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Rita
Farinha (Setembro 2010)
ESTRELLAS PROPICIAS.
OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO
QUE SE ENCONTRAM Á VENDA
NAS
LIVRARIAS DE VIUVA MORÉ
PORTO E COIMBRA.
Abençoadas lagrimas,
drama |
240 |
Amor de
perdição |
500 |
Agostinho de Ceuta,
drama |
240 |
Cabeça, coração e
estomago |
500 |
Carlota
Angela |
400 |
Coisas
espantosas |
500 |
Doze casamentos
felizes |
500 |
Duas
epochas da vida |
600 |
Estrellas
funestas |
500 |
Justiça,
drama |
200 |
Livro
negro |
500 |
Marquez de
Torres Novas,
drama |
400 |
Memorias do
Carcere, 2
vol |
800 |
Morgado de
Fafe,
drama |
200 |
Romance
d'um homem
rico |
500 |
Scenas
innocentes da comedia
humana |
500 |
As tres
irmans |
500 |
Um livro,
poesias |
360 |
ESTRELLAS PROPICIAS.
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO.
PORTO,
EM CASA DE VIUVA MORÉ - EDITORA,
PRAÇA
DE D. PEDRO.
A mesma
casa em Coimbra, |
| |
Casa de
Commissões em Paris, |
Rua da
Calçada. |
2bis,
Rua
d'Arcole. |
1863.
TYP.
DE SEBASTIÃO JOSÉ PEREIRA,
Rua do Almada,
641.
ESTRELLAS PROPICIAS.
I.
Navegando contra a corrente do Lima—o rio das saudades e dos
pavores
da mythologia—vereis, a meia legua distante de Vianna, na
margem
direita, uma casa apalaçada, em parte cantaria que os
seculos denegriram, em parte edificação moderna,
caiada, tingida, variegada, coisa sem graça, sem poesia, que
toda lhe tira a magestosa e veneranda avó, alli á
beira,
com o seu toucado de ameias e collares de embrincadas
laçarias.
Da margem do rio ao edificio conduz uma vereda relvosa ladeada de
alamos, cilindras, hidranjas, e outras arvores e arbustos, que
ensombram a convidativa álea. Lá no
tôpo entrevêdes
um chafariz, rodeado de bancos de pedra, e abobadado por um
pavilhão de chorões,
[6]
cujos troncos a mão do tempo torneou e
retorceu em caprichosos feitios.
Se mandaes parar o barquinho diante d'esse obscuro
alcáçar das esquecidas musas do idyllio, d'esse
manancial dos gratos devaneios, ao abrir de uma manhan de agosto, ou ao
entardecer de um dia da estação
do outomno—a mais amavel do Minho—ahi ficareis como
arrobados,
sentindo sem saber o que, desejando sem dar limites ao desejo,
aspirando a enlevos que vos não parecem da terra, nem os
sabereis dizer, se cuidaes que vos transportam ao ceo. O que
vêdes, se sabeis copiar a natureza na tela, no verso, ou na
prosa, podereis conseguir que nós tambem o vejamos em
sombra; o sentir, porém, que semelhante espectaculo, a tal
hora, vos suggere, sêde embora Raphael,
Fénélon, ou Delille, que não lograreis
verter em nossas almas a poesia das vossas. Folheai o livrinho, todo
mimo e deleite, do poeta Bernardes, sentido e escripto alli n'aquellas
margens; cuidareis vêr n'elle as harmonias que vos soam ao
coração em descompassadas notas;
e, melancolicamente, abrireis mão das maviosas poesias, que
dizem menos que o susurro da veia limpida na fluctuante
frança do salgueiro, ou o regorgeio do rouxinol, que vos
fugiu da margem, para de longe vos estar conversando com o espirito
alheado. Nos versos e nas poeticas prosas do mais canoro bardo do
Minho
[1],
se vos deparam relanços de delicado sentimento,
doçuras
[7]
campezinas, que todas recendem os aromas d'aquelles relvados e
arvoredos. No mavioso romance d'outro cantor e prosador sentimental do
jardim d'esta formosa terra
[2],
lá inspirado, lá
haurido no mel de
tantas colmeias, nem ahi achaes senão o bosquejo das
visões que adentraram vosso animo, e de vós se
apartam, mal vos embaralhaes com homens vascolejados em negocios da
vida real. Não ha coração que sostenha
em si poesia, quando cuidados o empegam no commum esterquilinio, onde
todos, uns mais que outros, nos rebalçamos, embora
á luz do sol das praças, e á
luz das serpentinas das salas, as immundicias brilhem como ouro, ou
alvejem como arminhos.
Não ha, pois, dizer o que sente cada um, ao abrir da manhan,
ou descahir da tarde, se alli parou e contemplou do seu barquinho a
avenida arborisada, o repuxo com seu docel de ramagem, e as cornijas
denticuladas da vetusta metade do edificio.
Se por lá derivasseis, ao fim de uma tarde de agosto de
1844, e o rumorejo da corrente vos não houvesse entorpecido
a vida exterior, verieis, ao cimo da avenida, n'um dos bancos
circumpostos á fonte, uma senhora reclinada com o descuido
de quem se crê sósinha, sobre um respaldo de
massiço, que brandamente se amollentava, para, a prazer da
solitaria scismadora, se lhe modular ás fórmas
gentis.
[8]
A seu lado estava uma carta de muitas paginas, sobre a qual ella
assentava a mão descahida em langoroso quebranto. O que
certamente não verieis eram as lagrimas, que humedeciam a
carta, e outras que desciam nas faces, e paravam aos cantos dos labios,
como se ahi esperassem que um sorriso de esperança outra vez
as embebesse no coração.
De véras creio que o meu leitor ahi se ficaria em quanto o
vestido branco da formosa visão se estremasse da escuridade
das arvores; quando, porém, a noite lhe fechasse o encanto
de olhos, o leitor ir-se-ia, rio-abaixo, scismando um pouco na
solitaria creatura, amante das noites bellas; e, chegando a Vianna,
escassamente se lembraria de têl-a visto, e só, a
muito
proposito, perguntaria quem fosse a mulher da pittoresca vivenda do
Minho.
Tivesse eu a honra de ser a pessoa interrogada, e responderia com o
seguinte capitulo, se o leitor me désse ares de sua
complacencia em ouvil-o.
[9]
II.
O romancista de mais perluxo gosto em nomes de personagens de novella,
se os procurar nos climas temperados, ahi os acha mais lindos, mais a
molde da strophe, do poema e do romance sentimental. Os nomes de mais
musica, e mais amoraveis, são os das mulheres gregas, se
todos soam como os das heroinas de Byron, de Hugo, e dos poetas
affeiçoados ás
coisas orientaes.
Desisto de ir á Grecia baptisar as minhas personagens
femininas. Escrevo de Portugal, onde ha nomes de mulheres a competirem
de belleza com suas donas; e, mais que em outra provincia, no
coração de
todas, no Minho,—que bem podéra ser a flor da
Europa—ahi,
na familia de solar, e na familia da choça, ha peregrinos
nomes, que mais parecem ensinados pela melopeia das aereas musicas, ou
dos mui suaves murmurinhos das florestas, dos rios, das aves e dos
insectos.
Corinna da Soledade era o nome da visão, que o meu leitor
pudera ver n'uma tarde de agosto de 1844.
[10]
Em outra qualquer tarde poderiamos ver, não uma, mas um
rancho de cinco meninas, a competirem de formosura, todas trajadas de
branco, soltos os cabellos, ou ennastrados de flores, com que se
andavam dando invejas ás outras. Eram as cinco irmans
d'aquelle ditoso ermo; as cinco Evas d'aquelle terreal paraizo, por
onde não rastejavam serpentes, estas serpentes de casaca e
luva branca, que são o proprio demonio civilisado pelo
alfaiate, e amoldado a estes tempos illustrados em que nenhuma Eva de
certo se deixaria embair por cobras, propriamente ditas.
Tinha então vinte annos Corinna da Soledade.
Sou avesso a descripções: muitas vezes o tenho
dito. Sahem-me todas muito pallidas e infieis por causa do
esforço que faço a dar relevo aos
traços. Profusamente se dispendem os romancistas em
mineralogia e botanica para colherem o effeito das
comparações. Flores e pedraria, a alvura do
lyrio, o escarlate do carmim, o niveo jaspe, o rubido coral, a lustrosa
pretidão do azeviche, a ágata para a cutis das
mãos, a
petala de rosa para a das faces, o branco avelludado da magnolia para o
collo, o marfim para os dentes... que sei eu!
Corinna da Soledade era de estatura mais que mean, refeita, robusta na
apparencia, mimosa de pelle, mas não alvissima; olhos mais
singulares pela brandura que pelo tamanho, reluzentes como chammas, ou
amortecidos como a luz tibia da lua empanada por transparente
nuvem—alternativas instantaneas, que denotavam as rapidas
mutações da alma—; arcadas negras
[11]
e sedosas, travadas na base da escampada
fronte—rara belleza em mulher, n'aquellas mesmas, que se
chamam Sapho,
Staël, ou Sand—, breve boca de finissimos labios,
subtilmente
assombrados d'um buço, imperceptivel a curta distancia, mas
de bello effeito na approximação.
Tanto esta, como as outras quatro filhas de Gastão de
Noronha, tinham sido educadas em França, para onde os paes
emigraram em 1829. O fidalgo do Minho homisiara-se, sem
conscienciosamente poder dizer que era menos realista que seus
avós; porém, odios
velhos de covardes inimigos o haviam denunciado á
alçada, e o prudente sujeito antes quiz confirmar a denuncia
com a fuga, que provar d'entre ferros sua innocencia.
Em 1833 recolheu a numerosa familia á patria. As meninas
vinham esmeradamente educadas em collegio de Paris, e saudosas dos
comêços de vida alegre que ainda experimentaram na
capital do mundo. A transição de Paris para as
margens do Lima, as
noites fugitivas dos bailes comparadas com o silencio do palacio velho,
em parte ruinas, e rodeado de arvoredos e murmurios melancolicos,
parece que ao mesmo tempo enluctaram o animo das cinco meninas, que se
contemplavam umas ás outras, como se as lançassem
nas praias ermas d'Africa.
Gastara, nos cinco annos de emigração, o
jactancioso Noronha, como gastam em Paris os homens opulentos ou
perdularios. Bem que a sua casa, toda em propriedade rustica, fosse
grandemente rendosa, e bastasse
[12]
a dar-lhe fama e brilho de rico na sua provincia, os redditos
d'ella escassamente dariam a um parisiense com que sustentar dez
pessoas de familia em recatada decencia. Gastão, recolhendo
á patria, rareou a
pouco e pouco as nuvens da poeira olympica de Paris, que lhe empanavam
os olhos, e viu todos os seus haveres ameaçados, se
não já feridos de
proxima ruina. Os caseiros e administradores tinham esbanjado e
desbaratado á porfia com elle; porém,
tão
engenhosamente o fizeram, que o fidalgo achou-os a elles proprietarios,
e legitimos possessores das quintas que, por ordem do amo homisiado,
tinham vendido.
A velha casa solarenga d'onde o fidalgo sahira para o
estrangeiro, nos cinco annos de desamparo e descuido dos
administradores, abriu pelo tecto e fendeu-se pelas abaladas paredes. A
familia, affeita a morar em casas decoradas com graciosas alfaias,
quando entrou ao palacete das margens do Lima, confrangeu-se de pavor
como se os vigamentos estivessem estalando sobre suas
cabeças. Fugiram as meninas do salão de espera, e
entraram na sala proxima, onde as mais velhas se recordavam de terem
visto tapetes encarnados, jarrões indianos, e espaldares de
sêda. A sala estava sendo uma eira, com espigas a monte,
medas de palha painça, e instrumentos agricolas, como
enxadas, gadanhas, forcados e aguilhadas, por sobre os
jarrões esbotenados.
D. Mafalda, mãe das meninas, quando tal viu rompeu a chorar,
e o marido a praguejar, e as meninas encolheram-se
[13]
todas a um canto,
tão tristes e intanguidas, como se as tivessem descido por
um alçapão
ás lageas de fria masmorra.
Cuidou logo o fidalgo em mandar reconstruir aquella parte da casa, que
eu mostrei ao meu leitor, na margem direita do Lima. Como gizara obra
grande, a belprazer da sua desasizada fantasia, vendeu e hypothecou
bens urgentes á sua sustentação para
convertel-os em salas, tapetes, porcellanas, diwans, sophás,
chaises-longues, jardineiras, consoles, e que taes estrangeirices em
que as meninas reconheciam um pedaço do seu saudoso Paris.
Soffreram maior quebra os rendimentos, sem que a conformidade, se
não o contentamento d'aquella familia, bem aposentada e
servida do luxo da civilisação, os indemnisasse
do desfalque dos bens. Gastão de Noronha em vez de
aconselhar paciencia á esposa e ás
filhas, era o primeiro a lastimar-se da solidão em que
viviam, do tedio das compridas noites de inverno, do enfadonho
palavrorio dos primos e primas, e dos pessimos cosinheiros, que nunca
tinham bem acertado com o segredo de loirejar á parisiense
umas
omelettes souflées, ou um
vol-au-vent.
Enfadado de tudo, Gastão, incitado pelos gabos que a
imprensa portuense dispensava á sua companhia lyrica, pegou
da familia, alvoroçada com a boa nova, e foi para o Porto,
onde passou um inverno, frequentando as melhores casas, e convidando
aos seus bailes a flor da mocidade portuense.
[14]
Imaginou elle que suas filhas, educadas a primor, bem fallantes,
bonitas, e graciosas em seu desembaraço, fariam epocha no
Porto, como costuma dizer-se, e seriam pretendidas dos negociantes
ricos á conta de sua fidalguia. Este plano é o
unico signal que temos da intelligencia domesticamente governamental de
Gastão de Noronha. Não se recommenda o systema
aos paes dissipadores e aos fidalgos arruinados, porque, sobre ser
revelho e desautorisado, é seu tanto ou quanto immoral:
abstenho-me de fundar o dito em razões que não
agradariam nem moralisariam.
Não ha duvida que as meninas, educadas em França,
e formosas como as que mais o são em Portugal,
impressionaram vivamente os moços abastados da dinheirosa
cidade; mas estas impressões redundaram todas em muita
poesia, em muito suspiro, em muitos olhares meigos, e em muita
contradança innocente, quando contradansas podem ser
innocentes.
Os mancebos apaixonados viam as meninas, e viam tudo que mais
anhelavam; mas os paes d'estes mancebos, posto que achassem lindas de
se verem as flores, iam de preferencia analysar o tronco da arvore
florida, o qual tronco, como sabem, era Gastão de Noronha.
Estas analyses ao tronco prejudicavam grandemente as flores, como
é de ver; e todos os velhos abastados diziam, á
uma, que não queriam enxertias de sua obscura linhagem em
arvore podre. Não sei se o nobilissimo Gastão de
Noronha chegou a saber que lhe chamavam arvore podre!
[15]
O sabido é que o fidalgo voltou ás margens do seu
Lima, na primavera seguinte, com as filhas solteiras, e tristes em
dobro do que tinham vindo de Paris.
O Porto d'aquella epocha era muito para dar saudades a quem o trocava,
não direi só pelas solitarias margens d'um rio,
mas ainda pelos ruidosos esplendores da capital.
Quem de lá sahiu ha dezoito annos, e hoje alli voltou,
não reconheceu de certo a sociedade portuense.
Então primavam as principaes familias do commercio, da
industria e da jerarchia na magnificencia de seus bailes. Rara semana
corria sem que algum salão reverberasse os seus lustres nas
graças nativas e nos custosos artificios com que se
sobre-doiravam aquellas gentis meninas, que hoje se desvelam em ser
mães, e todo seu viver concentram na vida intima. Das duas
ricas provincias, feudatarias da cidade industrial por excellencia,
confluiam, no fim do outomno, quantidade de morgados e morgadas, que se
dispendiam á larga, e constituiam grande parte da sociedade
brilhante, que os folhetins cantavam, e as modistas vestiam... ou
despiam, seria mais acertado dizer-se. Nenhum festim nupcial dispensava
um baile; cada pessoa da familia opulenta, em seu dia natalicio, tinha
um baile; o baile era o cunho do progresso n'aquella sociedade
desentorpecida do marasmo de seculos, e devotada a competir em pompas
com Lisboa, que a não valia então, nem
hoje me affoito a dizer que a vale. E quão diversa agora se
me afigura, quão outra te vi, ó rainha do norte,
depois
[16]que os teus
próceres trocaram a convivencia dos
salões pela commodidade das equipagens! Foi a parelha que
matou o baile indisputavelmente. Foi o luxo esteril dos urcos e dos
arreios, dos trens armorejados, e das fantasiosas librés que
desviou o fecundante capital do intento civilisador a que o applicaram
os patriarchas do progresso n'aquella boa terra. Era um capital que a
todos chegava, todas as classes sociaes participavam da superabundancia
do baile.
Enriquecia a modista.
Prosperava o cabelleireiro.
As confeitarias rivalisavam em primores de bolinhos e pasteis.
O mercador renovava os seus lotes em cada trimestre.
As alfaias dos salões, no ultimo baile, faziam esquecer as
pompas do penultimo.
E, por outro lado, visto pela face moral, o baile era o incentivo mais
energico do talento. Então se viram maravilhas de genio na
secção das locaes, que
tão enfezadinha é agora! Então andavam
ahi versos, a froixo, por todos os jornaes; eramos todos poetas, todos
tinhamos uma estrella que cantar, e, pelo commum, aquella estrella
luzia-nos da constellação dos bailes.
E agora, tudo fundido nas carruagens que trancaram as portas dos
salões, tudo, sem
excepção das musas!—as proprias musas
me quer
parecer que andam aos varaes das seges!
E agora, tudo fundido nas carruagens que trancaram as portas dos
salões, tudo, sem
excepção das musas!—as proprias musas
me quer
parecer que andam aos varaes das seges!
[17]
III.
Das meninas, a mais saudosa do Porto era Corinna da Soledade.
Razão tinha mais que as irmans, porque amara mais que todas,
e amara sem intenção nem
calculo.
N'um baile do conde do Casal fôra-lhe apresentado Antonio
d'Azevedo Barbosa, moço de vinte e dois annos, nem pallido
nem córado, nem triste nem alegre, um homem egual a todos os
homens, como elles são fóra do romance.
Este Antonio d'Azevedo Barbosa era de Barcellos, filho d'um pequeno
proprietario, que tinha muitos filhos, e mandara o mais velho cursar
jurisprudencia em Coimbra, cuidando erguer um futuro esteio aos
irmãos, lesados em seu patrimonio por amor d'aquelle.
O moço fôra muito novo para Coimbra; ninguem o
admoestava a estudar; viu-se em plena liberdade de suas
acções; achou que era muito suave vida
gastar a
[18]
mesada, e poupar os
livros. Assim o fez, e fez mal, que ficou reprovado em preparatorios.
Os patricios seus contemporaneos na universidade foram contar a
Barcellos o desastre do estudante, não por lhe quererem mal,
mas por se quererem demasiado bem a si: disseram-n'o para que a villa
de Barcellos e o mundo soubessem que Coimbra não
é para todos;
e, a este proposito, repetiam as memorandas palavras do senhor Ferrer,
lente de direito natural, aos seus discipulos: «meus
senhores, quem não puder ser doutor, seja
sapateiro.»
Manoel d'Azevedo, pae do academico reprovado, adoeceu de
paixão, e, se o não amparam os
braços implorantes dos outros filhos, cahia na cova.
Um abbade limitrophe de Barcellos, e tio materno do estudante, levou o
moço para sua casa, e castigou-o com uma tarefa diaria de
duzentos versos de Virgilio, e um thema de duas laudas da
Vida de Fr. Bartholomeu dos
Martyres, e doze paginas do
Genuense, e outras tantas de
rhetorica e geographia. Findou o prazo das ferias, e Antonio tornou a
Coimbra, á custa do abbade. Fez o seu exame de latim,
logica, rhetorica e geographia, com approvação e
applausos de bom
latinista.
Matriculou-se no primeiro anno, e sobre-excedeu as
esperanças do tio e as ambições do
pae: ganhou o segundo premio, e recolheu ao gremio de sua familia.
D'esta vez, o pae ia adoecendo de alegria.
Não se morre de dor, nem de alegria; mas morre-se
[19]
facilmente d'um hydro-torax; foi o que
n'esse mesmo anno succedeu a Manoel d'Azevedo.
Eram nove os orphãos, e Antonio, o mais velho dos
irmãos, tinha dezesete annos. Fez-se inventario, pagaram-se
as dividas do casal, e ficaram dotados com cento e cincoenta mil reis
cada um. O abbade levou as sobrinhas para sua companhia, que eram
quatro; arrumou no commercio os pequenos, e disse ao segundo-annista da
universidade, que se reduzisse a viver com quatro mil e oitocentos reis
de mesada, se queria formar-se.
Antonio respondeu que viveria com menos, para que suas irmans vivessem
com mais.
Foi o moço ao segundo anno, e começou logo a
escrever umas cadernetas que lá denominam
«sebentas», as quaes os cuidadosos em reproduzir a
prelecção
do lente vendem lithographadas. As sebentas de Antonio d'Azevedo
grangearam reputação de explicitas e
bem coordenadas, e produziram metade de sua subsistencia; a outra
metade proveio-lhe da versão de romances francezes, editados
por assignatura. E assim vingou o segundo anno, e os annos seguintes
até completar sua carreira.
O bacharel Antonio d'Azevedo recolheu ao presbyterio do tio com o seu
diploma enrolado n'um tubo de folha de Flandres.
—E agora?—perguntou o abbade, tres mezes depois.
—Agora, estou formado—respondeu o bacharel.
[20]
—Bem sei; mas que fazes? quando começas o teu
officio de
doutor?
—O meu officio de doutor?!—disse Antonio de
Azevedo, como perguntando
a si mesmo a utilidade da formatura em direito.
—Sim—tornou o padre—o sapateiro, o
marceneiro, o artifice em todos
os mesteres, cumprido o tempo de aprendizagem, começa de
ganhar sua vida. Ha dez annos que tu estudas para isto que hoje
és:
estás doutor, meu sobrinho; agora applica o que sabes.
Antonio d'Azevedo achou discreta a admoestação
delicada do tio. Recebeu o seu patrimonio de cento e cincoenta mil
reis, e foi a Lisboa requerer.
Ajuntou o pretendente ao seu requerimento as certidões de
seus premios na faculdade, e de seu excellente comportamento,
afóra a pathetica narrativa de sua pobreza, e das quatro
orphans dependentes d'elle. Consta que o ministro da justiça
se não commovera,
porque não lera a petição nem os
documentos.
O bacharel, ao cabo de seis mezes, pediu ao tio padre que lhe mandasse
alguns soccorros, com que pudesse deter-se mais algum mez em Lisboa,
esperando despacho.
Não lhe respondeu o tio, porque já estava na
presença de Deus. Responderam as irmans, pedindo-lhe que
fosse tomar conta d'ellas, visto que o novo abbade as mandaria sahir da
casa da residencia parochial.
Triste nova para o pobre pretendente, que só tinha de seu o
diploma, e uma surrada casaca com que
[21]
ia
ás audiencias semanaes do ministro, o qual nunca lhe deu
fé da casaca, nem dos premios universitarios, nem das
lagrimas!
Escreveu Antonio a um de seus quatro irmãos, que
já era guarda-livros n'uma casa commercial do Porto,
pedindo-lhe meios para sahir de Lisboa, e ir á provincia
tomar conta das irmans. O guarda livros
acudiu prestes ao pedido, e partiu logo a segurar a subsistencia
ás quatro meninas na casa agricola em que tinham nascido.
Deteve-se ainda alguns mezes o bacharel em Lisboa, sustentado por seu
irmão. A final, baldadas as supplicas, o triste
moço sahiu da capital com
intenção de abrir escriptorio de advogado na sua
terra.
Não desagrade ao leitor este familiar estylo com que lhe
são contadas coisas de si tão singelas,
que, só á custa de muito florescêl-as,
é que
poderiam ser agradaveis. Acceitem-me os successos verdadeiros sem
enfeites; quando eu estiver fantasiando, então lh'os darei
ataviados de modo que a poesia me dispense de ser um fiel copista do
que a toda a hora nos passa diante dos olhos.
Chegou Antonio d'Azevedo ao Porto, e hospedou-se em casa de seu
irmão Joaquim. Acertara de ser o commerciante a cujo
serviço estava Joaquim, pae de dois condiscipulos de
Antonio. Receberam-n'o cordialmente, deram-lhe bom quarto, sentaram-no
no melhor logar da sua mesa, e instaram-o a demorar-se no Porto durante
aquelle inverno. N'essa mesma occasião
fôra ao Porto Gastão de Noronha com suas filhas e
mulher;
[22]e, como
Antonio d'Azevedo,
obrigado pelos seus hospedeiros condiscipulos, fosse aos bailes onde
elles iam, ahi está a razão porque Corinna da
Soledade
encontrou o bacharel de Barcellos no baile do conde do Casal.
O infortunio abastarda os espiritos, desalenta-os, e de todo os
transfigura. Antonio d'Azevedo vergava debaixo da dependencia, sem
maldizel-a. Sentia-se alquebrado por sua mesma inercia, e esmagado pelo
quasi opprobrio de sua inutilidade. O futuro estava-lhe fechado, futuro
para onde o arremessavam esperanças, que todas vira morrer,
durante aquelle triste viver de supplicas e repulsões
á porta de
ministros, de magnates, de influentes, homens que vestem o arnez do
egoismo, logo que, no dizer do senhor A. Herculano, «se
recostam nos sophás para onde se atiraram de cima do
tamborete de couro ou da cadeira de pinho.» Sentia-se o
moço brutificado pela desgraça: tem
ella de seu o fatal condão de deslapidar o brilho das
ideias, enredando-as, escurecendo-as, falsificando-as; ha uma como
nevoa que empana os objectos ou os desfigura; o infeliz vê
sempre errado; ora crê e confia-se em
tudo que ao commum dos homens é despresivel; ora esquiva-se
a tomar pelos caminhos direitos do bem-estar, que eventualmente se lhe
offerecem. Póde ser que uma linguagem energica lhe valesse
uma
transformação de vida; mas o susto, o quasi pavor
com que falla aos grandes, e a humildade lagrimosa com que intenta
commovel-os, é ainda um sestro mau da sua
desgraça. E em tudo assim, em tudo, até no amor,
que devia estar
[23]
forro das cadeias
com que a desfortuna peia e trava as demais faculdades. É ao
pé da mulher amada,
amada sem confiança nem expansão, é
ahi que
mais a olhos observadores se manifesta o infeliz. Nenhuma palavra diz
que lealmente lhe sirva o coração. O que diz
é incongruente e absurdo, quando não é
disparate de desfranzir um riso. As agudezas triviaes, que inculcam
fina têmpera de alma, e que todo o homem, medianamente
servido de olhos e intellecto, sabe dizer, tomam no discurso do infeliz
umas entoações ridiculas e
antipathicas. Se algum pensamento bem ordenado lhe entreluz, esmorece
ao proferil-o, afroixa-o como inconciliavel com sua baixa
posição, e prefere antes trocal-o por uma
semsaboria. Esta é a sorte de todos os
desgraçados, que não são tolos;
porém é
coisa muito rara encontrar-se um tolo desgraçado.
Antonio d'Azevedo sondara-se, compulsara-se, e vira a lenta
desfiguração que se operara em sua
alma. Impozera-se silencio, que os seus amigos estranhavam. Negava-se a
dar parecer nas mais insignificantes questões. De si para si
dizia elle que sentia uma depressão no cerebro, uma placa de
ferro premindo-lhe a bossa do entendimento. Onde concorresse com
senhoras, ninguem lhe ouvia palavra, senão as precisas para
dar um pretexto a ausentar-se. Muita gente o reputava malfadado; e
outra optava antes por que fosse estupido.
Quando elle viu Corinna da Soledade, estava ao lado d'um sujeito, cuja
maxima gloria n'este globo era
[24]
poder
apresentar um conhecido a outro conhecido. Assim que alguem lhe dizia:
«Vossa senhoria conhece fulano?» respondia logo:
«Quer ser
apresentado?» E se os apresentados lhe ficavam á
mão, era logo.
Foi o que aconteceu com Antonio d'Azevedo.
Apenas lhe elle perguntou quem era aquella menina vestida de
azul-celeste, o sujeito travou-lhe do braço, e disse:
—Venha cá.
O bacharel mal sabia onde era levado, quando se viu rosto a rosto de
Corinna, a quem o apresentante disse:
—O meu amigo doutor Antonio d'Azevedo Barbosa, que eu
satisfactoriamente apresento á excellentissima senhora D.
Corinna da Soledade e Noronha, filha do nobilissimo Gastão
de Noronha. Agora deem-me licença, que tenho de fazer quatro
apresentações ao conde do Casal.
Deus livre o leitor de ver-se alguma vez nos apertos do bacharel!
Corinna esperou o logar-commum que deriva da
apresentação. Antonio d'Azevedo
não sabia o logar-commum. Foi ella quem o disse:
—Está animadissimo o baile; mas abafa a gente de
calor!
—Sim, minha senhora—disse o nosso pobre amigo,
puxando pelo colchete
da luva até arrancal-o com a pelica.
Corinna esperou ainda que o moço fosse além da
affirmativa do calor, em que elle parecia estar mais
[25]
abafado que toda a outra gente: tão
copiosas lhe borbulhavam
na testa e faces as camarinhas do suor!
Antonio d'Azevedo viu-se tal qual estava sendo aos olhos da filha de
Gastão de Noronha. Apiedou-se d'elle o seu bom anjo.
Levantou-se aquelle espirito com todo o peso da sua amargura, e disse
abruptamente, mas de compasso:
—Eu não solicitei a honra de ser apresentado a
vossa
excellencia. Um homem desgraçado não pede
relações. Fui barbaro comigo mesmo entrando aqui;
mas a desventura tem mil rodeios por onde me encaminha a tudo que me
augmenta o desgosto da vida. Resta-me ainda uma sombra de vaidade...
Custa-me que vossa excellencia fique fazendo de mim uma ideia injusta.
Não sou absolutamente estupido: sou infeliz. Perdi o dom da
palavra, e só sei fallar em lagrimas, ou com a minha
consciencia, na solidão. Perdôe-me vossa
excellencia este intempestivo desafogo.
E retirou-se, sem dar tempo a um monossyllabo.
Corinna da Soledade seguiu-o interdicta com os olhos, e estranhou
aquella novidade romanesca de que não encontrára
exemplo mesmo em Paris.
Antonio d'Azevedo sahiu do baile, que era na casa do quartel general, e
tomou pela rua do Sol a passo vagaroso, até receber a
bafagem fria do Douro,
debruçando-se sobre o peitoril do passeio das Fontainhas.
Pouco depois desenrolou-se do mar um denso nevoeiro que se estendeu rio
acima, e logo despediu em nuvens a subir as fragosas ribas da margem
direita, e espraiou-se
[26]
com taciturna
presteza por sobre a cidade. A regélida neblina arrefecera a
cabeça do moço. O que elle estava soffrendo era
um d'aquelles phrenesis que, a longos espaços, atacam os
misanthropos.
As pessoas nunca apalpadas por esta penosa enfermidade, cuidam que ou
ella não existe, ou, se existe, em pouco está o
combatel-a com os suaves linimentos da sociabilidade, ou pouco se deve
doer de a não gosar o misanthropo que lhe foge.
Pouco sabe de tamanha desventura quem tal diz! Os accessos de
vertiginosa raiva que padecem os feridos d'esta lepra moral
são agonias mortaes. O esquivarem-se á sociedade,
o ouvirem-se unicamente a si proprios nos monologos selvagens com que a
si se amaldiçoam e amaldiçoam a humanidade,
dispara por
vezes em enfurecimentos e raivas, que só bem desafogam se o
desgraçado, com as proprias unhas, se dilacera. O homem sem
irmãos, sem familia, sem amigos, sem um mundo que lhe
absorva a sua individualidade e n'elle se identifique, sáe
tanto fóra das leis
da natureza, que a sua angustia ha de superar todas as angustias
inconsolaveis. D'estas horas tinha muitas Antonio d'Azevedo, e uma das
mais longas e convulsivas estava elle penando n'aquella noite.
Havia de pensar a leitora que o infeliz ia para as Fontainhas scismar
na imagem de Corinna da Soledade, contar-lhe os seus infortunios sem
pejo d'ella nem das estrellas, consubstancial-a em sua alma pelo mais
facil dos processos que usam amantes imaginativos;
[27]
em fim, haviam de pensar os meus amigos que Antonio
d'Azevedo era um poeta como nós todos os que andamos de
noite a namorar senhoras nos luzeiros do firmamento, como se isso
servisse d'alguma coisa para o amanho da vida de cada um e de cada uma.
Em minha boa e leal verdade hei de dizer-lhes que o bacharel de
Barcellos era bastante desgraçado para entender em coisas do
coração, que requerem contentamento e
paz de espirito. Um homem que medita no presente e futuro de quatro
irmans, reconcentra toda a sua sensibilidade no
coração paternal. O
coração dos amores conjugaes—alvo mais
ou menos
remoto dos affectos enamorados—esse não se
compadece com as
tristezas, que gelam e como que endurecem o espirito.
Em quanto, porém, o moço engolfava os olhos e o
pensamento na alvacenta nuvem que mais e mais se condensava sobre a
torrente, Corinna da Soledade relanceava inquieta os olhos á
procura do cavalheiro que lhe tinha apresentado Antonio d'Azevedo. Ao
vel-o, fez-lhe signal com vehemente interesse, e perguntou-lhe quem era
o sujeito que lhe elle apresentara.
—É um doutor de Barcellos, que eu encontrei, ha
dias,
hospedado em casa dos Taveiras, riquissimos commerciantes. Estes meus
amigos é que devem conhecel-o cabalmente, e só
elles podem informar vossa excellencia... Dê-me
licença...
O cavalheiro vira de relance um dos dois bachareis, condiscipulos de
Antonio d'Azevedo, e apanhou pelos cabellos o ensejo d'uma
apresentação. Instantes
depois
[28]
voltava, e dizia ter a honra de
apresentar á filha do
nobilissimo Gastão de Noronha o doutor Felisberto Taveira, e
deixou-os, segundo disse, para ir apresentar dois amigos da provincia
á senhora condessa do Casal.
Este cavalheiro, alguns annos depois, á hora da morte, ainda
apresentou ao seu confessor as testemunhas do testamento.
[29]
IV.
Corinna e Felisberto Taveira conversaram largo espaço.
Gastão de Noronha, reparando no interesse
e apparente intimidade com que sua filha, estranha ás dansas
e a tudo, se entretinha, cuidou em averiguar quem fosse o cavalheiro.
As informações deram em resultado que o fidalgo
ficou contente. Houve alli um sujeito que respondeu assim
arithmeticamente á pergunta do nobilissimo
Gastão:
—João Bernardo Taveira, quando casou, dotou-se com
cento e
cincoenta contos; a mulher trouxe-lhe de dote cento e dez contos: somma
duzentos e sessenta contos. Depois, o Taveira herdou de sua cunhada
cento e dez contos: somma trezentos e setenta contos. O negocio d'esta
casa tem ido sempre em crescente prosperidade. Dou-lhe que, feitas as
despezas domesticas, o capital de trezentos e setenta contos, em trinta
annos, tenha rendido nove por cento. Ahi tem vossa excellencia
[30]
que a casa de João
Bernardo Taveira deve hoje valer perto de setecentos contos, que
repartidos por dois filhos...
—Trezentos e cincoenta contos—atalhou o
fidalgo—é uma
fortunasita soffrivel em Portugal...
—Eu não se me dava de a soffrer em
Londres—disse o outro.
Em vista do que, o condescendente pae estimou que sua filha gastasse o
tempo com gente d'aquella bitola.
Ao abrir da manhan entrou Felisberto no quarto de Antonio d'Azevedo, e
encontrou-o emmalando a sua roupa.
—Isso que é?—disse
Taveira—onde vaes tu?
—Vou para Barcellos—respondeu serenamente o
hospede—Basta de vida
regalada: vamos ao trabalho, que é o unico regalo dos
infelizes. Estou aqui deslocado, meu amigo. Esta vida do teu galhardo
Porto não se fez para mim. Ha de ser-me mais consoladora a
soledade e a tristeza de minhas irmans. Desgraçados com
desgraçados.
—Mas—interrompeu Felisberto—que vaes
fazer em Barcellos?
—Abrir um escriptorio de requerimentos, e nos dias em que
merecer um
tostão com o meu trabalho, dar a minhas irmans um banquete
que valha um tostão; e nos dias em que a minha sciencia das
leis não tiver que fazer com a paz em que vivem os homens,
farei discursos a minhas irmans para persuadil-as á
resignação.
