The Project Gutenberg eBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06 This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06 Author: Alexandre Herculano Release date: December 30, 2009 [eBook #30801] Most recently updated: December 15, 2020 Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 06 *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *Nota de editor:* Devido ‡ quantidade de erros tipogr·ficos existentes neste texto, foram tomadas v·rias decisıes quanto ‡ vers„o final. Em caso de d˙vida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar· a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Dez. 2009) OPUSCULOS OPUSCULOS POR A. HERCULANO SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRAN«A (ACADEMIA DAS INSCRIP«’ES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. TOMO VI CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS TOMO III LISBOA VIUVA BERTRAND & C.^a SUCCESSORES CARVALHO & C.^a 73, Chiado, 75 M DCCC LXXXIV COIMBRA--IMPRENSA DA UNIVERSIDADE UMA VILLA-NOVA ANTIGA 1843 Se passardes pelos olhos uma carta topographica de Portugal, em cada provincia, em cada comarca, talvez em cada pequeno districto, achareis escripto, ao lado de alguns d'esses signaes que marcam as povoaÁıes, a palavra _Villa-nova_: Villa-nova de Rei, de S. Cruz, de Gaya, de Cerveira;... que sei eu?--Villas-novas de todos os sobrenomes, e atÈ villas-novas de ninguem e de nada; villas-novas espurias. Villa-nova È o _dom_ municipal, o dom vill„o; porque, por extravagante antiphrase, villa-nova quasi sempre indica um antigo burgo com suas rugas de velhice, com seu castello desmoronado, com seus vestigios de templo ou de palacio da meia-edade. Villa-nova moderna, sem pedras amarellas, tombadas, ogivaes, È cousa descommunal, milagrosa, e ao rÈz do impossivel. … que o passado, remoto, remotissimo, como o imaginardes, j· foi presente, e ent„o a villa que se alevantava ou no desvio, atÈ ahi inculto e intractavel, ou sobre os vestigios de povoaÁ„o deshabitada e destruida, era realmente _nova_; mas os seus edificadores esqueciam-se, ao dar o nome · obra das proprias m„os, que elles passariam bem depressa e com elles a mocidade da sua filha querida; esqueciam-se de que o correr dos annos brevemente havia de converter em palavra sem sentido essa denominaÁ„o que lhes parecÍra t„o clara e precisa. Aos primeiros respiros de paz e seguranÁa, depois das guerras barbaras de religi„o e de raÁa que devastaram outr'ora este solo portuguez, o espirito municipal ia semeando os concelhos ao passo que debaixo dos marcos das fronteiras christ„s se embebia o territorio mussulmano, e ent„o acontecia que o burgo, recentemente plantado em terra atÈ ahi erma e s·fara, ou sobre as ruinas carcomidas de municipio romano ou godo, sentindo-se cheio de vida e de esperanÁas, folgava de contar ao mundo no proprio nome a sua juventude, e tomava para si o titulo t„o querido, t„o popular, t„o casquilho--de Villa-nova. E ·s vezes as villas-novas vinham encostar-se aos muros carrancudos e robustos das cidades reaes ou episcopaes. Eram como uma crianÁa rosada, risonha, travessa, que se atira ao collo da velha rebarbativa, e se lhe pendura ao pescoÁo, e desata a rir--a bom rir. Acontecia tambem que uma ou outra ia assentar-se · beira de um rio, defronte de povoaÁ„o orgulhosa, e similhante a trasgo inquieto zumbia-lhe insolentemente aos ouvidos, e desangrava-a roubando-lhe o seu commercio: mettia-se atÈ em bandos politicos para lhe fazer perraria; e inimiga d'ao pÈ da porta n„o havia casta de incommodo que lhe n„o causasse. Que outra cousa fez Villa-nova de Gaya ao burgo episcopal do Porto, burgo t„o grave, t„o serio, t„o devotamente enroscado em volta da sua cathedral, aos pÈs dos seus sanctos bispos? Quem, sen„o Villa-nova de Gaya, assoprou provavelmente entre os honrados burguezes da cidade do Douro aquelle espirito de irmandade e revolta que tanto veio depois a incommodar os successores do veneravel D. Hugo? Lisboa--guerreira e depois mercadora--tambem teve, n„o uma, mas duas villas-novas abraÁadas · sua cinta de muralhas: a primeira ao sul, a segunda ao poente. Chamava-se aquella Villa-nova de Gibraltar: esta Villa-nova d'Andrade. A segunda, nascida no seculo XV, viveu dois dias apenas, porque Lisboa, essa _villa_[1] limitada nos fins do seculo XII a 15:000 habitantes, em quanto a mourisca Silves contava 25:000, cresceu com tal rapidez na epocha dos descobrimentos que, rompendo ou, antes, galgando por cima dos lanÁos occidentaes dos seus muros, a devorou ainda no berÁo, ou para melhor dizer partiu-a em fragmentos, e aos seus membros despedaÁados chamou Bairro-alto, Chagas, Sancta Catharina. Villa nova d'Andrade foi uma cousa fugitiva, sem gloria, sem individualidade. D'ella poderia dizer-se o que o psalmista dizia do impio--´vi-a exaltada como o cedro do Libano: passei, e n„o existia; busquei-a, n„o lhe achei rasto.ª Deixemol-a, pois, na paz do esquecimento e do nada. N„o assim Villa-nova de Gibraltar. Fallae-me de Villa-nova de Gibraltar! Esta sim, que viveu. A sua origem perde-se nas trevas dos tempos chamados barbaros, entronca-se no berÁo da monarchia. Assentada · beira do Tejo, fÛra do lanÁo de sul e sueste da muralha arabe, ou talvez goda (quem poder· hoje dizel-o?!), que cercava Lisboa antes do seculo XIV, saudavam-na os primeiros raios do sol oriental, aqueciam-na todos os do alto dia, douravam-na os derradeiros que vinham do poente roÁando pela superficie das aguas. A cidade l· estava sombria entre as torres e altos muros da sua cerca; agachada nas faldas do seu castello soberb„o e malcreado; prostrada em volta da sua cathedral ampla e triste. Mas que importava isso a Villa-nova de Gibraltar? Ahi n„o havia nem muros, nem torres, nem castellos, nem campanarios. Ella mirava-se no rio, e achava-se bella; bella por si e pelo luxo dos seus atavios; porque Villa-nova de Gibraltar era a atravessadora de quasi toda a mercancia; a patria dos rendeiros e _sacadores_ das rendas e direitos reaes: era rica e potente; e ao sobrecenho altivo da velha Lisboa, confiada na sua epiderme de marmore, respondia ella mostrando a sua armadura d'ouro, e depois punha-se a rir, porque bem sabia j·, como nÛs hoje sabemos, que o ouro È mais forte que o marmore. D. Fernando I, que foi para com Lisboa como um amante selvagem, ora querendo aniquilal-a porque lhe preferia em amores o alfaiate Fern„o Vasques, ora lanÁando-lhe no regaÁo riquezas, privilegios, tudo, quiz n'um accesso de ciume escondel-a aos olhos d'estranhos. J· ella, a namoradeira, sahindo da Porta do Ferro, pelo terreiro da cathedral, corrÍra para o valle de Valverde e se reclin·ra por ahi abaixo indo espreitar a barra c· da margem do rio; j· comeÁava atÈ a galgar pela encosta fronteira para o lado do gothico mosteiro de S. Francisco e para a ermida dos Martyres, e pela Pedreira do Almirante para o convento dos sanctos frades da RedempÁ„o. ´Alto l·!ª disse o bom do rei D. Fernando, e, chamando os villıes sujeitos · ad˙a por todas as villas e logares d'arredor, lanÁou · cintura da doudinha uma nova faixa de muros, para que n„o passasse alem. Ficou-se, È verdade, espairecendo Lisboa pelo valle e pela encosta, mas ao menos, atraz das novas torres e quadrellas, j· n„o podia fazer gatimanhos de presumida aos que vinham visitar em som de paz ou de guerra os campos das suas cercanias, ou as aguas da sua enseada. E que era nesse tempo feito de Villa-nova de Gibraltar? L· estava senhoril e desdenhosa, · beira do Tejo, indifferente aos arrufos de Lisboa e aos ciumes de D. Fernando. Pacifica e fiel n„o se entremettia em negocios alheios, n„o tumultuava, n„o se namorava d'estranhos. Assim a muralha real que bojava para poente, passou pÈ ante pÈ por entre ella e a cathedral para n„o a affligir: encorporou-se ahi com os antigos muros para a deixar, como atÈ ent„o, exposta · sua t„o querida restea de sol. Novas portas, todavia, a uniram com a antiga cidade, que t„o rapidamente crescÍra e se fizera garrida. Foi por ahi que lenta e traiÁoeiramente Lisboa pÙde chegar a submettel-a e devoral-a. E quereis saber por qual raz„o, e como? Dir-vol-o-hei. Era que na fronte de Villa-nova de Gibraltar, abaixo do seu diadema rutilante de princeza, estava escripta uma lenda fatal e maldicta; uma lenda que por muito tempo foi apenas ignominiosa; mas que nos fins do seculo XV se converteu em sentenÁa de morte, em signal estampado pela m„o do archanjo do exterminio. Esta lenda encerrava apenas duas palavras, mas palavras blasphemas, que sÛ podiam ser apagadas destruindo-se a existencia individual da povoaÁ„o que se atrevia a apresental-as deante da luz do cÈu. Villa-nova de Gibraltar era a _Communa dos Judeus_! A edade-media, essa epocha altamente poetica, porque tinha crenÁas, e profundamente symbolica, porque era poetica, havia feito de Lisboa um symbolo da historia religiosa e politica. O municipio christ„o, partindo do alto alcaÁar ou castello, dilatava-se atÈ ·s raizes do monte, em cujo topo campeava, a cavalleiro de todos os cabeÁos dos arredores, a torre de menagem--a guarida do alcaide-mÛr--como representante do senhorio real e da aristocracia: · sombra do alcaÁar, e a mais de meia encosta, a cathedral alÁava os seus dois campanarios altivos, quadrangulares, massiÁos: entre essas duas expressıes materiaes da monarchia, da nobreza, e da egreja, a casa da camara--os paÁos plebeus do concelho, proximos do campanario septentrional da sÈ, ch„os e humildes--representava o povo que em silencio se preparava para ir estender os braÁos endurecidos pelo trabalho, e subjugar algum dia, · direita o alcaÁar, · esquerda a egreja. Na configuraÁ„o da cidade resumia-se a historia social do passado e a prophecia do futuro. Como tantas cousas da edade-media, Lisboa era um verdadeiro symbolo. N„o o era sÛ, todavia, do pensamento politico: tambem o era da idÍa religiosa. No amago da povoaÁ„o, no logar eminente, estava o christianismo; ao norte, em profundo valle e apinhado em volta de mesquita apenas tolerada, ficava o bairro dos mouros, a _Mouraria_; e ao sueste, quasi ao oriente, lanÁada ao pÈ da _Esnoga_, a _Judearia_:--uma crenÁa verdadeira, mas temporaria, do lado donde o sol surgia na sua ascens„o para as alturas; a religi„o do Christo, complemento divino d'aquella, assoberbando-a do monte sobranceiro; o islamismo, transformaÁ„o impia e tenebrosa d'ambas, como escondido ao norte na penumbra da cruz triumphante; e ao longe as vastas solidıes do oceano, atravez das quaes os filhos do evangelho o deviam levar algum dia ·s regiıes ainda incognitas de novos mundos. O velho Portugal tinha feito da cidade do Tejo um symbolo e uma prophecia sublimes! A monarchia, vencedora da edade-media, esqueceu a poesia d'ella; porque nos seus velhos habitos de organisar, de legislar, de livellar, perdÍra inteiramente o senso esthetico. A poesia estava principalmente nas idÍas, no sentir, nas formulas das classes aristocraticas: o povo era infeliz e selvagem, e a monarchia positiva, calculadora, e egoista. Com a victoria final d'esta desappareceu tudo o que representava o ideal. Belem È a agonia da arte; È o estrebuchar descomposto da architectura christan que morria; e o cancioneiro de Resende o ultimo concerto dos trovadores em que j· se misturam os sons discordes da poesia romana. Neste crepusculo da vida nacional, nesta passagem da originalidade para a copia, as ruinas tombavam sobre outras ruinas: a nova sociedade sobrepunha as suas obras incertas, frias, ou estupidas, aos restos ainda palpitantes do cadaver do passado; cirzia-as ridiculamente com remendos e fragmentos das obras e factos que destruira; fazia, emfim, por um pensamento de ordem e de organisaÁ„o exaggerado, o que nÛs muitas vezes fazemos hoje por um amor de liberdade indiscreto e excessivo. … curioso o vÍr como a edificaÁ„o do celebre mosteiro Jeronimitano de Belem se liga com a destruiÁ„o da communa judaica de Villa-nova de Gibraltar; como esse monumento de transiÁ„o da architectura, esse cahos de todos os systemas que luctavam no principio do XVI seculo, reunidos, e por assim dizer petrificados de subito n'um edificio sÛ, traz forÁosamente · lembranÁa a ruina d'um facto da ordem moral que existira inconcusso entre nÛs por quatrocentos annos--a tolerancia da edade-media. De feito a tolerancia religiosa expirava ao passo que a architectura christan morria, e as bullas da inquisiÁ„o vinham-nos talvez pelo mesmo correio que trazia aos nossos architectos os desenhos puros e materialmente formosos, mas pag„os e peregrinos, de Bramante ou de Raphael. Um phenomeno por certo singular nos apresenta a historia antiga de Portugal. Na larga serie de leis, de artigos de cÙrtes, de factos publicos atÈ os fins do seculo XV, a crenÁa viva de nossos avÛs se limita sempre dentro dos termos d'aquella intolerancia legitima que a verdade n„o pÛde deixar de ter para com o erro. O christianismo proclama-se ahi franca e energicamente a unica religi„o verdadeira: o christ„o julga-se um homem de condiÁ„o superior ao judeu. O povo vigia, atÈ, com ciume que o israelita conserve sempre no trajo um distinctivo da sua raÁa reproba, das suas doutrinas erradas. Mas a intolerancia acaba neste ponto: n„o se imagina ainda que o desterro, os tractos do potro, e o cheiro de carne humana queimada subindo da fogueira expiatoria, sejam sacrificios agradaveis a Deus. Na gente judaica havia mais, por assim dizer, um caracter de triste fatalidade pesando sobre uma raÁa condemnada pelo seu peccado original do Deicidio, que o de uma raÁa maldicta por crimes proprios. ´Os judeus, como testemunhas da morte de Jesu-Christo, devem ser defendidos sÛ porque s„o homensª: estas palavras de D. Affonso II resumem o pensamento da edade-media ·cerca d'elles. … o pensamento de que Lisboa com Villa-nova de Gibraltar foram a imagem sensivel. No alto da sÈ a cruz, abrigada · sombra do castello christ„o, via a seus pÈs a synagoga--a humilhada _Esnoga_--que testemunhava alli a morte do Christo, a victoria do Evangelho, e a redempÁ„o dos homens: e o que orava na cathedral sentia sÛ desprezo, e por ventura compaix„o, por aquelle que orava na synagoga. Se o odio se misturava ·s vezes com esses sentimentos, motivos n„o religiosos, mas puramente materiaes o geravam: geravam-no as riquezas dolosamente accumuladas pela gente hebrea, os vexames que practicavam como exactores da fazenda publica, as suas usuras como possuidores de capitaes, e mil outros motivos humanos em que nada tinha que vÍr a opposiÁ„o das crenÁas. E o seculo XVI, que era erudito; que traduzia Cicero e Ovidio, e imitava Horacio: o seculo da civilisaÁ„o, das conquistas, de todas as grandezas, cuspia nas faces da edade-media, que jazia morta a seus pÈs, o epitheto de barbara! E D. Manuel, o culto e venturoso monarcha do oceano, esquecia-se do que n„o esquecera a seu rude e obscuro avÙ D. Affonso II: esquecia-se de que os isralitas estavam condemnados pelo Rei da Eternidade a vaguearem perpetuamente na terra _como testemunhas da morte de Jesu-Christo_. Portugal devia ser exceptuado d'esse decreto de cima, e a convers„o violenta dos judeus foi um dos factos mais estrondosos d'aquelle t„o estrondoso reinado. Da communa hebraica, da risonha e opulenta Villa-nova de Gibraltar, apenas nos resta a sua synagoga--melhor diriamos o sitio d'ella--convertido em templo christ„o. … uma collegiada da ordem de Christo: È a ConceiÁ„o Velha; velha porque j· as cousas d'essa epocha manuelina, t„o fastosa, t„o transformadora, t„o destructiva de tudo o que quer que fosse, bom ou mau, das eras poeticas, j· hoje È caruncho e podrid„o: os seus monumentos j· se confundem com os que ella desprezava como barbaros. Fallae no portal rendilhado da ConceiÁ„o Velha a um vereador, a um politico, a um pascasio de melenas, emfim a qualquer inimigo nato das cousas mais poeticas e sanctas da patria--os monumentos--e responder-vos-ha torcendo o nariz e com um ademan parvo de superioridade: ´Poh diabo! isso È gothico!ª Gothico! Ouves, seculo dezeseis, seculo romanista, seculo brilhante, seculo peralvilho? Ouves l· debaixo da tua campa, pesada como todos os crimes que commetteste no oriente, confundirem-te hoje com os seculos rudes e pobres da nobreza d'alma na fidalguia e da energia popular? Mudaste a indole da naÁ„o; tornaste-a de guerreira em mercadora; de municipal em cortezan; de austera em voluptuaria. Acceita de m„os como aquellas a paga da tua boa obra. A historia da esnoga e do mosteiro de Restello È simples: tÍl-a-heis lido em dez livros copiados uns dos outros com grande augmento e gloria das lettras patrias. Onde hoje este edificio, amplo como o poderio de D. Manuel, simula aos olhos do vulgo, na vermelhid„o dourada das suas pedras, uma edade mais provecta que a verdadeira, existia um conventinho de freires de Christo. D. Manuel vasou-os na synagoga de Villa-nova, desentulhou o ch„o da ermida de Sancta Maria de Belem, que assim se chamava ella, alevantou a machina que ahi vÍdes, chantou-lhe dentro n„o sei quantas duzias de frades jeronimos de Penhalonga, e morreu deixando a sua obra imperfeita. Tractou de continual-a D. Jo„o III nos intervallos em que lh'o consentiam as suas incansaveis diligencias para obter a sancta inquisiÁ„o, contra a qual reluctou muito tempo a curia romana, que nem sempre È t„o boa como alguns a fazem, nem t„o m· como outros o affirmam. Na regencia de D. Catharina parece ter-se acabado a igreja como actualmente existe. E a esnoga de Villa-nova? A esnoga estava reformada, rendilhada, baptisada, christan e contrita como.... como os judeus allumiados subitamente pelo Espirito-Sancto no mesmo dia e · mesma hora, por um decreto real, redigido provavelmente pelo secretario Antonio Carneiro. ApÛsto que n„o sabeis quem era Antonio Carneiro? Era para D. Manuel o que fÙra Ant„o de Faria, que tambem provavelmente n„o conheceis, para D. Jo„o II: um substituto da cadeira monarchica, um marquez de Pombal de ha trezentos e quarenta annos, de que ninguem se lembra hoje, como d'aqui a outros trezentos annos ninguem se lembrar· do marquez de Pombal. _Sic transit gloria mundi._ Pois n„o o merecia Antonio Carneiro!--Foi ministro de peso e volume. Os papeis da sua secretaria, ou antes do Estado, eram em portuguez! Quem me dera um Antonio Carneiro! Antonio Carneiro foi atÈ homem agudo e engraÁado: prova d'isso È o preambulo do regimento dado · collegiada da convertida synagoga, em 29 de janeiro de 1504. Evidentemente o ritual rabinico j· n„o tinha applicaÁ„o. N'esse preambulo conta o bom do secretario a historia da transformaÁ„o. Eis as suas palavras: ´Como entendemos (È el-rei quem fala segundo estylo e direito) na conuers„o dos judeus de nosos reynos pera · nosa santa fee serem ajuntados, he no conhecimento he obras della se saluarem, com muyta deuaÁ„o nos oferecemos he deliberamos da casa da esnoga dos judeos que estavam na judiaria grande desta cidade, asi como ella era a mays principal em que o nome de noso senhor era blasfemado, he as coussas de nosa santa fee catolica reprovadas e emmingoadas, fazermos huma solene igreja e casa da enuocaÁ„o de nosa senhora da conseiÁ„o, na qual com muy grande solenidade e deuaÁ„o os officios deuinos fossem celebrados, he ali, onde a noso senhor por tanto espaÁo de annos e tempos fora feyto tanto deseruiÁo, he o seu nome he as suas coussas blasfemadas, perpetuamente he em toda a perfeyÁ„o seus louuores se fizessem, he o culto deuino fosse continuamente he com grande solenidade exalÁado.ª--Basta. N„o me digaes nada do estylo d'Antonio Carneiro: era o do seu tempo. Confessai antes que n„o esperaveis que a transformaÁ„o da synagoga em igreja fosse uma antithese religiosa, um trocadilho ao divino. Essa perseguiÁ„o similhante · dos tyrannos de Roma contra os primeiros martyres do christianismo, alevantada contra os judeus portuguezes, nos fins do seculo XV, foi apenas uma figura de rhetorica feita por D. Manuel. ” elegante, Û immortal Antonio Carneiro! Tu ajudavas teu senhor a acabar a obra de D. Jo„o II, a anniquilar toda a poesia da edade-media; mas tu eras mais poeta do que ella. CreanÁas despedaÁadas por seus pais para n„o serem entregues aos beleguins missionados; homens, havia pouco opulentos, reduzidos · miseria e ao desterro, ou obrigados a acceitarem um baptismo sacrilego, porque era recebido por violencia: tudo quanto ha negro e infame n'aquelle procedimento, em que atÈ n„o faltou a covardia de se respeitar o direito das gentes para com os mouros (tambem expulsos n'essa occasi„o) porque _tinham quem podesse vingal-os_: tudo isto, Û excellente Antonio Carneiro, n„o passou de uma fÛrmula de Quintiliano, applicada · theoria do culto! Quem poder· duvidar de que os admiradores do _grande seculo_, do seculo XVI, teem prodigiosamente desenvolvidas as proeminencias do bom e do bello? Da esnoga, reconstruida em templo por Antonio Carneiro e por D. Manuel, apenas resta a portada. Tambem era a cousa unica formosa e alegre em toda essa negra e maldicta historia. Se quereis estudar como artistas os seus delicados lavores, ide contemplal-a · rua da Ribeira Velha, antes que o progresso passe por l· e a derribe. O progresso È gordo e ancho: n„o cabe onde quer que esteja um monumento. COGITA«’ES SOLTAS DE UM HOMEM OBSCURO 1846 O modo como os fragmentos que vamos publicar nos vieram ·s m„os È cousa que n„o importa aos leitores: o que lhe pode importar È se haver· n'elles idÈas que os levem a reflectir sobre o estado da sociedade no meio das questıes de organizaÁ„o que se agitam entre nÛs. S„o estas folhas avulsas como uma serie de apontamentos para um livro que talvez fosse de algum valor se chegasse a escrever-se. Incapazes litterariamente de preencher as lacunas e de coordenar as idÈas, que as mais das vezes apenas est„o indicadas n'estas notas, imprimimol-as como nos foram transmittidas pela derradeira vontade de um homem que j· n„o existe, e que tinha mais habito de pensar que de escrever, o que, seja dicto sem offensa de ninguem, n„o È demasiado vulgar. Cremos que todos os partidos reconhecer„o que estes pensamentos se movem n'uma esphera differente d'aquella em que giram as opiniıes ou as paixıes por cuja causa combatem uns com outros e mutuamente se detestam, e que por isso nenhum d'elles os considerar· como adversos ou favoraveis aos seus interesses momentaneos, e, digamol-o, ·s vezes bem pouco graves. Da altura dos systemas os publicistas olhar„o para estas cogitaÁıes como para um sonho de homem acordado, n„o raro em flagrante contradicÁ„o com as doutrinas das escholas. … provavel que tenham raz„o. Mas como elles ainda n„o poderam intender-se entre si, nem sequer ·cerca dos principios fundamentaes da sciencia politica, deixem passar o pobre sonhador, e perdÙem-lhe a ignorancia em attenÁ„o ao seu amor de patria e · nova luz a que nos parece ter visto um certo numero de factos sociaes importantes. Notas, cujo destino era o serem conservadas na pasta do auctor, atÈ se completarem e receberem a conveniente ordem, estas ponderaÁıes n„o teem ainda as fÛrmas modestas com que deveram apresentar-se; nÛs, porÈm, n„o nos atrevemos a revestil-as d'essas fÛrmas com receio de diminuir-lhes a energia. Mais como duvidas sobre as causas e remedios da febre que agita as sociedades modernas, que como pretenÁıes de fundar uma eschola politica, esperamos sejam consideradas as _CogitaÁıes de um homem obscuro_ por aquelles que se applicam a reformar as instituiÁıes dos povos. S„o idÍas informes, incompletas, e rudes: mas bem grosseira È a silex, e È d'ella que sahe a fa˙la com que accendemos o facho que nos guia nas trevas de noite profunda. Possam os devaneios d'aquelle que passou desconhecido ao mundo n„o serem inteiramente inuteis para o progresso humano, e sobre tudo para a liberdade e bem-estar futuro da terra sacrosancta da Patria! I Fraco, pequeno, e pobre na origem, Portugal teve de luctar desde o berÁo com a sua fraqueza original. Apertado entre o vulto gigante da naÁ„o de que se desmembrara e as solidıes do mar, o instincto da vida politica o ensinou a constituir-se fortemente. Quando se lanÁam os olhos para uma carta da Europa e se vÍ esta estreita faixa de terra lanÁada ao occidente da Peninsula e se considera que ahi habita uma naÁ„o independente ha sete seculos, necessariamente occorre a curiosidade de indagar o segredo d'essa existencia improvavel. A anatomia e physiologia d'este corpo, que apparentemente debil resistiu assim · morte e · dissoluÁ„o, deve ter sido admiravel. Que È feito das republicas da Italia t„o brilhantes e poderosas durante a edade-media? Onde existem Genova, Pisa, Veneza? Na historia: unicamente na historia. … l· onde sÛmente vivem o imperio germanico e o do Oriente, a Escossia, a Noruega, a Hungria, a Polonia, e na nossa propria Hespanha a Navarra e o Arag„o. Fundidas n'outros Estados mais poderosos ou retalhadas pelas conveniencias politicas, estas nacionalidades exteriormente fortes e energicas dissolveram-se e annullaram-se, e Portugal, nascido apenas quando essas sociedades j· eram robustas, vive ainda, posto que em velhice abhorrida e decrepita. Ha n'isto sem duvida, se n„o um mysterio, ao menos um phenomeno apparentemente inexplicavel. Estar· a raz„o da nossa individualidade tenaz na configuraÁ„o physica do solo? Somos nÛs como os suissos um povo montanhez? Separam-nos serranias intransitaveis do resto da Peninsula? Nada d'isso. As nossas fronteiras indicam-nas commummente no meio de planicies alguns marcos de pedra, ou designam-nas alguns rios sÛ no inverno invadiaveis. Quem impediu a Hespanha, esse enorme colosso, de devorar-nos? Poder-se-ha dizer que desde o seculo XVII È a rivalidade das grandes naÁıes da Europa que nos tem salvado. Talvez. Mas antes d'isso era por certo uma forÁa interior que nos alimentava, e que ainda actuou em nÛs no meio da decadencia a que cheg·mos no seculo XVI, decadencia que virtualmente nos veio a subjeitar ao dominio castelhano. Mas durante esse mesmo dominio o instincto da vida politica, o aferro · individualidade, existia se n„o nas classes elevadas ao menos entre a plebe, porque a plebe È a ultima que perde as tradiÁıes antigas, e o amor da sua aldeia e do seu campanario. A lucta do vulgacho--exclusivamente do vulgacho--a favor de D. Antonio prior do Crato contra a corrupÁ„o de tudo quanto havia nobre e rico em Portugal, e contra o poder de Philippe II, È um reflexo pallido e impotente da epocha de D. Jo„o I; mas È um facto de grande significaÁ„o historica. Completam-n'o as diligencias feitas nas cÙrtes de Thomar para que a linguagem official do paiz se n„o trocasse pela dos conquistadores. Este facto comparado com ess'outro obriga a meditar. Philippe II foi um grande homem--astuto, activo, dotado de um character ferreo; foi o representante mais notavel da unidade politica absoluta, e n„o pÙde ou n„o soube delir e incorporar este pequeno povo na vasta sociedade hespanhola, sobre a qual seu pae e elle haviam passado uma terrivel rasoira que lhe destruira todas as asperezas e desegualdades. E todavia Philippe II tinha geralmente por alliados entre os vencidos os homens mais eminentes por illustraÁ„o, por linhagem, por faculdades pecuniarias. … que as multidıes obscuras eram ainda portuguezas no amago, posto que corrompidas no exterior pela corrupÁ„o das classes privilegiadas. Todas as outras explicaÁıes s„o insufficientes ou falsas. II Tambem os tempos que precederam immediatamente o dominio hespanhol offerecem um complexo de factos que fazem pensar. Na segunda metade do seculo XV resolveu-se Affonso V a conquistar Arzilla. Aprestou trinta mil combatentes e uma frota de perto de quinhentas velas. Os esforÁos de Portugal para supprir uma t„o poderosa expediÁ„o parece n„o terem sido excessivos. Aquelles de quem o principe estava descontente eram ameaÁados por todo castigo de n„o se lhes consentir o participarem dos riscos da empreza. Para emenda de muitos bastava o incentivo de se lhes recusar o affrontarem os combates e a morte. Na segunda metade do seculo XVI tractava-se de ajunctar doze mil homens para a infeliz jornada de Alcacer-quibir. As violencias que se practicaram para arrancar do paiz as victimas d'aquelle grande holocausto foram inauditas, e esgotaram-se os recursos da naÁ„o para satisfazer o custo de uma tentativa, de cujo resultado a consciencia da propria fraqueza e degeneraÁ„o fazia com que o povo augurasse mal. Entre estas duas epochas È necessario suppÙr um periodo de decadencia profunda, moral e material, e esse periodo deve ser longo. Uma naÁ„o n„o decahe de um dia para outro dia. A virtude e os recursos de Portugal deviam ter-se consumido lentamente. Mas o que È esse periodo intermedio? … o do estabelecimento da monarchia absoluta sobre as ruinas da monarchia liberal da edade-media. … a epocha dos descobrimentos e conquistas. Entre as idÈas de engrandecimento e poderio da epocha anterior a D. Jo„o II, e as da epocha posterior a elle, ha um abysmo que nunca deixar· confundil-as. A politica da edade-media era em tudo religiosamente historica: a do renascimento era em tudo hypocritamente revolucionaria. Expliquemo'-nos. Portugal surgira no meio de uma reacÁ„o de crenÁa e de raÁa. A Africa e o islamismo tinham subjugado a Hispanha e o christianismo. A raÁa goda e christan repellia a conquista. Durante o progresso da reacÁ„o, Portugal nascÍra e d'ella se tinha alimentado como os outros Estados da Peninsula. Era este o grande facto da sua existencia: o mais era accessorio e secundario. A conquista mussulmana fÙra uma vaga dos grandes Èstos humanos que, galgando por cima do Estreito, viera tombar e espraiar-se sobre o solo que habitava a familia romano-gothica. Para obedecer · natureza das cousas, para a reacÁ„o ser verdadeira e completa, a vaga romano-gothica tambem devia transpor o Estreito e, estourando sobre a Mauritania, dar-lhe a provar o amargor do dominio extrangeiro. O futuro pertencia a Deus; mas as probabilidades do final triumpho cabiam ·quelle dos dous contendores que viesse a ter por si a superioridade da civilisaÁ„o, e o decurso dos tempos mostrou que esta superioridade recahiu, n„o na Africa, mas sim na Peninsula. Assim as tentativas dos nossos antigos reis para se apoderarem dos territorios africanos eram logicas historicamente, e alÈm d'isso eram justas. O islamismo fÙra quem lanÁ·ra a luva · raÁa christan: n„o podia queixar-se da prorogaÁ„o do combate. E, descendo da idÈa essencial da politica da edade-media ·s circumstancias secundarias que podiam servir como meios de a realizar, vÍ-se entre ellas e essa idÈa m„e uma admiravel harmonia. As conquistas d'Africa deviam sorrir ao povo: estribavam-se nas tradiÁıes e nos odios de uma guerra de seculos, guerra ao mesmo tempo de religi„o e de liberdade; no habito da victoria, que desde a batalha das Navas de Tolosa os proprios mussulmanos consideravam como devendo, mais tarde ou mais cedo, pertencer definitivamente aos christ„os. Accrescia a vizinhanÁa das costas da Berberia e, portanto, a facilidade de conduzir d'aquem mar tropas, viveres, muniÁıes; o serem os sarracenos adversarios antigos, e por isso avaliados com exacÁ„o os seus recursos, o seu valor, os seus ardiz e usanÁas militares; o existirem necessariamente ligaÁıes entre os mouros, livres em Portugal debaixo do dominio christ„o, e os sarracenos africanos, o que por muitos modos facilitava a conquista. Tudo isto conspirava em tornar nacional e plausivel o systema d'engrandecimento da nossa edade-media; systema claro, consequente, legitimo, e do qual j· se devisavam os symptomas, como era natural, pouco depois da conquista do Algarve por Affonso III, isto È, no reinado de seu neto Affonso IV. Esta politica mudou na conjunctura em que a monarchia primitiva se caracterisava definitivamente em monarchia absoluta. A causa final de todas as tentativas de engrandecimento colloca-se desde essa epocha na pessoa do rei, e n„o no paiz: a tradiÁ„o historica perde-se. As expediÁıes maritimas abandonam o rumo da Africa septentrional e v„o correndo ao longo das costas meridionaes. Os descobrimentos alÈm do Bojador, que atÈ ahi eram accessorios da intentada conquista do Maghreb, convertem-se em objecto principal das ambiÁıes de poderio. Affonso V tom·ra o titulo de _rei_ de Portugal e dos Algarves, d'aquem e _d'alem mar_: fÙra esta a derradeira express„o do pensamento antigo. D. Jo„o II accrescentou a esse titulo o de _senhor_ de GuinÈ: era a primeira palavra do symbolo moderno. As conquistas de Affonso V representavam um accrescimo de territorio ao reino; pertenciam ao paiz[2]: os descobrimentos de D. Jo„o II tendiam a achar ouro e escravos para o rei. Assim, em quanto os seus antecessores costumavam congratular-se francamente com o orbe christ„o pelas victorias obtidas na Mauritania, este principe escondia por todos os meios de terror e mysterio o _seu senhorio_ de GuinÈ, como o velho avaro procura occultar o cofre que encerra o seu thesouro. Desde ent„o a vida energica de Portugal, distrahida do caminho historico e justo, do alvo solido e dos resultados permanentes a que a dirigira a anterior politica, foi empregada no proseguimento da nova idÈa de pessoalidade, da substituiÁ„o do rei ao Estado. A gloria adquirida n'essa epocha foi das maiores que o mundo tem visto; mas compr·mol-a com a desgraÁa futura, com a morte de toda a esperanÁa, com o tragar golo a golo, por seculos, um calix immundo de males e affrontas.--Adquirimos um largo patrimonio para dividir com as outras naÁıes: reserv·mos para nÛs a fraqueza interior, consequencia de esforÁos mui superiores aos nossos recursos para remotas conquistas: reserv·mos para nÛs a corrupÁ„o moral e a decadencia material. Que significa, pois, qual È o valor real d'essa gloria? Puramente negativo. A seiva da arvore social esgotou-se no bracejar descomposto. A Asia e a America perderam-nos. O antigo aferro · terra natal, o odio do jugo extranho, o nobre e altivo character de homens livres, o esforÁo indomavel, deix·mos tudo isso pelos palmares da India, pelas minas auriferas da terra de Sancta-Cruz, pelos emporios do nosso illimitado commercio. Puzemos hypocritamente a cubiÁa de mercadores e as correrias de corsarios · sombra veneranda da Cruz. Pens·mos que atraz d'ella n„o nos veria a historia. Engan·mo'-nos. Quando a febre que nos alimentava se trocou em consumpÁ„o lenta, os povos, que vieram recolher o fructo do nosso esforÁo ou dos nossos crimes, levaram alguns annos a verificar a partilha, e quando acabaram olharam para nÛs e riram-se. As naÁıes maritimas da Europa representaram n'este horrivel drama o papel de espectadores romanos assentados nos degraus de um circo; nÛs o de gladiadores. No fim do espectaculo ellas voltaram o pollegar para a terra em signal de desapprovac„o. A pateada era justa: tinhamos cahido mal. E ainda ha quem acceite com vangloria os elogios insolentes dos extrangeiros que, insultando a nossa decadencia presente, exaltam os feitos admiraveis com que lhes abrimos laboriosamente atravez do oceano o caminho da prosperidade? … um singular genero de surdez, ouvir o elogio sem sabor e n„o ouvir a gargalhada que o segue e que o converte n'um escarneo. III Quem quizer saber o que a monarchia absoluta tinha feito do Portugal antigo leia a segunda carta de S· de Miranda, dirigida ao senhor de Basto. Este S· de Miranda n„o seria um grande poeta; mas era mais do que isso: era um homem de fino tacto, que n„o tomava a febre do paiz por forÁa normal de vitalidade, e que via a decadencia e ruina nas riquezas e pompas de Lisboa; n'aquillo em que uma cubiÁa miope via engrandecimento e progresso. Desde que o rei deixou de ser rei para ser senhor, o paiz annullou-se diante da capital. Quando o principe È o Estado, que importam as provincias? A cÙrte È tudo; È o manto real. Cubra-se de ouro e pedrarias, est· obtido o esplendor do _Estado_. Se D. Sebasti„o fosse um S· de Miranda, n„o teria ido morrer a Alcacer-quibir. O pobre rapaz era uma alma nobre e teve uma inspiraÁ„o da politica da edade-media; quiz ser descendente dos reis cavalleiros, dos reis municipaes, dos reis chefes da reacÁ„o christ„, no meio de uma naÁ„o de bufarinheiros, de sobrecargas, de judeus-agiotas, de cortez„os, e de tartufos. Pagou-o. Malaventurado mancebo! Nunca viu passar por entre seus sonhos dourados e puros os phantasmas melancholicos de D. Jo„o II, de D. Manuel, e do inquisidor-mÛr D. Jo„o III: n„o soube que para resuscitar o pensamento destruido nos fins do seculo XV era preciso primeiro reconstruir uma sociedade que perecera com elle. D'aqui o seu mal. Puzemos agora o dedo sobre a chaga que corroeu e corroe Portugal. O que atÈ este momento apont·mos È uma serie de phenomenos, de factos externos, posto que de alta importancia por nos conduzirem · avaliaÁ„o das causas intimas da ruina do paiz.--Estas causas est„o unicamente nas circumstancias que se deram na transformaÁ„o da indole politica da sociedade portugueza. … essa a chaga em que toc·mos. ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA 1841--1843 Hoje que a arte comeÁa a deixar de ser entre nÛs imitadora, pagan, e falsa; hoje que a poesia se torna nacional; hoje que o drama renascendo no theatro vai buscar a sua tela e as suas personagens na historia patria; hoje, emfim, que comeÁam a apparecer nos jornaes populares tentativas e esboÁos da novella historica, È uma necessidade litteraria o desenterrar das chronicas, dos diplomas, e de toda a especie de monumentos a archeologia portugueza na mais vasta significaÁ„o d'esta palavra. Os que se tÍem applicado a escrever n'estes diversos generos da arte, chamados poema, drama, romance, generos despresados por certos sabios que nada escrevem, ou que sÛ copiam _profundamente_ o que os outros disseram; aquelles que, dizemos nÛs, trabalham n'estas varias especies de litteratura, para as quaes se requerem em subido grau duas cousas que raras vezes se encontram junctas--imaginaÁ„o para inventar, logica para deduzir e ligar factos e pensamentos; esses conhecem por experiencia custosa qu„o duro È ter de accrescentar ao seu trabalho de artistas as tediosas e mirradoras investigaÁıes de antiquarios e eruditos. Depois d'uma larga exploraÁ„o pelos campos aridos e empoeirados das velhas chronicas civis e monasticas, dos pergaminhos esquecidos nas gavetas dos archivos, das obras confusas e por vezes contradictorias dos eruditos, se n„o È difficultoso salvar a propria logica, È quasi impossivel n„o sentir amortecida a imaginaÁ„o, sem a qual n„o existe arte. … esta a maior difficuldade que hoje ha para entre nÛs apparecerem obras de artistas: os estudos aridos das antigualhas matam os engenhos, ao passo que sem a verdade dos costumes as producÁıes artisticas s„o falsas, e n'esse caso tanto ou mais valÍra fazer poemas epicos, tragedias com cÛros, pastoraes virgilianas, e romances como o _Theagenes e Chariclea_, do bispo Heliodoro d'Emesa. Mas qual È o meio de evitar gradualmente esta difficuldade? … trazer cada qual · praÁa o seu peculio n'esta materia: assim os artistas se ajudar„o mutuamente, poupando uns aos outros largas horas de indagaÁıes impertinentes e aborridas. A minima circumstancia dos antigos costumes n„o È indifferente: muitas vezes ella vai dar cÙr e vida a um verso, a uma scena, a um capitulo: por pobre que cada um se julgue venha com sua mercadoria que alguem lhe achar· o preÁo: para a arte de hoje n„o ha terra de sepulchro que nas m„os d'ella n„o possa converter-se em ouro; porque a vestidura de pedra que d· agasalho aos cadaveres encerra toda a vida antiga. Um jornal popular È por todas as razıes o repositorio mais accommodado para enthesourar essas riquezas historicas. Um livro requer grande copia de materiaes nas m„os do obreiro que commette essa obra; requer certa disposiÁ„o e methodo para o qual poetas nem sempre s„o mui proprios, por isso raros poderiam fazer sobre isso um livro com intuito artistico, que ao mesmo tempo fosse uma boa obra archeologica. Por outra parte, o commum dos leitores--os mesmos que h„o de ler o poema ou o romance, e assistir · representaÁ„o do drama--se habituar„o ao tracto e frequencia dos costumes e idÈas que essas composiÁıes resuscitam: as crenÁas, as opiniıes, a vida material dos tempos passados deixar„o pouco e pouco de ser para elles como estranhas, e as obras d'arte ser„o intelligiveis e populares, o que ali·s difficultosamente aconteceria. NÛs, pois, convidamos todos aquelles que comprehendem a importancia e necessidade de similhantes materias para que venham inserir algumas paginas avulsas, alguns capitulos soltos dos seus estudos historicos n'esta serie que hoje abrimos: para nÛs e para os outros o requeremos; mas sobre tudo o pedimos em nome das esperanÁas que despontam de uma arte nacional. N„o nos adstringindo nem · divis„o das materias, nem · ordem chronologica, n'este caso absolutamente indifferente, comeÁaremos pelo extracto de duas obras[3] ineditas e inteiramente desconhecidas entre nÛs, mas preciosissimas por uma multid„o d'observaÁıes sobre os costumes portuguezes dos fins do seculo XVI. Estas obras escriptas por extrangeiros, que n„o tinham motivos de affeiÁ„o nem de odio contra os portuguezes, parecem-nos de summa curiosidade por descreverem o character de nossos avÛs n'uma epocha em que a severidade dos antigos costumes se comeÁ·ra a corromper grandemente, e as riquezas e o luxo, que nos perderam, tinham feito desapparecer a primitiva singeleza de mais remotas eras. VIAGEM DO CARDEAL ALEXANDRINO 1571 Enviando o papa Pio V seu sobrinho Miguel Bonello, mais conhecido pelo titulo de Cardeal Alexandrino, como legado aos reis de FranÁa, Hespanha, e Portugal, no anno de 1571, entre as pessoas que formaram a sua numerosa comitiva vinha um certo Jo„o Baptista Venturino, que tomou a seu cargo descrever em italiano o processo da viagem, acompanhando a sua relaÁ„o de notas e observaÁıes sobre as terras por onde passavam e sobre os individuos com quem tractavam. Depois de atravessarem FranÁa e Hespanha entraram em Portugal pelo lado do Alemtejo, e È d'aqui ·vante que a viagem do legado se torna extremamente importante para a historia da sociedade portugueza n'aquella epocha: È pois sÛ n'esta parte que extrahiremos as mais curiosas passagens da copia que temos diante de nÛs, tirada do codice 1.607 da Bibliotheca do Vaticano[4]. Entrada em Elvas ...................................................................... ´Avistando · m„o esquerda uma torre dos portuguezes[5], que estava como para defesa da fronteira, appareceu D. Manuel...... senhor de Monsaraz (?), villa proxima, de cem fogos. Vinha com cincoenta cavalleiros bem montados e vestidos, e logo apoz elle D. Constantino de BraganÁa, tio do duque d'este titulo, e do sangue real de Portugal, junctamente com o conde de Tentugal, seu cunhado, com vinte pagens vestidos das suas cÙres, preta e amarella, com trezentos cavalleiros, montados em formosos ginetes e cavalgando · gineta, que vem a ser com a perna curva e com os pÈs mettidos em grandes estribos, que cobrem quasi todo o pÈ: e montam assim t„o bem e est„o a isso t„o costumados, que fazem, pondo-se em pÈ nos estribos, toda a casta de forÁas. Usam de esporas sem rozeta, e sÛ com um bico agudo similhante ao de uma lanceta. Traziam botins vermelhos de carneira, uns lisos outros lavrados, ou prateados e dourados, e guiavam · dÈstra dez ginetes sellados e cobertos de brocados e veludos extremamente bellos.