. Agora, porém, que temos
já algum conhecimento da terra e da gente, é
tempo de nos declararmos independentes, e sacudirmos
o jugo de uma companhia forçada, a qual, embora
seja de um amigo estimavel, se é forçada,
é
sempre jugo, em certas occasiões.
Os proprios Castor e Pollux, ou Pylades e Orestes,
penso eu, haviam de ter momentos em que se
desejassem sós; se é que não deviam
aos deuses a
felicidade de possuirem curtos espiritos, o que não
creio.
Deixemos, pois, Henrique de Souzellas entretendo
com a tia Dorothéa a mais pacifica das conversas
que podem auxiliar a digestão de um jantar; deixemol-o
no tranquillo recinto de Alvapenha, e vamos
associar-nos a um dos nossos recentes conhecimentos,
que é Augusto, o mestre de Marianna e
de Eduardo, aquelle pallido rapaz que entrevimos
na sala da casa do Mosteiro.
Ao sair d'alli, Augusto seguiu através de campos
e á beira de vallados, com aquelle ar pensativo que
lhe era peculiar.
O pouco que da historia d'elle soubemos, pelas
palavras da morgadinha, é já bastante para que
nos
não admire a quasi incessante melancolia de Augusto.
Aos vinte annos e sem familia! com intelligencia
e mal podendo, á custa de sacrificios, cultival-a, e
eleval-a á altura das suas aspirações!
Alma generosa
e compassiva, tendo muita vez de limitar-se a
chorar os infortunios que via, porque a pobreza lhe
negava meios de remedial-os!..
não serão estas
ainda nuvens bastantes para toldarem a luz de uma
existencia, embora a juventude as illumine?
[93]
Havia alguns annos que esta disposição para a
tristeza se exacerbára em Augusto. Coincidiu o facto
com algumas circumstancias, que convém referir.
A morgada dos Cannaviaes, madrinha de Magdalena
e de quem viera a esta o nome de morgadinha,
pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia
ao morrer instituido um legado a favor de Augusto,
então creança, com a
condição d'elle abraçar a
vida ecclesiastica. O conselheiro, pae de Magdalena,
devia administrar este legado, educando o rapaz nas
escolas de Lisboa ou Porto, desde o dia do seu primeiro
exame até o da primeira missa, porque n'esse
lhe entregaria o capital por inteiro.
Isto succedeu no tempo em que a mãe de Augusto,
que havia dois annos viuvára, luctava com a
miseria, e o rapaz, pela sua penetração e pelo
enthusiasmo
com que aprendia, causava o espanto do
velho mestre regio da localidade.
Foi por todos abençoada a memoria da morgada,
por tão bem cabido legado, que era ao mesmo
tempo que remedio ás privações de uma
familia,
premio e estimulo á intelligencia e á
applicação de
uma creança, que promettia vir a ser... Deus sabe
o quê.
Ninguem se lembrou de perguntar a si proprio
se a clausula, posta pela legataria como condição
á
concessão do beneficio, não podia ser uma
crueldade
que o annullasse; se comprar um futuro por
dinheiro, sem querer saber a quantidade de
aspirações,
de esperanças, de phantasias que sejam, a que
se tem de renunciar pelo contracto, não é uma
iniquidade;
se não era uma quasi simonia ir a casa do pobre,
e fazendo luzir os reflexos do ouro nas sombras da
miseria, propôr-lhe trocar por estes thesouros, que
o fascinam, os valiosos thesouros da alma. Eu por
mim abomino estes legados condicionaes, que um
espirito malevolo, egoista e desejoso de dominar
ainda depois da morte, tantas vezes dicta; essas
[94]
meigas generosidades são ás vezes a causa do
infortunio
de uma vida inteira; acceites ou recusadas,
é raro que depois, a cada provação que
nos
experimenta, uma voz interior nos não exprobre o
partido que abraçamos.―«Louco! para que hesitaste
em trocar meia duzia de phantasmas por um
bem real? Quem te mandou sacrificar a vaporosos
idolos de poetas o beneficio que te
offereciam?»―dirá
ella aos que rejeitaram o
pacto.―«Ambicioso!―clamará
aos outros―ahi tens a felicidade
que julgaste comprar á custa do que ha de mais
nobre na alma humana; embriaga-te agora no incenso,
em que envolveste o altar do bezerro de ouro,
consumindo ahi as tuas mais santas e generosas
aspirações.» Augusto não
adivinhou porém logo a
crueldade da disposição testamentaria. Era muito
creança ainda; e depois uma ideia nobre o preoccupou;
comprehendeu que ia ser o amparo d'aquella
pobre mãe, que só podia abrigal-o com os extremos
do seu muito amor. Seu pae, morrendo, apenas
conseguira deixar uma herança; foi á viuva o
dever de velar pelo filho. Augusto exultou vendo
que podia inverter aquelle legado, velando elle pela
fraca mulher, que, para bem o cumprir, esgotaria
de certo a vida.
Redobrou por isso a solicitude no aprender; desenvolveu-se
mais e mais a intelligencia, quasi espontaneamente,
pois justo é confessar que bem
rudes eram os cuidados de cultura que o velho
magister
lhe sabia dar. Mas quem ignora os surprehendentes
effeitos que da intelligencia e do estudo, da
aptidão e da vontade, podem resultar? Dotem um
homem d'essas duas faculdades poderosas e neguem-lhe
embora os meios de progresso, elle caminhará,
inventando-os primeiro, se tanto lhe fôr preciso.
E depois, é um grande alento aos espiritos superiores
a consciencia de uma nobre missão a cumprir.
Não ha fadigas que tal estimulo não
vença;
abnegação, que não inspire.
[95]
A Augusto era-lhe incitamento a ideia de que sua
mãe precisava d'elle.
Quando ainda aos seus treze annos fôsse já bem
conhecida a grandeza dos sacrificios que lhe exigiam,
não hesitaria talvez, instigado por aquella
aspiração; quanto mais que ainda mais lhe tinham
animado os sonhos, as doces imagens, tão gratas
ao coração do adolescente, e a que teria de
renunciar.
Suspirava por o dia do seu primeiro exame, o
qual, graças aos esforços empregados,
não se fez
esperar muito.
Quando se approximava a occasião, o pae de Magdalena
mandou vir Augusto para Lisboa e hospedou-o
em sua casa até que chegou o dia.
Não confiando demasiadamente no ensino publico
da aldeia, o conselheiro quiz que o seu pequeno
hospede recebesse algumas lições de um professor
da cidade, e d'este obteve as melhores
informações
da intelligencia do rapaz, que só por milagre d'ella
conseguira sair muito pouco eivado dos vicios do
ensino de campo.
Augusto demorou-se algumas semanas em casa
do conselheiro. A final fez o exame, no qual foi felicissimo,
obtendo n'elle as mais distinctas qualificações.
Imagine-se o effeito que a noticia produziu na
aldeia. Exaggerando-se, dizia-se por lá que em toda
Lisboa corria a fama do rapaz, e houve até quem
não hesitasse em affirmar que a creança
confundira
os mestres, que fôra uma maravilha.
O mestre-escola reclamou para si a gloria do
acontecimento, fundando-se em que, através do discipulo,
resplandecia a sciencia do mestre.
Os invejosos disputavam-lhe porém tão
inquestionavel
gloria e riam-se d'elle.
A pobre mãe, essa, levou todo o dia a chorar de
prazer e a render graças á Virgem, a quem tanto
encommendára o filho.
[96]
Voltou Augusto á terra.
Era o rapaz o assumpto de todas as conversas:
olhavam-o como um prodigio. Todos o queriam
vêr, como se até alli o não tivessem
visto bem, e
de feito todos o foram vêr; nem o abbade, nem o
administrador, nem o presidente da camara faltaram.
Foi tudo. Pois bem, de tantos que o viram,
não houve um só que não notasse que o
pequeno
vinha triste.
Ninguem contestava o facto: que elle como que
saltava aos olhos; as interpretações é
que variavam.
―Aquillo é dos ares de Lisboa; a quem não
está costumado... dizia um.
―São canceiras de estudos―aventava outro.―Ha
lá coisa que puxe mais por uma pessoa do
que o estudo!
―Não que vocês cuidam! Um exame sempre
abala a gente cá por dentro―dizia um doutor, que
levára dez annos a vencer um curso de cinco.
Fôsse pelo que fôsse, Augusto trouxera de Lisboa
uma melancolia, que os ares da sua terra não
dissiparam e que augmentava sempre que lhe falavam
no futuro e no legado da morgada.
Quem mais a estudou, e sentiu aquella subita
melancolia, foi, como era de suppôr, a receiosa
mãe. Deus sabe que noites mal dormidas, que sustos
e que intimos terrores ella lhe causou! Perguntas,
supplicas, arguições, lagrimas, promessas,
nada tiravam de Augusto, que teimava em responder
que nada tinha que o affligisse, que era a illusão
de quem o via a tristeza que lhe suppunham,
e, para confirmar o que dizia ria; mas era mais
triste aquelle riso, do que o pranto, em que se desafogasse.
Para breve estava a entrada de Augusto no collegio
de Lisboa, onde, á custa do legado da defuncta
proprietaria dos Cannaviaes, devia continuar nos
seus estudos, quando o rapaz pediu para ficar algum
[97]
tempo na aldeia. Não se pôde atinar com os
motivos d'este pedido. Indolencia não era; pois no
entretanto começou a estudar os rudimentos do
latim com o illustre professor, que o leitor conhece
já, mestre Bento Pertunhas.
A saude vacillante da mãe de Augusto declinou
n'esse inverno; o que veio dar outro motivo á demora
do filho.
Dias e dias passou o pobre rapaz sentado á cabeceira
do leito dividindo os seus cuidados entre o
estudo e os carinhos pela estremecida enferma. Dois
annos se passaram d'esta vida, e quando, ao fim
d'elles, Augusto abandonou aquelle leito, foi depondo
um beijo nas faces geladas de um cadaver.
Era orphão.
A vaga sombra de melancolia, que já lhe toldava
o rosto, condensou-se-lhe mais então. Era quasi
um negrume de tristeza.
Por esse tempo, veio o conselheiro trazer Magdalena
para a aldeia, pois receiava pela saude d'ella
se persistisse em Lisboa.
O conselheiro propunha-se levar comsigo Augusto,
quando voltasse a Lisboa. Uma manhã, porém,
este, de pouco mais de quinze annos, procurou-o
e disse-lhe com uma gravidade, que revelava
uma tenção meditada e irrevogavel:
―Venho prevenir v. ex.
a de que desisto do
legado
da sr.
a morgada. Não quero
ordenar-me.
O conselheiro fitou-o, estupefacto.
―Não queres ordenar-te! Por quê?...
―Já não tenho mãe a quem amparar. Por
ella
forçaria a minha vocação sem remorsos;
por interesse
proprio não o posso fazer; parece-me um sacrilegio.
O conselheiro era um homem muito do seculo.
O seu trato social, a frequencia dos circulos politicos
e elegantes, haviam-lhe dado todas as boas e
más qualidades, que caracterisam aquella classe de
homens, e sabe-se que a candura de sentimentos
[98]
não entra no numero das mais habituaes d'essas
qualidades. Tinha uma razão clara, mas fria; se
abraçava uma boa causa, não o fazia cedendo ao
enthusiasmo, mas sómente depois de ponderar fleugmaticamente
os fundamentos em que ella se baseava;
assim era que, em politica, se costumára a
contemporisar, espaçando a adopção de
qualquer
medida, inquestionavelmente boa, para tempos em
que fôsse mais conveniente; não se apaixonava por
utopias, desconfiava d'ellas; havia muito tempo que
desviára dos olhos o prisma encantado, através do
qual olham o mundo os poetas e todos os mais
sonhadores; costumára-se a marcar por modelo
nas differentes carreiras da vida, não um typo ideal
dotado de todas as virtudes, limpo de todos os defeitos
e vicios; assentára a menor altura o alvo:
parecia-lhe que bom fito eram já os individuos que
tinham conseguido maior consideração na sua
classe;
as maculas que elles tivessem, eram, por esse
facto, maculas auctorisadas. O pensar de outro
modo era pensar de romance; agradavel para entreter,
porém mau nas applicações
ás coisas da
vida. N'uma palavra, o conselheiro era um homem
de bem, mas na esphera mundana; não um d'aquelles
typos de pureza crystallina, através da qual parece
passarem sem desvio os raios da luz celeste,
mas já um tanto embaciado do bafo social, que
não o fazia ainda totalmente opaco.
Por isso sorriu á declaração de
Augusto. A carreira
ecclesiastica não lhe parecia tão escabrosa
como o futuro sacerdote a fazia; nem tão dura a
lei, como em theoria se mostrava. O conselheiro não
pensava necessario tomar ao pé da lettra certos
deveres impostos; o mundo seria, como elle, tolerante
em naturaes infracções; por tudo isso se
riu.
Fez a Augusto uma longa dissertação sobre as
vantagens da vida ecclesiastica, sobre os muitos
interesses que lhe promettia, e a leviandade com
que elle queria renunciar a uma carreira segura
[99]
movido pelas instigações de um espirito timorato
ou de uma visão phantastica.
Augusto insistiu. Sem córar perante o sorriso
sceptico do conselheiro, declarou que não
abraçaria
a vida ecclesiastica sem que se sentisse com a coragem
precisa para cumprir todos os deveres que
ella lhe impunha; que era precisa uma grande
abnegação,
e que elle, depois da morte de sua mãe,
não tinha a certeza de a conseguir. Nos interesses
não pensava, e se pensasse, seria isso a primeira
prova de não estar preparado para a missão de que
se queria encarregar.
Quando alguem abraça com lealdade e franqueza
uma boa causa, difficilmente é vencido. O conselheiro,
costumado a não recuar nas mais acerbas
luctas do parlamento, calou-se dentro em pouco ás
objecções d'aquella creança. Como que
teve remorsos
de tentar sequer desvanecer as illusões a que
o via abraçado,―illusões pelo menos as suppunha
elle; parecia-lhe uma obra satanica envenenar com
um sorriso aquelle ideal, em que vivia.―Respeitou-o
e calou-se.
―Alguma creancice amorosa dos quinze annos―pensou
para si. Deixemos ao tempo convencel-o.
Não me encarregarei eu d'esse papel, que é pouco
sympathico. Quem me restituira aquellas canduras!
Teria alcançado menos no mundo, mas talvez tivesse
gosado mais... ou melhor...
O conselheiro cedeu apparentemente, esperando
que a reflexão modificaria, mais tarde, as ideias do
rapaz.
Exigiu d'elle que a ninguem annunciasse as
tenções,
em que estava de não se ordenar, pelo menos
emquanto não passasse mais tempo sobre aquella
resolução.
E uma vez que ficava na terra, pediu-lhe o conselheiro
que se encarregasse da primeira educação
de Angelo, então de nove annos; pois mais confiava
para isso em Augusto, do que no professor official.
[100]
Augusto acceitou com prazer a incumbencia, que,
sobre adequada aos seus gôstos, lhe abria uma
carreira, que elle já imaginára adoptar.
De então nasceu uma intima amizade entre Angelo
e Augusto. Foram rapidos os progressos do
discipulo, e não menos reaes as vantagens que ao
mestre resultaram do ensino, que lhe desenvolvia
cada vez mais a intelligencia.―O conselheiro tinha
motivos para estar satisfeito da escolha.
Ao fim de um anno as repugnancias de Augusto
em acceitar o legado eram as mesmas; o egoismo
paternal do conselheiro não o deixou ser muito ardente
a combatel-as.―Espaçou-se mais uma vez a
decisão.
Outras lições appareceram a Augusto, as quaes
elle acolheu com gôsto; o mestre-escola reclamava
tambem muitas vezes o seu auxilio; compadecido
da sua velhice, Augusto nunca lh'o recusou.
O velho acabou por declinar n'elle o serviço todo,
sem que Augusto consentisse em receber por isso
o menor estipendio.
O publico não se cançava de perguntar quando
seria que o rapaz principiaria os seus estudos em
Lisboa e por que o não fazia já. Como
não obtivesse
resposta, commentava o facto, como costuma commentar
todos os que não entende.
No entretanto a educação de Augusto
não ficára
estacionaria. Com grandes sacrificios a continuára
elle; e n'um êrmo, como era aquella aldeia, tinha
muito de milagre o que fazia.
O latim de mestre Bento já mal satisfazia ás
impaciencias
do espirito d'este discipulo enthusiasta;
e não era raro que a intelligencia de Augusto visse
mais fundo nos textos, do que a experiencia do
mestre.
O acaso favoreceu os desejos do estudante.
N'uma freguezia proxima estava, como abbade,
um doutor em theologia, homem de solido saber e
de reputação extensa.
[101]
Um dia em que, por convite do seu collega, viera
assistir e prégar na festa do orago da aldeia, o padre
encontrou-se com Augusto na sacristia e, conversando-o,
admirou-lhe a penetração, captivou-se
da sua modestia e lamentou não estar mais perto
d'elle, porque o auxiliaria, como pudésse, nos estudos.
Augusto perguntou-lhe se era sincera aquella vontade;
affirmando-lhe o padre que sim, respondeu
que não seria então estorvo a distancia, porque
elle
a venceria.
E d'ahi em deante, duas vezes por semana, ás
quintas feiras e domingos, franqueava legua e meia
dos mais escabrosos caminhos, para ir ouvir as
lições
do erudito abbade. Assim se aperfeiçoou na
latinidade, cultivou a philosophia e adquiriu o gôsto
pelos nossos velhos prosadores e poetas. Vinha de
lá carregado de livros para ler durante a semana.
Toda a bibliotheca do padre lhe passou pelas mãos.
Era porém o theologo classico exclusivo e nada
visto em linguas e litteraturas modernas.
A sorte não recusou ainda a Augusto um novo
mestre.
Entre os muitos estudos de estradas, de que os
governos em Portugal fazem preceder, vinte annos
antes, a construcção definitiva de uma
só, que de
ordinario sae sempre como se não fôsse
tão estudada,
um houve que levou á aldeia, em que eu e o
leitor nos achamos, um engenheiro que ahi fez quartel
e centro de operações, durante tres mezes
inteiros.
A casa em que elle se alojou ficava proxima da
de Augusto. Cêdo travaram conhecimento os dois.
O engenheiro o menos que possuia eram livros de
mathematica; mas, emquanto a litteratura moderna,
trazia nas malas e bahús uma excellente provisão.
Não tendo que fazer ás noites, entreteve-se a
ensinar
o francez a Augusto e a ler-lhe os livros da
[102]
sua bibliotheca portatil. Voavam as horas a Augusto
n'aquelles serões; n'elles aprendeu todos os nomes
da nossa litteratura moderna, bem como os principaes
da de França e de Inglaterra.
Quando o engenheiro partiu da aldeia já Augusto
sabia o francez bastante para se aperfeiçoar por si;
este amigo deixou-lhe em lembrança grande parte
dos seus livros, que Augusto releu muitas vezes.
Attingiu finalmente Angelo a idade de precisar
do collegio. O conselheiro, ao leval-o comsigo, insistiu
mais uma vez com Augusto para que viesse
tambem e acceitasse o legado da morgada. Foi em
vão, encontrou-o ainda inabalavel.
E d'esta vez fez publica a sua desistencia, e o
ambicionado patrimonio foi concedido a outro.
Mezes depois morria o velho mestre-escola da
aldeia.
Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe
que pretendia aquelle logar, que já havia muito tempo
servia, e pedindo-lhe para que se interessasse por
que elle o obtivesse. O conselheiro quiz tirar-lhe da
ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em
que estava Augusto, o não ter ambições
era indicio
de uma profunda doença moral; que a
posição a
que elle aspirava, equivalia a uma sepultura estreita
a que se acolhesse vivo. Augusto persistiu porém
no intento; o conselheiro empenhou-se por elle em
Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo qual
se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa,
o dispensasse da idade que ainda não tinha, pois
mal completára dezenove annos, e Augusto foi por
conseguinte admittido a concurso para tão pouco
disputado logar e provido n'elle por tres annos. O
conselheiro, a quem não fôra impossivel obter-lhe
despacho vitalicio, quiz vêr assim se, no fim de tres
annos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal
recompensada carreira, e de proposito o fez despachar
temporariamente. Comquanto o legado da morgada
tivesse tido já outra applicação, o
conselheiro
[103]
não hesitaria em proteger, em qualquer carreira, o
mestre de seu filho.
Mas ao fim de tres annos, Augusto, apesar de
por experiencia conhecer já os espinhos da
profissão,
apresentou-se novamente ao concurso para obter
novo despacho. Na época em que abrimos esta
narração, voltára Augusto de pouco de
ultimar a
nova prova; e estava pendente ainda a decisão do
ministerio competente. D'esta vez tivera um competidor,
homem muito protegido por influencias da
localidade, as quaes ainda não tinham podido vencer
a do conselheiro, que pugnava por Augusto.
Desde que fôra para Lisboa, Angelo não se
esquecera
de escrever amiudadas vezes a Augusto,
contando-lhe dos seus estudos, e descrevendo-lhe
a sua vida na capital; e quando vinha a férias, procurava
transmittir ao que fôra seu mestre a sciencia
que durante o anno adquiríra.
Foi assim que Augusto principiou a estudar a
lingua ingleza, a geographia e a historia.
Recebido o primeiro impulso, a sua intelligencia
e applicação faziam o resto.
Um homem que havia na aldeia e com quem cêdo
teremos de travar conhecimento, um velho herbanario,
para alguns um sabio, para outros um louco,
para todos um homem honrado, concorreu tambem,
com o seu contingente, para a educação de
Augusto.
De tempos a tempos, este velho mysterioso apresentava-se
em casa d'elle com um pacote de livros
debaixo do braço e, sorrindo, pousava-lh'os em cima
da mesa.
Eram quasi sempre aquelles, que Augusto mostrava
ou sentia mais desejos de possuir. Da primeira
vez, Augusto fitou o herbanario com espanto.
Ninguem o suppunha rico; como podia elle pois
obter aquelles livros, alguns dos quaes eram de
preço? O velho porém disse-lhe, ao perceber-lhe a
surpreza:
[104]
―Não queiras saber da minha vida, rapaz. Suppõe
que eu tenho a servir-me uma vara de condão
ou uma fada qualquer, e deixa correr.
Augusto acabou por persuadir-se de que o herbanario
tinha accumulado riquezas, á fôrça de
economias:
porque de economias vivera sempre.
De pequeno merecera áquelle velho uma singular
sympathia, e com affecto de pae fôra sempre tratado
por elle.
Resignou-se a acceitar sem reflexões; até porque
sabia ser facil o escandalisar o velho com ellas. O
que fazia era evitar, na presença d'elle, qualquer palavra
que pudésse denunciar desejos de possuir um
livro qualquer. Mas o velho, como se tivesse de facto
algum poder occulto a informal-o, ás vezes parecia
adivinhar; e trazia-lhe livros que Augusto devéras
desejava, mas a respeito dos quaes tinha a
certeza de lhe não ter falado, nem eram d'aquelles
que o velho conhecia.
A seu pesar via-se quasi inclinado a adoptar a
crença supersticiosa do povo a respeito d'aquelle
seu velho amigo.
Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Angelo
as informações, pelas quaes o velho se guiava na
escolha. Não lhe attribuia porém o presente,
porque
as economias de Angelo não chegavam para tanto.
Depois de tudo quanto temos dito de Augusto,
poderá ainda o leitor estranhar os ares pensativos
com que o vemos?
Poucos passos andados, depois que saiu do
Mosteiro, encontrou Augusto a distribuidora das
cartas, que lhe entregou uma sobrescriptada para
elle. Era de Angelo.
Augusto abriu-a immediatamente e leu-a ainda
pelo caminho.
Era uma extensa carta, em que se succediam os
periodos em um d'esses longos, incoherentes e diffusos
arrazoados, que constituem a essencia de uma
carta de amigo para amigo.
[105]
Angelo falava dos seus estudos, de saudades da
terra, de esperanças e de projectos, projectos que,
n'aquellas idades, nascem e morrem a todo o instante.
Terminava esta carta, em que lhe participava
a sua vinda á aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:
«Peço-lhe que diga á Lindita que se
não esqueça
de mim. Dentro de poucos dias conto ir vêr
os coelhos do quintal d'ella, e ajudal-a a tirar a
agua do poço. O pae d'ella chega ahi ao mesmo
tempo que esta carta; leva um livro para si.»
Augusto sorriu, ao ler o
post-scriptum.
―Pobre Angelo!―murmurou elle,―Deus não
permitta que sobreviva á tua ultima creancice essa
sympathia por Ermelinda. Estas generosas
affeições
de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o
coração.
Havia tanta amargura n'estas reflexões de Augusto!
E, como absorvido n'ellas, caminhou para casa
do recoveiro Cancella, que era o pae da pequena, a
quem na carta se alludia.
VII
A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das
mais estreitas ruas da aldeia e ao lado de um pequeno
quintal, objecto dos cuidados e das diversões
do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis
da sua occupada e laboriosa vida.
Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia.
A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas;
pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o ámanhã
já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava
um dia a multidão nas ruas e feiras da cidade; no
[106]
outro entretinha os curiosos da sua terra, deixando-lhes
entrever os thesouros da experiencia adquirida
á custa de muitos annos de fadigas.
As estradas em Portugal e os novos meios de
transporte, que conjunctamente vieram, não destruiram
totalmente esse typo dos antigos tempos, anterior
a ellas. Além da época, que parecia dever
marcar-lhes limite á existencia, passaram, sustentados
pela fôrça dos habitos e justificados pelas
irregularidades
do serviço das postas; e Deus sabe
quando de vez acabarão. Mas Cancella era além
d'isso um recoveiro de uma especie rara e superior.
Em todas as profissões ha sempre, no meio do vulgo,
que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia
dos gôsos, superiores aos interesses, que ellas
podem offerecer, certo grupo de escolhidos, que as
idealisam, e enxergam um raio de poesia através
das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella
era d'estes; era o poeta da sua profissão. Tinha em
si o que quer que era de um
touriste, e assim aproveitava
todos os ensejos que se lhe offerecessem de
explorar algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.
Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa.
As muitas relações do conselheiro, pae de
Magdalena,
com as familias da aldeia, e a barateza relativa
das recovagens operadas por este meio primitivo,
proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as
quaes o Cancella de boamente aproveitava. Era de
uma d'essas expedições que elle devia voltar
aquella
manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.
Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a
ainda fechada; escutou á fechadura, mas não
pôde
verificar o menor signal de que alguem estivesse
dentro.
―É cêdo ainda―pensou comsigo.―Vejamos
se estará em casa do compadre.
Seguiu mais para deante pela rua por onde viera.―A
poucos passos mais, e do lado opposto, deparou-se-lhe
[107]
outra casa de aspecto não menos rustico
do que a primeira, uma pequena casa terrea, de
uma só porta e uma só janella, e com o respectivo
quintal ao fundo.
Do interior vinha um sussurro de vozes, como de
conversa animada; julgando que seria o Cancella,
de quem o proprietario era, além de vizinho, confidente
e compadre, Augusto empurrou a porta, que
estava apenas cerrada e entrou.
A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento
quadrado, todo adornado á volta de cruzes de pau,
para as devoções da via sacra, e de imagens de
santos
e santas em caixilhos de todos os tamanhos.
Mais do que os outros enramalhetado e enfeitado,
via-se alli o bento registo de uma confraria, havia
pouco tempo instituida na terra pelos missionarios,
o qual occupava o logar de honra n'aquella devota
exposição.
Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta
confraria, sociedade um tanto mysteriosa, por meio
da qual seus interessados instituidores só visavam
a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se
apenas, em paga, com o do mundo, do
qual, lembrados
de antigos tempos, teem saudades já. Os
missionarios, certos evangelisadores em terras onde
a palavra do Evangelho não é chave que abra a
porta, pela qual entraram os martyres no céo, lá
andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa
a acção d'esta historia, plantando a vinha, que
elles
chamavam do Senhor; as mulheres, abandonando
os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto catholico
era por elles cada vez mais arrebicado com
orações absurdas e ceremonias ridiculas, e o
eterno
anathema da ignorancia contra o progresso da sociedade
servia de thema predilecto aos seus barbaros
discursos.
Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa,
a sr.
a Catharina do Nascimento de S.
João Baptista,
a metade feminina do casal em questão, tomára
[108]
por modo de vida as devoções da
igreja, onde
ia chorar as desgraças da humanidade, que tão
fóra
via andar da estrada direita.
Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando
a alcova conjugal, que era vedada aos olhares
profanos por uma colcha de chita de largas e folhudas
ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia
á cozinha d'onde lhe continuava a chegar aos ouvidos
o som de vozes, que primeiro o attrahira.
Ao contrario do que esperava, porém, só uma
pessoa encontrou na cozinha, comquanto falasse
com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.
Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do
Enxerto, ou vulgarmente chamado ti' Zé P'reira―nome
que lhe vinha do popular e ruidoso instrumento,
o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem
ainda hoje aquelle nome.―Era muito para vêr e
admirar a mestria, com que o nosso homem o sabia
tocar nas festas e arraiaes, á frente das
procissões
e cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades
publicas.
O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e
tantos annos; tinha no rosto, principalmente no nariz,
vestigios evidentes das suas sympathias pela
divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo
da sr.
a Catharina do Nascimento de S.
João
Baptista, vivia em perenne sabatina com a sua cara
metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas
salvando sempre o direito de protestar pela palavra.
Ganhava a vida no officio de hortelão e, aos
domingos e dias de festa, á fôrça de
rufos e pancadaria
na retesada pelle do seu companheiro inseparavel―o
zabumba. Era aos cuidados e vigilancia
d'este par conjugal que o recoveiro Cancella confiava
o seu mais precioso thesouro, a pequena Ermelinda,
uma mimosa creança, que lhe ficára á
sua
viuvez tão cheia de saudades, e a quem elle mais
queria do que á menina dos olhos.
[109]
Ermelinda era afilhada da familia Zé P'reira, e a
mesma a quem ouvimos referir-se Angelo no fim
da carta.
Zé P'reira estava, como dissémos, só
na cozinha,
quando Augusto alli chegou: sentado, no meio da
sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para
o ar, viradas as costas para a porta e a face para
o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava
de tom desde a nota mais grave e rouca da sua
escala de barytono, até o mais agudo e desafinado
falsete. A lingua pegava-se-lhe ao céo da bôca,
difficultando-lhe suspeitosamente a articulação
de
algumas syllabas; era evidente que se apossára do
hortelão o espirito familiar, o qual n'este caso, era
um verdadeiro espirito, na accepção chimica do
termo.
Ze P'reira era um homem baixo, já grisalho, sufficientemente
nutrido, de olhos vesgos e que mais
vesgos se faziam quando o enthusiasmo, o rapto
artistico se apoderava d'elle; usava de umas suissas
que pareciam tentar sumir-se-lhe pela bôca dentro;
tinha longos braços, accommodados ás
difficuldades
e evoluções da sua arte, e pernas que,
do joelho para baixo, lhe divergiam em angulo de
mais de trinta graus.
Quando Augusto deu com elle, o homem monologava,
gesticulando:
―Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!...
É forte desgraça!... Aqui estou eu!...
Um homem casado... casado á face da igreja...
que me casou em dia de S. Thiago o abbade que
foi... e que Deus tenha em descanço. Não faltou
nada... correram-se banhos deante de quem os
quiz ouvir, e não houve quem puzesse impedimento...
porque eu não devia nada a ninguem...
sempre fui liso de contas... Sou casado com a
Catharina do Nascimento de S. João Baptista, filha
do Antonio Canhestro, do logar dos Fójos... E
casado para quê? Faz favor de me dizer? Para que
[110]
casei eu?... Forte desgraça a minha! Casei-me
para isso!... Para vir para casa e achal-a vazia,
o lume apagado e o caldo na horta... e a mulher
a papar missas e novenas lá por essas igrejas...
Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!
É
forte desgraça!... Bem morria eu de frio e de fraqueza,
se não fôsse aquelle quartilhito... o ultimo,
que sempre me deu sua aquella... sim... sempre
me conchegou o estomago. Não que dizem que o
vinho que faz, que o vinho que acontece... Pois
casem-se com uma mulher que vá de madrugada
para a igreja e venha de lá quando muito bem lhe
pareça, e verão depois se o vinho não
serve de cobrir
muita lazeira que se soffre... verão depois...
Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!...
Diz que Deus que disse, que a mulher que era a
carne da nossa carne e o osso do nosso osso...
Deus devia de vez em quando tornar a dizer estas
coisas... para não esquecerem... como se faz na
escola com a taboada. A minha Cath'rina já o
não
sabe, aposto... e pelos modos os padres não lhe
dizem isto na igreja... pois deviam dizer!... A
carne da minha carne e o osso do meu osso!...
mas é carne e osso que me não fazem caldo...
Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!...
Como ha de um homem, se isto assim continua,
pegar na enxada para dar uma cavadela, ou fazer
qualquer sachada?... E tambem quero vêr como
hei de no arraial e procissão de Santo Amaro, que
não tarda ahi, dar sequer um
rufo assim mais
tal... assim mais scientifico? Eu se fôsse bispo...
A caudalosa corrente d'este soliloquio foi interrompida
pela apparição de nova personagem á
porta do quintal.
―Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha
um bocadinho de paciencia. É um instante emquanto
accendo o lume e lhe faço o caldo. Verá.
A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha,
era uma rapariga de doze annos, alva e franzina,
[111]
como a mais delicada creança da cidade, com
os olhos negros e expressivos de intelligencia e de
doçura, e com os mais formosos cabellos louros
que ainda enfeitaram uma cabeça infantil. Não
havia
n'elles sombra, que desvanecesse aquella côr
deslumbrante; reflectia-se-lhes a luz nas ondas,
naturalmente lustrosas, como em tenuissimos fios
de metal; usava-os soltos e caidos, sem vislumbre
de artificio, de um e de outro lado do collo.
Condizia com a expressão angelica do semblante
o suave e affectuoso timbre de voz com que falára.
O leitor prevê de certo que é Ermelinda, a filha
do Cancella, ou Lindita, como geralmente na aldeia
lhe chamavam, a creança que tem na sua presença.
Ermelinda sobraçava um mólho de
hortaliça,
que fôra colher ao quintal, e dirigia-se com ella
para o lar, que o descuido e a indifferença conjugal
deixavam ainda apagado áquella hora do dia.
Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou,
sorrindo-lhe.
―Ai, pois estava ahi, sr. Augusto?! E o meu
padrinho talvez sem reparar.
A estas palavras o desditoso marido voltou a
cabeça e fitou em Augusto um dos seus desemparelhados
olhos.
―Olá, sr. Augusto! Viva! Passe muito bem!
Entre; esta casa é sua... De jantar não lhe
offereço...
porque... porque... Forte desgraça a
minha... Olhe! repare para este desaforo!...
Venho para casa, morto de trabalho... e vejo o
lar apagado! A minha mulher está a ouvir missa,
a confessar-se, a commungar... a tomar todos os
sacramentos... acho que os está a tomar todos...
Louvado seja Deus! Vem ahi tão limpa de
consciencia,
como eu estou do estomago... Ora, senhores...
―Deixe estar, padrinho... Verá como isto se
arranja depressa... Olhe; o lume já está
accêso―dizia
[112]
Ermelinda, accendendo effectivamente o lume
no lar.
―Já o devias ter feito antes, Lindita,―disse
Augusto, sentando-se junto d'ella.
―Mas se inda agora vim das prêsas, onde fui
lavar a roupa?
―Pobre pequena―disse o Zé P'reira―tambem
não te ha de faltar lazeira, tambem!
―A mim? Agora. Não que eu não saí de
casa
com as algibeiras vazias.
―Pois sim... mas é sempre preciso coisa que
conforte... Inda se tu bebesses... já
não digo
um quartilho...
―Credo, meu padrinho! Que está a dizer?
―Que espanto!... Ora, senhores, que parece que
o vinho é bebida amaldiçoada, que todos lhe teem
mêdo! É vêr se o padre na missa...
―Padrinho! padrinho! que vae dizer?―interrompeu
Ermelinda, quasi aterrada.
―Eu digo o que é verdade, rapariga!... Tenho
minha presumpção de nunca dizer senão
a verdade...
Lá o pespeguei na cara do sr. juiz de direito
e mais do sr. doutor delegado e mais doutores,
quando fui a um juramento, por causa d'aquellas
pancadas no recebedor... É que nenhum d'esses
santalhões, d'esses missionarios me teem que
ensinar n'esse ponto... Os missionarios!... Eu,
um dia, tiro-me dos meus cuidados e dou-me ao
trabalho de lhes ir perguntar, quando elles estiverem
no pulpito, se Deus lhes manda que tirem as
mulheres de casa, para que os maridos não tenham
que comer, quando voltarem do trabalho... Um
dia inda lhes vou perguntar... isso vou...
―Olhe; a agua não tarda a ferver; verá
que
dentro em pouco...―continuou Ermelinda.
―Bem, Lindita, bem―disse Augusto―em paga
da boa vontade, com que trabalhas, vou dar-te uma
alegre nova.
―A mim? Diga.
[113]
―Trago-te visitas de alguem, que em poucos dias
te dará em vez de visitas, um abraço.
―De quem? Ah!... Angelo escreveu-lhe?
―Como adivinhaste depressa!
―Pois de quem mais havia de ser? Mas diz
que... em poucos dias... Então?
―Tel-o-hemos cá pelo Natal.
―Fala verdade?
―Assim m'o diz n'esta carta. Queres ler?
―Para quê?―respondeu a rapariga, fitando porém
o papel com os olhos cheios de curiosidade.
―Ora lê, lê... Até para vêr
se ainda te recordas
das lições, que eu te dei.
―Ai, lá isso... mas, o caldo do meu padrinho...
―Deixa que o lume é que o ha de aquecer e não
a tua presença.
Ermelinda approximou-se; tomando a carta das
mãos de Augusto, começou a lêl-a com
intensa
curiosidade.
Zé P'reira proseguiu no seu monologo:
―A religião, senhores―dissertava elle―não
manda tal... Isso é que não manda... A
religião
é a palavra de Deus... e Deus disse... sim...
Deus disse... Deus disse muita coisa... Disse que
por este deixarás pae e mãe. Ora a santa madre
igreja é mãe, é, sim, senhores; que
tem lá isso?
mas não é mais mãe do que a outra
mãe... e então...
senhores, uma mulher não deve deixar por
ella o seu marido; porque o marido, senhores, é o
tudo de uma casa, e o ganhapão da familia. Ora,
senhores, que é forte desgraça.
O monologo do desconsolado conjuge e a leitura
de Ermelinda foram interrompidos por uma voz
potente, que cantava na rua.
O dinheiro paga tudo,
Não se fica a dever nada;
Toma, toma o limão verde,
Ó da fresca limonada.
[114]
E logo em seguida estalaram as taboas do soalho
no corredor sob uns passos pesados e ruidosos, e
no limiar da porta da cozinha desenhou-se a figura
agigantada e herculea do recoveiro Cancella, pae da
Ermelinda. Cancella, ou o João Herodes, que assim
tambem lhe chamavam por ter creado, nos autos
em que era actor applaudido e popular, o typo do
sanguinario e infanticida rei da Judéa, fôra pela
natureza
dotado de uma estatura e robustez, dignas
de Adamastor.
Encontrava-se n'elle uma d'essas felicissimas
realisações
dos temperamentos sanguineos que, sem
ameaçarem de insultos apopleticos, dão riqueza ao
sangue, vigor aos musculos e á physionomia o aberto
e colorido da saude e os reflexos da satisfação
interior.
A barba negra e espessa cercava-lhe as faces
córadas, e o natural fulgor dos olhos parecia augmentado
sob o duplo arco de bastas sobrancelhas,
que, quando contrahidas, os rodeavam de sombras
ameaçadoras, d'onde fuzilavam relampagos. Era formidavel
então!
O riso pairava-lhe porém, nos labios, quando na
presença de amigos, descobrindo-lhe duas fileiras
de alvissimos e bem dispostos dentes, d'esses que
os excessos e absurdos culinarios ainda não deterioraram.
Parando á porta da cozinha, o Herodes (ás vezes
lhe chamaremos assim, cedendo ao geral costume
na aldeia) procurou com a vista alguem, que mais
que tudo trazia na memoria―a filha.―Esta, pela
sua parte, mal o reconheceu, correu a lançar-se-lhe
nos braços.
O pae pegou n'ella, como se fôsse uma penna,
levantou-a á altura dos labios e pousou-lhe nas faces
dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda palpitantes
de todo aquelle intenso amor paternal.
―Ah!―exclamou, pousando-a no chão e respirando
como quem acabava de satisfazer uma intensa
[115]
necessidade do coração.―Isto consola que nem o
copo de agua que a gente, em dias de calma, pede
á borda da estrada, quando se leva a bôca secca
e queimada de poeira! Mais do que isso me sabem
estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?...
Ó sr. Augusto! tambem por cá?
―Esperava-o, Cancella.
―A mim?―continuou o homem, pousando no
chão uma mala que trazia.―Pois aqui me tem. Mas,
dizia eu, um homem quando anda lá fóra, e pensa
no que lhe irá por casa, sente ás vezes uns
sustos,
que parece que lhe fazem tudo escuro... As desgraças,
para succederem, não põem muito... De
um momento para outro... E depois a gente ouve
por lá conversas, vê coisas que parece que
são
agouros... e que nos fazem a noite no coração...
Umas vezes é um enterro... outras, um desastre...
um fogo... um... E as creanças sós, e os paes
fóra de casa!... Ai! Isto é de ralar o
coração de
uma pessoa... Eu bem sei que em boa companhia
me fica a pequena. Aqui o compadre, tirante lá a
sua aquella pelo sumo da uva... Quantos foram já
hoje, compadre, hein?... mas, tirante isso, é homem
de bem: a comadre é uma santa, que só tem o
defeito
de querer ser santa devéras... mas emfim...
tudo isso não obsta; uma coisa é uma pessoa saber
o que lhe vae por casa, outra... Tremem-me as
pernas sempre que entro na aldeia. A primeira alma
de Christo, que encontro, estou sempre a vêr quando
me vem dar alguma nova má. Salta-me cá por dentro
o coração, que ninguem faz uma ideia; eu bem
canto a vêr se disfarço, mas... Ai, filha da minha
alma, quando me passa pelo pensamento que te
posso um dia vir achar doente!... Assim me succedeu
com tua mãe... Deixei-a uma vez tão satisfeita
e alegre, e vae, quando voltei, a primeira pessoa
que encontro, diz-me á queima-roupa: «Venha,
sr. João, venha, que já não vem sem
tempo. Corra
a casa, se ainda quer vêr sua mulher...» Foi como
[116]
se recebesse uma descarga em cheio no peito...
corri, e...
A commoção impediu-o de continuar;
disfarçou
como envergonhado d'aquella fraqueza, beijando a
filha outra vez.
Ermelinda percebeu a perturbação do pae e
disse-lhe
carinhosamente:
―Para que está agora a pensar n'essas coisas
que o affligem, meu pae?
―Deixa-me cá, rapariga. Isto ás vezes tambem
faz bem. Mas, por isso, quando entro em casa e te
vejo, pequena, e te vejo com boas côres e alegre...
nem eu sei o que tem mão em mim, que não me
ponho a dançar. Ah!... ah!... Ninguem tem uma
filha como eu! Olhe que não, sr. Augusto; mal fica
a mim dizel-o, mas... Lá por Lisboa e por o Porto
ha muita menina galante, isso ha; muita inglezinha
loura, bonitas como anjos, mas cabellos assim dourados?―e
passava com orgulho os dedos pelos bastos
cabellos de Ermelinda―mas uma pelle assim
delicada,―e afagava-lhe com as mãos a face, quasi
a mêdo―mas olhos assim a metterem-se mesmo
pelo coração á gente?―e beijava-lh'os
com paixão―isso
é que eu ainda não vi, nem tenho de
vêr.
Como o Senhor concedeu um anjo d'estes a um
selvagem como eu, é que não sei... É a
imagem
da mãe!... Ella tambem era poucochinho de si...
miudinha e... Mas não pensemos n'estas coisas.
Sim, senhores; eis-me aqui outra vez, e por signal
com a minha vida por arranjar e eu posto á taramela.
Trago-lhe uma encommenda, sr. Augusto, e
muitos recados, muitos.
―Já sei; Angelo escreveu-me.
―Escreveu? Ah, sr. Augusto, que rapaz aquelle!
Aquillo é uma perola! Com tres milheiros de demonios
do inferno! d'alli ha de sair coisa grande. Eu
não queria morrer sem vêr o que saía
d'alli. Brinca
como uma creança, mas, quando quer, põe-se
sério,
e fala como homem. E nada de soberbas, nem de
[117]
ares enfastiados, como tomam aquelles senhores da
cidade, quando conversam com uma pessoa rustica...
Qual historia! Elle tudo quer saber, tudo pergunta...
isso é um nunca acabar, quando lá me
pilha... Então como vae fulano? e sicrano? e se
já
se fez aquella casa, e se já acabou aquella obra, e
se já casou este, e se inda vive aquelle, e mais para
aqui, e mais para acolá, e tudo quer muito explicado...
Ah! ah! ah!... tem diabo o pequeno... Pois
cá a respeito da rapariga?... Isso é uma
comedia!...
Não se farta de me ouvir falar d'ella... Ah,
sr. Augusto, ás vezes chego a ter pena de que isto
nascesse minha filha.
Ermelinda fitou o pae com olhos espantados.
―Sim, filha,―proseguiu elle.―Deus não te devia
dar a um homem como eu, que emfim... Com
os diabos! lá alma e coração...
não quero que
haja ahi quem me leve a barra adeante. Eu por um
amigo... e com mil demonios, até por um inimigo,
se não fôr soberbo, vamos lá, dou a
camisa do corpo...
Mas o mundo... Bem, bem, eu cá me entendo.
Vamos á minha tarefa. Mas que tem você
estado para ahi a prégar, compadre, desde que eu
entrei? Humh! humh! parece-me que já se cantou
a gloria, hoje, visto que já se está ao
sermão.
Effectivamente Zé P'reira tinha apenas concedido
ao seu compadre um olhar de distracção e um aceno
de mão, e voltára de novo ás suas
queixas amargas
contra a sorte e contra a esposa.
Interrogado pelo Herodes, Zé P'reira reproduziu
uma das suas lamentações; o compadre, emquanto
desenfardelava a mala, ia cortando com reflexões
proprias essa longa jeremiada.
―Então com que a ti' Zefa deixou-o sem caldo,
hein? É mal feito, a falar a verdade. Lume apagado
em casa de familia é coisa triste... Aqui está um
livro para si, sr. Augusto... Mas deixe lá, compadre,
que a minha pequena arranja-lhe n'um ai algumas
berças... Tambem eu estou em jejum desde
[118]
as cinco horas da manhã... mas estes missionarios!
Ah! com seiscentas mil duzias de demonios,
eu ainda queria um dia...
―Deus nosso Senhor seja n'esta casa―disse
uma voz gemida á porta da cozinha.
―E o demo na do abbade―resmungou Herodes.
Era a sr.
a Catharina do Nascimento de S.
João
Baptista, typo de beata, que dispensa descripção,
que regressava a casa depois de completar o cyclo
das suas devoções.
―Viva a comadre!―disse o João Cancella, continuando
a mexer na mala.
Ermelinda foi beijar a mão á madrinha.
Augusto saudou-a affavelmente.
O marido obrigou o corpo a uma meia rotação
sobre o alqueire, e, voltando-se para a mulher, disse-lhe,
agitando os braços e as mãos, espalmadamente
abertas:
―Mulher dos meus peccados, mulher de não sei
que diga, olha que a paciencia um dia acaba-se, mulher!
Isto não pode continuar assim, mulher! Eu
não me casei para que tu me andes a ganhar indulgencias
na igreja, mulher!... Isto são preparos,
mulher?... Um homem chega a casa e acha o caldo
por fazer, porque a senhora sua esposa deu em ouvir
nove missas por dia e uma duzia de novenas!
―Cala-te, cala-te,―retorquiu azedamente a devota
metade do Zé P'reira―cala-te para ahi, desalmado.
Excommungado seja o mafarrico, que assim
me quer attentar logo que entro em casa! Olha
lá que não morresses de fome! Estás
mal acostumado.
Louvado seja Deus! Já não ha quem queira
soffrer n'este mundo mortificações! cuidas que
não
tens de soffrer as do purgatorio? E Deus nos queira
dar só o purgatorio e livrar-nos das penas do inferno.
Que muito mal fazemos por lhe merecer misericordia!
Ora que não ha de uma pessoa poder
ter as suas devoções, que não venha
encontrar lamurias
[119]
em casa! Ó minha rica Mãe do
céo, seja
para desconto dos meus peccados! Sume-te, inimigo
mau! E eu que deixei de rezar oito estações,
que prometti á Senhora da Rocha, e vae... Ora
digam como ha de esta gente cumprir os jejuns
que manda a santa madre igreja, se, por duas horas
de espera, já se choram todos! Bemdito e louvado
seja o sacratissimo coração de Maria!
Ó homem
de Deus, e então aquelles santos eremitas,
que viviam no deserto de raizes e de agua das fontes...
―Que lhes prestasse. Haviam de andar muito
gordos. Eu queria-os vêr com uma enxada a trabalhar
todo o dia no campo, e que lhes dessem depois
raizes para roer, a vêr se gostavam. Ora, senhores,
que é forte desgraça a minha! Mulher, a
religião manda que olhemos pelo nosso cadaver. É
má christã a mulher que deixa o seu marido na
penuria. Isto é que os padres deviam ensinar. Vae-lhes
lá perguntar se, quando chegam a casa, não
teem a sôpa e o toucinho á espera d'elles?
―Cala-te, tentador, que me andas a tentar, cala-te,
tem vergonha n'essa cara. Olha agora! Eu queria
vêr-te com o trabalho do sr. padre Domingos.
Coitadinho! desde as cinco horas da manhã até
agora a confessar!
―Confessar é parolar; ora adeus!
―Tu estás doido, alma perdida?!
―E cuidas que elle não leva marmelada nos bolsos?
―Ó chagas do seraphico S. Francisco, ainda
mais terei de ouvir?!
―Mulher, deixemo-nos de historias; com jejuns
ninguem engorda. Só os santos... de pau.
―Vamos, vamos―disse o Herodes, intervindo.―Não
vale zangarem-se por causa d'isso. A minha
pequena deve ter o caldo quasi feito. Comam-o em
santa paz e deixem-se de testilhas, que não é
bonito;
e muito menos entre marido e mulher. Você,
[120]
compadre, tambem tem culpas em cartorio; vamos
lá. Ha por ahi umas certas capellas, onde passa
tambem bastante tempo em devoção; emquanto
á
comadre, acredite o que lhe digo: a palavra de Deus
não é tão difficil, que uma pessoa
precise de estar
tanto tempo a ouvil-a explicar. Eu cá penso que,
fazendo a gente aquillo que lhe diz o coração, e
que
não sente nenhuma aquella em fazer, vae por caminho
direito. E mais vale fazer o que Deus manda,
do que levar a vida a pedir perdão por o não
ter feito. E tambem não é bonito estarem agora as
mulheres, horas e horas, pegadas ao confessionario,
como lapas nos rochedos, nem...
―Compadre!―atalhou escandalisada a sr.
a
Catharina―compadre!
É essa a educação que dá
á
sua filha? São coisas que se digam deante de uma
creança de doze annos? Ande lá, ande
lá... Ora
Deus queira que lhe não encontre ainda o pago.
Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse
ensinar, a doutrina; que é mesmo uma vergonha o
pouco que sabe d'ella.
―Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda
não deixa passar pobre á porta, a quem
não dê esmola; creança que
não afague; velho ou
velha, que não corteje; reza todas as manhãs a
oração,
que a mãe lhe ensinou, o Padre-Nosso e a Ave-Maria,
onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus;
de dia trabalha, como filha de pobre que é, e mulher
de casa que ha de ser... O Senhor me perdôe,
se mais é preciso ainda, que mais não sei eu
ensinar-lhe.
―Não tenha soberbas, compadre, não tenha
soberbas!
E cautela com o mimo que dá á pequena,
que é o que perde muitas almas.
―Que mimo, que mimo? Logo eu com este genio
de repentes é que hei de dar mimo a esta pobre
creança, que nem o da mãe conheceu!
―Ora diga, compadre, acha que é muito bem
feito, da sua parte, deixar andar a rapariga com esses
[121]
cabellos soltos? Não sabe que o demonio...
cruzes! arma com elles laços ás almas das
creaturas?
―Fracas prisões são as do diabo, se as forja
só
de cabellos!... Então, por causa das
tentações é
que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem coisas!
É teima velha! Eu já lhe disse, comadre:
Deus, que deu á pequena esses cabellos tão
bonitos,
é porque lh'os quiz dar. Se quizer, que lh'os tire,
eu é que não.
―Deus cerca-nos de tentações, para que
nós as
vençamos.
―Forte tentação venceu a comadre! aposto que
os não cortaria assim, se os tivesse como os da
minha Ermelinda, hein! Cortar os cabellos á minha
filha, eu?! fazer d'aquella cabeça de cherubim uma
d'essas cabeças tosquiadas, que por ahi andam!
―Talvez ainda se arrependa!
―Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto
de Deus e da Virgem, se pintam anjos, como a minha
pequena, e não figuras... respeitaveis, como a
da comadre; ora então...
A beata, apesar de trazer sempre na memoria o
Vanitas vanitatum do
Ecclesiastes, não foi
inteiramente
insensivel ao remoque do compadre. Azedou-se-lhe
o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe
como para descarregar sobre ella a má vontade
com que estava ao pae:
―Sae-te p'ra lá. O senhor meu homem tinha
muita pressa de jantar! Deixar assim uma creança
fazer uma fogueira d'estas! Nem para assar um
boi! É preciso não ter consciencia.
E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar
o dicto.
Zé P'reira monologava ainda. Augusto continuava
examinando o livro recebido.
Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No animo
d'aquella creança, que era de uma
organisação nervosa,
excepcional na aldeia, exercia a beata uma
[122]
especie de fascinação, um mixto de respeito e de
terror, capaz de dissipar todos os risos dos seus
labios infantis. Era outra na presença da madrinha,
fitava-lhe nas faces descarnadas e macilentas os
bellos olhos negros; seguia-lhe, quasi assustada, o
movimento dos labios austeramente contrahidos;
tremia ao escutar-lhe a voz aguda e penetrante, falando
nas penas do inferno; chorava á menor reprehensão
que d'ella recebia, e comtudo amava-a,
amava-a, porque Ermelinda na sua candura de
creança, suppunha a madrinha uma santa; avultavam-lhe,
como virtudes beatificantes, os defeitos da
devota velha; a innocente julgava-se uma grande
peccadora quando, depois de ter na mente aquelle
perfeito typo, voltava a olhar para si, para o fundo
da sua consciencia; e que negros e hediondos peccados
lá encontrava! Uma pequena mentira que
dissera; um domingo em que faltou á missa; um
juramento que, sem o sentir, lhe saira da bôca;
um jejum que não guardára, e outros crimes da
mesma fôrça. A amedrontada creança
chegava a
receiar pela salvação da alma.
É sempre funesta a influencia que exercem sobre
a infancia os caracteres como os da beata.
O Herodes percebeu a impressão sob a qual estava
a filha e acudiu-lhe.
―Toma lá, Ermelinda―disse elle, tirando da
mala uma pequena medalha com um retrato.―É
um presente do nosso amigo Angelo para nós, ou
antes, para ti...
Ermelinda pegou no retrato com não reprimido
alvoroço. Era outra vez a creança.
A madrinha lançou para a medalha um olhar
obliquo e reconheceu o retrato.
―Em nome do Padre e do Filho e do Espirito
Santo!―rompeu ella, com um espanto exaggerado.―Este
homem não tem a cabeça no seu logar, por
mais que me digam! Elle quer perder a filha de
certo! A fazer a cabeça doida a uma creança!
[123]
O Herodes, ouvindo estas palavras, pousou com
impeto a mala no chão, e com os olhos chammejantes
e as faces injectadas, vociferou, cedendo o
campo á cólera, que se lhe accumulou no seio:
―Com seiscentos milhões de diabos! Você que
está ahi a dizer, mulher? São os
sermões dos missionarios,
que lhe teem assim afiado a lingua e deitado
peçonha na baba? Com effeito! Saiba que dou
mais pela creança, de quem é aquelle retrato, do
que por quantos sotainas lhe ouvem os seus peccados
todas as semanas e por quantas beatas andam
comsigo a dar marradas no lagêdo da igreja. Fazer
a cabeça doida á minha filha! Tenha
mão na lingua,
comadre, que lhe não soffro tanto. Doida lh'a
trazem a vossemecê os missionarios e os sermões.
Seu marido fôra eu, que a mania lhe tirava.
O Zé P'reira, apesar dos seus desgostos domesticos,
zelava a dignidade do casal; e não levava á
paciencia que outro, além d'elle, dissesse d'aquellas
verdades á mulher; por isso, ouvindo-as, através
dos sonidos que lhe chiavam nos ouvidos, levantou-se,
e sustentando-se nas pernas vacillantes, e bracejando
sempre, bradou:
―Compadre! Eu sei quaes são os meus deveres!
Compadre, prudencia!... Compadre, eu não
consinto... Ora, senhores, que é forte coisa! Compadre!...
veja que eu é que sou aqui o chefe da
familia e esta é minha mulher! Pschiu... Basta...
Compadre... basta. Então? Ora, senhores.
Mas o Herodes já nada attendia; cada vez mais
lhe crescia a vermelhidão nas faces; a
irritação rompera
os diques da cordura e ameaçava engrossar
cada vez mais. Ás exclamações de
Zé P'reira respondia
já azedamente.
―Ora adeus, temos conversado... Seja homem,
que bem precisa... Não basta dar á lingua... Na
taberna não é que se governa a casa...
A sr.
a Catharina abstinha-se agora
prudentemente.
[124]
Ermelinda, pallida, a tremer, abraçou o pae, quasi
chorando.
Augusto, que fôra alheio ao principio da contenda,
conheceu emfim que precisava de intervir. Saiu-lhe
difficil a empreza.
Ensurdeciam os ouvidos dos contendores, a um
o sangue, a outro o vinho.
Depois de muito custo, conseguiu emfim apazigual-os.
Deram-se mutuas satisfações, e separaram-se
apertando as mãos.
Augusto retirou-se com João Cancella e Ermelinda.
O par conjugal ficou, renovando-se cêdo entre
elles a interminavel contenda em que viviam.
VIII
Saindo de casa do Zé P'reira, Augusto teve de
escutar, ainda por muito tempo, as vociferações e
pragas, com que o Herodes acoimava a fraqueza
do compadre, que assim deixára a mulher tomar
sobre si um ascendente offensivo da dignidade varonil.
Augusto ouviu tudo com resignado silencio e
attenção um pouco distrahida, conseguindo emfim
a custo soltar-se das mãos do seu interlocutor, que,
no fogo da exposição de tão justos
aggravos, lhe
segurava os braços com pouco affavel vivacidade;
a final, porém pôde deixal-o e voltou a casa.
Entrando no seu quarto, um pequeno e modesto
quarto, mobilado com uma banca, poucas cadeiras
e uma estante, cheia de livros, Augusto respirou.
Era alli o seu logar de descanço; a escola era
em outra casa vizinha. N'esta não havia, a amargurar-lhe
as horas do repouso, vestigios que lhe recordassem
as do supplicio.
[125]
Leitor philantropo, que, abrazado em santo amor
da humanidade, só entrevês delicias na tarefa do
ensino, e fazes d'este vigiar e encaminhar o espirito
infantil, que desabrocha e respira pela primeira vez
no fecundo ambiente da sciencia, um seductor quadro
de phantasia, perdôa-me a palavra, supplicio,
de que me servi, e perdôa ainda mais ao caracter
de Augusto o ter saido exacta a expressão, que te
feriu os humanitarios instinctos.
Eu bem sei que é uma sublime missão a do mestre:
e que é uma graciosa e amoravel idade a da
infancia, e poucos melhor do que Augusto possuiam
presente o ideal de uma e amenisavam á outra com
branduras os amargores do penoso tirocinio;―mas
que importa? nem por isso é menos real o
supplicio. A cultura dos espiritos é como a cultura
das terras. O lavrador exulta, estremece de prazer,
vendo pullular do solo, arado e semeado de pouco,
os rebentos do grão que o calor fez germinar, e volverem-se
as folhas, estenderem-se e enflorarem-se
os ramos, penderem os fructos e colorirem-se das
tintas da madureza; mas, emquanto vergado, coberto
de suor, arquejante, se afadiga a arrotear o
terreno duro e quem sabe se ingrato aos seus cuidados,
muita vez lhe fallece o alento, e se olha de
quando em quando para o céo, não é
para lhe agradecer,
com risos os gôsos que elle lhe dá; mas para
lhe pedir, com lagrimas, a fôrça que lhe
mingúa.
De igual modo, se é grato ao cultor das intelligencias
o vêl-as desenvolver, florir, fructificar; ardua,
improba, desesperadora é muita vez a tarefa
da sua primeira educação. É mister
possuir um
grande thesouro de ideal, para que o suave e risonho
typo, que da infancia concebemos, não se transtorne,
na phantasia d'estas victimas d'ella, em não
sei que figura diabolica e maligna, que lhes envenena
todos os momentos de alegria.
Além d'isso, o pobre professor de
instrucção primaria,
sobre quem pesam os mais fastidiosos encargos
[126]
da instrucção, não pode ser
comparado
absolutamente ao agricultor do nosso simile; é antes
o jornaleiro contractado por magro salario, para,
á fôrça de braço, lavrar o
solo, d'onde, mais tarde,
romperá a vegetação, que elle
não terá de vêr e que
a outros concederá os gôsos e o beneficio. Venceu
tambem o humilde professor, e por o mesmo preço
que o jornaleiro, que não vão mais longe com elle
as liberalidades dos nossos governos, venceu as
maiores cruezas do magisterio; mas não verá
tambem
o resultado das suas fadigas. Fogem-lhe as intelligencias,
que educou, justamente quando com
mais amor as devia contemplar, e, se o destino reserva
a qualquer d'essas intelligencias um futuro
de glorias, raro é que volvam um olhar agradecido
para as humildes mãos, que as sustentaram, quando
ainda não tinham azas para voar.
Quasi todos os grandes homens commettem esta
ingratidão. Falam nos seus mestres de philosophia,
de mathematica, de litteratura, e não salvam do
esquecimento,
pronunciando-o, o nome do primeiro
mestre, do que os ensinou a ler.
Considerações da ordem das que acabamos de
fazer, quero acreditar, não são as que mais
preoccupam
o pensamento da maioria d'esses pobres
diabos, que, por noventa mil réis annuaes, se deixaram
ligar á atafona do ensino primario da aldeia;
porém devem ser, além das miserias de
tão mesquinha
sorte, causas de grandes torturas moraes
para alguma alma de instinctos e aspirações mais
elevadas, que o destino amarrasse, como por escarneo,
a este poste de expiação. N'esse caso estava
por certo a alma de Augusto. No vasto mundo, que
os livros abrem ás imaginações, que na
vida real
não encontram deleite, refugiava-se elle nas horas
em que as suas obrigações lhe permittiam
respirar.
D'esta vez, porém, por pouco tempo lhe foi dado
saborear esse prazer.
[127]
Soaram nos vidros da janella pancadas repetidas
e chamou-o de fóra uma voz bem conhecida d'elle.
Era a do mestre de latim, o sr. Bento Pertunhas.
―Sr. Augusto, ó meu querido sr. Augusto.
Amice! Pode falar a um amigo e
colega?―dizia
elle.
Augusto foi abrir-lhe a porta, não reprimindo um
gesto de enfado.
O latinista entrou esfregando as mãos.
―A ler, hein! sempre a ler! sempre amarrado
aos livros!―dizia elle, batendo no hombro a Augusto.―Invejo-lhe
mais a pachorra do que o proveito.
Olhe que não medra com isso; nem ninguem
lhe agradece as canceiras que toma. Meu rico, por
dois dias que um homem passa cá n'este mundo,
tolo é o que se mata. E então n'este paiz!...
Faça
como eu.
E, imitando com a bôca os sons da trompa, seu
instrumento predilecto, poz-se a examinar os livros
que via sobre a mesa.
―Então que estava lendo? que estava lendo?...
Poh! poh! poh!... Versos... Ora que nunca pude
gostar de versos!... Poh! poh!... E não é agora
porque se diga que não tinha quéda;
não, senhores;
em tempos fiz até algumas quadras... Poh!
poh!... já se sabe, até certa idade, mas nunca
fui
muito para ahi... Poh!... A minha vocação
é para
a musica... Poh! poh!... Lá para a musica,
sim... Poh! poh! poh!... Herman e Dorothéa―continuava
elle, examinando os livros.―Novellas...
Poh!... E isto que é?
Confessions de Rousseau―n'este
nome deixou aos diphtongos o valor portuguez―Poh!
poh! As Metamorphoses... Latim!
Oh que massada! Poh! poh! poh! poh!...―E o
Ovidio, que lhe chegára ás mãos, foi
arremessado
como se estivesse em braza.
Augusto não pôde conservar-se sério,
ante o instinctivo
movimento de repulsão do mestre.
[128]
―Então que boa fortuna o traz por aqui, sr.
Pertunhas?―perguntou elle.
―Ai, é verdade; eu lhe digo ao que venho. É
para lhe pedir um favor, meu caro sr. Augusto. Eu
bem sei que é abusar da sua bondade...
Quousque
tandem, Catilina... Mas, é por esta vez...
―Já sei; quer que lhe vá dar
lição aos rapazes.
―Ah! grande maganão, que adivinhou―exclamou
o mestre, abraçando Augusto com
effusão.―É
isso mesmo, se lhe não custasse...
―Irei.
―É que... eu lhe digo, eu tinha hoje de ir ao
ensaio da philarmonica... Percebe o senhor? Os
Reis estão ahi á porta e as outras festas do
Natal, e
não ha tempo a perder... Percebe? E eu tenho
ainda umas peças do
Trovador para ensinar á
minha
gente. São muito bonitas... Poh! poh! poh! E
então este anno, que pelos modos temos cá o
conselheiro
e mais o pequeno... Não contando com
esse sujeito que ahi chegou a Alvapenha. Chama-se
Henrique de Souzellas, é sobrinho da velha, da
D. Dorothéa, e julgo que ainda aparentado no Mosteiro.
Lá chamam-lhe primo. Esteve lá esta
manhã
um par de horas, logo que saiu da minha
repartição.
Dizem-me que é filhote de Lisboa, solteiro, rico
e sem modo de vida. Rico e sem modo de vida!
Que lhe parece, hein? Olhe que sempre ha gente
muito feliz! Aqui para nós, sabe ao que me cheira
a visita d'este senhor? Aquillo é mosca que vem
ao cheiro do mel. Que diz, hein? Ninguem me tira
d'isto. Pois não lhe parece, hein?
―Não sei bem o que quer dizer com a imagem―respondeu
Augusto, levemente enfadado.―Além
de que não posso adivinhar as
intenções de um homem
que pela primeira vez encontrei esta manhã.
―Pois está claro que não; nem eu; mas emfim
uma pessoa logo tira pelo que vê... Ora pois diga,
um rapaz de Lisboa, afeito a divertimentos, a boa
musica,
et coetera, andar leguas e
leguas para se
[129]
metter n'este desterro... Porque isto é um
desterro. Sim, deve concordar que não é natural.
Mas se a gente se lembrar de que a morgadinha,
et coetera...
O senhor
bem me percebe... Todos, hoje em dia, sabem o preço ao
dinheiro, meu amigo.
A verbosidade do mestre Pertunhas estava evidentemente incommodando
Augusto, que não redarguia.
―Nada, nada; alli anda plano, com certeza. Pelos modos, já
depois de ámanhã vae o rapaz
acompanhar as pequenas á ermida da Saude. Ah!... mas agora
me lembro! o senhor é tambem da sucia.
―Eu?!
―Com certeza. Disse-m'o o Damião, que tem ordem das
pequenas para o convidar. Se ainda não recebeu o recado, ha
de recebel-o. Em todo o caso, observe-o e verá se eu tenho
razão.
―Vou jantar, sr. Pertunhas, que já ha muito para isso me
chamou a criada―disse Augusto, erguendo-se como para fugir
áquella conversa.―Em seguida irei aos seus rapazes.
―Então vá, vá. Deus lhe pague o favor
que me faz e permitta que eu lhe não peça muitos
d'estes. E eu tenho esperanças... Sabe que ando com ideias
de arranjar o lugar de recebedor, que está, como diz o
outro, a encher dias? Já falei ao conselheiro; mas o
conselheiro promette muito e falta melhor, sobretudo a um homem que
não tenha influencia em eleições. O
sr. Joãozinho das
Perdizes interessa-se por mim, é verdade; mas, por outro
lado, o Seabra brazileiro faz-me guerra. Eu ando a vêr se
consigo pôr o Seabra a meu favor, porque emfim... Mas
vá, vá jantar, que eu espero.
―Se quizer fazer-me companhia...
―Muito obrigado. Eu já jantei. O meio dia é a
minha hora. Jante á sua vontade.
Augusto saiu da sala. Mestre Bento Pertunhas, ficando só,
deu algumas voltas cantarolando, sentou-se
[130]
depois, e pegando na pasta de Augusto,
poz-se a examinar os papeis que ella continha.
Ao mesmo tempo simulava umas variações de
trompa, á fôrça de
contracções e esgares dos labios.
A pasta, victima da indiscreção do mestre, era a
mesma que Augusto trazia, quando o vimos no
Mosteiro.
Entre os documentos contidos n'ella algum achou
o mestre Pertunhas mais curioso do que as escriptas
e themas dos discipulos, pois, ao lêl-o, desenhou-se-lhe
no semblante a mais intensa curiosidade
e cessou de todo a exhibição acustica, que
com tanto ardor encetára.
Leu-o até o fim com crescente avidez; e depois,
olhando em volta de si, para verificar que não era
observado, dobrou-o e sorrateiramente o escondeu
no bolso. Fechou outra vez a pasta, pousou-a no
sitio d'onde a tirára, continuou a ler ou a fingir que
lia com toda a attenção um livro e encetou novas
variações de trompa.
―Então já! Apre! Isso é jantar a
vapor―disse
o latinista, pondo-se a pé, logo que Augusto voltou.
E momentos depois sairam juntos.
Querendo poupar os leitores á semsaboria de assistir
a uma lição de latim e a um ensaio da
philarmonica,
deixal-os-hemos ambos, para voltarmos
ao Mosteiro.
Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as
duas primas sentadas ao parapeito do muro da
quinta, d'onde, por sobre almargens e pomares vizinhos,
a vista se espraiava em amplissimo horizonte
até umas nuvens, que pareciam limital-o.
D. Victoria saboreava, no seu quarto, as delicias
da sesta habitual. As creanças brincavam a alguma
distancia, e os risos e os clamores d'ellas vinham
como um chilrear de passaros aos ouvidos das duas
raparigas, que, a cada momento, se surprehendiam
em meditativo silencio.
[131]
A natureza estava serenissima. No occidente desenhavam-se
estreitos e longos traços nebulosos, a
que o sol dava um colorido tão ardente, que se o
pintor paizagista o produzisse na palheta, hesitaria,
ao passal-o á tela, com receio de que o acoimassem
de exaggerado. O verde dos campos apresentava a
gradação vigorosa, que a luz de um formoso dia de
inverno costuma dar-lhe.
Christina interrompeu o silencio por fim.
―O que eu não sei―principiou ella―é como
o primo Henrique de Souzellas...
―Onze!―atalhou a morgadinha, sem desviar
os olhos do ponto da perspectiva, que fitava.
―Onze quê?―perguntou Christina, erguendo os
d'ella.
―Com esta são onze as vezes que, esta tarde,
depois de um longo silencio, abres a bôca para
me falares no primo Henrique de Souzellas, uma
vez que está decidido que seja primo.
Christina fez um gesto de despeito e córou levemente.
―E então que queres dizer com isso?
―Eu? Nada. Digo só que são onze vezes com esta.
―Não sabia que era prohibido falar-te no primo
Henrique. Bem, n'esse caso falaremos em outra coisa.
Está um tempo muito bonito: nem parece dezembro.
―Não; vae magnifico para os nabaes―replicou
Magdalena zombeteiramente.
―Se não mudar com a nova lua―continuou
Christina, ainda formalisada.
―É excellente para seccar os milhos, que bem
precisavam ainda d'isso, principalmente os das terras
baixas.
E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha
desatou a rir.
―Não sei de que te ris!―acudiu Christina, cada
vez mais séria.―Pois não é esta a
conversa de
que tu gostas?
[132]
―Ai, muito. Eu sou doida por estas coisas de
lavoura; bem sabes.―E, mudando repentinamente
de tom, accrescentou:―Ora vamos, Christe; não
te zangues commigo.
―Não, mas é que ás vezes
não te entendo, a falar
verdade. Vens com umas coisas que mettem
raiva―respondeu-lhe Christina, sempre agastada.
―Já estou arrependida; peço perdão.
Fala lá á
tua vontade no primo Henrique, fala; que eu não
contarei as vezes que o fizeres.
Christina reproduziu o gesto de impaciencia.
―Agradeço a tua generosidade, mas já
não tenho
mais que dizer d'elle agora; por isso...
―Pelo menos completa a duzia.
―Lena! Então! Olha que se continuas com isso,
fazes-me sair d'aqui.
―Sempre queria que te vissem agora, Christe,
esses que andam por ahi a gabar a docilidade do
teu genio, as branduras da tua indole; queria que
te vissem essa cara arrenegada, para saberem que
tambem ha um acidozinho na tal doçura... Mas
fazes-me a graça de só para mim teres d'essas
franquezas.
Christina sorriu, ainda que não de todo aplacada,
ao ouvir esta reflexão da prima.
―E não sabes a razão d'isso?―respondeu-lhe
ella―a razão é o genio que tens, Lena. O teu
gôsto
é mortificares uma pessoa. Não ha santo que
não
perdesse a paciencia comtigo.
―Que injustiça! que ingratidão! Eu, que sou a
victima das tempestades que o teu genio pouco expansivo
te junta no coração a todo o instante! Se
alguma coisa te faz chorar, guardas as lagrimas
para o meu quarto; se te irritam, vens desafogar
as tuas cólerazinhas sobre a minha cabeça. E
pagas-me
assim!
―És muito infeliz commigo. Pobre Lena!
―Vamos, vamos, Christe! esquece o que eu
disse ha pouco. Não te posso vêr assim.―E tomando
[133]
um tom natural, mas sob o qual transparecia
ainda certa malicia, Magdalena continuou:―Pois
é verdade, dizias tu que não sabias por que o
primo Henrique de Souzellas...
Christina fez um movimento impaciente, como
para levantar-se.
―Então que é isso? Não me acceitas a
expiação?―perguntou
Magdalena, sorrindo.
―Não; não quero que se fale mais no sr. Henrique
de Souzellas. Vejo que te não é agradavel que
as outras se occupem d'elle. Sejam quaes forem as
razões que tens para isso...
―Bravo! Foi admiravel de maldade o entono
com que disseste esse: «Sejam quaes forem as
razões.»
E venham-me falar na candura d'esta creança!
―Eu não quero dizer...
―O que queres dizer, não sei; mas vejo que não
és senhora tua quando se fala n'este assumpto.
―Que lembrança!―tornou Christina, cada vez
mais embaraçada―pois imaginas devéras que eu?...
―E por que não?
―Lena!
―Não ha nada mais natural.
―Se queres, juro-te...
―Ah! atalhou a morgadinha, pondo-lhe a mão
nos labios.―Isso não, que é mais
sério. Jurar não
te deixo eu. Conheço os escrupulos da tua consciencia,
e não quero obrigar-te a remorsos.
«Juro!» E
com que ousadia ias pronunciar um juramento
falso!
―Falso!
―Falso, sim; falso como os que o são. Olha, minha
pobre Christe, queres então que te fale com
toda a franqueza? Esta conversa trouxe-a eu de
proposito para confirmar umas suspeitas, que se
me formaram e que vejo agora que eram fundadas.
―Suspeitas! que suspeitas?...
―O primo Henrique de Souzellas deixou em ti
uma tal ou qual impressão.
[134]
―Lena!
―Conheci isso ainda quando elle cá estava; verifiquei-o
depois e agora. Então! tem juizo. Commigo
sê sempre o que tens sido. Eu góso ha muito
do privilegio de conversar á vontade comtigo e de
te vêr sem aquella timidez que tens deante dos outros.
Com o teu genio, precisas de uma pessoa,
como eu, com quem não tenhas acanhamento e em
quem possas até descarregar algumas maldadezitas;
e acredita que me lisonjeio com me dares a
preferencia.
―Mas como imaginaste?...
―Continuas? Não tens de que te envergonhar
pelo interesse que por ventura te inspirou esse rapaz.
Henrique de Souzellas é elegante, é espirituoso,
affavel, possue uma intelligencia cultivada e muito
trato do mundo...
―Mas...
―Faça favor de me ouvir―atalhou Magdalena,
pondo um dedo nos labios. Reconhecendo todas
essas qualidades n'aquelle nosso primo, não quero
por isso concluir que seja natural e prudente denunciares-te
já. E nem receio que isso aconteça,
para te falar sinceramente, porque te conheço o genio
timido e porque... porque te conheço o genio
timido e mais nada.
Havia mais alguma coisa, havia, mas não era coisa
que se dissesse. Magdalena sabia demais que Henrique
não saíra d'aquella primeira visita demasiado
impressionado
por a imagem de Christina; sabia talvez,
suspeitava de certo, não me atrevo a dizer que
lisonjeada algum tanto, que no coração do hospede
de Alvapenha reinava outra imagem mais persistente.
Mas vejam as leitoras se, sendo este o seu
pensamento, ella o poderia formular? O remedio
pois era completar a phrase como a completou.
Christina já não tinha ousadia para negar, nem
ainda coragem para confessar. Encostando a face
á mão, calou-se e deixou falar Magdalena.
[135]
A morgadinha proseguiu:
―É preciso que saibas, Christe, que é mais facil
conhecer os defeitos de uma pessoa, do que as suas
boas qualidades. Os defeitos são imprudentes e linguareiros,
denunciam-se, dão signal de si, basta
meia hora para se descobrirem em qualquer logar
que habitem. As boas qualidades, não; essas são
modestas, humildes, discretas; sabem esconder-se.
São precisos annos para as descobrir todas. Mas
com que olhos de espanto me estás fitando! Parece
que te causa estranheza o meu sermão? Eu te digo
a que elle vem. Logo que falei com este nosso primo...
e quem sabe se o futuro virá confirmar, em
relação a mim, esse titulo, que por phantasia lhe
dou? escusas de corar por eu dizer isto, Christe...;
mas, dizia eu, logo que falei com elle, saltaram-me
aos olhos muitos dos seus defeitos.
―Quaes são?―perguntou Christina com viveza.
―Socega; são ligeiros felizmente, e parece-me
que os poderá ainda perder; sobretudo se continuar
a viver aqui. Quiz-me tambem logo parecer
que no fundo havia uma mina de bons sentimentos
por explorar. Nasceu logo em mim a vontade
de o sondar, a vêr se conseguia purifical-o do que
n'elle houvesse de menos heroico. Então que queres?
para a aldeia era um passatempo como outro
qualquer. Mas redobrou-se em mim este desejo e
revestiu em mim mais sério caracter, desde que vi
a impressão que este sobrinho da tia Dorothéa te
causára.
―Lena! Como te deu para suppôr que eu me
apaixonei assim em poucas horas? Julgo que me
imaginas apaixonada?
―Não, ainda não; inclinada, agradada,
attrahida...
ou outro qualquer termo d'esta fôrça, que
deixarei á tua escolha, isso sim. Para isso não
é
preciso muito tempo. As razões, pelas quaes julguei
isto, dispensa-me de t'as dizer, que pouco valem.
Suppõe que foi por um tacto especial, por uma
[136]
qualidade occulta, como a do tino que dizem que
teem certos medicos para reconhecerem o mal sem
estudarem muito o doente.
―Pois o tino enganou-te.
―Enganaria; mas deixa-me continuar. Se este
senhor primo intruso fôr realmente o que eu imagino
que é, resta-me preparal-o para o tornar mais
digno do amor d'esta boa Christe, que em tal caso
favorecerei; se não fôr, declaro-lhe já
guerra e guerra
de morte. A ti competia fazer isso tudo, como a
mais interessada, mas desconfiei da tua credulidade
e boa fé e da tua experiencia. Olha, estou certa que
o que mais te attrahiu em Henrique foi exactamente
o que n'elle ha de peor. Certo verniz mentiroso,
certo colorido, que é preciso ter visto muita vez, e
em muitos individuos differentes, para se ter na
conta devida. Illude, agrada a quem não está
costumado,
e pode causar graves enganos e desenganos
mais graves ainda. Por emquanto o que elle
nos mostra é mais da sociedade em que vive, do
que d'elle proprio. É necessario deixar cair a primeira
capa, para que o natural appareça.
―Não sabia que era assim facil enganar-se uma
pessoa a respeito de outra―notou Christina, sorrindo.
―Se é! Lembras-te do que tantas vezes conta
tua mãe? Que, quando ha annos foi a Lisboa, comprou
lá por bom preço um cofrezinho que ella suppunha
preciosissimo, e que chora hoje a sua tentação,
desde que o verniz brilhante, que elle tinha,
caiu e ficou á vista a realidade? pois o mesmo
acontece muitas vezes em contractos de outra ordem
e bem mais sérios do que este. Ha vernizes
maravilhosos, que illudem os inexperientes.
Houve um instante de silencio, no fim do qual
Christina perguntou, olhando pela primeira vez fita
para Magdalena:
―Ora dize-me, Lena, qual será a razão pela qual
eu não devo acreditar que esses pensamentos te
[137]
occorreram, porque era o teu destino, e não o meu,
que vias dependente do estudo que fazias?
A morgadinha fixou na prima um olhar triste e
cheio de amargas recriminações.
―Por uma razão muito poderosa, Christe, porque
ias abrir o coração a um sentimento mau, que
macularia o teu caracter generoso e candido―a
desconfiança. Porque me offenderias, duvidando da
lealdade, com que te falo, quando te falo séria; e
porque me farias mal sem necessidade e immerecidamente,
pois que a consciencia me diz que t'o
não merecia. Satisfaz-te esta razão?
A voz de Magdalena perdera o tom de ironia,
que ás vezes tinha, e tomára quasi o da
commoção.
Christina arrependeu-se logo do que dissera, e,
tambem commovida, apertou as mãos da amiga.
―Não faças caso do que eu disse, Lena;
perdôa-me.
Quando eu duvidar de ti, pedirei a Deus
que me tire a vida, porque terei já, para tudo e para
sempre, envenenado o coração.
A morgadinha readquiriu outra vez o seu bom
humor.
―Estamos quasi a cair no sentimentalismo. Cautela!
Saldemos antes as nossas contas, como mulheres
de juizo. Em compensação da pequena offensa
que me fizeste, vaes-me fazer uma confissão
formal, a qual até agora tens evitado. Ora confessa,
adivinhei o estado do teu coração? Dize.
Christina hesitou.
―Vamos,―insistiu a morgadinha―acredita que
preciso de uma declaração para me guiar... E
crê
que é para bem teu.
―Que queres que te diga? Eu não me sinto
apaixonada.
―Mas já te disse que me bastava um termo
menos violento... um «agradada», por exemplo.
―Confesso que...
―Olha, se queres, podes até parar ahi. Esse
«confesso que...» já diz muito. Agora
deixa-te
[138]
guiar por mim. Eu vigiarei. Afianço-te que não
corro o perigo de me apaixonar por elle; creio que
ha alli um excellente coração, mas que queres?
Não é o typo que me agrada... o meu ideal como
se costuma dizer.
―E então qual é o teu ideal?
―Ai, eu sou muito exigente. Desespero de o
encontrar. Quero-o assim uma especie de archanjo
S. Miguel, animo de guerreiro em figura de cherubim;
e não sei onde o procure.
N'este sentido se prolongou o dialogo entre as
duas primas, até que D. Victoria, findando a sua
sesta, veio ter com ellas á quinta. Segundo o costume,
ralhava contra os criados, a quem, não sei
por que processo, attribuia umas dôres de cabeça
com que acordára.
No dia seguinte, Henrique voltou de manhã ao
Mosteiro; redobrou de galanteio com Magdalena,
a qual redobrou de ironia. Christina já mal podia
disfarçar a pena que lhe causava o pouco que era
attendida, mas a sua timidez não a deixava luctar.
De tarde, Henrique teve de condescender com o
padre, procurador de Alvapenha, que se promptificou
a mostrar-lhe as raridades e monumentos da
terra. Assim, com grande pesar seu, foi obrigado
a renunciar á nova visita ás senhoras do
Mosteiro,
para gastar as expressões da sua
admiração deante
das alfaias da sacristia parochial; da tosca esculptura
de não sei que imagem de santo, a qual passava
por um primor; de uma sala nua, com uma
mesa ao centro, forrada de baeta verde e cadeiras
á volta, que era a sala das sessões do corpo
municipal;
e de umas pyramides de ripa, que tinham
servido, havia oito annos, em festejos officiaes.
Como é de suppôr, Henrique passou uma tarde
deliciosa.
[139]
IX
Dois dias depois da chegada de Henrique, e n'aquelle
que se destinára para o passeio á ermida,
Christina foi mais madrugadora do que as aves.
Á hora, a que estas ainda se não ouvem chilrear,
já a prima de Magdalena abandonava o leito, receiosa
de se fazer esperar pelos companheiros da
projectada excursão matinal. Quasi não dormira
toda a noite aquella rapariga, com tal
preoccupação.
As estrellas viram-a erguer, e tiveram muito
tempo de se despedirem d'ella, antes de se esconderem
discretas ante o apparecimento do dia.
Christina vestiu-se á pressa e dirigiu-se ao quarto
de Magdalena. Esta dormia ainda. O projecto de
passeio á ermida não a
alvoroçára tanto. Christina
foi acordal-a ao leito.
A morgadinha abriu os olhos e fitou-os admirada
na prima.
―Que queres tu, Christina? Que lembrança foi
essa hoje de andares estremunhando a casa esta
noite?
―Levanta-te, preguiçosa, levanta-te. Não o dizia
eu hontem? Então são estas as madrugadas em
que falavas?
―De certo que não são madrugadas; isto
é
noite é o que é.
―Dentro em pouco é dia. Queres vêr?
E, dizendo isto, Christina abriu para traz as portas
das janellas e correu as cortinas.
A estrella da manhã, Venus, aquella brilhante e
ao mesmo tempo suave estrella, que umas vezes
assiste no crepusculo ás melancolias da natureza,
outras vezes na aurora ao renascimento dos seus
[140]
jubilos, scintillava mesmo defronte do leito de Magdalena.
―Vês?―disse Christina.
―Muito pouco. É esse o teu sol? Como vae
alto! É pena que não alumie melhor do que esta
lamparina.
Christina sentia redobrar com estas delongas a
sua impaciencia, quasi de creança.
―Anda, Lena, anda. Assim não chegamos a vêr
do alto da ermida o romper do sol.
―Pois queres vêr isso de lá?! Que crueldade!
Em uma manhã de dezembro!
―Está tão bonita, que parece de primavera.
―Triste lembrança a nossa hontem de combinarmos
este passeio. Isto é lá coisa que se
faça?
Vale por uma viagem aos pólos.
Christina não fazia senão ir do leito de
Magdalena
para a janella e voltar da janella para o leito,
em virtude d'aquella irresistivel necessidade de
movimento, embora sem ordem nem fim, que experimentamos
quando nos deixamos apossar da impaciencia.
―Não fazes ideia como está bonito cá
fóra; n'alguns
pontos ainda se vê neve.
―Oh, que agradavel e tentadora belleza! Ainda
se vê neve!... Parece-me que já estou gelada...
Com essa palavra tiraste-me o alento que ia ganhando.
Vês?
―Mas não está frio; até parece que
aqueceu o
tempo. Então, Lena!... Elles... não tardam por
ahi. Cuidas que te vae custar muito, e é um engano;
aqui estou eu, que não sinto frio nenhum.
―Ora, mas tu estás em condições muito
particulares.
Quem tem uma fogueira no coração, não
precisa...
―Ahi principias com as tuas coisas!
―Eu não sei; o que é certo é que esse
teu enthusiasmo
pelos passeios matutinos não é natural.
Quantas vezes recusaste acompanhar-me quando
[141]
eu t'os propunha? Ora, se me dás licença, eu
explico
isso.
―Não quero saber de explicações;
veste-te, anda.
―Seja! Infeliz lembrança a d'este passeio. E foi
d'aquella tia Victoria, que nem por isso nos quiz
acompanhar. Não, que já tem juizo; dorme a estas
horas o somno da madrugada, que é uma
consolação.
Que sorte de invejar!
E a morgadinha, continuando assim a exaggerar
o sacrificio d'aquella madrugada e a alludir aos motivos
secretos a que attribuia o ardor e heroicidade
da prima ante os rigores de dezembro, tudo isto
de proposito para a vêr impaciente, principiou a
vestir-se.
Christina ficára á janella, espiando os
progressos
do amanhecer e transmittindo á prima as
observações
que fazia.
―Olha, eu que digo?... já o Manoel vae abrir
o portão... Não ouves os pardaes?... É
dia claro
já... Havemos de chegar com sol á ermida, o que
não tem graça nenhuma... Avia-te, Lena... Has
de ser a ultima a estar prompta... Ahi vae já o
Luiz com o almoço. É que não chegamos
lá senão
ao meio dia. Elle ahi vem! Eu bem digo.
―Elle! Quem é esse elle que vem ahi?
―Pois quem ha de ser? Então não é o
primo
Henrique que nos acompanha?
―É o primo Henrique, é o sr. Augusto e
é o
Luiz, que tua mãe teimou em mandar com o almoço.
Não sabia qual dos tres te merecia as honras
de um «elle».
―Eu dizia o primo Henrique, que já ahi está no
pateo―disse Christina, que n'esta occasião correspondia
ao cumprimento, que o recem-chegado lhe
fazia de baixo.
―Então, com effeito já chegou?―perguntou a
morgadinha, admirada.―Bravo! Nunca o esperei.
Ai, Christe, que me parece que elle tambem tem
alguma coisa no coração!
[142]
―Tambem o julgo―respondeu Christina, despeitada;―é
vêr como hontem te falou.
―Socega. Quando o coração tem alguma coisa,
não se fala assim com a pessoa que causou esse mal.
―Não sei o que elle me está a dizer―disse
Christina, olhando para o pateo.―Posso abrir a janella,
Lena?
―Eu já estou preparada para soffrer todas as
crueldades esta manhã. Abre lá a janella, abre.
Fala-lhe.
Christina correu a vidraça.
A voz de Henrique chegou distinctamente aos
ouvidos de Magdalena.
―Então aquella grande madrugadora da nossa
prima, onde está?―perguntou elle a Christina.
Christina respondeu, sorrindo:
―Está a fazer a diligencia que pode para ficar
prompta antes do meio dia.
―Oh, que vingança a minha! Ella que tanto falou
da minha indolencia!―disse Henrique jovialmente,
e continuou falando sempre de Magdalena,
e elevando a voz ás vezes para se dirigir directamente
a ella, mas sempre sem receber resposta.
Esta insistencia impacientou Christina, para quem
elle nem um galanteio tivera ainda.
―De maneira que nós, priminha―continuou
Henrique―damos uma lição de mestre
áquella
arrogante de hontem. Estou ancioso por que ella
nos appareça; quero vêr a coragem, com que ousa
apresentar-se.
―Eu vou chamal-a―disse sêccamente Christina,
e veio dizer a Magdalena, com certo modo, que
não podia escapar a esta:―Olha se appareces alli
ao sr. Henrique de Souzellas, que não descança
emquanto
te não vê.
A morgadinha, que acabava de ajustar ao espelho
as tranças, dando ao penteado a mais singela e
graciosa disposição, voltou-se para a priminha e
disse-lhe sorrindo:
[143]
―Isso são já ciumes? Mal sabes quanto
gósto
de te vêr assim! Ao menos ha já vida n'esse teu
coração, minha pobre pequena. O que te
peço é que
não me odeies, só porque esse rapaz se lembrou de
perguntar por quem não via.
―Estás a imaginar ciumes, como hontem imanavas...
―Amores? justo; e com a mesma felicidade em
acertar; podes ir accrescentando. Mas, parece-me
que ahi está mais alguem no pateo. Ouço falar.
Vae
vêr. Será Augusto? N'esse caso, espera-se
só por
mim para completar a caravana. E eu estou prompta.
Marchemos.
Augusto havia effectivamente chegado ao pateo.
Henrique trocára com elle alguns cumprimentos,
e principiaram depois ambos a passeiar, um ao lado
do outro, á espera das que deviam ser-lhes companheiras
na romagem.
A conversa manteve-se pouco animada. Augusto
não era expansivo com as pessoas, a quem o não
prendiam habitos de longa intimidade; Henrique,
talvez por não conhecer a extensão e natureza dos
conhecimentos de Augusto, abstinha-se de falar dos
assumptos, em que entraria de mais vontade. Falaram
pois de coisas indifferentes a ambos, e quasi
frivolas; no frio, na chuva, no inverno e no verão,
nos prós e contras da vida do campo e de varios
outros assumptos sêccos de si e já além
d'isso muito
esgotados, e tudo cortado por aquellas pausas e silencios
constrangidos e insupportaveis, que o leitor
ha de conhecer por experiencia.
Digamos nós a verdade; estes dois homens não
sentiam um pelo outro aquella subita e inexplicavel
sympathia, que abre os corações e dá
margens a
confidencias.
Nos dois curtos encontros que tinham tido, manifestára-se
entre elles certa frieza mais que ceremoniatica,
uma quasi desconfiança instinctiva.
Chegaram as senhoras. Foram acolhidas com
[144]
prazer por ambos. Ainda quando não fôssem senhoras
o seriam; a chegada de um terceiro, quando
dois indifferentes estão na presença um do outro,
em entrevista forçada e fatigadora, é sempre
saudada
interiormente como uma redempção.
Magdalena e Christina vinham ambas formosas,
com a especie de mantilhas ou capuzes de que usavam,
adequados aos rigores de uma manhã de dezembro.
Appareceram ambas a rir. Foi o caso que, passando
proximo do quarto de D. Victoria, pé ante
pé, para não a acordarem, esta presentiu-as, e
mesmo
do leito perguntou-lhes:
―Então já vão, meninas?
―Vamos, tia; vamos, mamã―responderam as
duas a um tempo.
―O Luiz já partiu com o almoço?
―Já partiu, já, minha senhora.
―E ides agasalhadas?
―Como se fôssemos para a Siberia―respondeu
Magdalena.
―Olhae, sempre levem os guarda-chuvas por
cautela. E ide com Nossa Senhora.
―Cá os levamos. Adeus, tia; adeus, mamã.
―Adeus, filhas; até logo, se Deus quizer. Olhae
lá, não vos estafeis.
Ora os taes guarda-chuvas é que não iam. Para
quê? Com uma manhã d'aquellas, que nem de inverno
parecia, pois que até o frio abrandára com o
vento! Por isso é que vinham ainda a rir.
Chegando ao pateo, cumprimentaram os seus dois
companheiros. Henrique, depois de formular um galanteio
a Magdalena, offereceu-lhe attenciosamente
o braço, que Magdalena recusou com alguma impaciencia,
porque se lembrou de Christina.
―Muito obrigada, primo,―disse ella com
vivacidade.―Mas
é preciso que o advirta de que não
vamos passeiar pelas avenidas de um parque. Vamos
trepar montes, atravessar ribeiras, costear
precipicios,
[145]
e para tudo isso é necessaria a
completa
liberdade de movimentos. Ha occasiões, em que
melhor nos servem os nossos dois braços, do que
o braço de outro, embora seja o de um heroe.
―Mas de certo que não é á borda dos
precipicios
que esse auxilio se escusa―replicou Henrique.
―É, muitas vezes é. Ha bordas tão
estreitas,
que mal cabe n'ellas uma pessoa só; felizmente que
a natureza nos dá um braço então... um
braço
de giestas, por exemplo.
―Vê lá, Lena,―disse Christina ao ouvido da
prima.―Talvez seja melhor que acceites. Resta-me,
a mim, o braço de Augusto.
―Se continuas com essas loucuras, Christina,
obrigas-me a odiar-te. Sr. Augusto―continuou voltando-se
para este―espero que tome a direcção do
nosso passeio; ninguem melhor conhece os mais
bellos pontos de vista; leve-nos por lá, embora tenhamos
de comprar as bellezas á custa de perigos
e de fadigas. Partamos!
O monte onde se erigira a capella da Senhora da
Saude, afamada por seus milagres e pela sua romaria
n'um circulo de muitas leguas de raio, era
uma elevada rocha vulcanica, que dominava as freguezias
ruraes de mais de dois concelhos. Estendiam-se-lhe
aos pés as alcatifas da mais rica
vegetação;
banhava-lh'os a agua dos ribeiros, das levadas
e torrentes, arterias fertilisadoras de extensas veigas
e pomares; mas elle, o gigante orgulhoso e selvagem,
recebia aquelles preitos, olhava sobranceiro
aquella opulencia, e, como se fizesse gala da sua rudeza,
em vez de cobrir os hombros com o manto
real, que lhe estendiam aos pés, permanecia aspero,
severo e nú, como nas épocas primitivas, em que
uma convulsão tremenda o evocára do seio da
terra,
para o consolidar em colosso.
Apenas, como symbolo de realeza, coroava-lhe a
fronte alta a alameda, que, havia perto de um seculo,
[146]
a piedade christã plantára em volta da
ermida,
para refrigerio e conforto dos devotos christãos
que alli iam. Era custosa a ascenção por o lado,
por onde os nossos romeiros, contra os conselhos
de D. Victoria, a emprehendiam. Quando, ao sair
de uma longa rua, apertada entre muros de quintas,
Henrique achou de subito deante de si a mole
immensa e talhada quasi a pique, que lhe disseram
tinha de subir; elle, que raro em Lisboa estendia
além do Rocio os seus passeios, com medo das
ingremes calçadas da cidade alta, julgou ouvir um
absurdo.
Parou a contemplar o monte, como hesitando em
atravessar o riacho, que d'elle o separava.
O riacho, engrossado pelas aguas da chuva dos
dias anteriores, levantava um bramido atordoador
ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rapido
pela cal da azenha, que lhe obstruia o leito e cuja
enorme roda movia.
Áquella hora, ainda pouco clara da madrugada,
este sitio da raiz do monte tinha não sei que aspecto
selvagem e melancolico, que quasi infundia pavor.
Os altos choupos, em que se enroscavam, como
serpentes negras, os troncos flexuosos e despidos
das vides; mais longe, o cannavial, ondulando ligeiramente
ao perpassar através d'elle a briza da madrugada,
e, aqui e além, um d'esses degenerados
aloes dos nossos climas, debeis e enfezados, como
se os devorasse a nostalgia da sua verdadeira patria,
eram accessorios que concorriam para o effeito geral
do quadro.
A morgadinha, percebendo a hesitação de Henrique,
deu-lhe alento com lançar-lhe em rosto a sua
pusillanimidade. Henrique encheu-se de brios e atravessou,
com não menor denodo do que os outros,
o riacho, por o passadiço de altas pedras, collocadas
a pequena distancia umas das outras, e que as
aguas a cada momento ameaçavam cobrir.
Atravessada a corrente, seguia-se escalar o monte;
[147]
para isso tornava-se indispensavel caminhar em
continuados zigue-zagues, aproveitando os córtes
que a fouce do tempo conseguira abrir n'aquella
massa granitica e os toscos degraus, com que uma
arte rudimentar procurára facilitar, por aquelle lado,
o accesso da ermida á piedade dos devotos.
As difficuldades para Henrique eram continuas.
A cada momento os embaraços d'este forneciam
motivo para risos da parte de Magdalena. Christina
não lhe podia levar a bem que se risse d'aquillo.
Para compensar as fadigas de tão trabalhosa
ascensão,
havia porém, a paizagem, que, a cada passo
andado, a cada angulo que se dobrava, apparecia
mais surprehendente e maravilhosa.
Poucos peitos teriam fôrça para reprimir um
brado de admiração.
As nevoas d'aquella manhã de dezembro não eram
bastantes para velarem a belleza do quadro.
Á medida que os nossos quatro peregrinos iam
subindo, ampliava-se-lhes mais e mais o horizonte;
avelludava-se a relva da planicie, parecia aplanarem-se
os outeiros vizinhos, e os campos tomavam
a apparencia dos canteiros de um jardim.
Henrique não retinha o enthusiasmo, que aquelle
espectaculo lhe causava.
―É magnifico! é admiravel! é
soberbo!―dizia
elle, a cada momento e quando não era inquietadoramente
preoccupado com os perigos do caminho.
O enthusiasmo de Augusto não era menos vivo!
Dir-se-ia que eram os montes a sua patria, e que a
melancolia nostalgica, que o opprimia na planicie,
se ia dissipando á medida que subia a encosta.
Magdalena e Christina tambem não estavam menos
impressionadas por o que viam. Esta, porém,
tinha uma causa secreta a aguarentar-lhe o prazer,
que as bellezas naturaes lhe pudessem occasionar.