[31]
De qualquer
das maneiras carecem ellas
de mim, e eu d'ellas.
—E porque não has de tu—atalhou o leal
amigo—dizer ao teu
Felisberto que tuas irmans estão precisadas, e que os
prazeres da vida te amarguram em quanto ellas estão penando?
Abre as minhas gavetas, e manda dinheiro a tuas irmans.
—Obrigado, meu bom irmão. Se a amizade te
impõe
o dever de ser generoso, a estima de mim proprio obriga-me a ser homem.
Aquelle que vive de emprestimos, sem ter exhaurido as suas faculdades
de aptidão para o trabalho, póde hypothecar a sua
palavra, mas a dignidade, não, que a não tem.
—Faz a tua vontade, Azevedo; mas vê lá
que o teu
catonismo de dignidade te não leve até
á ingratidão!...—disse com branda
severidade o
filho do millionario.
—Ingratidão!—acudiu o mancebo com
sincera magoa.
—É ingratidão esconderes tua vida de
quem
está com a alma aberta convidando-te a dar-lhe o prazer de
te ser util. É ingratidão privares-me da alegria
de te fazer bem a ti e aos teus.
—Perdoa-me, pois...—interrompeu Azevedo,
apertando-lhe
estremecidamente a mão.
—Estás perdoado—tornou Felisberto
abraçando-o;
mas has de cumprir uma pena. Ficarás mais algum tempo
comnosco. Tuas irmans não são felizes; mas
necessidades creio que as não soffrem. Teu
irmão
[32]
Joaquim reparte com ellas o
seu ordenado, e bem sabes que quatrocentos mil reis abundam
á subsistencia d'uma familia em Barcellos... Vou ajudar-te a
desfazer a mala.
Felisberto ia desdobrando o pouco fato do seu hospede, e fallando ao
mesmo tempo:
—Porque sahiste tão cedo do baile, Azevedo?
Ás
onze horas já te não vi...
—Estava triste...
—E que fizestes até ás seis horas e
meia
fóra de casa?
—Andei a fazer a digestão da felicidade com que
sahi de
lá—respondeu sorrindo amargamente Azevedo.
—Que te pareceu aquella mulher com quem falaste? a Corinna?
—Chama-se Corinna?
—Da Soledade! Vê tu que nome, que poesia, e que
romance!
Quanto daria o Eugenio Sue por um nome d'estes? Quando aquella menina
fôr conhecida dos poetas menores do Porto, todas as poesias
se chamam «Corinnas da Soledade.» Que te pareceu
ella a ti, alma de gelo?
Antonio d'Azevedo córou, lembrando-se de que o seu amigo
ouvira d'ella ou d'outra a singular sahida da sua
apresentação, adornada comicamente de
motejos feminis, os mais pungentes de quantos ha.
—Riram-se de mim?—perguntou elle—Tu de
certo não ririas,
meu Taveira!
[33]
—Se riram! que desproposito! Que ha em ti provocador de riso?
—Entre-lembro-me de ter dito não sei quê
a essa
senhora... O que foi está-me fazendo a impressão
de um mau sonho.
—Disseste-lhe que eras infeliz. Tu crês que a
infelicidade
faça rir alguem? Corinna ouviu-te, estranhou o infortunio
que se confessa em bailes; mas não sorriu, condoeu-se,
lastimou-te, e pediu-me que te levasse ámanhan ao baile da
Torre da Marca.
—É curiosidade de mulher ociosa?
—Não: é sympathia...
—Com a desgraça?—atalhou Azevedo.
—E com o homem, creio eu; muito mais com o homem. Uma menina
de vinte
annos, bella, nobre, e não sei se rica, só por
milagre sympathisa com o
homem desgraçado.
—Então...—disse Antonio d'Azevedo, e
sosteve-se.
—Então, ias tu perguntar-me se seria amor?
—Não: o infortunio estraga as faculdades da
razão, mas não as cega, meu amigo.
—O que me espanta é o sangue frio com que tu ouves
esta
revelação, que faria endoidecer muitos
felizes!—tornou Felisberto—Dar-se-ha caso que tu
sejas aleijado de
coração! Ó Azevedo, tu
já amaste?
—Não tive ainda tempo. Quando a alma trabalha
sempre, o
coração nunca está ocioso.
Bem sabes que fiz a minha formatura á custa de muitas
vigilias. Acabei
[34]
de formar-me, e fui
para Lisboa requerer. Estive lá nove mezes; e, n'este longo
prazo de desgostos, o menor foi a fome, e o maior foi a
convicção da
minha nullidade. Uma vida assim, nem por descuido se acha illaqueada
nas armadilhas do amor.
—Mas deves ter sentido uma aspiração
que
é commum: deves ter sonhado uma mulher.
—Não, porque adormecia sempre com a barra de ferro
da
desgraça sobre o peito. As mulheres que via nos meus sonhos
eram minhas quatro irmans lindas, desamparadas e pobres. Tinha o
coração cheio
d'ellas. A Providencia divina tem-me feito a mercê de
não ajuntar uma quinta imagem ás quatro infelizes
que sobejam á minha sensibilidade.
—Ora vamos—tornou Felisberto
Taveira—Corinna da Soledade
não é mulher que algum homem veja isentamente.
Não te havia ser penoso amal-a, pois
não?
—Tem graça a pergunta!—respondeu Azevedo
com affavel
sorriso—Creio que me seria muito facil amal-a se eu fosse
Felisberto
Taveira, ou um d'esses mil que recebem um raio d'este sol universal da
esperança ou da alegria. Como queres tu que a minha alma
saia do seu abysmo escuro, e vá como doida banhar-se na luz
immensa, n'este mar de paixões deliciosas que eu mal
conheço dos romances que traduzi, como quem copía
caracteres hebraicos, sem os entender? Meu amigo, eu creio que o amor
só resiste ás lagrimas, que
são suas: ha um chorar que vem d'outras angustias mais
severas e profundas; e, a meu ver, estas lagrimas vão ao
[35]
coração, e devoram o
sentimento melindroso do
amor.
—É uma theoria, que estás compendiando
para um
futuro livro, meu Azevedo; estimo que desbanques o Balzac, o Ovidio, o
Sthendal, o Castilho, e
quantos escreveram do amor e da arte de amar; entretanto, convem-te
recolher experiencias. Começas ámanhan
a experimentar no baile da Torre da Marca.
—Tu és tão bom que me deixas ficar em
casa!—disse Azevedo.
—Não posso: dei a minha palavra a Corinna,
contando com a
tua condescendencia.
—Iremos—acudiu Antonio d'Azevedo.
N'este mesmo dia, Joaquim, guarda-livros dos Taveiras, foi ao quarto de
seu irmão, e disse-lhe:
—Trago-te uma boa nova, Antonio. O senhor Taveira chamou-me
ao seu
escriptorio, e augmentou o meu ordenado a um conto e duzentos, para que
eu continuasse a dispender na minha decencia e pequenas
negociações que faço a quantia que
dava a nossas irmans. Beijei-lhe as mãos, e agradeci-lhe em
nome d'ellas, e em teu nome. Agora vê tu se precisas d'alguma
quantia para os teus arranjos, que eu tenho de sobra. Se queres tornar
para Lisboa, vai, Antonio, que te não hão de
faltar meios. D'aqui a meia
duzia de annos as nossas irmans podem estar casadas com lavradores
remediados, se eu tiver vida e saude. Dois mil cruzados é um
bom dote para cada uma, e eu sinto-me com bastante aptidão e
fortuna para os grangear de dois em dois annos, sem lhes diminuir a
ellas a mesada.
[36]
Quero ver se tu agora
com esta boa noticia te não alegras, Antonio! Andas ahi
tão acabrunhado
que pareces um velho! Quem te vir assim abatido e descuidado do teu
aceio, ha de pensar que algum remorso te atormenta! Vive como toda a
gente mais infeliz do que nós somos. Se foste contrariado,
se trabalhaste muito para te formar, agradece a Deus a intelligencia
com que venceste todos os obstaculos. Se não tens agora
emprego, tu serás empregado. Os senhores Taveiras morrem por
ti, e tem muitos amigos na capital. Já o pae me disse que,
em cahindo este ministerio has de ser delegado ou administrador d'um
bairro aqui do Porto. Depois, as nossas irmans se estiverem solteiras,
veem para a nossa companhia, e vão comnosco aos bailes e aos
theatros...
—Cala-te, criança!—interrompeu
Antonio—Se as nossas
irmans hão de ir comnosco aos bailes e aos theatros, como
queres tu que ellas casem com lavradores, dotadas a dois mil cruzados!
Vê se as dotas, Joaquim; e dá-lhes os seus maridos
lavradores, e não as chames á cidade.
Não te lembras d'aquelles
choupos onde cantavam de madrugada e ao anoitecer os pintasilgos,
debaixo da janella do nosso quarto?
—Lembra.
—Pois olha que não ha musica mais suave a
corações felizes! Deixa que nossas irmans a gosem
por muito tempo; que, se a esquecerem por outra, em vão te
cansarás em dar-lhes novas alegrias. Faz por que ellas
não tenham de vender o seu patrimonio, que
está
[37]na
pequena propriedade onde
os passarinhos cantam nos choupos, e onde o anjo da paz mora com ellas.
Em quanto ao offerecimento que me fazes do teu dinheiro, meu bom
irmão, póde ser que eu t'o acceite para uma longa
viagem, visto que já não sou aqui
preciso para meditar no futuro esteio da nossa familia.
—Pois onde queres tu ir?—atalhou Joaquim.
—Penso em ir ao Brazil. Dizem-me que ha alli trabalho para os
braços de todas as
nações, e particular amor e
bem-querença para o portuguez que trabalha. O
cansaço do espirito enfraqueceu-me os braços,
é verdade; mas, ainda assim, quando eu puder acabar de todo
com este incommodo hospede chamado a sciencia—a minha
estupida e
inutil sciencia!—então póde ser que os
braços se revigorem, e eu restitua á
minha propria dignidade, em trabalho, o que perdi na inactividade de
doze estereis annos de lidas de pensamento e de vans
ambições. Outras
ambições me hão de levar ao Brazil:
é ajudar-te, Joaquim; é ser, como tu,
digno da estima dos nossos e da estima de estranhos. O homem inerte,
aqui no Porto, é desconsiderado: devia sel-o assim em toda a
parte onde fosse um e unico o padrão da honra.
Não sei em que conta sou tido
pelas raras pessoas que me conhecem aqui; mas escuto o que se diz dos
pouquissimos que por ahi vagueiam de rua em rua, affectando com
jactanciosa necedade que o Porto póde imitar Lisboa no seu
peculiar caracteristico da vadiagem. Vexa-me a actividade d'esta boa
gente, que parece trabalhar incessantemente para dar
[38]
nome de laborioso a este paiz! Ando como humilhado
ao par do commerciante, do artista, do escriptor e do ultimo operario.
Esta ancia de lavor e de fadiga chega a mortificar-me. É ver
que benefica influencia tem a labutação dos mais
materiaes mesteres sobre os
espiritos exclusivamente dados ás
funcções da
intelligencia! Parece que todo o homem anda em competencia com o outro
na sua esphera de trabalho. O commerciante agenceia grandes
operações em poucas horas; as
forjas convertem em fórmas maravilhosas milhares de arrobas
de ferro em rapido tempo; o poeta, se outro fito o não
descaminha, realça na facundia e
selecção de seus poemas; o romancista, com este
mesmo mundo de boas paixões e febril actividade,
comporá livros sobre
livros sem lhe ser mister explorar as sinuosidades do vicio para ser
bem-quisto e lido. E que sou eu aqui, meu irmão? Que fiz eu
do meu cabedal de intelligencia? Deixei-o congelar-se sob a
mão do infortunio, quando devia rasgar umas cartas de
bacharel affrontosas, e vestir a jaqueta do operario, em cujas lapelas
o respeito publico aprezilha muitas vezes a
condecoração,
invisivel sim, mas venerada na consciencia dos que nobilitam o
trabalho.
Eu tenho a sizudesa de poupar o leitor ao muito mais estirado discurso
do bacharel. Fallou muito, como fallam os misanthropos quando uma
luzinha de esperança lhes lampeja na sua escuridade. A sua
esperança sorria-lhe d'além-mar, do ceo
hospedeiro do novo-mundo.
[39]
V.
Dizia Gastão de Noronha á filha Corinna:
—Vi-te hontem á noite muito distrahida, menina, e
gostei
que te inclinasses áquelle rapaz...
—A qual, papá?
—A qual ha de ser?!—tornou o pae com um gesto de
intelligencia e
comprazimento—é o unico com quem te detiveste uma
boa
hora...
—Ah! já sei... o Taveira?
—Alli tens um excellente marido, Corinna! Trezentos e
cincoenta
contos... Não sabias?
—Não, meu pae—respondeu a menina,
indecisa se devia
desenganal-o, ou evadir-se á
continuação das perguntas.
—É necessario—proseguiu
Gastão em tom
solemne—acabar com as distincções de
raças. A velha nobreza é um merito relativo que o
progresso acata, se outros meritos de natureza commum a sustentam
[40]
na altura d'onde procede. As altas
linhagens predominavam, quando eram as representantes dos illustres
nomes e das grandes riquezas. Porém, depois que as
industrias abriram fontes de ouro, sem terem de o fazer á
ponta da espada e da lança, a fidalguia baixou muito do seu
quilate, e teve de associar-se com ellas para não ficar
sósinha, estacionaria e
dessociavel. Tu viste como em França as netas dos grandes
titulares de Luiz XIV vão casando com os netos dos plebeus
d'aquelle tempo. Ennobrecer-se de veneras e titulos custa
tão pouco, ou vale tão pouco no bom juizo
dos governos illustrados, que já hoje póde cada
homem
rico abrir a sua burra, e fazer com que ao mesmo tempo se abra o cofre
das graças. Muita gente irreflectida diz que isto
é um mal; e os atilados acham que a
depreciação dos fóros de fidalguia
é coisa de incalculaveis vantagens para o adiantamento da
humanidade. Entendem elles avisadamente que só assim,
egualando os homens pela nobilitação,
já que
elles não querem egualar-se pelo plebeismo, conseguiremos
ser todos eguaes. Ora nós, filha, que vivemos em
França,
onde as fitinhas são respeitadas, porque todos as desejam e
trabalham para ganhal-as, vencendo uma batalha, apedrejando um rei, ou
inventando uma machina de fazer colchetes, devemos ter na devida conta
de desprêso uma chimera que, felizmente, em Portugal
preoccupa todas as cabeças para, a final, as nivelar todas
na mesma linha...
Corinna da Soledade estava ouvindo e recolhendo
[41]
as sentenças do pae, com o proposito de responder com ellas
ao mesmo apostolo da egualdade, se alguma vez carecesse d'isso.
Gastão continuou no mesmo tom de circumspecta gravidade:
—Accrescem razões d'outra ordem no caso especial
em que
estamos, Corinna. A nossa casa está desfalcada a ponto de eu
não poder remediar com a mais apertada economia o mal que
vem de avós, e eu continuei na
emigração, para vos dar decencia,
educação e prazeres. Moços eguaes a ti
em nascimento muitos
haverá; mas, pouco mais ou menos, empobrecidos como
nós, e retirados como realistas á obscuridade dos
seus solares e da sua inactividade. Uns por inercia, outros por
ignorancia, todos se devem considerar formando á parte uma
phalange de estatuas d'algum devastado jardim que não ha de
mais florir. Já vês,
Corinna, que ha difficuldade em achar-se um marido como teus
bisavós o desejariam; mas facil te ha de ser encontral-o
como teu pae t'o deseja. Felisberto Taveira, sobre ser rico,
é um gentil moço, é doutor,
revela fina educação, e... não
é assim?
—Parece-me excellente sujeito—disse Corinna.
—Bem: eu não podia enganar-me—tornou com
alegre semblante
o pae—Já te disse elle que... sim...
manifestou-se-te?
—Nada me disse com relação a casamento,
papá.
—Não admira: era a primeira vez que fallava
comtigo; mas
que te amava...
[42]
—Tambem não disse...
—Pois sim; convenho em que o respeito e a delicadeza o
contivessem;
porém tu deves conhecer, depois de uma hora de
conversação...
—Não fallamos a nosso respeito,
papá—disse
candidamente Corinna.
—Pois então?!
—Eu lhe digo: apresentaram-me um sujeito que me disse umas
palavras
muito amarguradas, e sahiu do baile. Fiquei pasmada e curiosa de saber
quem era o tal sujeito. O Antão de Menezes, que m'o tinha
apresentado, trouxe-me o Taveira para me dar as
informações que eu desejava. Ficamos a fallar
d'elle todo aquelle tempo que o papá viu. Ahi tem vossa
excellencia o que foi.
—E quem era o sujeito? que te disse elle? e porque ficaste tu
assim
curiosa de o conhecer?!—perguntou Gastão com
demudado
rosto.
—Era um doutor Azevedo Barbosa, de Barcellos, hospede do
Felisberto
Taveira...
—E que mais?—atalhou o pae precipitadamente.
—E que mais?! o papá que deseja que eu lhe diga
mais?
—Se é rapaz de fortuna... Em Barcellos
não sei
que haja...
—É pobre, e vive muito penalisado, porque tem
quatro
irmans, e cuida que o persegue uma má estrella.
—Pois sim, não duvido que o persiga uma
má
estrella, e que seja pobre e tenha quatro irmans; mas
[43]
que tens tu que ver com isso? Em que se funda a tua
interessante curiosidade?!
—Tive compaixão d'elle, papá.
—E gastaste uma hora a colher
informações!... O
Taveira havia de persuadir-se que tamanho interesse significava alguma
coisa mais que simples curiosidade. Se assim foi, como havia de elle
dizer-te que te amava?! Ora, minha filha, nunca faças
praça
d'essas tuas compaixões sem utilidade. Se o Taveira te
procurar nos bailes, agradece-lhe a preferencia, e não lhe
faças suspeitar que o escolhes por medianeiro: isso
não só desanima, mas offende o amor-proprio. Teu
pae pede-te que olhes com toda a seriedade ao teu futuro, que por em
quanto se figura triste. Com um bom casamento davas-te, e davas
á tua familia a felicidade.
Corinna da Soledade, ausente o pae, scismou largo tempo com muita
tristeza, e meditou em fingir-se doente para não ir, na
seguinte noite, ao baile da Torre da Marca.
O fingimento era facil; porém o bom ou mau anjo d'ella
segredou-lhe seducções, que a deliberaram
a conservar-se no goso de sua perfeita saude para ir ao baile dos
condes de Terena.
Antonio d'Azevedo, sinceramente violentado, entrou na sala em que
estava Corinna, e foi ao lado de Taveira cumprimental-a. Momentos
depois, Felisberto ia retirar-se, crendo que assim comprazia a Corinna.
Chamou-o ella, e disse-lhe a resguardo de Azevedo:
—Desagrado a meu pae, que está aqui defronte,
[44]
se ficar conversando com o seu amigo.
Peço-lhe que me não deixe só com elle,
e, quando meu pae
estiver jogando, então...
E de feito, Gastão de Noronha fitava os olhos na filha, e
perguntava á pessoa com quem fallava, se o sujeito que
entrara com Taveira era um tal Azevedo, de Barcellos.
Dizia Taveira ao seu hospede:
—Aposto mil contra um... aposto!
—O que?—perguntou Azevedo.
—Que Corinna te ama, e te ama de véras! A
esconder-se do
pae para te fallar! ha nada mais persuasivo! Quando uma menina se
confia n'um confidente, e desconfia de seu pae, e se esconde d'um
terceiro para dizer ao medianeiro que volte com o outro quando o
papá estiver jogando; e quando esse
outro... és tu!...
Antonio d'Azevedo ergueu os hombros, e disse:
—Valha-te Deus! Cuidas tu que eu tenho espirito bem folgado
para
entrar n'estes brinquedos pueris, em que a tua seriedade corre perigo
de sahir-se mal!... Queres tu que eu me capacite de que estamos
figurando n'uma das graves comedias humanas? Pois sim, meu amigo:
figuremos e discutamos. Tu já disseste áquella
senhora que eu sou um pobre bacharel que consumiu sua sensibilidade,
fazendo a
côrte aos ministros da justiça?
—Não lhe disse tudo isso, nem parte d'isso. Como
ella me
não perguntou se eras rico, dispensei-me de ser o
inventariante dos teus pares de botas e dos teus
[45]
camapheus. Perguntou-me se eras bom, e eu disse-lhe que
eras um moço honrado, e o coração
d'um anjo. Tudo o mais que dissemos foi commentar o que é
ser-se honrado e ser-se anjo. Provavelmente Corinna, que viu tudo em
Paris, não achou lá a exquisitice do
anjo-coração, e está em ancias de
saber em que tu te apartas do restante do genero humano. Esta
curiosidade é já uma escolha, e a escolha, se a
tua modestia m'o consente, é o amor com todos os seus
recatos e astucias.
Proseguiram n'esta contenda, até que Taveira viu abancar ao
jogo o pae de Corinna; mas, momentos antes, observara elle que o
fidalgo segredara com sua mulher, olhando o bacharel de
travéz com o sabido disfarce dos que olham de
travéz. D. Mafalda fizera um gesto, que vinha a dizer que
estava sciente.
—Vejo que a familia está de
sobre-rolda!—disse Taveira ao
seu amigo—mas ainda assim avisinhemo-nos cautelosamente da
praça.
Corinna acabara de dansar, e passeava pelo braço do
parceiro, que por fortuna era Antão de Menezes, o
apresentante emérito. Este, que adivinhava todas as
subtilezas do coração dos seus apresentados,
approximou-se de Azevedo, e disse-lhe com mui galharda cortezania:
—O thesouro não me pertence. Aqui o tem, que eu
sou apenas
o indicador dos thesouros.... sou uma especie de S. Cyprianno, que
descobre as riquezas encantadas.
[46]
Antonio d'Azevedo deu o braço a Corinna, e Felisberto
Taveira retirou-se com Antão.
Agora é que havia de ser umas delicias ouvil-os, se D.
Mafalda, vigilante observadora da passagem innocente, não
mandasse um cavalheiro dizer a sua filha que fosse fallar-lhe.
Corinna respondeu:
—Queira dizer á maman que eu vou já.
—Vá, minha senhora—disse Azevedo.
Não seja eu
causa de sua mãe a desgostar.
—Não importa.... Eu queria pedir-lhe que
não
fosse tão infeliz...
—A mim?!—atalhou Azevedo suavemente enleado pela
musica d'aquella
voz, em que o tom da supplica tinha o mavioso do carinho filial.
—Sim... pois não me disse que era muito
desgraçado?...
—Sou.... era muito desgraçado; mas condoeu-se
vossa
excellencia a tal ponto de mim que....
—Que lhe peço com instancia que se não
deixe
vencer do tedio da sociedade; não fuja das pessoas que
imagina felizes... Olhe que não encontra seis que o sejam
n'estes centenares de pessoas. Eu, se fosse senhora das minhas
acções, tambem aqui não
vinha, e ficaria a soffrer sem nada remediar... Não posso
demorar-me,
que minha mãe está impaciente... Olhe que eu
desejo a sua amizade... Conduza-me a minha mãe... e
não se esqueça...
Este lance, que, a dar-se uma vez na vida do homem,
[47]
nunca se repete, foi uma especie de vertigem, que
deixou o espirito de Azevedo na indecisão de quem, a sonhar,
a si mesmo se pergunta se está sonhando.
Corinna sentou-se ao lado de sua mãe, e o bacharel com os
braços pendentes e a boca descerrada para tragar
fôlego que lhe alargasse o peito, ficou, tres passos
distante, arrobado na contemplação da gentil
menina.
Taveira, que não os perdera de vista, estava-se deliciando
no espectaculo que só elle via. Quando achou que era tempo
de acordar o amigo de um extasis desagradavel a D. Mafalda, tomou-o
pelo braço, e disse-lhe simulando seriedade:
—Quando quizeres vamos embora. São duas horas da
manhan.
—Já!—murmurou Azevedo.
—Vê lá.... se queres sonhar mais alguns
minutos....
Azevedo comprehendeu a intenção de Taveira, e
disse com uma voz que não era a sua, e com um brilho d'olhos
que nunca tivera:
—Nasce o novo homem... Sinto o
coração... Agora
sei que ha uma felicidade commum de todos os desgraçados. Se
isto não é uma sensação
passageira, hei de beijar-te as mãos, que me arrancaram do
meu abysmo.
—A beijares as mãos de alguem—disse
Taveira,
sorrindo—é melhor que beijes as mãos de
Corinna.
Antonio d'Azevedo deteve-se um pouco de tempo em recolhimento
silencioso, e disse de sobresalto:
[48]
—Isto é uma nova desgraça!
—O quê? uma desgraça beijares as
mãos
de Corinna?
—Vê tu—proseguiu elle como se
não ouvisse a
pergunta galhofeira do amigo—que engenhosa é a
minha
funesta estrella! Hontem tive um pensamento que me deu vigor novo para
crer e esperar. Projectei ir ao Brazil, e logo os horisontes do meu
futuro se rasgaram, e não sei a que luz a
esperança me mostrou dias
ditosos. Sonhei com as alegrias do meu plano, e acordei hoje com um
alvoroço estranho. A desgraça viu que
eu tive algumas horas menos negras, e duvidou da sua omnipotencia.
Trouxe-me aqui para eu sentir que o apartar-me hoje do local onde ouvi
aquella mulher me ha de ser um tormento.
—Melhor!—interrompeu Felisberto—Ella e os
teus amigos não
querem que vás ao Brazil procurar
a felicidade que deixas cá. Onde a procuramos é
que
ella não está.
—Entendes tu—disse o bacharel—que se
é feliz, amando, na
minha posição, uma senhora na
posição de Corinna de Noronha, filha do nobre
Gastão de Noronha...
—Nobre e pobre, accrescenta. Se elle fosse rico como foi,
dizia-te
que, a não quereres renunciar aos teus austeros principios
de dignidade, convinha-te esmagar o coração
debaixo da barra d'oiro que ella
valesse; mas, segundo as informações que hoje me
deram, a filha do fidalgo não tem mais do que tu. Entre
[49]
ti e ella está estabelecida a
egualdade humana, no maximo rigor da palavra.
—Ainda não—atalhou Azevedo—Eu
sou filho de um lavrador de
Barcellos.
—Vai tu perguntar aos lavradores de Barcellos se elles
dão
seus filhos ás filhas dos fidalgos que
não tem terras que lavrar.
—Essa é outra questão, meu amigo.
Não
te esqueças que eu sou um homem sem
occupação. Tão
reprehensivel seria eu disputal-a ao pae sendo ella rica e eu pobre,
como se quizesse associal-a á minha pobreza. Que faria eu
d'aquella menina se me fosse permittido casar com ella?
—O que fazem das esposas os maridos que casam pobres. Amam-as
como se
costumam amar os pobres; por amor d'ellas redobram de vigor para
luctarem com a adversidade; por amor dos filhos nunca esmorecem no
desalento em que tantas vezes se nos deparam os celibatarios, que
apenas luctaram um anno com as contrariedades. A familia é
uma
accumulação de forças no
braço do seu chefe. O pae nunca succumbe; o marido tem uma
força providencial que o ampara.
Este dialogo, o primeiro que n'este genero talvez se travou n'um baile
entre dois rapazes menores de vinte e cinco annos, foi interrompido por
Gastão de Noronha, que quiz ser apresentado a Felisberto
Taveira.
[50]
VI.
Quiz o fidalgo do Minho apalpar o coração do
filho do millionario, pessoalmente. A sua prosapia soffria-lhe que,
ageitando-se o ensejo, elle mesmo se offerecesse para sogro, e poupasse
o timido moço aos
embaraços de pedir-lhe a filha, e aos receios de ser mal
acolhido.
Ouviu Felisberto Taveira uma longa e não falsa
descripção das virtudes e prendas de Corinna da
Soledade. Aqui se dá um fragmento da paternal
exposição:
—Minha filha, posto que vivesse na melhor roda de Paris, e a
rodeassem
os mais graduados moços d'aquelle viveiro da elegancia,
nunca se captivou d'algum. Não lhe direi que ella se
isentasse por soberba do seu nascimento, bem que pudesse tel-a, porque
meu quinto avô sahiu da casa dos marquezes de Villa-Real, por
onde somos Noronhas; todavia, não era vaidade a frieza de
Corinna. Bem póde saber vossa senhoria que
[51]
o coração é de essencia
democrata, e
ao coração se deve o triumpho da democracia, em
virtude de se irem a pouco e pouco amollecendo as durezas de que as
antigas educações callejavam o
coração da mulher de linhagem. O que minha filha
tinha e tem, era um juizo prudencial á prova de todas as
velleidades e pompas, que seduzem o vulgar das meninas. Os seus gostos
foram sempre moderadissimos; riquezas nunca a deslumbraram; os bailes e
os banquetes era preciso obrigal-a a gosal-os; tudo lhe era pesado,
menos a solidão, a meditação e a
obscuridade. Cuidei sempre que
minha filha seria insensivel ao prazer de se ver amada, e mais ainda ao
de receber satisfeita a côrte de algum moço. Em
Portugal, principalmente, é que
não devia esperar vel-a possuida de sentimentos amorosos;
porque, sem desaire da nossa patria, devemos confessar que
nós, os portuguezes, temos em amor uma certa gravidade, que
toca a extrema do aborrecimento. Falta-nos um certo espirito
pétillant, um
não sei quê de que as mulheres se deixam seduzir.
Não acha?
—Sim, senhor... nós temos
isso...—respondeu Felisberto
Taveira, descobrindo um grande fundo de ridiculez através do
aspeito encanecido do fidalgo.
—Sem duvida nenhuma... Pois, meu caro senhor Taveira, penso
poder
affirmar-lhe que a minha filha está pagando o universal
tributo. Descobri que ama! Só o Porto podia fazer tal
milagre!
—É muita honra para o Porto, senhor Noronha! e
muita mais
ainda para o homem escolhido.
[52]
—Que vossa senhoria conhece perfeitamente...
—Eu?...—balbuciou Taveira, quasi convencido de que
o fidalgo alludia
a Antonio d'Azevedo.
—Sim, senhor: conhece-o como ás suas
mãos,
porque vossa senhoria e elle formam dois seres n'um só ser:
são inseparaveis.
Isto acabou de persuadir Taveira, que, na mais candida boa
fé, accrescentou:
—E creia vossa excellencia que a pessoa preferida pela
senhora D.
Corinna tem virtudes e coração
dignos d'ella.
—Creio, creio, e o meu maior prazer era vel-os unidos, em
quanto eu
tenho vida e alegria para poder felicitar-me de tão boa
união.
—Agora me convenci—acudiu Felisberto—de
que vossa excellencia ama
sinceramente sua filha, e viu com benignos olhos a
inclinação desegual que ella
manifestou.
—Inclinação desegual! Eu não
sou
parvo de fidalgas desegualdades, senhor Taveira! Soberania ha uma
só, que é a da virtude: o resto
são convenções humanas sem criterio
nem fundamento real. O que eu quero é ver minha filha feliz.
Se os meus appellidos valem alguma coisa, meus netos hão de
chamar-se Noronhas, e a todo tempo que elles queiram humilhar
arrogancias d'outros nobres, poderão sempre abrir a
historia, na certeza de que encontram o nome d'um avô em cada
pagina. Os tempos são outros, senhor Taveira, porque
são outros os corações.
Violentar a vontade
[53]
de minha filha!... Deus me
feche os olhos antes que eu tal faça! Respeito-lhe a
inclinação, que ella manifestou, porque sei que a
sua dignidade foi a primeira voz que lhe deu conselho.
—Admiro a grandeza de sua alma!—tornou Taveira com
mui sizuda e
admirativa satisfação—E mais me espanta
que
vossa excellencia, antes de acceder á vontade de sua filha,
não curasse de saber se o homem escolhido é
bastante rico a mantêl-a na decencia
com que foi criada.
—Não, senhor, não quiz saber se era
rico: o que
perguntei foi se era bem comportado, se tinha grangeado a estima
publica, se seria um bom marido e um bom pae. Unanimemente me disseram
que sim.
—E disseram-lhe a verdade, senhor Gastão de
Noronha—confirmou Taveira—A riqueza de Antonio
d'Azevedo
só bem lh'a podem avaliar os que mais perto vivem de sua
nobre alma.
—A riqueza de quem?—atalhou Gastão de
Noronha com um gesto
de irrisorio espanto.
—De Antonio d'Azevedo Barbosa—tartamudeou Taveira,
corrido do engano
em que tinha estado.
—Não nos temos entendido!... Pois vossa senhoria
cuida que
eu estou fallando d'esse tal sujeito?
—Cuidava... Pois não é elle a pessoa
distinguida
por sua filha?!... Perdão! eu entendi mal.
—Vejo que sim; e eu peço tambem perdão
de
entender mal, cuidando que era outra a pessoa... Ora esta!... Pois
não é o senhor Felisberto Taveira?
[54]
—Eu!
—Sim, o senhor!
—Não pensei tal... e creio que vossa excellencia
entendeu
mal a propensão da senhora D. Corinna, posto que a escolha
me daria muita gloria.
—Muito bem: façamos de conta que estivemos a
fantasiar—tornou Gastão simulando um desenfado
risonho, que
lá por dentro era accesso de zanga e
vergonha.—Pelo que diz
respeito ao senhor Antonio de... como é?
—Antonio d'Azevedo.
—Ah! sim, d'Azevedo... filhote de Barcellos?
—Justamente.
—Não sei quem são os Azevedos de
Barcellos...
Sejam lá quem forem, meu caro senhor Taveira... tenho a
dizer-lhe...
—Os Azevedos de Barcellos—interrompeu com louvavel
desabrimento
Felisberto—são tão nobres
como os Taveiras do Porto. Meu pae veio da lavoira de Fafe para aqui; o
pae do bacharel Antonio d'Azevedo morreu na lavoira de Barcellos.
—Sim, senhor: convenho em que tão nobres
são uns
como outros; mas a minha filha não ha de, creio eu,
illudir-me mais uma hora. Queira desculpar um engano, em que vossa
senhoria nada perdeu, e rogo-lhe que diga ao senhor Antonio d'Azevedo
que se preoccupe com aspirações mais rasoaveis,
se não
interessa em dar graves desgostos a uma familia que vive tranquilla.
Quando as ultimas linhas d'este dialogo se trocavam
[55]
entre os dois, qual d'elles mais corrido do seu
equivoco, outro dialogo terminava entre Corinna e Antonio d'Azevedo por
estas palavras d'ella:
—Eu receio que meu pae se não demore no Porto, e
Deus sabe
se nos veremos mais! Olhe: se tiver precisão de queixar-se
da sua má estrella, faça-o a mim, que sou, desde
hontem, desde sempre, desde que nasci sua amiga, e talvez sua irman por
sympathia de dores. Escreva-me: eu lhe direi de Vianna em que nome me
ha de escrever. Vá visitar-me em espirito á minha
soledade: lá me verá sósinha por entre
as
arvores, em quanto minhas irmans, quasi tão infelizes como
eu, procuram ao menos entreter-se umas com as outras em volta das suas
saudades de Paris... Eu nem isso trouxe de lá...
Não se demore, que vejo meu pae...
Felisberto chegou diante de Antonio d'Azevedo, e disse com
forçado riso:
—Estás outra vez somnambulo, Antonio? Eu estou
peor, porque
venho estupido de spasmo!
—Que é?
—Querem casar-me com a tua Corinna!
Azevedo ergueu a fronte avincada, e disse:
—Pois é costume offerecerem-se assim as filhas
n'um baile
ao homem a quem se é apresentado?!
—Não é costume: é moda
agora... O
Gastão vai sahir com a familia—ajuntou
Felisberto—Podemos
ir, e lá fóra conversaremos.
Ouviu o bacharel o dialogo em resumo; contou ao seu amigo as ultimas
palavras de Corinna; e adorou a
[56]
imagem da
primeira mulher amada nos alvores da aurora que repontava. O que elle
então disse, em arrobos de poesia, era o sublime represado
n'aquelle
coração em sua primeira primavera.
Perguntou-lhe Taveira se pensava ainda em ir ao Brazil.
—Hoje mais que nunca—respondeu elle.
—Como assim?! Aquella mulher não te prende
á
patria?
—Prende-me sobre tudo a um sacratissimo dever. Até
agora
pensava em ir ao Brazil para segurar o futuro de quatro irmans
pobremente criadas e boas de contentar com pouco; d'hora em diante hei
de ver no horisonte das minhas ambições,
além de
minhas irmans, Corinna da Soledade, educada com as regalias da sua
condição, e só digna do homem
que a não obrigar a descer de posição
aos olhos da sua sociedade.
—E quem te assevera—redarguiu
Felisberto—que voltas rico a Portugal?
De que genero de trabalho fias tu a tua prosperidade?