ª ...................................................................... ´D'ahi a pouco veiu o bispo d'Elvas, primeira cidade e povoaÁ„o de Portugal por esta banda, homem j· muito velho. Acompanhava-o o corregedor do civel (?), isto È, o prefeito de justiÁa, e o seu juiz ou ouvidor, os alcaides e meirinhos, isto È, alguazis, e outros magistrados e officiaes com vestiduras talares e varas nas m„os. Os cavalleiros que vinham com elles seriam trezentos.ª ...................................................................... ´Ao entrar da dicta porta (d'Elvas) appareceram muitos homens e mulheres vestidos do modo em que j· tinhamos visto em Castella estando com o cardeal Spinosa. Formavam estes tres corpos de danÁarinos. A primeira danÁa, chamada a _Follia_, compunha-se de oito homens vestidos · portugueza, com gaitas e pandeiros acordes e com guizos nos artelhos: pulavam · roda de um tambor, cantando na sua lingua cantigas de folgar, de que obtive copia, mas que n„o ponho aqui por me n„o parecerem adaptadas · gravidade do assumpto. Bem merecia a tal danÁa o nome de _follia_[6], porque volteavam como loucos, fazendo ademanes uns para os outros, como quem se congratulava da vinda do Legado, para o qual constantemente se voltavam. A segunda danÁa, chamada a _Captiva_, era de oito mouros agrilhoados, que, danÁando · moda mourisca, se declaravam escravos do Legado. A terceira, chamada a _Gitana_, era composta de ciganas vestidas e bailando como as que j· descrevi do cardeal Spinosa[7]. Vinham entre ellas duas mouras, trazendo cada uma em pÈ sobre os hombros uma rapariga[8] vestida de pannos cozidos em ouro e talhados de galantes e variados modos. Com aquelle peso bailavam levemente, ao som de um tambor, enfunando-se com o vento os vestidos das raparigas, que faziam esvoaÁar um lenÁo por varios modos, ora com a m„o direita ora com a esquerda; ora segurando-o debaixo do braÁo ora nas costas: momos estes que depois repetiram com facas por diversas maneiras.ª ...................................................................... ´Elvas est· assentada em sitio mui similhante ao de Badajoz. E cingida de muros e forte: tem falta d'agua pela altura em que est·: o seu territorio È bom, e bello o seu aspecto: a povoaÁ„o ter· obra de quatro mil fogos. As casas s„o caiadas por fÛra · maneira de Portugal. As mulheres s„o gentis e desembaraÁadas: usam trajos similhantes aos das castelhanas, mas n„o andam t„o embuÁadas, nem t„o arrebicadas e brunidas.ª ...................................................................... Encontro do duque de BraganÁa ´¡ segunda feira seguinte, tendo saido d'Elvas, vimos um aqueducto de oitocentos arcos murados, que d'um monte, distante legua e meia, conduzia a agua atÈ ao pÈ da cidade. Rebentaram depois os canos, n„o podendo subir a agua · altura que se pretendia para a fazer entrar dentro em beneficio dos moradores, mas sempre corre perto da cidade. E caminhando por bellos e ferteis campos de planuras e outeiros apraziveis, encontr·mos a distancia de duas leguas D. Jo„o, duque de BraganÁa, mancebo de vinte e nove annos[9], de mediocre estatura, trigueiro, e de boa cÙr, vista curta, e de pouco robusta compleiÁ„o, o que lhe serve de desconto · muita grandeza e fortuna de que gosa, como depois se dir·. … do sangue real de Portugal, tendo por armas as mesmas do reino. Vinha vestido com uma capa de panno razo, abotoado o capuz com diamantes e fechos d'ouro, e as bandas compridas aprezilhadas com rubins e ouro: o barrete era de veludo com fios de rubins, diamantes, perolas e ouro: as calÁas eram de veludo turqui (azul escuro) agaloadas d'ouro. Montava em um cavallo rodado, cavalgando · gineta, e precedido por dois ginetes, que, sobre as sellas cobertas d'escarlata com franjas d'ouro, traziam duas malas similhantes ·s que os cardeaes levam adiante de si quando v„o para o consistorio. Eram tambem escarlates com as armas de S. Ex.^a bordadas em brocado d'ouro com florıes e franjas de prata, na verdade bellissimas.ª ´Vinham quatro alcaides, e quatro meirinhos ou alguazis com varas vermelhas, ao contrario das de Castella e ainda d'Elvas, que eram brancas. Seguia-se a pessoa de S. Ex.^a e apoz elle duzentos cavalleiros gentis-homens montados · gineta em bellissimos cavallos.ª ...................................................................... ´Passada meia legua de caminho aspero e pedregoso, cheg·mos ao pÈ de uma fortaleza sua (do duque) que ficava · m„o esquerda, na qual salvaram com artilheria e tocaram tambores. Um pedaÁo adiante, · direita, descobrimos um palacio do duque, bello e commodo, similhante a um serralho, cingido de muros que teriam tres leguas pequenas, que s„o nove milhas, e que fÙra feito por S. Ex.^a para seu divertimento, por gostar muito da caÁa. Dentro da cerca havia grande copia de javalÌs, cabritos montezes, veados, e outras alimarias. Estava ordenado que se dÈsse uma batida ·s feras para recrear o Legado, que parou com o duque na chapada do monte pegado com os paÁos. Mas uma grande chuva acompanhada de vento n„o o consentiu, e tendo o duque posto um capote de panno avermelhado guarnecido de passamanes d'ouro, e um chapeu de veludo preto com eguaes passamanes, nos encaminh·mos a passo cheio para Villa-viÁosa, residencia do dicto duque, onde cheg·mos perto da noite.... Ao apear-nos · porta do seu palacio houve grande estrondo de artilheria, que atirava em um castello roqueiro bem fortificado; soaram os atabales, tocados por pretos, os pifaros, trombetas, tambores e sinos, mostrando-se por toda a parte extraordinaria alegria.ª ...................................................................... Villa-viÁosa ´A esta villa corresponde bem o nome que lhe d„o, porque tanto dentro como fÛra est· cheia de vinhas, olivedos e pomares: È plana: as casas s„o bellas e commodas, e de bom risco, ou pelo menos melhor do que È costume em Hespanha, caiadas por fÛra, com chaminÈs brancas, e no topo vermelhas, resaltadas para fÛra das frontarias, ou por causa da delgadeza das paredes, ou por adorno, ou por assim ser costume. Quasi todas as casas tÍem quintaes com agua; e ser„o ao todo dois mil fogos, pouco mais ou menos. … habitada por paisanos. Tem formosas mulheres, e entre outras, uma que n„o o È menos da alma que do corpo, da edade de vinte e tres annos, filha de ThomÈ de Castro, · qual por sua muita litteratura chamam Publia Hortensia. Esta donzella, que tinha estado em Salamanca, quiz defender conclusıes naturaes, e legaes, o que n„o teve logar por causa da subita partida do Legado.ª ...................................................................... Palacio de Villa-viÁosa--Luxo e opulencia dos duques de BraganÁa ´O palacio È notavel, bello exterior e interiormente, e o mais aprazivel e commodo que atÈ aqui vimos em Hespanha (ao menos quanto a mim), exceptuando, porÈm, o paÁo real de Madrid. Como estivessem ainda alguns quartos imperfeitos, o duque os mandou acabar por occasi„o d'esta vinda do Legado. O edificio fecha todo em volta, com grandes casarias, que d„o para jardins fresquissimos, um dos quaes mui espaÁoso est· arranjado ao modo d'Italia. Tem vastas cavallariÁas, adegas, e todas as mais officinas necessarias. Est· situado entre duas ruas, quasi insulado, e na frontaria principal fica-lhe uma formosa praÁa, · qual se segue um bosque de ciprestes e logo um mosteiro de franciscanos. Dentro dos paÁos est„o pintadas muitas victorias alcanÁadas pelos duques de BraganÁa, principalmente contra os castelhanos, e no alto da escada se vÍ a tomada de Azamor, na Africa,.... tudo ornado de riquissimos pannos de Flandres.ª ´Os que est„o, porÈm, na sala que fica no topo da escada da banda esquerda s„o de ouro, prata, e seda, lavrados de figuras representando uma victoria ganha por Nunalvares, condestavel de Portugal, contra os castelhanos.... Dos mesmos pannos est· forrada outra sala tambem no cimo da escada, da parte opposta, bem como a camara e antecamara do Legado, na qual estava uma cama de brocado d'ouro de canotilho, a mesa d'estado coberta da mesma tela, a cadeira de veludo carmesim franjado d'ouro, e o ch„o alcatifado de finissimos tapetes. Ao pÈ ha um oratorio bem ornado e devoto. No topo da escada que j· mencionei, sobre um estrado da altura de dois palmos ou palmo e meio, coberto de tapetes de seda, havia um docel de brocado d'ouro, debaixo do qual havia de comer o Legado. Com outro de brocado de prata estava um aparador grandissimo contendo peÁas de ouro, de prata, e douradas, que avaliaram em cento e cincoenta mil escudos d'ouro. Havia ahi dois vasos, como urnas antigas; duas bacias, dois gomis, e duas copas grandes, lavradas de figuras primorosamente. Os vasos dourados eram cincoenta e seis de diversos feitios, uns levantados, outros lisos, alÈm de muitas taÁas, e de um numero quasi infinito de pratos. A prata era da mesma qualidade. Aqui comeu o Legado no dia seguinte em publico, do modo seguinte: assentou-se em uma das cabeceiras da mesa, depois de ter lavado as m„os, sÛ, porque o duque n„o quiz lavar-se ao mesmo tempo por cortezia, apezar de rogado e quasi constrangido para o fazer, · qual cortezia de sua alteza corresponderam os nossos prelados, os quaes, apezar de convidados e rogados por elle, o deixaram lavar sÛ. Assentou-se o duque ao pÈ do Legado, mas n„o antes d'este estar assentado. Juncto ao duque ficou D. Jaime seu irm„o, de edade de dez annos, vestido como o duque, e apoz elle D. Francisco, de edade de vinte annos, e D. Henrique, de dezoito, de aprazivel aspecto e bom porte, filhos do conde de Tentugal, vestidos com tabardos e....[10] de panno mesclado · moda soldadesca. Seguia-se D. Constantino de BraganÁa, vestido de raxa preta com a cruz da ordem de Christo ao peito. Do outro lado estavam os nossos prelados, e na extremidade d'uma e d'outra parte estavam outros fidalgos e cavalleiros, segundo o grau de cada um. A mesa estava delicadamente ornada e coberta com toalhas de bretanha.....[11] e tela da India.....[12] Os manjares eram abundantissimos e sumptuosissimos, mas postos desordenadamente, pouco lautos ou exquisitos, e na maior parte pouco agradaveis ao paladar, porque lhes deitavam · toa e em todos grande quantidade de assucar, canella, especearias, e gemas d'ovos cozidos, ao mesmo tempo que lhes faltavam os mÙlhos, temperos, etc. Todavia nenhum havia ahi que fosse extravagante, ou desusado em Italia, constando de salvaginas, pavıes, perdizes, e boas carnes, entre as quaes o capado era excellente, e nada m· a vitella. Vieram muitas fructas cobertas que tornaram a polvilhar d'assucar e cobriram com folhado de mel, cousa que parece n„o ser ordinariamente usada. As cobertas da mesa foram cinco, cada uma de cinco serviÁos, a fÛra o ultimo da fructa, confeitos, e doces, com a galanteria de sahirem voando perdizes e outros passaros ao abrir os pasteis. Durou o jantar por espaÁo de mais de tres horas. A cada coberta, que sempre era servida por fidalgos ou cavalleiros, tocavam os atabales, trombetas, e adufes, mais com ruido que com suavidade, posto que os pifaros que faziam acompanhamento tornassem supportavel a bulha. Quando o duque bebia, o que fez sÛ duas vezes durante toda a comida, sendo a bebida agua pura segundo costumava, vinha esta em um jarro de cristal alto e largo, que elle despejou de todo. N'este acto vinha adiante o mordomo com o bast„o na m„o, e atraz o mestre-sala com a salva. Dos lados estavam dois creados vestidos de veludo preto e tabardos de panno, e canas nas m„os, chamados porteiros; seguiam-se outros dois do mesmo modo, chamados maceiros, com maÁas de prata macissa e as armas ducaes; e alÈm d'estes, dois vestidos com sobrevestes, a modo de tunicas de brocado d'ouro, cobertas de armas do duque e dos seus, chamados reis d'armas; todos os quaes, tendo no meio o escanÁ„o com a copa d'ouro e com o dicto jarro coberto, estavam de joelhos, como fazem sempre aquelles que fallam com o duque, e do mesmo modo estava o escanÁ„o, tocando entre tanto os instrumentos. Repetiu-se esta mesma ceremonia quando o Legado bebeu.ª ...................................................................... ´As ceremonias (da missa na capella ducal) foram segundo o rito romano. A musica era estrepitosa e retumbante: o canto era de boas vozes, mas t„o altas, sendo os cantores pela maior parte eunuchos, que n„o pareceu sonora, nem bem concertada, como talvez fÙra em aposento mais vasto.ª ...................................................................... ´Depois da missa, voltando o Legado ao seu quarto encontrou · porta da camara ducal, esperando-o em pÈ, a infanta D. Isabel, filha do defuncto duque D. Jaime, viuva do infante D. Duarte, filho d'elrei D. Manuel...... Trazia um vestido preto afogado, coberta quasi toda com o manto: È de estatura alta e direita, de idade de sessenta annos. Ao pÈ d'ella estava sua filha D. Catharina, duqueza de BraganÁa, a qual, parecendo-lhe porventura abatimento de sua real grandeza intitular-se duqueza, se chama a _senhora Catharina_. Teria de edade vinte e nove annos. Trazia vestido de velludo preto afogado, cheio de espiguilhas galantes d'ouro, rubins e diamantes, com meias mangas, abertas ao meio com rede d'ouro, cabello liso e levantado em topete como usa a rainha de Hespanha, com um rosicler de diamantes e rubins ao peito de inestimavel valor, e pulseiras e brincos de grossissimas perolas. Pegava-lhe na cauda d'uma saia de gorgor„o branco, que trazia por baixo, uma graciosa donzella, acompanhada d'outras dez vestidas de diversas telas e todas do mesmo feitio, com muitas joias, alÈm de quatro donas vestidas como a infanta viuva, sÛ com a differenÁa de n„o serem os vÈus t„o compridos. Tinha ao pÈ de si, de um lado D. Theodosio seu filho, duque de Barcellos, de edade de quatro annos, e D. Duarte, de tres, vestidos com gibıes e calÁas de tela bordados de prata listrada de vermelho, cÙr t„o louvada do Ariosto, com cordıes de ouro e perolas, estando ainda na ama o terceiro filho D. Alexandre. Do outro lado estavam as suas duas filhas D. Maria, de sete annos, e D. Seraphina, de seis, vestidas de razo carmesim bordado d'ouro...... Feitos os cumprimentos ao Legado, o convidaram a sentar-se em uma cadeira de brocado d'ouro, debaixo de docel, e a infante e a senhora Catharina no ch„o sobre um estrado que ficava defronte. Conversaram algum tempo, estando as damas em pÈ do outro lado, e o duque assentado · esquerda do Legado, falando com o patriarcha Alexandrino, e os outros prelados e gentis-homens em pÈ no meio da sala.ª ...................................................................... ´Tem o duque nos seus estados grandes bancos de marmores alvissimos, de veios amarellos, e d'outras especies, muitos e excellentes. A artilharia dos seus castellos È numerosa.ª (Falando dos escravos, a linguagem do auctor È bastante solta, e por isso n„o transcreveremos esta passagem. Basta saber que estes desgraÁados eram considerados e tractados _como as raÁas de cavallos em Italia_, e pelo mesmo methodo; que o que se buscava era ter muitas _crias_ para as vender a trinta e a quarenta escudos. Diz elle que _d'estes rebanhos de mulheres havia muitos em Portugal e nas Indias_.) ´Affirma-se que este duque pÛde levantar sessenta mil homens de peleja, dando sÛ Barcellos treze mil afÛra seis mil cavallos.ª Partida de Villa-ViÁosa--Estremoz--Evora Monte-mÛr Novo--e Barreiro ´Veiu o duque com seu irm„o e cem cavalleiros acompanhando o Legado, obra de meia legua, e despedindo-se passou a Borba, villa sua formosa e plana, de seiscentos fogos, a distancia de uma legua. Pouco depois encontr·mos o corregedor e alcaide d'Estremoz, villa de quatrocentos fogos e distante uma legua, acompanhados de cem cavallos. Aqui pernoit·mos..... o Legado em casa do donatario D. Constantino de BraganÁa, e os demais por casas particulares, incommodados por dormirem em colchıes no ch„o, sendo este o costume do paiz, por se usarem poucos leitos...... Ao redor da villa ha montes de pedra marmore com veios vermelhos, a qual serve para edificios, e n'algumas partes barro vermelho misturado de branco, do qual fazem diversos vasos muito lindos, e jarros, pelos quaes costumam beber os fidalgos e atÈ o proprio rei.ª ´Foi de grande prazer, ao entrar n'esta vÌlla, vÍr tres corpos de danÁas similhantes ·s d'Elvas, e dos lados fogos d'artificio e foguetes, e ouvir o estrondo da artilharia e dos sinos, sendo acompanhado o Legado com dez tochas accezas, e com muitas outras os prelados e gentis-homens, aos seus respectivos aposentos.ª ´No dia seguinte...... cheg·mos a uma estalagem distante tres leguas, por caminhos algum tanto pedregosos e ingremes, posto que o territorio fosse bom e fructifero. Ahi encontr·mos o bispo d'Evora, homem de cincoenta annos, de aspecto mortificado e de sanctidade, acompanhado de parte do clero, e outras pessoas, ao todo de duzentas......... Na dicta estalagem almoÁ·mos doces, presunto do melhor que È possivel comer-se, capıes assados frios, queijo excellente, p„o alvissimo, e optimos vinhos, tudo ordenado pelos mantieiros d'elrei com muito cuidado e diligencia: a louÁa era de prata e os copos de ouro. Depois encaminhando-nos para Evora, veio-nos ao encontro D. Diogo de Castro, homem de cincoenta annos e pessoa principal entre os visinhos da cidade, logar-tenente d'elrei nas cousas de guerra. Cavalgava um formoso e bem arreado ginete, e vinha acompanhado de quinhentos homens de serviÁo ordinario, alÈm de dez mil peıes de sua milicia, e quatrocentos soldados bem postos, montados em formosos cavallos, pela maior parte · gineta........ Perto d'Evora, obra de um terÁo de legua, appareceu o governador, o alcaide, e o juiz com vestiduras talares de panno, seguidos de meirinhos e outros magistrados na ordem seguinte. Enfileirados d'uma banda vinham oito trombetas tocando, vestidos de lhama d'ouro, egual · das bandeirolas das trombetas, com divisas brancas e verdes, tabardos de mÈscla e barretes de panno vermelho. Seguiam-se dez alabardeiros com a mesma divisa e barretes brancos, que eram a guarda do governador. Atraz d'estes vinham outros dez vestidos de panno de mÈscla com barretes pretos, os quaes eram a guarda do alcaide. Da outra banda viam-se tres pretos montados em mulas cobertas atÈ o ch„o com gualdrapas de panno negro e amarello, e vestidos de.....[13] com um pequeno capuz atraz, e com calÁas curtas de marinheiro, das mesmas cÙres, e barrete liso e alto com a aba revolta atÈ meia altura, e uma facha de cendal ao redor. Cada um d'elles tocava dois atabales pendurados de um e outro lado da sella. O som era ·s vezes aprazivel e suave; mas batendo com mais forÁa, aspero e espantoso, o que fizeram ao approximar-se o Legado em signal de maior alegria, e tem por costume em tempo de guerra quando alcanÁam victoria. Seguiam-se tres troÁos d'alabardeiros, cada um de seis homens diversamente vestidos, os quaes formavam a guarda dos outros magistrados. No meio d'estas companhias caminhavam os dictos senhores, precedidos de muitos ministros com varas nas m„os, insignia da justiÁa, todas compridas e brancas, · excepÁ„o da do governador, que era como bast„o da grossura de um braÁo, pintado de verde e branco. Juncto da cidade appareceram dez rapazes vestidos de verde, danÁando · mourisca ao som de pandeiro, e logo depois outros dez vestidos d'amarello com tambor e flauta, danÁando tambem, e saltando com um meio arco, que cada um d'elles trazia, enredando-se e desenlaÁando-se rapidamente. Apoz estes vieram mais dez vestidos de romeiros, bailando · roda de um tambor, e cantando os louvores do Legado. Ainda appareceram mais dez egypcias ou ciganas, vestidas como j· descrevemos, fazendo alÈm da sua danÁa costumada, e ao som de tambor, varios jogos com lenÁos e varas. Vieram logo apoz dez ciganos, que ao som de outro tambor, collocando-se cada um entre duas d'ellas, formaram uma graciosa cadeia. Ultimamente · porta da cidade dez rapazes vestidos de branco com vergonteas nas m„os bailavam · roda d'uma cadeira de velludo carmesim franjada d'ouro, a qual traziam oito rapazinhos mais pequenos com briaes brancos e com aureolas d'ouro na cabeÁa, apresentando-se ao Legado, e curvando-se, como todos os outros, que vinham fazer, um por cada vez, sua mesura, e depois todos junctos, em quanto as danÁas, jogos e cantos continuavam sempre adiante do Legado.ª ...................................................................... ´....Entrou no palacio do arcebispo (em Evora) que hospedou · sua custa o Legado, os prelados, e alguns mais, com toda a sumptuosidade. O mesmo foi nas casas dos fidalgos que recebiam esplendidamente os que eram hospedados n'ellas. Os aposentos, alÈm dos forros de finissimos pannos de Flandres, tinham os pavimentos cobertos de tenros e verdes juncos marinhos, que usam em occasi„o de festas e de casamentos. Costumam estar · mesa duas ou tres horas. Cada qual tem o seu copo: a meio jantar mudam-se os guardanapos: os guisados de carne pıem-se na mesa j· partidos em bocados e cobertos, e tanto n'estes como em outros deitam dentro ovos cosidos, muitas especiarias, e assucar. N„o s„o lautas as comidas; mas s„o abundantes, e dizem que a maior parte d'ellas s„o usadas pelos mouros. De cada vez n„o trazem · mesa mais que um manjar, e por isso os jantares duram tanto tempo, o qual entretÍm conversando, fazendo saudes, e offerecendo uns aos outros o que vem · mesa, mostrando-se todos muito alegres.ª ...................................................................... ´....Viemos, a tres pequenas leguas d'ahi, · estalagem de Monte-mÛr Novo, onde almoÁ·mos doces e pasteis de peixe fresco e salgado, e andadas mais duas leguas pequeninas cheg·mos a Monte-mÛr, bella villa de oitocentos fogos, cercada de prados e assentada · margem de um rio. Acha-se povoada no sopÈ do monte, n„o podendo habitar-se a villa antiga (hoje deserta) por causa do incommodo e despeza de subir ao alto e conduzir l· as cousas necessarias, por ser elevadissimo o monte. Nem l· est· auctoridade alguma · excepÁ„o de Fernando Martins, alcaide e castelleiro d'uma fortaleza e palacio antigo.ª ´No dia seguinte cheg·mos, d'ahi duas leguas, ·s estalagens chamadas da Silveira e da.....[14] pouco distantes uma da outra, e tomando leve collaÁ„o and·mos outras duas leguas e cheg·mos · Landeira, povoaÁ„o ou burgo de vinte fogos espalhados, na qual, posto que esteril e incapaz, tinham feito mercado de mantimentos trazidos dos arredores. Ergueram-se alli dez tendas de campanha ao modo mourisco, e como o campo estava verde e alegre, n'ellas se recolheram alguns prelados e gentis-homens, querendo antes outros soffrer dentro das casas o dormir sobre um colch„o deitado no pavimento que debaixo das tendas onde cada um tinha dois, sÛ por n„o ficarem expostos ao ar. Apezar d'isto o Legado se accommodou bem em uma casa, e foi servido de tudo. Gost·mos do sitio por ser desaffrontado e gracioso. De dia todo o territorio parecia coberto de um exercito em campo: · noite viam-se de redor muitas fogueiras que alegravam os moradores da povoaÁ„o. Eram estes promptissimos em servir-nos, e tendo vindo obra de uns trinta ao encontro do Legado, montados em ginetes creados n'aquelles sitios, nos divertiram bastante fazendo carreiras, dois a dois, com as m„os dadas, correndo com grande velocidade, e parando no meio da carreira com toda a facilidade.ª ´No outro dia (sabbado primeiro de dezembro) depois d'almoÁo, partimos com chuva por uma estrada plana e arenosa, por meio de bosques; e deixando · esquerda Setubal, povoaÁ„o de quatro mil fogos e de muitas marinhas, que s„o onde o oceano espraiando-se fÛrma uma lagÙa, da qual como da de Cervia em Italia se tira sal com abundancia, cheg·mos a Palmella, villa de mil fogos......[15]ª ´......Caminh·mos por via plana e por entre bosques apraziveis, encontrando ora · esquerda ora · direita algumas aldÍas pouco distantes umas das outras, todas graciosas, com as casas mui claras por fÛra, e rodeadas de regatos, olivaes, e prados. Eram estas aldÍas: CoÌna de trinta e cinco fogos, Alhos-vedros de trezentos, Palhaes de quarenta, Telha de trinta..... Pela volta da noite, acompanhados com dez tochas, cheg·mos ao Barreiro, bella villa de trezentos fogos. Ape·mo'-nos · porta d'uma boa casaria, onde mora o alcaide, e onde os reis costumam receber as rainhas, quando casam em Castella, ou outras personagens que por ahi passem. Estava toda adereÁada de finissimos pannos de Flandres de seda e ouro, excellentemente historiados. A antecamara do Legado tinha um leito com columnas embutidas de ouro e negro, com varios lavores de animaes e arvores. O cortinado era de damasco preto, orlado de recamo d'ouro, os travesseiros de preciosa hollanda, recamados d'ouro, abotoados com muitos botıes d'ouro macisso. A camara tinha um leito de brocado d'ouro, canotilho sobre canotilho, com docel irm„o, e travesseiros eguaes aos de fÛra. A sala onde comiam os prelados tinha um docel de velludo negro todo coberto de lyrios d'ouro, e orlado de brocado de prata com florıes pretos. No aparador estava louÁa, entre dourada e de prata, que valeria doze mil ducados, havendo muitas peÁas lavradas de figuras, e quatro frascos ou talhas irm„s de treze palmos d'altura. Na sala dois castiÁaes de prata, que davam pela cintura, sustinham grossissimas tochas brancas, delicadamente lavradas de relevo. Em todos os aposentos havia cheiros suavissimos, adornos pelas paredes, e juncos pelo ch„o. Os do Legado estavam todos tapizados. Nas casas onde nos aloj·mos tudo era commodissimo e bem adornado, como camas de seda, e comida prompta para os que preferiam comer no seu quarto, que eram poucos, sendo muito mais agradavel o sumptuoso apparato da casa do alcaide, onde, ainda que a mesa fosse mal ordenada, porque esta gente tem pouco geito para isso, tinhamos uma cÍa magnifica e melhor que todas as que atÈ ahi tiveramos, sendo servida por trinta mancebos fidalgos, e em riquissima baixella d'ouro e prata. Em outras duas casas os gentis-homens e mais familia foram tractados com egual magnificencia, bebendo por copos de prata atÈ os infimos criados, n„o faltando tochas para acompanhar os que vinham cÍar, voltando para a pousada, ou iam para qualquer parte. ¡ mesa dos prelados o improvisador _Cueres_ (?) cantou · guitarra, em honra do Legado e da infanta D. Maria de Portugal, de quem era tudo aquillo e que fazia toda a despeza, os louvores dos prelados e d'alguns gentis-homens; e depois varios outros · viola, aos tres e aos quatro, cantaram madrigaes engrapados, e bem trovados com palavras castelhanas. Muitos mancebos nobres, alÈm dos trinta, cuidavam com toda a attenÁ„o e presteza em servir o Legado, e depois os prelados e mais pessoas, n„o deixando faltar cousa alguma que fosse necessaria ou que se desejasse, tendo sido com este intento mandados de Lisboa pela serenissima infante. AlÈm do que os donos das pousadas faziam aos seus hospedes toda a casta de obsequio e cortezia. ¡ tarde, depois do escurecer, foi espectaculo admiravel o vÍr Lisboa, a distancia de duas leguas, assentada n'um alto, que parecia arder todo, tal era a multid„o de fogueiras.ª Passagem do Tejo--Lisboa--El-Rei D. Sebasti„o A Rua Nova ´No outro dia · tarde...... cresceu a marÈ e podÈmos embarcar. Appareceram de repente muitos barcos de pesca e varios outros, afÛra cinco bateis. Embarcaram os cavallos por uma ponte de madeira que ha aqui, n„o sem a difficuldade e o perigo de se estropiarem, e pela passagem pagou-se meio escudo de cada um. Os familiares passaram em seis barcas toldadas de velludo ou tapetes finos, com muitas bandeirolas variadas, e o Legado e demais prelados em outra que era pintada de vermelho e toldada de damasco da mesma cÙr, com uma quantidade ainda maior de similhantes bandeirolas; e n'outra, toldada de velludo encarnado e verde, D. Constantino de BraganÁa com varios fidalgos portuguezes. Teriamos andado obra de uma legua quando aferrou comnosco uma barca grande do feitio do Buccentauro de Veneza, pintada e toldada do mesmo modo, na qual entrou o Legado com todos os seus, e D. Constantino com todos os fidalgos de sua companhia. ¡ pÙpa havia um docel de tÈla d'ouro, e debaixo d'elle uma cadeira de brocado d'ouro para o Legado, estando tudo defronte forrado de finos pannos de Flandres, e cobertos de tapetes os escabellos em que se assentavam os prelados, bem como o pavimento da pÙpa, e atÈ o da proa. Pelo que parecia que n„o estavamos em uma barca, mas sim em magnifica e bem ornada sala. Os bordos d'ella estavam cheios de ramos de louro, e por cima esvoaÁavam bandeiras de damasco verde e amarello. A galeota, para que por extrema velocidade n„o corresse algum risco, posto que o vento fosse de feiÁ„o, n„o trazia vÈla; mas vogava com remos a compasso e rebocada por dez bergantins pintados de vermelho. A marinhagem estava vestida de.....[16] e barretes vermelhos. Chegavam a nÛs dez barcas variamente pintadas e ornadas, nas quaes ouvimos pifanos, trombetas, adufes, tÌmbales e outros instrumentos, com cantores e bailarinos vestidos · mourisca, os quaes bailavam com garbo, mas o canto parecia-se com o que cantam os judeus nas suas sinagogas. Esta gente rodeando a galeota e fazendo seus cumprimentos deleitavam-nos muito. Depois disto ainda se approximaram muitas mais barcas, talvez trinta, que salvaram a galeota cada uma com dois tiros d'artilheria. N'uma d'ellas veio o arcebispo de Lisboa, com muito clero, e beijando a m„o ao Legado se despediu para o receber depois em terra com ceremonial. Partindo o arcebispo vieram ainda mais bergantins toldados e vestida a marinhagem, uns de verde, outros d'amarello, outros de vermelho, outros emfim de cÙres misturadas, com muitos estandartes similhantes, nos quaes vinham pintados, n'este um mundo, n'aquelle um jardim, n'aquell'outro um cÈu estrellado: em alguns as armas e brazıes de seus donos, ou outras divizas, e atÈ as havia com motes e tenÁıes que n„o se podiam bem discernir no meio d'aquella confus„o. Varios d'estes bergantins eram dos magistrados da cidade, outros das ordens militares de Portugal. Alguns fidalgos e todos os officios mechanicos mandaram seu bergantim. Muitos indiaticos que residem em Lisboa enviaram dois cheios de varias plantas, flÙres e fructos da India, feitos de cÍra, que representavam uma primavera, n„o faltando ahi rosas, violas e hervas odoriferas, naturaes e verdadeiras, colhidas em Lisboa. Eram tantos os barcos vindos de toda a parte que se computaram em mais de quinhentos....... Distariamos um terÁo de legua da cidade quando chegaram dez galÈs pequenas, seguidas por uma grande, que chamavam o gale„o, as quaes saudaram o Legado com cem tiros d'artilheria, e o gale„o com vinte e quatro, deitando ao mesmo tempo muitos foguetes e outros fogos de vistas.ª ...................................................................... ´Com esta bella e alegre companhia cheg·mos finalmente · cidade, em cuja praia havia tanta gente que se calculava em cincoenta mil pessoas. Deitou-se uma ponte de madeira, e por ella desembarc·mos para outra ponte fixa, no meio da qual dÈmos de rosto com o serenissimo cardeal D. Henrique que nos esperava com muitos cavalleiros.ª ...................................................................... ´Deram principio · entrada muitos cavalleiros portuguezes, caminhando aos dois, aos tres, e aos quatro, e misturados com elles os familiares do Legado, a cuja esquerda ia o cardeal infante. Tendo andado vinte passos vieram cumprimental-o todos os magistrados e officiaes publicos de Lisboa, que seriam noventa, uns vestidos de vestiduras compridas atÈ o ch„o, outros de saios atÈ o joelho feitos de diversas fazendas, com as varas nas m„os, e trazendo muitos alabardeiros e creados apoz si, uns mais, outros menos, segundo as suas graduaÁıes. Veio ent„o, encontrar-se com o Legado, D. Sebasti„o, rei de Portugal, mancebo de vinte e oito annos, de boa cÙr e muito parecido com D. Joanna, princeza de Portugal, sua m„e, e irman d'el-rei catholico. … de estatura mediocre, de olhar e sobrecenho algum tanto carregado e altivo. Trazia uma capa de panno preto, e o capuz com botıes de diamantes, rubins, e perolas, saio com abotoadura tambem de diamantes e as faldas atÈ o joelho, calÁas vermelhas com poucos tufos e quasi lizas, barrete chato de velludo, carregado para a testa quasi atÈ o sobrolho, e adornado com um cord„o d'ouro, diamantes e perolas: trazia botas largas nas pernas, de cordov„o preto, que lhe subiam atÈ os joelhos. A espada, cinto, estribos e esporas eram dourados, e a sella do cavallo de velludo preto recamada de ouro e perolas: na cabeÁa trazia o cavallo pendentes de pedras preciosas e ouro. Adiante d'el-rei dois escravos pretos conduziam dois ginetes, um claro, outro baio claro, com xaireis de brocado d'ouro e jaezes d'ouro. Ao redor vinham cincoenta alabardeiros vestidos de panno preto, com capas compridas atÈ meia perna, saios com faldas pelo joelho, e botas de cordov„o preto largas. Seguiam-se o infante D. Duarte e muitos outros cavalleiros, que seriam mil, quasi todos montados em formosos ginetes bem arreados, fazendo aquelle todo maravilhosa vista, principalmente os cavalleiros, que eram de bella presenÁa e ricamente vestidos. El-rei parou · direita do Legado e, descobrindo a cabeÁa ao mesmo tempo que este, fez uma leve inclinaÁ„o, tornando immediatamente a pÙr o barrete. Feitos os cumprimentos e correspondida a cortezia que fizera, caminhou ao lado do Legado, e sempre · direita, seguindo-se depois o cardeal infante e D. Duarte, e depois D. Constantino, D. Francisco, e D. Henrique: apoz estes o duque d'Aveiro e seu irm„o D. Pedro, aos quaes se seguiam os marquezes, condes e outros fidalgos titulares, e depois os magistrados da cidade com os seus alabardeiros e os cavalleiros das quatro ordens militares, alÈm de outras pessoas distinctas, cada qual segundo a sua graduaÁ„o. Caminh·mos obra de uma boa milha por bellas ruas, direitas e largas (principalmente a que chamam _rua nova_, a qual È bellissima e povoada de nobres edificios) atÈ que cheg·mos ao paÁo real, situado no sitio mais alto da cidade, que d'alli se descobre quasi toda, fazendo uma vista soberba com o braÁo de mar que a cÈrca, cheio de grande multid„o de navios. Por todas estas ruas era t„o basto o povo que se calculou haver ahi mais de cento e cincoenta mil pessoas. Estavam as dictas ruas adornadas todas de finos pannos de Flandres e d'outras qualidades, n„o havendo columna ou parede que d'elles n„o estivesse coberta. Dobrado era o adorno das janellas, porque n„o sÛ estavam a ellas damas t„o louÁans, que n„o sei a que comparal-as, mas tambem estavam colgadas de riquissimos tapetes e colchas, o que era tanto mais esplendido, quanto as casas teem muitas janellas e muito junctas, e cada morada tres ou quatro andares, que se alugam facilmente pela grande frequencia d'extrangeiros. Era por este motivo que d'um e d'outro lado se n„o via v„o do tamanho d'um dedo, que n„o estivesse coberto de tapetes e pannos, divididos por quadros de figuras em vulto, ou bordadas, de vistosa apparencia. Quando cheg·mos · egreja de Sancta Maria[17], perto dos paÁos reaes, el-rei, fazendo leve menÁ„o de descobrir a cabeÁa, partiu para os dictos paÁos acompanhado de cincoenta tochas, e o Legado entrou na egreja.ª O paÁo de D. Sebasti„o--A cÙrte ´Partindo da sÈ o Legado com o cardeal infante e muitas outras pessoas, foi apear-se ao dicto palacio, chamado do castello, era sol posto. Acompanhado de cincoenta tochas, conduziram-no a um aposento no andar nobre, por cima do quarto d'el-rei, onde ceou sÛ, e os prelados e gentis-homens de seu serviÁo em publico, n'uma sala, e em outra maior os gentis-homens dos prelados. Assim os mais criados cada um segundo a sua jerarchia e classe.ª ´As mesas n„o eram t„o bem ordenadas, lautas, e abundantes como em Madrid, porque os portuguezes n„o teem habito de banquetear-se. Conhecia-se-lhes a boa vontade com que davam tudo, e que eram abastados de peÁas de ouro e de prata, e servidos por muitos criados; mas as comidas eram mais grosseiras que delicadas; os vinhos fortes; a fructa pouco singular. Quanto ao p„o e carne, eram optimos.ª ´O palacio do castello, todo por fÛra de cantaria, assim como n„o tem fÛrma alguma d'architectura, por ter sido feito aos poucos em diversas epochas, tambem por dentro È mais commodo que vistoso. Sobe-se por uma grande escada a um atrio que gira em volta, e que d· entrada para diversas quadras, ficando · m„o esquerda da entrada uma porta que d· para outra escada ingreme e estreita, pela qual se sobe a alguns quartos bem ornados, nos quaes se alojaram varios prelados. Tomando por outra escada subimos a uma varanda que d· passagem para as camaras d'el-rei, por cima das quaes fica uma grande sala, que tem quarenta e oito passos de comprido e dezoito de largo, dividida em naves com um tecto pintado de brutescos, e forrada toda de bellas razes de Flandres e de lhama d'ouro. Seguia-se um quarto feito a modo d'escada, por ser em degr·us, onde os gentis-homens dos prelados comiam. O tecto d'este quarto era feito · maneira de pinha e de muito mau gosto. D'aqui subia outra escadinha de madeira para um aposento, ao lado do qual ficava outro onde estavam os aparadores com a copa, assaz copiosa de peÁas d'ouro e prata, mas n„o tanto como a do duque de BraganÁa. D'esta casa se passava para uma sala forrada dos mesmos pannos de Flandres, na qual os prelados comiam. No fundo d'esta sala se descia para uma varanda feita de novo, em cujo topo havia um bellissimo panno de Flandres com uma imagem da virtude que segura pelo collo e pelos cabellos uma fortuna com seu letreiro latino que significa: _n„o sabe escapar, nem pÛde fugir a fortuna, quando a virtude com sua forÁa a retem_. Do meio d'esta varanda se desce para uma sala forrada de lhama d'ouro, com seu docel de brocado, debaixo do qual est· um estrado com tres degraus, coberto de panno verde. D'aqui se entra em uma camara, ornada do mesmo modo, onde est· um grande leito de brocado d'ouro, com travesseiro e duas almofadinhas de razo[18] carmezim ricamente bordados d'ouro. Fica immediata outra, onde estava um leito para dormir o Legado, cuja armaÁ„o era de finissimos razes de seda e d'ouro, com bem lavradas figuras poeticas, e franjas subtilissimas. Havia tambem ahi uma mesa pequena de couro preto da India mais bello que o ebano, todo lavrado ao redor de folhagens d'ouro. Ao pÈ d'esta camara estava um oratorio, armado de razes similhantes aos da camara, com a differenÁa de serem as figuras ao devoto........... D'estas camaras sahe-se por uma porta secreta para um terrado donde se descobre uma extensa vista, tanto de mar como de terra.ª ´Os quartos d'el-rei ficam por baixo d'estes e em tudo lhes s„o similhantes, salvo em alguma pequena diversidade nos estrados e doceis, e em serem bordados os pannos de raz com historias do Testamento Velho, e ao mesmo tempo com quantas ficÁıes teem inventado os poetas. Havia ahi alguns que valiam bem dois mil escudos.ª ...................................................................... ´Na quarta feira seguinte foi o Legado visitar el-rei, o qual veiu encontrar-se com elle ao meio da sala grande, acompanhado de muitos cavalleiros, e vestido singelamente, todo de panno preto. Tirou o Legado o barrete primeiramente, e depois tirou el-rei o seu, mas tornou-o a pÙr logo, tendo-o o Legado ainda na m„o; e sem dizer palavra, tomando a direita ao Legado, se encaminhou para o seu quarto, sem fazer a menor ceremonia ao passar as portas, entrando primeiro que elle na camara, onde sÛ havia uma cadeira. Ordenou ent„o el-rei que viesse outra, mas antes que ella chegasse, ou por inadvertencia ou por altiveza, assentou-se debaixo do docel, e o Legado defronte d'elle na que trouxeram, que era de velludo. Tendo fallado obra de uma hora, o Legado tornou a descobrir-se, fazendo el-rei apenas signal d'isso, e acompanhando-o sÛ atÈ · porta do aposento, onde parou, com o barrete na cabeÁa, em quanto os prelados lhe faziam suas cortezias, pondo o joelho em terra, e retirou-se depois.ª ´O Legado jantou n'esse dia em publico, mas sÛ · mesa, na sala do docel, n'um estrado de cinco degraus, assentado em uma cadeira de velludo carmezim, franjada d'ouro, assistindo-lhe os prelados e grande numero de fidalgos portuguezes. Ao mesmo tempo jantava el-rei tambem em publico e sÛ · mesa, na sua sala principal debaixo do docel, em estrado levantado, e assentado em cadeira de brocado d'ouro. Quatro padres jesuitas benzeram a mesa e depois deram graÁas. O serviÁo era d'ouro: dez os criados que serviam, n„o mais! As comidas poucas, mal temperadas e grosseiras. Sobre a mesa estava sempre um grande vaso de prata cheio d'agua, do qual se deitava em um jarro, chamado na lingua portugueza _pucaro_, do feitio de uma urna antiga, d'altura d'um palmo, e feito de certo barro vermelho, subtilissimo e luzidio, que chamam _barro d'Estremoz_, pelo qual el-rei bebeu seis vezes. Ahi estava tambem sempre uma salva de prata cheia de guardanapos, que se renovavam cada vez que el-rei bebia ou mudava de prato. Comia depressa, e com a cabeÁa baixa, com pouca delicadeza. Um pagem posto atraz da cadeira lhe tinha entre tanto a espada. Dez estavam de joelhos. Apesar de lhe assistirem muitos fidalgos, nunca disse palavra, nem olhou para nenhum, e levantando-se da mesa, retirou-se para a sua camara com passos velozes.