Title: Perolas e Diamantes: Contos Infantis
Author: Jacob Grimm
Wilhelm Grimm
Commentator: Ana de Castro Osório
Translator: Henrique Marques Junior
Release date: November 21, 2009 [eBook #30510]
Most recently updated: October 24, 2024
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano
Irmãos Grimm
PEROLAS E DIAMANTES
EMPREZA
DA HISTORIA DE PORTUGAL
SOCIEDADE EDITORA
LIVRARIA
MODERNA
RUA AUGUSTA, 95
LISBOA-MDCCCCVIII{1}
PEROLAS E DIAMANTES{2}
VOLUMES PUBLICADOS
DA
BIBLIOTHECA DAS CREANÇAS
A 200 réis br. e 300 enc.
I—Contos de Fadas.
II—Novos Contos de Fadas.
III—Terceiro Livro de Contos de Fadas.
IV—Historias da Carochinha.
V—Historias phantasticas (Aventuras do Barão de Münchhausen).
VI—Céu Azul.
VII—Contos Côr de Rosa.
VIII—Palhetas de Oiro.
IX—Lendas ao Luar.
X—Perolas e diamantes.
NO PRÉLO
XI—Contos do Natal.
EM PREPARAÇÃO
XII—Escrinio de joias.{3}
BIBLIOTHECA DAS CREANÇAS
X
IRMÃOS GRIMM
Perolas e Diamantes
CONTOS INFANTIS
COLLIGIDOS POR
HENRIQUE MARQUES JUNIOR
LISBOA
LIVRARIA MODERNA
Rua Augusta, 95
1908
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A meu irmão Paulo consagro estes simples contos infantis, cujo encanto mais tarde avaliará.
XVI-IX-CMVII.{6}
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... Sr. Henrique Marques Junior.
Pede-me V. algumas palavras para acompanhar o decimo volumesinho da sua encantadora bibliotéca infantil; e eu, abrindo uma excéção aos meus hábitos, de bom grado lhe envio o que deseja para abrir as suas «Perolas e diamantes.»
E digo abro uma excéção, porque até hoje me tenho sistematicamente recusado a prologar livros alheios, assim como para os meus jámais tenho pedido prologos a outros camaradas.{8} Mas isto não quer dizer que V. tenha andado mal fazendo-o, pelo contrario tem feito muito bem em vista do assunto de que se trata e das pessôas autorisadas que tem chamado a depôr no tribunal da opinião publica. Isto porque a questão pedagogica, a que se liga a litteratura infantil, tem tantos controvertores que sobre ella ainda não se póde, com segurança, dogmatisar preceitos e sistemas.
Muitos pedagogistas, e eu estou com elles, estimam a literatura infantil muito variada e imaginosa e aceitam como util o conto tradicional, o conto fantastico, emfim.
Entre muitas razões que para isso apontam é o prazer excécional que esses contos despertam na criança, e vêr que com elles, mais do que com outros, se desperta e desenvolve no espirito infantil o gosto da leitura.
Outras, pessôas gradas e ponderadas{9} que desejam educar as crianças como quem cria flores perfeitas para determinados resultados já previstos pela sciencia, protestam contra a fantasia e querem só a verdade...
Como se nós podessemos explicar a um pequenino espirito que se entre-abre á luz o que é uma geleira, uma borboleta, um trasatlantico sem o auxilio de fantasia!
Comprehenderá a criança melhor que um homem possa descer ao fundo glauco das ondas revestido d'um escafandro do que vá aos infernos buscar o cabello de ouro do diabo?...
Para ellas tudo são surpresas, tudo maravilhas.
Acrescentando ainda que os contos educativos e moraes para o serem, igualmente são fantasiados e para a maior parte das crianças é tão longiqua, tão extraordinaria uma viagem á Suissa ou á Italia, como{10} uma passeata dada com as botas de sete leguas do gigante.
Por mais que se queira, não é possivel fugir á fantasia, que é afinal a parte intelectual e superior da vida; o ponto está em que se canalise devidamente a atenção e o gosto infantil e se lhe vá anotando o que de impossivel se conta para os entreter.
Os psicólogos estão muito enganados; não são os contos fantasticos que desenvolvem as imaginações desvairadas: a criança logo que começa a raciocinar sabe muito bem discernir até onde chega o possivel e onde se entra no limite do impossivel. Tem até graça uma observação que tenho feito entre as crianças do meu conhecimento—e não são poucas as que tenho estudado—a criança mais fantasista, mais imaginosa, mais creadora de sonhos de acordado, é a que menos lê, a que menos se interessa pelas criações alheias. As ponderadas, as serenas,{11} as positivas, aceitam esse acepipe como um prazer do espirito e não desvairam com elle.
Veja-se e compare-se a riqueza fabulosa das literaturas infantis das raças frias do norte, em comparação com as das raças latinas.
Veja-se como lá a fantasia se expande livremente e como são familiares a toda a gente os contos e fabulas tradicionaes.
Por cá abusa-se do sentimentalismo como se fosse qualidade que désse mais condições de resistencia ao ser humano.
E... para terminar, que o espaço é pouco, dir-lhe hei que considero bem o incluir a serie graciosa que acaba de enfeixar sob o sugestivo titulo de «Perolas e diamantes,» verdadeiras joias preciosas do escrinio magnifico dos mestres suprêmos que foram, no genero, os irmãos Grimm.
Não esquecerei nunca o deslumbramento,{12} o encanto que senti ao lêr, pela primeira vez, estes contos, e a anciedade com que acompanhei o homem-urso na sua dolorida peregrinação enfeudado ao diabo... desejava falar n'esta pequenina collecção destacando um por um dos seus lindos episodios, mas... tenho que cinjir-me ao pequeno espaço que me é dado.
Termino, pois, dizendo-lhe: em nome das crianças portuguêzas agradeço o cuidado que tem tido em lhes escolher lindos contos para seu prazer, e em nome das mães pedindo-lhe que não desanime na empreza.
A literatura portuguêza é ainda pobre, apezar do que ultimamente se tem feito; precisamos mais e mais...
As crianças tudo merecem, ellas que nos lêem com tanto enthusiasmo e tão sinceramente nos estimam.
Creia-me
Anna de Castro Osorio.
Setubal, 16-3-908.{13}
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Era uma vez um homem muito rico, mas muito avarento, que tinha como creado um rapaz honesto e activo, como não haverá muitos; todas as manhans o moço se erguia ao romper da alva e só se deitava ao ultimo cantar do gallo.
Quando havia algum trabalho mais penoso, ante o qual todos recuavam, o rapaz fazia-o, contente, satisfeito e sem sombra de azedume.
Logo que acabou o primeiro anno de permanencia em casa do avarento, que não estipulára soldada, não recebeu um ceitil de paga, pensando{16} de si para si que o moço, não tendo dinheiro, não se tentaria com outra collocacão. O rapaz calou-se e continuou a trabalhar como d'antes; ao cabo de dois annos, o avarento nada deu e o rapaz permaneceu no seu mutismo.
Ao fim do terceiro anno, o rico, espicaçado pela consciencia, metteu a mão ao bolso para remunerar o fiel creado, mas, raciocinando, arrependeu-se e tirou a mão vasia. O rapaz exclamou então:
—Patrão servi-o tres annos o melhor que me foi possivel; agora quero vêr mundo e por isso peço que me pague as soldadas que me deve.
—Tens razão—respondeu o rico avarento—fiquei sempre muito satisfeito com o teu trabalho e a tua boa-vontade, e por isso vou remunerar-te como mereces. Aqui tens tres escudos novos; é um por cada anno que me serviste.
O rapaz, que andava sempre alegre{17} e que era d'uma grande simplicidade no que respeitava a dinheiro, julgou ter recebido uma fortuna que lhe permittiria viver vida folgada por largos annos.
Disse adeus ao antigo patrão e foi-se embora, atravessando montes e valles, cantando, saltando e alegre que nem um passarinho.
Ao acercar-se d'um monte, viu sair um velhinho muito corcovado que lhe gritou:
—Olé companheiro, não pareces levar em conta de pesares a tua vida?!
—Que ganho eu em me apoquentar?—retorquiu o moço—Tenho na algibeira a soldada de tres annos de trabalho.
—E a quanto monta essa fortuna?
—A tres escudos novinhos, muito luzidios. Olha, sentel-os trincolejar, quando lhes toco com as mãos?
—Ora ouve cá—tornou o gnomo, de bom coração como se vae vêr.{18} Eu estou muito velhinho, e forças para trabalhar já não tenho; tu, que és novo e forte, estás ainda em bom tempo de ganhares a vida.
O rapaz, que era de boa indole, apiedou-se do velho gnomo e fez-lhe presente dos tres preciosos escudos que tanto prazer lhe davam.
—Como és esmoler—expressou-se então o genio bom em figura de gnomo—dou-te licença para que me peças tres cousas que são a paga dos teus tres escudos.
—Então, pois sim!—fez o rapaz incredulamente—Isto que tu queres fazer é só do dominio das phantasias para entreter creanças. Mas, emfim, sempre quero experimentar. Desejo então: uma espingarda que acerte logo no que eu alveje; um violino que tenha a virtude de forçar a bailar todos quantos me oiçam; e, finalmente, que toda e qualquer pessoa me conceda, sem mais a quellas, a graça que eu pedir.{19}
—Ai, ai! lastimava-se o infeliz judeu (pag. 22)
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—És modesto no pedir—retrucou o gnomo que, curvando-se, tirou do monte uma espingarda, e um bonito violino que se podia metter na algibeira. Aqui tens—continuou o gnomo ao dar-lh'os—e fica sciente de que serás servido sempre na primeira graça que solicitares.
O rapaz, jovialissimo, continuou a sua róta. Depois de caminhar um boccado deparou-se-lhe um judeu, muito feio, com barbas de chibo muito compridas e que estava absorto a ouvir o canto de uma avesinha.
—É extraordinario que um animal de tão pequeno talhe possua um trinado tão cheio. Quanto não daria eu para o ter engaiolado!
—Posso satisfazer o teu desejo—disse o rapaz que tinha ouvido as ultimas palavras, e apontando a espingarda ao passarinho este caiu atordoado em cima dos espinhos.
—Vá lá, seu maroto, vá lá buscar o passarinho.{22}
—Tractas-me com crueldade—respondeu o judeu—mas não deixo de agradecer-te e vou apanhar a avesinha.
