The Project Gutenberg eBook of Portugal contemporaneo, Vol. 2 (of 2)

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Title: Portugal contemporaneo, Vol. 2 (of 2)

Author: J. P. Oliveira Martins

Release date: October 13, 2023 [eBook #71871]

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Livr. de Antonio Maria Pereira, 1895

Credits: Charlene Taylor, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

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Portugal contemporaneo


J. P. OLIVEIRA MARTINS


Portugal contemporaneo


3.ª EDIÇÃO (POSTHUMA)
e com as alterações e additamentos deixados pelo auctor

TOMO II

LISBOA
LIVRARIA DE ANTONIO MARIA PEREIRA—EDITOR
50, 52,—Rua Augusta—52, 54
1895

[Pg 1]


PORTUGAL
CONTEMPORANEO


LIVRO QUARTO
A ANARCHIA LIBERAL
(1834-39)


I
O REGABOFE


1.—A SESSÃO DE 1834-35

No dia 15 de agosto, D. Pedro abriu solemnemente as camaras. A physionomia da assembléa era diversa em tudo da de 26-8. Bem se póde dizer que não estava alli a maior parte da nação, exterminada pela guerra, ou jazendo esmagada sob o pé do vencedor. Era o Portugal-novo que reinava, sobre os destroços e ruinas da nação antiga. A camara reunia-se n’um d’esses conventos saqueados, onde á pressa se levantou uma sala com paredes pintadas de azul e branco e um tecto de vidraças a que a rhetorica posterior chamou abobadas. Tudo era novo e cheirava ainda ás tintas, como o systema improvisado. D. Pedro, o faxina das trincheiros[Pg 2] do cerco, viro-se o mestre das obras parlamentares, e um desembaraço egual fez com que a casa se achasse tambem prompta a horas. Despresando ministros e conselheiros, tratou a obra com um rapaz havia pouco chegado de fóra, o architecto Possidonio. Esto fel-a, e teve a idéa de pôr nas paredes, como ornato, uns medalhões com o nomes dos homens celebres de Portugal. N’um escreveu o do marquez de Pombal. E quando os ministros vieram vêr as obras exasperarem-se: «o marquez do Pombal! é lisongear Saldanha, meus senhores.» Seria o architecto da opposição? Houve conselho de ministros, em que se resolveu supprimir essa allusão perfida, dando-se ordem ao architecto para cobrir os nomes com uma aguada que em dias humidos mal esconde as letras douradas subjacentes. (Apont. da vida, etc.)

Tal era, ainda depois dos accôrdos do Cartaxo, o receio que inspirava o chefe da opposição. As camaras iam abrir-se; e por mais que tivessem feito, os ministros não tinham podido impedir que o Minho bucolico enviasse ao parlamento Manuel Passos, chefe sympathico e ingenuo de uma opposição pessoal ao regente e ao seu governo, e de uma opposição formal ás doutrinas da CARTA. Os saldanhistas possuiam uma especie nova de LIBERDADE, e propunham-se decididamente a fazel-a vingar sobre as ruinas da anterior. Fóra da camara, o Nacional, do Rio-Tinto que não gozava de boa fama, apoiava opposição parlamentar.


Constituiu-se a camara e começou a guerra. A primeira batalha foi a da questão Pizarro. O coronel,[Pg 3] eleito deputado por Traz-os-Montes, viera para o reino, d’onde o expulsava um decreto formal e pessoal do regente, e fôra preso e encerrado em S. Julião. Era um attentado á immunidade parlamentar, clamava a opposição; e o governo respondia que a eleição fôra nulla pela inelegibilidade de um homem pronunciado por crime de alta traição. Sob taes formulas legaes se encobria de parte a parte a verdadeira questão: defender Pizarro, era atacar em cheio D. Pedro, seu pessoal inimigo.

Levado pelo impeto de uma séria crença na liberdade, de uma esperança formal nas instituições, Passos que luctava á frente, como já verdadeiro chefe da opposição, embora Saldanha se tivesse sentado no banco mais alto da mais extrema esquerda: Manuel Passos abandonava o pretexto, e punha nitidamente a questão. A camara era coisa nenhuma, nem representava a opinião do paiz. Não houvera liberdade nas eleições. A censura prévia aguilhoava as manifestações do pensamento. Não havia liberdade de imprensa, nem camaras municipaes, fóra Lisboa e Porto: apenas commissões nomeadas. Durante as eleições tinham-se suspendido as garantias.—Que se devia fazer? Era claro, simples e urgente: estabelecer a liberdade de imprensa, supprimir a suspensão de garantias, eleger camaras municipaes, e por fim dissolver o parlamento, convocando côrtes constituintes. (Disc. de 25 de agosto)

Pois a constituição não estava feita? Não, por fórma nenhuma: esse corpo de doutrina que fôra a bandeira de uma guerra e em cujo nome se tinha invadido e revolucionado o reino, era renegado por uma opposição enthusiasta e moça, a quem o futuro sorria. Ai de Mousinho, que estava certo de ter encontrado a fórmula verdadeira e definitiva!

[Pg 4]

E quem era o culpado de tão flagrantes infracções á doutrina liberal, segundo a entendia a opposição? Quem, mais do que esse ministerio obnoxio—para não dizer o nome de D. Pedro, com o qual todos sabiam que o ministerio fazia um? Depois da convenção de Evora-Monte, elles, opposição, queriam a paz, a liberdade e a ordem; mas os ministros (leia-se: o regente) deram á nação, em premio de seus serviços, o regime da arbitrariedade, e a honra de pagar sessenta contos annuaes ao tyranno vencido.—«O infeliz coronel Pizarro (regressando ao ponto de partida) jaz n’uma masmorra porque o ministerio actual se constituiu impio testamenteiro d’aquelle Coriolano tres vezes traidor á patria». O Coriolano de Passos (a quem a educação jacobina inspirava nomes romanos) era o fallecido Candido José Xavier que pegára em armas contra a patria.—A camara, de pé, clamou por ordem. (Disc. de 25 de agosto)


Era o que todo o reino pediria, se tivesse alma para pedir alguma cousa. A metade vencida gemia porém, esmagada; e a vencedora borborinhava tonta na faina de disputar o despojo da guerra. Cada qual chamava a si uma parte maior ou menor da victoria, considerando-se com direitos particulares adquiridos. Havia uma grande voracidade; mas acima dos que faziam das opiniões o rotulo da sua fome, erguia-se Passos, o stoico, exigindo a victoria dos principios, não a dos homens e seus desejos e ambições. Outros lançavam-se desesperados ao ministerio e ao regente, «porque essa roda comia tudo»; elle dirigia o côro das imprecações,[Pg 5] mas sereno, com os olhos fixos na imagem etherea, nebulosa das suas cogitações e sonhos: uma liberdade candida, pura, pacifica!

Entrou na camara a questão da legalidade com que D. Pedro exercera e exercia o papel de regente, pômo das discordias antigas e sabidas da emigração; e Passos dizia: «Eu sou um implacavel inimigo das dictaduras». Como era novo ainda, e crente, o homem que só com essa dictadura detestada veiu dois annos depois a outorgar a sua liberdade!—E falseando um pouco os factos, continuava «que, porém, se no momento de Paris fosse necessario um plebiscito para elevar o imperador á terrivel dignidade de dictador, todos elles, opposição, estavam promptos a assignal-o com o proprio sangue. Agora o caso mudava: era mistér voltar á legalidade, e que se reconhecesse a soberania do povo nas suas assembléas.»—Referindo-se logo ao principe, falava em termos que na bocca de outro seriam crueis ironias, e na d’elle eram desejos ingenuos, tanto a virtude se confunde com a simplez! «Sacrificae o pae da patria!.. E quanto o conheceis pouco e mal! S. M. I. é um principe philosopho. Cansado da purpura para gozar a vida privada, com que philosophia não rejeitou ainda ha pouco a corôa imperial!» (Disc. de 25 de agosto)

Cansado da vida, golfando sangue, estava prostrado no leito o desilludido principe que morreu a tempo. Perante este facto que trazia um novo elemento de complicações á trama cerrada dos embaraços desencadeados pela liberdade, Palmella, com uma auctoridade que era soberana, pois já lh’a não disputava o ex-emulo Saldanha, interveiu a tempo: demittiu o ministerio, collocou-se-lhe nas cadeiras, dando a rainha por maior, afim de preencher esse logar vago a que o liberalismo chama[Pg 6] throno. Ninguem melhor servia para isso do que uma creança apenas mulher, pessoa sem querer, symbolo em vez de realidade, como os vultos de palha que se põem nas cearas para afugentar os pardaes vorazes. Estonteada, ainda a opposição clamou; e nos pares, Fronteira e Villa-Real, Lumiares, Loulé e Taipa, votaram contra a maioridade da rainha, pedindo a regencia da Infanta D. Isabel Maria. Taipa dizia alto e bom som que o ministerio era uma camarilha feita para devorar o paiz á sombra de uma creança. A infeliz CARTA, já violada na questão da regencia, era segunda vez rasgada na da maioridade da rainha!


Enterrado D. Pedro, caído o seu velho ministerio, extinguia-se um pedaço do passado incommodo: começava com a rainha a vida nova parlamentar-liberal. Mas, se para os radicaes a cova engulira o tyranno regente, para os liberaes o espectro de D. Miguel mantinha-se-lhes perante a vista esgazeada, ainda antes da vinda da noticia o protesto do exilado em Genova.

No ardor da guerra, abandonadas todos as idéas stoicas de Mousinho, decretara-se (31 de agosto de 33) a expropriação de um partido pelo outro, sob o nome de Indemnisações. Tinham-se tornado responsaveis os auctores da usurpação (todos e cada um in solidum, por suas pessoas e bens) pelas perdas e damnos causados pela usurpação. Os bens miguelistas eram sequestrados e vendidos em praça: isto é, transferidos por nada aos arrematantes liberaes, quando não eram adjudicados directamente aos vencedores lesados por não haver na[Pg 7] praça lanço egual á avaliação. Tinham-se creado commissões avaliadoras das perdas e damnos, as quaes davam aos interessados cedulas acceitaveis como dinheiro nas arrematações dos bens.

D’este modo se fartou muita gente, e o devorar teria continuado, se, ainda antes da intervenção das camaras, não tivesse intervindo o embaixador inglez, exigindo o terminar da faina. Parara-se pois; mas o decreto não revogado estava suspenso sobre a propriedade dos vencidos. Considerava-se indispensavel essa ameaça, porque o medo de uma restauração era grande. Circulavam boatos aterradores. Dizia-se que D. Miguel desembarcara em Hespanha, e atravessara a serra Morena com 40:000 homens. A guerra carlista ardia para lá das fronteiras, e, se vencesse, venceria em Portugal o miguelismo. Havia uma emigração consideravel para os exercitos carlistas: tão grande que, apesar da LIBERDADE, se propunha na camara a negação de passaportes aos emigrantes. Fervia o roubo, o assassinato, a desordem, a vingança, por todo o reino; e a nau liberal, fundeada no porto, amarrada com as ancoras da quadrupla alliança, ainda balouçava como n’um mar banzeiro. A tripulação não se considerava salva. Nas guardas nacionaes só se admittiam os fieis a D. Maria, inimigos sabidos de D. Miguel.

O decreto das indemnisações confiara ás camaras municipaes as funcções de tribunal supremo para as causas disputadas; e coube a José Passos, sosia burguez do irmão poeta, a honra de atacar de frente, pela primeira vez, a iniquidade. O Porto elegera-o presidente do seu primeiro senado em março (34) e elle recusou-se formalmente a exercer as funcções de juiz n’esses processos de espoliação. A camara foi dissolvida, mas tambem[Pg 8] o decreto suspenso até que o parlamento resolvesse.[1]

O parlamento decidiu, abolindo-o. Ergueu-se, para o condemnar, Mousinho que abolira no codigo penal o confisco, na Terceira os sequestros, e no Porto não consentira se bolisse na arca santa da liberdade individual. Ergue-se Passos, falando em paz, em amor, convidando a nação a um abraço no seio da democracia. Ergueram-se Rodrigo, Seabra, e por fim, vencido, o proprio Agostinho José Freire que fôra o auctor da lei da vindicta.

Já a esse tempo (janeiro de 35) os medos se iam dissipando. Viera o protesto de D. Miguel, mas não lhe respondera uma revolução: apenas lhe respondeu a camara, rasgando tambem a convenção de Evora-monte, banindo-o e á sua geração do territorio portuguez, declarando-o revel e traidor. (Decr. de 19 de dezembro de 34). Assim o novo Portugal via desapparecerem de todo da scena os ultimos restos do passado. A estructura da nação caíra ás mãos de Mousinho; D. Pedro acabara n’uma golfada de sangue; D. Miguel matava-o o novo reino pela voz dos seus mandatarios. Começava uma vida nova com o reinado da joven rainha, a quem era mistér dar um marido, para haver herdeiros que satisfizessem a uma das formulas do systema. Estava pois fundeada a nau do liberalismo? Oh, não! Principia agora uma viagem nova[Pg 9] para o navio cujo commando numerosos pilotos disputam—cada qual com sua carta, seu rumo, seu norte, sua bussola. Ha tantos destinos quantas cabeças, e assim deve ser no governo da Anarchia; mas antes que a viagem comece, é mistér estudarmos os fastos da anarchia positiva, exprimindo a realidade da doutrina nos primeiros momentos do seu imperio.

2.—OS BENS NACIONAES

A suppressão do decreto de agosto de 33 retirava bruscamente da meza, onde os vencedores se viam sentados com um appetite genuinamente portuguez, o succulento serviço dos confiscos miguelistas; mas Silva-Carvalho, que auscultura os estomagos, sentia a necessidade de os encher. Desertariam do banquete e talvez abandonassem a causa, se se não substituissem os pratos. Os perigos eram muitos, a situação grave: o habil mordomo não hesitou. Apresentou-se ás camaras (34) com o plano da kermesse. As leis de Mousinho e o decreto do mata-frades punham á disposição dos famintos uma vasta ceara de propriedade, ceifada a seus donos, dispersa em mólhos por todo o vasto campo do reino assolado. Eram os bens dos conventos, das capellas, commendas e mais propriedades, da Corôa, da Patriarchal, da casa das rainhas e da do infantado; eram campos e palacios, alfaias preciosas e mobilias riquissimas: o espolio da nação assassinada, avaliado em dezenas de milhares de contos.

O ministro sabia que de varios modos se podia utilisar esse dominio collectivo: mas que modo melhor, mais util, mais urgente, do que saciar os appetites vorazes, chamando em defeza do systema[Pg 10] mal seguro os instinctos egoistas de todos os que mais ou menos escandalosamente se apoderassem das parcellas do saque? Em subido o que succedera á França republicana; e urgia tambem crear uma aristocracia liberal para pôr no logar das velhas classes dominantes, arruinadas e demittidas. No proceder do nosso estadista não havia apenas uma commiseração pela fome dos seus clientes: havia um pensamento politico, que seria injustiça não reconhecer.

Os bens nacionaes seriam vendidos em praça; porque essa publicidade e uma legalidade apparente convinham para resalva; sem nada prejudicarem, pois a praça ficaria deserto por não haver dinheiro nem licitantes. Não havia dinheiro, é sabido; mas havia os papeis em poder dos clientes, e esses papeis recebia-os o Thesouro como dinheiro. Assim, sem se bolir nos numeros nem na legalidade, obtinha-se o resultado desejado, porque o ministro não dava os bens: dava os papeis com que elles se iam comprar em praça. Esses papeis eram os titulos de divida pelo seu valor nominal, (um valor ficticio) eram o papel-moeda, os recibos de ordenados vencidos, os titulos de commendas e direitos de pescaria extinctos; eram finalmente os roes de indemnisações por perdas e sacrificios da guerra: papeis extravagantes, contas onde gran-capitães chegaram a sommar por centenas de milhares de réis as ferraduras perdidas do cavallos mortos!

É evidente que o ministro não confessava o seu inteiro pensamento á camara; e insistia sobre as vantagens economicas do seu systema; antecipando lucidamente os tempos ulteriores, queria que as propriedades se fragmentassem no maximo numero de parcellas, para dividir a riqueza. (V.[Pg 11] Prop. de J. S. Carvalho, sessão de 34) Dizia mais que a venda dos bens nacionaes fomentaria o progresso, e d’ahi viria um augmento da decima com que se preencheria o deficit assustador de 5:000 contos do exercicio de 34-5. Boas palavras, desmentidas porém pelos factos. Toda a gente sabia e queria que os bens se fundissem, sem se retalharem, trocados pelos titulos das indemnisações com que os próceres do novo regime tinham inchados os bolsos das sobre-cazacas. Toda a gente sabia que para preencher o deficit o habil ministro tinha outros meios, mais commodos e praticos: pois não tinha o Mendizabal com a sua cohorte de banqueiros e agiotas? pois não era evidentemente melhor pedir dinheiro ao inglez, em vez de abandonar uma occasião tão boa de enriquecer? A geração vencedora, conscia do grande serviço prestado á nação, achava natural que as gerações futuras pagassem, nos juros dos emprestimos levantados, uma parte do preço de uma redempção inestimavel. Ainda lucravam, e muito!


Por isso ficaram sem echo todas as vozes, e á frente d’ellas estava Mousinho protestando. Uns queriam que na compra dos bens se não admittissem os famosos titulos das indemnisações; outros queriam que o producto das vendas se applicasse comesinhamente á amortisação das dividas; outros, lamentando a ignorancia do povo, e considerando a instrucção a melhor ancora da liberdade, queriam, finalmente, que as propriedades da nação se convertessem n’um fundo de instrucção publica. O governo encolhia os hombros compadecido da ingenuidade boa dos utopistas, e ia vendendo, vendendo, queimando, queimando. E o numero[Pg 12] das adhesões fieis e firmes á causa crescia, varrendo o medo de uma possivel restauração do passado. Um comprava os campos de Alcobaça, expulsando de lá a feliz população rural que os frades tinham creado;[2] outro remia o seu antigo miguelismo ficando com o Espirito-Santo de Lisboa; outros em sociedade, tomavam para si as lezirias do Tejo o Sado; Palmella ficava com a serra da Arrabida confiscada ao Infantado, que a confiscara aos duques de Aveiro no tempo de Pombal. Terceira tomava para si o Sobralinho de Alverca. Era positivamente uma conquista á maneira das conquistas historicas. Succedia o que succedera no tempo dos godos: uma expropriação dos vencidos pelos vencedores, salvo a franqueza da confissão, outr’ora manifesta sem rebuço, agora encoberta sob fórmulas e sophismas de legalidade liberal. E d’essa falta de sinceridade provinha uma nova consequencia. Quando os cães disputam um osso, ladram e mordem; e tambem n’esta faina do devorar havia latidos e dentadas, denuncias formaes dos que tinham comido menos, contra os que tudo queriam para si.

O escandalo das Lezirias provocava protestos formaes das opposições. Os pares, os deputados, Fronteira, Loulé, Sá-da Bandeira, os Passos e outros imprimiram (10-14 de nov. de 35. V. os Protestos nos jornaes do tempo) declarações contra o decreto do dia 3 que[Pg 13] punha á venda «por junto e n’um só lote todas as propriedades nacionaes das margens do Tejo, denominadas Lezirias e das margens do Sado, denominadas da Comporta», mandando acceitar o lanço de dois mil contos feito por uma companhia. Era uma infracção da lei de 15 de abril, outorgada para fraccionar a propriedade rural: era um senhorio que se creava «onde podia haver cinco ou seis centos de proprietarios livres».

Já então Saldanha, nas agonias do seu radicalismo, presidia ao gabinete chamorro e contra elle voavam os tiros dos seus velhos amigos o defensores de Paris, os Passos. Ainda em 33, do Cartaxo, quando talvez já oscillasse entre a democracia e a conservação, lhes escrevia para o Porto: «Minha mulher (que acaba de participar-me que está feita dama da ordem de Santa Izabel) manda-lhes dizer que quando vierem a Lisboa não quer que tenham outro quartel senão a nossa casa.» (22 de outubro; carta autogr. Corr. ined. dos Passos, á qual recorremos mais uma vez). Agora, porém, tinha já virado completamente de rumo.

Ia-se vendendo, vendendo sempre e bem, apezar dos protestos. Já em agosto, o conde da Taipa pedira na camara que se suspendesse a queima até que se determinasse alguma ordem na venda «porque não corresponde aos fins para que foi determinada». Fins? que fins? O unico fim positivo era dispersar as massas de propriedade que podiam ser nucleos do contra-revolução; era converter os tibios, saciar os soffregos, tapar a bocca aos maledicos, e consolidar o sentimento da satisfação universal na plenitude farta!

Em junho de 36 já havia realisados 5:266 contos das vendas. É verdade que o Thesouro recebera apenas 2:158; mas o resto, ou 3:108, fôra a[Pg 14] chuva de ouro do governo, sob a fórma de titulos, indemnisações (2:400), dividas: papelada! E para confirmar a sinceridade dos desejos do ministro, quando propunha se retalhasse a propriedade, convém saber, além do caso das Lezirias, que esses cinco mil contos das vendas se distribuiam por 632 compradores, (Coll. de contas da comm. inter. da Junta, 10 de set. de 36)—o que dá a média de nove contos a cada um. Á velha aristocracia da côrte e dos mosteiros succedia uma aristocracia nova de aventureiros—os barões do castello de Chuchurumelo! (Garrett).

Silva Carvalho conformava-se com o mallogro das suas idéas de economista, perante o exito do seu plano de politico: via a clientella farta; e o rubro Aguiar socegava: os frades não voltariam, porque os herdeiros dos seus haveres os haviam de defender com a tenacidade do egoismo. Cabia-lhe a melhor parte da gratidão dos novos donos; pois fóra elle quem; contra todos, redigira e publicára o decreto da abolição das ordens religiosas, cujos bens eram a melhor parte do opiparo despojo.[3]

[Pg 15]

Além das propriedades, casas e terras, tinha havido um diluvio de alfaias, mobilias, ouros, pratas, e caldeirões das baterias das cosinhas pantagruelicas; e esta copia de bens moveis pudera sumir-se, devorar-se, sem necessidade de fórmulas e processos liberaes-legaes.

Por isso mesmo a confusão em maior ainda n’esta especie, e mais repetidos os clamores, as denuncias, as accusações. N’esse mar revolto vinha a flux o lodo da rapina desenfreada. Do cubiculo escuro da sua redacção, o diogenes do Porto, Bandeira, commentava assim os acontecimentos parlamentares:

O Claudio chamou ladrão ao Seabra. Olhe que lhe fez grande injuria! Não é similhante nome tão estimado? Não andam os ladrões nas palmas das mãos? Não são muitos votados para empregos e eleições? Não ha tanta gente de gravata lavada que os protege? Não são elles uma verdadeira potencia, com exercitos, caixa militar, capitães, capellães e cornetas? Não têem elles o direito de vida e de morte? Não impõem elles contribuições forçadas? (Artilheiro, 9 março de 36).

A allusão é clara ao bandidismo que imperava[Pg 16] á solta, municiado e protegido pelos partidos. Cada chefe tinha os seus clientes no fôro, comprados a dinheiro; e as suas guerrilhas no campo, para dominar e vencer a tiro nas eleições. Logo iremos vêr o que eram as provincias e a sua orgia sangrenta: agora, estamos na capital, onde corre o ouro dos emprestimos de Mendizabal, onde o Medicis-Farrobo dá largas á sua phantasia de artista, agasalhado com as luvas do Tabaco. Progride tudo: ha omnibus, ha o tivoli da rua de S. Bento, á imitação dos jardins parisienses. Vae-se dançar: annos antes, ia-se ás egrejas ouvir os sermões dos frades. No Circo olympico Avrilon faz de D. Pedro IV, com grandes barbas e a farda de coronel de caçadores 5, no Porto, ao som do hymno da CARTA. Ha um vivo enthusiasmo. (Apont. da vida, etc.) Trocou-se o Evangelho pela Liberdade; o sermão pelos discursos de S. Bento; as procissões pelas danças nos tivolis; os solemnes Te-Deum, com largas capas de asperges recamadas de ouro e fulgurantes de pedrarias, com tochas numerosas e thronos de luzes á hostia em custodias magnificas, pelas representações da opera que Farrobo[Pg 17] dirige, pelas soirées do seu theatrinho das Laranjeiras, um eden de merceeiro rico: otia tuta! As egrejas estão abandonadas e vasias, nus os altares; os frades vagueiam perseguidos, expulsos dos seus conventos, esmolando. Fundiram-se as alfaias, andam as livrarias dispersas, vendidas a peso, para embrulho nas lojas; e os templos profanados pelo padre Marcos—Papam habemus Marcum!—servem de estrebarias ou graneis; os conventos aquartelam soldados ou esperam os teares e engrenagens com que o proteccionismo setembrista promette regenerar as industrias. Já se não ouvem bemditos pelas ruas; em S. Carlos dá-se com geral applauso o Turco em Italia; e Pizarro, logo solto e livre depois da morte de D. Pedro, põe na bocca de todos a palavra popular do heroe da opera: «Voglio mangiare! voglio mangiare!» (Apont. etc.)

3.—O Thesouro Queimado

Aguiar abolira os conventos; José da Silva Carvalho abolira o papel-moeda: foram as duas unicas[Pg 18] medidas energicas em que se empregou o resto de força da dictadura.

O papel-moeda vinha de longe, como documento da miseria portugueza, declarada desde o fim do seculo XVIII e todos os dias aggravada. Era uma vegetação parasita que se enraizara no corpo da economia nacional como fungo de varias côres: havia-o legitimo, havia muito falso. A emissão feita pelo Thesouro, desde o 1.º de agosto de 1797 até 6 de dezembro de 99, para accudir á guerra do Roussillon, sommara 16:513 contos, o tendo-se amortisado no mesmo periodo 5:820, ficou em 10:693. Em 1805-6 (28 de junho a 31 de março) cresceu 500 contos. Depois amortisaram-se 2:901; e feitas as sommas e deducções, o saldo existente devia ser de 8:293 contos. (Coll. de Contas da Comm. int. da Junta, 10 de set. de 26) Observara-se porém que n’esses 2:901 contos amortisados entravam 518 de papel falso, quasi a sexta parte: quanto haveria, pois? De outro lado, os incendios e outras causas teriam sem duvida amortisado muito; e o facto é que em 1830, exigindo-se o carimbo do papel, o Thesouro só reconheceu a existencia de 8:008 contos. De 8 a[Pg 19] 8:500 contos de papel-moeda, eis ahi o legado do velho ao novo regime.

A França revolucionaria, como é sabido, procurara nos seus bens nacionaes a garantia para a circulação dos assignats, e a consequencia fôra uma ruina colossal. Entre nós, a perspicacia do ministro evitou esse perigo, que outras causas tambem afastavam. Os nossos bens nacionaes eram reclamados para fins diversos. Converter pois o papel-moeda em dinheiro com o producto dos emprestimos arranjados por Mendizabal, decretar uma banca-rota parcial, para evitar uma ruina futura, chamar os metaes preciosos á circulação: eis o pensamento do decreto de 23 de julho (34) que inaugura a edade nova do regime monetario nacional.

Era uma banca-rota parcial, mas só poderia deixar de o ser, se o ministro tivesse perante si elementos politicos bem diversos, bem melhores, do que os que havia. O papel-moeda declarava-se extincto a partir de 31 de agosto, data além da qual todos os pagamentos seriam feitos em especie. Os detentores do papel receberiam no banco o seu importe em ouro, com a perda da quinta parte; ou sem ella, em titulos que desde 37 a Fazenda receberia por metade nos pagamentos, e desde 38 integralmente. O desconto de 20 por cento era assim equivalente á móra de dois annos e meio. E em vez de comprar metaes com o producto do emprestimo destinado á conversão do papel, e cunhal-os, o ministro preferiu admittir á circulação a moeda extrangeira, dando-lhe um valor legal: os soberanos de ouro 4$120 rs. e os duros de prata 870 rs. (Decr. de 23 de julho de 34) O desconto de 20 por cento, ou a banca-rota da quinta parte do valor do papel-moeda não era pois a unica perda, porque o[Pg 20] valor legal dado á moeda extrangeira era excessivo. Substituia-se moeda sem valor intrinseco por moeda fraca. O soberano não valia realmente mais de 3$750 rs.[4] nem a pataca ou duro mais do 800 rs. (L. J. Ribeiro, Critica do rel. de J. S. Carvalho, 34) Havia, pois, um exagero de dez por cento que, com vinte de reducção no troco do papel, elevavam a quasi um terço o que realmente o Estado devedor deixava de pagar aos seus crédores.

Ao mesmo tempo que 16 ou 20 mil contos de propriedade caíam na posse do Estado, o Thesouro tinha de pedir emprestado o dinheiro para fazer uma composição com os seus crédores: taes são as consequencias naturaes das revoluções—têem de enriquecer os seus sectarios. Os clientes do ministro enriqueciam, com effeito, por ambos, por todos os modos: engulindo os bens nacionaes o agiotando com a banca-rota. O decreto de julho, porém, encarava o problema do restabelecimento da circulação exclusivamente metalica apenas nas suas relações para com o Thesouro, não attendendo ás relações contractuaes entre particulares. A isso veiu occorrer a lei de 1 de setembro, cortando os embaraços pela raiz, dispondo que todas as obrigações entre particulares se mantivessem taes-quaes até 38, exprimindo-se d’ahi por diante as sommas na unica moeda legal, o ouro. A natureza d’esta disposição, tornando solidarios da banca-rota do Thesouro[Pg 21] os particulares que tinham pactuado n’um regime de circulação mixta—a fórma da lei em que entrava um papel depreciado—obrigou mais tarde a reformal-a.


Esse incontestavel serviço da restauração da circulação metalica era pago á custa de graves sacrificios. A historia dos emprestimos da dictadura (V. Relat. de Carvalho, 34) era um tecido de confusões em que a maxima parte dos criticos viam trapaças vergonhosas. Sem duvida, a emissão de emprestimos durante as epochas desesperadas da guerra só pôde ser feita á custa de enormes agios; mas a confusão era tal e tão pequena a confiança na limpeza de mãos dos procuradores do Thesouro que, invertendo com espirito e agudeza a locução ordinaria, dizia-se «haver muito quem não duvidasse da boa fé». (Ribeiro, Critica do rel. etc.)

Nos primeiros tempos vivera-se dos subsidios do Brazil: 654 mil libras ou 2:943 contos, mais 437 gastos pela Junta do Porto, mais cerca de 300 nos Açores: ao todo 3:700 contos effectivos (V. Relat. Carvalho) com que Palmella e a primeira regencia liberal se tinham subsidiado a si, aos emigrados e ás varias tentativas e aventuras mallogradas. Tal fôra a confusão d’esses gastos, que se passou uma esponja por cima das contas, prescindindo-se d’ellas, considerando-se tudo approvado. Com D. Pedro entrou em scena Mendizabal, e, afóra pequenos emprestimos levantados no Porto e depois em Lisboa, os principaes recursos da guerra vieram dos emprestimos londrinos. O de dois milhões (23 de setembro de 31) de 5 por cento liquidou os encargos anteriores:

[Pg 22]

Devia-se a Marbeley £ 12:600 deram-se-lhe bonds por £ 105:600
a commissão de aprestos vendeu por » 52:000 titulos no nominal de » 150:000
negociando-se a 48 por » 837:312 o resto    »    »    » 1.744:000
Totaes 901:912 nominal » 2.000:000

D’esse producto só as duas primeiras verbas eram porém reaes: uma por ser divida positiva, outra por ser dinheiro applicado á compra de armamentos, soldo de mercenarios, etc. O resto representa-se d’esta fórma:

Juros e outros encargos atrazados £ 253:780
Commissões e premio da emissão » 295:003
Dinheiro » 288:529

De sorte que o producto dos dois milhões era realmente £353:129, a terça parte (ou £606:909 se se lhe juntarem os juros atrazados) saíndo ao juro annual effectivo de 16 por cento. (Ribeiro, Critica, etc.)

O primeiro ensaio não provou feliz, mas o segundo foi ainda peior: é verdade que as condições tambem tinham peiorado e havia já muitas esperanças perdidas, mas a politica liberal em materia de finanças estava conhecida. Que outra cousa podia ser, senão agiotagem, o systema acclamado pelos bolsistas de Londres? A emissão de £600:000 (23 de outubro de 32) produzia, liquido de premios e commissões, £151:925, custando pois a razão de quasi 20 por cento ao anno. Já em Lisboa, depois (14 de setembro de 33), contratam-se outros dois milhões; e por fim, destinado á conversão do papel-moeda, um ultimo milhão. Os tres milhões produzem, ainda captivos de commissões e premios que se encobriam, £2.356:756, (V. Relatorio, etc.) que não dariam mais de dezoito ou dezenove centenas[Pg 23] de milhares de libras, custando entre 8 e 9 por cento.

Somma total, a divida externa, que do emprestimo de 1823, contava um milhão esterlina, subia a quasi sete (6.729:800) ou 29:400 contos da nossa moeda com o encargo annual de 1870. (Orçamento para 35-6)


Falta-nos vêr agora, para completar o nosso estudo, o estado da divida interna. A importancia d’ella era em principios de 28: (ap. Bulhões, Divida port.)

Com juro: Consolidados de 1796 a 1827 contos 13:402
Padrões, a cargo do Thesouro » 7:000 20:402
Sem juro: Papel-moeda, orçado em » 6:000
Divida fluctuante (atrazados) » 6:490
Emprestimos diversos » 1:430
Exercicios findos » 4:778 18:698
Total contos 39:100

Depois da conversão do papel-moeda; depois do decreto (23 de abril de 35) que converteu em 4 por cento, como juro a metal, a divida antiga de 6 na forma da lei; liquidada a guerra e consummadas as bancas-rotas, podemos apreciar o estado em que se achou o Thesouro: (V. Coll. de Contas da Junta; Ribeiro, Critica e Bulhões, Div. port.)

Divida reconhecida

Com juro: Emprestimos liberaes dos Açores, do Porto e de Lisboa contos 2:520
Titulos de divida antiga » 12:375 14:895
Sem juro: Papel-moeda, por amortisar » 3:500
Divida fluctuante (atrazados) » 5:689
Juros por pagar » 897 10:086
Somma contos 24:981

[Pg 24]

Divida não reconhecida

Legitima: Padrões de juros reaes contos 4:800
Outros emprestimos anteriores » 1:670
Atrazados de 23-4 » 10:543
Indemnisações approvadas, por pagar; e diversos » 11:000 28:013
Illegitima: Emprestimos de D. Miguel em 28-30 4:443
Somma contos 32:456
Total » 57:437
O Thesouro, pois, devia em 1828 contos 39:100
e confessava dever em 1835:
por titulos passados a extrangeiros 29:400 »
   »    »    nacionaes 25:000 » 54:400
Excesso » 15:300
Deixando de reconhecer creditos legitimos por » 28:000
Excesso » 43:300

A esta somma devem juntar-se ainda os titulos naturalmente amortisados pela abolição das corporações possuidoras d’elles. Quanto a encargos, porém, a situação do Thesouro é diversa: pois a divida com juro era, em 1828, de 20 mil contos e agora é de 44:300. Apesar da somma de bens confiscados, o encargo do orçamento duplíca, embora se não paguem os juros dos padrões, ainda representantes de um capital de cinco mil contos.


É impossivel dizer que sommas a crise custou á nação, porque se não medem por numeros as perdas de riqueza e trabalho por todo o paiz, e menos ainda a perda de gente e de forca, consumidas pela guerra e pela intriga. Menos se póde[Pg 25] contar ainda o valor perdido das energias gastas em sustos e afflicções!

Póde talvez, porém, calcular-se o que financeiramente se perdeu, reunindo numeros conhecidos:

Por parte dos Liberaes

Valor da divida que contrahiram no reino e fóra 27:522
Id. dos subsidios do Brazil, recebidos 2:943
Id. dos atrazados por pagar em 34 4:000
Valor das indemnisações a solver 7:000
Id. das dividas legitimas não reconhecidas 17:013
Id. do terço do papel-moeda, na conversão 2:500
Id. dos confiscos de propriedade inimiga ?

Por parte dos Miguelistas

Valor da divida que contrahiram 4:443
Id. dos vencimentos e juros não pagos durante o seu governo 8:083
Id. dos dons voluntarios e confiscos ?

Setenta, oitenta, cem mil contos, custou decerto á economia da nação a guerra que terminára sem conseguir acabar ainda com a crise, porque á lucta entre o velho e o novo Portugal iam succeder as luctas dos partidos liberaes. Secco, devastado estava o reino com os vomitos da cholera, as agonias da fome gemendo por todo elle: e da mesma fórma o Thesouro, imagem viva do paiz, nú e vasio, gemia tambem com a lepra da corrupção, da agiotagem, do puro roubo. O anno de 33-4 dera apenas tres mil contos para uma despeza de treze mil;[5] e o orçamento de 35-6 apresentava[Pg 26] um deficit de mais de quatro mil,[6] com receitas exageradas.

Começaram a pronunciar-se vivamente os clamores contra a sociedade Mendizabal-Carvalho e suas combinações em que tantos lucravam agios, commissões, premios, bonus. Mendizabal furava pelo meio das bolsas de Paris e Londres, dando luvas aos Rothschilds, aos Ricardos, aos Foulds, aos Oppenheims, para pôrem o seu nome nos annuncios das emissões portuguezas. (A dynastia e a revol. de set. anon.) Carvalho furava pelo meio da selva das intrigas, como uma estrella caudata de ouro, fechando os olhos: era dinheiro inglez! O seu processo evitava que a causa se despopularisasse exigindo impostos, contentava o povo, pagava tudo em dia, e dava ainda para vencer resistencias que as alfaias dos conventos e os bens nacionaes não satisfaziam. Era uma chuva de libras esterlinas: quem viesse[Pg 27] depois, que se arranjasse! Não se podia opprimir o povo, nem ser muito exigente com um funccionalismo inventado assim, do pé para a mão, para pagar os serviços á causa. A decima rendia apenas oitocentos contos; e até 1840 nem um dos recebedores geraes nomeados em 34 tinha prestado contas: uns fugiam, outros escondiam-se; e depois, ainda em vão o Diario, em 39, publicava a lista dos remissos.

O ministro, indifferente, compassivo, passa-culpas, deixava ir, considerando que o periodo era transitorio. Afinal, chegára o momento da desforra: não tinham sido muitos os annos de amargura? Mas as pretenções da opposição, exigindo limpeza de mãos ao governo, e ameaçando com essa necessaria banca-rota onde acabam as viagens de todos os Laws, veio transtornar a placidez dos dias felizes. Carvalho caiu (27 de maio de 35) e no seu logar entrou o sincero Campos, mais escrupuloso, menos atilado. Impellido para além do que a prudencia mandava, o ministro expôz, em lagrimas, o triste sudario do Thesouro. Chorar é bom; desacreditar o adversario póde não ser mau; mas que remedio? Diz o povo que tristezas não pagam dividas. Campos tinha só lagrimas e invectivas: caiu logo. (15 de julho) O Banco e a agiotagem em peso exigiam a entrada de Rodrigo e de Silva Carvalho. Saldanha, na presidencia, que havia de fazer? Deitou ao mar o lastro radical do gabinete, admittiu os homens habeis em finanças. Estava imminente a banca-rota: não havia um real, e os da opposição não mereciam conceito aos argentarios. (Carnota, Memor. of Sald.) O marechal, entre os dois partidos, com a sua vaidade ingenua, já se acreditava um arbitro—quasi um rei. Não o tinham convidado para monarcha no[Pg 28] Rio Grande? Não escrevia elle mais tarde, já depois de ter sido apenas o méro instrumento cabralista, «estou persuadido que seria um bom chefe n’um Estado qualquer»? (V. carta de 69, em Carnota, ibid.) Deitou fóra Loulé e Campos; metteu Rodrigo e Silva Carvalho.

Via-se que o Law portuguez, liberal em todos os sentidos e para com todos, era indispensavel. Endividamo-nos: que tem isso? O futuro a Deus pertence—dizem o turco e o portuguez. Nação de morgados hypothecados, Portugal sentia-se bem empenhando o futuro. As dividas cresciam; pagavam-se os juros com dividas novas; e assim se iam pedindo, consolidando e pagando.—Não é o que ainda hoje[7] succede?—Só a opposição clamava, e como a intriga era muita, apezar do fiasco do verão, Campos voltou ao governo no inverno. (18 de novembro)

Desorientaram-se as cousas e o rival expulso esfregava as mãos satisfeito: bem o dizia! Utopistas os que pretendiam viver dos recursos d’uma casa arruinada! Pois não era evidentemente melhor aproveitar do inglez que nos dava o que lhe pediamos? Era dinheiro que vinha para cá. Tinhamol-o? Não. Custava muito caro? Deixal-o custar. Quando não houvesse nada para os juros, não se pagavam: eis ahi está! Quem perdia? O paiz? não; o inglez. Carvalho, que assim pensava, não deixava de ter rasão; mas a hypocrisia politica impedia-lhe que o dissesse. D’ahi provinha o ser batido pelas sonoras palavras dos adversarios.

Como os factos, porém, o vingaram! A desordem continuava a ser a mesma, aggravada com a[Pg 29] suspensão dos pagamentos. Os mercenarios clamavam pelos soldos, suspirando por voltar para casa. Já conformados com a falta das terras promettidas, pediam apenas um dinheiro que não havia. Davam-se-lhes letras sobre Inglaterra, e empregados do thesouro, que já tinham aprendido muito, iam a bordo descontar-lh’as a dez por cento e mais. (Shaw, Letters) Tudo jogava: a vida era uma sorte. Farrobo fôra cudilhado pela lei do papel-moeda. Faziam-se e desfaziam-se as riquezas como nuvens passageiras. Bens de sacristão, cantando vêm, cantando vão!

O rigido Campos não era homem para tal gente, nem para tal epocha. Levantava-se contra elle um clamor unanime dos prestamistas sem juros, dos empregados sem vencimentos, dos soldados sem pret.—«Em que se parece o sr. Campos com um cometa? Em ser barbato e caudato. E em que mais? Nos resultados influentes. O do outro dia deixou-nos o frio, e este a fome». (Bandeira, Artilheiro, n.º 19) Maldito governo que não paga! «Isso é falta de paciencia ... O sr. Campos, quando entrou para o thesouro, que achou lá? Pulgas!» (Ibid.) Mas d’esses bichos, Carvalho fazia libras, e por isso o foram chamar outra vez. (20 de abril de 36) Era unico na sua especie.


Comtudo os tempos iam durando, e nada ha peior do que o tempo para todos os Laws. Se as cousas não andassem! Andavam, porém, e rapidamente: com aquella velocidade progressiva da machina capitalista, prolifica por meio dos juros, amortisações, capitalisações. Dois annos tinham[Pg 30] bastado para progredir d’este modo: (V. Coll. de Contas, 10 de setembro de 36)

1834 1836
Divida externa capital 29:400 40:398
    »    interna     »   14:895 20:748
Somma 44:295 61:146
Accrescimos—capital 16:851
juros 313
Divida sem juro:
Papel moeda 3:500 3:115
Diversos 6:586 6:852
Encargos totaes da divida: juros 2:334
amort. 627
Divida mansa
(Padrões, atrazados, etc.) 17:013

E n’esses dois annos decorridos, estava consumido, além do mais, o melhor dos bens nacionaes. Ardia tudo n’um fervor de appetite que já para muitos começava a infundir receios de uma indigestão tremenda. Dois annos de paz tinham custado quasi tanto como seis annos de guerra: muito mais, se se contar o que o Thesouro não pagou. A guerra fôra cara, mas a victoria era ruinosa. No meiado do verão (14 de julho de 36) pegou fogo no thesouro. Já tudo ardia, lá dentro d’esse palacio onde á inquisição religiosa succedera a inquisição agiota, com as suas tenazes de papel timbrado, os seus troncos de juros, retornos, commissões, premios; com a sua algaravia bancaria, herdeira do historico latim das sentenças singulares ... Qual dos desvarios dos homens valerá mais?

Ardeu em verdadeiro lume o Thesouro em julho; mas já vinha ardendo havia muito em lepra que o roía de torpezas, e n’um vasio que o amargurava de contracções, como as dos estomagos[Pg 31] famintos. O povo dizia que o fogo fôra posto, para saldar muitas contas; mas o ministro, Pombal da moderna finança, Law portuguez, iniciador da nação nova nos segredos do capitalismo; o ministro, como o velho marquez no seu terramoto, mandou pagar o semestre no dia seguinte. Ardia o Thesouro? Agua ao fogo, e paguem!—traducção do «enterrar dos mortos e curar dos vivos». Ardia o Thesouro! Boas, francas labaredas, impellidas por uma ventania fresca, subiam crepitantes, levantando no ar os farrapos da papelada. Durou doze horas o incendio, do meio-dia á meia noite. Muitas horas mais, muitos dias, bastantes annos, ia durar outro incendio, acceso pelas ambições mal soffridas, pelas illusões crentes, pelo protesto contra o systema da veniaga e da delapidação, contra o regabofe que a uns enchia de coleras e a muitos mais de invejas. Tambem tinham soffrido: tambem queriam gozar!

Em julho ardeu o Thesouro; em setembro rebentou a revolução.

4.—A FAMILIA DOS POLITICOS

Mas antes de setembro e da nova face que as cousas tomam n’essa data, falta-nos ainda estudar mais de um dos lados da nação, no seu primeiro periodo liberal ...

Além das causas anteriores conhecidas, a propria victoria do novo regime concorria mais ainda para que Portugal fosse uma nação de empregados publicos. A suppressão dos conventos, o resfriamento dos sentimentos religiosos, diminuiam a offerta e tambem a procura de lugares na Egreja. As causas economicas anteriores já tinham, póde dizer-se, supprimido a navegação; as tentativas[Pg 32] industriaes manufactureiras do marquez de Pombal não tinham vingado; e a recente crise de oito annos, rematada por um terramoto das velhas instituições sociaes, viera talar os campos, arruinar a agricultura. Portugal achava-se, pois, forçado a substituir por um communismo burocratico o extincto communismo monastico. Durante a guerra, a nação fôra um exercito; agora, licenceadas as tropas e supprimidos os soldos, de que viveriam os soldados? É verdade que o governo podia ter feito como se fazia outr’ora em Roma; mas a distribuição das terras conquistadas não podia ter lugar, porque os capitães queriam-n’as para si, por grosso. Força era portanto optar por outra saída: e qual, senão os empregos publicos?

Por sobre esta necessidade social appareciam as necessidades politicas. Em que peze ás seccas affirmações doutrinarias e ás chimeras dos philosophos, todas as nações consistem realmente na aggregação de clientelas para as quaes um chefe é ao mesmo tempo um instrumento, um representante e um defensor. Essa primeira fórma da sociedade romana exprimia uma verdade natural que os systemas encobrem mal.[8] Quando, mais tarde, se imagina subordinar a doutrinas abstractas a existencia dos povos, observa-se que os factos naturaes espontaneos, reagindo, tiram a realidade ás formulas. Assim, nas velhas monarchias havia chefes e partidos, cujo poder era maior do que o do rei; assim, nos governos formalistas liberaes, o poder pessoal dos chefes politicos, apoiado sobre instrumentos como as eleições, a imprensa, etc., é a força positiva que impera sophismando uma constituição, a qual os chefes confessam e dizem[Pg 33] respeitar por um sentimento de conveniencia e de pudor publico, mais ou menos consciente.

Quando a machina social se desorganisa, apparecendo o que se chama revolução ou crise, vêem-se mais ao vivo como as cousas são na realidade. Era isto o que succedia entre nós, nos tempos que agora atravessamos. Constituiam-se as clientelas; e como a sociedade era ainda quasi um acampamento assente sobre um territorio desolado; como não havia outros meios de vida patentes a numerosas classes desorganisadas, essas clientelas eram o que podiam ser: burocraticas e militares.

«Para um homem ser ministro de Estado basta que um batalhão, de mãos dadas com um periodico, o queiram». (Bandeira, Artilheiro, n.º 25) Sociedades como a portugueza, lançadas de chofre n’uma vida nova, sem precedentes nem raizes na historia immediata; povos de um temperamento violento ou ardente, sem instrucção nem riqueza: estão condemnados a um revolvêr desordenado, em que idéas, ou falsas ou mal concebidas, se combinam com os instinctos intimos que a anarchia traz á flôr da realidade. Entre os debates de doutrinas extravagantes e as luctas dos bandos armados, vae pouco a pouco effectuando-se, de um modo naturalistamente espontaneo, a reconstituição do corpo social desorganisado. É como quando o furacão levanta e ennovela o pó das estradas que se agita, mistura-se, e gradualmente vae outra vez assentando.

Nada nos deve pois admirar o que succedeu em Portugal: outrotanto succede ainda hoje á Grecia e aos paizes do Oriente slavo; e o mesmo que nos aconteceu a nós, foi o que se deu na Italia e na visinha Hespanha. Os homens da Europa central,[Pg 34] francezes, inglezes, allemães, belgas, filhos de sociedades differentes, não podiam comprehender, nem o nosso bandidismo, nem o systema das nossas clientelas ou partidos, nem o nosso communismo burocratico, nem a nossa furia politica, paixão dominante que a occasião, o interesse, e a doutrina da anarchia individualista concorriam para fomentar. D’esta incomprehensão do caracter da sociedade pelos extrangeiros que mandavam n’um paço occupado por uma rainha quasi extrangeira, veiu a principal causa das reacções e revoluções que alagaram o paiz em sangue, consummando a obra de uma ruina já avançada. Dir-se-ha porém que, se tal motivo não surgisse, a vida portugueza de 34 a 51 teria sido uma paz? Não, nunca. Haveria apenas um elemento menos de guerra. Os diversos bandos, com seus chefes e clientes, seus principios e interesses, seus programmas e guerrilhas, teriam combatido da mesma fórma entre si, até que o cansaço universal impuzesse uma paz que nenhuma clientela podia impôr com a victoria, por falta de força bastante para a ganhar.


O motivo de uma tal fraqueza está nas condições necessarias de uma sociedade no caso da nossa. Os debates e as luctas dão-se entre a minoria minima dos politicos, advogados ou militares, com discursos ou correrias, formulas ou guerrilhas.

Esta qualidade de homens é quasi a unica que se interessa nos negocios publicos; occupando todos os cargos da administração, constitue o que chamam opinião, domina as eleições e toma assento nas côrtes. D’ella se compõem os[Pg 35] poderes executivo e legislativo, sendo ao mesmo tempo governo e povo. O numero d’estes politicos não é consideravel, mas é demasiado relativamente ao magro orçamento de Portugal. (Lasterie, Portugal etc., na Revue des deux mond. 1841)

«Cada governamental, dizia o conde da Taipa, é um artigo da CARTA.» E se, com effeito, o orçamento era magro de mais para sustentar os politicos; se o communismo burocratico era bem mais difficil de manter do que o monastico, pois os pedintes não se contentavam com o caldo e a brôa das portarias: é tambem facto que os homens de alguma cousa haviam de comer. E se não havia outra occupação para onde se voltassem?

Uma nação de empregados
É Portugal? Certamente.
Até D. Miguel do throno
De D. Maria é pretendente.

(Bandeira, Artilheiro, n. 22).

Não podia ser de outro modo, e já vimos o porquê. Mas o orçamento era magro, magrissimo: se se pagava, honra seja á arte do nosso Law, que achára em Mendizabal um corretor e em Londres uma colonia excellente para a lavra das minas de libras. Comtudo essas fortunas sempre duram pouco; e o Thesouro soffria de intermittentes, com os ataques de escrupulo da opposição. Os pobres empregados viam-se n’uma situação triste: «Em que se parecem com os papa-moscas? Em que estão todos com a bocca aberta». (Ibid. 31)

Se é verdade que quem «ataca o governo não saiu despachado»; (Ibid. 8) não é menos verdade, comtudo, que seria injusto vêr na constituição da familia politica o mobil exclusivo da fome ou da[Pg 36] cubiça. Outros motivos, não menos graves, concorriam para a formação das gentes o para as rivalidades e luctas dos chefes e clientes. «Nunca póde haver ministros bons; e porque? Porque os ministros são seis e os pretendentes seis mil». (Ibid. 28) Nas velhas sociedades patriarchaes ou feudaes, a tradição e a lei mantinham o lugar de cada um; mas agora as fórmas de authoridade natural surgiam do seio da anarchia positiva, e a doutrina da anarchia individualista e da concorrencia livre de todos a tudo, consagrava a ambição do mando com a authoridade de uma theoria.

A ambição, eis ahi, pois, o principal dos motivos pessoaes, superior ainda á cubiça e á fome, cujo papel é mais anonymo e collectivo, mais talvez dos clientes do que dos patrões. A franqueza com que todas as portas se abriam a toda a gente; a segurança com que todo o «individuo» por soberano, se achava apto para tudo; o systema, que destruira a administração especialisada nas antigas juntas e conselhos, e confiava a solução de todos os negocios ás assembléas saídas do cháos da eleição; a victoria que «deitára tudo abaixo» e enchia de orgulhos os demolidores: tudo concorria para inchar as vaidades e aquecer as ambições. Pullulavam os homens-novos, soletrando Volney e Mirabeau, Dupuy, Rousseau e o Citator, cheios de affirmações, philaucia, e desprezo desdenhoso pelo antigo saber fradesco. E ao lado dos pedantes, havia por todo o reino os ingenuos, cheios de crenças quasi religiosas n’um Evangelho novo. A camara de Ribaldeira escrevia assim a Passos Manuel:

Não somos doutrinarios nem aristocratas; muito presamos Montesquieu, mas não é só elle que fórma a nossa[Pg 37] propria bibliotheca; desde Hobbes até Rousseau, desde Machiavelli até Batham (sic) algües outros temos lido; em nossas aldeas tambem consultamos a Historia dos Washingtons, dos Triunvirs (!) dos Neros, etc., etc. (Off. de 20 de dez. autogr. na corr. dos Passos)

Os jornaes diziam tudo, conheciam todas as questões, resolviam todos os problemas, porque nada ha mais atrevido do que a ignorancia. E sentados sobre as ruinas da patria assolada, cuspiam-lhe em cima, com desprezo, renegando-lhe a historia, com as cabecinhas empertigadas e occas voltadas para a França, acclamada em phrases banalmente pomposas. A emigração educára-os, e voltavam «enfatuados de sábia», escarnecendo dos goticos, infelizes que nunca tinham saido de Portugal.

Muitos se julgavam sabios por aprender um cumprimento em francez, misturando de vez em quando um good night seguido de uma pirueta; por aprender meia duzia de nomes de autores, usar de charuto, alugar uma cara de tolo, raspar-lhe a vergonha, namorar a torto e a direito, entrar nos botequins, lêr por desfastio, fallar de politica e de não sei que contracto, metter a religião a ridiculo. (Bandeira, Art. 23).

Tudo era necessario e natural, embora seja indubitavelmente grutesco. A pretensão de que a LIBERDADE era a formula absoluta, o systema a verdade revelada e a historia uma peta; a pretensão da infallibilidade da razão individual e da soberania das vontades humanas, tinham de forçosamente trazer os costumes a um estado que corresponde aos outros lados da physionomia social. A anarchia na escola era, e não podia deixar de ser, a anarchia na realidade; e a negação systematica da authoridade collectiva e do caracter[Pg 38] organico da sociedade, depois de condemnar a historia, condemnava a actualidade, valendo-se dos abundantes documentos que ella lhe fornecia. Tudo era peta, burla, infamia:

Em que consiste o direito de votar? É o direito banal pelo qual eu sou obrigado a conduzir um papel de que não faço caso ...

Que são os grandes, os chefes, junto ao throno? São canos reaes por onde se despeja toda a immundicie da alma dos seus protectores; delegados á latere do vicio, vendem os interesses do povo por um crachá, fazem e desfazem ministerios com a mesma sem-ceremonia com que despejam o regio ourinol ...

Leilões de generos avariados: Boa-fé no largo das Necessidades; Egualdade de Direitos nas secretarias d’Estado; Liberdade de voto, nas assembléas eleitoraes, etc.

(Bandeira, Artilheiro, n. 2 e 23).

Com effeito, os chefes não se tornavam crédores de um respeito demasiado.

Á morte de D. Pedro, segundo vimos, Palmella apoderou-se do governo, fundindo-se a sua clientela, ou partido, com o da regencia n’esse momento acabada. O caracter revolucionario do governo da dictadura terminára, e dos antigos ficavam no ministerio apenas Freire, e Carvalho o financeiro indispensavel. Era necessario pôr ponto no «deitar abaixo». Já Palmella, no conselho de Estado, tinha votado com a maioria contra a extincção dos conventos, que apezar d’isso Aguiar decretou em secreto accôrdo com D. Pedro; já pozera depois o seu veto ao remate do plano de Mousinho, a abolição dos morgados. Moderado sempre e aristocrata, o radicalismo dos philosophos parecia-lhe tão mau como a demagogia: quer a vencida demagogia miguelista, quer a demagogia ameaçadora[Pg 39] da opposição radical. Com os olhos invariavelmente voltados para a Inglaterra, não concebia outro typo de nação, além do typo aristocratico, liberal e conservador. No governo succedia-lhe agora o que sempre lhe succedera: era antipathico e ninguem o recebia. Reconhecendo todos a sua habilidade, parecia a todos que só a ambição pessoal o movia. O povo, já minado pelas theorias democraticas, considerava-o um tyranno; e a cauda dos odios pessoaes que as intrigas e os erros da emigração lhe tinham feito, voltava-se agora e mordia-o. Quando pela terceira vez a CARTA se rasgou para casar (1 de dezembro de 34) a rainha com o primeiro dos seus dois maridos allemães, quando a opposição pedia «um fidalgo portuguez», dissera-se muito que Palmella pensava em fazer da rainha sua nora.

Mas esse principe contratado para dar herdeiros á corôa portugueza (os nossos visinhos hespanhoes chamam coburgos a taes maridos) durou pouco; e a sua morte (28 de março de 35) foi motivo de uma crise. Lisboa appareceu crivada do pasquins accusando Palmella de envenenador, o attribuindo-lhe a ambição de querer para seu filho a mão da rainha: Wellington, de lá, apoiava o plano! O povo acreditou e saíu. Houve tumultos graves (29), pedindo-se a cabeça do traidor. Terceira que já em 27, nas Archotadas, carregara essa canalha desembainhou outra vez a espada fiel e manteve a ordem.

Mas só uma ordem apparente, porque no fundo havia uma anarchia real. Varias clientelas, com os seus chefes e os seus programmas varios, ambicionavam o poder. Palmella era um estorvo e contra elle se fundiam as opposições todas, congregadas para o ataque.

[Pg 40]

Um pasteleiro queria
Fabricar um pastelão
E porque tinha de nada
Deu-lhe o nome de fusão
Arde o forno, o pastel dentro
Principia a fermentar
Entornou-se; perde a massa:
Só ficou o alguidar.

(Bandeira, Artilh. 12 set.)

Esse alguidar era Saldanha, que nunca pareceu mais vasio, mais de barro, que agora. O rival tinha um pensamento, elle apenas um nome. Palmella dispunha de uma clientela firme; Saldanha, já desacreditado perante os radicaes, embora ainda representasse o papel de seu chefe, era um general sem exercito, condemnado a presidir a um gabinete mixto. Esturrou-se logo o pastel, e o alguidar appareceu transbordando de gente radical: um ministerio puro de opposição. (Sá, Loulé, Caldeira, Campos, 25 de nov.)

Varios tempos, licções eloquentes, arrependimentos já tardios, enchiam a cabeça de Saldanha, lembrando-se do papel que fizera em 26-7, das cousas que authorisara com o seu nome em Paris. Achara-se levado por um ardor de gloria nas azas da revolução, e não tivera podido medir bem o destino d’esse vôo. Já de ha muito que reconsiderara. O leitor lembra-se dos episodios do Cartaxo. Mas, sem o talento do rival, que ficaria sendo, se deixasse de ser o chefe de um radicalismo já então por elle renegado? Uma espada apenas, prompta sempre a obedecer e incapaz de mandar, como Terceira? Não: isso não podia admittil-o a sua vaidade. Seria descer muito. Mas para não descer—elle provavelmente já nem queria subir mais—era impossivel ficar immovel. O partido de[Pg 41] que se dizia chefe, tinha-o apenas como um rotulo, um pendão, sem dar a minima importancia ás suas vontades ou desejos pessoaes. Seguia o seu caminho, guiado por outros; e para que Saldanha, agora no governo, não fosse francamente renegado, era mistér que saísse da inacção e se declarasse o dictador que Passos foi no anno seguinte. Já em 27 succedera o mesmo, e lembrava esse episodio: quando faltava apenas extender o braço e sagrar-se chefe da revolução, Saldanha, tendo-a acompanhado até ahi, parava, tremia com escrupulos, fugindo.

Depois do Cartaxo quizera, como dissemos, remir os erros da emigração, encostado-se ao cartismo (Hontem, hoje e amanhan, op. anon.); mas os cartistas que lhe pagariam bem e usariam com prazer da sua espada, como faziam á de Terceira, não lhe davam importancia ás opiniões nem o reconheceriam chefe. Por seu lado os radicaes, vendo a fraqueza inconsistente d’esse chefe theatral, sem repellirem o instrumento que ainda lhes servia, já se esforçavam por mostrar bem claro que lhe não obedeciam. Nas eleições de 34, Saldanha acompanhara D. Pedro ao Porto. Ia n’uma posição singular, para convencer o principe do poder do seu partido, dando por tal fórma um grande peso á sua adhesão ao throno. D. Pedro, por seu lado, levava por fim bater no Porto, com a presença do marechal, a influencia do radicalismo dirigido pelos irmãos Passos; e com Saldanha á mão, Saldanha que lhe asseguraria a obediencia dos que ainda talvez suppozesse seus clientes, esperava tudo da conversão do caudilho militar ás opiniões conservadoras. (Macedo, Traços.)

Os chefes enthusiastas e fortes do futuro Setembrismo deram uma licção ao principe e ao seu acolyto.[Pg 42] Saldanha, candidato, foi batido no primeiro escrutinio da eleição: onde estava o seu poder? Mas para dizer a D. Pedro que a victoria lhe não pertencia, e para dizer ao general que apesar do seu procedimento o não renegavam, usando de uma magnanimidade que talvez o desviasse do tortuoso caminho que seguia, elegeram-no no segundo escrutinio. (Macedo, Traços) Era uma victoria mortal, uma estocada em cheio no inchado balão das esperanças dos dois viajantes. Tornaram ambos a Lisboa corridos.

Saldanha, apesar de tudo, ainda foi sentar-se no ultimo e mais elevado banco da esquerda da camara. Illudir-se-hia ainda com a boa figura que fazia de lá a sua presença nobre e pomposa? Talvez; porque se tinha ingenuamente n’uma grande conta, e dava ouvidos abertos á adulação. (Hontem, hoje e am.) Quando Palmella teve de cahir, o chefe natural do governo era Saldanha: mas, como já vimos, a sua falsa posição creou um pastel mixto pouco duradouro; (4 de maio a 18 de nov.) e a entrada do seu partido obrigou-o a elle a sahir, (25 de nov.) corrido, desacreditado e renegado. Pagava o devido preço da sua politica dubia: via fugir-lhe toda a clientela; era um homem perdido e abandonado pelos que tinham sido os seus e o apeavam definitivamente de um throno que durara oito ou nove annos. Retirou para Cintra a ensaiar lavouras. (Carnota, Mem.)

Não foi a queda d’esse chefe que pouco podia e já nada queria fazer, foi a impotencia da nova clientela exaltada quem a precipitou do governo (19 de abril de 36). Voltou a antiga gente, menos Palmella que tambem no isolamento remia velhas culpas. Os dois próceres rivaes, por tanto tempo inimigos poderosos, achavam-se egualmente reduzidos[Pg 43] a nada, agora que já se entendiam, depois de feitas as pazes. Havia um outro duque, sem idéas politicas á maneira do diplomata, sem fogachos de ambição e rompantes de soldado á maneira de Saldanha; um outro duque, boa pessoa, politicamente nulla e por isso sempre fiel, excellente individuo para pôr á frente de um governo onde a antiga gente (Freire, Aguiar, Carvalho) restaurada queria começar uma vida nova, pensando soffrear com o utilitarismo e uma administração energicamente pratica, o torvelino de confusões politicas, de ambições pessoaes. Seria outra dictadura. Mas onde estava D. Pedro? Terceira presidiu a esse ministerio que a revolução de setembro derrubou, encerrando o primeiro periodo da vida liberal portugueza.

Afflicto pelos pedintes, pois da sua clientela antiga só os mendigos restavam fieis, despeitado, ferido no seu orgulho, prejudicado nos seus interesses, Saldanha via-se na falsa posição de não poder ser cousa nenhuma. Para o governo, vivamente atacado e decidido a dissolver as camaras, o general buliçoso e ávido, era, porém, a ameaça viva de uma revolta militar. Accusaram-n’o os seus amigos de outr’ora de se ter vendido n’esta occasião: «desde aquella epocha, de deserções em deserções, chegou á situação em que hoje (1854) está, desprezado por todos os partidos: porque se algum ainda lhe faz festa não é porque o estime, é por ser um tronco velho, sobre que ainda alguem se sustenta». (Liberato, Mem.)

Como é desoladora, melancholica, a historia funebre de todos estes homens que a desesperança ou a fraqueza atiram como farrapos, successivamente, para o lixo das gerações! Que singular poder tem a anarchia das idéas, o imperio dos[Pg 44] instinctos soltos, das chimeras aladas fugitivas, para despedaçar os caracteres e perverter as intelligencias! Já um caíu—Mousinho; hoje é outro, o heroe de 26, o soldado do Porto—esse brilhante Saldanha! E ainda agora a procissão começa; ainda agora vae no principio o devorar impossivel do Baal da LIBERDADE, cujo ventre, como o do phrigio, pede honras, talentos, forças e sangue, para o seu consumir incessante!

Com o fim d’este primeiro periodo da anarchia positiva acaba Saldanha, da mesma fórma que Mousinho acabou ás mãos da sua anarchia theorica. Acaba, dizemos; porque, embora a sua vida se prolongue muito—demasiado!—ainda; embora o seu genio irrequieto, as suas necessidades, a sua ambição, lhe não consintam abdicar e sumir-se, como fez Mosinho e como fará Passos: a vida posterior que vae arrastar, se tem ainda momentos theatraes, é uma triste miseria. De chefe de um partido, passa a janisaro de um throno. De Cid, transforma-se em Wallenstein. O que brigara para não ser a espada de Palmella, vem a ser o punhal com que os Cabraes submettem o reino ao seu imperio. Sempre simples, seguro de si, crendo-se muito, não tem a consciencia de quanto desce. Lembra-se do que foi e poude; crê tudo o que os aduladores lhe dizem, confia no soldado que ama por instincto o genio; incha-se com as ovações que mais de uma vez ainda a turba ignara fará á sua sua figura theatral, aberta, viva e san, sempre moça, nas proprias cans da velhice que lhe emmolduram o rosto, augmentando ainda a seducção do aspecto d’esse actor politico: «estou persuadido que seria um bom rei n’um Estado qualquer!»

Rebellado ou submettido, contra ou pelo throno,[Pg 45] no campo e em toda a parte, comprado ou temido, Saldanha, suppondo-se um arbitro, não sente quanto desce; não se reconhece um instrumento, nem que o deprimem as cousas que faz. A confiança que tem em si chega a ser infantil: com a mesma franqueza com que suppõe governar, imagina saber; e assim como as suas politicas são chimeras, são tolices as suas obras homeopathicas, ou inspiradas pelo catholicismo ardente que nunca perdeu. Quiz fazer concordar o Genesis com a Geologia, e essa tentativa, ainda quando soubesse o que não sabia, era a mesma que a sua propria pessoa apresentava: a concordancia de um catholico e jacobino. D’essas chimeras ficavam apenas livros maus e acções peiores. É verdade que os livros, luxuosamente impressos, tinham douraduras nas capas: também a vida do marechal tinha uma capa dourada de commendas, cordões e fardas bordadas, que sobre um vulto bem apessoado, com a sua face bella e a tradição da sua bravura, o faziam um excellente embaixador nas côrtes extrangeiras.

Depois, caíu ainda mais, sem o saber, sem o sentir: crendo-se sempre um grande homem. Agarraram-n’o os industriaes especuladores e serviram-se da sua pompa para os seus negocios, sujando-o com trapaças ... Assim acabou a historia a que agora vemos o começo. Em tão deploravel cousa veiu a parar o homem que em 26 fôra como um heroe e o arbitro dos destinos da patria.

Primeiro dos chefes politicos, reunindo á influencia parlamentar a cortezan e uma influencia militar superior á de todos, a segunda phase da vida de Saldanha devia ser esboçada aqui, n’este momento: é um typo revelador. Ninguem teve uma clientela maior. Abandonou-a, renegando-a[Pg 46] pelo paço; e esses antigos saldanhistas de Paris, livres do estorvo que já os sopeava, preparavam-se para o seu dia. Uma revolução andava no ar: revolução que forçaria Saldanha a desembainhar a espada contra os seus velhos clientes.

Approxima-se a crise; mas o leitor comprimirá a sua impaciencia, porque, se já viu as fórmas mansas do regabofe, o dissipar do dominio nacional, o beber a chuva de libras dos emprestimos inglezes, não viu o outro lado da scena. A orgia era tambem cruel. Havia banquetes e matanças. Estalava champagne, mas tambem estalavam repetidos, insistentes, os tiros dos trabucos na caça dos vencidos. O portuguez mostrava a outra fórma da sua sanha natural, respondendo com a bala á forca.

5.—VÆ VICTIS!

A eloquencia do nobre Passos conseguira que se revogasse o decreto iniquo das indemnisações:

Tendes vós calculado d’onde hão do saír os meios para provêr á miseria de tantas familias que nós vamos fazer desgraçadas? Ou havemos de tapar os ouvidos e fechar os olhos ao coração, para não vermos espectaculo tão lastimoso? Quando um filho vos pedir pão, dar-lhe-heis uma pedra, ou um punhal ou o cadafalso? (Disc. de 28 de janeiro de 35)

A camara, como é sabido, aboliu o decreto, mas os miguelistas ainda pagaram muitas «perdas e damnos»; pouparam-nos ao cadafalso, mas deram-lhes pedras, punhaes e tiros de trabuco em desforra. A segurança de uma victoria tão custosa, tão disputada, sobretudo incerta por tanto tempo, embriagava homens que ouviam aos mestres doutrinas feitas a proposito para os desenfrear. Soltaram-se[Pg 47] com effeito todas as cubiças e odios; pagaram-se a tiro todas as offensas; roubou-se e matou-se impunemente. O miguelista era uma victima, um inimigo derrubado: o vencedor punha-lhe o joelho no ventre e o punhal sobre a garganta. Caçavam-se como se caçam os lobos, e cada offensa anterior, cada crime, era punido com uma morte sem processo. Os vencedores, suppondo-se arbitros de uma soberania absoluta, retribuiam a cento por um o que antes haviam recebido.

Não era só, comtudo, a vingança que os movia, nem tambem a cubiça: era um grande medo de que o monstro vencido erguesse a cabeça, á maneira do que ás vezes faz o touro no circo, prostrado pelo bote do matador, levantando-se e investindo, matando ás vezes, já nas ancias da morte. Além do medo, havia ainda a fraqueza da authoridade liberal, fraqueza inevitavel em que prégava ao povo a sua soberania, fraqueza natural no dia seguinte ao da victoria; mas fraqueza infame, pois d’ella viviam os chefes, passando culpas aos seus clientes, fechando os olhos aos roubos e mortes: quando positivamente os não ordenavam para se livrarem de rivaes incommodos ou de inimigos perigosos. Tal é a ultima face da anarchia positiva; assim termina a serie de manifestações de uma doutrina aggravada pelas condições de um momento. Destruira-se na imaginação do povo o respeito da authoridade, condemnando-se-lhe o principio com argumentos de philosopho; destruira-se todo o organismo social; e em lugar d’elle via-se, portanto, a formação espontanea das clientelas, chocando-se, disputando-se, consummando a ruina total, explorando em proveito proprio a confusão dos elementos sociaes desaggregados.

Toda esta dança macabra de partidos e pessoas[Pg 48] corria sobre uma nação faminta, apesar das libras que rodavam em Lisboa, e dos tivolis e dos bailes das Laranjeiras. Força fôra accudir com socorros aos lavradores. (Lei de 4 de outubro de 34) Uns queriam que o governo comprasse gados e sementes e os distribuisse; mas a doutrina ergueu-se, chamando a isso communismo, exigindo liberdade. Decidiu-se emprestar dinheiro—oh, tonta tyrannia dos systemas!—para que o pequeno lavrador comprasse grão e rezes n’um paiz assolado.[9] Toda esta dança macabra de bandidismo infrene, dizemos, corria por sobre um paiz devastado. No governo não havia força para impôr ordem, e havia interessados em fomentar a desordem. Cada Ministro tinha o seu bando, os seus bravi, para resolverem a tiro nos campos as pendencias que a phrases se levantavam nas camaras. Mas ainda quando isto assim não fosse, a condemnação em massa de todos os que no antigo regime exerciam as funcções publicas; essa universal substituição do pessoal do Estado, indispensavel para pagar os serviços, trazia aos lugares os aventureiros, os incapazes, e verdadeiros bandidos.

Em vão se tinha duplicado (de 70 a 140) o numero dos julgados: era impossivel corrigir uma desordem que a tantos convinha. Guerrilhas armadas levavam de assalto as casas do miguelista vencido, roubando, matando, dispersando as familias. Havia uma verdadeira, a unica absoluta liberdade—a da força! Na Beira houve exemplos de uma habilidade feroz singular. Matava-se a familia, deixando[Pg 49] a vida apenas ao chefe, em troca de um testamento a favor de alguem. Dias depois o pobre apparecia morto e enriquecia-se d’esse modo. (A dyn. e a revol. de set.)

Os tribunaes, com o seu novo jury, eram machinas de vingança. De Campo-maior, um bom homem escrevia a Manuel Passos o que observara. (29 de maio de 36; corr. autog. dos Passos) Saíra maguado de uma audiencia, em que um negociante da terra pedia seis contos de perdas e damnos a sete miguelistas que tinham deposto como testemunhas contra elle, no tempo do Usurpador. O povo invadira-lhe os armazens, partira lhe as janellas: nem uma testemunha, comtudo, accusava os réus de terem praticado ou ordenado esses actos; mas o advogado «concluiu dizendo aos jurados que já que não podiamos tirar a vida aos realistas por causa da convenção d’Evora-Monte, lhes tirassemos os bens, pois que era esse o unico mal que lhes podiamos fazer.—Os jurados eram quasi todos da guarda-nacional e querem tambem indemnisações: condemnaram os réus na conta pedida. Isto me fez tremer pela liberdade!» (Carta de José Nunes da Matta)

Os magistrados novos roubavam desaforadamente; e o juiz de Angeja conseguiu tornar-se notavel: só lhe faltou levar as portas e os telhados das casas. (A dyn. e a revol. de set.) Era um positivo saque. O povo creou tal raiva a esse ladrão que a gente do Pinheiro foi esperal-o, quando ia a Ovar, obrigando-o a fugir n’uma carreira que só parou no Alemtejo. (Ibid.) Na propria Lisboa succediam cousas incriveis. Por ordem do governo foi saqueada a casa do visconde de Azurara, ausente, e dois amigos do ministro ficaram-lhe com as mobilias. (Ibid.) O que succedeu ás dos conventos sabe-se—ou antes ninguem soube. Bandeira, o Esopo liberal, que bom[Pg 50] foi não ter morrido em 28, publicava no novo diccionario: «Delicto-Delirio.—A significação d’estas duas palavras ainda não está bem fixada, e varía em tempos e paizes diversos».


Não se imagine que escurecemos as côres do quadro. Leia qualquer as memorias do tempo, ouça os que ainda vivem, e ficará sabendo como a anarchia na doutrina, que era uma anarchia no governo, era tambem uma anarchia de bandidos por todo o reino, matando e roubando impunemente. E por cima de tudo isto pairava um medo positivo que entorpecia a acção dos mandantes, e justificava, no sentido de uma defeza feroz, a caça do miguelista.

Aos corcundas promette-se D. Miguel; aos liberaes vertiginosos a carta de 20: revoluçãosinha no Casal-dos-ovos; Juntinha na Pederneira; Juntinha em Barrozas: ahi está tudo em aguas turvas; e é então que D. Miguel pesca. D’um lado o Ecco, o Interessante, o Percursor e o Contrabandista; e do outro o Nacional, o Diabrete, o Marche-Marche e a Vedeta dão com vocês doidos; e no meio d’esta confusão chega o casus fœderis, invoca-se a estupidez da nação, o desejo do absolutismo—e apparece o Homem! (Bandeira, Artilheiro n.º 16)

Á sombra d’esta confusão e d’este medo havia impunidade para tudo; e n’um sentido era benemerito o bandido que assassinava e roubava o inimigo. De facto não terminara a guerra: continuava, sob a fórma de uma caçada. Em Setubal havia infinidade de ladrões e os proprios militares não se atreviam a sair sem armas. (Shaw, Letters) Os salteadores faziam batidas, traziam cadaveres que o povo, tomado de um furor egual ao antigo, mas inverso no[Pg 51] objecto, enterrava, cantando e bailando. Pareciam selvagens. (Ibid.) Serpa ficou celebre pela gente que ali foi morta a tiro, sem combate, pelas janellas e pelas portas. Batia-se: vinham abrir, e uma bala entrava e o infeliz morria. Era um miguelista: não vale a pena incommodos. A justiça não se movia; pagou culpas antigas! E os assassinos eram benemeritos. No Porto (20 de março de 35) o façanhudo Pita Bezerra, antigo carrasco cuja morte se comprehende melhor, indo á Relação a perguntas, foi assaltado pela multidão que o tirou á escolta, levando-o á Praça-Nova onde o matou; arrastando o cadaver puxado por uma corda, pela ponte, a Villa-nova, como quem mostra um lobo morto ás aldeias, e deitando-o por fim ao rio. As quadrilhas de Midões assolavam toda a Beira. Arganil, Avô, Coja, Folques, Goes, Villa-cova foram positivamente saqueadas, levando os bandidos o despejo em comboyos de carros. (Secco, Mem.) O bandoleirismo florescia n’essa região serrana, como raiz de uma velha planta que rebenta assim que bebe um raio de sol. Eram os descendentes de Viriato. O miguelismo armara-os, e agora, bafejados pelo ar benefico da anarchia, uns, implorados e defendidos pelos senhores de Lisboa a quem serviam, voltavam-se contra os miguelistas, indifferentes a partidos e opiniões, seguindo o seu instincto de uma vida aventurosa e bravia. Outros, porém, mantinham-se fieis aos padres, e nos broncos cerebros d’esses quasi selvagens apenas os fetiches do catholicismo[10] podiam ás vezes mais do que os instinctos espontaneos. Era uma Italia meridional, nas suas serras, o paiz que acabara sendo em Lisboa uma Napoles. As Beiras viviam, á maneira da Grecia de ha poucos[Pg 52] annos, uma existencia primitiva da tribu armada, alimentando-se do roubo, admirando a destreza e a coragem dos seus chefes.

Havia na serra da Estrela a guerrilha miguelista do padre Joaquim, de Carragozela, irmão do celebre Luiz Paulino secretario da Universidade no tempo de D. Miguel. Havia contra ella as dos Brandões, de Midões, que serviam o Rodrigo e o Saldanha, chefes-de-partido em Lisboa. Fundiram-se um dia esses inimigos no convenio de Gavinhos; mas ficaram dessidentes os do Caca, fieis ao miguelismo, e acabaram queimados n’uma adega, depois de a defenderem contra os sitiantes. (Secco, Mem.) A fusão das guerrilhas da Beira creou na serra um verdadeiro terror, porque ninguem ousava desobedecer, e imperavam, saqueavam: houve casas queimadas e, á luz dos incendios, orgias de vinho e estupros. (Ibid.)

E nas revoluções e pronunciamentos que vão principiar em 36, n’essa segunda epocha em que a anarchia passa violentamente para o governo, tornando todo o exercito n’um corpo de guerrilhas, vê-se a tropa, ora alliada, ora inimiga dos bandidos; e os palikaras portuguezes fazendo eleições, pela Patuléa ou pelo Cabraes, levando as leis nas boccas dos trabucos e resolvendo a tiro as pendencias locaes.

Vem distante, porém, isso ainda. Agora a faina é saquear e eliminar o miguelista. De 34 a 39 só em Oliveira-do-Conde e nas Cabanas houve mais de trinta assassinatos impunes. (Ibid.) E nas côrtes e 38, Franzini apresentou uma nota do periodo de julho de 33 a 37, que diz assim:

Faro — assassinatos 285 roubos 509
Castello-branco     »     84     »     90[Pg 53]
Portalegre assassinatos 89 roubos 595
Guarda     »     221     »     373
Porto     »     528     »     378
Braga     »     41     »     620

O minhoto roubava melhor; na Beira e no Algarve matava-se com mais furia. No Porto houvera mais de quinhentos mortos; mas a capital, onde em um anno apenas (Disc. de Franzini, sess. de 38) se tinham visto 194 assassinatos e 614 roubos—homem morto, um dia sim um dia não, e dois roubos em cada dia!—a capital levava a palma a tudo. Não era ahi o centro, o foco, o tabernaculo?

Voltemos ao nosso Esopo: «Filho de burro não póde ser cavallo, dizia meu avô», e valendo-se da fórma popular da fabula, põe o burro em dialogo com a Liberdade:

Não fujas, diz-lhe o jumento,
Burro, que havia eu fazer?
Burro nasci e só burro
É meu destino morrer!

Burro, como se sabe, queria dizer miguelista; e o poeta exprimia a convicção intima da nossa incapacidade para comprehender a nova lei. Com effeito, assim parecia, ao observar-se o que se passava por toda a parte: a vergonhosa miseria dos caracteres, a absoluta impotencia das vontades no sentido de reconstituirem de qualquer modo o organismo derrubado pelos golpes do machado de Mousinho. As lascas do velho tronco, os ramos e as folhas da arvore antiga, caídos por terra, apodreciam no charco das lagrimas e das saudades[Pg 54] dos vencidos, do sangue copioso dos cadaveres. Era uma decomposição rapida e já tudo fermentava.

Mas no lodo dos paúes, nadando sobre as aguas esverdeadas e putridas, vê-se abrir, elegante e candida, a flôr do nenuphar. Assim brotava pura no charco nacional a esperança de um futuro, a miragem de um destino, a chimera de uma doutrina, o encanto de uma voz—a meiga voz de Passos, um messias, pedindo paz, ensinando amor.

Eu detesto os homens rancorosos. Essa gente é má. Quem aborrece e não ama, não póde ser virtuoso, nem póde ser livre,—porque a liberdade é a humanidade. (Disc. de 10 de set. de 34)

A liberdade era para o novo apostolo uma cousa diversa, porque as expressões vagas consentem que cada qual introduza n’ellas os mais variados pensamentos. Para Mousinho fôra um estoicismo secco uma negação do passado, uma doutrina racional e utilitaria: agora surgia uma LIBERDADE nova, especie de vestal sagrada e evangelica, envolvida n’uma nuvem doirada de ambições poeticas. O liberalismo portuguez via nascer-lhe um Lamartine; e no descredito da primeira definição, as esperanças voltavam-se para a nova fórmula.

Temo muito a liberdade nos discursos, mas pouca nos corações. Ha muitos que a intendem, mas poucos que a saibam amar. Temos mais liberaes nas bibliothecas do que nas praças, nos tribunaes, no gabinete. Muitos ha que tém lido, que sabem toda a liberdade, e que ainda tém coração para a amarem, mas não o tém para a defenderem. (Disc. de 10 de nov. de 34)

Ardia então na camara o odio aos vencidos, e as palavras de paz eram um acto de coragem.[Pg 55] Essas palavras do parlamento, ainda ouvidas com attenção de colera ou de esperança, eram commentadas pelas provincias; e de muitos pontos, em numerosas cartas sem nome, chegavam ao tribuno eloquente os abraços, os applausos. «Não estranhe chamar-lhe amigo, sem nunca o ter conhecido: quem trabalha para o meu bem, tem jus á minha amisade», dizia um; e outro: «O modo por que se houve na questão das indemnisações denota um saber profundo. É nimiamente liberal porque é tolerante, e humano porque é sabio. Acceite o signal de reconhecimento de um militar que recebeu duas feridas na guerra e se gloria de pensar pela cabeça de v. s.» E assim outros, muitos. (Corr. authogr. dos Passos, 34-5)

Mas, por duros e resequidos que a guerra e a baixeza tornem os corações dos homens, raro será o instante em que os não commova uma palavra sentida, de uma bocca virtuosa. Intemerato no seu nome, seductor na sua voz, candido, ingenuo, virtuoso, tambem estoico, Passos destacava-se e erguia-se por sobre os outros com a superioridade dos genios caridosos sobre os espiritos sómente lucidos. Era mais do que uma rasão, era uma virtude; mais que um homem, quasi um santo. Em baixo, muito em baixo, ficavam, chafurdando em odios e vilezas, as turbas dos politicos. A palavra d’elle subia, evaporando-se nas nevoas de uma aspiração poetica, superior ao que a condição dos homens permitte realisar. Na sua caridosa chimera pedia mais do que paz, pedia egualdade e um estreito abraço dos vencedores e dos vencidos.

A minha firme convicção é que todas as opiniões devem ser representadas e que todas devem ter garantias. Isto que eu quero, querem-no tambem os opprimidos ... Não[Pg 56] quero a pena de morte para nenhum cidadão portuguez: oxalá que nunca mais ella seja executada sobre a terra! Não quero tambem penas perpetuas, porque até no fundo de uma prisão a nenhum desgraçado deve faltar o balsamo consolador da Esperança ... Penso que as lagrimas de um parricida, regando o tumulo do pae trucidado, são bastantes para lhe fazer perdoar tão grande crime. (Disc. de 28 de jan. de 35)

A liberdade é a humanidade, dissera o novo apostolo da doutrina; mas o seu Evangelho não era, como o antigo, apenas um discurso, falando ao sentimento indefinido, á piedade, á caridade, irreductivel a formulas e doutrinas, fundo de luz nebulosa do puro espirito humano, que o eleva acima da realidade triste e o poetisa amaciando-lhe as agruras e espinhos: o Evangelho de Passos era um canon, uma lei, uma doutrina—e por isso uma chimera. Era uma poesia, posta na prosa necessariamente rasteira da politica. D’esses miguelistas que a sua caridade perdoava, e a sua humanidade restaurava ao gremio de cidadãos, dizia:

Deixal-os ... se ainda não tém olhos para fitar a Urna e vêr que alli está a liberdade de todos os homens! (Disc. de 10 de nov. de 34)

Os bellos sentimentos tornavam-se opiniões, e faziam-se idolatria; das nuvens doiradas de esperanças e desejos ficava o pó de umas formulas e a illusão de um symbolo. A Urna era outra Cruz. E onde os artigos doutrinarios punham a soberania da razão individual e o absolutismo do direito do homem, a nova definição que Passos dava á Liberdade, rejuvenescendo o jacobinismo da sua infancia com a poesia da sua alma, punha a soberania do povo, a voz da multidão, congregada nos[Pg 57] seus comicios. O paiz perdia-se por não a querer ouvir; Portugal caía por vêr na Liberdade uma doutrina de individualismo, não uma doutrina de democracia. Tudo o que se fizera fôra um erro: tudo havia a fazer de novo. Assim, nas ruinas da velha cidade portugueza assentára o dominio de um systema que, arruinado em dois annos, ia ceder o lugar a outro systema novo e a novas ruinas.

Havia cá fóra, para commentar e applaudir as palavras calorosas do tribuno, prégando a nova lei, um vasto numero de homens armados, e uma opinião unanime condemnando a gente velha. Havia, além d’isso, esse estado de espirito aventuroso, excitado, prompto a romper: estado de espirito proprio de quem chega de uma guerra. Ao voltarem á capital, os batalhões de voluntarios não tinham desarmado; percebiam vagamente que, apesar de terminada a campanha, a guerra não acabara ainda. Tudo o que o governo fez para os desarmar por boas foi inutil: punham guardas ás portas dos lugares indicados para a entrega das espingardas, afim de impedir que os pusillanimes obedecessem. (A dynastia e a revol. de set.) De arma ao hombro, pois, havia uma legião prompta a apoiar as palavras do tribuno que a força das cousas ia obrigar a descer da camara para a rua, do céu ethereo das suas esperanças para o triste fim das suas desillusões. Passos acabará, como acabou Mousinho.

De tal fórma termina o primeiro periodo d’esta historia: dois annos que principiaram com o acabar da grande guerra. Vamos estudar a segunda liberdade; depois estudaremos a terceira, a quarta, etc.—até ao fim.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Pela primeira vez tenho occasião de me referir ao interessante livro do snr. Macedo, Traços da historia contemporanea; e no decurso d’este trabalho o leitor verá quanto me valeram os subsidios que encerra e de que me utilisei a mãos largas. Quando este facto me não auctorisasse a confessa-lo, obrigava-me a isso a nimia benevolencia com que, inspirado por uma amisade que o levou a vêr em mim meritos que não possuo, o snr. Macedo me honrou dedicando-me o seu livro. Estas palavras são o testemunho de um agradecimento que devia ser publico, assim como a offerta o foi.

[2] «Tudo sorria; e não se divisava pedaço de terra sem lavoura: o systema das irrigações lombardas era admiravelmente percebido e executado. Todas as cottages, respirando um bem-estar industrioso, tinham hortas bem resguardadas com seus meloaes e aboboras, sua fonte, e cepas, figueiras e macieiras em latadas. Os camponezes bem vestidos, olhavam-nos affavelmente, porque tinham o coração aberto pelo bom trato, os celleiros cheios, numerosos os rebanhos, e nos frades de Alcobaça senhorios, nem avarentos nem tyrannos.» Recollections, etc. (1794) do auct. de Vathek. (Beckford.)

[3] Desde muito que, no conselho, Aguiar, contra a opinião da maioria, instava pela abolição dos conventos. No dia em que em Evora-Monte se assignava a convenção, terminando a guerra, Aguiar voltou a insistir e tornou a ser vencido. D. Pedro, porém, reteve-o, depois da saida dos collegas, e ordenou-lhe que lavrasse o decreto. O ministro foi do paço para a imprensa, ahi redigiu o decreto, que se compôz e imprimiu em segredo, á sua vista, e não saiu da imprensa senão quando o Diario saiu tambem. Os collegas souberam, pois, pela folha, da decisão tomada, e que, a não ser assim, nunca se effectuaria.—Comm. verbal de Duarte Nazareth, que a houvera do proprio Aguiar.

Eis aqui a estatistica das corporações monasticas e os seus rendimentos em 1834. (V. Mappa das corp. ext. pub. 42.)

a) Ordens militares Christo com 3 casas Rendimentos 34:482 m. rs.
S. Thiago » 1 »
Aviz » 1 »
b) Ordens monachaes Cruzios » 12 conv. e 5 hosp. 120:244 m. rs.
Loyos » 8 » e 1 » 55:066 »
Cartuxos » 2 6:253 »
Bentos » 22 » 4 » 106:665 »
Bernardos » 15 » 1 » 63:178 »
Jeronymos » 9 » 1 » 44:391 »
c) Congregações Neris » 8 » 30:053 »
Rilhafoles » 4 » 9:015 »
Camillos » 6 » 6:427 »
Congregados » 1 » 1:674 »
Theatinos » 1 » 1:116 »
d) Ordens mendicantes Paulistas com 13 conv. e 2 hosp. 25:963 »
Gracianos » 17 » 2 » 45:749 »
Carmelitas » 13 » 2 » 22:913 »
Dominicos » 22 » 2 » 65:563 »
Trinos » 8 » 1 » 15:335 m. rs.
Hospitaleiros » 6 » 4:566 »
Franciscanos » 57 » 4 » 19:437 »
e) Id. reformadas Paulistas » 2 » 528 »
Grillos » 17 3 » 14:790 »
Marianos » 15 1 » 26:844 »
Trinos » 2 222 »
Capuchos » 99 10 » 19:794 »
Terceiros » 20 1 » 13:289 »
Missionarios » 4 476 »
f) Diversos Conceição » 1 2 » 283 »
Minimos » 1 1 » 2:051 »
Nazarenos » 1 » 53 »
Barbadinhos » 2 » 630 »
Carm. all. » 1 » 3:124 »
Dom. irland. » 1 3:364 m. rs.
Total: 389 estabelecimentos com o rendimento de 763 contos de réis; sem contar 12 conventos de freiras egualmente supprimidos.
Para que se possa comparar a decadencia das corporações no periodo das luctas civis desde 20, eis aqui a estatistica do Mappa, pub. em 22: Conventos e hospicios do sexo masculino, 402; com 6:249 pessoas, (sendo 628 creados) e rendimento em dinheiro, fóra os fructos, 607 contos. Id. do sexo feminino, 132; com 5:863 pessoas, (sendo educandas 912 e 1:971 creadas) e rendimento em dinheiro, fóra os fructos, 341 contos. O sr. Soriano (Utopias desmascaradas, op.) calcula assim o total dos bens-nacionaes provenientes das leis de 32-4:
Rendimentos dos conventos supprimidos 763 contos
Deduzindo o valor dos dizimos, direitos senhoriaes, quartas, oitavas, jugadas, etc. abolidos 240 »
Rendimento da propriedade 523 »
O que equivale a um capital de contos 12:000
Propriedade dos 12 conventos de freiras supprimidos ?
Alfaias de todos os conventos, sumidas (400)
Bens da Universidade de Coimbra, da Patriarchal, de S. Maria-Maior, das capellas da corôa, das casas do Infantado e das Rainhas 4:000

Até 1836 tinham-se vendido cinco mil contos; e no orçamento de 1838-9 apparecem como para vender 11:595.

[4] Se o leitor quizer exprimir o valor real dos numeros com que se denominam todos os emprestimos, expropriações etc. que vamos estudando, tem n’este preço um meio. Como se sabe, varias causas, e principalmente a descoberta das minas da California, diminuiram posteriormente o valor dos metaes preciosos. Se a libra sterlina valia (em 34) 3$750 rs. e hoje vale 4$500, é claro que os numeros que temos estudado têem da ser augmentados com a quinta parte. Assim, o valor dos bens dos conventos orçado em doze mil contos era o equivalente de 14:400 de hoje.

[5] V. as Contas, na sessão de 35 (9 de janeiro), de agosto 33 ao fim de junho 34:

Receita: Ordinaria contos 3:513
Extraordinaria: Emprestimos 7:847
Prop. nacion. 2:516 10:363 13:876
Despeza: Ordinaria: Casa real 177
Reino, Extr. Justiça 672
Marinha 1:299
Guerra 4:932
Fazenda 411 7:491
Especial: Serviço da divida e oper. de fundos 3:415
Diversas 2:970 12:876

[6] V. Orçamento de 35-6, sessão de 35:

Receita Despeza
Imp. directos 1:638 Serviço dos ministerios 8:890
    »     indirectos 5:604 Divida interna 1:984
Proprios e diversos 1:178     »     externa 1:870
Ultramar 1:482 Ultramar 1:612
Deficit 4:454
Contos 14:356 Contos 14:356

[7] 1.ª ed. (1881).