ª ´Depois de jantar, o Legado cavalgou em uma mulla, acompanhado dos prelados e de quinhentos cavalleiros portuguezes, e seguindo quasi uma milha ao longo da margem do rio, foi apear-se · porta de um convento de freiras franciscanas, donde passou ao palacio da rainha D. Catharina, viuva de D. Jo„o III e irman de Carlos V, avÛ do rei actual. Ter· d'edade sessenta annos ou mais, mas est· bem conservada: È d'alta estatura e de gentil aspecto. Estava vestida como a duqueza de BraganÁa viuva, de que j· falei. Ach·mol-a em pÈ n'um aposento desadornado, como o era todo o palacio. Deu sÛ dois passos a receber o Legado, com uma leve cortezia. Juncto d'ella estavam quatro matronas e seis donzellas formosas e ricamente vestidas. Despedidos os prelados e mais pessoas, comeÁou a conversar com o Legado em lingua hespanhola e em voz alta, por espaÁo de hora e meia, tendo-se ella assentado no ch„o e o Legado defronte, em uma cadeira de couro, ambos sem docel, estando entretanto os prelados n'outro aposento, onde, por orgulho ou por descuido, n„o havia cadeiras. ¡ partida do Legado foram estes chamados dentro para cortejarem a rainha, o que fizeram pondo o joelho em terra, sem ella se mover; e quando o Legado se despediu pÙz-se em pÈ, mas n„o sahiu do seu logar, e apenas fez uma leve inclinaÁ„o de cabeÁa.ª ...................................................................... ´Tendo anoitecido, acompanhados com vinte tochas adeante fomos ao palacio da infanta D. Maria, irman de D. Jo„o III, a qual, tendo ficado orphan em tenra edade, n„o quiz j·mais casar, posto que fosse robusta, formosa, e procurada. Era alta, e teria d'edade cincoenta annos, posto que n„o pareÁa · primeira vista. Dizem que È a princeza mais rica da christandade, possuindo innumeraveis joias e milh„o e meio de bens patrimoniaes, que gasta com os pobres.ª ...................................................................... ´Estava vestida a princeza com um vestido afogado de velludo preto com orla d'ouro e botıes d'ouro no colarinho, coifa de rÍde d'ouro na cabeÁa, e uma corÙa no braÁo, de rubins e diamantes, que avali·mos em trezentos mil escudos. Esperava em pÈ pelo Legado, n'um aposento forrado de pannos de Flandres de sÍda e ouro, debaixo de um docel de brocado. Ajoelhou ao entrar de s. exm.^a, e levantando-se veio recebel-o · porta do quarto. Depois assentou-se no ch„o debaixo do docel, e o Legado defronte d'ella em uma cadeira de velludo carmezim franjada d'ouro. Estavam presentes quatro matronas, quatro damas, e tres donzellas n„o menos honestas que formosas, e similhantes ·s tres GraÁas, duas vestidas de velludo preto, e a do meio de damasco branco, e todas cobertas de joias tanto no pescoÁo como nas mangas, com coifas de fio d'ouro que lhe chegavam sÛ a meia cabeÁa, e os cabellos bem assentados na frente, algum tanto crespos mas n„o entranÁados. Depois de uma curta conversaÁ„o, o Legado voltou ao palacio.ª ...................................................................... ´Esta capella (a dos paÁos d'AlcaÁova) È de bom tamanho. Tem um S. Miguel expulsando Lucifer que È obra de mestre: est· forrada de tapeÁarias, uma das quaes representa ao natural el-rei D. Manuel, rodeado do conselho dos grandes, quando resolveu mandar conquistar as Indias que hoje chamam de Portugal. … de grande preÁo.ª ...................................................................... ´Quando o Legado voltou para a sua camara (depois da segunda visita de ceremonia a el-rei na qual nada ha notavel) os administradores do thesouro real lhe levaram para vÍr uma sella de diversas peÁas, com os demais arreios, feita na India. O corpo d'ella, ou assento, È de ouro e as orlas lavradas subtilissimamente. Est· toda semeada de rubins, diamantes, perolas, e outras joias similhantes. Dizem que vale novecentos mil escudos, e È peÁa sÛ digna de um rei.ª ...................................................................... ´Na segunda feira seguinte fomos ver o arsenal ou armaria d'el-rei, pegado com a praÁa principal, · beira do Tejo. Na verdade È cousa digna d'espanto! Compıe-se de tres grandes salas todas cheias. Os cossoletes que ahi ha s„o para cincoenta mil homens. N'outra que fica por cima est„o lanÁas para outros; e n'outra morriıes e arcabuzes para egual numero de soldados (os portuguezes dizem que s„o para oitenta mil), alÈm de trinta mil armaduras inteiras para cavallaria. Em baixo est„o cem peÁas d'artilheria grossa, e cento e cincoenta de artilheria miuda, bem que muitas d'estas se podiam contar entre as de grande calibre. As muniÁıes s„o abundantissimas, assim como os materiaes para a fabricaÁ„o; nem n'esta parte ha mais que desejar.ª ...................................................................... ´Fomos tambem vÍr as cavallariÁas reaes que est„o juncto a S. Domingos. Havia n'ellas duzentos ginetes todos excellentes e tractados com grande estimaÁ„o.ª ...................................................................... O cardeal tinha-se despedido d'el-rei D. Sebasti„o. Segue-se a descripÁ„o da partida e da viagem para Castella atravez do Alemtejo, na qual nada ha novo ou notavel, digno de ser transcripto para estudo dos costumes d'aquella epocha. ASPECTO DE LISBOA AO AJUNCTAR-SE E PARTIR A ARMADA PARA A JORNADA D'ALCACER-QUIBIR 1578 Apesar de os historiadores do infeliz D. Sebasti„o haverem aproveitado muitas memorias coetaneas para tecerem as suas narrativas, esta de que hoje damos um extracto lhes foi desconhecida. E todavia ella apresenta o quadro mais miudo e talvez mais completo da grandeza e importancia d'aquella desgraÁada expediÁ„o, em que as riquezas, os sacrificios de todo o genero, e as violencias inauditas, de que todo o paiz foi theatro, n„o poderam remediar a decadencia do antigo esforÁo portuguez, nem restaurar a energia indomavel dos seculos anteriores, corrompida pela morte da liberdade municipal e da independencia aristocratica, annulladas por D. Jo„o II e por D. Manuel.--Do estylo, do modo por que a relaÁ„o dos successos se apresenta, do ponto em que ella termina, e dos signaes paleographicos do manuscripto se deduz que esta memoria, pertencente · Bibliotheca Real, foi escripta por um contemporaneo e testemunha ocular dos aprestos da armada. * * * * * ...................................................................... ´Estava a cidade de Lisboa em todas as cousas mui differente do que era, porque a gente que n'ella havia n„o se lhe dava numero, nem havia homem que passeasse nem andasse de vagar, assim naturaes como extrangeiros, porque todos se negociavam para a jornada de Africa, onde el-rei queria passar, e mostrava-se em todos tanto alvoroÁo que parecia que iam a folgar ou a ver umas grandes festas.ª ´Havia muita gente estrangeira a fÛra os tudescos, que el-rei mandara vir e que estavam em Cascaes alojados, afÛra seiscentos soldados, os quaes, indo para a Rochella por mandado do papa em soccorro dos catholicos contra os herejes, vieram a Lisboa tomar refresco, e pedir embarcaÁ„o a Sua Alteza, a qual lhes n„o pÙde dar, por ter necessidade de todos os navios para esta viagem, antes disse ao capit„o d'esta gente, que era o duque de Lenister de Irlanda, que o quizesse acompanhar n'esta jornada, e que para isso mandaria pedir licenÁa a Sua Sanctidade, para o qual o duque lhe deu de prazo quarenta dias para dentro d'elles vir a resposta, a qual n„o veiu atÈ · partida d'el-rei; mas emfim os fez embarcar e levou comsigo. Era gente muito lustrosa, e soldados velhos exercitados.ª ´Havia em Lisboa muita gente extrangeira, assim castelhanos como de outras naÁıes, que vieram para irem n'esta jornada por aventureiros, gente honrada e muito lustrosa, que vieram servir el-rei · sua custa e sem partido. E assim acudiram muitos officiaes de instrumentos militares; porque mandou el-rei declarar por Italia, Castella, e Allemanha, que todo homem que em sua terra tivesse officio de guerra e quizesse acompanhar n'esta jornada lhe faria partidos avantajados.ª ´El-rei Filippe em Castella mandou apregoar que todo o homem que passasse com seu sobrinho n'esta jornada lhe levaria em conta todo o tempo que servisse, como se acompanh·ra sua propria pessoa.ª ´Fez el-rei quatro coroneis, a saber: Diogo Lopes de Sequeira do terÁo de Lisboa e seu termo; D. Miguel de Noronha do de Santarem; Vasco da Silveira do de Alemtejo; Francisco de Tavora do terÁo do Algarve. N„o fez coronel d'Entre Douro e Minho, nem da Beira, porque a gente que de l· vier se ha de repartir por estes coroneis.ª ´Estes despediu el-rei a vinte dias de maio, para que cada um fosse fazer sua gente e pagasse logo a todos, e comeÁasse a paga a correr desde o dia que cada um partisse da sua terra. A gente de Lisboa e a dos terÁos de Santarem e do Alemtejo veiu embarcar aqui em Lisboa; a outra se embarcou em os portos mais chegados: e para esta gente se embarcar mandou el-rei vir aqui de Setubal sessenta urcas que estavam · carga do sal. Todas estas entraram em Lisboa em um dia, e ficaram l· em Setubal outras setenta urcas, que el-rei mandou hi carregar de cousas necessarias. Vai por general de toda a armada D. Diogo de Sousa, governador que foi do reino do Algarve.ª ´Era el-rei t„o cioso ou curioso da negociaÁ„o d'esta jornada, que de ninguem a fiava nas cousas necessarias sen„o de si mesmo. E foi por vezes visto em pessoa mandar carregar e negociar os seus galeıes; e t„o occupado que pela sÈsta se viu um dia no caes, sem chapÈu, mandar arrumar em um gale„o umas poucas d'armas: e era a sÈsta ardentissima.ª ´… infinito querer contar do apparelho das cousas de guerra, que el-rei mandou embarcar: de artilharia muita e muito grossa, uma de campo e outra de bater, e outra para o mar, toda de bronze, infinitos corpos d'armas, piques, arcabuzes, pelouros, ceirıes, carretas, enxadas, alviıes, barras, polvora, marrıes, e murrıes; e para isto levava muitos gastadores, que diziam que eram quatro mil: levava muitas azemulas, bois, carros, e todo o mais d'estas cousas: levava mais para os gastadores um gale„o cheio de Áapatos de malhÛo.ª ´Chegou a Lisboa o duque de BraganÁa no fim de maio com sua gente escolhida, vestida de amarello, e guarnecida de vermelho: outra alguma de seu serviÁo vinha de vermelho fino, com calÁas e gibıes da mesma cÙr. Leva muita gente, e a mais d'ella mandou embarcar em Setubal, onde tinha para isto, e para sua matolotagem e cavallos, vinte e sete urcas apenadas por mandado d'el-rei. O duque veiu pela posta, e ao outro dia adoeceu e esteve muito mal; e quando viu que n„o podia ir por sua indisposiÁ„o, mandou vir de Villa-viÁosa o filho mais velho, para em seu logar ir com el-rei. N„o lh'o quiz a duqueza mandar, e mandou-lhe o filho segundo, que lhe elle logo tornou a mandar, e que em todas as maneiras lhe mandasse o filho mais velho, o qual veiu, e partiu de Lisboa apoz el-rei em uma n·u veneziana, t„o grande como uma da India, muito bem concertada com muita artilharia grossa, com muitos estandartes e padezes; e foi por Setubal para levar comsigo a sua gente que l· estava embarcada.ª ´Ao primeiro de junho mandou el-rei lanÁar bando que todas as companhias fossem receber soldo, e que todo homem assi natural como extrangeiro que recebesse ou tivesse recebido soldo, e n„o passasse · Africa, que morresse.ª ´Foi el-rei por vezes ao campo vÍr os esquadrıes e os capit„es como o faziam, e elle mesmo andava nas resenhas e entre o pÛ e fumo da arcabuzaria, muito alegre e contente. E È de notar o fervor com que negociou estas cousas: e depois que se isto comeÁou a apparelhar lhe era pesada toda a practica, que n„o tractava de guerra ou do apparelho d'ella.ª ´N'este meio tempo houve algumas brigas, mui travadas, e algumas de bandos, como foi uma dos portuguezes e tudescos na praia da Boa-vista, sendo mais de duzentos tudescos e outros tantos portuguezes, que durou por muitas horas, sem os poderem apartar nem apasiguar: e n„o morreu mais de um tudesco, e houve muitos feridos de uma parte e outra: e nasceu esta briga de dois portuguezes quererem obrigar a dois tudescos que pagassem a uma taberneira o que lhe comeram, que lh'o n„o queriam pagar. Outra briga houve de portuguezes contra castelhanos, porque tres portuguezes inconsideradamente arrancaram contra um esquadr„o de castelhanos, e succedeu-lhes bem, que em pouco se junctaram quarenta ou cincoenta portuguezes que brigaram valorosamente, onde mataram quatro castelhanos e feriram mais de vinte: dos portuguezes n„o mataram nenhum, mas ficaram alguns feridos. Esta briga se fez no rocio, · porta do hospital d'el-rei, e armou-se de estes tres portuguezes chamarem ladrıes a seis ou sete castelhanos dos d'aquella companhia, porque estando um mouro de Cide MuÁa com tres moedas d'ouro de quinhentos rÈis na m„o, lhe disseram estes sete castelhanos se as queria trocar, que lhe dariam de ganho quarenta rÈis por cada uma: acceitou o mouro, e pediram-lhe os castelhanos as moedas para vÍr se eram de peso, e mostrando-lhes as tres, as passaram de m„o em m„o uns pelos outros de maneira que desappareceram; e o mouro pediu ajuda a estes tres portuguezes e emenda da zombaria que lhe fizeram, e que lhe tornassem o seu dinheiro. Vendo el-rei que estes negocios iam para mal e que cada dia havia brigas, mandou lanÁar bando que todo homem assim natural como extrangeiro, que na cÙrte arrancasse espada, morresse por isso, e assim se atalharam as brigas.ª ´Mas depois que el-rei se partiu houve uma sÛ, que foi a gente do duque de BraganÁa com uma companhia de castelhanos que ficou em Lisboa para receber soldo; e tanto que a briga se comeÁou, o capit„o dos castelhanos recolheu sua gente o melhor que pÙde nas varandas dos paÁos da ribeira, e a briga comeÁou-se · Porta do-mar juncto ·s casas de Affonso d'Albuquerque. Ajunctaram-se da gente do duque mais de duzentos homens, e o fizeram como muito soberbos e pouco esforÁados; porque, sahindo o capit„o dos castelhanos com uma bandeira de paz, e pondo-se de joelhos diante d'elles dizendo que por amor de Deus o matassem a elle e deixassem os seus soldados; que olhassem que eram irm„os dos portuguezes, e vinham a servir el-rei de Portugal; elles sem deferirem a isto iam seguindo sua furia, e vendo algum castelhano ·s janellas ou varandas lhe tiravam ·s arcabuzadas, e ao mesmo capit„o que lhes pedia paz lhe tiraram muitos golpes e pedradas, que foi milagre n„o o matarem ou ferirem. Fez este capit„o maravilhas, e deu mostras de muito esforÁado; e porque j· alguns do duque haviam tido os dias atraz brigas com alguns da sua companhia, e era em rixa velha, foi este capit„o ao duque pedir-lhe amqestasse a sua gente n„o lhe quizesse matar seus soldados, e como j· o duque estava informado das finezas que este capit„o fizera, lhe agradeceu muito e lhe mandou dar um cavallo e duzentos cruzados, e um chapeu seu, que tinha, para levar, porque o capit„o ia sem elle, que o perdera na briga.ª ´E pela cidade se comeÁou a alevantar um rumor que seria bom prenderem ao mesmo duque; que n„o era possivel que elle n„o mandasse · sua gente fizessem bandos e as taes brigas, sendo el-rei ausente; e que sempre a casa de BraganÁa fÙra avessa ·s cousas do rei. N„o faltou quem avisasse o duque d'isto, o qual mandou chamar toda a justiÁa, e lhes pediu com muita instancia que todo seu criado prendessem e julgassem no mesmo instante, e que, se conheciam alguns dos outros da briga passada, os prendessem logo e se julgassem como a el-rei e a suas justiÁas parecesse. Conheceram doze dos que comeÁaram a briga; prenderam-nos: todos os mais fez logo o duque embarcar, e partiram com o duque novo. AfÛra estas brigas todas, amanheciam muitos homens mortos das brigas de noite.ª ´Aos oito dias de junho mandou el-rei lanÁar bando que todos se aviassem, porque elle se embarcava a quatorze do mesmo mez, que foi um sabbado; e t„o firmemente que, perguntando-lhe Christov„o de Tavora se havia de passar alguns dias depois dos quatorze, lhe respondeu:--que bem se podia o cÈu ajunctar com a terra, sem haver falta no que tinha mandado apregoar.ª ´N'este sabbado quatorze de junho foi el-rei, dos paÁos da ribeira · sÈ, a buscar a bandeira real. Tanto que amanheceu comeÁaram a correr os fidalgos para o acompanharem: e parece que · porfia trabalharam para ir cada um mais galante e custoso: cousa que espantou muito as gentes, vÍr como todos iam ricamente vestidos; porque, se a materia dos vestidos era rica, a obra, feitios e invenÁıes de mais rica sobejava; porque tudo era brocado, tela d'ouro e prata, tecidos d'ouro e prata, tecidos de seda mui custosos. Os velludos, damascos, e todas as mais sedas perderam sua valia; e se alguma tinham era pelos muitos passamanes, rendilhas, espiguilhas, torchados e alamares d'ouro que lhe punham. Mas tudo isto era de pouco gasto em comparaÁ„o dos feitios, que estes destruiram os homens.ª ´AlÈm d'isto, foi espanto vÍr a muita pedraria que n'este dia sahiu: os botıes d'ouro, as tranÁas dos chapÈus cheias de rubins, diamantes, e esmeraldas de preÁo infinito, entresachadas a compasso umas com as outras; os camafeus, medalhas e estampas de feitio singular; as cadeias d'ouro grossissimas aos pescoÁos, de dez e doze voltas; as couras borladas d'ouro com botıes d'ouro, cristal, perolas e demais pedraria; os gibıes e coletes sobre telilha (d'ouro com invenÁ„o de cÛrte, pique, presponte maravilhoso; os capotes de damasco, setim, chamalote de seda, bandados com barras de velludo e torÁaes d'ouro.ª ´Os arreios dos cavallos eram cousa de admiraÁ„o; porque todos os fidalgos levavam em seus cavallos cabeÁadas e esporas de prata, esmaltadas d'ouro e azul; as estribeiras com mil figuras e maneiras de bichos abertos n'ellas, obrados por singular arte; as nominas, peitoraes, cigolas e cordıes com muitas borlas d'ouro e torÁaes; as muchillas com os jaezes e cobertas quando menos eram de velludo com mil franjas d'ouro e prata, e os mandis de velludo.ª ´Nem era menos vÍr como os fidalgos vestiram todos a sua gente, uns de gran, outros de raxa de mÈscla e tamate, isto assim a escudeiros e pagens como a lacaios e escravos, cada um de sua librÈa de suas cÙres, e alguns os vestiram de calÁas e gibıes de seda da cÙr de sua librÈa, com meias de agulha de seda.ª ´Emfim foram os fidalgos esperar a el-rei · sala, e d'ahi desceram com elle atÈ cavalgar. Estava a este tempo o terreiro do paÁo, que È um espaÁo grande, muito cheio de gente, que n„o havia poder andar; e alÈm d'isso era para vÍr estar as librÈas de dez em dez homens, pegados nos cavallos de seus senhores, de cÙres differentes todos, com muitas plumas de diversas cÙres nos chapÈus, com cendaes aos pescoÁos com borlas d'ouro e seda, que faziam um campo esmaltado de diversas boninas.ª ´Finalmente passando el-rei pela varanda, juncto da escada por onde havia de descer a cavalgar, olhou para todo o espaÁo da gente, e conhecidamente se lhe enxergou no rosto o contentamento de vÍr tanta gente, t„o lustrosa e t„o alvoroÁada; e cavalgando foi passando pelos fidalgos, pondo os olhos em cada um com uma alegria e benignidade desacostumada. D'esta maneira foi acompanhado atÈ a sÈ, onde, depois de ouvir missa, se benzeu com muita solemnidade a bandeira, na qual estavam de uma parte postas as armas reaes, e da outra um crucifixo, com el-rei D. Sebasti„o tirado pelo natural.ª ´J· que tudo era acabado, el-rei com os joelhos no ch„o e os olhos arrazados d'agua esteve um pedaÁo diante do Sanctissimo Sacramento rezando. Acabando a oraÁ„o entregou a bandeira a D. Luiz de Menezes, alferes-mÛr, que coberto a levou diante; e assim acompanhado atÈ o caes da rainha, se embarcou na galÈ real, cuja obra È estranha, porque sÛ na pÙpa, onde el-rei vai, se affirma que se gastaram mais de oito mil cruzados, porque È da mais estranha e singular invenÁ„o que se viu. Toda era cozida em ouro, com muitas historias abertas no mesmo p·u, com outros muitos vultos formosissimos, e outras personagens de temerosos aspeitos, tudo obrado com maravilhoso artificio; e o farol real era conforme a dicta obra de maravilhosa invenÁ„o.ª ´E porque n„o haja quem diga que n„o tractaram os homens mais que de se enfeitarem, nem lhes lembr·ra mais que suas louÁainhas e vaidade, sei dizer que o gasto que fizeram nos vestidos foi pouco em comparaÁ„o das armas e apparelhos para pelejarem.ª ´N„o houve homem fidalgo que n„o comprasse muitos corpos d'armas muito lustrosos, e n„o mandasse pintar n'ellas suas armas em campos de diversas cÙres: mil peitos de prÛva de muito preÁo, muitas couras e coletes de anta, couraÁas de laminas cobertas de velludo e setim de todas as cÙres com tachas d'ouro e prata, muitas saias de malha, e gibanetes, tudo muito galante e de muito gosto, e muitas rodelas d'aÁo tauxiadas de lavor d'ouro com suas armas pintadas n'ellas, muitas adargas muito fortes, muitas lanÁas dourados os contos e engastes, espadas largas e cortadoras, muitos montantes, leques, terÁados, e todo outro genero d'armas muito fortes e galantes.ª ´Levam muitos homens fidalgos um cavallo acobertado de cobertas d'anta muito fortes e louÁans, pintadas n'ellas suas armas de tintas finissimas. Houve cobertas d'estas que passaram de mil cruzados. N„o houve genero d'armas, assim offensivas como defensivas, que os homens n„o comprassem com muito gasto e custo, e com mais gasto ainda que nos vestidos.ª ´Levam tambem muitas tendas muito ricas, e muitas d'ellas de seda, com suas grimpas douradas e bandeiras de seda, e tendilhıes para a gente e cavallos; e el-rei leva muita somma de tendas que mandou trazer de Allemanha; e se affirma que as d'el-rei e dos fidalgos e extrangeiros ser„o mais de quatro mil com os tendilhıes.ª ´… de notar como os homens v„o alfaiados, e o muito provimento de todas as cousas que levam, que parece que levam casa mudada, como se l· houvessem de estar vinte annos. Foi de maravilhar em todo este tempo, com tanta confluencia de forasteiros e gente de todo este reino, n„o faltarem nunca os mantimentos n'esta terra, nem alevantar o preÁo d'elles, antes que nenhum outro tempo houve mais, nem mais baratos. Esta foi uma das cousas em que Lisboa mostrou bem sua grandeza.ª ´Comquanto el-rei mandou lanÁar bando com penas grandes que ninguem vendesse as cousas por mores preÁos do que d'antes valiam, e com ao principio prenderem alguns por isso, n„o deixaram as sedas, pannos, e armas, e todas as cousas necessarias para esta jornada de custar cinco e seis vezes mais do costumado. Isto destruiu os homens; e na rua-nova, onde todas estas cousas se vendem, apreÁando um fidalgo algumas cousas de seda para se vestir, pelas quaes lhe pediram tanto mais do que valiam, que fazia medo, disse com assaz dÙr de coraÁ„o:--que mais arreceavam os homens a guerra que se lhes fazia na rua-nova, que a que se esperava em Africa. D'estes havia muitos, e os mais d'elles negociavam em pessoa, que assim era necessario para se melhor negociarem, e, pelo muito gasto que fizeram, ficaram todos destruidos, e uns venderam as herdades e casas e casaes e quintans por dois seitis, e outros empenharam as commendas e morgados por muitos annos por d'ante m„o, para se aviarem, por muito pouco preÁo valendo muito, e haviam provisıes d'el-rei para o poderem fazer sem embargo de serem morgados: e outros vendiam a prata e ouro, e tudo o mais de que se podia fazer dinheiro se punha em leil„o.ª ´N„o houve nenhum officio que n„o estivesse com obra, e todos elles alevantaram sem consciencia. Ao menos os officiaes de vestidos, pintores, douradores, armeiros, sirgueiros, e officiaes de tendas, ficaram ricos para sempre, e os mais n„o ficaram pobres.ª ´Deu o arcebispo licenÁa, pelo principio de maio, que d'ahi atÈ se partir el-rei trabalhassem todos os officiaes de todos os officios dias e sanctos de guarda, nas cousas que pertenciam · guerra ou seu apparelho; e assim se fez, que todos trabalharam; e com tudo isso n„o se poderam acabar de aviar todos os fidalgos, que ainda c· ficaram alguns que apoz el-rei se partiram.ª ´Foi recommendado a Jeronimo Corte-Real e a D. Jo„o de Mafra e a outro fidalgo, que n„o soube o nome, que inventassem o que poria el-rei no timbre de suas armas novas, com que n'esta jornada havia de sahir. Accordaram que pozesse abaixo das armas reaes dois piramides ao modo de columnas, e de um d'estes ao outro pozessem umas letras que dissessem:--Amor, fÈ, amor.ª ´Depois de el-rei assim estar embarcado, este sabbado que disse, ao domingo seguinte, que foram 15 dias do mez de junho, sahiu a ouvir missa na igreja de Sanctos velho, e d'ahi se tornou outra vez a jantar · sua galÈ, e n'ella andou toda a tarde vendo a frota e dando pressa que se aviassem, e da mesma maneira todos os dias d'aquella semana andou visitando as n·us e vÈlas grandes, dando-lhes pressa que se aviassem; e na segunda feira pela manhan mandou el-rei lanÁar bando com trombetas que todos se embarcassem, porque elle botava na quarta feira seguinte de foz em fÛra, e o mesmo fez na segunda feira · noite, e · terÁa feira pela manhan e · noite.ª ´Na quarta feira se mudou o tempo do mar, e esteve assim atÈ segunda feira vespera de S. Jo„o tÈ o meio-dia.ª ´[19]N'este meio tempo aconteceu uma desgraÁa grande ao senhor D. Antonio, prior do Grato, com el-rei e com Christov„o de Tavora; e foi que tinha o senhor D. Antonio fallado a um criado da infanta D. Maria, grande reposteiro, e mantieiro maravilhoso e mui destro n'esta cousa de banquetes: e estava concertado leval-o comsigo n'esta jornada, e a esta conta esteve, comeu e pousou alguns dias em casa do senhor D. Antonio. Teve Christov„o de Tavora noticia d'este homem: mandou-o chamar, e lhe rogou ou lhe mandou que o acompanhasse n'esta jornada; que cumpria assim. Como Christov„o de Tavora È do bafo d'el-rei e tanto seu privado, e quer, pÛde e manda, acceitou este homem de boa vontade ir com elle, sem embargo da palavra que tinha j· dado ao senhor D. Antonio, o qual na vespera da partida o mandou chamar a sua casa e lhe disse que se acabasse de aviar. Respondeu-lhe elle sem pejo que ia com Christov„o de Tavora; que n„o podia ir com S. Ex.^a. Faltou a paciencia ao senhor D. Antonio, e por sua m„o lhe deu com um p·u umas poucas de pancadas e o tractou mal. Tomado Christov„o de Tavora d'isto fez queixume a el-rei que o senhor D. Antonio lhe espancara um homem seu, porque n„o quizera ir com elle. Estando isto d'esta maneira acertou de ir o senhor D. Antonio · galÈ d'el-rei, e antes que chegasse a elle fallou a cinco ou seis fidalgos que estavam afastados da pÙpa, entre os quaes estava Christov„o de Tavora, e todos salvaram e tiraram o chapÈu ao senhor D. Antonio sen„o elle, que virou o rosto para outra parte. Disse-lhe o senhor D. Antonio:--´Sois mal ensinado, Christov„o de Tavoraª: a que elle respondeu:--´Nunca o eu sube ser, sen„o quando me sobejou raz„o para isso.ª Anojado o senhor D. Antonio se foi fazer queixume a el-rei, parecendo-lhe que emendasse a descortezia: elle lhe respondeu de m· graÁa e por cima do hombro:--´VÛs lh'o tereis merecido.ª Sahiu-se o senhor D. Antonio da galÈ aggravado. Informado depois el-rei do que passava, e sabendo que tractava de se ir para Castella, o mandou chamar e apaziguou o caso.ª ´Em todo este tempo que el-rei esteve embarcado, o estiveram os fidalgos principaes, porque tinham por m· fidalguia estar el-rei embarcado, e elles em suas casas; ainda que de noite iam a furto dormir a ellas, e de dia estavam em suas embarcaÁıes. ¡ segunda feira, vespera de S. Jo„o, mandou el-rei lanÁar bando que toda a pessoa, que estivesse apontada nos roes, estivesse embarcada dia de S. Jo„o pela manhan, sob pena de serem presos · mercÍ de S. A.: e ao dia de S. Jo„o pela manhan mandou el-rei levar ancora defronte da igreja de Santos, onde costumava a mandal-a botar todas as noites, e d'ahi se botou defronte de toda a armada de largo, e mandou disparar uma peÁa, que È signal de recolher, e se despediu de todo; e deixando os que ficavam muito saudosos se foi caminho de Oeiras, tres leguas de Lisboa, onde fez embarcar os seiscentos romanos, e mandou que o mesmo fizessem os tudescos. Ahi esteve atÈ o outro dia ao jantar, e toda a manhan andou o patr„o-mÛr em um bergantim da ribeira de Lisboa, a bordo de todos os navios, dizendo da parte d'el-rei que se partissem logo, que esperava por elles em Oeiras.ª ´N'este mesmo dia · tarde, elle com a frota que estava juncta em Oeiras, se partiu com um tempo bem assombrado como el-rei desejava para sua jornada; e comquanto todos determinaram de se aviar depressa, ainda ficaram na ribeira de Lisboa cento e sessenta vÈlas, entre caravellas de fidalgos e outros navios d'alto-bordo que muitos fidalgos tinham fretados. Todos estes navios que ficaram se negociaram com a mÛr brevidade que pÙde ser para se irem apoz el-rei; e para isto mandou que ficasse em Cascaes o gale„o S. Martinho, um navio formosissimo e mui forte, o qual ficou para dar guarda e seguro ·s vÈlas que ficaram em Lisboa, para as acompanhar atÈ Africa.ª ´Foi cousa mui formosa de vÍr a multid„o de vÈlas que foram com el-rei; porque as vÈlas que estavam no rio de Lisboa para ir com el-rei eram novecentas e quarenta, entre as quaes eram mais de quinhentas d'alto-bordo mui bem artilhadas, e entre estas algumas guerreiras e inexpugnaveis, como eram os galeıes d'el-rei, e as n·us venezianas, e urcas, e outras muitas portuguezas, todas com artilharia de bronze, com muitas bombas de fogo, e outros artificios e petrechos d'esta qualidade. Iam estas vÈlas todas junctas e embandeiradas com seus estandartes de seda nas gaveas, que chegavam com as pontas · agua empavezadas, com varandas pintadas e cortinas de seda, e as caravellas com seus toldos e bandeiras de quadra; e vÍr andar el-rei por entre as n·us mandando-lhes que se aviassem depressa, e disparar toda a artilheria, e cobrir-se tudo de fumo.ª ´Quando el-rei partiu de Oeiras, que desamarrou e levou ancora, desamarraram com elle pouco menos de oitocentas vÈlas, com as vÈlas todas mettidas, que faziam uma vista formosissima; e quando chegar a Africa deve de ir com mais de mil e quinhentas vÈlas, porque tem mandado que se ajunctem no Algarve as da cidade do Porto, de Vianna, d'Aveiro, Villa do Conde, Buarcos, Setubal, em o qual est„o esperando mais de duzentas vÈlas, e outras muitas que est„o em Cezimbra, Sagres, Lagos, Tavira, e em todos os portos do Algarve, onde se havia de embarcar a gente do terÁo de Francisco de Tavora.ª ´A ordem do soldo È que d· el-rei a cada soldado quatro cruzados cada mez, e os mantimentos h„o-se de vender por elle, e para isto mandou ir muitos taboleiros de todas as partes para venderem no campo os mesmos mantimentos d'el-rei pela taixa, e d'esta maneira n„o se pÛde alevantar o preÁo d'elles.ª ...................................................................... VIAGEM A PORTUGAL DOS CAVALLEIROS TRON E LIPPOMANI 1580 Quando offerecemos aos leitores varios extractos da viagem do cardeal Alexandrino tendentes a fazer conhecer, melhor do que se conhecem, as nossas antigas cousas, promettemos ahi extrahir algumas passagens de outro livro inedito, que nos pareciam dar no alvo em que tinhamos posto mira. Este livro È uma narraÁ„o da viagem dos dois embaixadores mandados pela republica de Veneza cumprimentar Philippe II pela conquista de Portugal. A epocha da viagem È quasi a mesma da que j· extract·mos; mas o auctor anonymo d'esta toca outros pontos mui diversos dos que em grande parte haviam dado materia ·s observaÁıes do antecedente escriptor. No presente manuscripto, a relaÁ„o do caminho que os embaixadores fizeram pelas provincias nada contÈm que n„o se ache em obras portuguezas impressas. Na descripÁ„o, porÈm, particular de Lisboa apontam-se tantas particularidades sobre os usos, habitos e grau de civilisaÁ„o do paiz, e tantas noticias economicas ignoradas, por certo, dos leitores, que julg·mos conveniente lanÁar aqui a memoria d'essas cousas, que porventura importam mais · historia do que commummente se cuida. Na descripÁ„o geral de Lisboa e particular das egrejas, paÁos reaes, hospital, etc., nada ha notavel n'esta viagem, sen„o os muitos erros ·cerca de quasi tudo o que È historico, em que o auctor sÛ parece ter consultado pessoas menos instruidas em taes materias. N'essas descripÁıes o bom do venezeano, auctor do livro, segue o estylo commum do seu tempo: as egrejas s„o grandes, aceadas, ricas; os paÁos vastos, sumptuosos, nobres; e com isto se contenta. N„o assim no que vamos extractar, comeÁando pela noticia da _fonte dos cavallos d'arame_, j· t„o celebre no tempo de D. Fernando. ...................................................................... ´Para o lado da porta que chamam da Cruz ha outra fonte, ou antes lago, que denominam dos cavallos; porque da boca d'alguns cavallos de metal s·e tanta agua, que fÛrma uma corrente a modo de ribeiro.ª ...................................................................... ´Posto que Lisboa seja tamanha e t„o nobre povoaÁ„o, n„o tem palacio algum de burguez ou de fidalgo, que mereÁa consideraÁ„o quanto · materia; e quanto · architectura apenas s„o edificios muito grandes. Ornam-os, porÈm, de tal modo que na verdade ficam magnificos. Costumam forrar os aposentos de rasos, de damascos, e de finissimos razes no inverno, e no ver„o de couros dourados mui ricos, que se fabricam n'aquella cidade.ª ´As ruas, bem que largas, s„o muito incommodas, por subidas e descidas continuas a que obriga a desegualdade do terreno..... Por isso usam os moradores andar a cavallo, do que procede verem-se n'aquella cidade bellissimos ginetes, que os portuguezes compram por todo o dinheiro, attendendo · grande estimaÁ„o em que os tÍem. N„o usam de coches, e quatro ou seis que ahi havia eram de castelhanos que seguiam a cÙrte. Quanto as ruas, em geral, s„o m·s e incommodas para andar assim a pÈ como em coche, tanto È f·cil, deleitosa, e bella a Rua-nova pelo seu comprimento e largueza, mas sobre tudo por ser ornada de uma infinidade de lojas cheias de diversas mercadorias para o uso de nobre e real povoaÁ„o.--Entre ellas ha quatro ou seis que vendem objectos trazidos da India, como porcellanas finissimas de varios feitios, conchas, cÙcos lavrados de diversos modos, caixinhas guarnecidas de madreperola, e outras obras similhantes, que d'antes se compravam por moderado preÁo, mas que ultimamente eram carissimas por tres respeitos: o da peste que havia assolado a cidade; o do sacco dado pelos castelhanos quando entraram em Lisboa, bem que el-rei houvesse ordenado ao duque d'Alva tal n„o consentisse aos soldados; e ultimamente pela raz„o de n„o terem vindo armadas da India durante dois annos. Na mesma Rua-nova ha muitas lojas de livros, com infinito numero d'elles em portuguez, castelhano, latim, e italiano. Todos s„o mui caros; e por isso os estudantes, por serem pobres, costumam mais _alugal-os_ (como ahi dizem) a tanto por dia, do que compral-os. N„o deve esquecer aqui que na praÁa chamada do Pelourinho-velho est„o de continuo assentados muitos homens com mesas ante si[20], os quaes se podem chamar notarios ou copistas sem caracter de officiaes publicos, e que n'este exercicio ganham a sua subsistencia. Sabida que È a idÈa de qualquer freguez que se chega a elles, immediatamente redigem o que se pretende, de modo que ora compıem cartas d'amores, de que se faz grande gasto, ora elogios, oraÁıes, versos, sermıes, epicedios, requerimentos, ou outro qualquer papel, em estylo ch„o ou pomposo. Juncto da Rua-nova ha muitas outras ruas, cada uma das quaes tem suas lojas de uma sÛ especie de mercadorias. Na dos ourives do ouro havia muitas mal abastecidas de pedras preciosas, de perolas, d'ambar, e d'almiscar, em consequencia da tardanÁa da frota. A prata de Lisboa È lavrada com delicadeza e variedade, por ser costume, assim entre nobres como entre plebeus, usarem de pratos e bacias de prata. Ha egualmente ahi lojas cheias de doces e fructas seccas, e cobertas, primorosamente preparadas, de que se faz grande trafico, mandando-as para diversas partes do mundo. Vende-se tambem, em uma unica rua, grande quantidade de tÈlas de toda a sorte, portuguezas, flamengas, e italianas: das primeiras s„o na verdade bellas algumas que chamam _casiquino_ (?), mui finas e alvas, e alguns lenÁos · mourisca, que s„o baratos e lindos. N'outra parte, em certa viella, trabalham delicadamente ao torno, em que fazem guarda-soes de barba de baleia, obra acabada, e cÙcos lavrados a modo de taÁas, com embutidos de madeira do Brazil. Vasos de estanho e mais objectos d'este metal se fabricam abundantemente n'outra rua, e se carregam para a India, onde d„o grande lucro.ª ´O commercio da praÁa de Lisboa È muito consideravel pela correspondencia que tem ordinariamente com todas as outras da Europa e do Novo-Mundo, de modo que as permutaÁıes s„o importantissimas, e os negociantes possuem grossos cabedaes; porque sÛ nas especiarias e drogas, que vÍm a Lisboa, depois que expirou, pelos annos de 1504, o commercio da Syria e d'Alexandria, ganham rios de dinheiro, que perdem os nossos venezianos, pois eram elles quem, fazendo trazer estas preciosas mercadorias pelo Mar-rÙxo a Beyruth e a Alexandria, d'alli as transportavam a Veneza nas galÈs d'alto bordo. Bem como costumam partir de Sevilha todos os annos armadas para irem ·s indias occidentaes pertencentes · corÙa de Castella, assim costumava el-rei D. Sebasti„o mandar ordinariamente uma frota de Lisboa ·s Indias orientaes. No anno em que este rei morreu, partiu no mez de marÁo para Malaca, segundo me contaram, uma nau de mil e quatrocentas toneladas, e um mez depois mais cinco do mesmo porte para GÙa. Era este o numero de vasos que ia annualmente, e aquella a monÁ„o da partida. Essas naus levavam carga d'el-rei e dos particulares. Por conta d'estes ia vinho, azeite, pannos finos de varias cÙres, d'Inglaterra, Flandres, e Castella, barretes finos e ordinarios de Toledo, escarlatas de Veneza e de Valencia, rasos de FlorenÁa, sarjas de lan de Flandres, marlotas de Constantinopla, acolchoados e calÁas de seda de Napoles, velludos de Genova, damascos de Lucca, taffet·s e calÁas de seda de Toledo, sarjas de seda e luvas de Valencia. Por conta d'el-rei carregavam-se cor·es em bruto e lapidados, azougue, cinabrio, arame, espelhos e diversos vidros de Veneza, mercadorias que ninguem podia enviar sem expressa licenÁa d'elle. O que, porÈm, principalmente se exportava era uma grandissima porÁ„o de prata em reales castelhanos, negocio em que se ganhavam trinta por cento; e affirmaram-me que os contractadores das especiarias e varios outros negociantes mandaram nas cinco ultimas n·us para GÙa um milh„o e trezentos mil ducados. Este tracto havia crescido a tal ponto que era de maior lucro a ida que a volta......ª ´A carga para Lisboa consistia principalmente em pimenta a granel, que devia subir, por contracto, pelo menos a trinta mil quintaes, e que se dividia, metade para el-rei, que n„o entrava n'este negocio com somma alguma, e a outra metade para os contractadores que tinham o exclusivo da pimenta: o quinh„o d'el-rei compravam-no ordinariamente os mesmos contractadores a trinta e dois ducados o quintal. Aos particulares era licito mercadejar em qualquer outra especiaria, pagando os direitos........ª ´Do reino de Soffala vinham todos os annos a Lisboa cento e setenta barras d'ouro, e uma barra vale para cima de trezentos ducados: tambem de Soffala e de toda a GuinÈ vinha grande quantidade de marfim...... Traziam-se egualmente a Lisboa sedas da China, pannos finissimos e ordinarios de algod„o do Brazil, bellos tapetes da Persia, Èbano, aguila, p·u brazil, dixes e louÁa transparente de porcellana, borax, camphora, laca, aloes-hepatico, tamarindos, cÍra, almiscar, ambar, algalia, beijoÌm, perolas, rubins, diamantes, e mais pedras preciosas em abundancia, e outras varias mercadorias que iam do Egypto para Alexandria, as quaes, todavia, n„o eram a millesima parte das que vinham a Lisboa nas sobredictas frotas.........ª ´Os homens da cidade de Lisboa e de todo o Portugal s„o de mediana estatura, mais baixos que altos, magros, de cÙr ferrenha, cabellos e barba pretos, olhos negrissimos, e mui similhantes no exterior aos gregos. O seu trajo, antes da morte do cardeal rei, era mui mesquinho, em consequencia da pragmatica, que n„o consentia usassem vestidos de seda; pelo que trajavam um saio de baÍta preta, calÁıes de panno escocez, borzeguins de marroquim, chapeu de feltro e capa comprida da mesma baÍta. Com a chegada d'el-rei catholico alteraram o seu antigo trajo, porque, posto que conservaram a capa de baÍta, comeÁaram a usar do gib„o de raso, bragas e calÁıes de velludo, e meias de seda, cousa que nunca tinham calÁado, bem como escarpins, dos quaes n„o era possivel achar um sÛ par antes da entrada d'el-rei, porque todos, sem excepÁ„o, calÁavam borzeguins. S„o os portuguezes mais ambiciosos de louvores que outra qualquer naÁ„o do mundo, affirmando que as suas faÁanhas s„o milagrosas. Celebram Lisboa com tal copia de palavras, que a fazem egual ·s principaes cidades do mundo, e por isso costumam dizer:--´Quem n„o vÍ Lisboa, n„o vÍ cousa boa--ª. A gente miuda gosta que lhe dÍem o tractamento de _senhor_, manha esta commum a toda a Hespanha. Vivem parcamente, porque a plebe pela maior parte È pobre, e os cavalleiros que se teem em conta de ricos fundam a opini„o da sua riqueza em possuirem uma ou duas aldÍas, com trinta ou quarenta visinhos cada uma, no meio de campinas estereis com vinte ou trinta folhas cultivadas, e tudo o mais inculto, aspero, e coberto de pedras, com alguns cazebres mesquinhos e mal concertados, como eu o experimentei durante muitas semanas d'aquella viagem.ª ´Poucas pessoas se d„o ahi ·s letras; mas applicam-se muitos ao commercio, genero de vida aborrecida dos nobres, que n„o podem ouvir falar em tal, tendo por gente villissima os mercadores. Exercitam-se apparentemente nas armas, e algum tanto em cavalgar, contentando-se com ter leves principios d'estas duas profissıes, sem quererem supportar mui diuturno ensino.ª ´As mulheres portuguezas s„o singulares na formosura e proporcionadas no corpo: a cÙr natural dos seus cabellos È a preta; mas algumas tingem-nos de cÙr loura: o seu gesto È delicado, os lineamentos graciosos, os olhos negros e scintillantes, o que lhes accrescenta a belleza; e podemos affirmar com verdade que em toda a viagem da peninsula as mulheres que nos pareceram mais formosas foram as de Lisboa; posto que as castelhanas e outras hespanholas arrebiquem o rosto de branco e encarnado, para tornarem a pelle, que È algum tanto, ou antes muito trigueira, mais alva e rosada, persuadidas de que todas as trigueiras s„o feias. O trajo feminino em Lisboa È o commum de toda a Hespanha; isto È, o manto grande de lan ou de seda, segundo a qualidade da pessoa. Com elle cobrem o rosto e o corpo inteiro, e v„o aonde querem, t„o disfarÁadas que nem os proprios maridos as conhecem: vantagem esta que lhes d· maior liberdade do que convem a mulheres bem nascidas e bem morigeradas. As damas nobres costumam ser acompanhadas, pela cidade, de creados bem vestidos, que lhes precedem com passos lentos e socegados, e de donas que as seguem com grandissima gravidade, n„o tendo por signal de boa reputaÁ„o o serem acompanhadas de donzellas.