Em seguida metteu-se pelos espinhos custando-lhe a abrir caminho. De subito o rapaz teve uma estupenda lembrança: principiou a dar arcadas no violino. Logo o judeu ergueu as pernas e começou a saltar, a pular, a torcer-se todo, ficando preso nos espinhos dos ramos, em que se achava e que lhe espicaçavam a cara, arrancando-lhe as barbas; ficou com o vestuario todo rasgado e a cara a escorrer sangue.
—Ai, ai!—lastimava-se o infeliz judeu—Socega, aquieta-te, não toques mais n'esse amaldiçoado instrumento; aqui não é logar proprio para baile!
O azougado moço não fazia caso do pedido pensando com os seus botões:
—Este rabino esfolou tanto infeliz{23} em quanto poude, que é justo que seja esfolado agora!
E de novo tomou o violino tirando accordes mais ligeiros. O pobre judeu, forçado a acompanhar o compasso, pulava e saltava; a cara cada vez estava mais ensanguentada, o fato desfazia-se em farrapos e o pobre velho gemia de dôr. A subitas gritava:
—Apieda-te de mim, pelas barbas de Abrahão, que em paga te darei uma bolsa cheia de dinheiro que trago commigo.
—Alegras-me tanto com essa boa-nova que vou guardar o dinheiro. Antes, porém, quero dar-te os meus parabens pela maneira graciosa e original por que danças! É uma perfeição!
O judeu então, entregando-lhe a bolsa que promettêra, suspirou immenso, emquanto que o alegre moço continuou a andar, cantando. Quando já o não avistou, o rabino,{24} não podendo conter o seu rancor, exclamou:
—Musico das duzias, estás a contas commigo. Grande marau! Has de pagar-me a partida mais cara do que ossos!
Tendo com essa fala dado vasão ao seu odio, seguiu por atalhos e alcançou a cidade mais proxima antes que o rapaz apparecesse. Uma vez lá, foi queixar-se ao juiz n'estes termos:
—Venho aqui pedir justiça, senhor, para um maroto que me atacou maltractou e roubou o que eu trazia. A prova de que não minto é olhar-me a maneira porque vem o fato e a minha cara. Forçou-me a dar-lhe a bolsa que trazia cem moedas d'ouro, que eram todo o meu peculio, as economias que consegui com o meu trabalho, o unico bem que possuia. Faça todo o possivel para que esse thesouro me seja restituido.{25}
O moço então... tocou o mais possivel...(pag. 30)
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—Foi com alguma arma que o gatuno te pôz assim?—perguntou a autoridade.
—Nada, não senhor. Agarrou-me e agatanhou-me. É ainda moço, e traz uma espingarda e um violino; com estes dados facilmente se conhece.
O magistrado pôz em campo os guardas, que depressa viram o indigitado marau, que muito tranquilamente se encaminhou para essa localidade. Deram-lhe voz de prisão e trouxeram-n'o ante o magistrado e o judeu, que repetiu a accusação.
—Não toquei n'essa creatura nem com um dedo—defendeu-se o rapaz—assim como não lhe tirei á força o dinheiro que elle trazia; offereceu-me da melhor vontade para que eu não tocasse mais no violino, cujos accordes o faziam nervoso!
—É mentira!—exclamou o rabino—Está a mentir impunemente!
—Está resolvida a questão?—ajuntou{28} o magistrado—pois é caso extraordinario um judeu dar de mão beijada uma bolsa com ouro, só por não ouvir um boccado de musica. Pois senhor: a sentença do seu mau acto está lavrada: vae ser enforcado immediatamente!
O verdugo—que se havia ido chamar, segurou o innocente moço, conduziu-o á forca, que já estava erguida na praça principal onde accorreu toda a cidade em pezo, e o rabino fôra o primeiro a mostrar-se fazendo menção de soccar o pobre condemnado, verberando:
—Marau, vaes ter a recompensa que te é devida!
O moço conservou-se muito tranquillo; subiu sosinho a escada appoiada á forca; ao chegar ao topo, virou-se para o juiz já togado, que viera vistoriar o patibulo e solicitou-lhe:
—Antes de ter o nó na garganta, concede-me um derradeiro favor?{29}
—Concedo—respondeu o magistrado—desde o momento em que não seja o perdão!
—Nada d'isso é, pois não sou tão exigente... desejava apenas tirar uns ligeiros accordes do violino!
Ao ouvir taes palavras, o rabino deu um estridente grito de susto e pediu encarecidamente ao juiz que não consentisse!
—Qual a razão porque não hei de conceder a graça que este homem me pediu, se é a unica alegria que por instantes posso dar-lhe? Tragam-lhe o violino.
—Ai, meu Deus!—lamentou o rabino ao querer fugir, mas sem que lhe fosse possivel abrir caminho pela compacta massa de povo que enchia a praça.
—Dou-lhe uma peça d'ouro—prometteu elle no auge da aflicção—se me amarrar com força ao pau da forca!
N'esse instante, porém, o rapaz{30} deu o primeiro toque no violino. O magistrado, o escrivão, o beleguim, os guardas, emfim tudo o que compunha o corpo da magistratura da terra, os circumstantes, o proprio judeu, tiveram um estremecimento; ao segundo toque, todos ergueram as pernas, o proprio verdugo desceu a escada e collocou-se em pé de dança.
O moço então—ao vêl-os n'aquella pouco parlamentar attitude—tocou o mais possivel, e agora os vereis: o povo fazia cabriolas; o juiz e o judeu saltavam como que movidos por molas; rapazinhos, velhos, magros, gordos, tudo dançava; se até os cães se erguiam nas patas de traz e dançavam como todos! O condemnado deu uns accordes mais fortes e n'essa occasião era inexplicavel o movimento: pareciam possessos de algum espirito ruim, batendo com as cabeças umas nas outras, pizando-se, acotovellando-se,{31} atropellando-se. Gemiam com dores, e o magistrado, afflicto, fatigadissimo, pediu:
—Não toques mais que eu perdôo-te! Foi o que o moço quiz ouvir, visto que, concordando que o gracejo fôra longo, parou e guardou o violino no bolso, desceu os degraus e veiu postar-se em frente do rabino que, esfalfado, extenuado exhausto, se sentára na rua, respirando a custo.
—Agora és tu quem vaes confessar a proveniencia da bolsa que me déste, com peças d'ouro. Não mintas, de contrario pego novamente no violino e tornas a dançar uma farandola!—taes as palavras que o rapaz dirigiu ao judeu, que confessou terrificado:
—Roubei-a, roubei-a, tu tiveste jus a ella pela tua honestidade; dei-t'a para que não tocasses mais no violino!
Apparecendo o juiz, já um pouco{32} refeito do cançasso, inqueriu do que se havia passado e provando-se á evidencia que tinha havido roubo, mandou enforcar o rabino.{33}
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Era uma vez um rapaz que dava pelo nome de João e que esteve a servir durante sete annos n'um logarejo de provincia. Ao cabo d'esse tempo, despediu-se do patrão e disse-lhe:
—Patrão, terminou o meu tempo de serviço para que fôra chamado, mas, desejando regressar para casa de minha mãe, precisava que me pagasse o meu salario.
—Como fôste sempre fiel e honesto—respondeu o patrão—mereces boa paga; e, pronunciando estas palavras, deu-lhe uma barra quase{36} tão grande como a cabeça do seu antigo creado.
João tirou o lenço da algibeira, embrulhou n'elle a barra, pôl-a aos hombros e metteu pernas a caminho em direitura á casa da mãe. Andando sempre, ainda que custando-lhe a andar, por causa do peso do fardo, viu passar a seu lado um viandante trotando satisfeito n'um bonito e fogoso corcel.
—Que bom ha de ser andar a cavallo!—exclamou João em tom alto.—Aquelle homem vae alli commodamente sentado, não dá topadas nas pedras, não estraga as botas e anda sem que dê por isso.
—Mas olha lá, ó rapaz—respondeu o viandante que lhe ouvia a exclamativa—porque é que vaes a pé?
—Porque assim me é necessario—tornou João—Levo uma trouxa muito pesada que tem de ir para casa; é ouro, é certo, mas pesa-me{37} como chumbo e quasi me custa levantar o pescoço!
—Queres tu entrar n'uma combinação commigo?
—Queres tu entrar n'uma combinação commigo?—aventurou o cavalleiro, que fizera estacar o animal—Faze troca: eu cedo-te o{38} meu bonito cavallo dando-me tu a barra d'ouro!
—Com o maximo prazer! Advirto-o, porêm, de que o carrego é pesado!
O viandante depressa se desmontou do ginete, ajudou João a montar-se e em seguida tomou a barra, dizendo ao ingenuo moço, emquanto lhe dava as guias:
—Assim que desejes andar tão veloz como o vento, basta dares um estalido com a lingua e gritares: upa, upa!
João ficou louco de contente, apenas se viu escarranchado no cavallo, e partiu a rapido galope. Ao fim de certo tempo, lembrou-se d'ir mais depressa ainda, e, dando um estalido com a lingua, incitou: upa upa! O animal, comprehendendo a indicação, largou n'uma corrida desenfreada, dando grandes upas e taes foram elles que o alegre João, não podendo suster-se no dorso do{39} animal, caiu estatelado no meio da estrada, quasi á beira d'um poço. O cavallo continuou a correr, mas um aldeão que vinha em sentido inverso, trazendo uma vacca, agarrou-o pela redea e assim o levou para juncto de João que, levantando-se, estava a vêr se havia soffrido algum desastre com o trambulhão.
—Olha que asneira, montar a cavallo! Arrisca-se a gente a deparar um animal como este que nos atira de pernas ao ar! Nunca mais caio n'outra. Agradeço o seu favor, mas não me fale no cavallo; se fosse uma vaquinha, isso então era outro cantar; basta levál-a deante de si, com certo geitinho; e não é só isso: dá tambem o leite com que se faz a manteiga e o queijo que nos sustenta. Que não faria eu para assim possuir um animal!
—Se faz n'isso muito empenho—alvitrou o aldeão eu não ponho duvida{40} em a trocar pelo seu cavallo.
João açambarcou logo a ideia, cheio de satisfação; o aldeão montou o animal e depressa se eclipsou.
João tocou a vacca, que ia na sua frente muito devagar, emquanto ia magicando nas vantagens da troca que acabára de fazer:
—Desde o momento em que me não falte uma fatia de pão, e com certeza não será isso o que me ha de faltar, posso, quando a fome me aperte, comer manteiga ou queijo, se tiver seccuras, munjo a vacca, e bebo um excellente leite. Que mais podes ambicionar, ó Janeco?
