Title: Guelfos e Gibelinos: Tentativa critica sobre a actual polemica litteraria
Author: Eduardo Augusto Vidal
Release date: June 18, 2010 [eBook #32870]
Most recently updated: January 6, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
of public domain material from Google Book Search)
GUELFOS E GIBELINOS
TENTATIVA CRITICA
SOBRE A ACTUAL
POLEMICA LITTERARIA
POR
E. A. VIDAL
LISBOA
LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA
50—RUA AUGUSTA—52
1866
GUELFOS E GIBELINOS
TENTATIVA CRITICA
SOBRE A ACTUAL
POLEMICA LITTERARIA
POR
E. A. VIDAL
LISBOA
LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA
50—RUA AUGUSTA—52
1866
LISBOA—TYP. DE SOUSA NEVES, RUA DO CALDEIRA, 17
Assistimos, ha muito, a uma travada peleja entre guelfos e gibelinos, quer dizer, entre brancos e negros, entre os homens da claridade e os do entenebrecimento. O que ao principio se assimilhava a uma contenda de Alecrim e Mangerona, contenda em que de um lado pleiteava D. Gilvaz as excellencias d'aquella planta, e do outro D. Fuas proclamava as virtudes d'est'outra, transformou-se no correr dos tempos em uma batalha renhida, a que, por desgraça, não tem faltado as chufas que nada provam, nem os insultos que nada vencem.
Antes das cousas terem chegado a este ponto malfadado, escrevia eu o seguinte:—«Essa polemica litteraria, que de dia para dia cresce, converter-se-ha em verdadeira revolta, e, se eu não me engano, terminará por uma lucta cruenta e decisiva, onde se hão de gladiar os homens do cormentalismo com os austeros contempladores do infinito.»—A prophecia realisou-se finalmente; a liça é já pequena para os contendores que descem a ella, e o ruido das armas perturba o somno e a digestão dos indifferentes.
Deveria eu permanecer no meu retiro obscuro? Deveria{4} contemplar em silencio este duello litterario? Diz-me que não a consciencia. Acima d'estas aggressões pequenas em que tanto uns como outros procuram derribar, quer uma reputação nascente, quer uma gloria já feita, eu vejo a questão da arte, a questão dos principios, a questão das tendencias; questão que é necessario tratar no verdadeiro pé, sem nuvens de rancor que nos obscureçam o espirito.
Póde a chamada escola coimbrã causar á litteratura portugueza os males que a escola marinesca occasionou á italiana? As opiniões divergem, ha terroristas que o affirmam, e ha patriarchas que o contestam. Eu não vejo na seita de Coimbra, tal qual se nos apresenta agora, força bastante para depravar a arte; mas creio ao mesmo tempo que é dever de bom cidadão tomar o passo a qualquer que lhe invade a terra, para que os ignorantes não acclamem o intruso, e em vez de lhe invergarem a tunica do opprobrio, lhe atirem sobre os hombros a purpura dos Cesares. O que hoje é riacho, sem limpidez nem bellesa, póde ámanhã engrossar e converter-se em oceano. Depois, o erro, prégado com boa fé ou sem ella, incute-se e enraiza-se facilmente. Os falsos prophetas medram e florescem sempre. Quando se lhes quer pôr travanco, a plebe furiosa congrega-se, apedreja o indiscreto, e vae mais reverente ainda beijar os pés do milagreiro. É a historia de todos os tempos e de todos os povos. Este cair no abysmo, este fugir da luz para as trevas, este negar a Deus para affirmar a Iblis, eis o que eu temo por agora.