Era esta causa a mesma dos seus leves despeitos
de pela manhã.
Henrique continuava a ser todo attenções e
galanteios
[148]
com Magdalena; parava a cada momento
n'aquelles pontos do caminho, que lhe pareciam
mais difficeis de vencer, para lhe offerecer a mão a
ella, sempre a ella, a quem dirigia tambem todas as
reflexões que o aspecto da paizagem lhe suscitava e
nunca á esquecida Christina que, n'esses momentos,
quasi achava a manhã desagradavel e o sitio feio e
sombrio.
A morgadinha respondia sempre em curtas phrases
a Henrique e recusava insistentemente o auxilio,
que elle lhe offerecia.
―Estou a suspeitar que esses offerecimentos do
primo são mais devidos á necessidade, que sente,
de quem o auxilie, do que ao empenho de nos auxiliar―disse
ella sorrindo.―A falar verdade, para
quem tem passado a vida a trilhar os passeios do
Chiado, que admira? Eu fui creada n'isto. Tenho um
pouco de alpestre. Adeante.
E de uma occasião, em que estava perto d'elle,
disse-lhe a meia voz:
―Pode ser que Christina careça mais do seu
braço, primo. Ainda não teve a
lembrança de lh'o
offerecer.
Henrique só então deu por esse esquecimento;
apressou-se a remedial-o, offerecendo a Christina
tambem o braço, que esta recusou, córando.
―Então por que recusas?―perguntou-lhe a
morgadinha, em voz baixa.
―Porque não quero abusar da delicadeza d'elle,
nem da tua.
A morgadinha abanou a cabeça em ar de
reprehensão,
fitando-a, mas não lhe disse nada.
Pouco a pouco ia sendo mais completo o silencio
em torno d'elles. Já tinham passado acima dos rumores
do valle, que não subiam a mais de meia
encosta. Chegaram emfim ao cimo do monte; tudo
annunciava o proximo apparecimento do sol.
―Chegamos a tempo!―exclamou Magdalena
que, deitando a correr, fôra a primeira que attingira
[149]
a planura. Sua Magestade ainda se não levantou.
Os outros estavam, dentro em pouco tempo, ao
pé d'ella.
Houve um longo espaço de silencio, concedido
espontaneamente á contemplação
d'aquella perspectiva
solemne.
As primeiras palavras, que se disseram, foram
ditas em voz baixa, n'aquelle tom, que insensivelmente
lhes damos, quando na presença de um espectaculo
grandioso e bello. Fala-se baixo e pouco:
não se formulam longos periodos de aprimorado
estylo, nivela-se a eloquencia de todos em simples
phrases, como estas:
―É bello!
―É magnifico!
―É sublime!
E nada mais. Pouco mais disseram os quatro na
occasião de que falamos. E eu, por analogas
razões,
os imitarei, desistindo de descrever o que só bem
se aprecia, quando pela vista se abrange o conjuncto
de todo o panorama. O leitor, que nunca visse
alguma scena similhante, não a imaginaria pela
descripção,
forçosamente pallida, que ahi lhe deixasse
d'ella; e para o que a viu, a memoria lhe preencherá
bem a lacuna.
Desvanecida a primeira impressão, que não deixa
ao espirito a serenidade precisa para os processos
da analyse, principiaram, como é costume, a fazerem
notar uns aos outros os sitios mais conhecidos.
Isto manteve por momentos uma perfeita e desenleada
familiaridade entre os quatro.
Christina descuidou-se da sua timidez e despeitos;
Magdalena dos seus projectos e desconfianças;
Henrique e Augusto deixaram tambem a sua mutua
frieza.
―Lá está o Mosteiro―disse Magdalena, apontando
para o logar indicado.―Como parece pequeno,
visto d'aqui!
[150]
―É verdade―respondia Christina―e olha, Lena,
como se vêem bem as janellas do teu quarto.
―Lá está aquella que tu abriste esta
manhã para
cumprimentares...
Sentindo a mão de Christina
comprimir-lhe o
braço, concluiu:
―Para cumprimentares a estrella d'alva.
―As janellas do quarto da mamã julgo que ainda
estão fechadas.
―Tanto não posso eu distinguir; comtudo
afianço-te
que sim. A tia Victoria não é muito matinal.
―Aquella casa acolá não é a de
Alvapenha?―perguntou
Henrique, apontando n'outra direcção.
―É―respondeu Augusto―e, mais adeante, alli
tem a deveza, em que passou ante-hontem. Não é
verdade?
―É justamente. Com effeito! Foi um soberbo
passeio, o que eu dei! D'aqui é que se vê.
Lá vejo
umas prêsas, por onde me lembro de ter passado
tambem.
―Vê, acolá, aquella casa que tem uma capella
ao lado?―perguntou Magdalena, apontando para
um ponto distante.
―Perfeitamente.
―É a minha quinta dos Cannaviaes.
―Ah! É verdade, lá estão
uns cannaviaes, se
me não engana a vista.
―Justamente. Não sei se sabe que ha n'aquella
capella uma imagem de Nossa Senhora, muito milagrosa.
―Sim? hei de visital-a.
―Coisa que se lhe peça, fazendo-se o voto da
meia noite, é concedido―disse Christina, fitando
d'esta vez Henrique, com a expressão da mais insinuante
sinceridade.
―Que quer dizer o voto da meia noite?
―Tem uma pessoa de rezar á meia noite, e
sósinha,
sete estações no altar da Senhora―continuou
Christina.
[151]
―Só isso? Boa é de cumprir a promessa.
Já vejo
que não ha aqui na terra desejo que se não
satisfaça.
―Mais devagar,―acudiu Magdalena, sorrindo―pouca
gente se atreve até a ir lá á meia
noite,
porque a alma de minha madrinha passeia a horas
mortas por a sua antiga casa, dizem.
―Cada vez sinto mais desejos de lá ir―accrescentou
Henrique, depois de ouvil-a.
―Além, entre aquellas arvores, sr.
a
D. Magdalena,
vive um philosopho―disse Augusto, indicando
outro ponto de perspectiva.
―É verdade; o bom do tio Vicente.
―Tio Vicente? Quem é o tio Vicente? Temos
mais algum tio, com que eu possa augmentar o
meu parentesco na aldeia?
―O tio Vicente é um santo velho, que se occupa
a colher hervas pelos montes e valles para fazer remedios,
que dizem milagrosos. Ainda é nosso parente,
mas em grau muito arredado; comtudo chamamos-lhe
tio, assim como quasi toda a gente por
aqui.
―Que sombras negras são aquellas que se vêem
no adro da igreja?―perguntou Christina.
―Na igreja? Ah! acolá? É verdade, parece um
cordão de formigas―disse Henrique de Souzellas.
―São as mulheres que vão ouvir o
missionario―respondeu
a morgadinha.―Escutem, lá está a
tocar o sino.
Effectivamente chegavam ao alto do monte as debeis
mas sonoras badaladas do campanario da aldeia.
―A estas horas
principiam as
lamentações
d'aquelle pobre Zé P'reira, que tão mal olhado
anda
por a mulher, desde que ella deu n'essas
devoções―notou
Augusto, sorrindo, ao lembrar-se da scena
domestica a que na vespera assistira.
―Degenerou aquella mulher!―disse Magdalena―e,
se quer que lhe fale a verdade, sr. Augusto,
[152]
custa-me vêr o Cancella deixar a Lindita entregue
assim a essa gente quando sáe da terra. A pequena
é tão apprehensiva!
―Visto isso, já chegou aqui á aldeia a
influencia
dos missionarios?―perguntou Henrique.
―E não tem lavrado pouco!―tornou Magdalena.
Christina, que era um poucochinho devota, censurou
timidamente as palavras da morgadinha.
―Primo Henrique―disse ella―julgo que ainda
será preciso o seu auxilio para livrar do contagio
esta innocente Christina.
―Prompto, prima Magdalena; para as boas causas
tenho sempre armada a minha vontade.
―Olha, Lena, não vês?―exclamou
Christina―são
os pequenos que nos estão a dizer adeus das
janellas do mirante.
De facto nas mais altas janellas do Mosteiro agitavam-se
uns lenços brancos.
Marianna e Eduardo haviam-se erguido para saudarem,
de longe, a irmã e a prima. Estas tiraram
tambem os lenços e corresponderam-lhes aos signaes.
Interrompeu-as a voz de Henrique, dizendo:
―Annuncio a v. ex.
as, que chega o rei da
creação.
Effectivamente o cume do telhado da ermida e as
franças despidas da alameda já se tingiam de luz.
Todas as vistas se voltavam para o oriente. Assignalava-o
uma esplendida faixa de purpura, que,
em insensivel graduação, desmaiava para as
extremidades
até se perder de todo no azul-celeste.
Rompia já, do meio d'ella, um pequeno segmento
do sol, depois, o astro inteiro apparecia afogueado
e vermelho, como um escudo de metal candente, e
logo se desprendeu da terra, d'onde parecia surgir,
e subiu nos ares, como um brilhante aerostato, ao
qual se rompessem as prisões que o retinham.
O monte inundou-se de luz. O valle, em baixo,
estava ainda envolto nas meias sombras da madrugada.
[153]
Nisto appareceu do outro lado da capella um
dos criados de Alvapenha, que veio annunciar que
o almoço estava prompto.
―Pois devéras temos um almoço?―exclamou
Henrique, sinceramente surprehendido.
―Graças á previdencia de minha tia, previdencia
de que eu zombava em casa, mas que sou obrigada
a admirar agora. De facto, parece-me que estes ares
do monte e frescuras da madrugada lhe devem ter
aberto o appetite―respondeu Magdalena. E logo
após continuou para Henrique:―Agora é
occasião
mais accommodada de pôr em prática os recursos
do seu galanteio, primo. Quer dar o braço a Christina?
Henrique, em quem a morgadinha suspeitára a
intenção de lhe render a ella a fineza, que assim
declinou na prima, teve de condescender, limitando-se
a exprimir n'um olhar as suas queixas, olhar
que Magdalena fingiu não perceber.
E conversando e rindo, dirigiram-se para o logar
onde, sobre uma mesa de pedra e lousa e ao ar livre,
estava disposto o almoço.
D. Victoria não era senhora, que se saisse mal de
emprezas d'estas. A alvura da toalha, a excellencia
da louça e o bem disposto e apurado das iguarias
convidavam.
Não se concebe appetite refractario a um tal conjuncto
de circumstancias. O fastio, n'este caso, seria
um fastio mórbido, correspondente a lesão
organica
e como tal sem poesia.
Henrique e Augusto principalmente fizeram, como
era natural, justiça á cozinha do Mosteiro.
Henrique, que parecia haver esquecido as suas
mil e uma doenças, conversou animada e espirituosamente.
Contaram-se anecdotas; Augusto applaudiu as de
Henrique; este riu com vontade das que ouviu a
Augusto.
A morgadinha, por sua propria mão, preparou o
chá.
[154]
N'estas alturas do almoço encetou novamente
Henrique o tiroteio de amabilidades, de que por
muito tempo não sabia prescindir.
Dir-se-ia ser este o signal para se perturbar a
santa harmonia do congresso. Parecia que todos os
outros, mais ou menos, se sentiam contrariados.
Henrique ficára sentado junto da parede da capella.
Inclinando-se sobre o espaldar da cadeira a
saborear um charuto havano, descobriu umas letras
escriptas na parede, exactamente por cima da cabeça.
―Bravo!―exclamou, depois de as ler para si―não
imaginava que havia poetas na aldeia! Querem
ouvir?
E leu:
Se estás mais perto do céo
N'estas alturas da serra,
Ai, porque tens, peito meu
Inda saudades de terra?
Em vez-de erguer os olhares
Á luz d'este firmamento,
Desço-os á sombra dos lares,
Onde tenho o pensamento.
―É pena que a chuva apagasse o resto. Quem
é o bardo, prima?
―Não sei; da aldeia de certo que não
é―respondeu
Magdalena, com indifferença.
Augusto ergueu-se da mesa e foi passeiar para a
alameda.
―Da aldeia, não, diz a prima; e por que não?
Com esta natureza é facil crearem-se os poetas. Eu
estou vendo n'esta quadra a folha solta de um romance.
Aqui a serra de algum Bernardim inedito,
tão capaz de escrever saudades, como de as sentir.
Os lares, pela sombra dos quaes o olhar do poeta
trocava os esplendores do céo... algumas d'essas
casas, que ahi se vêem em baixo. Quem sabe se
não será até o Mosteiro? Eu, por mim,
confesso que se estivesse hoje aqui só, ou em outra
companhia―accrescentou,
[155]
olhando significativamente
para a morgadinha-não teria dúvida em subscrever
esta quadra, como a exacta expressão do meu
sentir, porque...
Em vez de erguer os olhares.
Á luz d'este firmamento
Eu tambem...
Os abaixaria aos lares
Onde tenho o pensamento.
Christina levantou-se tambem da mesa e foi ter
com Augusto á alameda.
Magdalena, que a seguiu com a vista, não
disfarçou
um gesto de despeito ao ficar só com Henrique.
―Prima Magdalena,―disse em tom mais affectuoso
Henrique, passado tempo, e depois de mais
algumas palavras―deixe-me falar-lhe com franqueza,
agora que estamos sós. Conhecemo-nos ha
dois dias; eu, porém, sinto-me tão seguro
já do que
lhe vou dizer, que não hesito. Não pode imaginar
a
indelevel recordação que me ficará
d'esta manhã.
―Perdão,―atalhou Magdalena―diga-me primeiro
o que é isso que me vae dizer. Prepara-se
para me agradecer o almoço? Eu sou como os reis;
gosto de estar prevenida do sentido das
felicitações
que me dirigem, para ir preparando uma resposta
adequada.
-Que prazer tem em ser cruel!
-Deixemo-nos de loucuras―continuou Magdalena,
séria já.―Quem ouvisse o sr. Henrique de
Souzellas havia de suppôr que se preparava para
me fazer uma declaração.
-Uma declaração do mais puro affecto, do mais
sincero
sentimento, por que não?
-Ah! Pois, se eram essas de facto as suas
intenções,
peço-lhe desista d'ellas.
[156]
―Por quê?
―Porque não posso escutal-o.
―Ou não quer.
―Ou não quero; seja.
―Teria eu a desventura de chegar tarde, prima?
Acaso o seu coração já...
―Que impertinente pergunta? Se
já, não tenho
ainda no sr. Henrique a necessaria confiança para
o tomar por confidente. Conhecemo-nos apenas de
hontem, que é o mesmo que não nos conhecermos.―E
accrescentou logo depois:―Christina, anda
ser arbitra n'uma disputa entre mim e o primo
Henrique.
―Que vae fazer?―perguntou-lhe Henrique, admirado.
Christina approximou-se; Augusto seguiu-a. Henrique
não desviava os olhos da morgadinha que,
sem lhe dar attenção, proseguiu para Christina:
―O primo Henrique falava com certa exaltação
da doçura do teu caracter; o meu amor proprio
disse-me que―era pouco delicado estar assim a
lisonjear uma mulher na presença de outra―e redargui
por isso, pondo em dúvida a asserção e
affirmando que havia um fermentozinho de maldade
na tua doçura. Elle nega por impossivel, eu
insisto e estamos n'isto. Agora dize tu.
Christina córou intensamente e não teve que
responder.
Henrique, que nas palavras de Magdalena julgou
ouvir algumas que, pelo sentido e inflexão, com que
foram dictas, lhe eram dirigidas, acceitou desaffrontadamente
a posição, em que Magdalena o
collocára,
e respondeu:
―Venci eu! O facto de querer a priminha poupar
uma réplica amarga á
accusação que lhe fazem,
é a mais eloquente prova, já não digo
só da doçura,
mas da natureza angelica do seu caracter. Já vê,
prima Magdalena, que «quando uma das mulheres
que diz, fôr como a nossa boa Christina, não se
podem
[157]
admittir essas revoltas de amor proprio, a que
alludiu.»
A morgadinha percebeu tambem o duplo sentido
d'estas ultimas palavras; mas fingiu não comprehender.
Henrique, ao desviar por acaso os olhos, encontrou
os de Augusto fixos n'elle, emquanto um sorriso
lhe dissipava um pouco dos labios a grave expressão
que lhe era habitual, temperando-a com não
sei que de ironico, que não escapou tambem a Henrique.
Os olhares d'estes dois homens trocaram-se por
momentos, sem que nenhum parecesse disposto a
baixar-se deante do outro.
Desviou-os porém uma dupla exclamação
de Magdalena
e de Christina, dizendo:
―Olhem o tio Vicente por aqui!
Dobrava effectivamente n'aquelle momento a esquina
da ermida, e approximava-se da mesa do almoço,
o velho herbanario, em que já temos falado
no decurso dos passados capitulos.
X
Era uma expressiva figura de ancião o herbanario.
A fronte larga e desaffrontada de cãs, os olhos
ainda vivos e penetrantes e, em toda a physionomia,
permanentes indicios de habituaes meditações
e por ventura de passados infortunios, elevavam
aquelle semblante muito acima da vulgaridade. Os
annos ou, mais ainda do que os annos, os pezares
haviam subjugado n'elle a robustez de outros tempos;
os habitos de solidão, que adquirira, a pouco
e pouco lhe amoldaram o caracter até fazerem do
[158]
velho um d'esses typos excepcionaes, que atravessam
o mundo entre a estranheza de quantos os rodeiam,
a ninguem permittindo sondar os mysterios
que guardam comsigo e para si, e creando para
uso proprio regras de viver, sem attenção
ás convenções
sociaes.
Era um enigma vivo.
Nas aldeias acompanhava-o uma fama quasi de
nigromante; attribuiam-lhe curas milagrosas, obtidas
com os simplices, a cuja cultura e colheita consagrava
as maiores attenções e canceiras.
Ninguem lhe queria mal, que a ninguem o fizera
nunca. Poucos porém ousariam, depois do esconder
do sol, ir procural-o á isolada casa em que vivia,
escondida n'um quintal, que era cultivado com todo
o amor pelo velho.
Em todos os casos intrincados vinham consultar
o herbanario, e elle, como seguro da sua proficiencia,
em caso algum recusava o alvitre.
Em resultado de leituras aturadas, mas sem escolha
nem methodo, de uns alfarrabios herdados de
um tio frade que tivera, adquirira imperfeitas e mal
digeridas noções de sciencia, de que se mostrava
orgulhoso. Livros de medicina antigos, alguns de
jurisprudencia, outros de logica e de astronomia,
constituiam a sua mesclada bibliotheca. Entre os
livros mais predilectos e consultados contava um
exemplar da
Polyantheia de Curvo
Semedo.
O herbanario principiára em creança uma
educação
tal ou qual, que revézes de familia haviam interrompido.
Os meios conhecimentos, que das suas habituaes
leituras extrahira, e os erros, que de taes livros
assimilára, eram os elementos, com que chegou a
architectar uma sciencia informe, que na aldeia passava
por maravilhosa.
E o caso era que a fama do homem voára de
freguezia em freguezia, de concelho em concelho, e
de muito longe o vinham ouvir como a oraculo.
[159]
Os costumes do velho, que errava por valles e
montes á procura dos simplices, cujas occultas virtudes
conhecia, as suas maneiras rudes, a austeridade
da physionomia, a franqueza, sem contemplações,
com que dizia quanto pensava, tinham gravado
fundo na imaginação popular aquelle typo,
para ella quasi lendario.
Depois de se sentar á mesa, o herbanario estendeu
familiarmente a mão a Augusto, que lh'a apertou
com affecto.
―Bons dias, rapaz,―disse o velho; e, dirigindo-se
a Magdalena e Christina, accrescentou com
maneiras paternaes:―Adeus, pequenas; grandes
madrugadas hoje!
Voltou-se depois para Henrique, e fitou-o com
olhos inquisidores e quasi desconfiados, terminando
por lhe dizer simplesmente:
―Guarde-o Deus!
Henrique correspondeu-lhe no mesmo tom.
Sem mais o attender, Vicente voltou-se para
Magdalena e perguntou-lhe com voz audivel para
Henrique, e referindo-se a elle:
―Quem é?
Henrique respondeu com ligeiro tom de mofa:
―O homem que, melhor que ninguem, está habilitado
a responder a essa pergunta.
O velho nem sequer o olhou.
―Este senhor―respondeu Magdalena―é sobrinho
de D. Dorothéa; está hospede em Alvapenha.
Veio para aqui restabelecer-se da saude.
Vicente tornou a examinar Henrique.
―Então é doente?... Não parece...
Olhar vivo...
Côres boas... voz sã... Umh!...
Magdalena julgou perceber que as maneiras rudes
do velho estavam desagradando a Henrique;
por isso apressou-se a intervir, respondendo jovialmente:
―A doença d'este senhor é um pouco de
imaginação.
[160]
―E grandes effeitos nascem d'ahi―acudiu sentenciosamente
o velho.―Lá veem na
Polyantheia
muitos casos curiosos. Um homem, por ter comido
umas amoras, foi atacado de dôres de cabeça, de
que morreu. Pois tanto scismou que das amoras
lhe viera o mal, que até se lhe formou no craneo
uma pedra do feitio de uma amora.
―Com effeito!―disse Henrique, com ironica
expressão de pasmo―ahi estava um cerebro de
concepções rijas!
―É divertido!―disse Vicente, com ligeiro sarcasmo
e olhando para Magdalena.
―Pelo contrario―acudiu a morgadinha―o seu
mal é a melancolia. Não é verdade?
―Eu já não sei qual é o meu mal.
Estou quasi
a dar razão á tia Dorothéa, que lhe
chamou mania.
―Mania e melancolia não são a mesma
coisa―emendou
o velho.―Tambem lá na
Polyantheia se
diz isso bem claro. A melancolia é sem ira nem furia,
porque procede de humor frio, e a mania de
sangue quente ou cólera requeimada.
―De cólera requeimada? Deve ser uma coisa
terrivel!―continuou Henrique, no mesmo tom.
Magdalena, receiando que a ironia dos commentarios
de Henrique acabasse por irritar o velho, perguntou
a este:
―Parece-lhe que terá cura a doença?
―Pode ter; mais rebeldes melancolias se curam.
Este é divertido a final. Umh!... Mas contra tristezas
e manias não ha como as folhas de ouro em
caldo de frangão com flores de borragem e de herva
cidreira.
―Este é como os calvos, que vendem aos outros
pomadas para fazer nascer o cabello; é um
argumento vivo contra a efficacia da beberagem
que receita para as manias―disse Henrique a meia
voz para Augusto, que lhe ficava proximo.
O velho, que não tinha ainda dado mostras de
[161]
offensa pelas maneiras impertinentes de Henrique,
córou d'esta vez e faiscou-lhe nos olhos um relampago
de irritação.
Havia-se sentido ferido no ponto mais melindroso
da sua dignidade.
―Está bom, menino,―replicou elle
amargamente.―Não
diga mais, para se não envergonhar
depois. Eu calo-me; e desculpe-me se falei. Estou
costumado a vêr pobres e ricos virem a minha
casa pedir-me o favor de os attender. Ainda assim
ahi vae mais um conselho, apesar de m'os não pedir.
Seja attencioso com a velhice que não é baixeza
nenhuma. Mas que é isto?―exclamou, mudando
de tom e olhando para um redemoinho de
folhas sêccas que o vento trouxera até perto
d'elle.―As
folhas veem d'este lado! Então virou o vento?
É verdade. Ah! sim?... Percebo.
E, depois de olhar para o ar, continuou:
―Mudanças tão repentinas!... Umh!...
Já
me não agrada aquelle azul e aquellas nuvens.
E levantou-se.
―Dou-lhes meia hora, e verão tudo isto coberto
e quem sabe o mais que virá! Aconselho-os a que
vão descendo o monte, que não é seguro
descel-o
quando as enxurradas engrossam. Eu, por mim,
já me não demoro, que não tenho
confiança na firmeza
das minhas pernas. Oh! n'outros tempos!...
Emfim tudo tem de acabar. Adeus!
E, sem mais palavras, sobraçou a caixa de lata,
em que archivava as hervas medicinaes e outras
substancias, que andava colhendo, e partiu, depois
de dizer adeus a Augusto, a Magdalena e a Christina.
Logo que o herbanario desappareceu, Henrique
soltou uma risada, em que parecia haver o que
quer que era de forçado.
―É realmente curiosa esta antigualha―disse
elle, que interiormente sentia já remorsos pela maneira
por que tratára o velho.
[162]
―Ai, primo Henrique; que ainda está muito
pouco preparado para viver na aldeia!―disse a
morgadinha.―Tem uns melindres e uma maneira
de vêr as coisas! Tudo lhe parecem faltas de
attenções,
propositos de offender! depois ha um sarcasmo
cruel nas suas palavras, a que os espiritos não
estão aqui habituados e de que
se
sentem
por
isso feridos. Isso não é bom! Se vae assim, ou
terá
de nos deixar cêdo, ou grandes desavenças
suscitará
por ahi. Não repara que estes modos são proprios
do campo?
―Perdôe-me, prima Magdalena; mas confesso
que nunca tive demasiado geito para lidar com doidos.
Deve confessar que este homem...
―É um homem de bem―atalhou Augusto com
voz firme e com uma severidade de expressão, que
até alli não mostrára ainda.
Henrique voltou-se admirado e fitou-o em silencio.
Augusto arrostou firmemente aquelle olhar.
―Não o nego―respondeu Henrique, pouco depois―mas
infelizmente os homens de bem envelhecem,
como os outros, e a extrema velhice traz
a imbecilidade.
―Engana-se; esse homem, apesar de algumas
phantasias, tem ainda um juizo são e uma razão
clara.
―Acha?―tornou Henrique, já algum tanto azedado.―Ha
de dar-me licença de não fazer obra
por as suas apreciações... se me é
permittido.
―Procede mal―redarguiu Augusto.―Porque
eu conheço aquelle homem ha muito e o senhor
acaba apenas de o vêr pela primeira vez. Foi o
senhor quem primeiro deu ás suas palavras um
tom irritante, que desafiou uma digna correcção.
Não lhe ficaria mal se tivesse sido mais generoso.
A consciencia lh'o está dizendo n'este momento melhor
do que eu.
―Lê fundo nas consciencias dos outros!
―Não é difficil. Em todos os homens a
consciencia
[163]
tem uma só maneira de ser. Reprova sempre o
mal, aponta sempre a culpa.
―Estou admirando a subita loquacidade que se
lhe manifestou! Até aqui suppunha-o taciturno. Vejo
que lhe mereço a fineza de abrir uma
excepção aos
seus habitos de laconismo em meu favor. Muito
agradecido. Isso que dizia eram maximas ou pensamentos
moraes? Não reparei.
Augusto córou, mas respondeu com firmeza:
―Nem uma nem outra coisa; é um genero muito
mais modesto do que qualquer dos dois. Simplesmente
um preceito de civilidade.
Henrique ia responder irritado, mas conteve-se e
tornou com dobrada ironia:
―É verdade, é verdade... esquecia-me que a
civilidade entra no seu programma... de mestre-escola.
―Justamente; tenho alguns discipulos que lisonjeiam
o mestre; rapazinhos da aldeia, pobres, rotos
e descalços, mas n'esse ponto podem dar
lições a
elegantes filhos das cidades.
―Pois estimarei, nas minhas longas horas de
ocio, aqui na aldeia, dever-lhe algumas lições
tambem.
Comtudo, como, felizmente, as circumstancias
em que estou me permittem prescindir do beneficio
do estado, que o subsidia, ha de conceder-me que
pague as lições que receber.
―Nunca me envergonhei de acceitar a recompensa
do meu trabalho, se o discipulo pode dar-m'a...
sem sacrificio.
―E acceita-a em toda a especie de moeda, não
é verdade?―perguntou Henrique, cada vez mais
petulantemente.
Augusto respondeu com a mesma serenidade:
―Não faço tambem escrupulo n'isso, comtanto
que me fique o direito salvo de pagar na mesma
especie de trócos, quando julgar que os devo.
O dialogo ia, como vamos vendo, de momento
para momento adquirindo mais acerbo caracter.
[164]
Christina, que já tremia de assustada, cingiu o
braço de Magdalena, como para convidal-a a intervir.
Esta não o tinha ainda feito por uma simples
razão.
Desconhecia Augusto. A audacia com que o
via repellir as ironias do seu adversario, a firmeza
inalteravel, com que lhe sustentava o olhar, o sorriso,
que, em desdens, rivalisava com o d'elle, eram
tão novos para a morgadinha, que a surpreza, que
d'ahi lhe vinha, nem a deixava ainda perceber a utilidade
de uma intervenção. O aviso de Christina
chamou-a, porém, á realidade.
―Tem-me querido parecer, ainda que me custa
a acreditar, que isso entre os senhores é uma
altercação―disse
ella por fim.―Vejam que só teem
por testemunhas duas mulheres, que mal lhes podem
servir de padrinhos, se a contenda tomar outra
feição. Por isso não é
muito para louvar a escolha
que fizeram da occasião, para uma justa tão
pouco... amavel.
―Perdão, prima Magdalena; reconheço a minha
culpa, e a grosseria do meu proceder. Mas aqui o
sr. Augusto, costumado a impôr aos discipulos o
seu pensamento, quiz estender até mim este despotismo
de...
magister... Ora o meu
pensamento
pugnou pela sua independencia...
―Desculpe; suppondo-o um homem de brio e de
pundonor, julguei que me agradeceria, se conseguisse
modificar-lhe uma opinião desfavoravel, que
levianamente formou de quem lh'a não merecia.
Vejo que prefere ser injusto. Seja-o. Pense o que
quizer. Mas o que eu não soffro é que se diga
deante de mim uma palavra contra um homem
que respeito e de quem sou amigo, sem que erga
a voz a defendel-o. Se não costuma fazer o mesmo
por os seus, nem sente viva e irresistivel a necessidade
de o fazer, lastimo-o; é porque não os
tem.
―Com mais paz de espirito se discutirá tudo
[165]
isso depois―disse Magdalena.―É de crêr que,
como sempre, haja de parte a parte razão e aggravos.
Agora convido-os, antes de descermos, a visitar
a ermida, cuja porta está sempre, dia e noite,
aberta aos devotos que a piedade aqui traz. E tal é
o prestigio que a defende, que não consta de um
só roubo sacrilego, que se fizesse n'ella.
Entraram na ermida. Era um pequeno santuario,
todo forrado de azulejo antigo, com ennegrecidas
pinturas a fresco nos apainelados do tecto, representando
episodios da Paixão; os altares, adornados
de columnas e florões de talha dourada, attestavam
nos muitos ex-votos que d'elles pendiam e
nos quadros, cuja perspectiva deixava a perder de
vista a dos desenhos chinezes e que representavam
milagres de todo o genero, a fé ardente com que era
adorada a imperfeita esculptura da Virgem.
E apesar de tudo tinha este templo um ar de solemnidade
manifesto. D'onde lhe vinha elle? Da sua
mesma pobreza e nudez, do silencio que reinava em
torno, da altura a que se erguia, do isolamento em
que estava.
Alli dentro demoraram-se os quatro visitantes,
Magdalena e Henrique examinando alguns dos quadros
dos milagres; Christina, que prolongára mais
do que a prima a oração que fizera, contemplando
a imagem da Senhora; Augusto com os olhos fitos
nas columnas do altar, porém, não sei se pensando
n'ellas.
Esperava-os uma surpreza á saida.
Realisára-se o prognostico do herbanario.
O vento sul que, segundo elle notára, soprava já
havia algum tempo, viera condensar os vapores,
que arrasta de ordinario na sua corrente, e empanar
com elles a limpidez do firmamento. O azul do
céo semeiára-se, pouco a pouco, de pequenos
flocos
brancos, de manchas irregulares e de longos e encurvados
veios que lhe davam uma apparencia
quasi marmorea. Cêdo estas massas de nuvens
[166]
cresceram, tocaram-se, confundiram-se, acabando
por tingir uniformemente toda a extensão do firmamento.
Ao mesmo tempo, outras nuvens, mais pesadas
e mais escuras, começaram a erguer-se do
sul e caminharam impetuosas no espaço, como
montanhas moveis, que viessem em pavorosa carreira,
de encontro ás serras, que as aguardavam
firmes.
Um denso véo de nevoeiro escondia já a paizagem,
quando sairam da ermida.
―Depressa!―exclamou Augusto―já não ha
tempo a perder! Desçamos antes que a tormenta
nos colha.
―Tem medo?―disse Henrique em tom de mofa.―Um
montanhez!
―Talvez tenha; em todo o caso ha de vêr que
não é de inimigo pouco digno de o inspirar. Por
agora peço-lhe tréguas ás zombarias e,
por amor
d'estas senhoras, aconselho-o a que trabalhe por
apressar a descida. Felizmente que o criado já partiu.
É um embaraço de menos. Vamos.―Detendo-se,
porém, disse para Magdalena:―Se descessemos
por o outro lado, minha senhora?
―Para quê?―respondeu esta.―É um momento,
emquanto chegamos abaixo.
A tempestade caracterisava-se cada vez mais;
crescia a cerração do ar; os álamos
gemiam, vergados
pela impetuosidade das lufadas do sul; a
chuva principiou por grossas gottas, e cêdo augmentou
assustadoramente; havia na atmosphera
surdos rumores de tempestades longinquas; algumas
nuvens tomavam uma côr terrea, outras um
carregado de chumbo, ambas igualmente sinistras.
Christina, pallida de susto, murmurava em voz
baixa orações fervorosas; Magdalena sorria para a
animar, mas ella propria estava inquieta.
Não era de facto uma empreza de todo facil o
descer o monte por um tempo d'aquelles. O caminho,
já de si ingreme e precipitoso, era quasi impraticavel
[167]
quando as correntes se despenhavam por
elle, como em catadupas, e os ventos vinham despedaçar-se
furiosos de encontro ás arestas salientes
da rocha.―Era necessario estar muito amestrado
para o descer sem perigo.
Augusto era de todos o que melhor o conseguiria;
assim não tivesse de repartir os seus cuidados
por tantos. De pequeno se costumára áquellas
aventuras;
e já então seguia, sem vertigem, a mais estreita
borda dos despenhadeiros do monte.
A tudo porém attendia agora, desenvolvendo uma
actividade e pericia, que inspirava alento e confiança
aos mais. Agil, como um animal montez, girava
em volta da pequena caravana, de que tacitamente
fôra reconhecido chefe. Ora adeante a dirigir
os passos pelos logares de mais facil transito, ora
á retaguarda a dar a mão a Magdalena, que vira
em embaraço, ou a amparar Christina, a quem muita
vez chegou a levantar nos braços, para a fazer franquear
um ponto do caminho, em que ella parára,
sentindo que lhe resvalavam os pés no declive e na
humidade do chão. O proprio Henrique, que não
era o menos embaraçado do rancho, e nem isso
admira, só a custo podia prescindir, em certos lances,
do auxilio de Augusto.
O amor proprio e orgulho do hospede de Alvapenha
iam um tanto mortificados n'esta retirada ingloria.
Nenhum dos seus muitos talentos e aptidões,
de tanto valor no terreno, tambem escorregadio, das
salas de baile, lhe valiam para alli. Era evidente a
sua inferioridade n'este momento; ora Henrique não
era homem que, tendo consciencia disto, ficasse
indifferente; mas que remedio? Procuraria mais
tarde uma compensação.
Não descrevemos todos os episodios d'esta laboriosa
descida, alguns dos quaes sómente a
preoccupação,
em que iam os animos, impedia achar risiveis;
porém que mais tarde deviam, como é costume,
vir a ser alimento de animadas e joviaes
recordações.
[168]
Assim foi que, a meio da encosta e em sitio em
que se lhes cortava ao lado do caminho, que cautelosamente
desciam, uma ribanceira quasi a pique e
erriçada de fragas salientes e angulos de rocha, em
cujas fendas e sinuosidades apenas os tojos e as
giestas e algum pinheiro enfezado tinham conseguido
vegetar, uma violenta rajada de vento, desprendendo
a mantilha de Magdalena, depois de a revolutear
no espaço arremeçou-a ao abysmo.
Ficou suspensa nos espinhos das tojeiras, porém
em logar, onde seria difficil o accesso, de qualquer
lado que se tentasse.
Magdalena, no momento, não pôde reter um grito,
que fez parar com terror Henrique e Augusto
que caminhavam adeante. Voltaram-se assustados.
A morgadinha, com a cabeça descoberta, tranças
ligeiramente desordenadas, as faces um pouco pallidas,
sorria já do seu exaggerado susto.
A rir, explicou o succedido, pedindo perdão pelo
sobresalto que involuntariamente causára.
―Descança em paz!―disse ella, olhando para a
mantilha; e accrescentou:―Sigamos.
―Mas não será possivel tiral-a
d'alli?―perguntou
Augusto, examinando o sitio.
―Para quê? Não podemos demorar-nos agora
com isso―respondeu Magdalena.
―Eu desço a cortar uma canna lá abaixo aos
Moinhos e volto n'um momento―insistiu Augusto,
dispondo-se a executar o que dizia.
Henrique notou, sorrindo:
―O alvitre é de homem prudente. Cuidei que os
montanhezes não eram de tão bom aviso.
E, animado pelo desejo de humilhar Augusto, por
quem se sentia humilhado, e ao mesmo tempo cedendo
á influencia que sobre elle exercia a fascinadora
figura de Magdalena, Henrique arrojou-se a
uma desnecessaria imprudencia.
Sem dar tempo a que o impedissem ou lhe fizessem
qualquer reflexão, deixou-se escorregar no despenhadeiro,
[169]
segurando-se com as mãos á borda do
caminho; tenteou com os pés as fendas e as anfractuosidades
da rocha, até conseguir firmal-os; segurou-se
ora a uma raiz saliente, ora a um ramo
mais tenaz; á fôrça de vontade dominou
a sua impericia
em exercicios d'esta ordem, e finalmente
conseguiu, estendendo o braço, segurar a mantilha,
que o vento arrojára ao precipicio.
Depois, com dobradas difficuldades e por ventura
redobrados perigos, pôde, roçando-se como reptil,
e ferindo as mãos nas asperezas da rocha e nos
espinhos das tojeiras, em que se firmava, pousar
outra vez os pés em terra, sem acceitar a mão que
Augusto lhe offerecia, e com gesto radiante entregou
a mantilha a Magdalena, fixando em Augusto
um olhar de triumpho.
Os espectadores d'esta scena haviam-a presenciado
sem soltar uma palavra, sem fazer um movimento,
quasi gelados de susto e de espanto.
Quando Henrique voltou com a mantilha, Augusto
meneou a cabeça murmurando:
―Que imprudencia!
―Na verdade!―disse Magdalena, ainda nervosa
com a impressão que este incidente lhe
causára―foi
uma loucura; uma loucura imperdoavel.
E a perturbação era tal, que nem acertou com
uma phrase de agradecimento, com que pagasse a
imprudente galanteria, que mais desejava reprehender,
do que recompensar.
Esta reserva offendeu Henrique; serviços
a
seu
vêr de menor importancia, tinham
merecido a
Augusto mais calorosas palavras.
Revoltou-o esta ingratidão.
Mal sabia elle que estava sendo ainda mais ingrato,
não concedendo sequer um olhar ás faces
desmaiadas pelo terror, aos labios trémulos e aos
olhos arrasados de lagrimas, com que o fitava
Christina. Ella, que o tinha seguido muda de susto
e de anciedade em toda aquella louca aventura, ella
[170]
que, ao terror do perigo, ajuntava a affligil-o o desespêro
de vêr que fôra outra a que inspirava aquellas
loucuras!
Aguardavam-os em baixo novos trabalhos a vencer.
Com a fôrça das enxurradas, que se precipitavam
clamorosas pelas vertentes e algares, era provavel
que a levada que corria na raiz do monte tivesse
engrossado mais e acabasse de cobrir a ponte
rustica, que á vinda já tinham encontrado quasi
submersa.
Augusto, prevendo isso, voltou-se para as senhoras,
dizendo:
―Eu vou adeante assegurar-me do estado da
ponte, para no caso de estar já coberta, como é
provavel, vêr se o moleiro nos abre a porta do moinho,
a fim de passarmos por lá. Vão descendo devagar,
que eu volto.
―Então deixa-nos
sós?―exclamou Christina,
assustada.
―É um instante.
―Não sei se nos atreveremos a dar um passo
sem a sua indicação―disse Magdalena.
―O peor está passado. Além d'aquella pedra
já
vêem o ribeiro e a
ponte; o caminho indica-se
por si.
E dizendo isto, desceu agilmente por uma especie
de escadaria aberta na rocha, a qual mais depressa
o devia conduzir ao logar que demandava.
Henrique ia agora na frente; após, seguia-se Magdalena.
Christina fechava o cortejo.
O mau humor de Henrique augmentára de ponto,
em consequencia dos receios com que as duas raparigas
tinham visto Augusto abandonar, por momentos,
a direcção do rancho.
Ficava assim bem evidente a pouca ou nenhuma
confiança que lhes estava merecendo o auxilio de
Henrique, representando assim elle n'aquella contingencia,
em vez do papel de protector, o de protegido,
que o humilhava.
[171]
Obrigado a digerir, como pudésse, o seu fundo
descontentamento,
Henrique perdera com isso aquella
volubilidade de conversação que mantivera todo o
dia.
Nunca, na presença de Magdalena, deixára passar
tanto tempo sem formular um d'esses galanteios
que a impacientavam e obrigavam a uma resposta,
nem sempre demasiado affavel.
Magdalena, por seu lado, não se sentia com
disposição
para falar. Christina menos.
Este silencio acabou por exasperar Henrique.
Haviam já percorrido grande parte do caminho,
que os distanciava do riacho. Avistavam-se as aguas
turvas e impetuosas, que, com mais fragor do que
nunca, se contorciam n'aquelle apertado leito.
Foi então que Henrique desafogou o seu resentimento.
―Estou devéras arrependido, prima Magdalena,―disse
elle com leve ironia―do meu espontaneo
movimento de ha pouco. Devia lembrar-me de que
ao nosso cavalheiroso guia devem pertencer todos
os triumphos e toda a gloria d'esta jornada: mas
como d'aquella vez se me figurou que era demasiado
cauteloso para heroe...
Uma simultanea exclamação de Magdalena e de
Christina não o deixou proseguir.
Voltando-se para saber a causa, que a motivára,
viu-as paradas, pallidas, olhando com anciedade
para a base do monte.
Seguindo a direcção do olhar d'ellas, Henrique
reconheceu a causa d'aquelle duplo grito.
Refiramol-o em poucas palavras.
Quando Augusto chegou ao ribeiro, para averiguar
se a ponte estava ou não transitavel, surprehendeu-o
um espectaculo inesperado.
O herbanario que, prevendo tempestade e receioso
dos perigos de que em taes condições a descida
era acompanhada, se apressára a partir, não
conseguira
chegar ao ribeiro, antes do desencadeamento
[172]
da borrasca. O andar vagaroso e precavido
do velho e as frequentes pausas que fazia, ou para
descançar ou para colher a rara planta montezinha,
o insecto, o verme, o mollusco ou o mineral de
occultas virtudes, elementos da sua pharmacopeia,
foram retardando de maneira que a chuva apanhou-o
a meio caminho, e mais difficil de descer
lhe tornou a metade, que lhe faltava. Assim, não
obstante haver partido antes dos outros, não lhes
levava muitos passos de avanço.
Ao chegar á levada, encontrou já as pedras do
tosco passadiço, a que se dava o nome de ponte,
cobertas pela agua. O velho deu-se pressa em descer
para a passar ainda a pé enxuto; mas a levada,
agora torrente caudalosa, ganhava corpo de momento
para momento; cêdo já não se viam
signaes
de ponte. O herbanario parou, embaraçado. Acima
ficavam-lhe os açudes, transformados em impetuosas
cataractas; abaixo, o moinho, em cujas enormes
rodas espumava a corrente com espantoso
fragor.
O velho Vicente hesitou. Era para causar vertigens
o que via. As aguas, sem transparencia, occultavam
de todo a vista das pedras.
Tenteou com o bordão o sitio, em que as suppôz.
Encontrou a primeira, pousou um pé n'esse
ponto; firmou-se como pôde, para resistir á
fôrça
da corrente; tenteou outra vez, reconhecendo outra
pedra, deu mais um passo, e outro, e mais outro,
até que de repente, ou por esvaímento de sentidos
ou por se firmar em falso, vacillou e, perdendo o
equilibrio, caiu na levada para o lado dos moinhos.
Foi n'este momento que Augusto chegou; viu-o
pois cair, viu-o estrebuchar, luctando com a impetuosidade
das aguas; reconheceu a urgente necessidade,
para evitar uma horrivel desgraça, de acudir,
sem perda de tempo, ao pobre velho, que a torrente
arrastava para os lados do moinho.
Cedendo a este pensamento, Augusto franqueou,
[173]
quasi de um salto, o espaço, que o separava ainda
do ribeiro, e lançou-se á agua.
Era a vez de Augusto revelar coragem. Henrique
tambem a possuia, mas abusava d'ella ou, por vaidade
malbarateava-a em ninharias. Ainda n'isto se
revelava o seu amor de ostentação. Imaginava-se
sempre n'um palco, deante de espectadores que o
viam e applaudiriam, se desempenhasse bem o papel
de homem perfeito. Fraco perante doenças imaginarias,
arriscaria, para evitar o ridiculo, a propria
vida, assim como suffocaria, por ventura, um impulso
generoso, que não pudésse harmonisar-se
com a convenção, que se chama elegancia.
Eram estes os defeitos que Magdalena adivinhára
n'elle.
Augusto era differente.
As suas grandes qualidades guardava-as com
modestia dos olhos estranhos, para sómente as revelar,
quando pudéssem ser uteis.
Ao vêr cahir a mantilha de Magdalena, não arriscou
temerariamente a vida para a buscar. Procurava
com placidez os meios de o fazer, com mais segurança,
embora com menos romanticismo; mas, para
salvar uma vida, para obedecer a um instincto, verdadeiramente
nobre e generoso, nada o fazia recuar.
Logo que Augusto voltou a terra e auxiliou o
herbanario a subir para a margem, Magdalena, respirando
emfim com desafogo, respondeu ás anteriores
palavras de Henrique, dizendo em suave tom
de censura:
―Bem vê que nem sempre é cauteloso o nosso
guia, primo Henrique. Sabe tambem arriscar a vida,
quando uma razão de humanidade lh'o pede. A
sua imprudencia de ha pouco... agradeço-lh'a,
mas... não posso approval-a. Confesse que não
foi tão justificada como esta.
Henrique tinha a razão clara bastante e a consciencia
justa para vêr que, apesar da sua façanha
[174]
cavalheiresca, ficára, d'esta vez ainda, inferior ao
seu companheiro.
Qualquer que fôsse o desgosto, que a descoberta
lhe produzisse, é certo que teve sobre a
rebellião
dos maus instinctos poder sufficiente para se obrigar
a ir apertar a mão a Augusto.
O velho Vicente estava pallido e extenuado pelo
esforço da lucta com a corrente; ainda assim
abraçou
tambem Augusto, dizendo:
―Agradeço a Deus o haver-me dado esta occasião
de te dever a vida, rapaz. Era um prazer que
desejava levar da terra, quando a deixasse.
Magdalena e Christina rodeavam o velho de cuidados.
Appareceram, emfim, do outro lado do ribeiro,
os criados enviados por D. Victoria com guarda-chuvas
e roupas de agasalho. Com elles vinha tambem
o moleiro, a quem mandaram chamar para
dar passagem pelo moinho, visto estar obstruida a
ponte, e ao mesmo tempo para que as senhoras pudéssem
ahi dentro mudar de fato.
Augusto seguiu o herbanario a casa.
Passada meia hora saíam tambem do moinho
os outros todos, depois de haverem renovado a
roupa, que a chuva repassára.
No Mosteiro, D. Victoria recebeu a filha e a sobrinha
com muitas exclamações e ralhos por
não
terem ido prevenidas com guarda-chuvas, como ella
lhes recommendára; estas iras cêdo se derivaram
sobre os criados, a quem, entre outros delictos,
attribuia o de a não haverem avisado de que na
vespera passára por alli o caldeireiro ambulante,
repenicando nos seus arames, o que, sendo prognostico
infallivel de chuva, faria com que ella, sabendo-o,
se oppuzesse a tal passeio.
Em Alvapenha, D. Dorothéa e Maria de Jesus não
levantaram menor celeuma, ao vêrem chegar Henrique.
Fizeram-o metter na cama, cobriram-o de
cobertores, emborcaram-o de
punch e
taes mêdos
[175]
lhe insinuaram, que as apprehensões pathologicas
de Henrique agitaram-se e tentaram reapossar-se
da sua antiga victima.
XI
Censuravel descuido tem sido o nosso em não
conduzir o leitor a um dos logares mais importantes
da aldeia, onde se passam os singelos episodios
d'esta narração.
Que se diria de um
cicerone que, por
esquecimento
ou proposito, deixasse de apresentar um viajante,
recem-chegado a uma cidade, na assembleia,
club, gremio, ou o que quer que seja, onde se reunem
as principaes personagens d'ella, onde se compendiam
as grandes questões e interesses locaes,
as pequenas vaidades e intrigas, as modas ephemeras,
os voluveis caprichos que agitam os espiritos,
onde se commenta o boato de hontem, se dão ao
de hoje mil versões diversas e se adivinha já o
de
ámanhã?
Pois no mesmo delicto incorremos nós, chegando
a este undecimo capitulo, sem ter guiado os leitores
á venda de Damião Canada, a qual podia dizer-se
o verdadeiro coração d'aquelle organismo social.
Tudo quanto na terra havia de certa representação
alli ia falar da coisa publica e tambem da particular;―da
particular dos outros mais do que da
propria, entenda-se.
Aproveitemos um resto da tarde, em que a natureza
após horas continuadas de chuva e de temporal,
como que procurou respirar e permittiu que o
sol, já no occaso, levantasse uma ponta do manto
de nuvens que o envolvia, e mandasse os raios
amortecidos ás cristas das serras fronteiras; aproveitemos
[176]
este intervallo de socego para entrarmos
na taberna.
Tinham passado dois dias depois do passeio ao
monte, que descrevemos.
Henrique de Souzellas teve de condescender com
uma leve angina, que lhe legaram os rigores
d'aquella excursão, e ficou em Alvapenha, entretendo-se
a escrever cartas aos amigos e a scismar
n'uma imminente desorganisação da larynge, a
que imaginava conduzirem-o os seus incómmodos
actuaes.
No Mosteiro nada tambem occorreu, que mereça
narrar-se ao leitor.
Deixemos, pois, por momentos, os nossos conhecidos,
e vejamos o que dizem os frequentadores do
estabelecimento de Damião Canada.
Brilhante é a assembleia alli reunida. Além do
proprietario, barriguda e rubicunda figura, que, assim
posta ao pé das pipas, podia servir de typo para a
representação de um Sileno, havia varias
individualidades
de peso nos destinos de toda a comarca.
Dê-se primeiro menção ao nosso
já conhecido
Bento Pertunhas, a quem as humanidades não faziam
soberbo a ponto de recusar-se a entrar em
communicação social com os seus conterraneos.
Observada esta deferencia, mencionemos os mais.
Um era nem mais nem menos do que o sr. Joãozinho
das Perdizes, em quem já temos ouvido falar
por mais do que uma vez.
Era o dicto sr. Joãozinho morgado e proprietario
em uma das freguezias proximas, chamada de Pinchões;
mas propriedades e morgadia andavam-lhe
tão embaraçadas em redes de demandas e de
hypothecas,
que Deus nos acuda.
Os autos, que diziam respeito á casa das Perdizes,
enchiam um cartorio. Graças, porém, ao seu
genio despreoccupado e folgazão, o sr. Joãozinho
deixava aos procuradores os cuidados judiciaes; os
cuidados agricolas aos rendeiros e feitores; os do
[177]
futuro, a Deus ou ao diabo; e para si não reservava
nenhuns.
Proseguia n'aquella vida airada, que já lhe era
necessidade. Frequentava as feiras, onde ia para jogar
e fazer trocas de cavallos com os ciganos, e ás
vezes para dar e levar sovas monumentaes.―Nos
mezes de caça, a vida do morgado era perfeitamente
nómada: estendia por leguas e leguas as suas
excursões
venatorias, contentando-se com qualquer
cama e comida, de que, de ordinario, participavam
os cães, que o acompanhavam; distrahia-se tambem
a conquistar os corações femininos da freguezia,
calando com dinheiro algumas queixas mais
acerbas e insoffridas de um ou outro pae, marido
ou irmão. Em todas as tabernas das freguezias vizinhas
tinha contas em aberto, o que não obstava a
que entrasse em todas com ares de conquistador e
expendesse alli as suas opiniões absolutas, com
grande exhibição de berros e de punhadas.
Com todas estas qualidades, era o sr. Joãozinho das
Perdizes um homem verdadeiramente popular entre
os da sua freguezia; movia-os no sentido que quizesse.
Tudo por lá era o sr. Joãozinho; não
havia funcção,
rixa, solemnidade official, para que elle não
fôsse
consultado. É que a superioridade do morgado das
Perdizes não era d'aquellas que intimidam e acanham
o povo; ninguem hesitava em falar-lhe e em
procural-o em casa, porque, falando e vivendo com
elles, o sr. Joãozinho não constrangia ninguem.
Os
seus defeitos, a sua vida de feiras e de tabernas
eram outras tantas causas a popularisal-o; justo é
porém que se diga que algumas boas qualidades
tambem para isso concorriam. O sr. Joãozinho não
era avarento, nem soberbo. Sentado a beber, e com
dinheiro no bolso, não consentia que pessoa alguma,
desde o mais rico proprietario até o jornaleiro
mais miseravel, recusasse tomar assento a seu lado.
Não eram poucos os filhos-familias que resgatára
[178]
de soldado, sem a menor caução ou interesse,
chegando
a ficar empenhado para os livrar; e se algum
desgraçado se via perseguido pela justiça,
encontrava,
fôsse qual fôsse a enormidade do crime,
asylo seguro na herdade das Perdizes, que em certas
épocas era um perfeito valhacouto de malfeitores.
Graças, pois, a estas e analogas qualidades, era
o sr. Joãozinho uma verdadeira potencia eleitoral.
Eis ahi o homem moralmente.
Pelo lado physico, supponham um sujeito de trinta
e cinco annos, gordo, vermelho, de longas e encaracoladas
melenas em desordem, bigode aparado e
a barba quasi sempre mal feita ou por fazer. Na
maneira de vestir inculcava os habitos da vida e
um certo desleixo com sua pessoa, que lhe era peculiar.
Trazia o collete quasi sempre desapertado e
com alguns botões de menos de modo que os peitos
da camisa formavam hernia pela abertura; entre
as calças descaídas e o collete avistava-se o
cóz
das ceroulas, no qual era geito muito seu o enfiar
a mão; ao pescoço trazia um lenço de
seda escarlate,
negligentemente atado e com longas pontas fluctuantes;
uma jaqueta de pelles com alamares, calças
de fazenda chamada pelle do diabo, botas de
montar e esporas constituiam o resto do vestuario.
O cigarro, que quasi sempre fumava até ás
ultimas,
crestára-lhe profundamente as pontas dos dedos e
o canto dos labios. O palito andava-lhe sempre atraz
da orelha; a navalha de ponta na algibeira, e, para
qualquer parte que ia, acompanhava-o uma tumultuosa
matilha de galgos, podengos e perdigueiros.
Segunda e não menos importante personalidade
era a do sr. Eusebio Seabra, chamado por antonomasia―o
Brazileiro.
Era um homem de cincoenta annos; bem figurado
e sisudo, de falar compassado e com seus
quês de oraculo, phrases sentenciosas e ares de
protecção
a todo o mundo.
[179]
Saira creança da aldeia e fôra tentar fortuna ao
Brazil. Por lá esteve quarenta annos, e voltou o homem
grave que vemos e rico. Como enriqueceu não
sei, e ninguem na terra o sabia. Veio edificar uma
casa no sitio em que nascera, uma casa grande de
cantaria e azulejo, com tres andares e varandas,
jardim com estatuas de louça e alegretes pintados
de verde e amarello, o qual jardim tinha mais fama
n'aquellas aldeias vizinhas do que os jardins suspensos
da Babylonia. Trouxera um papagaio e uma
arara, igualmente famosos, e uma botica homoepatica,
que elle proprio manipulava.
As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a
vir a ser a primeira personagem de influencia na
aldeia. Para isso principiou por fazer alguns reparos
na igreja parochial, presenteou com vestidos
novos todos os santos dos altares, e mandou renovar
um sino, que havia doze annos tocava a rachado.
Fez á sua custa a festa do orago, chegando a
mandar vir fogo preso da cidade e um aerostato,
que ardeu a pouca altura do chão. Apesar, porém,
de todos estes beneficios á localidade, o conselheiro
Manoel Bernardo, pae da morgadinha, comquanto
vivesse quasi sempre em Lisboa, continuava a fazer-lhe
sombra e a contestar-lhe as ambiciosas vistas.
Por isso, apesar da apparente amizade com
que Seabra o acolhia e lisonjeava até, conservava
por elle no fundo uma má vontade, um ciume, de
que eram de receiar, tarde ou cêdo, explosões.
Seabra era tão asseiado, quanto o sr. Joãozinho
das Perdizes descurado no seu vestir. Usava sempre
de suissa irreprehensivelmente talhada em volta
do queixo; camisa muito lavada; peito aberto e tres
grandes botões de brilhantes; no trajo combinavam-se
as variegadas côres de uma ave da America;
e o ouro, distribuido com profusão por todos
os accessorios da sua pessoa, attestava os bons resultados
dos seus quarenta annos do Brazil. Passeiava
pela aldeia de chinelos de marroquim verde
[180]
ou sapato de tapete, e era tal n'elle a delicadeza do
andar, que voltava a casa sem que uma mancha
ennodoasse a alvura das suas meias de algodão fino.
Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos
caminhos, calcando-a com bota de polimento.
Além d'estes dois e do nosso conhecido Zé
P'reira,
que bebia, em silencio, ao pé do taberneiro, havia
um padre, coadjuctor da freguezia, dois lavradores
abastados e já de avançada idade, e outros
que deixaremos confundidos na massa indistincta
dos comparsas.
No momento, em que entramos, usava da palavra
o brazileiro, que estava sentado á porta da taberna,
na mais limpa cadeira do estabelecimento.
―Pois é verdade―disse elle―fômos todos da
mesma creação. O conselheiro
Manoel Bernardo
saiu d'aqui para Lisboa um anno depois de eu ir
para o Brazil. Andámos ambos na mesma escola,
que era a do padre Joaquim, alli pelo sitio da Corredoura.
Vossemecê ha de estar lembrado, sr. Luiz―accrescentou,
dirigindo-se com a affabilidade protectora,
que o caracterisava, a um dos lavradores.
―Ora se estou! muito bem. Era na casa em que
hoje mora o Chico da Luciana.
―É verdade que sim. Pois alli andei eu e o conselheiro
e aquelle ratão do Vicente, herbanario, que
era já rapaz taludo. Lembra-me, como se fôsse
hoje,
de quando jogavamos todos tres a pedra no terreiro
da Corredoura.
―Olha lá, hein!―diziam dois lavradores com
um sorriso cortezão nos labios―então com que o
sr. Seabra tambem jogava a pedra! Eh! eh! eh!...
―Ora, como um homem. Eu fui levadinho da
bréca. Boa sóva levei de minha mãe,
por causa de
umas calças novas que rompi.
―Ora vêdes?―diziam os outros.
―Ai tempos, tempos!―disse, suspirando, o brazileiro.
―Quem havia de dizer então ao que v. s.
a
e o
[181]
conselheiro tinham de chegar!―notou lisonjeiramente o sr. Bento
Pertunhas.
―Eu sim―respondeu com toda a sua modestia o brazileiro.―A que
cheguei
eu? Comi candeias accêsas pelo Brazil, para arranjar um
boccado de pão para o resto da vida; com isso me contento.
O mais, sou um pobre diabo que ninguem conhece, um homem ignorante, sem
principios. Elle é outra coisa.
―Não é tanto assim―insistiu
Pertunhas―todos sabem que v. s.
a se quizesse...
―Olhe, meu caro amigo, eu conheço-me; se tivesseo juizo de
muitos, que por ahi vejo figurando, então havia de me
vêr na brecha; porque, não é por me
gabar, mas não me tenho por menos do que muitos d'elles.
―Ora pois, não, não―disseram os
lavradores, Pertunhas e o padre.
―Alguns que até ministros teem sido...
―Por essa estou eu...
―O conselheiro mesmo...―resmungou o padre, fungando uma pitada
jesuitica―sim, aqui para nós...
―Tanto não digo―continuou o brazileiro, mais
jesuiticamente
ainda.―O conselheiro... vamos... Faça-se-lhe
justiça. Eu não quero dizer que elle seja uma
coisa
por ahi além... sim... Que diabo tem elle feito a final?...
Mas... Não é dos peores, não
é dos peores. Faça-se-lhe justiça.
Não é homem de grandes talentos... isso
não; nem mesmo de grande fundo. Sim... Devemos confessar
que esta é a verdade... Mas... emfim, vamos andando...Cada
um
faz o que pode―concluiu o brazileiro, depois de ter feito
justiça ao conselheiro.
―No que elle tem andado mal é em prometter mais do que pode
fazer. Ha quantos annos nos anda a falar na estrada, e até
hoje ainda nem palmo d'ella?―opinou Pertunhas.
―Meu amigo, engana meninos e chupa-lhe o pão: diz o
dictado―ponderou o brazileiro.
[182]―A falar
verdade!...―disse um dos lavradores―com a influencia que elle tem,
podia...
―Ora adeus! palanfrorio―atalhou o padre―bem me fio eu na influencia
do conselheiro.
―Eh! eh! eh!―respondeu o brazileiro, agradado do scepticismo do
padre,
e accrescentou com um sorriso velhaco:―Não, elle diz que
fala com os ministros, que tal, que sim senhores, que domina o partido.
Emfim... Elle lá o sabe.
―Para mim é que elle vem de carrinho...
―Eu não sei―concluiu com requinte de velhaquez o
brazileiro.
―Pois eu cá―disse o sr. Joãozinho, que
estivera bebendo em silencio, e descarregou um murro na banca, que fez
tilintar os copos.―Eu cá já disse; se os taes
homens das bandeirolas me tornam a passar por as terras, sempre lhes
meço as costas com um marmeleiro, que lá tenho, e
que já me serviu para varrer a feira de Santo
Estevão. Uns mariolas!...
E como para desafogar o pêso da sua amabilidade, despediu um
pontapé a um podengo, que lhe viera roçar por as
pernas, e fel-o sair ganindo.
―Dizem que vão principiar outra vez com os trabalhos das
estradas―informou o taberneiro, enchendo de novo o copo ao sr.
Joãozinho.
―Pois que vejam no que se mettem. Cautelinha commigo!―resmungou
este.―Faço como d'aquella vez em que eu e a minha gente
queimámos toda a papelada da camara e do escrivão
da fazenda.
―Agora no inverno é que elles hão de
principiar com os trabalhos. Sempre se fia em boa!―disse, encolhendo
os
hombros, mestre Pertunhas.
―Vossemecê é que está a
ler―veio-lhe á mão
obrazileiro.―Então
não sabe que as eleições
são
em fevereiro?
―Ai, é verdade! não me tinha
lembrado d'isso!―exclamou o padre.
―Tambem não sei como será d'esta vez essa
[183]historia das
eleições―acudiu o
sr. Joãozinho.―Cáeu e a minha gente ainda
estamos
a vêr no que param as coisas. Eu já não
estou para ser logrado. Até agora tenho dado ao conselheiro
a
freguezia em pêso, sem pedir nada, ou se pedi foi o mesmo
que não pedisse. Vou curar-me de tolo; agora sempre havemos
de
entrar n'uns ajustes. Se o homem não estiver cá
por umas contas, não anda o filho de meu pae.
―Ora adeus!―disse o padre cura.―O conselheiro tem artes para o levar.
―A mim? Está enganado. Não
querendo eu?Então você não me
conhece. Em euembirrando, sou como um borrego teimoso.
―Quando se fala em estradas, já estou a tremer―disseum dos
lavradores.―O que elles veem cá fazer é
cortar-nos os campos, e a final não sei para que servem.
―Isso não é assim―atalhou o brazileiro,
tomando uns ares cathedraticos, cheios de
gravidade.―Vossemecê é ignorante e por isso
é que fala d'esse modo.
―Eu digo...―tartamudeou, intimidado, o lavrador.
―Pois sim: mas não deve metter-se a falar em coisas que
não entende. As estradas não servem para nada! As
estradas são meios de communicação
e...
facilitam o... o... o trafego commercial e augmentam por conseguinte a
riqueza das nações... Porque o trabalho
representa
um capital..., sim, senhores, mas... mas um capital...sim... um capital
morto... quero dizer um capital que não vive... Quero
dizer... sim... supponhamos: o credito por exemplo... O credito...,
sim... ahi está o credito... Pois que é o
credito?... O credito é... é o credito... depende
de muitas coisas... Por outra, supponhamos... se nós
não tivessemos estradas... Uma
supposição... Partamos de um principio. A
producção excede o
[184]consumo...
Quero mesmo que o consumo exceda a producção...
Sim, quero mesmo isso... Muito bem... D'ahi que resulta?
Está
claro que um desequilibrio. E depois?... Depois, boas noites...
Não havendo estradas... Ahi está que se diz por
ahi que a livre exportação, que tal, que
sim senhores... mais isto, mais aquillo... Pois não
é assim. É preciso que se attenda tambem
ás condições economicas dos povos.
Sim... eu digo: O commercio deve ser livre... Muito bem... Em termos
já se sabe...Mas... o commercio livre... a livre troca...
entendamo-nos... É preciso clareza de ideias... Quando eu
digo
que... Ora supponhamos... supponhamos que não havia
estradas... Os transportes eram mais difficeis e portanto mais caros...
E se além d'isso os generos fôssem escassos e...
Diz
vossemecê, para que servem as estradas? Ora diga-me uma
coisa,
sr. Manoel, supponhamos que... os impostos indirectos... não
precisamos de ir mais longe... os impostos indirectos... Sempre queria
que me dissesse o que havia de fazer.
―Impostos, Deus me livre d'elles!―murmurouo lavrador, cujos
instinctos trepidaram á
palavra «impostos».
―Isso tambem não é assim... Deus me
livre! Não se diz Deus me livre, porque a riqueza...
a riqueza... sim, a riqueza não está na
terra... isto é, a riqueza está na terra... mas
é preciso o capital para a
exploração...
Percebe?... Ou... supponhamos... por exemplo... Não... vamos
cá por outro lado... Ha um
deficit
n'um orçamento... desce o preço das
inscripções... Ora bem... Mas... supponhamos que
ha
boas estradas,
etcoetera... A riqueza tende a
augmentar... e... e... Emfim lá que as estradas
são uteis, isso é que não tem
questão.
Toda esta lenga-lenga economica foi escutada pelo auditorio com
profunda
attenção.
O brazileiro, assignante e leitor infallivel de varios
[185] periodicos politicos,
conseguira, á fôrça de leitura, fixar
na
memoria certas phrases de artigo defundo, e acabára por
convencer-se de que possuia grandes noções de
sciencia politica. Em occasiões como esta dava uma
sacudidela
ao intellecto, e aquellas phrases como os variados objectos do
interior de um kaleidoscopo, tomavam uma
disposição tal ou qual, mais ou menos regular, e
assim lhe saia uma dissertação, como essa que
viram. Em permanente indigestão economica vivia este
portento. A doença não é das mais
raras
entre politicos.
O sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesurada e
ruidosamente
a bôca, depois do discurso do brazileiro, e disse:
―Eu cá por mim não sei d'essas
coisas. Não se me dava das estradas para poder ir
á
feira de Penafiel com menos trabalho, mas, já disse, que
me não venham mexer na quinta; porque então
teem que vêr.
―Pois está arriscado a isso―disse o brazileiro.
―Veremos, depois não se queixem. Temos a historia da
papelada outra vez.
―Houve a ideia de levar a estrada pela Corredoura fóra,
depois de tomar á esquerda pelo Castro e vir direito
á Palhoça. Não tinha cruzes nem
cunhos.
Ia-me parte da propriedade.
―Ah! ah! ah! Tambem não gosta?
Diga-me d'isso!―berrou o sr. Joãozinho.
―Não é não gostar, é que
o traçado era pessimo.
―Não sei por quê.
―Só a expropriação da minha quinta
por
que preço não lhes ficava?
―Elles, para esses casos, lá teem umas leis a seu
modo―notou o padre cura.
―E por onde ha de ir então a estrada?
―O outro traçado, que eu aconselhei ao engenheiro, parte da
herdade do capitão-mór, faz um
[186] viaducto nos lameiros,
atravessa o pinhal do Conego, passa o rio n'uma ponte e...
―Oh com os diabos; o que ahi vae!
―Não é tanto como parece; sendo as obras
bem dirigidas... Até aos lameiros só tem a
deita rabaixoa casa e o quintal do herbanario.
―Deitar abaixo a casa do herbanario! O pobre diabo rebenta de
paixão, se tal fazem―disse, com certa
commiseração, o sr. Joãozinhodas
Perdizes, que tinha por o herbanario uma sincera
affeição e respeito, n'elle excepcional, desde
que
lhe attribuia a cura de um typho que o tivera ás portas da
morte, e de que o velho, dizia elle, o salvára, com
uns cozimentos sómente d'elle sabidos.
―Ora adeus! Antes d'isso morre o homem de doidice. Está
maluco de todo―redarguiu o brazileiro.
―Tambem está um bom magico, está―notou o padre.
―Quer não, que sabe mais do que todos os medicos―acudiu o
sr. Joãozinho das Perdizes; a mim me livrou de uma maligna.
Oh que excommungada!
E principiou a fazer a historia da sua doença.
Os lavradores concordaram em que o homem era sabedor; mas
attribuiam-lhe
mais mysteriosa sciencia, do que a da medicina.
―Pois a final por onde devia ir a estrada―continuou o
brazileiro;―tinham ainda o campo dos Brejos do conselheiro, mas n'isso
não se fala, já se sabe.
―Ora! pois está de vêr―concordou o padre.
―E o conselheiro não se ha de oppôr
á expropriação da casa do herbanario,
porque pelos modos elles não andam muito correntes―lembrou
um lavrador.
―É verdade; por que seria aquillo?―perguntou outro.
―Elles em tempo eram muito um do outro; e são
até
aparentados;―explicou o brazileiro―e o
[187]velho
ainda hoje é tratado com familiaridade pela gente do
Mosteiro; mas julgo que o homem com aquelle genio exquisito que tem,
disse algumas verdades ao conselheiro, por occasião de
umas eleições, quando elle pôz as
auctoridades a trabalhar por si, e o velho entendia que as coisas
não iam bem assim.
―Pois, com os diabos, o Vicente herbanario vale mais do que vinte
conselheiros e toda a familia,―exclamou o sr. Joãozinho,
batendo outra punhada―e queira elle, que o tal senhor não
põe mais o pé nas camaras, mandado cá
pela terra.
―Eu gósto de os ouvir,―disse o padre―falam assim, mas em
chegando a occasião, vão todos votar n'elle como
carneiros.
O brazileiro encolheu os hombros e sorriu, como confirmando o dicto.
―Pois havemos de vêr o que será!―berrou o sr.
Joãozinho.―Isso é consoante cá umas
coisas.
―A falar a verdade―disse o Pertunhas―não tem pago muito
bem ao circulo o nomeal-o ha tantos annos seu deputado; só
essa teima agora em querer obrigar o povo a enterrar-se no cemiterio!
―Essa a falar a verdade!―disse um lavrador.
―Quero vêr se me hão de enterrar a
mim!―disse ameaçadoramente o sr. Joãosinho, como
se esperasse ainda depois da morte, impôr as suas vontades
á fôrça de murros e de pragas.
―Deram-lhe para lhe dizer que fazia mal enterrar nas igrejas.
É moda e acabou-se. D'antes enterrava-se lá toda
a
gente e não havia mais doenças do que agora―isto
dizia o padre.
―Os romanos tinham as suas catacumbas―ponderou o mestre de
latinidade,
forçando as suas reminiscencias romanas.
―Vamos―ponderou o brazileiro, como quem vira pretexto de fazer novo
discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade
scientifica.―O enterrar nas igrejas é anti-hygienico; porque
[188] os chimicos sabem que...
o
ar que não é puro... é mau para a
saude
publica. Ora os cadaveres... em putrefacção
produzem uns vapores que corrompem o ar... Ha uns insectozinhos
invisiveis que a gente respira... e vão para a massa do
sangue
e corrompem-a... e o resultado é a febre... porque a febre
são os humores a ferver... como o vinho no lagar... e se
sáem, muito que bem; e se não sáem,
ficam retidos e azedam o corpo todo.
A theoria physiologica pathologica foi recebida com
attenção igual á que merecera
a economica.
―Tudo isso será assim,―disse o padre―mas o conselheiro
faz
aquillo por instigações
das lojas maçonicas e dos pedreiros livres.
―Pois elle será tambem?...―disse um dos
lavradores, arregalando os olhos assustados.
―Ora que dúvida! Pois aquella gentinha é toda da
sucia.
―Corja!―resmungou o sr. Joãozinho.
O brazileiro, que se filiára no Brazil
na maçonaria, fez um discurso sobre os fins da sociedade,
que ninguem entendeu; vendo, porém, que não
calavam nos animos aquellas doutrinas, mudou repentinamente de rumo.
―Elle não será
mação―disse
d'ahi a momentoso padre―mas é vêr o que elle tem
defendido nas camaras; queria roubar ás irmandades e
ás freiras os bens que ellas possuem; appeteceu-lhe o
exemplo do cunhado, que se encheu com a compra do Mosteiro; queria
acabar
com o santo sacramento do matrimonio; queria que cada qual seguisse
a religião que muito bem lhe parecesse. Vejam
que christão aquelle!
Estas novidades abalaram os lavradores, que formularam algumas palavras
de censura.
―E tambem falou para acabar com os morgados e com os vinculos.
―A falar a verdade, os vinculos...―murmurou
[189]o
sr. Joãozinho, que por vezes tropeçára
nas disposições da antiga lei vincular, ao
caminhar na estrada da dissipação;
porém, recordando-se de um irmão que tinha,
casado
e pae de muitos filhos, que mal conseguia sustentar á custa
de muito trabalho, a ideia da abolição dos
morgados não lhe sorriu e exclamou com nova punhada:―Acabem
lá com os morgados quando quizerem, que o que eu lhes
digo é, que tem de se haver commigo quem quizer tirar-me um
palmo de terra!
O padre cura continuou a tratar pouco christãmente o
conselheiro.
O pae de Magdalena militára sempre, como
já dissémos, nas fileiras do partido mais
liberal,
e por isso era-lhe em geral pouco affeiçoada a maioria
do clero, que, entre nós, não
espósa ardentemente aquellas ideias.
No principio da sua carreira parlamentar, cedendoao impulso do
enthusiasmo juvenil, o conselheiro desenrolára
desassombradamente a bandeira do partido progressista e
pronunciára os mais absolutos artigos d'aquelle credo
politico; liberdade era então o seu mote favorito; a
liberdade do commercio, do ensino, da imprensa e dos cultos; as
reformas
consequentes nos codigos, a desamortisação
e desvinculação da propriedade, tudo
advogára com enthusiasmo, no tempo em que estas palavras
soavam ainda como heresias aos ouvidos habituados á lettra
de
outro catecismo.
Com o tempo arrefeceu, porém, esse
enthusiasmo; dissipou-se-lhe com o fogo da mocidade. Com quanto liberal
ainda de convicção, ensinou-lhe a politica
pratica
a rebuçar em formulas mais ordeiras os seus principios
doutrinarios, a contemporisar, e até quando as
conveniencias,
infelizmente, nem sempre as publicas, o pediam, a dar alguns passos
de retrocesso e a transigir com o partido opposto.
Se o fizessem ministro não se arrojaria a transformarem
projecto de lei nenhuma d'aquellas medidas
[190]
por
que pugnára nos seus primeiros discursos, e que tantas
malquerenças lhe acarretaram então.
Já atraz dissémos, que o conselheiro
era actualmente um espirito pouco apaixonado do ideal, respirava a
atmosphera de desillusão e de scepticismo, em que nas
grandes
cidades se vive. Era um perfeito homem de côrte; tratava
cordialmente os seus adversarios politicos, pedindo d'elles
mercês e empregos para afilhados; fulminava-os ás
vezes da tribuna e depois apertava-lhes a mão nos
corredores das camaras e nas praças. Se o julgava
vantajoso, pronunciava ainda uma d'aquellas phrases sonoras, uma
d'aquellas sympathicas divisas de politica avançada, que no
principio da sua carreira adoptára comsinceridade; mas
não tinha já aos principios o amor preciso para
cair, abraçado n'elles, dos degraus do poder, se algum dia
os
chegasse a subir.
Por isso os soldados rasos do seu partido, os politico sem abstracto,
unicos para quem a politica é sempre ideal e logica, o
taxavam de frouxo e tibio; e de gazeta na mão havia muito
que
lhe dictavam, do obscuro canto do paiz em que viviam, a estrada
direita,
de que elle, porém, a cada passo se desviava.
Apesar d'isso, o partido conservador e o reaccionario, julgando-o por
os
seus primeiros discursos, continuavam, de boa ou de má
fé, a acoimal-o de impio, de republicano e de pedreiro livre.
O brazileiro entrou em dissertação a respeito
de todas as medidas politicas a que alludira.
Segundo o costume, ninguem o entendeu.
Ia elle no mais enredado da sua meada oratoria, quando o som de um
tropear de cavallos o interrompeu. Mestre Bento, que fôra
espreitar á porta, voltou-se, exclamando:
―Elle ahi vem! ahi vem o conselheiro!
Todos se levantaram pressurosos para correrem á porta. O que
mais de má vontade o fez foi ainda assim o brazileiro.
[191]Dentro em pouco
todos se descobriam. Parava á porta o conselheiro, que
montava um soberbo cavallo branco, e ao lado d'elle Angelo, n'um
pequeno baio de fórmas elegantes e olhar vivo.
O conselheiro cortejou com affabilidade palaciana os seus amigos e
patricios, dizendo a cada um uma phrase lisonjeira, que dissipou quasi
todo o effeito da conversa que descrevemos.
Depois, fazendo signal ao filho de que podia seguir para casa,
dispoz-se
para entrar na venda.
XII
O conselheiro levou a sua attrahente amabilidade até se
sentar nos bancos de pinho do estabelecimento de Damião
Canada, envernizados já pelo uso de muitos annos.
Entre os circumstantes era qual mais o cumprimentava e opprimia com
attenções e o flagellava com obsequios.
O conselheiro revestira-se, com muito estudo, de uma physionomia
satisfeita e sem sombras de reserva; tratando a todos por amigos, e
conversando com aquella familiaridade, tão sabida de
candidatos a procuradores do povo, nos circulos que
pretendem representar. Até chegou a levar aos labios o copo
de vinho, que um lavrador lhe offereceu.
Não se lhe percebia porém no rosto, ao
fazer isto, o menor vestigio de artificio, e, ao mesmo tempo,
mantinha-se
ainda n'elle tão apparente a superioridade intellectual, que
os seus interlocutores nunca excediam os limites da deferencia. O pae
de
Magdalena era um perfeito homem de côrte:
presença agradavel, modos insinuantes, palavras
tão astuciosamente
[192]lisonjeiras,
que desvaneciam os proprios que como taes as tinham.
Alvejavam-lhe já algumas cãs nos cabellos
e suissas, que usava talhadas á moda ingleza; principiava a
predominar-lhe nas fórmas certa
rotundidade caracteristica; mas no esmero e até elegancia
distincta de casquilhice pretenciosa, com que vestia, no porte airoso,
nos movimentos ageis, no olhar penetrante como o de poucos, e na viveza
das conversas, havia ainda tantos signaes de vigor e de virilidade, que
ninguem se sentia obrigado a estranhar-lhe certos habitos de rapaz, que
não perdera ainda.
Em Lisboa passava o conselheiro por ser um homem bemquisto das damas, e
não obstante os seus cincoenta e cinco annos, acreditava-se
que assim fôsse, ou quasi se adivinhava, ao primeiro
olhar lançado sobre elle.
Possuia o dom especial de se encontrar á vontade em toda a
parte, desde o mais perfumado gabinete da moda, até o menos
asseiado local de um comicio popular. Nas camaras com graves
diplomatas, nos cafés com rapazes estouvados, na sua aldeia
com eleitores absurdos, com actores e actrizes nos bastidores, com
padres nas sacristias, com militares nos quarteis, em toda a parte e
com
todos se achava este homem á vontade, acabando, quasi
sempre,
por captar sympathias.
Podia dizer-se d'elle, que com igual pericia e rara consciencia da
opportunidade, jogava todas as armas: o galanteio cortezão,
a
phrase conceituosa, o equivoco subtil, a anecdota picante, o estribilho
popular, a figura oratoria, a maxima moral, e até a praga
energicamente expressiva; mas, como os espadachins de
profissão, jogava-as todas com frieza de animo, cada qual na
occasião opportuna e com perfeita observancia do que o mundo
chama conveniencias sociaes.
Muito tinham que fazer com elle os La Bruyères,que, a cada
passo, ahi encontramos no mundo; illudia
[193]os
mais atilados. Ás vezes parecia abrir-se tão do
intimo, tão completamente e
sem condições nem reservas, havia tal
uncção de sinceridade nas palavras, com que
falava
de si, dos seus projectos, dos seus sentimentos, que o mais desconfiado
jesuita sentir-se-ia tentado a acredital-o e nem sempre se enganaria;
outras, falava verdade, mas com taes hesitações
na
voz, com tal mobilidade no olhar, que, ao consideral-o, a mais ingenua
creança experimentaria o despontar da primeira
dúvida.
Já se vê que um homem d'estes era um contendor de
muita fôrça, para poder ser combatido por qualquer
dos influentes locaes; o proprio brazileiro, apesar de toda a sua
economia politica, ainda nada pudéra contra elle; nem
ousára romper hostilidades com receio de ficar vencido.
Durante os poucos momentos, que o conselheiro se demorou na loja do
Damião Canada, soube desvanecer muitas das sombras, que a
conversa que precedera a sua chegada havia gerado em alguns espiritos.
Tres ou quatro lisonjas, outras tantas promessas, alguns conselhos
modestamente pedidos com fingida ingenuidade, serviram-o perfeitamente.
Deixemol-o nós na laboriosa e pouco invejada tarefa de
manter
a popularidade, e vamos seguir Angelo, que se separou do pae
á porta da venda, para chegar mais depressa ao Mosteiro.
Mettendo a galope o pequeno baio que montava, dirigiu-se para casa com
aquelle alvoroço do coração, que
conhece
quem já foi estudante e se recorda ainda do que
experimentava
ao vêr de longe despontar o telhado da casa paterna, onde
vinha gosar as delicias de umas almejadas férias.
Angelo tinha por este tempo treze para quatorze annos. Era uma
agradavel
figura de creança, expressiva de intelligencia e de vida.
Tinha nas feições um mixto da delicadeza de
Magdalena e da energia varonil, e ao mesmo tempo attrahente
do conselheiro.
[194]O cabello louro e
curto levantava-se-lhe graciosamente em anneis naturaes, com grande
vantagem para a espaçosa e bem modelada fronte.
Quando Angelo chegou ao pateo, era quasi noite fechada. As janellas do
Mosteiro estavam todas obscuras, á
excepção das aguas-furtadas, correspondentes aos
quartos das creanças. Angelo desmontou e cautelosamente se
dirigiu a pé para casa.
Torquato dormia á porta, como frequentemente lhe
acontecia.―Angelo pôde assim penetrar sem ser percebido
até o mais intimo da casa, até os aposentos onde
dormiam as creanças, e em cujas janellas avistára
luz.
A scena que viu, ao entrar alli, insinuou-lhe
no coração uma suave e encantadora alegria.
O mais novo dos seus primos, creança de tres annos, estava
meio nú e de joelhos sobre o leito com as mãos
erguidas e os olhos fitos em um crucifixo que tinha á
cabeceira. Magdalena, ao lado d'elle, dictava-lhe as palavras da
oração, que a creança repetia, cheia
de
fervor.
Nos quartos proximos palravam, ainda acordados, os mais velhos, apesar
das continuadas advertencias da prima.
Angelo approximou-se sem ruido, e quando a morgadinha se abaixava para
beijar a creança, elle estendeu a cabeça e pousou
tambem um beijo nas faces da irmã.
Magdalena soltou uma exclamação de surpreza e
cingiu-o nos braços com effusão.
A creança levantou um brado, que foi o signal de revolta
dado
a Marianna e Eduardo, que cêdo abandonaram os quartos e
correram a abraçar Angelo.
―Vens só?―perguntou Magdalena ao irmão, quando
uma pergunta lhe foi possivel.
―O pae ficou na loja do Canada―respondeu Angelo.―Estava em
sessão a assembleia dos notaveis. E como estás
tu,
minha Lena, tu e Christe e a tia? Como vae toda essa gente?
[195]―Anda tu mesmo
sabêl-o.
―Eu vou dizer á mamã―disse Marianna, saindo aos
saltos.
―Eu vou chamar Christe―disse Eduardo, imitando-a.
E sairam ambos, pregoando a chegada do primo.
O pequeno que Magdalena deitára, pedia, chorando, para se
tornar a levantar, requerimento que, a rogos de Angelo, foi deferido.
―Dize-me―continuava no entretanto este para a
irmã―tens-te
enfastiado muito, aqui só?
―Não, tenho-me divertido até.
―Devéras? E que fazes?
Em que passas o tempo?
―Eu sei? O tempo é que passa, sem eu dar por isso. Leio
pouco, passeio muito; trabalho mais.
―Que tens lido?
―Quasi sempre relido.
―O quê?
―Nem eu sei já. O primeiro livro em que pouso a
mão, quando os vejo sobre a mesa.
―O Augusto tem vindo ensinar os pequenos?
―Todos os dias.
―E o tio Vicente? Que me dizes d'elle?
―Vae bom. Caiu no outro dia á levada da raiz do monte;
valeu-lhe o Augusto para o salvar.
―Sim? Pobre homem! Olha n'aquella idade! E a tia Dorothéa?
―Tem de hospede um sobrinho de Lisboa, um Henrique de Souzellas;
conheces?
―Eu não.
―É provavel que por ahi venha. A tia Victoria insiste em
que
lhe chamemos primo. Aviso-te d'isso.
―Sim? E a tia? Ralha ainda muito com os criados?
―Coitada! Achei graça, ha dias, á Joanna, que
com
muita ingenuidade se me veio queixar de que ella até o anjo
da guarda lhe occupava em serviço proprio. Tu sabes que a
tia, quando está com muito
[196]
somno,
tem aquelle costume de dizer ás criadas que a encommendem ao
anjo da guarda d'ellas. Mas vamos.
―Espera... e... e o Cancella trouxe-vos aquellas encommendas?
―Trouxe.
―É verdade; e a filha d'elle? A Lindita?
―Já cá me ia tardando a pergunta―notou
a morgadinha, rindo.―Essa anda contente, como quem nada tem a
penalisal-a; nem saudades.
―Ora vamos, Lena; não te perdôo a malicia.
―Então devéras esse
coração
está assim tomado?
―Não te informo do meu coração, que
o não levo commigo, quando d'aqui vou. Cá me
fica;
e uma grande parte d'elle no teu poder. Eu sou que pergunto; em que
estado m'o entregas?
―Muito doente.
―Sim? E o teu?
―O meu? Ah! nem eu sei d'elle. Olha; isto
decorações são como
as creanças. As travêssas tantos cuidados
dão ás mães, que a todos
os instantes querem saber o que ellas fazem e onde estão;
as socegadas inspiram tal confiança, que nem sequer n'ellas
se
pensa. O meu coração é um modelo
de serenidade.
―Então ainda nenhum cavalleiro errante ou trovador...
―O sitio é pouco abundante em heroes. O unico d'estas
immediações, capaz de ferir
a imaginação e commover os affectos de uma
mulher,
é o sr. Joãozinhodas Perdizes; mas esse
é um Actéon insensivel, que...
―É verdade―disse Angelo, rindo―lá vi
tambem esse javali na venda do Damião Canada.
Mas...Não sei que pense, Lena. Eu ainda um dia te hei
de dizer umas coisas.
―A mim? A respeito de quê?
―Do teu coração.
[197]―Que sabes d'elle?
―A seu tempo direi.
―Como te vieram essas presumpções de
conhecedor dos corações alheios? Não
tinhas isso, quando d'aqui foste.
―Ás vezes vê-se melhor de longe.
―Os de vista cançada... de muito vêr.
―Bem; depois falaremos. Vamos lá ter com a nossa
gente, que o pae não tarda ahi.
De facto, meia hora depois estava a familia toda reunida n'uma das
salas
principaes da casa. O conselheiro, sentado n'uma cadeira de
braços, tinha ao collo Marianna; Christina, a pé,
encostava-se-lhe familiarmente ao hombro; a morgadinha, sentada
em tamborete baixo, apoiava o braço, em que recostava a
cabeça, em um dos joelhos do pae. Do outro lado da sala, D.
Victoria, sentada no sofá, servia de travesseiro a um dos
pequenos que, apesar de prometter estar acordado, para que o deixassem
ficara pé, adormecera. Junto d'este, Angelo fazia
frequentemente rir sua tia e Eduardo, com as historias que lhes contava.
A conversa cêdo se generalisou. Era uma d'essas conversas
intimas, familiares, em que se referem as mais insignificantes
circumstancias da vida domestica; conversas cujo suave perfume
só em familia se aprecia.
Pobre do estranho que por acaso se encontra n'um d'esses circulos
apertados pelos estreitos laços da amizade e do parentesco,
e
se vê obrigado a ouvir a minuciosa chronica das occorrencias
da casa, que não é a sua! É uma
pathetica illusão a de certas familias, que imaginam que
para
todos é de igual interesse a narração
dos successos domesticos, que tanto as deleitam, e com ella entreteem
o primeiro indifferente que se lhes depara; tudo trazem á
luz,
o dicto agudo da creança de tres annos, os
incómmodos que soffreu na
primeira dentição, as espertezas do gato
favorito,
as razões ponderosas
[198]que
aconselharam a mudança de um movel,
a combinação economica que favoravelmente
modificou o orçamento domestico, a reforma nos
processos culinarios consagrados pelo habito de muitos annos, o exame
comparativo da conserva de um anno e da do anno antecedente, os
defeitos
e qualidades de um criado e mil outras pequenas coisas, que
é
forçoso escutar com ares de quem as acha curiosissimas, o
que
obriga a esforços sobrehumanos.
É natural aquella illusão; e pathetica a
dissemos nós tambem, porque os que mais
decoração se entrega má vida
domestica,
são os mais sujeitos a ella. Todos estes episodios futeis e
pueris os preoccupam e deliciam mais do que as mais estranhas
peripecias,
que ainda concebeu a imaginação
de romancista fecundo. E quem se lembra de que é
individualissimo esse interesse, inherente á pessoa
e não aos factos, ás causas que
tão curiosos lh'os fazem ser?
Eu e o leitor, estranhos á familia do
Mosteiro, vêr-nos-iamos, se fôssemos escutar todo o
dialogo que se travou na sala, na posição da
pessoa indifferente que imaginamos a aturar um d'esses
relatorios domesticos, a que sobre tudo são tão
inclinadas as mães de familia.
É verdade que o conselheiro podia achar curiosa a conversa;
e
o conselheiro tinha visto e ouvido tanto no mundo, que o que elle
achasse curioso é porque realmente o era. D'esta vez,
porém, damol-o por suspeito, porque o conselheiro tinha
coração e,quando esta viscera se
alvoroça com affectos, as intelligencias mais elevadas teem
d'estas sympathicas fraquezas.
O politico, o diplomata reservado, fica fóra
do portão da quinta do Mosteiro; alli dentro,
n'aquelle circulo de affectos, era o pae extremoso, o homem de familia,
ingenuo, sincero, aberto a todos, porque em todos confiava, contente
por
não ter de estudar
[199]na
expressão dos rostos os pensamentos que seguardam; nas
palavras o sentido, que n'ellas não vem explicito.
Era um salutar descanço dos continuados
esforços da sua vida de Lisboa; lá a lucta; aqui
o
repouso.
Por isso ouvia com attenção e applaudia
com vontade as narrações da cunhada, de
Magdalena,
de Christina e até da pequena Marianna.
E apesar de todo este encanto, em que parecia cair, o conselheiro
não poderia resignar-se a trocar por elle para sempre o
vertiginoso movimento da sua vida politica.
Eram-lhe já necessidade
aquella contenção, aquelle esforço de
espirito, aquellas desconfianças continuas, aquelle jogo de
astucias, que lhe tomavam em Lisboa todo o tempo.
Quinze dias no campo bastavam para o fazerem suspirar por as lides e o
afan da capital; nem os affectos da familia o retinham.
A politica é uma embriaguez; nos intervallos em que o
espirito se sente desanuviado dos vapores em que ella o envolve,
pesam-nos os desacertos a que fomos arrastados; o desgosto do mal feito
insinua-se-nos no coração; cêdo,
porém, a violencia dos habitos subjuga os remorsos da
consciencia, e de novo nos arrasta.
O caracter intimo da conversação foi
levemente modificado por a entrada de D. Dorothéa e de
Henrique de Souzellas, que de Alvapenha vieram visitaro conselheiro,
mal
tiveram noticia da sua chegada.
O conselheiro acolheu com jovial cordialidade a senhora de Alvapenha e
com delicada franqueza Henrique, que elle conhecia de Lisboa.
Frequentavam ambos os principaes círculos da capital e,
por mais de uma vez, tinham trocado algumas palavras ou tomado parte em
conversas e discussões communs.
Passado algum tempo depois dos cumprimentos,
[200]
o
serão animou-se de novo, fragmentando-se porém a
conversação.
D. Victoria tomou á sua parte D. Dorothéa
e passou a fazer-lhe amargas queixas a respeito dos criados do
Mosteiro,
ao que D. Dorothéa acudiu com conselhos de
resignação christã.
Angelo conversava com Magdalena e Christina, a quem frequentemente
fazia
rir.
Henrique e o conselheiro, proximos do fogão,
estavam empenhados n'um dialogo muito animado.
O conselheiro parecia estar falando com muita sinceridade e candura que
surprehendiam Henrique, que ainda o não tinha observado por
esta face.
―É uma triste verdade―dizia por exemplo o conselheiro n'um
ponto adeantado da conversa, referindo-se a algumas
considerações de Henrique sobre a felicidade
d'aquella vida do Mosteiro.―Tenho esta familia que vê; todos
me querem sinceramente aqui, e não sei resistir á
fatal necessidade que me arranca de todos estes braços para
me
lançar ao turbilhão da politica e d'isso que se
chama o mundo! Pois amo devéras a minha Lena, creia.
―É um dever que cumpre. N'estes tempos de má
fé politica, quem se sente com a coragem de se votar, corpo
e
alma, á defeza despreoccupada dos bons principios...
Nos labios do pae de Magdalena passou um ligeiro sorriso, meio de
descrença, meio de melancolia.
―Defeza despreoccupada? Isso é quando Deus quer―respondeu
elle.―Olhe, Henrique, visto que me veio encontrar em minha casa, a
cuja
porta eu deixo, ao entrar, todas as mascaras e artificios, de que uso
no
mundo, vae vêr em mim o homem que talvez não
esperasse e que, já lhe digo,
debalde procurará reconhecer um dia, se me observar outra
vez
em Lisboa. O que lhe vou dizer não lh'o diria, nem lh'o
repetirei lá. É verdade que estes ares do campo
tambem actuarão em si para me apreciar e
[201]tomar á boa
parte a franqueza. Lá não acreditaria n'ella; se
por acaso não a aproveitasse como arma politica contra mim...
―Pois julga?...
―Peço perdão, se o offendi com
isto. Não eraesse o meu intento, mas é pratica
tão geral!... Se um dia fôr politico, o que lhe
não desejo, dir-me-ha.
Dizendo isto, fez uma curta
pausa na conversação.
Rompendo de novo o silencio, o conselheiro proseguiu:
―Mas falava ahi de principios, que se defendem com desassombro e
através de tudo. Não sei se quiz ser lisonjeiro e
disse o que não sentia, ou mais do que o que sentia. Em todo
o caso, eu, aqui no Mosteiro, acho-me muito ás ordens da
minha consciencia, a qual não me deixa calar
hypocritamente. Estou muito longe de ser esse ideal do homem politico,
a
que alludiu. Humildemente o confesso; até porque, se
quizesse
sel-o, arriscar-me-hia a achar-me só, não teria
partido. Porque, qual é o que vê nas
condições de constancia de opiniões
que
disse? Tenho crenças politicas, é
verdade; espóso no coração certos
principios que quizera vêr realisados, mas não
combato por elles a todo o transe, nem por elles affrontaria o
supplicio; antes, por vezes, entro em
transacções,
que são a completa negação da divisa
da
minha bandeira. E este peccado não sou eu só que
o
commetto; é um peccado venial da nossa época. As
grandes ideias, que definem e estremam os campos na politica,
havemol-as
eu e os mais calcado muitas vezes aos pés, para sustentar
umas
insignificantes fórmulas, um interesse mesquinho, um
capricho
pessoal. A politica desce muitas vezes a isto. E ninguem é
isento de culpa n'este mal. Para elle concorrem os mesmos que
de fóra nos julgam severamente. Ha muitos d'estes peccados
na
minha carreira publica. E, quer que lhe diga, sabe quando vejo claro
n'elles? quando me
[202]
persuado
de que não são de todo desculpaveis? quando...
porque o não direi? quando sinto remorsos de os ter
commettido? É aqui, é perante a boa
fé,
a sinceridade, a candura d'esta familia, que me tem amor, e que me
considera um homem perfeito, superior, impeccavel. É perante
os generosos sentimentos da minha Lena, e o caracter nascente d'aquella
creança―e indicava Angelo com o gesto.―Parece-me que tenho
n'elles juizes inflexiveis, eescondo por isso a minha face politica dos
seus olhos penetrantes. Ha muita coisa n'ella, para que o mundo
é já indulgente, mas que receio elles
me não perdoassem.
Reparando para o olhar de estranheza, com que Henrique lhe seguia esta
effusão de sinceridade, o conselheiro accrescentou, sorrindo:
―Estou a vêr que não esperava estas palavras da
minha bôca; esta confissão de peccador
contricto.
―Confesso que não.
―Então que quer? Surprehendeu-me aqui como
coração aberto. Já agora
deixe-me continuar. Uma das ideias que mais me atormentam sabe qual
é? Vê aquella creança que alli
está? Angelo? É uma intelligencia que, de dia
para
dia, vejo formar-se com um vigor de vida, que me espanta.
Não
é a vaidade paterna que me cega, pode acreditar.
Conhecendo-o de perto ha de dar-me razão. Mas o que ha
além d'isso n'elle é um senso profundamente
moral,
raro até em idades menos tenras. Pois bem, quando penso
n'elle por algum tempo, e conjectura que não
serão
poucas as vezes em que o faço?... quando penso n'elle e no
futuro, sobresalto-me. De um lado, seduz-me abrir-lhe a carreira
politica, onde ha grandes triumphos a embriagar as intelligencia se
onde
presinto que a d'elle terá o direito, senão
o dever, de procurar um logar; mas, se me lembro de que na atmosphera
d'aquellas regiões não duram muito estas
primitivas canduras da alma, tão adoraveis
[203] e consoladoras, quando me
lembro de que Angelo será um dia... o que eu já
hoje sou, um pouco desilludido, um pouco sceptico... com franqueza o
digo, hesito em impellil-o ao redemoinho e pergunto a mim mesmo se mais
não valeria dizer-lhe: Angelo, vive obscuro e tranquillo
n'este retiro do Mosteiro, conserva aqui a ideal pureza da tua alma e
procura a felicidade nas satisfações
do coração. A lucta da vida pode embriagar-te,
filho, mas não te fará feliz.
―Mas não admitte possivel que um homem possa atravessar a
vida politica, sem sacrificar um só artigo do seu primitivo
credo?
O conselheiro esteve algum tempo silencioso, depois respondeu:
―É difficil. Se um dia a fôrça
das circumstancias realisasse, como um phenomeno natural,
uma revolução completa nas camadas politicas do
paiz a ponto de trazer á superficie de uma só vez
uma geração nova, impolluta, inspirada de
sentimentos generosos e de sinceras crenças,
então
sim, não bastaria o tempo de uma vida para produzir
n'esses homens reunidos, que uns aos outros seriam ao mesmo tempo
exemplo
e vigilancia, a inquinação que eu receio. Mas
lance esses mesmos homens, um a um, a sós com os seus
principios e com os seus esforços, insulados no meio de uma
camada quasi toda composta de elementos velhos, e cada um,
após uma lucta impotente de momentos, ou
se retirará, fiel aos principios, mas desanimado
pela inefficacia da sua intervenção,
ou ficará, cedendo á corrente e deixando-se
penetrar do espirito pouco ideal, que rege as massas. Só um
d'esses caracteres de excepção, que
são
raros na historia do mundo, é que poderia luctar e vencer na
lucta. E a esperar tanto de Angelo não chega o meu affecto
paterno.