ª ´O povo miudo vive pobremente, sendo a sua comida diaria sardinhas cosidas, salpicadas[21], que se vendem com grande abundancia por toda a cidade. Raras vezes compram carnes, porque o alimento mais barato È esta casta de peixe, que se pesca em notavel cÛpia fÛra da barra, como se pesca muito outro de todas as qualidades e muito grande; mas em geral menos gostoso do que o das aguas de Veneza, e t„o caro, que faz espanto aos extrangeiros e custa muito aos naturaes, que passam mal pelo preÁo excessivo de tudo o que serve para o sustento. Comem os pobres uma especie de p„o nada bom, que todavia È barato, feito de trigo do paiz, todo cheio de terra, porque n„o costumam joeiral-o, mas mandal-o moer nos seus moÌnhos de vento, t„o sujo como o levantam da eira. O p„o bom e alvo faz-se de trigo de fÛra, que trazem de FranÁa, Flandres e Allemanha os navios d'estas naÁıes quando vÍm a Lisboa buscar sal e especiarias. Este, na verdade, tambem n„o È joeirado; mas as mulheres pobres o escolhem gr„o a gr„o, assentadas · porta da rua, com paciencia fleugmatica mais propria d'allemans que de portuguezas. Estas mulheres tÍem licenÁa para fabricar o p„o e vendel-o pela cidade onde e como lhes apraz, o que sempre È por alto preÁo. O trigo vale a duzentos e oitenta rÈis o alqueire. Nutre-se tambem a gente pobre de fructa, que abunda muito e È baratissima.ª ´O vinho commum È pouco bom, por n„o dizer mau; porque n„o sabem, ou n„o querem ter o incommodo de o fazer bom. Vale geralmente a vinte e quatro rÈis a canada. Os vinhos finos s„o excessivamente caros: os senhores embaixadores tiveram de pagar o branco para o consumo ordinario da sua mesa a sessenta escudos a pipa..............ª ´Quanto ·s vitualhas n„o È em Lisboa que se h„o de buscar cousas muito exquisitas. AtÈ a vitella È rara; porque n„o costumam matar estes animaes, guardando-os para crescerem e servirem nos trabalhos do campo ou de abastecimento da cidade, sendo, alÈm d'isso, ahi a comida ordinaria o capado, que È excellente.ª ...................................................................... ´No tempo de el-rei D. Sebasti„o as rendas reaes consistiam nos direitos das alfandegas de Lisboa e de todo o reino, assim sÍccas como molhadas. D'umas cousas pagava-se o quinto, d'outras a decima; e do peixe, em muitas partes, mais de metade. Havia tambem rendas em cereaes, vinho, e outros generos; as rendas dos mestrados a que pertenciam as ilhas de S. ThomÈ, Terceiras, Cabo-Verde, Madeira, e Principe; as da Mina que pertenciam · Ordem de Christo. As especiarias e outras fazendas que vinham annualmente da India e do Brasil produziam tambem um avultado rendimento. Apesar, porÈm, d'este ser tamanho, nada vinha a entrar no thesouro; porque tudo se dispendia em armadas e mais cousas necessarias para a conservaÁ„o d'aquelles estados, e afÛra isso se distribuia em salarios d'officiaes e ministros da justiÁa no continente; em mercÍs vitalicias, que chamam tenÁas, aos benemeritos da corÙa, aos fidalgos, e mais pessoas, que serviam assim no reino como na Africa e India; em juros perpetuos, que os reis vendiam, estabelecidos nos direitos reaes; em despezas com a gente e petrechos necessarios para a defens„o das praÁas d'Africa; em cinco galÈs constantemente armadas, e no armar dos navios redondos, que todos os annos sahiam junctos, assim para comboiar as frotas que iam e vinham dos portos com que Portugal commerciava, como para mandar ao Brasil, a GuinÈ, · Mina, a S. ThomÈ; e finalmente em moradias, gastos da cÙrte e casa real, paga de creados, esmolas, presentes, embaixadas, dotes ·s filhas dos creados, e conservaÁ„o das fortalezas de Lisboa e do reino.ª As noticias do viajante relativamente a Portugal versam desde este ponto sobre a organisaÁ„o judicial e administrativa, ·cerca da qual nada se accrescenta que n„o se ache na nossa antiga legislaÁ„o. Conclue o narrador com uma historia succinta do reinado de D. Sebasti„o e das causas do desastre de Alcacer-quibir, da acclamac„o de Philippe II em Thomar, etc.--Abstemo'-nos de extractar essa parte relativa · historia politica, n„o porque seja pouco interessante e curiosa; mas porque È demasiado extensa. POUCA LUZ EM MUITAS TREVAS 1844 POUCA LUZ EM MUITAS TREVAS 1579--1580 Se ha alguma epocha da nossa historia que nos offereÁa uma alta liÁ„o; se ha algum successo que nos possa fazer energicamente sentir quaes sejam as consequencias fataes da pervers„o moral de qualquer paiz, e como aos povos corrompidos n„o tarda o dia da servid„o, ou de serem riscados da lista das naÁıes, os fins do seculo XVI e a conquista feita por Philippe II s„o essa epocha e esse facto. As virtudes politicas de nossos maiores, o seu amor de independencia, grosseiro, feroz atÈ, se quizerem, tinham esmorecido gradualmente com as pompas dos reinados de D. Manuel e de D. Jo„o III; com o v„o luxo, e com as desgraÁadas riquezas adquiridas na Asia, quasi sempre por preÁo de immoralidades e crimes. As resistencias e luctas da edade-media, que alimentaram o sentimento da propria dignidade, n„o sÛ nas classes sociaes, mas tambem nos individuos, haviam cedido o passo a um servir mais ou menos abjecto para obter como mercÍ ou privilegio o gÙzo de vantagens e direitos, que a fraqueza dos municipios e a decadencia da nobreza tinham deixado perder. O homem do concelho, o burguez, em logar de se unir aos seus eguaes para repellir nos parlamentos os vexames dos poderosos, achava mais facil para a timidez, que substituira na sua alma a antiga ousadia, receber como recompensa de serviÁos humildes ou como esmola de charidade uma parte dos tributos oppressivos e rigorosamente illegaes que se lhe extorquiam, e as classes elevadas entendiam que era menos arriscado, e sem comparaÁ„o mais commodo, obterem de joelhos e por carta de graÁa ante os chancelleres, privados, e desembargadores, alguns fragmentos das suas legitimas ou illegitimas prerogativas, do que imitarem o duque de BraganÁa pondo a cabeÁa n'um cadafalso por amor d'ellas. Como a moeda antiga, cujos cunhos o roÁar de muitos annos apag·ra, o caracter portuguez estava poÌdo e quasi de todo gasto quando chegou, pela desgraÁa d'Alcacer-quibir, o curto reinado do velho cardeal D. Henrique. ¡ morte d'este principe, a cuja completa degeneraÁ„o moral sÛ pÛde servir de desculpa o ter sido apenas um agonisante coroado, seguiu-se a conquista castelhana e o dominio dos tres Philippes durante sessenta annos. Por todo esse largo periodo, quasi n„o passou um dia sem affrontas ou oppressıes para o povo subjugado. Portugal, amarrado ao poste da tyrannia extrangeira, assistiu como se fosse uma cousa morta e inerte · desmembraÁ„o do proprio corpo. Os ministros de Castella, que pouco melhor tractavam o seu paiz natal, a cada porÁ„o das nossas colonias de que hollandezes, inglezes, ou francezes nos expulsavam, a cada nau ou comboi que nos saqueavam ou mettiam a pique, accrescentavam um novo tributo, um novo vexame, uma nova quebra de nossos direitos; e foi sÛ nessa especie de estufa ardente que pÙde semear-se, nascer, e vecejar a planta de odio vivaz, que nos restituiu ao menos um symulachro da extincta energia, e nos temperou de novo para reconquistarmos n'uma lucta de quasi meio seculo a antiga independencia como naÁ„o, sen„o a antiga vida politica e os antigos fÛros de liberdade. A tradiÁ„o conservou na memoria do povo a lembranÁa dos largos e variados males que nos trouxe o senhorio extranho: contra elle nos tem guardado e guarda ainda, pelo temor, essa recordaÁ„o; mas as causas que os geraram, essas, como mais remotas e mais difficultosas de avaliar, È que pouco a pouco nos v„o esquecendo, e este esquecimento È ajudado pelos escriptores menos reflexivos, a quem deslumbram as tristes glorias dos descobrimentos e conquistas, e os elogios que por ellas nos d„o com admiravel magnanimidade aquelles para cujo proveito tantas gentilezas d'armas, tanta ousadia, e tantos crimes practic·mos, e que esperaram tranquillamente nos suicidassemos moralmente para recolherem a heranÁa que lhes ajunctaramos. As paginas laudatorias que ainda hoje ahi se lÍem ·cerca das eras manuelina e joannina, e que nos fazem lembrar dos _panegyrici veteres_, em que os rhetoricos romanos ridiculamente antepunham a fastosa decadencia do imperio aos tempos asperos, mas viris e robustos, do crescimento da republica, s„o a maneira mais segura de inutilisar as proveitosas admoestaÁıes da historia, cujo estudo encerra, por via de regra, a explicaÁ„o do presente e a prophecia do futuro. Diz-se, na verdade, que um grande numero de fidalgos e pessoas principaes se venderam a Philippe II no reinado do cardeal D. Henrique: cita-se o nome de D. Jo„o Mascarenhas, o heroe de Diu, com uma certa indignaÁ„o pelo contraste da sua vida passada; o de D. Christov„o de Moura, como o de um franco renegado da patria; o do bispo Pinheiro como o de um insigne hypocrita; emfim, os nomes de muitos outros, e especialmente os dos quarenta mercadores politicos que receberam dos castelhanos os celebres _cartazes_ ou cedulas para as recompensas futuras. Mas a que nos conduz isto? A imaginarmos que os corrompidos eram alguns homens, ou quando muito alguma classe. Todavia a verdade È que estendemos covardemente o collo ao jugo extranho, porque a naÁ„o estava degenerada. Onde quer que Philippe II encontrava uma resistencia, acudia ahi com ouro ou com promessas, e quasi que tinha a certeza de superar a difficuldade: a quest„o estava, n„o na compra e venda, mas sÛ no quanto do preÁo. A tenacidade e o amor da independencia nacional dos Phebos-Moniz foram excepÁıes monstruosas. O proprio D. Antonio, que era chamado pelas circumstancias a representar o papel de D. Jo„o I, e que, bem como elle, tinha por si o amor popular, foi um miseravel, que sÛ se collocou · frente das resistencias, as quaes dirigiu sem ordem, sem juizo, e sem energia, porque n„o lhe chegaram os castelhanos ao preÁo por que lhes queria vender alma e corpo. Dizem que Philippe II se queixava de ter feito uma cara mercancia em comprar Portugal: esta irris„o insolente da tyrannia, cuspida com legitima causa nas faces de uma naÁ„o, foi · sua parte um castigo mais severo da immoralidade publica do que todas as oppressıes de sessenta annos de jugo extrangeiro. Quando se compara a epocha de 1580 com a de 1385 È que se conhece qu„o largos passos tinha dado Portugal no caminho da corrupÁ„o durante o _brilhante_ e _glorioso_ seculo dos descobrimentos e conquistas: È n'essa comparaÁ„o que est· a prova de que o antigo caracter portuguez se pervertÍra completamente n„o sÛ nas classes privilegiadas, mas no proprio povo; n'esses que nos apraz considerar unicamente como victimas das traiÁıes da nobreza. O povo n„o resistiu · invas„o extrangeira, porque lhe faltava esforÁo, crenÁa e patriotismo: isso tudo jazia no sepulchro da edade-media. As situaÁıes eram rigorosamente analogas.--O poder de Castella no tempo de Philippe II tem servido de desculpa · geraÁ„o apoucada que estendeu os pulsos ·s algemas. Mas para saber se ella podia ou n„o resistir era necessario tental-o. N„o o fez, salvo se se quizer chamar resistencia aos tumultos de um vulgacho desordenado, em duas ou tres povoaÁıes do reino e na capital. Tem-se exaggerado o poder de Philippe II, e imagina-se que entre as forÁas das monarchias castelhana e portugueza, na epocha do filho de Carlos V, havia uma superioridade a favor d'aquella muito maior que no tempo do rival do mestre d'Aviz, de D. Jo„o I de Castella; mas qual È o facto?--… que Philippe II mandou o duque d'Alva com vinte mil homens tomar conta de Portugal, o que esse general fez quasi sem combate; e que D. Jo„o I veiu pessoalmente · frente de trinta e cinco mil homens enterral-os em Aljubarrota.--Portugal teria acaso menos recursos materiaes ou menos populaÁ„o em 1580 que em 1385?--Duas mil lanÁas, as melhores de FranÁa, ajudavam D. Jo„o de Castella contra nÛs. Quem ajudava Philippe II? Haviamos perdido em Africa dez ou doze mil soldados com D. Sebasti„o. … verdade. E quaes n„o tinham sido as nossas perdas durante as longas e desastradas guerras de D. Fernando, em que Lisboa chegou a ser cercada, e destruida na sua melhor parte? A aristocracia seguia o bando do rei extrangeiro em 1580. Em 1385 a quem se inclinava decididamente a principal fidalguia? Tambem ao rei extrangeiro. E todavia a naÁ„o venceu ent„o, e foi vencida depois sem peleja. Os successos do fim do seculo XVI n„o se explicam por accidentes e circumstancias, que est„o longe de terem o valor que lhes tÍm dado: explicam-se por um facto gravissimo da ordem moral--a morte da nacionalidade. A epocha em que se preparou o dominio castelhano È, na t„o mal estudada historia portugueza, uma das mais imperfeitamente conhecidas. E todavia ella offerece uma altissima liÁ„o aos povos. Se a narraÁ„o dos successos acontecidos nos tempos em que tinhamos virtudes, e a energia e amor de patria que nos distinguiram antes do reinado de D. Jo„o II, nos pÛde excitar uma honrada emulaÁ„o, o espectaculo dos ultimos paroxismos da nossa lastimosa decadencia, ainda, porventura, considerada nas suas causas, nos ser· mais proveitoso pelo nojo e horror que deve causar nos animos essa especie de prostituiÁ„o politica a que nos chegou a soltura de costumes, e de que foram manancial perenne os habitos de desenfreio, cubiÁa, e egoismo, que em cada monÁ„o carreavamos do oriente para a Europa. A historia da segunda metade do seculo XVI pÛde fazer ante as geraÁıes presentes o papel do ilota embriagado, que os lacedemonios expunham aos olhos dos mancebos nas horas da refeiÁ„o, para pelo tedio e despreso os premunirem contra o vicio da embriaguez. Mas o fazer dignamente o quadro das traiÁıes covardes, das corrupÁıes hediondas, das torpes cubiÁas, da indifferenÁa e imbecilidade popular d'aquelles tempos n„o È facil tarefa. Tudo isso se ha de ainda ir em grande parte arrancar das trevas de archivos particulares e nacionaes, de documentos e memorias que nunca viram a luz do dia. A historia, como hoje existe, est· bem longe de nos fazer sondar o abysmo de tanta perdiÁ„o, e achar as causas verdadeiras de t„o extraordinarios effeitos. … depois d'essas laboriosas indagaÁıes e da publicaÁ„o d'ellas, que o historiador poder· pintar com exacÁ„o o estado deploravel da sociedade portugueza na epocha em que alcanÁou, emfim, subjugal-a a sua antiga rival. Uma serie de documentos temos diante de nÛs n„o sÛ conducentes para esse fim, mas bastantes em si para moverem a curiosidade. Daremos a substancia d'elles, acompanhando-os de notas necessarias para intelligencia dos menos versados nos successos politicos d'aquelles tempos, e no conhecimento das personagens que figuraram no drama, mais repugnante ainda que lastimoso, da venda de Portugal a Castella. Os documentos a que alludimos pertencem a uma collecÁ„o da bibliotheca real. Durante o curto reinado do cardeal D. Henrique (1578-1580) os animos estiveram sempre occupados com a quest„o de saber quem seria o seu successor. Aquelles que pareciam ter maior numero de probabilidades eram o prior do Crato, D. Antonio, filho bastardo do infante D. Luiz e sobrinho do cardeal; o duque de BraganÁa, por sua mulher D. Catharina, neta d'el-rei D. Manuel; e Philippe II, neto tambem de D. Manuel por sua m„e. D. Antonio, chegado do captiveiro de Berberia pouco depois da acclamac„o de D. Henrique, era o mais popular dos pretensores, e o que parecia estar mais resolvido a obter a coroa a todo o custo. O duque de BraganÁa procedia frouxamente no negocio, posto que as suas riquezas, a sua influencia, e o esplendor com que vivia, o tornassem a primeira pessoa do paiz depois do monarcha. Philippe II, fazendo menos ruido que D. Antonio, porÈm mostrando mais decis„o e firmeza que o duque, trabalhava principalmente nas trevas para reinar sobre toda a Peninsula. D. Christov„o de Moura, portuguez, e o duque d'Ossuna eram os agentes de Castella em Lisboa. Moura recorreu a um vasto systema de corrupÁ„o, aproveitando a influencia que lhe davam as suas relaÁıes de parentesco e amizade com a fidalguia, e as promessas e ouro de Philippe II, que n„o se mostrava escaÁo. O proprio cardeal-rei, desaffecto · casa de BraganÁa, e muito mais a D. Antonio, favorecia a ambiÁ„o do castelhano. A camara de Lisboa, depois de mostrar o desejo insensato de que o velho monarcha se casasse para obter success„o, passou a requerer que nomeasse elle um successor. Reuniram-se cÙrtes, e de quinze pessoas propostas por estas escolheu el-rei cinco governadores para regerem o paiz depois de sua morte, e de vinte-quatro jurisconsultos onze para julgarem a causa da success„o, ficando occultos os nomes dos escolhidos. Jurou-se acceitar o que estes julgassem por legitimo rei depois da morte do cardeal. Dos tres pretensores, deram juramento o duque de BraganÁa e D. Antonio, posto que este depois protestasse, declarando que sÛ o fizera por medo d'el-rei seu tio, de cuja cÙrte j· andava desterrado. Os embaixadores de Philippe II recusaram jurar em nome de seu amo, dizendo que a legitimidade d'elle n„o podia ser contestada, e que por isso n„o acceitariam juizes. J· ent„o os homens mais influentes que rodeavam o cardeal, vendidos aos castelhanos, o tinham feito inclinar a Philippe. Por isso, em quanto perseguia o prior do Crato, tentava por escripto persuadir D. Catharina de BraganÁa que cedesse de todo o direito · corÙa, contentando-se com ficar o duque senhor do Brazil, onde poderia tomar o titulo de rei, e em Portugal com a administraÁ„o perpetua do mestrado de Christo. A duqueza, porÈm, na sua resposta regeitou estas offertas por si e por seu marido. A carta original da duqueza ainda existia no tempo do conde da Ericeira, D. Luiz de Menezes, segundo elle affirma. Conhecidos pelo povo os designios do cardeal rei, comeÁaram a apparecer symptomas de serias perturbaÁıes. As cÙrtes em que se haviam nomeado governadores e juizes tinham acabado. Nos fins do mesmo anno de 1579, em que foram celebradas, convocaram-se outras novas para o anno seguinte, com o fim de acalmar os animos inquietos. N'estas cÙrtes, reunidas em Almeirim (onde el-rei se achava por causa da peste) no janeiro de 1580, apresentou o celebre Phebo-Moniz, procurador por Lisboa, um protesto sobre o direito que tinha o povo de eleger rei por morte de D. Henrique; protesto que no meio das tramas a favor de Castella n„o teve effeito algum. O cardeal j· moribundo veiu a fallecer no fim do mesmo mez. Os cinco governadores nomeados antecedentemente, e que eram o arcebispo de Lisboa, D. Jorge d'Almeida; o vedor da fazenda, D. Jo„o Mascarenhas; o camareiro-mÛr, Francisco de S·; D. Jo„o Tello de Menezes; e Diogo Lopes de Sousa, governador da casa do civel, tomaram ent„o conta do governo, proseguindo as cÙrtes. O povo insistia nas suas pretensıes, e dava j· visiveis signaes de revolta, cujo foco era Santarem, e cuja alma parece ter sido Phebo-Moniz, que ousou appellidar de traidores e vendidos a Castella os tres governadores que realmente o eram--Mascarenhas, S· de Menezes, e Lopes de Sousa, requerendo fossem substituidos por outros. Temendo talvez que a minoria d'aquelle symulachro de representaÁ„o nacional servisse de centro a uma energica resistencia ·s pretensıes castelhanas, o governo dissolveu a assemblÈa, e a acceitaÁ„o de Philippe II para rei de Portugal foi definitivamente resolvida. D. Antonio, cujo nascimento de bastardia, cujo caracter audaz, e uma grande popularidade recordavam n'elle o mestre d'Aviz, depois de ter covardemente negociado com o manhoso filho de Carlos V, e de n„o lhe haverem sido acceitas as propostas pelo alto preÁo em que avaliava a sua traiÁ„o · patria, lanÁou-se nos braÁos da gentalha, persuadido de que com ella poderia disputar a corÙa ao seu poderoso rival. A casa de BraganÁa, essa contentava-se com fazer allegaÁıes de direito; porque o genio brando e timido do duque n„o o habilitava para proceder do modo que requeria a gravidade das circumstancias politicas. Finalmente a revolta dirigida por D. Antonio, que se fez acclamar rei de Portugal, rebentou em Santarem, e estendeu-se a Lisboa, e a Setubal, donde os tres governadores affeiÁoados ao dominio extrangeiro, e que ahi se tinham acolhido como a logar seguro, fugiram para Ayamonte e declararam francamente, por uma sentenÁa a favor do rei castelhano, que de feito renegavam a independencia do seu paiz. Entretanto o famoso duque d'Alva, talvez o primeiro capit„o do seu tempo, entrava com um poderoso exercito pelo Alemtejo e subjugava sucessivamente todas as povoaÁıes importantes. Chegado a Setubal e rendida esta villa, embarcou o exercito hespanhol na armada de D. Alvaro Bazan, e desembarcando em Cascaes accommeteu Lisboa, que debalde D. Antonio tentou defender. Assenhoreados os castelhanos da capital, o reino seguiu brevemente o destino d'ella, e D. Antonio, foragido por muito tempo, teve de ir por fim buscar um asylo em FranÁa, onde machinou todas as suas vans tentativas para recuperar um sceptro que n„o soubera conservar. Tal È em resumo a fÛrma por que Portugal cahiu debaixo do jugo castelhano. Os documentos de que vamos dar noticia illustram uma parte das tramas que Philippe II empregou para obter o seu t„o facil triumpho, o qual deveu mais a esses enredos e · corrupÁ„o do paiz conquistado, que · pericia dos seus generaes e ao valor dos seus soldados, que debalde luctavam por subjugar os Paizes-baixos, onde na verdade o povo queria e sabia ser livre. Uma collecÁ„o de papeis varios, em grande parte originaes, relativos ao periodo do dominio castelhano, existe entre os manuscriptos da bibliotheca real. Puzeram-lhe por titulo: _Governo d'Hespanha_. No primeiro volume se acham os documentos de que vamos dar noticia, e que s„o os mais importantes, talvez, de toda a colecÁ„o, n„o sÛ por desconhecidos e originaes, mas por dizerem respeito a uma epocha da nossa historia, cujos acontecimentos, sendo de altissima importancia, s„o, como dissemos j·, dos mais imperfeitamente estudados, ao menos nas causas que os produziram. O volume comeÁa por algumas cartas originaes da rainha D. Catharina, e dos infantes D. Luiz, D. Izabel (rainha d'Hespanha), D. Duarte, cardeal D. Henrique, D. Fernando, e emfim D. Jo„o III. Segue-se o auto de posse do mestrado da Ordem de Christo, tomada em nome d'el-rei D. Sebasti„o por ordem da rainha D. Catharina, e depois uma carta que parece de Antonio Perez, o famoso secretario de Philippe II, dirigida a este principe em 1562, ·cerca de negocios com Portugal, que do contexto n„o consta quaes sejam, sen„o no artigo que versa sobre questıes d'etiqueta na recepÁ„o de um embaixador portuguez. Esta carta, cotada · margem pela letra de Philippe II, n„o offerece nada notavel. Acha-se apoz isto uma copia de nomeaÁ„o dos governadores que D. Sebasti„o deixou no reino partindo para Africa, e immediatamente um relatorio em castelhano da acclamaÁ„o do cardeal rei depois da morte de D. Sebasti„o. Seguem-se a estes papeis os documentos de que vamos tractar. … o primeiro o celebre maÁo que, em virtude da resoluÁ„o das cÙrtes de 1579, se mandou guardar em um cofre de tres chaves, e em que se continha a patente ou nomeaÁ„o dos onze juizes que deviam julgar a causa da success„o, e o regimento que lhes cumpria guardar. Juncto a estes dois diplomas est· a nomeaÁ„o dos cinco governadores e o regimento de seu cargo. Todos os quatro documentos s„o datados de 12 de junho de 1579. Os dois regimentos conservam ainda o sello grande d'el-rei em cera vermelha, posto que j· damnificado no dos juizes. Nas patentes apenas restam vestigios d'elle[22]. Precede a tudo o invÛlucro em que estavam mettidos os dois diplomas relativos aos juizes: tem por fÛra a declaraÁ„o dos papeis que continha, datada de 13 de junho e assignada de chancella por el-rei. Conserva ainda tres sellos ou antes sinetes em lacre vermelho com que o maÁo estava fechado[23]. A circumstancia mais notavel que se encontra n'estes documentos È conhecer-se nas cartas de nomeaÁ„o ou patentes que ambas ellas foram escriptas antes de se haver resolvido quaes seriam tanto os governadores como os juizes; porque, posto que os nomes estejam lanÁados pela mesma letra, vÍ-se, todavia, claramente que foram ahi introduzidos depois, nos claros que para isso se deixaram. Apoz estes documentos est„o dois quartos de papel escriptos pela m„o de Philippe II, um em linhas atravessadas, outro ao alto; este bastante lacerado, mas que todavia se pÛde ainda ler apezar do pessimo caracter da letra, e mais que tudo das frequentes abreviaturas, algumas das quaes È mui difficultoso adivinhar. O primeiro È a continuaÁ„o do segundo, sendo talvez os dois uma meia folha dobrada e inserida assim no volume. … uma especie de breve instrucÁ„o dada a alguem sobre as suas pretensıes em Portugal. N„o tem data; mas pelo contexto vÍ-se que È posterior · inviatura de Christov„o de Moura e do duque d'Ossuna. Est· escripta em castelhano[24]. Transcrevemol-a porque a julgamos assaz interessante: ´Pedi-lhe que _pois est· t„o clara e chan minha justiÁa_ que me mande logo jurar; dizendo-lhe isto com mui boas palavras, pela muita _confianÁa que faÁo da sua pessoa_.ª ´Que se disser que n„o ser· preciso, porque elle pensa em casar e pÛde ter filhos, se lhe diga que n„o embargando isso o faÁa condicionalmente, por quanto convem que fique aplanado e prevenido o negocio da success„o.ª ´Que se elle respondesse falando na _carta que enviou_, e dizendo que quer esperar resposta, n'esse caso que se veja logo o que convir· responder-lhe.ª ´Que, alÈm d'isso, me parece convem enviar despacho ao duque[25] para o caso que el-rei faltasse em quanto andam estas perguntas e respostas, e haver poderes meus a elle e a D. Christov„o para o que conviesse tractar, e para os protestos que poderia convir fazerem-se.ª ´Que, ainda que isto se pÛde examinar mais devagar, bom ser·, pelo que pÛde succeder, se lhes envie logo para isso ao menos a auctorisaÁ„o. E se veja tambem _se se entrar· agora_[26], e se se lhes dir· que faÁam os protestos no caso que sejam necessarios.ª O ultimo paragrapho È escripto com taes breves e, segundo parece, com tal rapidez, que apenas se podem lÍr com muita difficuldade e incerteza estas palavras: ´_Dem‡s de los del consejo dÈsse parte (?) al doctor (?) Rodrigo Vaz y Molina. Fray Diego, fray....... si viniere (?) por la platica que traen de lo de all‡; y, si pareciere,_ _Guardiola, por si convenieren tres, pues queda ya all‡_.ª J· Carlos V pensava, durante a menoridade de D. Sebasti„o, em unir a coroa da Portugal · de Castella, o que se patentÍa no documento immediato. … este uma carta sem assignatura, mas datada de 29 de outubro de 1578 e dirigida a Philippe II, a qual contem o seguinte: ´Senhor--O padre Ribadeneira[27], um dos homens mais graves da Companhia de Jesus, me disse que o imperador N. S. commetteu ao padre Francisco de Borja[28], sendo commissario d'aquella Ordem, que fosse a Portugal a titulo de visitar a sua provincia, sendo a sua commiss„o principal falar · rainha D. Catharina, e dizer-lhe da sua parte o muito que sua majestade desejava que n'aquelle reino se jurasse por principe herdeiro, na falta de el-rei D. Sebasti„o, o principe D. Carlos seu neto[29]. Sua Alteza respondeu ao padre Francisco de Borja que, ainda que isso _era mui conforme · raz„o e · justiÁa_, n„o ousaria, comtudo, propol-o, _porque a apedrejariam n'aquelle reino_. Pareceu-me cousa de importancia para o estado em que as cousas de Portugal est„o, e por isso o quiz communicar a Vossa Majestade.ª ¡ margem da carta est· escripta por Philippe II esta nota: ´N„o me lembro de tal, _ainda que assim aconteceu por certo_. Como eu, Gurza ignora-o. N„o estava c· ent„o. No caso de importar, Gurza podel-o-ha saber...... mas n„o creio que importe nada para o caso d'agora. Seria porÈm bom que...... se soubesse d'este Ribadeneira que bons officios poderiam fazer os da Companhia[30] n'este negocio, a seu tempo; porque creio que _os membros d'ella em Portugal n„o os fazem agora dos melhores_, e assim ser· bem que estejam por minha parte, se a isso se podÈr dar remedio.ª Segue-se um bilhete com a data de 6 de fevereiro de 1579, tambem cotado por Philippe II, acompanhando a remessa de um officio para ser visto por elle. Tem pela sua letra no fim: ´Estou-o vendo; que parece aperta o negocio de Portugal. Tende o correio prompto, que j· o vou despachar.ª O documento immediato È uma carta assignada por D. Jo„o da Silva[31], datada de 3 de novembro de 1579, de Madrid. N„o contÈm cousa importante; mas n'um post-scriptum pede se lhe mande certa allegac„o feita para provar que, se o cardeal der sentenÁa contra Philippe, ser· isso _aggravo sufficiente para mover as armas_. Diz que È para _corroboral-a_ com outras allegaÁıes. Segue-se outra carta assignada sÛ com as iniciaes J. S. da mesma letra da antecedente. … um dos documentos mais curiosos da collecÁ„o, porque nos revela quaes eram os meneios secretos do prior do Crato. … da mesma data da anterior e dirigida a el-rei de Castella. ´Catholica Majestade--No particular de D. Antonio, parece-me que Mattheus Vasquez, para entreter aquelle homem, lhe poderia dizer que esta sentenÁa[32] altera todo o _estado do negocio_, e que depois d'ella n„o se pode ter certeza que seu amo esteja do _mesmo parecer_; e tambem se duvÌda se elle ousar· ter communicaÁ„o com D. Antonio, sendo _creado d'el-rei_, como È, e do _seu conselho_[33]. Que declare, pois, o que pensa fazer n'este caso. E se todavia quer proseguir na sua commiss„o, que escreva a D. Antonio, dizendo-lhe que V. M. sentiu os trabalhos em que el-rei o metteu, e que deseja saber se est· ainda do _mesmo animo_ de que o seu agente significou que estava; porque, _ainda que a proposta offereÁa terriveis difficuldades_, a boa vontade que V. M. lhe tem aplanar· as que se poderem aplanar, para lhe fazer mercÍ e contental-o. Diga-lhe tambem Mattheus Vasquez que n„o sabe o caminho que tomar· o senhor D. Antonio; pois o estar no reino lhe ser· t„o difficil e perigoso para a sua seguranÁa; e sahindo n„o tem no mundo aonde se acolher sen„o aqui, porque a outra qualquer parte aonde v· lh'o tomariam a mal: que, se viesse para V. M., n„o poderiam as suas cousas deixar de se comporem com muita vantagem, ficando V. M. _penhorado de elle se entregar em suas m„os_: que veja se lhe parece escrever-lhe n'este sentido, pois com brevidade se poder· saber a sua resoluÁ„o para se proceder no ponto principal com mais clareza, sabendo-se de que animo est· depois da sentenÁa.ª ´Tambem se lhe pÛde dizer que V. M. se admirou da opini„o que na sua carta mostra ter concebido de que os ministros de V. M. em Portugal e em Castella lhe tÍem feito m·us officios com V. M., e que n„o sabe o que o moveu a acreditar similhante cousa, sendo exactamente o contrario do que passa em realidade, porque a todos parece mui bem que V. M. o _recolha_ e lhe faÁa toda a mercÍ possivel; e que elle agente deveria desenganal-o d'isso e trazel-o a partidos convenientes, visto que assim lhe far· maior serviÁo do que pensa, e V. M. _lh'o agradecer· e satisfar· como merece_. E se o podÈr trazer a que escreva e espere resposta, _ganhar-se-ha, porventura, todo o tempo de que precisamos para saber o que se fez em Roma e se vai obrando em Portugal, para conforme a isso se temperar a practica do concerto_.ª ´Se, como receio, n„o quizesse dilaÁ„o alguma, mas ir logo tractar do negocio, poder-se-lhe-ha responder: 1.^o que Mattheus Vasquez se espanta de que tomasse a seu cargo propÙr cousas t„o contrarias a toda a boa raz„o; que em D. Antonio n„o È admiraÁ„o que o appetite de reinar, sentimento t„o poderoso, o n„o deixe vÍr as impossibilidades que propıe; porque, quanto ao primeiro ponto, o _que cede a V. M. È deixar-lhe o chamar-se rei e prover quatro officios, que depois de providos fiquem subordinados a elle_; quanto ao segundo n„o adverte que, se n„o conviesse ao bem commum (o que poderia ser por mil modos) que elle governasse aquelles reinos, com que consciencia lhe parece que poderia V. M. encommendar-lh'o por tempo limitado, _quanto mais por toda a sua vida_, sobre tudo tendo elle em Portugal tantas causas de odio e de affecto pelas pretensıes em que tem andado, de modo que nada haveria em que procedesse com animo desassombrado?--que considere quando se viu no mundo que um rei demittisse a outrem o _provimento temporal e espiritual d'officios e beneficios_?--que se lhe parece que em tudo se pÛde convir _para assegurar a posse de um reino_, que ainda quando isso dependesse da vontade de D. Antonio, n„o depende realmente sen„o da justiÁa e das forÁas de V. M.; que se desengane que para n„o fazer uma semjustiÁa a um particular, quanto mais a um reino inteiro, aventuraria V. M. n„o sÛ o direito que tem a Portugal, mas atÈ quantos reinos lhe restam; que, ainda quando assim n„o fosse, V. M. de nenhum modo podia resolver ponto algum que tocasse ao governo do reino atÈ · declaraÁ„o d'el-rei, quer favoravel, quer contraria; que n„o se lhe diz isto porque se desconfie de que n„o podessem dispÙr-se as cousas de modo que n„o houvesse inconveniente em dar-se-lhe o governo, mas sÛ porque entenda que as particularidades que sobre isso aponta n„o se podem propÙr nem ouvir: quanto mais que reinos deu Deus a V. M., e cargos taes provÍ de mar e terra, que n„o eram somenos para seu proprio irm„o: de maneira que o remedio de D. Antonio n„o est· sÛ no governo de Portugal.ª ´Que para que V. M. _o accrescente em fazenda, que È o segundo ponto_, sempre È tempo de mover practica e trazel-a a effeito; que encolha um pouco a primeira pretens„o e pense melhor n'ella, porque, vindo mais moderada, V. M. ha por bem que se tracte e resolva em seu proveito e muito · sua satisfaÁ„o. E, vindo ·s particularidades, se lhe peÁa tempo para mandar saber a Portugal _que fazendas s„o estas em que pede a recompensa_, e a sua qualidade e quantidade, e que se lhe offereÁa fazel-o com toda a brevidade e segredo. Se n„o convier n'isto, poder-se-lhe-h„o dar quatrocentos mil ducados pagos em Portugal dentro de quatro annos, contados desde o dia em que V. M. comeÁar a reinar, e mais cem mil que se h„o de dar quando jurarem a V. M. por principe: que isto lhe convir· mais que tudo, para o empregar do modo que quizer, e testal-o como lhe aprouver: que considere que perderia o tempo em querer provar que È legitimo; porque V. M. n„o _se funda sen„o em ser maior na edade, sem attender a paes, mas sim como se todos os sobrinhos d'el-rei fossem seus filhos, entre os quaes V. M. È o primogenito_. AtÈ aqui me parece que se pÛde chegar; e n'estes termos V. M. seja servido ordenar a Mattheus Vasquez me avise para Toledo do que se fÙr fazendo e do que tiver parecido a V. M. sobre o systema que proponho.ª A carta que vem apoz esta, por differente letra, sem assignatura e datada de 22 de janeiro de 1580, posto seja, segundo parece, relativa ·s intrigas tenebrosas d'aquelle tempo, n„o nos d· luz alguma, salvo no ultimo paragrapho, e no fim de uma nota · margem que parece da letra de D. Jo„o da Silva. De uma e d'outra cousa se vÍ que o agente de D. Antonio vacillava j· em servil-o, e que se tractava de o corromper ou de remuneral-o da corrupÁ„o. ´Costa[34] est· amofinadissimo de n„o ter resposta de D. Antonio, e quer retirar-se para sua casa sem o tornar a procurar. Disse-o a S. M. que quer saber o que parece a V. S.^a que se diga a Costa n'este caso.ª Diz a nota: ´Parece-me que se restitua o papel a Costa, e que se lhe diga por modo de conselho que espere o primeiro correio que vier de Portugal, o qual esperamos por horas, para que v· instruido do que l· _poder· fazer em beneficio destes negocios_, e do sr. D. Antonio, e se porfiar, deixal-o ir, _dando-lhe alguma cousa_.ª Pelo documento anterior a este ultimo apparece-nos em toda a sua hediondez o procedimento do prior do Crato, que se contentava de vÍr a patria sob o cutello do _demonio do Meio-dia_, denominaÁ„o que bem coube a Philippe II pelo seu genio suspeitoso, refalsado, feroz e tyrannico, com tanto que elle fosse o instrumento do despotismo extrangeiro. E foi este homem, por quem Diogo Botelho, o conde de Vimioso, D. Pedro da Cunha, em fim os raros que ainda conservavam puras as tradiÁıes generosas da edade-media, arriscaram ou perderam a fortuna, a liberdade ou a vida: foi este homem que o vulgo, entre o qual vivia ainda o amor da independencia nacional, acclamava rei erguendo-o sobre o pavez popular!--Governador de Portugal, recebidos os bens da corÙa que pedia, elle, descendente do Mestre d'Aviz, teria sido o primeiro em ir ajoelhar aos pÈs do despotico successor de de D. Jo„o I de Castella. Os documentos que se seguem apresentam-nos alguns dos negros caracteres d'aquelles cuja compra, na grande feira de vileza e deslealdade em que Portugal se convertera, foi uma boa veniaga para o manhoso comprador. Ahi veremos tambem o que j· dissemos--que n„o era um ou outro o prevertido, mas sim que a dissoluÁ„o politica se tinha tornado profunda e geral. J· dissemos que os agentes ostensivos de Philippe II em Portugal, durante o curto periodo do reinado do cardeal D. Henrique e da regencia dos governadores, foram D. Christov„o de Moura e o duque de Ossuna, a que se haviam ajunctado, tambem com um caracter official, tres jurisconsultos--Rodrigo Vasques, Molina, e Guardiola. Todas estas demonstraÁıes publicas da pretens„o do rei castelhano, e muitas das negociaÁıes secretas, corriam por intervenÁ„o dos cinco; outros individuos, porÈm, que se correspondiam directamente com a cÙrte de Madrid trabalhavam em silencio, mas porventura ainda mais efficazmente, em mover os animos, e em aplanar as difficuldades materiaes que embaraÁavam o bom exito da empreza. Uma parte d'esta correspondencia existe ainda, se n„o no original, ao menos n'uma especie de resumos, feitos talvez pelos secretarios de estado, a quem era dirigida, para serem apresentados a Philippe II, cujas resoluÁıes est„o postas · margem pela sua propria letra, ora seguidamente, ora ao lado do extracto respectivo de cada um dos paragraphos. S„o estes extractos e outros os que ora seguem. O primeiro È de uma carta de um certo Pedro Rol de Lacerda datada de 15 de julho de 1579. Diz assim: ´Recebeu a 9 d'este a de S. M. em que lhe mandava que fosse para Valencia[35].--Que logo o cumprira.ª ´Que tivesse boa correspondencia com os portuguezes para os persuadir na fÛrma que se lhe ordena.--Que alguns e atÈ muitos _conhecem o que se lhes diz; mas n„o ousam declarar-se atÈ que seja tempo_.ª ´Lembra _a carta de crenÁa_ de S. M. para poder encaminhar melhor este negocio, e da qual far· uso para com aquelles que lhe parecer, _fazendo-lhes oferecimentos da parte de S. M._; e affirma que isto seria de _muito effeito_:ª ´Os que entendem o que se lhes ponderou ·cerca do que arriscam e podem perder, temem que S. M. os metta em apertos. Elle tem procurado desenganal-os, dizendo-lhes que podem tractar dos meios (?) offerecendo-se-lhes para medianeiro; mas respondem que _n„o se atrevem por ora_.ª O resto do extracto n„o offerece cousa de importancia; por isso o omittimos. A nota de Philippe II, escripta no verso do papel, diz: ´Que prosiga. Sabei do.... se lhe foi enviada carta de crenÁa, e se n„o que se lhe envie como aos outros: que lhes assegure que n„o se apertar· com elles, nem haver· novidade a seu respeito. Avisai o conde.... que, se n„o responderam, respondam; digo a dom.... para que se envie.ª O extracto immediato È de uma carta datada de Almeirim a 27 de janeiro de 1580, e escripta por AndrÈ Gaspar, corso, agente secreto, segundo parece, de Castella. Contem o seguinte: ´Que S. A.[36] esteve tres dias mui doente, e que pensavam n„o escapasse, e que n'aquelle dia melhor·ra e comia um pouco mais:ª ´Que apesar da gravidade da doenÁa vieram no dia 24 os cinco primeiros bancos[37] dos procuradores de cÙrtes, e se lhes mostrou o que o braÁo ecclesiastico e militar (nobreza) tinham resolvido. Pedindo-lhes que fizessem o mesmo, replicaram que se ajunctariam e responderiam:ª ´Que depois de se haverem junctado resolveram que lhes tocava a eleiÁ„o, e que declarasse S. A. por sentenÁa de letrados este ponto, pois lhes havia acceitado a demanda, accrescentando que Deus dÈsse larga vida a S. A.: que depois dos seus dias elles elegeriam rei; porÈm que, se agora lhes declarasse successor portuguez, o acceitariam; mas sendo S. M. (Philippe II), em tal n„o queriam ouvir falar, _e antes soffreriam a morte_:ª ´Que posto S. A. estivesse t„o infermo lhes ouviu _pacientemente_ esta resposta no dia 25, e lhes respondeu que dentro de dois dias sentenciaria sobre o ponto da eleiÁ„o, e assim os despediu:ª ´Que depois mandou chamar os do seu conselho e letrados, que assentaram n„o tocar aos procuradores a eleiÁ„o, e que se esperava a sentenÁa sobre este artigo no dia seguinte:ª ´Que n'aquelle mesmo dia enviara S. A. o bispo Pinheiro com um recado aos procuradores, aspero, segundo dizem, o que saberia quando o bispo voltasse:ª ´Que, vivendo S. A. oito dias, espera que amansem; e quando n„o queiram, como diz _aquelle amigo_, tem S. A. determinado levar o negocio ao cabo:ª ´Que o _amigo_ faz mui bons officios com S. A., e elle solicita esses officios, apertando-o com os inconvenientes que poderiam sobrevir:ª ´_Que os fidalgos e prelados est„o mui conformes_ com a vontade de S. A., e que tudo depende da sua vida:ª ´Que D. Antonio È que traz alterados os procuradores por intervenÁ„o de frades, fazendo todos os maus officios que podem contra S. M.:ª ´Que com aquelle seu amigo francez, que est· por parte do seu rei solicitando os procuradores e D. Antonio, procurou falar, e responder-lhe que D. Antonio lhe tinha dicto que se a sentenÁa se dÈsse a favor de S. M. _elle seria o primeiro a vir beijar-lhe a m„o como a seu rei_, e quando n„o, nada queria fazer:ª ´Que soube do francez que o seu rei se via muito embaraÁado com os lutheranos, e que n„o queria que os portuguezes confiassem muito no soccorro d'elle:ª ´Que S. A. manda hoje o meirinho-mÛr[38] a Lisboa para socegar a gente do povo e ter conta na cidade, e vai com mui bom animo e vontade.ª (´N„o ia a isso, segundo me escrevem, mas sim a prevenir a armada que ha de ir para a India, como vedor da fazenda, que È agora, o que vem a ser como contador-mÛr. E teem n'isto das armadas melhor fÛrma que c·.ª--_Nota de Philippe II, · margem_.) ´Que, despedindo-se de S. A. (o meirinho-mÛr), lhe disse que sentenceasse por S. M., _visto haver-lhe dicto que o direito era seu_, e que se apressasse em dar o seu a seu dono, e n„o deixasse o reino em perdiÁ„o:ª ´Que S. A. lhe respondeu que em breve sentenciaria.