[8] V. Quadro das instituições primitivas, pp. 57 e segg.

[9] A lei de 4 de outubro de 34 mandou emprestar até 650 contos (a juro de 5 por cento e amortisação em 5 annos) assim distribuidos por provincias: Algarve 108; Alemtejo 123; Beira-Alta 21; Beira-Baixa 25; Douro 103; Extremadura 161; Minho 55; Traz-os-Montes 28.—Em novembro havia metade dos emprestimos feitos.

[10] V. Syst. dos mythos relig., pp. 297 e segg.


[Pg 58]

II
PASSOS MANUEL

1.—A REVOLUÇÃO DE SETEMBRO

A antiga gente do governo não se achava melhor com a substituição de Palmella por Terceira: o segundo duque valia pouco e estava ameaçado de cair depressa. Esse primeiro semestre de 36 corria prenhe de ameaças. Já Carvalho não podia sacar dinheiro de fóra e a sua fecundidade desacreditava-se. Succedia-lhe atrazar os pagamentos, como a qualquer outro. Já se deviam 15:000 contos, por vencimentos e despezas dos ministerios (5:426), por letras e escriptos do Thesouro (3:610), por adiantamentos do banco, (4:494—V. Rel. de Passos, sess. de 37) sem falar na matilha de credores por divida mansa não reconhecida, ou esquecida, em 34. N’um regime de communismo burocratico, como o nosso, isto era gravissimo: casa onde não ha pão ...

Por isso, não falando dos clamores das ruas, havia no seio da camara uma opposição vehemente e applaudida. Eram os dois Passos e Sampaio, era José Estevão e o banqueiro Rio-Tinto; eram Costa-Cabral, o Nunes, Sá-Nogueira e Julio Gomes. O ministerio sentia-se tão mal que em julho (14) dissolvera a camara, para reunir gente sua, convocada para setembro. De fóra batia-o o Nacional, á frente da imprensa inimiga; e no club celebre dos[Pg 59] Camillos (os ministros diziam Camellos) troava acima de todas a voz de Costa Cabral pedindo uma tyrannia de plebe, o sangue dos aristocratas e dizem que até a cabeça da rainha. (Costa Cabral em relevo, anon.) Era o nosso Marat: porque nós, copiando a França, imitavamos sempre os figurinos de Paris.

O governo fez as eleições, que foram como todas; e como sempre, venceu. O reino inteiro o queria com uma unanimidade e um enthusiasmo, que poucas semanas bastaram para demonstrar. Venceu em toda a parte: salvo no Porto rebelde, imperio, cidadella, dos irmãos Passos, de Bouças. Já que tudo era copia, digamos tambem que a chegada dos deputados do Porto a Lisboa foi como a dos marselhezes a Paris.

Succedeu isso no dia 9, no Terreiro-do-Paço, onde gente armada foi esperar os recemvindos e acclamal-os, com morras á CARTA e ao governo, vivas á constituição de 1820 (ou 22) e á revolução. «Indo-nos deitar na cama á sombra da CARTA, acordámos debaixo das leis da constituição dada pelo povo no anno de 1820. Todos esfregavam os olhos e perguntavam se era um sonho o que ouviam: mas era com effeito uma realidade.» (Liberato, Mem.) Foi assim, com esta simplicidade, que as cousas mudaram; o que prova, não a força dos que venciam, mas a podridão das cousas vencidas. Havia a consciencia de que a machina social, por desconjuntada, não marchava; e um tal sentimento deu o caracter de uma saldanhada á revolução de setembro, contra a qual ninguem protestou. No dia 10, de madrugada, a guarda-nacional foi ao Paço exigir a queda do gabinete e a proclamação da constituição de 20. No dia 11 o ministerio caía, e de tarde foi a rainha aos Paços do concelho jurar a nova—ou antiga—constituição. Inutil é[Pg 60] dizer que a camara feita não se reuniu: era necessario fazer outra, de feitio diverso. Entretanto acclamara-se a dictadura de Passos, Vieira de Castro e Sá da Bandeira. A victoria surprehendera a todos, e mais do que ninguem aos vencedores que a não esperavam. Era mistér decisão, porque o barometro não é fiel quando sobe rapidamente. Chamou-se a capitulo: o dictador-em-chefe, com Leonel e Julio Gomes, deviam ordenar a maneira de eleger as novas côrtes. O Rio-Tinto offerecia dinheiro. Havia um formigar espesso de gente dedicada, prompta a sacrificar-se pela patria, pedindo os lugares que os vencidos devoravam havia tempo demasiado. Passos «tinha o braço cançado de assignar demissões».


Nós já conhecemos, desde 26, o tribuno do Porto elevado ao fastigio do poder. Os dois Passos, filhos de um proprietario de Bouças, pertenciam a essa burguezia do norte do reino por estirpe e temperamento. Tinham nascido na abastança, desconhecendo as privações crueis da infancia que umas vezes formam os homens, mas muitas mais os estragam. Seus paes, sem grandes propriedades ruraes—ninguem as tem no Minho—possuiam bastos capitaes moveis, o que tambem no Minho é commum: em 28 tinham na companhia dos vinhos e em casas de commercio do Porto o melhor de sessenta mil cruzados. Na casa de Guifões havia frequentes banquetes á antiga portugueza, servidos em velhas pratas; e os dois moços foram mandados a Coimbra, onde só iam os abastados. O pae destinava o mais velho, José, ao clero; o segundo talvez á magistratura.[Pg 61] Por quarenta mil cruzados a dinheiro tinha contratada a compra do priorado de Cedofeita para o que veiu a ser vice-presidente da junta em 46, bacharel formado em Canones. 1828 destruiu todos estes planos, arrastando os dois irmãos á emigração, onde a riqueza da familia começou a fundir-se. De 28 a 31 a mãe mandou-lhes trinta mil cruzados para Paris: ahi os moços irmãos Passos, dos raros emigrados ricos, eram uma providencia dos companheiros pobres, entre os quaes estava Saldanha. (Corresp. de Port. 13 de dez. 80)

Agora, supprimida a CARTA, começava-lhes uma vida nova, e um reinado; mas a seu lado vê-se um nome que não ficaria decerto esquecido depois dos louros de honra conquistados no exodo para a Galliza, em 28.

Sá da Bandeira nascera em 29 de setembro de 1795. Tinha pois agora quarenta annos: o vigor da vida, e um braço de menos levado por uma bala no lugar que, mutilando-o, lhe accrescentou o nome. Cadete em 1810, aos quinze annos, foi para a guerra da Peninsula, ficando até á paz prisioneiro em França. O liberalismo entre cesarista e demagogo do imperio napoleonico aprendeu-o, pois, na infancia. Voltou a Portugal com a paz, e esteve ao lado dos jacobinos em 20, tornado a França do seu degredo de Almeida. Intelligencia recta e caracter forte, nem podia perceber as nuances das cousas, nem dobrar-se ao imperio das conveniencias. Militar fiel á bandeira, subdito fiel ao rei, cidadão fiel á patria, espirito fiel aos principios, Sá-da-Bandeira não podia ser um condottiere como Saldanha, nem um politico como Palmella, nem simplesmente um instrumento militar como Terceira, nem tampouco um tribuno, idolo revolucionario, como Passos.

[Pg 62]

A reacção de 1823 acha-o em Lisboa com vinte e oito annos e não o seduz. Em vez de pregar no peito a medalha da poeira, como fizeram Saldanha e Villa-Flôr, emigra outra vez; para regressar em 26, collocando-se ao lado do governo, fazendo a campanha contra os apostolicos e acabando-a em 27, nomeado major por distincção. No anno seguinte foi prestar os seus serviços á Junta do Porto, e bem se póde dizer que lhe salvou o exercito e a honra militar na retirada para a Galliza que o fez chorar de amargura. Tinha trinta e tres annos.

Sereno e firme, estoico o virtuoso, julgava-se o homme-lige da liberdade portugueza. Ligado por principios ao radicalismo, andou separado das suas intrigas na emigração. Viu sempre a questão como uma guerra e sobretudo queria desembainhar a sua espada, obedecendo, sem ambições de mandar, com a serena ambição de seguir o seu dever, servindo onde, como e quando fosse necessario. Por isso, logo em 29 passou de Inglaterra á Terceira; e tendo sido aprisionado pelo cruzeiro miguelista, escapou da cadeia de S. Miguel, indo apresentar-se a Villa-flôr com o qual fez a campanha dos Açores.

Veiu com a expedição ao reino; e D. Pedro nomeou-o governador militar do Porto em 26 de julho, substituindo o antecessor (D. Thomaz Mascarenhas) que fugira na noite panica de 23-4. Depois foi ministro; e em 34 governador do Algarve, para bater as guerrilhas do Remechido. Consolidada a paz, tributado o preito de fidelidade ao throno que a guerra levantára, embainhou a espada e sentou-se na camara do lado esquerdo, pois, no seu entender, de ambos os lados se era egualmente fiel á monarchia liberal. Imperturbavel na sua serenidade, com um systema de opiniões assaz concatenadas para um espirito avesso a profundar[Pg 63] as cousas, a humanidade era a sua religião, o dever a sua moral, a monarchia o seu principio, a espada o seu amor, o povo o seu dilecto. Estava pois longe de ser um demagogo como os dos Camillos, nem um tribuno da plebe, á maneira dos de Roma—como do facto era Passos.

A revolução de setembro surprehendeu-o tanto como a todos; mas inquietou-o mais, porque desorganisava a ordem da sua vida, pondo em conflicto diversos aspectos da sua opinião. Decidira-se pela unica solução adequada ao seu genio—abster-se. Mas se na rua o amavam, no paço conheciam-no. Elle era o homem unico para evitar que a monarchia, assaltada, caisse. Talvez esperassem fazer d’elle um Monk, ou um Saldanha, mas se assim pensavam, illudiam-se, e illudiram-se. Sá-da-Bandeira foi um Lafayette. Trahir era um verbo que elle desconhecia por instincto. Se a monarchia julgava que nem a revolução, nem os principios de 1820 eram inconciliaveis, elle, que no fundo do seu coração amava o povo, elle para quem a liberdade era a humanidade, folgava em não ter de mentir a nenhum dos seus deveres; e faria o possivel por alcançar a conciliação, corrigindo todas as demasias democraticas que puzessem em perigo a solidez do throno. Instado, acceitou, porque lhe disseram ser isso, exactamente isso, o que lealmente se queria; e com leal serenidade foi sentar-se ao lado do tribuno para o aconselhar, moderando.

Ora o paço esperava sempre que elle fizesse mais alguma cousa: não conhecia o fundo do seu estoicismo, e logo que o percebeu mudou de rumo.

[Pg 64]


É verdade que, tambem, a marcha das cousas arrastava-o e via-se perdido no meio da onda da demagogia solta, que já o não renegava a elle só, mas até ao seu antigo idolo, ao nobre, adorado Passos. Os Camillos rugiam pela bocca de José-Estevão que se julgava um Danton, e de Costa-Cabral pseudo-Marat. Havia ahi quem, tirando classicamente o punhal da algibeira da sobrecasaca e brandindo-o, ameaçasse medir com elle a distancia das Necessidades ao caes-do-Tojo. E José Estevão, agarrando a golla de pelle de cabrito da pseudo-toga do pseudo-Bruto, gritava-lhe: «Calla-te, miseravel!»—N’um momento de franqueza inconsequente, natural dos bons, Passos exclamara: «A nossa imprensa! Eu não tenho com que a comparar senão com o theatro do Salitre ... Desgraçada nação, se tivesse de ser governada pelos arbitrios dos follicularios!» (Disc. de 16 de jan. de 36) Mais de uma vez, tambem, condemnara as dictaduras em nome da rigidez dos principios. E agora a fatalidade das cousas, erguendo-se para dissipar as illusões, fazia-o servo d’essa imprensa e obrigava-o a ser um vil despota. «É o governo dictador sobre as leis; dictadora a imprensa sobre o governo: dictadores os assassinos sobre o governo. Ninguem conta com o seu emprego, nem com a sua reputação, nem com o futuro da sua patria.» (O Tribuno portuguez, outubro) O emprego apparece á frente, como é dever n’um communismo burocratico. Doía o braço do dictador assignando demissões, mas nem assim conseguia vencer a fome dos pedintes. Antes, era uma oligarchia mais facil de contentar; agora, a democracia, o governo de todos, obrigaria a uma partilha universal, se se quizesse saciar os desejos universaes. «Não ha quem se não lembre d’essas medonhas colunmas de descamisados[Pg 65] que, vindo em cardumes do Porto e de outras partes do reino, pejavam as escadas das secretarias e atulhavam as avenidas de todas as repartições publicas». (Hontem, hoje e amanhã, op. anon.) A guarda-nacional imperava; havia toques de rebate em permanencia e um susto constante na população. Que seria ámanhan? Quem podia contar com o futuro, quando tudo estava á mercê das marcas, que dominando a milicia civica, faziam d’ella um instrumento de agitação permanente? Tocava o rebate nos sinos, e por toda a parte soava o rebate da extravagancia das opiniões, da embriaguez da basofia, com que todos, liberalmente, dotados de uma soberania indiscutivel e de um conhecimento das cousas mais especiaes, dissertavam, debatiam, decidiam, cada qual certo de possuir a formula infallivel para dar remedio a tudo.

Se queres sabio ser, recipe: Toma
De Benjamin, Rousseau, outavas duas
E nos theatros, nos cafés, nas ruas
Falla em comicios, em Catões, em Roma.
Corta o cossaco audaz que strue, que doma
Da porta no Balkan o esforço, as luas;
Falla d’Egas tambem, Magriço e Fuas,
De Palmira, Paris, London, Sodoma.
Do Palmella a politica retalha,
Abocanha o Carvalho em porcas phrases
E sobre a chamorrice grita e malha.
Estas do sabio são agora as bases:
Terás os bravos da servil canalha.
Serás um sabichão dos mais capazes.

(Bandeira, son. abril de 36).

A allusão é transparente. O sabio é Passos, com a sua confusa massa de doutrinas e de factos,[Pg 66] de naturalismo e idealismo, de tradições antigas, maximas moraes, e opiniões singulares sobre a historia nacional. N’esse vasto mar do conhecimentos anarchicos, apenas a poesia da sua imaginação e o stoicismo e a santidade do seu caracter mascaravam a inconsistencia do seu pensamento. Era um cháos de elementos intellectuaes sobre que pairava, como Jehovah na Biblia, a luminosa ingenuidade da sua alma.

A desordem que elle tanto concorrera pura desencadear, sob a nova fórma demagogica, com o encanto e a seducção da sua palavra, já começava a affligil-o, por não saber com que meios dominal-a. Embaraçado na teia das suas opiniões contradictorias, inspirado por um vivo amor pelo povo, crente na verdade mysteriosa, quasi mystica da voz da multidão, Passos via approximar-se o momento da sua queda infallivel e desejava-o ardentemente. Era um sonho que se ia esvaindo, uma nuvem que se dissipava. Por isso, quando caíu de facto, achou-se apenas com os doces affectos domesticos, e, destruidas as esperanças, maldisse da patria, fazendo-a a ella responsavel pela inviabilidade da doutrina.

Ainda esse instante não chegou, porém. Ainda o dictador impera, com o seu aberto sorriso, com a lhaneza popular que na praça encanta a turba. Ainda impera, e o seu dia melhor, mais glorioso não passou ainda. Ainda impera; e se organisa a seu modo a machina eleitoral e administrativa (cod. de dezembro 10)—porque sem ella não póde viver a revolução; porque é necessario substituir pela democracia o liberalismo da legislação do Mousinho—espera tudo da restauração da instrucção publica. «Eduquem o povo, e elle saberá ser livre»; porque a liberdade era um rotulo que se pregava em[Pg 67] todas as cousas. «Continuado o pensamento interrompido de Mousinho da Silveira, disse com a maxima impropriedade Rebello da Silva, e applicando as forças da sua dictadura triumphante, o primeiro ministro da revolução de setembro verificou na esphera dos interesses moraes e administrativos o que o de D. Pedro já consummara na das grandes reformas politicas e econonomicas». (Passos Manuel, na Rev. contemp.) Á dictadura de Passos devemos, com effeito, as escholas polytechnicas de Lisboa e Porto, as duas menos felizes academias de Bellas-artes, e o conservatorio da capital; mas á sua doutrina da paz na liberdade democratica pela instrucção, não respondem acaso as revoluções dos nossos dias, e communas como a de Paris «o cerebro do mundo», na phrase de muita gente simples? mas á doutrina da solidariedade da instrucção e da liberdade, não repondem os paizes instruidos que não são livres?

Passos era a incarnação de todas as phrases democraticas; mas como essas expressões, ainda vagas e indeterminadas, continham em si a semente de verdades criticas, os homens que com ellas formavam a sua alma eram poetas, sim, e por isso chimericos, sendo ao mesmo tempo, como os poetas são sempre, nuncios de um futuro longiquo, victimas de um presente cruel.


Essa crueldade estava nos desvarios demagogicos e na reacção decididamente planeada pelo paço. Sabemos que a rainha enviuvara: em abril (10) tornou a casar-se com o joven príncipe de Coburgo,[Pg 68] D. Fernando. O rei dos belgas, Leopoldo, com a influencia que exercia sobre a tambem joven soberana de Inglaterra, foi durante um certo periodo o accessor dos monarchas portuguezes. Com o principe veiu para Lisboa Van der Weyer, trazendo na sua pasta de ministro da Belgica o rol de instrucções necessarias para chamar Portugal á razão, para consolidar a dynastia e organisar o liberalismo entre nós. Leopoldo era então o pontifice da doutrina, e a Inglaterra não só o ouvia, como punha ás ordens dos seus planos portuguezes as suas forças navaes. E quando a Inglaterra assim obedecia, que haviam de fazer senão, convencidos, agradecidos, obedecer tambem os dois monarchas portuguezes, moços sem experiencia do mundo, e sem conhecimento directo do paiz sobre que reinavam?

Tal era a situação na côrte, quando os marselhezes chegaram do Porto em setembro. Na tarde de 9, á espera do vapor, o Terreiro-do-Paço estava cheio de gente e os vivas e foguetes estalaram ao desembarque. De noite tocou a rebate e a guarda-nacional reuniu-se, proclamando a constituição de 22. Mandaram-se tropas contra ella, mas essas tropas fraternisaram.[11] (Sá, Lettre au comte Goblet, etc.) No paço[Pg 69] havia uma grande inquietação e Van der Weyer exigia do moço rei que montasse a cavallo e fosse com os batalhões fieis suffocar a revolta: D. Fernando recusou-se. (Goblet, Établ. des Cobourg.) Reconhecendo então não haver para onde appellar, o accessor dos reis lembrou Sá-da-Bandeira que foi chamado, e veiu á presença dos tres. Que impressão faria no espirito grave do nosso militar achar-se de tal modo perante uma rainha que nascera no Brazil de mãe austriaca, perante um rei allemão, e um belga que os governava a ambos, em nome do seu rei e com o apoio da Inglaterra: achar-se, dizemos, perante esse grupo, dando em francez leis a Portugal rebellado? Pois uma tal desnacionalisação do governo não influiria no animo de Sá-da-Bandeira no sentido de o inclinar ainda mais para o povo, pelo qual tinha um grande fraco? Elle não o diz: mas deve-se crer. Em todo o caso, fosse pelo que fosse, recusou o papel de salvador que lhe queriam confiar. Mas a guarda-nacional clamava na praça e os seus gritos chegavam á sala. D. Fernando, affavel, bondoso, e já talvez sceptico apesar de ser ainda moço, tomou-lhe do braço, seduzindo-o: «Era um grande favor!»—O nobre general que amando o povo, queria muito á monarchia,[Pg 70] cedeu então. Não esperassem d’elle os serviços de um Monk; não. Era pelo povo; reconhecia os erros da CARTA, e detestava a politica seguida até alli. O seu plano consistia em defender os principios da revolução, harmonisando quanto possivel a CARTA, (26) com a CONSTITUIÇÃO (22). Sob taes condições resignava-se a acceitar. (Sá, Lettre au comte Goblet, etc.) Rainha, rei e o belga olhavam-se: que remedio? Ainda era a melhor solução; e sobre tudo não se tinham podido prevenir as cousas. Fôra uma surpresa: remediar-se-hia. A conta em que os extrangeiros podiam ter-nos, infere-se da historia deploravel da emigração e da guerra, de certo conhecida por elles, melhor ainda do que nós a conhecemos e a contámos. A convicção de sermos um povo que necessitava de tutella era geral.

Sá-da-Bandeira saíu, formou se a trindade dos dictadores, publicou-se o decreto revogando a CARTA e proclamando a constituição de 22, que seria reformada pelas côrtes. A mão da rainha hesitava, tremia, ao assignar o papel. (Ibid.) E que admira? Esse decreto reduzia-lhe a corôa a cousa nenhuma; tirava-lhe o direito do veto e todos os direitos soberanos; ficava sendo, ella, a nobre senhora tão cheia de caracter e vontade, o mesmo que fôra seu avô; e não tinha, como tivera D. João VI, fleugma bastante para se sentar de manhan rindo e abrir a Gazeta «a vêr o que tinha mandado na vespera». Rainha no sangue, homem no caracter, o pensamento de uma desforra talvez partisse d’ella; e se não partiu, mas sim dos conselhos do ministro belga, é certo que o abraçou, e peior lhe queriamos se o não tivesse feito. Deploravel condição de um systema que exige dos reis a falta de brio, nos conflictos da corôa com o povo, ou a indifferença sceptica pelos debates das[Pg 71] questões do povo sobre que lhes diz reinarem! Deploravel idéa a que obriga a acclamar presidencia de uma nação a fraqueza, a indolencia, a indifferença!

O caracter da rainha era o inverso de tudo isso; mas os conselhos belgas e a protecção ingleza faziam com que, em vez de buscar apoio e força dentro da nação, os acceitasse de fóra, tornando-se de tal modo ré de um crime que desvirtua o merito da sua energia. Que nacionalismo se podia, comtudo, esperar de uma côrte inteiramente extrangeira? É verdade que, nem Saldanha, nem Terceira, tinham querido jurar a constituição restaurada: mas o ultimo em uma espada apenas e não um partido, e o primeiro descera á condição dos bravi, desde que renegára o eminente papel de chefe dos jacobinos. Podiam juntos levantar alguns batalhões e fizeram-n’o depois; mas não conseguiam com isso senão aggravar a situação de um throno, que o povo já desadorava por causa das influencias extrangeiras, e mais desadoraria quando o visse pretender impôr-se, defendido por batalhões de janizaros.

Não tinha, não, é facto, o nobre caracter da rainha outra força a que apoiar-se, mais do que esses dois generaes, mais do que as tropas e os navios inglezes, mandados para o Tejo por conselho do rei dos belgas e corretagem do seu omnipotente embaixador. D’este modo, o plano da reacção, coevo de setembro, amadureceu com o desbragamento crescente das cousas da revolução; e dois mezes d’ella, achando-se maduro bastante, decidiu-se dar o golpe d’Estado.

Quando Terceira ia para Belem tomar a parte que lhe tinham destinado, encontrou Passos, o tribuno do povo de Lisboa. Falaram, altercaram. E[Pg 72] os ministros porque não restabelecem a CARTA? perguntava-lhe o duque.—«Porque não são traidores» respondia-lhe Passos com uma pompa mais apparente do que sincera; «encarregam-lhes a defeza da revolução e ella será defendida. A revolução tem sido generosa, porque é forte; mas se tomam a nossa generosidade por fraqueza, se appellarem para as armas, se provocarem a guerra civil, ai, dos vencidos!»—E tomando um ar terrivel, o bondoso homem fazia a voz grossa, a vêr se intimidava: «Em duas horas hei de ter fusilado mais chamorros do que tenho demittido em mezes ...»—E a prova de que a ameaça era fingida está no tom com que prosegue: «Estamos na vespera da guerra civil: ámanhan v. ex.ª vae commandar os exercitos da Rainha e eu os da Republica: se a espada de Bouças se medir com a espada de Asseiceira, nem por isso ficaremos inimigos». (V. Discurso de Passos, 18 de out. de 44)

Estava-se com effeito na vespera de uma guerra civil que duraria quinze annos, mais ou menos ensanguentados. Tudo em sombra e duvida no edificio da liberdade; e que melhor symptoma o demonstra do que a mistura de ameaças e ironias, com reminiscencias classicas (Republica), rhetoricas, e laivos de um scepticismo que punha por cima das amizades politicas as amizades pessoaes? O tribuno aperta a mão do general na vespera da batalha? Que singular comedia é esta? e que papel têem n’ella os pobres córos de um povo trazido para a rua pelas phrases ardentes da tribuna? Entendeu-se os actores, e representam uma tragedia em que o povo, soberano, omnipotente, origem de toda a auctoridade e destino de toda a acção, é um comparsa apenas? É assim, é.

[Pg 73]

Mas não se despedace a bella estatua do tribuno, porque elle era sincero na sua dobrez. A fatalidade póde mais do que os homens, e muito mais ainda do que os poetas, no momento em que as visões de esperança começam a dissipar-se. Era o que succedia a Manuel Passos, já abatido e semi-acabado por dois mezes de dictadura. O seu melhor dia, comtudo, não chegára ainda, e, como o cysne da fabula, ia entoar o seu canto, nas vesperas de morrer.

2.—A BELEMZADA

Van der Weyer preparára tudo; o dia estava aprazado. Era indispensavel vingar o brio da joven rainha (17 annos) que debulhada em lagrimas tinha jurado a constituição (Macedo, Traços)[12]; era necessario acreditar o reinado do moço (20 annos) D. Fernando, que o monarcha da Belgica enviára para cá. O corpo diplomatico tinha pedido garantias; os pares da direita, presididos por Palmella, tinham protestado. Passos e Sá tinham sido chamados a palacio, a dar explicações perante o belga, perante o inglez Howard. Temia-se tudo: o miguelismo, a republica, a regencia de Isabel-Maria, velha preoccupação de outros tempos, ou da imperatriz viuva em quem se falava agora. Os dictadores affirmavam a sua lealdade ao throno, garantiam, asseguravam que se lhe não boliria (Ibid.); mas o caminho que as cousas tomavam[Pg 74] fazia com effeito receiar que não tivessem força egual á boa vontade.

Van der Weyer poz, portanto, em execução as instrucções que trazia. Tutor dos jovens e obedientes monarchas, metteu mãos á obra. Seria um golpe d’Estado rapido, a que tudo se submetteria; mas o belga, tendo estudado Portugal, estudára pouco a inteireza do animo heroico do seu ephemero dictador. Não fosse elle, e o plano teria vingado. Tudo estava combinado com o rei Leopoldo, que mandaria tropas suas; mas emquanto não chegavam, Palmerston, de accôrdo—porque a rainha Victoria adorava o tio—pozera ás ordens uma esquadra com tropas de desembarque, fundeada no Tejo. Nada se faz sem dinheiro: Portugal não o tinha, e claro esta que havia de pagar o preço da sua educação liberal. A Belgica adeantava o necessario, mas com penhor, porque os belgas são seguros e mercadores; e o penhor seria uma das possessões de Africa. (Sá, Lettre au comte Goblet, etc.) Oh, pobre Portugal, mandado por todos, ludibrio das gentes, triste nação já saqueada do que possuias no Oriente, para ganhares a dynastia brigantina, e agora ameaçada de perderes a Africa, para conservares os teus reis liberaes e forasteiros!

Elles, que não tinham nas veias sangue portuguez, não córavam de vender a nação; mas tampouco fervia o sangue dos cartistas que, ávidos, contavam com o regresso dos tempos perdidos. Foi o dia dois de novembro, dia lugubre dos finados, o da tenebrosa combinação. Armados a bordo, com as lanchas equipadas, estavam os inglezes; e os conspiradores a postos esperavam que as fardas vermelhas chegassem, ou a rainha fosse para bordo. Não se tinha D. João VI refugiado tambem na Windsor Castle? Sermos uma especie de Tunis[Pg 75] parecia natural aos homens gastos por tantas aventuras, tão varias intrigas, onde lhes tinha ficado todo o brio e caracter que a natureza lhes déra; sem parecer extranho ao rei extrangeiro, aos diplomatas sabedores da nossa historia, e á rainha que havia ganho o throno á força de batalhas n’um paiz inimigo.

Mas Passos disse, terminantemente—não! E a sua ordem era apoiada por Lisboa em armas havia tres dias. Foi ao paço, no dia de finados; e pareciam-lhe cadaveres, cousas mortas, esses portuguezes que, ladeados pelos extrangeiros, á sombra d’elles lhe exigiam a restauração da CARTA, e que renegasse a revolução, isto é, o seu nome, o seu brio, a sua honra. Foi, ouviu-os, e á rainha disse que se fugisse para bordo dos navios inglezes era o mesmo que se abdicasse; e se chamasse para terra os soldados extrangeiros, era como se declarasse a guerra á nação sobre que reinava. Já não sorria, como quando falara ao duque da Terceira. Agora, o sangue pulava-lhe e a sua bella face illuminava-se com o enthusiasmo: era a imagem da honra nacional. Se a rainha tramasse a contra-revolução, arrepender-se-hia; se o não fizesse, veria quanto era amada. (Macedo, Traços) As palavras saíam-lhe fluentes, com um timbre sereno porque brotavam sinceras, candidas, da sua grande alma. E, como finados, os conspiradores ouviam-no, calados, corridos—cousas mortas que eram. Mas na alma da joven rainha não havia uma corda que respondesse ao bater incessante da palavra eloquente do procurador dos povos? Quem sabe? É natural que hesitasse entre os dois que a disputavam.

Os ministros offereceram-lhe a demissão, que ella nem acceitou, nem negou. (Ibid.) Se hesitava decidiu-se[Pg 76] por fim pelo belga, contra o portuguez. Seduzida a guarnição pelos generaes, tudo estava combinado e previsto. Caía a tarde do dia 3, quando a côrte saíu das Necessidades para Belem, onde os regimentos de Lisboa foram juntar-se, sem ordem do governo, obedecendo aos generaes conspiradores. Rodeada de soldados, á sombra dos navios inglezes, a rainha sublevada mandou chamar os ministros. Eram dez horas da noite e estavam reunidos em casa de Passos. Delegaram Vieira-de-Castro, e sem rebate, caladamente, reuniu-se a guarda-nacional. O emissario voltou: ainda bem que não tinham ido todos, porque o plano era prendel-os: a contra-revolução estava consummada.—Isso não! respondeu Passos; e levantando-se, decidiu que fossem a Belem, á frente da guarda-nacional, vêr cara a cara o inimigo. Sá-da-Bandeira ficaria em Lisboa. Tocasse-se a rebate em todos os sinos, rufassem todos os tambores, houvesse alarme contra uma côrte inimiga: a ameaça a forçaria a recuar.—Fez-se como o dictador mandou; mas a côrte, vendo-o chegar com Lumiares e Vieira-de-Castro, escarneceu-os, demittindo-os, pondo em lugar d’elles um ministerio, do dia em que fôra combinado—um gabinete de finados!

A noite acabou em paz. Em Belem contava-se ganha a victoria; mas em Lisboa ninguem dormia, todos se preparavam.


O dia 4 começou com um assassinio. Já a turba armada, com os animos excitados, fazia das ruas baluartes, fortificando-se á espera de uma invasão. Já as avenidas de Belem estavam guarnecidas, para impedir o passo aos que pretendessem ir apoiar os[Pg 77] conspiradores. De Belem chamava-se a capitulo: viesse toda a velha guarda liberal, fiel á CARTA, que o extrangeiro estava prompto a restaural-a. Agostinho José Freire vestia-se, fardava-se de encarnado, todo recamado de ouro, para ir receber as ordens da sua rainha, isto é, para voltar a um poder de que a revolução o expulsara.

Freire nascera em 28 de agosto de 1780; contava 56 annos, mas apesar da vida trabalhosa, estava robusto e são. Seguira a carreira militar sendo porém sempre politico. Appareceu aos quarenta annos secretario das côrtes em 20, emigrando em 23, voltando em 26, tornando a emigrar em 28. D. Pedro chamara-o a si em França, nomeando-o ministro da guerra, lugar em que o vimos quando o historiámos. (Vida e tragico fim de A. J. Freire, anon.)

Agora afivelava o espadim, pendurava os crachás sobre a farda vermelha, preparava-se, brunia-se, para apparecer glorioso no paço onde o chamavam. Era um velho, todo branco, alto, magro, elegante, com uma phisionomía fina que revelava o seu temperamento nervoso e excitavel. Falava com elle Aguiar, mais positivo, e tambem convidado para ir a Belem; falava, aconselhando-lhe prudencia: eram odiados, bem o sabiam, e podiam reconhecel-os no camínho e soffrer algum insulto. Freire não concordava. A sege esperava-o em baixo, e já fardado descia, convidando o collega a acompanhal-o. Aguiar recusou; saiu a pé, abotoado, sem insignias nem fardamento, direito a um caes para embarcar. Ainda assim o reconheceram, largando botes a perseguil-o: deveu a vida ao pulso dos seus quatro remadores. (A dynastia e a revol. de set.)

Sopeada pelos cavallos, travada, corridas as cortinas engraixadas, a sege de Agostinho José Freire descia a ladeira ingreme da Pampulha. Em baixo,[Pg 78] onde vêem dar as viellas que dizem para o rio, havia um posto de guarda-nacional de arma ao hombro, para impedir as viagens a Belem. Fizeram parar a sege, correr as cortinas, e deram em cheio com o personagem na sua farda vermelha constellada de commendas e bordaduras. Conheceram-no todos? De certo não; mas o facto é que a farda bastava para denunciar um inimigo, e o commandante do 15.º batalhão deu-lhe a voz de preso. Estalou um tiro quando Freire se apeiava: dobrou-se e cahiu morto. (Vida e tragico fim, etc.)

Logo que um caso d’estes succede, vem a sanha, como de cannibaes, a aggravar o acto commettido. Ha muitos a querer a honra do feito; ha muitos mais a afogar n’um desvario de atrocidades o remorso espontaneo de um crime. Sobre o cadaver ferviam os tiros. Despojaram-no de tudo, deixando-o de rastos, semi-nu, contra um lado da rua, crivado de feridas, escorrendo em sangue, com uma tijella de barro ao lado para receber as esmolas dos transeuntes. Mais tarde foi levado em maca ao cemiterio, seguido por uma turba furiosa que duas vezes o exhumou, negando-lhe a paz na propria cova. (Ibid.)


Essa furia da populaça, victimando o ministro, fazia-o expiar os crimes de muita gente. Os juizos do povo são como os que se attribuem a Deus:[13] cégos, apparentemente injustos muitas vezes, são os juizos do Fado que, indifferente a nomes, escolhe á sorte um homem para victima expiatoria de crimes mais ou menos seus. Da mesma fórma o povo escolhe os idolos e os réus.

Essa furia da populaça era a consequencia da[Pg 79] exaltação em que o acto aggressivo do paço lançava Lisboa e o seu povo, já soberano segundo a lei, verdadeiramente soberano agora que as guardas nacionaes imperavam armadas. Ao som do rebate, formavam, em ordem de batalha, no Campo-de-Ourique na manhan do dia 4. Parecia imminente um combate entre ellas e a guarnição reunida em Belem, em torno da rainha. Passos estava no seu posto á frente do povo armado, quando vieram do paço chamar o dictador. Que lhe queriam? Fosse o que fosse, elle partiu, arriscando a vida.

Sá-da-Bandeira, a quem a Junta do Campo-de-Ourique convidára para o commando, recusára a principio, da mesma fórma que antes havia recusado o papel de Monk offerecido por Howard; mas agora a agitação crescente, a imminencia da crise obrigavam-n’o, e ficava, mais para conter do que para guiar o povo armado. (Lettre au comte Goblet.)

Passos entrou no palacio, e dir-se-hia que voltavam essas antigas scenas da Edade-media, quando os tribunos da plebe iam á frente dos monarchas. Em volta da rainha estavam o rei e os diplomatas e os pares do reino, os conselheiros d’Estado, a infanta D. Isabel Maria, e a imperatriz viuva. Era toda a côrte reunida para ouvir, para condemnar, para seduzir? Era toda a côrte, perante o homem de Bouças, rei verdadeiro de Lisboa. Passos curvou-se, beijou a mão da rainha, e esperou que lhe dissessem o que d’elle pretendiam.

Então, pela soberana falou—quem? O seu ministerio dos finados? Não. O inglez Howard, o belga Van der Weyer, e só depois dos extrangeiros, Villa-Real, Lavradio e Palmella no fim. As[Pg 80] falas eram mansas; não se alludia ao ministerio dos finados, porque a attitude de Lisboa, de manhan, infundira medo. Tratava-se de seduzir, não de ameaçar. S. M. não podia consentir na abolição da CARTA, mas estava decidida a reformal-a: entretanto, o inglez affirmava que o seu governo não toleraria em Portugal a constituição quasi republicana de 22. Involuntariamente, os olhos dirigiam-se para o rio onde o vento soltava a bandeira vermelha da Inglaterra na pôpa das suas naus. E do lado da rainha todos continuavam a não extranhar a figura de idiotas que faziam.

Repetia-se a scena da vespera; e Passos repetiu, em francez, mas com uma firmeza mais calma e triste, o que disséra na vespera. Fôra nomeado ministro com a constituição de 22, e não com a CARTA, a cuja sombra se desbaratara a riqueza nacional por não haver garantias politicas contra a oligarchia reinante. Não renegaria a revolução, embora desde o principio tivesse affirmado a necessidade de emendas que consolidassem o throno. Não era uma questão de fórmas, era a questão do principio, da origem da authoridade. A CARTA fôra um dom do throno, a constituição uma conquista da soberania popular. Socegasse, entretanto, S. M. que o povo não queria mal ao throno: haveria duas camaras, veto absoluto, e direito de dissolução, «como na CARTA. Será como na Belgica, dizia a Van der Weyer: não podereis condemnar».—E voltando-se para o inglez impertigado e impertinente, dizia-lhe que a lealdade portugueza não recebia lições britannicas. Eramos um povo livre, e não acceitavamos a intervenção de ninguem. As cousas inglezas que elle amava e admirava, haviam de entrar ás boas, em navios mercantes, para terem despacho livre. Vindo em navios de guerra, as leis[Pg 81] da Inglaterra só serviriam para lh’as devolver sob a fórma de cartuchos. S.M. teria dignidade bastante para repellir as offertas da Inglaterra; se as não acceitasse, Portugal deixaria por uma vez de ser uma prefeitura britannica e o seu soberano uma especie de commissario das ilhas Jonias. «Se desembarcarem, dizia por fim a Howard, serão batidos». Á rainha, convidava-a a ir para o Campo d’Ourique, onde veria que amor lhe tinham os subditos; e aos generaes em ultima instancia: «A Inglaterra ameaça-nos: ninguem se deshonrará. O vosso logar é no Campo de Ourique, á frente dos portuguezes que ahi defendem a independencia da patria» (Macedo, Traços, etc.)

Era um doido, varrido, poeta. Pôr os pontos nos ii, falar com sinceridade em politica! E uma audacia! E um orgulho, n’esse indigena! Howard estava absorto, o belga confundido, a rainha perplexa, os seus portuguezes corridos. Havia silencio, ouvia-se o arfar do peito do tribuno que derramara a flux as ondas da sua indignação ... E o facto é que talvez se não enganasse: Lisboa era por elle ... Talvez os inglezes fossem batidos, talvez os regimentos portuguezes fraternisassem como em setembro.[14] Talvez ... Talvez ... E havia uma hesitação singular, e uma longa pausa, quando a voz lenta e fanhosa do moço rei, n’uma phrase indiscreta, exprimiu em francez o seu despeito colerico. Monsieur le roi Passos, comment vont vos sujets à Lisbonne?—Reprimindo-se, elle respondeu[Pg 82] que não tinha subditos: eram-no da rainha. E D. Fernando objectou: Mas não lhe obedecem!—«Porque S. M. manda o que não póde—e o que não deve!» E outra vez excitado pela temeraria ironia do rei, voltou dizendo que ordenára uma resistencia energica—até ao fim: «Se morrermos, morreremos bem!» (Ibid.)

Ninguem duvidava de que elle fosse capaz de morrer. A scena, começada com o apparato de uma opera, para a seducção de um tyranno plebeu, acabava n’um drama pungente. Na face da sua côrte, á frente dos embaixadores, a soberana estava abatida e humilhada pela soberania d’esse homem, que não era só o idolo de um povo prompto a defendel-o: era um heroe para quem não valiam lisonjas, nem adulações, um estoico indomavel, uma virtude inaccessivel. Em vez de seduzido, Passos acabava seduzindo os proprios inimigos. Os que se não penitenciavam do erro, sumiam-se corridos. Trigoso dizia á rainha que depois de uma tal imprudencia só uma solução restava.—E qual? perguntava ella, arfando.—Abdicar.—Pois não haverá outro recurso?—Para reinar com honra, nenhum; para reinar .. um só.—Então qual?—Entregarmo-nos á discrição do Manuel Passos ... (Macedo, Traços, etc.)

A rainha queria reinar. E o tempo corria, sem que nada resultasse das habilidades com que Palmella buscava embaír o rei de Lisboa. E começava o fogo das avançadas nos seus postos (pois correra que Passos não voltava por estar preso) sendo necessario um bilhete d’elle para cessarem os tiros. Quem valeria em taes angustias, senão o fiel Sá da Bandeira, para impedir á rainha a vergonha de se render á discrição do seu émulo da capital? Era já noite quando Passos regressou á cidade;[Pg 83] e, na manhan de 5 Sá-da-Bandeira partiu para Belem a cobrir a retirada da infeliz rainha.

Mas, durante essa noite, os seus conselheiros, ou impenitentes ou timoratos, fizeram desembarcar na Junqueira seis ou setecentos soldados inglezes. Era a guerra. Era apenas uma tolice? uma ordem mal cumprida? O facto é que a guarda-nacional desceu do Campo d’Ourique a Alcantara, gritando em côro—a Belem! E se lá chegasse a ir, ai da rainha e de todos! Na vespera, o nobre Passos defendera o povo perante a côrte: hoje, contra o povo enfurecido, defendia a vida da rainha. A cavallo, atravessado sobre a ponte do ribeiro que corta a estrada, vedava em Alcantara a unica passagem da turba enfurecida, falava-lhe, acalmava-a, ameaçava-a. «Para Belem não se passa, senão por cima do meu cadaver!» E não era uma phrase banal, porque o podiam esmagar n’uma onda que viesse rolando de mais longe. O povo desforrava-se, gritando, blasphemando, exprimindo nas suas phrases grutescas o nenhum conhecimento que tinha dos motivos do conflicto, e como ia arrastado por uma fatalidade, sem consciencia, movido por instinctos: «Querem duas camaras? deixem estar que não se lhes ha de dar nem uma!» Passos, ouvindo isto e o mais, sentia invadil-o uma nevoa de tristeza que varria a luz das suas esperanças ... Tal era o povo, o soberano, cuja sabedoria lhe tinham ensinado tantos livros inchados de periodos rotundos! E a mó da gente, clamando, revolvia-se, fluindo, refluindo, contra a ponte, onde Passos, a cavallo, parado, se julgava a si e julgava o povo.

Sá-da-Bandeira conferenciava então com Saldanha no palacio do conde da Junqueira, e exigindo como condição prévia da composição o reembarque[Pg 84] das tropas inglezas, exigia o cumprimento da promessa da vespera: que a rainha demittisse os ministros do golpe d’Estado, nomeando-o a elle presidente do conselho, restaurando o ministerio anterior. A demora fazia nascer suspeitas e mal se podia conter a populaça em Alcantara, onde Sá tambem foi acalmal-a a pedido da rainha, d’onde voltava dizendo que, sem o decreto assignado, nada se conseguiria. (Sá, Lettre au comte Goblet).

Saíram pois os decretos, restaurou-se o ministerio, voltaram as tropas para bordo dos navios, e com ellas se sumiram tambem a bordo os ministros de finados e a gente de Belem. Á tarde a rainha, confessando-se devedora do throno e da vida a Manuel Passos, voltou egualmente de Belem para as Necessidades, vencida, humilhada, por entre as alas das forças setembristas que occupavam as ruas. (Ibid.) A noite acalmára tudo; e D. Maria II continuava a reinar. Com honra?

Ut arundo fragilis, como o seu primeiro avô Affonso, ferebatur.[15] A rainha, ou por ella os que a aconselhavam, cediam á força—mas só momentaneamente. Fôra um plano mal traçado: voltar-se-hia á carga, logo que as circumstancias o permittissem. Na guerra é licito proceder assim; e D. Maria II declarara, ou tinham-n’a feito declarar guerra á nação setembrista. Van der Weyer olhava para Terceira, para Saldanha, dizendo comsigo que, se não serviam para isso, de que serviam então?...

3.—AS CORTES CONSTITUINTES

Era obrigação dos diplomatas, que tinham lançado[Pg 85] a côrte na aventura frustrada de Belem, garantir a sorte dos numerosos refugiados a bordo dos navios inglezes e dos não refugiados, mas compromettidos. Howard exigiu de Sá-da-Bandeira um perdão, que tanto elle como Passos como Vieira de Castro, os triumviros, desejavam dar. (Sá, Lettre au comte Goblet.) A clemencia é virtude dos bons, a magnanimidade symptoma da força. Com o resultado dos dois dias de Belem, o setembrismo ganhára uma auctoridade que ia baixando muito. Rendida, sem ficar convertida, a côrte reconhecia o poder da revolução: era mister agora cumprir o que se promettera, discutindo e votando uma constituição que resalvasse o principio de origem na soberania popular, dando porém ao throno o veto e o direito de dissoluçaõ e ás altas classes uma segunda camara. Uma semana depois da Belemzada saía (12) o decreto convocatorio; e a 26 de janeiro de 37 reunia-se em Lisboa o congresso constituinte. Abolida a CARTA, havia que reconstruir o mechanismo politico, e as divergencias de interesses e doutrinas accentuavam-se.

Expulsos do poder, os cartistas eram obrigados a construir em partido o que antes fôra um aggregado de bandos cada qual com seu chefe, porque agora apparecia no governo uma doutrina adversa á de todos elles. Gorjão Henriques definia no congresso esta attitude com a partida de apresentar a CARTA por emenda ao projecto de constituição. Eram dois unicos os deputados cartistas, e apenas podiam protestar, esperando a decomposição fatal dos vencedores. Por seu lado, os miguelistas começavam a crear esperanças, perante a desorganisação do novo Portugal. Alguns soldados velhos saíram de Lisboa para as Marnotas, (13 de maio) entre Loures e Friellas—a esperar os touros? não,[Pg 86] a proclamar D. Miguel. Mas os camponezes, já esquecidos, crendo-os salteadores, prenderam-nos e destroçaram-nos.[16]

Não era pois das direitas que o governo tinha a temer: era da cauda temivel da sua esquerda demagogica.


Ferviam os clubs, d’onde os tribunos levavam para a camara as exigencias mais radicaes. Leonel-Tavares mandava do Burjaca. Costa-Cabral não consentia que ninguem lhe passasse á frente, porque toda a preoccupação do tempo era ser mais avançado do que o visinho. Cabral tinha o seu club tambem, no Arsenal (que depois fechou), e ahi discutia pausadamente com os carpinteiros da Ribeira, com o philanthropo Formiga, a maneira de dar maior latitude ás ideias democraticas. (Dicc. bio-pol.) Era todo mansidão, deferencia, quasi humildade, para com o povo soberano, ao qual pedia que o illustrasse e o dirigisse. Aconselhado, vinha secco e hirto, petulante como quem traz o rei em certas visceras, aggredir no congresso o governo e a sua moderação, exigir que houvesse uma camara apenas, e não houvesse veto, e nem sombra de peias á liberdade de imprensa. (V. Diar. Sessão de 37; e o Dicc. cit.) Ao lado d’esse homem frio que, ou mudou inteiramente depois, ou seguia o exemplo antigo dos tyrannos, conquistando o poder pelo caminho da demagogia: ao seu lado via-se um rapaz em[Pg 87] quem um sangue generoso pulava com ardor, discipulo melhorado, avançado, de Manuel Passos, a exemplo do que este fôra para com Fernandes-Thomaz. No seio do liberalismo era proprio que cada geração progredisse no sentido da anarchia; pois os moços, cada vez menos doutos, incapazes de perceber as distincções e subtilezas da eschola, viam os principios em grosso, e exigiam, com a violencia propria dos temperamentos generosos da Peninsula, que os principios se tornassem factos.

José Estevão nascera em Aveiro em 26 de dezembro de 1809: contava agora 27 annos apenas. Aos dezenove alistara-se no batalhão academico, militando sob o commando do cachetico Refoios em Morouços e no Vouga. Emigrara para a Galliza, depois para Inglaterra, d’onde foi á Terceira e de lá veiu ao Porto, cabendo-lhe um lugar na defeza da Serra. (F. Oliveira, Esboço historico) Bravo, honrado, a sua mocidade contava já uma historia meritoria. Possuia todos os dotes de um temperamento peninsular, com os defeitos correspondentes: tinha a hombridade castelhana, o valor portuguez, a eloquencia de um andaluz, e uma face aberta, illuminada, sympathica, a que a voz e a fala davam um poder de seducção. Mas nem tinha saber, nem juizo, nem prudencia, nem a consistencia, portanto, sem a qual não ha homem verdadeiramente superior. Era o bello vehiculo de um instrumento composto de sentimentos valorosos e nobres, expresso em phrases que saíam e soavam como arias. Foi o primeiro, talvez o unico, dos tenores sinceros da liberdade portugueza.

No congresso declarava «pertencer á seita da mocidade e glorificar-se d’isto.» (Disc. de 25 de abril) E essa seita da mocidade, na qual tinha a seu lado Cabral, Vasconcellos, Santos-Cruz, sentava-se na extrema[Pg 88] esquerda, e reclamava: «Juiz só, a julgar só; um rei só, com ministros responsaveis a executar só; uma camara só—eis a minha monarchia, eis o meu governo representativo». (José Estevão, Disc. de 5 de abril) Era simples, claro como agua: um solo de instituições abstractas, uma aria de abstracções liberaes. Como não lembrava ainda que a logica exigia uma purificação maior: o governo do povo pelo povo, o governo directo, ou antes nenhum governo, nem sombra de Estado, a anarchia absoluta? Nem a tradição, nem a economia das forças sociaes, nem o estado das classes, nem cousa alguma do que real e positivamente constitue uma nação, se tinha em vista n’essas opiniões avançadas que obedeciam á tyrannia terrivel das fórmulas abstractas. Triste, pois, desanimado, o demagogo lamentava-se: «Vejo que o throno póde demittir os legisladores populares, póde estorvar que a lei se faça; vejo que o throno tem o veto absoluto, o direito de dissolver, e o de nomear senadores ...» (Disc. de 5 de abril)

E todas essas concessões—porque assim, forçosamente, eram considerados os direitos soberanos pelos defensores da soberania popular—enchiam a opposição de colera contra o governo que se dizia ter renegado a Revolução. E os clubs, onde Cabral e José Estevão iam chorar as suas maguas: o do Burjaca, de Leonel Tavares; o do Arsenal, onde reinavam França que tinha coração (Hontem, Hoje e am.) e Soares-Caldeira, ambos athletas, ambos ignorantes e queridos do povo: os clubs commentavam o proceder do governo não poupando já o proprio Passos por ter dado a mão aos moderados (Sabrosa, Raivoso, Derramado, Taipa, etc.) em vez de a extender ao puro setembrismo, patuléa, descamisado.

[Pg 89]

O singular da revolução de setembro, e o que particularmente assignala o estado da nação, não é a cauda de radicaes que todas as revoluções criam. O singular é o desanimo dos chefes, a espontaneidade immediata com que se accusavam dos proprios actos. Veremos a que estado melancolico de scepticismo politico chegou Passos; mas Taipa logo na primeira sessão do congresso (18 de janeiro) se levantava para fazer o seu acto de contrição: «Aboliu-se a CARTA, mas todos sabemos que nem a CARTA é um codigo tão insufficiente para as nossas circumstancias que valesse a pena de uma revolução para o destruir, nem a constituição de 22 tão perfeita que valesse a pena de uma revolução para a restaurar». (V. Sá, Lettre au comte Goblet, etc.) E, entretanto, era contra a CARTA que desde 30, ou ainda antes, todos esses homens vinham clamando, como causa dos males nacionaes. Chega a revolução que a supprime, e todos a lamentam; seguem por não poder deixar de ser, mas «ninguem a desejava, ninguem a applaude» (Ibid.) Porque declamavam, pois? Porque lançavam á terra de um povo anarchisado a semente de uma revolução? Vêem-na germinar, e lamentam?

O porquê é simples. Não mediam nem sabiam o alcance do que diziam; e agora, a braços com as consequencias, deitavam á culpa dos homens o que provinha da natureza das cousas, por não terem a coragem ou a lucidez bastante para se confessarem desilludidos, mortos, como fez Passos. Os mais arrependidos mas não confessos, affectando uma segurança que não possuiam, só buscavam alijar sem muita deshonra um fardo que lhes pezava. Rasgar o programma ou o rotulo, sentiam que seria despedaçarem-se a si proprios, porque, para dentro das suas pessoas de politicos, não tinham,[Pg 90] como o grande tribuno, uma alma feita de sinceridade estoica e virtude santa. Destruir a revolução sem a negar; cortar a cauda incommoda dos descamisados, defendendo-se contra os inimigos da direita para não perderem o posto; equilibrar, ponderar as cousas; fazer uma constituição tão parecida com a CARTA que para o paço fosse a mesma cousa, sem deixar de ser CONSTITUIÇÃO no nome—eis ahi o pensamento dominante nos homens que, mau grado seu, se viam mandatarios da revolução. (Sá, Lettre, etc.) Evidentemente, isto daria de si um pender gradual para o estado anterior a setembro, e assim foi: a Passos succede Sá, depois de Sá vem Pizarro, (ou Sabrosa, segundo o baronato que teve), depois de Sabrosa, Bomfim, depois Aguiar, Palmella, Terceira e por fim a restauração da CARTA (1842).


Agora, com a demissão de Passos, (1 de julho) andava-se a primeira legua. Que motivos expulsavam do governo o vencedor da rainha em Belem? O pretexto foi o voto que a maioria do congresso deu contra os sub-secretariados de Estado por elle propostos. O motivo foi, provavelmente, essa victoria de que todos se arrependiam tanto, que Sá-da-Bandeira, contando o drama em que foi actor, (Lettre au comte Goblet) a esconde tão cuidadosamente que se não percebe porque razão teria cedido a rainha, rasgando a nomeação dos seus ministros, restaurando o rei de Lisboa e todos os decretos da sua dictadura de dois mezes.[17] Além d’este motivo,[Pg 91] porém, havia outro, muito doloroso: era a penuria extrema, eram os pontos, os saltos, nos vencimentos dos cidadãos de um communismo burocratico; era tambem a agiotagem escandalosa que, brotando espontanea sob todos os governos de todos os partidos, tirava ao setembrista o credito que tinha quando clamava contra os devoristas de 35, contra os argentarios engordados por Law-Carvalho.

Não tinham os setembristas um Law, nem podiam tel-o com os principios de honestidade estoica dos seus chefes. Campos chorara, chorava: mas em vez de pagar em ouro, pagava em explicações longas, massadoras, recheiadas da adhesão á causa popular. (Hontem, hoje e am.) Essa sinceridade, inimiga das finanças, desacreditára o unico financeiro do partido; e a principal pasta em um paiz devorado, teve de ficar nas mãos pouco habeis, mas limpissimas de Sá, de Passos Manuel, cujo estoicismo desprezava o dinheiro, cujo verbo ou cuja espada desdenhavam dos algarismos e das contas.

Entretanto, o que peior lhes fizera fôra a sua rectidão: deixaram de pagar quando não tinham com quê; exigiram dos contribuintes a decima que os antecessores, para não afugentar partidarios, prescindiam de cobrar. Ella dava agora mais do dobro: e comparando os numeros, Passos na sessão de 37, tinha motivos para se gabar. O deficit que encontrára (36-7) calculado era de (18:600-11:800) 6:800 contos, devendo-se ao banco 4:834 e a outros 800; havendo ainda 3:516 contos de papel-moeda em junho (36) e 4:087 de titulos admissiveis na compra de bens nacionaes. (Lei de 15 de abril de 35) O governo amortisára 500 contos de papel-moeda e 2:876 de titulos; e o orçamento para 37-8 não apresentava um deficit superior a[Pg 92] (11:217-9:294) 1:923 contos. E com isto não se tomára emprestimo nenhum de fóra, e os encargos da divida total, se tinham subido de 2:334 a 2:500 contos, era porque se reconhecera o direito esquecido dos possuidores de Padrões, convertendo-os em titulos de 4 por cento, por 2:960 contos com o juro de 118. (V. Relatorio de 24 de abril de 1837)

«Quando entrei, dizia Passos, achei nos cofres da capital seis contos, e não havia com que pagar os dividendos em Londres. (Disc. de 21 de jan. de 37) E defendendo-se a si e aos actos da sua dictadura, sentindo que o tempo corria e o fim se approximava, definia todo o seu pensamento: «A rainha não tem prerogativas, tem attribuições: é o primeiro magistrado da nação. Eu fui o primeiro ministro que executou o programma do Hotel de Ville de Paris: cerquei o throno de instituições republicanas ... Não houve só liberdade de imprensa, houve licença, houve desafôro». (Ibid.)

Liberdade e licença! liberdade e desaforo! Mas que linha as divide, ou qual é o criterio que as distingue? Ah! eis ahi onde a doutrina naufraga, assim que a põem a navegar no barco de uma constituição. Uns pilotos caçam logo as velas e bolinam; outros mettem de capa; outros dão a pôpa ao vento e correm desarvorados acclamando o temporal da anarchia que os leva ... onde? Contra uma pedra a despedaçarem-se.

Passos não era homem para nada d’isto: nem bolinava, como outros; nem se mettia de capa, esperando e resistindo ao vendaval; nem lhe obedecia. No meio das nuvens cerradas, com o vento a assobiar, elle teimava em vêr uma nesga de céu azul, prenuncio de bonança e fortuna. A linha que dividia a liberdade da licença, esse criterio supposto[Pg 93] seguro, tinha-o elle na sua humanidade, na sua virtude. Não era mister theoria, bastavam sentimento a caracter ... Mas se todos fossemos Passos, para quê, leis, governos e forças organisadas?

Elle, no seu optimismo, teimava em pensar que eramos, ou seriamos, ou deviamos ser optimos, o que é bem diverso. Uma nação affigurava-se-lhe uma familia de irmãos, e a lei um osculo de Paz. Annos passados, depois de toda a sua historia acabada, e da revolução extincta, ainda glorioso, lembrava como o amor o a humanidade tinham vencido tudo:

Tinhamos a luctar contra o partido cartista ... D. Miguel preparava uma insurreição em Portugal e nas ilhas. O Remechido estava levantado no Algarve. A causa da rainha Christina soffrera innumeros revezes; o general carlista Sanz marchava sobre a nossa fronteira do norte e o general Gomez com uma força connsideravel chegou a tocar o territorio de Portugal ... O governo armou a guarda nacional e ficou esperando ... A revolta de Belem foi aniquilada e os vencidos foram recebidos nos nossos braços. A revolta miguelista não appareceu.—Escrevi aos administradores geraes para que fizessem saber aos realistas que nenhum d’elles seria inquietado nem perseguido, mas que todo o atacante seria punido. (Disc. de 18 de out. de 1844)

E não se arrependia do que fizera. A paz, o perdão, o amor, eram as ancoras das nações: em verdade os homens não o criam, mas nem por isso elle chegava a perder a sua esperança, embora deixasse um governo em que se achava deslocado. Saíu em julho, como dissemos; mas não abandonou os seus antigos companheiros, senão quando elles mais tarde, perante o cartismo sublevado, abandonaram a doutrina do perdão pela do castigo, atulhando de presos as persigangas. (Ibid.)[Pg 94] Foi então que descreu dos homens, e se voltou para dentro de si, como um eremita—por estar longe, muito longe, a salvação da terra, pela paz e pelo amor!

Quando os inimigos viram expulso ou retirado do governo esse homem temido, e que em seu lugar ficava apenas, além de politicos, o bom e fiel Sá-da-Bandeira, as esperanças nasceram. A revolução estava suffocada. Havia porém insoffridos que se não conformavam com a demora dos caminhos ordinarios; e ninguem mais se exasperava do que Van der Weyer, talvez com a vista no penhor do territorio africano. Não houve meio de o conter; disse então aos marechaes que a hora tinha soado—«Hombro, armas!»

4.—AS REVOLTAS DOS MARECHAES E DO POVO

Van der Weyer mandou-os marchar, e elles foram. O belga esperava poder armar em Lisboa um pronunciamento cartista, pôr o reino inteiro n’uma desordem maior do que havia já, para d’ahi saír com um bocado de Africa entre os dentes. Portugal decerto resistiria á restauração da CARTA, mas viriam os extrangeiros impol-a. Entretanto Palmerston, ou avisado pela triste figura que as suas fardas vermelhas tinham feito na Junqueira, ou desconfiando do zelo belga, resistia, como resistiu depois, em 47, ás solicitações da Hespanha. Cedeu mais tarde perante a força das cousas, mas agora o mau exito da aventura veiu auxiliar os seus desejos. (Goblet, Etab. des Cobourg.)

Com effeito, nem Van der Weyer pôde conseguir que Lisboa se pronunciasse, nem os marechaes que o exercito obedecesse, conforme convinha. A correria foi rapida e o resultado grutesco, para tão[Pg 95] nobres personagens. O barão de Leiria principiou, acclamando a CARTA (12 de julho) na Barca. Declarou-se logo o estado-de-sitio, dividindo-se o reino em duas lugar-tenencias militares: Sá-da-Bandeira, com José Passos por secretario, no norte; Bomfim, com Costa-Cabral, no Alemtejo. Saldanha partiu de Cintra a 26, Tejo acima até Abrantes e Castello-branco, chamando á revolta os regimentos com que veiu descendo pela serra até Coimbra. Eram 10 de agosto quando ahi entrou. Em 15 estava em Leiria, em 22 em Torres-Vedras, onde se lhe reuniu Terceira, saído de Lisboa a 17 ou 18. A 23, os dois marechaes e a sua tropa chegavam ao Campo-grande, ás portas da capital, esperando o promettido pronunciamento que não apparecia. (Sá, Lettre, etc).

Quatro dias esperaram em vão. Que faziam entretanto as tropas do governo? Bomfim recolhera a Lisboa, porque as guarnições do Alemtejo tinham fugido para Saldanha. Nas visinhanças da capital devia dar-se a batalha inevitavel, mas os marechaes, vendo a mudez da cidade, retiraram (27) para Rio-Maior; e o exercito do governo achou-se em frente d’elles, a 28, no lugar do Chão-da-Feira.

Começou a acção, e quando chegava o instante decisivo viu-se um caso singular. Corriam a galope esquadrões de cavallaria, com a lança em riste ou a espada erguida, ameaçando fazerem-se pedaços; e n’um momento, em frente uns dos outros, os soldados paravam, olhando-se, levantavam as lanças, baixavam as espadas, dando vivas, de um lado, á CARTA, do outro á CONSTITUIÇÃO. Não se bandeavam, mas tinham resolvido não combater. (Sá, Lettre, etc.) Ás vezes, nas touradas em Hespanha, quando a féra mostra mais juizo do que os toureiros, o povo das bancadas acclama o toiro: é o que nós[Pg 96] agora fazemos aos soldados! Com um juizo superior, deram uma lição aos generaes, aos diplomatas, á rainha, á côrte, e a todos.

Começou então uma scena egual ás muitas que se conhecem dos tempos medievaes, quando os bandos dos senhores e das communas se encontravam nas suas contendas. Os generaes avançaram para o meio das columnas armadas, e para o quadro acabar como cumpria, devia seguir-se um bufurdio, um juizo-de-Deus.[18] Mas os tempos eram outros, mais pacificos. E os generaes, á maneira dos soldados, não queriam morrer por ello. Combinaram um armisticio, retirando os sublevados para Alcobaça e os do governo para Leiria, a vêr se podiam entender-se. Vieram á fala em 30, em Aljubarrota; e ao outro dia, por não conseguirem nada, recomeçaram as hostilidades. (Sá, Lettre, etc.) Que houve então? Muito sangue? batalhas mal-feridas? Oh, não! Os marechaes vão-se embora para a Beira-baixa, Bomfim deixa-se ficar em Santarem, e Sá regressa a Lisboa. (Ibid.) Se os soldados, com todo o juizo, não queriam bater-se!

Andava por esse tempo em Hespanha, auxiliando a rainha contra os carlistas, uma divisão portugueza, sob o commando do conde das Antas. Mandou-se voltar; mas quando ella entrou por Traz-os-Montes em direcção do Porto, já os marechaes tinham chegado a Moncorvo, e furtaram-lhe uma brigada de infantaria. Reduzido, chegou pois Antas ao Porto, onde encontrou já Sá-da-Bandeira, vindo de Lisboa (setembro, 13) com um unico batalhão de caçadores. Os marechaes tinham Traz-os-Montes; Leiria, desde que se pronunciara na Barca, possuia o Minho. Por aqui se devia começar[Pg 97] a batida, para não deixar a rectaguarda ao inimigo. Antas, com effeito, occupou Famalicão a 15 e Braga a 16. Leiria recuava pelo Cavado, a reunir-se aos marechaes em Traz-os-Montes: fortificou-se em Ruivães; mas o inimigo desalojou-o d’ahi, depois de um breve combate (18) obrigando-o a seguir até Chaves. Antas vinha quente das guerras de Hespanha: as suas tropas, costumadas, não se recusavam a marchar. Proseguiu, e os marechaes, vendo-se perdidos, propozeram a capitulação na noite de 19-20. Antes uma composição má, do que uma boa demanda, pensavam; e do lado opposto não havia tambem vontade de levar as cousas ás do cabo. Fôra uma experiencia, a vêr: não vingou? Pois bem: nem se fale mais n’isso! Bem no fundo, eram todos amigos: tinham combatido juntos contra D. Miguel, e isto agora não passava de arrufos. As tropas haviam de submetter-se ao governo, é claro; os marechaes não podiam deixar de emigrar, é evidente; que figura viriam fazer para Lisboa? que diriam a Van der Weyer?—Mas os pobres officiaes que não tinham culpa, não podiam ficar sem pão: conservavam-se-lhes as patentes, com o soldo de reformados. (Sá, Lettre, etc.)

Assim acabou em nada a revolta dos Marechaes, que saíram d’alli para Hespanha, indo acolher-se a Paris, á espera de tempos melhores. Acabou esta revolta, mas o exemplo de generaes transformados em condottieri estava dado e fructificaria: este ensaio era uma iniciação. De lado a lado se começava a sentir a necessidade dos golpes-de-mão e das resistencias violentas. Declarara-se a guerra, e os liberaes appellavam para a força. Durante o conflicto referido, o governador civil de Aveiro avisava Passos (16 de agosto) de que chamara tudo ás armas,[Pg 98] «o que não vier voluntariamente, ha de vir constrangido». Se o Joäo Carlos (Saldanha) entrasse no districto e algumas pessoas d’elle o acompanhassem, o governador estava resolvido-a, «não os podendo apanhar e passar pelas armas, arrazar-lhes as casas». Eram as unicas medidas adequadas ás circumstancias. Começara por querer levar tudo por meios brandos e de suasão, mas vendo o nenhum resultado, virara-se para o lado opposto. (Corr. autogr. dos Passos) Assim tambem D. Pedro fôra forçado a libertar-nos!

Por seu lado o belga, frustrado duas vezes o plano de nos fazer felizes, já em Belem, já agora em Traz-os-Montes, perdendo a esperança do pedaço de Africa, abandonou-nos á nossa sorte. Van der Weyer foi substituido. (Goblet, Etabliss. des Cobourg) Mudou de politica a Belgica, mas o inglez que ella servia ainda de Lisboa aconselhava Saldanha, já emigrado em Londres: «Porque não levanta um corpo de tropas em Hespanha para salvar a rainha? Talvez isso lhe proporcionasse o meio de voltar aqui, ao sue paiz, com éclat». (Carta de Howard a Sald. 4 de out. de 37; em Carnota, Mem.) Não pôde ou não quiz Saldanha seguir o conselho, e a Inglaterra mudou tambem de plano. Em vez de promover as revoltas no reino, declarou uma guerra diplomatica ao governo.

Mas as licções dadas aos jovens monarchas prepararam-lhes, educaram-lhes o espirito. Iniciada a rainha, senhora varonil e nobre, nas cabalas da resistencia; ensinada desprezar as fórmulas constitucionaes e a pôr em pratica as conspirações, a fomentar os pronunciamentos, a servir-se dos generaes como bravi de um tyranno á italiana, e a contar com a força estrangeira para dominar uma nação de que tudo a separavara: iniciada a rainha,[Pg 99] dizemos, estes primeiros episodios do governo são o prologo de aventuras maiores, mais serias.


Emquanto a sedição lavrava no campo, ia o congresso debatendo-se contra os vivos ataques de uma esquerda acirrada pelo medo da reacção, esporeada pelos clubs que zumbiam em Lisboa armados. Havia declamações, invectivas chimericas, apostrophes eloquentes, theorias radicaes, formulas, phrases: peior do que em 1820! O ministerio, desconjuntado, podia pouco ou nada contra a onda da demagogia: Campos não se calava; e Julio-Gomes, que pedia ordem, via-se renegado pelos ultras, Bernardo da Rocha e Barreto-Feio. Mais o peior, o mais doloroso de tudo isso, era a penuria universal em que se vivia. Depois da saída de Passos entrara na fazenda um homem novo, rico, sem politica, banqueiro, inglezado: Tojal, de quem se esperava muito. Os portuguezes não provavam ser habeis para a finança: mas agora este inglez apparecia como successor de José da Silva Carvalho, unico entre os antigos. Com a saída de Passos o gabinete ia todos os dias pronunciando-se mais moderado, mais rasoavel; e ao mesmo tempo, apezar da irritação das esquerdas no parlamento e nos clubs, a constituição progredia por fórma que viria a ser a propria CARTA. Em outubro (14) ganhou-se uma batalha grave: duas camaras. Era um senado electivo por seis annos. E á força de trabalhos, depois de serias campanhas, conseguiu-se por fim votar, jurar (4 de abril do 1838) uma constituição muito soffrivel. Sá-da-Bandeira, acreditava ingenua e seriamente ter concluido a éra das revoluções: via chegada a paz desejada e considerava-se[Pg 100] crédor das melhores graças do seu paiz. (V. Lettre au comte Goblet.)

O pelatão clamaroso dos demagogos não o assustava muito: eram o povo, o bom povo seu dilecto, a quem elle queria como os avós aos netos, achando-lhes graça em tudo, mas não chegando a comprehendel-os quando um dia começam a falar como homens. Do povo não tinha medo; para conquistar o paço fôra admittindo no governo homens quasi cartistas, muito moderados, como Bomfim. Mas não ficava, elle, sempre? Não era elle a garantia? O povo não o julgava assim, na primavera de 38. A ingenuidade de Sá-da-Bandeira creara dios governos n’um só gabinete: Bomfim e os moderados, contra Campos e os da montanha que se entendiam com os clubistas. Eis ahi a paz que havia.

Os Camillos tinham-se fechado; Costa-Cabral mudára muito: já não perorava, e adherira á moderação. A Associação civica passara para o Arsenal, club do batalhão de operarios navaes de que era chefe o capitão-tenente França. A marinha estava á frente da demagogia, que tinha um imperio nos estaleiros. O capitão-de-fragata Limpo, inspector do Arsenal, era clubista; e a segurança de Lisboa estava nas mãos do vermelho Soares-Caldeira, deputado, administrador-geral (nome dos governadores-civis d’então), e por isso director da guarda-nacional da capital. Sá-da-Bandeira, repetimos, não receiava nada d’isso: confiava de mais em si e na pureza das suas intenções. Era optimista por bondade. Tinha os seus espias entre os demagogos; e um era o judeu Pacifico de quem recebia as partes em arabe, porque o general sempre amara o saber. Conhecia o que elles queriam, mas não acreditava que se demandassem: bulhas dos rapazes![Pg 101] Ralhou paternalmente; e Limpo, enxofrado, demittiu-se. (Sá, Lettre, etc.)

A guarda-nacional reunia mensalmente, por ordem do director: a 4 de março Caldeira chamou-a e representou com ella á rainha, pedindo a queda dos ministros moderados, isto é, Bomfim. Foi então que Sá-da-Bandeira se offendeu contra a audacia dos rapazes. Deitavam as mãos de fóra: déra-lhes armas para se distrahirem, e voltavam-se contra elle! Que lhe doesse, não via remedio senão castigal-os. Por isso demittiu Caldeira (7) e poz em lugar d’elle Costa-Cabral, que dava esperanças de submissão, e promettia reprimir a anarchia. Atacados assim, rudemente, os radicaes responderam na manhan do dia 9, apparecendo em armas o batalhão do Arsenal e parte da guarda-nacional, exigindo um ministerio puro. Era no Pelourinho, a cuja esquina havia ainda o antigo botequim, politicamente celebre, do Marcos-Philippe. A tropa cercava os sublevados, e no rio estava de canhões corridos um navio prompto a metralhar o Arsenal, baluarte da sedição. Mas Sá-da-Bandeira não queria que se derramasse sangue, nem podia desejar que se esmagasse o povo: não iria logo o poder caír nas mãos dos cartistas que o esperavam?

N’esta situação dubia e triste, não quiz vencer: pactuou a convenção de Marcos-Philippe, promettendo impunidade e conseguindo a dispersão das forças. Não podia comtudo deixar de demittir o França, nem de dissolver o seu batalhão: isso fez, (Decr. de 9 de março) com grave escandalo dos condemnados que lhe chamavam traidor. A opposição rugia nas camaras e o ministerio caíu no mesmo dia: moderados (Julio-Gomes, Bomfim) e radicaes (Campos) tiveram egual sorte. Ficou apenas Sá-da-Bandeira,[Pg 102] com o homem da Fazenda, o Tojal que não tinha côr politica?

Não é assim: pois detraz do governo e mais governo do que elle, estava o administrador de Lisboa, Costa-Cabral, cujo verdadeiro destino começava a desenhar-se. Convinha á sua ambição a posição falsa do ministro, e ao seu genio tenaz, sem apparato, o trabalhar debaixo do nome de outro, preparando o futuro em favor proprio. N’este momento já elle, evidentemente, sabia o caminho que tinha a seguir. Não havia um homem: sel-o-hia! Não havia uma doutrina, na desordem de opiniões que se chocavam: elle restauraria a antiga doutrina da CARTA. Os marechaes, por isso mesmo que estavam exilados e compromettidos, seriam instrumentos doceis. E a rainha, porque era varonil e cheia de talento, comprehenderia a rasão de ser de taes vistas, a sabedoria do plano e a capacidade do homem.

Fôra demagogo? Tambem Saldanha. Isso nada importava á politica: nem provavelmente o affligia a elle. Ou tivera de facto essas opiniões e mudara, cousa que o devia fortalecer na opinião de agora; ou desde o começo representara um papel, caminhando por vias tortuosas direito a um fim, e isso dar-lhe-hia um grande orgulho, quando via confirmadas as suas previsões. Arrependimento ou apotheose, a sua mudança não diminuia a força propria do seu genio. Para os simples havia de passar por traidor e falso: que importa? sempre os politicos o foram; e para governar basta uma cousa, sem a qual toda a virtude é fumo: a força victoriosa. O politico ha de ser temido e não amado: ai, dos que esperam e crêem nos bons instinctos dos homens, como o fraco e virtuoso Sá-da-Bandeira, reduzido á condicção de pára-choques[Pg 103] entre o povo e a côrte, reduzido a nada, renegado por todos!

A demagogia não se calara e reclamava uma desforra do dia 9. O ministro nada podia, porque em vez de a vencer, obedecera-lhe, para depois a acirrar com os decretos da tarde. Clamava-se pela revogação d’elles; e o paço andam pallido de susto. Diz-se que d’então data o primeiro accordo entre a rainha e Costa-Cabral. Diz-se que elle foi, e prometteu resolver a crise; expoz o seu plano, e de tal modo, manifestando a sua força, logo seduziu a rainha. Afinal encontrava-se um homem! Com a tropa desarmaria o povo, e sem espingardas a democracia, restaurar-se-hia a ordem. Era simples, era pratico e seguro. Permittil-o-hia porém Sá-da-Bandeira? Até certo ponto permittiria; depois não. Mas para esse tempo estaria já desacreditado de todo, e deitava-se fóra. Talvez a rainha nem o planeasse, nem pensasse tão cruamente. Costa-Cabral não podia pensar de outro modo.

Sá-da-Bandeira tinha mau genio, era teimoso e rabugento na sua bondade. A teima e as ameaças com que lhe exigiam a revogação dos decretos de 9 irritavam-no, dispondo-o bem para o papel que aos novos planos convinha que elle representasse, e com effeito representou no dia 13. De madrugada a guarda-nacional appareceu a postos com os seus commandantes que exigiam a reintegração de França. Tocava a rebate em todos os sinos, rufava o tambor por toda a cidade. A tropa formava no largo da Estrella para defender as Côrtes, e no das Necessidades para defeza do paço. Cabral mandava, Sá obedecia, e Bomfim, Reguengo, preparavam-se para dar uma lição. Haveria mortes? Provavelmente. Marcharam as tropas, e a sua primeira[Pg 104] acção foi desalojar os rebeldes do convento de Jesus, tomado de assalto: correu ahi sangue, mas pouco. Dos outros pontos a guarda-nacional debandou: não para fugir, mas para ir reunir-se, com artilheria, no largo da Graça. A Estrella e a Graça estão nos dois confins oeste e leste da cidade, que ardia toda em desordem e gritos. E gritando orava no Congresso a esquerda, confiando no exito da revolta que trabalhava por sua conta lá fóra.

Costa-Cabral levou Sá-da-Bandeira á Graça, e depois de muito falar conseguiu que os revoltosos descessem. Era um ardil de guerra. Quando chegaram ao Rocio, viram-se cercados por Bomfim que de todos os lados, nas ruas das encostas, fechava essa baixa, de molde feita para curral de gado tresmalhado. Houve ahi tiroteio e cousa de uma duzia de mortos. Caía então a noite: estava acabada a funcção. Os sediciosos debandavam e Costa-Cabral celebrava uma victoria incontestavel. Cumprira o que promettera, mostrando ser homem para muito mais. Sá-da-Bandeira agradecia-lhe, punha-se ás suas ordens, considerava-o o seu braço direito. Se essa gente vencesse? que seria de tudo? Com effeito, não podiam dar-se armas ao povo que tão mal usava d’ellas. Em urgente dissolver os batalhões: não direi todos, mas os peiores, os mais vermelhos ... Cabral começou pois a trabalhar, a dissolver batalhões; e era em Lisboa, na administração, um Pina Manique: mais! o principio de um Pombal. O genio organisador, administrador apparecia, depois da arte e da bravura com que esmagara a revolta. Fazia regulamentos, organisava cadastros, arruava as mulheres de má vida. Evidentemente subia, e não se descortinava quem lhe fizesse sombra. A rainha dera-lhe a commenda[Pg 105] da Conceição—oh, tempos antigos! (V. Costa Cabral apont. hist. anon.)

Quatro dias depois do 13, o moderado Bomfim voltava para o governo; e Sá-da-Bandeira, sempre crente, cheio de esperança, considerava terminado o episodio dos tumultos, sellada a paz—com sangue, é verdade!—e conquistado para a sua obra um homem novo, precioso. No principio de abril, em sessão solemne (4), a rainha e o rei foram jurar a constituição nova, bem rasoavel. Todos approvavam, todos estavam satisfeitos, todos gabavam Sá-da-Bandeira, ou antes, acreditava elle isso. Howard e a Inglaterra, Goblet e a Belgica, appoiavam decididamente. Tinham terminado ambas as revoltas, a do povo, e a dos marechaes que de Paris se submettiam, jurando o novo codigo. Era uma regeneração, de lealdade e de virtude; ainda que o vencedor não deixava de ter uma vaidade ingenua pelo modo como conseguira desviar a revolução do perigoso caminho onde a levava o seu bom amigo Passos. Illusões desculpaveis de um espirito todo poesia! Elle, via-se pratico, sabio. Ia coroar-se a rainha Victoria em Londres; e Palmella, afinal riquissimo com a fortuna da herdeira da Povoa sua nora; Palmella que desde 36 amuara, fazia as pazes, indo ostentar o seu luxo na terra onde passara dias tão crueis. (Sá, Lettre, etc.)


Mas que singular tumulto é esse, no meio de uma paz tão firme? que desordem se levanta no dia do Corpo-de-Deus? Era já tarde (14 de junho), a procissão recolhia á Sé. Que surpreza, para os ouvidos de quem se julgava acclamado, os insultos despedidos contra o rei, contra a rainha, e contra[Pg 106] elle proprio, o crédor da paz universal?—Maledicos disseram que essa paz fazia mal á ambição do homem-novo: só nas bulhas podia mostrar bem quem era e quem seria. Se elle, com effeito, arranjou essa desordem para seu uso proprio, o resultado ia-lhe sendo ficar sem vida.

A triste procissão entrou na Sé destroçada. Luziam as bayonetas agitando-se, e as vozes do povo armado pediam sangue e cabeças. Cada qual fugira para seu lado, escondendo-se pelos escadas. Era grutesco vêr as fardas bordadas com espadins e commendas, os chapeus de plumas e mantos de filó; era grutesco vêr os personagens correr, sumirem-se, atarantados com o susto. O Law portuguez reformado e o Pombal nascente, um passado e um futuro, encontraram-se socios no perigo, escondidos n’uma escada, cuja porta defendia, irritado mas firme, o ministro surprehendido. Uma bayoneta luziu com a ponta direita ao peito de Sá-da-Bandeira, vindo cravar-se-lhe no crachá, a que deveu a vida: como as condecorações ás vezes servem! O marca, falhado o golpe, via-se perdido; mas Sá-da-Bandeira mandou que deixassem «passar esse homem». O homem fugiu, a soldadesca popular foi correndo, clamando atraz da sege, onde, batendo, um bolieiro salvava Costa-Cabral e Silva-Carvalho. Em Santa-Justa, Cabral extendeu o braço, disparou a pistola contra a turba que o seguia, como lobos. E a sege batia, fugia, até entrar no Castello, onde se refugiaram. A carruagem de Costa-Cabral, vasia, foi corrida á pedrada. (Apontamentos historicos, anon.)

Que surpreza singular! O ministro não caia em si. De certo, não havia remedio: força era supprimir mais batalhões, inclinar ainda mais á direita, dar todo o apoio ao homem novo, o unico homem[Pg 107] capaz de pôr cobro ás demasias de um povo que teimava em não ser cordato: uma pena! Costa-Cabral, commendador em março, subia a conselheiro, e no fim do anno passava, da administração, para a camara. Voltava ahi com uma pelle nova, homem inteiramente diverso do antigo deputado da montanha. Descendo a bancos mais baixos—subia, subia sempre.


Faltava agora, ao infeliz Sá-da-Bandeira, depois da ingratidão do povo, a das potencias! Que a sessão parlamentar de 39 havia de ser borrascosa, já o esperava: haviam de o accusar, e accusavam-n’o, por pender para a direita, por atacar na guarda-nacional o palladio da liberdade, etc. Estava preparado para isso, sabia o que devia responder, e tinha na camara o seu Costa-Cabral. Mas o comportamento da Inglaterra? Pois era o mesmo Howard, o proprio que o anno passado lhe dava parabens, felicitando-o, approvando tudo? Agora se desilludia: a Inglaterra que intrigára sempre contra Setembro; a Inglaterra da Belemzada via chegado o momento de apunhalar n’elle o povo. Eram exigencias sobre as questões do cruzeiro,[19] quando ninguem tinha mais a peito abolir a escravatura. Havia um proposito ... Pedia-se a bolsa ou a vida, exigindo-se meio milhão esterlino de contas de soldos atrazados, ou em compensação a India. (Sá, Lettre au comte Goblet, etc.) Havia um pensamento: obrigal-o a saír, expulsal-o do governo. Porquê? Teriam já adiantado os planos entre o homem-novo e a corôa para restaurar a[Pg 108] CARTA? e seria uma fórma diversa, mais cavillosa, de Belemzada? Quem sabe? Começaria Sá-da-Bandeira a desconfiar do papel que representava? Voltar-se para o povo, já o não podia: talvez tivesse tido mais juizo o Passos, retirando-se ...

Que havia um proposito, era fóra de duvida. Não se exigem impossiveis. E podia elle dar a India? E podia elle dar o meio milhão, quando o Thesouro, como sempre, estava phtisico? De certo não. As finanças, essas malditas finanças, iam de mal a peior. Tojal, por fim, não dera nada. Á falta de homens fôra mistér restaurar (17 de abril de 38) o antigo barão de Chancelleiros, que deixára os negocios desde 28. Nem um, nem outro: ninguem era capaz de pôr ordem n’esse cháos, que era o descredito da revolução. Agora vinha a Inglaterra pedir meio milhão! Era bom de pedir; mas como não havia que dar, Sá-da-Bandeira percebeu que a exigencia encobria outra vontade—a de o expulsar do governo. Abdicou, pois (18 de abril de 39).

O tempo que separava Costa Cabral do poder corria. Os successivos momentos do seu plano realisavam-se. Não se podia ainda precipitar a acção, nem isso convinha. O resto que havia de força na gente setembrista consumil-o-hia um governo ephemero, mais moderado, o governo do sagaz Pizarro, malicioso e astuto, improvisador facil sem eloquencia, habilidoso sem talento, aristocrata por indole, setembrista por ter sido inimigo de D. Pedro: do inconsciente Pizarro, feito barão da Ribeira de Sabrosa. (Hontem, hoje e amanhan, op. anon.)


A exigencia do meio milhão vinha a ponto, opportuna,[Pg 109] porque nada desacreditára tanto o setembrismo como a sua gerencia financeira. Á ruina conhecida do paiz juntava-se a incapacidade de homens sem talento para gerir, nem artes, nem caracter para mascarar. Via-se ás claras, aggravado, o sudario que um Silva Carvalho enrolava habilmente no bolso. Elle com a sua arte chamava, os setembristas com a sua franqueza afugentavam o judeu de Londres, que era a melhor fonte, o ultimo recurso do Thesouro de uma nação queimada. Em vão o setembrismo creava a protecção, em pautas quasi prohibitivas para muitos generos: a industria não surgia; encareciam apenas as cousas, e engrossava o numero d’esses operarios fabrís que em Lisboa eram as marcas da guarda-nacional com que se faziam tumultos.

Para animar e favorecer a nossa agricultura, industria e artes, devem marcar-se direitos protectores a todos os generos e mercadorias que produzimos e fabricamos, em ponto tal que possa dispensar-nos já ou vir a dispensar-nos da producção ou manufactura estrangeira. (Rel. de José Passos; ref. de pautas; sess. de 39)

«Já temos alguma fiação, observava com esperança o relator, e se a legislação não mudar, teremos mais.» Talvez a Inglaterra não applaudisse o novo pombalismo da revolução. Se o temia, fazia mal, porque elle só creava elementos de desordem muito mais dispendiosa do que o augmento de receita das alfandegas. A pobreza não cessára de crescer. Pela legislação de 34 todo o papel-moeda devia acabar em 38, traduzindo-se em metal as obrigações contractuaes anteriores. Mas como pagar tres mil contos ou mais, ainda em circulação? Força foi, portanto, deixar á sua extincção natural, indefinida, o que restava, prejudicando muito[Pg 110] graves interesses; pois que as especies contractuaes anteriores se prorogavam indefinidamente tambem, nem podia ser de outra fórma. (D. de 31 de dezembro de 37) Era mais uma banca-rota, a sommar aos successivos pontos, saltos, conversões de vencimentos, etc. em titulos de uma divida de que não havia com que pagar o juro. Uma nação de empregados tinha caimbras de fome. Todos os estomagos davam horas.

Passos conseguira que a decima produzisse o dobro, de mil a dois mil contos; mas isso era um copo de agua no mar. O orçamento para 38-9 apresentava um deficit de 7:259 contos (16:835-9576) no qual entravam 5:107 de vencimentos atrazados. E a divida, que era de 70:580 com o juro de 2:417 em dezembro de 36, chegava a 79:235 com o juro de 2:885 em dezembro de 38. (A. Albano, A div. pub. port., 1839) A maré subia, subia, de um modo assustador. (V. os numeros anteriores em 28 e 35)

Um anno depois, em novembro de 39, já não eram 80, eram 85 mil contos, pois se iam capitalisando vencimentos, dividendos. E não escolhemos um inimigo, antes um defensor e ex-ministro da revolução, que para a defender compara os dois periodos de setembro de 36 e novembro de 39, denunciando um accrescimo de cinco mil contos ao anno. (Sanches, O est. da divida pub., 1849)

E a Inglaterra pedia meio milhão ou a India! Sá-da-Bandeira demittira-se; Sabrosa em novembro, ao saír, dizia que a côrte era a serva da Inglaterra que o expulsava: «Fômos despedidos com mais sem-cerimonia do que costumo despedir os meus creados». (Liberato, Mem.) Foram despedidos. A revolução acaba, e começa, com a ORDEM, uma historia de novas desordens. Bomfim serve de plastron ás duas figuras seccas e frias, sem illusões,[Pg 111] Rodrigo e Costa Cabral que se acotovelam no gabinete (26 de novembro). Qual d’elles vencerá?

Rodrigo tem a ironia e o scepticismo: «a questão ingleza são alguns saccos de ouro.» (Liberato, Mem.) Cabral tem a violencia e um plano. Dissolveram a velha camara (25 de fevereiro de 40); e emquanto um acceitava a constituição, acceitava tudo, porque tinha fé nas suas manhas e artes; o outro, como doutrinario, puzera a peito organisar as cousas sob um typo novo de instituições. Qual dos dois vencerá? Primeiro, o doutrinario; porque o paço partilha as suas ideias, porque ainda ha quem espere e creia. Depois, quando esse novo typo, fórma de liberdade, tiver tido o destino natural, e tudo ficar em farrapos, os principios e as esperanças, os marechaes e os partidos, então, sobre as ruinas das chimeras, no seio do cansaço universal, reinará o perfil ironico de Rodrigo, vencedor final ...

O futuro pertence agora a ambos ainda, e só a elles: porque um passado que não voltará mais atirou com os coripheus do setembrismo para longe. Sá-da-Bandeira sóme-se; Pizarro vae enterrar-se em Chaves onde morre; Passos, o nobre Passos, já esquecido, no seu exilio de Alpiarça, aguarda o momento de voltar a publico fazer uma confissão geral, dizer as novas impressões e idéas que o exame directo da realidade acordou em seu espirito.

5.—AS FOLHAS CAÍDAS

O anno de 44, pelo outomno, ouviu a final confissão do tribuno. Seis annos ou sete havia que deixara o governo e se exilara. N’esse periodo tinham occorrido cousas graves. Costa Cabral vencera Rodrigo, restaurando a CARTA em 42, começando o[Pg 112] seu reinado; e no principio do anno em que Passos Manuel orou, frustrara-se a sedição (de Torres-Novas), preparada para galvanisar o setembrismo. Passos já sabia que elle estava bem morto: não adheriu. A sedição fôra suffocada.

N’um dia passou por Alpiarça o tenente Portugal, que ia juntar-se aos revoltosos. No dia seguinte passou o coronel Pina, que ia unir-se ás forças do governo. Nem offendemos um, nem coadjuvámos o outro. Eu era estranho a estes movimentos que não tinha aconselhado, cuja conveniencia não conhecia ... Quando a revolta triumphasse não esperava d’ella grandes beneficios nem melhoramentos para o paiz. Alpiarça não queria ser elevada a cidade; nem eu nem os meus visinhos a paes da patria. Não tinhamos nada com estas bambochatas. (Disc. de 18 de out. de 44)

Bambochata, a revolução! Quantum mutatus ab illo ... Sim! Bambochata fôra para elle todo o cartismo até 36, emquanto punha a sua fé e as suas esperanças na Democracia, expressão genuina, verdadeira e pura da Liberdade. Bambochata fôra a vida de todos esses homens, a quem o governo coubera até setembro: mas depois? Depois tambem, reconhecia-o agora, quando á empreza para restaurar a democracia dava um nome egual; porque a gente a quem fôra confiada a defeza dos principios não pudera com o peso do encargo:

Se a Revolução está morta, não foram os seus inimigos que a mataram. (Ibid.)

O tribuno presentira o passamento, e retirou-se para não assistir ás exequias. Era uma grande agonia, uma afflicção dolorosa que o tomavam? Não; eram as nauseas do desengano.

Este fastio, esta indifferença, vieram-me no dia em que o meu proprio partido commetteu um grande erro, e, direi francamente, um grande crime; foi no dia da presiganga ...[Pg 113] Desde então considerei a revolução como perdida, porque estava deshonrada ... e assisti melancholico ao seu passamento e ás suas exequias. Retirei-me da vida publica e fui buscar o descanço e as consolações da vida privada. (Ibid.)

Mas o erro de uns homens não póde ser a condemnação de um principio. Como Cincinato, Passos tomava o arado, á espera que a doutrina o chamasse outra vez ao campo? Não nos illudamos, conforme elle parece querer illudir-se. É muito doloroso e difficil de confessar que a nossa opinião foi um sonho, uma chimera, ou um erro; mas quando se tem a sinceridade propria das grandes almas, essa confissão vem do pensamento aos labios e faz-se. Era o que succedia n’essa hora ao tribuno. Em vão encobrira as ruinas das suas idéas com o fastio pelos homens a que tinham sido confiadas. A sua descrença, a sua indifferença abraçava homens e idéas, restando apenas a energia dos sentimentos do poeta e do moralista. Eram estes que condemnavam como inuteis e vans as doutrinas e systemas.

O melhor governo será sempre aquelle que applacar e não inflammar os odios civis; o que souber inspirar amor e não inimisade; o que fôr mais humano e não o que fôr mais cruel ... A generosidade é o predicado da força, o laurel da victoria. Só a cobardia é vingativa: o medo não póde ser magnanimo ... Nada póde ennobrecer tanto os homens publicos e os partidos politicos, como a firmeza na adversidade e a moderação no triumpho. (Ibid.)