—De todos os generos honestos. Se não valer como
advogado,
valerei como caixeiro; se não tiver aptidão para
o negocio, ensinarei o que sei; se tiver de descer, descerei sem
vergonha; se descer tão baixo que nunca possa erguer-me
d'entre os ultimos operarios, ahi ficarei, e lá morrerei:
ninguem dirá, depois,
que transigi com a minha inutilidade.
—Quer-me parecer—retorquiu Taveira—que a
linda Corinna
está sendo ainda pouquissima coisa na
[57]
tua alma! Dar-se-ha caso que, em verdade, tu sejas refractario ao amor,
ou que a tua sensibilidade, como disseste, se consumisse em galantear
os ministros da justiça!? Qualquer homem, que não
fosse tu, forte
do amor inspirado por um anjo como Corinna, e com as tuas
habilitações, cuidava desde já em
agenciar na patria uma mediania, que a doçura da vida intima
convertesse em opulencia invejavel aos mais opulentos. Suppondo que tu
não pudesses, n'um ou dois annos, alcançar
emprego, ou clientela como advogado, é
de crer que tivesses um amigo a quem pedisses um, dois, ou mais contos
de reis para te estabeleceres aqui, em Lisboa, na tua terra, ou onde
quizesses viver. Suppondo mais que tu me tivesses na conta do teu
primeiro amigo, era a mim que tu pedias esse emprestimo, e eu com mil
vontades te servia agora, e depois, e sempre.
Antonio d'Azevedo, após algum espaço de
reflexão, respondeu:
—Meu caro amigo, se o verdadeiro amor é uma
desordem da
razão, esse não é o amor
que eu sinto. Que a minha vida está passando por nova phase,
é
certo: esta excitação d'alma, que eu
não sei
se deva chamar alegria da juventude feliz, nunca a experimentei.
Porém nenhuma das minhas faculdades, que pensam, julgam, e
antevêem os successos, se escureceu: ouso até
affirmar-te que o juizo se revigora, e a previdencia se aclara mais.
Depois d'isto, imaginemos que tu me emprestas o cabedal necessario para
eu ter uma casa,
[58]
uma esposa, e a subsistencia
certa de algum tempo. A esposa devia ser necessariamente a filha de um
homem que cahiu da sua dignidade offerecendo-t'a porque és
rico, e que se dignou recommendar-me que não perturbasse o
socego de uma familia, que vive tranquilla. Não foi isto?
—Pouco mais ou menos.
—Bem: e não entendes tu que seria uma indignidade
ir eu
perturbar o socego do pae de Corinna, casando-lhe com a filha, por meio
d'um rapto ou da
intervenção da justiça?
—Não entendo assim a dignidade. Se Corinna
consentir em ser
raptada para o mais santo dos intentos a que o
coração a pode impellir; e, se ella
rasoavelmente se não quizer sacrificar á
ambição do pae, nem a tua honra, nem a sua, nem a
da familia illustre ou não illustre, soffrem desaire.
—Discordamos—replicou
Azevedo—Gastão de Noronha quer que
sua filha case rica: entende elle que sua filha só
póde ser feliz sendo rica.
Será absurdidade uma tal opinião? Vai tu
perguntar a qualquer pessoa estranha a Corinna, se a julga feliz na
pobreza: ha de responder-te que a julga mais feliz sendo rica. Pois se
os estranhos pensam assim, que fará um pae?
—Convenho; mas sobejam exemplos de mulheres sacrificadas por
esse erro
dos paes.
—Deixal-os sobejar: ainda mesmo que todos os exemplos fossem
contra os
paes, nem por isso a vontade bem intencionada d'elles deixava de ser
respeitavel;
[59]
mas crê tu, meu
amigo, que o maior numero de casos justifica o arbitrio dos paes. Eu
tenho vivido muito arredado d'estes estudos da sociedade em que tu
deves saber muito; assim mesmo, se tu quizeres posso recordar-te de os
ter ouvido a ti e aos outros, alguns casamentos mal agourados por terem
sido contra vontade das filhas, arrancadas por força a
affeições de moços pobres para serem
adjudicadas a homens odiados com toda a sua riqueza. Pois, com o rapido
andar de alguns mezes, se não dias, as esposas violentadas
apparecem radiosas de alegria nas suas carruagens, nos seus camarotes e
nos seus salões; em quanto os mocinhos pobres e
amantissimos, ou porque emmagrecem, ou porque engordam muito, chegam a
passar por as noivas, que os poetas denominam
martyres, sem ellas os conhecerem.
Felisberto riu-se do semblante grave com que o seu amigo proferiu as
ultimas palavras.
Após breve pausa, Antonio d'Azevedo continuou:
—Estamos aqui a fallar de casamento, como se Corinna me
tivesse dito
que quer casar comigo!... O que ha entre nós é
uma
ligação das que se desligam no intervallo de dois
bailes, meu amigo. Lembra-te que eu não sou de todo hospede
n'estas materias: traduzi vinte ou mais volumes de romances, e acredito
nos romances, cujas passagens a minha razão explica. Dado,
porém, que a magîa é duradoura, e que
este amor encerra
em si um drama, que ha de fechar pelo casamento, eu só
poderei ser marido de Corinna quando o
[60]pae
me
acolher,
sem equivoco, como
te acolheu a ti ha poucas horas. É preciso que a
justiça
não interceda a favor do meu coração.
Quando eu puder dizer a
Corinna que sou bom, e ao pae de Corinna que sou rico, então
verei se este presentimento da felicidade era mais que um sonho dos que
os grandes desgraçados convertem logo em excruciante
realidade da vida. Por ora, nem bom nem rico. Para a bondade falta-me
ter esgotado as forças que ainda sinto em adquirir meios com
que sustente uma grande porção do bem-estar,
impossivel de alcançar-se sem elles. Eu não sei
que
merecimentos póde ter, no conceito d'uma mulher, o homem
pobre que, em nome da sua desvairada paixão, a convida a ser
pobre com elle, e a receber da sociedade as, talvez involuntarias,
desattenções que
necessariamente avexam o pobre, se elle não está
santificado pela
paciencia. Ora, a santificação n'estes nossos
dias, meu
amigo, nem o muito amor a póde dar aos casados pobres.
—Do teu arrazoado—disse
Felisberto—concluo, e toda a gente ha de
concluir, que amas Corinna como um inglez, estabelecido nas Antilhas,
amaria a sua noiva, que elle nunca viu, estabelecida em Londres. Dentro
de quinze dias estás mudado, ou então ha
ahi grande aleijão na tua alma! Hei de dar-te um conselho,
se não mudares.
—Então dá-m'o já, que eu
fico pela
minha constancia.
—Ordena-te, faz-te conego, bispo, patriarcha, cardeal, e
não vás ao Brazil.
[61]
VII.
Gastão de Noronha, poucos dias depois do baile da Torre da
Marca, sahiu do Porto apressadamente com a familia, por saber que
chegara a Vianna um seu parente de Lisboa, com o intento de passar a
estação da primavera na quinta das margens do
Lima.
Momentos antes da partida, Corinna da Soledade escreveu esta carta:
«Vamos partir. Lembre-se d'esta sua outra irman para lhe
contar os seus dissabores. Póde parecer-lhe que este desejo
das suas cartas é desejo de quem vai viver na
solidão da aldeia, e precisa distrahir-se seja com o que
fôr. Talvez a sua bondade me não
recusasse tal distracção, ainda mesmo tendo o meu
amigo a certeza de ser tamanho e tão de gelo o meu egoismo.
Não, não é assim. Eu, sem pejo, lhe
confessei que o estimava quanto podia, e nenhum accidente da minha vida
me fará mudar. Se vir o caminho da felicidade,
[62]
siga-o, meu irmão, e não volva
a face
lá para a minha soledade, para aquelles arvoredos onde eu
hei de esconder-me com as suas cartas.
Adeus.==«
C. da
S.»
Na carta ia incluido um bilhete com um nome de homem, a quem deviam ser
subscriptadas as cartas de Antonio d'Azevedo.
Agora sabe a sensivel leitora se Corinna da Soledade tinha
razão de estar triste mais que suas irmans, quando, idas do
tumultuoso Porto, se viram outra vez no ermo, quando as arvores mal
sacudido tinham os gelos do inverno, e começavam a abrolhar
os gomos da sua nova folhagem.
O parente, que esperava em Vianna, Gastão, era um fidalgo
sexagenario, filho de Lisboa, grande morgado no Alemtejo, e muito amigo
de divertir-se, do que dera cabal prova no decurso de sua vida
celibataria. Chamava-se D. João de Mattos e Noronha, e vinha
a ser segundo primo de Gastão, ou coisa assim parecida. O ir
elle ao Minho, na primavera d'aquelle anno, posso asseverar-lhes que
não era movido por desejo de vêr florido o jardim
de Portugal, nem se lhe a elle dava que as claras aguas do Lima
corressem para baixo ou para cima. O caso era todo medicinal. Como
sentisse as pernas fracas, e o estomago preguiçoso,
consultou varios medicos, e todos lhe disseram que fizesse exercicio, e
bebesse bons ares, especialmente os do Minho. Occorreu logo a D.
João de Mattos que tinha um parente nos suburbios de Vianna;
e, posto que
[63]nunca
se vissem nem
correspondessem, entendeu elle que, a toda a hora, um Noronha seria bem
recebido no solar do fidalgo minhoto. Outra razão vem
condizendo para explicar a escolha da provincia, e era que o velho
fidalgo de Lisboa, na ultima decada da vida, se fizera tão
economico e aváro, quanto fôra
prodigo e dissipado até aos cincoenta annos: d'onde
resultava que o seu grande prazer seria achar bom gasalhado gratuito em
casa de parentes, que se dariam por bem pagos com a honra de o terem
hospede.
Cresceu de ponto a satisfação do velho, quando se
viu alegremente acolhido nos braços de seu primo, dando a
beijar a mão ás cinco formosas meninas,
que lhe chamavam tio D. João.
A medicina teve um triumpho. O estomago de D. João activou
admiravelmente suas digestões; as
pernas pareciam recaldeadas de aço; movia-se o
remoçado velho com a flexibilidade dos seus quarenta annos.
A natureza brindou-o com as suas urnas aromaticas: eram tudo tapetes e
doceis de flores a festejal-o; as calhandras e os rouxinoes
desgarravam-se em cantilenas quando o velho passava com as sobrinhas
pelos braços; até o Lima, recobrando a primitiva
magîa de dar o esquecimento a
quem o transpunha, parecia ter matado no sexagenario saudades, e
renascido esperanças em novo começar de vida.
Esperanças! ora, esperanças aos sessenta annos,
(diz o leitor) em que, a não ser na
salvação de sua alma?
[64]
Verão o que d'alli sáe. Hão de
maravilhar-se do influxo d'aquelles ares e aguas do Minho, nas fibras
revelhas de um peito ido de Lisboa, onde as cachexias do
coração vem muito mais temporans—o que,
a meu
ver, se deve ao mau ar e á pessima agua, elementos
importantissimos do sangue.
D. João de Mattos, conversando, uma vez, a sós
com seu primo Gastão, disse ao correr do dialogo:
—Olha, primo, o celibato dá aos moços
vantagens,
que, no velho, são amargamente descontadas. Mil vezes, nos
ultimos vinte annos, me tenho arrependido de não haver
casado. Desprezei grandes fortunas, porque era rico, e formosas
mulheres, porque era um estroina de pessimos costumes: parecia-me que a
belleza é uma flor boa para se aspirar e deixal-a ainda
viçosa para que nol-a invejem e furtem; em quanto que a
obrigação de conservar em casa a flor murcha
é um pesadelo. Isto é que eu pensava com a minha
libertina philosophia dos vinte, dos trinta e dos quarenta annos.
Quando orcei pelos cincoenta, lembrou-me que, aos sessenta, precisaria
de uma familia, de uma esposa, de filhos, de carinhos e das doces
illusões da velhice. Pensei em casar-me. Procurei as
mulheres que amara aos trinta, e achei-as mães e
avós; algumas que se
conservavam solteiras estavam feias e velhas. Veja o primo o poder dos
maus habitos!—quando assim as vi, ainda cá disse
de mim
para mim: «olha se eu tenho
casado, que bonitas creaturas estas para me ajudarem a
bem-morrer!» Muito custa a purgar a peçonha dos
maus
[65]principios,
primo Gastão! Aqui
tem, pois, vossa excellencia que por um triz não cedi
á
tentação de casar com uma menina de vinte e cinco
annos, filha segunda da casa da Trofa em Evora, a qual os paes me davam
com a melhor vontade, e ella tambem não mostrava sombra de
constrangimento; mas um dia, não sei como, vou a casa d'um
tenente de cavallaria, ainda nosso parente, e vejo-lhe sobre uma mesa
um ramo de flores velhas atadas com uma fita de setim verde que eu
mandara á minha futura, atando outro ramilhete, em dia dos
seus annos. Pensei no que vi sem dizer nada. Faz lá ideia do
castigo dos meus erros começados n'aquella hora de ciume!
Ninguem imagina a dor de um velho
ludibriado, se elle
ainda conserva coração com bastante
memoria para lembrar relances reprehensiveis de sua mocidade!... Fui
para Lisboa sem me despedir da noiva, e de lá escrevi ao
pae, dizendo-lhe que seria grande acerto casar sua filha com o tenente
de cavallaria. Como de facto acertaram casando, e lá
estão felizes
com muitos filhos. O que eu nunca pude acabar de entender é
como podia aquella menina acceitar-me, e com que vistas o faria?
Dispunha-se a ser feliz comigo, e vai depois ser feliz com o outro!
Entendam lá as mulheres d'agora tão differentes
das do meu tempo! De maneira, meu caro primo, que a minha decrepitude
será triste a mais não poder. Á hora
da morte hei de
ver-me rodeado dos successores do morgadio, sobrinhos que
aborreço, porque os vejo sempre a contarem-me as rugas novas
da cara, e sei que tem o lisongeiro cuidado
[66]
de
perguntarem por mim, todos os dias, aos medicos. Tenho accumulado os
rendimentos por não saber em que dispendel-os; e tudo isto
ha de ir dar áquellas mãos ávidas de
meus sobrinhos, e depois elles
é que hão de saber gosar o que eu já
não
posso.... Triste, tristissima coisa, primo Gastão!
—Isso é assim, primo D.
João....—murmurou com
doloroso tregeito de beiços e olhos o pae das cinco meninas
solteiras; e proseguiu—O primo, ainda assim, por causa de uma
é injusto com as outras mulheres. As de hoje são
como as de todos os tempos: ha bom e mau. Ora assim como D.
João deu com uma das más, podia ter encontrado
uma das muitas que ha boas, e estar a esta hora muito satisfeito, e ter
já um herdeiro dos seus vinculos.
—Palavra de cavalheiro!—exclamou com
alvoroço D.
João—quando penso que podia ter um herdeiro dos
meus
vinculos, e arrancar a minha casa das garras famintas de meus
sobrinhos, morro de
desesperação por me não ter casado!
Que contentamento seria o meu, ó primo! um filho! um
herdeiro!
—Pois ainda está em tempo—atalhou
Gastão—case-se; não hão de
faltar-lhe
noivas, sem sahir da sua qualidade. Ha de achal-as mesmo na sua
parentella, dignas, formosas, capazes de lhe honrarem a velhice, e
encherem de alegria e mocidade os seus ultimos annos.
D. João fitou os olhos descorados e franzidos no rosto do
primo, estendeu-lhe a mão cortada de cordoveias, e
tartamudeou:
[67]
—Se eu tivesse vinte annos menos, pedia-lhe uma de minhas
sobrinhas,
primo Gastão.
—Escolha, primo—disse o pae de Corinna
apertando-lhe affectuosamente
a mão.
—Não escolho nem peço
nenhuma—tornou o
velho—Veja se me tira vinte annos das costas, e depois
pedirei a nossa
Corinna, que é um anjinho, mas
não para mim, que posso ser avô d'ella. Nada,
primo, nada: para desgraçado basto eu.
—Façamos um contracto. Eu tracto de sondar a
vontade de
minhas filhas, e especialmente de Corinna. Se esta, ou alguma das
outras se mostrar bem disposta a ser sua esposa, o primo D.
João não se nega.
—Palavra de D. João de Mattos e Noronha, que
não
me nego; pelo contrario, morrerei de felicidade, porque,
além da esposa e da sobrinha, levo comigo a mulher, cujos
costumes tenho apreciado em mez e meio de convivencia a todas as horas.
Fechou-se o dialogo com poucas mais palavras de reciproca
satisfação dos dois fidalgos. Em quanto
elles praticavam, lia Corinna da Soledade a decima carta de Antonio
d'Azevedo, que dizia assim:
«Esta é a ultima carta que lhe escrevo em
Portugal, minha amiga. O navio parte depois de ámanhan de
tarde. Agora vou a Barcellos abraçar minhas irmans, e
despedir-me das memorias da minha infancia. Sinto um prazer amargo em
me ir approximando do seu ermo. Cinco leguas apenas nos hão
de separar quando ler esta carta. Dê-me uma lagrima
[68]
como retribuição da
angustia com que eu hei de
lançar a derradeira vista ao ceo que cobre os seus
arvoredos. Quando eu era criança, ia tantas vezes d'um alto,
onde ha ruinas d'um castello, olhar para esses sitios! Que
visão seria aquella da minha alma,
então magoada como se presentisse a saudade de hoje!
«Mande-me ter coragem, minha querida amiga: diga-me antes,
como tantas vezes me tem dito, que a dignidade excessiva me tem dado ao
coração liga
de bronze. Ai! quanto se engana, Corinna! quanto se enganam os mesmos
amigos de quem não escondo um pensamento!
«Levo alegres esperanças. Os bons Taveiras tem-me
dado cartas de summo valor de pessoas muito importantes d'aqui para
outras do Rio de Janeiro. A mim não me ha de custar a
merecer a bem-querença de todos: levo comigo a
segurança no firme proposito que fiz de não sahir
do caminho dos meus deveres. O que fui comsigo, minha amiga, hei de
sêl-o em todas as situações da minha
vida. Se esta
estrada me não guiar á felicidade sem remorsos,
é que não ha nenhuma.
«Vou no intento de advogar. Em poucos annos, com o auxilio de
amigos e fervor de trabalho, posso ganhar a mediania que basta aos
nossos moderados desejos. Poucos annos, Corinna, que rapidos
hão de ir como vão os annos dos felizes.
Verá que a
esperança lhe aligeira o tempo, e as minhas cartas lhe
hão de acudir nas más horas da
desanimação. Temos
[69]Deus
por nós.
Deus,
minha Corinna! Escrevo-lhe estas quatro lettras com quanta
uncção
póde dar a fé ardente d'um homem sem culpa. O
premio que Deus me dá é a consciencia de poder
assim fallar
de mim; e chego a crer que este dom me basta para valer muito em seu
conceito. Se me não sentisse puro de vergonhas e remorsos,
Corinna, julgar-me-ia indigno de si.
«Eu quizera poder dizer a todo o mundo, e a todos os
desventurosos escravos de suas paixões, que nenhum amor, por
mais desmedido que seja, carece de provar que o é com
destinos e excessos censuraveis. É a primeira vez que amo,
Corinna, e amo-a muito: pois, por sua vida lhe juro, que ainda leve
sombra de intenção culposa me não
nubelou a limpida esperança de a ver minha esposa. Estou
chorando e estas lagrimas não sei se qualquer amante as
verte. Sei que muitos as fariam chorar de sangue a outrem, para se
esquivarem ao trance que me está fundamente doendo no
coração. E eu, por mim,
antes quero padecer agora, porque sei que hei de ser consolado. Os dias
prosperos não vem do acaso:
são grangeados, como as searas, a muita fadiga e com muitos
intervallos de desalento: a final a colheita de fructos e de
bençãos; o
coração ainda novo para saborear os fructos, e o
espirito cheio de santa vaidade por ter merecido as
bençãos.
«Espere-me, minha doce amiga; seja o meu anjo
[70]
animador; mostre-me de cá sempre a patria
á luz
da sua alma allumiada de graça divina.
«Escreva-me, e mande as suas cartas ao nosso bom amigo
Taveira; as minhas, por mediação d'elle,
todas receberá, e muito longas, para lhe encurtar as horas,
e dar alguma alegria ás minhas noites.
«Corinna, minha querida esposa, não posso
continuar. Sejamos dignos um do outro. Offereço a Deus as
lagrimas que hei de chorar, pedindo-lhe que enxugue as suas com as
consolações da
esperança. Tenha muito animo. A religião ha de
dar-lhe o que o meu amor não puder. Estarei sempre com a sua
alma, e Deus será sempre entre nós, porque muito
do intimo creio que entre dois infelizes sem culpa está
sempre um bom anjo. Adeus.»
[71]
VIII.
O jubilo de Gastão de Noronha, causado pela proposta de D.
João de Mattos, foi, n'aquelle mesmo dia, aguado por
extraordinaria e imprevista angustia.
Os vinculos que administrava o descendente dos marquezes de Villa Real,
trouxera-os sua mulher, D. Mafalda de Athaide, natural de Ponte do
Lima, havidos de um tio, que morrera sem descendencia directa.
Em quanto Gastão estivera no estrangeiro appareceu um filho
natural do antecessor dos vinculos administrados por D. Mafalda,
allegando o seu direito á
successão dos bens de Fernão d'Athaide. O fidalgo
não deu pezo ás consideraveis provas de
habilitação do contendor. De mais a mais, como o
seu nome de liberal valesse muito a favor do pretendente, o pleito
decidiu-se contra Gastão em primeira instancia. Seguiu o
processo os termos de appellação para as
superiores instancias. Gastão tinha parentes nos altos
cargos da
[72]
judicatura, liberaes
rebuçados, que protegeram o
réo ausente, contra o favorecido author. O pleito ficou
alguns annos trancado no desembargo do paço, até
que o emigrado voltou. Os primeiros annos, que seguiram a
restauração, foram tumultuosos e favoraveis em
todo o sentido para os que, mais ou menos prestantes, se diziam
restauradores. Como em tudo assim era desleixado e imprevisto, o
fidalgo não curou de rematar o litigio, destruindo as provas
do filho natural, nem mesmo quiz averiguar a sua plausibilidade, ou
fazer que o processo se perdesse.
Em 1840 requereu novamente o filho natural, documentando o seu
arrasoado com uma carta de perfilhação concedida
por D. João VI no Rio de Janeiro, para onde
Fernão de Athaide, pae do habilitando,
fôra com o rei em 1807. Ajuntava este aos autos reconstruidos
cartas escriptas por seu pae, tanto a elle, como a sua mãe,
portugueza de origem, que fallecera no Rio de Janeiro, casada e dotada
pelo fidalgo de Ponte do Lima. Accrescia a isto o depoimento de doze
testemunhas de ouvirem dizer ao moribundo Athaide que tinha no imperio
do Brazil um filho natural, chamado Fernando de Athaide, ao qual
testava todos os seus bens livres e vinculados.
Este legado, com quanto em principio devesse tornar duvidosa a
successão de D. Mafalda aos vinculos de seu tio, foi pouco
no conceito dos principaes lettrados, quando Gastão de
Noronha os consultou: diziam que os bens vinculados não
podiam ir ao filho natural, nem
[73]a
declaração do velho á ultima hora da
vida podia esbulhar da successão a legitima descendencia.
Em 1829 viera Fernando de Athaide a Portugal a tomar conta da
herança: achou sua prima empossada n'ella, e a favor d'elle
os jurisconsultos que tinham dado por boa e legitima a
espoliação.
Em 1832, enfadado das delongas da decisão e do patronato que
sua prima tinha em Lisboa, voltou para o Brazil onde tinha o seu
florente commercio de café, herdado de sua mãe,
que morrera abastada, e universal herdeira de seu marido.
Voltara novamente Fernando á patria de seu pae, depois de
visitar as capitaes da Europa, e mais por brio do seu appellido, que
por necessidade de duas duzias de contos de reis, instaurou segunda vez
o pleito, confiou-o a habeis advogados e procuradores, e seguiu viagem
para o Rio de Janeiro.
Esta noticia, com os accessorios funestos de um presumivel perdimento
da causa, foi surprender Gastão de Noronha, quando elle
cogitava no melhor modo de fallar a Corinna em casamento com o tio D.
João. Sahiu o fidalgo para Vianna a ouvir o parecer de
advogados, que lhe foram desfavoraveis. Voltou a casa mais firme na
resolução de segurar a futura
subsistencia da familia, casando uma das filhas com o provecto primo,
cuja abastança daria para viverem todos largamente.
Chamou Corinna a mui secreta prática, e contou-lhe em miudos
a historia do filho natural, as probabilidades
[74]
da perda da demanda, a irremediavel pobreza da familia e a
precisão de ella se sacrificar á
decencia de seus paes e suas irmans, casando com o tio D.
João, por ser das cinco a menina que elle preferia, posto
que se não despedisse de casar com uma das outras.
—E nenhuma de minhas manas quer casar com o tio D.
João?—perguntou Corinna.
—Ainda as não consultei; eu é que
desejo que
sejas tu.
—As boas intenções de meu pae
são
providenciar ao futuro de nossa familia por meio d'este casamento?
—Sim, minha filha.
—Eu com lagrimas lhe digo que não posso servir a
esse bom
intento.
—Porque?—atalhou o pae entre pasmado e colerico.
—Porque morro, porque hei de morrer antes de ser mulher do
tio D.
João. Não me recuso, meu
pae: faça vossa excellencia o que quizer.
—Ora!—tornou o pae modificado em sua
ira—Não morres,
não, filha. Isso é o que te parece agora;
tu verás que todos te ajudaremos a levar a cruz. E, depois,
cuidas que teu tio ha de viver muito? Está alli e
está na cova. As escripturas hão de ser
feitas de modo que, ainda mesmo que tu fiques viuva sem filhos, has de
ficar riquissima.
—O pae não quer acreditar-me...—atalhou,
soluçante, Corinna.
—Acreditar o quê?
[75]
—Que me mato, se Deus me não levar para si.
—Sei o que é isso...—tornou
Gastão escarlate de
ira—É o homemzinho de Barcellos que te ha de fazer
perder
de todo a minha estima. Não tem duvida: tu te
arrependerás!... Cuidas que, por ser a mais velha, tens os
vinculos? Já te disse que não tens nada. Quando
quizeres um vestido, e não haja em casa um objecto que se
venda para t'o comprar, veremos como te vestes com o amor do valdevinos
de Barcellos.
Disse, e sahiu enfurecido.
A irman de Corinna, sua immediata em idade e formosura, era Emma. Esta
menina parecia a mais meiga, docil e resignada. Devia estas virtudes
á brandura de sua indole fleugmatica e um tanto fria. O seu
prazer era a quietação, que parecia uma
invencivel preguiça. Bem que estranhasse tanto como as
outras a mudança de Paris para a quinta do Lima, foi a
primeira a conformar-se, e achar certa suavidade no socego e silencio,
que affligia as irmans. Era esta tambem a que dava mais trela ao
palavriado do tio D. João, e por vezes se ria a bom rir das
baforadas de juventude que ainda, a tempos, sahiam mornas lá
das cinzas do coração do velhusco. Como amiga de
estar em casa,
sentada ao piano, ou amezendrada n'um tapete, D. João tinha
sempre certa a palestra com aquella pachorrenta sobrinha.
Gastão foi ter com Emma, e encontrou-a aparando as unhas a
D. João, e a rir-se muito das caretas, que o velho fazia,
receando que a tesoura lhe entrasse pelo
[76]
sabugo.
Gastão tomou como de bom agoiro a scena intima das unhas.
Compoz o semblante de risos, avisinhou-se do grupo, e achou tambem
graça aos chistes da filha e aos esgares do primo.
—Ahi está o nosso D.
João—disse elle—gosando
um dos milhares de prazeres da vida domestica. Quando era
moço, e requestava damas, sentiu alguns d'esses innocentes
jubilos, primo D. João?
—Já estive a pensar n'isso, primo
Gastão; mas o
diacho da Emma não me deixa pensar em nada se não
em guardar os dedos da implacavel tesoura d'esta linda parca... Olhe
que já me quiz cortar a ponta do nariz, a traquina, que
só não tem preguiça
para cortar narizes... e corações.
Accrescentou D. João ao galanteio um regougo de riso, com o
que a menina desatou uma gargalhada tão pachorrenta, que
acudiram as irmans, salvo Corinna, a rir sem saber de quê. D.
João cuidou que ella se
desmanchava assim, á conta da ultima e novissima careta que
elle fizera.
Logo que o ensejo se proporcionou, Gastão de Noronha
perguntou ao primo se Emma seria uma digna esposa d'elle. O velho
acudiu logo, dizendo:
—Estava eu para lhe dizer, primo, que, a não ser
Corinna,
de boa vontade casaria com Emma. Acho-a mais dada que as outras; mais
socegada e amiga da casa. A creatura passa horas e horas sentada no
tapete, em quanto as outras me estão sempre a convidar a
passeios, e querem que eu salte portellos e vallados como
[77]
ellas, senão fazem-me apupadas as doidinhas!
Corinna agradou-me pelo seu juizo; mas, a dizer-lhe a verdade, acho-a
triste de mais; e esposa triste não serve para velho, que
bem lhe basta a rabugice e pezo dos annos. Em fim, primo, se Emma me
quizer, aqui estou.
Poucas horas depois, Gastão encerrado com Emma,
perguntava-lhe se ella quereria segurar uma enorme fortuna, casando com
seu tio D. João.
—O papá está a mangar
comigo!—disse ella rindo.
Com poucas palavras a convenceu da seriedade da proposta. Emma ouviu
tudo com desusada seriedade. Viu no rosto do pae signaes não
fingidos de atribulado, fallando da imminente ruina de seus haveres, e
da
recusação de Corinna. O tom com que elle pedia a
Emma o sacrificio era já supplicante. A menina respondeu
primeiro com lagrimas e depois com a promessa de satisfazer os desejos
de seu pae.
Nunca pae algum beijou sua filha com tamanho transporte de ternura!
Foi logo avisado D. João da resposta de Emma. O velho
desenvolveu de repente um pudor senil de muita graça!
Estava, como noiva que se peja de apparecer ao noivo, na sala onde o
papá a manda chamar, a fim de, em presença de
ambos, confirmar vocalmente os anhelos de todos tres. Esquivava-se D.
João de encontrar a sobrinha; e, quando lhe ouvia a voz,
córava! Era a segunda infancia a fazer milagres de
remoçar
corações mumificados!
Desde este incidente, Corinna da Soledade nunca
[78]
mais viu um sorriso, nem ouviu palavra carinhosa de seu pae. As
caricias, repetidas até ao extremo da ridiculez,
eram todas para Emma, a quem elle chamava a salvadora da familia.
Pensava já Gastão no
processo de defraudar a filha mais velha dos vinculos, como esquecido
da demanda em que os vinculos estavam tão arriscados, que
nem o seu proprio advogado lhe dava esperanças de
vencimento.
Cuidaram desde logo os fidalgos em requerer dispensa, que o Nuncio
apostolico residente em Lisboa concedeu.
Em seguida usou o pae da noiva de ardilosos rodeios para levar o futuro
genro a dotar a filha com os bens livres, que valiam muito, e grandes
arrhas. D. João de Mattos, ao principio irresoluto, porque o
animo sovina lhe inspirava duvidas, deu-se a final por vencido, e dotou
a noiva com avultado cabedal em dinheiro depositado em bancos de
Inglaterra, e estabeleceu-lhe arrhas mais que sobejas para uma viuva se
não lembrar mais dos sessenta annos do seu defuncto marido,
ao ver-se sósinha n'este valle de lagrimas.
Estava resolvido que as nupcias seriam celebradas em Lisboa, para onde
iria toda a familia, excepto Corinna, que pedira licença ao
pae, e facilmente a obtivera, de ficar n'um mosteiro de Vianna, em
companhia de uma prima de sua mãe.
A noiva encarava o futuro com a salutar pachorra de sua
compleição, e continuava a aparar as unhas
do noivo e a rir-se das muito engenhosas visagens com
[79]
que o bom do velho julgava bem merecer da
estimação da menina. As outras tres meninas, a
cuidarem nos arranjos da partida para Lisboa, andavam
alvoroçadas e felicissimas. Corinna esperava a vespera da
partida, com não menos alvoroço, para entrar no
mosteiro
de Santa Anna.
Sorriam-lhe lá da sua cella as tristezas e a soledade em que
o desafogado coração se gosaria livre,
livre para ir-se além-mar, nas longas cartas, escriptas sem
medo de ser surprendida, pedir ao digno moço que lhe
acceitasse a reclusão, tão voluntaria, como prova
de seu
esperançado amor.
Estava marcado o dia da partida, tomadas as liteiras, as cavalgaduras,
e convidado o prestito dos parentes, que desceriam do alto-Minho para
acompanharem os noivos até ao Porto. Quatro dias antes do
designado, D. João de Mattos e Noronha, assignadas as
escripturas, foi para a mesa, que n'esse dia era lauta e muito
concorrida.
Um dos pratos mais de cobiça, e ingratos a estomagos
fatigados, era o salmão, o salmão de Vianna,
famoso em toda a parte onde a gastronomia tem sacerdotes e martyres.
Entrou o noivo pelo salmão com a voracidade dos vinte e
cinco annos, não obstante o cauteloso primo lhe haver dito
que se abstivesse de competir com a sua Emma em materia tão
indigesta. Parece que Emma gostava muito do appetitoso pescado, e
devemos suppor que o velho, por comprazer com o paladar da noiva,
[80]
quiz fazer heroismos de
deglutição.
Perdoavel excesso para quem sabe o que é amar!
Declarou-se a indigestão, quando ainda se estava
á sobremesa. D. João pediu genebra, bebeu em
proporção com o volume do bolo indigesto, e,
dando-se alta na incipiente molestia, comeu ovos mexidos em grande
porção, e correspondeu a todos os brindes
com absorvente enthusiasmo.
Estavam todos admirados do vigor digestivo do sexagenario, e do rubor
juvenil que lhe ressumava nas faces, quando o velho se sentiu anciado,
e pediu um vomitorio prompto. Cada pessoa de familia lhe ministrava um
remedio, e Gastão, mais que todos, mostrava sua
inquietação, mandando chamar medico a Vianna.
Foram logo sensiveis os symptomas de apoplexia. D. João
tinha os olhos injectados de sangue, e a
cabeça em brazas vivas. Votaram todos pela sangria; mas
não havia sangrador, nem sequer lanceta. O abbade da
freguezia estava presente, e, como bom pastor, foi de parecer que seria
muito util ministrar os sacramentos ao enfermo, visto que as apoplexias
eram summarias n'aquellas idades e por taes causas.
Redobraram os sustos de Gastão de Noronha. A morte,
anticipando-se quinze dias, dava um golpe terrivel em toda aquella
familia. O menos damnificado seria de certo o morto. Quem mais soffria
as angustias do moribundo era Gastão! Perguntou elle ao
abbade se seria acertado dizer a D. João que recebesse as
bençãos nupciaes.
[81]
O clerigo encarregou-se de lh'o propor. O enfermo, já quasi
desaccordado, ouviu a pergunta e estorceu-se em desesperada
afflicção. Foi então
que elle viu a morte na pessoa do inoffensivo abbade. Á
segunda instancia, D. João fez um esgar repellente, e
sacudiu vertiginosamente os braços e as pernas.
Gastão disse a Emma que se approximasse do leito, e lhe
dissesse algumas palavras confortadoras. Emma foi com semblante de
medo. As feições do velho, já
lassas e lividas, para assim o dizermos, cheiravam a cadaver. A pallida
menina foi tremendo.
—Dá-lhe a mão—disse-lhe o pae
ao ouvido.
Tocou ella na mão tepida e insensivel do agonisante com
repugnancia.
O abbade, instado por Gastão, disse:
—Senhor D. João de Mattos, vossa excellencia
recebe como
sua legitima esposa a senhora D....
O velho deu um sacão, e esgazeou os olhos espavoridos.
Emma retrahiu-se aterrada, e o abbade sahiu a ir buscar os santos
oleos.
—Vai-se embora, abbade?!—perguntou o fidalgo
furioso de sua
afflicção.
—Não ha que fazer aqui, senão
cuidar-lhe da
alma—disse o padre—O homem já
não dá
accordo de
si: o casamento n'este estado ficaria canonicamente nullo, fidalgo!
Sahiu o abbade da egreja com o viatico, e recolheu logo, por lhe
dizerem que D. João tinha expirado.
[82]
IX.
UMA CARTA DE CORINNA DA SOLEDADE A ANTONIO D'AZEVEDO BARBOSA.
