Title: Os netos de Camillo
Author: Alberto Pimentel
Release date: September 17, 2010 [eBook #33752]
Most recently updated: January 7, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano
Notas de transcrição:
O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1901.
Foi mantida a grafia usada na edição original de 1901, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.
ALBERTO PIMENTEL
Os Netos
de Camillo
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sociedade editora
LIVRARIA MODERNA
R. Augusta, 91
TYPOGRAPHIA
35, R. Ivens, 37
MDCCCCI
OS NETOS DE CAMILLO
CAMILLO CASTELLO BRANCO
(Copia de um retrato a crayon que pertence aos netos do grande escriptor)
ALBERTO PIMENTEL
OS NETOS DE CAMILLO
Das flôres surgirão pomos?...
Se Deus regar os arbustos!TOMAZ RIBEIRO.
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sociedade editora
LIVRARIA MODERNA
R. Augusta, 91
TYPOGRAPHIA
35, R. Ivens, 37
MDCCCCI
D. ANNA ROSA CORREIA
Fui hontem, 20 de agosto, a S. Miguel de Seide fazer uma romagem de saudade.
Quando Camillo era vivo, sempre que eu vim a Santo Thyrso não deixei nunca de visitar o grande romancista na sua melancolica Thebaida.
Agora que elle é morto e repousa longe, no cemiterio da Lapa, fui em peregrinação devota contemplar o tumulo em que viveu e agonisou: a casa solitaria de Seide, onde cada pedra parece ser um epitaphio que chora resignadamente por elle no silencio e na mudez de uma aldea minhôta.
Esta casa, a que o proprio Camillo chamou «o albergue arruinado de S. Miguel de Seide», é uma reliquia historica, um monumento nacional, como a casa de Shakspeare em Stratford-sur-Avon ou como a casa de Goethe em Francfort.
É ou deve ser.{6}
Para mim tem o que quer que seja de venerando, como um castello desmantelado, onde a nossa gente tivesse ganho outr'ora cem victorias gloriosas, de que eu proprio houvesse sido testemunha...
Sahi de Santo Thyrso ao amanhecer e almocei em Landim.
Devo ao sr. Adriano Trêpa, meu presado amigo, a honra de acompanhar-me.
Vi de passagem a cêrca do antigo mosteiro de Landim, hoje propriedade da familia Leal e Sousa.
Um filho do dono da casa, o sr. Manuel Vicente Leal, que ia a sahir n'esse momento, retrocedeu de bom grado para nos servir amavelmente de cicerone.
Eu, quando viajo, não gosto de fazer prevenções, nem aos outros, nem a mim proprio. Sou o viajante mais despreoccupado que pode haver; entrego-me inteiramente ao acaso, e sempre me tenho dado bem com isso.
A cêrca do mosteiro está transformada; poucos vestigios restam ainda do tempo dos frades. Ha trechos de buxo em algumas ruas, e «o jogo da bola», que era vulgar nos conventos do sexo masculino, subsiste menos mal conservado.
As freiras, se cultivavam este jogo, era no plural...
Já posteriores á extincção das ordens religiosas, vi carvalheiras enormes, medindo de circumferencia mais de quarenta palmos. Uma d'ellas fôra lascada por um raio, de alto a baixo. Vi tambem, digna de{7} menção, uma rua de australias, arvores cujo cerne imita o pau preto e é, por isso, madeira apreciada.
Conversando com o sr. Manuel Vicente, perguntei-lhe se Camillo teria phantasiado muito a respeito do Cego de Landim.
—Nada, absolutamente. Camillo ainda não disse tudo. O «cego» era um perverso homem.
—E onde morava aqui?
—N'uma casa por detraz d'aquella capella.
Indicou-me a capella de S. Braz, onde todos os annos se realiza uma pomposa festa, com arraial e feira.
Tambem o sr. Manuel Vicente me indicou o antigo collegio de Landim, em que foram educados muitos rapazes do Minho, que hoje são honra e brilho da sua provincia.
O sr. Trêpa e eu fomos almoçar á estalagem do Rodrigues, n'uma varanda envidraçada, que dava sobre campos emplumados de basto arvoredo.
Notei que Landim é uma terra abundante de alfaiates. Só á porta de uma casa, vi sete trabalhando ao ar livre; fizeram-me lembrar a historia dos sete alfaiates lendarios, que foram precisos para matar uma aranha.
Mal acabamos de almoçar, partimos para Seide, onde chegamos perto das dez horas da manhã. O sol tinha já descoberto; a nevoa, que havia sido intensa, dissipara-se completamente.{8}
*
* *
Os meus olhos esperavam avidamente o momento de avistar a casa que fôra de Camillo.
Tomados de um instinctivo respeito, iamos ambos calados, o sr. Trêpa e eu.
De repente, surgiu-nos o portão ensombrado por duas grandes acácias, que pendem sobre elle.
—É ali! disse eu.
—É ali! repetiu o sr. Adriano Trêpa.
E, passando respeitosamente por deante do portão, que dá para o largo da egreja parochial, dirigimo-nos á casa onde actualmente residem os netos de Camillo, a dois passos de distancia.
Toda a gente se lembra ainda da deploravel questão que, a meu pezar, sustentei com o visconde de S. Miguel de Seide, segundo-genito de Camillo, sobre a existencia de uma filha natural do grande romancista, casada no Porto.
Tive receio de que a recordação d'essa acerba polemica estivesse ainda muito viva no espirito da sr.ª D. Anna Rosa Corrêa.
Adoptei por isso a precaução de apresentar-me sob o nome que primeiro me lembrou, ao solicitar o obsequio de ser recebido como admirador fervoroso de Camillo.
Acolheu-me gentilmente a dona da casa, que immediatamente chamou alguns de seus filhos, não todos,{9} porque dois d'elles, Camillo e Manuel, tinham sahido pela manhã.
Notei que por vezes a sr.ª D. Anna Corrêa, mãe d'aquellas creanças herdeiras de um nome glorioso e de pouco mais, me observava com certa curiosidade.
Soube comtudo manter-se n'uma discreta reserva, não arriscando duvida alguma sobre a minha identidade.
Fingiu acreditar que eu era «um Araujo» admirador de Camillo, desejoso de conhecer os netos do grande romancista e de visitar a casa onde elle morreu.
Apresentou-me Flora, sua filha mais velha, quinze annos de idade, alta e elegante como um pinheiro novo, de uma simplicidade de maneiras ao mesmo passo graciosa e senhoril; e Rachel, quatro annos mais nova, cujo vago olhar revela morbidez e melancolia.
—Esta menina, disse-me a sr.ª D. Anna Corrêa, era a predilecta da avó.
—Aventuro-me a conjecturar, respondi eu, que o nome de Rachel foi escolhido por Camillo.
—Isso mesmo... confirmou a minha amavel interlocutora esboçando um sorriso. Nós queriamos que se chamasse Anna, como a sr.ª viscondessa, mas o sr. visconde (Camillo) oppoz-se, dizendo que esse nome era infeliz na familia. Referia-se á sr.ª viscondessa e a mim...
—Rachel, observei eu, exprimia na vida de Camillo a saudade do passado. Com esse nome foi designada{10} a sr.ª D. Anna Placido em muitos dos versos amorosos que ella lhe inspirou.
—Exactamente. É verdade.
Apresentou-me depois os restantes filhos que estavam em casa: Nuno e Simão, em cujas physionomias, doces e intelligentes, prevalece um accentuado typo de familia.
—Simão, observei eu, tambem foi um nome intencionalmente escolhido.
A sr.ª D. Anna confirmou com um gesto.
—É o do protogonista do Amôr de perdição, acrescentei. Oxalá que este menino seja mais feliz.
*
* *
Como eu tivesse insistido no desejo de vêr o pequeno Camillo, por saber que era o neto querido do avô, foram procural-o emquanto conversavamos a respeito de seus irmãos.
E iamos já a sahir em visita á casa onde o grande Camillo morreu, quando appareceu o joven Camillo, denunciando um certo ar de extranheza no olhar suavemente penetrante e perspicaz.
—Este menino, disse-me a sr.ª D. Anna, nasceu a 16 de maio de 1888, no mesmo dia em que o avô fazia annos. Nos Amores de Camillo vem esta observação, que é exacta.
Procurei mostrar-me indifferente á citação do meu livro, comquanto me fosse agradavel a certeza de que{11} a sr.ª D. Anna Corrêa o conhecia e indicava como fonte auctorisada em minudencias biographicas.
A physionomia do pequeno Camillo é, em verdade, a mais expressiva entre todos os netos do grande romancista.
Essa creança revela uma luminosa precocidade de intelligencia. Não sendo robusto, como nenhum dos seus irmãos o é tambem, parece mais debil e menos expansivo que elles. Tem o que quer que seja de gravidade prematura quando escuta enconchando a mão sobre a orelha direita, porque padece de dureza de ouvido, como seu irmão Nuno. Tudo faz esperar que elle seja o continuador da gloria literaria do avô. Esta convicção parece estar arreigada no espirito de toda a familia, que a recebeu do grande romancista, o qual dizia muitas vezes ao pequeno Camillo:
—Se eu tornar a vêr, vou comtigo para Coimbra.
Apezar dos escassos recursos de que a sr.ª D. Anna Corrêa dispõe, julgou seu dever não se poupar aos maiores sacrificios para iniciar convenientemente a educação d'este filho.
O pequeno Camillo estuda em Braga, onde vae cursar agora o terceiro anno do curso geral dos lyceus.
*
* *
As terras de Seide não podem abastar ao sustento e educação de tão numerosa prole. Dariam regular passadio para uma ou duas pessoas, apenas. Mas para{12} educar tantas creanças não chegam. De mais a mais estão oneradas com um pezado fôro de setenta razas de milho alvo e centeio, pago annualmente ao abbade, e com os juros de uma hypotheca á Misericórdia de Villa Nova de Famalicão. São terras sêccas e por isso pouco fecundas: apenas alli tem maior valor a casa de habitação, que foi mandada construir pelo visconde de S. Miguel de Seide, e que é muito superior em capacidade e aspecto áquella em que o grande romancista viveu e morreu.
A hypotheca abrange tambem este ultimo predio.
A pensão que foi votada pelo parlamento a Camillo Castello Branco, cessou com a morte de seu filho Jorge.
Portanto os descendentes de Camillo, se lhes não acudir o Estado, como deve, terão de luctar com as maiores difficuldades para receber educação condigna do nome illustre que representam.
—Ver-me-hei na necessidade, dizia-me a sr.ª D. Anna, de mandar este menino (Camillo) para o commercio no Porto ou em Braga, bem como os outros.
E o seu rosto, macerado pelos desgostos e trabalhos da vida, que a envelheceram prematuramente, cobria-se de uma espessa nuvem de melancolicas apprehensões.
FLORA
—Tenho feito quanto tenho podido, continuou a sr.ª D. Anna, a bem d'estes meninos, mas não poderei aguentar por muito mais tempo tão difficil esforço. Flora fez exame de instrucção primaria. Nenhum dos outros irmãos é analphabeto. Manuel, que não lhe{13} posso apresentar, está em Landim a dar lição; só recolhe á noite. Nenhum dos meus filhos tem repugnancia pela instrucção, nem é preciso chamal-os para irem á escola, sendo Camillo o mais madrugador e estudioso de todos. Triste de mim, se tiver de lhes dar um destino que não seja o das letras. Mas não posso... não posso.
Não foi como consolação banal que lhe respondi:
—Não desespere, minha senhora. Portugal é prodigo em conceder pensões, e este acho eu que será o menor defeito de toda a nossa administração publica, porque mais vale evitar que alguns portuguezes morram á fome, do que dar um triste exemplo de ingratidão nacional. Todos nós sabemos que esta ou aquella pensão é, entre muitas outras, mais explicavel pela generosidade do que pela justiça. Mas a que se conceder á memoria de Camillo, na pessoa de seus netos, pelo menos até á maioridade d'elles, alem de poder ser a mais parcimoniosa de todas, será a mais justa entre as que a si mesmas se justificam plenamente. Camillo é um d'estes escriptores que representam uma nacionalidade: a sua obra é a alma de um povo.
A sr.ª D. Anna enxugou uma lagrima nos seus olhos de um azul muito claro, tão quebrados pelo soffrimento como o poderiam ser por uma longa vigilia.
