The Project Gutenberg eBook of Contos e Lendas This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Contos e Lendas Author: Luiz Augusto Rebello da Silva Release date: October 29, 2009 [eBook #30359] Most recently updated: January 5, 2021 Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) CONTOS E LENDAS REBELLO DA SILVA CONTOS E LENDAS Introducção--A torre de Cain--O castello de Almourol A camisa do noivado A ultima corrida de touros em Salvaterra LISBOA LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª 67--Praça de D. Pedro--67 1873 DECLARAÇÃO _A propriedade d'esta edição pertence a Henrique de Araujo Tavares, subdito brasileiro._ LISBOA LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª 67--Praça de D. Pedro--67 1873 INTRODUCÇÃO Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies. Job cap. XXIX v. 18 As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um homem, que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que faz de ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um Deus de paz, assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da velhice, com a mesma serenidade com que tinha visto passar as illusões da juventude, e com que havia atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com a sua pobreza, não invejava (se é que invejou alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a eloquencia persuasiva dos primeiros confessores da fé nas grandes epochas da regeneração moral do mundo. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da liberdade estava a soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na manção do jubilo, patria suspirada de suas mais doces esperanças, unica impaciencia de uma alma, que longe da morada celeste se entristecia captiva. A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não aspirava a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se alguma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu queixas que a sua bocca se não abrisse para as suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mão as não enxugasse logo. Por isso em muitas occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a simplicidade da pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si, nunca faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a illusão, sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até me deu para esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia catar, ou alporcar os craveiros, até o relogio do estomago, unico relogio que havia em casa, o avisar de que eram horas da refeição. Vinha então recolhendo-se de vagar, alargava o passeio pela cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem se arriscar a alguma jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria, que tinha a seu cargo a economia domestica e o baixo e mixto imperio da dispensa e da capoeira. A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de immensa cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio e agudo, metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as consolações da Egreja a uma de suas ovelhas, que agonisava em desabrigada choupana. Á volta o corpo tremia sacudido por uma sesão de febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a face de um moribundo. Deitou-se para não se tornar a levantar. Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou a enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu para sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi preciso que os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca houve funeral tão rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares da freguezia e dos arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do presbyterio, o chôro de toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas. Com razão! Não era o velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? Em vida constituira os pobres seus herdeiros, por isso não deixava de seu mais do que a sobrepeliz e a batina remendada, em que o amortalharam, e o crucifixo de marfim, que unira ao coração na derradeira despedida. O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos vicios esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á proveitosa lição das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A ama, á qual o Vigario legára sómente a memoria de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade, affectuosa, não de um, mas de muitos habitantes, que se lhe offereceram para acolherem sua velhice. O cão do Pastor, companheiro constante de tantos dias de fadiga, tambem achou quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos livros da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, depois de largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a recordação do sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos cyprestes plantados pelas suas mãos no cemiterio da aldeia. Este foi o homem e o ecclesiastico venerando. Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, rarissimas pessoas dariam noticia. Fugia da fama que dão as lettras, com um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava envergonhado ao pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal receava ser visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna não se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha pouco vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações do passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em algumas scenas soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas paginas á luz do ponderoso candieiro de latão amarello de tres bicos, talvez o traste mais luxuoso de toda a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto obscuro da aldeia estes _Contos e Lendas_, escriptos sem emendas e com admiravel rapidez, em lettra grada, direita, e garrafal, para regosijo dos compositores, que cegam a miudo os negalhos de missanga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes Deus não castigue em desaggravo de suas victimas. Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas instancias para m'os confiar. Poucos mezes antes da sua morte é que alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais opportuno, com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque dizia elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou examinar a sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento diante da mesa e pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, entram commigo as malditas historias, e não ha resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam bruxarias.» A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de vista as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar pelas visões do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam muitas outras que a admiração saúda como principes da intelligencia. Vingava-se porem d'este máu sestro (era a sua phrase) pondo de lado as escriptas frivolas apenas as acabava e nunca mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este desprezo tratava a inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno ao antigo maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois d'este e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos seus segredos, a qual representava nos serões litterarios do presbyterio o papel, que a tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de esbofeteado, e de escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se desforrasse torcendo o pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o sangue aos coelhos, transformado em raposa ou em ginete. Nunca acordava, que não esperasse encontrar a capoeira vasia! Se é bom estar bem com Deus, dizia, não é máu estar em paz com o demonio. A casa do presbyterio não era grande, nem espaçosa, mas sorria de longe á vista caiada por fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um tal ar de festa, que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia a hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os braços abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um outeirinho, alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos troncos lisos e direitos o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, cercado de alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas enroscadas e collossaes, cobriam com a sombra de seus pampanos as parreiras, aonde amadureciam na estação os mais formosos cachos de moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha morada, penduravam-se as vinhas pelas encostas das collinas até ás margens de um ribeiro, toldado de salgueiros e chorões que se torciam para beijarem a agua. Por entre as vinhas apparecia em malhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava a levada correndo pelas regueiras. Os pomares, copando-se, encantavam de espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques fechados, e embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos outeiros, que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socalco em socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um verde triste, a viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios ao cair da tarde. A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles pampanos cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos de hortas e pomares; os variados tons que zebravam as encostas dos montes e collinas, desde a esmeralda viva dos prados até ao louro cendrado das paveias; os rosmaninhos e as boninas esmaltando as veigas; o rio precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e limpido e depois esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de luz dourada todo o quadro, de noute o clarão da lua tocando-o de meiga melancolia, compunham um espectaculo de tanto enlevo que a vista fugia com a vontade e com o coração para aquelles casaes debruçados das collinas fazendo nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vêr romper o luar por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos primeiros raios brancos do alvor matutino. Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chaminés expelliam o fumo em penachos caprichosos; os cepos estalávam no lume; e as creanças, como enxame buliçoso, brincavam defronte das portas. As mães cosinhavam a ceia, em quanto os velhos e os mancebos descansando do trabalho, aguardavam encostados, ou assentados, a hora proxima da refeição e do repouso. Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pôr do sol nas aldeias! N'esta occasião, em que a fadiga do corpo como que faz mais docil o espirito, é que o padre Vigario, desembocava de uma das azinhagas com o seu Horacio, ou o seu Salustio debaixo do braço, e vinha conversar o seu pedaço com os anciãos da terra, para saber as novidades, e espreitar as rixas e discordias, afim de as compôr. Correndo a mão pela cabeça das creanças, ralhando com umas, afagando outras, informava-se de tudo, sanava as malquerenças, e conseguia pelo respeito de seus annos e qualidades, que os moradores da parochia formassem uma só familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, estes, mal o viam, voavam em bandos a agarrar-se-lhe á loba e ás mãos, por entre vozes e saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No verão, nos dias de maior calor, era sempre certo o prior, á tardinha, debaixo da parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de prata, que lhe escorregavam até á ponta do nariz. Lia e passeiava. De tres, ou de quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga e sorvia com delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a vêr se alguma flôr carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava punha na cabeça o venerando tricornio, pegava da bengala de canna da India e castão de prata, e sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase modesta, empregada por elle para designar as suas marchas forçadas de legua, legua e meia, e ás vezes duas leguas por montes e quebradas. Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos homens vigorosos, na flôr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo largo e egual. Abordoando-se á bengala por costume e não por necessidade, despejava caminho como andarilho mais valente. De estatura elevada, secca, mas encorpada, carregava sem esforço com o peso de uma velhice verde e alegre. Nos olhos cinzentos e vivos brilhava um toque de finura risonha, e a bocca não pequena, mas engraçada, animava o rosto e dava-lhe expressão agradavel, avivada de constante jovialidade. A brandura do animo correspondia ás promessas da physionomia, e o tracto intimo denunciava as prendas d'aquelle caracter, honrado, severo só comsigo, inflexivel e incapaz de se torcer em pontos de consciencia ou de melindre. Na convivencia com o padre Vigario, aprendi mais do que me ensinariam muitos annos de leitura. Convalescente e magoado, devi-lhe a saude do corpo, a saude e o conforto da alma. Este velho desterrado por gosto e eleição sua em um canto do mundo, n'uma aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos que se pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava toda a sua philosophia:--paciencia e amor. Com a primeira supportava os trabalhos e os revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças ao segundo, o coração, purificado pelos annos, abria-se a todos os sentimentos nobres, e palpitava com orgulho memorando as glorias da patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava a dôr das desgraças presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão crente e enthusiasta, como se acabasse de entrar na epocha das illusões. Entendia e applicava o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraçando como filhos e irmãos todos os afflictos e necessitados; e pelo amor, finalmente, não perdoava mas agradecia as offensas, as injustiças, e até as calumnias, provações da virtude, não se lembrando d'ellas senão para pagar o mal com o bem. Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de Camões, de Ferreira e de Sá de Miranda. Familiar com os escriptores da antiguidade, e com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o desapercebido, e espertar a veia natural e espirituosa da sua conversação, para se apreciar devidamente os thesouros encobertos d'aquella vasta erudição e os prodigios de uma memoria em verdade rara. As citações acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as anecdotas encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel, succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente os homens e as cousas, que as cinzas dos grandes varões de Roma e da Grecia, dos heroes de todos os tempos e de todas as nações tornavam a juntar-se, a tomar corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar como se os estivessemos contemplando nos dias do seu esplendor. As ruinas de Athenas, as do velho Lacio, os monumentos da meia edade, e os episodios de epochas mais proximas, evocados pelo encantamento irresistivel d'aquella imaginação creadora, como que volviam subitamente ao primeiro sêr, apparecendo uns em toda a formosura da arte classica, erguendo-se outros pela religiosa inspiração da arte christã. Á noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa poltrona de couro, com a ama á direita e o cão somnolento á esquerda, a velha cabeceando de rocca á cinta e engrolando Padres-nossos, o animal piscando os olhos com uma orelha fita e outra derrubada. Dos dous companheiros do serão o mais attento e sisudo era de certo o cão! Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca perdia occasião de lhe coçar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo favoravel. O bofete de pau santo e pés torneados, o candieiro de latão e a anarchia dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada uma hora, o unico que não dormia era o Vigario; a sua penna continuava a ranger sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. Quando as palpebras se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, mettia dous dedos na argola do candieiro, e recolhia-se ao quarto no meio das recommendações da ama sobre os perigos do fogo, sobre a falta de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos provaveis. Estas recommendações não se calavam, senão quando a respiração alta e compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua eloquencia. Em um d'estes serões, a que assisti, caiu o dialogo sobre não sei qual de nossos reis, e o Vigario innocentemente deixou escapar o segredo das suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do solitario com o seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a desculpas, que me lê-se alguns _Contos e Lendas_. Oxalá que o leitor seja do meu voto. Ainda me não arrependo do que disse d'elles ao auctor, que tremia, como se a minha opinião valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos, longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio. Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre resistiu a apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, pouco antes da sua morte, foi com a final e irrevogavel condição de nunca descubrir o nome do auctor, se me atrevesse a importunar os prelos (assim se expressou) com as puerilidades de um velho creança. Possam os _Contos e Lendas_ do padre Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, merecerem alguns momentos de attenção, não por si, mas pelas memorias que recordam. Correm já sujeitos ás vecissitudes da publicidade tantos filhos espurios da mesma invenção, que mais esta, entrando no mundo das lettras, não usurpará de certo logar, que pertença de direito ás obras primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia não ha fortuna. Lanço-a á corrente!... A sorte bôa, ou má que faça o resto! Valle, 30 de septembro de 1866. A TORRE DE CAIN LENDA DO SECULO XI I De um bom irmão um mau christão O monge começou assim a sua historia: No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é que succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por dias, e com elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder dos infieis as provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da fronteira não se descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as armas; e quer luzisse a manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das almenáras, ou o rebate das trombetas não consentia nem leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no campo da peleja, não se socegava um momento. Os melhores castellos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os veados, os ursos e os javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as columnas e as ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d'este formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil, e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a tristeza até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo é, o arabe sensual passava pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração!... --E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito, bradando: esta terra é nossa! acudiu Martin Paes. --Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de captiveiro todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da charrua, guiadas por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso, que nos deu outra vez a terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em que abrimos os olhos, o cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a arvore que nos cobriu com a sombra a infancia e a velhice, e a fonte que ferve ao pé do rosal!... N'aquelle tempo, quando o mouro passava, baixavam todos a vista, porque elle era o senhor. --Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre? --Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era magoa e desconsôlo por dentro; porque a terra, em que sômos escravos, mesmo que seja a da patria, parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo. A casa alheia, a courella que é de outro, e o fogo accêso na lareira a medo, fazem-nos chorar, porque nada d'aquillo é nosso, e hoje, ou amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como vive agora; o que estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a donzella assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava tranquilla, como aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harem do sarraceno, aberto diante d'ella, como um abysmo, fazia-a empallidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a deshonra e a morte. --Que martyrio não seria a vida assim?!... --Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. Faz-se tarde. Quereis que continue? --Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos. --No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas terras de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De seus castellos os dous inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda a furia. Nos casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoutecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado. Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do contrario, e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas ameias. Aconteceu isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos festejavam o bemdito Santo com fogueiras, cantigas e follias. O cavalleiro tinha um filho e um irmão. O filho de edade tenra; o irmão temido pela indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a creança fez-se homem; e de parte a parte a aversão das duas familias cada vez crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos não cessavam de dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro assassinado era já um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença gentil a cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar, esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do rico homem morto na vespera de S. João. D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraça, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração esquecido da vingança guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae derramado á falsa fé, as malquerenças de tantos annos, as promessas da meninice e da juventude, tudo d'ahi em diante se apagou da sua alma para não vêr outro sol, outra luz, senão a dos bellos olhos, que o tinham feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior odio rebentou o mais constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido saltou aos olhos de todos. Os parentes lançaram em rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixão pôde mais, que as memorias do tumulo, que deixava sem vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não podiam dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Aprazou-se para vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou acaso? N'esse dia contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. Moço de Ansures fôra assassinado. O homem põe e Deus dispõe! O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do que á propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado fôra procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. Inigo Lopes, era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando estavam pregando as taboas do caixão do infeliz. A dôr fez de D. Inigo uma estatua, e sete dias com sete noutes o viram todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo n'elle tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um seculo em sete dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem um soluço do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam! O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella? Se alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na ultima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões! Quem vae nunca mais torna. O que não foi fabula, porque todos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como se existisse ha muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! Mas se queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias se contavam tambem desde que o corpo do valente cavalleiro descera á sepultura trespassado de sete feridas. Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos com mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás inclemencias do tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do mundo! O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha desviado os olhos d'elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz, ou se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe no deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um mar de fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas dançaram, crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tornou-se côr de sangue e sumiu-se, que as estrellas esconderam tremulas a sua luz. O christão acabáva de vender ali a alma ao inferno pela vingança. Desde aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra segue o corpo, a imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz, elle que não se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o juramento. Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço, repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas immoveis do Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O reprobo escarneceu do passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. Mas elle que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos pés, como horrorisada do peso do seu crime. Aos primeiros passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, no ceu aonde os trovões estalavam uns apoz outros; na terra, que se abria em voragens, e no deserto, aonde o furacão, bramindo, cavava abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em vortice as areias. Cedros antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As feras, timidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D'ali em diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão, debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia caíra um velho desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota d'aquella agua para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a entornando-lhe de proposito o cantaro diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam tragando de longe a agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de ti!» O Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse vencedor do inferno. Mas, desde aquelle crime, a sêde intensa ateiada nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada no deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas. Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos chammas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o pó, a respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante d'elle as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abysmos solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o chão, flexiveis como juncos. Cavallo e cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo da ferradura magica as aguas tomavam a dureza do diamante: a terra oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos vulcões, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d'ali. Á medida que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio de sol dissolveu-se desfeito em fumo. Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao primeiro passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao segundo illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro levantava o _Ave maris stella_. Estava aplacada a vingança do morto. A fé, porem, debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu em vão lhe offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de misericordia! Orava n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior peccador. Arrebatado em espirito, viu um homem cuspindo por odio na cruz á porta de uma egreja. O anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, subiu na aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente. «A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão para o que renega o teu Santo nome?» N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo; e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe: _memento, homo, quia pulvis es!_ II Não ha gosto sem pesar N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castello por valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavalleiros mettiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Asturias, raça de bronze nos odios, e de ferro nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os annos não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Auzenda, unico amor da sua vida, podia distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagrima só d'aquelles olhos lindos, transformava em cordeiro o leão embravecido. Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa cavalgada, que se espera? O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em larga distancia ao redor. No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. João, e por horas tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que os monges negros rezaram o officio de finados em volta da tumba do cavalleiro assassinado. Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa do outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da formosura, entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia. Aquella belleza era sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os cabellos em tranças d'ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra ingreme. As rozas accendem o rubor na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa silvestre pousada na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal subiu casta e pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da aurora. O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios da primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr do lado opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do amor. --Voltais logo? perguntou a donzella corando. --Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado olhar. --Tão tarde!? --Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!... --Não! Mas!... --Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui! Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo outeiro. Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noute, e quando as estrellas começavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam a entrar no castello, attraidos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de côres diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos á luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, os relinchos dos cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O seu brado vencia o estrepito. --Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recem-chegados com a bocca cheia de riso. Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do dia, segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e com a noute cerrada não chegava!... Do lado das montanhas não havia rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos. Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e desejado? Porque se ausentára n'aquelle dia, em que tantos estremos o convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam? Um juramento sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o tumulo de seu pae. Por isso deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas! III Deus seja comnosco Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca das malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capellos! Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas dos trovadores. Mais adiante, em turbilhões de cem côres, em collos ondeados e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar furtivo de alguns pares promette, em breve, dias semelhantes a mais de um solar. Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não entram, o vento geme por entre frizos e laçarias dos delgados columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silencio. Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz subitamente. Os escanções enchem as taças e fazem-as circular em roda. Saudes, acclamações, e vozes crusam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á sua direita senta-se Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço Ansures. Defronte, em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se podesse deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto. A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam incessantemente donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospitalidade quasi regia do rico-homem. As taças cheias de licor espumoso correm de mão para mão. D. Ordonho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida brada: --Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa acclamação responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre irmãos!» Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um grito. Os convivas olharam tambem e ficaram immoveis com as taças suspensas. No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e na cotta o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a primeira taça cheia, ergueu-a lentamente. --Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!.. Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de ferro em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os olhos, as feições o os modos eram exactamente os do cavalleiro assassinado havia quatorze annos; porem os cabellos e as barbas brancas lembravam, que por cima do seu corpo passára o frio da sepultura. Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos. IV Enterro por noivado Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu: Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograes transformou-se repentinamente em _dies iræ_ que retumbou. Os cabellos erriçaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava já tinha desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes tocar, fecharam-se adiante d'elles. O portal maciço gemeu nos quicios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis alaram as dobradiças. Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor de ti choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de esperança; o palmito symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paços do conde ninguem se entendia. Estava sobre elles o poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tectos. Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados tão altos, e o fosso tão fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o seu clarão pallido lançou como um sudario sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a curta distancia sobranceiro ao castello. As aguas, rebentando ali á sombra de antigos choupos, ferviam de encontro ás fragas, e despenhadas espumaram batendo em cachões no leito da ribeira, que lá em baixo bramia arremessada por entre a bronca penedia. Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços por entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de andar em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra por pedra quasi a desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas envergonhados. --Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de St.ª Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! gritou depois em grande brado. Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem robustos braços ferem a um tempo com ancia mortal a porta maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem... Mas nas taboas nem signaes dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo campeia o cavalleiro negro. As aguas espumavam por baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um facho; a esquerda só peava com as redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo. --Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a eu. Pago as arrhas da formosa noiva. --Maldito!... --Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou o dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes. Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem sentidos. As faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tranças de ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os olhos languidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se mortaes. --Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue verteu-o esta mão culpada.... Feri a cabeça do peccador saciado de annos e de amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... Poupai-a em vossa justiça!. Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n'aquelle instante o senhor de tantos vassallos e castellos por alguns palmos de terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna, que nos serros vizinhos refrigerava as miserias do escravo? O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas não quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo passar muda e terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro! Nem capello de aço lhe cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito descoberto. Leva porem a morte escripta no rosto. O sombrio clarão do desespero reluz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, brancos e descorados. Deixai-o ir! É o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o inspira! A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento! Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!... A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o clarão avermelhado do incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se como toldo immenso. As aguas e o furacão confundiam os bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava em estampidos medonhos. A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto é aquelle, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas abrazadas e não recúa. Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e não as vê! O temporal fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha; as torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e horrores da vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a peior das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o sepulcro do ultimo descendente de uma grande raça. Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira dava-lhe á face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vista mede o espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um aceno para voar sibilando ao seu alvo.... Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol de fogo jorrou dos ceus abertos. Soa distinctamente o galope de um cavallo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no peito o açor do Douro. Será D. Moço Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho sacudido pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado sobre a aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. Pouco depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo debruçado para o precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas para se rodear de trevas. O braço do Maldito alçou de subito a espada e o golpe descia já... quando uma seta passa assoviando. O mancebo vio então o seu inimigo rolar aos pés do ginete e logo apoz um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atufar dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que espirram a grande altura espuma e sangue. Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cosida nas chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrepito, as quadrellas alluiram-se, as traves accesas remoinharam e cairam, e entre os destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do somno eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendão! Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou comsigo a orgulhosa raça de riba d'Ave, e do seu castello só ficaram de pé aquella torre negra, que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos de Pedro Ansures. --E D. Moço? perguntou Martim Paes. --E Auzenda? acudiu D. Nuno. D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e, cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços, fragas, e alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do incendio e viu-o arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só parou quando o facho do cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que succedeu então já vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, mas sem vida! Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das Hespanhas. D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte? Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade da terra do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d'aquelle coração!... Sombra do que fôra, o que fazia o desgraçado n'este desterro cruel, sem affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu na força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha até cair, a dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias desgraçadas, minavam-lhe a vida, seccando-lh'a na raiz. Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a doce imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera tão feliz; nos labios aquelle sorriso em botão, que se abria casto como a rosa. O mancebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acordava, chorando, porque só abraçára o ar. N'este tormento agonisou por mezes até que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde se recolhera. Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára orando a velar a tumba, contou depois que vira apparecer uma dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe um annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por tres vezes lutou para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por braço invisivel, se prostrou com a face no pó do templo. Eram as nupcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzella o sangue inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus. Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e os prodigios da sua clemencia infinita?! O CASTELLO DE ALMOUROL[1] CONTO DO SECULO XVII I --Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles pelo Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elles estão aqui á nossa quinta é muito longe? --Não é nada perto, não, sr.ª Brizida de Sousa! Mas lá diz o adagio: aos que muito correm quebram-se-lhes as pernas... Socegue. O sr. conde de Villa Flôr anda com elles a contas e não é para graças. --O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi dizer... Mas se elle ficasse mal agora? --Ficavamos nós peior, isso é verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, se meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto como um estafermo!... --Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou demais por essas guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O que seria de mim sósinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha umas poucas de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro mundo! Ó sr. Romão Pires, diga-me: o demonio--salva tal logar--terá poder de subverter comsigo no inferno corpo e alma uma creatura baptisada e remida nas santas aguas?... --Conforme! Se não estiver em estado de graça!... --Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? Quero que me escreva já e já á sr.ª D. Magdalena, contando-lhe tudo isto. Ella não póde consentir que a sua criada velha uma noite d'estas desappareça nas garras do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... Diga-lhe que nos venha livrar d'este inferno, senão... eu cá por mim fujo! Primeiro a salvação da minha alma... --Tambem eu não gosto nada d'isto, sr.ª Brizida. Mas animo forte e coração á larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo que vejo, não leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para esta quinta... --Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me não chamasse eu, se depois da primeira noite não mettesse um bom par de legoas entre o demonio e quem se présa de christã baptisada na freguezia de Santa Catharina de Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem leiva de mau sangue!... Mas o amor, que tenho á minha menina, coitadinha, tudo me faz supportar com paciencia... Espere! Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros arrastados pelo sobrado? --Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é que elles fazem das suas... --É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de noites, Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes vê o fim. E que me diz então a estas despedidas de maio e entradas de junho?!... --Não são de convidar, sr.ª Brizida! Velho sou, mas não me lembro de anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, trovões e ventanias que levam tudo pelos ares! Safa! --E nós, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa Barbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre será. Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima no vão das casas? --Não é nada. São os rapazes do feitor jogando as escondidas. --Pois, sr. Romão Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, quando minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: «Brizida, a sua menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão tambem, os phisicos não acertam com o remedio, e fr. João entende que estas tosses do peito, assim teimosas, não se despegam senão com mudança de ares. Bem sabe, não posso sair da cidade por estes dias mais chegados--e é assim, coitada, por causa da sua demanda--acompanhe-me os meninos, e conte que fico tão socegada como se eu mesma fosse...» Quando me disse isto, e eu lhe beijei as mãos pela mercê, se podesse adivinhar o que nos esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e viesse quem quizesse... Isto não é palacio, nem quinta, é um verdadeiro inferno! Deus salve a minha alma! --A sr.ª Brizida não diz o que sente. Vindo a sr.ª D. Maria e o sr. D. Pedro, ninguem a arrancava de ao pé d'elles. --Tem razão. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não lhe quer mais, não, deixe-me ter esta presumpção... A elle vi-o nascer, e os primeiros braços, que o embalaram, foram estes que hade comer a terra. Tão pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo agora, que não me posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto de os abraçar homens!... Quando me ponho a olhar para elles, parece-me ás vezes que não póde ser, e que tudo isto é sonho... --Então!? Elles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos. Não ha remedio. O mundo vae assim. --Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que é da edade e do muito crescer, e que hão de encorpar depois. Deus queira! São os negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos meus meninos. A sr.ª D. Maria manhãs e tardes inteiras á almofada, bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? É mesmo uma dôr de alma vel-o dia e noite amarrado á banca dos livros, e que livros! Latins, gregos, e não sei que outras trapalhadas de _retroricas_... Quem tem a culpa de tudo, o culpado de tudo o que póde acontecer, é o teimoso do sr. fr. João, que á fina força quer o sobrinho sabio. Depois que falleceu o pae, (Deus o tenha em gloria!) não se nos tira de casa, e tanto ha de quebrar-me a cabeça ao meu menino, que um dia treslê. Pois olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale asno vivo, que doutor morto. --O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª Brizida, é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido um segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes merecimentos. Não lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna possuem elles... --Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não m'os deixa respirar. Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa para acolá... latins, _pholosophias_, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres creanças não teem endoudecido. Cá por mim já o miolo ha muito tempo me tinha dado volta, tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa. --Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum nescio... --Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na côrte dizem que não ha outro doutor como elle. --Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz dos seus olhos, e depois tão meigos, tão applicados... --De mais, de mais, para a edade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não parecem d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. João é muito extremoso, e o que faz é por desejar o seu bem d'elles, mas, graças a Deus, a casa é rica e não era preciso amofinar-me tanto os meus meninos... O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas janellas, cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes em reboco pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em outras partes as colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam em suas pinturas desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores anãs, e no meio de arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas lavradas inculcavam a paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a grande altura, enegrecidos pelo fumo da immensa chaminé de pedra, ornada de leões de marmore nas bases, e rematada com um brazão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras. O sr. Romão Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma das faias mais direitas da quinta. Nascêra e fôra creado desde a infancia n'aquella casa, e não conhecera nunca outros amos senão D. Vasco, e D. Magdalena. Acompanhára seu senhor, assim lhe chamou sempre, em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando esforçadamente ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis desde 1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de saboroso pasto aos serões da familia, obrigada a engulir como artigos de fé todas as aventuras da nova «Tavola Redonda,» que a imaginação do escudeiro entretecia na tela interminavel de sua cansativa Illiada. A sr.ª Brizida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das apparições, era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, roliça e risonha, suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas maçans rainetas. As feições, pouco accentuadas, e quasi infantis, sumiam-se entre as roscas das nedias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura affectada com uma larga experiencia da vida. Toda aquella pequena e buliçosa matrona respirava aceio, cuidado, devoção, e azafama. Collaça de D. Magdalena, e casada com um dos caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da filha primogenita da casa, enviuvára sem filhos, nem saudades do estado, resumindo todos os affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas creanças, que trazia sempre na boca e no coração. Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez de mais para a testa, e o córte dos vestidos á beguina, affirmavam o programma da sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria recheada de orações, de visões, e de devotas crendices, o seu defeito capital era occupar-se muito com as vidas alheias, enfiando um rosario de conselhos a proposito de tudo, e mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hospedes, mas sem intenção ruim. Todos se encobriam d'ella, quanto podiam, porém ninguem a aborrecia. Temiam-se da intemperança de suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu caracter, que era na verdade excellente. Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas, representava em tudo o opposto d'ella. Sério, como um santão, embizourado, e quasi sempre com a aguda barba escondida na gargantilha, se levantasse a vista e a curiosidade para os negocios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle profundamente. Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o conselheiro nato da sr.ª Brizida em todos os casos intrincados, e o defensor convicto dos seus mêdos e indiscrições.--«Boa alma! Boa alma! respondia aos que a censuravam. Tem o defeito de fallar de mais, mas é uma santa pessoa.»--Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edição das guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrificio de suspender a loquacidade propria!... O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calças côr de pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado no cavallete do interminavel nariz, não desabotoava a seriedade do rosto, nem dava ferias ao enfado chronico senão para sorrir á sua comadre Brizida. Aquelles olhos verdes desbotados não se animavam senão para festejar algum bom dito da matrona, cujas fallas assucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna do antigo campeão da independencia portugueza. A predilecção honesta, mas decidida dos dois um pelo outro, não escapára aos criados, e todos acreditavam que, cedo ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a união de duas almas já tão intimas. A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita do Tejo, estendia as matas e charnecas até á ribeira, que separa Paio Pelle da villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, distaria pouco mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio antigo, talvez fundado por meiados do seculo XIV, accrescentado, e reparado pelos fins do XVI. As ameias, já derrubadas em muitos lanços de muro, proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas por torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo fóra do corpo principal do edificio, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada, cujas doze janellas de architectura irregular olhavam para elle. No terreiro se tinham jogado cannas e corrido touros nos anniversarios festivos dos senhores. A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas parietarias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol até ao primeiro andar. Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para os subterraneos allumiados ao rez do chão por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de salas nuas, frias e tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde o ar e uma luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, crusados de passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo desde o andar terreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rêde inextricavel, um verdadeiro labyrintho. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras, prolongava-se á maneira de refeitorio entre dois extensos corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada para o jardim, na outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para os vãos, os quaes por cima corriam em largura e comprimento da casa. As torres communicavam-se com o corpo do edificio por duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos annos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudaes do inverno. O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de pedra no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingidas de vallados altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do palacio era carregado de melancholia. Rodeado de solidão justificava em sua tristeza as queixas, que ouvimos á sr.ª Brizida. Porque escolhera, porém, D. Magdalena aquelle êrmo para abrigo dos filhos e dos criados, quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas aonde podessem respirar, longe do bulicio da côrte o ar do campo? D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de que fôra tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do couto de Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fernando na comarca da Beira. Formosa, discreta e recatada, perdera seu marido, D. Vasco Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. João IV e D. Affonso VI, havia tres annos, e ainda não enxugára as lagrimas da viuvez. Em edade de merecer e de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, aonde não recebia senão as visitas de alguns amigos antigos da familia, guiando-se em tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu irmão, grande sabio, e doutor em canones e theologia, o qual se encarregára de dirigir a educação litteraria dos sobrinhos. D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nascimento, como pelas qualidades do caracter e do espirito, unira ás propriedades de sua casa, já mui rica, o senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de Almourol, que sua mulher lhe trouxera em dote, mas quasi sempre occupado na côrte com os negocios politicos e no serviço activo das armas, só duas vezes visitára de fugida aquelle solar desamparado, que principiava a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras e a cobrança dos direitos do donatario, com excessiva confiança, diziam os murmuradores, á probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e ladino, que mais as disfructava como usurario, do que as geria como administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam n'aquellas mãos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro estado das cousas, na companhia de seu irmão, fr. João Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais conveniente. Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas relações de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo ramo dos Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma comarca, aonde existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que tão viçoso beija as aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. Affonso de Noronha, saira da côrte para o exercito do Alemtejo. D. Affonso, illustre pelo berço, e já illustre pelo valor, vira crescer em belleza, primeiro com assombro, depois com paixão ardente, sua prima D. Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pae o amor, que ella lhe inspirava. D. Nuno confiou este segredo á ditosa mãe, e ella, não podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar o sim, quizera, comtudo, sondar disfarçadamente as inclinações da donzella. Conheceu com alegria, que D. Affonso começára a apoderar-se d'aquelle coração, que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas as primeiras e vagas aspirações de um sentimento, que não sabia definir ainda. Corria o anno de 1663. D. João de Austria, á frente das armas castelhanas, tentára o derradeiro esforço, invadindo Portugal com dezeseis mil soldados, e os nossos generaes, juntando as forças, mal conseguiram oppor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Evora, que devia ser um dos baluartes da resistencia, accommettida no dia 14 de maio, capitulára, depois de pouco honrada defeza. Este revez aggravou os receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a insultar Alcacer. D. Sancho Manuel convocára immediatamente os officiaes a conselho, e só um voto, o d'elle, approvára a conveniencia de ferir a batalha, que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A pericia de Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o ultimo precipicio da independencia; mas a feliz temeridade do conde de Villa Flor, fechando os olhos á prudencia, applaudia o encontro decisivo dos dois exercitos, como o unico meio, embora desesperado, de salvar a provincia e o reino da sujeição estrangeira. O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltára as casas de Sebastião Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de Elvas. A todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um lance repentino podia sepultar para sempre as esperanças de Portugal! A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito mezes do que D. Pedro, seu irmão, contava n'esta epocha dezesete annos, e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez que o unico senão de tanta belleza fosse a sua mesma perfeição irreprehensivel. No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranças, confundiam-se os lirios e as rozas na mais mimosa frescura. A bocca, fina e espirituosa, córada como um botão nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma expressão adoravel. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam ás vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente se inflammava, mas sua tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixão dormia ainda, facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor aquellas pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo de uma estatua primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista como que involuntariamente se alçava a buscar nos hombros as azas da Silphide. A voz tinha condão seductor. A estatura, um pouco acima de ordinaria, e flexivel como a hastea de uma flor, tambem se dobrava como ella, parecendo que o esbelto corpo de melindroso não podia com o doce peso da fronte, em que as mil graças da primeira enamorada primavera competiam umas com as outras sem se vencerem. As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a attracção, que o calculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o arteficio. O requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do sorriso, e a magia arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam espontaneos, prendendo os sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda era maior, se é possivel. O coração retratava-se na fronte limpida, e os infinitos thesouros de ternura e de abnegação, que por ora concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando se abrissem a affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor ditoso. A pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que affrontado não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da indole a firmesa da vontade. Os dotes do espirito esmaltavam as qualidades moraes. Talvez não houvesse na corte dama ou donzella tão instruida na lição das boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e castigadas dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos por Fr. João, eram a sua companhia certa nas horas de repouso. D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distincções, que o exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustração do berço, do que a elevação do caracter e a fidalguia das acções, que em edade tão verde quasi o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, comtudo, senão a confirmassem n'este juizo a presença insinuante do mancebo, a gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua phisionomia. Os olhos da donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo, aonde riam as illusões da vida e da juventude, nunca fugiam d'elles, senão a furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o que tentaria encobrir em vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os labios dos dois tinham soltado uma palavra, que revelasse o que sentiam. Amavam-se. A alma de um trazia sempre gravada a alma do outro, mas só a eloquencia da vista, indiscreta ás vezes, traira o segredo. D. Affonso, não podendo por mais tempo calar a chamma, que o abrazava, tinha declarado ao pae, momentos antes de metter o pé no estribo e de partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas esperanças, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não perdera a occasião, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto. A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, com alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado de subito o manhoso camponez, soubera disfarçar o embaraço e as apprehensões, mas custara-lhe a conformar-se com a presença dos amos na casa, que havia tantos annos estava costumado a olhar mais como sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar á pressa duas salas e algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos nos vãos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a senhora e Fr. João Coutinho poucos dias se demorariam atraz da familia. No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a ultima pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos quartos da aya e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos de ferros e cadeias arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desappareceu. O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe sacudia os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira noute levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, petiscou lume, accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quasi em vestido de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do braço. Depressa se arrependeu. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão momentaneo e sulphurio mostrou-lhe, envolto no sudario, um spectro descummunal e ameaçador. Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das roupas, acto de valor, em que a sr.ª Brizida de Sousa o acompanhava conscienciosamente havia muitas horas. Pela manhã os dous velhos pareciam desenterrados. O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi mais respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia continuada as longas horas, que medeiaram até ao amanhecer. D. Pedro ainda padeceu mais. Acordando sobresaltado ao impulso de mãos brutaes e no meio de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar dentro das cobertas entre uivos e rizadas. Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, ouvindo da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades nocturnas, contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, que em vida de seu pae, já tinham muito má fama as casas do andar nobre. As noutes seguintes não foram mais tranquillas. Os espectros e duendes tinham de certo reservado aquellas espaçosas salas, e os corredores, para theatro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo conspirado com elles os ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as trovoadas de maio tão carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em relampagos, e a terra tremia com o rebombo dos trovões. As chuvas caiam tão impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, alagava as margens, e suas aguas batiam enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castello de Almourol, salvando por cima do caes em cachões de espuma. Ao oitavo dia acalmaram-se as tempestades, mas redobraram de força os maleficios nocturnos, com terror, e espanto summo dos recem-chegados. Avexados, tremulos e fóra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar a residencia para os aposentos do castello, que não tinham desabado ainda minados pelos seculos e pela indifferença; mas o feitor, que estabelecera n'elles uma filha casada, dissuadiu-os do proposito, ponderando que as salas e os quartos do velho edificio dos Templarios, alem de frios e de mais nus, que os do palacio, não eram menos perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou elle, as almas dos cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha da famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da noute sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e ouvia-se a voz das sentinellas. Até raiar a aurora não se calavam na sala de armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando esta descripção horrifica, Brizida de Sousa e Romão Pires olharam consternados um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, não querendo precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar as travessuras menos estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. Magdalena, pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle purgatorio o mais cedo possivel, ou que viesse sem demora em companhia do Sr. Fr. João desalojar os espiritos diabolicos, cuja audacia zombava da agua benta e exorcismos do Vigario de Tancos. Os dous honrados servos confiavam que a grande sciencia do frade doutor e as virtudes do habito de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da rebeldia de Satanaz e da maldade dos seus accessores. II Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a cêrca exterior da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, defronte de Tancos.