E a coragem, a audacia, a fé, para propagar e impôr uma doutrina? Pois já o politico não é um philosopho e um apostolo? Não, não é. As illusões perderam-se, veiu o outomno e as folhas caíram: eram sonhos as doutrinas, chimeras as esperanças. O veneno do scepticismo invadiu a alma do antigo apostolo;[Pg 114] e elle que fôra por mais de dez annos o S. Paulo da democracia, despia agora o ardor de outr’ora e ficava um Christo de amor, de paz, de meiguice ternamente compassiva, levemente ironica. Os homens não mereciam mais. Portugal não lhe inspirava outro sentimento. Essa Liberdade que nas phrases occas dos vaidosos fôra uma conquista, era de facto um dom do acaso: não a tinham ganho, dera-lh’a um destino.

Quem inspirou a Portugal o amor da liberdade? Foi Manuel Fernandes Thomaz, o patriarcha? Foi o venerando Manuel Borges Carneiro? Foram esses oradores das nossas primeiras camaras? Não! não! foram os sanguinarios ministros de D. Miguel que, abusando da inexperiencia do principe, em seu nome exerceram sobre o paiz a mais insupportavel tyrannia.

Se D. Miguel em 1828 não procedesse com a precipitação de Minucio, se por mais tempo tivesse conservado o escudo da carta constitucional, e se como regente em nome de D. Pedro tivesse desligado uns apoz outros os commandantes dos corpos, a revolução de 16 de maio de 1828 seria impossivel; o throno de D. Pedro, a liberdade do paiz teriam caído então como caíram em 1823, sem que se disparasse um tiro em sua defensa, sem que uma gota de sangue se derramasse pela liberdade do povo.

Estas palavras resumem e confirmam a historia que nós contámos; mas na bocca de um dos chefes vencedores, não serão um triste commentario da propria obra? uma annotação grave ás palavras de outro tempo? Caíram os homens, caíram os systemas: pois agora tambem se apaga no espirito do tribuno a victoria da Liberdade! O ar é muito mais transparente, a vista muito mais penetrante pela tarde, ao descair do sol: em pleno dia o clarão offusca. Na tarde da sua vida, Passos era mais perspicaz. A victoria? um acaso. As doutrinas? vaidades. Os homens? bambochas.—Como deve[Pg 115] ser melancolico o approximar do tumulo, envolvido no renegar de uma existencia inteira!

Felizes, porém, os poetas que, acaso por verem mais longe, vêem pouco e mal o que está perto! Assim Passos, no meio das ruinas, appellando para o amor, para a paz, appellava tambem para a ordem e para a legalidade.

Acredito nos meios legaes ainda que debeis, no triumpho da liberdade ainda que tardio: não ambiciono a gloria militar, nem corôas de louro ... Na politica não ha atalhos: a estrada real é a legalidade.

Singulares expressões na bocca do dictador erguido por uma revolução, do homem do Campo-de-Ourique, no dia da Belemzada, á frente da guarda-nacional contra o throno! Singulares expressões que se diriam uma apotheose do governo cartista, sentado alli a ouvil-o, a apoial-o de certo: elle que em nome da legalidade restaurara a CARTA, chamando a todo o periodo setembrista um crime contra a lei.

Lei, legalidade: mas qual? Se se discute a origem do proprio poder. Onde está? no throno como uns querem, reconhecendo a CARTA que o throno deu; ou no povo, como querias, oh nobre, inconsequente orador? Como póde haver lei, quando se discute a propria origem da authoridade que dá força ás leis?—Passos protestava, sim, contra as sedições militares, não queria «corôas de louros»; mas desde que a origem tradicional do poder se contestara; desde que a nova origem, democratica, não podia enraizar-se, como o provára a historia de 36-39; desde que vingava o constitucionalismo hybrido em que a authoridade, nem por ter (ou antes por isso mesmo) duas fontes, deixa de ser uma anarchia doutrinaria; desde que, finalmente,[Pg 116] a victoria da liberdade fôra um acaso—que podia ser a vida do paiz senão uma serie de sedições e revoltas?

Triste, desoladora sorte, a de Portugal! Nem homens, nem systemas, nem a propria religião nova, da LIBERDADE vingava! Não era para descrer da patria? Não era para interrogar a historia, a vêr se nós não seriamos um erro—como tantos!—que o tempo arrasta pelos seculos?

Sou franco. Fui sempre grande partidista da união de Hespanha a Portugal: desejava muito que a politica não separasse por mais tempo aquelles que a natureza tinha unido. No estado actual da Europa as nações pequenas soffrem muito. Era bello vêr a rica peninsula iberica representar no mundo como grande potencia, como nação que a natureza fez cabeça da Europa!

A independencia portugueza era com effeito uma tradição da monarchia que a fundara, e, salvas ambições intercorrentes, a defendera sempre. Agora que a tradição caíra, e que, varridas todas as idéas antigas, os homens buscavam na Natureza o principio das cousas achando só desolação e anarchia, era justo, era necessario que a confissão do tribuno acabasse por um renegar da historia. Não começara Mousinho renegando-a tambem, com as suas opiniões de jurista e de economista, nas instituições e no organismo? Afinal a politica, indo tambem ao fundo, auscultar o seio de uma Natureza que suppunha prenhe de todas as verdades, chegava onde devia chegar: á negação de uma nação feita contra ella pelas artes dos homens; chegava onde ao moralista conduzia o espectaculo da sua actual miseria—á condemnação[Pg 117] formal. «No estado actual da Europa as nações pequenas soffrem muito».[20]

E muito, acaso mais do que ninguem, soffria Portugal, assolado, queimado, com os seus bravi da tribuna e do campo, ceifeiros desapiedados que devoravam as searas sem deixarem grão nem para a semente. Passos, já ensinado pela experiencia, respondera aos de Torres-Novas:

Estou muito gordo para me dar á vida aventurosa e romantica das guerrilhas: não tenho pressa de entrar no Pantheon. A gordura e o casamento são duas grandes garantias de ordem ... Continúo no meu remanso a apanhar a minha azeitona, a comer os meus feijões e a lêr a minha gazeta, sem ter mais parte nos negocios publicos, depois que me retirei inteiramente á vida privada.

[Pg 118]

Precipitára-o pois a politica no scepticismo absoluto ou n’um pessimismo amargurado? Não. A poesia salvava-o; e se perdera a confiança nos homens, nos systemas, nos principios, na historia e na patria, não perdera aquillo que tinha no fundo intimo da sua alma: o seu amor, a sua virtude, a paz serena da sua consciencia, a luminosa e meiga doçura da sua bondade.

Se a politica me irrita, tenho uma cataplasma emmoliente a que me soccorro. Tomo a minha filha nos braços, aperto-a contra o meu peito, e procuro assim esquecer os infortunios da minha patria.

Quem não vê d’aqui o grupo suave, melancolico? o homem cuja face sorri caridosamente para a innocencia? o homem que é uma ruina, mas com uma flôr no seio, como succede aos edificios derrocados?

Assim, embalando nos joelhos a filha, abraçando-a, beijando-a, acaba aquelle que nós vimos começar, estoico, em 26 ao jurar da CARTA no Porto. Viveu annos ainda, mas ficou outro e que pouco importa á historia. Dos soldados que a ANARCHIA matou, elle é o segundo: Mousinho fôra o primeiro. Entra agora a ORDEM a fazer victimas: Cabral, Rodrigo, Herculano. Vel-os-hemos morrer de varios modos: oxalá tivessem acabado todos, como acabou Passos: com a filha sobre os joelhos, embalando-a, beijando-a!

Esses beijos eram o despedir, o finar-se da chimera setembrista; mas o amôr que traduziam tinha sido e é ainda o symbolo de uma idéa futura, mal concebida nos dias de hoje—o symbolo da democracia, egualisadora dos homens ...

Com Passos caíu a segunda definição do liberalismo: a ruina da idéa derrubava o seu defensor.[Pg 119] Mas, agora, apparecia em 39, com o ministerio ordeiro, uma definição nova—d’esta vez a genuina, a pura, a definitiva? Repellia ao mesmo tempo o radicalismo de Mousinho e a idolatria da soberania-nacional setembrista. Voltava aos tempos de 30, ás doutrinas estudadas com ardor na emigração pelos livros dos mestres. Queria e pedia tudo á liberdade individual, condemnando a democracia; mas em vez de renegar a historia, ia buscar á tradição a base para um throno vacillante. Tornava-se á «melhor das republicas», e o coripheu d’essa opinião em Rodrigo, se é que o sceptico estadista possuia opinião; se é que não preferia esta exactamente por ser parda: côr sobre que assentam bem quasi todas as outras. Não é pois á politica, é á litteratura que nós iremos pedir a explicação do novo systema, prenhe de esperanças, que só durariam dois annos. (39-42, restauração da Carta).

NOTAS DE RODAPÉ:

[11] Eis aqui um documento authentico: (Corr. de Rezende)

Regimento
4 de cav.ª
Ill.ᵐᵒ Sr.




He do meu dever levar no conhecimento de V.S.ª que hontem alguns sargentos e soldados do Regimento dicérão que não querião para os Commandar o Major Taborda Capitães Leal, Amaral e Cunha e só sim a todos os subalternos sendo eu o Commandante, o que V.S.ª já saberá; em consequencia d’istro tratei de conservar a disciplina (!) e boa ordem, em que nada se ácha alterada (?); hoje por oucazião da Parada de Missa fiz ver ao Regimento q. éra preciso segundo minha opinião, que viessem os officiaes e Major para o Regimento e bem assim V. S.ª ao que me responderão que só querião V. S.ª, e que nada dos outros, visto isto pesso a V. S.ª que quanto antes queira vir tomar o Commando do Regimento, e então V. S.ª verá o modo de fazer o q. julgar conveniente para ver se os Soldᵒˢ anuem á recepção dos nossos Camaradas no R.º, podendo eu asseverar a V. S.ª q. só dezejo oportunidade e boa camaradage no R.º.

Deos Gd.ᵉ a V. S.ª Quartel em Belem 11 de setembro de 1836.

Ill.ᵐᵒ Snr. João X.ᵉʳ de Rezende.

Francisco Maria Vieira
T.ᵉ

Precursor opportunista, o nosso tenente!

[12] A narrativa do episodio da Belemzada, conforme se acha no livro citado do sr. Macedo, é transcripta do Echo Popular, jornal de José Passos, no Porto, e que Manuel, de Alpiarça, inspirava em 57 quando a noticia viu a luz. É certo, portanto, que se Manuel Passos a não escreveu, como se suppõe, viu-a, emendou-a: tem pois o caracter authentico.

[13] V. Instit. primitivas, pp. 156-66.

[14] Foi antes ou depois d’isto que a artilheria engatou em Belem para fugir para Lisboa, sendo necessario mandar cavallaria cortar-lhe a vanguarda; sendo necessario que D. Fernando fosse pela estrada fóra, a galope, escapando por um triz á cutilada que um soldado lhe despediu?

[15] V. Hist. de Portugal, (3.ª ed.) I, pp. 66-9.

[16] «Em quanto as Marnotas e que V. erra de todo; era uma vasta conspiração, abortada pela denuncia d’um miguelista que se vendeu, e annos depois pagou a traição com a vida». Carta do sr. Carreira de Mello ao A.

[17] O sr. R. de F. (Port. Contemp.) attribue a outra causa (inveja? despeito?) o silencio de Sá-da-Bandeira ácerca do episodio do paço de Belem: crendo tambem que Passos deixou o governo, forçado mas não descrente. Não me parece isso a mim, á vista dos antecedentes e dos consequentes.

[18] V. Hist. de Portugal (3.ª ed.) I. p. 66; e Instit. primit. pp. 162-6.

[19] V. O Brazil e as colon. port. II, I.

[20] Accusa-me o sr. R. de F. (Port. cont.) de ter interpretado erradamente o famoso discurso de Manuel Passos, especialmente n’este ponto. Relendo o texto vejo que, effectivamente, é licito inferir-se do que escrevi que em 44 Passos veiu á camara prégar o iberismo. Não é assim. Depois do periodo transcripto, o orador diz: «Comtudo, depois do que tenho visto praticar no reino visinho ... eu não podia agora dar o meu voto para uma união ... Se vierem, ainda pegarei n’uma espingarda e farei fogo aos invasores».

Esclareçamos pois este ponto, já que assim se julga necessario. Passos quer ou não o iberismo? Quer; comtudo, não o quer agora. É pois uma questão de opportunidade e occasião que nada altera o fundo do seu pensamento: por isso julguei que, embora necessaria esta nota, não devia alterar o que diz o texto.

Accrescenta o meu amavel critico que o discurso de 44 não são folhas caidas; que ahi se diz aos setembristas: «não desespereis nunca da causa da patria; ella será salva pela efficacia da lei, pela perseverança dos chefes, e pela confiança dos cidadãos»; que Passos Manuel ainda continuou a figurar na politica, etc.

São modos de ver. Figurar, figurou: mas como? Ouve-se já por ventura a fé, o enthusiasmo de outros tempos? Figurar na politica torna-se um habito, e, como habito, necessidade. A voz do antigo tribuno amolleceu, porque se lhe entibiou a fé. Que attitude propõe, que programma formula aos seus partidarios? Uma attitude passiva, um programma de legalidade. Ponha-se isto ao lado das palavras transcriptas no texto, e concordar-se-ha que são folhas caidas.


[Pg 120]

III
O ROMANTISMO

1.—A VOZ DO PROPHETA

A primeira fórma politica sob que o romantismo appareceu em Portugal foi a doutrina aprendida pelo duque de Palmella no retiro principesco de Coppet. Já falámos d’essa doutrina, mas nunca é de mais insistir nas particularidades de cada especie de liberalismo, porque só assim distinguiremos os partidos. De outra fórma, o indeterminado e o vago dos fundamentos das doutrinas não nos deixarão perceber, nos varios agrupamentos de homens, mais do que motivos pessoaes. Esses motivos havia, mas é errado suppôr que não houvesse outros. O proprio caracter do liberalismo, com a sua falta de criterio a não ser a palavra LIBERDADE,—uma palavra e nada mais,—era a causa da multiplicação dos modos de a traduzir.

Duas d’essas traducções, a de Mousinho e a de Passos, já nós conhecemos. Quanto á de Palmella nunca chegou a vingar entre nós, porque até 28 impediu-o o absolutismo, e depois da guerra já o não consentia a legislação da dictadura que destruira toda a sociedade antiga. O liberalismo de Palmella era a doutrina de um politico, habil e sceptico. Era a moderação, á maneira da que Luiz XVIII, com um temperamento analogo, a entendia:[Pg 121] uma cousa pratica. Mas, esta politica teve como sustentaculo a doutrina do primeiro romantismo, catholico, tradicionalista, monarchico, aristocratico, medievista, de Chateaubriand e dos allemães. Sabemos como Palmella se oppôz á abolição dos conventos, sem o conseguir; e como obteve que se não bolisse nos morgados.

O primeiro romantismo, pois, concebido, ou pelo menos personalisado em Palmella, operou apenas como obstaculo á plena expansão de um outro pensamento liberal sem ser romantico, o de Mousinho. Conhecemos assaz a doutrina do reformador para voltarmos a demorar-nos sobre ella. Radical, individualista, utilitario, no systema das suas idéas não entrava por cousa alguma a tradição: nem historica, nem religiosa, nem aristocratica. Era um absolutismo individualista. A existencia de uma religião d’Estado e de uma camara de pares, bem como a conservação dos vinculos, deixavam a sua obra incompleta, e o novo edificio social truncado. Palmella conseguira que houvesse pares e morgados; mas a aristocracia, sem adherir ao regime novo, fazia da camara alta um problema serio, porque a natureza tem horror ao vacuo.

Ao lado d’estes dois liberalismos, um romantico, o outro utilitario e radical; um, filiado mais ou menos directamente no idealismo allemão, o outro, filho directo do sensualismo inglez: ao lado de ambos e comprimido até á revolução de setembro, vinha existindo o liberalismo racionalista, de pura origem franceza, e que em francezes e portuguezes se transformára, do velho jacobinismo, n’uma doutrina democratica só diversa da antiga nas formulas e accidentes, mas em essencia fiel ao typo transacto.

Taes são as tres fórmas de liberalismo, as tres[Pg 122] diversas traducções da palavra idolatrada, que o critico descobre na sociedade portugueza de 34-38.


No fim d’este periodo, a desordem, o descredito e o cansaço já congregavam os homens em novos agrupamentos, ao mesmo tempo que, do absolutismo das doutrinas de Mousinho e do caracter em demasia historico das doutrinas de Palmella, saía uma combinação media, cujo interprete politico era Rodrigo da Fonseca, e cujo melhor defensor foi Herculano. Era um segundo romantismo, individualista sem engeitar a tradição, e até popular sem deixar de ser brandamente aristocrata. Era a constituição de 38, com um senado electivo e temporario.

Eis ahi o verbo novo, a palavra de paz, o evangelho da liberdade redemptora. O propheta sonhava com ella desde 34, sem ainda a ter definido bem claramente; mas entrevendo-a nas affirmações doutrinarias de Mousinho e nas sympathias de Palmella pelas velhas instituições. E foi n’isto que rebentou o tumor democrata (1836). E aos que julgavam a victoria ganha, conquistada a paz, veiu a revolução dizer que tudo havia a recomeçar. E quem era esse novo apostolo da desordem? E que monstro de plebe solta vinha de tal fórma perturbar a paz dos philosophos? E desmanchar com uma lufada de simún as suas sabias architecturas politicas?

Quem a preparou e a fez surgir? Não sei. Ostensivamente os seus authores foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas mãos as redeas do governo, recusaram para si a paternidade d’aquelle féto politico.

(Herculano, Opusculo, 1).

[Pg 123]

Então o propheta subiu ao seu Sinay e ouviu a voz de Deus que lhe disse cousas pavorosas:

A licença mata a liberdade, porque se livremente opprimes, livremente podes ser oppresso; se o assassinio é teu direito, direito será para os outros o assassinarem-te.

Porque a nação se dilacerará, e enfraquecida passará das mãos da plebe para as mãos de algum despota que a devore.


Crês porventura (rainha!) que é bello e generoso assentares-te n’um throno que a relé do povo conspurcou de lodo e infamia?

(Herculano, A voz do propheta).

E a democracia era lodo, era infamia. E porque o provo irritado matara um homem, era assassina a doutrina. E esse povo era plebe. E por sobre as ondas da turba desenfreada apparecia ao vidente biblico, romantico, o espectro de D. Miguel, um tyranno democrata:

Nas orgias de Roma, com teus socios
Folga, vil oppressor!
Folga com os hypocritas iniquos
Morreu teu vencedor ...
Envolto em maldicções, em susto, em crimes,
Fugiste miseravel.
Elle, subindo ao céo, ouviu só queixas
E um chôro lamentavel.

(Herculano, Poesias (1.ª ed.) D. Pedro).

E o romantismo desvairava o pensamento do vidente, porque D. Miguel não fugira: fôra expulso; porque ao lado do chôro lamentavel, D. Pedro, se estivesse no céo, havia de tambem ouvir ainda o bater das pedradas nos tampos da sua carruagem[Pg 124] fugindo a galope de San-Carlos. E as ordens que no Sinay, o deus dava ao propheta

Plante-se a acacia,—o liberal arbusto
Junto ás cinzas do forte:
Elle foi rei e combateu tyrannos:
Chorae! chorae-lhe a morte!

(Ibid.)

não eram cumpridas, porque ninguem se importava já com o homem que morrera em peccado liberal.

E o propheta que, no calor das suas conversas com os deuses, falava a lingua de uma poesia sentida e bella, descendo á terra e vendo a desolação dos diluvios, vestia o manto de um Jeremias, ou a capa de um Diogenes, ou a toga de um Suetonio:

Homens que teriam legado á posteridade nomes gloriosos e sem mancha e que, mais modestos nas suas ambições materiaes seriam vultos heroicos da historia, pararam-se como condottieri mercenarios; ao passo que outros, depondo as armas e voltando á vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos, para exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados.

(Opusculos, 1).

E perguntas ainda, propheta! quem preparou e fez surgir a revolução? Quem? senão a colera do Senhor, como n’aquelle dia em que mandou o diluvio? E de toda a humanidade perdida apenas houve dois Noés, que merecessem graça aos olhos do Senhor! E um foi Passos, a quem elle chamou ao seio da eterna sabedoria, embalando risonho a filha sobre os joelhos, já esquecido da Liberdade; outro foi Sá, a quem confiou o commando da Arca sobre as aguas do diluvio. E dentro da Arca havia casaes de todas as especies. E quando o temporal cessou, Noé-Sá abriu a Arca. E havia a constituição nova[Pg 125] de 38, iris de bonança, fructo da copula das gerações condemnadas cujas sementes se guardavam na Arca. E era uma especie diversa do romantismo antigo ...

2.—A POESIA DAS RUINAS

Portugal apparecia, com effeito, como emergindo de um diluvio que alagara e destruira tudo: as instituições e os caracteres, a riqueza e os costumes. Mas, por cima de todos os destroços, a imaginação dos poetas e artistas via os dos conventos. Não podia deixar de ser assim, n’um paiz que fôra um communismo monastico. Os frades tinham saído a campo a defender-se. Em 31 quasi todos os mosteiros ficaram abandonados á guarda de um ou dois leigos, porque as communidades arregimentavam-se:

Negros, uns vultos vaguear se viam
A cruz do Salvador na esquerda erguida
Na dextra o ferro, preces blasfemando:
Não perdoeis a um só! feros bradando
Entre as fileiras, rapidos, corriam.

(Herculano, Poesias).

Já a doutrina os tinha condemnado; já Mousinho na Terceira havia escripto a sentença da sua abolição; e depois, e mais em nome da vingança dos vencedores do que em nome da doutrina, foram exterminados. «Negros, uns vultos vaguear se viam» agora, esmolando miseraveis, ou foragidos pelas serras, homisiados, precítos, caçados e escarnecidos. Herculano, com uma corajosa humanidade, protestava: era «uma das realidades mais torpes, mais ignominiosas, mais brutaes, mais estupidas[Pg 126] e covardemente crueis do seculo presente». (Os egressos, op.) Fôra um roubo a expropriação:

Pague-se um juro modico dos valores que nos apropriámos. Se o fizermos, em lugar de sermos mil vezes uma cousa cujo nome não escreverei aqui, sel-o hemos só 999; porque teremos restituido a milesima parte do que loucamente havemos desbaratado. (Ibid.)

O sentimento de uma justiça absoluta imperava já, no espirito do poeta stoico, por sobre as paixões de uma guerra passada, por sobre o enthusiasmo de una victoria—tão triste! por sobre o systema das opiniões politicas e o conjuncto das impressões partidarias. Era um acto de justiça humanitaria que nem poderia remir os crimes commettidos. A educação kantista do poeta fazia-o, como a Mousinho, ter um culto pela propriedade, expressão social positiva do individuo. Mas a theoria era condemnada pela politica. Se se não tivesse sequestrado no Porto, ter-se-hia morrido; se os bens dos frades se não tivessem confiscado e retalhado, o liberalismo teria caído no dia seguinte ao da victoria.


Não era porém só o kantismo que entrava na composição do estado de espirito dos novos romanticos. Era a tradição, o amor vago do passado, que os levava á inconsequencia de renegar o kantista Mousinho, reprovador da historia nacional. Era a tradição religiosa:

Os tempos são hoje outros: os liberaes já conhecem que devem ser tolerantes e que precisam de ser religiosos. A religião de Christo é a mãe da liberdade, a religião do patriotismo a sua companheira. O que não respeita os templos,[Pg 127] os monumentos de uma e outra cousa, é mau inimigo da Liberdade, deshonra-a, deixa-a em desamparo, entrega-a á irrisão e ao odio do povo. (Garrett, Viagens)

Atacando por este lado a tradição radical de Mousinho, abraçavam por isso os romanticos a eschola opposta, embora tambem liberal (sempre e todas, por diversas que sejam, são liberaes) de Palmella e do primeiro romantismo? Não. Depois do diluvio da revolução setembrista ficára no ar uma nevoa de indecisões poeticas. Queriam-se nomes, não se queriam cousas: aristocracia, sem pares vitalicios; religião d’Estado, mas tolerante e liberal; antiguidades, tradições, mas apenas como thema para romances e xacaras. Amava-se com furor a Edade-media, mas no papel. Era a sombra do primeiro romantismo, este de agora. Palmella não tinha querido que os conventos se abolissem: Garrett não os queria restaurar, lamentando porém que os frades tivessem desapparecido: davam um tom pittoresco e côr local aos quadros: «Nos campos o effeito era ainda muito maior: caracterisavam a paysagem». (Viagens) A doutrina dissolvia-se politicamente n’uma anarchia positiva; e moralmente acabava n’um desejo vago de artistas ou em contradictorias exclamações de poetas. Qual era o novo codigo da novissima, da terceira eschola liberal? Quem o sabe? Tudo; nada—o nevoeiro que o diluvio deixára sobre as terras quando, perante os clamores unanimes dos neo-romanticos, o setembrismo acabou.


Não se creia, porém, que homens como Herculano e Garrett, pouco importantes na politica e por[Pg 128] isso mesmo mais livres: homens cheios do talento e estudo, não percebessem o fundo real das cousas. A propria inconsistencia, a indeterminação mais ou menos sentida das doutrinas que seguiam, davam-lhes ainda uma facilidade maior para verem a verdade. Nós conhecemos em que termos Herculano apreciava os homens do dia; e Garrett, além dos motivos de artista, via outros para lamentar a queda do passado.

O barão mordeu no frade, devorou-o ... e escouceou-nos a nós depois ... Mas o frade não nos comprehendeu a nós, por isso morreu; e nós não comprehendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer ... E quando vejo os conventos em ruinas, os egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades—não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser. (Ibid.)

Não podiam ser, não; não podiam ser outros do que tinham sido, do que ficaram até hoje, onde ficaram, do que serão emquanto existirem. Como poderia o frade, crendo na ordem divina de um mundo formado tal-qual por uma vontade absoluta, admittir a doutrina que põe na razão do homem a origem de todas as cousas? Iria adorar, em vez da Trindade, o vosso Architecto-supremo, ó maçons? Nem o frade vos comprehendia, nem vós ao frade; e assim devia ser: porque a broca da analyse não profundára ainda a natureza das vossas doutrinas, varrendo as chimeras das vossas illusões. O frade vinha ligado a um passado real, e vós apparecieis prégando uma doutrina de inconsequencia, em que esse passado vivo se tornava em miragem poetica, e o presente, com as vossas idéas nebulosas, na realidade crua do novo imperio dos barões.

Tal aristocracia, materialista, brutal, sem lustre[Pg 129] nem dignidade, mandava a natureza que saísse da concorrencia livre entre individuos soberanos. Ou renegar o individualismo, voltando ao romantismo velho; ou reconhecer no barão um filho legitimo. Não o fazer, demonstra sem duvida falta absoluta de senso. Chorar—e ainda bem!—prova que os homens não tinham seccado de todo. Mas, em vez de chorar em publico, na frente dos barões que se riam digerindo, não era melhor fazer como o democrata condemnado: recolher-se a casa baloiçando a filha sobre os joelhos?

Não seria; e já que os escriptores, redigindo a doutrina do terceiro ou quarto liberalismo, sentiam a inutilidade das combinações, a vaidade das esperanças e a victoria inevitavel dos barões; já que, sem se convencerem, se submettiam, melhor era com effeito que, deixando a politica, baloiçassem outra filha querida—a arte, as lettras. Litterato sobretudo é, com effeito, o segundo romantismo, no qual os principios do primeiro se tornaram themas de poesia. Aos barões que imperavam na sociedade positiva, apesar das fórmulas e dos preceitos da novissima constituição ordeira, havia que pedir esmola para os frades mendigos, para os estudos abandonados.

Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sabios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! Pão para os que foram victimas das crenças, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e frio! (Herculano, Os egressos, op.)

Passos clamara misericordia para o miguelista, Herculano pedia pão para o frade: nenhum foi ouvido. O primeiro demittiu-se; o segundo abandonou a politica pelas lettras; e com as ruinas da[Pg 130] velha poesia, elle, Garrett, e os discipulos de ambos propuzeram-se crear a tradição que convinha ao novo regime.

3.—RENASCIMENTO

A historia nacional, que a nova geração se decidiu a estudar, restaurando a erudição academica e monastica, offerecia tradições varias. A primeira e mais importante, a que distinguia Portugal do commum das nações; a do imperio de vastos dominios ultramarinos, Hollanda do extremo occidente, que vivera da exploração de regiões extra-europêas, nação de navegadores e colonisadores—nem foi lembrada. Além de não estarem em moda os estudos geographicos, primando a tudo a historia das instituições; além de ter ficado arruinado completamente o systema colonial portuguez com a separação do Brazil e com a abolição do trafico de escravos em Africa:[21] o pensamento economico da eschola era o de Mousinho, e nós sabemos como elle condemnou o passado, querendo que a nação vivesse por si, de si, com o seu trabalho, sobre o chão que tinha na Europa. Apenas Sá-da-Bandeira instava pela volta á politica colonial; mas fazia-o de um modo indiscretamente humanitario, esperando construir um Brazil em Africa, com o trabalho livre e a concorrencia e garantias liberaes. N’isto se mostrava o seu romantismo. A sua preoccupação colonial passava por mania, e chegava a sel-o.

Outra das tradições portuguezas, bastante ligada com a anterior, era a do absolutismo ou do imperialismo: a fórma organica adequada á existencia[Pg 131] de uma nação, vivendo contra naturam da exploração de terras distantes: a monarchia de D. João II e D. Manuel, a D. João V, e por fim a do Marquez de Pombal. Como reconheceria o romantismo esta tradição, quando a alma do seu pensamento politico era a soberania do individuo? É ocioso insistir em demonstrar as causas de antipathia.

A terceira, finalmente, das tradições portuguezas era a catholica. O reino creara-se como feudo do papado; as ordens monasticas tinham sido um dos principaes elementos da sua povoação na metade austral;[22] e por fim, em tempos mais recentes, o jesuitismo invadira o espirito da nação e os seus dominios ultramarinos. A Companhia foi a educadora e colonisadora, em Portugal, na Africa e no Brazil,[23] depois de ser missionaria no Oriente, na Africa e na America. De taes motivos resultara a nação de sacristães, frades e beatos do XVIII seculo, estonteados no seguinte, quando lhes faltaram as rendas do Brazil. Não fôra contra esta que se batalhara por annos? Como havia de continual-a, a gente que a destruira? Tradição propriamente aristocratica não existia, porque toda a monarchia de Aviz se occupara com exito em deprimir a nobreza medieval, e depois, a de Bragança teve de acabar com ella, por castelhana, no tempo de D. João IV, por teimosa, no tempo de Pombal.[24]

Que tradição de historia invocar, pois, quando a revolução romantica era a negação da historia nacional? Iria o liberalismo acclamar os despotas? Iria defender a escravisação das raças africanas e[Pg 132] americanas, o individualista inchado com a noção da soberania do homem abstracto espiritual? Iria o livre-cambista, discipulo de Smith, applaudir as protecções e monopolios á sombra dos quaes se formara a riqueza nacional?

Não. Seria demasiada inconsequencia. Inconsequente era o romantico, pretendendo conciliar uma tradição com o seu racionalismo abstracto; inconsequente, comtudo, por necessidade, pois ainda «a broca da analyse» não patenteara o systema das leis da evolução, que mostram não haver na realidade absolutos, apenas formas transitorias, relacionadas sempre, deduzindo-se naturalmente, espontaneamente. O romantismo ou eschola historica prevía, precedia esta doutrina; mas o espiritualismo racionalista que lhe andava ligado não o deixava avançar, e precipitava-o em aventuras singulares.


Uma das mais conspicuas foi de certo a tentativa de crear uma tradição nacional portugueza, contra os elementos de uma historia de cinco seculos, quando a duração total da nossa historia não excedia sete. Mas esses dois primeiros affiguravam-se os puros: sendo o resto erros, desvios da genuina tradição. De tal fórma se obedecia á moda que lavrava nas nações germanicas; mas n’esses paizes a tradição medieval era viva, estavam ainda de pé as instituições antigas; pois só na França e na Hespanha se tinham constituido absolutismos, e só a Peninsula tinha tido, para além dos territorios europeus, vastos dominios ultramarinos.

Embora dirigidos por um criterio errado, os propugnadores do romantismo, a cuja frente se[Pg 133] viam Herculano e Garrett, mettiam mãos a uma obra em todo o caso necessaria. A abolição dos conventos destruira o systema dos estudos; e se cumpria aos governos organisar a instrucção publica, era a obrigação dos escriptores novos continuar a obra dos frades. Do valor esthetico ou scientifico d’esses trabalhos litterarios da geração que nos precedeu não temos que nos occupar aqui, pois não tratamos da historia litteraria, aproveitando das lettras apenas como documento historico da sociedade.

As estancias do Tasso, retumbando das bocas dos barqueiros nas margens do Brenta e do Adige e os romances de Burger, cantados em sons monodicos á lareira nas longas noites da Germania, e as trovas de Beranger repetidas por milhões de bocas em todos os angulos da França, dizem mais a favor da poesia em que transluz a nacionalidade do que largas dissertações metaphisicas.

(Jornal da soc. dos am. das lettras).

Herculano escrevia isto em 34, applaudindo os Ciumes do Bardo de Castilho, pastiche crú, nem portuguez, nem cousa nenhuma. Mau symptoma: porque o critico confundia o genero em litteratura com o renascimento da nacionalidade.

Burger empregou admiravelmente a poesia nas tradições nacionaes; e é a elle a Voss que devemos a renovação d’este genero inteiramente extincto na Europa depois do XVI seculo ... A poesia deve ter, além do bello de todos os tempos, de todos os paizes, um caracter do nacionalidade, sem o qual nenhum povo se póde gabar de ter uma litteratura propria.

(Herculano, nas Mem. do Conserv.)

Mãos, portanto, á obra. A «sociedade doa amigos das lettras», dos Castilhos, não vingara. Com Bernardino Gomes, no Porto, já Herculano tinha fundado a «sociedade das sciencias medicas e litteratura»—duas[Pg 134] cousas talvez admiradas de se acharem reunidas. Agora, em Lisboa, o renovador dos estudos, o chefe da nova eschola, creava a «sociedade propagadora dos conhecimentos uteis» cujo orgão, o Panorama, adquiria uma circulação extraordinaria. Não havia outra cousa que lêr, e lêr começava a ser moda na sociedade das luzes, como diziam, com ironia e despeito, os antigos. O Panorama trazia bonecos e receitas, além de trazer os estudos iniciadores da tradição nova, assignados «A. H.»

Que eram, que são esses trabalhos? (Lendas e Narrativas, Monge de Cister, Bobo, etc.) Sabiamente extrahidos das chronicas por um erudito, que relação havia entre elles e as memorias e lembranças vivas na imaginação popular? Nenhuma. Falasse a litteratura ao povo nas aventuras das viagens, nas historias dos naufragios, e de certo acharia ainda um ecco: mas em D. Fuas ou no celebre Paio-Peres-Correia? Quem se lembrava de tal? que sentimentos, que memorias estavam ligadas a essas façanhas de tempos breves e sem caracter particularmente portuguez? O genero porém impunha estes assumptos, e a educação litteraria, de mãos dados com a philosophica e economica, repelliam os outros, oriundos da positiva historia da nação. O modelo era Walter Scott, traduzido pelo Ramalho. Nas novellas do escocez se achava o typo das tradições nacionaes.

Mais perspicaz, Garrett punha em scena o marquez de Pombal (A sobrinha do Marquez), typo vivo, presente, popular; e se tambem ia á Edade-media (Arco-de-Sant’Anna, Alfageme), era para explorar a moda, aproveitando os nomes antigos em dramas ou comedias da actualidade. Mais perspicaz, via que no povo portuguez não havia tradições medievaes, e[Pg 135] que as lendas das chronicas eram objecto de erudição, mas não de litteratura ou poesia nacional. Em vão se procuraria ahi o renascimento. Cavou mais fundo e foi aos romances e historias da tradição oral: essa era a poesia da raça, não a poesia historica ou nacional. O Romanceiro, feito com um proposito litterario e não ethnologico—Garrett não era como os Grimm—não tinha comtudo alcance para o renascimento da nacionalidade, porque, em Portugal, a nação provinha de uma historia e não de uma raça individualisada. A poesia popular funde as nossas populações no corpo das populações ibericas.

Em vão, portanto, o romantismo procurava uma tradição. Não a achava, porque as idéas philosophico-economicas condemnavam as conhecidas; e não havendo outras a descobrir, os romanticos implantavam um genero litterario de importação da Escocia, á Walter-Scott, sem conseguirem acordar no povo lembranças d’esses dois seculos de Edade-media de que elle não tinha recordações, porque n’elles a vida da nação não tivera caracter proprio. Senhorio rebellado, como tantos outros, até ao fim do XIII seculo, é só com a vida maritima então iniciada que principia uma historia particularmente portugueza.


No lugar onde a Inquisição tinha sido, fôra o Thesouro que ardera, e ficara—ficou até hoje!—em ruinas. N’esse lugar historico se levantou o templo romantico do renascimento da tradição nacional. Pobre theatro de D. Maria II! que vives da traducção das comedias francezas. Em vez de representarem ahi as tragedias portuguezas: a historia das viagens, dos naufragios e aventuras do Ultramar,[Pg 136] a historia das cruezas da Inquisição e a tortura do judeu, talvez até a historia da propria queima do dominio do velho Estado, no lugar onde o Thesouro ardeu—representaram scenas tão horrendas quanto frias: os melodramas romanticos, de montantes e couraças, n’um estylo arrevezado e cheio de «sus! eias! bofés! t’arrengos!» Á força de lagrimas, adormecia-se, em vez de se acordar para a renascença de uma tradição apagada, tanto mais que nunca existira. Garrett disse-nos como essa tradição se fazia:

Vae-se aos figurinos francezes de Dumas, de Sue, de Victor-Hugo, e recorta a gente de cada um d’elles as figuras que precisa, gruda-os sobre uma folha de papel da côr da moda, verde, pardo, azul; fórma com elles os grupos e situações que lhe parece: não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vae-se ás chronicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos: com os nomes chrismam-se os figurões, com os palavrões illuminam-se, etc. (Viagens).

Assim era no theatro; assim na imprensa, Herculano, condemnando a aristocracia e os seus vinculos, o Estado e a sua authoridade, o throno e o seu poder; condemnando todas as instituições historicas, apenas descobria uma, unica n’esses tempos breves, antigos e genuinos, depois dos quaes tudo fôra erro,—o municipio. (V. Hist. de Portugal) Mas esse municipio redemptor, verdadeira e pura tradição nacional, que era? Elle nol-o diz tambem: (Parocho d’aldeia, Carta aos eleitores, etc.) uma assembléa de cretinos.

A sociedade é materialista; e a litteratura que é a expressão da sociedade é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho, rei de facto! Quixote, rei de direito!... É a litteratura que é uma hypocrita. (Garrett, Viagens).

[Pg 137]

Hypocrisia? não: innocencia, propria de litteratos ou doutrinarios. O romantismo ficava sendo um genero e falso; a sociedade seguia o seu caminho. Sancho reinava. O municipalismo ficava sendo o que era, o que podia ser, um instrumento administrativo. Dir-se-hia, pois, que tudo eram tambem ruinas por este lado, e tudo anarchia? Não. Quando os homens valem, as suas obras fructificam, apesar das formulas a que obedecem. A natureza é mais forte do que as doutrinas, a realidade sobrepuja as chimeras. Como obra de homens ficaram os trabalhos de erudição historica de Herculano; ficou, para attestar o genio do artista Garrett, uma tragedia em que a tradição realmente o inspirou, o Frei Luiz de Sousa.

Na sua commovedora simplicidade, o drama representa o fundo intimo da vida portugueza, com a mistura de anceios e tristezas, esperanças envenenadas de fortunas apparentes e impossiveis que conduzem a essa devoradora melancolia que se chama saudade. O effeito é tanto mais desolador, quanto a esperança realisada apenas serve para despedaçar os corações. No fim, quando os personagens principaes dizem adeus ao mundo para entrar no convento, parece que a nação inteira pronuncía os votos.

(Quinet, Vacances en Espagne).

O Frei Luiz de Sousa é a tragedia portugueza, sebastianista.[25] O fatalismo e a candura, a energia e a gravidade, a tristeza e a submissão do genio nacional, estão alli. Não é classico, nem romantico: é tragico, na bella e antiga accepção da palavra: superior ás escholas e aos generos, dando a mão, por sobre Shakespeare e Goethe, a Sophocles. N’um momento unico de intuição genial, Garrett viu por dentro o homem e sentiu o palpitar[Pg 138] das entranhas portuguezas. Que ouviu? Um choro de afflicções tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança vaga, etherea, na imaginação de uma rapariga phtysica, e no tresvario de um escudeiro sebastianista.

Quando o genio tinha uma revelação d’estas, estaria forte, viva, crente n’uma tradição seguida, ávida por um futuro certo, a nação entregue aos braços da Liberdade?

Balouçada nos joelhos do tribuno a filhinha sorria, e elle tristemente se consolava, esperando, esperando ... mas para longe, quando, tudo acabado, D. Sebastião voltasse em uma manhan do nevoa ... um D. Sebastião iberico ...

4.—A ORDEM

Por ora, não. O povo inteiro pronunciava os votos cada dia mais formaes de uma abstenção decidida. Deixal-os, os politicos, fazer systemas e revoluções, cartas, juntas, programmas, côrtes, leis; deixal-os comer e engordar e devorarem-se: elles cançarão!

Já desanimados, tinham cançado Mousinho e Passos; mas havia gente nova, para uma terceira investida, um terceiro liberalismo: a Ordem. Mas como póde haver ordem nos factos, se as idéas são uma desordem? Como conciliar as instituições e as idéas, quando as primeiras, reconhecendo a aristocracia n’uma segunda camara, a, theocracia n’uma religião d’Estado obedecem ainda ao pensamento do primeiro romantismo, ou do tradição historica? quando o segundo fez recuar essa tradição para o campo vago de uma poesia, além de insufficiente para dar consistencia ao organismo social, falsa e artificial, obra de litteratos, paixão[Pg 139] de archeologos e eruditos, inaccessivel ao povo? Como conciliar essas instituições com o principio da soberania do individuo, já combinado pela revolução com o da soberania do povo? e com o systema da concorrencia livre, prejudicado pela revolução, tambem, com o systema da protecção ás industrias? Essa ordem é um cháos, de instituições e idéas. Já não ha, é claro, uma Anarchia systematica, tal como a concebera Mousinho; mas em vez d’ella ha uma mistura de elementos contradictorios, liberaes, democraticos, romanticos, d’onde sae a supposta ordem da constituição de 38.

Assim, tambem, já não ha bandidos: os marechaes voltaram e juraram; mas sob a paz apparente lavram os germens de novas desordens. A anarchia fôra até 36 um systema. Agora pedia-se ordem; mas as vida antiga ia continuar contra a vontade dos homens já saciados, já desejosos de gozar em paz o fructo dos seus trabalhos. Rodrigo apparecia á frente dos setembristas e cartistas fusionados para o descanço: Rodrigo sceptico desde o berço, mas talvez crente em que no scepticismo estivesse a sabedoria, e por isso na constituição de 38 o porto desejado da vida liberal.

Não, não podia ser: a confusão dos elementos não podia dar a ordem nas instituições. Foi a rainha quem fez da Costa Cabral um instrumento para restaurar a CARTA (1842), cudilhar Rodrigo e os ordeiros fusionados, e os romanticos? Talvez fosse; talvez não fosse: logo o vermos. Mas o facto é que o status quo não era viavel, apezar das affirmações em contrario dos vencidos.

Palmella com o seu romantismo aristocratico pugnára pela conservação de uma camara de pares vitalicia, hereditaria; mas a revolução veiu e destruiu-a. Depois, em 38, o meio-termo creou a camara[Pg 140] dos senadores temporarios, electivos. É verdade que, extincta ou protestante por miguelista, a antiga aristocracia não podia preencher os lugares da camara; mas não é menos verdade que um senado temporario e electivo só é viavel dentro de um systema de representação de orgãos e classes da sociedade; sendo uma chimera, um accessorio inutil, uma duplicação van (como agora mesmo se vê em França), quando procede, como a camara-baixa, do suffragio popular, directo ou indirecto.

A antiga aristocracia demittira-se, é verdade; mas a liberdade e a concorrencia tinham creado um poder real e novo, uma plutocracia: a classe dos burguezes ricos que não podiam deixar o seu poder, os seus interesses, á mercê dos acasos das eleições; que não pactuavam com o individualismo, nem com a democracia, querendo para si o dominio seguro a que de facto lhes dava direito o seu poder estavel. Derrubadas todas as authoridades em holocausto á doutrina, só uma não podiam os doutrinarios destruir: o dinheiro. O dinheiro, pois, creou para si uma doutrina nova, que teve por defensor Costa-Cabral. Era um quarto, ou quinto liberalismo que surgia e vencia todos os anteriores.

Guizot e Luiz-Philippe tiveram de fazer em França o mesmo que D. Maria II e Cabral fizeram cá. Aos burguezes diziam—enriquecei-vos! e ás instituições e garantias reformavam-nas no sentido de crear e consolidar a nova aristocracia dos ricos. Era uma fórma de Ordem que escapou ás previsões dos romanticos: os seus medos e coleras tinham-se voltado e consumido contra a democracia! O inimigo surgia abruptamente d’onde o não esperavam, e bateu-os com a maxima fortuna. Restaurou-se a CARTA, sem ser necessario[Pg 141] um tiro: é verdade tambem que da mesma fórma caíra em 10 de setembro. Os romanticos sinceros, ingenuos, esperando a acção dos meios moraes, esqueciam a força dos elementos positivos: a ordem que tinham fundado era uma bola de sabão. Um sopro desmanchou-a.

E assim devia ser tambem, perante a natureza das doutrinas. Pois se a unica fonte da authoridade moral e politica era o individuo, pois se a propriedade era a sagração de uma personalidade soberana, onde se havia de ir buscar o mandato, senão á vontade da maioria? como se havia de desconhecer a importancia suprema da riqueza? Porque protestavam, pois, contra os setembristas, chamando ignaras ás maiorias? e contra os cabralistas chamando nomes aos argentarios? Ou o dominio do numero, ou o imperio do dinheiro: eis ahi onde a liberdade conduzia fatalmente. Onde conduziria, senão á affirmação de uma authoridade cega do numero ou das forças brutas, a doutrina que negára a authoridade social em nome da natureza do individuo?

Falhára a conclusão democratica; mas ia vencer a aristocracia nova: assim terminavam no absolutismo illustrado os diversos liberalismos.


D’esta ultima ruina qual é o cadaver que surge? Quem é agora o successor de Mousinho ou de Passos? Ninguem; não ha, porque não houve tempo bastante para fazer desilludidos. O tempo virá, e d’aqui por dez ou doze annos, veremos como acabam de vez as illusões de Herculano, o romantico ordeiro. O tempo virá, e na mesma hora veremos Rodrigo, já cabalmente educado, já[Pg 142] de todo em todo sceptico. Aprendera afinal a conhecer a sua terra, a sua gente, o seu tempo! Singular cegueira fôra o que suppunha em si perspicacia: «não o cudilhariam outra vez».

Agora, ainda o consummado actor não compunha bem o seu sorriso final, satanico, de uma ironia e desprezo universaes; ainda tinha despeito e até colera, vendo a victoria do rival duro e forte. Agora, representava-se o Frei Luiz de Sousa e as platéas, commovidas, choravam, pensavam tristes. Ruinas, sempre ruinas!... Ergue-se, porém, um homem novo: será um messias? será D. Sebastião? Mas recordavam-se de o ter ouvido nos Camillos, e extranhavam ao vêl-o agora nos degraus do throno. Entre duvidas, esperanças, tristezas, submissões, desesperos, acabava a anarchia liberal, para dar logar ao absolutismo novo, erguido sobre a Babel das riquezas obtidas, Deus sabe como! nos tempos da desordem.

A magnificencia de Lisboa é mais triste do que as charnecas de Hespanha: ruas sumptuosas, praças immensas, a cabeça de um grande imperio,—e o silencio, a solidão d’uma terra, ou d’uma Gomhorra subvertida. Feria-me sobretudo esta melancolia, quando a comparava á embriaguez das cidades de Castella e da Andaluzia. A Hespanha dança por sobre as suas ruinas: Portugal agonisa no atrio de um palacio. (Quinet, Vacances en Espagne)

NOTAS DE RODAPÉ:

[21] V. O Brazil e as colon. port. II, 1, 5.

[22] V. Hist. de Port. (3.ª ed.) I, pp. 123-5.

[23] V. O Brazil e as col. port. (2.ª ed.) I, 1, 5.

[24] V. Hist. de Port. (3.ª ed.) II, pp. 129-30 e 177-8.

[25] V. Hist. de Portugal, l. V, 4.


[Pg 143]

LIVRO QUINTO
O CARTISMO
(1839-51)


I
COSTA-CABRAL

1.—OS ORDEIROS

Rodrigo dissera que a questão ingleza, causa da queda de Sabrosa «era um sacco de ouro», e entrou no governo, sob a presidencia de Bomfim, tendo Costa-Cabral por lugar-tenente na Justiça, disposto a dar esse ouro e a passar por cima de tudo, rapido, breve, dissimuladamente unctuoso, affavel, risonho, cheio lá por dentro de orgulho e imperio, (Hontem, hoje e am.) sem olhar aos cachopos, navegando para ir dar fundo no porto seguro da Ordem, e ser ahi acclamado como o mais habil dos pilotos. O seu norte não era um principio, era um resultado pratico. Achava egualmente singulares as preoccupações theoricas dos democratas e dos[Pg 144] cartistas, e sem partilhar nenhuma d’ellas, mirava apenas a uma paz, para ganhar a qual não hesitava em as atropelar, nem á dignidade, ao decóro, ao brio da nação. Elle julgava conhecel-a de perto, e de ha muitos annos!

Saldanha, que desde a paz constitucional de 38 tinha regressado da sua emigração, era o homem para mandar a Londres, amansar Palmerston. O inglez, com effeito, chegara ao desespero perante a nossa resistencia passiva e surda: a resistencia dos enfermos, similhante á do Egypto ou da Turquia dos nossos dias. Reclamava o cumprimento do tratado para a abolição do trafico dos negros, tratado que os nossos negreiros não podiam consentir se executasse a serio.[26] Reclamava as despezas da divisão auxiliar de Clinton em 27 (£173:030) e mais os soldos por pagar a Beresford e Wellington (£124:255), ao todo uns 1:400 contos. Sá-da-Bandeira, e agora Sabrosa, tinham caído, sem poder resolver a questão. Esperava Rodrigo conseguil-o com as suas artes? Illudia-se. Em maio, Palmerston mandou ordens positivas ao seu embaixador de Lisboa: Se até 15 (maio de 1840) não fossem attendidas as reclamações inglezas, expedisse o vapor que tinha em Lisboa para Malta, d’onde uma esquadra saíria a tomar posse de Goa e Macau; e se se fizesse algum mal aos residentes britannicos em Portugal, outros navios iriam apoderar-se da Madeira. (V. Carnota, Memoirs.)

Em taes apuros valia Saldanha, cuja reputação militar servia ainda perante extranhos de fiador ao nosso descredito. Howard, em Lisboa, suspendeu a execução das ordens; Saldanha partiu para Londres e obteve-se uma combinação de pagamentos[Pg 145] a prazos, appellando para a generosidade dos nossos protectores pela bocca do marechal diplomata.

Quando as camaras se abriram no principio do anno, Rodrigo, á frente do gabinete, ouviu sereno as apostrophes setembristas: era um lacaio de Palmerston, e o governo portuguez uma delegação da Inglaterra. (V. os debates, sessão 40; espec. o disc. de José Estevão em 6 de fever. dito do Porto-do-Pireu) Ouviu, e convencido de que os inimigos se não convertiam, dissolveu o parlamento (25 de fevereiro): necessitava gente sua, necessitava silencio para poder resolver a questão ingleza. Fez novas eleições e, como sempre succedera e succederá, venceu-as. O paiz era unanimemente ordeiro. Tres mezes depois (26 de maio), reuniu-se a camara nova, mas—oh, triste sorte dos habeis!—o que se dissolvia era a maioria. Formou-se uma colligação para a restauração da CARTA pura (Seabra-Magalhães), contra o ecclectismo do governo ordeiro que não dava suficiente ordem.

Com effeito o setembrismo, expulso da camara pela genuinidade dos processos de representação nacional, appellara para a revolta. Foi d’então que Rodrigo viu o seu erro, aprendendo a comprar os deputados como se faz ás casas, em vez de lhes disputar o ingresso no templo da nação. D’esta vez, porém, o mal estava feito: não havia cura. No dia 11 de agosto uma turba de gente sublevada reuniu-se no largo da Estrella, descendo a convidar para uma revolução a guarda das côrtes, a do banco e a de caçadores 2. A tropa não quiz; e elles foram então para arrombar o arsenal do exercito, no Caes dos soldados, mas encontrando uma força que os deteve, debandaram. Era nada como facto, mas grave como ameaça. O setembrismo,[Pg 146] tão liberal, não se convencia, nem se curvava ao juizo-da-Urna! Duas semanas depois do caso de Lisboa, chegou a noticia da revolta das guarnições de Castello-Branco e Marvão (26). O tenente-coronel Miguel-Augusto arrastara os soldados: era uma guerra civil. Mandaram-se tropas que facilmente repelliram os pronunciados; e fugindo, os soldados rebeldes mataram na Guarda o tenente-coronel, debandado, emigrando para Hespanha, ou submettendo-se. A ordem vencia a hydra da revolução, mas não podia vencer a desordem que se formava.


Conhecemos assaz os motivos, isto é, o caracter incoherente das doutrinas da situação ordeira a que o romantismo não podia dar principios, pela razão breve de os não ter para si. Elle era um genero litterario apenas; e o governo era tambem um genero de governo: o genero sceptico, ainda prematuro. Não ha nada que mais exalte as doutrinas e exacerbe os odios do que a fome, e então havia fome entre nós: só quando chegasse uma tal ou qual fartura, acabaria o periodo dos systemas e das revoltas, o reinado da phrase e do tiro. Então venceria, sem duvida, Rodrigo. Por emquanto, o seu scepticismo offendia os ingenuos, e como não dava o que faltava sobre tudo—pão!—era duas vezes condemnado.

O primeiro clamor vinha de turbo dos empregados-publicos, a que, sobre os pontos e atrazos, se tiravam dez por cento (6 de novembro de 41). Se no reino, Rodrigo, ao leme da Urna, levava o barco a salvamento; se Costa-Cabral, na Justiça, mostrava o que podia, a pobre Fazenda, coitada![Pg 147] via succederem-se os medicos (Ferraz, Miranda, Tojal), sem que surgisse um digno successor ao velho Law reformado. Não podia durar tampouco, por mais tempo na Presidencia, o plastron que Rodrigo escolhera; e força foi reorganisar a tripulação do barco ordeiro (9 de junho de 41). Aguiar tomou o lugar de Bomfim; e na Fazenda pôz-se um homem novo, crédor de esperanças, que em pesados relatorios tinha mostrado saber as operações. Poderia Avila descobrir a operação mestra de encher o Thesouro? Se o fizesse consolidava a Ordem, porque já de certo, a este tempo, o dinheiro poderia mais do que as doutrinas. Mas não o fez: era impossivel! E em vez de encher, vasou ainda mais os bolsos dos pobres empregados, como já se disse.

Nas camaras, o homem novo, de quem se exigia um impossivel, soffreu as coleras de Garrett, e os epigrammas do conde da Taipa que reclamava o ponto para todas as dividas, salvo os consolidados. (Sess. de 15 de julho e 14 de agosto) Cá de fóra, batiam a Ordem, o Nacional e o Constitucional, os setembristas e os cartistas scisionados. Ferrer e Seabra, ambos colericos, faziam um tal escandalo, que o grave economista Marreca, com o seu tom manso, a custo evitou o pugilato. (Sessão de 14 de agosto) O riso de Rodrigo amarellecia, vendo sossobrar o barco da sua dissimulada ambição contra os cachopos da penuria amarga.

«O verdadeiro e unico remedio para as finanças de Portugal é uma banca-rota universal, e d’ahi por diante rigorosa economia. Desenganae-vos: este é o especifico, tudo o mais são palliativos; e a elle havemos de ir: não sei quando, mas a elle iremos. Se os homens de setembro tivessem lançado mão d’elle, os homens de setembro seriam[Pg 148] eternos no poder, porque em Portugal ha de governar inabalavel o governo que tiver o dinheiro de que precisar.» (Hontem, hoje e amanhã) A sabedoria falava pela bocca do author do opusculo anonymo: o programma da futura Regeneração estava escripto.


Mas nem as condições da Europa nem as de Portugal consentiam ainda que elle se pozesse em practica. Não se tinha accentuado ainda a epocha industrial-utilitaria que a larga applicação do vapor ás manufacturas e á viação veiu a abrir; e havia em França e na Hespanha, para onde nós olhavamos, uma doutrina vencedora, acclamada, que parecia a fórmula definitiva do liberalismo. Era a aristocracia dos ricos, apoiada a um absolutismo hypocrita no throno, e a uma burocracia no governo. Guizot, Gonzales-Bravo, pareciam modelos a seguir; e Costa-Cabral sentiu em si força para os imitar, voltando-se desordeiramente contra a Ordem de que era ministro, para organisar a outra, a definitiva ordem liberal.

É já nossa conhecida a pessoa do ministro da Justiça ordeiro. Vimol-o, rabido, a declamar nos clubs; vimol-o depois a dirigir braço de Sá-da-Bandeira para suffocar os tumultos de 38 em Lisboa. Os setembristas começaram desde logo a odiar o transfuga, chamando-lhe ambicioso, como se alguem, sem ambição, alguma coisa conseguisse! A nós cumpre-nos estudar o valor d’essa ambição, em vez de condemnar puerilmente o sentimento gerador de todos os actos humanos. Esse ambicioso era uma resurreição de Pombal nas qualidades e nos defeitos. Se tivesse encontrado ainda de pé alguma ordem verdadeira, alguma authoridade fixa,[Pg 149] como a que o predecessor achou no absolutismo, teria sido tão grande como elle foi. Caiu, por falta de apoio: assim todos tinham caído, porque nada se mantém de pé quando falta o chão firme de uma doutrina enraizada nos animos, consistente e forte. Ha um modo de se conservar erecto, no meio do vacillar de todas as cousas, ha; e é quando, sem andar, se dispendem as attenções e os cuidados inteiros nos equilibrios necessarios á attitude. Parece então que se existe, mas é apenas uma sombra de vida ...

Ao tempo em que nos achamos, havia ainda forte desejo de viver; e além d’isso um mal-estar, uma pobreza, que forçavam ao movimento. Cabral fôra demagogo: por calculo, para gritar tão alto, que podesse vencer na concorrencia do leilão politico? por sinceridade e opinião, abandonada depois? Elle o sabe; e a nós importa isso pouco. Na politica, os homens são vehiculos de planos varios: a esses planos, mais do que ás virtudes privadas, attende a historia. Quando ella encontra um santo, como Passos, abençoa-o; quando encontra um forte, como Cabral, admira-o; quando encontra um habil, como Rodrigo, applaude-o. Na arte de governar os homens, a força e a habilidade valeram, valerão sempre mais do que a virtude. Costa Cabral padecia da falta de plasticidade do seu émulo no Reino: era hirto, duro, secco, aggressivo, violento, como a doutrina que fizera sua. Sendo Portugal, como de facto era, um reflexo da França, acodem aos bicos da penna as approximações: Cabral era um Guizot, Rodrigo um Thiers.

Qual venceria: a habilidade sceptica, ou a força doutrinaria? Em França, em Portugal, venceu temporariamente a segunda. Foi necessario 48 lá, e cá uma guerra triste e lenta, para destruir a[Pg 150] doutrina do argentarismo. Não venceu elle, porém depois, com a força das cousas, de um modo real? Não foram Thiers-Rodrigo os seus instrumentos definitivos, mas sem consciencia, nem força, já, para o defenderem como systema?


Na administração de Lisboa, Cabral dera em 38 a medida dos seus talentos; no ministerio da Justiça, agora, portanto, durava a ordem provisoria, ia-se revelando cada vez mais o seu genio pombalino. Restabelecidas as relações com Roma, que desde 34 estavam suspensas, o ministro reorganisou a machina ecclesiastica, preenchendo as sés, regulando, construindo tudo o que a anarchia derrubára. Outhorgando a Novissima reforma judiciaria, adaptava a legislação antiga aos principios novos estabelecidos pela revolução, organisando tambem o pessoal da justiça, pondo regra e ordem n’esse deploravel cáos. Não era um demolidor, a continuar a obra de Mousinho, não era um philosopho, guiado por principios absolutos: era um homem prático, laborioso, intelligente, serzindo, remendando, alinhavando os farrapos velhos e novos, os retalhos ainda existentes do passado, com as amostras, breves e já desbotadas, do futuro.

A sua fama crescia, e trabalhando, agora e sempre, conquistava uma influencia muito mais solida do que a do émulo com as suas manhas e ardís. O scepticismo e a ironia, com as artes e os ditos, vencem e por vezes seduzem; mas a impressão é breve, e fica sem raizes. A força ganha uma tenacidade differente. A força pessoal do homem que vinha subindo era mais uma causa de naufragio para a ordem apparente das esperanças de Rodrigo.[Pg 151] Já o astuto chefe percebia que, em vez de guiar, era dominado; e empregava todas as suas artes para encobrir a derrota. Depois de certa votação, obtida na camara pela influencia pessoal de Cabral, Rodrigo á saída, n’uma effusão de agradecimento, deu-lhe um beijo. (Apont. hist. cit.) Era um beijo de Judas, a denuncia de um condemnado, a declaração de uma guerra que appareceu logo?

Esta desordem do gabinete ordeiro trazia para o governo a scizão que desde o começo lavrara na direita da camara. Uma parte d’ella seguia Rodrigo e a sua ordem; outra queria uma ordem melhor,—a restauração da CARTA—e punha em Cabral as suas esperanças. Afinal, apparecia um homem, capaz de metter hombros á historia demorada, dramatica e triste da renovação de Portugal. Era baixo, macilento, commum e vulgar de aspecto? (Lichnowsky, Record.) E quem pensava ainda no liberalismo palmellista, aristocratico? pois não vencera decididamente a burguezia de letrados e agiotas?—Tinha no olhar e no sorrir um não sei quê de falso? (Costa Cabral em relevo, anon.) A esperteza sempre foi condão de letrados e judeus. A testa era breve, sem nobreza, o cabello corredio e tudo regular «como se diz nos passaportes»? (Ibid.) Assim devia de ser, porque o typo dos democratas byronianos não convinha á gravidade da doutrina. Correcto, commum, severo, Cabral, porém, tinha um fraco: era irascivel, apaixonado e violento. Diverso temperamento, mais frio e magistral, como o de Guizot, convinha ao papel que tomára para si. Em vez de expôr sem discutir, como fazia o ministro de Luis-Philippe, Costa-Cabral perdia-se arrebatado por uma ardencia meridional. Brilhavam-lhe os olhos como carbunculos, (Lichnowsky) gesticulava, gritava a ponto de enrouquecer. Era um[Pg 152] temporal cada um dos seus discursos: mas para ser inteiramente forte deveria poder encobrir melhor a sua força. A voz soava falsa, sem espontaneidade, nem fluencia: era-lhe necessario irritar-se para ser eloquente. Não tinha correcção, nem elegancia no dizer, apenas virulencia. (Costa Cabral em relevo) Mudara de opiniões, mas a fala, o gesto, a oração eram os proprios do antigo demagogo, e mais naturaes dos Camillos do que do chefe da doutrina. Rodrigo, ao vêl-o, possesso de ira, perder o sangue-frio e o governo, devia esperar que essa fraqueza (Hontem, hoje e amanhá) lh’o viria a entregar rendido, depois de algum combate infeliz. Mas enganava-se. A audacia do tribuno conservador, a força que lhe davam uma opinião e um plano sustentavam-no: cada batalha era uma victoria. Rodrigo descia sempre. «A dedicação por uma convicção politica cessa ordinariamente quando periga a segurança individual: n’esta terra parece que os homens activos e energicos, os que a si proprios se sacrificam, são ainda mais raros do que nos outros paizes.» (Lichnowsky, Record.) Percebe-se ou não, o motivo da ascendencia crescente do homem novo?

Esse fraco da irascibilidade, da ardencia no ataque, da virulencia nas respostas, do plebeismo da phrase; esse fraco, importante em qualquer camara, não o era tanto na portugueza, pouco habituada a obedecer á authoridade moral do saber e ao prestigio do talento. Salvos raros momentos em que o portuguez, como meridional, se deixava embalar pela musica de algum orador-poeta; salvos esses momentos breves, apagadas essas impressões mais estheticas do que moraes ou intellectuaes, o temperamento chão e violento levava a melhor, e a camara parecia uma «espelunca de club revolucionario.[Pg 153] Estava-se como na rua, jogando-se com o lodo e as pedras da calçada.» (Lichnowsky, Record.)

Tal era a ordem dos ordeiros, em toda a parte, no governo e nos partidos, no thesouro e no parlamento. Evidentemente, o liberalismo não marchava; e era indispensavel restaurar qualquer cousa, erguer qualquer pessoa. Quê, senão a CARTA? Quem, senão Cabral?

2.—A RESTAURAÇÃO DA CARTA

O symptoma mais decisivo do completo descredito do setembrismo foi o facto da eleição da camara municipal do Porto nos primeiros dias de 42. O Porto, baluarte dos irmãos Passos, fóco da democracia jacobina, virado assim! acclamando a rainha! sem um viva para a constituição nova! (2 de janeiro) A cidade burgueza, celebre em tumultos desde os tempos feodaes, preparar-se para um tumulto conservador?

Cabral já era o homem indicado por todos como um Monk cartista; e ou foi elle que dirigiu as manobras do Porto, ou approvou-as, e adheriu quando lhe escreveram chamando-o. (Apont. hist., cit.)

Era ministro: não podia ir, assim, claramente, rebellar-se contra o governo de que fazia parte. Pretextou pois negocios domesticos, e partiu: sendo recebido entre palmas e vivas no caminho da egreja da Lapa, onde foi resar, como os soberanos, quando entravam nas suas terras (19 de janeiro). Formou-se logo uma JUNTA (27), voltando-se contra o inimigo as armas de que elle usara. A guarnição levada pelo general Santa-Maria apoiava inteira esta revolta singular, reproducção das de 23 ou 24, declarando o soberano coacto, e propondo-se a libertal-o.

[Pg 154]

Taes eram as palavras do ministro aos seus companheiros, tal a opinião corrente no Porto. A rainha, positivamente coacta, elegera Cabral para a libertar; elle vinha com um caracter de enviado do throno pedir aos povos que lhe accudissem, contra outros povos em cujas mãos se via perdido. Era verdade? parece que sim; parece que desde 38 a rainha em pessoa, ou as influencias diplomaticas extrangeiras que a rodeavam, consideravam Cabral o seu homem; parece que o ministro, além de ir dia a dia demolindo em publico o seu émulo Rodrigo, cudilhava-lhe a finura com um calculo mais seguro: apoiar-se ao throno, contra a liberdade e suas fórmulas, batendo o systema na raiz, com a unica força ainda um tanto positiva: a monarchia.—Se em verdade não foi assim, e a restauração do Porto não procedeu de ordem do paço, é fóra de duvida que a audacia do restaurador agradou á soberana, conquistando-lhe para sempre uma adhesão temeraria. Ou Cabral seguia ordens, ou superior ainda aos fieis que só obedecem, sabia perscrutar os desejos e antecipar os mandados.

Outros negam que houvesse no paço o proposito de uma restauração, e fazem de Cabral um traidor que forçou a rainha a adherir a poder de intrigas. (Costa Cabral em relevo) Não é inverosimil esta versão perante a historia posterior? Admira tanto que a rainha, conspirando contra a constituição, hesitasse e temesse? Que ordens podia elle dar em publico, senão ordens legaes? Coragem não lhe faltava, para amarrotar as leis e atiral-as como bolas de papel velho, sujo, á cara dos seus contrarios; fizera-o em 36 em Belem, e havia de repetil-o com melhor fortuna, dez annos depois no mesmo lugar. Porém agora, se plano havia, o plano era diverso[Pg 155] do antigo. A rainha já não carecia de chamar soldados inglezes: tinha os de Santa-Maria; nem precisava de um belga, porque achara um portuguez. O seu throno ganhava raizes, á medida que as do setembrismo apodreciam.

Em Lisboa, o governo via-se nullo, impotente. Fugira-lhe a sua unica força: restava apenas a manha que mordia os beiços, sentindo-se absolutamente vencida pela audacia do rival temerario. Diziam-se as palavras mais extravagantes: o caso do Porto só era comparavel a Alcacerquibir! um fim de mundo! E na afflicção atordoada escreviam-se proclamações que a rainha assignava, e corria-se a casa do caduco Palmella, como quem appella para a homœopathia nos casos perdidos. A prudencia e a moderação—homœopathia, ou agua-pura da politica—salvariam o doente? Ás vezes, com effeito, a natureza deixada a si faz mais e melhor do que os medicos: mas a natureza estava agora do lado da força, e todos hesitavam, todos se sumiam, presentindo a fatalidade do fim. Rodrigo tomava um ar solemne, vendo que teria de recomeçar na opposição o papel de chefe de um partido cartista genuino, inimigo do cabralismo, para no dia da victoria final soltar a sua ultima risada sobre as ruinas de todos os partidos.

No Porto hesitava-se. Talvez se contasse com uma adhesão immediata da rainha; e em vez d’isso viera a proclamação condemnatoria e o ajudante Sarmento que teve largas conferencias com a JUNTA. Corria que a rainha, pessoalmente, desapprovava, repellindo toda a idéa de cumplicidade. Cabral passava por um impostor, (Costa Cabral em relevo.) e a ser exacta esta versão, achando se perdido, pedira chorando aos companheiros que o não deitas-sem ao mar. (Ibid.) Conhecedor da restauração tramada,[Pg 156] teria querido confiscal-a em proveito proprio, dando-se como confidente e mandatario da rainha! É o que alguns dos restauradores allegam. Santa-Maria bruscamente responderia: «O meu fim é restaurar a CARTA, e não, fazer ministerios: avenham-se lá como poderem». (Ibid.)

Como quer que fosse, o facto é que as tropas saíram do Porto para Coimbra, (5 de fevereiro) indo Cabral na divisão. Se a rainha o não encarregara a elle da empreza, é fóra de duvida que adheria ao movimento. O ministerio perdera as estribeiras, e a rainha, segura de si, vendo a mudez do reino, a facilidade com que as tropas sublevadas o atravessavam, constitucionalmente annuia a tudo. Cabral era o medo dos de Lisboa; o seu jornal (Correio-portuguez) fôra supprimido. Avila que tanto lhe devera, renegava-o, lançando-se nos braços do inimigo e echendo as columnnas da Revolução de diatribes contra elle, e contra Terceira que, á frente da sua divisão, esperava na capital de braços abertos a divisão de Santa-Maria. Os ministros levavam á rainha, e ella assignava, uma carta para Cabral, convidando-o a submetter-se. (Apont. hist. cit.)

Era uma comedia? Era. Estava-se no entrudo. E do entrudo se chamou ao ministerio novo, em que Avila ganhara a conservação do lugar á custa dos artigos da Revolução. Era de entrudo o ministerio setembrista-palmellista que durou os tres dias (7-9) de farça, chamando em vão pela guarda-nacional para o defender, servindo de ridicula passagem da situação ordeira caída em desordem, para a situação cartista proclamada pela tropa. (Ibid.)

Cabral e Santa-Maria continuavam em Coimbra, esperando o que aconteceu. Na madrugada de 8 uma salva real do castello annunciou a Lisboa a restauração da CARTA. Que fez o ministerio do entrudo?[Pg 157] Uma entrudada, uma pseudo-revolução. Abriu os arsenaes, mandou desembarcar os marujos e armar o povo, fazer barricadas. Abandonado pela tropa, o governo appellava para as turbas: mas quem era esse governo? Palmella o conservador aristocratico; Sá-da-Bandeira, que em 38 desarmara, fusilara no Rocio esse povo para que appellava hoje. Era de facto um entrudo, não só o governo, como tudo: o systema, exprimindo-se na voz de falsete das mascaras; os homens, que dia a dia mudavam de dominós e caraças. Palmella descia para a rua; Cabral subia dos Camillos para o paço; Sá-da-Bandeira ia aos tombos; Passos estava esquecido e só; Rodrigo despeitado contra si proprio. Apenas Terceira, de espada á cinta, conservava o seu papel de condestavel do throno.

Demittiu-se o entrudo; veiu a quaresma, e—coisa singular!—era Cabral o condemnado a jejuar do governo. O novo ministerio cartista (9 de fevereiro) consistia no condestavel com os seus antigos ajudantes de campo, Loureiro e Mousinho. Transição, para não dar na vista? De facto a rainha não queria accusar tão publicamente a sua connivencia, por um escrupulo constitucional? Ou não haveria compromissos com o Costa-Cabral? ou havendo-os, achar-se-hia prudente não se entregarem tão completamente nas mãos de um homem audaz e forte?... Rodrigo, observando a exclusão do émulo, teve uma esperança, e propoz a Terceira uma conciliação: a CARTA, mas revista e reformada por côrtes constituintes. O general voltou-lhe as costas e mandou Fronteira entender-se com as tropas de Coimbra.

Cabral, porém, não concordava: via-se cudilhado, e fôra elle o author verdadeiro da victoria. Instava com Santa-Maria para marcharem sobre[Pg 158] Lisboa. Entrar na capital, vencedor, triumphante, á frente de tres ou quatro mil soldados augmentar-lhe-hia muito o prestigio politico. Mas o general «que não queria fazer ministros», apenas restaurar a CARTA, recusou-se; (Costa Cabral em relevo) e o futuro rei de Portugal veiu só, desembarcar no Terreiro-do-Paço (29 de fevereiro), onde o cartismo lhe preparou, entretanto, uma ovação. Cinco dias depois, Cabral entrava no ministerio do Reino, posto eminente para organisar o seu partido, instrumento de um systema novo de liberalismo ao avesso.

Entrava naturalmente, como consequencia da empreza? Dizem alguns (Ibid.) que não; que o não queriam, que força lhe foi, a elle, usar dos elementos já seus e de que no gabinete ia ser o orgão; dizem que teve de levantar tropeços a Terceira e levar o Banco a pôr a faca aos peitos do Thesouro, como sempre, vasio. (Ibid.) Compromettia-se a enchel-o, enriquecer os agiotas, transformar o reino todo.

Abria-se, pois, uma edade nova. Santa-Maria subia a conde, Mello a visconde. Enchia-se de pares novos e fieis a camara-alta; e novas eleições iam trazer uma camara-baixa de empregados publicos doceis. Seria a sophisticação de todos as fórmulas, com o reinado positivo das forças novas, reconhecidas, defendidas, pela bocca do audaz ministro. Abriu-se o parlamento em julho (10) e choveram accusações. «Eu rebellei-me? E vós, dizia Cabral, e vós todos?» E como ninguem podia responder, calavam-se, curvavam-se. Levantara-se afinal um tyranno do seio da anarchia.

[Pg 159]


Com a restauração da CARTA não subia apenas ao poder supremo um homem-novo com a maior de todas as clientellas politicas do liberalismo portuguez: via-se a inauguração de um systema diverso de governo. A aristocracia liberal, da gente que tinha conseguido enriquecer e subir, classe nova formada pela anarchia de 34-38, reclamava o imperio: era a força mais positiva que se levantára das ruinas da sociedade antiga, e muitos dos homens velhos, ou saciados de liberalismo ou indifferentes a doutrinas, só desejosos de ordem, punham-se ao serviço d’essa aristocracia nova, cujo representante, chefe e instrumento Costa-Cabral soubera tornar-se.

Restabelecendo a camara dos pares vitalicios e hereditarios, a CARTA dava aos novos fidalgos um lugar eminente e seguro para defenderem e zelarem os seus interesses; para satisfazerem a vaidade burgueza, suppondo-se herdeiros dos nobres, isentando-se da sujeição humilhante de irem periodicamente esmolar e exigir os votos populares. Palmella reclamara sempre a conservação da camara dos pares, e n’um sentido contradizia-se não adherindo á restauração; mas as revoluções dos ultimos quatro annos, a abstenção de grande parte da velha nobreza, a ruina das casas vinculadas liberaes, faziam com que o restabelecimento da instituição antiga não podesse já agora ter o papel que o antigo romantismo conservador desejára. A nova camara só na fórma correspondia á velha, ou estado da nobreza: na essencia era de todo outra, pois essa nobreza podia dizer-se acabada. Enchiam-se os bancos da camara, dominavam nas suas decisões os vencedores da concorrencia liberal, os homens dinheirosos e os altos funccionarios, barões da finança e da secretaria.

[Pg 160]

Constituida assim no fôro legislativo a nova classe dominante, era necessario modificar o systema das leis organicas, podando tudo o que de longe ou de perto trouxesse para o jogo das forças politicas os elementos democraticos, sobre que a revolução de setembro imaginára fundar o poder e que a reacção ordeira não eliminára, temperara apenas. Uma nova lei eleitoral, um novo codigo administrativo, eram indispensaveis, e estava indicada a tendencia que o novo ministro havia de seguir. Tornar indirectas as eleições, levantando bem alto o censo eleitoral, era o meio de impedir a intervenção das plebes, dando á representação o unico, absolutamente unico criterio que, repellida a soberania popular, restava—e resta—ao liberalismo: o dinheiro. Desde que o individuo é a fonte da authoridade universal, ou se hão de dar fóros politicos a todos os homens, dando á authoridade uma origem individual moral; ou se se lhe dér uma origem material, positiva, social, como fazia a nova doutrina, resta apenas a riqueza para metro da representação.

Mas, as idéas da nova doutrina e as licções crueis da anarchia anterior levavam a confiar muito pouco na discrição das massas da classe-media a que o censo dava ainda authoridade representativa. Não haja duvida de que nos desejos dos doutrinarios estivesse uma reducção ainda maior do paiz-legal, como se dizia em França, porque a tendencia do systema para chegar a definir-se na sua pureza era a constituição de uma oligarchia dos ricos. Não a proclamando, os estadistas obedeciam mais ou menos conscientemente á força de uma tradição democratica, recente, mas enraizada, e com a qual tinham de pactuar e transigir.

Podiam, comtudo, chegar indirectamente ao mesmo[Pg 161] fim: centralisando todas as funcções administrativas para mandarem nas eleições, e escolhendo para candidatos a deputados os proprios funccionarios. De tal modo se viciariam os elementos democraticos que era forçoso manter, destruindo todo o resto de influencia, não só das plebes, como das classes médias. Tal foi, com effeito, o plano systematico do codigo administrativo, que veiu substituir o setembrista. Os municipios existiam sob a tutella dos administradores; o papel das Juntas-geraes, ou assembléas de districto, reduzia-se a nada; e os parochos dispunham das Juntas-de-parochia. Desde a freguezia até ao districto, mantinham-se pro-fórma as instituições representativas, mas subordinando-se á discrição dos delegados do governo, governadores-civis, administradores-de-concelho, parochos e regedores. Se nas leis judiciarias já se tinha supprimido o jury de ratificação de pronuncia, agora transferiam-se para a nomeação regia os antigos cargos electivos: 400 administradores de concelho, 4:000 regedores, 20 ou 30:000 cabos de policia. N’um systema de communismo burocratico, infere-se com facilidade que extraordinaria força taes medidas dariam á nova clientella cabralista.

Procedia o ministro movido apenas pela ambição pessoal de se consolidar, fomentando-a? Não o acreditemos, porque, para além d’esta consequencia, taes factos teem maior alcance. Pois não era verdade, confessada, reconhecida por todos, a incapacidade do povo, e o mallogro das experiencias democraticas e localistas? Que havia pois a fazer, de que recurso lançar mão: senão centralisar o poder, chamar o governo a uma minoria consistente e forte; deixando de pé, para não aggravar questões, todas as fórmulas que podendo ser[Pg 162] viciadas não prejudicassem o plano? Encerrado um circulo da sua existencia, o liberalismo vinha caír n’uma oligarchia de facto, revestida de fórmulas e garantias ficticias. Na Hespanha e em França acontecia outro tanto; e lá e cá, depois das reacções que o absolutismo novo, illustrado, provocou, o liberalismo cedeu o lugar ao scepticismo politico mais ou menos cesarista do imperio francez, e da Regeneração portugueza.

Conhecemos, pois, nos seus traços essenciaes, o novissimo systema, e como não póde haver politica sem uma base de elementos e forças positivas a que se apoie, resta-nos saber quaes eram as do cabralismo. No decurso do nosso estudo achámos duas já: a aristocracia nova do propriedade e da finança, e a burocracia. Mas estes dois elementos, preponderantes e decisivos na paz, não bastavam para resistir á força material das numerosas plebes agitadas pela democracia setembrista. O governo, desarmando e dissolvendo as guardas nacionaes, eliminára a melhor arma de que ellas dispunham nas cidades; mas restavam os campos, com os habitos de guerrilha, enraizados por annos de guerra e anarchia. Contra esses tinha o governo o exercito: porque todos os commandos estavam nas mãos de generaes fieis e a officialidade fôra depurada.

A restauração consummada por uma porção de tropa, tinha, de facto, nos soldados o mais firme apoio, porque a adhesão decidida do throno valia menos em uma nação a que per vim se impozera uma dynastia nova, discutida desde a origem e atacada, escarnecida, humilhada muitas vezes. A rainha era, comtudo, o primeiro funccionario da nação, e não valia mais nem menos do que a burocracia toda, com a qual se inscrevera na nova[Pg 163] clientella cabralista. Se lhe não succedeu como a Luis-Philippe, ou a Isabel II, caír com o systema, foi porque a Hespanha, a Inglaterra e as França vieram juntas defendel-a em 47.

Burocracia, riqueza, exercito: eis os tres pontos de apoio da doutrina; centralisação, oligarchia: eis o seu processo; mas nem as fórmas nem as forças bastam para constituir um systema: são apenas consequencias subsidiarias d’elle. Que era, no fundo, a idéa? Seria o racionalismo espiritualista do seculo XVIII que prégava, contra o catholicismo, pela bocca da maçonaria, uma religião nova? Não; a doutrina reconhecia o catholicismo, lavrára já a sua concordata com Roma, e via nos padres excellentes instrumentos de governo. A maçonaria perdera havia muito o caracter revolucionario, e a revolução perdera tambem as ambições religiosas. Como os casulos do bombyx ficam depois que a borboleta voou, assim ficavam as lojas, rede de sociedades secretas subsidiarias das sociedades politicas visiveis, a que o segredo e o mysterio, porém, seductores dos simples, augmentavam até certo ponto a força. Costa-Cabral afeiçoara tambem essa machina ao serviço dos seus designios e ambições.


Se elle se propunha defender os ricos para consolidar a ordem, á maneira do religioso Guizot, ou se, menos idealista nas suas vistas, queria a ordem apenas como instrumento de enriquecimento do paiz, é o que nos não sentimos habilitados a dizer; pensando, comtudo, mais provavel a segunda hypothese. Como quer que seja, era por esta que a sociedade opinava, já começada a converter ao[Pg 164] materialismo, sob a primeira fórma com que elle modernamente appareceu; era para o materialismo pratico que a sociedade, desilludida das chimeras liberaes, começava a pender.

Isso a que depois veiu a chamar-se melhoramentos-materiaes, isto é, a construcção das obras publicas e o fomento da riqueza, eis o que nós vemos como essencia do novo cartismo. A do antigo, sabemol-o bem, fôra aristocratica. E, singular energia da realidade! Costa Cabral, o percursor da nova edade portugueza, veiu a ser a victima da Regeneração que, por outras palavras e com outros meios, havia de executar-lhe o programma. A antiga educação jurista e liberal do ex-tribuno dos Camillos compromettia com doutrinas um movimento que, para vingar, exigia apenas scepticismo: assim em França, tambem acontecia a Guizot, e os regeneradores foram o nosso Segundo Imperio.

Mas, além d’estes defeitos de educação, o plano do Costa-Cabral falhava por outro lado. José da Silva Carvalho antes, Fontes depois, comprehenderam que a melhor finança para um paiz exhausto era importar do fóra o dinheiro. Costa-Cabral, seguindo n’este ponto os erros setembristas, pensou que os numeros, calculos e operações phantasticas dos agiotas bastavam para inventar uma riqueza que não existia. D’ahi veiu uma banca-rota precipitar a ruina do systema, batido tambem por outros inimigos.

Costa-Cabral foi o iniciador dos caminhos-de-ferro, principal instrumento com que depois se operou a restauração da riqueza nacional; e a sua idéa de construir uma linha entre o Porto e Lisboa e outra de Lisboa a Badajoz era considerada pelos politicos da opposição a doidice de um vidente.[Pg 165] O conde de Lavradio, na camara, (Sess. de 3 de fevereiro 1846) assegurava que entre Lisboa e Porto não haveria, ao anno, mais de seis mil passageiros; e Cabral perguntava-lhe: «E se forem trezentos mil?—Isso não é possivel, porque não ha no paiz viajantes para tanto movimento». Qual dos dois via mais claro no futuro? Os caminhos-de-ferro rematariam o systema de estradas macadamisadas, contratadas com a companhia das obras-publicas; e regularisada a questão do Thesouro—hoc opus!—estaria completo o programma da regeneração economica do paiz.

O estadista que com tamanha audacia e tão variadas artes pretendia chamar á industria uma nação que fôra desde seculos o emporio ou a dependencia de um systema colonial, agora abandonado e caduco na parte que se não perdera, esquecia que no reino extenuado e doente, costumado á protecção e á preguiça, não havia os capitaes moveis necessarios para realisar as obras projectadas. Havia, sim, grossas quantias dispersas e infructiferas; mas a maxima parte d’ellas, ou a parte de que o Estado podia dispôr sem ir atacar a propriedade individual, pertencia ainda ás corporações de mão-morta que tinham escapado ao cutello liberal: ás misericordias e confrarias, instituições religiosas de beneficencia, cujos fundos o povo não estava ainda costumado a vêr mobilisar. Fazel-o, parecia um roubo. E o governo, atrevendo-se a tanto, e propondo ao mesmo tempo augmentos de impostos, tornava facil aos seus inimigos um ataque apoiado em instinctos de populações vexadas já por uma administração oppressora.

Não está porém n’isso a causa particular da ruina do edificio cabralista, mas sim na essencia do seu plano de restauração da riqueza nacional.[Pg 166] Implantando entre nós o systema seguido lá por fóra de enfeodar os serviços publicos a companhias de especuladores, o cabralismo obedecia no principio da sua formação: era uma clientela dos ricos. Confiando a aventureiros o encargo de realisar o plano das obras-publicas, o governo chamava em seu auxilio a intervenção da agiotagem. Isto não era original, nem particularmente nosso: tambem Guizot dizia aos seus: enrichessez-vous! Mas uma nação como Portugal, ainda commovida pelos odios pessoaes e partidarios, demasiadamente afastada da Europa central, quer geographica, quer economica, quer scientifica e religiosamente, para ter solidariedade com ella, nem podia contar com a paz indispensavel ás regenerações economicas, nem esperar que os capitaes europeus viessem encher os cofres das companhias de agiotas portuguezes. Nem a formação de companhias estrangeiras, nem a importação de muito dinheiro por emprestimos successivos, eram possiveis ainda, como depois o foram; e sem elles as combinações eram chimeras.

D’ahi resultou que as companhias, formadas apenas com os recursos de que a nação dispunha, não viram o ouro a authorisar os numeros; e mirradas, seccas, encastellando algarismos e trapaças, sem conseguirem bater moeda, voltavam-se implorantes para o governo que as creara com o fim de o auxiliarem a elle. E, entretanto, vencidas por fas ou por nefas, as eleições de 45, o governo apparece como triumphador, patenteando um plano largo e vasto de administração e fomento. (V. Diario de 2 de janeiro, 46) Tres annos de paz e trabalho haviam permittido já desembaraçar o terreno dos obstaculos praticos; e organisados os serviços, cumpria realisar o pensamento. A divida externa converter-se-hia[Pg 167] n’um typo unico de 4 por cento, equilibrava-se o orçamento, e a companhia das Obras-publicas apparecia para restaurar a viação d’onde viria a fortuna ulterior. Havia esperança e fé. O 5 por cento estava a 70; o 4 a 57; e as companhias (Confiança, banco, etc.) solidariamente ligadas á situação cartista, viam na conservação do governo e na victoria do seu systema futuros de riquezas douradas. Nunca a emissão do banco fôra tão longe: passava de 9:000 contos.

Mas a victoria politica do governo dava lugar a uma derrota do systema, como veremos; a prosperidade do edificio financeiro encobria mal a sua falta de alicerce. Um vento de desordem que soprasse, e ficaria feito em pó. Era um amalgama de supposições de valores, tendo como realidade unica um vasio absoluto. As companhias pediam a protecção do Thesouro; e o Thesouro sacava-lhes todo o dinheiro disponivel, para com elle poder apparentar abundancia. 5:000 contos se deviam ao banco; 6:000 á Confiança. E como não havia dinheiro e só esperanças; e como as companhias não passavam afinal de agentes do governo, ao qual iam entregar fielmente o pouco que obtinham; e como o governo não poderia, ainda que o quizesse, encobrir as fraudes, os roubos, dos agiotas cujo representante era—o systema alluia-se por todos os lados, quando parecia ter chegado á sua perfeição.

Bastou uma revolução para deitar por terra os castellos de cartas dos Laws cabralistas; mas houve fomes e sangue derramado, porque a doutrina não tinha outra base além do ouro e o ferro. Agiotas e soldados a defendiam; acabou com uma guerra e uma falcatrua.

[Pg 168]


A sua grande falta, a sua fraqueza invencivel eram a ausencia de um principio moral, porque nem a ordem imposta pela força, nem a riqueza creada contra a justiça chegam a ser principios; nem o é a idéa de que uma nação obedeça ao pensamento exclusivo de se enriquecer. Quando isto se préga, succedem casos analogos aos que succederam aos jesuitas: pervertem-se os ouvintes e logo se corrompem os prégadores. Ou se criam monstros, como as missões do Brazil e do Paraguay[27] e as companhias cabralinas, ou se cáe na profunda atonia portugueza do seculo XVIII ou na singular, chatin regeneração.

Enriquecer é bom, indispensavel até; mas a riqueza é um meio e não um fim.[28] Errando n’este ponto, dando á força bruta um papel excessivo, confiando de mais no entorpecimento do povo e na fraqueza dos inimigos: o cabralismo tinha na sua doutrina a causa fatal da sua ruina, e o motivo necessario dos erros e do descredito de chefes que precipitaram a queda inevitavel do systema. Levantavam-se contra homens e systema elementos de varias ordens: era a repugnancia instinctiva do caracter setembrista pelas trapaças agiotas, eram os odios pessoaes, eram as resistencias do povo contra os ataques a restos de instituições historicas e costumes religiosos, era o bandidismo guerrilheiro fervendo por voltar a uma existencia de aventuras, era a tradição democratica do setembrismo que se não convertera, eram a resistencia e o protesto contra a tyrannia da administração e as violencias das eleições, era finalmente a existencia[Pg 169] de numerosos officiaes expulsos das fileiras por opiniões politicas.

Eis os elementos positivos da reacção que vamos vêr erguerem-se, para condemnar a ultima tentativa de liberalismo doutrinario; para lançar ao ostracismo o seu defensor; para concluir por fim o periodo propriamente liberal, abrindo uma éra nova de scepticismo politico, em que o velho idolo da LIBERDADE, apeiado, cede o altar ao deus novo: o utilitarismo, pratico, positivo, conciliador e moderno, ou antes, actual.

NOTAS DE RODAPÉ:

[26] V. O Brazil e as colon. port. l. II, 1.

[27] V. O Brazil e as colon. port. I, 4-5.

[28] V. O Regime das Riquezas, introd.


[Pg 170]

II
A REACÇÃO

1.—A COALISÃO DOS PARTIDOS

No decreto (10 de fevereiro) em que a rainha declarara adherir á revolta armada em Coimbra dizia-se que a CARTA seria reformada, mas logo que o gabinete se constituiu, quinze dias depois, com Costa-Cabral, viu-se que a promessa ficava em cousa nenhuma: era a CARTA, tal qual existia antes de 1836; pares hereditarios, eleições indirectas. Mousinho d’Albuquerque, reconhecendo que apenas passára pelo governo para preparar a entrada de Costa-Cabral, abandonava o seu duque e collocava-se em opposição.

Ia haver eleições, porque o novo systema não era nem pretendia ser uma dictadura, mas apenas a maneira de fundar uma legalidade que servisse de escudo a um absolutismo de facto. E na vespera d’essas eleições ligaram-se todas as clientelas ou partidos contra o inimigo declaradamente commum. Eram os velhos setembristas da gemma, com a geração nova ainda mais radical; eram os ordeiros, antigos cartistas, expulsos do poder; eram cartistas não cabralistas, e por fim miguelistas. No seio do constitucionalismo via-se exactamente o mesmo que a Edade-media, com o seu feodalismo, apresentára. A sociedade, dividida em[Pg 171] bandos rivaes o inimigos unidos em volta de um chefe, existia á mercê dos pactos, allianças e rivalidade dos barões. Contra o feliz, vencedor temporario, eram todos alliados, para se formarem combinações novas, assim que o ramo da victoria passasse a mãos diversas. Nos seculos passados, comtudo, não havia as mais das vezes por motivo declarado senão a ambição pessoal, ainda que não fosse raro vêr-se, como agora, servirem principios de capa aos despeitos e interesses. Nos seculos passados, os debates eram campanhas, e agora pretendia-se que fossem comicios e discussões e votos; mas como isso não bastava muitas vezes, logo se appellava para a ultima ratio, a revolta.

A coalisão dos partidos preparou a batalha das eleições com um Manifesto (30 de março de 42): «Haverá um simulacro de representação nacional, dizia. A universalidade da nação portugueza, fraccionada pelas diversas opiniões politicas, verá passar pelo meio d’ella um bando pequeno de homens compactos e ligados por seus interesses pessoaes, e obter um falso triumpho, devido não só á sua força, mas á divisão dos seus contrarios.» Mau prenuncio para quem desenhava tão realistamente uma situação que pretendia dominar. Como esperava a coalisão vencer, se o disparatado das ambições congregadas obrigava a declarar a independencia dos credos politicos, e se a alliança tinha por fim unico a batalha? Se ganhasse a victoria, de quem seria o ramo? Novas contendas surgiriam sem duvida, o com ellas o estado anterior de desordem.