Quantas noites, em verdade, não desvelará esta boa creatura a pensar no incerto futuro de seis filhos, entregues ao seu heroismo maternal, unica força que parece vitalisar-lhe o corpo depauperado pela anemia{14} e envelhecido prematuramente por uma vasta serie de inconfessaveis desgostos!
Depositária de um nome illustre, e de uma das mais solidas glorias literarias do nosso tempo, que deverá restituir intacta a seus filhos depois de os ter preparado de modo a saberem continual-a dignamente, a sua missão é espinhosa e agra, sobretudo se a patria a desamparar, o que seria um crime affrontoso, e uma ingratidão odiosa.
Os netos de Camillo, vivendo n'um affastado rincão do Minho, entre dois campos hypothecados, não téem a espreital-os a reportagem dos jornaes, a vigilancia dos Argus de botequim, nem a attenção dos centros literarios e aristocraticos. Os montes que os rodeiam, não deixam vel-os de longe; especialmente de Lisboa. É preciso lembral-os, pol-os deante dos olhos da patria, e esse é o unico intuito que inspirou a publicação d'este opusculo.
Dilemma inilludivel: Deixar ao abandono seis creanças, que hão de perpetuar uma geração illustre, ou protegel-as com uma exigua mealha, que abastará ás modestas necessidades de pessoas educadas na vida aldeã, no trato simples de camponezes, e sobriamente habituadas ao caldo verde do Minho.
Quem deixará sossobrar em tão fragil batel seis creanças desprotegidas, podendo facilmente salval-as, e com ellas uma das mais authenticas e genuinas glorias nacionaes?
Ninguem. A consciencia publica é o ultimo alento que morre nos povos que se deixaram enfermar de{15} leviandades e desacertos continuados. Nós somos um povo doente d'essa pécha. Mas a consciencia ainda reage por vezes, brada, impõe-se, faz-se ouvir e attender.
Entreguemos, pois, esta demanda á consciencia publica.
O unico dos netos de Camillo que eu não pude vêr em S. Miguel de Seide, foi Manuel, o mais novo, nascido em 1893.
O seu nome tambem obedeceu a uma propositada escolha: era o do pae do grande romancista.
A julgar pelo retrato, parece ser o mais alegre de todos elles, privilegio que a sua edade, aliás, explica.
*
* *
Acompanhados pela sr.ª D. Anna Corrêa, dirigimo-nos, o sr. Adriano Trêpa e eu, para a casa onde morreu Camillo, a qual está actualmente deshabitada, com excepção do pavimento terreo, que é residencia do caseiro.
Aberto o portão, entramos na sombra de uma latada de alvaroco, cujos cachos brancos pendiam vagamente doirados por tenues raios de sol, que as folhas verdes coavam.
Olhei logo para um recanto, á esquerda, onde eu sabia existir o monumento commemorativo da visita de Castilho, «o principe da lyra portugueza», a S. Miguel de Seide, em julho de 1866.{16}
Castilho, que partira de Lisboa acompanhado por seu filho Eugenio, tinha alli, n'aquelle torrão do Minho, uma côrte de letrados, verdadeira côrte n'aldeia, a render-lhe homenagem: compunham-n'a Camillo, Anna Placido, Thomaz Ribeiro e Vieira de Castro.
A inscripção está quasi apagada, como já se apagou tambem a vida das pessoas a quem ella se referia. Cresceram hervagens e ramos que sombriamente afogaram o monumentosinho. Parece um tumulo esquecido na solidão de um cemiterio.
Recordei então a dedicatória da Maria Moysés a Thomaz Ribeiro.
Quando eu estava olhando para aquella pedra triste, visinha silenciosa de uma casa não menos triste, assomou ao portão um individuo, que desconheci, um velho rijo, de physionomia agradavel, cujo trajo me denunciou logo o camponez polido.
A sr.ª D. Anna Corrêa apresentou-m'o, pois que o sr. Trêpa já o conhecia: era o sr. Francisco Corrêa de Carvalho, dedicado amigo de Camillo, quasi familiar na casa de Seide, e proximo visinho.
Como notasse que eu estava olhando para o monumento, o sr. Carvalho, muito expansivo, contou logo que um dia, nos ultimos annos da vida de Camillo, parára um trem ao portão, o que deu rebate de uma visita inesperada, facto que de longe a longe acontecia.
Camillo preparou-se para receber algum amigo; mas não apparecia ninguem. Sahiram varias pessoas, entre ellas o sr. Carvalho, a averiguar o extraordinario{17} caso da carruagem, que parecia ter vindo vasia e parado ali sem destino.
Então descobriram o vulto de um homem junto ao monumento, e voltado para elle. Aproximando-se cautelosamente, pé ante pé, reconheceram n'esse extranho visitante, Thomaz Ribeiro, que chorava, abraçando-se com a pedra.
Chorava memorias do passado, memorias de si mesmo, da sua mocidade longinqua, de Castilho morto, de Vieira de Castro duas vezes morto, primeiro no tribunal, depois no tumulo; do filho de Castilho, apodrecido n'um leito, e de Camillo, ali tão proximo, crucificado no Calvario de todas as dores reaes e imaginarias que lhe attribularam incessantemente a existencia.
Fiz reparo em que o sr. Carvalho, chamando de parte o sr. Trêpa, trocára com elle algumas palavras.
Tive depois a explicação d'este incidente; e o leitor tel-a-ha tambem, a seu tempo.
Mas, rapidamente, o sr. Carvalho voltou a falar comigo ácerca do monumento, e do facto que elle memorava: a visita de Castilho a Seide.
—Fez-se aqui, dizia-me o sr. Carvalho, uma linda illuminação. Vieram cantadores, entre os quaes se distinguiram o Gallego e a Rosa Cantadeira. Castilho mostrou-se admirado com os improvisos do Gallego, sempre espontâneos e, por via de regra, muito maliciosos. «Quero, dizia Castilho, que me descrevam a cara d'este homem; que pena tenho de o não vêr! Mas calculo que a sua physionomia ha de ter tanta{18} expressão como a de um actor comico. Por força!» Nunca mais, concluia o sr. Carvalho, poderei esquecer essa noite de festa, que foi talvez a unica noite feliz n'esta casa.
Emquanto o sr. Carvalho discursava com a verbosidade ardente de um rapaz, poisei os olhos sobre a acacia do Jorge, de cujas amplas frondes cahia uma sombra profunda e saudosa.
E fui repetindo, irreflectidamente, os versos de Camillo:
Quando a acacia do Jorge ainda outra vez inflore,
Chamai-me, que eu de abril nas auras voltarei.
A sr.ª D. Anna Corrêa, encostada n'esse momento ao mainel da escada, que iamos subir, disse com maviosa expressão de tristeza:
—Tantas vezes tem já florido, depois que elle morreu!
Eu completei mentalmente o seu pensamento: «E ainda não voltou...»
Noticiei á sr.ª D. Anna que um poeta da moderna geração, dos melhores, se não o melhor, havia recentemente cantado A acacia do Jorge em quadras maviosas, de que brotavam lagrimas em fio, melancolicamente, como gotas d'agua cahindo tristes de uma fonte solitaria.
Posso agora completar essa informação, reproduzindo integralmente a poesia de Affonso Lopes Vieira:{19}
A ACACIA DO JORGE
Camillo! como acreditar, como hei de
Entender estes versos que deixaste?
Floriu a Acacia em S. Miguel de Seide,
Cada anno te espera,—e não voltaste!Já tantas vezes deu a sombra amiga,
Que tu gostavas tanto de gozar...
Florida, tem um ar de festa antiga
Na esperança de te vêr voltar!Voltar? A velha arvore que cance!...
Por fim ha de ruir, n'uma amargura.
Prepáras lá um ultimo romance?
Suprema indiscreção! Genio e loucura!Dolorosa novella desmanchada,
E que nos deixe pallidos e absortos,
Onde nos digas, grande camarada,
O gordo amor de brazileiros mortos!Os Amorosos, que se vão chorando
Á porta do convento, e amortalhar-se...
Com habitos de terra aconchegando
Os esqueletos de ossos a chocar-se...Um romance da cova, com morgados
Que o além desbastou; com almas finas
De mysticas de Amor, lindas Meninas
Em mosteiros chorando, abandonados!E a descomposta, lugubre risada
De romantica bocca, que era a tua,
N'esses reinos da Morte gargalhada
Sobre defuntos namorando á lua!{20}E toda a vã e toda a derradeira
Esperança do cabo da viagem;
Com descriptivos, á tua maneira,
D'esse Minho da Morte da paisagem...Ó Acacia! é já tempo: desesperas?
Não te ponhas florida, põe-te aos ais!...
Nunca mais voltará esse que esperas,
Ouves bem este horror? Jámais! Jámais!E os versos d'elle, onde a saudade existe,
Que á despedida te gritou tambem,
Ah! não são mais que uma mentira triste:
Como tudo, a final, que nos faz bem.Poetas! perguntae ao pensamento
Que mais chimeras e desgraças forge?
Antes te séque um raio, ou parta o vento!
Ó Acacia do Jorge...
*
* *
Fomos subindo vagarosamente os degraus da escada de pedra, sobre a qual pende, chorosa, a farta ramagem da acacia. O caseiro tinha aberto as portas. Entrámos. Todos nós, os homens, nos descobrimos a um tempo, respeitosamente.
A lembrança do que eu vira ali ha dezeseis annos aclarava-se no meu espirito com uma grande nitidez de saudade rediviva.
Eu ia dizendo:
—Era aqui a casa de jantar.{21}
CAMILLO
A sr.ª D. Anna Corrêa confirmava.
Passámos depois á sala em que estivera o bilhar e onde Camillo costumava receber as suas visitas de maior cerimonia.
A sr.ª D. Anna disse, indicando o vão de uma janella:
—Foi aqui que se matou, sentado na cadeira de baloiço.
E, longamente, a sr.ª D. Anna reconstituiu todo esse rapido drama de desespero atroz.
—O sr. visconde (Camillo) estava vivendo comnosco, no outro predio, onde habitava o melhor quarto do segundo andar. Mas sempre que tinha visitas, vinha aqui recebel-as. Foi o que aconteceu n'esse dia, quando chegou de Aveiro o medico Edmundo Machado, que já tambem falleceu. O sr. visconde parecia tranquillo antes do medico chegar.
O sr. Carvalho interrompeu, dizendo:
—Na vespera tinha andado a passeiar pelo meu braço ali no largo, em frente da egreja. Como começasse a soprar uma aragem fresca, o sr. visconde disse-me: «Vamos embora, que tenho medo de uma pneumonia.» Ainda na vespera do suicidio temia tanto a morte!
—É verdade! confirmou a sr.ª D. Anna Corrêa. Perguntou o sr. visconde ao medico se quereria encarregar-se de o tratar da cegueira em Aveiro. O doutor respondeu que seria melhor ir primeiro tomar as aguas do Gerez. O sr. visconde viu certamente n'estas palavras o artificio de uma dilação para evitar{22} um desengano. Momentos depois o medico despediu-se, e a sr.ª viscondessa e o sr. Carvalho acompanharam-n'o até á escada. Ouviu-se então a detonação de um tiro. Retrocederam todos. O sr. visconde estava prostrado na cadeira, arquejando. Não se lhe viu, no primeiro momento, ferimento algum. Foi só algum tempo depois que uma gotinha de sangue aflorou no sitio onde a bala entrára, sobre a tempora.
—O sr. visconde, perguntei eu, trazia sempre comsigo o rewolver?
—Sempre; já o levára a Lisboa, onde um dia o experimentou, disparando para o tecto. Mas o filho (Nuno) tinha substituido as balas por uns projecteis inoffensivos, não sei de quê. O sr. visconde percebeu isto. Todavia não largára mais o rewolver, nem consentia que lh'o tirassem.
—De tanto o apalpar, observou o sr. Carvalho, já tinha a coronha poída.
A sr.ª D. Anna Corrêa concluiu a sua dolorosa narrativa dizendo:
—Estavamos longe de imaginar que tivesse adquirido balas verdadeiras. Todos suppunhamos o rewolver vasio. Foi uma surpreza terrivel.
E todos nós, depois d'esta rapida reconstituição do drama de Seide, nos demorámos ali, concentrados e silenciosos, por alguns momentos, como se vissemos ainda Camillo, prostrado e arquejante, na sua cadeira de baloiço, morrendo.{23}
*
* *
Subimos depois ao segundo andar.
