The Project Gutenberg eBook of Nocturnos This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Nocturnos Author: Gonçalves Crespo Release date: November 17, 2013 [eBook #44211] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK NOCTURNOS *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Novembro 2013) NOCTURNOS D'esta edição tiraram-se mais _trinta exemplares_ que não entraram no mercado; sendo: 12 exemplares em papel Japão n.^{os} 1 a 12 12 exemplares em papel Whatman n.^{os} 13 a 24 6 exemplares em papel China n.^{os} 25 a 30 GONÇALVES CRESPO NOCTURNOS LISBOA _18, Rua Oriental do Passeio_ 1882 _Direitos reservados_ LISBOA--Imprensa Nacional A MINHA MULHER MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO _A ti, ó boa e rara e fiel amiga, A mais sancta e a melhor das companheiras, A ti, ó flôr mimosa e alma antiga, --Doce Premio que ris ao meu cançaço-- A ti, ó meu Conselho, estas ligeiras Folhas que ponho a medo em teu regaço._ CONFIDENZA Perguntaste-me um dia a vida que eu levava. Mimosa e eburnea flôr, Em antes de te vêr; respondo-te: sonhava... Ouviste, meu amôr? Não era bem sonhar: ás vezes largo espaço Ficava-me a sorrir Para os quadros que eu via em luminoso traço Nas télas do porvir. Presta-me o ouvido attento, escuta-me, querida, Os que me lembram mais: Assim, fita nos meus, ó pomba estremecida, Os olhos teus leaes! Olha este quadro e vê: o campo alegre e franco, Uma aurora de abril: Da larga estrada á beira um campanario branco, O céu profundo anil. De uma casa á janella uma creança loura, Loura como um trigal: Fiando á luz do sol que leve a sobredoura De aureola ideal. Toda risos e festa a doce creatura Olhava para mim, E eu repetia a sós: «alcanço-te, ventura! Serei feliz emfim!» De um outro quadro então recordo-me saudoso, E alongo os olhos meus Para o quadro gentil, o sonho mais gracioso, Que me cahiu dos céus! Fica ao longe da vil poeira das cidades E do seu vão rumôr, O palacio esquecido; ás horas das trindades, Entremos nelle, flôr! Deixemos os jardins, as aleas, o arvoredo, E o oloroso pomar; Subamos essa escada, agora, a furto e a medo, Comecemos a olhar. É vetusto o salão; em flaccida poltrona Repoisa e scisma alguem: Alguem que nos recorda a imagem da Madona, Grave e sizuda mãe. D'esse alguem no regaço um anjo se reclina Confiado e feliz, Sáe-lhe um arôma subtil da bôcca pequenina. Falla, não sei que diz. É casta essa creança e pura entre as mais puras, Que em sonhos vi jámais; Tem o vago esplendôr das biblicas figuras Dos antigos missaes. É moça e é menina: olhar nenhum ainda De leve a maculou. Dorme no seio della o amôr, a crença infinda Que Deus lhe confiou. Quando ella abre, sorrindo, as palpebras franjadas, Ficamos a pensar Nos mysterios do céu, nas cousas ignoradas Que descobre esse olhar. Deixa que eu me ajoelhe extasiado e mudo, Cego de tanta luz, E que tremulo beije o tépido veludo De seus pésinhos nús! E não córa, bem vês, a candida creança! Antes meiga sorri, E entre risos me diz, compondo a escura trança: «Pensava agora em ti! «Porque tardaste tanto, ó poeta? eu te esperava «Na minha solidão! «Vem os segredos vêr que para ti guardava «Dentro do coração!» Concertáe vossa orchestra, harmonicas espheras, No célico esplendor! Maria, essa creança, ó flôr das primaveras, Eras tu, meu amôr! O VELHINHO A J. Cesar Machado Aquelle que ali vae triste e cançado E mais tremente que os juncaes do brejo. Foi outrora o mais bello e o mais amado Entre os moços do antigo logarejo. Nas fitas d'esse labio desmaiado Quantas mulheres tremulas de pejo Não sorveram os néctares do beijo Dos trigaes sobre o leito perfumado! Hoje é velhinho, e falla dos francezes Aos rapazes da eschola, e ás raparigas Que não cançam de ouvil-o... As mais das vezes Sobre a ponte, sósinho, ouve as cantigas Das que lavam no rio, e o olhar extende Ao sol que ao longe na agonia esplende... ANIMAL BRAVIO A M^{elle} Eugenia Vizeu Preferiras um ramo caprichoso De escolha rara e de um concerto fino, Onde visses o cácto purpurino E os nevados jasmins do Tormentoso. Em vez do ramo exotico e oloroso, Casto recreio d'esse olhar divino, Acceita, Eugenia, este animal felino, Que o meu braço subjuga vigoroso. Tive artes de o amansar: eil-o sereno! Acode á minha voz, e ao meu aceno Como um jaguar á voz de um saltimbanco... Vamos, sonêto! a prumo! ajoelhe, présto! E á doce Eugenia, do sorriso honesto, A fimbria oscule do vestido branco! AD AGROS Não tardes, flôr; a aldeia nos espera, Chovem arômas dos folhudos ramos: Suspensa do meu braço, eia! partamos! Olha-nos Deus da crystallina esphera. Nas manhãs da passada primavera Com que delícia ethérea nos amámos! Iremos vêr os nomes que traçámos No rude tronco em que se enlaça a hera. Não tardes, meu amôr, sei de um caminho, Que sobe a encosta, e vae direito ao moinho, Em cujas vélas bate o vento em cheio... Seguir-nos-hão as aves namoradas, Que ao som das tuas infantis risadas Modularão seu tremulo gorgeio... A NUVEM De Th. Gauthier As roupas deslaçando, entra no banho A languida sultana enamorada: Livre do pente, os hombros nús lhe beija A longa e fina trança desatada. Atraz dos vidros o sultão a espreita; E comsigo murmura: «como é bella! «Ninguem a vê, ninguem! o negro eunucho «Do harem na tôrre solitario vela!» --Eu a vejo, uma nuvem lhe responde Do sereno e alto azul illuminado: --Vejo-lhe os seios nús, vejo-lhe o dorso, --E o seu corpo de perolas colmado-- Fez-se pallido Ahmehd bem como a lua, E erguendo o seu kandjar de folha rara, Desce, e apunhala a nua favorita... Quanto á nuvem... no azul se dissipára... O JURAMENTO DO ARABE A Teixeira de Queiroz Baçús, mulher de Ali, pastôra de camêlas, Viu de noute, ao fulgor das rútilas estrellas, Wail, chefe minaz de barbara pujança, Matar-lhe um animal. Baçús jurou vingança; Corre, célere vôa, entra na tenda e conta A um hospede de Ali a grave e inulta affronta. «Baçús, disse tranquillo o hospede gentil, Vingar-te-hei com meu braço, eu matarei Wail.» Disse e cumpriu. Foi esta a causa verdadeira Da guerra pertinaz, horrivel, carniceira Que as tribus dividiu. Na lucta fratricida Omar, filho de Amrú, perdêra o alento e a vida. Amrú que lanças mil aos rudes prélios leva, E que em sangue inimigo, irado, os odios céva, Incansavel procura, e é sempre embalde, o vil Matador de seu filho, o trêdo Muhalhil. Uma noite, na tenda, a um moço prisioneiro, Recem-colhido em campo, o indomito guerreiro Fallou severo assim: «Escravo, attende, e escuta: «Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta, «Em que vive o traidôr Muhalhil, dize a verdade; «Dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdade!» E o moço perguntou: «É por Allah que o juras?» --Juro, o chefe tornou-- «Sou o homem que procuras! «Muhalhil é o meu nome, eu fui que espedacei «A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!» E intrépido fitava o attonito inimigo. Amrú volveu:--És livre, Allah seja comtigo! NUM LEQUE Amar e ser amado, que ventura! Não amar, sendo amado, é um triste horrôr: Mas na vida ha uma noite mais escura, É amar alguem que não nos tenha amôr! OLHOS DE JUDIA No transparente olhar das virgens da Allemanha Nada um