Costa-Cabral venceu, e devia ser assim. Quem o havia de matar não podia ser a opposição, mas sim a desorganisação e o descredito do seu novo e tambem ephemero liberalismo. Agora, porém,[Pg 172] começava apenas a viagem e tudo eram confianças e esperanças. Havia adhesões numerosas, e trabalhava-se. Palmella, convertido depois da sua triste entrudada, dava ceremoniosamente a mão ao governo, e ia a Inglaterra negociar o novo tratado que congraçaria de novo comnosco a nossa protectora, coarctando as temeridades proteccionistas do setembrismo. Publicára-se o codigo administrativo. (18 de março de 42) Reconstituia-se a ordem, por dentro e por fóra; e confiava-se que tivesse chegado o momento de pensar no futuro. Por isso se legislava sobre a Instrucção, se levantava o theatro romantico, se projectavam estradas e pontes.

Tinham-se, porém, liberal, constitucionalmente, convencido os colligados da adhesão do reino ao seu novo regime? Não, nunca: pois que cada qual possuia uma verdadeira traducção de LIBERDADE, a questão era para todos radical, e viciosa qualquer legalidade que não fosse a propria. O principio da anarchia constitucional desvairava, assim, os simples, servindo os programmas de capa aos habeis para esconderem os seus motivos particulares. Batidos na URNA, appellaram para a guerra. Uma lucta desabrida de improperios, na camara em discursos e fóra d’ella nos jornaes e folhetos avulso, preparava o terreno para a desejada insurreição em armas.

A coalisão dizia que «Palmella, por mandado do vil e infame governo, fôra negociar o tratado de commercio: por patriotismo, os fabricantes deviam fechar durante quinze dias as suas officinas.» (Circular de 9 de agosto) Duas semanas sem pão, ociosos nas ruas os operarios de Lisboa, repetir-se-hiam as scenas de 38 e caíria o governo. Planeava-se a revolta, a que Passos chamou «bambochata». E,[Pg 173] com effeito, era tal a desorganisação, que os miguelistas começavam já a esperar e por isso a abster-se, vendo circumstancias opportunas para se effectuar uma restauração nacional.» (Circ. de Saraiva, 24 de junho de 43)

A revolta declarada ia precipitar o ministro no campo das repressões violentas, forçando-o a desmascarar a sua legalidade que, no fundo, era de facto a brutalidade da força; levando-o a mostrar com franqueza o genio duro e secco, esse genio que em outros tempos e com outra estabilidade de instituições, teria levado os inimigos ao mesmo caes de Belem, onde Pombal conduziu os que lhe resistiram.[29]

Como o ministro de D. José, tambem o novo Pombal do constitucionalismo era abocanhado e discutido na sua honra. Não era credor, ou affigurava-se a muitos não ser, do respeito com que uma reputação limpa ampara a força. Era temido, mas nem era venerado, nem chegava a ser tomado a sério pelos antigos companheiros que o tinham conhecido humilde, esbaforido, a declamar nos Camillos. Vêl-o assim erguido sobre todos, desesperava os que, por lhe não terem ouvido phrases pomposas e poeticas, lhe negavam um talento que para romanticos estava principalmente no estylo e na imaginação. Não era admirado: pelo contrario. E o peior era que a sua honestidade não deixava de ser discutida. Valiam mais e iam mais fundo esses ataques, do que as investidas declamatorias e os protestos contra a tyrannia. Á força de as ouvir, os ouvidos estavam saciados d’esse genero de esgrima; mas quando se dizia que o ministro se vendia, conciliavam-se todas as attenções.

[Pg 174]

Usar do dinheiro como instrumento liberal fel-o do certo. «Dêem-me dinheiro e deixem o resto por minha conta», parece que disséra ao entrar no governo, nas vesperas das eleições de 42. (Costa Cabral em relevo) E os seis contos—oh modestia spartana!—que recebeu e gastou, foram o ponto de partida para as accusações da venalidade. Vendera um pariato, dizia-se, recebendo como prenda um palacete. Quem do Ultramar queria commendas, mandava o pedido acompanhado por uma ordem de dois contos para um banqueiro. (Ibid.) E sem duvida, á sombra do ministro que governava com o dinheiro, formara-se um batalhão de gente, especulando com tudo: contractos, empregos e graças. No norte do reino parece que havia um intimo, outr’ora preso por falsario e ladrão, a quem os pretendentes se dirigiam para resolver as pendencias que tinham em Lisboa, discutindo-se, não o direito, mas sim a quantia. (Ibid.)

A propagação de taes accusações mostrava o calcanhar do novo Achilles. Quando todas as fontes de authoridade politica se estancam, resta apenas a authoridade pessoal: e nada ha melhor, para a destruir, do que o uso da arma acerada que fere um homem com o labéo de venal. O povo crê sempre, porque é pessimista: tinha Portugal motivos para ser outra cousa? E para destruir uma tal crença, não raro illusoria, nem provas bastam. O politico é como a mulher de Cesar: além de honrada, (quem sabe? até não o sendo) é mister que o pareça.

O nosso ministro não conseguia parecel-o, e soffria as consequencias do seu plano de governo: «Enriquecei!» era o conselho se Guizot, a quem ninguem taxou de deshonesto. Em Portugal, os costumes eram mais soltos, a virulencia maior; e se[Pg 175] ninguem fôra ainda atacado de um modo tão cruel, isso prova que ninguem, tampouco, ainda mostrára uma força e um genio tão superiores. Outro Pombal, repetimos, o novo ministro ficaria tão celebre como o antigo, se achasse ainda de pé uma qualquer authoridade social. Nas ruinas universaes não tinha com que construir, e os elementos que iam rebellar-se contra elle obrigal-o-hiam a empregar, francamente a força núa como instrumento de conservação.

2.—TORRES NOVAS E ALMEIDA

O melhor d’essa força era a tropa, mas usar d’ella na defeza de um governo e de um systema cuja origem era discutida, tornava logo o exercito em instrumento partidario, roubando-lhe esse caracter mudo e passivo, sem o qual vem a ser um perigo permanente. As condições da nossa historia, o abatimento caduco do nosso povo, tinham feito com que, desde 20, as revoluções portuguezas—sem excluir a de 32-4—fossem emprezas militares. Os chefes de partido, Silveiras, Terceira, D. Pedro, Saldanha, Sá-da-Bandeira, eram invariavelmente generaes; e agora, com Costa-Cabral, pela primeira vez se via o governo positivo nas mãos de um paisano, mas sob a presidencia de Terceira, com a adhesão de Saldanha, marechaes do exercito.

Educado desde largos annos na tradição dos pronunciamentos, o exercito era, portanto, como que uma prolação dos partidos: uma parte, armada, das clientelas. Vê-se que desordem isto produziria. A parcialidade vencedora dispunha em proveito proprio do material de guerra: soldados, espingardas, canhões, etc., expulsando os officiaes[Pg 176] hostis para o quadro da inactividade, e mantendo, assim, uma como que emigração dentro do reino, constantemente preocupada de politica e tramando a victoria dos seus, a queda dos contrarios. Com a exaltação de Costa-Cabral, as cousas tinham chegado ao ponto de os coroneis pedirem aos officiaes arregimentados palavra d’honra de se não bandearem; e os officiaes davam-n’a e faltavam por dinheiro que recebiam, e quando a não davam eram riscados do effectivo. (Apont. hist. cit.)

De tal situação nasceu a revolta de Torres-Novas, a que Passos-Manuel chamou bambochata. Commandava ahi cavallaria 4 o coronel Cesar de Vasconcellos, (depois feito conde do lugar da façanha) que se pronunciou contra o governo (4 de fevereiro de 44), e ao regimento foram juntar-se os militares inactivos. No dia seguinte, Costa-Cabral pediu ás camaras a suppressão de garantias e as leis marciaes, e obteve-se no meio dos clamores da opposição: Mousinho d’Albuquerque, Aguiar, Gavião e Silva-Sanches, Garrett, nos deputados; Lavradio, Taipa, Sá-da-Bandeira, Fonte-Arcada, nos pares. Clamando, os opposicionistas encobriam mal, sob expressões juridicas, a sua cumplicidade na sedição militar; appellando em gritos violentos, exclamações dirigidas ás galerias, para um motim popular.

Bomfim, o ordeiro antigo, pozera-se á frente da desordem, e a praça de Almeida pronunciara-se tambem: ahi se achavam o coronel Passos e José-Estevão que deixára a camara pelo campo. (Oliveira, Esboço hist.) A coalisão dava de si uma revolta militar, e o governo via os miguelistas a levantar a cabeça no meio da anarchia. Beirão que viera á camara, eleito por elles, alliciava os estudantes realistas em Coimbra, recrutando soldados para[Pg 177] Almeida, d’onde lhe escreviam que mandasse o Rebocho, para Minzella, agitar-se. (Disc. de Cabral, 18 de outubro de 44) Para Almeida foram de Torres-Novas as tropas, e sem poderem arrastar comsigo nenhuma parte do paiz, acharam-se ahi encerradas em abril. O exercito fiel ao governo cercava-as. Em vão saíu José-Estevão, romantica, aventureiramente, a revolucionar Traz-os-Montes, passando a fronteira e indo entrar em Moncorvo; em vão bateu ás portas de Chaves, de Bragança e de Murça: ninguem respondeu; mas ninguem tampouco entregou o estouvado romantico, pelo qual Costa-Cabral offerecera, ao que se affirma, o premio de dois contos. (Oliveira, Esboço hist.) Almeida capitulou, os vencidos emigraram, o governo venceu; mas a victoria obrigava-o á crueldade e a derrota exasperava os animos dos submettidos á tyrannia de um homem que desprezavam.


Das ruinas da revolta renasceu mais firme a coalisão, para as eleições de 45. Havia uma guerra declarada contra o governo, cujo existencia era um incessante combate. Todos os chefes e clientelas apertavam as mãos, esquecendo odios antigos no ardor do odio novo contra o aventureiro que os batia a todos. O calor era tal que o povo como que accordava, interessando-se e intervindo nos debates dos politicos, emittindo opiniões e pareceres. «A mania politica tem acommettido todos os habitantes da capital, desde o fidalgo e o par do reino até ás fezes da plebe. Apenas os pobres pretos de Africa que passeiam aos milhares pelas ruas de Lisboa não discutem politica». (Lichnowsky, Record.) A rede de sociedades secretas, que minavam[Pg 178] o reino, estabelecia um sub-solo á politica apparente. Costa-Cabral era chefe de uma maçonaria sua, herdando o malhete que fôra de Silva-Carvalho e de Miranda: o centro cartista. Saldanha perdera o posto supremo da maçonaria opposta, desde que se bandeara em 35, deixando o grão-mestrado a Manuel Passos, que dirigia tambem outros conventiculos: templarios, vendas-carbonarias, etc. (Macedo, Traços)

A alliança das opposições já tinha um jornal, a Coalisão que, francamente, accusava tanto o governo pela sua tyrannia, como o povo pela sua indolencia.

Ha no paiz muito homem que não sabe lêr. Ha muito homem que sabe lêr, mas não lê. Ha muito homem que lê, mas não entende. Ha muito homem que lê e que entende, mas que tem medo, que é vil como um porco e cobarde como um veado. Ha muito homem que vê as desgraças publicas, mas não as quer remediar; ou porque treme de susto, ou porque ganha com a carrapata. Aos que vivem da sopa gorda, da olha podrida do orçamento não ha que dizer ... Folgam com as listas de côr, de carimbo e de tarja, morrem pelas transparentes. Fingem que vão coactos, mas vão contentes. Votam pela comezana: gostam da boa fatia do pão do nosso compadre Povo.—Ó Costa-Cabral! quantas vezes terás tu dito como Tiberio, vendo estes poltrões, estes sanchopansas da liberdade: ó homines ad servitutem paratos! (Coalisão, 10 de janeiro)

Mas este tom, de uma sinceridade triste, não era o que convinha na vespera da batalha: «Á urna! á urna! abaixo todos os ladrões e comedores! Empregados, ladrões, falsarios e prevaricadores, votae com o governo: não vos queremos. Tratantes! pertenceis de corpo e alma ao ministerio». (Coalisão, 15 de janeiro.)

[Pg 179]

Costa-Cabral ainda confiava, ainda esperava dominar a tormenta que todos os dias crescia. Tinha o exercito, tinha a burocracia, via-se apoiado pelas nações alliadas; o balão da finança entumescia-se, e o proprio Tojal, da Fazenda, mettera tudo quanto tinha n’uma operação de fundos, de sociedade com banqueiros de Londres. A rainha entregara-se nas mãos do seu homem-novo, no qual via uma coragem e uma força! ella que, se fosse homem, faria exactamente o mesmo, ou mais ainda por ser monarcha.

O ministro plebeu não podia resistir ás tentações da vaidade palaciana: não via que as honras com que a rainha o exalçava, o diminuiam no espirito commum. A sinceridade democratica do povo e a inveja dos ambiciosos juntavam-se para ridicularisar o parvenu. A fortuna que juntára no poder, alvo de tantas accusações, permitira-lhe comprar as terras de Thomar, com o velho castello templario, onde o moderno burguez afidalgado, occupando as salas historicas povoadas de sombras romanticas de cavalleiros, as enchia de festas banaes por occasião da visita da sua liberal soberana:

Na cathedral de Lisboa
Sinto sinos repicar:
Serão annos de princeza?
D’algum santo o festejar?
É a rainha que se parte
Té ás terras de Thomar.
..............................
Em vez das armas antigas
Dos nobres valentes Paes,
Na fachada, sobre o portico,
Vêem-se hoje as dos Cabraes
Que em seu campo ensanguentado
Por brazão tém tres punhaes.

(Xacara da visita da rainha, etc.)

[Pg 180]

O romantismo vingava-se, e as formulas da nova arte-poetica mostravam servir para muito. Era um romance á imitação dos da collecção de Garrett, e em que a mais desbragada calumnia não perdoava a ninguem. Já não bastava a honra do ministro, exigia-se-lhe a da esposa e a da propria rainha. Os dois casaes, o das Necessidades e o de Thomar, viviam n’uma indecente promiscuidade. A castellan dizia á rainha:

Mas não venhas tu sósinha
Traz tambem o teu esposo
Lá das terras d’Allemanha
Esse moço tão formoso,
De louros, finos, cabellos
Gentil, nobre, valoroso.

E ao castellão «todo vestido de gala—cinge-lhe a fronte a armadura», ao mesmo tempo que «praticava mui de manso» com a rainha «recostada em molle sophá.» Um temporal interrompe as festas, e vem o mendigo-povo cantar a lenda que termina:

E o Senhor decretou
Exterminio á geração
Sobre essa raça maldita!

Assim, em artigos e trovas, se tirava a desforra de uma revolta suffocada, infiltrando no animo do povo um desprezo e um odio condemnadores do ministro e da rainha, do systema e das pessoas. A colera politica subia de grau, e a liberdade na imprensa—tão verberada por Passos!—invadia as alcovas principescas, mostrando-as ás plebes. Onde conduziria um tal systema? Não tinham os miguelistas razão para se prepararem e esperar?

[Pg 181]

Batidas por fim de frente, por um homem superior e forte que lançára mão dos elementos ainda resistentes da sociedade portugueza, as parcialidades politicas, relativamente tolerantes entre si, não podiam admittir a invasão e o imperio d’esse intruso importuno; mas elle proprio, que não se atrevia, nem poderia, nem pensaria, em rasgar a CARTA, mandar á fava o liberalismo, e voltar ao governo pessoal, puro: que lhe restava senão curvar a cabeça á tyrannia das fórmulas? E se as influencias de todos os chefes politicos, alliados contra elle; se a acção de um ataque incessante á sua pessoa e á sua honra, tinham concitado uma tempestade que o faria ser batido na urna: que remedio lhe restava, senão esse expediente da violencia sob a capa de legalidade? o processo de mentira descarada, em vez de hypocrita como d’antes? esse processo que o mantinha, desacreditando-o, arruinando-o cada vez mais?

Vencer, por fas ou por nefas, as eleições, n’esse anno de 45 da decisiva batalha, era para Costa Cabral o mesmo que viver ou morrer. Lançou, pois, mão de tudo, e foi ás do cabo. Tres camaras-municipaes protestaram, vindo a Lisboa os vereadores implorar a rainha: á de Evora voltou-lhe ella as costas, a de Villa-Franca foi presa, e ambas, com a de Faro, dissolvidas. A opposição estava inteira a postos; o programma era o antigo Manifesto da coalisão, com o discurso de Manuel Passos, em 18 de outubro anterior. Em Lisboa reuniam-se Mousinho de Albuquerque, Aguiar, Sá-da-Bandeira, Herculano, José Maria Grande, Marreca, Rio-Maior, Jervis, Garrett; José Passos tinha o Porto; Bertiandos, o Minho; Povoas, não annuindo á abstenção ordenada por D. Miguel, da Guarda mandava na Beira; o conde de Mello em[Pg 182] Portalegre; Manuel Passos e o barão de Almeirim em Santarem. (Macedo, Traços)

Nenhuma das conhecidas tricas para levar a Urna a dizer o que se deseja—como nos velhos oraculos sagrados!—fôra esquecida pelo governo. Os recenseamentos eram taes que não incluiam nomes como os do marquez de Niza, da Fonte-Arcada, do Felgueiras juiz no supremo tribunal, de Garrett, etc. Incluiam, porém, mendigos e lacaios, aguadeiros e defunctos; incluiam nomes imaginarios, e soldados e marinheiros. As listas eram marcadas: transparentes, pautadas, carimbadas, tarjadas, numeradas. Os individuos influentes e perigosos eram presos arbitrariamente: assim aconteceu a Rezende em Aveiro, a Balsemão em Penafiel. Os governadores-civis distribuiam aos galopins mandados de captura em branco. E onde as tricas não bastavam, apparecia a força bruta. Em Alvarães e Porto de Moz houve descargas cerradas de fusilaria. D. João de Azevedo foi espancado no Porto, onde as assembleias se reuniam cercadas de tropa, junto dos quarteis. O visconde da Azenha teve de emigrar de Guimarães; o de Andaluz, em Pernes, bateu a tropa com um bando de gente armada. Para Villa-Franca foi maruja e artilheria. No Sardoal a tropa de bayoneta calada impediu a entrada dos eleitores na assembleia. Por toda a parte houve prisões, mortes em muitos lugares. A violencia vinha rematar o systema de perseguições fiscaes: iniquidade na repartição do imposto, crueldade com os devedores das misericordias e irmandades, denegações de justiça, etc. (Macedo, Traços) Para forjar um simulacro de parlamento, para aguentar a sophismação da doutrina, chegava á maxima tyrannia, atacando-se as mais necessarias garantias dos cidadãos.

[Pg 183]

Costa-Cabral venceu: se victoria se póde chamar a empreza que o precipitou n’uma revolução.

No seio da sua camara unanime de clientes e funccionarios expoz então o vasto plano dos seus projectos; mas na outra camara, os pares protestavam clamorosos, erguendo-se acima de todas a voz sibilante de Lavradio, e dominando a scena a figura de Palmella que, moderado sempre, inclinava outra vez para o lado da opposição.

Cá por fóra os protestos corriam soltos e sem piedade:

Que podemos nós esperar, quando a nossa vida, a nossa fazenda, a nossa liberdade estão á mercê de um punhado de devassos? Se esta nossa terra, se os nossos fóros e liberdades são enphyteose dos Braganças ou fateosim dos Cabraes? (Souto-Mayor, Cartas de Graccho a Tullia)

Os ministros são «doutores do pinhal d’Azambuja», que illudem a nação com «tretas vís»; são «ladrões cadimos, salteadores, assassinos, traficantes, ratoneiros, corsarios, bandoleiros»; e o povo não ouve? não se mexe?

Povo! meneia tres vezes a cabeça, reflecte. Não tens um pulso para a espada, um hombro onde encostes a espingarda, olhos para a pontaria, dedos para o gatilho? (Id. Ultimos adeus, 44)

3.—A MARIA-DA-FONTE

Accudiu o povo aos clamores dos que se apresentavam como seus procuradores? Elles disseram que sim: á historia parece comtudo que o povo era indifferente ás doutrinas e systemas da opposição; porque nem ellas tornaram completamente a vencer, nem o povo se levantou para as defender, quando a rainha por um acto de absolutismo[Pg 184] expulsou do governo os homens que ali tinham entrado sob pretexto da Maria-da-Fonte. Como espontaneo movimento das populações, a revolução do Minho tem apenas um caracter negativo. É contra os Cabraes, de quem a propaganda activa fizera uns monstros mais que humanos, que appareciam á imaginação popular como réus de todas as desgraças:

Comem as cearas os pardaes?
É por culpa dos Cabraes.

É contra os impostos, contra os enterramentos em cemiterios ao ar livre, contra a mobilisação dos bens das Misericordias, contra o systema de leis que tendiam a consolidar o novo Portugal, a acabar de arruinar um Portugal antigo que ainda para as populações ruraes era o verdadeiro, o ditoso, o bom. Tal caracter se observa no movimento espontaneo das populações, confiscado á nascença pelos setembristas como se fôra seu, e apresentado sempre como um documento da vitalidade e raizes das suas doutrinas no seio da nação ...

Quando na camara dos pares os ataques sibilantes de Lavradio ao conde de Thomar zuniam como o vento nas cordagens do navio ameaçado; quando a eloquencia apopletica de José-Bernardo se entornava para defender o irmão, ameaçando terra, mar e mundo; quando a batalha parecia decisiva e final—chegou a Lisboa, subitamente, a noticia de motins populares no Minho. (15 de abril) O governo assustou-se e os inimigos esperaram.

Entre clamores e protestos, votaram-se as leis marciaes usadas em taes casos, porque nos momentos de crise o constitucionalismo liberal vê-se forçado a abdicar: tal é a sua consciencia positiva.[Pg 185] Suspenderam-se os debates para irem começar os tiros. A opposição tinha organisado por todo o reino a sua machina eleitoral coalisada: os embryões das Juntas revolucionarias estavam formados, a postos todo o pessoal dos partidos, para accudir ao levantamento das populações, dirigindo-o, interpretando-o. Por seu lado o governo mandou para o Porto José-Cabral, a quem o odio da cidade do Douro chamára o José dos Conegos, e agora dava por escarneo o titulo de Rei-do-norte. Levava, com effeito, o rei poderes descricionarios e a alma cheia de coleras, a bocca vomitando ameaças, o braço levantado para esmagar tudo com a sua força. E assim que desembarcou, passou dos planos ás obras, perseguindo, prendendo, ameaçando, aterrorisando, até que o obrigaram a voltar, fugindo para salvar a vida.

E a tropa? Mais que podia a tropa contra uma sublevação de facto popular, levantando a cabeça por toda a parte, oscillando, fugaz, e movediça, lavrando e minando, com a vastidão e mobilidade dos fogos fatuos no vasto cemiterio de um reino? O governo não tinha cem mil bayonetas, e tantas ou mais seriam necessarias para pôr guarnição em todas as aldeias, uma sentinella ao lado de cada minhoto. O caso era diverso de 44, quando uns batalhões se tinham pronunciado: outros batalhões mais numerosos foram ter com elles, encerraram-nos em Almeida, obrigando-os a capitular. Que praça ou curral havia, sufficientemente grande para encerrar meia população do reino e obrigal-a a render-se pela fome? Praça ou curral era o reino inteiro, e dentro da fortaleza a propria guarnição levantava-se. Que fazer? Onde accudir? A força ensarilhava as armas por não achar alvo de pontaria; e do mesmo modo que a tropa reconhecia[Pg 186] a sua impotencia, via-se em Lisboa a manada dos agiotas correr, sumir-se, apertados uns contra os outros, furando como os bandos de carneiros acossados por um aguaceiro a trotar miudinho. Ai! bancos estoirados, companhias fallidas, papellada esfarrapada! O balão dos calculos tombava enrodilhado, a Babel de algarismos caía por terra em estilhas! Pobres fundos do conde de Tojal, almoe-dados em Londres! quem dava por elles um chavo?


No logar da Fonte, concelho da Povoa-de-Lanhoso, no coração do Minho, existia a que foi a Joanna d’Arc do setembrismo. No Minho, como em todas as regiões de stirpe celtica,[30] a mulher governa a casa e o marido; excede o homem em audacia, em manha, em força; ara o campo e jornadêa com a carrada do milho á frente dos boisinhos louros. Requestada em moça nos arrayaes e romarias pelos rapazes que a namoram, conversando-a com as suas caras paradas, basta vêr um d’esses grupos para descobrir onde está a acção e a vida: se no olhar alegre, quasi ironico da moça garrida, luzente de ouro, se na phisionomia molle do rapaz, abordoado ao cajado, contemplativo, submisso, como diante d’um idolo. A vida de pequenos proprietarios põe na familia uma avidez quasi avarenta e na educação dos filhos instinctos de governo. Quando se casam, as moças conhecem o valor do dote que levam, e os casamentos são negocios que ellas em pessoa debatem e combinam. Não é uma esposa, quasi uma serva, que entra no poder do marido, á moda semita que se infiltrou[Pg 187] nos costumes do sul do reino: é uma companheira e associada em que o espirito pratico domina sobre a molleza constitucional do homem desprovido de uma intelligencia viva. A mulher parece homem; e nos attritos da dura vida de pequenos proprietarios, quasi mendigos se as colheitas escasseiam, cercados de numerosos filhos, apagam-se as lembranças nebulosamente doiradas da luz dos amores da mocidade, e fica do idolo antigo um rudo trabalhador musculoso, com a pelle tostada pelos soes e geadas, os pés e as mãos coriaceas das ceifas e do andar descalça ou em soccos nos caminhos pedregosos, ou sobre a bouça de urzes espinhosas. Não se lhe fale então em cousas mais ou menos poeticas: já nem percebe as cantigas da mocidade no desfolhar dos milhos!

A vida cruel ensinou-a: é pratica, positiva, dura. Odeia tudo o que não sôa e tine, e tem um culto unico—o seu chão. Vae á egreja e venera o «senhor abbade», mas com os idyllios da mocidade a sua religião perdeu a poesia: ficou apenas um rosario secco de superstições, funda, tenazmente arraigadas. Ai, de quem lhe bolir ou nos seus interesses, ou no culto! na egreja, ou no chãosinho! Ai, d’aquelle que para tanto lhe investir com os filhos, com o marido, que são para ella os seus operarios. O sentimento innato da rebeldia, (que não deve confundir-se com a independencia) essa vis intima dos celtas submissos da Irlanda e da França, existe no minhoto, com o lastro de presumpção e manhas, d’onde saem os nossos palradores do norte e os astutos emigrantes do Brazil; com a segurança que a vida responsavel e livre de proprietarios, não-salariados, lhes dá.

[Pg 188]


O systema cabralino, seccamente beirão, era em tudo opposto ao temperamento do norte; e o facto da CARTA haver sido restaurada no Porto mostra quanto essa empreza foi uma obra de quartel e secretaria, sem raizes no coração do povo. O governo, depois, atacou as superstições, mandando que os mortos se não enterrassem nas egrejas; e para que se veja quanto esta ordem judiciosa batia de frente os usos religiosos e quanto elles estavam arraigados, basta dizer que ainda hoje por todo o Minho se encontram villas, e não aldeias afastadas, villas como Barcellos por exemplo, sem cemiterio. O governo queria ainda que a decima rendesse o que devia; mas o povo que já esquecera o tempo dos dizimos, via no imposto lançado por uma authoridade para elle extranha, desconhecida, a extorsão, a ladroeira, dos homens de Lisboa, o ataque ao seu idolo adorado: o chão lavrado de milho ou de linho, a carvalheira toucada de pampanos com os acres bagos de uma uva ingrata pendentes em cachos negros.

E esses homens, que tanto exigiam, nem falavam em Deus, nem em cousa alguma que os lavradores entendessem. Vinham sobraçando a pasta cheia de papeis, com phraseados singulares, caras desconhecidas, cousas extravagantes; e retorquiam ás replicas com a fusilaria dos soldados. Esses homens já tinham vindo a pedir-lhes o boto, e elles coçando a nuca hesitavam; mas as mulheres, praticas, attendendo ao antigo poder do senhor fidalgo, e a submissão ingenita mandando obedecer quando o caso era sem consequencia, tinham levado os camponios arregimentados, com o papelinho entre os dedos, até á Urna. Que lhes importava isso? Idéas dos fidalgos! e voltavam ao seu trabalho.

[Pg 189]

Agora o caso era outro: enterrarem os pobresinhos dos mortos como cães, n’um quintal! levarem o nosso vinho e o nosso milho colhido com tanto suor: isso não! E em apoio d’esta rebeldia, vinha o fidalgo, vinha o padre (setembrista) com sermões e falas doces, esconjuros e meiguices, incitando-os a resistir a quem lhes queria tanto mal, tão duramente os tratava. O administrador era mais cruel do que o capitão-mór, por ser de fóra, e secco, bacharel, plumitivo; o senhor capitão-mór, ás vezes, fazia cada uma ás raparigas! Mas o minhoto, naturalista, não é susceptivel nos peccados de carne: fraquezas humanas! Muitas, muitas raparigas, casam sem ser virgens, e isso, apezar de sabido, não escandalisa.

A Maria-da-Fonte tornou-se o symbolo dos protestos populares. A imaginação collectiva, provou ter ainda plasticidade bastante para crear um mytho, uma fada, Joanna d’Arc anti-doutrinaria.[31] O heroe da revolução minhota devia ser uma mulher, não um homem; devia ser desconhecido, lendario: antes um nome do que uma pessoa verdadeira. Na Bretanha, os casos de Paris em 48 eram assim explicados: um grande guerreiro le dru Rolland (Ledru-Rollin) saíra a campo para libertar a fada La-Martyne (V. Michelet, Revol. franc.) Os minhotos, affins dos bretões, crearam um heroe feminino—guerreiro temivel que iria a Lisboa bater esses tyrannos do sul conhecidos ainda hoje sob o nome de senhor-Governo: um monstro mais ou menos definidamente humano!


Entretanto, parece que de facto houve uma certa Maria-da-Fonte que soltou o primeiro grito da sedição.[Pg 190] A rebeldia, fomentada pela nova legislação, declarou-se perante os excessos dos tyrannetes locaes, bachareis enviados para o campo o ganhar jus a um logar no parlamento ou nas secretarias. Um d’esses chegára a ferir com um guarda-sol o pequeno de um lavrador, e o pae foi á torre da igreja e tocou a rebate. Acudiu povo, quiemou os archivos, as papeletas da ladroeira, dando «Morras» aos dois Cabraes, (D. João de Azevedo, Os dois dias de outubro) e marchou sobre Braga. (Macedo, Traços) Nas villas e cidades a tropa levava a melhor, porque o numero vale ahi pouco e muito as armas: eram fusilados á queima-roupa. Mas nos campos podiam tudo: se a tropa viesse, abafavam-na. Nem tinham espingardas, nem polvora: só cajados, foices, machados, chuços, e era o bastante. Na Senhora-do-Allivio reuniram-se mais de dez mil. (Ibid.) E os padres e os fidalgos applaudiam, incitavam: o conego Montalverne, o padre Casimiro, o padre José-da-Lage, e os Costas, o Peso-de-Regua, o Balsemão. Os fusilamentos, os confiscos, as prisões, toda a pasta draconiana de José Cabral, do Porto, era inutil: via-se a fragilidade da força cabralista.

Do Minho, a sedição lavrou, perdendo o caracter popular, tomando um caracter militar e politico. A Maria-da-Fonte ficava na sua aldeia: apenas o nome, como um ecco ou um rotulo, ia de um lado a outro do reino. Por toda a parte nascem logo Juntas. Toda a força do rei-do-norte estava na divisão do Vinhaes; e quando o general, bandeado ou commovido, lhe disse que não bateria no povo, o rei emalou os papeis, fugiu do Porto, abandonando tudo. (Ibid.) Do Minho a revolta, galgando o Tamega, encontrou em Traz-os-Montes o conde de Villa-Real para a commandar e os Carvalhaes para a fomentar. As authoridades, corridas, foram fechar-se na[Pg 191] praça de Chaves, sob a protecção do Vinhaes que passou para os do povo e lhes entregou a villa. Appareceu um programma: era a voz, o grito, a reclamação da Maria-da-Fonte? Não; era, apenas uma combinação de politicos moderados, que nem sequer exigiam a restauração do setembrismo; que apenas reclamavam a dissolução das côrtes, a queda do ministerio, a organização da guarda-nacional, e a revogação da lei do imposto de repartição (19 de abril de 45) da reforma da magistratura (1 de agosto de 44) e da lei de saude. (26 de novembro de 45) (V. Ignacio Pizarro, Memor. de Chaves) No Porto governava uma JUNTA, e a Extremadura, sob o commando de Manuel Passos, tinha em Santarem uma capital patuléa. Outro já, com sezões e desilludido, o Passos de agora apenas reclamava a demissão dos Cabraes: a sua JUNTA dava vivas a «todo o existente». (V. a Proclam. da Junta de Santarem) De um movimento popular espontaneo formara-se uma sedição politica; e a fraqueza doutrinaria dos politicos coalisados via-se n’este momento em que, omnipotentes, reduziam a grande revolução á condemnação pessoal de um homem. Expulso elle, conservar-lhe-hiam as obras, porque nada melhor podiam pôr em seu lugar, caso as supprimissem. Singular revolução, de que os chefes são logo os suffocadores!


Mas em Lisboa, no paço e no governo? O destino fatal dos audazes sem apoio, dos que, arrastados pela consistencia dos seus planos, imaginam que planos bastam para crear elementos de governo; dos que embriagados pela força e pela vida propria não observam a inercia alheia que só pede socego e atonia e por isso é a primeira a renegar[Pg 192] as temeridades, as ousadias; o desejo de ser e mover-se; o fatal destino dos audazes n’uma sociedade cachetica, perseguia o temerario ministro. O seu edificio abria fendas por toda a parte. Os que o seguiam por convicção entibiavam; os que iam por interesse, fugiam, renegavam; os fanaticos começavam a descrer, desde que viam sossobrar o homem forte; a clientela dispersava, o exercito bandeava-se, a banca-rota batia com a mão descarnada á porta dos templos da nova religião do Dinheiro.

Os Cabraes pediram a sua demissão á rainha. Batiam, arrependidos, nos peitos, confessando o erro da sua audacia, os crimes do seu governo excessivo e tyrannico? Não. Elles eram ambos feitos de ferro e fórmulas: homens que cáem, mas não se curvam. Duros beirões, faltava-lhes a humanidade sincera e bondosa, que se torna em scepticismo no decaír da vida—a humanidade de um Passos—sem terem tampouco as manhas beiroas dos descendentes de Viriato, á maneira de Rodrigo. Caíam, porque o exercito faltara; caíam porque houvera um terramoto e abatia-se-lhes o chão debaixo dos pés; caíam porque os derrubavam e não porque descessem. Caíam porque «o presidente do conselho e ministro da guerra e como tal commandante em chefe do exercito, no momento em que deviam desenvolver-se as forças do dito exercito, declarou não ter força e que o unico meio de debellar a revolta era a prompta demissão do ministerio». (Manif. de Cadix, 27 de maio de 46) Para que tinham arrastado o molle, caprichoso, aristocratico duque da Terceira a emprezas arriscadas? Elle não tinha opiniões, e por isso não percebia o valor d’ellas para os outros. Achara excellentes os Cabraes, emquanto vira n’elles penhores de ordem; mas, doutrinarios atrevidos,[Pg 193] bulhentos, opiniosos? Nunca. Porque não tinham os ministros preferido Saldanha, mais homem, mais denodado, menos escrupuloso, e, por genio, tão amigo das aventuras quanto o collega o era da placidez bem ordenada?


Assim renegados por todos caíram os Cabraes, (20 de maio) fugindo do reino para Hespanha, homisiados como réus. Em tal passo a rainha não via para onde voltar-se. Entregaria o governo á Maria-da-Fonte? Mas a lavradeira de Lanhoso não chegára a Lisboa: vieram apenas o nome e os manifestos das JUNTAS. Eram elles o manifesto do povo? Não eram. O povo só manifestára horror a enterrar-se nos campos, recusa a pagar a decima, e odio aos tyrannetes cabralinos. Mas nada d’isto podia fazer um plano de governo novo, e uma novo experiencia de liberalismo. As opposições, coalisan-do-se, tinham em parte abdicado. O miguelismo resuscitava, dando as mãos aos radicaes no fôro dos partidos e pelos confins das provincias. No norte do Douro, na Beira borbulhavam esperanças; em Evora «o espirito dos seus habitantes he miguelista ou setembrista», diz o coronel do corpo em officio para o general da divisão. (Corr. autogr. de Rezende) Que sorte podia ser a da revolução, imagem de Jano, olhando para um passado perdido e para um futuro chimerico? Mas que sorte esperava a rainha depois da ruina d’essa cohorte com que se tornára solidaria? Não havia no horisonte politico sol novo para adorar; mas havia por detraz do throno tres astros mais ou menos embaciados, porém ainda utilisaveis. Façam-se ministros os tres chefes: Saldanha, Terceira, Palmella. Era o expediente[Pg 194] mais acceitavel; embora o primeiro, que andava por fóra, em Bruxellas, não quizesse intervir. (Carnota, Mem.)

Porém as JUNTAS acreditavam que tinham vencido, e o setembrismo chamava sua á Maria-da-Fonte, reclamando os despojos da guerra. Palmella, por seu lado, queria voltar á ordem de 38, continuando em 46 a historia interrompida pelo episodio cabralino: alastrou pois o gabinete com elementos ordeiros. (Mousinho-d’Albuquerque, Lavradio, Soure; 26 de maio) Terceira retirou-se. Restaurada a ordem, o reino foi dividido em tres circulos, cabendo o do norte ao visconde de Beire, o do centro a Rodrigo, o do sul ao ministro Mousinho. A Revolução de Setembro, escarnecendo, chamava a isto a divisão do imperio romano (7 de junho); e as JUNTAS, vendo empalmada a que suppunham victoria sua, protestavam sem desarmar. Em vão o governo se cansava, distribuindo calmantes em circulares mansas e sensatas, cheias de uncção e esperanças, chamando o povo a decidir dos seus destinos na proxima urnada livre. Em vão chamava para casa os emigrados de Torres-Novas, fatigando-se a mostrar que todo o mal vinha dos Cabraes, agora expulsos. Os emigrados, recordando 38, com José-Estevão á frente, entraram como em triumpho, desde a fronteira até Lisboa. (Oliveira, Esboço hist.) Traziam a paz? Não; a guerra, cantando:

Se é livre um povo, não tolera, quebra
De Neros as correntes!

Neros eram os Cabraes, mas não menos o era Palmella, com as suas branduras, impedindo a victoria da democracia. Estava-se outra vez em 38:[Pg 195] mas porque motivo se restaurara a CARTA, senão porque a ordem de Bomfim-Rodrigo era uma desordem insupportavel? Estava-se outra vez em 38: mas acaso então a democracia annuira? Como annuiria pois agora? Os jornaes vermelhos protestavam contra a paz; as JUNTAS não desarmavam, por não quererem perder uma victoria que julgavam sua.

Parece que o governo fez pacto com o diabo e que forceja por conservar nos commandos homens nos quaes o povo não confia nem póde confiar. (Revol. de Set. 3 de junho)

Os militares não querem as demissões? Leve-lh’as o ministerio escriptas em sangue. O throno não quer abraçar deveras o povo? Pois retire-se o ministerio do seu lado. E se a côrte vier depois para nos abrir os braços. Já temos a resposta prompta,—é muito tarde! (Grito Nacional, 5 de junho)

Vida nova! Começar outra vez! Côrtes constituintes! eis ahi o clamor de toda a esquerda, julgando-se o ecco do povo, a voz da Maria-da-Fonte, vencedora contra o throno, contra os Cabraes, contra a ordem. Palmella, oscillando, bolinando, na sua esperança de fundar as cousas sobre o equilibrio, metteu novo lastro no governo, lastro mais setembrista—Sá-da-Bandeira, Julio Gomes e o antigo Aguiar. Estavam satisfeitos?

A muito custo de rogos e promessas se conseguira o desarmamento das JUNTAS. No Porto as authoridades foram de chapéu na mão pedir por favor ás forças populares que debandassem; e em Santarem viu-se difficuldade ainda maior, mais graves perigos. Os patuléas, em vez de reconhecer o governo, queriam marchar sobre Lisboa e leval-a de assalto. O bom Passos levantou-se da cama onde curtia a febre das sezões ribatejanas, teve de montar a cavallo acompanhado pelo Galamba, para[Pg 196] cortar o passo ás forças que, depois de se armarem nos depositos arrombados, iam já em Villa-Franca. (Macedo, Traços) O desilludido tribuno chorou, pediu, rogou, e o seu prestigio antigo salvou Lisboa da invasão. No meado de junho as JUNTAS estavam dissolvidas: no meiado de julho (19) entravam os setembristas no gabinete. Equilibraram-se as cousas, renasceu a ordem, sellou-se a paz? Não; ninguem o creia. Como póde haver paz quando não ha pão? quando a capital e o reino ardem n’uma crise? quando a agiotagem intriga para se salvar do naufragio? De certo se não acertou com a verdadeira estrada: ha que voltar ao ponto de partida.

Qual? O radicalismo do Sacramento diz que a Maria-da-Fonte quer liberdades e constituintes. Os conservadores, os agiotas no Banco dizem que o reino e a riqueza querem CARTA e cabralismo. Qual dos dois levará a melhor? Nenhum; e só depois de terminada a guerra que vae começar, a liberdade reinará sobre o vasio das idéas, com o absolutismo dos interesses.

NOTAS DE RODAPÉ:

[29] V. Hist. de Portugal, (3.ª ed.) II, 176-8.

[30] V. As raças humanas, I, pp. 197-213.

[31] V. Syst. dos mythos relig. XVII.


[Pg 197]

III
A GUERRA CIVIL

1.—O 6 DE OUTUBRO

N’este dia, pelas dez da noite, a rainha chamou ao paço o duque presidente do conselho, e fechando-o por sua propria mão n’uma sala obrigou-o a lavrar o decreto da sua demissão e o da nomeação de Saldanha. Era uma segunda Belemzada? Era; menos Passos e a guarda-nacional, menos Van-der-Weyer e os soldados inglezes. A educação liberal progredira a ponto de crear entre os politicos um partido de absolutismo e de reduzir á impotencia a soberania nacional. Era outra Belemzada, e a desforra de Ruivães; porque aos marechaes vencidos em 37 confiava a rainha agora a defeza do seu throno. Saldanha presidia o governo, Terceira ia para o norte socegar o Porto (8) depois da parada da vespera no Terreiro-do-Paço, onde a tropa acclamára a CARTA. Estava definitivamente acabada a Maria-da-Fonte, restaurado o cabralismo, mas sem Cabraes apparentes. Saldanha encarregara-se de lhes obedecer no que mandassem: e de os defender e rehabilitar até dar tempo a uma repatriação por emquanto prematura. Desde largos annos, dez ou onze, que o marechal descera a não poder servir para mais do que para instrumento da politica alheia.

[Pg 198]

Depois das suas campanhas diplomaticas de Londres e de Madrid (emquanto durou o incidente irritante da navegação do Douro), o marechal, desnecessario e incommodo, tinha sido enviado para Vienna no outomno de 41 a gozar os ocios de uma espectaculosa embaixada. A rainha e os seus confidentes tinham-no lá de reserva para o momento em que fôsse necessario, quando em 42 a restauração da CARTA provocou a scisão do cartismo. Contra os Cabraes, inclinando para o setembrismo com o qual vieram a colligar-se, os ordeiros (Rodrigo, Palmella, Silva Carvalho, etc.) preparavam com intrigas as desordens que os radicaes forjavam em Torres-Novas e Almeida. Em Vienna, o marechal applaudira a restauração da CARTA; e sendo embaixador portuguez, era o confidente do Paço que tinha Dietz por orgão: «O paiz inteiro está tranquillo e detesta—á excepção de alguns velhacos ou doidos—a revolução que vegeta em Almeida. (27 de março) Se as intrigas de Palmella e Silva-Carvalho não tivessem vindo naufragar perante a firmeza de S. M. a rainha e perante o bom-senso da nação, estariamos já a caminho de entregar o poder aos setembristas e de vêr reinar em breve tempo Bomfim, Cesar e C.ª» (25 de agosto de 44. Cartas de Dietz a Saldanha; em Carnota, Mem.)

O pobre marechal ia servindo. Em Lisboa receiavam que elle voltasse, e que, dando ouvidos, como sempre dava, ás tentações da lisonja, viesse complicar mais as questões com o seu genio aventureiro, o seu prestigio militar e uma provada nullidade politica que o entregava áquelle que melhor o soubesse assoprar. «Fique onde está, escreviam-lhe de Lisboa, porque penso que ainda hade ter de salvar a rainha de ser posta pela barra fóra». (Carta de Reis e Vasconcellos, 9 de março de 46; em Carnota, ibid.)[Pg 199] A Maria-da-Fonte rebentou quando Saldanha se achava na Belgica. Com os annos, as raizes catholicas do seu genio reverdeciam e entretinha-se a ouvir sermões em Liege, opinando entre o merito relativo dos prégadores. (Ibid.) Desde Vienna que trazia em plano uma grande obra: a concordancia das sciencias com os mysterios da religião, e o alcance do seu espirito vê-se n’estas linhas escriptas ao futuro cunhado, para Inglaterra: «Peço-lhe que indague ahi quaes são os melhores authores, antigos e modernos, que tém escripto sobre a existencia de Deus e a immortalidade da alma; quaes d’essas obras se pódem obter e seus preços». (Carta de 31 de maio de 46, ap. ibid.) Já então Portugal ardia em guerra, e Saldanha deixou a sciencia pela politica: valiam ambas a mesma cousa! Embarcou em Inglaterra, chegando a Portugal a 23 de julho.

Quem o conquistaria? Palmella com o seu governo? Os radicaes? O paço? Facto é que todos o queriam, todos o adulavam, todos lhe chamavam salvador da patria, homem unico, arbitro, etc.; e o marechal, inchado, não era capaz do medir o seu valor, nem de aferir a verdade das adulações. Ao mesmo tempo que cada qual o queria ganhar a si, todos receiavam as tentações alheias, por bem conhecerem com quem tratavam. A rainha déra ordem para que de bordo fosse directamente ao paço, «sem falar a ninguem antes». (Carnota, Mem.) Elle foi, e conta (Curtissima expos. etc.) que a rainha o advertira dos planos dos cabralistas, dissuadindo-o de tomar a direcção do movimento que se preparava contra os actos de maio e junho, passo que, na opinião d’ella rainha, augmentaria em vez de diminuir as desgraças da patria.

Saldanha principiou, pois, por não ouvir os pedidos[Pg 200] dos cabralistas que renegavam os Cabraes por terem fugido (O d. de Sald. e o c. de Thomar, anon.) Depois mudou: a rainha mudou tambem. Agora Leonel e os setembristas queriam seduzil-o; Palmella chegou a obter d’elle annuencia para a expulsão dos Cabraes do Conselho d’Estado; mas, pelo fim de agosto, já o marechal se entendia com Gonzalez Bravo, alter ego de Cabral em Lisboa. O seu amigo Howard, embaixador da Inglaterra, advertia o particularmente, como a uma creança tonta: for God’s sake, be cautious!—tenha juizo, pelo amôr de Deus! (Carta de 29 de agosto; em Carnota) A Inglaterra não approvava de modo algum a restauração cabralista projectada; e foi o que se viu claramente no decurso da guerra. A preponderancia da influencia franco-hespanhola em Portugal não lhe convinha.

Entre as varias tentações com que o disputavam, levou por fim a melhor o cabralismo. Em 24 de setembro acceitou a presidencia d’esse partido; e de Madrid, o conde de Thomar confessou-se-lhe obediente soldado. Com a sua fôfa basofia, Saldanha, ingenuamente pacifico, propôz a Palmella um ministerio de conciliação. Pois se elle em pessoa, elle, o grande marechal, queria a paz e se lhe sacrificava,—elle o arbitro, elle o tudo! Pobre infeliz que não via em si aquelle tronco de que José Liberato nos falou! Pobre simples, sem talento, de que a anarchia apenas fazia um chefe—como a cortiça que tambem boia e corre sobre a agua revolvida! Palmella recusou; e então o marechal sentiu o passo que déra e como estava obrigado a ir até ao cabo, a representar o papel para que, sem o saber, desde muito a rainha o escolhera: seu marechal, d’ella e do conde de Thomar.

Era indispensavel outra Belemzada; e Saldanha[Pg 201] que assistira á primeira, receiava-o. No paço estavam elle, a rainha, o esposo, o padre Marcos e Dietz: n’essa conferencia, a soberana expôz o seu despeito e o sue plano. Saldanha observou a S. M. que se não fôsse bem succedido e não morresse na empreza, seria inevitavelmente fusilado, e ella, a rainha, expulsa do reino. O professor objectara ser n’esse caso melhor pôr de parte o projecto, ao que a rainha, voltando-se para o marechal, retorquira: «Deixa o lá; manda-o para um convento de freiras. Antes quero perder a corôa do que seguir sendo insultada todos os dias. Se fôr necessario, tambem eu sairei, tambem irei ás barricadas». (Carnota, Mem.) Pittoresco esboço de uma scena da Edade-media!


Terceira, porém, não era como Saldanha. Na sua mansidão era grave, e serio na sua curta capacidade. Aristocrata por temperamento e educação, estivera em 23 ao lado do rei, contra as côrtes jacobinas; mas desde que mudara em 26, conservou-se o mesmo sempre. Bondoso e pacato, brioso e valente, nada chimerico, amando a boa-vida e o cumprimento dos deveres, não era odiado pelos inimigos, embora fôsse o apoio mais seguro do throno liberal. E mais seguro, dizemos, porque a sua adhesão não proviera em 26 de uma opinião favoravel á doutrina da CARTA: opinião que teria mudado sem duvida, como a tantos outros, a todos, succedeu.

A sua adhesão provinha de uma preferencia pessoal por D. Pedro, de quem se sentia o vassallo, o homem-ligio: para onde o imperador fôsse, ou a rainha sua filha e herdeira, ia elle. De doutrinas não sabia; tinha só instinctos, sentimentos, e esses[Pg 202] eram aristocraticos e conservadores; nem podiam ser outra cousa, com a linhagem, o temperamento e a educação do duque. O constitucionalismo, e as suas fórmulas e discursos, eram apenas uma distracção e um habito do seu genio: custar-lhe-hia a viver sem o systema representativo, porque o entretinham muito os debates da imprensa, as discussões do parlamento, e não podia passar sem as conversas animadas e ás vezes chistosas dos corredores da camara. (Macedo, Traços) Cortezão, homem-do-mundo, era um personagem das antigas côrtes arrastado para a vida do liberalismo burguez pela fidelidade ao suzerano.

Se a demagogia o irritava, provocando n’elle um odio desdenhoso, o das Archotadas, o dos tumultos de Lisboa em 35, etc., a burguezia de petulantes parvenus provocava-lhe uma frieza ironica. Assim, repellira os Cabraes do governo, negando-lhes o exercito contra a Maria-da-Fonte; mas logo se retirou tambem, por não ter aquelle desejo pueril de Palmella de não ficar de parte. Não pactuaria com os patuléas como o diplomata pactuava com elles, com todos, com o diabo em pessoa, a ver se conseguia equilibrar um throno, ou um monte de degraus desconjuntados, para sobre elle reinar com a sua moderação e a sua sabedoria. Vendo-o assim descer, inclinar-se para a democracia clamorosa, Terceira naturalmente se arrependeu do acto de abandonar os Cabraes á condemnação popular e de certo as combinações que tinham precedido a «revolta dos marechaes» (37) se renovaram para uma outra aventura. Mas os conservadores tinham feito dos Cabraes mais do que chefes, uma bandeira, e não viam no seu gremio pessoas que, em talentos, em coragem, em audacia, podessem medir se com elles. (Macedo, Traços)[Pg 203] Os Cabraes estavam em Hespanha, onde tambem reinava o cabralismo da união-liberal, e de accôrdo com o reino visinho, podiam suffocar-se de uma vez a demagogia e o miguelismo que ameaçava levantar cabeça. Costa-Cabral governaria de fóra o barco n’esta sua nova derrota, Saldanha ficaria em Lisboa, Terceira iria para o norte.

E a rainha? Que papel era o seu, n’esta segunda aventura, já o vimos. Não só apoiava: instigava, ordenava. Não tremia jogando talvez a cabeça, decerto a corôa, porque tinha coragem para tanto; porque essa corôa estava, ou pensava ella estar, em maior perigo, antes, do que depois do golpe-d’Estado. Se se não pozesse cobro á demagogia—e Palmella não queria, não sabia, ou não podia fazel-o!—a historia precipitar-se-hia; e devemos lembrar-nos de que as recordações dos casos de Paris e da sorte de Luis XVI, que por falta de audacia morreu, davam fundamento á resistencia. A rainha, por não ter a perfidia de um Luis Philippe, não podia sophismar o systema: atacava pois de frente, com audacia viril, á portugueza. Filha de reis, fôra educada por mestres que lhe ensinavam o cabralismo como a expressão pura do systema liberal. A sua sinceridade nobre não pretendia ao absolutismo antigo, mas queria a doutrina da CARTA de seu pae, repellia com energia os ataques da patuléa reproba, pé-fresco, ataques dirigidos ao seu caracter soberano e á sua honra de mulher.


Havia pois uma guerra declarada entre a rainha e o povo, assim a patuléa se dizia. O hymno[Pg 204] da Maria-da-Fonte cantava-se com uma lettra francamente denunciadora do estado dos animos:

Apprende, rainha, apprende
Mede agora o teu poder:
Tu de um lado, o povo d’outro,
Qual dos dois hade vencer!

Mas esse sentimento propagado da hostilidade da corôa, sentimento que ganhara raizes com a violencia e os crimes do governo cabralista; essa percepção vaga de um direito novo, de facto opposto ao direito sagrado dos monarchas, quando queria transformar-se em opiniões e programmas, só produzia as antigas chimeras jacobinas, desacreditadas; e se, por um dos acasos da lucta conseguia vencer, era derrotado pela força das cousas (como em setembro), dessorando-se logo na mão dos mediocres (como em 38 e agora), para se entregar á moderação palmellista. A doutrina liberal achara em Cabral um homem; a doutrina democratica não o achava, não o podia achar, porque longos annos, ainda não decorridos, seriam necessarios para chegar a definir os principios organicos do direito novo.

Os programmas dos democratas em 46 eram uma repetição de Setembro, já renegado pelo seu homem eminente, Passos; e com razão se previa que a dictadura de José-Estevão não seria mais do que a repetição aggravada das scenas anarchicas de havia dez annos. Que pediam, do seu club do Sacramento, José-Estevão, Foscôa (Campos), Sampaio e os socios, na vespera das eleições independentes annunciadas por Palmella do governo? Constituinte! a antiga panacéa setembrista: mas—oh, fatal condição das chimeras!—os que exigiam uma constituição nova, saída da vontade do povo,[Pg 205] iam ao mesmo tempo dizendo já qual essa vontade havia de ser, e o que a constituição havia de fixar: «Proclamação da soberania nacional como fonte de toda a authoridade;—Reforma da camara dos pares;—Eleições directas;—Liberdade de associação e de imprensa;—Approvação dos contractos pelas côrtes;—Reorganisação da guarda-nacional;—Economias na despeza até equilibrio do orçamento;—Reducção do effectivo do exercito;—Suppressão do conselho-d’Estado;—Fomento industrial e economico;—Reforma da lei da regencia, para que esta não possa recaír em extrangeiro, embora naturalisado;—Exame dos contractos desde 42 e abrogação dos illegaes;—Nacionalisação do pessoal da casa real;—Prohibição dos deputados receberem empregos ou mercês». (V. o Manif. da Ass. eleit. setembr. 5 out. 46)

Era um rol de receitas infalliveis: a patria seria, sem duvida alguma, salva. Mas quem analysar, cada uma de per si, as propostas, e todas no seu conjuncto, obtem uma impressão singular. Não tornaremos a falar já da contradicção organica indicada antes; não entraremos no minucioso estudo do papel. Acima de tudo, vemos: constituintes, eleições directas (mas que o governo não possa comprar esses soberanos representantes do povo soberano!) e guarda-nacional, isto é, a volta a 1836. Ora os dez annos decorridos e as confissões do proprio Passos não seriam uma resposta cruel a tribunos tão ardentes, mas tão pouco originaes? A precipitação com que as cousas, entregues ás mãos já trémulas de Palmella, iam pendendo para o lado da revolução, é um dos motivos da decisão tomada em 6 de outubro; mas no programma do Sacramento lemos items que obrigam a scismar: Fomento economico? Economia na despeza? Exame dos contractos?—Que[Pg 206] intervenção é esta da finança nos projectos dos ideologos, tão mal conceituados fazendistas?


É que a solução violenta de 6 de outubro foi tambem determinada pelo crescer da crise. A Maria-da-Fonte declarara-a; e os seus ministros nem a sabiam resolver, nem podiam com os agiotas, suzeranos do Thesouro, ameaçados de uma ruina total. De abril a junho o 5 por cento baixava de 67 a 50 e com elle, na mesma razão, todos os papeis de bolsa. Tres dias depois da queda de Costa-Cabral, declarava-se o curso forçado das notas do banco. (Dec. 23 de maio) Houvera uma corrida, e os cofres ficaram vasios: todo o producto da emissão, e mais ainda, estava no Thesouro. De tal fórma se tinha mascarado por quatro annos a sua penuria: fôra como uma restauração de papel-moeda; e agora, decretado o curso-forçado, era de facto outra vez a praga que 34 quasi supprimira. Mas se o Banco era credor do Thesouro, e o Thesouro lhe não podia pagar, que havia de fazer o governo? Importar dinheiro? D’onde? com quê? Pedil-o aos agiotas? Elles, em vez de darem, pediam, reclamavam, e obtinham tambem uma moratoria para as promissorias da Confiança, que de outra fórma quebraria. (Dec. 29 de maio) Tambem o dinheiro d’ella fôra todo parar ao insaciavel Thesouro portuguez faminto, desde 1820 até hoje, e talvez para todo o sempre condemnado á fome.

E a Maria-da-Fonte, a que reclamava em programmas o exame dos contractos, era a propria cujos ministros aggravavam a crise, tornando solidarios o Banco e a Confiança, preparando a ruina[Pg 207] já começada da emissão fiduciaria portugueza. E porque? Porque esses ministros, e todos, eram forçados a obedecer á aristocracia nova creada pela liberdade: com a differença de que uns a reconheciam, e outros, nem por se rebellarem contra ella, eram menos os seus servos. Em 15, o 5 por cento ainda valia 62; depois do decreto de 29 desce a 50. Nos primeiros dias de agosto as notas rebatem-se a 400 e 480 rs. (V. Boletins da bolsa, nos Diarios)

Os financeiros perdiam-se, olhando o Thesouro vasio; e sob o nome de economias decretavam uma banca-rota duas vezes má: porque rematava a crise, acabando de arruinar o credito; e porque cerceava os vencimentos dos empregados, sem ficarem com isso habilitados a pagar o resto dos juros, nem dos ordenados. A divida interna, já com o desconto de uma decima, recebia segunda; e duas de uma vez a externa. Perdida a esperança de emprestimos extrangeiros, podia-se, com effeito, cortar as unhas aos judeus de fóra. Ao mesmo tempo, os empregados soffriam uma deducção de duas decimas. (Dec. 21 de agosto) A bolsa fecha: não ha quem dê um real pelas inscripções; (18 agosto-setembro) e o rebate das notas cresce, cresce sempre. Já tinham expirado as moratorias e, como expediente, prorogaram-se por mais quarenta dias. Os tortulhos nasciam da crise: agiotava-se largamente em rebates.

E não se via o meio de saír dos embaraços, porque as declamações contra os Cabraes nada faziam; e a victoria do setembrismo, com as suas chimeras de rectidão, com a sua incapacidade financeira, não conseguiria nas eleições proximas senão queimar tudo ... E depois? depois?... D. Miguel? A Hespanha? A cabeça andava-lhes á roda.

Em 1 de outubro uma medida rasgada, acompanhada[Pg 208] de conselhos prudentes e exortações patrioticas, appareceu no Diario. As moratorias, o curso-forçado das notas prorogavam-se até ao fim do anno. Mas descancem: não haveria mais agiotagem, porque o governo punha um fiscal seu no Banco, e n’esses tres mezes ia arranjar-se o dinheiro para lhe pagar, e elle então pagar as notas. Com a Caixa de amortisação, creada na Junta, solver-se-hia a divida fluctuante, ominoso legado cabralista. Essa caixa havia de encher-se depressa: adjudicavam-se-lhe os bens-nacionaes ainda restantes e o que fôsse rendendo a cobrança das dividas activas dos conventos! e os impostos em debito até 41! e os juros de quaesquer inscripções amortisadas! e uma dotação annual de 100 contos sobre o rendimento das Alfandegas. (Dec. de 1 de outubro) Os cem contos ao anno não davam para o juro de uma divida superior a vinte mil: tudo o mais eram palavras ou poeira, a vêr se cegavam a vista dos crédores.

Baldado empenho, que só deu de si pôl-os decididamente do lado da reacção tramada, uma vez que a fraqueza palmellista não era capaz de resolver uma crise, na qual tinham as fortunas arriscadas. Ao lado de Saldanha com a sua espada, estavam elles, pois, com as suas bolsas. Passou o dia 6 de outubro; ganhou-se a victoria: mas deram todos com inimigos imprevistos. Protestava, insurgia-se o reino inteiro—e o rebate das notas, subia, subia! Em vez da paz, era a guerra; em vez da fortuna, a ruina total. Saldanha desembainhou a espada; os agiotas mostraram os dentes: multado em 50 a 500 mil réis quem recusar receber notas! (Dec. 14 de nov.) Mas como impedir a subida dos preços? Mas como usar da espada, se Antas no Porto se bandeou? Os capitalistas apressaram-se a[Pg 209] exigir as arrhas da sua adhesão; e a 19 appareceu decretada a fusão do Banco e da Confiança: complicada, aggravada a crise com um negocio em que a agiotagem salvava os seus capitaes, abrigando-os á sombra do curso-forçado permanente de 5:000 contos outorgado ao novo banco, verdadeiro papel-moeda que valeria para a totalidade dos pagamentos até junho de 47 e para dois terços até ao fim de 48, devendo ir sendo amortisado gradualmente n’esse periodo. (Dec. 19 de novembro) As acções da Confiança triplicavam de valor, e as notas baixavam sempre. A agiotagem déra o seu golpe-d’Estado, salvando-se para arruinar a nação: mais feliz do que os politicos, a ponto de irem a pique no naufragio do paiz.


Saldanha, ou antes Cabral, de quem elle era o homem-de-ferro, contara com a resistencia do reino e prevenira-se.

Estou persuadido de que a ultima repentina mudança da administração em Portugal foi em parte levada a effeito por conselhos de Madrid, e que o marechal Saldanha tem estado, sem o saber, servindo de instrumento para pôr em pratica os planos do conde de Thomar e de Gonzales Bravo, nos quaes me parece que uma influencia hespanhola e uma união intima dos governos de Madrid e de Lisboa para o futuro se apresentam como causas principaes. (Southern a Palmerston, 22 de out. Livro azul)

A Hespanha, com effeito, representava n’esta segunda Belemzada o papel que a Belgica e a Inglaterra tinham tido na primeira; e o ministro inglez de Lisboa só se enganava suppondo Saldanha ignorante dos planos do conde de Thomar, de quem elle era o instrumento. Os acontecimentos precipitaram-se, pondo a claro a verdade, e collocando a[Pg 210] Inglaterra na posição falsa que durou até ao fim, de não tolerar a intervenção da Hespanha, sem poder deixar de acudir a sustentar o throno da rainha, mas sem se convencer tampouco de que esse throno perigasse com os ataques setembristas. Restaurou-se todo o antigo pessoal administrativo e militar cabralista, annullou-se a convocação das côrtes pelas eleições directas, e o rei D. Fernando tomou o commando em chefe do exercito, que tinha de entrar em campanha.

O Porto rebellava-se com a divisão de Antas, prendendo o proconsul Terceira ahi mandado; mas pedindo apenas, moderadamente, a demissão do ministerio. Porém ao mesmo tempo as proclamações circulavam em Lisboa, respondendo á da soberana n’estes termos:

Povo portuguez! A revolução do Minho, a revolução mais gloriosa da nação portugueza foi trahida pela Soberana! Não a acredites! Olha que ella mente como sempre tem feito!

Povo portuguez! Olha que a rainha, chefe do Estado, que devia ser a primeira a respeitar a opinião dos povos, com as palavras de paz na bocca e veneno no coração, saíu para o meio das ruas da capital e poz-se em guerra declarada com a nação! Não contente com o sangue e ossos de que é composto o seu throno, ainda continua a fazer mais victimas—ainda este vampiro quer mais sangue!—é a paga que este tigre dá ao povo infeliz que lhe deu um throno!

Povo portuguez! Tu nada lucras em conservares no teu seio esta vibora—ou ella hade respeitar os teus direitos ou então que tenha a sorte de Luiz XVI—este porém foi menos culpado!

Povo portuguez! A tua rainha diz que quer paz, mas consente que os janisaros assassinem e roubem, como o estão fazendo.

Povo portuguez! Ás armas! Senão serás fusilado ou deportado! Viva Portugal! Ás armas! e seja o novo grito de guerra: Viva D. Pedro V! (ap. Livro azul; corr. 11 out.)

[Pg 211]

Em Coimbra, Loulé, governador civil, ao saber do golpe d’Estado, rebella-se, proclama, reconstitue o batalhão academico. Foi isto a 8; no dia seguinte Aveiro segue o exemplo. Campos, no Grito nacional, dizia claramente:

Ha poucos dias arrojámos dois (traidores sc. Cabraes) pela barra fóra: pódem ir mais alguns. Marche todo o paiz a Lisboa e esmague a cabeça da hydra (a rainha?) se quanto antes a facção parricida não esconder a sua vergonha nas ondas do oceano.

A guerra estava formalmente declarada: chegava o momento de appellar para as prevenções tomadas. Saldanha, então, officiou, pedindo a intervenção aos governos de Londres, Paris e Madrid, segundo o tratado de 22 de abril de 34, allegando que os miguelistas saíam a campo. (Relat. do min. neg. estr. em 48) De Madrid estava certo, e os hespanhoes mandaram logo um corpo de observação para a fronteira; (Ibid. off. de Isturiz a Renduffe) mas a Inglaterra, não vendo miguelistas, queria impedir a intervenção hespanhola e forçar a rainha á paz. Em toda esta historia ver-se-ha a funesta consequencia de uma tal politica, protrahindo uma guerra desoladora; porque, se a Inglaterra não queria consentir na intervenção da Hespanha para dar a victoria á rainha, tampouco intervinha para impôr uma conciliação. Nós, em casa, evidentemente não tinhamos força para nos governarmos: e depois de doze annos de liberdade, o Portugal novo achava-se, como o antigo se achára, dividido em duas fracções sem que nenhuma tivesse poder bastante para submetter a contraria.

Palmerston ordenava para Madrid ao seu delegado que não consentisse na intervenção; (Livro-azul P. a Bulwer, 5 nov.) e para cá mandava-nos um coronel,[Pg 212] o Wylde, afim de negociar uma paz entre os belligerantes. Melancolica situação antiga em que nos achavamos, de que a liberdade nos não tirava ... Costa-Cabral já era nosso embaixador em Madrid, e a Hespanha, de accordo comnosco, procedia bizarramente, apezar de soffreada pela Inglaterra. Mandara para a fronteira um exercito, e enviava para Lisboa trezentos contos: (Ibid. Southern a Palmerston, 22-3 de out.) assim podesse trazer a Lisboa e ao Porto os seus soldados!—suspirava Cabral em Madrid, e na capital Saldanha.

Porque a insurreição lavrava, e para peior, o miguelismo não no pronunciava bastante para justificar a intervenção extrangeira. (Ibid. 22, 3, 9 de out.) As noticias que lhe iam de Lisboa mantinham Palmerston na sua reserva. «Era uma revolução como outra qualquer: o inverso de 42; a propria JUNTA batia os miguelistas, raros e sem importancia». E tudo ardia! as guerrilhas surgiam de todos os lados. O Galamba e o Batalha com 500 homens corriam o Alemtejo; José-Estevão estava em Alcaçovas com 600; (Ibid. 22-3) Taipa e Sá-da-Bandeira no Porto; Aguiar em Coimbra; Mousinho-d’Albuquerque e Bomfim tinham desertado do Lisboa; Antas vinha, caminho da capital, já em Leiria, com 2:500 homens, fóra guerrilhas, devagar, aggregando gente todos os dias. (Ibid. 29) Que seria de Lisboa, a que o inglez não deixava o hespanhol acudir? O governo, entretanto, preparava-se, lançando mão de tudo. Arregimentavam-se os empregados-publicos. Havia rusgas; nas boccas das ruas os cabos de vigia prendiam. Todo o homem de 18 a 50 annos tinha de pegar em armas. Formara-se um batalhão das Obras-publicas, outro do Commercio. Fortificavam-se, artilhavam-se as linhas. O Banco dera 300 contos para acudir ás urgencias.[Pg 213] Prendiam-se os suspeitos nos navios no Tejo: todo o setembrista fugia, e Palmella em pessoa estava homisiado.(Ibid. 22-3). Embargavam-se as cavalgaduras e as pessoas, obrigando-as a trabalhar nas linhas.

Mas apesar de tão grandes esforços e de meios tão violentos, o rei D. Fernando, commandante em chefe do exercito, não podia passar revista a mais do 3:000 homens. (Ibid. 29) Que ia ser da rainha, alvo de todos os tiros? Que resultado, o d’essa guerra encetada? Se a Inglaterra não havia de vir a consentir que os vencedores acabassem de vencer, que singular escrupulo a embaraçava?—E se os sublevados não fossem afinal agrilhoados pela intervenção, que teriam feito? Depôr a rainha? É natural. Proclamar uma republica? Provavelmente. Mas nenhum d’esses dois actos destruiria os males constitucionaes do paiz, causa da sua desgraça: nem a anarchia das doutrinas, nem a penuria universal.

2.—A JUNTA DO PORTO

José Passos era o presidente da camara do Porto. Já o telegrapho dissera o golpe-d’Estado de Lisboa, quando em sessão abriu os officios do novo governo, e o aviso da vinda do duque da Terceira. «Vou fazer a revolução!» exclamou, levantando-se e saíndo. (D. João de Azevedo, Os dois dias de outubro, ex. annot. por J. Passos) Chegava ao mesmo tempo (9) ao Douro o vapor com o duque, Santa-Maria, Vallongo e Campanhan, um estado-maior para o exercito do norte. José Passos desceu da Casa-Pia ao Carmo; esbaforido, mandando tocar a rebate, convocando os patriotas ás armas; e feito isto, pronunciou[Pg 214] a guarda-municipal e os regimentos 6 e 3. Depois, montou a cavallo, dirigindo-se a Villar, na margem do rio, a receber condignamente o duque já desembarcado. A cidade estava sublevada, a guarnição por ella, os sinos batiam a rebate, o povo borborinhava nas ruas, pedindo armas, e os gritos nasaes da turba destacavam-se no côro do rufar dos sóccos sobre as lages das calçadas. Entardecia: Passos era um rei. O sussurro da agitação ondeava até ao fundo da grota de Villar, a poente da cidade, onde os generaes de Lisboa se tinham recolhido na casa do Conde de Terena, quando, já pelo escuro da noite, o rei do Porto chegou, seguido e acclamado pela sua turba, perante o lugar-tenente da rainha de Lisboa. A cidade não obedecia, rendesse-se o duque. Elle recusava-se, com firmeza, assegurando que cumpriria a missão a que viera. Fóra, o povo clamava, exigindo o reembarque dos generaes para o Mindello que os trouxera. Um certo Navarro subiu, e em nome do povo prendeu o duque.—«Meia duzia de rotos que estão lá em baixo?»—«O bastante para repetir as scenas de Alcantara!» (Ibid.) Passos começou então a perceber que o povo se excederia, que era capaz de trucidar alli o duque, se elle o abandonasse. Tomou-lhe pois do braço e desceram, assim, até ao Ouro, sobre o rio, para embarcar. O duque estava effectivamente preso, e mais enleiado do que elle o seu guardião, defendendo-o contra a plebe ameaçadora. Em uma noite negra e espessa de nevoeiro penetrante que suffocava, alagando. Nada se via; apenas do meio do susurrar da turba já se destacavam, já se repetiam os gritos—mata! mata! Ao longe distinguia-se o rodar breve das seges que fugiam com os timoratos, ouvia-se o rebate desesperado dos sinos; por entre o nevoeiro[Pg 215] moviam-se os archotes de lume vermelho, despedindo faiscas e rolos de fumo, pondo manchas de luz funebre na massa espessa e humida do ar. Seguiam pela estrada da Foz: ao lado, no rio negro, fluctuavam os reverberos da procissão que parecia um enterro, ou o levar de um reu ao patibulo. A turba clamava—mata! mata! e as suas ondas cresciam, ameaçando passar por cima dos que iam adiante. Passos que levava o duque pelo braço era corpulento, muito gordo; e o duque, sereno, indifferente ao perigo, quando a onda do povo crescia impellindo-os, dizia-lhe:—«O José Passos é uma formidavel trincheira!» (Macedo, Traços) Assim chegaram á Cantareira, para embarcar; mas o escaler desapparecera. José Passos, receando que o embarque fosse o signal da fusilada, mandara-o embora, projectando já guardar os presos no castello para os salvar. (Disc. do conde das Antas, sess. de 15 fever. 48)

O barco não apparecia; nada vinha do rio, negro e indifferente. Caía a chuva, roncava o mar proximo nos baixios e cachopos da barra, e a furia do povo crescia n’um clamor terrivel—mata! mata! O gordo Passos suffocava: o cordão dos que com elle defendiam o duque, o Browne, os Limas, os dois Navarros, Custodio Teixeira e os mais, continham a custo as ondas do povo. E a chuva fria, miudinha, encharcava, deixando distinguir mal a massa negra dos muros do castello bordados de recifes contra os quaes o mar grunhia: só na densa bruma scintillavam as lanternas entre as ameias, como pharoes a uma tripulação em navio corrido pelo tempo. Dando a pôpa ao vendaval, acossados pelas ondas da turba, batidos pelas rajadas de vozes pedindo morte, foram correndo a entrar no porto de abrigo, dar fundo no castello.[Pg 216] O duque estava salvo, e preso. Passos socegado, regressou ao Porto.

No dia seguinte, com a adhesão do general da divisão do norte, o conde das Antas, definiu-se a attitude do Porto sublevado: os extrangeiros que dirigiam a rainha tinham-na obrigado a mudar o ministerio; S. M. estava coacta e era mistér correr ás armas para a libertar.—O programma da nova JUNTA repetia ao avesso o da de 42; e as revoluções liberaes eram forçadas a usar de expedientes antigos de 23 e 24: os expedientes apostolicos. Nada ha novo á luz do sol!

Para libertar a rainha saíu, então, para o sul o conde das Antas com o seu exercito, a juntar-se em Santarem a Bomfim: reunidos salvariam Lisboa. O norte do Douro considerava-se seguro e por isso na urgencia de congregar forças, retiraram-se as guarnições do Minho. Vianna, proclamada a JUNTA, ficara sem tropa: os cartistas aproveitaram. Expulsaram da praça o inimigo e fortificaram-se. Veiu em milhares o povo dos campos dar um assalto, e a cidade capitulou: na refrega ficara morto o tenente que a defendia. Os camponezes enfurecidos—eram quatro mil—pediam vingança e mortes, exigindo as chaves do castello (onde o velho governador reformado prendera tambem os mais compromettidos) mas o homem prudente perdera as chaves a tempo, enfurecendo ainda mais a turba com o seu ardil. Começavam os tiros, preparavam-se os machados, ia começar o assalto, o arrombamento e a matança inevitavel, quando uma piedosa senhora teve uma idéa abençoada.

Viu-se apparecer no meio das ondas do povo em furia uma procissão de padres de cruz alçada, caminhando solemnemente, cantando—Benedictus! Benedictus! Dominus Deus, Israel! E os minhotos[Pg 217] sobresaltados paravam, escutavam, como tocados por um milagre. A furia começava por ceder ao espanto. Que vinham fazer os padres? que mandaria Deus agora?... Á sombra do crucifixo erguido, um sacerdote lh’o disse; e caíram todos de joelhos, contritos, batendo nos peitos:—Bemdito! bemdito e louvado seja! (D. João d’Azevedo, Os dois dias, etc.) Era uma scena primitiva, e eloquente para nos mostrar até que ponto o povo tomava parte na resurreição do setembrismo no norte. Seria José Passos a verdadeira Maria-da-Fonte?


Não era de certo elle a encarnação do genio das populações minhotas, superiormente individualisado na poetica pessoa do irmão; mas era uma resurreição do espirito burguez e portuense, de tradicionaes arruaças, na Edade-media, contra os bispos, e depois contra os reis. Bacharel tambem, aprendera em Coimbra as fórmulas benthamistas em que agora se moldava o antigo espirito de rebeldia burgueza. O Porto era um reino seu, porque o genio portuense, em todas as suas varias cambiantes, se achava n’elle individualisado. Era pratico, popular, bonacheirão, e no fundo bondoso, com uma ironia rasteira que os patriotas não chegavam a perceber e por isso os não offendia. Era corpulento, quasi obeso, e com o seu chapeu alto, sempre na cabeça, os collarinhos antigos que chegavam á raiz dos olhos, a sobrecasaca longa, o cinturão e a espada pendente, esbaforido, communicativo, abraçando toda a gente nas ruas, satisfeito de si, feliz, na paz da sua consciencia e na importancia da sua pessoa: José Passos era a imagem d’essa burguezia ingenua das cidades de tradições feodaes, rebellada contra os irmãos burguezes[Pg 218] que o novo systema levantára á classe de aristocratas.

José Passos reinava no Porto como um pater-familias: todos eram filhos, amigos, patriotas, irmãos. A rua era uma permanente assembléa, e o governo similhante ao que a historia nos conta das velhas republicas da Grecia, e das communas ou concelhos da Edade-media. Resolvia-se tudo familiar, popular, patriarchalmente. Faltava o dinheiro? O Passos ia em pessoa ao banco, (Commercial) entrava na thesouraria, dava no balcão um sonoro murro, e exclamava: «Arre! D’aqui ninguem sae!» E contava, atava o sacco e partia. (Macedo, Traços) Assim tirou 67 contos ao banco Commercial, e 16 á companhia dos vinhos. (Ibid.) Ninguem punha em duvida a sua honradez e o seu espirito de economia burgueza era falado com motivo. Arranjou o governo e a guerra, durante quasi um anno, com mil contos, se tanto. Conhecia a fundo todos pormenores da administração: era um homem do officio politico, pratico, sem a sombra de uma idéa, apenas com as fórmulas e rotulos decorados na mocidade. N’isto via-se o contrario do irmão.

A sua bonacheirice, a sua franqueza popular alegravam, incutindo esperanças, dissipando duvidas, afagando ambições, lisongeando vaidades. Promettia sempre, tudo. Que proporções viria a ter a Alfandega, se lá entrassem todos os que pediam empregos, e a quem o tribuno popular os promettia sempre, invariavelmente? A Alfandega era o eldorado dos patriotas eximios. Com o chapeu enterrado na cabeça descaída sobre o hombro esqueredo, José Passos descia da Casa-pia, onde era o palacio do governo, e os grupos de curiosos, ou de assustados, perseguiam-no. Queria fugir-lhes:[Pg 219] não podia. Seguia apressado, e atraz d’elle, como um rebanho, furando, ás corridas, seguia a cauda dos perguntadores. Que ha?—Isto está aqui, está acabado!—E com um tom de mysterio, como quem revela altos segredos (já de todos conhecidos) ia de grupo em grupo animando os espiritos, picando as ambições. Isto ia bem. O nosso conde (das Antas) era para a cousa. E a vaquinha lá de baixo ia rendendo ... ia rendendo. Grande gente!—Queria sumir-se; outro grupo accudia: E de Lisboa?—Excellente! Ha de ir tudo pelo pó do gato ... salvo o respeito devido á rainha!—Mudando de tom e assumpto: É verdade, já sentou praça? Ah, sim? Bom patriota! Assim é que se querem!—Escapava-se: era em vão.

Outro chegava, mysteriosamente, segurando-lhe a banda da sobrecasaca, dizendo-lhe ao ouvido: Ha cartistas dentro da Junta!—Elle, virando-se, com um ar fino, baixinho, respondia: Socegue; bem sabemos; escrevemos direito por linhas tortas. Isto vae bem, vae bem ... (baixando mais a voz, ao ouvido), mas é para nós: não espalhe o que lhe estou contando, ouviu?—O outro inchava-se; elle queria proseguir. Debalde. Um patriota chegava com um plano de campanha infallivel, seguro ... Dê cá; traz isso escripto? Não? Escreva-m’o, escreva-m’o, meu general!—A paciencia começava a fugir-lhe, quando outro vinha com uma combinação dynastica para substituir D. Maria II e resolver tudo pela raiz.—Pois sim, pois sim, meu patriota. Eu já tenho cinco memoriaes para rei. Mande o seu, e será attendido na occasião competente ...

De tal modo conseguia romper, chegar pela Batalha á Aguia d’Ouro, quartel general do setembrismo, no meio da confusão da gente congregada.[Pg 220] José Passos chamava a isto o methodo confuso, (T. de Vasconcellos, Prato d’arroz doce) e com effeito nenhum outro methodo podia servir no meio de uma agitação vaga, em que as plebes, sem vontade determinada, só com odio aos Cabraes, seguiam os demagogos presididos por chefes cujo proposito era moderar a revolução, convencer a rainha a que pactuasse com elles. O methodo confuso era o methodo natural de uma cidade em coufusão, de um reino confundido. Todo o Porto era um ágora e realisava o programma radical da omnicracia—o governo de todos por todos.

Da Batalha e do Postigo do Sol, observando as janellas da Casa-pia, espiando a saída de alguns dos da JUNTA, vinham os magotes enchendo as ruas até á Aguia-d’Ouro e em frente do Estanislau. A Praça-Nova e os Loyos, a rua de Santo-Antonio e as Hortas, os Clerigos, a rua das Flores até S. Domingos, e por S. João até á Ribeira: todo o coração do Porto borborinhava de gente, falando, resolvendo, discutindo, ameaçando, com a verbosidade e a sufficiencia ingenitas nos filhos da cidade da Virgem. Os mercadores estavam ás portas sentados nos seus bancos, com a cabeça descoberta, os pés nos sóccos, trocando os seus pareceres com os transeuntes. Estalavam nas lages das calçadas as ferraduras de cavallos a galope, vinham ordenanças da municipal correndo: que seria? Que novidade? O soldado no seu caminho, atravessava os grupos com o officio de papel branco entalado no peito, e abriam-se as janellas para vir vêr: que haveria?—Outras vezes eram cavalleiros que chegavam aos grupos, do outro lado do rio, com a banda a tiracollo, a sobrecasaca desabotoada, em vez de barretina um chapeu desabado; uns sem espada, mas na argola do sellote um bacamarte de[Pg 221] bocca-de-sino; outros á paisana, montando bons cavallos, seguidos por creados de farda á velha moda da provincia: eram fidalgos que vinham juntar-se ao povo. A turba acclamava-os, elles paravam, e havia effusões de sentimento, apertos de mão, saudes, vivas:

Eia avante! Eia avante!
Eia avante! Não temer!
Pela santa liberdade,
Pelejar até morrer!

Não descobre o leitor n’esta estrophe o que quer que é de litterario, pouco espontaneo? Que santa é essa santa liberdade? Compare o Rei chegou, francamente plebeu, nada metaphysico; compare o caso de Vianna—Bemdito! e louvado seja!—francamente catholico, tambem nada doutrinario: e diga se n’esse hymno que agora o povo canta, ha a expressão do que elle sente. Não irá o povo levado sem saber para onde, nem porque: apenas impellido por protestos negativos contra os males que o affligem?

São burguezes rebellados, não são o povo em revolução, aquelles que sob a presidencia do Passos se reunem na Casa-pia, o palacio da JUNTA. É uma revolta de communa á antiga, a do Porto. São os popolani grassi, que se levantam contra o podestá de Lisboa. Passos, entendido em politicas, bacharel, plumitivo, não é decerto um Masaniello. O litterato Seabra não vem da rua: traduzia Horacio, falara nas camaras, contara já por alguma cousa na politica (V. a biog. por T. de V. na Rev. contemp.); outrotanto Lobo d’Avila, o general; outrotanto os mercadores de grosso trato; outrotanto o humoristico Almeida e Brito, ouvido nos tribunaes, advogando. Na Casa-pia reinavam patriarchal, espartanamente.[Pg 222] Passos tinha os ministerios da fazenda e dos extrangeiros, que ambos cabiam n’uma sala com duas mezas: n’uma elle, na outra o secretario, official maior, amanuenses e tudo, n’um homem só. Quando havia conselho, o pessoal ia para fóra patulear com os patriotas que enchiam os corredores, á espera de novidades. Terminada a sessão, Passos abria a porta, de chapeu na cabeça, penna entre os dedos, chamava o pessoal (T. de Vasc. Prato d’arroz doce) Não illuda porém tudo isto: a installação era provisoria, porque a definitiva esperava-os em Lisboa. Nada queriam destruir: apenas acabar de expulsar os Cabraes para governarem elles, com as suas opiniões e pessoas, das quaes sinceramente julgavam depender a fortuna do povo. O povo era um bom instrumento, mas se tudo fossem soldados, melhor ainda. «José, fiquei de cama por causa de uma constipação. Esta gente (os populares) deve servir-nos como exercito auxiliar, mas a nossa força real deve consistir nos soldados, ou ao menos em homens que o pareçam». (Carta de Almeida e Brito a José Passos; em Macedo, Traços, etc.)


Esta gente, porém, chamada á revolta sentia pulsar-lhe nas veias o antigo sangue de nómadas barbarescos, de bandidos historicos, serranos guerreiros: não os minhotos, mas os transmontanos, os beirões, os extremenhos, e toda a população transtagana. A sedição lavrava pelo reino inteiro. A tyrannia cabralista acirrara o instincto adormecido, e as politicos do setembrismo rebelde davam o pretexto para a explosão. Por toda a parte surdiam guerrilhas; de todos os lados o exercito se bandeava. José-Estevão e Vasconcellos tinham[Pg 223] saído de Lisboa a sublevar Santarem, quartel de cavallaria 4; e tres guerrilhas esperavam, dominando na Extremadura, a chegada do exercito que vinha do Porto, com o conde das Antas: Vasconcellos no centro, flanqueado por José-Estevão pela direita e pelo conde da Taipa pela esquerda. A JUNTA nomeara Braamcamp governador civil da capital, in partibus, porque Lisboa era do governo; mas pelo districto o governador, com o conde de Villa Real e outros, andavam de terra em terra alliciando sectarios, fomentando a revolta. (Elog. hist. de A. J. Braamcamp, do a.) Ao sul, mandava Mantas em Setubal, o conde de Mello e Galamba no Alemtejo; o general Celestino levantara-se no Algarve com o guarnição; Castello-Branco, Elvas, e Santarem onde Manuel Passos creara uma JUNTA (D. João d’Azevedo, Dois dias, etc.), eram contra o governo.

A 6 de novembro saíu de Lisboa Saldanha com o seu exercito para se bater com o de Antas. Na capital lavrava um terror verdadeiro, e completa anarchia nos partidos. Presentia-se uma catastrophe, porque os do governo, vendo o opposição da Inglaterra ao auxilio da Hespanha, acreditavam-na alliada da JUNTA e consideravam Wylde um emissario mandado a expulsal-os do poder. Corria que os inglezes davam todo o dinheiro aos rebeldes. E porque fomentariam assim a rebellião? Para minar a ordem reinante em Hespanha, creando tambem lá um partido exaltado que contrariasse a influencia franceza, dominante desde o fatal successo dos casamentos de Guizot. Assim a Inglaterra era a supposta alliada da JUNTA, e não só ella o inimigo do throno portuguez: tambem os falsos cartistas, os perfidos ordeiros. «Cartistas! (dizia uma proclamação) O inglez Palmella, o rapoza Magalhães, o inglezado Athouguia e outros que taes, tratam com[Pg 224] um coronel inglez de nos vender á Inglaterra. Fóra com os traidores! fóra com os marotos! Se não querem deixar-nos a bem, saiam a mal: a pau ou a tiro! Fujam ou morrem!» (No Livro azul, 19 de nov.)

Tal era o estado do centro e do sul. No norte, áquem Tamega, obedecia tudo ao Porto; mas em Traz-os-Montes Cazal, declarando-se pelo governo de Lisboa, veiu descendo, na esperança de combinações cartistas preparadas dentro da cidade da JUNTA. Dois regimentos se bandeariam, indo soltar o duque da Terceira e Cazal apoderar-se-hia da cidade. Mas dos officiaes comprados, uns não estavam seguros dos sargentos, outros receiavam as consequencias do combate: logo que os dois regimentos (3 e 15) se denunciassem, seriam provavelmente esmagados pela populaça; e a patuléa iria á Foz, e a consequencia seria o assassinato do duque e seus companheiros. (T. de Vasc. ibid.) Em vão, portanto, desceu Cazal até Vallongo; em vão esperou; e despeitado por ter de recuar, vingou-se trucidando barbaramente as aldeias que fugiam d’elle para os altos das serras—Agrella, Villarandello, Constantim, (D. João d’Azevedo, Os dois dias, etc.) Pobre gente sacrificada ás contendas liberaes! Era o primeiro sangue que corria em abundancia, n’este novo episodio da historia sangrenta de vinte annos! (1831-51)

Cazal retirou sobre Chaves, e do Porto saíu Sá-da-Bandeira com uma divisão para o bater. Encontraram-se em Val-Passos, (16 de nov.) onde dois dos regimentos do Porto se bandearam para o inimigo, dando-lhe a victoria. Batido, o general regressou pelo Douro ao Porto, onde havia uma desordem tão grande como a da capital. A JUNTA era um cháos patriarchal: cada cabeça, cada sentença. Apenas a sedição se declarara, e já os burguezes[Pg 225] rebeldes começavam em rixas: que faria se vencessem! Manuel Passos chegara ao Porto, fugindo ao conde da Taipa de quem os soldados tambem fugiam, por elle os sustentar a epigrammas. (Azevedo, Dois dias, etc.) Antas não bolia de Santarem, esperando que Saldanha o fosse desafiar, em vez de aproveitar da fraqueza do inimigo. Cazal ficára dominando em Traz-os-Montes. A sedição parecia um fogo-de-palha: tão breve crescera, como ia morrer. Wylde chegára, falara, apresentara as suas propostas, como delegado de Palmerston que de Londres resolvera conciliar os inimigos: mas era inutil. O burguez é teimoso. No meio de tão graves difficuldades, occupavam-se os da JUNTA a mascarar-se de fidalgos, distribuindo entre si titulos, commendas, cartas-de-conselho. (Azevedo, Dois dias, etc.) Sempre assim tinham sido as communas rebelladas contra os barões. A principio, o Porto só falara em paz: agora que a derrota de Val-Passos o ameaçava de morte, a sua voz tinha ameaças. Levantára-se contra o «systema de sophisma, fraude e corrupção»; houvera «bayonetas contra o peito dos eleitores desarmados, (45) descargas de fusilaria: o sangue dos cidadãos correra». E era um tal governo que a rainha restaurara em 6 de outubro! Queria «lançar grilhões ao paiz?» Não; por força estava coacta. Mas «seu augusto esposo descera da sua elevada posição á de simples empregado de um ministerio protervo».—«A Europa (leia-se Wylde-Palmerston) não consentirá que extrangeiros (leia-se hespanhoes) venham roubar um paiz innocente á liberdade!» (Manif. da Junta do Porto, 3 de dezembro) Que singular insistencia no qui-pro-quo! D’onde vem o motivo? Do facto de a JUNTA pedir auxilio a um povo cuja soltura receia; de querer os revolucionarios sem a revolução; de appellar para as plebes,[Pg 226] para ficar burgueza; de proclamar a democracia e ao mesmo tempo um respeito official á rainha, que injuriava em particular e por vontade quereria vêr derrubada, necessitando por politica mantel-a no throno—mas coacta, de uma verdadeira coacção, e não supposta, como a allegada no Manifesto e em que ninguem acreditava.

As consequencias de uma situação tão singular, quasi ridicula, viram-se quando, no fim, victoriosa, a JUNTA achou que a victoria lhe não servia e lhe era indispensavel ser vencida; essas consequencias viam-se já na falta de unidade nos planos, no rivalidade dos commandos, deploravel mal que deu de si a morte de muita gente.

A guerra, generalisada a todo o reino, em bandos, columnas e guerrilhas, tinha porém a Extremadura como theatro principal. Antas e Bomfim com o grosso das forças estavam em Santarem, o conde de Villa-Real em Ourem. Foi contra este, para o bater, que Saldanha destacou uma brigada sua (4 de dezembro) ao mesmo tempo que Antas destacava Bomfim para cortar a retirada d’essa brigada, cousa que não conseguiu. Em Leiria, porém, uniu-se a Villa-Real, e, reforçado com mais tropa mandada de Santarem, Bomfim commandava cousa de 3:000 homens, quando foi surprehendido por Saldanha, vendo-se obrigado a recolher-se a Torres-Vedras. Dizem que ao começar a batalha (22) o pobre general sempre infeliz se escondera n’uma egreja, mettido n’um confessionario, com uma bandeira preta cravada no telhado a indicar um hospital de sangue. (Azevedo, Dois dias, etc.) Diz-se mais que Antas, do seu quartel-general, ouvia a acção e não quiz acudir. (ibid.) Como quer que fosse, Saldanha obteve uma victoria cruel, ficando entre os mortos o illustre Mousinho d’Albuquerque,[Pg 227] merecedor de melhor sorte. O governo ganhava uma batalha, mas vencer era-lhe impossivel. A guerra fervia por todos os lados e de todos os mondos. Desde que os litigantes tinham declarado a intransigencia, acontecia absolutamente o mesmo que se observara em 32-4: nenhum dos combatentes podia vencer, nenhum ser anniquilado. A guerra chronica é a sorte das nações arruinadas. O governo não podia vencer, mas podia vingar-se; podia repetir D. Miguel em cuja sítuação se achava, e fel-o, perdendo mais com a vingança do que lucrara com a victoria. Os prisioneiros (43) de Torres-Vedras, degredados para Africa no Audaz (1 de fevereiro de 47) aggravaram o labeu de sanguinario que a affinidade cabralista punha no governo.

3.—O ESPECTRO

Quando Sá-da-Bandeira, vencido em Val-Passos, depois de ter retirado pelo Pinhão e embarcado, descia o Douro para recolher ao Porto, ao passar em frente das Caldas d’Aregos, foi incommodado por tiros que partiam das montanhas agrestes da margem. Era o Cazal que o perseguia? Não; o Cazal retirara tambem para Chaves.—Desembarcou. Era o espectro miguelista: um bando de quasi um milhar de homens tendo á frente Macdonell, já nosso conhecido de Santarem em 34 ... Como espectro, sumiu-se, dissipou-se, mas deixando um negro terror no animo de todos.