Eram ahi o escriptorio do romancista e os quartos de cama.
No escriptorio, por onde agora a luz golphava livremente, restavam do antigo mobiliario duas cadeiras de estofo, escanceladas e poentas.
A nudez da sala, que o auctor de cem romances aquecera outr'ora com a irradiação vulcanica do proprio cerebro, gelou-me de tristeza. Dava a impressão de uma forja apagada. O tempo havia esfriado o rescaldo do ultimo livro. A officina parecia dormir tambem o somno da morte, que prostrára o valoroso artifice.
Os aposentos de Camillo, alcova e saleta, estavam igualmente desnudados de mobilia; apenas na parede havia pendentes alguns croquis do Jorge, e dois quadrinhos de que eu me lembrava ainda perfeitamente.
Tenho em Lisboa uma pasta cheia de desenhos, que o Jorge me deu ha dezeseis annos. Por isso, mais do que aos seus croquis, prestei attenção aos dois modestos quadrinhos, que durante longo tempo deram os bons dias e as boas noites a Camillo, velando a seu lado, como companheiros fieis e amigos intimos.
São duas lithographias, que ninguem compraria n'um leilão, se ignorasse que ellas tinham pertencido a Camillo e ornado o seu quarto de cama.
Uma é o retrato de Theophile Gautier, que foi o{24} chefe do estado-maior no exercito do general Victor Hugo, durante as campanhas incruentas do romantismo.
A sua toilette caracterisa nitidamente essa época literaria, em que os neóphytos revolucionarios procuravam desafiar a opinião publica e épater le bourgeois exhibindo fatos alarmantes pelo exagero da côr e do córte.
Primeiro que tudo, falemos da cabelleira romantica, essa floresta de cabellos cahidos sobre os hombros, que denunciava á primeira vista os literatos e os pintores.
Agora, em nossos dias, muitos pintores e alguns poetas téem querido resuscital-a por amor da celebridade; mas, ai d'elles! fazem lembrar os mascarados que no carnaval moderno se vestem de pagens de Luiz XIV ou de cortezãos de Luiz XV.
Deslocados do seu meio e do seu tempo, apenas conseguem dar uma falsa noção historica: são parcellas que sobrevivem a uma addição que se apagou.
A cabelleira, como ornato capillar, efemina ridiculamente os homens de hoje.
Como caracteristica d'uma época, passou com essa época: é uma recordação archeologica, que assenta melhor no muzeu do Carmo do que n'uma cabeça humana.
Theophile Gautier, que era então um rapaz, a quem o bigode pennujava ainda, veste casaco de alamares—esse casaco-broquel, que defendia os corações romanticos.{25}
O romantismo foi uma seita aguerrida, propensa a brigas e reptos. Por isso, talvez, adoptou o casaco de alamares, que tinha o que quer que fosse de aspecto militar, de lamina protegendo o peito de um couraceiro.
No pescoço, um lenço de seda preta, alto como o gorjal de um cavalleiro antigo.
Honrado lenço de seda, que durante tanto tempo adornaste o pescoço de nossos pais! tu tinhas uma eloquencia clamante e solemne. Davas ao pescoço humano uma attitude erecta e firme, como a de um busto de marmore ou de um granadeiro em formatura.
Dir-se-ia que os pescoços, grossos e aprumados, tinham então musculos de aço, a envergadura de uma aguia ou de um cysne. Precisavam uma encadernação condigna, forte e austera.
Depois vieram as gravatas multicores e multiformes, dando a impressão de fitas garridas para adorno de damas.
E a Academia Real das Sciencias decidirá, porque é muito capaz d'isso, se foram os pescoços que adelgaçaram por amor das gravatas, se foram as gravatas que adelgaçaram por amor dos pescoços.
O outro retrato é de Alphonse Karr, tambem então em plena mocidade. Tem buço e «mosca», levemente esboçados; e usa apenas meia cabelleira. Mas o effeito da toileite compensa, como excentricidade de pose, a deficiencia da cabelladura.
Karr veste camisa de trabalho, desafogada no pescoço,{26} e sobre ella um amplo gabinardo, que tanto poderia servir a um pescador ou um jardineiro, como a um escriptor em actividade—porque tudo isso foi o auctor das Guépes, sendo elle proprio uma obra em trez volumes.
Tambem não sei se a Academia Real das Sciencias quererá dar parecer sobre o facto, em que fiz reparo, de Theophile Gautier ter sobrancelhas desenhadas em arco e Alphonse Karr sobrancelhas colleadas em til.
Pode ser que das ponderações da Academia a este respeito venha a fazer-se nova e difinitiva luz sobre a apreciação critica de Gautier e Karr.
Ha muito a esperar da Academia, tanto mais que ella ainda não fez nada.
*
* *
Da saleta de Camillo passámos ao quarto de cama da viscondessa de Correia Botelho, igualmente desmobilado.
Foi ali que essa linda mulher, de fórmas esculpturaes, envelheceu e expirou.
D. Anna Augusta Placido falleceu repentinamente da ruptura de um aneurysma, no dia 20 de setembro de 1895 pela manhã.
Tinha accordado bem disposta e, a breve trecho, veio a morte surprehendel-a.
Após algumas golphadas de sangue, cahiu exanime na almofada do leito.{27}
Morreu corajosamente, rodeada pelos netos.
Ella, que teve uns olhos cheios de brilho e de magia, estava quasi cega quando morreu.
Já não podia lêr, nem escrever.
Eu ignorava esta circumstancia, que me foi agora communicada em Seide.
Extranho destino o d'essas duas almas, Anna Placido e Camillo, que o amor reuniu, que a convivencia torturou, e que a desgraça da cegueira feriu implacavelmente na velhice, para que ambos exgotassem até ás fezes o mesmo calix de amargura.
Aqui terminou a nossa visita á casa deshabitada de Seide, rodeada de «pinheiraes gementes», mais triste agora do que nunca.
Por vezes o sr. Carvalho aligeirou a melancolia que nos acabrunhava ali, evocando alguma recordação anecdotica da vida de Camillo.
Quando sahiamos o portão da quinta, dizia-nos o sr. Carvalho:
—Um dia, Camillo, vindo do Porto, preveniu o chefe da estação de Villa Nova de que esperava brevemente a visita de um «bacharel» e pediu-lhe que o guiasse para S. Miguel de Seide. Sempre que chegava um comboio, o chefe da estação perguntava: «Vem ahi algum sr. doutor, que deseje ir para Seide?» Ninguem respondia. Até que finalmente appareceu o «bacharel» annunciado: era um burro que Camillo Castello Branco tinha comprado no Porto.{28}
*
* *
Como voltassemos á casa do Nuno, para nos despedirmos dos netos do grande romancista, pois que só o pequeno Camillo nos tinha acompanhado, aproveitei o caminho para fazer algumas perguntas á sr.ª D. Anna.
—O sr. visconde de Corrêa Botelho não reservou para si alguns livros e manuscriptos, quando vendeu a bibliotheca?
Obtive esta resposta:
—Sim, senhor. Mas a sr.ª viscondessa recommendou-me muitas vezes que os não mostrasse a ninguem antes de entregal-os aos netos.
Fiquei, confesso, um pouco contrariado, mas não tinha que replicar.
Perguntei á sr.ª D. Anna por um antigo criado de Camillo, que eu conhecêra na Povoa de Varzim e do qual o grande romancista me disse n'aquella praia: «Manoel Canniço é a unica pessoa que manda na minha casa. Assumiu a dictadura e não sabe governar d'outro modo: dava um bom ministro... constitucional.»
Poucas horas depois sahiamos, Camillo e eu, para ir dar um passeio.
O Manoel Canniço appareceu-nos na escada e interpellou seu amo dizendo-lhe:
—V. Ex.ª vai sem paletot?
Camillo respondeu passivamente:{29}
NUNO
—A tarde está quente, e nós demoramo-nos pouco.
Manoel Canniço, em plena dictadura, replicou:
—V. Ex.ª vai vestir o paletot; queira esperar, que vou buscal-o.
Camillo encolheu os hombros, sorrindo. E ambos esperámos que o paletot chegasse.
Andámos visitando os cafés e as roletas. Quando recolhiamos a casa, passámos por uma taberna onde estavam zangarreando viola. Camillo parou, olhou para dentro da tasca, e disse-me: «Quem toca é o Manoel Canniço. Por isso é que eu o soffro.»
Segundo me contou a sr.ª D. Anna Correia, Manoel Canniço fôra para o Brazil, onde se demorára alguns annos; regressou outro dia, mais pobre do que tinha ido.
Voltando á casa do Nuno, tornei a falar na necessidade de, com o auxilio do Estado, serem convenientemente educados os netos de Camillo.
E de repente ataquei um assumpto novo:
—Estes meninos téem uma tia no Porto, bem casada, supponho eu.
A sr.ª D. Anna respondeu promptamente:
—Téem, é certo, mas as nossas relações estão cortadas.
Não pude então reprimir uma expansão que me desafogou o animo:
—V. Ex.ª está pois convencida de que estes meninos téem uma tia no Porto?
—Estou, sim, senhor.{30}
—Tambem eu, minha senhora.
O sr. Carvalho interveio na conversação, pondo-se a pé e dizendo com grande hombridade:
—Negal-o foi uma loucura.
Achei que era chegado então o momento opportuno de arrancar a mascara que me constrangia.
—Pois bem, minha senhora, disse eu, desde que não corro o risco de ter que contrariar a opinião de V. Ex.ª em sua propria casa, devo declarar-lhe o meu verdadeiro nome: eu sou Alberto Pimentel. E agora peço mil perdões a V. Ex.ª por ter usado de um disfarce, que me foi imposto pelo respeito e consideração que devia a V. Ex.ª Eu não podia, na sua presença, ter uma opinião que, sobre tão melindroso negocio de familia, lhe causasse desgosto.
O sr. Carvalho sorria triumphalmente. A sr.ª D. Anna respondeu com indulgente cortezia, dizendo:
—Eu tinha-o suspeitado desde que V. entrou. Em 1892 o Nuno, estando nós na Povoa, mostrou-me V. no Café Chinez; no dia seguinte tornámos a vêl-o de tarde, no Passeio Alegre. E o Nuno dizia-me então: «Não haver aqui um homem, amigo de ambos, que pudesse reconciliar-nos!» O que é certo é que eu tinha fixado a physionomia de V. e mal podia acreditar n'uma tão completa similhança entre a pessoa que eu vira na Povoa e a pessoa que hoje me visitava com nome differente.
O sr. Carvalho, de pé, no meio da sala, continuava a sorrir triumphalmente, esperando a occasião de dizer:{31}
—A mim tambem não me enganou V. Logo que o vi, perguntei ao sr. Trêpa: «Este não é o Alberto Pimentel?»
E o sr. Adriano Trêpa confirmou:
—Foi o que elle me disse ao ouvido, agarrando-me pelo braço.
—O que lhe respondi eu? insistiu o sr. Carvalho.
—Que tinha a certeza de que não era outra pessoa.
O sr. Carvalho explicou que me conhecia de S. Miguel de Seide, e que, na Povoa de Varzim, viera esperar-me á estação com o Nuno no anno em que eu ali fôra visitar Camillo.
A sr.ª D. Anna Corrêa disse então como se quizesse apresentar-me officialmente o sr. Carvalho:
—É um nosso velho amigo, que o sr. visconde (Camillo) estimava muito.
E, sorrindo, acrescentou:
—É o «José Fistula» do Eusebio Macario...
O sr. Carvalho atalhou jovialmente:
—Com a differença de que não sei tocar guitarra, nem cantar o Fado. Camillo brincava comigo; mas era meu amigo a valer, e eu adorava-o.
*
* *
É certo que o genial romancista, na vida aldeã de Seide, se entretinha familiarmente com a gente do campo. Não me refiro ao sr. Carvalho, que é um{32} camponez relativamente illustrado. Mas ainda outro dia vi em Santo Thyrso um velho jornaleiro que anda hoje pedindo esmola, e que recita perlengas mythologicas e polyglottas leccionadas por Camillo. Chama-se João de Seide e deve ter perto de setenta annos. Repete inconscientemente, como um phonographo, o que lhe ensinára o grande romancista em horas de bom humor. Por exemplo:
Jupiter era um deus omnipotente no Olympo. Venus era sua filha e mãe de Cupido, deus do amor. Um dia Jupiter escamou-se com Vulcano, deu-lhe um pontapé no trazeiro, e deixou-lh'o ao lado.