ª ´Que a isto lhe replicou o meirinho-mÛr que dÈsse a sentenÁa e n„o curasse de tractar de concertos com os procuradores, os quaes depois se poderiam fazer com S. M.; ao que lhe tornou que d'um modo ou d'outro n„o tardaria a dar a sentenÁa.ª ´Que o meirinho-mÛr faz novas instancias sobre a conveniencia de S. M. se approximar das fronteiras d'aquelle reino.ª ´Que S. A. n„o est· bem com o duque de BraganÁa, _nem o pÛde ver, depois que n„o quiz fazer o que lhe mandou propÙr por Paulo Affonso, e ainda mais depois que lhe disseram que anda em ajustes com D. Antonio_.ª ´Louva o bom proceder e officios de D. Christov„o de Moura, e diz que elle por sua parte n„o descanÁar·. ´Espera que ainda que os procuradores bravateem n„o se poder„o defender, porque n„o tÍem dinheiro, nem muniÁıes, nem armas, nem gente de vulto; nem pensam que S. M. haja de se mover d'aqui.ª[39] ´Entende que em l· sabendo que S. M. se encaminha para aquelle reino se aplacar„o.ª Os extractos immediatos aos que anteriormente public·mos s„o de uma carta, datada de Almeirim a 22 de marÁo de 1580 e escripta pelo licenciado Medellin, que d'esta carta e d'outra sua se vÍ ter sido um dos mais activos agentes da usurpaÁ„o castelhana. … um dos documentos importantes, pelas materias de que tracta e notas que o acompanham. O seu conteudo È o seguinte: ´Recebeu as cartas que se lhe escreveram.ª ´Representa haver feito l· todos os bons officios que pÙde, e que aos ministros de S. M. parece que elles tÍem aproveitado.ª ´Que Miguel Telles, alcaide de Marv„o, ainda n„o partiu, e que o acha duro de condiÁ„o, ainda que o escutou placidamente, e que espera reduzil-o, posto que lhe affirmasse que a qualquer outro n„o soffreria o que lhe elle disse.ª ´Que Manuel Alvarez, homem nobre e rico, que È feitor do irm„o do alcaide, e todo d'elles, e que vive n'aquella praÁa, levou elle Medellin a casa de Rodrigo Vasquez; que este se offereceu para servir devÈras a S. M. tractando em Marv„o com todas as cautelas com Miguel Telles para o pÙr em bom caminho.ª ´Que as cartas que S. M. mandou escrever aos Tres-Estados foram bem recebidas, e fizeram muito effeito, junctamente com o discurso que Rodrigo Vasquez lhes fez.ª ´Diz que houve descuido em n„o falar aos procuradores antes, e principalmente quando el-rei morreu: que isto fÙra de grande importancia, como o advertiram Antonio Carrilho, procurador por Marv„o, e outros. Que elle o lembrou e assim se resolveu, mas que atÈ agora se n„o fez.ª ´Tambem diz que foi de parecer que os procuradores estivessem em Almeirim, para que todos os dias se podesse tractar com elles, e n„o ficassem entregues a D. Antonio; que os dictos procuradores se mostram sentidos do pouco caso que se fazia d'elles.ª ´Que os que tinhamos por nossa parte se ausentaram ha dias, logo que se lhes declarou que as cÙrtes estavam acabadas com a morte d'el-rei; e n„o havendo quem os entretivesse se foram os mais d'elles; ficando os parciaes de D. Antonio e do duque de BraganÁa, que por certo buscavam meios de os reter.ª ´Demonstra como este inconveniente se deu na realidade, porque j· se experimentou com os outros dois BraÁos que tÍem estado em Almeirim, os quaes se mostram mais partidarios de S. M. por os seus ministros os haverem tractado; e os procuradores, por n„o os haverem conversado, se tÍem portado mal causando alvorotos.ª ´Que os procuradores que estavam de bom animo lhe diziam que n„o ousavam falar, porque em falando iam · noite a suas casas queixar-se (os outros?) que n„o os deixavam em liberdade.ª ¡ margem dos paragraphos antecedentes acham-se tres notas, duas pela letra de Philippe II, e uma pela de D. Jo„o da Silva. Primeira, de Philippe II:--´Veja o conde tambem esta, que ha ahi cousas de consideraÁ„o.ª Segunda, de D. Jo„o da Silva:--´Esta È mui boa carta. O bispo de Portalegre que torne logo depois de Paschoa em todo o caso, e seja um dos que fiquem, se fÙr possivel. Aquelle Melchior do Amaral de que fala È homem de muito juizo e honra; e entendo que entre a gente de letras e nos tribunaes tem S. M. grande parcialidade. Depois vi e sube com gosto que o bairro de Portalegre n„o se movia.ª[40] Terceira, de Philippe II:--´Diz mui bem o conde, e assim escrevi em conformidade d'isso, e notai se ha alguns pontos de importancia a que convenha responder em particular, e um d'elles È este.ª Segue o extracto: ´Diz que falando-se individualmente aos portuguezes entendem a raz„o, e quanto lhes importa serem de S. M. Dilata-se em representar isto.ª ´Que n„o sabem dar outra resposta sen„o que se julgue a causa.ª ´Que Rodrigo Vasquez tem desempenhado bem a sua obrigaÁ„o no particular e nas junctas.ª ´Que o bispo de Portalegre quer ir na semana sancta · sua egreja, que est· d'alli 18 leguas; que lhe disse n„o fosse, e que lhe respondeu voltaria; e que elle tambem vai para Valencia, que fica a 4 leguas de Portalegre; que se lhe pÛde escrever para l·, se S. M. fÙr servido que faÁa tornar o bispo depois de Paschoa para onde estiver a cÙrte. Assegura a boa vontade do bispo, e estar ligado com elle. Que o licenciado Rodrigo Vasquez foi de parecer que se fosse por emquanto, e que elle partia para Lisboa.ª ´Que n„o deixa de aperceber-se aquella gente enviando armas aos povos.ª ´Adverte de parecer commum que qualquer dilaÁ„o que S. M. faÁa ser· muito damnosa, e que o ter j· antes entrado fÙra de grande importancia.ª ¡ margem, e acompanhando todos estes paragraphos, lÍ-se a seguinte nota de Philippe II: ´E assim dae noticia ao conde para que o resolva na juncta; e que convir· escrever aos fronteiros de l· que negocÍem com os logares visinhos que tÍem voto em cÙrtes, e procurem tÍl-os de sua parte, a elles e aos procuradores. Se o bispo se foi, convem que torne logo, e o Medellin tambem, e assim se lhes escreva, e que nos avise sempre do que houver, e que eu me approximarei de l· com brevidade e forÁas (?).ª Continuam os extractos: ´A este proposito diz que Melchior do Amaral, membro do conselho d'estado n'aquelle reino, que veio agora resgatado e que È um dos de maior qualidade, lhe disse que n„o sabia porque S. M. n„o entrava no reino.ª ´Que o dicto Melchior do Amaral È de parecer que Portugal ganha muito n'isso, e que, se porventura S. M. n„o remedeia a pobreza d'elle, n„o sabe quem ha de remedial-a.ª ´Que diz tambem que o reino deve tres milhıes, e que faltam trezentos mil cruzados para chegar a receita · despeza, o que elle sabe pelos livros da fazenda real.ª Aqui pÙz Philippe II esta nota: ´Mau È isso, visto como estamos por c·.ª Prosegue o extracto: ´Que as cÙrtes se reduzem a menor numero: os procuradores do povo a 30, os prelados a 3, e os fidalgos a 9.ª ´Que o bispo de Portalegre lhe disse que seria um d'elles, e que os mais da cÙrte se governam por elle.ª Extracto da carta que vem inclusa: ´Que o bispo lhe disse, depois de estar escripta a carta antecedente, que n„o escrevia a v. m.^{cÍ} por n„o saber da partida do correio; que o faria no outro, e que breve esperava vÍr-se com v. m.^{cÍ}ª ´Que ainda n„o era certa a sua ida a Portalegre, porque os governadores o n„o deixavam, e que o tinham emprazado para no dia seguinte se vÍr com elles ·s duas horas.ª ´Que na segunda-feira da juncta que se fez de todos os tres braÁos em Almeirim, quando D. Christov„o de Moura entrou para dar a carta de S. M. houve algum alvoroto, e o bispo de Portalegre se travou com Phebo Moniz, procurador por Lisboa, dizendo-lhe muitas palavras asperas, de modo que o Phebo se poz de joelhos diante d'elle, e chegaram muitos procuradores ao bispo dizendo-lhe se queria alguma cousa, e que o mesmo lhe foram depois dizer a sua casa.ª ´Que lhe disse que dÈsse parte d'isto, e que lhe parecia que se ajunctariam, como de novo, a cÙrtes os que faltavam de todos os tres braÁos. Que em todos os tres se propÙz que se dÈsse dinheiro para a defeza do reino, e que no dos bispos e nobreza se votou que tal se n„o fizesse, e que no do povo ha agora differenÁas sobre isto.ª ´Que tambem lhe disse que avisasse para que S. M. dÈsse ordem a escrever-se de c· para se diligenciar que _Martim GonÁalves da Camara n„o assistisse com os governadores_, visto n„o ter cargo que exercer; _porque era prejudicial_.ª ´Que tudo isto advertiu a Rodrigo Vasquez.ª Segue-se a copia de uma carta dirigida a Philippe II e datada d'Almeirim a 25 de marÁo de 1580, a qual, pela resposta d'el-rei, que se acha algumas folhas mais adiante, no seu original, se vÍ ser do duque de Ossuna. Transcrevel-a-hemos com a dicta resposta. ´Sacra Catholica Real Majestade.--Ainda que os tres despachos de V. M. com que de presente me acho, de 13, 14, e 20 do corrente, s„o em resposta de outros meus, contÍem alguns particulares a que responderei no primeiro correio que fÙr apoz este, o qual leva sÛ a relaÁ„o, que V. M. ordenou se lhe enviasse, do que nos pareceu se devia responder aos mensageiros que l· est„o, se bem que È necessario pÙl-o em melhor fÛrma, porque a occupaÁ„o das diligencias feitas esta semana n„o deram logar a emendar-se c·; e parecendo-me que esse inconveniente È pequeno, ao mesmo passo que seria mui grande o n„o chegar a tempo, tenho por melhor que v· como fica dicto, para que V. M. despache brevemente os mensageiros, os quaes bom ser· despedir na incerteza de tudo o que lhes foi incumbido, para acabarem de crer que n„o pÛde haver n'este negocio meio termo entre o caminho das graÁas (que V. M. lhes tem aberto) e o da forÁa, que de necessidade se deve seguir faltando est'outro.ª ´As cartas de V. M. para os Governadores e para os BraÁos d'este reino se entregaram com os memoriaes das graÁas e mercÍs que se lhes far„o se jurarem a V. M.. Tudo foi bem recebido, e do mesmo modo as dirigidas aos pretensores. Espero em Deus que havemos de tirar bom resultado, ainda que n„o bastam as demonstraÁıes presentes para o ter por certo; nem posso dar a V. M. conta miuda de tudo o que ·cerca d'isto se passou pela raz„o que j· disse.ª ´Grande contentamento mostram os bem intencionados da vinda da rainha N. Sr.^a a essa sancta casa, porque d'isso deduzem que V. M. melhor se poder· deter onde for preciso, do que se V. M. houvera ficado em Madrid. Guarde N. S., etc.ª Philippe II respondeu: ´Duque primo.--A rainha e eu cheg·mos aqui vespera de N. Sr.^a bons, graÁas a Deus. E porque desejava cartas vossas mais recentes que as de 12 do passado, folguei muito com as de 25, por saber o que teria resultado dos despachos que l· estavam, e saber o vosso voto e dos outros meus ministros pelo que toca ao acolhimento que se devia fazer aos mensageiros que d'ahi vem, e a resposta que se lhes poderia dar; e chegou a bom tempo, porque se achavam j· a quatro leguas d'aqui. Resolvi tractal-os do modo que vereis pelo memorial que vai incluso, parecendo-me que devia tomar aquelle caminho para que n„o nos fique por experimentar nenhuma das cousas que podem servir para chamar · raz„o os d'esse reino, e obrigal-os a que por sua parte faÁam o que devem, tirando-lhes todo o genero de achaque ou escusa, como parece teriam se n„o se lhes dÈsse n'isso satisfaÁ„o. E quando a sua dureza fosse tanta que nada bastasse, servir· ao menos para inteira justificaÁ„o do damno que lhes vier da guerra; cujos meios se v„o apromptando sem perda de tempo, antes se aproveita por tal modo que, se for mister, em poucos dias se poder· pÙr na fronteira o numero de gente que vereis da relaÁ„o que vos ha de mostrar D. Christov„o de Moura. Tenho tenÁ„o de ir mui breve para Merida ou Badajoz, motivo porque j· mandei arranjar aposentos n'aquellas duas cidades. Praza a Deus que as diligencias que l· se fizeram com os BraÁos, Governadores, e cidades do primeiro banco, tenham aproveitado tanto que de l· possa passar logo a esse reino, facil e pacificamente, o que muito desejaria assim acontecesse pelo que a elles proprios lhes convem. Do successo e da resoluÁ„o que tomarem espero j· desejoso a noticia.ª ´Tendo visto a carta do marquez de Villa Real, e a satisfaÁ„o que mostraes ter d'elle e dos de sua casa, lhe mandei escrever a que vai com esta para que lh'a deis ou envieis, assegurando-lhes que os hei de honrar e favorecer a todos; e n'esta substancia podereis dar o recado que vos parecer a D. Jorge de Noronha seu primo, porque, ainda que recebi a sua carta, pareceu que n„o era preciso responder-lhe eu, mas que fizesseis vÛs este officio, por ter elle o genio que descreveis, e c· se ficou entendendo.ª ´O mesmo, ou o que vos parecer, fareis com o bispo capell„o-mÛr[41] pelo que diz no bilhete que vos escreveu; que justo È agradecer-lhe a sua boa inclinaÁ„o.ª ´Conformando-me com o que advertis, tenho por mui necessario que com grande brevidade se ordene uma boa, breve, e substancial relaÁ„o de como me pertence justamente a success„o, e assim mandei que se pozesse no memorial; e a vÛs encarrego muito que tenhaes particular cuidado em que se faÁa e se me envie sem perda de tempo. De mais proveito fÙra ter sahido antes, porÈm mais vale tarde que nunca.ª ´Se (o que Deus nunca permitta) se houver de usar de forÁa, tambem ent„o se publicar· outro escripto que justifique a guerra; e j· c· mandei que se v· considerando o que deve conter, e bom ser· que l· se faÁa o mesmo para aproveitar o tempo, conferindo-se depois um com outro para se tomar a resoluÁ„o que parecer mais a proposito.ª Esta resposta È datada de Guadalupe no 1.^o de abril, assignada por Philippe II e referendada pelo secretario «ayas. Vem apoz ella por copia uma outra carta datada de Almeirim a 6 de abril, que pelo ironico e violento attribuiriamos de boa vontade a D. Christov„o de Moura, cuja ancia pelo dominio extrangeiro excedeu a de todos os homens corrompidos d'aquella triste epocha. O que parece evidente È n„o ser do duque d'Ossuna, porque n'ella se allude · carta que na mesma occasi„o _escrevia ao embaixador_. ´S. C. R. M.--Ainda que os embaixadores d'este reino parecem pessoas humildes[42], devem estar t„o longe de sel-o, como todos os mais portuguezes! Digo isto pela diligencia que mostraram em avisar os governadores do tractamento que julgaram V. M. lhes havia de dar, parecendo-lhes falta de cortezia n„o lhes tirar o barrete como È costume. Toma-se t„o mal c· tudo o que È de Castella que, apenas chegou o aviso de tamanha sem-raz„o, ajunctaram-se em conselho para responderem, e depois de Martim GonÁalves ter esbravejado, e de se haver aproveitado da occasi„o para encarecer quanto lhes importa dilatar o negocio, e outras cousas a seu proposito[43], resolveram escrever aos embaixadores que n„o se apresentassem a V. M. segunda vez, se da primeira os n„o tractasse conforme o estylo. Pareceu-nos conveniente, a troco de um correio, advertir d'isto a V. M.; e, ainda que eu tenho por bom que V. M. executasse o que d'antes estava assentado, pois a embaixada era tal, que n„o importava nada ouvil-a, ou que elles voltassem sem a dar, visto V. M. ter feito o mais, segundo me escreve que l· resolveram, e esses homens lhe beijaram a m„o, parece-me que, havendo passado por tanta cousa, n„o se deveria tropeÁar em dois dedos mais ou menos de barrete, muito mais havendo de dar isso occasi„o ao que de c· lhes escrevem, posto que esses offereÁam em tudo motivos para tractal-os de outra maneira. Bastante custar· j· a V. M. o que tarda em comeÁar a fazel-o assim, e a encurtar o fio da brandura de que esta gente se aproveita para o mal; e assim tÍem por chanÁa quanto se lhes diz fÛra d'isto, parecendo-lhes impossivel que chegue o tempo do rigor de vÈras, que cada dia merecem por novas culpas e desconcertos, parecendo-lhes que tudo est· nas m„os d'elles; e atÈ que vejam signaes para sahir d'este engano sempre ficar„o n'elle, se nosso Senhor n„o faz algum milagre, de que bem precisa a obstinaÁ„o d'este paiz. E porque o embaixador deve escrever mais extensamente, e ·manhan parte outro correio, n„o tenho mais que dizer sen„o que nosso Senhor guarde, etc.ª Entre esta carta, digna de um intrigante feroz, e as antecedentes est„o os extractos de duas cartas de um agente portuguez que de novo vem entrar em scena. Este, que escreve ambas ellas de Almeirim no mesmo dia 24 de marÁo, È D. Jorge de Noronha, neto do segundo marquez de Villa-Real e primo do primeiro duque d'este titulo. O caracter de vileza, que reina na linguagem d'estes dois documentos, È verdadeiramente curioso. Eis oqui o primeiro: ´Recebeu a que S. M. lhe mandou escrever a 17 do corrente, da Aceca:ª ´Approva a vinda da rainha n.s. com S. M. pelo especial prazer e honra que com isso se faz ·quelles reinos:ª ´Louva tambem a vinda de S. M. pelo amor e tenÁıes christans com que procede em tudo:ª ´Mostra grande sentimento das cartas que dizem escreveu Manuel de Mello para aquelle reino:ª ´Que o bispo de Portalegre diz que o arcebispo d'Evora, tio de Manuel de Mello, lhe contou que seu sobrinho lhe escrevera que n„o havia a gente nem os apercebimentos de guerra que l· soavam; que acham o duque d'Alva sÛ; e que estivesse seguro de que _se houvesse uni„o no reino n„o havia c· poderio bastante contra elle_.ª ´Julga que n„o se deve fazer caso do que diz Manuel de Mello, porque est· cego; que o reino de Portugal È de S. M.; e que pÛde ir quando quizer, porque atÈ as creanÁas cantam que todo o seu remedio est· em S. M.ª ´Que, afÛra isso, n„o ha l· forÁas para se defenderem sÛ do duque d'Alva, ainda que viesse mais sÛ do que affirma Manuel de Mello; nem se fala em defeza, nem ha nenhuns fronteiros; e que elle logo que alli chegou dissera que largava o direito que tinha · frontaria que estava a seu cargo, para mais claramente mostrar sua intenÁ„o.ª ´Que muitas outras cousas que passou as deixa por serem largas, remettendo-se ao duque de Ossuna e mais embaixadores a quem as contou.ª ´Que se deram as cartas e recados de S. M. aos governadores e BraÁos, e que se fizeram mui boas diligencias com todos, cujo proveito vai apparecendo, _porque j· os mais d'elles est„o rendidos, convertidos, e feitos christ„os, e que se baptizaram na agua das listas de mercÍs que S. M. fez a todos_, as quaes s„o mal merecidas, porque ainda n„o est„o os caminhos de Portugal e Guadalupe cobertos de portuguezes. Pede licenÁa para ser elle o primeiro que o faÁa, pois talvez muitos o sigam, sendo t„o natural nos portuguezes a enveja.ª ´Que o marquez n„o escreve por se n„o achar alli; mas que vir· passada a paschoa, o que ser· conveniente para a boa conclus„o dos negocios.ª A linguagem d'este reptil parece ter suscitado, talvez pelo excesso da baixeza, as desconfianÁas do suspeitoso Philippe, porque ao lado do extracto pÙz a seguinte nota, que o indica: ´Fica-me c· a carta, porque creio que ser· mister envial-a ao duque ou a D. Christov„o pela raz„o que vos disse, e pelo que ha a respeito de quem a escreve.ª O segundo extracto contem o seguinte: ´Representa quanto elle e toda a casa do marquez de Villa-Real tem desejado e procurado, desde a morte d'el-rei D. Sebasti„o, que se entregassem aquelles reinos a S. M., a quem de justiÁa e raz„o e por pura necessidade entenderam desde logo pertenciam, e quanto isso era conveniente, o que esperam se far· com brevidade.ª ´Encarece o que tem trabalhado, e quasi brigado para reduzir a gente d'aquelle reino, que estava mui tenaz, e que procederam com este afferro por verem o zÍlo christianissimo de S. M.ª ´Pede que se lembre isto a S. M. e o animo e desejo com que fica o marquez e toda a sua familia, e quanto h„o de ser sempre addictos ao seu real serviÁo.ª Este preambulo È destinado a captar a benevolencia do secretario d'estado castelhano, a fim de se obter por sua intervenÁ„o um bom casamento em Castella para uma filha do marquez de Villa Real. Omittimos esses paragraphos, que sÛ accidentalmente e em cousas de pouca valia respeitam aos negocios publicos. Prosegue depois ·cerca d'estes: ´Envia tambem um papel e uma carta dos procuradores dos povos, em que se vÍ que desejam e querem paz, e que j· percebem a mercÍ que lhes faz nosso Senhor em lhes dar por seu rei a S. M. ´Que mostrou estes papeis a D. Jo„o Mascarenhas, com quem communica tudo o que se offerece, por ser um dos governadores e dos homens que mais desejam o serviÁo de S. M.ª ´Que D. Jo„o o mostrou aos outros governadores, e lhe affirmou que importaria muito que elles o vissem, e que diligenciasse obter lista dos nomes dos mais que podesse achar do mesmo parecer em Santarem. Que esperava fazer alistar a maior parte d'elles.ª ´Que muitos dos procuradores de bom e muito bom animo no negocio se foram; porque os melhores, j· enfadados de n„o estarem todos d'accordo, e de verem os de Lisboa, que era a cabeÁa, mal inclinados, comeÁaram a partir.ª ´Que Manuel de Souza Pacheco, um dos procuradores de Lisboa, j· n„o È companheiro de Phebo-Moniz, porque se fez christ„o, e deu palavra ao bispo e ao arcebispo d'Evora de sel-o sempre, e _que todos se v„o baptizando_.ª ´No papel que envia com a carta (a qual È datada de Santarem a 15 de marÁo, e escripta por um dos procuradores que se chama Rodrigo d'Abreu) o nome que est· riscado È o d'elle D. Jorge, e diz que assim se deu a ler aos governadores.ª ´N'elle representam aos dictos governadores o desejo que tem a maior parte dos procuradores da paz e quietaÁ„o em conformidade do que o governo deseja, tudo pelo bem da christandade.ª ´Ahi dizem que È um engano pensar que para tractar dos concertos convem que sejam menos, quando todos querem paz e concordia, porque j· cahiram na raz„o e vÍem que È necess·rio.ª ´O meio que apontam para isto se poder alcanÁar È chamal-os dois a dois, pois chamando-os junctos dizem que n„o, por n„o haver quem queira comeÁar em publico.ª ´D. Jorge diz que testifica isto, porque fallou com os mais d'elles. Recommenda o segredo e a brevidade da execuÁ„o. Que depois de se conseguir o resultado dir· quem fez a proposta para ser agraciado. Adverte que _atÈ das terras escrevem cartas avulsas_ em que lhes significam o mesmo, mas que n„o ousam falar, tanto pelas agitaÁıes que andam, como pelo que diz o vulgo. Pede que se lhe restitua este papel porque È de letra conhecida.ª Neste interessante documento pÙz Philippe II uma pequena nota:--´Veja esta o conde de Portalegre, e a resposta que ser· conveniente lhe deis.ª--D. Jo„o da Silva escreveu por baixo--´S„o mui bons estes de Villa-Real: Responda-se a D. Jorge com muita approvaÁ„o do que vai fazendo, pedindo-lhe continue, e restituam-se estes papeis como È de raz„o.ª--O resto da nota do conde de Portalegre È relativo ao casamento do marquez, por isso o omittimos aqui. APONTAMENTOS PARA A HISTORIA DOS BENS DA COROA E DOS FORAES 1843-1844 APONTAMENTOS PARA A HISTORIA DOS BENS DA COROA E DOS FORAES Ha dois annos[44] que no V volume do _Panorama_ appareceram tres artigos sobre a historia dos foraes em Portugal: parecer·, pois, escusada a associaÁ„o que, segundo a epigraphe que acima escrevemos, vamos fazer no presente trabalho d'estas duas especies historicas, com o fim de darmos aos leitores algumas idÈas mais averiguadas sobre materia, que as circumstancias actuaes tornam do maior interesse para uma grandissima parte dos nossos concidad„os. Por duas razıes, todavia, lig·mos essas entidades: primeira, porque o intento com que redigimos os presentes artigos n„o nos consente o separal-as: segunda, porque o que n'este jornal se escreveu ha dois annos È atÈ certo ponto inexacto; inexacto n„o tanto na veracidade dos factos, como na sua apreciaÁ„o ou valor historico. VÍ-se que o illustrado redactor d'aquelle escripto seguiu principalmente as doutrinas do allem„o SchÈffer, auctor da recentissima _Historia de Portugal_. Era o guia mais seguro que podia escolher; mas SchÈffer applicou o seu grande engenho historico aos materiaes que lhe offereciam os nossos melhores livros, e sobre este objecto, forÁa È dizel-o, o melhor que possuimos ainda n„o È bom. Assim o extrangeiro errou porque os naturaes, a quem o achar a verdade era mais facil, erraram primeiro; e elle n„o podia recorrer · principal e quasi unica fonte legitima da historia--os archivos do paiz. Ainda, portanto, que n„o nos fosse necessario para o objecto que levamos em mira o tocar de novo na materia dos foraes, o fazel-o n„o fÙra inutil, ao menos como rectificaÁ„o ao que n'aquelle escripto nos parece menos bem avaliado. Dissemos _o objecto que levamos em mira_: de feito, ha no presente trabalho uma intenÁ„o grave. Os acontecimentos politicos de Portugal trouxeram a celebre lei chamada, impropriamente talvez, dos foraes. Esta lei alevantou interesses contra interesses: citamos um facto, n„o o avaliamos, porque nos queremos e havemos de conservar dentro dos limites d'este jornal--a stricta abnegaÁ„o de politica. A lucta de interesses produziu as disputas; mas, versando estas sobre materia imperfeitamente conhecida, as opiniıes ·cerca d'ella tÍem sido exaggeradas e muitas vezes falsissimas em todos os sentidos: em conversaÁıes e, o que mais È, na imprensa temos ouvido e lido as cousas mais absurdas a este respeito; e havemo'-nos convencido de que bem poucos vÍem a quest„o · sua verdadeira luz. … por isso que entendemos seria um bom serviÁo ao paiz recordar-lhe essa parte da nossa historia economica, deixando aos outros tirar as illaÁıes do passado para o presente e futuro; mas tiral-as de premissas verdadeiras, e n„o deduzil-as de supposiÁıes gratuitas que nunca existiram, ou existiram de um modo mui diverso d'aquelle que geralmente se crÍ. Se as paixıes politicas ou mal entendidos interesses fizerem com que saiam baldadas as nossas diligencias para generalisar alguma luz sobre uma quest„o que importa · justiÁa, · moral, e ainda · utilidade do paiz, fique o que vamos escrever ao menos como incentivo para a curiosidade d'aquelles a quem resta o amor das velhas cousas da patria, amor cuja falta È indicio certo da morte da nacionalidade, e por consequencia do estado decadente e da ultima ruina de qualquer povo. I A monarchia portugueza nasceu, como todas as outras do sul da Europa, no meio das luctas da edade-media, posto que em epocha mais recente que o commum d'ellas. Tronco separado da sociedade hespanhola, os factos que influiram na organisaÁ„o dos differentes estados, que no correr dos seculos vieram a constituir esta, influiram tambem mais ou menos na sua organisaÁ„o. Assim, os phenomenos peculiares, que distinguem a indole dos demais estados da Peninsula na sua infancia, distinguem egualmente o nosso Portugal. Cumpre examinar d'estes os que actuaram na quest„o de que nos occupamos, para podermos entrar n'ella com clareza assentando os seus fundamentos solidos. O estado da propriedade È o mais importante, ou, antes, o que resume todos. Bem curto periodo tinha decorrido desde que o territorio portuguez se libert·ra do dominio arabe, quando nasceu a nossa monarchia. Os reis christ„os, successores de Pelaio, tinham gradualmente reconquistado para a Europa e para o evangelho uma parte d'elle: o conde Henrique havia proseguido na mesma empreza com feliz successo, ao passo que lanÁava os alicerces de um estado independente: seu filho continuou a obra dos reis de Le„o e do valoroso conde, e conjunctamente estabelecen essa independencia, que no governo de Henrique fÙra apenas uma tentativa: passado um seculo Portugal tinha alcanÁado quasi sem differenÁa alguma os limites actuaes. O meio por que se chegou a este resultado foi unicamente um--a conquista--ou, por outra, a substituiÁ„o do dominio christ„o ao dominio mussulmano. Mas isto aconteceu n'uma epocha em que a conquista n„o importava a mesma idÈa que significara sete ou oito seculos antes, quando as raÁas do norte, invadindo o imperio romano, repartiam entre si nos campos de batalha os membros despedaÁados d'aquelle desmesurado colosso. Ent„o a tribu selvagem da Germania ou da Scandinavia vinha apossar-se dos campos das provincias romanas: o caracter da conquista feita pelos homens do norte era a occupaÁ„o da propriedade individual dos vencidos pelos vencedores, ou ao menos a divis„o d'ella. Os barbaros n„o se contentavam de direitos fiscaes na terra: queriam a posse d'ella. Foi d'este modo que os burgundios nas Gallias, e os visigodos na Septimania e na Hespanha tomaram para si dois terÁos de cada propriedade, os herulos na Italia um terÁo, e assim por deante. Os arabes, porÈm, vÍ-se claramente haverem seguido um systema diverso; porque eram gentes mais ou menos civilisadas, e comprehendiam como uma naÁ„o pÛde subjugar e encorporar em si outra sem expropriar o dominio individual da terra. Aos godo-romanos que sujeitavam · ponta da lanÁa impunham o tributo de um quinto sobre o rendimento da terra; aos que se lhes submettiam voluntariamente impunham um decimo: a isto se ajunctavam alguns outros tributos, como certas porÁıes de fructos, medidas de vinagre, de azeite, etc.; mas aquellas eram as contribuiÁıes caracteristicas do facto da conquista. De resto, os vencedores, deixando os vencidos na mesma situaÁ„o em que os tinham encontrado, respeitaram a um tempo a sua crenÁa, a sua propriedade, e, o que È mais, a essencia e a fÛrma das suas instituiÁıes civis. Os arabes traziam, tambem, como as naÁıes septentrionaes, novos povoadores para as provincias conquistadas; mas as familias africanas n„o vinham tomar para si uma parte do campo ou da granja cultivada pelo godo-romano: n'isto estava a differenÁa da conquista arabe. Repartiam-se-lhes as terras cujos donos tinham perecido n'uma lucta longa e sanguinolenta, ou se haviam acolhido ·s serranias das Asturias; povoavam-se logares ermos; fundavam-se novas povoaÁıes, e o agricultor arabe brevemente convertia os maninhos dos arredores em prados, ferregiaes, e vergeis: assim, o lavrador e proprietario christ„o, em vez de ser espoliado, recebia ensino do seu visinho agareno mais instruido e industrioso que elle. As rapinas, oppressıes, e violencias practicadas pelas auctoridades ou pelos particulares eram o resultado das continuas guerras e dissensıes entre os proprios conquistadores, n„o da falta das garantias legaes da propriedade. Por grosseiros e rudes que fossem os restauradores do predominio christ„o na Peninsula; por atrozes que fossem as represalias exercitadas por elles contra os mouros; uma grande multid„o de documentos d'essa epocha nos prova que, em geral, a propriedade dos colonos africanos, arabes, palestinos, egypcios, que tinham vindo estabelecer-se na Peninsula, foi no essencial respeitada, posto que opprimida pela variedade dos impostos feudaes, que n„o eram tambem muito suaves para os proprietarios christ„os. Como succedera no tempo da entrada dos arabes, na restauraÁ„o os combates, as revoltas, e todos os actos de resistencia · nova ordem de cousas, ou os crimes politicos (os crimes politicos s„o mui velhos), restituiram por meio do fisco uma grande porÁ„o do solo aos netos d'aquelles que o haviam perdido. … este o facto que importa muito para a historia do patrimonio publico, ou bens da corÙa, e atÈ certo ponto para a historia da origem de grande parte dos municipios e das suas cartas de communa ou foraes. Portugal constituiu-se em um territorio onde esses factos de successivas conquistas se haviam consummado: apenas uma parte do sul do reino foi subtrahida ao imperio dos mussulmanos depois do nosso primeiro rei: nos fins do seculo XIII a restauraÁ„o christan estava completa, sem que j·mais houvesse perdido inteiramente o seu espirito de respeito · propriedade individual. Os que disseram que todo o dominio da terra nascera entre nÛs da conquista parece terem ignorado ou esquecido os successos que precederam e acompanharam esse facto, e o modo por que, atravez de todas as invasıes desde as dos barbaros, uma notavel porÁ„o do territorio pertenceu sempre ao dominio pleno de particulares, ou, para nos servirmos d'uma express„o tomada dos paizes de feudalismo, foi sempre allodial. De feito, n'esses primeiros tempos da monarchia havia em Portugal tres especies de proprietarios de terras anteriores a ella: os musarabes, ou descendentes dos antigos godos, que se haviam sujeitado aos arabes; os netos dos colonos africanos e asiaticos; e os filhos e successores dos vassallos dos reis de Oviedo e Le„o, que, por compras, escambos, doaÁıes, arroteamentos, cartas de povoaÁ„o, ou outro qualquer titulo, e principalmente como conquistadores, as tinham obtido, com dominio pleno, sem caracter nenhum de _beneficio_ nem de _feudo_. Os nossos primeiros reis deviam respeitar a existencia d'estas diversas propriedades; e innumeraveis exemplos de contractos celebrados sobre tal genero de bens provam evidentemente que assim o practicaram, sendo o que se possa citar em contrario apenas excepÁıes e violencias nascidas da barbaridade e incerteza dos tempos. Que restava, pois, para constituir a propriedade da corÙa, ou, com mais rigorosa express„o, os bens do estado? Exactamente as terras que se achavam n'uma situaÁ„o analoga · d'aquellas que os arabes aproveitavam para estabelecer colonias dos seus correligionarios, isto È, as dos mouros, agora vencidos, que os combates continuos, e a despovoaÁ„o, resultado das guerras d'exterminio, deviam deixar sem donos: alÈm d'estas, as terras fiscaes dos sarracenos onde existissem; as que por crimes ou por outro qualquer motivo analogo podiam perder para o fisco os particulares; e ultimamente as que fazia cahir no dominio do Estado o direito de maninhadego ou maneria. O maninhadego ou maneria era o direito pelo qual a corÙa, nas terras que n„o pertenciam a senhorio particular, herdava os bens dos villıes (_vilani_) que morriam sem filhos. Este direito, que bem tarde se extinguiu inteiramente, foi confundido pelos nossos escriptores, como de menos monta, com outros vexames que opprimiam n'essa epocha o terceiro estado ou o povo. Todavia elle teve forÁosamente consequencias sociaes muito mais graves que outros, que mereceram a especial attenÁ„o dos antiquarios, pouco felizes geralmente em assignalar a verdadeira relaÁ„o e influencia de cada instituiÁ„o, costume, ou lei, no modo d'existir do corpo politico. N'uma epocha em que o exercicio da guerra era a primeira occupaÁ„o dos homens, as batalhas, as invasıes, as correrias diarias, os recontros, mais mortiferos que hoje pela maior frequencia dos combates corpo a corpo, a vida dos captivos menos respeitada, as escaladas das povoaÁıes, mais sanguinolentas pela ferocidade dos costumes augmentada pelos odios religiosos; todas essas cousas deviam trazer a morte de grande numero de mancebos antes de terem successores, ou deixando sem elles seus paes, e alÈm d'isso causar a anniquilaÁ„o completa de familias inteiras. A isto accrescentem-se as epidemias e contagios, e imagine-se quantas propriedades territoriaes deviam vir ao dominio da corÙa pela maneria; por esse direito que ia, n„o tomar em parte o producto do trabalho, pelos impostos, mas absorver os bens de raiz no momento da transmiss„o. A exempÁ„o do maninhadego n„o È um dos privilegios mais triviaes nas cartas de povoaÁ„o ou foraes, e, sendo tal direito extincto de todo sÛ no reinado de D. Jo„o I, necessariamente serviu muito para augmentar o patrimonio da naÁ„o. O cumulo formado por todos estes elementos diversos constituia, por assim dizer, a parte fixa dos haveres do Estado: os tributos dos municipios constituiam o seu rendimento incerto quasi com os mesmos caracteres das contribuiÁıes modernas, salvo o serem, n„o geraes, mas locaes. As terras da corÙa produziam para a fazenda publica como outra qualquer propriedade particular para seu dono, ao passo que a renda dos tributos impostos por foral, consistindo, n„o sÛ nas penas dos crimes, quasi sempre pecuniarias ainda nos mais graves, mas tambem nos direitos tirados principalmente do commercio interno e da industria, na mais lata significaÁ„o d'esta palavra, dependia da maior ou menor extens„o da criminalidade, em que deviam influir poderosamente mil causas moraes; do movimento commercial; e, finalmente, das variaÁıes das diversas industrias, a mais fixa das quaes era a agricola. Assim, nos primeiros tempos da monarchia o Estado subsistia como um proprietario, ou como uma familia particular, pelas rendas dos seus bens, e ao mesmo tempo como uma associaÁ„o, pelas contribuiÁıes dos seus membros, sendo para este fim considerados sÛ como taes os cidad„os ou visinhos dos municipios ou concelhos. Uma das circumstancias que nunca deve esquecer-nos, se quizermos desapaixonadamente avaliar a quest„o que nos occupa, È este caracter exclusivo das contribuiÁıes. No estado actual dos conhecimentos historicos, È incontestavel que a classe nobre e o alto clero[45] estavam exemptos d'ellas: os territorios coutados e honrados, cujo principal caracter era n„o _fazer foro algum a el-rei_, n„o existiam sÛ por diplomas de privilegio, existiam tambem por outros titulos, e atÈ por _linhagem_, isto È, por pertencerem a uma familia nobre, direito que chegou a produzir o _amadigo_, express„o que indicava o privilegio de se estender a qualidade de honradas ·s propriedades onde se creavam os filhos de fidalgos, e ainda, segundo parece de alguns documentos, os seus c„es de caÁa. Os bens das cathedraes e mosteiros eram egualmente coutados, e por consequencia exemptos dos tributos para o rei, que todos, como dissemos, recahiam sobre os concelhos, e que se achavam consignados nos foraes. … das feiÁıes caracteristicas d'estes que nos cumpre agora fallar. II Quem correr os livros dos nossos escriptores que tractaram dos comeÁos da monarchia achar· em quasi todos uma definiÁ„o ou antes descripÁ„o da cousa que, segundo elles, se ha-de entender pela palavra _Foral_. Estas definiÁıes, bem que ·s vezes se approximem um pouco da verdade, s„o sempre mais ou menos incompletas, demasiadas, ou falsas; porque realmente nunca se attendeu bem aos caracteres distinctivos d'esta importantissima especie de diplomas, de que felizmente nos restam muitos centenares, e que s„o a fonte mais rica, ou antes quasi a unica, da historia municipal e por consequencia da historia da classe a que, no simulacro de representaÁ„o nacional dos tempos do absolutismo, se chamou _braÁo do povo_, e a que os francezes chamavam _terceiro estado_. O primeiro erro que tem havido, quanto a nÛs, no definir os foraes, È o pretender incluil-os todos em uma unica formula. D'aqui nasceu confundirem-se as diversas especies de cartas ou diplomas a que antes dos fins do seculo XIII se chamou _forum_, _foros_, e depois _foral_. Escrevendo em epochas em que o valor das palavras estava j· fixado, os que tractaram de similhante objecto esqueceram-se de que no seculo XII ou XIII, em que as idÈas eram limitadas e confusas, e muito mais as linguas, que ent„o passavam por um periodo de transformaÁ„o; esqueceram-se, dizemos, de que o mais difficultoso mister de quem estuda as instituiÁıes e os factos d'esses seculos È o n„o se deixar enganar por expressıes variaveis de dois modos: ou porque uma denominaÁ„o se applicava a differentes objectos, ou porque um objecto tinha differentes denominaÁıes. As palavras _forum_, _foros_, _bonos foros_, _karta firmitudinis et stabilitatis_, _foral_, estavam justamente no caso da primeira hypothese. Outro erro, em nosso entender, tem havido no apreciar os foraes, e È o imaginar que os redactores e promulgadores d'esses diplomas tinham idÈas precisas e completas sobre a natureza da sociedade, e que distinguiam rigorosamente o direito publico do civil, o systema de administraÁ„o e fazenda do exercicio do poder judicial, o ecclesiastico do militar, os diversos modos de possuir, etc. Nada d'isso, porÈm, acontecia: as instituiÁıes, como as idÈas, fluctuavam indecisas, luctavam, compenetravam-se. Quem intentasse dizer--´tal facto social era d'este modo em todos os logares, em todas as circumstanciasª--nunca poderia estabelecer um sÛ ponto da historia da sociedade; porque nem um sÛ deixaria de lhe offerecer um certo numero de excepÁıes, e se pretendesse concilial-as, forÁosamente apresentaria a quest„o a uma luz falsa e contradictoria. Atrever-se a desprezar È talvez a primeira qualidade de quem estuda o passado: tanto o excesso como a falta d'ella podem produzir consequencias graves na apreciaÁ„o das cousas d'esses tempos. A difficuldade de fugir a erros de similhante especie tem-os tornado demasiadamente communs. Para conhecer, pois, o que eram os foraes deve-se attender n„o sÛ ·s suas circumstancias predominantes ou caracteristicas, mas tambem ·s variedades que n'estas apparecem: È isto o que procuraremos fazer. A principal especie de foraes s„o as cartas de povoaÁ„o em que se estabeleceram a existencia e as relaÁıes d'essas sociedades elementares chamadas _concelhos_ com a sociedade complexa e geral chamada naÁ„o ou com os seus agentes, incluindo debaixo d'esta denominaÁ„o o mesmo rei. A tal especie pertence o maximo numero d'aquelles diplomas; e È esta a idÈa que, em regra, devemos ligar · palavra foral. A segunda especie È a d'aquelles que eram verdadeiras leis civis ou criminaes dadas a um concelho que j· existia ou se formava de novo, e a que faltavam _costumes_ ou leis consuetudinarias que regulassem os direitos e obrigaÁıes reciprocas dos individuos, ou esses costumes fossem taes que se tornasse necessario reformal-os para se estabelecer a ordem e a paz dentro do municipio. Esta especie de foraes È a menos vulgar. A terceira especie È a d'aquelles que eram simples _aforamentos_ feitos collectivamente, ou por titulo generico, a um numero de individuos, determinado ou n„o, em que se estipulava o _foro_ ou pens„o que cada morador devia pagar ao senhor do terreno, quer este fÙsse do estado (terras da corÙa), quer do rei (reguengos), quer particular (herdamentos). Esta especie, que se afasta quasi inteiramente da formula ordinaria dos foraes, È mais commum que a antecedente. Em geral os foraes das povoaÁıes reguengas pertencem a esta divis„o. Uma quarta especie de foraes temos encontrado que, n„o pertencendo propriamente a nenhuma das antecedentes, pÛde dizer-se que pertencem a todas, porque todas, e principalmente a primeira e segunda, predominam n'elles com egual forÁa. Esses foraes parecem ter sido destinados, n„o a constituir ou restaurar um municipio, nem a supprir a falta de costumes tradicionaes que servissem de direito civil local, nem, finalmente, a fixar a propriedade individual por via de uma carta d'emphyteuse, mas a remover a desordem nascida da m· organisaÁ„o anterior d'isso tudo, ou da tyrannia e violencia do senhor da terra (donatario), ou da barbaria e desenfreamento dos habitantes, ou de tudo isto juncto. Similhantes foraes n„o s„o raros. Estas s„o as especies em que nos parece dever dividir-se a grande collecÁ„o de diplomas que existem nos archivos do reino sob a denominaÁ„o de foraes. Sujeitando-as a uma classificaÁ„o moderna poder-se-hiam