«Na minha segunda carta lhe contei o que se passou
até á morte do tio D. João. Agora
é que eu bem comprehendo o desespero em que vive meu pobre
pae. Quando elle me disse que iamos empobrecer, cuidei que se inventava
um engano para eu consentir em ser a victima voluntaria da pobreza da
nossa familia. Soube que a Emma fôra instada com as mesmas
razões da pobreza: não a dissuadi; mas, em minha
consciencia, julguei que era sacrificada ás
ambições de continuar-se em Lisboa o fausto que
tiveramos em Paris.
«É verdade o que meu pae me dizia. Os bens do
vinculo, unicos que possuimos, estão em risco de se
perderem. Imagine o meu querido amigo como será a nossa
vida, ouvindo a cada hora o pae lastimar-se, enfurecer-se e
lançar-nos injustamente em rosto que
[83]
fomos nós a causa da sua ruina, porque dissipara os bens
livres para nos dar em Paris uma vida brilhante com esmerada
educação! Minha mãe, que
não tem culpa de ter sido herdeira do dote que lhe tiram,
faz-me muita compaixão, quando o pae lhe diz que foi
atrozmente enganado para casar com ella.
«Que será de nós, passados alguns
mezes? Para onde iremos quando nos expulsarem d'esta casa? Minha
mãe já pediu a parentas, que tem em differentes
conventos, que nos recebam. Eu creio que irei para Vianna e mais a mana
Felismina; outra irá para
Vairão; e as outras duas para S. Bento do Porto. O pae diz
que vai a Lisboa requerer um emprego, com que possa sustentar-se a si e
á mãe. De maneira que
estamos em vesperas de nos dispersarmos para nunca mais nos reunirmos!
E eu, entre todas as minhas irmans, sou a menos infeliz, porque ha
muito suspiro pela solidão do claustro, e sei que
lá terei
comigo a imagem compassiva do meu querido irmão;
porém, eu queria ir para o convento, deixando a minha
familia contente e feliz, e não assim a braços
com a dependencia, e Deus sabe com quantas desventuras peores que a
dependencia!
«Aqui me tem, pois, bem digna do seu amor por minha pobreza.
Já me lembrou se Deus me deu esta virtude para merecer aos
seus olhos, meu amigo. Tenho momentos em que o futuro se me allumia;
sou eu a unica pessoa da minha familia que vê a felicidade
através d'esta escuridade. Todos se lastimam,
[84]
e eu só me lastimo de os ver tão
desanimados.
Falta-lhes o amparo do amor, e talvez da fé na providencia
divina. Eu rezo muito, e desafógo em consoladoras lagrimas;
minhas irmans e meus paes abafam sem linitivo. Ás vezes
quero consolar meu pae: o infeliz repelle-me, como se eu
désse causa a seus desgostos, e não fosse capaz,
para o salvar da queda, de me deixar esmagar no
coração e na vida!
«Não estranhe que eu lhe diga tudo o que o
coração me fôr dictando. Agora que eu
estou assim pobre, e d'aqui a pouco obscura e esquecida n'um convento,
haveria alguem que me quizesse para esposa? Poderia alguem invejar a
sorte do homem que me acceitasse? Pois, é n'esta
situação
que eu mais confio do seu amor; é assim que eu me affoito a
pedir-lhe que venha, que renuncie ao desejo de ser rico, e que... A
riqueza para que a procurava? não era para poder ostentar o
seu valimento aos olhos de meu pae? Era de certo; que, se fosse para
valer em meu conceito, grande injustiça me fazia, meu caro
amigo. Pois então faça de conta que
estão
cahidas as barreiras que só o ouro poderia arrazar. Ninguem
me impedirá que eu seja sua mulher. Sejamos ambos pobres:
não teremos que medir a desegualdade das nossas
posições. A nossa fortuna
principiará com a primeira moeda de cobre que empregarmos no
primeiro pão. Depois eu lhe darei horas de alegria com a
minha ditosa conformidade a tudo que os descontentes chamam infortunio.
[85]
«Não cuide que a vida de convento me assusta, e
que eu procuro aligeirar o tempo do supplicio. Não, meu
amigo. O convento é o unico estado que me quadra, e a mais
proxima ventura que se offerece á minha sêde de
solidão. Se voltar cedo,
lá me encontrará; se, passados muitos annos
tornar para Portugal, no convento me encontrará ou
desfigurada pela velhice, ou confundida nas cinzas das bemaventuradas,
que alli acabaram contentes e amantes de mais seguras
esperanças que as minhas.
«Póde ser que o meu irmão, n'essa outra
sociedade, com outras relações, e com a
mudança
que fazem os annos, contra vontade mesmo de quem se transfigura, sinta
diminuir-se a boa impressão que de mim levou. Não
creio que me esqueça; mas
póde ser que a distancia me vá descolorindo aos
olhos da sua alma. Se tal acontecer, nem assim deixarei de esperar que
em algum momento, entre as fugazes venturas d'este mundo, o seu
espirito vá ver-me, no meu asylo, esperando-o ainda, e
esperando sempre.
«Mas o meu coração lhe pede que
não me esqueça, e que acceite as alegrias que
elle lhe promette. Adeus, meu amigo, meu consolador. Sua
C. da
Soledade.»
[86]
A PRIMEIRA CARTA DE ANTONIO D'AZEVEDO A CORINNA, ESCRIPTA NO
BRAZIL.
«21 de junho de
1843, onze horas da
manhan.
«Aqui estou, minha querida Corinna. Cheguei ha meia hora. A
minha tristeza tem uma negrura inexplicavel. Abafa-me mortalmente este
ar. Estou como o desterrado que atiraram a uma praia onde
não houvessem olhos humanos que me vissem chorar.
Ó meu Deus, que atroz supplicio é a saudade! Que
desolação em roda de mim, que terror me incute
tudo isto que me vê com uma indifferença dolorosa
como o escarneo! Sahirei eu d'esta febre que me está
arrancando pedaços de vida a cada momento! Ó
Corinna, eu não a vejo mais! Aqui é que sossobram
as mais robustas almas... Eu não previra isto...
É
impossivel que haja piedade n'esta gente! A quem escrevo eu, meu Deus!
Está a milhares de leguas distante, ó minha
amiga! E esta carta só, passados quinze dias,
sahirá d'aqui!
«Quatro horas da
tarde.
«Sahi no afôgo de uma
afflicção sem nome. Levei
[87]
a minha carteira, e entreguei uma carta do Taveira a um negociante,
que, apenas leu a carta, me disse que eu seria hospede na sua chacara,
para onde vou ámanhan. Acolheu-me com muito bom rosto, e,
apertando-me a mão, disse: «O senhor vem muito
recommendado: ha de ter muitos amigos, e eu o mais dedicado de
todos.»
«Fizeram-me grande bem estas palavras. A maior
oppressão vai desapparecendo. Já a vejo a outra
luz, minha Corinna. Já a torno a ver ao meu lado com a
missão de anjo do alento e da paciencia. Os desamparados
são unicamente aquelles que não tem nenhum amor
puro na terra, nem confiança na graça divina. Ha
de tudo em minha alma, bemdito seja Deus! Eis-me outra vez forte para a
lucta, e envergonhado da minha fraqueza. Não rasgo a
primeira pagina d'esta carta porque a minha alma ha de mostrar-se-lhe
sempre nas suas intercadencias de força e
desanimação. Assim lh'o prometti, e tenho
necessidade de cumprir. Toda a gente ha de ignorar os meus
desfallecimentos, menos a minha Corinna para me dizer:
«Levanta-te, fraco, se queres ser digno de mim!»
Vou sahir para entregar outras cartas, antes da minha ida para o campo.
«Nove horas da noite.
«Todos os portuguezes me recebem nos braços.
Suppunha eu que os negociantes me acolheriam com
[88]
a frieza da sua distancia d'um homem de tão diversa
profissão. O que ahi se diz d'esta boa gente é
uma calumnia. Os opulentos commerciantes a quem me apresentei parece
que me estavam vendo nos olhos espelhadas as saudades da patria; e
elles, tambem saudosos, sympathisavam mais com a minha dor, e queriam
ouvir-me fallar das menores coisas de Portugal. Aqui é que
se sabe o que é esse torrão
de flores e alegrias. Em parte nenhuma a palavra
«patria» tem tão doce, tão
querida e
esperançosa significação. Muitos ahi
dizem que tem vergonha de serem portuguezes; aqui sente-se orgulho de
ter lá nascido, e encontrar tão longe
irmãos assim
saudosos da mãe commum. Abençoados sejam estes
homens que tem olhado compadecidos para mim! Devo-lhes esta serenidade
com que lhe vou escrevendo... Mas o cansaço prostra-me,
minha amiga. Até ámanhan.
«22 de junho, oito
horas da
manhan.
«O meu despertar foi afflictivo. Com os sonhos renasceram as
saudades, e o descorçoamento. Assaltou-me a pusillanime
ideia de voltar já para Portugal. Seduzia-me o receio de
adoecer n'este clima, o terror das febres, a difficuldade de ser rico,
onde nem todos são ricos, ainda os mais laboriosos.
Adormecera pensando no caminho que devia encetar: todos se me
afiguravam difficeis e escabrosos. Que fraqueza!
[89]
que inconstancia miseravel a do homem mais fervoroso no trabalho!
Eu tinha perguntado ao dono do hotel se os advogados enriqueciam
depressa; e elle, enumerando todas as profissões que
enriqueciam, não mencionou a minha. Instei encarecendo as
vantagens que se offerecem a um bom e honrado advogado: ouviu-m'as
encolhendo os hombros, e disse que os caminhos direitos eram os mais
tortos para quem procurava enriquecer-se. Isto desconsolou-me,
amargurou-me os sonhos, e deu-me a hora má que precedeu
estas linhas. Deixar fallar o descrente da honra. Se é
forçoso, renunciarei á
riqueza; contento-me que as muitas fadigas e vigilias me dêem
honesta independencia, e o respeito de mim proprio.
«Cinco horas da
tarde.
«Espera-me o amigo de quem vou ser hospede. Brevemente
voltarei a dar começo á minha tarefa.
Já me estão pezando as horas que vou passar de
ocio sem prazer: parece-me que são horas que roubo
á sua felicidade e á minha. A vontade energica
é
uma esperança meio realisada. Ha aqui n'este ar, n'este ceo,
n'esta incessante labutação, um rumor
mysterioso que eu escuto como o cantico victorioso dos que luctaram e
venceram. Porque não hei de eu, a final, vencer tambem com
esta ancia e força d'alma, com este amor e saudade, com esta
voz prophetica promettedora de honrosos triumphos?...
[90]
«23 de junho, nove
horas da
manhan.
«A casa em que vivo, minha amiga, faz-me lembrar uma
finissima e polida concha entre fofos de verdura e caules de gentis
florinhas! As palmas, as tamarindeiras, os coqueiros, e muita especie
de arvores do paraizo com sua explendida e agigantada folhagem,
absorvem os raios abrazadores d'este sol, e elaboram-no em si,
expedindo-o em frescura, que faz lembrar a da nossa terra, as auras das
margens dos nossos rios, os salgueiraes do seu Lima, e os choupaes do
meu Cávado! Mas que falta aqui da alegria dos nossos
arvoredos, minha Corinna? Não sei: parecem-me tristes estas
arvores; não me viram na infancia; não me
conhecem; não me fallam. Que bello deve
ser este diamante do mundo para os que nasceram aqui! Que abrasadas
fantasias serão as dos poetas aquecidos a este vapor
aromatisado por tantas urnas de florescencia peregrina! Que ar de
primitiva magnificencia da creação tem isto tudo?
Afigura-se-me que, á sahida do eden, este pedaço
de mundo se
desdobrou, com as entranhas arquejantes de riqueza, concitando o homem
condemnado a trabalhar, a tressuar e a limpar mil vezes o rosto,
calcinado sob os ardores do sol, á sombra d'estas arvores,
que significam a misericordia divina ao lado da justiça
inexoravel. É um como fantastico explendor que me
está arrobando os sentidos; mas a minha alma está
triste
[91]
porque esta verdura macilenta
não é a da minha
patria; estas folhas hirtas, apontadas ao ceo como flexas, ou largas,
immoveis e enormes, não me dão o murmurio
tremente das nossas selvas. Não oiço o rumorejo
dos regatos, nem o gemer dos carros, nem a cadencia melancolica dos
pegureiros das nossas serras. Ai! a patria, Corinna! como é
linda a nossa tão rica e tão pobre terra! Que
copiosas
bençãos verte Deus sobre a cabana do pobre
jornaleiro que achou a felicidade sem a procurar, formando d'um rochedo
e da sebe d'alguns arbustos o seu palaciosinho ás abas da
serra da Tranqueira, onde eu, em criança, tantas vezes subi
para contemplar as boleadas serras do seu paraizo, minha filha. Tudo
agora me lembra quanto é pequeno e pueril ao pé
d'estes gigantes de
verdura, que me assoberbam com a sua magestade! Ainda vos verei,
ó opulentas pobrezas da minha mocidade! Ainda lá
recordarei, a sós com o anjo da minha
alegria, estas melancolicas horas, este deslumbrante espectaculo, que
parece estar-me dizendo que para gosal-o é preciso ter aqui
gosado os brinquedos de
irmãos, os carinhos de mãe; e, sobre tudo, ter
aqui sentido o coração a formar-se, e a
desentranhar-se em amor e
esperanças
«25 de junho.
«Brevemente, ámanhan talvez, volto para o Rio.
[92]
Vou praticar com um advogado portuguez de
grandes creditos e fortuna, homem de muita idade, que reparte comigo os
interesses, e me trespassa as
obrigações muito lucrativas de defensor, em que
está contractado com corporações
commerciaes. Devo esta promettedora estreia ás cartas do pae
de Felisberto Taveira, que d'aqui foi ha muitos annos, e deixou
respeitado nome, e ainda grosso cabedal. Estou contente quanto, em
minha situação, é possivel
estar. Esta familia que me hospedou já me parece minha. A
intimidade aqui é uma religião, como se um
punhado de portuguezes, e não cincoenta mil almas, se
encontrassem em torrão estrangeiro. Aqui é onde
nós aprendemos o amor de conterraneos: lá, no
seio da mãe, somos-lhe ingratos a ella, e maus uns com os
outros; aqui suspiramos todos por ella, abençoamol-a, e
religamos os corações de todos com vinculos da
reciproca saudade.
«Espere, espere, minha querida Corinna, que havemos de ser
felizes!
«27 de junho.
«O lettrado a quem vou associar-me é um
ancião de semblante apostolico, viuvo, sem filhos, rico,
muito esmoler e doente. Fallamos muito de Portugal, d'onde elle veio
com D. João VI ha muitos annos. É filho de
Lisboa, e está ha vinte annos com o
[93]
projecto feito de ir morrer á patria; porém os
medicos aconselham-o a gosar-se do clima a que está affeito.
É que toda esta gente o venera, e carece além
d'isso da sua muita sciencia, e probidade na sciencia. Já
aqui teve comsigo dous sobrinhos, que elle amava como seus unicos
herdeiros. Morreram ambos por causa da irregularidade da sua vida, e o
ancião chorava fallando-me d'elles. Ámanhan
começo a praticar e a estudar o direito brazileiro:
ser-me-ha preciso naturalisar-me; que importa? Eu serei voluntariamente
natural de toda a parte onde encontro irmãos que fallam a
minha lingua, com tanto que me deixem o coração,
lá, onde
tenho tudo que é d'elle.
»
A carta é extensa de mais, e o leitor contenta-se com as
paginas transcriptas.
[94]
X.
Gastão de Noronha valia ainda muito com homens de alta
graduação, seus companheiros de exilio.
O litigio, perdido em primeira instancia, foi appellado para o Porto; e
com quanto uma espantosa actividade, esporeada pelo ouro do brazileiro,
instasse com os juizes de segunda instancia, os padrinhos do fidalgo
valeram mais para que o processo paralisasse na mão do
relator. Este, porém, com maravilhosa consciencia fez saber
ao réo que a sua perda era inevitavel, cedo ou tarde, e que
parte da imprensa estava a favor da prompta decisão do
pleito.
Decorridos quatro mezes, os tres jornaes portuenses d'aquelle tempo, e
alguns de Lisboa, depois d'um prefacio de dez e mais artigos
ácerca da
corrupção da magistratura, fulminaram o juiz
relator, já alcunhando-o de vendido, já de
subornado pelas fidalgas influencias
[95]
que
ladeavam Gastão de Noronha. Não houve
remedio senão confirmar a sentença.
Recorreu de revista para o supremo tribunal o réo,
acompanhando o processo, e cumulando embargos sobre embargos. Em Lisboa
a presença de Gastão e a
solicitude dos amigos promettiam um anno ou mais de esquecimento dos
autos; mas as gazetas, ainda antes de tempo, já se mostravam
espantadas da demora, e, por conta de seu espanto, lavraram logo
alvará de corruptos a todos os juizes, pedindo ás
leis, ao governo e ao universo que os esfollassem, como o tyranno de
Siracusa fizera a um juiz venal.
Aproveitou Gastão o ensejo de requerer emprego em Lisboa,
já mais que certo do resultado do pleito. Os seus amigos,
que o julgavam rico, pasmavam de o verem com aquelle aspeito typico,
immutavel, e unico de pretendente. Pedia elle a directoria d'uma
alfandega de primeira ordem, posto que nenhuma estivesse vaga. O
ministro achou absurdo o requerimento, e os amigos acharam importuno o
requerente. Desceu Gastão de suas
pretenções, e pedia um governo civil em Vianna,
Braga ou Porto. Os funccionarios que exerciam taes
commissões na provincia eram sujeitos affectos ao governo, e
bons fabricantes de Fabricios e Codros sertanejos. O fidalgo foi
esclarecido a este respeito, e azoou. Pediu ainda um logar de
escrivão da mesa grande da alfandega de Lisboa; mas o
ministro mostrou-se muito sentido de que o serventuario existente
não tivesse dado causa a ser demittido.
[96]
Ora Gastão de Noronha algumas vezes, em Paris, dera a um dos
ministros pares de botas, e muitos jantares a outro. Assim lh'o
lançou em rosto, e elles, pelos modos, ouviram a injuria com
muito receio de que o fidalgo minhoto fizesse uso dos pulsos
não menos rijos que as phrases. Era homem para isso o
atribulado pae de cinco meninas, em vesperas de não ter
sombra de arvore sua que o cobrisse!
Desanimado, e com o pensamento do suicidio a empeçonhar-lhe
a alma, desamparou o processo, e foi para os seus.
Que ia elle fazer alli? que destino ia dar ás filhas? que
remedio esperava elle haurir das lagrimas da pobre Mafalda, que em seis
mezes envelhecera vinte annos?
A sua entrada em casa denunciou, sem palavras, a
desesperança e suprema desgraça que o trazia. As
meninas cuidaram logo nos preparos para se recolherem ao claustro, e D.
Mafalda, sem consultar o marido, resolvera entrar com Corinna no
mosteiro de Vianna. No tocante a si, dizia Gastão de Noronha
que as suas tenções estavam deliberadas.
As tenções do fidalgo eram incendiar o palacete
no dia em que chegasse de Lisboa a noticia do ultimo arranco da sua
fortuna. O que elle faria de si depois era segredo que não
deixou transpirar dos seus furores
recalcados no peito.
A noticia que o seu procurador lhe deu passados dias foi consolativa. O
supremo tribunal annullara o
[97]processo
desde a appellação por falta de
intimação ao réo. Queria isto dizer
que a demanda ia recomeçar
desde a sentença de primeira instancia.
Recobrou-se Gastão; as meninas descontinuaram os
preparativos de convento; aquietou-se o animo de todos, e volveram
á casa das margens do Lima alguns parentes, que fugiam
para não presenciarem
as angustias d'aquella nobilissima familia. Boas
almas,
não tem duvida nenhuma!
De pouco tempo foi este repousar para maiores angustias. Os zelosos
procuradores de Fernando de Athaide obtiveram despacho para embargo dos
fructos pendentes, fundamentando sua justiça em artigos que
o leitor curioso póde ver de seu vagar no codigo.
Foi, para este effeito, citado Gastão de Noronha. Era de
mais: foi uma faisca que atiraram áquella alma cheia de
rancor, que ameaçava explosão! O fidalgo
chamou os criados, armou-os, postou-os ao portão da quinta,
e sentou-se no muro para capitanear a defeza.
Os officiaes de justiça, idos de Vianna, quando avistaram os
homens armados, retrocederam. Os criados, vencedores sem consumo de
polvora, deram-lhes uma bateria de apupos e assovios, que nunca a
justiça d'estes reinos foi tão ridiculamente
escorraçada.
Gastão preparou-se para mais pugnaz arremettida. Chamou os
caseiros em grande numero, armados de foices, enxadas e escopetas
vesadas a matar uma andorinha no ar.
Sahiram de Vianna os mesmos esbirros e outros
[98]
mais afoitos, com doze soldados e um sargento. As
inculcas do fidalgo anticiparam-se com a noticia. Gastão
fechou toda a sua familia n'uma sala interior da casa nova, e postou-se
com trinta homens nas janellas do edificio solarengo.
A diligencia viu aberto o portão, e receou cilada. Os
aguazis incitaram o exercito a ir na dianteira. O bravo sargento,
direito como um Giraldo-sem-pavor, entrou com o dedo no gatilho,
bradando: «preparar!»
com voz tão marcial, que fazia lembrar os bons tempos de
Nuno Alvares e João de Castro. Os soldados compassaram-se
em atiradores ao longo das alas de cilindras e acacias.
As avesinhas, que se aninhavam calorosas por entre a folhagem,
crepitavam em bandos, e fugiam para o lado da casa, como a pedirem
abrigo ás cinco meninas, suas unicas visitas
áquelles pacificos caramancheis.
Parou a tropa no terraço fronteiro á casa. O
sargento viu uma cabeça entre as duas columnatas mosarabes
d'uma janella, e disse:
—Cuidado! que lá está um!
—É o fidalgo!—disse o
escrivão, aventurando uma
espreitadella por entre as franças de uma
olaia—Está sósinho?
—Está, pelo menos não vejo mais
ninguem—disse o
sargento.
Animou-se o executor a sahir em claro, e cortejou de baixo
Gastão.
—Que quer vossê?—perguntou o fidalgo.
[99]
O escrivão tartamudeou palavras inaudiveis. Sahiu
á frente um official de chibança, e disse
stentorosamente:
—Vimos a fazer embargos nos fructos a requerimento de
Fernando
d'Athaide, e com mandado do senhor doutor juiz de direito.
Está vossa excellencia citado na presença de
todas estas testemunhas. Agora vamos cumprir a diligencia: somos
mandados. Vossa excellencia, se quizer, ponha embargos ao embargo.
—Eu não lhe tolero conselhos,
su miseravel!—bradou
Gastão—Já, e sem perda de tempo, meia
volta
á direita, e fóra da minha quinta, quando
não vão debaixo de fogo!
—Auto de resistencia!—exclamou o
escrivão,
desentarrachando um tinteiro de osso negro, e examinando na unha do
pollegar esquerdo os bicos da penna.
Mal o scriba proferira a bombastica exclamação, o
fidalgo deixou ver o cano de um bacamarte, e vinte se não
mais bocas de fogo romperam das differentes janellas. O
escrivão escoou-se ao longo d'um massiço de
murtas e acocorou-se. Os esbirros tomaram a retaguarda do exercito, e o
sargento, em vez de arengar á tropa enfiada de pavor, sahiu
do seu posto de honra e foi perguntar ao agachado escrivão
se devia dar voz de fogo.
O escrivão ouviu a sibylla do medo, e disse que o melhor
seria não haver sangue, e retirarem-se a lavrar o auto de
resistencia.
—Meia volta á direita, rodar!—bradou o
sargento.
[100]
Os soldados voltaram
costas ao inimigo, e
obedeceram ás vozes
«braço-arma!» e
«marcha!»
A victoria, posto que incruenta, seria uma ridicula derrota para as
armas e para as lettras juridicas, se alguns dos caseiros de mais
rópia e chulice, como lá
dizem, não sahissem por portas travessas contra vontade do
amo, e não cortassem por atalhos a retirada á
corrida justiça. Mal precatada ia esta, quando o tiroteio
lhe rompeu á frente e pelo flanco direito, com grande
algazarra de gritos, e de balas, cujo assovio encrespava de horriveis
titilações as orelhas do
escrivão. Os soldados viam, a intervallos, surgirem umas
cabeças por detraz das moitas, ou deslizarem rapidos os
vultos sobre uma clareira de dois troncos seculares do escuro arvoredo.
Um soldado mais afoito rompeu ao bosque, e voltou de lá a
manquejar com um
raspão de bala n'um artelho. O esbirro chibante, que queria
dar o exemplo da bravura, viu-se de repente na boca d'uma clavina, e
metteu a coragem debaixo dos joelhos, que poz em terra, pedindo
misericordia.
Gastão, logo que ouvira o tiroteio, mandou chamar os seus
bravos, mas não a tempo de aggravar a resistencia com o
ferimento do soldado. Cessou o fogo. Os escaramuceiros recolheram
á cidadella com um chapeo de aguazil arvorado no gancho
d'uma foice, e o escrivão com os seus chegaram a Vianna com
aspecto livido como aquelle soldado unico dos trezentos de Leonidas que
foi annunciar a Sparta a morte de todos os seus camaradas nas
Thermopylas.
[101]
O regimento de infanteria aquartelado em Vianna, quando viu o soldado
ferido, quiz sahir em pezo a vingar a affronta. Conteve o commandante a
soldadesca, promettendo em nome da justiça mais legal e
solemne vingança.
Póde dizer-se, sem injuria ao fidalgo, que a pobre
cabeça d'elle estava perdida. Era aquillo tudo um cavar
abismos em abismos. De hora a hora mandava atalaiar a estrada, em
quanto recolhia gente armada das aldeias proximas,
munições de guerra e vitualhas.
Aquella casa, tão quieta dias antes, a remirar-se no crystal
do Lima, estava sendo um castello de antigo barão em guerra
com rei, ou senhor feudal inimigo de velhos odios de raça.
As pallidas meninas e sua
mãe aconchegavam-se umas das outras, e tremiam a cada
estrondo de cronha d'armas no sobrado ou tinnir de varetas no cano das
espingardas.
Mafalda ia supplicar ao marido que fugisse e as deixasse a ellas
recolher aos conventos para se pouparem á
desgraça de o verem a elle morto ou preso.
Gastão enfurecia-se contra as lagrimas; e, no auge de sua
demencia, chegava a bradar que elle e sua familia morreriam no incendio
da casa para não sobreviverem ao opprobrio da indigencia.
Os espias, ao terceiro dia de providencias para formal assedio, foram
avisar o fidalgo de que vinham na estrada tres cavalheiros com um
lacaio.
Momentos depois apearam no pateo os pacificos invasores
[102]
da fortaleza, passando por entre
fileiras de homens armados.
Gastão da sua janella-guarita reconheceu um parente de
Vianna e Felisberto Taveira, já então visconde
da Cruz, cujo era o lacaio.
Felisberto abraçou effusamente o pae de Corinna,
maravilhando-se do aspeito bellicoso do castello, e pedindo
licença para cumprimentar as damas castellans.
Appareceram as meninas com sua mãe. Corinna não
se teve que não abraçasse
expansiva e lagrimosa o amigo de Antonio d'Azevedo.
Ditos os logares communs, que eram para pouco em lances tão
extraordinarios, o visconde da Cruz disse que lêra no
Periodico dos Pobres do
Porto uma correspondencia contando com negras cores a
primeira resistencia que o fidalgo fizera á
acção
judiciaria, e os motivos que promoviam o embargo. Ajuntou que resolvera
desde logo sahir caminho de Vianna para, como bom amigo de
tão sympathica familia, offerecer o seu valimento.
Accrescentou que chegara a Vianna quando se tomavam violentas medidas
para vingar o aggravo feito á justiça e
á força armada;
e então, de accordo com o cavalheiro parente da casa, e
advogado d'um tal Fernando de Athaide, conseguira, mediante um deposito
equivalente ao rendimento dos bens litigados, cancellar os processos
crimes instaurados e mandados de prisão.
Não ficou assim mesmo Gastão de Noronha
extremamente satisfeito de tal serviço; mas agradeceu-o com
um sorriso, e as meninas com lagrimas.
[103]
A parecer do visconde, os caseiros depozeram as armas e os criados
voltaram ao seu trabalho. O chapeo do aguazil, em testemunho de
alegria, foi arcabusado e sacudido em farrapos aos quatro ventos do
ceo.
O restante do dia e noite correu tranquillo e alegre. Corinna recebeu
furtivamente a segunda carta de Antonio d'Azevedo, e sentiu ancias de
oscular a mão do visconde, que lh'a entregou com estas
palavras:
—O nosso Antonio está n'um largo caminho de
venturas. Ha de
vel-o em Portugal dentro em pouco, e rico. Tenha orgulho de ser amada
por tal homem.
—Tenho! Deus sabe que tenho!—murmurou ella.
[104]
XI.
O incansavel estudo, auxiliado pelo muito saber e prática do
doutor Valentim da Costa, habilitou Antonio d'Azevedo a grangear renome
em poucos mezes de exercicio.
O velho presava o praticante com mais que a vulgar estima captada pela
probidade. Quantos ganhos podia declinar em lavor do laborioso
moço todos lhe dava, não exceptuando mesmo os
resultantes de seu proprio e exclusivo trabalho. Os clientes
não distinguiam entre os dois, e alguns iam mais contentes
da linguagem e escripta concisa e vigorosa do doutor novo.
—Já póde o senhor Azevedo, quando
quizer,
estabelecer-se sobre si—lhe disse o velho um dia—Ha
de sobejar-lhe
clientela, e está na carreira que leva
á consideração e á fortuna.
De mim
é que já não precisa, meu caro amigo.
[105]
—E vossa senhoria assim me dispensa da sua
companhia?—atalhou
Azevedo—Fiz sempre quanto pude por que esta sociedade lhe
não fosse onerosa.
—Ora ahi está! Eu a cuidar que o senhor desejava
estar
sósinho em seu escriptorio, como todos desejam, e vai agora
sae-me o Azevedo o contrario de toda a gente! Pois, em sua boa verdade,
o senhor quer ficar na minha companhia?
—Desejo-o; e nunca me lembrou que havia de sahir.
—Pois fique, Azevedo, fique, se o não move o
interesse de
mais algum punhado de oiro no fim de cada anno. Bem vê como
este meu trabalho é interrompido
pela gota, pelo rheumatismo e por outros achaques, contra os quaes
não tenho que allegar nos nossos reinicolas.
Isto está acabado, e acabada estava ha muito a minha tarefa,
se não fossem velhos amigos que me tiram da cama para a
cadeira, e ás vezes conseguem arrastar-me, em holocausto
á amizade, aos tribunaes. Agora os novos que trabalhem, e
cá se avenham com o seculo, com o qual eu já me
não entendo. Tome o
Azevedo conta das minhas procurações, dos meus
livros, dos meus amigos, e, se quizer, do meu rheumatismo e da minha
gota.
O velho doutor era mui faceto, e mettia sempre a riso a sua gota e o
seu rheumatismo.
Estavam elles n'uma d'estas feriadas praticas, quando entrou um cliente
de Valentim da Costa.
—Muito bem apparecido seja—disse este—o
senhor
[106]
Fernando de Athaide, fidalgo em Portugal e
fazendeiro no Brazil. Vem-me dizer que está de posse dos
seus vinculos de S. Torquato, de Alvites e de Ameixoal? Parabens!
—Quaes parabens, meu caro senhor doutor!—disse
Fernando de
Athaide—Aquillo tem dente de coelho! Tenho gasto o valor dos
bens;
tenho cinco sentenças a favor, e ainda pelo ultimo barco
recebi uma carta do advogado e outra do procurador. Veja lá
vossa senhoria o que por lá vai!
Leu o doutor mentalmente, e interrompeu-se em meio com esta
exclamação:
—Magnifico bruto é o seu advogado, e o seu
procurador outro
bruto magnifico! Pois não deixam de intimar ao
réo a primeira sentença! Esta, esta
é das que desbancam a propria estupidez!...
—Pois olhe que tenho pago a rios de oiro essas
brutalidades—disse
Fernando.
—Não que ellas valem-no pela
raridade!—disse o doutor
limpando os oculos e proseguindo na leitura mental.
—Isto agora é que tem
graça!—exclamou o velho,
arfando em risadas—Está-se lá em
Portugal na
edade media. Recebem a justiça a fogo e ferro! Ó
Azevedo, oiça lá isto, que é perdido
em pouca
gente.
E leu:
«A diligencia que sahiu de Vianna, retirou apupada e
não fez o embargo; a outra que foi com a tropa, retirou
debaixo de fogo, e recolheu com um soldado
[107]
ferido. Á hora que lhe escrevo
consta-me que mais de cem homens armados fazem sentinella ao palacio
artilhado de Gastão de Noronha....»
—Como? de quem?—exclamou Azevedo.
—De Gastão de Noronha—disse o
velho—Conhece-o?
—Conheço!—disse mui
alvoroçado e pallido
Antonio d'Azevedo—Mas que tiros são esses?
—É muito simples—respondeu Fernando
d'Athaide, eu sou o
directo successor dos vinculos que retem D. Mafalda de Athaide, mulher
de Gastão de Noronha e minha prima. Ha muitos annos que
tracto de senhorear-me do que é legitimamente meu. Tenho
vencido em todas as instancias; obtive despacho para embargo nos
fructos até á final decisão do
pleito, annullado por um estupido descuido; e quando os officiaes de
justiça vão cumprir a lei, o senhor
Gastão
dá-lhe fogo, e diz que a casa é sua. Ora vejam o
que é Portugal! que
civilisação aquella! Com que então o
senhor doutor conhece meu primo Gastão de Noronha?
Azevedo, de abstrahido que ficou, não ouviu a pergunta.
Fernando encarou em Valentim, como perguntando-lhe se era surdo o
praticante.
—Diz o senhor Fernando se o meu amigo conhece
Gastão de
Noronha—tornou o velho.
—Conheço, creio que já disse.
Esta resposta foi dada com enfadado franzimento de sobr'olho, estranho
ao velho.
Azevedo, vencido insolitamente de sua nobre paixão,
[108]
fitou em cheio o rosto de Fernando, e
perguntou:
—O senhor é pobre?
—Graças a Deus, não.
—É rico?
—Assim, assim.
—É muito rico—accrescentou o doutor
Valentim.
—E não carece dos bens de sua prima D. Mafalda
para ser
feliz?—tornou Azevedo.
—Os bens são meus; não são
de minha
prima Mafalda—redarguiu Fernando com desabrimento.
—Convenho que são seus. Os bens que legitimamente
possue
sua prima são cinco filhas. Se o senhor tirar
áquella familia as terras de que viviam, sua prima e seu
primo e cinco meninas terão fome; ao passo que o senhor
Fernando de Athaide não saberá que fazer
d'essa parcella, que accrescenta á sua abundancia.
—Pode ser que assim seja—disse Fernando
descommovido—mas a pobreza
não é orgulhosa. Eu escrevi duas cartas a
Gastão de Noronha, quando elle estava em Paris, propondo-lhe
uma conciliação, e elle nem sequer desceu do seu
orgulho a responder ao filho natural de Fernão de Athaide.
Ora o filho natural quer desforçar-se como seu pae se
desforçaria
lançando fóra de sua casa os miseraveis que o
não reconhecem como dono, nem sequer como parente.
Colloque-se lá na minha posição, e
diga-me o que faria?
—Tinha commiseração—respondeu
Azevedo, e
fingiu-se occupado a folhear uns autos.
[109]
—Commiseração com o senhor
castellão
que manda despejar balas sobre os executores do meu
direito!—volveu
Fernando—Olha em que postas eu era talhado se vivesse
lá
n'aquellas serras, em que os
ladrões fidalgos se acastellam!
Antonio d'Azevedo pegou do chapeo, e disse que ia jantar e voltaria
depois. Ao sahir cortejou urbanamente Fernando, como a pedir-lhe
desculpa no sorriso.
—Este homem é exquisito!—disse Fernando
ao doutor.
—É um modêlo de honra e
virtude—tornou o
velho—Não imagina que puro oiro é o
d'aquella
alma! Foi a commiseração que o excitou a tal
estranheza
de phrases. Desculpe-o, que o pobre moço, no fim de tudo,
disse-lhe uma augusta verdade. Olhe que é triste coisa um
homem que educou cinco filhas com todo o mimo e regalias de fidalgas,
vel-as privadas de pão e de respeitos sociaes.
—Então que quer o senhor doutor?—atalhou
Fernando.
—Eu de mim não quero senão absolver a
compaixão de Antonio d'Azevedo, e lembrar ao senhor
Fernando, que a caridade e o perdão são as
virtudes
fundamentaes do doutrinamento de Jesus Christo.
—E achava vossa senhoria acertado—acudiu
Fernando—que eu perdesse
contos de reis, que tenho gastado n'este capricho, e deixasse os meus
vinculos na posse e direitos de minha prima?