fluido subtil tam pleno de scismar, Que a gente cuida ouvir uma sonata extranha Num castello do Rheno em noites de luar. Flôr do Guadalquivir, gloria da ardente Hespanha, Se dardejas, sorrindo, um teu lascivo olhar, O crespo, o encapellado e procelloso mar Dos desejos febris o coração nos banha. Nos teus olhos porém venusta semi-deia, Como nas mutações de um rapido scenario, Desdobram-se ante mim paizagens da Judeia... Vejo o louro Jesus vagueando solitario, Vejo-o no Horto a chorar, ouço-lhe a voz na Ceia E escuto-lhe o gemido extremo no Calvario. H. HEINE NUMEROS DO INTERMEZZO A M^{elle} Louìse de Almeida e Albuquerque I Rosas e lirios, pombas, sol radiante, Tudo isso outrora, no fugaz passado, Eu adorei constante. E d'esse amôr, que tive immaculado Por lirios e aves e subtis perfumes, Nem já me lembro, seductôra amante, Fonte pura de amôr, que em ti resumes A rosa, o lirio, a pomba e o sol radiante! II De um lirio branco no mimoso calix Se eu a fosse depôr A vaga essencia de meu peito, em breve Escutáras no calice de neve Uma canção de amôr. Canção divina relembrando as ancias, E o languido tremôr Daquelle beijo, em noite mysteriosa, Que me deram teus labios côr de rosa, Meu doce e casto amôr! III Á luz viva do claro sol radioso O lóto inclina a fronte esmaecida, E espera a noite pensativo e ancioso. Rompe a lua, e derrama a luz querida Na corolla mimosa Da pobre flôr que se abre enlanguecida. Pobre flôr amorosa! Olhando o céu e a lua até parece Que, em desmaios de amôr, Treme, palpita, córa e desfallece A scismadora e enamorada flôr! IV Sobre os olhos formosos Da minha doce amada Rimei canções que os astros decoraram; E embalsamei-lhe a bôcca perfumada Em tercêtos graciosos. Innumeras estancias decantaram Seu rôsto peregrino Que os jaspeados lirios escurece. Que sonêto divino Eu rendilhára com subtis lavôres Sobre o seu coração... se ella o tivesse! V Pozeram-te no rôsto o aéreo véu nupcial. Bem sei que te perdi, mas não te quero mal. Brilham do teu collar as pedras luminosas, Mas no teu coração que noites luctuosas! Em sonhos eu desci, ó misera mulher, Ás sombras da tua alma, e vi-te o padecer... Bem sei que te perdi, ó minha doce amada, Mas não te quero mal, és muito desgraçada VI Sei-o; a tua vida é sem ventura, É-nos commum esta funérea sorte. Cáe sobre nós a mesma noite escura, E isto não finda sem que chegue a morte. Se vejo nesse olhar um rir travêsso, E em teu labio a insolencia costumada, E o orgulho inflar teu coração... padeço, E murmuro: «és como eu, tam desgraçada!» Bem sei que ris, mas o teu labio treme: Nos teus olhos azues o pranto brilha: Tens orgulho, e essa voz suspira e geme... Como nós somos desgraçados, filha! VII Se as flôres do balsedo Podessem ver meu peito alanceado, Como allivio ao meu aspero degredo, Mandar-me-hiam, das moitas do balsedo, De seus prantos o balsamo sagrado. Se os rouxinoes da floresta Soubessem quanta dôr me rasga o seio, Para espancar a minha noite mésta, Mandar-me-hiam, das sombras da floresta, O seu mais terno e encantadôr gorgeio. Se as estrellas do espaço Soubessem tudo quanto soffro em vida, Para embalar d'esta alma o vil cançaço, Mandar-me-hiam, dos concavos do espaço, Uma doce palavra condoída. E essa que sabe tudo, O inferno e o horror da minha mocidade, É a dona das tranças de veludo, E das unhas rosadas... sabe tudo E apunhála-me a vida sem piedade! VIII Não me sabes dizer, ó minha amada, O motivo, a razão Porque pendem a face desmaiada As rosas para o chão? Não me sabes dizer porque, no meio Do vasto prado em flôr, Das violetas cáe no roxo seio Um véu de lucto e dôr? Diz-me porque ouço a voz das cotovias Hoje lugubre assim? E porque exhalam mortes e agonias As urnas do jasmim? Por que motivo o sol tam claro e puro De crepes se vestiu? Porque um sinistro pezadelo escuro Sobre a terra cahiu? Bem sei eu porque vejo tudo triste Sem luz e sem calôr... É que tu, pomba branca, me fugiste Meu amôr, meu amôr! IX Disseram-te de mim feios horrôres, De imaginarias culpas me crivaram, E sobre as minhas lastimaveis dôres Um negro véu lançaram! Distenderam os labios sacudindo Com grave e serio gesto a fronte, e ao cabo... (E acreditaste-os tu, meu anjo lindo!) Chamaram-me o Diabo! O que ha de mais escuro e de mais feio Na minha vida, ignoram-no os sandeus, Tam occulto este amôr vive em meu seio, Ó luz dos olhos meus! X Naquella manhã ditosa O sol mandava-nos beijos; Do rouxinol os solfejos Suspiravam na amplidão. Se me lembro, ai! se me lembro D'esse amplexo demorado, Com que tu, meu lirio amado, Uniste-me ao coração! Grasnava o côrvo agoirento, As sêccas folhas cahiam, E uns tristes raios desciam Da plumbea curva dos céus. Se me lembro, ai! se me lembro Da fria e grave mesura Que, naquella tarde escura, Fizeste ao dizer-me--adeus! XI Fôste fiel, no caminho Doloroso que eu seguia, Déste-me alentos, carinho, Meu consôlo fôste, e guia. Déste-me tudo, ó consorte, Roupa branca e até dinheiro! E ao partir para o extrangeiro Compraste-me o passaporte! Deus t'o pague, meu amôr! E um viver te dê tranquillo! Mas que te não faça aquillo Que tu me fizeste, flôr! XII Emquanto eu andava viajando, a minha Noiva gentil, o meu thesouro amado, Julgando que eu tardava e que não vinha, Fez á pressa o vestido de noivado, E um dia, ao pé do altar, entrega anciosa A um fôfo peralvilho a mão de esposa. Nada no mundo a minha amada eguala; Nem eu sei a que a possa comparar! Que doce é o aroma que o seu labio exhala! Que gesto lindo! e que formoso olhar! Suspende a queixa, coração trahido, Deixaste o céu, do céu fôste banido! XIII Quando morreres, filha, ao teu jazigo Descerei taciturno e allucinado, E abraçando esse corpo delicado, No frio marmor dormirei comtigo. E tu muda, e tu fria, e tu gelada! E eu nos meus braços a apertar-te ainda! E nas sombras daquella noite infinda Clamo, estremeço e morro, alma adorada! Os mortos, alta noute, pouco e pouco Erguer-se-hão, ao luar, rindo e dançando; E eu ficarei na sombra, ó sonho louco! No teu seio de jaspe repoisando. E quando a hora chegue em que as trombêtas Do Juizo Final se ouvirem todas, Não surgirás, inveja das violetas, Do escuro leito das eternas bôdas! XIV Do Norte sobre um monte, Alto frio e gelado, Um pinheiro isolado Ergue entre o gêlo a merencoria fronte. Todo tremulo, o misero deseja Ser a esbelta palmeira viridente Que em terra adusta odeia a luz ardente Que sobre ella o implacavel sol dardeja. XV Das minhas penas fiz canções aladas De alegre geito e jovial feição. Vi-as partir em doidas revoadas, E vi-as procurar teu coração. Partem alegres, voltam lacrymosas, Perdido o fresco riso ingenuo e lêdo, Mas do que viram guardam, silenciosas, O mais profundo e lugubre segredo. XVI Eu não posso esquecer, perdão, minha senhora, --Estes laços de amôr custam a desatar-- Eu não posso esquecer, ó minha doce aurora, Que subjuguei teu corpo e essa alma singular... Teu corpo, ai! o teu corpo esbelto, moço e branco, Já foi meu, já foi meu... mas neste instante, flôr, Da tua alma prescindo, e escuta, serei franco, Basta-me a que possuo, ah! basta, meu amôr! Se um dia succeder, que esse teu seio trema De novo juncto ao meu, hei-de