Digamos antes do tudo, e sobretudo, uma verdade. A escola de Coimbra existia ha muito, a de Lisboa sabia-o, e nem esta nem aquella se provocavam. Ainda mais. Apparecera entre nós um livro, digno de menção pelos rasgos de talento que ostentava, e ao mesmo tempo digno de censura pelos seus não poucos dislates. Este livro era a Visão dos tempos. A tal apparecimento reuniram-se os magnates,{5} perfilaram-se os admiradores, a critica desbarretou-se, os minoristas da imprensa vieram assaralhopados, e de naveta em punho, botar incenso nos thuribulos, os cirios arderam profusamente em volta d'este Genesis sacrosanto. A devoção dos fieis crescia de ponto; o moço poeta repotreado na sua curul olympica deixava cair sobre as multidões boquiabertas um raio de luz da sua graça. Desde as camaras douradas até ás mansardas obscuras, desde o academico até o noticiarista, desde o rico homem até o pobre-diabo, ninguem via, ninguem pensava, ninguem fallava n'outro livro. Lisboa teve de abrir as suas valvulas de salvação, para não voar em hastilhas n'uma explosão de enthusiasmo. Esta é que é a verdade. Tempos depois Theophilo Braga dava a lume outro poema. Apesar do supremo despreso que a escola de Coimbra parece votar ás frandulagens latinas, esse livro, seja dito entre parenthesis, chamava-se Tempestades sonoras. Tempestatesque sonoras. Os triumphos da vespera cresceram e dilataram-se; os desgraçados trovadores olysiponenses metteram as lyras debaixo do braço, e recolheram-se aos limbos da sua insufficiencia microscopica.
De que veio, pois, todo este reviramento? porque se alçou de repente a guerra? porque é que Troya se esbrazea em chammas? porque se gladiam os que d'antes se abraçavam? porque se entorna o fel sobre esses louros, entretecidos com tanto amor para coroar frontes que hoje se conspurcam? A carta do sr. Castilho escripta a proposito do Poema da Mocidade foi a faúla caída sobre o barril de polvora. A má vontade latente irrompeu furiosa; as labaredas do incendio lamberam todos os diademas.
—«Como farpadas linguas de serpentes»
para me servir de um bello verso do sr. Theophilo Braga. Começou a lide, trocaram-se os primeiros tiros, assestaram-se as bombardas, o padre Tejo levantou-se do seu leito resolvido a arrepellar as barbas do Mondego. Hoje estamos em plena conflagração. De que procedeu, portanto, este alvoroto? De um despeito pueril. A carta do sr. Castilho ferira de rosto o melindre de dois mancebos; estes sairam a campo, e arremeçaram as suas frechas contra o poeta dos Ciumes do Bardo. Havia desacato em proceder de tal modo,{6} havia orgulho em suspeitar que quarenta annos de um lavor litterario que a posteridade tem de aquilatar imparcialmente, podiam cair esphacelados ante as injurias e os apodos. Em torno do poeta juntaram-se, então, de momento, os que o tinham sempre applaudido e respeitado; os arraiaes desfraldaram as suas bandeiras, os fundibularios entraram na faina belligerante. O nome do sr. Castilho foi remechido e fariscado no folhetim e no pamphleto; de uma e de outra banda o insulto gratuito e a frioleira chistosa tomaram o posto de honra. Os que deveriam ter saido, e feito ouvir a sua voz, em nome dos eternos principios de bom senso, quando os horisontes litterarios haviam começado a ennevoar-se, esses tinham acolhido com o Io triumphe nos labios, os que depois buscariam precipitar nas gemonias do despreso. Eu, por mim, não sou coimbrão nem olysiponense, não recebo santo nem senha para vir papear em raso; lamento os desvarios, e tremo pelo decahimento litterario.