[2] Cinco seculos, passando por cima d'ellas, não haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem alluido o cimento indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a acção do tempo e o braço infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo, transferida de Castro Marim para Thomar, a séde da sua victoriosa milicia, estendera rapidamente pela Estremadura os membros robustos. Affonso I, liberalisando-lhe doações e privilegios, e enriquecendo com largos senhorios os monges soldados, confiára quasi exclusivamente ao seu valor a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure, Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras povoações, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte bipartido[3]. As chaves das duas entradas da provincia estavam nas mãos dos cavalleiros. Defronte da moderna Constança, na confluencia dos dois rios, o castello do Zezere cortava o passo aos agarenos da Beira Baixa, em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello de Almourol fechava o caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia. As ruinas, que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam aos que sabem interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre um ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali caprichosamente pelo impeto de violenta irrupção vulcanica, as elevadas torres do velho castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam descortinar de longe, erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito mirrador dos seculos. Grinaldas de heras penduram-se em festões das ameias desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios dos pannos rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, tão arremessados que o dedo de uma creança parece sufficiente para os fazer escorregar com o muro que os corôa, para o leito do rio, espanta os olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio ousado e quasi milagroso. Areias accumuladas, e alguma terra de alluvião formam o solo, aonde cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos troncos torcidos se penduram de cima das fragas até roçarem as aguas com as ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os penhascos aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio precipitadas. Uma vegetação activa e luxuosa veste de verdura aquelle cahos de moles immensas sustidas ha seculos no meio da ameaça constante de uma quéda instantanea. No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia, o aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou, mas a assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. Do lado do occidente quatro torres circulares, levantadas como sentinellas de granito a egual distancia umas das outras, alçavam as frontes torvas e já tostadas do tempo. Entre a segunda e a terceira rasgava-se a porta actualmente intransitavel do castello, com a sua volta de ogiva e grossos batentes de castanho chapeado. No meio do guerreiro edificio avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto intervallo, outra quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias. Uma janella ornada de lavores em ramos, aberta a dois terços da altura, esclarecia os aposentos do segundo piso, em quanto da parte oriental duas frestas do mesmo estyllo davam claridade á sala de armas. Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a muralha subia a grande altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes ficava ao sul, e o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, corria profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje são ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os cactus silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaçoso por onde se entrava para os andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles aposentos, pouco espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas laçarias. Em 1663 a obra da destruição principiava a annunciar-se apenas. Apesar de nuas, as salas ainda conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e adarves, se não alvejava havia mais de tresentos annos o manto branco dos templarios, se algumas heras, trepando, se balouçavam á mercê do vento, e se as torres e muralhas mostravam já a côr adusta, que é para os monumentos o que são as cãs nos velhos, um testemunho irrecusavel de que viram e viveram muito, não se tinham esmorecido, comtudo, nem apagado ainda nenhuns dos vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol no meio do Tejo, similhante a um titão com metade do corpo fóra das aguas, ainda podia ameaçar forte e intacto, os que ousassem arriscar-se ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel cuidava no vigor de sua robusta velhice zombar dos seculos, como as creanças zombam dos annos, bem alheio de suppor, que na transição da edade grave para a decrepidez sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas diriam ás gerações indifferentes da nossa época, que eterno e grande só é Deus! Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e ornada de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os dois ricassos da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais ainda pelas raizes de interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues ajudava piedosamente seu genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar copiosas libações de um vinho, que escaldaria outras goelas menos estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e pés torneados, que servia de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho d'aquelles contornos, avultava um alentado cangirão de barro, bojudo, e cheio até á boca. Principiára a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos, similhante a monstruoso aranhiço, allumiava a casa escassamente. Duas espingardas, carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, promptas para servir á primeira voz. Antonio Rodrigues era corpulento, espadaúdo, e reforçado. Faces largas e cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça enterrada entre os hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes denunciavam n'elle o vigor de um atheleta unido a uma saude inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta annos, mas os visinhos do seu tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e acertavam. Mas era uma velhice verde e jovial, que não se inclinava ao peso dos annos, que o trabalho não desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim viçosa e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo douto Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter de receitar nem um xarope áquelle cliente invulneravel ás chuvas, aos frios, e a todas as temeridades, a que um mancebo se não atreveria impunemente! Antonio Rodrigues trajava á camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibão e calças de baeta escura, carapuça de lã, e o inseparavel varapau ferrado na ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha de cabellos grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa, pouco sulcada de rugas. O sorriso enroscava-se perenne nos beiços grossos e córados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como os de um tubarão, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o peito, e os olhos castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em gordura, dir-se-hiam que espreitavam tudo, meio encobertos. A voz aflautada causava espanto saindo d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz grosso e cravejado de botões vinosos, rubros como rubins, assumia dimensões quasi phenomenaes. A expressão da phisionomia era dubia. O observador no primeiro relancear apenas notaria a beatitude do comilão repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e, comparando o olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feições moraes significativas da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma cubiça incapaz pela avidez de transigir com a honra, com a consciencia e com o dever. Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto aos dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo alpha, e o outro pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto, assustava os que o viam com o receio de que um dia lhe saltassem os ossos das tibias e dos femurs soltos das ligaduras. Braços de polipo, terminados por mãos e dedos eternos, hombros agudos sobre os quaes o fato dansava como posto em cima de um cabide, rosto comprido, escaveirado, e macilento, acompanhado das melenas esguias de um cabello ruivo e aguado, testa núa que chega quasi á nuca, peito e ventre espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou surrateiros, boca rasgada quasi até ás orelhas, e beiços finos e desbotados, compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais atilado, avarento e sem escrupulos d'aquellas immediações. Parecia fraco e a desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar legoas, os braços escamados encobriam uma força alem do commum, e os olhos vesgos só viam torto para os negocios alheios. Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o velhaco ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria para fóra. Uzurario de nascença, hypocrita por indole e verdadeira voragem de liquidos e solidos, digeria como um abestruz e bebia como um areal. Quando conversava, sempre em fallas manças, sabia chamar a tempo uns frouxos de tosse e umas lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a engulir metade, e ás vezes duas terças-partes das palavras, e é inutil accrescentar, que as palavras engulidas eram sempre as que o podiam comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o caso o requeria, Pedro Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma cascata de prantos. Tinha as glandulas lacrimaes devassas e chorava como um crocodilo. Ai dos innocentes que se deixavam orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam quasi sempre sem camisa. No meio d'aquelle rosto afiado erguia-se um promontorio immenso. Era o nariz adunco e aguçado na ponta, que descia quasi a beijar o labio superior. Este nariz, delgado e membranoso, rematava a semelhança que tinha aquella cara com o focinho da fuinha. Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso geral as funcções de procurador de dous conventos de freiras, de quatro irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos lucrativos a arrematação dos dizimos e premicias da comarca. --Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando o caneco despejado em cima da mesa. --Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro Lavareda com um sorriso avinagrado. --Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui mettida. Tomara vel-os pelas costas. --Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá saudades! redarguia o outro com meio sorriso acido. --Isso é facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vês, os donos da casa são elles!... --Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são ellas!... --Hum! Podiam ser melhores... Esse é o meu receio. Trazemos isto muito de rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse já ou lh'o ha de dizer. --Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse. --Pois sim!... Olha, não seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a castanha na boca uma d'estas manhãs?! --Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira á boa feição, e o dinheiro é sangue... --Mas homem!?... --Deixe lá, sr. sogro, não se metta a abelhudo aonde o não chamam, e deixe ir a agua ao moinho. Já alguem fallou em lhe levantar a renda da alcaidasia?... --Não. --Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração á larga. O que for soará. Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coçava a nuca com o indicador e o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava sobre a taboa da meza com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da barba sumiam-se-lhe na golla alta do gibão, e os olhinhos, homisiados entre as palpebras meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo na apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de linho, em quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mão raspava uma nodoa conhecida e teimosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavam e se entendiam sem fallar. O feitor de repente levantou meio corpo de cima do mocho de pinho em que se assentava, colheu o cangirão pelas azas, sopesou-o por um instante, e emborcando-o, encheu os dous canecos de louça. Levou depois o seu á boca, encurvando lentamente o braço, e despejou-o em poucos sorvos, emquanto o sobrinho, coleando primeiro a lingua pelos beiços, libou com mais vagar e com gestos de amador consumado o nectar, que espumava na grosseira taça. --Rapaz, isto não vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro. Anda mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me abotou-o. Esta gente de Lisboa aqui não gosto nada d'ella. --Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya é uma tonta, uma pêga douda. O escudeiro não passa de um espantalho de pardaes, e os meninos.... leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada nascida de oito dias e verá se não lhe dizem que é trigo. --Mas atraz da pêga e do espantalho tenho muito medo que venha o milhafre!... --Qual milhafre?!... --O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de verdadeiro susto. --E então se vier?!... Lê no seu breviario! O Sr. Fr. João Coutinho sabe muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio... --Nisso te enganas. É capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se no campo e administrou muito tempo os bens do convento. --Ah! Ah!... --E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela prôa com a Sr. D. Magdalena. --Mau será!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Máu será, tio!.... Mas não havemos de perder o somno por isso. Dizia no mosteiro, aonde me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo o genero de peccado deixou Deus remedio na sua egreja... Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco satisfeitos. --Então que dizes, homem?!.. --Se o frade vier.... é pôl-o ao fresco, em vinte e quatro horas. --Estás mangando, sobrinho?!.. Pôl-o ao fresco? O irmão da senhora, o tio dos meninos?!... --Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa. --Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?... --Mettendo-lhe medo. --Ao sr. Fr. João, que é rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai dormir, Pedro, isso é somno. --Sim sr., metter-lhe medo, porque não?... --Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito á lambareira da aya e ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada de escarneo. --Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade não foge?... Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lençoes da cama. --Deixa-te de historias, Pedro!... As visões com o frade não pegam. O que apanhas é algum tiro.... e olha que é caçador que não erra. --Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e verá.... --Emfim, lá sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo! O frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho muito amor á pelle. --Socegue. Eu tambem não tenho odio á minha. Diga-me: se Fr. João vier, aonde o mette? --Aonde o metto?!.. Porquê? --Preciso saber. --No quarto verde talvez... --Nada! Dê-lhe o quarto dos armarios. --Mas!... Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coçando sempre a nuca. O genro ria-se para dentro, raspando a nodoa do calção. --Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu risinho. --Pois não tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua mãe Maria Santissima. --Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!... Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no sr. Fr. João.... Não é por elle, é por mim. Nada de graças pesadas! Não me quero ver na cadeia comido de pés e mãos. Leve antes a bréca as terras. --Ai, tio!.. Não se faça teimoso, e não esteja calumniando as minhas intenções.. Valha-me a Senhora Sant'Anna. --Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?... --São passos. --E vozes... Chega á fresta e vê! Pedro Lavareda obedeceu. Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram-lhe na cara, apenas abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se passava no rio. O devoto personagem recolheu á pressa o interminavel e esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas, e, enrolando um lenço por cima da gola do gibão, tornou a affrontar, porem mais abrigado d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta observação, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se defronte do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada no afunilado rosto uma verdadeira elegia. --Então?!... disse o feitor já sobresaltado com a mimica tetrica do sobrinho. --Fallai no mau, apparelhai o pau!... É o frade!.. --Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de pé de um pulo e enterrando a carapuça até aos hombros. O frade?!. --Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razão, tio. Anda mouro na costa. --Vem a Senhora D. Magdalena?... --Não. Vem elle só. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro. --Não te dizia eu, Pedro?... E agora?... --O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua. --Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. Não gosto nada da vinda do sr. Fr. João assim com este segredo.... Receio.... --_Valaverunt galhetas_, sr. meu tio! como nós diziamos no convento!... O caso está feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem rabo!.. melhor, porém, o ha de fazer Deus e sua Mãe Maria Santissima, minha madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom vinho alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber o sr. Fr. João, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada. --E tu?... --Eu... Fico para pôr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! Dê ao sr. Fr. João o quarto dos armarios. É essencial. --Porquê?... --Pela bocca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça esperar sua reverendissima e encommende-me nas suas orações á minha devota Senhora Santa Anna... --Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha lá?.. Cuidado com a pelle do sr. Fr. João! --Vá descansado, tio, não hade haver novidade. Vem ceiar? --Venho. --Até logo. E os dous consocios e parentes separaram-se. III --Com que então solto anda o demonio por estes palacios confusos, e afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me contam! Mau é isso!... E vossê que diz, Romão Pires? Parece ainda mais pasmado do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. Antonio Rodrigues, diga-me: aonde é o quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. É de casa! --Eu, sr. fr. João!... Sei só que não se póde parar aqui da meia noite em diante!.. --Ah! sabe isso!?... Ja não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os sustos. --O sr. Fr. João gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!... --Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora Apparecida!... É da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou a sr.ª Brizida, pondo as mãos. --Então o sr. Antonio Rodrigues crê que esta noite haverá ensaio geral de Satanaz e da sua côrte, para festejarem a minha chegada?... Muito bem! Cá estamos. _Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!_ Pelejaremos com as armas espirituaes, que são as melhores, e com as temporaes, que tambem servem em certas occasiões! Mas como vamos de ceia?.. No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar um carneiro assado! E o vinho, aquelle bom vinho de 1655, ainda haverá por cá uma gota d'elle? Ha de haver. O sr. Antonio Rodrigues, o melhor copo de Tancos e seus arredores, aposto que não está desprovido de munições de guerra? Antonio sorriu e coçou a nuca. --A ceia está ao lume, e não se demora tres credos. Quanto ao vinho.... esteja vossa reverendissima descansado. --Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr.ª D. Maria. Ella tem passado peior?... --Não, sr.! Peior não. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a minha rica menina tem perdido as côres. Ella é tão delicadinha, tão fraca!.. Ó sr. fr. João, a menina não podia ler um nadinha menos, mais o sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa? --Não pode, não senhor!... acudiu o frade em voz de trovão. Meus sobrinhos não se educam para espantalhos de sala!... E vossê é muito atrevida em se metter a dar conselhos aonde a não chamam!... --Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir uma repostada assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. João? Não sou moura, nem perra, nem captiva. Pão em toda a parte se come; e se não fosse o amor dos meus meninos, por esta (e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma hora mais n'esta casa! --Está bom, Brizida de Souza, está bom! Não se inflamme. Sabe que a estimo, que todos em casa lhe queremos muito.... mas não me toque n'essa córda. Sei que me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que elles não teem uma tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa aos meus livros!... --«Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» resmungou a velha ainda irada e incorregivel. --Mas eu é que não quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos, mulher!--bradou o frade fazendo-se côr de purpura e sorvendo duas pitadas com o ruido de um furacão..