insuflar-te, doudo, Metade da minha alma, e então, gloria suprema! De ambos nós, meu amôr, faremos um só todo... XVII É domingo: o burguez deixa os asphaltos, Dando o braço á burgueza; Procura o campo, e, ao vêl-o, exclama aos saltos: «Ó filha, que lindeza!» E pasma do verdôr febril, romantico, Da múrmura floresta; E a sua longa orelha absorve o cantico Da passarada em festa. Eu que não saio, escondo a gelosia Com negros cortinados, E recebo a visita, em pleno dia, Dos espectros amados. E aquelle Amôr que eu vi morrer outrora. No meu quarto apparece! Senta-se ao pé de mim, beija-me e chora, E treme e desfallece! XVIII Rompia a manhã, rompia Alegre como um trinado, E eu ia triste e calado, No meio d'essa alegria, Por entre as flôres do prado... Rompia a manhã, rompia... Vendo-me, as flôres do prado Mais as rosas do silvedo Cochicharam em segredo... E erguendo os olhos, a medo, Num tom de voz repassado Da mais branda languidez: «Como elle vae irritado, «Os olhos fitos no chão! «Perdôa por esta vez, «Não ralhes com ella, não?» XIX Na tua face ardente e avelludada Encandeia-se a luz do quente Estio, Mas no teu coração, ó minha amada, Habita o Inverno enregelado e frio. Mas quem assim te vê bella e formosa, Verá mais tarde o Inverno tôrvo e feio Nessa tua gentil face mimosa, E o rubro Estio no teu branco seio! XX No momento do _adeus_ succede que os amantes Se abraçam, a chorar, com vozes soluçantes. Força, é força partir; a mão prende-se á mão, E uma infinda tristesa inunda o coração. Para nós, meu amôr, nessa hora de agonia Não houve o padecer que as almas excrucia: Foi grave o nosso _adeus_ e frio, e só agora É que a Dôr nos subjuga, e a Angustia nos devora. XXI Sonhei: de novo suspirava o vento Das tilias sob a cupula odorante; E como outrora ouvia o juramento Do teu amôr constante. Que protestos de amôr nesse momento! Mas na febre dos beijos que me deste, Como para gravar teu juramento Em meus dedos mordeste! Dona do riso alegre, ó meu tormento! Dona de olhos azues, ó minha amada! Já me bastava o doce juramento, Foi de mais a dentada! XXII Chorei: sonhava e era comtigo, estavas Morta num cemiterio, fria, fria... E, ao despertar, senti que o pranto, em lavas, De meus cançados olhos escorria. Chorei: sonhava e era comtigo, rosa; Havias-me, sem dó, abandonado: E, ao despertar da noite tormentosa, Tinha o rôsto de lagrimas banhado. Chorei: sonhava, e era comtigo, ó linda! Dizias-me, a sorrir, «como eu te adoro!» Desperto, e logo numa angustia infinda, Eis-me a chorar de novo e ainda choro! XXIII Batido do torvelinho O bosque palpita ao açoite Do vento outomnal; é noite. Monto a cavallo e metto-me a caminho. E este inquieto pensamento, E esta phantasia errante Levaram-me nesse instante Ao teu virgineo e candido aposento. Os cães ladram; nas sonoras Escadas assoma gente, E eu no marmore luzente Faço tinir as rútilas esporas. No teu quarto da baunilha Vôam cálidos arômas; Tu dormes, soltas as cômas, E eu nos teus braços cáio, minha filha! Soluça o vento magoado: Diz um carvalho altaneiro: «Cavalleiro, cavalleiro, «Suspende o teu sonhar allucinado!» XXIV Eu enterro as canções de amôr e o fel amargo Do meu triste sonhar: Quero um caixão profundo, immenso, vasto e largo; Depressa, ide-o buscar! Um caixão formidando, um féretro-portento, Que sobreexceda e vença O pêzo sobrehumano e o enorme comprimento Da ponte de Mayença. Trazei-m'o sem demora; eu hei-de enchêl-o em breve; Vereis a promptidão. De Heidelberg o tonel será pequeno e leve Ao pé d'esse caixão. Doze gigantes quero, o aspecto feio e rudo, E de um vigôr sem conta, Que me façam lembrar Christovam, o membrudo, Que em Colonia se aponta. Gigantes, balouçae o féretro luctuoso! Vamos! agora, ao mar! Cova maior existe? Abysmo assim grandioso Difficil é de achar. Sabeis porque eu desejo um féretro assim largo, De vastas dimensões? É que enterro, infeliz, o amôr, o fel amargo Das minhas illusões. O MINUÊTE Ao dr. Thomaz de Carvalho Espaçoso é o salão: jarras a cada canto; Admira-se o lavôr do tecto de páu sancto. Cadeiras de espaldar com fulvas pregarias: Um enorme sophá: largas tapeçarias. O purpureo tapete aos olhos nos revela Entre as garras de um tigre anciosa uma gazella. Retratos em redor: olhemos o primeiro: No Tóro as mãos de Affonso o armaram cavalleiro. Era Arcebispo aquelle: esta foi açafata... Que frescura sensual nos labios de escarlata! Olhos revendo o azul que sobre a Italia assoma: Em finos caracóes, a loura e ondada côma: Collo robusto e nú: cabeça triumphante: Consta que certo rei... passemos adeante! Este, que vês, morreu num africano areal Por vingança cruel do aspero Pombal. D'esse olhar na expressão infinda e inenarravel Desabrocha uma dôr profunda e inconsolavel. Defronte, uma donzella, o rosto meigo e afflicto, Num extasis adora o pallido proscripto. O teu sonho nupcial, franzina morgadinha, Tam cedo se desfez, ó misera e mesquinha! No burel escondeste o viço e a formusura, E desmaiaste, flôr, no chão de uma clausura!... Repara nos desdens do fôfo conselheiro, Que sorridente aspira a flôr de um jasmineiro! Em canones doutor: no Paço foi bemquisto: Orna-lhe o peito a cruz de um habito de Christo. Esse outro combatendo ás portas de Bayona, Como um bravo, alcançou a rútila dragôna. Vibra flammas do olhar; cabeça erecta e audaz; Illumina-lhe o rôsto a gloria de um gilvaz. Assistímos, ao vêl-o, ás pugnas carniceiras, E ouvimos o clangôr das musicas guerreiras... No antiquissimo espelho, á sombra das cortinas, Reflecte-se o primôr de argenteas serpentinas. Sob o espelho se aninha um cravo marchetado, Mimo outrora da casa, e prenda de um noivado. Ao lado um cofre encerra, em amoravel ninho, Antiga partitura em velho pergaminho. Uma noite extendi a musica na estante, E o cravo suspirou... naquelle mesmo instante Da eburnea pallidez doentia do teclado Manso e manso evolou-se o arôma do passado. E vi descer do quadro a languida açafata Que, ao discreto pallôr das lampadas de prata, A fimbria alevantando azul do seu vestido O rôsto acerejado, o gesto commovido, A sorrir, deslisou graciosa no tapête, Dançando airosamente o airoso minuête... O COVEIRO A Alberto Braga Elle entrou cabisbaixo e silencioso Na immunda tasca, e foi sentar-se a um canto; Deram-lhe vinho, recusou, o espanto Cresceu no olhar do taberneiro oleoso. Elle era o mais antigo e o mais ruidoso Dos freguezes da casa: ao obsceno canto Ninguem prestava mais lascivo encanto Ao som magoado de um violão choroso. Mas o velho sentára-se distante Da alegre turba, a vista lacrymante Mergulhada nas chammas do brazido... Disse um da roda: «espanta-me o coveiro!» --Morreu-lhe ha pouco a filha...