—Eu não aconselho, senhor Fernando. Isto de
[110]
bem fazer não se lê nem se ensina:
está
dentro do coração, é foro intimo,
é materia de tractar com Deus. Faça o que bem
quizer; mas de modo se haja que nunca venha a sentir-se mal comsigo
proprio.
—A minha consciencia está
tranquillissima—retorquiu
Fernando.
—Quantas vezes a consciencia está quieta, e o
coração inquieto? A consciencia é a
inspiradora dos deveres; e o coração da piedade,
da humanidade, e d'outras
virtudes menos pautadas que os meros deveres e
obrigações de uma recta razão.
Faça o que quizer, senhor Fernando...
—Como eu me enganei!—atalhou Athaide.
—Enganou-se!? Com quê e com quem?
—Com o seu socio de escriptorio.
—Ora essa! pois...
—Eu lhe digo, senhor doutor. Disseram-me que este Antonio
d'Azevedo
era um advogado esperto.
—Não lhe mentiram.
—Será; não duvido. Ora, como eu queria
acabar
com isto á custa de mais alguns contos de reis, vinha com o
fito posto em offerecer tres ou quatro contos ao doutor Azevedo para
elle ir a Portugal tomar posse dos vinculos em meu nome, removendo
todos os embaraços com a sua esperteza. Vinha n'esta ideia,
e, quando menos o cuido, acho um prégador de caridade...
—Gratuito...—accrescentou, sorrindo, o velho.
—O que faltava era ter de lhe pagar o sermão que
não lhe encommendei!
[111]
—Pois olhe que valeu dinheiro! Vossa senhoria, se for scismar
no que
ouviu, ámanhan está melhor
de coração que hoje. Acha que não vale
dinheiro um melhoramento moral? Oh! se vale! Até eu lhe
devo, a elle mui salutares conselhos para a caduquez, e quando o escuto
estou como pezaroso de não ter sido o que elle é.
Pois que lhe disse o meu Antonio d'Azevedo? Cifra n'isto: «O
senhor é muito rico: deixe essas
migalhas que está disputando á familia, que
não
tem mais nada: faça de conta que pegou de sete pessoas
pobres de sua familia, e deu a cada uma sua subsistencia.»
Não
lhe sôa bem isto ao animo desassombrado, senhor Fernando de
Athaide? O seu bom sangue de fidalgo não se azedaria nas
veias, se lhe cá viessem dizer que uma
porção tão chegada de seus parentes
andava lá por Portugal arrastada sobre os espinhos da
pobreza, da miseria, e talvez da deshonra? Tem o senhor em Portugal
cinco primas. Onde cuida vossa senhoria que as póde levar a
indigencia?...
Valentim, fallando d'este theor, tinha os olhos embaciados de lagrimas.
Fernando olhava-o em certa
estupefacção, que umas vezes é dureza
de sentimento, e muitas encendimento de renascida sensibilidade. O
velho calou-se, e o primo de D. Mafalda, tomando o chapeo, sahiu sem
proferir palavra, cortejando o doutor com um aceno.
—Adeus, meu amigo—disse o velho—Pense no
fim da vida. Lembre-se que,
no inverno d'ella, costumam
[112]
os velhos
lembrar-se das flores d'alma, que esmagaram na primavera.
Fernando ouviu, no patamar da escada, as ultimas palavras, e sahiu
tanto ou quanto abalado.
Pouco depois entrou Antonio d'Azevedo. Viam-se-lhe nos olhos os
residuos das lagrimas. É que elle acabava de escrever a
seguinte lauda d'uma carta a Corinna:
«
«2 d'Abril de
1844—quatro horas da
tarde.
«Acabo de saber as desventuras que vão em tua
casa. Ouvi-as da boca do mesmo homem que vos quer privar d'essas
arvores e do berço onde te embalaste, minha querida Corinna.
Eu alcanço a profundeza das vossas amarguras, pobres meninas
e pobre mãe! Que tremenda afflicção
hallucinou
teu pae ao ponto de resistir á justiça impiedosa,
que
não entende de infortunios, nem de lagrimas! Quantas vezes
te voaria ao coração angustiado a imagem invalida
do
teu amigo! Tardias exclamações, filha! Deixa-me
ver o que posso conseguir a bem de teu pae, cujas mãos eu
espero beijar ainda. Talvez que á hora em
que receberes esta carta, começada com tanta alegria, e
tão atormentada agora, tudo esteja sanado, e teu pae olhe
como suas para sempre essas reliquias de uma grande fortuna mal
desbaratada. Tenho um presentimento de que hei de merecer a
intervenção
da providencia nas minhas intenções. Talvez que,
a
[113]
estas horas, estejas orando, e o
anjo do nosso amor me segrede os dons que Deus te concede. Vou sahir,
minha Corinna. Vou ouvir o santo varão a quem devo tudo.
É tempo de eu lhe mostrar que anjo tu és para o
fazer teu amigo, e bemfeitor de ambos.
Até logo.»
Valentim observou o ar magoado do seu estremecido amigo, e quiz ver uma
extraordinaria causa áquelle compungir-se pela familia
portugueza.
—Olhe que eu cá fiquei prégando com o
homem—disse o velho—As suas palavras foram o thema
do
sermão; mas, a fallar-lhe a verdade, não vejo
lura d'onde saia coelho. Este Fernando de Athaide, cujo pae e
mãe conheci, se não fosse a balda da
fidalguia, havia de ser um homem muito estimavel. Está muito
rico, e acha-se pobre quando veste a casaca sem o habito de cavalleiro
ou official da Roza. Ha pouco arranjou em Portugal não sei
que fitinha, que ellas por lá
são tantas e tão bastas que não ha
saber estremar os fidalgos pelas fitas. Mas o pobre homem
não se contenta com ser condecorado pelo que faz (que eu, a
bem dizer, não sei o que elle faz ou fez) quer tambem que a
sua fidalguia lhe proceda em linha direita dos godos. Para isso precisa
justificar-se tomando posse das quintas vinculadas e dos pardieiros
que, pelos modos, tem ameias, adarves, barbacans e brazões
com corôas e mitras. Isto é o que explica a crua
insensibilidade de Fernando com os seus parentes. Ora diga
lá, Azevedo, vossê conhece pessoalmente o tal
Gastão de
Noronha?
[114]
—Conheço-o de vista apenas; mas Gastão
de
Noronha está tão identificado á minha
vida,
que por causa d'elle estou hoje no Brazil. O senhor doutor Valentim
já sabe que o meu coração tem lagrimas
de saudade. Eu era na patria o que ainda sou aqui: um rapaz sem bens e
sem futuro; e Gastão de Noronha era o fidalgo não
rico, mas de sobra ambicioso e soberbo para me não dar sua
filha. A mulher que eu amo e choro é
filha de Gastão de Noronha.
—É notavel a coincidencia!—disse
Valentim—Agora
é que a sua mágoa me parece racional, e digna me
pareceria de todo o modo. Entretanto, meu Azevedo, na sua
mão está salvar essa menina, e desde
já, das contingencias da pobreza. O senhor já
sabe que tem bastos recursos no Brazil. Vá a Portugal, que a
soberba do fidalgo deve estar amollecida. Case com a sua dama, e volte,
que os seus amigos cá o ficam esperando.
Riram os olhos de Antonio d'Azevedo; mas este clarão de
alegria foi instantaneo.
—Seria a felicidade perfeita para mim, mas não
para
ella—disse o bacharel, após instantes de
reflexão.
—Como assim?—perguntou o velho—que mais
póde ella
desejar?!
—Que seus paes e irmans não soffram as horriveis
privações tanto mais amargas, quanto a vida lhes
correu abundante e respeitada. Calcule o senhor doutor que desgosto
não seria o d'ella ao lembrar-se que suas
[115]
quatro irmans ficaram encerradas em conventos, e
dependentes da esmola de parentas! e que sua mãe, privada
d'ellas, e talvez do marido... como poderia eu ser assim feliz, meu
amigo?!...
Antonio d'Azevedo deixava cahir as lagrimas para que o velho
não lh'as visse enxugar! Ha lagrimas que tem um como pudor,
e recato que é talvez o medo de serem mal avaliadas. O
chorar do homem ha de ser assim, ou ficará sendo miseravel
alardo de sua feminil fraqueza.
[116]
XII.
—Valha-me Deus!—disse o doutor, esfregando as
palmas das
mãos tremulas—como ha de a gente remediar isto? O
que o meu
Antonio queria é que todos vivessem contentes. Christan
utopia, que ha de realisar-se no ceo!
—Eu vinha animado d'um pensamento quando aqui
entrei—tornou
Azevedo—porém desanimei logo que o senhor me disse
que
Fernando de Athaide queria os vinculos para mostrar a sua fidalga
genealogia.
—É o que é; e se não fosse,
que ideia
era a sua? Vamos discutil-a.
—A minha ideia era contrahir eu um emprestimo aqui: sei que o
obtinha.
—Tambem eu sei que o meu amigo obtem o emprestimo. E depois?
—Avaliavam-se os bens vinculados e as despezas
[117]
feitas para os liquidar: eu dava o valor de tudo a Fernando de Athaide,
e elle desistia do direito por
conciliação.
—E o Antonio ficava pobre e a trabalhar toda a sua vida para
remir a
divida?
—Necessariamente.
—Com effeito!—exclamou o doutor—e dizem
lá que
já não ha santos! Sabe
vossê, Azevedo, como é que o mundo, desde que
perdeu a fé nos milagres, chama aos santos da sua virtude?
Chama-lhes mentecaptos. Assim devia de ser, porque a philosophia
inscreveu tambem como demencia o amor divino dos crucificados por sua
lealdade a Deus, e d'estes vejo que ainda os ha devotados á
sublime loucura da
cruz. Queria então vossê
adjudicar o trabalho de toda a vida ao pagamento do dinheiro com que
pretende restabelecer o bem-estar da familia da sua futura senhora?...
Vamos meditar. Este Fernando de Athaide, como já lhe disse,
o que quer é provar
urbi et
orbi que é fidalgo de raça por
seu pae. A herança não lhe importa. Poderemos
conseguir que elle convença o universo da sua fidalguia, sem
se apossar dos vinculos de D. Mafalda? Aqui é que bate o
ponto. E poderemos conseguil-o sem que o meu amigo hypotheque o seu
trabalho á solvencia da divida? Invoquemos as musas das
entalações, e
vejamos o que ellas nos decretam em coisa tão prosaica,
já que os praxistas nos tapam todas as sahidas. Poderemos
pensar no modo de approximar Fernando de Athaide de uma das primas,
casando-os? Este expediente
[118]
bem se vê
que é inspiração
de musas, porque é de todo em todo poetico. Que diz a isto,
meu rapaz?
—Creio que por parte de Gastão de Noronha seria um
negocio
concluido, ainda mesmo que Fernando de Athaide fosse do mais baixo
plebeismo—disse Azevedo.
—Feliz genio de homem para os nossos fins! Mas
vossê sabe
que a renuncia d'um direito transmissivel, como é o dos
vinculos, é nulla; e que os
descendentes do renunciante estão sempre ao abrigo da lei.
É
preciso que Fernando de Athaide case com a menina successora dos
vinculos, na hypothese de serem elles legitimamente de sua
mãe...
—Essa é Corinna!—interrompeu
Azevedo—Corinna é
a que eu amo!
—Ah! sim? então muda de figura o negocio....
Deixe-me
pensar... E se nós conseguissemos que Fernando casasse com
uma das outras senhoras? Leval-o-iamos a deixar aos sogros a
administração dos vinculos,
melhorados e desembaraçados de dividas com liberalisado
capital pelo ricasso, e sobre tudo pelo fidalgo, orgulhoso de
reedificar os pardieiros de seus avoengos. Que lhe parece?
—Gastão de Noronha não acceitaria a
humilde
posição de mordomo de seu genro—disse
Azevedo—Por parte d'este a
reconciliação seria
impossivel.
Só vejo um meio.
—Diga lá.
—Fernando obteria uma filha de Gastão, se, antes
[119]
de pedir-lh'a, rasgasse as provas com que se diz successor
dos vinculos.
—Não se rasgam assim facilmente as provas. A
perfilhação está archivada, e as
cartas e testamento que o legitimam filho de Fernão de
Athaide estão em
notas de tabelliães de Portugal e do Brazil.
—A desistencia, portanto, é
invalida?—tornou Azevedo.
—É, a menos que o senhor me não
assevere que a
descendencia directa de Fernão de Athaide acaba em seu
filho.
Proseguiram largo tempo dialogando juridicamente, e ultimaram indecisos
no que deviam fazer.
Antonio d'Azevedo desvelou aquella noite em hypotheses que se combatiam
e destruiam. Amanheceu-lhe o dia seguinte para incessante
inquietação e
dolorosa perplexidade. Voltou ás onze horas ao escriptorio
de Valentim da Costa, e encontrou-o encerrado com Fernando de Athaide.
—Já se demorava—disse-lhe o
doutor—Sente-se aqui.
O velho, voltado a Fernando, proseguiu:
—Dá-se o caso, amigo e senhor Athaide, que este
Antonio
d'Azevedo veio ao Brazil ganhar alguns punhados de oiro para poder
voltar a Portugal e casar com uma das cinco primas de vossa senhoria,
filhas de Gastão de Noronha.
—Pois conhece minhas primas?!—atalhou Fernando.
[120]
—Especialmente a mais velha, a senhora D.
Corinna—disse Azevedo.
—Alguem me disse que é muito galante
essa—tornou o
millionario.
—São todas galantes: são cinco anjos,
que fariam
o orgulho d'um pae menos infeliz que o senhor Gastão, e
teriam sido felizes se nascessem em menos elevada
condição.
—Alguem as viu em Paris—tornou Fernando—e
achou-as educadas muito
á franceza.
—Por força devia achal-as assim educadas: as mais
novas
lá nasceram.
—Mas desenvoltas... é o que eu quero dizer.
—Não senhor: enganaram-o: vi-as em alguns bailes
do Porto
com quanta gravidade e compostura se póde desejar na mulher
que se ama para nos felicitar e honrar a vida.
—Agora fallo eu—atalhou o velho—O senhor
Azevedo affligiu-se quando
vossa senhoria nos contou a situação em que ficou
seu tio; é
natural; porque a senhora que elle ama, até ao sacrificio de
vir grangear-lhe aqui o pão futuro, está
lá n'essa
casa, d'onde vossa senhoria vai expulsar toda a familia.
—Minhas primas devem odiar-me de morte!—interrompeu
Fernando em tom
de desagradavel ironia.
—Fazem ellas muito bem—disse o velho, sorrindo.
—Que lhe diz de mim a prima Corinna?—tornou Athaide
com prasenteiro
semblante.
[121]
—A carta que ella me escreveu n'este ultimo navio
contém
uma pagina com referencia a vossa senhoria. Queira lêl-a, que
ella de certo me perdoa a confidencia.
Fernando de Athaide leu a penultima lauda da carta, dobrou-a
vagarosamente, e restituiu-a sem fitar os olhos no bacharel.
—Aqui não ha odio de morte n'estas palavras,
senhor
Fernando de Athaide—disse Azevedo.
—Então isso é segredo cá
para o
velho, heim?—disse o doutor.
—Ha meia hora que recebi a carta—respondeu o
moço,
entregando-lh'a.
—Sempre quero ver o juizo que ella faz do priminho. Mostre
lá o sitio onde vem a catillinaria.
—Antonio indicou-lhe a pagina, e o velho leu alto:
«Ouvi dizer ao nosso amigo Felisberto que o primo de minha
mãe é muito rico, e não
precisa d'estes poucos bens. Que triste gloria reduzir á
ultima pobreza uma familia tão numerosa! Ha
corações muito duros, meu querido Antonio!
Ás vezes penso com tristeza e ao mesmo tempo
consolação, no
differente modo de pensar que Deus dá ás suas
creaturas tão semelhantes no exterior. Não se
lembrar esse homem das afflicções que nos
dá sem
proveito nenhum para si mesmo! Não saberá elle
que a subsistencia
de sete pessoas, creadas na opulencia, era só isto que nos
tira!? Se um dia lhe disserem que meu
[122]
pae morre
de desgosto e miseria, a voz do sangue não lhe
gritará como um remorso ao
coração? Ai! como os felizes gosam, ó
meu pobre Antonio!
»
—Estas palavras, senhor Fernando—continuou o
veneravel doutor—podem
mais que tudo quanto eu lhe dissesse, se as lagrimas que eu vejo nos
seus olhos não são uma illusão dos
meus. Olhe
fito cá para mim, Athaide! Não se envergonhe de
ser bom: tenha só
pezar de o não ter sido. Vamos! deixe lá fallar
esse
coração! Sente-se disposto a salvar esta familia?
—Responderei—disse Fernando de Athaide, erguendo-se
de golpe.
—Uma resposta, n'este caso, não é
operação diplomatica que demande vigilias e
subtilezas de engenho. Sente-se!—disse com gracioso imperio o
velho.
—Mas que quer de mim o doutor?
—Quero que se meça em bizarria d'alma com este
cavalheiro
que aqui está. Antonio d'Azevedo quiz contrahir um
emprestimo de trinta contos, ou mais, caucionados com a sua honra e
trabalho. Estes trinta excedem em doze, segundo vossa senhoria me tem
dito, o valor dos vinculos. O restante será o que Fernando
de Athaide tem gasto no costeio da demanda. Antonio d'Azevedo queria
offerecer a vossa senhoria esta quantia como
gratificação pela desistencia da demanda.
Sorriu Fernando, e atalhou:
—O doutor não disse a este senhor que eu dou
trinta contos
pelo menor dos meus caprichos, e que
[123]
ainda fico
bastantemente rico para dar de esmola o valor dos vinculos ao soberbo
Gastão de Noronha?
—Esmola que elle não
acceitará—disse com
altivez o amado de Corinna.
—Nem eu estou pedindo esmola para o marido de sua
tia—accrescentou o
doutor.
—Então que pede?!—tornou Fernando com
philaucioso
sobrecenho.
—Peço ao fidalgo que tenha uma alma fidalga; que,
se a
não tiver, que importam os seus brazões
em confronto da caridade com que o escravo nu levanta da rua o seu
irmão prostrado de fome?! Quer saber o que lhe fica bem? O
cavalheiro manda suspender a
execução, sem desistencia dos seus direitos, que
as leis e todos lhe reconhecem. O seu vencimento foi completo: agora
é preciso coroal-o com a generosidade, se quer o triumpho.
Está vencida a questão:
está reconhecido Fernando de Athaide o successor dos
vinculos de seu pae. São seus os vinculos, e é
sua a honra de os
deixar administrar por sua prima. Isto é que é
nobreza! De resto, as armas dos portões das suas quintas
são pedaços de pedra lavrada, onde as aranhas
fazem seus ninhos como entre a palhiça que colma a cabana do
jornaleiro! Que diz?
—Responderei!—repetiu Fernando—tenho de
dar
satisfação á minha dignidade.
Entre coração e pundonor vai larga distancia:
preciso de explicar o despreso com que foram recebidas as minhas cartas
por Gastão de Noronha. É preciso que o mundo
não pense
[124]
que os meus direitos se
atemorisaram diante do arcabuz do valentão.
—É preciso, primeiro que tudo, respeitar o
infortunio!—disse brandamente Antonio d'Azevedo.
—Digno de respeito—accrescentou o neto dos Athaides
sahindo de
má sombra.
[125]
XIII.
Lembra-se o leitor de eu lhe ter dito, no primeiro capitulo, que, por
uma tarde de Agosto, estava Corinna da Soledade, nas margens do Lima,
reclinada n'um dos bancos circumpostos á fonte do
tôpo da sombria
avenida?
Agora é que o romance prende com aquella tarde! Vejam que
desconcerto este! Chega uma novella ao meio, e torna a
começar. Parece que é isto um
abuso da indulgencia com que o leitor costuma indultar-me os
desarranjos do meu engenho. Ora queira perdoar mais este, attendendo a
que as coisas, na vida como ella é, tambem assim
vão desordenadas, e
começam não só pelo meio, mas
até pelo fim.
A carta, que Corinna lia e regava de lagrimas, era de Antonio
d'Azevedo. A pagina que mais a enternecia a prantos dizia assim:
[126]
«
Eu
não sei que deva esperar de Fernando de Athaide. Pareceu-me
bom quando lhe vi lagrimas, e mau quando se despediu. Será
tudo, ou não
será nada do que me pareceu: os individuos vulgares
são os menos intelligiveis. O melhor, Corinna, é
nada esperar que bom seja.
«Entretanto, eu posso mandar á tua familia o bom
coração que tu fizeste, e não
póde ser teu sem ser dos teus. Prézo teu pae e
tua mãe, quero
ás tuas irmans como ás minhas. Tenho-vos a todos
no mais sagrado dos meus affectos e ardentes desejos de ser util.
«Os meus haveres, por em quanto, não merecem tal
nome; porém a minha palavra vale muito com os amigos que me
deram os Taveiras. É-me facil possuir alguns contos de reis,
e mandal-os a teu pae para ter uma casa e segura subsistencia de sua
familia, até que a minha posição seja
mais
solida. Mas como hei de eu, e com que pretexto, remetter-lhe este
dinheiro? Como ha de elle acceital-o? Pensei n'isto muitos dias; e, a
final de desanimados arbitrios, tomei um expediente que tu, minha
Corinna, applaudirás, porque, sobre tudo, és a
minha irman. Remetti seis contos de reis ao nosso Felisberto Taveira,
pedindo-lhe que fosse elle offerecel-os a teu pae como coisa sua.
Contrariou-me logo a conjectura de que teu pae os não
acceitaria, por não poder dar
abona
«Os meus haveres, por em quanto, não merecem tal
nome; porém a minha palavra vale muito com os amigos que me
deram os Taveiras. É-me facil possuir alguns contos de reis,
e mandal-os a teu pae para ter uma casa e segura subsistencia de sua
familia, até que a minha posição seja
mais
solida. Mas como hei de eu, e com que pretexto, remetter-lhe este
dinheiro? Como ha de elle acceital-o? Pensei n'isto muitos dias; e, a
final de desanimados arbitrios, tomei um expediente que tu, minha
Corinna, applaudirás, porque, sobre tudo, és a
minha irman. Remetti seis contos de reis ao nosso Felisberto Taveira,
pedindo-lhe que fosse elle offerecel-os a teu pae como coisa sua.
Contrariou-me logo a conjectura de que teu pae os não
acceitaria, por não poder dar
abonação; mas tão cansado estava eu
já de ser contrariado,
[127]
que
fechei os olhos, e deixei ao meu bom amigo o desapressar-se das
difficuldades. Aqui tens o que fiz: Deus fará o resto.
«Pedi ao Taveira que aconselhasse a sahida de teu pae para o
Porto ou Lisboa. A especial situação
em que elle se collocou é muito violenta. Digam-lhe todos
que abandone as terras que já não são
suas. Em toda a parte ha sol e arvores e paz. Todas as flores te
hão de festejar, minha filha, e o meu
coração te será companhia onde quer
que vás.
»
Era bem para lagrimas este singelo dizer e extremo amar do pobre
ausente!
Expiravam nas cristas das serras fronteiras os ultimos raios de sol,
que Corinna contemplava, coroando de escarlate os pinhaes, quando um
barquinho abicou á margem relvada, mesmo no ancoradoiro
pertencente á quinta de Gastão de Noronha.
Corinna viu saltar e subir por entre as aleas das ramosas arvores um
homem, seguido d'um criado com uma mala. Como a fuga, sem ser vista,
seria extemporanea, a menina, escondendo a carta, esperou que o
adventicio chegasse.
A certa distancia descobriu-se o sujeito, e perguntou se estava em casa
o senhor Gastão de Noronha.
—Meu pae está para Vianna—disse
Corinna—mas deve chegar
ao escurecer: não tardará.
—Poderei esperar que elle chegue para lhe apresentar uma
carta do
senhor visconde da Cruz?
[128]
—Sim, senhor: queira subir, que eu dou parte a minha
mãe,
posto que ella está recolhida no seu
quarto por doença.
Chamou Corinna um criado que encaminhou o hospede á sala.
Pouco depois entrou a menina na sala, desculpando sua mãe em
não poder ir receber um amigo do
senhor visconde, e pedindo ao cavalheiro o favor de esperar seu marido,
que voltaria breve.
Corinna retirou-se, ouvidos os termos cortezãos com que o
hospede agradecia a delicadeza da senhora D. Mafalda.
Não se demorou Gastão. Foi logo á
sala, e recebeu a seguinte carta:
«Illustrissimo e excellentissimo senhor, e meu respeitavel
amigo de minha maior consideração e respeito.
Amigos de meu pae, e muito da nossa estima, nos recommendam o
cavalheiro portador d'esta carta, brazileiro nato, que anda visitando a
Europa, e quer ver o nosso Minho, e mais ainda o Minho de vossa
excellencia, symbolisado na sua formosa quinta. Confiados na amizade de
vossa excellencia, ousamos pedir-lhe o favor de recebel-o, e
indicar-lhe as principaes bellezas que enfeitam as margens do Minho e
Lima. Digne-se vossa excellencia acolhel-o com a sua costumada
delicadeza, e dar-nos a honra de lhe devermos esta nova
consideração. De vossa excellencia
etc.==
Visconde da Cruz.
«
P. S. Passados dias terei
o prazer de visitar vossa
[129]
excellencia e
sua amavel familia, para quem peço respeitos e
saudades.»
—Offereço-lhe esta casa como a offereceria ao
senhor
visconde—disse o fidalgo com palaciana
graça—Queira
sentar-se. Temos alguns locaes bonitos na nossa provincia; mas se vossa
senhoria viu a Suissa, a Italia e alguns departamentos de
França, de certo achará
encarecida a pintura que lhe fizeram do Minho. Eu viajei muito com a
minha familia antes de estabelecer casa em Paris, no tempo das nossas
guerras intestinas! Sinceramente lhe digo que lá
fóra vi a natureza mais adornada, e por isso mesmo mais
bella: tudo assim é. O artista quer achar a nudez para
enfeital-a com a poesia do pincel ou do buril; mas o mero curioso sente
melhor o bello onde elle realmente é.
Proseguiram em conversação sobre viagens,
até horas do chá. Já o hospede, a esse
tempo, sabia que o seu quarto de dormir era contiguo á sala,
e que o seu criado dormia na alcova inferior correspondente ao
pavimento do quarto.
Antes de servir-se o chá, mandou Gastão chamar as
cinco meninas, e apresentou-as a Carlos Zuzarte, que assim disse
chamar-se o hospede. Felismina tocou piano para acompanhar Emma;
seguiu-se Elisa a cantar, acompanhada por Leonor: Corinna estava no
quarto de sua mãe. Carlos sentia-se como encantado entre
aquellas meninas, que fallavam um portuguez feiticeiro em suas
incorrecções, como fallariam
anjos, se descessem a tractar com portuguezes, circumstancia
[130]
de idioma que os poetas nunca observaram, que
me lembre. Em quanto a ellas, o dizer do hospede, puro brazileiro, era
coisa de muita graça, com o que ellas francamente riam, e de
modo o faziam, que o viajante folgava de lhes dar motivo a rirem.
É onde póde
chegar a condescendencia com meninas galantes!
A noite correu ligeira para todos. Ao dia seguinte madrugou Zuzarte, e
desceu ao jardim. Argentava o sol a serra d'Arga, e lá em
cima os montados d'aquella mystica selva dos franciscanos, onde ainda
rumorejam os psalmos das singelas almas que d'alli, tão
visinhas do ceo, se alaram para Deus. Com que pena, leitor, eu acho o
meu frei Luiz de Sousa estranhamente trivial e despoetico na
descripção d'aquelle ermo e dos
seus moradores! Elle, o dulcissimo panegyrista das solidões
de Bemfica, passou por entre os cenobitas de mais ignorada vida, nas
chronicas monasticas, e apenas disse: «É convento
de religiosos entregues mais
á vida contemplativa, que aos cuidados e trabalhos da
activa.» E mais nada d'aquellas brenhas, e grutas e lageas
sem nome que...
Se eu me deixava ir agora á vontade da penna, lá
me ficava o romance enredado nos silveiraes da mata de S. Francisco de
Vianna, por onde já passei um dia, lá muito no
alto, d'onde eu avistava a casa acastellada de Gastão de
Noronha, em quanto outro anachoreta me ia contando o romance d'aquella
familia.
O hospede estacou surprezo á entrada d'um
pavilhão de olaias. Estava lá dentro uma como
estatua de
[131]alabastro,
que poderia chamar-se o
anjo da
meditação. A estatua, porém, se o era,
dos jardins do ceo devia de ser, porque tinha luz nos olhos e celestial
graça no
sorriso, quando Zuzarte a viu. Era Corinna da Soledade.
Cortejou-a o sujeito com certa turvação, e
retirou-se. A menina correspondeu ao cumprimento, e sahiu do jardim
logo que o hospede se distanceou da gruta.
Por alli se deteve contemplativo o brazileiro até horas de
almoço. Lá veio procural-o
Gastão de Noronha, e se andaram ambos conversando ainda
sobre coisas que tendiam todas, por parte do fidalgo, a averiguar se o
hospede era rico.
—Tenho trinta e oito annos—disse o
brazileiro—e principío
agora ainda a pensar nas delicias que tem o mundo. Até agora
cuidei em fazer-me rico, pensando que bastava sel-o para ser feliz.
Como me enganei, cuido d'hoje ávante em dar nova
applicação á fortuna.
—Na sua idade—atalhou
Gastão—quando se é rico,
acham-se abertas as portas do mundo para todos os gosos.
—Não é tanto assim—replicou o
hospede—A
riqueza é muitas vezes um estorvo á felicidade do
coração; e o coração, aos
trinta e oito annos,
é quasi sempre enganado pela juventude que o reflexo do oiro
lhe dá. Quando me proponho um programma de vida nova, o meu
primeiro pensamento é casar. A felicidade do celibatario, se
elle não fôr monge ou santo, ou
[132]
temperamento excepcional, é uma
concatenação de deleites viciosos com muito
desconto de amarguras. Para além d'este difficil passo do
casamento rasgam-se-me novos horisontes, encantam-me as alegrias da
vida domestica, vejo os bens que Deus concede na velhice aos que
dignamente consumiram suas forças nos annos em que as
forças carecem de ser subordinadas ao dever...
—Pensa muito acertadamente, senhor
Zuzarte—interrompeu o fidalgo.
—O quadro delicioso que vim achar em sua casa, senhor
Gastão de Noronha, redobrou-me o encanto, porque
é elle a mais sublime realidade das minhas
imaginações. Que ditosa velhice a do pae que
vê em volta de si cinco filhas, cinco amores de filha a
florescerem-lhe a alma com as suas primaveras! Assim não se
deve sentir o pezo dos annos, nem o temor da morte. O caminho final, a
ultima jornada deve ser suave entre os anjos. Não
é muito feliz, senhor
Gastão de Noronha?
—Sou infeliz—disse, em boa consciencia, o fidalgo.
—Infeliz?! Com familia tão querida e extremosa,
n'este
paraizo, é infeliz!? Então lá
se vão as minhas chimeras!...
—Fui ditoso até ao momento em que uma inesperada
desventura
me bateu á porta para me dizer que esta casa não
era minha, e que as minhas filhas teriam um futuro de dependencia,
obscuridade, e... Deus sabe que futuro!...
—Pois não é de vossa excellencia esta
casa?—perguntou
[133]
o hospede com um ar de espanto, que
denotava artificio por demasia de naturalidade.
—A herança de minha mulher foi-me disputada por um
parente;
são vinculos que as leis concederam a um filho natural do
antecessor de minha mulher. Passados alguns mezes terei de sahir com
minha familia. Um descendente dos marquezes de Villa Real
não
terá choupana onde se abrigue com suas filhas e mulher. Aqui
tem o senhor Zuzarte a razão da minha amargura. As filhas,
que eram minhas delicias, estão sendo um constante incentivo
de soffrimento. Eduquei-as em França, dei-lhes uma infancia
de rainhas, premeditava casal-as nas primeiras familias d'esta
provincia: muito fidalgas, muito prendadas e muito pobres, quem as
quer, a não serem maridos de quem eu de certo as
não fiava assim mesmo pobres?...
Carlos ouvia Gastão com semblante mais assombrado que
compungido: dir-se-ia que aquelle homem, conscio da indole soberba do
fidalgo, pasmava de ouvil-o abrir-se em palavras tão
brandas, francas e humildes. De si para si dizia Gastão,
vendo o aspecto indefinivel do seu hospede, que, depois da
revelação da pobreza, o rico o estava olhando com
menos prestigio, e talvez reflectindo no modo de esquivar-se a alguma
petição de dinheiro. Esta hypothese, beliscando o
orgulho do fidalgo, fel-o proromper n'estas palavras destoantes das
ultimas que proferira:
—Ainda assim, as pessoas que se hospedam em casa de
Gastão
de Noronha, por em quanto, são
recebidas
[134]
como em todo o tempo. A
revelação que lhe
fiz, senhor Zuzarte, não é lastimas de quem acaba
pedindo um favor. Tenha vossa senhoria muita confiança na
minha independencia, que eu hei de morrer Gastão de Noronha.
Ha mezes que o nosso amigo visconde da Cruz depositou um capital de
dois contos de reis para evitar um embargo nos fructos pendentes
d'estes bens: quando eu tal sube, vendi as joias de minhas filhas para
embolsar o senhor visconde do seu deposito.
—Vossa excellencia está-me fazendo
revelações que me confundem—atalhou o
hospede—e
ao mesmo tempo fere-me com suspeitas que eu não
mereço!
Por ventura crê-me capaz de o julgar abatido e desmerecido em
seu infortunio? Que disse eu para vossa excellencia passar de uma
tão nobre confissão dos seus
desgostos a prevenir-me de que os hospedes em sua casa são
recebidos como nos tempos prosperos?!
—Desculpe-me—acudiu
Gastão—é que eu
não nasci para estas queixas, e cuido sempre que a pobreza
me abate aos olhos dos estranhos, desde que me vi desconsiderado dos
parentes.
Entraram na casa do almoço, e encontraram D. Mafalda, que os
esperava com as cinco meninas. Carlos foi apresentado á
fidalga, e deteve-se conversando
especialmente com ella durante o almoço. A polidez assim o
mandava ao hospede: mas o familiar affecto com que elle a tratava era
por demais. Notaram as meninas que elle não desfitava os
olhos de sua mãe
senão
[135]
quando encontrava os d'ella,
já tambem admirada da fixidez attenta do brazileiro.
Da casa do almoço passaram á sala do piano.
Felismina foi cantar modinhas brazileiras com o requebro e mimo das
ardentes e languidas filhas do Brazil. Felismina era uma formosa
morena, com olhos negros, cabellos curtos e annelados como spiraes de
ebano, esbelta de corpo, alta mais que todas, muito agil e inquieta,
relanceando sempre a vista a todos e a tudo, a mais diserta e chistosa
de todas, e a menos dada ás flores, á poesia, e
ás bellezas campezinas que suas
irmans encareciam umas mais que outras, e Emma, a pachorrenta Emma,
esta mais que nenhuma.
Felismina estava gracejando com Zuzarte a respeito das damas
brazileiras, cujas graças o hospede, sem favor, elogiava,
quando um criado entrou á sala onde estavam todos, e
entregou uma carta ida de Lisboa para Gastão de Noronha. Era
a carta do procurador.
—Teremos golpe?—disse o fidalgo a D. Mafalda.
—Não sei qual possa ser!—respondeu a
senhora—As dores
mais de temer estão todas passadas.
Leu Gastão a carta, e disse com alvoroço:
—O Fernando manda suspender a execução,
e
retirar o processo de julgamento com desistencia! Que significa isto?
—O quê, papá?—exclamou
Felismina, que mal
ouvira, de entretida que estava com o brazileiro.
—É o primo Fernando que desiste da
demanda—disse Mafalda.
[136]
—Foi elle!—exclamou Corinna.
Voltaram-se todos para a menina que soltara o brado, e viram-a muito
escarlate.
—Elle! quem?—perguntou o pae.
Corinna balbuciou confusas palavras, e não soube como
explicar aquelle disparate, que parecia o despertar subito d'um
arrobamento semelhante a somnambulismo!
Se não existissem os pronomes
este e
elle, Corinna teria exclamado:
—Foi Antonio d'Azevedo!
E, se ella tal dissesse, ninguem a entenderia, excepto o leitor.
[137]
XIV.
Pediu Zuzarte licença para compartir do contentamento da
familia. Em breves e alegres termos, D. Mafalda disse que seu primo
Fernando de Athaide desistia da acção que tinha
vencida, quando menos se
esperava. Sem rebuço de vão orgulho, a fidalga
enumerou quantas desventuras estavam eminentes á sua
familia, e a ella, pobre mãe e esposa, que, ao mesmo tempo,
se havia de separar de marido e filhas para ir quinhoar o
pão da caridade de parentes, que, muitas vezes, lh'o
atirariam á cara com a cruel censura aos desperdicios da
emigração.