―Não o fazia tão pessimista,
sr. conselheiro;―disse Henrique―conceda-me que julgue em demasia
[204] carregadas as
côres do quadro que me faz. Eu não creio que a
corrupção...
―Se acha forte o termo, substitua-o por... o que quizer,
relaxação, tibieza de fé politica,
indifferentismo... em todo o caso será uma doença
social. Assim abrandada a fôrça da
expressão,nãoponha difficuldades em adoptal-a.
Não se me pode levar a mal o propôl-a, desde que
principiei por me declarar affectado da lepra contagiosa.
―Nunca esperei encontral-o tão desilludido. Eu, que me
não tenho ainda assim por demasiado crente, creio que quem
entrar na politica sob a égide de uma
convicção profunda, pode...
O conselheiro interrompeu-o.
―Sabe a coragem mais admiravel? a de que menos exemplos existem?
É aquella de que nos dá uma eloquente mostra a
historia do aldeão do Danubio. Sair um homem de um canto
retirado da provincia, um pouco montanhez, e escudado só
da sua boa fé, achar-se de repente no meio de um circulo
luzido, illustrado, elegante, novo para elle, e ousar repetir ahi
aquellas falas rudes, que tanto deliciavam o auditorio da sua terra;
vêr o sorriso nos homens, que a seu pesar respeita, e poder
resalvar as suas crenças d'aquelles sorrisos; sentir o
ridiculo a seu lado, e ousar fital-o; ferirem-lhe os ouvidos, a cada
passo, as vozes seductoras da moral elegante e facil, que hoje domina,
e
conservar-se fiel á austera e rude moral que lhe falava
entre
o rumorejar das folhas da sua aldeia nas longas horas de vigilia e de
estudo, que lá teve; cair embora, mas cair fiel á
consciencia, como um leal cavalleiro da idade média
caía pela dama de quem trazia a divisa: é uma
especie de lucta, para que não abundam lidadores, e nem
sempre se deve lançar o labéo de traidores aos
que
mentem á sua antiga profissão de fé. A
maioria cede com boas intenções. O perigo
está em chegar a persuadir-se de que as suas
convicções eram sonhos, em perder o
[205]amor ás
utopias. Eu confesso que só quando aqui estou é
que sinto avivar, debilmente, o amor que n'outro tempo lhes tive.
N'isto annunciou-se a visita do sr. Tapadas, fazendeiro opulento e um
dos influentes eleitoraes da localidade, creatura em corpo e alma do
conselheiro, e tão visto em demandas e subtilezas de
processos, como o mais rabula dos lettrados. Demandista por gosto e
officio, levava a sua paixão pela arte a ponto de comprar as
demandas dos outros, só por gosto de as tratar; especie
vulgar no Minho, onde uma legislação
especialissima, reguladorada propriedade rural, fomenta estas
disposições no espirito dos camponios, das quaes
os
juizes são as miserandas victimas.
Depois de grande exhibição de cortezias, para
a direita e para a esquerda, o Tapadas dirigiu-se ao conselheiro, que o
fez sentar ao seu lado, concedendo-lhe todas as provas de deferencia e
de amizade.
O homem que tão judiciosa
dissertação acabava de fazer sobre a politica
abstracta, sentiu, na presençado recem-chegado que de novo o
abandonava o espirito da utopia, e principiou a tratar com elle
politica
pratica, sob a feição mais mexeriqueira que ella
pode revestir.
Tratou-se dos pequeninos processos de preparar candidaturas, por
fôrça ou vontade dos representantes.
Henrique deixou-os na conferencia e foi sentar-se ao pé das
senhoras, no grupo formado por Magdalena, Christina e Angelo.
Escuso de referir o dialogo em que tomaram parte estes interlocutores;
reproduziram-se n'elle os galanteios de Henrique a Magdalena, a leve
ironia d'esta e as respostas timidas e silenciosos despeitos de
Christina.
D. Victoria e D. Dorothéa entremetteram-se, dentro em pouco
na conversa, e desviando-lhe o curso,
[206]
fizeram-a
cair sobre o assumpto das proximas consoadas.
Passado tempo, ouviu-se o conselheiro dizer, elevando a voz, para o
Tapadas:
―Pois, meu caro Tapadas, que tenha paciencia este bom povo. Com isso
é que eu não transijo. Ninguem é mais
condescendente do que eu, menos no que pode arriscar a vida de muitos e
entre essas as dos que me pertencem. O abuso ha de acabar. Por estes
dias
deve chegar uma portaria, mandando expressamente cumprir a lei.
Consegui
isso do governo. O cemiterio fez-se. Eu fui o primeiro a dar o exemplo,
levantando alli o sepulchro para a minha familia. Depois d'isso,
graças a um preconceito tolo, á má
fé de alguns padres, á frouxidão das
auctoridades e talvez a alguma incuria minha, ainda ninguem mais se
enterrou alli. No entretanto quasi todos os estios se repetem os casos
d'essas febres que a sciencia attribue em grande parte aos miasmas da
igreja onde a extrema devoção d'este povo
accumula
em certos dias, durante horas e horas, uma extraordinaria quantidade de
fieis. Portanto, com isso não transijo. Hei de acabar com o
abuso.
―Pois sim... mas agora na occasião
das eleições... sr. conselheiro, não
sei
se faz bem.
―Para compensação trataremos de apressar
o principio das estradas; tambem o pude conseguir.
―Inda assim... Receio alguns motins.
―Reprimem-se.
―O peor é que ha de haver quem lance mão d'essa
arma contra nós.
―Quem?
―Ora! não falta quem. Basta o missionario, que
já
prégou contra isso.
―Não tenho mêdo. Quando muito, algum motimzito
sem
consequencia. Leve-os por bem. E se fôr preciso fale ao
ouvido
d'esse tal missionario...O homem que quer? Provavelmente alguma
abbadia? algum canonicato? É preciso vêr isso.
[207]
―Elle diz que
não quer nada.
―Bem sei, todos dizem o mesmo―disse o conselheiro,com a sua
descrença de homem politico.
Tapadas retirou-se mal assombrado. De facto aopinião publica
era, por toda a aldeia, em extremo adversa aos cemiterios, e elle mesmo
não estavade todo limpo do preconceito geral, mas a
sua affeição ao conselheiro obrigava-o a digerir
a
disposição legal, conforme podia.
Depois d'elle se retirar, o conselheiro disse, erguendo-se:
―Vem em má occasião a medida, vem;
é arrojadapara épocas eleitoraes; se houvesse um
chefe habil que a aproveitasse, podia... Em todo o caso não
transijo.
Eram dez horas quando se levantou a sessão, e Henrique
voltou
com a tia para Alvapenha.
XIII
Ao outro dia a impaciencia de Angelo não lhe
permittiu longa demora no leito. Tardava-lhe o vêr
todos aquelles sitios, tão seus conhecidos; arvores
que uma por uma distinguia, sebes, atalhos de campos,
e quebradas de montes. A custo o puderam
reter para o almoço; resignou-se porém a
não ultrapassar,
até então, os muros da quinta. Logo
porém
que sorveu á pressa o ultimo golo de chá, partiu,
veloz como uma lebre, sem nem sequer dar
ouvidos á enfiada de recommendações de
sua tia
D. Victoria, que teimava em o querer prevenir, com
sócos, gabão e guarda-chuva, de uma hypothetica
mudança de tempo.
Angelo partiu. A tudo que via pelo caminho encontrava
ligada uma recordação e uma saudade;
[208]
mas seguia sempre, como quem não errava ao
acaso pelos campos, antes era guiado n'aquelle passeio
por um intento, que tinha pressa de realisar.
Atravessou grande parte da aldeia, cortejado,
cumprimentado e festejado por quantos encontrava
pelos caminhos, ou ás portas e janellas das casas,
nos campos e nos ribeiros.
Chegou emfim á casa, onde já dissemos morar o
recoveiro Cancella e a sua filha Ermelinda.
Era evidentemente aquelle o termo proposto por
Angelo ao passeio matinal, porque retardou o passo
á medida que se approximava, e parou á porta da
casa.
Achou-a fechada, mas não lhe causou isso
embaraço.
Como quem estava habituado a vencer estes estorvos,
sondou resolutamente o muro do quintal,
construido de pedras soltas, e dispoz-se á escalada.
Com a agilidade e destreza proprias de quem
passou na aldeia os primeiros annos da vida, o irmão
de Magdalena trepou sem vacillar até o alto do
muro, e n'um momento pousou os pés no chão do
quintal.
Vendo-se dentro da fortaleza, olhou em redor
com precaução e, com mais
precaução ainda, se
dirigiu para um bosquezito de laranjeiras, que era
o logar de recreio do pequeno horto.
Foi motivo d'estas precauções o ter já
avistado,
por entre os troncos e a rama baixa das laranjeiras,
um vulto que se lhe figurou conhecido.
Assim se foi approximando sem que o presentissem
e, occulto por detraz de uma sebe de roseiras
silvestres, poz-se á espreita.
Era Ermelinda a pessoa que estava no laranjal.
Sentada sobre o tronco partido de uma laranjeira
velha, que mezes antes havia sido derrubada, a filha
do Cancella e afilhada da familia Zé P'reira, tinha
todas as faculdades applicadas á
decifração dos
hieroglificos caracteres de um pequeno papel manuscripto,
[209]
que segurava nas mãos, e lia a meia voz.
De quando em quando interrompia a leitura e, erguendo
a cabeça para o céo, parecia repetir o que
lera, como se pretendesse decoral-o.
Angelo applicou mais o ouvido, a vêr se alguma
das palavras, que ella declamava, lhe revelava a
natureza do manuscripto.
De facto, de uma vez, a pequena leu em voz mais
audivel e elle escutou a seguinte quadra:
―Que lamentavel tragedia,
Que os meus olhos tristes viram!
E publicam minhas vozes
Aquelles que não ouviram!
E principalmente o rei,
Que se chama o rei tyranno,
N'esta região remota
Do Egypto dilatado.
Depois de ler isto, a rapariguita levantou a cabeça
e repetiu:
―Que lamentavel tragedia
Que meus olhos tristes viram...
Angelo saiu do esconderijo, e sempre vagarosamente,
e com precaução, veio collocar-se por detraz
d'ella, sem que fôsse presentido ainda.
Tão perto chegou, que, por cima do hombro de
Ermelinda podia já ler as quadras que ella estava
decorando:
―Tenho mil linguas, mil bôcas...
ia Ermelinda continuar a ler, quando uma
respiração
mais profunda de Angelo a fez desviar a cabeça.
Dando com os olhos n'elle, soltou um grito de
sobresalto; depois sorriu e instinctivamente procurou
esconder no bolso do avental o papel que lia.
Angelo segurou-lhe a mão.
[210]
―Que estavas a ler, Linda?
―Não é nada...
―Deixa vêr.
―Não deixo.
―Por que não deixas?
―Para não ser curioso. Que modos são esses de
andar a escutar a gente?
―Pois sim, sim; mas deixa-me vêr os versos.
―Não são versos. Quem lhe disse que eram versos?
―Pois não ouvi? Que era isso de tyranno e de
Egypto, que dizias?
―Que ha de ser?―disse a final
Ermelinda, dando-lhe
o papel.―São os versos do auto dos Reis.
Sabe agora?
―Do auto dos Reis? Ai, sim; está a chegar o
dia! Mas que tens tu com o auto dos Reis?
―É que este anno meu pae quer que eu seja a
Fama.
―Viva! E que bonita Fama que vaes ser! E já
sabes os versos?
―Estava a decoral-os.
―Tenho mil linguas, mil bôcas...
dizia Angelo, lendo no principio.―O que é pena é
pôr
uma chochice d'estas na bôca de uma Fama como tu.
―Que está a dizer? Então os versos
não são bonitos?
―Oh! pois não são!―exclamou Angelo,
gracejando.―São
uma perfeição!
E tendo-os corrido com a vista, principiou a lel-os
com accentuação e emphase comicamente
exaggeradas.
―Ora ouve lá:
Sabei que aquelle Herodes,
Lobo cruel carniceiro,
Tremendo de inveja pura
Lhe venham tirar o reino...
[211]
―Então que ha que dizer a isto?
E proseguiu:
Feria raios de fogo
De seus olhos com mudança;
E só pretende fazer
Alvo da sua vingança.
―Isto é claro e sublime!
―Lendo assim, pudéra!―disse Ermelinda, rindo.
É preciso que advirta o leitor que estas quadras
e auto, a que nos estamos referindo, não são obra
da nossa imaginação. Por ahi corre manuscripto o
auto, mais ou menos extravagantemente orthographado,
segundo o systema ou o capricho do copista.
Em quasi todas as aldeias dos arredores do
Porto podem vêr em cada anno representado este
ou outro analogo, com applauso e gloria da arte.
Ás mãos nos veio uma d'essas cópias,
á qual, menos
na orthographia, escrupulosamente nos cingimos.
Angelo era talvez em demasia severo na apreciação
critica sobre o merecimento litterario da obra,
ao chamar-lhe uma chochice. É raro que a musa
popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma
inspiração. N'este mesmo auto, se encontram
vestigios
d'ella. Mas não é nossa missão
apreciar as
opiniões dos actores que pomos em scena; tão
sómente
as registamos, sem nos responsabilisarmos
por nenhuma.
Angelo redarguiu á reflexão de Ermelinda:
―Pois bem; para que não digas que é da maneira
de ler, que elles parecem chôchos, repara;
vou lel-os agora com toda a seriedade. Ora escuta.
Que quantos até dois annos
Em Belem fôssem nascidos,
E toda a sua comarca
Matassem a ferro frio
[212]
Sem
excepção a pessoa
Que nos districtos se achasse,
Entendendo d'esta sorte
Que nós lhe não escapassemos.
―Olhem que semsaboria!
Esta divisão administrativa e judicial, em districtos
e comarcas, que o auctor fez na Judéa e que
tanto parecia revoltar Angelo, era uma d'estas liberdades
shakspeareanas, que se devem perdoar
aos genios.
―E não foi assim?―perguntou Ermelinda, que
não percebia ainda o motivo dos reparos de Angelo.―Pois
Herodes mandou matar todas as creanças
da Judéa; então não mandou?
―Mandou, mandou; mas a Fama é que devia
contar isso melhor.
―Melhor?! Então não é bonito esse
verso?
E Ermelinda, tirando o manuscripto das mãos de
Angelo, leu a seguinte quadra:
Para livrarem seus filhos
Da morte dos innocentes,
Dos braços faziam cruzes
Aquellas mães impacientes.
Os instinctos populares da filha do Cancella perceberam
a belleza, talvez um pouco rude, do tocante
quadro, que estes versos exprimem.
Esta pequena contenda litteraria entre duas creanças
podia dar margem a profundas reflexões a
quem para ellas estivesse disposto.
Angelo estava no principio de uma educação
esmerada.
Principiára já a desenvolver-se n'elle a
intelligencia,
e a acordar os instinctos artisticos que estremeciam
já sob as primeiras seducções da
fórma.
N'estas épocas criticas, em que esses segredos se
revelam, é tal o encanto em que elles nos trazem
que exclusivamente nos votamos ao novo culto,
com a fanatica intolerancia. Onde as louçanias do
estylo, os primores e a sonora harmonia do metro,
[213]
e o brilhantismo das imagens nos não afagam os
sentidos, recusamos demorar a vista; e escapa-nos
assim na sombra muita belleza real, ás vezes occulta
sob a grosseira revestidura da poesia ou narrativa
popular.
É necessario que passe o enthusiasmo, a violencia
da paixão nascente, que venha a frieza de animo
necessaria á imparcialidade do juizo, para que nos
não cause repulsão a aspereza, e grosseria
até, da
fórma e consigamos apreciar o bello que por ventura
n'ella se envolva.
Dá-se com a belleza da ideia e da fórma de
qualquer
obra litteraria, o que se dá com a belleza moral
e a belleza physica de uma mulher.
Ambas são feitas para nos commoverem e dominarem.
Mas, quando o assomar de um sentir novo
começa a alvoroçar o sangue do adolescente,
quando
fórmas vagas e formosissimas principiam a encantar-lhe
os sonhos de suas noites febris, a paixão da
fórma domina-o; por ella sacrifica tudo; uma
modelação
perfeita, um delineamento gracioso poderá
decidir da sua vida inteira, e na fascinação que
o
cega, nunca verá a formosura da alma, que se abriga
n'uma pouco feliz encarnação. É que
para apreciar
a belleza moral, para a vêr transparecer, através
do
involucro exterior é preciso deixar passar a vertigem
dos primeiros momentos, ou não a ter ainda
experimentado.
Por isso na infancia e nas idades viris é que
melhor se apreciam essas fealdades, que escondem
um coração angelico. A adolescencia é
impiamente
cruel para com ellas.
Por uma lei analoga é o povo, o simile da
creança,
porque não tem os sentidos educados para as
mais subtis bellezas da fórma, e é o homem a quem
ella já não fascina, embora ainda e sempre o
deleite,
como poderosissimo elemento de belleza litteraria,―são
estes os leitores que mais aptos estão
para avaliarem uma ou outra inspiração que, entre
[214]
muitos desvarios, tem a humilde musa que visita
a cabana do lavrador ou a officina do artista.
Apesar da defeza de Ermelinda, Angelo não perdoou
ao auto.
―Sabes que mais? Não decores isso―disse-lhe
elle resolutamente.
―Meu pae quer.
―O que é que quer teu pae?
―Quer que eu entre no auto.
―E has de entrar. Quem te diz que não?
―E quer que seja a Fama.
―E has de ser a Fama.
―E não hei de falar?
―Has de falar. Tinha que vêr uma Fama que
não falasse. Para que lhe serviriam as cem bôcas?
―Então?
―Então; é que não é
forçoso que digas o que
ahi está.
―E que hei de eu dizer?
―Outra coisa.
Ermelinda olhava Angelo admirada, sem conseguir
comprehendel-o.
―Outra coisa! repetiu ella, instinctivamente.
―Olha, proseguiu Angelo.―D'aqui até chegar
o dia do auto vae muito tempo. Eu te darei outros
versos para estudares, em logar d'esses.
―E onde os tem?
―Eu os procurarei. Não digas tu nada. Basta
que no dia recites, em vez d'esses, os que eu te
der!...
―Mas que dirá meu pae e o sr. Pertunhas?
―O mestre de latim? Pois que tem elle com o
auto?
―É quem ensina como a gente ha de dizer.
―Ah! sim? Pois para que elle nada diga, guarda
para a occasião os versos que eu te arranjar. Até
ha de ter graça vêr a cara com que elles
ficarão
todos, quando lhes sair uma coisa bem differente
do que esperam.
[215]
―Mas... diga: onde é que vae buscar esses
versos?
―Não sairei da aldeia para isso. N'uma visita
que d'aqui vou fazer, conto obtel-os. Agora falemos
de outra coisa. Que é de teu pae?
―Saiu a levar umas encommendas. Minha madrinha,
d'alli defronte, está para a igreja e meu padrinho
nas hortas. E eu vou tratar do jantar de
meu pae.
―Pois vae, que eu faço-te companhia.
E Angelo seguiu-a á cozinha, e ahi, ella sentada
na soleira da porta a escolher hortaliça, elle a dar
de comer aos coelhos e ás gallinhas, se entretiveram
a conversar.
Angelo falou-lhe de Lisboa, dos theatros, contou-lhe
enredos de dramas que o tinham commovido;
typos e situações de romances, que se lhe haviam
gravado na memoria; invenções da arte moderna,
versos, anecdotas, contos.
Ermelinda era toda ouvidos a escutal-o.
Passadas horas, Angelo levantou-se e despediu-se,
para sair.
―Onde é que vae?
―Vou visitar Augusto, que deve estar agora em
casa.
―E ainda o não viu?
―Ainda não. A minha primeira visita foi esta.
―Então vá, que elle deve estar morto por o
vêr.
Ah!... já sei a pessoa a quem vae pedir os versos!
―Quem te disse que Augusto os fazia?
―Eu vi-o estar a escrever na parede da capella
da Senhora da Saude de uma vez que eu ia levar
o jantar a meu padrinho, que estava a trabalhar
para aquelles sitios.
―E leste-os?
―Não, que não quiz que elle me visse. Mas que
havia elle de escrever na capella? Então não
adivinhei?
[216]
―Não sei. Adeus.
―Diga.
―E chamavas-me curioso!
E Angelo saiu apressadamente.
Momentos depois estava com Augusto.
A conversa entre ambos teve toda a intimidade
da de dois affectuosos amigos.
Angelo fez a narração dos episodios da sua vida
de collegio; das difficuldades e das bellezas dos
seus estudos n'aquelle anno. Augusto, que da aldeia
com elle os seguia, passo a passo, interrogava-o
sobre algumas dúvidas que tinha, e esclarecia ás
vezes tambem, graças á sua poderosa
penetração
e natural lucidez, as que o ensino do collegio havia
deixado no espirito do seu antigo discipulo.
A geographia e a historia, que eram as disciplinas
estudadas n'aquelle anno por Angelo, deram
assumpto a grande parte d'este dialogo.
Augusto inclinára-se aos estudos historicos,
inclinação
em que o herbanario o entretinha com frequentes
presentes de livros d'aquelle genero.
Em exame de livros novos, referencias a outros
lidos, e leituras de alguns mais apreciados, passaram
os dois grande parte da manhã, até que por
fim Angelo disse a Augusto:
―Ah! é verdade! Tenho um favor a pedir-lhe.
―Qual é?
―Sabe que está para breve o dia dos Reis?
―Sim.
―E portanto o auto com que o povo d'aqui o festeja;
aquelle auto em que o Herodes faz tremer
meio mundo?
―Bem sei―respondeu Augusto, sorrindo.
―Este anno teremos a Linda a fazer de Fama.
Fama bonita, por certo; mas se soubesse os versos
que lhe deram para recitar!
E Angelo reproduziu, como pôde, as quadras do
monologo da Fama no auto dos Reis.
[217]
De quando em quando passava um sorriso pelos
labios de Augusto.
―Eu já conhecia isso. É o costume―disse elle
no fim.
―Mas não lhe parece que de uma Fama como
aquella, se devia esperar melhor do que isto?
―E então que quer que eu lhe faça?
―Outros versos para o logar d'estes.
―Outros!... Eu?...―perguntou Augusto.
―Por que não?
―Que lembrança!
―Não me venha negar que os faz.
―Versos?
―Sim.
―Quer dizer que os leio.
―E que os escreve. Vamos. Mas se insiste em
recusar, diga-me então quem é que os escreveu na
parede da capella da Senhora da Saude, para eu
me dirigir a elle.
―Então houve quem escrevesse versos na parede
da capella?―perguntou Augusto, sorrindo.
―Não que eu visse; mas já duas pessoas m'o
affirmaram, e as suspeitas de ambas recaíram no
mesmo homem.
―Quem foram essas pessoas?
―De uma o ouvi agora mesmo. Foi Ermelinda.
―Ah!
―A outra foi Lena.
―Le... A sr.
a D. Magdalena?
―É verdade, minha irmã. E estranhou, com
razão,
que eu o não soubesse.
―E como o soube ella?
―Leu-os, e pela leitura conjecturou o auctor.
Augusto calou-se como absorvido por um pensamento,
que todo o preoccupava.
Angelo continuou falando, sem que fôsse escutado;
a final concluiu, dizendo:
―Então quer falar ao poeta da Ermida para que
me dê o que lhe peço?
[218]
―Poesia não lhe pode elle dar, agora se... alguns
versos o satisfazem...
―Sim, sim, venham os versos; que a poesia eu
a procurarei n'elles, até a achar. Desde já lh'os
agradeço.
―A elle?
―A ambos―respondeu Angelo, rindo.―E
agora diga-me, Augusto: Ainda está resolvido a
viver aqui sempre enterrado? Não pensa em mudar
de vida?
―Nenhuma outra me namora mais; o destino
que a bondade da morgada me offerecia... não
tenho coragem para acceital-o. Assusta-me o peso
do crepe.
―Nem eu lhe digo que deva acceitar esse. Mas
o Augusto não terá amigos que ajudem a
seguir
outros destinos menos obscuros do que este e menos
pesados do que o que o legado lhe impunha?
Meu pae já ...
―Que quer? Não me posso vencer até pedir ou
acceitar de outrem auxilios, quando Deus m'os não
tem recusado ainda; nem sei até se esses destinos,
que diz menos obscuros, me fariam mais venturoso.
Ha indoles que nasceram affeiçoadas para a obscuridade.
Incommoda-as a demasiada luz. Umas
plantas querem ar, e sol e luz; outras vivem ahi
em qualquer canto escuso e obscuro, e lá mesmo
dão flôr. Porque é isto não
sei,
mas...
―Sei eu―disse uma voz da parte de fóra da
janella, junto da qual se passára o dialogo...
Voltaram-se os dois ao ouvil-a. A figura do herbanario
desenhava-se no vão da janella, como um
retrato de velho n'um caixilho de galeria.
―Ah! o tio Vicente!―exclamou Angelo, correndo-lhe
ao encontro.
O herbanario encostou-se, ainda de fóra, ao peitoril
da janella, ficando assim com meio corpo para
dentro da sala.
―Viva o nosso doutor―disse elle, sorrindo, a
[219]
Angelo.―Por emquanto ainda
esse coraçãozito
está como era. Não esqueceu os seus amigos da
aldeia.
―Está como sempre estará―respondeu Angelo.
―Sempre!―repetiu o velho.―Sempre e nunca
são duas palavras de terrivel
significação... Mas
emfim... de bom metal é o coração,
assim o não
enferrugem os ares da cidade, como ao de...
como ao de tantos...
E mudando subitamente de tom, disse para Augusto:
―Com que dizias tu que não sabes porque algumas
plantas vivem de pouca luz e de pouco ar, ahi
em qualquer buraco do muro? É porque vivem
muito pelas raizes essas. As plantas vivem do ar
pelas folhas e vivem da terra pelas raizes. Lá diz
aquelle livro da
Historia Natural
que eu tenho.
Umas prendem-se pouco ao chão; precisam, pois,
de se abrirem muito ao ar para poderem viver; outras
porém, profundam tanto a terra, com tantas raizes se
seguram, que d'ellas lhe vem todo o sustento e não
desdobram muitas folhas, nem crescem em grandes
ramos para o ar. Como umas e como outras
ha homens no mundo. Tu és dos que deixam ganhar
raizes ao coração e d'ellas vivem. Que te importa
o mais? essas grandezas que os outros procuram?
Mas é preciso cautela, rapaz! Ha
corações
como a hera, que onde quer que se encosta, prende-se
com raizes. Quem é assim deve dirigir com
prudencia as suas inclinações. Se para mau lado
dobra, se se encosta a arvore de preço... mal
d'elle! que o separarão com fôrça,
fazendo-lhe estalar
todas as raizes, que o prendiam.
As palavras de uma obscuridade sibyllina, ditas
pelo herbanario, parecia terem um sentido para Augusto,
que visivelmente se perturbou ao ouvil-as.
―Que está ahi a dizer, tio Vicente!―disse Augusto,
sem ousar fitar o velho.
[220]
―Nada. Tonterias de velhice. A prudencia, que
os annos dão, vê longe e fundo, rapaz...
É verdade
que... ás vezes... o arrojo dos mocos é tambem
guia feliz... Anda lá com a tua estrella, anda. Ao
que já vejo, não sei se te possa chamar louco...
como ao principio não duvidei fazel-o.
É certo que
é pouco seguro o terreno, em que sustentas os teus
castellos.
―Os meus castellos! Que castellos faço eu?
―Não hei de ser eu que t'os mostre... Só te
quero avisar que não ponhas grande fé
em sonhos...
Lembras-te do que se passou no monte
da ermida?
―No monte da ermida?
―Não viste por lá no outro dia uns signaes de
trovoada? A inconstancia é sempre de receiar. O
que n'aquella manhã se passou, o que então vi...
―Que viu?... Que se passou?
O herbanario demorou por algum tempo o olhar
em Augusto e com tal expressão, que o obrigou a
desviar o seu; depois accrescentou:
―Nada; o que todos os dias acontece. O céo
azul fez-se pardo, a luz clara cobriu-se de sombras,
os raios do sol tornaram-se torrentes de chuva. Pois
não te lembras?... E tudo devido a uma mudança...
de vento... a uns ares que vinham do sul...
Augusto não entendia ou fingia não entender estes
mysteriosos dizeres do herbanario. Angelo estava
distrahido devéras.
O velho voltou-se, de subito, para este, perguntando-lhe:
―Tem ido ao mosteiro o hospede de Alvapenha?
―Esteve lá hontem.
―É amigo das creanças?
―Parece-o.
―Conta muitas historias ás senhoras?
―Entretem-as bastante.
―E ao... e a teu pae? Ouve-o com attenção?
―Conversaram muito toda a noite.
[221]
O herbanario parecia ligar grande valor a estas
perguntas, porque a cada resposta obtida, abanava
pausadamente a cabeça com certo ar meditativo.
Augusto relanceava tambem para a fronte, meio
contrahida, do velho um olhar entre curioso e timido.
O herbanario proseguiu:
―Emfim... A desconfiança é um achaque
de
velhice e nem sempre os mais felizes são os mais
acautelados. Deus que vele, se os bons lhe merecem
ainda a graça da sua protecção.
―O tio Vicente desconfia do primo Henrique?
perguntou Angelo, rindo.
―Primo?!―repetiu o velho, admirado.
―Primo lhe chamamos nós, porque a tia Victoria
teima que, sendo elle sobrinho da tia Dorothéa,
é nosso primo tambem.
―Ah? Já ahi vamos? E Lena?...
―Lena, Christe, todos lhe chamam por lá assim.
O herbanario poz-se a murmurar algumas palavras
inintelligiveis, terminando por estas:
―E, como no Egypto, é o vento sul que traz a
praga dos gafanhotos. Mas Deus que vele, Deus que
vele. E eu não me demoro mais, que vou ainda
d'aqui aos pardieiros de Cernuche.
―Á caça dos sapos, tio Vicente?―perguntou
Angelo, gracejando.
―Não, que não é agora o
tempo―respondeu,
sisudo, o velho.
―Dos sapos! Galante caça, na verdade!―continuou
Angelo no mesmo tom.
―Galante não será ella, pequeno,―respondeu o
velho;―mas abençoada a chamarias se te torcesses
no leito com as dores do carbunculo, que não
ha remedio mais efficaz para o curar, do que a pelle
d'estes animaes sêcca ao ar livre.
―E a das toupeiras? O tio Vicente tambem caça
toupeiras?
[222]
―Em seu tempo. Oh! a toupeira é animal de
abençoadas virtudes! Basta que um dente que se
lhe arranque, estando ella viva, trazido ao pescoço,
cura a mais desesperada dor de dentes.
―Não deve ser facil operação a de
tirar os dentes
ás toupeiras―tornou Angelo.
O herbanario continuou:
―A quinta essencia das toupeiras é milagrosa
contra cancros e herpes.
―A quinta essencia das toupeiras!―repetiu Angelo,
rindo.
―Não rias, creança―acudiu severamente o
herbanario.―Que
não é bonito rir do que os homens
doutos asseguram. Eu já o experimentei, logo que
o li n'aquelle grande livro da
Polyantheia, livro
como se não faz hoje outro.
―E como é que se tira a quinta essencia a uma
toupeira, tio Vicente?
―Tomam-se as toupeiras e queimam-se até as
fazer em cinzas. Mistura-se a estas cinzas o sumo
de celidonia maior, até haver quatro dedos de sumo
acima das cinzas. Mette-se tudo n'um vidro bem fechado,
que se enterra por dez dias e... e... Bem,
bem. Elle ri!... Tolo sou eu em gastar tempo e paciencia
com creanças.
―Espere, espere, tio Vicente... Não vá embora...
Então depois de enterrar tudo isso, que se
faz?
―Até logo... Pede a Deus que nunca te seja
preciso fazer a pergunta com menos vontade de
rir.
―E assim vae sem me dar um remedio! Olhe,
tio Vicente, eu padeço ás vezes de um somno
tão
pesado que me não deixa estudar.
O herbanario voltou-se e, com toda a seriedade,
respondeu:
―E julgas que não sei de remedio para isso?
Experimenta e verás. Mette um ou dois morcegos
debaixo dos travesseiros e eu te affirmo que...
[223]
Mas adeus, que se me faz tarde e d'aqui a Cernuche
é uma legua.
E o herbanario retirou-se, meio agastado com o
scepticismo de Angelo e sobraçando a caixa de lata
e o sacco dos seus thesouros medicinaes.
Angelo e Augusto ficaram rindo da sciencia e das
singularidades do velho, riso em que não entrava,
porém, o menor laivo de malignidade; porque ambos
tinham pelo velho uma verdadeira estima, que
elle bem lhes merecia, pois sempre do coração o
achavam votado a seu favor.
O dialogo de Angelo e de Augusto prolongou-se
ainda, até ás horas do jantar.
XIV
Eu não sei se esta historia terá leitor
tão mal
aventurado, que não possua recordações
e saudades
associadas á noite de Natal, áquella festiva e
abençoada
noite, em que as ruas e os logares publicos
se despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar
e scintillar o fogo mais acalentador do que
nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que
não saiba o que é a festa das consoadas em
familia,
esse que não leia este capitulo, que n'elle não
encontrará
prazer. Se alguns as gosaram já n'outros
tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas
solitarias, olhando com inveja para cada raio de luz
que rompe das frestas de tantas janellas discretamente
fechadas, ouvindo commovidos o ruido das
alegrias que vão no seio das familias, e pela phant
Eu não sei se esta historia terá leitor
tão mal
aventurado, que não possua recordações
e saudades
associadas á noite de Natal, áquella festiva e
abençoada
noite, em que as ruas e os logares publicos
se despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar
e scintillar o fogo mais acalentador do que
nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que
não saiba o que é a festa das consoadas em
familia,
esse que não leia este capitulo, que n'elle não
encontrará
prazer. Se alguns as gosaram já n'outros
tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas
solitarias, olhando com inveja para cada raio de luz
que rompe das frestas de tantas janellas discretamente
fechadas, ouvindo commovidos o ruido das
alegrias que vão no seio das familias, e pela phantasia
creando em cada morada um mundo intimo
de affectos e de venturas, como o de que a sorte os
privou, que esses me perdoem as amargas saudades,
que por ventura lhes avive assim.
[224]
É certo que não ha noite mais alegre; alegre
d'esta alegria que vae direita ao coração, sem
perturbar
os sentidos com fumos de embriaguez; alegre
d'esta alegria candida a que o homem é sujeito do
berço á velhice, a qual respeitam os estos das
paixões,
na idade d'ellas, e o gêlo do egoismo, no declinar
da vida.
Bem escura, bem ventosa, bem fria e humida surjas
tu sempre, noite de vinte e quatro de dezembro,
que melhor então se avaliará pelo contraste a
luz,
o calor, o conchêgo dos lares, e mais intimos se
estreitarão os circulos da familia em roda da ceia
patriarchal.
E vós todos, a quem uma moda tôla não
constrangeu
ainda a abandonar os habitos que de pequenos
contrahistes, e festejaes ainda o Natal de
Christo, segundo o estylo velho, continuae a manter
genuinos esses costumes nacionaes, que não
resultará
d'ahi desdouro para o vosso nome ou brazão.
A roda da civilisação, a que applicaes hombros
com
tanto denodo, não se cravará por isso.―Podeis,
elegantes meninas, cantar lôas sem escrupulo deante
do presepe armado na sala mais intima da casa,
que nem por isso cantareis peor na das visitas as
arias italianas, que aprendestes no collegio; não
córeis de collaborar, por excepção,
esta noite nos
mesteres da cozinha, que sobra de agua de colonia
e perfumes tendes no toucador para as abluções
purificatorias. Homens graves, a republica perdoar-vos-ha
uma pequena infidelidade, a politica do paiz
e da Europa não periclitará desnorteada se, por
um
pouco, lhe negardes a vossa attenção;
humanisae-vos
pois uma vez por anno, e baixae ao seio da
familia os olhares, que ponderosos empenhos vos
trazem sublimados.―Entrae com as creanças em
jogos pueris e faceis, que não destemperareis a
intelligencia
para as philosophicas cogitações do
boston
e do
whist.
A familia do Mosteiro era fiel ás classicas
usanças
[225]
d'esta noite tradicional. E n'aquelle anno sobretudo
as festas das consoadas deviam ser coisa falada,
graças ao plano de D. Victoria de reunir no
Mosteiro a resumida familia de Alvapenha; plano
que vimos approvado por acclamação por toda a
assembleia presente.
D. Dorothéa veio effectivamente na companhia de
Henrique de Souzellas e de Maria de Jesus.
Foram recebidos no Mosteiro por uma completa
ovação das creanças.
D. Dorothéa viu-se litteralmente enlaçada em
braços
infantis, que lhe tolhiam os movimentos e que,
dizia ella, quasi ameaçavam asphyxial-a.
Tudo isto dava motivo a exclamações e risos, que
inauguraram um estado de coisas, o qual nunca
mais devia cessar aquella noite.
A balburdia, a azafama festiva que ia no Mosteiro
é indescriptivel. Na cozinha, nas salas, nos corredores
tudo era movimento e ruido.
Aqui eram as creanças jogando, a pinhões, o
«par
ou pernão» e o «rapa», jogos
popularissimos e de
occasião, que, de tão conhecidos, dispensam o
trabalho
de descrevel-os. Estes jogos, como é de prever,
não se executavam sem um concurso de vozearia
e de algazarra, que desafiava a impaciencia de
D. Victoria, a qual, segundo o costume, ia, pelo que
se passava na sala, ralhar com os criados á cozinha.
No aposento immediato ao quarto de D. Victoria,
armára-se o presepe, deante do qual ardiam seis
vélas de cêra em castiçaes de prata
maciça.
As duas velhas senhoras, D. Dorothéa e D. Victoria,
encetaram logo no principio da noite uma
longa e devota reza, meio recitada, meio cantada, a
qual se continuava com uma interminavel enfiada
de Padre-Nossos e Avé-Marias, a que respondia, em
côro, a parte feminina, da familia, as creanças e
as
criadas.
Corypheu era a senhora de Alvapenha, que em
[226]
voz trémula e quebrada pela idade, entoava em singela
cantilena coplas como esta:
Ó infante suavissimo,
Vinde, vinde já ao mundo
Livrar-nos do captiveiro
D'este jazigo profundo.
E seguia-se um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.
Angelo havia ao principio, com as suas travessuras,
desordenado um pouco o andamento regular
das rezas, mas D. Victoria tomou o heroico expediente
de o expulsar do congresso, e tudo serenou.
Á sala, onde Henrique de Souzellas conversava
com o conselheiro em assumptos, todos d'esta vez
longe da politica, chegaram as surdas harmonias
d'aquellas cantigas e rezas. Henrique mostrou curiosidade
de saber o que era aquillo. O conselheiro,
sorrindo, convidou-o a seguil-o para por si proprio
se poder informar.
E, tomando por aposentos interiores, conseguiram
ambos introducção na sala da novena justamente
ao lado de D. Victoria e de D. Dorothéa, que, de
embebidas que estavam nas suas orações, nem por
elles deram.
O conselheiro e Henrique ajoelharam sisudamente
ao lado d'aquellas boas senhoras, e quando após
um dos Padre-Nossos, ditos por D. Dorothéa, se
devia seguir a resposta do côro feminino, este emmudecido,
com a chegada dos dois, a qual desafiára
risos a custo suffocados, foi substituido por um
dueto de vozes masculinas, que sobresaltaram primeiro,
e escandalisaram depois ambas as sisudas
senhoras.
O tumulto que o episodio produziu fez attrahir as
creanças; D. Victoria teve muito que fazer, muito
que reprehender o cunhado, muito que ralhar com
os filhos e com o sobrinho, muito que carpir-se com
D. Dorothéa, muito que recriminar os criados, rindo-se,
bem a seu pesar, no meio de todas estas tarefas.
[227]
Terminou confusamente a novena com tal occorrencia.
Os desordeiros sómente capitularam, consentindo
em retirar-se, quando lhes prometteram
que se encurtaria a lista dos Padre-Nossos. Henrique
voltou com o conselheiro a admirar o primor
que a paciencia de um artista imaginoso realisára
na confecção do presepe, onde estavam
representados
todos os episodios da natividade de Jesus, e
muitos outros.
Era effectivamente uma complicada machina
aquelle presepe, e seria prova de profunda indifferença
artistica passar por elle sem um exame, embora
fugaz.
Este traste antiquissimo na familia gosava de
nomeada n'um circulo de leguas em redor. Havia
empenhos para o vêr no tempo do Natal, e se algum
viajante estacionava dois dias na aldeia, encontrava
sempre quem lhe recommendasse o visitar o presepe,
como coisa digna de vêr-se.
Consistia elle n'uma espécie de santuario de pau
preto, no meio do qual havia uma pequena gruta
toda cravejada de caramujos, e rosas de papel, com
estames de fio de prata. Dentro d'essa gruta estava
deitado o menino Deus, não sobre umas palhas,
como a tradição refere, mas graças aos
impulsos
do compadecido coração de D. Victoria, que,
ainda que tarde, parecia tentear um lenitivo aos
antigos rigores da humanidade, em uma bonita cama
de lençoes de renda com cercadura dourada; colcha
de setim bordado, e colchão e travesseiro da mais
macia penugem de aves americanas. Ao lado,
Nossa Senhora e S. José, de proporções
quasi
iguaes ás do menino; mais longe a vacca e a mula
tradicionaes. Os episodios porém eram inquestionavelmente
o mais interessante da obra. Varios
grupos de pastores, soldados e fidalgos de todos
os tamanhos, feitios e vestuarios, ornavam a scena.
Alli um cego tocador de sanfona; um grupo de
gallegos dançando, ao som da gaita de folle; uma
[228]
pastora com ovos mais adeante; ao lado, um grupo
celebrando um
pic-nic, perfeita
actualidade, tudo
em mangas de camisa, com gravata, e botas de
cano;―outros fumando e bebendo cerveja. Uma
amazona ingleza, com o seu Jockey, galopava pelas
cercanias de Bethlem; um vareiro e uma vareira
caminhavam a par com offertas para o menino. Ao
longe, nos visos da serra, appareciam os tres
Reis Magos, que deviam levar dez dias a chegar
abaixo.
Não esqueceu ao inspirado auctor d'aquelle monumento
esculptural os muros de Jerusalem. Elles
lá estavam coroados de ameias e de milicianos fardados
á ingleza e armados de lanças e arcabuz.
Eram gigantes aquelles guerreiros, pois, não obstante
estar a muralha no plano do fundo do quadro,
qualquer d'elles era duas vezes maior do que as
figuras do plano da frente. No alto da muralha arvorava-se
a bandeira portugueza. Havia varios santos
espalhados pelas agruras d'aquellas montanhas,
e, entre os additamentos feitos pela devoção
de D. Victoria ao presepe, contava-se o de um Santo
Antonio de Lisboa, que, apesar de thaumaturgo,
parecia muito admirado de se vêr n'aquelle
tempo e logar. Um gallo colossal soltava do telhado
do presepe o grito annunciador, anjos e cherubins
espreitavam do céo por entre nuvens de algodão e
estrellas de ouropel. Era um prodigio!
Descrevendo rapidamente esta maravilhosa fabrica,
sentia eu vivo orgulho de ter revelado ao
mundo uma preciosidade sem igual, e a que a unanime
admiração faria cêdo ou tarde
justiça; tive
porém de abandonar esta lisonjeira idéa, ao
achar-me
precedido por um dos romancistas mais justificadamente
populares da nação vizinha. Das paginas
de um delicioso quadro de costumes de Fernan
Caballero, a eminente escriptora de que a Andaluzia
se ufana, conheci eu serem não sómente nacionaes,
mas peninsulares pelo menos, estes modelos
[229]
de presepes, com os seus ingenuos anachronismos,
cunho irrecusavel que o povo imprime a todas
as suas obras de arte. Onde falta o anachronismo,
falta a assignatura do povo.
Em todo o caso era digno da menção que d'elle
fizemos o presepe do Mosteiro.
Emquanto Henrique e o conselheiro o estudavam
por miudo, D. Victoria fizera desfilar o cortejo
das criadas para a cozinha, onde urgia o serviço,
e seguindo-as ia-lhes demonstrando que eram
as peores criadas do mundo, por isso que, tendo
tanto que fazer, perdiam tempo a cantar lôas deante
do presepe. D. Dorothéa cêdo tomou com Magdalena
e Christina o mesmo caminho.
O conselheiro e Henrique ficaram nas salas com
os pequenos, e com elles entraram em jogos, como
se fôssem creanças tambem.
O aspirante a ministro, o deputado, o orador, o
homem grave e sério das salas de Lisboa perdera
todo o ar diplomatico: agora era sómente o homem
da familia; pueril, travesso, alegre, folgazão.
―Meu caro,―dissera elle a Henrique no principio
da noite―vou fazer-lhe um pedido. Hoje deve
ser banido o menor assumpto politico, a menor discussão
séria. Deixe-se correr frivola a conversa da
noite, o contrario seria uma profanação, que
attrahiria
sobre nossas cabeças as justas iras dos anjos
domesticos que n'estas noites andam invisiveis misturados
com a familia.
―Apoiado,―respondeu Henrique;―acceito e
comprometto-me a cumprir a proposta.
Henrique possuia em alto grau o talento de se
tornar agradavel. Comprehendendo que eram sinceros
os desejos do conselheiro, tão frio e pueril
conseguiu mostrar-se, que todos o tratavam como
membro da familia, e ao proprio conselheiro parecia
já impossivel que ainda fôssem tão
recentes as
suas relações mais intimas com aquelle rapaz.
[230]
―Animo, sr. conselheiro,―dizia-lhe Henrique,
no momento em que elles ambos estavam empenhados
a jogar a cabra cega com os pequenos.―Coragem,
que temos gloriosos exemplos a animar-nos;
até, entre outros, o do meu homonymo Henrique IV.
É sabido o episodio recordado por uma
gravura celebre.
O conselheiro secundava-o, rindo: graças a estes
jogos, a sala estava dentro em pouco em desordem;
os moveis fóra da sua posição, o
chão alastrado
de cascas de pinhões, que estalavam sob os passos,
os tapetes desviados, as cortinas soltas.
Já por noite avançada, disse o conselheiro para
Henrique:
―Falta-nos ainda um artigo importante do ritual
d'estas festas, o principal. É dirigir uma visita
á cozinha. Porque a obra principal d'esta noite é
fazer uma ceia e não comel-a. Por isso convido-o
a acompanhar-me lá.
―Com tanto mais vontade, que estou ha muitos
dias compromettido a isso com as senhoras.
―N'esse caso é tempo.
E ambos tomaram pelo corredor, que conduzia á
cozinha.
Escusado parece dizer que turba infantil os seguiu
tumultuariamente, annunciando-os ao longe
com risadas e gritos de alegria.
A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de
frades. Occupava um vasto recinto rectangular, rasgado
em amplas janellas e fornecido de bancas monumentaes,
condizendo com a estupenda chaminé,
que parecia ainda saudosa dos odoriferos vapores
que outr'ora espalhavam os tachos e as grelhas
monasticas.
Ia indizivel animação na cozinha, quando Henrique
ahi entrou com o pae de Magdalena. Era um
barafustar de criadas, um chiar de certãs, um borbulhar
de caçarolas e tachos, um tinir de pratos,
um tilintar de crystaes no meio de uma babel de
[231]
ordens, de perguntas, de reclamações, de
conselhos,
todos attinentes a negocios culinarios. E D. Victoria
ralhava, e a sr.
a de Alvapenha promulgava
preceitos,
e Maria de Jesus desdenhava do serviço das
collegas, e Magdalena e Christina riam de todos e
de tudo, e Angelo a todos impacientava.
Não se imagina!
A chegada do conselheiro e do seu hospede veio
exacerbar a desordem. Ergueram-se risos e
exclamações,
as quaes ainda assim eram subjugadas
pelos reparos e censuras de D. Victoria, a qual dizia
para o conselheiro:
―Sempre o mano tem coisas! Olhem agora
para o que lhe havia de dar! Vão lá para dentro,
vão. Não venham atrapalhar-nos mais ainda do
que estamos. E o primo Henrique tambem! Ora
esta!...
―Não se afflija, mana. Nós não
podiamos resignar-nos
a ficar alheios á tarefa principal do dia. E
até porque é necessario dar andamento a isto para
chegarmos a tempo da missa do gallo.
―Pois querem ir á missa do gallo?
―Está de vêr que sim.
―Eu tambem vou―disse Christina.
―E eu―acudiu Magdalena.
―Mais um, que irá tambem―disse Henrique.
―E eu, e eu―accrescentaram differentes vozes.
―Ai, minhas encommendas!―suspirou D. Victoria.―Então
por que não disseram isso logo?
Agora como ha de ser?
E saiu em direcção á sala da ceia a
dispôr as
coisas.
É preciso que se diga que D. Victoria vivia na
candida illusão de que era ella quem fazia tudo em
casa, emquanto que manda a verdade declarar que
nunca mais regularmente corriam as coisas domesticas
do que quanto dormia esta aliás excellente senhora.
[232]
―Mãos á obra, sr. Henrique!―bradou o
conselheiro,
insistindo na resolução com que viera.
―Prompto―respondeu Henrique.
―Então? então?... Que vão
fazer?―perguntava
D. Victoria, afflicta, voltando á cozinha.
―Querem vêr que preparos?!―dizia D. Dorothéa,
sorrindo e olhando com curiosidade para o
que faziam os dois.
―Cumpro uma promessa que fiz a estas senhoras,
minha tia―dizia Henrique, approximando-se
da banca, perto da qual trabalhavam Magdalena e
Christina.
―É verdade que sim,―acudiu Magdalena―e
eu exijo o cumprimento da promessa.
―Vamos lá, sr. Henrique,―tornou o conselheiro―acceite-me
alguns preceitos da pratica. A regra é
fazer tudo o mais indigesto possivel; porque essa
qualidade é o caracteristico dos manjares d'esta noite.
―N'esse caso, vejo que nasci para cozinhar a
ceia do Natal, pois desafio o melhor estomago do
mundo a que subjugue os meus guisados com os
seus succos digestivos.
―Eu já escolhi tarefa―disse o conselheiro, tirando
das mãos de Christina a colhér com que ella
mexia o vaso onde se preparava o vinho quente,
esse
punch nacional, que n'esta
noite seria uma
falta imperdoavel se esquecesse no programma
d'aquelle banquete.
Christina quiz resistir; mas o conselheiro venceu,
e cêdo principiou a desempenhar-se d'este trabalho,
no meio de hilaridade geral.
Angelo dispensou a tia Dorothéa do trabalho da
preparação dos mexidos.
Henrique, seguindo o exemplo do conselheiro, e
no seguimento do seu constante proposito, approximou-se
da morgadinha, que n'aquelle momento se
occupava a regar de calda de mel umas recentes
rabanadas.
―Peço trabalho, prima Magdalena.
[233]
―Não ha falta de braços n'esta
repartição, primo
Henrique. Vá a outra porta.
―Agrada-me mais esta tarefa, acho-a ao alcance
das minhas fôrças.
―Esta? Como se engana! Não sabe que as rabanadas
são a essencia da ceia de Natal? E logo
havia de confiar-lh'as?
―Ah! não ligava tanta importancia a estas representantes
da pastelaria primitiva, notaveis porque
recordam a infancia da arte! Emquanto a mim,
já no tempo da peregrinação dos
hebreus, Moysés
lhes ensinava a cozinhar d'isto.
Magdalena abanou a cabeça em signal de
reprehensão.
―Perdôe ás pobres rabanadas o pouco ar de
moda que teem. A sua elegancia é implacavel, primo
Henrique. Um indigesto manjar francez seria de
melhor tom, bem sei. Até n'isso!
―Para provar que estou arrependido da minha
irreverencia, consinta-me que a coadjuve, prima.
―Não pode ser; pesa sobre mim uma tremenda
responsabilidade.
―Isso equivale a recusar-me o fôro de familia,
que tão humildemente reclamo.
―Justamente―respondeu Magdalena.―Eu sou
muito escrupulosa n'isso. Faz mal em não reclamar
esse fôro de Christina, que talvez encontrasse mais
disposta a conceder-lh'o.
―Mas, se me não engano, foi a prima Magdalena
que primeiro me conferiu o apreciavel titulo
de parentesco com que nos tratamos.
―O de primos? Esse sim; mas não tem os privilegios,
que lhe quer dar.
―Que privilegios são?
―Ah!... o de collaborar n'uma ceia de consoadas,
por exemplo.
―Parece-lhe, priminha, que será muito exigir o
que eu peço?―perguntou Henrique a Christina,
que principiára a escutal-os.
[234]
―Não ouvi―respondeu esta, córando e sorrindo,
como sempre que lhe falava Henrique.
―Escusado é consultar Christina―acudiu a
morgadinha―porque
em muitas coisas pensa ella em
opposição commigo. E n'isto...
―E n'isto...
―N'isto de attender a requerimentos, é talvez
mais condescendente.
―Ao que estou vendo―disse o conselheiro jovialmente―grandes
coisas se tinham passado aqui,
antes da minha chegada. Vejo lavrar uma hostilidade
entre Lena e o sr. de Souzellas, que me dá sérias
inquietações.
―E eu julgo que não. Ao que ouvi ao Henriquinho,
a primeira vez que viu a nossa Lena no Mosteiro!...―disse
D. Dorothéa, com toda a indiscreção
da sua ingenuidade.
Magdalena procurou acudir a tempo á corrente
das revelações, a que viu disposta a boa senhora.
Veio opportunamente em seu auxilio Angelo, que
tendo feito uma digressão pela sala do refeitorio,
voltou com a alegre nova de que a ceia estava na
mesa.
O annuncio foi recebido com apparente enthusiasmo.
Suspenderam-se trabalhos, quasi completos,
ultimaram-se á pressa outros, e a companhia dirigiu-se
para o corredor.
Pouco depois de Angelo, chegou D. Victoria, desmentindo-o
e pretendendo suster a corrente, que
ameaçava invadir a sala, que ella ainda não dera
por prompta. Já não era tempo. O conselheiro,
tomando
duas creanças ao collo, rompia a marcha, e
atraz d'elle até a pacifica D. Dorothéa clamava
insubordinada
que não recuaria um passo.
E falando e rindo assim entraram na sala.
Estava offuscante de luzes, esplendida de louças
e baixellas, enfeitada de flores e de crystaes e ennevoada
dos vapores das iguarias.
Houve um grande rumor de cadeiras arrastadas,
[235]
uma confusão e incoherencia de ordens de D. Victoria
para marcar logares, infracções d'estas ordens,
que a impacientavam, como se com isso pudésse
perigar a ordem natural e social do mundo,
e, como justa consequencia, caía sôbre a
cabeça dos
criados uma enfiada de recriminações, que elles
por
habito já soffriam com exemplar paciencia.
Restabelecida emfim a ordem, procedeu-se á ceia.
Ceia de Natal! abençoado banquete, ao qual todos
se devem sentar nas mesmas disposições de
animo em que ordenava Christo estivessem os que
fôssem orar ao templo; ceia com tanto afan cozinhada,
e com tão pouca vontade comida, falem embora
contra ti os medicos e os gastronomos eméritos,
condemnando uns a indigestibilidade dos teus
cozinhados, outros o pouco delicado d'elles; reage
contra as ideias novas, que veem da França e da Allemanha;
cerra as fornalhas ás iguarias exoticas e
furta-te ás mãos da extranha
geração de Vateis,
que aspiram a dominar pelos paladares o espirito
nacional.
Modifiquem embora o caracter vernaculo de todas
as outras refeições, mas respeitem esta,
consagrada
pelas memorias da familia, justificada pelo
facto de que quasi não é feita para ser comida.
Assim succedia com a do Mosteiro. Apesar das
instigações do conselheiro, das instancias de D.
Victoria,
das garantias de D. Dorothéa sobre a innocuidade
dos guisados, os pratos corriam á roda da
mesa quasi intactos e intactos voltavam á cozinha
d'onde sairam.
Mas se se comia pouco―e de facto, á
excepção
de Henrique, do conselheiro e das creanças, quasi
ninguem parecia haver-se sentado alli para ceiar―mas,
diziamos nós, se se comia pouco, em
compensação
falava-se muito.
O conselheiro a todos dirigia a palavra, demonstrando
uma iniciativa efficaz para baralhar e generalisar
as conversas e assim conservar constante a
[236]
animação. Tudo desafiava risos, o dito de uma
creança, a anecdota contada por Henrique, as
distracções
de D. Victoria, as canduras de D. Dorothéa,
os paradoxos sustentados pelo conselheiro, as allusões
da morgadinha a Christina, a confusão d'esta,
as maliciosas insinuações de Angelo.
Assim procedeu o repasto nocturno até á altura
das saudações e dos
toasts. N'esta parte, justo
é
confessar que Henrique e o conselheiro fôram menos
abstinentes. Era difficil resistir á preciosidade
dos vinhos.
Passados os reciprocos brindes entre os parentes,
o conselheiro, voltando-se para Angelo, auctorisou-o
a propôr tambem um brinde.
Angelo levantou-se então para brindar Augusto.
O conselheiro secundou-o, levando o copo aos
labios.
―Ah! o sr. Augusto―disse Henrique, antes de
beber e com certo tom de ironia.―Conheço; é uma
ave rara d'estas immediações, que tem brios de
cavalleiro errante sob umas apparencias de philosopho.
―Brios de cavalleiro?―disse Angelo, com vivacidade.―Inda
isso não é tudo, sr. Henrique; pode
accrescentar, e alma de heroe tambem.
―Pois dê-se-lhe tambem alma de heroe, e se fôr
preciso até consciencia de santo. Vá á
saude da
phenix!
E bebeu.
Depois de pousar o copo, proseguiu com o mesmo
tom anterior:
―O que vejo é que é perigoso falar com a mais
ligeira irreverencia d'esta personagem; corre-se o
risco de vêr voltar contra o impio, que tanto ousa,
os poderes conspirados do céo e da terra. Bem;
prometto acatar essa preciosidade.
―E creia―disse-lhe o conselheiro―que lhe é
merecedor de toda a consideração. Augusto
é um
d'estes caracteres excepcionaes que vivem á sombra
[237]
de uma modestia impenetravel e á sombra d'ella
muitas vezes morrem. É necessario ter a vista
muita
exercitada n'estas explorações de almas modestas,
para descobrir uma assim.
―Felizmente para os myopes como eu―proseguiu
Henrique―ellas fazem ás vezes a fineza de
se despojarem da sua timidez e de se mostrarem á
luz. Não é verdade, prima Magdalena?
―Que admira;―respondeu Magdalena―bem
occulto está o fogo na pederneira, primo Henrique,
mas, percutindo-a, salta a faisca.
―Pobre rapaz;―notou a sr.
a de
Alvapenha―aquillo
nem parece d'este tempo. O que eu não sei,
primo Manuel, é porque elle se não resolveu a
tomar
ordens. Recusar o legado da D. Rosa!
―Não seja isso a dúvida. Elle sabe que,
adoptando
essa ou outra qualquer carreira, não lhe faltarão
recursos para seguil-a até o fim. Devo-lhe esse
auxilio, assim elle o acceitasse; mas tem um genio
singular aquelle rapaz!
―É uma phenix―insistiu Henrique, ironicamente.―Vejo
que não é susceptivel de discussão,
impõe-se á gente como um axioma. Eu tenho habitos
de livre pensador, mas... forçar-me-hei a incluir
no meu credo esse dogma.
―Perdão―replicou Angelo.―Um axioma não
se demonstra, e a boa alma de Augusto está todos
os dias a demonstrar-se por acções generosas.
―Por favor!! Dêem como não ditas as minhas
palavras! Arrependo-me da minha irreverencia, e se
elle aqui estivesse, principiaria a penitenciar-me na
sua presença.
―E é certo que nos falta aqui Augusto. Como
te não lembraste d'elle, Angelo?
―Não viria. N'esta noite não deixaria o tio
Vicente.
―Ah, sim. Esquecia-me d'aquelle pobre Vicente.
―É do herbanario que falam?―perguntou Henrique.
[238]
―Justamente.
―Outra phenix; e quer-me parecer que tambem
pertence ao numero dos inviolaveis; não é
verdade,
prima?
―Pertence ao numero dos infelizes, primo, o que
é justo considerar-se uma especie de inviolabilidade.
A resposta collocou Henrique em mau terreno, e
por isso apressou-se a desviar do ponto principal
da questão, dizendo:
―Infeliz? Por que lhe chama infeliz? Os visionarios
como elle teem em si os elementos da propria
felicidade, e ninguem possue poder de perturbar-lh'a.
Além de que o herbanario gosa aqui na terra
de uma certa soberania, que deve lisonjeal-o.
―E olha que nem em Lisboa ha talvez quem
saiba tanto como elle em coisas de doenças e de
remedios, menino,―disse D. Dorothéa, que era
uma das fervorosas apologistas da sciencia do herbanario.
―É na verdade um homem singular!―disse o
conselheiro.―D'antes, na noite de Natal, e em todas
as solemnidades de familia, tinhamol-o tambem
por commensal, que ainda é parente arredado da
casa. Ha annos porém deu em tomar a peito o meu
procedimento politico e em prégar-me sermões e
dirigir-me censuras, que eu fazia por escutar com
a possivel resignação. Mas um dia foi mais amargo
nas suas recriminações e eu achava-me com maior
susceptibilidade; julgo que lhe respondi com bastante
acrimonia, e o homem saiu de minha casa
offendido e protestando não voltar mais a ella. Procurei-o,
escrevi-lhe, tentei demovel-o do seu proposito.
Não houve de quê. Havia-o ferido no seu orgulho,
e é intolerante n'estas condições.
―Sei-o já por experiencia;―disse Henrique―que
n'uma unica entrevista que tive com elle, e que
durou minutos, deu-me occasião de lhe conhecer a
irritabilidade.
―Vamos, primo Henrique; talvez possa haver
[239]
quem supponha que n'essa entrevista não demonstrou
o primo peor do que elle possuir as qualidades
de que o accusa.
―Agora―continuou o conselheiro―vão consideravelmente
exacerbar-se os despeites do herbanario
contra mim.
―Porquê?―perguntou Magdalena.
―Porquê?... por causa do traçado que se adoptou
para a estrada.
―Então?―disseram simultaneamente Angelo e
Magdalena.
―A casa e o quintal do herbanario são os primeiros
cortados.
―Não pode ser!―exclamou Magdalena, com evidente
expressão de susto.
Angelo dirigiu ao pae um olhar tambem inquieto.
Christina não exprimiu menos apprehensiva tristeza.
―É inevitavel. Os dois primeiros traçados tinham
certas durezas. O primeiro era uma luva lançada
a uma influencia eleitoral, poderosissima; o
brazileiro Seabra.
―Ah!―disse Magdalena, com certa amargura
na expressão e no olhar.
O conselheiro reparou n'ella e em Angelo, em
cuja physionomia se não lia menos intenso desgosto.
―Estou adivinhando que meus filhos votariam
por que antes se arrostasse com os despeites d'esse
influente. A logica do sentimentalismo tem d'essas
exigencias absolutas.
Magdalena respondeu:
―Julguei que era a da consciencia, meu pae.
―A consciencia diz-me que ha interesses superiores
ás contemplações com as singularidades
de
um velho honrado, mas... meio tonto. Na carreira
politica ceder ao coração é morrer ou
ser vencido.
O sentimentalismo exaggerado, Lena, tem o inconveniente
de dar tanto vulto ás vezes a um sacrificio
individual, que, para o evitar, não duvida prejudicar
[240]
maiores e mais geraes interesses e operar sacrificios
mais custosos. É muito tocante na verdade o amor
de um velho pelas suas arvores e pela sua casa;
porém, mais respeitavel é o bem-estar e a
conveniencia
de uma localidade.
―E é tão necessario para a felicidade d'esta
terra
o sacrificio a que se quer obrigar o herbanario?―perguntou
Angelo, e Magdalena secundou com o
olhar a pergunta do irmão.
―Eu te digo, Angelo―respondeu o conselheiro,
levemente despeitado.―Eu tinha a vaidade de me
suppôr ainda prestavel para esta gente, que me tem
elegido tantas vezes. Dos nossos patricios, deixem-me
dizel-o aqui em familia, não vejo ainda quem dê
garantias de desempenhar o mandato, muito melhor
do que eu. Chamasse eu contra mim a animadversão
d'este povo, e elles, á falta de outros, acceitariam
ámanhã qualquer nome inscripto na carteira
do ministro; um homem que nunca tivessem visto,
e que nem soubesse em que ponto da carta estava
o circulo de que se propunha ser representante.
Mas perdôa-me, Lena, talvez isto te esteja parecendo
um censuravel excesso de vaidade.
―Não, meu pae, ninguem acredita mais do que
eu no muito valor da sua influencia, mas... Ó
meu Deus!... isso vae ser a morte do pobre tio
Vicente! Imagine bem o que é n'aquellas idades e
com aquelle genio, a grandeza do sacrificio que vão
exigir d'elle?
―Custa-me ser obrigado a isso; porém...
―Valia mais esperar algum tempo. A vida d'elle
não pode ser muito longa. Deixem-o morrer em paz,
á sombra d'aquellas arvores a que elle quer tanto.
Que importa passar mais alguns annos sem uma
estrada?
―Poesia!―disse o conselheiro, sorrindo para
Henrique, que lhe correspondeu.
―Perdão!―acudiu Magdalena,
córando―é caridade.
[241]
―Ora vamos, Lena. Sê razoavel. Todos soffrem
no mundo sacrificios maiores do que esse; eu mesmo,
que me não tenho ainda assim por victima da
sorte...
―E não haveria outro meio?―perguntou Angelo.―Acaso
ha só esses dois logares para dirigir
a estrada?
―Que antes nunca se fizesse!―exclamou Magdalena,
apaixonadamente.
―Ahi temos como o sentimento me torna retrograda
a minha Lena. Já clama contra as estradas
como qualquer reaccionario convicto. Havia um outro
traçado, mas esse ia destruir completamente os
campos do Brejo.
―Ah! então esse, esse! São bens
nossos!―exclamou
Magdalena com vivacidade.
―São bens de Angelo, filha, e por ventura aquelles
que um dia mais valiosos se tornarão para teu
irmão.
―Os charcos?―disse Angelo, encolhendo os
hombros―ora! Só para viveiro de rãs.
―Hoje pouco mais são do que isso, e como tal
nol-os pagariam agora. Dentro, porém, de alguns
annos, operados alli os trabalhos de esgoto, que eu
projecto, verão em que se transforma aquillo. É
exigir a um homem muita abnegação pretender
d'elle que sacrifique assim os elementos da riqueza
futura de seus filhos; quanto mais que as vantagens
não seriam taes que...
―Não pediriamos esmola, meu pae―notou timidamente
Angelo.
―Nem o Vicente a pedirá. Visto que estaes tão
desprendidos de interesse, que não hesitaes em fazer-lhe
sacrificio dos vossos bens, podeis ceder-lhe
o sufficiente para o compensar da perda.
―Mas quem o compensará dos golpes nos seus
affectos?―perguntou Magdalena.
―Tambem tu! São segredos do coração
feminino
essas compensações. Deixo-as á tua
disposição.
[242]
―Meu pae! meu pae! se é ainda possivel atalhar-se!
―É impossivel.
―Meu tio!―secundou Christina.
―Mano! Primo!―disseram a um tempo as senhoras
mais idosas.
―O que posso fazer é ir eu proprio falar com o
Vicente, para o mover a consentir na expropriação
amigavel, que farei que lhe seja o mais vantajosa
possivel.
―E tem coração para lhe ir propôr
isso?
―Dize antes se tenho coragem para arrostar
com as iras do velho, e com as maldições que
já
sei vae sacudir sobre mim.
Lena calou-se, suspirando.
―Mas vejam a inevitavel fatalidade que me persegue!―continuou
o conselheiro.―Eu, que tinha
feito voto de não me entreter de negocios publicos
esta noite! Ai, Lena, Lena, a culpada és tu!
―Eu?! Eu, que abomino a politica! que só ella
podia fazer entrar uma crueldade no coração de
meu pae!
―Ó tio, veja se faz com que a estrada vá por
outro sitio!―implorou meigamente Christina.
―Tambem tu, Christe! tambem tu!
―Pudera, mano! Não, que uma coisa assim! Isso
é até uma ingratidão para com um homem
a quem
esta aldeia tanto deve―disse D. Victoria.
―Pois não é! E logo um quintal onde cresciam
tantas plantas de virtudes!―accrescentou D. Dorothéa.
―Vá vendo, sr. Henrique, como se conspiram
todos contra mim. Veja como um sentimento insignificante
organisa uma opposição.
―É uma lição que estou recebendo, sr.
conselheiro.
―Meu pae,―insistiu Magdalena―eu espero
ainda que, ouvindo o tio Vicente, se commoverá e
trabalhará por alterar esse fatal plano que principia
[243]
por arrancar arvores, mas que, pode estar certo,
com ellas arrancará uma vida.
―Romances! Lena, romances! Os romances, lidos
em plena aldeia, são perigosos. Falta aqui nos
ares um certo scepticismo que, não sendo em dóses
exaggeradas, tem a vantagem de não deixar vêr as
coisas da vida através do prisma dos livros de
imaginação.
Mas basta de falar em politica. Ámanhã
procurarei o herbanario. Espero uma recepção de
gêlo, e vou preparado para uma ladainha de
recriminações,
mas irei. Nada esperes, porém, da entrevista,
Lena; nem o mal, se mal é, se poderia já atalhar;
nem o orgulho de Vicente lhe permittiria
expansões á sensibilidade, que cheguem a
commover-me.
Conheço-o.
Magdalena não instou. Ficou, porém, pensativa e
sem o menor vestigio da alegria, com que principiara
o serão.
N'isto ouviu-se um toque de sino longinquo.
―Já toca para a missa do gallo! Ouvem?―disse
D. Victoria.
―Vamos! Não ha tempo para demoras―exclamou
o conselheiro, levantando-se.
Todos o imitaram, menos Magdalena.
―Não vens, Lena?―perguntou Christina.
―Não.
―São amúos, filha!―disse-lhe o conselheiro,
indo por traz d'ella; e, tomando-lhe a cabeça entre
as mãos, beijou-a na fronte.
―Não, meu pae, é uma dôr de
cabeça tão violenta!
―A maldita politica é o que faz! Pois fica; fica,
porque está fria a noite.
―Far-te-hei companhia, Lena, disse Christina.
―Não, não. Se insistes, obrigas-me a sair.
―Aviem-se!―dizia D. Dorothéa.―Henriquinho,
vens?
Henrique, cujo ardor em ouvir a missa da meia
noite esfriou desde que viu Magdalena ficar, respondeu:
[244]
―Ó tia... a falar verdade!... se me dispensassem!...
―Vem d'ahi, preguiçoso! anda!
―É que... para um homem doente...
―Ai, não; se te ha de ás vezes fazer mal,
então
não―apressou-se a dizer a precavida senhora.
E foi deferido por unanimidade o requerimento de
Henrique, a quem cêdo depois Torquato foi ensinar.
o caminho para o quarto onde devia pernoitar.
O conselheiro, D. Dorothéa, Christina e Angelo
fôram para a missa do gallo.
D. Victoria, Magdalena e Henrique ficaram no
Mosteiro.
XV
Fechando-se no quarto, que lhe deram para pernoitar,
Henrique de Souzellas sentiu poucas disposições
de dormir. Uma profunda excitação impedia-lhe
o repouso; em parte era devida ás occorrencias
d'aquella noite, tão fóra dos seus habitos de
vida;
em parte, digamol-o em verdade, á influencia dos
vinhos, com que secundára os brindes do conselheiro,
e com que elle proprio iniciára outros.
A imaginação, excitada como estava, cada vez,
entre outras imagens, lhe representava mais bella
a de Magdalena. A especie de hostilidade permanente,
com que a morgadinha o tratava, ainda mais
parecia seduzil-o.
Nos poucos dias que passára na aldeia, havia Henrique,
com novos habitos, adquirido uma maneira
de vêr e de julgar as coisas e as pessoas, differente
da que lhe era habitual na cidade, no circulo de
amigos, com quem convivia; assim foi que abjurou
tacitamente, e sem dar por isso, certo scepticismo
[245]
convencional, que uma antipathica escola conseguiu
pôr muito na moda.
Graças a estas melhoras moraes, tão verdadeiras
n'elle como as physicas, as quaes até o constante
pensamento das doenças lhe haviam dissipado,
pudéra
elle considerar Magdalena como uma mulher
superior ao typo, pelo qual a mencionada escola
costuma modelar o sexo: e acceitou sem má
prevenção
a aberta sinceridade d'aquelle caracter sympathico,
que descrevia com enthusiasmo nas suas
cartas a um dos seus mais intimos amigos de
Lisboa.
Taes estados de convalescença são
porém sujeitos
a recaídas.
N'este dia, vespera de Natal, recebera elle a resposta
áquellas cartas, e sob as impressões com que
ficou da leitura, tinha vindo para o Mosteiro.
O amigo ria-se, com todo o elegante scepticismo
de um homem da moda, da candura e da ingenuidade
de Henrique. Dizia-se sinceramente penalisado
á vista dos profundos estragos que alguns dias de
provincia tinham operado n'elle. Via-o disposto a
idealisar a mulher, a mais perigosa e mofina monomania
que, dizia o tal, pode transtornar o cerebro
de qualquer homem.
Com aquella ausencia de escrupulos, com que todos
os dias caracteres, aliás não pervertidos,
levianamente
calumniam ou ferem de suspeitas reputações
de todo o genero, elle fazia irreverentes allusões
á morgadinha e zombava de Henrique, que ainda
tomava a sério as isenções de uma
rapariga de vinte
e tres annos. Acabava por o aconselhar a que indagasse
de algum primo timido e modesto, ainda que
menos ingenuo de certo do que elle Henrique se
estava mostrando.
Esta carta fez mal a Henrique. Exacerbou-lhe a
doença, que estava em via de cura. Um espirito
mephistophelico
parecia havel-a dictado. Henrique transportou-se
pela imaginação, depois de lel-a, a
[246]
um dos circulos que habitualmente frequentava em
Lisboa; suppoz-se a fazer alli a narração da sua
vida na aldeia, e parecia-lhe estar vendo os sorrisos
com que o escutariam, e elle proprio construia os
epigrammas, com que lhe seria por certo commentada
a narração. E então uma vergonha de
má indole,
vergonha do homem que põe um preceito de
elegancia acima de um dictame de moral, fazia-o
córar, apesar de a sós comsigo mesmo. Voltava a
ler a carta, que lhe parecia dictada pela experiencia
e pelo bom senso, emquanto que a ingenuidade
das suas crenças se lhe figurava ridicula e
desarrazoada.
Quem ha que não tenha tido momentos d'estes?
Quem se pode gabar de não ter perguntado um
dia aos seus escrupulos mais nobres se não são
meros preconceitos, que ficaram de uma educação
acanhada? Quem não poz um momento em dúvida
as sublimes verdades que a mãe lhe ensinou em
creança? Henrique estava passando por um d'esses
accessos de scepticismo. Magdalena era já para
elle uma astuciosa, que muito se deveria ter rido da
sua simplicidade; e tanto o incommodava esta ideia,
que promettia a si proprio ser d'ahi por deante mais
arrojado. Esta ordem de reflexões estavam acudindo
outra vez a Henrique e recebiam da excitação, que
se apoderára d'elle aquella noite, uma tenacidade
maior. Sentindo a cabeça em fogo, Henrique levantou-se,
apagou a luz, e abrindo a janella do quarto,
saiu á varanda que deitava para a quinta, a respirar
o ar livre.
A noite era sem luar e sem nevoas. Descobriam-se
muitas estrellas no céo, que com forte
scintillação
parecia illuminarem a terra de um tenue crepusculo,
que mal deixava distinguir os objectos.
O ar frio da noite estava produzindo em Henrique
um prazer, que elle procurava prolongar.
Não havia passado muito tempo, depois que assim
se encostára á varanda do quarto, quando lhe
[247]
attrahiu a attenção certo vulto alvacento, que
furtivamente
se movia n'uma das ruas da quinta.
Pareceu-lhe uma figura de mulher.
Justamente n'aquella occasião tinha Henrique na
memoria o periodo final da carta do seu amigo.
Por isso occorreu-lhe uma ideia satanica.
―Ah!... Querem vêr que... A dôr de
cabeça
subita... A insistencia em ficar só... Percebo...
Um primo timido e modesto...
E murmurando estas palavras, um sorriso maligno
encrespava os labios de Henrique.
―Se eu pudésse averiguar isto... Mas ella corre
com uma ligeireza que, antes que eu ache meio de
sair para a quinta... já a levará bem longe.
O meio porém não era difficil de encontrar. Da
varanda em que estava Henrique passava-se com
grande facilidade para outra immediata, na qual havia
uma escada de communicação para a quinta.
Reconhecendo esta disposição do terreno, Henrique
operou n'um momento a descida, e pouco depois
procurava através da quinta os vestigios da
mulher que tinha perdido de vista.
N'esta operação esforçava-se por
combinar com
a maxima ligeireza a possivel precaução, para
não
ser por causa alguma frustrada a sua pesquiza.
A quinta do Mosteiro era extensa e cerrada toda
em volta por um solido muro de alvenaria. Aqui e
alli abriam-se n'elle differentes portas que deitavam
para os diversos logares da aldeia. N'este vasto recinto
havia pomares, lameiros, vinhedos e hortas,
por onde Henrique errava á tôa, já
desanimado de
ser bem succedido no empenho.
De repente julgou ouvir, a pouca distancia, o rodar
de uma chave na fechadura. Parou por precaução
e ficou-se a escutar. Logo depois ouviu o bater
de uma porta e mais nada.
Então adeantou-se rapidamente; n'um momento
deu com a porta, que ainda se conservava aberta.
Saiu por ella para a rua, mas achou-a deserta.
[248]
Dirigiu-se á esquina que d'alli avistava; dobrou-a,
mas nada viu; as ruas eram solitarias, e uma só
casa terrea que havia ao lado de um quintal estava
discretamente fechada e silenciosa.
Desistindo de proseguir na infructuosa pesquiza,
Henrique voltou para a porta.
―Esperemos aqui por esta donzella destemida
que assim anda de noite a correr aventuras. Ha de
ser curioso observar como ella fica, quando me encontrar
por guarda portão. Veremos se ainda depois
d'isto durarão aquelles ares de soberania, com
que me trata. Um primo timido e modesto!...
E, sorrindo á lembrança da scena que se
preparava,
Henrique fechou a porta por dentro, e accendendo
um charuto, poz-se a passeiar, aguardando o
regresso da morgadinha.
Para não perdermos muito tempo á espera tambem,
aproveital-o-hemos a inquirir de coisas e de
pessoas, cujo conhecimento é util á
continuação da
nossa historia.
A pouca distancia do extremo da quinta do Mosteiro
e n'um sitio a que a abundancia de vegetação
e a suavidade de perspectiva davam o mais pittoresco
aspecto, estava a casa e o quintal do herbanario,
casa e quintal já condemnados pelos lapis e
tira-linhas dos engenheiros e offerecidos em sacrificio
aos melhoramentos municipaes e concelhios.
Acharia justificado o quasi terror, com que Magdalena
e Angelo escutaram a nova d'esta expropriação,
quem conhecesse a vivenda rustica do herbanario
e soubesse do amor que elle votava a cada
objecto d'ella, assim como da vida que, havia tantos
annos, alli vivia escondido e obscuro.
Para o quintal, que a abundancia das arvores de
espinho fazia sempre verde, abriam-se as janellas
da pequena e humilde saleta, onde o herbanario se
entregava ás suas leituras e
lucubrações scientificas.
Logo ao pé da porta se estendiam o jardim, em
parte de recreio, pelas flores que o adornavam, em
[249]
parte de utilidade, pelas simplices medicinaes, de
virtudes mais ou menos problematicas, que o velho
n'elle cultivava.
Vicente tinha entranhada a paixão vegetal, deixem-me
assim chamar-lhe. Adorava as plantas pelas
suas flores, pelos seus fructos e pelos poderes
curativos que lhes attribuia. E como se ellas possuissem
a responsabilidade dos effeitos produzidos,
assim lhes queria e as amimava, quando salutares;
assim as aborrecia e maltratava, quando nocivas.
A vida isolada e o genio do velho, que sempre
fôra dado a singularidades, augmentaram estas
disposicões, que tinham o que quer que era de
pantheistico; e não era raro surprehenderem-o conversando
com ellas, como se convencido de que o
estavam comprehendendo.
A borragem, a salva, a fumaria, a herva terrestre,
a herva moura, os trevos, os geranios, as papoulas,
as violetas, tão boa camaradagem lhe faziam,
que nem lhe deixavam sentir a solidão.
O herbanario não tinha pessoa alguma ao seu
serviço. Elle proprio cozinhava e por suas mãos
fazia todos os mesteres domesticos.
É pois de imaginar que não seria muito complicado
o banquete das consoadas n'aquella casa, e que
devia formar em tudo contraste com o que á mesma
hora se celebrava no Mosteiro.
De feito, quando alli eram mais ruidosas as conversas
e mais espontaneos os risos, dois homens
apenas, sentados um defronte do outro, a uma pequena
mesa circular, solemnisavam n'aquella modesta
sala o santo anniversario. Um era o proprietario
da casa, o outro Augusto, um dos poucos que
se atrevia a frequentar áquellas horas mortas a
habitação
do velho.
Além da mesa, sobre a qual estava uma ceia
composta de queijo, maçãs, nozes, castanhas, duas
sopeiras com escabeche, especialidade na
confecção
da qual o herbanario era eminente, e uma garrafa
[250]
de vinho do Porto de promettedora côr de topazio,
consistia o resto da mobilia n'uma estante
de pinho, vergada sob o peso de in-folios de grossas
encadernações e folhas vermelhas nos aparos,
em algumas cadeiras e bancos tambem occupados
com livros e com varios utensilios empregados nas
explorações scientificas do velho, taes como
caixas
de lata, frascos, martelos, foicinhas, limas, os quaes
ainda sobravam para alastrarem o chão.
Todo o recinto era apenas alumiado por um candieiro
de azeite, e a escassa luz, que dos tres lumes
que, em attenção á solemnidade da
noite, o velho
accendera, ia reflectir-se no vulto alvacento de um
Christo de marfim pendente de um crucifixo negro,
que sobresaía n'aquellas paredes nuas e caiadas.
Havia bastante tempo que aquelles dois homens,
sentados defronte um do outro, guardavam silencio;
um d'esses silencios, durante os quaes os
espiritos, como se impacientes com as longuras da
palavra, tendo-se desembaraçado d'ella, voam a
par, para adeantarem caminho e voltarem mais
longe a associarem-se á sua mais lenta companheira.
Augusto, com os olhos fixos na luz que illuminava
a scena, parecia alheio a quanto o rodeava.
O herbanario, sem desviar os olhos d'elle, com
o braço estendido para o calice que tinha defronte
de si, e a cabeça inclinada, parecia espiar, um por
um, todos os gestos de Augusto, e estudar n'elles
os pensamentos que o preoccupavam. Emfim rompeu
o primeiro o silencio:
―Pobre rapaz! Dize-me para ahi tudo o que tens.
Para que te mettes a esconder de mim aquillo que
eu ha tanto te leio nos olhos, creança?
―O quê, tio Vicente?―perguntou Augusto, inquieto.
―O quê?! Ouve, Augusto. Deu-te Deus o engenho,
sem te esfriar o coração:
são dons do Céo,
[251]
que se pagam caro e com lagrimas, rapaz. Bondade
de coração, com a cabeça... assim,
assim...
a dar esmolas aos pobres se satisfaz; cabeça de
fogo, mas coração de gêlo... todos os
meios de
levar ao fim ambições, tanto os bons como os
maus, todos lhe servem; mas coração como o teu,
com o espirito que tens!... ai, pobre Augusto, se
se escapa ao infortunio, é por milagroso poder do
Senhor.
―Não o entendo, tio Vicente,―disse Augusto,
com manifesta confusão.
―Não! Olha para mim. E vê se te atreves a
repetil-o.
Augusto baixou a cabeça.
O velho sorriu com ar de commiseração e
sympathia.
―Tu ainda não sabes fingir. Vamos lá; e cuidas
que me não havia de custar, se não tivesse
acertado?―E,
depois de breve pausa, continuou:―Mas
ainda quando penso em como tu, uma cabeça
forte, assim te deixaste enfeitiçar!...―E tomando
o calice, que tinha defronte de si, disse com
resolução―Quero
beber á tua saude, Augusto, e para
que em breve se te desfaça essa loucura.
Quando ia a levantar o calice aos labios, a mão
de Augusto susteve-lhe o braço.
―Não beba. Loucura embora, deixe-me viver e
morrer com ella. Sou feliz assim.
―Ah!―disse o velho herbanario, tomando um
ar mais grave; e pousou o copo, sem desviar de
Augusto o olhar penetrante e fixo.
Augusto, depois de um curto silencio, proseguiu
com maior vehemencia e colorindo-lhe as faces um
não costumado rubor:
―Sim. Por que o não hei de confessar? Essa
loucura que diz, trago-a commigo, vivo com ella e
quasi que para ella. Quero-lhe assim, e não a desejaria
perder. Amor? não é; a tanto não
chega...
antes um culto, isso sim. É uma
adoração como
[252]
aquella, em que de pequenos nos educam para com
a Virgem. Que esperanças tenho? Nenhumas. Nem
procuro alimental-as. Quer que lhe diga? Vêl-a;
respirar estes ares que ella respira; atravessar estas
devezas em que ella passeia; amimar as mesmas
crenças que ella amima; soccorrer, com o meu
óbulo
de pobre, a miseria sobre a qual ella espalha caridosa
as dadivas da sua abençoada opulencia... e,
ahi está; são as minhas
aspirações; é o futuro que
desejo, e com que me contento. Leu no meu
coração,
disse; e ha muito que m'o dá a entender; mas
não viu claro de todo, confesse. Julgou talvez que
haveria em volta d'este sentimento um enxame de
esperanças loucas, e d'ellas se ria. D'ellas por certo
foi que se riu; é muito generoso para se rir do mais.
Enganou-se, porém, tio Vicente; vê agora que se
enganou, não é verdade? Essas
esperanças não
existem. Se existissem, bem vê que não estaria
aqui.
Não me teria impellido a ambição pelo
caminho de
realisal-as? Não se me teem offerecido os meios
para tental-o? Mas, veja, quero-lhe tanto, e tanto
me satisfaz esta felicidade a meu modo, que não
arrisco um instante d'ella para tentar uma ventura
maior.
O herbanario escutava silencioso, porém meneando
a cabeça com ares de quem não punha demasiada
fé n'aquellas palavras.
―Aos vinte annos!...―disse elle por fim―sentir
o que dizes... ser feliz assim!... Deixa passar
mais tempo; deixa tomar corpo á paixão e
verás...
verás depois...
―Tem dez annos―disse Augusto, sorrindo.
―Dez annos!
―É verdade. De creança a conheço, a
paixão
que diz; por isso confio n'ella. Tenho fé em que se
não transviará.
―Dez annos!―repetia o velho, admirado.―Porém...
ha dez annos...
―Ha dez annos saí eu d'aqui, tio Vicente. Não
[253]
se lembra? Era então uma pobre creança da aldeia,
educada entre os braços de minha mãe, e
conhecendo,
uma por uma, as arvores d'estes sitios e
mais nada. Saí d'aqui e fui para Lisboa. Não
imagina
as fortes impressões que recebi na noite que
alli cheguei. Nunca a historia mais maravilhosa de
fadas e de encantamentos que ouvia, quando era
pequeno, nunca me feria a imaginação assim! Tudo
era novo para os meus sentidos. O rumor, as luzes,
os palacios, os edificios, os carros produziam-me
quasi uma vertigem; sentia-me vacillar. Achei-me,
nem sei bem como, de tão atordoado que ia, n'uma
casa onde estava o conselheiro, e em que se reunia,
n'aquella noite, uma companhia numerosa de homens,
de senhoras e de creanças, muitas da mesma
idade que eu, e que formavam uma assembleia á
parte. A sala era magnifica; muitas luzes, muitos
espelhos, muitas flores, moveis dourados, tapetes,
quadros, crystaes, e para acabar de me confundir,
o piano, objecto novo para mim, e que eu me não
fartava de admirar. Tudo isto me perturbava, como
imagina, e por fôrça me havia de dar uns ares de
estupefacto. O conselheiro recebeu-me com affecto;
deu explicações ás pessoas presentes a
respeito da
minha vida, e deixou-me entregue ás creanças. Ahi
fiquei eu, bisonho rapaz da aldeia, com a minha jaqueta
mal talhada, o meu olhar timido, os meus
modos acanhados, no meio de uma turba de creanças
elegantes, que se me figuravam de uma essencia
superior á minha. As creanças são
desapiedadas,
quando assim em companhia. Cêdo percebi que estava
sendo o alvo da zombaria d'ellas; riam ao
principio com disfarce e falavam-se ao ouvido,
olhando-me de relance; redobravam as risadas e
transmittiam reflexões a meu respeito, cujo sentido
julguei adivinhar. Depois dobrou a ousadia n'ellas,
dirigiram-me ditos, gracejos, cada vez menos disfarçados;
formaram grupos em volta de mim; se
eu falava, respondiam-me rindo. Então apoderou-se
[254]
de mim um profundo desalento, comprimiu-se-me
o coração de tristeza. Lembrei-me, com saudades,
das arvores da minha aldeia, do meu pobre quarto,
de minha mãe; e achei-me alli tão só,
tão sem conforto
nem amizades, que as lagrimas me vieram
ferventes aos olhos. Ainda hoje não hesito em dizel-o,
foi aquelle um dos mais amargos momentos
da minha vida. Nós, quando adultos, esquecemos
facilmente os martyrios da infancia, quando n'esta
idade uma sensibilidade exaggerada tão dolorosos
os faz. Foi então que se deu um facto que, na minha
piedosa superstição de rapaz aldeão,
quasi me
pareceu de intervenção divina. Abriu-se a porta e
entrou na sala uma creança, que eu não tinha
ainda
visto. Era uma menina pallida, de gesto affavel e
angelico. Vestia toda de branco. Entrou e approximou-se
do conselheiro, que jogava com uns amigos.
O conselheiro, depois de beijal-a, não sei que lhe
disse ao ouvido. Ella correu então a sala com a
vista; viu-me e veio direita a mim.
―Não conhecias já da aldeia,
Magdalena?―perguntou
o herbanario.
―Não; minha mãe veio para aqui no anno em
que, por morte da sua, Magdalena voltou a Lisboa.
A affabilidade, a singeleza desaffectada com que me
falou, causou-me um allivio ineffavel. Ainda hoje
sinto como que os reflexos d'aquella suave impressão.
Parecia-me ouvir a voz de minha mãe; tinha o
timbre da sympathia. Encheu-se-me logo de confiança
o coração. Com ella não senti mais
aquelle
acanhamento que me enleiava. Depois falava-me de
coisas que eu sabia tão bem! Perguntava-me a respeito
dos campos, das arvores, das abelhas, dos
ninhos dos passaros, das flores, dos trabalhos do
linho... interrogando-me e escutando-me com tanta
deferencia e attenção, que me inspirava coragem,
e
julgo que me estava dando ares de mais importancia
junto d'aquelles pequenos senhores e senhoras
que, pouco a pouco, se fôram despojando dos seus
[255]
desdens e acabaram por me escutar e interrogar
tambem com curiosidade. Já uns me lançavam os
braços ao hombro, outros formavam circulo em
volta de mim, e cêdo fui eu a principal personagem
d'aquella noite. Essa creança...
―Era Magdalena; adivinhal-o-hia agora, se já o
não soubesse. Não podia deixar de ser
ella―exclamou
o herbanario, com um fulgor de sympathia a
illuminar-lhe o olhar.―Era ella; sempre assim foi!
―Era. Esta scena pueril teve uma grande influencia
no meu espirito. Hoje ainda, se penso n'ella,
acho-a de uma grande significação moral. Pois
não
é mais apreciavel n'uma creança esta prova de
superioridade
de caracter, do que nas idades em que
muitas vezes a razão e o calculo a impõem a uma
indole naturalmente pouco generosa? Alli era tudo
espontaneidade. Desde então a adoro.
O herbanario parecia não ter já animo para
sorrir.
―Agora vejo por que trouxeste da cidade aquella
grande tristeza. Tão novo!
―É verdade. Foi esse o motivo. Magdalena foi
sempre para mim affavel; inclinava-se sobre o livro
em que me via estudar, corrigia, sorrindo, os defeitos
da minha educação aldeã, e, se
reconhecia
progressos no discipulo, manifestava uma alegria
que era para mim o maior incentivo e o maior premio.
Fiz os exames. Quando voltei a casa, Magdalena
com certo ar de gravidade, que aquella creança
já então tomava, perguntou-me, no meio de uma
conversa propria de creanças: «E sente-se com
genio
para ser padre, Augusto?» Já me não
lembro
do que lhe respondi. Trouxe porém commigo aquella
pergunta; trouxe-a para a solidão da minha aldeia.
Procurei cerrar os ouvidos á voz interior, que desde
então m'a repetia sempre, até junto da cabeceira
de
minha mãe, cuja maior aspiração era,
como sabe,
vêr-me padre. Mas em vão! foi desde
então uma
dúvida constante com que luctava. Com a morte de
[256]
minha mãe tudo mudou. Pela primeira vez respondi
á interrogação, que havia tanto tempo
dirigia a mim
proprio, e consegui por fim responder:
«Não». Eis
o segredo do meu passado.
―E por que disseste «Não»?
―Porque vi que toda a minha vida era para a
consagrar a um sonho; que o sonharia no altar, no
pulpito e no confessionario; que para toda a parte
me seguiria a imagem, a que eu já não podia
renunciar,
e a qual então já não contemplaria sem
remorsos,
como agora o faço. Foi por isto.
―Só? Não te illudirás a ti mesmo,
Augusto? Repara
bem, que n'isso pode ir a tua felicidade! Estás
bem certo de que não ha uma esperança dentro do
teu coração?
―Se a tivesse...
Ia a continuar, quando julgou ouvir o rumor de
passos na rua. Cêdo batiam na porta duas leves
pancadas, e uma voz dizia de fóra:
―Está acordado ainda, tio Vicente?
O herbanario trocou um olhar com Augusto. A
voz era de Magdalena.
Augusto ergueu-se com presteza. O herbanario
quiz retêl-o.
―Onde vaes?
―Deixe-me sair. Não poderia vêl-a agora.
Não
estou preparado com a minha indifferença.
―Pobre mascara!―N'esse caso sae pelo quintal.
―Tio Vicente!―repetiu Magdalena, de fóra.
―Eu vou, minha ave nocturna; eu vou já. Espera―continuou
em voz baixa para Augusto:―dá-me
a tua palavra que não escutarás.
―Dou; mas... promette que nada lhe dirá?
―Eu?!... Louco! Assim te pudésse fazer esquecer,
quanto mais... Adeus!
Depois de assegurar-se de que Augusto saira pelo
lado do quintal, o herbanario foi abrir a porta da
rua á morgadinha.
[257]
XVI
―Ora com Deus venha a minha fada; esta querida
Lena, que se não esquece dos seus amigos velhos...
Boas festas me trazes pela noite, filha!
No rosto e nas maneiras de Magdalena havia evidentes
indicios de preoccupação.
―Boas noites, tio Vicente! Pouco me posso demorar;
eu venho...
O herbanario conduziu-a para junto da mesa,
onde estavam ainda os signaes de refeição, que
havia
pouco findára. Vendo os dois talheres, a morgadinha
olhou interrogadamente para Vicente:
―Estava alguem comsigo?
―Esteve Augusto, que ceiou aqui. Porquê? Temos
por ahi mais alguns livros a comprar-lhe?―continuou,
sorrindo com benevola malicia.―Tenho
eu mais uma vez de chamar em meu auxilio a fada
que, de vez em quando, me ensina em segredo quaes
os livros, que o rapaz mais deseja e de que eu mal
sei dizer os nomes? Hei de ainda ouvir calado agradecimentos,
que não mereço, e que elle mais de
coração
daria, a quem são de justiça devidos?
―Não, tio Vicente; não se trata agora d'isso.
―Ai, Lena, Lena, que não sei bem o que devo
pensar de todas estas coisas.
A morgadinha parecia um pouco perturbada com
as palavras do herbanario.
―Que ha de pensar? Ha nada mais natural?
Angelo foi que me deu o exemplo. Elle sabia o amor
que Augusto tem á leitura. Porém o cofre de
Angelo
é pequenino, bem sabe; emquanto que eu chego
a nem saber em que hei de consumir o que me sobra.
Por isso foi que me lembrei... porém como
não conviria que eu propria fizesse o presente, nem
[258]
elle de mim o acceitaria, é que eu lhe pedi que o
fizesse em seu nome. Mas falemos de outra coisa,
porque me não posso demorar. Venho ás occultas
e emquanto a minha gente foi á missa do gallo. Tio
Vicente, um objecto muito grave me obrigou a procural-o
a estas horas.
―Ah!―disse o velho, sentando-se em tom de
gracejo.―Adivinho a gravidade do caso. O filhito
do boieiro, o teu afilhado predilecto, tem algum principio
de sarampo ou de garrotilho, e vens...
―Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor
a esta casa e a este quintal?
O velho tornou-se immediatamente sério.
―Se lhe tenho amor?! Que pergunta!
―Tem?
―Nasci aqui, filha.
―Custar-lhe-ia a...
―A quê?
―A... a...
E Magdalena hesitava.
―Fala!―insistiu o velho, já inquieto.
―A separar-se d'ella?
O herbanario respondeu simplesmente:
―Ah! morreria.
Magdalena fez um gesto de afflicção.
Em Vicente crescia o desassocego.
―Mas... Dize, Magdalena; o que
significam
essas palavras?
―É que...
―Explica-te!―exclamou o herbanario, quasi
imperiosamente.
―Ouça-me, tio Vicente; ouça-me, mas
não se
afflija. Eu vim de proposito para o prevenir. Mas,
por amor de Deus, socegue; senão tira-me o animo
de continuar.
―Que socegue, e tu a atormentares-me com essas
demoras!
―Perdôe... Fala-se em deitar abaixo estas arvores
e esta casa, para...
[259]
O herbanario de um impeto poz-se a pé. Fulgurou-lhe
nos olhos um relampago de ira terrivel!
Magdalena calou-se, assustada.
―Deitar abaixo estas arvores e esta casa?!
Quem?... Quem se atreve? Pois que venham! que
venham!
Mas reparando no terror que estava causando a
Magdalena, procurou reprimir-se, e com uma voz
que elle se esforçava por tornar tranquilla, continuou:
―Mas vejamos. Então querem, dizes tu... Fala,
Lena, fala... Dize o que sabes. Quem é?... Para
que fim? Pois quem pode lembrar-se de... Fala,
bem vês que eu estou socegado, filha.
―Ha um projecto de estrada...
―Ah!―disse Vicente, com um grito de raiva.―Não
digas mais. Já sei―continuou com renascente
exaltação.―Já sei. Adivinho o resto.
É teu pae que
o determina; é teu pae que o resolveu?
Magdalena abaixou a cabeça com dolorosa
expressão.
O furor do velho exaltou-se outra vez.
―Teu pae! Teu pae, Lena! Então esse homem
jurou matar-me?
―Tio Vicente!
―Elle não sabe o que são para mim estas arvores
e estas paredes? Elle não sabe que a minha
alma está n'ellas, presa a estas raizes? que com
ellas se despedaçará? Esse homem sem
coração
não vê que são estas as minhas
affeições, as unicas?
a minha unica familia? Elle, o companheiro
dos meus primeiros annos! que, como eu, ahi brincou,
á sombra d'essas mesmas arvores e sob os
olhares de meu pae, que tambem o abençoava, tão
duro de coração se fez que, sem respeito por
estas
memorias todas, assim me quer separar do que me
dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é
teu pae este homem, Lena?
―Por quem é, tio Vicente; ouça-me. Deixe-me
[260]
dizer-lhe ao que vim, que talvez tudo se remedeie
ainda.
―Sim, sim; tudo se remediará... com a minha
morte. Talvez que ella seja util a teu pae... Talvez
precise d'ella.
―Oh! não creia, não creia.
―É duas vezes doloroso o golpe; porque me
separa do que amo deveras e por vir da mão de
quem vem. Eu era amigo de teu pae, Lena. Acredita
que o era... ainda. Conheci-o tão generoso e
tão innocente, como teu irmão Angelo. Muitas
vezes
me enthusiasmei ao ouvil-o falar dos seus projectos.
E acreditei n'elle. Tinha então no olhar um
fogo, que não mentia. Vi-o seguir a carreira publica
e acompanhei-o com a minha fé. Não tardaram os
primeiros desenganos; não lhes quiz dar credito ao
principio. Vieram outros e outros. Fui vendo então
que os maus ares d'aquella terra tinham embaçado
o brilho do caracter, que eu julguei melhor do que
os outros. Mas o peor dos desenganos estava-me
reservado ainda. Para teu pae hoje os homens são
medidos pelos votos, que podem lançar na urna
eleitoral!
―Por amor de Deus, tio Vicente, não fale assim!