Quem evocára tão cruel apparição? Qual o réu d’esse crime de leso-liberalismo? A JUNTA, diziam de Lisboa. O partido de setembro já desde 34 parcial pelos vencidos, coalisado com elles em 42, em 45, estava agora positivamente alliado para[Pg 228] a guerra. Mas não tinham os guerrilheiros do Macdonell feito fogo contra Sá-da-Bandeira? É que a JUNTA, ao que parece, sem positivamente se alliar, deixava crescer a desordem. Ella appellava para os exercitos da Maria-da-Fonte, o povo-armado, e esse povo que em Vianna caíra de joelhos ouvindo a homilia dos sacerdotes, tinha ainda vivas as raizes da velha religião que reverdeciam. A JUNTA, diziam do Porto, (Livro azul, cartas do consul, 18 de nov.) «não tem dado attenção ás guerrilhas miguelistas e hade arrepender-se. A força d’ellas vae todos os dias crescendo. São mais para temer do que pensam. (c. de 27) Todo o Minho jura essas bandeiras, e ha planos positivos. Muita gente dará dinheiro; talvez até a companhia dos vinhos, cujos directores na maior parte são miguelistas. D. Miguel tem já sido positivamente acclamado. Ha pois tres partidos hostís em campo, porque se os miguelistas se têem batido até aqui sob a bandeira da opposição constitucional, agora voltam-se já contra os setembristas, depois do episodio de Aregos». (Livro azul, Southern a Palmerston, 3 de dezembro)

No proprio dia em que o ministro inglez mandava dizer isto para Londres, affirmava a JUNTA no seu Manifesto que «a facção sanguinaria organisou guerrilhas para acclamarem D. Miguel!» Macdonell era para muitos um enygma, e não faltava quem, com effeito, o acreditasse mandado pelo governo, ou emissario da França para levantar o miguelismo, dando assim motivo á intervenção que esmagaria o setembrismo, forçando a Inglaterra a saír da sua reserva. Se assim foi, o cartismo jogava com fogo; e tanto em Lisboa como no Porto, querendo utilisar em proveito proprio o povo genuino, corriam o risco de serem saccudidos por elle. Iam acordar ao seu tumulo um cadaver?[Pg 229] Iam galvanisar um morto? Queriam conquistar com elle o poder, ou esmagar os rebeldes? Mas o espectro erguia-se, e a sua voz rouca, mas longa e retumbante, acordava as populações da indifferença, falava-lhes uma linguagem sabida de tempos antigas, falava-lhes no Throno e no Altar destruidos.

E a voz do espectro caminhava, convertia. Já Macdonell e Garcia, um hespanhol, (Azevedo, Dois dias, etc.) tinham entrado em Guimarães, (25 de novembro) já occupavam Braga. Todo o Minho acclamava D. Miguel. Corria que havia de casar com uma filha do marquez de Loulé, fidalgo alistado no setembrismo, partidario da JUNTA, e que nada fazia para coarctar a propagação d’esta nova e affirmativa Maria-da-Fonte. Em Guimarães havia illuminações e festas (4 de dezembro); e no Porto acreditava-se que a infanta Isabel-Maria estava á frente da restauração. Macdonell em Braga já recusava gente: iam do Porto offerecer-se-lhe em massa, fugindo á tyrannia burgueza do gordo Passos, ás rusgas com que se alistava gente em monterias como a lobos, (Livro azul, carta do consul, 18 de nov.) iam procural-o de todo o Minho por onde corria um protesto formal contra esta gente, Cabraes e não Cabraes. (Ibid. carta do consul, 11 de dezembro)


E a JUNTA a affirmar que eram obras do governo para a comprometter! E o governo a dizer que era o crime da patuléa! Quando era a positiva consequencia da liberdade e dos seus coripheus, quaesquer que tivessem sido as primitivas origens da sedição: ou o tacito applauso do Porto,[Pg 230] ou as intrigas franco-hespanholas de Lisboa, ou ambas simultaneamente. Se fôra o plano do governo, elle devia folgar porque o exito excedia as esperanças. O povo tomara ao pé da letra as falas insidiosas dos agitadores, e sem curar, sem saber de intrigas, via chegado o momento de liquidar contas antigas. Errantes vogavam pelo reino as sombras das velhas classes exterminadas, roubadas. E ao mesmo tempo que o espectro miguelista falava pela bocca dos frades guerrilheiros, falava pela bocca do jornalista Sampaio o Espectro, jacobino, setembrista, patuléa. Da direita e da esquerda ouviam-se as mesmas imprecações de colera, eguaes ameaças. O jornal, occultamente impresso a bordo de um navio no Tejo, apparecia em toda a parte, como espectro que era, condemnando em pessoa a rainha, a CARTA, a monarchia, todo o liberalismo:

Estão em presença dois principios, o popular e o pessoal. Mas o governo pessoal não triumpha e o principio revolucionario vae supplantal-o. O que fica sendo uma realeza vencida? Que prestigio póde ter um rei que desembainha a espada ferrugenta e que depois é obrigado a despir a farda no meio da rua? A realeza vilipendiada não é somente inutil, é um mal. O paço é incorrigivel: conspira sempre. Uma rainha que se declara coacta seis mezes em cada anno, não é rainha. O paço é a espelunca de Caco, onde sempre se teem reunido os conspiradores. A purpura dos reis tem servido para varrer a immundicie dos palacios e dos cortezãos mais abjectos. (Espectro, O estado da questão)

Assim vociferava o espectro jacobino, reclamando a abdicação da rainha; e ás suas vozes respondiam os eccos do espectro miguelista, condemnando a nova dynastia, acclamando o rei vencido em 34. E quando, no seu primeiro numero, o Espectro desenrolava[Pg 231] o sudario da crise financeira, a restauração no Minho, com uma voz mais verdadeira, não accusava Pedro nem Paulo, Cabraes nem Passos: accusava o liberalismo de ter emprazado o reino á praça de Londres, recordava D. Miguel que reinara cinco annos sem tomar dinheiro emprestado ao extrangeiro, e contava as riquezas desbaratadas, da patriarchal e da casa das rainhas e do infantado e dos conventos, vendo-se agora os frades famintos a pedir esmola miseravelmente.

E tomado de um accesso de franqueza e lucidez, o espectro de Lisboa, contra a rainha, confessava o crime juridico do liberalismo:

O throno da rainha só póde ser sustentado pelos liberaes: a sua corôa é condicional, segundo a CARTA. A um throno despotico, o direito de D. Miguel é melhor. (Espectro n.º 2)

Era o que dizia o espectro minhoto, monarchico e legitimista: o nosso direito é o verdadeiro! O vosso rei um usurpador! O nosso rei é portuguez, o vosso extrangeiro. É uma rainha filha de mãe austriaca e pae brazileiro, casada com allemão; allemães são os mestres e os medicos do paço, o Dietz e o Kessler; inglezas as amas de leite, inglez o cocheiro, franceza a modista. Só ha um portuguez, o capellão, um padre indigno, o padre Marcos!

E os frades animavam-se, contando já com a restauração dos conventos, e os cadaveres da nação morta em 34 erguiam-se dos seus tumulos para ouvir, envolviam-se nos seus lençoes, saíam, caminhavam, em procissão lenta e funebre para Braga, onde Macdonell reinava, em nome do rei esperado dia a dia, outra vez adorado nos altares, chamado[Pg 232] em preces fervorosas. Mas Cazal que segunda vez descera de Traz-os-Montes e em volta do Porto andara farejando a ver se achava a combinada brecha, (Azevedo, Dois dias, etc.) de novo teve de retirar desilludido. A sua crueldade vingara-se primeiro sobre as populações das aldeias serranas, agora ia vingar-se na capital miguelista do Minho que atacou. (31 de dezembro) Vencida uma batalha sangrenta, começou pelas ruas a matança desapiedada. Eram tiros, gritos de misericordia, imprecações de desespero, e um matar cruel e duro na gente amontoada pelas ruas. O sonho de uma esperança morria breve afogado em sangue, e os cadaveres com os seus lençoes tintos de vermelho tornavam pesadamente ás suas covas. Caía a tarde, escurecia a noite, pelas esquinas das ruas havia montões de mortos e poças de sangue coalhado por entre as pedras. Os que ficavam, abraçados a Deus, varrida a esperança do Rei, foram pondo nos lugares da matança nichos sagrados com cruzes lugubres, allumiadas á noite por lampadas, com a triste lenda: Resae por alma de nossos irmãos que foram mortos n’esta rua! (Azevedo, Dois dias, etc.)

Então a voz do espectro miguelista sumiu-se n’um largo pranto ...


Mas o espectro jacobino de Lisboa, mundano e sem piedade, rangera os dentes, prorompera em bramidos ao presencear a carnagem de Torres-Vedras (22 de dezembro); e a sua colera não teve limites contra a rainha a quem—oh, velhas, mentidas esperanças!—dera em Londres o sceptro de ouro e a CARTA encadernada a primôr.

[Pg 233]

A côrte dançou quando ouviu dizer que houvera muito sangue derramado. O valido e os protectores beberam á saude das victimas! A rainha deu beija-mão á sua criadagem! (Espectro n.º 5) Quando a rainha soube da morte e aprisionamento dos bravos, saíu ás janellas do palacio, e como uma bacchante gritou para a sua guarda—Victoria! victoria!—No dia da chegada dos prisioneiros saíu a passeio em signal de regosijo. (Ibid. n.º 6)

E o espectro, lembrando-se da longa e dura guerra de seis annos, do exilio e dos soffrimentos padecidos para exaltar essa rainha, dizia-lhe do fundo da sua recondita imprensa:

Morremos todos por via de ti! Morrendo te acclamámos, e tu exauthoraste-nos e mandaste-nos assassinar! O nosso sangue cairá sobre ti e sobre a tua descendencia! (Ibid. n.º 6)

Mas quem observa, não acha na voz d’este espectro a sinceridade simples, a solemnidade epica das vozes espontaneas do povo—«Resae por alma de nossos irmãos!» A alma que aqui gemia era composta de fórmulas doutrinarias, intrigas politicas, odios e ambições pessoaes. O setembrismo falara sempre em nome do povo, mas esse povo era uma fórmula rethorica, mais ou menos sincera no animo da gente democratica. Mais romanticos, menos doutrinarios, mais calorosos mas menos audazes e intellectualmente menos fortes, os setembristas eram mais sympathicos e mais chimericos. O povo de que falavam apenas acordara duas vezes: uma para queimar as papeletas da ladroeira em maio, outra para acclamar D. Miguel, para caír, e ficar resando por alma dos martyres, em dezembro. Partidos, intrigas, pessoas, ignorava-os.

Por isso a palavra do Espectro é contradictoria[Pg 234] comsigo propria; por isso a lingua se lhe enrola e as phrases saem confusas, baças, desde que, cessando de injuriar a rainha, pretende affirmar as ambições da nação. «O povo respeita a rainha, respeita o throno.» (n.º 2) Que atroz ironia é esta, depois do Estado da questão que assentou o programma do Espectro? «Para o rei ser irresponsavel é necessario que não faça o mal.» (Ibid.) Singular aberração, a idéa de um rei irresponsavel no bem, responsavel no mal! É essa a doutrina liberal, genuina, que oppunham ao cartismo?

Taes singularidades, que pintam o desnorteamento das cabeças setembristas, poderiam multiplicar-se, se fosse necessario insistir n’um facto já conhecido e demonstrado por varios modos. A guerra tinha principalmente por alvo o throno: pois que esse throno, no meio da incompatibilidade das clientelas politicas, era forçado a optar e optava por uma d’ellas; pois que a fome e a excitação dos animos faziam da politica uma campanha; pois que, finalmente, a rainha não possuia o caracter astuto para usar das artes de um Luis Philippe, mas sim a força viril para entrar pessoalmente na lucta. Declarada a crise, o liberalismo, com effeito, tem de abdicar, e manha ou força são indispensaveis no throno para illudir ou para rasgar as teias constitucionaes. Quando voltam a paz, a indifferença e a fartura, por isso, quando não ha questões, apparecem então os verdadeiros reis constitucionaes, pela razão simples de que a sociedade prescindiria perfeitamente de chefe.

[Pg 235]


A rainha «bate o pé no paço e diz que se vencer, a maior parte dos seus inimigos hade saír do reino. E se não vencer?» (
Espectro
n.º 6) Pois nem depois de Braga e Torres-Vedras tinha vencido? Não, não tinha; porque as forças odientas das clientelas politicas exprimiam a crise constitucional do paiz. Não tinha vencido; e para vencer seria mister que viesse de fóra uma intervenção apoiar e defender, ao mesmo tempo, o throno ameaçado pela revolução armada, e os proprios chefes d’essa revolução que tinham medo da victoria e queriam ser forçados a ficar vencidos.

Clame, clame embora o Espectro que «o tratado (34) morreu, apenas se conseguiu o fim especialissimo para que se contratara; e senão, risquem dos diplomas a phrase—rainha pela graça de Deus e da constituição, e substituam: por graça dos alliados e vontade dos extrangeiros»; clame, clame embora o Espectro. Essa intervenção, pedida a principio por Lisboa assustada, é no fim egualmente necessaria para o Porto embaraçado e afflicto com a quasi victoria consummada.

Essa intervenção é egualmente indispensavel, porque depois dos morticinios de Braga e de Torres-Vedras, os setembristas vencidos deram francamente a mão ao miguelismo que, tambem esmagado n’um ponto, se levanta em varios outros de um modo já prudente e politico, reconhecendo a liberdade patuléa. Manuel Passos mantinha ainda a velha esperança de nacionalisar o liberalismo, e fazel-o equivalia a converter os sectarios de D. Miguel. Povoas que saíra a campo na Beira, dizia-se convertido; mas repetiria o dito o partido inteiro, se acaso a revolução vencesse?

Á maneira que o miguelismo fôra crescendo, antes de Torres e Braga, crescera em Madrid a vontade[Pg 236] de intervir, pois, além das instancias do conde de Thomar que os hespanhoes queriam para seu descanso vêr restaurado ao governo em Lisboa, (Livro azul, Southern a Palm. 28 de nov.) havia um medo positivo das faladas combinações entre o miguelismo e o carlismo do conde de Montemolim. (Bulwer a Palm. Madrid, 13 dez.) Assim, no meiado de dezembro, a Hespanha soffreada pela Inglaterra e reduzida a observar a fronteira com o seu exercito e a abastecer e auxiliar o de Cazal em Traz-os-Montes, (Southern a Palm. 28 nov.) declara terminantemente que intervirá, com ou sem o auxilio das potencias, se o miguelismo continuar a crescer. (Bulwer a Palm. Madrid, 13 dez.) A França falava pela bocca da nação nossa visinha; e perante o miguelismo, aberta, publicamente alliado aos setembristas depois de Torres, a Inglaterra teve de ceder. O embaixador em Madrid apenas conseguira que previamente o avisassem antes de os exercitos se pôrem em marcha. (Ibid.) No fim do anno de 46 a intervenção, pedida no ultimo trimestre, já parece o caso decidido que veiu a ser no meiado de 47.

O pobre Espectro, estonteado, inconsequente, enrouquece para proferir palavras de paz. Tambem elle teme a victoria dos seus: «Para que é incitar o povo a que entre no palacio dos nossos reis e ahi pratique acções de cannibaes? O paço dos nossos reis é um foco de corrupção politica, mas não o é de corrupção moral. Não ha rainha mais virtuosa como esposa, nem como mãe de familias». (n. 27) O Espectro, cabisbaixo, com a voz que fôra eloquente, parece pedir perdão do clamor que levantára outr’ora, exigindo a abdicação d’essa propria rainha e a limpeza da caverna de Caco. Porque é uma tal mudança? Foi o inglez (Seymour) que veiu (fevereiro) a vêr se conseguia compôr os[Pg 237] partidos em armas, a vêr se evitava ainda a acção da Hespanha; e o Espectro, e a gente que escolhera para seu orgão a voz de uma sombra, na esperança do poder, moderavam a furia, mudavam o rumo. Mas como rainha e governo se recusaram a pactuar com a revolta (abril), a voz do Espectro voltou a vilipendiar aquella que tres mezes antes era o modelo das virtudes:

A côrte pela sua parte, toda sybarita, toda gastronomica, entra ainda na lucta com intenção doble. Se vence, o systema absoluto triumpha; se succumbe, acceita as condições e entrega os cadaveres dos seus amigos em holocausto á nacionalidade offendida, á moral publica ultrajada ...

E quando, afinal, a Inglaterra teve de annuir cabalmente ás exigencias da França-Hespanha, consequindo apenas tomar tambem parte na intervenção; quando as forças extrangeiras chegaram, para que os chefes da revolta, não sabendo que fazer d’ella, se lhe entregassem, fingindo obedecer á força, o Espectro, voltando a achar a eloquencia dos primeiros dias, dizia nos ultimos:

A côrte, o ministerio, o rei, tudo isso desappareceu. Não caíram ás nossa mãos, que nol-as ataram; mas sumiram-se na voragem de um protocollo. Isso que ahi se chama rei é um espantalho, os ministros são os lacaios de lord Palmerston. Foi a rainha, foram os Cabraes, quem nos vendeu, quem nos trahiu ... (n. 63. julho, 3)

Não seria acaso tambem o conde das Antas, indo metter-se com toda a sua gente na bocca do lobo inglez que viam aberta á barra do Douro? Não seria tambem Sá-da-Bandeira, por não querer passar de Setubal a Lisboa? Não seriam tambem os chefes da revolução armada, politicos, generaes,[Pg 238] cortezãos em vez de tribunos, com medo da demagogia que passaria por sobre elles, se acaso consummassem a victoria? A intervenção servir-lhes-hia, se a Inglaterra a fizesse a favor do seu partido: como a fez a favor do inimigo, a intervenção era um crime.

Quanto este espectro é com effeito a imagem sumida da viva personalidade do tribuno Passos em Belem! Dez annos bastaram para mumificar a democracia; n’esses dez annos, os seus chefes tinham fechado o Arsenal, dissolvido os batalhões, entregando-se nos braços da ordem. Dez annos (32-42) tinham bastado tambem para que o desenvolvimento necessario das premissas postas na legislação liberal apparecesse: a liberdade era um absolutismo da nova aristocracia dos ricos nascida da concorrencia; e em vez de Mousinho, um Bentham, apparecia imperando um homem duro e pratico, o conde de Thomar, imagem ossea de um systema já consolidado.

Democratas, liberaes, eram agora todos, as sombras dos que tinham sido. A miseria crua do paiz reduzia-os á condição de seres famintos, amesquinhando-lhes os caracteres, baixando-lhes a estatura, avolumando só a podridão natural das covas. Que o extrangeiro viesse a este cemiterio afastado, mandar a cada espectro para a sua tumba, acabar a funebre revolta de cadaveres, não admirava ninguem, porque a liberdade trouxera-a elle. Estava obrigando a manter o systema. Mas, dez annos havia, o extrangeiro encontrara cá um povo singular, extravagante, um dos sete dormentes da Europa, inaccessivel ás idéas novas, mas vivo, abraçado de joelhos ao throno-altar. Agora, voltando, o extrangeiro só via tambem o espectro d’esse povo antigo: sombras errantes falando uma linguagem archaica[Pg 239] tremida nos labios brancos de frades rotos e senectos; cordões de mulheres luctuosas ajoelhadas perante os nichos allumiados, resando «por alma dos nossos irmãos que foram mortos n’esta rua!»

Uns dos mortos voltavam para sempre aos eternos jazigos; outros fugiam do velho cemiterio das doutrinas, deitavam fóra o lençol da liberdade, e a correr batendo os ossos, vestiam as fardas regeneradoras lantejouladas, e, mirando-se em trajos de vivos, ficavam crendo ter resuscitado.[32]

4.—A PRIMAVERA DE 47

Encetaremos a narrativa dos casos d’esta segunda e ultima epocha da guerra dizendo o que sabemos das relações entre setembristas e miguelistas armados, depois do desbarato de Macdonell em Braga. Fôra a 28 de novembro que o caudilho, levantando abertamente a bandeira da restauração[Pg 240] de D. Miguel, entrara na cidade catholica, primaz das Hespanhas. Com o escocez andavam as guerrilhas do padre Casimiro e do padre Manuel Agra contando ao todo de dois a tres mil homens, dominando no Minho e em parte de Traz-os-Montes, como dissemos. Não lhes faltava dinheiro: davam cinco moedas a cada cavalleiro e uma a cada infante armado, que se apresentassem, pagando o elevado soldo de 240 réis á cavallaria, de 160 réis á infanteria. Cazal dispersou e anniquillou, segundo contámos, esse fóco miguelista de Braga, quasi ao mesmo tempo que Saldanha derrotava em Torres os setembristas; e a crueldade do general no Minho não foi menor, antes excedeu a do governo de Lisboa. Cento e quarenta pessoas foram trucidadas em Braga pelo vencedor que não perdoou aos prisioneiros. (Livro azul, Southern a Palm., 5 de jan.)

Macdonell conseguira fugir, apenas acompanhado pelo seu estudo-maior, pondo-se a caminho de Traz-os-Montes, onde um piquete de cavallaria da divisão de Vinhaes, acossando-o, o prendeu e matou nos ultimos dias de janeiro. (Azevedo, Dois dias, etc.)

Da morte de Macdonell, com o qual acabava a sedição francamente restauradora de D. Miguel, começa uma historia nova com o anno de 47. A crueldade de Cazal em Braga, a morte do cabecilha, foram o rebate para um levantamento geral, mas menos atrevido, do miguelismo. O padre Casimiro esperava o apparecimento de guerrilhas carlista do outro lado da fronteira, para organisar as d’este; mas, ao mesmo tempo, os antigos generaes Povoas e Guedes eram enviados ao Porto para tratarem com a JUNTA as bases de uma alliança. Diversas foram as versões correntes. Uns falavam da simultanea abdicação de D. Miguel e D. Maria II o tio e a sobrinha, noivos de outro tempo, acclamando-se[Pg 241] D. Pedro V com o governo representativo, mas gabinete miguelista. (Livro azul, Southern a Palm., 5 de jan.) Outros diziam que a JUNTA se disposera a acclamar D. Miguel em pessoa, e que para tanto já Manuel Passos partira para Londres, o que era falso. (Azevedo, Dois dias, etc.)

Era comtudo verdade a fuga de D. Miguel, de Roma, e de crer que projectasse vir a Portugal. (Thomar a Bulwer, Madrid, 29 de dez.) Esta noticia enthusiasmava muita gente no Porto, embora os planos em que se falava provocassem descontentamento em alguns corpos. Esses planos dizia-se consistirem na entrada de dois generaes miguelistas na JUNTA, no subsidio de 5:000 homens, na acclamação de D. Miguel rei constitucional, na successão da corôa á casa Cadaval. (Livro azul, cartas do consul Johnston, 1, 7, e 11 de janeiro) Quaesquer, porém, que tivessem sido as verdades traduzidas por esta serie de boatos, o facto é que, no meiado de janeiro, a situação definia-se claramente. Punham-se de parte as combinações, sem se chegar a convenio de especie alguma. A JUNTA acceitava o auxilio incondicional dos miguelistas, deixando-lhes os logares e patentes, caso annuissem ás decisões que ella tomasse depois de vencedora. (Ibid. Southern a Palm. 30 de jan.) Era a coalisão em armas. E Povoas saíu logo a campo, da sua casa da Beira, proclamando a religião catholica apostolica romana, a nação portugueza e o seu heroico pronunciamento; (V. proclam. de 17 de jan.) deixando, como se vê, em aberto todas as questões politicas e dynasticas. Acaso á sombra do equivoco se vencesse o que não vencera a denodada affirmação.

Nem D. Miguel, nem uma parte grave do seu partido no reino, parece que approvavam este proceder dubio e politico. A tradição custa a morrer, e a tradição legitimista era pela nitidez das affirmações.[Pg 242] D. Miguel escapara com effeito de Roma disfarçado em crendo de um capitão Bennett, e a policia ingleza sabia do seu esconderijo de Londres; sabia que pensava partir para Portugal, pôr-se ao lado de Macdonell no Minho. (Ibid. Palm. a Bulwer em Madrid; 16 de fev.) É desde então que o ministro inglez principia a acreditar no miguelismo. Elle espera comtudo que a derrota de Macdonell, noticia que acabava de chegar, faria mudar de tenção o pretendente; (Ibid.) e com effeito assim foi, o que leva a crêr que o principe não approvasse a politica da coalisão, já anteriormente condemnada nas circulares de Saraiva.

Coalisado com a JUNTA, o miguelismo perde a individualidade politica, sem por isso deixar de ser um risco; porque se a JUNTA chegasse a vencer, teria de começar a debater-se com os seus alliados: os miguelistas á direita, os demagogos á esquerda; uns accordando em pedir D. Miguel, outros D. Pedro V: ambos a queda da rainha, ambos uma revolução que levaria Portugal, ou á restauração do absolutismo, ou á implantação de uma republica. Qualquer das hypotheses era antipathica á Inglaterra, que desde então reconheceu a necessidade de intervir. Mas essa intervenção desejava ella que fosse um pacto, um accordo entre os partidos constitucionaes belligerantes, e não viesse alargar a Portugal a influencia da França doutrinaria, já exclusiva em Hespanha, defendendo a todo o transe o partido cartista e a clientella dos Cabraes.


Depois de Torres-Vedras, o conde das Antas evacuou Santarem. A 27 estava em Alcobaça,[Pg 243] retirando sobre Coimbra. Saldanha perseguia-o, (Livro azul, Wylde a Palm. 29 dez.) sem força para o bater. O resultado da victoria era nenhum, porque, passada a primeira impressão, a revolta, generalisada a todo o reino, em vez de amansar, crescia.

Foi então que Povoas desceu da serra da Estrella, a vêr se podia obrigar o general de Lisboa a não chegar ao Porto. Saldanha parou no Sardão, e Antas entrava na cidade da JUNTA preparando a defeza (Azevedo, Dois dias, etc.) Ia repetir-se um cerco? Ia outra vez haver o que houvera em 32-3? Haveria, se agora, como então, os do Porto podessem obter de fóra soldados, munições, dinheiro. Torres-Vedras limpara de inimigos o centro do reino; mas, emquanto o Porto se mantinha firme, e, no Minho disputado, Cazal e Antas jogavam o xadrez, no sul do Tejo succedia proximamente o mesmo entre Schwalbach e o conde de Mello que em vão atacava Estremoz (27 de fevereiro) sendo obrigado a retirar sobre Marvão, (Ibid.) esperando. Saldanha, entretanto, avançava até Oliveira-de-Azemeis; e Antas, abandonando o Minho, recolhia ao Porto, friamente recebido pelos junteiros que o accusavam de nada ter feito. (Ibid.) E Saldanha que fazia? Nada tambem, porque lhe faltava tudo. Pedia para Lisboa armas e dinheiro, mas o governo não os tinha para lh’os dar. «Se isto continua, o caso póde ser grave». Já o povo de Braga arrazara a casa onde Cazal dormira, e a JUNTA fôra acclamada logo que o vencedor voltara costas, e os ex-frades e fidalgos preparavam uma insurreição medonha. O caso póde ser grave ... (Livro azul, Wylde a Palm. 18 de jan.)

O mez de janeiro consumiu-o a JUNTA preparando-se para o cerco, lançando contribuições sobre os bancos, trabalhando activamente na defeza. A 26 estava acabado o primeiro circulo de barricadas e[Pg 244] muito adiantado o segundo; mas as deserções continuavam: dez ou doze homens por dia. (Livro azul, Cartas do consul, 1, 7, 11, 26 de jan.) E ao mesmo tempo que Antas perdia o tempo no Minho, Cazal recebia pela fronteira da Galliza centenas de recrutas hespanhoes e material de guerra. (Ibid. Carta de Vigo, 24) Sem poder intervir directamente, a Hespanha fazia agora aos cartistas o que em 26-7 fizera aos apostolicos. Em Vigo fundeavam duas fragatas, armadas, apparelhadas, promptas a saír para o Douro á primeira ordem. (Ibid.) A JUNTA ainda se mantinha duvidosamente fiel á rainha, mas ameaçava desthronal-a, se Saldanha avançasse do Sardão, e o ministerio teimasse em não caír. Os meios não faltavam no Porto, mas já se sentia no Minho uma carestia insupportavel: o milho regulava a 520 o alqueire. (Ibid. Cartas do consul, 21 jan. 17 fever.) Saldanha, avançando até Azemeis, obrigara Antas a recolher ao Porto: que ia haver? Um cerco? Naturalmente.

Resolveu-se, pois, repetir a historia anterior; e para abreviar os episodios, começar desde logo pela expedição do Algarve confiada a Sá—o Terceira de agora. A divisão, forte de mil homens, embarcou (28 de março) indo tomar terra em Lagos, atravessando livremente o Alemtejo, de correrias celebre, vindo entrar em Setubal onde se reuniu ás forças do conde de Mello, inactivas desde fevereiro. Mas para cobrir a capital, já o governo destacara Vinhaes para o sul, fortificando-se nas collinas de Azeitão que, prolongando a serra d’Arrabida, dividem as duas bacias do Tejo e do Sado. No Vizo, comoro das vertentes austraes, ás portas de Setubal, feriu-se uma batalha (1 de maio) cujo vencedor se duvidou quem fosse. Se a vantagem ficou por alguem, não foi pelo governo; mas já a esse tempo os inglezes protegiam a rainha, como vamos vêr,[Pg 245] impedindo o general rebelde de proseguir. Desejava, pedia elle outra cousa? Quereria entrar em Lisboa vencedor, para ter de se voltar, nas suas ruas, contra os que commandava? para defender o throno, como em 38? Não, decerto. A ponto de vencer, via-se perdido; e protestando, exultava por achar os inglezes a vedar-lhe o passo, obrigando-o a render-se.

No Porto succedia o mesmo ao conde das Antas. Felizmente os inglezes tinham bloqueado a barra (27 de maio): estava chegado o momento de saír da posição falsa em que se collocara. Nem a rainha nem o ministerio cediam, e para os chefes a revolta não tinha mais valor do que uma ameaça. Jogando com fogo democrata, miguelista, temiam a labareda que tinham soprado. Quem viria apagal-a, sem os expôr ao labéo de traição ou cobardia? Pois não chegava a tempo a intervenção, tão necessaria a Lisboa como ao Porto, ao governo como á JUNTA? Abençoada esquadra ingleza! providencial bloqueio do Douro!

Porque, se não fossem ambos, era forçoso vencer. No dia 20 tinham chegado os vapores de Setubal para conduzir segunda expedição á ultima campanha. Os quatro a cinco mil homens das excellentes tropas do conde das Antas deviam desembarcar na Extremadura, cortando a Saldanha a retirada de Lisboa, ao mesmo tempo que Povoas o acossaria do lado das Beiras. (Azevedo, Dois dias, etc.) Esse plano de campanha parecia feito a proposito para terminar tudo conforme convinha. Tres dias havia que os inglezes bloqueavam a barra, e sabia-se isso muito bem no Porto,—como se ignoraria?—quando a 30 o conde das Antas embarcou a sua divisão e a sua pessoa. Ás seis da manhan do dia seguinte, os vapores saíam a barra ... para[Pg 246] entrar no seio salvador da esquadra ingleza. Prisioneiros, protestando em boas e graves phrases, viam-se salvos. Os inglezes foram deixal-os em S. Julião, na barra de Lisboa, presos pro-fórma, já amnistiados por uma convenção.

Ao mesmo tempo uma divisão hespanhola transpunha a raia do Minho e Traz-os-Montes, e Saldanha avançava de Oliveira de Azemeis sobre o Porto. Que restava da revolta? A JUNTA ainda, em agonias.


Mas nada sabemos da capital, n’esse primeiro e funebre semestre de 47. Vimos o que a gente armada fez, mas ignoramos o que o gabinete fazia, e que sorte a guerra dava á miseranda população de Lisboa.

Desde o principio do anno que as cadeias estavam cheias de setembristas e miguelistas; desde então as emigrações ferviam. (Livro azul, Southern a Palm. 10 de jan.) O governo communicára ás potencias a decisão de bloquear o Douro, mas isso não passava de uma fórmula, porque a marinha portugueza acabara de todo, e os poucos vapores que havia tinham caído em poder dos rebeldes, senhores do mar. Mas o mais triste, o mais grave, era o caso das notas do banco, infernal papelada que, engordando os rebatedores, levava a miseria a toda a parte. Cada moeda já tinha o desconto de mais de tres pintos; e apesar das ameaças só recebia notas quem não podia evital-as. Papeis, inscripções, não tinham compradores. As acções do banco tinham baixado de 385 a 300 mil réis: só os homens da Confiança, a quem o decreto de 19 de novembro salvara, viam subir as acções de 15 a 22, á custa do povo arruinado com o sacrificio da emissão do banco.

[Pg 247]

O visconde de Algés, no Thesouro, achava-se perdido, porque de fóra não vinha dinheiro, e em casa não o havia antes—quanto mais agora, no calor da sedição. Se nem para Saldanha chegava! Em Madrid estava embaixador o conde de Thomar e para elle se voltavam os olhos, se dirigiam as supplicas e pedidos de conselhos. Não seria possivel arranjar em Madrid um emprestimo? Em Lisboa preparar-se hia tudo: custava pouco. Supprimiam-se as decimas das inscripções, externas, internas; (Dec. de 29 jan. e 25 fever. revogando o de 21 de agosto) e para pagar o coupon do 2.º semestre de 46, em divida, creavam-se bonds (600:000 lib.) garantidos pelo rendimento das alfandegas. Quanto ás notas, revogavam-se as penas, e o Estado reconhecia-as como suas: um verdadeiro papel-moeda. Não temesse o povo: iam-se carimbar e em breve chegaria ouro bastante para as queimar todas! (Decr. 1 de fever. art. do Diario)

Com effeito, o conde de Thomar em Madrid conseguira alguma cousa. Os banqueiros propunham-se dar tres milhões esterlinos a 43 com a commissão de dois e meio. Um ovo por um real. Mas ... davam no primeiro anno só um milhão, o resto depois. Um milhão seja: tudo o que vier ... Mas «queremos tres annos de juros adiantados».—O governo, desanimado, caíu em si. Um pouco mais, e os banqueiros, cobrando adiantados os juros, não dariam nada, ficando credores de muito. O que promettiam emprestar vinha a saír a 25,5 por cento. (Southern a Palm. no Livro azul, 31 jan.)

O governo não teve coragem para tanto: o ministro sumiu-se, deixando o lugar a Tojal. (20 de fever.) E o rebate das notas a crescer, e gemendo todos com fome, e a bordo do Audaz cobertos de feridas os infelizes prisioneiros de Torres, á espera do degredo![Pg 248] E uma rebeldia surda a sussurrar por todos os cantos!.. No governo-civil o marquez de Fronteira, com seu irmão D. Carlos Mascarenhas á frente da guarda municipal, mantinham difficilmente uma ordem similhante á de Varsovia. Lisboa parecia um acampamento; tudo estava armado em batalhões de côres e feitios diversos: voluntarios, fusileiros, caçadores da rainha, caçadores da CARTA. Havia exercicios constantes, e paradas, e revistas, e o commandante em chefe, D. Fernando, que não nascera para emprezas bellicosas, via-se forçado a arrastar a sua indolencia, correndo os quarteis, vivendo n’um estado penoso de agitação por cousas que, bem no fundo, lhe eram, ou antipathicas, ou indifferentes. E por entre esta borborinhar de tropas mais ou menos grutescas, pullulavam os turbulentos, os homens de má-nota, emprezarios de bernardas. Aos empregados não se pagava desde outubro, em Lisboa que é uma cidade-secretaria. (V. Livro-azul, Southern a Palm. 15 fever.) A desordem, a excitação, a fome, traziam á flôr do charco social os detritos humanos das cidades; e como nem na revolução, nem na reacção, havia profundos motivos moraes, o caracter da crise, em vez de ser tragico, era grutesco; e Lisboa que já fôra em 28 uma Jerusalem, era em 46 como Byzancio cercada por um turco—setembrista.

Vendo chegar Tojal, o commercio bateu palmas. (Ibid. 26 fever.) O homem valia e trazia comsigo boticadas novas: «absurdo esperar dinheiro de fóra, quando a exportação, sempre inferior á importação, era agora, com a guerra, nulla; o ouro fugia para pagar o que compravamos fóra; a guerra engulia o resto, e não lhe chegava; a desconfiança aferrolhava as economias; havia juros em divida, e o Thesouro vazio, e o curso-forçado das notas expulsava[Pg 249] o ouro do mercado. Uma chimera o emprestimo! Arranjassemo-nos com a prata de casa.» (V. Diario, art. fever.) Mas que prata? se havia apenas cobre e falso! A prata eram notas, notas infames com o rebate de metade! (2:250, abril) Moderar o curso-forçado, fazendo entrar só por metade as notas nos pagamentos; dar curso legal ás moedas americanas e hespanholas de ouro e prata; elevar a 50 contos por mez a amortisação das notas; crear um emprestimo interno de 2:400 contos para abreviar a supressão das notas—eis ahi o recipe de Tojal. (V. Dec. 10 março) O doente vomitou-o, ou não o quiz tomar: o medicamento interno não valia mais do que o externo. Farejaram-se os armarios e veiu de lá o Dulcamara com drogas antigas, da velha alchymia: o emprestimo seria uma loteria, com premios de papel, e bilhetes pagos a notas. (Decr. 9 de abril) A fazenda receberia em notas tudo o que lhe deviam fóra de Lisboa: isto é, onde o inimigo cobrava os debitos. (Decr. 6 de abril) Os titulos do emprestimo manso de 27 seriam convertidos em inscripções sob condição de pagamento de um quarto nominal em notas. (Decr. 23 de abril) E por fim os papeis andavam tão de rastos, tão rebatidos, que se reduziu a proporção d’elles a um terço nos pagamentos. (Decr. 15 de junho)

Positiva fome lavrava em Lisboa no segundo trimestre do anno funebre de 47. Para lhe accudir distribuiam-se diariamente 2:500 pães. (V. as listas e contas no Diario) E o vasio dos estomagos, e exaltação das cabeças, o desespero do governo ameaçado, batido por toda a parte, fazem d’essa epocha um melodrama, lugubre nos soffrimentos do povo, na morte dos soldados, entremeiado de fomes e cadaveres, de intrigas e miserias, de sangue e lodo: farrapos de pobreza universal, pobreza de genio e[Pg 250] de caracter, pobreza de dinheiro e de força. Era verdadeiramente uma lucta de espectros.


Como sombras se tinham visto dissipar-se muitas forças do governo. A columna que em Alcacer defendia Lisboa da patuléa do Alemtejo, fôra uma noite aprisionada inteira. A tripulação do Porto, vapor mandado a Vigo e a Vianna em serviço, prendeu em viagem os officiaes na camara e levou o barco ao Porto, a entregar-se á JUNTA. (Wylde a Palm., 18, 27 fevereiro, no Livro azul) O mez de março declinava, approximava-se o abril terrivel. Em Lisboa havia constantes rusgas para arregimentar voluntarios, e Saldanha, immovel por impotente, avisava do seu quartel general que resignaria a presidencia do conselho se não viessem soldados de Hespanha, ou um accordo com o inimigo. O gabinete resolveu então decididamente implorar o soccorro ao reino visinho, que ardia por que lh’o pedissem, mordendo impaciente o freio posto pela Inglaterra. (Ibid. Seymour a Palm. 14, 18 de março)

No principio de fevereiro a historia diplomatica da guerra chegára a um momento decisivo, com o facto da alliança das forças miguelistas ás da JUNTA, depois de Torres-Vedras. Costa Cabral, nosso ministro em Madrid, conhecedor das resistencias da Inglaterra, declarara a Bulwer Litton que se as forças miguelistas engrossassem, elle pediria soccorros á Hespanha, invocando o tratado de 34 ou da quadrupla alliança; (Ibid. 30 de janeiro) e o inglez, ao mesmo tempo que protestava contra, escrevia-o para Londres contando os fundamentos das insistencias do portuguez: que a alliança miguelista-setembrista era um facto, um artificio o não se proclamar[Pg 251] D. Miguel, positivo o casus fœderis; que o irmão de Sá-da-Bandeira (Antonio Cabral) fôra a Londres comprar munições, e Passos Manuel a Roma buscar D. Miguel (segundo falsamente corria e convinha ao governo de Lisboa fazer crer). A Hespanha terminava, decidida a intervir, não o fará comtudo sem accordo comnosco. (Ibid. Bulwer a Palm 5 de fev.)

O leitor sabe que Palmerston enviára especialmente um legado militar, o coronel Wylde, para obter a paz entre os belligerantes, para «servir de medianeiro entre a JUNTA e o duque de Saldanha.» Restabelecer-se-hia a constituição de 38, convocar-se-hiam côrtes, expulsar-se-hiam os cabralistas do governo. (Palm. a Wilde, 5 de fev.) Não seria bem a victoria da JUNTA, mas sim a do grupo ordeiro, vencido em 42. E quando leu os fundamentos da nota do conde de Thomar a Bulwer, o inglez pegou da penna e mandou dizer a Wylde que o tratado de 34 acabara, que fôra especial e não permanente, que não só não havia motivo para intervir, mas ainda quando houvesse, não se podia invocar um tratado acabado. (Palm. a Bulwer, 11 de fev.)

Wylde nada conseguira da JUNTA, nem tambem do governo. Via-se impossivel a transacção, e, impedida pela Inglaterra a intervenção da Hespanha, qual seria a sorte de Portugal? Ficaria abandonado ao resultado de uma revolta, de que os generaes temiam os soldados? Venceria o governo? Venceria a JUNTA, e com ella passariam por sobre as cabeças dos chefes, as columnas dos demagogos? e as legiões dos miguelistas? Em março, como o leitor observou, parecia provavel a victoria final da revolta. E em taes apuros, Saldanha, vendo que a Inglaterra teimava em não deixar a Hespanha intervir, pediu licença ao governo visinho para alistar tres mil homens. (Livro azul, Seymour a Palm. 19-21 de março)[Pg 252] A Hespanha recusa, «mas se isto durar annuirá». (Bulwer a Palm. 24) Com effeito, o aperto era tão grande que o ministro francez foi ás Necessidades offerecer a sua protecção á rainha. (Seymour a Palm. 20)

Perante uma situação assim, Palmerston começou a hesitar. Com o seu empenho de bater em Portugal o cabralismo que era o alliado do doutrinarismo hespanhol, e ambos a copia do ministerio Guizot, ambos a expressão da influencia franceza na Peninsula: com esse empenho, não iria elle, acaso, servir a demagogia ou o absolutismo? Desde fevereiro, a Hespanha e a França estavam de accordo em considerar vigente o tratado de 34, (Bulwer a Palm. 23 de fevereiro, Madrid) que elle Palmerston insistia em declarar abolido. Não seria um erro, uma temeridade? Com effeito, a linguagem da Inglaterra muda. «Nem a lettra, nem o espirito do tratado de 34 são applicaveis a Portugal agora». Reconhece pois a existencia do tratado, e já chega a admittir a hypothese da intervenção, mas insistindo pelas condições anteriores: amnistia geral e plena, restabelecimento das leis constitucionaes, ministerio nem cabralista nem setembrista (ministerio Rodrigo, ordeiro) expulsão do Dietz—instituição portugueza, oh miseria! Assim que o governo annuir, parta Wylde para o Porto a convencer a JUNTA. (Palm. a Wylde, 5 de abril)

Ora o governo não annuiu, e a crise precipitava-se. Tojal desesperava-se, porque os seus amigos Barings de Londres recusavam as trezentas mil libras com que se havia de pagar o dividendo externo: os temerarios não sabiam que a victoria da revolução seria um traço, riscando a divida extrangeira! Saldanha, irritado, oppunha-se á amnistia. (Seymour a Palm. 26 de março) Havia em Lisboa uma grande miseria, uma carestia excessiva de tudo, um[Pg 253] doloroso mal-estar, perseguições e recrutamentos, os batalhões sempre em armas, e as notas fluctuando como os trapos de neve caíndo, cobrindo tudo, nos dias mornos que precedem o desencadear da tormenta.


A procella descia pelo Alemtejo com a divisão de Sá-da-Bandeira que a 9 de abril se juntava em Setubal ás tropas do conde do Mello, do Galamba, a todas as guerrilhas do sul, para virem, reunidos, conquistar Lisboa. Em Setubal, o Logar-tenente da JUNTA (assim se intitulava Sá-da-Bandeira) formava uma especie de governo: Braamcamp era o secretario civil, Mendes Leite tinha a Marinha, José Estevão dizia-se Quartel-mestre general. (Elog. hist. de Braamcamp, do a.) Em Lisboa os ministros, attonitos, correram a Seymour implorando soccorro; e elle de accordo com o ministro hespanhol que tinha no Tejo tres centenas de homens, prometteu defender a rainha n’esse dia 11, aprazado para a chegada da patuléa a Almada. (Seymour a Palm. 9 de abril) A força das cousas transtornava os planos da Inglaterra; o setembrismo vencia mais uma vez a ordem e as suas combinações; e as potencias viam-se obrigadas a fazer uma nova belemzada.

E Sá-da-Bandeira porque não chegava no dia 11 aprazado? Porque elle, o infeliz homem de bem, achava-se outra vez na triste situação de 37, á frente de uma revolução para a moderar. Porque via perdido todo o seu improbo trabalho de 38. Porque media as consequencias da sua entrada em Lisboa. Porque não queria, elle o monarchico leal, o sincero amigo do povo, ser o instrumento da anarchia destruidora do throno, o orgão da[Pg 254] plebe acclamada. Porque, finalmente, sabia os planos combinados para lhe facultar a entrada na capital,—planos tristes, deploraveis. Haveria tumultos de noite, lançar-se-hia fogo a diversas casas e arrombar-se-hiam as cadeias, soltando-se os presos. As prevenções estavam, porém, tomadas: quando o castello desse tres tiros, as tropas inglezas e hespanholas desembarcariam. Não tiveram de o fazer, porque os sediciosos temeram. Apenas no Terreiro-do-Paço brigaram soldados com officiaes, indo sessenta presos para o Bugio e um cadaver para a cova.

Almada estava já fortificada e D. Fernando, generalissimo, arrastava melancolicamente a sua espada de Lisboa para a Outra-banda, aborrecido, descontente do seu emprego de rei em uma nação tão pouco ajuizada, tão mesquinha e miseravel. Dias depois houve um tumulto em Cintra, mas já Vinhaes ao sul do rio guardava a capital; e se não fosse batido, o perigo immediato estaria conjurado, a não ser o perigo constante do espirito sedicioso de Lisboa. Contra a cidade, contra o caso da victoria de Sá-da-Bandeira, para o salvar a elle e á rainha, havia porém sempre o ultimo recurso: as forças anglo-hespanholas fundeadas no Tejo. (Seymour a Palm. 14-16 de abril)

Mas, no acume da crise, abandonava-se o plano dos soccorros hespanhoes? socegava o conde de Thomar em Madrid, esquecendo os delegados que tinha em Lisboa? Não. Insistia cada vez mais, patenteava o horror das consequencias, e obtinha por fim a ordem de marcha de um exercito de doze mil homens para a fronteira, prompto a transpol-a para embargar a marcha da patuléa sobre Lisboa. E que fazia o delegado de Palmerston? Desde que a Inglaterra reconhecera a existencia do[Pg 255] tratado de 34 e o principio da intervenção—embora não reconhecesse a opportunidade—a força das cousas obrigava-a a seguir a Hespanha, só lhe consentia moderar-lhe os impetos. Foi isso o que fez. Bulwer em Madrid conseguiu que a Hespanha enviasse um emissario a Sá-da-Bandeira com um ultimatum, e que se esperasse o resultado d’essa tentativa para proceder ou não á intervenção armada. Com o marquez de Hespanha, enviado, veiu da embaixada ingleza Fitch por parte do seu governo com instrucções de que «folgaria que a sua linguagem fosse mais para aconselhar do que para ameaçar: porém até a ameaça póde ser empregada com delicadeza». (Bulwer a Palm. 19)

Entretanto, o embaixador inglez de Lisboa procurava fazer acceitar as bases de conciliação propostas por Palmerston, mas batia em vão na teima do governo. (Seymour a Palm. 16) Corajosamente, o cabralismo debatia-se contra a guerra civil, contra a protecção falsa dos inglezes, promptos a defender a rainha, sob condição de condemnar o systema e os seus defensores. Restava porém a estes a Hespanha—e a rainha em pessoa que não queria ser defendida, sendo ao mesmo tempo humilhada; restava-lhes a capacidade do chefe, a cohesão dos partidarios, a timidez de inimigos temerosos de vencer, e o panico de uma perspectiva de restauração miguelista ou de desordens setembristas.


No dia 29 Lisboa presenceou um ensaio d’essas scenas previstas: era o plano forjado para 11 e que fôra adiado. Ao caír da tarde, pelas cinco e meia abriram-se as portas do Limoeiro e os presos saíram em columna, com populares, direitos ao castello,[Pg 256] para o tomarem. Eram seis centos, e vendo-se recebidos a tiro, fugíram. Repellidos do castello, bandidos, vadios e politicos, espalharam-se em grupos por toda a cidade. Houve durante uma hora combates nas ruas. As casas fechavam-se, os habitantes recolhiam-se; fortes patrulhas circulavam e D. Fernando, arrastando a sua espada, era apupado. A bordo dos seus navios, o almirante Parker tinha já as guarnições formadas, promptas a desembarcar. Viera a noite, a fusilaria continuava, não já em combates, mas na caça dos presos fugidos, dos quaes trezentos (sobre um total de 1:014) conseguiram evadir-se para os arrabaldes, sumindo-se. E d’este bello ensaio de revolução democratica ficavam mortas oitenta pessoas, diz para Londres o ministro inglez; oito ou dez, accusa o Espectro.

Qual acerta? Pouco importa. O grave é que Sá-da-Bandeira de certo não podia querer vencer, para ser vencido pelos bandidos ou por quem os soltava. Por isso, embora jámais o confessasse, é mais do que seguro acreditar que a chegada dos emissarios da Hespanha e da Inglaterra lhe tirou um grande peso de cima do coração. Perdeu 500 homens na acção do alto do Vizo, o general setembrista; mas o veto que os emissarios pozeram á sua marcha valia para elle muito mais. Já entre Fitch, o marquez de Hespanha e o governo de Lisboa (que mudara de pessoal, sem mudar de politica) se assignara o protocollo de 28 de abril, estatuindo a amnistia como condição de paz e impondo um armisticio.

A campainha diplomatica do conde de Thomar em Madrid conseguia uma victoria, porque, embora cedesse a amnistia, ganhava o essencial, que era a CARTA, obrigando a Inglaterra a desistir das[Pg 257] suas pretensões ordeiras. O doutrinarismo vencia, depois de intricadas complicações; e o partido de 38, com o seu chefe Rodrigo, via perdidas as esperanças de herdar o governo, batendo com a Inglaterra cartistas e setembristas, Lisboa e Porto, a corôa e a JUNTA.

Esta, porém, onde os elementos democraticos dominavam, recusou-se a aceitar as condições do convenio; disposta a ceder, sim, mas sem mentir ás patentes que distribuira a miguelistas e patuléas, ás medidas fiscaes que tomara. O seu exercito estava de pé, não fôra batido: mas quereria o outro general, Antas, leval-o á guerra? Era isso o que as cabeças exaltadas reclamavam—uma loucura. Ainda antes de ter chegado a acta do protocollo finalmente assignado em Londres (21 de maio) para a intervenção combinada das potencias signatarias do tratado de 34, já em Lisboa Seymour e Ayllon, de mãos dadas, tinham resolvido mandar para o Porto navios, afim de impedir um derramamento inutil de sangue.

Porém os navios anglo-hespanhoes não impediam o general do Porto de levar a expedição por terra, se acaso elle tambem não desejasse sobretudo vêr terminada a arriscada empreza em que se mettera. Por isso embarcou para ser aprisionado, conforme contámos. De que valiam, depois, as reclamações e os protestos, senão para mascarar a quéda com uma certa dignidade apparente, e manter no animo dos ingenuos a idéa de que se obedecera á fatalidade da força? senão para conservar de pé a accusação de extrangeira, contra uma côrte que, vencida em Belem, realisava agora o seu plano, escravisando o povo com as forças inglezas e hespanholas? Taes palavras serviriam para as campanhas ulteriores da politica, mas não têem valor[Pg 258] para a historia. Caíndo, a JUNTA sabia muito bem o motivo porque caía, e não se lhe dava de acabar assim. Que estimaria mais as primeiras condições inglezas, é fóra de duvida; mas que preferisse á intervenção a guerra e a propria victoria, é o que não é licito acreditar perante o procedimento dos seus chefes. Os inglezes occuparam a Foz, os hespanhoes o Porto, e a 24 de julho estava tudo acabado pela convenção de Gramido.

Da JUNTA dissolvida nada restava. Saldanha e os cabralistas continuavam a governar com a CARTA. O Porto vira nos dois irmãos Passos as duas faces da physionomia espontanea e popular da revolução: em um a poesia minhota, em outro o genio burguez antigo. O poeta voltava para casa chorando: chorando assistira á entrada de Concha. O burguez, pomposamente, declarava ser necessario morrer! E morreu, veiu a acabar, mas demente, dezeseis annos mais tarde. O leitor não carece de que se lhe explique, nem a rasão das lagrimas, nem a causa da demencia. Viu como as folhas caíram (1842): depois d’esse outomno chegou o inverno frio e morto ...

NOTAS DE RODAPÉ:

[32] Duas palavras de despedida a esse homem que desappareceu da scena (13 de setembro de 1882) em que por trinta annos representou o papel de guardião do partido regenerador. Curado tambem dos romantismos democraticos, resurgiu em Sampaio a sua primitiva educação fradesca. Era na figura e na bonacheirice um velho portuguez: tinha o ventre nacional e no estylo dos seus artigos lardeados de latim um tom de sermão. Na mocidade chegára a prégal-os (T. de Vasconcellos, O Sampaio da Revolução), e as reminiscencias não se apagam assim! Varrida a illusão revolucionaria, ficou-lhe a vis sarcasticamente plebéa com que atacava os adversarios á direita e á esquerda, sem consciencia nem fé, só por politica, nas questiunculas pessoaes dos partidos. Foi o José-Agostinho do liberalismo, com menos talento do que o frade. Via-se-lhe no estylo a tonsura e ferula do antigo mestre de latim. Uma das muitas arbitrariedades da tyrannia miguelista lançou-o para o lado dos liberaes, abrindo um parenthesis de vinte e tres annos (1828-51) no desenvolvimento logico da sua personalidade. Tornou ao que fôra, vestindo a farda depois de ter deixado a sobrepelliz. Dizem que acabou dizendo assim: «Salvemos a monarchia ... Quero ver as provas». Acabou como devia, pensando na imprensa que o fizera gente.


[Pg 259]

IV
OS IMPENITENTES

1.—O CADAVER DA NAÇÃO

Voltara a paz, e para que o leitor não proteste contra as côres funebres com que pintámos a guerra, seja-nos licito transcrever aqui a opinião contemporanea de um dos nossos mais levantados espiritos:

Hoje (1849) nos achamos entre um passado impassivel (depois das leis de Mousinho) entre um futuro tremendo porque é obscuro, insondavel e de nenhum modo preparado, e com um presente tão absurdo, tão desconnexo, tão incongruente, tão chimerico, tão ridiculo emfim, que se a perspectiva não viesse, como vem, tão cheia de lagrimas, seria para rir e tripudiar de gosto, ver como vivemos, como nos a tributamos, como nos administramos, como somos emfim um povo, uma nação, um reino! (Garrett, Mousinho da Silveira)

Voltara a paz, dissemos. Era chegado o momento de encarar de frente a situação do enfermo, que parecia mais incuravel depois do ultimo accesso. Extenuado, jazia exangue, não diremos nas vesperas da morte, porque o seu existir já não se podia chamar vida. As nações, como os individuos, tambem pódem arrastar-se vegetando, sem propriamente viverem. A guerra acabara, não ha duvida, mas faltava ainda liquidar a crise, e como a paz[Pg 260] não significava abundancia, mas sim a continuação da miseria, continuava a mesma indecisão das medidas, ora dirigidas a manter o credito das notas, ora a sacrifical-as ás necessidades do Thesouro. O ministerio nomeado depois da paz reage contra as resoluções tomadas n’este ultimo sentido, e restabelece a proporção de metade apenas em dinheiro nos pagamentos do Estudo. A causa do agio, diz, fôra a guerra e a excessiva procura de moeda metallica para o exercito; mudaram as circumstancias e o augmento na relação das notas nos pagamentos concorrerá para diminuir o rebate. (Decr. de 11 de setembro) Mas o problema era mais complicado, as causas mais profundas, e tres mezes bastam para que esta doce illusão se dissipe. A loteria das suas esperanças ficava em papel; e nem por se ter acabado a guerra podia apparecer dinheiro, porque o não havia em casa, nem de fóra ninguem o daria, quando os juros da divida estavam por pagar. Tres mezes bastam, dizemos, para convencer de que o unico meio de resolver a questão é supprimil-a, por meio de banca-rota declarada. Tire-se ás notas o caracter de papel-moeda; negue-lhes, por uma vez, o Estado a sua garantia; declare que as considera um papel commercial, cotavel, e já não fará mais do que reconhecer o facto nas relações privadas, augmentando as receitas publicas insupportavelmente amesquinhadas pelo rebate d’aquella parte, o terço ou metade, realisada em notas. Os decretos de 9 e 14 de dezembro fizeram com effeito isto. Largas considerações, meritorias por serem sensatas, francas e verdadeiras, justificavam a medida que abolia o curso-forçado, retirava a garantia do Thesouro e o caracter de moeda a umas notas que o banco já não podia ser compellido a converter á vista, o[Pg 261] que seria obrigal-o a fallir, por isso que a sua amortisação fôra anteriormente pactuada por meios e fórmas varias. A contar de 20 de dezembro as notas poderiam entrar por metade nos pagamentos ao Thesouro, mas não pelo valor nominal, só pelo valor real, segundo as cotações da bolsa.

Esta banca-rota positiva, mas opportuna e inevitavel vinha consummar a ruina da circulação fiduciaria portugueza, augmentando os embaraços de uma nação desprovida de capitaes circulantes e por isso mais necessitada de inventar um instrumento artificial de circulação que pudesse substituir a moeda escassa. Mas, para que os artificios sirvam, é sobretudo mistér juizo, prudencia, e paz, cousas que nós desconheciamos.


A revolução e a guerra, deitando por terra o castello de cartas da agiotagem cabralista, tinham arruinado comsigo, na queda, a circulação fiduciaria portugueza. Era mais um passo andado no caminho de uma decadencia economica, declarada desde o principio do seculo, e que até agora o liberalismo não conseguira corrigir. As estatisticas do commercio (V. Mappas geraes, 1848) demonstram-no de um modo eloquente:

Exportação Importação Somma
1801 (contos de reis) 25:104 19:337 44:441
1816 » 16:178 17:870 34:048
1830 » 10:468 12:955 23:423
1844 » 6:580 9:826 16:406
1848 » 8:543 10:806 19:349

Depois da primeira data, vem a invasão franceza e a franquia do Brazil ao commercio extrangeiro;[Pg 262] depois da segunda, a separação e independencia da nossa colonia; depois da terceira, as revoluções liberaes e a anarchia constitucional: eis as causas successivas de empobrecimento. Agora começava a soprar uma aragem, prenuncio de melhores tempos: viria uma regeneração? Ainda era cedo para o crer, tanto mais que a França, infelizmente mestra dos nossos homens, ia lançar-se n’uma aventura democratica, fazer a sua revolução-de-setembro (em fevereiro), proclamando a republica. Não faltava entre nós quem suspirasse por ensaiar esta ultima definição verdadeira, absoluta do liberalismo, depois de desacreditadas as anteriores e successivas.

Não crescia, caía todos os dias o commercio externo, metro seguro da prosperidade de um povo culto. Mas augmentava sempre, assustadoramente, a divida contrahida para ensaiar, com intrigas e revoltas, essas varias fórmas da doutrina. E a divida crescia, porque os ensaios, arruinando internamente a nação, não consentiam que os seus redditos augmentassem. O imposto não dava:

Decima Decima Directo
Fabricas industrial predial em geral
1838-9 (mil reis) 4733 210:251 976:274 1.347:547
1841-2 » 3803 234:231 937:216 1.416:338
1846-7 » 3556 214:669 945:853 1.378:990
1849 » 3816 214:409 945:391 1.377:536
1850 » 3771 225:146 958:709 1.411:437

Já appareciam as observações retrospectivas e confissões sinceras dos males accumulados. Eram reconhecidamente muitos: os erros administrativos e financeiros, as eleições corruptoras ou barbaras, as sociedades secretas, a licença da imprensa, os excessos da tribuna, e sobre tudo a[Pg 263] mendicidade dos empregos: «as guerras civis de Portugal são evidentemente as guerras dos empregos publicos». (Autopsia dos partidos politicos, op. anon.) São, nem podiam ser outra cousa, porque o communismo burocratico substituira o monastico, no regime de uma nação cachetica:

N’esta babel em que vivemos, tudo passa inapercebido, no meio da confusão de todo o pensar e sentir. Esta é a terra classica da ingratidão regada pelo Lethes do Desmazelo e do Não-se-me-dá, da mais estupenda caducidade em que póde caír um povo. (Garrett, Mousinho)

Não-se-me-dá é a expressão natural dos pobres que nada teem a perder, e por isso a ninguem se lhe dava que as cousas caminhassem para uma banca-rota, já desde 38 considerada inevitavel, e util pelos que propunham o ponto geral. Não se descobria, com effeito, o modo de solver encargos progressivamente crescentes, perante recursos, ou paralisados ou decadentes. O governo confessava o deploravel estado das cousas, (V. o relatorio notavel do min. Falcão; março de 48) e os observadores comparavam os numeros e apertavam a cabeça com as mãos, vendo a perdição irremediavel. (V. Autopsia, etc.)

Em junho de 33 a divida era de 16:868 contos
e pelo orçamento de 45-7, accrescentada pela emissão recente de inscripções, de 87:579 »
Augmentara em 13 annos, a razão de quasi 5:500 por anno 70:711 »

Quintuplicara, e para que? para ensaiar systemas, matar gente com revoltas, e pauperisar cada vez mais o reino. E além d’essa divida, havia a mais a fluctuante, em mais de dez mil contos que dariam o dôbro, expressos em titulos fundados. E[Pg 264] não se contava a divida mansa; e os bens nacionaes vendidos tinham ainda assim produzido cerca de vinte mil contos, e ás classes activas devia-se mais de um anno, ás inactivas quasi dois, apesar das decimas, das capitalisações e dos pontos anteriores successivos. (Autopsia, etc.)


Como se havia de existir, com uma fome assim? Londres renegara-nos. Os tempos dourados de Mendizabal-Carvalho não tornavam. O paço dos judeus inglezes, o Stock-exchange, dera-nos com as portas na cara, não nos julgando crédores da honra de sermos apresentados e cotados. Valiamos nada.

Seria interessante saber se no meio da penuria, da anarchia e da guerra, a população crescia. Não espantaria que crescesse, pois a indigencia é prolifica, pois a legislação reduzira o numero dos celibatarios, pois as guerras eram mais vergonhosas do que propriamente mortiferas. Mas os subsidios faltam, e os poucos existentes merecem pequeno credito. (V. Luis Mousinho, na ref. admin. 1836; C. Adriano da Costa, Rev. de Recens. 1838; Relat. do minist. do reino, 1849 e 50)

1836 1838 1849 1850
(fogos) (habit.) (habit.) (habit.)
Minho 204 803 850 856
Traz-os-Montes 76 297 308 309
Beira-Alta 208 1067 1139 1131
Beira-baixa 24
Estremadura 177 668 748 748
Alemtejo 70 264 290 285
Algarve 30 125 139 142
Milhares 789 3224 3474 3471

[Pg 265]

A dar authoridade a estes numeros, conclue-se que a população crescera duzentos mil habitantes em quatorze annos, ou a razão de 6,5 por mil ao anno. A comparação dos recenseamentos de 1826 (No Almanach de Lisboa) e de 1838 apresenta um progresso quasi egual, (3:013—3:224, augm. 210) mas a estatistica d’esses dois annos contradiria o resultado observado acima no periodo posterior ao segundo, (V. Quadro, no Diario, 21 de abril de 40)

Nascimentos Obitos Casamentos
1826 102:037 66:410 21:433
1838 99:097 67:541 23:598

porque, ao passo que em 26 ha uma sobra de (102-66) 36, em 38 essa sobra é de (99-67) 32 apenas: a mortalidade seria no primeiro caso de menos de 66 p. 100 da natalidade e no segundo de quasi 67.

Mas seria perdermos o tempo architectar hypotheses sobre alicerces tão falliveis e grosseiros. Chama-nos a conclusão d’esse balanço economico do paiz para um calculo interessante do custo da sua ultima revolução. (V. Diario de 8 de junho de 47)

Perdas de credito

Fundo de 5 p. 100: 19:361 c. de 74 a 50. contos 4:646
    »    4    »    13:335    »    60 a 40. » 2:671
Acções do Banco, 10:000 de 820 a 230:000. » 5:400
Depositos, um terço de 700 c. » 233
Acções da Confiança » 3:248
Promissorias idem, reembolso em notas. » 412
Acções da União, de 112 a 55. » 570
40 p. c. do valor das notas » 1:600
Depreciação do credito externo » ? 18:780

[Pg 266]

Perdas do thesouro

Despezas do exercito e marinha contos 1:500
Descontos de notas » 700
Tres quartos da receita de nove mezes » 7:500 9:700

Perdas geraes

Roubos, contribuições forçadas, etc. » 900
23 a 30 mil braços sem trabalho productivo:
    9 mezes e 20 dias a 200 rs. 1:620
Incendios, ruinas, etc. » ?
Capital humano: mortos e feridos » ? 2:520
Total determinado » 31:000

As verbas indeterminadas calcule-as quem puder, e achará que a revolução e a guerra deram uma ultima sangria não inferior a 50 mil contos ao corpo já quasi exangue da nação. Que admira pois a cachexia universal? «Recordei-me com amargura e desconsolação dos tremendos sacrificios a que foi condemnada esta geração, Deus sabe para quê,—Deus sabe se para expiar as faltas dos nossos passados, se para comprar a felicidade dos nossos vindouros.» (Garrett, Viagens) Assim, poeticamente, se exprimia Garrett, memorando casos transactos; e o que succedia depois não authorisava a crer que se tivesse comprado então a felicidade dos vindouros. Expiar-se-hiam as faltas passadas? Expiavam-se, expiavam-se de certo as consequencias de uma deploravel educação historica; mas tambem se soffria o resultado natural de uma illusão ephemera creada por uma philosophia erronea. Como nós, a Hespanha saía das mãos do illuminismo jesuita para caír nas mãos do espiritualismo liberal, e a historia da Hespanha era o mesmo que a nossa. Mas a França, que toda a Europa seguia, sem[Pg 267] ter tido essa educação mortifera, soffria como nós as consequencias do romantismo politico, do doutrinarismo individualista, e da anarchia positiva: do governo immoral, além de tyranno, da burguezia rica, imperio formado espontaneamente sobre as ruinas do velho Estado monarchico.

2.—O CONDE DE THOMAR

O setembrismo morrera de vez depois de terem desempenhado o seu triste papel os chefes timidos que por suas mãos tinham abafado a revolução. Mas teria a historia dos ultimos dois annos convertido os cabralistas, cuja tyrannia brutal, cuja avidez deshonesta, alliadas á energia no mando e á audacia no pensamento, provocaram o desespero e a revolta do povo? Viu-se que não. Consideraram-se vencedores; e se o extrangeiro lhes não permittiu vingarem-se, e se o desmoronamento da machina agiota não consentia voltar-se aos doirados tempos, os cabralistas seguiam, mais modestos, mais moderados, governando o reino como cousa sua.

Como rasto de um terramoto, a segunda metade de 47, depois de Gramido e da victoria do governo, agitada com o borborinho das eleições proximas, arrastou-se com um cortejo de vinganças e desordens. A soldadesca desenfreadamente espancava nas cidades e especialmente no Porto—agora tão odiado como antes o fôra no tempo de D. Miguel. Artilheria 3 era apontada como eximia em arruaças cabralistas. Os vidros das casas patuléas, do José Passos e d’outros, voavam em estilhas com pedradas. O Nacional, o Ecco popular, orgãos dos vencidos, eram colhidos das mãos dos distribuidores e rasgados aos centos. Por todo o reino havia[Pg 268] roubos, espancamentos, assassinatos. Só em Evora, nos tres mezes depois de Gramido, houvera doze attentados em publico pela soldadesca. (Rev. de Setembro, 8 de set. 47) O Nacional, cuja typographia fôra assaltada, e a commissão opposicionista para as eleições, pediam protecção ás potencias alliadas, reclamando a amnistia promettida. Era um reflexo pallido do que succedera em 34 ao miguelismo, tambem amnistiado depois de Evora-Monte.

As eleições de 48 trouxeram o conde de Thomar á camara. Chegava triumphante, depois de um desterro, já transformado em uma embaixada, d’onde guiara o seu lugar-tenente Saldanha, d’onde urdira a trama da intervenção hespanhola que afinal arrastara a Inglaterra, congregando os elementos da victoria. Os vencidos, vendo-o regressar ao seu posto, á camara, primeiro degrau de um segundo throno, foram-se ás armas, pegaram das munições, prepararam-se desde logo para uma nova campanha. Costa-Cabral, o conde de Thomar, era mais do que um homem: era um systema e um phantasma. No odio com que o recebiam mostravam-lhe quanto elle valia, pelo medo que lhe tinham.

A cadeira de deputado foi, com effeito, a breve transição da embaixada para o governo, onde substituiu Saldanha. (18 de junho de 49) Essa restauração teria tido lugar muito antes, se a guerra não tivesse respondido ao golpe-d’Estado de 6 de outubro, no qual Saldanha era apenas a força bruta do exercito destinada a preparar a volta do estadista banido em maio.


Eis, portanto, de novo as cousas no estado em que a primavera de 46 as achára; eis perdido o[Pg 269] tempo, e o dinheiro, e as vidas, e dois annos de revolução e guerra. Congregam-se outra vez as guerrilhas? agita-se de novo o povo? Não. A Maria-da-Fonte morreu; Macdonell morreu; os camponezes voltaram para suas casas batidos por uma saraivada de desesperanças, decididos a não querer saber mais do governo; os miguelistas resolutamente se fecharam nas suas covas. Nenhum espectro surgia ...

Apenas a imprensa desvairada dos politicos batia sem piedade o homem a quem se costumara a cobrir de lama. E a velha calumnia da lenda do castello de Thomar levantava a cabeça, não poupando a reputação pessoal da rainha a quem, confundindo a politica e a modestia, equivocamente chamava tolerada. Accusavam de seu amante o ministro, e elle, o homem forte, commetteu a maior das fraquezas, mandando processar em Londres o Morning Post que repetiu as infamias das folhas de Lisboa. É que tambem caía, tambem descia, o antigo tribuno dos Camillos, o cansado tyranno de Lisboa.

Só não cansava a imprensa, no seu desalmado ataque. A Nação, na capital, imprimia um requerimento á rainha: «Senhora! o vosso ministro é accusado de receber um caleche e dar por elle uma commenda. Senhora! o vosso ministro pedia-vos uma commenda para pagar os caleches com que o peitavam». E o Nacional, no Porto, publicava uma scena dramatica, entre burlesca e tragica, amorosa e torpe, em que o côro exclamava—ó ladrão! larga o caleche! (ass. C. Castello-Branco, 19 de dezembro, 1849) O Supplemento burlesco, em lithographias toscas e caricaturas grosseiras insultava diariamente os Cabraes e a sua gente, mostrando que o antigo genio soez da satyra portugueza não se extinguira. Aqui[Pg 270] vinha o Triumpho do Chibo: um bode (o conde de Thomar) com um sacco aos hombros e o letreiro roubo; o chibo sobre um andor que é um cofre, o Thesouro, levado por Saldanha e por José Cabral, o dos conegos, de vestes talares. (n. 39, dez. 23 de 47) Além é o Chibo d’Algodres, um grande bode com a face do conde de Thomar, de pé, tendo uma vara ao hombro e pendentes, á laia de sacco, os palacios famosos: Thomar, a Estrella; o rabo do bicho está enlaçado com folhas tendo escriptos os nomes das companhias do tempo. (n. 28 nov. 15) N’outro apparece o famoso padre Marcos, o Arcebispo do Cartaxo, Porto e Chamusca: é uma botija, tendo na bocca a cabeça do padre mitrada, e nas azas ou mãos, o baculo de um lado, o copo do outro. (n. 32 nov. 29) O José dos Conegos tambem é chibo com o trajo talar arregaçado, pistolas ao cinto, na mão a Arte de furtar. (n. 42 jan. 3 de 48) Veem tambem os empregados publicos, aranhas, esqueletos, mirrados e seccos, e no centro da folha o conde de Thomar com um ventre inchado, monstruoso «cheio como um ovo». (n. 29 nov. 18 de 47) Não falta o Saldanha na Arvore das caras, em que os ramos, os rebentos, os tortulhos do chão, tudo são caras diversas do versatil, regadas pelo jardineiro de Thomar com dinheiro em vez de agua. (n.º 41 dez. 30) E assim por diante, os pasquins pintados coadjuvavam as diatribes escriptas. Veiu a lei-das-rolhas, e Cazal Ribeiro, bem moço ainda, mas ensopado no virus politico, cheio de talento e enthusiasmo, homem de uma geração nova que mal fazia em se envolver nas questões da antiga, declamava n’um estylo obeso:

Conde de Thomar, sois um concussionario porque entrastes para o poder pobre e tendes adquirido uma fortuna[Pg 271] immensa por meios torpes e vergonhosos. Conde de Thomar, sois um traidor, porque vendestes ao paço a causa do povo em 1840; porque vos revoltastes contra a constituição que servieis em 1842; porque arrastaes agora o throno e a nação a um precipicio certo e talvez á invasão extrangeira. Conde de Thomar, sois um despota ignobil porque calcaes a decencia, as leis, a constituição, e governaes só pela bitola do vosso capricho. Conde de Thomar, sois um imbecil, porque a vossa habilidade cifra-se na intriga e o vosso poder depende só do favoritismo. Conde de Thomar, sois um miseravel, porque vos servís, como meio politico, da honra de uma senhora, de uma rainha: porque a sacrificaes impudentemente aos vossos nefandos fins. (Cazal Ribeiro, A Imprensa e o conde de Thomar, 1850.)

E a decadencia dos caracteres era—e continuou a ser—tal e tanta, que os inimigos trocavam entre si as maximas injurias, sem logo se apunhalarem, ou se baterem a tiro, a tres passos. Não! era politica. Dias depois sorriam lado a lado, sentados juntos na mesma camara. Era politica! Não se está sentindo a necessidade de uma regeneração? Não se percebe que o momento da victoria final da rapoza se approxima? De gritar estão fartos, de nodoas todos sujos, de gritar todos surdos: abracemo-nos todos! Vinte annos escassos de uma historia que o conde de Thomar, como um dormente, protrahia de mais, levavam a esse abraço fatidico.

De um e de outro lado já se encontram nomes novos: Cazal e Latino na opposição; Corvo, pelo governo, mostrando aos adversarios a inconsequencia de atacar o gabinete por se apoiar no exercito, quando tinham por chefe um general, (Antas) patenteando o vasio dos seus desejos, o indeterminado dos seus programmas. (Corvo, Fallou a opposição! op.) E dos velhos jacobinos, dispersos, aborrecidos, desilludidos, apenas um restava para condemnar não só[Pg 272] o governo, como o soberano; não só a rainha, como a dynastia inteira dos Braganças:

De quantas dynastias senhoream hoje a Europa, é a de Bragança, que nos governa, a mais ominosa de todas, como quem teve principio em crimes e traições abominaveis. (D. Affonso matara o conde D. Pedro em Alfarrobeira; e o neto fôra degollado por D. João II em Evora) D’essa familia não se póde contar nenhum rei que fosse patriota; e se não fossem os extrangeiros (em 47) ter-se-hia dado o espectaculo novo de um rei expulso pelo povo portuguez.—Por Deus, senhora D. Maria II! Veja V. M. o paradeiro que teve em palacio, á vista da rainha D. Leonor Telles, o conde Andeiro! (J. B. Rocha, Rev. de Portugal, 52)

O conde Andeiro ria sarcasticamente. Chamavam-lhe estafador, concussionario, ladrão publico; e elle mordia-se de colera, se é que o habito lhe não dera já impassibilidade. Sabia demasiado o modo de não irritar o povo: deixar-se de innovações perigosas, deixar seguir o barco da conservação na maré da banca-rota. Seguro o exercito, conhecido o modo de fazer as eleições, legalisado o systema, que lhe importava o ladrar dos inimigos? Mas é que esses ataques passavam por sobre elle, iam direitos ao soberano: «Protege V. M. os homens sabedores? Favorece os artistas? Acode á pobreza desvalida?—Nada d’isso: só deu a Costa-Cabral o Alfeite.» (Ibid.) E os periodistas o follicularios já não se pejavam de propagar, clara, abertamente, a urgencia da abdicação da rainha.

Tão longe não iam os pares na sua camara, mas nenhuma voz era mais cruelmente desapiedada do que a voz sibillante do terrivel Lavradio. O ministro rira até então, mas quando Saldanha,[Pg 273] fosse pelo que fosse, passou para a opposição, tornou-se serio, e nas vesperas de acabar viu-se ainda o homem antigo. O marechal, passando-se, via o exercito inteiro a bandear-se: imagine-se com que abraços a opposição o não receberia! Quem se lembra já de Torres-Vedras, e das injurias, e dos degredos! Politica! Mas Costa-Cabral propoz-se demonstrar que Saldanha era nada: um homem-de-ferro, como o de S. Jorge na procissão de Corpus; no que se não enganava inteiramente, como 51 o demonstrou e veremos. O marechal foi demittido do paço, e logo pediu a demissão de todas as suas honras e cargos. Deu-se-lhe; e o ministro, outra vez temerario, não se lembrou de que um antigo Cid, um condottiere, patrono de tão consideravel clientela, não se mata por metades. Ou se fusila, ou se compra. O povo sempre disse: «quem o seu inimigo poupa, nas mãos lhe morre.»


Varios symptomas indicavam a morte proxima do cabralismo; mas, assim como os doentes nas vesperas de acabar têem ás vezes como um clarão de saude, assim é necessario, antes de apreciarmos as causas directas da quéda proxima do conde de Thomar, contar o seu ultimo dia, quando a antiga força pareceu reviver e o sangue todo circular com energia antes de o coração parar.

Saldanha renegara-o; os pares da opposição (Taipa, Lavradio, Loulé, etc.) tinham pedido á rainha a demissão do ministro odiado, accusado de crimes torpes que manchavam de lodo o governo e até o throno. Abertas as camaras no principio de 50, os[Pg 274] debates pareciam audiencias e o ministro um réu. As galerias dos Pares, cheias de povo, estavam com a accusação: o conde de Thomar era, como Guizot e os doutrinarios em geral, antipathico. O povo não ama a seccura e a rigidez das formulas pedantes; o povo está prompto a crêr sempre na criminalidade dos que o governam, desde que o principio da rebeldia constitucional contra o Estado appareceu e venceu; desde que se poz no direito publico um dualismo organico entre a liberdade e a authoridade, supposta antinomia. O conde de Thomar era antipathico, e não tinha para contrariar esta consequencia da indole da sua politica, nem os creditos de integro, nem os de sabio, que escudavam o seu modelo Guizot.

«Eu não posso ser considerado como obnoxio á nação que sendo chamada á urna me favorece sempre com a sua opinião quasi geral.» (Disc. de 12 de jan.) Em vez de atacar, defendia-se, o ministro: evidente prova de fraqueza; e a defeza era triste, molle. A quem pretendia enganar, ou convencer? Pois sala e galerias, pares e povo, não sabiam todos o que eram eleições e urna? Tanto sabiam, que estrepitosos risos acolheram a saída do diogenes burocratico: fraco cynismo, se provoca o riso!

Mas essas gargalhadas os esporearam-no. Pulou. Torcia-se-lhe a face, luziam-lhe os olhos, e resuscitava o homem de 42. Então, depois da aventura do Porto, olhando a desafiar os inimigos, dissera-lhes: Conspirei? tambem vós! conspirámos todos. Agora a accusação era outra, mas o processo identico: Roubei? tambem vós! roubámos todos.

E sarcastico, odiento, inverteram-se os papeis: o réu passou para o banco da accusação. Tinha diante de si um masso de jornaes impressos, e abrindo-os, via-se cada folha tremer com a convulsão[Pg 275] do pulso do ministro: Accusam-me de ladrão? E quem? Saldanha não saberia que a propria Revolução de Setembro lhe dissera o mesmo a elle? Porque não a processou, e quer que a processe agora eu?—E abria o papel, lia o que occorrera em certa arrematação das Sete-Casas: «A praça estava aberta, as condições foram umas e a arrematação foi feita por outras. Não é isto uma burla?» Que motivos houvera? «Estavam já calçadas as luvas. Vencedor de Torres! não córes; tudo se sabe». (Rev. de Set. 10 de jan. de 48)

Nem a sala, nem as galerias riam já. O caracter não era ainda uma ficção, como a Urna. O ministro feria com acerto, e, ávida de escandalo, a assembléa, muda, obedecia-lhe.—Quereis mais? Ouvi: «Mais vergonhosa ainda é aquella historia do retrato. O retratista recebeu 180$000 rs. para elle; para 400, vão 220 que faltam. Onde se sumiram, duque de Saldanha?» Outro artigo: «Miseria, sr. ministro, é o roubo de 220 mil réis; miseria é v. ex.ª considerar uma miseria a accusação por esse roubo ... Quem recebeu mais de sete contos por um emprego que nunca exerceu, não admira que considere 220 mil réis uma miseria». (Rev. de Set. 18 de jan.)

O bote estava dado em cheio no refalsado peito do marechal que o atraiçoara, depois de por tanto tempo o servir. Mudando o tom e a voz, com uma gravidade de secretaria, o ministro observava, dobrando os jornaes, que era «o primeiro a fazer justiça á honra e probidade do digno par», mas que se achava na obrigação de defender-se. Todos os homens d’Estado d’este paiz tinham sido accusados de ladrões pelos jornaes diffamadores, e todos os tinham desprezado, nenhum os chamara ao jury: elle faria outro tanto, seguiria tão bons exemplos.[Pg 276] E admirava-se de que fosse o marechal quem se voltasse contra elle; o marechal que, ao saír da presidencia do conselho, declarára ser com elle, ministro, «uma e a mesma cousa»; o marechal que em dezembro de 47 o mandara embaixador para Paris; o marechal, etc. (Disc. de 12 de jan. de 50)

Fustigado, bem moído, este primeiro e novo inimigo, o conde de Thomar voltou-se para os antigos. A opposição, no seu manifesto, reclamava a demissão d’elle sob pena de uma revolução terrivel ou do dominio hespanhol; e o ministro, firmando bem os pés no chão, n’um accesso de furia, respondeu-lhe suffocado, rôxo:—«Não saírei d’aqui!» Dominou-se, porém, logo, a contar como as cousas se dispunham na camara para o atacar. «Havia pelotões para dar apoiados.» (A sala inteira riu francamente). Observara-se como certos dignos pares que nunca falavam, se agrupavam no cumprimento d’esse dever. Faziam bem: para nada serviam! (Ibid.)

Com este sarcasmo voltara a accusar. O conde da Taipa dissera que «o presidente do conselho era objecto do odio geral», e quando repetia estas palavras, o conde de Thomar exprimia aquelle orgulho quasi voluptuoso que os homens da sua tempera sentem ao perceber, no odio, a importancia que têem e o medo que inspiram.—Era objecto de odio geral, dizia o conde: logo falariam; mas elle, ministro, buscava as demonstrações legaes, e dizia que nos governos representativos a Urna era toda a legalidade—resvalando outra vez o doutrinario para a perigosa selva das fórmulas. Havia rumor, sussurro, na sala e nas galerias, sempre que se falava na Urna.

«Se a guerra é contra mim, tenham a coragem de me accusar em fórma: se o não fizerem hão[Pg 277] de permittir que lhes diga que são hypocritas.» A voz tremia-lhe, e agitando-se, crescendo-lhe o odio, chegava á eloquencia verdadeira e forte. Com a audacia de um vencedor, encarando de frente os inimigos, ensinava-lhes como haviam de formar o libello.—Digam, vamos: 1.º O presidente do conselho commetteu o crime de peita, dando uma commenda e recebendo por ella um caleche.—Sigam: 2.º Tem palacios, tem quintas, tem castellos, tem ricas tapeçarias e um luxo asiatico ... A camara, pasmada vergava: era um monstro de cynismo? Elle aproveitava a emoção, continuando: 3.º Tem um tinteiro de ouro!—e vencia, arrancando aos ouvintes uma gargalhada unisona.—Não parem: 4.º Quando a rainha o honrou, visitando-o no seu palacio de Thomar, elle apresentou-lhe um serviço de ouro tão rico que a soberana disse: é mais rico do que o meu!—Mais ainda: 5.º Está edificando uma sumptuosa sala de baile, aproveitando-se dos marmores e madeiras do palacio d’Ajuda.—Outra: 6.º Empalmou uma letra de mais de mil libras, mandada do Brazil por um portuguez para as urgencias do Estado.—Mais: 7.º O Mindello veiu carregado de espelhos para o seu palacio.—Mais: 8.º Possue a mais rica garrafeira.—Mais: 9.º Recebeu por peita um cavallo.—«Havia mais? Dizia a imprensa alguma outra cousa? Juntassem, sommassem; mas tivessem a coragem de o accusar, alli, clara, publicamente.»

Até ahi o seu discurso galopava, esmagando tudo; mas quando, ao parar, regressou, perdeu-se. Não teve habilidade para acabar, e quiz defender-se. Guizot vencia pedagogicamente leccionando; não respondia a ataques. Costa-Cabral vencia tambem, á peninsular, investindo: porque se deixava bater, discutindo? Algum motivo inconsciente o[Pg 278] impellia a explicar casos que não seriam inteiramente calumnias? Se assim era, provava a sua fraqueza; do contrario, a sua simplicidade. O discurso continua embrulhado, pastoso, monotono. As explicações podem satisfazer, mas com o odio, com as paixões, não se debate. Seria mistér que ao periodo dos sarcasmos se seguisse uma d’estas provas theatraes, dramaticas, capazes de impressionar a imaginação, embora não convençam a razão fria que é sempre o dote do menor numero. Era isso o que faltava ao ministro, a imaginação; era isto o que sobrava ao outro homem que a historia põe diante d’elle, Passos. D’ahi vinha a um o ser odiado, adorado o outro: apesar do segundo ser muito superior, como força e verdadeiro talento. E Passos era virtuoso, podendo deixar de o ser sem perder por isso a popularidade; e Cabral passava pelo não ser, sem que podesse ganhar sympathias, ainda que o fosse.

O povo, como massa, tem um modo de sentir e de se decidir, para o qual não colhem as fórmas simplesmente logicas da argumentação. Foi o que o conde de Thomar e toda a eschola doutrinaria jámais perceberam, teimando em convencer as massas com raciocinios e fórmulas, e opprimindo ou burlando quando viam não serem comprehendidos. Nenhum systema politico se presta mais á tyrannia e á burla do que o systema arithmetico do governo das maiorias.

Inorganico, ou se perde na confusão da anarchia, ou cáe na paz da indifferença apathica, ou n’uma corrupção systematica, n’um processo de burlas e sophismas. O leitor viu a primeira conclusão, verá dentro em pouco a segunda: a terceira é a de agora. E a fraqueza do Guizot portuguez estava no acanhamento do seu espirito[Pg 279] sêcco, tomando as fórmulas escholarmente a sério. Hirto, duro, era um ariete para bater; mas sem plasticidade, sem o que quer que é de communicativo e seductor que arrasta o povo, em qualquer sentido. Era a Antipathia personalisada. Vencia, mas não convertia. O advogado argumentava, depois que o tribuno aggredira; e o povo, impressionado pela violencia, ficava indifferente ás argucias. Não as comprehendia, e repugnavam-lhe. O conde de Thomar era a personalisação, como que o symbolo da antiga historia de delapidações: o povo espontaneamente o apedrejava, como victima expiatoria. Pagava os crimes de muitos. Não era o sangue, eram os roubos de uma geração que lhe caíam sobre a cabeça. Para se salvar de uma tal situação, seriam mistér qualidades, genio, imaginação, phrases, que não tinha. O clamor accusava-o de roubos: era necessario mostrar-se modesto e desvalido. De que servia saber-se que a rainha lhe arrendára o Alfeite? Nos governos de publicidade o rei é nada. Quando a opinião governa, é necessario que fique, ou pareça ficar pobre, aquelle que para o governo não entrou rico. Ai, dos que enriquecem, embora lisa, honestamente. O politico é como a mulher de Cesar; e na psychologia da opinião entra sempre e por muito a inveja. O marquez de Pombal podia ter aguas-furtadas, porque estava na indole do velho regime monarchico-aristocratico o enriquecimento dos ministros, valídos d’um rei, dono ainda da nação. Mas agora o rei já não era senhor, nem amo, nem cousa alguma: deslocara-se a noção da origem do poder, e com ella o criterio da moralidade na politica.

Estas considerações fizemol-as, emquanto o ministro, do seu lugar, alinhavou pastosamente, como[Pg 280] um advogado, a sua defeza. Não valia a pena ouvil-o. Mas agora, transposta a parte molle do seu discurso: agora que o aggressor volta, e a voz se lhe aquece e o olhar se lhe aviva, é indispensavel observar a conclusão da batalha.

Não appella para o jury, repete, porque despreza as calumnias. Segue o exemplo dos accusadores. Começara por Saldanha; era a vez do conde da Taipa, agora.—Um par houve accusado de ladrão e até de espião pago!—Taipa: E quem é esse par?—V. Ex.ª—Eu leio;—e voltou a desenrolar um jornal, já antigo, amarello do tempo, como um espectro evocado do tumulo: «Ao Gago ladrão, o Raio», assim começava o artigo. Esse gago era um desprezivel saltimbanco sem honra e sem virtudes. Respondeu a conselho de guerra por ladrão da fazenda publica. Mancha a sociedade com o seu halito immundo. Era devasso, vivia em orgias dissolutas, recebendo 3:200 por dia para ser instrumento do Marinho: as suas denuncias atulharam as prisões. (Raio, 21 de maio de 36) Era o ladrão da caixa militar do regimento de cavallaria 7, o espião dos 3:200, o urco de 1823 ainda empoeirado com a viagem de Villa-Franca, o militar cobarde fugindo sem se saber porquê, (Raio, 9 de agosto de 36) etc. Tudo isto dissera o Raio, e o digno par não appellara para o jury!

O odio crescia na camara indignada contra o temerario que, para se defender, ia revolver assim, em publico, sujas aguas corridas, levantando lodos que manchavam os legisladores. E era urgente olvidar o passado, e as suas campanhas. Todos se sentiam anciosos de esquecimento. Rodrigo começava a abrir os seus braços para o amplexo final, fraterno ... Fóra, o importuno, o impenitente, que aos seus crimes junta o crime de accusar o proximo!

[Pg 281]

Fatigada estava a camara, extenuado o orador: todos anciavam pelo fim, por uma regeneração. A voz do ministro extinguia-se, e o corpo pedia-lhe uma pausa.—«Para ganhar tempo, e não ouvir a resposta?» perguntou Taipa. Esporeado, o conde saíu ainda: «Não é, não: ficarei até ás dez da noite, se preciso fôr».—Taipa: «Eu não necessito estudar!»—Thomar: «Preciso eu; mas para responder ao digno par—nunca!»

O resto foi um disturbio parlamentar, que os gritos de, ordem! a custo dominavam. Acabava a scena em uma desordem: que era tudo senão anarchia, desde os principios e doutrinas, até aos caracteres e á moral?

Assim foi o ultimo dia do conde de Thomar. Dera o que tinha. Durante nove annos (42-51) contivera a maré do scepticismo pacifico, lançando a patria nas aventuras de um liberalismo novo. Agora, o padrão d’essa doutrina, o padrão francez de Guizot, já fôra despedaçado em Paris pela revolução (fevereiro de 48); os tempos mudavam, e a atmosphera adequada ao temperamento do ministro desapparecera. A força das cousas ordenava-lhe a abdicação, mas o genio rebellava-se-lhe. Como o toiro que o matador só consegue abater depois de successivas estocadas, mas que tem na espada o instrumento de uma morte fatal: assim o ministro ainda marrou, erguendo-se, investindo, appellando ainda para a tribuna, para as bernardas, mas perdendo sempre sangue, esvaindo-se até se rojar vencido na fria arena das embaixadas.

É mais um dos successivos mortos do liberalismo, este duro beirão de Algodres. Mas que morte a sua, tão diversa do sacrificio espontaneo do minhoto, poetico Passos, caminhando para o altar coroado de flôres, alegre, pacifico, resignado; confessando[Pg 282] os seus erros antigos, o dissipar das suas illusões, negando a verdade dos systemas, a força dos homens, a vitalidade da patria! É que para dentro de tudo isso o poeta sentia esperanças novas, para além d’esses dias fugidos, auroras vagas: ao passo que o politico, uma vez rasgadas as fórmulas, achava-se perdido n’um vacuo.


[Pg 283]

LIVRO SEXTO
A REGENERAÇÃO
(1851-68)


I
ALEXANDRE HERCULANO

1.—A ULTIMA REVOLTA

O homem que em 1826 iniciou a historia liberal é o proprio que agora vae desembainhar a espada para encerrar com uma sedição militar a serie de pronunciamentos a que temos assistido. As successivas physionomias politicas de Saldanha são o traço eminente do seu retrato e do dos tempos em que existiu. Homem sem idéas, os partidos e programmas são para elle occasiões, e nada mais; e como esses programmas e partidos nasciam, cresciam, desfaziam-se constantemente, na atmosphera duplamente movediça de um paiz arruinado e de uma doutrina inconsistente, o marechal encontrava-se, ao decaír da vida, tão carregado de annos como[Pg 284] de opiniões diversas, sem que os annos abatessem a sua rija constituição, nem as contradicções podessem affligir um espirito que, a serio, bem no fundo da alma, só tinha uma crença enraizada: o catholicismo portuguez, beato, quasi fetichista.