Estas disputações de nomes e de pessoas não decidem nem esclarecem. Podia o sr. Castilho, como escriptor, valer tão pouco quanto nol-o affigura o auctor das Odes modernas, que estas nem por isso subiriam nem mais um furo na bitola da boa critica. A questão, por agora, não consiste em dissecar as obras do sr. Castilho, em lhes fazer uma analyse rigorosa, em as submetter a uma stricta chimica-litteraria, para averiguar as dózes de bem e de mal que ellas encerram. A questão reduz-se em saber qual é o pensamento salutar, benefico, grandioso, regenerador e depurativo que vae no lábaro d'estes campeadores famosos; qual o seu mote, o seu ficto, a sua aurora. A questão é saber se o ideal na arte significa apenas um revolutear de bugiarias teutonicas; se a humanidade se ha de redemir sob as aspersões de Vico, ou se consta que a Sciencia nova tenha preparado os melhores cidadãos da republica. A questão é provar que a suavidade, a singelesa, a graça, o lyrismo no verso, devem de ser immolados á duresa, á enfatuação e ao obscurecimento; que um soluço é ridiculo ante o bravejar de um possesso; que as lagrimas de uma creança não valem o phalerno das antisterias; que os anjos teem de cercear as azas para se ensambenitarem de philosophos. Eis o ponto, eis o campo, eis o assumpto em resumo.{7}
Queimae toda essa litteratura aprasivel e deliciosa por onde o coração humano se tem espraiado em lautos seculos; fazei um auto-de-fé á vossa porta, não á similhança do Cura de Cervantes, para desbaste de parvoiçadas e de truanescas phantasmagorias, mas como o de Omar, para testemunho de horror ás boas obras; aquentai-vos em volta d'essa fogueira immensa; e quando das maiores glorias do espirito humano só restar o fumo e a cinza, levantae um altar a todos esses innovadores do subjectivo e da transcendencia, e annunciae a redempção dos povos.
Deixemos a philosophia nos seus recessos de meditação; sigamos a arte nos seus arrobes de enthusiasmo. Para que despir a musa dos seus veos fluctuantes e imprensal-a n'uma garnacha ponderosa? Cumpre accender no coração a chamma dos nobres affectos; cumpre levar ao espirito o fogo das aspiraçães remontadas. O poeta é o sublime enviado do futuro, que vem preparar a geração de hoje para o amanhan grandioso e prospero. Como se hade levantar e moralisar este ignorante enorme que se chama a humanidade? o que entende ella das vossas philosophias? de que lhe servem as vossas saraivadas-germanicas? Cantae-lhe o amor: commovei-a até as lagrimas, impelli-a até o sacrificio.
«Fais ce que tu voudras, qu'importe!
Pourvu que le vrai soit content,
Pourvu que l'alouette sorte
Parfois de ta strophe en chantant;
Pourvu qu'en ton poeme tremble
L'azur réel des claires eaux,
Pourvu que le brin d'herbe y semble
Bon au nid des petits oiseaux!»
Ahi tendes compendiada n'estas duas quadras toda a arte poetica moderna. Não duvidareis de certo da auctoridade do mestre, não o repellireis do vosso gremio. Fazei o que vos aprouver, celebrae na estrophe o que vos agita, eternisae no hymno o que vos inflamma, mas sêde humanos, naturaes, intelligiveis; deixae que vos comprehendam, deixae que nos vossos cantos se perceba uma nota d'esse murmurio inefavel, que principia no fremito da relva e que termina na musica das espheras.{8}
Que novo systema de poesia tendes em mente estatuir? porque caminhos desconhecidos quereis agora levar a arte? qual é a vossa colunma de fogo, é a inspiração ou a simbolica? qual é o vosso modelo, Creuzer ou o Homem? Sacrificae ao povo; descei das abstracções e pousae nas realidades.
Tendes isso por deslustre? pensaes que a poesia desce a certas almas para depois se erguer d'ellas em fragrancias inuteis? Nunca, nunca, nunca. «L'amphore qui refuse d'aller à la fontaine mérite la huée des cruches.»—O poeta é o anjo do bem posto ao serviço da humanidade. Eschylo diz estas palavras: «—Desde todo o principio o poeta servio o homem. Orpheu ensinou o horror do assassinio, Hesiodo a agricultura, o divino Homero o heroismo, e eu, depois de Homero, cantei Patroclo, para que todo o cidadão procure imitar os grandes homens.»—
Affeiçoae ao nosso seculo esta maxima eterna, ensinae aos homens, não as subtilezas que vos prendem, mas o amor que gera a familia e que alimenta a liberdade.