Não duvide de meu pae!―exclamou Magdalena, a
quem cruelmente estavam affligindo as
recriminações
amargas do herbanario.―Meu pae estima-o
e respeita-o. Não tem o coração
endurecido que
diz. Elle mesmo ámanhã aqui ha de vir.
Verá
então...
―Elle? Ámanhã?...
―Para isso venho prevenil-o. Não o receba com
asperezas, tio Vicente; fale-lhe com brandura. Talvez
o commova, talvez seja ainda possivel valer a
tudo. Ainda não está decidido... Julgo... E que
estivesse...
―Ámanhã! Teu pae vem aqui
ámanhã? E ousa
vir elle proprio annunciar-me o que sabe que vae
ser uma sentença de morte?
[261]
―Não; elle ignora o mal que isto lhe causa, creia.
Sabendo-o, verá como...
―Teu pae conhece-me, Magdalena. Teu pae conhece-me,
e ha muito. Não julgues que pode errar,
calculando o effeito d'este golpe. Mas que queres
tu? ensinaram-lhe já a avaliar em pouco as venetas
de um velho quasi tonto. Homens que trazem o
pensamento em interesses tão altos, não teem
vista
para estas pequenas desgraças.
Magdalena sentia-se possuir de uma profunda
tristeza, ao ouvir falar o herbanario. Era uma dolorosa
provação para o seu amor de filha vêr
assim
uma nuvem de desconfiança offuscar a ideal
concepção
que ella formára do pae, e não ter
fôrças
para a afugentar. Ás vezes uma dúvida cruel
fazia-lhe,
a seu pesar, suppôr que o herbanario tinha
razão. Agora só conseguia oppôr um
gesto supplicante
áquellas acerbas accusações, que por
muito
tempo ainda desattenderam esta supplica muda.
A final serenou a violencia da irritação do
velho;
succedeu-lhe, porém, uma commoção
profunda, dominado
por a qual disse a Magdalena:
―Socega, Lena; ámanhã eu receberei teu pae sem
a menor aspereza. Fizeste bem em vir primeiro, filha.
Se o não esperasse, talvez não soubesse
conter-me.
Agradecido. Uma noite é bastante para me preparar.
Agora vae, deixa-me só; deixa-me... chorar.
E cobrindo o rosto com as mãos, deixou-se cair,
soluçando, sobre a mesa, junto da qual se achava.
Magdalena correu para elle, commovida.
―Então, tio Vicente, então! Socegue!
Ámanhã
meu pae virá. Fale-lhe, e eu espero que ainda
será
tempo de evitar... o mal.
―Pode ser, pode ser...―respondia o velho.―E
se não pudér, Deus me acudirá, para
não viver
por muito tempo fóra da casa em que nasci.
Magdalena já não tinha que lhe dizer.
―Eu pedirei tambem, e Christina, e todos pediremos,
como já pedimos. Tenho esperança.
[262]
―Não, filha, não peças tu. Deixa-me
só com teu
pae ámanhã. Disseste que tinhas vindo, sem
ninguem
saber?―continuou elle.―Olha que te não
dêem pela falta. Vae, que é tempo.
―Mas...
―Vae, filha. Eu estou já tranquillo. Bem vês.
Deus te recompense a bondade que tiveste. Vae.
Queres que te acompanhe?
―Não é preciso. Vim pela porta das prezas, que
deixei aberta. São dois passos e estou na quinta.
Mas, tio Vicente...
―Vae então; e Deus te abençoe.
E o velho pousou a mão sobre a cabeça de
Magdalena,
que saiu commovida.
E elle caiu outra vez sobre a mesa, sem reter o
pranto que lhe rebentava dos olhos.
É sombria a saudade n'aquellas idades, porque
as esperanças são já muito debeis para
lhe darem
luz.
Saindo de casa do herbanario, perturbada ainda
pelos sentimentos que alli a tinham agitado, a morgadinha
dirigiu-se á pressa para a porta da quinta,
por onde saira. Ao impellil-a para entrar, a porta
resistiu. Este facto surprehendeu e inquietou um
pouco Magdalena. Quem poderia ter fechado a porta?
E se effectivamente estava fechada, tornava-se-lhe
necessario um longo rodeio pela aldeia para
chegar a outra, que pudesse encontrar aberta.
N'esta hesitação impelliu outra vez
instinctivamente
a porta, que lhe oppoz a mesma resistencia.
Cêdo, porém, sentiu o rodar da chave na fechadura
e viu mover-se lentamente a porta, e no vão,
que augmentava, desenhar-se uma figura de homem.
Antes que pudésse, através da obscuridade da
noite, reconhecer a pessoa, que assim tão a proposito
lhe acudia, deram-lh'a a conhecer estas palavras:
―Muito boas noites, prima Magdalena. Espero
[263]
que pelo menos me concederá licença para exercer,
junto de si, as humildes funcções de porteiro.
Era Henrique de Souzellas.
Magdalena não foi superior a um vago sentimento
de receio, ao encontrar-se ahi com o hospede de
Alvapenha; comtudo esforçou-se por dominar-se e
respondeu, com apparente presença de espirito:
―Ah! É o primo Henrique. Muito boas noites.
Ahi temos um requinte de galanteria, que eu estava
muito longe de esperar.
―E de desejar, não?
―E de desejar tambem; confesso-o. Por mais
diligente que seja um porteiro, nunca o é tanto
como uma porta aberta.
―Mas é mais discreto.
―Duvido. Em todo o caso, agradeço o incómmodo.
E, dizendo isto, preparava-se para entrar, sem
mais explicações.
―Uma palavra, prima Magdalena―disse Henrique,
retendo-a por o braço e com certa expressão
nas palavras e no gesto, que redobrou o sobresalto
da morgadinha.―Não ha mais accommodado terreno
para um dialogo solemne do que o limiar de
uma porta. Ordinariamente no limiar das portas o
homem muda de mascara; depõe a que apresenta
na sociedade e afivela a que traz na familia, e vice-versa.
Ora n'estas mudanças é facil surprehender o
verdadeiro rosto da pessoa.
―Será tudo o que quizer o limiar de uma porta,
primo; menos um logar muito confortavel para serões
n'uma noite de dezembro.
E Magdalena tentou de novo seguir para deante.
Henrique susteve-a outra vez.
―Um momento só, prima
Magdalena; tenho
necessidade de saber se me quer para alliado ou
para inimigo.
―Não vejo a necessidade da alliança que
propõe,
nem as razões para a lucta.
[264]
―Sejamos francos. A prima deve confessar que
a minha presença aqui foi um desagradavel contratempo.
Uma certa altivez e consciencia de invulnerabilidade,
de que tinha o incómmodo de se revestir,
sempre que tratava commigo, depois d'esta importuna
occorrencia terá de se modificar.
―Não havia dado por essa...
revestidura que
diz; mas, se ella existiu, far-me-ha o favor de dizer:
por que não pode continuar?
―Essa é boa! porque eu faço a justiça
á prima
de suppôr que não vae tão longe a sua
hypocrisia.
―Hypocrisia!―disse Magdalena, com accento
mais severo.
―Perdão; não tive tempo para inventar
outro
termo mais... brando.
Dissimulação talvez lhe
agrade mais. Seja dissimulação. Mas depois do
occorrido...
―Agora exijo eu que se explique, senhor.
―Ora vamos. Seja razoavel. Poder-me-ha dar
uma explicação...
edificante... d'esta sua
excursão nocturna?
―Obsta apenas a que eu lh'a dê, sr. Henrique de
Souzellas, a falta de uma pequena formalidade: a
de lhe reconhecer o direito de interrogar-me.
―Muito bem. Cada vez confirmo mais a minha
ideia. A prima é uma mulher admiravel, uma mulher
superior, educada na alta escola de uma sociedade
distincta, sobranceira por isso a pieguices
provincianas. Tanto mais me encanta! E creia que
me envergonho só ao lembrar-me do que terá
pensado
de mim, vendo-me tomar a sério as suas profissões
de fé, tão cheias de franqueza e de candura.
Devo ter-lhe parecido bem ridiculo, não é
verdade?
―Agora é que me está parecendo bem enygmatico!
―Sim? N'esse caso eu me decifro. A prima não
ignora que eu a amo.
―Pois ignorava!―atalhou Magdalena, com ironia.
[265]
―E sabe de certo, por experiencia do mundo,
que para homens como eu, a indifferenca, a frieza
e os desdens redobram o ardor da paixão.
―Sim; já li isso n'um romance.
―A prima tem sido para commigo de uma crueldade
revoltante, mas pouco sincera. Eu resignava-me
a soffrer, porque um resto de ingenuidade que
me ficou dos quinze annos, illudia-me na
interpretação
de taes resistencias. Tive a puerilidade de a
suppôr uma mulher de excepção; pouco me
faltou
para a divinisar. Estava reservado para esta memoravel
noite de Natal o desengano.
―Ah! então parece-lhe...
―Que a prima representa admiravelmente o
seu papel. Pode gabar-se de ter illudido um homem
habituado ás scenas da comedia social.
Magdalena respondeu, com um tom de voz cheio
de severidade e de nobreza:
―Tenho-o estado a escutar, sr. Henrique de Souzellas,
sem que eu propria bem saiba o que me retem
aqui: se é a compaixão que me inspira a profunda
doença moral de que o vejo tomado, se a
curiosidade de saber a que tendem todos esses arrazoados.
Vejo-o inclinado a imaginar que por um
facto, que a sua pouco delicada indiscreção
preparou,
eu ficarei de hoje em deante á mercê da sua
generosidade. Conhece-me muito pouco, sr. Henrique!
Ainda quando esse facto não pudésse ter uma
explicação natural, e que me não
repugnará declarar
quando quizer, saiba que tenho orgulho de mais
para arrostar com tudo, até com a calumnia, de
preferencia a resignar-me ao menor predominio que
me seja odioso.
―Bravo!
―Saiba mais, sr. Henrique de Souzellas, que se
eu não lhe fizesse a justiça de acreditar que
d'esses
seus actos e palavras não é absolutamente
irresponsavel
talvez a má influencia da ceia d'esta
noite, bastariam elles para me inspirarem por si e
[266]
pelo seu caracter o mais completo desprezo; e então
seria, como nunca, manifesta a minha independencia,
porque eu nunca temi os seres que desprezo.
Henrique principiava a ser de novo subjugado
pelo tom de severidade e de energia, com que a
morgadinha lhe falava; ainda assim um resto de
scepticismo obrigou-o a replicar:
―Santo Deus! prima Magdalena; não dê um
colorido tão pavoroso ás minhas
supposições. Despojal-a
de uma crueza deshumana, para a dotar de
uma sensibilidade, verdadeiramente feminil, é uma
justiça feita ao seu coração. E o
facto que o acaso
me revelou a nada mais me auctorisa. O pequeno
e natural despeito por me haver deixado illudir desvaneceu-se
já, creia; e agora só me resta invejar a
sorte de quem tem a felicidade...
―Basta! Ordeno-lhe que se cale, senhor! Nem
mais um instante o escutarei; poupar-lhe-hei assim
os remorsos, que ámanhã teria da sua infamia...
E animada por uma resolução
mais energica,
Magdalena caminhou soberanamente para a porta.
Henrique collocou-se-lhe outra vez deante.
―Um momento mais.
―Deixe-me passar, senhor.
―Não, sem que me ouça antes.
―É uma violencia?
―É uma supplica.
N'este momento saiu da obscuridade da rua fronteira
um vulto que avançou para elles.
―sr.
a D. Magdalena, se fôr preciso
reter o insolente,
que se lhe atravessa no caminho, ponho um
braço á sua disposição.
E Augusto, de quem partiram estas palavras, veio
collocar-se entre Henrique e Magdalena.
Ouvindo-o e reconhecendo-o, Henrique estremeceu
de cólera. O olhar que fixou no recem-chegado
trahiu a vehemencia da impressão recebida. Depois
succedeu-se-lhe no espirito outra ordem de ideias.
[267]
Olhou para Magdalena, em quem não era menor a
surpreza causada pela inesperada presença de Augusto,
olhou outra vez para este e soltou uma risada
cheia de malignidade e de ironia, que a ambos
fez estremecer.
―Ahi está uma apparição tanto a
tempo, prima
Magdalena, que aos mais incredulos infundiria fé na
intervenção da Providencia. Que foi sem
dúvida
providencial o acaso, que trouxe por aqui, a estas
horas mortas, um tão generoso e intrepido salvador.
Não é verdade, prima? O que vale estar de
bem com Deus!
Estas palavras mostraram a Augusto que a sua
intervenção, ainda que generosa e devida a um
espontaneo
impulso da alma, não fôra porventura das
mais convenientes.
―Senhor!―exclamou elle, indignado, dando um
passo para Henrique.
―Socegue―tornou este, com dobrado sarcasmo.―O
senhor é um perfeito heroe de romance; enthusiasta,
cavalheiresco, mas, em certas occasiões,
incómmodo de candura, por isso mesmo. Se soubesse
o transtorno que veio causar a um bello dialogo
que eu sustentava aqui com a sr.
a D. Magdalena!
Não vê como a deixou embaraçada? Perdeu
com a sua vinda o fio da comedia, que desempenhava
com perfeita sciencia de actriz. As almas ingenuas
e generosas, como a sua, sr. Augusto, são
ás vezes de uma impertinencia! Vamos, sr.
a
D. Magdalena;
não descoroçôe. Assim exgotou todos os
recursos da sua imaginação? Vamos, introduza
mais este elemento de apparição de um heroe no
enredo, e organise a comedia com o superior talento
que tem! Eu por mim acceito todos os papeis
que me distribuir.
Augusto ia responder, quando Magdalena o atalhou,
dizendo com voz firme:
―Perdão; vejo n'esta noite em todos uma notavel
disposição para usurparem direitos, que
não
[268]
possuem! O sr. Henrique, o de me interrogar; o
sr. Augusto o de me defender. A um repetirei o que
já ha pouco lhe disse; se algum dia tiver necessidade
de explicar as minhas acções, fal-o-hei deante
de outros juizes, em quem reconheça o direito de o
serem. Ao outro peço licença para lhe lembrar
que,
se o titulo de hospede e de parente não fôsse
bastante
para me assegurar da parte do sr. Henrique
de Souzellas os respeitos que me são devidos, tinha
ainda na minha familia defensores legitimos e não
seria por isso obrigada a recorrer á
protecção de
um estranho. Meus senhores...
E, inclinando-se senhorilmente, a morgadinha
passou por entre elles e entrou para a quinta, sem
que nenhum a procurasse reter.
―Se esta senhora acceitasse a sua protecção e
eu teimasse n'aquillo que chamou a minha insolencia,
qual seria, pouco mais ou menos, o seu procedimento?
Poder-se-ha saber?―perguntou Henrique,
logo que a morgadinha desappareceu.
Augusto, em quem a fria altivez da resposta
d'ella deixára o desespero no coração,
respondeu
acerbamente:
―Procuraria ensinal-o a ser cortez. Bem vê que
não me esqueço facilmente do meu programma de
mestre-escola.
―Vejo; é a segunda tentativa de
lição que lhe
mereço. Permitte-me que ámanhã o
procure para
dar principio a um curso de educação mais
regular?
Augusto respondeu, sorrindo:
―É um cartel em fórma?
Não sei se estarei ensaiado
para essa comedia.
―Se o genero tragico lhe agrada mais, dar-se-lhe-ha
esse sabor.
―Bem ouviu que se me negou o direito de tomar
partido por esta causa. Qualquer scena d'essas
entre nós seria pouco delicada...
ámanhã.
―Pois bem, contemporisemos; e até lá
é de esperar
[269]
que algum motivo occorra que a explique
melhor... aos olhos dos outros.
―Como queira; a minha porta não se fecha a
quem me procura.
E separaram-se depois de se cortejarem.
―Se me não engano―dizia comsigo Henrique,
em caminho do quarto―é um verdadeiro desafio
o que eu acabo de dirigir a este rapaz. Quer-me
parecer que estou sendo bem ridiculo, desafiando
um mestre-escola. Se lhe deixo a escolha das armas,
decide-se pela férula. Tem graça! Veremos o
que ámanhã, á luz do dia, eu penso
d'isto tudo. Eu
já não fico por mim esta noite. Estou a querer
convencer-me
de que tenho andado estouvadamente e
com não demasiado cavalheirismo. Que diabo! É
que esta mulher e este creancelho são irritantes.
Ella com a sua altivez, elle com os seus brios. Mas,
na verdade, será este o Endymião d'esta esquiva
Diana? Caprichos feminis... É o tal primo ingenuo
e timido... A ociosidade da aldeia para alguma
coisa ha de dar. Mas da maneira por que ella
lhe falou... Havia certo tom de sinceridade... Astucias...
O que é certo é que estou em lucta com
uma mulher superior... Pois luctemos, priminha,
mas com armas leaes. Não me prevalecerei do segredo
que o acaso me revelou, se segredo existe...
Veremos como ella ámanhã me trata...
Esta scena deixou em Augusto uma perturbação
de espirito mais profunda.
As operações mentaes, que o preoccuparam toda
a noite, eram d'aquellas a que repugna chamar pensar.
É mais uma febre intellectual, um succeder
de imagens sem ordem nem filiação, que
não conduz
a nenhum resultado, que não aconselha nenhum
partido, que não esclarece, offusca.
Como se explica esta differença entre os dois?
Por um apparente parodoxo; porque Augusto tinha
mais habitos de reflectir. Quando n'uma vida de
episodios uniformes e apparentemente vulgares, o
[270]
espirito exerce demasiado a analyse, habitua-se a
estudar factos que para outros passam por insignificantes,
e descobre-lhes faces novas e desconhecidas.
Costumado assim a ligar valor a tudo, quando
succede que no decurso da vida se lhe depara um
facto de maior vulto, a confusão do primeiro momento
é inevitavel. Assim como a balança de
precisão,
apropriada para oscillar com pesos tenuissimos,
não é a que pode servir para os grandes
pesos, tambem a intelligencia costumada a pesar
subtis accidentes, de que se compõe o drama habitual
da vida, não é a que de subito pode avaliar algum
mais complexo e importante.
A resolução n'estes espiritos, depois de formada,
é mais tenaz; mas, emquanto se não
fórma, vae
n'elles um tumulto de ideias, que se não podem
analysar.
Não analysemos, pois, as de Augusto.
Magdalena não socegou emquanto não viu Henrique
voltar ao quarto, pelo mesmo caminho por
que saíra.
―Que resultará d'isto?―pensava ella.―Que
fará elle ámanhã?... É
preciso não me acobardar,
ou estou vencida... Mas que se passaria depois
que os deixei?... Veremos ámanhã.
No meio d'esta serie de pensamentos, Magdalena
sorriu.
É que lhe occorrera então este pensamento:
―Dizem que nós, as mulheres, temos filtros
subtis para nos tornar amadas. Pois será mais difficil
fazer-se aborrecida? Como o conseguirei?
FIM DO PRIMEIRO VOLUME
BIBLIOTHECA ESCOLHIDA
XXIII
ROMANCE
III
A MORGADINHA DOS CANNAVIAES
Vol. II
CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL
LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28
TELEPHONE 2337
JULIO
DINIZ
A MORGADINHA
DOS
CANNAVIAES
(CHRONICA DA ALDEIA)
DECIMA-SETIMA EDIÇÃO
LISBOA
J. RODRIGUES & C.a, EDITORES
186―Rua Aurea―188
1920
A MORGADINHA DOS CANNAVIAES
XVII
Não havia mentido a grande
scintillação das estrellas
na noite de Natal.
A manhã do dia seguinte correspondeu ao augurio
meteorologico, rompendo pura, desennevoada,
com um céo azul sem manchas, e um sol de fundir
os gêlos dos montes e os gêlos da velhice.
O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã
aldeões de ambos os sexos, de camisas lavadas
e roupas domingueiras, atravessavam os campos,
saltavam sebes e cancellos, desembocavam das azinhagas
e quelhas na direcção da igreja matriz, onde
se deviam celebrar as festas da Natividade.
Era dia santo entre os que mais o são; e os dias
santos na aldeia teem uma feição solemne e
festiva,
que mal avaliamos nós, os que passamos a vida nos
apertados horizontes das cidades, phantasiando o
campo por meia duzia de pardaes, que chilram ruidosamente
nas cópas das enfezadas arvores das
nossas praças e jardins.
Desde que a moda estabeleceu a lei de não solemnisar
o domingo nem o dia santo, com um vestuario
mais asseiado, com um prato mais exquisito
na lista do jantar, com uma diversão excepcional,
que todos deram em vestir-se, comer e trabalhar
n'esses dias, exactamente como em todos os da semana,
[4]
perderam nas cidades os dias do Senhor a
feição typica e interessante, que por muito tempo
tiveram; e quem hoje bem os quizer apreciar tem
de ir n'um sabbado pernoitar ao campo, para amanhecer
no domingo ao som do sino, que chama para
a missa matinal.
Dirá então se não parece que
até o sol tem outra
luz e que as arvores e as plantas se toucaram de
flores novas, que guardam de reserva para os dias
de festa.
Este particular aspecto do domingo estava-o logo
pela manhã sentindo Henrique de Souzellas, encostado
á varanda do quarto em que pernoitára, e
emquanto esperava que o chamassem para o almoço.
De vez em quando a recordação das scenas
nocturnas
da vespera desviava-lhe para outra ordem
de reflexões o pensamento; acudiam-lhe todos aquelles
incidentes á memoria, mas vagos e confusos,
como se tivessem sido sonhados; chegava quasi a
duvidar da realidade d'elles.
Agora estava experimentando certa curiosidade e
tambem receio de saber como seria recebido pela
morgadinha, e que posição deveria tomar na
presença
d'ella.
Formava a este respeito varias conjecturas, sem
se fixar em nenhuma.
D'estas cogitações veio por fim arrancal-o o
toque
da campainha annunciando o almoço.
―Vamos,―disse Henrique―preparemo-nos
para o primeiro embate. Apuremos a vista para
n'um relance julgar do estado das coisas, e por elle
regular o meu plano de tactica.
E depois de uma rapida consulta ao toucador,
desceu para a sala do almoço.
Já alli encontrou reunida toda a familia do Mosteiro,
e a morgadinha presidindo á mesa e preparando
o chá.
Todos saudaram Henrique, e a um tempo se informaram
[5]
da maneira por que elle tinha passado a
noite.
Henrique respondeu que a tinha dormido deliciosamente;
e, falando, desviava o olhar para Magdalena,
que o encontrou do modo mais natural, sem
timidez nem audacia.
Seguiram-se os cumprimentos em particular, chegando
portanto a vez de cumprimentar Magdalena.
―Bons dias, prima Magdalena,―disse Henrique,
estendendo a mão e fixando-a com olhar investigador.
Magdalena respondeu-lhe ao cumprimento, com
sorriso que nada tinha de affectado nem de constrangido:
―Bons dias, primo Henrique. Devem-lhe parecer
horrorosos estes nossos habitos matinaes. Foi uma
indiscreção mandar tocar a campainha. Esqueci-me
de prevenir que respeitassem a indolencia cidadã.
―Eu é que não consentia:―disse o
conselheiro―na
aldeia como na aldeia. Em Lisboa tambem as
minhas alvoradas são mais tardias.
―Tem razão, sr. conselheiro. Eu proprio não
esperei
que me acordasse o toque da sineta. Ha muito
que eu namorava a manhã da janella do meu quarto.
―Eu não pude dormir toda a santa noite―disse
D. Dorothéa.―Estranhei a cama e a casa. Eu cá
sou assim, quem me tira do meu ninho!...
―Ó prima, não vá sem resposta―disse
D. Victoria―que
tambem eu não puz olho, e mais sou
de casa. E por signal que sempre hei de querer saber
quem foi o criado que lhe deu para andar toda
a noite por a quinta. Eram que horas e eu ainda
ouvia pés nas escadas de pedra. É verdade; o
primo
Henrique não ouviu? Era mesmo junto do seu quarto.
―Não, minha senhora; eu não senti rumor.
E dizendo isto, Henrique procurou os olhares da
morgadinha, que justamente n'aquella occasião lhe
servia uma chavena de chá, e que de novo o fixou
sem perturbação nem affectada
indifferença.
[6]
Henrique sentiu-se embaraçado com isto. Custava
um pouco á sua vaidade este nenhum vestigio de
resentimento ou de receio, que encontrava em Magdalena.
No entretanto D. Victoria continuava a commentar
com D. Dorothéa o facto das passadas que ouvira
de noite.
―Deixe-se d'isso, prima. É porque não sabe o
que vae. São coisas d'estes criados. Não faz
ideia!
É uma pouca vergonha! É preciso paciencia de
santa para os aturar.
―Angelo,―disse a morgadinha ao irmão―entretido
como estás a conversar com as creanças,
esqueces-te de servir a Christe, que tambem se esquece
de se fazer lembrar. Que distracções por aqui
vão!
Angelo reparou para a prima, que em todo aquelle
tempo estivera calada e caida em uma d'aquellas
abstracções, a que ultimamente era sujeita.
―Eu não sei que tem hoje esta Christe―disse
Angelo.―Julgo que lhe fez mal o frio na noite de
hontem.
―É verdade, até está falta de
côr! Ora queira
Deus que não seja coisa de cuidado. Dóe-te alguma
coisa, menina?―perguntou D. Victoria, apprehensiva.
―Não, mamã―respondeu Christina.
―Ó meninas, vocês tambem são umas
desacauteladas.
Eu bem te dizia hontem, Christe, que levasses
mais roupa. Tudo é não faz mal, tudo é
não tem
dúvida, e depois é que vem o queixarem-se.
Isto disse a senhora de Alvapenha e muitas coisas
mais n'este sentido. Estas reflexões fizeram Henrique
desviar os olhos para a pessoa que era objecto
d'ellas.
Christina estava effectivamnte pallida e pensativa;
e d'esta côr e d'esta expressão recebia uns ares
de poesia melancolica, que a tornava mais graciosa.
Henrique notou pela primeira vez a belleza d'esta
[7]
creança, em que mal fixára a
attenção até alli, e pela
primeira vez se demorou a observal-a com alguma
insistencia.
―É interessante esta pequenita―pensava elle
comsigo.
Christina ia a levantar os olhos para responder a
D. Dorothéa, quando encontrou os de Henrique a
fital-a. Assomou-lhe então ás faces um mal
pronunciado
rubor, a palavra resolveu-se n'um sorriso e
os olhos baixaram-se de novo.
―Ha de ser adoravel esta mulher―pensou
d'esta vez Henrique, vendo-a sob novo aspecto.
O conselheiro disse, sorrindo:
―Ora, que estão a dizer? A Christe até
está com
umas côres muito bonitas. Triste? Melancolias dos
dezoito annos nunca me deram cuidados. Provavelmente
está agora n'algum episodio sentimental no
romance da sua imaginação. Não
sondemos aquelles
mysterios, mana. Já não é para
nós comprehendel-os,
prima Dorothéa.
Todos riam do dito do conselheiro, o que redobrou
o enleio de Christina.
A morgadinha, a quem não passára despercebida
a impressão, que a prima d'está vez parecia ter
causado a Henrique, quiz aproveitar o ensejo que
havia tanto procurava, e para isso propoz que se
désse uma volta pela aldeia antes da missa do dia.
Esperava ella que as attenções de Henrique,
durante
o passeio, seriam para Christina, se não decorresse
o tempo preciso para que se dissipasse no espirito
do voluvel rapaz a impressão que o dominava.
A manhã convidava á excursão
campestre. A
proposta da morgadinha foi acolhida com applauso.
O conselheiro prometteu acompanhal-os até á casa
do herbanario, a quem tinha de visitar aquella manhã.
Levantaram-se todos da mesa, e á
excepção de
D. Victoria e D. Dorothéa, todos saíram.
A morgadinha, sob não sei que pretexto, deixou-se
[8]
ficar um pouco atraz para dar tempo a Henrique
de offerecer o braço a Christina, o que effectivamente
aconteceu.
―Bem,―disse Magdalena comsigo ao vêl-os―agora
que os anjos bons de um e de outro se convençam
da obra meritoria que fazem entendendo-se.
E, approximando-se do pae, Magdalena apoiou-se-lhe
no braço.
Angelo ia com as creanças adeante.
Approximemo-nos nós de Henrique e de Christina,
para vêr se os anjos bons d'elles ambos accederam
ao convite de Magdalena.
―Não ha prazer que se compare ao de um passeio
assim pelos campos, n'uma manhã como a de
hoje, e em companhia tão amavel―dizia Henrique,
procurando aquilatar o espirito da sua
partner,
n'um certame de galanteria, fóra do qual não
concebia
que se pudesse temperar uma paixão.
Pobre rapariga! Que eloquentes e apaixonadas
respostas lhe estava porventura ditando a alma!
mas o enleio da timidez fechava-lhe os labios, não
lhe deixando formulal-as; apenas pôde responder:
―Está muito agradavel a manhã, está;
nem parece
de inverno!
―Pelo que vejo, não gosta do inverno? É natural
em uma senhora isso. Faltam-lhe as flores e as
aves, suas irmãs. Eu prefiro o inverno, porque prepara
a vida intima, as scenas ao canto do fogão, as
leituras em commum, e traz-me á ideia as imagens
de um viver a que a phantasia de todos sorri; de
todos os que teem um resto de coração; refiro-me
ás imagens de uma familia.
Não ha quem sustente mais tremendas luctas do
que os timidos. A alma revolta-se n'elles, com toda
a violencia dos seus instinctos, contra não sei que
mysterio de temperamento, que lhes reprime as
expansões. Na apparencia é fraqueza e serenidade,
mas no intimo ha esforços realisados, que os fortes
nem concebem sequer.
[9]
Christina encobria no seu enleio uma d'estas luctas.
Os labios só puderam responder:
―Na cidade o inverno é mais facil de passar,
julgo eu; porém na aldeia...
―Na aldeia e em toda a parte se pode gosar a
felicidade que eu imagino. Não é fóra
das portas de
casa que devemos procurar os elementos para instituir
a nossa ventura, e por isso... Mas a prima
ha de estar admirada de ouvir falar assim um homem
que completou os seus vinte e sete annos sem
familia. Não é verdade?
Christina só pôde sorrir:
―Mas que quer? Quem muito idealisa arrisca-se
a morrer apaixonado do ideal e abraçado á peor
das realidades. É a consequencia legitima e triste
do aspirar demasiado. Até hoje tenho encontrado
na vida mulheres formosas, amaveis, interessantes;
porém nenhuma que satisfizesse ás necessidades do
meu coração, de quem me affirmasse a consciencia
poder esperar a realisação do meu sonho.
Perdôe-me
falar-lhe n'isto, priminha; é uma ousadia que
tomei, porque um instincto me disse que possue no
coração bastante bondade para m'a perdoar.
―Está a gracejar?―disse Christina, em quem
redobrava a turbação, e que, ao mesmo tempo que
estava sendo feliz, desejava vêr interrompida a sua
felicidade: contradicções proprias dos timidos.
―A prima é muito moça―continuou Henrique,
que não desesperava ainda de animar esta Galatheia―e
talvez por isso lhe causará estranheza este meu
modo de falar. Um dia virá, porém, em que o
comprehenderá
melhor. Se então encontrar um desconfortado
como eu, peço-lhe que tenha misericordia
d'elle e o salve do desalento, em attenção a quem
a
conheceu n'uma época, em que só podia
vêr em si,
priminha, a aurora de uma esperança que já
não
tinha de luzir para elle.
―Mas... salval-o!... como salval-o!...
―Como as mulheres salvam; amando.
[10]
―Bem digo eu que está a gracejar―balbuciou
Christina, com voz trémula.
―Tem o defeito da innocencia―disse Henrique
para si.―Não se lhe tira uma resposta de geito.
N'isto chegaram defronte da porta, por onde Magdalena
tinha saído da quinta na noite passada.
―Agora deixo-os por aqui―disse o conselheiro―irei
encontral-os á igreja. Vou arrostar com a fera
silvestre ao proprio covil.
―Meu pae, lembre-se do que lhe recommendei―disse
Magdalena.
―Socega, filha; serei de cera. Até logo.
―Até logo.
E o conselheiro tomou a direcção da casa do
herbanario.
―Era tempo!―disse Henrique comsigo.―A
minha eloquencia arrefecia na proximidade d'este
gêlo.
A morgadinha havia quasi adivinhado tudo; estudando
as physionomias de Christina e de Henrique,
conheceu que se não haviam entendido.
―Ainda não!―murmurou ella.―Pobre Christe!
como se deve estar odiando a si mesma! Como ha
de esta creança vencer este obstinado? Mas não
perco ainda as esperanças.
Henrique, na presença d'estes sitios, recordou-se
da scena da vespera e tentou outra vez experimentar
Magdalena.
―Esta porta é da quinta do Mosteiro, não
é,
prima?
―É―respondeu Magdalena, imperturbavel; e
voltando-se para Angelo:―O que te faz lembrar
esta porta, Angelo?―perguntou ella.
―Que muitas vezes por aqui saímos, eu e vós
ambas já de noite, e sem a tia saber, para irmos
ter com o tio Vicente, que voltava da caça das borboletas.
―Fica perto a casa d'elle?―perguntou Henrique.
[11]
―É alli, logo ao dobrar d'aquella esquina―respondeu
Angelo.
Henrique pensava:
―Seria para provocar uma explicação que ella
fez a pergunta? Esta mulher é admiravel! Não lhe
sei resistir.
E já lhe não restavam vestigios da
impressão
causada por Christina.
―Este herbanario―continuou elle em voz alta―deve,
pelos seus habitos excentricos e até pelo
solitario do sitio em que vive, ter aqui na terra certa
famazinha de feiticeiro.
―E tem,―affirmou Magdalena―mas de feiticeiro
bem intencionado.
―Devem correr muitas fabulas a respeito d'elle,
do seu viver.
―É certo que poucos se atrevem a passar aqui
de noite, apesar de todo o bem que elle faz de dia.
―Ah! Então temem-se de passar aqui de
noite!... Pobre homem!... O que lhe valerá é
algum espirito forte que ainda por ahi haja, na aldeia.
Que diz, prima Magdalena? haverá?
Antes que a morgadinha respondesse, Angelo
disse:
―Á excepção de Augusto, que ahi vem
quasi
todas as noites, ninguem mais o visita.
―Ah!... O sr. Augusto vem ahi quasi todas
as noites?!
Magdalena luctava para reprimir a impaciencia.
―Lá me parecia que havia de existir algum de
coragem. Para tanto não chegava o seu animo não,
prima?
―Tanto chega, que já muita vez alli tenho ido
só, e a altas horas―respondeu Magdalena com a
maior firmeza.
―Sim?! E não tem mêdo?
―De quê? De almas do outro mundo? não tenho
crença para tanto. De malfeitores? não os ha
aqui. N'esta terra todos me respeitam, nem com
[12]
uma suspeita me offendem―disse a morgadinha,
accentuando com expressão as ultimas palavras.
Henrique acudiu immediatamente:
―Longe de mim duvidal-o.
E calaram-se por muito tempo.
Pela sua parte proseguia o conselheiro no caminho
para casa do herbanario. Cruzou-se com varios
homens, mulheres e creanças de aspecto doentio e
soffredor, que voltavam de consultar o velho a respeito
dos seus males; eram mancos, ictericos, escrofulosos,
creanças de aspecto rachitico e enfezado,
os mais melancolicos exemplares do infortunio
humano.
―São os peregrinos que veem de Meca―disse
comsigo o conselheiro.―Pelo que vejo a clientela
do meu velho amigo herbanario mantem-se fiel,
como d'antes. Valha-nos Deus, que o meu severo
censor não trata com muito respeito o codigo.
Entrou emfim a porta do quintal.
Poucos passos andados encontrou-se com o Zé
P'reira, que vinha virando e revirando nas mãos
um papel e monologando, segundo o costume:
―Ora! ora! ora!... Estragar o vinho de nosso
Senhor com esta mexerofada! Isso até era um peccado.
N'essa não caio eu!
O conselheiro interrogou-o sobre as causas
d'aquelle aranzel.
O homem, depois de cortejar, respondeu mostrando
uma receita que lhe dera o herbanario no
virtuoso intento de lhe fazer aborrecer o vinho,
causa dos seus males. A receita era extrahida da
Polyantheia, e tinha por
ingredientes uma cabeça
e sangue de carneiro, cabellos de homem e figado
de enguia; mas o doente ia pouco disposto a experimentar-lhe
a efficacia.
Depois de se separar do Zé P'reira, o conselheiro
seguiu por uma rua de limoeiros, e como homem
a quem era familiar a topographia do quintal. Cêdo
[13]
chegou á vista do herbanario, que dera audiencia
sub tegmine fagi.
Estava sentado á borda de um tanque, a que uma
d'essas arvores dava sombra.
O conselheiro saiu emfim de traz dos limoeiros
e veio ter com elle.
Ao rumor dos passos, Vicente voltou a cabeça, e,
depois de reconhecer quem era, retomou a sua primeira
posição e ficou silencioso.
―Bons dias, Vicente―disse o conselheiro com
familiariedade e parando defronte d'elle.
―Bons dias, Manoel―respondeu o herbanario,
deixando-se ficar sentado.
―Saía agora d'aqui um homem, que julgo será
rebelde a toda a tua medicina. Padece de mal que
se não cura.
―Os vicios são enfermidades mais rebeldes do
que os achaques do corpo, são.
―Já que tu não appareces no Mosteiro, como
d'antes, para solemnisar comnosco as festas do Natal,
vim eu vêr-te.
―Obrigado.
―A tua misanthropia vae-se azedando, Vicente―continuou
o conselheiro, sentando-se á beira do
tanque.―Cada vez te estás a sequestrar mais dos
homens, cada vez mais os aborreces.
―Eu não aborreço os homens, enganas-te.
Não
os aborrece quem passa a vida a procurar os
meios de alliviar os padecimentos dos seus semelhantes.
Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro
já no mundo pouca gente com quem me
entenda. As ideias do meu tempo passaram. Por
isso deixo-me ficar em casa a pensar n'elle.
―És um homem singular; um verdadeiro philosopho.
Ora dize-me: e em que cogitas tu, quando
assim passas uma manhã inteira, sentado n'esse
banco, com os joelhos ao sol, os braços cruzados,
e os olhos no chão?
―No passado. Pois não t'o disse já? O domingo
[14]
reservo-o eu para me recordar. Ahi está que ha
pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os repiques
na igreja, lembrei-me de que era, dia de
Natal, e o meu pensamento voltou quarenta annos
atraz a um dia igual ao de hoje. Lembras-te d'elle,
Manoel?
―Do dia de Natal de ha quarenta annos? Não.
―Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e
dois annos que, mais cêdo do que estas horas,
vieste ter commigo aqui a casa. Tinhas pouco mais
ou menos a idade que hoje tem teu filho Angelo.
Meu pae saíra; julgámos nós ambos boa
a
occasião de levar a cabo um projecto que havia
muito tempo traziamos na cabeça. Crescia a um
canto do muro, além, á beira do poço,
uma pequena
faia que alli não podia durar muito tempo; meu
pae todos os dias a ameaçava com a enxada e a
custo a tinhamos defendido. Resolvemos transplantal-a.
Deitámos mãos á obra essa
manhã, e, no fim
de alguns segundos, estava a faia mudada. Trouxemol-a
para onde a deixassem em paz os hortelões,
e para junto da agua que ella já tinha procurado.
Conheces a arvore hoje?
―Não―disse o conselheiro, olhando em roda,
como á procura de algum pequeno arbusto.
―Olha que ha quarenta annos; a planta é hoje
arvore. É esta a que me encosto.
O conselheiro levantou então os olhos para os
ramos vigorosos da arvore, como se lhe parecesse
impossivel ter sido removida para alli por suas
mãos.
―É singular como os annos correm, e as arvores
crescem depressa―disse elle, distrahidamente.
―Depois da nossa tarefa, sentámo-nos―proseguiu
o herbanario.―Tu ficaste, exactamente como
estás agora, á beira d'este tanque.
Então, lembra-me
bem; olhando para os ramos tenros d'este arbusto,
que ainda não sabiamos se viveria, tu disseste:
«Fizemos uma obra que durará mais do que
[15]
nós.» E eu respondi: «Quem sabe? O
machado vem,
quando menos se espera.»
―Como te lembras bem d'essas coisas!―disse
o conselheiro, sorrindo constrangidamente, porque
não agourava bem do exordio que abrira a entrevista.
―Ai, eu tenho boa memoria!
Houve um momento de silencio, que Vicente interrompeu
subitamente, dizendo:
―Mas a final o que te trouxe hoje aqui?
O conselheiro respondeu com resolução:
―Vêr-te, como disse, e ao mesmo tempo falar-te
de um objecto grave.
―Sim? E commigo é que vens tratar os objectos
graves?
―Por que não? sempre foste homem de bom
conselho.
―Nem sempre, Manoel, ou nem sempre pensaste
assim.
―Não poderás dizer que deixasse alguma vez de
te respeitar. Os nossos genios differem, os nossos
diversos habitos da vida ensinaram-nos a pensar
diversamente a respeito de muitas coisas. D'ahi
procedem divergencias naturaes, que comtudo nos
não obrigam a deixar de nos estimarmos, julgo eu.
―Bem, então dizias tu que vinhas?...
―Trata-se de um negocio de muita importancia,
Vicente.
―Dize.
―Responde-me primeiro: tens ainda animo para
sacrificios?
―Pouco tenho que sacrificar.
―Tens, e é um sacrificio doloroso.
―Acaba.
―Trata-se de te desapossar d'esta casa e d'este
quintal, para abrir por aqui a estrada em projecto.
O herbanario, contra a expectativa do conselheiro,
acolheu sem surpreza estas palavras, e respondeu,
com certa ironia:
[16]
―E para que me vens consultar? Posso eu oppôr-me
a isso? Avisas-me para eu me arredar a
tempo da sombra d'estas arvores, mais velhas do
que eu, a fim de que não me esmaguem ao caírem
decepadas? És generoso, Manoel, em teres ainda
em conta a vida de um homem inutil.
―Ahi estás já com as tuas
recriminações. Acredita
que eu...
―Não mintas, Manoel, não mintas. Ias dizer que
não tinhas tomado parte n'este projecto. Tem coragem
e lealdade, homem, e dize tudo. Entre mortificares
o coração de um velho e pobre amigo e offenderes
os interesses de algum rico e poderoso
influente, tomaste o primeiro partido; e, como os
differentes habitos de vida te ensinaram em muitas
coisas, como dizes, a pensar differente de mim, não
déste a isso o nome de ingratidão.
―Ouve.
―Sê franco, que eu te ouvirei.
―Pois bem, serei franco. Sim, confesso-t'o; era
indispensavel que esta estrada se fizesse. Bem o sabes.
Estava n'isso empenhada a minha palavra e a
minha honra. Ha muito que os meus adversarios
me fazem guerra por causa d'ella. Trabalhei e consegui,
apesar d'esta situação politica me ser contraria.
Tres traçados se offereciam. Um sacrificava
uma grande parte dos bens de meus filhos, de Angelo
que não é muito rico, que está no
principio da
existencia e que só Deus sabe se no decurso d'ella
não teria occasião de maldizer a imprevidencia de
quem devera olhar por os seus interesses. Querias
que o sacrificasse? Sabes que os Brejos, vendidos
hoje, nada valiam; e que dentro em pouco tempo,
convenientemente trabalhados, podem ser de um
valor importante. Querias que o fizesse? ou não me
desculpas por o não ter feito?
―Fizeste bem―respondeu o herbanario.
―O outro traçado cortava os bens do brazileiro
Seabra. Conheces este homem? Um elemento que,
[17]
nas mãos de quem lhe saiba lisonjear e conduzir a
vaidade, pode ser de utilidade para esta terra; mas
tambem uma cabeça que, entregue a si, não faz
coisa de geito. O homem oppunha-se formalmente
a esse traçado; se o não attendesse,
declarava-se,
por despeito, no campo contrario ao meu. Se vencia
(e algumas armas tem para luctar), imagina a
calamidade que seria para este circulo o confiar
áquellas mãos os seus destinos; vencido, era
perder
a esperança de tirar dos bem fornecidos cofres,
que o homem possue, alguma coisa mais util do
que um sino para a igreja ou vestimentas novas
para as imagens dos altares. Eu ando a catequisar
o homem, para vêr se consigo d'elle uma casa para
escolas, melhor do que esse albergue que ahi temos,
e um estabecimento sericicola; se o desattendesse,
lá iam as esperanças d'estes melhoramentos
tão uteis, e que o mais que nos poderão custar
é um diploma de visconde ou uma commenda. Sei
que te não agradam estes meios, porém olha que
em politica são dos mais innocentes que podem
empregar-se. Já vês pois que o segundo
traçado tinha
desvantagens para o circulo, por cujo interesse
me empenho devéras; podes crel-o. Resta pois o
terceiro traçado que, lealmente o confesso, não
era
o melhor, nem scientifica nem economicamente considerado;
eu sabia de mais o que valia para o teu
coração o sacrificio que se te vinha exigir; eu
mesmo
possuo memorias ligadas a estas arvores, e não ha
homem que, aos cincoenta annos, veja sem repugnancia
desapparecerem os vestigios dos seus tempos
de infancia e de juventude; mas sabia tambem
que tu eras uma alma generosa e heroica, e que não
duvidarias comprar, á custa das tuas dores e saudades,
um melhoramento para esta terra, que tanto
amas. Esta estrada, promettida ha tanto, e concedida
ainda agora de má vontade, corre risco de se
não fazer, se, quanto antes, não principiarem os
trabalhos;
a menor opposição dos proprietarios, o menor
[18]
embargo dilatorio, podem ser motivo para o seu adiamento, porventura
indefinido. Por isso tambem me animei, porque contava comtigo, Vicente.
Enganei-me?
O herbanario estava cada vez mais
pensativo.
―Pensaste bem. A velhice é assim; e eu queria dar mais
importancia a dois annos de vida que me restam, do que á
vida nova que vae haver para esta terra. Fizeste bem.
―Esperava ouvir isso mesmo de ti, Vicente. Além de que,
dissipa as apprehensões com que estás; em
toda a parte terás arvores...
O herbanario interrompeu-o:
―Se não entendes o amor que eu tenho a estas,
não faças por consolar-me, Manoel, porque me
affliges mais.
―Porém deixa-me dizer-te, Vicente, que no Mosteiro, ou em
qualquer das nossas propriedades, tens sempre um logar vago
á tua espera, tanto á mesa, como ao canto do
fogão, e amigos que te receberão
com prazer.
―Não receio ficar sem abrigo, Manoel. Em cada choupana de
pobre teria tecto e pão. Conto com a colheita de algum bem
que semeei.
―Eu farei com que o contracto da expropriação
seja o mais favoravel possivel. Vejamos, em quanto avalias...
―Não falemos n'isso. A avaliar por o que eu lhe quero,
ninguem m'o pagaria; a não attender a isso, tudo
será pagal-o bem.
―Mas...
―Não falemos n'isso, homem. Tenho medo de que estas arvores
me ouçam propôr o preço
por que as vendo. Se alguma coisa posso pedir-te, então...
―Tudo. Dize em que te posso servir.
―Peco-te que decidas a pretenção d'aquelle pobre
rapaz, de Augusto; que te lembres um dia de que aqui na aldeia ha um
homem, que tem vinte annos, um coração e uma
cabeça como tu sabes, e
[19]
que de ti e dos teus, da gente que dá e vende
graças, honras e empregos, só quer um favor...
mais uma justiça: lembra-te d'isso.
―Falas do despacho effectivo para professor? É uma coisa
facilima; mais que elle queira... E antes elle quizesse mais; esse
rapaz perde por modesto. Acredita, ás vezes é
mais facil servir os
ambiciosos. Nem eu sei o que tem empatado esse negocio. É
certo que ha um competidor, por quem alguem trabalha; mas
não importa; conta com isso, como negocio concluido.
―Emquanto não vir...
―Hoje mesmo escrevo para Lisboa. É só isso que
pedes? Vê lá.
―E que me deixes agora só.
―E não me ficas querendo mal, Vicente?
―Não. Estou a acreditar que tiveste razão, ou
pelo menos que suppões que a tens. Basta-me isso para te
perdoar.
―Vêr-te-hei no Mosteiro antes de partir? Depois do dia de
Reis volto a Lisboa, e só tornarei para a campanha
eleitoral.
―Não prometto.
―Adeus.
O conselheiro estendeu a mão ao herbanario, que
não retirou a sua, e partiu.
―Está feito!―ia pensando o conselheiro á
saída―não foi tão difficil como
julgava. Está razoavel o homem. Quem o viu e quem o
vê! O que faz a idade! Bem! Agora é apressar os
trabalhos para antes das eleições, a
vêr se acalmam algum
fermentosito de opposicão, que por ahi possa haver, que
pequeno será.
N'estas cogitações chegou á igreja.
Magdalena esperava-o no adro.
―Então?―perguntou ella, com anciedade.
―Tudo está remediado; entendemo-nos
perfeitamente―respondeu o conselheiro, com manifesta
satisfação.
[20]
―Devéras! Eu logo vi que o pae havia de ceder!―exclamou
Magdalena, com alegria.
―Como ceder?―tornou o pae.―Elle é que foi mais
condescendente do que eu esperava. Não oppôz a
menor resistencia, nem se queixou muito amargamente.
―Pois consentiu?!
―Sem grande custo, ao que parecia.
―Ó meu Deus! meu Deus! agora é que eu temo
devéras. Pobre tio Vicente! assusta-me isso que diz, meu
pae!
―Ora vamos; a tua imaginação é que te
illude. Mas deixa-me aqui falar com o morgado das Perdizes e com o
brazileiro, que julgo que teem que me dizer. Vae para a igreja, que eu
vou já ter comvosco.
E separando-se da filha, o conselheiro dirigiu-se ao grupo, em que
estavam aquellas duas notabilidades.
―Dou-lhes uma boa nova, meus senhores―disse o conselheiro, depois de
cumprimental-os―dentro em pouco temos os alviões a
trabalhar cá na
terra. Estive agora com o Vicente; receei resistencias da parte do
homem, que nos obrigassem a
expropriações judiciaes, sempre demoradas. Mas
não, achei-o nas melhores disposições;
e assim, dentro em
poucos dias...
―Mas, para deante da casa d'elle, talvez os outros proprietarios
não sejam tão doceis―lembrou o brazileiro.
―Bem sabe que são terras insignificantes, cujos possuidores
com pouco se contentam.
―Os antigos possuidores talvez se contentassem com pouco―disse o
brazileiro, sorrindo velhacamente―mas os modernos...
―Pois mudaram de senhorio?
―Por contracto de venda assignado e legalisado hontem mesmo.
―E quem os comprou?
[21]
―Este seu criado.
O conselheiro teve vontade de o esganar; conteve-se, porém,
dizendo:
―Tanto melhor; quero-me antes com proprietarios illustrados e
independentes, que comprehendam a importancia dos melhoramentos
publicos, do que...
―Isso historias, meu caro amigo; em primeiro logar estão os
melhoramentos particulares. Eh, eh, eh.
―De certo que não ha de querer pôr estorvos a uma
empreza como esta.
―Estorvos, não, mas emfim... Amigos, amigos, negocios
á parte.
O conselheiro sorriu, emquanto que interiormente mandava ao diabo o
espirito mercantil e interesseiro do seu antigo condiscipulo.
―Pode-me dar duas palavras, sr. conselheiro?―requereu do lado o sr.
Joãozinho das Perdizes.
―Mil que pretenda―acudiu o conselheiro; e tomando o braço
do morgado afastou-se do grupo.
―Eu tenho a pedir-lhe um favor―principiou o morgado.― Eu, como sabe,
interesso-me muito pelo mestre-escola do Chão do Pereiro,
que quer vir ensinar para aqui. Este negocio está empatado,
como sabe; por isso queria que o senhor escrevesse para Lisboa a este
respeito.
―Pois sim, mas...―fez-lhe notar o conselheiro―não sabe
que é Augusto o outro concorrente?
―Então que tem isso?
―Não lhe parece que seria uma injustiça? Um
rapaz de merecimento, como elle é, aqui da terra, que
já exerce o emprego ha tres annos e com tanta intelligencia?
e haviamos de...
―É verdade,―atalhou o outro―pois isso é
verdade, mas... Emfim, elle que passe para outra parte.
―Mas se o rapaz quer isto?
―Quer! quer!... tambem o outro quer. Ora essa é fresca. E
vamos, sr. conselheiro, a gente tambem
[22]
não ha de estar só a
fazer favores, sem os
receber quando os pede. Com este já são tres.
Pedi-lhe
para o meu tio abbade ser conego; foi tanto conego como eu. Pedi umas
caudelarias lá para a freguezia... estou á espera
d'ellas... Ora isto não se faz. O
senhor sabe que eu lhe tenho vencido as eleições
com a gente da minha freguezia, que vae para onde eu a levo. Pois agora
não sei o que será. A
não se decidir este negocio depressa...
―Ora não será isso motivo para tanto.
―Com certeza que é―insistiu o sr.
Joãozinho.―Então digo-lhe mais: a mim
já me falaram. Ha ahi alguem que não desgostaria
dos votos de que eu disponho, e votar pelos que já
estão no
poleiro não sei se lhe diga que não é
peor.
O conselheiro, mortificado como estava, disse, sorrindo:
―Não posso convencer-me de que o meu amigo seja capaz de
fazer isso por qualquer causa que possa dar-se. Mas deixe estar que, em
relação ao que me diz, eu verei.
―Mau! Não é «eu verei».
Então falo-lhe claro. Se d'aqui até ás
eleições
não estiver feito o despacho, não conte commigo.
―Mas quem lhe diz que não ha de estar?
―Pois lá isso...
―Socegue. Hoje mesmo escrevo para Lisboa.
―Bem.
O sino tocava a chamar para a festa.
Terminou o dialogo.
―O peor―ia pensando o conselheiro―o peor é que prometti
ao Vicente que apressaria o despacho de Augusto. Não tem
dúvida; é
tão magra a posta, que não vale a pena
disputal-a. Para Augusto arranjarei alguma coisa melhor. É
preciso ter
ambição por elle. Se elle quizesse ir para
Lisboa?... Mas, pelo que me disse este basbaque, já se
maquina no campo contrario! Hei de sondar o Tapadas, a vêr o
que sabe.
[23]
Estas conferencias com o brazileiro e com o morgado tinham mortificado
o pae de Magdalena a ponto de não conter um movimento de
impaciencia, assim que viu que o Pertunhas se approximava d'elle, e,
á fôrça de cortezias e
cumprimentos, lhe pedia um momento de attenção.
Sabidas as contas, tratava-se do tal emprego de recebedor, que o
latinista com tanto ardor namorava.
O conselheiro descarregou sobre este pouco influente eleitor o mau
humor que os outros lhe causaram, e respondeu desabridamente:
―Ora adeus! O senhor é uma sanguesuga que se não
farta de chupar. Contente-se com o que tem; vá conjugando o
laudo,
laudas, que outros, com mais merecimentos, nem isso
conseguem; e deixe-me.
O mestre Pertunhas ouviu com humilde sorriso a
admoestação, e curvou-se para deixar passar o
conselheiro.
Mas lá comsigo dizia:
―Sim? Elle é isso?! Pois veremos se a sanguesuga te
não pica.
E entrou tambem para a igreja, com não muito
christãs disposições de espirito.
XVIII
Do dia de Natal ao dia de Reis passou o tempo para o conselheiro em
visitas ás freguezias e aos influentes d'aquelle circulo
eleitoral, visitas a que o acompanhava Henrique de Souzellas, que
tomava parte, com gôsto, n'estas excursões
politicas.
Em casa do sr. Joãozinho das Perdizes, na freguezia de
Pinchões, passaram elles um dia. Nos solares
[24]
do morgado tudo era desordem e
desmazelo; a cada passo se tropeçava n'um podengo ou se
trilhava a cauda a um perdigueiro. Henrique sustentou uma verdadeira
lucta com o proprietario, para esquivar-se a engulir todas as enormes
dóses de carne de porco e de vinho, com que elle,
á viva fôrça, o queria regalar.
No quarto em que os hospedes pernoitaram estavam amontoados no meio do
chão uns poucos de alqueires de milho e de castanhas, e aos
pés dos leitos dormiram enroscados dois galgos, que elles
não conseguiram desalojar, e que toda a noite os
incommodaram com latidos ao menor rumor que escutavam fóra.
Henrique lamentou a influencia eleitoral do morgado das Perdizes, que o
obrigava a esta noitada.
Outro dia jantaram em casa do brazileiro, que lhes mostrou toda a sua
propriedade, tendo Henrique de obrigar a sua eloquencia a esgotar-se em
affectadas exclamações, deante dos prodigios de
mau gôsto reunidos alli.
As estatuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos
feitos de cana, por onde se entrelaçavam magras trepadeiras;
um pequeno modelo de fragata brazileira com
tripulação de altura dos cestos de
gavia, fluctuando n'um tanque circular; uma gruta estucada de azul e
com assentos de palhinha, para onde vinha ler as folhas o sr. Seabra,
eram as principaes maravilhas do jardim. Nas salas mobilia rica, mas
vulgar; lithographias coloridas em custosas molduras douradas;
bordados, diplomas de socio de não sei quantas sociedades
brazileiras; tudo
encaixilhado, e no logar de honra a estampa das capellas do Bom Jesus
de Braga. Á impertinencia de admirar estas preciosidades
accrescia a de ouvir e de ter de achar graça a um papagaio
que cantava o hymno brazileiro.
Henrique saíu de lá exhausto de paciencia.
Com estas visitas politicas, passou, como dissemos,
[25]
todo o periodo das festas do
Natal, sem que entre as personagens da nossa historia occorresse coisa
que mereça nota.
Entre Magdalena e Henrique mantinha-se a mesma lucta moral; nem um nem
outro recordavam declaradamente a scena nocturna, em que tão
acerbas palavras se haviam trocado. Augusto não
voltára ao Mosteiro desde então. Era tempo de
férias para as creanças, o que fazia natural esta
ausencia, contra a qual Angelo em vão protestava. Magdalena
nunca porém alludia a ella. Christina passava o tempo,
querendo-se mal por a sua timidez, e de quando em quando amuando de
ciumes com Magdalena, que ria d'elles e os dissipava com uma palavra.
Chegou emfim o dia de Reis, aquelle em que devia realisar-se no pateo
do Mosteiro o auto que, havia muito, mestre Pertunhas andava ensaiando.
Henrique e D. Dorothéa vieram jantar ao Mosteiro, e ficaram
para assistir á solemnidade popular.
Já por vezes temos ouvido falar n'este auto, que promettia
ser coisa memoranda nos annaes dos festejos publicos da terra. Havia
mezes que o sr. Pertunhas esgotava os thesouros da sua sciencia
dramatica a ensaial-o, e vimos com antecipação
andar Ermelinda decorando a parte da Fama, que lhe competia
desempenhar.
Estes autos e entremezes, que nas aldeias se representam,
são como os restos grosseiros que da nossa arte primitiva a
varredura estrangeira deixou ficar pelo chão.
Não obstante as extravagancias e as
modelações toscas e risiveis de muitos,
é certo que nos mostram que a Euterpe rustica tem conservado
mais fiel a indole peninsular, do que sua irmã, a civilisada
musa das cidades, a cujo paladar já sabem mal as
popularissimas redondilhas, tão apreciadas ainda na
Hespanha.
Em occasiões de festa levanta-se em qualquer terreiro ou
pateo de quinta um tablado; veem adornal-o
[26]
as mais vistosas colchas de
chita, das quaes tambem se formam os bastidores; alugam-se
nos depositos mais modestos da cidade ou villa proxima vestidos de
reis, de principes e de guerreiros, em que se combinam os elementos de
épocas e de nacionalidades disparatadas, e perante uma
plateia rustica, ao ar livre, como no theatro antigo, desfiam-se em
cantada choradeira as sentimentaes peripecias da vida de qualquer
santo, ou, entre gargalhadas, os episodios comicos do
algum enredo popular.
A circumstancia de ser o auto d'esta vez desempenhado no pateo do
Mosteiro, e que fôra em parte por deferencia ao deputado do
circulo, em parte por conveniencia dos emprezarios, pela
apropriação do
terreno a todos os effeitos, e pela ajuda de custo, que sempre em taes
casos recebiam de s. ex.
a, essa circumstancia,
dizemos, augmentava o
numero de espectadores.
Das janellas do Mosteiro gosava-se, como de um camarote de frente, do
espectaculo popular.
O terreiro era destinado para o povo, em grande parte attrahido tambem
pela pipa de vinho, que o conselheiro n'estes dias mandava
pôr á
disposição dos seus representados.
Desde a vespera havia grande agitação e azafama
no pateo do Mosteiro. Os artifices levantavam o tablado scenico;
pregavam e despregavam taboas; serravam barrotes; os directores, e
á frente d'elles o infatigavel e imaginoso Pertunhas, davam
ordens contradictorias; e os curiosos estacionavam em magotes,
difficultando tudo, censurando o que viam fazer, e aventando alvitres
absurdos.
Herodes, o pae de Ermelinda, andava em brazas. Approximava-se a hora
dos seus triumphos. O genio dramatico palpitava n'elle, cheio de, vida
e de enthusiasmo.
Ia mais uma vez pousar nos hombros o manto da realeza judaica; brandir
a espada infanticida, carregar aquelles sobrecenhos com que fazia
chorar
[27]
as creanças e estremecer as mães; ia
resuscitar Herodes, o déspota legendario.
Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tyranno e
insensivelmente fazia gestos e esgares promettedores de effeitos
scenicos futuros.
Os seus collegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava-os com
a sobranceria de um Talma, e muitas vezes lamentava sinceramente a
ausencia de vocações dramaticas que auxiliassem a
d'elle.
E não sorriam os leitores a esta velleidade artistica do
recoveiro; alli havia fundamentos para ella. O Cancella era o minerio
de um tragico, deixem-me assim dizer. No meio de uma escoria de
rusticidade continha abafado mineral de lei.
Tivessem sido outras as contingencias da sua vida, vêl-o-hiam
porventura arrebatar plateias inteiras com as
revelações do genio, que ás
vezes n'um grito, n'um sorriso, n'um gesto se manifesta; mas ainda
assim inculto, não mentia n'elle o verdadeiro enthusiasmo, o
sentimento da arte que lhe afogueava as faces e os olhos, e lhe animava
o gesto no calor do desempenho; não mentia aquella
embriaguez que lhe causavam os applausos da multidão.
Não ha verdadeiro genio artistico, que se não
namore do publico, embora o saiba caprichoso, inconstante e ingrato. O
homem, indifferente aos applausos das turbas, nunca será
poeta nem artista de verdadeira inspiração. O
amor vivo da
gloria adeantou a
meio caminho os emprehendedores d'esta
nova conquista de vellocino.
Ermelinda, essa tremia com a commoção de artista
novel, á lembrança do espectaculo, em que pela
primeira vez ia entrar.
As senhoras do Mosteiro, ou antes Magdalena e Christina, tinham querido
encarregar-se da
toilette da Fama.
Logo de manhã fôra pois a pequena Linda para o
Mosteiro, e passava das mãos de Magdalena para as de
Christina e das d'esta para as d'aquella, e
[28]
sempre com recato preciso para que ninguem
mais lhe puzesse os olhos, pois que pretendiam reservar para a
occasião a surpreza toda. Contra a curiosidade de Angelo
é que mais tiveram que luctar.
Logo depois da uma hora da tarde começou a povoar-se o pateo
de espectadores e, os actores a reunirem-se na parte do tablado,
occulto por as colchas de chita aos olhares da multidão.
Principiava a ensaiar os instrumentos o pessoal da philarmonica,
dirigida por mestre Pertunhas, cuja trompa celebre servia tambem de
batuta.
Chiava já o clarinete, assobiava o flautim, roncava o figle,
uivava a flauta, e todos promettiam aos ouvidos a mais inharmonica das
torturas.
Mestre Pertunhas, distribuidas as partituras, e vendo todos a postos,
deu o signal de principiar.
Um, dois, tres; um, dois―dizia ou fazia elle com os olhos e com os
movimentos da cabeça e pés, porque a
bôca, essa já estava applicada
á embocadura da trompa. O segundo «tres»
era o tempo fatal. Os musicos, porém, ou por distrahidos, ou
por a commoção propria dos actos solemnes,
não corresponderam ao signal, e a nota furiosa, extrahida da
trompa do mestre Pertunhas, achou-se só no
espaço, e fugiu envergonhada a esconder-se na concavidade
dos montes vizinhos, deixando na passagem os ouvidos quasi em sangue.
Este successo foi saudado com uma gargalhada geral, que redobrou quando
as notas dos outros instrumentos, vendo partir desacompanhada a nota
chefe e reconhecendo a falta, saíram alvoroçadas
atraz d'ella, cada uma por sua vez. Foi uma debandada musical de
indescriptivel effeito.
O auditorio, o sempre implacavel auditorio popular, apupava. Henrique e
o conselheiro riam, os actores do auto espreitavam detraz da cortina a
vêr o que era aquillo. Mestre Pertunhas barafustava por entre
os da banda, berrando, ralhando, cheio de cólera e de
razão.
[29]
Uma symphonia com quatro mezes de ensaios! A falar a verdade!
Ordenadas as coisas, rompeu emfim a symphonia.
Os typos dos artistas, marcialmente uniformisados com fardas que
fôram de um corpo de infanteria, eram para tentar o lapis de
um Cham ou Gavarni. Alli um gordo e rubicundo merceeiro, que
ameaçava estalar todas as costuras da farda, primitivamente
feita para um individuo de metade das dimensões d'elle, com
as faces insufladas, a testa contrahida e os olhos injectados para
extrahir de um obsoleto serpentão, que embocava com
arreganho assustador, as mais destemperadas notas; acolá um
flautim, de braços compridos e tibias
esquinadas, com meio braço fóra das mangas, com
meia perna de fóra das calças, figura em que
havia não sei o que de onomatopaico, tão bem se
casava com os silvos, horripilantemente agudos, que arrancava do exiguo
instrumento. O artista pratilheiro era um velho recurvado, de nariz
adunco, faces escavadas, olhos de coruja, suissas em tufos no meio das
faces, e oculos na ponta do nariz. Um zarolha evacuava os
pulmões dentro de um figle; um corcovado e
semi-anão repicava os ferrinhos com uma prodigalidade
assustadora; as baquetas da caixa estavam confiadas ás
mãos callosas de um
moço de lavoura, de rêpas hirsutas a cobrir-lhe a
testa, olhos esbogalhados e labio pendente. E, no meio d'estas e
analogas figuras, a alma de tudo, o sr. Pertunhas, torcendo-se, batendo
com o pé, suando, arregalando os olhos, piscando-os,
marcando o compasso com a cabeça armada de enorme trompa,
que lhe dava então não sei que apparencias de
proboscidiano.
Tal era a philarmonica da terra, que Henrique, o conselheiro e toda a
familia do Mosteiro escutavam das janellas, e á qual tiveram
de dispensar elogios, que o regente acceitou com a modestia de artista
[30]
que se conhece. Henrique foi quem mais
sublimes esforços fez para soffrer com paciencia aquellas
torturas acusticas. Elle que nem á orchestra de S. Carlos
perdoava uma desafinacão, obrigado a escutar com um sorriso
aquella banda pandemonica!
―Coragem! coragem!―murmurava-lhe o conselheiro, impassivel como
perfeito politico.―Nas occasiões é que os homens
se conhecem! Coragem.
―É em extremo forte a
provação!―respondia-lhe, gemendo, Henrique.
―Firmeza; que a pallidez do susto nos não
atraiçoe―continuava aquelle.
Isto obrigava Henrique a nova lucta; d'esta vez para manter a
seriedade.
A final calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido
tocar. Succedeu-lhe um intervallo de silencio. Passou pela assembleia o
estremecimento que precede as occasiões solemnes. Os olhares
de tantos espectadores fixavam-se na coberta de chita que já
se via ondular. Ouviu-se um surdo rumor, significativo de anciedade,
como se fôra a resultante do palpitar de tantos
corações.
Appareceu emfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.
A alta e membruda figura do pae de Ermelinda, com os seus hombros
largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabellos e barbas
negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as
juncturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho
selvatico, com que falava e gesticulava, imprimia na
multidão um quasi pavor, que nem o conhecimento intimo que
tinha do homem conseguia dissipar.
Herodes trazia manto real e turbante musulmano, borzeguins vermelhos,
corpete de velludilho azul, calções golpeados.
Pendia-lhe á cinta
um alfange e uma pistola; ao peito algumas
condecorações.
Apparencia geral, a dos prophetas nas procissões.
[31]
O auto rompe com um monologo de Herodes.
O tyranno da Judéa, sobresaltado e meditabundo, faz
considerações substanciosas sobre a
condição dos reis em geral e a sua em particular.
Principia elle assim:
Não ha vida mais inquieta,
Nem mais cheia de cuidados,
Do
que a de um rei que pretende
Conservar os seus estados.
O Cancella dizia isto em tom pausado, com os braços
cruzados, medindo o palco a passos largos.
Continuavam varias proposições de physiologia do
throno, e, do caso generico baixando ao particular, da these
á hypothese, principia a falar de si. Cancella, conhecedor
dos segredos da arte, começava aqui a dar mais vida
á recitação, como
para mostrar o maior empenho que tomava a alma n'este capitulo da
especialidade. Referia-se aos annuncios da vinda do Messias, e
inquietava-se; a maré das paixões subia; a voz
traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se um como reflexo de
desalento, para com mais violencia se exaltarem os affectos. Nos
paroxismos da furia, o Cancella, dando toda a
fôrça á sua voz potente, soltava
berros, que participavam da natureza dos do tigre.
Começarei desde logo
A publicar leis tyrannas,
Que
aterrem os meus montes,
Os palacios e as choupanas.
Será tal o meu furor,
Tal a minha
indignação,
Que ninguem se atreverá
A
conquistar meu brazão.
O interesse do espectaculo augmentava. Os olhos do publico principiavam
a fixar-se. A excitação
de animos a que os transportes de Herodes, inquieto
[32]
pelo seu brazão, levára o publico,
foi serenada
por um chorado côro de anjos que cantavam atraz da cortina:
Não temas,
ó rei cruel,
Que te conquiste o
docel.
Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe
afiançarem a segurança do docel,
pela qual elle parecia receioso. Vacilla, entra-lhe o mêdo no
coração, mêdo que procura afugentar
com bravatas, em que ameaçava pôr tudo por terra.
O Cancella exprimia tudo isto com abundancia de gestos e de movimentos.
Aqui é que subia a toda a altura o genio dramatico do
Herodes. Para este final do monologo reservava todos os segredos da
arte; apoderava-se d'elle a musa do palco; desappareciam-lhe deante dos
olhos os espectadores, via o mundo; perdia a consciencia da
individualidade propria; suppunha-se Herodes; e até...
ó fôrça da
arte! offuscavam-se-lhe os bons instinctos da indole generosa e quasi
chegava a ter verdadeira ancia de sangue e carnificina. O publico era
dominado por o artista, e n'um d'estes silencios que todos
prevêem se desencadeiará em brados de enthusiasmo
e phrenesi, escutava-lhe as duas quadras finaes:
Porém o furor me
incita!
Dava, ao dizer isto, tres passos á frente, desembainhava o
alfange e abria os braços. Tinha o que quer que era de
Adamastor, visto assim.
O brio dá-me ousadia.
Levantava os braços acima da cabeça, espalmando a
mão esquerda.
Para defender o sceptro
A favor da tyrannia!
[33]
Aqui agitava os braços como azas de moinhos.
Será cada
lança um raio!
E, dizendo isto, tinha nos olhos o fulgurar do relampago.
Cada espada um corisco,
E o braço, armado do alfange, baixava com a rapidez do
simile.
Cada soldado um
trovão,
E trovejava-lhe a voz.
Cada golpe um basilisco!
E na posição e gesto em que ficava,
não era menos terrivel e pavoroso do que a fera da
comparação.
Uma tempestade de applausos rompeu de todos os lados; só as
mulheres e as creanças ficaram
silenciosas e immoveis, porque lhes parecia um peccado applaudirem
Herodes. E não sei se, o que fizera menos escrupulosa n'este
ponto a parte masculina, fôra o exemplo partido das janellas
do Mosteiro; porque é certo que em geral os tyrannos no
palco são admirados, mas raras vezes applaudidos.
Herodes, depois de agradecer os applausos publicos, senta-se e segue o
auto.
Dariamos de bom grado na integra tão importante
peça dramatica ou pelo menos circumstanciada noticia d'ella,
se não receiassemos o recheio excessivo para esta ordem de
alimentos litterarios, que se querem leves. Não podemos
comtudo resignar-nos a passal-a por alto inteiramente.
Além do Herodes, são figuras do auto: o caixeiro
do dito―assim se lhe chama pelo menos no folheto, o que dá
a entender que Herodes era homem de
[34]
escripturacão regular,―o capitão das tropas
reaes, os tres reis magos, o anjo, a Virgem, S. José e o
menino Jesus, a criada de Santa Isabel, dois cidadãos de
differentes cidades, o criado de um d'elles, a Fama e duas
creanças, chamadas Giraldinho e Amorzinho.
As scenas passam-se successivamente nos paços de Herodes, na
lapa de Belem, e em diversas paragens da estrada do Egypto.
A imaginação do espectador era a encarregada da
mudança do scenario.
O poeta corre toda a clave das paixões humanas, vibra todas
as cordas do coração.
Ao terror despertado por Herodes e suas ameaças, succede a
sympathia pelos tres reis, personificados d'aquella vez por tres
moços de lavoura, de manto, luvas de algodão e
turbante, os quaes, em lamuria nasal e com profusão de
xes, cantarolavam as quadras do seu papel, em uma
das quaes, patrioticamente anachronica, pediam aquelles bons magos ao
Deus nascido a protecção para Portugal.
Excitava a piedade a familia sagrada. O velho S. José, como
carpinteiro que era, apparelhava um madeiro a enxó e plaina,
emquanto a Virgem dormia. A Virgem era um rosado barbatolas, em quem
principiava a despontar o buço da puberdade. O anjo
apparecia, como nas procissões, carregado de
cordões de ouro.
No transe da fugida para o Egypto ha uma scena da mais que homerica
simplicidade. Quando os sagrados esposos estão para partir,
chega a elles a criada de Santa Isabel, prima da Senhora, outro
mocetão em trajes femininos, e da parte da ama offerece aos
foragidos algum dinheiro e refrescos; pedindo desculpa por
não poder dar quanto queria, o que tudo a Senhora agradece
com as phrases da tarifa, recommendando-se muito a sua prima.
O comico caminha ao lado do pathetico, como no drama moderno. Ha
personagens, reflexões e scenas
[35]
sempre apreciadas e já
aguardadas pelo publico, que as saúda com sinceras
gargalhadas. D'estas a principal é evidentemente a que se
passa entre um cidadão, de quem a sacra familia recebe
gasalhado, e o criado do mesmo.
É uma scena de disputa domestica, cheia de
allusões satyricas á classe dos criados de
servir, a qual era sempre applaudida. O cidadão, depois de
mostrar ao criado, de relogio em punho―anachronismo shakspeareano―a
demora excessiva que elle tivera fóra de casa, diz para o
auditorio:
Não se pode ter criados
Hoje em dia, n'esta vida,
Ou quem
houver de os ter
Não lhes deve dar guarida.
N'este ponto do auto houve aquella tarde um pequeno, mas gracioso
episodio.
D. Victoria, que achava esta a parte melhor pensada e mais conceituosa
de toda a peça, de afinada que estava pelo seu modo de
sentir, não pôde
conter-se, que não exclamasse:
―Aquillo é que é uma verdade!
A espontaneidade da reflexão fez rir a familia do Mosteiro,
riso que teve ecco em baixo, entre o povo, que enchia o pateo.
A scena comica prolonga-se, mandando o patrão distribuir
pelo caixeiro o rapé ao auditorio; outra liberdade que
produzia sempre o maior effeito.
O criado trazia uma enorme tabaqueira, um verdadeiro bahu, e offerecia
pitadas ao publico, dizendo:
O meu amo, com ser rico,
Gosta d'estas patuscadas.
Nunca os senhores
tiveram
As pitadas tão baratas.
Os risos e as galhofas desordenaram, segundo o costume, por muito tempo
a regularidade do espectaculo.
[36]
Todos tiravam pitadas, todos falavam, riam e guinchavam,
todos fingiam espirrar e não se ouvia senão:
«Dominus tecum» e «Deus
te salve» no meio de toda aquella confusão.
Porém a um signal de mestre Pertunhas, que deixou por um
pouco folgar o espirito das massas, tudo entrou na ordem.
Preparava-se nova transição dramatica. O criado,
que vae a saír, volta, dizendo com gesto espantado e tom
exclamatorio:
Jesus, Jesus, que é
isto?
Jesus do meu
coração!
O signal da cruz me livre
De
tão terrivel visão.
Era a Fama que apparecia.
Ermelinda entrava em scena.
No meio d'aquellas figuras rusticas, e mais ou menos grosseiras, que
entravam no auto, a figura delicada e angelica de Ermelinda produzia
tão completo contraste, que um murmurio significativo de
profunda sensação correu o auditorio.
Ermelinda estava surprehendente de formosura. Haviam-se associado ao
que era n'ella dotes naturaes os cuidados de Magdalena e de Christina,
para lhe darem a apparencia superior.
O proprio Henrique, que até alli estivera commentando
maliciosamente o espectaculo, não pôde reter uma
exclamação de surpreza, que foi secundada por
o conselheiro. É que parecia que um verdadeiro anjo occupava
agora a scena.
A simplicidade do vestir concorria para esse effeito.
Ermelinda trazia uma longa tunica alvissima e de amplas mangas, que lhe
descia solta dos hombros sem sacrificar a menor belleza dos graciosos
contornos e esbeltas proporções d'aquella
creança, que promettia ser uma mulher esculptural. Os
cabellos, cuja côr loura era de uma pureza rara,
caíam-lhe desatados e profusos sobre os hombros, brilhando
[37]
como fios de ouro, na
alvura dos vestidos; a fronte ficava-lhe livre, e o oval das faces
sobresaía n'aquella moldura natural. Com os
braços descaídos, os dedos encruzados, e a
cabeça ligeiramente pendida, em expressão de
melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem os de Magdalena e de
Christina nas janellas do Mosteiro, mas que de longe parecia procurarem
o céo, Ermelinda adeantava-se vagarosa, serena, tendo no
gesto o encanto da innocencia, tendo nos passos a
hesitação da timidez. Havia tanto de sobrenatural
no vulto candido, franzino e melancolicamente suave d'aquella
creança, que o actor que estava em scena não teve
de simular espanto, porque o sentia real, e não podia
desviar os olhos d'aquella apparição.
O silencio era profundo; parecia que em todos estava actuando a
fôrça de um encantamento.
Como na antiga tragedia, o facto principal da
acção, a carnificina dos innocentes, passava-se
fóra de scena. Á Fama competia narral-o.
Ermelinda, a meio do palco, parou. Com uma voz argentina e leve tremor
de commoção, principiou lentamente e no meio de
um religioso silencio a recitar os versos da
narração, os quaes, como o leitor já
sabe, não eram os do auto, que mestre
Pertunhas se estafára a ensaiar.
Os versos que Ermelinda recitou diziam assim:
Desci dos celestes
córos,
Por Deus mandada a escutar
Da
infancia as queixas e os choros,
Para lh'os ir confiar.
Desci. Na terra, nos mares
Tanta miseria encontrei.
Que os meus
magoados olhares
Da terra e mar desviei.
Desci. E tantos gemidos,
Tão dolorosos ouvi!
Que, turbados
os sentidos,
Quiz recuar... mas desci.
[38]
N'esta colheita de
dôres
Pelo mundo todo andei,
No pranto dos peccadores
As minhas vestes
molhei.
Vagueando dias e dias,
Chegára á Judéa
emfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.
O sol, o sol inflammado
D'estas terras orientaes,
Tinha no disco
afogueado
Não sei que estranhos signaes.
Soavam menos distantes
Sinistros brados de dôr,
Choros de
mães e de infantes,
Cantos de morte e terror.
Vi anjos de azas nevadas
Em bandos subir ao céo,
Quaes
pombas amedrontadas
Fugindo á voz de escarcéo.
«Onde ídes? Quem vos persegue?
A que tormentas
fugis?»
Um, que triste o bando segue,
Estas palavras me diz:
«Somos as almas de infantes
Mortos em guerra feroz;
Inda das
mães delirantes
Nos chama a sentida voz.
«Só a materna saudade
Nossa carreira detem,
Embora
no céo, quem ha de
Esquecer, o amor de
mãe?»
Disse e o semblante formoso
Com as azas encobriu,
E ao bando silencioso
Silencioso se uniu.
Eu segui. Na impia cidade
Aterrada penetrei...
Ai, da fera humanidade
Os meus olhos desviei!
[39]
Que scena! Corre nas
praças
Sanguinaria
multidão,
Como nuvem de desgraças
Semeando a
desolação.
Cáem por terra sem vida
Tenras creanças
ás mil,
E uma turba enfurecida
Corre á
matança febril,
As mães pallidas, chorosas,
Supplicam, pedem em
vão!
N'essas feras sanguinosas
Não palpita um
coração.
Outras tentam em delirio,
Os seus filhos disputar,
E com elles no
martyrio
Gostosas se vão juntar.
Sobre a terra ensanguentada
Eu soluçando, ajoelhei,
E de
intensa dôr magoada,
A Deus piedade implorei.
Findava a prece, e uma estrella
No horisonte despontou,
Pura,
scintillante, bella
O caminho me traçou.
Á humilde e escondida estancia
Da venturosa Belem
Cheguei;
vi um Deus na infancia
Nos ternos braços da mãe.
Minha colheita de dôres
N'aquelle berço depuz,
Da
humanidade aos rigores
Pedi remedio a Jesus.
No olhar do divino infante
Raiou a luz e fulgor,
Foi a aurora radiante
Que annuncia um redemptor.
Não se descreve a impressão causada por estes
versos, que assim transformavam a Fama do auto
[40]
no Anjo da guarda da infancia. Muitas
causas concorriam para produzir este effeito: a figura, a voz e o gesto
de Ermelinda, que lhe davam uma apparencia verdadeiramente angelica, e
depois aquellas palavras inesperadas, aquella
exposição
desconhecida e em versos a que a melancolia da toada, em que eram
recitados, parecia augmentar a cadencia metrica. Emquanto debaixo da
impressão d'aquella voz sonora e infantil, ninguem procurava
explicar o mysterio. Milagre lhes parecia e quasi como milagre o
acceitavam, e de ouvidos attentos, collos estendidos e bôcas
semi-abertas parecia recolherem, uma a uma, aquellas palavras, como se
de um verdadeiro emissario celeste as escutassem. O tablado enchera-se
pouco a pouco de gente, e ninguem dera por isso. Os actores que estavam
atraz da cortina tinham sido feridos pelos primeiros versos,
differentes dos que elles esperavam; isto obrigou-os a espreitar.
Depois, como arrastados pela magia d'aquella voz e d'aquelle gesto,
vieram adeantando-se, adeantando-se, e cêdo formaram circulo
á volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O
espanto, os affectos, o orgulho de pae, a
exaltação de artista combinavam-se para dar-lhe
ao rosto uma expressão quasi de extase. Olhava para a filha
como se a visse animada de inspiração divina.
Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobr'olho, prevendo
trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de
bôca aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro
só Angelo sorria, elle só interpretava o milagre.
Todos os mais escutavam silenciosamente aquella voz de
creança, que, em campo descoberto e no meio de tantos
espectadores, soava distincta e vibrante como se effectivamente tivesse
alguma coisa de sobrehumana.
Depois que ella terminou, persistiu por algum tempo o silencio, sem que
os espectadores pudessem voltar logo a si, nem os actores se lembrassem
de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro
[41]
rompeu este quasi encantamento.
Profundamente impressionado tambem por aquella scena, exprimiu n'um
«bravo» todo o enthusiasmo que sentia. Foi o
signal.
O silencio degenerou na mais altisona ovação.
O Herodes esqueceu o papel que desempenhava, o caracter que tinha a
sustentar, a logica da
situação, e tomando nos braços
musculosos o corpo debil e franzino da filha, levou-a em triumpho para
a beira do palco; os outros actores disputavam-lh'a; do pateo
estendiam-se centenas de braços para a receberem; das
janellas do Mosteiro acenavam-lhe, victoriando-a, os lenços
das senhoras; os homens applaudiam-a com palmas. Herodes parecia
devorar a filha com beijos, afagal-a com lagrimas de enthusiasmo e de
paixão; e Ermelinda foi de braços em
braços, entre beijos e afagos, transportada do tablado para
a sala do Mosteiro, onde não foi menos calorosa a
recepção.
Do auto ninguem mais se lembrou, e, apesar dos esforços do
mestre Pertunhas, todos o deram por terminado alli e prescindiram de
vêr as restantes scenas, com grande desgosto dos actores que
entravam n'ellas.
O Herodes, ainda vestido de rei, andava como doido pelas salas do
Mosteiro. Seria para rir aquelle enthusiasmo, se não
fôsse bastante pathetico para commover.
―Mas como foi isto, meu Deus? Como foi isto? Que milagre foi este? Ai
que versos, Maria Santissima! Que versos! E como ella os
dizia!―exclamava elle, quasi convencido da milagrosa natureza da scena
que vira.
Magdalena, chamando Angelo de lado, perguntou-lhe:
―Foi Augusto que fez aquelles versos?
Angelo sorriu.
―Por que me perguntas isso a mim?
―Porque o deves saber.
[42]
―Então não crês no milagre?
―Responde.
Angelo ia a responder, quando Henrique disse em voz alta para o
conselheiro:
―Se eu digo a v. ex.
a que o Bernardim existe.
―Mas quem é?―perguntou o conselheiro.
―Não sei; porém posso afiançar a v.
ex.
a que não são estes os
primeiros vestigios
que encontro
d'elle. As paredes das capellas dos montes são as suas
confidentes. Não está certa, prima
Magdalena, de umas quadras sentimentaes, que lemos na ermida da Senhora
da Saude?
―Sim; recordo-me.
―Não acha entre essas e as do auto analogia de estylo, que
a levem a attribuil-as á mesma pessoa?
―Estou pouco habituada a analysar estylos, primo.
―Mas talvez este lhe seja habitual.
Magdalena fitou Henrique com um olhar de altivez, que o obrigou a
accrescentar:
―Por muito o vêr por ahi desperdiçado por paredes
de capellas e ruinas, e nos troncos das arvores.
Ermelinda foi de uma discreção impenetravel.
Quando lhe perguntavam quem lhe ensinára os versos, sorria,
respondendo que não sabia, ou que não podia
dizel-o.
―Apostemos que n'isto entra Angelo?―disse o conselheiro.
O Herodes cada vez parecia mais convencido de que fôra pura
inspiração.
Henrique, aproveitando uma occasião em que estava proximo da
morgadinha, disse-lhe ao ouvido:
―Parece-me que ia pôr o dedo no rouxinol silvestre, que
tão bem canta sem se mostrar.
―Sim?
―Não ha muitas noites que eu o vi vaguear n'estas
immediações. Estas aves melancolicas amam as
inspirações nocturnas.
[43]
―Pois as noites nem sempre são boas conselheiras, primo.
É a hora favoravel á espionagem e
ás... calumnias... Mas se sabe quem é, diga-o.
Aqui em minha casa e no seio de minha familia, é sempre bem
recebida a verdade. Não ha quem se tema d'ella.
E a morgadinha, dizendo isto, deixou-o desdenhosamente.
―D'esta vez foi de uma severidade!!―pensou Henrique.―Cada vez me
convenço mais de que o idyllio existe e que vae
já muito adeantado. Mas agora me lembro; e o meu duello com
o Romeu, que nunca mais vi? Não foi má tolice
aquella
minha! Preciso de procurar o homem para lhe dizer que o caso
não vale a pena.
O despeito de Magdalena pelas palavras de Henrique fôra
d'esta vez mais intenso; quasi chegou a fazel-a desesperar da
tenção que alimentava
ainda, pois disse a Christina:
―Ai, filha, que não sei se deva curar-te antes a ti do que
a elle.
―Que dizes?!
―Nada. Ha doenças que fazem desesperar os medicos.
Era já noite. Os grupos, que ainda depois do auto se
conservaram no pateo do Mosteiro, a brindarem a hospitalidade dos
proprietarios, fôram dispersando pouco a pouco.
A banda de mestre Pertunhas saiu tambem com o fim de se preparar para
as serenatas a casa do brazileiro e de varias personagens da terra, a
quem era devido o cantar os Reis.
Angelo saíra da sala. Fôra para o fim da rua de
sobreiros, anterior ao pateo da quinta, esperar por Ermelinda para lhe
dizer adeus.
Á medida que a noite se cerrava, parecia que se estendiam as
sombras á fronte e ao
coração do pobre rapaz.
Era a noite de Reis, a ultima dos dias de férias;
[44]
na manhã seguinte devia
partir com o pae para Lisboa.
Que amarguras as d'estas ultimas horas! que intensas saudades
não se amontoam no
coração das creanças ao expirar o
termo d'esse feliz
espaço de tempo, que viveram para os carinhos da familia e
para os folguedos despreoccupados!
Percebe-se em nós mesmos aquella imminencia de lagrimas, que
á menor palavra rebentam.
Quem não terá recordações
de infancia a falar-lhe d'isto?
O pateo despovoára-se de gente; através das
vidraças da casa viam-se já brilhar as luzes
interiores. Com o olhar fito no chão, a cabeça
inclinada,
Angelo permanecia immovel. Cortejavam-o, ao passar, homens e mulheres,
sem que elle désse por isso.
De repente voltou-se, porque ouviu atraz de si uns passos conhecidos.
Era Ermelinda, que voltava para casa. O pae ficára atraz a
pôr em ordem as roupas e mais objectos que serviram no auto.
―Esperava por ti, Ermelinda, para te dizer adeus―disse Angelo.
―Então vae-se embora?
―Vou ámanhã―respondeu Angelo, com a voz presa
de commoção.
―Muito cêdo?
―De madrugada.
Os dois calaram-se por algum tempo, olhando para o lado.
―E agora quando volta?
―Eu sei lá? agora... só para agosto.
Novo silencio.
―Então... adeus...
―Adeus, Ermelinda.
E com a voz quasi sumida e os olhos ennevoados de lagrimas, Angelo
estreitou contra o peito aquella que de pequena tratára como
irmã, e que
chorava ainda mais do que elle.
Que melancolico fim de dia tão alegre!
[45]
A este tempo uma sombra escura passou por elles e estacou.
―Ermelinda―disse logo a voz esganiçada e colerica, que
saiu d'aquelle vulto.
Ermelinda estremeceu ao ouvil-a.
Era a mulher do Zé P'reira que voltava das suas
devoções e ficára surprehendida com o
espectaculo
que vira. A assustadiça castidade d'aquella matrona toda se
alvoroçou com a tocante despedida das duas
creanças.
Ermelinda approximou-se, a tremer, da madrinha, que rudemente a agarrou
pelo braço e a levou comsigo.
Angelo esteve quasi resolvido a ir tirar das mãos d'aquella
harpia a innocente victima; mas a chegada de Herodes estorvou-o.
A sr.
a Catharina do Nascimento de S.
João Baptista ia
dizendo, ao levar comsigo a afilhada:
―Que terão ainda de vêr
meus olhos, meu Divino Pae do Céo? Que mundo este de
abominação, meu doce Jesus! Ó Virgem
das Dores, isto é para se vêr e não se
crer! Uma creanca, uma creanca de dois dias, se pode dizer, e
já assim com a alma perdida! Ó meu Jesus
crucificado!...
―Minha madrinha―dizia Ermelinda, chorando.
―Anda, anda, anda, minha amiga, que já os demonios saltam e
riem de contentes. Teu pae é que tem a culpa. Isto
são lá modos? trazer-te por
entremezes, que são artes do demonio, e arredar-te da
igreja, que é a casa do Senhor! É a missa dos
domingos, e acabou-se. Os resultados são estes!... Ai,
filha, que muita penitencia te é já precisa
para salvares a alma!
―Minha madrinha, minha madrinha, por as almas não me diga
isso―exclamava Ermelinda, aterrada.
―Os tres inimigos da alma te farão guerra, creatura,
assanhados como cães raivosos... Eu previa isto...
É o lucro de andar por essas casas de Satanaz,
[46]
onde não ha
religião nem temor de Deus...
Ó meu divino Jesus, e para isto tanto padeceste por
nós! E nós tão pouco caso fazemos dos
vossos preceitos, meu doce Jesus, filho de Maria Virgem... Depois
queixamo-nos da vossa justiça, quando já ardemos
nos fogos do inferno...!
A pequena Ermelinda tremia cada vez mais.
A velha proseguiu, em todo o caminho, n'estas
exclamações, bramando contra o peccado, contra a
familia do Mosteiro, que acoimava de herejes, contra o pae de Ermelinda
e contra esta, e, no seu fervor religioso, desenvolvia sobre o thema do
peccado dissertações não em demasia
apropriadas aos ouvidos de uma creança.
O resultado foi apoderar-se da pequena Linda um excessivo terror. Das
palavras da madrinha, que nem bem entendia, ficára-lhe uma
horrivel
convicção de que tinha a alma perdida, e com
lagrimas ardentes pagava a pobre creança bem caro as
alegrias d'aquella tarde, de que já tinha remorsos. Este
desalento e pavor quasi a fizeram doente.
Quando o pae voltou, estranhou-a. Elle, que vinha orgulhoso com os
triumphos proprios e com os da filha, sobresaltou-se ao
abraçal-a, Interrogou-a; pediu, ordenou; nada pôde
saber que explicasse os vestigios de lagrimas que descobria n'ella; se
instava, provocava-lhe o pranto; desistiu pois.
Pobre pae! não pôde dormir aquella noite! Logo de
madrugada teve de levantar-se, porque tinha de partir para o Porto em
recovagem.
Deixou Ermelinda a dormir; não a quiz acordar; beijou-a na
fronte desmaiada, abençoou-a e saiu.
―Comadre,―disse ao passar por casa do Zé P'reira―ahi lhe
deixo a pequena. Olhe-me por ella, que não está
lá muito boa.
―Vá com Deus―disse uma voz de dentro.
Era a sr.
a Catharina.
O recoveiro partiu, silencioso e triste.
[47]
XIX
No dia seguinte ao dos Reis partiram para Lisboa, como estava
determinado, o conselheiro e Angelo, o que deu logar no Mosteiro a
muitas saudades. O conselheiro devia voltar sómente por
occasião das eleições geraes que
estavam proximas.
Alguns dias depois, n'um domingo em que se festejava na aldeia o
padroeiro Santo Amaro, de quem reza a Igreja a quinze de janeiro,
estava Henrique de Souzellas na sala de jantar de Alvapenha, escutando
sua tia e Maria de Jesus, que ambas o entretinham com longas
conferencias de coisas de pouco interesse e ás quaes elle
ligava a minima
attenção.
Tinham acabado de jantar havia pouco tempo. A mesa conservava-se ainda
posta; Henrique fumava um charuto, recostando-se para o espaldar da
cadeira; D. Dorothéa, de mãos cruzadas deante da
cinta, falava; Maria de Jesus que, depois de pôr em arranjo a
cozinha, viera, segundo o costume patriarchal, tomar parte na sala na
conversa do pospasto, auxiliava a memoria da ama sempre que esta
emperrava, corrigia-lhe as involuntarias e frequentes
inexactidões em que a via cair.
Henrique habituára-se já a estes placidissimos
habitos; e apesar de não ligar
attenção
á conversa, ou por isso mesmo que lh'a não
ligava, achava-lhe certas virtudes estomacaes, que lh'a tornavam
agradavel.
Depois de muitas voltas a conversa caíu sobre as
occorrencias do auto dos Reis.
―Eu ainda estou para saber como aquillo foi!―dizia D.
Dorothéa.―Quando me lembro! Como aquella rapariga falava!
―Ó senhora; olhe que já me disseram que a
[48]
pequena tinha espirito―disse
Maria de Jesus, com ar de mysterio.
―Olhem o milagre!―respondeu D. Dorothéa.―Por essa estou
eu.
―Diz que desde aquelle dia anda amarella e triste, que nem parece a
mesma.
―Então é mais do que certo.
―Ai, a tia Dorothéa tambem com crendices!―disse Henrique,
rindo.―Então parece-lhe que traz espirito aquella
creança?
―Pois, menino, aquillo a falar a verdade!
―E não é mais natural suppôr que
alguem lhe ensinou os taes versos?
―Mas quem? se o Pertunhas diz que os versos eram outros e
até que aquelles não calhavam bem nas
lôas?
―O Pertunhas é um parvo. Houve alguem que ensinou aquillo
á pequena e até suspeito com que fim.
―Não, sr. Henriquinho, olhe que alli anda coisa ruim.
Tambem o filho do Ceboleiro, quando trazia o espirito, dizia coisas
tão bonitas, que nem um livro. A senhora não se
lembra?
―Ora se lembra!
―Digam-me―insistiu Henrique.―Quem ha aqui na aldeia que
faça versos?
―Versos!―repetiu a D. Dorothéa, admirada.―Ninguem, que eu
saiba.
―Ó senhora! Então o João do Trolha?
Não deita tão bonitos versos nos desafios?
―Sem ser o João do Trolha―tornou Henrique, sorrindo.
―Ai, não se ria, sr. Henriquinho; olha que os deita muito
bem! Ainda no outro dia, na noite de Janeiras, não se
lembra, senhora, dos versos que elle botou?
Viva a senhora D.
Dorothéa,
Raminho de bem-me-queres,
Quando põe a sua touca
É a rainha das mulheres.
[49]
―E depois a mim:
Viva a senhora Maria,
A perola das criadas,
Quando se chega
á janella
Ficam as estrellas pasmadas.
―Ora com o que você vem, mulher! Não tinham as
estrellas mais que fazer do que pasmarem―disse D. Dorothéa.
―Isso é por dizer, senhora; já se sabe que...
sim... como o outro que diz...
―E além do João do Trolha, quem ha mais que
faça versos?―perguntou Henrique.
―Que eu saiba...―disseram as duas.
―E aquelle Augusto?
―O Augustito do doutor? O filho! Coitado do pobre rapaz. Elle sim!
Credo! Não, aquillo é um rapaz de muito juizo.
―Isso não tira. Então a tia julga que
só os tolos fazem versos?
―Tolos não digo, mas...
―Mas um pouco feridos na aza, não é verdade?
―Ora pois então dize-me tu, menino, se um homem
sério... sim... um homem de respeito, faz versos?
―Por que não?
―Versos?!
―Versos, sim, senhora.
D. Dorothéa fez um gesto de incredulidade.
Henrique ia redarguir, quando ouviram passos no patamar de pedra da
entrada e após algumas pancadas á porta da sala.
―Abra, tia Dorothéa―disseram de fóra as vozes
de Magdalena e de Christina, que fôram logo reconhecidas.
E cêdo depois entravam alegremente na sala, em companhia de
D. Victoria, que vinha mais retardada.
D. Dorothéa levantou-se para recebel-as.
[50]
―Bons dias ou boas tardes, tia Dorothéa, porque me parece
que já jantaram. Vimos aqui para confiar aos seus cuidados a
tia Victoria, que não nos quer acompanhar a ouvir a palavra
eloquente do missionario―disse a morgadinha.
―Eu não; para apertos e barafundas é que
não estou.
―E tu vaes, Lena? perguntou D. Dorothéa.
―Então? Não quero passar por impenitente. Ainda
o não ouvi. Pode crer? Além de que percebi na
Christe um fervor, com o qual quiz condescender.
―Dizem que préga tão bem―atalhou Christina.
―Pois prégará, mas eu
é que já não estou para
sermões―ponderou D. Victoria.
―Vou eu tambem ouvir o missionario―disse Henrique,
levantando-se.―Já m'o mostraram ha dias. Se os dotes
oratorios do homem corresponderem á figura...
―Então?―interrogou D. Dorothéa.
―É um homem gordo e vermelho, de pulso grosso e, em geral,
typo da grossura do pulso.
―Pois bom é que vás, menino―disse D.
Dorothéa―para acompanhares as pequenas.
―Como quizer, primo,―acudiu Magdalena―mas não se
constranja. O Torquato tambem vae.
―Que quer dizer? Que me dispensa?
―Não; mas que se é só por
condescendencia que...
―É por prazer. É por
devoção.
―N'esse caso...
E Henrique foi procurar o chapéo para acompanhar as duas
primas á igreja.
O Santo Amaro fôra festejado com espavento na freguezia da
sua invocação. Vesperas, missa
cantada, duplo sermão, e procissão á
volta da
igreja, nada faltára para solemnisar a festa.
O sermão da manhã fôra
prégado por o abbade; o da tarde havia sido concedido ao
missionario, que o aproveitára para uma das suas
catechéses.
[51]
A procissão já tinha recolhido, quando chegaram
á igreja a morgadinha e Christina, na companhia de Henrique
e de Torquato. Havia no adro muita gente, e algumas barracas de doce e
de café, como n'um arraial.
Pela porta principal da igreja engolfava-se a multidão, como
em bôca de sorvedouro, subitamente aberto no leito de um rio,
se precipitam as aguas impetuosas.