Ao acercar-se d'um albergue, parou e querendo possuir alimento para sempre, deu cabo de toda a comida e gastou os derradeiros escudos n'uma cerveja. De seguida, tornou a pôr-se a caminho da casa precedido pela pachorrenta vacca.
O sol estava a pino e escaldava o rapaz e João, encontrando-se{41} n'um sitio desarborizado, sentiu tanta sêde que se lembrou de beber leite; para esse fim, amarrou a vacca a uma sebe e, descarapuçando-se, começou a mungir o animalejo, mas por mais esforços que empregasse não conseguiu uma gottinha de leite. Como era leigo no assumpto, magoou a vacca que, com a dôr, lhe deu um coice que atirou longe João, que com a dôr desmaiou.
Por felicidade, acercou-se um homem que levava, n'um carrinho de mão, um porco ainda pequeno.
—Que diabo foi isso?—perguntou o homensinho, ajudando-o a pôr em pé.
João narrou-lhe o succedido; o homem do porco offereceu-lhe a borracha, dizendo-lhe:
—Ande, beba-lhe um gole para o pôr firme! E quer saber? A vacca está velha; boa apenas para puxar a uma carroça ou então para{42} ir para o matadouro. Por esse motivo não é para admirar que lhe não conseguisse tirar leite.
—Oh co'a breca!—exclamou João, arranjando o cabello que se havia emmaranhado com a queda—Quem o diria! O que é verdade é que, matando-se, a vacca ainda alimenta muita gente, mas como acho a carne pouco saborosa, não me servia. Agora se fosse um porquito! Isso era ouro sobre azul! Eu então que sou doido por chispe com feijão branco e chouriço de sangue!
—Ah, sim?!—lembrou o homem—Então tome lá o porco em troca da vacca!
—Deus o ajude!—acceitou João dando a vacca; puxou o porco pela corda que o segurava no carrinho.
... a vacca deu-lhe um coice... (pag. 41)
Á medida que ia andando, ia pensando, que tudo lhe corria em maré de rosas; mal tinha uma contrariedade e logo lhe desappareceu. N'isto dá de rosto com um rapazinho{43} que levava debaixo do braço um gordo pato. Deram-se os bons dias e começaram de conversa. João narrou os seus feitos, gabando-se da sua ventura; em compensação, o rapazito disse que o{44} pato era uma encommenda para um baptisado que tinha logar na proxima localidade.
—Tome-lhe o peso—aconselhou o rapazelho, agarrando o pato pelas azas—Pesa bem, não é assim?! Não é caso para espantos, pois ha mais de dois mezes que foi para a engorda. Quem o cosinhar póde gabar-se de apanhar uma excellente enxundia!
—E é verdade que sim!—appoiou o nosso João—Está gordo que é uma belleza! Comtudo, o meu porquinho tambem não está mau!
O rapazito calou-se, mas não fazia outra coisa senão olhar para um lado e para o outro inquieto; em seguida, meneando a cabeça, disse:
—Quer saber uma cousa? Roubaram não ha muitas horas um porco a uma das auctoridades da terra por onde eu agora fiz caminho. Está-me cá a parecer que é esse mesmo, sim, quasi que ia jurar! Que mau boccado lhe fariam passar se o vissem{45} com elle. O menos que lhe faziam era mettêl-o n'uma enxovia muito escura!
João, muito assustado, exclamou:
—O meu amigo é que me póde valer n'estes apuros! Desde que conhece os cantos á villa, nada mais facil que occultál-o; dê-me o pato que lhe cedo por troca o porco.
—Corro grave risco com a transacção—hesitou o moço—mas para o livrar das mãos da justiça, acceito-a!
Agarrou a corda e, puxando pelo porco, depressa se esgueirou por um atalho. O nosso heroe, descuidado e alegre, continuou a andar, raciocinando:
—Fazendo bem as contas, eu ainda ganho com a troca: a carne do pato é muito saborosa e com as pennas faço uma almofada.
Depois de haver transposto a derradeira localidade antes de chegar á sua aldeia natal, notou um amolador{46} parado com a sua roda que fazia girar cantando.
João estacou e ficou a olhar para o que o homem estava fazendo; em seguida, dirigiu-lhe a palavra.
—Pela sua alegria se vê que tudo lhe corre no melhor dos mundos possiveis!
—Certamente, todo o officio é ouro em fio, um bom amolador anda sempre endinheirado. Onde comprou esse bello pato?
—Comprar não comprei... foi uma troca que fiz! troquei-o por um porco.
—E o porco?
—Foi em troca d'uma vacca!
—E a vacca?
—Trocada por um cavallo!
—E o cavallo?
—Por uma bola d'ouro do tamanho da minha cabeça!
—E esse ouro?
—Foi a paga que recebi de sete annos de serviço!{47}
—Sim, senhor!—exclamou o amolador—Não se perde! Se não mudar de tactica ainda ha de junctar muito dinheiro.
—Parece que sim!—retorquiu João—Que hei de agora fazer para o conseguir?
—Faça-se amolador. É-lhe necessaria apenas uma pedra de amolar... o resto depois vem com o andar dos tempos. Tenho aqui uma; já está um pouco gasta, mas para lh'a vender não, troco-a pelo pato. Convem-lhe?
—Se convêm!—acceitou logo João—Se succeder, como diz, que nunca me ha de faltar dinheiro, serei um rei pequeno, sem cuidados, sem ralações e sem trabalho!
Entregou em seguida o pato ao amolador, que lhe deu uma pedra de amolar e uma outra que apanhára do chão.
—Olhe—disse para o heroe do conto—aqui tem mais uma; esta é{48} magnifica para fabricar uma bigorna e endireitar pregos. Tome sentido n'ella.
João tomou as duas pedras e lá se foi muito contente, com os olhos brilhando de alegria.
—Nasci dentro de algum folle com certeza; pensou de si para si—tenho sorte em tudo!
Entretanto como já andava desde manhã sentiu-se fatigado; estava com fome, mas nada tinha com que a matar, por ter comido todo o farnel quando da troca da vacca. Custou-lhe a andar e volta e meia tinha que parar para descançar; as pedras faziam-lhe muito pezo e disse com os seus botões que era bem bom que não as levasse, pois que lhe impediam andar mais ligeiro. Arrastando-se conforme pôde, chegou proximo de uma fonte ficando contente por encontrar com que molhar as guellas e crear alento para a caminhada.{49}
Não querendo estragar as pedras, pôl-as no rebordo da fonte e curvou-se para encher o barrete da limpida agua que corria da bica; mas, tocando-lhes sem dar por isso, as pedras rebolaram e caíram com grande ruido dentro d'agua.
João, assim que as viu desapparecer, saltou de contentamento e, ajoelhando-se, agradeceu a Deus, com os olhos marejados, a mercê que lhe havia feito de o livrar d'aquelle peso.
—Era esta a unica cousa que me incommodava! Não creio que haja rapaz mais feliz do que eu!
E de coração ao largo, não possuindo mais cousa alguma, pôz novamente pernas
a caminho e só parou quando topou com a porta de casa de sua mãe.{50}
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Em epochas bastante afastadas houve um rapazito que sentou praça e desde então mostrou heroicidade, sendo o primeiro a avançar ao chover das balas. Emquanto durou a guerra, tudo lhe correu ás mil maravilhas; mas assim que se assignaram as pazes, o nosso soldado recebeu a soldada que lhe cumpria e o commandante da columna, a que o mancebo pertencia, disse-lhe que fosse para onde lhe aprouvesse, pois no regimento já não era preciso. Os paes haviam morrido, e o infeliz, n'estas condições, não tinha{54} patria. Não sabendo a quem recorrer, foi ter com os irmãos pedir-lhes albergue emquanto não havia novo rompimento de hostilidades. Ora, como os irmãos eram muito ruins responderam-lhe:
—Em que poderemos empregar-te? Em nada nos poderias ser util! Tracta de te arrumar algures.
Ao pobre soldado só ficára a espingarda; pôl-a ao hombro, e resolveu correr mundo. Depressa chegou a uma charneca, onde vegetava um numero de arvores muito limitado. Sentou-se cabisbaixo á sombra e começou a matutar na triste situação a que se via reduzido.
—Estou sem dinheiro—pensou—só conheço o officio das armas, e agora que estão feitas as pazes, este officio de nada me póde servir, e o meu fim é morrer de fome.
De repente, ouviu um ruido; voltou-se e viu, defronte de si, um desconhecido, com um casaco verde;{55} estava vestido com esmero, mas tinha pés-de cabra.
—Eu sei o que te falta—disse-lhe o estranho personagem—Conceder-te-hei tantas riquezas quantas queiras, mas é necessario que não sejas medroso, pois n'esse caso não estou para tentar fortuna.
—Soldado e medo são cousas que não se casam—respondeu o rapaz—Podes tentar.
—N'esse caso, olha para traz!—tornou o diabo feito homem.
O soldado olhou e viu um enorme urso que avançava para elle urrando.
—Ah! elle é isso?! Espera lá que já te vaes calar de vez!—e o soldado assim falando apontou e fez fogo tão certeiro que a bala entrou no focinho do pesado animal que caiu redondo, sem um gemido.
—Está provado que não te falta coragem! Falta ainda outra condição para o contracto.{56}
—Desde o momento em que não seja cousa alguma contraria á minha saude, estou disposto a tudo o que quizeres.
—A condição é esta: durante sete annos não te lavarás, nem farás a barba, nem te pentearás, nem cortarás as unhas e, por ultimo, nem resarás. Se te agrada a proposta, dou-te um fato e um manto que não tirarás senão ao cabo d'esses sete annos. Se morreres entretanto, cairás em meu poder; se, pelo contrario, viveres muito tempo, conquistarás a liberdade e serás rico o resto de teus dias.
O soldado reflectiu no perigo que corria, mas, como varias vezes havia affrontado a morte, decidiu-se a arriscar a vida na empreza, e acceitou o alvitre. O diabo despiu o casaco verde, que fez vestir ao soldado, accrescentando:
—Desde que vistas este casaco não te ha de faltar dinheiro; mette{57} a mão na algibeira e verás que te não minto.
Dicto isto tirou a pelle ao urso morto e presenteou com ella o soldado a quem disse:
—Este é que é o teu manto; servir-te-ha de cama, porque não te é permittido deitar-te sob lençoes. Como consequencia d'este nosso contracto todos te chamarão Pelle d'urso.