--distrahido Volveu da bisca um contumaz parceiro. ADEUS! Uma vez, numa camara elegante, De um contador no marmore de rosa, Entre os mil nadas feminis que exhalam Uns aromas subtis que nos embalam, Vi uma concha pallida e graciosa. Sentira eu nella um som confuso e triste, Como o dos sinos em remota aldeia; Pobre concha! morria de saudade Daquella vaga e triste immensidade Do mar que chora na deserta areia. Olha, querida, como nessa concha, Anda chorando em mim continuamente Essa timida voz que tu soltaste, Essa palavra ADEUS que murmuraste Aos meus ouvidos languida e tremente! CAMONEANA I NA EGREJA DAS CHAGAS Ao dr. A. A. de Carvalho Monteiro Proxima vinha a nobre Catharina Da porta principal da egreja, quando Seu olhar encontrou suave e brando O olhar de um moço de presença fina. E, ao fulgôr d'esse olhar ardente, inclina A dama o rôsto, timida, córando... Arfa-lhe o niveo seio, palpitando, Em doida e extranha commoção divina. Camões, que outro não era o moço, ardido, Num gesto de galan desvanecido, «Quem vos pudéra merecer!» murmura. E a dama, ao ouvil-o, languida sorria, Pois que em todos os tempos a ouzadia Ao amôr nunca trouxe desventura. II A LEITURA DOS LUSIADAS A Vicente Pindella Do moço rei defronte, esbelto e cavalleiro Camões recita; a côrte, silenciosa Ante a rubra explosão do cantico guerreiro, Admira essa Epopeia enorme e prodigiosa. «... Ruge a electrica voz do Adamastôr furiosa; «Nas amuradas canta o alegre marinheiro; «Do Oceano á flôr scintilla a esteira luminosa «Dos pesados galeões do Gama aventureiro. «Terra! grita o gageiro; e á praia melindana «Desce douda e febril a gente lusitana «Desfraldam-se os pendões ao claro céu do Oriente...» Da gloria ante o esplendôr o olhar d'El-Rey fulgura; O Camara no emtanto, alma sombria e escura, No rei os olhos crava, e ri felinamente. III ANNOS DEPOIS A Bernardo Pindella Juncto de um catre vil, grosseiro e feio, Por uma noite de luar saudoso, Camões, pendida a fronte sobre o seio, Scisma embebido num pesar luctuoso... Eis que na rua um cantico amôroso Subitaneo se ouviu da noite em meio: Já se abrem as adufas com receio... Noite de amôres! que trovar mimoso! Camões acorda, e á gelosia assôma, E aquelle canto, como um antigo arôma, Resuscita-lhe os risos do passado. Viu-se moço e feliz, e ah! nesse instante, No azul viu perpassar, claro e distante, De Natercia gentil, o vulto amado... ESPHYNGE Traducção de uns versos de Alexandre Dumas escriptos num leque em que estava pintada uma Esphynge Que me queres, Esphynge? O que procuras? diz-m'o: Se do poeta o segredo intentas penetrar, Desce dos annos meus ao tenebroso abysmo, Verás o Amôr aos Vinte e aos Sessenta o Pesar. Sim, Pesar, não de haver lançado aos quatro ventos Com prodiga loucura o verbo triumphante, A ambição, o dinheiro, os risos e os tormentos, E as auroras de abril que passam num instante! Mas Pesar de sentir dentro em meu peito agora, Como accêso vulcão em gêlos sepultado, Do juvenil desejo a flamma que devora, E de não poder mais, amando, ser amado! A CEIA DE TIBERIO Ao dr. J. Frederico Laranjo Opulento é o festim: em todo o vasto imperio Outro não houve egual. Caprêa a dissoluta, O retiro de amôr do perfido Tiberio, Illuminada ri. Ao longe Roma escuta O confuso rumôr da tenebrosa orgia: Assim geme, assim ronca o mar em funda gruta. Fascina, attrae, seduz, e os olhos extasia A imperial vivenda: a sala é deslumbrante: Ouro e gêmmas sem fim confundem-se á porfia. Das lampadas rebrilha o lume coruscante; Nos triclinios esplende a purpura escarlata, A fina tartaruga e o sandalo odorante. Aos angulos da sala, em primorosa prata, Erotico esculptor grupos fundiu lascivos, Em cujos membros nús Volupia se retrata. Resaltam da parede os satyros esquivos Sob o pampano alegre: as nymphas, em corêas, Dançam na riba, em flôr, de arroios fugitivos. Em marmórea piscina enroscam-se as murêas, Dos patricios de Roma o pabulo dilecto, Vezes sem conto, escravo, ali rompeste as veias! Pendem verdes festões do primoroso tecto, Pyrrheico ali pintára um matagal folhudo, E um lago crystallino, encantador, discreto. Diana ao sol enxuga as tranças de veludo, Acteon espreita ancioso, e, ó rapida alegria! Aos poucos se transforma em cervo ramalhudo. Em Miléto foi tincta a azul tapeçaria, Que nas mesas se extende e nos mosaicos dorme; Dos velarios se escôa o arôma que inebria. A festa é no pendor: num áureo prato informe Eis que entra um javali, formosas gaditanas Dançam em derredor. Ulula a grita enorme. Jorra o vinho de Kós purpureas espadanas; Dos convivas na fronte enlaça-se a verbena, Preludiam no emtanto as frautas sicilianas. Adoudada suspira uma canção obscena: Fervem beijos no ar, os seios pulam, crescem E desnudam-se á luz, Tiberio assim o ordena. As matronas, ao vêr o duro gesto, obedecem, E lá passam gentis, deslisam mansamente Dos marmores á flôr; são nuas, endoudecem! Um retiario nervudo, e um gladiador valente Combatem, são leões; o pallido vencido Mistura o sangue rubro ao vinho rescendente. Ora Tiberio ri... Mas subito um gemido Longo e triste chorou nos paços de Caprêa... Indagam: talvez fosse o gladiador ferido... Nesse instante Jesus morria na Judeia! TRIO DE POETAS I JOÃO DE LEMOS Ao Visconde de Pindella Na cidade gentil do austero estudo Sobranceira ao Mondego socegado, Em cuja riba o sinceiral folhudo De rouxinoes suspira gorgeiado, Fôste erguido no concavo do escudo Pelos moços de outrora, e celebrado Trovador, cavalleiro, e namorado... Tempo de glorias! Como passa tudo! No emtanto ás vezes, na provincia, quando A um dôce, honesto e feminino bando Digo a LUA DE LONDRES, de repente Da infancia volvo á candida simpleza, E ondulam na minh'alma vagamente Tremulas notas de fugaz tristeza. II JOÃO DE DEUS A Anthero do Quental Sempre que o leio, sinto-me captivo De um não sei quê, de infinda suavidade, E entram commigo uns longes de saudade, Que me deixam sizudo e pensativo. Sonho: quizéra, em triste soledade, Viver das gentes apartado e esquivo, E erguer-me a esse planeta primitivo Onde resplenda a eterna mocidade. Já o seu nome é tão suave e brando, Tão eufonico, meigo e delicado, Que fica nos ouvidos suspirando... Diz a lenda que vive descuidado, RAMOS tecendo, e FLORES emmoitando, Da Chymera nos seios reclinado. III JOÃO PENHA A Augusto Sarmento Nervoso mestre, domadôr valente Da Rima e do Sonêto portuguez, Não te eguala a pericia de um chinez Na pintura de um vaso transparente. Ha no teu verso a musica dolente Da guitarra andaluza, e muita vez Rompe em meio da extranha languidez O silvo estriduloso da serpente. No VINHO E FEL traçaste o escuro drama Em que soluça e ri, na extensa gamma, Teu desgrenhado amôr, doido e fatal... Mas se do peito ancioso o dardo arrancas, Teu canto exhala as alegrias francas De uma rubra Kermesse colossal. CHYMERAS A meu tio João de Almeida e Albuquerque O mar já me tentou: aspirações fogosas Fizeram-me idear phantasticas viagens; Eu sonhava trazer de incognitas paragens Noticias immortaes ás gentes curiosas. Mais tarde desejei riquezas fabulosas, Um palacio escondido em múrmuras folhagens, Onde eu fosse occultar as candidas imagens Das virgens que evoquei por noites silenciosas. Mas tudo isso passou: agora só me resta Das chymeras que tive, uma visão modesta, Um sonho encantador, de paz e de ventura. É simples; uma alcôva, um berço, um innocente, E uma esposa adorada, envolta, a negligente! De um longo penteadôr na immaculada alvura... ODOR DI FEMINA A Alberto Pimentel Era austero e sizudo; não havia Frade mais exemplar nesse convento; No seu cavado rôsto macilento Um poêma de lagrimas se lia. Uma vez que na extensa livraria Folheava o