A fama, que pelas aldeias circumvizinhas apregoava o nome do
missionario, attrahira immensa gente a escutar o sermão.
As senhoras do Mosteiro romperam a custo por entre a compacta massa
popular, que se amontoava á porta da igreja, e conseguiram,
por deferencia excepcional
dos mesarios, entrar pela sacristia para a capella-mór.
Tinha um aspecto melancolico o interior da igreja n'aquella
occasião. Pobre de si e pouco alumiada, mais escura e
lugubre parecia com a extraordinaria quantidade de gente que a enchia,
na maior parte mulheres de roupas escuras e em que só
alvejava o lenço branco que usavam á
cabeça.
Apesar da quadra ir fria, como de janeiro que era, respirava-se alli
dentro uma atmosphera quente, abafadiça e pouco salutar.
Um surdo murmurio formado por centenares de vozes rezando, a meio tom,
orações e ladainhas,
contrastava com as altas vozes de festa, que se escutavam lá
fóra, e requintava a triste
impressão que se recebia ao entrar. Alli um grupo de
mulheres, de joelhos, escutavam a leitura de pias
orações, que
uma fazia em tom lutuoso, e respondiam em côro com
Padre-Nossos e Ave-Marias; além viam-se outras com as faces
rojadas no chão, batendo no peito e desentranhando
exclamações, para
commoverem a Divindade; outras em extase, como Santas Therezas, de
braços abertos deante da imagem da Virgem; outras
amortalhadas, em cumprimento de
[52]
promessa feita a algum santo. Cavados na espessura das paredes havia
uns pequenos cubiculos, que serviam de confessionarios. Ás
portas d'estes nichos, munidas de um crivo de folha, adheriam, como as
lapas nos rochedos, os vultos escuros das penitentes, fazendo para
dentro a circumstanciada exposição dos peccados
da semana, e recebendo de lá regras de bem viver, preceitos
de
devoção, ás vezes exaggerada e
inspirada de certa moral de convenção, com que a
ignorancia ou a
má fé porfiam em falsificar os simples e
luminosos dictames da moral, que a consciencia reconhece e que o
Evangelho apregôa.
Ás vezes despegava d'aquelle crivo de peccados uma das
confessadas; e exhausta de fôrças, abatida
de animo, descrendo da misericordia divina, ia cair com desalento nos
degraus do altar de Deus, que o fanatismo cego, senão
hypocrita, lhe pintára
inexoravel verdugo. Quando outra se não succedia a esta,
via-se rodar nos gonzos a pequena porta d'estes cubiculos, e sair de
lá um padre de batina, sócos
e capote de cabeção, satisfeito de si, e
revendo-se n'aquelles corpos prostrados, n'aquelles gemidos surdos,
n'aquellas lagrimas humedecendo o pavimento do templo, tristes indicios
de desalento moral, com que conseguira quebrantar os ingenuos espiritos
que dirigia pela intimidação cruel.
De tudo isto vinha o aspecto sombrio e lugubre á igreja, que
nem as luzes dos altares, nem as sanefas e cortinas de damasco, que com
tanta arte dispuzera mestre Pertunhas, conseguiam dissipar.
Henrique estava sendo desagradavelmente impressionado por o que via.
Olhava com desgosto para aquelles signaes de um terror supersticioso, e
sentia exacerbarem-se-lhe as prevenções que
nutria contra o clero, cuja influencia moral, aliás justa e
vantajosa, é cada
vez mais diminuida por aquelles dos seus membros que pretendiam
augmental-a por meios improprios
[53]
da sublimidade da sua missão e até dos preceitos
da religião, de que se dizem ministros.
Henrique fez algumas reflexões n'este mesmo sentido a
Magdalena, que não pôde deixar de apoial-as, tanto
mais que sabia o animo de Christina, que os escutava, não de
todo superior a este apparato terrorifico.
A hora marcada para o sermão approximava-se; haviam-se
já evacuado os differentes confessionarios, e o povo cada
vez se apertava mais em todos os pontos da igreja e trasbordava para
fóra das portas do templo. Quem de dentro olhasse para a
porta principal veria que a grande distancia, na rua, se prolongava a
multidão.
Apenas um confessionario permanecia ainda occupado. Havia mais de uma
hora, que alli estacionava de joelhos uma penitente com a
cabeça coberta por a capa de panno, com que rodeava o crivo
do confessionario.
Nem o menor movimento revelava animação n'aquelle
vulto.
Henrique notára essa immobilidade, que ao principio o fez
sorrir; depois causou-lhe espanto e acabou, emfim, por o indignar.
Qual, porém, não foi a sua surpreza e a de
Magdalena, quando, ao terminar a confissão, reconheceram as
feições
da penitente por as de Ermelinda, a filha do Herodes, a formosa e
amoravel creança, que, dias antes, tanto enthusiasmo
causára, agora pallida, abatida, sem aquelles sorrisos nos
labios, que tanta graça lhe davam!
E era esta creança que tão longos peccados tinha
a narrar, para assim ficar tanto tempo aos pés do confessor?
Ermelinda, vagarosa, trémula, tendo claros os vestigios de
lagrimas, e, como que enleiada de vergonha, caminhou por entre os
grupos de mulheres ajoelhadas na igreja e veio cair de joelhos ao lado
da madrinha e cêdo rojava com ella a fronte no
chão, que regava de lagrimas ferventes.
[54]
Pobre creança! Que negros crimes lavariam aquellas lagrimas?
Que culpas teria a expiar aquella inconsolavel dor?
O confessionario d'onde ella se afastára, abriu-se, emfim, e
ás vistas, que para alli se voltaram, mostrou um padre
gordo, córado, de olhos e fronte pequenos, cabellos
grisalhos, rompendo-lhe a um dedo das sobrancelhas. O homem parou algum
tempo a fitar o auditorio.
Espalhou-se no templo um sussurro particular; um movimento commum
animou aquellas cabeças todas, quando este homem appareceu.
Era o missionario.
A sua passagem para a sacristia foi uma passagem verdadeiramente
triumphal. Curvaram-se até ao chão as beatas,
beijando-lhe a mão ou as
borlas da batina, e pedindo-lhe a benção, que
elle
distribuia com profusão.
Mas a meio caminho da sacristia, para onde se dirigia, surgiu-lhe quasi
do chão um estorvo.
Zé P'reira, o desconfortado marido, estava deante d'elle,
gesticulando e realisando um triplice e admiravel esforço
para firmar as pernas, para abrir os olhos, e para
desembaraçar a lingua.
Dizia o homem:
―Ó sr. aquelle... ó sr. padre, ou missionario,
ou lá o que é... eu quero-lhe perguntar uma
coisa. Deus disse... sim, Deus disse... A religião manda...
Quando um homem se casa...
O missionario não esperou pelo fim da inesperada
interpellação; com modos rudes e pulso vigoroso
arredou de si o atrevido, e bradou, fulo de cólera:
―Então que desafôro é este? Deixam um
homem n'este estado vir ter commigo?!
E com maneiras e palavras igualmente asperas impoz silencio ao povo,
que rira do desengano do Zé P'reira. Os mordomos acudiram
logo para afastarem o Zé P'reira d'alli para
fóra. Elle deixou-se ir, limitando-se a dizer mansamente:
[55]
―Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!
Então uma pessoa não pode dizer o que sente?
Ia elle já fóra da igreja e ainda se lhe ouvia a
voz repetir:
―Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!
Quando depois d'esta scena, o missionario passou por Henrique, murmurou
este em voz perceptivel, ao ouvido da morgadinha:
―Diga se este todo e este modo de tratar ovelhas
não
é mais de magarefe do que de pastor?
O missionario ouviu estas palavras, pois que se voltou como se uma
vibora o picasse, e faiscou-lhe no olhar o fulgor de um odio
pharisaico. Henrique arrostou-o com audacia provocadora.
O padre entrou para a sacristia.
No entretanto o auditorio dispunha-se para escutar o sermão,
o mais commodamente que era possivel n'aquelle pequeno recinto.
No fim de alguns minutos apparecia no pulpito a figura bem nutrida e
pouco attrahente do famigerado educador dos povos.
Fitou com sobranceria os ouvintes e com particular insistencia fixou em
Henrique, que lhe ficava fronteiro, um olhar, que elle sustentou com
firmeza.
Esta tacita provocação durou alguns minutos, no
fim dos quaes poderia talvez, quem estivesse prevenido, distinguir nos
labios do padre um sorriso rancoroso e perceber-lhe um movimento de
cabeça quasi ameaçador:
Emfim soltou o texto latino do sermão.
Seguiu-se nova pausa, e principiou.
Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entresachar nas
paginas humoristicas da
Vida e opiniões de
Tristam Shandy, um
sermão sobre a consciencia, eu não ouso
transcrever para aqui o modelo de eloquencia sacra, recitado pelo
missionario n'aquelle dia.
Ainda se eu pudésse transmittir aos leitores o
[56]
tom rouco de voz, a extravagancia de gestos, o
decomposto dos movimentos com que o orador acompanhava a
recitação dos descosidos periodos d'aquella
indigesta prática, talvez me animasse á empreza,
para lhes dar um exemplo da vigorosa eloquencia, com que se anda
atrazando a
civilisação do povo e prejudicando a verdadeira
religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja voz
é abafada por aquella gritaria.
As mais tetricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.
Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as
fornalhas ardentes, innumeras torturas, a que o menor delicto, tal como
um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma
involuntaria falta á missa, uma penitencia esquecida, uma
oração supprimida, arriscava as almas por toda a
eternidade. Para cada peccado venial uma perspectiva de tormentos sem
fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal de Santo Officio, onde
os autos de fé, os pôtros, e cavalletes aguardavam
os delinquentes arrastados até alli; eis o resumo da
oração. A fatal e desesperadora
sentença, que o poeta florentino esculpiu no portico do
inferno, traçava-a este sobre os umbraes do tribunal do
Eterno.
Na esculptura de Christo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto
de um accusador, surgindo alli a pedir vingança, e
não o do Redemptor
sublime a implorar e prometter perdão. E tudo isto de
mistura com imprecações contra as modernas
instituições sociaes, contra a obra do seculo,
contra os descobrimentos, contra a sciencia, contra tudo em que se
descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os
costumes e as ideias em sentido menos favoravel á propaganda
reaccionaria.
Á medida que a oração progredia,
animava-se a voz do orador; augmentava a desordem dos gestos e refinava
a selvageria das imagens.
Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os
[57]
ais do auditorio, e principalmente da parte
feminina d'elle iam crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos.
Cêdo era já um angustioso clamor em toda a igreja.
Magdalena, que se sentia, ella propria, um pouco impressionada por este
espectaculo de desolação, voltou os olhos para
Christina. Viu-a
trémula, pallida, com as faces banhadas em lagrimas, tendo
no gesto todos os signaes de um intenso pavor.
Assustada com o estado da prima, a morgadinha fez notal-o a Henrique, e
tacitamente lhe communicou as apprehensões que sentia.
Henrique comprehendeu a necessidade de dissipar a funesta influencia
que se estava exercendo no animo timido de Christina.
Sentou-se por isso junto das duas raparigas e principiou a distrahil-as
com commentarios satyricos ás palavras do sermão
e á figura do
orador, que ambas offereciam farto alimento para elles.
D'ahi a pouco Magdalena instava já com Henrique para que se
calasse.
Previa o perigo que poderiam correr, persistindo n'aquelles
commentarios improprios do logar.
Effectivamente não tinham passado despercebidos, do padre os
commentarios de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de
Magdalena; e a raiva despertada pela descoberta cada vez inflammava
mais o orador, exacerbando-lhe a virulencia da phrase.
Já não podia tirar os olhos d'aquelle grupo, e
por vezes a cólera, estrangulando-lhe quasi a larynge,
interrompera-lhe o discurso.
Alguns ouvintes, seguindo a direcção d'aquelles
olhares faiscantes, haviam attingido já a causa d'elles.
D'ahi algumas murmurações que principiaram a
sussurrar pela igreja.
No grupo das beatas, em que estava Ermelinda, fôram ellas
mais acerbas do que nenhumas. A sr.
a
[58]
Catharina e as suas companheiras fartaram-se de anathematisar a
impiedade e a heresia da gente do Mosteiro, e no
coração da filha do Cancella,
dominado pelo terror que o sermão levára ao
cumulo, calavam aquelles dizeres, que a faziam quasi olhar, como se
fôssem já prezas do inferno, para
Magdalena e Christina, a irmã e a prima de Angelo, do seu
amigo de infancia, em quem já não se atrevia a
pensar.
N'uma occasião em que o missionario fulminava com mais
vehemencia os progressos da industria moderna e chamava redes do
demonio e caminhos do inferno aos telegraphos electricos e
ás vias-ferreas, Henrique approximando-se dos ouvidos das
duas primas, fez não sei que reflexão tanto a
proposito, que a morgadinha não conteve o riso; a propria
Christina sorriu tambem.
Era de mais! O padre pulou no pulpito. Com os olhos em chammas, as
faces apopleticas, os labios espumantes, os punhos cerrados e os
braços hirtos e estendidos na direcção
de Henrique, rompeu
n'estes violentos termos:
―Fóra do templo, pedreiros livres, que vindes aqui
escarnecer da palavra do Senhor! Fóra do templo, impios
libertinos, que não respeitaes os ministros de Deus, nem o
seu altar! Andam lobos no povoado e vieram esconder-se entre as ovelhas
na casa do Senhor! Escorraçae-os, irmãos, se
não quereis que se vos pegue a lepra do peccado e que Deus
arraze esta aldeia, como arrazou Gomorrha e Sodoma. São
esses os que trazem das cidades a peste para as aldeias; são
estas as pragas que nos veem com as estradas e com a
civilisação. Fugi
d'elles, que trazem o demonio na alma! Homens sem religião,
mulheres sem temor de Deus,
mações, pedreiros livres, vindes para aqui
tentar as almas? Eu vos esconjuro! eu vos
requeiro! Vade retró, Satanaz, vade retró! vade
retró!...
E de cada vez que repetia a fórmula exorcista, o
[59]
missionario estendia o braço na
direcção de Henrique.
Este, desde que viu que a imprecação lhe era
dirigida, levantou-se e fitou o padre com ousadia imprudente.
Preparava-se para lhe responder alli mesmo.
Quando o missionario concluiu, o sussurro da igreja degenerou em
desordem. Das beatas transmittiu-se a revolta aos homens do campo, cuja
má vontade, para com a gente das cidades, cresce sempre que
se suspeitam alvo dos desdens ou zombarias d'esta. As
ameaças soavam já distinctas, os varapaus
mexiam-se pouco pacificamente, o escandalo tomára
proporções assustadoras.
Christina quasi desfallecia; Magdalena, pallida, mas sem perder a
presença de espirito, que nunca a abandonava, segurou o
braço de Henrique e queria obrigal-o a retirar-se da igreja.
Henrique resistia e procurava falar.
O velho Torquato, trémulo e enfiado, puxava tambem por elle
como podia.
O alarido, a confusão, a desordem recrudesciam. O padre
tinha perdido a cabeça, e do pulpito animava a anarchia,
berrando e bracejando.
Alguns homens prudentes, e entre elles o santo homem de um cura que
havia na freguezia, obrigaram, quasi á
fôrça, Henrique a sair da
igreja por a porta da sacristia.
Ao vêl-o retirar, acompanhado das senhoras, o povo
precipitou-se em confusão para a porta principal, para os
vir esperar á saída da sacristia, e correu
clamando atordoadoramente.
E de feito, quando alli chegaram, viram-se em frente de uma
impenetravel parede humana, de centenares de rostos que os fitavam
furiosos, de braços que os ameaçavam, e de
bôcas d'onde partiam gritos de «morte aos pedreiros
livres, aos libertinos e aos herejes.»
Magdalena recuou; Christina encostou-se-lhe ao hombro, quasi desmaiada.
[60]
Henrique parou á porta, pallido, mas sem recuar deante
d'aquella gente furiosa e ameaçadora.
―Que querem de mim e d'estas senhoras?―perguntou elle, com voz firme.
Em vez de responder-lhe, berraram com mais violencia:
―Morra o pedreiro livre!
―Ensinem esses senhores da cidade!
―Pouca vergonha!
―Isto não fica assim! Isto é de mais!
―Mação!
―Hereje!
―Quero passar!―repetiu Henrique, no mesmo tom imperioso.
―Havemos de ensinar estes fidalgos.
―Excommungados!
―Havemos de lhes dar os risinhos na egreja.
Henrique não podia já reprimir a impetuosidade do
genio; deu um passo para elles, levantando o chicote que trazia na
mão.
Era uma imprudencia perigosa. N'um momento uma verdadeira nuvem de
varapaus cruzou-se sobre a cabeça d'elle.
E os gritos de «morra! mata! abaixo os pedreiros livres e
herejes!» levantaram-se mais ameaçadores do que
antes. Magdalena susteve, a tremer, o braço de Henrique.
E o tumulto crescia cada vez mais e cada vez mais augmentava o perigo.
Uma grande pedra, impellida de longe, veio bater na verga da porta da
sacristia, e na quéda ameaçava ferir a
cabeça de uma creança
que, entremettendo-se no grupo dos amotinadores, conseguira collocar-se
junto de Magdalena, e de olhos espantados assistia áquillo
tudo com infantil curiosidade, emquanto a mãe afflicta a
chamava em altos gritos, procurando-a no adro. A morgadinha, estendendo
as mãos para proteger a cabeça da
creança, foi ferida nos dedos pela pedra. Com gesto
[61]
sereno, e em tom desaffectadamente
reprehensivo e ao mesmo tempo placido, disse para toda aquella gente:
―Não vêem que iam matando esta
creança?
Esta simples acção, e estas palavras da
morgadinha, produziram mais effeito do que todos os arrazoados e todas
as resistencias. Havia n'ellas claros indicios de uma indole generosa,
e a generosidade foi e será sempre um dos mais poderosos
elementos para dominar e commover as massas. Sabem-o os especuladores
politicos, que tanto se esforçam por simulal-a, quando
precisam do povo.
―Quem foi que atirou a pedra?―perguntou um.
―Temos tolice!
―Nada de pedra, olá!
―Então isto é coisa de garotos!
Estava a quebrar-se a furia da onda popular. Os que antes gritavam
«morra» achavam já
reprehensivel a primeira tentativa de lapidação.
E comtudo era a pedra a arma mais prompta para executar a
sentença. Era evidente que o maior perigo
passára e que um pouco de prudencia resolveria a crise.
O peor era que Henrique possuia em pequeno grau essa qualidade, e,
irritado pelo insulto, ia commetter talvez algum acto irreflectido,
apesar dos esforços de Christina e de Torquato para o
reprimirem.
Uma circumstancia, porém, veio inesperadamente em auxilio
d'elles, e concorreu para dissipar a tempestade.
Foi o caso que, depois de ser posto fóra da igreja o
Zé-P'reira, que,
pelas razões que o leitor já sabe, e inda mais
depois do mallogro da
interpellação ao missionario, não
olhava com bons olhos para este, veio desconsoladamente sentar-se no
adro, sobre os degraus de um cruzeiro, tendo ao seu lado o popular
tambor, instrumento das
[62]
suas
glorias, e que ainda n'aquelle dia servira á frente da
procissão.
Ahi se conservou em quanto durou o sermão. Junto do artista
deitára-se a dormir o seu satellite, o rapaz do bombo, o
que, a passadas compassadas e valentes, secundava os rufos rapidos e
febris que o outro executava na caixa―pancadas que eram, por assim
dizer, as virgulas d'aquelles floridissimos periodos acusticos.
Em posição de cansaço e desalento o
Zé P'reira monologava, como era habito seu, sempre que tinha
o cerebro repassado do espirito familiar.
Lamentava comsigo, o bom do homem, o desmazêlo domestico da
sua cara metade; a influencia funesta dos missionarios na paz das
familias, e sobre tudo a indifferença que principiava a
perceber nas massas para as maravilhas do predilecto instrumento, que
elle conhecia a preceito.
Era de facto esta uma das causas dos pesares secretos do
hortelão.
Desde que, por influencia do mestre Pertunhas, se instituira a
philarmonica na aldeia, Zé P'reira andava triste e
desassocegado.
N'aquillo viu elle a morte da sua arte. Um
ceci tuera cela,
como o que preoccupava e entristecia o arcediago de Notre-Dame de
Paris, analogamente inquietava o nosso homem. O espirito e
gôsto publico entravam em nova phase, preparava-se uma
revolução na arte. O reformador era o mestre
Pertunhas; instituindo a banda marcial, verdadeira extravagancia
romantica comparada á simplicidade e nobreza classica dos
portentosos rufos do Zé P'reira, o mestre de latim realisou
um commetimento digno de menção na historia da
arte.
Pobre Zé P'reira!
Estas reflexões estavam-lhe acudindo todas, e mantinham-o,
havia perto de uma hora, em uma posição
contemplativa deante do tombado
instrumento de seus ruidosissimos triumphos. Lia-se
[63]
n'aquelles olhares fixos uma melancolia
quasi poetica.
N'esta contemplação o surprehendeu a tumultuosa e
subita saída do povo pela porta da igreja, e as scenas de
motim que se lhe seguiram. A intelligencia pêrra de
Zé P'reira não achou logo a
explicação do que via. Pouco a pouco
porém os varapaus no ar, os gritos, a confusão,
principiaram a dar-lhe uma vaga consciencia da desordem popular.
Os instinctos ordeiros e pacificos de Zé P'reira acordaram,
e o homem ergueu-se.
Olhou algum tempo para o logar do maior tumulto, e em seguida passou ao
tiracollo a alça do tambor.
Olhou outra vez, e com um pontapé acordou o seu satellite,
que, estremunhado, tomou automaticamente para si o bombo do
acompanhamento.
Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Magdalena.
Então o Zé P'reira não
esperou mais nada, tomou uma resolução, fez um
signal ao rapaz, e...
Pom―fez a baqueta d'este, caindo
com toda a fôrça sobre a retesada superficie do
bombo.
Taplão, taplão,
rataplão,
rataplão...―responderam as baquetas movidas
pelas amestradas mãos do Zé P'reira.
Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na
direcção do som.
O Zé P'reira proseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o
jogo das baquetas; começava a ganhal-o o vapor do
enthusiasmo.
Principiou a acudir o povo para junto do artista.
Este tomára-se já do
raptus, do phrenesi musical. Já
não eram só as mãos,
eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que
rufavam. De olhos fechados, dentes ferrados nos labios, ventas
offegantes, contrahidos quasi tetanicamente os musculos do
pescoço, a vergal-o para traz, Zé P'reira
[64]
parecia endemoninhado.
Não via, não ouvia,
não sentia, não tinha consciencia de si, nem dos
seus actos; todo elle era fogo, delirio, convulsão, febre,
loucura. Parecia que poderosas correntes electricas se transmittiam do
tambor ao cerebro, e do cerebro ao tambor, desafiando aquelles
movimentos choreicos, aquelles grunhidos surdos, aquellas visagens
extravagantes, aquellas contracções geraes, que o
torciam, desconjunctavam e desfiguravam.
Vencera-o completamente a febre; sangue, nervos, musculos, cerebro,
tudo era dominio seu; congestionado, allucinado, louco, rufou, rufou,
rufou com desespero, rufou até as baquetas se não
avistarem, de rapidas que se moviam; rufou até o ouvido
quasi não perceber a descontinuidade dos sons; rufou
finalmente até cair por terra exhausto, no collapso que
succede ás convulsões do espasmo. Se tinha de ser
aquelle o declinar de uma gloria, todos os astros lhe invejariam
tão esplendido crepusculo.
O povo inteiro applaudiu o artista.
E quando voltaram a si do extase em que elle os tivera, acharam
já fechadas as portas da sacristia e nem vestigios da
familia do Mosteiro. O povo dispersou pacificamente.
XX
Passados dias voltava o Herodes do Porto, quando nas proximidades da
aldeia encontrou alguns homens a cavallo, que lhe eram desconhecidos.
O leitor que tenha sempre vivido n'uma cidade populosa, onde lhe
é impossivel conhecer todos os que com elle habitam na mesma
terra, mal pode fazer ideia da sensação que
produz no habitante de
[65]
uma aldeia, villa ou cidade
pequena, a presença de uma cara estranha.
Formam-se-lhe logo no espirito mil conjecturas, e a mais inquieta
curiosidade instiga-o a decifrar a significação
d'aquelle apparecimento.
Isto aconteceu com o Cancella.
Desde que avistou os desconhecidos, que dissemos, não tirou
mais os olhos d'elles. Eram tres em numero, traziam grandes botas, e
largos chapéos, mantas ao hombro, usavam bigodes e lunetas
escuras.
―Passaros de arribação...―pensava o Herodes
comsigo―que vento traria isto para aqui?
E, chegando-se mais de perto, saudou-os cortezmente.
Um d'elles dirigiu-lhe a palavra:
―Olá, ó amigo, onde ha por aqui uma casa
habitavel, em que nos alojemos?
―Por pouco ou por muito tempo, meu amo?
―Por o tempo que levar a construir uns quinze kilometros de estrada.
―Ah! então v. sr.
as são
engenheiros?
―Julgo que sim.
―Então, visto isso, as estradas sempre vão
principiar?
―Antes de arranjarmos casa em que fiquemos, de certo que
não.
―Ai, sim, querem uma casa... Eu lhes digo, não tem nada que
saber; os meus amos vão por ahi sempre a direito, e
lá adeante, chegando ao
pé de uma oliveira, tomam á sua mão
esquerda por um caminho estreito, que tem uma cancella no fim; depois,
logo que virem uma nora, carregam á
direita, seguem sempre ao lado de um muro branco, até
chegarem á eira; ahi tomam por um outro
atalho, que está ao lado e vão dar a um
larguinho... Depois não tem que saber, deitam pela rua em
frente e perguntando alli pela estalagem da Mouca, logo lhe dizem.
[66]
Os tres cavalleiros olharam uns para os outros, consternados com a
explicação.
Iam a dirigir mais algumas perguntas, quando passou por alli uma
rapariguita, guardando porcos, que parou pasmada a olhar para os
engenheiros.
―Se v. s.
as querem, esta pequena vae
ensinar-lhes o caminho.
Acceitaram contentes, e cêdo partiam, precedidos por a
pequena cicerone.
―Grande novidade!―ficou dizendo o Cancella comsigo―sim, senhor; com
que vão principiar as estradas! Pois nunca cuidei que
fôsse nos meus dias. Então... querem vêr
que sempre sae certo o que eu ouvi dizer, que vae abaixo a casa e o
quintal do tio Vicente?... Pois se querem vêr... O
pobre homem estala de paixão, se isso assim é;
isso
é com certeza... Pois, senhores... isto de estradas...
é bom, é; pois não é?
Sempre
é outro arranjo para quem tem de ir á cidade...
Nova surpreza esperava o Herodes n'este regresso aos lares. De longe
ainda, divisou affixado á porta da igreja um edital. Outra
circumstancia que nas cidades nem nos obriga a desviar a
cabeça, porém que nas aldeias toma as
proporções de um grande successo.
―Ui! Temos novidade―disse o Herodes ao vêl-o.―Edital
á porta da igreja!―e approximou-se
para ler.
Proclamava o chefe do concelho aos seus administrados que, por ordens
terminantes do governo, eram, desde aquella data, expressamente
prohibidos, sob as mais severas penas, os enterramentos no interior da
igreja, e que todos se fariam no cemiterio, para esse fim já
construido. Havia no logar um grupo de populares commentando a ordem e
murmurando contra o governo e contra o conselheiro, e falando de
opposição e motim.
―Bom, mais outra!―dizia o Herodes, ao apartar-se do logar.―Grandes
coisas se passaram cá
[67]
na terra, emquanto eu andei por fóra! O peor é
que não sei se a coisa irá assim ás
mãos
lavadas; ao que já ouço por ahi rosnar!...
É o
diabo!... Eu digo, não sei se é do costume em que
uma pessoa se põe... mas... lembrar-se, a gente de que fica
assim á chuva e ao sol... Mas é do costume,
é... Bem sente lá uma pessoa o frio depois de
morta.
E fazendo estas reflexões proseguiu no seu caminho.
Passou por uma pequena capella, erecta á borda de um
pinheiral, sob a invocação da Virgem da
Esperança, e reteve-se a fazer oração.
Áquella imagem costumava encommendar a filha, sempre que
saía da aldeia, e no regresso pagava-lhe em fervorosas
orações a protecção obtida,
e separava-se d'alli mais consolado e tranquillo. D'esta vez,
porém, ficou triste e sobresaltado. Porquê?
É que se lembrára de que tinha, ao partir,
deixado Ermelinda doente, e estremecia agora na incerteza de como a
iria achar.
Esta ideia fel-o apressar o passo, como se quizesse, quanto antes,
tirar-se d'aquella incerteza; mas desde que avistou os telhados e muros
da casa parou irresoluto.
Parece que os objectos inanimados nem sempre teem para nós
um mesmo aspecto. Ha occasiões em que as casas, as arvores,
os muros, as portas, se nos mostram com certos ares melancolicos, e
quasi direi pensativos, que nos enchem de sombras o
coração; outras em que umas apparencias de
sorrisos lhes dão uns ares de festa que alegram e convidam.
Ao Herodes apparecia-lhe triste d'esta vez a casa, que de ordinario, ao
avistal-a, lhe enviava um sorriso a dar-lhe as boas vindas.
Seria o effeito das tintas desmaiadas, que dá aos objectos o
sol crepuscular? Seria o reflexo dos presentimentos proprios, que lhe
estavam confrangendo o coração? Mas como lhe
acudiram tão de subito
[68]
esses presentimentos, a
elle, ainda pouco tempo havia tão despreoccupado! Como lhe
occorrera de repente a memoria d'aquelle dia em que, voltando tambem de
fóra, viera encontrar quasi morta a mulher, que chorava
ainda, a mãe de Ermelinda? Phenomenos que se perdem na parte
obscura da vida moral, da qual ainda a analyse não conseguiu
devassar as sombras.
Crescia o sobresalto do pobre homem ao pousar os pés nos
primeiros degraus da escada de pedra. Ao passar pela porta do compadre,
não tivera coragem de perguntar; receiou sair da incerteza.
Foi quasi a tremer que empurrou deante de si a porta da casa, que
encontrou aberta.
Logo ao entrar, recuou espantado e não reprimiu uma
exclamação de surpreza.
Fôra a causa o achar novidades na primeira sala.
Deu com os olhos n'uma fileira de pequenas cruzes de pau preto que
cercavam as paredes, e em alguns caixilhos com imagens de santos, que
não deixára alli ao partir. E ninguem a
recebel-o.
―Crédo!―disse o Cancella, desgostoso.―Para longe o
agouro! Cruzes negras á chegada! São
coisas da comadre. Maldita velha! Jurou metter-me scisma em casa e na
cabeça da rapariga, e se não lhe
acudo...―Ermelinda!―exclamou, chamando por a filha.
Como não recebesse resposta, passou para os aposentos
interiores.
Á entrada do corredor descobriu uma pequena pia de
louça cheia de agua benta, em que mergulhava um ramo de
alecrim.
―Mau!―disse o Herodes, cada vez mais descontente.―Vou vendo que a
minha comadre fez por aqui das suas. Ora queira Deus... queira Deus...
Ermelinda!
E correu toda a casa, que não tinha muito que correr, e
explorou o quintal, e sem achar a filha; já inquieto, chegou
a um quarto mais retirado, o
[68]
unico
que ainda não revistára. A porta estava
fechada por dentro, porém a péquena cravelha
fraca resistencia oppoz á pressão que na porta
exerceu o Herodes.
Franqueando assim a passagem, parou no limiar.
Moveu-se, ao ruido que elle fez, um vulto que parecia ajoelhado n'um
canto escuro do quarto.
―És tu, Linda? Estás ahi?―perguntou o Cancella,
affirmando-se n'aquelle vulto, sem ainda o reconhecer,
―Meu pae... respondeu com voz fraca.
―Que fazes tu aqui mettida e fechada n'este
quarto, filha? no quarto mais escuro e mais abafado de toda a casa?
Chega-te cá, rapariga, quero-te abraçar e
beijar... Então que é
isso?... Tens hoje tão pouca pressa de abraçar
teu pae?... D'antes, até ao caminho me vinhas esperar... Vem
cá, minha
filha, vem cá... Se soubesses como me consola...
E estendia os braços para a filha, que lhe viera emfim ao
encontro. Quando, porém, a viu mais perto da luz, calou-se
subitamente e principiou a
examinal-a
com inquieta anciedade. Depois, como se lhe
não bastasse a luz d'aquelle recinto para desvanecer
não sei que suspeitas assustadoras que o devoravam, trouxe,
silencioso ainda, a filha para o corredor, e continuou ahi a fital-a
com os olhos eloquentes de paixão e de espanto, bradando
emfim, com voz consternada:
―Que é isto!... Que tens tu, filha?... Estás
doente? Estas não são as tuas
feições... Os olhos pisados... as faces
abatidas... sem côr... sem risos... sem saude!... Linda, tu
que tens? Dize: choraste, filha? Estás doente? Fala! Anda,
fala!... por piedade!... por amor de Deus, Linda, fala!
A rapariga, em vez de responder, desatou a chorar.
―Meu Deus! Isto que é, meu Deus?―exclamava, mais
assustado, o pae.―Choras ainda mais?
[70]
Que te fizeram, filha? Ó Linda, tu
não tens pena de mim? não chores!... Ou chora,
chora, se te faz bem chorar; mas... fala, dize-me o que tens, dize-me
por que choras, filha... Então?
E com voz trémula, com as mãos unidas e o susto
no gesto, como no coração, o pobre homem quasi
ajoelhava a implorar da filha a explicação
d'aquelle doloroso mysterio.
Como ella não respondesse ainda, continuou o afflicto pae,
cada vez mais commovido:
―Ai os presentimentos do meu coração!
Não sei o que me dizia isto! Não sei! Meu Deus,
meu Deus! E como te pareces com tua mãe n'aquelle dia em
que... Nem quero imaginar... Ó filha, filha, não
vês que me matas assim? Fala!
E beijava-a e afagava-a, e cobria-a de lagrimas ardentes, que mais
lagrimas desafiavam á creança, sem que a fizessem
falar.
Nos movimentos desordenados que fazia, o desgraçado parecia
louco. Elle apertava as mãos da filha, levava-as aos labios,
abraçava-a, tomava-a ao collo, pousava-a no chão;
ora a attrahia a si, ora a afastava, sem saber o que fizesse,
n'essa incoherencia de actos que produz um espirito inquieto.
Como para melhor examinar aquellas feições
queridas, cujo abatimento e pallidez tanto o assustavam, afastou da
fronte da creança, com as mãos
trémulas, o lenço que lhe envolvia a
cabeça; mas de repente retirou-as, soltando um grito
medonho, ergueu-se e recuou com terror.
Depois, fitou a filha com olhar desvairado, e, sem pronunciar uma
palavra, quasi que a arrastou para mais perto da luz, que entrava no
corredor pela porta aberta do quintal; ahi, arrancou com impeto febril
o lenço da cabeça de Ermelinda; um novo grito,
mas d'esta vez rouco, abafado pela dor, cortado pelos
soluços, saíu-lhe do seio, e elle, o
desgraçado pae, desatou a chorar como uma
creança.
É que aquelles formosos cabellos louros de Ermelinda,
[71]
que com tanto amor beijava, que com
tanta soberba lhe desatava pelos hombros, o orgulho, o enlevo do seu
coração de pae, aquelles cabellos
louros haviam caído aos golpes de uma tesoura desapiedada e
quasi irreverente.
Só quem fôr pae pode conceber toda a desesperadora
afflicção em que esta descoberta
lançou o coração d'aquelle.
Ermelinda caiu-lhe aos pés, de joelhos, chorando tambem.
Por algum tempo, nada mais se ouviu alli dentro senão os
soluços de ambos.
A reacção não se fez,
porém, esperar muito no animo violento do Cancella.
Afastou com vivacidade as mãos do rosto, ergueu a
cabeça, e, com os olhos inflammados de raiva e de
cólera, disse para a filha, tremendo e
gaguejando, tal era a impetuosidade dos sentimentos que se lhe
amontoavam no coração:
―Quem foi?!... Responde! De quem foi essa mão atrevida que
fez isto?... Fala! Não ouves? Quero sabel-o, para cortal-a
mais rente do que te deixou os cabellos... E tu, desgraçada,
tu, consentiste! Má filha, filha desagradecida e sem
coração, que assim deixas que me roubem as minhas
riquezas e alegrias! A teu pae!... É assim que pagas o amor
com que te tenho creado?... a adoração com que de
pequenina te tratei? É assim? É com este
desamor?! e com esta ingratidão?!
―Meu pae! meu pae!―implorava Ermelinda, suffocada pelo
pranto.―Perdôe! Não se affiija
assim, meu pae, que me mata! Não vê?... Escute...
Para servir a Deus... foi para servir a Deus que eu os cortei... A
vaidade é um peccado grande.
―Quem te ensinou isso?... Quem te aconselhou a que os cortasses?
Fala!...
―Por alma de minha mãe, não me fale assim, que
me assusta!
―Vá! Pois já não falo... Eu estou
socegado...
[72]
Mas então? eu não hei de saber?... Bem
vês que eu precíso de saber!... Vá!...
Eu sou teu
pae. Ordeno... Peço... Dize, filha, quem foi?
―O missionario...―ia a dizer Ermelinda.
O pae não a deixou proseguir.
―Ah! Já sei! O missionario! É isso! Os padres...
as beatas... tua madrinha! A bruxa a quem eu confiei a filha e que m'a
entrega assim! Vendeu-m'a ás mãos d'esses
malvados sem
dó, sem consciencia, sem religião, sem Deus...
―Meu pae, não diga isso! Não fale assim, que
é peccado.
―Cala-te que grande, maior peccado fizeste tu, affligindo assim teu
pae! Os missionarios! Quem lhes deu o direito? Quem lhes ordenou...
Deus? Se Deus é assim, se Deus quer estas crueldades... Deus
não é Deus, e eu não o
reconheço nem adoro!
Ermelinda tremia de terror, ouvindo estas palavras, que a
irritação e o desespero estavam dictando ao pae.
A timida e nervosa creanca horrorisava-se, ouvindo aquellas phrases
audaciosas, e quasi blasphemas, e a cada momento esperava vêr
cair um raio fulminador a castigal-as.
―Por amor de Deus―murmurava ella, com a voz chorosa e quasi
sumida―por alma de minha mãe!...
―Cala-te! não fales em tua mãe, que
não mereces dizer esse nome! Tua mãe! Aquella
sim, que sabia como eu lhe queria; que sempre lidou para me
não causar penas, e que só com a sua morte me fez
chorar lagrimas, tão amargas e tantas, como eu choro agora!
E chorava cada vez mais, chorava, como um fraco, aquelle homem forte e
valente, chorava, porque tinha um coração de pae.
Ermelinda lançou-se-lhe nos braços, cobrindo-o de
afagos e beijos.
―Perdôe-me, meu pae! perdôe-me!―dizia ella.―Se
soubesse... Fui eu que pedi... Fui eu que
[73]
sonhei... Não chore assim, meu
pae! Não culpe ninguem, fui eu, eu que pedi a minha
madrinha!... Foi por a salvação da minha alma,
porque...
―E foi tua madrinha que t'os cortou?
―Foi, mas... É que o missionario tinha dicto... O
missionario é um santo!... Não olhe para mim
d'esse modo, meu pae, que me faz mêdo.
E cobria os olhos com as mãos, para não ver a
expressão do rosto do Cancella.
―Querem matar-me a filha―bradava elle.―Ó meu Deus! pois
não é isto um grande peccado? fazer da
creança, linda e alegre, que eu deixei aqui, esta
desgraçada rapariga, sem côr, sem risos, sem
alegria! Não é isto um crime, meu Deus?
Não se vos pode amar e servir, Senhor, senão com
lagrimas, com penitencias e com tristezas? Não! Mentem
elles! mente esse missionario! mente essa mulher! mentes tu, filha! e
maldicto seja quem traz assim o desespero ao
coração de um pae.
E o Cancella levantou-se exasperado, sacudindo rudemente de si a filha,
cada vez mais gelada de terror e afflicção. Deu
alguns passos no
corredor, e voltou ao quarto onde a encontrára. Ella
seguiu-o de mãos postas, chorando, pedindo-lhe que se
não affligisse assim. Mas o Cancella era dominado pela
impetuosidade do seu genio. Nem a ouvia. De repente, parou, fitando os
olhos no registo do Coração de Maria, que alli
fôra introduzido por a mulher do Zé P'reira.
Estava adornado com jarras de flores e vélas de
cêra; era a esta imagem que Ermelinda fazia
oração, quasi extatica, quando o pae
entrou.
―Coração de Maria!―disse o Cancella, quasi
desvairado, conservando a vista fixa na imagem, e como falando para
si.―Coração de mãe,
e de mãe extremosa, que foi esta, e bem lanceada de dores.
Soube o que é querer a um filho, o que é
vêl-o padecer... o que é perdel-o... E
será ella a que deseja as lagrimas, as tristezas e a morte
d'esta
[74]
creança?... as
desventuras de um pae?... Ella! Não! E se tu o
queres―continuou allucinado, voltando-se para a imagem―e se
não podes ser adorada senão assim, é
porque és falsa, falsa
como a mão que ahi te pintou, falsa como as bôcas
que te prégam os milagres. Vae-te!
E no accesso de raiva, que cada vez mais crescia n'elle, fez voar o
caixilho, as jarras e os castiçaes pelo ar, e tudo veio
fazer-se pedaços no pavimento.
Ermelinda soltou um grito dilacerante e agudissimo ao vêr
aquillo. O terror seccou-lhe as lagrimas. Com o olhar espantado, as
faces quasi lividas, as mãos juntas, quiz falar, mas
não pôde;
moviam-se-lhe os labios descórados, mas não lhe
saía
a voz da garganta.
Cada vez mais cego pelo desespero, o pae já não a
attendia. Passou outra vez ao corredor, derrubou, em igual accesso
de furia o vaso da agua benta, bradando:
―Vae-te, que estás empestada tambem pelo bafo maldicto da
impostura.
Ermelinda lançou-se-lhe aos pés,
abraçou-o pelos joelhos para o reter, mas elle
não a sentia, e, continuando a caminhar desorientado, quasi
a levou de rastos á outra sala.
Ahi, imagens, cruzes, esculpturas, tudo lançou por terra,
tudo despedaçava ou rasgava.
N'este impeto de loucura, n'esta cegueira de raiva, não viu
a filha que, como se galvanisada pelo terror, ergueu-se arquejante, com
os braços estendidos, fazendo esforços para
falar, e caindo por fim no pavimento inerte e fria como um cadaver.
Attrahida pelos gritos e rumor que partiam da casa do Cancella, a
madrinha de Ermelinda acudiu a vêr o que era aquillo.
Chegando ao limiar da porta, assistiu ainda ao final da scena que
descrevemos; ia a gritar, mas o olhar e gesto com que a fitou o
Cancella cortou-lhe a fala na garganta.
[75]
Era de facto um olhar selvagem e sinistro.
A sr.
a Catharina parou.
―Que vem fazer aqui, mulher?―dizia-lhe o Cancella com voz cavada.
―Eu...
―Vem acabar de matar-me a filha, serpente? Vem empeçonhar
estes ares, onde metteu a tristeza?
E, a cada pergunta que fazia, dava para ella um passo e ella recuava
outro.
Crescia outra vez a impetuosidade nas paixões e nas palavras
do Herodes.
―Saia! saia da minha vista, se não quer que eu lhe
faça como fiz a esses feitiços com que me
enfeitiçou a filha, com que m'a quiz matar.
A velha ganhou animo ao vêr-se fóra da porta e por
isso disse:
―Lá se vê quem a matou. Repare e diga se
não tem remorsos, carrasco!
Estas palavras fizeram quebrar a vehemencia do desespero do Cancella.
Voltou-se, e vendo a filha estendida no chão, quasi como
morta, com a pallidez, com a immobilidade, com a apparencia de um
cadaver, correu para ella, soltando um grito angustioso, e principiou a
chamal-a pelo nome, beijando-a, chorando, pedindo misericordia a Deus,
pedindo perdão a ella, soltando palavras sem nexo,
arrepellando-se, ferindo-se.
A velha, que já não o temia, ao vêl-o
assim, vingava-se agora chamando-lhe impio, hereje, malvado, assassino
da filha, condemnado de Deus... e elle, o desgraçado, tudo
escutava humildemente, com remorsos, e implorando misericordia.
―Não! ella não ha de morrer-me assim... Deus
não pode consentir n'isto. Não deixará
que eu tenha assassinado minha filha. Ah! senti-lhe o
coração!... vive!... senti-lhe o
coração bater... Olhe! venha
vêr... pouse aqui a mão, comadre, no peito d'ella,
aqui... Não sente? É o
coração, não é?
Não lhe
[76]
parece que
não morreu? Ar, ar, é do que ella
precisa.
E erguendo-se, correu, com a filha nos braços, para o meio
da rua.
Ermelinda ainda estava sem accôrdo. Juntaram-se algumas
mulheres, attrahidas pelo espectaculo e pelas
arguições da beata, que não
cessára de falar.
Foi voz unanime que a pequena estava a expirar. O Cancella tremia e
pedia por amor de Deus que lhe não dissessem aquillo.
Subitamente, soltou um grito de triumpho e poz-se a rir como doido.
Ermelinda tinha aberto os olhos.
Mas, ao fital-os no pae, instinctivamente desviou a cabeça,
como se o aspecto d'elle lhe causasse terror.
―Filha! disse o Cancella, tremendo de interpretar aquelle gesto e com
maior consternação na voz e no olhar.
Ermelinda, sempre com os olhos fechados, começou a tremer
convulsivamente e n'uma anciedade extrema.
―Deixe a pequena!―disse a beata―não vê que lhe
faz mêdo? E com razão, pobre
creança! depois do que viu!
―Pois eu hei de fazer mêdo a minha filha?―repetiu
timidamente o pae.―Eu?! Ó Ermelinda... pois tu...
Um estremecimento, que correu pelos membros da rapariga, fel-o calar.
Commovido, consternado, passou-a para os braços da velha, e
sentou-se a
soluçar como uma creança, dizendo entre gemidos:
―Perdi o amor de minha filha! perdi o amor de minha filha! Ai que
desgraçado que eu sou!...
A scena era bastante commovente, para que se não sentissem
impressionadas todas as pessoas que ella attrahira alli.
Houve um longo silencio, só interrompido pelos roucos
soluços do infeliz, em quem entrára o
desespero no coração.
[77]
Este silencio permittiu ouvir-se um vago som, como de musica longinqua,
que, a pouco e pouco, se percebeu ser um côro de vozes
femininas; cêdo a toada e depois da toada a lettra,
principiou a tornar-se distincta.
Ouviram-se perfeitamente estas palavras:
Vinde, vinde, ó missionarios,
Com a palavra de Deus
Libertar-nos do peccado,
Encaminhar-nos aos céos.
O Cancella ergueu a cabeça e poz-se a escutar.
As vozes continuaram:
Minha alma por vós
anceia,
Ó ministros do
Senhor!
E o meu peito em chammas arde,
Em chammas do vosso amor.
O Cancella principiou a abanar a cabeça, e os olhos
animaram-se-lhe de um fulgor extranho.
O côro soava cada vez mais perto, e dentro em pouco
desembocou na rua, em que se passavam estas scenas, um singular
cortejo.
O missionario, que nós já conhecemos, por o
termos visto em pleno exercicio de suas funcções
predicatorias, vinha seguido por uma cohorte de mulheres de roupas
escuras e cabellos cortados, que cantavam em chorada cantilena estas e
analogas quadras, que os missionarios ou os agentes seus teem quasi
sempre o cuidado de vulgarisar como preparatorios dos animos
impressionaveis das mulheres e das creanças.
Ia em meio uma d'estas quadras, quando se approximava a
procissão da casa do Cancella.
Este já estava em pé no meio da rua, á
espera d'ella.
O missionario viu aquelle homem grande e immovel no meio do seu
caminho, aquelle agigantado vulto que, virado de costas para o poente,
se lhe
[78]
apresentava escuro como um
phantasma, e não conjecturou bem do que via. Por isso parou
tambem, olhando para elle. O côro suspendeu-se.
O Cancella fitou por algum tempo em silencio o padre, e perguntou-lhe:
―Sabe quem sou?
O padre fez um signal negativo com a cabeça.
―Sou um homem desesperado, um homem que, n'este momento, nem ouve
Deus.
O padre olhou inquieto para traz de si e para os lados, como quem
procurava uma saída para caso de necessidade, pois dizia-lhe
a razão que um homem que não ouve Deus
não estaria muito disposto a escutal-o, a elle, humilde
creatura.
―Sabe o que lhe quero? Perguntar-lhe por a alegria e por a saude de
minha filha; perguntar-lhe por o amor d'ella, que me roubou;
perguntar-lhe a que demonio offereceu os cabellos d'aquella
creança sem culpa nem maldade; perguntar-lhe com que veneno
lhe envenenou o coração, e depois... depois
matal-o.
O padre enfiou; ia a abrir a bôca para falar, mas viu
caminhar para elle o Cancella, viu no ar aquella mão
musculosa e larga, e, calculando a violencia do embate pelo volume do
braço, julgou-se de antemão
esmagado, e só pôde encolher os hombros, fechar os
olhos, contrahir comicamente as feições, e
suspender a respiração, aguardando n'esta postura
o golpe, que não podia evitar.
Este de facto não foi suave. A mão do Cancella
caíu em parte sobre o cabeção, em
parte sobre o pescoço do padre, e com tal
fôrça, que
este foi constrangido a ajoelhar.
―Anda, meu impostor do inferno!
E uma forte sacudidela o impelliu para deante e restituiu de novo
á primeira posição.
O chapéo rolou a alguns passos de distancia.
―Anda, meu envenenador de almas!
Nova sacudidela seguida de iguaes resultados; e os oculos seguiram o
caminho do chapéo.
[79]
―Anda, meu calumniador de Deus!
E d'esta vez o Cancella principiou por collocar o padre em
pé, e após, dando-lhe um forte impulso e
soltando-o das mãos, deixou-o ir á
mercê da fôrça transmittida.
O padre estendeu os braços instinctivamente para se amparar
na quéda provavel, e, pé aqui,
pé acolá, a passos descommunaes, escapou
miraculosamente de cair, porém não conseguiu
parar
senão a muitos metros de distancia.
Escusado é dizer que esta scena não correu entre
o silencio dos espectadores. Mal o Cancella levantou a mão
sobre a cabeça do padre, as beatas ergueram um alarido de
atroar céo e terra.
―Aqui d'El-rei!
―Aqui d'El-rei sobre o Herodes!
―Aqui d'El-rei, que matam o sr. fr. José!
―Quem acode ao sr. fr. José?!
―Ai, que matam o santinho do missionario!
E estas e outras vozes pipilavam, uivavam e chiavam aquellas
esganiçadas mulheres, sem que o zelo religioso as decidisse,
porém, a intervir mais activamente.
A celeuma attrahiu gente, e, no numero, alguns cabos de policia, que,
em cumprimento de seus deveres, se acercaram do Herodes, mas com
respeito.
Este, porém, não oppoz resistencia.
Tinha-lhe passado a furia e voltou-lhe o desalento.
Assim deixou-se levar em prisão, acompanhado das
imprecações das beatas e dos gritos de
indignação dos homens.
As devotas mulheres correram para o missionario.
Umas levavam-lhe o chapéo, outras os oculos, outras o
capote.
―Magoou-se, sr. fr. José?
―Doe-lhe alguma coisa?
[80]
Mas o padre não se demorou a informal-as. Limitou-se a
abanar com a cabeça negativamente e deitou a correr, como se
visse atraz de si ainda a mão espalmada do Cancella, prompta
a cair-lhe outra vez sobre a cabeça.
Quando o Cancella chegou a casa do regedor, já a
multidão engrossára e em altos gritos pedia o
castigo do criminoso.
O regedor tinha a precisa finura para saber condescender com a
multidão. In continenti, redigiu um officio ao
administrador, no qual foi tão feliz que escreveu tres
palavras com boa orthographia; e, falando ás turbas, disse
que estavam dadas as providencias, e que o crime havia de ser punido
com todo o rigor das leis.
XXI
O acto violento do Cancella, contra a pessoa do missionario, foi
assumpto das conversações geraes
de toda a aldeia. Era com indignação que se
commentava a façanha. Dizia-se que o Cancella fôra
apenas o
instrumento de que se servira a gente do Mosteiro para se vingar do
padre, pela occorrencia da tarde do sermão.
Os adversarios do conselheiro aproveitaram o ensejo que se lhes
offerecia para lhe alienarem sympathias e tentarem um cheque, pelo qual
havia muito suspiravam.
O missionario e os seus ardentes sequazes fôram dos mais
acerbos propugnadores d'estas ideias, que reforçavam com
muitas accusações, de
hereticos e de impios, contra todos os membros da familia do
conselheiro.
A politica viu n'isto uma arma favoravel para
[81]
combater o adversario, e não a
desprezou; depois, veio a portaria a respeito do cemiterio,
manifestamente devida á iniciativa do pae de Magdalena, e
impopularissima na aldeia, augmentar a irritação
dos animos e servir de thema a uma violenta diatribe do missionario
contra a impiedade da época, que nem aos fieis concedia a
santa consolação de repousar á sombra
dos templos.
Tudo isto começou pois a fomentar uma
reacção contra o conselheiro, a qual
ameaçava o resultado da sua candidatura.
Não pequena parte n'esta guerra surda, que
principiára a lavrar, tomava o seu companheiro de infancia e
particular amigo o brazileiro Seabra.
Nunca elle sentira entranhada no coração metade
da bem-querença que apparentemente ostentava para com o
conselheiro: mas depois de uma conferencia que tivera com mestre
Pertunhas tornára-se mais manifesta a sua hostilidade e
menos observadora de etiquetas e rebuços.
Foi elle, por exemplo, quem teve o cuidado de lembrar que a familia do
conselheiro estava de posse de bens religiosos; circumstancia que o
missionario attendeu, clamando do pulpito contra os delapidadores dos
bens da Igreja.
Foi tambem o brazileiro quem trouxe á flor de agua os
antigos excessos demagogicos, que caracterisaram o principio de
carreira politica do conselheiro, e referira, com modos de horrorisado,
a substancia dos exaltados discursos que elle proferira nas camaras,
advogando ideias cuja só
exposição ferira de pavor a
imaginação dos povos.
Finalmente, até o principio dos trabalhos para as estradas,
cujo protrahido adiamento fôra até
aquelle tempo um capitulo de accusação contra o
pae de Magdalena, servia agora de arma á
opposição.
O brazileiro, em attenção a quem se
adoptára o traçado que ia ser posto em
execução,
era o que provava á saciedade com grande
exhibição de cifras
[82]
e de razões economicas, ser
esse traçado,
sobre dispendioso, irracional.
E cumpre advertir que estes argumentos ouvira-os elle ao proprio
conselheiro, quando este os allegava para vêr se conseguia
demovel-o do empenho que mostrava em que o traçado em
questão fôsse preferido aos outros. Tal era o
estado das coisas publicas na terra no dia em que principiaram os
primeiros trabalhos de campo.
Tinham-se passado alguns dias depois da prisão do Herodes.
A aldeia vira-se invadida por um bando de sêres
desconhecidos, que vieram alterar a perenne serenidade de animo de uma
população habituada a considerar como
occorrencias de maximo interesse a reforma dos muros ou das cancellas
de qualquer proprietario da localidade.
A cohorte de engenheiros, conductores, apontadores, cantoneiros e mais
operarios vinha, com seus habitos e costumes novos, fazer tantas ou
maiores mudanças na vida moral da aldeia do que nas
condições physicas d'ella as bandeirolas, os
niveladores, as enxadas, as pás, alviões,
picaretas, carros de mão e padiolas, de que era armada essa
cohorte.
Por isso corria uma verdadeira romagem para o logar onde com a maior
actividade tinham começado os trabalhos. Era como
já dissemos, na casa do herbanario. Pela
demolição d'ella, e do
quintal que a rodeava, principiaram as obras.
O velho Vicente assignára dias antes o auto de
expropriação e recebera o preço da
venda, estipulado, o qual, por influencia do conselheiro,
não lhe foi muito regateado.
Elle, porém, o desconsolado velho, recebeu-o comovido. Por
as arvores nada quiz; não podia resignar-se a vendel-as.
Podia vêl-as cair, como amigos sacrificados no cadafalso, mas
mercadejar-lhes com os restos, isso não.
[83]
O desinteresse e o escrupulo do herbanario serviu á Fazenda
Nacional de compensação ao
excessivo preço por que fôram expropriados os bens
de que o brazileiro se apossára, com o patriotico intuito de
promover os seus melhoramentos particulares, preço que por
empenho do conselheiro não foi litigado.
Ao principiarem os trabalhos, alguns grupos populares tentaram
resistir, mas refrearam-se, em parte pelo respeito devido á
cohorte de operarios melhor armados do que elles, em parte cedendo
ás imperiosas ordens do herbanario, que, ao sair pela ultima
vez da casa, onde envelhecera, lhes disse, com voz irritada e severa:
―Quem lhes pediu que defendessem estas arvores? Que amor lhes tendes
vós, para vos amotinardes por causa d'ellas? Para traz!
Os instigadores das massas conheceram que não era aquella a
occasião nem aquelle o pretexto proprio para os seus
projectos, e adiaram, em vista d'isso, a empresa prudentemente.
Era ao fim da tarde de um dia ennevoado e frio, de um d'esses dias em
que os animos mais fortes se deixam dominar de uma melancolia profunda.
Na baixa em que ficava a habitação do herbanario,
ia uma azafama extraordinaria.
O machado demolidor e a alavanca principiaram a sua obra de
destruição; desconjuntavam-se as
pedras dos muros, desfazia-se em pó a argamassa secular,
caíam a golpes de machado as vigas dos tectos e os troncos
das arvores, alastrava-se de tijolo e caliça a verdura dos
taboleiros, e cêdo, de toda aquella vivenda tão
amena e virente, só restavam ruinas.
Numerosos grupos de já pacificados espectadores seguiam com
curiosidade as operações de
devastação; mas, longe d'alli, a maior distancia
do que os indifferentes, assistiam ao espectaculo os unicos olhos que
elle orvalhava de lagrimas, o unico
coração que elle devéras apertava de
dor.
[84]
O herbanario foi sentar-se na encosta de um outeiro vizinho, d'onde se
divisava toda a scena. Com a cabeça pousada na
mão e o braço
apoiado sobre o joelho, com voz commovida, dizia adeus a cada arvore,
que d'alli via vacillar e cair, como se fôsse um amigo que o
precedesse no tumulo. Parecia ter fugido para longe, para pelo menos
não lhes ouvir o estertor da agonia.
Ao lado do velho estava Augusto.
Não era tambem sem tristeza que elle seguia os progressos da
demolição.
Mais do que uma vez tentára arrancar o herbanario d'aquelle
sitio. O velho, porém, resistiu; queria estar alli
até vêr cair a ultima arvore.
Ao pinheiral d'onde assistia á scena, chegava em
confusão o alarido dos trabalhadores, o rumor do manobrar
dos instrumentos, e até o da quéda das arvores
cortadas.
O herbanario sempre que via brilhar o machado sobre uma nova arvore,
recordava sentidamente algum episodio do seu passado, a que ella estava
ligada.
―Lá vae aquella faia!―dizia elle, com intensa
melancolia―pobre velha! Era á tua sombra que meu pae me
ensinava a ler! Encostava-se áquelle tronco sobre a grossa
raiz que elle tem á flor da terra e pegando em mim ao collo,
guiava-me nas primeiras lições! E viver eu para
te
vêr cair!
E, ao perceber-lhe balançar as sumidades, o velho fechou os
olhos instinctivamente. Cêdo ouviu um estrondo... Quando os
abriu, estava por terra a faia.
―Agora é a tua vez, pobre carvalho!―dizia algum tempo
depois―muito queria minha mãe áquella arvore!
Por suas mãos a plantou bem
tenra. Nunca me sentei áquella sombra, que me não
lembrasse da santa mulher! Parecia que eram vozes tuas, que m'a
recordavam, infeliz! Barbaros! Olha com que desamor a decepam!
Perdôa-me,
[85]
meu velho
amigo, mas bem vês que te não posso valer.
E o carvalho caíu.
―Eil-os agora comtigo, cerdeira. Mal adivinhavas tu, quando o anno
passado te enfeitavas com aquellas cerejas escarlates, que tanto
cubiçavam as creanças, que pela ultima vez o
fazias!... Adeus, pobre amiga, adeus.
E caía a cerdeira tambem.
E caíam, uma após outra, todas as arvores do
quintal, os limoeiros, as nogueiras, os salgueiros e toda a familia
vegetal do velho Vicente, que sentia ir-se-lhe com ella a alma.
Memorias de infancia, sonhos de juventude, e reminiscencias de velho,
como aves invisiveis, occultas nas copas d'aquellas arvores, surgiam
agora, espavoridas e desnorteadas, a procurar o refugio que
não encontravam fóra dalli.
Por outro lado os delicados sentimentos do herbanario eram
dolorosamente feridos, ao desmoronarem-se as paredes d'aquella pequena
casa, onde elle envelhecêra e contava morrer, e ao
patentear-se indiscretamente aos olhos irreverentes e curiosos do povo
aquelle recatado asylo.
A demolição proseguia com ardor e actividade. Em
pouco tempo, só restavam da casa os muros, meio derrocados;
e, no quintal, a serra e o machado principiavam a exercer no tronco da
ultima arvore a sua obra destruidora. Era o castanheiro da entrada,
gigante de outro seculo, que desafiára os raios de muitos
invernos successivos.
A exaltação do herbanario cresceu n'aquelle
momento. Ergueu-se, pallido e trémulo, apoiou-se no hombro
de Augusto, murmurando:
―Tambem o castanheiro! Já era arvore quando eu nasci! Como
elles se encarniçam contra elle! Mas não te
parece, Augusto, que não soffre muito o castanheiro?...
Sabes? É que elle já
não agradeceria a vida, porque tinha de viver assim
desamparado
[86]
dos seus outros
companheiros, que vê
caídos no chão... Tarda-lhe talvez o deitar-se ao
lado d'elles... É como eu.
O castanheiro principiou a oscillar.
―Repara―disse o herbanario, cada vez em tom mais baixo, e apertando o
braço de Augusto.―Elle já treme! Não
vês!... Lá lhe deitam a corda... Vae cair!...
Parece-me que estou a
sentir aquelle estalar de fibras...
E a arvore caíu com fragor no chão, que por tanto
tempo
cobrira de sombras.
Estava ultimada a obra.
O herbanario encostou a cabeça ao hombro de Augusto e rompeu
em soluços.
―Então, tio Vicente, tenha animo―dizia-lhe Augusto,
igualmente commovido.
―Se tu soubesses, Augusto, o que eu estou sentindo! Olhar para
acolá e não ver em pé uma
só das arvores que eu conheci em pequeno! Parece-me um sonho
isto, um sonho de afflicção! Sinto-me
tão só no mundo! Ai! se a morte me ferisse agora!
A dor, a saudade e o desalento davam uma
uncção de poesia
elegiaca á figura, ao gesto e ás
palavras do velho, que desvanecia tudo o que n'elle pudésse
haver, nas situações ordinarias da vida, capaz de
desafiar um sorriso nos labios de quem o observasse friamente.
Conceda-se uma lagrima a estas obscuras victimas dos progressos
materiaes, lagrima que não importa uma ironia á
civilisação.
Exalte-se embora a rapida carreira da locomotiva, que atravessa, como
meteoro, as povoações e os êrmos; mas
não seja isso motivo para condemnar a compaixão
pela violeta dos campos, que as rodas deixaram esmagada á
beira do carril. Inda quando um vencedor tem um papel providencial a
cumprir, e o seu triumpho seja uma obra de
redempção, o vencido, desde que
cáe, tem direito a um olhar compassivo, a uma lagrima
[87]
de saudade. Não tenteis
a louca empresa de anniquilar o sentimento, espiritos áridos
que infundadamente o temeis, como coisa desconhecida á vossa
alma sêcca e esteril. Quem devéras confia nos
destinos da humanidade não tem mêdo das lagrimas.
Pode-se triumphar com ellas nos olhos.
Passado algum tempo, e quando já as sombras da noite se
condensavam nos valles e subiam lentamente as encostas dos outeiros, o
velho disse para Augusto:
―Agora que não tenho casa, dá-me por alguns dias
o abrigo da tua.
―Por alguns dias?―repetiu Augusto, admirado.―Pois quer deixar-me
depois!
―Quero. Vou com ellas.
E apontou, ao dizer isto, para as arvores derrubadas.
Atravessaram a aldeia á hora a que vibravam nos ares os sons
melancolicos das Avé-Marias.
Em silencio chegaram a casa de Augusto, agora commum para os dois.
―Mettes em tua casa um triste hospede, pobre rapaz!―disse o
herbanario, ao transpor o limiar.―Má companhia te
fará a minha velhice.
―Boa companhia me faz sempre a sua amizade, tio Vicente. Nem a sua
presença podia desalentar quem na mocidade é mais
fraco e desalentado do que ninguem o pode ser na velhice.
―Custou-me muito este golpe de hoje! Não contava com elle!
Desde hontem envelheci muitos annos. Podes crêl-o.
Quando Augusto ia a replicar, interrompeu-o uma voz que dizia de
fóra da porta:
―Dão licença?
E no limiar appareceu a figura do mestre Pertunhas, animada de cordiaes
sorrisos.
O herbanario e Augusto não reprimiram um gesto de
impaciencia.
O homem entrou.
[88]
―Ora Deus seja aqui! Tão grande é o dia como a
romaria, sr. Augusto! Ainda ninguem o viu hoje!... Disseram-me que
tinha ido de manhã para casa do tio Vicente; vou
lá... estava um mundo de gente no sitio... Mas qual sr.
Augusto, nem tio Vicente! Então com que
escorraçaram-n'o do seu ninho?... Pobre homem! A falar
verdade, n'essa idade! Já sei que vem para casa do nosso
Augusto. Hontem vi para ahi entrar os fardeis. Ainda bem que o temos
por vizinho... Faremos boa camaradagem... Olhe que tambem fizeram-n'a
fresca com o tal projecto de estrada! Uma coisa assim!... Coisas
cá do sr. conselheiro! Vae-se fundir um dinheirão
na tal estrada! E já por ahi se rosnam coisas! Emfim,
politicos! politicos! Todos são os mesmos... Vae por ahi uma
poeira dos meus peccados com a ordem a respeito do cemiterio; e com a
historia do Herodes! Sabem que elle esteve hontem para matar o
missionario?... E valha a verdade, dizem que por ordem de alguem do
Mosteiro... Que eu não acredito, mas emfim, aquella historia
no sermão do outro dia... E o tal sr. Henrique, que
é unha e carne com elles... Elle será muito boa
pessoa, mas não me calha... Lá feliz, isso como
não sei de outro, com dinheiro e sem cuidados! E sempre se
faz o casamento d'elle com a morgadinha?... Ouvi dizer que sim.
O herbanario levantou os olhos para fitar Augusto; a apparente
impassibilidade d'este não illudiu o velho.
O Pertunhas não se exgotára ainda:
―Ora agora, quem anda fulo é o brazileiro, o Seabra. Pelos
modos, eu não sei o que ahi houve; o conselheiro
não o tratou muito bem, dizem, n'uma carta que escreveu ao
ministro, ou creatura do ministro. Umas historias muito complicadas,
que eu não entendo, mas que promettem dar de si... Veremos
em que ficam as eleições este anno... O
conselheiro bem pode trabalhar, senão... Elle cuidava
[89]
que era só
apresentar-se, e emquanto a fazer vontades... Que me dizem do sr.
Joãozinho das Perdizes? Será fiel esse?
Já me disseram tambem que...
―Ó sr. Pertunhas,―atalhou o herbanario, enfastiado―antes
queremos não saber. Importa-nos pouco a politica.
―Estão como eu... Isto tambem não é
politica, mas emfim... Pelo que vejo estão
cançados? Eu tambem não os maço
mais... E antes que me
esqueça, ha muitas horas que estou de posse de uma carta
para vossemecê, tio Vicente. É de Lisboa, veio por
o correio de hoje. Não lh'a mandei a casa, porque...
não sabia o que era feito d'ella. Eh, eh, eh... Mas como o
vi passar, conjecturei que viria para aqui, e por isso...
O herbanario recebeu a carta, que o mestre Pertunhas lhe deu, e olhando
para o sobrescripto, disse com indifferença:
―É do Manoel.
E abriu-a lentamente.
O mestre de latim deixou-se ficar, na esperança de ouvir
novidades.
A meio da leitura o herbanario ergueu-se com impeto e exclamou, cheio
de indignação e de
colera:
―Mentiu-me como um vil! Mentiu-me aquelle homem sem dignidade nem
sentimentos! Aquelle homem importa-se menos com a felicidade dos
amigos, com a justiça das causas e com a voz da propria
consciencia, do que com os caprichos e interesses dos poderosos com
quem vive!
―Mas que é?―perguntou Augusto, sem atinar com a
significação d'aquellas palavras.
―Lê.
E passou a carta para as mãos de Augusto.
O conselheiro participava n'esta carta ao herbanario que se vira
obrigado a ceder, na questão do despacho de Augusto, a
fortes influencias que se
[90]
empenhavam n'isto muito mais do que elle julgava; que mais tarde lhe
explicaria tudo. Quanto a Augusto, accrescentava elle, talvez
fôsse isto até uma vantagem; que o logar que pedia
era a sua
annullação perpetua, e que elle, conselheiro,
havia de luctar contra a grande modestia do rapaz, trazendo-lhe
á luz os merecimentos reaes, dando-lhe melhor
collocação, e que esperava ainda empregal-o na
capital.
Era uma carta toda de homem politico, que tudo espera da diplomacia.
Ao acabar de ler, Augusto disse, com um sorriso amargo nos labios:
―Eu sou pouco ambicioso; contento-me com morrer aqui.
―A mim me deu elle, ao partir, a sua palavra de que te faria
despachar, e breve; e quebrou-a como um pêrro! Oh! o que
fizeram d'aquelle homem!
―Quê?! Pois é possivel?―perguntou, exaggerando a
sua consternação e espanto, o officioso
Pertunhas.―É possível que o sr. Augusto
não fôsse despachado?!
E dizendo isto, passou a desfiar uma série de
consolações, qual d'ellas mais tôla e
sem cabimento.
Até que emfim, tendo já novidades para contar, e
almejando communical-as aos frequentadores da taberna do Canada, onde
devia estar reunida grande e luzida assembleia, o Pertunhas saiu, a
pretexto de não ser mais tempo incómmodo, e
deixou-os outra vez sós.
―Estão-me guardados para o fim da vida todos os desenganos!
todas as amarguras! todos os desesperos!...―disse o herbanario
momentos depois.―É para se odiar o mundo e os homens
vêr um, que conhecemos generoso e innocente, contaminado
tambem!... Pobre Augusto! Não basta que sejam modestos os
teus desejos... nem assim t'os deixam realisar.
[91]
Guardados alguns momentos de silencio, continuou, com amargo sarcasmo:
―Por que te não fazes politico? Por que não vaes
tambem para a taberna do Canada dizer tolices sobre a
governança do paiz? Talvez levasses comtigo alguns
tôlos, e tinhas n'isso uma
recommendação poderosa. Olha para
aquelle basbaque do morgado das Perdizes... ahi tens um influente...
Imita-o... Mas dize: o que tencionas fazer?
―Ficar―respondeu Augusto, com firmeza.
O herbanario fixou-o com um olhar penetrante.
―Ainda?... Mas... não te vae ser suave agora a vida, rapaz.
Para se viver não basta uma... uma loucura. Repara bem. Se
quizeres... O Manoel é leviano, mas creio que ainda
não perverso; eu lhe escreverei... talvez que em Lisboa...
―Não lhe escreva. Sabe que não partiria para
Lisboa...
―Mas... repara!... Estás muito novo, Augusto... Tens um
longo futuro deante de ti. E, ficando, o que te espera?...
―A morte que fôsse, a morte de miseria e de fome, ficava.
Mas resta-me ainda o trabalho. Tenho coragem para acceital-o.
O herbanario baixou a cabeça, pensativo.
Soaram n'isto á porta da sala duas pancadas lentas.
O herbanario fez um gesto de enfado.
―Não abras sem eu sair,―disse elle a Augusto, que se
erguera―não estou de animo para aturar importunos.
E passou para uma sala contigua.
Augusto foi abrir ao novo visitante.
Achou-se na presença do brazileiro Seabra.
A grave personagem entrou pausada e sisuda, como homem que sabe fazer
valer a honra que dispensa, visitando um rapaz sem dinheiro.
Augusto offereceu-lhe cadeira Augusto offereceu-lhe cadeira para se
sentar,
[92]
sem inquirir do motivo de tão
inesperada visita. O brazileiro sentou-se e principiou:
―Acabo agora mesmo de saber da injustiça que lhe fizeram.
Senti-a como se fôra propria, e venho aqui declarar-lh'o.
Augusto curvou-se, em signal de agradecimento.
―Mas então que quer?―proseguiu o homem.―Hoje em dia
é tudo assim. Padrinhos e mais padrinhos, e o mais
são historias. Estamos n'uma época de
corrupção e de immoralidades, e ninguem sabe onde
isto irá parar.
Augusto ouviu em silencio os threnos do capitalista, que proseguiu:
―Tôlo é quem não faz como os mais. O
mundo está para os velhacos.
Parou, assoou-se, tossiu, e puxando a cadeira para mais perto da de
Augusto, continuou, em tom differente e mais baixo:
―Quando um homem tem uma gotta de sangue nas veias não pode
receber as offensas e ficar-se com ellas assim. O perdão
evangelico é muito
bonito, mas não é para homens. Não lhe
parece?
Eu por mim não gósto de genios de lama. Falemos
como amigos. Nós ambos somos victimas de um mesmo homem. O
sr. Augusto foi enganado e escarnecido por o conselheiro, que se
apregoava seu protector. Ahi temos a protecção
que elle lhe
deu. Eu tambem lhe devo finezas.
―V. s.
a?―perguntou Augusto, que não
podia saber o que lhe
queria no fim de tudo o brazileiro.
―Eu, sim, senhor. Eu lhe digo como isto foi.
E o brazileiro, puxando a cadeira, approximou-se mais de Augusto, e deu
principio á
exposição dos seus aggravos:
―O conselheiro, que joga em politica com pau de dois bicos, andou-me a
causticar, para que eu acceitasse um titulo qualquer... Queria fazer-me
visconde por fôrça. Coisas de que eu me estou
rindo... Mas... emfim, para me livrar d'aquelle importuno,
[93]
disse-lhe que... fizesse lá o que quizesse...
Pois, senhores, não teve o petulante o atrevimento de
escrever ao ministro, com quem, apesar de se dizer da
opposição, mantem aturada
correspondencia; não teve a audacia de lhe dizer que eu
andava sonhando com viscondados, e que a minha mania era attendivel,
pois promettia ser uma fonte de melhoramentos locaes muito baratos ao
Estado, visto que com tão pouco me contentava, e outras
coisas n'este gôsto? O petulante!...
Augusto, apesar dos pensamentos pouco alegres que o preoccupavam,
luctava para se conservar sério perante aquella
indignação do sr. Seabra.
―Mas tem a certeza d'isso?―perguntou elle.―Ás vezes
são calumnias...
―Eu vi a carta do ministro em resposta a esta; do ministro
não, mas do secretario, que é o
mesmo... Um acaso fez com que ella me chegasse á
mão... O ministro fazia-me o favor de me conceder o titulo;
mas era de parecer que, por cautela, se tirasse antes de mim tudo
quanto eu pudésse dar, porque... porque... por umas tolices
de que eu me lembrei a tempo... Ora ahi tem como elles
são!... Que venham para cá com os seus
melhoramentos... Eu lh'as cantarei; prometto-lhes que se hão
de arrepender.
―Mas... talvez haja equivoco.
―Equivoco? Ora essa! Pois eu não li a carta? Ella ha de
apparecer em publico; oh! se ha de! Isto é, não a
parte que me diz respeito,
porque... porque emfim são negocios particulares, que
não interessam a terceiros; mas umas ultimas linhas d'ella,
umas promessas do ministro, que põem a calva á
mostra a este Catão, que nos anda aqui a prégar
liberdade e independencia! Isso ha de apparecer, e ha de ser lido com
muita vontade.
―Acaso tenciona?...
―Se tenciono?! Pudéra não! Eu lhe
afianço que o homem ha de saber com quem se metteu. Deixe
[94]
vir as
eleições, deixe-as vir. Já ha
de achar o caldo azedado, quando quizer comel-o; isso lhe prometto
eu... A lição ha de leval-a breve.
―Vão guerrear a eleição do
conselheiro?
―Faço essa tenção.
―E quem lhe oppõem?
―O candidato que a auctoridade propuzer; um individuo de Lisboa.
―Que nem o circulo conhece?
―Que importa? É uma lição. Aqui
não ha politica nem meia politica. Eu não morro
pelo governo, porque eu tambem fui offendido pelo ministro. Mas
é preciso aproveitar tudo. E assim temos por nós
a auctoridade, além dos padres.
Augusto não se sentia com disposições
para discutir esta questão politica; por isso nada mais lhe
replicou.
O Seabra proseguiu:
―O que eu quero saber é se o amigo quer entrar na nossa
alliança e acceita uma proposta que eu lhe vou fazer. A
vingança é o prazer dos deuses, e
visto que foi tambem offendido...
―Não, senhor, não acceito―acudiu com vivacidade
Augusto.
―Escute. Deixe-me concluir. Não sabe do que falo. Pouco se
exige. A coisa é esta: na carta a que me referi, e que por
acaso me chegou ás mãos, fala-se n'uma outra, ou
em outras anteriores, em que se tratava, mais por miudo, de uma curiosa
transacção politica que n'esta se revela claro. O
conselheiro é pouco acautelado; haja vista ao extravio
d'esta, e por isso...
Augusto olhava admirado para o brazileiro, como se não
pudésse comprehender onde elle queria
chegar.
O Seabra proseguiu:
―Ora, a mim lembrou-me... como o senhor vae muito pelo Mosteiro...
sim, porque julgo que continúa a ensinar os pequenos, e,
já se sabe... como
[95]
mestre, entrando a qualquer hora no mais intimo da casa, sim... demais
como a D. Victoria é... um tanto descuidada, como todos
nós sabemos... Não sei se me percebe?... Dizia
eu... sim, que se ás vezes, por acaso,
encontrasse
coisa que
valesse...
Augusto levantou-se, indignado.
―Sr. Seabra!―exclamou, cheio de cólera.
―Valha-me Deus, eu não quero dizer... Não me
entendeu... Bem vê que se o senhor devesse
obrigações ao conselheiro, eu não
ousava... Mas...
―Obsequeia-me muito, sr. Seabra, se não insistir...
―Entendamo-nos. O senhor está no principio da vida. Precisa
do auxilio de alguem. Offerece-se-lhe occasião para fazer
serviços ao governo, que
é finalmente quem pode pagal-os; e que se lhe pede para
isso? Quasi nada... O senhor sabe perfeitamente que se não
trata aqui de desgraçar ninguem, de levar ninguem
á forca.
―Visto que v. s.
a insiste, sou obrigado a
retirar-me.
―Espere, sr. Augusto―acudiu o brazileiro, segurando-o.―Repare no que
faz. Não seja precipitado. Eu estou prompto a fazer alguns
sacrificios, se vir que nas suas circumstancias...
―Visto que v. s.
a não se cala, nem
quer que eu me retire,
ouça então o que tenho para lhe dizer.
A sua proposta seria para mim o maior dos insultos, se não
fôsse tal a baixeza d'ella, que
até despe de toda a imputação a pessoa
que a faz. Os
homens, faltos de sentimentos de honra, não offendem, quando
insultam; não se lhes pode pedir razão da
infamia, porque não a conhecem como tal; identificaram-se
com ella. Por isso, só me resta um partido, é
convidal-o a sair.
O brazileiro fôra erguendo-se á medida que Augusto
falava. Estava espantado por vêr que um rapaz, sem um vintem
de seu, ousasse falar com tal
[96]
irreverencia a um homem que tinha dinheiro e crédito em
tantos bancos! A ordem do mundo estava perturbada!
―Ora esta!―disse elle no fim.―Então o senhor
ordena-me?...
―Que saia!―respondeu Augusto, indicando-lhe a porta.
O brazileiro estava pasmado. Olhou para Augusto como se duvidasse do
que ouvia; deu dois passos para a porta e tornou a olhar, seguiu outra
vez, e, no limiar, parou para dizer:
―Veja lá o que faz! Eu só lhe digo que me
não convem dar a minhas filhas um mestre de soberbas.
―Decerto que lhe não poderá convir a
educação que eu désse a suas filhas;
é natural
não querer educar consciencias que sejam juizes da sua
corrupção. Deixe-as ignorantes, para
não ser castigado pelo desprezo d'ellas.
―Quer então dizer...
―Que lhe desejo muito boas noites, sr. Seabra.
O brazileiro saiu, bufando.
Augusto, que ficára só, sentiu-se apertar nos
braços de alguem que entrou, sem elle sentir.
Era o herbanario.
―É assim, é assim que te vingas de todos, rapaz!
Esmaga-m'os com a tua nobreza!
Augusto sorriu-se tristemente.
―O peor é, meu amigo―disse elle―que é a
segunda subtracção que hoje se opéra
no meu orçamento, e... a nobreza não nutre!
―Mas consola!―replicou o velho.
[97]
XXII
Dias depois das scenas descriptas no anterior capitulo, estava a
morgadinha occupada a escrever n'uma das salas do Mosteiro, quando
ouviu atraz de si correr o reposteiro da entrada.
Julgando que era algum criado, nem se voltou e proseguiu na escripta.
―Retiro-me, se sou importuno―disse a pessoa que entrára, e
que ficára no limiar da porta.
Magdalena voltou-se então e reconheceu Henrique de
Souzellas.
―Ah! é o primo Henrique? Pode entrar.
―Eu sei? Ha correspondencias tão delicadas, que demandam a
applicação de todas as nossas
faculdades, e a presença de um importuno...
―Mas não se dá agora esse caso; nem quanto
á delicadeza da correspondencia, nem quanto á
importunidade do visitante.
―Então utiliso-me da concessão.
―Occupava-me a escrever áquelle pobre Cancella, para o
tranquillisar em relação á
filha. Pobre homem! Ainda se lhe não pôde obter
fiança, apesar de meu pae tratar d'isso, a pedido meu. Ha
quem trabalhe contra elle. E como ha de ter padecido na cadeia na
incerteza em que está? Quem ha de dizer que n'aquelle corpo,
robusto e forte, se aloja uma alma de tão delicados
sentimentos? Inda lhe hei de mostrar a carta que elle escreve
a pedir-me que trouxesse para o Mosteiro a filha, e a tirasse de casa
da madrinha, que com o seu fanatismo a perdeu... É um modelo
para seguir.
―E como vae a pequena?
―Mal. Estou aqui a mentir, fazendo conceber
[98]
áquelle pobre homem
esperanças, que eu mesma não tenho.
―Que disse o cirurgião?
―Nada animador.
―Como capitulou a molestia?
―Não sei quê de cerebro; nem eu quiz saber. Nunca
pude comprehender a necessidade que tem certa gente de conhecer a
natureza da doença que lhes ameaça roubar uma
pessoa querida. Perdel-a ou salval-a, é a questão
que me interessa. Tudo o
mais me é indifferente. N'uma pessoa doente vejo um espirito
que hesita entre deixar-me e permanecer. Aos medicos peço
que removam, se podem, aquillo que o faz partir, mas não
quero saber o que é. Julgo natural ao sentimento o
considerar assim a molestia e a morte.
―Á maneira da arte, ainda que hoje o diagnostico entrou na
litteratura, prima. Mas a proposito do Herodes;
deixe-me dizer-lhe
que está sendo muito commentada na
aldeia a violencia d'elle contra o missionario. É voz
constante que fizera aquillo por influencia nossa, e as honras
d'aquella bem empregada sóva são-nos tambem
concedidas
inteiras. Imagine o clamor que por ahi vae!
―Deixe clamar―respondeu Magdalena, encolhendo os hombros.
―Deixo, deixo. Eu sou odiado como um Lucifer, feito homem; seguem-me,
quando eu passo, uns olhos rancorosos, e adivinho que na ausencia
não sou muito bem tratado.
―É bom acautelar-se. Não os irrite. Viu que
não era prudente.
―Não receie. Esta gente a final é cobarde.
―Tanto peor. O inimigo cobarde é mais para temer. Bem sabe.
Foi uma desastrada ideia aquella da nossa ida ao sermão do
missionario.
―Parece-lhe? Eu não estou arrependido. Bastava-me, como
recompensa, o ter presenciado o accesso de furor rabico do homem.
[99]
―Vamos, primo Henrique; confessemos que a
situação não foi das mais agradaveis.
―Sinto-a, principalmente por o incómmodo que tiveram as
senhoras e talvez por esse episodio dar vigor á
opposição, que alguem por ahi
se interessa em organisar contra o sr. conselheiro.
―Ah! pois trata-se d'isso?
―Se se trata?! E muito sériamente. A portaria a respeito do
cemiterio, a historia do sermão, e agora o episodio do
Cancella, teem feito um grande mal.
―Oh! se meu pae perdia!...
―Não entendo essa exclamação, prima
Magdalena. Ia jurar que era a expressão de um desejo.
―E por que não? Se isso fôsse motivo para meu pae
abandonar de uma vez para sempre a politica, pedil-o-hia a Deus.
―Conhece pouco ainda o coração humano, prima.
Seu pae está votado á politica para toda a vida.
Desengane-se. E se o prendesse n'esta aldeia, aqui mesmo faria a mais
deploravel, impertinente e inutil de todas as politicas, a politica
local.
A morgadinha suspirou, como se reconhecesse a verdade que Henrique
dizia.
Henrique proseguiu:
―Está organisado um club opposicionista na taberna de um
tal Canada. O brazileiro capitaneia a phalange, os padres
são os tribunos e a propaganda estende-se assustadoramente.
É preciso olhar por isto e sobretudo não perder
de vista o sr.
Joãozinho das Perdizes, cujo voto seu pae tinha em grande
conta, porque representa o de uma freguezia inteira. É de
suppor que o requestem muito e... o homem é fragil.
Já vê, prima,
que eu tomo muito a sério os preceitos hygienicos, que me
deu o meu medico, quando parti de Lisboa, e que a prima approvou. Estou
a interessar-me pelas questões locaes, como se aqui
estivesse, ha annos.
―E é um bom indicio de cura, pode crer.
[100]
―E ainda tem empenho de me curar?
―Empenho, todo; esperança é que menos.
―Ó meu Deus! que sinceridade de medico tão
cruel! Seja; escutarei a sentença com coragem. Diga-me o que
pensa de mim. Ha muito que não falamos n'isto. A ultima vez
que o fizemos, um tanto categoricamente, foi n'uma occasião
bem critica. Julgo que o meu procedimento de então
até hoje
lhe terá feito conceber do meu caracter um não
muito desfavoravel conceito. Bem vê que não
abusei...
―De quê?―perguntou Magdalena, contrahindo a fronte, n'um
gesto de altivez.―É certo que tem em todo esse tempo dado
provas de discreção, no que se mostrou mais
contricto que generoso. Pelo menos é assim que eu
interpretei o seu silencio, e approvo-o em vez de agradecel-o.
―Seja contricção, visto que assim o quer. Mas
não lhe merecerá ella alguma misericordia para
com o peccádor?
―Escute. Sinto sincera misericordia de si, pode acredital-o. Ella
só me obriga a perdoar-lhe algumas impertinencias, nem
sempre demasiado delicadas, com que me mortifica.
―Está sendo tão amavel!...
―Perdôe, mas a sinceridade tem d'estas exigencias.
―Curvo-me perante as exigencias da sinceridade. Continue, prima
Magdalena.
―Vae mais longe ainda a minha misericordia, porque apesar da rebeldia
do mal, inda não desisti de cural-o.
―Inda bem. E como? Ser-me-ha licito penetrar no segredo do tratamento?
―Ha já agora uma unica maneira de o salvar.
―E é?...
―Apaixonal-o.
―Ah! n'esse caso estou salvo!―exclamou Henrique, n'um impeto, que
não pôde passar sem um sorriso da morgadinha.
[101]
―Ouça. É preciso andar com tento na escolha do
objecto d'essa paixão, sob pena de aggravar o mal em vez de
minoral-o.
―E como hei de escolher?
-De modo que lisonjeie a opinião que o primo tem de si
proprio.
―A opinião que eu tenho de mim! Se pudésse ser
mais clara...
―De boa vontade. O primo Henrique tem uma forte necessidade de
persuadir-se de que representa no mundo um grande papel, uma
missão heroica e generosa, quasi providencial. Exigencias de
uma vaidade de boa indole, que se lhe não pode levar a mal.
Repugna-lhe a ideia da inutilidade, da insignificancia da sua
existencia. Não se resigna ao papel de comparsa, ambiciona o
de protector. Se o acaso, ou uma inconsideração
de momento, o associasse, por toda a vida, a um caracter igualmente
forte, que, em constante opposicão, pretendesse provar-lhe
que prescindia da sua protecção, grandes
desgostos e amarguras o esperavam no futuro. Uma indole branda, docil,
fraca, um d'estes seres nervosamente delicados, que tremem ao verem-se
sós, cheios de poeticas superstições,
que tenha a
dissipar; que se lhe apoie ao braço, como se n'elle
encontrasse a coragem que não sente em si, e que, ao mesmo
tempo, domine pela fraqueza e pela doçura, domine sem
consciencia do imperio que exerce e sem vaidade, portanto; um caracter
d'estes é que deve procurar para salvar-se; só
d'elle pode esperar a realisação da vaga ideia de
felicidade, que
todos concebem na vida.
―E se essa theoria engenhosa fôsse verdadeira, parece-lhe
que poderia encontrar á mão o tal anjo salvador,
que precisa do meu braço para se apoiar?
―Julgo que pode, e que já o teria encontrado, se pensasse
sériamente nas necessidades do seu
coração.
[102]
Henrique ia a responder, quando entrou na sala um criado com as cartas
do correio.
―Trégoas á nossa conferencia, emquanto eu leio a
carta de meu pae―disse Magdalena, examinando a carta recebida.
―Concedidas, e eu aproveito-as para correr a vista pelos
periodicos que chegaram.
E emquanto Magdalena lia a carta, Henrique passava pelos olhos as
folhas de Lisboa.
Não tinham decorrido muitos instantes, quando a morgadinha
interrompeu a leitura, exclamando:
―Ó meu Deus! mas de que se trata? Que quer dizer isto?
Ao ouvir estas palavras, Henrique desviou para ella os olhos.
Viu-a agitada e lendo com vivacidade e commoção a
carta do conselheiro.
―Ha alguma má nova?―perguntou Henrique, ferido por aquella
expressão.
Antes, porém, de responder-lhe, a morgadinha seguiu com
ardor a leitura até o fim.
Henrique continuava a observal-a e cada vez mais evidentes descobria
n'ella os signaes de uma funda agitação. Ao
findar a leitura, passou a
mão pela fronte como para desviar uma ideia amarga.
―Por amor de Deus, prima Magdalena, que diz essa carta, para assim a
perturbar?―perguntou Henrique, já assustado tambem.
―Não sei bem; não posso ainda dizer a que se
refere meu pae; mas sinto-me interiormente sobresaltada, como se o
adivinhasse.
―Mas a final o que se diz ahi?
―Leia, e veja se, melhor do que eu, pode comprehender esse enigma, por
certo doloroso.
Henrique examinou a carta, que a morgadinha lhe passou para as
mãos.
N'esta carta queixava-se o conselheiro á filha de ter sido
victima de um abuso de confiança commettido por alguem, que
elle ainda não sabia dizer
[103]
quem fôsse. N'um periodico de Lisboa fôra publicada
por aquelles dias uma carta dirigida tempos antes ao conselheiro por
não menor personagem politica do que o secretario intimo do
ministro.
O proprio conselheiro confessava ser esta carta demasiado
compromettedora, e assim tambem o demonstrava a excepcional
irritação que transparecia em todos os periodos,
da que escrevêra á filha. O periodico que, para
fins politicos, fizera a
publicação, havia occultado os nomes,
porém muitas circumstancias referidas tornavam inutil a
discreção; e em Lisboa ninguem hesitou em
aprontar as personagens entre quem se passara o facto. Durante uma das
suas demoras na aldeia, recebêra o conselheiro essa carta;
alli, no seio da familia, a confiança que depositava em
quantos o rodeavam impediu-o de ser previdente, como por
hábito o era; facil foi portanto o extravio. O conselheiro
dizia á filha que era preciso descobrir o traidor, para
evitar futuros abusos; e por isso, que se lembrasse de que o alcance da
carta não era para todos comprehendel-o, e portanto
não se limitasse a indagar entre os da baixa classe.
«A vingança, concluia o conselheiro,
de uma maneira mysteriosa, como de quem deseja e receia, ao mesmo
tempo, fazer uma allusão―a vingança, bem ou mal
fundada, obriga ás vezes os mais nobres caracteres a uma
acção baixa e vil; entre os que por mim se possam
julgar offendidos, é natural encontrar o
criminoso.»
―Esclareça-me este mysterio! disse Magdalena,
consternada.―De que se trata aqui?
―Alguma correspondencia politica extraviada. Seu pae diz bem;
é necessario descobrir o traidor por cautela.
Além de que, para todos os que, como eu, teem entrada n'esta
casa, é isto um mysterio em que a nossa honra
está empenhada, porque v. ex.
as teem
direito a alimentar
suspeitas.
―Por amor de Deus!―acudiu, interrompendo-o, a
morgadinha.―Não pronuncie essa palavra! Suspeitas!
[104]
Esse envenenamento moral, que eu
até aqui não conheci, quer meu pae que
voluntariamente o contraia.
―Seja envenenamento, muito embora, mas é um envenenamento
salvador, prima, como o da vaccina; é um preservativo de
traição.
―Viver para desconfiar! procurar nas palavras que se ouvem um sentido
occulto! nos gestos uma expressão denunciadora! nos affectos
uma
intenção egoista! Oh! isto é horrivel!
Mas... que carta é essa, meu Deus? Que correspondencia pode
ter meu pae, que não deva vêr a luz do dia? Meu
pae!... Ha por fôrça illusão n'isto!
Meu pae
não tem crimes; meu pae não tem
acções que o
envergonhem; meu pae pode franquear a todos as portas da sua casa sem
receiar-se de indiscreções. Pois
não é assim?
―Por certo, prima; mas... na politica ha actos que... sem serem
criminosos...
―A politica! Sim, é isso! Eu devia
prevêr que essa palavra viria para explicar este mysterio!
Por politica é-se cruel, por politica sacrifica-se um amigo,
por politica força-se a consciencia, e depois... ella
justifica tudo. Que obras são as obras politicas que
precisam da sombra e do mysterio para se fazerem? Pois para dirigir ou
salvar uma nação, pois para
se tratar dos interesses de um povo, é sempre necessario o
disfarce, a dissimulação, o mysterio?
―Quando se não pode contar com a boa fé dos
outros, perde sempre quem fôr escrupulosamente fiel
á sua.
―Mais valeria então abandonar por uma vez essa carreira
cruel... Oh! ainda agora reparo... Tem ahi as folhas de Lisboa...
deixe-m'as vêr... quero saber que carta é esta.
Henrique procurou dissuadil-a. Um numero avulso de um periodico, que
não costumava vir ao Mosteiro, havia-lhe já feito
suspeitar que era esse o que publicava a carta em questão.
Não fazendo do conselheiro
[105]
tão
subido e ideal conceito como a morgadinha, achava muito natural que
effectivamente o comprometesse a carta alludida. Conhecendo bastante
Magdalena, sabia quanto seria cruel para o seu extremoso
coração de filha, e para o seu
caracter apaixonado por tudo quanto era idealmente nobre, generoso e
justo, o descobrir no pae uma d'essas máculas frequentes na
vida dos homens politicos, por minima e desvanecida que
fôsse. Por isso quiz evitar-lhe a leitura. Não o
conseguiu, porém.
Magdalena, com aquella firmeza de resolução que
energicamente se lhe revelava na voz e no gesto, disse, estendendo a
mão para receber os periodicos:
―Deixe-me vêr, primo Henrique. Não é
possivel que de meu pae se diga ahi alguma coisa que não
devam ler os olhos de uma filha.
E quasi arrebatou das mãos de Henrique a folha, justamente
aquella de que elle mais receiava.
E, abrindo-a, examinou-a com anciedade quasi febril.
Henrique observava com curiosidade os movimentos e a physionomia de
Magdalena.
Viu-a tornar-se de repente mais attenta á leitura; os olhos,
que até alli vagueavam por diversas
secções do periodico, fixaram-se n'um ponto;
contrahiu-se-lhe a fronte; um ligeiro tremor correu-lhe os labios;
córou e empallideceu alternadamente; e no fim, afastando de
si a folha com um movimento nervoso e apaixonado, exclamou, sob o
dominio de uma commoção profunda:
―Ó meu Deus! E não ter um
coração, como o d'elle, a
fôrça precisa para fugir d'estes
enredos! Isto é de enlouquecer!...
Henrique pegou na folha, que ella arrojou de si com impeto, e
examinou-a.
Tinha conjecturado bem.
O caso devia consternar Magdalena, para quem o conselheiro era um homem
tão perfeito na vida politica e na vida social, como na vida
de familia.
[106]
Para Henrique, em quem
havia muito se inoculára o scepticismo da época,
impedindo-o de divinisar os homens, por mais rodeados de prestigios que
lhe apparecessem, não tinha o facto de que se tratava grande
significação nem gravidade. O caso era o
seguinte:
Tempos antes havia-se agitado nas camaras uma importante
questão politica; uma d'estas questões
que servem para estremar os campos e descriminar os programmas dos
partidos. Vacillar n'ellas é já trahir os
principios fundamentaes de uma causa, e abjurar um credo politico
inteiro. O pae de Magdalena, militando no partido de mais
avançadas ideias liberaes, tinha de antemão
traçado por
elle o caminho a seguir n'esta conjunctura, o circulo, fóra
do qual não poderia combater sem apostasia; mas, como
já atraz dissemos, o conselheiro não era
já o homem que fôra nos primeiros tempos da sua
carreira publica; perdera a fé nas utopias e nos principios
abstractos, e trocava-os de barato por qualquer pequena vantagem
positiva que pudésse obter, se não para si, para
a localidade de que era representante. A logica partidaria
sacrificára-a, sem remorsos, mais do que uma vez, ao que, em
linguagem não sei se parlamentar, se chama conveniencias
politicas.
Déra-se mais um exemplo d'esta flexibilidade de principios
no conselheiro.
Comquanto membro da opposicão, e dos mais temidos pela sua
eloquencia, variados conhecimentos e vigor de discussão,
não era elle de
tão espinhosa moral que não tivesse amigos no
seio da maioria, sendo até o proprio ministro um dos mais
intimos. No tempo da discussão, de que falamos, o ministro,
que desejava afastar das camaras todos os adversarios de importancia,
não duvidou entrar em ajustes com o conselheiro. Este, que
já não era
homem para repellir com indignação taes factos,
teve a astucia precisa para se aproveitar das contingencias.
Entenderam-se.
[107]
Chegada a época da discussão, o conselheiro, que
sempre se mostrou ardente adversario da medida ministerial, e de quem
se esperava uma opposicão vigorosa e efficaz, pretextou
subitos negocios a chamal-o á provincia, e partiu,
promettendo voltar a tempo ainda de discutir a questão.
Depois de chegar ao Mosteiro escreveu para os amigos, lamentando que
inesperados negocios de familia o retivessem alli mais tempo do que
contava, e alentando-os de longe á lucta. No entretanto, a
questão foi apresentada nas camaras: oradores tibios e mal
escutados acharam-se sós a combatel-a; apagadores officiaes
e officiosos abafaram a tempo a discussão; e, quando o
conselheiro voltou a Lisboa, só pôde protestar nos
circulos politicos contra o resultado da votação
e expender as
razões que deveriam fazer repellir a medida.
Em recompensa eram concedidos melhoramentos para o circulo que o
elegia; e entre elles a estrada que vimos principiar. Tal
fôra o preço d'ella.
Tudo isto trazia agora á luz a carta desencaminhada, que era
do secretario do ministro, e que no seu conteúdo deixava
vêr claramente as
condições do pacto.
Esta publicação causou profunda
sensação em Lisboa. A importancia politica do
conselheiro soffreu com isso.
Atacavam-n'o os partidarios do governo, para declinarem d'este, quanto
possivel, a responsabilidade do facto; atacavam-n'o os opposicionistas
declarados, para com o mesmo golpe ferirem o ministerio.
Os influentes politicos teem sempre no proprio partido, a que
pertencem, invejosos que só almejam o primeiro pretexto para
os derrubarem, embora caia com elles o partido a que se filiam.
Aquella carta foi, durante algum tempo, uma arma poderosa nas
mãos dos taes; originou discussões e ataques
violentos; e o conselheiro correu
[108]
risco de se malquistar por causa d'ella com gregos e troyanos.