--Safa! Vossê é capaz de fazer perder a paciencia ao proprio Job!... Bem! Não fallemos mais n'isto, e não faça caso dos meus repentes.... Sabe que não sou tão mau como pareço e que trago sempre no coração os meus dois rapazes... --Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. João berra, esbraceja, é um destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos Deus de uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o dente calados.... --Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa intenção. Chame os pequenos. A ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella como Santiago aos mouros!.. Vamos. A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra, regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. João proclamou rival do melhor que se podesse beber á meza de el-rei. As proezas gastronomicas do erudito dominicano tinham assombrado o proprio feitor, cujo estomago insondavel sepultava sem incommodo alimentos de todas as qualidades, e se carregava de quantidades que eram o espanto e maravilha dos que assistiam ás suas repetidas campanhas pantagruelicas. D'esta reputação merecida Antonio Rodrigues viu-se obrigado a arrear bandeiras. O padre mestre não comia, devorava, não bebia, absorvia! Regando de copiosas libações cada iguaria rustica, absolvendo as indigestas com um exorcismo culinario, fazendo desaparecer do prato as menos pesadas com milagrosa rapidez, dir-se-hia que a fome iberica e peninsular, a fome de dentes caninos e apetite insaciavel, tomára a figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos uma verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porém, e Fr. João, exalando um suspiro, e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda suffocada do esforço: _Deus nobis hæc otia fecit!_ O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o barretinho de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não offerecia de certo a imagem dos piedosos e extenuados monges, que em epochas de mais fé edificavam os fieis com o exemplo de sua vida frugal e contricta. Parecia mais um hippopotamo encalhado, do que um devoto filho de S. Domingos. Os instinctos animaes prevaleciam, e a fadiga de uma digestão laboriosa fazia arfar aquella machina de mastigação continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admiração sincera de creaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em oração atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o padre coloçal fulminado por um ataque apopletico. Romão Pires ainda não podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel do irmão do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam no brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente com a unha, e dizia comsigo, que o frade, medindo as forças pela alimentação, devia prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em dous, como o faria qualquer mastim faminto ao gato descuidado, que lhe caisse debaixo das prezas. --_Deus nobis hæc otia fecit!_ tornou a repetir Fr. João depois de uma pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e agilidade.--Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!.. Minha sobrinha! Não gostei de a ver tão triste. Que nuvem pesa sobre esse coração? São receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver são e escorreito.... --Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida. --Pois quem hade ser senão aquelle cavalleiro andante que se despedio de nós e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me agora? --Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza. --Está bom! Está bom! Não digo mais nada.... Romão Pires sabe que os castelhanos tomaram Evora, e que a estas horas hão de estar as mãos com o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem vence?!.. --Essa é boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa Flor. --Deus o ouça! Bom é ter fé!.. Mas!--E a larga fronte do frade enrrugou-se aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de lhe cobrirem quasi as palpebras superiores--_Deus super omnia_! murmurou. Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se com estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou impetuosamente pelo aposento, com os olhos espantados, as faces contraidas, e os cabellos ruivos espetados, representando a imagem viva do terror e da consternação. --Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!... A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de pé, não menos assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora. --Os castelhanos!?.. gritou Fr. João, saltando da cadeira e empunhando machinalmente um bastão enorme, especie de clava, que o acaso lhe mostrou encostado a um canto. --Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e erguendo as mãos. --Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a longa navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em quanto Romão Pires sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiçosa. D. Maria, branca de cêra e silenciosa, encostou-se á mesa para não cair. D. Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes, e a fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de côrte, e deu alguns passos como se quizesse sair ao encontro do perigo. --Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. João. Ás armas! sr. Antonio Rodrigues chame os criados!... Façamos de Tancos e de Almourol uma segunda Aljubarrota!... Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de impaciencia batia o pé como o corsel insofrido escarva o chão desejoso de soltar a carreira. --Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a noticia, e aonde estão os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com extrema serenidade. --_Do manus!_ _Rem acu tetegiste, puer!_[4] gritou o frade sentando-se commovido e ainda tremulo. Façâmos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em primeiro logar: quem é e como se chama este correio de más novas?.. --É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda. --Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue á falla o sr. Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a má noticia que nos trouxe?... --Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!... --E que disse o almocreve?... --Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no campo, e que as guardas avançadas de D. João de Austria estavam a entrar no Crato!... --Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha? --Não m'o soube dizer. --Hum! E o seu almocreve aonde está?... --Partiu, caminho de Lisboa. --Oh! E não sabe mais nada? --Mais nada, sr. padre mestre. --Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de amigo?... --Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!.. --Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve, durma sobre o caso, como nós vamos dormir, e creia que amanhã acorda convencido de que engulio uma peta mais comprida do que a sua pessoa, o que já não é pouco. Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e hypocrita de uma annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam soffrivelmente um sorriso boçal. --_Macte puer!_ gritou Fr. João, batendo no hombro de D. Pedro. Tiveste mais juizo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e mentira mal armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma até Almeida! Romão Pires, enfie-me na baínha esse eterno chifarote, espanto e censura viva das espadas de hoje!... --Então vossa reverendissima já não quer que ponha de aviso os criados? disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com o genro, colloquio, que apesar de curto, não escapara a Fr. João. --Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma boa ceia é o melhor remedio para estas molestias. Aonde é o meu quarto? O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador ao sobrinho, que lhe respondeu com um aceno quasi imperceptivel de cabeça, e, pegando em um maciço castiçal de prata denegrido, precedeu a especie de procissão de toda a familia até ao aposento, aonde o douto dominicano havia de passar a noute. A porta abria-se no topo do comprido corredor do centro; a camara de D. Pedro ficava-lhe á esquerda, e o pequeno camarim de Romão Pires á direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados, e seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brizida de Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. João, nada inculcava de notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de peitos e uma sacada, cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a par de largos pedaços das colgaduras de couro, que em melhores dias as tinham ornado, altos e grandes armarios de pau santo. Os tectos altos e enegrecidos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalando com o peso dos passos, atestavam a velhice e o desamparo. Um leito antigo, enorme, com sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de pau santo arruinado, e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou quatro cadeiras coxas dos pés, ou mutiladas dos braços, a mobilia nada commoda, nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruição minava, e esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram alguns paineis grandes, retratos de corpo inteiro de guerreiros, damas, e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras de carvalho, lavradas de talha alta. O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, sorrindo-se, ao feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas almas do outro mundo. Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda cabeça, e Brizida benzeu-se devotamente. --Bem!... N'esse caso é preciso estar armado e vigilante para a batalha! Se escaparmos aos castelhanos do Crato, não quero que acabemos nas garras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz favor! Mande trazer para aqui o meu alforge, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro Lavareda (exquisito nome (!)) é bom caçador por certo, e hade ter uma espingarda de mais. Eu tambem gosto de dar o meu tiro de manhã cedo ás perdizes e ás calhandras por essa charneca. Conto levantar-me com o sol, e dar um passeio pelas fazendas, para tornar a ver estas terras em que não ponho os olhos ha um bom par de annos. Para não ir com as mãos abanando levarei a sua espingarda... Não a heide tratar mal, descanse!.. --Essa é boa, sr. Fr. João! A espingarda, eu, e tudo o que mandar estão ás ordens de vossa reverendissima.... --Muito obrigado!... Olhe não se esqueça de me trazer um frasquinho de polvora. O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a Romão Pires, e pondo as mãos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em voz baixa: --_Latet anguis!_ Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella face compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous, elle e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão conjurados contra nós... Porquê e para quê? O tempo o dirá. Olho vivo, pois, Romão Pires! Se lhe apparecer visão, ou espectro, receba-m'o ás cutiladas. Eu cá espero a pé firme os que vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes deitar, hade chamuscal-os de véras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous velhacos. De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a espingarda e o frasco. Fr. João fallou um pedaço com elles, sempre com a boca cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar até pela manhã, e despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiança. --O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse Antonio Rodrigues com o rosto carregado. --Veremos, sr. meu tio. --Guarda-te de elle te pôr as mãos. É capaz de estourar um boi. --Melhor o fará Deus! --Boas noutes. --Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda. --Sentido! Nem uma beliscadura! Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do corredor, Fr. João Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e parecia ficar inteirado de que as paredes e os armarios não encobriam portas falsas, nem os sobrados alçapões. Abrindo o alforge depois, tirou de dentro um par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as escorvas, e passando á espingarda, carregou-a com todo o cuidado, metteu-lhe uma bala, e pousou-a engatilhada á cabeceira da cama. Feito isto foi á porta pé ante pé, descerrou-a de manso, e em passo subtil encaminhou-se ao camarim de Romão Pires, aonde se demorou. Á volta--davam onze horas--achou tudo como o deixara, rezou pelo seu breviario, e despindo só o habito, abafou-se, conchegou as colchas, recostou a cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um somno profundo annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, as almas penadas, e os virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade não julgára de bons quilates. Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito, pesado e maciço, arfava, balouçado como um barco sobre vagas inquietas. O frade entre-abriu os olhos. A vela do castiçal estava em um terço, e a luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e silencioso. Entretanto o leito não parára de dansar, e, facto mais singular ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mão, ou braço que lhe tocasse. Fr. João deixou-se ficar, tomando sómente uma posição que lhe consentisse saltar ao chão de um pulo para travar a lucta com os duendes e spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador á cabeceira, e a espingarda ao pé. Entretanto, apesar de animoso e resoluto, o suor principiava a borbolhar-lhe na testa, e um calefrio suspeito a correr-lhe a espinha dorsal. --Isto não vae bem! Queria antes ruido, grilhões arrastados.... a scena do costume. Esta calada e estes empuchões invisiveis.... sinceramente sería de fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!.. Lá se foi a roupa até aos pés da cama.... Não gosto da graça! Que é aquillo? As pinturas andam!?.. Oh!... Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos cabellos, que lhe restavam, erriçados em volta da calva, com as feições contrahidas e a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no painel, que lhe ficava fronteiro e que representava um cavalleiro da edade média coberto de toda a armadura, mas com o rosto sem viseira e os olhos ameaçadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura, parecia mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. João quiz duvidar do testemunho dos sentidos, e convencer-se de que era victima de uma illusão. Esfregou as palpebras, beliscou os braços para despertar a sensibilidade, mas o retrato continuava a adiantar-se, e um sorriso tetrico como que lhe franzia os beiços. Ao mesmo tempo os ouvidos afiados do dominicano colheram, não sem grande pavor, o som amortecido de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante ao gemido doloroso de afflictivo estertor. --_Vade retro, Satanaz!_ murmurou saindo da cama cheio de terror. _Ne nos inducas in tentatione!_ Apenas soltára a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furacão medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes. Fr. João recuou até ás cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os joelhos, e fugir-lhe o animo. Estendendo a mão nas trevas machinalmente, encontrou uma das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos apertaram tambem machinalmente a coronha. De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma gigantesca envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta figura descommunal, cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas cavidades dos olhos, e acenava com os longos ossos de esqueleto. O frade tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas espirituaes não produziram effeito, e, apesar da perturbação momentanea, tornou a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle espectaculo uma visualidade, ensaiada para zombar da sua boa fé. Revestindo-se, pois, de valor e decisão, apontou rapidamente ao vulto, que tinha diante, a pistola, que não largara da mão, e disparou-a. Observando que o tiro não causára abalo no phantasma, pegou depois na outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou o gatilho. Uma risada estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o spectro, mostrando as duas balas, arremessou-as ao chão, aonde o padre mestre as ouviu rolar. Logo em seguida o clarão sumiu-se de subito, espessas trevas envolveram o quarto. Fr. João, quasi desmaiado, caiu em uma das cadeiras proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os membros, e paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo terror. Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas não eram menos activas e violentas nas camaras dos outros hospedes. Romão Pires, apenas se deitára, e escondera a cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco em harmonia com os brios de suas falladas campanhas, sentio apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de pancada e sem dó nas taboas do sobrado. O grito de mêdo e de dor, que soltára estremunhado, teve em resposta um côro de risadas em falsete. Brizida de Souza acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de agua que lhe entornavam sobre a cabeça, e saltando por a casa em roupas menores, e com a boca escancarada, para bradar, era comida no ar por mãos pouco caridosas e nada leves, que de empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde veiu encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem accusava uma força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de pavor, não padecera senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros. No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque tinham chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na intervenção dos poderes infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute sem se despir, e com a espada nua ao lado, tinha-se entregado á leitura de um livro novo, que em breve lhe absorveu a attenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada das investidas no corredor e nos aposentos proximos. Apagando a luz, e empunhando a espada, aguardou silencioso. A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber dous vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se debruçava sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava d'elle sons roucos e medonhos, caiu ás pranchadas sobre o musico do Averno, ao qual o instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela casa, gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro phantasma volveu logo em auxilio do agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao que pareceu, deitou-o pela porta fóra como um vendaval, em quanto o companheiro tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo. D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castiçal e a candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão um buzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com lagrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarello. O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao mesmo tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gôtas de sangue, caidas no pavimento desde metade da casa até á porta, provaram-lhe que um dos actores do drama nocturno retirara ferido e assignalado. D. Pedro pegou no castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo corredor, notou que parava no topo, aonde só existia uma parede grossa, sem nenhuma saida apparente. Informado do que desejava verificar, voltou atraz, e encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se affirmar. A velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e de frio, esgotavam um defronte do outro todo o vocabulario de rezas e de interjeições atribuladas, sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, fallou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a camara de Fr. João. O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quasi exanime na ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e a espada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas não se moveu. D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir palavra examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo triumphante não deixára despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em cima do velador, collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para junto da cadeira, d'onde o tio, como paralysado, observava tudo silencioso, disse-lhe: --Mas o que foi isto?!.. Fr. João respondeu com um suspiro, e, correu a mão pela testa ainda inundada de suor. --Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!.. Não me dirá o que succedeu?!...» Outro suspiro mais alto. --Por onde entraram elles?... O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, meneou a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio corpo da cadeira, e apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos antes soltar-se da moldura, e encaminhar-se para elle. --Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castiçal e correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou: Olhe?! --O que? disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido e tremulo, como se acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade. --Venha meu tio, e veja! De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um botão debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo á pressão, abriu-se lentamente. --Ah!.. exclamou fr. João. --Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo. --Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as côres, a elasticidade dos membros, e a viveza dos olhos. Mas abaixando a vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no chão, e uma nuvem torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o que succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um immenso ponto de interrogação. --Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro. --Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão Pires. --Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo? --Como de te estar vendo. --E metteu-lhe uma bala de calibre? --Seguramente. --Muito bem, quer vêr? E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a polvora. Da bala não achou noticia. --Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os dentes, plectorico de colera. --Podiam atirar-lhe com tres balas aos pés em vez de duas! Tinham tido o cuidado... --De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão de pagar-m'o caro!... Só atazanados! --Dá licença que lhe dê um conselho?... --Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais, do que nós todos. --Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha. --Bem! Bem! _Do manus! Qui nescit dissimulare nescit regnare_, acudiu fr. João, esfregando as mãos. Ah! patifes! O que elles se terão rido á minha custa!... --Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Bôas noites meu tio. Socegue, que bem o precisa. A CAMISA DO NOIVADO I Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu tempo certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos quaes disserom, que as Leis e justiça erom como teias de aranha nas quaes os mosquitos pequenos, caindo, são reteudos e morrem em ella, e as moscas grandes e que som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as e vão-se. Fernão Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX. Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoço, na provincia de Traz-os-Montes, erguia a cabeça soberba acima dos outros logares. As muralhas de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo castello, debruçadas sobre um precipicio despenhado, concordavam com a melancolia do sitio e com as sombrias tradições, de que as memorias do povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de aguias, a vista, relanceando, abraçava toda a campina, mosqueada aqui de arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas além, e empolada mais adiante em collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam até beijarem o cinto de cabeços alpestres, ultima barreira dos horisontes. Ao sopé da montanha, aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma torrente. Era o Angueira bramindo entalado na bronca penedia do leito. Mais ao longe, na coroa dos cerros, os pinheiros meneavam as copas verde-tristes, e os ciprestes solitarios balouçavam ao vento as pontas esguias. Por ultimo, ao largo, já quasi aonde não enxergavam os olhos, recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de Seabra na fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de Nogueira, toucadas de gelos eternos. De tarde, quando começava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens do rio em cóllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e envolvia n'uma cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu caprichoso, cujas dobras sacudia a briza, ora se despregava, deixando entrever confusamente os vultos, ora condensado cerrava tudo em volta do solar. Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo e de nebrina eram tambem as horas dos feitiços. Uma princeza encantada junto da fonte de S. João guardava os thesouros enterrados de certo magico. Linda como as estrellas, a maldade do encantador condemnara-a a arrastar-se todo o anno em figura de serpente. Só na vespera do festejado santo, á meia noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, é que o fado mau se quebrava até ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as escamas luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a formosura rara de uma belleza admiravel. Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e copados ulmeiros á beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de branco, desnastrando as tranças com um pente de ouro, e cantando aos espiritos do ar com tão maviosa voz, que se cortava o coração de a ouvir. Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira já inclinada sobre o espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da côr da açucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se áquella hora qualquer lograsse fallar á moura antes de tornar á fórma de serpente, alcançaria da bella captiva, que era fada, as primeiras tres cousas que lhe pedisse; mas os acasos ditosos são raros, e em cem annos pelo menos não havia lembrança de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido batia os pés, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo, como sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas aguas, e uma leve nebrina por entre as arvores. II Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o _Justiceiro_, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer punisse, quer premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos, os maus tremiam diante da sua face, porque o castigo de suas mãos seria vingador como a ira de Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos. No seu tempo a lei era de um só rosto e a pena não coxeava atraz da culpa. Entre o crime e a expiação não se interpunham annos, promessas, ou favores. Devedor honrado, o principe ajustava logo a sua conta a cada um, e pagava-a immediatamente. Só aos moradores de Algouço, coitados! é que ainda não chegára a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo sentiam sua fé tão viva n'elle, que nas maiores afflicções a voz de todos era sempre: «Valha-nos aqui el-rei D. Pedro!» Por fim valeu, e o caso devia ser escripto com lettras de ouro pela penna d'aquelle honrado e singelo chronista Fernão Lopes, mais poeta do que toda uma arcadia, e grande pintor de vultos e de cousas. Ainda então se aninhava a povoação de Algouço em volta do castello, construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a sombra misericordiosa dos braços da sua cruz. Por ambas as encostas até á corôa da montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos armados nos eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da aldeia, pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e arruinadas de velhice, estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas e remoçadas dissimulando a pobreza com os ares quasi festivos!! «Deus nos livre de tão mau senhor!» era o voto dos burguezes de Miranda, compadecidos da escravidão dos moradores de Algouço, e ainda não diziam desgraçadamente toda a verdade. Ali o suor de sangue regava os banquetes da sala de armas e as pompas quasi regias do rico-homem. O pranto da viuva e as lagrimas dos orphãos molhavam suas mãos, sempre alçadas contra a miseria dos desditosos para destruir o tecto, que lhes abrigava o berço, e revolver ás vezes até o chão sagrado do cemiterio aonde repousavam seus paes, avós, e irmãos. O mordomo trazia de cór os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A vontade do amo e a cubiça dos servos deixavam mendigos á noite os que tinham amanhecido remediados! D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raça o sangue nobre confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o casamento de Diogo Lopes com a Dama-pé-de-Cabra. Verdadeira, ou fabulosa, a alliança dos altivos barões com os demonios tinha sido fertil em crimes. N'uma epocha, em que a lança e a espada cortavam as contendas, calando as leis, e calcando os direitos, os cavalleiros de Algoço excediam os mais ferozes na braveza, e na crueldade ferina. Vêr correr prantos, e derramar sangue, para elles era um deleite. Pizar aos pés dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes das matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro objecto das estrondosas caçadas, em que talavam campos e vinhas a pretexto de montear lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta familia impia. Tres esposas, em seis annos, haviam passado do leito nupcial para o tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de tão mal agourada união. Rosas pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em flor, fanava-as logo? O segredo não transpirou dos labios gelados das victimas; mas sabia-se que os sorrisos do amor nunca lhes tinham alegrado a vida. Desceram ao sepulcro, tristes e silenciosas como existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas sombrias portas. D. Sueiro não soltára um suspiro! Se uma lagrima congelada n'aquelle coração de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida estampava-se na fronte maldicta. O crime das tres esposas fôra a esterilidade. O ferro, ou o veneno, rompera o laço conjugal. A sepultura quebrára o vinculo apertado no altar! Era calumnia? Era verdade? Quem sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes podiam espantar os mais ousados. III Tinha fama de grande monteiro o castellão. Mál o dia despontava, saltava logo no cavallo, e a galope, por sarças e estevaes, por montes e campinas, no meio dos caçadores, entre risos, juras e brados, corria até á noite. Uma tarde, na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas terras de um colono, e a despeito das supplicas do velho, cães e corseis, salvando valados, e calcando pavêas, arrazaram em minutos o trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e relinchos soavam, sem cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca! Tocavam buzinas, estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu atraz da pista. Garcia de Marnel, o dono do campo, fôra o melhor besteiro dos sitios. O mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas mãos, e a seta da sua aljava atravessara sempre o alvo. De avôs a netos esta robusta e laboriosa raça lançára raizes profundas no solo, remido pelo seu braço. Os mais fundos affectos prendiam-a á terra rôta e lavrada com o suor do trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viçosas as primeiras esperanças, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e dos filhos. No altar da egreja haviam sido abençoadas as promessas de mutua ternura; e agora debaixo da cupula frondosa dos álamos, á sua porta, o avô, no inverno dos annos, sentia-se renascer nas graças infantis da neta, mimosa e unica vergontea, que sobrevivia dos ramos decepados pela morte no velho tronco da familia. Garcia amava tudo isto com o ardor calado, mas intenso das almas viris, retemperadas pelo infortunio. A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabeça, nem o peso da enxada lhe desfallecera o braço. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do coração, a dor mesmo não lhe prostrára o animo. A esposa, por tantos annos alegria e conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho da vida para ir esperal-o na mansão de paz. Dois filhos, amparo da sua velhice, orgulho da sua alma, ceifados em flôr seguiram a mãe, em quanto o ancião desgraçado, só e de joelhos não via a seu lado no desterro da vida, êrmo de consolações, senão a infancia fragil e graciosa de Silvaninha, duas vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu sangue. Inclinado sobre tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as sombras da morte, converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em um extremo louco e quasi delirante. Só esta saudade, só este amor o prendia ainda ao mundo, mas com tal encanto, que muitas vezes pedira a Deus que lhe dilatasse os dias para não se unir aos que o chamavam do ceu, senão depois de a ver mulher e feliz. Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos pés dos cavallos os fructos de um anno, o sangue do velho, remoçado pela ira, pulou nas veias; as faces cavadas coráram de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo ao encontro do cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas não de mêdo. Aquelle campo era o dote da neta, e só por causa d'ella é que supportava o peso aborrecido de setenta annos de fadigas. «Senhor! Senhor! dizia elle correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caçada contra um velho e uma donzella!» O rico homem não respondeu. As matilhas e os cavallos, precipitando-se, partiam á róda d'elle, envoltos em nuvens de pó, e o afflicto lavrador, de pé e coberto, tinha lançado mão das redeas do corsel. Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o látego, silvando, cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe ameaçou o peito com ás patas «Fóra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do conselho!» Garcia desviou-se quasi cego de dôr, e Sueiro, cravando as esporas nos ilhaes, voou á redea larga por cima das hortas e ceáras, bradando: «Sus! Abóca!» O açoute infamante não cortou o corpo, cortou a alma ao desgraçado. Recuando para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as pupilas inflammadas, poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um rujido surdo expirava ao mesmo tempo á flôr dos labios. A vida do homem orgulhoso e máu estava á mercê d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o ajustou a seta. O que no intimo peito diziam o desespero e a colera era medonho. O rosto não o encobria. Ao apontar o tiro a vista ardente elevou-se ao ceu. Pedia perdão, ou auxilio? De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram então dos olhos seccos do velho; os braços descairam. Quiz vencer-se e resistir, não pôde. O arco fugiu-lhe das mãos, e a bocca murmurou: «Fôra matal-a tambem a ella!» Enxugando depois as palpebras entregou a Deus o castigo do oppressor. Mas a desgraça entrára no seu campo com Sueiro Lopes. O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fôra aviltado, Garcia não parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o. Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos, acudindo ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma oliveira plantada pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre orphã, confiscada caiu nas mãos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha, sem parentes, e protectores, teria morrido de frio e de fome se lhe não valesse a caridade dos amigos do besteiro. Um deu-lhe a casa e o sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de sua gentilesa, soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a donzella em edade e formosura; mas á medida que os annos corriam, o rosto pallido e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas faces as lagrimas e não as entendia. É que o pão da esmola, mesmo dado com amor, sempre tráva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando para o tecto da casinha, de que fôra desherdada, apertava-se-lhe o coração por medo tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da sepultura, aonde seu avô descansava, aonde todos os seus dormiam! IV Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoço tinham lançado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de terra. Sueiro Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras tantas viuvo, cada vez se havia feito mais aspero e cruel. Mal raiava a manhã as buzinas acordavam logo as solidões. Assim que a noite se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem, illumminando-se, reverberavam o clarão das tochas do festim. Os gritos, as risadas, as blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham perto do castello. Os vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O abutre já não empolgava só a vida e os bens dos villãos; abrazado em ardor impuro cevava a sensualidade na honra das filhas da aldeia. Rindo-se do temor de Deus, arrastava sem piedade pelo lodo de amores infames a innocencia das mais formosas e a virtude das mais honestas. Um sorriso, um olhar d'elle era como a fascinação do reptil. Por onde passava, as flores mais frescas, e mais puras caiam desmaiadas. Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces realçava a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura contemplativa dos olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava os mais suaves affectos. O vivo carmim dos labios abotoando as rosas da bocca, redobrava os encantos ao sorriso meigo, tornando irresistivel o requebro e a graça virginal da phisionomia namorada. A voz, fresca e melodiosa, insinuando-se no coração, era o seu maior attrativo. Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para quem havia de levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia palpitar de esperança, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubiçal-a foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o não fugindo a suas caricias? Mas ás primeiras palavras o rubor do pejo incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de esmeralda fuzilou a ira. Soltando as mãos envergonhada e offendida, furtou-se ás garras do açor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento saltou-lhe da bocca por entre sorrisos lividos. --Não serás esposa sem primeiro seres amante! Pedirás de joelhos o que hoje engeitas! Sei atalhar os rodeios á corsa. Sei aonde o golpe fere seguro! Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e soffocada não suspendeu a carreira senão á porta da cabana aonde morava a velha Aldonça, conselho e consolação de toda a aldeia. As linguas maldizentes affirmavam, que a velha não era decrepita, nem mendiga, mas fada, e que sabia ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam prodigios do seu poder! Alguns chegaram a asseverar até, que ella e a serpente encantada tinham nascido irmans, e se juntavam em colloquio á meia noute. Quando a donzella appareceu, Aldonça, sentada em um penedo diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a e sorriu-se. Enrolou depois a estriga, puxou o fio, e á medida que o fuso girava, e que a linha se enrolava, meneava a cabeça, como se estivesse vendo, ou ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto. --Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim assustada. O açor cubiçou a rolinha? Havia de ser! Estava escripto lá em cima, e o que ha de acontecer muita força tem. Conta-me tudo. O que te disse? O que lhe respondeste? Quando Silvana terminou, redarguiu a velha: --Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o homem. A aguia real já a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes novidades, filha! Apesar de agudas, as garras do açor não hão de ferir-te. Vai d'aqui á fonte da moura e dize que sim a quem lá encontráres. Não te demores. D'onde se não espera vem o remedio. Has de ser feliz! Ditas estas palavras, abysmou-se em tão profundo scismar, que parecia morta. Não quiz saber mais a donzella. Voou á fonte com a fé viva dos quinze annos e da esperança. Ao pé do primeiro álamo parou e tremeu. Não vira a serpente, nem a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e gentil, filho do mais abastado cavalleiro villão das cercanias. Porque lhe esmorece a ella de subito a vermelhidão das faces affrontadas da corrida? porque lhe bateu o coração no peito tão atropellado? Tello Vasques, o melhor besteiro depois da morte de Garcia do Marnel, era o noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas disputavam com mais inveja. Debalde! A vista d'elle não se baixára para nenhuma, nem a sua bocca se abrira para dizer uma palavra terna á mais galante. Silvaninha fôra a sua primeira e unica paixão. Combateu-a e calou-a por muito tempo, com receio dos pais, mas por fim, não se podendo conter, decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mão. Ninguem sabia o segredo do mancebo senão Aldonça, porque d'essa nada se escondia. E a donzella?... Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio coração, que, alvoroçado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor. Quando parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli. Sem forças para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe ás faces o rubor em ondas, e a vista não ousou despregar-se do chão. O tremor convulso que a agitava fazia-lhe arfar o seio. V Tello Vasques não estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural dos olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas. Encobrindo que a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe, e uma especie de deslumbramento turvou-lhe a vista. A mão suspensa, a cabeça inclinada, o gesto cheio de timidez retratavam a vontade presa do enlevo sem força para dissimular, e ainda menos para combater. Assim ficaram por minutos. Immoveis, calados, contemplando-se, e fallando só com o coração. A felicidade era tão grande, que não achavam termos que a pintassem. Quem encostasse a mão ao peito do robusto besteiro, sentindo-o pulsar agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem escutasse o palpitar ancioso do seio de Silvaninha não precisava perguntar-lhe se tambem amava! Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua, sussurrando preguiçosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas relvas que aveludavam o chão. Mais longe, a pequena levada afundava-se com estrepito pelas fendas musgosas dos penhascos debruçados sobre o valle. Em baixo, no fim da encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos, de pomares, e de campos viçosos, contrastando com o arvoredo sombrio, que entristecia ao largo a paisagem. Depois, a perder de vista, a côr arida e melancolica das charnecas desatando-se até aos cabeços da serra, cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens. Uma brisa louca, mas amena, doudejáva na campina, ramalhando as folhas, brincando com os arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os rouxinóes nas moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra casava a voz estridula com o coaxar das rãs. As sombras, delgadas ainda, começavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam a pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino azul do firmamento e o verde fresco das arvores e plantas. Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de travessa ameaça e disse: --Vós aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que quereis que digam da pobre Silvana, que não tem senão o seu nome?... A voz era queixosa, e não irada. O timbre harmonioso avivou no peito do mancebo o ardor da paixão. Depois os olhos sorriam animados de malicia tão innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperança, leu amor. De repente ficou outro. Pegando-lhe na mão, e beijando-a, a voz soltou-se-lhe, e a vista, cobrando valor na vista d'ella, tornou-se tão eloquente, tão avida de ternura, que ella baixou outra vez as palpebras. --Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um não podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Dás-me o sim? O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das faces sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se de lagrimas, lançaram sobre o rosto as sombras da mais resignada tristesa. Sem retirar, ou entregar a mão, que o mancebo prendia nas suas, a neta de Garcia do Marnel, esquecido o conselho de Aldonça, respondeu singelamente: --Tello, não vos darei já o sim; não quero arrepender-me. O filho de Ayres Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, não deve escolher a sua noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de Algoço. Amo! Porque hei de negal-o? Mas pelo muito amor é que receio acceitar. O que ha de trazer em dote a orphã sustentada pela caridade dos visinhos senão lagrimas e saudades d'aquelle chão, aonde dorme sem vingança, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar, o velho que duas vezes foi seu pai, e que por ella morreu de dôr? Não, Tello! Não pode ser! Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dôr fazia irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa a magoa intima, por tal modo lhe realçavam a formosura, que o besteiro não sabia se era anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil attractivos. Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle, o homem forte, o filho de uma raça leal e rude, como o seculo em que vivia, sentiu rebentar o pranto, e não se envergonhou de o deixar correr. --A tua vontade, Silvana, será a minha! disse por fim. Mas por amor te quero, e não é justo que por amor te perca. O que vale dizer a bocca não, se os olhos, mau pesar teu, estão dizendo sim? Dizes que o dote que me trazes é de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas lagrimas piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse coração é o teu maior thesouro. Hontem não podia viver sem ti, hoje morria se te perdesse. Silvana!... Não n'o escondas! O senhor tentou-te de amores, e jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus será comnosco. O meu arco não erra. A seta vae sempre aonde a mando! Não cedeu ainda a donzella, mas Tello não se enganára: o coração desmentia a bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accêsa em pejo desappareceu como se toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado, que no seguinte dia iria Tello ao solar pedir licença a Sueiro Lopes. Os noivos sem ella não podiam receber-se na igreja de Algoço, e Silvana desejava tanto que seus amores fossem abençoados, aonde o tinham sido os de seu pai e seu avô, que o besteiro não ousou contrarial-a. Altos juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente dos senhores de Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria todas as culpas da sua geração, todos os crimes da sua vida. VI Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro, correndo a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos que findava á porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha de monteiros, de guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e folgando, em quanto os moços de monte sustinham das tréllas as matilhas impacientes, cujos saltos e latidos formavam condigno acompanhamento aos alaridos dos caçadores. No meio do prestito jovial uma azemola conduzia atravessado em duas varas o corpo de um javardo, victima enorme e cerdosa sacrificada depois de aturada fadiga e renhido combate, segundo attestavam os golpes, com que suas navalhadas presas tinham descosido os mais valentes e fugosos cães. Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso, trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava, entre chufas e galhofas, a oração funebre do pingue eremita, que todos haviam corrido sem parar desde a madrugada até ao pôr do sol. D. Sueiro, que se apartára d'elles ao pé da fonte da moura, era o unico serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda, e nem o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu venabulo, lhe arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a levantar. Que magoa, ou que remorso entristecia o senhor de Algoço? Nas trevas, nas horas atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a visão terrivel, com que na raça de Biscaia a sombra de Diogo Lopes avisava a cabeça da familia de estar proximo o dia dos ultimos e tardios arrependimentos? Ao pé da fonte apeiou-se, e, com a cabeça entre as mãos, alongou a vista até aos montes fronteiros. O olhar vago e perdido dizia que o espirito não se achava ali. De repente rangeram e estalaram os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma figura. Ao ruido o rico-homem levou a mão ao punho da espada, inculcando sobresalto sem receio. O mêdo nunca entrára n'aquelle peito inaccessivel á piedade. --Quem és? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o robusto e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mão, e frechas passadas no cinto, se lhe descobria subitamente. Este não se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas accusavam, assomou-lhe ás faces morenas um leve rubor e as pupillas negras faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais força os copos da espada. --Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vós buscava! A firmesa do tom e a concisão da resposta desagradaram ao cavalleiro. Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os beiços. --O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoço, fóra do seu castello, n'este logar deserto? A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo. --Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em vossas terras a donzella que ha de ser minha mulher. --Ah! Só isso?! E é bonita e moça a tua noiva? Por força a conheço então. Como se chama? Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as furias do ciume se levantaram no peito do mancebo. Conteve-se, porem, e retorquiu: --A mais formosa da aldeia. É a Silvana do Marnel. --A Silvaninha? A perola de Algoço? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pões alto o pensamento, villão. Muito alto! Manjares de senhor não se dão a servos. Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o braço a Tello. A mão procurou a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram no peito do rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas disfarçou. Continuando a pungir o mancebo com mofas, proseguiu: --Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o resgate de um barão? Cuida o villão que eu havia de enterrar na sua posilga a roza dos nossos sitios? --Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume. --Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o pé no estribo e sacudindo o látego no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com mil ameaças nos olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisavô te juro, que tantas noutes dormirás na cisterna do meu castello, que de lá te arranquem cego e doudo! --Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. Só Deus sabe aonde vós dormireis hoje! O cavalleiro ja tínha cravado esporas no corsel, e começára a levantar o galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, parou o cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a vista sobre elle, disse-lhe rindo affrontosamente: --Villão! Não has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer de fios de ortigas, nascidas na sepultura do avô, duas camisas para mim, dou licença que se chame tua mulher. É uma joia por um ceitil! uma das camisas será o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar com ella no dia seguinte. Até lá que não vos torne a ver a ambos! A esperança acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco, fugiu-lhe a luz da vista, e sentiu-se tão prostrado, como se o sangue se lhe esvaisse todo. Quiz fallar e correr, mas os pés arraigavam-se ao chão. A mão inerte não se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi suspendido a vida. Quando volveu a si para olhar em roda, avistou ao longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito, e pareceu-lhe ouvir estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou então ao ceu a vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu a noute sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas arvores sem elle o sentir; e as primeiras gotas da chuva, nuncias da tempestade, orvalharam-lhe a cabeça nua, sem o despertarem da amargura. Ao rebombo dos trovões é que acordou, e que principiou a afastar-se com passos vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illusões lhe sorrira alegre, e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanças da existencia. VII --O açor encontrará a aguia. Sinto-a já voar! Não chores, Silvana, serás feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar na aljava. Esta noite, á meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja. Ajoelhai e rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e estão n'ella viçosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e duas, e traz-m'as no regaço á fonte da Moura. Vespera de S. João ha de torcer-se o fio. As duas camisas não hão de faltar. A semana que vem será a do noivado e a do enterro. Ouvis dobrar o sino? A aguia não tarda. Enxugai os olhos. E a velha Aldonça, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condição, que só daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da sepultura do avô duas camisas. --Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando. --Por que não fugimos nós? acudiu elle a meia voz. --Por que ninguem foge á sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a mão alva e breve de Silvana entre as suas. Não vos demoreis. Á meia noite, ao romper da lua, todos tres na fonte da Moura! Era já escuro, e as estrellas começavam a scintillar. Suspirava a viração por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de sombra as sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza silvestre entrelaçava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da egreja, entre rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um arco no topo. Ali repousava de setenta annos de edade e de fadigas o avô da donzella. Segundo afirmára Aldonça, uma seára de ortigas vestia o chão. Como o pranto se corre pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a oração sobe pura e fervorosa de seus labios ao regaço dos anjos, que vão depor aos pés do Senhor! Mais afastado, Tello, tambem de joelhos, orava com ardor; mas aquelle peito, menos brando, mistura com as preces vozes de vingança. Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o pó dos que amára se volvera ao pó, principiou a cumprir as ordens de Aldonça. A duas e duas foi apanhando as ortigas. Quando acabava chispou no outeiro mais proximo a labareda da primeira fogueira, e soou na voz de bronze do sino o primeiro repique. A lua rompia de traz da serra, e o seu clarão branco allumiava toda a campina. Era a hora aprazada. O mancebo deu a mão a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro d'alma, que nenhum fallou em todo o caminho. Quando chegaram não viram senão uma serpente, fugindo por cima dos penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha Aldonça appareceu de repente ao pé da fonte, e acenou-lhes. Recebendo das mãos da donzella as tres regaçadas de ortigas, banhou-as outras tantas vezes na agua encantada, pronunciando algumas palavras a meia voz. Passados minutos tirou-as do tanque reduzidas a feveras finas, como o fio que tece a aranha. Tres dias decorreram. Em todos elles não cessou de girar o fuso da velha. No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear. Quando a semana pendia só de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo pela choupana, olhou, e viu Aldonça á porta, cozendo com Silvana uma tela tão branca e transparente, que deslumbrava. --Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta pressa? E o cavalleiro não tirava a vista dos dedos afilados da donzella que voavam sobre a costura. --Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabeça. Aquella é a camisa do noivado, esta é a camisa do enterro. Ortigas do cemiterio nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres dias estarão acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o morto no caixão. Ouvindo-a, o rico-homem mudou de côr e largou as redeas ao cavallo. A velha, vendo-o correr, exclamou, meneando a cabeça: --Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa! VIII Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se á saida do estreito portal, e mais de um moço airoso, de rosto bronzeado, distrahe a vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos cheios de reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos pés, o borburinho e os alaridos das creanças, saltando pelo adro, animam de ar festivo a scena popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se encaminha de vagar para a sua morada, estendendo a benção pelos aldeãos, Silvana, sempre pallida, ampara no braço delicado o corpo de Aldonça. Os villãos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as mulheres acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras, tomam-as por intercessoras de suas petições. Encostado a uma oliveira antiga, Tello, de braços crusados, e com o arco a tiracollo, não desprega a vista namorada da neta de Garcia. Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as está esperando, um homem de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos, apressando o passo, adianta-se, e chega primeiro. É simples o seu trajo. Guarda-coz de ipre verde desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo estofo, sem plumas, assenta com desgarre fragueiro sobre os cabellos pretos, cujos anneis se debruçam sobre o cabeção da golla. Era de villão o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam condição mais nobre. Nas pupillas inquietas, e por vezes desvairadas, retrata-se a indole ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos. As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaços a serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas rapidas ao semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam as feições de um caracter afeito a dominar, de um coração ferido de golpe irreparavel, de uma mão que no combate das paixões nem sempre ha de conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos. Afagando com a mão direita as compridas barbas, e concertando com a esquerda o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que não póde contar ainda quarenta annos, e que entrára na egreja sem nenhum dos fieis se lembrar de o ter visto nunca, começou á saida a fallar com uns e com outros, fazendo perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por entre o povo veiu collocar-se no sitio, aonde o descobrimos diante de Aldonça e Silvana, tão proximo de Tello que este não perdeu palavra do que disse. Sem saber porque, o besteiro, de ordinario cioso e assomado, em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia do monteiro. Parecia que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia n'este momento a sua sorte. Era tão grande n'elle a tranquillidade de animo, como se a noiva adorada estivesse debaixo da protecção d'aquelle que duas vezes chamára pae. A velha Aldonça, apenas divisara o hospede, exclamou como rejuvenescida de repente: --Filha! Não t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto. Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder. Muita fé em Deus e na justiça de Elrei D. Pedro. --Não é a fé que me falta, redarguiu melancholica a donzella, é a esperança, mãe!... Elrei está longe e tão alto, que não podem vencer de certo metade do caminho as queixas da orphã. --Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a formosura de Silvana. Pegando-lhe na mão, ajuntou: --El-rei D. Pedro, filha, vê e ouve de longe. Conta-me tuas magoas. Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava, sentiu renascer a esperança, e insensivelmente socegou do maior cuidado. Ora pallida, ora córada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte dolorosa do avô, as lastimas da sua infancia, e os amores infames que a perseguiam. As palavras pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que vingativa, procurava atenuar as crueldades do senhor. Quando terminou, o desconhecido, sorrindo-se, e soltando-lhe a mão, disse: --Descansai! Está perto El-rei D. Pedro. É como se vos ouvisse. Mandai a Sueiro Lopes a camisa da mortalha, não a pediu de balde! Se o cavalleiro fôr desleal, ou se vos quizer tirar por força, enviai-me este signal. Deus e El-rei serão comvosco! Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello, accrescentava: --É o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... Não córeis, Silvana! Se o besteiro fôr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle em Miranda. Adeus! Não vos esqueça!... Ao primeiro perigo, um recado e o signal. O mais fica para mim. Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos pés da noiva, que Aldonça animava, annunciando-lhe proximo o termo de seus pezares. IX Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do castello de Algoço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes; alma negra do senhor, aonde alcançára com o braço deixára sempre vestigios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o villico (era o seu titulo n'aquelle tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas á porta despediram-o asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que ninguem o despertaria para dar audiencia a um villão. A principio Tello pôde sopear a ira, mas a pouco e pouco a altercação irritou-o, e levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de repente á porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e perguntou: --A que vens aqui? --Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu elle friamente. O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez da sua vida. Depressa se recobrou e medindo o mancebo com indizivel escarneo, replicou: --Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de cavalleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?... --Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o panno. Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro tremia. Sobre o peito, em lettras côr de sangue, viu as iniciaes de seu nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito. --Bem! exclamou. Silvana é tua se a achares. Quanto á mortalha.... Veremos esta noite quem a veste! Não esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho da choupana de Aldonça. Um presentimento vago advertia-o de perigo incerto. A tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a bôa nova, que levava, devia alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado. Rugindo no pinhal o vento arrancava por entre as ramas das arvores gemidos lugubres. No céu apagavam-se as estrellas umas apóz outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima do ultimo outeiro. Sem saber porque, sentiu-se Tello desalentado. Elle, o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando chegou á choupana, achou a casa êrma e a porta arrombada, e acabou de crer que os pressagios não mentem. Bastava olhar para dentro para adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e luz mortiça deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar as ideias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrádo as forças. Nem o animo, nem a razão se prestavam a ajudal-o. Fôra rapto? Fôra vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! Saltaram-lhe então as lagrimas, e a dôr foi tão penetrante, que a não se encostar caíra desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes, e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do Castello, e áquella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para ella eram as portas do sepulchro. _É tua se a achares!_ dissera o roubador. A quem iria Tello pedir justiça? Luctando com a agonia sentiu que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava á donzella senão a morte depois da infamia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou atribulado: «Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não embainheis a espada da justiça!» No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no hombro. Olhou. Viu Aldonça. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito que iam soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a um logar deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco de uma arvore, disse-lhe rapidamente: --Monta! O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha ajuntou: --O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva. Corre, que por tua felicidade corres, e não pares senão na villa de Miranda. Busca os Paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro d'esta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o succedido, e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado. O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu direito á villa. X Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os penedos do seu leito! Que trovões rebramam as aguas despenhadas em cascatas contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a noute se cobre de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde o estampido longinquo da tempestade. Os relampagos fuzilam sobre as eminencias. Lá em cima, nos penhascos fragosos, que villa é aquella, cujas torres negras estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a margem do rio, Tello Vasques não sente fadiga; o brioso corsel devora a distancia. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pára no terreiro, defronte dos Paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detel-o; mas sem voltar a cabeça, e continuando, responde: busco o senhor! Ninguem o suspende. De corredor em corredor, de aposento em aposento chega á sala de armas. Entre os cavalleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-coz ainda. Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados sustentam os fechos da abobada. O monteiro, apercebendo Tello, encaminhou-se para elle. O mancebo vinha tão soffocado, que pôde dobrar apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi preciso que elle sorrisse para o besteiro narrar o successo, que o trazia áquella hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com a vista inflammada bradou: --Levai-me aos pés de El-rei D. Pedro. Dizem que não conhece grandes, nem pequenos. A donzella, que roubaram, é pura e santa como a mais pura e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ella ter nascido no berço de um villão! Á medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e jovial, empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo até nos que se achavam distantes. Quando Tello poz termo a suas queixas, e levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protector era terrivel. Ensanguentados e delirantes mais se assimilhavam ás pupillas encandeadas do tigre, do que a olhar humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, fallava tão convulsa, que pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes brados: --Lourenço Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas filhas! O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonsalves era o corregedor da côrte. Ninguem ousaria chamal-o assim senão el-rei. Tello prostrou-se cheio de esperança. --Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado á porta! A minha capellina de aço! Gonsalo Vasques de Goes, escrivão da Puridade! Chamae os desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentença. Por alma de Ignez de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino, e mais uma justiça de minhas mãos no livro de suas chronicas! Fallando assim enlaçava a capellina, calçava as luvas de gamo, e com o açoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada. O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns apoz outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atraz do cavallo o proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de Algoço. Por cima d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes. A procella abria os ceus em clarões lividos, desarraigando as arvores annosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castello, um vulto surgiu, que tomou-lhe as redeas, convidando-o a apeiar-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça via as frestas da torre illuminadas. O vulto travou-lhe do braço, e disse: --É ali! --Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiança. Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu á chave e ao impulso. --Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz. Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro subiu. No topo da escada de caracol, a scena que se lhe representou excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar do nome Justiceiro se perdoasse aquelle crime. Era espaçoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto mergulhava-se em meia escuridão. No centro da sala, em um leito, com as mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a bocca até os ais lhe suffocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados de lagrimas pediam a Deus a morte, remedio extremo da infamia. Sueiro Lopes, defronte, sorria-se medindo com a vista a queda lenta da areia d'uma ampulheta. A seu lado o villico silencioso corria os dados sobre a mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com as ortigas do tumulo, estava nas mãos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas como punhaes, atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos. --Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste não. A tua prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos porque chamavas! Brada pelo besteiro villão, que preferiste ao rico-homem! Grita por el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço as portas chapeadas d'este castello ainda são mais fortes. Em esta areia, que está por instantes, cahindo toda... Faltou-lhe a voz. A mão erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um clarão terrivel. A pesada acha reluzia em suas mãos. --Traidor! bradou o principe. Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe todas as portas. Vais ver!... Villão! ajuntou fallando ao villico. Solta as mãos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na presença de Deus! O orgulho indomito do cavalleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu: --Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro Gonsalves? O rei carrasco, falso á sua alma e á alma de seu pae? Imaginas que farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e á má fé chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os laços da captiva. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o castello senão a Deus. A mim, homens d'armas! --Deus é justo! clamou el-rei, cuja furia não conhecia limites. O matador de tres mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como villão ás mãos dos teus villãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha acha. Villãos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. Sou D. Pedro! Sou o rei! Esse que ahi está, rebelde e traidor, prendei-m'o em quanto os meus não chegam! A presença e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens d'armas temiam, mas não amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou á mercê de el-rei. --Passae um laço na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle subir, e cingi-lhe o nó na garganta! proseguiu o soberano indignado. --Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, caírá sobre vós e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-hão contas d'ella, verdugo! gritou o cavalleiro estorcendo-se. --A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas não é cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro. Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico enrolava-lhe o laço. Commovida e tremula, Silvana lançou-se supplicante aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente: --Pedes perdão a Deus e ao teu rei? --Não! O pé do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras do cavalleiro. XI A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do castello, annunciou á aldeia alvoroçada a vinda do monarcha. Tello Vasques apparecia á porta quando Sueiro Lopes expirava. --Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor! Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na capella, e os noivos recebiam a benção nupcial, tendo el-rei D. Pedro por seu padrinho. Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não esqueceu nunca foi a justiça que fizera em Algoço a severidade do monarcha. O castello devolveu-se á corôa, e parece que fôra doado depois ao primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade ou fabula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavalleiro um villão, como de justiçar como villão um cavalleiro. ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA I O Senhor D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias. A verdade é que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em Lisboa estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O proloquio fundava-se na habilidade mechanica do monarcha como torneiro, e no caracter dominador do marquez como ministro. Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de flôres, os bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e a brisa doudejava indiscreta arregaçando o lenço á donzella que passava, ou roubando um beijo á rosa perfumada. Tudo eram alegrias e canticos... os rouxinoes nas moutas, o coração nos amores, e a naturesa nos sorrisos ao sol esplendido que a dourava. Uma tourada real chamára a côrte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam n'estas occasiões menos opprimidos. Não os assombrava tão de perto a privança do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o amphiteatro pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na bocca de todos. Por cumulo de venturas o marquez de Pombal ficára em Lisboa, retido pelo conflicto com o embaixador de Hespanha. Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em alta voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio, crucificando-o outros sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e os fidalgos puritanos eram pelo hespanhol, e pediam a Deus que os rebates da guerra proxima despenhassem o plebeu nobilitado. Os magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o marquez e respondiam com meios sorrisos ás fogosas jaculatorias dos zelosos do throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa ás concessões exigidas imperiosamente pelo governo castelhano. --Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito de sessenta mil homens entrará em Portugal e fará... --O quê? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta assestada e no tom mais indifferente. --Fará entender a rasão e a justiça de el-rei, meu amo, a Sua Magestade e a vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo o ministro fulminado. Sebastião José de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira, e cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente: --Sessenta mil homens muita gente é para casa tão pequena, mas, querendo Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa hospedal-a. Mais pequena era Aljubarrota e lá couberam os que D. João de Castella trouxe. Vossa excellencia póde responder isto ao seu governo. E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou: --Bem sabe vossa excellencia que póde tanto cada um em sua casa, que mesmo depois de morto são precisos quatro homens para o tirarem! O embaixador saíu jurando por _Dios y la Virgen Santisima_ e o marquez preparou-se para a guerra. O caso é como dizia o nosso Zeferino na _Sobrinha do Marquez_, que Sebastião José de Carvalho foi um grande ministro e que fez muito pela nação. Hoje ha menos quem responda assim á lettra ás ameaças dos estrangeiros. Berra-se muito, dorme-se a somno solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello de madrugada e está salva a patria! O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes medias. Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a industria nunca acabou de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos maus governos que succederam ao seu, e tambem do povo que não quiz trabalhar deveras... Mas vamos aos touros reaes. D'esses é que o ministro não gostava nada. Queria-os ao arado e não á farpa, e parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem, tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e á nação. Mas el-rei D. José, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros não admittia reflexões. N'isto era rei a valer e Bragança legitimo. Os fidalgos sabiam-o e por isso disfructavam dôces prazeres--a satisfação do gosto nacional, e a contradicção da vontade do ministro. Desatendel-a sem perigo e pela mão do soberano era para elles um deleite e um triumpho. N'estas funcções não vigorava a severidade das ultimas pragmaticas. Outro motivo de jubilo. Quem queria podia arruinar-se em luxuosos vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os veludos e sedas de fóra, talhados á franceza, resplandeciam constellados de perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais vistosas côres desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas cabelleiras. As damas ostentavam as graças de seus donaires e tufados, e emoldurando o bello oval dos rostos nos penteados caprichosos sorriam-se para os gentis campeadores, e seus olhos cheios de luz e de promessas estimulavam até os timidos. Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça resoam brava alegria as trombetas, as charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros, fidalgos distinctos todos, com o conto das lanças nos estribos e os brazões bordados no veludo das gualdrapas dos cavallos. As plumas dos chapeus debruçam-se em matisados cocares, e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e forcados vestem com garbo á castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o enthusiasmo. O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O seu trajo, cortado á moda da côrte de Luiz XV, de veludo preto, fazia realçar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete sobresaiam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas bordadas deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O conde não excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais, porém animadas de grande expressão, e o fulgor das pupillas negras fuzilava tão vivo e por vezes tão recobrado, que se tornava irresistivel. Filho do marquez de Marialva, e discipulo querido de seu pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavallo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Elle e o corsel, como que ajustados em uma só peça, realisavam a imagem do centauro antigo. A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corsel, arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta, obrigando o cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse torvada no lenço as rosas vivissimas do rosto, que de certo descobririam o melindroso segredo da sua alma, se em momentos rapidos como o faiscar do relampago podesse alguem adivinhar o que só dois sabiam. El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e disse voltando-se: --Por que virá o conde quasi de luto á festa? Principiou o combate. Não é proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de notavel. Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se corriam desembolados, á hespanhola. Nada diminuia, portanto, as probabilidades do perigo e a poesia da lucta. Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de grande ligeireza, e movimentos rapidos e bruscos, signal de força prodigiosa. Apenas tocára o centro da praça, estacou como deslumbrado, sacudiu a fronte e escarvando a terra impaciente, soltou um mugido feroz no meio do silencio, que succedera ás palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos as trincheiras, fugiam á velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres cavallos expirantes denunciavam a sua furia. Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa. O touro pisava a arena ameaçador e parecia desafiar em vão um contendor. De repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da féra e a hastea flexivel do rojão ranger e estalar, embebendo o ferro no pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma acclamação immensa do amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas e charamellas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o cavallo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo depois com o touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o estreitando em volta d'elle os circulos até chegar quasi a pôr-lhe a mão na anca. O mancebo despresava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com furia cega e irresistivel. O cavallo baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na perna, não pôde levantar-se. Voltando sobre elle o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a quéda nas armas, e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu inimigo era um cadaver. Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja consummada a tragedia e não havia expirado ainda o echo dos ultimos aplausos. De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias, emudeceu o circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fóra dos camarotes, fitavam a praça sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como para seguir a alma, que para lá voava envolta em sangue. Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o chão, um gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadaver com uma lagrima de fogo. Uma dama desmaiada nos braços de outras senhoras soltára aquelle grito estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar no peito. El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado. A côrte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dôr. Mas o drama ainda não tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade iam cortar de novas magoas o peito a todos. O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na gentileza do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando radiosos a cada sorte feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se de uma nuvem o semblante do ancião. Quando o conde dos Arcos sahiu a farpeal-o, as feições do pae contrairam-se e a sua vista não se despregou mais da arriscada lucta. De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos, apertando depois as mãos na cabeça. Os seus receios haviam-se realisado. Cavallo e cavalleiro rolavam na arena, e a esperança pendia de um fio tenue! Cortou-lh'o rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho, luz da sua alma e ufania de suas cãs, não proferiu uma palavra, não derramou uma lagrima; mas os joelhos fugiam-lhe tremulos, e a elevada estatura inclinou-se vergando ao peso da magua excruciante. Volveu, porém, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e hirtos revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas da juba de um leão irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo, mas terrivel, o sombrio clarão de uma colera, em que todas as ancias insofridas da vingança se accumulavam. Em um impeto a presença reassumiu as proporções magestosas e erectas como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando por acto instinctivo a mão ao lado, para arrancar da espada, meneou tristemente a cabeça. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho n'este dia que se convertera para a sua casa em dia de eterno luto! Sem querer ouvir nada, desceu os degraus amphiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta annos lhe não branqueassem a cabeça. --Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas ordens! disse um camarista detendo-o pelo braço. O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado d'um pensamento immutavel. Desviando depois a mão, que o suspendia, baixou mais dois degraus. --Sua magestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não quer perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece ás ordens de el-rei?!... --El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancião em voz aspera, mas sumida. Aquelle é o corpo de meu filho! e apontava para o cadaver. «Está ali! Sua magestade póde tudo menos desarmar o braço do pae, menos deshonrar os cabellos brancos do criado que o serve ha tantos annos. Deixe-me passar, e diga isto.» D. José vira o marquez levantar-se e percebera a sua resolução. Amava no estribeiro-mór as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da sua bocca não ouvira senão a verdade, e a idéa de o perder assim era-lhe insupportavel. Apenas lhe constou que elle não accedia á sua vontade, fez-se branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado para fóra da tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe. A esse tempo já o marquez pisava a praça, firme e intrepido como os antigos romanos diante da morte. Dentro do peito o seu coração chorava, mas os olhos aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por elles. Primeiro do que tudo queria a vingança. Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de pé. Os semblantes consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa contensão do espirito, em que um sentido parece concentrar todos. Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, não tem egual. O fogo, que lhe presta vida e forças, é a desesperação. Deixae-o ir, e de joelhos! Saudae a magestade do infortunio! O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois a capa no braço e cobriu-se. Decorridos instantes estava no meio da praça e devorava o touro com a vista chammejante, provocando-o para o combate. Cortado de commoções tão crueis, não lhe tremia o braço, e os pés arraigavam-se na arena como se um poder occulto e superior lh'os tivesse ligado repentinamente á terra. Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e tão profundo, que poderiam ouvir-se até as pulsações do coração do marquez se n'aquella alma de bronze o coração valesse mais do que a vontade. O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e irado, mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada. Os ilhaes da féra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansaço. O ancião zomba da sua furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os golpes sem recuar um passo. O combate demora-se. A vida dos espectadores resume-se nos olhos. Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça. A immensidade da catastrophe immobilisa todos. De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos ajoelharam para resarem por alma do ultimo marquez de Marialva. A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada fuzilar nos ares e logo apóz sumir-se até aos copos entre a nuca do animal. Um bramido, que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama. Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o joelho, com a força do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver. Sem fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraçar-se com o corpo do filho, banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos. O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão da morte, veiu apalpar o sitio aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem vida ao lado do cavallo do conde dos Arcos. N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram. El-rei, de pé e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal, coberto de pó e com signaes de ter viajado depressa. Sebastião José de Carvalho voltava de proposito as costas á praça fallando com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo. --Temos guerra com a Hespanha, senhor. É inevitavel. Vossa magestade não póde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal á vela. --Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os touros reaes emquanto eu reinar. --Assim o espero da sabedoria de vossa magestade. Não ha tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro. El-rei consente que vá em seu nome consolar o marquez de Marialva? --Vá! É pae. Sabe o que ha de dizer-lhe... --O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como está o conde. El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praça em toda a magestade de sua elevada estatura, levantou nos braços o velho fidalgo, dizendo-lhe com voz meiga e triste: --Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia são para darem exemplos de grandeza d'alma e não para os receberem. Tinha um filho e Deus levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e el-rei, meu amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa excellencia. E travando-lhe da mão, levou-o quasi nos braços até o metterem na carruagem. D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca mais se picaram touros reaes em Salvaterra. [1] A prematura morte do illustre auctor d'este livro não lhe permittiu concluir este admiravel romancinho. As paginas, porém, escriptas representam um tal primor de litteratura, que fôra falta imperdoavel condemnal-as á obscuridade. Os amadores de boas letras de certo nos agradecerão a resolução tomada de não os privarmos de alguns momentos de não muito vulgar leitura. EDITOR [2] O castello de Almourol já figurava na epocha da dominação dos romanos. D. Gualdim restaurou-o das ruinas e povoou a terra por carta de foral. ELUCIDARIO. Tom. II p. 346--374. [3] A balça ou bandeira do Templo era bipartida de branco e preto com a cruz vermelha no centro e a lenda: _non nobis, sed nomini tuo da gloriam_. [4] Concordo. Puzeste o dedo na difficuldade, menino. DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS Por L. A. REBELLO DA SILVA Remette-se FRANCO DE PORTE para a provincia. Correspondencia a Mattos Moreira & C.ª. LIVRARIA EDITORA. Praça de D. Pedro, 68, Lisboa PREÇO 600 RÉIS LISBOA TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C.ª 67, Praça de D. Pedro, 67 1873 End of Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Luís Augusto Rebelo da Silva *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. 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