O brazileiro mostrava-se jubiloso do successo; e, cada vez que as
meninas bem-diziam seu primo Fernando, era muito de notar-se que o
hospede guardava um silencio indelicado.
Instado por Felismina a dar explicação do seu
silencio, e mais ainda d'um certo tregeito de fria
admiração,
[138]
disse o brazileiro, como
surprendido em
mysterioso sentimento, qualquer que fosse:
—Eu não sei de que hei de louvar esse senhor
Fernando de
Athaide, posto que o respeito muito por ser tão proximo
parente de vossas excellencias.
—Não sabe?!—disse Mafalda com
vehemencia.
—Não, minha senhora.
—Pois a desistencia d'uma fortuna, que era já
sua...—tornou a fidalga.
—Minha senhora—replicou Zuzarte—eu
conheço o primo de
vossa excellencia.
—Conhece!—exclamaram todos.
—Fernando de Athaide desistindo de algumas dezenas de contos,
obedeceu
talvez a um sentimento de vaidade, o mais barato de quantos lhe tenho
conhecido. Seu primo, minhas senhoras, é hoje um
millionario. A balança do seu oiro não ergueu
duas linhas com o desfalque do valor d'estes vinculos. Não
ha virtude que deva espantar-nos na desistencia d'um objecto inutil.
—Não quero pensar assim, nem consinto que minhas
filhas
assim pensem—tornou Mafalda.
—Pois bem—retorquiu o brazileiro—convenho
que em vossas excellencias
a superabundancia de sensibilidade reverta em gratidão;
aposto, porém, que o senhor Gastão de Noronha
não pensa assim.
—Penso como minha mulher—disse o
fidalgo—Penso que lhe devemos muito
ao generoso Fernando, porque eu fui mau para com elle. Quando estavamos
[139]
em Paris, recebi duas cartas suas, muito
attenciosas, ás quaes não respondi. Chamava-me
primo, e eu
tive a estupida arrogancia de rejeitar o parentesco de um homem que,
por delicados termos, me convidava a entrar com elle em
negociações ácerca dos
vinculos, que eu illegalmente administrava. Depois d'isso, tenho
rejeitado todas as conciliações propostas, e, no
arrasoado de minha defeza, fiz que os lettrados empregassem termos
injuriosos contra a sua pretendida filiação de
nosso tio Fernão de Athaide. Era de crer que fosse
implacavel o odio do vencedor, depois que eu, á
força
d'armas, lhe resisti ainda em ultimo lance. Ora, senhor Zuzarte, seja
embora millionario Fernando, força nos é
confessar que ha sangue muito fidalgo n'aquellas veias! Se eu pudesse
apertal-o ao coração n'este
momento, exultaria do nobre orgulho com tal parente!
Carlos Zuzarte fez um signal de assentimento ás calorosas
razões de Gastão, e derivou a
prática a outro assumpto. Felismina, porém,
teimou em fallar de seu primo Fernando, pedindo ao brazileiro que lhe
contasse o que sabia d'elle.
—Que interesse, minha senhora!—disse Zuzarte com ar
de maravilhado—O
primo de vossa excellencia é um homem de bigode grisalho,
olhos pretos, alto, debil, muito trigueiro, alegre ás vezes,
outras muito triste, com muitos amigos e muitos inimigos...
—É solteiro?—atalhou Felismina.
—É solteiro, e já agora assim
morrerá, porque, se me não engano, deve ter
trinta e oito annos.
[140]
—Justamente—disse Mafalda—Meu tio
Fernão morreu ha vinte
e dois, e lembra-me elle dizer-me que Fernando teria dezoito. Queria
meu tio que eu casasse com o primo; mas como falleceu quasi
repentinamente, não chegou a mandal-o chamar.
—Se vossa excellencia tem casado com elle—disse
Zuzarte—esta scena,
em que todos figuramos, estava na massa dos impossiveis! Ora vejam
vossas excellencias que em bem pouco está o não
virem
á luz da vida magnificos espectaculos! Que quer vossa
excellencia saber mais de seu primo, senhora D. Felismina?
—Diga tudo o que souber—respondeu a menina.
—Eu não sei mais nada, minha senhora. A ultima vez
que o vi
no Rio de Janeiro foi no escriptorio de um velho jurisconsulto, onde
tinha banca de advogado um moço portuguez chamado Antonio
d'Azevedo Barbosa.
Corinna da Soledade estremeceu expansivamente, como se ninguem a visse,
e como por influição
magnetica, a cadeira per si mesma se arrastou algumas pollegadas para
mais perto do brazileiro. A leitora de certo não acredita
n'este magnetismo da cadeira.
Gastão de Noronha relanceou os olhos a Corinna, e as irmans
tambem.
—Eu não sei que influencia teve este nome no meu
auditorio!—disse o brazileiro, sorrindo.
—Em que consiste a fortuna de Fernando?—interrompeu
Gastão
com mal disfarçada zanga.
[141]
—Em terras, dinheiro, escravos, navios e
predios—respondeu
Zuzarte—Esta grande labutação demanda
um bom
zelador, que o primo de vossas excellencias, por natural
preguiça, não póde ser.
Ouvi-lhe então dizer, que tendo de sahir para demorada
viagem na Europa, deixava seu advogado no Brazil o honrado Antonio
d'Azevedo, com um ordenado bastante ás suas despezas. Bem
escolhido patrono! Em poucos mezes, o doutor conquistou, no Brazil, um
nome que vale muito grande fortuna, conservando-se lá seis
annos. Alguem me disse que Antonio d'Azevedo amara em Portugal uma
menina nobre, e fôra ao Brazil enriquecer-se para voltar a
casar-se com ella. Se isto é verdade, devem dar-se os
parabens á noiva, que o laborioso moço tinha
lá uma boa fada á sua
espera.
Gastão de Noronha ergueu-se, e disse com impetuosa
acrimonia:
—O senhor sabe que está em casa do pae d'essa
senhora, que
Antonio d'Azevedo cuida comprar com o dinheiro ganhado no Brazil?
—Como?!—exclamou Carlos com a mais magistral
naturalidade—Vossa
excellencia assombra-me! Dar-se-ha caso que seja alguma d'estas
senhoras a menina que... Com effeito! Parece que estamos compondo um
romance!
—Romances d'uma minha filha...—tornou o
fidalgo—Não
fallemos mais d'isso... que a ferida ainda sangra...
—Eu peço perdão se avivei dores e
saudades, sem
[142]
a menor intenção, nem
suspeita de....—disse
Carlos.
—Pois está claro que vossa senhoria ignorava
tudo...—replicou o fidalgo.
E voltando-se a Corinna, soltou um frouxo de mau riso, riso de repreza
cólera, porque lhe vira as lagrimas correrem nas faces a
fio.
Carlos não pôde conter esta
exclamação:
—Que grande e digno amor!
Gastão fitou-o com certo espanto e azedume, e disse, em
occasião opportuna, ao ouvido de sua mulher:
—Não sei o que hei de pensar d'este homem! O acaso
não faz d'estas coincidencias senão nas
novellas...
O incidente passara. O brazileiro encostara-se ao peitoril d'uma
janella com Felismina, e ahi conversaram largo tempo ácerca
dos amores de Corinna e Antonio d'Azevedo. Parece que o apologista do
bacharel se saboreava muito em discorrer de amores alheios, e
não perdia azo de invocar o coração da
menina a
decidir em theses amorosas, que elle muito de industria estabelecia. A
direcção que levou o dialogo, não a
sei eu cabalmente dizer; é certo, porém, que
Felismina,
conversando n'aquelle dia com sua mãe muito á
puridade, lhe disse que o brazileiro lhe perguntara se ella poderia
amal-o. N'essa mesma noite Mafalda revelou ao marido a pergunta. O
marido pensou na resposta, e disse que tinha razões para
suppor que Carlos Zuzarte era homem muito rico. A senhora entendeu as
clausulas
[143]
de tal resposta, e disse a
Felismina que o pae ouvira a noticia com agrado.
—E tu, filha—accrescentou D.
Mafalda—gostas do Carlos?
—Não desgosto, maman.
—E querias casar com elle?
—Se o papá quizesse... Mas olhe que elle
não me
disse que queria casar comigo, maman!
—Bem sei, filha, bem sei; mas assim é que se
principiam os
casamentos. Como o visconde da Cruz cá vem, elle nos
dirá quem é o
brazileiro, e depois, se o partido fôr de vantagem e tu
quizeres, o que ha de fazer-se ao tarde, faça-se ao cedo.
Em quanto esta scena, nem edificante, nem rara, se passava no quarto de
Mafalda, Corinna fôra sentar-se na varanda mais solitaria do
palacete, e o proposito levara alli Carlos Zuzarte, acompanhado de Emma
e Leonor, que lhe andavam mostrando a porção
antiga
do edificio. O brazileiro approximou-se de Corinna em quanto as duas
meninas desceram ao jardim a colher agua em pequenas bilhas, e
disse-lhe:
—Minha senhora! alegre-se que ha de ser feliz! Antonio
d'Azevedo ha de
ser seu marido, porque Deus é justo com os
corações corajosos sem
deshonra. Espere, e vencerá. Faça de conta que
esta
revelação lhe vem do ceo!
—Bem haja!—disse Corinna apertando-lhe a
mão.
No dia seguinte chegou o visconde da Cruz, o bem-vindo
[144]
para todos, e particularmente para Corinna. Carlos
Zuzarte, ao apertar-lhe a mão, murmurou estas palavras:
—Seja discreto, quanto lhe pedi!
—Pois duvída?!—respondeu o visconde.
Gastão, logo que pôde, apartou-se com o visconde,
e teve com elle o seguinte dialogo:
—Será censuravel pedir eu a vossa excellencia
algumas
informações ácerca d'este meu hospede?
—Não é, senhor
Gastão—disse o
visconde—Direi o que souber.
—Este sujeito parece-me excellente creatura.
—Não sei: recommendaram-m'o como pessoa muito
rica. Em
materia de costumes nada me disseram.
—Mas muito rico, sim?
—Já tive a honra de dizer a vossa excellencia que
é muito. Viaja em navio proprio, e podia viajar com estado
de quatro navios...
—Oh! é muito!—interrompeu
Gastão abrindo os
olhos ao tamanho da boca.
—Estou quasi a adivinhar que vossa excellencia observou que
elle amava
alguma de suas filhas!...
—Quem lh'o disse?—acudiu alegremente o fidalgo.
—Ninguem m'o disse, meu nobre amigo, nem eu me orgulho de
adivinhal-o:
quem quer o faria. Qual é a menina predilecta? Naturalmente
a senhora D. Corinna.
—Ora... Corinna! não sei que
distincção é a de
[145]
minha filha Corinna! Não são
tão
formosas como ella as outras?
—São formosissimas todas—respondeu o
visconde—mas aquella
tem mais que as outras um cunho de melancolia...
—De tolice, meu amigo, o cunho é de tolice...
Não é ella; ainda bem que não
é... Corinna tem de dar má sahida com os taes
amores... Deus perdoe a quem contribuiu para aquella demencia...
—Fui eu?...
—Bem sabe que foi, senhor visconde...
—Pois Deus ha de não só perdoar-me, mas
glorificar-me com a satisfação de ter approximado
dois anjos...
—Não sei para quê...
—Para se amarem e darem um exemplo de sacrificio raro,
sublime e
invejavel... Não vim a enfadal-o, senhor
Gastão... Começa vossa excellencia a
enrugar a testa, e tão bom hospedeiro merece melhor
recompensa. Como estão os seus negocios?
—Acabou a questão com meu primo.
—Sim?! e como acabou?
—Desistiu.
—Bello! mil parabens! Não tem, pois, vossa
excellencia nada
que o penalise?
—Estou contentissimo. A minha casa volta a ser, se
não
invejavel pela ostentação, ao
menos pacifica e bastante ás minhas despezas em agradavel
mediania.
[146]
—Precisa vossa excellencia de dinheiro para remir-se de
algumas
dividas?
—Mil graças; ainda tenho algum do producto das
joias.
—Mas quer vossa excellencia resgatar as joias de suas filhas?
Abro-lhe
com franqueza o coração e a
bolsa.
—Dispenso o seu obsequio. Minhas filhas enfeitam-se com
flores:
cá n'estas montanhas o melhor joalheiro é a
natureza. Cada primavera é um milhar de cofres de pedrarias
preciosas abertos por esses montes e veigas.
—Santa e bella poesia!—disse o
visconde—Queria vel-o coherente
comsigo mesmo, meu amigo! Se a natureza lhe dá tantas
riquezas em flores, porque
não ha de querer acceitar das mãos d'ella um
genro dotado com quantas virtudes podem adornar o rei da
creação?
—Um genro! de quem me falla?—acudiu enleado o
fidalgo.
—Fallo-lhe d'um Antonio de Azevedo Barbosa, que sabedor dos
infortunios de vossa excellencia...
O visconde reteve a exuberancia do coração,
talvez indignado, e doeu-se de levar tão longe seu zelo.
Gastão ia pedir-lhe explicações,
quando o visconde, turbado de sua irreflexão, recorreu, ao
avisinharem-se duas meninas, a ir ter com ellas, pedindo-lhes flores
dos seus canteiros.
Emma e Leonor desceram ao jardim, e o visconde seguiu-as. Carlos
Zuzarte passeava n'uma rua abobadada
[147]
de
arvoredo, com Felismina; no tôpo d'esta rua estava Corinna da
Soledade corrigindo umas trepadeiras que descahiam da
direcção que a sua cultora lhes dera.
O visconde estugou o passo; quando a viu, approximou-se, e disse-lhe:
—A sua felicidade está a chegar. Exulte, minha
amiga.
São mais alguns mezes: doire-os com a
esperança, que é um bem quasi egual á
mais querida
realidade, quando se tem a certeza.
—A certeza!—exclamou ella.
—Sim, a certeza.
—Ó senhor visconde, meu bom amigo, diz-me uma
coisa? Como
sabe este brazileiro que eu vou ser feliz?...
—Sabe-o: tem a quasi certeza, e eu tenho a certeza completa.
Deus
não ha de querer desmentir-nos.
Appareceu Gastão ao fundo da rua, e logo o visconde dirigiu
em voz alta perguntas ás meninas que cortavam perto as
flores.
Gastão, ao vêl-o perto de Corinna, disse a
Mafalda:
—Estes populares são uns pelos outros! Parece que
andam
conjurados a darem cabo dos titulos e das raças distinctas!
—Porque dizes isso, Gastão?—perguntou
Mafalda.
—Porque o digo?! Pois não vês o
interesse que
este visconde tem em que a nossa Corinna case com o
[148]
homem de Barcellos! É teima que me ha de fazer
chegar a mostarda ao nariz!
Chegaram á curva da rua onde estavam Felismina e Carlos.
Gastão sorriu-se e passou ávante, dizendo a
Mafalda:
—Tenho a certeza de que é riquissimo o brazileiro.
—Mas plebeu, não é?
—Não averiguei: ha de ser naturalmente. Mas que
pensas tu?
Do modo como por cá está isto, o
homem, se quizer, é conde ámanhan. Tem cinco
navios! cinco navios, Mafalda!... Que te parece? as
intenções d'elle serão boas?
—Creio que sim. A pequena sympathisa verdadeiramente com
elle.
Pareciam dois tolos a brincar á róda do tanque, e
assim que o Carlos lhe pede que cante modinhas brasileiras, ella ahi
vai logo ao piano, e elle morre por ouvil-a. Quando isto é
de quatro dias, que fará se elle se demorar?
—Era uma felicidade, Mafalda! Fortuna de milhões!
Então é que diziamos um adeus á aldeia
e a estes parvos cá do Minho, que fazem consistir a sua
grandeza nobliarchica em terem dois cyprestes á porta,
quatro patos reaes n'um tanque, e um lacaio com grandes botas... Ainda
tenho esperanças de voltarmos a Paris! Aquillo é
que é viver!
—Ai! Paris!—suspirou Mafalda, reclinando a
cabeça sobre o
hombro do marido—ai! Paris!
[149]
XV.
Decorreram alguns dias de excursões pelo Minho e Lima. O
visconde acompanhou o festivo rancho. As meninas iam felizes: a propria
Corinna, com as suas esperanças, egualava as irmans em
contentamento. A espaços, Zuzarte ou o visconde lhe diziam
uma palavra confortadora, de modo que o desconfiado Gastão
não désse fé. No que elle muito
reparava era nas repetidas conversações dos dois
hospedes, que se apartavam da caravana para fallarem com certos visos
de mysterio.
—Em quanto a mim—dizia o fidalgo a
D.Mafalda—o brazileiro consulta o
visconde a respeito de Felismina. Seria bom prevenil-o.
Chegaram a Ponte do Lima. D. Mafalda quiz visitar o carneiro de seu tio
Fernão de Athaide. Ajoelharam todos a orar por alma do
fidalgo. Carlos Zuzarte com tal devoção o fez,
que deu nos olhos de
todos.
[150]
—Parece que é bom
christão!—disse Mafalda a
Felismina—Vê tu que o homem tinha lagrimas nos
olhos, e veio
perguntar-me se eu ajoelhara por formalidade, se por sincero sentimento
de respeito ás cinzas de meu tio! Que pergunta!...
Alojaram-se n'um velho palacio das margens do Minho, onde tinham
nascido os avoengos de Mafalda: era a casa onde expirara
Fernão. As meninas riram muito, e andavam a reboque umas das
outras nos vastos salões esburacados. No quarto onde morreu
o camarista de D. João VI estava um retrato d'elle, roido de
traça e pó, com as
feições quasi apagadas. O brazileiro disse a
Gastão de Noronha que Fernando d'Athaide havia de apreciar
grandemente o mimo d'aquella carunchosa lona. Prometteu Noronha mandar
retocar o retrato, e presentear-lh'o.
Nem Mafalda, nem alguma das meninas quiz pernoitar no quarto, onde
morrera o tio, e estivera inhabitado desde então. Dormiram
n'elle o visconde e o brazileiro.
Dois dias depois proseguiram o passeio desandando para o palacete das
margens do Lima. O visconde recolheu-se ao Porto, e Carlos Zuzarte
ficou ainda sem designar destino.
Abriu-se o theatro lyrico no Porto. O brazileiro convidou a hospedeira
familia a visitarem a galera que elle tinha fundeada no Douro, e a
gosarem-se de algumas noites de theatro. As quatro meninas iam
endoidecendo de alegria com o convite, e mais ainda com a
[151]
condescendencia do pae. Corinna entristeceu-se. A
felicidade adoçava-lhe a solidão agora mais que
nunca. Os sitios onde nos afizemos a scismar e soffrer com a nossa
saudade dão-nos a sombra do ausente que choramos sempre que
a mágoa lá se vai carpir. Se depois nos afastamos
d'aquelles sitios, a saudade já é
dupla: parece que os novos logares, onde imos, nos não
conhecem, nem sabem porque choramos. A nossa dor dera-nos
além um clima nosso; aqui tudo estranhamos, tudo nos parece
em dobro apartado. Esta sensação amarga
adivinhava Corinna da Soledade, quando pediu a sua mãe
licença para ficar com o governo
da casa. Gastão deu a licença sem
constrangimento;
mas Carlos Zuzarte não prescindiu da companhia de Corinna, e
de modo lh'o disse a ella, que a menina não hesitou.
Esperava-os no Porto uma casa nobre mobilada com riqueza. Pasmou
Gastão das rapidas providencias do seu hospede: este disse
que, tencionando residir alguns mezes no Porto, incumbira o seu amigo
visconde da decoração da casa.
Pediu o brazileiro a D. Mafalda se convidava as suas
relações no Porto para lhe honrarem as salas
por occasião d'um baile, que elle queria dar ao visconde da
Cruz. Deu-se um baile explendido, como o fidalgo portuguez os dava em
Paris.
Concorreram as senhoras de primeira sociedade e formosura.
Carlos Zuzarte afigurou-se a muitas meninas um
[152]
bom marido; todas, porém, excepto uma, se abstiveram de
revelar o seu parecer n'um sorriso ao brazileiro, por verem que eram
cinco, e todas bellas, as filhas do fidalgo commensal do ricasso; ora a
exceptuada não deu pêso a isso, e distinguiu-se em
branduras e cortezias que deram na vista.
Felismina foi quem primeiro as viu. Podera não! O seu amor
era verdadeiro, porque disparatou em ciumes. Sahiu das salas,
recolheu-se ao seu quarto, e, nem com ordem do pae, sahiu de
lá. O brazileiro soube isto, e sorriu-se como a vaidade do
coração
sorri. Foi elle, em pessoa, pedir a Felismina que voltasse á
sala: estava fechada por dentro, e disse pela fechadura da porta que
não ia servir de escarneo á sua
rival. Carlos sustentou o dialogo á fechadura, foi eloquente
quanto se póde ser por um tal systema de embocadura de
suspiros, e conseguiu que Felismina promettesse voltar á
sala.
O brazileiro levou á evidencia de todos que amava a filha de
Gastão, desde que o seu perdoavel orgulho se inflou com os
ciumes, acintemente provocados.
No dia immediato jantaram a bordo da galera, que se chamara
Aurora, e n'aquelle dia
appareceu chrismada em
Felismina.
Este successo para
Gastão de Noronha teve o valor do terceiro proclame lido
á missa conventual.
Á noite não sahiram de casa, nem receberam
visitas, excepto o visconde da Cruz, e seu irmão Luiz
Taveira, que, desde o baile, scismava muito com Leonor,
[153]
filha de Gastão, a mais mimosa de todas em
structura, coisa assim como sonho, sylpho, ou quer que era de
imponderavel, que parecia nas walsas uma borboleta de azas iriadas.
Que esperto era aquelle Gastão de Noronha! Deu logo pela
ternura dos olhares de Luiz, e de si para si disse: «Mudam os
ventos, mudam os tempos!»
Estava, pois, reunida a familia, o dono do palacete, e os dois Taveiras
convidados ao desembarque.
Ao retirarem os taboleiros do chá, o brazileiro convidou
Felismina a jogar o xadrez, sob condição de ficar
sujeita á vontade do vencedor a liberdade do vencido.
Felismina annuiu. Todos cercaram os jogadores com anciosa curiosidade.
—Gósto de ver a attenção que
nos
prestam—disse Zuzarte—porque não
é brincadeira
isto.
Esquecia-me, porém, ouvir o senhor Gastão de
Noronha, antes de acceitar a annuencia de sua filha. Vossa excellencia
não vem com embargos, se a sorte fôr funesta
á senhora D. Felismina?
—Quaes embargos!—exclamou Gastão rindo
estrondosamente—E
se ella vencer? haverá embargos por parte do cavalheiro
Zuzarte?
—Ninguem se importa com o meu destino.
—Quem sabe!...—disse Felismina—Tenho
medo....
—Que teme, minha senhora?—perguntou Zuzarte com
meiguice.
Felismina sorriu e córou.
[154]
Jogaram. Os peões, os delfins, o castello, o rei e rainha do
brazileiro, foram todos derrotados e assoprados miseravelmente.
Felismina venceu.
—Estou á sua disposição,
minha
senhora!—disse Zuzarte.
—Está?—acudiu ella com as morenas faces
retinctas de
escarlate.
—Estou: que determina?
—Que fique sendo o nosso amigo sempre; que não
torne para o
Brazil.
—Ficarei. Quer-me então como um parente, sim?
Irmão, tio, primo... veja lá: qual parentesco lhe
quadra mais?
—Seja primo—disse Felismina.
—Pois, sim, seja primo—disseram todas as meninas.
—Pois então venham dar todas um abraço
em seu
primo—tornou o brazileiro erguendo-se—O primeiro
abraço ha
de ser o de minha prima Mafalda, sobrinha de meu pae Fernão
de Athaide.
Houve um spasmo em todas as senhoras, que pareciam, ao encarar-se
mutuamente, perguntarem umas ás outras se tinham entendido o
dizer do brazileiro.
—Então, prima Mafalda!—tornou Fernando
de Athaide—se
não acceita o parentesco que sua filha nos dá,
acceite o que nos deu a natureza. Aqui tem o mau, o perseguidor, o
implacavel Fernando de Athaide! Vingue-se agora, dando-lhe um
abraço de abafar-lhe o ruim coração
que trasborda de felicidade!
[155]
Mafalda correu aos braços de Fernando; Corinna, Emma,
Felismina, Elisa, Leonor, todas a um tempo, pareciam contentar-se com
apertar-lhe os braços. O proprio Gastão abrindo
os seus queria abraçar o
grupo d'um amplexo.
Fernando de Athaide, beijado e abraçado por todas, sentou-se
extenuado, e murmurou:
—Devo esta felicidade a Corinna. Dê-me um outro
abraço, minha prima Corinna: a si devo o que sou agora; a si
é que toda esta familia deve a felicidade que eu posso
dar-lhe.
—A mim?!—disse Corinna.
—Como assim, primo Fernando?—acudiu
Mafalda—a gente não
sabe como é que Corinna deu causa a isto!...
—Eu lhe digo, prima: se Antonio d'Azevedo não
tivesse amado
Corinna, nunca o eu conheceria no Rio de Janeiro; e, se eu
não viesse a encontrar o amigo, o anjo, o honrado amante de
Corinna, creia vossa excellencia que seria hoje o perseguidor d'estas
pobres meninas. Foi elle quem me ensinou, com duas palavras, como o
Christo as dizia aos maus, a ser bom, compassivo e misericordioso.
Vi-lhe lagrimas mal abafadas no coração; e quiz
Deus que ellas me cahissem no meu. D'ellas se gerou a felicidade de
todos nós, de todos, menos a d'elle... Adiante... Elle
está debaixo da mão de Deus... A sua hora de
premio ha de tambem chegar... Meu primo Gastão, eu perdi o
jogo com minha prima: perdi o direito de me revoltar contra as
[156]
suas decisões; mas, ainda assim,
o
coração põe embargos, e vossa
excellencia será o juiz, e minha prima Mafalda tambem. Eu
peço-lhe para minha esposa sua filha Felismina: antes quero
ser irmão que primo d'estas meninas; hei de sentir alguma
vez o prazer de chamar a vossa excellencia pae. Dá-me sua
filha?
—Com orgulho, com soberba, como a não daria ao
primeiro
sangue de Portugal!—exclamou Gastão, conduzindo
Felismina
aos braços de Fernando.
O visconde da Cruz felicitou Gastão, e discorreu com
enthusiasmo sobre o pathetico lance, a respeito do qual tambem eu faria
aqui de vontade um discurso, se o leitor quizesse medir sua paciencia
com o meu fôlego oratorio. A chave de oiro com que o visconde
fechou a parlanda foi apresentar todas as licenças
necessarias para os noivos se receberem na egreja parochial de
Cedofeita, com dispensa de proclames e attestados canonicos do imperio
do Brazil. Isto deu realces de alegria á
sobre-excitação em que todos
estavam. Mafalda queria manter-se em sua gravidade dos quarenta annos;
mas parecia irman de suas filhas. Gastão andava a querer
levantar toda a gente nos braços, e, a fallar a verdade,
não só levantava, mas apertava
as costellas franzinas do noivo com todo o amor dos seus musculos
d'aço, musculos que desmentiam a fidalga placidez, que
é condição das finas
raças. N'estas idas e voltas, Luiz Taveira não
perdia Leonor de olho, e a espiritual menina, com quanto mui angelica,
d'esta vez dava semelhanças d'aquelles anjos despenhados por
crime
[157]
de inveja. O deliquio com que ella
o fitava parecia dizer: «A mim não se me dava de
me parecer com os mortaes n'estas alegrias da mana
Felismina!» A pachorrenta Emma é que se movia
menos n'aquella geral vertigem. Sentou-se a conversar com o visconde, e
teve o descôco de dizer que já se não
podia ter em pé, e que estava saudosa das suas almofadas de
relva nas margens do Lima.
Seguiu-se, dias depois, o casamento. Não foi fallado, nem
estrondoso. Até os jornaes o ignoraram, ou, se o souberam,
vingaram-se da sovinice dos noivos, deferindo para mais galhardas bodas
as quatro phrazes ramalhudas do costume.
Ao jantar concorreram unicamente o visconde, seu irmão, e o
velho pae dos Taveiras, ancião de
muita gravidade e respeito, um dos velhos modelos do commerciante
portuense, coberto de honradas cans, com muita consciencia em logar de
sciencia, e poucas palavras, mas pesadas a oiro, e authorisadas como se
fossem maximas que encerrassem a experiencia d'uma longa vida.
Terminado o jantar, apagado o afôgo dos brindes, e travada
serena pratica ácerca dos verdadeiros bens da vida, Bernardo
Taveira fallou assim:
—Eu, se tivesse uma filha, havia de procurar-lhe marido
dotado com os
verdadeiros bens da vida: que vem a ser saude, honra, trabalho e
religião;
religião bastaria dizer, porque ella encerra tudo. No meu
tempo achavam-se moços bons, que não tinham outro
dote;
[158]
e o homem que acertava com um, dava-se por
feliz, se tinha filha a casar, ou grandes cabedaes a administrar. Eu
não sei se ha muitos d'estes moços n'estes
ruins tempos; o que de véras sei é que os poucos
que
ha, batem ás portas dos ricos, e estes não lh'as
abrem, sem
que elles mandem adiante a certeza de que o seu honrado trabalho
está já em bom fructo de
acções bancarias; e, se elles mostram o fructo,
sem dar ideia da arvore boa ou má que os deu, isso tambem
não importa... Senhor Gastão de Noronha, eu
hospedei em minha casa um moço chamado Antonio d'Azevedo
Barbosa. Era pobre, e sem occupação. Tinha a sua
formatura, a sua habilidade; mas, apesar de amigos protectores,
não tinha que fazer. Muitas vezes eu disse em mim:
«Se eu tivesse uma filha, dava-a a este
moço pobre.» O meu hospede teve razões
para sahir de
Portugal e ir ao Brazil: dei-lhe lá as
relações
dos meus amigos, e a alguns disse eu que o recebessem como receberiam
meu filho. Ia recommendado por sua honra: foi o que mais lhe valeu
lá. Azevedo principiou a trabalhar e logo a ser conhecido
como lettrado. Advoga, e ha de ser rico; e, se não
fôr rico, ha de ser
sempre mais do que isso: ha de ser um thesouro de virtudes. Peza-me
realmente não ter uma filha; mas quando vejo que vossa
excellencia tem quatro solteiras, não resisto á
vontade de lhe pedir uma em nome de Antonio de Azevedo.
Gastão de Noronha ficou estupefacto. Fernando de Athaide
avisinhou-se d'elle, e disse-lhe:
[159]
—O homem veneravel que lhe falla, tem
inspiração
do ceo, meu primo. Acceite a felicidade da nossa Corinna.
—Demora-se a responder, senhor
Gastão!—disse o velho com
ar triste—Eu não queria que os rogos dos
moços
valessem mais com vossa excellencia, que as minhas singelas palavras.
Se alguem aqui pedir mais do que eu, ha de ser a noiva. Senhora D.
Corinna, venha comigo: ha de ajoelhar aos pés de seu pae.
Ergueu-se o tremulo ancião, e tomou a mão de
Corinna, que era toda purpura e lagrimas.
Gastão, sem balbuciar um monosyllabo, fez signal
affirmativo, recebeu a filha nos braços, e osculou-a na
testa.
—Bravo!—exclamou o brazileiro, apertando
convulsamente ao peito o
velho Taveira. A esposada e as outras meninas, salvo Emma, foram beijar
soffregamente a irman; Emma, porém, lá da sua
cadeira de espaldas, disse lentamente:
—Ó Corinna, vem cá
abraçar-me, que eu
não posso bolir comigo de cansada!
Este milagre de inercia fez rir a todos, e desfranziu o semblante de
Gastão. Voltaram á mesa do
toast a brindar Antonio de Azevedo.
O fidalgo concordou sem repugnancia nas saudes propostas, e agradeceu a
ultima do negociante, em nome de sua filha, futura esposa de Antonio
d'Azevedo.
Quando Gastão proferiu estas palavras com enthusiasmo,
[160]
Corinna da Soledade descahiu sobre o hombro de sua
mãe, e desmaiou. Era um deliquio de felicidade, um
arrobamento de bemaventurança como as santas os sentem em
seus extasis de amor divino.
[161]
XVI.
Antonio de Azevedo recebeu, ao mesmo tempo, tres cartas, afinadas todas
pelo mesmo tom de felicidade.
Abriu primeiro a de Corinna da Soledade: era uma surpreza desde o
principio. Noticiava o casamento de Felismina com Fernando de Athaide,
e os miudos successos decorridos até ás palavras
proferidas por seu pae
na occasião do brinde.
A ultima pagina continha o seguinte:
«Ainda estamos do Porto; mas brevemente vamos para Lisboa. O
primo Fernando quer que te esperemos lá, onde se
hão de realisar os nossos sonhos, mais cedo do que eu e tu
suppúnhamos, ó meu
querido Antonio! Vem, vem no primeiro navio que sahir Ás
vezes receio morrer antes da tua chegada. Temo que me acordem d'este
sonho. As pessoas infelizes
[162]
não
podem familiarisar-se com a ideia de
já o não serem! Imaginas tu que terrores me
atormentam, agora, que tão ditosa me sinto, e tão
grata
levanto as mãos ao Senhor! Lembra-me que já podes
amar-me com menos ardor; lembra-me que estás embevecido na
ambição das riquezas...
Ó meu amigo, até me lembra se terás
morrido! Vê tu
se ha mais cruel imaginação! Nem agora me deixa o
mau destino! Parece que se está assim vingando por
não poder aniquilar-me! Acode aos meus receios, vem sem
demora, sim? Fernando é um anjo de bondade; sobra-lhe
riqueza para dar abundancia e alegria a muita gente. Não
será vergonha recebermos tudo de
sua mão. Que lhe diria o visconde a teu respeito, que elle
ficou pensativo?! Perguntei-lhe o que tinha, e respondeu-me que o teu
caracter, por demasia de austeridade, talvez se não dobrasse
á vontade
d'elle. Comprehendo estas palavras: suspeitam que tu
recusarás favores de posição, devida a
influencia estranha.
É porque não sabem quanto me amas, meu querido
amigo! Eu disse a meu primo que ficava pela tua docilidade:
não me deixes ficar mal,
não?
»
A carta de Fernando de Athaide rezava assim:
«O meu amigo espera que eu de Londres lhe escreva, explicando
a surpreza de uma procuração que lhe deixei, a
fim de tomar conta na direcção
dos meus haveres ahi, no caso de eu me demorar na Europa. Escrevo-lhe
de Portugal, onde estou casado
[163]
com minha prima
Felismina. Ja vê que me compuz com Gastão de
Noronha o mais amigavelmente que vossa senhoria podia desejar. Antonio
de Azevedo com duas palavras decidiu do meu destino; e, se
não me engano, abriu uma época de muita
ventura para esta familia, que é hoje a minha, e que deve
ser a sua tão brevemente, quanto depende da sua vinda para
Portugal.
«Eu não lhe peço, apenas lhe digo que
venha. Se necessario fosse pedir, Corinna e eu duvidariamos do seu
amor. Bem sei que ha uma certa dignidade humana, que tem a ferrea
inflexibilidade dos corações duros. Essa, Deus
permittirá que não seja a sua:
se o fosse, a minha gloria seria imperfeita, e essa nuvem bastaria a
toldar esta festiva luz que me alegra a alma.
«Não discutamos tal ponto. Venha, meu
irmão. Os meus negocios deixe-os entregues ao senhor
Valentim da Costa, a quem escrevo.
«Minha mulher offerece uma prenda de noivado a sua futura
esposa: quiz, porém, (caprichos feminis!) que vossa senhoria
fosse o portador da prenda, que ahi lhe ha de ser dada.
«Na proxima semana partimos para Lisboa. Na sua chegada alli
encontrar-me-ha logo.
«Corinna tem as tristezas da duvida. Venha dar-lhe a ventura
que a mais ridente esperança não
póde
dar-lhe
»
A carta do visconde da Cruz incluia a ordem devolvida
[164]
dos seis contos de reis, e a historia minudenciosa que Antonio
lêra na carta de Corinna. Como avaliador profundo do caracter
do seu amigo, o visconde combatia de antemão os argumentos
de independencia com que esperava ser contrariado; rematava,
porém, a carta censurando-se a si proprio por ter julgado
tão frio amante o homem que, por amor d'um anjo, se
expatriara alanceado de desgostos......
Entendam lá o coração humano!
Antonio de Azevedo lêra as tres cartas surprendido, mas
não alegre! Que nuvem negra lhe cobria o quadro bello a que
o chamavam as tres cartas! Que presagio d'alma lhe antepunha
ás delicias convidativas da patria uma visão
triste em que elle parecia cravar os olhos espavoridos!