triste um livro pardacento, Viram-no desmaiar, cahir do assento, Convulso, e tôrvo sobre a lágea fria. De que morrêra o venerando frade? Em vão busco as origens da verdade, Ninguem m'a disse, explique-a quem pudér. Consta que um bibliophilo comprára O livro estranho e que, ao abril-o, achára Uns dourados cabellos de mulher... EM CAMINHO DA GUILHOTINA Á Senhora Condessa de Sabugoza A _viuva Capet_ vae ser guilhotinada. Ora naquelle dia o povo de Pariz Formidavel, brutal, colerico, feliz, Erguera-se ao primeiro alvôr da madrugada. No caminho traçado ao funebre cortejo O povo redemoinha; Que todos sentem n'alma o tragico desejo De ver como Sansão degolla uma rainha. Da carreta em redor ondeiam os soldados; De cima dos telhados Da rua, dos portaes, dos muros, dos balcões Chovem sobre a rainha as vis imprecações. Ella comtudo altiva erecta e desdenhosa Olha tranquillamente Para o revolto mar da plebe tumultuosa. E emquanto aquelle povo inquieto e repulsivo Anceia por ouvir o grito convulsivo E o derradeiro arranco D'essa mulher, e ri abominavelmente, Um homem só, o algoz, vae triste e reverente. Póde nascer ao pé da forca um lirio branco. A carreta parou. Desce a rainha. Nisto Viram-se uns braços nús Erguerem para o ar, á flôr da multidão, Uma loura creança, alegre como a luz, Suave como o Christo, A quem talvez faltando em casa a enxerga e o pão, A mãe quizera dar aquella distracção. No primeiro degráu da escura guilhotina A rainha de França Ergueu o olhar e viu essa gentil creança Levar a mão á flôr da bôcca pequenina, E atirar-lhe, a sorrir, um beijo doce e honesto... E ella que fôra audaz, heroica e resoluta, E ouvira, com desdem, da plebe a injuria bruta, Ante a esmola infantil, graciosa, d'esse gesto, Chorou. «Chorou, emfim! A infame succumbiu!» De entre o povo uma voz selvatica rugiu. A VIUVA Á Senhora D. Margarida Street Fóra de portas vive. É silenciosa A modesta vivenda em que ella habita, Ali correu-lhe a vida bonançosa, Ali golpeou-lhe os seios a desdíta. Raro de quando em quando uma visita Novas lhe traz da vida tumultuosa, E ella sorrindo a furto, descuidosa, No azul os olhos em silencio fita. Sósinha e triste a pallida viuva, Por essas noites de invernia e chuva, A um honesto e feminil labor se entrega. E, alta noite, levanta, em dôr sepulta, O olhar, que fixa, e demorado prega No eterno Ausente que num quadro avulta. FLÔR DO PANTANO A Bulhão Pato É pequenina e séria, E tem o gesto grave Da filha de um burgrave, A candida Valeria. Não ha flôr mais suave, De essencia mais ethérea, E abriu-lhe a vida a chave Do Vicio e da Miseria! Na sua loura côma Nunca passou o arôma Dos beijos maternaes. Ó credula Ignorancia, Esconde áquella infancia O nome vil dos paes! A RESPOSTA DO INQUISIDÔR A meu tio Luiz de Almeida e Albuquerque I A sala em que medita El-Rey é silenciosa, Apainelada e fria, o largo reposteiro Ondula brandamente á aragem preguiçosa. II Á cathedra real um Christo sobranceiro Mésto, livido, nú, ferido e ensanguentado Exhala sobre o seio o alento derradeiro. III El-Rey medita e scisma: o seu olhar turbado, O seu obliquo olhar, o seu olhar de féra, Vibra irrequieta luz, parece allucinado. IV Nisto á porta assomou a calva fronte austera De um velho, e logo atraz um pagem que murmura: «Eis o monge, Senhor, que Vossa Alteza espera!» V Curvára, ao entrar, o monge a tremula estatura: Mãos dispostas em cruz no largo peito ancioso, E humilhada a cerviz na ascetica postura. VI E comtudo esse frade humilde e respeitoso, De olhos fitos no chão, tão fragil como um vime, Na presença de um rei, de um Cesar poderoso, VII É fanatico e audaz; com mão de bronze opprime O Solio, a Egreja, o Lar, e os corações dos crentes; Flagella a sombra e o amôr, condemna a luz, e o crime! VIII Quando elle vae passando, as timoratas gentes Benzem-se com pavôr e param de improviso As canções juvenis nas aleas rescendentes. IX Nunca nos labios seus florira o alegre riso, Tem cem annos, jamais beijára uma creança, E crê subir, talvez, morrendo, ao Paraizo! X Na Hespanha, no Perú, em Napoles, na França Paira como o sinistro espirito do Mal, O negro inquisidôr, feroz como a Vingança. XI Sisto quinto, o cruel, fizera-o cardeal, E a Hespanha pôde ver com assombroso espanto Juncto do rei-panthera o inquisidôr-chacal. XII E Philippe dizia ao monge no entretanto: «Sentinella da Lei, piedoso inquisidôr, «Tu que fallas com Deus e és padre, e és bom, e és sancto XIII «Arranca-me este pezo, afasta-me este horrôr! «Ah! diz'-me, cardeal, se é um vil, se é um precito «O rei que é justo e mata o filho que é traidôr...» XIV E mais não disse o rei, tôrvo, sombrio e afflicto. No emtanto o inquisidôr erguendo imperturbavel O seu hediondo olhar das lageas de granito, XV Assim tornou com voz vibrante e formidavel: --Ó principe, e apontava o livido Jesus, --Para acalmar dos céus a colera implacavel XVI --O Eterno fez morrer seu filho numa cruz!-- FERVET AMOR Ao dr. Antonio Candido Dá para a cêrca a estreita e humilde cella D'essa que os seus abandonou, trocando O calôr da familia ameno e brando Pelo claustro que o sangue esfria e gela. Nos florões manuelinos da janella Papeiam aves o seu ninho armando, Veêm-se ao longe os trigos ondulando... Maio sorri na pradaria bella. Zumbe o insecto na flôr do rosmaninho: Nas giéstas pousa a abelha ébria de gôso: Zunem bezouros e palpita o ninho. E a freira scisma e córa, ao vêr, ancioso, Do seu cátre virgineo sobre o linho Um par de borboletas amoroso. NA ALDEIA A Christovam Ayres Duas horas da tarde. Um sol ardente Nos côlmos dardejando, e nos eirados. Sobreleva aos sussurros abafados O grito das bigornas estridente. A taberna é vazia; mansamente Treme o loureiro nos humbraes pintados; Zumbem á porta insectos variegados Envolvidos do sol na luz tremente. Fia á soleira uma velhinha: o filho No céu mal acordou da aurora o brilho, Sahiu para os cançaços da lavoura. A nóra lava na ribeira, e os netos Ao longe correm semi-nús, inquietos, No mar ondeante da seára loura. ESTUDANTINA Acorda, minha Thereza, Descerra a janella tua! Espalha-se a luz da lua Pela poetica deveza... Entre os sinceiros da margem Murmura o claro Mondego, A noite corre em socêgo... Acorda, minha Thereza! Não dorme quem tem amôres, E o teu postigo é cerrado! Deixa o leito perfumado, E o travesseiro de flôres, Se queres que eu acredite, Ó minha pallida amiga, Nas palavras da cantiga: «Não dorme quem tem amôres!» Por isso eu vélo cantando, E esta guitarra suspira, E o meu coração delira Mal vem a lua apontando... É que, á noite, lirio branco, Os astros guardam segredo Dos beijos dados a medo... Por isso eu vélo cantando... Quero vêr-te, como outrora Nesse postigo inclinada, Conversando enamorada Até ao raiar da aurora... Um lenço posto no liso Dos teus hombros jaspeados, Os cabellos destrançados... Quero vêr-te como outrora. Não te assustes, Julieta, Que a manhã te encontre ainda Bebendo a canção infinda Que soluça o teu poeta. Cantará de entre os loureiros Uma alegre cotovia, Mal venha rompendo o dia... Não te assustes, Julieta! Mas dorme a branca Thereza, Cerrada a janella sua; Espalha-se a luz da lua Pela poetica deveza... Entre