Tudo isto se revelava ao espirito de Magdalena e tudo isto a
consternava. O seu muito amor filial fazia-lhe achar no facto uma
significação
dolorosa e triste que só desillusões, como as de
Henrique
de Souzellas, velhas desillusões de sceptico impenitente,
poderiam attenuar. O conselheiro expiava cruelmente o seu delicto.
A leviandade e doblez do homem politico pagava-a caro o homem de
familia.
É que a moral é uma. O homem não pode
dividir-se; os peccados sociaes de quem é virtuoso nos lares
domesticos, pagam-se, expiam-se n'esses mesmos lares. Os filhos que
creou e educou segundo os preceitos da honra e da virtude,
serão mais tarde os seus proprios juizes, e que cruel
julgamento para o coração de um pae! É
justo que a
patria peça contas dos crimes de familia e desconfie dos
tribunos que não sabem ser paes, filhos, irmãos e
esposos;
é justo que a familia exija que se seja fiel á
prática e ás crenças que se professam,
e castigue, pelo menos com lagrimas, como as de Magdalena, as culpas do
homem que julgou poder ter duas consciencias: uma para responder por os
actos civicos, outra para os actos domesticos.
Henrique procurou minorar o effeito que esta leitura tinha produzido no
animo da morgadinha por meio de algumas
consolações, que uma
indulgente moral, muito do uso da sociedade, lhe inspirava.
Percebeu porém, que, embora as
manifestações do sentimento tivessem cessado
já em Magdalena, não se lhe tinha ainda dissipado
a profunda e penosa impressão que lhe ficára da
leitura.
Como para fazer cessar aquelle genero de
consolações, a que Henrique se julgava obrigado,
e que a ella eram custosas de ouvir, Magdalena disse, em tom
já apparentemente sereno:
[109]
―Bem; visto que é necessario precavermo-nos, vejamos de
quem e quaes as cautelas que temos a adoptar. Meu pae parece suspeitar
de alguem, mas não se pronuncia claramente.
N'isto entrou na sala D. Victoria, carregada de roupa como para uma
viagem aos pólos, e queixando-se do frio, cuja intensidade
attribuia em grande parte aos criados, por se terem descuidado de
accender logo de manhã os fogões da casa.
Quando D. Victoria foi informada do conteúdo da carta do seu
cunhado, levantou um alarido desolador. Por sua vontade ordenava logo
alli um interrogatorio e uma devassa geral a todos os criados da casa,
aos quaes, segundo o costume, attribuia a culpa toda. Magdalena e
Henrique tiveram muito que fazer para a convencerem da inutilidade e
inconveniencia d'esse alvitre e para lhe mostrarem a necessidade de
usar de toda a prudencia e
dissimulação n'esta pesquisa.
―Aqui entre nós―dizia Henrique―vejamos em quem se pode,
com plausibilidade, fazer recahir as suspeitas. O sr. conselheiro diz
bem; um criado boçal pode roubar uma joia, subtrahir
qualquer objecto de valor intrinseco; porém os
ladrões de cartas como estas, são de outra
especie e de intelligencia mais apurada. Ora entre a gente que
frequenta o Mosteiro...
E parando subitamente, Henrique disse para D. Victoria, que olhava para
elle com um gesto espantado:
―Porém, minha senhora, eu mesmo não me devo
excluir da lista dos indiciados, e n'esse caso deixo v. ex.
as
livres
para me instaurarem processo.
―Ora essa, primo Henrique!―exclamou D. Victoria.―Era o que faltava!
Nada, nada; não se cance; não tem que
vêr. Aquillo foram os criados.
Magdalena estava tão abatida de animo, que nem deu
attenção a este episodio.
Henrique proseguiu:
[110]
―Nada de magnanimidades, minha senhora; quem quer ser juiz a ninguem
deve excluir da possibilidade de ser réo. O sr. conselheiro,
porém, alguns indicios nos aponta. Fala, por exemplo,
vagamente, de alguem que n'estes ultimos tempos se pudesse considerar
offendido por elle, e que por vingança... Ora actos capazes
de trazer estas
animadversões a seu pae, prima Magdalena, só a
questão do cemiterio, mas essa não importa a
ninguem que tenha entrada aqui... Ha tambem as das
expropriações, porém...
Henrique parou, como se lhe tivesse acudido uma ideia, que examinava,
antes de enuncial-a.
―Tive agora um pensamento diabolico; nem quero attendel-o.
―Diga, primo, diga―acudiu logo D. Victoria.
―A expropriação da casa do herbanario... O muito
amor que o velho tinha áquella vivenda... A repugnancia com
que viu cortar aquellas arvores velhas...
―Então julga que foi o Vicente?―perguntou D.
Victoria.―Mas elle não vem ao Mosteiro ha muitos annos,
primo.
―Não digo que fôsse elle, minha senhora―disse
Henrique, cujo embaraço augmentava, sentindo que a
morgadinha o fitava com um olhar penetrante, como se lhe estivesse
lendo o pensamento.
―Então?―insistia D. Victoria.
―Mas―proseguiu Henrique―o velho exerce certa
fascinação na gente da terra; um verdadeiro
prestigio; e certas intimidades entre elle e... e alguem que tem aqui
entrada a todo o momento... Emfim... eu não quero seguir
mais adeante este antipathico pensamento, que talvez fôsse
rejeitado com indignação por quem me escuta e
attribuido a mesquinhos resentimentos da minha parte.
―Faz bem em o abandonar, primo Henrique―disse Magdalena, com
severidade.―Entre ser victima de uma traição e
culpada de uma suspeita injusta,
[111]
cruel e maligna, prefiro arriscar-me á primeira sorte. Se um
passado inteiro de honra e de probidade, se um caracter provado nas
mais tentadoras situações da vida, se um nome
ennobrecido pelo infortunio, não são garantias
bastantes para
proteger um homem contra os ataques da suspeita, não quero
entrar n'essa pesquisa inquisitorial que nada respeita, que
é capaz de lançar sacrilegamente a
dúvida entre paes e filhos, entre irmãs e
irmãos. Innocente, prefiro aguardar a calumnia; culpada, o
castigo, a sentar-me como juiz n'esse tribunal impio que quer arvorar.
―Previ essas palavras, prima Magdalena; por isso hesitei. Lamento
sinceramente ter já perdido no uso do mundo uma
tão sympathica e adoravel boa fé nos outros, que
é a maior prova de candura
que se pode dar do proprio caracter.
D. Victoria não percebeu nada d'este rapido dialogo; por
isso exclamou:
―Mas que estão vossês ahi a dizer? De quem falam?
Eu se vos entendo! Quanto a mim, foram os criados, e d'isto
é que ninguem me tira.
Abriu-se n'este momento a porta da sala e appareceu Augusto. Era a hora
das lições dos pequenos.
Comquanto, desde o termo das férias, Augusto viesse todos os
dias ao Mosteiro, era aquella a primeira vez que se encontrava com
Magdalena e com Henrique, depois da scena que entre elles se
passára na noite de Natal.
A morgadinha fitou por momentos n'elle os olhos; pareceu-lhe mais
pallido e triste do que de costume. Desviou-os, porém, como
se até sentisse remorsos de ter escutado as
allusões de Henrique sobre o caracter de um homem que ella
se costumára a respeitar. Porque o leitor, cuja
intelligencia é, sem lhe fazer favor, mais perspicaz do que
a de D. Victoria, percebeu de certo que era a Augusto que se referiam
os vagos termos trocados entre Henrique e Magdalena.
[112]
―Muito bons dias, sr. Augusto,―disse D. Victoria
affavelmente―então são horas de me vir aturar a
pequenada? Não lhe invejo a vida. Sabe? De manhã
até á noite a aturar
creanças! Deus me livre!
―Agora já não succede assim, minha senhora.
Estou dispensado de parte das minhas
obrigações―disse Augusto, depois de cortejar as
senhoras e Henrique.
―Como?
―Pois v. ex.
a não sabe que
já foi nomeado outro
professor para o meu logar?
―Que me diz?
Em todas as pessoas presentes produziu sensação
esta noticia.
D. Victoria e a morgadinha fixaram em Augusto um olhar interrogador. O
gesto de Henrique tinha uma expressão particular.
―Recebi ha dias a participação
official―continuou placidamente Augusto.
―Mas―proseguiu D. Victoria―o mano tinha aqui dito que o seu despacho
estava seguro, que, além de ser de toda a
justiça, elle o tomaria a
seu cuidado. E então agora... Olhem, sabem que mais? eu cada
vez me entendo menos com esta gente. Isto de politicos...
Magdalena inclinou a cabeça, suspirando.
―Bem vê v. ex.
a―disse Augusto, com
leve tom de
amargura―que ás vezes ha grandes interesses sociaes
dependentes do despacho de um modesto professor de
instrucção primaria da aldeia, e
portanto não se deve extranhar que um homem politico
attendesse a elles antes de tudo.
Magdalena que, ao ouvir estas palavras, levantára os olhos,
encontrou os de Henrique, que parecia procurarem os d'ella com
intenção.
A morgadinha desviou os seus com impaciencia e desgôsto, que
se lhe manifestou na
contracção da fronte.
[113]
―V. ex.
a dá-me licença
que
principie os meus
trabalhos?―disse Augusto.
―Ai, quando quizer―respondeu D. Victoria.―Os pequenos
estão na sala verde.
Augusto saiu.
D. Victoria entrou no panegyrico do mestre de seus filhos, e
não se fartou de exaltar-lhe os talentos e as virtudes,
apregoando o muito que aproveitavam os pequenos sob tão
intelligente
direcção.
―Olhe que o Eduardito já escreve e já
lê manuscripto como um homem―dizia ella.―Quer
vêr? O sr. Augusto deixou aqui ficar a pasta; ha de ter
alguma escripta do pequeno. Ora tambem vou vêr.
E D. Victoria, cedendo aos impulsos do seu enthusiasmo de
mãe, foi buscar a pasta de Augusto e pôz-se a
procurar n'ella a escripta do filho.
―Não vejo ...―disse ella, remexendo os papeis.―Isto que
é?... Ai, isto é uma escripta de Marianna... Ora
veja.
Henrique fingiu examinar com attenção a escripta.
―Aqui estão os themas francezes d'elle. Quer vêr?
Eu d'isso não entendo, mas
hão de estar bons.
E passava tambem os themas para Henrique, que os examinava com a mesma
attenção.
―Ora onde estará a escripta de Eduardo? Eu sempre queria
que
a visse. Isto... isto é... Ha de ser alguma carta, que
elle anda a ler. Ora veja, primo; olhe que a lettra ainda
não é das mais faceis... Eu por mim
não a leio... Quer vêr?
Henrique recebeu, com a maior condescendencia, o novo documento que lhe
ministrava D. Victoria, no sympathico intento de provar a habilidade
dos filhos.
Voltou distrahidamente a primeira folha da carta e pôz-se a
lêl-a no fim; cêdo,
porém, começou a examinal-a com grande
curiosidade; leu uma e outras das faces escriptas, e, ao acabar a
leitura, estava-lhe
[114]
nos labios um
sorriso entre de ironia e de triumpho.
Offerecendo á morgadinha a carta que lêra,
disse-lhe, com um modo que a impressionou:
―Veja se comprehende a significação d'esta
carta, que estava na pasta do sr. Augusto, do amigo de seu
irmão. A mim parece-me que as creanças
não a comprehenderiam bem.
Magdalena olhou para Henrique e depois para a carta, que principiou a
ler.
Succedeu-lhe como a Henrique; cêdo a dominava uma anciosa
curiosidade, que a obrigou a ler com rapidez até o fim.
Ao acabar, amorfanhou-a com raiva, arrojando-a ao chão;
escondeu o rosto entre as mãos e
não pôde reter o pranto que lhe rebentava dos
olhos.
D. Victoria parou a olhal-a, estupefacta.
―Que é isso, Lena? Santo nome de Deus! tu que tens, menina?
―É que ha momentos, minha tia,―respondeu Magdalena,
fitando-a com os olhos arrazados de lagrimas―em que eu não
sei como se resiste á loucura; em que, para não
duvidarmos de nós
mesmos, é necessario duvidar da Providencia, que dizem que
protege os bons.
E levantando-se n'esta agitação nervosa, saiu da
sala, suffocada pelos soluços.
D. Victoria interrogou Henrique a respeito da causa d'este episodio,
que ella não podia comprehender.
Henrique respondeu simplesmente:
―Succedeu, minha senhora, que a carta encontrada na pasta do sr.
Augusto parece-se muito com aquella de cujo extravio o sr. conselheiro
se queixa e que foi publicada nos periodicos de Lisboa.
D. Victoria esteve algum tempo a pensar na verdadeira
significação da resposta.
―Mas... n'esse caso... visto isso...
―Visto isso, só o sr. Augusto pode explicar o
[115]
mysterio que inda ha pouco nos preoccupava a
todos. Os meus presentimentos malignos tinham infelizmente um fundo de
verdade.
D. Victoria, tendo a final comprehendido, exclamou:
―Pois seria elle! Era d'elle que o primo ha pouco falava? Por esta
não esperava eu! Ora fie-se uma pessoa n'estes santos! Uma
coisa assim! Ora deixa estar que eu vou... Ahi está o pago
que se tira de bem fazer! Ahi está! Veremos a cara com que
elle me responde. Ora deixa...
―Eu retiro-me―disse Henrique, pegando no chapéo para sair.
―Fique, primo, fique... Até é bom que
ouça...
―Perdão, minha senhora. É melhor que eu
não fique. Ha razões para isso... Tudo deve
passar-se entre v. ex.
a e elle, e, se me
é licito um
conselho, bom será que não seja demasiado
violenta.
Apesar dos pedidos de D. Victoria, Henrique retirou-se.
Não ia satisfeito comsigo o hospede de Alvapenha. E por
quê? Não tinha feito o seu dever? Por acaso
não era flagrante o delicto de Augusto e irrecusaveis as
provas que o acaso contra elle ministrára?
Mas em nós todos se deve ter já passado um
phenomeno moral, comparavel ao que se estava dando com Henrique.
Occasiões ha em que, apesar de todos os argumentos da
razão, apesar da
conspiração de todas as provas a justificar-nos,
persiste em nós uma voz instinctiva a avisar-nos de que
commettemos um mal, formulando uma accusação.
Isto sómente não succede a quem tenha adormecidos
os mais generosos escrupulos da consciencia; e este caso não
se dava com Henrique.
D. Victoria ficou só na sala, meditando na maneira de
confundir e castigar o criminoso. Passeiava agitada, elaborando comsigo
o dialogo que se ia seguir,
[116]
encarregando-se ella propria de responder por Augusto.
Não se passou muito tempo que Augusto não viesse
procurar a pasta que lhe esquecêra na sala.
―Que procura?―disse D. Victoria, que, ao
vêl-o, parou junto da mesa.
―Uma pasta que deixei aqui!
―Será esta?―disse D. Victoria, mostrando-a.
―É essa mesma―respondeu Augusto, indo para
buscal-a.
―Como vão na leitura do manuscripto os meus pequenos, sr.
Augusto?―perguntou D. Victoria, retendo a pasta.
―Muito bem, minha senhora.
―Já entenderam esta carta?
Augusto pegou na carta, que examinou, superficialmente.
―É provavel que já, minha senhora; ainda que
não me lembro de haver escolhido esta entre as que v. ex.
a
me deu.
―Pois escolheu por certo, visto que a tinha na pasta; mas como lhe
pareceu difficil de mais para os pequenos, teve o cuidado de mandal-a
imprimir para elles lerem melhor. Não posso consentir que
entre n'esses gastos por causa de meus filhos; por isso queira dizer a
despeza que fez, para se mandar pagar.
D. Victoria tirava da raiva, que se apossára d'ella, uma
ironia superior aos seus habituaes expedientes de espirito.
Augusto ergueu para ella os olhos, admirado, porque não
podia comprehender aquellas singulares palavras.
―Diz v. ex.
a que...
Em vez de lhe responder logo, D. Victoria pegou no periodico que
Henrique deixára sobre a mesa, e mais exaltada
já, accrescentou:
―Veja se saiu exacta. Compare. Talvez precise de fazer alguma emenda.
[117]
Augusto olhou para o periodico e para a carta, sem bem saber o que
fazia nem o que queria dizer tudo aquillo.
―Mas, por amor de Deus, minha senhora,―disse elle,
já sobresaltado―que quer dizer tudo isto?
―Quer dizer, sr. Augusto, que, quando para outra vez se lembrar de
atraiçoar mais alguem que o tenha favorecido, seja mais
cuidadoso em esconder as provas da sua villeza.
―Minha senhora!―exclamou Augusto, fazendo-se pallido.
―Fez mal em não nos ter prevenido antes do que tinha
descoberto; nós ainda tinhamos bastante dinheiro para cobrir
o lanço e ficarmos com a carta.
―Oh, meu Deus! pois suspeita-se...
E Augusto, quasi como louco, arrancou das mãos de D.
Victoria a folha, e começava a lel-a; mas as nuvens que lhe
passavam pelos olhos, a vertigem que lhe turbava a cabeça
não o deixavam
comprehender o que lia.
Emquanto Augusto assim luctava comsigo mesmo, D. Victoria dizia:
―Agora é que eu entendo o que queria dizer o primo
Henrique. Sempre é um homem que sabe o que é o
mundo...
Ao ouvir estas palavras, Augusto arrojou de si o periodico, e
scintillou-lhe o olhar de cólera:
―Ah! Foi elle? Sim... Havia de ser. Devia suspeital-o. Era de esperar
que o fizesse. É o pretexto. Minha senhora, ha aqui uma
traição infame, uma traição
que eu não ousaria suspeitar
de ninguem! Mas juro-lhe que...
―Ha de dar-me licença de ir accommodar meus
filhos―disse D. Victoria, interrompendo-o
friamente. E encaminhou-se para a porta.
Augusto viu-a afastar-se, e disse-lhe em tom sereno, mas commovido:
―Vá, minha senhora, vá; mas se tem a essas
[118]
creanças amor de
mãe, não lhes ensine
por ora a suspeitar de um homem que ellas se tinham habituado a amar e
a venerar. Peço-lhe por ellas, mais do que por mim.
É uma triste e prematura experiencia que lhes vae dar;
vae-lhes envenenar para toda a vida o coração e
talvez que contra si
mesma veja voltar-se a desconfiança que lhes semeia
tão
cêdo.
D. Victoria saiu da sala sem lhe responder; é certo,
porém, que não ousou dizer aos filhos
coisa alguma em desfavor do mestre. Sob as singularidades do genio
d'aquella senhora havia um fundo de bom senso, onde perfeitamente
calaram as reflexões de Augusto.
É singular; ao entrar na sala immediata, ia a limpar os
olhos, commovida.
Augusto permaneceu abatido e desalentado, como se n'aquelle momento
tivesse visto dissiparem-se todas as esperanças da sua vida.
Lagrimas inflammadas e amargas assomaram-lhe aos olhos ao
vêr-se humilhado no seio de uma familia que elle respeitava,
da familia d'aquella a cujos olhos mais desejaria nobilitar-se,
engrandecer-se, revestir-se de todos os prestigios.
Era uma dor para enlouquecer, a sua! Ao desalento succedeu,
porém, a reacção; n'aquelle
caracter havia latente uma energia de homem.
―Agora, mais do que nunca, preciso de alento para não
succumbir;―exclamou elle, erguendo a cabeça e vindo-lhe
ás faces o rubor da
exaltação―obriga-me a isso o nome honrado de meu
pae, a santa memoria de minha mãe. A consciencia
me dará forças para luctar com a intriga e com a
calumnia, onde quer que ella esteja. Ir-lhe-hei ao encontro, a
descoberto, sem disfarce, nem artificios, como luctador leal. E se ha
justiça no Céo, hei de
vencer! Não voltarei mais a esta casa, sem ser com a
cabeça erguida; não pensarei mais em ti,
Magdalena, unica, suave imagem que ainda me offerecia
[119]
vida, emquanto não saiba que no
teu pensamento o meu nome não é o de um infame.
Ao voltar-se para sair descobriu Magdalena, que o observava da porta.
Augusto estremeceu, mas, fazendo por dominar a
turbação, curvou-se respeitosamente perante a
morgadinha, e ia a retirar-se.
―Espere,―disse-lhe ella, estendendo-lhe a mão, e com
profunda melancolia―não saia sem se despedir de uma amiga
que, apesar de tudo, o reputou sempre innocente.
Augusto parou, como se aquellas palavras o ferissem no
coração.
Magdalena, com as faces pallidas e as lagrimas nos olhos, continuava a
estender-lhe a mão.
Augusto apoderou-se d'ella e cobriu-a de beijos e de lagrimas.
―Oh! obrigado, minha senhora, obrigado!―exclamou elle―precisava
d'essas palavras para não enlouquecer.
―Vá, Augusto, vá. Dentro em pouco tempo todos
lhe pedirão perdão. Creio-o firmemente.
―E eu não procurarei tornar a vêl-a,
senão quando pudér justificar essa generosa
confiança. Juro-lh'o.
As lagrimas de Magdalena não podiam mais tempo conter-se-lhe
nos olhos; iam soltar-se e já ella, para as occultar,
desviava o rosto, quando Christina entrou na sala.
Christina, a quem a mãe acabára de contar o
acontecido, parou a ver a scena e a commoção dos
dois.
Augusto não se demorou, saiu sem pronunciar uma palavra.
Magdalena deu largas á tristeza, que lhe pesava no
coração, deixando correr livremente o pranto.
Christina correu a abraçal-a.
―Meu Deus! meu Deus! Lena, isto que quer dizer?―exclamou Christina.
[120]
E, approximando os labios do ouvido da prima, murmurou, com adoravel
ingenuidade:
―Pois tu... amaval-o?
Por unica resposta Magdalena apertou-a apaixonadamente ao seio.
E ambas por algum tempo confundiram as suas lagrimas.
XXIII
Dominado por os mais energicos e encontrados sentimentos Augusto saiu
do Mosteiro, ainda sem plano formado, sem tenção
definida, mas
comprehendendo vagamente a necessidade de abraçar uma
resolução qualquer.
As palavras que D. Victoria inconsideradamente soltára,
tinham-lhe feito conceber a suspeita de que Henrique não
fôra alheio á calumnia que
pesava sobre elle. D'ahi a attribuir-lhe todo o plano da intriga
não ia longe, e justo é confessar que
não era destituida de plausibilidade a ideia.
A especie de aversão reciproca que, desde o primeiro
encontro, os dividira, a maior vehemencia da entrevista na noite de
Natal, em que ficára pendente entre elles uma
provocação, só
á espera de pretexto, concorriam para dar vigor a esta
supposição.
Por isso, depois de por muito tempo percorrer á
tôa os caminhos dos campos, sem consciencia nem destino,
Augusto encaminhou-se resolutamente para Alvapenha.
Estava ainda pouco senhor de si para meditar nas circumstancias que
occasionaram a sua
accusação. Mal poderia até dizer de
que era accusado. Percebeu que se tratava de um abuso de
confiança, de uma infamia, mas a impressão
recebida fôra tal que não o deixára
investigar os pormenores do facto.
[121]
Previa em tudo isto
uma traição, e, para a
esclarecer, dirigiu-se á unica pessoa de quem lhe parecia
provavel que ella partisse.
Quando chegou a Alvapenha já tinha alli passado a hora de
jantar.
Henrique retirára-se para o quarto, D. Dorothéa e
Maria de Jesus, aquella dobando, esta fiando, aproveitavam o tempo a
rezar parte das suas longas orações quotidianas.
Quando Augusto bateu á porta, estavam ellas de volta com a
ladainha, que D. Dorothéa dizia em latim, a seu modo, e a
que Maria de Jesus respondia no mesmo idioma.
―
Turris e burris, fedilisarca, espeque da
justiça, Joannes asellis―dizia D.
Dorothéa.
―
Orá pér
nós―respondia invariavelmente a
criada.
A reza interrompeu-se ao entrar Augusto na sala.
Poucas situações se podem conceber mais
exasperadoras de animo do que a de Augusto n'aquelle momento.
Vir com o espirito dominado por as mais violentas paixões,
trazer no coração uma
verdadeira tempestade affectiva, e de subito achar-se na
presença de duas indoles essencialmente pacificas, de dois
corações a que a paixão nunca alterou
o rithmo, de duas consciencias de que nunca a dúvida, o
remorso, ou o odio turbaram a celeste serenidade, é um
martyrio cruel.
Augusto teve desejos de recuar, porque previu a tortura que o esperava.
―Ditosos olhos que o vêem!―disse D. Dorothéa,
arredando deante de si a dobadoura, para mais á vontade
contemplar o recem-chegado.―Não sei, que mal lhe fizeram
n'esta casa!
―As minhas occupações...―balbuciou Augusto, sem
saber o que dizia.
Maria de Jesus veio de reforço á ama.
―Isso! fale-nos nas suas occupações, nem que
[122]
se não soubesse
cá que todos os dias
dá o seu passeio ao fim da tarde; sem falar nas
quintas-feiras e domingos...
Augusto não respondeu.
―Pois olhe que todos aqui lhe querem bem―disse D.
Dorothéa.
―Assim o creio, minha senhora.
―Eu fui muito amiga de sua mãe, que era uma santa creatura.
Inda me parece que a estou a vêr ahi sentada, com aquella
capa rôxa que trazia. A alegria d'ella, quando o Augustito
veio de Lisboa! Vi-a chorar e agradecer a Deus o filho que lhe tinha
dado... Todo o seu desejo era não morrer antes de o
vêr padre; queria pelo menos uma vez commungar
das suas mãos... Coitada!... Não lhe
concedeu isso o
Senhor, que bem cêdo a chamou a si.
E continuou para Augusto:
―Quando morreu a morgada, a madrinha da Lenita, e que me contaram aqui
do legado que ella deixára, eu disse logo: «Ora a
alma tem ella no
Céo por isto, quando por mais não
seja». Porque,
emfim... só quem não conheceu sua mãe
é que não diria outro tanto. Verdade é
que elle não chegou
a aproveitar... mas... Emfim cada um sabe o que lhe convem e o que lhe
não convem. E eu digo, a vida de sacerdote é
muito bonita, isso é, mas... não havendo
inclinação...
Augusto estava impaciente com a loquacidade da senhora de Alvapenha.
―O sr. Henrique de Souzellas está em casa?―perguntou elle,
logo que pôde.―Desejava muito falar-lhe.
―Ai, sim? quer falar com elle? Eu acho que... Parece-me... Sim, elle
deve estar no quarto... Ha de estar a ler. Não tem outra
vida aquelle rapaz! Uma coisa assim! Por mais que eu lhe diga:
«Henriquinho, olha que isso faz-te mal...»
É o mesmo que nada. Só ler, ler, ler, que
é uma coisa por maior.
[123]
Ao principio ainda por ahi
dava alguns passeios... Agora, tirando lá as suas visitas ao
Mosteiro, elle para ahi fica. Lá ao Mosteiro sim, para ahi
ainda elle vae.
―É que os ares são por alli muito
saudaveis―disse maliciosamênte Maria de Jesus.
―Adeus! ahi vem vossê com as suas coisas. E então
que tem? Pois está claro que um rapaz, como
elle, dá-se com a gente nova.
―Pois sim, senhora, eu não digo...
―E as raparigas de lá já não
estão bem sem elle... Ora eu confesso, quando elle
está de
maré, é um gôsto ouvil-o. Sempre
ás vezes tem
coisas que fazem rir as pedras.
―E pondo-se a contar historias? Ih! isso então é
que é! Eu não sei onde elle as vae
buscar!―accrescentou a criada.
―Com esta―continuou D. Dorothéa, apontando para Maria de
Jesus―é ás vezes um passo. Eu ainda queria que o
Augustito os ouvisse a ambos. É perdido em pouca gente. Elle
põe-se
lá a inventar patranhas, e ella a tôla, que sabe
já como elle
é, ouve tudo muito séria e fiada, e no fim
então
é que são os escarcéos. Emfim, uma
coisa é
dizer, outra é vêr!
E D. Dorothéa ria, com aquelle rir meio tossido de velha, em
que ha não sei que indicios de uma existencia placida, que
consola ouvir.
Augusto forçava-se a sorrir áquellas
narrações das duas velhas, a que elle mal
attendia.
―Eu digo―continuou D. Dorothéa―que já nos
havia de fazer falta se saisse d'aqui; quando cá
não está parece-me a casa morta.
―Deixe lá, senhora, que este já d'aqui
não sae.
―Ora bem sabe vossê d'isso.
―Pois a senhora verá. Ora! Os passeios ao Mosteiro
são muito bonitos.
Augusto ergueu-se, devéras resolvido a cortar a conversa por
uma vez.
[124]
―Se me dá licença, eu vou procural-o ao quarto.
Desejava falar-lhe, quanto antes, para um negocio de urgencia.
Depois de mais algumas reflexões, resignaram-se a deixal-o
partir.
Augusto transpoz rapidamente os corredores, que o separavam do quarto
de Henrique, e bateu á porta d'este.
―Entre quem é―disse de dentro Henrique.
Augusto entrou.
O sobrinho de D. Dorothéa estava sentado junto da janella,
lendo uma folha e fumando.
Ao vêr Augusto levantou-se.
A lembrança das scenas d'aquella manhã no
Mosteiro, e a expressão de physionomia de Augusto,
fizeram-lhe prevêr a indole da entrevista que se ia seguir.
Evitando porém o menor indicio, que pudesse revelar a
prevenção em que estava, disse
naturalmente, estendendo a mão a Augusto:
―Oh! por aqui! A que devo o prazer d'esta visita?
Em vez de lhe corresponder ao cumprimento, Augusto disse-lhe friamente:
―Assim estende a mão a um miseravel? Ou é
tibieza de pundonor, ou excesso de magnanimidade!
Henrique retirou logo a mão e respondeu com orgulhoso
desdem:
―Nem uma coisa, nem outra; simplesmente o juizo bastante para
não me arvorar em superintendente de negocios que me
não dizem respeito; é um sentido especial, que se
chama delicadeza.
―É um pouco sujeito a adormecer em si esse precioso
sentido―replicou Augusto no mesmo tom.―Nem sempre são
tão observadas pelo senhor, essas delicadas
abstenções, como agora. Sei-o por
experiencia.
―Não o são desde que os interessados me ordenam
[125]
que intervenha, e desde que a minha
intervenção pode ser util a amigos.
―Pois bem; como, por qualquer d'essas causas, se deu o facto em
relação ao objecto que me traz aqui, espero que
me explique a natureza da sua intervenção.
―Mas com que direito me vem o senhor pedir aqui
explicações?
―Com o direito que me dá a consciencia, senhor!―respondeu
energicamente Augusto, despojando-se de toda a apparencia de
ironia.―Com o direito que tem todo o homem, calumniado cobarde e
infamemente, como eu fui, de provocar uma
accusação aberta e leal. Direito? É
mais ainda do que direito, é dever. É um dever
para com a moral,
é um dever para com a consciencia, é um dever
para com a memoria d'aquelles que nos transmittiram um nome honrado.
―Muito bem; mas, admittindo que seja esse direito ou esse dever, e
não lh'o contestarei, por que singularidade acontece que
seja eu a pessoa que tem de responder por tudo isso? Por acaso
será este o pretexto, para depois do qual tinhamos adiado
uma entrevista que suppuzemos necesssaria?
―Se houve pretexto para ella, foi da sua parte, e escolheu-o bem
infame e vil. Não lh'o invejo. Da minha não
é pretexto; é uma
interrogação bem positiva e terminante. Todos os
motivos anteriores, que podiam auctorisar-me a procural-o, cessaram
ante a impreterivel exigencia d'este. Preciso de justificar-me, e por
isso preciso de conhecer e de ouvir os meus accusadores.
―E imagina que sou eu quem deve auxilial'o na tarefa? Pelo menos devia
escolher uma hora mais cómmoda. Sabe que na Alvapenha se
janta patriarchalmente ao meio dia.
―Não julgue que com essas ironias de mau gôsto,
se esquivará a responder-me. Juro-lhe que hei de obrigal-o a
falar com seriedade.
[126]
―E tem meios para isso?
―Faço-lhe a justiça de acreditar que sim; creio
que ainda não estará tão envilecido
que receba com um sorriso cynico o insulto que lhe infligir...
―É provavel que não risse, no caso que diz; mas
tambem não falava, acredite. Ha, para
interrogações d'essas, respostas mais adequadas e
discretas. Não tente; aconselho-o... Mas, valha-me Deus,
quem lhe disse que eu não queria dar-lhe todas as
explicações que souber? Sente-se, conversemos
placidamente, que é a melhor maneira de vêr claro
nas coisas. Não fuma?
Augusto, indignado com este frio sarcasmo, respondeu com vehemencia:
―Está-me causando tedio e compaixão ao mesmo
tempo, senhor. Deve ter já uma alma bem corrompida para me
receber assim. Ainda quando eu fôsse um criminoso, se no seu
caracter houvesse brio, dignidade e sentimento moral, devia a minha
presença ser-lhe um espectaculo demasiado abjecto, para o
não deixar sorrir, ainda que de sarcasmo; mas na incerteza
em que está, em que deve estar por
fôrça, a só ideia de que pode
calumniar um homem innocente, devia bastar para lhe fazer sentir toda a
gravidade d'esta entrevista e obrigal-o a attender-me como eu exijo ser
attendido. Para não comprehender isto, para não
respeitar esse sagrado direito, que tem todo o accusado de se defender,
é necessario estar corrompido até o fundo da
alma. O scepticismo e a irreverencia para com os outros, só
se dá em quem duvída de si
proprio, e a si proprio se não respeita, porque se conhece.
O senhor soube insinuar a calumnia no seio de uma familia, cujos amigos
generosos não a receberam sem dor; e quando o calumniado lhe
vem pedir explicações, porque se trata da sua
unica riqueza, porque, sem familia e pobre, e
ámanhã talvez na miseria,
precisa de defender o unico bem que lhe resta, o senhor recebe-o com um
sorriso ultrajante, para occultar
[127]
talvez a cobardia, que não ousa
repetir na face do accusado as insinuações que
contra elle fez na
ausencia. Se a consciencia lhe não exprobra esta infamia,
teve razão ao dizer-me que me enganei procurando-o. A
caracteres d'esses não se pede a
explicação da calumnia; é a sua
manifestação
natural.
E terminando estas palavras, que a mais violenta paixão lhe
dictára, Augusto caminhou para a porta
do quarto.
Henrique deteve-o.
No espirito do leviano hospede de Alvapenha passára-se
n'este curto intervallo de tempo uma profunda
revolução moral.
Na voz, no gesto e na indignação de Augusto
pareceu-lhe perceber vestigios de sinceridade, em que até
alli não acreditára, e desde
esse momento, além dos remorsos pelos desdens com que o
recebêra, sentia viva a necessidade de uma
reparação.
Magdalena tinha razão.
No meio de todos os seus defeitos, havia n'este rapaz um não
exgotado fundo de pundonor e de moralidade.
―Não saia―disse elle para Augusto, já sem a
menor sombra de ironia.―Se para isso fôr necessario
pedir-lhe perdão, pedir-lh'o-hei. Que mais quer?...
Reconheço-lhe o direito que tem de ser escutado. Fique. E
creia que, apesar das apparencias lhe serem desfavoraveis, eu, que em
bem pouco concorri para ellas, sinto-me já movido a
não
lhes dar fé. É já um convencimento
tão intimo como o que até agora tinha da sua
culpa, confesso-o. Se na minha mão estiver esclarecer o
mysterio, conte commigo. Fale.
Augusto fitava-o ainda com desconfiança.
Henrique percebeu-o e continuou:
―É justa a dúvida que lhe leio no olhar, mas,
como sómente o meu procedimento futuro a pode desvanecer,
peço-lhe que não deixe por
isso de falar.
[128]
―Antes de mais nada: de que me accusam?―perguntou Augusto.
―Pois não sabe?!―exclamou Henrique, admirado.
―Vagamente apenas. Sei que ha uma carta extraviada, mas a
conclusão em que fiquei, mal me deixou comprehender...
Henrique contou então tudo o que se passára no
Mosteiro, e terminou dizendo:
―Já vê que eu não fiz mais do que
faria outro qualquer em meu logar. Pesava sobre todos quantos
frequentavam aquella casa uma desconfiança odiosa:
esclarecer o mysterio, dissipar as suspeitas, lançar aos
hombros do culpado toda a responsabilidade da
traição, era o natural empenho de todos. A
descoberta da carta na sua pasta accusava-o. Essa descoberta foi
occasionalmente feita por D. Victoria. Eu não o conhecia
bastante para que o seu passado me obrigasse a recusar o testemunho das
apparencias. Os motivos de despeito, que as suas mesmas palavras por
aquella occasião confirmaram, explicavam muito bem
certas tentações
de vingança... Nada mais natural do que
suppôr...
Augusto cobriu o rosto com as mãos, murmurando:
―Accusado!... accusado de uma infamia, e deante de...
Aqui reteve-se, como se a tempo comprehendesse a
indiscreção da sua dor.
Henrique cada vez se sentia mais modificado nas suas
disposições para com Augusto; por isso, quando
este cortou assim em meio a expressão do pensamento, elle,
que lh'o percebeu, disse-lhe, sorrindo:
―D'ella? Socegue. Tem junto d'esse tribunal, de que se receia tanto,
advogados eloquentes.
Augusto levantou para Henrique um olhar interrogador.
―Diz que...
[129]
―Que não deve temer da impressão produzida, por
todas as provas d'este mundo, no animo de quem, através de
tudo, acreditará sempre na sua
innocencia.
―Refere-se a...
―Ao seu segredo, que ha muito o não é para mim.
Veja como eu estou virado! Acho-me quasi disposto a sympathisar com
elle, quando ha pouco tempo ainda, sinceramente o confesso, era esta a
causa occulta de tal ou qual antipathia, que sentia pelo senhor... que
sentiamos um pelo outro, digamos assim.
―Mas...
―Vamos, vamos... eu sei que é discreto; nem esta era
occasião para entrar em confidencias. Tratemos do que mais
importa... Não sei como é que iria jurar agora a
sua innocencia em toda esta desastrada intriga, e com o tempo... porque
francamente lhe declaro que me é necessario algum tempo para
desvanecer em mim todos os restos de despeito e de...
paixão... porém, com o tempo, talvez venha a ser
seu verdadeiro amigo... sem a menor prevenção.
E depois de um momento de silencio, proseguiu, mudando de tom:
―Mas, com os diabos, sendo o senhor innocente, deve ter grandes
inimigos aqui na terra para o enredarem assim! É preciso
esclarecer isto.
―Inimigos?!... Não os conheço, nem vejo
motivos...―disse Augusto, pensativo. Mas de repente, como se lhe
acudisse um pensamento luminoso, fez um gesto que Henrique percebeu.
―Que é?―perguntou este logo.―Descobriu?... Diga... Uma
suspeita é já um rasto precioso... guia os
primeiros passos... Diga... E eu o ajudarei a seguil-o.
―Lembro-me agora de uma notavel visita, que ha dias recebi.
É isso...
E Augusto contou toda a entrevista que tivera com o brazileiro.
[130]
―E ainda agora se lembra d'elle?―exclamou Henrique, ao ouvil-o―e
inda hesita?! O senhor é de uma boa fé!... Temos
o fio!
―Mas como pôde elle...?
―Isso depois; o mais virá a seu tempo. Agora trata-se de
vigiar esse senhor... E agora me lembra; elle é um dos
oradores do club do Canada... Sondarei esse antro tenebroso... Eu
já devia suppor que andava aqui miseria politica... Estou a
achar razão áquella adoravel Magdalena...
Perdão... inda não perdi o habito de a adorar...
Tambem, desde que o consiga, serei seu amigo sem
restricções. Até lá,
porém, não será isso motivo para de
corpo e alma me não dedicar á sua causa... Eu
posso ter todos os defeitos, menos o de collaborar de boamente n'uma
velhacaria; e, fôsse o meu maior inimigo que eu visse victima
d'ella, creia que procuraria desfazel-a.
―Agradeço-lhe essas palavras, que acredito são
sinceras; não posso, porém, acceitar a
intervenção que me offerece. Eu sou que devo
justificar-me. Está empenhada n'isso a minha dignidade.
―Como queira. Em todo o caso espero que uma má
prevenção o não
constranja a não recorrer lealmente a mim, se o meu auxilio
lhe puder servir. Agora peço-lhe perdão, se
alguma vez o offendi de
mais; mas vamos lá, o senhor tambem não
está de todo isento de culpa... E quanto ao pretexto...
adiado mais uma vez, não lhe parece?
Augusto não podia fechar-se áquelle caracter, que
se lhe estava mostrando agora sob uma face nova e sympathica; por isso
respondeu, sorrindo:
―Adiado para sempre.
E estenderam as mãos um ao outro, apertando-as já
sem o menor resentimento.
Eram duas almas generosas, que acabavam de se comprehender.
―É notavel;―pensava comsigo Henrique―estou sympathisando
á ultima hora com este rapaz!
[131]
Mas como se combina isto com a minha
paixão por Magdalena, a quem elle ama igualmente? Dar-se-ha
que ella acertasse, e que não fôsse
paixão o que eu senti! Isto de mulheres teem uma vista
tão apurada para estas discriminações!
XXIV
O processo instaurado contra o Cancella seguiu os seus tramites
normaes; porém, graças ao
empenho do conselheiro, a quem a morgadinha escrevêra a favor
do prêso, e apesar da
perseguição que lhe moviam os padres, contava-se
que elle fôsse sôlto, e era esperado na aldeia
dentro em poucos dias.
Magdalena não se descuidára de mandar todos os
dias ao pobre homem noticias da filha, a qual, depois de ter por algum
tempo inspirado sérios cuidados á medicina da
terra, parecia haver entrado n'um periodo de convalescença.
Magdalena assim o participou ao Cancella para o animar, mas, sem saber
por quê, ella propria não
sentia as esperanças que dava.
Ha espiritos tão instinctivamente sensiveis e perspicazes,
que, á maneira dos medicos experientes, presentem a
gravidade ou a approximação do mal, ainda quando
os symptomas tenham perdido toda a feição
assustadora.
Já os sorrisos fluctuam nos labios do doente e um desmaiado
rubor de saude principia a tingir as faces, até
então pallidas, e elles sentem-se
ainda estremecer de secretas apprehensões.
Assim acontecia a Magdalena ao contemplar as
feições da pequena Ermelinda.
A frequencia e intensidade dos accessos diminuira; certo colorido de
vida principiára já a animar-lhe
[132]
o rosto infantil, havia pouco
gelado de terror e pela doença; ás vezes
até um
sorriso, ainda que melancolico, distendia-lhe os labios desmaiados, e
só de quando em quando raras nuvens de tristeza, evocadas
por uma recordação penosa, parecia
assombrarem-lhe o olhar limpido e meigo; os somnos eram tranquillos, as
vigilias serenas, e apesar de tudo a morgadinha entristecia ao reparar
n'ella.
O facultativo da localidade, apalpando com os dedos robustos o delicado
pulso da creança,
assegurára que ella estava já livre da febre; e
apesar d'isso, Magdalena quasi sentia remorsos, quando escrevia ao
Herodes a dar-lhe a boa nova.
E é certo que mais do que justificadas tinham de ser estas
apprehensões da morgadinha.
Na tarde d'aquelle mesmo dia, em que Ermelinda acordára mais
tranquilla e animada, renovaram-se subitamente, e assustadores como
nunca, os indicios do mal profundo.
Um delirio violento, caracterisado por vagos e mal definidos terrores,
gritos angustiosissimos,
contracções espasmodicas, que parecia
despedaçarem aquelle corpo fragil e delicado, surgiram de
novo, e, ao dissiparem-se, deixaram, como rastos, uma
prostração extrema, uma quasi completa
insensibilidade de funesta significação.
Magdalena, assustada, tomou nos braços a debil e emmagrecida
creança, e trouxe-a para junto de uma janella, d'onde ainda
se avistava o sol, já quasi a esconder-se por detraz de uma
collina distante.
Dir-se-ia querer pedir, aos frouxos raios de um quasi crepusculo de
inverno, um pouco de calor para fundir os gêlos da morte, que
principiavam a invadir os membros delicados d'aquella formosa
creança; ao clarão levemente afogueado do
horisonte, um pouco das suas tintas para aquellas faces morbidamente
pallidas; á amenidade da paizagem, um reflexo de sorriso
para aquelles labios, onde elle se apagára.
[133]
Os olhos de Ermelinda fitaram-se tristemente no sol já
vacillante, com a expressão, cheia de
saudade e de poesia, de uma alma joven que se despede da vida, e,
quando o sol desappareceu, desviaram-se lentamente para o rosto de
Magdalena, que a observava com anciedade.
Ermelinda sorriu; um sorriso mais triste do que as mais tristes
lagrimas.
A morgadinha apertou-a ao seio, commovida.
―Que tens tu, minha filha?―disse-lhe com meiguice, afagando-a.
Ermelinda não respondeu, mas continuou a fitar Magdalena com
a mesma expressão de affecto e de tristeza.
A morgadinha approximou os labios dos d'ella para beijal-a.
A pequena doente correspondeu-lhe ainda ao beijo e continuou a fital-a
como d'antes. E durou, e durou este olhar até que pareceu a
Magdalena haver n'elle não sei que estranha fixidez, que a
inquietou.
Palpou as mãos da creança; estavam frias; o
coração, parado; chamou-a pelo nome... a mesma
fixidez no olhar, a mesma immobilidade nas
feições... estava morta.
Foi assim que se despediu da vida aquelle candido espirito. Foi como o
adormecer de uma alma, que algum anjo invisivel, namorado d'ella,
arrebatasse nas azas para o throno de Deus.
A morte de uma creança como Ermelinda é um facto
de ordinario indifferente na vida social; alguns sorrisos de menos no
mundo; uma voz que emmudece nos festivos córos da infancia;
algumas sentidas lagrimas de mãe sobre um berço
vazio; algumas flores sobre um tumulo; e á superficie das
ondas sociaes nem sequer a leve vibração que a
rosa desfolhada imprime á agua tranquilla do lago... eis
tudo.
A multidão segue no delirio das festas, na lucta das
paixões, na febre da ambição e das
glorias, e o
[134]
perfume da flor
pendida não lhe affecta os sentidos embriagados.
Ás vezes, porém, não succede assim, e
assim não devia succeder com Ermelinda.
As paixões humanas, que ante o cadaver de uma
creança, coroada de flores candidas e cingida da alva tunica
da pureza, deviam abrandar-se, como deante de uma visão do
Céo, tomam-n'o
ás vezes por estimulo para mais furiosas se desencadearem, e
proclamarem a lucta, a sedição e a
vingança.
Desde que fôra publicada a portaria, prohibindo expressamente
os enterramentos na igreja, medida tão adversa ao espirito
do povo, não tinha havido
na terra uma morte que obrigasse a pôr a medida em
execução.
A ira popular, exacerbada de contínuo pelas secretas
instigações de alguns padres fanaticos ou
hypocritas, e dos adversarios politicos do conselheiro, rugia, havia
muito, surdamente, mas não rompêra em
explosão por falta de pretexto.
Notava-se apenas uma maior affluencia de gente na taberna do Canada, um
maior calor nos discursos dos tribunos, e a tendencia á
formação
de magotes nas encruzilhadas e nos largos.
Quando porém se espalhou a noticia da morte de Ermelinda,
augmentou a effervescencia dos animos. Era chegado o momento.
A morgadinha, que chorou com lagrimas sinceras a filha do Cancella,
quiz que ella fôsse sepultada no mausoléo da casa
do Mosteiro. Cumprindo assim a lei, prestava-se tambem culto
á
affeição que todos sentiam pela
creança, companheira de brinquedos de Angelo, que lhe queria
como irmã.
Sabendo-se d'esta resolução, rebentou a
indignação popular.
No dia seguinte ao da morte de Ermelinda, e n'aquelle, no fim da tarde
do qual devia realisar-se o enterro, havia na taberna do Canada
extraordinario ajuntamento.
[135]
O brazileiro, o sr. Joãozinho das Perdizes, o latinista
Pertunhas, alguns padres e lavradores, caseiros e camaradas do sr.
Joãozinho, falavam, berravam e gesticulavam a um tempo.
O morgado das Perdizes, cujo animo fluctuava indeciso entre favorecer e
guerrear o conselheiro, mas que, depois do despacho do professor que
pedira e conseguira, como que sentia remorsos de o
atraiçoar, achava-se agora muito abalado, porque na
questão dos cemiterios era intolerante, não
podendo levar á paciencia que quizessem enterrar um homem,
como elle, n'um logar onde chovia e fazia sol, como n'um campo de
centeio.
O brazileiro, conscio do valor do voto eleitoral do sr.
Joãozinho, não se cançava de o
catechisar, usando para isso de todas as armas e atacando-o por todos
os pontos vulneraveis que lhe conhecia.
Era assim, por exemplo, que sabendo da sympathia e gratidão
do morgado para com o herbanario, insistia muito sobre a dureza do
coração do conselheiro, que privára
cruelmente o pobre velho da sua propriedade, golpe fatal, que dentro em
pouco o levaria ao tumulo; e a proposito contava como o herbanario
pedira de joelhos ao conselheiro para lhe poupar a casa, e como este se
rira das lagrimas do velho, porque tinha interesse em que
não fôsse adoptado o outro plano, que lhe cortava
uma grande porção dos proprios bens.
Ouvindo estas coisas, o sr. Joãozinho, que tinha mais de
grosseiro e bestial do que de perverso, dava punhadas sobre a mesa,
despejava copos de quartilho e dizia pragas sacrilegamente eloquentes.
Outras vezes era no tópico do cemiterio que ardilosamente o
espirito tentador do brazileiro insistia. Fazia avivar a ideia ao
morgado de que elle proprio tinha de ser alli enterrado, porque na
freguezia de Pinchões iam tambem ser prohibidos os enterros
na igreja, o que este negava, berrando; e todos affirmavam o mesmo que
o brazileiro dizia, o que dava
[136]
logar a novas punhadas, novas irritações e a
novas pragas do sr. Joãozinho.
No dia que dissemos, multiplicára o morgado, mais que de
costume, as suas libações de vinho; e
com as faces injectadas, os olhos meio fechados, ouvia com
irritação os commentarios dos
circumstantes e distribuia com profusão pragas e murros.
―Com os diabos!―berrava elle, acabando de despejar um copo de
quartilho.―Se me chega a mostarda ao nariz... sou homem para ir
á igreja e obrigal-os a enterrar lá a pequena.
―Isso não se faz assim com essa facilidade e
arreganhos―disse velhacamente o brazileiro, de proposito para o
irritar ainda mais.
―Eu lhe diria se se fazia ou não, se se tratasse de coisa
que me dissesse respeito!... Mas, lá com a filha do
Cancella... não tenho eu nada... lá se
avenham.
―A questão não é ser filha do
Cancella ou deixar de ser;―tornava o brazileiro―a questão
é do exemplo; enterrado o primeiro, enterram-se os outros.
―Menos eu―exclamou o morgado.
―Se Deus quizer tambem vmc. se ha de lá enterrar.
―Diabos me levem se...
―Pelos modos―disse um padre do lado―elles enterram a rapariga no
tumulo da familia do conselheiro.
―Pois vêdes; se elles são todos da mesma
confraria!―ponderou o Pertunhas.
―E se não, é vêr no outro dia o que o
Herodes fez ao missionario! Então julgam que aquillo
não foi combinação?―disse o padre.
―Dizem que o Herodes ganhou vinte soberanos para lhe
bater―accrescentou um lavrador.
―A mim me disseram que trinta.
―Sempre uma pouca vergonha como aquella!
―E verão que não lhe succede mal.
[137]
―Pois não, não; elle está alli,
está na rua.
―Diz-se que o soltam á fiança.
―Não pode ser; aquelle crime não tem
fiança―ponderou um fazendeiro, que se tinha por muito visto
em demandas e coisas de justiça.
―Ora adeus! com o que vossê vem! Querendo elles...
―Aquillo parece uma seita.
―E ainda ahi está? Pois já se sabe que elles
são pedreiros-livres.
―E o tal lisboeta?
―Esse, então, é que é d'aquelles!
O sr. Joãozinho pestanejou, ouvindo falar de Henrique.
―Ah! é do tal petimetre que falam? No tal que foi para a
igreja caçoar com o missionario? Sempre vossês
são uns homens de lama, tambem!
Ó Cosme―continuou, voltando-se para um alentado camarada
que estava ao lado d'elle―olha aquillo comnosco, hein? Onde estaria o
amigo?
O valentão sorriu modestamente, encolhendo os hombros.
―Pois, senhores―proseguiu o brazileiro, que não
queria deixar arrefecer o enthusiasmo e a
irritação do publico―hoje decide-se a coisa...
D'aqui a uma hora está enterrada a pequena e depois... o uso
faz lei.
―Isso é que é verdade―secundou o Pertunhas.
―Faz lei emquanto eu me não lembrar de ir
desenterral-a―respondeu, cada vez mais azedado, o sr.
Joãozinho
―Não; isso lá mais devagar―acudiu o
brazileiro―vossemecê bem sabe que, estando ella no
mausoléo do conselheiro...
―Importa-me cá o mausoléo? O senhor
está a ler. Eu com um empurrão arrumo aquella
platafórma
a terra. Ó Cosme, olha nós, hein?
O Cosme tornou a fazer o mesmo gesto expressivo.
[138]
―Ahi está quando era preciso que houvesse n'esta terra um
homem de vontade, que não deixasse fazer o enterro―disse o
padre.
―Era bem feito, para elles saberem tambem que se não brinca
assim com o povo.
―Lá isso era!―repetiram algumas vozes.
―Eu por mim... se alguem fôr...―aventurou um.
―E eu, eu―ouviu-se dizer de alguns pontos da sala.
―Deixem-se de contos,―continuou o padre―elles fazem o que querem,
porque sabem que não ha um homem de coragem, que se ponha
á frente do povo...
―Lá isso é que é verdade.
―Já não ha homens para as occasiões.
O morgado das Perdizes, que tinha presumpções de
valente, e se gabava de ter varrido feiras a varapau, espinhou-se com
estas palavras, e protestou dizendo:
―Então julgam vossês que eu, se me der para ahi,
não vou ao cemiterio, eu só, e ponho tudo
aquillo em cacos? hein?
―Isso não se faz com essa facilidade―disse o brazileiro
impertinentemente.
―A quanto aposta vossê?―bradou, cada vez mais afogueado, o
sr. Joãozinho.
―Ora vamos―continuava o brazileiro com os mesmos
modos―não que a auctoridade...
―A auctoridade! Para mim é que elles veem! Olha o regedor!
O regedor commigo! E os cabos? Ó Cosme, hein? Que te parece?
Os cabos comnosco?
O Cosme sorriu e resmungou por entre dentes:
―Se queres tentar...
―Com mil demonios!―disse o morgado, exgotando mais um copo―vamos a
isto! anda d'ahi, ó Cosme!
O Cosme levantou-se.
[139]
―Nada de imprudencias―aconselhou o brazileiro, de um modo que tinha a
significação contraria ao pensamento que
exprimia.
―Quem tiver mêdo, que fique em casa. Ora quero mostrar a
esta gente se ha ou não ha um homem para as
occasiões.
E estavam no meio da sala o sr. Joãozinho e os seus
arrojados camaradas, e o brazileiro já conferenciava com o
padre, que lhe respondia com signaes de intelligencia, como quem tinha
projectos filiados n'aquelle movimento, quando entrou na taberna uma
nova personagem que, por não habitual alli, e por outras
circumstancias faceis de conjecturar, causou geral extranheza.
Era Henrique de Souzellas.
Tendo sabido da morte de Ermelinda, e encontrando no Mosteiro todos
occupados com os aprestes do funeral da pequena, Henrique montou a
cavallo e deu um longo passeio pelos arredores.
Na volta achou-se defronte da taberna do Canada.
Chegou-lhe aos ouvidos o rumor das altercações e
das pragas que iam lá dentro, e isto resolveu-o a entrar,
cumprindo assim a promessa que fizera a si mesmo de estudar aquelle
terreno, a vêr se encontrava vestigios que o levassem a
provar a innocencia de Augusto.
Apeou-se, prendeu o cavallo ao peão da porta e entrou.
Ao entrar, percebeu que havia causado sensação a
sua presença, e até, pela expressão
com que o fitavam, suspeitou que talvez não fôsse
demasiado prudente o passo que dera.
Era tarde, porém, para recuar, e o orgulho impedia-lhe a
menor manifestação de receio.
Sentou-se tranquillamente n'uma banca vazia.
O Canada, como taberneiro attencioso, veio informar-se pressurosamente
do que desejava o recem-chegado.
[140]
Henrique pediu vinho, para pedir alguma coisa, e não
obstante estar firmemente resolvido a não
lhe tocar.
O Canada trouxe-lhe um copo largo para deante d'elle, e de motu-proprio
associou-lhe algumas azeitonas, que recommendou como excitadoras da
sêde.
Henrique pediu lume para accender um charuto, e pondo-se a fumar correu
a vista pelos grupos que enchiam a sala. A effervescencia dos animos
havia abatido com o chegar de Henrique, como a da agua em que se
lançasse uma pedra de gêlo.
Reinava, porém, um rumor surdo, um cochichar pouco
tranquillisador, e que ameaçava degenerar em maior tormenta.
O brazileiro escondia-se por detraz de uns homens do povo, para
não ser visto; o sr. Joãozinho olhou para
Henrique, como se o não conhecesse, e conversava em voz
baixa com o seu camarada Cosme, o qual fitava no recem-chegado olhares
sombrios e ameaçadores.
Henrique, ainda que interiormente não tranquillo,
sustentava-os sem desviar os seus, e continuava fumando quasi
provocadoramente. Pouco a pouco subiu de tom a conversa dos dois, assim
como a dos outros grupos.
―É preciso ensinar estes espiões―dizia uma voz
audivelmente.
―Que quererá d'aqui este figurão?―perguntava
outro.
―Era bem feito que lhe ensinassem a não se metter com a
nossa vida...
O morgado, cada vez mais excitado pelo vinho, cruzou os
braços sobre a mesa, e com o corpo inclinado para deante e
os olhos abertos para Henrique, principiou a dizer, retardando-se-lhe
já algum tanto a voz nas fauces:
―Eu se sei que ha alguem que me anda a seguir os passos e a espiar,
sempre lhe dou uma lição,
[141]
que lhe ha de lembrar toda a vida!
Não, que isto aqui não é Lisboa! Eu
não admitto
que se olhe para mim com falta de respeito... Já disse! Eu
não gosto de repetir as coisas... Tenho dicto! O senhor
não ouve?
Henrique continuou a fumar, sem desviar os olhos do morgado.
―Ó senhor lá... Faz favor de não
olhar para mim d'essa maneira?
Henrique exhalou uma baforada de fumo e sorriu.
―Vossê ri-se!... Elle riu-se, ó Cosme? Pois elle
riu-se de mim? Espera!
E o sr. Joãozinho executou um movimento para levantar-se.
O Cosme imitou-o, e os camaradas puzeram-se a postos.
Susteve-os o brazileiro e outros igualmente pacificos.
―Então! então! isso o que é?
―Quero perguntar áquelle senhor de que é que se
ri―bradava o morgado, furioso.
―Para isso não se incommode―respondeu Henrique―eu mesmo
d'aqui lhe respondo. Rio-me da ridicula figura que está
fazendo.
―Ah!... ouvem-n'o? Larguem-me, deixem-me, deixem-me... Ó
Cosme!...
E o morgado barafustava entre os braços debeis que o
retinham. No povo principiou a subir a maré das
murmurações contra Henrique.
―O senhor vem para aqui armar desordens?
―É para espiar?
―Depois queixe-se...
―Não se metta com a gente.
O morgado bracejando, espumando, e largando por pouco a jaqueta nas
mãos que o retinham, conseguiu, graças aos seus
musculos robustos, sacudir de si todos os obstaculos, e correu para
Henrique, que por prevenção se collocou a
pé.
[142]
O sr. Joãozinho, cego de embriaguez e de raiva, berrava,
voltado para elle:
―O senhor conhece-me?... O senhor sabe com quem fala? Olhe bem para
mim... Quero vêr agora se ainda se ri.
―Por que não? Se cada vez está mais ridiculo!
O morgado deu um urro selvagem e fez um movimento como para se atirar a
Henrique.
Este recuou um passo, e pegando no copo que ainda tinha intacto deante
de si, despejou-o todo sobre aquella figura já avinhada,
dizendo motejadoramente:
―Ahi tem; é isso provavelmente que vem buscar.
O rosto, as mãos e a camisa do sr. Joãozinho
ficaram litteralmente tingidas. Soltando um rugido de fera, levou a
mão á faxa da cinta, como a
procurar uma arma. Henrique, percebendo-lhe o movimento, antecipou-se a
segural-o pela garganta, para o reter e afastar de si.
O morgado torcia-se e espumava sob a constricção
de Henrique, e já congestionado e rouco bradou:
―Ó Cosme!... Ó Cosme!... Mata esse
maldito!...
A phalange do sr. Joãozinho correu em soccorro do chefe. O
varapau do Cosme girou no ar, produzindo um zunido como o de um enorme
zangão.
O braço diligente do Canada, movido pelo empenho de salvar o
crédito do estabelecimento, afastou a tempo Henrique do
terrivel embate, que infallivelmente lhe seria fatal.
A pancada caiu sobre a mesa, que lascou ao comprido.
Henrique estava incólume, e o morgado sôlto.
Mas o perigo não passara para Henrique. O morgado
preparava-se com os seus para nova investida, quando se ouviu a voz do
brazileiro e do padre bradarem:
[143]
―Já está a tocar o sino! Ao cemiterio emquanto
é tempo!
E no entanto o brazileiro, chamando de lado o Cosme, convencia-o, por
varios generos de argumentos, da conveniencia d'este partido, e
tão convencido o deixou, que elle berrou d'ahi a pouco:
―Deixa o homem para outra vez, João, deixa-o e vamos a
elles ao cemiterio!
―Ao cemiterio, ao cemiterio! repetiram algumas vozes.
―E queime-se a papelada da camara!
―E mate-se o escrivão de fazenda!
―E quebrem-se os vidros do Mosteiro!
―E pegue-se fogo á casa!
Eram de bastante fôrça estes argumentos para
convencer o sr. Joãozinho.
―Pois vá lá, rapazes! Com este faremos contas
depois. Ao cemiterio! Atiremos a terra com o tal mausoléo!
E prepararam-se para sair tumultuariamente. Henrique, ouvindo isto,
percebeu do que se tratava, e prevendo sérios riscos para as
senhoras do Mosteiro, desembaraçou-se dos braços
do Canada, que teimava em segural-o e em dar-lhe conselhos de
prudencia, e correu a montar a cavallo para se anticipar aos
desordeiros. Effectivamente assim o fez; mas, ao passar por entre o
grupo d'elles, o varapau do Cosme, floreteando outra vez no ar, caiu
sobre a cabeça do cavallo. O animal, atordoado por a
pancada, partiu em galope desenfreado, e apesar de toda a arte de
Henrique, acabou por o arrojar a terra com tal violencia, que o deixou
como morto.
Os desordeiros seguiram, capitaneados pelo morgado, o caminho do
cemiterio. O brazileiro, o padre e o Pertunhas, acolheram-se
pacificamente aos lares.
O sino da igreja continuava a repicar.
[144]
XXV
Era uma perspectiva profundamente melancolica a do cemiterio da aldeia
por aquella tarde de inverno!
Imagine-se um campo plano e raso, onde vegetavam algumas roseiras de
toda a estação, e a murta e a alfazema, vivendo a
custo n'aquelle solo ingrato, que havia pouco alimentava apenas urzes,
tojeiras e pinheiraes. No centro d'este espaço elevava-se,
singello, mas elegante, o tumulo da familia do Mosteiro, sobre o
marmore do qual pousavam tristemente os ramos flexiveis de um salgueiro
chorão, e nos cantos principiavam a erguer-se, como
obeliscos funerarios, quatro jovens cyprestes ponteagudos. Para
além do muro, que circumdava este terreno, estendia-se um
vasto pinheiral, através de cujos troncos, confusamente
cruzados, se podia ainda divisar ao longe uma ou outra casa da aldeia,
e o verdor dos campos e pomares. A igreja parochial erguia, a pequena
distancia d'alli, a grimpa do campanario, e o sussurrar dos desfolhados
álamos do adro, agitados pelo vento, ainda chegava
áquella estancia mortuaria.
A tarde tinha um d'estes aspectos ameaçadores, que deixam
presentir a tempestade; d'estas serenidades insidiosas, interrompidas,
de quando em quando, por uma subita viração, que
faz
revolutear na estrada as folhas sêccas como em espiraes
phantasticas. O céo pintára-se do colorido
melancolico e triste, que em alguns quadros de
Annunciação tão fielmente se
vê reproduzido. Estava quasi todo coberto; só
muito para o occidente uma estreita zona se conservava limpa de nuvens,
mas n'ella mesmo o azul recebia, do contraste das côres
[145]
vizinhas, um cambiante quasi
esverdeado. As nuvens inferiores, acima das quaes passavam os raios do
sol, tinham o aspecto rôxo-livido, que o avizinhar da noite
ia tornando mais carregado; no mais alto da abobada, as superiores,
illuminadas ainda, apresentavam reflexos amarellados que cada vez se
afogueavam mais.
Para o oriente haviam-se fundido os nimbos em uma massa unica,
uniforme, cerrada, como uma abobada metallica, cujo livor imitava. De
quando em quando cruzava os ares uma ave de vôo rapido,
soltando pios angustiosos.
Era a esta hora que devia effectuar-se o enterro de Ermelinda.
Estava já aberto o jazigo da familia do conselheiro,
aguardando a infeliz creança.
Os padres cantavam na igreja, e o sino repicava, como de festa,
saudando a entrada de mais uma alma sem culpas no gremio dos anjos.
Á porta da igreja, no adro e no cemiterio estacionavam
alguns ociosos; muitos acercavam-se do sepulcro, movidos pela
curiosidade que a nova fórma de enterro lhes suscitava.
As murmurações, comquanto menos manifestas aqui
do que na taberna do Canada, nem por isso faltavam.
Até da porta da igreja para dentro, até de
joelhos, até de contas na mão e olhos fitos no
altar, os
murmuradores existiam. Velhas beatas clamavam assim a
justiça celeste sobre os impios do seculo, que
não queriam enterrar-se no chão sagrado da
igreja. Junto da pia da agua benta, aspergindo-se, persignando-se sobre
a bôca, para que Deus livrasse de peccar por palavras, n'essa
mesma occasião, ellas entoavam os seus threnos e maldiziam
dos reformadores, sobre quem chamavam as penas do inferno.
Havia tambem no grupo alguns que conferenciavam em voz baixa e se
entreolhavam de maneira
[146]
mysteriosa, fitando ás vezes os caminhos proximos, como se
d'alli aguardassem alguma coisa.
A morgadinha viera junto ao tumulo despedir-se da filha do Cancella.
Christina ficára a fazer companhia a D. Victoria, que se
achára adoentada.
Segundo o costume de algumas aldeias, Ermelinda devia ser acompanhada
á campa por creanças quasi da mesma idade,
vestidas como para festas. Uma d'ellas era a pequena Marianna, a
irmã mais nova de Christina; as outras, raparigas das
vizinhanças, que as senhoras do Mosteiro tinham por suas
proprias mãos vestido e enfeitado. O enterro fazia-se com
extraordinario apparato, não só em honra da
familia do Mosteiro, mas para desvanecer a má
impressão dos animos populares por meio da pompa religiosa.
Era digno do pincel de um artista, a quem a poesia das scenas
campestres ainda inspirasse, o cortejo ao mesmo tempo melancolico e
risonho, que, saindo da igreja, se encaminhava lentamente para o tumulo
onde Ermelinda devia ser sepultada.
O sol quasi a desapparecer sob o horisonte, entrava na estreita zona,
que as nuvens não toldavam.
A paizagem inundava-se agora de luz, mas de uma luz froixa, amarellada,
que dá ao verde da relva e das frondes das arvores uma maior
intensidade.
A cruz de prata que arvorada por um homem de opa, abria o cortejo,
reflectindo aquelles raios amortecidos, brilhava como cingida de uma
verdadeira auréola. Seguiam-se alguns padres de sobrepeliz e
batina, recitando as orações da
occasião; entre estes havia um de aspecto venerando, curvado
pelos annos, de physionomia bondosa e pensativa. Era o cura, santo e
respeitavel ancião que, em vez de exacerbar os preconceitos
do povo contra os enterros, no cemiterio, antes energicamente os
combatia e censurava.
Depois vinha em caixão aberto, e no meio de uma
[147]
numerosa companhia de creanças,
Ermelinda, a quem a pallidez da morte não
dissipára a
formosura. Dir-se-ia apenas adormecida. Trazia nos labios o sorriso da
innocencia. As mãos cruzavam-se-lhe naturalmente sobre a
tunica alvissima que a cingia, a mesma com que apparecêra no
auto, e a cabeça, cercada por uma singella corôa
de flores, conservava a graciosa inclinação que
lhe era habitual em vida.
As creanças do acompanhamento tinham sido escolhidas, por
Magdalena e Christina, entre as mais gentis da aldeia.
Era uma cohorte de cherubins humanados, qual d'elles mais louro e mais
formoso.
A morgadinha precedêra o cortejo e viera esperal-o junto do
tumulo. Com o braço apoiado na pedra sepulcral, e a fronte
encostada á mão, seguindo melancolicamente com a
vista a vagarosa procissão que entrára no
cemiterio, dissera-se uma estatua primorosa, cinzelada por
mão de inspirado artista, para symbolisar junto do tumulo a
saudade pelos que morrem.
Cada vez se ouvia mais perto o latim dos padres; o coveiro viera
já occupar a posição
que lhe competia; estreitou-se o circulo dos curiosos em volta da
campa. A cruz parou junto dos degraus do tumulo; os padres abriram alas
e as creanças encaminharam-se, por entre elles, para a borda
da sepultura.
O abbade molhou o hyssope na caldeira, para aspergir a cova.
Uma imprevista occorrencia mudou, porém, o aspecto da scena.
Havia já alguns momentos que começára
a ouvir-se um vago rumor, que tanto podia ser do vento na rama dos
pinheiraes, como de multidão que se approximasse em tropel.
As conferencias solapadas de algumas personagens dos grupos tinham-se
activado ao ouvil-o. Pouco
[148]
a
pouco principiou a mover-se alguma
coisa por
entre os
troncos do pinheiros; tornaram-se distinctas uma, duas, tres e muitas
figuras de homens, correndo em direcção ao
cemiterio, gesticulando, berrando, soltando ameaças, algumas
das quaes já a distancia a que elles vinham permittia ouvir
claramente.
Não era difficil adivinhar a
significação d'aquillo. A questão
vital do dia era, para todos os espiritos, a dos enterros, em campo
descoberto; a cada momento se falava em motim prompto a organisar-se e
a rebentar. Ficava pois evidente que tinha chegado a ocasião
da crise popular já antevista.
Cêdo invadia o cemiterio um bando de furiosos, desorientados,
de aspecto feroz, berrando e brandindo ameaçadoramente paus,
fouces, chuços, e todas as peças do extravagante
arsenal, a que o homem do povo recorre sempre ao chamamento da
arruaça ou da sedição.
Era o bando dos influentes da taberna do Canada, de cujo proposito
estavamos prevenidos; agora, porém, já
engrossado, como a corrente a que no caminho se incorporam as aguas dos
algares.
Entre os primeiros vinha o sr. Joãozinho das Perdizes, e ao
seu lado o
factotum Cosme.
Estes, enraivados, correram para o logar onde parára o
enterro, bradando em confusão:
―Alto lá! alto lá! Ninguem se enterra aqui!
―Esperem! Isso não vae assim!
―Não façam a festa sem nós!
―Fóra com os do cemiterio!
―Morram os pedreiros-livres!
―Para a igreja!
―Enterre-se na igreja!
―Olá, sr. abbade, espere por nós!
―Aqui vamos para abençoar a cova!
E n'um momento o cortejo funebre viu-se rodeado de figuras avinhadas,
gesticulando e vociferando pouco tranquillisadoramente.
[149]
O cruciferario e os padres, á excepção
do velho que dissemos, abandonaram o posto; as creanças,
pousando no chão e abandonando o esquife de Ermelinda,
correram a acercar-se de Magdalena, amedrontadas e chorosas.
A morgadinha conservou-se junto do tumulo da mãe, olhando
com serenidade para os revoltosos, mas intimamente sobresaltada. E no
meio do grupo o cadaver de Ermelinda, com aquelle sorriso nos
lábios, como de anjo que já de longe estivesse
vendo o desencadear das paixões humanas, e rindo de piedade.
O velho cura foi quem interrogou com voz firme e severa os amotinados.
―Que querem d'aqui?―perguntou elle, fitando-os―com que fins vieram
perturbar, com desordens da taberna, as cerimonias religiosas?
―Não queremos que ninguem se enterre no
cemiterio―respondeu o sr. Joãozinho.
―É verdade! é verdade! ninguem se enterra
aqui!―confirmaram differentes vozes.
―Por quê?―continuou o padre―julgam que Deus não
receberá as almas, cujos corpos
não estejam lá dentro, a apodrecer sob os
telhados da igreja e a envenenar o ar que se respira lá?
―Não queremos saber de contos. Não queremos.
Já disse!
―Eu não lhes reconheço o direito de querer.
―Ora o padre mestre tem vagares!―disse o façanhudo
Cosme―e tu pachorra para escutal-o, João. Para isso
não foi que viemos.
Sermões para a quaresma. Vamos! cante lá os seus
reponsos e latinorio, e ande-me para a igreja. Vamos nós
fazer o enterro. Ó Manoel coveiro, traze a enxada e vem
d'ahi.
E dizendo isto, o Cosme já se abaixava para levantar o
caixão em que jazia Ermelinda.
―A justiça de Deus caia sobre o impio, que com as
mãos impuras tocar n'esse cadaver, que está
[150]
abençoado pela
Igreja!―exclamou o velho, indignado e com um metal de voz vibrante e
terrivel.
Na aldeia os homens mais endurecidos não são
superiores á intimação religiosa. O
Cosme retirou a mão, como se receiasse que a
imprecação do padre se cumprisse alli mesmo.
Houve uma momentanea quebra no furor popular; um d'estes momentos de
hesitação, que
tão fataes são ao exito das
revoluções
democraticas; ninguem se sente com coragem de erguer o novo grito, e
quasi todos procuram esconder-se, como envergonhados já do
primeiro impeto.
Mas a primeira onda não é a mais temivel; os
primeiros bandos populares, que sáem
á rua,
soltando o grito de revolta, são ingenuos no meio da sua
quasi selvagem ferocidade; entregues a si, cêdo
espontaneamente se dariam por vencidos; facil seria subjugal-os. Mas,
quando esses poucos momentos, em que tumultuam sem pensamento que os
dirija, não são os precisos para ficarem
esmagados sob a
repressão do poder; quando o grito sedicioso, em vez de
sacrificar estes revolucionarios, quasi candidos, mandados por os
cautos para tentar a opportunidade da occasião, apparenta
sortir effeito, ou porque satisfaz uma aspiração
legitima das massas, ou porque lisonjeia um falso preconceito d'ellas,
vem então a segunda onda, mais ordenada, mas mais terrivel,
porque não é a embriaguez do motim que a impelle,
é a ideia fixa, o pensamento reservado, o plano de
antemão traçado e urdido no mysterio e na sombra.
Vem então reforçar-a primeira,
insufflar-lhe o alento que esta não tem de si, e amparar-se
com ella dos golpes dos inimigos. Se a tentativa não vinga,
retiram-se antes que, derrubada a vanguarda, fiquem a descoberto; mas
se a sorte os favorece, deixam cair os primeiros como victimas, e no
campo da victoria adeantam-se então a colher os
trophéos conquistados.
Foi assim que, no momento em que o bando capitaneado
[151]
pelo morgado das Perdizes, ia
ceder, um pouco subjugado pela figura solemne e a palavra severa do
venerando cura, saiu da igreja uma singular procissão.
Á frente vinha o estandarte da confraria erecta pelo
missionario; este seguia-o, e atraz d'elle os seus confrades e
sequazes, no numero dos quaes se encontravam padres e mulheres.
A hoste do sr. Joãozinho sentiu-se reanimar com este
refôrço.
Um grito unisono saiu dos labios de todos ao ver a
procissão.
―Viva o missionario!
―Viva o santo!
―Abaixo os pedreiros-livres!
E os do bando do estandarte correspondiam a estas
saudações, dizendo:
―Abaixo os maçonicos!
―Morram os jacobinos!
―Viva a santa religião!
Mais uma vez este brado augusto, que deveria proclamar o
perdão das injurias, o amor reciproco, a caridade
indistincta, era profanado por o fanatismo e por a hypocrisia, e
manchado pelo sophisma de seculos, o mesmo sophisma que maculou os
feitos de armas dos passados guerreiros da christandade.
A embriaguez da revolução apoderou-se de novo do
morgado das Perdizes. Duas influencias inebriantes lhe disputavam agora
o cerebro, que não fôra nunca dotado, de grande
fortaleza contra as paixões.
Palpitava-lhe o coração, quando se imaginava
caudilho de um movimento popular.
Sentia a necessidade de se fazer notavel por um feito heroico.
―Não se consentem aqui enterros, e principiemos
já por deitar abaixo estas pedras―bradou elle, apontando
para o tumulo da familia do conselheiro.
[152]
―É verdade! é verdade! Abaixo! abaixo!
―São invenções dos pedreiros-livres!
―É isso, é isso... Pois não
vêem que são de pedra!
―Abaixo! Abaixo!
O sr. Joãozinho, arrojando de si o chicote, tirou um machado
das mãos de um homem que lhe ficava proximo, e deu alguns
passos para o tumulo.
Magdalena collocou-se deante d'elle.
Já não estava pallida; tinha nas faces o rubor,
nos olhos o lampejar da indignação.
―Afaste-se, senhor!―bradou ella, estendendo a mão para o
ébrio, que parou a fital-a com olhos espantados. Nem sequer
pouse os pés nos degraus d'esta sepultura. Aqui repousa
minha mãe. Atraz!
A figura, o olhar, a voz, as palavras de Magdalena exprimiam uma das
resoluções energicas e potentes
d'aquella indole sympathica, que aos affectos e branduras de mulher
sabia combinar a firmeza e energia quasi varonis.
O morgado sentiu uma vaga consciencia da sublimidade d'aquella scena, e
ficou enleado.
Porém o Cosme, o seu genio mau, não sei que lhe
murmurou ao ouvido, que elle desatou a rir a mais alvar gargalhada que
ainda escancarou bôca humana.
Estendendo para Magdalena a mão callosa e grosseira,
disse-lhe, com um sorriso que tinha tanto de cynico como de estupido:
―Está dito! Toque! Gosto d'esse desengano! Toque!
Magdalena repelliu-o com despreso e aversão.
―Ah! ah! Faz-se fidalga!―disse o sr. Joãozinho,
despeitado.―Pois não anda bem.
O missionario inclinou-se ao ouvido de um homem do povo que, depois de
escutal-o, bradou:
―Abaixo com o tumulo dos pedreiros-livres.
―Abaixo!...―repetiram muitas vozes.
―Pois vá abaixo!―repetiu tambem o sr.
Joãozinho, adeantando-se com o machado.
[153]
―Para traz!―exclamou outra vez Magdalena, já
trémula de exaltação.
O cura, enfiado e convulso, correu para o lado d'ella.
O sr. Joãozinho sorriu.
―Isso é que é mandar! Socegue que não
fazemos mal a sua mãe; só lhe queremos tirar
essas pedras de cima d'ella. Devem-lhe pesar!―e soltou, ao dizer isto,
uma gargalhada, que echoou no grupo que o rodeava.
―Abaixo, abaixo!―repetiram ainda as vozes, e o morgado preparou-se
para cumprir o feito. Magdalena sentiu que a razão se lhe
perturbava. Era-lhe preciso defender de uma
profanação as cinzas de sua mãe, ainda
que fôsse á custa da
propria vida.
Ia para supplicar, para ajoelhar deante d'aquelles homens;
já as lagrimas lhe brilhavam nos olhos, e os labios
principiavam a murmurar a palavra
«piedade».
O morgado viu-a assim, e como homem em quem as lagrimas de mulher ainda
achavam caminho para chegar ao coração, hesitou,
resmungando:
―Mau! se temos chôro, nada feito.
Mas já não podia hesitar; a onda impellia-o, os
gritos redobravam, e outros braços se agitavam ao seu lado,
preparando-se para a obra de
profanação.
O sr. Joãozinho cedeu outra vez e levantou o machado.
Imitaram-n'o muitos.
Magdalena então correu a abraçar-se ao tumulo da
mãe para o proteger da violencia.
Antes de o abater haviam de a ferir a ella.
Os machados, que já se brandiam no ar, suspenderam-se.
Alguns baixaram-n'os, como arrependidos.
O morgado formulou n'uma jura a impressão que lhe estava
causando a scena.
Desviando os olhos, disse, com modo desabrido:
―Tirem essa mulher d'ahi.
[154]
Deus sabe que scenas de violencia se seguiriam a esta ordem, se um novo
facto não viesse desviar as attenções
e modificar diversamente o animo
popular.
Um homem, que parecia chegar de longa jornada,
approximára-se do cemiterio, cada vez mais pressuroso
á medida que se affirmava nos grupos alli reunidos.
Entrou justamente quando a furia popular crescia mais impetuosa.
A figura da morgadinha, em pé sobre os degraus do tumulo,
abraçada a elle, dominava toda aquella multidão.
Ao descobril-a a distancia, o homem que dissemos soltou uma
exclamação, como de quem tinha comprehendido ou
adivinhado a significação
d'aquella scena; e apressando ainda mais os passos achou-se, dentro em
pouco, no logar do motim.
Era tempo.
A populaça allucinada ia talvez exercer algumas d'essas
irreflectidas violencias, que tantas vezes maculam e deshonram a causa
do povo nas luctas em que elle toma parte.
―Que é isto aqui?―disse o homem, rompendo com os
braços potentes a onda que se lhe antolhava.
Á rudeza do impulso ninguem resistiu; em pouco tempo abriu
caminho até ao meio do circulo.
Uma só voz correu por as differentes pessoas do grupo dos
amotinados.
―O Herodes... É o Herodes!...―diziam, afastando-se.
Effectivamente era o Cancella o homem que tinha chegado.
Obtendo fiança, graças á
intervenção do conselheiro, voltava á
terra, ancioso por ver e beijar a filha, cuja ausencia fôra a
unica dor que o atormentara.
O desgraçado não sabia ainda da sorte d'ella.
[155]
Uma carta que Magdalena lhe escreveu, noticiando-lh'a, já
não o encontrára na
prisão, para onde fôra dirigida.
Vinha cheio de esperanças o pobre homem, porque eram para
animar as ultimas noticias recebidas.
Vendo de longe o ajuntamento no cemiterio, ouvindo os gritos
sediciosos, conjecturou que havia algum motim popular por causa dos
enterros no adro, que elle sabia serem antipathicos aos espiritos da
terra.
Quando descobriu a morgadinha, envolvida pelo tumulto, e no tumulo da
mãe, previu que ella estava correndo perigo, e apressou-se
logo a acudir-lhe.
Ao chegar, porém, ao meio do circulo, que conseguiu romper,
e quando ia a dirigir a palavra a Magdalena, reparou para o cadaver da
creança do esquife, o qual continuava ainda pousado no
chão; fitou os olhos n'aquella pallida e serena physionomia,
ainda animada pelo mesmo sorriso de innocencia, e, apesar da debil
claridade da hora, reconheceu a filha.
Nem um só grito de dor lhe saiu dos labios, nem um
só movimento de surpresa; ficou mudo, immovel, com os olhos
fitos n'aquella creança morta, com as mãos juntas
e com as faces extremamente pallidas.
Perante esta terrivel manifestação de dor, que
toda se concentra, para n'um momento gastar mais vida do que o
perpassar de muitos annos, calmaram todos os outros sentimentos que
dominavam os corações.
Fez-se um profundo silencio. O Herodes, n'uma especie de recolhimento
fervoroso, ajoelhou junto do caixão de Ermelinda, e
trémulo, opprimido, quasi sem alento para chorar, approximou
a mêdo as mãos das mãos cruzadas da
creança.
Ao primeiro contacto retirou-as rapidamente por achal-as de
gêlo; mas, tomando-as outra vez, murmurava:
[156]
―Jesus, meu Deus! Está morta!... Ermelinda!...
Filha!... Isto não pode ser, Senhor!... Pois minha filha
está morta?
A paixão principiava emfim a manifestar-se mais tumultuosa;
mas havia no tom de voz, com que estas palavras fôram
pronunciadas, não sei
quê tão intimamente doloroso, que presentia-se
que, no curto espaço de tempo que as precedera, se tinha
operado n'aquelle peito uma revolução tremenda,
como se uma intima dilaceração o tivesse
destruido. Adivinhava-se lá dentro
já um desalento mortal, um mal de que se não
convalesce nunca. Aquelle homem estava perdido.
―Mataram-me a minha pobre filha! A minha Ermelinda... Que mal lhes
tinha eu feito para m'a matarem?... Ó anjo do
Céo! viver eu para te
vêr assim!
E, tirando-a do esquife, cingiu-a contra o peito, cobrindo-a de beijos,
que não conseguiam aquecer o gêlo d'aquellas
faces.
Raros olhos ficaram enxutos ante aquella sincera dor. Desvanecera-se a
ira popular; como que uma nobre vergonha, uma vergonha de boa indole,
fazia já renegar aos mais atrevidos os
seus
excessos passados.
O Cancella continuava:
―Esta frialdade da morte! esta brancura das faces!... isto mata-me,
despedaça-me o
coração!... Não me morras assim,
filha! Não me morras antes de dizer-me uma palavra de
amor... de perdão. Sim, tu tinhas que me perdoar antes de
morrer! Por que não esperaste ao menos?... Pensar eu que hei
de vêr-te partir, sem que me dês um beijo de
despedida!... que te não hei de ouvir falar! Só!
só! Ficar só! Só n'este
mundo, Senhor!... Em que tanto vos offendi, meu Deus, para me
castigardes assim!? Em quê?
Magdalena chorava, commovida, ao ouvir estas palavras dolorosas.
[157]
O Cancella voltou para ella os olhos já marejados de
lagrimas.
―Ó menina Magdalena, pois Ermelinda morreu?... Fale,
diga-me. Minha filha morreu? A que horas?... como?... Falou
em mim? pensou em mim?... Perdoou-me?... Chora, e não
responde... Então não me perdoou? Pois minha
filha
não me perdoou?
Magdalena respondeu a custo:
―Que tinha ella a perdoar-lhe?
―Não é verdade que eu lhe queria muito?
não é verdade que eu vivia por ella? Agora... que
me importa o viver? Como posso eu viver! Ai, se Deus me matasse agora,
assim! abraçado a este anjo! Se Deus me matasse!
E outra vez a estreitava nos braços.
Depois, voltando-se para o povo que se conservava alli, perguntou com
voz alterada:
―Que procuram?... Que querem?... o que fazem ahi armados, ao
pé de minha filha morta?
―Queremos que elles a enterrem na igreja―responderam, já
tibiamente, algumas vozes.
―Na igreja?... Isso é que não! Sabem
quem me matou a filha? Foram elles... Esses que m'a tolheram de
mêdos, que lhe roubaram
as alegrias... que fizeram d'ella isto que ahi
vêdes... Pois não a conheciam? Não a
tinham visto ahi nos campos, nas novenas e nas festas?... Viram-n'a
nunca com estas côres desmaiadas? viram-n'a sem aquelles
cabellos louros, que tão bem lhe ficavam? e que elles
cortaram sem piedade? E querem-te ainda guardar,
desgraçadinha! Não, não
te entregarei. Não, não irás
lá para
dentro. Quero-te aqui, minha filha; aqui, debaixo dos olhares de
Deus... Eu mesmo te vou deitar como tantas vezes o fiz quando dormias
no berço, que ficará sempre vazio!
Ó meu Deus, que vida vae ser a minha, se te não
compadeces de mim, Senhor!...
E suffocado de pranto, que rompia agora abundante,
[158]
o desesperado pae ajoelhou junto do
esquife, onde depoz com cautela o corpo da filha.
―Obrigado, menina Magdalena, por dar á minha pequena um
logar ao pé de sua mãe; obrigado. Junto d'aquella
santa parece-me que dormirá em socêgo... A minha
pobre filha!
E pousando nos labios frios da creança um beijo prolongado,
cheio de paixão e saudade, levantou o esquife nos
braços para, por suas proprias mãos,
o descer ao jazigo. Antes, porém, de fazel-o, beijou ainda
uma vez aquella de que mal podia separar-se.
Cêdo baixou sobre o pequeno esquife a pedra tumular.
Nem um só movimento, nem uma só voz tentou
oppôr-se áquelle acto, contra o qual momentos
antes se erguia irreprimivel a resistencia popular.
Os influentes mais insoffridos tinham abandonado o campo.
O primeiro que o fizera fôra o missionario. Desde que vira
assomar a figura do Cancella, vieram-lhe ao espirito umas memorias
pouco agradaveis, e julgou avisado retirar a tempo.
Ao terminar esta scena o proprio morgado e o inseparavel Cosme
já não estavam presentes.
Sairam desde que viram os animos pouco dispostos a secundal-os.
Os circumstantes quasi faziam já côro com as
arguições do Cancella contra os excessos do
fanatismo e do beaterio.
―A falar verdade―dizia um―este pobre homem tem alguma
razão. Isto de metter scismas ás
creanças!...
―E a Rosita do Gaudencio olha que vae por a mesma.
―Tambem é de mais.
―Eu por mim se fôsse a elle... Não sei o que
faria.
N'estes e n'outros dizeres se iam retirando do cemiterio.
[159]
Não seria difficil a um especulador aproveitar aquelles
mesmos braços e armas para organisar uma
sedição sobre uma divisa opposta á
que primeiro os convocára.
Ao vêr cerrar-se a campa sobre o corpo da filha, o Cancella
caiu de joelhos, suffocado em pranto.
As creancas presentes, por contagio da commoção,
a que é tão sujeita aquella idade, choraram
tambem.
Magdalena ia a consolal-o, mas o sentimento proprio não a
deixou falar.
Só pôde pousar-lhe em silencio a mão no
hombro.
O Cancella apoderou-se d'ella e, levando-a aos labios, rompeu em mais
desafogado pranto do que nunca.
A noite crescia; cada vez era mais cerrado de nuvens o firmamento.
Os sons das Avé-Marias vibraram nos ares, prolongados e
tristes.
O padre velho pronunciou em voz alta a saudação
angelica. Responderam-lhe as creancas!
Tudo concorria para augmentar a extrema melancolia do quadro.
O Cancella a muito custo se resignou a arrancar-se d'alli.
A morgadinha voltou a casa com o coração oppresso
de tristeza.
XXVI
Quando Magdalena voltou ao Mosteiro encontrou a casa em completa
agitação.
Momentos antes havia sido para lá transportado, quasi sem
accôrdo, Henrique de Souzellas, que um criado de lavoura se
encarregára de trazer da taberna,
[160]
onde o Canada o recolhera, até
o Mosteiro, sobre um carro de herva que vinha guiando.
Ao vêr n'aquelle estado o sobrinho da senhora de Alvapenha,
D. Victoria perdeu totalmente a cabeça, e em vez de tomar as
providencias que o caso pedia, deu em ralhar, em fazer
exclamações, em andar de sala em sala, de
corredor em corredor, sem tenção formada, sem
methodo, sem
direcção. Levava as mãos á
cabeça, ajuntava-as
consternada; dava uma ordem ociosa; mandava logo suspender a
execução d'ella; impacientava-se; chamava a
toda a pressa um criado e não sabia depois o que tinha para
dizer-lhe; extranhava a tardança de outro que não
mandára chamar, e sem dar a final expediente a coisa
nenhuma, nem saber o que fizesse.
Os criados resentiam se d'esta falta de intelligente
direcção; paravam embaraçados, ou
corriam sem saber para onde, nem para quê, e sem adeantarem
serviço.
As creanças concorriam tambem para esta desordem, porque,
cheias de susto, andavam agarradas ás saias de D. Victoria,
que nem sequer dava por ellas.
Christina foi a unica pessoa que conservou a presença de
espirito n'aquella occasião.
Nada do que fazia era inutil: nem uma só ordem dava que
pudesse dizer-se ociosa; graças ao methodo com que procedia
ás instrucções que
ordenava, a tudo se providenciou convenientemente, sem que D. Victoria
o percebesse até.
Christina tambem, ao vêr chegar Henrique n'aquelle estado
assustador, sentira-se desfallecer; mas disse-lhe a consciencia que lhe
era precisa toda a firmeza, visto que estava ausente Magdalena, em quem
sómente poderia descançar, e logo achou na
necessidade valor, e, com serenidade apparente, só trahida
pela extrema pallidez das faces, a tudo attendeu, tudo previu, tudo
providenciou.
Sem uma exclamação, sem uma palavra de desespero
[161]
ou de susto, sem nem ao
menos erguer o tom de voz, ou modificar a inflexão affavel,
que lhe era natural, preparou um quarto para Henrique e n'elle todos os
aprestes que o seu grave estado pedia, dirigiu os primeiros soccorros
com intelligencia e efficacia, mandou chamar o cirurgião,
enviou a Alvapenha parte do succedido, e ordenou que procurassem
Magdalena, occupando n'isto a menor gente possivel, e deixando a outra
toda como alimento á impaciencia de sua mãe.
A indole de Christina tinha d'estas energias essencialmente feminis e
sympathicas. Não era para o salão que se
formára e educára o
ingenuo e meigo caracter da prima de Magdalena. Ahi tomava-a um
acanhamento, que já não conseguiria vencer, mas
nas lides domesticas, na vida do lar era d'essas corajosas luctadoras,
a quem a desventura não derruba, cuja intelligencia por tudo
se reparte; d'estes genios providenciaes, que pairam sobre o estreito
horisonte da familia, activos, laboriosos, achando nas fadigas um
prazer, nos sacrificios estimulos para mais amar, nos sorrisos que
provocam, nas dores que alliviam, nas lagrimas que enxugam, premio
bastante para compensar as penas que soffrem.
Mulheres são estas nascidas para serem esposas e
mães, o que é quasi o mesmo que dizer: nascidas
para serem mulheres.
A chegada de D. Dorothéa, que acudiu apressada logo que
soube o que succedera ao sobrinho, não dispensou Christina
d'estes cuidados, que voluntariamente tomára.
Comquanto a senhora de Alvapenha fôsse mais razoavel do que
D. Victoria, e de temperamento menos susceptivel d'aquellas inuteis
effervescencias, em que esta se deixava arrebatar, não era
tambem mulher para casos d'estes.
Na sua longa vida de celibataria sem familia, D. Dorothéa
perdera ou embotára a faculdade preciosa
[162]
de acertar bom caminho
em qualquer imprevista occorrencia.
Facto que destoasse dos monotonos habitos do seu viver de muitos annos
já a lançava em
sérios embaraços. Ella propria confessava que
inda havia pouco tempo principiára a afazer-se á
estada de Henrique em Alvapenha, e a fazer o que era seu costume fazer
antes de elle vir.
É pois evidente que D. Dorothéa pouco mais podia
fazer do que rezar, e para isso ninguem estava mais habilitado do que
ella. Em relação
á côrte celestial era a boa senhora como esses
almanachs vivos, que nos sabem dizer todos os canaes por onde os
differentes negocios poderão ser melhor conduzidos nas
côrtes... terrestres... Conhecia a especialidade de cada
santo e para cada um tinha uma fórmula de requerimento
particular.
Christina não a consentiu por muito tempo no quarto de
Henrique, onde, com as melhores
intenções, mais embaraçava o
serviço do que
auxiliàva; usando de uma debil violencia foi-a levando para
a sala do oratorio, onde ella encetou uma reza sem fim.
Quando a morgadinha chegou, ainda perturbada com as scenas do
cemiterio, e soube do succedido na taberna, correu, assustada, para
verificar a realidade do que lhe diziam.
Nos corredores encontrou um criado caminhando, apressado, n'um sentido,
uma criada em sentido opposto, emtanto que, na sala proxima, D.
Victoria tocava freneticamente a campainha a chamar por ambos.
Magdalena dirigiu-se para lá.
Quando entrou estava D. Victoria pronunciando uma d'aquellas
interminaveis e arrevezadas objurgatorias, de que só a
fecunda verbosidade feminina é capaz. Em geral as mulheres,
seja dito antes em honra do que em censura do sexo, são
oradoras de muito mais folego que os homens que blasonam de eloquentes.
O assumpto mais simples, uma colhér
[163]
que se perdeu, uma peça de louça que se
quebrou, por exemplo, fornecem-lhes thema para uma prédica
de duas horas.
Encaram o assumpto por todos os lados, paraphraseiam-n'o de mil
fórmas e estendem milagrosamente por muitos periodos aquillo
que a um homem a custo daria para uma magra
oração.
―Mas onde estavas tu? Sim, eu quero saber onde é que tu
estavas. Faça favor de me dizer onde é que
estava?
Isto dizia D. Victoria a um criado, estatelado deante d'ella com a cara
e postura de réo.
―Eu... senhora...―ia elle a dizer.
―Eu senhora... eu senhora... eu nada. Ora é o que
é. Um desafôro assim!... Eu só
quero saber se vossemecê ganha soldada para andar
lá por onde muito bem lhe parece. Por as tabernas... por as
vendas... Porque elle não ha mais... Como o dinheiro se vae
roubar á estrada... O que tu merecias... Estou eu aqui a
chamar ha mais de duas horas e vossemecê apparece-me
lá quando
é muito do seu gôsto? Isto atura-se? A culpa tem
quem eu sei... Tu cuidas que mandriar não é
roubar?
―Mas...
―Cale-se! Ouça e cale-se. Tens a lingua muito prompta para
responder. Ora toma-me cautela, senão vaes já,
já pela porta fóra. Pouca
vergonha! Uma pessoa aqui afflicta, com as coisas por fazer, a querer
mandar onde é preciso e não apparecer um criado
n'esta casa! A pagar-se aqui umas soldadas por ahi além, e,
quando se quer o serviço feito, tem uma pessoa de o fazer
por suas mãos!... Tu cuidas que isso não
é peccado tambem? Deixa, meu amigo, que tens boas contas a
dar de ti. Quem é que lhe deu licença para sair
sem ordem de seus
amos? Faz favor de me dizer?
―A sr.
a Christininha...
―Eu não quero saber da sr.
a
Christininha, quero saber quem
lhe deu licença para sair?
[164]
―Mas é o que eu estou dizendo á senhora.
―É muito padre-mestre. Ora não seja confiado, e
veja como responde.
Emfim, este dialogo promettia ser eterno, não obstante a
urgencia do serviço de que falava D. Victoria,
serviço que ella propria adiava com este importuno
sermão.
A entrada da morgadinha operou uma diversão. D. Victoria
esqueceu-se do criado, o qual pôde retirar-se sem ser
percebido e sem receber as ordens urgentes para que fôra
chamado.
D. Victoria principiou a contar a Magdalena o succedido, conforme ella
propria o soubera do moço do carro em que viera Henrique.
―Andam desaforados―concluiu ella.―Já nem attendem a uma
pessoa de respeito. É porque não ha
justiça n'esta terra. Estão para ahi uns
patetas de umas auctoridades, que são outros que taes. Era
preciso um exemplo. Ahi está quando eu, se fôsse
rei, não tinha pena nenhuma: havia de os esquartejar e era
bem feito!
Cumpre dizer que D. Victoria não era capaz de bater n'um
gato.
A morgadinha contou tambem rapidamente o que succedera no cemiterio.
Então é que trasbordou a
indignação da tia.
―Tu que dizes, menina?... Tu estás a falar
sério?... Pois elles?... Em nome do Padre... Que mais
teremos ainda de ver?... Oh meu Deus!... E esses malvados ainda
estão na rua?... Deixa que teu pae ha de ainda saber...
Não, isso não
fica assim... D'aqui a pouco põem-nos o pé no
pescoço. Nada, nada; para os malvados é que se
fizeram as forcas... Ora deixa que... Isto aqui anda trama.
―Não falemos mais n'isso. Agora vou vêr o estado
do ferido.
―Vae, e vê se encontras por ahi alguns criados. Eu
não sei onde elles se metteram. Ha de ser preciso
[165]
ir á botica, e muitas
mais coisas, e não
vejo nenhum!
Magdalena deixou sua tia a tocar outra vez a campainha.
Encontrou-se na sala immediata com Christina, que ia em
direcção ao quarto de Henrique, com um copo de
agua acidulada.
―Que ha, Christe?―perguntou-lhe Magdalena.
―Que ha de haver, Lena?―respondeu Christina com tristeza, mas com
serenidade ao mesmo tempo―uma desgraça, mas que Deus ha de
permittir que não seja sem remedio.
―Como está elle?
―Estonteado ainda, mas um pouco mais tranquillo do que quando chegou.
Os balanços do carro fizeram-lhe mal. Com as bebidas
calmantes que lhe tenho dado, achou-se bem.
―E ainda não mandaram chamar o cirurgião?