Em francez, bonne nuit é boa noite; e bon soir, boa tarde.
Em inglez, good night é boa noite.
O verbo ser conjuga-se assim em francez
Je suis
Tu es
Il est
Nous sommes
Vous êtes
Ils sont{33}
A China tem mais habitantes do que a Russia, mas a Russia é maior em territorio.
Em Villa Nova de Famalicão, onde uma das novas ruas tem o nome de Camillo, ha um botequim conhecido pelo Café do Gato.
«Gato» é o appellido do seu proprietario, um velho rijo e são, ainda com filhos pequenos.
Era o botequim habitual de Camillo quando passava em Famalicão.
Ali se entretinha o grande escriptor chalaçando com o velho Gato, cuja rusticidade de trato eu pude aferir pelo dialogo que se travou, na minha presença, entre elle e um cavalheiro de Famalicão, ao entrarmos ultimamente n'aquelle botequim com outros cavalheiros de Santo Thyrso.
—Ó Gato, venha vêr o que estes srs. querem tomar.
Resposta d'elle:
—Não é preciso. Peça de lá, que eu sirvo de cá.
É de notar que esta resposta agreste, no trato da gente rustica do Minho, não exclue bondade de caracter. Não vá suppôr-se que o proprietario do café de Famalicão seja um «gato bravo» da bocca para dentro.
Mas o caso vem a proposito para mostrar que{34} n'estas e outras rusticidades se recreava Camillo emquanto a cegueira o não isolou em Seide na treva e no desespero.
O grande escriptor tinha um vocabulario pittorescamente ironico para exprimir os ridiculos e desleixos da vida campestre.
Assim era que, segundo vejo n'um jornal minhôto, designava pelo nome bucolico de boninas as stratificações fecaes que matizam e embalsamam os caminhos nas villas e aldeias do Minho.
Tem verdadeira graça pastoril: boninas!
*
* *
Reatemos a narrativa no ponto em que a deixámos: o motivo do meu disfarce.
A sr.ª D. Anna asseverou mais uma vez que Nuno Castello Branco tinha desgosto de haver provocado a questão a que me constrangeu logo depois da morte de seu pae; mas que fôra arrastado a isso por despeitos de familia, em consequencia de sua irmã ter mandado depôr uma corôa, com palavras de filial saudade, sobre o féretro de Camillo.
O sr. Carvalho, por sua vez, acrescentou:
—Quando o Nuno foi levar ao Porto o manuscripto do Protesto, disse-lhe eu: «Não faças isso, Nuno, que é uma loucura. Vaes contradizer a verdade. E olha que chega para todos vós a gloria de teu pae.»
—Mas o Nuno, insistiu a sr.ª D. Anna, estava arrependido{35} e não tinha odio nenhum a V. E a sr.ª viscondessa sempre, n'outras occasiões, se lhe mostrou muito affeiçoada, falando de V. com especial estima.
Certifiquei a sr.ª D. Anna de que eu procurei, quanto pude, evitar essa deploravel questão e poupar pessoalmente o meu adversario. Houve apenas uma insinuação que me feriu: a de que eu, por um vil interesse, o dinheiro, defendia a causa da filha de Camillo, quando é certo que eu nunca tivera intelligencias com o marido d'esta illustre senhora, e que até o não conheço. Mas essa mesma insinuação ficava esquecida, como se nunca houvesse existido, desde o momento em que eu tinha a certeza de que Nuno Castello Branco se arrependêra de a ter escripto.
No decurso da conversação vi-me rodeado pelos netos de Camillo, como se eu fosse já um familiar d'aquella casa. Principiei a sentir-me estimado ali, o que me recompensou largamente de quantos desgostos a questão do Protesto me causou.
Considero esse dia como um dos mais felizes da minha vida.
O pequeno Camillo viera sentar-se no sophá, a meu lado, interessando-se muito, com a mão enconchada sobre a orelha direita, pela nossa conversação.
A sr.ª D. Anna Corrêa tivera a encantadora bondade de dizer-me:
—Apesar da recommendação da sr.ª viscondessa quanto aos livros do sr. visconde, eu quero mostral-os a V.: é a maior prova de estima que posso dar-lhe. Tenho a certeza que se a sr.ª viscondessa fosse viva,{36} procederia do mesmo modo. Tambem ella faria esta excepção.
*
* *
D'ali a pouco subimos ao segundo andar para vêr o que resta da bibliotheca de Camillo: uns duzentos volumes talvez, repartidos por duas estantes envidraçadas. Algumas obras manuscriptas, poucas: lembro-me de ter visto uma genealogia em varios tomos. Entre os livros encontrei dois meus: A Jornada dos Seculos e a Flor de myosótis.
Depois entramos no quarto em que Camillo dormia quando alli se demorava temporadas.
É um amplo compartimento, cheio de luz, com largas janellas que deixam espraiar-se o olhar por cima dos pinheiraes até alcançar o cume de montes longinquos.
Quando Camillo habitava aquelle quarto, já estava cego. Mas se não podia contemplar o panorama, cheio da placidez e melancolia que caracteriza os bastos pinheiraes tranquillos, devia sentir o calor do sol que invadia o aposento.
A alma de Camillo teria certamente n'essas horas bem menos placidez que a floresta dormente.
Abundam n'esse quarto os retratos de familia, muitas recordações de um passado a que o amor deu momentos de felicidade e seculos de amargura.
Havia ali, em todo aquelle segundo andar, um bello nucleo de muzeu camilliano.{37}
RACHEL
Foi n'esse mesmo andar que Jorge Castello Branco, o infeliz primogenito de Camillo, passou os ultimos tempos da sua curta existencia.
Contou a sr.ª D. Anna Corrêa que elle tinha horror a vêr os criados da casa. Postas as refeições sobre a mesa, os criados sahiam; e o Jorge entrava depois. Algumas noites prestava-se a tocar piano—esse piano que era de sua mãe e que ella havia levado para a Cadea da Relação do Porto—mas exigia que ninguem estivesse presente. A musica foi uma das muitas aptidões artisticas do Jorge. Eu já disse algures que elle, em noites de luar, se empoleirava nas arvores de Seide a tocar flauta.
Queria viver isolado no seio da propria familia. Não consentia que lhe fizessem limpeza no quarto. Se alguem se quizesse aproximar, cuspia-lhe.
No dia 2 de setembro de 1900, o Jorge não se levantou para ir almoçar. A porta do seu quarto estava fechada por dentro, como era costume.
A sr.ª D. Anna Corrêa chamou-o:
—Sr. Jorge, são horas do almoço.
Elle respondeu:
—Já vou.
Mas passou tempo sem que se levantasse.
Tornaram a chamal-o.
—Já vou, repetiu elle.
Mas, como não apparecesse, a sr.ª D. Anna resolveu entrar no quarto pela janella, o que foi empreza difficil.
Achou o Jorge doente, apathico, n'um estado gastrico{38} que, n'esse momento, lhe pareceu não offerecer maior gravidade.
*
* *
D'aqui por deante, a narrativa da sr.ª D. Anna Corrêa conforma-se inteiramente com a versão que o sr. José de Azevedo e Menezes, da illustre casa do Vinhal, em Famalicão, me communicou n'uma carta, por mim já publicada.
Vou reproduzil-a, para que não fique perdida na volumosa collecção de uma folha diaria:
«Em resposta á estimada carta de v. , tenho a dizer-lhe que o infeliz Jorge de Castello Branco falleceu em casa de D. Anna Corrêa, a companheira do Nuno, no dia 10 do corrente mez, ás 6 horas da tarde, e enterrou-se no dia 12, assistindo alguns visinhos.
«Tratou-o nos ultimos quinze dias de vida o medico Dias de Sá, de Landim, que logo previu o desenlace fatal.
«No dia 2 d'este mez o Jorge sentiu-se mal do estomago, talvez por ter debicado as primeiras uvas e pêras do quintal da casa. Um ligeiro laxante deu-lhe melhoras, que infelizmente se não mantiveram, cahindo com desmaios e não podendo conciliar o somno.
«A final veiu a paralysia cerebral que o matou sem agonia. De vez em quando gemia e invocava a{39} Deus! Durante um desmaio na manhã do dia em que morreu, foi ungido.
«Não se lhe notou á hora da morte o intervallo lucido, que ás vezes apparece nas doenças mentaes.
«Tinha, porém, amor á vida, esperando obter melhoras dos remedios, que só tomava nos caldos e leite pela mão da sua desvelada enfermeira D. Anna Corrêa, que foi para o infeliz louco uma carinhosa mãe.
«Fui visitar essa bondosa mulher, e fiquei agradavelmente impressionado da sua apresentação e do bom senso, que mostrou em alguns pontos da nossa conversa. A rudeza da sua origem poliu-se no trabalho e soffrimento, que lhe deram os desgraçados com quem viveu. A mulher só se engrandece pela bondade, que é a sua belleza moral.
«O grande desejo de D. Anna é educar bem os seus filhos, mas como poderá desempenhar-se d'esta nobre tarefa sem recursos? É urgente abrir uma campanha a favor d'ella, para que lhe acuda o governo ou as almas bemfazejas. Inicie v. na imprensa periodica esta nobilissima missão. Os dois filhos mais velhos são intelligentes, principalmente o Camillo, que eu fixei com attenção e descobri-lhe traços physionomicos do glorioso avô. O rapaz é triste e concentrado e quer ser Padre... Até n'isto se parece com o grande escriptor, que no verdor dos annos pensou em se prender á Egreja. A sua ultima assignatura foi no assento do baptismo d'este seu neto e afilhado,{40} feita em casa de Nuno e sobre um piano, por lhe ficar mais a geito.
«Ao sahir da casa de D. Anna Corrêa olhei para a outra proxima, aonde viveu e morreu o incomparavel prosador portuguez. Está agora mal pintada de amarello e triste como a tragedia que a fechou. N'aquelle gabinete de Camillo apagaram-se os ultimos lampejos da sua conversa encantadora, esmaltada sempre de ironias, cortantes como o nordeste.
«Que tristeza e que lição para todos nós! Creia-me sempre
De V. etc.
José de Azevedo e Meneses.
S/C do Vinhal, 16-9-900.»
*
* *
Os jornaes do norte do paiz, noticiando a morte de Jorge Castello Branco, logo fizeram sentir que, tendo cessado com a sua vida a pensão, os netos de Camillo ficavam quasi reduzidos á miseria.
Dizia o correspondente de Famalicão para O Commercio do Porto:
«FAMALICÃO, 12.—Em S. Miguel de Seide sepultou-se hoje Jorge Castello Branco, ultimo filho do finado romancista Camillo Castello Branco.{41}
«De ha muito que o seu viver era o de um verdadeiro louco, temendo todos e passando os dias n'um aposento sem o convivio de pessoa alguma. O seu fallecimenio foi um verdadeiro desastre para seis netos do grande romancista, pois que a pensão que o governo dava ao finado custeava tambem a educação das creanças, que agora ficam ao desamparo.—(M. G.)»
Escrevia o Lusitano, de Famalicão, no mesmo dia 12:
«Acaba de fallecer em Seide o filho mais velho de Camillo Castello Branco, o pobre louco tão amado pelo immortal auctor do Amor de Perdição e tantas outras joias que hão de fulgurar seculos em fóra, na litteratura nacional.
«Ha muito que o Jorge, doido, doido desde tenra idade, fugia completamente do convivio social.
«Vimol-o ha semanas, pela ultima vez que veio á villa, causando immensa pena a precocidade da sua velhice e, mais nos commovemos ao attentarmos no seu perfil, que muito se parecia com o de seu pae.
«Como é sabido, o filho mais novo de Camillo deixou bastantes filhos na miseria, servindo-lhes de amparo a pensão que o governo dava ao Jorge.
«Morto este, ficam os netos de Camillo sem recursos de qualidade alguma.
«Pois quando mais não seja se não para honrar a memoria de Camillo, deve o governo continuar a{42} dar a seus netos a pequena quantia que deu ao Jorge durante alguns annos.
«O pequeno Camillo Castello Branco e seus irmãos não devem ficar ao desamparo.
«Quem sabe até se, educados os netos do genial Solitario de Seide, algum d'elles não será ainda muito util ás letras patrias, continuando a honral-as como honradas foram mais de meio seculo por seu avô o querido Mestre?»