os sinceiros da margem, Murmura e corre o Mondego, Que tristeza e que socêgo! Ai! dorme, dorme, Thereza! AS ONDINAS H. HEINE Ao Visconde de Castilho II Na praia tranquilla murmuram sonoras As ondas do mar. E, ao dôce das aguas murmúrio palreiro, Na areia dormita gentil cavalleiro Á luz do luar. As bellas ondinas emergem das grutas De vivo coral, Accórrem ligeiras, e apontam, sorrindo, O moço que julgam devéras dormindo No argenteo areal. Vem esta, e perpassa do gorro nas plumas As mãos de setim. E aquella, com gesto divino, gracioso, Nos ares levanta do joven formoso O aureo telim. Ess'outra, que lavas, que fogo não vibram Seus olhos de anil! Debruça-se e arranca-lhe a rútila espada, Nos copos brilhantes se apoia azougada, Travessa e gentil. A quarta, saltando, retouça, lasciva, Do moço em redor; Suspira mansinho, de manso murmúra: «Podésse eu em vida gosar a ventura Do teu fino amôr!» A quinta rebeija-lhe as mãos, enlevada Num sonho feliz, E a sexta, com tremula e dôce esquivança, Perfuma-lhe a bôcca, formosa creança! Com beijos subtis... E o moço, fingindo que dorme tranquillo, Não quer acordar. E deixa que o abracem as bellas Ondinas, E languido gosa caricias divinas Á luz do luar... NO JOGO DAS CANNAS A Camillo Castello Branco Em garbosos corceis da Arabia cavalgando Entram na larga arêna os próceres luzidos; Corusca a pedraria, e esplendem, fluctuando, Dos cocáres a pluma e a sêda dos vestidos. A quadrilha gentil dos Tavoras ardidos, Com os lacaios da Tôrre um prélio simulando, Terça galhardamente; o apparatoso bando Deixa os olhos da turba em extase embebidos. Nas janellas do paço é toda a fidalguia: Que jocundo prazer, que risos, que alegria! Espectaculo augusto, e nobre, e singular! O sexto Affonso applaude: emtanto, maliciosa, Maria de Nemours, sorrindo, a incestuosa! No cunhado, subtil, poisa o lascivo olhar... NUNCA EU TE LÊSSE, BALLADA! Suspende a dura sentença Que de teus labios ouvi. E ergue do chão os quebrados Teus negros olhos magoados, Quando me acerco de ti. Ergueste-os, encantadôra! Mas antes do teu perdão, Attende-me, e ouve, senhora, Com todo o teu coração. Escuta: «A um rei namorado «Sincera e fiel amante, «Ao morrer, tinha deixado, «De antigo affecto em penhor, «Cinzelada taça de ouro «Do mais subido valor. «O rei preferia a tudo «Aquella doce lembrança «Que lhe trazia os arômas «De umas fluctuantes cômas, «E de uns labios de veludo, «Que elle beijára em creança. «Toda a vez que elle bebia «Por esse vaso sagrado, «Uma extatica alegria «Como flôr ideal sorria «No seu turvo olhar cançado. «Um dia sentiu-se o pobre «Mais triste, velho e abatido, «Abraçou-se commovido «Á taça, o tremulo amante: «E as lagrimas, uma a uma, «Deslisaram nesse instante «Nos rudes flócos de espuma «Da longa barba fluctuante. «Naquella hora de agonia, «Chamou seus filhos e herdeiro, «Deu-lhes tudo o que possuia, «Ouro, palacios, riquezas, «O seu castello roqueiro, «E as suas largas devezas. «Dividiu tudo, contente; «A taça guardou sómente. «Sentindo fugir-lhe a vida, «Manda o triste convidar «Seus pares, filhos e herdeiro «Para um festim derradeiro «No castello sobranceiro «Ás verdes aguas do mar... «Em meio da festa, o velho «Ergueu a taça e, sorrindo, «Embebido o olhar no infindo, «Um frouxo canto soltou... «E mal o canto findára, «No leito da onda amara «A taça de ouro lançou...» Eram profundos ciumes Os d'esse rei namorado, Que não fosse alguem beber Por esse vaso sagrado, E viesse a conhecer Os cariciosos perfumes Que o tinham embriagado... Hontem, á tarde, beijando-a De teu labio a viva rosa, Lembrou-me a historia singela D'essa ballada amorosa; E dentro em mim de repente Tam extranha dôr senti, Que num impeto demente De teu labio humido e ardente Com tôrvo aspecto fugi! Lembrou-me, cabeça louca! Que se eu acaso morresse, Talvez um outro sorvesse Os beijos da tua bôcca... E no azul indefinido, Ó minha piedosa anémona! Cuidei ouvir o gemido Da moribunda Desdemona... Ai, desavisado amôr! Perdôa, sombra adorada! Nunca eu te avistasse, flôr! Nunca eu te lêsse, ballada! A NEGRA Ao dr. A. A. da Fonseca Pinto Teus olhos, ó robusta creatura, Ó filha tropical! Relembram os pavôres de uma escura Floresta virginal. És negra sim, mas que formosos dentes, Que perolas sem par Eu vejo e admiro em rubidos crescentes Se te escuto fallar! Teu corpo é forte, elastico, nervoso. Que doce a ondulação Do teu andar, que lembra o andar gracioso Das onças do sertão! As languidas sinhás, gentis, mimosas, Desprezam tua côr, Mas invejam-te as formas gloriosas E o olhar provocadôr. Mas andas triste, inquieta e distrahida; Foges dos cafesaes, E no escuro das mattas, escondida, Soltas magoados ais... Nas esteiras, á noite, o corpo estiras E, com ancias sem fim, Levas aos seios nús, beijas e aspiras Um candido jasmim... Amas a lua que embranquece os mattos, Ó negra jurity! A flôr da laranjeira, e os niveos cáctos E tens horrôr de ti!... Amas tudo o que lembre o _branco_, o rosto Que viste por teu mal, Um dia que sahias, ao sol pôsto, De um verde taquaral... MATER DOLOROSA A Rangel de Lima Quando se fez ao largo a nave escura Na praia essa mulher ficou chorando, No doloroso aspecto figurando A lacrymosa estatua da amargura. Dos céus a curva era tranquilla e pura: Das gementes alcyones o bando Via-se ao longe, em circulos, voando Dos mares sobre a cérula planura. Nas ondas se atufára o sol radioso, E a lua succedêra, astro mavioso, De alvôr banhando os alcantis das fragas... E aquella pobre mãe, não dando conta Que o sol morrêra, e que o luar desponta, A vista embebe na amplidão das vagas... AS PRIMEIRAS LAGRIMAS DE EL-REY A M. Pinheiro Chagas I O principe morrêra, e logo os cortezãos, Em prantos derredor do mortuario leito, Erguem a voz em grita aos ceus levando as mãos. II El-Rey, João segundo, a fronte sobre o peito, Contempla dos brandões á luz ensanguentada O filho, e a dôr lhe avinca o grave e duro aspeito. III E eis que, a um gesto do rei, a turba consternada A pouco e pouco sáe, reina o silencio, apenas Cortado pelo uivar longinquo da nortada. IV Sobre o filho curvado, immerso em cruas penas, Aquelle rei sinistro, energico e tigrino, Tinha na frouxa voz modulações serenas. V E o filho inerte e mudo! então num desatino Deixou-se El-Rey caír, ao acaso, num escabêllo E quedou-se a pensar no seu atroz destino. VI Um enorme, um confuso e bronzeo pesadêlo Caíu-lhe sobre o enfêrmo espirito enluctado, E o suor inundou-lhe as barbas e o cabello. VII Talvez que o triste visse, em sonho allucinado, Do duque de Vizeu o espectro vingativo Apontando-lhe, a rir, o Infante inanimado. VIII E escutasse a feroz imprecação que altivo No cadafalso, outróra, o duque de Bragança Ás faces lhe cuspiu com gesto convulsivo. IX Subito ergue-se o rei, e para o leito avança, E uma lagrima então, embalde reprimida, Das barbas lhe cahiu no rosto da creança... X A vez primeira foi que El-Rey chorou em vida. O CURA SANCTA CRUZ CONTO DE A. DAUDET Ao dr. Sousa Martins O implacavel carlista, o Cura Sancta Cruz, Que em nome do seu rei, e em nome de Jesus, Da Navarra febril leva do sul ao norte O odio, a perseguição, o incendio, o estrago, a morte. Nessa clara manhã risonha do Natal, Tendo sobre o uniforme a veste clerical, Na montanha, ao ar livre, á luz do sol, diz missa Á guerrilha que o escuta extatica e submissa. Como um rebanho vil, a um lado, os prisioneiros Ouvem-no, a tiritar, cheios de um medo atroz: Olham-se mutuamente os tôrvos companheiros, E murmuram: «meu Deus, o que será de nós?» Porque emfim toda a vez que o sanguinario Cura Se volta, e o _oremus_ diz, segundo o ritual, Da sacra vestimenta avultam na brancura De pistolas um jogo e a fórma de um punhal. Quando afinal chegou o instante, a occasião Em que a missa termina, o Cura, erguendo um braço, Grave traçou no ar e na mudez do espaço O clemente signal da paz e do perdão. A missa terminára. O Cura nesse dia Como sentisse n'alma uns raios de alegria, De bondade e de amor, foi-se direito ao bando Dos captivos, e assim fallou circumvagando A vista em derredor: «_Hermanos, viva Dios!