―Já mandei, já veio, já o sangrou,
já...
―Mas tua mãe não o sabe e ia mandar...
―Deixa-a lá, Lena. Deixa-a lá com os criados,
que por ora não convem que venha. Elle precisa de
socêgo. Já mandei sair d'aqui a tia
Dorothéa, que não adeantava serviço.
Queres vir
vêl-o?
Magdalena seguiu a prima, e entraram ambas no quarto de Henrique.
Mantinham-se ainda em Henrique as consequencias da profunda
commoção cerebral, que lhe produzira a
quéda. A tendencia ao estado comatoso, que apresentava,
tornava incerto o resultado e melindrosissimo o caso.
Voltára-lhe a razão e os sentidos; mas tardia
aquella, e estes sem possibilidade de longa
fixação em qualquer objecto. Sobretudo, o que
n'elle se notava pouco de tranquillisar, era uma
indifferença morbida pelo seu estado e por tudo quanto o
cercava.
Acceitou das mãos de Christina a bebida refrigerante, que
ella mesma preparára, com os movimentos quasi instinctivos
do somnambulo.
[166]
No fim, como se o prazer que o frescor do liquido lhe
causára lhe avivasse por instantes a consciencia, fitou em
Christina um olhar de gratidão, sorriu-lhe, e, pousando a
cabeça outra vez no travesseiro, fechou os olhos para
dormir. Esta somnolencia era habitual.
Christina não ficou inactiva; preparava um remedio, arrumava
um movel, desviava os raios da luz da fronte do enfermo; ia ao corredor
mandar calar os irmãos ou os criados, ou desfazer alguma
dúvida suscitada por os ultimos sobre o cumprimento de
qualquer ordem; outras vezes parava a espiar o aspecto do doente e a
escutar-lhe o rhythmo do respirar. E sempre movendo-se agil e sem
ruido, diligente e sem confusão.
Magdalena, que se sentára a um canto da sala, quasi
subjugada pelas muitas e violentas
commoções d'aquelle dia, contemplava a actividade
da prima e extranhava-a.
Ella propria, que melhor do que ninguem conhecia Christina, nunca a
suppuzera capaz d'aquella firmeza de animo e d'aquelle espirito
methodico e providencial de que estava dando agora irrecusaveis provas.
Apreciára-lhe até então os dotes de
creança, a bondade do coração, os
extremos de affecto que possuia; mas ainda a não tinha visto
tomando assim tanto a sério a sua missão de
mulher e
desempenhando-se d'ella tão dignamente.
Esta ordem de reflexões conduzia naturalmente a outras o
espirito da morgadinha. Reparando para Henrique, assim derrubado no
leito, e como que sob a protecção de uma timida e
debil
creança que, mais do que elle, parecia carecer de amparo,
Magdalena não pôde reprimir um sorriso benigno e
pensou:
―Sim; aquella cabeça estouvada pôde
até hoje passar por este anjo sem o conhecer; mas
é preciso não ter coração
para que, ao erguer-se d'aquelle
[167]
leito, não
seja o seu primeiro movimento o de ajoelhar deante d'ella para a
adorar. E Henrique não é falto de
coração. Lida, lida, minha boa
Christina, que para a tua felicidade lidas. Foi a Providencia que quiz
que tu vencesses com as mais abençoadas armas que concedeu
á mulher. Confio em Deus que vencerás.
Deixar-te-hei todas as fadigas, para te pertencer todo o prazer.
E em harmonia com esta resolução, a morgadinha
absteve-se de intervir no tratamento de Henrique.
XXVII
Foi opinião do facultativo, que tratou de Henrique, que a
vida d'este correra sérios riscos durante a primeira semana,
por não sei que
complicação que se lhe manifestou no decurso da
molestia. Se se enganou o prático, não nos
compete a
nós decidir; acceitemos-lhe a opinião, como de
legitima fonte, e não profundemos materia alheia ao nosso
intento.
Ao fim dos oito dias, porém, começaram a
manifestar-se melhoras evidentes, e o proprio facultativo foi o
primeiro a assegurar ás senhoras, que sempre o vinham
consultar á saida com anciosa curiosidade, que «o
homem estava salvo».
De facto, nos primeiros periodos da doença, Henrique caira,
como já dissémos, n'um d'aquelles estados de
indifferença para tudo e para todos, de que se
não pode agourar nunca bem. Agora, porém,
começava já a manifestar
attenção para os cuidados de que era objecto, e a
agradecer, com palavras de sincera gratidão, o tratamento
affectuoso que recebia n'aquella casa e especialmente os desvelos de
Christina.
[168]
Esta fôra effectivamente sempre incançavel,
solícita e carinhosa enfermeira.
Os cuidados de que o rodeava, como a um irmão, absorviam-lhe
todos os instantes; prevêr-lhe os desejos, adivinhar-lhe as
penas, procurar-lhe allivio ás dores physicas ou moraes, era
agora para ella a tarefa de cada momento, a preoccupacão
permanente de todos os seus pensamentos.
Henrique costumára-se a vêr mover-se no seu quarto
aquella meiga e delicada figura de mulher, creança de
hontem, a ouvir-lhe o timbre suave e ainda um pouco infantil da voz, a
cruzar o olhar com aquelle olhar brando que o fitava com sympathia e
meiguice; já se não sentia bem, longe d'ella, e a
cada momento, se estava ausente, dirigia as vistas para a porta
á espera de a vêr apparecer.
Magdalena espiava estes symptomas, notava a influencia crescente de
Christina sobre o animo do rebelde, que até alli
fôra insensivel, e exultava.
Muito de proposito a morgadinha afastava-se o mais possivel da
cabeceira do enfermo, por uma razão analoga á que
obriga os pintores a deixar em meias tintas os accessorios de um
quadro, para que a
attenção se fixe no objecto principal.
Magdalena estava tambem dispondo uma obra de arte, na qual Christina
devia ser a figura principal.
N'este intento a morgadinha conservava ás visitas que vinha
fazer a Henrique um ar cerimoniatico, que contrastava com a insinuante
familiaridade da prima. Para isso teve Magdalena de suffocar os
impulsos da sua indole de mulher, e de mulher que tão bem
comprehendia os deveres da sua missão, ao mesmo tempo
carinhosa e heroica. Apresentava-se o mais extranha que lhe era
possivel a estes pequenos cuidados, que tão irresistivel
influencia exercem no coração do homem que
experimenta a ventura de ser objecto d'elles.
De dia para dia crescia o ascendente de Christina sobre Henrique, e
crescia á custa de Magdalena.
[169]
Esta percebia-o e não cabia em si de contente com a
descoberta. É necessario ser dotado de um grande fundo de
generosidade, para que um coração
de mulher faça d'estas descobertas, com o intimo
contentamento que Magdalena sentia. É tão natural
defeito a vaidade! Não se exprime o prazer que Henrique
experimentava a cada pequeno incidente da vida domestica, que punha em
relêvo o predominio de Christina.
Havia uma hora no dia em que Henrique gosava um d'estes prazeres
placidos, de que tão pouco abundante era todo o seu passado.
Ao fim da tarde, D. Victoria, Magdalena e toda a familia do Mosteiro, e
a propria tia Dorothéa, reuniam-se no quarto do doente para
tomarem o chá. Não era, porém, a
presença de nenhuma d'ellas, nem a de Magdalena, que o
consolava e obrigava a suspirar por aquella hora, mas uma pequena
circumstancia, que fará sorrir um homem de sensibilidade
embotada, emquanto o facto se não der com elle. Era que
Christina, que em outra qualquer occasião cedia sempre a
Magdalena a
direcção dos trabalhos domesticos, alli dentro
não resignava em ninguem essas
funcções. Tomava naturalmente as maneiras de dona
de casa, e recebia a mãe, a prima e todas as outras como
visitas de intimidade, sim, mas em todo caso, visitas.
Não se imaginam os encantos que Henrique achava
áquillo. A elle proprio parecia já que de facto o
prendiam a Christina laços mais intimos, laços
mais de familia, do que ás outras senhoras.
Era assim que qualquer pedido, que tinha a fazer, o dirigia sem hesitar
a ella, como o faria a uma irmã; emtanto que naturalmente
custava-lhe a incommodar outra qualquer pessoa, e não o
fazia sem as desculpas e cumprimentos do estylo, que para ella
não usava já.
Outra particularidade o enleiava tanto como esta. Era a maneira
despotica por que o governava Christina,
[170]
fazendo-o cumprir á
risca as dietas e as
prescripções do facultativo, recusando-se
obstinadamente a deixal-o lêr, e até ralhando-lhe
ás
vezes com severidade quasi maternal: apparencias de dureza, que
occultavam thesouros de sensibilidade e de affecto.
O pobre rapaz, que não conhecera familia, que nunca vira do
seu leito de doença, nas vezes que caira n'elle, o vulto
suave e consolador de uma mãe, de uma irmã ou de
uma esposa sorrir-lhe ao despertar, interrogal-o com essas
entonações
carinhosas, que nos provocam o cobrir de beijos a mão que
nos estende a taça do mais amargo
remedio; elle, que não sabia ainda o que era sentir-se
amparar a fronte, que escalda de febre, pelo apoio de uma debil
mão de mulher, a que o amor dá
fôrças extraordinarias, commovia-se
até ás lagrimas agora, e quasi não
pensava sem tristeza na convalescença, que havia de o privar
d'aquelles cuidados affectuosos.
O olhar com que fitava Christina, todas as vezes que ella se lhe
approximava do leito, era mais eloquente de reconhecimento, do que
todas as palavras que lhe dizia, do que todas quantas lhe poderia
dizer.
Agora o enleiado e timido era elle, Christina a corajosa.
Um dia em que Henrique parecia soffrer mais do que de costume, e em que
se agitava no leito com a inquietação da febre,
Christina, depois de lhe dar a beber o calmante que lhe prescrevera o
medico, perguntou-lhe, com a mais adoravel candura:
―Não sabe rezar?
Henrique sorriu, respondendo:
―Julgo que desapprendi já as orações
que minha mãe me ensinou.
Christina calou-se e ficou tristemente pensativa.
Aquella alma innocente perguntava a si mesma
[171]
que consolação encontraria nas
provações da vida um espirito que não
soubesse recolher-se na
oração.
Henrique, que a viu sorrir, disse-lhe:
―Quer-me ensinar a rezar, Christina?
Christina fitou n'elle um olhar perscrutador, como para sondar a
intenção d'aquellas palavras.
―Juro-lhe que recitarei com o fervor, de que ainda fôr capaz
a minha alma, as
orações que me ensinar.
Christina respondeu-lhe gravemente:
―Reze, reze e verá como n'isso acha
consolação. Vou emprestar-lhe o meu livro de
orações, quer?
―Por que me não ha de antes ensinar, como minha
mãe o fazia?
Christina ouviu com seriedade a proposta.
E o certo é que um dia, em que Henrique passára
peor, Magdalena ouviu, na sala proxima, Christina, recitando uma
singela prece á Virgem, e o doente repetindo-a com
docilidade de creança.
Como se ririam d'elle os seus amigos da capital, se n'aquelle momento o
vissem! Mas rir-se-iam de um phenomeno naturalissimo, de uma d'estas
modificações a que todos os caracteres
estão sujeitos, quando se dão a actual-os dois
elementos tão
poderosos, como se davam em Henrique: a doença, que quebra a
inteireza das indoles mais rijas, e abre o
coração ás doces influencias; e a
catechese feminina, a mais poderosa, efficaz e irresistivel de todas.
Não direi que fôsse com inteira fé que
o doente orava; talvez que houvesse mescla de sentimento profano no
prazer suave que experimentava ao orar assim. É certo,
porém, que, desde
então, frequentes vezes se lhe desviavam os olhos para o
pequeno crucifixo, que Christina trouxera do seu quarto para a
cabeceira do leito de Henrique.
Outra vez, quando Christina acabava de fazer-lhe tomar um remedio,
Henrique, obedecendo aos impulsos
[172]
da sua gratidão, beijou-lhe, commovido, a
mão, que ella ia a retirar.
―Que faz?―disse Christina, córando e
afastando-a.
―Deixe-me beijar a mão piedosa que me prendeu á
vida, á vida que só agora comecei a
amar.
―Ora vamos―acudiu ella, com um meigo tom de reprehensão.
―Como não quer que a adore, Christina, depois de se fazer
anjo para me salvar? Não costuma rezar ao seu anjo da
guarda?
―Repare que eu não tenho azas de anjo.
―Mas vôa mais alto ao céo, quando desce assim a
velar por um pobre doente como eu, que nenhuns titulos possue
para lhe merecer essa
dedicação, pobre menina! Que vida tem sido a sua
ha tantos dias?
―Nenhuns titulos! que diz?―tornou Christina, com um sorriso adoravel.
―Pois quaes?
―Então não somos primos? disse ella,
jovialmente.
E saiu do quarto, com aquelle andar ligeiro e facil, que tanto enlevava
Henrique.
Estava já Henrique em convalescença, e o
facultativo permittira-lhe alguns passeios pela quinta, mas ainda
não a sua transferencia para Alvapenha. O logar favorito de
Henrique n'estes passeios era á sombra de umas laranjeiras,
que havia a pouca distancia de casa. Das janellas do quarto de D.
Victoria descobria-se o logar. Quando as manhãs estavam
serenas, Henrique ia para alli, com um livro que não fazia
tenção de ler, e apoiando-se
ao braço de Christina, que levava a costura para junto
d'elle, para lhe fazer companhia.
D. Victoria seguia-os da janella com as suas
recommendações.
―Por ahi não, Christe!... Olha que é muito
humido... Dá antes a volta pela nora... Assim...
[173]
Cautela com essas hervas, que
hão de estar molhadas... Vê lá que
não esteja frio... Olha se
esses troncos estão molhados...
Henrique tornava-se melancolico e sombrio n'estes momentos, a ponto de
uma manhã Christina o interrogar, n'aquelle tom de
familiaridade affectuosa, que principiára a poder ter para
com elle, desde que o vira fraco e doente e a carecer do seu auxilio e
protecção.
―Que é isso! Por que está sempre triste, agora
que vae melhor?
―Estou triste, porque estou melhor―respondeu Henrique.
―Que está a dizer?!
―A verdade. A poucos doentes terá succedido o que succede
commigo. Este renascer para a vida, este sangue novo que sentimos
circular nas veias, este vigor que de instante para instante conhecemos
accumular-se em nós, que tantos gósos
dá aos convalescentes, a mim fazem-me entristecer; como que
estou presentindo já as saudades d'este tempo, que passei
prostrado no leito da doença, Christina.
―Não diga isso.
―E admira-se? Se elle foi o tempo mais feliz da minha vida!
Não sabe que me eram desconhecidos inteiramente os
ineffaveis carinhos de familia que me fez experimentar? Com a saude
vão voltar para mim os dias da solidão, do
desconforto, d'aquella vida gelada e inutil que abomino, desde que
principiei a conceber outra... desde que m'a fez conceber, Christina!
Quando penso em voltar para Lisboa...
―E tenciona voltar?
A esta pergunta, feita com a maior naturalidade, Henrique sentiu uma
intima commoção. Ha d'estes effeitos.
Ás vezes o olhar menos significativo, a palavra menos
pensada, é pelo coração
interpretada de maneira tal que elle proprio se sente estremecer.
[174]
―E queria que eu ficasse, Christina?―perguntou Henrique, sob o
dominio d'essa impressão.
Christina não respondeu logo.
―Deixe-me acreditar que sim; é bastante generosa para isso,
para não vêr partir sem saudade o homem a quem
salvou com os seus extremos de irmã. Esta ideia
será a minha
consolação; deixe-me partir com ella.
―Partir?... mas... para que ha de partir?
―Então quer que me fique perpetuamente com aquella boa tia
Dorothéa, cuja vida placida vim alterar com os meus habitos
cidadãos?
―Pois não lhe custaria a ella mesma vêl-o partir!
E depois... que vae fazer para Lisboa? Adoecer outra vez, ou scismar
que está doente, que é quasi a mesma coisa.
―E dar-me-ha sempre a sua amizade se eu ficar?
―Por que havia de lh'a negar?
―Tempo virá em que outros me disputarão a menor
porção de affecto que me conceder,
Christina... e então... então é que eu
ficarei mais
só do que nunca... ou mais do que nunca sentirei que o
estou.
―Anda só, por que quer... Não ha tanta gente por
esse mundo?
―Então a menina não sabe que se está
só mesmo em companhia? Quem está só
é a alma.
Ai, a alma está só quasi sempre!
―Por que quer.
―Por que desconfiou das companhias que se lhe offereciam, e por que
não obteve a que desejava. Além de que, ha almas
tão tristes, que intimidam outras. E a minha é
d'essas. Ora diga, se eu lhe pedisse para fazer companhia á
minha alma, a esta alma melancolica e sombria com que nasci,
não hesitaria? Confesse.
Depois de um momento de silencio e hesitação,
Christina respondeu:
[175]
―Se a companhia da minha fôsse bastante para desfazer essa
tristeza...
―Concedia-m'a?
―E por que havia de negar-lh'a?
Henrique tornou-lhe a mão, apaixonado.
―Christina, sabe que essas palavras podem fazer-me conceber loucuras?
Se o meu coração é
tão ousado...
Christina, córando, retirou a mão de que Henrique
se apoderou, e levantando-se, sobresaltada, disse:
―Julgo que são horas do seu remedio. Vou preparar-lh'o.
E fugiu, correndo em direcção de casa.
Scenas mais ou menos analogas a esta reproduziam-se todos os dias
durante a convalescença de Henrique. Reinava o idyllio e uma
como perfumada atmosphera, que exercia profundas
revoluções no caracter de Henrique e de
Christina. Elle ia perdendo de dia para dia aquellas exterioridades
artificiosas, que Magdalena por tanto tempo combatera em
vão; ella, Christina, ganhando vida, actividade, soffrendo
uma d'essas metamorphoses analogas ás da vida de borboletas,
da infancia, estado de chrysalida para a
imaginação, passava á
verdadeira juventude, ao periodo em que a
imaginação ganha azas, em que o
coração se completa.
Desde que Henrique se achava em estado de passeiar, não
havia razão possivel para permanecer no Mosteiro; portanto
tornou-se inevitavel a mudança para Alvapenha.
Já se não fez sem lagrimas a despedida.
Choraram as creanças, chorou D. Victoria e a propria
Magdalena se sentiu commovida; só Christina não
se achava na sala em que se passou a scena.
Encontrou-a Henrique no patamar da escada por onde tinha de sair.
Seria casual esta circumstancia?
Henrique não perguntára por Christina; dizia-lhe
o coração que a encontraria alli.
[176]
―Volto á minha solidão, Christina―disse-lhe,
commovido.―Não lh'o tinha eu dicto?
A pobre menina quiz sorrir, mas do esforço que para isso fez
só lhe resultaram lagrimas.
―Não diga mais nada―disse Henrique, levando aos labios a
mão que ella não retirou.―Essas
lagrimas bastam-me.
Escusado é dizer que estas palavras mais lagrimas
produziram.
E Henrique desceu do patamar com a vista ennevoada por ellas.
Christina ficou a chorar na varanda.
A morgadinha veio, sem ser sentida, abraçal-a, dizendo:
―Pago-te hoje o abraço que me déste no outro
dia; mas eu escuso de te perguntar... «Pois tu
amaval-o?»
―Ai, Lena!...―exclamou Christina, cada vez chorando mais.
―Faltava aos vossos amores este arremêdo de infelicidade, e
imaginaram uma separação de
duzentos passos para poderem representar a scena das despedidas, e
chorarem como Paulo e Virginia. Impostores!―dizia Magdalena, para
consolal-a.
Em Alvapenha Henrique passou horas de intensa melancolia.
Impacientavam-n'o as conversas de sua tia e de Maria de Jesus, a qual
taes mudanças notava n'elle, que chegou a aventar
á ama a ideia de que a doença tinha transtornado
o juizo ao rapaz, opinião que D. Dorothéa levou
muito a mal.
Outro symptoma que se manifestou em Henrique foi a
indignação que lhe causou a carta de um
amigo que, com o maior scepticismo, lhe perguntava novas dos seus
habitos pastoris e das Tirces e Galatéas que o traziam
enlevado. Henrique revoltou-se d'esta vez, com todo o fogo do
coração, contra aquelle tom frio e sarcastico da
epistola, e nem lhe respondeu.
Depois teve Henrique uma visão.
[177]
Não se assustem os leitores que antipathisam com o
maravilhoso. Nada ha aqui que se pareça com as
visões épicas; foi uma visão
como muitas, que nós todos, uma ou outra vez na vida,
experimentamos; um d'esses espectaculos, que nos prepara de quando em
quando a imaginação, esta fertil e poderosissima
creadora, que nos acompanha incessantemente. A quem não
terá de facto
succedido vêr transformar-se pouco a pouco uma perspectiva,
desvanecerem-se os effeitos da visão exterior, enfraquecerem
as impressões dos sentidos, e avultarem, tomarem
fórma, realidade, vida, as imagens de uma mais intima,
espontanea e mysteriosa visão?
Estava Henrique á janella do quarto que habitava em
Alvapenha. Sabemos já que se gosava d'alli um panorama
extenso e amenissimo. A tarde parecia de primavera. Henrique corria com
prazer a vista pelos differentes logares da quinta de Alvapenha, com as
suas noras e mêdas, colmeias, eiras, cabanas e sebes. Era uma
verdadeira quinta rural, resentindo-se, porém, um pouco de
ser a proprietaria d'ella uma senhora velha, e com pouca actividade
para tratar da lavoura.
Pouco a pouco deixára Henrique de vêr a quinta
como ella era.
Principiava a visão interior.
As arvores copavam-se de folhagem; messes aloiradas ondulavam nos
campos; numerosos rebanhos cobriam os lameiros extensos; atulhavam-se
de cereaes os celleiros; alastrava-se de grão o
chão das eiras; gemiam as noras e os lagares; soltavam-se
ás prêsas os diques, e uma verdadeira rede liquida
envolvia em suas malhas a vegetação dos campos;
alvejavam as camisas dos ceifadores e echoavam nos montes e arvoredos
as cantilenas aldeãs; e os mais caracteristicos e poeticos
episodios da vida agricola desenrolavam-se aos sentidos, deleitosamente
allucinados, do sobrinho de D. Dorothéa. Era
[178]
uma perfeita georgica! E elle a dirigir
todos os trabalhos, a regular o serviço, verdadeiro
patriarcha ao modo antigo; e ao seu lado, e em toda a parte,
á sombra de uma arvore, á borda do tanque,
debruçada no muro, por entre os silvados das
sébes vivas, uma figura suave, casta, adoravel... a figura
de Christina!
Quem mezes antes adivinharia que Henrique de Souzellas, o homem
elegante, o homem da moda, em quem estavam encarnadas todas as
qualidades boas e más da sociedade que frequentava, havia de
ter uma visão como esta!
No quasi extase, em que a imaginação o
lançára permanecia ainda, quando soube que o
procuravam de mando das senhoras do Mosteiro.
Apressou-se logo a receber a visita.
Era o velho Torquato que vinha saber d'elle, de mando de D. Victoria e
das meninas.
O pobre homem era um dos que ficára com
affeição a Henrique depois que estivera no
Mosteiro.
Henrique ouvia-o com uma paciencia, que elle já em poucos
encontrava, contar as longas historias dos seus tempos passados, e isso
era o bastante para o velho lhe querer bem.
―Diga ás senhoras que eu mesmo irei ralhar com ellas, pelo
incómmodo que estão tendo
commigo. E vossê tambem, Torquato, na sua idade, estes
passeios.
―Ai, não tem dúvida! Isto faz bem...
É exercicio a final... Pois é verdade. Eu d'antes
corria a aldeia toda n'um minuto... agora... Olhe que eu já
tenho os meus annos! Veja lá, se no tempo dos francezes eu
era já homem feito... Inda me lembra...
Seguiu-se um episodio da época, e depois, sem
transição sensivel:
―Mas lá emquanto ás senhoras... Isso sempre devo
dizer que teem tomado um cuidado!... Todas!... Até a
Christininha!
[179]
―Sim? Tambem essa?
―Ora se tambem!... Pois a sr.
a D. Victoria?
―Mas... mas... Christina... a sr.
a D.
Christina, então...
―Isso é um coração de pomba. Inda ha
pouco, ao sair, já vinha no pateo, e ella veio ter commigo a
correr, e disse-me: «Olhe, ó Torquato, ha de
reparar-lhe para a cara e vêr se tem ar mais
triste.»
―Ella disse-lhe isso?
―É verdade. E eu lá lhe vou dizer que o
encontrei alegre como...
―Não, não; não lhe diga isso,
homem―atalhou Henrique.
―Então por quê?!
―Porque... porque... porque não é verdade...
Então eu estou assim tão alegre como isso?
―Não digo que esteja, mas para a socegar...
―Diga que me achou com saude, mas triste. E não lhe disse
ella mais nada?
―A sr.
a D. Victoria...
―Falo de Christina.
―Nada... Ai... Agora me lembro... mas isso é segredo.
―Diga, diga.
―Não é nada; é uma promessa que...
―Uma promessa? Que promessa?
―Sim, olhe, eu digo-lhe, mas guarde segredo! Quando o senhor esteve
muito mal, que nem o cirurgião dava nada por si, a
Christinita prometteu rezar na capella dos Cannaviaes as
estações da
meia noite...
―As estações da meia noite?
―Sim; as estações rezadas á meia
noite á Senhora que está na capella da casa dos
Canaviaes; É tão milagrosa que, dizem, nunca
recusou favor que se lhe pedisse assim. Contava meu pae...
E vinha um caso comprovativo da tradição popular.
[180]
―Sim, lembra-me que já me falaram n'isso―disse Henrique,
pensativo.
―É verdade. O peor é que é este seu
criado quem tem de a acompanhar até á quinta,
depois d'ámanhã á meia noite...
―Então depois de ámanhã á
meia noite?
―Sim, mas não diga nada, que isto é segredo da
pequena.
―Esteja descançado.
E depois de mais algumas historias contadas por Torquato, e a que
Henrique não ligou
attenção, aquelle retirou-se.
Ao ficar só, Henrique caiu em nova e profunda
abstracção. Elaborava-se-lhe na ideia um
projecto. O de ir aos Cannaviaes para presenciar aquelle acto de
fervorosa devoção de Christina, que
supplicára por elle, enfermo, com o ardor da mais pura
crença, com a effusão do mais generoso affecto.
N'este intento tratou de se informar a respeito dos caminhos que
conduziam á quinta, que elle ainda não
visitára, e sobre como penetrar
até á capella da casa, onde devia ser cumprida a
promessa.
D. Dorothéa, D. Victoria e Magdalena deram-lhe os
esclarecimentos precisos sem que suspeitassem das
intenções com que elle lh'os pedia.
XXVIII
A casa e quinta dos Cannaviaes, deshabitadas depois da morte da velha
morgada, madrinha de Magdalena, era uma sombria residencia, situada
n'um dos mais êrmos e melancolicos logares da aldeia.
O tempo, cuja acção não contrastada se
exercera livremente n'ellas, viera augmentar o aspecto soturno que
desde a origem apresentava esta casa,
[181]
ennegrecendo-lhe as paredes,
revestindo-lhe de hervas os telhados, de musgo as padieiras e as
junturas de pedra, e povoando-lhe de morcegos e de corujas os buracos
dos muros. Emfim a superstição popular
terminára a obra fazendo divagar as almas do outro mundo por
aquellas salas e corredores vazios, e nas ruas d'aquella quinta,
entregue á natureza.
A defuncta morgada, que não se recolhera á aldeia
senão depois de ter gosado na capital de todos os
esplendores da vida das cidades, e brilhando nas mais concorridas e
elegantes salas do seu tempo, gosava n'esta pequena terra, onde
passára o resto da vida, de uma fama de espirito forte, que
em grande parte concorrera para generalisar a opinião de que
a sua alma andava ainda penando por cá.
Contavam-se entre o povo anecdotas absurdas, em
relação aos annos da mocidade da morgada. A
imaginação popular fazia a biographia d'aquella
senhora, colorindo-a com as tintas maravilhosas com que costuma
phantasiar a vida dos grandes centros, de que vive afastada.
A morgada, que só renunciou ao mundo quando os espelhos
começaram a falar-lhe da vaidade das glorias que repousam
nos encantos da belleza, passou, como succede muitas vezes, de um
extremo a outro extremo, e da vida elegante ás
práticas de devoção.
Nos Cannaviaes ouvia missa todos os dias, confessava-se todas as
semanas, commungava todos os mezes, sem comtudo resignar absolutamente
os habitos de elegancia de que já fizera uma necessidade
natural. Trajava sempre com distincção e esmero,
e ao corrente das modas.
Tudo isto e as proprias devoções da morgada,
acabaram por convencer o povo de que havia grandes culpas no passado
d'ella, as quaes procurava remir á
fôrça de missas. Dizia-se que a
morte a viera tomar antes das contas saldadas, e que por isso a sua
alma voltava á terra penando.
[182]
Já se vê que o logar era para apavorar as
imaginações timidas, e de noite pouca gente da
aldeia gostava de passar por lá.
Henrique depois de ter dicto em Alvapenha que ia passar a noite ao
Mosteiro, d'onde voltaria tarde, saiu mais cêdo do que a hora
devida, e fazendo obra pelas informações da
morgadinha, dirigiu-se para os Cannaviaes para escolher
posição d'onde
pudesse, sem ser visto, observar Christina, não tendo ainda
resolvido se lhe appareceria ou se a deixaria imperturbada na sua
piedosa tarefa.
A noite fizera-se escura e ameaçava chuva.
Henrique, alumiando-se com uma lanterna de furta-fogo, já um
pouco habituado aos caminhos estreitos e escabrosos do campo,
atravessou a aldeia, examinando com attenção
todos os objectos que lhe
deviam servir de indicadores da estrada.
Pouco passava das dez horas, quando se achou em frente de uma casa que
por apparencia, julgou ser a demandada propriedade.
Era uma casa escura, crivada de pequenas janellas e peitoril, tendo a
um lado um alto portão da quinta, do outro a capella, cuja
porta Henrique achou ainda fechada.
O sussurro dos cannaviaes agitados pelo vento era uma garantia de haver
acertado.
Principiavam a cair algumas grandes gottas de chuva e a
escuridão a fazer receiar grandes aguaceiros.
Henrique achou prudente procurar um abrigo onde pudesse resguardar-se.
N'este intento approximou-se do portão. Com grande espanto
seu, achou-o aberto.
Já teria chegado Christina?... Enganar-se-ia elle na
casa?... Estaria habitada a quinta?
Estas tres explicações do inesperado facto
debatiam-se-lhe no espirito, sem que elle soubesse qual adoptar.
Transpoz o portão e entrou na quinta. Nenhuma apparencia de
vida.
[183]
A chuva caía com mais fôrça. Para se
abrigar, Henrique subiu os degraus de pedra, no tôpo dos
quaes havia um patamar lageado e convenientemente toldado.
Ao chegar alli achou tambem aberta a porta da primeira sala, e ao fim
de um corredor pareceu-lhe divisar luz.
Henrique parou indeciso.
―Decididamente enganei-me. Não é aqui a casa dos
Cannaviaes. Sempre perguntarei.
E bateu as palmas.
Ninguem lhe respondeu.
Bateu outra vez; o mesmo resultado.
Aventurou-se a entrar, deu alguns passos pelo corredor e bateu.
O mesmo silencio; seguiu até o fim do corredor em
direcção á luz; chegou a uma sala
mobilada com antigas cadeiras de alto espaldar, e alumiada por um
candieiro de metal, pousando na pedra da chaminé, em cujo
fóco brilhavam ainda uns carvões
candentes.
―Parece uma historia de fadas!―pensava Henrique.―Dar-se-ha que a
alma da morgada goste ainda das commodidades?
Ia a dirigir-se a uma porta para chamar, quando se abriu outra do lado
opposto, e appareceu-lhe uma mulher velha, com um vestuario meio do
campo, meio da cidade, e trazendo uma luz na mão. Henrique
voltou-se e preparava-se para lhe dirigir a palavra, quando ella
primeiro lhe disse:
―Procurava alguem, o senhor?
―Peço perdão pelo meu atrevimento. Bati muito
tempo á porta, e emfim como a visse aberta, decidi-me a
entrar. Desejava saber onde é aqui a casa dos Cannaviaes.
―A casa dos Cannaviaes é esta mesma.
―Mas... eu julgava... suppunha ter ouvido dizer, que não
morava aqui ninguem.
―E não o enganaram. Hoje por acaso é que
está cá a sr.
a morgada.
[184]
―A sr.
a morgada?―perguntou Henrique, sem bem
saber o que devia
pensar da resposta e de tudo que via.
―Sim, senhor; a sr.
a morgada, e não
tarda aqui. Ella
esperava-o.
―Ah! A sr.
a morgada esperava-me?
―É verdade―disse a mulher, sorrindo.―Adivinhou que o
senhor vinha aqui. E o que é que ella não
adivinha?
Henrique dava tratos á imaginação para
comprehender esta scena.
―Então é a sr.
a morgada
em pessoa que...
―Que o convida para tomar uma chavena de chá―disse uma voz
por traz d'elle.
Henrique julgou conhecer o timbre d'aquella voz.
Voltou-se, viu a morgadinha que entrava na sala, com o sorriso nos
labios e a mão estendida, com aquella habitual franqueza de
maneiras, que de tantos encantos a revestia.
Henrique exclamou, admirado:
―A prima Magdalena!
―A morgadinha dos Cannaviaes, se faz favor. Competia-me fazer as
honras da minha propriedade, que pelos modos está para ser
muito visitada hoje. Chamei, para me acompanhar, a Brizida, que viveu
muitos annos aqui com a minha madrinha, e hoje vive em casa sua do
rendimento do legado que aquella senhora lhe deixou. A Brizida
é quem se encarrega de vir, de quando em quando, abrir as
janellas d'esta casa, para que os ratos não a destruam de
todo, e os tortulhos lhe não enfeitem as paredes.
―Mas como soube que eu?...
―Isso é um segredo. Não o esperava,
porém, tão cêdo, nem imaginei que nos
viesse ter assim ao intimo da casa. Fiquei embaraçada quando
o vi. Ao principio quasi julguei que era a alma de minha madrinha. Mas
fez bem em recolher-se... Ouve?
E com o gesto indicava a chuva, que já batia com
fôrça nas vidraças.
[185]
―O peor é se isto não espalha e a Christina muda
de tenção.
―O vento é do mar, menina; isto são
aguaceiros―notou Brizida, como para desvanecer aquelle receio.
―Pois sabe que Christina vem?
―Eu sei tudo. Ora sente-se ao fogão, que deve vir muito
frio. Accendi o lume, porque estava aqui dentro um ar humido e mofento,
muito pouco hospitaleiro.―Brizida, olhe que se não percebam
lá fóra as luzes, que podem amedrontar Christina.
E feche a porta da sala. Abra o côro da capella e prepare
chá para quatro. Aqui mesmo, Brizida, aqui mesmo, porque a
cozinha está pouco habitavel.
Emquanto Brizida cumpria as ordens que a morgadinha lhe dava, esta,
chegando uma cadeira para o fogão, sentou-se defronte de
Henrique de Souzellas.
―Agora conversemos amigavelmente, primo Henrique. E antes de mais
nada, responda-me a uma pergunta! O que o trouxe aqui?
―Pois não diz que sabe tudo?
―Até certo ponto, entendamo-nos. Não
vão tão longe as minhas faculdades que cheguem a
devassar intenções, que por ventura á
propria
consciencia de quem as fórma, repugne acceitar.
―Não é esse o meu caso; as minhas
intenções são reconhecidas e
approvadas pela minha consciencia. Vim para assistir ao espectaculo
commovente de um anjo que ora por mim. É um espectaculo a
que ainda não assistira, prima. Admira-se da minha
curiosidade?
―Acho-a natural e até... louvavel. O ponto está
que a sua convalescença esteja bastante segura
já. Porque o primo Henrique convalesceu ha dias de duas
doenças.
―De duas?
―Sim; e a mais rebelde não foi a de que o
cirurgião o tratou.
[186]
―Então?
―A peor, aquella de que eu havia chegado já a desesperar,
era a que lhe tinha descoberto logo na sua chegada aqui, uma
doença moral; revelava-se por uma maneira de vêr
as coisas, de pensar e de proceder verdadeiramente doentia.
―Estou curado d'isso.
―Estará? eu sei!... É certo que já
é bom signal admittir que era doença.
―Dou pelo seu diagnostico, prima, e até pelo tratamento que
me aconselhou em tempo; falou-me na vida campestre, no interesse pelos
negocios locaes... e sobretudo em uma paixão sincera.
―Ah! e experimentou a receita?
―Experimentei e curei-me.
―Ou tomou por fôrças de saude o que era apenas o
falso vigor da convalescença? Convem não abusar;
ouço dizer aos medicos que são perigosas as
recaidas.
―Pois teme que eu recaia?
―Por que não? Esta sua vinda aos Cannaviaes a horas
mortas... comquanto motivada por louvaveis
intenções... tem ainda assim uma certa
feição romantica... que era bom vigiar... Sempre
vim para acudir a algum accidente.
―É um perfeito medico da época; não
tem fé na efficacia dos remedios que prescreve.
―Tenho; mas não desacompanho a acção
d'elles, isso não. Agora fale-me com franqueza: ao
recordar-se de certas ideias com que veio de Lisboa não se
lhe figuram algumas extranhas e inacceitaveis já?
―Confesso que algumas...
―E comprehende agora o que eu lhe dizia? o remedio para o mal do
coração que o minava,
tinha-o a seu lado, desde o primeiro dia em que puzera os
pés no Mosteiro, e teimava em ser cego para o não
vêr.
―Desde o primeiro dia? Pois Christina...
[187]
―Christina deixou de ser creança desde aquelle dia.
―Querido anjo!
―Querido anjo?... Diz bem; deve adoral-a, tal como ella é
ingenua, timida, supersticiosa até,
se quizer; mas bondosa, mas adoravel, mas uma indole talhada para
acalmar as paixões demasiado violentas de um caracter como o
seu; para lhe fazer ter mais esperança na vida, mais coragem
e mais fé no futuro.
Henrique, depois de instantes de silencio, disse, sorrindo, para
Magdalena:
―Diga-me uma coisa, prima Magdalena; comprehendendo tão bem
as necessidades do coração dos outros,
não pensou ainda nas do seu?
―E quem lhe disse que as tinha?
―Conceda-me tambem um pouco da sua admiravel perspicacia, e
não se julgue tão impenetravel, que
não offereça leitura aos olhos que a
observam.
―Ah! Então leu?
―Uma pagina eloquente de sentimentos generosos, prima; uma pagina que
eu só agora estou habilitado para a apreciar como merece;
pagina, porém, tão recatada, que julgo que ainda
a não leu bem o
principal interessado n'ella. Cego, como eu fui.
―Não leria?―perguntou Magdalena,
sorrindo.―Está certo d'isso?
―E pode ser que lesse, pode; ou pelo menos que por
inspiração a adivinhasse. Ha casos d'esses.
Magdalena tornou, mudando de tom:
―É ainda cêdo para tratar de mim. Quando me
resolver a isso, verá que sou um doente modelo.
Não hesitarei ante a violencia do remedio.
―E por que demora o tratamento?
―Pois parece-lhe que será urgente o caso?
―Prima Magdalena, o que vejo é que ha mais fortaleza da sua
parte do que....
―Silencio!―disse a morgadinha, escutando.―Pareceu-me ouvir...
[188]
N'este momento a Brizida, que fôra a uma sala immediata,
voltou, dizendo em voz baixa:
―Parece-me que abriram as portas da capella. Devem ser elles.
―Então depressa―disse Magdalena.―Abra-nos o
côro; mas antes apaguemos as luzes. Teve uma feliz
lembrança em prevenir-se com essa lanterna de furta-fogo.
Traga-a e siga-me; mas occulte a luz. Não faça
barulho.
Apagadas as luzes da sala, Magdalena e Henrique entraram, por um
corredor estreito, no côro da capella, d'onde a morgada
costumava ouvir missa, emquanto mandava patentear ao povo o pavimento
inferior.
Quando alli chegaram, com as precisas precauções
para não fazer estalar as tábuas do soalho, havia
já em baixo uma luz escassa, que desenhava longas no
pavimento as sombras de duas pessoas, ainda occultas sob a varanda do
côro.
Cêdo se adeantaram para o altar, e claramente se reconheceu
serem Christina e Torquato.
Caminharam silenciosos até ao altar principal. Torquato
subiu os tres degraus, sobre que este ficava elevado e accendeu duas
vélas de cera que, em ennegrecidos castiçaes de
madeira dourada, ornavam uma imagem da Virgem da Soledade. Espalhou-se
no recinto uma frouxa claridade, que não dissipou as sombras
dos recantos, nem as que se condensavam no tecto.
Christina fez signal então a Torquato, para que se
retirasse; e o velho, com os passos arrastados e tossindo, caminhou
para a porta, que dentro em pouco se ouviu gemer sobre os gonzos e
fechar-se com estrondo.
Tudo ficou depois em silencio.
Christina então ajoelhou deante d'aquella imagem, que era a
de que a tradição popular contava
milagres, e em profundo recolhimento ficou immovel a rezar a
devoção promettida.
[189]
Henrique de Souzellas sentia-se enlevado por esta scena. Aquella
angelica creatura viera alli agradecer á Virgem o tel-o
salvado! Aquelle anjo amava-o? Havia pois no mundo quem o amasse com um
amor puro e candido, em que elle já nem acreditava. E
cabia-lhe a suprema ventura de gosar um amor assim!
Magdalena via com alegria a commoção de Henrique.
A oração de Christina prolongou-se por alguns
minutos.
Henrique murmurou, ajuntando as mãos:
―Deus te recompense, anjo, a consolação que me
dás.
―Não peça a Deus o que está na sua
mão―respondeu-lhe em voz baixa Magdalena.
―Que diz?
―Está ou não sinceramente apaixonado?
―Como nunca imaginei que fôsse possivel estar.
―Crê na pureza d'aquelle coração?
―Como na dos anjos.
―Está convencido de que o pode salvar, ella?
―Não ha crédo que professe com mais
fé.
―Por que não vae então ajoelhar ao lado d'ella e
jurar-lh'o?
―E consente?
A morgadinha respondeu-lhe, conduzindo-o ao principio de umas estreitas
escadas que pela espessura da parede iam do côro para a
capella-mór.
―Aqui tem o caminho―disse ella.―Siga-me. E, servindo-se da lanterna
de furta-fogo, foi descendo com precaução.
Henrique seguiu-a.
No fim da escada, Magdalena occultou de novo a luz, e, dados mais
alguns passos, parou junto de um reposteiro.
―Agora faça o que lhe dictar o
coração―disse ella para Henrique.
Este correu o reposteiro com precaução, e
achou-se na capella.
[190]
Christina rezava ainda, e como a porta por onde Henrique
entrára ficava por detraz d'ella, não o
viu chegar.
Henrique ficou a contemplal-a todo o tempo que ainda durou a
oração.
Ao levantar-se, Christina, voltando a cabeça, descobriu-o, e
soltou um grito de susto. A obscuridade que havia na capella
não lhe deixou perceber logo quem fôsse, o que
mais lhe augmentou o terror.
Henrique caminhou para ella, dizendo-lhe:
―Não tenha receio, Christina. Sou eu.
Reconhecendo-o, a timida rapariga ficou espantada. Como se explicava a
presença de Henrique n'aquelle logar? Nem tempo teve de
imaginar
explicações. Henrique accrescentou:
―Sou eu, Christina: eu a quem a menina salvou e por quem com tanto
fervor veio rezar aqui. Obrigado, mais uma vez lhe digo, obrigado,
Christina. Quiz fazer-me comprehender todos os
castos e abençoados prazeres da familia; depois de me
dedicar as suas vigilias, dedicou-me as suas
orações. Deixe-me beijar-lhe a mão com
todo o affecto, com toda a paixão que pode haver na minha
alma.
E dizendo isto, levou aos labios a mão, que ella, de
enleiada, nem ousára retirar das suas.
―Agora peço-lhe, Christina, que, já que me fez
antever as delicias do viver da familia, não me condemne
para sempre ao supplicio de não as vêr realisadas.
Lembre-se de que não conheci mãe, de que
não tenho irmãs, de que tenho vivido
só, e de que cêdo voltarei a essa vida solitaria e
gelada, que me será agora uma tortura.
Compadeça-se de mim. Quer vir occupar no meu
coração o logar vago que ha n'elle para as
affeições de
mãe, de irmã, e de...
―Henrique!...―murmurou quasi inintelligivelmente a sobresaltada
creança.
―É deante d'esta Virgem, a quem orava com tanto fervor,
é pousando a mão sobre os Evangelhos
[191]
d'esse altar, que eu lhe prometto
mais do que uma paixão ephemera de rapaz, prometto-lhe a
constante adoração, rodeada de respeito, do homem
que as suas virtudes reconciliaram com o mundo. Acceite, Christina,
acceite o offerecimento do meu coração.
Christina tremia sem poder responder.
Magdalena entrou por sua vez na capella.
―Não se pode exigir assim uma resposta directa, primo
Henrique―disse ella.
Christina, cada vez mais surprehendida por estas successivas e
inesperadas apparições, correu para
a prima.
―Tu, Lena! Tu tambem aqui?!
―Então não me competia receber em minha casa as
visitas? Mas vamos, dize-me aqui ao ouvido a resposta que queres que eu
dê por ti ao sr. Henrique de Souzellas, que me parece acaba
de te pedir, muito terminantemente, a tua mão.
Christina não respondeu, senão cingindo-a mais
intimamente ao seio.
―Não responderam os labios, primo,―continuou a
morgadinha―mas falou o coração ao meu na
linguagem das pulsações. Estou-o sentindo.
―E disse?...
―Que havia de dizer? Que sim.
E Magdalena, que tinha a mão de Christina na sua, extendeu-a
a Henrique, que a apertou apaixonadamente e a beijou de novo.
Parece-me poder affirmar que d'esta vez já houve
correspondencia.
O velho Torquato, farto de esperar de fóra da capella, e
achando que as rezas se prolongavam de mais, resolveu chamar Christina.
Ao entrar divisou porém tres pessoas em logar de uma
só, que esperava, e recuou estupefacto e aterrado.
Suppôz que almas penadas andavam na capella.
O bom do homem não ousava approximar-se.
[192]
Magdalena, que o ouvira entrar, animou-o, dizendo:
―Não tenha mêdo, Torquato. A alma de minha
madrinha encarregou-me de fazer esta noite as suas vezes. Sou eu.
O espanto do feitor não era agora menor. Esfregava os olhos,
como se receiasse estar dormindo, e não passava de olhar
para Magdalena, para Henrique e para Christina, sem entrar na
explicação do que
via.
Custou a fazel-o voltar da sua estupefacção.
Momentos depois entravam todos quatro na sala onde Henrique
fôra recebido por Magdalena, e ahi a velha Brizida lhes
serviu o chá.
A antiga criada da morgada fez muita festa a Christina, e, como
já percebera a casta de sentimentos que havia entre esta e
Henrique, soltou algumas insinuações, que a
obrigaram a córar,
e a rir Magdalena.
Passou-se uma bella noite, conversando-se e rindo-se em perfeita
intimidade.
―Que longe estava eu hoje de pensar n'este delicioso
serão!―disse Henrique.―Decididamente é de
maravilhas esta casa; o povo tem razão. A morgada defuncta
foi decerto quem se encarregou de fazer os convites.
―É verdade, como foi que vieram aqui?―perguntou Christina,
já mais desenleiada.―Já sei, foi este Torquato
que me não guardou segredo. O que merecia!...
―Eu, menina?! Ora essa! Eu até...
―N'este Torquato ha alguma coisa mais para receiar do que a
indiscreção―disse Magdalena.
―Que é?―tornou a prima.
―É a discreção.
―Então por quê?
―Torquato é discreto, com umas meias palavras, que exprimem
mais do que a verdade.
―Eu...―ia a dizer o velho, justificando-se, quando Henrique o
interrompeu.
[193]
―Mas emfim, expliquemos mutuamente a nossa presença aqui.
―N'esse caso é justo que fale primeiro Christina.
―Que hei de eu dizer?
―Explica a tua presença aqui. Então
não ouviste o primo Henrique?
―Ora, já o sabem.
―Mas talvez não lhe seja desagradavel ouvil-o outra vez da
tua bôca.
―Não, não, a minha vinda, essa não
tem que explicar.
―Que diz, primo Henrique?
―Não tenho coragem para pedir mais do que tenho pedido
já.
―Pedido e obtido, pode accrescentar. Bem, Christina veio aqui trazida
por um sentimento de piedade e de...
―Lena!
―Assim mesmo sempre seria curioso ouvir a
narração dos sustos que ella sentiu por o caminho
desde o Mosteiro até aqui. O Torquato não era
decerto bastante para lhe limpar a estrada de visões e
malfeitores.
Christina poz-se a rir.
―Mas vamos ás explicações da
presença dos mais. A Christina avisou o Torquato, o Torquato
avisou o primo Henrique...
―Eu?!
Christina olhou para o velho com um meigo gesto de
reprehensão.
―Se eu o soubesse!...
―Eu... eu não disse... eu... só disse...
Henrique tomou a palavra.
―Torquato não é de todo o culpado. Pois acha que
não haveria em mim alguma coisa que me ajudasse a adivinhar?
Torquato atraiçoou-se involuntaria, inconscientemente. Mas
quanto á prima...
―Eu? Soube-o tambem do Torquato.
[194]
―Pois tambem a ti o disse? Olhem que homem de segredo!
―Isso é que não. Eu não disse
á sr.
a D. Magdalena... Ella
é que...
―Foi o que eu disse ha pouco. A discreção do
Torquato é que revelou o segredo.
―Como?
―O Torquato falou com o seu velho amigo herbanario.
―Eu a esse não disse.
―Não, a esse quiz occultar, e d'ahi é que veio o
mal.
―Ora, ora...
―O que eu sei é que Vicente veio procurar-me á
porta do Mosteiro, e ralhou-me com uma severidade e uma aspereza, como
ainda lhe não tinha merecido nunca. Estava o homem
convencido de que eu era a heroina de umas aventuras romanticas que se
verificavam de noite n'esta minha propriedade dos Cannaviaes. E
tão irritado estava, que me não quiz ouvir,
quando eu procurava esclarecer o que para mim era um perfeito enigma.
Ao retirar-se, porém, disse-me que não lhe
quizesse occultar a verdade, porque do Torquato soubera tudo.
―Eu não disse...
―E depois a prima...
―Eu então chamei este senhor, armei-me de toda a minha
gravidade, e exigi que falasse e me dissesse tudo o que havia e tudo o
que sabia a respeito de uns passeios aos Cannaviaes; elle estava
pêrro, mas a final falou.
―Mas sabia tambem que eu vinha?―perguntou Henrique.
―Pois não se lembra de que pela manhã me tinha
cançado com perguntas a respeito do caminho para a casa dos
Cannaviaes? Eu já extranhava a insistencia; depois do que
soube, tive uma suspeita. Perguntei ao Torquato se lhe
falára n'isto. A resposta d'elle, apesar da sua
hesitação e ambiguidade,
[195]
habilitou-me a concluir que teria o
gôsto de receber o primo em minha casa.
―E que disseste no Mosteiro? Sabem que vieste?
―Não. Disse que ia visitar Brizida, onde passaria a noite.
Bem me viste sair. Viemos ambas para aqui ainda com dia para
pôr a casa em arranjo.
―São mesmo coisas tuas―disse Christina, rindo.
―Mas eu não disse nada―insistiu Torquato.
―Porém, por que motivo se irritou tanto o
herbanario?―perguntou Henrique.―Que imaginava elle a final?
-Ah!... É porque este sr. Torquato teve a habilidade, com as
suas meias palavras, e reticencias indiscretamente discretas, de
arranjar as coisas de maneira que o velho Vicente chegou a persuadir-se
de que havia aqui um romance em que entrava eu... A
discreção do Torquato é das que
respeita os nomes, de maneira que as honras da aventura
fôram-me todas attribuidas... N'este mesmo romance parece que
entrava tambem o primo Henrique...
―Ah! percebo agora―disse Henrique, rindo.―O velho é
ciumento por procuração.
Magdalena abanou a cabeça, sorrindo tambem.
Christina, que já estava habilitada para entender a
allusão de Henrique, sorriu com elles.
O Torquato foi o unico que nada percebeu.
Eram perto de duas horas, quando a morgadinha lembrou a necessidade de
voltarem a casa.
―Choverá?―perguntou Brizida.
―Julgo que não―respondeu Magdalena, e como para
assegurar-se correu a vidraça da janella e examinou o
firmamento.
Henrique acompanhou-a.
―A noite está serena―disse ella.―São horas de
voltarmos.
―Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas
horas―disse Henrique, ―Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda
parte da familia a estas
horas―disse Henrique, debruçando-se á janella, e
continuou:―Mas que
[196]
agradavel
noite! Não poder prolongal-a por toda a eternidade!
―Vamos, vamos,―respondeu Magdalena―o dia
d'ámanhã deve ser feliz ainda, porque...
N'isto, como se alguma coisa tivesse observado na rua que lhe
attrahisse a attenção, calou-se,
mal podendo reter um leve grito.
―Que foi?―perguntou Henrique, que o percebeu.
―Nada―respondeu ella, correndo a vidraça e afastando-se da
janella.
―Viu a alma da morgada?―perguntou jovialmente Henrique, vendo-a
preoccupada.
―Não―respondeu Magdalena, meio a sorrir e meio
séria.―Pode porém haver
apparições peores.
―Que é, Lena? Que viste tu?―perguntou Christina,
assustada.
―Socega, filha, nada que possa transtornar o nosso regresso. Vamos.
E, passados poucos minutos, sairam todos os que até alli
animavam aquella habitação
solitaria, e ella permanecia outra vez em trevas, em silencio e na sua
quasi desolação.
XXIX
No dia seguinte, pela manhã, recebeu-se na Alvapenha noticia
da chegada do conselheiro e de Angelo. A impressão profunda
que a este ultimo causára a morte de Ermelinda, tinha
resolvido o pae a trazel-o comsigo para a aldeia a distrahir e
robustecer com ares livres do campo. D. Dorothéa
apressou-se, segundo o costume, a visitar o conselheiro; Henrique
acompanhou-a e de caminho pôl-a ao facto do estado do seu
coração, e encarregou-a
[197]
de communicar isto mesmo a D.
Victoria e de fazer-lhe, em seu nome, um formal pedido da
mão de Christina.
D. Dorothéa ficou a principio admirada. Ainda se
não desacostumára de considerar Christina como
uma creanca. Havia tão pouco tempo que usava ainda vestidos
curtos!
Reflectindo porém, acabou por achar a coisa natural,
vantajosa e agradavel, e felicitou o sobrinho pela boa escolha que
fizera.
Henrique, com o prazer pueril de um verdadeiro namorado, não
se fartou de fazer falar a tia nas qualidades de Christina, e d'esta
vez as habituaes prolixidades da boa senhora não conseguiram
enfastial-o. Estava devéras apaixonado!
Chegaram ao Mosteiro.
O conselheiro recebeu-os com ar de satisfação e
apparente tranquillidade de espirito; mas um exame attento conseguiria
descobrir-lhe no sorriso o que quer que era forçado a
revelar certa
preoccupação interior.
É que, desde que chegára, tinha sondado melhor o
animo do publico da terra, ou dos influentes que o representavam, e
reconhecera que estava muito arriscada d'esta vez a sua candidatura.
Não lhe sobrava muito tempo para trabalhos; porque d'ahi a
dois dias realisavam-se as eleições. Tudo
estava por fazer, emquanto que os seus adversarios havia muito que
tinham tudo feito. Algumas das personagens politicas, com que contava,
falharam-lhe, e até nem o visitaram. As auctoridades locaes
eram-lhe manifestamente hostis, desde o administrador até o
cabo de policia.
Henrique percebeu a violencia que sobre si estava fazendo o
conselheiro para conversar em assumptos alheios á
questão que o interessava, para sorrir e prestar
attenção ao que se dizia.
De quando em quando lia ou relia uma carta, tomava um apontamento,
escrevia um bilhete, retirava-se
[198]
por momentos para receber algum agente eleitoral que o
procurava, despachava um emissario; finalmente não podia
socegar.
Foi na occasião em que elle consultava mais uma vez a lista
dos recenseados d'aquelle circulo eleitoral, emquanto Henrique e
Magdalena faziam por distrahir Angelo, conversando em varios assumptos,
que entrou D. Victoria, a quem acabava de ser formulado por D.
Dorothéa, e em nome de Henrique, o pedido da mão
de Christina. D. Victoria trazia bem visivel na physionomia todo o
jubilo que a nova lhe causára. Era muito amiga de Magdalena,
mas desculpem-lhe esta vaidade maternal, o que mais que tudo a
lisonjeára, fôra a preferencia
dada por Henrique a sua filha sobre a morgadinha.
―Tenho muito que lhe ralhar, sr. Henrique―dizia ella.―Estou mesmo
muito arrenegada comsigo.
―Por quê, minha senhora?―perguntou Henrique, sorrindo.
―Pois então isso é coisa que se faça?
Já precisa de embaixadores para se dirigir a mim?
―Perdão, minha senhora! Era meu dever deixar completa
liberdade a v. ex.
a para fazer todas as
reflexões que a
proposta lhe suggerisse e discutil-a á vontade, e, por
delicadeza, podia v. ex.
a ás vezes,
sendo eu mesmo quem a
fizesse, cohibir-se...
―Ai, eu havia de pôr muitas dúvidas! Na verdade
um rapaz de tão má nota! Ora sempre tem coisas!
―Visto isso, posso esperar?
―Da minha parte uma guerra de morte―disse D. Victoria, não
resistindo a dar um abraço a
Henrique, já com familiaridade de mãe;
abraço
que Henrique retribuiu com affecto.
O conselheiro não dava attenção
á scena.
―Então, mano!―bradou-lhe
D. Victoria.―Deixe lá essas politicas
que temos negocios sérios em casa.
[199]
―Sim?―disse o conselheiro, dobrando os papeis que lia, e simulando um
ar de interesse, que realmente estava muito longe de
sentir.―Então de que se trata?
―De um negocio importante, em que é preciso que seja
ouvido.
―Ah! Então é um caso de consciencia?
―E não o diga a rir, que é. Aqui o sr. Henrique
de Souzellas acaba de me fazer um pedido... Isto é, a prima
Dorothéa foi que m'o fez.
―Mas por ordem d'elle―acudiu esta.
―Pois sim, o que era escusado.
―Mas então que pede de nós este caro sr.
Henrique?
―Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.
O conselheiro relanceou um olhar para Magdalena. Já, por
mais de uma vez, a hypothese do casamento da filha com Henrique lhe
tinha passado pela ideia, e de modo algum lhe era antipathica. Henrique
tinha um bom nome, rendimentos sufficientes, e, se quizesse, um futuro
na sociedade, e o conselheiro tudo isto invejava para seus filhos.
Magdalena, que percebeu no gesto do pae a ideia que elle tivera, quiz
tiral-o quanto antes da illusão e disse:
―Quem mais razão tinha para protestar era eu. Ha de
fazer-me falta a amizade de Christina.
―Ah!―disse o conselheiro, com um sorriso um tanto
contrafeito.―Então quer-nos roubar a nossa Christina, sr.
Henrique?
―É apenas uma restituição que
peço, sr. conselheiro, porque não me posso
resignar a viver sem coração.
―Faz madrigal? Está então apaixonado
devéras, já vejo―disse o conselheiro.―Pela
minha parte folgo de o vêr assim associado á minha
familia,
por tão bom caminho. Mas onde está a thaumaturga,
que fez o milagre de converter este celibatario emerito,
[200]
que eu conheci em Lisboa a rir-se
do casamento?
―Por piedade, não me recorde esses peccados deante da prima
Magdalena, que é tão rigorosa nos
castigos!
―Diga antes, que sou tão excessiva nas recompensas.
―Mas o mano tem razão―disse D. Victoria.―Onde
está a Christe? Admira-me não a vêr
aqui!
―Admirar, não me admiro eu―tornou o
conselheiro.―É provavel que soubesse do que se
tratava, e eclipsou-se discretamente. Porque isto foi decerto discutido
por as partes interessadas, antes de subir ao nosso tribunal.
Henrique e Magdalena sorriram.
―Ora se foi! E parece-me que tu, Lena, fizeste d'esta vez de S.
Gonçalo. Deus queira que te não queimes ainda no
fogo ao ateares d'estes fachos.
―Eu vou buscar a Christe―disse a morgadinha, rindo das palavras do
pae; e saiu da sala como para evitar que a conversa seguisse a
direcção
que elle lhe deu.
O conselheiro voltou n'este intervallo a consultar papeis e cartas,
emquanto D. Victoria falava com Henrique, e D. Dorothéa
tentava distrahir Angelo, contando-lhe várias historias de
creanças, que
elle mal escutava, e que ella tinha a candura de julgar alimento
accommodado á intelligencia d'elle.
Passados momentos voltava Magdalena, trazendo Christina comsigo, a qual
já vinha com o rubor nas faces e com os olhos no
chão.
―Aqui está a accusada―disse a morgadinha ao entrar.
O conselheiro tornou a guardar os papeis e disse
jovialmente
para a sobrinha:
―Ora venha cá, venha cá, que temos muito que
falar.
E passando-lhe a mão por baixo do queixo, para a obrigar a
fital-o, continuou:
[201]
―Então assim se trama uma conspiração
ás caladas? Surprehender a gente com uma noticia de tal
ordem! Ainda ha pouco demittido um ministerio de bonecas, e
já um golpe d'estado d'esta natureza! Sim, senhora,
é energia. Nunca o esperei. Ora dê cá
um beijo, emquanto não tenho quem me
peça explicações por os que lhe
roubar.
E o conselheiro, com perfeita galanteria e affecto, beijou-a nas faces
tingidas pelo pejo e pela alegria.
Depois, voltando-se para Henrique, accrescentou, sorrindo:
―São os penultimos.
―Os penultimos?―disse D. Victoria, rindo.―Ora essa! Então
para quando ficam os ultimos?
―Para quando a vir com a grinalda de noiva.
―O que eu nunca esperei é que fôsse a nossa
Christe que désse o exemplo á prima.
Não tens vergonha, Lena―disse D. Dorothéa para a
morgadinha, em quem esta reflexão fez nascer um gesto de
contrariedade, que trouxe aos labios d'Angelo o primeiro sorriso
d'aquella manhã.
O conselheiro e Henrique sorriram tambem.
―Eu prometto casar-lhe a prima Magdalena, dentro em pouco, tia―disse
Henrique com
intenção.
―Não prometta. Esses negocios deixe-os ao meu cuidado. Bem
sabe que sou teimosa e tenho a ingenuidade de acreditar que ainda ha
coisas no mundo que se devem decidir pelo coração
sómente.
―E Deus me livre de o não consultar. Seria abjurar os meus
proprios actos.
―O
sómente é
que veio de mais, filha―disse o conselheiro.―Attende-se ao
coração, embora. Mas só ao
coração? Isso era bom se
vivessemos em um mundo de corações.
A chegada de novas personagens desviou a direcção
da conversa e modificou a scena.
Eram influentes politicos, que obrigaram as senhoras a retirarem-se.
Henrique ficou, a pedido do
[202]
conselheiro. O mestre Bento Pertunhas entrava no numero dos
recemchegados. O papel que alli desempenhava o latinista era de
suspeitosa natureza.
Vinha tambem a alma politica do partido do conselheiro, o Tapadas, que
n'estas épocas não comia, não dormia,
não respirava, por assim dizer,
senão eleições, e desenvolvia uma
miraculosa
actividade, correndo a todos os pontos perigosos, conquistando votos,
um a um, e lidando por desenredar as meadas politicas dos adversarios e
enredar as suas.
―Então que novas temos da campanha, meus
senhores?―perguntou o conselheiro, puxando cadeiras para os seus
constituintes, e affectando um tom de confiança que
não sentia.
―Más, sr. conselheiro,―respondeu o Tapadas―muito
más. Vejo isto muito feio.
―Ora a coisa ainda não ha de ser tão
má como diz.
―Nada, nada; não me agrada. V. ex.
a
descuidou-se. Tenha
paciencia, mas eu bem lh'o disse. Eu sei como estas coisas
são. É preciso não
as desacompanhar. V. ex.
a devia vir ha mais
tempo.
O Pertunhas acudiu:
―Deixe lá, sr. Tapadas, o sr. conselheiro tem amigos
decididos, e os serviços que fez á
terra...
―Ora com o que vmc.
ê vem!―replicou o
Tapadas, com modo
azedo.―Então não sabe como é
esta gente? Então não os ouve ahi berrar
já contra as estradas, quando até agora berravam
por não as
terem?
―Meia duzia de garotos―tornou o Pertunhas.
―Não, senhor, não é assim;
não estejamos a enganar-nos. Os que não dizem mal
das estradas, sabem muito bem dizer que ao ministerio as devem, e
estamos na mesma. A coisa vae mal.
―Então decididamente o Seabra?...―perguntou o conselheiro.
―Esse é o chefe de todos elles―disse um
merceeiro.―Á porta da minha loja o ouvi eu estar a
[203]
dizer ao cunhado do
administrador que o traçado da estrada era o peor que podia
ser, que se gastava alli um dinheiro louco, sem utilidade para o povo.
O conselheiro olhou para Henrique, dizendo:
―Lembra-se do que eu lhe disse na noite do Natal, a respeito d'este
traçado e dos pedidos do brazileiro para elle se adoptar?
Admire agora o velhaco.
Henrique sorriu, encolhendo os hombros.
―Arremedos do que se faz em terras maiores―disse
elle.―Não extranho.
―E tem razão―respondeu o conselheiro.
―Mas, a final―continuou o conselheiro―o homem não tinha
na freguezia grande influencia. Como é que...?
―Tem-se popularisado ultimamente um pouco mais. Deu em franquear vinho
por ahi a toda a gente, e depois os padres estão bem com
elle e de mal com v. ex.
a.
―Mas como se lhe desenfreou tão de repente esse odio contra
mim? Deixámo-nos em janeiro nas melhores
disposições um para com outro...
―Pelos modos que ahi se falou de uma carta do ministro ou ao
ministro...―disse o Tapadas, com maneiras de quem não dera
grande importancia ao objecto a que se referia.
O conselheiro mudou logo de assumpto.
―E os padres? os padres? Que heresia disse eu, que peccado grande
commetti, para me terem esse odio?
―Dizem que v. ex.
a é
mação―respondeu um lavrador.
―O diacho da questão do cemiterio...―acudiu o Tapadas.
―Isso acalmou já.
―Não acalmou, não senhor. O povo não
está contente. É certo que lhe passou a furia do
principio, depois d'aquella historia com o Cancella, mas...
[204]
―Quando me lembro de que aquella canalha se atreveu a insultar minha
filha!
―É melhor não falar n'isso―aconselhou
prudentemente o Tapadas.―O que lá vae, lá vae.
Os homens estão meio arrependidos, e até o
missionario perdeu um pouco entre o povo, porque o Herodes tem por ahi
berrado que foi elle quem lhe matou a filha, e o pobre homem mette
pena. Até me dizem que por causa d'isso o padre
já se retirou da aldeia. O que era bom era vêr
até se se falava
ao Herodes; porque talvez elle possa agora ainda arranjar
alguns votos―accrescentou o Tapadas, disposto a servir-se da
dôr de um pae como arma eleitoral.
E continuou-se fervorosamente na edificante obra de combinar tramas
politicos. Discutiram-se os diversos processos de
angariar as potencias eleitoraes do circulo. Estudaram-se as
ambições de cada uma; ponderaram-se as exigencias
feitas por uns, os desejos adivinhados em outros, para este o emprego
de um afilhado, áquelle o bom exito de uma demanda, a outro
o pagamento de uma divida, ou o resgate de uma hypotheca, e a alguns
até nua e descaradamente o dinheiro. N'esta empresa de
subornar consciencias e sophismar a urna entreteve-se o conciliabulo,
sem que nenhum dos membros d'elle sentisse remorsos por o que estava
fazendo alli.
Entre os discutidos foi o sr. Joãozinho das Perdizes um dos
principaes.
―Então sempre é certo que me roeu a corda esse
basbaque?―perguntou, ao falar-se n'elle, o conselheiro.
―É dos mais assanhados―responderam-lhe.
―Mas quem diabo lhe virou a cabeça? Um velhaco a quem
tantas vezes tenho tirado de apuros!
―Tanto lhe atordoaram os ouvidos com a historia dos
cemiterios...―disse o Pertunhas.
―Deixe lá, alli andou tambem um presente que
[205]
lhe fez o brazileiro. O morgado
está muitas vezes com a corda na garganta―explicou
malignamente o Tapadas, cujo scepticismo, robustecido no uso das
demandas e da politica, não achava
explicações tão plausiveis como a
corrupção.
―E depois o homem tomou as dores pelo Vicente herbanario―insistiu o
tendeiro.
―Ora adeus!―disse o Tapadas.―Bem me fio eu
n'essas compaixões. Quem não os
conhecer...
―E que tem o tôlo com os negocios do herbanario?―insistiu o
conselheiro, de mau humor.
―Então? Deu-lhe para alli.
―Qual historia! Para mim é que vem com isso?!―teimava o
sceptico Tapadas.
―Tambem uma coisa que buliu com elle foi aquillo no outro dia na
taberna com este senhor―disse o Pertunhas, designando Henrique.
―Sinto, sr. conselheiro―disse este―se de alguma maneira concorri...
―De modo nenhum. Aquelle selvagem vae para onde o empurram.
Á ultima hora é capaz de mudar de
tenção. E por causa d'elle é que
ficou despachado professor um pateta em vez de Augusto.
Depois de dizer estas palavras, o conselheiro accrescentou, com
despeito:
―Mas até certo ponto foi bom para me desenganar a respeito
do caracter de certos homens. Ha vinganças tão
torpes e mesquinhas, que nenhum aggravo as justifica.
Henrique procurou defender Augusto; achou porém o
conselheiro obstinado na sua crença.
Henrique alludiu ao brazileiro Seabra, como o mais plausivel promotor
da intriga.
―Embora o fôsse―respondeu o conselheiro―mas que tem isso?
O Seabra não veio a minha casa, não suspeitava da
existencia de tal carta. Alguem houve que a leu primeiro e que lh'a foi
entregar depois, e já é ser muito indulgente
suppôr que
[206]
fôram só cegueiras de vingança e
não a sordidez da cubiça quem o moveu a essa
infamia.
Henrique viu que perdia o seu tempo em defender Augusto; comtudo jurou
pela innocencia d'elle.
O conselheiro ia a responder-lhe, quando o distrahiu uma
altercação travada entre Pertunhas e o Tapadas.
Aquelle estava sendo fertilissimo em alvitres para vencer resistencias
eleitoraes. O Tapadas, que desconfiou d'elle, disse-lhe subitamente:
―Olá, ó sr. Pertunhas, é melhor
parolar menos e fazer coisa que se veja; ou deixa só as
obras para o seu amigo Seabra?
D'aqui protestos energicos do Pertunhas, e a
altercação virulenta, que o conselheiro teve de
apaziguar.
A conferencia durou até ás horas do jantar.
XXX
Chegára o prazo e dia assignalado de se dar perante a urna a
batalha eleitoral.
A azáfama politica activára-se n'estes ultimos
dias consideravelmente. De parte a parte tinham-se posto em campo todos
os influentes e em exercicio todas as armas. Promessas,
alliciações,
pressão de auctoridades, exigencias a dependentes, subornos,
ameaças mais ou menos declaradas; de tudo se
lançava mão.
Ás vezes até o calor das discussões
degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que
figuram no catalogo das razões mais convincentes, haviam
já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se
depois, de um lado contr
Ás vezes até o calor das discussões
degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que
figuram no catalogo das razões mais convincentes, haviam
já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se
depois, de um lado contra a violencia e o despotismo do governo, do
outro,
[207]
contra os manejos
sediciosos e anarchicos da opposição.
Em algumas freguezias que entravam n'este circulo eleitoral, eram os
padres que arvorando a cruz e o estandarte, prégavam a
cruzada contra o conselheiro e instavam com o povo para que
não elegesse para representante um atheu e um
pedreiro-livre; em outras eram os agentes do brazileiro e os da
auctoridade, fazendo promessas aos caudilhos populares, resgatando
penhores, levantando hypothecas, remindo dividas, empregando afilhados,
e conquistando assim para o seu partido.
O conselheiro e os seus parciaes não desprezavam tambem
nenhum d'estes mesmos meios, e grossas quantias circulavam a combater
as do brazileiro Seabra.
Os periodicos do Porto e de Lisboa recebiam os echos d'esta batalha.
Havia muito que em longas e diffusas correspondencias os gladiadores
dos dois campos se mimoseavam com as mais descabelladas verrinas,
assignando-se: o
Amigo da
verdade; o
Epaminondas; o
Vígilante; a
Sentinella; o
Alerta, etc., e pondo ao soalheiro as
máculas da vida privada uns dos outros, e todas as
bisbilhotices da terra, correspondencias que, felizmente para
crédito da humanidade, por ninguem mais, além dos
interessados e dos que já os conheciam, eram lidas.
O brazileiro era um dos mais activos e fecundos collaboradores d'esta
secção periodistica. Os
seus communicados eram estirados, compactos, obscuros e enrevezados
tanto ou mais do que os seus discursos. Perdia-se em minuciosos
incidentes; em labyrinthos de orações
secundarias, d'onde a
grammatica da principal saía frequentemente maltratada,
deixando ficar por lá o sujeito, o verbo ou qualquer
complemento necessario. Mas o brazileiro imaginava que o paiz inteiro
aguardava com ancia os seus escriptos. Era frequente abrir uma resposta
a alguma zargunchada de um seu adversario, por estas
[208]
palavras: «Os leitores
hão de ter notado o
meu silencio, depois das calumniosas
asserções...» Os leitores
não tinham notado nada.
Finalmente a aldeia achava-se em plena
fermentação politica.
Eu tenho a fraqueza de a não amar debaixo d'aquelle aspecto.
A vida politica tem isso comsigo. Quanto mais estreito e mais apertado
é o circulo social onde se manifesta, quanto mais vizinhos e
conhecidos são os que vivem d'ella, tanto mais acanhada,
mexeriqueira e antipathica se torna. Se a politica do nosso paiz
é já pequena, como elle, e degenera em
desavença de senhoras vizinhas, que fará das
terras pequenas d'este paiz, em que muito acima dos principios e dos
partidos estão os mexericos e as vaidadesinhas que brotam
como tortulhos á sombra das arvores do campanario?!
Que desconsoladora distancia da realidade ao ideal da vida dos povos!
Henrique de Souzellas não ficára indifferente ao
movimento politico da aldeia. Pegára-se-lhe a febre
eleitoral. Impedido de votar, auxiliava, porém, os parciaes
do conselheiro com os avisos da sua experiencia. Um dia lembrou um
meeting.
O
conselheiro poz-se a rir.
―Que utopia! Com que especie de eleitores imagina que está
tratando? Um
meeting, para quê? Não se
esqueça de ir domingo á igreja
e lá se desenganará por os seus olhos. O
espectaculo não é muito para alegrar, porque
mostra como em geral o nosso paiz está ainda pouco educado
no regimen constitucional. Mas em todo o caso é instructivo.
Os manejos dos amigos do conselheiro e principalmente do infatigavel
Tapadas, conseguiram ainda resultados importantes em
relação ao tempo em que
principiaram a operar com mais energia. Algumas freguezias havia com
que já se podia contar.
A eleição, porém, estava muito
arriscada ainda.
[209]
O sr.
Joãozinho das Perdizes devia decidir a contenda. Para onde
se inclinasse o morgado, com todo o peso dos seus comparochianos,
desceria o prato da balança.
Contra elle assestou, pois, o conselheiro toda a artilharia; mas sem o
menor resultado. O homem evitava subtilmente encontrar-se com elle, e
aos seus emissarios respondia com insolencia. O Seabra pela sua parte
nunca o largava, vigiava-o como um precioso thesouro, não se
descuidava de o manter nas disposições hostis
contra o conselheiro. A
todo o momento fazia-lhe sentir o insulto que recebera na taberna, e a
necessidade que tinha, para se desaffrontar, de infligir uma
lição ao conselheiro, com quem Henrique estava
ligado. Depois disse-lhe que o conselheiro se gabava de ter dinheiro
para comprar o morgado e toda a freguezia.
O morgado, sob estas e analogas instigações,
praguejava e jurava despejar na urna ministerial o suffragio da sua
freguezia.
Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do
governo, homem desconhecido d'este povo, o qual tambem era desconhecido
para elle, um empregado de secretaria, que nunca saira de Lisboa e que
era o primeiro a rir-se do campanario obscuro de que se propunha a ser
representante; creatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o
custo, por terem n'elle um voto complacente e um parlamentar de boa
feição.
Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande
solemnidade civil, o adro da igreja parochial apresentava uma
animação fóra do
costume. Grupos formados aqui e alli conferenciavam, entreolhando-se
com desconfiança, ou correspondendo-se por signaes de
intelligencia, conforme pertenciam á mesma ou a opposta
parcialidade. Os agentes eleitoraes, os influentes dos dois campos
acercavam-se d'este, apertavam a mão áquelle,
segredavam com um, batiam no hombro a outro, discutiam
[210]
com um terceiro, e, sempre que era
possivel, distribuiam listas ao maior numero.
O brazileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava
a phalange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as
mãos e sorrindo. O regedor passeiava com importancia por
entre os grupos, recommendava ordem e respeito ás
auctoridades, e dava de olho aos cabos, seus subordinados, para que se
não esquecessem de cumprir as
instrucções recebidas, votando no candidato
ministerial.
Approximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a
constituição da mesa. O parocho, o administrador
e o regedor foram occupar o seu logar. Ficou presidente o brazileiro, e
o resto da mesa formou-se d'entre as duas parcialidades.
Emquanto se organisavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as
probabilidades da victoria.
N'um dos grupos formados, junto da porta da igreja, por os partidarios
do brazileiro, dizia-se:
―Vencemos por uma maioria de mais de duzentos votos; verão!
―Só a freguezia de Pinchões enche-nos ahi a
urna.
―E estará bem seguro o morgado?
―O sr. Joãozinho!? Ora! Está de ferro e fogo
contra o conselheiro.
―Pois se te parece! Depois d'aquelles mimos que lhe fizeram
na taberna, e do que d'elle se tem dicto no Mosteiro!...
―Não é só por isso. Elle
já estava do nosso lado, desde que soube tinham deitado
abaixo a casa do herbanario, e que o pobre homem estava succumbido de
todo.
―É verdade! ahi temos mais um a votar contra o conselheiro
d'esta vez.
―Quem? O Vicente? Esse sim. Então não sabes que
o pobre velho já se não levanta da cama?
[211]
―Ai, não?
―Andava já muito fraco e doente; mas ha tres dias,
sobretudo, tem ido de peor a peor, e com uma pressa, que, segundo ouvi
dizer, aquillo está por pouco tempo: nem deita a semana
fóra.
―Coitado!
―Ahi vem quem ainda hoje o viu. Não é verdade,
sr. Pertunhas?
―O quê, meus amigos, o quê? o que é que
é verdade? o que é que dizem?―perguntou o mestre
de latim, esfregando sempre as mãos.
―Não é verdade que o Vicente herbanario
está a ajustar contas?
―Oh! pobre de Christo! Aquillo corta o
coração! Sempre eu digo que uma crueldade assim,
como a do conselheiro!
―Muitos do povo d'aqui veem votar contra o conselheiro, só
por causa do mal que fez áquelle santo velho.
―E com razão.
―E então para quê? senhores, para
quê?―continuava Pertunhas.―Para fazer uma estrada em que se
gastam rios de dinheiro, e que a final não presta! Pois eu
passei por a casa do herbanario ha pouco, quero dizer, por a casa do
Augusto, que é onde vive agora o Vicente. O rapaz estava
á porta. Então, sr. Augusto, disse-lhe eu,
á urna! vamos
á urna! Elle encolheu os hombros como quem diz:
«bem me importa a mim com isso.»
―Ahi está outro, que tambem não
é pelo conselheiro.
―Por que não? Pois não é elle todo do
Mosteiro?
―Foi, foi―replicou o Pertunhas.―Então vmc.
ê
não sabe que o conselheiro, depois de lhe fazer a fineza de
lhe arranjar a demissão, inda por cima o poz fóra
de casa, porque pelos modos o rapaz... fez publicar umas certas
cartas... que compromettiam o homem? A falar verdade, tambem
não foi bonito.
[212]
―Fez elle muito bem.
―Mas, como eu dizia, puzemo-nos a falar, e eu estava-lhe dizendo que o
povo o vingaria da affronta que lhe fizera o conselheiro, porque ia dar
a este um cheque de que elle se havia de lembrar toda a vida; quando o
Vicente, que me ouvia de dentro, chamou-me e mandou-me entrar. Foi
então que eu o vi... Parecia-me outro!... Imaginem
vossês, outro tanto de magro e outro tanto de velho... Mettia
dó! Poz-se a perguntar-me muitas coisas, o que havia, o que
não havia, por quem estava este, por quem estava aquelle...
Eu disse-lhe tudo; que o conselheiro, por mais que fizesse,
já não podia
vencer; que não arranjaria os votos precisos para cobrir a
freguezia de Pinchões. O velho ficou admirado quando eu lhe
disse que o sr. Joãozinho era dos nossos. E lá o
deixei a remoer a noticia. Ao menos resta-me a
consolação de lhe ter
adoçado com ella os ultimos momentos.
N'este ponto da conversa viram passar por elles Henrique, que ia ter
com um agente eleitoral, a suggerir-lhe uma ideia para vencer
não sei que eleitor recalcitrante.
―Ahi anda este―disse um dos do grupo, seguindo-o com a vista.―Era
bem feito que lhe dessem outra lição, como a da
taberna do Canada.
―Ordem, ordem e prudencia!―disse o Pertunhas.―É preciso
manter a liberdade da urna, senhores, e as garantias constitucionaes!
―Mas que tem este senhor com as nossas eleições?
―Quem o manda metter-se cá n'estas coisas?
―Ora é boa! Então não sabem que elle
casa no Mosteiro?―disse o Pertunhas, que andava sempre informado das
vidas alheias.
―Sim?!
―É verdade. Ha pouco, quando eu estava falando com o
Augusto, veio a nós o José Barbeiro, que nos deu
essa novidade, que lh'a dissera o Manoel
[213]
da Quinta, que a ouvira á
Gertrudes, criada do Mosteiro.
―Casa com a morgadinha, já se sabe?
―Pois vêdes! não que a bolada convida! A mim logo
me farejou isso, quando vi chegar esse figurão cá
á terra. Mas querem vossês saber uma
coisa engraçada?... Pareceu-me que o Augustito do doutor
não gostou da novidade.
―Não? Então por quê?!
―Vi-o fazer-se de mil côres quando a ouviu... Pois
ter-se-lhe-ha mettido na cabeça... Hein?!
―Tinha graça. Mas olha o milagre!...
―Ah! ah!... Este mundo é muito divertido!
N'isto saiu a correr da igreja um influente politico, e principiou a
olhar para todos os lados, como procurando alguem.
―Que temos nós lá, ó sr.
Luiz?―perguntou-lhe o Pertunhas.
―Onde diabo estão os de Pinchões?―perguntou o
interpellado.
-Inda não vieram.
―Diabos os levem! Vae-se principiar a chamada, e elles não
apparecem. O morgado é homem para se esquecer a catar os
cães.
―Mas vamos nós principiando, e no emtanto elles
virão―disse o Pertunhas, que fôra nomeado para
revezador do secretario da mesa.
―Mas a primeira freguezia que vota é justamente a d'elle. O
sr. Seabra está como uma bicha!
E, dizendo isto, o homem voltou para dentro.
A mesa eleitoral, instituida no meio da igreja, com grande escandalo do
beaterio, que pela voz dos padres chamava áquillo artes do
demonio, ia principiar a funccionar. O conselheiro, que viera mais
tarde, de proposito para não formar parte da mesa, requereu,
com o relogio na mão, que se abrisse a urna aos eleitores,
visto ser a hora marcada no edital.
Este requerimento, simples e justo como era, suscitou
discussão.
[214]
O brazileiro allegou que, sendo os de Pinchões os primeiros
a votar, em virtude do artigo 62.º do decreto eleitoral, que
manda
votar primeiro a freguezia mais distante, e não estando na
assembléa ninguem d'aquella freguezia, convinha esperar.
O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava
esperar por os eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que
portanto votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas
horas de espera, votariam os ausentes que depois viessem.
Esta questão não se resolveu de prompto. Trocados
alguns alvitres, lida a lei, discutidos os artigos d'ella, consultados
os recenseamentos e mappas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao
administrador, e ao parocho, é que se approvou a proposta do
conselheiro e principiou a chamada.
A freguezia de Pinchões faltou em pêso.
O brazileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para a
lista dos recenseados, olhava para os amigos, olhava para os
adversarios, e sobretudo para o conselheiro, em cuja insistencia em
principiar a votação julgou descobrir
cavillação. Na urna não tinha entrado
uma só lista. Pregoou-se o
ultimo nome dos eleitores de Pinchões. Ninguem ainda!
Passou-se a outra freguezia.
O brazileiro já não estava em si.
Os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna,
de trémulo e sobresaltado que estava.
O homem suppunha que lhe tinha sido roubada á ultima hora
uma freguezia inteira. Não estava muito longe de acreditar
que os agentes do conselheiro a haviam arrasado completamente.
A freguezia que se seguia na votação era uma das
que se conservavam fieis ao conselheiro, circumstancia que augmentava a
indisposição do Seabra.
A votação ia, porém, correndo,
interrompida apenas
[215]
por
algumas questiunculas sobre a identidade de um ou de outro eleitor e
sobre a regularidade d'esta ou d'aquella lista, graças aos
futeis pretextos de que os contendores lançavam
mão para
disputarem, voto a voto, o suffragio popular.
Ia adeantada a votação, quando correu na igreja
uma voz, que veio infundir alento no animo desfallecido do brazileiro.
-Veem ahi os de Pinchões!... Ahi estão os de
Pinchões... Ahi vem o sr. Joãozinho e toda a sua
gente!―dizia-se de toda a parte.
Esta nova passou de bôca em bôca, a ponto de
produzir um sussurro na assembléa.
Muitos sairam para ir receber ao adro os annunciados.
Chegára de facto alli o sr. Joãozinho das
Perdizes, á frente da sua
freguezia.
Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé
no systema representativo, perdôa-me o obrigar-te a assistir
a uma scena que faz subir a côr ao rosto de quem, como
nós, abençôa os
sacrificios por cujo preço nossos paes nos compraram a nobre
regalia de intervir, como povo, na governação do
Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa tutela de um
homem, revestido de direitos impiamente chamados divinos, contra os
quaes o instincto e a razão igualmente se revoltam. A scena,
porém, humilhante como é, não envolve
a minima censura á excellencia do systema; mas apenas aos
que nos quarenta annos que elle quasi tem de vida entre nós,
não souberam ou não
quizeram ainda fazer comprehender ao povo toda a grandeza da augusta
missão que lhe cabe executar.
Depois das nossas luctas civis, já muitas
creanças se fizeram homens; se a escola fôsse
entre nós o que devia ser, já haveria sobra de
eleitores com perfeita consciencia dos seus direitos civis.
O atrazo e ignorancia d'elles, contristando, sómente devem
impellir os homens de intenções sinceras
[216]
e puras a applicar os
esforços de intelligencia e de acção
para ministrar com a
educação a moralidade, e para acordar a
consciencia d'esta entidade social.
Era o sr. Joãozinho das Perdizes á frente da sua
freguezia, disse eu.
E é justamente este o espectaculo humilhante de que falava.
Tendes visto um guardador de cabras á frente do seu rebanho,
conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças
d'aquelle regimento quadrupede? Pois vistes o mais perfeito simile da
scena que se presenciava agora no adro da igreja matriz.
O povo, o povo soberano, que n'aquelle dia tinha nas mãos o
sceptro da sua soberania, não era
menos docil do que os irracionaes que recordamos.
O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava;
quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era
quando mais vergava a cabeça sob o pêso que estes
lhe
assentavam.
Não é similhante esta fôrça
inconsciente do povo á do boi robusto e válido,
que uma
creança dirige e subjuga? Forte como elle, como elle docil,
como elle laborioso, como elle util, não vê que a
mesma
fôrça que emprega no trabalho lhe poderia servir
para repellir o jugo. Ou quando o vê, é quando o
desespero e a furia o cegam e o impellem a revoltas tremendas.
Mas o povo de Pinchões, o povo do sr. Joãozinho,
estava muito longe d'esses excessos.
O morgado vinha, como já disse, á frente.
A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do
pescoço sôlto, sem
botões o collarinho da camisa, com as mãos
mettidas no cós das ceroulas,
o chicote no bolso da jaqueta de pelles, as botas enlameadas
até o joelho, a ponta do cigarro ao canto da bôca,
o palito atraz da orelha, o chapéo sobre o occiput, dois
galgos adeante de si, e o inseparavel
[217]
Cosme quasi
à
latere. Entrou no adro com ares triumphantes, sorrindo e
piscando os olhos para os seus amigos e partidarios, como para lhes
fazer notar a numerosa procissão que o seguia e a docilidade
dos membros d'ella.
Atraz vinham os eleitores de Pinchões, velhos e
moços, ricos e pobres, mas todos com o olhar timido e
estupido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no
caudilho, para saber o que deviam fazer. Se elle parava a cumprimentar
um amigo, paravam todos com elle; a direcção que
tomava, tomavam-n'a todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo,
segundo a velocidade que elle dava aos seus; se ria, sorriam; se
praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou á
porta da
igreja.
O morgado passou revista á sua tropa, á qual deu
instrucções.
Os homens, com os cabellos para deante dos olhos, os braços
estendidos e a cabeça baixa,
não ousavam fazer um movimento, e conservaram-se
enfileirados até nova ordem do sr. Joãozinho.
Pareciam envergonhados de serem precisos a alguem.
No bolso de cada um d'estes homens havia um oitavo de papel
almaço dobrado, no qual estava escripto um nome; o nome de
um homem que elles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido,
cada um d'elles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral,
responderia: «presente»;
approximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquelle
papel, e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um
pêso que o opprimia.
Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance d'aquelle acto
que acabavam de executar, não saberiam dizel-o; se lhes
perguntassem o nome do eleito para advogado dos seus interesses e
defensor das suas liberdades, a mesma ignorancia; se lhes propuzessem a
resignação do direito de
votar, acceitariam com jubilo; se, finalmente, lhes dissessem
[218]
que n'aquelle dia estavam nas suas
mãos e dos seus pares os destinos do paiz, abririam os olhos
de espantados, ou sorririam com a desconfiança propria dos
ignorantes.
Innocente povo!
Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómmodo
degrau.
Quando disseram ao sr. Joãozinho que já tinha
passado a sua vez de votar, o homem rompeu pela igreja dentro,
berrando, bracejando, ameaçando céos e terra, sem
attender a quantos lhe clamavam que tinha de se proceder a nova
chamada, e que portanto socegasse.
O Cosme seguia-o, prompto a ser executor de suas justiças.
Custou a serenar o morgado, e não o fez senão
depois de duas pragas contra as pessoas dos senhores da mesa, pragas
que razões politicas fizeram engulir ao brazileiro, sem nem
sequer lhe tirarem dos labios o sorriso com que saudára a
vinda do morgado.
Caindo em si, o sr. Joãozinho deu ordem á sua
gente para que entrasse para a igreja, e ahi a enfileirou a um dos
lados d'ella, promptos á primeira voz.
A chamada proseguia, e a votação não
ia já muito favoravel ao conselheiro, a julgar pelos
indicios, que não escapam aos olhos amestrados dos mirones.
O brazileiro exultava comsigo mesmo,
principalmente
quando, por sobre as cabeças dos que se agrupavam em volta
da urna, divisava as phalanges do morgado, compactas e decididas.
O conselheiro ainda tentou uma investida com o sr.
Joãozinho, indo cumprimental-o affavelmente; este,
porém, grunhiu-lhe um monosyllabo sêcco, e
voltou-lhe as costas, envolvido n'uma nuvem de parciaes do brazileiro.
Era caso desesperado.
Passára já a votar a ultima freguezia, que era
[219]
justamente aquella onde estava
constituida a unica assembléa de que se compunha o circulo
eleitoral, e onde o leitor tem passado commigo todo o tempo que dura a
nossa narração.
Foi então que votou o conselheiro e os outros conhecidos
nossos, entre os quaes o Zé P'reira.
Com este deu-se um episodio comico, que merece
menção.
O brazileiro ao receber a lista que elle lhe offerecia, sabendo-o
parcial do conselheiro, recusou-a, allegando que estava marcada, o que
era contra a expressa determinação do artigo
61.º, §
unico, da lei eleitoral.
Sabidas as contas, a supposta marca era de natureza de que seria quasi
impossivel isentar papel ou objecto qualquer saido das mãos
do Zé P'reira.
Era uma nódoa de vinho.
Discutiu-se, ainda assim, se a nódoa era marca ou
não era marca, e se lhe deviam ser applicadas as
disposições do § unico do artigo
61.º.
A discussão intrincada foi cortada por o Zé
P'reira, que disse com a maior candura:
―Se essa está suja, sr. Tapadas, eu tenho aqui mais
d'aquellas que vocemecê me deu.
O proprio conselheiro desatou a rir.
O brazileiro resmungou:
―Então ha suborno aos eleitores? Como se entende isso?
-Ora, não bula na chaga, senão temos muito que
ouvir―disse o Tapadas, e accrescentou:―ande para deante; deite a sua
lista, sr. Zé.
Os governamentaes, que iam de cima, mostraram-se tolerantes, e a lista
caiu na urna.
Estava a findar a primeira chamada.
Já se liam os ultimos nomes, segundo a ordem alphabetica.
A gente de Pinchões, á voz do sr.
Joãozinho, apromptava-se para breve entrar em
acção na segunda chamada, que ia principiar.
[220]
Faltavam uns doze nomes, quando muito, e dos ultimos era o do
herbanario, cuja inicial era um V.
Até alli a victoria podia ainda talvez questionar-se, porque
a actividade do Tapadas tinha expremido as freguezias, que lhe eram
affectas, até deitarem o ultimo eleitor; velhos, doentes,
mancos e paralyticos fôram transportados em cadeiras e em
padiolas até a urna para votarem. Mas a freguezia de
Pinchões ia abafar a eleição
inevitavelmente.
O conselheiro perdeu as esperanças, e o proprio Tapadas
sentiu-se desfallecer. O brazileiro estava vermelho e febril de
contentamento.
O escrutinador chamou finalmente pelo herbanario.
―Vicente Rodrigues da Fragosa―disse elle, preparando-se já
para voltar o caderno.
―Adeante. Esse vae votar a uma assembléa mais
longe―disseram alguns.
E ia-se proceder a segunda chamada, quando se ouviu do fundo da igreja
uma voz trémula, mas sonora ainda, responder:
―Presente.
Voltaram-se todos ao escutar aquella palavra.
Adeantava-se lentamente, pallido, curvado, acabrunhado como nunca, o
velho herbanario, a quem o braço de Augusto servia de apoio.
Dir-se-ia um cadaver resuscitado do tumulo.
Com as faces pallidas, o olhar amortecido, os passos incertos, o
herbanario adeantava-se e trazia já de longe o
braço estendido, segurando a lista que vinha
lançar na urna.
Apoderou-se de todos os circumstantes um sentimento quasi de pavor,
perante aquella figura anciã e alquebrada, que se dissera
erguida do tumulo para responder á voz que a
evocára. Todos se lhe afastavam do caminho com respeito,
senão com supersticioso terror.
Fez-se alli dentro o maior silencio, silencio só
interrompido pelo som dos passos arrastados do Vicente sobre o
lagêdo da igreja.
[221]
O conselheiro não pôde mais desviar os olhos do
vulto venerando do herbanario; n'aquelle velho, que fôra seu
companheiro de infancia, parecia-lhe estar vendo agora um severo
accusador da sua insensibilidade politica, a
personificação de um remorso pungente, a primeira
apparição de um espectro,
que devia perseguil-o no futuro.
Todos os da mesa se levantaram instinctivamente, e, immoveis, viam
approximar-se o velho eleitor, que já suppunham á
borda da sepultura.
Aquella assembléa, erguendo-se silenciosa e reverente,
á chegada de um pobre velho, trémulo e enfermo,
que seguia apoiado ao braço de um pallido mancebo, tinha uma
apparencia profundamente solemne.
O morgado das Perdizes, devéras affeiçoado ao
herbanario, não teve mão em si, ao
vêl-o assim doente e enfraquecido, que lhe não
viesse ao encontro, dizendo commovido:
―Ó tio Vicente! pois n'esse estado?!...
O velho fez um gesto energico para afastal-o de si.
―Arreda-te!―disse com severidade―deixa-me, serpente, que mordes a
mão do teu bemfeitor! Não me
appareças, que não quero ter-te
na ideia, quando estiver a expirar!
O morgado ficou transido de espanto e de
consternação ao ouvir estas palavras.
―Ó tio Vicente!...―exclamou, ajuntando as
mãos―pois eu que lhe fiz?
―Cala-te. Deixa-me passar, quero, como homem d'esta terra, protestar
contra a iniquidade que tu e os teus praticam hoje, apedrejando aquelle
a quem deveis tudo. Vendei-vos como cães, e ficae-vos com
esse remorso: eu não o quero para mim.
E, caminhando para a urna, parou defronte d'el-la, fitou o brazileiro,
que não pôde sustentar-lhe o olhar com firmeza, e
disse-lhe:
―Ahi tem o voto do herbanario, sr. presidente.
[222]
O brazileiro recebeu-lhe a lista, e introduzia-a na urna.
Então o herbanario, cada vez mais anciado, correu os olhos
pela assembléa a procurar alguem. Viu o conselheiro que
não ousava approximar-se, olhou-o algum tempo com uma
expressão singular e no fim estendeu-lhe a mão. O
conselheiro apertou-a nas suas, commovido.
―Manoel,―disse-lhe o velho em voz sumida―não me cegava
tanto o resentimento, que te negasse esta justiça. Eu era
ainda teu amigo.
―E sel-o-has sempre, Vicente.
―Sempre que o seja... por pouco tempo será―respondeu o
velho, sorrindo tristemente.
―Que dizes?... Mas... que tens tu, Vicente? Que sentes?
―Tio Vicente!... exclamaram tambem Augusto, o morgado das Perdizes, e
outros mais.
A physionomia do herbanario transtornára-se
assustadoramente; parecia luctar energicamente para falar ainda, mas a
voz embargava-se-lhe na garganta.
―Já não posso...―murmurou
elle.―Queria dizer-te...
E apontando para Augusto, e olhando para o conselheiro, disse-lhe
ainda:
―Era... d'este... Elle é... elle está...
Os braços de Augusto, do conselheiro e do morgado das
Perdizes, ampararam-lhe o corpo que ia a cair por terra.
Foi nos braços dos tres que expirou o herbanario, porque
estava devéras morto, quando o fôram a erguer.
O alvoroço foi geral na igreja. Todos a abandonaram,
correndo para o adro, para onde foi levado o velho, a vêr se
era possivel reanimal-o. Todos, á
excepção do brazileiro, que ficou a vigiar a
urna, e de um agente do Tapadas, que ficou a vigiar o brazileiro.
[223]
Os soccorros prestados ao herbanario fôram inuteis.
Todos se convenceram depressa de que era de facto um cadaver.
Os indifferentes voltaram a continuar a eleição.
Ia principiar a segunda chamada.
O morgado das Perdizes, impressionado devéras por a scena,
andava desconsolado por o adro, e só de má
vontade entrou na igreja.
O conselheiro, Augusto e Henrique, e mais alguns homens do povo,
acharam-se sós junto do cadaver.
A commoção tirava a Augusto a frieza de animo
para dar as ordens precisas. Henrique tomou isso a seu cuidado. Houve
assim um momento em que o conselheiro esteve só com Augusto.
N'aquelle instante o coração do homem politico
era superior ao resentimento.
―Augusto―disse elle a meia voz―a morte
não deixou este infeliz completar a ultima
recommendação, que parecia querer fazer-me. Eu
adivinhei-lhe porém o sentido, e para prova
offereço-lhe a mão de amigo.
E, dizendo isto, estendia-lhe a mão.
Augusto não lhe correspondeu, e disse-lhe, ainda com a voz
commovida:
―A mão que v. ex.
a me estende
é a
mão do homem que esquece e perdôa as injurias, e
eu não posso ser perdoado, porque me não julgo
criminoso. Desde que uma vez v. ex.
a formulou a
accusação e se fez juiz, prefiro, a ter de ser
julgado sem provas, uma condemnação a uma
absolvição. Fico mais em paz com o meu orgulho.
A presença de alguns curiosos obrigou a interromper este
curto dialogo.
Henrique voltou com os aprestes para a conducção
do cadaver.
Augusto acompanhou a casa o herbanario.
O conselheiro, impressionado pelas ultimas scenas, sentia-se pouco
disposto a permanecer alli.