Ahi tendes a missão d'essa deosa de olhos azues e de tranças louras contra a qual vos rebellaes acinte. Em quanto os vossos pensadores cavavam e alqueivavam a grande leira da ontologia, e ao cabo de uma noute perdida em cogitações mysteriosas deixavam cair a fronte calva e extenuada sobre os in-folios obscuros; emquanto elles discutiam o incomprehensivel, e atacavam de frente o desconhecido, á similhança do pagem da ballada que limpava a sombra de um cavallo com a sombra de uma escova; em quanto bracejavam furiosos, procurando rasgar as brumas que lhes encapotavam o espirito; ella, a deosa, a musa do idyllio e da canção amorosa, do rompante bellico e da endeixa suave, ella, a inspiração, o anjo, atravessava o mundo radiante e carinhosa, alentando o fraco, abençoando o innocente, recebendo a prece da orphan para a elevar a Deos entre canticos, amando, padecendo, trabalhando por todos,—fazendo romper o sol da consolação e da esperança do seio do vasto mar das lagrimas humanas!
Perguntae á Grecia antiga o que sabia ella da philosophia eleusiaca? Socrates declarava não perceber Heraclito. Perguntae á propria Alemanha o que julga ella de{9} Herder ou de Schelling; responder-vos-ha pensativa, e como a Carlola de Werther:—«Klopstock!»—
Quererei eu dizer com isto que tenho a alta philosophia por inutil? Oxalá que o não suspeitem. Creio nos transcendentes como poderia crêr nos alchimistas. Estes perseguem o absoluto sobre a terra, procuram a pedra philosophal e a panacêa universal, e encontram ao cabo d'esta navegação nas sombras, o opio, o mercurio, o zinco e o antimonio. Porque não ha de a philosophia, descobrir tambem verdades importantes, quando procura hallucinada entrever os grandes segredos do abysmo?
Não; o que eu quero só é que a arte se manifeste, isempta d'estas preoccupações terriveis. A poesia é como a mocidade, alegre, enthusiastica, expansiva, boa, amando a luz do céo e as flores da terra, brincando por entre as ramas floridas, revendo-se nos lagos tranquillos, crendo, esperando, pensando no alvorecer que ha de apontar talvez mais bello, nos botões das rosas que hão de desabrochar perfumados, e balbuciando depois aquellas preces que lhe ensinaram no berço entre sorrisos e affagos. A poesia enfatuada e superlativa é a creança doutorona, que em vez de folgar discute, que se amezenda entre os velhos, que lenta engrossar a voz aflautada, e que, se não usa cabelleira é só com medo que o rapazio do bairro se lhe divirta com o rabicho. Deixemos lucubrar os philosophos e cantar os poetas; não queiramos ensinar os rouxinoes a psalmear o de profundis. Os que apparecem com a inspiração na fronte, passam, levados pelo sopro divino, deixando cair sobre a terra os germens que hão de fructificar mais tarde. Que lhes importa a elles toda essa algaravia de vocabulos? o que entenderiam d'ella? Oh, que admiraveis prelecções de cosmogonia deve fazer o monte Branco? como as estrellas hão de fallar de Kepler e de Newton!
E esta pobre da natureza, que ha não sei quantos mil{10} annos se veste de primaveras, a julgar que é grande cousa porque amadurece o trigo, porque enfolha as oliveiras, porque desdobra os rios, porque inflamma a aurora, e porque ensina os passarinhos a chilrear na copa das arvores. Tolla, tolla; que sabes tu das monadas? que pensas do atomo? que idéa fórmas da synderese? E a transhumanação, e o symbolismo, e a ascese da via purgativa, e o palavriado, e Kant, e Fichte, e as ostras de Hamburgo? Que tens tu feito com os teus cantos? de que nos servem os teus perfumes? Vae longe o tempo em que os Anteos da poesia procuravam no teu seio a força e a vida; hoje, a nova escola, a que hade terraplenar e amanhar tudo, percorre o espaço, não cingida de festões de rosa, mas involta em uma impenetravel neblina.
Sejamos, todavia justos; a escola de Coimbra desce algumas vezes insensivelmente da sua peanha transcendental, e põe-se ao livel dos assumptos comesinhos. O seu melhor poeta, ou, para nos expressarmos com verdade, o seu unico poeta, não deixou de banda a musa que lhe segredava estes versos:
—Se a visses á janella
Cuidando em seu bordado!
Pudesses, como eu, vêl-a
De traz do cortinado!
....................
....................
....................