Ao terminar a indicação, o demo sumiu-se.
O soldado vestiu o casaco, metteu a mão á algibeira e achou o que o estupendo personagem lhe dissera; em seguida, envolvendo-se na pelle d'urso, pôz-se a caminho, mostrando-se sempre e em toda a parte bondoso e esmoler. O primeiro anno correu bem, mas ao segundo anno já era um monstro; o cabello tapava-lhe os olhos completamente; a barba parecia um grosseiro boccado de feltro; os dedos afuselavam-se{58} em garras e o rosto estava tão sujo que se houvesse semeado n'elle qualquer planta, esta não deixaria de se desenvolver. A sua presença afugentava toda a gente; como, porêm, por todos os logares em que passava, elle distribuia esmolas aos pobres, pedindo-lhes que orassem por elle, afim de que não morresse antes de sete annos, e como usava pagar depressa e bem, nunca ficára ao relento, e tinha sempre quem lhe désse dormida.
No meiado do quarto anno, chegou a uma estalagem, mas o estalajadeiro recusou-se a dar-lhe gasalhado; este homem nem mesmo consentiu que o estranho hospede fosse dormir para a estrebaria, receoso de que a presença de similhante exemplar da especie humana lhe espantasse os cavallos. Comtudo Pelle d'urso metteu a mão na algibeira, tirando um punhado de dinheiro, e o estalajadeiro á vista{59} do diabolico iman curvou-se á imperiosa ambição e consentiu que o estranho viandante ficasse n'um pessimo quarto interior, e ainda sob condição de que não se mostraria a pessoa alguma, temendo sempre que a casa, por aquelle dever de hospitalidade, perdesse os créditos.
Emquanto Pelle d'urso, sentado sósinho no humilde casinholo, pensava tristemente na lentidão dos annos que ainda tinha a passar sob aquelles medonhos trajes, ouviu queixumes e suspiros que partiam d'um quarto proximo. Como era dotado de bom coração—e sem se lembrar do pedido do hospedeiro—abriu a porta e viu um velho que chorava a bom chorar e que, dolorosamente, punha as mãos na cabeça. Pelle d'urso acercou-se do companheiro de estalagem que se ergueu subitamente querendo fugir. Ao ouvir, porêm, a voz da estranha creatura, serenou, e a sua conversa{60} amavel fêl-o animar a confiar-lhe as maguas que o affligiam. Os seus recursos iam diminuindo a olhos vistos; as filhas e elle estavam sujeitos a soffrer as maiores privações, e tão pobre era que não podia pagar hospedagem ao estalajadeiro, razão pela qual o iam prender.
—Se outro não é o vosso cuidado, consolae-vos—disse Pelle d'urso ao ouvir a narrativa do velho—A mim não me falta dinheiro.
Chamou o estalajadeiro e pagou-lhe tudo o que o velho lhe devia, entregando a este uma bolsa recheadinha d'ouro.
Quando o velho se viu tão facilmente livre de apoquentações, não teve palavras para exprimir o seu grande reconhecimento; ao cabo de algum tempo, disse a Pelle d'urso:
... viu defronte de si um desconhecido (pag. 54)
—Siga-me; as tres filhas que possuo são perfeitas maravilhas de belleza;
auctorizo-o a escolher uma{61}
{62}
{63} para mulher. Assim que souberem da boa-acção que practicou em meu
favor, serão as primeiras a acceder ao meu desejo. Realmente, o seu aspecto é
exquisito e pouco attrahente, mas a que escolher saberá disfarçar a primeira
impressão que é, decerto, desagradavel.
A proposta agradou a Pelle d'urso, que de muito boamente acompanhou o velho. Apezar de afastados de casa, a primeira filha ao vêl-o fugiu, transida de medo, aos gritos. A segunda—valha a verdade—não fugiu senão depois de o ter bem examinado dos pés á cabeça.
—Como posso eu acceitar por marido um ser que não tem aspecto humano? Marido por marido, então antes preferia o urso pardo que ultimamente se exhibiu pelas ruas, que dava ares de homem, vestindo um rico manto e de luvas calçadas! Era feio, mas facilmente me habituaria a vêl-o.{64}
Quando coube a vez da mais novinha esta disse:
—Meu pae, este homem deve ter um bom coração, pois que duvida alguma teve em livral-o de apuros; se, para lhe provar a gratidão de que está possuido para com elle, lhe prometteu noiva, não se dirá que a sua palavra se não cumpre.
Que alegria não transpareceria no rosto do pobre soldado, se não estivesse tão velado pelo cabello! O seu coração rejubilou ao ouvir as boas palavras da linda moça! Tirou do dedo um annel que trazia, partiu-o em duas metades e deu uma das partes á rapariga, tendo antes d'isso o cuidado de escrever o nome na parte que deu á promettida e o d'ella na metade com que ficou. Feito isto, despediu-se dos seus novos conhecimentos, dizendo-lhes:
—Tenho ainda de correr mundo durante tres annos; se voltar ao cabo d'esse tempo casamos; se não{65} tornar, a sua palavra está desligada do compromisso, pois é prova segura de que morri; rogue a Deus para que me conserve a vida.
A infeliz namorada vestiu-se toda de negro, e sempre que se lembrava do seu promettido as lagrimas corriam-lhe abundantes. As irmans não se cançavam de a motejar e escarnecer.
—Acautela-te ao extenderes-lhe a mão, não vá elle dar-te a pata!—dizia-lhe a mais velha.
—Sê prudente, pois os ursos são traiçoeiros, e ainda que lhe agradasses, póde muito bem ser que depois te devore!—fazia côro a segunda irman.
—Tens de fazer-lhe todas as vontades, senão dá urros!—tornava a primeira.
E accrescentava a do meio:
—Sim, sim... e olha que a cerimonia deve ser bem divertida, pois os ursos dançam alegremente.{66}
A pobre creatura conservava-se alheia aos motejos que lhe não faziam diminuir o sentimento que nutria pelo bemfeitor de seu pae. Entretanto Pelle d'urso, percorrendo varios logares, continuava practicando o bem e semeando dinheiro a rôdo em esmolas, na esperança de que os mendigos rogariam por elle. Chegou finalmente o ultimo dia dos sete annos de caminheiro.
Tomou o caminho da charneca e foi sentar-se no mesmo sitio em que se havia sentado sete annos antes. Pouco tempo esteve só, pois que, segundos depois, sentiu soprar o vento e viu na sua frente o diabo olhando-o tristemente; em seguida restituiu ao viandante o seu antigo traje, recebendo em troca o casaco verde que lhe cedêra.
—Não te apresses—disse Pelle d'urso—primeiro tens que me arranjar convenientemente.{67}
Se a lembrança agradou ou não ao demo é cousa que não podemos averiguar, mas o que é certo é que, com vontade ou sem ella, não teve outro remedio senão ir buscar agua, lavar Pelle d'urso, cortar-lhe o cabello e as unhas, penteál-o e fazer-lhe a barba. Limpo e arranjado, Pelle d'urso voltou ao seu aspecto de soldado valente; nunca fôra tão formoso.
Assim que se viu livre do diabolico personagem de uma vez para sempre, o heroe do nosso conto sentiu-se leve que nem uma penna. Rapido se encaminhou para uma povoação proxima, comprou uma andaina de velludo, sentou-se n'uma elegante carruagem puxada a duas parelhas de cavallos brancos, e deu ordem ao cocheiro para se dirigir a casa da noiva. Pessoa alguma o reconheceu; e o futuro sogro, imaginando-o um alto personagem, fêl-o entrar para o gabinete em que permaneciam{68} as filhas. Convidou-o a sentar-se entre as mais velhas que tiveram o cuidado de offerecer-lhe vinhos generosos, doces dos mais finos, emfim fizeram tudo o que puderam para lhe agradar, e dizendo em segredo, entre si, que nunca tinham contemplado personagem tão perfeito. Comtudo a noiva, coberta de lucto, permanecia sentada defronte d'elle; não erguia os olhos nem dizia palavra. Por fim, o desconhecido—para nós bem conhecido—pedindo ao velho se consentia ser esposo de uma das filhas, as duas mais velhas levantaram se como se mola as impellisse, e foram paramentar-se com os mais ricos vestidos que possuiam, pois qualquer d'ellas estava crente de que era sobre si que incidia a escolha do desconhecido personagem. Ora, este apenas se viu só com a futura, tirou da algibeira metade do annel que conservara preciosamente,{69} metteu-a n'um calice que encheu de vinho generoso, apresentando-o á fiel menina que o acceitou e, depois de o beber, notou no fundo a metade do annel; sentiu pulsar o seu coração; tomou a outra metade que trazia pendente de um collar que lhe envolvia o pescoço, approximou as duas e viu que se ajustavam perfeitamente. Por então o rapaz disse:
—Sou o teu noivo, o noivo que ha tres annos viste coberto com uma pelle d'urso, mas graças a Deus recobrei a minha fórma primitiva.
Ao concluir, apertou-a nos braços, e beijou-a na testa. N'essa occasião, entraram as duas irmans muito tafulas nos seus vestidos, e ao verem que o personagem já estava compromettido com a mais moça, é que se lembraram de que não podia ser outro senão Pelle d'urso, de quem tão pouco haviam feito. Ficaram tão corridas de vergonha{70} e de invejoso ciume que fugiram do gabinete: uma deitou-se a um poço, e a outra enforcou-se na primeira arvore que encontrou.
Á noite bateram á porta; o noivo foi abril-a e reconheceu pelo casaco verde o diabo que lhe disse:
—Fiquei sem a tua alma, é certo, mas em compensação appareceram-me duas!
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No tempo em que Deus andava pelo mundo, estava um pobre lavrador aquecendo-se á lareira emquanto se lastimava á mulher, que perto d'elle fiava, desgostoso por não ser contemplado com filhos.
—Que socego—accrescentou—vae n'esta casa emquanto que em outras então tanto barulho ha causado pela alegria e pelos risos da pequenada!
—Tens razão—appoiou a mulher, suspirando.—Oxalá tivéssemos um só, embora tão pequenino que quasi{74} se não visse. Isso me bastaria para nos alegrar e querer-lhe iamos de todo o coração.
A boa mulher, alguns dias passados, principiou a andar doente, e ao cabo de sete mezes foi mãe d'um menino tão bem formado que se disséra de todo o tempo, mas muito pequenino. Ao vêl-o, a mãe não se conteve que não dissesse:
—É exactamente como nós o haviamos desejado; não deixa, apezar de mais pequeno do que um dedal, de ser o nosso filhinho.