_ «Corre ahi que sou máu, fanatico e feroz... «Pois em breve ides ver como se engana, quem «Diz que eu sou o anti-Christo e que abomino o bem. «Como é dia de festa e é dia de Natal, «Dou-vos a liberdade, e não vos quero mal! «Mas haveis de primeiro, e isto, prompto e sem custo «De joelhos beijar o pavilhão augusto «De El-Rey nosso senhor...» E mandou desfraldar O carlista pendão, branco como o luar... Todos logo á porfia atiram-se por terra E um grito: Viva El-Rey! echoou de serra em serra. No emtanto um prisioneiro, um moço imberbe ainda, Firme ficou de pé, e olhava com infinda Expressão de desdem a extranha vilania... Braços postos em cruz, e intrepido sorria. «E tu?» surprezo disse e transtornado o Cura. --Padre, volveu-lhe o esbelto joven, com brandura, --Mata-me! aqui me tens! rio-me d'esse panno! --Ao teu rei não me curvo... Eu sou republicano...-- O Cura um acêno fez; formou-se um pelotão: «Vamos! inda uma vez, viva D. Carlos!» --Não!-- E havia nessa voz tamanha heroicidade E uma energia tal, que uns longes de piedade Scintillaram no olhar do tôrvo guerrilheiro. «Muito bem, morrerás: mas dize-me primeiro, «O que desejas tu? Queres beber, fumar?... --Padre, se vou morrer, quero-me confessar... «Ouvir-te-hei!» disse o Cura, e, ao acaso, num granito Assentou-se. O captivo, olhos no chão, contrito Os joelhos dobrou... Nesse fugaz instante Elle viu, elle viu, num sonho lacrymante, A sua infancia, o lar, o tecto de seus paes, Os choupos do seu rio, os placidos casáes: Viu a noiva gentil, a egreja, os arvoredos E os parentes e irmãos, socios de seus brinquedos. Ah! quem póde esquecer o seu paiz natal! Ah! quem póde esquecer a benção maternal! Em distancia a guerrilha os dous observa... Então Emquanto o padre escuta attento o prisioneiro, Subito uma descarga estoira na amplidão. Tremem a serra e o val, treme o desfiladeiro. «Ás armas! o inimigo!» a sentinella brada. De golpe ergue-se o Cura, e á jóldra amotinada Vôa, dá ordens, clama, emquanto as balas chovem. Nisto viu que inda estava ajoelhado o joven! Pára. «Que fazes tu?» indaga em tom severo --Padre, diz a creança, a absolvição espero-- E em meio da febril convulsão da batalha, Emquanto rompe e rasga os ares a metralha, Viu-se o Cura depois de abençoar, ligeiro, A fronte juvenil do heroico prisioneiro, Pegar de uma clavina, e dando um passo ao lado, Varar tranquillamente o craneo do soldado. A VENDA DOS BOIS Ao dr. J. de Vasconcellos Gusmão I O velho entrára triste: ao pé, juncto do lar, Estava a companheira, absôrta, a meditar. --Mulher, a fé perdi, fallei a toda a gente, E ninguem me valeu!--E ella com voz tremente: «Dize-me, e o brazileiro?» --Esse foi o primeiro. --Batí, fui ter com elle á casa do jantar. Expliquei-lhe ao que vinha... entrou a gracejar: «Com que então você quer _livrar_ o seu rapaz?... «Visinho, tão mal faz! «Deixe-me ir cada qual á sorte e ao seu destino! «Seu filho é um mocetão valente e muito digno «De servir o paiz...» --E descascava um fructo... --Desatei a chorar... «--Homem não seja bruto! A farda não é morte...» --E disse mais e mais --Cousas de quem não sabe a dôr de uns tristes paes! E emquanto o velho punha a vista lacrymosa Nos brazidos, a voz da mãe afflicta e anciosa Perguntou: «e o prior?» --Negou, negou tambem!-- A angustiada mãe Retorcia o avental com mão febril, ardente. No silencio da noite então distinctamente, Um profundo mugido, Triste como um gemido, Longo e longo chorou no lugubre aposento... Entreolharam-se os dois... Nisto acóde á mulher um estranho pensamento... «Temos ainda os bois! Vendamol-os!» E ria... O entristecido olhar Do velho lavrador de lagrymas nublou-se. E entrou a suspirar: --Vender os infelizes! --Uns pobres animaes, a quem só mingoa a fala --Para serem Christãos! Parece que me estala --No peito o coração... Vender os infelizes!... --Pois seja assim, mulher! Farei o que tu dizes... II Vinha rompendo a aurora Risonha, virginal, feliz como um noivado, Das aves á compita o tremulo trinado Entre as balsas gorgeava. Era em descanço a nóra. No emtanto o lavrador, tremente e vacillante Como um ladrão nocturno, ou como um namorado, Abriu, de par em par, as portas do curral. Subito nesse instante Volveram para a entrada os bois o olhar leal, Bondoso, humano e franco. Que festiva alegria O frequente menear das caudas traduzia Resvalando em seu forte e musculoso flanco! O velho antigamente Tinha sempre, ao chegar, uma palavra amiga, Um dicto, uma cantiga, A que sempre um mugido alegre respondia. Mas naquella manhã, silenciosamente, Fatal como o dever O velho foi buscar, a um canto, uma correia, E lançou-a a tremer Dos anafados bois ás pontas recurvadas. E sahiram os tres. Nos concavos da aldeia Choviam as canções das aves namoradas. III No cáes ha o moirejar das fabricas ruidoso; Feroz e discordante Juncta-se á voz humana o arfar estrepitante Dos valentes pulmões das machinas inglezas. Em novellos, ancioso, Golpham as chaminés o denso e o escuro fumo Que ascende e toma o rumo Do claro e vasto azul, vazio de tristezas. Como um cetáceo ingente, encarvoado e feio Um enorme Vapôr De outros avulta em meio. Em seu largo convez a marinhagem canta E na faina febril as ancoras levanta. Naquella espessa náu, um velho, um lavradôr Entre a faina do cáes, fita o dolente olhar... É que ali dentro vão os bois, o seu amôr... E áquella magoa intensa E inenarravel dôr Responde a descuidosa e gelida indifferença Dos Homens, e dos Céus, e do profundo Mar... AO RABEQUISTA EUGENIO DEGREMONT Recitada na noite de 25 de fevereiro de 1876 no theatro de S. João do Porto Vêde-o! É tão creança! ó mães, olhae-o! Como é vivo o fulgor e ardente o raio Que vibra nesse olhar! Faz gosto vel-o assim tão pequenino Enlevado nos sons do violino A sonhar, a sonhar... E ao passo que a sua alma vae sonhando, Vão-se ante nossos olhos desdobrando Quadros a mil e mil. A rabeca suspira? Assim amenas São na longinqua roça as cantilenas Das moças do Brazil. Vibra rispidos sons? E logo ouvimos Curvar o vento da floresta os cimos Com ruidoso fragôr... E uivam pintadas onças e as araras Roçam, fugindo, as tremulas taquaras, E crocita o condôr. Enterrados nas humidas pastagens Mugem raivosos bufalos selvagens, E por entre os sarçaes Pula a