E se á janella, triste,
Vem pôr sua gaiola,
Se vem deitar alpiste
No comedouro á rôla?
Ai rôla, quem podesse
Gozar os teus carinhos;
Que a vida me parece
Um thalamo de espinhos.»—
Nada mais infantil nem mais gracioso, nada mais simples nem mais bello. Sente-se uma pessoa desafogar interiormente quando recita estes versos. Uma creança que deita alpiste a uma avesinha querida enche de aroma um idyllio; Jupiter franzindo o sobr'olho enche de magestade uma epopêa. Um gesto, um sorriso colhido entre os labios, um volver{11} d'olhos triste, a vermelhidão do pejo affogueando um semblante, eis a simplicidade e ao mesmo tempo a poesia. Dante nunca subio tão alto como quando descreveu uma leitura entre dois amantes. Onde foi elle buscar o segredo d'aquelles encantos, a singeleza d'aquelles traços, a paixão d'aquellas fallas? Ensinou-lhos a philosophia ou o seu coração ardente? vieram-lhe das profundezas da sciencia ou de uma recordação de Beatriz?
—«Noi leggevamo un giorno per diletto
Di Lancilloto come amor lo strinse:
Soli eravamo e senza alcun sospetto.
Quando chegardes áquelle tercetto assombroso de verdade e de candura, em que depois do primeiro beijo elles fecham para sempre o livro,
—«Quel giorno pui non vi leggemmo avante,»—
abjurae a metaphysica moderna, ou, se o não poderdes fazer, ide então, novos Œdipos, decifrar o
Raphel mai amech isabi alini
que o poeta põe na bocca de Nemrod!
Deixemo-nos de distincções futeis, de demarcações impossiveis, de banalidades pueris; em litteratura só pode haver uma escola—a da verdade. Ninguem inventa, ninguem innova; todos exprimem, todos modelam, todos traduzem, todos sublimam na forma. A humanidade é o solo immenso sobre que o poeta levanta os seus monumentos. Todos elles são feitos do mesmo bronze, todos elles transsudam as mesmas claridades. No frontal d'essas moles altissimas o architecto grava o seu nome, imprime o seu cunho, chancella a sua obra, e deixa-a ás gerações. O Pantheon é de marmore como a cathedral gothica; n'aquelle ha, todavia, a simplicidade correcta, n'esta os enredamentos e as laçarias caprichosas. De que differente especie são feitos esses portentosos{12} edificios que se chamam o Livro de Job e a Illiada? Não saem ambos da natureza? não respiram o mesmo calor de affectos, não revelam o mesmo alevantamento de espirito? Em que se distinguem? o que os estrema? o que os separa? Depois da Illiada não surge a Orestia? depois de Job não apparece Shakespeare? O que divide ainda estes d'aquelles? Helena é porventura uma innovação ou Clytemnestra um improviso? Job carpindo-se no muladar é acaso uma licção ou Hamlet é apenas um desvario?
A originalidade na arte é a individualidade na forma. A poesia é tudo quanto é verdadeiro, simples e harmonioso; o grande problema de hoje é a producção do real no ideal, a pintura exacta da humanidade alcançada por meio do engrandecimento do homem. Os verdadeiros poetas, os genios, não inventam. São immensos, são multiplices, tem o azul do ceo e a escuridão da treva, o suspiro e o bramido, a alegria e o desespero, as flores e as rochas, a vida e a morte. Por isso V. Hugo os compara ao oceano. Quem inventa é Davenant, é Jeronymo Vahia, é Chapelain, é o padre de Saint-Louis. Os genios são a verdade radiante; os mediocres são o artificio abstruso. A Magdaleneida é mais original que o Othelo; a heroina do reverendo carmelita excede no descommunal das formas a trivial, a ramerraneira, a naturalissima verdade d'aquelle eterno typo de Desdemona.
Que significa, pois, o entono com que fallaes no ideal? O que entendeis por esta palavra? O lyrismo apaixonado, o arrebatamento epico, a verdade esplendida, o incitamento á virtude, o amor da gloria, o anjo saindo do homem, o bem santificando o bello? Não! O que hoje se adora, o que hoje se divinisa, é esse mesmo idolo eterno do fetichismo litterario—Vichnou de innumeras encarnações, que em todos os seculos tem tido o seu cortejo de bonzos.