Por via d'isso toda a parentella lhe ficou chamando João-Pequenino. Crearam-n'o tão bem quanto puderam; não cresceu mais, ficando sempre do mesmo tamanho em que nascêra. Era muito vivo, muito esperto; e tinha uns olhitos muito brilhantes; e bem cedo mostrou o tino e actividade sufficientes para levar a bom-effeito qualquer empreza a que se abalançasse.{75}
O camponez, certo dia, apromptava-se para ir cortar madeira á matta visinha e disse para comsigo:
—Bem precisava eu de quem me conduzisse a carroça.
—Pae—gritou João-Pequenino—eu guio a carroça, se quer; não se assuste que chegará a tempo.
O homem desatou a rir:
—Isso é impossivel! Se és tão pequenino, como has de segurar a redea ao cavallo?
—Isso não faz ao caso, pae! Se a mãe vae atrellar o cavallo, eu metto-me na orelha do cavallo e ensino-lhe o caminho a seguir.
—Pois então, experimentemos.
A boa da mãe metteu o cavallo á carroça, e introduziu João-Pequenino na orelha do animal; e o João-ninguem gritava todo o caminho: Vá, cavallo! mas tão distinctamente que o animal andava como se na realidade o guiasse algum carroceiro; d'esta maneira chegou a carroça{76} á matta, indo pelos melhores caminhos.
No momento em que a carroça torneava uma sebe, e se ouvia a voz do rapazinho: vá, cavallo! passaram dois individuos desconhecidos que exclamaram estupefactos:
—É celebre! Uma carroça que anda á voz de um carroceiro que não se vê!
—Alguma cousa ha de extraordinario; sigamos o vehiculo para vêr onde pára!
Continuou a carroça no caminho que levava até parar no sitio onde havia arvores caídas. Assim que João-Pequenino avistou o pae, gritou:
—Então, pae, guiei ou não guiei a carroça? Agora põe-me no chão.
O lenhador, segurando com uma das mãos a redea, serviu-se da outra para tirar de dentro da orelha do cavallo o rapazito a quem pôz no chão; o rapazinho sentou-se n'um feto.{77}
Os dois desconhecidos, ao vêrem João-Pequenino, não sabiam que imaginar, de tal maneira ficaram extacticos com o rarissimo phenomeno. Falaram em segredo e resolveram:
—Este exemplar póde trazer-nos uma fortuna, se quizermos expôl-o a troco de alguns cobres em qualquer povoação; não será mau comprál-o.
Em seguida encaminharam-se para o camponez, e propuzeram-lhe:
—Quer vender-nos esse anãosinho sob a condição que cuidaremos muito d'elle?
—Não,—respondeu o interrogado—é meu filho e por dinheiro algum eu me desfaria d'elle.
João-Pequenino, porêm, que percebêra e ouvira bem toda a conversa, trepou pelas pernas do pae á altura do hombro e segredou-lhe:
—Pae, acceite a proposta, que eu em breve estarei de volta.{78}
Ante esse conselho de João-Pequenino, o pae cedeu-o aos homens por uma valiosa moeda de ouro.
—Onde queres tu collocál-o?—perguntaram entre si.
—Ora, ponham-me na aba do chapéu; assim posso vêr tudo quanto se passa em volta de mim e não ha meio de me perderem—alvitrou João-Pequenino, accrescentando:—Mas, cuidado, não me deixem cair.
Os homens assim fizeram; João-Pequenino despediu-se do pae, e foram-se embora com o rapazinho. Fartáram-se de caminhar até ao cair da tarde; n'essa occasião o boccadinho de gente gritou-lhes:
—Parem, que preciso de descer!
—Deixa-te estar no meu chapéu; não estejas com cerimonias, porque os passarinhos tambem me fazem isso muita vez!
—Não, não quero!—insistiu João-Pequenino—ponham-me depressa no chão.{79}
O homem pegou no João-ninguem e pôl-o no chão n'um relvado á beira-estrada; João-Pequenino depressa alcançou umas moutas e de repente encafuou-se n'uma toca de rato que buscára de propósito.
—Boa viagem, meus senhores, continuem o caminho sem a minha companhia—lhes gritou, rindo. Quizeram agarrál-o, fazendo cócegas na toca de rato com palhinhas—como é de uso fazer-se aos grillos, mas perderam o tempo e o feitio, pois que João-Pequenino cada vez se mettia mais para dentro da toca, e a noite visinhava-se, de modo que foram obrigados a ir para casa, fulos e com as mãos a abanar.
Quando já iam longe, João-Pequenino saiu do improvisado esconderijo. Arreceou-se de seguir viagem á noite, por meio de campos, porque partir uma perna não é difficil. Felizmente avistou uma cavidade no topo de uma arvore, exclamando:{80}
—Louvado Deus, já tenho casa para dormir.
Quando ia a pegar no somno, ouviu a voz de tres homens que abancaram por baixo da arvore, ceando e conversando:
—Como havemos de proceder para roubar a esse rico parocho toda a sua fortuna?
—Eu lhes digo!—dirigiu-se lhes a voz invisivel.
—Quem está ahi?!—gritou um dos ladrões verdadeiramente aterrorizado—Ouvi uma voz!
Calaram-se para escutar, quando João-Pequenino se tornou a ouvir:
—Tomem-me á sua conta, que eu os ajudarei n'essa piedosa tarefa.
—Onde é que estás?
—Procurem na arvore, no sitio d'onde parte a voz.
Os ladrões encontraram-n'o por fim e exclamaram:
—Pedaço de gente, como é que tu nos pódes ser util!{81}
—Ora, de um modo bem facil: metto-me pelas grades da janella que ha no quarto do parocho e vou-lhes passando tudo o que quizerem.
—Pois bem, seja!—accederam os ladrões—Vamos á experiencia!
Assim que chegaram ao presbyterio, João-Pequenino introduziu-se no quarto, e em seguida começou a gritar com toda a força dos pulmões:
—Querem tudo o que está aqui?
Os ladrões amedrontados disseram-lhe:
—Fala mais baixo que acordas toda a gente!
João-Pequenino fazendo ouvidos de mercador, cada vez gritava mais:
—O que é que vocês querem? É tudo isto?
A creada, que dormia no quarto pegado áquelle em que o heroe da historieta se encontrava, ouviu este ruido, levantou-se da cama e pôz-se de ouvido á escuta; os malfeitores{82} haviam desapparecido, mas cobrando animo e, suppondo que o rapazito só os queria amedrontar por mera brincadeira, voltaram á carga, e disseram-lhe devagarinho:
—Tem mais tento: passa-nos alguma cousa, anda! João-Pequenino, se gritava até então, agora quasi que berrava:
—Vou dar-lhes já tudo; aparem as mãos!
D'esta feita, a creada ouviu tudo perfeitamente; saltou da cama e correu para a porta. Os gatunos ao presentirem gente deram ás de villa Diogo, como se o Diabo lhes tivesse dado azas; a creada, não ouvindo mais cousa alguma, foi accender uma candeia. Quando appareceu, João-Pequenino, sem que ella o tivesse enxergado, foi esconder-se no palheiro. A creada, depois de ter pesquizado todos os cantos á casa sem que nada visse, tornou a deitar-se,{83} suppondo que tudo o que ouvira fôra sonho.
João-Pequenino tinha-se aninhado no feno, onde arranjára uma boa caminha em que contava dormir até manhan, indo em seguida para casa dos paes que a essa hora deviam estar em sobresaltos. Não pararam porém, aqui as aventuras d'este ratão; havia de passar ainda por bem maus boccados. A creada ergueu-se ao luzir do buraco para dar ração ao gado. A primeira cousa que fez foi ir ao palheiro buscar forragem, d'onde tomou uma braçada de feno com o infeliz João-Pequenino lá mettido muito ferrado no somno. E tão bem dormia que não deu por cousa alguma e quando despertou viu-se na bocca de uma vacca, que o enguliu com um boccado de feno. A primeira impressão que sentiu foi a de se julgar caido num moinho de pisoeiro; mas depressa comprehendeu onde é que realmente estava.{84} Evitando o metter-se por entre os dentes, deixou-se escorregar pela garganta até ao estomago. O compartimento em que se encontrou parecia-lhe estreito, sem janella, e onde não havia sol, nem luz, nem sequer candeia! A casa em que morava desagradava-lhe bastante, e o que mais complicava a sua critica situação, era a quantidade de feno que lá se armazenava, estreitando mais ainda o pouco espaço em que se continha. Por fim, não podendo mais suster-se do terror que d'elle se apossára, João-Pequenino gritou o mais que poude:
—Basta de feno, basta de feno que eu não posso mais... abafo!
—Eu lhes digo, dirigiu-se-lhe a voz invisivel (pag. 80)
A moça do parocho, que n'esse momento estava precisamente a mungir a vacca,
ao ouvir a voz sem que visse quem falava, mas que reconhecia pela que a tinha
acordado durante a noite, assustou-se tanto que saltou do banco em que
estava{85}
{86}
{87} sentada, entornando o leite. Foi de caminho, a toda a pressa chamar
o parocho para lhe dizer:
—Senhor cura, a vacca fala!
—Tu ensandeceste, rapariga?—tornou o padre, emquanto que despreoccupadamente se dirigia para o estabulo, para se certificar do que ouvira.
Não tinha ainda o parocho franqueado o portal quando João-Pequenino gritou de novo:
—Basta de feno... que eu atabafo!
O terror apoderou-se então do padre, que suppondo a vacca enfeitiçada, ou que tinha o diabo mettido no corpo, disse que era preciso dar cabo d'ella. Abateram-n'a, e o estomago, onde o pobre João-Pequenino se via prisioneiro, foi lançado para o estrume.
O rapazito viu-se em pancas para se desenvencilhar do mal-cheiroso sitio em que se conservava, e apenas{88} conseguiu ter a cabeça desembaraçada, uma nova desgraça o veiu ferir, uma aventura inesperada. Um lobo esfaimado atirou-se ao estomago da vacca, e, chamando-lhe um figo, enguliu-o d'uma assentada. João-Pequenino não descoroçoou.
—Talvez—pensou com os seus botões—este lobo seja sociavel.
E de dentro da barriga, em que estava novamente preso, gritou-lhe:
—Bom lobo, vou ensinar-te o sitio onde ha uma excellente prêsa.
—E onde fica isso?—perguntou o lobo.