*
* *
A pensão ao primogenito de Camillo havia sido concedida por um decreto depois sanccionado pelo parlamento nos seguintes termos:
«Artigo 1.º É approvado o decreto de 23 de maio de 1889, pelo qual, em reconhecimento publico dos relevantissimos serviços prestados ás letras patrias pelo visconde de Correia Botelho (Camillo Castello Branco), é concedida a seu filho Jorge Camillo Castello Branco a pensão annual e vitalicia de 1:000$000 réis.
«§ unico. A pensão de que trata esta lei é isenta do pagamento de quaesquer impostos, e será abonada desde a data do decreto que a concedeu, ao visconde de Correia Botelho, em quanto vivo fôr.
Art. 2.º Fica revogada a legislação contraria a esta.»{43}
Os filhos do visconde de S. Miguel de Seide, netos de Camillo, aos quaes faltou o amparo da pensão que o tio recebia, são, pela ordem chronologica do nascimento:
Flora, nascida a 11 de janeiro de 1886.
Camillo, nascido a 16 de março de 1888, no mesmo dia e mez em que nasceu o avô, que era seu padrinho.
Nuno Placido, nascido a 4 de março de 1889.
Rachel, nascida a 21 de fevereiro de 1890.
Simão, nascido a 6 de julho de 1891.
Manuel, nascido a 23 de abril de 1893.
Um motivo especial, que logo referirei, leva-me a fazer duas transcripções do jornal de Famalicão, O Lusitano, apezar de em qualquer d'ellas se encontrar o meu nome acompanhado de adjectivos que eu considero apenas um amavel cumprimento de quem os escreveu.
Agradeço-os, mas declino-os por immerecidos.
Não me assiste, porém, o direito de mutilar as transcripções.
Dizia O Lusitano no seu numero de 29 de agosto do corrente anno:
«Noticiámos, ligeiramente, a semana passada, a estada, em S. Miguel de Seide, de visita aos netos de Camillo, do illustre escriptor sr. Alberto Pimentel.
«Não conhecemos as impressões, que a sua ex.ª resultaram da volta, passados tantos annos, á casa do grande escriptor seu amigo. Mas não nos seria desagradavel{44} saber se o nosso estimado confrade do Popular tomou, ou não, a resolução de contar no jornal, que redige, como é justo que o governo tome a iniciativa de proteger, de algum modo, os malaventurados netos do grandioso estylista.
«Tem-nos contado pessoas, que privam com a familia de Seide, que ha, entre aquellas seis creanças, uma—o Camillo—possuidora de intelligencia rara.
«Se assim é, não faz pena que a falta de recursos constitua embaraço ao aproveitamento d'aquelle rapaz?
«Não ha duas opiniões divergentes sobre a justiça de continuar, em favor dos descendentes do eminente romancista, o subsidio, que este primeiro aproveitou e que se extinguiu pela morte do Jorge. Vão os rendimentos do Estado, dia a dia, para applicações muito menos comprehensiveis.
«O sr. Alberto Pimentel, que foi á casa de Seide, decerto viu o que aquillo é, comparativamente com outros tempos.
«Ponha, por conseguinte, s. ex.ª todo o enorme merecimento da sua penna e das suas relações ao serviço d'esta causa. É o maior testemunho de amizade que póde prestar á memoria do extraordinario escriptor. E evita que se reedite aquella tão conhecida e fustigante phrase de Garrett, que constitue, com motivo, um castigo severissimo á contumaz ingratidão do nosso meio.»{45}
SIMÃO
Eu tinha necessidade de commentar esta transcripção para explicar o meu procedimento.
Se, immediatamente á minha visita á familia de Seide, não publiquei no Popular as impressões que ali recebêra ao observar de perto a vida dos netos de Camillo e, portanto, a justiça da sua causa, foi porque logo fiz tenção de me occupar do assumpto com maior desenvolvimento do que aquelle que poderia dar-lhe n'um ou dois artigos de jornal.
Desobrigo-me agora do compromisso que tomei comigo mesmo.
*
* *
Poucos dias depois de ter lido a noticia do Lusitano, acima transcripta, recebi do sr. Rodrigo Terroso, jornalista distincto e escrivão-notario na comarca de Famalicão, uma carta relativa ás impressões que eu teria trazido de Seide e ao que eu estaria disposto a fazer em favor da pensão.
Respondi na volta do correio, e o teor da minha resposta resalta da seguinte noticia que O Lusitano publicou no dia 3 de setembro:
«Ao director politico d'esta folha que acompanhou, particularmente, perante o sr. Alberto Pimentel o pedido feito aqui ha oito dias em favor dos netos de Camillo, respondeu, de prompto, o apreciavel escriptor e jornalista com uma carta, que é a promessa solemne de intervir no sentido rogado.{46}
«... fui expressamente a Seide para me orientar na questão da pensão aos netos de Camillo.
«Na proxima legislatura trabalharei por conseguil-o, no que espero ter o auxilio de Antonio e José de Azevedo.
«Não farei parte do parlamento, mas envidarei os maiores esforços possiveis junto do parlamento e do governo.»
«É solemnissima a promessa. Fiamos de que será cumprida. Sobre dar-se com o sr. Alberto Pimentel a circumstancia de haver sido dos amigos mais sisudos de Camillo, accresce que o distincto escriptor lisbonense conhece, ao presente, em pessoa, a justiça da causa, que tanto tem merecido as nossas sympathias. E dizemos assim porque ainda ninguem a advogou com tão fervente empenho como nós, que fomos, até, o primeiro a patrocinal-a. Consta isso de correspondencias que o Primeiro de Janeiro publicou logo a seguir á morte do Jorge, sem falar no pedido directo que, immediatamente, apresentamos ao sr. conselheiro Antonio de Azevedo, sobrinho de Camillo, muito apreciado por este. E que o notavel homem publico trabalhou n'esse sentido, mais seu irmão sr. conselheiro José de Azevedo, disse-o, poucos dias decorridos, um telegramma para o Diario da Tarde, confirmado, simultaneamente, por algumas gazetas de Lisboa.
«O sr. Alberto Pimentel affiança-nos a intervenção d'estes dois auxilios. Pois é caso para nos julgarmos felizes com a felicidade certa dos netos de Camillo.{47}
P. S.—O Regenerador refere-se, sobre o mesmo motivo, a uma carta antiga do sr. José de Menezes ao sr. Alberto Pimentel. Era o sr. Menezes um dos amigos de Camillo. Não sabiamos que tinha intervindo. Fel-o e procedeu cavalheirosamente. Está na reconhecida correcção de s. ex.ª».
Trabalhemos todos—todos os que veneramos a memoria de Camillo—sem excepção de ninguem, no empenho de vencer esta causa santa, que a Justiça inspira e que o Patriotismo recommenda.
É uma divida nacional, que tem de ser paga. Somos todos devedores; honremo-nos pagando.
*
* *
A Sr.ª D. Anna Corrêa cumulou-me de amaveis deferencias logo que o meu disfarce cahiu. Uma d'ellas, a que mais encantado me deixou, foi a gentileza de me obzequiar com os dois quadrinhos, os retratos de Gautier e Karr, que estavam na saleta contigua á alcova de Camillo.
Se bem que um pouco damnificados pela acção do tempo, como se póde vêr na reproducção, elles representam para mim um valor inestimavel.
Fil-os authenticar com a seguinte declaração, que mandei imprimir e collar no tampo da moldura:
«ESTE QUADRO ESTAVA NO QUARTO DE»
«CAMA DE CAMILLO CASTELLO
BRANCO EM»{48}
«S. MIGUEL DE SEIDE. FOI-ME DADO ALI
PELOS»
«SEUS HERDEIROS, A 20 DE AGOSTO DE 1901,»
«NA PRESENÇA DO SR. ADRIANO DE
SOUZA»
«TREPA, DE SANTO THYRSO, E
FRANCISCO»
«CORRÊA DE CARVALHO, DE
SEIDE.—ALBER-»
«TO PIMENTEL.»
Foi o sr. Carvalho que, trepado a um banco, os despendurou da parede, fronteira ás janellas.
Mais nua ficou ainda desde essa hora a casa solitaria de S. Miguel de Seide.
Aqui tenho eu, deante dos olhos, esses dois velhos companheiros de Camillo, seus camaradas e seus hospedes, Gautier e Karr, com os quaes conversarei longamente sobre a vida e a morte d'esse que foi nosso commum amigo e que elles tão de perto viram soffrer e sonhar—por tantos dias e tantas noites.
Da parede onde estavam enthronisados só podiam avistar todo um horisonte de pinheiros a esbater-se, ao longe, na vertente de uma vasta corda de montes.
Coitados! a principio devia custar-lhes muito terem que trocar Pariz pelo Minho, o bulicio pelo silencio, os boulevards pelos pinheiraes, a capital do mundo pela aldeia erma e profunda.
Mas o campo, como o oceano, é uma solidão apenas repulsiva nos primeiros tempos de uma iniciação forçada; depois identifica-se tanto com a nossa alma, penetra-a de uma tão saudavel tranquilidade e doçura, que se torna quasi uma religião: não ha meio{49} de arrancar o camponez ao seu tugurio e o marinheiro ao seu beliche.
Agora, saudosos da Thebaida de Seide e do grande espirito que a povoava, virão constrangidos, Gautier e Karr, defrontar-se, através da minha janella, com as trapeiras d'esta revôlta casaria de Lisboa, cahotica e asymetrica, que apenas deixa ver escassos retalhos de céu azul na claridade limpida do ar.
Sou eu o primeiro a lamental-os, mas nem por isso os guardarei com menor vigilancia; altas personagens de que me constituiram carcereiro, saberei amal-as, mas saberei tambem garantir a sua posse—como a de dois inestimaveis valores que vieram enriquecer o meu thesouro camilliano.
Devo ainda á sr.ª D. Anna Corrêa a gentil prodigalidade de outra offerta: o retrato de Manoel Pinheiro Alves, primeiro marido da viscondessa de Corrêa Botelho.
Quando publiquei Os amores de Camillo, muito desejei eu obter este retrato; mas n'essa occasião faltava-me a certeza de que o meu pedido não seria uma inconveniencia irritante.
Confessei-o agora á sr.ª D. Anna Corrêa, que espontaneamente me offereceu um exemplar em photographia. No album de Seide havia dois, tirados em Pariz, no tempo de Napoleão III, casa Mayer & Pierson, boulevard des Capucines, 3.
Incluirei esse retrato n'uma segunda edição d'Os amores de Camillo, se algum dia a fizer. Aqui não é{50} o seu logar proprio. Mas quero dar uma rapida impressão da pessoa de Manuel Pinheiro Alves: alto, magro, face glabra, olhos pequenos e fundos, escasso cabello penteado sobre a orelha direita; vestindo correctamente de preto, sobrecasaca comprida, gravata em laço. Toilette de velho, harmonisando com a physionomia; mas de velho que, por amor de uma mulher, quer apurar o vestir.
Tem o aspecto grave de ser o pai de D. Anna Placido, não o marido.
Tambem agora fiquei sabendo que Manuel Pinheiro Alves nascêra perto de S. Miguel de Seide.
*
* *
Quando voltámos á casa de Camillo, para eu receber os dois quadrinhos, parei um momento, ao sahir, no topo da escada de pedra.
Corri os olhos pelo vasto pinheiral circumjacente, que fecha o horisonte n'uma faxa verde-negra. Tive n'esse momento a nitida comprehensão do que seriam ali as longas noites de inverno, ouvindo gemer os pinheiros na solidão profunda de uma aldêa minhota.
—Pobre Camillo! disse eu, como se estivesse pensando alto. As suas noites aqui deviam ser horriveis!
O sr. Francisco Corrêa de Carvalho replicou:
—As tardes, as tardes de Camillo é que eram{51} ainda mais agitadas e tormentosas do que as noites. Depois de jantar, soffria muito; excitava-se, tinha desesperos, frenesis, que nos amarguravam tambem a nós.
É facil a explicação d'este phenomeno pathologico.
As crises visceraes, dolorosas, são vulgares nos tabeticos. Ou vem com as dores fulgurantes (Camillo teve-as) ou independentemente d'ellas. Chegam a ser de violencia extrema, por vezes. E, entre essas crises visceraes, a gastralgia é frequente.
O trabalho da digestão provocaria as torturas gastralgicas.