considerar os primeiros como o pacto social, a constituiÁ„o politica, digamos assim, dos municipios, mas com a circumstancia de ligar estes ao corpo moral, em cujo gremio se continham; os segundos como leis civis locaes; os terceiros como um genero d'emphyteuse ou emprazamento, em que os emphyteutas adquiriam o dominio util por um titulo collectivo, ficando ao _povoador_, ou encarregado de tornar effectivo o emprazamento, o distribuir e demarcar a propriedade de cada um dos moradores, cujo numero ora se indica ora n„o no foral; os quartos, emfim, como um composto de tudo isso, mas monstruoso e incompleto. N„o esqueÁa, porÈm, o que dissemos: estas caracteristicas de cada uma das especies n„o s„o exclusivas: ·s vezes disposiÁıes civis ou criminaes apparecem incluidas na constituiÁ„o municipal sem que ahi viessem para estabelecer alguma relaÁ„o entre o concelho e o estado; assim como nos foraes de legislaÁ„o civil se vÍem disposiÁıes verdadeiramente reguladoras d'algumas d'aquellas relaÁıes, e o mesmo nos foraes-emprazamentos. O habito de estudar similhantes documentos e certo tacto historico È que pÛde habilitar qualquer a discriminar o caracter proprio de cada um d'elles. Sendo o nosso intuito considerar os foraes principalmente em relaÁ„o · economia geral do estado, tractaremos com preferencia dos da primeira especie, e por isso todas as vezes que repetirmos a palavra _foral_ entenda-se que alludimos a ella. Tem-se dicto que os foraes eram a _legislaÁ„o_ dos concelhos; e, atÈ, que houve uma epocha em que foram as unicas leis do paiz. Similhantes opiniıes s„o ainda hoje triviaes; e todavia basta considerarmos as condiÁıes necessarias para a existencia de uma naÁ„o, attendermos ·s disposiÁıes que se acham no commum d'estes diplomas, e, finalmente, lembrarmo'-nos da situaÁ„o hierarchica, do modo de ser especial e exclusivo de cada classe da sociedade, principalmente nos dois primeiros seculos da monarchia, para conhecermos o infundado e atÈ o impossivel de taes opiniıes. A verdade do que dizemos breve teremos occasi„o de proval-a. Qual seria o pensamento que presidiu · promulgaÁ„o dos foraes? A resposta a esta pergunta deve esclarecer-nos sobre a sua verdadeira natureza. N'um paiz assolado por guerras de religi„o e de raÁa, muitas povoaÁıes antigas estavam reduzidas, ao constituir-se a monarchia, a um mont„o de ruinas; e se nem as maiores e melhores escapavam (como nos consta de Braga e de outras cidades em tempo do conde Henrique), muito mais devia ser essa a sorte dos logares abertos e mal defendidos. Tractava-se, pois, de fazer renascer das suas cinzas as antigas povoaÁıes, e de crear outras novas, attrahindo para aquelles centros familias que edificassem os burgos e aldeias e cultivassem os campos. Mas para que se fazia isto? Porque se n„o iam buscar · hoste, ou exercito, todos os homens de guerra, e n„o se lhes distribuia o territorio como honras, coutos, ou prÈstamos, para os cultivarem com os solarengos, com os captivos mouros, e com os servos de creaÁ„o (_homines de creatione_), mais vulgarmente conhecidos pela denominaÁ„o de malados (_homines de maladia_), ou, emfim, para evitar os inconvenientes economicos que, segundo ao deante veremos, resultavam no distribuir as terras pelos _milites_ (cavalleiros), porque n„o se preferia o systema da terceira especie de foraes, que n„o passavam de aforamentos collectivos, e por isso n„o tinham o mesmo caracter? Porque se restaurava atÈ certo ponto a organisaÁ„o das provincias romanas, essencialmente municipal? O que se casava mais naturalmente com o espirito da epocha era o methodo contrario: as influencias do feudalismo eram energicas entre nÛs no berÁo da monarchia; os delegados do poder real e os possuidores de terras da corÙa procuravam dar aos seus cargos e _prÈstamos_, que n„o passavam, aquelles de _delegaÁıes_, estes de verdadeiros _beneficios_, o caracter de feudos. E todavia o progresso do systema opposto foi rapido e espantoso: no fim do reinado de D. Affonso III Portugal estava coberto de concelhos. Ao passo que nos paizes essencialmente feudaes estas pequenas republicas quasi sempre se formavam pela revolta e no meio de grandes luctas, entre nÛs realmente aconteceu o que Mr. Thierry nega e mostra ser uma opini„o falsa relativamente · FranÁa: isto È, foram principalmente instituidas por espontanea vontade do rei, ainda que n„o faltem fundamentos para crer que algumas das mais antigas cartas de communa ou foraes, e entre estes o de Coimbra em tempo do conde D. Henrique, se obtiveram por violencia, e depois de uma lucta em que a auctoridade soberana n„o levou a melhoria. E, quando outras provas n„o houvesse de que n'estas partes da Peninsula tambem as _conjuraÁıes_ ou ligas de burguezes, chamadas entre nÛs _irmandades_ (_germanitates_), arrancaram · forÁa, como em FranÁa, privilegios e franquezas aos senhores, bastar· lembrarmo'-nos da historia de Compostella, no tempo de Diogo Gelmirez, para conhecermos perfeitamente a identidade d'esses movimentos populares em um e outro paiz. Mas os vestigios d'esses factos, que por uma coincidencia singular apparecem quasi exclusivamente practicados nas cidades episcopaes, ou, por outra, dirigidos contra o alto-clero, classe a mais poderosa, entre a qual e o rei tambem havia guerra mortal; similhantes vestigios, dizemos, faltam de todo no tempo de D. Affonso III, e È justamente do reinado d'aquelle principe que nÛs temos mais foraes, talvez, do que de todos os outros reinados junctos. Para estas tendencias, apparentemente mais populares que feudaes da parte do poder central, houve por certo motivos. Se podermos attingir quaes fossem, teremos meios de achar o pensamento geral dos foraes, e de por elle avaliar os caracteres d'estes que deviam dirigir-se a preencher as indicaÁıes d'aquellas mesmas causas por que se promulgavam. NÛs cremos que diversos motivos se deram effectivamente para este incremento rapido dos municipios. Que houve uma raz„o politica da parte do elemento monarchico, do poder real, para formar aquellas agglomeraÁıes de populaÁ„o plebea, parece-nos incontestavel. O alto-clero, o mais terrivel adversario da monarchia no primeiro periodo da nossa historia, estava por muitos modos ligado com a nobreza, ligado sobre tudo porque, em relaÁ„o aos privilegios e · propriedade, estas duas classes eram identicas: ambas possuiam castellos e senhorios, coutados e honrados; ambas tinham prÈstamos da corÙa; ambas se compunham de homens de guerra ou os capitaneavam, porque, em geral, os bispos eram mais expertos em provar armaduras e menear armas que em entender o evangelho: a sciencia nas cathedraes era cousa mui secundaria; tinha o que quer que era de monastica e rasteira, e os bispos e os seus cabidos occupavam-se mais dos negocios terrenos que das cousas do cÈu. A esta identidade de situaÁ„o, que forÁosamente havia de approximar as duas classes e por isso fortalecer uma pela outra, accrescia que por ignorante que fosse o clero, comparado com a nobreza mergulhada na mais crassa barbaria, ainda se podia chamar illustrado. AlÈm d'isso, a fidalguia, no seu estado natural de hostilidade com o rei, tinha de soccorrer-se unicamente ·s proprias forÁas, tirar da propria intelligencia e vontade as doutrinas e meios de se conservar forte e unida: o clero, porÈm, encostava-se a uma columna inabalavel--as doutrinas, a energia, e a illustraÁ„o da curia romana, immensa para aquelles seculos; porque nunca na cadeira primaz de Roma se assentou uma serie de homens t„o grandes como os que, n„o presidiram, mas governaram o orbe catholico, no primeiro periodo da nossa historia. Assim, o rei tinha de sustentar um duro combate com a cleresia, sem que podesse contar com a nobreza, salvo com um ou outro individuo que se inclinava para elle por interesses especiaes, que ·s vezes n„o eram dos mais licitos e honrosos. Restava o povo. Apesar da crenÁa viva, da superstiÁ„o, e atÈ do fanatismo das turbas n'aquellas eras, o povo n„o respeitava o clero. Um phenomeno, ou que se n„o tem observado, ou a que se n„o deu a devida importancia, È a distincÁ„o que o povo fazia entre as crenÁas religiosas e os ministros do culto, distincÁ„o clara e precisa, que resulta de mil factos. Do seu odio contra os dignitarios da egreja ha provas irrecusaveis, mais evidentes do que do odio contra a nobreza. E porque? Porque a m· vontade que tinha aos nobres n„o podia resfolegar: contra elles achava-se em campo sÛ. A guerra do rei · fidalguia era uma necessidade de situaÁ„o; o elemento aristocratico embaraÁava o progresso da unidade monarchica; mas o combate dos dois elementos era vagaroso e surdo: pelejava-se nas trevas; as multidıes n„o o viam nem sentiam; e quando algum dos factos em que elle se revelava era de tal natureza que ellas o comprehendessem, attribuiam-no a dissenÁıes individuaes e n„o alcanÁavam que pertencesse a uma lucta complexa de classe. A guerra, porÈm, da cleresia era estrepitosa: as batalhas succediam ·s batalhas; o povo palpava, por assim dizer, as armas dos contendores, ouvia o som dos recontros, e batia as palmas ao rei que o vingava da metade, n„o peior, mas mais poderosa, dos seus oppressores. Entre diversos acontecimentos d'aquella epocha, analogos ao que vamos apontar, nenhum melhor do que elle prova que tal era o estado das cousas. Fallamos das dissensıes do violento D. Sancho I com o bispo do Porto, D. Martinho II, dissensıes de que D. Rodrigo da Cunha fala como passadas entre os burguezes e o prelado, mas que foram verdadeiramente com o rei. O papa Innocencio III nos refere miudamente a historia d'essa lucta atroz e tenaz, suscitada pelas eternas questıes de jurisdicÁıes e tributos entre a monarchia e o clero, e renovada pela desapprovaÁ„o do bispo ao casamento do infante D. Affonso (Affonso II). Da bulla relativa a este negocio se vÍ que el-rei lanÁou o povo, perdoe-se-nos a express„o, como um mastim raivoso contra o bispo e o cabido, e que o povo cumpriu, alÈm do que se poderia desejar, as intenÁıes d'el-rei[46]. A excommunh„o vibrou-se do alto do solio papal sobre a cabeÁa de D. Sancho e sobre as cabeÁas de alguns burguezes obscuros--o rei nivelou-se com a plebe--, circumstancia singular que mostra que nos combates com o bispo o povo n„o fÙra apenas um instrumento cego e debil. Innocencio III n„o costumava fazer vergar as cervizes sen„o dos fortes e altivos: desprezava os instrumentos das violencias e tyrannias, e n„o nos consta excommungasse os saiıes ou algozes que por mandado do mesmo D. Sancho arrancaram os olhos ao clero de Coimbra. Entre os populares fulminados na bulla l· se descobre um nome que, por si sÛ, revela a existencia d'um d'esses homens energicos que costumam surgir no meio das turbas agitadas e as dirigem, e s„o durante algum tempo os seus idolos, atÈ que, por via de regra, ellas proprias ou os annullam ou os esmagam. Chamava-se o burguez criminoso Pedro _Feudo-tirou_, denominaÁ„o estranha e insolita, se a tomarmos como appellido, mas de grande significaÁ„o, se a quizermos olhar como uma d'estas alcunhas em que o povo usa resumir pela circumstancia mais proeminente da vida dos individuos a biographia e o caracter d'elles. Pedro, a quem o vulgacho denominara _Feudo-tirou_ (tirou o feudo, o senhorio, a oppress„o), era porventura um O'Connel municipal do seculo XIII, um grande agitador, sobre cuja memoria as chronicas escriptas nos paÁos e nos mosteiros chumbaram a lagem do esquecimento, e que a historia moderna tem quasi de adivinhar nas palavras e nas allusıes obscuras dos velhos diplomas. Havia, portanto, uma raz„o politica para o estabelecimento dos concelhos: o rei achava n'elles seus naturaes alliados. Que esta raz„o fosse um calculo, uma idÈa clara e precisa, um systema fixo dos primeiros reis, n„o o diremos; e atÈ duvidamos muito d'isso. Mas era ao menos um instincto, instincto que as luctas com o alto-clero e as resistencias da fidalguia deviam todos os dias despertar. Assim, a promulgaÁ„o dos foraes, isto È, a instituiÁ„o dos concelhos, torna-se cada vez mais frequente, ao passo que os reis se habilitam para terminar por uma composiÁ„o vantajosa a guerra ecclesiastica, e para comeÁar a grande empreza da sujeiÁ„o da aristocracia secular. O reinado de D. Afonso III È o que mais corrobora o nosso pensamento, e o pıe a uma grande luz: D. Affonso obtivera a corÙa das m„os do alto-clero, e n'esta classe devia buscar seu arrimo. Todavia o conde de Bolonha n„o ignorava por que preÁo se lhe pretendia vender a posse do throno, e desde a concordata de Paris mostrara que a intenÁ„o de o pagar n„o era muito vehemente. De feito, logo que se viu pacifico senhor do paiz continuou a guerra ecclesiastica sem diminuir ponto da energia de seus antecessores. Com menos relaÁıes entre os membros da fidalguia, vivos ainda os odios dos parciaes do D. Sancho II, elle devia forÁosamente recorrer ·s mesmas allianÁas populares dos seus antecessores, e recorrer com muito mais actividade do que elles. Foi o que succedeu, quanto a nÛs; e a multiplicidade espantosa de foraes concedidos por este principe parece-nos nascer mais d'essa causa que da necessidade de povoar, porque, como j· dissemos n„o menos possivel, e mais natural segundo as idÈas do tempo, era o systema dos prÈstamos e o das _pobras_, ou concess„o de porÁıes do territorio por emprazamentos, do que o estabelecimento dos concelhos. E, depois, n„o vinha o conde de Bolonha de um paiz, a FranÁa, onde restrugiam ainda as revoltas populares, sobre tudo no norte, e a formaÁ„o das communas? Teria sido para elle inteiramente inutil o espectaculo d'essas contendas, que, como observa Mr. Thierry, eram quasi exclusivamente entre o clero feudal e os burguezes, cuja forÁa ellas provavam? Preparando-se para resgatar pela forÁa o throno que obtivera com manha, devia acaso esquecer-se de arma t„o forte e experimentada? E n„o apparece n'isto tudo uma explicaÁ„o plausivel das tendencias municipaes do seu reinado, tendencias para as quaes n„o ser· facil encontrar outra raz„o _politica_ assaz satisfatoria? Temos assim achado uma causa para a instituiÁ„o dos concelhos: veremos depois se ella apparece actuando nas disposiÁıes dos foraes, o que servir· para a demonstrar _a posteriori_. Chegaremos por este modo a uma conclus„o inteiramente opposta ao principio de que parece partir-se no artigo publicado no V volume do _Panorama_ relativamente aos foraes, isto È, que foi o clero quem promoveu o estabelecimento dos concelhos. AlÈm de desconhecermos a existencia de monumentos historicos que nos auctorisem a assim pensar, as consideraÁıes que fizemos indicam inteiramente o contrario. Se n„o nos enganamos, o motivo d'estas differenÁas capitaes È facil de reconhecer. Desde que se publicaram as _Memorias_ de A. C. do Amaral h„o sido estas quasi a unica fonte de quanto se tem escripto, tanto no paiz como fÛra d'elle, ·cerca da sociedade portugueza primitiva. Sem desprezar os uteis trabalhos d'aquelle sabio academico, È incontestavel que elle nem sempre tirou as verdadeiras conclusıes historicas dos documentos que consultou, e que sobre tudo desconheceu o modo de ser da edade-media, ou, para nos servirmos d'um neologismo, a sua cÙr local[47]. No que diz quando tracta dos foraes parece considerar como primeira especie os dados por particulares, e entre estes figuram principalmente os das ordens de monges-cavalleiros, os de bispos e os de abbades, fazendo sÛ depois menÁ„o dos promulgados pelos reis; e talvez d'aqui nascesse o n„o se ver o facto · sua verdadeira luz. Todavia aquelles foraes particulares, ou n„o passam de emprazamentos collectivos, ou s„o concedidos pelos donatarios da corÙa como representantes do rei; pelos governadores dos districtos, castellos, e logares (_tenentes_); e pelos povoadores delegados _ad hoc_ para instituirem o municipio cuja carta redigiram. O verdadeiro foral, a carta de communa que fazia existir o concelho como entidade politica, partia do rei: sÛ d'elle podia partir. Fosse quem quer que fosse o promulgador do foral, chame elle atÈ no preambulo do diploma ao territorio do concelho instituido propriedade sua (_meam hereditatem_), esse homem n„o era mais que um representante do principe, exercitava apenas uma delegaÁ„o. Ainda que a natureza dos foraes em Le„o e Castella seja diversa em muitas cousas da dos nossos, esta condiÁ„o era em ambos os paizes a mesma, e os escriptores portuguezes deviam ter presente a opini„o fundamentada de Martinez Marina a similhante respeito. Mas ao que sobre tudo lhes cumpria attender era aos proprios foraes. N'estes se achavam as provas de que ainda os que mais parecem ser espontaneamente concedidos por particulares em territorio particular dimanam do poder central; s„o actos cujo auctor se ha-de subentender que È o rei. Citaremos um foral impresso[48] e conhecido, em que se demonstra evidentemente a nossa proposiÁ„o como nos outros analogos. … o foral dado por Gil Martins e sua mulher · que elles chamam sua propriedade (_nostra hereditate_) de Terena. Concedera-lhe fÙro e costumes d'Evora, e ahi regulam os direitos reaes, como o fossado, ou serviÁo das correrias militares, e as calumnias, ou coimas dos crimes, pertencentes ao fisco; egualam no fÙro judicial os cavalleiros villıes de Terena aos ricos-homens e infanÁıes de _Portugal_, e os peıes aos cavalleiros villıes d'_outras terras_; ordenam que, tendo os de Terena demanda com alguem de _outra terra_, a causa se decidia por inquerito ou combate judicial (_reto_), e que se alguem _vier de fÛra · villa_ tirar vinho ou mantimentos, e ahi assassinarem ou ferirem, _aos parentes do morto n„o fique o homizio_, isto È, acÁ„o de revindicta, ou o direito de matarem o assassino, direito commum n'esse tempo; reteem, finalmente, para si os _reguengos_ (a propriedade patrimonial do rei), as matas, etc. Como È possivel deixar de vÍr um simples donatario ou prÈstameiro n'esse Gil Martins que dispıe dos serviÁos militares e das coimas, tira direitos a extranhos, d· privilegios aos seus subditos nos tribunaes, e reserva para si bens patrimoniaes do rei? Quem pÛde admittir o irrisorio absurdo de que os nobres de Portugal acceitariam por seus eguaes em juizo os villıes de Terena porque assim o mandava Gil Martins, ou de que os parentes de um extranho assassinado por esses mesmos villıes poriam de parte o seu direito de revindicta porque elle o ordenava? Sem o sacrificio do senso commum tal supposiÁ„o È impossivel. A verdade È que sÛ uma auctoridade que se extendesse por todo o paiz podia ordenar as relaÁıes de um municipio com os municipios ou individuos extranhos. Quando em alguns d'estes foraes se exemptam os habitantes de um concelho de pagar portagem por todo o reino, esse privilegio vai affectar n„o sÛ a fazenda publica mas direitos particulares[49]; e supponha-se qual se quizer a extens„o do poder dos senhorios de terras, e da nobreza e alto-clero nas suas honras, ser· sempre ridiculo pensar que o rei ou os outros nobres e prelados deixassem sahir a acÁ„o d'esse poder dos limites do respectivo territorio. Voltemos, porÈm, ao nosso assumpto, de que um pouco nos along·mos, posto que n„o inutilmente. A segunda causa que devia obrigar o poder central a promover a creaÁ„o dos municipios era a fazenda publica, as necessidades pecuniarias do estado: para avaliar a acÁ„o d'esta causa È preciso tornar a dizer alguma cousa sobre a propriedade publica ou bens da corÙa, cujos proventos eram poucos, ao passo que as contribuiÁıes de foral os vinham amplamente supprir. A quest„o da fazenda prende-se com toda a machina da organisaÁ„o social, e por ella chegaremos talvez a descobrir as outras caracteristicas essenciaes das instituiÁıes do municipio. III Dissemos antes quaes eram os elementos que faziam subsistir e engrossar o cumulo dos bens de raiz de que se compunha o patrimonio fixo do estado. Esse cumulo, que j· existia na occasi„o em que se estabeleceu a independencia de Portugal, porque os que possuia a corÙa leonesa no territorio d'esta provincia passaram com esse territorio para os seus novos senhores, cresceu forÁosamente com rapidez pelas conquistas dos nossos primeiros reis e pelos modos de acquisiÁ„o que anteriormente indic·mos. Mas se essas causas tendiam activamente para o augmento da propriedade fiscal, outras havia n„o menos poderosas para reduzir, n„o o seu valor como capital, porque estes bens n„o podiam ser alheados perpetuamente, mas o seu valor como fonte de rendimento publico; porque o rei tinha o direito de os converter em prÈstamos (_prestimonium_, _aprestamo_, e d'ahi _emprestimo_) e fazer d'elles mercÍ por um praso indeterminado. Este direito facilitava o caminho · cobiÁa dos ecclesiasticos e dos nobres. A necessidade que os reis tinham de simular piedosa liberalidade para com a egreja, quando eram os mais fracos e n„o podiam conter pela forÁa o alto-clero, ou quando, visinhos da morte, os terrores do inferno, e talvez antes os receios de deixar vacillante o throno ao seu successor, os moviam a desbaratar com m„o larga em beneficio da egreja o patrimonio publico, para remirem passadas violencias; esta necessidade, dizemos, era o principal sorvedouro dos bens da corÙa. O estado continuo de guerra era o segundo. N„o contentes das _optimas solidatas_, dos excellentes soldos que venciam para servirem com homens d'armas na hoste real, os fidalgos obtinham por todos os modos os prÈstamos que escapavam ao clero. Assim, diminuidas ou antes anniquiladas as rendas publicas provenientes immediatamente da terra, a unica maneira de as supprir, de poder pagar essas mesmas _optimas solidatas_ aos nobres, pouco resolvidos a morrerem gratuitamente pela cruz e pela patria, era ir buscar os tributos do municipio. D'aqui devia provir por forÁa maior o rapido augmento da promulgaÁ„o dos foraes, e o serem as disposiÁıes n'elles contidas exaradas por tal arte, que o concelho pagasse serviÁos pessoaes, em generos, e em dinheiro (especies de tributo diversas no accidental, mas na essencia identicas) as maiores contribuiÁıes possiveis. Do exame das cartas de foral, das doaÁıes, e dos mais documentos do primeiro periodo da sociedade portugueza resulta evidentemente a acÁ„o capital d'esta causa na instituiÁ„o dos concelhos; mas nenhum talvez melhor d· idÈa do empobrecimento do _Rec·bedo Regni_--dos haveres patrimoniaes da naÁ„o, logo no berÁo da monarchia--do que uma das varias bullas relativas a Portugal no reinado de D. Sancho I[50]. N'este diploma o papa refere-se a uma carta que D. Sancho lhe dirigira, energica e atÈ brutal, a ponto que o audaz e violento Innocencio III parece querer na sua resposta suavisar as expressıes altivas e ameaÁadoras de que usa, segundo o estylo da chancellaria romana n'aquelle seculo. Entre outras cousas d'essa carta, que n„o vÍm para o nosso intento, È notavel um periodo transcripto pelo papa, que, como era natural, o taxa de _exhalar heretica perfidia_. Ahi lhe dizia D. Sancho que n„o havia modo melhor de quebrantar ou diminuir as mostras de luxo e suberba dos hypocritas (_ii qui religionem simulant_), principalmente dos prelados e clerigos, do que tirar-lhes os motivos d'isso, a _demasiada superabundancia de bens temporaes_, que tinham d'elle e de seu pae, com grave damno do reino e dos successores da corÙa, e _distribuir esses bens_ por seus filhos e pelos defensores do estado, _faltos muitas vezes do necessario_. Estas expressıes de D. Sancho, ou antes do seu chanceller, pintam com vivas cÙres o estado dos bens da corÙa n'aquella epocha, e mostram como, ao passo que o clero devorava a maior e melhor porÁ„o d'elles, a fidalguia, que achava um quinh„o diminuto no que lhe restava, n„o deixaria de approvar que el-rei fizesse mais egual divis„o da preza. Esta cubiÁa dos poderosos era tal, e tal a precis„o em que os reis se viam de a satisfazer, que os proprios tributos dos municipios se converteram logo, atÈ certo ponto, em prÈstamos. Nos foraes suppıe-se, por via de regra, a existencia de um _senhor da terra_: as instituiÁıes municipaes, porÈm, nem creavam, nem tornavam necessaria essa entidade como elemento organico. O rei que constituia o concelho, muitas vezes n'um ermo ou n'uma antiga povoaÁ„o destruida atÈ os fundamentos, que os novos moradores deviam reedificar, e cultivar-lhe o alfoz, era o senhor natural d'essa povoaÁ„o. E, todavia, na carta, que vai, por assim dizer, tirar do nada um municipio, apparecem logo previstos os deveres e direitos dos villıes para com um donatario; para com um representante do principe; para com o _senior terrae_. Esta circumstancia que prova? Que esse facto era trivialissimo, e quasi constante. Mas quando ainda isso fosse duvidoso, os mesmos foraes nol-o provariam do modo mais incontestavel: n'alguns d'elles (n„o È grande o seu numero) apparece a condiÁ„o de nunca a terra ter por senhor sen„o o proprio rei ou um filho seu, ou outrem que os villıes approvem[51], o que mostra que sÛ por excepÁ„o parte das contribuiÁıes municipaes deixavam de correr para o sorvedouro das classes aristocraticas. Se, porÈm, pela natureza da organizaÁ„o municipal n„o podemos achar a raz„o d'esta existencia de um senhor ao lado de cada concelho que nasce, achamol-a, todavia, em grande parte na indole militar do paiz. O systema predominante da guerra entre arabes e christ„os, e principalmente entre os ultimos, era d'assaltos e correrias repentinas, conhecidos pelos nomes de _arrancada_, _algara_, etc.: d'aqui nascia a necessidade de construir um castello, uma fortificaÁ„o, onde quer que se estabelecia um logar ou villa, principalmente d'aquelles districtos limitrophes com provincias d'inimigos. Esse castello dava-se a governar e defender a um cavalleiro com o titulo de alcaide, titulo que recebemos do cargo analogo entre os arabes, abandonando a denominaÁ„o romana e mais antiga de _municeps_[52], que na edade-media tom·ra a significaÁ„o de _castellanus_ ou capit„o de fortaleza, se n„o È que o _municeps_ indicava antes uma especie--o castelleiro da povoaÁ„o acastellada de um _municipio_. N'aquelles concelhos em que por foral sÛ o rei ou seu filho podia ser senhor, as regalias d'este _municeps_ ou alcaide deviam ser mui limitadas, e reduzir-se talvez, pouco mais ou menos, ·s do moderno governador de uma fortaleza; mas nos demais nada era mais facil, mais natural, do que o rei dar em prÈstamo uma parte dos direitos e rendas, que d'ahi lhe provinham pela carta de foro ou pacto municipal, ao nobre cavalleiro que se encarregava com os seus homens d'armas de vigiar pela seguranÁa da povoaÁ„o nascente. Este alcaide vinha por similhante modo a ser um verdadeiro donatario, um _senior_, que, porventura, n„o recebia soldo, o que ainda ignoramos, por um serviÁo militar n„o menos arriscado e trabalhoso que o do donatario de terras da corÙa, que o recebia para seguir nas batalhas a hoste real. Temos dicto _parte_ das contribuiÁıes, _parte_ dos tributos e rendas, porque os serviÁos pessoaes impostos nas cartas de foro eram por via de regra de natureza tal que n„o podiam aproveitar ao donatario, ou _senior_. Assim, a _adua_, ou obrigaÁ„o de trabalhar nas obras dos castellos e muralhas, a _hoste_, o _fossado_, o _appellido_, as _atalaias_, as _guardas_, que constituiam as differentes variedades do serviÁo militar, e alÈm d'isto algumas penas pecuniarias, que ·s vezes no proprio foral ficavam expressamente reservadas para o fisco; estes impostos e outros analogos esquivavam-se pela sua natureza · insaciabilidade dos fidalgos; mas como elles podiam converter o resto em utilidade particular, por esse motivo talvez n„o apparecem entre nÛs resistencias aristocraticas · creaÁ„o das communas, nem essas luctas de morte de que a FranÁa nos offerece t„o repetidos exemplos. Alludimos ao serviÁo militar dos concelhos. Neste serviÁo est·, quanto a nÛs, a terceira causa capital da efficacia sempre progressiva dos reis na organisaÁ„o de um vasto systema municipal. Para se entender a importancia d'aquelle serviÁo, importancia n„o menos politica do que militar, È necessario ter uma idÈa clara do modo de ser da sociedade geral, e da sociedade particular chamada concelho. Muitas vezes, falando da edade-media portugueza, costumamos servir-nos da express„o _tempos feudaes_: estas palavras lÍem-se em escriptos graves, retumbam dentro do parlamento, e quantas vezes nÛs mesmos as teremos escripto e repetido! Todavia, em relaÁ„o ao velho Portugal n„o ha phrase mais inexacta. N„o È um desar, um nome deshonroso que nÛs queiramos aqui apagar na fronte do passado--o feudalismo foi um meio de progresso, um elemento de ordem, e por consequencia um bem, em quanto a civilisaÁ„o precisou d'elle--: o nosso intento È rectificar um grande erro historico enraizado atÈ em bons espiritos. Embora muitos costumes dos paizes da feudalidade se introduzissem entre nÛs, a essencia da organisaÁ„o feudal nunca vingou na sociedade portugueza[53]: oppunha-se-lhe a indole d'ella. A demonstraÁ„o È facil. Os dois caracteres principaes dos feudos eram a perpetuidade do dominio d'elles no feudatario e nos seus successores, e a obrigaÁ„o do serviÁo militar para com o suzerano. O feudalismo apresentava as jerarchias de suzeranos, feudatarios, e subfeudatarios; e todas as propriedades de certa importancia, ainda as que eram d'antes livres ou allodiaes, se converteram geralmente em feudos. A feudalidade devorou tudo nos paizes onde existiu, e foi a propria essencia da sociedade. Ahi, quasi que o ser homem livre era ser nobre, e a nobreza, amoldando-se, por assim dizer, a este pensamento e ·s varias situaÁıes dos individuos, subdividia-se em grande numero de gr·us. Mas estes n„o se prendiam uns aos outros sen„o pelo serviÁo militar: satisfeita essa condiÁ„o, o feudatario era senhor absoluto dentro das suas possessıes, e ninguem o podia privar d'ellas, nem aos seus herdeiros, ao menos nos limites da estricta legalidade. Estes caracteres, porÈm, do serviÁo militar e da perpetuidade de success„o faltavam entre nÛs nas terras dos nobres, muitas das quaes eram verdadeiramente patrimoniaes, ao passo que outras pertenciam · corÙa; mas nem estas podiam ser dadas como feudos, nem aquellas, por consequencia, virem tomar um caracter que faltava nas proprias terras dos donatarios da corÙa. ¡ perpetuidade das doaÁıes, ao menos no primeiro periodo da nossa historia, oppunha-se o direito constitucional do paiz--a inalienabilidade do patrimonio do estado; porque esse direito era o mesmo que receberamos de Le„o. J. P. Ribeiro, n'um escripto em que fÙra conveniente ao seu proposito a doutrina contraria, o reconheceu, nem podia negal-o[54]. Desde o reinado de D. Affonso II appareceu a necessidade das confirmaÁıes de rei a rei, as quaes n„o s„o mais do que o resultado da jurisprudencia constitucional, e assim achamos n„o interrompido o direito de revers„o dos bens da corÙa, quer estes fossem de raiz, quer rendas, censos, ou quaesquer direitos reaes. E posto que similhantes reversıes se n„o realisassem vulgarmente, ainda nos resta o diploma pelo qual D. Diniz revogou as mercÍs inofficiosas que fizera na sua primeira mocidade. A outra condiÁ„o caracteristica, sem a qual se n„o concebe a existencia do feudalismo, È a das obrigaÁıes de serviÁo militar do feudatario para com o suzerano em virtude do seu dominio da terra; quer esta fosse originariamente allodial ou livre, e o possuidor a infeudasse a algum nobre poderoso, ou ao rei, para que o amparasse; ou fosse realmente havida d'estes por titulo de feudo. Essa condiÁ„o falta, porÈm, no modo de possuir das classes nobres de Portugal. A propriedade aristocratica no primeiro periodo da nossa historia podia ser de dois modos: ou patrimonial, ou regalenga, isto È, da corÙa. Em um e outro caso essas propriedades eram privilegiadas, e este privilegio consistia em serem honradas ou coutadas. E quaes vinham a ser os caracteres dos _coutos_ e _honras_? O estarem exemptos do serviÁo militar e dos tributos reaes. Innumeraveis documentos coevos o fazem conhecer; mas um sobre todos o leva · evidencia: o proprio rei (D. Diniz) define esses privilegios. ´Coutar uma terra, diz elle, È escusar os seus moradores de _hoste_, e de _fossado_, e de _foro_, e toda a _peita_.ª[55] Quatro expressıes que abrangem todos os tributos: serviÁo militar (_hoste_ e _fossado_), contribuiÁıes em dinheiro ou generos (_foro_), penas pecuniarias ou calumpnias (_peita_). Esta definiÁ„o de _couto_ È extensiva · _honra_, que A. C. do Amaral provou ser a mesma cousa que o couto, quanto · identidade dos privilegios. Dizemos quanto · identidade dos privilegios, porque a nossa opini„o È que as suas origens eram diversas, e que alÈm d'isso a denominaÁ„o de _honra_ era mais vaga, extendendo-se ·s propriedades dos cavalleiros villıes, do que se encontram provas a cada passo nos foraes, vindo assim muitas vezes a ser synonymo da palavra _cavallaria_, que em um dos seus varios significados representava em geral as propriedades privilegiadas por qualquer especie de nobreza militar. Pelo que toca · differenca d'origem, se n„o nos enganamos, o couto procedia de um acto especial do rei, que privilegiava um territorio ou herdamento, e a honra adquiria esta qualidade mais pelo simples facto de pertencer a um nobre do que por mercÍ do rei. Os abusos intoleraveis, a que este systema desordenado de privilegiar a terra deu azo, suscitaram as severas providencias de D. Diniz, que remediaram esses abusos quanto ao futuro, mas deixaram subsistir os resultados que haviam produzido na primeira epocha historica, isto È, atÈ os fins do seculo XIII. O complexo d'aquellas providencias È talvez a collecÁ„o mais importante de monumentos para o estudo do modo de ser da propriedade entre as altas classes nos tempos primordiaes da monarchia[56]. Vemos, pois, que quaesquer terras possuidas pela aristocracia secular e ecclesiastica eram de uma natureza opposta ·s condiÁıes capitaes dos feudos. A exempÁ„o do serviÁo militar deduzida d'essa natureza tinha graves consequencias. Era a primeira que os bens da corÙa distribuidos com m„o-larga pela nobreza e pelo clero n„o serviam para augmentar a forÁa publica do paiz; era a segunda que para obter o serviÁo militar dos fidalgos e dos seus acostados ou homens d'armas, serviÁo importante pela pericia e valor d'esta casta illustre, cumpria estabelecer-lhes estipendios que haviam de sahir, como j· vimos, d'esse mesmo t„o defecado patrimonio publico; era a terceira a necessidade de crear uma milicia gratuita, que podesse supprir a falta dos homens d'armas estipendiarios, quando os meios da fazenda n„o chegassem para lhes pagar largamente, e que ao mesmo tempo servissem de elemento de equilibrio contra a forÁa da aristocracia; porque n'aquelles tempos barbaros, como em todos os governos pessimos e nas sociedades mal constituidas, os elementos d'equilibrio e de ordem v„o-se procurar sempre na forÁa bruta da soldadesca, com preferencia aos principios da forÁa moral. Eis porque dissemos ha pouco que em nosso entender a terceira causa capital da efficacia com que os reis trabalharam por multiplicar as existencias municipaes foi a importancia de organisar o serviÁo militar. Esta organisaÁ„o, feita em proveito do poder central, tinha tambem, como dissemos, uma importancia politica, que n„o È possivel desconhecer. As causas, pois, que desenvolvemos com mais alguma extens„o e a que attribuimos o rapido incremento dos concelhos, s„o tres principalmente: o instincto de fortalecer o povo como alliado da corÙa contra as classes aristocraticas, e em especial contra o clero; a necessidade de crear uma fonte de rendimentos que permittisse o desbarato dos bens da corÙa; e, emfim, a conveniencia de instituir uma milicia que supprisse a falta da milicia feudal. Quanto ·s causas moraes, ·s consideraÁıes piedosas e de amor da prosperidade da naÁ„o, que se lÍem nos bondosos escriptores de cousas historicas, com m·goa confessamos que a nossa consciencia, involuntariamente incredula, n„o tem inergia bastante para as ir buscar ·s paginas innocentes d'esses escriptores, e aos preambulos pomposos dos foraes, onde, na verdade, t„o sanctos motivos e consideraÁıes se encontram ·s vezes. Felizes aquelles que podem ver as cousas da edade-media por esse prisma de sete cÙres! A imagem que se lhes representa aos olhos, se n„o È verdadeira, È ao menos aprazivel. Os sonhos deleitosos s„o bons; bons atÈ quando s„o sonhos de homem acordado. Examinemos agora os municipios no seu modo d'existir interno, e vejamos como elles correspondiam ·s causas que os fizeram nascer. IV Quando se tracta da classe popular no nosso paiz, nenhuns documentos por certo offerecem interesse egual ao d'essas cartas de communas, que organisando-a lhe davam uma existencia politica; que na realidade a convertiam n'um elemento social. L· est· a origem da energia sempre crescente do terceiro estado: l· foi lanÁada · terra a sementinha impalpavel, que nascendo e vegetando no meio das procellas humanas, das transformaÁıes da naÁ„o, produziu no fim de seis seculos a arvore robusta da liberdade. Os pergaminhos, tostados pelo tempo, nos quaes foram escriptos n'uma linguagem sempre barbara, e ·s vezes inintelligivel, os foros do homem de trabalho, s„o um dos mais sanctos monumentos da patria; s„o os nossos brazıes, de nÛs, os filhos do povo; s„o os nossos livros de linhagens. Poderosos e nobres hoje, porque hoje o trabalho È--deve-o ser pelo menos--a primeira nobreza, cumpre-nos estudal-os com sincera vontade. Mais de um titulo de direitos perdidos, mais de uma prova da justiÁa com que revindic·mos outros, ahi os havemos de encontrar; e sobre tudo achar as dividas politicas que nossos avÛs contrahiram, e as injurias que receberam: as primeiras--para as pagarmos pontualmente, porque as geraÁıes populares formam um individuo sÛ, solidario comsigo mesmo na success„o dos tempos; as segundas--para as vingarmos? N„o, porque o povo È forte, e o forte deve ser generoso; mas para justificarmos as nossas obras, mal interpretadas ·s vezes pela cegueira de honesta ignorancia, outras vezes pelas preoccupaÁıes voluntarias de um egoismo, interessado. O estudo da indole dos concelhos na sua infancia e juventude, util e moral · luz que apont·mos, È afÛra isso innocente. As suas resistencias, as suas luctas, a acÁ„o politica exercitada, por elles, tudo isso È cousa morta; È historia. Como os mosteiros--que foram por muito tempo (permitia-se-nos a express„o) os municipios da sociedade intellectual, o grande instrumento do progresso e da ordem no mundo das idÈas--assim o antigo _concilium_ de nossos avÛs passou; porque, bem como os mosteiros, deixou de ter um valor social. Entre a natureza do concelho moderno, limitado na sua curta acÁ„o administrativa, e a dos municipios fundados nos primeiros tempos da monarchia, as relaÁıes que existem pouco alÈm passam da identidade do nome. Chrys·lida da liberdade, ella os despedaÁou ao voar, cheia de vida e rica de esperanÁas, pela face da terra. Os foros de homem livre, que outr'ora tinham uma existencia de privilegio--a existencia municipal--cujo caracter era a exclus„o, o ciume, e a guerra, n„o sÛ contra as altas classes que podiam quebrar aquelles foros e annullar esta existencia, mas contra as outras aggressıes politicas analogas, tudo isso se converteu de privilegio em direito, de vida politica local em liberdade geral, de conflicto de interesses municipaes em unidade e harmonia de interesses communs. Depois d'essa transformaÁ„o, o concelho, como a edade-media o concebera e creara, seria uma monstruosidade impossivel, e aquelles que imaginassem restituir-lhe as attribuiÁıes, ou ainda uma pequena parte da importancia que outr'ora teve, deveriam, para serem logicos e darem-lhe uma significaÁ„o, restabelecer as formulas feudaes ou barbaras que pela sua justa-posiÁ„o lhe traziam cÙr, vida, relevo, e valor social. Vimos a sociedade portugueza desenvolvendo-se, logo na sua origem, fÛra das condiÁıes communs das outras sociedades nos seculos XII e XIII: vimol-a fugir nas relaÁıes mutuas das diversas classes, e principalmente nas d'estas com o rei, das normas feudaes. Qual foi a causa d'este phenomeno? A mesma que produziu uma situaÁ„o analoga em Le„o e Castella. Desenvolvel-a e demonstral-a n„o cabe aqui: pertence a um trabalho mais vasto. Basta que digamos que essa causa foi a tradiÁ„o visigothica nunca apagada na Hespanha, e que esta tradiÁ„o n„o era feudal; porque a invas„o dos arabes no principio do VIII seculo n„o deu tempo a que o systema beneficiario se transformasse em feudalismo na Peninsula, como se transformou no resto da Europa romano-germanica. N'isto exclusivamente est· o motivo do excepcional que offerece a indole da primitiva sociedade portugueza. Mas ficou a Hespanha central e occidental, e sobre tudo aquella porÁ„o do territorio que nos respeita em particular, exempta das influencias da feudalidade? N„o por certo: n„o era possivel. As relaÁıes com as populaÁıes dos estados d'alÈm dos PyrenÈus tinham pouco a pouco crescido na monarchia leoneza: no tempo de Affonso VI os laÁos mutuos das duas sociedades hespanhola e franceza apertaram-se muito mais. Este celebre principe vivia rodeado de cavalleiros ultramontanos: os bispados e cabidos de Hespanha encheram-se d'homens de raÁa gallo-franca ou educados n'aquellas partes. Ha atÈ fundamentos para crer que algum dos dialectos da FranÁa meridional chegou a ser lingua falada na cÙrte de Toledo. Cluni enviou-nos os seus monges e introduziu entre nÛs as idÈas de independencia absoluta do clero, e, o que È mais, teve forÁa para alterar as formulas do culto com a mudanÁa do rito godo. Os territorios dados a governar ao conde D. Henrique n„o foram os mais malquinhoadas n'esta especie d'invas„o: todos sabem que o proprio conde era d'aquellas partes, e que muitos seus naturaes o seguiram aqui. No reinado de seu filho a influencia gallo-franca È quasi a mesma, e accrescentam-se-lhe as influencias de outros povos do norte. Os cruzados, que, tocando nos nossos portos ao seguirem para a Palestina, o ajudaram e a D. Sancho I a conquistar as grandes povoaÁıes dos arabes, c· nos deixavam por via de regra cavalleiros notaveis, clerigos, e atÈ colonias dos povos d'alÈm dos PyrenÈus. Todos estes elementos nos traziam sementes de feudalismo, e o terreno estava preparado, atÈ certo ponto, para o receber; porque das causas que o tinham feito nascer e consolidar-se muitas existiam entre nÛs. Assim a feudalidade, sem poder penetrar no cerne da arvore social, derramou-se, todavia, pelo alburno. A idÈa dos feudos generalisou-se na Galiza e em Portugal, como hoje vemos generalisarem-se entre nÛs idÈas peregrinas, em politica, em administraÁ„o, em litteratura, de um modo nebuloso e confuso. N„o faltam provas de se dar o titulo de feudo atÈ a simples concessıes vitalicias do usofructo de certas propriedades: e se nos deixarmos levar pelo soido de muitas fÛrmulas, phrases, e palavras dos antigos monumentos, e ainda por alguns costumes locaes e instituiÁıes secundarias, n'esses obscuros tempos a naÁ„o tomar· muitas vezes a nossos olhos o aspecto de uma sociedade feudal. Se o feudalismo n„o fosse, pezados os seus bens e os seus males, uma conveniencia, ou antes uma necessidade, ao menos para as classes mais fortes e poderosas, os elementos de destruiÁ„o que elle continha em si proprio n„o o teriam deixado vingar, ou tel-o-hiam dissolvido rapidamente. Assim, a nossa fidalguia, que lhe palpava as vantagens, acceitou-o por um lado, ao passo que se alinha por outro ·s tradiÁıes nacionaes. Tudo o que no feudalismo lhe podia ser util em relaÁ„o ·s classes inferiores buscou enxertal-o na arvore visigothica; tudo o que a podia constranger, ou entre si ou em relaÁ„o ao poder supremo, regeitou-o abraÁando-se aos foros antigos. Sem idÈas fixas e definidas a similhante respeito, o tacto da propria utilidade a guiava para acolher ou repellir as instituiÁıes feudaes. Tal nos parece a luz a que devemos vÍr o primeiro periodo da nossa historia: com ella achamos um fio no meio do labyrintho de direitos e deveres reciprocos e de condiÁıes diversas de propriedade, que se podem deduzir dos documentos: esses direitos, deveres, e condiÁıes nutam entre os costumes domesticos e os usos peregrinos--a innovaÁ„o triumpha quasi sempre da tradiÁ„o em tudo o que, por assim dizer, n„o muda a essencia do corpo politico. Os elementos que devem transformar essa essencia s„o a jurisprudencia canonica e a jurisprudencia romana: a primeira, postoque j· energica, limita quasi unicamente a sua acÁ„o a fortificar o clero: a segunda, que ha de vir a ser a panoplia da monarchia, encobre-se ainda debaixo do manto negro d'esses personagens gravemente sinistros, que ousam assentar-se na curia do rei juncto dos seus ricos-homens, e que ·s vezes nos apparecem nos monumentos d'aquella epocha com o titulo de _mestres das leis_. Guiados por estas doutrinas È que nÛs vamos considerar a existencia interna dos concelhos, n„o tanto nas suas particularidades accidentaes, ou na variedade dos seus tributos e privilegios (que muitas vezes n„o passam de uma differenÁa de nomes dados · mesma cousa), como nos seus elementos essenciaes e nos seus caracteres genericos. A estreiteza do nosso quadro nos n„o permitte entrar n'essas indagaÁıes de ordem inferior, as quaes, de passagem seja dicto, apesar do que sobre ellas se tem dissertado, ainda offerecem um vasto campo a novos e mais exactos trabalhos. Na instituiÁ„o dos concelhos portuguezes da primeira epocha da nossa historia ha dois factos capitaes que caracterisam a individualidade municipal e a distinguem da communa dos paizes centraes da Europa. O primeiro facto È que o concelho na sua organisaÁ„o interior era de certo modo o transumpto da sociedade, era que elle representava uma unidade moral: o segundo facto È que essa organisaÁ„o era a alguns respeitos essencialmente feudal. N'estes dois factos combinados se resume o aspecto do antigo municipio portuguez: por elles se explica a sua economia interna e as suas relaÁıes com o rei e com os outros corpos do estado. No commum dos foraes achamos consignada a existencia de tres classes distinctas: os cavalleiros (_milites_, _cabalarii_), os clerigos (_clerici_), e os peıes (_pedones_): ahi encontramos tambem os privilegios e encargos de cada uma d'ellas estabelecidos separadamente. Em relaÁ„o d'umas ·s outras estas tres classes representam os mesmos tres gr·us em que se divide a sociedade geral. Uma denominaÁ„o commum as une, porÈm, e nivella: uma palavra recorda a essas tres jerarchias que · face da nobreza e do alto-clero ellas s„o uma sÛ.