«Ideal, ideal;—ouço eu bradar o coro dos levitas que vão levando em peso a arca santa da moderna civilisação—ponham-se de banda esses arrulhos de pomba, aquentem-se os fogões d'alem do Rheno com toda essa farraparia inutil que principia no Cantico dos Canticos e que vem até as Folhas Cahidas: sepulte-se no enxurro das frioleiras quanto{13} respirar a perfume dos balsedos e a grata fresquidão da relva luzente, começae pelo livro de Ruth e acabae no Pastor fido. Sêde homens, sêde reformadores, a sociedade carece de sangue novo, o espirito lateja nas ancias do absoluto. O nosso Deos não é o «pae que está no ceo»—pffu!... o nosso Deos é o infinito. Svedenborg é o seu propheta. Caminhae, progredi, solevantai-vos da terra, saccudi do calcanhar os limos mundanos, quebrae o ergastulo, espedaçae o involucro que vos estringe,
—«Atae as mãos ao vosso vão receio.
soltae o rumo, navegadores do abysmo! O amor é uma parvulez ephemera, a saudade um fumo que nos enturva, o enthusiasmo uma sobrexcitação de nescios. Hegel aperta as nadegas possantes para rir ás gargalhadas dos colloquios de Paulo e Virginia.
Derroca-se o mundo velho, desmoronam-se os poemas intelligiveis, escalavra-se o vocabulario terreno, Quijote encancha-se nos largos hombros do Sancho materialão e positivo, e accommete os Guaramantas adversarios. Arraiam-se os horisontes com os primeiros albores do dia novo, les diables s'en vont, isto é, desapparecem os cantores pedestres; a immensidade rebôa ao galopar de ginetes que se approximam. Vencemos Alarico! Temperem-se os alaudes, afinem-se os psalterios, e o canto dos bardos glorifique as nossas façanhas!»
—«Barbaros, barbaros!»—diz então uma voz que se chama a consciencia!
Finalisemos por agora. Traçando estas breves considerações sobre a actual polemica litteraria não tive em mente aggredir nem este nem aquelle bando, mas simplesmente dizer o que penso a respeito do assumpto que se debate, dando de mão a incidentes. Não quiz, tampouco, assumir o papel de propugnador de A. F. de Castilho; tenho para mim que defendel-o seria injurial-o, seria duvidar da robustez{14} d'aquello talento. Elle bem sabe que ha atheos na arte como os ha na religião;—homens que negam a divindade. Que se lhes ha de fazer? punir-lhes a descrença com a tortura? nunca. O crê ou morre é a razão suprema da tyrannia estupida. Quando alguem ousa profanar o altar ante o qual deveria curvar-se respeitoso, cumpre admoestar o pagão, e cathequisal-o em seguida.
Quem são esses gigantes que ousam escalar o ceo, sotopando os montes, e encumiando-se n'elles com a mais esbagaxada pantalonice? Resurgiram Efialto e Briareu, ou os vulcões espirram no estrebuxar d'estes filhos da terra? Nada é de certo. Os gigantes dormem, e os deoses permanecem. A serenidade magestosa é o caracteristico d'estes ultimos. Applaudo a longanimidade do sr. Castilho; mais lhe applaudiria ainda o silencio completo. Ninguem o maculou, ninguem o ferio; passe a mão pelo rosto e verá que o sente incolume. As ballas rojaram-lhe pelos pés, frias e inoffensivas. O arcabuz que as despedira não tinha alcance para tão alto. Que ha novo n'estes accommettimentos audaciosos? Estamos, principalmente, n'uma épocha de reacção; o fermento da philosophia anda a levedar por todos os lados; a arte sente-se trabalhada pelas ancias de um parto laborioso. Teremos um Deos ou um murganho? Volvamos os olhos para o oriente, proclamemos a luz, combatamos a obscuridade; eis tudo. A escola de Coimbra, (não façamos questão sobre este vocabulo escola), parece estar convencida que o bello é o inextrincavel, que os genios devem fazer-se ouvir, como os heroes de Ossian, atravez dos nevoeiros. Eu creio o inverso; o que ahi fica dito é, portanto, a minha carta de crença litteraria. Lamento as intelligencias que se trasmontam como as ovelhas que se trasmalham. Se eu fosse pastor nas lettras tresnoutar-me-ía para as encarreirar. Que fazer alem d'isto? como adoptar outros alvitres? Este tumulto que se levantou, e que por desgraça tem tomado um corpo desmedido, só pode terminar pelo convencimento. Antes d'isso a lucta ha de padecer do mal de todas as luctas. Quando as armas da razão se quebrarem nas mãos dos combatentes, ficar-lhes-ha nos labios o praguejar insultuoso. Não queiramos para nós este recurso.