Após elle, quando em socego o estomago, a crise desapparecia, dando treguas ao pobre Camillo.
Eis aqui, pois, mais um pormenor do ingente drama de amargura que matou o grande romancista.
Voltei agora a Seide, depois de dezeseis annos de ausencia.
Estive ali no mez de agosto de 1885.
O opusculo Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide recorda esse facto.
Em agosto de 1901, repetida a jornada, já não encontrei nenhuma das pessoas que em 1885 povoavam a casa de Seide: Camillo, D. Anna Placido, Jorge e Nuno Castello Branco.
Dir-se-ia que um desastre enorme victimára de um só golpe uma familia inteira.
É que a fatalidade de certos destinos iguala-os{52} na vida e na morte, regulando as suas horas por uma unica ampulheta.
Os desgraçados que nasceram sob a mesma sina chamam uns pelos outros.
Fui achar uma segunda geração, uma ninhada de creanças intelligentes e meigas, que se encontram, desprotegidas, á beira de um abysmo insondavel.
O seu dia de amanhã não é mais seguro do que a salvação incerta do naufrago que, em pleno oceano, espera, sobre uma tabua fluctuante, um acaso providencial, a passagem de um navio que o possa descobrir entre montões de espuma.
Uma debil creatura, precocemente envelhecida, e já cansada de soffrer, é hoje a garantia unica do futuro d'essas creanças, que não téem mais ninguem no mundo além de sua mãe, nem melhor patrimonio que alguns palmos de terra sêcca e hypothecada.
Seu avô honrou a patria de um modo excepcionalmente grande, com a fulguração de um talento literario, que póde fazer inveja aos extrangeiros.
Honre-se a patria a si mesma adoptando-lhe os netos, perfilhando-os amoravelmente, salvando-os da miseria e do abandono, premiando n'elles a gloria do avô immortal.
MANUEL
Cada dia, cada mez, cada anno que passa, complica, por sacrificios exhaustivos, a situação da familia de Seide. Os netos de Camillo téem já visto florescer muitas vezes a acacia do Jorge e chamado em vão pela alma do avô, que não voltou ainda com as auras de abril. Tornemos realidade o que parece haver sido{53} prophecia do grande espirito de Camillo: que todas essas creanças invoquem de novo o nome do que prometteu voltar. E elle voltará para acudir-lhes. Quando a acacia «outra vez inflore», o paiz terá feito justiça, e Camillo terá voltado para junto dos netos, assistindo-lhes em espirito, agasalhando-os com a gloria do seu nome.
Corações justos, corações bons, auxiliai esta santa cruzada: a de despertar a patria adormecida.
Leitores de cem romances, que uma só penna escreveu, agradecei aos netos as lagrimas e os sorrisos com que o avô tem preenchido deleitosamente muitas horas da vossa vida, desde o Anathema, uma estreia, até aos Vulcões de lama, a ultima novella, raio de sol poente que não tardou a apagar-se.
Se quizerdes fazer isso, estará feito tudo.
Santo Thyrso—Lisboa.
Agosto a setembro de 1901.
Este mosteiro era de conegos regrantes de Santo Agostinho. Dizem-n'o fundado por Dom Gonçalo Rodrigues Palmeiro, senhor do couto da Palmeira.
Na inquirição que o Cardeal D. Henrique mandou fazer sobre mosteiros de Entre-Douro-e-Minho, o de Landim é designado como sendo a de Nossa Senhora de Namdim.
O conde D. Pedro, em seu Nobiliario, tambem diz Namdim.
As relações de amizade entre Camillo e Castilho começaram em 1854, no Porto. Foi nesse anno e n'aquella cidade que pela primeira vez se encontraram os dois em casa do Sr. Antonio Bernardo Ferreira, que então morava na rua da Boavista (casa da familia Garrett) e que organisou em honra de Castilho um sarau literario. Camillo recitou versos de Um Livro.
N'uma carta particular, enviada para Lisboa, dizia Castilho,{58} relatando o que se passára naquelle sarau: «Camillo Castello-Branco, poeta e prosador de elevado merito, etc.»
Julio de Castilho, publicando trechos d'esta carta, commenta a referencia a Camillo dizendo que essa amizade, então começada no Porto, ficou cimentada para sempre. (O Instituto, de Coimbra, n.º 9, vol. 48.º)
Foi Camillo, guia dos meus primeiros passos na vida literaria, quem me ensinou a amar Castilho.
Costumavam outr'ora as criadas velhas contar ás creanças da casa lindas historias de reis e principes encantados.
Camillo, que foi de algum modo o meu niñero espiritual, falava-me muitas vezes de um grande principe das letras, rei das canções lhe chamou Herculano, protector de poetas, amador da natureza, acariciador das creanças e propugnador da felicidade do povo pela instrucção e pela agricultura.
Era Castilho, rei das canções, principe das letras, cego como Œdipo, o famoso rei de Thebas.
E assim como Œdipo encontrava o braço de sua filha Antigone para guial-o carinhosamente na cegueira, Castilho tinha nos braços de seus filhos outros tantos bordões amorosos que o ajudavam a firmar os passos incertos e vacillantes.
Recebi, pois, de Camillo o amor a Castilho, e de quanto elle o amava dá eterno testemunho esta encantadora dedicatoria do romance Agulha em palheiro:
Ao poeta das creanças, das flores, do amor,
da melancholia e dos desgraçados,
ao illustrissimo e excellentissimo senhor
Antonio Feliciano de Castilho,
honra da patria
honra dos que o prezam, e amam a patria
offerece
o amigo, o respeitador, o discipulo mais devedor
Camillo Castello Branco
Em outro livro, No Bom Jesus do Monte, cita Castilho a par de Lamartine e Victor Hugo, como sendo um nome que dá «á humanidade orgulho de o proferir».
Durante a Questão Coimbrã, nas Vaidades irritadas e irritantes vem á estacada quebrar lanças pela gloria de Castilho, e escreve: «... o mais enthusiasta admirador de Castilho, se algum houve que mais que eu lhe devesse e o amasse...»
Foi assim que Camillo amou Castilho; foi assim que eu aprendi com Camillo a amar Castilho.
Diz o texto d'essa dedicatoria:
A
THOMAZ RIBEIRO
«São passados dez annos depois que vieste aqui. Foi hontem; e a pedra onde gravei o teu nome está denegrida como a dos tumulos antigos. Debaixo d'ella estão dez annos da nossa vida. Jazem ali os homens que então eramos. Estou vendo Castilho encostado ao frizo da columna tosca; estou ouvindo os teus versos recitados em nome de meus filhos... Ah! é verdade... tu não os recitaste porque tinhas lagrimas na voz e no rosto. Que faria de ti a politica, meu querido, meu poeta da patria e da alma:
«S. Miguel de Seide, novembro de 1876.»
O modesto monumento, de que fiz mais larga menção{60} no opusculo Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide, Porto, 1885, falla-me saudosamente de seis pessoas, cuja memoria conservo muito viva entre as mais gratas lembranças do passado.
D'essas seis pessoas, as ultimas a morrer foram Eugenio de Castilho, fallecido a 8 de janeiro de 1900, e Thomaz Ribeiro, a 6 de fevereiro de 1901.
Embora tenha de fazer uma annotaçao talvez demasiadamente longa—o que não sei se é proprio do teor das annotações—não posso ter mão em mim que não complete, para o meu espirito, a historia do monumento de Seide com as recordações que me são suggeridas pelos nomes de Eugenio de Castilho e Thomaz Ribeiro.
*
* *
Uma coisa vos confessarei eu, sr. Dom Leonardo...
Lembram-se? Vem nos Logares selectos, do padre Cardoso: é um excerpto da Côrte na aldeia, de Rodrigues Lobo—dois livros bons, cada qual no seu genero; bons como se faziam d'antes.
Pois, já que a phrase me lembrou, adopto-a, mas cito ao menos a origem, o que nem sempre se faz agora.
Os tempos são outros; d'isso é que me queixo.
Uma coisa vos confessarei eu, srs. Dons Leonardos de hoje em dia, e é que me vou ralando de saudades pelos homens que conheci outr'ora, com os quaes convivi e troquei impressões, que os não ha melhores, nem tão bons, como foram esses.{61}
A ACACIA DO JORGE
Não quero dizer que todos agora sejam portuguezes de ruim panno; ha excepções, mas tão raras, que pode a gente gritar quando as encontra—Lá vem um!
Digo e redigo, porque d'isso estou convencido até á medula dos ossos, que os homens que eu tratei na mocidade me parecem semideuses se os comparo com os de hoje.
Doia-se quem doer, que me importam pouco essas coisas: até faz bem á gente sentir morder-lhe uma pontinha de malquerença—é como o frio de janeiro, que arripia, mas provoca a necessidade de reagir contra elle.
Eu venho de um tempo em que se dizia haver «elogio mutuo». Não era elogio, mas justiça. As cotações, especialmente no mercado das letras, andavam menos falsificadas. Ninguém chegava ao pé de um homem, de punhal na mão, com o intuito de assassinal-o, para o glorificar depois de morto.
Garrett estava no tumulo. Herculano fizera-se solitario em Val-de-Lobos. Castilho vivia em Lisboa e abria as suas portas a todos quantos mostravam paixão pelas letras. D'aqui veio o dizer-se que tinha Castilho uma côrte. Não a procurava elle; procuravam-n'o, sim, todos, velhos e novos, que desejavam encontrar uma atmosphera literaria em que podessem respirar á vontade.
Mas a differença do tempo estava principalmente n'isto, que não era pouco: ninguem, em casa de Castilho, nem dos seus, nem dos extranhos, se julgava maior que elle.
Por isso o respeitavam, medindo-lhe a grandeza, que fazia lembrar a das estatuas, porque sendo vista de perto tomava ainda maior vulto.
Era deliciosa essa casa de Castilho, onde a boa conversação literaria teve um templo, como não ha, nem póde haver outro. Não decorria ali uma hora sem que se tivesse lucrado alguma coisa: aprendia-se sempre. Eram tantos e tão bons os de casa e os de fóra, que nunca se apagava o{62} lume para as refeições do espirito. Mesa posta para os gourmets da intellectualidade; porta aberta para todos os que chegavam, fossem gregos ou troyanos.
Conheci Castilho na rua do Sol ao Rato, onde recebia na sua enorme bibliotheca, uma vasta sala, que os melhores auctores de todos os paizes e de todos os seculos povoavam de alto a baixo. Fazia respeito aquillo: era uma cidade, um emporio de celebridades consagradas.
Castilho, coroado de cans, dava a impressão de ser um patriarcha das letras. Cego como Homero, via tudo o que queria vêr; jámais houve um cego que visse tanto. Até lia mentalmente os titulos dos livros que o rodeiavam. Aqui está o meu Bernardes, dizia elle: ia á estante, punha o dedo indicador n'um livro, e tirava a obra de Bernardes que desejava citar. Parecia ter os olhos fechados para, concentrado, reforçar por um momento a visão, que depois se tornava mais aguda e perspicaz.
Os seus olhos faziam lembrar os de D. João I: raça de escol, que já vinha apurada de longe.
Julio foi sempre o braço direito do pai, a sua luneta, o seu bordão, o seu alter ego. O pai adorava-o; elle adorava o pai. Não podiam viver um sem o outro; eram como dois gemeos, duas existencias que se fundiam n'uma só.
Augusto, official de marinha, andava quasi sempre embarcado por longinquos mares. Raro apparecia em Lisboa; mas Castilho lembrava-o muitas vezes n'um impeto de saudade paternal, que é a mais funda, a mais incisiva, a mais cruel de todas as saudades.
Ida de Castilho, com os seus bellos olhos pretos que pareciam estrellas, era a gracilidade da mulher franzina a sorrir por entre clarões de intelligencia vivacissima.
Eugenio, o filho mais novo de Castilho, era, em razão da sua idade, o que tinha menos auctoridade literaria na familia, mas nascera poeta ali, n'aquella familia de escolhidos, como se nasce escocez na Escocia.{63}
Foi este rapaz velho, porque a doença o envelheceu precocemente, que morreu outro dia, em Sete Rios, mais longe do mundo que de Lisboa.
Poucos se lembravam d'elle já: tinha esquecido, tinha passado, era um morto que vivia longe dos vivos.