--_Villıes_ (_villani_) È nome escripto indistinctamente nas frontes de toda essa plebe. Debalde o poder real d· ao cavalleiro vill„o o foro judicial dos infanÁıes, e o titulo de honras ·s suas propriedades: a nobreza de sangue olha sempre com altivo sobrecenho para aquelles que o rei pÛde fazer eguaes d'ella perante os magistrados, e cujas herdades pÛde honrar por cartas de foro, mas a quem n„o pÛde dar um nome illustre nem verdadeira fidalguia. Vejamos agora quaes eram os privilegios e encargos que distinguiam dos outros villıes estes cavalleiros plebeus. Os privilegios principaes de _miles villanus_, alÈm do que j· lembr·mos de gosar de formulas especiaes no processo, consistiam principalmente nos seguintes: 1.^o na exempÁ„o das jugadas, tributo que se pÛde considerar como o principal do paiz e que, imposto immediatamente na terra, era regulado pela extens„o da lavoura de cada proprietario, tomando-se por base para essa contribuiÁ„o o numero de jugos de bois que cada um possuia: 2.^o em n„o serem obrigados a dar hospedagem aos cavalleiros nobres, officiaes do rei, etc., que passavam pelo concelho, o que era um dos gravames mais duros n'esses tempos de rapina e d'insolencia: 3.^o o receberem parte das mulctas criminaes nos casos em que os culpados eram mancebos ou malados das suas aldeias, granjas, ou quint„as; e sobre tudo o n„o poder o processo contra estes progredir depois da citaÁ„o, em quanto o cavalleiro vill„o, estando ausente, n„o voltasse ao concelho: 4.^o na liberdade de irem servir como homens d'armas os senhores e nobres, sem que perdessem por isso os seus privilegios municipaes: 5.^o o pertencerem-lhes por via de regra os montados ou os direitos d'elles, nos concelhos onde estes n„o eram livres: 6.^o na exempÁ„o de alguns direitos de portagem: 7.^o em n„o serem tomados para o fisco os bens d'aquelles que morriam sem filhos, pagando apenas uma certa somma, a que se chamava _nucio_ ou _nuncio_, e ficando exemptos do maninhadego, que sÛ recahia sobre os bens dos peıes. Cumpre, todavia, advertir que tanto um como outro direito s„o abolidos em bom numero de foraes. As prerogativas do clero inferior, isto È, dos clerigos que visinhavam nos concelhos, e que por isso ficavam virtualmente contidos no gremio dos villıes, commummente s„o apenas indicadas nas cartas de foral pelas palavras _os clerigos tenham o costume dos cavalleiros_. Esta simples determinaÁ„o, que ainda assim parece ter esquecido em muitos foraes, indica ser essa classe pouco importante nos concelhos, provavelmente porque a maior parte d'aquelles que por mil modos se aggregavam ao corpo ecclesiastico, bastando ·s vezes para isso a tonsura ou outro signal exterior, buscassem viver · sombra do alto clero, e evitassem o aggregar-se aos concelhos onde n„o podiam encontrar t„o perfeita seguranÁa e protecÁ„o. Em que consistiam, porÈm, as vantagens dos peıes? Quem olhar sÛ para as cartas de foral crer· que estas n„o eram numerosas nem importantes: mas quem se lembrar da prepotencia e bruteza dos poderosos; quem comparar a sorte dos moradores dos coutos, das honras, e de quaesquer outros logares n„o constituidos em municipios, com a dos membros d'estes; quem, finalmente, ponderar que os fragmentos do feudalismo que penetravam no paiz traziam os males e oppressıes d'aquelle systema sem trazerem os seus beneficios; conhecer· que os peıes dos concelhos eram grandemente favorecidos por estas cartas de communa, apesar de que ellas n„o contivessem metade das garantias de que hoje goza qualquer cidad„o, ainda sob um governo absoluto. N'uma epocha em que a puniÁ„o dos homicidios se deixava legalmente · vindicta da familia do morto; em que contra as violencias feitas ao fraco pelo forte a auctoridade publica n„o punha outra barreira sen„o o muitas vezes impossivel direito de resistencia[57]; em que, na distribuiÁ„o das terras dos poderosos, aos que as cultivavam se impunham quantos encargos a ardente imaginaÁ„o da cubica podia inventar[58]; n'uma tal epocha, dizemos, as instituiÁıes dos foraes relativas aos peıes eram verdadeiros privilegios em relaÁ„o aos habitantes das terras n„o-municipaes. Da uni„o dos moradores nascia a possibilidade da resistencia, e o foral consagrava esta na sua maior extens„o. Se um nobre, por exemplo, sahindo da sua honra vinha commetter a casa do vill„o para lh'a roubar ou raptar-lhe violentamente a mulher ou a filha, o aggredido podia matal-o, e apenas pagava para isso ao fisco (_ad palacium_) uma coima assaz modica, e ·s vezes nenhuma, ficando atÈ privada do direito de homicidio a familia do morto[59]. Por outra parte, os direitos de jugada e as portagens eram commummente os unicos impostos importantes, os quaes substituiam esses centenares de alcavallas que pesavam sobre os foreiros particulares ou da corÙa nos allodios, reguengos, coutos ou honras; e ao passo que pelos contractos especiaes com os grandes proprietarios ou donatarios de terras n„o-municipaes os lavradores se arriscavam por qualquer falta a perder a herdade, pela transmiss„o do foral se assegurava a perpetuidade da posse aos agricultores dos concelhos, podendo-se considerar, para nos servirmos de uma distincÁ„o dos juristas, os direitos senhoriaes ou, antes, reaes, mais como um censo do que como um foro. Ajuncte-se a isto o privilegio de que gozavam os peıes de serem julgados em primeira instancia pelos alvazis ou juizes electivos do concelho, ao mesmo tempo que nas terras particulares estavam entregues ao juiz do senhor, e conhecer-se-ha qu„o vantajosa era a situaÁ„o do povo nos logares que obtinham a organisaÁ„o municipal. Considerados os privilegios das tres classes d'individuos de um concelho nos seus lineamentos principaes, e despresadas as circumstancias de menos monta, vemos claramente estabelecida a analogia entre a sociedade geral e estas pequenas sociedades embebidas, por assim dizer, n'ella. No caracter de perpetuidade que toma pela carta de foral a doaÁ„o das terras aos villıes, caracter contrario ao dos prÈstamos, muitas vezes vitalicios, ou beneficiarios, e sempre revogaveis, nos apparece j· o elemento feudal actuando na organisaÁ„o dos municipios. As obrigaÁıes das tres classes de membros nos concelhos nos revelar· melhor a acÁ„o d'esse mesmo elemento. Dissemos que as herdades dos cavalleiros villıes eram exemptas de jugada ou raÁ„o; privilegio importante que os alliviava do tributo capital do paiz. E isto era justo; porque em logar d'elle se lhe pedia o tributo mais pezado que uma naÁ„o pÛde pedir aos seus membros--o tributo de sangue. O _fossado_ ou serviÁo militar era um dever: a falta do seu cumprimento trazia uma pena pecuniaria--_a fossadeira_, que alguns entenderam ser uma substituiÁ„o em dinheiro do serviÁo pessoal, mas que era uma verdadeira mulcta. Se o cavalleiro perdia o cavallo e n„o comprava outro dentro de um certo prazo, descia da classe de _miles_ para a de pe„o; as suas herdades ficavam reduzidas · condiÁ„o de jugadeiras, e todos os seus privilegios desappareciam. Em alguns concelhos o cavalleiro que perdia o cavallo em batalha (_in lide_),ou ainda n'um pequeno recontro (_in algara_), recebia outro do rei. Finalmente, ao que envelhecia e n„o podia servir por essa causa se guardavam os privilegios de classe, que por morte se transmittiam · sua viuva em quanto se conservava em viuvez. A fossado ia uma parte dos cavalleiros e a outra ficava no concelho: n'uns ia um terÁo e ficavam os dois: n'outros iam estes e ficava aquelle. Por alguns foraes a obrigaÁ„o do fossado sÛ existia quando o _senior_ ou o rei iam n'elle: regularmente, o cumprimento de similhante dever era exigido uma sÛ vez no anno, e ficava-lhes a liberdade de irem ou n„o em outras quaesquer expediÁıes que occorressem. Que era propriamente o fossado? Os antiquarios e historiadores teem variado na intelligencia d'esta palavra, e os principaes, como o auctor do _Elucidario_, suppıem fosse um commettimento para talar as terras dos inimigos e colher as suas searas. NÛs persuadimo'-nos de que a palavra tinha uma significaÁ„o mais extensa--a que lhe deu nos foraes de Castella Martinez Marina--a _obrigaÁ„o de ir · guerra_. Os foraes n„o fallam de dever militar mais importante do que o fossado: o _appelido_ era o chamamento geral para a defesa do concelho ou da povoaÁ„o accommettida; a _azaria_ um salto ou correria voluntaria que n„o È estabelecida nos foraes, e que era porventura isso que se pretende signifique a palavra fossado; a _atalaia_ e a _guardia_ eram a obrigaÁ„o de vigiar os inimigos, talvez a primeira em postos permanentes, e a segunda correndo em roldas ou patrulhas. Como, pois, deixar de incluir o dever de ir no exercito debaixo da denominaÁ„o de fossado? A guerra n'aquelles tempos comeÁava com a primavera e o mais que durava era atÈ o fim do estio. Assim imposta a obrigaÁ„o annual do fossado bastava ao rei este direito para ter sempre os _milites villanos_ a seu mandar. Se a hoste real marchava, elles podiam pagar, seguindo-a, o seu perigoso imposto: se n„o, pagal-o-hiam fazendo entradas nas terras inimigas. _Ir em hoste_ significava a obrigaÁ„o militar dos nobres que venciam soldo; e para distinguir a mesma obrigaÁ„o imposta aos cavalleiros villıes dava-se o nome de fossado a esta? Suspeitamol-o; mas ainda n„o ach·mos prova sufficiente para podermos affirmar o uso exclusivo de cada um dos dois termos. Abstendo-nos de falar dos privilegios e deveres secundarios dos cavalleiros de municipio, porque n„o escrevemos um livro, mas colligimos apenas alguns apontamentos, procur·mos fazer sentir o pensamento feudal na posse plena da propriedade concedida aos municipios, e na obrigaÁ„o de serviÁo militar, limitado como nos feudos a um certo periodo cada anno. N'esses concelhos, que nasciam na epocha da feudalidade, a influencia d'esta era profunda, em quanto a indole da sociedade geral lhe resistia e sÛ a deixava penetrar nas suas formulas exteriores. Os deveres do clero inferior ou vill„o, se tal nome se lhe pÛde dar, s„o mais dificultosos de definir. N'um avultado numero de foraes que temos cuidadosamente estudado, n„o encontr·mos ainda sen„o a egualdade dos seus privilegios aos dos cavalleiros do concelho, e algumas exempÁıes especiaes. Estava elle sujeito ao menos a uma parte dos deveres impostos ·quelles? … quest„o que offerece algumas especies curiosas, e que tem certa importancia para o objecto principal que nos occupa--a historia da antiga economia nacional, que outra cousa n„o È na essencia a dos bens da corÙa e dos foraes. No principio da monarchia, ao menos atÈ o meiado do seculo XIII, a obrigaÁ„o do serviÁo militar estendia-se ao clero dos concelhos, se n„o inteiramente de direito, ao menos de facto: n'alguns foraes elle apparece expressamente exempto do fossado, mas esta particularidade _esquece_ em muitos outros. Isso bastaria para nos fazer suspeitar que ao menos nos concelhos, cujos foraes s„o omissos a similhante respeito, lhe n„o valia o caracter sacerdotal para o eximir dos perigos da guerra. Outra prova negativa È uma lei de D. Affonso II[60] que, exemptando todos os clerigos em geral das atalaias, das colheitas (especie de tributo em dinheiro ou generos), e da adua (serviÁo pessoal imposto para a edificaÁ„o e reparo dos castellos e muros), nada dispıe a respeito do fossado, o qual, sendo o serviÁo mais importante dos cavalleiros vill„os, e estando os clerigos equiparados a estes pelos foraes, parece n„o devia esquecer na enumeraÁ„o das exempÁıes geraes estabelecidas para aquella lei. Este silencio tem, em nosso entender, uma explicaÁ„o na grande lucta do estado ecclesiastico e do rei, a qual versava sobre as celebres immunidades da egreja, isto È, sobre a pretenÁ„o que o clero tinha de ser perfeitamente livre de todos os encargos sociaes e de n„o estar, nos seus processos criminaes ou civeis, sujeito a tribunal ou auctoridade que n„o fossem os ecclesiasticos. Assim, tanto a legislaÁ„o como os foraes s„o incompletos e obscuros a respeito d'esta classe, variando segundo os aspectos que tomava esse acceso e duradouro conflicto. A algum dos nossos leitores affeito ·s idÈas modernas parecer· extranho o imaginar que o clero fosse levado aos combates, ou tal obrigaÁ„o se lhe podesse impÙr. Todavia, nada ha mais certo que a frequente associaÁ„o do sacerdocio com a milicia na edade-media: os proprios bispos eram guerreiros, capitaneavam expediÁıes militares, e venciam soldos como homens de guerra. A historia offerece-nos innumeraveis exemplos de similhante costume. AlÈm d'isso a palavra _clerigo_ tinha uma significaÁ„o immensamente mais ampla que hoje. Uma tenuissima relaÁ„o com a egreja e com o culto fazia incluir qualquer individuo no gremio da clerezia. O auctor do _Elucidario_ apontou muitas especies de sujeitos em quem recahia tal titulo, e ainda n„o as distinguiu todas. ¡s provas negativas de que o clero n„o era exempto do serviÁo militar, bem que a isso se oppozessem as doutrinas canonicas, ajuncta-se o testemunho positivo e irrefragavel que nos d· um genero de monumentos, sem os quaes ser· sempre incompleta a historia d'aquellas eras tenebrosas. Falamos das bullas e rescriptos dos papas: È d'estes diplomas que nÛs vemos que similhante practica era constante na primeira epocha da nossa historia, quando os foraes n„o exemptavam o clero expressamente de tal dever. Entre outros queixumes que Innocencio III dirigia a D. Sancho I era um o _arrastar os clerigos ao exercito, fazendo-lhes injurias e opprobrios_. Eguaes queixas se encontram n'uma bulla de Honorio III aos bispos de Astorga e de Tuy contra D. Affonso II, o qual, _n„o contente com isto_ (o quebrar varias outras immunidades), _obrigava-os a ir contra sua vontade construir e reedificar muralhas, e alÈm d'isto ·s expediÁıes, e a fazer o serviÁo de vigias, o que, na lingua d'aquella gente, se chamava anuduvas ou atalaias_. Gregorio IX encarregava o franciscano Fr. Jacob de penitenciar e absolver D. Sancho II, _porque varias vezes espancara clerigos com a m„o ou com um pau, tanto no exercito como n'outras occasiıes, n„o por inspiraÁıes do diabo, mas constrangido pela necessidade ou de ordenar as fileiras, ou de sahir d'alguma revolta de gente_[61]. Este mesmo papa, dirigindo a D. Sancho uma especie de inventario de todas as culpas que elle rei havia commettido contra a egreja, inventario recheado de insolencias e ameaÁas conformes com o caracter audaz e phrenetico de Gregorio IX, lhe cita, entre outras cousas, o obrigar os ecclesiasticos ao serviÁo militar, accusando-o pouco depois de os constranger a respeitarem as leis e estatutos (_banna et statuta_) d'elle e _dos seus barıes_, no que nos parece descobrir uma allus„o obscura aos foraes[62]. VÍ-se, pois, ter-se por muito tempo entendido que, assim como o clero gosava de exempÁıes dos _milites villani_, cumpria desempenhar como elles os encargos da sua situaÁ„o politica. Consideradas as obrigaÁıes capitaes das classes privilegiadas dos municipios, resta o falar dos encargos dos peıes. J· dissemos que o tributo da jugada lhes compensava a exempÁ„o do fossado. A jugada era o tributo caracteristico; mas estava longe de ser o unico: as portagens como imposto indirecto iam recahir em geral sobre os consumidores das mercadorias; mas na sua acÁ„o directa gravavam os peıes que especialmente se occupavam no commercio interno: a obrigaÁ„o militar do appellido, commum a todos os membros do concelho, quasi n„o se deve considerar como um onus: o appellido, que consistia em correrem todos a defender a povoaÁ„o quando a assaltavam inimigos, era um dever estabelecido pelo sentimento da propria conservaÁ„o antes de o ser pelos foraes. As outras contribuiÁıes variadas de que nos poderiamos lembrar n„o cabem n'um trabalho necessariamente rapido, e alÈm d'isso n„o offerecem nas suas multiplicadas e incertas especies caracter algum particular em relaÁ„o · fazenda publica sen„o o de augmentarem mais ou menos o _quantum_ dos tributos de cada municipio, e o de recahirem por via de regra sobre a classe pean. N'uma historia, porÈm, da naÁ„o portugueza o exame d'essas contribuiÁıes ser· de alta importancia, julgando-as na sua influencia sobre o progresso ou decadencia do commercio, da agricultura, e da industria. Uma cousa se ha de ainda advertir comtudo: n'um paiz devastado por continuas correrias os gados n„o podiam ser numerosos, e alÈm d'isso os concelhos, por muitas razıes que s„o obvias, n„o deviam conter grande porÁ„o de proprietarios ruraes, cuja lavoura demandasse um ou mais jugos de bois. Ficava, portanto, n'esse caso a pequena cultura exempta da jugada? N„o: os foraes tinham previsto essa hypothese mui frequente: l· est· de ordinario designada a contribuiÁ„o que tocava ao que para o lavor da terra apenas possuia um boi, e do mesmo modo a que se havia de receber d'aquelle que com os proprios braÁos agricultava o seu campo, e a quem se dava o nome de cavador (_cavom_). Resta-nos agora tractar das _calumnias_, ou tributos sobre os crimes, e depois indagar se a indole das instituiÁıes municipaes correspondia de feito aos pensamentos e instinctos do poder central, aos quaes nÛs attribuimos a diligencia com que elle trabalhava em organisar e fortalecer o terceiro estado. V Tem-se crido e dicto geralmente desde que a historia comeÁou a ser cousa mais sÈria e grave do que a narraÁ„o exclusiva de dois casamentos, quatro enterros, e seis batalhas; tem-se crido e dicto que a edade-media no seu systema penal vendia quasi absolutamente por ouro a impunidade do crime. A letra dos foraes parece auctorisar esta opini„o, que por muito tempo foi a nossa. Hoje estamos persuadidos de que ella deve ser grandemente modificada. As penas pecuniarias nem eram t„o geraes como se crÍ, nem eram um trafico feito pela forÁa publica da justiÁa dos individuos. Guardamos para outra parte o desenvolver esta idÈa, que n„o cabe aqui, tanto porque nos obrigaria a dilatarmo'-nos muito, como por ser alheia · natureza do presente trabalho: mas apontaremos o fio que nos guiou, falando das _calumnias_ ou coimas, que em nosso entender se devem chamar antes _impostos criminaes_, do que _penas dos crimes_. Estes impostos formavam uma das partes mais productivas das rendas dos concelhos, tanto para o rei ou para o tenente ou donatario que o representava, como para os proprios municipios. A _calumnia_ estendia-se a todos os actos criminosos, que n'aquella epocha eram qualificados de um modo diverso do de hoje. Para o homicidio, para o rausso (rapto violento da mulher casada ou filha familia), para os arrombamentos ou destruiÁ„o de habitaÁıes, para o furto, para as rixas em logares publicos, para as injurias pessoaes, etc., o foral estabelecia especialmente coimas, cuja taxa variava segundo a gravidade da culpa. N'aquelles tempos de ferocidade e bruteza, as paixıes violentas transpunham com furia a todo o momento os limites do justo e do legal: assim as coimas, que ora pertenciam inteiramente ao fisco (_ad palacium_), ora em parte a este e o resto ao concelho (_septima ad palacium_), deviam produzir um rendimento importante. Tambem em alguns casos serviam como emolumentos dos juizes. Estas coimas, porÈm, constituiam a verdadeira e unica penalidade? O exame attento dos foraes nos revela o contrario. Duas expressıes ha n'esses diplomas que, se muitas vezes se confundem, muitas mais guardam certa distincÁ„o, que n„o È possivel desattender: _pague_ (_pectet_) indica regularmente o preceito da soluÁ„o de calumnia; _componha_ (_componat_) parece representar o principio da reparaÁ„o ao offendido. Provavelmente na maior parte dos casos esta reparaÁ„o era pecuniaria; mas isso mesmo basta para collocar o systema penal da edade-media a mui differente luz. O estado impunha ao criminoso uma pena que era um verdadeiro tributo--a coima. O mordomo, ou official de fazenda local, recebia-a, e tinha por ella acÁ„o contra o culpado; mas ao aggravado devia o alvazil ou juiz dar seu direito. A execuÁ„o do _pectet_ escripto no foral pertencia ao primeiro, a do _componat_ incumbia ao segundo o tornal-a effectiva. Se partirmos d'esta idÈa na apreciaÁ„o dos foraes, vel-a-hemos confirmada pela doutrina das suas disposiÁıes, que sem ella ficar„o muitas vezes inintelligiveis. Quando em certos foraes se impıe ao homicida uns tantos soldos _ad palacium_, annulla-se o direito de revindicta, isto È, de os parentes do morto vingarem este com a morte do matador ou de algum dos seus parentes? Quando em outros se estabelece a coima do rausso, e depois se accrescenta que alÈm d'isso o raussador fique homicida, isto È, sujeito · vinganÁa sanguinolenta dos offendidos, n„o È aquella pena um tributo e a vinganÁa uma puniÁ„o? D'estas e d'outras hypotheses que constantemente se encontram nos foraes resulta que n„o pÛde a _calumnia_ representar rigorosamente as leis penaes do municipio. NÛs entendemos que nos costumes (muitos dos quaes, escriptos ou n„o escriptos, eram reminiscencias do codigo visigothico, dos canones dos concilios anteriores e posteriores · entrada dos arabes, e emfim d'usanÁas cuja origem se ignora, e porventura da jurisprudencia mahometana) estavam estabelecidas as verdadeiras leis penaes, e que nos foros ou cartas de concelho as coimas ou penas pecuniarias representavam antes leis de fazenda. Se muitas vezes, como no crime de furto e outros, parece estabelecer-se uma _pena_ pecuniaria que È verdadeira _reparaÁ„o_, esta circumstancia tornava-se necessaria, porque sendo a coima frequentemente um _quantum_ deduzido d'essa pena, ou regulado por ella, cumpria para evitar duvidas que no foral se declarasse qual era; nem temos motivo algum para suppÙr que ahi se alterassem as penas que os costumes, onde os havia, tinham estabelecido. Por estas rapidas indicaÁıes os espiritos attentos poder„o chegar ao resultado a que nÛs cheg·mos de considerar as leis penaes das cartas de municipio como simples leis de imposto, e de as reduzir a uma das causas a que attribuimos principalmente a propagaÁ„o dos concelhos--· necessidade de trazer rendimentos aos cofres do estado, que os privilegios das classes aristocraticas tendiam a empobrecer. Temos examinado a existencia dos concelhos na parte das suas relaÁıes externas que respeitam · economia publica. O estudo da vida municipal È, porÈm, muito mais vasto, e o que havemos apresentado ao leitor È apenas um dos seus aspectos. ForÁa È contentarmo'-nos com isso, para n„o fugirmos da quest„o que nos occupa. Que havemos nÛs visto n'esse attento exame? A creaÁ„o de uma especie de milicia quasi feudal, que possue as terras, privilegiadas por foro, com a obrigaÁ„o do serviÁo pessoal militar feito ao rei como suzerano commum: o estabelecimento de uma certa somma de tributos recahindo principalmente sobre os homens do povo que n„o pagavam ess'outro tributo de sangue: finalmente, a uni„o dos villıes, que dispersos ou desunidos nada valeriam contra os nobres, mas que ligados por direitos, privilegios, e obrigaÁıes communs, constituiam entidades moraes fortes e activas, cujos interesses eram oppostos aos das classes aristocraticas (o alto-clero e a nobreza), e a que por isso a monarchia naturalmente se alliava nas suas luctas com ellas. E esta aggregaÁ„o de homens do povo, lanÁados em grupos por toda a superficie do paiz, realisa de feito o triplicado fim da sua existencia. A grande acÁ„o dos concelhos no progresso social da naÁ„o n„o foi prevista, ao menos atÈ · sua derradeira consequencia--a victoria da classe burgueza n'uma epocha remota que È a nossa: mas sentiu-se desde logo que elles eram um elemento de ordem e de forÁa contra as violencias dos poderosos. O principio monarchico armava-se com elle para se emancipar das m„os da aristocracia, fortalecer-se, e organisar a sociedade. AfÛra esta politica (se politica pÛde chamar-se ao instincto da propria existencia e ao desejo do predominio) nenhum outro pensamento nos parece ter havido na promulgaÁ„o dos foraes. Estes n„o crearam situaÁıes novas para os individuos em particular; porque antes e a par d'elles, desde o homem d'armas atÈ o malado ou servo, havia todas as gradaÁıes na classe popular, e existiam os tributos que encontramos nos concelhos: o que o poder central fez n'estes foi dilatar isso tudo, constituil-o permanentemente, garantil-o, dar-lhe um caracter publico, e crear o serviÁo militar n„o pago. Nos coutos, nas honras, nos prÈstamos da corÙa, encontram-se, ora n'uns ora n'outros, vestigios das diversas classes de villıes, das diversas especies de contribuiÁıes que apparecem nos concelhos, e outras mais: ahi, porÈm, tudo depende do _Dominus_ do couto e da honra, ou do prÈstameiro, porque o poder supremo nenhuma acÁ„o exercita dentro d'esses senhorios; nem ahi ha pacto geral entre o senhor e os subditos: as terras s„o dadas por titulo especial; segundo este as contribuiÁıes, os direitos, e os deveres variam de casal para casal, de courella para courella; e quando sobre qualquer d'esses pontos se alevantasse uma contestaÁ„o, l· estava o juiz, posto pelo senhor ou donatario, para julgar a seu prazer. A condiÁ„o legal dos habitantes era ahi pouco mais ou menos a mesma que a dos membros dos municipios, mas a sua situaÁ„o real era inteiramente diversa--diversa quanto o pÛde ser dependendo l· do arbitrio, c· unicamente das disposiÁıes de um pacto. O donatario de uma terra municipal ficava adstricto aos _bons-foros_: se os quizesse quebrar encontraria ante si um corpo moral para lhe resistir, em quanto o prÈstameiro de um couto ou honra acharia apenas individuos fracos para esmagar debaixo dos seus sapatos de ferro. Resta-nos falar d'uma especie de propriedade tributaria, que occupando uma importante porÁ„o do solo n„o augmentava sen„o indirectamente a renda do estado. Alludimos aos reguengos. Os reguengos eram os bens patrimoniaes do rei. No principio da monarchia a distincÁ„o d'estes bens dos da corÙa n„o era mui clara; mas È certo que no fim da primeira epocha (reinado de D. Affonso III) a differenÁa entre uns e outros estava perfeitamente estabelecida. Estes reguengos eram herdades mais ou menos vastas, encravadas muitas vezes nos termos dos concelhos, e os seus privilegios os maiores depois dos de coutos e honras; mas taes privilegios ficavam compensados pela exorbitancia dos tributos. Ordinariamente os reguengos, inteiros ou divididos, davam-se a foro; mas foro que, subindo as mais das vezes ao quarto dos fructos, raramente deixava de ser sobrecarregado de outras exacÁıes e serviÁos, a que se accrescentavam gravosos direitos de transmiss„o. D. Diniz distinguiu-se por cubiÁa inexoravel nos seus aforamentos de bens reguengueiros; mas essa cubiÁa foi castigada, abandonando-lhe muitas vezes os foreiros as terras, por se tornar impossivel para elles a soluÁ„o dos foros. Os reguengos, pois, n„o eram rigorosamente uma fonte do rendimento publico; mas sendo destinados · manutenÁ„o da casa do rei, e correspondendo ·s modernas dotaÁıes dos governos constitucionaes, vinham indirectamente a augmentar o patrimonio publico, desobrigado assim de supprir as despezas pessoaes do principe. Mas, porventura, esta distincÁ„o era mais real quanto · natureza dos reguengos e · condiÁ„o dos seus habitantes do que pelo que tocava aos foros e tributos que d'elles se tiravam. N„o È muito provavel que se guardasse uma differenÁa exacta entre a applicaÁ„o dos rendimentos da corÙa e a dos rendimentos do patrimonio real: o rei tendia naturalmente em tudo a confundir-se com o Estado, e os livros do _Rec·bedo Regni_ (o registo dos bens da corÙa) n„o deviam tardar em constituir um sÛ todo com os do _Reposito_ ou _Repositorio_ (o registo dos bens reguengos). De feito, j· nos diplomas da primeira epocha historica vemos o rei chamar, tanto ·s contribuiÁıes municipaes e rendas proprias da corÙa como ·s das herdades reguengueiras, _meus_ foros, e _meus_ direitos (_meos foros_, _meum directum_). No segundo periodo historico, isto È, do meado do seculo XIII atÈ o fim do XIV, veremos effectivamente desvanecerem-se de todo, em relaÁ„o · economia da fazenda publica, os traÁos que dividiam o patrimonio do rei do patrimonio da sociedade. Antes de entrar n'esse periodo, resumamos as nossas idÈas sobre o systema dos tributos deduzidos d'esses factos que temos apresentado ao leitor, insuficientes para a historia completa da economia nacional nos primeiros tempos da monarchia, mas bastantes para se conhecerem os lineamentos principaes da nossa organisaÁ„o primitiva dos impostos na mais larga significaÁ„o d'esta palavra. Este resumo ser· breve, mas eloquente: eloquente n„o pelas palavras, mas pelas idÈas; pelos grandes factos sociaes que representa. As tradiÁıes visigothicas, incarnadas na nossa sociedade nascente, embargaram que o feudalismo penetrasse na essencia d'esta, e apenas o deixaram passar incompleto no accidental das instituiÁıes: assim, entre nÛs os crimes, as tyrannias, as luctas civis, foram mais tenues, e antes filhas da barbaria que da feudalidade; mas em compensaÁ„o faltou-nos o que nesta havia de boa organisaÁ„o; faltou-nos essa vasta rede de obrigaÁıes mutuas, moraes e materiaes, entre os senhores e os vassallos por todos os gr·us da complicada jerarchia feudal, que era um poderoso elemento de ordem no meio das trevas e da incerteza d'instituiÁıes e costumes. Se entre nÛs a classe popular n„o cahiu em t„o completa servid„o como nos paizes de feudalismo; se os malados e homens de creaÁ„o (_homines de maladia_, _homines de creatione_), especie de servos de gleba formada provavelmente dos descendentes dos antigos servos dos visigodos e dos criminosos reduzidos · escravid„o por pena[63]; se esta raÁa, dizemos, desapparece rapidamente e se transforma em raÁa de homens livres (_forarii_), aggregando-se ao grande vulto do povo, logo na fronte d'este se escreve um nome que o distinga das classes nobres. _Honrado_ (_honoratus_) È a palavra que designa o homem do privilegio: _tributario_ (_tributarius_) a que indica o homem que recebeu precipua a heranÁa de Ad„o--o trabalho. E estas duas designaÁıes revelam a indole intima da sociedade: o imposto È o marco divisorio dos dois campos: a villania resume-se no imposto; a nobreza na exempÁ„o. Depois, este pensamento derrama-se por toda a parte, transforma-se por mil modos, varia por diversos aspectos; est· no amago de todas as distincÁıes. Contribuir ou n„o contribuir, eis o que se reproduz universalmente no complexo dos diversos direitos politicos. D'este modo a sociedade inteira em relaÁ„o ‡s pessoas explica-se pela historia da fazenda publica, e por assim dizer contÈm-se no gremio d'ella. Dois generos de contribuiÁıes alimentavam a vida social da monarchia, sustentando a sua individualidade e crescendo atÈ os seus limites possiveis por meio da guerra, organisando-se inteiramente por meio de instituiÁıes e leis administrativas e judiciaes, que para a sua execuÁ„o precisavam, ao menos em parte, de officiaes e magistrados pagos, e fortificando-se interiormente para salvar a integridade do territorio e repellir as invasıes. Estes dois generos de tributos eram, pois: 1.^o os de sangue: 2.^o os de productos, numerario, ou trabalho, que rigorosamente s„o identicos. Todos elles recahiam exclusivamente sobre a classe popular, e n'esta sobre uma parte sÛ--sobre aquelles que n„o habitavam dentro dos limites dos coutos e honras: essas na verdade pagavam mil especies de foros, pensıes, e foragens (_directurae_), mas tudo revertia em proveito do senhor da terra. Juncto aos padrıes que marcavam o ambito do territorio honrado expirava a acÁ„o dos exactores e officiaes do rei: passal-os era correr o risco da mutilaÁ„o ou da morte[64]. Mas ao menos estes poderosos senhores ajunctavam-se, ao brado da guerra, em volta dos pendıes reaes seguidos dos seus homens d'armas? Vinham ao menos ahi aquelles cujas honras e coutos eram prÈstamos da corÙa ou verdadeiros beneficios, e retribuiam em feitos militares a cess„o que em proveito d'elles fazia o Estado de uma importante parte do seu patrimonio? N„o! Para o illustre rico-homem montar, cuberto de todas as peÁas, no seu cavallo de batalha e ir guerrear os inimigos da cruz ou da patria, cumpria pagar-lhe, e o numero de seus cavalleiros era regulado pela somma mais ou menos avultada que percebia. As soldadas (_solidatae_) dos primeiros tempos da monarchia foram a origem das _quantias_, que vamos encontrar na epocha seguinte, do mesmo modo que acharemos j· aquellas na epocha dos reis de Le„o, se retrogradarmos alÈm do berÁo da sociedade portugueza. Estas soldadas ou quantias sahiam necessariamente das contribuiÁıes em generos ou dinheiro pagas pelos municipios, contribuiÁıes que, como vimos, recahiam sÛ principalmente sobre os _pedones_, tributarios ou jugadeiros, e atÈ certo ponto sobre os _caballarios_, cavalleiros villıes, a quem tocava n„o sÛ o serviÁo militar gratuito, mas por via de regra o principal imposto em trabalho (_anuduva_), que atÈ certo ponto era serviÁo militar, sendo destinado · edificaÁ„o e restauraÁ„o dos muros e castellos. Os membros das aggregaÁıes populares chamadas concelhos agricultavam pessoalmente a terra, serviam na guerra sem paga, e contribuiam para as despezas do Estado com aquella parte para que n„o bastavam as rendas ordinarias dos bens da corÙa, que diariamente se desbaratavam em doaÁıes gratuitas ao alto-clero e · nobreza, que faziam cultivar esses bens por foros e pensıes de mil especies, em proveito seu particular: e depois o nobre servia como o vill„o na guerra, mas por um soldo tirado do que esse mesmo vill„o pagava para supprir os rendimentos da corÙa, j· devorados pelas classes aristocraticas. Era a ida ‡ caÁa do le„o com o veado. E foi caÁada que durou por alguns seculos. VI Procur·mos fazer sentir antecedentemente como logo no principio da monarchia o patrimonio fixo do estado--a propriedade publica--comeÁou a ser desbaratado, e como os concelhos o suppriram com as contribuiÁıes de sangue, dinheiro, e trabalho, impostas pelos foraes. J· alludimos ao excesso a que tinham chegado as doaÁıes feitas · aristocracia nos primeiros tempos de D. Diniz, excesso que este rei se viu depois constrangido a remediar, revogando o que elle proprio fizera na sua mocidade. Mostr·mos que similhantes doaÁıes eram por via de regra graciosas; porque o privilegio das _pessoas_, segundo as idÈas triviaes na edade-media, estendia-se ·s _cousas_, ou antes ficava sendo representado pelo privilegio d'estas. Assim, os bens da corÙa, passando para as m„os dos nobres, recebiam d'elles caracteres similhantes aos dos seus bens hereditarios, e, sendo estes absolutamente exemptos de todo o genero de contribuiÁ„o, tornavam-se completamente nullos os effeitos economicos da existencia de um patrimonio publico. Ainda, porÈm, isto n„o era tudo. O estado de guerra frequente, n„o sÛ com os mussulmanos, nossos inimigos irreconciliaveis, mas tambem com os outros paizes christ„os da Hespanha, fizera com que todas as povoaÁıes de certa importancia tivessem por nucleo e defens„o um castello, cujo governador, conhecido depois geralmente pelo nome de alcaide-mÛr, e n'esta primeira epocha pelo de _pretor_[65], era sempre um nobre. Este homem cumulava a suprema auctoridade militar e judicial; e um grande numero de contribuiÁıes municipaes, sobre tudo das que provinham das coimas ou calumnias, lhe constituiam um avultado rendimento. Esta viciosa organisaÁ„o trouxe com o correr dos tempos um resultado fatal. As doaÁıes foram gradualmente confundindo o que os foraes distinguiam: os direitos do _palacium_ ou fisco real, representado pelo magistrado[66] local de fazenda (_maiordomus_), misturaram-se com os do alcaide-mÛr. A transformaÁ„o foi lenta; e ser-nos-hia por certo difficultoso n'este rapido esboÁo seguir a sua marcha. O _senhorio_ das terras municipaes foi pouco a pouco substituindo a _alcaidaria_, sem que por isso este titulo se esquecesse. O rei, empenhado, por causas que n„o vem para este logar, em diminuir a jurisdicÁ„o civil e criminal da aristocracia, como que lh'o compensava abandonando-lhe as rendas reaes dos concelhos. O senhorio de uma terra municipal comeÁou a equivaler a uma doaÁ„o de bens da corÙa. Entretanto a monarchia habilitava-se, passando o poder judicial para as m„os dos legistas, homens inteiramente addictos ao throno, para uma victoria certa na grande empresa de subjugar as resistencias dos nobres. A consequencia immediata das doaÁıes dos direitos reaes pagos pelos municipios foi o apuro da fazenda publica, e este apuro trouxe ou, pelo menos, generalisou um costume que peiorou a situaÁ„o d'essa mesma fazenda. Como as rendas escaceavam para pagar as soldadas ou _quantias_ aos cavalleiros nobres, e elles n„o serviam de graÁa, porque esse mister incumbia aos villıes, na falta de meios pecuniarios para as satisfazer deram-se os bens que voltavam · corÙa e os senhorios das terras em _pagamento das quantias_. Era uma situaÁ„o comparavel · de qualquer paiz dos tempos modernos, onde a m· gerencia do erario trouxesse como remedio os emprestimos, que, deixando sempre intactas as causas do mal, n„o fizessem sen„o multiplicar-se, e gerar a agiotagem e todas as terriveis consequencias d'ella. … evidente que, sendo fluctuantes os rendimentos reaes de cada concelho, e dando-se estes como pagamento das quantias, os que recorriam a similhante recurso ignoravam o que despendiam, mas tinham a certeza de que era mais do necessario; porque os fidalgos recusariam a substituiÁ„o se ella fosse contraria aos proprios interesses. Cumpre, todavia, confessar que as opiniıes feudaes sobre o serviÁo militar da nobreza tiveram mais acÁ„o nos espiritos na segunda epocha da nossa historia (de D. Diniz a D. Fernando) do que a que tinham tido na primeira: phenomeno singular nunca observado, mas que nos parece incontestavel, sentindo n„o ser esta a occasi„o de o mostrar e de indagar-lhe as causas. Pagar as quantias ou soldos aos fidalgos com o senhorio das terras era uma approximaÁ„o da formula feudal; porque realmente elles ficavam-n'as possuindo como uma especie de feudo (_feu_), palavra que comeÁa a apparecer n'uma significaÁ„o mais verdadeira sÛ depois de D. Diniz. Mas o que, apesar d'esta circumstancia, se nos afigura como indubitavel, È que foi principalmente o mau estado da fazenda publica que trouxe o systema ruinoso de substituir pelas doaÁıes os pagamentos dos soldos em dinheiro corrente ou em generos. O progresso de tal systema, · proporÁ„o que diminuiam os meios pecuniarios do governo, est· patente nos diplomas do seculo XIV, que podem dar-nos luz n'esta obscura materia. A pobreza do erario crescia progressivamente com o correr dos tempos, porque o mal nascia mais de um systema errado, e da influencia da fidalguia, que da vontade dos reis. D. Diniz foi um