Em 1822 vira-se Saldanha applaudir a Constituição jacobina; em 23 recuar, com Terceira e muitos mais, até Villa-Franca, na jornada da poeira, e applaudir a suppressão das côrtes. Em 1826 apparece-nos proclamando a CARTA, seu ministro, e elevado a conde. É então e por alguns annos o chefe da opposição ao regente, e isso o affasta da campanha começada em 32. Nos apuros do Porto vem de Paris; e successivamente general de um exercito, marquez, dotado com 100 contos de bens nacionaes, vae pouco a pouco inclinando para a direita, até que em 1835 preside um ministerio cartista. A corôa conquistou-o. E desde então começou a pôr ás ordens d’ella a sua influencia e a sua espada. Conspira em Belem contra os setembristas; subleva-se no anno seguinte. A constituição de 38 tral-o da emigração ao reino, e até 46 não bole. No 6 de outubro é porém elle a espada com que a rainha expulsa os setembristas do governo; e por mais de dois annos, até ao meiado de junho de 49, é o presidente do conselho cabralista, embora em dezembro de 47 queira impedir a volta ao reino do eminente chefe do seu partido. Cedendo-lhe em 49 o governo, virou-se logo contra elle, e d’ahi começou a guerra declarada que veiu a acabar na Regeneração.

Mas que podia regenerar quem, depois de tantas aventuras, devia achar-se dorido, e mais ou menos enlameiado depois de tão largas viagens?

[Pg 285]

É vaidoso e cheio de si. Demasiado abatido na má fortuna, enfunado e boiante na prosperidade, e pouco agradecido aos amigos do infortunio. É mudavel e contradictorio. Está muito velho e russo, e como signaes de edade temos notado n’elle um pendor e turno decidido para a mystica, onde parece que acabará como todos os bourbons, nos braços de uma supersticiosa devoção; e tambem pensamos que se hoje houvesse frades iria, por imitação do grande condestavel, vestir a roupeta do Carmello. Montalembert e Valdegamas converteram-no em Paris. Estuda theologia. (Rocha, Rev. de Port. 1851)

O retratista perspicaz, que tão a proposito notava a physionomia de Saldanha, esboçando-o como um typo medieval, entre barão e monge, não esquecia, porém, um traço que é commum aos heroes da Edade-media, aos modernos, e aos de todos os tempos: a necessidade de dinheiro. «Allega que não póde passar sem vinte contos por anno», (Ibid.) e as cousas tinham-no forçado a demittir-se de todos os seus rendosos cargos. Como viveria sem os vinte contos? Não foi Saldanha o primeiro dos barões rebellados por dinheiro; mas em caracteres taes, de si confusos, sem lucidez nos planos e designios, não se póde dizer que o dinheiro seja o estimulo immediato e directo, como é nos genios frios, politicos, em que a habilidade predomina.

Com effeito, erraria quem suppozesse o marechal avarento ou sybarita. Pelo contrario: no fundo tinha uma bondade ingenua e simples que, misturada com o orgulho balofo, lhe impedia de vêr a realidade das cousas. Se nem quando o compravam o percebia! Se ingenuamente o confessava! Ouçamos as suas proprias palavras:

Sou pobre de fortuna, mas rico de amigos. Em dezembro de 49, o conde de Thomar declarou-me guerra de morte, e dois mezes depois era eu demittido de todos os meus cargos. Alguns dias passados, procuraram-me os srs. Silva Ferrão e Tavares d’Almeida dizendo-me que segundo estava[Pg 286] encarregado por alguns amigos de me pagar mensalmente o equivalente dos meus vencimentos. Uma condição havia n’esta generosa offerta a que eu me submetti com reluctancia. Era que eu não indagaria os nomes de quem tão nobremente contribuia. Desde então no primeiro de cada mez e cebo oitenta e duas libras. (Disc. 26 de março de 51)

Esta simplicidade, esta ingenuidade, esta sinceridade, espantam-nos. Orgulhava-se de ser pobre, de ter amigos: mas não é verdade que só se pede para pão? e que, por grande que fosse o clientela de Saldanha, nunca o pão importaria em tanto? Elle não o percebia: por isso o confessava; e se a uma compra habil chamava amisade, continuava a suppôr-se arbitro, quando era cada vez mais aquelle tronco em que falara José Liberato. Satisfeito, simples, bom, irresponsavel como uma creança, esfregando as mãos contente, ou quebrando os joguetes, militares, politicos, nos seus despeitos infantis, o marechal, entrado na velhice, ia, com a sua espectaculosa espontaneidade, seduzir um grupo de homens ainda não desilludidos.

A sua vida tinha sido já tão longa e cheia de aventuras e descreditos, que eram raros os que não tinham tido occasião de o vêr e avaliar por dentro.

Os antigos ordeiros, com Rodrigo á frente, estavam promptos a seguil-o para confiscar a victoria, fazendo do vencedor a unica cousa para que servia: um rotulo brilhante de bordaduras e crachás, um pseudo-chefe de parada, á sombra do qual viveriam, lisongeando-o e pagando-lhe. Mas teriam os ordeiros, por si sós, força bastante para mover o paiz contra o tyranno que rematara a sua obra amordaçando a imprensa? Seria mistér acceitar as offertas dos velhos companheiros de Paris, a quem Saldanha voltara as costas desde 35,[Pg 287] contra quem combatera: esses setembristas em cujo seio a influencia de José-Estevão creava um grupo novo, filho da velha-guarda dos Passos, neto da quasi extincta geração dos vintistas? Porque não? Saldanha confundia o seu despeito com o interesse publico, da mesma maneira que confundia o seu orgulho com a sua falta de meios.

Tendo-se recusado a acceitar a embaixada de Paris, com que em 49 Thomar pretendia evital-o, (como Rodrigo o evitara em 40, mandando-o para Vienna) Saldanha, que n’um breve intervallo de ocio se occupara em Cintra da creação das vaccas de leite (Carnota, Mem.), depois de em Vienna se ter occupado da existencia de Deus e da immortalidade da alma: Saldanha desmascarou breve as suas baterias, pedindo á rainha a queda do ministerio. Reconheceria elle agora o seu erro de 46? lembrar-se-hia dos conselhos de Howard: be cautious? Veria o papel de janisaro que desempenhara? Talvez. Arrependia-se, pois; e voltava-se contra o partido de que fôra a espada. Não se tornava, porém, um chefe da democracia como até 34, embora tivesse feito as pazes com os seus inimigos da Maria-da-Fonte. Antas visitava-o; mas quando lhe propoz o plano de uma sedição setembrista, o marechal, affavelmente, rindo, senhor de si, respondeu que não. Tambem elle tinha a sua revolução, uma boa, afortunada revolução a fazer: veria! (Carnota, Mem.)

Que esperanças novas eram essas?

Conquistar um grupo de homens, mais pensadores do que politicos, liberaes sem serem democratas, cartistas sem serem cabralistas, homens como Ferrer, Soure, Pestana, no meio dos quaes se destacava o talento já consagrado de Herculano, com um pensamento de pura liberdade doutrinaria.

[Pg 288]

Herculano emigrára, e ouvimol-o chorar na solidão do exilio. Emquanto, porém, a sua musa lyrica lhe inspirava poesias selladas com um profundo cunho de sinceridade e belleza, o poeta, homem vigoroso no temperamento intellectual, portuguez de lei, affirmativo e duro, o inverso do artista Garrett: o poeta aprendia na mocidade, como Mousinho já quasi na velhice, os dogmas e principios da crença liberal. A critica de Kant mostrava-lhe no Individuo um rei, na Consciencia um deus; ao mesmo tempo que os sabios, com a nova direcção dos seus estudos, lhe mostravam na tradição e na historia as raizes das sociedades deploravelmente abaladas pelo jacobinismo. As contradicções que produziu esta dupla concepção, individualista e social, nunca em Portugal se manifestaram tanto como no espirito do homem eminente que, talvez unico, media o valor das doutrinas.

As tendencias eruditas e litterarias do seu genio philosophico fizeram-no metter mãos á obra do renascimento das lettras portuguezas, assim que no Porto houve lugar para pôr de lado a espingarda. Assistira, combatera em todo o cêrco; e, terminado elle, entrou como bibliothecario da livraria municipal. N’um paiz revolucionado, a politica é absorvente, e por isso Herculano, ao mesmo tempo que iniciava os seus trabalhos historicos, acompanhava a agitação dos partidos. Setembro, isto é, a acclamação do jacobinismo que o philosopho suppunha para sempre refutado e condemnado, provocou-lhe uma ira portugueza que se vasou nos threnos biblicos da Voz-do-Propheta. Demittiu-se em 37 para não jurar a constituição de 20; mas dois annos depois, apaziguada a procella, retirado Passos, restaurada a ordem, reconhece a constituição de 38 e abraça a fusão. Em 40 vae deputado ás[Pg 289] camaras, confiado em que o liberalismo tal como elle o concebia ia afinal enraizar-se; mas breve se desenganou e sumiu-se. Foi então que o rei D. Fernando o convidou para bibliothecario da Ajuda, e d’ahi, afastado, vivendo com os documentos da historia, entregue aos estudos com uma energia ardente, conquistava a passo e passo o primeiro lugar entre os escriptores nacionaes do nosso seculo, ao mesmo tempo que lá por fóra seguia, desorientada e ferina, a procissão das revoltas e o desvario dos governos.

Em tal estado o veiu encontrar Saldanha, convidando-o a prestar a authoridade do seu nome e do seu conselho á empreza em que ia lançar-se.[33] Herculano, como todos os que lidam mais com idéas do que com homens, era quasi infantilmente ingenuo. Intelligencia fomalista, não era tampouco dotado da perspicacia que adivinha os caracteres, deslindando as confusões da inconsciencia alheia, e definindo com clareza as situações. A sua imaginação poetica viu no marechal um penitente de antigos erros, a sua nobreza ingenita viu uma dedicação nobre; e o seu patriotismo e a sua doutrina viram tambem chegado o momento da paz, da ordem, da organisação definitiva do liberalismo. Entregou-se todo, de corpo e alma, e abriu as portas da sua casa da Ajuda ás reuniões dos conjurados. Alli se pactuaram as reformas urgentes que o marechal realisaria assim que tornasse vencedor: as eleições directas, a abolição da hereditariedade nos pares, a dos vinculos gradualmente convertidos em[Pg 290] pequena propriedade emphytheotica. Herculano exigiu que tudo se fizesse com gente nova, excluindo os velhos todos, «de outra fórma seria o mesmo que d’antes»; exigindo para si que o não fizessem ministro. Trabalharia, ajudaria com o seu conselho, mas para governar «não tinha queda». Saldanha, provavelmente sincero, applaudia, enthusiasmava-se, obedecia, promettia.


No dia 7 de abril de 51 saiu Saldanha para fazer a revolução no Porto. Mas o governo, sem força para o prender, seguia-lhe os passos e machinações. A revolução, como invariavelmente succedia, devia ser o pronunciamento da tropa; porém Saldanha viu com magua quanto havia descido, pois nem os commandantes nem os officiaes se prestavam a acompanhal-o. Os progressistas do Porto consideravam tudo perdido, e o marechal fugia tristemente para Hespanha, indo parar a Lobios aquelle que para ahi mandara em 28 o seu exercito. Já estavam presos na Relação os officiaes conjurados, e Victorino Damasio, antigo soldado da JUNTA, engenheiro emprehendedor que ficara no Porto creando fabricas; Damasio, appellando para os sargentos, e vendo que o governo tambem os prendia, appellou para os cabos: appellaria para o seu regimento de operarios em ultima instancia! Não foi necessario, porque com chaves falsas forjadas no Bolhão, introduziu Salvador da França no quartel de Santo-Ovidio, e os cabos e soldados do 18 proclamaram a Revolução. (Delgado, Elog. hist. de J. V. Damasio) Saldanha regressou, e, com a tropa atraz de si, foi sobre Coimbra.

[Pg 291]

De Lisboa para Coimbra tambem saíra o generalissimo D. Fernando com tropa atraz; mas, quando tinha de atravessar a ponte do Mondego, achou uma tranca passada de lado a lado e os estudantes que lhe seguraram as redeas do cavallo, mandando-lhe tirar o chapéu e dar vivas ao Saldanha. O rei, que era a urbanidade em pessoa, não podia recusar-se, e fel-o; retirando logo para Lisboa a contar a tranca da ponte, e a reclamar a queda do ministerio. Ministerios e partidos valiam acaso o trabalho de partir por meio um madeiro? Não valiam; ninguem já tinha força para cousa alguma. Derreados e desilludidos, todos, no aborrecimento universal, admittiam tudo, e tinham razão para isso. O maior crime do conde do Thomar era desconhecer o tempo de agora, querendo usar da força contra uma resistencia pastosa e molle. Raivoso e desesperado, quando viu chegar D. Fernando no seu cavallo a passo, e opinar pela queda do ministerio com a voz fanhosa e arrastada com que dera os vivas ao Saldanha; raivoso, «a gente do paço dizia que o conde do Thomar chorara grossas lagrimas e com as suas mãos labregas se agarrara ao puro manto da rainha: valha-me senhora! proteja o seu fiel ministro!» (Rocha, Rev. de Port.) Não é natural que a rainha costumasse andar por casa de puro manto, embora seja de crer que o ministro apellasse para aquella que tanto lhe devia, que chorasse de raiva observando as deserções rapidas dos homens que elle tirara do nada. Se até o proprio irmão, o José-dos-conegos, se voltou contra elle no dia em que Saldanha se bandeara!

Teve do fugir outra vez, e o duque da Terceira occupou-lhe o posto (26 de abril) conservando o ministerio decapitado. Era a esperança do manter o[Pg 292] partido, sacrificando o chefe? ou o conde de Thomar pensava em ir repetir a campanha diplomatica de 46, e pedir aos seus amigos de fóra que o viessem restaurar? Esses amigos, porém, tinham caído. O doutrinarismo morrera com Guizot em fevereiro de 48, e já não havia miguelistas. Taes fortunas não se repetem na vida: d’esta vez a quéda era para sempre. O doutrinarismo, dissemos, morrera em 48, e a França vivia ao tempo sob o governo republicano: iria pois haver uma republica entre nós? Não faltava quem o desejasse: Sampaio e José-Estevão, Cazal, Braamcamp, Nazareth—os homens novos do velho setembrismo. Portugal, porém, caminhara mais depressa do que a França: a republica de 48 tivera-a em 36, e o imperio de 52 vinha sendo reclamado desde 49: era a traducção real da palavra nova, REGENERAÇÃO. Rodrigo era um Morny, beirão e burguez. Que motivo havia para este nosso adiantamento? Um motivo evidente e simples: a superior consistencia social da França, a nossa extrema miseria, a nossa fraqueza singular. O principio do individualismo anarchico e liberal, destruidor do passado e da tradição, creador de uma nova classe de ricos saídos da concorrencia, tinha de acabar n’um scepticismo systematico e n’uma confissão formal da idolatria da Utilidade, depois de ter percorrido o circulo de experiencias e ensaios possiveis dentro das fórmulas, e depois de ter demonstrado o vazio de todas ellas. N’um paiz caduco, essa evolução fazia-se muito mais rapidamente: por isso era já impossivel saír do doutrinarismo para o idealismo republicano, como em França; por isso os moços republicanos como José-Estevão adheriram á regeneração, proclamando a necessidade de melhoramentos materiaes; (Oliveira, Esb. hist.) por[Pg 293] isso Rodrigo, um precursor, batido por um intruso em 42, ia vencer definitivamente em 51.

2.—O FIM DO ROMANTISMO

Na capital havia uma anciedade singular pela volta do triumphador. Tinham-lhe mandado vapores, para elle com a sua gente vir do Porto, e cada qual fazia o possivel para o conquistar para si. Choviam as cartas. Os ordeiros pediam-lhe prudencia, Antas pedia-lhe audacia: «Ponha de parte todos os obstaculos: colloque-se na situação de um chefe revolucionario». (Carta de 5 de maio; em Carnota. Mem.) No paço, D. Fernando chorava—porque? e a rainha anciosa entrevia a possibilidade de uma abdicação forçada. Que faria Saldanha? Deixar-se-hia seduzir pelas acclamações de regente que a turba lhe ia dar ao desembarque? Outros temiam uma traição palaciana para o abafar, matal-o—quem sabe? A rainha em pessoa era forçada a escrever-lhe, protestando a sua lealdade. (V. a carta em 8 de maio; em Carnota, ibid.) Uns aconselhavam-lhe que não desembarcasse no Terreiro-do Paço, que fosse á Pampulha—os vivas eram perigosos! outros aconselhavam-lhe Cascaes: havia machinas armadas para o matar! Este via a esquadra franceza apresando os vapores na costa, aquelle os navios inglezes apresando-os no Tejo: venha por terra! E o proprio Herculano, assustado, lhe escrevia: «Marechal! marechal! lembre-se de que a sua vida, a sua salvação, a sua liberdade, são a vida, a salvação e a liberdade do paiz!» (V. a carta; ibid.)

A entrada de Saldanha em Lisboa (15 de maio) foi um triumpho. Tomou posse do governo, e o rei entregou-lhe o bastão do commando-em-chefe. Contente, radiante, Saldanha despicara-se. A rainha[Pg 294] em pessoa, no theatro, teve de acclamar, de pé na sua tribuna, o—mais uma vez—rei de Portugal. Chamavam-lhe de novo D. João VII. E o bom do marechal acreditava-se ingenuamente um Augusto, vencedor de Lepido Cabral e de Antonio-Passos, dos cartistas e dos setembristas, fundador do novo imperio regenerado. Em vão Terceira e José Cabral, no club da rua dos Mouros, palacio do Galvão, projectavam restaurar a CARTA pura de cabralismo, tentando sublevar a guarnição de Lisboa. (18 de maio)

Saldanha tinha-se compromettido a abandonar ao seu descredito os homens velhos, a consolidar com gente nova a paz dos partidos; e no primeiro momento, afogueado com a sinceridade satisfeita de vencer, implorava de Herculano que acceitasse a pasta do Reino, ao que o escriptor terminantemente se oppoz, ficando de fóra como um conselheiro dedicado, leal e convicto. Soure e Pestana de um lado, Atouguia pelos ordeiros, Franzini preenchendo as finanças pelos cartistas, e Loulé por parte do setembrismo: eis o ministerio que havia de regenerar a nação, convocando uma camara que fosse a legitima representante da vontade do paiz.

Mas, na commissão da lei eleitoral debatia-se um problema grave: teriam, não teriam voto os guardas do tabaco? Continuaria, não continuaria a ser o contracto (inteiramente affecto ao ordeiro Rodrigo, ainda de fóra) um poder do Estado? um patrono da URNA? Fontes, homem novo, de instinctos imperiaes, amanhados por seu mestre e protector Rodrigo, era pelos guardas, a que se não podia negar o direito de cidadãos, etc.—discursos e phrases que irritavam Herculano e o levavam a protestar desabridamente contra a falta de brio da mocidade. O ingenuo philosopho appellava ingenuamente[Pg 295] para Saldanha, agradecido ao favor de amigo, com que, em confidencias intimas, o marechal lhe contava os embaraços da sua bolsa.—E se mettessemos o Rodrigo? dizia Saldanha; e Herculano respondia que sairia elle, pois seria continuar a vida antiga, quando o seu proposito era crear uma vida nova de liberdade, sinceridade, honra, brio, e nobreza moral. O marechal applaudia, abraçava-o; e no dia seguinte voltava: «E se mettessemos o Rodrigo?»—contando mais uma vez os apuros em que se achava e os embaraços crescentes cada dia.

Herculano começou a reparar, a meditar, e descobriu por fim a razão das confidencias e perguntas insistentes. Era um Portugal regenerado, era, mas havia modos varios de conceber a regeneração; e Saldanha debatia-se entre o modo de Herculano que inspirava o ministerio, e o modo de Rodrigo, modo pratico e politico, que se propunha substituil-o e o havia de conseguir. Estavam pelo seu lado a fraqueza podre de todas as clientelas, a anemia da nação exhausta por uma serie de catastrophes, a começar da primeira, a vinda dos francezes. Chegara o dia da victoria do scepticismo antigo, e do utilitarismo moderno. Rodrigo e Fontes, um velho e um moço, duas faces de um só pensamento, mestre e discipulo, o antigo letrado rabula e o novo engenheiro habil, janota e pratico, são as figuras eminentes da definitiva regeneração. (Min. de 7 de julho)

O breve intervallo de uma esperança de reforma moral terminava. Saldanha voltava á realidade. «A sua bondade levou o a crêr na santidade dos homens e na possibilidade de formar um governo de anjos», dizia Algés (V. Carnota, Mem.) que não era nenhum anjo, applaudindo a isenção com que o marechal saccudira a tyrannia. Levado pela mão de[Pg 296] Rodrigo, respirava bem, porque só o adulavam, não o importunando com exigencias estoicas. A Regeneração foi o ultimo acto de Saldanha, porque o seu 19 de maio (1870), saldanhada por excellencia, é um episodio da senectude, só proprio para demonstrar a cachexia politica da nação. Já ocioso no governo, o marechal pôde mostrar que tambem se regenerara, quando caíu do poder em 56. Entregou-se a outras batalhas: e o que fôra bandeira de revoluções passou a rotulo de companhias. (Luso-Hespanhola, Guano chimico, Minas de Leiria) Boiara sempre á mercê dos acontecimentos: eram elles que o levavam para o campo das contendas. Assim como sonhara sempre com a pompa clamorosa e balofa, assim agora, acabando, sonhava fortunas, dividendos, riqueza para toda a sua familia de pedintes: «Não haverá parentes pobres!» (Carnota, Mem.) O bom marechal não era cubiçoso: era apenas simples. Simples no gabinete, simples no escriptorio das emprezas, simples na carteira do escriptor: depois da Fé, entregara os ocios á Pecuaria; e por fim acabou na Homœopathia, vencedor do dr. Bernardino. (1858) Castilho, com a sua lisonja ironica de litterato, escrevia-lhe: «Adeus, meu caro Achilles; guerreiro, medico e escriptor a um tempo: porém Achilles banhado na preciosa agua da vida desde a cabeça até ao calcanhar—inclusivamente». (V. carta; ibid.) Ingenuo, o marechal tomava-se sempre a sério. Não é triste vêr assim escarnecida a figura de um como que heroe, pela gargalhada perfida do litterato?

Saldanha acabou. Voltemos á Regeneração.


Publicado o Acto addiccional, não se boliu mais na constituição; ficaram em paz os pares, os vinculos,[Pg 297] o Contracto. Já em 32 tinham escapado, sem se saber como, á furia de Mousinho: salvavam-se agora milagrosamente das ameaças de Herculano.

O excentrico, sem ambições, voltou aos seus estudos. Ainda em 56 o vemos inscripto no centro eleitoral progressista, mas as suas esperanças poeticas morreram. Como não chegara a governar, como não vira desmanchar-se-lhe nas mãos a sua chimera liberal, ficou pensando que a liberdade era excellente, apenas detestaveis os seus sacerdotes. Como vinha depois do cartismo e do setembrismo, como aprendera com a queda de Guizot e com os desvarios da segunda republica franceza, a sua intelligencia descobria lhe respostas e emendas a todos os erros, pois a doutrina que chegou a conceber e formular trazia raizes de varias origens. Era radical como kantista, era municipalista como erudito, sem ser democrata, mas tendo laivos de socialismo pratico: era sobretudo a concepção de uma sociedade de estoicos, á imagem do caracter do que a formara. Era a condemnação do materialismo pratico, do scepticismo: a condemnação d’esse movimento em que entrara, por não ter a perspicacia bastante para ver que a nação pedia exactamente o inverso do que elle queria dar-lhe. Portugal já não tinha nervos para ser nem virtuoso, nem doutrinario de especie alguma.

E o philosopho, voltando aos seus estudos, levou a sciencia d’este facto, que mais ainda o empedernia no fanatismo da sua opinião. Sem o temperamento poetico e doce de um Passos, a sua descrença não se traduzia em perdões humanitarios, formulava-se em sentenças terriveis; e mais forte, intelligente e sabio do que o democrata, o desmanchar das suas esperanças não destruia a sua convicção no valor dos systemas e idéas. A singular[Pg 298] physionomia de um homem que de fóra da vida publica tanta influencia exerceu sobre ella, ha de obrigar-nos e estudal-o no seu exilio voluntario.

Escarmentado pela maneira por que fôra illudido a sua colera rompeu violenta nos dias immediatos á verdadeira Regeneração:

A historia politica é uma serie de desconchavos, de torpezas, de inepcias, de incoherencias, ligadas por um pensamento constante,—o de se enriquecerem os chefes do partido. Idéas, não se encontram em toda essa historia, senão as que esses homens beberam nos livros francezes mais vulgares e banaes. Hoje achal-os-heis progressistas, ámanhan reaccionarios; hoje conservadores, ámanhan reformadores: olhae porém com attenção e encontral-os-heis sempre nullos. (Paiz, 29 de outubro)

Esta condemnação formal dos homens, de todos os homens, exprime a misanthropia do que não entende nem obedece á corrente fatal que arrasta a sociedade:

O erro deploravel dos adeptos de certa eschola é desprezarem a distincção entre o progresso que influe no melhoramento moral e social dos povos e aquelle que só melhora a sua condição physica. (Os vinculos)

Era essa eschola que o vencia e batia; e Herculano, sem reconhecer que, como conclusão natural da anarchia liberal se chegava ao scepticismo; sem reconhecer que para isso concorriam as novas classes aristocraticas formadas pela concorrencia, as novas forças organisadas com os capitaes moveis e a terra livre, a tendencia industrial fomentada pelas descobertas scientificas; sem ver que[Pg 299] taes phenomenos eram communs a toda a Europa: Herculano attribuía tudo á perversidade dos seus conterraneos e á mesquinhez da sua patria.

Em civilisação,—dizia, e era verdade—estamos dois furos abaixo da Turquia e outros tantos acima dos hottentotes. Agitamo-nos no circulo estreito das revoluções incessantes e estereis; a legalidade tornou-se impossivel, a acção governativa um problema insoluvel. (Paiz, 24 de julho)

Rodrigo era ministro havia dias e ia desmentil-o. Desmentiu-o com effeito, dando á nação o governo que ella pedia, e ao tempo aquella legalidade apparente, aquelle systema de burlas, indispensavel ao funccionar da machina constitucional.

E tanto Rodrigo tinha razão, tanto o estoicismo nobre de Herculano vinha fóra de tempo, que toda a gente acclamou vencedora a rapoza ordeira, com a sua cria, brunida, sécia e petulante. Toda a gente apedrejava o conde de Thomar—um importuno! todos, Passos—um louco! todos, Herculano—um caturra de genio azêdo! O proprio Garrett, ajanotado, com os cabellos pintados, espartilho e colletes mirabolantes, artista que, obedecendo á moda romantica, chamara ao mundo «uma vasta Barataria em que domina el-rei Sancho» (Viagens), ordeiro que assim condemnava o cabralismo precursor:

Plantae batatas, ó geração do vapor e do pó-de-pedra; macadamisae estradas; fazei caminhos de ferro; construí passarolas de Icaro, para andar a qual mais depressa estas horas de uma vida toda material, massuda e grossa, como tendes feito esta que Deus nos deu tão differente do que a vivemos hoje. Andae, ganha-pães, andae; reduzí tudo a cifras, todas a considerações d’este mundo a equações de interesse corporal, comprae, vendei, agiotae.—No fim[Pg 300] de tudo isto, que lucrou a especie humana? Que ha mais umas poucas de duzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas-politicos, aos moralistas, se já calcularam o numero de individuos que é forçoso condemnar á miseria, ao trabalho desproporcionado, á desmoralisação, á infamia, á ignorancia crapulosa, á desgraça invencivel, á penuria absoluta para produzir um rico? (Viagens)

O inconsequente artista, com todas as fraquezas proprias d’esse typo de homens, brunido, pintado, postiço, encobrindo a edade depois de ter inventado o nome para se afidalgar, (V. Amorim, Garrett) tambem consagra a victoria da geração do vapor, sentando-se (4 de março de 52) no ministerio entre Rodrigo e Fontes. A sua vaidade pueril exigia-lhe esse prazer; mas a sua intuição maravilhosa descobrira o caracter da edade-nova: o fim do romantismo e da liberdade, sua filha legitima; o comêço de uma historia que, principiando pelo imperio anarchico da aristocracia dos ricos, pelo governo immoral da corrupcão intima de todas as cousas, pela adoração do bezerro-d’ouro, havia de, por tal preço, reconstituir primeiro as forças economicas das sociedades abaladas por longas crises doutrinarias, para depois voltar á moral e ao direito, reconstituindo os orgãos e funcções sociaes. Entre o romantismo liberal e a democracia futura está a regeneração (nome portuguez do capitalismo), um periodo triste, mas indispensavel como consequencia do antecedente e preparação do ulterior.

A nova esperança de Herculano appareceu como episodio fortuito no meio da evolução natural; e a corrente das cousas fataes envolveu-a, rolou-a, deixando-a á margem, abandonada como objecto singular e anachronico.

Vidente, especie de Jeremias, sobre as ruinas[Pg 301] do Templo, ficou o philosopho, a quem a politica—tyrannia fatal das nações minusculas!—interrompia, perturbava, levava a abandonar os seus estudos sabios. Os tempos foram correndo, e a miseria nacional crescendo. Veiu um rei, especie de D. Sebastião liberal, tambem anachronico, e Herculano acaso teve ainda alguma esperança. Amou-o. «Se eu tivesse um filho e me morresse, não me custava mais a morte d’elle do que me custou a d’aquelle pobre rapaz!» Mas D. Pedro V acabou cedo, moço: foi-se como uma apparição, levado n’uma onda de lagrimas; e o philosopho preparou-se para morrer, enterrando-se n’um exilio voluntario. Ahi, essa imagem viva de outros homens, deu calor, vida, licção e amisade a muitos homens novos que aprenderam com elle a condemnar o presente, embora o fizessem com idéas e principios que lhe irritavam a intelligencia, sem diminuirem a amisade do antigo e inconvertivel romantico.

A sua hora chegou por fim, e, ao sentil-a vir, affagou-a. Olhava em roda e dizia comsigo: «Isto dá vontade da gente morrer!» Pato, (Ultimos mom. de A. H.) Isto, deviam ser muitas cousas: a Liberdade naufragada, a vida vivida em vão, a patria miseravel, os homens cada vez mais razos! Elle foi o ultimo dos que possuiram alma bastante para protestar, para accusar. Depois d’elle, as gerações convertidas ao optimismo, commodo para a intelligencia que assim descansa e para o corpo que assim engorda, acharam que viviamos no melhor dos mundos possiveis; que Portugal é pequeno «mas um torrão de assucar», como dizia a Link o corregedor de Vizeu. Os Pancracios ou Falstaffs achavam afinal a verdadeira liberdade: consummara-se a revolução definitiva, morria afinal o ultimo e importuno Jeremias.

[Pg 302]

«Portugal é uma vasta Barataria em que reina (liberalmente) el-rei Sancho.»

3.—O SOLITARIO DE VAL-DE-LOBOS

A cova do cemiterio de Azoia onde baixou o cadaver de Herculano no verão de 77 é, no seu isolamento, o symbolo da insensibilidade com que Portugal o sepultou. Os camponezes arrancavam das oliveiras do Val-de-Lobos tristes ramos d’essas pardas arvores melancolicas, em memoria do que vivera entre elles: sejam tambem estas palavras, esboçadas pouco depois da morte de Herculano[34] e agora de novo escriptas: sejam tambem como um ramo de saudades deposto por mão fielmente amiga sobre a pedra do sepulchro.

Os camponezes celebravam, poetica, ruralmente, um saímento que deixava indifferentes os grandes homens de Lisboa; e assim devia ser, porque o morto fôra em vida um açoite para os poderosos, e um pae, um protector, um amigo, para esses humildes em cuja sociedade vivia. Como um Voltaire no seu retiro, Herculano era uma especie de patrono dos camponezes, defendendo-os contra os casos arbitrarios de uma justiça, de uma politica, muitas vezes cruel. O mesmo que já reclamara uma esmola para as pobres freiras de Lorvão, era o que salvava do degredo um condemnado da Azoia, victima de um erro judiciario, sem poder evitar que a cadeia o matasse com as doenças alli ganhas. Herculano, procurador do infeliz, vinha a Lisboa, pedia, batia de porta em porta, subia ás casas dos conselheiros—e com que ironia contava a sorte a que se via reduzido!—para alcançar o perdão[Pg 303] da victima injustamente condemnada em todas as instancias. Sob uma descrença convicta nos homens, elle, afinal, tinha no coração uma ingenuidade feminina, e sob o aspecto rude de uma quasi affectada dureza, uma verdadeira meiguice, uma caridade doce, uma candura diaphana.

O seu genio produzia o seu pensamento. Era uma intelligencia lucida enkystada em fórmulas duras, e um coração bondoso e meigo, encoberto pela educação, sob um exterior rigido e apparentemente hostil. Quem o ouvia, depois de o ter lido, irritava-se muitas vezes; quem o tratava não podia deixar de o amar. Ingenuo como uma creança, mais de uma vez foi visto dando o braço, nas suas palestras peripateticas do Chiado, a algum janota a quem expunha a theoria de Savigny sobre os municipios da Edade-média: o janota ouvia, orgulhoso, mostrando-se,—porque então era moda, como alguem disse, «trazer o Herculano ao peito». Se o advertiam, elle, sem se offender, ao contrario, respondia com uma fala arrastada e séria: oh, di.a.bo!

Era a candura propria dos bons; mas o singular no genio de Herculano estava na força de uma convicção que, em vez de religiosa, era civica, e que, portanto, em lugar de se affirmar condemnando abstractamente o mundo como um mystico, affirmava-se condemnando individualmente os homens, pelos seus nomes, como um Juvenal ou um Suetonio. Ninguem lhe falasse no Saldanha, no Rodrigo! E esta direcção que o seu estoicismo tomára levado pela vida de Portugal, fazia com que, para muita gente, Herculano passasse por um ser duro, aspero, intractavel, construido apenas com orgulhos e odios.

Mas, se no fundo do seu coração havia notas[Pg 304] doces de meiguice e uma candidez ingenua, não foi sem duvida este o traço dominante do seu caracter. Ao lado da humanidade tinha Herculano a dureza e a força lusitana; e por cima da espontaneidade, abafando muitas vezes o coração, dando sempre uma fórma intelligivel á força, viera a educação racionalista dar uma unidade, mais ou menos consistente, aos seus pensamentos e aos seus sentimentos. Assim, a palavra que o retrata é o Caracter, porque n’elle a vida moral e intellectual eram uma e unica: o contrario do sceptico, não raro santo, o proprio do estoico, não raro obtuso.

Dizemos pois Caracter no sentido e valor que a palavra teve na Antiguidade, e não na vaga accepção moderna. Não é a vida intemerata, não é o desprezo dos bens mundanos, o odio á ostentação van, a recusa desabrida de titulos, de honras, de lugares, que em si constituem o Caracter: embora a repugnancia pelas cousas mesquinhas seja consequencia indispensavel d’esse modo de existir que consiste essencialmente na afinação perfeita das regras da moral e dos principios da intelligencia, da vida do cidadão e da existencia do philosopho. O typo do caracter á antiga é o estoico, e este é o nome que propriamente define a physionomia de Herculano; este é o typo que passo a passo veiu crescendo até dominar nos ultimos annos, quando as licções successivas do mundo, nunca estoico e muito menos do que nunca em nossos dias, e muito menos do que em parte alguma em Portugal: quando os desenganos do mundo o degredaram para o exilio, não como um martyr, mas como um homem que, protestando sempre, se não converte, nem se corrompe.

Por isso o estoico é por natureza austero e duro; e na pessoa de Herculano esse genero aggravava-se[Pg 305] com effeito por varios motivos: já pelo seu temperamento lusitano, já pela deploravel baixeza do nivel moral da sociedade portugueza, já pelo saber consideravel systematisado pelo philosopho e sem duvida alguma desproporcionado para a illustração média do paiz em que vivia. Olhando para as miserias alheias e para a alheia ignorancia, por modesto que fosse—e não o era—viu-se muito acima, como homem e como sabedor. Isto, e não a cohorte dos aduladores ineptos a que não dava importancia, embora a sua bondade os não fustigas-se, fazia-o inconscientemente orgulhoso, porque nenhum orgulho nem pedantismo tinha para com todos os que via crédores de attenção e respeito.

Do accôrdo da intelligencia e da moral vem ao estoico um pensamento bem diverso e até opposto ao dos santos, que do antagonismo sentido partem para as soluções mysticas. Esse pensamento é o individualismo, cujo traço fundamental consiste na idéa de que o homem é em si um ser completo e a unica verdadeira realidade social; a idéa de que a razão humana é a fonte do conhecimento certo e absoluto, a consciencia a origem da moral imperativa, e a liberdade, portanto, a fórmula da existencia social. D’este modo de vêr as cousas nasce aquillo a que podemos chamar o orgulho transcendente, isso que os antigos estoicos disseram Caracter, quando pela primeira vez uma tal fórma de pensamento appareceu systematisada em doutrina.

Se na mocidade, pois, ao vêr terminada a iniciação dolorosa que as suas poesias nos contam, Herculano, ainda impellido por illusões generosas, ainda incerto do destino fatal do seu genio, entrou na batalha da vida como soldado, esperando chegar a vêr realisadas as normas esboçadas em seu[Pg 306] espirito, esse enthusiasmo caíu depressa; e já no ardor com que escreveu a Voz do Propheta, para condemnar a democracia, anti-liberal em sou conceito, se vê esboçada fugitivamente a condemnação futura dos partidos todos sob a fórma artificial do um estylo prophetico, á Lammenais. O momento de se convencer das razões de uma tal sentença chegou em 1851, quando fugiu corrido de vergonha e tédio perante uma corrupção que se lhe figurava excepcional e unica. Passou á condição de caturra para os homens practicos, de orgulhoso para os simples, e de protesto symbolico contra a decadencia portugueza, e contra o abatimento universal da Europa, utilitaria e imperialista, para os que, de fóra do mundo, como criticos, observam e classificam os phenomenos. Tornou-se o remorso vivo de uma nação degenerada. É n’este momento que as cousas levam o genio de Herculano a definir-se na sua pureza; e é por isso que ao extinguirem-se-lhe as illusões politicas, principia a tornar-se um typo o caracteristico da nossa vida contemporanea. Póde dizer-se que, ao morrer para o mundo, nasce para a historia. O lugar que lhe compete, na galeria dos nossos homens modernos, é este. Embora já antes o seu nome tivesse andado nos programmas e polemicas, a sua individualidade não se destacava ainda senão pelo valor addicional da reputação litteraria conquistada.

No revolver da vida agitada em que se achára, iam pouco a pouco reunindo-se, como que cristalisando, os elementos da individualidade futura, distincta e typica. A nobreza e a rectidão ideal do seu espirito tinham na sua profundidade o motivo de uma cegueira systematica para pesar e medir as cousas reaes com a imparcialidade fria de um critico, ou com a caridade de um santo. Com o seu[Pg 307] metro absoluto e integro, Herculano, na agitação do mundo, corria atraz da chimera de achar aquelles homens que o seu estoicismo concebia, aquelles raros, dos quaes elle era em Portugal um e unico. O critico, se é politico, manobra com os homens como um general com um exercito, auscultando as vontades e os caprichos, dirigindo as forças direito a um fim, sem attenção pelos instrumentos d’elle. Perante os homens, o santo tem na piedade uma força intima: a coragem que não abranda; tem o enthusiasmo que o move e a caridade que lhe explica e lhe faz comprehender, em Deus, as fraquezas e as miserias da terra. Combate, pois, sem recuar, levando nos labios a palavra de uncção e o sorriso de uma ironia boa, ao mesmo tempo cauterio e balsamo. O estoico, porém, ferido, pára. O mundo era elle e nada mais além da sua razão, da sua consciencia, da sua liberdade. E quando as feridas, as perseguições, os ataques, os ultrages são profundos e agudos como os que expulsaram da politica—e tambem das lettras—Alexandre Herculano, o estoico, repetindo a phrase historica do Africano, suicida-se. É então que vivamente nasce, pois só então o caracter apparece em toda a sua pureza.

Não o mata o scepticismo, mata-o o excesso de uma doutrina imperfeita. Não descrê, e é por cada vez mais acreditar em si que foge a um mundo rebelde a ouvir a verdade. A morte não é pois um acto de desespero, é um acto de fé. Só a differença dos tempos fez que no suicidio do Herculano não entrasse o ferro, como entrou nos suicidios estoicos da Antiguidade. A vida assim coroada, o homem assim transfigurado n’um typo e a sua palavra e o seu exemplo n’um protesto, superior ao mundo e ás suas fraquezas, ficam aureolados com[Pg 308] o forte clarão dos heroes, lume que aos navegantes, errando no mar escuro da vida, guia a derrota e indica o porto.


O racionalismo kantista foi o molde onde se vasaram em systema as tendencias naturaes do espirito de Herculano, um D. João de Castro da burguezia e do seculo XIX. O antigo estoicismo portuguez era catholico e monarchico; o estoico de agora foi romantico e individualista, exprimindo a reacção contra a religião dos jesuitas e contra a doutrina da Razão-d’Estado que, depois de ter feito as monarchias absolutas, fizera a Convenção e Napoleão.

O kantismo como philosophia, o individualismo como politica, o livre-cambio como economia, eis ahi as tres phases da doutrina que, por ser um philosopho, Herculano medía em todo o seu alcance.

Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito para as idéas que mais voga tém hoje entre os moços e que provavelmente virão a predominar por algum tempo no seculo XX, predominio que as não tornará nem peiores, nem melhores do que são. A liberdade humana sei o que é: uma verdade da consciencia, como Deus. Por ella chego facilmente ao direito absoluto; por ella sei apreciar as instituições sociaes. Sei que a esphera dos meus actos livres só tem por limites naturaes a esphera dos actos livres dos outros e por limites facticios restricções a que me convem submetter-me para a sociedade existir, e para eu achar n’ella a garantia do exercicio das minhas outras liberdades. Todas as instituições que não respeitarem estas idéas serão pelo menos viciosas. Absolutamente falando, o complexo das questões sociaes e politicas contém-se na questão da liberdade individual. Por mais remotas que pareçam, lá vão filiar-se. Mantenham-me esta, que pouco me incommoda que outrem se assente n’um throno, n’uma poltrona ou n’uma tripeça. Que as leis se affiram pelos principios[Pg 309] eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão accordes ou não com a vontade de maiorias ignaras. (Extr. da corresp. com o A. carta de 10 de dez. de 1870)

Herculano é o legitimo discipulo de Mousinho, que tanto admirava; e, depois do que dissemos ácerca da theoria individualista, ao estudar o primeiro defensor d’ella entre nós, parece-nos desnecessario entrar em repetições. Já avaliámos o merecimento, já tambem vimos as consequencias practicas de uma idéa que, supprimindo toda a especie de authoridade collectiva, resumindo na consciencia individual a origem do direito, funda a sociedade sobre uma nova especie do antigo pacto dos juristas. Renegando o direito-divino dos monarchas, expressão tradicional, renega a soberania popular da democracia, expressão ainda com effeito por definir, ensaio rude, arithmetico, tyrannia brutal do numero, imperio de maiorias ignaras; mas expressão embryonaria da futura authoridade organica do Estado.

Tomando a nuvem por Juno, o individualismo não distinguia o que necessariamente tem de grosseiro e rude um primeiro ensaio. Ainda então as sciencias naturaes não tinham caracterisado definitivamente o movimento das idéas do seculo, nem a verdadeira natureza organica das sociedades humanas, outra especie de colmeias ou formigueiras;[35] ainda o espiritualismo fazia do homem um milagre e das suas sociedades actos voluntarios, pactuaes. Mas, inconsequente, o individualismo não propõe afinal outra fórmula senão a do governo dos numeros brutos, das maiorias ignaras: que ha de propôr, senão essa fórma inexpressiva de uma força[Pg 310] positiva indispensavel á cohesão social, desde que não ha nas idéas um principio organico?

Para quem tem estas crenças, a questão das monarchias e das republicas é uma questão secundaria. Se entende que a monarchia corresponde melhor aos fins, prefere-a; prefere a republica, se entende o contrario. Tão illegitimo acha o direito divino do soberania régia, como o direito divino da soberania popular. Para elle, a soberania não é direito, é facto; facto impreterivel para a realisação da lei psychologica e até physiologica da sociabilidade; mas em rigor, negação, porque restricção, nos seus effeitos, do direito absoluto, e cujas condições são portanto determinadas só por motivos de conveniencia pratica, e dentro dos limites precisos da necessidade. Fóra d’isto, toda a soberania é illegitima e monstruosa. Que a tyrannia de dez milhões se exerça sobre um individuo, que a de um individuo se exerça sobre dez milhões d’elles, é sempre a tyrannia, é sempre uma cousa abominavel. (Ibid.)

Este periodo, eloquente, é revelador da energia que as idéas adquirem quando se tornam o sangue do nosso sangue, chegando a desorientar a rectidão ingenita da nossa intelligencia. Herculano, cujo bom-senso, cujo saber lhe não consentiam ir até aonde logicamente manda a doutrina, isto é, até á Anarchia systematica, negação de toda e qualquer sociedade, apotheose do estado selvagem de quasi puro individualismo: Herculano que não é Rousseau vê-se obrigado a chamar conveniencia practica, ao que linhas antes dissera lei psychologica e até physiologica do homem—a sociedade.

É que, com effeito, não basta o principio individualista para nos explicar a physionomia intellectual de Herculano. Varias causas concorriam para o temperar, ou desviar das suas conclusões logicas. O saber é uma d’essas, mas a principal é o seu temperamento estoico. Para Herculano, e em geral para o estoicismo, uma doutrina não é um producto[Pg 311] da intelligencia pura, que póde ser, ou não, amado e vivido. O estoico vive com o que pensa, o seu pensamento está no seu coração: é a carne da sua carne, o sangue do seu sangue; é uma fé, não é apenas uma opinião. Eminentemente forte, é por, isso mesmo positivo e practico. As doutrinas são para elle realidades, não são abstracções; e nada valem quando nada representem na esphera da consciencia e da moral, quando nada valham na do direito e da economia. Por isso as conclusões extremas do individualismo, irrealisaveis, practicamente absurdas, immoraes até, repugnantes para o proprio instincto, contradictadas pelo saber mais mesquinho: essas conclusões, delicia de espiritos seccos, de philosophos abstrusos, de ignorantes ingenuos, não podia Herculano, sabio e estoico, abraçal-as. Parava, pois, afim de conciliar a sua opinião com o seu sentimento, e, se em resultado saiam inconsequencias, ellas não fazem senão demonstrar a verdadeira nobreza da sua alma e a tempera rija da sua intelligencia.


Lado nenhum das suas idéas mostra isso mais do que o economico. Tão livre-cambista como individualista, ou ainda mais, porque sentia e temia o socialismo, vendo n’elle um positivo e declarado inimigo e o problema vivo do futuro: ou ainda mais, dizemos, porque não parava, nem limitava as conclusões ultimas, Herculano era radical no free trade, pois acreditava firmemente n’elle como n’uma panacéa. Estoico sempre, a doutrina da concorrencia apparecia-lhe principalmente por um lado secundario para os economistas. O livre-cambio, proclamado como a melhor receita para crear a riqueza,[Pg 312] era para Herculano sobretudo a melhor fórma de a distribuir. Queria que as leis pulverisassem o solo, no qual não reconhecia outro valor senão o que o trabalho consolidara n’elle; e esperava que a concorrencia, desembaraçada de todas as peias, creasse uma sociedade proudhoniana, em que todos fossem capitalistas e proprietarios. Como estoico, era um socialista; mas o seu socialismo realisar-se-hia pela liberdade, pela concorrencia. E quando se lhe contavam os casos repetidos, actuaes, do sem numero de monopolios de facto, nascidos, não das leis, mas sim da guerra natural economica, elle parava, scismava e não respondia.

Via-se que lá dentro luctavam a doutrina e a lucidez; e, sem se convencer, sem mudar, apparecia o moralista invectivando os vencedores d’essa lucta d’onde elle esperava a justiça, e d’onde apenas saía o dolo. Ninguem o excedia então; e ao ouvil-o, dir-se-hia algum fugido de Paris, dos tempos da Communa, pois nos referimos agora aos seus ultimos annos, ás vesperas da sua morte, quando a agiotagem livre de Lisboa e Porto provocou uma crise bancaria. Quiz então o governo cohibir a liberdade de emissão, mas não o pôde.

Do folheto do meu amigo[36] o que infiro é que esses banquistas d’ahi são uma alcateia de tratantes e burlões e que o governo quer o monopolio da cousa para uns amigos seus de Lisboa que vam tratando da vida, mas com quem o governo se acha nos apertos trazidos por despezas tantas vezes, posto que nem sempre, irreflectidas e insensatas. As façanhas e cavallarias dos banqueiros do Porto resultam claramente do seu folheto: as do governo são inferencias que d’elle tira a minha damnada má fé.—O governo que faça a sua obrigação; que tenha bem azeitados os gonzos e[Pg 313] fechaduras das cellulas e bem safas as escotilhas dos navios da carreira d’Africa. Por indulgencia com a imbecilidade humana (sejamos indulgentes) quando a tratantada fosse de algum banco, bastaria dissolvel-o e filar a direcção. (Ibid. c. de fev. de 77)

Pobre governo que caíu! Pobre Estado, sem força para bater-se com os novissimos Senhorios creados pela liberdade que o philosopho prégava! Porque até perante um claro exemplo das consequencias da concorrencia, como que ferido por um remorso, por uma vaga duvida, Herculano insiste, defendendo a sua opinião arraigada:

Preto velho não aprende lingua. A questão unica de doutrina que me parece haver em toda essa embrulhada é a emissão de notas: se ha de ser livre, se restricta, se monopolisada. Liberdadeiro empedernido no peccado, adopta a primeira solução em toda a sua amplitude. O meu amigo vae para o monopolio: tambem isso é natural. O socialisto vê no individuo a cousa da sociedade: o liberal vê na sociedade a cousa do individuo. Fim para o socialista, ella não é para o liberal senão um meio; creação do individuo que a precedeu, que lhe estampou o seu sello; porque, faça ella o que fizer, nunca poderá manifestar a sua existencia e a sua acção senão por actos individuaes, unidos ou separados. O collectivo n’essas manifestações não passa de uma concepção subjectiva; não existe no mundo real. (Ibid.)

Mas, se essa liberdade expressa na concorrencia economica—a franca emissão de notas, no caso especial tomado para exemplo: mas se essa liberdade conduz a taes resultados, sendo em si excellente, força é que haja um vicio no mechanismo das instituições. E ha, ha sem duvida, diz Herculano, é o anonymato.

Na essencia, a banknote é a expressão do credito que o individuo attribue a si. Que se reunam 7,70 ou 700 individuos para sommarem essas avaliações; que se chamem banco e que exprimam collectivamente o total, isso não[Pg 314] muda a essencia da cousa. Supprimia todas as responsabilidades limitadas. A responsabilidade é de sua natureza illimitada até onde chegam os recursos e a pessoa do responsavel. Non habet in posse, dicat in corpore, é maxima que se não devia despresar n’esta questão do abuso do credito. Note que eu desejaria supprimidas todas as responsabilidades limitadas, tacitas ou expressas, manifestas ou disfarçadas. (Ibid.)

Vimos antes como o espirito do historiador erudito corrigia em certo ponto a doutrina individualista; vemos aqui o jurista a corrigir o livre-cambio; vamos ver o canonista a corrigir para a direita o ultramontanismo, para a esquerda o atheismo. A educação do homem temperava os principios do philosopho, e essas correcções eram-lhe indispensaveis para que os seus pensamentos se mantivessem de accôrdo com os seus rectos instinctos, com as suas bellas aspirações: eram-lhe indispensaveis, porque o estoico não admitte divergencia entre a intelligencia e a moral, entre o mundo das idéas e o das realidades.

Mas, se ha pouco notámos a inconsequencia, não é verdade que a opinião de abolir o anonymato é paradoxal—fóra do socialismo que reconhece a instituição anonyma por excellencia, o Estado? Sem anonymato, como levareis a cabo as obras colossaes, a que nenhuma responsabilidade individual basta? Ou condemnareis a realidade fatal em nome dos principios? Como Herculano claramente o via, o anonymato, isto é, a fragmentação do Estado em senhorios economicos, uma especie nova do feodalismo, consequencia necessaria de todas as anarchias: o anonymato é a refutação do individualismo na economia social. Destruindo toda a propriedade collectiva, roubando ao Estado toda a força real, resta apenas á lei um prestigio abstracto que é logo vencido[Pg 315] pelas influencias anarchicas ou feodaes do capitalismo individualista. Liberdade quer dizer responsabilidade; e, se uma é um principio absoluto, a outra ha de tambem ser absoluta. Esta é a regra; e n’este ponto não era Herculano, era a fatalidade a origem da inconsequencia. Por cima das theorias galgam e vencem sempre os factos necessarios.

Assim no direito publico o processo das maiorias apezar de ignaras; assim na economia o anonymato, apesar de juridicamente infundado, passam por cima do individuo, da liberdade, da responsabilidade. E, os que vêem com outros olhos os phenomenos sociaes, encontram n’esses factos os primeiros esboços do futuro Estado, que se reconstruirá depois de terminada a evolução natural dos principios liberaes-individualistas. Das maiorias, organicamente representadas, sairá a representação da vontade collectiva; das companhias, opportunamente transformadas, sairá a unificação do poder publico. O voto universal e o anonymato são o esboço rudo da constituição do novo direito politico e da nova constituição economica de sociedades em que o liberalismo destruiu as instituições de protecção e o direito monarchico.


Com fundado motivo dizia Herculano que perante os principios—liberal e socialista, ou individualista e collectivista—era indifferente a questão das fórmas do governo: «pouco me incommoda que outrem se sente n’um throno, n’uma poltrona ou n’uma tripeça». E essa questão da republica ou monarchia, é para elle um problema não só historico, mas tambem religioso.

[Pg 316]

São na essencia o mesmo o calvinismo e o puritanismo, e o calvinismo penetrou tão profundamente na vida moral dos suissos, como o puritanismo nas antigas colonias inglezas emancipadas. Mas o calvinismo e o puritanismo que são, senão a democracia republicana na sociedade espiritual? A vida politica das duas sociedades foi, digamos assim, uma prolação da sua vida moral. Quando as instituições e as idéas politicas de um povo derivam das suas crenças e instituições religiosas, a manutenção tenaz das primeiras nada tem de extraordinario. (Ibid. c. de 15 de nov. de 72)

Pondo de parte, pois, a questão da opportunidade no momento de uma crise, a republica não parecia a Herculano adequada «á velha Europa, sobretudo a estas sociedades meio-germanicas na indole e celto-romanas na raça[37] que estanceiam ao occidente ... educadas pelo catholicismo que, na pureza da sua indole é o typo da monarchia representativa». (Ibid.)

A tradição religiosa, ou antes aquella pseudo tradição de um catholicismo liberal inventada pelo romantismo, servia, pois, ao philosopho para temperar o seu individualismo, conciliando-o com um resto de authoridade social consagrada nas prerogativas do throno representativo. De tal modo se combinava o racionalismo com o romantismo, e este traço é o que dá a Herculano, ou antes á sua doutrina, um caracter de individualidade original, depois do ensino apenas racionalista de Mousinho da Silveira.

Tambem o temperamento entrava, ao lado da educação, para acabar de afeiçoar a physionomia religiosa de Herculano. O mechanismo do frio Deus kantista não bastava á sua indole peninsular. A imaginação pedia-lhe a antiga historia tradicional;[Pg 317] o sentimento reclamava o quer que é de affectuoso e meigo—a doce caridade catholica—e o bom senso exigia o culto e pompa que impressionam as massas. O protestantismo, alvo das suas acerbas satyras, não satisfazia a sua alma, nem as suas exigencias de canonista. Nada propenso ao mysticismo, e até rebelde a comprehendel-o fóra da caridade practica, via, porém, na religião principalmente a Egreja—instituição e disciplina. Roma e a politica ultramontana, n’isto se resumia para elle a historia do catholicismo a partir de certo concilio em que pela primeira vez se infringiram certos canones. Por este lado, o seu pensamento, aliás tão grave, aproxima-se mais do espirito superficial e em demasia negativo do seculo XVIII, do que do espirito placido e comprehensivo do seculo em que vivemos. Fazendo da questão religiosa uma questão de datas e leis, marcava a éra em que a Egreja começara a mentir ao seu papel, e aos que lhe falavam em nome do Espirito, respondia com a Historia: a morte veiu achal-o occupado na empreza van de converter um rapaz mystico e catholico. Tinha odios ao papado, e a paixão do sectario, quando se erguia contra os desvarios dos seus contemporaneos, cegava-o até ao ponto de desconhecer o passado e de applicar as fórmulas da nossa éra a todas as edades. Assim, para elle, a solução da questão religiosa estava no regresso ao puro espirito do catholicismo representativo, religião que concebia como canonista e não como philosopho. Punha Döllinger muito acima de Luthero; Hegel, Feuerbach ou Strauss mereciam-lhe apenas um sorriso desdenhoso.

Esta maneira, evidentemente incompleta, de comprehender a religião levava-o a consideral-a, por um lado, como cousa puramente individual, e[Pg 318] n’este sentido apoiava a celebre fórmula «Egreja livre no Estado livre»; em quanto por outro, olhando-a como instituição positiva, a julgava simples materia administrativa. O publicista liberal assustado pela força da Reacção, cujo verdadeiro caracter não percebia, erguia-se, pois, para debellar com leis o que só a prégação moral póde encaminhar e dirigir, jámais vencer: a irresistivel tendencia do espirito collectivo para affirmar religiosamente a sua unidade.

A Liberdade, supposto principio que para elle resumia a essencia de um espirito racional e absolutamente consciente, era afinal o seu verdadeiro e intimo deus. É essa a religião do estoico; e o deus da Harpa do Crente é um ser eminentemente livre que por um acto de vontade absoluta creou tudo o que existe: o deus do estoico é a divinisação da personalidade. E, como todos sabem por quanto esta antiga philosophia entrou na formação do christianismo, é desnecessario mostrar, desenvolvidamente como e até que ponto, Deus era para Herculano o deus christão.


Duas palavras agora ácerca do escriptor: duas palavras apenas, porque não tratamos da historia litteraria, mas temos de nos occupar de litteratura, sempre que ella influe, como n’este caso, na vida geral ou total da sociedade.

Obras de tres naturezas diversas nos revelam pelo estylo tres physionomias distinctas. A primeira official e grave, são os seus trabalhos historicos, onde o periodo redondo e classico, mas sem affectação quinhentista, se desenvolve alimentado pelos[Pg 319] caldos de Vieira que nos receitava, a nós os moços, para educar a mão. A segunda são os seus romances e escriptos humoristicos, onde, mal ataviado o periodo jesuitico, ás vezes combinado com fórmas e tours extrangeirados, transparece sempre o gout du terroir, o cunho de portuguezismo duro e pesado, mais aggressivo do que engraçado. Na terceira, finalmente, em nossa opinião a mais bella; nos escriptos de polemista, a phrase rotunda é quente, a aggressão é viva, as palavras têem calor, e a dureza do genio lusitano acha nos sentimentos expressos em orações duras, uma convicção, uma independencia que a ennobrecem. Ouve-se a voz do estoico, e ha uma harmonia perfeita entre o pensamento profundo, grave e forte, e o estylo redondo, sobrio e nobre. A rhetorica classica é o molde proprio do classico pensamento estoico. Mas entre estas obras ha uma, uma unica, (Carta á Academia das sciencias) onde o homem intimo, sensivel, caridoso e simples, esse homem que nós esboçámos fugitivamente, porque a vida, a educação, o temperamento, de mãos dadas concorriam para o subalternisar ao homem estoico: ha uma, dizemos, em que as palavras não falam apenas, choram e vociferam, têem lagrimas e imprecações e ironias. Ferido no vivo coração da sua existencia, o homem poz no papel o melhor do seu sangue. O que o genio do artista obtem com intuição, consegue-o o poeta com emoção. A Carta á Academia é tão bella como as melhores das poesias intimas de Herculano.

Para elle que, como lusitano, nada tinha de artista (prova, os seus romances), a litteratura era uma missão e não um dilettantismo. O universo, a historia, a sociedade não se lhe apresentavam como assumpto de estudos subtís e curiosos, de observações finas ou profundas, de quadros brilhantes,[Pg 320] vivos ou commoventes; mas sim como objecto de affirmações ou negações, inspiradas pela convicção estoica. Nos seus livros póde seguir-se ao mesmo tempo o desenvolvimento do seu pensamento e a historia da sua consciencia. São o retrato da alma do author, ora apaixonada, ora melancholica; quasi sempre triste, mas sempre convicta, energica e franca.

As Poesias e o Eurico revelam-nos o crente na providente liberdade de um Deus poderoso e justo, a alma rijamente temperada contra o acaso funesto, o coroação aberto ás emoções da natureza que se lhe manifestam com o caracter de uma fatalidade cruel e de um desabrimento cego. Deus, a Natureza o Homem, são, n’essas obras, personagens de uma tragedia biblica, tendo a tempestade rouca por musicas e por fundos de scena bulcões de nuvens negras a velar o azul do céu.

Vêem depois na obras polemicas, vasta e riquissima collecção (reunida nos Opusculos, I-IV e segg. em via de publ.) que patenteia a omnimoda actividade do pensamento de Herculano, e lhe dá o caracter de um philosopho, cujo pensamento, em vez de se manifestar em tratados, se exprime em controversias. Profissionalmente, era historiador. A Historia de Portugal e os trabalhos que com ella formam o corpo dos estudos do erudito (a Hist. da Origem e Est. da Inquisição; os opusculos sobre a batalha de Ourique; o Do estado das classes servas; os diversos ensaios no Panorama; o ined. sobre o feodalismo em resp. a Cárdenas; as edições da Chron. de D. Sebastião, de Bernardo da Cruz, dos Annaes de D. João III, de Fr. Luis de Sousa, do Roteiro de Vasco da Gama; a collecção dos Portugalliæ monumenta historica; etc.[38]) são a obra mais importante do escriptor e o solido fundamento[Pg 321] do seu nome immorredouro na historia litteraria portugueza. Reunindo a um saber geral vasto e forte a paciencia do erudito e o escrupulo do critico, esses trabalhos não respiram a seccura pedante do especialismo; e, se não constituem nem podem constituir uma historia nacional, fizeram com que os problemas das origens sociaes e politicas da nação portugueza fossem por uma vez resolvidos. A historiographia peninsular tem em Herculano o seu mais illustre nome: um nome que se conservará ao lado do de Mommsen ou de Guizot, cujos golpes de vista comprehensivos partilhava; e do de Thierry, a quem acompanhava na faculdade de representar vivas, nos seus habitos, costumes e leis (senão em sua alma, como um Michelet) as passadas gerações; avantajando-se a ambos na coragem com que arcou com o trabalho improbo de colligir, coordenar, traduzir, interpretar os monumentos historicos de um povo que não tivera benedictinos eruditos. Robinson de nova especie, Herculano achou-se como n’um paiz deserto e teve de descobrir os materiaes antes que podesse pôr mãos ó obra.

Prodigio de trabalho, de saber, de paciencia, de talento, a Historia de Portugal é um monumento; entretanto, devemos dizel-o, se quizermos ser inteiramente justos, mais de uma cousa lhe falta, para poder ser considerada um typo, e o seu author um grande historiador, como um Ranke. Falta-lhe ar na contextura sobrecarregada de discussões eruditas; falta-lhe, sobretudo, aquella alta e serena imparcialidade, aquellas vistas rigorosamente objectivas, aquella isenção critica, impassivel perante as escholas, os systemas, os partidos, sem a qual a historia deixa de o ser. Herculano peccava, com toda a eschola romantica, Guizot á[Pg 322] frente, porque a opinião e a politica de mãos dadas o levavam a fazer da historia da Edade-media uma apologia do systema representativo. Como Guizot, tambem estoico, Herculano era demasiado convicto e apaixonado para poder prescindir de si, das suas crenças, das suas opiniões. Levava, pois, para o estudo do passado as preoccupações do presente, porque essas preoccupações eram a essencia da sua vida moral. O romantico de 30, o liberal ardente, o soldado da CARTA, enfatuado com as suas theorias constitucionaes e municipalistas, tinha de condemnar in limine a centralisação monarchica dos seculos XVI e XVII, consequencia indiscutivelmente necessaria, consequencia europêa da Edade-media e preparação dos tempos modernos.

Além d’isto, ha uma falta de nexo na Historia de Portugal, resultado do modo como primeiro foi concebida. «Eu comecei por imaginar apenas uma historia do povo e das suas instituições, alguma cousa no genero da Histoire du tiers état, de Thierry, mas mais desenvolvida—dizia-nos Herculano—porém tendo colligido materiaes para a primeira epocha, vi que possuia n’elles tudo o que era necessario para a historia politica: d’ahi veiu a resolução de escrever uma Historia de Portugal». É por isso que as duas faces do livro se não ligam; é por isso que os homens e os seus actos nos apparecem como um appendice, subalterno, indifferente, dando a impressão de que se tivessem sido outros e diversos, nem por isso a vida anonyma da sociedade poderia ter seguido rumo differente. E, se não vemos a acção dos elementos voluntario-individuaes ou fortuitos sobre os elementos sociaes, nem a inversa, perdendo assim a historia o seu caracter eminente de realidade, juxtapondo artificialmente, a uma chronica veridica desinçada[Pg 323] dos erros e das invenções fradescas, uma dissertação erudita sobre o desenvolvimento das instituições: succede tambem que a apreciação dos elementos moraes, crenças individuaes, phenomenos de psychologia collectiva, é feita á luz de doutrinas quasi voltairianas; e, no avaliar das lendas religiosas e da acção do clero, o historiador prescinde de profundar os motivos moraes, ou cede a palavra ao sectario que nos bispos e em Roma não vê outra cousa mais do que sacerdotes da astucia e uma Babylonia de perversão.

Tal foi a Historia de Portugal que o romantismo concebeu; e demorámo-nos tanto sobre ella porque vimos ahi um symptoma caracteristico para apreciar o valor d’essa fórma de Liberdade que teve em Herculano o seu derradeiro e mais illustre sectario. Para o romantismo, a renovação social era uma volta a tradições scindidas pela monarchia absoluta: já o dissemos, e não é portanto necessario repetil-o. E essas tradições que deviam ser—oh, singular confusão da intelligencia!—o alicerce de uma liberdade racionalista, inspiravam a Garrett o Frei Luis de Sousa, elegia mystica, e a Herculano um fragmento de Historia para uso dos sabios, apenas popular por ter sido mais um ataque ao catholicismo tradicional portuguez.


O clero pagou com guerra o odio que o historiador lhe dispensava nos seus livros aggressivos. Conjuraram-se os padres, e Portugal assistiu a mais um protesto do espirito antigo, inconvertivel, impenitente. Em vez de congregar o povo na communhão de um pensamento nacional, a Historia[Pg 324] saía como uma arma de combate. As tradições vivas, possiveis, eram todas inacceitaveis, como o leitor já sabe. As guerrilhas do Minho em 46 foram trucidadas em Braga, mas o enraizado espirito catholico não se podia vencer nem com armas, nem com livros: só acabaria com os caminhos-de-ferro, com as pontes e estradas, com a Regeneração utilitaria, materialista e practica.

Herculano, vendo-se isolado, vendo no pulpito o padre excommungando-o, no governo «o bom homem que, nas horas vagas de certas funcções elevadas, espairecia os tedios da vida revolvendo com o bico da bota a velha corôa de D. João I n’uma celha de lodo que viera do Tibre»; Herculano, clamando sem ser ouvido, a Sá-da-Bandeira: «Acorda, moderno Bayard, que te matam!» (A reacção ultramontana, 1857) abdicou e homisiou-se, levando para a sua thebaida a crença na ruina fatal. Os antigos não se convertiam, os novos entregavam-se de corpo e alma á Regeneração: elle, só, chorava as desgraças da patria que saía da sacristia para entrar na tavolagem, trocando a egreja pela bolsa, e os bentinhos e os rosarios pelos arrebiques dos peralvilhos e pelas tabuadas de financeiros: o Breviario pelos Melhoramentos.—E o evangelho? oh, gente perdida! E a justiça? e a moral? e a liberdade? e a poesia? A turba não podia mais ouvil-o: com a liberdade fôra-se a religião; com o romantismo salvador, a perdida nação jesuita! Velhos e novos, de mãos dadas, adoravam o deus novo—Regeneração! cujo sacerdote em Rodrigo, Fontes o diacono, e Saldanha o idolo bem fardado.

Herculano abdicou, pois. Durante o periodo que medeiou entre a sua abdicação e a sua morte, o espirito europeu, abandonando a vereda romantica de um subjectivismo que desde 89 assolava o mundo[Pg 325] com revoltas, restauradas as sociedades latinas pelo utilitarismo imperialista que as enriqueceu outra vez: o espirito europeu, dizemos, retemperou-se na tradição naturalista, constituindo um corpo inteiro de conhecimentos novos, transformando os methodos das sciencias, esboçando philosophias originaes. O antigo estoico, o kantista de 30, com as suas idéas exclusivas, com o seu racionalismo frio, com o seu methodo subjectivo, com a sua comprehensão formal das cousas, com o seu deus mechanico, e a sua liberdade dogmatica: homem como que abstracto, vendo os homens fóra do mundo e da evolução, como um milagre divino: esse homem, solitario em Val-de-Lobos, adorado por quantos o conheciam, estudado como um monumento da historia por muitos dos que o tractavam, não podia mais dirigir a educação da gente nova.

Nem o conhecimento intimo da natureza viva obtido pela sciencia, nem o sentimento ideal do Universo, profundado pelas philosophias allemans (concepções até agora oppostas, mas que o tempo approxima todos os dias e virá a combinar afinal); nenhuma das acquisições fecundas do espirito humano nos ultimos quarenta annos, poderam destruir no pensamento de Herculano o systema granitico das suas idéas. O maravilhoso corpo de sciencias philologicas que a Allemanha construira e que são como que a embryogenia das sociedades e suas idéas politicas, juridicas e religiosas, revelando uma biologia social tão positiva e verdadeira como a zoologica, mostrando-nos a sociedade como realmente é—um organismo vivo: esse mundo novo do saber que destruia o individualismo e apeiava do seu throno a Liberdade, não só era desconhecido para o solitario estoico, mas era objecto das suas ironias melancolicas—«os desvios das symbolicas,[Pg 326] das estheticas, das syntheticas, das dogmaticas, das heroicas, das harmonicas, etc.» (Corr. com o a. carta de 1869) em que «lhe faria pena vêr perdido» qualquer escriptor moço.

E quando, elle que observara impenitente o velho Portugal, abandonados ao lodo utilitario os seus coevos, via tambem a mocidade mediocremente respeitosa por essa religião do Individuo que era a sua; quando via as tendencias centralistas e socialistas,—confessas ou inconscientes—dominarem nos governos e opposições, nos partidos conservadores e nos revolucionarios, elle chorava, outro Isaías, sobre as ruinas do templo abatido, sem reconhecer que as pedras d’esse edificio derrubado já começavam a formar um novo monumento.

Meu amigo; provavelmente não tardará muito que eu vá dar um passeio ao outro mundo sem tenção de voltar. Passado um seculo, é muito possivel que o liberalismo tenha desaparecido. As gerações precisam ás vezes retemperar-se nas luctas da anarchia ou nas dores da servidão: concentram-se para a explosão calcadas sob o pé ferreo da força brutal. Deixe-me levar, para me entreter a ruminal-a pelo caminho, a convicção de que, entalada entre duas betas negras,—a tyrannia em nome do céu e a tyrannia em nome do algarismo,—surgirá como um foco de luz, nas paginas da historia, a epocha em que se proclamavam os direitos individuaes absolutos e imprescriptiveis, embora as paixões humanas nem sempre os respeitassem. (Ibid. carta de fev. de 77)

Mezes depois morria; mas esse fóco de luz não se extinguia, porque entre os varios symptomas da vida organica de uma sociedade está o respeito e a admiração pelos seus grandes homens. Esse fóco de luz não se extinguia tambem—ainda hoje o dos estoicos da Antiguidade nos allumia!—porque os direitos individuaes são funcções imprescriptiveis do organismo social, embora não sejam a expressão[Pg 327] summaria da sociedade; porque as duas betas negras, se têem essa côr quando o desvairamento dos homens ou a fatalidade das cousas dão lugar á tyrannia, têem realmente côr diversa, uma côr viva e pura! São a propria existencia do organismo collectivo, destruido sempre que deixar porém de ter uma unidade moral e economica, uma authoridade positiva, eminente, real, e poderosa. Assim é nos centros nervosos do animal que, recebendo as impressões externas as unificam, as synthetisam, e d’ahi imprimem a acção, a vontade e o pensamento ao homem, que é tambem, dizem-no os naturalistas, uma sociedade de individuos physiologicos.

No declinar da vida, teria fraquejado a convicção do estoico? Batido por tantas e tão variadas tendencias: umas que odiava sectariamente, outras que justamente condemnava, outras finalmente que a sua alma nobre e bondosa instinctivamente respeitava; contrariado pelo passado catholico, pelo presente regenerador, e por um futuro que reconhecia conquistado para o socialismo—não hesitaria? Quem sabe? Não houve alguem que em palavras espontaneas, irreflectidas, lhe descortinasse, ou um symptoma de duvida intima, ou um vislumbre de conversão? Talvez houvesse. Como porém morreu sem se confessar, a pedra do tumulo guarda esse segredo. Antes de expirar disse apenas: «Isto dá vontade de morrer!» Traduza cada qual o enygma ao sabor da sua opinião.

NOTAS DE RODAPÉ:

[33] O que se conta, sempre que a origem se não cita, provém da narrativa que ha cinco ou seis annos o seu chorado mestre e amigo fez verbalmente ao author.

[34] V. Os dois mundos, out. de 77.

[35] V. Elem. de Anthropol. (2.ª ed.) pp. 195-7; e Inst. primit. V-VII.

[36] ed. reorgan. do banco de Port.

[37] V. Hist. da civil. iber.; introd.—Hist. de Portugal, l. 1, 3.

[38] V. Hist de Portugal; app. 111.


[Pg 328]

II
A LIQUIDAÇÃO DO PASSADO

1.—A RAPOSA E SUAS MANHAS

Enxutas as lagrimas devidas á memoria do ultimo dos liberaes, passemos a tratar dos vivos, regenerados. Como um Saturno devorador dos filhos, assim a Liberdade tragara os melhores dos seus: Mousinho, Passos, Cabral, Herculano—tudo victimas! Dos antigos, para herdar os restos, ficam apenas dois bastardos: Saldanha e Rodrigo o sceptico, nem liberal nem cousa alguma, sem doutrinas, sem illusões, com o instincto negativo apurado pelos annos, e a dura licção de 42 presente.

Figura perfida, sulcada pelas rugas da edade e pelos antigos despeitos reprimidos, é a imagem do Portugal velho catholico e liberal, da nação que tudo abandona, de tudo descrê com um riso de ironia amarga. A face é a do beirão, quadrada, cheia e forte; mas os labios finos não exprimem colera senão desdem, e nos olhos vivos ha largas revelações de intrigas miseraveis, de podridões sabidas, ha dardos que atravessam o recalcitrante dizendo-lhe: vi-te em tal dia, conheci-te em tal hora: se te sei podre, porque vens falar-me em honra? Sem o dizer com a bocca, insinuava-o com o olhar; e depois de submetter o hypocrita que lhe falava, apertava-lhe[Pg 329] as mãos ambas, com sorrisos o palavras meigas, confessando a sua amisade.

De tal modo imperava sobre todos; e como, sem preconceitos doutrinarios, dizia sempre que sim, cortando uma situação difficil com um dito, quando não era possivel um emprego, todos rodeavam o rei novo, acclamado pela mesquinhez universal. Elle era a unica das velhas arvores altos que o tufão liberal deixára de pé; e, vendo sobranceiro as cabeças rasteiras que o vento não dobrara, porque a insignificancia é resistente, tinha com a sua ironia desdenhosa o contrario das coleras: uma compaixão protectora pela sua côrte reles. Costa Cabral fôra a imagem da Antipathia; Rodrigo era a mascara do Desprezo. Já edoso quando a victoria o coroava, como acompanhara a Liberdade desde 26 assistindo-lhe á nascença e á vida, conhecia-a bem por dentro, sabia como era feita. Auscultara muito a Urna. Tomara o pulso á Opinião. E, medico perspicaz, vendo que a molestia era organica, só receitava pro forma, para satisfação da familia, certo de que todos os medicamentos eram vãos. No decurso da vida de antigo boticario politico, experimentara já o effeito de todas as tisanas e simples: tambem tivera nos Brandões os seus bandidos, tambem fizera eleições como os mais. Mas levara um cudilho do Costa-Cabral, o atrevido!—levara um cudilho, elle o homem de outra geração. A Liberdade pedia sem duvida tratamento diverso. Diz-se que preferiu comprar os deputados como as casas: depois de feitos.

A sua astucia tornava-o popular, as suas manhas celebre. O povo chamava-lhe rapoza. Raros o odiavam—só algum caturra como Herculano: elle, tambem, encolhia os hombros, sorria. Lá por dentro é natural que respeitasse; e quem sabe se[Pg 330] o mundo em 51 fosse outro, se elle tambem não seria diverso? Os homens, o tempo, a doutrina, de mãos dadas, porém, concorriam para tornar opportuna a efflorescencia do scepticismo, o reinado da ironia, a victoria de um cesarismo que em uma nação de empregados só podia ser burocratico. Rodrigo era um Morny de secretaria, e no imperio portuguez, Saldanha, o Saint-Arnaud, tinha um papel secundario, de parada apenas.

Valia muito pouco; estava já velho e em demasia desacreditado, o marechal, para poder alguma cousa: vivia á sombra da authoridade consolidada do politico. E Rodrigo tinha de pessoalmente representar scenas de comedia para lhe acudir, porque esse vulto era indispensavel aos seus planos: elle bem subia que a nebulosa Liberdade era uma illusão fugaz, que o culto da chimera exigia sombras por sacerdotes, e que o mais conveniente e pratico para marear o barco portuguez era fazer do governo uma peça de theatro. O povo ouviria os actores gravemente mascarados dizer os seus papeis, olharia o scenario: bastava. A sinceridade estava condemnada por vinte ou trinta annos de tentativas varias e diversas, qual d’ellas mais infeliz. Rodrigo era o melhor actor do seu tempo. A edade, o trajo antigo, o aspecto desembargatorio não o deixavam confundir com os peralvilhos moços. O povo como que via n’essa face barbeada, com os collarinhos desafiando as orelhas, um collete grande e antigo, a sobrecasaca de amplas abas pendentes, as calças de ganga amarella classica, uma imagem de outros tempos, chorados sempre, apezar de tudo! Os infortunios dão por via de regra aos povos, e principalmente ao portuguez apathico, miragens doiradas do passado, dos bons dias fugidos! Violento, o portuguez não tem o temperamento[Pg 331] revolucionario, nem conservador: tem o genio d’onde sahiu o sebastianismo.

O aspecto antigo do ministro era mais um motivo de exito para o actor perante o seu publico. As galerias ouviam-no; e a sua gravidade, a sua mansidão, seduziam. Nos seus bancos, os pares, os deputados como comparsas nos bastidores, sublinhavam as phrases do eximio actor, confessando o talento, applaudindo a arte irresistivel. Assim os odios se fundiam em risos, assim o riso como uma esponja lavava as nodoas, assim esquecidos os crimes tão benignamente perdoados, os réus passavam a sentir-se outros, puros, e uma vida nova saía dos labios ironicos, nunca abertos para o sarcasmo nem para a accusação.

Por isso, quando o conde de Thomar, o velho rival outr’ora (42) vencedor agora vencido para sempre, tornou á camara como um dos sete dormentes acordado, e quiz ainda entrar no combate com as suas antigas armas já embotadas, reptando o marechal, expondo o sudario das suas traições: Rodrigo com a bonhomia mansa e a gravidade affectada proprias do palco, levantou-se para defender o homem, presidente que fardava a situação, mas sem o exaltar, para o não perder.—«Para se enriquecer, Saldanha!» dizia com lagrimas sentimentaes na voz; Saldanha tão boa-pessoa!—«E entre todos os incentivos que imperam no coração do homem, só o digno par achou essa da mais indigna vileza, para o attribuir ao seu adversario?» Pausa: com ar concentradamente triste, soltava logo o dardo: «E quem d’este modo argúe, como poderá ser julgado?» (Disc. de 14 de fev. 1854) O ferro tinha dois gumes: um feria em cheio o indiciado de roubos; o outro abria no coração de todos a porta da contrição, demonstrando a urgencia[Pg 332] de pôr ponto a um systema de recriminações crueis que os desacreditavam a todos perante as platéas. As roupas sujas lavam-se em familia: não é proprio fazel-o á vista do publico. Decóro, senhores! Tape-se a bocca a esse villão importuno que desconhece as regras da boa sociedade e nos compromette. Cada qual sabe de si e Deus de todos: para que o ha de tambem saber o povo? Esperaes que depois d’isso nos respeitará mais e se deixará governar melhor?

Taes eram as conversas dos bastidores que se exprimiam na scena em estylo mais solemne. O ministro affligira-se muito, ao ouvir o digno par (com uma cortezia) dizer que o duque de Saldanha havia descido ao campo da revolta porque tinha fome e queria enriquecer-se.—Que temeridade, meu Deus! Pois seria crivel tão grande infamia? Para enriquecer-se o duque de Saldanha!—Pausa: que ao mesmo tempo desacreditava o proprio duque, e o defendia. E depois, n’um tom importante e grave de homem d’Estado: «Esta phrase proferida pelo digno par affigura-se-me de grande impropriedade, filha de notavel hallucinação, e que póde ter consequencias pessimas», perfidamente sublinhadas. (Disc. de 14 e 16 de fev. de 1854)

Chegara a Rodrigo a hora de desforrar o antigo beijo de 40 na face do seu émulo d’então. Os tempos, afinal, tinham trabalhado, preparando pouco a pouco ao vencedor, por uma dissolução evolutiva das fórmulas successivas de Liberdade, o throno de cynismo sobre que reinava. A sinceridade batalhara com armas, depois com improperios, sem conseguir vencer, conseguindo apenas matar na vida, na fé, no juizo, ou no caracter, os varios combatentes. A arena estava cheia de mortos, e os espectadores saciados de espectaculo. Depois de tragedias[Pg 333] de sangue, houvera melodramas de phrases: agora vinha o entremez final. Depois do terramoto de 34 que havia de restaurar a nação, as guerras e os debates, a Espada e a Urna de mãos dadas tinham consumado a ruina. Todos choravam frio e fome. A penuria é má conselheira. Uma nação exangue póde ter coleras epilepticas—tiveramol-as em 28—mas não é capaz de força. Por isso a Liberdade acaba entre nós n’uma Regeneração, em vez de acabar, á franceza, n’um Imperio. Mas, cá e lá, o que vence é um cesarismo, militar ou burocratico, segundo as condições dos paizes; um cesarismo que além nega, e aqui apenas sophisma as instituições; um cesarismo que além opprime e corrompe, e aqui intriga corrompendo tambem; um cesarismo que em ambas as nações vence, porque a ambas dá, em vez de fórmulas, pão.

Rodrigo era um Morny, já se disse; Saldanha um Saint-Arnaud, peninsular e catholico; o moço Fontes, iniciado como Rouher, viria a ser o futuro vice-monarcha. Mas Napoleão, rei, imperador, cesar, quem era? D. Maria II? Não; a nobre, infeliz senhora chegava opportunamente ao fim (15 de nov. de 53) da sua vida atribulada. A sua coragem viril, o seu levantado caracter, as suas virtudes, a sua intelligencia forte e recta faziam d’ella o contrario dos Cesares, por necessidade scepticos. A rainha era a sinceridade viva. Tambem concebera de certo modo o liberalismo; e, como tinha no temperamento a virilidade, no coração a virtude, na imaginação as licções aprendidas n’um berço coroado, empenhou-se na lucta, lançou mais de uma vez a corôa na balança—lançaria a espada se podesse usar-a!—para fazer vingar o seu liberalismo. E se não tivesse sido tão pessoalmente virtuosa, é de crêr que, apesar do auxilio repetido dos extrangeiros que depois[Pg 334] de a sentarem no throno mais de uma vez a sustentaram n’elle, é de crêr, dizemos, que tivesse tido uma sorte diversa.

D. Maria II, pois, não tinha o temperamento cesareo. Talvez que tambem a edade e as licções do tempo a viessem a converter á apathia, mas essa prova foi desnecessaria porque morreu a proposito, deixando o throno ao nosso Napoleão III—D. Fernando: humano, viveur, sceptico, artista, cheio de intelligencia e de humour, vasio de fórmulas, vasio de crenças, moderno, e bom. Como um Cesar, desceu do paço e affectando um aristocratico plebeismo, passeava a pé fumando o seu charuto ...

Não era uma positiva regeneração, oh manes de D. João VI chocalhado no seu coche doirado, com a escolta de cavallarias chouteando? Eis a verdadeira liberdade! eis o reinado da paz e da fartura!

2.—A CONVERSÃO DA DIVIDA

Este é o euphemismo liberal com que se denomina a ultima banca-rota portugueza—urgente, inadiavel, já desde annos reconhecida por muitos como a unica solução, não só para saír do circulo vicioso das agitações, como para entrar no caminho da pontualidade financeira indispensavel á regeneração economica do paiz, exclusivo proposito actual da politica cesareo-burocratica portugueza. Se nós em 36 já tinhamos tido o nosso 48, tambem tivemos com vinte annos de antecedencia um opportuno Salaverria. (Voltará elle, d’aqui por tempos? É natural; parece inevitavel.[39])

[Pg 335]

O acto addicional á CARTA proclamado dictatorialmente, evitando as constituintes, era afinal a banca-rota de vinte annos de revoluções: um minimo de reformas politicas sufficientes para pacificar os partidos que já não pediam senão paz. A conversão foi o acto addicional da Divida, que era o duro commentario do codigo de 26. As duas medidas, iniciando uma edade nova, completavam-se: eram a liquidação do passado financeiro e politico e o prologo da edade presente.

Entre as varias causas das desordens successivas dos tempos anteriores, a mendicidade do Thesouro de uma nação mendiga foi, como temos dito, a principal. Casa onde não ha pão ... E das revoltas e crises resultava uma aggravação sempre crescente da ruina publica. A divida, com a sua historia accidentada, retratava esta situação. Como o leitor sabe, a CARTA comprara-se com uma guerra paga a emprestimos em Londres. Ganha a victoria sobre um paiz inimigo e confiscados os bens das instituições abolidas, nem se lhes pudera applicar o valor para amortisações, por ser necessario para retribuir os serviços e crear partido; nem se pudera pedir á nação exhausta o necessario para os gastos ordinarios, porque era conveniente fazer crêr que a CARTA supprimia o imposto. Talvez assim o camponez se convertesse.

Quando o setembrismo venceu, a situação appareceu outra. Condemnado o principio de viver de emprestimos, os democratas acharam no proteccionismo fabril uma arma duplamente util: os direitos pautaes, fomentando a creação de fabricas, creavam batalhões de operarios democratas, e davam ao Thesouro uma receita importante. Mas, por engenhosa que fosse a combinação, nem o setembrismo tinha um Pombal nem sobre tudo teve em Passos um fazendista.[Pg 336] Continuou-se a pedir emprestado; e á maneira que as cousas inclinavam para a Ordem, iam tambem inclinando para o Ponto. De 37 a 40 havia sete semestres de juros por pagar.

Com os crédores nacionaes bem iamos, porque, sabendo-se que o reino não tinha que emprestar ao Thesouro, o descredito não prejudicava a economia da divida. Eram mais pensionistas em atrazo. Mas com os crédores londrinos o caso mudava, porque, depois de quatro ou cinco annos de tentativas estereis, era mistér confessar que José da Silva Carvalho tinha razão, e que só do dinheiro extrangeiro se podia esperar a regeneração economica do reino. Ora como nos emprestaria dinheiro quem reclamava o juro e não o conseguia? A divida externa era, pois, duas vezes grave como problema: já por isto, já pela importancia absoluta. (V. Bulhões, Divida port.) Em 38 chegava a 53 mil contos, ou quasi doze milhões sterlinos, sendo quatro e meio de 5 e o resto de 3 por cento. E no fim de 40, aggravada com os coupons por pagar, attingia a somma de £12.358:000.

Não perguntemos agora que valor real de dinheiro effectivamente importado representam estes numeros. Um terço? muito menos. Lembremo-nos de que os emprestimos ulteriores tiveram em grande parte por fim pagar os encargos dos anteriores; e talvez não erremos suppondo que de 12 milhões só 2, quando muito, se teriam visto em Portugal. E isto, convém dizel-o, para salariar tropas, salvo o que serviu á amortisação do papel-moeda. Não nos demoremos porém agora em calculos. O facto era dever-se. Fôra o dinheiro mal comprado e peior applicado? É evidente que o crédor nada tinha que vêr com isso. A nossa ingenuidade não nos consentia especular com a propria ruina, e[Pg 337] quando o pensassemos fazer, errariamos; não só porque a Inglaterra crédora mandava no governo ordeiro, como porque sempre tinha de curvar a cabeça quem não meditava senão em obter novos emprestimos.

De tal situação nasceu o decreto de 2 de novembro de 40, primeira tentativa da regeneração. Era ao tempo em que Costa-Cabral já decerto planeava a sua restauração da CARTA; e com ella e com a escala ascendente, com a ordem na politica e na finança, esperava iniciar o utilitarismo, fazendo do velho Portugal sebastianista uma Belgica. O leitor sabe já porque e como este plano falhou com o doutrinarismo. Por detraz da Liberdade, cujos systemas eram como as nuvens rotas que muitas vezes fluctuam ao nascer do dia, levantava-se o sol vencedor, o sol utilitario que as dissiparia todas. O leitor sabe como foi a crise, mas não lhe dissemos ainda os termos da combinação em que vivia, socegada, a divida externa.

O decreto citado consolidava os coupons em atrazo e convertia ao typo de 5 p. 100 toda a parte da divida de 3, dando aos crédores como indemnisação, premio, ou o que quer que fosse, a quinta parte mais do que se lhes devia. Assim

100 £ de 5 p. 100 eram representadas pelos novos titulos em 120
100 » 3, convertidas em 60 de 5, eram etc. » 72

D’esta combinação resulta que, havendo

5 milhões de 5 passava a haver 6 titulos novos
6          »        3    »           »       5,4

o nominal da divida ficava proximamente o mesmo,[Pg 338] mas o juro subia proximamente de 4, em média, a 5. Era pois o premio de um por cento ou 540 contos ao anno? Era; ou antes seria, se a combinação podesse ir até ao fim; porque os juros differiam-se, por meio de uma escala ascendente:

De 1841 a 4 pagar-se-hiam 2,5 p. 100
» 45 a 8 » 3 »
» 40 a 52 » 4 »
» 53 a 60 » 5 »
Depois de 60 » 6 » até amortisação
do que nos anteriores periodos se pagara menos do que 5.

Durante o praso de vinte annos a ordem politica e financeira permittiria fazer estradas e vias-ferreas, a agricultura progrediria, etc. Sabemos de que fórma o cabralismo pensou realisar este plano, com a ordem doutrinaria e com a babel das companhias do agiotas.

Em 41 (9 de novembro) o moço financeiro Avila, ainda não duque mas já importante, entregou a administração da divida externa á Junta do Credito Publico, impondo ao mesmo tempo aos crédores da interna a deducção do decimo dos juros. Tivessem paciencia esses pensionistas do Estado: tambem os funccionarios a tinham!

Com os crédores londrinos é que se não podia bolir: ora indispensavel consolidar o systema da escala ascendente a vêr se se conformavam com elle e nos contavam no seu stock-exchange. Só depois d’isso se conseguiria algum novo emprestimo! Costa-Cabral concebendo uma ordem diversa da ordeira, uma ordem cartista, concebeu outra chimera: a de obter recursos internos, para com a riqueza[Pg 339] da nação—exhausta!—supprir o que o extrangeiro nos não dava. De um tal plano era orgão o legado cabralista no Thesouro, o conde do Tojal.

Mas os embaraços cresciam, o dinheiro faltava. Os titulos externos estavam recebendo a 3 p. 100 em 45, quando para vêr se se obtinha uma paz, o governo resolveu (lei de 19 de abril) reconvertel-os para 4 compromettendo-se a uma amortisação annual de £25:000. Ainda se não reconhecera esta verdade elementar: que pedir emprestado para amortisar é uma illusão ruinosa. Erro, illusão era, porém, tudo, e a Maria-da-Fonte veiu demonstral-o. Mas não era mais sensato, nem mais practico o seu governo que lançava a reducção de 20 por 100 aos juros das duas dividas, juros que elle não podia pagar, e assim, lucrando nada, desacreditava-se por dois caminhos. Abolidos esses descontos impensados, voltou-se ao estado anterior da decima unica na divida interna, capitalisando se os dividendos por se não poderem pagar.

Tojal saíra por uma vez, como quem para nada prestava já (22 de agosto de 47). Havia paz durante o reinado de Saldanha, Monk de Costa-Cabral, (18 junho de 49) que poz na Fazenda Avila, esperanças da patria. O segundo ministerio cabralista não foi melhor na finança do que na politica. Apesar de moço, Avila sempre fôra velho no pensar: jurava pela amortisação! E jurando, as cousas iam indo de mal a peior; e, se Costa-Cabral caíra em 46 precipitado do alto de uma torre de papeis, agora ia pouco a pouco enterrando-se n’um olheiro de penuria. Desde julho de 48 que se supprimira o systema de capitalisar os juros em divida: para se pagarem? Sim, menos a quarta parte; mas nem isso, cousa nenhuma se deu, nem a nacionaes, nem a extrangeiros.

[Pg 340]

Não se está vendo a urgencia de regenerar as cousas?


Com um espirito novo a Regeneração veiu proclamar o contrario do que até então se dissera e estava desacreditado. Como introito, para simplificar, capitalisou em fundo de 4 p. 100 todos os dividendos por pagar desde 50. (decr. 7 de julho de 51) E como affirmação de principios supprimiu o da amortisação. (decr. 3 de dezembro) Fontes era moço, na edade e no espirito. Não vinha de Coimbra: estava limpo das doutrinas classicas e caducas. Amortisar, o quê? para quê? Amortisar, pedindo emprestado, nós que temos de nos endividar para solver os encargos annuaes ordinarios, é aggravar as consequencias do juro composto que tal situação nos impõe. Amortisar, o quê? A divida? não, que deve ser fundada, permanente, eterna, como caixa-de-economias, instrumento de distribuição de riqueza, de capitalisação de migalhas. Outr’ora dissera-se ser necessario pagar o que se deve. Doutrinas fosseis! Um Estado não é um particular. Quanto mais uma nação dever, mais rica será!