O seu periodo de maior actividade foi de 1868 a 1869. Conheci-o então, como conheci Antonio Feliciano e Julio de Castilho: por cartas que o correio trazia e levava, do norte para o sul, do sul para o norte. Só alguns annos depois nos avistámos, os Castilhos e eu, na rua do Sol ao Rato. Mas eramos já amigos velhos, todos nós, quando nos encontrámos frente a frente.
Aqui tenho eu uma prova d'isso, n'esta meia duzia de paginas publicadas em 1868 por Eugenio de Castilho, e intituladas Patria, contra a Iberia, poema em bons alexandrinos, que eram os da casa, a melhor officina de alexandrinos que tem havido até hoje em Portugal.
Na dedicatoria, do punho do auctor, escreveu elle: «Ao seu amicissimo...» Nunca nos tinhamos visto então, mas eramos já tão casados na amisade, que nenhum de nós estranhou o superlativo.
Eugenio tinha n'esse tempo 21 annos, e desabrochavam n'elle os talentos literarios, que são morgado de Castilhos. Eram flores que conheciam o terreno e o clima em que nasciam: medravam á vontade.
Quanto á factura artistica, o poema Patria trazia a marca da fabrica: Castilho & Filhos. Não havia firma mais acreditada nem então, nem agora.
Passo hoje pela vista, devorado de saudades, aquelle poema de 1868, e transplanto para aqui alguns casaes de alexandrinos, que me parecem ainda casaes de rouxinoes a namorarem-se nos bosques umbrosos de Portugal:
Vês além um telhado ao pé d'aquelle olmeiro?
alli nasceu meu pae; alli amou primeiro.{64}Quando eu era pequeno, ia, ás vezes, sósinho
aos loireiros do val á busca de algum ninho.Sob este parreiral tão verde e tão fragrante
beijei apaixonado a minha terna amante.Costumava ir de tarde ao moinho da serra
vêr como o sol transpunha as montanhas da terra.Quanta vez, ao voltar da caça, eu me sentava
ao pé d'essa cascata a ver-lhe a espuma brava.Os troncos da azinhaga, as silvas e as paschoinhas
ouviram-me cantar ás vezes trovas minhas.Era-me gosto á noite o rouxinol saudoso
dizendo á beira d'agua o seu canto amoroso.Sentado n'uma penha occulto entre o salgueiro
poetava a ouvir do rio o murmurar palreiro.Ao canto do quintal da casa onde eu morava
uma anágua plantara, e flores que eu regava.Conheço a minha terra; e cada pedra ou planta
me saúda ao passar. Toda a Patria me encanta.
Não são, de certo, estes os soberbos alexandrinos do pae Castilho, tão cheios, tão sonoros, tão variados na riqueza das vogaes, como elle, legislador maximo em versificação, praticava e recommendava; mas téem o ar de familia, o cunho da officina, que nos entremostram o artifice mais novo da casa posto a trabalhar, por desenfado, com a ferramenta do mestre.
Junte-se a tudo isto, que é já sobeja valia, o perfume ingenuo e nobre da mocidade, o pulsar de um coração candido e fidalgo, que se educava entre lyras de poetas e brazões de aristocracia literaria.
Tudo então fazia suppor que teria uma larga carreira{65} esse moço tão bem estreado, e tanto se sumiu elle depois nas trevas que as contrariedades da vida adensaram—a doença principalmente.
Foi tambem por 1868 que Eugenio de Castilho tentou a publicação da Folha dos curiosos, um dos quaes curiosos fui eu.
N'essa tentativa ia ainda um exemplo paterno, porque não deve esquecer a ninguem que Antonio Feliciano de Castilho redigiu por algum tempo, com inexcedivel brilho, a Revista universal lisbonense.
Digo inexcedivel brilho, e fico pesaroso de não encontrar melhor locução. Não me satisfaz esta, que é deficiente. Tudo quanto Castilho ali deixou, é primoroso—até o noticiario.
Se vingar algum dia a ideia de fundar uma escola de jornalistas, o professor, sabendo do seu officio, tem que ensinar a fazer noticiario pelo teor de Castilho.
Que adoraveis locaes, que gentileza e graça no dizer, que malicia, que ironia e que pureza castiça de linguagem!
Os senhores conhecem Castilho poeta, prosador, traductor e pedagogo? Pois não conhecem Castilho todo, acreditem. Falta-lhes ainda conhecer Castilho jornalista a brincar com a penna sobre assumptos de reportagem, a enramilhetar locaes que parecem bouquets; Castilho a sorrir de si mesmo por ter descido áquella futilidade e a tornal-a grandiosa para não ter que envergonhar-se de vêr n'um espelho o pretor a curar de coisas minimas.
Pois, srs. Dons Leonardos, em verdade vos digo que foram grandes homens esses que eu conheci n'outro tempo, que conheci e amei, e que vós sois muito mais pequenos que elles.
Este mesmo Eugenio de Castilho, fallecido ha quasi um anno, não chegou a ser grande, porque lhe faltou apenas a validez; o talento, não.{66}
Mas, no breve momento em que se demorou nas letras, honrou, como vergontea, a arvore gloriosa dos Castilhos, florindo como poeta, que promettia futuro.
Hoje dorme o somno eterno na terra da Patria, que elle amava tanto, e se os mortos pensassem, julgar-se-ia certamente feliz por ter encontrado descanso aos seus tormentos na mesma terra em que o pae nasceu e amou primeiro.
*
* *
Tinha eu treze annos, quando um quintanista de direito, Manuel do Nascimento de Azevedo Coutinho, natural de Sinfães, passando pelo Porto, recitou em casa de meu pai trechos de um poema que, segundo a sua propria informação, estava causando o maior enthusiasmo em Coimbra.
Os estudantes sabiam-n'o de cór, e até o doutor Férrer, dando descanço ás Ordenações e ao Digesto, repetia estrophes aos rapazes quando os encontrava á tarde no Penedo da Saudade.
Era o cumulo do enthusiasmo coimbrão.
O quintanista Nascimento, um duriense de olhos pretos, vendo-se comprehendido por um grupo de senhoras que o escutavam, ia procurando na memoria excerptos do poema e recitava-os contente de espalhar em torno de si, como um perfume de rosas, a inspiração delicada do poeta que toda a academia já tinha sagrado em Coimbra com a agua lustral do Mondego.
Esse poema era o D. Jayme, de Thomaz Ribeiro.
A cada novo trecho cresciam os applausos; a impressão tornava-se geral no auditorio.
E o quintanista Nascimento, com a vivaz reminiscencia{67} de todos os moços, saltava de um canto a outro do poema recordando estrophes:
Um dia... quando, não sei;
fui vêr as gastas ruinas
d'um velhissimo castello
que ao desamparo encontrei,
mas que, apesar de esquecido
na solidão, era bello.Achei-o todo vestido
de tenaz era viçosa;
e ornado de verde brilho,
lembrou-me um velho casquilho
que espera noiva formosa.
De vez em quando, os parceiros do voltarete de meu pai poisavam as cartas, e escutavam attentos:
Que triste vida na choça,
que funda melancolia,
que rostos tão macerados,
que suspiros abafados
cada noite e cada dia!noites de eterna vigilia,
dias curtos para a lida,
recordações da opulencia,
amarguras da indigencia...
que vida, Jesus! que vida!
Eu recolhia todos os trechos n'um enlevo d'alma, que foi o primeiro goso literario da minha vida e, quando n'essa noite me deitei, reconstituia mentalmente versos, estrophes inteiras, ancioso de poder lêr todo o poema, para decoral-o todo.
No dia seguinte, meu pae, recolhendo de ver os seus doentes, trazia debaxo do braço um livro de capa amarella.{68}
Tinha comprado o poema, suggestionado pela recitação da vespera.
Então, como um faminto que se lança vorazmente sobre um manjar inesperado, eu, quando os outros acabavam de lêr, devorava pagina a pagina, canto a canto, lendo e decorando, com a mesma facilidade com que hoje vou esquecendo...
Annos depois—não foram muitos—quando Castilho protegeu as minhas estreas literarias com o prestigio do seu nome, Thomaz Ribeiro escreveu-me algumas cartas que religiosamente conservo entre montões de outras suas escriptas de toda a parte.
Depois, em Lisboa, muitas vezes Thomaz Ribeiro me disse que possuia um retrato meu aos dezeseis annos.
Certamente lh'o offereci, mas não me lembro quando, e não conservo hoje nenhum exemplar d'essa photographia.
Quando foi que eu vi pela primeira vez o auctor do D. Jayme? D'isso me lembro muito bem. Foi no Porto, no escriptorio do Primeiro de Janeiro, cuja redacção permanente era então apenas constituida por duas pessoas, Francisco Gomes Moniz e eu.
Nós dois faziamos tudo, menos o artigo de fundo, que ia de Lisboa, e era escripto por Latino Coelho.
Thomaz Ribeiro, tendo chegado ao Porto e entrado na casa Moré, disse ao gerente da casa, o illustre José Gomes Monteiro, que me queria visitar.
Monteiro, que me estremecia, ficou contentissimo, poz logo o seu chapeu e subiu, apesar de velho e doente, a rua de Santo Antonio, depois a ingreme escada da redacção, para me levar Thomaz Ribeiro.
Foi um dos dias felizes da minha vida literaria.
Desde então mantive com Thomaz Ribeiro as mais cordeaes relações de mutua estima.
As amizades velhas são como o cimento solidificado: não quebram facilmente.{69}
Retrato de THEOPHILE GAUTIER que pertenceu a Camillo
Quando elle partiu para o Brasil, a Mala da Europa quiz dar um numero commemorativo, que chegasse ao Rio de Janeiro no mesmo paquete que o auctor do D. Jayme. Por doença de um dos seus redactores effectivos, o proprietario do periodico, Delfim Monteiro Guimarães, já hoje fallecido, precisava de quem lhe fizesse rapidissimamente a maior parte d'esse numero. Procurou-me, e pediu-me que me encarregasse eu d'essa ardua tarefa—ardua pela estreiteza do tempo.
Como se tratava de Thomaz Ribeiro, não tive animo de recusar e, durante quarenta e oito horas, trabalhei afanosamente, tomando café para espertar-me, conseguindo não faltar ao encargo que acceitei e á palavra que tinha dado.
Eu sou a pessoa menos competente para escrever um artigo de critica literaria a respeito da obra de Thomaz Ribeiro.
Vejo-o sempre, apaixonadamente, através de agradaveis recordações da minha mocidade.
Não sei, não posso vel-o de outro modo.
Dou-me, portanto, como suspeito.
Mas creio que, para a apreciação de um escriptor ou de um artista, os criticos téem menos auctoridade do que o publico.
Se esse escriptor ou esse artista conquistou a opinião geral, se recebeu uma consagração nacional, a sua reputação é inabalavel, a despeito do voto adverso dos criticos.
Ora Thomaz Ribeiro, cujos poemas foram discutidos, tornou-se o mais popular poeta do seu tempo. Teve a opinião publica fechada na mão; dominou-a completamente. E, ainda ultimamente, os que queriam ser-lhe desagradaveis repetindo versos seus, justificavam, sem querer, a sua popularidade e, sem querer, a propagavam.
Portugal ficará sendo eternamente o—jardim da Europa{70} á beira mar plantado—verso que tem servido para todos e para tudo que, em bem e mal, se escreve a respeito do nosso paiz.
A «Conversação preambular» do D. Jayme, escripta por Castilho, foi tida como exageradamente encomiastica para o auctor do poema, e é realmente discutivel em algumas das suas affirmações.
Mas o enthusiasmo que alvoroçou o espirito reflectido de Castilho adduz mais uma prova da enorme sensação causada pelo D. Jayme, até nos julgadores de maior competencia profissional.
Apparecia um poema verdadeiramente nacional, portuguez pelo assumpto, pelos affectos, pela paisagem, pela dicção, pondo de mais a mais em evidencia a riqueza de metros, de harmonia, de malleabilidade e de côr que possuia a lingua portugueza.
Sahia inteiramente dos moldes dos poemas antigos, fugindo á oitava-rima, e dos moldes da revolução romantica, fugindo ao verso branco.
Era o poema lyrico moderno, o romance metrificado, escripto ao sabor portuguez sobre a vida portugueza, com matiz popular de tradições e costumes nossos, com vocabulos colhidos no diccionario da provincia—fogaça, campeiro, velleiro—com toda a alma de um povo a cantar á flôr dos versos e o caracter nacional sobresaindo em alto relevo no caracter do protogonista:
Entrei, raivando vinganças,
Sahi, jurando perdão.