Valentim da Costa, que raro sahia de casa, entrou n'este momento.
—A alegria dá
forças!—exclamou elle—aqui
está o velho a dar os emboras ao mancebo, que foi mais cedo
compensado do que ordinariamente costumam sêl-o os bons!...
Que é isso?! vossê
está triste, Antonio?! As suas cartas que lhe dizem?
—Que Fernando de Athaide casara com uma de suas
primas.
—E que mais?... Não é chamado para ir
casar com
a sua Corinna?
—Sou.
—E então? vossê não
está
ainda louco de alegria? Não cuida em preparar-se para a ida?
[165]
—Não, senhor; cuido em ganhar a minha
independencia.
Corinna é a filha de Gastão de Noronha, e eu sou
quem era, quando sahi de Portugal. Estou pobre como vim. A patria para
mim é meramente a terra onde nasci; não
é independencia. Quando aqui vim,
foi a legitima vaidade de homem pundonoroso que me aconselhou; o
pundonor aconselha-me agora que não vá acceitar
de mãos estranhas a subsistencia de
minha mulher e de meus filhos. A maior alma é sempre
insignificante ao pé da pequenissima alma em cuja
dependencia está. Eu não quero dizer a Corinna
que lisonjeie seu cunhado pelos favores que lhe devemos. Ser-me-ia um
permanente infortunio recebel-os de Gastão ou Fernando. Sou
homem: devo-me a mim proprio. E os homens que não podem
viver com muito, vão
ás inferiores escaleiras sociaes procurar a mulher que
quadra á sua mediania, e não devem pensar que o
amor os desculpa de irem ás altas classes convidar uma
senhora a descer onde elles estão. Não caso pobre
com Corinna, e tambem não a faço quinhoeira da
minha dependencia. Quando eu tiver ganhado pollegada a pollegada o
torrão que me sustente na patria, então irei.
Agora, meu bom amigo, vou dar-lhe conta da minha amargura, que
é mais que tristeza. Corinna, ao receber esta resposta,
dirá que eu a não amo. Fernando dirá
que sou indigno d'ella. O fidalgo arrancará
do orgulho ferido injurias contra o meu plebeismo. As irmans
hão de dizer-lhe que eu a sacrifico á bruteza das
minhas ambições. A final só terei por
mim a minha
[166]
consciencia pura, se é
que me não ha de pungir a
mágoa de ser assim organisado. Aqui tem, senhor Valentim,
que a minha estrella é má!
—Má!?—exclamou o
velho—É uma estrella de
santificação a sua, meu Azevedo! Sabe o que eu
podia fazer? era argumentar comsigo, e leval-o a convencer-se de que a
dependencia só é vergonhosa quando o dependente
abdica de sua dignidade á força de
fazer-se inutil; dir-lhe-ia que vossê com o seu trabalho de
jurisconsulto, embora mal remunerado, havia de adquirir na patria o
torrão mais que abundante á sua
subsistencia, e que sua senhora e seus filhos viveriam todos felizes
á sombra da mesma arvore; mas...
Antonio de Azevedo interrompeu:
—Os seus argumentos não me moveriam:
perdôe
á minha rebeldia, meu caro amigo. A mediocridade, e ainda
mesmo a pobreza, podem parecer delicias á mulher que ama
contrariada por obstaculos de nascimento ou de fortuna: o amor faz
milagres taes, desfigurando tudo o que está feito e refeito
pelos seculos, e pelo
consenso universal. Quando, porém, o amor cede ao tempo,
á intimidade, aos mais serios deveres da maternidade, e aos
preceitos e preconceitos inexoraveis da sociedade—que acham
sempre
traça de se insinuarem mesmo através do colmado
do trabalhador de enxada—a mãe, que se
vê pobre,
é já
mulher muito diversa da noiva que almejava a pobreza do homem amado. As
flores da poesia fructificaram já em filhos que pedem
alimento, educação e futuro. As amigas de
infancia,
[167]
que pareceram baixas almas por se
terem victimado voluntariamente ao oiro d'um velho e aos epigrammas da
mocidade, lá estão ricas, respeitadas e
vaidosas de seus filhos; e com quanto já não
conheçam a amiga pobre que se deu de
coração ao
coração, culpam-na e condemnam-na do alto da sua
severa abundancia. Ora a mulher, na posição de
Corinna, quando se
vê pobre, dois annos depois de casada, e vê ricas
suas irmans, lembra ao marido que peça o amparo d'ellas; e
se esse marido é Antonio de Azevedo, a verdadeira
desgraça domestica principia para ambos desde esse momento.
Aqui tem o que sou e o que penso. Julgue-me e condemne-me o mundo como
puder e quizer. O meu pensamento era salvar a dignidade de
Gastão sem lhe dar riqueza, por me ser impossivel
adquiril-a; depois eu levaria o meu pouco á familia que
vivia de pouco, e seriamos
felizes todos. Não póde já ser assim.
Estão ricos, ou vivem á sombra do homem rico.
Não serei eu quem vá pedir um logar entre pessoas
que se haviam de acotovellar com o plebeu. Que levaria eu que me
recommendasse? Se eu fosse nobre, daria como merito a minha inutil e
inerte nobreza; assim, filho do povo e pobre, todos, menos a generosa
Corinna, a seu tempo perguntariam uns aos outros: «De que
serve este
homem?» Ora um homem sabe pontualmente quando os outros
perguntam o para que elle serve... Em summa, cá estou no
começo da minha tarefa: Deus
dá-me este pensar para que eu o leve a cabo. Outra cousa,
meu amigo. O visconde da Cruz devolve-me a lettra dos
[168]
seis contos: aqui a tem vossa senhoria para rehaver os
quatro que benignamente me emprestou. Beijo-lhe segunda vez as
mãos.
Valentim ia replicar com razões de muita força,
que lhe suggeriu o talvez injusto juizo que Azevedo expendera a
respeito das mulheres devotadas á pobreza dos maridos,
quando o bacharel foi procurado por um negociante.
Disse o negociante que recebera ordem de entregar trinta contos de reis
fracos a Antonio d'Azevedo, por mandado de Fernando de Athaide,
accrescentando que era tal quantia a prenda de noivado que a senhora D.
Felismina offerecia a sua irman.
O bacharel disse ao negociante que conservasse em sua mão a
quantia, até lhe ser pedida.
Sahiu o depositario dos trinta contos, e o doutor exaltou a bizarria de
Fernando de Athaide, aconselhando Antonio d'Azevedo a não
dar á sua dignidade umas parecenças de soberba.
—É o dote de Corinna, que seu primo lhe
dá—disse Azevedo—Quando eu tiver egual
quantia,
não me pejarei de ir levantar o deposito. Em verdade,
é grande a alma de Fernando, e por isso mesmo se faz digno
de lidar com almas eguaes á sua.
O velho sahiu captivo do moço; mais extremoso que captivo;
sentia-se amar como pae; ser-lhe-ia doloroso apartar-se d'elle desde
aquella hora. No termo da vida, longa vida em contacto com as pustulas
sociaes, aquella paragem, áquem da eternidade, era-lhe uma
[169]
como prelibação das
alegrias dos justos. Pensava
o ancião em dar um adeus á existencia, contente
d'ella, e de si: parecia-lhe que as palavras do consolador lhe
suavisariam o trance. Era já egoista da amizade do seu
Azevedo: disputal-o-ia á mesma Corinna, se o visse em
preparativos de viagem.
—Se eu pudesse dar-lhe desde já a
independencia!—dizia
entre si o velho—Oh! se podia!... Mas, a dar-lh'a, eil-o ahi
está dependente de mim, e a
rejeitar-m'a, e a fugir-me as instancias, e a ser menos meu amigo!
É preciso respeital-o muito para o prender
á minha affeição.
Aqui está a resposta de Antonio d'Azevedo a Corinna:
«Folgo com as venturas de teu pae, e louvo a Deus por me ter
dado uma casual influencia no melhor remedio de seus males. Tudo me faz
crer que tendes em Fernando um bom irmão. Dá um
abraço, por mim, na tua Felismina, e agradece-lhe o valioso
deposito que confiou de mim. Em vez das joias, que vale este dinheiro,
pedir-te-ia, minha Corinna, se estivesses no Lima, que te adornasses de
flores; mas, como vives em Lisboa, os enfeites das flores valem nada
ahi, porque o clima as requeima logo. Esse sol quer reverberar nas
facetas dos brilhantes, senão ninguem dá por
elle.
«Não tens amor aos teus campos e ao teu rio?
Ó minha amiga, ainda me doem saudades das minhas arvores,
ainda peço a minhas irmans que m'as guardem
[170]
e cultivem com amor! Não me culpes, se a
minha saudade ainda vai por esse formoso Portugal fóra, para
além do ponto onde estás,
em busca d'outros amores. Amores são, que eram já
muito em minha alma, antes que tu m'a reformasses para olhar a futuros.
Tinha de meu, quando te vi, um passado de innocentes alegrias. A idade,
cortada de penas, pôde tudo, menos despojar-me do que
lá
está, e está para sempre, nas relvas, nas
arvores, nas serras, e no meu Cávado! Vê tu como a
criança
ainda se gosa das lagrimas do homem!
«Que estou eu a devanear, se tu já tens pressa de
saber porque vai esta carta, e não vou eu!
«Não vou, Corinna, porque é cedo para
ser feliz. O puro e duradouro contentamento custa a merecer, e leva
tempo. As alegrias improvisadas vão como vem. Sobre que
bases assentam as nossas
convenções de coração,
minha amiga? Voltar eu a Portugal com o necessario para a decencia da
posição em que te conheci. Se eu fosse,
faltava-te: tu perdoavas-m'o; eu é que não podia
perdoal-o a mim proprio. A decencia da tua
posição não
a tenho ainda. Sei que anjo és, que doce conformidade seria
a tua: mas o mau, o intractavel, e irreconciliavel com os
tremendos nadas da vida
positiva, sou eu. Venho da desgraça, e conheço-a:
as minhas
relações em Lisboa foram os
desgraçados, e estudei-os. Deus confiou-te de mim como d'um
encaminhador e guarda. É forçoso dizer-te que o
bom rosto da fortuna
só
[171]
está sorrindo aos teus
olhos, porque és
innocente. Se comigo não tem sido boa, tambem já
se abstem de querer enganar-me. A nossa riqueza, Corinna, é
a esperança: esta, juro-te eu, que vale mais que os
milhões de tua irman. Felismina tem tudo que desejava: Deus
sabe o que ella agora deseja!...
«O que tu queres de mim não é muito
amor, e uma casinha além no nosso Minho, e as serenas
alegrias, promettedoras d'um fim de vida socegada? Lá me
tens o coração, e eu cá o espirito
a grangear o mais. Não o tenho ainda: poucos annos
bastarão a esta opulencia, que tão pouco vale
aqui e lá.
Então, sim, então verás que vai aqui
n'este peito a
ufania d'um principe, o santo orgulho d'um operario, que não
inveja principes. Hei de ir procurar-te, não
aos bailes de Lisboa, mas sim aos arvoredos do Lima. De lá
irás comigo, sem atravessares pompas de
cidades, nem magnificencias onde te fique prêso um desejo.
Lá temos ainda á margem do meu rio a casa de meus
paes: que pobre e formosa vivenda! Augmental-a-hemos para vivermos
todos: plantarás novas arvores, e irás tomar o
teu quinhão das flores de
nossas irmans. As tuas arvores virão a tempo com suas
sombras para nossos filhos; e estes, creados nas asperezas dos
montados, e nas asperezas da religião, ir-se-hão
fazendo e formando entre as duas sublimes e unicas poesias: a da
fé e a da natureza.
«A vida, que me tu pedes, é mui diversa, Corinna.
Teu cunhado é um grande em Portugal, quando
[172]
o quizer ser. Teu pae e tua mãe anhelam muita
luz para serem vistos, e embriagam-se nos perfumes da lisonja. Esse ar
a mim empeçonhava-me a vida, e não sei se o
coração. Ahi amava-te
menos, porque perderia o amor de mim proprio, o amor que me extrema do
vulgo, o illustre vulgo, que é o derradeiro plebeismo, sem
individualidade, sem classe, sem mais religião que a das
sensações.
«Corinna, não te aviltes em te julgares menos
amada. Adoro-te respeitosamente; porque sei que rejeitas o sacrificio
da minha dignidade.
«Estamos no ponto onde ha quatro mezes estavamos: a mulher
corajosa espera; e o homem, nobilitado por teu amor, quer ennobrecer-se
para a tua mão. Nada mudou, salvo a
posição de
tua familia. Mas que temos nós que entender com a riqueza de
Fernando de Athaide? A riqueza é d'elle. A mim era-me egual
depender de teu cunhado, ou do visconde da Cruz, ou do primeiro
encontradiço que me offerecesse um obulo. Quando sahi de
Portugal, Felisberto Taveira emprestava-me alguns contos de reis para
eu me estabelecer e casar comtigo. Se então rejeitei um
emprestimo sem desaire, como hei de ir hoje acceitar uma delicada
esmola d'um sugeito que escassamente conheço?
«Isto será amar-me demasiadamente a mim; e
não é menos amar a mulher que está
identificada em
minha vida e honra.
«Adeus, Corinna. A tua alma ha de conservar-se
[173]
immaculada ahi em Lisboa, como lá na
solidão das nossas terras. Se o mundo te não
respeitar, tu
saberás respeitar-te a ti mesma. Ahi e em toda a parte
encontrarei sempre a minha Corinna, cuja animadora imagem eu vejo em
tudo que é adoravel e santo. Adeus.»
[174]
XVII.
As cartas de Antonio de Azevedo a Corinna e Fernando produziram o que
elle até certo ponto vaticinara, fallando com Valentim.
Corinna duvidou do amor, que se desafogava em
dissertações mysticas, e bucolicas saudades
d'arvores e de rios.
As irmans de Corinna, com o louvavel intento de a consolarem, abundavam
no parecer d'ella.
Fernando de Athaide dizia a sua mulher que não podia caber
amor em coração tão cheio
de orgulho.
D. Mafalda dizia ao marido que era moda a gente baixa fingir philaucia
de fidalgos.
Gastão, acidulado pelo dito da esposa, deu para baixo na
peonagem, e declarou que sempre esperava que sua filha levasse uma boa
lição.
Acontecera estar n'este ensejo em Lisboa, e hospede
[175]
de Fernando, o visconde da Cruz e seu
irmão Luiz. A declamação do fidalgo
ferira acremente a
dedicada alma do visconde. Tambem este havia de ter uma carta
explicativa do proceder de Antonio d'Azevedo: esperava-a do Porto, e,
sem a ter lido, não queria arvorar-se defensor do ausente.
Tanto, porém, subiu Gastão em sarcasmos contra o
homem de
Barcellos, que o visconde ergueu-se irado, e
exclamou:
—Senhor Gastão de Noronha! o
homem de
Barcellos, quando vossa excellencia estava em risco
de extrema pobreza...
Corinna correu contra o visconde, e poz-lhe a mão na boca,
supplicando silencio. A prevista menina sabia que duro vexame o pae ia
soffrer com tal
revelação. Calou-se o visconde, e o fidalgo
insistiu na
continuação da phrase, com tregeitos iracundos. O
visconde ia pegar do chapeo, quando Emma lhe disse:
—Não saia assim irritado, visconde. Sou eu que
lh'o rogo.
Parece que Emma podia muito no animo do visconde.
Fernando travou do braço do cavalheiro, e passou
á sala immediata.
—Vossê—disse elle—ha de
dizer-me o resto da phrase. Que
fez Antonio d'Azevedo, quando meu primo estava em risco de extrema
pobreza?
—Mandou-me seis contos de reis para —Mandou-me seis
contos de reis
para eu lhe valer, sem declarar a seu
primo que os mandava elle. No mesmo paquete em que recebi tal ordem,
veio vossê.
[176]
Logo que me revelou
quem era e o intento com que vinha, entendi que a
posição de seu primo estava mudada.
Ainda assim, fui a Vianna, e offereci dinheiro a Gastão.
Como não precisava, devolvi a ordem a
Antonio d'Azevedo.
—Bem—disse Fernando—é
forçoso o segredo?
—É. Corinna valeu-me n'um impeto de
cólera;
agora confio de vossê que a minha palavra, dada ao Azevedo,
se não quebrante.
—Confia bem, visconde. Que admiraveis virtudes as d'este
moço! Sabe vossê que um homem,
conhecedor de taes exemplos de honra, nunca está bem com a
sua consciencia!? Eu não sei o que já hei de
fazer a favor de Antonio d'Azevedo!... Aqui me diz o meu correspondente
que elle deixou ficar o dinheiro em deposito até nova ordem.
Está claro que o não
acceita...
—Clarissimo. Se elle não vem, como iria levantar a
prenda
da noiva?!—disse o visconde.
—Que se ha de fazer, meu amigo?
—Não sei: é esperar que elle tenha o
que julga
necessario á sua independencia.
—Vou dar um passo decisivo!—tornou Fernando, depois
de breve
meditação.
—Qual?
—Vossê verá. Vamos á sala.
Receio que
meu primo diga alguma grosseria a Corinna.
Quando entraram, a pobre menina estava chorando, e Felismina,
lançando-lhe os braços sobre os
hombros, segredava-lhe consolações.
[177]
Fernando approximou-se de ambos, e disse a
Corinna:
—Está tudo remediado. É
questão de
alguns dias.
E, voltado a Gastão, disse jovialmente:
—Olé, primo! o incidente passou: torna tudo ao seu
curso
regular. Aqui não se falla bem nem mal de Antonio d'Azevedo.
Defendel-o seria ultrajal-o. Accusal-o seria um vilipendio. Ninguem
ficou mais nem menos do que era.
Na noite d'esse dia estava Corinna no seu quarto com Felismina, quando
entrou Gastão de affavel semblante. Sentou-se entre ambas, e
disse com mellica entoação:
—Tu és minha filha, és o meu sangue,
tens
pundonor de raça, e deves estar curada, Corinna. Ha muito
quem te pretenda; e teu cunhado deixa-te a
administração dos vinculos para tu poderes
escolher marido. Tens tres bons partidos a escolher. O morgado de
Villar da Rocha está aqui em Lisboa, viu-te, e
perguntou-me se não estavas promettida. Um filho segundo do
marquez de Travassos, familia mais antiga que a Lusitania, fez-me egual
pergunta. O barão da Teixeira, vindo ha pouco da Bahia, com
mais de quinhentos contos, fallou em ti ao Fernando. Escolhe.
—Não escolho ninguem—disse resolutamente
Corinna—O que eu
escolhia era a morte.
—Antes isso que a vergonha da familia!—replicou o
pae.
—Que vergonhas dá ella á
familia?—perguntou
[178]
Felismina com os geitos especiaes de quem tem
dois milhões.
Gastão involuntariamente respeitou a
interpellação da filha millionaria. A bem dizer,
a pergunta era irrespondivel.
D'ahi a pouco estava febril Corinna, e as ancias e soluços
tão frequentes a opprimiram, que a
familia houve medo d'algum accesso de loucura.
Fernando de Athaide, conscio da brevidade do insulto nervoso, disse ao
primo:
—Não volte a injuriar a pobre menina, que a mata a
ella, e
perde a minha estima. Eu hei de necessariamente fazel-a feliz. Se o
não conseguir, maldigo a hora em que a conheci.
Dias depois, Corinna sahira do seu quarto, pallida, desolhada e triste.
O sangue mal lhe acudia ao pulso. As palavras sahiam á
força de caricias. Era
preciso fazel-a chorar para que as lastimas subissem do
coração
aos labios.
Fallavam-lhe em Antonio de Azevedo, e as faces retingiam-se-lhe;
mostravam-lhe o anjo da esperança
a voejar para ella, e o sorriso volitava-lhe em toda a face
até se confundir com as lagrimas de jubilo. Mas este mesmo
jubilo era um accesso de febre. Os medicos tinham-se enganado: aquelle
quebranto de forças e feições eram
prenuncios de
morte. A gente experimentada facilmente diagnostíca
estas insaneaveis doenças: os medicos é que, do
cocuruto da
sciencia, o que ordinariamente palpam n'estes symptomas é
uma doença que entende com o estomago ou com o figado.
[179]
De coração
só conhecem
lezões, turgecencias, hypertrophias, aneurismas,
&c. Tem assim, e por conta da sciencia, morrido muita
gente, que se curava com um raio de alegria e um pouco de
compaixão do mundo.
Fernando encerrou-se com Gastão, e disse-lhe:
—Vou liquidar a minha casa ao Rio de Janeiro. Mandei crenar a
galera.
Parto na proxima semana. Minha mulher vai comigo; e Corinna
irá tambem, se o primo a ama e me estima a mim. Se ficar,
morre; e se morrer, Felismina não quer voltar a Portugal.
—Vai procurar o noivo minha filha?—disse
Gastão
ironicamente.
—Vai procurar a vida; e se Antonio d'Azevedo lh'a
dér, bem
haja o salvador da nossa Corinna!
—Pois que vá: nós partiremos para o
Minho.
—Pedia-lhes que ficassem em Lisboa, e não
alterassem os
costumes de minha casa. Tenho relações que desejo
conservar. Meu primo honrará os nossos amigos, recebendo-os.
Em seu poder fica a porção
da fortuna que tenho em Portugal. A sua estima por mim ha de chegar ao
sacrificio de esperar em Lisboa a nossa volta do Brazil.
Não se fez rogar o fidalgo. Sujeitou-se plenamente
á vontade do genro.
Recebeu Corinna da Soledade a nova da viagem. Alvoroçou-se
até recahir na febre; mas a crise
foi leve, e rapida a convalescença.
A galera de Fernando, construida em Inglaterra, era garbosa, linda e
leveira como um cysne. A tolda
[180]
era um
camaranchel de sedas, como o das antigas gondolas de Veneza. O chrisma
para «Felismina» fadou-lhe mais ricos destinos. O
amor lhe inventara os adornos, os perfumes, as graças e
garridices que só o amor
desentranha de suas fantasias. A sala de ré era uma
ante-camara de sultana. Ia por esses mares fóra aquella
concha de perolas, namorada das auras que ciciavam no velame, imitando
as branduras de suas irmans derramadas pelas moitas dos gestaes. Que
vontade fazia aquella gentil galera de ir ter um mundo na
vastidão do oceano, e não vêr mais que
ella e ceo, e um
ente amado, debaixo das estrellas a espelharem-se nos paramos azues das
aguas! Como alli o coração, golpeado na terra, se
iria contente, se cá d'estes abysmos levasse ainda a salvo o
condão da poesia que faz sahir mundos sobre mundos dos
abysmos do mar!
A galharda galera, como ovante da gentil alma que levava, sahiu barra
fóra com todo o panno e prospera
monção. A festival menina, por esses mares
fóra, sobre a tolda, a scismar, com os olhos lá
no infinito horisonte, d'onde a chamava o esposo, e os favonios a
enfunarem-lhe as roupas alvissimas... que linda ia! julgareis ver a
pomba sobre a arca fluctuante nas aguas já serenas do
diluvio!
Ao vigesimo nono dia de viagem avistaram pharoes das terras de Santa
Cruz.
Corinna, ao repontar da alva, subiu ao tombadilho, e viu a cidade
d'oiro, a rainha do novo mundo, espreguiçando-se do ultimo
somno entre os ceruleos
[181]
coxins do seu immenso
leito com pavilhão de mil flammulas e bandeiras. Parecia-lhe
ver caminhar a terra, mar dentro, a recebel-a; mas tardio era o
avançar da galera a encontral-a.
—D'aqui a meia hora?—disse ella a Fernando.
—Sim, d'aqui a meia hora, minha egoista!—respondeu
o primo, e
continuou sorrindo—D'aqui a meia hora já
não
tens patria, nem irman, nem
cunhado! O Antoninho, que, a estas horas está escrevendo uns
provarás, com o
supremo tedio de que é susceptivel a creatura humana, vai
receber um golpe d'alegria mortal!... Haverá no genero
humano um segundo homem a ponto de experimentar prazer egual?!
É impossivel que elle te não adivinhe, mana
Corinna! salvo se o coração de um jurisconsulto
é tapado a toda a casta de inspiração
divina!
A este tempo, chegava Antonio d'Azevedo Barbosa, ao caes.
Adivinhou, com effeito?—pergunta o leitor.
Nem sombra de presentimento, meu amigo! O que trazia ao caes, e a bordo
de um navio, Antonio d'Azevedo, é successo infausto que tem
uma historia concisa, mas necessaria.
Um dos irmãos do bacharel, Francisco d'Azevedo, era
caixeiro, em Lisboa, n'uma casa de cambio da rua dos Capellistas.
Merecera um bom nome, e cahira em tentação depois
de o ter merecido. As desordens
da vida, as demasias de luxo, a ancia de mostrar-se rico
[182]
aos olhos d'uma mulher que distinguia os moços
ricos, induziram-no a subtrahir, com intenção de
os
repor, capitaes, que excediam os seus ordenados de dois annos.
Francisco jogou na esperança de resgatar-se, e cavou mais no
abysmo de sua perdição. Quasi a
ponto de ser descoberto, quando o patrão dava o
balanço, o caixeiro desappareceu, e fugiu caminho do Brazil,
confiado na reforma de seus costumes, e na possibilidade de ganhar
depressa com que restituir o furto.
Chegou ao Rio, e procurou o irmão. Deu
explicações inventadas da sua ida, e conseguiu
logo, mediante Antonio d'Azevedo, boa casa, bom ordenado e muita
estimação dos patrões.
O bacharel estava contente do expediente de seu irmão.
Lembrava-se que assim mais cedo as irmans teriam bom amparo.
Lia, passados trinta dias, Antonio d'Azevedo o
Commercio do Rio de Janeiro, e
casualmente parou os olhos sobre esta correspondencia, intitulada:
Cautela com os ladrões.
E seguia d'este theor:
«
Fugiu de Lisboa, com
direcção ao Brazil, um caixeiro do cambista F***.
Chama-se Francisco de Azevedo, natural de Barcellos. Desfalcou o
patrão em dois contos de reis. Para que o ladrão
não
logre o bom resultado das suas manhas, avisa-se o commercio do
Brazil.»
Antonio d'Azevedo viu entre si e o jornal um redemoinho de scintillas
de lume, e, ao levar as mãos
[183]aos
olhos, tinha perdido os sentidos. Este lance passára-se no
escriptorio de Valentim da Costa.
Entrara o velho, e ouvira o soluçar cortante do seu amigo.
Interrogou-o com paternal carinho. Azevedo ergueu-se como atordoado, e,
ao sahir, murmurou estas palavras:
—A infamia está ahi escripta n'esse jornal.
Foi ao armazem onde Francisco era guarda-livros; entrou no gabinete
particular do negociante, e encontrou-o lendo o jornal.
O negociante estava correndo a primeira pagina, e a noticia vinha na
segunda.
—Por cá, doutor!—disse alegremente o
patrão de
Francisco—Vem saber como vai o nosso homem? Optimamente.
Estou
contentissimo. É seu irmão, e basta!
Eram frechas que varavam o peito de Antonio de Azevedo! A dor
rompeu-lhe em lagrimas. O negociante viu-as, e exclamou:
—Que tem o doutor?! Alguma desgraça de familia
lá na terra? Morreu-lhe algum de seus irmãos?
—Morreu Francisco—balbuciou o bacharel.
—O quê? morreu Francisco! O doutor está
a sonhar!
Pois não o viu quando entrou?!
—Morreu para a honra—tornou já
serenamente Antonio—Ahi
está na segunda pagina d'esse jornal o ignominioso epitaphio
do desgraçado.
—O quê? que diz o doutor de epitaphio?
Azevedo collocou o dedo indicador sobre a correspondencia.
[184]
O commerciante leu, e fez-se amarello. Depoz o
jornal, levou as mãos aos raros cabellos brancos, e disse:
—Tem razão, doutor! seu desgraçado
irmão está morto!
—Vim para o levar comigo. Queira o senhor dar-lhe ordem de
sahir.
Rogo-lhe a generosidade de não lhe dizer a causa por que o
despede.
Deteve-se a scismar o
negociante,
e disse com energia
de boa alma:
—Vamos ver se o salvamos.
—Salval-o como?
—Vai com outro nome para o Pará.
—O nome não é o infamado; é
elle.
Creia o meu amigo que eu não vim pedir-lhe a sua
protecção para salvar o homem indigno d'ella. Vim
buscar meu irmão.
Foi chamado Francisco.
—Dá contas ao senhor Silva, que vaes sahir de sua
casa.
O guarda-livros fez-se roixo.
—Não ha explicações
previas—tornou
Antonio—Apresenta os livros a teu cargo ao senhor Silva.
—Os livros estão vistos—disse o
negociante—Não
tenho a menor suspeita da probidade do senhor Francisco.
—Suspeita?—atalhou este.
—Silencio!—disse imperiosamente
Antonio—Vamos.
[185]
O commerciante apertou a mão do bacharel, e
lançou ao irmão um olhar compassivo.
Francisco hospedou-se com Antonio. Dois dias depois, recebeu de repente
a noticia da sua volta a Portugal, accrescentada d'estas palavras:
—Entrega esta carta em Lisboa. A pessoa a quem a entregas
irá comtigo a casa do cambista F***, teu patrão
que foi. Darás ao cambista o dinheiro em
que elle se disser roubado por ti. Cobrarás recibo, que me
enviarás. Feito isto, recolhe-te a Barcellos, e pede a tuas
irmans que te dêem um quinhão da sua
subsistencia.
Francisco, lavado em lagrimas, quiz ajoelhar aos pés de seu
irmão, e contar a historia dos seus
desatinos.
—Não ha historia que absolva um
roubo—disse o bacharel.
E no dia seguinte, quando elle acompanhava ao navio o irmão,
é que a vistosa galera
Felismina se baloiçava,
como odalisca, sobre a camilha azul das aguas que reverberavam o sol
nascente, e se cobriam de scintillante lhama de oiro.
Olhem a felicidade de Corinna e a felicidade de Antonio de Azevedo!
[186]
XVIII.
Antonio de Azevedo foi abrir a reprêsa de lagrimas no seio do
ancião que o esperava com as suas, unico balsamo das
supremas afflicções.
—Veja a minha vida!—disse entre soluços
o bacharel—Pensar
eu que o muito trabalhar me daria um quieto contentamento, e que,
além dos dissabores do coração, nunca
teria outros!... E agora estes!
os da ultima deshonra! uma vergonha irremediavel que me priva de olhar
de frente para os homens que estimaram meu irmão por amor de
mim!
O velho, combatendo os escrupulos do moço, teve a admiravel
e inspirada eloquencia da verdade. Declinou a deshonra sobre quem a
praticara, e provou ser aquella desgraça mais uma prova para
aquilatar as virtudes do bacharel. Verdadeiros, mas, ainda assim,
inconsolativos argumentos!
Fallaram longo tempo. Valentim não deixara sahir
[187]
o amigo n'aquella manhan, receoso de que a
solidão lhe amargurasse a mais as apprehensões.
Quando o moço se impunha a si mesmo o preceito da
força para o trabalho, e o velho insistia nos seus
dictames insinuativos de coragem, entrou no escriptorio Fernando de
Athaide.
Antonio de Azevedo, como a desentorpecer-se de um glacial spasmo,
estendeu-lhe machinalmente a mão e deixou-se
abraçar. Valentim fazia um alarido de
exclamações de espanto, que não
deixavam ouvir o adventicio.
—Vejo-o triste e demudado, senhor Azevedo!—disse o
primo de Corinna.
—É oiro que está ainda ardendo da
ultima
prova!—respondeu o velho—A desgraça
cuidou que o
fulminava; mas a honra venceu.
Antonio d'Azevedo fez um gesto supplicante de silencio ao doutor, e
disse a Fernando:
—Ninguem o esperava no Rio, senhor Athaide.
—Foi uma partida repentina. Assim é que se fazem
as coisas!
—Como ficou Corinna?—perguntou Azevedo; e logo as
lagrimas lhe
saltaram a quatro, e uma ancia lhe ressumou á face em suor
frio.
Sentou-se quebrantado, e murmurou:
—Desculpem-me: estou-me fazendo mulher... Estas lagrimas, se
as
não chorasse, matavam-me.
—São de saudade?—disse Fernando.
[188]
—São de desesperança, cuido
eu—respondeu
Azevedo, escondendo os olhos com as mãos.
—Anime-se!—exclamou Athaide—Que
descorçoamento
é esse, improprio d'uma alma de bronze! Azevedo, saia d'essa
lethargia! Olhe que Corinna ama-o como sempre, e espera-o com a
anciedade d'um anjo consolador de todas as suas mágoas.
—Tardia virá a
consolação!—balbuciou
o moço—Deus me livre de a condemnar a soffrer
debaixo da
minha estrella... Escreveu-me ella?
—Que pergunta! Tenho em casa uma carta sem fim, que o meu
amigo ha de
lêr como se ella mesma a estivesse fallando! Venha comigo, e
cuidará que tem entre mãos, não uma
carta, mas o proprio
coração da sua Corinna!
—Agora consinto que vá!—disse o velho.
—E o doutor vem tambem—acudiu Fernando.
—Vamos lá!—voltou o
velho—Vossês os rapazes
andam comigo d'aqui p'r'ali, como se esta gotta não
merecesse respeito nenhum á
geração nova! Ora esperem ahi, que eu vou vestir
a dalmacia, a casaca circumspecta! Sua senhora veio?
—Veio, sim.
—Ah!—disse Azevedo—está
cá a senhora D.
Felismina?!
—Pois eu havia de deixar lá a alma!
Então
vossê não sabe que marido eu sou! Minha mulher sou
eu—disse com festivo semblante o millionario.
Sahiram.
[189]
—Isto veio do ceo!—disse Valentim—Quem
distrahiria o meu pobre
Antonio, se lhe não chegassem os bons amigos da patria! Vai
ter um dia cheio, meu amigo! Quem lhe fallaria com mais ternura da sua
Corinna que a irman querida! Felismina se chama ella: hoje é
que é
feliz
mina de consolações para o meu
desterrado!
Assim, com estes dizeres affectuosos do alegre ancião,
chegaram ao grandioso predio, que Fernando habitava.
Na primeira sala esperava-os Felismina. O doutor, que subia na
dianteira, ao vêl-a, exclamou:
—Sim, senhores! É muito linda! Ha muito que
não
vi d'estes fructos da minha terra! Quero e gosto que as senhoras
brazileiras vejam o que lá ha por Portugal!
Felismina sorriu-se ao galanteio do velho, e abraçou Antonio
d'Azevedo.
—Como está abatido!—disse ella.
—Abatido no rosto, mas Sansão na
alma!—acudiu Valentim.
—Acha-me velho?—disse Azevedo—N'este paiz
acaba-se depressa o homem
que se não exercita muito, e endurece ao fogo do sol. A sua
familia, minha senhora, ficou boa? A senhora D. Corinna?
—Como faz essa pergunta, senhor Azevedo!...—disse
Felismina—Que
frialdade! Dar-se-ha caso que vossa senhoria não ame
já minha irman?
—Por Deus, minha senhora!—respondeu o
moço—Todos
[190]
os infortunios podem menos sobre mim que
uma injustiça, que deixa de ser injuria por ser dita por
vossa excellencia.
—Se elle ama sua irman!—atalhou o
velho—Ó minha senhora,
se os meus cabellos brancos inspiram confiança, creia vossa
excellencia que o meu Azevedo ama tanto sua irman que, por amor d'ella,
excede-se a si proprio na prática das virtudes. Grande e
distincto deve ser o amor que faz o virtuoso! Vicios e crimes
é o que eu tenho visto resultar dos amores vulgares...
—Está o senhor Azevedo ancioso por que lhe
entreguem a
carta de Corinna—disse Fernando—Vai tu buscal-a,
Felismina.
Abriu-se uma porta, e appareceu Corinna, exclamando:
—Não preciso que me tragam!
E cuidam que ella impallideceu, desmaiou, ou, pelo menos, expediu um ai
de procedencia dramatica?
Não, senhores. Corinna entrou de corrida, leve como um
gnomo, a rir e a chorar, purpureada, com os olhos a saltar-lhe
fóra da face, os braços
abertos e convulsos, a respiração como tomada, e
os labios crispando nervosamente, sem poderem proferir o quer que era
de que só os dramaturgos acham sempre uma
expressão insipida, incolor e inverosimil.
Antonio de Azevedo é que (sem desaire seja dito) deu uns
ares de idiotismo, que, na scena, seriam lastimaveis!
Abraçou Corinna, como a medo: era a primeira vez que a
sentia nos braços. Fitou-a como quem duvída;
[191]
remirou-a, como quem teme um
engano dos sentidos; estava-se acordando do sonho; invocava a sua
razão; e, quando a razão lhe mostrou em volta
d'elle todas as faces orvalhadas de lagrimas, é que Azevedo
pôde exclamar:
—Bem hajas, anjo de Deus!...