—N'esta e n'aquella casa; pouco trabalho tens: basta-te deslizar pelo exgotto da cosinha; ahi encontrarás bons boccados, como toucinho, chouriço á discreção; que mais queres? E olha que te não levo nada pelo conselho!
E assim o experto João-Pequenino lhe deu os signaes certos da casa do pae.{89}
O lobo não quiz ouvir mais, nem se fez rogado, nem se quer foi preciso dar-lhe o recado mais d'uma vez; metteu-se pela cosinha e comeu á tripa-fôrra. Quando, porêm, quiz sair, foi-lhe impossivel. Tirou o ventre de miserias, de tal maneira que não houve meio de passar pelo cano. João-Pequenino—que tudo previra começou a fazer um grande barulho no corpo do lobo, aos pulos e em altos gritos; o lobo pedia-lhe:
—Vê lá se estás quieto! Tu assim acordas meio mundo!
—Deixa-me cá... Tu comeste até que te regalaste; agora sou eu que me divirto a meu modo!—e continuou a gritar tanto quanto podia.
Acabou por accordar a familia, que veiu pressurosa olhar para a cosinha pelo buraco da fechadura. O pae e a mãe ao verem que estava alli um lobo, armaram-se: o pae{90} com um machado e a mulher com uma fouce.
—Fica para traz—aconselhou o marido á mulher quando entraram na cosinha, eu vou matal-o com o machado, mas se o não matar d'um só golpe, tu abres-lhe a barriga!
João-Pequenino—ao conhecer a voz do pae—pôz-se a gritar:
—Sou eu, meu pae, sou eu que estou na barriga do lobo!
—Graças!—exclamou o pae louco de contente.—Ora até que emfim que o nosso filho foi encontrado!...
E disse logo á mulher que puzesse de parte a fouce não fosse ferir o João-Pequenino. Em seguida com faca e tesoura abriu a barriga do lobo d'onde saltou lesto o nosso sympathico João-Pequenino.
—Não pódes calcular, filho,—exclamou o pae—os sustos que temos tido com a tua sorte!
—Acredito, pae... mas olhe, eu fartei-me de correr mundo; felizmente{91} que já vejo a luz do dia!
—Onde tens tu estado?
—Ora, onde tenho estado! Estive n'uma toca de rato, na cavidade de uma arvore, no feno, na barriga de uma vacca, no estrume e por fim na barriga de um lobo! Agora estou com os meus queridos paes!
—E nós não te tornariamos a vender por dinheiro algum d'este mundo!—disseram os paes abraçando-o e apertando-o contra o coração.
Deram-lhe de comer e vestiram-lhe outro fato, pois o primitivo vinha em
estado lastimoso, o que é natural, attendendo aos sitios pouco limpos por onde
viajára o nosso João-Pequenino.{92}
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Era uma vez uma pobre mulherzinha que deu á luz um filho, e como elle tivesse nascido n'um folle, não tinha ainda visto a luz do dia, e já prediziam que aos quatorze annos casaria com a princeza. Pouco tempo depois appareceu na aldeia, vindo incognito, o rei, que, perguntando que novas havia, ouvira dizer:
—Não ha muitos dias nasceu um rapazinho n'um folle, o que indica vir a ser muito feliz, demais que já lhe auguraram casamento com a princeza, quando chegasse aos quatorze annos.{96}
O rei—que não tinha bom fundo—ficára agastado com a previdencia; pediu para lhe indicarem a morada dos paes do rapaz, para onde se dirigiu com sorrisos. Em seguida falou assim:
—Sois pobres, por isso peço que me confieis o rapaz, a quem arranjarei um bom futuro.
Os paes, a principio, recusaram similhante proposta; mas o desconhecido offereceu-lhes uma grossa maquia em ouro; lembrando-se elles da predicção de que, tendo nascido n'um folle, nada de mau lhe podia acontecer, resolveram acceitar, separando-se do filho.
Assim que d'alli saíu, o monarcha metteu o rapazinho n'uma caixa, que amarrou á sella do cavallo e continuou sua derrota. Não tardou a encontrar um ribeiro, com certa fundura, para onde atirou a caixa, exclamando:
—E assim livro minha filha de{97} casar com tão desgraçado pretendente!
Mas o mais curioso é que a caixa não naufragou, bem pelo contrario singrou o rio ao sabor da corrente como se fôra um barquinho, sem que uma só gotta d'agua lhe entrasse dentro. A caixa correu á tona d'agua a uma distancia de duas milhas da cidade; ahi encontrou um obstaculo: as rodas de um moinho, onde encalhou. Um moço de moleiro, que por casualidade se encontrava a curtos passos d'alli, viu-a e rebocou-a com uma fateixa, crente de que encontraria uma riqueza. Abriu-a, pressuroso, mas a riqueza appareceu-lhe na figura de um menino esperto e risonho. Levou-o aos amos que, como não tinham filhos, bem contentes ficaram com o achado, e disseram em côro:
—É Deus que nol-o envia!
Por conseguinte, tomaram-n'o á sua conta e educaram na practica{98} das boas acções o orphãosinho. Passados annos, o soberano, fugindo a um temporal, refugiou-se certa tarde em casa do moleiro, a quem perguntou se o rapaz que tinha alli era seu filho.
—Não—responderam o moleiro e a mulher.—É um menino abandonado, que ha quatorze annos veiu trazido pela corrente dentro d'uma caixa até á calha do moinho; o moço, que estava perto, puxou-a e trouxe-a para terra.
A estas declarações, o rei percebeu logo que o rapaz não podia ser outro senão o menino que nascêra n'um folle, e tanto que perguntou:
—Digam-me: este rapaz não podia ir fazer-me um recado, levar uma carta á rainha minha mulher? Dou-lhe duas moedas de ouro por este pequeno trabalho.
—Quando vossa magestade quizer!—redarguiram de prompto moleiro e moleira.{99}
Em seguida mandaram pôr a postos o rapaz.
O rei, entretanto, dirigia esta carta á rainha:
«Apenas o rapaz, portador d'esta, ahi chegue, dá-te pressa em mandal-o matar e enterral-o em seguida; o resto será resolvido no meu regresso.»
O mocinho partiu com a carta e chegou pela noite a uma grande matta; por entre a escuridão avistou uma luzinha. Seguiu n'essa direcção e depressa parou perto de uma cabana. Entrou e viu sentada uma velha, sózinha, ao pé de uma lareira. Ao vêr o rapaz ficou tranzida de medo, e gritou:
—D'onde vens e para onde vaes?
—Venho do moinho—respondeu—e vou ao palacio levar uma carta á rainha; como, porêm, me perdi na matta, muito grato me seria passar aqui a noite.{100}
—Infeliz creatura!—redarguiu a velha.—Vieste ter a uma caverna de salteadores, que, se aqui te encontram, são muito capazes de te darem cabo da pelle!
—Venha quem vier, de nada me arreceio; estou bastante fatigado para que possa continuar a jornada.
Dictas estas palavras, sentou-se n'um banco e adormeceu.
D'ahi a pouco appareceram os salteadores que perguntaram irritados quem era aquelle intruso.
—Ora—retorquiu a velha—é um pobre moço que se perdeu na matta e a quem recolhi por dó; foi encarregado de levar uma carta á rainha.
Os salteadores apoderaram-se da carta, partiram-lhe o sinete e leram, vendo pelo conteudo que, apenas chegasse, o portador seria executado. Esta circumstancia tão mal os impressionou que o capitão da{101} quadrilha rasgou-a e escreveu outra em que dizia que apenas o portador chegasse lhe fizessem o casamento com a princeza.
Feito isto, deixaram-n'o dormir socegadamente no banco até o dia seguinte; quando acordou, restituiram-lhe a carta e indicaram-lhe a estrada real.
Entretanto, a rainha apenas leu a carta, que passára como escripta pelo rei, ordenou grandes festas para o casamento da filha com o rapaz nascido n'um folle. Como este era perfeito, amoravel e dotado de bom coração, a princeza vivia feliz e satisfeita.
Passado tempo, o soberano regressou ao palacio, e, com grande espanto seu, viu que a predicção se realizára do rapaz nascido n'um folle, casar com a princeza.
—Como foi isto arranjado?—perguntou á rainha.—Havia dado outra ordem na minha carta!{102}
A rainha apressou-se a mostrar-lhe a carta afim de se certificar do que havia escripto. O rei leu-a, e viu que fôra trocada. Perguntou ao rapaz o que havia feito da carta que lhe confiára, e como é que havia trazido outra.
—Não sei!—respondeu o rapaz. Só se me foi roubada na noite que passei na matta; aproveitando-se do meu somno.
O rei tornou irritado:
—Não me serve essa desculpa, e tanto que minha filha não te pertence, emquanto me não trouxeres do inferno tres cabellos d'ouro da cabeça do diabo; satisfeita esta condição, restituo-te a princeza.
O soberano, falando assim, cuidava que ficaria livre d'elle de uma vez para sempre. Como resposta, o rapaz nascido n'um folle disse ao rei:
—De boa vontade acceito a sua proposta de trazer os tres cabellos{103} d'ouro, tanto mais que não me arreceio do diabo!
Dictas que foram estas palavras, despediu-se e pôz-se a caminho.
Esta estrada ia ter a uma cidade, ás portas da qual estava uma sentinella que lhe perguntou em que elle poderia ser-lhe util e o que é que sabia.
—Sei tudo—respondeu o rapaz nascido n'um folle.
—N'esse caso, pódes-nos indicar com facilidade a razão porque a fonte do mercado d'onde corria vinho, hoje não deita nem uma gotta d'agua?
—Depois o direi—respondeu o nosso viandante.—Espere que eu volte.
Em seguida, continuou o seu caminho até chegar ás portas d'outra cidade. A sentinella, que estava no seu posto, perguntou-lhe egualmente em que é que elle podia tornar-se util e o que é que sabia.{104}
—Sei tudo...
—Por conseguinte, só tu nos podes prestar um grande serviço em nos dizer qual o motivo porque a arvore da praça, que antigamente nos dava maçãs d'ouro, hoje nem sequer folhas apresenta.
—Quando voltar darei explicação—respondeu.
E lá foi andando, andando até que chegou a um largo rio que precisava atravessar. O barqueiro, que estava proximo, perguntou-lhe tambem em que é que elle lhe poderia ser prestavel e o que é que sabia.
—Sei tudo!—retorquiu o viajeiro nosso conhecido.