Comprehende-se que este poema causasse enthusiasmo em todas as regiões do mundo onde palpitava o sangue e o sentimento portuguez: assim aconteceu, não só em Portugal, mas tambem no Brazil e na India.
Do D. Jayme nasceram logo outros poemas: Em Lisboa,{71} Roberto ou a dominação dos agiotas, por Manuel Roussado, uma parodia; no Brazil, Leonor, imitação flagrante.
Trinta annos depois, quando Thomaz Ribeiro foi ao Brazil como ministro de Portugal, ainda lá encontrou o rescaldo do antigo enthusiasmo; e a sua escolha foi julgada a mais opportuna para reatar as relações que um ligeiro conflicto tinha interrompido entre os dois paizes irmãos.
Na India portugueza, onde anteriormente estivera como secreterio geral do governo da provincia, Thomaz Ribeiro foi encontrar admiradores por toda a parte.
Tenho deante de mim um romance indiano, Beatriz ou os mysterios da ultima revolta em Goa, escripto por Fernando de Goa (certamente pseudonymo) e publicado em Lisboa no anno de 1885.
No 2.º volume, encontro, entre outras referencias a Thomaz Ribeiro, este periodo:
«O secretario, aproveitando este ensejo, affastou-se d'ali, metteu-se na machila e fez-se transportar a Caranzalem, a fim de fazer as suas visitas ás familias das suas relações que ali se achavam a banhos, e entreter parte da noite n'uma ou n'outra casa, onde suspiravam pela sua chegada, para terem o prazer de ouvir uma conversação animada, cheia de atticismo, de poesia, e ao mesmo tempo recamada das mais brilhantes e conceituosas phrases.»
A praia de Caranzalem, proxima do Mandovi, n'uma linda enseada a quatro kilometros da capital, é o balneario aristocratico da India portugueza, é Cascaes do Oriente.
Em todo o reino de Portugal, na India, no Brazil, em toda a parte onde se falla a lingua portugueza, Thomaz Ribeiro, por ser o auctor do D. Jayme, encontrava um fervoroso culto de enthusiasmo e adoração.
Era uma justa retribuição da consciencia publica aos{72} sentimentos patrioticos do poeta, que dedicadamente amou o seu paiz, cantando-lhe as bellezas e as glorias, no Occidente e no Oriente, e que, no territorio portuguez, se algum rincão distinguiu com especial affecto, foi o seu districto natal, Vizeu, e em Vizeu a aldeia garrida onde nascêra, Parada de Gonta:
Que fresca aldeia formosa
Nas margens do meu Pavia!
Morreu na terra da patria, e n'isso lhe fez Deus a vontade:
meu vergado pomar d'um rico outomno,
sê meu berço final no ultimo somno.
O romantismo, vocabulo que eu apenas acceito convencionalmente como expressão chronologica para designar determinada época literaria, e não como caracterisação psychologica d'um estado d'alma, que é commum a todas as gerações, e, portanto, eterno; o «periodo romantico», ia dizendo, teve ao menos de grande e nobre o seu amor ao paiz, affirmado solemnemente na celebração das glorias e das tradições portuguezas, desde Alexandre Herculano até Thomaz Ribeiro.
Hoje é moda rir de tudo, em prosa e verso, especialmente do paiz.
Literariamente, ainda falta encarar o auctor do D. Jayme sob outro ponto de vista: como recitador.
Trez homens conheci eu incomparaveis no primor com que sabiam dizer versos: Castilho, Thomaz Ribeiro e Gonçalves Crespo.
Quanto a Thomaz Ribeiro, sempre me ha de lembrar o que se passou uma vez, sendo elle ministro do reino, na commissão de instrucção secundaria da camara dos deputados.
Discutia-se um projecto de reforma do respectivo ensino.
Apenas dois membros da commissão se oppunham tenazmente{73} á resurreiçao do exame de madureza: eram o sr. José Borges de Faria e eu.
N'essa reunião nocturna, que se effectuou no edificio do governo civil para maior commodidade de todos, a discussão corrêra violenta e azeda.
Nada se tinha resolvido ainda, quando foi servido o chá, que veiu da casa Ferrari.
Então, durante essa pausa obrigada, não sei quem se lembrou de pedir a Thomaz Ribeiro que recitasse O tear da rainha.
Elle annuiu promptamente, e tanta impressão causou em todos nós, que fomos pedindo mais versos.
Assim acabou n'uma doce calma aquella reunião, que tinha corrido agitada.
O projecto chegou a ir ao parlamento, fazendo os dois dissidentes declaração de voto, mas a reforma não teve execução.
Tambem a titulo de simples recordação lembrarei que sendo Thomaz Ribeiro ministro da marinha—primeira pasta que geriu—fui eu que, a seu pedido, entabolei negociações com a livraria Chardron, do Porto, para a acquisição da propriedade das suas obras.
Quando se escreve de um amigo não ha meio de coordenar as memorias agradaveis que elle nos deixou; os factos acodem em tropel amontoando-se numa agglomeração confusa, que exigeria longo tempo e grande esforço de serenidade para ser dominada.
Não é, poucos mezes depois da morte d'esse amigo, que semelhante tentativa pode fazer-se para conseguir restabelecer a ordem onde tudo é ainda desordem da saudade.
Por isso não o consegui eu, nem sequer o tentei.{74}
D. Anna Placido escrevendo, embora sob um pseudonymo masculino, a respeito da morte de Vieira de Castro em Africa, recordava a noite de 15 de julho de 1866, quando dizia:
«Era noite de festa. Na pequena aldea de *** ouviam-se cantos festivos; e a voz das aldeãs competia com as rabecas e os clarinetes.
«Passava-se isto em uma casa de campo. As seis janellas da frontaria jorravam luz, e a porta da entrada por onde se subia por larga escadaria de pedra, estava afestoada de rosas e hortensias».
Era o sarau campestre, o serão minhoto, em honra de Castilho, na quinta de Seide.
A proposito de D. Anna Placido, referirei um pormenor que me foi contado recentemente.
O seu casamento com o grande escriptor esteve para realizar-se em Santo Thyrso, aonde ambos chegaram a ir para esse fim. Ali se demoraram dois dias, á espera que o conego Alves Mendes viesse do Porto com os documentos que eram necessarios. Só o abbade de Santo Thyrso, reverendo Joaquim Augusto da Fonseca Pedrosa, estava na{75} posse d'este segredo; ninguem mais, n'aquella villa, o sabia. Mas houve demora na camara ecclesiastica do Porto, e o conego Alves Mendes não pôde obter os papeis tão depressa como desejava. Por este motivo, Camillo e D. Anna Placido retiraram de Santo Thyrso. O casamento veio a celebrar-se no Porto, como já tem sido dito.
Foi n'esse anno, e na Povoa, que eu vi o visconde de S. Miguel de Seide pela ultima vez, quando já a questão do Protesto nos tinha inimistado.
N'essa occasião eu não pensava ali senão em vencer, como candidato, uma das mais renhidas e ruidosas eleições que tem havido n'este paiz. Deu brado aquella briga eleitoral da Povoa de Varzim em 1892! Se não fossem as minhas canceiras e preoccupações politicas, dada a boa disposição do visconde de S. Miguel de Seide como agora sei, certamente nos haveriamos reconciliado ali n'aquella época. Mas eu andava em correrias, em comicios, em conferencias, em combinações eleitoraes: não chegava para as encommendas. Forte cegueira! Até me parece agora impossivel que eu fosse então o mesmo homem que hoje sou!
O que é certo é que venci com o povo—a grande classe dos pescadores—coisa que raras vezes terá acontecido em Portugal. Quem vence, por via de regra, são os influentes, os galopins, o carneiro e as batatas. D'aquella vez venceu o povo, que me quiz fazer deputado, e fez. Assim o povo pensasse sempre em tudo o mais, e outro gallo lhe cantaria.{76}
Eu andei então muito descomposto nas gazetas, mas tambem andei muito cantado nas ruas.
Os pescadores e as pescadeiras improvisaram então um cancioneiro eleitoral em meu favor. Ahi vão amostras do panno, que elles espontaneamente souberam tecer com toda a ingenua rudeza dos seus processos poeticos:
Boa vai ella!
Ora viva o Pimentella.
Que dá o seu coração
P'ra vencer a eleição.Boa vai ella!
Ora viva a piscaria.
Vai toda votar em barda
Pela nossa melhoria.Boa vai ella!
Ora viva o Albertinho,
Que vai como deputado
Cá pelo nosso povinho.
Eram tão carinhosos para mim os pescadores, que até me tratavam pelo diminutivo, meiguice que eu já não estava costumado a receber ha muito tempo. O povo ama ainda pelo systema antigo, e eu era o seu candidato contra a vontade de muitas influencias poderosas e colligadas.
N'esta roda-viva de uma eleição disputadissima, renhidissima, eu pensava menos no visconde de S. Miguel de Seide do que na urna e nos votos.
Se não estivesse tão preoccupado e ralado, se tivesse tempo para me demorar nos botequins, certamente se teria ageitado alguma occasião de me congraçar com o visconde de S. Miguel de Seide, pois que elle o desejava, e eu não o recusaria.{77}
Retrato de ALPHONSE KARR que pertenceu a Camillo
Apezar de ser o primogenito, foi baptisado, quando já tinha quasi dois annos de idade, no mesmo dia que seu irmão Nuno, a 6 de janeiro de 1865.
Se o leitor folheou alguma vez Os amores de Camillo, lá deve ter encontrado, a pag. 344, a noticia d'este duplo baptisado que se effectuou no Porto.
Mas Antonio de Azevedo contou-me ultimamente um pormenor, que é interessante.
Ao jantar d'esse dia, em casa de Camillo na rua do Almada, assistiram as mesmas pessoas que tinham ido á egreja; Custodio José Vieira, notavel jurisconsulto; o Bastos, do Nacional; Antonio de Azevedo; e um procurador portuense, cujo nome não lembra.
Durante o jantar apenas se bebeu champagne e cognac.
Seguiu-se um serão alegre, cheio de engraçados episodios e imprevistos sainetes.
D. Anna Placido tocou piano.
Camillo tocava trombone no canno de uma bota.
E o Bastos do Nacional, que era um homem alto, forte e rosado, dançava com Custodio José Vieira, que era muito pequeno e muito feio.
O procurador, conscio da sua desigualdade de cotação intellectual, conservou-se mero espectador.
Não parece que se está ouvindo um trecho das Alegres comadres de Windsor, que Nicolai compoz sobre a peça de Shakspeare, ou aquella scena de Puccini, em que os socios da bohemia folgam em commum n'uma chorea improvisada?{78}
Quem poderia vêr então em Camillo o futuro solitario e suicida de S. Miguel de Seide!
Todo o trabalho literario de Camillo pesou unicamente sobre elle. Não temos em Portugal o systema de um escriptor tomar como auxiliares outros escriptores menos reputados. Usa-se isso em França; entre nós, não.
Apenas, em duas obras de theatro, trabalhou Camillo com um collaborador, que foi Ernesto Biester.
Fizeram em commum o drama Vingança (Veja Esboços de apreciações literarias, pag. 85 e Revista contemporanea de Portugal e Brazil, vol. IV, pag. 313); e o drama Penitencia, em 6 actos e um prologo (Veja Dic. Bib. de Innocencio, vol. IX, pag. 176).
Vi representar este ultimo drama no theatro de S. João, do Porto, pela companhia do antigo Theatro Normal.
O retrato de Camillo, que publicamos agora, é copia photographica de um a crayon que vimos na casa dos netos do grande romancista em S. Miguel de Seide.
Na sala de entrada ha trez retratos de Camillo. Só este desconheciamos, e fez-nos impressão, porque, a distancia, suppozemos que fosse de Guilherme Braga.
A sr.ª D. Anna Corrêa desfez o nosso equivoco.
O retrato a crayon é de 1876 e está assignado, mas deve por sua vez ser copia de outro retrato, tirado aproximadamente{79} em 1857, quando Camillo usava ainda o cabello levantado sobre a fronte.
Comtudo não é o mesmo retrato de 1857 que foi publicado ultimamente, com outros de differentes epocas, no n.º 8-9 da Illustração moderna, do Porto.
Tambem não é o de 1850, que ainda recentemente foi mais uma vez reprodusido na revista portuense Sombra e luz (n.º 2).
Preço 400 réis