Imagine agora a minha leitora os successos indescriptiveis d'este
lance. Por pouco imaginativa que seja, vossa excellencia ha de
avultal-o melhor em sua fantasia do que eu poderia dar-lh'o n'esta
pagina. Uma só poesia creou a natureza para taes quadros:
é a
poesia da pintura.
Foram cinco minutos de febre, de delirio, de silencio, de ouvir-se o
bater forte e descompassado de cinco corações.
Ora pintem lá isto, a
não ser em expressão de olhos, de labios, de
feições que
só, em casos d'estes, se vos deparam em pinturas christans,
onde os enlevos são ceo, bemaventurança e alegria
de santos. E
haveis de notar que o proprio pincel profano antes se quer a pintar
expressões angustiosas, porque as visagens da
afflicção mais se prestam ao relevo, como em
Niobe, em Laocoonte, em Ugolino. Quer tudo isto dizer que tenho diante
dos olhos aquelle espectaculo de jubilos, e desisto de descrevel-o para
de todo em todo me não capacitar de minha inhabilidade.
Porque hei de eu dizer tão affoitamente
«espectaculo de jubilos», se Antonio d'Azevedo,
momentos depois, se deixava senhorear da lembrança do
irmão,
banido do numero dos honrados! A candida Corinna encarava
[192]
n'elle com olhos aguados, e no lacerante
silencio de sua alma perguntava a si mesma, que fizera ella para ser
menos amada! De que outro modo se explicaria a tristeza do
moço n'aquella primeira hora!
Não pôde ter-se que o não chamasse a um
ponto mais afastado da sala onde se tinham ficado Valentim e Fernando,
em quanto Felismina sahira a dar ordens.
—Tu estás melancolico, Antonio!—disse
ella, tomando-lhe a
mão com estremecida ternura—Viria eu contrariar a
tua
vontade? Estaria eu enganada comtigo?...
—Vejo-me indigno de ti...—respondeu Azevedo.
—Indigno de mim!—tornou ella crescendo no afago da
expressão convulsa de lagrimas—Pois tu
não tens sido mais que nobre para seres digno da mais nobre
e pura mulher! Quererás que eu te recorde as tuas virtudes,
meu querido amigo!?
—As minhas virtudes—replicou o
moço—tão
frageis eram, que talvez a esta hora tenham sido reputadas hypocrisia.
—Ó filho!—exclamou
ella—desconfio da tua
razão! Muito deves ter padecido para te considerares assim,
quando em volta de mim os teus merecimentos são louvados com
admiração de
todos!...
—Escuta-me para me consolares, Corinna. Deus quiz que tu
viesses
á hora em que toda a
esperança me ia fugindo...
Antonio d'Azevedo contou a Corinna a ignominia de seu irmão,
e levantou a voz de modo que Valentim,
[193]
no angulo opposto da sala, ouviu tudo. Ergueu-se o velho, caminhou para
elles, e interrompeu a
exposição do bacharel.
—Senhor Antonio d'Azevedo, antes do infortunio de seu
irmão, vossê, no Rio de Janeiro, gosava
nome de intelligente, laborioso e honesto; depois do infortunio de seu
irmão, o nome de Antonio d'Azevedo é
proferido com o acatamento de que homem nenhum de sua idade se tem
gosado. Os velhos honrados da sociedade brazileira querem conhecel-o:
os portuguezes citam o seu glorioso procedimento com orgulho. O facto
é de ha tres dias, e tem corrido de bôca em
bôca como raras vezes acontece a uma boa
acção. Ora pois!
Eu sei bem o que é dignidade; achei que a sua se manteve
sempre na altura dos mais dignos homens d'outros tempos; admirei-o e
louvei-o pelo que outros chamariam demasias de orgulho sob capa de
independencia; agora, porém, é chegada a hora de
eu lhe dizer
que, assim como a suave religião se descaminha
até ao
fanatismo execravel, assim a briosa dignidade, se perde o rumo do bom
juizo, vai dar comsigo n'uns excessos rudes, insociaveis e repellentes.
A sociedade applaude os virtuosos, mas desadora os que fazem de sua
virtude uma tribuna para lhe censurar as fraquezas. O excesso do bem
é um mal que não me aproveita a mim, nem a
outrem. Eu quero que Antonio d'Azevedo se mostre alegre para que o
mundo não diga que a honra tem uns pavores interiores
refractarios ao contentamento. A
[194]
boa
consciencia é alegre, senhor. E o melhor beneficio que
vossê póde fazer aos homens é
convencel-os de que vai indo seu caminho, arrancando os espinhos dos
pés, e sorrindo ás novas desventuras que o
impecem. Fallou o velho. Diga agora o anjo, a nossa Corinna, o que
será preciso fazer-se a esta criança
decrepita para a levantarmos do seu abatimento?
—Se eu pudesse...—balbuciou Corinna.
Antonio d'Azevedo levou aos labios a mão de Corinna, e
murmurou:
—Emenda tu os defeitos da minha desgraçada
indole...
Dá-me paz, Corinna; dá-me a
uncção do teu amor, e eu me salvarei de mim
proprio...
—Primeiro passo a dar!—exclamou Valentim da
Costa—O primeiro passo a
dar é casarem-se, meus filhos!
N'este momento entrou Felismina, e disse:
—Está o almoço na mesa.
Valentim continuou:
—Visto que está o almoço na mesa, o
primeiro
passo a dar, meus filhos, é... almoçar!
No decurso da conversação durante o
almoço, disse Fernando de Athaide:
—Ahi vão novidades, meu caro Azevedo. O visconde
da Cruz
casa brevemente com Emma, e Luiz Taveira com Leonor. Eliza tem doze
annos, e já é
pretendida. Quem de certo nos fica solteira é a nossa
Corinna! que pena!
Riram todos, e Valentim exclamou:
[195]
—Solteira! essa é boa! Não consentirei
eu que a
belleza assim seja ultrajada! Aqui está a minha
mão, senhora D. Corinna! É um sacrificio que
faço da
minha isempção; mas faço-o para que
suas
manas se não riam de vossa excellencia.
[196]
XIX.
Tres mezes depois dos grandes successos froixamente descriptos no
anterior capitulo, Fernando de Athaide e sua mulher vinham caminho de
Portugal; e Corinna da Soledade e seu marido Antonio d'Azevedo
habitavam, nos arrabaldes do Rio de Janeiro, uma chacara de modestas
regalias.
O bacharel era ainda o mesmo laborioso jurisconsulto, associado no
escriptorio de Valentim da Costa. Corinna, simplesmente ajudada d'uma
negra, cuidava do lavor domestico, singelo lavor, que isso mesmo tem de
bom a mediania.
Quizera Fernando que seus cunhados ficassem habitando a casa onde se
hospedaram, e Azevedo, já receoso de desagradar com suas
isempções, mal se atrevia a rejeitar os
offerecimentos; porém Corinna, avaliadora dos secretos
desejos de seu marido, simulou vontade de viver no campo, e assim o
desembaraçou
[197]
do desgosto de
acceitar a magnifica vivenda na melhor praça da capital.
Valentim, aconselhando Athaide no melhor modo de haver-se com seu
cunhado, repetia o que no livro divino de frei Luiz de Sousa se
lê, que o cardeal de Lorena dizia, ao embaixador de Portugal,
com referencia ao santo arcebispo bracharense: «.....se o
quereis ter contente, não lhe deis a comer mais que dois
ovos duros.»
Corinna recebêra de Felismina a prenda dos trinta contos
depositados ainda em poder do commerciante. Foi-lhe, porém,
mister guardal-os como cofre de joias, sem lhe dar destino conducente a
alliviar os encargos do marido. Era um dinheiro que não
existia para o bacharel, nem Corinna buscava occasião de
fallar d'elle.
No tocante a felicidade, alguns periodos de uma carta de Azevedo ao
visconde da Cruz dizem o que basta a convencer-nos de que a possuiam,
quanto ella, n'este desterro, se deixa gosar.
«
«Ás seis horas da tarde, quando vou do
escriptorio, encontro sempre a minha Corinna sentada n'um pequenino
ressaio, como se lá diz no meu Barcellos, que tenho
á porta da chacara. Alli é a minha
primeira paragem, em que o espirito se desfadiga do pesadello das leis:
o coração toma absoluto
imperio sobre as minhas outras faculdades, e todo me deixo adormecer na
quietação d'um bem-estar, que
só podem conhecer os operarios d'um dia inteiro, quando ao
cahir da noite, se repousam ao lado da companheira,
[198]
por amor da qual se cansam e recobram.
Os nossos frugaes jantares são rapidos, e assazoados dos
infantis gracejos da minha Corinna, que os tem sempre novos para
encarecer a profusão das iguarias. Depois vamos por esses
caminhos fóra, admirando tudo que nos vem ao encontro a
sorrir: são as arvores e flores de todas as ricas vivendas
d'este luxoso torrão: tudo é nosso, porque, meu
amigo, nada
ambicionamos do que vamos vendo.
«Corinna está-me sempre repetindo a historia dos
nossos amores, que eu acho sempre nova. Os dois bailes do Porto em que
a vi; as primeiras palavras que eu lhe disse, com destemperada lamuria;
os seus pensamentos lá no Lima, dia por dia, e hora por
hora. Sinto-me duplicadamente viver na sua vida passada; parece-me que
estou tomando posse d'uma existencia que devia ser minha desde
então.
«Deito-me cedo para me levantar com a aurora. Corinna
lê até tarde: lê alto em quanto
vê que eu a escuto; depois, vai diminuindo gradualmente a voz
até me ver adormecido. Rirás tu d'esta miudeza de
traços no quadro da felicidade domestica? Se ris, visconde,
mal de ti, que os não has de saber gosar. Uma coisa
magnifica, estrondosa, e apparatosa, que vai pelo mundo, chamada
Felicidade, feitas as
contas,
sabes o que é? É isto, são os
singellos prazeres, que não valem nada descriptos, e
são a
bemaventurança sentidos. E não valem nada, porque
a gente que os lê, pensa que pouco vai de desejal-os a
tel-os.
[199]
Que engano! A mais facil
felicidade é a que requer mais grande
coração e pura consciencia. Se estes bens fossem
communs, todos eramos felizes. Nós antes queremos ser todos
ricos.
»
Valentim da Costa foi, um domingo, jantar com os
seus
filhos, termo de muita amizade
com que elle os acarinhava. N'esse dia se completavam os setenta e nove
annos do ancião. Depois do jantar, desceram a sentarem-se
debaixo das quatro palmeiras, que davam o usurpado titulo de chacara
á casinha dos venturosos. Ahi fallou sempre o velho, com a
perdoavel vaidade de quem sabe tudo do passado, e possue a chave dos
futuros. Ora! por onde elle andou! Foi cavar na raiz da
revolução franceza, contou a vida de
Napoleão, a fuga de D. João VI, as anecdotas da
côrte, a infancia e
juventude do senhor D. Pedro IV, a mocidade estudiosa e as virtudes
civicas do actual imperador do Brazil, e tudo isto para concluir que o
presente era melhor que o passado, e que o futuro será
melhor que o presente. E a tal proposito ajuntou:
—Vossês não façam caso do que
eu
disser, quando elogiar as coisas e pessoas do meu tempo. O
seu
tempo é a balda dos velhos, que, ao
verem-se carregados de tempo, não só querem que
seja
seu—o que ninguem lhes
contesta—;
mas até querem que o tempo d'elles fosse a melhor quadra dos
dezenove seculos que já
lá vão. Ora eu, que sou velho e ao mesmo passo
rasoavel, se duvidasse das virtudes d'este tempo, duvidaria das vossas,
meus filhos. Dizem que a velhice é egoista,
[200]
e morre devorada de odientos ciumes da
geração nova, não só porque
é boa de indole,
que tambem por ser inventora das regalias que vieram tarde para ella.
Deus me livre de ir á eternidade com este trambolho agarrado
ás pernas: bem me basta a gotta! Eu cá
de mim até folgo de acabar, quando começa uma
transfiguração na face da terra, coisa nem sequer
sonhada ha quarenta annos, quando eu e os meus contemporaneos
motejavamos o desconfortavel viver de nossos paes. Não me
dirão o que nós tinhamos mais
do que elles, ha quarenta annos?! Vossês é que
podem rir-se de
mim e dos meus; mas nem por isso lhes quero mal de inveja. O meu amor
á gente nova chega a ponto de eu me desejar morrer no meio
d'ella. Querem-me os meus filhos trazer para sua casa? Eu
estou por alli
sósinho n'aquella rua do Ouvidor, muito rica, e muito
bulhenta. Tenho lá tres pretos e tres pretas a quem quero
dar a liberdade, e os diachos não a querem! Olhem que
é forte mania a dos que dizem que a
escravidão é o antagonismo permanente com a ideia
de Jesus! Se os meus pretos fossem novos, e eu lhes désse
liberdade, os pobresinhos, em vez de irem aos seus sertões
respirar ar livre, assoldadavam-se a senhor que os carregava de
trabalho; ora, como os meus escravos são velhos, os coitados
não querem a liberdade, que para os de sua especie
é uma palavra van. Pois se eu me não posso, nem
devo desfazer d'elles, peço-vos
que m'os deixeis trazer comigo para a vossa companhia. Verdade
é que esta casa é mui estreita para tanta
negraria,
[201]
e commodidades d'um hospede
octogenario. Aqui é que o meu Azevedo ha de mostrar-se amigo
do seu velho. Está alli abaixo uma boa casa, com muito
arvoredo em roda. Vai o meu filho arrendar aquella casa, e recolher-se
a ella com o seu mestre de leis. Faça de conta que eu sou um
pulvereo praxista que vossê tem na sua livraria... O ingrato
não me
responde. Vou voltar-me para a minha filha Corinna. Faz-se o que eu
peço?
—Faz—disse Corinna, sorrindo ao esposo.
—Pois então—tornou o
velho—já d'aqui
não saio. Onde me dais agasalho esta noite? Quero
já saber onde está o meu quarto.
No dia seguinte, Azevedo arrendou a chacara magnifica, mudou para ella
com o ancião, e com os seis velhos escravos e amigos de
Valentim. Logo ao segundo dia, o hospede chamou Azevedo, e disse-lhe:
—Eu tambem tenho a minha dignidade, a minha vaidade e o meu
orgulho.
Quero entrar com a minha quota parte para as despezas da casa, minhas e
da minha pretaria. Arrendamento da chacara, a meias; o importante da
cozinha, isso é cá com o anjo dos
lares, com a nossa Corinna.
Antonio d'Azevedo ia contrariar o velho, e reteve-se ante um gesto de
desagrado, e logo esta risonha exclamação:
—Vossê cuida que tem mais pundonor que eu!
Este viver continuou assim seis mezes. Corinna tinha ouvinte certo
ás suas leituras em quanto o marido
[202]
dormia. Valentim repousava tres horas em cada
noite, e velava as outras, folheando papeis, e dando expediente a
negocios attinentes aos seus haveres. Algumas vezes ia á
cidade em carruagem que comprara n'este ultimo praso da vida,
não tanto para elle, como para os passeios de Corinna.
Valera-lhe a gotta para colorir o presente aos seus queridos
commensaes.
N'este tempo as cartas vindas de Portugal davam a noticia confirmada
dos casamentos de Emma e Leonor. As duas noivas tinham ido para o Porto
com seus maridos, e Felismina com seu marido e o primogenito estavam
nas margens do Lima, ou no palacio reconstruido de Fernão de
Athaide, onde o filho natural mandara acastellar os telhados. Fernando
era já visconde do Ameixial, e estava pasmado da barateza da
coisa, em comparação do muito que dera por uma
commenda cinco annos antes. Tinha sido logrado pelo procurador.
Gastão de Noronha, D. Mafalda e a menina mais nova tinham
ido a Paris comprar mobilia para renovar a
decoração do palacio de Lisboa. Esta era a
razão ostensiva que o publico deve acceitar por ser melhor,
se não a mais ajuizada; mas os indiscretos portuguezes que
então estavam em França, disseram que o ainda
robusto Gastão de Noronha fôra espairecer saudades
de uma duqueza, ou duas duquezas, ou mais seriam, que, pelos modos, em
Paris, isto de amar quatro duquezas é coisa mais que
frequente a quantos portuguezes
lá vão, como eu tenho visto nos apontamentos de
pessoas
[203]
que lá estiveram quinze
dias. D. Mafalda é que ha
de saber a verdade de tudo.
Com estas noticias chegou outra concernente a Francisco d'Azevedo. O
caixeiro chegou a Lisboa, pagou a sua divida, mandou o recibo ao
irmão, foi a Barcellos, vendeu a pequena legitima,
abraçou suas irmans, e tornou a Lisboa, d'onde partiu para a
Africa.
As quatro meninas das margens do Cávado viviam
abundantemente. Seu irmão Joaquim, já
estabelecido e coadjuvado pelos Taveiras, occorria-lhes a todas as
necessidades, dava-lhes tudo, menos o prazer de leval-as ao Porto,
porque o irmão do Brazil, em todas as cartas recommendava
instantemente, que as deixasse estar em Barcellos com as arvores e
flores da casa paterna. Outros dois irmãos de Azevedo, sem
importancia n'esta chronica de familia, exerciam probamente a
profissão do commercio.
—Todos felizes!—exclamou o velho, que ouvira
attentamente
lêr as cartas, como se fossem de familia sua—Todos
felizes!
Só o meu pobre Azevedo ainda a trafegar para o
pão de cada dia! Os dois contos de reis, ganhados nos
primeiros mezes, lá se foram na
restituição do Francisco. Desde então
para cá as economias são impossiveis! Esta
Corinna é uma grande
avára! Tem alli na gaveta trinta contos, que ella chama os
seus alfinetes de noiva, e não os quer arriscar nas despezas
da cozinha! Ora deixa-te estar, minha sovina, que te não hei
de deixar em testamento as minhas tres pretas velhas!
[204]
—O Antoninho não quer o
dinheiro...—disse ella, afagando o
cabello do marido, que ria muito do sainete comico do
velho—Ha que
tempos—continuou ella—eu não vi o meu
thesouro! Vou-lhe
desafiar a inveja, doutor, a mostrar-lhe as minhas notas! ora espere...
Foi Corinna a uma gaveta de sua commoda, e voltou pallida, exclamando:
—Ó Antoninho! mudaste o dinheiro da gavetinha do
meio?
—Eu nunca soube onde tinhas o teu
dinheiro—respondeu placidamente o
marido.
—Não está lá...
roubaram-m'o—bradou
ella.
Dias antes tinha fugido uma negra, alugada para a cozinha.
—Seria a preta?—perguntou tranquillamente o
bacharel—Póde
proclamar-se rainha nas suas senzalas a negrinha!
Corinna mostrava-se afflicta. O marido chamou-a a si, encostou-a ao
seio, e disse-lhe com muita meiguice:
—A tua grande alma, minha filha? Então! ha ahi
dinheiro que
valha uma lagrima tua, Corinna? Imagina que Deus te experimentava,
privando teu marido da saude de tres dias! Que farias então,
minha amada?... Quantas vezes darias os teus trinta contos por uma
tisana que me restaurasse?! Quero só ver-te lagrimas, quando
eu as chorar.
—Tens razão!—exclamou
ella—Estou alegre!
[205]
perdoa á minha fraqueza de mulher, sim?
Quem me visse chorar, julgaria que eu amava aquelle dinheiro inutil!
—Pois sim; tudo isso é muito
admiravel—exclamou o
velho—mas é necessario annunciar a fuga da ladra,
agarral-a
e despedaçal-a com o azorrague!
Antonio de Azevedo ergueu os hombros e sorriu. Corinna fitou os seus
humidos e negros olhos em Valentim, e murmurou:
—Despedaçal-a! Coitada da infeliz!
—Essa agora é que não é
piedade
irreprehensivel, menina!—redarguiu o velho—Chama
coitada
infeliz á negra que lhe rouba uma quantia
que em Portugal se chama
uma
fortuna!... Eu tomo a
negra á minha conta! Ha de ser cortada pelo azorrague!
—Não deixes, Antoninho!—clamou Corinna,
tomando-lhe o
rosto entre as mãos.
—Não deixo, não, filha. O doutor
está
feroz; mas aquillo passa-lhe.
—Ora, senhores—tornou o velho tregeitando
espanto—O nome, que isso
tem em boa hermeneutica, é
fomentar o
crime! A
sociedade não se serve assim! É preciso que cada
qual contribua com o cauterio para lhe extirpar os cancros que a
corroem.
—Parece que está no tribunal,
doutor!—disse Azevedo—A
velha eloquencia é ainda brilhante; mas a lei nova, a lei do
justo que os fariseus azorragaram, manda cahir o azorrague das
mãos do offendido, e castigar moralmente o culpado.
[206]
—Moralmente!—retorquiu o doutor—Com que
então
vossê crê no moral dos negros?!
—Creio na alma dos negros.
—Isso é uma impiedade!
Azevedo riu-se, e, por momentos, duvidou do concerto intellectual do
velho.
Mas, a esta injuriosa duvida, ergueu-se o velho, e caminhando para
elles, com os braços abertos, exclamou:
—Não calumniemos a negra, meus filhos!
Abraçai-me, anjos! Eu quiz experimentar a vossa caridade!
Abraçai-me, —Não calumniemos a negra,
meus
filhos!
Abraçai-me, anjos! Eu quiz experimentar a vossa caridade!
Abraçai-me, santos da honra e da misericordia, que os vossos
trinta contos quem os furtou fui eu!
[207]
XX.
Em uma tarde de maio de 1849, ao oitavo mez de ceo sem nuvens n'aquella
chacara, onde á competencia os tres ditosos moradores se
davam alegrias, chegou o anjo pallido da morte, e sentou-se no limiar
d'aquelle éden, como para vedar o accesso ao anjo do
contentamento.
A um lado do leito de Valentim da Costa estava Corinna da Soledade, com
o cotovello apoiado no travesseiro e a face na palma da mão
esquerda, orvalhada de lagrimas.
Do outro lado Antonio de Azevedo, com as mãos
entrelaçadas debaixo do rosto que encostava á
borda do leito, erguia a espaços os olhos lagrimosos, e
cravava-os
nas faces emaciadas e lividas do ancião.
Aos pés do leito estavam sentadas duas velhas negras
soluçantes, com os rostos escondidos entre os joelhos.
[208]
Na ante-camara moviam-se pé ante pé os restantes
dos antigos servos de Valentim, e cada um por sua vez, de instante em
instante, vinha, por entre os cortinados de cassa, espreitar o enfermo,
e retirava com as mãos postas e o
coração em ancias e
suspiros.
Valentim da Costa tinha sido confessado e ungido n'aquella tarde. A
sciencia retirara ante a irremediavel
decomposição dos oitenta annos.
Mas Corinna e Azevedo não podiam convencer-se de que o seu
amigo havia de morrer assim, quando, a intervallos, o ouviam discorrer
com o socego e energia moral dos mais saudaveis dias. Era a alma
imperecedoira allumiada já pela claridade do empyreo: era a
prova suprema que ella estava dando de sua immortalidade. A cryzalida
desfazia-se, e a borboleta do ceo, n'aquelles assomos de intelligencia,
ensaiava seu voejar para o alto.
O moribundo descerrara as palpebras, e dissera:
—Não devia eu esperar tão suave morrer.
Homem
que viveu sósinho os annos da juventude e força,
morrera sósinho. Não quiz o Altissimo que eu
pagasse amargosamente a minha incuria. Eis-me com filhos e amigos em
volta do meu leito. Bemdito seja o Senhor!
Falleceram-lhe forças, e descahiram as palpebras
transparentes, flacidas e azulejadas.
D'ahi a pouco reabriu os olhos, fez signal a Antonio d'Azevedo, e
indicou-lhe o travesseiro, que forcejou por levantar.
Azevedo correu a mão por debaixo do travesseiro
[209]
e tirou papeis, que offereceu ao ancião. Este
não
pôde erguer os braços quebrantados, e disse:
—Um é o meu testamento; o outro papel é
a minha
despedida de vós. Está escripto ha quinze dias:
escrevi-o quando conheci o fim. Lêde-o vós,
filhos; quero ouvil-o; o coração quer ainda o
goso de se
escutar.
Antonio d'Azevedo abriu vagarosamente a folha dobrada em oitavo, e leu
com tremor de suspiros:
«Um secreto aviso me manda preparar. Não posso
dizer como o santo:—O meu coração
está prompto—; mas vejo o termo da viagem sem
susto. A face
do Juiz transluz misericordia. O meu Creador foi para si que me creou.
«É dôr deixar-vos, filhos;
porém saudades haverá mais pungentes entre os
vivos que se apartam. A providencia divina permitte que o aspeito da
morte seja menos afflictivo, quando em verdade ella está
comnosco. Ai de nós, se este desapego da terra, onde se
é feliz ou se espera sel-o, não existisse! O
morrer custa ruins quebrantos da materia; mas a alma como que se
está despenando e alegrando para ir ao seu destino.
«Vou deixar-vos, meus amigos. Chorai-me, porque vos quiz
muito, e vos fui grato ás doces horas que me
déstes. Chorai-me, porque ao moribundo é
consolador o pranto dos que lhe deram os risos da ventura.
[210]
«Ficaes novos e ricos. Pela vida além haveis de
encontrar muita gente affligida: sêde valedores de todos, e
associai sempre o meu nome á vossa beneficencia. Assim
viverá comvosco uma faisca d'esta chamma, que não
póde ser toda vossa, por ser de Deus.
«Dai-me sepultura, e ide depois para a patria e para os
vossos. Empregai lá a vossa actividade menos em accumular,
que em repartir a sobejidão de vossa riqueza. Quando
houverdes filhos não lhes ensineis a honra do rico, que essa
é facil: ensinai-lhes a honra do pobre, a honra de Antonio
d'Azevedo e a abnegação de Corinna. Vivei de modo
que a vossa descendencia se glorifique do exemplo, quando vossos nomes
estiverem já esquecidos.
«Estou a dar-vos conselhos, como se carecesseis d'elles:
desculpai ao velho este fraco da muita idade. É uma
missão paternal que cumpro. Se eu tivesse dois filhos,
exemplares em virtudes, havia de fallar-lhes assim. Deixai-me acabar
n'esta abençoada illusão.
Admoesto-vos, meu Antonio d'Azevedo, a que deis de mão ao
grande pezo do trabalho. O que hontem era precisão,
será ámanhan
sêde sobre sêde de riquezas inuteis. O bastante
é muito pouco. Da riqueza de vossa alma é que
deveis ser grande dissipador: derramai-a em preceitos, conselhos,
allivios e censuras. O solitario virtuoso é um egoista do
ceo. Ide ao meio do povo e fallai. O homem sósinho
póde ter muito de que alegrar-se; mas não alegra
os milhares
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de infelizes que gemem, e a
gemer se vão
despedaçando.
«Sabei que eu, á custa de sessenta annos de
trabalho, cheguei a esta hora podendo dizer que não tenho um
ceitil. Tudo dei a uns, e perdoei a outros. Os bens de fortuna, que vos
lego, deu-m'os uma herança, no ultimo quartel da vida. Ahi
vol-a transmitto. Foi sempre meu intento deixal-a a pobres: sei que
fica sendo vossa e d'elles.
«Agora abraçai-me, e dai-me o vosso
adeus.»
Antonio d'Azevedo fôra algumas vezes embargado pelas
lagrimas, e Corinna, com os labios postos na mão do
moribundo, soluçava mui anciada. No final da leitura,
Valentim fez um vão esforço de levantar os
braços para receber os dois filhos que se achegaram ao seio
d'elle. Os escravos tinham entrado todos de roldão, e
beijavam-lhe os pés por cima da coberta. O agonisante
relanceou os olhos de sobre elles para a face d'Azevedo, e murmurou:
—Serão vossos amigos tambem... Levai-os... Os
pobrezinhos
morreriam de saudade... e miseria.
Os negros ajoelharam de mãos postas, e oraram. Corinna
insensivelmente ajoelhou tambem, conservando entre as su
Os negros ajoelharam de mãos postas, e oraram. Corinna
insensivelmente ajoelhou tambem, conservando entre as suas a
mão do moribundo.
[212]
CONCLUSÃO.
Passados seis mezes, á porta do quinteiro de uma pequena
granja, visinha de Barcellos, parou uma liteira, d'onde apearam Antonio
d'Azevedo e Corinna da Soledade. Logo em seguida, chegaram algumas
cargas, acompanhadas por negros, em volta dos quaes o rapazio de
Barcellinhos fizera grande alarido de apupos e espirros. Das tres
escravas, uma só resistira á
saudade do senhor; os pretos viviam todos, amparados pelo bom tracto
dos novos amos.
As irmans do bacharel vestiam as suas mais vistosas e secias galas.
Eram quatro frescas moças, robustas, côr escarlate
de quem vende saude, alegria a desbordar do
coração aos olhos, e um rir franco e aberto de
innocencia, e felicidade expansiva.
Corinna abraçou-se n'ellas, que a levaram em andor para o
primeiro sobrado. N'este sobrado, algum
[213]
tanto escuro, rescendia um acre de rosmaninho e alecrim, como em
festividade de presbyterio. Por cima de mesas, commodas, e banzos das
janellas, tudo eram jarras de louça ordinaria com grandes
feixes de dhalias, rozas e folhudos gira-soes. O oratorio estava
aberto, e allumiado o crucifixo com a lampada usual, e mais duas vellas
de cera de meio arratel, voto da mais nova das meninas. Os frizos do
sanctuario eram grinaldas de flores, atadas pelas hastes umas n'outras,
enfeite de menos engenho que apparato.
Antonio d'Azevedo entrou depois de sua mulher; sentou-se em um
tamborete de coiro; descobriu-se, quando deu pela imagem do Christo, e
murmurou:
—Finalmente!
Corinna da Soledade sentou-se á sua beira, e disse-lhe:
—Que celestial graça tem isto tudo, ó
filho!
—Aqui tens a pobre casa onde nasci.
Corinna!...—disse Azevedo,
relanceando em redor os olhos humidos—Isto póde
explicar a
estreiteza das minhas ambições. Moldou-se-me a
alma nas
dimensões acanhadas d'esta casinha. Olha as flores de que eu
tinha tantas saudades! Alli tens a minha banca de estudo...
Lá estão ao lado do oratorio os meus primeiros
livros... Mas como isto é pequeno! Como caberemos aqui!
—Perfeitamente, Antoninho!—disse Corinna.
Entrou, n'este ensejo, Joaquim d'Azevedo, o negociante
[214]
do Porto, que ficara arrumando n'outro sobrado os
bahus.
—Não sei, não sei como hão
de caber
aqui, meus irmãos—disse elle, rindo—Tu
já
sabes, Antonio, que, além d'esta saleta, e dois quartos,
segue-se um casarão velho, e umas oito alcovas, de que os
ratos
estão de posse immemorial. Ora vem ver! Estou certo que a
nossa Corinna vai ficar espavorida!
Abriu Joaquim de Azevedo a porta que abria para o casarão.
Antonio fez pé atraz de maravilhado.
Tinha diante de si uma sala luxuosamente trastejada, com janellas
lateraes rasgadas em arco, e envidraçadas a cores. A
jardineira central estava cogulada de flores raras, e ricas
encadernações de albuns. A um lado
o piano. A outro a othomana e as cadeiras de respaldo em setim
amarello. No centro, o lustre pendente do estuque primorosamente
lavrado da mais engenhosa filagrana. Ao fundo d'esta sala estava um
quarto com recamara, espaçoso, alegre, com alfaias de muito
valor e gosto.
—É o vosso quarto, meus
irmãos—disse
Joaquim—Ao lado tendes outro: será o do vosso
primeiro
filho. Quando os filhos augmentarem, iremos rompendo com o edificio
pelo campo, ou daremos á casa a largura que precisa para
corresponder ao comprimento. O defeito não foi do mestre
architecto: foi meu por tua causa. Era preciso, cá para o
meu plano um pouco de peça magica, que tu visses a frontaria
da velha casa, e não podesses ver o fundo. O que era de
nossos paes,
[215]
está em
pé; tens que farte onde ver o teu
passado; tudo se conservou por amor de ti, que tens lá essa
poesia das casas velhas. Mas has de perdoar que eu tenha destruido o
casarão, antes que os ratos devorassem as nossas irmans.
Antonio abraçou Joaquim de Azevedo com fervorosa alegria, e
este, com o outro braço, apertou Corinna ao peito.
Seguiu-se um dia e muitos dias de contentamento incessante. A cada hora
em que se encontravam juntos, á mesa, no jardim, nos campos,
ou á margem do Cávado, era uma festa, uma alegria
de crianças!
Gastão de Noronha estava já em Lisboa, de volta
de França, onde se deteve um anno a comprar a mobilia.
Aquellas duquezas eram os seus peccados!
Fernando de Athaide desceu do alto-Minho a receber seus cunhados na
quinta do Lima. Tambem Corinna queria ir reconhecer os arvoredos de sua
infancia, e mostrar ao marido os logares onde chorara mais lagrimas de
saudade. N'esta quinta se reuniram as quatro irmans casadas.
Emma, viscondessa da Cruz, tinha nutrido muito; e, com quanto o jubilo
lhe désse azas, não
cessava de queixar-se dos incommodos de tamanha viagem, desde o Porto
alli! Leonor, casada com Luiz Taveira, ria muito da irman gorda,
chamava-lhe o ideal da preguiça, e saltava muito, pendurada
no braço do marido, que era doido por ella. O velho Bernardo
Taveira seguiu os filhos, e fazia discursos, que ninguem lhe ouvia,
[216]
excepto Antonio d'Azevedo, que via
n'elle um dos classicos velhos talhados a molde das virtudes de
Valentim da Costa. Dias depois, chegou Gastão de Noronha,
Mafalda e Elisa, a mais nova, e ainda solteira das meninas.
Gastão, com todo o aprumo de sua fidalga altivez,
approximou-se do genro Azevedo, abraçou-o cordialmente, e
disse-lhe:
—Meu caro commendador!
—Vossa excellencia está enganado!—disse
o attonito
Azevedo—Eu sou, salvo a pequena differença de
alguns
cabellos brancos, o Antonio de Azevedo de 1844.
Gastão tirou da algibeira uma chapa refulgente da ordem de
Christo, e disse:
—Aqui tem! É o meu presente de noivado.
—Muito agradecido a vossa excellencia—disse Antonio
d'Azevedo—Qualquer dadiva de vossa excellencia me alegra; e
esta, que
tanto luz, deve ser muito agradavel entre os brinquedos de meu primeiro
filho.
—Mas eu quero que a use—tornou o sogro.
—Na minha aldeia?—perguntou o genro.
—Em Lisboa, para onde eu quero que o senhor vá
gosar a vida
e a riqueza que tem. A minha Corinna não se fez para o mato
de Barcellos. Não
é assim menina?
—Respeito muito a vontade de meu pae—disse Corinna
com
submissão—mas a nossa casa é em
Barcellos, e as minhas flores estão lá por
aquelles matos. Tenho lá uma segunda familia que me chama, e
á
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qual eu tenho escrupulos de
roubar por mais dias o seu irmão querido. Ámanhan
partiremos.
Antonio de Azevedo, sem temer reparos, cedeu á alma
reconhecida, e deu um beijo na face de sua mulher.
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EPILOGO.
Lá vão quatorze annos.
Não me consta que tenha morrido algum dos personagens que ha
instantes vimos tão alegres nas margens do Lima.
Conhecem romance em que tenha morrido tão pouca gente? Eu
não! Se aquelle santo do Rio de Janeiro não
vergasse debaixo dos oitenta annos, ainda agora podia estar no seio da
patriarchal familia de Barcellos, onde elle tencionava acabar seus
dias.
As irmans de Antonio de Azevedo estão todas casadas, e
senhoras de boas casas de lavoira e numerosa descendencia.
Está ainda solteira Eliza, a irman mais nova de Corinna. Tem
hoje trinta e um annos. É ainda formosa. Se o leitor
é solteiro e rico... (não
será mau que seja rico, para maior segurança)
póde dar a este
romance um supplemento, casando com aquella senhora,
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que está aqui em Lisboa. Eu de muito boa
vontade, na segunda edição d'este romance, darei
a possivel
immortalidade ao acto.
Pude tambem saber que o menino mais velho de Antonio d'Azevedo amolgou
a commenda na borda de um tanque, e acabou por atirar com ella a um
poço. Que grande democrata se está alli criando!
FIM.
Notas:
[1]
O
Snr. Antonio Pereira da
Cunha.
[2]
O
Snr. José Barbosa e
Silva, author do romance==
Viver
para soffrer.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Foram mantidas as
variações de nomes
próprios.