panthera; os jacarés astutos Choram, fingindo lacrymosos lutos Nos fulvos areaes. Soluçou a rabeca? Ouvi, formosas, São os negros soltando as lastimosas Canções do seu paiz; Sem familia, sem patria, sem amôres, Ninguem mitiga o fel daquellas dôres, Triste raça infeliz! Agora, como em namorado anceio, Sae da rabeca um languido gorgeio Que enleva o coração. E a saudade repinta-nos ao vivo Dos sabiás o cantico lascivo Nas sombras do sertão. Tudo isso e mais eu vejo, admiro e escuto, Com meu olhar de prantos não enxuto, Ó creança gentil, Que em vez de perseguir as borboletas Vens batalhar no meio dos atletas E honrar o teu Brazil! Não presumas, porém, prodigio das creanças! Que basta o fogo, o estro, a viva inspiração; É mister trabalhar, sem isso nada alcanças; A gloria chamarás, ser-te-ha o appello em vão. Pois que! tu cuidarás, creança, porventura Que sem luctar, soffrer, sem horridos tormentos O artista poderia erguer aos quatro ventos A Epopêa, o Drama, a Estatua, a Partitura? Vamos, trabalha pois ó meu precoce artista, Dos precipicios ri, vinga-me o barrocal! Para o profundo azul estende a larga vista. Eis-te nos alcantis! Eleva-te ao ideal! AS VELHAS NEGRAS A M.^{me} Aline de Gusmão As velhas negras, coitadas, Ao longe estam assentadas Do batuque folgasão. Pulam creoulas faceiras Em derredor das fogueiras E das pipas de alcatrão. Na floresta rumorosa Esparge a lua formosa A clara luz tropical. Tremeluzem pyrilampos No verde-escuro dos campos E nos concavos do val. Que noite de paz! que noite! Não se ouve o estalar do açoite, Nem as pragas do feitor! E as pobres negras, coitadas, Pendem as frontes cançadas Num lethargico torpôr! E scismam: outrora, e d'antes Havia tambem descantes, E o tempo era tam feliz! Ai! que profunda saudade Da vida, da mocidade Nas mattas do seu paiz! E ante o seu olhar vazio De esperanças, frio, frio Como um véu de viuvez, Resurge e chora o passado --Pobre ninho abandonado Que a neve alagou, desfez...-- E pensam nos seus amôres Ephemeros como as flôres Que o sol queima no sertão... Os filhos, quando crescidos, Foram levados, vendidos, E ninguem sabe onde estão. Conheceram muito dono: Embalaram tanto somno De tanta sinhá gentil! Foram mucambas amadas, E agora inuteis, curvadas, Numa velhice imbecil! No emtanto o luar de prata Envolve a collina e a matta E os cafesáes em redor! E os negros, mostrando os dentes, Saltam lepidos, contentes, No batuque estrugidor. No espaçoso e amplo terreiro A filha do Fazendeiro, A sinhá sentimental, Ouve um primo recem-vindo, Que lhe narra o poema infindo Das noites de Portugal. E ella avista, entre sorrisos, De uns longinquos paraisos A tentadôra visão... No emtanto as velhas, coitadas, Scismam ao longe assentadas Do batuque folgasão... O RELOGIO No album de Eduardo Burnay Eburneo é o mostradôr: as horas são de prata, Lê-se a firma Breguet por baixo do gracioso Rendilhado ponteiro; a tampa é enorme e chata: Nella o esmalte produz um quadro delicioso. Rapara: eis um salão: casquilho malicioso Das festas cortesãs o mimo a flôr, a nata, Juncto a um cravo sonoro a alegre voz desata. Uma fidalga o escuta ebria de amôr e gôso. Rasga-se ampla a janella: ao longe o olhar descobre O correcto jardim e o parque extenso e nobre. As nuvens no alto céu fluctuam como espumas, Da paizagem no fundo, em lago transparente, Onde se espelha o azul e o laranjal frondente, Um cysne á luz do sol estende as niveas plumas. A MORTE DE D. QUICHOTE Ao Conde de Sabugosa Rôto o escudo, sem lança, a cóta escalavrada, Sósinho, abandonado e á tôa como um cego, Do crepusculo á luz dolente e immaculada Entra na sua aldeia o altivo heroe Manchego. O tenue fumo sáe do côlmo das herdades, Riem ao pé da fonte as frescas raparigas, E á clara vibração sonora das trindades Junctam-se brandamente as vozes e as cantigas. E o audaz Campeador, o Justiceiro, o Forte, Que andára pelo mundo a combater os máus, Defendendo a Mulher, desafiando a Morte, Do paterno casal sentou-se nos degráus. Nos joelhos fincando o cotovêlo agudo E no punho cerrado a fronte reclinando, Quedou-se largo espaço, illacrymavel, mudo, Para o inutil passado os olhos alongando... E ali, na dôce paz da sua alegre aldeia, Sentiu que o avassallava uma tristeza infinda, Quando esta voz se ouviu: «morreu-te a Dulcinêa, Missionario do Bem, tua missão é finda!» E elle a ouvir e a scismar! A trefega sobrinha Beija-o, falla-lhe, ri, abraça-o, mas o Heróe Dest'arte lhe volveu «A morte se avisinha, Levae-me para o leito!» E ouvil-o pena e dóe. Do leito á cabeceira o Bacharel e o Cura Tentam resuscitar-lhe os sonhos e as chymeras; Pintam-lhe o negro Mal triumphante, ó amargura! O fraco aos pés do forte, o bom lançado ás féras... Contam-lhe o frio horror dos carceres sem luz. Que nas tôrres feudaes pompeava o velho Crime. Que os crescentes do Islam tinham vencido a Cruz, Que a Injustiça era a Lei... Então feroz, sublime. Inquieto, semi-nú, sinistro, o cavalleiro Bradou como um trovão: «Enverguem-me a loriga! «Sellem-me o Rocinante, ó Sancho, ó escudeiro, «Traze-me a lança, présto! e a minha espada amiga!» Tinha em brazas o olhar, e truculento o aspeito, E vibrava em redôr a imaginaria lança... Logo depois cahiu do respaldar do leito, Morto: tendo no labio um riso de creança! INDICE A minha mulher 1 Confidenza 3 O velhinho 8 Animal bravio 10 Ad agros 12 A nuvem 14 O juramento do arabe 16 Num leque 19 Olhos de Judia 20 Numeros do Intermezzo: I 24 II 25 III 26 IV 28 V 29 VI 30 VII 32 VIII 34 IX 36 X 38 XI 40 XII 42 XIII 44 XIV 46 XV 47 XVI 48 XVII 50 XVIII 52 XIX 54 XX 55 XXI 56 XXII 58 XXIII 60 XXIV 62 O minuête 65 O coveiro 70 Adeus! 72 Camoneana: A egreja das Chagas 76 A leitura dos Lusiadas 78 Annos depois 80 Esphynge 83 A ceia de Tiberio 85 Trio de poetas: João de Lemos 90 João de Deus 92 João Penha 94 Chymeras 97 Odor di femina 99 Em caminho da guilhotina 101 A viuva 104 Flôr do pantano 106 A resposta do inquisidôr 108 Fervet amor 112 Na aldeia 114 Estudantina 116 As Ondinas 119 No jogo das cannas 122 Nunca eu te lêsse, ballada 124 A negra 129 Mater dolorosa 132 As primeiras lagrimas de El-Rey 134 O Cura Sancta Cruz 137 A venda dos bois 142 Ao rabequista Eugenio Degremont 147 As velhas negras 151 O relogio 155 A morte de D. Quichote 157 TERMINOU-SE A IMPRESSÃO NOS PRELOS DA IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA a 6 de março de 1882 [Figura] _18, Rua Oriental do Passeio_ LISBOA Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+-----------------------+---------------------------+ | | Original | Correcção | +----------+-----------------------+---------------------------+ |#pág. 30 | V | VI | |#pág. 50 | XVI | XVII | +----------+-----------------------+---------------------------+ Identificámos a duplicação de títulos em numeração romana. Rectificámos mantendo a ordenação crescente, nomeadamente nos casos referidos acima. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK NOCTURNOS *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. 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You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. 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