—Pois tu é que estás nas melhores condições para me dizer qual a causa porque é que ando a remar n'este barquinho de um lado para o outro sem que possa livrar-me d'este encargo.
—Dir-t'o-hei á volta—respondeu.{105}
Assim que se viu na margem opposta, reparou logo na bocca do inferno. Estava escuro, e chegava-lhe ao nariz o cheiro da fuligem. O diabo não estava em casa. Só lá estava a mãe, sentada n'uma larga poltrona que perguntou ao arrojado mocinho:
—Que queres tu d'aqui?—e olhava-o com certo ar de sympathia.
—Queria possuir tres cabellos d'ouro da cabeça do diabo, pois que se não os consigo, fico sem a minha noiva.
—É querer muito—retorquiu a velha—porque se o diabo entra e te vê aqui, não ganhas para o susto; mas tenho pena de ti e por isso te auxilío.
Quando acabou de falar, transformou-o n'uma formiga e aconselhou-o:
—Mette-te n'uma das prégas da saia, pois estás seguro do perigo.{106}
—Está bem, mas eu desejava tres respostas a tres perguntas: qual a razão porque uma fonte que antigamente deitava vinho, agora nem uma gotta d'agua deita; porque é que uma arvore que d'antes dava maçãs d'ouro, agora nem folhas tem; e, finalmente, qual o motivo porque um pobre barqueiro tem de remar d'uma banda para a outra, sem que se substitua.
—São problemas com certa difficuldade de solução, mas ouve com attenção e não dês palavra; escuta com cuidado as respostas que hão de coincidir com o arranque dos tres cabellos de ouro.
Ao anoitecer, voltou o diabo. Ainda bem não tinha posto o seu pé-de-cabra dentro do inferno, e já notava um certo cheiro que lhe era estranho.
—Cheira-me a carne humana—dizia elle fungando.—Alguma cousa ha aqui que não é costume!{107}
E poz-se a esquadrinhar por todos os cantos, mas nada encontrou. A mãe, então, ralhando-lhe, disse:
—Ainda agora arrumei a casa e andas tu a pôr tudo em polvorosa; não tens outro cheiro que não seja o de carne humana! Anda d'ahi, senta-te e come, que o teu mal é fome!
Depois de ter comido e bebido bem, sentiu-se cançado, collocou a cabeça no regaço da mãe, a quem pediu para o embalar. Não tardou a adormecer, roncando que nem um porco e assobiando como uma locomotiva. A velha aproveitou esse ensejo para lhe arrancar um cabello d'ouro.
—Ai!—fez o diabo—que faz mãe?
—Ora, deixa-me cá: tive um sonho terrivel, e por isso é que te arrepellei.
—Com que sonhou então?
—Sonhei que uma fonte que antigamente{108} dava vinho, agora nem agua deita. Porque será?
—Se soubesse!—respondeu o demo.—Debaixo d'uma pedra vive um sapo; assim que o matem, a fonte continuará a deitar vinho.
A velha tornou a embalál-o e d'ahi a pouco Satan resonava e assobiava em alto ruido, e com tal força que até as vidraças estremeciam. A velha, vendo-o assim, arrancou-lhe o segundo cabello.
—Ui!—gritou sobresaltado o rei dos infernos—que pezadello foi esse mãe?
—Não te apoquentes, filho, foi um outro sonho que tive.
—E de que constava elle?—interrogou Belzebuth.
—De uma arvore que antes produzia maçãs d'ouro e que actualmente está despida de folhas. Qual a rasão do caso?
—Ora, é bem simples! tornou o demonio. É um rato que roe a raiz.{109}
Os salteadores... leram... (pag. 100)
Matem-n'o que a arvore continuará a dar maçãs d'ouro; do contrario, o rato continuará na sua obra de destruição e a arvore definhará. Mas deixe-me socegado com sonhos; se me torna a acordar, não tenho outro remedio senão faltar-lhe ao respeito.{110}
A velhota ameigou-o com boas palavras, e continuou acalentando-o, até que o viu de novo ferrado no somno; então, arrancou-lhe o terceiro cabello. O diabo deu um pulo, soltou um grito e ia-se zangando devéras com a mãe, mas esta cortou-lhe os impetos, dizendo:
—Oh, filho, quem é que é superior aos sonhos!
—Que sonho foi esse para assim me despertar! Decerto é muito curioso!
—Sonhei que um barqueiro se lastima bastante em andar de uma banda para outra sem que seja substituido.
—Porque é um asno chapado!—exclamou Satanaz—Ao primeiro passageiro que lhe peça para atravessar a margem, não tem mais do que entregar-lhe os remos e pirar-se!...
Agora a velha, que já tinha arrancado os tres cabellos d'ouro e{111} que tinha na mão a chave dos tres enigmas propostos, deixou em paz o diabo, que dormiu a somno solto até madrugada.
Logo que o demonio saíu dos lares, a velha pegou na formiga, deu de novo figura de gente ao rapaz nascido n'um folle, e disse-lhe:
—Aqui tens os tres cabellos de ouro; quanto ás respostas dadas pelo diabo ás perguntas que formulaste, creio que as ouviste.
—Certamente que as ouvi e não me esquecem.
—E assim alcançaste o que querias—continuou a boa velha.—Agora pódes tornar para d'onde vieste.
O mocinho agradeceu muito o auxilio que a velha lhe havia prestado e saíu do inferno bem contente por haver conseguido os seus fins. Assim que chegou perto do barqueiro, este lembrou-lhe logo o cumprimento da promessa que lhe fizera.{112}
Mas o rapazito, que era bastante sagaz, respondeu:
—Conduze-me á outra margem, que então te direi o que has de fazer para te vêres livre d'aqui.
Logo que pôz o pé na outra margem, o rapaz cumpriu a palavra:
—Apenas se apresente um novo passageiro para que o ponhas na outra margem, entrega-lhe os remos e sáfa-te.
Seguiu a sua róta, e depressa chegou ás portas da cidade, onde existia a arvore esteril; a sentinella aguardava o rapaz para que não se esquecesse do promettimento.
—Matem o rato que róe a raiz da arvore, se querem vêr a arvore carregadinha de maçãs de ouro—aconselhou o moço.
A sentinella, grata com a resposta, compensou-o com dois burros carregados d'ouro. Para encurtarmos razões, o rapaz nascido n'um folle depressa alcançou as portas{113} da cidade, onde havia a fonte que estava sequinha. Aqui, repetiu tambem á sentinella as palavras do diabo:
—Debaixo de uma pedra está um sapo; assim que o matarem, continuará a fonte a dar vinho abundantemente.
A sentinella agradeceu muito e, em paga, deu-lhe tambem dois burros carregados d'ouro.
O rapaz nascido n'um folle estava, d'alli a pouco, em presença da noiva, a quem abraçou, e que ficou contente em tornar a vêl-o. Foi levar ao rei os tres cabellos d'ouro do diabo; e o soberano, ao vêr os quatro burros carregados de ouro, demonstrou claramente a sua alegria, dizendo:
—Agora que satisfizeste todas as condições, tens minha filha por tua mulher. Mas dize-me, meu caro genro, como é que arranjaste todo esse ouro?{114}
—Atravessei um rio, cuja margem é de ouro, em vez de areia. Foi ahi que o apanhei.
—É muito difficil fazer egual colheita?—perguntou o monarcha, cujos olhos scintillavam de cubiça.
—É facilimo tomar tanto quanto se deseje—continuou o rapaz nascido n'um folle.—Ha um barqueiro proximo; peça-lhe que o conduza á outra margem, e d'esta maneira póde trazer os saccos que quizer cheios de ouro.
O monarcha, mordido pela ambição, depressa se pôz em marcha. Chegado á margem do rio pediu ao barqueiro para o levar á outra margem. O barqueiro apressadamente disse ao rei para entrar no barco, e assim que chegaram ao outro lado do rio, o barqueiro entregou-lhe os remos e saltou lesto para terra.
—E ainda lá está o rei feito barqueiro?—perguntarão{115} os meus amaveis e gentis leitorzinhos.
—Está e estará até que expie, por completo todas as suas culpas.{116}
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{118}
{119}
Era uma vez um sapateiro que, por vicissitudes da vida, empobreceu tanto que só conseguira comprar material sufficiente para um par de sapatos. De noite talhou a pelle para no dia seguinte os concluir; como era bom, deitou-se tranquillamente, orou e adormeceu.
No dia immediato, ao erguer-se, ia pegar na tarefa, mas achou em cima da mesa o par já feito. Ficou altamente surprehendido, mas não comprehendia o que o facto queria dizer. Pegou nos sapatos e viu-os, examinou-os de todas as fórmas e{120} feitios, mas defeito algum lhes encontrou, tão bem acabados estavam; eram o que se chama uma obra prima, um encanto.
Entrou-lhe em casa um freguez, a quem agradaram tanto os sapatos que os comprou mais caros do que costumava, e com este dinheiro o sapateiro arranjou material para outros dois pares. N'essa mesma noite os talhou para no dia seguinte os concluir, quando, ao despertar, os viu já promptos; d'esta vez, ainda, não faltaram compradores e, com o producto da venda, pôde conseguir material para quatro pares.
No dia seguinte os quatro pares estavam promptos; finalmente, tudo o que talhava de vespera lhe apparecia feito de manhã, ao acordar; de modo que, sem grande trabalho, se achou remediado.
Uma noite, porém, pelas proximidades do Natal, quando acabára{121} de talhar os sapatos e se ia deitar, disse para a mulher:
—E se nós velassemos esta noite para vêr quem é que nos ajuda?
A mulher approvou a ideia, e, deixando a candeia accêsa, escondêram-se n'um armario onde havia roupa e na qual se occultaram á espera dos acontecimentos. Ao dar a meia noite, dois bonitos gnomos entraram no quarto, sentaram-se na tripeça do sapateiro e, pegando na pelle talhada, com as pequeninas mãos ajustaram, coseram e bateram sola, com tanta agilidade e presteza que era um gôsto vêl-os.
Trabalharam sem descanço até que deram fim á tarefa, e desapparecêram n'um ai!
Na manhã immediata alvitrou a mulher:
—Estes gnomosinhos enriquecêram-nos, e nós devemos mostrar-lhes a nossa gratidão; elles devem sentir frio, sem nada que os tape.{122} Sabes do que me lembrei? Fazer-lhes três camisinhas, calças, collete e casaco para elles vestirem e umas meiasinhas para calçarem; e para completar o brinde, tu fazias-lhes uns sapatinhos.