Dois ou tres mancebos em cujo espirito fez móça a rajada{15} da philosophia, seguiram com ella, fazendo a sua derrota em demanda de novos mundos. Advertil-os era tarefa de piloto experiente. Fel-o, não sei se com asperesa, mas ao certo com verdade. Os modernos descobridores sublevaram-se, e feriram o ceo com uma celeuma desatinada. Começou então a contenda. Nas aguas que primeiro sulcaram alguns bergantins de pequena guinda, navegam já hoje galeões alterosos. Que significa, todavia, esse pavilhão que tem por mote = dignidade e independencia = que os sinaleiros do infinito içam ao tope do arvoredo? Quem lhes disse a elles que se lhes quer beliscar no fôro intimo de escriptores? quem lhes prégou a servidão como evangelho do poeta? quem pensa em que as aguias tragam ao pescoço um trambolho, como os cães por tempo de vindima? Ninguem, que eu saiba. O que se diz, o que se affirma, o que se protesta é que as theorias ensarilhadas da Allemanha, que vieram até nós fazendo escalla pela França, nem lá tem estorroado grandes caminhos para o futuro, nem por cá farão milagre; é que o poeta não tem que jurar a cada momento por Michelet, como os teutões por Hermann, nem deve ensinar a derrubar a santidade das crenças para erguer n'esse throno devoluto uma chimera de treslidos, um ideal avariado.
O que se diz, o que se affirma, o que se protesta é que a arte, no alto sentido d'esta palavra, só deve ter por fim dissipar o que é nuvem, lavar o que é macula, levantar o que é rasteiro, arejar o que é fetido, allumiar o que é sombra, robustecer o que é anemico, limpar dos cogumelos do atheismo risivel a planta nascente que se apruma para o céo. Ninguem vos quer enfeudar, ninguem attenta contra a vossa dignidade de homens de lettras. Pensaes edificar para os seculos e trabalhaes para o esquecimento; julgaes fazer a luz e amontoaes as trevas. A vossa obra é como o abysmo de Milton,
—«A dungeon horrible on all sides round,
—yet from those flames
No light, buth ralher darkness visible.»—
D'esta appreciação, d'este modo de julgar a nova escola que tende a implantar-se entre nós, tem resultado as vaias descompostas, e as censuras bem cabidas. Despresar{16} aquellas é dever, aceitar estas prova é de discernimento e de cordura. O afan com que a maior parte dos nossos escriptores, (e alguns de primeira grandesa), anda involvida n'esta pugna, diz bem alto aos pachorrentos que ella não é tão frivola como isso. A faisca póde tornar-se incendio, como a raiz póde converter-se em floresta. Defendem-se as immunidades da arte como se defendem as da patria; os sacerdotes do bello vigiam pelo seu culto.
Eu, sem ter vaidades tresloucadas, entendi que poderia vir tambem a publico, não de mitra e báculo, para exorcismar os energumenos, mas como simples leigo, que, se não destrinça ainda bem todos os mysterios do rito, tem, pelo menos, fé viva na religião dos seus maiores.