O san-simonismo infiltrára-se nos pensamentos da geração nova, com os seus dogmas chrematisticos e communistas. Prégando a religião da riqueza, e o culto do capital como meio de a crear, era natural que trouxesse theorias novas para o problema das dividas nacionaes. O Thesouro, com as rendas annualmente distribuidas, era uma funcção normal do Estado, cuja divida adquiria um caracter social, perdendo a natureza commum ás dividas particulares. Por outro lado, que melhor modo de desenvolver a riqueza do paiz do que derramar[Pg 341] sobre elle uma chuva de oiro extrangeiro? Custaria caro? muito? Seria nada: os redditos do Thesouro cresceriam n’uma progressão superior á progressão dos encargos da divida.

Taes opiniões, geraes no tempo, e convictamente abraçadas pelo financeiro regenerador, entraram com elle no Thesouro portuguez. Á parte o valor da doutrina, á parte as consequencias d’ella—com que nos achamos hoje, dizem uns que embaraçados, dizem outros que afortunados—é mistér vêr na finança regeneradora a continuação do antigo pensamento de José da Silva Carvalho. Uma nação exhausta só poderia renascer regada por chuveiros de libras esterlinas. Quando, batidos os doutrinarios financeiros, os Campos e os Passos, os Tojal e os Avilas, voltou o espirito practico, a Regeneração encaminhou para cá os capitaes de fóra. Os milhões dos antigos emprestimos serviram, no todo, para guerras; os milhões dos novos serviram n’uma parte para estradas e caminhos-de-ferro; d’ahi a reconstituição da economia rural da nação.

Abolido o principio da amortisação, substituida a renda ou divida fundada ao systema de emprestimos temporarios, faltava unificar essa renda, adoptando um padrão unico. É evidente que se uma conversão se faz de um juro menor para um juro maior, o nominal dos titulos baixa; e, se existe o principio da amortisação, esse facto ou o inverso podem importar muito. Mas se o principio das emissões é o da renda, fundada em vez de amortisavel, permanente e não temporaria, pouco importa que a conversão se faça de um juro maior para menor, e que cresça correlativamente o nominal dos titulos, pois que esse valor não é reembolsavel. Os numeros por que se exprime o capital da divida publica significam nada, e tudo o encargo annual,[Pg 342] ou renda que o Thesouro tem de servir aos portadores d’ella.

O decreto de 18 de dezembro de 52 é a inauguração da nova edade financeira em Portugal; e se o leitor tem presente como em uma nação, qual a nossa vinha sendo desde 1808, o Thesouro e a sua divida têem um papel eminente: o leitor não recusará o justo applauso ao estadista que teve a intelligencia e a coragem de pôr o ponto final na historia anterior, reconhecendo e liquidando com uma banca-rota o systema dos pontos e banca-rotas precedentes. Esse decreto foi simples e breve, como convém ás leis. Creou, para substituir os antigos titulos, um typo unico de divida fundada de 3 p. 100, mantendo porém a distincção apenas formal de divida externa e interna. Tomou para typo da conversão o 5 p. 100 externo, creado em novembro de 41, reduzindo-lhe o juro a 3; e subordinou a conversão da divida interna a uma razão correspondente: 100 de 4 p. 100 = 80, de 6 p. 100 = 120 do novo typo de 3. Era uma positiva banca-rota, pois não só a conversão era forçada e não facultativa, como o juro effectivo se reduzia de 5 a 3 p. 100 (embora em 48 já o tivessem reduzido a 3,57) sem ao menos se differir a indemnisação, como se projectara fazer em 41. Differida, isto é, só com direito a juro a contar de 63, ficava a divida dada em pagamento dos dividendos atrazados de 48 a 52.

Eis aqui um quadro desenvolvido da divida interna em junho de 51, quando o novo regime politico se installou: (V. L. J. Ribeiro, Est. da div. int.)

[Pg 343]

Antes de 33Depois de 33
Apolices de 1823, consol. do papel moeda 1:334
» 1826 » dividas d’Ajuda 70
» 1827 » » fornec. 14-19 255
Inscripções 1837 (Passos) conversão de Padrões de 6 p. 100 2:503
» 1835 (Carvalho) » Títulos    » 4:010
» 1837 (Passos) Pagamento á c. dos vinhos 739
» 1836 (id.) Emissão 2:119
» 1835 (Carvalho) id. 499
» 1848 (Falcão) conversão de Padrões 5 p. 100 204
8:376 3:415
do juro de 4 p. 100 11:791
Apolices, consolid. letras do commissariado 21 754
» 1820-2 de divida publica 1:025
» 1823 idem 800
» 1827 idem 2:186
» 1833 idem 391
» 1839 idem 4:050
» 1840 idem 1:483
» 1841 idem 5:142
» 1843 idem 2:874
» 1845 idem 2:598
» 1848 idem 373
4:765 16:911
do juro de 5 p. 100 21:676
Inscripções de 3 p. 100, capit. dos juros de 47-8 450
» dos Açores, etc. 549
Totaes 13:141 21:325
Totaes geraes 34:466
ao juro medio annual, liquido da dedução de 25 p. 100 (de agosto 48) de 3,5 p. 100 1:203

Para além d’esta somma de divida ficava ainda a chamada mansa, titulos azues, indemnisações, etc., etc. (V. Bulhões. Divid. port.) que com o papel-moeda por amortisar, subia á somma de 11:887 contos. Os numeros[Pg 344] que expozemos acima, referidos ao meiado de 41, tinham crescido no fim do anno seguinte; e o decreto de 18 de dezembro operou sobre estes valores: (Ibid.)

Divida interna, contos 38:827 juro 1:166
    »    externa » 46:913 » 1:407
85:740 2:573

Se addicionarmos a divida mansa, e compararmos o total com a divida de 28, veremos que a Liberdade e os seus ensaios custaram ao Thesouro 58:500 contos, afóra os bens nacionaes vendidos ou queimados, sem com isso melhorar a situação economica do reino, segundo já deixamos patente.

A conversão propunha-se regularisar um estado provadamente intoleravel. Abolindo as verbas de amortisação o reduzindo as de juro, que no meiado de 52 attingiam sommadas 3:491 contos (Ibid.), limitava os encargos á somma acima indicada. Alliviado assim o Thesouro, seria fiel aos seus compromissos? Eis o que se não acreditava. Tinha-se assistido a tantos pontos, a tantas capitalisações successivas e todas apregoadas como decisivas e finaes, que os crédores, de certo bem dispostos a receber menos, mas sequer alguma cousa, não viam com bons olhos o ministro moço e audaz. Choravam-se as victimas de mais uma espoliação: eram 9:511 particulares e 519 corporações, os portadores da divida interna. (Ribeiro, Divida) Aos que defendiam os actos do governo, recordavam os crédores a famosa instituição do Credito-nacional, de 1841, para «se porem os pagamentos em dia»; as decimas lançadas nos juros; as metades, a que tinham sido reduzidas as classes inactivas em 1844; toda a serie de[Pg 345] miseraveis banca-rotas que desde 35 se tinham repetido com uma constancia invencivel.


Enganavam-se, porém, os accusadores. Os tempos tinham mudado, em Portugal e em toda a parte. Chegara a saciedade de liberalismo e as attenções voltavam-se para um norte differente das antigas chimeras doutrinarias. Reconhecia-se conquistada a Liberdade no seio do scepticismo. Custára muito? Ao reino, é impossivel dizer quanto; ao Thesouro, cincoenta, sessenta, oitenta mil contos? Ponto, sobre essa historia antiga! De joelhos, perante o deus Fomento! Com esse culto novo podia gastar-se á larga, á farta, porque á maneira do verdadeiro Deus (ainda por habito ou hypocrisia se era christão, mas liberal) o Deus novo pagaria com muitos mil os emprestimos que se lhe faziam. Caminhos de ferro! caminhos de ferro! Circulação, liberdade respiratoria para o corpo economico! Vida nova! E assim o moço ministro engenheiro, introduzido na scena pelo seu patrono Rodrigo, entrava pela mão do scepticismo velho prégando a religião nova. Patrono e cliente, mestre e discipulo, pae e filho, eram o mesmo em dois corpos, um representando a negação do passado, o outro as affirmações do presente.

Reformaram-se as pautas setembristas n’um sentido mais livre; começava a picareta a abrir as trincheiras do caminho de ferro; fundia-se o historico Terreiro com as Sete-casas, estabelecendo-se um octroi; reformavam-se os correios, adoptando-se a estampilha, symbolo da mobilisação universal idealisada no comboyo correndo como o vento:[Pg 346] um comboyo que era ainda apenas sonho e um desejo! Em vez de uma sociedade agitada por partidos e doutrinas, aspirava-se para uma agitação de gozo, de riqueza, de utilidade positiva.

Em 49 houvera uma exposição de Industria em Lisboa, mas não era o fabrico o enlevo da idéa nova: era o movimento. O pombalismo acabara com os setembristas, e as tendencias economicas eram levadas agora n’um caminho diverso. Já as nações se não olhavam como organismos autónomos, porque o cosmopolitismo infiltrara-se nas doutrinas. O cabralismo fôra um precursor da edade nova, mas errava imaginando ainda, á antiga, que para a realisar fosse necessaria a reconstituição de uma classe aristocratica. Assim acontecera em França a Luis-Philippe. Mas o socialismo tambem reagira contra o governo dos ricos, e o segundo imperio francez e a Regeneração portugueza, egualmente democratas, realisavam por outras fórmas, com outros meios, o pensamento capital dos regimes precedentes. O imposto de repartição, motivo da queda dos Cabraes em 46, servia agora para recompôr esse lado da machina administrativa.

Cheias as vélas com um vento de esperanças aladas, o barco da Regeneração vogava, com Fontes, pimpão, moço e janota, ao leme; Rodrigo, perspicaz, de gageiro á prôa; Saldanha na camara, fardado, solemne, falando ás visitas. Nem uma nuvem no horisonte? Nada, apenas o sapatear da agua no costado, as ondas pequenas, mansas, dos crédores de casa, agiotas e pensionistas, clamando contra a conversão. Deixar: larga! Mas, viajando, acossou-os a vaga mais temivel dos crédores de Londres. Escarmentados pela conversão de 40, depois pela de 45, não acreditavam na de 52. O caso[Pg 347] era grave, porque sem dinheiro londrino para que serviria o ministerio creado ás obras-publicas? (30 de agosto de 52) Com a fallencia aberta, riscados da sociedade das nações-de-bem inscriptas na biblia do Stock-exchange, de que valiam os talentos e desejos dos estadistas novos? Inuteis as cartas, Fontes preparou a mala e saíu para Londres em dezembro de 55, embaixador perante o congresso soberano do capitalismo londrino.

Vinte annos Palmella implorara em favor da Liberdade a protecção dos verdadeiros monarchas. Agora ia Fontes confessar as culpas, protestar o arrependimento, pedir o perdão, e prometter um abandono formal de theorias tão funestas. O filho prodigo emendar-se-hia: tinham sido verduras da infancia!

A França de Napoleão III fizera pazes com a Inglaterra, agora sua alliada para a guerra (da Crimêa), para a exploração bancaria das nações pupillas. Em Londres, Fontes achou Thornton, Fould em Paris, promptos a annuir á conversão de 52, a restituir o credito a Portugal, a dar-lhe os dezeseis mil contos que pedia, mas sob condições em verdade onerosas, e mais graves por que hypothecavam o futuro. Fontes annuia, annuiu a tudo. Querem que se lhes dê em titulos differidos o que a conversão lhes tira? Não ha duvida. Querem os banqueiros (Thornton, Fould) o direito de preferencia em todos os emprestimos futuros? De accordo. Querem os engenheiros (do Credit mobilier, de Morny-Pereire, sob a protecção de Napoleão) a preferencia nos contractos de construcção de obras, e desde já estudos rendosos? Tambem vol-o dou; mas cotemme os fundos, deem-me dezeseis mil contos! (V. Roma, Reflex. sobre a questão financ.) É necessario hypothecar o futuro para liquidar o passado? Faça-se. Faça-se[Pg 348] tudo, acceite-se tudo, mas haja dinheiro e caminhos de ferro.

Regressado de Londres, os farrapos dos velhos partidos caíram sobre o homem na sessão de 56. As antigas denominações tinham acabado, e havia contra os regeneradores o amalgama que se chamou historico, e que com effeito o era, sombra historica sem vida, presidido por um grave, mudo, impassivel: Loulé. Os restos do cartismo acabado protestavam tambem: Roma no Jornal do Commercio, Avila e Carlos-Bento na camara. Na imprensa defendiam o ministro Lobo-d’Avila e José-Estevão na Revolução; na camara defendia-se elle a si proprio, com a verbosidade que parecia eloquencia por ser nova a rhetorica empregada: melhoramentos, fomento, etc. em vez de principios, abobadas da sala (que é envidraçada), etc. Eram vivos o ataque e a defeza; e tamanha a temeridade do ministro-Esau que cedera tudo por um emprestimo, tamanha a precipitação juvenil com que nos arrastava, á velocidade d’um expresso, na estrada do fomento, que a apathia portugueza historica derrubou-o. (6 de junho de 1856) Caiu um ministerio; mas a Regeneração não caíu, nem podia, porque estava na necessidade das cousas. Como um moderador passivo apenas, levanta-se perante o grupo dos audazes, o grupo dos historicos presidido por Loulé; mas nem já o setembrismo, nem politica alguma sui generis o inspirava.

3.—OS HISTORICOS

O novo governo, successor da Regeneração em 6 de junho de 56, vinha, como dissemos, fadado para ser apenas um moderador do enthusiasmo, da precipitação, da largueza-de-mãos dos predecessores.[Pg 349] Já despidas as togas democraticas pelos restantes do antigo setembrismo, já trocado o nome de progressistas pelo nome inconscientemente eloquente de historicos, a nova gente nada significava como affirmação no poder. A sua inconsistencia prova-se na constante mudança do pessoal governativo, durante os tres annos escassos da sua gerencia. Eram todos homens bons, ronceiros, pacatos, liberaes sempre, ainda que isto nada já quizesse dizer. Como que sombras de outras éras, vinham presididos por uma sombra ambulante, muda e nobre ...

D. Pedro V tomara posse do governo (16 de setembro de 55), e o temperamento melancholico e pessimista do novo rei preferia esta gente antiga aos regeneradores modernos e moços, cujo materialismo não agradava á metaphysica regia. Somnambulos, rei e ministro, ambos alheios á indole dos tempos novos, ambos sem pensamento nem força para os condemnarem, iam caminhando, ou antes deixando a nau do Estado seguir á mercê da direcção da corrente. Mas desde que o estabelecimento do imperio em França restaurára ahi as influencias ultramontanas, depois de as desillusões de 48 terem convertido Pio IX ao jesuitismo, a esperança de reconquistar para o catholicismo puro todas as nações latinas abaladas pela Liberdade impia, inspirou uma politica activa. Habilmente sentiam os novos apostolos que não eram missionarios nem sermões o meio adequado á novissima propaganda. As gerações passadas ou actuaes tinham-se perdido ou eram inconvertiveis: restava appellar para a educação da infancia. E de que modo? Repetindo o que no seculo XVI se fizera?[40] Não; seria temerario. Não se podendo pretender desde logo ao monopolio[Pg 350] da instrucção official, o caminho indicado era o da Caridade e o da Liberdade.

As irmans de S. Vicente-de-Paulo, soldados piedosos e humildes do exercito apostolico; as irmans-da-Caridade que a guerra da Crimêa vira nos hospitaes e campos de batalha, tão corajosas como dedicadas, eram quem devia vir a Portugal ensinar a infancia desvalida nos asylos creados pelas senhoras ricas da fidalguia. O ultramontanismo é nos nossos tempos eminentemente aristocratico. Rodrigo, perspicaz e sceptico, jámais annuiu á vinda; mas agora o rei catholico e neo-romantico, amante de uma esposa beata, e o ministro com o seu genio principesco e molle, que mal podiam achar na introducção d’essas mulheres piedosas, tão celebradas na sua caridade, tão simples na sua humildade obscura? Pois não valia mais que as creanças tivessem um amparo protector? Por toda a parte as fidalgas cantavam o elogio das pobres irmans-da-Caridade, tão boas, tão santas, tão bonitas nos seus babitos negros, com a alva touca de linho de abas soltas como azas de pombas! Este renascimento de piedade religiosa nada tinha, porém, de commum com a antiga religião vencida em 34. Era aristocratico, a outra fôra plebêa; e a mesma plebe que ainda nas procissões, nas semanas-santas, no Senhor-dos-Passos da Graça, conservava um resto de culto pela religião antiga: era essa mesma plebe de Lisboa que apedrejava as irmans-da-Caridade, missionarias da religião nova, aristocratica, afrancezada.

Loulé consentira a entrada das Irmans (9 de fevereiro de 57) quasi ao mesmo tempo que pela primeira vez a locomotiva assobiava conduzindo os convidados á inauguração da primeira secção do caminho de ferro (28 de outubro de 56). Tudo se[Pg 351] modernisava n’esta nação que, feudataria da Inglaterra, era a copia da França—em 33, em 42,—e agora, depois de 51, a copia do segundo imperio. Agradecia-nos ella a fidelidade com que aprendiamos? Não, e brutalmente nol-o provou com o deploravel episodio da Charles et George, que derrotou por fim o ministerio historico, batido com vehemencia pela voz do José-Estevão.

Foi na primavera de 59 que Loulé caíu, arrastando comsigo Avila da Fazenda. A Regeneração abrira-nos de novo as portas do sanctuario do crédito; Avila, senão convertido, adherindo ás idéas novas, deixava-se ir na corrente. A possibilidade de emittir era uma tentação irresistivel para nós que, desde 20 até hoje, nunca podemos prescindir de emprestimos para pagar as despezas correntes. Mas desde 51, a parte que se empregava no fomento servia de pretexto plausivel para encobrir a parte maior com que se preenchiam os deficits. Assim, a divida que a Regeneração deixára em 96 mil contos com o juro de 2:900, deixavam-na os historicos em 120 com o juro de 3:600—tres annos, a 233 ao anno, ratio que subirá sempre d’aqui para o futuro.


Depois dos tres annos (56-9) historicos, viu-se um intermedio regenerador (16 de março de 59 a 4 de julho de 60) apenas importante quanto ao pessoal politico. Como presidente, isto é, pendão e apparato, Terceira succede a Saldanha, para deixar por morte o logar a Aguiar. Fontes substitue o fallecido Rodrigo na direcção do partido; e ao lado do chefe vêem-se os homens novos: Cazal, Serpa, Martens, que com Sampaio e Corvo formarão[Pg 352] a guarda politica, o pessoal de governo no futuro reinado de D. Luiz. Era uma geração nova, já educada no liberalismo novissimo. Todos os antigos se somem nas casas ou nas covas, á maneira do que succedera em 35, quando morreu D. Pedro. Cabral exilado é o D. Miguel de agora; e, se o quixotesco imperador acabou vomitando sangue e abraçando ainda os seus soldados, Rodrigo, summa e synthese de trinta annos de miserias, Rodrigo a imagem do Desprezo, dizem que se finara murmurando assim—«Nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste!» O Desprezo, eis a transição da éra das doutrinas para a edade das conveniencias...

A segunda Regeneração nada regenerou. Fizera-se, da primeira vez, tudo o que havia a fazer; e, como partido de homens practicos, clientela de gente rica, inimiga de reformas, doutrinas e movimentos, não podia consummar o que ainda faltava para completar entre nós a revolução liberal.

Podia-o Loulé, que voltou? (julho 4 de 60) Não elle, mas sim o homem-novo, especie de resurreição cabralista, tão duro, tão energico, tão ambicioso, como o conde de Thomar—Lobo-d’Avila, depois tambem conde, de Valbom. Fallecido D. Pedro V, Braamcamp, o novo ministro do reino (1862), pôde acabar com o incommodo espinho das irmans da caridade, expulsando-as (junho 9, de 62) e subscrever a lei de abolição dos vinculos (maio 19, de 63) (Elog. hist. de Ans. J. Braamcamp, do a.) complemento da obra destruidora de Mousinho da Silveira, porventura temerariamente promulgado n’um paiz que a historia não deixara acabar de construir rural e demographicamente. (Proj. de lei de fom. rural, do a.) Tinham-se, porém, abolido finalmente os morgados, tinha-se instituido o credito-predial, franqueada a[Pg 353] barra do Douro, extinguido o contracto do tabaco, reformado as alfandegas, e por fim o primeiro comboyo corria assobiando, desde Lisboa até Badajoz (maio 30, de 63). Á maneira que, porém, crescia a influencia de Lobo d’Avila, o homem novo, caía o chefe apparente do governo, o duque de Loulé. Na camara ouvia-se o Serpa, accusando fria e desapiedadamente de burlão o da unha preta; ouviam-se outros crivando de epigrammas o rei de Sião, duque, ministro somnambulo. Por fóra, nas ruas eram grandes lanternas de papel pintado com uma cruz negra, e os garotos apregoando a historia de um assassinato e de um roubo. (V. a Cruz de Scutulho, op. 1865) Lobo-d’Avila via-se precipitado do governo, antes de ter realisado a sua hegira do Porto; e o Bomfim de agora, se não conseguia vencer, conseguia pelo menos esmagar o rival importuno e antipathico.

Se Costa Cabral com a sua doutrina viera pôr um termo ás successivas definições da Liberdade, desacreditando-a, similhante destino tinha a aventura de Lobo-d’Avila para com as clientelas politicas formadas depois de 51. A sua quéda era o fim dos historicos. Em vão Loulé se apresentou á camara com um gabinete singular, (março 5 de 65) e um financeiro joven, lavado em lagrimas. Houve um riso universal, e ambas as unhas caíram tristemente na valla dos mortos.


E como tudo estava safado, molle, roto, podre, fundiu-se tudo. A Fusão (setembro 4 de 65) era, porém, o modo grave do partido historico se sumir. Sombra evocada de um passado extincto, guiada[Pg 354] por um fidalgo somnambulo, querido de um rei excentrico e misanthropo, devia ter-se dissipado quando o rei morreu. Trouxe-lhe um ar de vida a força de um ministro moço, mas a physionomia antipathica d’essa força enodoou-lhe os actos. Se lhe prolongou a duração, foi para lhe preparar um fim mais triste ainda: a cruz negra de um assassinato, as lagrimas ingenuas de um financeiro, a gargalhada unisona da plateia popular.

E era triste, triste vêr acabar assim um homem sympathico na sua molleza aristocratica, um bello typo da raça apurada portugueza, um impassivel: é tão rara a distincção! O duque de Loulé, velho Mendoça, procedia da estirpe dos senhores de Biscaya, em tudo reis, menos no nome. Os Mendoça tinham-se ligado aos Val-de-Reis, vindo a ligar-se aos Rolim, da descendencia do flamengo a quem Affonso-Henriques dera o senhorio de Azambuja.

Singular extravagancia da historia que fizera de um tão nobre senhor o membro e mais tarde o chefe do partido que primeiro foi e depois se dizia ainda democrata! É que a sua vida principiara no meio de condições proprias a desorientar a educação. Seu pae, condemnado á morte por ter sido um dos que invadiram Portugal com os francezes de Massena, perdoado em 21 por D. João VI, morrera assassinado em Salvaterra, tres annos depois, ás mãos do partido apostolico. Seria o espectro do pae a causa da inclinação politica do filho? Entretanto, em moço não abandonou a côrte e era o mais bello e seductor dos fidalgos d’então. A infanta, perdendo a cabeça, casou-se com elle; e os noivos tiveram de fugir, porque D. Miguel vinha irritado por esse escandalo cortezão. Assim o bello marquez emigrou; assim se encontrou, descendente dos Mendoça[Pg 355] de Biscaya, marido de uma infanta portugueza, envolvido no partido revolucionario.

O seu lugar natural seria ao lado de Palmella, na côrte da futura monarchia representativa; mas preferia o lado opposto, e foi setembrista, foi patuléa, foi pé-fresco. Era outro Egalité? outro louco? um mau? um ambicioso? Nada d’isso era; apenas um discipulo do romantismo, que á sua intelligencia, limitada mas nobre, apparecia democraticamente poetico, em vez de liberalmente jurista. Afastal-o-hiam tambem da côrte representativa as repugnancias pelo feitio antipathico e menos limpo, nada nobre, dos conservadores? É tambem natural, em quem teve uma existencia immaculada.

A tradição de honradez e virtude, constante no partido dos Passos, do Sá-da-Bandeira, deve contar-se por uma das forças mais energicas com que o setembrismo bateu em 36 os cartistas e dez annos depois os cabralistas. E essa tradição, ainda viva depois da Regeneração, era tambem ainda uma das melhores, senão a melhor arma do partido historico, personalisado no seu chefe, o duque de pedra, frio, mudo, impassivel, mas sem uma nodoa, e com um ar de superioridade soberana que vencia os proprios sabedores do pouco valor d’esse aspecto.

O duque não tinha de certo o olhar profundo, escrutinador das leis a que obedecem as sociedades, nem a audacia, instrumento da victoria em epochas da natureza d’aquella em que vivera. Era mediocre, mas não como caracter. O papel eminente que lhe distribuiram depois de 51 acaso o devia mais á tradição aristocratica do seu nome, á amisade pessoal do rei—historico tambem!—do que ao merito proprio. Mas a educação fidalga, o temperamento frio, a serenidade de uma consciencia limpa, a facilidade de uma vida opulenta, deram-lhe[Pg 356] sempre uma indifferença altiva, proverbial e caracteristica, que por vezes se tornou, em certos episodios turbulentos, n’uma placidez quasi heroica. Foi entre nós o typo mais perfeito, senão o unico, d’esses fidalgos-democratas inglezes, que amam o povo abstractamente, mas não dão o braço á gente, porque desceriam. Como um peninsular, porém, era benigno e affavel, embora reservado sempre e mais do que discreto. Todos se lembram ainda de o vêr, impassivel e frio, quasi ou inteiramente indifferente, responder em seccos monosyllabos aos discursos vehementes dos tribunos das opposições. Elle passava, impavido e mudo, pelo meio os tempestades parlamentares; pisava a camara como a sala do throno, e a politica implacavel e plebêa, irritada e cheia de despeito, poz-lhe por nome o Rei-de-Sião.

Não via incompatibilidade alguma em ser estribeiro de el-rei e ao mesmo tempo chefe de um partido que fora, e se dizia ainda, nas suas folhas, democrata. Em pé, descoberta e curvada a cabeça, abria, com uma servidão fidalga, a portinhola do coche real, para em seguida ir collocar-se á frente dos ministros; e esta posição dupla, inconsequente, mais de uma vez lhe trouxe dissabores. Um grande fidalgo não póde hoje entrar na politica, senão para a escravisar a ella e para impôr a sua vontade aos reis: só assim remirá, perante o seu povo, o seu vicio de origem. É mistér ser-se Wellington, de quem tremeu Jorge IV, e a rainha Victoria foi pupilla; Saldanha, a quem deu vivas D. Maria II; ou Bismarck, o que levou pelo beiço o imperador Guilherme. De outra fórma o povo vê sempre o cortezão, e raro o politico. Por isso Loulé jámais foi popular, apesar de sério, fiel, honrado e bom. Humano e caridoso á antiga, quasi perdulario por desdem, não[Pg 357] por luxo, que vivia pobremente, era adorado pelos seus clientes privados; mas os seus clientes e adversarios politicos, saídos da massa do povo avaro, parvenus mais ou menos petulantes, não lhe perdoavam a sua fidalguia. E a indolencia invencivel do duque dava-lhes frequentes motivos para o accusarem com fundamento. Diz-se que o vergonhoso resultado da questão Charles et George proveiu de uma nota franceza que o ministro metteu no bolso e a que jámais se lembrou de responder.

Ferveram sobre elle as calumnias, e por vezes estiveram para ferver as pedradas da plebe amotinada. Chegaram a accusal-o de envenenador da familia real, para succeder no throno; mas ás calumnias não respondia: não responde quem se présa; e uma vez que o povo clamoroso rodeava a carruagem, ameaçando o, mandou parar, abriu a porta, desceu e disse: «Que me querem? Deixem-me. Vão para casa e soceguem». Disse-o placidamente, sem erguer a voz, e o povo rendeu-se. Sem pose, tinha uma coragem fria, verdadeira. Ardia-lhe a casa, de noite: vieram os creados afflictos, chamal-o; e elle, ouvindo-os, disse-lhes que quando o fogo chegasse ao quarto immediato o avisassem. Assim deixava arder a sua casa, porque era historico, e nada tinha do ávido temperamento burguez, imperante nas companhias, nas bolsas, nos caminhos de ferro. Era um D. João VI, mas bello; ou como o rei que tanto lhe queria, como um D. Pedro V já velho. Historico por descendencia fidalga e politica, duas illusões o acompanharam ao tumulo: a do sangue e a da LIBERDADE. Uma das suas ambições era a de «fazer umas eleições prohibindo sériamente a intervenção ás authoridades administrativas». Morreu sem vêr realisado esse desejo, confissão plena da genuinidade da representação,[Pg 358] proferida por quem de perto conhecia as cousas; e ao mesmo tempo documento da sinceridade com que os homens são capazes de acreditar em chimeras.

Confrange, é verdade! entristece, o lembrarmo-nos da somma de rectidão, de lealdade, de quasi heroismo gastos por nossos paes em levantar um edificio aereo que nem sequer lhes foi licito deixarem de ir vendo cair, pedaço a pedaço, hora o hora, até á da final subversão no riso sceptico, regenerador!


Em 51 fôra uma parte do setembrismo mais rubro (Sampaio, José-Estevão) que se convertera; em 65, na Fusão, converteu-se a parte branca do partido historico. A unha-preta, cauda democratica de um partido forçado a ser conservador; a unha-preta, menos o seu chefe (tambem convertido), restaurou as declamações setembristas proferidas na tribuna por Santos-Silva, na imprensa pelos Tanas do Portuguez. Por outro lado, José-Estevão desquitara-se da segunda regeneração (59-60), ministerio addicto ás irmans-da Caridade, e teimava ainda em crear uma democracia com elementos novos. Morreu na faina (nov. 4 de 62) o tribuno peninsular, e as duas caudas dos dois partidos extinguiram-se pouco a pouco, sumindo-se pelas covas, ou pelos empregos—da alfandega, principalmente. A unha negra do fado condemnava-os todos a uma sorte commum.

Outra garra, branca como o halito da locomotiva, novo idolo do tempo, chamava á conservação politica no seio da revolução economica, a gente séria de todos os lados, fusionada, abraçada n’um liberalismo pratico sem doutrinas, n’um catholicismo[Pg 359] tambem pratico sem exageros, n’uma religião de sala, perfumada, afrancezada, burguezmente aristocratica, n’uma moral facil, n’uma vida commoda, já que de todo não podia ser regalada.

E porque? porque apesar de quasi vinte annos de regeneração, o Thesouro teimava em se não encher, e era indispensavel moderar a furia com que pediamos emprestado. O povo «podia e devia pagar mais». Mais quando a Fusão, já inteiramente regeneradora desde 66 (9 de maio), reclamou impostos de consumo, os negociantes do Porto fizeram a Janeirinha de 1868. Houve a sombra de uma revolução, houve um terror palaciano, muitas phrases, ondas de cousas ridiculas, e por fim, como orgão da novissima democracia, o duque d’Avila primeiro, o bispo de Vizeu depois. A Regeneração acabava; a nova éra abria-se entre um baculo e um brazão.

NOTAS DE RODAPÉ:

[39] Voltou em 1892; e coube ao A. a triste sorte de proceder á execução. (3.ª ed.)

[40] V. Hist. de Port. l. v.


[Pg 360]

III
AS GERAÇÕES NOVAS

1.—A INICIAÇÃO PELO FOMENTO

Mas, emquanto todo o alto-pessoal dos partidos pouco a pouco se ia fundindo desde 51, até depois de 68 se constituir sob o nome antigo de regeneração n’um partido conservador, é mistér estudarmos o desenvolvimento obscuro, desordenado mas grave, das idéas que vieram substituindo a da Liberdade no espirito das gerações novas e nos projectos dos homens destacados dos partidos antigos, como José-Estevão sempre moço até á morte.

O primeiro em data dos homens novos, orgãos dos pensamentos modernos, é sem duvida alguma Fontes, cuja physionomia procurámos já esboçar. Imperialista por temperamento, engenheiro por educação, alitteratado por um resto de romantismo, e por indole portugueza; de resto sem malicia, prosaicamente crente na limitada capacidade ideal das sociedades, por não ter genio e por obedecer ás correntes da epocha; convictamente sectario da opinião dos economistas ex-sansimonianos, como Chevalier, que viam na producção da riqueza o segredo da fortuna dos Estados e nas associações capitalistas, n’isso a que chamou com razão feodalismo novo, o instrumento adequando do progresso: Fontes tinha na palavra juvenil um calor quasi[Pg 361] poetico, um enthusiasmo tão ardente que seduzia o temperamento de José-Estevão, em phrases de que, ao tempo, só os velhos se riam, e que hoje não é possivel deixarem de acirrar a ironia dos moços.

Eu já era fanatico pelas vias de communicação, sr. presidente; e, se fosse possivel passar uma lei para que a nação portugueza viajasse por tres mezes, estavamos salvos. (Disc. de 2 de abril de 56)

Isto seria ridiculo, se não fosse sentido. Sendo-o, prova apenas a natureza do genero novo da politica e a capacidade do cerebro do estadista. O caminho de ferro é para elle verdadeiramente, não um symbolo, mas a realidade do progresso. Correr a vapor, ganhar, trocar, gozar, que outra cousa é a vida?

Ceci tuera cela, dizia: porque Hugo substituira Cicero, da mesma fórma que os jacobinos tinham substituido os Prophetas pelos Romanos.

Se a imprensa pôde matar a architectura, como meio de traduzir o pensamento de um indivíduo ou de uma epocha,—porque não hade o caminho de ferro matar a estrada, como elemento da vida das nações e como ultimo fórma da civilisação moderna? (Vozes: muito bem! Disc. de 18 de abril de 56)

Este novo Antony da viação a vapor, perfumado, bem vestido, leão da moda, tinha expresso no rosto o retrato do novissimo romantismo. A poesia baixara de inspiração, de motivo, de estylo: era banal e vulgar como um empreiteiro endomingado nas salas aristocraticas invalidas. Parece que D. Pedro V lhe poz por alcunha o Dom Magnifico! A palavra do moço orador, passe-par-tout facil, verbosa, fluente, sem cunho de personalidade, já antes da importancia conservadora lhe impôr a reserva calculada,[Pg 362] afinava-se por todos os tons, possuia todos os dotes, sem se elevar em nenhum d’elles:

Tem um pouco do phantastico do sr. José-Estevão; do positivo e escholastico do sr. Avila; do sarcastico do sr. Cunha; e até do nebuloso do sr. Carlos Bento. Sabe retorquir ao sr. Avila com algarismos; ao sr. Antonio da Cunha com ditos picantes; ao sr. Carlos Bento com algumas phrases tumidas e bombasticas sobre a theoria transcendental do credito, ou sobre a philosophia hyper-critica dos carris de ferro. (Apont. s. os oradores parlam. 53)

Assim o avaliavam, não sem maliciosa ironia, os contemporaneos. E nós que ainda o somos, tambem lhe temos ouvido essa linguagem diffusa, sonora, longa, redonda, e banal, por custoso que seja dizel-o de um vivo. Nem uma imaginação colorida (como a José-Estevão), nem um talento verdadeiro (como a Cazal-Ribeiro), nem uma veia sarcastica (como a Souto-Maior), nem finalmente o saber especial e sufficiente ácerca do que se trata (como a Serpa ou Corvo), apenas a habilidade verbosa o distinguia. Subiu levantado n’um castello de palavras. Mantem-se n’um trapezio de embustes.

E á medida que a edade crescia, como lhe faltara sempre a paciencia e o tempo para estudar, o seu estylo baixava sem diminuir a sua facundia. Addicto sempre a esse velho culto, tradição e até certo ponto gloria da sua vida, a rhetorica levava-o a proferir phrases que, sem commentarios, soariam ao futuro como excentricidades de um burocrata maniaco:

E não ando todos os dias em caminho de ferro porque não posso; porque as minhas occupações públicas m’o impedem: aliás era touriste dos nossos caminhos de ferro.[Pg 363] Isto comprehende-se da minha parte porque propugnei por estas idéas; padeci muito por ellas! muito ... e nem eu quero dizer! (Disc. de 18 de jan. de 65)

Melhor era com effeito calar tão crueis agonias, depois de obtido o effeito rhetorico; e, se podesse ter supprimido a antiphona, não teria sido muito melhor ainda?

Acima do cavallo da diligencia está o tramway, acima d’este a locomotiva, e acima de tudo o progresso! (Ibid.)

Parece inventado, e não é.


É que se chocavam singularmente os moldes da rhetorica antiga com os motivos da vida moderna. Hymnos, antiphonas, acclamações, apostrophes, madeixas desgrenhadas, olhos em alvo, palmadas sobre o coração, diziam com a antiga ideologia liberal ou democrata: diziam melhor ou peior, mas não chocavam; avaliava-se o talento, a logica natural, avaliava-se tambem a sinceridade. Mas cantar o caminho de ferro em discursos rhetoricos pareceu sempre tão ridiculo como pôr em verso as machinas febrís. Fontes introduziu na politica este genero de litteratura, romantismo bastardo parallello ao do socialista Castilho que vinha resuscitar Dellile, Gessner ou Saint-Pierre para presidirem ás lettras nacionaes. A regeneração era moralmente, intellectualmente, um rifacimento. Era-se ainda romantico, por se não poder ser outra cousa; mas de um romantismo litterato apenas, exterior, janota: romantismo de sala, que não entrava na intelligencia, conquistada já pelo utilitarismo. Todos os[Pg 364] litteratos d’este tempo acabaram mais ou menos na Alfandega, ou no ministerio da Fazenda. Assim foi Serpa, o author de madrigaes: assim Sant’Anna; assim muitos, assim todos. A liberdade não era uma deusa, era uma menina que se namora:

Poeta da liberdade
Fiz d’esta nova deidade
A dama do meu pensar
Prostrei-me aos pés da donzella
Heide com ella e por ella
A minha terra cantar!

(Palmeirim, Poesías).

O chefe d’este neo-romantismo, entre burocratico e piegas, artificial, sem raizes no coração de uma gente prosaica ou devassa; o chefe d’esse romantismo, cujos derradeiros foram Chagas e Thomaz Ribeiro, «christão, portuguez e bacharel formado», (Prol. do D. Jayme, 2.ª ed.); o chefe de uma eschola arrebicada e pedante, foi Castilho, um velho Fontes da poesia!

Ao seu temperamento feminino ou infantil agradavam as ternuras doces dos Byrons do Terreiro-do-Paço; e, se lá no fundo tinha uma ironia aguda para os crivar de epigrammas antigos, vingando-se, não podia deixar de os lisongear, de os acolher, de os encher de louvores e mimos, chamando Isto a um, Aquillo a outro: um congresso de genios! A hypocrisia natural em sociedades que, tombando na chateza do utilitarismo, não querem confessar, por um resto de pudor esthetico, o americanismo dos seus sentimentos e motivos; esse estado de desaccordo da intelligencia moral, da esthetica e da pratica, reclamava o governo politico de um homem como Fontes, e o governo litterario de outro homem[Pg 365] tambem vasio de idéas, repleto de sábia poetica, um arcade como Castilho.

E se o primeiro cantava em discurso a «locomotiva, e sobre a locomotiva o progresso!» se o primeiro obedecia á corrente do Capitalismo moderno: o segundo, cantando a Felicidade pela agricultura, o Hymno do trabalho, obedecia á corrente do fourierismo; e ambos recebiam e davam a iniciação propria da edade do Fomento, nas suas duas faces.

Capitalismo, Socialismo, eis ahi, com effeito, o que se achava no fundo da Regeneração; sem que os nossos regeneradores tivessem uma consciencia nitida do que faziam e do que eram. Succede quasi sempre assim aos homens, e muito mais succedia então, quando tudo apparecia ainda confuso, indeterminado, n’um crepusculo de Liberdade ainda confessada, n’uma combinação ainda vaga dos elementos futuros das questões sociaes. Fourier, Saint-Simon, Owen, Cabet: capitalistas ou socialistas? As duas cousas a um tempo. Era o socialismo pelo capital: tambem na politica era a liberdade pela riqueza. E por cima da vasta confusão de idéas e preconceitos, de phrases ingenuas e astucias calculadas, havia apenas na sociedade portugueza um desejo ardente de paz, riqueza e goso. Os jovens politicos aprendiam corajosamente o can-can com as francezas do Jardim mythologico.

Esta consequencia immediata da iniciação do Fomento, apoz a longa historia das duras campanhas liberaes, levava a mocidade regeneradora a não presentir as inconsequencias das suas opiniões, nem o caracter ás vezes infantil das suas distracções. Emigrados da miseria, no dia da abastança não se fartavam de gosar; e no seio da paz, assim como as lettras eram uma distracção amena de homens graves,[Pg 366] assim o era a politica. Lisboa teve o quer que é de rococó burocratico e litterato, n’esses tempos doirados da mocidade regeneradora, em que,—como creanças perante um brinquedo, a locomotiva,—se via no Salamanca e na cohorte dos hommes d’affaires que desciam da Europa a faire-le-Portugal, uma aurora do futuro, sarjada de rails, com aureolas de clarões de fornalhas entre nuvens de um forte cheiro a sebo queimado.

Se Castilho tinha os seus saraus, onde os poetas de fartas melenas iam recitar peças lyricas ou hymnos trabalhadores, os politicos pisavam tapetes em salões celebres que recebiam de portas abertas uma pleiade de estadistas novos—os filhos da Liberdade! Os nomes conhecemol-os todos; mas talvez já não lembrem algumas das diversões interessantes das noites de comadres. Cada cavalheiro tirava á sorte a comadre, na quinta-feira propria; e cada comadre, uma dama, tinha uma divisa: Liberdade, Democracia, Joanna-d’Arc, Corday, a Padeira? Não: imagens de agora, vivas. Uma era a Prosperidade-publica, e saiu a Fontes; outra a Camara-dos-deputados, e saiu a José-Estevão; outra a Fazenda-nacional, e saiu a Cazal-Ribeiro; outra a Imprensa-periodica, e saiu a Sampaio; etc. (Rev. penins. Chron. fev. de 56) Não tivemos razão de chamar á Regeneração um cezarismo de secretaria?

Quasi vinte annos levou a dissipar-se (51-68) esse neo-romantismo da geração em que primeiro se enxertaram as idéas sociaes modernas, pelos modos e fórmas que esboçámos rapidamente. Outros modos, fórmas diversas: um neo-setembrismo, um socialismo platonico, a Iberia, a Republica, vieram entretanto invadindo os cerebros de outras camadas, e forçando as anteriores a congregarem-se definitivamente em partido conservador. Foi o que já vimos,[Pg 367] faltando-nos ainda estudar as novas influencias do periodo da Regeneração.

Depois de 68 nada ha que regenerar, ou todos regeneram de um modo egual. Depois d’esta epocha, e consummada uma tal ou qual restauração da riqueza nacional, todos apparecem convertidos ao opportunismo pratico. Não ha mais distincções de partidos, ha apenas grupos diversos. Não ha mais programmas, porque ha a liberdade pratica bastante e toda a ideologia liberal morreu. Os bandos politicos já não têem rotulos, basta-lhes o nome dos chefes: é o d’este, o d’aquell’outro. E uns succedem-se aos outros, até que ... Ponto. Não precipitemos o discurso.

2.—O IBERISMO

O leitor sabe que nos ultimos reinados da dynastia de Aviz a politica de fusão dos dois estados, já ao tempo unicos na Peninsula, inspirou por mais de uma vez a côrte portugueza.[41] Sabe tambem a deploravel historia da annexação de Portugal, e a da occupação castelhana, mais deploravel ainda. Em 1640 uma conspiração palaciana, com a protecção dos jesuitas e da França, restaura a independencia portugueza, levantando a dynastia de Bragança. No meiado do XVII seculo acontecia o que succedera no seculo XII e no fim do XIV: as tres dynastias portuguezas foram, nos seus primeiros periodos, o symbolo da independencia nacional.

Á maneira, porém, que com o tempo se obliterava a lembrança das crises successivas, renascia, com as complicações dynasticas, o pensamento natural da união. Assim aconteceu no tempo de D.[Pg 368] Fernando; assim desde D. Affonso V até 1580. E quando foi a crise peninsular, determinada pela invasão franceza, D. João VI, do Rio, onde se achava, viu despontar a perspectiva da união, e a côrte voltou a ser iberica. O duque de Palmella estava então enviado junto á Regencia de Cadix (1809-10) e dizia-se do Brazil que se o throno viesse a pertencer a Carlota Joaquina, uma esquadra iria leval-a a Hespanha, e essa solução teria «as vantagens de preparar e facilitar a reunião das duas monarchias». (Off. no Conimbricense, n. 3664)—Depois, na crise dynastica, determinada em Portugal pela morte de D. João VI, voltavam os planos ibericos.

A ambos os pretendentes se attribue o pensamento de resolver, por meio do iberismo, o problema em que se viam afflictos. (Port., seus gov. e dyn. op.)

Logo que a volta de D. Miguel em 28 levou Saldanha a emigrar, o Cid portuguez escrevia de Londres para o Rio a D. Pedro excitando-o, acenando-lhe com planos ibericos, conforme já vimos. (Liv. prim. I, 3) Em 31, regressado D. Pedro á Europa, e emquanto não havia ainda decisão assente sobre a marcha a seguir, Saldanha d’accordo com o general Mina foi a Londres convidar o principe para a empreza, a que Palmerston se teria opposto. (Carnota, Mem.)

Pensaria D. Pedro n’um imperio mais ou menos napoleonicamente liberal, herdando Fernando VII e expulsando D. Miguel? D’este, diz se, como já vimos, que no mais desesperado momento da guerra teria pensado em correr sobre Madrid, ao tempo quasi desguarnecida, tomal-a, e fazer causa commum com D. Carlos, então a ponto de vencer.

Qualquer que seja o grau de verdade d’estas allegações, é facto que, resolvida a questão dynastica em Portugal, vencedor o liberalismo, a sua[Pg 369] historia deploravel arraigou em muitos a opinião unionista. Palmella toda a sua vida dizem ter affirmado que «Portugal, depois da separação do Brazil, não tinha mais remedio do que unir-se á Hespanha». Do lado opposto, vimos Passos confessar na tribuna que o futuro nacional estava na união. A opinião do duque de Palmella firmava-se naturalmente na historia do paiz que vivera por quatro seculos da exploração de territorios ultramarinos, e que desde 20 se achava reduzido ao canapé europeu de D. João VI, porque o resto das suas colonias, armazem de escravos apenas, de nada valia desde que o tráfico dos negros era prohibido. As finanças nacionaes, exprimindo a ruina economica portugueza, eram o commentario eloquente da doutrina e a causa immediata mais grave das agitações da politica.

Chegaram as idéas de união a inspirar os actos das côrtes de Lisboa e de Madrid? Querem alguns que sim: o futuro o dirá, quando se poderem vêr os tombos das embaixadas e ministerios. Como se sabe, Portugal, alliado á Hespanha pelo tratado de 34 que expulsara D. Miguel, tinha mandado uma divisão com o conde das Antas auxiliar Isabel II a expulsar D. Carlos. No theatro da guerra, diz-se, o conde e o general Cordoba teriam projectado combinações, que dos seus gabinetes faziam tambem Mendizabal e o primeiro marido de D. Maria II. Esse principe morreu breve, mas a nossa rainha casou-se logo, e em 38 já tinha os seus dois primeiros filhos. Por casar ainda em 44 a rainha de Hespanha, accrescenta-se que adquirira grande acceitação a idéa de um duplo enlace de Isabel II com o herdeiro de Portugal, e de D. Luiz com a infanta hespanhola. (Borrego, Hist. de una idea, ap. Rios, Mi mision, etc.) O doutrinarismo vingou porém em Hespanha;[Pg 370] Guizot casou a rainha em 46, de modo a tornar provavel a successão de Montpensier ao throno; esteve a ponto de haver uma guerra; e, dissipada a esperança de enlaces dynasticos, veiu a intervenção hespanhola de 47 em Portugal terminar completamente este episodio da historia moderna do iberismo. (Rios, Mision)

Os emigrados que, ás centenas, o doutrinarismo hespanhol expulsava para Paris eram ibericos; e emquanto no exilio os progressistas do reino visinho punham a união no seu programma, em um canto afastado do mundo, em Macau, estava, consul pela Hespanha na China, D. Sinibaldo de Más que converteu ao iberismo o bispo portuguez. (Ibid.) Fôra isto em 50; e no anno seguinte deu-se a Regeneração, cuja physionomia moderna o leitor conhece.

O escasso ou nenhum valor que o utilitarismo dá ás idéas, a importancia exclusiva ligada ao fomento material estavam dizendo que a união encontraria adeptos entre os moços. Não seria a visão de um imperio poderoso, como o que D. João II planeara, como o que enchia democraticamente os sonhos de Passos. Era a demonstração rigorosa e exacta de quanto havia a ganhar, apagando as linhas raianas, unificando a economia, subordinando a rede da viação a vapor á geographia commercial da Peninsula, em vez de a torturar por motivos politicos. «Fraternidade, Egualdade, União, entre portuguezes e hespanhoes», trazia como epigraphe o livro de D. Sinibaldo, traduzido em portuguez e prefaciado pelo joven Latino Coelho. (A Iberia, por D. Sin. de Mas: tr. Lisboa 1853)

Os embaraços, com que então se luctava entre nós para levar a cabo o caminho de ferro de Leste, eram o motivo immediato para declarar urgente a[Pg 371] união que agora procedia de razões economicas, como se vê, sem se ligar a chimeras politicas, no genio de homens que tinham o espirito afinado pelo tempo. D. Sinibaldo dizia que se nós queriamos o caminho de ferro, adherissemos á união. Como? De um modo pratico e simples: casando o rei portuguez com a herdeira hespanhola, D. Pedro V com a princeza das Asturias, «construir-se-ha o caminho de ferro a Badajoz». (Iberia) Fontes passava por partidario d’esta combinação (Rios, Mision); e um dos publicistas mais graves e entendidos escrevia assim: «O paiz menor tem um varão reinante, o paiz maior tem uma princeza por successor ao throno». (Cl. Ad. da Costa, Mem. sobre Portugal e a Hespanha) Emquanto D. Sinibaldo se fixava mais sobre as condições de politica internacional, sobre as opiniões da geração nova, sobre as considerações de geographia commercial e politica, determinando já a capital—Santarem—ao mesmo tempo que desenhava a futura bandeira iberica quadricolor: Costa, o estatistico, alinhavava os algarismos, multiplicava os calculos para demonstrar as riquezas que nos viriam da união. Era um iberismo positivo, pratico, regenerador.

Mas com este novo espirito portuguez tinha-se tambem insinuado em Portugal um corpo de sentimentos modernos, ainda mal definido em idéas, mixto de socialismo humanitario e republicanismo cosmopolita, federalista: a atmosphera necessaria de idealismo que alimentava o espirito dos moços, formando a vanguarda dos partidos revolucionarios portuguezes de 51 a 68, forçando os regeneradores a tornarem o Fomento solidario da Conservação. Concebe-se facilmente como a semente do iberismo devia germinar em um solo bem preparado pelas idéas cosmopolitas e humanitarias, pois que estas[Pg 372] idéas, em vez de penderem para o lado dos antigos liberalismos, se alliavam á doutrina do fomento economico eivada de socialismo, democratico e não cesarista. Além d’isto o phenomeno singular do pessimismo portuguez, oriundo do caracter apathico do povo, justificado pela historia, corroborado com eloquencia pelas miserias presentes, conduziam a vanguarda da geração nova a vêr na solução iberica a conclusão natural da historia patria.

Latino, publicista imaginoso, artista nas idéas, no temperamento, no estylo, apresentava no seu prologo á Iberia as opiniões vagas e nebulosas da gente que, ligada partidariamente á Regeneração, como José-Estevão se achava ainda, se não satisfazia já com o mutismo politico regenerador. Latino via auroras para além do zollverein peninsular. Não via Fontes «sobre a locomotiva o progresso?» Mas o progresso do ministro era a riqueza apenas; e as auroras do publicista eram a Humanidade, uma Republica europêa, a Paz universal! «Se a federação europêa não é tão cedo possivel, não será mesquinho o nosso desejo, se aspirarmos á diminuição progressiva do numero dos Estados independentes.—A peninsula iberica que já formou uma só nação pela conquista, poderá, deverá ser um só paiz pela fusão espontanea». (Prol. da Iberia, anon.) Era tambem a opinião de Cazal Ribeiro que acclamava a Iberia, sob a fórma de uma republica federativa. (Rev. lusit. maio 53) Era tambem a opinião do moço, mallogrado Nogueira, (Fed. iberica, 54; ap Th. Braga Sol. pos. da pol. port.) que chorava sentidamente a nossa dolorosa situação: «Minha pobre patria! escuta a voz do ultimo e mais obscuro de teus filhos. Sacode essa nuvem de harpias que especulam com a tua passada grandeza, para se nutrirem em teu corpo[Pg 373] extenuado! Quando volverem dias mais auspiciosos lança-te resolutamente na vanguarda do movimento peninsular, onde tu e os teus briosos companheiros tens tudo a ganhar e nada a perder». (ap. Iberia, tr. port.) Tambem o prologo da Iberia dizia: «Portugal, só, como está, desajudado, moribundo, que poderá jámais tentar? Exhauriu-se de forças na lucta: precisa que lhe injectem sangue novo. É, depois da Turquia, o povo mais atrazado».


Podia este pessimismo agradar á Regeneração gloriosa, magnifica? Podia agradar-lhe a Iberia, quando o pensamento da união, democratisando-se, passava do segredo das secretarias para a publicidade dos papeis? quando, em vez de combinação de gabinetes e arranjo dynastico, se tornava a expressão de ambições revolucionarias, mais vagas, mais nebulosas, mais graves do que nunca? O fomento pugnava pró, mas não pugnaria contra a conservação indispensavel ao progresso da riqueza? E, se tudo isto era assim, não valia mais recuar, abandonando as esperanças dos caminhos-de-ferro vastos e geometricos, da futura Lisboa—outra Londres—para conservar a nossa pobreza e a nossa monarchia? Em Hespanha pensava-se outro tanto, antepondo-se á união a conservação, por medo das revoluções. E desde que, accordes n’esta politica, (V. Rios, Mision) os conservadores dos dois paizes abandonavam os planos de enlaces dynasticos, o melhor partido que os regeneradores podiam tirar do iberismo era o de usar d’elle como arma para condemnarem os revolucionarios novos, aos quaes afinal o tinham ensinado.

D’ahi veiu para nós uma situação que mais de[Pg 374] uma vez se tornou grotesca e sempre ridicula. D’ahi veiu inventar-se o 1.º de Dezembro, festa patriotica em que annualmente arremettemos contra os visinhos com bombas, foguetes, philharmonicas, e peior ainda! com discursos apopleticos de uma rhetorica plebêa. D’ahi veiu o ter-se assistido á queda de successivos gabinetes por esse labeu de iberismo explorado pelos partidos, lançado como uma pélla de um a outro lado, fazendo crêr que no meio de um odio universal á Iberia, todos em Portugal são ibericos! D’ahi veiu o accender-se no coração do povo passivo, e em proveito da intriga politica, um odio archaico, absurdo, talvez responsavel de futuro sangue innocente derramado, se um dia os vae-vens do equilibrio europeu fizerem com que a Hespanha nos conquiste. D’ahi veiu o ridiculo de uma nação fraca, mui governada, sem marinha, com um exercito indisciplinado, nem instruido, nem aguerrido, nem numeroso, com as fronteiras abertas, as costas por defender: de uma nação que não poderia resistir á mais pequena das invasões, dar ao mundo—se o mundo olhasse para nós!—o espectaculo ridiculo da fanfarronice mais disparatada. «Rrre ...benn ...too de fo.o.rça!» diz n’uma comedia hespanhola um portuguez, inchando-se, com as faces rubras; e os hespanhoes vingam-se não nos ouvindo, e chamando-nos amavelmente portuguecitos.

Tal foi a situação creada pela iniciação iberica de 53, depois aggravada quando a revolução de 68 fez da successão de Hespanha um problema. Renasceram, é natural, as combinações dynasticas; mas o iberismo, já ao tempo declaradamente federalista, era a revolução: não se repetia, pois, a historia anterior? Não eram forçados os conservadores a cohibir quaesquer ambições que tivessem, para[Pg 375] defender a monarchia, para se defenderem a si, para esmagarem os contrarios, explorando o patriotismo em proveito proprio, condemnando em nome d’elle a revolução que affirmava ser urgente renegar a nacionalidade? (Quental, Port. per. a revol. de Hesp.)

Mas antes que este segundo momento apparecesse para crear definitivamente a situação que desenhámos ha pouco e é a de hoje; antes, entre as duas crises, que attitude era a da Hespanha? Tambem na côrte de Madrid se sabia que a Iberia seria a revolução e a quéda dos Bourbons: como poderia haver planos de annexação? Os partidos conservadores, nos dois paizes (regeneradores, unionistas), tinham chegado áquelle triste ponto de nada, absolutamente nada, poderem fazer no sentido de melhorar a sorte do povo, pela razão de que toda e qualquer idéa fecunda era, e é,—a situação conserva-se a mesma—confiscada, apropriada a si pela opinião revolucionaria, atmosphera hostil que rodeia e paralysa. Se, portanto, em Hespanha existia um medo, não de uma invasão portugueza, mas do iberismo como arma revolucionaria, em Portugal havia-se já insinuado, generalisado no povo um odio a Castella, que aos conservadores convinha que houvesse, para com essa irritação, cuja falta de fundamento elles mais do que ninguem deviam conhecer, obterem a protecção decidida do paço e uma arma de parada para baterem as opposições.

Mas os conservadores portuguezes, excitando assim um sentimento anarchico para se servirem a si e á monarchia, foram réus de graves desvarios. Logo á morte de D. Pedro V o povo de Lisboa, choroso e commovido, misturou o iberismo no corpo de protestos com que exprimia a condemnação constante, ora tacita, ora expressa, pela ordem das cousas. Ha, sem duvida, uma pathologia collectiva sem o[Pg 376] estudo da qual o historiador jámais poderá iniciar-se no intimo dos sentimentos de um povo. As doenças mysticas do catholicismo do XVII seculo constituem um corpo de symptomas eminentes; e Portugal cujo organismo raros momentos gozou de uma saude perfeita; Portugal cujo ultimo ataque de febre monarchico-catholica nós estudámos em 26-33; Portugal que desde a implantação do liberalismo, ou em collapso não se movia, ou passava da inacção a alguma furia: Portugal apresenta um symptoma curioso para diagnostico ao medico politico. Todos os seus reis envenenados, todos os seus estadistas, burlões, eis a genuina opinião do povo, que qualquer póde obter interrogando-o. Envenenado D. João VI, D. Pedro sem duvida alguma envenenado, D. Maria II—quem o ignora? E depois de tudo isto, morriam D. Pedro V e os infantes (D. Fernando, D. João) envenenados tambem.

Envenenados morreram, com effeito, mas com os miasmas do charco de Villa-Viçosa.—Qual charco! dizia o povo; um charco sim, mas o dos politicos: o de Loulé que quer ser rei, acudiam uns; e outros diziam que não, affirmando terem sido o Salamanca e os socios para nos venderem á Hespanha. Assim, lavrando na imaginação popular, a semente do iberismo lançada pela iniciação do Fomento, tornava-se agora contra os que por interesse eram os adversarios da união iberica.

Nos tumultos do inverno de 61, por occasião das mortes na côrte, o protesto espontaneo do povo rebentou de um modo symptomatico, declamando absurdos, exigindo crueldades: querendo a cabeça de Loulé que para a guardar teve de fugir pelos telhados das secretarias; propondo-se saquear a casa de Salamanca, o que envenenara no almoço de Santarem a familia real na volta de Villa-Viçosa![Pg 377] (Nota de Valencia, 11 de nov. ap. Rios, Mision) Quem denunciava estes criminosos? Ninguem; todos. De quem é a voz que nas tempestades fala em trovões reboando pelas quebradas das serras? A turba, como as massas da electricidade, tem uma fala cujas expressões a ninguem pertencem.

Mas assim como a trovoada não vem sem causa, assim os clamores populares, embora absurdos nas palavras, teem um motivo intimo e grave. Já na historia houvera delirios, e sempre, no fundo da loucura, appareceram verdades. Tambem os allucinados no seu tresvario vêem longe muitas vezes. Ninguem envenenara os principes, ninguem projectava vender-nos a Hespanha. Loulé, em vez de burlão, era um homem de bem. Mas que importa? Alguem ha de ser o réu, alguem o objecto da nossa colera, do nosso mal-estar, da vaga consciencia da nossa miseria, e quem, senão quem nos governa?

Se o organismo portuguez tivesse ainda energia para se rebellar, o fim de 61 teria provavelmente assistido a uma revolução: mas não sabemos nós, acaso, que depois da Maria-da-Fonte a guerra de 46-7 foi já um combate de espectros? E depois d’esse episodio funebre, não viera a Regeneração medicar-nos com tisanas de scepticismo e caldos substanciaes de melhoramentos? Se o enfermo levantava cabeça, não podia ser ainda para pensar: era apenas a convalescença em que o organismo pouco a pouco se robustecia com a transfusão de sangue de libras inglezas, por emprestimos successivos.

Quando chegou o dia do rei D. Luiz se casar, e a Hespanha que, mais viva, estava proxima a ajustar contas com o liberalismo de Isabel II, viu que a noiva era a filha do piemontez já rei da Italia unida, temeu-se em Madrid que a tradição[Pg 378] da familia saboyana, o exemplo da outra peninsula meridional fizessem de Portugal um Piemonte hespanhol. Quanto injusto favor nos concediam! Que temerarios planos attribuiam ao nosso modesto rei, aos nossos estadistas timidos, mediocres! O embaixador que a Hespanha tinha em Lisboa apressou-se a dissipar os sustos palacianos:

O rei D. Luis é um joven sem experiencia, de curto alcance e pouco a proposito para dirigir um negocio de tanta consequencia. (Desp. do m. de la Ribera) Se me perguntasse qual eu creio que seja o caracter distinctivo d’esta sociedade, diria que é o de uma profunda prostração. Não temo que, no curso da politica, qualquer que ella seja, Portugal possa influir nos destinos da Hespanha. Não ha aqui nenhum dos elementos que se reuniram no Piemonte; não vejo partido bastante energico e poderoso para ter uma politica externa de verdadeira iniciativa; nem distingo em nenhum homem publico um verdadeiro homem d’Estado. (Desp. de Coello y Quesada, 5 de set. 64, ap. Rios, Mision)

Dissipadas as sombras de sustos, apertaram-se outra vez as mãos entre Madrid e Lisboa, contentes, esperançados, os Bourbons e os Braganças, os regeneradores e os unionistas, em que o espectro revolucionario da Iberia ficasse para todo o sempre mudo. De repente, porém, surge em Hespanha uma revolução (3 de outubro de 1868) que n’um instante expulsa a rainha, acclama Prim, e fica á espera de saber que destino ha de dar a nação. Republica? Monarchia? Iberia? Centralisação? Federalismo?... Depois a guerra assolou a França, abatendo o segundo imperio. As duas grandes nações latinas acharam-se desprovidas de governo, entregues aos vae-vens das opiniões partidarias, abertas a toda a especie de experiencias, como navios desgarrados de uma esquadra açoitada pelo tempo. Faltava a unidade de direcção almirante, e[Pg 379] dentro de cada nau o commando fluctuava á mercê do acaso ou da fatalidade. A Hespanha tentou uma monarchia e varias fórmas de republica. A França, gemendo, não se decidia á dar á luz fórma alguma conhecida de governo. Mas em Hespanha e França o socialismo appareceu sob a fórma de deploraveis revoltas communaes, eivado de preoccupações federalistas e demagogicas, cruel, rudemente esboçado em Paris e em Carthagena. Não eram, porém, mais nem menos violentas, sanguinarias e ridiculas do que as da Edade-media, raizes de um liberalismo burguez hoje acclamado por ser vencedor. Em França e Hespanha portanto a revolução, denunciada sob o seu novissimo aspecto, levou as classes médias a congregarem-se para se defenderem. D’ahi nasceram, nos dois paizes, governos analogos, egualmente opportunos, embora diversos como fórma: a monarchia para áquem, a republicana para além dos Pyreneus.


Com a revolução hespanhola de 68 o iberismo acordou por varios modos. Em outubro liam-se nas esquinas de Lisboa pasquins dizendo:

Viva a união iberica! Viva o sr. D. Luiz I chefe dos dois paizes unidos!—Ponhamos de parte estupidos preconceitos; portuguezes e hespanhoes são irmãos pela religião, pelos costumes, pelo idioma, e sobretudo pelo seu decidido amor á liberdade. Não percamos, portuguezes, a occasião que a Providencia nos offerece para nos engrandecermos, constituindo uma nação que será invejada de todas as nações do mundo, podendo dar leis a todas, sem de nenhuma as receber.—Viva a união iberica!

Esta proclamação, supposta portugueza, era provavelmente[Pg 380] hespanhola: forjada pelos emissarios que Prim, ao tempo, sabidamente tinha em Portugal. Se o general relesse os despachos de Quesada, quatro annos atraz, se tivesse genio para auscultar bem o temperamento do paço, do governo, e do povo, reconheceria mais cedo como perdia o tempo. D. Luiz nunca foi Victor-Manuel, nem Carlos-Alberto, nem Guilherme IV; Fontes não era evidentemente um Cavour, nem um Bismarck: menos o era ainda o duque d’Avila presidente da Janeirinha.

Por outro lado, Prim, nem tinha audacia nem força para fazer de nós o que Bismarck fez dos ducados do Elba. Mas a Hespanha necessitava um rei! Ainda a guerra alleman não destruira o imperio em França: uma republica seria um escandalo. Um rei! pelo amor de Deus, um rei! diziam afflictos de Madrid. E bem perto, em Lisboa, havia um, em inactividade temporaria, nos casos de servir. Mas casado! Dariam á Hespanha a condessa d’Edla como rainha? Por ahi a negociação falhou. (V. Rios, Mision) E tambem porque, embora allemão, embora já com filhos o rei portuguez, os conservadores viam no affinidade das dynastias um longinquo receio de iberismo. Appareciam graves folhetos sombrios (Corvo, Perigos; Duas palavras, etc.) pintando com sinceridade, ou sem ella, as ameaças imminentes. E acordar no povo o odio a Castella foi ainda, como sempre fôra, um meio de fazer opposição. Os regeneradores tinham agora a conquistar o poder ao reformismo da janeirinha, e para tanto, o melhor meio era chamar-lhe iberico e encher de sustos a cabeça do bom do rei.

E entretanto, nem o Bispo, nem Latino, nem ninguem era iberico; embora o reformismo tivesse laivos de republicano, embora Latino tivesse prefaciado o livro de D. Sinibaldo. Illusões tambem[Pg 381] passadas! A iniciação do fomento convertera as gerações novos, e os ideologos de 54 eram opportunistas em 70. Tambem os federalistas platonicos d’esses tempos passados eram conservadores de agora, como Cazal. O federalismo iberico, mais ou menos eivado de socialismo demagogico, era já em Portugal apenas o credo de uma minoria minima, sem valor politico de especie alguma. E passada a crise, restaurada a monarchia em Hespanha, a situação voltou o ser, com os partidos novos, o que fôra com os antigos. Conservadores de ambos os lados da raia: conservadores regeneradores, conservadores canovistas, conservadores progressistas, etc., etc.,—opportunistas todos.

3.—O SOCIALISMO

Esta doutrina saía mais directamente do que a idéa precedentemente estudada, do progresso material defendido pela regeneração. Os regeneradores não estavam de todo limpos da mancha socialista, como vimos. Chevalier, o mestre economista do partido, trouxera da egreja de Menilmontant para o mundo as maximas da economia sansimonista.

Mais do que ao iberismo ainda, porém, acontecia ao socialismo o que antes vimos succeder: abraçarem os revolucionarios a idéa, fazerem-na sua, obrigando os regeneradores a renegal-a, recuando cada vez mais, accentuando todos os dias o seu caracter conservador. O individualismo das antigas escholas e partidos finara-se, porém, como lettra morta; e quer cesarista, conservadora ou imperialistamente, quer democratica e revolucionariamente, «o melhoramento da sorte dos desvalidos da fortuna»[Pg 382] era uma preoccupação tão dominante dos espiritos, como n’outro tempo o fôra «a garantia dos direitos soberanos do individuo». Os socialistas francezes eram geralmente lidos. Os moços chegaram a ensaiar phalansterios. A classe dos engenheiros, nova em Portugal, com a sua educação mathematica, seguia os exemplos dos discipulos da eschola polytechnica de Paris. Commungavam n’um sansimonismo, mais ou menos accentuado, Carlos Ribeiro e Rolla, Garcia, Bettamio, Delgado, e Brandão, author da Economia social (8.º 1857) com epigraphe: Unicuique secundum opera ejus. Fourier apparecia como um precursor, Proudhon como um apostolo. Para além do presente entrevia-se um futuro doirado de fortunas.

Por acreditar na imperfeição e na perfectibilidade da raça humana, ninguem pecca por fourierista ou proudhoniario. A poesia romantica tem, não ha duvida, muito de socialista mas annuncia um socialismo mais sabido que ainda está por vir. A poesia é toda inspiração e vaticinio. A magia existiu antes dos caminhos-de-ferro, do gaz e do magnetismo. Dante viu as estrellas do hemispherio austral antes que este se descobrisse; Seneca vaticinou a descoberta da America; Eschylo no Prometheu a redempção; e Virgilio adivinhou alguma cousa da moral christan e até o progresso civilisador da Europa, extendendo por todo o mundo os seus costumes, o seu poder, a sua religião, a sua sciencia. (Rev. Peninsular, 55)

Isto era escripto commentando Espronceda, o author do Pirata e do Mendigo, o poeta néo-romantico que puzera nos seus versos todo o desespero, todas as ironias, todo o satanismo de uma alma já sem obediencia a nenhuma especie de authoridade moral, mas cheia de impetos e aspirações democraticas e socialistas.

Com effeito, a revolução das idéas approximara[Pg 383] estas duas opiniões; e se já não havia jacobinos, tambem ainda o socialismo não ganhara a expressão exclusiva, odienta, de uma guerra de classes, como partido de populani magros resuscitado da velha historia das republicas italianas. Uma atmosphera nebulosa de humanitarismo cheio de esperanças philantropicas envolvia as doutrinas revolucionarias: choravam-se as desgraças dos italianos, dos polacos escravisados; e a liberdade que para os passados fôra um criterio racional e a base de um systema de idéas, era agora invocada com um caracter mais de politica autonomica das nações, do que de soberania constitucional dos individuos. A republica seria a paz universal! Pouco importava, a ninguem offendia que as ephemeras republicas de 48 fossem tyrannas com laivos de communismo. Tudo isso era liberdade! Aos homens, educados pelo espirito jurista e pela critica de Kant, succediam os discipulos de Louis Blanc e de Lamartine.

Na camara portugueza—como as idéas correm, como as nações mudam rapidamente, n’este seculo revolucionario!—na camara portugueza, na sessão de 49, Souto-Maior, sem ser expulso nem apupado, defende «a nobre, santa e justa causa em que se acha empenhada a Italia inteira para constituir a sua liberdade, firmar a sua independencia, e estabelecer a sua unidade». E no seu jornal, Estandarte, o orador escrevia do papa: «Resumo de uma grande historia morta, póde ainda ser o symbolo de um grande povo vivo». A Carbonaria italiana, dirigida pelo mystico republicano Mazzini, alargando os seus ramos por toda a Europa, para fundar a republica universal e redemptora, infiltrara-se entre nós tambem com a sua alta-venda ou choça-mãe d’onde dependiam as vendas ou choças filiaes e as[Pg 384] barracas. Em Coimbra havia a choça de Kossuth, o hungaro. (M. Carvalho, Hist. contemp.) N’esta maçonaria novissima alistavam-se os moços, e d’ahi saía a direcção politica, republicana e democratica.

N’este estado veiu a Regeneração encontrar os elementos desordenados e fracos dos revolucionarios portuguezes; e os laivos de socialismo que n’elles havia fizeram com que ella em grande parte absorvesse a cauda moça do partido setembrista, já tambem eivada de doutrinas ou sentimentos cosmopolitas e philantropicos. Das vendas carbonarias passou então o foco da agitação revolucionaria para as sociedades operarias. Fundou-se em Lisboa o Centro-promotor. «As idéas societarias que desde 48 tinham ido calando no coração dos desvalidos da fortuna» inspiravam ao mesmo tempo os typographos que se faziam litteratos-politicos (Vieira-da-Silva, Albuquerque, etc.), os engenheiros mais ou menos socialistas (Rolla, Latino, Brandão), e os antigos setembristas que viam a urgencia de infiltrar idéas e sangue novo no partido. Ao theatro romantico de Mendes-Leal, heroes panta-façudos, homens-de-ferro com uma linguagem de medos, substituiu-se um outro genero: eram os homens ou as mulheres de marmore, dramas satanicos mostrando ao povo a corrupção dos ricos; eram as peças operarias, inspiradas pelas obras de Sand e Eugenio-Sue, em que o homem de trabalho apparecia heroe, luctando com energia e talento contra os crimes e preconceitos de uma sociedade madrasta.

Desgarrados, sem cohesão nem consistencia todos estes elementos revolucionarios, a Regeneração tendia a inclinar todos os dias mais no sentido revolucionario, á imagem do que succedia por toda a Europa latina.

[Pg 385]

Rodrigo, que a principio se apoiara no grupo setembrista da Revolução, foi pouco a pouco bolinando tanto no sentido opposto, que a presidencia official do partido passou de Saldanha para Terceira (no gabinete de 59). Já em 54 D. João de Azevedo escrevia de Lisboa a José Passos: «Conte que antes de pouco tempo muitas notabilidades do partido cabralista hão-de obter graças e mercês, porque a estrategia de Rodrigo está hoje posta n’isso.» (Carta, na corr. autogr. dos Passos) Assim tinha de ser. Que era a Regeneração, senão o utilitarismo cabralista sem doutrina? Que fôra o cabralismo, senão uma regeneração sem dinheiro nem scepticismo, só com doutrina e violencias? 48 levantara uma labareda, mas o incendio apagou-se rapido. A Polonia, a Italia, a Hungria ficaram quaes se achavam antes; a França restaurou o papa em Roma, e tolerou em Milão o austriaco. Depois dos dias de junho em que o socialismo de Paris foi esmagado, viera Napoleão III pôr um freio ás temeridades revolucionarias.

O romantismo politico, a que nós estudámos as duas faces successivas (1826-1838, Palmella, Herculano), finara-se de todo com uma revolução em que já entravam elementos de diversa origem.

O que caracterisa esse periodo é a grandeza generosa das aspirações, combinada com a indeterminação das idéas, um vago idealismo ou antes sentimentalismo que envolve e abraça, sem dar por isso, as maiores contradicções praticas e se lança no caminho das mais perigosas aventuras com um sorriso de confiança ingenua e quasi infantil. Este phenomeno de uma revolução sem pensamento explica-se pelas condições particulares do meio em que se desenvolveu.

Era em primeiro lugar um individualismo sentimental, ao mesmo tempo cheio de reivindicações e de effusões e que pretendia corrigir o egoismo das reclamações do direito individual com os preceitos moraes e poeticos da fraternidade.—Em[Pg 386] segundo lugar, a attitude determinadamente hostil das monarchias constitucionaes dominadas pela alta burguezia ávida e agiota, tornava-lhes imminente a queda sem que se podesse dizer que essa queda implicava uma verdadeira revolução porque as classes contra ellas insurgidas não tinham principalmente em vista destruir, no seu principio, o regimen existente, mas pelo contrario, entrar n’elle, apossar-se d’elle, alargando-o (pelo suffragio) até ás proporções da nova democracia.—Em terceiro lugar, finalmente a attitude das classes operarias vinha lançar no meio d’esta confusão intellectual e politica mais um elemento de perturbação, e o mais formidavel de todos. O Socialismo, tão mal comprehendido pelos seus adversarios, como mal definido pelos seus partidarios, foi transformado n’um monstro, o famoso espectro vermelho; e o terror abria caminho a uma reacção tão geral e irresistivel que arrastou comsigo não só o Socialismo, não só a Republica, mas ainda o proprio regimen liberal e todas as garantias legaes tão custosamente conquistadas.

O drama romantico veiu a dar por toda a parte n’uma conclusão tragica. A Hungria foi esmagada, esmagadas a Italia, a Rumania, a Polonia. Na Alemanha, na Austria, o cezarismo dissolve os parlamentos nacionaes, rasga as constituições que o susto lhe fizera jurar no primeiro momento de surpreza e estabelece solidamente e por muitos annos o regimen militar. Em França, d’onde partira o impulso revolucionario, o Socialismo, tornado a execração de todos os partidos, cae exangue nas barricadas de junho, e o movimento reaccionario, uma vez lançado, não pára sem ter destruido a republica, as garantias liberaes constitucionaes, humilhado a democracia, e sobre todas estas ruinas estabelecido o imperio conservador, ao mesmo tempo rural, militar, bancario e clerical.

Taes foram os resultados da evolução romantica. Mas a geração que a preparou e a consummou não podia prever taes resultados. A sua confiança era tão longa, como vastas as suas aspirações: e se aquella era infundada, estas eram generosas e alevantadas. Talvez nunca a historia registrasse uma tão completa catastrophe, saída d’um tal concurso de bellos sentimentos, de elevados intuitos, de personalidades brilhantes e heroicas. Os promotores e fautores d’aquelle movimento, os Lamartine, Ledru Rollin, Arago, Luis Blanc, Proudhon, Raspail, Mazzini, Garibaldi, Manin, Gagern, Rosetti, Bem, Kossuth, e todos os que indirectamente o prepararam, oradores, pensadores, poetas,[Pg 387] Lammenais, Michelet, Quinet, Hugo, Sand, Sue, Leroux, Mickiewicz, Gioberti, Manzoni, Cantu, Mamiani, Feuerbach, Heine, formam uma pleiade incomparavel pelo talento e pelo caracter; e não admira que, apezar do vago e do incoherente das suas doutrinas, dominassem tão completamente o espirito da geração que atraz d’elles se lançou fanatisada no caminho de inevitavel desastre. (A. de Quental, Lopez de Mendonça, no Operario.)

Em Portugal, varias causas concorriam para que a revolução de 48 não chegasse a nascer. Era o cançasso dos partidos, era a miseria da nação, era a influencia de Rodrigo, epilogo sceptico da historia liberal. Era tambem a circumstancia de que dos dois motivos do 48 europeu, o democratico já entre nós fôra ensaiado e ficara desacreditado em 36; e o socialista não tinha classes operarias fabrís bastante numerosas para o fazerem vingar. Em vez de uma revolução, tivemos uma Regeneração a que os revolucionarios como José-Estevão, Lopes-de-Mendonça etc., adheriram, conforme sabemos. Mas quando todos esses viram o partido novo tornar-se cada dia mais velho; quando assistiram ao accordo de Regeneradores e Historicos a favor das irmans-da-Caridade, que era a questão ardente, separaram-se, para fundar o Futuro, jornal, partido das aspirações vagas de um romantismo serodio cujo chefe era José-Estevão. A ausencia de numerosas classes operarias principalmente impedira antes a revolução, e impedia agora o nova partido de ganhar estabilidade. E como não chegou a haver lucta, não houve motivo para repressões: e como uma das causas da paz era a fraqueza, manteve-se a liberdade por não haver interesses nem motivos fortes em conflicto.

Opportunamente morreu o tribuno (nov. 4 de 62) que durante a vida não cessara de praticar nobres[Pg 388] actos inopportunos. Como typo e symbolo de uma geração que nunca chegou a ter voz, passou para o tumulo deixando os companheiros dispersos, entregues á desillusão, absorvidos pelos seus trabalhos profissionaes. Ao Futuro succedeu ainda a Politica-liberal; á Patriotica, o club do Pateo-do-Salema, d’onde saíu ainda a força bastante para em janeiro de 68 derrubar os conservadores do governo.

Veiu logo a revolução de Hespanha complicar a situação com esperanças republicanas e intrigas ibericas; veiu depois a guerra do Paraguay seccar a fonte dos ingressos de dinheiro do Brazil: tudo isto declarou em crise o resto das antigas esperanças.

Debandaram todos, cada qual para seu lado. Os excentricos ficaram esperando pela republica doirada; os praticos, ou se alliaram aos conservadores, ou se congregaram em reformismo opportunista. E as velhas idéas societarias? Tambem a iniciação do fomento influiu sobre ellas; mas a dureza do regime capitalista da burguezia, em vez de lhes fazer como a politica realista fazia aos romanticos: em vez de as reduzir a um pó de chimeras, obrigou-as a declararem-se em partido dos pobres contra os ricos, n’uma guerra de classes, anachronica de certo, mas ameaçadora. A Hespanha teve Carthagena, a França teve ainda a Communa de 71: nós tivemos umas gréves apenas, por não possuirmos sufficiente industria fabril.

Tal foi o caracter que o Socialismo tomou, sob o influxo do Utilitarismo, sem que se veja ainda que outro e melhor o espera. Dissipadas as chimeras, conquistadas as garantias individuaes, conferida ao povo uma soberania negada ao throno: crê alguem que tudo está feito? Espera alguem que esse povo, soberano e mendigo ao mesmo tempo, não reclamará uma revisão da legislação economica?[Pg 389] Perigosa teima será negal-o, porque as revoluções inevitaveis, se se não consummarem de cima para baixo, dar-se-hão ao inverso, de baixo para cima—como a labareda que sóbe crepitante!

4.—D. PEDRO V

Esquecemos, n’estes successivos relances, o throno. E entretanto em Portugal nunca deixou de haver monarcha. Depois de D. Maria II, matrona antiga coroada, veiu o rei-artista, cezar sem amor á guerra; depois D. Pedro V; por fim o rei actual. O seu finado irmão era um romantico posthumo. Contava dezoito annos quando subiu ao throno (n. 16 de set. de 37; r. 55) e com um temperamento observador, grave, desde creança o foram impressionando os episodios deploraveis da historia d’esse tempo. Tem o leitor presente a memoria de D. Duarte, o infeliz rei, tão sabio, tão bom, tão cheio de terrores e de escrupulos? Foi como elle D. Pedro V «esse pobre rapaz» que o destino condemnara a ser principe. Já não estava nos usos consultar bruxas e adivinhos, mas o rei tinha em si o feitio de espirito que pede milagres. Considerava-se predestinado, ao inverso de D. Sebastião, para um fim breve e funebre; via-se coberto de terra, mettido n’uma cova, imagem viva da morte, fatalidade ambulante movido por uma sina triste. Era uma saudade, a sua alma; e o coração, batendo, parecia-lhe um dobre de finados! Saudade de uma honra esquecida, dobres pela morte de um povo desditoso? Symbolo de uma nação cadaver, considerava-se, elle rei, minado por todas as pestes. Roía o um remorso inconsciente que o fazia apparecer bisonho e triste, com um sorriso doentio na face, a mudez nos labios, no olhar o quer que é de somnambulo. Interpretando[Pg 390] os acasos com o seu fado, explicando tudo pela sua sina, achava em si a causa de muitas desgraças. Quando o patriarcha voltava de o baptisar, partiram-se-lhe as rodas da carruagem e caíu ... Aos dez annos, já o principe tinha pesadelos que o faziam scismar: uma grande aguia negra tomava-o nas garras, levantava-o ao ar, deixando-o caír e despedaçar-se ... A aguia tornava a subir levando para os ares o mano Luiz ... Tinha então dez annos e contava os terrores ao seu mestre. (Bastos, Mem. bio. de D. Pedro V) Depois chegou a crer que matava o que tocasse. O general Loureiro morrera de apoplexia? porque elle o affligira com certos ditos. D. Carlos de Mascarenhas morrera? porque elle o obrigara a um passeio excessivo. E o Curso-superior, o filho do seu amor ás lettras, era baptisado com o cadaver de D. José d’Almada, com a loucura de Lopez de Mendonça! (Andrade Ferreira, Vida, etc.) Tragica figura de um rei que se acredita a má sina do seu povo! Não seria ella o summario de uma historia miseravel, o symbolo de uma nação pobre, o espectro de um povo caduco? Não viria como resultado de trinta annos de miseria, lentamente cristolisados n’um cerebro impressionavel, definir com o seu genio a epocha?

Se ás superstições funebres se póde achar esta razão de psychologia historica, não é mistér appellar para tão longe quando se observa o outro lado do seu caracter. Com olhos de pessimista, e esses eram os bons olhos para vêr Portugal, tinha em tanta conta os que o rodeavam, cria tanto n’elles, que mandou pôr á porta do seu palacio uma caixa-verde, cuja chave guardava, para que o seu povo podesse falar-lhe com franqueza, queixar-se, accusar os crimes dos governantes. Singular modo de conceber o seu papel de rei de uma nação livre,[Pg 391] parlamentar! Os ministros que não escarneciam d’elle, principiavam a temel-o; outros a odial-o. O povo começava a amar a bondade e a justiça de um rei tão triste. Já corria de bocca em bocca a lenda do novo monarcha: um infeliz! E o amor não era feito de esperanças, mas de presentimentos funebres e de uma consciencia certa da fatalidade commum do povo e do rei. «Se elle podesse!» Mas entre elle e o povo simples havia de permeio os politicos.—«Como o rei é justo, bom e nobre! Nem quer que lhe beijem a mão, nem que dobrem o joelho, nem quer matar um só criminoso, o santo! Se não fossem os politicos!» E esta corrente de intimidade entre o povo e o rei cresceu a ponto de se chegarem a formular votos pelo absolutismo. (Th. Braga, Hist. do rom.) A alma espontanea dos povos latinos, idealistas, sem os calculos, as reservas, os planos de outras raças, só acclama os factos simples: é inaccessivel ás fórmulas. Quem no meio-dia quizer ser grande, seja forte, seja rei: Pombal, D. Miguel, Saldanha ainda, ou seja um bom pae, um bom protector do povo!

Como o seria porém D. Pedro V, se se acreditava marcado por uma estrella funesta; se, fumando como um estudante o seu cigarro, ouvia a licção do seu mestre Herculano, licção em que ás fórmulas liberaes-romanticas se juntava o ensino de uma reprovação universal—dos politicos, um bando; do povo, um desgraçado? As fórmulas sabias murchariam a flor da ambição, se ella viesse a desabrochar, porque as jeremiadas do propheta enraizavam na alma do rei o seu pessimismo. Como que abdicava, instruindo-se; e, em vez de se entregar ao officio proprio do seu posto, velava as noites a estudar, os dias passava-os aferindo a realidade por uma historia vista com oculos de metaphisicas nebulosas,[Pg 392] de idealismos mysticos. Parecia um monge somnambulo; mas a mocidade, a virtude estampada no seu rosto, ganhavam um encanto de melancholia com essa perda das noites veladas. O dia, a luz do sol, a realidade, os homens, tudo então se lhe affigurava um sonho: pesadelo triste, a sua má sina! Quando não era funebre, era ironico, epigrammatico: o seu reino parecia-lhe o peior da Europa. Lera o livro de About La Grèce contemporaine, e annotando-o, poz no titulo: La Grèce—et Portugal.

Ora Portugal já por fórma alguma era como a Grecia contemporanea. Fôra-o sem duvida, mas desde que o espirito pratico vencera em 51, conquistando a si o primeiro dos palikaras portuguezes, Saldanha, todas as ambições nacionaes estavam tornados para uma Beocia antiga, farta de cearas. O genio do rei não chegava a conceber um ideal tão mesquinho, e só via o passado, com os olhos cégos para o futuro iniciado. Elle era o fim de uma historia, o epilogo summario de um tomo, inserido por erro depois das primeiras paginas do livro seguinte. Por isso lhe chamámos posthumo. Considerava-se a si um nuncio da morte e via moribundo o seu povo. Estimaria que o caminho de ferro se fizesse com inglezes «para metter sangue novo nas veias d’esta raça atrophiada». Como se sabe, os operarios cruzam com as camponezas e o caminho de ferro ia atravessar o reino em dois sentidos. Singulares, dramaticas deviam ter sido as conversas entre o mystico principe e o Salamanca, o aventureiro audaz das novissimas emprezas que se propuzera regenerar Portugal. O embaixador que as ouviu, apresentando ao rei antigo o moderno barão da industria e do banco, dizia que para descrever bem a acena «seria necessario la pluma de un Cervantes.»[Pg 393] Salamanca, soccarron, affectando gravidade na sua face castelhana, como um Gil-Blaz, ouvia D. Pedro que queria lucir-se. O picaro confessava a sua ignorancia: nem era philosopho, nem sabio! um homem-de-negocios, senhor! E D. Pedro V contava-lhe a nossa pobreza, a incapacidade de sustentarmos caminhos de ferro, filiando estas opiniões tristes no quadro lugubre da decadencia das raças latinas. Saindo, o emprezario sagaz, que estudando um doente vira um homem, disse para o embaixador companheiro: «Deus nos livre de que este rei tivesse os meios e o valor das suas convicções.»

De casa do filho, foram ambos a casa do pae. Que mudança! Tambem Salamanca era artista, tambem apaixonado pelo bric-à-brac, derradeira poesia dos scepticos; tambem sybarita, viveur aristocratico, distincto, palaciano. «Parecian hechos el uno para el otro». Viram os museus, commentaram as faianças, os charões, as porcellanas, os quadros, rindos como gréculos. O pensamento de ambos, inconscientemente, nadava na expressão classica do papa da Renascença: Quod commoda da Deus nobis hœc otia, Christi! «Quedaran encantados.» E para rematar a amisade, o rei D. Fernando fazia indirectamente a apologia dos povos latinos, confessando o seu desamor pelos inglezes que maltratava. (V. Desp. de Pastor Dias, 10 dez. 59 ap. Rios, Mision) Triste engano do acaso, que invertera o lugar proprio das pessoas. O pae devia ser o rei; o filho o principe que, sem os cuidados do throno, acaso teria tido, no Portugal novissimo, o papel de D. Henrique no de Aviz—o papel de um iniciador na sciencia!

[Pg 394]

Quem se não lembra de ter visto o rei, attento como um discipulo, a ouvir nas salas do seu Curso as lições dos professores, com o aspecto grave, a mão cofiando o pequeno bigode, denunciando a actividade do seu cerebro? Porque lhe não concedia a sorte viver a vida para onde o seu genio o chamava? Porque a sua sina era perdida e uma estrella má o condemnava a elle a reinar, e ao reino a padecer as consequencias de um destino cruel. A bofetada que a França nos deu, vindo buscar armada ao Tejo o negreiro apresado em Africa, arroxeou-lhe a face, e o rei chorou afflicto. Veiu uma epidemia de cholera em 56; outra de febre-amarella em 57; veiu a irritação cruel das irmans-da-Caridade. As desgraças, os embaraços teciam a rede de malhas cerradas em que se lhe afogava a existencia; sem lhe occultar, mostrando-lhe sempre, fatidica, a estrella má do seu destino.

Quando um sceptico tem superstições—contradicção só aparente, e de resto vulgar, do espirito humano—não reage, obedece; não resiste, cae. Quando ellas atacam um mystico, fortalecem-no com uma coragem transcendente. D’ahi veem os monges heroicos, stylitas e outros. A alma de um santo que havia em D. Pedro V, retemperada pelo estoicismo aprendido nas licções de sua nobre mãe, mostrou-se quando Lisboa dizimada o via passar nas ruas, visitando os enfermos, caminhando para os fócos do contagio, como um Isaac para o sacrificio biblico. O amor do povo tornou-se então uma paixão; e corriam as anedoctas com que a imaginação popular cristallisa os heroes. Mandara a um medico medroso descalçar a luva para tomar o pulso ao enfermo. E se Portugal já tivera em D. Sebastião um rei Arthur, não é verdade que se formava uma lenda, diversa sem ser menos bella: a[Pg 395] lenda da santa rainha de Hungria, ou do rei santo de França? Nas pestes milanezas, o Borromeu ganhou a canonisação; nas de Lisboa, D. Pedro V foi canonisado pelo povo. E quando, quatro annos depois, morreu, na aureola da caridade o povo engastou palmas de martyrio.

Nas angustias d’esses dias afflictivos, o moço, infeliz rei achar-se hia bem, sem o crer, sem o pensar, sem o sentir. Assim a cevadilha só floresce nos terrenos da malaria. Assim os maus só crescem no seio da pravidade. Tambem os temperamentos funebres, com o espirito feito de presagios, se prazem no seio das desgraças. Ellas vêem como confirmação dos presagios. E nada aflige mais o homem do que a duvida, quando o que o rodeia não obedece ao que pensa, ou ao que sente. Como não viria a peste, se a estrella do rei era mortal? Cumpria-se o fado da sua existencia. Os presagios não mentiam; o seu coração falava verdade. E esta affirmação externa do seu sentimento intimo, afogava-o mais, cada vez mais, nas suas superstições funestas, no seu pessimismo ingenito.

Em taes momentos, os temperamentos como o de D. Pedro V raras vezes caem: quasi involuntariamente requintam. Formula-se então em doutrina o que era apprehensão. O acaso, segredo ou mysterio do Universo, torna-se Providencia; e, quando se é christão, por via de regra, entra-se nos moldes conhecidos, que tantos mysticos formularam, desde Alexandria até Manreza. A religião arde como chamma a que se dá, em novo combustivel, a somma de apprehensões coordenadas. Era D. Pedro V christão? ou apenas deista á moda romantica, isto é, reconhecendo no christianismo a mais pura fórma de deismo até hoje concebida? Não sei. As licções de Herculano, os livros modernos da sua leitura[Pg 396] deviam ter abalado a sua orthodoxia; mas os espiritos romanticos, na inconsistencia das doutrinas, na poesia dos sentimentos, conservavam sempre aberta a porta para o arrependimento. E tantos foram os que, penitentes, se curvaram beijando a terra: tantos, tão dignos, tão nobres, obedecendo tão espontanea e sinceramente, que hesitamos em dizer se o rei teria ou não sido um d’esses.

A occasião levava a um tal fim a vida moral de D. Pedro V, quando o casamento (18 de maio de 58) trouxe para o seu lado uma rainha piedosa, candida, pura, como anjo que vinha, entoando os canticos da Egreja, acompanhal-o a bem morrer, ou mostrar-lhe, apparição fugitiva, vaporosa Beatriz de religioso encanto, o paraiso que o esperava depois da selva escura da existencia terrestre. Tinha vinte e um annos Dona Estephania, (n. 15 julho 37) quando casou com o rei que contava edade egual. Eram duas creanças? Não; apesar dos annos. Porque a elle a imaginação tinha-lhe feito viver já uma longa existencia de pensamentos, presagios e angustias; e a rainha desde creança vasara toda a sua bondade angelica nos moldes da devoção catholica. Apesar dos annos, pois, eram ambos, em moços, como se já fossem velhos; e a edade juntava ao encanto d’esse par tão nobre, tão cheio de sympathia. Ella tinha retratada a candura da sua alma na suave expressão de um rosto meigo; e o rei, no aspecto carregado, mostrava a força do seu caracter, a tristeza do seu espirito. Um presentimento tragico assaltava quem os via passar nas ruas da cidade: nenhum dos dois parecia bem d’este mundo—elle uma victima expiatoria, ella um anjo custodio!