[224]
―Fique se quizer―disse elle para Henrique.―Não estou em
estado de receber á queima-roupa a noticia da minha derrota;
haviam de attribuir a mortificação que estou
sentindo a essa causa, e
eu não lhes quero dar esse gôsto. Vou para casa;
lá me levará a noticia, e não me
dará
grande novidade. Adeus.
E, apertando a mão de Henrique, retirou-se para o Mosteiro.
Causou grande pesar alli a nova da morte do herbanario, e das varias
circumstancias que a acompanharam.
Não houve quem fôsse indifferente ao successo, que
o conselheiro narrou ainda sob a oppressiva influencia que elle lhe
deixára.
A morgadinha absteve-se da menor allusão á causa
que apressára o fim da vida do herbanario, e evitou sempre
que D. Victoria ou Christina alludissem a ella tambem. Presentia que a
consciencia do pae lh'o estava exprobrando e por um delicado instincto
abstinha-se de se applaudir das suas previsões, infelizmente
realisadas.
Passada a primeira commoção, que a
lembrança d'aquella scena produzira, o conselheiro
principiou de novo a sentir pungente e vivo o despeito pela derrota que
se lhe preparava na urna.
Fazia o possivel por se mostrar indifferente a isso; mas a
affectação era demasiado
transparente, para até nem D. Victoria se illudir.
Assim, por exemplo, dizia elle á filha:
―Ora vão realisar-se os teus votos, Lena; aqui me vaes ter
a viver uma vida patriarchal. Se queres que te diga a verdade,
está-me a appetecer; a vida politica ia-me
cançando já.
Mas como dizia elle isto! Com que sorriso contrafeito, com que mal
simulada satisfação!
Pouco a pouco, porém, a impaciencia começou a
apossar-se d'elle e nem estas exterioridades lhe permittia
já.
[225]
Áquella hora devia estar a proceder-se na
assembléa ao apuramento de votos.
Esta ideia lançava o conselheiro em um d'aquelles estados
febris, que só pode conceber quem já alguma vez
soube o que é ter a sorte dependente de uma
votação, e aguardar a cada momento a
noticia do resultado d'ella.
Devora-nos uma impaciencia insupportavel; tudo o que ouvimos nos
afflige; as conversas sobre assumptos indifferentes, irritam-nos; se
nos tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra
ellas; se procuram preparar-nos para um desengano, prevenindo-o,
repellimos com energia a ideia d'elle. O silencio não nos
é mais agradavel; as
apprehensões ganham corpo no meio d'elle; falam os
presentimentos do mal. Tentamos sorrir, gela-se-nos o sorriso nos
labios. A quietação é-nos
tão intoleravel como o movimento. Anciamos sair da
incerteza, e de cada individuo que chega, trememos de saber a nova
fatal. Vae mais longe o effeito moral d'este estado do espirito;
chegamos quasi a querer mal a todos quantos estão assistindo
n'aquelle momento á decisão lenta da sorte. O
nosso egoismo,
exacerbado em taes momentos, irrita-se com a ideia de que os nossos
amigos tenham coração para assistir
áquillo; e comtudo não lhes perdoariamos se se
retirassem. Sensações d'aquellas exgotam mais
vitalidade, em cada instante, do que annos de vida isenta d'ellas.
O conselheiro luctava comsigo mesmo para dominar-se; procurava
preparar-se para receber o golpe, que bem podia dizer infallivel. Que
esperava elle! Não lhe era quasi possivel contar, um por um,
os votos de que dispunha? Não ficava, por mais alto que
elevasse o cálculo, uma grande maioria a esmagal-o? Tudo
isto era assim, mas o convencimento prévio recusava
estabelecer-se-lhe no espirito, para lhe dar a tranquillidade da
certeza.
É um vivedouro sentimento o da esperança!
Não
[226]
succumbe
senão perante um desengano inevitavel. Por que lhe chamam
verde, senão talvez por, como as plantas exuberantes de
seiva, resistir ás
mutilações e renovar os ramos cortados?
O conselheiro, dominado por todos estes tumultuosos pensamentos,
passeiava agitado na sala, olhando ás vezes para a janella,
á espera de
vêr assomar ao portão do pateo um dos seus
partidarios, cabisbaixo e melancolico, e armando-se de coragem para lhe
dar o desengano.
Apesar de todas as prevenções, o que é
certo é que a nova, quando viesse, feril-o-ia como
imprevista.
Sempre assim succede.
No meio de um d'estes passeios agitados que dava em todas as
direcções por o meio da sala,
ouviu-se a detonação de algumas duzias de
foguetes.
O conselheiro parou e fez-se excessivamente pallido.
Os corações de Magdalena, de Christina, de D.
Victoria e de Angelo bateram precipitados.
A causa estava, emfim, decidida.
A girandola apregoava uma victoria, mas não proclamava o
nome do vencedor; porém, que dúvida podia haver a
respeito d'elle?
O conselheiro sentiu fraquearem-lhe as pernas; sentou-se, e, com um
sorriso amargo, disse para a familia:
―Estou desautorado pelos meus antigos mandatarios!
―Quem sabe, mano? Ás vezes...
Isto principiava a dizer D. Victoria, para dizer alguma coisa, quando
Angelo que ficava mais proximo da janella, exclamou:
―Ahi vem um homem a correr a toda a pressa!
―A correr?!―disse o conselheiro, em quem esta simples noticia
infundira novo alento a todas as esperanças, e
dissipára a sombra das pesadas
apprehensões; e caminhou pressuroso para a janella.
[227]
As senhoras seguiram-n'o alli.
O homem que Angelo vira de longe, divisava-se ainda por entre os
silvados de um atalho, que vinha dar á avenida da entrada do
Mosteiro.
―Parece o Domingos, o criado do Tapadas...―disse o conselheiro,
affirmando-se.
―Mas que pressa elle traz!―notou D. Victoria.
―Já nos viu―disse Angelo.
―Lá acenou com o chapéo―exclamaram todos.
―Que quer elle dizer com aquelles signaes?―tornou o conselheiro,
nervoso.
―Querem vêr que é o que eu digo! Olhe que venceu,
mano.
―Qual! É impossivel. Pois eu não sei como a
votação correu? É boa!―disse o
conselheiro com certo tom irritado, como de quem não quer
que lhe descubram uma esperança.
Passou-se um pouco de tempo, em que o homem se perdeu de vista. Subia
n'aquelle momento a ladeira dos sovereiros.
Os olhos fitavam-se todos no portão do pateo á
espera de o vêr surgir alli. Mal se respirava.
―Eil-o―disseram instinctivamente todas as vozes, quando elle
appareceu.
―Viva! sr. conselheiro, viva!―bradou elle de lá, apesar de
esfalfado.
O conselheiro teve quasi uma vertigem.
―Elle que diz?... Como pode...
Não o deixaram continuar as senhoras, que já o
beijavam e abraçavam com frenetico enthusiasmo.
Magdalena, a propria Magdalena, cujos mais ardentes votos eram
vêr o pae desistir da vida politica, deixava-se tomar pela
febre do triumpho e celebrava-o como se n'elle fundasse a sua
felicidade. É que, na occasião da lucta,
não ha
animo tão indifferente a estimulos, que não
abrace um partido; ao principio frouxamente talvez, mas a incerteza
augmenta o ardor com que se esposa a causa; os
[228]
gêlos da indifferença
fundem-se nos momentos
decisivos, e a anciedade que precede a victoria augmenta a
commoção que esta produz, se se realisa.
O conselheiro queria acalmar aquellas effusões, mas em
vão bradava:
―Esperem! esperem! Deixem ouvir! Isto não pode ser... Ha
engano...
Mas o animo feminino não entra facilmente na ordem, se chega
alguma vez a sair d'ella.
Só a entrada do mensageiro na sala, é que serenou
o tumulto.
O conselheiro interrogou o.
―Então que dizes tu? Que vivas são esses?
―Digo que vencemos―respondeu o moço, usando ingenuamente o
verbo na primeira pessoa do plural.
―Estás a sonhar?
-O sr. Tapadas, o meu amo, foi quem me mandou aqui a toda a pressa para
lh'o dizer. Quando eu saí da igreja tinha
vmc.
ê... tinha v. s.
a
mais cento e cinco votos do que o outro, e só havia na caixa
uns trinta por junto. No caminho ouvi a girandola...
―Mas é impossivel! Cem votos!... ahi ha engano.
Não pode ser!
―Cento e cinco!
―Estás bem certo no que te disse teu amo?
―Ora se estou. E lá vi a cara do brazileiro. Mettia
mêdo.
O conselheiro perdia-se em conjecturas. Agora parecia-lhe irrealisavel
aquillo que lhe annunciavam.
Não pôde mais tempo conter-se. Sobresaltado,
ancioso, preparou-se para ir por seus proprios olhos averiguar do
facto.
Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente
a bandeira nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e
atordoava os ares com vivas, hymnos e foguetes. Mas antes que o
fizesse, uma onda popular, trazendo á frente
a bandeira nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e
atordoava os ares com vivas, hymnos e foguetes. Á frente da
musica estava
[229]
radiante mestre
Pertunhas, embocando a trompa com mais arreganho que nunca!
O conselheiro chegou á janella, e então
é que as acclamações fôram
estrondosas.
A desafinação da banda chegou a roçar
pelo sublime.
O conselheiro agradeceu ao povo aquella
manifestação.
Passados momentos entravam na sala Henrique, o Tapadas, e outros chefes
eleitoraes, e com elles o Pertunhas, sobraçando a trompa.
―Que quer dizer isto?―perguntou o conselheiro,
abraçando-os.
―Cento e trinta e cinco votos a maior, sr. conselheiro, nem mais nem
menos―respondeu o Tapadas, rindo ás gargalhadas.
―Cento e trinta e cinco―repetiu o Pertunhas.
―Mas d'onde vieram!
―Ora essa é boa! De Pinchões.
―De Pinchões―repetiu o Pertunhas.
―Como?... Pois o morgado?...
―Votou comnosco como um homem. Ora pudéra!
―É verdade... votou... comnosco―dizia mestre Pertunhas.
―Mas não se viu ainda ha pouco...
―Que estavam com metralha inimiga?―concluiu o Tapadas.―Que tem
lá isso? Mas vão
lá á igreja e verão as buxas que
estão pelo
chão. É um destrôço! Parece
a loja de um farrapeiro.
―Mas explica-me isso, Tapadas.
―Então não ouviu a rabecada que aquelle santo do
herbanario, que inda que não fôsse
senão por isso deve estar assentadinho no Céo,
deu ao morgado? Pois aquillo lá resentiu o homem. E quando,
depois do Vicente expirar, elle voltou para a igreja, vinha a dizer:
«Diabos me levem, que se tivesse aqui listas á
mão, havia de ensinar os tratantes
que me metteram n'esta dança». Vieram-me dizer
isto,
[230]
e eu que, para o que
désse e viesse, sempre levava um sortimento de listas,
cheguei-me por a calada ao morgado... Hein?... e metti-lh'as assim
á cara. Hein!... Ora! Foi um momento! Emquanto a mesa se
senta e abre cadernos, sim, senhores, e se põe tudo em
ordem, estava armada a freguezia de Pinchões á
nossa moda. Agora se se queria rir,
era vêr o brazileiro! Como elle encafuava para a urna as
listas que eu tinha trazido no bolso, e com que fogo! E eu a
vêl-o enterrar até ás
orelhas e a fazer-me carrancudo! No fim então é
que fôram
ellas, quando principiaram a apparecer as nossas listas ás
cargas cerradas. O homem enfiou! cuidei que lhe dava alguma coisa no
fim. Berrou, protestou... fez coisas do arco da velha. Agora chia
contra o morgado, e se o encontra é capaz de o comer... Para
coroar a festa, á girandola, que aqui o mestre Pertunhas
tinha preparada para elles, pegamos-lhe nós o fogo e,
estourou que foi um gôsto!
E o Tapadas terminou com outra gargalhada.
O Pertunhas quiz protestar contra a accusação,
mas o Tapadas voltou-lhe as costas, dizendo:
―Ora adeus, meu amigo! O melhor é calar-se.
E elle seguiu o alvitre, limitando-se a dizer a meia voz para os que
estavam proximos:
―Este Tapadas tem cada graça!
Assim pois a victoria do conselheiro era devida ao herbanario.
Tinham-lhe falhado todos os seus cálculos politicos,
transigira com exigencias, nem sempre justas, o que de nada lhe
servira, e salvára-o o elemento que desprezava. Acontece
ás vezes d'isto aos homens que muito calculam.
As senhoras, que estavam sabendo de Henrique o succedido, renovaram as
suas demonstrações de alegria.
O conselheiro, porém, ficou preoccupado no meio das festas
de familia e das festas populares que se faziam no pateo.
[231]
XXXI
A morte do herbanario deu muito que falar na aldeia, não
só pela qualidade de homem que era aquelle, como pelas
circumstancias, no meio das quaes o facto succedêra.
O resultado da eleição, comquanto momentoso,
não distraía do assumpto as
attenções; pois que, tendo sido successos
simultaneos, associavam-se naturalmente nas conversas e
discussões, e um chamava o outro.
O herbanario não fôra colhido desprevenidamente
pela morte; havia muito tempo que fizera as suas
disposições e por ellas legára a
Augusto tudo quanto possuia, isto é, alguns livros, entre os
quaes a
Polyanthea, e o preço, quasi intacto,
que recebêra pela casa expropriada.
Logo que estas disposições fôram
sabidas, não faltou quem achasse n'ellas a
explicação da
amizade desvelada com que Augusto sempre tratára o velho, e
do piedoso acatamento com que o recebêra em casa, assim que
da sua o expelliram.
Nós que, por um direito legitimo e inauferivel, podemos
julgar a fundo do caracter de Augusto, asseguramos que eram inexactos
taes juizos.
É uma triste verdade esta da pouca ou nenhuma fé
que se tem no desinteresse dos outros!
Não ha explicação mais difficil de ser
recebida do que a que se fundamenta n'um sentimento nobre de
abnegação ou de generosidade.
É preciso que duvidemos muito de nós mesmos, para
assim desconfiarmos do proximo. Porque a final o que é
verdade é que a mais exacta e
infallivel sciencia do coração humano
só se
adquire pelo estudo do proprio coração: esse
é o unico que nos
[232]
está
bem patente. É por isso que as melhores
almas são de ordinario as mais crentes.
Um homem, a quem a desconfiança tenazmente escuda contra
todas as apparencias de virtude, ainda as mais insinuantes, tem
já tão inquinado o
coração como suppõe o dos outros.
O enterro do herbanario verificou-se no dia seguinte ao da morte e foi
muito concorrido.
Fez-se no cemiterio, e, por expressa determinação
do fallecido, em campa rasa, e não no tumulo da familia do
Mosteiro, como o conselheiro desejára.
Tudo se passou sem o menor signal de opposição.
Não se explicam bem estas versatilidades da
opinião publica. Uma medida que hoje ateia uma
revolução,
ámanhã executa-se no meio do indifferentismo
geral, e sem apostolado prévio, sem providencias
repressivas, nem castigos. Mysterios das massas, que mais convem ao
legislador estudar, do que tentar destruil-os; offerecem a resistencia
das leis naturaes.
O conselheiro e toda a familia tomaram lucto como parentes do
herbanario, e receberam as visitas de pêsames, que em parte
eram tambem de parabens pelo exito do suffragio popular.
Ao fim da tarde em que se realisou a cerimonia funebre, quando soavam
na igreja matriz as badaladas das Avé-Marias, Augusto entrou
no cemiterio, já deserto, e approximou-se lentamente da
sepultura, inda coberta de pouco, como o denunciava a terra revolvida.
Elle, cujo coração era decerto o que a morte do
herbanario mais dolorosamente ferira, não recebêra
pêsames de ninguem. Passára a tarde só
com o seu pensamento, o qual, como o leitor prevê, lhe
não devia ser muito jovial companheiro.
Quem observasse Augusto n'aquelle momento, seria decerto impressionado
pelo ar abatido, revelador de uma profunda
prostração de animo, que lhe quebrára
as fôrças.
[233]
Que era feito d'aquella energia, com que se revoltára contra
as perseguições da sorte, e que lhe
animára os primeiros passos para obter a
justificação devida ao bom credito do nome que
lhe haviam legado sem mancha? Vimol-o sair do Mosteiro resolvido a
luctar, vimol-o repellir nobremente as ironias de Henrique, vencel-o,
obrigal-o a pedir-lhe perdão; vimol-o recusar o auxilio que
este já lhe
offerecia, e considerar-se moralmente obrigado a conquistar elle
proprio as provas da sua innocencia.
Que é feito d'essa energia?
O que é feito d'ella? leitor, talvez o teu
coração te possa responder por mim, se
és uma d'essas victimas, para quem a sorte parece
personificada em um espirito malfazejo, que se compraz nos martyrios
lentos.
Quando, uns após outros, se repetem os golpes da
adversidade, quando todos os males parece cairem sobre uma existencia,
como uma maldição de Deus, é raro
encontrar-se têmpera de alma
tão rija que resista e não ceda, quasi
convencida, como o Jacob dos livros sagrados, de que lucta com um poder
superior.
A razão mais clara deixa-se tomar então da
cegueira do fatalismo, e eivado d'esta grave doença
dissipa-se a fortaleza do espirito, como se extinguem as
fôrças do corpo, quando gira no sangue um
veneno enervador.
Então encontra-se quasi um d'estes prazeres paradoxaes, a
que é tão sujeita a natureza humana; sente-se uma
especie de gôso em succumbir sem lucta. Experimenta-se, por
assim dizer, o orgulho da extrema infelicidade.
Em poucos dias Augusto conheceu as maiores
provações da vida: a miseria em perspectiva, a
ingratidão, o insulto que avilta, a calumnia que
ennodôa, e o infortunio de um verdadeiro amigo. Repellira com
dignidade o insulto e a calumnia: sorrira
[234]
á miseria e á
ingratidão, e dera
á amizade as consolações que a amizade
lhe inspirára.
Mas não desfallecêra com tudo isto.
Maior provação lhe estava reservada, porque ha
maiores provações para a alma humana, do que
todas estas adversidades juntas. Apagae-lhe de subito a estrella que a
guiava; acordae-a do sonho em que se esquecia, dormindo no meio de uma
desencantada realidade; privae-a da ideia querida, que havia muito
concebêra, que comsigo vivia, que para si guardava, ciosa dos
olhares extranhos, e vêl-a-heis desnorteada, perdida, louca,
contorcer-se em desespero e succumbir.
Se resiste e sobrevive, se não desfallece, nem vacilla,
é porque é de essencia mais elevada do que a
humana.
Ás vezes aquella ideia era tão irrealisavel,
aquelle sonho tão chimerico, que a pobre devia estar
prevenida para o perder um dia, e julgou que o estava.
Mas illudira-se. Se nos dermos de coração a uma
chimera, se ella, nas fórmas vagas e aereas que reveste, nos
sorrir e namorar, em vão julgamos têl-a por o que
verdadeiramente é; ha sempre um ou outro momento em que a
acreditamos realisavel e até realisada.
E, ao convencermo-nos devéras da sua impossibilidade,
sentimos a dor profunda que nos causa a perda de um objecto querido.
Como certos deuses do paganismo, que nos seus amores com os mortaes
vestiam a fórma humana, assim o impossivel, quando nos
apaixonamos d'elle, apparece, para nos seduzir, sob a
feição da
realidade aos nossos olhos namorados.
E ao revelar-se como impossivel, destróe o
coração que o abraça, como Jupiter
sacrificou a imprudente Semele, ao apparecer-lhe em toda a sua gloria
de deus.
Qual fôsse a ideia constante, o pensamento recatado de
Augusto, sabem-n'o os leitores: era o amor
[235]
de Magdalena. A natureza d'esta
paixão dizia elle conhecel-a. Não tinha outra
aspiração
além de existir, era como o culto pela Virgem do
Christianismo, era que se adora por adorar, em que na mesma
adoração se acha o premio do culto, em que o
deixar-se adorar é o mais que pode pedir-se ao objecto
d'elle.
De tudo isto estava sinceramente convencido Augusto.
Mas por que foi que, desde os primeiros momentos em que viu Henrique,
sentiu quasi aversão para elle? por que foi que, amavel e
bondoso para com todos, só para com um desconhecido se
mostrou frio e irritante? por que foi emfim que, ao persuadir-se, por
certos indicios, de que Magdalena e Henrique se amavam, caiu no
desalento, em que tantas causas de infortunio o não tinham
lançado ainda? Porque a verdade era que foi este o golpe que
o venceu.
Por quê? porque amava Magdalena, porque este amor
não tinha nada excepcional; era inconscientemente
apprehensivo, ambicioso, devaneador e ciumento, como todos os amores
verdadeiros; porque era aquelle o seu sonho mais querido, e desde que
era obrigado a convencer-se de que não passára de
um sonho, não se sentia de animo para fitar a realidade;
porque era aquella a luz da sua alma, e ao vêl-a apagar,
vacillou nas trevas e parou. Desde que não avistava um alvo,
não havia para elle
retrogradar nem progredir; era um movimento sem fim, que não
valia mais do que a
quietação.
Esta fôra a causa do desalento de Augusto, que só
então conheceu que se illudira com o estado do
seu coração, que o que em si se passava era o
verdadeiro amor.
Desde que teve de renunciar a elle, não fez mais um
esforço para justificar-se da calumnia que pesava sobre si.
Sentia-se indifferente á
condemnação do mundo. Já nem lhe
importava justificar-se para
[236]
com Magdalena; era quasi uma vingança, que tirava d'aquella
por quem soffria, obrigal-a a ser injusta.
E a sua consciencia quasi achava voluptuosidade n'isto!
O herbanario fôra victima da mesma illusão de
Augusto, e concorrêra involuntariamente para o levar a este
estado moral.
Das explicações dadas por Magdalena na casa dos
Cannaviaes, sabemos como das meias palavras e meias
revelações de Torquato, o herbanario
acreditára que a morgadinha combinára
imprudentemente com Henrique uma visita nocturna á quinta
dos Cannaviaes. O velho, que suspeitára sempre da natureza
dos sentimentos de Henrique para com Magdalena, julgou vêr
n'aquillo a
confirmação das suas suspeitas, e encontrando
Magdalena, reprehendeu-a, e, de irritado que estava, nem escutal-a
quiz.
Voltando a casa, o velho lidou por muito tempo com a dúvida,
se deveria ou não revelar tudo a Augusto.
A noite cerrou de todo e deslizou com a lentidão de uma
noite de inverno, sem que elle tivesse resolvido o que faria. O dia
seguinte passou-o na mesma indecisão. Mas a
inquietação do
herbanario crescia; desassocegava-o a ideia do perigo a que suppunha
exposta Magdalena, cuja confiança em Henrique a podia
perder.
O herbanario continuava a desconfiar de Henrique.
Chegára a noite, aquella em que Torquato lhe dissera ter com
uma das meninas de visitar á meia noite, por causa de
Henrique, a casa dos Cannaviaes. O velho não pôde
mais tempo conter-se e disse a Augusto, depois de muito luctar comsigo:
―Não devo calar-me. É preciso coragem, meu
filho. Arranca do coração a loucura que
lá tens ainda, embora o deixes em sangue, ou
estás perdido.
[237]
Augusto estremeceu, olhando-o com sobresalto.
O velho proseguiu:
―Tu vaes sair para te desenganares por teus proprios olhos, e se o que
vires te não curar, se
é sem remedio esse mal, ao menos sê generoso, e
acode e salva, se fôr possivel, quem, perdendo-te, se perde
tambem.
E após estas palavras vagas, cujo mais claro sentido Augusto
tremeu de investigar, o velho mandou-o aos Cannaviaes, n'aquella mesma
noite, recommendando-lhe que fôsse preparado para receber uma
grande dor.
Augusto seguiu as indicações do herbanario, e
foi.
Era d'elle o vulto que fizera estremecer Magdalena, quando na noite da
piedosa devoção de Christina, a vimos chegar
á janella dos Cannaviaes.
A morgadinha reconhecêra Augusto através das
sombras nocturnas, e tivera um presentimento do que significava a
presença d'elle n'aquelle logar e n'aquella
occasião.
Por concentrada e discreta que fôsse a paixão de
Augusto, não era um mysterio para Magdalena.
A extranhar alguem esta penetração de vista
não será decerto nenhuma das minhas leitoras.
Magdalena adivinhára havia muito Augusto, e não
lhe fôra difficil explicar até a instinctiva
hostilidade com que elle sempre acolhêra Henrique.
Por isso, ao vêl-o alli, previu que pesava sôbre
ella uma suspeita, que era victima de uma illusão, e que as
apparencias a podiam condemnar.
De feito Augusto chegára tarde aos Cannaviaes, porque
só tarde o herbanario vencêra a
hesitação que experimentára ao
dizer-lhe que fôsse. Por isso
só pôde reconhecer a voz e a figura da morgadinha
e de Henrique no curto dialogo, que entre os dois se
trocára, quando vieram examinar á janella o
estado da noite.
As palavras que escutou prestavam-se a ser interpretadas
[238]
de uma maneira cruel para o
seu
coração. Assim as entendeu Augusto, e, sem mais
querer vêr nem ouvir, retirou-se como um louco.
Foi n'essa occasião que Magdalena o viu.
Quando voltou a casa, o herbanario que, ainda acordado, o esperava,
viu-o pallido, e com uma expressão singular no rosto.
―Então?―interrogou-o anciosamente o velho.
―Tinha razão, tio Vicente. Tem sido uma longa e
má loucura a minha. Verei se me curo d'ella.
E, sentando-se, encostou a cabeça ás
mãos e permaneceu silencioso.
O velho não lhe perguntou o que se tinha passado.
D'ahi em deante foi em rapido progresso a
prostração de animo em Augusto.
A doença do herbanario que se exacerbou consideravelmente
tambem, era o unico motivo de uma fôrça ficticia
que ainda o sustentava. Os seus
desvelos pelo enfermo tornavam-lhe todos os instantes.
A unica voz, echo da vida exterior que lhe chegava aos ouvidos, era a
do cirurgião que tratava do herbanario.
Falador por indole e por cálculo profissional, o facultativo
contava á cabeceira do leito as novidades do dia. Entre
essas trouxe uma das que mais vogavam, que era a de que Henrique casava
no Mosteiro com a morgadinha.
Um equivoco dizer do Torquato, na presença dos criados do
mosteiro, uma das meias discreções do velho, mais
perigosas do que a propria
indiscreção originára esta
versão.
Augusto escutou a nova sem que o gesto o trahisse: mas o herbanario,
que o fitou com olhos interrogadores, leu claro n'aquelle rosto
impassivel.
No dia das eleições, o estado do velho Vicente
era mais grave ainda. O cirurgião prolongou a sua visita e
falou da campanha eleitoral. Assegurou que era certa a derrota do
conselheiro, desde que contra elle se manifestára o sr.
Joãozinho das Perdizes.
[239]
O herbanario escutou-o com admiração e
sobresalto.
Porque a verdade era que o herbanario sentia pelo conselheiro uma
predilecção que a tudo
sobrevivia, que nada podia destruir. Similhava o affecto que alguns
paes sentem pelos filhos, de quem só teem recebido
desgostos, affecto que parece robustecer tanto mais, quantos mais
motivos ha para a esfriar.
Pouco depois mestre Pertunhas confirmou a noticia do facultativo.
Foi então que o herbanario, dominado por energia febril,
quiz erguer-se do leito, e, apoiado no braço de Augusto, que
em vão tentou dissuadil-o, se dirigiu á igreja
para votar. O resultado sabem-n'o os leitores.
Todas estas causas, e a ultima, a morte do amigo, acabaram por quebrar
o alento a Augusto. Facil é, pois, de conceber qual o estado
do seu espirito ao entrar no cemiterio.
Oração ou meditação, por
muito tempo durou aquelle tributo de saudade, que o aspecto sombrio da
tarde e a melancolia do logar e da hora mais solemne faziam.
Passados alguns momentos, sentiu Augusto que alguem se approximava
d'elle. Voltou-se. Era o Cancella, que tambem viera rezar junto do
tumulo da filha.
Não era o Cancella já o mesmo robusto e alegre
aldeão que vimos, dominado pelo enthusiasmo, sobre o tablado
rustico, representar com applauso o tyranno perseguidor do Messias.
Desde a morte da filha parecia outro. Triste, avelhentado, emmagrecido,
nem tinha fôrças para o trabalho, nem
coração para alegrias.
Dir-se-ia que a filha lhe partira com a alma, e que era um cadaver o
que se movia alli.
―Ah! logo vi que era o sr. Augusto―disse o pobre homem, estendendo a
mão, que Augusto apertou com affecto.―Só
nós temos amigos aqui.
[240]
―É verdade, Cancella. Ou só nós,
fóra d'aqui, não temos outros, pelos quaes
esqueçamos estes, que ahi dormem.
―Eu decerto que não! Está-me toda a alegria,
está-me todo o coração debaixo
d'aquella pedra―disse o Herodes, apontando para o tumulo da
filha.―Com mais de quarenta annos, que nova vida se pode principiar?
―Ha quem aos vinte já não tenha coragem para
principiar outra!
O Cancella olhou fixo para Augusto ao ouvir-lhe estas palavras.
―Fala de si, sr. Augusto?... Não tem razão. Que
são as suas dores ao lado da minha? Se ainda não
experimentou o amor e as alegrias de pae, como ha de imaginar a dor,
que a morte de uma filha unica nos traz ao
coração?... A minha pobre
Ermelinda!... Parece-me ainda impossivel o têl-a
perdido!... Queria a esse velho, sr. Augusto!... E com
razão, que era seu amigo e quasi um pae para si... mas
não é sem remedio a sua saudade,
verá... A minha porém...
Augusto sorriu amargamente.
―Tu sabes lá, homem, o que eu tenho no
coração?
N'isto chegou-lhes aos ouvidos um vozear distante, com um rumor de
acclamações e applausos. Eram os clamores dos
grupos populares, celebrando a victoria do conselheiro.
Os sons da trompa do mestre Pertunhas dominavam todos os mais.
―Uns riem, emquanto outros choram―disse o Cancella.―Ha alegria
acolá.
E designou com o dedo o Mosteiro, cujos telhados se avistavam d'alli.
―Ha...―respondeu Augusto, pensativo.―Somos de mais n'esta terra, meu
pobre Cancella; nós, os infelizes.
―Por isso parto ámanhã.
[241]
―Partes?
―Se eu não posso viver aqui! Se tudo isto me
está falando na filha!... A cada passo estou á
espera de vêl-a... É como se a todo o instante me
morresse. Vou para a cidade; dizem que estão engajando por
lá trabalhadores para o Brazil... Quero vêr se o
trabalho me mata, antes que o desgôsto me não
tente a morrer de outra sorte.
―E dizes que partes ámanhã?
―De madrugada. Já tenho tudo prompto.
Augusto reflectiu por algum tempo.
―Far-te-hei companhia.
O Herodes olhou-o, admirado.
―O sr. Augusto?! Pois quer?...
―Quero que me batas á porta, quando passares.
―Mas que tenções são as suas, sr.
Augusto?
―As mesmas talvez que as tuas. Não dizes,que queres
vêr se o trabalho te mata? Por que não hei de eu
tentar o mesmo tambem?
―Mas... não lhe morreu uma filha.
―E cuidas tu que só um amor de filha nos pode prender
á vida? que só a morte de uma
creança nos pode ferir no coração?...
O Herodes esteve algum tempo calado, com os olhos em Augusto; depois
disse, com hesitação ainda:
―Não é por certo a morte d'este santo velho que
o faz falar assim, sr. Augusto. Se quizesse desabafar commigo... talvez
que lhe fizesse bem. Bem vê que eu sou infeliz e... havia de
entendel-o...
Augusto apertou-lhe a mão, commovido.
―Pobre amigo! Não, não me entenderias; porque
não basta ser infeliz para me entender. É
necessario ter sido louco como eu fui.
―Louco?!...
―Sim, louco, meu bom Cancella, louco. Não te lembras
d'aquelle desgraçado do Pé do Monte, que se
suppunha rei? Como ria n'aquelle tempo! Um
[242]
dia voltou-lhe o juizo, mas ficou
tão triste até
morrer, que parece que tinha saudades da loucura! Talvez que lhe
devesse os unicos instantes de felicidade que sentiu na vida.
O Herodes já não comprehendia Augusto, o que lhe
fez crêr que o não entenderia se elle o
tomasse por confidente.
Augusto mudou de tom, dizendo-lhe:
―Promettes passar por minha casa esta madrugada?
―Pois sempre quer?...
―Se não partir comtigo, partirei só.
―N'esse caso...
―Espero-te. Aonde vaes agora?
―Ao Mosteiro.
―Ah!... vaes ao Mosteiro?...
―Vou despedir-me d'aquella santa familia, que tão bem me
tratou da filha, e de Angelo, d'aquella alma de cherubim, que ainda se
não consolou tambem da morte da minha pobre Linda.
―Angelo?... É um nobre coração...
Espera... Não quero partir sem lhe dirigir
algumas palavras... Devo-lh'as.
―Só a elle?
―Só elle m'as agradecerá.
E Augusto approximou-se do tumulo da mãe de Magdalena, e
á frouxa claridade d'aquella hora escreveu com um lapis em
um quarto de papel estas palavras:
«Angelo.―Escrevo-lhe sobre a pedra do tumulo, em que
repousam sua mãe e Ermelinda, duas imagens que
serão sempre para o seu coração
rodeadas de todo o prestigio da saudade. Ouça-me, que em
nome d'ellas lhe falo. Dentro de algumas horas deixarei para sempre
estes sitios. Se as memorias da infancia me prendiam aqui, as sombras
de grandes soffrimentos as offuscaram. Parto quasi sem custo.
Não o tornando talvez a vêr, Angelo, tinha um
dever
[243]
a cumprir para com a
sua generosidade. Hão de ensinal-o a desprezar-me, Angelo. O
seu nobre instincto de creança recusar-se-ha a isso ao
principio talvez: mas a razão do adolescente talvez venha a
ser mais docil. Não podendo justificar-me, deixe-me ao menos
jurar-lhe que parto com a consciencia tranquilla. Não
é por mim que faço
este protesto, é para lhe evitar, se fôr
possivel, a
dúvida no caracter dos homens. Para um
coração, como eu lhe
conheço, deve ser um martyrio. Os mais que me condemnem; nem
necessidade sinto já de me justificar. Parto com um
desalentado como eu. O que vou procurar não sei. Tudo
acceito com
indifferença.―Seu amigo,
Augusto.
Fechando a carta, entregou-a ao Cancella, e ajustando outra vez a hora
a que deviam encontrar-se, separaram-se.
O Cancella dirigiu-se para o Mosteiro e ainda a pensar nas palavras que
ouviu a Augusto, e sem que atinasse com os motivos d'aquelle desalento.
Não pôde, porém, chegar tão
depressa ao Mosteiro como esperava; distrahiu-o no caminho o seu
compadre Zé P'reira.
A harmonia do par conjugal de que constituia a parte masculina o nosso
Zé P'reira, estava cada vez mais transtornada.
A beatice azedára o animo da sr.
a
Catharina do Nascimento
de S. João Baptista.
A saida precipitada do missionario, que não se sentiu seguro
na terra depois da scena do cemiterio, e do desespero do Herodes, com
quem elle imaginava a cada passo esbarrar, rodeára aquelle
santo varão do prestigio dos martyres perseguidos; e as
saudades por elle e devoção pela sua memoria
augmentaram consideravelmente na aldeia.
Se mal corria ha muito a casa e o governo domestico da familia
Zé P'reira, peor se tornou depois d'essa época.
[244]
A mulher passava todo o tempo em devoções na
igreja. O marido, desconsolado, procurava lenitivo na taberna.
Descuidou-se cada vez mais de trabalhar. A embriaguez era n'elle estado
habitual, e já menos inoffensiva e pacifica do que nos
primeiros tempos.
A miseria ameaçava invadir aquelle lar, até alli
remediado.
Tudo isto exacerbára a acrimonia das discussões
conjugaes.
Marido e mulher fustigavam-se com os menos amaveis epithetos e
attribuiam-se reciprocamente as honras da ruina do casal.
De noite desencadeiava-se a tempestade domestica e cada vez mais
ameaçadora.
Um dia, o marido, excitado pelo vinho, foi mais além do que
a sua timidez habitual o permittira
até alli, e a sr.
a Catharina soube,
pela primeira vez, que
o osso de que ella era osso não tinha a brandura que lhe
suspeitava.
Deu-se uma scena escandalosa, em que interveio a vizinhança.
D'ahi por deante fôram frequentes iguaes espectaculos.
Na noite em que o Herodes o encontrou, o Zé P'reira, em
completa embriaguez, acabára de fazer sentir mais uma vez a
sua mulher toda a fôrça da auctoridade marital.
Ella revoltou-se e abandonou os penates, jurando que nunca mais
voltaria a elles.
O pobre do homem andava agora perdido nas ruas á procura
d'ella, arrepellando-se, chorando, praguejando, que mettia
dó. O Cancella condoeu-se d'elle, e dando-lhe o
braço, para lhe firmar os passos cambaleantes, conduziu-o a
casa, promettendo restituir-lhe a mulher fugida.
E n'esta tarefa de reconciliação passou grande
parte da noite, conseguindo a final harmonisal-os, mas convencido de
que não seria muito duradoura a paz.
E tinha razão o Cancella em pensar assim. Ao
[245]
lar domestico, onde uma vez se passa uma
scena d'aquellas, nunca mais volta o anjo da concordia.
O pobre do Zé P'reira estava condemnado a levar assim o
resto da sua vida de familia.
Esta occorrencia demorou o Herodes, que só tarde entrou no
Mosteiro a despedir-se da familia que tanto lhe estimára a
filha.
XXXII
Augusto, ao voltar a casa, sentiu que estava inevitavelmente votada
á insomnia aquella noite, a ultima que devia passar na
aldeia, não porque os preparativos da jornada lhe impedissem
o repouso, mas a lucta de tantos pensamentos e paixões
encontradas, decerto lhe disputaria o espirito.
Partir é já uma palavra, que quasi nunca se
pronuncia com indifferença; partir para não
voltar
é uma ideia afflictiva, que mais violenta
commoção desafia; partir sem
esperanças no futuro... poucas torturas de alma se podem
comparar a esta!
Experimentava-a Augusto.
Era quasi uma resolução de suicida a sua. Nenhuma
ambição tivera poder sobre elle para o arrancar
d'alli; tivera-o o desespero.
A cada momento, elle proprio surprehendia-se immovel, abstracto, com os
olhos fitos na chamma da véla, com a cabeça entre
as mãos, sem
saber em que pensava, sem consciencia de si.
A noite estava socegada, e apenas o som monótono de uma
fonte proxima interrompia o silencio d'aquellas horas adeantadas.
Augusto abria um livro, mas lia como por certo o leitor sabe que se
costuma ler em situações
identicas.
[246]
Levantava-se para fazer os aprestes da jornada, mas havia em todos os
seus movimentos uma indecisão, uma falta de consciencia, que
não deixava dúvidas sobre o estado do animo que
os regia.
Como que a todo o momento estava esquecendo a que fim convergiam as
suas acções; e no meio do cumprimento de uma
tenção, perdia a
consciencia d'ella.
Parava defronte de um livro, como se irresoluto em saber se o levaria
comsigo; mas cêdo afastava-o de si com enfado.
Examinou depois os papeis e as cartas; queimou tudo. Vestigios de
passados devaneios, effusão de uma alma sensivel, fructos da
juventude e da solidão, a que a primeira
inspirára o enthusiasmo, e a segunda a melancolia, tudo
consumiu; com certo prazer amargo via atear-se a chamma, desapparecerem
as lettras, reduzir-se tudo a cinzas.
Respeitou apenas as cartas de Angelo, que releu commovido. Falava-se em
algumas de Magdalena. O sobresalto do seu
coração, ao ler aquelle nome,
era então mais violento que nunca.
N'estas pesquizas veio-lhe ás mãos um pequeno
masso, que pertencêra ao herbanario.
Ia para as queimar tambem, quando a inscripção,
que viu por fóra da cinta que as enfeixava, o fez hesitar.
Liam-se estas palavras:―
Cartas de
Magdalena.
Cartas de Magdalena! Este nome tinha no animo de Augusto o valor de uma
tentação.
Cartas de Magdalena! Era quasi ouvil-a falar, prazer a que
já tinha renunciado; era entrar em communhão de
pensamentos com ella, e infeliz de quem não concebe a casta
voluptuosidade d'este gôso.
Mas ao mesmo tempo hesitava.
Pertencia-lhe tambem aquelle legado? Não seria um abuso
lel-as? Devia antes queimal-as, mas...
[247]
eram cartas de Magdalena. E depois, que
mal poderia vir da indiscreção? Não
tinha elle um
coração que não devia abrir-se mais a
ninguem? Encerrar alli qualquer segredo era encerral-o quasi em um
tumulo.
E que segredos podiam ser os de Magdalena e Vicente?
De que se poderia tratar alli, a não ser de algum affectuoso
cumprimento da morgadinha ao velho, que sempre tratára com
intima familiaridade, ou algumas meigas reprehensões por a
sua porfiada ausencia do Mosteiro?
Augusto recordava-se até do velho lhe ter falado na indole
d'estas cartas.
Nas vesperas de renunciar para sempre á felicidade, devia-se
perdoar a tentação.
Abriu-as.
Não ia muito adeantado na leitura, quando já
todos os signaes de hesitação cediam o logar aos
da mais irreprimivel avidez. E terminada a primeira, abriu, leu ou
devorou outra, e após outra e outra, até a
ultima; da ultima voltava de novo á
primeira, e cada vez mais profunda commoção
parecia
dominal-o.
Transcreveremos algumas d'aquellas cartas, para o leitor julgar de
todas.
Dizia uma:
«Meu bom amigo.―Hontem, depois que nos
separámos,
recebi de Lisboa a encommenda que esperava. O
Angelo não se esqueceu.
Mando-lh'a, para que mais uma vez faça de feiticeiro,
adivinhando os gostos do seu amigo.
«Afianço-lhe que vae acertar com os desejos
d'elle. Ha tempos que o vejo, emquanto espera na sala por os pequenos,
procurar de preferencia na estante os livros de historia franceza.
Custa-me a perdoar-lhe os attractivos que tem para elle a
Revolução, mas emfim seja feita a sua vontade.
Escuso
[248]
de lhe
recommendar discreção. E, quando nos
virmos, peço-lhe que me não torne a falar nos
laços em que diz que eu estou a prender o
coração. Mette-me mêdo.―Sua amiga,
Lena.»
Esta era uma das mais remotas em data. Outras diziam:
«Meu amigo.―Hontem
separámo-nos
de tão mau humor, que hoje
acordei com remorsos, e não pude socegar emquanto lhe
não escrevi para lhe pedir perdão. Espero que
perdoará a este rebelde genio que tenho.
«Mas tambem para que me está sempre a ralhar?
Não se assuste pelo meu coração; o
maior perigo que o tio Vicente receia para elle, faz-me
sorrir.―É o de me apaixonar?―Então que tinha?
Não sonhe com nuvens, e vá representando o seu
papel de
adivinho, que é uma
generosa acção que pratica.―Sua arrependida
inimiga,
Lena.»
«Meu bom tio.―Ahi vão uns livros, de que eu
não entendo nada. Augusto falou d'elles ao filho do
administrador, que veio de Coimbra. Conheci n'elle desejos de
possuil-os. Tomei nota. O Angelo remetteu-m'os hontem. Para Augusto
não desconfiar, finja atraiçoar um pouco o
mysterio, e fale no filho do administrador. Do mais, já nada
digo.»
A de mais recente data dizia apenas:
«Tio Vicente.―Pensei no que me disse do estado do
coração do seu... do nosso amigo. Parece-me que
exaggera. Mas, se fôsse verdade, podia tranquillisar-se. Eu
lhe afianço que d'ahi nunca para elle virá a
infelicidade. No entretanto,
discreção por ora.―Sua affeiçoada
sobrinha,
Magdalena.»
Por a amostra, que lhe damos, o leitor não deve
[249]
estranhar que estas cartas estivessem
causando a Augusto o effeito que dissemos.
Cada uma era uma revelação.
Augusto vivera sem o saber, sob a influencia benefica da morgadinha;
d'ella lhe viera pois grande parte da instrucção
que recebera, alli, na
solidão d'aquella aldeia!
O mysterio dos presentes do herbanario, a que tão diversas
explicações dera,
esclarecia-se emfim. Havia-os attribuido a Angelo;
suspeitára, pelo menos, que era a elle que o herbanario se
dirigia para escolher os livros.
Nunca, porém, se lembrára de Magdalena; agora,
que sabia de que origem provinham, beijava-os, como sagradas reliquias,
venerava-os com expansões de verdadeira idolatria.
Já não tinha
coração para se separar d'elles.
Nas cartas em que Magdalena se referia, mais ou menos jovialmente, aos
cuidados que parecia dar ao herbanario esta sympathia manifesta d'ella
por Augusto, não havia para elle menor encanto. Pelo que
tantas vezes lhe dissera o herbanario, conjecturava de que natureza
deviam ser as reflexões a que Magdalena alludia.
O velho Vicente estava, por assim dizer, no meio d'aquelles dois
corações, estudando-os a ambos, receiando por
ambos, lidando por extinguir n'um e n'outro a sympathia que via crescer
e que ameaçava degenerar em paixão. Toda a sua
intervenção consistia em fazer com que elles se
não revelassem; era o meio isolador que impedia que se
ateasse o incendio. Nas suas mãos paravam os dois fios da
corrente, só elle a interrompia.
Esta situação do herbanario era para elle causa
de grandes iuctas.
Amando Augusto com sentimento paterno, tinha
ambições por o amigo; e, ás vezes,
movido d'ellas, sentia-se tentado a favorecer aquella
paixão. Por outro lado, não estimava menos
Magdalena, e prevendo
[250]
as
resistencias e repugnancias com que ella teria a luctar, e os tormentos
a soffrer, hesitava e desejava poder abafar no
coração dos dois os
germens de pesares futuros.
Tivemos occasião de o vêr sob estas diversos
impressões. Umas vezes reprehendendo Augusto, outras quasi
deixando-lhe entrever esperanças. A chegada de Henrique de
Souzellas e os successos subsequentes despertaram no velho uma especie
de ciume, e fizeram-n'o mais ardente partidario de Augusto.
Tudo isto estava agora transparecendo ao espirito de Augusto.
Beijou as cartas da morgadinha, releu-as, apertou-as ao
coração, e tão enlevado estava pelo
perfume do affecto que rescendia de todas, que nem se lembrava
já da hora proxima da partida do motivo que a
originára. Motivo que era o desmentido da sua
illusão.
Mas esta ideia amarga acudiu a final, e a impressão que
produziu foi dolorosa. Pela primeira vez, n'aquella noite lhe vieram as
lagrimas aos olhos, a fronte pendeu-lhe, quasi desfallecida, sobre os
braços, e assim permaneceu por muito tempo.
Depois levantou a cabeça n'um impeto de
desesperação, exclamando:
―Para que me haviam de vir á mão estas cartas?
Que espirito diabolico se compraz de martyrisar-me assim? Saber que um
anjo me acompanhava com a sua vista protectora só quando
elle me vae deixar para sempre! E dizia ella que me não
podia vir o infortunio d'aqui!... Não contava com as
mudanças
do proprio coração.
Na vidraça da sala terrea, em que se achava Augusto, soaram
algumas leves e rapidas pancadas que o fizeram estremecer.
―O Cancella já?... É pois certo que vou partir?
Levantou-se para abrir, e os passos vacillavam-lhe
[251]
como os do condemnado ao caminhar
para o supplicio.
Chegára o momento de romper com todas as
esperanças.
―Estou prompto―disse elle, abrindo a porta e voltando para dentro,
sem reparar em quem entrava; e poz-se a reunir e a ordenar os papeis
que tinha dispersos na mesa.
―Cuidei que era mais cêdo―continuou elle.―Distrahi-me a
ler umas cartas que estive a pôr em ordem, e o tempo correu.
Vamos lá, meu pobre amigo, deixemos esta terra para os
venturosos.
E, dizendo isto, desviou o olhar para o sitio onde julgava que devia
estar o Herodes; mas, em vez d'elle, achou deante de si Angelo e
Magdalena, que, parados no meio da sala, o fitavam com melancolico
sorriso.
Augusto estremeceu, soltando um grito de surpresa, e com o olhar fito
em Magdalena, ficou por bastante tempo n'essa muda
contemplação.
Magdalena foi a primeira que falou.
―Admira-se de nos vêr aqui?―disse ella.―Que ha de mais
natural? Angelo recebeu a sua carta e mostrou-m'a. Tivemos ambos o
mesmo pensamento; viemos para dizer-lhe... pelo menos o adeus que lhe
deviamos... visto que vae partir.
E havia n'estas palavras de Magdalena um mal pronunciado tom de
recriminação, que feriu
Augusto.
―E é certo que quer partir?―perguntou Angelo.
―Sim... parto...―respondeu Augusto, perturbado.
―Mas por quê? Que significa essa
resolução? Lena contou-me ha pouco tudo. Eu nada
sabia. Disse-me que o offenderam com uma suspeita infame, e em nossa
casa! Mas, já resolvemos;
ámanhã, eu e Lena, havemos de falar, havemos de
conseguir...
[252]
―Não, Angelo. É inutil. Deixe-me com
o meu destino. É a elle que eu obedeço.
―Não fala verdade,―acudiu a morgadinha―diga que obedece
á sua phantasia, e commette uma ingratidão.
Á palavra «ingratidão»,
Augusto não pôde reprimir um sorriso de amargura.
―Uma ingratidão, sim―repetiu Magdalena, respondendo com
firmeza e serenidade áquelle sorriso.―Ha dias, depois de
uma scena dolorosa para todos nós, quando saía do
Mosteiro subjugado por uma mysteriosa e cruel fatalidade, encontrou
alguem no limiar da porta, que lhe pediu que não partisse
sem se despedir... de quem através de tudo, o acreditaria
innocente. E para esta pessoa não houve uma só
palavra na carta de despedida que mandou a meu irmão! E
escreveu-a sobre o tumulo de minha mãe!
Estas palavras fôram ditas com tão sentida
commoção, que Augusto esteve quasi a
lançar-se-lhe aos pés, para pedir
perdão; reteve-se,
porém, e respondeu turbamente:
―Porém, minha senhora, por essa occasião eu
jurei tambem á pessoa de quem fala, e a
quem serei sempre grato, que não procuraria tornar a
vêl-a, nem falar-lhe antes de me poder mostrar aos olhos de
todos digno da sua generosa confiança.
―Foi isso que jurou, ou antes que não procuraria ser
visto?―perguntou Magdalena, sorrindo.―Veja qual d'esses juramentos
será mais em harmonia com os seus actos.
A lembrança da excursão nocturna aos Cannaviaes,
para espiar Magdalena, tirou a Augusto o animo de responder.
Magdalena comprehendeu aquelle embaraço, e não
insistiu.
―Mas supponhamos que assim foi; visto isso, parte para buscar as
provas da sua justificação?
―Não, minha senhora, parto, porque desisto
[253]
d'ella. Basta-me estar justificado para
com a consciencia.
―Não tem direito para o fazer. Uma alma, que é
nobre, deve homenagem a si propria. Resignar-se á suspeita,
é como um suicidio moral.
―Justamente, minha senhora; e não concebe que
haja casos em que o suicidio seja natural?
―Meu Deus, Augusto―exclamou Angelo―como eu o estranho! o que o levou
a esse desespero?
A morgadinha sorria, ao responder ao irmão:
―É uma febre que passa, verás. Quer que lhe fale
com franqueza, sr. Augusto? Tenho um secreto presentimento a
dizer-me que, apesar d'essa descrença, apesar d'essa carta,
e apesar de estar por minutos o momento da partida, não
só
não partirá, mas até ha de tomar parte
na nossa
primeira festa de familia, a do proximo casamento de Christina.
Estas ultimas palavras fizeram impressão em Augusto, que
instinctivamente repetiu:
―Do proximo casamento de Christina?!
―Pois não sabia que Christina vae casar?-perguntou
Magdalena com a maior naturalidade, mas fitando os olhos em
Augusto.―É verdade, o sr. Henrique de Souzellas teve pressa
de legitimar o titulo de primos, com que arbitrariamente nos
tratavamos.
Augusto olhou para Magdalena, com indefinivel expressão,
dizendo:
―Quê?... pois é com Christina... pois Henrique
vae casar com...
Só depois de lhe romperem dos labios estas palavras,
é que, reconhecendo a indiscreção da
sua surpresa, accrescentou com mal simulada indifferença:
―Ah! não sabia!
―Devéras? Pois não tinha ouvido falar d'este
casamento? Oh... querem vêr que suppunha tambem
[254]
que era eu a que me casava?... Digo
isto, porque o Cancella tambem estava na mesma crença.
Parece que correu essa voz na aldeia. Estes boatos!... E acham logo
quem se fie n'elles!
E, mudando de inflexão, proseguiu:
―São dois noivos exemplares, Henrique e Christina, perdidos
um por o outro. Christina, com a sua timidez, exerce um forte imperio
sobre aquelle incorrigivel da capital. Mas para isso foi preciso
encontral-o doente. Tenho orgulho de ser eu a primeira a legitimar, de
alguma maneira, aquella sympathia. Fôram singulares as
circumstancias em que isto se effectuou. Eu lhe conto. Foi de noite, e
noite de chuva, na capella-mór da minha propriedade dos
Cannaviaes, onde Christina fôra rezar, pela saude de
Henrique, as estações da meia noite; onde
Henrique foi para seguir e observar Christina, e onde eu fui, com a
Brizida, para os vigiar a ambos e preparar-lhes o futuro;
intervenção algum tanto perigosa, porque podia
haver quem me seguisse a mim com menos generosas
intenções de que as de qualquer dos tres, e que,
ao vêr-me em tão extraordinario
sitio, a taes horas, não me concedesse a
confiança precisa para acreditar, através de
tudo, na minha innocencia.
A allusão era clara, e mais clara a fazia a
inflexão com que foi pronunciada.
Augusto curvou a cabeça e murmurou:
―Tem razão, algum miseravel.
―Ou algum infeliz―corrigiu delicadamente Magdalena.―Os infelizes
são tambem sujeitos a perderem a fé. Mas quem
lhes pode levar a mal isso?
Houve alguns instantes de silencio, no fim dos quaes a morgadinha disse
mais jovialmente:
―Mas afiancei ha pouco que não partiria. Acaso me enganei?
Augusto, como o leitor concebe decerto, já não
tinha animo nem razão para dizer que partia. Calou-se.
[255]
Angelo, a cuja prompta intelligencia não tinha ficado
latente o verdadeiro sentido d'este dialogo, graças tambem
ao conhecimento que elle tinha, havia muito, do
coração de sua irmã e
do de Augusto, respondeu por elle:
―Não te enganaste, não, Lena. Tambem eu
já digo que Augusto não partirá.
E Augusto sem protestar!
Magdalena tornou-se de subito mais séria e grave do que
até alli, e a mesma gravidade tinha na voz, quando de novo
se dirigiu ao irmão, dizendo:
―Para vir aqui, pedi o auxilio do teu braço de creanca,
Angelo, como se fôra o de um homem. Deixa-me considerar-te
por mais algum tempo ainda da mesma maneira, emquanto não
termino a minha missão. Ha pouco, depois que me leste a
carta, que a ti tinha sido dirigida, perguntaste-me: «Que
tencionas fazer?» Não é
assim?
―Foi, e tu respondeste-me o que eu esperava. Pediste-me que te
acompanhasse aqui.
―Has de já ter percebido que o pensamento que me obrigou a
este passo, que não sei se me
deverão censurar, creio até que devem, que esse
pensamento não está cumprido ainda.
―Vejo que não.
―Pois é deante de ti, Angelo, que considero como um homem,
como um bom conselheiro, é deante de ti, como seria deante
de quem quer que ahi estivesse em teu logar a ouvir-me, que eu vou
concluir o meu pensamento.
E voltando-se para Augusto, Magdalena accrescentou com firmeza, que
só um demasiado rubor trahiria, se a luz fôsse
bastante para o denunciar:
―Augusto, está pobre, sem familia, sem amigos, e, para
ultima provação, até as
traições e as suspeitas lhe não
pouparam o nome honrado que herdou. Essa posição
dá-lhe direitos que eu
sei comprehender, creia. É uma especie de
nobreza, de que se não pode exigir
humilhação alguma. Por isso, sem
[256]
hesitar, com toda a
lealdade, vim aqui em companhia de Angelo para estender-lhe a
mão e dizer-lhe que se, como tenho razão para
crer, as sympathias de uma alma que ha muito o comprehende, Augusto, se
essas sympathias podem bastar ás
aspirações da sua, se, para ganhar coragem, os
meus affectos lhe podem servir, conte com o auxilio da minha alma... e
dos meus affectos. É deante de ti, que faço esta
confissão, Angelo.
Terás que me ralhar por causa d'ella?
Ao ouvir aquellas palavras, Augusto esqueceu toda a
hesitação, e tomando entre as suas a
mão que Magdalena lhe estendia, cobriu-a de beijos
apaixonados.
Magdalena não teve pressa de retiral-a.
Angelo veio tambem beijar as faces da irmã. Era assim que
respondia á pergunta d'ella.
Pobres creanças! Porque a final eram creanças
todos tres, creanças a quem ainda os romances namoram, sem
que se lembrem de que, ao transplantal-os para a vida real, todos os
desconhecem e censuram, e só regando-os de lagrimas
é que as mais das vezes se consegue nutril-os.
O olhar de Augusto radiava já com o vivo fulgor da alegria.
―Obrigado, Magdalena, deu-me a vida com essas palavras generosas.
Deixe-me adoral-a, anjo, anjo libertador! Comprehendo os deveres que
tenho a cumprir. Hei de ter fôrça para conquistar
as
provas da minha innocencia. Preciso agora d'ellas; hei de obtel-as, e
depois...
Aqui reteve-se de subito, e uma nuvem de tristeza toldou-lhe de novo o
rosto.
Magdalena, como se o comprehendesse, concluiu:
―E depois sou eu quem tem o direito de exigir que não pare.
Bem vê que, depois do passo que dei, se algum escrupulo ou
orgulho pesasse no seu coração, Augusto, seria
uma dolorosa offensa que me fazia. Acceitou a mão, que eu
com lealdade lhe
[257]
offereci; a
lealdade obriga-o agora a seguir o caminho do Mosteiro.
Depois de alguns instantes de reflexão, Augusto respondeu
outra vez com firmeza:
―Tem razão, Magdalena. Terei coragem para cumprir o meu
dever.
Escusado é dizer que o Herodes teve de partir só.
O bom homem ficou espantado ao encontrar em casa de Augusto
tão inesperada companhia, mas não lhe foi
difficil, depois do que viu e ouviu, conjecturar
qual a natureza dos motivos que tinham feito mudar de
resolução o seu companheiro de
jornada.
Partiu, desejando todas as felicidades aos seus amigos.
Estes não conseguiram dissuadil-o de partir.
Não havia já estimulo para arrancar aquelle
coração ao desalento.
Magdalena e Angelo voltaram ao Mosteiro.
O resto da noite de Augusto passou sob a influencia de tão
violentas paixões, que desisto de descrevel-as.
XXXIII
Na manhã do dia seguinte estava toda a familia de Magdalena,
na qual incluimos já D. Dorothéa e Henrique,
reunida em uma das salas do Mosteiro.
As duas primas, Magdalena e Christina, trabalhavam em costura; Angelo e
Henrique jogavam o xadrez; D. Dorothéa e D. Victoria
conversavam a respeito do preço de umas meadas de linho, que
esta tinha dado a córar, e da pessima qualidade do fiado,
effeito evidente, segundo D. Victoria, das criadas que tinha, que nem
para fiar serviam. O conselheiro
[258]
examinava distrahido varios memoriaes e cartas de empenho, que
recebera, já a pedir empregos e graças em paga
dos serviços eleitoraes,
ás vezes hypotheticos.
A cada passo, porém, Magdalena suspendia o trabalho, para
olhar para a porta da sala, principalmente quando nos immediatos
aposentos se escutava algum rumor; ou trocava olhares com Angelo, que
não com menor frequencia os desviava das pedras do taboleiro
para encontrar os da irmã.
Henrique tambem, de quando em quando, tinha que perguntar a Christina,
e esta, para lhe responder, julgava-se obrigada tambem a afastar os
olhos da costura.
D. Victoria e D. Dorothéa não era raro
metterem-se na conversa dos outros, d'onde facil
transição achavam logo para voltarem aos seus
assumptos favoritos: meadas e criados.
O conselheiro interrompia a cada momento a leitura com bocejos, ou
fazia notar alguma mais exorbitante pretensão de tantas que
examinava.
Era evidente que todas aquellas cabeças estavam pouco
preoccupadas com os assumptos apparentes das suas
cogitações.
―Ó Lena!―dizia Christina, que pela terceira vez chamava a
prima, sem conseguir ser ouvida―que tens tu esta manhã? Que
distracções
são essas, que não respondes quando te chamam?
―Pois falaste-me?
―É o que eu digo! Ó menina, ha que seculos te
estou eu a perguntar em que tempo é que as laranjeiras teem
flor?
―Ah! Christe!―acudiu o conselheiro do lado, sorrindo.―Esse
pensamento é linguareiro; ficamos todos sabendo aquillo em
que tens estado a scismar.
Christina córou intensamente, ao perceber o sentido das
palavras do conselheiro, e tentou defender-se, dizendo:
[259]
―Ora, não era isso, tio. Eu perguntava, porque...
―Socega, quando o véo estiver prompto, a laranjeira
não nos faltará com ramos e flores.
―Não, mano―disse D. Victoria―olhe que se não
trata de vêr o que é que
está dando nas laranjeiras, dentro em pouco não
ha uma só na quinta. Que tambem para serem comidas as
laranjas pelos criados... Porque quasi que são só
para elles.
Não que não faz ideia!...
E continuou com D. Dorothéa a narração
dos abusos de que os criados eram culpados.
D'ahi a momentos foi o conselheiro o primeiro a falar.
―Esta é galante!―disse elle, examinando uns papeis e
rindo.―Ora ouça isto, Henrique. Aqui
está um homem que deseja que eu lhe empregue nada menos do
que sete sobrinhos que tem. Sete! É uma
geração como a de Jacob; se
estivessemos na côrte de Pharaó!...
―Se se satisfizessem cada um com uma pasta?... Era um ministerio
completo―disse Henrique.
―Oh! oh!―disse o conselheiro, passados alguns
momentos.―Cá está o meu amigo Pertunhas,
teimando com o logar de recebedor.
―Pois o maroto ainda se atreve?
―E que despeza de estylo que faz! É uma ode congratulatoria
em prosa.
N'estas entremeadas conversas e dialogos curtos e interrompidos
passou-se o tempo até a chegada do correio, successo que
marca época n'uma manhã passada na aldeia.
N'aquelle dia sobretudo eram esperadas com ancia as cartas e os
periodicos, que deviam trazer noticias do resultado das
eleições dos differentes
circulos do paiz.
O conselheiro já por tres vezes consultára o
relogio, extranhando que o correio se demorasse.
[260]
Emfim, chegou. O conselheiro poz de lado os memoriaes e requerimentos;
Henrique deu subito desfecho ao jôgo com um lanço
absurdo, e ambos se precipitaram sobre os periodicos e cartas; Angelo
veio encostar-se ao espaldar da cadeira de Henrique.
O conselheiro principiou por ler uma carta.
Henrique rompeu a cinta do primeiro periodico.
―Oh! oh!―disse o conselheiro, logo ás primeiras linhas que
leu.―Temos crise ministerial. As eleições
fôram pouco favoraveis ao
governo; perderam-se em quasi toda a parte!
―Assim tambem se deprehende do estylo em que vem escripto este artigo
de fundo―disse Henrique.
―Dizem-me n'esta carta que já se fala em que o ministerio
vae pedir a sua demissão.
―Este artigo allude apenas a uma reconstrucção
do gabinete.
-«O governo―proseguiu o conselheiro, lendo,―nem espera pela
constituição da camara e
cáe por estes dias, infallivelmente. Quando vossê
receber esta, já talvez elle pertença aos livros
findos.»
―«Diz-se que ha para esta noite conselho de ministros para
resolver sobre qual o seu procedimento, visto a indole provavel na
futura camara»―lia Henrique no periodico, que logo em
seguida pôz de lado, para consultar outro.
―«Não imagina―continuava o conselheiro, lendo a
carta―o movimento de ambições que vae
já por aqui». Ora se não imagino!
―Um numero do
Suffragio
Nacional!―exclamou Henrique, abrindo segundo
periodico.―Provavelmente é alguma amabilidade que lhe
dirigem, sr. conselheiro; elles que lh'o mandam!
―Sim, decerto. Como da outra vez. Veja lá,―disse o
conselheiro, sorrindo―aos moribundos tudo se perdôa.
Henrique correu a vista pela folha, para saber o
[261]
que motivára a
remessa d'ella para o Mosteiro, onde não costumava vir.
―Ah! temos correspondencia cá da terra!―exclamou por fim.
―Deve ser isso. Já tardava. É communicado do
Seabra. Leia, que são curiosos. O homem a apreciar as
eleições de domingo deve ser soberbo. Isso
não se pode perder. Leia, leia.
―Assigna-se
um eleitor indignado.
―Justo. É o estylo do homem. Vamos lá a
vêr isso.
Henrique principiou a ler em voz alta o communicado do brazileiro.
A peça litteraria, de precioso lavor, em que o sr. Seabra
contava ao mundo os factos eleitoraes da sua terra, muito desejaria eu
transcrevel-a aqui, se, pela sua extensão, não
tomasse demasiado
espaço, e se, pela sua unidade e estreita
ligação logica,
se não subtrahisse á menor tentativa de
fragmentação.
Aquelle communicado era indivisivel.
Apesar d'esta forçada omissão, espero que os
leitores farão a justiça de suppôr o
escripto digno do distincto economista, que ouvimos discursar com tanta
proficiencia na taberna do Canada.
O homem escrevia recheado de indignação pela
serie de illegalidades, escandalos, subornos e pressões de
todo o genero, de que, dizia elle, fôra theatro aquella
pacifica aldeia do Minho.
Em
linguagem chã e rude
ia tornar patente, accrescentava, aos olhos de todos uma
pestifera
chaga do organismo social.
Sophismára-se
a urna e
calcára-se aos pés a Carta.
As phrases em italico são d'elle. Depois de um exordio por
esta
afinação, em que fazia a conveniente
razão de ordem, entrava o homem na materia. Era um
modêlo de impertinente bisbilhotice o escripto; desfiava-se
alli a vida de todos os eleitores com uma minuciosidade esmagadora.
[262]
Contava-se como o compadre de Fulano dissera isto e aquillo ao sobrinho
de Sicrano, e como tal individuo fizera e acontecera; e como tal disse
que havia de fazer, e não fez; e como aquelle nem disse nem
fez; e como aquell'outro dissera e fizera, e assim por deante. Um dos
mais maltratados era o sr. Joãozinho das Perdizes. Dizia o
auctor da
correspondencia que o morgado se tinha vendido por vinho; que exercera
pressão sobre os eleitores da sua freguezia; que era homem
de pessimos costumes e moral depravada; jogador, bulhento,
beberrão cheio de dividas, amigo de malfeitores,
et
coetera.
O conselheiro e Henrique seguiam a leitura com gargalhadas.
O communicado passava depois a occupar-se com o mestre Pertunhas.
O brazileiro não lhe perdoára a pressa com que
este celebrára a victoria do conselheiro, á
frente da philarmonica que regia.
Por vingança chamava-lhe todos os nomes injuriosos, que a
raiva lhe suggeria, inclusivé o de estafador de trompa, e
fechava por estas memoraveis palavras:
«Para levar á evidencia o caracter infame e
intriguista d'este sevandija, basta que diga que foi elle que, poucos
dias antes, subtrahiu de uma pasta aquella celebre carta politica, que
tanto deu que falar no paiz. E este homem exerce o cargo de
administrador do correio.
Proh
pudor!»
Como o leitor imagina, esta parte da correspondencia produziu
sensação no auditorio.
Logo que Henrique concluiu a leitura, saiu de quasi todas as
bôcas uma exclamação de
surpresa ou de alegria.
―Como é?... como é?...―perguntou o
conselheiro.―Diz que...?
―É o mysterio que se explica―respondeu Henrique.―A
traição encarrega-se de a si propria se
desmascarar.
[263]
―Então foi o Pertunhas?!... Mas... diz-se que tirou a carta
de uma pasta!
―Era a de Augusto.
―Mas como estava ella ahi?
―Lá isso sei eu como foi,―disse D. Victoria―fui eu que,
por engano, lh'a tinha dado junta com outras para elle escolher alguma
para a leitura dos pequenos.
Christina celebrou a descoberta, beijando com effusão a
morgadinha, e dizia:
―Venceste, Lena! agora está bem provada a innocencia
d'elle, até para os que mais duvidavam!
―E quem não duvidaria?―acudiu o conselheiro, como para se
desculpar da desconfiança.
―Quem o conhecesse bem, meu pae―respondeu Magdalena, a quem a
commoção recebida dava
animação ao olhar e ao semblante.―Eu e Angelo,
por exemplo.
―E então eu?―accrescentou Christina.―Eu
não entro na conta?
Esta reclamação valeu-lhe da parte da prima a
paga do beijo que recebera.
―Olhem o pobre rapaz!―dizia D. Victoria, sinceramente
consternada.―E eu que o tratei tão mal! Bem me
dizia elle: «Não tenha pressa de dizer
nada a seus filhos, minha senhora, não lhes ensine a duvidar
de um homem que elles se costumaram a amar e a respeitar.» E
o caso é que eu, desde que lhe ouvi dizer aquillo, de um
modo tão sério e triste, fiquei resentida, e
não disse
nada ás creanças, que todos os dias me
perguntavam ainda por elle.
―Mas...―dizia D. Dorothéa, deveras
embaraçada―eu não sei ainda bem do que se trata.
Pois suspeitavam de Augusto?... Mas o quê?...
―Ó tia Dorothéa―atalhou ―Ó tia
Dorothéa―atalhou Henrique―por quem
é, não insista na pergunta. Depois que se sabe
que uma suspeita é falsa, não ha nada que mais
escalde
[264]
os labios do que
obrigal-a de novo a passar por elles.
―Tens razão, menino. E que precisão tenho eu de
saber uma coisa que não é verdadeira? Mas na
verdade! Suspeitaram de Augusto! Ah! Henrique, está-me a
parecer que tambem tu tens esse peccado a pesar-te na consciencia. Ora
anda lá.
―Não, tia. Ha muito que lhe faço
justiça. Ao principio não digo que
não. Mas durou pouco tempo
e já estava arrependido. Augusto convenceu-me pela maneira
com que me falou, convenceu-me sem provas: e até se, em
expiação, me
não puz em campo a auxilial-o a justificar-se, é
porque elle exigiu que me abstivesse d'isso, e depois, o meu
desastre... quero dizer―emendou, olhando para Christina―a felicidade
que me procurou sob a fórma de doença...
Christina pagou-lhe com um sorriso o galanteio.
O conselheiro, que ficára pensativo depois das primeiras
reflexões que lhe ouvimos fazer, disse, suspirando:
―Estou sentindo verdadeiros remorsos pelo mal que por certo causei
áquelle rapaz com as minhas suspeitas. Mas que havia eu de
fazer? As apparencias eram-lhe contrarias!... E depois, n'esta vida de
politica, apprende-se tanto e tão depressa a duvidar!
É sorte minha! Homens, a quem eu estimava
devéras, fôram exactamente os que mais fiz
padecer! Senão, vejam: o herbanario, meu companheiro de
infancia, e que sempre me teve amizade, apesar das apparencias rudes de
que a revestia, dispuzeram-se as coisas de modo que o privei da casa em
que nasceu e talvez lhe apressasse com isso a morte... E
elle, coitado, vingou-se nobremente; mas vingou-se, porque nunca mais
me sairá da ideia aquella scena da igreja. Augusto, um rapaz
que conheci pequeno, e já então de viva
intelligencia e de sentimentos nobres... pois tudo se conspirou para o
perder, e não só o privei do
[265]
modesto logar que elle exercia, mas
até levantei contra elle uma accusação
infamante, e quasi o
expulsei de minha casa... É triste que a vida politica me
tenha obrigado a estas crueldades! Preciso de compensar de alguma sorte
o mal que fiz. De que maneira lhes parece melhor?
―Eu se fôsse―disse D. Dorothéa―fazia como a
morgada, e o rapaz, em vez de vir a ser só padre havia de se
formar em Coimbra, como o reitor de Friande...
―Isso era se elle quizesse ser padre;―acudiu D. Victoria―mas
parece-me que não quer. Nada, nada, eu o que fazia era
demittir aquelle velhaco do Pertunhas, e dava a este o logar de mestre
de latim, e arranjava que ficasse tambem com o correio. Ora anda,
já que o outro foi tratante!...
O conselheiro sorriu ao expediente da cunhada, e não
pôde deixar de dizer:
―N'esse caso deixava só ao Pertunhas a regencia da
philarmonica? E tu, Lena, qual é a tua
opinião?
Magdalena respondeu sem vacillar:
―A minha opinião é que o pae deve ir a casa de
Augusto, pedir-lhe humildemente perdão pela offensa que lhe
fez.
―Mas involuntaria―ponderou o conselheiro, em tom de despeito, que
não pôde bem
disfarçar.
―Mas offensa―repetiu Magdalena, sem que o sorriso dissipasse
totalmente a fôrça da
expressão.
―É um pouco dura de cumprir a sentença,
sobretudo esse adverbio humildemente... Não lhe
parece?―perguntou o conselheiro, voltando-se para Henrique.
―Eu tinha vontade de dizer tambem a minha
opinião―respondeu Henrique;―mas receio certos melindres...
Comtudo, parece-me que encontraria uma recompensa, que poderia fazer
esquecer a Augusto a offensa e dores muito mais pungentes do
[266]
que as que soffreu em virtude d'esta
desagradavel occorrencia.
―Qual é?―perguntou o conselheiro.
Henrique olhou para Magdalena, respondendo:
―Repito que tenho escrupulos em dizêl-o, porque talvez
não seja eu o mais competente para o fazer.
―Tem razão, primo―disse Magdalena.―Elle proprio o
dirá. É mais natural.
―Mas sábel-o tambem tu, Lena?
―Sei.
―Então dize-nol-o. Melhor para mim, se puder prevenir
desejos.
Magdalena hesitou.
―Vamos, Henrique―disse Cristina, sorrindo―não esteja com
tantos escrupulos. Diga o que pensa.
―Pois quer? mas se sua prima me não perdôa?
―Eu o protegerei. Fale.
―Então, Christe?―tornou Magdalena.
―Bem; n'esse caso... Visto que m'o ordena quem pode.
―Fale, fale―disseram a um tempo o conselheiro, D. Victoria e D.
Dorothéa.
―Falarei. A recompensa a que Augusto aspira é a de fazer
parte da familia de... da nossa
familia―respondeu Henrique, olhando para Magdalena, que já
não tentava retêl-o.
―De fazer parte da nossa familia?―repetiu o conselheiro.―Mas como?
―Como ha de ser? visto eu não estar resolvido a
prescindir de Christina, e Marianna ser ainda creança, facil
é de conjecturar o unico meio que ainda resta de realisar
aquella pretensão.
O conselheiro comprehendeu a final, e fitando Magdalena poz-se a rir,
dizendo:
―Pobre rapaz! Pois metteu-se-lhe isso na cabeça?
―Mas que é a final? eu não entendo―dizia,
embaraçada, D. Victoria.
[267]
―É uma coisa muito simples―respondeu Henrique.―Augusto
sentiu o effeito dos encantos da minha prima Magdalena, mas sentiu-os a
ponto de ligar a elles a sua felicidade, e de cair em
adoração para com a magnetisadora.
Esta explicação foi recebida com espanto por D.
Victoria.
―Ora! está a brincar, primo Henrique? Não ouve
aquillo, prima Dorothéa?
―Mas que é, que é?―perguntou esta.
-Diz que o Augusto aspirava...
―Perdão, eu disse que o Augusto adorava e não
aspirava. Quem pode tomar contas a um coração do
culto que elle guarda religiosamente em si? A prima Lena é
adorada por aquelle rapaz, isso affirmo eu, porém...
―É possivel!―exclamou tambem D. Dorothéa,
espantada.―Por essa não esperava eu. Olhem para o que lhe
havia de dar! Pobre Augusto!
O conselheiro ria ainda da noticia que recebera.
Magdalena córou ao ouvir todas aquellas
exclamações de estranheza. Cedendo ao impulso
energico do seu caracter impetuoso e apaixonado, disse com vivacidade:
―Não sei que haja no que diz o primo Henrique nada que
mereça esses espantos. Pois quem sou eu a final? Que
distancia me separa da humanidade, para que se tenha por um desacato
uma affeição que inspire? É verdade.
Julgo que não se enganou o primo Henrique. Tambem
eu descobri esse affecto em Augusto. Nasceu-lhe no
coração e
não na cabeça, meu pae. Ha muito que o sei, e
nunca a descoberta me causou o espanto que vejo nos outros. Digo mais,
causou-me orgulho. Orgulho, sim, porque é natural sentil-o
por ter inspirado sentimentos d'aquella ordem a um caracter generoso
que, experimentado pelo infortunio, saiu sempre da prova mais nobre e
mais puro do que d'antes.
[268]
O conselheiro, que ouvira a filha com impaciencia, acudiu, em tom
profundamente irritado:
―Bem, bem, deixemo-nos de loucuras e de poesias, Lena. Vê
lá se me queres fazer acreditar que a vida da aldeia te
estragou o natural bom senso, até o ponto de tomares a
sério phantasias e
creancices.
―Não é phantasia nem creancice, é uma
resolução de mulher―respondeu Magdalena, com
firmeza.
―Uma resolução de creança, que
está na minha mão remediar―tornou o conselheiro,
como quem desejava cortar o incidente.
Porém para o génio de Magdalena já
não era possivel recuar nem parar; replicou:
―Talvez não. E deixe-me então dizer-lhe tudo,
meu pae. Augusto nunca me revelou esse segredo do seu
coração. Adivinhei-lh'o eu. Longe de
procurar ser entendido, occultava-se e fugia; ainda hontem
estava resolvido a deixar a aldeia para sempre.
―Mas ficou―notou o conselheiro com ironia.
―Ficou―respondeu tranquillamente Magdalena―porque eu lhe pedi que
ficasse.
O conselheiro, ouvindo estas palavras, estremeceu de surpresa e fitou a
filha com olhar severo e interrogador.
A morgadinha proseguiu com uma serenidade, que occultava um
esfôrço interior:
―Ficou, porque eu lhe disse que o havia comprehendido e que acceitava
a affeição desinteressada e pura que elle
guardava no coração; ficou, porque eu, que
só tarde soube do desespero que o obrigava a partir, e que o
sabia tão leal como pobre, tão innocente como
perseguido pelo infortunio, eu, que o vi quasi expulsar d'esta casa,
sob o pêso de uma accusação em cuja
verdade nunca pude acreditar, julguei do meu dever ir eu propria
procural-o para lhe estender a mão e dizer-lhe:
«fique,
[269]
e
prometto-lhe que todos lhe farão justiça em
breve.»
Quando Magdalena acabou de dizer estas palavras com firmeza e
exaltação crescentes, ninguem ousou falar na
sala; e os olhos de todos dirigiram-se quasi instinctivamente para o
conselheiro.
Christina tremia; as outras senhoras pasmavam: Henrique e Angelo
sentiram-se profundamente inquietos.
Todos viram passar por differentes côres as faces do
conselheiro, os labios agitaram-se n'um tremor convulso, e com a voz
evidentemente alterada pela cólera, disse para a filha,
passados alguns instantes:
―Pois, saiba, senhora, que para as leviandades de uma rapariga
estouvada, ha meios mais racionaes do que esses que parecem
naturalissimos á sua razão estragada pelos
romances. Eu ainda não prescindi da minha auctoridade
paterna, e ella me servirá para corrigir essas levezas, de
que deveria envergonhar-se.
Esta scena de familia augmentava cada vez mais a difficuldade da
posição de todos os que estavam
presentes. Ninguem ousava intervir, ou, desejando-o, ninguem sabia a
maneira de o fazer.
Entre as falsas situações, em que nos achamos
ás vezes n'esta vida, poucas se podem comparar no
incómmodo que produzem, á de assistir a uma
questão domestica, por qualquer motivo que seja originada.
Quem se conservou d'aquella vez menos inactiva foi Christina, que
prendeu Lena nos braços, não
sei se para instinctivamente a defender, se para reprimir-lhe o impeto
de reacção que receiava n'ella.
A morgadinha effectivamente repelliu-a com brandura de si e respondeu
ao pae:
―Ás vezes aos caracteres levianos estão
confiadas tarefas generosas. Cabe-lhes sanar muitas
injustiças que por cálculo os mais reflectidos, e
por
[270]
isso mais desconfiados,
praticam sem piedade. Não me envergonho nem arrependo do
passo que dei. Não fiz mais do que salvar do
desespêro uma alma nobre e magnanima, que, se se perdesse,
talvez um dia a sua consciencia, senhor, o accusasse de não
ser innocente n'essa perda. Quiz evitar-lhe remorsos, meu pae. Se isto
foi leviandade, que os annos m'a não dissipem, como dizem
que costumam fazer, porque prefiro ser leviana assim, a ser cruel
como...
O pae atalhou-a, e cada vez com mais vehemencia replicou:
―Pois siga, se quizer, a sua phantasia, senhora, mas terá
de escolher entre os seus caprichos e a minha
approvação. Fique certa que, com o
consentimento meu, nunca um rapaz pobre, sem familia e sem
posição, especulará com o
estouvamento de uma herdeira rica, que, tão esquecida do que
deve a si e aos seus, não hesitou em o procurar na propria
casa, sem reparar que estava sendo victima de uma comedia armada
á sua credula sensibilidade.
Antes do conselheiro concluir estas palavras estava alguem mais na
sala.
Era Augusto.
Da sala proxima, onde chegára muito antes, ouvira elle o que
o conselheiro dizia em tom elevado, e o sentido das palavras que ouviu
venceu-lhe toda a hesitação e obrigou-o a entrar.
O conselheiro, reparando de subito n'elle, interrompeu-se e parou.
Augusto, respondeu-lhe então com dignidade e tristeza:
―Esse rapaz pobre, sem posição e sem familia,
tem n'esse triplice infortunio outros tantos titulos para ser
respeitado dos felizes, como v. ex.
a, e eu
não prescindo
d'esses direitos.
O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse
responder a Augusto. A irritação
[271]
dictava-lhe uma violenta resposta, mas
já lh'o não permittia a consciencia.
Augusto continuou:
―Sei que v. ex.
a está já
convencido de que as
suspeitas, que pesavam sobre mim, eram injustas. N'esse periodico, que
ainda tem na mão, veem as provas da minha innocencia. Vi-o
em casa do Seabra, d'onde venho agora. Procurei-o, decidido a saber
toda a verdade por qualquer preço que fôsse; elle
não m'a negou; contou-me tudo. Por isso, ao vir aqui, sr.
conselheiro, ao voltar a esta casa, onde era recebido como amigo, antes
que me expulsassem d'ella como infame, esperava encontrar a receber-me
a justiça e a amizade... Enganei-me; em vez d'ellas, foi o
insulto, mais pungente e menos justificado do que o primeiro, que eu
encontrei!
―Menos justificado?―repetiu o conselheiro, azedadamente.
―Menos justificado, sim, muito menos; porque v. ex.
a
podia julgar-me
criminoso, pode julgar-se com direito de duvidar de mim, mas
não tem o de duvidar de sua filha; porque a sr.
a
D.
Magdalena pedindo a seu irmão que a acompanhasse a casa de
um pobre, que ella sabia ser victima de uma immerecida
accusação, e a quem o desalento e o
desespêro faziam succumbir, não se esqueceu do que
devia a si e aos seus; pelo contrario, aos seus devia aquelle acto de
sublime generosidade, porque das mãos dos seus viera o golpe
que me ferira. Eu tinha sido expulso d'esta casa, sr. conselheiro, como
um miseravel e infame; os filhos de v. ex.
a, que
sempre
fôram meus amigos, a quem v. ex.
a
ensinára
a sel-o, vieram á minha dizer-me: «Não
parta, deve á nossa confiança a
justiça de ficar».
―É verdade―disse Angelo―eu acompanhei Magdalena. O pae
diz-me muitas vezes que não tenha pressa de principiar a
duvidar; eu não podia principiar por Augusto. Não
duvidei.
O conselheiro respondeu a Augusto com reserva
[272]
e mal disfarçado despeito,
ainda que em tom moderado:
―Sei que fui injusto comsigo, Augusto, e sinto-o do
coração, creia. Ainda que as apparencias o
culpassem, arrependo-me de não ter tido mais
fôrça
a minha confiança para não ceder.
Peço-lhe por isso... humildemente... perdão. Iria
a sua casa pedir-lh'o se não viesse aqui. Que mais quer?
Acha-se com direitos a exigir mais? Será isso motivo para
antevêr realisadas loucuras de rapaz?...
Augusto não o deixou continuar.
―Ouça-me, sr. conselheiro―disse elle placidamente―deante
de todas as pessoas que me escutam, lealmente e sem hesitar,
patentearei o meu coração. É verdade
que essas loucuras
se apoderaram de mim, que desde creança até hoje,
tenho sido todo d'ellas; mas que importam aos outros, se eu commigo as
guardava? se nunca por ellas regulei os actos da minha vida?
Occorrencias imprevistas me arrancaram este segredo, que eu fiz sempre
por suffocar. Nem ambições me despertou, como
meio de realisal-o, porque nem eu realisal-o pensava. Resignar-me-hia a
morrer com elle, sem o revelar a ninguem; mas adivinhado por quem o
fizera nascer, e, deixe-se-me o orgulho de o dizer, adivinhado e
correspondido, que muito era que me tomasse a vertigem, e que eu por
momentos me deixasse cegar pelo fulgor de imprevistas
esperanças?
Perdôe-se-me a fraqueza. As illusões duraram
pouco; as palavras de v. ex.
a dissiparam-n'as...
um tanto cruelmente,
mas em todo o caso acordei. Creia, sr. conselheiro, que o ser pobre,
sem familia e sem nome, impõe tambem uma certa ordem de
deveres, a que eu serei fiel. Não é o de
humilhar-me,
é o de manter a unica dignidade que me resta, a dignidade
moral. Já vê v. ex.
a que se
enganou de duas
maneiras: nem da parte do rapaz pobre houve
especulação, nem da parte da herdeira rica
estouvamento.
E, acabando de dizer estas palavras, Augusto inclinou-se
[273]
respeitosamente deante do
conselheiro, e ia a sair, depois de lançar a Magdalena um
extremo olhar de despedida.
A morgadinha, porém, ergueu-se, e, apesar dos
esforços de Christina para a reter, veio collocar-se no
caminho de Augusto, e estendendo-lhe a mão disse:
―Não saia, Augusto. Em nome de meu pae lhe peço
que não saia.
―Magdalena!―disse o conselheiro com severidade.
―Sim, em seu nome, senhor; porque quero livrar-lhe o futuro de
remorsos; sim, em seu nome, porque hei de fazer-lhe ouvir a voz do
coração,
que tantas vezes desattende, arrependendo-se amargamente depois.
―Magdalena!―repetiu o conselheiro com mais
fôrça.
―Minha senhora! disse Augusto.
Porém a morgadinha obedecia agora inteiramente á
vehemencia do caracter apaixonado.
―Sinceramente revelei ha pouco os sentimentos do meu
coração; todos me ouviram; todos ouviram agora
Augusto. Fale, senhor, com a mesma franqueza e lealdade, com que
nós o fazemos; poderá confessar a natureza dos
escrupulos que o obrigam a essa resistencia? Não se
envergonharia d'elles? E quer que lhe obedeça! mas
obedecer-lhe seria offendel-o, porque seria acreditar na constancia
d'essa má paixão que o domina, e no seu bom
coração não pode ella durar muito
tempo.
O conselheiro, no auge da irritação, ia talvez a
responder violentamente. Christina e Angelo tinham-se approximado de
Magdalena; as outras senhoras principiavam a ensaiar em surdina as
primeiras tentativas conciliadoras; Henrique meditava um plano de
intervenção, que elle suppunha
já indispensavel, quando um incidente veio interromper esta
scena e modificar a feição critica do caso.
[274]
O incidente foi a chegada de um criado de farda, pertencente ao
serviço de um proprietario da villa proxima. Este criado era
portador de uma mensagem para o conselheiro.
O velho Torquato tinha adormecido na sala immediata; o lacaio
dispensou-se de o acordar, e guiou-se pelo som das vozes para chegar
á
presença do conselheiro.
A chegada do lacaio acalmou a tempestade domestica, que principiava a
carregar-se.
O conselheiro, conhecendo-o, interrogou-o sobre o fim d'aquella visita.
O criado respondeu:
―Venho para entregar a v. ex.
a esta parte
telegraphica, que chegou a
meu amo logo depois que tinham partido as malas do correio, de maneira
que não pôde mandal-a com ellas.
O conselheiro, agitado ainda, pegou no papel, que o mensageiro lhe deu,
e correu-o com a vista.
Immediatamente um raio de alegria lhe fuzilou nos olhos.
Acabando de ler, disse ao criado, que esperava resposta:
―Dize a teu amo que recebi, e que pode responder que sim.
O criado saiu.
N'este meio tempo as senhoras e Christina rodeavam Magdalena e
combinavam um projecto de harmonia domestica; Angelo e Henrique
desempenhavam-se junto de Augusto de quasi identica tarefa.
O conselheiro estendeu a Henrique a parte telegraphica, emquanto que
uma visivel satisfação se lhe
desenhára no semblante.
―Leia e admire―disse elle.
Henrique leu, e não reteve uma
exclamação de surpresa.
A parte dizia:
«Avise o conselheiro Manuel Bernardo para
[275]
quanto antes se apresentar em Lisboa.
Estou encarregado de organisar ministerio e quero que elle acceite uma
das pastas.»
Assignava-a um dos mais notaveis vultos politicos do paiz.
Henrique, que sabia o valor de certas opportunidades, e a quem a
surpresa da noticia não fez esquecer a crise domestica a que
assistira, disse, logo que acabou de ler, e dirigindo-se a Magdalena:
―Prima Magdalena, compete-lhe ser a primeira a dar ao novo ministro os
emboras pela sua
nomeação.
A palavra «ministro» produziu
sensação na sala. D. Victoria exclamou:
―Ministro! Pois quem é que está ministro? O
mano?... Ora, sim senhor! acertou sua magestade!...
―Mas... valha-nos Deus! O ponto está que não
façam por ahi alguma revolução para o
deitar abaixo―acudiu D. Dorothéa, em cujo animo os factos
das nossas dissenções civis tinham deixado
sinistras ideias ligadas á palavra ministro.
Magdalena, Angelo e Christina correram a abraçar o
conselheiro; Henrique reteve, porém, os dois ultimos
dizendo:
―Primeiro Lena. Talvez tenha a pedir alguma mercê a s.
ex.
a, e á primeira não ha
caracter de ministro que não ceda.
O conselheiro sorriu já.
Magdalena beijou-lhe a mão, e o pranto, provocado pela
violencia das scenas anteriores, e até alli a custo
reprimido, rebentou agora abundante, banhando as mãos do
pae.
Henrique afastou-se a conversar com Augusto, para o não
deixar sair da sala.
O coração do conselheiro não era de
pedra. Duas causas poderosissimas conspiravam-se para abrandal-o. Como
homem politico, havia a satisfação da maxima
ambição de todos, a noticia de ser chamado
[276]
ao ministerio. Nos
momentos em que vemos satisfazer-se qualquer ardente desejo do nosso
coração, abrimo-nos ás sympathias para
com os desejos dos outros; se de nós depende realisal-os,
cedemos de boa vontade. Como pae, havia as lagrimas da filha a
convencel-o, e a eloquencia d'este argumento das lagrimas em olhos de
mulher, é geralmente sabida: quanto mais se a mulher
é joven e bella! quanto mais se a mulher é filha!
Sem o menor vestigio da irritação anterior, o
conselheiro ergueu Magdalena, apertou-a ao seio e disse-lhe meigamente:
―Por que choras tu, Lena? Creança! Então
promettes-me ser muito feliz, se eu te deixar fazer as tuas loucuras?
Magdalena respondeu-lhe, abraçando-o affectuosamente, e
beijando-o.
Ha argumento mais convincente do que este? Conhecem arma mais poderosa
contra as severidades de um pae?
O conselheiro beijou tambem paternalmente nas faces a filha, e
voltando-se depois para Augusto, disse-lhe, em tom de voz quasi
affectuoso:
―Augusto, vou confiar-lhe a minha felicidade, confiando-lhe a
felicidade da minha Lena. Vingue-se da injustiça e do mal
que lhe fiz, tornando-m'a venturosa. É a unica
vingança á altura
da sua alma.
Augusto não teve tempo para responder. Se uns restos de
orgulho tentassem luctar ainda com o amor, suffocal-os-hiam os
esforços combinados de Christina, de D. Victoria e de D.
Dorothéa, que o arrastaram quasi para junto do conselheiro.
E toda aquella familia, em que não havia n'aquelle momento
um só coração triste,
confundiu-se por algum tempo no mais desordenado, pueril e pathetico
grupo, que pode desenhar um artista.
Para mais tocante confusão ainda, as creanças,
que voltavam dos seus brinquedos na quinta, entraram
[277]
então na sala, e de boa
vontade se associaram áquella
manifestação de alegria, sem
querer saber o que a motivára,
São assim as creanças. Alegres por instincto,
saudam as scenas alegres sempre que as vêem, sentem-as antes
de as explicarem.
Fôram innumeraveis os beijos, os abraços, as
palavras de affecto, os sorrisos, as lagrimas, as
exclamações pueris que se trocaram entre os
diversos actores d'esta scena de familia.
Chegado a este ponto da minha narração, nada
melhor posso fazer do que deixar á
imaginação dos leitores concluil-a.
Haverá algum tão malfadado, que na sua vida
não tenha visto representada uma scena assim?
Esse mesmo, se existe, obriga-me a não proseguir.
O quadro que reproduzisse, exacerbar-lhe-hia o desconsolo da alma, de
que por certo é victima.
Paremos aqui, para que nos fique nos ouvidos este jovial rumor de
beijos, de risos e de vozes de alegria, porque, a prolongarmos mais a
narração, vêl-o-hiamos abafado pelos
sons revolucionados e anarchicos da philarmonica da terra, que
não
tardará a festejar a nomeação do
conselheiro, e sobretudo
pelo estridor da tuba do mestre Pertunhas, tuba verdadeiramente
épica, e capaz de mudar a côr ao gesto, como a de
que fala o poeta.
Fechemos pois aqui a historia, dando apenas succinta conta dos
acontecimentos ulteriores.
CONCLUSÃO
O conselheiro partiu no dia seguinte para Lisboa, para tomar parte na
pilotagem da nau do Estado. Estive tentado a dizer, para
satisfação de animo dos
[278]
meus leitores, que, sob a
direcção dos talentos e
aptidões do novo estadista, se locupletou a fazenda publica,
prosperou a agricultura e a industria, refulgiram as artes e as
lettras; e que Portugal, como a Grecia, sob Pericles, causou o assombro
das
nações do mundo.
Mas receiei que, phantasiando no nosso paiz um governo fecundo e
prospero, a inverosimilhança do facto prejudicasse no
espirito dos leitores a dos outros episodios narrados, e, lhes entrasse
com isto a desconfiança no chronista. Resolvi pois ser
franco, declarando que sob a direcção do
conselheiro e dos seus collegas, Portugal regeu-se, como se tem regido
sob as duzias de ministerios, que nós todos havemos
já conhecido.
O conselheiro, já ministro, voltou tempos depois
á aldeia, para assistir aos casamentos de Magdalena e de
Christina, que se verificaram no mesmo dia.
Christina e Henrique foram viver para Alvapenha, para condescender com
D. Dorothéa, que não podia resignar-se a viver
só.
Sob a superintendencia do novo administrador, transformou-se
completamente a quinta, e é hoje uma das mais rendosas e bem
geridas propriedades d'aquelles sitios.
Henrique, o elegante do Chiado, o frequentador do Gremio e de S.
Carlos, está um rico e laborioso proprietario rural.
Apaixonou-se pela agricultura, e promette realisar o typo do antigo
patriarcha.
Cumpriu-se a sua visão.
Das mil e uma molestias, com que saira de Lisboa, já nem
memoria lhe resta.
Christina, além de ser adorada pelo marido, vê-se
rodeada pelo amor e carinhos de D. Dorothéa e de Maria de
Jesus, as quaes, sem o menor despeito, a viram tomar o sceptro da
realeza domestica, que usa com adoravel brandura, desenvolvendo de dia
para dia os seus talentos de mulher.
No Mosteiro não correm peor as coisas, sob os
[279]
cuidados de Augusto e de Magdalena, que
ahi ficaram, por exigencias de D. Victoria. Augusto, além de
se occupar de agricultura, alimenta a
imaginação, já não a fazer
versos, mas em outra
fórma de poesia: a organisar a escola sob bases mais
racionaes, e dotação mais fecunda; a generalisar
e educar os processos agricolas; a implantar industrias novas.
É assim que a sericultura, graças aos seus
cuidados, é hoje alli cultivada com bons resultados, e
outras já principiam a ensaiar-se.
Magdalena é sempre a mulher que foi; se é que as
nobres qualidades já reveladas nos seus actos de juventude,
não se vão caracterisando inda
melhor, á medida que de mais graves deveres se incumbe a sua
missão de mulher. Intelligencia temperada por um bom senso
natural, que a educação esmerada
não estragou, como a tantas acontece, caracter apaixonado,
mas de trato affavel e insinuante, meiga sem indolencia, grave sem
severidade, acompanha-a o encanto que a todos prende, que
não faz sentir a ninguem o peso da obediencia.
É hoje quem tudo dirige no Mosteiro; querida pelos primos,
querida por D. Victoria, adorada pelo marido e abençoada
pelo povo, que soccorre com esmolas e conselhos, pode bem dizer-se que
reina n'aquelles sitios.
D. Victoria resignou na sobrinha todos os encargos domesticos, salvo o
direito de ralhar com os criados, que ella sustenta serem os peores do
mundo; prompta sempre a intervir a favor de qualquer d'elles, quando
despedidos.
Em relação ás personagens secundarias
d'esta historia pouco teremos a dizer.
O brazileiro fez as pazes com o conselheiro, porque este, logo que
entrou para o ministerio, mandou lavrar o decreto em que se nomeava
visconde de não sei quê o seu antigo inimigo. Foi
este o
primeiro acto politico do gabinete, que o paiz ingrato teve a
sem-razão de não applaudir.
[280]
O brazileiro, em paga, entrou com Augusto em competencia de
melhoramentos locaes, com grande proveito da aldeia.
O sr. Joãozinho, em vista d'esta fusão de
partidos, achou-se encorporado na liga, e em pouco tempo teve
occasião de demonstrar de novo a sua influencia eleitoral,
trazendo compacta á urna a freguezia de Pinchões,
para reeleger o conselheiro que, pela sua
nomeação, perdera o logar de deputado. D'esta
vez ninguem lh'o disputou, e era edificante vêr o brazileiro
ao lado do Tapadas, esquecidos antigos odios, votando de commum accordo
e de boa harmonia.
A reconciliação entre dois adversarios commove
sempre a alma.
O sr. Joãozinho não mudou de habitos, e cada vez
tem mais dividas, mais cães e mais bebedeiras.
O Pertunhas foi perdoado, e continua imperturbavel nas suas
funcções de ensino e na
commissão do correio, odiando os irmãos Virgilios
e desafogando as suas mágoas na embocadura da trompa.
O homem queixa-se de ter sido victima de uma vingança.
Confessa que por brincadeira tirára uma
carta da pasta de Augusto, mas que a tornára a collocar no
seu logar e por isso...
A familia Zé P'reira vae em rapida decadencia; o homem
já nem tem fôrça para fazer
resoar o zabumba. É esta uma das que mais deve á
caridade de Magdalena.
O conselheiro, ainda hoje no gôso imperturbado dos votos
unanimes d'aquelle circulo eleitoral, vem de quando em quando
retemperar o animo exhausto nas fadigas parlamentares e nas
diversões da capital, no seio da sua feliz familia, e volta
melhor.
Angelo, logo que principiam as ferias dos seus estudos superiores,
corre com alvoroço de creança
a gosar na aldeia os dias que elle já presente terem de ser
os mais felizes de toda a sua vida.
A quinta dos Cannaviaes, á qual andam ligadas
[281]
suaves recordações
dos dois venturosos pares, que
os incidentes d'esta historia reuniram, foi transformada por Magdalena
n'uma habitação de recreio, onde as duas familias
celebram, durante o anno, algumas festas em commum.
Estes melhoramentos vieram confirmar o titulo de que Magdalena havia
muito estava de posse.
E hoje é ella ainda entre a gente do povo conhecida pelo
nome de «Morgadinha dos Cannaviaes».
FIM DO SEGUNDO E
ULTIMO VOLUME