FIM
CATALOGO CHRONOLOGICO
DOS OPUSCULOS PUBLICADOS ATÉ HOJE
SOBRE A ACTUAL
QUESTÃO LITTERARIA
1—A. F. de Castilho—Carta ao editor A. M. Pereira sobre o Poema da Mocidade, impressa no fim do poema (Esta memoravel carta de critica litteraria é que suscitou a famosa questão que se está debatendo) 1 vol. brox. 600
2—Anthero do Quental—Bom senso e bom gosto, carta ao ex.mo sr. A. F. de Castilho, 3.ª edição, br. 100
3—M. Pinheiro Chagas—Bom senso e bom gosto, folhetim a proposito da carta que o sr. Anthero do Quental dirigiu ao sr. A. F. de Castilho br. 100
4—Manuel Roussado—Bom senso e bom gosto, resposta á carta que o sr. Anthero do Quental dirigiu ao ex.mo sr. A. F. de Castilho, br. 100
5—Elmano da Cunha—Carta em resposta a outra bom senso e bom gosto dirigida por Anthero do Quental ao ex.mo sr. A. F. de Castilho o incomparavel traductor dos Fastos de Ovidio, obra em que se faz o confronto de Romulo e Jesus-Christo, offerecida ao incomparavel duque de Saldanha, br. 100
6—Julio de Castilho—O sr. Antonio Feliciano de Castilho e o sr. Anthero do Quental, 2.ª edição, br. 160
7—Theophilo Braga—As theocracias litterarias, br. 100
8—Anthero do Quental—A dignidade das lettras e as litteraturas officiaes, br. 160
9—Rui de Porto Carrero—Lisboa, Coimbra e Porto e a questão litteraria.—A carta do sr. Anthero do Quental ante os srs. Pinheiro Chagas, M. Roussado e Julio de Castilho, 2.ª edição, br. 160
10—A. Ferreira de Freitas—Os litteratos em Lisboa—poemeto illustrado por Jeronymo da Silva Motta, bacharel nas faculdades de theologia e direito, br. 240
11—Amaro Mendes Gaveta—O mau senso e o mau gosto—Carta mui respeitosa ao ex.mo sr. A. F. de Castilho em que se falla de todos e de muitas pessoas mais, com uma conversação preambular por Gaveta Mendes Amaro, br. 100
12—S. de A.—Bom senso e bom gosto—Carta de boas festas a Manuel Roussado, br. 100
13—J. D. Ramalho Ortigão—Litteratura de hoje, br. 100
14—Camillo Castello Branco—Vaidades irritadas e irritantes—opusculo ácerca de uns que se dizem offendidos em sua liberdade de consciencia litteraria, br. 200
15—Augusto Malheiro Dias—Castilho e Quental—reflexões sobre a actual questão litteraria, br. 100
16—Urbano Loureiro—Questão de palheiro; Coimbrões e lisboetas, br. 100
17—Ermita do Chiado—Garrett, Castilho, Herculano e a escola coimbrã, ou dissertação ácerca da genealogia da moderna escola, contendo um esboço rapido e pittoresco da litteratura contemporanea, br. 100
18—C. F.—A litteratura ramalhuda a proposito dos srs. Castilho e Ramalho Ortigao, br. 100
19—A. F. de Castilho e J. A. de Freitas e Oliveira—A questão litteraria—a proposito do jazigo de José Estevão, br. 60
20—José Francisco—Os coimbrões; questão em que tambem entra pelos cem réis, José Francisco, caiador da rainha do Congo; com uma dedicatoria por Diogo Bernardes, br. 100
21—José Feliciano de Castilho—A escola coimbrã.—Cartas ao redactor do Correio Mercantil, do Rio de Janeiro (este folheto contem as tres primeiras cartas; as seguintes formarão outro folheto que já está no prelo), br. 100
22—Eduardo A. Vidal—Guelfos e gibelinos. Tentativa critica sobre a actual polemica litteraria, br. 100
23—P. W. de Brito Aranha—Bom senso e bom gosto. Humilde parecer com uma carta do ex.mo sr. A. F. de Castilho, br. 100
24—Eduardo Salgado—Litteratura de ámanhã, duas palavras ao sr. Anthero do Quental, br. 100
25—Carlos Borges—Penna e espada, duas palavras ácerca da Litteratura de hoje, de Ramalho Ortigão br. 100
26—Anonymo—Anthero do Quental, e Ramalho Ortigão, br. 100