A devoção da rainha e a superstição do rei davam de si uma authoridade espontanea á primeira[Pg 397] no espirito do segundo. Era então o tempo em que a questão das irmans-da-Caridade, complicada com a politica, se tornara um espinho irritante; e a rainha devota e o rei funebre começavam a ser accusados de clericaes e ultramontanos. Com effeito, nenhum dos dois fôra feito para o throno. Tinham demasiada virtude, ambos, para reinar em qualquer dos nações latinas, sobretudo em Portugal. A sua sinceridade não era comprehendida, e arriscava-os a soffrer as consequencias de uma politica desalmada.

D. Estephania morreu a tempo (julho de 59), antes que se desmanchasse ás mãos duras de quem não tinha coração para a amar, a cristallisação poetica formada no espirito do povo sensivel com a sua formosura angelica, com a sua devoção ingenua, com a sua caridade fervente. Morreu, e ainda bem! É como quando no meio da charneca desolada e secca, fatigado, o viandante depara com um puro arroyo cristallino, e bebe: assim nos acontece a nós deparando com um typo de candura e poesia na vasta charneca de urzes d’esta historia. Que importa morrer? Mais vale que o arroyo logo se perca, sorvído por alguma fenda ... Se corresse e seguisse atravez do chão empoeirado, não é verdade que as suas aguas se haviam de sujar, misturando-se com as gredas do solo e as folhas podres das urzes?


Mas o pobre rei, mais a sua sina fatal, quando se viu só, depois dos breves mezes de casado, mais se enraizou ainda nos seus presagios. Era a morte, elle que matava tudo o que tocava. Via-se já nos ares arrebatado pelo aguia negra dos seus pesadelos. Sentia sobre si o peso de muitas vidas ceifadas;[Pg 398] e, chorando, lamentava o seu triste isolamento. Não estaria cumprido ainda o seu fado? Que novas desgraças havia de causar? Quando lhe seria dado terminar o seu desterro d’este mundo, para ir n’um céu, visto em sonhos, sentar-se ao lado do anjo que para lá fugira? Como uma pomba branca voando breve no horisonte da sua vida, tocando-lhe com a aza a face a dispertal-o dos seus sonhos tristes, assim passara a idolatrada rainha, assim fugira, assim desapparecera no seu vôo. De longe, accenava-lhe agora. Era a Beatriz dos seus pensamentos mysticos: não uma Laura de amores humanos.

Assim um novo motivo de tristeza se juntava aos anteriores; assim tudo ganhava um caracter fatidico para o espirito do rei. A fatalidade estava n’elle, e não nas cousas. Quando um relampago azulado illumina a noite, tudo nos apparece azul. Caía triste o outomno de 61: havia dois annos que D. Estephania morrera, quando o rei e os principes foram a Villa Viçosa caçar, e voltaram de lá envenenados pelos miasmas de um charco dos jardins. Eloquente symbolo, porque os miasmas do charco portuguez eram o veneno que o rei tragara no berço e lhe fizera da vida uma enfermidade chronica.

As mortes galoparam rapidas como na ballada de Burger. Caíu primeiro o joven infante D. Fernando, e o rei tinha a certeza de morrer tambem. Já no leito ardia com febre delirante. Em frente do palacio, fundeada no rio, a corveta Estephania de espaço a espaço soltava um tiro—como o bater do relogio lugubre da morte. E esses tiros ouvia-os o rei, chamavam-no, excitavam-no, davam-lhe os desejos de acabar por uma vez com a vida miseravel, para ir abraçar no céu a Beatriz do seu delirio. Se a voz dos anjos podesse ser o troar dos canhões, não era ella que o chamava? Talvez;[Pg 399] porque os tiros chegavam á camara do rei, já brandos, como um ecco, um murmurio, e vinham do navio que tivera o nome d’ella—Estephania! Seguidos, constantes, infalliveis como um destino, repetiam-se; e o delirio do rei, interpretava-os: eram vozes! A sua vista conturbada já perdera a noção da realidade; e vivo ainda, já se julgava transportado ás regiões sonhadas n’uma longa existencia de vinte annos ...

Dizem que na agonia murmurava os threnos de Dante:

Per me si vá nella citá dolente ...
Per me si vá n’ell’ eterno dolore ...

No largo do palacio o povo espesso, na sua afflicção, dividia-se entre as lagrimas e as coleras. Era um espectaculo antigo, como quando outr’ora, nos seus pequenos reinos, os reis eram paes, protectores, quasi idolos. A um povo desgraçado, a desgraça do rei apparecia como symbolo dos proprios infortunios; e a crueldade de uma estrella funesta tinha o condão de ferir ainda a alma de uma gente já descrente e scepticamente regenerada; tinha uma virtude que decerto não teria tido o talento, a audacia, a ambição de um rei heroe. A morte no paço era symbolica, e a turba obedecia inconscientemente a um d’esses movimentos de psychologia collectiva, tão mysteriosos ainda. A morte no paço era o symbolo da morte no reino, e por isso, repetimos, na sua afflicção, o povo dividia-se entre as lagrimas e a colera. Os olhos choravam a sorte do rei, a sorte de todos! e o sangue pulava nas veias contra os réus do assassinato—do rei? da nação? Envenenadores, salteadores, burlões, homicidas!

[Pg 400]

Quando finalmente se soube que D. Pedro V tinha expirado (11 de novembro de 1861), o clamor das coleras reunidas soltou-se, extravagante, absurdo, cruel, mas inconscientemente justo, como é sempre o povo em massa. O symbolo do Juizo-de-Deus, grosseira expressão de um mysterio de electricidade popular, via-se no calor com que pelas ruas, n’essas noites attribuladas, a turba corria proclamando a sentença final de uma historia miseravel. Partiam ás pedradas as vidraças dos palacios dos grandes, pediam as vidas dos ministros, tombavam da sua carruagem e deixavam por morto na estrada o typo dos amoucos do palacio. Todos eram réus.

Tinham envenenado o rei! Tinham envenenado tudo! Tinham roubado, tinham vendido, tinham retalhado o povo, o reino, a fazenda, e a nossa miseria era a consequencia dos seus crimes. Agora este queria para si a corôa, aquelle queria vender-nos a Castella: queriam todos a desgraça do povo. Havia ahi partidos? Não; esse clamor provocado pela morte do rei martyr era uma condemnação total, universal, espontanea! Era um ultimo adeus ao ultimo dos reis amados, um dissolver da monarchia, em lagrimas tristes, soluçadas!

Objectarão os homens seccos que umas companhias de tropa bastaram para emmudecer as vozes desvairadas da turba. É verdade. Nem de outro modo podia ser. As revoluções não saem dos tumulos. As covas provocam lagrimas e arrancar de cabellos. Mas o que á historia importa agora, não é a força d’essas turbas afflictas, pois sabemos todos por que vias a nação chegara a sentir cravada em si a estrella fatidica do rei; pois sabemos todos que pessimismo intimo, que desesperança absoluta, que vaga tristeza, que anemia organica, a historia de[Pg 401] meio seculo nos trouxera. Não é pois uma força que todos sabemos extincta, é o caracter do protesto, é a natureza dos clamores condemnando a côrte e o governo na sua totalidade, os partidos, os estadistas e a historia: é esse caracter singular que tem para nós uma gravidade reveladora ...

As companhias de tropa acalmaram a turba; e quando se fez o enterro, só já se ouvia o sussurro languido dos soluços. Cem mil pessoas estavam nas ruas. Tambem o azul do céu de Lisboa entristecera, tambem se cobrira de dó n’esse dia nublado e triste; tambem chorava lagrimas, ennegrecendo com chuva o basalto das calçadas. «Deus mandou a chuva, para até as pedras vestir de luto!» diziam mulheres carpindo. E todos ouviam os soluços murmurar, como se ouve o bater das azas quando passa nos ares um bando. Eram esperanças, aladas, brancas, fugindo tambem, voando!

NOTAS DE RODAPÉ:

[41] V. Hist. de Port. (3.ª ed.) II, pag. 42-5.


[Pg 402]

IV
CONCLUSÕES

1.—AS QUESTÕES CONSTITUCIONAES

Com o finado rei desappareceram as irmans-da-Caridade. O successor expulsou-as, liberalmente, sempre em nome da liberdade! e seccas as lagrimas, esquecido o passado, rasgados os crepes, tambem o throno se entregou nos braços da Regeneração. Na côrte onde reinara o mysticismo devoto, reinava agora catholicamente ao lado do monarcha, por esposa, a filha do rei excommungado da Italia: sempre fieis á religião! N’um systema de fórmulas, mais do que nunca vasias da realidade, liberalismo, catholicismo, que são? Hypocrisias inconscientes de quem não tem na alma a força, nem na mente a capacidade de conceber e defender idéas. Velhos bordões rhetoricos, politicos, ou como escoras de madeira carunchosa, pintada para illudir, aguentando o edificio desconjuntado.

Em 68, como já vimos, houve a sombra de uma revolução contra a sombra de uma tyrannia. Embuçada logo ao nascer pelo duque d’Avila, veiu com o tempo achar no bispo de Vizeu o seu definidor. Singular povo! singular revolução! Já se pensou bem no valor psychologico d’esse movimento? Que reclamava, que promettia, que applaudia? Negação tudo.

[Pg 403]

Nem uma só palavra affirmativa. «Moralidade, economias!» Esse programma patenteava o vasio, porque nenhum partido jámais prégou a corrupção nem o desperdicio. Mas praticavam-nos ambos, os regeneradores? Era pois uma questão de homens, nada mais.

Não paremos, comtudo, aqui. O pessimismo constitucional do caracter portuguez via tambem no Bispo outra cousa: um bota-abaixo! Os derrocadores foram os unicos homens acclamados pelo povo, desde que em 1820 se declarou a crise: por esta razão simples de o povo ter a consciencia da podridão universal. Além d’estas negações que havia? No Porto, uns mercieiros lesados pelo imposto do consumo, que se cotisaram para fazer arruaças; em Lisboa uns conspiradores platonicos que, apesar de já terem distribuido entre si os cargos da republica, se declararam satisfeitos com a quéda da Regeneração. O duque d’Avila preenchia bem o lugar de porta-voz da revolução! N’esta éra nova iniciada, o duque tornou-se a bomba-de-choque para amortecer a violencia das transições.

Veio a revolução de Hespanha complicar as cousas de um modo subito; veiu a guerra brazileira, baixando o cambio, seccar o rio de dinheiro que annualmente vasava no Thesouro para o alimentar a elle e nos sustentar a nós. Aggravaram-se as cousas, cresceram os perigos: a nação pedia um demolidor! Bota-abaixo! Mas como ninguem sabia que pôr em lugar do existente, o sentimento acclamador do Bispo era uma gritaria van de gente possidonea, e consolava os conservadores vingados. Demolir é facil, mais duro o construir. Derrubar paredes arruinadas, qualquer hombro o póde; mas levantar novos muros com os materiaes velhos, ninguem. E que nova materia-prima existia? Nenhuma. Homens?[Pg 404] Zero. Idéas? Menos. O fundo do sacco das fórmulas liberaes era pó. Nós tinhamos já vasado tudo; e depois de tudo isso já Rodrigo, mostrando o avesso com uma careta, como um arlequim n’um tablado de feira, viera dizer, «meus senhores, peça nova!»

Agora os discipulos, seguindo o mestre, voltavam. Pois que querem? Falta ainda alguma cousa á Liberdade? Pois ha, devéras, omissão? Querem reformados os Pares? Porque não? Suffragio universal? Tambem. E viu-se os conservadores fazerem o que a revolução não fizera; viu-se alargar o direito de suffragio, sem que longas, prévias campanhas o exigissem. E ninguem o exigia, porque já passara o tempo em que se esperava nas alterações de fórmulas. E fizeram-no os conservadores, porque tinham visto em França Napoleão dar-se bem com isso; e sabiam que quantos mais camponios votassem, maior seria o poder formal—e positivo, pois fórmulas, apparencias são tudo—de cada um dos barões ruraes, de cada um dos senhores da finança que nas cidades compram a dinheiro os votos da plebe. Desde que no espirito d’essas plebes a loucura setembrista se acabara, que perigo havia em lhes dar a soberania? Nenhum, de facto; só a vantagem de bater o inimigo reformista com as suas armas, e consagrar mais uma conquista da liberdade.

Este facto curioso mostra ao critico uma das feições da apathica physionomia nacional. O leitor sabe que 33 não saíu do sangue da nação, como um 89. Foi uma conquista á mão-armada, que substituiu a classe governativa do reino. No decurso da historia que narrámos, o facto da separação do governo e do povo cresceu com o descredito do primeiro e com a miseria do segundo, até que Rodrigo veiu confessar que «comprando-se feitos deputados[Pg 405] e casas» era tudo uma comedia; até que o povo, percebendo-o, poz de banda o bacamarte de guerrilheiro, deitando-se á enxada e esperando em casa o politico, para lhe pedir estradas, isenções de recruta, e uns cobres pelo dia perdido com a Urna. Consummado este accordo tacito, houve logo paz e liberdade. Os politicos bulharam de palavras: já não havia guerrilhas; e o povo deixou fazer leis sobre leis em Lisboa, sem dar por isso. Cada qual vive como gosta, e Portugal é verdadeiramente agora aquelle torrão de assucar de que falava o corregedor de Vizeu. Falstaff e Prudhomme fazem bem as suas digestões, e consideram este canto occidental do mundo o modêlo das nações livres.

E é, com effeito, é. Como não haveria liberdade, se não ha opiniões divergentes? Viu-se já tamanha paz? tão grande accordo? Nem póde deixar de haver paz, concordia, liberdade, entre todos os portuguezes, desde que todos elles, como uma boa população de provincianos, chegando ao cumulo da sabedoria salomonica—Vanitas vanitatum! descobriram que no mundo ha só dois homens, Quixote e Sancho, e que só o segundo é credor de applauso. Opiniões, partidos, paixões, esperanças? Fumo, meus amigos. Nobreza, justiça, virtude, heroismo? Poesia! Espantado com a nossa liberdade, dizia-me alguem uma vez, perante a sala das côrtes: «Veinte padres, amigo mio! veinte curas ... y todos liberales!» Com effeito, n’este «jardim da Europa á beira-mar plantado», até o clero, combatente em França, na Belgica, na Allemanha, é liberal. «Todos liberales!» Alguns extasiam-se com isto; outros, sem patriotismo nenhum, acham que esta liberdade prova um entorpecimento deploravel da intelligencia e do caracter. São modos de vêr differentes.

[Pg 406]

O leitor já sabe que as populações, indifferentes, alheias ao governo do paiz, só reclamam que elle lhes dê obras-publicas e lhes torne o mais doce possivel o recrutamento. Enriquecendo, pouco se lhes dá o resto. Nas aldeias são politicos os empregados, nas cidades os bachareis: por toda a parte os que vivem ou aspiram a viver do Thesouro. Os trabalhadores, os rendeiros, os pequenos proprietarios «não querem saber d’isso» e no fundo, instinctivamente, desprezam o politico pela razão simples de o verem depender d’elle para os votos. Desprezam, mas não lhes passa pela cabeça o supprimil-o. Para que? Isso não rende; e entretanto arderia a ceara. Até ahi chega o instincto, e instrucção não têem nenhuma.

Mas não é raro, antes commum, e n’um sentido até normal, verem-se populações, embora soberanas de direito, viverem passivamente sob o governo de minorias, ou aristocraticas ou burguezas, a que a riqueza ou a illustração dão a força. Commum é tambem que n’essas classes directoras exista a consciencia do facto, e por systema ou interesse se procure manter esse estado social: foi o pensamento do doutrinarismo em França, na Hespanha, e foi até entre nós a idéa dos cabralistas. Mas desde que a democracia vaga e sentimental de 48 destruiu similhante plano, condemnando o machiavelismo liberal dos seus authores, o facto, embora contestado, manteve-se por outras fórmas em toda a parte onde essas classes directoras tinham, com a consciencia da sua força, a illustração bastante para governar. D’ahi saíu o cezarismo francez. Ora o triste em Portugal, e acaso o primeiro motivo da physionomia singular da nação, é a ignorancia, ou, peior ainda, a sciencia desordenada nas classes medias. Todos sabem de que genero é a educação secundaria;[Pg 407] todos sabem o que é a instrucção superior, em tudo o que não diz respeito ás profissões technicas (medicina, engenharia, etc.) cuja importancia é para o nosso caso subalterna. Com tal ensino se cria em Coimbra um viveiro de estadistas que annualmente cáem sobre Lisboa pedindo fama e empregos. O proprietario é em geral illetrado, o capitalista é brazileiro. A fortuna dos ricos, a sorte dos pobres, vão pois guiados por uma cousa peior ainda do que a ignorancia—a sciencia falsa, pedante sempre.

Que alguem se atreva a dizer a sombra de uma verdade e será condemnado. Que alguem se lembre de bolir n’um qualquer dos idolos do tempo, e será apedrejado—liberalmente! Por isso a liberdade que provém da apathia parece ao critico o symptoma do contrario da vida: da verdadeira liberdade forte, independente, na concorrencia de opiniões conscientes e sábias. Por isso nós apresentamos caracteres singulares. Leiam-se os jornaes, ouçam-se os discursos. Ninguem fala mais de papo, desculpem a expressão. De quê? De tudo. Os Pico-de-Mirandola, senhores de si, anafados, satisfeitos, sempre na rua, sempre verbosos, com as cabecinhas álerta, a resposta prompta, a fórmula breve, um andar miudinho de pedante, um livrinho azul debaixo do braço se não são janotas, nos miolos a consciencia do seu saber, da verdade definitiva da «sciencia moderna», uma grande prosapia ingenua, uma grande segurança e entono: os Pico-de-Mirandola, que sejam conservadores ou demagogos, deputados da direita ou rabiscadores de jornaes esquerdos, têem uma physionomia commum. A patria são elles; a sciencia sabem-na toda, a moderna. Sómente uns acham que é moderna a que já governa, outros fossil a[Pg 408] de hoje: só verdadeira a de ámanhan, quando elles derem a lei!

Pêccos fructos de uma arvore contaminada, se dão um passo cáem. Um dos phenomenos curiosos em Portugal é o devorar dos homens pelo governo. Hoje sobem, ámanhan somem-se, corridos, desprezados. Porque? porque a arvore, secca, apenas tem vida para reconhecer o seu definhar, para desprezar os que no seu pedantismo ingenuo, mais ainda do que na sua corrupção, successivamente se lhe seguram aos ramos. Outro phenomeno é a facilidade com que a opinião muda n’essas classes directoras da sociedade portugueza. Como um catavento, sobre um pião giratorio, batido, movido pela brisa leve, assim anda o juizo dos homens graves. Se lhes falta o alicerce do saber, e mais ainda o alicerce social de raizes lançadas pelo meio das classes vivas da sociedade! Se são um rifacimento, uma superfetação politica em um povo que nada quer saber do governo! Assim os vereis hoje em solemnes relatorios declarar a patria á beira de um abysmo, e ámanhan com egual entono chamar a Portugal um primor, á sua condição abençoada! Virarem os cataventos politicos, é caso vulgar, individual apenas, em regimes anarchicos; mas girar de tal modo a opinião sobre os proprios sentimentos essenciaes de uma nação, senão é unico, é raro: hoje ibericos, ámanhan nacionalistas; hoje tudo negro, ámanhan tudo azul; hoje arruinados, ámanhan opulentos—quem vos entende, ó sabia gente?

Entende-vos o critico, vendo n’este agitar de opiniões como as rasteiras nuvens de poeira tonta que ás vezes o vento se diverte a mover sobre uma larga campina: indifferente, o chão fica immovel. Assim os ministerios succedem aos ministerios sem[Pg 409] haver mudança. E que alteração poderia dar-se, não existindo forças moraes vivas, nem questões economicas ardentes? Que outra cousa ha a fazer senão ir, mansamente, deixando o tempo correr: dando melhoramentos ao campo, consolidando no Thesouro os dinheiros do Brazil, despachando o expediente, comprando algumas armas e navios por distracção ou simplez? Não falta quem sinceramente creia serem as cousas de sua natureza assim, assim as nações-a-valer, assim o mundo, assim a realidade. O resto? sonhos de poetas, bilis de homens amarellidos! Vamos indo assim, que vamos bem.

Outros pensam, comtudo, de um modo diverso. Ha nos seus postos, egualmente distantes, egualmente desarraigados da nação, o pessoal inteiro da Republica salvadora, scientifica, patriota, federalista, vermelhissima. Quem observa, descobre logo; um é Robespierre, outro um soffrivel Marat; não falta Desmoulins, e Theroigne de Mericourt já préga ás massas. É um velho cliché jacobino, sem Danton, é verdade! um velho cliché jacobino envernizado de novo. É tambem uma poeirada que passa; mas quando a atmosphera está incerta, de um para outro momento vem um aguaceiro que precipita o pó, e pousa sobre o chão uma camada de lodo. O tempo a seccará breve, o vento a levantará outra vez em pó, mas entretanto mais de um se ha de atolar.

É provavel essa revolução possivel? Talvez; porque a nação não tem força para a impedir, e os conservadores vivem da fraqueza alheia e não de energia propria. Talvez, porque, se não ha quem a evite, as cousas concorrem para a provocar. Será proxima? Ninguem o póde dizer: é materia de acaso. Tanto póde ser ámanhan, como[Pg 410] d’aqui a bastantes annos. Todos concordam em que isto, se não houver tropeços, ainda póde durar. Quem sabe se os demagogos de hoje ficarão na historia como os da geração precedente, acantonados pela força das cousas nas mesas das secretarias?

Talvez assim venha a succeder, e talvez não. Ha poucos annos dizia alguem que estavamos «a pedir bispo». Tenha de haver outra janeirinha, e bispo será a quéda da monarchia constitucional. Em 28 rebentou em furias o tumor historico portuguez; e para essa data futura uma puncção vasará a agua que existe no ventre da hydropica Liberdade. Ver-se ha então como cheira e a que sabe. Esse incidente politico é necessario por varias causas, particulares e geraes. As primeiras demandam estudo mais demorado a que passaremos já; as segundas estão na atmosphera que as nações latinas respiram actualmente, atmosphera viciada mais ainda entre nós pela desordem intellectual atraz esboçada.

O jacobinismo não acabou ainda. Como um camaleão, quando vestiu a côr do romantismo fez-se monarchia parlamentar; mas falta que se faça outra vez republica radical, federalista, naturalista, positivista, porque, sem ter consummado a destruição dos velhos symbolos, a sua missão não terminou. O organismo futuro das nações não poderá formar-se emquanto o velho organismo não tiver acabado de se dissolver inteiramente pelo classico aphorismo: corpora non agunt nisi soluta.

Só depois d’isso se reconstituirá o Estado e a democracia achará a definição que vem pedindo ha um seculo, sem a encontrar. Vox clamantis in deserto, ninguem lhe responde, por isso que a idéa individualista-espiritualista, conservadora ou jacobinamente[Pg 411] expressa, tyrannisa ainda as intelligencias. Mas já hoje do corpo das sciencias naturaes sae esta definição: a sociedade é um organismo vivo, contradizendo a definição de quasi um seculo: a sociedade é uma ficção, o individuo humano a unica realidade. Esta idéa nova, que todos os dias conquista partidarios, encontra a contra-prova nos factos economicos e nas tradições da historia. A civilisação de um povo apresenta os mesmos phenomenos que a evolução progressiva de qualquer individuo animal: especialisação de funcções, definição dos orgãos, cohesão de movimentos, centralisação de commando. O Estado é como um cerebro.

Ninguem já hoje crê em milagres, e menos do que em nenhum outro no do direito divino. Entretanto, é mistér vêr, n’essa concepção transcendente, o symbolo de uma idéa positiva. O espirito collectivo nunca errou; e a historia não é mais do que a explicação successiva dos enygmas por milagres symbolicos, e afinal dos milagres pelas idéas na sua pureza. O direito divino era a expressão religiosa, ou, se quizerem, metaphysica, da soberania popular. A nação personalisava-se n’um rei, da mesma fórma que a humanidade se personalisava n’um Deus-homem. Desde que não ha direito-divino todos são democratas, isto é, todos põem no povo a origem da authoridade: resta descobrir as fórmulas adequadas ao exercicio d’essa authoridade. No direito-divino a fórmula era a hierarchia, a classe. Na democracia, o criterio é a Egualdade; a fórmula acha-se na realidade das funcções organicas da sociedade. No direito-divino rege a vontade da pessoa-symbolo do monarcha; na democracia a vontade dos cidadãos.

N’este momento se chega pela doutrina á politica, e pela theoria á practica. De que modo se exprime[Pg 412] essa vontade? Viritim, individualmente, peia somma dos votos? Assim se tem dito; e d’ahi têem vindo as revoluções, a anarchia, o moderno feodalismo consequente. Oxalá que a broca da analyse—bella expressão de Mousinho!—penetre rapido e demonstre que esse processo confunde deploravelmente a administração com a politica; scinde a duração e ataca a consistencia indispensaveis aos pensamentos governativos; põe tudo, todas as cousas mais especiaes, á mercê das opiniões menos competentes; e torna os interesses collectivos dependentes dos interesses individuaes amalgamados, chocados, sem poderem fundir-se n’uma synthese organica.

Sob o nome de democracia existe apenas uma anarchia, constitucional, sim, quando atravessâmos calmarias politicas, mas que se desenfreia logo que se levanta o minimo temporal. E a liberdade consiste em uma concorrencia franca, da qual sae o consequente feodalismo—bancario, industrial, burocratico. São factos naturaes, modificados apenas nos aspectos por condições diversas. Assim, quando o Estado imperial romano decaía até tombar de todo, se distribuiram as terras a protectores armados; assim, quando o Estado monarchico acabou, se distribuiram os instrumentos de força collectiva aos novos barões da finança e da industria. São dois exemplos de pulverisação da authoridade collectiva: um violento, o outro pacifico; um sanccionado pelas armas, o outro pelas leis liberaes: ambos fataes, ambos espontaneos.

Ora emquanto a nação prescindir de cerebro, isto é, de Estado, manter-se-ha acephala; emquanto o Estado não tiver como pensamento a Egualdade, ou emquanto, mantendo-se uma ficção de poder, se obedecer de facto ás ordens dos patronos das varias[Pg 413] clientelas politicas, bancarias, industriaes; emquanto esses novos barões fizerem de povo: a Democracia será uma chimera, por isso mesmo que a nação demonstrará não ter capacidade para ser senão o que é. Á sombra de uma liberdade sempre crescente, dia a dia, com o crescer da riqueza, irá crescendo a scizão dos pobres e dos ricos, em virtude d’essa lei simples que dá a victoria a quem mais póde.

2.—AS QUESTÕES ECONOMICAS

Resta-nos agora estudar as causas d’essa crise que provavelmente nos ha de arrastar á revolução, pois no conjuncto singular dos caracteres nacionaes nem se vêem elementos com juizo bastante para evitar o conflicto, nem facções com energia capaz de derrubar o existente. Os Saldanha morreram todos; e se na ultima saldanhada de 19 de maio se viu como seria facil uma revolução, é facto que se acabou a tradição dos golpes-de-mão da soldadesca, especie quasi unica das revoluções em Portugal. Quem nos leva para a crise são as causas geraes, e uma fatalidade superior ás forças de conservadores e demagogos.

Este sentimento arraigado, geral nas classes médias, esta convicção de um destino desastrado, commum nos homens de governo, são tambem um symptoma particular que a apathia nacional explica; bastando a basofia portugueza para nos explicar a simplez com que alguns teimam em se convencer de que somos um povo feliz, rico, ditoso. Quando a opinião assim gira do norte ao sul, e desembaraçada de preoccupações partidarias, não é verdade que os seus dois pólos mostram por fórmas diversas uma enfermidade constante?

[Pg 414]

E, entretanto, póde-se ser nobre, feliz, honrado e até forte na pobreza. A opulencia é até certo ponto indifferente ao mero facto da existencia das nações. Mas não é decerto indifferente ao seu progresso, mormente quando se ficou em tamanho atrazo. A questão da capacidade de enriquecimento em Portugal é complexa. Tambem, como nós, a Grecia tem população pouco densa, vastos territorios de serras escalvadas e improductivas; mas tambem, como nós, tem no ingresso das riquezas das suas colonias commerciaes mediterraneas, o que nós temos no ingresso das fortunas dos brazileiros. É uma fonte de riqueza anormal. Com effeito, desde que as nossas guerras civis acabaram, desde que por outro lado a independencia do Brazil se consolidou, a emigração e a repatriação funccionando regularmente,[42] deram em resultado um affluxo consideravel de dinheiro. Junte-se-lhe o que entra por via de emprestimos ao Thesouro, e teremos as principaes causas do enriquecimento relativo da nação, se nos lembrarmos tambem das leis que desamortisaram o resto da mão-morta e aboliram os vinculos.

Que se póde ser ao mesmo tempo rico e incapaz, demonstra-o a qualquer a observação do proximo. As nações são n’este ponto como os homens. De 51-2 para 78-9 o valor do nosso commercio e o rendimento das nossas alfandegas triplicaram; mas para prevenir os optimistas convém dizer que, ainda triplo, não vae além de 13:500 rs. a capitação do nosso commercio externo: quasi o mesmo que em 1818, já depois dos francezes,[43] e sem contar com a subida do valor dos generos, proveniente do da diminuição do valor da moeda. Não exageremos pois[Pg 415] a nossa fortuna. E menos o devemos fazer ainda, quando observarmos que, sem uma crise, sem uma guerra, apenas com estradas e caminhos deferro; sem justificação cabal, a não ser a do nosso desgoverno, nos temos endividado de modo que, se em 54 cada portuguez pagava 600 rs., cada portuguez paga por anno, em 79-80, rs. 3:077 de juros da divida nacional.

Não ha duvida que a riqueza collectiva tende a crescer, embora o accrescimo da população seja lento: outrotanto succede em França, e todos sabem que os dois movimentos podem não corresponder, podem ser até inversos. É de esperar, comtudo, que em outro quarto de seculo triplique ainda? De certo não. Houve causas especiaes que determinaram um salto, e ha causas organicas a impedir as progressões rapidas, só com effeito observaveis nos paizes onde a industria occasiona uma singular condensação de riqueza, como na Inglaterra, na Belgica, na França do norte, na Alsacia, etc. Os paizes principalmente agricolas só enriquecem lentamente. A nós succede-nos que, além de nos faltar o carvão, materia prima industrial, nos faltam materias primas incomparavelmente mais graves ainda: juizo, saber, educação adquirida, tradição ganha, firmeza no governo e intelligencia no capital. Todas estas faltas essenciaes, e o avanço ganho pelos outros povos da Europa, affigura-se-nos condemnarem-nos a ficar decididamente occupados em lavrar terras e emigrar para o Brazil. Os lucros agricolas e o dinheiro dos repatriados são o mais liquido das nossas economias nacionaes. A tentativa fabril do setembrismo não foi mais feliz do que a pombalina; e o vapor matou a nossa industria historica de transportes maritimos, porque tambem fomos uma Grecia marinheira, no extremo[Pg 416] opposto da Europa. Estava na natureza da Regeneração o ser livre-cambista: esse proto-naturalismo ainda não definira as nações como organismos: via apenas massas, e a circulação livre como vivificação. O meio atrophia e extingue muitas especies; e contra a influencia d’elle reagem os cruzamentos, as domesticações, todas as artes humanas. A sociedade é em grande parte um producto d’ellas; e tambem o homem é um animal domesticado por si proprio.[44]

Regenerada á solta lei da natureza, a nação vê que, em parte consideravel, a riqueza creada sobre ella não lhe aproveita. Os caminhos de ferro que não são do Estado, pertencem a estrangeiros; a estrangeiros o melhor das nossas minas; estrangeiros levam e trazem o que mandamos e recebemos por mar. Só o solo nos pertence, só o liquido do rendimento agricola nos enriquece? Não. Á fartura de uma população rural ignorante, junta-se a opulencia das classes capitalistas de Lisboa e das cidades do norte, não mais culta, porém mais videira. Uma granja e um banco: eis o Portugal, portuguez. Onde está a officina? E sem esta funcção eminente do organismo economico não ha nações. Póde haver populações provinciaes; póde haver Monacos; mas falta um orgão á circulação, um membro ao corpo humano. Um povo constituido em nação é como um abecedario: todas as lettras lhe são necessarias para escrever o que pensa.

E como em Portugal faltam lettras, os escriptos portuguezes não se entendem. Assim as populações ruraes e as urbanas, a propriedade e o capital, sem o nexo da industria, isoladas, não se penetram. Se o capitalista compra terras, é para as arrendar, vivendo[Pg 417] sempre do juro. E capitalista e proprietario, provinciano um, cosmopolita o outro, nenhum sente palpitar em si a alma da nação. Um olha para os milhos, o outro para os papeis, absorvidos ambos no seu interesse egoista, indifferentes a tudo o mais. A economia consumma de tal fórma o que a historia preparou: o governo é um rifacimento. Os politicos são uma classe áparte; as finanças e o Estado um outro, um extranho a que o proprietario pede melhoramentos e o capitalista juros. Como corretor, o politico, de permeio, recebe de um os emprestimos, dá aos outros as obras, e vive da corretagem. Proclama pois a excellencia de tudo, e quando apregôa o credito que temos lá fóra, esquece dizer que os banqueiros de Paris são tambem outros corretores que sabem o destino final dos papeis em mais ou menos breve praso: a burra do brazileiro.

Que se lhe dá o proprietario do que passa em Lisboa? Imagina com razão que nada lhe arrancará d’alli ao pé o caminho-de-ferro ou a estrada. E ao capitalista que se lhe dá? Os jurinhos vão vindo; rabiscando por aqui, por ali, jogando um pouco, assignando emprestimos, creando o seu banco, etc. vive bem, satisfeito, os annos que lhe restam. É positivo e pratico, como os que não vêem um dedo adiante do nariz. E finalmente o politico, esfregando as mãos, demonstra em discursos e relatorios que se não póde ir melhor: os rendimentos crescem: vejam! Como é grande o nosso paiz! E a platéa de Sanchos, mas sem ironia sequer, Sanchos conservadores, Sanchos demagogos, Sanchos monarchicos e republicanos, metaphysicos e positivistas, proprietarios e capitalistas, nobres e burguezes: toda a platéa applaude, grita, acclama a fortuna do grande reino da Barataria.

Decerto é um desvairado misanthropo, nada moderno,[Pg 418] que contesta o fundamento de acclamações tão unanimes. Desvairado o que pergunta qual cresce mais: se a receita, se a despeza? Desvairado o que pergunta com que recursos se fará o que falta: a instrucção que não temos, as obras publicas de que possuimos apenas uma amostra. Desvairado, o que indaga a raiz das cousas e se não contenta com os aspectos. Desvairado, o que pensa no que seria de nós se o brazileiro desconfiasse, e deixasse de comprar a divida com que saldamos contas annualmente; ou se uma guerra, outra crise na America, embaraçasse o ingresso dos capitães.[45] Desvairado o que pergunta o que será de nós então: que fazer de toda a gente: orfans, viuvas, hospicios, asylos, hospitaes, com os seus fundos convertidos em papel do Estado? Então, na crise da penuria, se observará a limpo a verdade da confiança!

E entretanto essa crise affigura-se a espiritos desvairados como o nosso, tão fatal, tão necessaria como a crise constitucional, e muito mais séria do que ella. Se a nossa liberdade é a expressão da nossa absoluta anemia politica, a nossa fortuna apparente exprime a nossa cegueira economica. E assim como a todos convém não bolir na constituição, assim convém a todos que se não bula na reputação de ricos. Como ao enfermo ou ao arruinado, sobre tudo nos convém guardar a immobilidade e as apparencias. Quem lucra em as negar? Quem tem coragem e força para dizer da tribuna do governo: peccámos, senhores, peccámos: perdoae-nos! Quem tem genio para indicar o caminho do arrependimento? As causas vêem de mais longe:[Pg 419] estão na fatalidade das cousas, de que a vontade dos homens é apenas o instrumento.

E como se haveria de exigir d’elles uma confissão de arrependimento que os arruinaria a todos? aos politicos nos seus interesses e vaidades; aos capitalistas nos seus juros e papeis; aos proprietarios nas urgencias que têem de novos caminhos? Não seria querer mais do que as forças humanas consentem?

Por uma doirada estrada, tambem se vae para o supplicio. Em Roma, que pensaria o boi quando o adornavam de collares e faxas preciosas, para o conduzirem ao altar nos suovetaurilios lustraes? Como uma rez, nós marchamos todos, seguindo os sacerdotes que nos levam, perfumados de myrrha, coroados de plantas odoriferas: bellas phrases, sorrisos de satisfação alegre, passo grave e gesto largo. Mas em Roma o sacerdote sabia que ia matar o boi: em Portugal ignora o politico que talvez conduza a nação ao seu fim? Mede bem o alcance do ponto futuro, inevitavel? O da Regeneração foi o fim da Liberdade: como se chamará o que nos espera?

3.—AS QUESTÕES GEOGRAPHICAS

Já em outra obra,[46] já em paginas anteriores d’esta, dissemos o que deviamos ácerca do lugar da nossa terra na Peninsula. E se o leitor tem presente o que escrevemos, decerto faz uma observação. É a mais singular das feições singulares que temos successivamente indicado. Mais ou menos, um ou outro dia, todas as nações pequenas[Pg 420] tiveram a receiar a perda da independencia: não é isto o que nos particularisa. Em nós succede que, no decurso de uma historia de já quasi oitocentos annos, é constante o sentimento, ou de medo, ou de esperança em uma fusão no corpo da nação visinha. Este oscilar da opinião tambem de norte a sul, como um catavento, sem estabilidade, não está mostrando a falta do que quer que é similhante ao lastro que mantém seguros, enterrados n’agua, os navios? Agora, são guerras feridas para nos defender, logo planos para nos annexar; agora declamações de odio a Castella, logo confissões de impotencia no isolamento. E isto vem assim, durante oito seculos, como these e antithese, que se não resolvem. Singular! Não parece que, no desdobramento dos nossos pensamentos collectivos, nunca chegou a formular-se cathegoricamente o da independencia? Não parece que, no desenvolvimento do nosso organismo, se por um lado attingimos a independencia politica, a litteraria, a lingua independente, falta ainda—faltará sempre?—um que quer que seja bastante, para dar a populações provincialmente differenciadas, a differenciação radical que affirma as nações? Um protesto póde ter força para conservar de pé quem o pronuncia, e a prova é a nossa separação de facto; mas não é singular que, apezar de ás vezes parecer esquecido o sentimento de negação e ganhar segurança consciente o da autonomia: não é singular que, declarada uma crise, appareça invariavelmente, e até hoje, o espirito nacional dividido entre as ameaças do patriotismo, as confissões da fraqueza, e as esperanças da união?

Notado este caracter da nossa historia, ainda patente em nossos dias, não nos cumpre agora indagar-lhe as causas nem expôr-lhe a theoria:[Pg 421] trata-se de estudar a influencia que póde ter nos destinos ulteriores da nação.

É fóra de toda a duvida que a Europa se constitue no seculo actual em um grupo de grandes imperios, cujo contorno definitivo ainda não está inteiramente desenhado. Varias cousas concorrem para isso: a complexidade crescente do organismo das nações, a centralisação de commando consequente, a natureza dos meios de communicação, de aggressão. N’esta lucta para a vida collectiva são tambem devorados os pequenos, e por isso, quando causas imprevistas não venham impôr uma direcção differente ás tendencias constitucionaes das nações europêas, parece necessario que n’um periodo mais ou menos distante Portugal e todas as demais nações minusculas desappareçam.

Não é, comtudo, essa ainda propriamente a questão. Por grande que seja a nossa basofia e a mania da desproporção com que entre nós se avalia tudo, é facto que teriamos de obedecer, voluntaria ou involuntariamente, a um destino geral e necessario. Se o concerto europeu decretasse, e a Hespanha podesse cumprir o decreto de absorpção, para onde se havia de appellar? Pelo amôr de Deus, supprima o leitor aqui as phrases inchadas que a tal respeito escrevem os jornaes e dizem os deputados: morrer até ao ultimo, alviões por armas, etc. Tambem os chinezes pensaram fazer parar as tropas franco-britannicas, vedando-lhes o caminho com monstros de papel pintado! Mas o palacio de Pekin ardeu.

Não temos exercito digno d’esse nome, é verdade; nem a raia, nem os portos defendidos. Mas não é essa a questão, porque havendo vontade e dinheiro o problema resolve-se, ainda que a relação entre a extensão das fronteiras, terrestres e maritimas,[Pg 422] e a área e população de um reino estreito e longo aggravam as dificuldades. Embora. O portuguez é, como o turco, um bom soldado; krupps compram-se; e quando não ha generaes, alugam-se. Assim nós fizemos sempre: Schomberg, Lippe, Beresford, Solignac, Bourmont, Napier.—Resta porém dizer que tudo isso seria em pura perda: a Dinamarca estava armada até aos dentes e bateu-se denodadamente. Esta hypothese de uma absorpção sentenciada pelos congressos europeus, é porém relativamente indifferente para o nosso caso. Está claro que a sentença se cumpriria por vontade nossa ou per vim. Contra a força não ha resistencia.

O que nos interessa a nós saber, é se da marcha natural das nossas cousas sairá ou não, declarada uma crise, a perda da independencia: porque, se não queremos perdel-a, convém tambem estudar o modo de o conseguir. Ora n’este momento, se escutamos os pareceres dos homens graves, ve-mo-nos sériamente embaraçados, porque tambem achamos os pensamentos dos estadistas correndo como cata-ventos, do norte ao sul, de um polo ao polo opposto. Singular terra em que tudo gira á mercê do vento, e permanentemente se discute a propria raiz da vida nacional! Não se diria que ella, arrancada do solo, batida pelo ar, sem alimento, se mirra?

Mousinho e Palmella, na crise da primeira metade do seculo, tiveram opiniões oppostas; e durante a paz da segunda metade essas duas opiniões continuam antagonicas. Um dizia que, perdido o Brazil, nós perderamos os elementos de vida independente: D. João VI chamava a isto o seu canapé da Europa. Outros, variando agora sobre o mesmo thema, apoiam o parecer quando declaram indispensavel á vida portugueza fazer da Africa[Pg 423] um novo Brazil.—De outro lado, com sérios argumentos, mostra-se a differença dos tempos e dos meios, e condemnando-se o dinheiro gasto nas colonias—dinheiro perdido!—repete-se a opinião de Mousinho, affirmando-se que qualquer porção de gente, trabalhando e vivendo em qualquer zona de territorio, póde constituir uma nação: Portugal tem dentro de si, na Europa, elementos de vida e prosperidade!—Não será facilimo destruir os argumentos de uns pelos dos outros, e concluir por uma negação total? Talvez se chamasse temerario, e decerto se lapidaria quem o fizesse. Mas o que é necessario affirmar, embora chovam pedras, é que uma tal divergencia de opiniões sobre o proprio nó vital portuguez depõe muito pouco em favor de uma conclusão affirmativa.

O leitor sabe como, ancorada em Lisboa a patria pelos seus fundadores, principiámos a saír o Tejo, a rodear a Africa e viemos a viver da India, e do Brazil depois. Sabe que meios se empregaram, e tambem que differenças de condições e idéas ha hoje: o commercio é uma concorrencia, não um monopolio; o trabalho é livre, não forçado, etc.[47] Se portanto inquirirmos a historia, acharemos na tradição fundamento para o primeiro parecer; mas se estudarmos as idéas e condições actuaes, parece-nos claro que essa tradição se scindiu, e que é pelo menos problematico o exito da empreza de a restaurar.

Em que ficamos, pois? Sim ou não? Quem sabe? O vento assobia, a agulha gira, do norte para o sul, do sul para o norte ... Se não ha opiniões firmes, como ha de o critico descobril-as? Quem sabe? Talvez? O ministro fulano disse, o conselheiro[Pg 424] sicrano opinou ... E emquanto, rodando, girando, a agulha obedece aos movimentos mais desencontrados, o critico observa que a nação, nas suas granjas e nos seus bancos, ceifando cearas e juros, provincial ou cosmopolita, vae andando. Vamos indo; vamos vivendo. Não é a unica observação positiva que se póde fazer?

O egoismo deita para depois de si o diluvio; o espirito pratico olha apenas para o pão-nosso de cada dia. A verdade é que Palmella enganava-se quando suppunha o Brazil perdido. O Brazil dá-nos muito dinheiro, sem o trabalho de o governarmos. Mas o que poupamos por esse lado perde-mol-o por outro. Outr’ora vinham quintos para o Thesouro, hoje vêem saques para particulares. Esses saques breve se convertem em inscripções, é verdade; mas o processo é mau, porque, assim, o Thesouro tem dividas em vez de rendas; e se por fim, quando o ponto final vier, o resultado tivér sido o mesmo, o ponto trará comsigo a mais grave das crises.

Perdemos ainda por outro modo. Outr’ora o portuguez ia, voltava, sem se desnacionalisar; hoje não renega a patria, mas casa-se com brazileiras, desenraiza-se da sua aldeia e vem para o Porto ou para Lisboa formar uma classe exotica, opulenta, mas com um papel desorganisador da homogeneidade e do funccionar normal da economia da sociedade. Cosmopolitas, esses caçadores de juros, nada vêem fóra dos papeis: nem o trabalho, nem a industria, nem o estudo.

Que remedio? Um unico, evidente, immediato: exploral-os. É o que faz a politica pratica, sacando-lhes o dinheiro em emprestimos com que compra por melhoramentos a adhesão dos campos; sacando-lhes tambem subsidios para directamente[Pg 425] comprar os eleitores soberanos das cidades. Que remedio?

O diluvio dista ainda; e no armazem dos expedientes ainda os ha com fartura. Com o dinheiro do Brazil, directa ou indirectamente se resolvem as questões internas; com a tradição brigantina da alliança ingleza consegue-se manter uma independencia de acrobata no trapezio. As colonias, dadas, pedaço por pedaço, desde 1640, servem de maroma. Havia um resto de India que nos servia para nada, aos inglezes para muito: enfeodou-se, e muito bem. Porque se hesita em dar Moçambique, o Zaire? Porque a agulha com um sopro de vento apontou ao norte: as colonias são a salvação do paiz!

Mantém-nos, comtudo, de pé só esta protecção da Inglaterra? Não, de certo. Defende-nos a desordem da Hespanha, por tantos lados similhante á nossa; defende-nos o haver lá aquillo mesmo que faz o nosso mal organico: a falta de alma ou pensamento consciente na direcção do Estado. Defende-nos tambem, vagamente, a historia, com os seus sete seculos tão fustigados pela rhetorica, com a lingua differenciada, com uma dynastia, com um Camões, até com o estalar dos foguetes e phrases nos Primeiro-de-Dezembro. Tudo isso tem o seu valor, embora muitas vezes o perca pela mania de desproporcionar tudo, grave symptoma do nosso juizo avesso.

Outros motivos mais pesados nos defendem tambem, no sentido de que poderiam trazer sérios embaraços digestivos á Hespanha, se ella irreflectidamente decidisse engulir-nos, e o fizesse. Primeiro, é difficil assimilar uma população de quatro milhões a quem não conta mais do quadruplo; depois, é difficil, com essa relação numerica, realisar uma[Pg 426] combinação dualista, como a Suecia-Noruega, ou a que foi Inglaterra-Escocia. Para nos fundirmos somos demasiados, para o dualismo poucos. N’um caso poderiamos reagir o bastante para impedir a consolidação da unidade, no outro não contariamos o sufficiente para ter em respeito o collega.

Além d’isso, está Lisboa, excentrica, á maneira de Nova-York. Madrid é como um Washington: onde ficaria a capital? D. Sinibaldo e o iberismo da Regeneração, pensando bem n’este caso, propunham Santarem. Mas quanto vae d’ahi aos Pyreneus? E ficariam em Portugal a capital politica e a capital commercial? Lisboa, que a geographia destinou para magestoso porto da Peninsula, tornou-se pelos acasos da historia o maior embaraço á unificação dos Estados peninsulares. Sobre o seu porto ancorou Portugal, como uma cabeça de gigante n’um corpo de pigmeu, e d’ahi lançou braços pelo mundo transatlantico. Vieram inimigos posteriores com armas aceradas cortar os tentaculos d’esse monstruoso polypo do seculo XVI, mas ficou a cabeça ainda e o pigmeu. Por outro lado, tambem a Hespanha bracejou para o mar: Vigo do norte, Cadix do sul, duas portas subalternas, ganharam vida e importancia. A unificação politica da Peninsula traria comsigo revoluções graves á Hespanha: Cadix, Vigo, decairiam, reduzidos ao seu trafego natural; Lisboa tornar-se-hia a Nova-York do occidente da Europa.—Mas uma Nova-York portugueza? Sim. Ou seria mistér repetir as scenas de oppressão violenta para a fazer castelhana.

Taes embaraços, resolvem-nos os phantasistas com a phantasia federal. Dir-me-heis que federação ha entre a cabeça que dirige e a mão que obedece, entre o estomago que digere e o musculo que[Pg 427] se alimenta? Em vez de federação, chimera nascida do erro de suppor aggregados as nações, dizei coordenação organica, para exprimir o funccionar d’esses corpos collectivos. O afamado principio federativo já defendido em 54, restaurado agora pelo néo-jacobinismo, é um crasso erro de observação sociologica e uma aberração do estudo politico, historico.[48] É uma fórma primitiva das republicas; e do mesmo modo a fórma embryonaria das aggregações animaes inferiores. Um coral é uma federação, uma colmeia é uma sociedade. Á maneira que o typo se define e cresce a eminencia das suas funcções, coordenam-se os orgãos. O exemplo dos Estados-Unidos tem feito um grande mal aos que da Europa não vêem que a aggregacão colossal de gentes desvairadas, em territorios illimitados, exprime um typo rudimentar de sociedade, repetindo em nossos dias e com os meios materiaes de uma consumada civilisação, os exemplos primordiaes da historia. D’aqui por um ou dois seculos se verá em que pára a federação americana. Da Suissa, quem a estudar, vê como, á maneira que hoje os caminhos-de-ferro, perfurando as suas montanhas, a afastam da vida primitiva agricola em que se mantivera, como se tém mantido tantos animaes ante-diluvianos: vê, dizemos, que vae pouco a pouco rasgando a sua constituição federal, obedecendo á força das cousas.

Que a fórma definitiva de coordenação das funcções, fórma vindoura, mas bem distante ainda! tenha no Estado democratico um caracter federativo, de orgãos equiparentes, dirigidos pelo forte cerebro de um Estado, pensamol-o: mas esse criterio pouco importa agora, se ás esperanças sentimentaes[Pg 428] ou ás chimeras doutrinarias, se trata com effeito de substituir na politica o espirito positivo. A observação mostra-nos que tudo concorre para apressar uma marcha cada vez mais accentuada no sentido da centralisação e das dictaduras pessoaes ou collectivas.

Em Hespanha, o antigo espirito jacobino, encorporando-se nas tradições localistas, e inspirando-se na doutrina de Proudhon, deu de si a deploravel historia cantonalista. Viu-se agitarem-se alliadas as idéas mais incongruentes: era a ultima revolta fuerista, era um novo 1812 individualista, eram communas socialistas. O passado, o presente, o futuro, n’um turbilhão, corriam, prégando loucuras, semeando anarchias. Na Serra-Morena havia já alfandegas como na Edade-média; em Alcoy incendios como os de Paris; por toda a parte declamações como as de Cadix, levantando em altares a soberania? a divindade, do Individuo! Um equivoco de observação, um erro de doutrina, e o facto da unificação ainda não consummada das raças peninsulares deram isto de si. Já em 90, em França, os girondinos não poderam fazer outro tanto: e, se em França ha federalismo, é socialista, communalista; e não historico, geographico, ethnico. O atrazo relativo da fusão das raças peninsulares, esse facto em que os néo-jacobinos, com o seu chefe Pi y Margall, viam um argumento em favor proprio, (V. Las nacionalidades) era, e é, o máximo argumento contra a opportunidade da revolução, cujos laivos socialistas se desmandavam em preoccupações tradicionaes. Como se o ideal consistisse em restaurar a Edade-media com os seus cantões e povos differenciados, isolados pela força das cousas, e pelo isolamento, hostís!

Em Hespanha o partido caíu com a deploravel[Pg 429] ruina da empreza. Entre nós, porém, não deixou de haver quem viesse offerecer-nos esse prato requentado da cosinha revolucionaria. Não se sabe, comtudo, ás vezes bem se o nosso joven federalismo é iberico, se o não é; ainda que d’elle saiu a singular idéa de fazer de nós os authores da hegemonia peninsular. Onde leva a falta de proporção no avaliar as cousas! Não parece um cumulo de ironia, a invenção de um espirito humorista, o dizer a uma nação que vive perguntando se póde existir, dizer-lhe que d’ella depende a existencia alheia? Na serie de symptomas singulares do nosso estado mental, deve ficar como documento esta idéa da novissima geração.

Ninguem, porém, tema que a precedente, e é ella quem nos governa ainda, se deixe seduzir por tão extravagantes politicas. Ella é pratica, e como tal, não tem mais ambição do que a de manter o que existe, acompanhando passivamente, passo a passo, o desenvolver espontaneo dos elementos da vida nacional. O seu liberalismo provém da sua passividade calculada. Vamos andando. A Inglaterra, confiam elles que nos ha de proteger: e quando não houver Africas para lhe pagar? Entretanto, o minhoto vae, o brazileiro vem, e os emprestimos tomam-se; entretanto as estradas fazem-se e o proprietario enriquece. E cada vez mais esta pequena Turquia do occidente, com a sua Lisboa que é outra Constantinopla, ganhando a força de uma existencia rural, provinciana, e de uma vida bancaria cosmopolita, perde o caracter organico de nação. Entre-se no Tejo, entre-se até no Douro, e ver-se-hão as bandeiras de todas as còres, menos a portugueza; formigam, fumando, os vapores inglezes. Lisboa é uma estalagem, nós os recoveiros. Não! que desde que ha caminhos-de-ferro nem o lucro[Pg 430] das recovagens embolsamos; somos o moço da arriaria, porque o nosso capital prefere aos caminhos-de-ferro, se não são do governo, as inscripções de cá ... e de Hespanha! Proprietarios ou juristas os burguezes e os lavradores, caixeiros e artífices de industriaes forasteiros os proletarios, a nossa situação é de facto como a do turco. Ahi nos conduziram as qualidades de um genio por tantos lados affín, os resultados de uma condição a tantos respeitos similhante. Lisboa é para nós um elemento de resistencia passiva: Constantinopla é-o para elles. Não se está vendo quanto custa a resolver esse problema? O nosso é proximamente egual. Tambem á Europa convirá mais ter no Tejo uma estação franca, do que a cabeça de um imperio concorrente. Se assim é, com effeito, temos de optar entre duas hypotheses, nenhuma d’ellas, por certo, inteiramente satisfactoria: ou abdicar da autonomia em favor de um futuro distante de grandeza peninsular; ou conformarmo-nos a ir vivendo, regeneradamente, á espera do que está para vir. É uma crise? Decerto. Um cataclysmo? Talvez sim, talvez não: depende das circumstancias. Será, como consequencia natural dos factos actuaes conhecidos, um futuro honroso, nobre, meritorio? Será outra vez a repetição de D. Manuel, ou do Brazil de D. João V? Não se vê como possa ser.

O que eu d’aqui estou vendo, ao pôr as ultimas palavras n’esta obra triste, é o leitor irritado amarfanhar o livro nas mãos, pisal-o com os pés, vingando-se do atrevimento de quem lhe disse cousas que tanto o offendem. Nunca os jornaes tal escreveram, nunca o parlamento ouviu taes heresias: nem os velhos, nem os moços jámais as proferiram! Tambem os medicos, por via de regra, escondem ás familias a gravidade das doenças:[Pg 431] umas vezes não as percebem, outras convem lhes mentir, para não assustar! Assim estão as classes que nos governam; e até hoje, força é dizer que o povo não descobriu ainda meio de se libertar d’ellas.

Nem descobriu o meio, nem demonstrou a vontade. Dorme e sonha? Ser-lhe-ha dado acordar ainda a tempo?

[Pg 433]

NOTAS DE RODAPÉ:

[42] V. O Brazil e as colon. port.

[43] V. Hist. de Port.

[44] V. Elem. de Anthropol.

[45] Foi o que succedeu com a revolução do Brazil em 1889: deitou abaixo o castello-de-cartas portuguez. (3.ª ed.)

[46] V. Hist. de Portugal.

[47] V. O Brazil e as col. n. port.

[48] V. Instituições primitivas, pp. 290 e segg.


[Pg 432]

APPENDICES


A
CHRONOLOGIA

1826Março—6. Nomeação da Regencia do reino por D. João VI: a infanta D. Izabel Maria presidente.—10. Morte de D. João VI.—20. Reconhecimento de D. Pedro IV, rei, pela Regencia.

Abril—26. D. Pedro IV, do Rio, confirma os poderes da Regencia.—27. Amnistia os crimes politicos.—29. Outorga a Carta Constitucional.—30. Nomeia os pares do reino, segundo a Carta.

Maio—2. D. Pedro IV abdica a corôa em D. Maria II sob condição de jurar a constituição e casar com D. Miguel.

Julho—2. Chegada de Stuart a Lisboa na corveta Lealdade com a Carta.—12. Publicação da Carta em Lisboa, pela Regencia.—31. Juramento da Carta. = 22-6. Pronunciamentos militares absolutistas no Minho e Traz-os-Montes; suffocados.

Agosto—1. Izabel-Maria, regente em nome de D. Maria II.—3. Composição do ministerio constitucional. = 21. Tentativa de pronunciamento absolutista do corpo de policia em Lisboa.

Outubro—4. Juramento da Carta por D. Miguel em Vienna de Austria.—5. Pronunciamento do marquez de Chaves em Villa-Real; pron. militares em Vizeu, Villapouca,[Pg 434] e no Algarve.—8. Eleições das camaras.—23-5. Invasão dos absolutistas refugiados em Hespanha: Silveira por Bragança, Telles-Jordão por Almeida, Magessi pelo Alemtejo. Guerra civil. Sublevação de toda a provincia de Traz-os-Montes.—29. Celebração dos espousaes de D. Miguel e de D. Maria II em Vienna.—30. Abertura das côrtes geraes em Lisboa.

Dezembro—15. Acção de Cavez, indecisa.—16. Recomposição do ministerio no sentido reaccionario; entrada do bispo de Vizeu.—23. Encerramento das côrtes. = 24. Chegada da divisão ingleza de Clinton a Lisboa, partindo para o theatro da guerra.

1827Janeiro—2. Abertura das camaras.—9. Derrota dos absolutistas em Aguiar da Beira.—19. Convenção anglo-portugueza para a defeza da Carta.

Fevereiro—5. Acções da Ponte do Prado e da Barca; repellidos os absolutistas para além da fronteira.

Março—8-10. Desarmamento dos exercitos absolutistas internados em Hespanha; fim da guerra civil.—31. Encerramento das camaras.

Abril—13. Amnistia dos emigrados, que a não acceitam.—28. Saldanha segunda vez ministro da guerra, reacção liberal.—29. Sublevação absolutista da guarnição de Elvas.

Junho—8. Recomposição ministerial, no sentido constitucional; saída do bispo de Vizeu.

Julho—3. D. Pedro, no Rio, nomeia D. Miguel seu um lugar-tenente em Portugal.—23. Saída de Saldanha do ministerio.—24. Tumultos republicanos em Lisboa (Archotadas).—28-30. Agitação do Porto.

Agosto—27. Chega a Londres o decreto de 3 de julho.

Outubro—8. Chega a Lisboa o Camões, portador do decreto.—24. Sae de Lisboa a fragata Perola para conduzir D. Miguel.

Dezembro—6. D. Miguel sae de Vienna. O banco suspende o pagamento das notas, restabelecido a 10.—19, em Paris;—30, em Inglaterra.

1828Janeiro—2. Abertura das camaras.

Fevereiro—9. D. Miguel embarca em Plymouth.—22. Chega a Lisboa.—26. Jura a Carta, assume a regencia, nomeia ministerio, substitue os governadores militares.

Março—14. Dissolução das camaras. Nomeação da Junta das instrucções eleitoraes. Prohibição do hymno da Carta.—18. Assassinato dos lentes de Coimbra, em Condeixa.

Abril—2. Retirada da divisão ingleza.—25. Tumultos[Pg 435] absolutistas em Lisboa. Acclamação de D. Miguel I pelo Senado da capital, de Coimbra e de Aveiro.

Maio—3. Representação da nobreza do reino pedindo a acclamação. Decreto convocatorio dos Tres-Estados.—(No mesmo dia, no Rio, D. Pedro declara definitiva a sua abdicação e nomeia D. Miguel regente em nome de D. Maria II).—14. Dissolução dos batalhões do commercio e nacionaes em Lisboa.—16. Pronunciamento constitucional da guarnição do Porto, formação da Junta de governo; sedição de Aveiro.—18. Acclamação de D. Miguel nos Açores.—22. Restauração da Carta, na Terceira; acclamação de D. Pedro em Coimbra.—25. Pronunciamento constitucional no Algarve, suffocado.—26-30. Creação dos batalhões de voluntarios realistas. Saída do exercito do governo para o norte. Pronunciamento constitucional da praça de Almeida.— 28. Manifesto da Junta do Porto; creação de batalhões de voluntarios de D. Pedro IV.

Junho—2-20. Marcha do exercito da Junta até Condeixa.—21. Retira sobre Coimbra. Organisa-se o batalhão academico.—20. Execução dos estudantes de Coimbra.—23. Reunião dos Tres-Estados no paço da Ajuda. Reintegração dos emigrados de 27 em Hespanha, que voltam ao reino.—22. A Madeira adhere á Junta do Porto.—24. Acção da Cruz de Morouços.—26. O exercito da Junta retira sobre o Vouga. Chegada ao Porto do Belfast com Palmella, Terceira, Saldanha, etc.—28. Acção do Vouga; o exercito da Junta retira sobre Azemeis.—30. D. Miguel assume o titulo de rei.

Julho—3. Entrada do exercito no Porto; retirada dos da Junta pelo Minho, direcção da Galliza. Partida do Belfast com os emigrados que trouxera. Dissolução da Junta.—5. Partida de D. Maria II do Brazil para vir casar com o tio.—6. Entrada do exercito constitucional na Galliza.—7. Juramento de D. Miguel, perante os Tres-Estados.—11. Acclamação do rei.—14. Alçada ao Porto.—15. Dissolução da assembléa dos Tres-Estados. A Terceira não recebe o governador enviado por D. Miguel.—16. Capitulação da guarnição de Almeida.

Agosto—6. Alçada á Madeira.—4-18. Decretos do Terror: creação do conselho militar, confisco dos bens dos emigrados, commissão dos crimes de lesa-magestade, devassas.—15. Chegada da esquadra á Madeira.—20. Desembarque de officiaes constitucionaes do Porto; resistencia da ilha.—22. Ataque pela esquadra, desembarque, restauração do governo de D. Miguel.—26. Começa na Galliza o[Pg 436] embarque do exercito da Junta, para Inglaterra, terminando em 12 de setembro.

Setembro—2. Chega a Gibraltar D. Maria II, do Brazil, e sabe da usurpação, partindo para Inglaterra.—8. Desembarque de officiaes constitucionaes na Terceira, vindos de Inglaterra na fragata brazileira Isabel; constituição de um nucleo de resistencia.—24. Chegada de D. Maria II a Falmouth.

Outubro—6. Id. a Londres, onde fica.—4. Acção do Pico do Celleiro, e submissão de toda a ilha Terceira ao governo constitucional; installação de uma Junta provisoria de governo.

Novembro—9. Accidente em que D. Miguel fractura uma perna caíndo da carruagem.

Dezembro—Bloqueio da Terceira por navios de guerra inglezes.—7. Dissolução do deposito dos emigrados constitucionaes em Plymouth, por ordem do governo inglez.

1829Janeiro—6. Partida de Saldanha com quatro navios de emigrados para a Terceira.—9. Tentativa frustrada de revolta militar em Lisboa.—16. O cruzeiro inglez impede o desembarque de Saldanha.—30. Regressa a expedição, chegando a Brest; interna-se em França.

Fevereiro—2. Desembarque dos Voluntarios da Rainha na Terceira.—14. Novo desembarque de emigrados de Inglaterra.

Março—3. Novo desembarque id.—6. Execução em Lisboa dos condemnados da conspiração do brigadeiro Moreira.—Suppressão do bloqueio inglez da Terceira.—8. Chegada de 600 emigrados de Inglaterra.

Maio—7. Execução, no Porto, dos réus da insurreição da Junta de 16 de maio 28.

Junho—16. Partida de Lisboa da expedição para submetter a Terceira.—22. Chegada de Terceira a Villa-da-Praia como capitão-general, nomeado por Palmella em Londres.

Julho—29. Apparecimento da esquadra do governo nas aguas da Terceira; bloqueio.

Agosto—11. Acção da Villa-da-Praia; repellida a tentativa de desembarque das tropas do governo; retirada da esquadra.—13. Introducção dos jesuitas em Lisboa.—29. Protesto de Barbacena em Londres em nome da rainha, contra a politica ingleza.—31. Partida da rainha para o Brazil, com a noticia da victoria da Villa-da-Praia.

Outubro—2. Reconhecimento de D. Miguel, rei, pelos Estados-Unidos da America;—11, pela Hespanha.

[Pg 437]

1830Janeiro—7. Morte da Rainha viuva D. Carlota Joaquina, em Lisboa.

Março—7. Morte do marquez de Chaves.—15. Chegada de Palmella á Terceira; constituição da Regencia.

Junho—15. D. Pedro, do Rio, confirma a Regencia da Terceira. (Palmella, Terceira, Guerreiro).—Chegada a Brest do marquez de Santo Amaro, enviado de D. Pedro.

Outubro—18. Nova bandeira portugueza, bicolor.

1831Fevereiro—8. Tentativa frustrada de sedição militar em Lisboa.

Abril—7. Emprestimo levantado na Terceira.—Abdicação de D. Pedro, imperador do Brazil, no Rio.—13. Saída do ex-imperador do Brazil, para a Europa.—Id. de D. Maria II para Brest, na Saine.—17. Expedição da Terceira ás ilhas de oeste.—19. Ruptura de relações do governo de Lisboa com a França; saída do consul, de Lisboa.

Maio—4. Em viagem, D. Pedro toca no Fayal, escrevendo a Terceira.—9. Occupação da ilha de S. Jorge pelos constitucionaes.

Junho—12. Chegada de D. Pedro a Cherburgo.—23. Occupação do Fayal, seguida pela de Flores, Corvo e Graciosa.—26. Chegada de D. Pedro a Londres.—Segundo emprestimo na Terceira.

Julho—11. Entrada da esquadra franceza no Tejo, apresamento dos navios portuguezes.—26. Visita de D. Pedro a D. Maria II em França.—30. Partida da expedição da Terceira a S. Miguel.

Agosto—1. Desembarque na ladeira da Velha, occupação de S. Miguel.—16. D. Pedro fixa a residencia em França.—22. Pronunciamento constitucional de infanteria 4 em Lisboa, suffocado.

Setembro—21. Reconhecimento de D. Miguel, rei, pelo papa.

Outubro—2. Morte de José Agostinho de Macedo.

1832Fevereiro—2. Manifesto de D. Pedro.—10. Organisada a expedição em Inglaterra, armada em Belle-Isle, D. Pedro parte para os Açores.—22. Chega a S. Miguel.

Março--3. Chega D. Pedro á Terceira. Assume a regencia. Nomeia ministerio. (Palmella, Mousinho, Freire) Terceira general, sob o regente.—28. Manifesto de D. Miguel.—29. Bloqueio da Madeira pela esquadra constitucional, levantado em maio, sem resultado.

Abril—4. Decreto de abolição parcial de morgados.—19. Id. da siza, portagens e direitos feodaes.—25. D. Pedro vae a S. Miguel preparar a expedição ao reino.

[Pg 438]

Maio—16. Decreto organisando a administração, a justiça e a fazenda.

Junho—20-2. Embarque.—27. Partida da expedição de S. Miguel para o continente.

Julho—8. Desembarque em Pampelido.—9. Entrada no Porto, evacuado pelas tropas do governo.—14. Primeiro ataque dos miguelistas, rechassado.—18. Acção de Penafiel.—22. Reconhecimento de Vallongo, retirada para Rio-Tinto.—18. Junção dos generaes miguelistas Santa-Martha e Povoas em Souto Redondo, ao sul do Douro.—23. Batalha de Ponte-Ferreira.—27. Acção de Grijó.—29. Organisação da ordem da Torre-e-Espada.—30. Decreto de abolição dos dizimos.

Agosto—7. Acção de Souto-Redondo, derrota e retirada sobre o Porto—8. Reconhecimento miguelista sobre o norte do Porto.—12. Decreto de abolição das doações regias.—12. Decreto de abolição dos bens da corôa.

Setembro—8-11. Ataques á Serra do Pilar e ao Porto, repellidos. Occupação de Gaya pelos miguelistas. Principio do bombardeamento. Teixeira (Pezo da Regoa) toma o commando do exercito miguelista.—16. Sortida constitucional, occupação do cerro das Antas.—29. Ataque geral dos miguelistas ao Porto, repellido.

Outubro—11. Batalha naval nas aguas do norte, indecisa.—13-14. Ataques á Serra-do-Pilar, repellidos. Desenha-se o cerco, artilhando-se a margem esquerda do Douro.—16. Partida de D. Miguel para Braga.—26. Santa Martha substitue Teixeira no commando.

Novembro—14, 17, 28. Sortidas successivas dos sitiados, batidos.

Dezembro—17. Sortida a Gaya, batida.—Revista de D. Miguel ao exercito sitiante.

1833Janeiro—1. Solignac, general do exercito constitucional.—24. Ataque frustrado ás posições miguelistas do Crasto e do Queijo, a noroeste do Porto.—28. Chegada de Saldanha.

Fevereiro—21. O conde de S. Lourenço general do exercito miguelista.

Março—4-24. Ataques miguelistas ás linhas leste e noroeste, repellidos.—16. Vinda de D. Carlos para Portugal.

Abril—9. Sortida e occupação do reducto do Covello.

Junho—1. Chegada ao Porto de Palmella e Napier, com reforços.—8. Napier almirante.—13. Demissões de Sartorius e Solignac.—Saldanha chefe do Estado-maior;[Pg 439] Terceira commandante da expedição do sul, com Napier, e Palmella governador civil.—21. Partida da expedição do Algarve.—24. Desembarque e occupação de Tavira.

Julho—5. Batalha naval do Cabo de S. Vicente, apresamento da esquadra miguelista.—14. Bourmont commandante do exercito miguelista no Porto.—25. Ataque ás linhas, repellido.—23. Acção da Piedade, destroço dos miguelistas.—24. Entrada de Terceira em Lisboa, evacuada pela guarnição miguelista.—26. Partida de D. Pedro, do Porto, para Lisboa por mar.—27. Morticinio dos presos de Estremoz.

Agosto—9. Retirada de Bourmont do Porto para o sul. Reconhecimento do governo de D. Maria II pela Inglaterra.—10. D. Miguel em Coimbra.—15. Decreto convocando côrtes.—18. Saldanha bate a divisão miguelista do Porto, levanta o cerco pelo norte e leste.—20. Os miguelistas retiram da margem sul.—D. Miguel e o exercito avançam de Coimbra sobre Lisboa.—25-6. Concentração das forças miguelistas em torno de Lisboa.

Setembro—5-14. Ataques ás linhas constitucionaes, repellidos.—18. Substituição de Bourmont por Macdonell no commando do exercito miguelista.—22. Chegada de D. Maria II ao Tejo, por mar, de França.—27. Prorogação da convocação das côrtes.—Exigencias de Hespanha perante D. Miguel para a expulsão de D. Carlos do territorio portuguez.

Outubro—10-11. Sortida de Lisboa para leste. Saldanha obriga os sitiantes a retirar sobre Santarem, onde se fortificam.—Reconhecimento do governo de D. Maria II pela França;—23, pela Belgica.

Novembro—3. Expedição constitucional ao Alemtejo; acção de Alcacer, morticinio dos prisioneiros.

1834Janeiro—14. Saldanha toma e fortifica Leiria.—30. Acção e victoria de Pernes.

Fevereiro—18. Batalha de Almoster.

Março—18. Decretos de exautoração do infante D. Miguel e abolição da casa do Infantado, encorporados os bens nos da nação.—Operações no Minho.—23. Napier toma Caminha.—27. Vianna e Ponte de Lima.—Cabreira entra em Santo Thyrso.

Abril—2. Occupação de Braga.—3. de Valença.—Expedição de Terceira ao centro do reino; chega ao Porto; operações no Tamega.—22. Tratado da quadrupla alliança.

Maio—8. Occupação de Coimbra.—10. Confirmação do[Pg 440] tratado em Lisboa.—16. Batalha da Asseiceira.—17. Retirada de D. Miguel de Santarem para Evora.—18. Occupação de Santarem.—27. Convenção de Evora-Monte.—28. Convocação das côrtes ordinarias.—Decreto de abolição das ordens religiosas.—30. Embarque de D. Miguel.

Junho—20. Manifesto de D. Miguel, de Genova.

Julho—4. Expulsão dos jesuitas.—Interrupção de relações com a côrte de Roma.—23. Decreto da extincção do papel-moeda.

Agosto—15. Reunião das côrtes.—28. Confirmação da regencia de D. Pedro.—30. Juramento da carta pelo regente.

Setembro—20. D. Maria II começa a reinar.—24. Morte de D. Pedro.—Ministerio Palmella, principio do regime parlamentar em Portugal.

Outubro—4. Votação da lei de soccorros aos lavradores.

Dezembro—1. Casamento da rainha com o principe de Leuchtenberg.—19. D. Miguel e seus descendentes banidos por lei.

1835Março—28. Morte do rei-esposo. Tumultos de Lisboa contra Palmella e o seu governo.

Abril—23. Conversão da divida da 6% em 4.

Maio—27. Queda do gabinete Palmella. Saldanha no governo.

1836Janeiro—9. Casamento da rainha com o principe D. Fernando de Coburgo.

Julho—14. Incendio do palacio do Thesouro, no Rocio de Lisboa.—Dissolução das camaras, convocadas para 11 de setembro.

Setembro—9-10. Sedição em Lisboa, suppressão da Carta. Queda do ministerio. Dictadura de Passos-Manuel.—11. Juramento da Constituição de 22 pela rainha.

Novembro—4. Conspiração palaciana, abortada, para restaurar a Carta. (Belemzada) Assassinato de Agostinho José Freire.—12. Convocação de côrtes constituintes.

1837Janeiro—26. Abertura do congresso constituinte.

Maio—13. Sedição miguelista das Marnotas, suffocada.

Junho—1. Queda de Passos-Manuel. Gabinete Sá-da-Bandeira.

Julho—12. Sedição militar cartista, revolta dos Marechaes, (Saldanha, Terceira).

Agosto—28. Acção do Chão-da-feira.

Setembro—16. Nascimento de D. Pedro V.—18. Acção[Pg 441] de Ruivães, convenção de Chaves, emigração dos marechaes vencidos.

1838Março—9-13. Revoltas dos radicaes, clubistas do Arsenal, em Lisboa.

Abril—4. Juramento da constituição novamente feita. Regresso dos marechaes.

Junho—14. Tumultos radicaes em Lisboa.

Outubro—31. Nascimento de D. Luiz I.

1839—Queda do gabinete Sá. Ministerio Sabrosa.

Novembro—26. Queda de Sabrosa. Ministerio Bomfim-Cabral-Rodrigo.

1840Fevereiro—Dissolução da Camara.

Maio—26. Abertura do parlamento; maioria cartista.

Agosto—11. Tumulto setembrista em Lisboa, suffocado.—26. Pronunciamento em Castello-Branco. (Miguel Augusto) idem.

Fevereiro—15. Execução de Diego Alves, na forca.

Julho—25. Homicidios de Mattos Lobo, em Lisboa.

Maio—21. Publicação da Novissima reforma judiciaria. Restabelecimento das relações com a côrte de Roma.

1842Janeiro—14. Partida do ministro Costa Cabral para o Porto.—27. Pronunciamento militar no Porto, restaurando a Carta (de 26).

Fevereiro—5. Os pronunciados marcham sobre Coimbra.—7. Queda do gabinete: ministerio Palmella-Soure-Avila.—8. Sedição cartista em Lisboa.—9. Gabinete Terceira-Mousinho.—10. Decreto restaurando a Carta com promessa de uma reforma.—14-16. Dissolução das Juntas cartistas do Porto e Coimbra.—19. Regresso de Costa Cabral a Lisboa.—24. C. C. ministro do reino; principio da longa administração Cabral-Terceira.

Março—18. Promulgação do novo codigo administrativo.—30. Manifesto da coalisão das opposições, setembrista, miguelista e cartista dissidente.

Julho—10. Abertura das camaras.—16. Execução de Mattos Lobo na forca: a ultima em Portugal.

1843Julho—1. Lei de reforma das contribuições: decima de repartição.

1844Fevereiro—4. Pronunciamento militar em Torres-Novas, suffocado.

Abril—8. Sedição da praça de Almeida, rendida.

Agosto—1. Reforma da organisação da justiça.—Nova lei eleitoral.

1846Abril—15. Sublevação popular no Minho (Maria-da-Fonte).[Pg 442] Formação de Juntas revolucionarias no reino.—20. Decreto de suspensão de garantias.

Maio—20. Queda do gabinete perante a revolução. Exilio dos irmãos Cabraes.—26. Ministerio Palmella; desarmamento das Juntas. Curso forçado das notas do banco de Lisboa. Regresso dos emigrados de 44.

Agosto—21. Decreto impondo segunda decima ás inscripções. Prorogação do curso forçado das notas.

Outubro—1. Nova prorogação.—6. Golpe d’Estado, demissão do gabinete Palmella. Saldanha no ministerio.—9. Restabelecimento da antiga lei eleitoral. Dissolução das camaras.—Terceira, mandado ao Porto, como lugar-tenente, é ahi preso.—10. Sublevação do Porto, creação da Junta, propagação do movimento de resistencia em varios pontos do reino.—16. O ministerio pede a intervenção extrangeira para debellar a revolução.—25. Pronunciamento de S. Miguel.—26. Marcha do exercito da Junta sobre Santarem.

Novembro—4. Occupação de Santarem pelos revoltosos.—6. Costa Cabral embaixador em Madrid. Saída de Saldanha, com o exercito fiel, de Lisboa.—14. Decreto do curso forçado permanente das notas do banco.—16. Acção de Val-passos, entre Sá-da-Bandeira e Cazal.—19. Decreto de fusão do Banco de Lisboa e da Companhia Confiança.—25. Entrada dos miguelistas em Guimarães.

Dezembro—3. Tomada de Valença, pelos de Lisboa.—4. Ataque de Vianna pelos miguelistas.—Manifesto da Junta do Porto.—Acção de Ourem.—22. Acção de Torres-Vedras, victoria de Saldanha pela rainha.—26. Creação do banco de Portugal.—31. Os miguelistas trucidados em Braga, morte de Macdonell.

1847Fevereiro—1. Degredo dos prisioneiros de Torres-Vedras para Africa, no Audaz.—27.—Ataque de Estremoz pelo conde de Mello, patuléa.

Março—28. Partida da expedição de Sá-da-Bandeira, por mar, do Porto a desembarcar em Lagos; marcha sobre Lisboa.

Abril—11. Sedição em Lisboa, mallograda.—29. Tumulto de Lisboa; abertura das cadeias. Fome: começam as distribuições de sopa-economica, até junho.— Pronunciamento da Madeira.

Maio—1. Acção do Alto-do-Vizo.—21. Protocollo de Londres para a intervenção extrangeira.—22. Pronunciamento da Terceira.—27. Bloqueio do Douro, pela esquadra ingleza.—30. Embarque da expedição do conde das[Pg 443] Antas no Porto.—31. Aprisionamento pela esquadra ingleza.

Junho—3. Entrada da divisão hespanhola de Concha, que occupa o Porto. Os inglezes em S. João da Foz.—24. Convenção de Gramido, dissolução da Junta e fim da guerra civil.

Dezembro—9-14.—Decretos abolindo o curso forçado das notas e retirando-lhes a garantia do Estado.

1849Abril—4. Morte de Mousinho da Silveira.

Junho—18. Queda do gabinete Saldanha. O conde de Thomar presidente do conselho.

1850Fevereiro—7. Demissão de Saldanha, de mordomo-mór do paço. Opposição ao ministerio.

1851Abril—7. Partida de Saldanha para o Porto. Pronunciamento militar do norte; marcha sobre Lisboa. (Regeneração).

Maio—1. Queda do conde de Thomar. Saldanha no governo—15. Entrada em Lisboa.—18. Tentativa de pronunciamento cabralista, suffocada. Reforma da lei eleitoral.

Julho—7. Constituição do ministerio: Saldanha, Rodrigo, Fontes.

1852Julho—5. Acto addicional á Carta Constitucional.

Dezembro—18. Decreto de conversão da divida, em titulos de 3%.

1853Novembro—15. Morte de D. Maria II. Regencia de D. Fernando.

1855Setembro—16. Principio do Reinado de D. Pedro V.

1856Junho—6. Queda da Regeneração. Gabinete Loulé: o partido historico.

Outubro—28. Inauguração da 1.ª secção da linha de Leste.

1857Fevereiro—9. Alvará de introducção das irmans da Caridade.

Maio--18. Casamento de D. Pedro V com D. Estephania.

Agosto-Dezembro—Febre amarella em Lisboa.

1858Julho—17. Morte de D. Estephania.

1859Março—16. Queda de Loulé. Gabinete Fontes-Martens-Cazal-Serpa. (2.ª regeneração).

1860Junho—30. Reforma das instituições vinculares.

Julho—4. Ministerio Loulé-Lobo d’Avila.

[Pg 444]

1861Abril—4. Lei da desamortisação dos bens dos conventos e estabelecimentos pios.

Novembro—6. Morte do infante D. Fernando.—11. Id. de D. Pedro V.—16. Enterro do rei.

Dezembro—22. Reinado de D. Luiz I.—25. Tumultos de Lisboa.

1862Janeiro—18. Morte de Passos-Manuel.

Junho—9. Expulsão das irmans de Caridade.

Setembro—15. Revolta de Braga, suffocada.—27. Casamento do rei com a princeza de Saboya, D. Maria Pia.

Novembro—4. Morte de José Estevam.

1863Maio—19. Abolição dos morgados.—30. Abertura do caminho de ferro a Badajoz.

1865Setembro—4. Ministerio Aguiar. (Fusão).—15. Abertura da exposição universal do Porto.

1868Janeiro—4. Tumultos no Porto e Lisboa. Janeirinha. Ministerio Avila.

[Pg 445]


B
OS MINISTERIOS LIBERAES[49]

(1.ª Epocha—Dictadura da Regencia)

Datas Presidencia Reino Estrang. Guerra Marinha Justiça Fazenda Obras-Pub.
1832— Março 3 Palmella Freire Mousinho da Silveira
Julho 29 Mous. Albuq. Palmella Freire Mous. Albuq. »
Setembro 25 Palmella » » » »
Novembro 10 Mous. Albuq. » » Sá da Band. »
    »    18 Sá da Band. Freire » » »
Dezembro 3 » » » » Magalhães-S Carvalho
1833— Janeiro 12 Xavier Loulé » » » »
Março 26 Mous. Albuq. Palmella » Silv. Carvalho » »
Abril 21 Xavier Loulé » Loulé Silva Carvalho
Julho 26 » Xavier » Freire »
Outubro 15 Aguiar Freire » Margiochi »
1834— Abril 23 Carmo » » » Aguiar S. Carvalho

(2.ª Epocha—Regime parlamentar—cartista)

Datas Presidencia Reino Estrang. Guerra Marinha Justiça Fazenda Obras-Pub.
Setembro 24 Palmella S. Luiz Villa Real Terceira Freire Ferraz S. Carvalho
1835— Fevereiro 16 » Freire Palmella » Villa-Real » »
Março 20 » » » Villa Real » »
Abril 28 » » Villa Real Linhares Leitão »
Maio 4 Linhares » » » » »
    »    26 » » Villa Real Saldanha » » »
    »    27 Saldanha Magalhães Palmella » Loulé Chancelleiros Campos
Julho 15 » Rodrigo » » » Magalhães S. Carvalho
    »    25 » » » » Atouguia » »
Novembro 18 » Sá da Band. Loulé Loureiro Sá da Band. Caldeira Campos
    »    25 Loureiro Mous. Albuq. » » » » »
1836— Abril 19-20 Terceira Freire Villa Real Terceira Miranda Aguiar S. Carvalho

(3.ª Epocha—Revolução de Setembro)

Datas Presidencia Reino Estrang. Guerra Marinha Justiça Fazenda Obras-Pub.
Setembro 10 Lumiares Passos M. Sá da Band. Lumiares Lumiares V. Castro Sá da Band.
Novembro 3 Valença Banho Valença Leiria Leite Oliveira Porto-Covo
    »    5-6 Sá da Band. Passos M. Sá da Bandeira V. Castro Passos M.
1837— Maio 27 » » Sá da Bandeira Passos M.
Junho 1-2 Dias Oliveira Mesquita Bobeda D. Oliveira Tojal
Agosto 10 Sá da Band. Sanches » Bobeda Sá da Band. Al. Campos »
Outubro 25 » » » » Tojal » »
    »    30 » » » Celestino » » »
Novembro 9 » » Sá da Band. Bomfim » »
1838— Março 9 » Tojal Sá da Band. Tojal
    »    22 » Coelho » Leitão »
Abril 17 » » » Bomfim Sá da Band. Chancelleiros
1839—     »    18 Sabroza Sanches Sabroza Araujo »
Setembro 25 » » Sabroza Ottoline » »
Novembro 26 Bomfim Rodrigo Bomfim Villa Real Thomar Ferraz
Dezembro 28 » » Villa Real Bomfim » » »
1841— Janeiro 28 » » » » » » Miranda
Março 12 » » Rodrigo » Miranda » Tojal
Junho 9 Aguiar » Villa Real Pestana » Avila
1842— Fevereiro 7-8 Palmella Magalhães Palmella Sá da Band. Atouguia Soure »

(4.ª Epocha—Restauração da Carta)

Datas Presidencia Reino Estrang. Guerra Marinha Justiça Fazenda Obras-Pub.
    »    9 Terceira Mous. Albuq. Terceira Loureiro Mous. Albuq. Loureiro
    »    20 » » » » Felgueiras »
    »    24 » Thomaz » Campello Mello Carv. Tojal
Setembro 5 » » » Tojal » »
    »    14 » » Castro Terceira Falcão Algés »
1844— Junho 27 Terceira Thomar Castro Terceira Falcão Thomar Tojal
1845— Maio 3 » J. Cabral » » » J. Cabral »
Julho 24 » Thomar » » » » »
1846— Abril 21 » » » » » Thomar »
Maio 20 Palmella Saldanha Terceira Palmella
    »    23 » » » Mous. Albuq. »
    »    26 Palmella Mous. Albuq. Lavradio Saldanha Loureiro Soure Palmella
Julho 19 Palmella » Sá da Band. Mous. Albuq. Aguiar Sanches
Outubro 6 Saldanha V. Oliveira Carreira Saldanha Portugal Farinho V. Oliveira
    »    13 » » » » » » Algés
Novembro 4 » » Portugal Algés » » »
1847— Fevereiro 20 » » » Ovar » » Tojal
Abril 28 » Proença Bayard Tojal Leitão »
Maio 3 » » Bayard Barca » » »
Agosto 22 » Mello Carv. Luz Almofalla J. Fontes Ferrão Franzini
Dezembro 18 Saldanha Gorjão Saldanha Albano Queiroz Falcão
1848— Janeiro 8 » » Saldanha Francos » » »
Fevereiro 21 » » » » » Moura »
Março 29 Saldanha Castro » Ourem Faria »
1849— Janeiro 29 » » Ourem Vargas L. Branco
Junho 18 Thomar Tojal Ferreri Ferraz Felix Avila
1851— Abril 26 Terceira Felix » » » » »
» » » » Terceira » » »

(5.ª Epocha—Regeneração)

Datas Presidencia Reino Estrang. Guerra Marinha Justiça Fazenda Obras-Pub.
Maio 1 Saldanha Luz Francos Franzini
    »    17 » » Saldanha Luz »
    »    22 Saldanha Pestana Atouguia Saldanha Loulé Soure Franzini
Julho 7 » Rodrigo » » Fontes Rodrigo Ferrão
Agosto 21 » » » » » » Fontes
1852— Março 4 » » Garrett » Atouguia Seabra »
Agosto 17 » » Atouguia » » » »
    »    19 » » » » » Rodrigo »
    »    30 » » » » » » » Fontes
1853— Setembro 3 » » » » » S. Pereira » »
1856— Junho 6 Loulé Sanches Loulé Loureiro Sá da Band. Pessoa Loureiro Sá da Band.
    »    25 » » » » » » » Loulé
1857— Janeiro 23 » » » Sá da Bandeira » Sanches »
Março 14 Loulé » Ferrer Avila Carlos Bento
Maio 4 » » Avila »
Setembro 8 » Couceiro » » »
Dezembro 7 » » » J. Silvestre » »
1858— Março 31 » » » Avila »
Dezembro 16 » Sá da Bandeira » »
1859— Março 16 Terceira Fontes Terceira Ferreri Martens Cazal Serpa
1860     »    12 » » » Fontes » » »
Abril 24 » » Cazal Serpa » » » »
Maio 1 Aguiar » » Luz Vargas » » »
Julho 4 Loulé Avila Garcez C. Bento Moraes Carv. Avila Horta
Dezembro 3 » » Sá da Band. » » » »
1862— Fevereiro 21 Loulé Braamcamp Loulé » M. Leal Gaspar Valbom »
    »    26 » » » » » » » Loulé
1864— Janeiro 14-16 Loulé Ferr. Passos » » » Abreu Sousa
Dezembro 12 » » Abreu e Sousa » » »
1865— Março 5 Loulé Sabugosa Loulé Sá da Band. Loulé Ayres Mathias »
1865— Abril 17 Sá da Band. Sanches Avila Sá da Band. Sanches Avila Carlos Bento
Setembro 4 Aguiar Castro T. Novas Pr. Grande Barjona Fontes Castro
    »    26 » » Praia-Grande » » »
Novembro 22 » » França » » » »
1866— Abril 23 » » Praia-Grande » » »
Maio 9 Aguiar Martens Cazal Fontes » » » Cazal
Junho 6 » » » » » » » Corvo
1868— Janeiro 4 Avila Magalhães Amaral Seabra J. Dias Canto

NOTAS DE RODAPÉ:

[49] V. a Noticia dos Min. e Secr. Estado etc. (Lisboa 1871).—Dividimos os gabinetes em cinco series ou epochas, conforme o regimen constitucional vigente: na 2.ª ep. entra a Carta em exercicio; na 3.ª substitue-se-lhe a constituição de 20, e depois a de 38; na 4.ª volta a por-se em vigor a Carta de 26; na 5.ª finalmente fazem-se n’ella alterações constitucionaes.—Os gabinetes, pois, não vão classificados por partidos politicos, cousa que seria quasi impossivel, attendendo á excessiva versatilidade de muitos ministros; mas o leitor, cotejando este catalogo com o texto, fica sabendo a côr ou caracter de cada gabinete.

Como muitos dos politicos, adornando-se de titulos, mudaram de nome, e isso possa dar lugar a confusões, usámos sempre do ultimo nome por que são conhecidos.


C
MINISTROS DE D. MIGUEL
(1828-1834)

[Pg 451]

Duque de Cadaval; min. assistente (até 1 julho 1831).

Conde da Louzan, D. Diogo; fazenda.

Conde de Villa Real; guerra e estrangeiros (até 3 março 1828).

Visconde de Santarem; estrangeiros (desde 13 março 1828).

Conde do Rio Pardo; guerra (de 3 março 1828 a 20 fevereiro 1829).

Conde de S. Lourenço; id. (desde 20 fevereiro 1829).

Conde de Barbacena; id. interino (desde 21 fevereiro até 16 julho 1833, durante o commando do exercito pelo effectivo).

Conde de Basto; reino e marinha (até á sua morte em 2 agosto 1833).

Guião; reino (desde 22 setembro 1833).

Rio de Mendonça; justiça (até 11 abril 1829).

Barbosa de Magalhães; id. (até 27 junho 1831).

Paula Furtado; id. (desde 27 junho 1831).

Bourmont; guerra int. (desde 15 agosto 1833).


INDICE
DO TOMO SEGUNDO

LIVRO QUARTO

A ANARCHIA LIBERAL

(1834-39)

I O REGABOFE 1
   1. A sessão de 34 1
   2. Os bens nacionaes 9
   3. O Thesouro queimado 17
   4. A familia dos politicos 31
   5. Væ victis! 46
II PASSOS MANUEL 58
   1. A revolução de setembro 58
   2. A Belemzada 73
   3. As côrtes constituintes 84
   4. As revoltas 94
   5. As folhas caídas 111
III O ROMANTISMO 120
   1. A voz do propheta 120
   2. A poesia das ruinas 125
   3. Renascimento 130
   4. A ordem 138

LIVRO QUINTO

O CARTISMO

(1839-51)

I COSTA-CABRAL 143
   1. Os ordeiros 143
   2. A restauração da Carta 153
   3. A Doutrina 158
II A REACÇÃO 170
   1. A coalisão dos partidos 170
   2. Torres-Novas e Almeida 175
   3. A Maria-da-Fonte 183
III A GUERRA CIVIL 197
   1. O 6 de outubro 197
   2. A Junta do Porto 213
   3. O Espectro 227
   4. A primavera de 47 239
IV OS IMPENITENTES 259
   1. O cadaver da nação 259
  2. O conde de Thomar 269

LIVRO SEXTO

A REGENERAÇÃO

(1851-68)

I ALEXANDRE HERCULANO 283
   1. A ultima revolta 283
   2. O fim do Romanismo 293
   3. O Solitario de Val-de-Lobos 302
II A LIQUIDAÇÃO DO PASSADO 328
   1. A rapoza e suas manhas 328
   2. A conversão da divida 334
   3. Os historicos 348
III AS GERAÇÕES NOVAS 360
   1. A iniciação pelo fomento 360
   2. O iberismo 367
   3. O socialismo 381
   4. D. Pedro V 389
IV CONCLUSÕES 402
   1. As questões constitucionaes 402
   2. As questões economicas 413
   3. As questões geographicas 419

APPENDICES

   A. Chronologia 433
   B. Os ministerios liberaes 445
   C. Os ministros de D. Miguel 451