avaro, D. Affonso IV um homem de juizo, D. Pedro I um doudo com frequentes intervallos lucidos de justiÁa e d'economia: e, comtudo, todos elles, mais ou menos, fizeram doaÁıes importantes; todos elles se acharam por vezes em apuros pecuniarios, o que È facil de deduzir dos documentos d'aquelle tempo; bastando notar que no fragmento da chancellaria de D. Pedro, que nos resta, n„o raro È apparecer j· o recurso das doaÁıes das terras aos cavalleiros, em pagamento dos _seus maravedis_ (quantias). A historia verdadeira, que sabe collocar os homens nas circumstancias em que viveram para os julgar, e que n„o acceita as opiniıes do vulgo como factos historicos, nem se contenta de ir cegamente copiando o que outros disseram, ha de um dia rehabilitar atÈ certo ponto a memoria de D. Fernando da nota de perdulario. N„o queremos com isto dizer que elle era um modelo de principes (n'algumas cousas foi um dos melhores que tivemos): queremos dizer que a accusaÁ„o de prodigo que se lhe faz È exaggerada. Como adiante havemos de falar dos queixumes feitos em cÙrtes no seu tempo, teremos occasi„o de apreciar esses queixumes, fundamento talvez unico da tradiÁ„o, que uma historia superficial e incompleta abraÁou sem exame e perpetuou irreflexivamente. Baste por emquanto observar que uma grande parte das doaÁıes de terras, feitas por D. Fernando, n„o s„o mais que pagamentos de quantias, o que prova menos as tendencias d'aquelle principe para desbaratar a fazenda publica, do que o estado de apuro a que esta havia chegado. A estreiteza sempre crescente dos recursos publicos tornava cada vez mais necessaria uma nova fonte de rendimentos. Os bens da corÙa, esses bens que a antiga lei politica do paiz quizera tornar uma tunica inconsutil, tinham sido, permitta-se-nos a express„o, jogados aos dados pela fidalguia, despedaÁados e repartidos entre ella: as contribuiÁıes municipaes seguiam lentamente o mesmo caminho; e as novas fundaÁıes de concelhos e _pobras_ tornavam-se cada vez mais raras. Que restava pois? O que era obvio ainda aos espiritos menos agudos--fazer que os municipios existentes, para nos servirmos d'uma phrase moderna, supprissem o _deficit_. Foi o que effectivamente se practicou. Ent„o nasceu o systema que, modificado, estendido, aperfeiÁoado, tem subsistido atÈ hoje--o das contribuiÁıes geraes, facto gravissimo em si, e singular nos caracteres que apresenta no seu apparecimento. A economia da fazenda publica era nos primeiros tempos o transumpto da economia domestica de qualquer proprietario: a sociedade copiava a familia. O que j· apont·mos a este respeito parece-nos tÍl-o mostrado com clareza. Cada concelho pagava em virtude de um contracto especial--a sua carta de foro. Estes contractos variavam segundo a maior ou menor fertilidade do alfoz ou termo do concelho, segundo o seu tracto commercial, a sua situaÁ„o chorographica, e os riscos que, em consequencia d'ella, corria de ser _espeitado_ (assolado) pelos inimigos, etc. O estado era similhante ao proprietario que arrenda ou afÛra os seus bens por titulos especiaes, cujas condiÁıes variam segundo a riqueza ou pobreza do solo, a proximidade ou o remoto dos mercados, etc. … este o systema natural das sociedades na infancia, em que o pensamento de familia predomina e se reproduz por algum modo em tudo. O systema dos impostos geraes suppıe a virilidade de um povo: antes d'isso elle nem sequer, talvez, se comprehenderia. Os _pedidos_ ou _pedidas_ foram a primeira e incerta formula das contribuiÁıes geraes. O _pedido_ nasceu nos senhorios privilegiados; nem nos recordamos, atÈ, de o ter nunca visto mencionado nos foraes mais antigos, n„o sendo raro encontral-o j· nas cartas d'emprazamento d'esse tempo, nas terras dos nobres e dos mosteiros. O pedido era na essencia o mesmo que a _talha_--uma contribuiÁ„o indeterminada que o senhor extorquia dos colonos quando lhe aprazia, e a que elles d'antem„o vinham submetter-se pelo acto de aforamento. A _talha_ (cÛrte) distinguia-se porventura do pedido em exigir o senhor d'um couto ou honra uma certa somma total que os habitantes deviam repartir ou _talhar_ entre si, ao passo que o _pedido_ seria um _quantum_ imposto individualmente a cada um, ou o mesmo que a _finta_. Isto n„o passa de uma conjectura, e talvez a unica distincÁ„o entre a talha e o pedido consista em ser aquella a express„o sincera e brutal de uma violencia; esta a sua express„o mais suavemente hypocrita. Seja o que for; È certo que as necessidades do fisco trouxeram para a economia do estado este elemento de renda publica contrario · natureza do nosso primitivo systema de fazenda. N„o temos certeza da data precisa do seu apparecimento; mas achamos que D. Pedro I exemptou o concelho de Castel-mendo de _fintas_ e _talhas_, e D. Fernando o de Coimbra, o que suppıe a existencia d'ellas anterior a estes reinados. As contribuiÁıes extraordinarias dos municipios, conhecidas geralmente com o nome de pedidos, nasceram no meio dos apuros da fazenda publica. Tal denominaÁ„o dada a essas contribuiÁıes extraordinarias, exigidas geralmente em cÙrtes, remonta · epocha de que nos occupamos, visto que do reinado de D. Jo„o I data a publicaÁ„o da lei que prohibia a outrem, que n„o fosse o rei, o fazer ou _lanÁar_ pedidos. Os pedidos deram origem ·s sizas, ou, para melhor dizer, converteram este tributo, que a principio n„o fÙra mais que um expediente para acudir a despezas extraordinarias e internas de alguns municipios, em imposto do estado. O pagamento das sommas, requeridas aos povos em cÙrtes pelos reis, repartia-se pelos concelhos, e estes junctavam as suas quotas por meio de sizas, meio que no pedido real lhes era indicado. Nas cÙrtes de Coimbra de 1387 se estabeleceu definitivamente a siza por lei geral, que devia vigorar um anno, mas que ficou subsistindo posteriormente, abatendo-se-lhe o terÁo por alguns annos, allivio que cessou ainda no reinado de D. Jo„o I. Dissemos que este novo methodo de supprir as despezas publicas era contrario ao nosso primitivo systema de fazenda. De feito, o caracter d'esse antigo systema era, como vimos, a desegualdade na distribuiÁ„o dos impostos: os maiores ou menores privilegios de cada concelho regulavam a sua quota de distribuiÁ„o. Este modo de contribuir, razoavel a principio, porque a desegualdade entre municipio e municipio era proporcional aos maiores ou menores inconvenientes moraes ou materiaes com que tinham de luctar os habitantes de cada concelho, havia-se tornado injusto ao passo que o estado de guerra contÌnua terminava; que as terras se arroteavam; que se facilitavam as communicaÁıes e se abriam os mercados; que, emfim, os commodos e incommodos eram quasi por toda a parte os mesmos. O systema d'impostos geraes substituidos aos municipaes vinha a ser um verdadeiro progresso; mas, em vez de uma substituiÁ„o realmente progressiva, houve uma accumulaÁ„o monstruosa. Os direitos reaes pagos em virtude das disposiÁıes dos foraes; os foros, e rendas dos bens da corÙa; as gravosas direituras ou foragens das terras reguengueiras; tudo continuou a subsistir como d'antes; mas corria para as m„os dos particulares, e o fisco exhausto mostrava ao povo os seus cofres vazios, e exigia d'elle que os enchesse novamente, sem que por isso cessasse de alimentar o antigo manancial da riqueza publica derivado do seu legitimo curso. Foram estas causas que trouxeram o phenomeno notavel referido por Fern„o Lopes, de que, sendo no reinado de D. Jo„o I a renda do estado de quasi oitenta e dois milhıes de libras, as sizas, isto È, o tributo geral permanente, produziam mais de sessenta milhıes, ou tres quartos dos rendimentos dotaes, sendo o outro quarto o producto do que restava do outr'ora t„o rico patrimonio da corÙa, dos immensos bens reguengos, e sobre tudo das contribuiÁıes de foral. Uma cousa unica houve, n'estas sizas do tempo de D. Jo„o I, verdadeiramente progressiva: foi o serem na realidade geraes. Todas as vendas e compras ficaram sujeitas a ellas, fossem feitas por quem fossem, n„o exceptuando o proprio rei e sua mulher[67]. Foi um dos grandes passos que D. Jo„o I deu na epocha de transiÁ„o que elle abria, e que tinha de ser cerrada pelo cutello do algoz de D. Jo„o II. As cÙrtes de 1387 e as de 1482 s„o duas datas dolorosas e terriveis na historia das classes privilegiadas[68]. Mas n„o antecipemos esta, j· em demasia rapida, narraÁ„o dos factos sociaes relativos · fazenda publica. Limitemo'-nos por emquanto ao seculo XIV. Vejamos qual o estado das contribuiÁıes de sangue e trabalho, e se, ao passo que a propriedade villan era assim onerada por dois systemas oppostos de tributos, o povo ficava alliviado dos serviÁos pessoaes e dos perigos da guerra. Ent„o poderemos avaliar os fundamentos dos seus queixumes, t„o energicamente alevantados no seio dos parlamentos nacionaes. VII Nos fins do seculo XIII, os concelhos, a principio fracos e pobres, tinham chegado a certo grau de prosperidade e importancia. A palavra _vill„o_, que anteriormente servia para designar genericamente todos os membros d'um municipio, comeÁava a ser substituida, j· no reinado de D. Affonso III, pela palavra _cidad„o_. O commercio interno ganhava rapido incremento; o dinheiro generalisava-se entre o povo: muitos documentos nol-o indicam, mas nada mais claramente o prova do que um facto, em que ninguem, que nÛs saibamos, ainda attentou, e que, todavia, tem grande significaÁ„o historica. Uma parte das cartas relativas aos municipios no tempo de D. Affonso III, conhecidas pelo nome de foraes, s„o instrumentos de bem diversa natureza. A essencia d'ellas È um contracto entre o rei e o concelho, pelo qual o rei demitte de si todos os direitos, foros, e obrigaÁıes, por uma somma annual, paga de ordinario em tres parcellas. Estes contractos frequentes, feitos espontaneamente pelas municipalidades, s„o o signal evidente de que a industria achava facil consumo aos seus productos; que o trabalho subia de preÁo; que, emfim, o meio circulante se multiplicava. As povoaÁıes principaes achamol-as, atÈ, eximindo-se do serviÁo militar a troco de uma quantia avultada[69]. O povo, no meio de um systema de profunda desegualdade civil e politica, opprimido por impostos de mil especies, ia conquistando rapidamente a independencia, · forÁa de economia e trabalho; e preparava-se para adquirir a importancia que chegou a obter na direcÁ„o dos negocios publicos dentro em menos de um seculo. Este desenvolvimento da riqueza popular trouxe ent„o o que traz sempre em todos os logares e tempos. Os villıes, que tinham, e com raz„o, por mais privilegiado concelho aquelle em que por seu foral n„o era permittida a entrada aos nobres, ou aquelle que n„o podia ser dado em prÈstamo a nenhum rico-homem; os villıes, j· cidad„os, a quem por sua mais avultada fortuna era possivel cercar-se de certo apparato e luxo, comeÁaram a deshonrar-se de ser _caballarii_, cavalleiros de concelho; quizeram ser _milites filii de algo_, cavalleiros nobres; e a ordem de cavallaria desceu dos solares para as villas: os fidalgos vendiam a nobreza aos villıes, que trocavam de bom grado o seu ouro por honrarias, tanto mais que estas importavam tambem vantagens materiaes, porque, como anteriormente dissemos, pagar ou n„o pagar significava, do modo mais resumido e ao mesmo tempo mais completo, nobreza ou villania. Mas alguem havia que interessava tanto como o povo em que estas deserÁıes do campo dos plebeus para o dos privilegiados tivessem termo. Era o rei. As razıes d'isso s„o obvias. Cada vill„o que um rico-homem armava cavalleiro era um contribuinte de menos e mais um soldado para a aristocracia. D. Diniz viu as consequencias de similhante estado de cousas, e procurou sustal-as. No seu reinado se publicou uma lei, em que elle declarava que os cidad„os que houvessem recebido de ricos-homens o grau de cavalleiros ficariam sujeitos inteiramente ·s obrigaÁıes dos concelhos, como se o n„o fossem, ´porque de direito antigo e pelas leis dos imperadores nenhum homem de concelho podia ser cavalleiro sen„o por mercÍ do rei.ª A declaraÁ„o foi dirigida ·s auctoridades dos municipios, os quaes egualmente interessavam em que todos os seus membros supportassem os encargos communs[70]. Esta lei vem confirmar o que a convers„o em sommas certas de dinheiro das contribuiÁıes de municipio, atÈ ahi fluctuantes e recebidas pela maior parte em generos, nos indicava claramente. Os populares tendiam a fugir da sua orbita para o mundo aristocratico; e o poder real apressava-se a pÙr-lhes uma barreira. … evidente que a vida anterior dos concelhos havia feito immensos progressos em pouco mais de um seculo. O augmento de riquezas e o apparecimento de villıes abastados e poderosos patenteam-se de um modo innegavel nos factos que apont·mos. J·, porÈm, vimos, apezar d'isso, que os tributos cada vez eram mais gravosos, e que sobre o povo pesavam dois systemas de fazenda diversos: um, cujo producto fÙra distrahido em beneficio das classes privilegiadas; outro, que o substituira, e que em parte ainda se derivava para as m„os dos fidalgos no pagamento das quantias, as quaes chegaram a tal excesso que D. Fernando se viu obrigado a limital-as unicamente aos filhos mais velhos dos _acontiados_, que, todavia, principiavam a vencer o seu soldo _de guerra_ ainda no berÁo. Este abuso de _aquantiar_ os filhos de qualquer nobre era um terceiro meio de espoliaÁ„o: os bens da corÙa e os direitos de foral l· lhe iam cair nas m„os; os soldos pessoaes devoravam boa parte do producto do novo systema de tributos; e, para ajudar a desbaratar o resto, os poderosos tinham obtido que a inutil infancia de seus filhos fosse considerada como serviÁo militar do paiz! Alguem suppor· que tudo isto fazia com que as classes privilegiadas tomassem, emfim, sobre si os trabalhos e perigos da defens„o do solo natal; que tantos sacrificios de dinheiro, t„o flagrante e quasi incrivel desegualdade d'impostos deixaria ao menos os concelhos occuparem-se tranquilamente do trabalho productivo--da industria fabril, da agricultura, do commercio. Quem tal pensasse enganar-se-ia redondamente. Era o contrario. O serviÁo militar dos municipios tomava novo incremento e reorganisava-se segundo o progresso da arte da guerra; a infanteria regular nascia, ao passo que, pelos pedidos e sizas, sobre as ruinas do antigo se alevantava o moderno systema d'impostos. … geralmente sabido que D. Diniz mandou traduzir as leis das Partidas d'Affonso o sabio, e que d'ellas se fez em Portugal um uso a que hoje chamariamos de direito subsidiario. A auctoridade de que esta legislaÁ„o gozou entre nÛs, o que ella suppriu ou alterou, n„o vem para aqui. Baste dizer que a 2.^a Partida teve notavel influencia na organisaÁ„o militar portugueza do seculo XIV. Os diversos titulos do Regimento de guerra, contido no livro 1.^o da OrdenaÁ„o affonsina, remontam em grande parte ao tempo de D. Diniz, e s„o imitaÁıes, mais ou menos similhantes, de varios titulos da 2.^a Partida; e, de feito, tanta mais influencia devia ter esta parte d'esse codigo, quanto È certo que era aquella que menos em desharmonia estava com os antigos habitos e instituiÁıes, n„o sÛ de Castella e Le„o, como de Portugal. Em relaÁ„o, porÈm, · milicia municipal, D. Diniz desenvolveu mais completamente o pensamento de Affonso o sabio. As Partidas fallam dos _bÈsteiros_ como de um genero de combatentes que os concelhos deviam ter entre a sua gente de guerra; mas as disposiÁıes d'aquelle codigo a este respeito est„o longe de serem precisas. Em Portugal, porÈm, impoz se aos concelhos a obrigaÁ„o de terem sempre promptos um numero certo de bÈsteiros, que por isso se chamaram do _conto_ (do _numero_), tirados da classe dos peıes e existindo a par dos _milites villani_, ou _aquantiados_, nome que substituiu pouco a pouco o de _cavalleiros villıes_[71]. Os _bÈsteiros_ como corporaÁ„o de milicia municipal apparecem mencionados em rarissimos foraes onde se lhes concedem os privilegios dos _milites villani_. VÍ-se bem d'essa circumstancia que a existencia d'elles n'um ou n'outro concelho era um accidente, e que n„o entrava no systema geral da organisaÁ„o militar das communas. Nem realmente devia entrar, porque o uso da bÈsta sÛ se vulgarisou nos fins do seculo XII. A bÈsta foi para a edade-media o que a espingarda foi depois para a epocha do renascimento: uma arma terrivel, e que necessariamente devia influir na tactica, dando · infanteria uma importancia incomparavelmente maior do que atÈ ahi tivera. No principio do seculo XIII ella se considerava como uma especie de arma traiÁoeira, e o seu uso nas guerras entre christ„os como um crime. O IV concilio de Latr„o assim o declarou; e alguns principes da Europa chegaram a dissolver completamente os corpos de bÈsteiros. Os nossos n„o tiveram essa delicadeza de consciencia: pelo contrario, tornaram o uso das bÈstas mais mortifero, permittindo que se envenenassem os virotes que ellas despediam; e a _herva dos bÈsteiros_ figurava nas pautas ou foraes das alfandegas do tempo de D. Affonso IV e de D. Fernando, com a verba dos direitos que devia pagar pela sua admiss„o. O mais antigo monumento (depois dos raros foraes a que alludimos) em que se tracta dos _bÈsteiros_ como de corporaÁıes privilegiadas È a _TaussaÁom_ (tabella de taxas) da chancellaria de D. Affonso IV, que cremos ser dos primeiros annos do seu reinado, posto que n„o tenha data. Ahi se determina o que h„o de pagar as cartas pelas quaes el-rei fez mercÍ de _livridıes_ (exempÁıes) e bemfeitorias a alguns bÈsteiros, variando a taxa, segundo forem feitas a _dez_, _cinco_, ou _menos de cinco_ bÈsteiros. D'este regulamento se conhece que elles eram privilegiados collectivamente; que por consequencia formavam j· corporaÁıes distinctas no seio dos municipios; e que, finalmente, n„o pertenciam · classe dos _acontiados,_ porque esses l· tinham os seus privilegios pela carta de foral. Temos, porÈm, um documento com data precisa, em que os bÈsteiros de conto apparecem como uma instituiÁ„o, sobre o abuso da qual os povos j· requeriam emenda, o que a suppıe existente um certo numero d'annos antes. … o aggravento 34 das cÙrtes de Santarem de 1331, onde se diz: ´Item. S„o aggravados porque mandaes fazer em cada villa bÈsteiros de conto muitos mais que os _que cumprem_, e muitos que n„o sabem ende (d'isso) nada, e s„o exemptos das peitas e d'outros encargos, e s„o por isso os do concelho mais aggravados: e outrosim h„o muitos privilegios e muitas honras, que se tornam aos outros em mui gr„o damno.ª D'aqui se vÍ que a origem dos bÈsteiros de conto, quando se n„o faÁa remontar ao reinado de D. Diniz, n„o se pÛde suppÙr mais moderna que os primeiros annos do governo do seu successor. Como bem observam os procuradores do povo, o estabelecimento d'esta nova milicia vinha augmentar os encargos dos contribuintes nos impostos directos (como os pedidos, as sizas encabeÁadas, etc.) por causa dos seus privilegios, e assim, quanto mais numerosa fosse, mais grave de soffrer seria para os concelhos. Vemos, pois, que ao passo que o desbarato das rendas primitivas do paiz fazia nascerem e multiplicarem-se os novos tributos, a contribuiÁ„o de sangue, que sÛ pagava uma classe de cidad„os--a dos _milites villani_, arnezados, ou aquantiados--, se estendia tambem · classe dos peıes. Assim, a cess„o dos bens da corÙa e direitos reaes · nobreza, bem longe de alliviar os municipios das obrigaÁıes militares, tornava estas mais vastas e mais duras; mais duras, dizemos, porque, sendo costume desde o principio da monarchia servirem regularmente as tropas concelheiras no fossado ou hoste sÛ seis semanas, findo o qual praso, o rei, se as queria reter, lhes dava soldo como aos cavalleiros nobres, similhante costume era j· violado no tempo de D. Pedro I e de D. Fernando, em que os povos se queixavam do dilatado serviÁo que faziam sem que lhes respeitassem os privilegios das suas cartas de foral, ou aquelle antigo costume[72]. E, como se isto n„o bastasse, os alcaides dos castellos mettiam entre as suas _vellas_ ou guarniÁıes, para pagar ·s quaes recebiam tenÁas e soldos do rei, os burguezes, tanto cavalleiros como peıes, que assim se esquivavam ao serviÁo do concelho em tempo de guerra, tornando este tanto mais gravoso para os outros moradores[73]. N„o seguiremos as vicissitudes por que passou a milicia popular desde o meado do seculo XIV atÈ o do XV. Levar-nos-hia isto a desenvolvimentos mais largos do que poderia comportar este pequeno esboÁo. Os Regimentos militares relativos ·quella milicia, que se acham na OrdenaÁ„o affonsina[74], formam o complexo das providencias que regularam a existencia d'ellas por todo o seculo XV, no fim do qual el-rei D. Manuel extinguiu as duas instituiÁıes dos aquantiados e bÈsteiros[75]. D. Duarte reduziu a legislaÁ„o desvairada que havia ·cerca dos aquantiados a um Regimento harmonico e uniforme, confirmado por seu filho e successor, e lanÁado na compilaÁ„o affonsina. As antigas distincÁıes dos _milites villani_ e _pedones_ do principio da monarchia tinham desapparecido: o tempo fizera o seu officio, e as classes municipaes achavam-se confundidas. O novo Regimento, pois, tomou por base a propriedade; porque era a unica precisa e possivel. Na Extremadura, a quem possuisse bens que valessem quarenta marcos de prata, ou d'ahi para cima, cumpria ter cavallo e uma armadura completa: quem possuisse o valor de trinta e dois marcos devia ter cavallo e n„o armas: aos que tivessem vinte e quatro cabia o serem bÈsteiros do concelho, isto È, o terem um peito de ferro (solhas) e elmo com defeza para o pescoÁo de malha de ferro (bacinete de camal) ou de chapa de ferro lisa (bacinete de baveira), uma bÈsta de garrucha[76] e cem frÈchas de bÈsta (viratıes): os proprietarios de dezeseis marcos sÛ deviam ter bÈstas de polÈ com cincoenta viratıes, sem armadura: todos os individuos d'ahi para baixo eram obrigados a terem uma lanÁa e um dardo. Estes valores de propriedade regulavam n„o sÛ na Extremadura, mas no Minho e Traz os Montes. No Alemtejo, Algarve, e Beira os acontiamentos regulavam-se por metade d'aquelles valores. Esta organisac„o militar do paiz, successivamente estabelecida em Portugal, explica as invenciveis resistencias que durante a edade-media uma naÁ„o pequenissima offereceu sempre · dissoluÁ„o interior e · conquista extrangeira: era um povo de soldados; o rei um general; mas general que tinha o que quer que era de pae de familia e ao mesmo tempo o caracter sacrosancto de ungido de Deus. Esta vida intima da naÁ„o n„o podia ser annullada nem pelas ambiÁıes dos poderosos, nem pelos commettimentos d'estranhos. ¡ voz do seu principe, Portugal inteiro erguia-se armado como um sÛ homem e arrojava-se ao combate, n„o para defender como mercenario os interesses, para elle inintelligiveis, de um individuo; mas para salvar collectiva e individualmente o lar domestico, o campo herdado, sua mulher e filhos. O renascimento, que matou quanto havia generoso e forte na indole nacional, matou egualmente isso. Em vez de alimento sadio, deu-nos o veneno embriagante das remotas conquistas, as convulsıes da nevralgia em vez do caminho pausado e firme de uma boa organisaÁ„o physiologica. Perdoe a naÁ„o hoje, se pÛde, aos _grandes_ homens do tempo de D. Manuel. Como a milicia municipal da edade-media assentava na propriedade e se regulava pelos seus accidentes, È claro que sÛ os chefes de familia, proprietarios territoriaes, eram a ella chamados. Um grande numero de individuos--esses a que geralmente hoje se chama proletarios, e os artifices da pequena industria fabril, unica do paiz, ficavam excluidos d'esta vasta rede de obrigaÁıes militares, sendo ali·s esses homens, habituados a uma vida laboriosa e dura, os mais convenientes para o serviÁo das armas. De similhantes consideraÁıes parece ter nascido a instituiÁ„o dos bÈsteiros de conto: tal È, pelo menos, a idÈa que apparece na legislaÁ„o de D. Jo„o I, que os organisou definitivamente pela maneira em que os vemos subsistir atÈ · sua extincÁ„o. Aquellas providencias estendiam-se aos galiotes das vintenas, ou ·s companhias para o serviÁo militar maritimo, que entravam no mesmo systema geral da forÁa publica. As condiÁıes principaes para qualquer individuo se arrolar entre os bÈsteiros do conto eram o ser _mesteiral_, isto È, official de officio fabril, que n„o pagasse jugada ou oitavo, ou, por outra, que n„o possuisse predios rusticos, e que fosse casado, admittindo-se unicamente _mancebos_ (homens solteiros) quando n'algum logar faltassem absolutamente chefes de familia. A arma do bÈsteiro de conto era a bÈsta de polÈ, _que n„o se podesse armar_ no cinto[77]. Pelo recenseamento feito no tempo de D. Jo„o I, o numero de bÈsteiros de conto devia ser em todo o reino de 4.898. Assim achamos durante tres seculos que o serviÁo militar dos concelhos cresceu com os outros tributos. Na maior parte dos foraes faltam as condiÁıes de propriedade que se deviam dar em qualquer individuo para ser _caballarius_ ou cavalleiro vill„o; e n'alguns em que se estabelecem s„o taes que era facil esquivar-se a ellas[78]. AlÈm de que bastava estar por um ou dois annos sem cavallo para cahir na classe dos tributarios, sem que por isso se impozesse a ninguem outra pena, o que prova a pouca importancia que se ligava · existencia da milicia municipal. Os acontiamentos, porÈm, que abrangiam ainda os mais pobres, no principio do seculo XIV; as graves mulctas que se impunham aos refractarios; e finalmente a instituiÁ„o dos bÈsteiros de conto para que nem os proletarios escapassem ao serviÁo da guerra, nos d„o evidente testemunho de que era nos concelhos que o governo real via principalmente o nervo da defens„o da patria. D. Jo„o I, que mais que ninguem trabalhou por completar o novo systema de defeza, sabia-o porque o experimentara. Ao povo queria elle deixar a guarda da corÙa que herdava a seus filhos, porque o povo lh'a pozera na cabeÁa, apezar de Castella e de boa parte da fidalguia. Os bens da corÙa e os primitivos direitos de foral subsistiam, os tributos geraes haviam nascido e ganhado certa extens„o, a defens„o do paiz estava a cargo dos municipios: como se despendiam, pois, essas rendas de bens de corÙa, esses direitos, esses impostos?--Eram, como dissemos, devorados pela aristocracia. FIM DO VOLUME VI. INDICE Pag. Uma villa-nova antiga 3 CogitaÁıes soltas de um homem obscuro[79] 21 Archeologia portugueza 43 Viagem do cardeal Alexandrino 49 Aspecto de Lisboa 95 Viagem dos cavalleiros Tron e Lippomani 119 Pouca luz em muitas trevas 137 Apontamentos para a historia dos bens da corÙa e dos foraes 195 Notas: [1] Evora È chamada no seu foral _cidade_; Lisboa no seu _villa_. [2] D. Jo„o I j· se intitul·ra _senhor_ de Ceuta: mas Ceuta era apenas uma povoaÁ„o: era o elemento de um municipio. N'este caso a palavra _senhor_ era a vers„o de _dominus_, que nas cartas municipaes da edade-media tinha um valor bem diverso do vocabulo _senhor_ empregado pelo absolutismo. O que jamais rei nosso se chamou, antes de D. Jo„o II, foi _senhor_ de uma _provincia_ dependente da coroa portugueza. [3] A segunda obra promettida pelo auctor È a _Viagem de Tron e Lippomani_: a sequencia das narraÁıes exige, porÈm, que entre uma e outra intercalemos a que se intitula _Aspecto de Lisboa_, embora publicada um pouco mais tarde. (_Os edit._) [4] Sobre esta embaixada consulte-se a _Hist. Gen. da Casa Real_, no tomo VI. [5] Provavelmente alguma atalaia. [6] _Follia_ em italiano quer dizer _loucura_. [7] Tinha-as descripto por estas palavras: ´Ao sahir de Barasso se nos apresentaram oito raparigas com trajos de ciganas, ricas e galantes, trazendo na cabeÁa uma _irnalda_ (sic) (donde talvez por corruptela chamamos em Italia _ghirlanda_) feita · maneira de um grande chapeu de sol chato, mas elevado algum tanto no meio a modo de pyramide, com um aro de folha delgada de prata, cheio de botıes do mesmo metal postos em fÛrma de laÁos, de serpes, e de flores, dos quaes pendiam pequeninos espelhos ou laminas de prata de vario lavor. Traziam cintos · antiga, de veludo e brocado, faxas de fina tela mourisca, tomadas com laÁarias d'ouro, vestidos de panno encarnado, e sÛccos de feltro de cÙres variadas.ª [8] Era a isto que antigamente se chamava _PÈlla_. [9] O A. da _Historia genealogica_ n„o conseguiu apurar a epocha do nascimento do duque: limita-se a citar a _Chronica da Piedade_, que o d· nascido antes do anno de 1547. (_Os edit._) [10] _Burrichy_, diz o original. O diccionario da Crusca n„o explica que parte seja do trajo: diz sÛ _especie de vestido_. [11] _Le piegature rare ed singulari_, diz o original. N„o sabemos o que isto queira significar, salvo se as toalhas se usavam crespas a ferro, ou _piegatura_ tinha alguma significaÁ„o hoje obsoleta e esquecida. [12] _Rensadi_.--_Rensa_ chamam em Italia ao panno de Rennes. [13] _Vestito come burico sciotto?_ [14] La Raugina. [15] Na descripÁ„o de Palmella nada ha notavel, salvo o que diz respeito · ordem de Santiago, que melhor se pÛde vÍr nos seus estatutos, e em muitos livros vulgares. Por isso o omittimos. [16] _A borigo?_ [17] SÈ. [18] Setim. [19] O successo narrado n'este paragrapho acha-se em todos os historiadores, mas vem aqui com diversas circumstancias. [20] D'esta velha usanÁa faz j· menÁ„o Dami„o de Goes na _DescripÁ„o de Lisboa_, escripta em latim na primeira metade no seculo XVI. [21] _Salmestrate_--dialecto venezeano talvez. [22] Este sello È de chancella com papel por cima: exactamente semelhante ao sello de D. Sebasti„o que vem no tom. IV da _Hist. genealogica_ com o num. 88, sÛ com a differenÁa na legenda de _Henricus_ em logar de _Sebastianus_. [23] Nenhum d'elles existe copiado na _Hist. genealogica_. Assim servem com o antecedente para completar a sfragistica d'este reinado. [24] Quasi todos os documentos de que vamos dando noticia s„o escriptos n'esta lingua: damos os extractos ou copias d'elles em portuguez para mais facil intelligencia, mas sempre com a mais escrupulosa fidelidade. [25] Provavelmente o de Ossuna. [26] Isto È, segundo entendemos, se entrariam tropas castelhanas em Portugal. [27] Auctor do _Flos-Sanctorum_. [28] S. Francisco de Borja. [29] O desgraÁado filho de Philippe II. [30] Os jesuitas. [31] Cremos ser o conde de Portalegre, um dos fautores de Castella. [32] Allude evidentemente · sentenÁa dada n'este tempo pelo cardeal-rei contra D. Antonio, declarando-o illegitimo e inhabil para succeder na corÙa. [33] Quem seria este creado do cardeal-rei, e membro do seu conselho, agente de D. Antonio?--Veja-se a nota ao documento seguinte. [34] SÛ pelo appellido seria difficultoso atinar com quem era o agente do prior do Crato. Porventura seria aquelle Pedro da Costa, cujo nome se encontra na lista dos que tinham cedulas de D. Christov„o de Moura, publicada por Faria e Sousa. [35] Deve ser Valencia d'Alcantara, na fronteira de Portugal. [36] O cardeal-rei. O titulo de majestade foi introduzido entre nÛs por Philippe II. [37] Isto È, os procuradores das terras principaes, que se assentavam nos cinco primeiros bancos, a saber: de Lisboa, Evora, Porto, Coimbra, e Santarem. [38] D. Duarte de Castello-branco, um dos fautores mais descarados do dominio extrangeiro. [39] Apesar das facilidades para a conquista de Portugal que o _corso_ imaginava, o manhoso Philippe conhecia melhor o estado das cousas. J· vimos como recommendava a alliciaÁ„o dos fronteiros do Alemtejo e Beira: veremos brevemente como se tractava de corromper os procuradores de cÙrtes. [40] Esta nota intercalada entre as duas de Philippe II allude aos paragraphos subsequentes. [41] D. Jorge de AttaÌde, bispo de Vizeu, que tinha sido capell„o-mÛr do cardeal rei. [42] Eram estes embaixadores o bispo de Coimbra D. Gaspar e Manuel de Mello. [43] Este procedimento de Martim GonÁalves da Camara, combinado com o que d'elle se diz na antepenultima carta, e o que o proprio Philippe II testifica ·cerca dos jesuitas na nota da carta, j· publicada, relativa · rainha D. Catharina, parece-nos offerecer um notavel desconto ·s accusaÁıes feitas contra aquella celebre ordem na _DeducÁ„o chronologica_, obra de odio profundo e por isso m· guia para a historia. [44] O auctor escrevia em outubro de 1843. (_Os edit._) [45] Um escriptor nosso, respeitavel por muitos titulos, reprova as expressıes de _baixo_ e _alto clero_ como francezas. Estas expressıes s„o evidentemente metaphoricas, e seja-nos licito pensar que as metaphoras n„o tÍem naÁ„o. Suppondo, porÈm, que haja metaphoras portuguezas e metaphoras extrangeiras, parece-nos que a distincÁ„o social completa, que havia entre clero e clero na edade-media, por nenhumas palavras se exprime com mais clareza do que por aquellas, e em nossa humilde opini„o a clareza das idÈas importa um pouco mais que os primores e pontualidades da lingua. _Clero nobre_ e _clero vill„o_, ou _clero privilegiado_ e _n„o privilegiado_, seriam denominaÁıes porventura mais portuguezas, mas teriam o leve defeito de serem, em muitas relaÁıes, falsissimas. Isto em linguistica talvez seja indifferente; mas em historia È algum tanto mais grave. [46] A historia d'este drama popular, que n„o cabe aqui, reservamol-a para um trabalho mais vasto, a que hoje quasi exclusivamente consagramos as nossas vigilias--os _Estudos sobre a edade-media portugueza_. (Este titulo foi depois mudado para o de _Historia de Portugal_, e o leitor encontrar· no tomo II, livro III _ad fin._, a narraÁ„o circumstanciada dos successos a que o A. allude.--_Os edit._) [47] Para prova basta lembrarmo'-nos de qu„o gravemente elle discutiu se a monarchia foi na sua origem absoluta ou mixta, sem examinar primeiro se n'aquelles tempos havia a minima possibilidade d'essas distincÁıes de direito politico. Similhante quest„o equivaleria a disputar se n'esse tempo havia censura ou imprensa livre. [48] Na _Monarch. Lus._, P. 6.^a, pag. 558, 1.^a ediÁ. [49] Por muitos foraes o terÁo do tributo de barreiras que pagavam as pessoas pertencia ao _suus hospes_, ·quelles que lhes davam gasalhado na povoaÁ„o. [50] Bulla de Innocencio III--_Si diligenter_--de 23 de fevereiro de 1211, em Baluz., _Ep. Inn. III_, Lib. XIV, ep. 8, e em Aguirre, _Collect. Concil._, Tom. 5, p. 156. [51] A. G. do Amaral e J. A. de Figueiredo confundiram este privilegio especial dado a alguns concelhos com o privilegio das behetrias. Qual fosse a origem das behetrias n„o ser· facil dizer com certeza. Talvez a opini„o de J. P. Ribeiro, de que foram povoaÁıes que por si proprias sacudiram o jugo dos mouros, seja a mais plausivel. … notavel, porÈm, que elle mesmo acceitasse a opini„o de Figueiredo e Amaral. As behetrias tinham direito de escolher senhor; mas n'estes concelhos devia sel-o o rei ou seu filho, e a quererem pÙr-lhe outro, era necessario que o concelho _o acceitasse_. Evidentemente o _qui vos quesieritis_, ou _quem concilius voluerit_ significa isto; ali·s o artigo do foral seria absurdo por inexequivel. O privilegio da eleiÁ„o nas behetrias suppıe-se absoluto e sem restricÁıes: pelo contrario n'estes concelhos o ser o rei, ou seu filho, o senhor, constitue o privilegio, e a eleiÁ„o ou approvaÁ„o de villıes para ser outrem donatario È uma restricÁ„o do principio. O que significaria o privilegio de behetria--a absoluta liberdade eleitoral--se os reis quizessem ser constantemente os _seniores_? Os escriptores j· citados admiram-se de que as terras, que ainda nos fins do seculo XV ou principios do XVI gozavam o direito de behetrias, n„o fossem nenhuns d'aquelles concelhos que por foral haviam o privilegio de ter o rei por senhor: era justamente isto que os devia allumiar para verem que se enganavam confundindo essas duas especies. [52] Esta denominaÁ„o ainda È frequente na _Historia Compostellana_ para significar o governador ou alcaide-mÛr de um castello ou povoaÁ„o. [53] O leitor encontrar· mais largamente tractada esta materia no excellente estudo _Da existencia ou n„o existencia do feudalismo nos reinos de Le„o, Castella, e Portugal_, publicado no volume V d'estes _Opusculos_. (_Os editores._) [54] _Reflexıes hist._, P. I, pag. 97.--Quanto a Le„o, vide Marina, _Ensayo_, ß 71 e seg. [55] Liv. 3 da Chanc. de D. Diniz, fol. 72--nas _Mem. da Acad._, T. 6, P. 2.^a, pag. 120. [56] Acham-se publicadas nas _Memorias para a hist. das InquiriÁıes_. [57] Os nossos escriptores citam frequentemente as leis das eras barbaras para provar a existencia das instituiÁıes ou costumes que n'ellas se estabelecem. Parece-nos isto o meio mais seguro de transtornar a historia. Quando uma lei prohibiu tal ou tal cousa, creou tal ou tal direito, o que similhante lei pÛde provar È a existencia do facto ou do direito contrario, pelo menos atÈ · sua promulgaÁ„o; e, se d'ahi a pouco a vemos repetir com sancÁ„o de novas penas e ameaÁas, que devemos concluir d'isso, sen„o que essa lei foi letra morta, e que os costumes ou factos prevaleceram contra as doutrinas e as innovaÁıes? … por isso que a todo o instante encontramos citaÁıes trazidas para abonarem exactamente o contrario do que ellas em verdade nos revelam. Por duas leis (5 e 6 do _Liv. das leis e post. ant._) D. Affonso II _prohibiu_ que por odios ou vinganÁas se arrombassem as casas de fidalgos ou villıes, ou que se derribassem, e que se cortassem ou queimassem vinhas ou arvores alheias, e se destruissem _outras possissıes_, isto quando o offendido visse que o seu inimigo estava prompto a dar-lhe satisfaÁ„o judicialmente. Estas leis foram renovadas por D. Affonso III (Ibid. Leis 25 e 60). Que se deve d'aqui concluir sen„o que o paiz era um vasto theatro de vinganÁas pessoaes, mortes e estragos? As leis de D. Affonso II n„o tiveram effeito, nem provavelmente as de D. Affonso III, como nol-o mostram as guerras civis dos primeiros annos do reinado de D. Diniz. [58] Veja-se o _Appendice diplomatico-hist. ao Tract. prat. do Dir. emphyt._ por Almeida e Souza. Os documentos ahi apontados foram colligidos por J. P. Ribeiro. [59] Esta exuberancia do direito de resistencia acha-se principalmente no foral d'Evora e nos mais que tiveram por modelo o de Avila. [60] Lei 13, no _Livro das leis e post. antigas_. [61] Bullas: _Si diligenler_, VII kal. mart., an. 14 Inn III--_Gravi nobis_, X kal. jan., an. 5 Hon. III--_Ex parte clarissimi_, XVIII kal. jul., an. 7 Greg. IX. [62] Bulla _Si quam horribile_, XVIII kal. maii, an. 12 Greg. IX. [63] Na _Historia compostellana_, e n'outros monumentos principalmente relativos ao tempo dos reis de Le„o, achamos infligido ainda este castigo t„o commum entre os visigodos. [64] Estevam Pires de Molny, cavalleiro do julgado de Faria, entrando-lhe o mordomo d'el-rei na sua honra, enforcou-o; e indo o alcaide fazer ahi uma penhora, decepou-lhe as m„os e depois matou-o. _Mem. da Acad._, T. VI, P. 2.^a, pag. 130, N. (_b_). [65] A palavra _alcaide_ parece ter sido sempre a palavra vulgar. Em alguns documentos encontra-se na sua fÛrma arabe _Al-kaid_, o que no commum dos diplomas latino-barbaros se vertia por _praetor_. [66] Chamamos-lhe _magistrado_ porque as questıes fiscaes pleiteavam-se ante o mordomo, e por elle eram julgadas. [67] CÙrtes de Coimbra de 1425 (1387), Art. 7.^o [68] Antes d'isto, no tempo de D. Affonso IV, D. Pedro I, e D. Fernando, as sizas, se acreditarmos a OrdenaÁ„o affonsina, tinham recahido tambem sobre as classes privilegiadas; mas, sendo ent„o transitorias, apenas se podem considerar como pedidos eventuaes. Como tributo permanente sÛ datam da epocha de D. Jo„o I, desde cujo reinado nunca mais foram abolidas. Em ambos os casos, porÈm, ellas recahiam principalmente sobre o povo, de cujo seio sahiam os regatoens ou mercadores de retalho, os quaes (sendo prohibido pelas leis aos nobres este mister) vinham a ser os principaes contribuintes, attendendo · fÛrma por que eram lanÁadas as sizas. [69] Os _cidad„os_ do Porto deram a D. Affonso III certa somma a troco da qual ficaram exemptos de irem · guerra do Algarve. Livro 1.^o de DoaÁ. de D. Aff. III, fol. 3. [70] Lei de 1305 no _Liv. das Leis e Post. ant._ [71] J. P. Ribeiro reprehendeu o auctor do _Elucidario_ de ter dado uma interpretaÁ„o errada · palavra _acontiado_, que Viterbo tinha dicto ser applicavel aos fidalgos que recebiam uma quantia do rei para servirem na guerra. Podia accusar a definiÁ„o de incompleta; porÈm n„o d'errada. A que elle substitue, dizendo que eram os _vassallos_, cujos bens se avaliavam para os obrigar a ter armas e cavallo, È talvez menos exacta (pelo uso improprio que se faz da palavra _vassallo_), e sem duvida t„o incompleta como a de Viterbo.--A verdade È que os fidalgos eram aquantiados, recebendo a sua _quantia_ ou os seus _maravedis_ para fazerem a guerra, conforme o que affirma o auctor do _Elucidario_; e os burguezes, avaliando-se os bens para terem armas com que servissem no exercito em proporÁ„o d'esses bens, segundo quer Ribeiro. Por outra: para o cavalleiro nobre o serviÁo militar era um officio rendoso; para o _cidad„o_ era um imposto de sangue. [72] CÙrtes de Coimbra de 1361, art. 64 (ali·s 65), e CÙrtes de Lisboa de 1371, art. 24. [73] Ibid., art. 38. [74] Liv. I, tit. 68. [75] CÙrtes de Lisboa de 1498, cap. 33, 69, 71. [76] As bÈstas de garrucha (bÈstas mais pequenas que se armavam · m„o retezando a corda com um gancho) eram proprias para os soldados de cavallaria, emquanto as bÈstas de polÈ (bÈstas grandes que se armavam por via de uma roldana e retezando a corda com os pÈs) eram sÛ convenientes para a infanteria. Sendo o descrever cada uma d'ellas mui longo e talvez inintelligivel sem uma estampa, bastar· dizermos que a bÈsta de garrucha era para a de polÈ o mesmo que na milicia d'hoje a clavina para a espingarda. [77] Ord. aff., Liv. I, tit. 68, ß 23. [78] Pelos foraes de Garv„o, MontemÛr, Penamacor, etc., era cavalleiro vill„o quem possuia uma _aldea_ (casal, granja), um jugo de bois, quarenta ovelhas, um burro, e dois leitos. [79] Este trabalho foi publicado na _Revista universal lisbonense_, e todos os outros no _Panorama_. As epochas em que foram escriptos v„o nos titulos respectivos. Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+---------------------+----------------------+ | | Original | CorrecÁ„o | +----------+---------------------+----------------------+ |#p·g. 10| meiae ncosta | meia encosta | |#p·g. 90| Ach·mola- | Ach·mol-a | |#p·g. 293| nossas inimigos | nossos inimigos | +----------+---------------------+----------------------+ As variaÁıes de nomes prÛprios foram mantidas de acordo com o original. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 06 *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. 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