O marido concordou com a mulher, e deram logo principio á obra, e, decorridas bem poucas horas sobre tão sympathica resolução, á tarde, estava tudo prompto; collocaram, pois, marido e mulher, as suas prendas em cima da mesa, justamente no sitio em que era costume pôrem nos outros dias a obra talhada, e escondêram-se para verificarem o que os gnomos faziam. Meia noite a dar e elles a apparecerem para dar começo á tarefa; mas em vez dos sapatos cortados para elles fazerem, como tinha succedido nos dias antecedentes, encontraram essas vestimentas, o que lhes causou admiração, que d'ahi a pouco cedeu o logar a uma grande{123} alegria. Vestiram os fatos com presteza, viram que lhes ajustavam como uma luva e começaram a dançar, a saltar por cima das cadeiras e dos bancos, e a cantar saíram.
Desde então, nunca mais os viram. O sapateiro, porém, continuou a ser feliz
emquanto viveu, tendo tudo quanto ambicionava.{124}
{125}
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{127}
Era uma vez um rei que tinha tres filhos; os dois mais velhos eram alegres e palradores, e o mais moço de poucas falas e muito acanhado, razão por que o tinham na conta de simples.
Quando o monarcha chegou a velho, quiz fazer testamento; mas viu-se bastante embaraçado por não saber a qual dos tres filhos legar a corôa. Certo dia, porêm, chamou-os e disse-lhes:
—Ponham-se a caminho, e aquelle que trouxer o tapete mais finamente{128} tecido é que ficará sendo rei por minha morte.
Dizendo isto, para evitar qualquer má vontade dos irmãos, andou alguns passos além do palacio e, fazendo voar tres pennas, indicou-lhes:
—Cada um de vocês deve encaminhar-se na direcção que estas pennas levarem.
A primeira penna voou para o oriente, a segunda para o occidente e a ultima volitou uns segundos e foi caír a alguns passos de distancia.
Por, isso, o mais velho tomou o caminho da direita, o do meio voltou á esquerda e o mais novinho—troçado pelos mais velhos—encaminhou-se para o sitio onde caíra a terceira penna.
O pobre moço, apoquentado e triste, deitou-se no relvado. De repente notou uma porta subterranea no logar em que a penna caíra.{129} Abriu-a e reparou n'uma escada, que se aventurou a descer. Uma vez em baixo, deu de rosto com outra porta, em que bateu. Então ouviu uma voz que—em phrase cabalistica—a mandou abrir.
Quando a porta girou nos gonzos viu-se um enorme sapo, de envolta com uma porção de sapinhos. O sapão perguntou ao rapazito o que é que desejava, ao que o interpellado retorquiu:
—Não seria facil arranjar-se um tapete bonito e finamente tecido?
Palavras não eram dictas e já o sapão gritava a um dos sapinhos, que, n'um pulo, lhe trouxesse um cofre.
O sapinho assim fez; o sapão abriu-o e tirou de dentro um tapete tão ricamente tecido como nunca no mundo se havia visto egual, com o que presenteou o rapazinho, que agradeceu muito e se pôz em marcha.{130}
Ora, os dois irmãos reflectiram de si para si que o irmão era tão palerma, que se escusavam de cançar muito para toparem com um tapete decerto superior ao que elle conseguisse.
Assim deitaram a mão ao primeiro panno de lã grosseira que uma guardadora de porcos trazia, e vieram entregál-o ao rei. Pouco depois, appareceu o irmão mais novo com o magnifico tapete.
O regio personagem, no auge da surpreza, exclamou:
—O reino pertence ao mais moço!
Os irmãos é que não estiveram pelo ajuste e observaram ao velho pae, que tal resolução era impracticavel, pois o irmão não passava de um pateta; taes rodeios arranjaram, taes razões, que o monarcha, já fatigado de tanta loquella, não teve remedio senão tentar segunda experiencia.{131}
—Será rei por minha morte aquelle que me trouxer o mais valioso annel.
Conduziu novamente os tres filhos a alguns passos distantes, do palacio e fez voar tres pennas, cuja direcção deviam tomar. Como da primeira vez, os dois mais velhos partiram para o oriente e occidente; quanto á penna do mais moço volitou tambem por segundos e foi caír d'alli a poucos passos.
Ao contrario da vez passada, o rapaz não entristeceu, mas apressou-se a descer a escada pela porta subterranea, em direcção á casa do sapão que, de chofre, lhe perguntou o que queria, respondendo em seguida:
—Não será facil arranjar-se um bonito e valioso annel?
O disforme batrachio mandou buscar o cofre e tirou-lhe de dentro um annel riquissimo, e tão artisticamente cinzelado, que ourives{132} algum do mundo seria capaz de apresentar outro do mesmo gôsto.
Ora os dois irmãos, rindo-se ao pensar que o simples mocinho havia de conseguir um annel precioso, não se deram a grandes trabalhos, certos de que se sairiam melhor do encargo do que aquelle, e assim arrancaram a primeira argola que viram presa n'uma parede e que servia para segurar os animaes, e foram ter ao palacio dál-a ao rei. O velho monarcha nem sequer teve que comparar, exclamou:
—É ao terceiro que faço rei!
Entretanto, os dois mais velhos convenceram tão bem o velho rei da nullidade do irmão que o monarcha consentiu em fazer terceira tentativa, a ultima. Decidiu-se que herdava o throno o que trouxesse a mulher mais formosa. Como das vezes passadas, as tres pennas foram deitadas ao ar e tomaram as mesmas direcções.{133}
O moço-simples desceu pela terceira vez a casa do sapão.
—Não seria desejar muito, pedir uma formosa mulher?
—Caspité!—exclamou o grande batrachio.—Uma formosa mulher?! E porque não has-de têl-a?!
Dictas que foram estas palavras, o sapão deu-lhe uma beterraba ôca puxada a seis ratos brancos.
Ao ver tão curiosa carruagem, o pobre rapaz perguntou com certa tristeza:
—Que faço a isto?
—Agarra um de meus filhos—respondeu o sapo—e mette-o dentro d'esse carro.
A esta indicação, pegou ao acaso n'um dos sapinhos e metteu-o na beterraba; mal ahi foi collocado, o bicharôco ficou transformado n'uma menina de formosura maravilhosa, a beterraba n'uma luxuosa equipagem e os seis ratos em tres parelhas de cavallos brancos de neve.{134} Em seguida, o mocinho subiu para a boléa, abraçou a moça e depressa seguiu para o palacio. Os dois irmãos mais velhos chegaram d'ahi a pouco, mas faziam tão mau juizo da escolha que o mais moço faria, que ficaram satisfeitos com a primeira camponia que lhes appareceu e que levaram a palacio. D'esta vez ainda—o que não é para assombros—o monarcha disse:
—É ao mais moço de meus filhos que pertencem as rédeas do governo apoz minha morte!
O que é certo é que pela terceira vez ainda os dois irmãos tentaram murmurar contra a resolução do pae e pediram para que—em ultima experiencia—fosse proclamado rei aquelle cuja mulher saltasse pelo meio de uma argola suspensa a meio da sala. E propondo isto accrescentaram:
—As camponezas facilmente saltarão, são bastante fortes para estes{135} exercicios; quanto a essa arveloa, fraca e delicada, cae e parte a cabeça.
Muito instado, o rei cedeu a esse capricho que começou.
As duas camponezas foram as primeiras a saltar, mas, pezadas e gordas como eram, caíram, partindo braços e pernas. Ao contrario, a moça trazida pelo mais novo formou salto tão elegante, que atravessou graciosa e rapidamente a argola e caiu em pé.
Ante esta ultima experiencia ficou decididamente reconhecido como herdeiro ao throno.
Effectivamente, assim que o velho monarcha fechou os olhos, foi acclamado
rei e ainda agora se fala da sabedoria com que n'esse paiz governou.{136}
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{138}
{139}
Em epochas muito longinquas, o povo de uma grande capital—cujo nome nos não occorre—erigiu um lindo templo dedicado á padroeira dos musicos—Sancta Cecilia, segundo a tradição.
Eram das côres mais vivas e vistosas as flôres escolhidas para cobrir o altar, a roupagem da sancta toda em prata filigranada e os sapatos executados em ouro, pelo mais habil ourives-cinzelador que vivia n'essa cidade. A egreja estava sempre replecta de devotos e peregrinos. Em romagem, entrou lá{140} certo dia um infeliz violinista, macillento, esquálido e franzino. Como a caminhada fôra longa, o pobre estava fatigado e no seu alforge já não havia uma migalha de pão nem na sua algibeira um ceitil para o comprar.
Apenas entrou no templo, principiou a dar uns acordes de violino tão suaves, tão expressivos, tão melodiosos, que a sancta enterneceu-se tanto com a sua pobreza e com aquella musica maviosa, que—ao elle findar—se baixou, descalçou um dos sapatos de ouro e deu-o ao infeliz menestrel, que, doidamente alegre, bailando, cantando e chorando, ao mesmo tempo, se encaminhou para uma ourivesaria com o fim de o trocar por dinheiro.
O joalheiro, porêm, conhecendo o sapato como sendo o da sancta, prendeu o violinista, levando-o ao juiz. Formaram processo, foi julgado e condemnado á pena ultima.{141}
Approximára-se o dia da execução; os sinos tocavam plangentemente, e o triste cortejo pôz-se em marcha, acompanhado a canticos dos frades que, apezar d'isso, não deixavam de ouvir-se os lindos acórdes que o infeliz condemnado tirava do seu maravilhoso violino; era uma ultima concessão que lhe havia sido dada, até soar o derradeiro instante. O cortejo parou mesmo defronte do templo da sancta e, assim que alli chegou, o pobre musico supplicou que o conduzissem ao altar da sancta, afim de tocar o seu ultimo acorde melodioso.
Os frades e os chefes dos soldados que o escoltavam, concederam-lhe essa graça, e o violinista entrou, ajoelhou-se aos pés da padroeira dos musicos e, com os olhos marejados de lagrimas, principiou a tirar deliciosos acórdes do seu violino.
O povo, então, attonito e admirado,{142} notou que Sancta Cecilia se baixava, descalçava o outro sapato e o mettia nas mãos do pobre musico. A este maravilhoso espectaculo, todos os circumstantes levaram em triumpho o violinista, puzeram-lhe na cabeça uma corôa entrecida de flôres, e os magistrados dirigiram-lhe as mais solemnes e as mais honrosas homenagens.